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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RUA DA SEDA / Régine Deforges
RUA DA SEDA / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Mais uma vez Léa Delmas e François Tavernier lutam por um ideal. Desta vez, François é encarregado de negociar a paz com o presidente do Vietnã, que luta por independência. Léa junta-se a ele, e mais uma vez, eles se vêem cercados pelos horrores da guerra.

 


 


Capítulo 1

— Léa Delmas, aceita como esposo François Tavernier, aqui presente?
— Sim.
Em vez da alegria tão esperada, um sentimento de angústia dominou a
jovem e sua mente ficou confusa... ouvia os berros dos soldados alemães... a risada enlouquecida de Sarah... a música do seu último tango, Adiós
muchachos, compañeros de mi vida.., a voz de Ernesto Che, Léa...
Todavia, afirmar que amava o homem que se encontrava a seu lado, era
muito pouco! Sem ele, a vida lhe parecia simplesmente impossível. Tomara
consciência da intensidade de seu amor na Argentina, quando, casado com
Sarah para ajudá-la em sua caça aos criminosos nazistas, François havia
manifestado um gesto de ternura para com aquela mulher. Diante do
sofrimento experimentado Léa entendera que era com ele, e com mais ninguém,
que desejava viver e partilhar absolutamente tudo. A seu lado, a linda jovem
fantasista e vaidosa transformara-se em amante atenciosa.
Tavernier não era apenas um homem maravilhoso, mas também o único
capaz de lhe aplacar os anseios, deixando-a otimista quanto ao futuro. Então,
por que todas aquelas imagens de sangue e ódio?...
Por que aquele pavor que lhe causava arrepios?... E aquela música
lancinante que não conseguia apagar de sua mente: Adiós muchachos...?
Padre Henri olhou-a surpreso; não era comum que uma jovem noiva
cantarolasse durante a cerimônia de casamento. Mais estranho ainda, seu ar
alheio, sua expressão de indiferença, da qual saíra por um breve instante,
quando a aliança deslizara em seu dedo, brutalmente empurrada por François,
como se ele quisesse dizer:
"Agora você é minha." O anel do noivo entrara com dificuldade. Antes de
deixar a basílica de Verdelais, Léa ajoelhou-se rapidamente diante da pequena
santa de que tanto gostava: Exuberância. A bela boneca de cera com os olhos
fechados permanecia no mesmo lugar, imutável.
— Obrigada — murmurou Léa, ao tocar o vidro do relicário.
Seu olhar cruzou-se então com o do marido e o que ela pôde ler devolveu-
lhe toda a sua força.
Aninhada nos braços de François, Léa piscou com a claridade do adro.
Após a penumbra do santuário, a luminosidade do verão incomodava. Apesar
do calor e das palmas de um pequeno grupo de pessoas, a noiva estremeceu.
François, com ar sério, cingiu-a estreitamente. Ambos pensavam na

perseguição sob as árvores da praça, nos carros pretos conduzindo os reféns...
os amigos presos, torturados, mortos...
— Agora, tudo acabou, prometo — disse ele com infinita ternura.
Corria o final de agosto de 1947, o tempo estava lindo; se continuasse
assim, as vindimas seriam excelentes. Apesar das dificuldades materiais, das
restrições ainda em vigor, graças a Alain Lebrun, Montillac tornara-se
novamente uma próspera fonte de renda. Françoise parecia radiante com o
bebê no colo; Pierre recebera muito bem a irmãzinha, embora lamentasse não
ser um menino.
Charles, filho de Camille e de Laurent d'Argilat, crescera bastante. Era
uma criança calma e ajuizada que levava muito a sério o papel de padrinho de
Isabelle. Chorara de felicidade nos braços de Léa: "Você não vai mais embora,
fica com a gente para sempre?" Lisa de Montpleynet refazia-se da morte de sua
irmã Estelle; quase todos os dias, com pequenos passos cada vez mais lentos,
visitava-a no cemitério de Verdelais. Ruth voltara a ser como antes da guerra: a
presença das três crianças devolvera-lhe a alegria de viver. A senhora Lefèvre
falecera pouco depois da viagem de Léa à Argentina. Ao ficar sabendo, por
intermédio de Françoise, do casamento da mulher que ele não deixara de amar,
Jean Lefèvre partira da região, deixando a propriedade em mãos de um meeiro.
A bordo do Kerguelen, Léa soube que estava grávida. Censurou-se, então,
por não ter dado ouvidos aos conselhos de François, que queria lhe impor
certas precauções. Era tarde demais para se lamentar! Tudo bem, ela casaria
antes da data prevista. Não era o que o seu amante tanto desejava? Ele
enlouqueceria de felicidade com a notícia de sua futura paternidade... No
entanto, Léa teve a sensação de que o coração deixara de bater e um frio
intenso a dominara. François era mesmo o pai do filho que ela esperava?...
Após a morte de Sarah, Léa havia sido presa de um arrebatamento sexual que
satisfazia Tavernier... e surpreendia Ernesto.
Por várias vezes, Tavernier cruzara com o jovem estudante nos corredores
do hotel Plaza; no início, pensou tratar-se apenas de um simples flerte, até o
dia em que os surpreendeu numa cena que não deixava dúvida. "Galinha",
pensou ele, quase divertido, ao fechar a porta. Um pouco mais tarde, porém,
François sentiu profunda cólera. Ao voltar para o quarto, encontrou Léa
sozinha e esbofeteou-a com tanta violência que a jovem foi ao chão. Ela se
escondeu atrás da cama, fungando, com o rosto oculto entre os braços como
uma garotinha. Aquele gesto infantil acalmou-o. Sentou-se na cama,
profundamente abatido por um sofrimento desconhecido. Sabia que Léa lhe
fora infiel, mas não existia compromisso algum entre eles; ele não tinha por que
censurá-la. Entretanto, deitado na mesma cama em que, ainda há pouco...
François nunca imaginara experimentar dor tão intensa por causa de uma
mulher!... Léa não podia sentir-se atraída por aquele rapazinho, só fizera amor
com ele por mero capricho, por ociosidade, mas não tinha a menor importância.
A menor! Sendo assim, por que François sofria dessa maneira ao revê-la
abraçada com outro?... "Léa é minha", pensava. "Não quero que outros homens

a toquem... Eu a conheço, sei perfeitamente como costuma entregar-se no
amor... Não posso suportar a idéia de que ela..."
Transtornada, Léa olhou com espanto para as lágrimas escorrendo pelo
rosto do homem a quem tanto amava. Deitara-se a seu lado, o coração
transbordando de emoção. Permaneceu trêmula, imóvel e calada. Em seguida,
procurou a sua mão, os seus lábios enxugaram as lágrimas dele e a sua boca
pronunciou palavras de consolo, juras que os amantes atormentados
costumam trocar quando atravessam momentos de grande aflição. Por sua vez,
François beijou-a dominado por um violento arrebatamento. Penetrou-a
desejando machucá-la, humilhá-la. Os gemidos de Léa estimulavam a sua
paixão, aumentavam a sua animosidade. Na boca de ambos, mesclava-se o
gosto de sal e de sangue.
Mais tarde, Léa soube encontrar as palavras certas para que ele a
perdoasse. Adormeceram, enlaçados. Serenos?...
Ela só voltou a ver o amigo argentino no dia da viagem.
A primeira reação de François Tavernier, ao tomar conhecimento da
gravidez de Léa, foi a de abraçá-la e demonstrar toda a sua alegria; mas a
rigidez do corpo da jovem fez com que ele a soltasse. Empalideceu diante
daquele rosto embaraçado.
— O filho não é meu? — perguntou em tom ríspido.
Encontravam-se na popa do transatlântico, o cabelo de Léa esvoaçando ao
forte vento. Usando um simples vestido branco e sandálias, o rosto sem
maquiagem alguma, ela parecia uma adolescente atordoada. Mais uma vez,
François sentiu-se comovido com a fragilidade que Léa não conseguia
dissimular. Repetiu a pergunta.
— Não sei — respondeu Léa.
Não sabe!... Ela não sabe!... Vai para a cama com todo mundo, engravida e
nem sabe de quem!...
Inesperadamente, ele deu uma gargalhada.
— Deve estar brincando! As mulheres sempre sabem esse tipo de coisas.
Sentiu-se profundamente ridículo ao se ouvir repetir aquele chavão.
Entretanto, tinha certeza de que essa criança era realmente dele. Tal
pensamento fez com que sorrisse.
Por que Léa olhava-o com aquele ar submisso? Não combinava com o seu
modo de ser: habituara-se a vê-la combativa, audaciosa, impetuosa,
despreocupada, desconfiada, ao mesmo tempo alegre e melancólica, sensual e
divertida. Preferia as lágrimas à submissão.
— O importante é que a mãe seja você. Um filho teu é o melhor dos
presentes. Pouco importa o pai! Pronto... Pronto... calma!... Não chore assim,
vai acabar passando mal!

Léa soluçava tanto que François teve dificuldade em deitá-la.
A viagem prosseguiu em meio à calma e à felicidade; no entanto, uma
notícia veio lembrar que, para certas pessoas, a tragédia ainda não terminara: o
Presidente Wafield, apelidado Exodus por seus 4.530 passageiros, judeus
refugiados da Alemanha e emigrantes clandestinos, havia sido detido pelas
autoridades britânicas na baía do porto de Haifa. O navio, proveniente de Sete,
fora reconduzido sob escolta para Marselha, onde os passageiros recusaram-se
a desembarcar. O cabograma relatava que a embarcação dirigia-se para a
Alemanha.
Tal informação acabou com a alegria da viagem. Lembraram-se de Uri ben
Zohar e Amos Dayan que sonhavam com um país onde os judeus do mundo
inteiro pudessem finalmente viver em paz. A realidade apagara aquele sonho.
Em Bordeaux não havia ninguém à espera do casal; querendo causar
surpresa com a sua volta, Léa não avisara a família. No táxi que os levava a
Montillac, contemplaram em silêncio, de mãos dadas, o campo girondino que o
sol inundava. Chegaram na hora suave do anoitecer. Ouviam-se gritos de
crianças, a voz alegre de uma mulher, a risada de um homem, o canto do galo,
o latido do cão. Tudo se encontrava no lugar certo, harmoniosamente. Nada
restara do caos provocado pela guerra. O casarão estava de pé, como Léa o
conhecera durante toda a sua vida, hospitaleiro para todos aqueles que
entrassem. Como acontecia ao regressar, Léa esperava ver a mãe, mas foi
Françoise que surgiu. Por um instante, permaneceu imóvel, boquiaberta, e
atirou-se em seus braços:
— Léa!...
Dois dias após o retorno do casal, François Tavernier teve de viajar para
Paris, convocado ao Quai d'Orsay. Incumbiu Françoise e Alain de todos os
preparativos para o casamento.
Os primeiros dias de Léa em Montillac decorreram em meio ao
encantamento de rever a casa, tão bem organizada como na época em que sua
mãe a dirigia. As vinhas, os campos e os bosques estavam conservados à
perfeição graças à vigilância e ao empenho de Alain. Ele não tinha outra
escolha: os resultados da exploração da propriedade não lhe permitiam
contratar mais empregados. Os prisioneiros alemães haviam regressado e a
mão-de-obra qualificada tornara-se escassa. Felizmente, as vindimas
prometiam ser excepcionais.
— Ainda bem que existem coisas positivas neste país! — exclama ele,
sentado na amurada do terraço, ao contemplar os vinhedos.
Ramadier, o chefe do governo, lançara pelo rádio um apelo premente aos
agricultores, rogando-lhes que entregassem o trigo o quanto antes a fim de
assegurar o abastecimento de pão à população. A ração diária alcançara
duzentos gramas; nunca, inclusive durante a guerra, havia sido tão baixa.

Circulavam boatos segundo os quais velhos e crianças morriam de fome. A
maior parte dos gêneros alimentícios continuava racionada, as greves se
multiplicavam, não havia mais ministros comunistas no governo, De Gaulle
criara a União do Povo Francês, Vincent Auriol fora eleito para a presidência da
república, Massuy, um dos torturadores de Sarah, acabava de ser condenado à
morte por colaborar com a Gestapo, no número 101 da avenida Henri-Martin...
Para algumas pessoas, a presença dos soldados americanos em solo francês era
tão incômoda quanto a dos alemães; a unidade da Resistência deixara de
existir, em Madagascar e na Indochina os ataques armados e os massacres de
populações inteiras alternavam-se, as relações entre a União Soviética e os
Estados Unidos encontravam-se prestes a se romper, acusavam o governo de se
vender a Washington, falava-se de cortina de ferro, guerra fria. O tempo
também parecia ter enlouquecido, após um inverno excessivamente rigoroso:
trinta graus abaixo de zero no Val-d'Isère, onze abaixo em Paris; em 2 de junho,
porém, a temperatura chegara a 33 graus à sombra na capital e a quarenta em
28 de julho.

Capítulo 2

François Tavernier atravessou a praça do Palais-Bourbon a passos largos e
nervosos. Sentia-se louco de raiva. Sua entrevista com Georges Bidault fora
extremamente turbulenta. O ministro das Relações Exteriores censurara seu
comportamento e suas atitudes na Argentina. O problema não era dele! Por que
não deixara os terroristas judeus acertarem os próprios problemas com os
nazistas refugiados naquele país?
— Durante a guerra, os membros da Resistência francesa não foram
chamados de terroristas? - perguntou François calmamente.
— Está misturando tudo! — replicou rispidamente o ministro.
— A guerra com a Alemanha já acabou, temos de pensar na reconstrução;
a união entre nossos dois países não pode ser comprometida por agitadores da
sua espécie.
Tavernier levantou-se, profundamente perturbado.
— Senhor ministro, o próprio general De Gaulle ordenou que eu viajasse
para a Argentina...
— O general De Gaulle não manda mais nada. Pode até ser uma pena,
mas é a realidade. Você não foi diplomata?
— De fato, senhor ministro, mas não pretendo continuar.
— Perfeito. Senhor Tavernier, devolvo-lhe a liberdade.
Seu imbecil!, pensou Tavernier ao bater a porta.
Após a penumbra da sala ministerial, François foi assaltado pelo intenso
calor da rua. Não havia um só barzinho naquele bairro! Talvez o da praça do
Palais-Bourbon estivesse aberto?
— Vê se presta atenção! ... Tavernier! ... Pensei que estava na América do
Sul... Que bom encontrá-lo.
Entregue aos seus pensamentos tristonhos, ele havia esbarrado em dois
homens conversando animadamente.
— Lemberg! ... Perdão... senhor ministro!
— Mas o que é isso! Já faz quanto tempo?
— Foi em 1942, em Lisboa.
— Sim, eu me lembro, quando aquela loura linda que se fazia passar por
jornalista inglesa não parava de dizer: "Sei perfeitamente que o senhor é Pierre
Mendès France..."

— Escapou por pouco! Vários dos nossos não tiveram a mesma sorte...
— Infelizmente!... Para onde vai, com esse ar tão sombrio?
— Estou saindo do Quai.
— Ah, já entendi! Bidault não deve ter apreciado o seu comportamento na
Argentina... Fiquei sabendo de tudo, a respeito da sua esposa... Sinto
muitíssimo... Oh, me perdoe, creio que ainda não se conhecem. Sainteny,
apresento-lhe François Tavernier, um dos mais importantes membros da
Resistência e homem de muita coragem, que desempenhou funções delicadas
junto ao governo francês. Tavernier, apresento-lhe Jean Sainteny, igualmente
membro da Resistência, comissário da república para o Tonquim e o Mame do
Norte.
— O homem dos acordos de 6 de março com Io Chi Minh? — perguntou
François estendendo a mão.
A mão trêmula de Sainteny e seu olhar pareciam dizer: "Não concorda com
o que foi feito?"
Tavernier prosseguiu:
— Até onde vão os meus conhecimentos a respeito da situação na
Indochina, era a única possibilidade naquele momento...
— Senhores, queiram me desculpar, esqueci-me de um compromisso
importante. Preciso deixá-los. Conversem mais, vocês dois têm tudo para serem
bons amigos. Tavernier, não deixe de me telefonar em breve.
Apertaram as mãos e Mendès France afastou-se rapidamente sob um sol
opressivo.
— Que tal tomarmos alguma coisa? — sugeriu François, apontando para o
terraço vazio do café da praça.
— Claro!
Em busca de um pouco de ar fresco, os dois homens entraram no café
onde cochilavam a funcionária do caixa e dois garçons. Um deles se aproximou,
arrastando os pés:
— O que desejam tomar?
— Uma cerveja bem gelada — pediram juntos.
Essa conivência provocou um sorriso. Ambos esvaziaram os copos de um
só gole. Tavernier acenou para o garçom a fim de repetir a dose.
Calados, olhavam para a espuma escorrendo devagar pelo copo embaçado.
Cada um tomou um gole. Eles pareciam dois velhos amigos que costumam
encontrar-se sempre à mesma hora, sem muitas novidades para contar, mas
que apreciam ver-se um ao outro e bebericar tranqüilamente a sua bebida
preferida.

— Você tinha outro nome quando nos encontramos de passagem na
Normandia, durante uma reunião com os membros da rede Aliança. Estava
casado com uma linda mulher.
— Mudei de nome e minha esposa me deixou.
O tom com que Tavernier pronunciou aquelas palavras proibia qualquer
tipo de comentário.
— Quando esteve na Indochina pela última vez? — perguntou Jean
Sainteny.
— Pouco tempo antes da guerra, em janeiro ou fevereiro de 1939. Uma das
nossas fábricas fora assaltada e houve mortos. Fiquei lá dois meses, o tempo de
restabelecer a oNem.
— Chegou a freqüentar os meios anamitas?
— Sim, o nosso diretor casou-se com uma anamita de família nobre. O
filho deles e eu passávamos todo o tempo com os pescadores da baía de Ha
Long durante as férias. O filho mais velho tem a minha idade, é meu melhor
amigo; estudou em Lyon no mesmo colégio que eu.
— Ele não sofreu muito, sendo mestiço?
— Lá? Coitado daquele que fizesse algum tipo de comentário! Ele assimilou
perfeitamente as duas culturas: era neto de mandarim em Hanói e neto de
francês, homem de negócios em Lyon. Devo a — Qual é a posição dele,
politicamente falando?
— É claro que é favorável à independência do seu país.
— Comunista?
— Não... ainda não.
— O que pretende dizer?
— Nada. É só uma impressão pessoal. Já se passaram sete anos!... A
atitude da França quando da conferência de Fontainebleau, o fracasso das
negociações iniciadas por Ramadier através do general Leclerc e de Marius
Moutet terá grande implicação sobre o futuro. Chegou a hora da independência
das antigas colônias. Veja a Índia, o Paquistão... Aliás, convém lembrar que na
Indochina a França se deu mal, não só devido à derrota de 1940, à ocupação da
península pelos japoneses, mas também em conseqüência da demissão
indelicada do almirante Decoux.
— Você parece bem-informado quanto à situação na Indochina e sua
apreciação dos fatos diverge bastante da maioria dos franceses que têm
interesses naquele país — observou Jean Sainteny, que não tirava os olhos de
Tavernier enquanto este falava.
— Sempre tive a maior dificuldade em ser da mesma opinião que a maioria
— respondeu ele, dando uma gargalhada. — Mas é verdade que me mantenho a

par dos acontecimentos, tanto em Hanói quanto em Saigon. Sou de uma família
de fabricantes de seda em Lyon. Antes da guerra, possuíamos várias culturas
de bichos-da-seda e três fábricas em Tonquim. Apesar das dificuldades, da
presença japonesa, o pessoal local não deixou de trabalhar.
— Qual o nome do seu diretor em Hanói? Talvez eu o conheça.
— Martial Rivière.
— Claro que conheço: trata-se de um homem muito simpático, respeitado
pelos vietnamitas.
Encontrei-me com ele por duas vezes na companhia de um velho
intelectual que falava perfeitamente o francês, professor Lê Dang Doanh...
— O sogro dele.
François Tavernier observou que, ao ouvir o nome de Martial Rivière, Jean
Sainteny mostrara-se mais descontraído: agora, conseguia situar melhor o seu
interlocutor.
— Queira me desculpar por tantas perguntas, preocupa-me o que ocorre
por lá. Apesar dos violentos acontecimentos dos últimos tempos, continuo
convicto de que a paz ainda é possível.
— No entanto, as missões de Leclerc e Moutet, em janeiro passado,
fracassaram.
— Houve um mal-entendido nos altos escalões; aliás, não fosse o meu
temor em exagerar as minhas afirmações, eu diria que houve uma traição. Em
Paris, assim como em Hanói ou Saigon, reina a mais completa baderna. Se a
França deseja conservar o seu império, precisa saber como agir para conseguir
o que pretende.
— Conservar o império... que ilusão! O império está virtualmente perdido e
os erros cometidos pelos dirigentes tanto na Indochina como em Madagascar ou
no Maghreb, só servem para acelerar os fatos. O que podemos fazer contra os
povos que exigem a sua independência?
— Se tivéssemos respeitado os acordos assinados com Hô Chi Minh,
poderíamos aguardar a hora certa para conceder a independência ao povo
vietnamita...
— A hora certa? — ironizou Tavernier. — A hora certa costuma chegar
muito tarde, para um povo que está com sede de liberdade.
— Não é todo o povo vietnamita que reclama essa independência; uma
parte continua almejando a presença da França...
— Qual a idade dos que desejam a presença da França? A juventude?
Duvido muito. Os operários, os camponeses? Farão o que o lado mais forte
mandar. São os pequenos proprietários, os notáveis que auferiram vantagem
com a colonização, os funcionários, os traficantes de piastras ou de ópio que

desejam a manutenção do status quo na Indochina, pois qualquer mudança
acarretaria a perda dos seus bens.
— Você acaba de fazer um lindo discurso comunista!
— Não, trata-se de uma questão de bom senso. Já leu o artigo de Claude
Bourdet no jornal Combat e o de Léon Bium no Le Populaire de ontem?
— Não.
— Guardei o de Bium.
Tavernier tirou do bolso do casaco um jornal amassado que passou a
Sainteny.
— Leia!
Sim, é preciso pôr fim nessa situação. Sim, podemos acabar com isso,
agora que a ordem pacífica já foi restabelecida na Indochina, pois esta era a
única condição prévia. Sim, devemos ter uma conversa de povo para povo, não
de vencedor para vencido. Sim, devemos conversar mas não com os olhos fixos
no passado, e sim no futuro que precisa incluir os dois povos na mesma União
francesa. Sim, devemos conversar com os representantes autênticos e
qualificados do povo vietnamita, quaisquer que sejam, sem nenhuma exclusão
política ou pessoal. Sim, Io Chi Minh, que não morreu, apesar de tudo o que foi
dito, e que teve um encontro com Paul Mus, de quem recebi uma mensagem
pessoal alguns dias atrás por vias perfeitamente oficiais, continua sendo o
representante autêntico e qualificado do povo vietnamita e... acaba de nos dar a
prova evidente, palpável, de sua sabedoria, de seu patriotismo, de sua
abnegação. Existe uma certa luz sobre a Indochina. Convém que tal luz se
transforme em amanhecer e, depois, em pleno dia.
— Concordo plenamente com Bium; pergunto-me, porém, se já não é tarde
demais. A cada dia, os vietnamitas tomam-se mais firmes no que consideram
uma luta justa pela independência e receio que a atitude do governo francês,
por um lado favorecendo a chegada ao poder de Bao Dai, por outro declarando-
se impossibilitado de negociar com o Vietminh tenha comprometido todas as
chances de tratado.
— Talvez valesse a pena tentar novamente.
Sainteny olhou para o seu interlocutor com ar pensativo.
— Inúmeras negociações já foram iniciadas — comentou com voz abafada,
como se falasse sozinho.
François Tavernier terminou a cerveja, enquanto olhava o companheiro
desenhando círculos úmidos com o copo sobre o mármore da mesa. Naquele
homem elegante, que devia provocar muito entusiasmo entre as mulheres,
havia alguma coisa fragmentada, semelhante a um sonho frustrado. O refrão de
uma música veio-lhe à mente e fez com que sorrisse.

— Por que está rindo? — perguntou Jean Sainteny com um quê de
agressividade na voz.
— Não devemos desfazer um sonho... — cantarolou Tavernier como
resposta.
Sainteny franziu levemente as sobrancelhas.
— Tem uma voz muito bonita — disse após um breve silêncio.
— Aprecia a música?
— Gosto de brincar ao piano e já assisti a vários concertos. Tenho um
certo fraco pela chamada música popular... Gosto muito de Charles Trenet e
Edith Piaf. E você?
Sainteny respondeu assobiando uma canção de Maurice Chevalier: A
Ménilmontant.
— Assobia com perfeição.
— Todos me dizem a mesma coisa. Antes da guerra, costumava tocar
trombone, fiz parte da orquestra de Ray Ventura. Ensaiávamos na casa dos
meus pais. Eramos jovens!
— Não acha meio ridículo que dois homens na nossa situação, você
chamado de partidário de Munique, eu demitido por Bidault, se encontrem para
falar de música popular?... Até que gosto.
Acho que vou retomar os meus próprios negócios, pôr tudo em ordem,
esquecer os nazistas e seus caçadores e dedicar-me à mulher que amo.
Garçom, por favor, a mesma coisa!
— Não consigo imaginá-lo quieto e obediente. De Gaulle e a Resistência
marcaram-nos profundamente. Creio que a sua permanência na Argentina não
foi propriamente uma viagem de lazer. Minhas estudas na Indochina, desde
1945, abriram-me os olhos para vários problemas, particularmente a questão
colonial. Creio que homens como você e eu ainda podem ser de grande utilidade
para este país...
— Claro, mas fomos afastados!
— Talvez só dependa de nós para voltarmos à ativa'?
— O que está querendo dizer?
Sainteny permaneceu calado por um instante, girando o copo nas mãos.
— Podemos jantar hoje à noite? — perguntou ele.
— Com muito prazer. Aonde gostaria de ir?
— Ao restaurante L'Ami Louis. Conhece?
— Ainda existe? Durante a guerra, foi um dos bistrôs preferidos pelos
oficiais alemães. Para eles, tratava-se de um local... typischfranztisisch!

— O dono teve problemas na época da Libertação, mas dizem que certos
clientes dos altos escalões, apreciadores de sua comida, intervieram a seu
favor. Concorda com o local de encontro?
— Plenamente. A que horas?
— Vinte e trinta?
— Perfeito. Às vinte e trinta lá.

Capítulo 3

Naquele famoso bistrô, nada mudara depois da guerra: a sinistra
iluminação, o fogão para aquecimento, de ferro fundido, o assoalho coberto de
serragem, as cadeiras de madeira clara enegrecidas pelos anos, toalhas e
guardanapos impecáveis, os veteranos garçons. Um deles, quase se
aposentando, aproximou-se de François todo animado.
— Senhor Tavernier! Que prazer revê-lo!... Ainda ontem, falei a seu
respeito com um colega: "Outro que não voltará." Ainda bem que me enganei!
— Pois é, Maurice, a morte não me quis, vai ter de esperar um pouco mais.
— Quanto mais tempo melhor, senhor Tavernier. O patrão vai ficar feliz em
vê-lo. Ele não mudou: desbocado como sempre, mas uma excelente pessoa...
Será que me enganei? Acho que não vi mesa alguma reservada em seu nome.
— Está certo. Vim com o senhor Sainteny.
— Ah, tudo bem. A mesa dele fica ali. Vou avisar o patrão.
Logo em seguida, um homem obeso com um grande avental branco, as
faces rubras devido ao calor do fogão, veio em sua direção, com uma garrafa de
champanha em uma das mãos e duas taças na outra.
— Isto sim é uma boa surpresa, senhor Tavernier, revê-lo aqui! Ainda
tenho algumas garrafas do seu champanha preferido. Vamos brindar à sua
volta.
— Com muito prazer — disse Tavernier, apertando a mão que lhe
estendiam. — Brindemos à sua prosperidade!
A ironia do tom foi percebida pelo dono do estabelecimento que, após abrir
a garrafa, encheu as taças, esvaziou a dele e retomou à cozinha.
François olhou ao redor: eram as mesmas pessoas. A guerra, as restrições,
o mercado negro, a Libertação, a depuração, nada modificara a clientela. Uma
transformação apenas: não se viam mais os uniformes cinzentos, agora
substituídos pelo bege dos americanos.
Entregue às suas reflexões, François nem percebera a chegada de Jean de
Sainteny.
— Sinto muito pelo atraso.
— Que nada, eu é que cheguei adiantado. Garçom, outra taça, por favor!
Beberam enquanto consultavam o cardápio. Depois de fazer o pedido, os
dois homens observaram- se em silêncio, sem tentar dissimular a curiosidade
mútua. Foi François quem falou primeiro:

— Não acredito que o seu convite tão amável se deva unicamente à
simpatia que sente em relação à minha pessoa. O que tem a me dizer?
Jean de Samteny permanecia calado; parecia dominado por um profundo
dilema.
— Não é fácil... Talvez eu tenha me precipitado um pouco — respondeu
hesitando.
— Explique-se.
— Falei do nosso encontro ao general Leclerc.
— Pensei que se encontrasse no Marrocos — observou François, sem
demonstrar a menor surpresa.
— Não, a temporada de caça se aproxima e ele vai passar alguns dias em
casa, em Tailly; mas agora está em Paris para o aniversário da Libertação. Falei
da nossa conversa a respeito da Indochina e dos seus conhecidos naquele país.
Ele gostaria muito de vê-lo.
— Acreditava que o capítulo da Indochina já tivesse chegado ao fim, para
ele... assim como para você, aliás.
Sainteny não respondeu. Comia pausadamente. Com ar de grande
conhecedor, esvaziou o copo de vinho.
— Este château-lafite é excelente.
— Sim, a adega de vinhos da casa é das melhores, embora a variedade de
bourgognes seja mais rica do que a de bourdeaux. Quando devo me encontrar
com Leclerc?
— Daqui a pouco. Está esperando por nós no hotel.
— Sabe qual é a posição do general De Gaulle sobre a situação na
Indochina?
— Não, nunca mais o vi após o meu regresso à França. Sua saída do
governo impõe-lhe uma certa reserva, mas sei perfeitamente que permanece
atento aos acontecimentos.
— Não foi ele quem o enviou em missão?
— Sim. Após o golpe japonês de 9 de março, eu devia descer de pára-
quedas na Indochina para me juntar aos poucos membros da Resistência que
ainda restavam após a repressão nipônica. Eu havia morado na Indochina por
muitos anos e mantinha inúmeros conhecimentos. Foi a razão pela qual deixei
Paris, com novo estado civil: adotei oficialmente o nome de Sainteny que, dois
anos mais tarde, os acontecimentos me obrigariam a conservar para sempre.
Encontrei-me com o coronel Passy durante a minha escala no Cairo. Lá, o chefe
da DGER deu-me a notícia da mudança quanto a meu destino e falou-me da
sua decisão em me entregar o comando da base de Kunming, na China, isto é,
da Missão 5, sob a dependência do porto de Calcutá.

— Qual era o objetivo dessa missão?
— Multiplicar as nossas antenas e os nossos meios de investigação em
território inimigo, principalmente na Indochina, ainda ocupada pelos japoneses;
retomar e desenvolver os contatos com a população francesa do Tonquim;
ajudar compatriotas ou aliados a alcançar a China quando estivessem correndo
perigo em território indochinês; fornecer auxílio aos aliados informando-os e
constituindo comandos para efetuar ataques relâmpagos nas zonas ocupadas
pelo inimigo; acompanhar a evolução dos movimentos nacionalistas
indochineses, preparar o regresso da França à Indochina, quando chegasse a
hora, e, com esse objetivo, tentar desvendar as intenções dos aliados e dos
chineses.
— Não deve ter sido muito fácil!
— Não, mas foi extremamente interessante. Uma tarefa de formiga e
aranha ao mesmo tempo, com uma equipe excepcional. Em julho de 1945, por
motivos de trabalho, e principalmente devido aos fatos ocorridos com a Missão
5, tive a necessidade de realizar uma rápida viagem a Paris. Cheguei em 13 de
julho. O clima era de grande euforia e não me deram muita atenção quando
avisei que a situação estava por um fio no Extremo Oriente, com o Japão
sozinho diante dos aliados. Perguntei se a França estava pronta, com a queda
do Japão, a retomar o seu lugar na Indochina. Falei da oposição que iríamos
encontrar por parte do nacionalismo anamita. Minhas advertências
provocaram, apenas, grande ceticismo. Na mente de muitos franceses, os
indochineses aguardavam nosso retorno com impaciência e iriam receber-nos
de braços abertos. Mostrei como, na falta de um corpo expedicionário poderoso,
pronto a intervir imediatamente e recuperar as posições básicas, eu julgava
necessário contarmos com o apoio ou pelo menos com a neutralidade e a
simpatia de um dos nossos aliados. Por diversas razões, sobretudo econômicas,
os americanos me pareciam mais aptos a ouvir nosso pedido. Expus da melhor
maneira possível esse raciocínio às autoridades com quem pude falar; todos
demonstraram muita reserva, o que confirmou que, para a maioria, o problema
indochinês era irrelevante. Apenas o coronel Passy percebeu imediatamente
toda a importância da questão e pediu-me que aguardasse em Paris o regresso
do general De Gaulle. Poucas horas antes da minha partida, fui informado de
que, na conferência de Potsdam, com a ausência da França, e sem que ela fosse
consultada, os aliados resolveram dividir a Indochina na altura do paralelo 16.
A área norte seria ocupada pelas tropas chinesas, a do sul pelos ingleses. Parti
em seguida para Kunming, extremamente perturbado. Ali, logo após a minha
volta, fiquei sabendo das bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasaki. Cerca
de duzentos mil mortos em alguns segundos. Na Missão 5 trabalhávamos dia e
noite. Em 15 de agosto, com a notícia da capitulação nipônica, todos os
franceses de Kunming invadiram a sede da Missão 5 para comemorar o tão
esperado evento. No entanto, para nós, o mais difícil ainda estava por vir.
Durante algum tempo, os dois homens comeram em silêncio.
— Em que momento entrou na Indochina?

— A partir de agosto, comecei a estudar essa possibilidade. Após a euforia
causada pela notícia da capitulação, a realidade impôs-se a mim e aos meus
colegas: o Japão encontrava-se acuado, mas seus exércitos nunca haviam sido
derrotados; junto aos povos asiáticos, seu prestígio mantinha-se intacto e seus
agitadores conseguiram disseminar o ódio contra o homem branco. Era
necessário, o quanto antes, trazer a França de volta à Indochina, aproveitando
o choque provocado pela destruição de Hiroxima e Nagasaki. Minha decisão
estava tomada: os franceses seriam os primeiros a regressar a Hanói. Nossos
compatriotas isolados há vários meses precisavam, o mais rápido possível,
obter a prova de que a França pensava neles e não abdicara dos seus direitos.
Todas as relações oficiais e clandestinas haviam sido cortadas. Pensei, então,
em enviar de pára-quedas um primeiro grupo de oficiais, todos eles voluntários,
escolhidos entre aqueles que, provenientes da Indochina, eram afamados por
seu perfeito conhecimento do Tonquim. Mas tive de desistir; os japoneses,
recusando a rendição, reconheceriam e prenderiam todos os ex-oficiais da
Indochina que combateram contra eles. Aqueles homens haviam sofrido muito;
eu não podia correr tal risco.
Resolvi então viajar com alguns jovens colaboradores desconhecidos no
Tonquim, os tenentes Louis Fauchier-Magnan, François Missoife, o subtenente
Casnat, especialmente encarregado de estabelecer as ligações pelo rádio entre
as nossas bases na China e nas Índias com a metrópole, e um civil, Roland
Pétric, que conhecia com perfeição o Tonquim sem nunca ter combatido os
japoneses; sua função era fazer novos contatos e tomar as providências
necessárias para a eventual instalação do futuro representante do governo
francês em Hanói. Quanta ingenuidade da minha parte! Não possuíamos nem
aviões nem pára-quedas; apenas os serviços secretos americanos os tinham e
estavam decididos a fazer de tudo para impedir o retorno da França à
Indochina. Eu os coloquei a par da situação. Aceitaram, após inúmeras
reticências, colocar um avião à minha disposição; em contrapartida, foi
combinado que alguns oficiais americanos nos acompanhariam. O major Patti,
encarregado junto à OSS' da seção norte da Indochina, seria o responsável pela
missão americana. A partida, prevista para o dia 16 de agosto, foi adiada por
tempo indeterminado pelos americanos, revelando toda a sua má-fé. Era óbvio
que os franceses não deviam chegar sozinhos e nem muito cedo a Hanói... Não
vou comentar agora as tumultuosas discussões entre nós e os americanos.
Finalmente, em 22 de agosto, decolamos. A chuva havia cessado quando
sobrevoamos Hanói. Ao ver-nos, como se quisessem comemorar a nossa
chegada, estranhas flores vermelhas espalhavam-se por toda a cidade com
surpreendente rapidez. Quando o avião desceu, pudemos enxergar as
bandeiras vermelhas com a estrela dourada.
Percebemos então que a recepção não correspondia à nossa expectativa...
Sainteny tinha um olhar distante; deixara de encarar o seu interlocutor
para sobrevoar Hanói, toda enfeitada com as cores da revolução.
— E como foram recebidos?

— Pelos japoneses e por prisioneiros indianos. Com uma importante
escolta, fomos levados ao hotel Métropole onde se encontravam reunidos todos
os franceses até então em liberdade. Bem em frente, ficava a sede do governo
vietminh. Aquele primeiro contato com a Indochina, após tantos anos de
ausência, só fez confirmar meus mais sinistros presságios. Nas ruas entupidas
de gente, repletas de bandeiras vietminh, a multidão contida por japoneses
parecia mais curiosa do que propriamente hostil. Fazia exatamente quatorze
anos que eu não regressava àquele país, mas todas essas paisagens pareciam-
me muito familiares, como se eu tivesse deixado a região no dia anterior.
As águas, muito abundantes, tinham rompido os diques; o delta tonquinês
lembrava uma gigantesca lagoa. Imensas faixas estendidas entre as árvores
fechavam ruas e avenidas; nelas, lia-se o que eu já havia visto em todas as
paredes, pintado com letras enormes em francês e vietnamita, mas também em
inglês e chinês:
"Independência ou morte!", "Vietnã para os vietnamitas!", "Morte ao
imperialismo francês", "Abaixo o colonialismo francês!". Exigi que me
conduzissem ao palácio do governo geral do qual tomei posse em nome da
França. Os tenentes Missoife e FauchierMagnan e o subtenente Casnat,
chegados de pára-quedas durante a manhã, juntaram-se a mim. Estabelecemos
então as coordenadas no decorrer do jantar servido pelos empregados do
palácio. Casnat chamou pelo rádio nossos correspondentes de Kunming e
Calcutá. Mas acho que falei demais, com todas essas lembranças de velho
combatente...
— Claro que não. Passou por uma experiência extraordinária, muito mais
excitante do que a minha na Argentina. Quando teve lugar a sua primeira
entrevista com Hô Chi Minh?
— Inicialmente, falei com Vo Nguyên Giap, então ministro do Interior, e
Duong Duc Hien, ministro da Educação. Giap declarou ter sido designado pelo
novo governo para conversar com o primeiro representante do governo
provisório da república francesa. Ele desejava um contato mais estreito entre
nós e afirmou que teria a maior satisfação em receber conselhos e diretrizes da
nossa parte.
Tudo em tom muito cordial, como costuma acontecer na Ásia por ocasião
de um primeiro contato.
Resolvemos, de comum acordo, que a ordem precisava ser restabelecida o
quanto antes. Nossos diálogos voltariam a ocorrer com muita freqüência. O
encontro terminou com a mesma amabilidade do início. Quem poderia imaginar
que aquele Giap, que eu via pela primeira vez, acabaria se tornando, meses
mais tarde, um dos nossos mais ferozes inimigos!
— Que tipo de homem ele é?
— Extremamente inteligente, com temperamento de força incomum, firme,
esperto, baixinho porém muito robusto, ex-doutor em direito, professor de

história e geografia, trata-se do nosso mais temível adversário. Mais tarde,
encontramo-nos várias vezes.
— Você se encontrava em Hanói na época da proclamação da
independência por Hô Chi Minh?
— Sim. Calculo que centenas de milhares de manifestantes participaram
daquela festa, em 2 de setembro. A ordem com a qual recorreram a diferentes
manifestações foi das mais impressionantes. Nem um só grito de hostilidade
para com a França. Em compensação, com os nossos amigos americanos, as
relações tornavam-se cada vez mais tensas. Por anticolonialismo, os
representantes dos Estados Unidos entravam na jogada dos nacionalistas
anamitas, sem perceber que, dessa maneira, abonavam a política antibrancos
dos japoneses e preparavam o terreno para um perigo muito mais grave: o
comunismo asiático. Nossa situação tomara-se insustentável, os empregados
sumiram, não tínhamos mais alimentos. Japoneses, anamitas, americanos,
todos tentavam expulsar-nos do palácio do governo geral. Enviei inúmeros
telegramas para Calcutá, pedindo que mandassem uma ordem para que eu me
mantivesse no governo geral, até a chegada dos representantes oficiais da
França. Ela jamais chegou. No dia 10 de setembro, fui forçado a deixar o
governo geral nas mãos dos chineses. Instalei-me então em uma pequena casa,
no fim da rua Bélier. Em 8 de setembro, ficamos sabendo da nomeação, pelo
general De Gaulle, do almirante d'Argenlieu para o alto comissariado da França
na Indochina. A cada dia, a situação tornava-se mais dramática; viajei para
Chandernagor, onde se encontrava o almirante, para colocá-lo a par da
situação.
Relatei o meu desejo de ser substituído em Hanói por um representante da
França devidamente credenciado. O almirante, porém, não concordou; mandou
que eu desse continuação oficialmente à tarefa iniciada e regressasse a Hanói.
Ao sair de sua sala, encontrei um oficial que se plantou à minha frente e disse:
"Então, aqui está ele, o famoso Sainteny! Que bom conhecê-lo! Mas dizem que
pretende dar o fora e abandonar a gente no meio dessa baderna toda? Não
combina com o que me contaram a seu respeito!" Era Leclerc. Voltei então a
Hanói com o título de Comissário da República para o Tonquim e o Aname do
Norte.
"Em 15 de outubro de 1945, ocorreu a minha primeira entrevista com Hô
Chi Minh. De início, seu aspecto nada tinha de excepcional; de altura mediana,
relativamente franzino, a barbicha, a testa alta e saliente davam àquele homem
um ar de intelectual em vez de líder guerreiro.
Entretanto, o que mais impressionava eram os seus olhos penetrantes,
com um brilho extraordinário; toda sua energia concentrava-se nesse olhar.
Durante seis meses, encontramo-nos inúmeras vezes, quase sempre
acompanhados, ele por Giap, eu por Léon Pignon. Nossas discussões eram
delicadas: tratava-se de fazer com que aceitasse o regresso ao Tonquim das
tropas francesas que viriam substituir as tropas chinesas. Como você pode
imaginar, a situação não era nada simples. Para culminar, grassava terrível

penúria que se alastrou pelo país inteiro. A primeira safra de arroz havia sido
péssima; a segunda foi totalmente destruída pelas enchentes. Todos os dias,
corpos de pessoas falecidas eram recolhidos nas ruas. Não fomos poupados e
tínhamos de aceitar as escassas rações militares dos americanos. No entanto,
minha maior preocupação era a repatriação das mulheres e crianças francesas
cuja sorte passara a ser das mais precárias. Para se ter uma idéia, entre os dias
1º e 31 de janeiro, houve cento e quarenta e cinco crimes, infrações ou atos de
violência: seis assassinatos, doze tentativas de envenenamento, quatorze
assaltos à mão armada, seqüestros, agressões, tanto por parte dos anamitas
como dos chineses. Em resumo, a segurança da população francesa deixara de
existir.
"Finalmente, em 6 de março, na presença do general Salan, de Louis
Caput, dos meus colaboradores Roland Sadoun e Léon Pignon, assinei com Hô
Chi Minh o famoso acordo pelo qual fomos ambos tão censurados
posteriormente. No dia 18 de março, os franceses de Hanói proporcionaram a
Leclerc uma recepção triunfal. Na mesma noite, fui com ele à casa de Hô Chi
Minh. Os dois homens experimentaram uma mútua simpatia e brindamos à
amizade franco-vietnamita sob os flashes dos fotógrafos. Você já sabe o resto...
— Sobremesa, senhores?
Olharam ambos para o garçom cuja súbita chegada trouxe-os brutalmente
de volta à realidade de Paris.
— Não, obrigado. Vou tomar um café e fumar um charuto. E você? —
perguntou Tavernier.
— O mesmo.
— Veja, chegou Arletty, com um grupo dos mais seletos.
A sala encheu-se de contagiante algazarra. Duas ou três clientes
levantaram-se da cadeira para ver quem acompanhava a atriz. O anão Piéral
encontrava-se entre duas jovens encantadoras, enquanto Marcel Camé e
Jacques Prévert apertavam a mão do dono do estabelecimento.
— Jean!
Uma das mulheres veio em sua direção e atirou-se sobre Sainteny. Ambos
se levantaram.
— Faz muito tempo que regressou? Por que não me ligou?
— Não tive a oportunidade.
— Seu mentiroso! — exclamou rindo. — Apresente-me o seu amigo.
— Senhor François Tavernier, senhorita Martine Carol.
Tavernier apertou a mão que ela lhe oferecia e observou, com uma
convicção um tanto irônica:
— É muito linda, senhorita.

Ela agradeceu com sorriso resplandecente, contestado porém pela tristeza
do seu olhar.
— Desculpem-me, senhores, meus companheiros pedem a presença da
bela amiga — disse Piéral, segurando o braço de Martine Carol.
— Já vou! Até logo, senhor Tavernier. Telefone para mim — disse ela a
Sainteny, mandando-lhe um beijo com a ponta das luvas.
— Que moça encantadora, mas por que seu olhar é tão triste?
— Não percebi.
— No entanto, vocês parecem íntimos.
— Não muito. Conhecemo-nos alguns dias atrás, no Midi, na casa de um
amigo.
— Não foi ela quem tentou suicídio?
— Ninguém acreditou nessa história. Alguém se atira no Sena, aos vinte e
dois anos e com uma promissora carreira no cinema?
— Talvez isso não lhe baste. Há algum tempo, bem que eu tentaria... Mas
vou me casar em breve com a mulher que amo.
— Não consigo imaginá-lo no papel de marido!
— Para falar a verdade, eu também não! Mas, se eu não desposá-la, receio
que outro homem o faça em meu lugar. Sei como ela é, e não posso me
descuidar!... Podemos ir quando você quiser...
Um táxi deixou-os à porta do hotel Continental. Sainteny pediu ao porteiro
para avisar o general Leclerc.
— O general está esperando no bar.
Vários homens de uniforme ou à paisana cercavam Philippe de
Hauteclocque, simplesmente trajado com um temo de linho bege. A conversa
era descontraída e animada.
François contemplou emocionado o libertador de Paris. De altura mediana,
delgado, ereto, com certa rigidez, a testa alta e calva, um bigode que realçava a
boca bem desenhada, rugas maliciosas no canto dos olhos de um azul intenso e
que brilhavam de inteligência, daquele homem emanava energia quase palpável
e inegável encanto. Belo homem, pensou François.
— Senhores, queiram me desculpar, tenho um encontro com o senhor
Jean Sainteny — disse Leclerc, despedindo-se dos colegas. — Senhor Tavernier,
não é?
— Sim, general.
— Sou-lhe muito grato por aceitar o meu convite. Vamos caminhar um
pouco lá fora, assim estaremos protegidos dos ouvidos indiscretos —
acrescentou, apertando com firmeza a mão de François.

Os três homens saíram e caminharam em direção à rua de Rivoli, mal
iluminada. Leclerc e Tavernier acenderam um cigarro. Sainteny tirou um
cachimbo do bolso. Enquanto fumavam, continuaram andando em silêncio.
— Meu amigo Sainteny julga que você pode ser de grande utilidade à
França na Indochina. Creio que ainda não esgotamos todas as tentativas de paz
e que precisamos negociar a qualquer preço, entendeu bem, a qualquer preço!
Como já sabe, não respondi favoravelmente ao pedido do governo francês
quanto à minha nomeação para o alto comissário da França na Indochina, por
motivos militares, políticos e pessoais, os quais não pretendo comentar agora.
No plano militar, por enquanto ainda mantemos o controle da situação. O
Vietminh encontra-se em uma posição delicada, enfrentando dificuldades
materiais cada vez maiores, a hostilidade da população esfomeada e os
movimentos nacionalistas não-comunistas que ele ainda não conseguiu
dominar. Apesar dessa fraqueza, infelizmente, mantenho a minha convicção de
que o único líder do povo vietnamita é o presidente Hô Chi Minh e, na falta de
outro interlocutor viável, a França terá de retomar as negociações com ele.
Entretanto, antes de mais nada, convém não esquecer que se trata de um
grande inimigo da França e seu objetivo, assim como o do seu partido, é pura e
simplesmente a nossa expulsão. Não acredito na solução Bao Daï, que é
artificial e só encontra apoio concreto entre os negociantes indochineses e
franceses...
— Mas esta solução parece agradar ao governo — objetou Tavernier,
interrompendo o general.
— Parece, como você bem disse... Temos a impressão de estar vivendo na
época do almirante d'Argenlieu! Não creio que o novo alto comissário, Bollaert,
apesar das suas eminentes qualidades, esteja realmente a par da situação,
embora possa contar com a presença de um dos meus ex- conselheiros, o
professor Paul Mus, grande especialista no que se refere à Ásia. O fracasso do
encontro entre ele e o presidente Hô Chi Minh confirma. o meu receio. E
existem outras provas. E você, que conhece bem o país, qual é a sua opinião?
— General, muito tempo já se passou, mas acredito que não podemos
esquecer que o povo vietnamita, apesar de mil anos de dominação chinesa,
jamais se submeteu; a afirmação de um rei do Aname, no século XV, é mais
atual do que nunca: "Quem quiser viver deve resistir. Quem quiser morrer, deve
aceitar servir os Ming..."
— Conheço o ditado — disse Sainteny. — Giap costuma citá-lo quando
conversa com os franceses.
— O que espera que eu faça, general?
— Quero que volte para lá.
— Com que objetivo?
— Por motivos pessoais, é claro — respondeu Leclerc com ar surpreso. —
Que dúvida!

Tavernier permaneceu imóvel, tão surpreso quanto o general.
— Que dúvida... Essa é boa, general! Na verdade, a Resistência não me
habituou a receber ordens escritas dos meus chefes. Mas eu podia contar com
a sua aprovação!
— Você pode contar com a minha.
— General, em qualquer outra circunstância, isso bastaria. Mas, hoje, as
coisas mudaram. Agora, preciso da aprovação, ainda que oficiosa, do chefe do
governo.
Os três homens atravessaram a rua de Rivoli e caminharam ao longo da
grade das Tulherias. A praça da Concórdia estava sombria e deserta. Andaram
em silêncio até o Sena.
— Gosto muito de percorrer as ruas de Paris — observou o general. — E o
senhor Tavernier?
— Já faz tanto tempo. Imagino que também gostava...
— Imagina?
— Sim, de certa forma esqueci os tempos felizes do lazer. A melhor
recordação que me resta das ruas de Paris é a de uma jovem apaixonada, que
se aconchegava em meus braços, ambos escondidos no vão de uma porta
enquanto passava uma patrulha alemã...
— O que foi feito dessa jovem? — perguntou Sainteny.
— Vamos nos casar.
— Parabéns!
— Obrigado, general.
— Se eu conseguir essa aprovação do governo, ainda que oficiosa, você
irá?
— Se o senhor acha que poderei ser útil de alguma forma, sim.
— Não acho nada — respondeu Leclerc com certa irritação na voz. — O
que eu acho é que precisamos tentar o impossível, evitar a morte dos nossos
soldados, dos nossos compatriotas... Pois eles irão morrer aos milhares...
Ninguém pode vencer um povo que luta pela sua independência.
— Mesmo quando isso representa a chegada de um poder comunista?
— Está raciocinando como o almirante d' Argenhieu! Não lutamos contra o
partido comunista, mas contra pessoas dispostas a tudo para conquistar a
liberdade. O anticomunismo continuará sendo uma alavanca sem fulcro
enquanto o problema nacionalista não for resolvido.
Até o hotel Continental, trocaram apenas algumas palavras sem
importância.

— Senhor Tavernier, amanhã terá notícias minhas. Boa noite. Sainteny,
preciso falar com você.
— Boa noite, general.
Pensativo, François Tavernier voltou a pé para a rua da Universidade.
No dia seguinte, ele foi chamado ao Elysée e recebido pelo presidente da
república. Vincent Auriol pediu que aceitasse ser o seu observador particular
na Indochina, entrasse em contato com Hô Chi Minh e depois relatasse
detalhadamente as suas observações. suas conversas e seus encontros:
— Você prestará contas unicamente a mim. Vai encontrar nesse envelope
um número de telefone e um codinome que deverão ser destruídos o quanto
antes, assim como uma carta para um camarada socialista, Louis Caput, com
quem você deverá se encontrar logo após a sua chegada. Hô Chi Minh lhe
dedica grande estima; exigiu a presença dele quando da assinatura dos acordos
de 6 de março.
Entregue-lhe a minha carta. Apesar de tudo, deve agir com o máximo de
discrição, pois todo mundo, na Indochina, conhece as opiniões e as simpatias
desse homem. É professor primário em Dalat e leciona naquele país há cerca de
vinte anos. Ele poderá se revelar extremamente útil para você.
Uma conta será aberta em seu nome no Banco da Indochina. O diretor
geral, Jean Laurent, ex- membro da Resistência na rede Aliança e chefe de
setor do grupo Jade-Amicol, vai se encarregar pessoalmente do assunto.
— Já o conheço, encontramo-nos em Hanói antes da guerra. Na época, ele
era assessor de Paul Baudoin junto à direção geral.
— Baudoin foi condenado por colaboracionismo, em 3 de março passado, a
cinco anos de trabalhos forçados.
— Mas ele não tinha deixado a política de lado após ser nomeado
presidente do banco?
— Parece que sim. Lembre-se de que ele foi ministro do Exterior de Pétain
até outubro de 1940 e pediu à Alemanha suas condições de paz desde 17 de
junho. Grande admirador de Mussolini, apóstolo da revolução nacional, foi ele
quem declarou que "a guerra fez rebentar o abscesso... a revolução total que a
França inicia nesse momento tão solene foi preparada por vinte anos de
incerteza, descontentamento, mágoa e insurreição disfarçadas..." Este homem é
Paul Baudoin! Tem outras perguntas?
— Não, senhor presidente, apenas uma confirmação de sua parte: tenho
carta branca?
— Sim, com a condição de não envolver o nosso país diretamente e evitar
meter-se em tiroteios, como ocorreu na Argentina.
— Claro. Esteja certo, senhor presidente, de que tudo farei para evitar que
isso aconteça. O presidente do Conselho está a par da minha missão?

Tavernier esboçou um sorriso irônico que o presidente nem percebeu.
— Não, os governos da República costumam mudar com certa freqüência.
Eu me encontro aqui por um período de sete anos. Em sete anos, tantas coisas
podem acontecer...
O sotaque de Toulouse de Vincent Auriol realçou ainda mais as suas
palavras. Daquele homem da Gasconha, atarracado, de testa calva, cujo único
olho brilhava maliciosamente enquanto o de vidro parecia fixar friamente o
interlocutor por trás dos óculos redondos, emanava um profundo orgulho.
Devido, talvez, ao seu passado revolucionário, ele usava gravata vermelha;
era este homem que costumava dizer, no passado: "Os bancos, a gente fecha;
os banqueiros, a gente prende!"
— Além do general Leclerc e do senhor Sainteny, há mais uma pessoa a
par de sua missão: trata-se do meu velho amigo Léon Bium. Aconselhei-me com
ele antes de tomar a decisão de chamar você.
Ele concorda plenamente. Afirmou o seguinte: "Hô Chi Minh continua
sendo o único raio de esperança que pode dissipar as trevas do Vietnã."
— Com todas essas bênçãos, sem omitir a sua, senhor presidente, sinto-
me na obrigação de honrar a sua confiança.
Desta vez, Vincent Auriol não pôde deixar de perceber a ironia das
palavras de François Tavernier.
— Ao que parece, você tem senso de humor e um temperamento alegre. É
bom sinal. Em minha opinião, não há nada pior do que gente tristonha ou
pedante. Quando pensa viajar?
— Depois do meu casamento.
— E quando vai se casar?
— Dentro de uma semana.
— Não pode deixar para depois?
— Não, é impossível. Mas prometo viajar no dia seguinte.
— Não perca tempo. O senhor Bollaert, o novo alto comissário, deve
pronunciar importante discurso que irá envolver a política francesa na
Indochina durante meses, anos talvez. Ele chegará a Paris a qualquer
momento. Com isso, os jornalistas estão excitadíssimos, assim como os
ministros cujas opiniões, como bem sabe, divergem muito quanto às soluções
para o problema da Indochina.
Não deixe de me comunicar a data de sua viagem. Até mais ver, senhor
Tavernier, e boa sorte.
— Até mais ver, senhor presidente.

François Tavernier preencheu os dois dias seguintes com os cansativos
trâmites administrativos e médicos. Telegrafou a seu sócio em Hanói para
informá-lo da chegada iminente.

Capítulo 4

Contrariando a opinião de todos os membros da família, Léa quis voltar a
Montillac a pé, passando pelo monte de Verdelais, a sós com o marido.
— Essa menina nunca faz nada igual a todo mundo — resmungou Ruth,
abrindo, para se proteger do sol, um imenso guarda-chuva azul desbotado
pelas intempéries.
— A gente se encontra em casa — gritou Léa, segurando a mão de
François.
E ela o arrastou pelo caminho íngreme que ladeava o cemitério; os seixos
rolavam sob os seus pés calçados com escarpins de salto alto que levantavam
fina poeira branca. A grade enferrujada estava aberta.
— Espere por mim — disse ela.
François viu Léa afastando-se entre os túmulos, elegante e graciosa
silhueta moldada por um tailleur de seda crua. Acendeu um cigarro e sentou-se
em um degrau. Casado! Ele estava casado... Essa palavra, revirando em sua
mente, provocava estranho efeito. Antes de conhecer Léa, tratava-se de uma
condição que lhe parecia inconcebível. Aceitara aquela união insensata com
Sarah apenas para lhe servir de cobertura; sentira-se preso a ela
exclusivamente pelos laços de uma profunda amizade. Bah, era preciso passar
por isso, constava da ordem dos fatos. Mas... como anunciar a Léa que iria
viajar dentro de dois dias para a Indochina?
— Abrace-me forte... bem forte!
Léa encontrava-se em pé contra ele; não tinha mais o lindo buquê
enfeitado com fitas no qual escondera o rosto várias vezes durante a cerimônia;
os olhos estavam vermelhos e os lábios tremiam.
François levantou-se, apertou-a entre seus braços; ela estremeceu como
um bichinho assustado.
— Você não vai fazer como eles, não é? Não vai me deixar... É tão difícil
acreditar que nunca mais irei vê-los... Nem papai, nem mamãe, nem Laure,
nem titia...
— Chega! Você está se magoando e pode fazer mal ao bebê.
— Oh, esse bebê! — observou Léa com irritação.
Ele afrouxou ligeiramente o seu abraço.
— Não está feliz por esperar um filho?

Feliz? Não, claro que não. Mas em que momento ela podia contar-lhe a
verdade? Depois que voltaram, ele nunca ficava com ela! Após as terríveis
semanas passadas na Argentina, Léa só tinha um desejo: ESQUECER!...
Esquecer e divertir-se. Fazer coisas banais, inconseqüentes. Deixar de sentir
medo ao ouvir passos se aproximando, ficar sobressaltada com uma porta
batendo, despertar no meio da noite, encharcada de suor, gritando e revendo os
sofrimentos, a morte de pessoas amadas. Ser apenas uma mulher apaixonada
nos braços do amante, reencontrar a indolência de uma mocidade
precocemente perdida... E um filho! Significava voltar a ser sensata,
responsável por uma nova vida. Era pedir muito, ela não tinha tanta força.
— Não saberei cuidar dele.
— Mas você soube tratar de Charles, em circunstâncias bem mais difíceis.
— Não tive outra escolha, era urgente, eu não podia abandoná-lo. Mas
agora...
François agarrou-lhe o punho, interrompendo-a bruscamente.
— O que quer dizer?
— Entendeu perfeitamente. Nada me obrigava a ficar com ele... Mas você
ficou louco!
François dera-lhe uma bofetada.
— Nunca mais diga isso! Devia ter pensado antes.
— Você também — disse Léa, fungando.
— Tem toda razão. Perdoe-me, sou um idiota retrógrado... Mas, por um
instante, cheguei a pensar: querem machucar o meu filho...
François atraiu-a para si, cobriu de beijos o rosto, o cabelo.
— Não fique com medo, vai ver só, tudo vai dar certo. Você terá o bebê
mais lindo do mundo. Sua solidão acabou, estamos juntos...
Ao pronunciar essas palavras, sentiu-se envergonhado. Que loucura
aceitar a missão de Vincent Auriol! Nada era mais importante do que a mulher
a quem amava e que abandonaria em troca de hipotéticas negociações de paz,
paz a que ela mesma jamais conhecera!
A sombra das árvores, ladeando os caminhos até o monte, era amena e
refrescante, mas sentia-se o sol implacável esmagando o campo ao redor da
colina; aquele relativo frescor era como um bálsamo para as suas
preocupações.
— Você se lembra?
Detiveram-se diante de uma das capelas ao longo do caminho.
— Era aqui que vocês escondiam as munições e ali...

A voz rouca de Léa trouxe a recordação dos seus abraços nesse mesmo
lugar. Ela se deixou levar à sombra sem oferecer resistência.
Entregaram-se enlaçados, esfomeados. Ele a possuiu de pé contra o muro,
sem o menor cuidado. O prazer dominou-os bruscamente e prolongou-se por
muito tempo.
Deitados à sombra de um carvalho, alguns instantes mais tarde ele
anunciou a sua partida. Léa não respondeu. Ele pensou que estivesse
dormindo, como costumava fazer após o amor, e ergueu-se para contemplá-la.
Como era linda! Como fizera bem em desposá-la! Apesar do tempo, ele não se
cansava de observá-la, acariciá-la... No entanto, de cada lado de suas pálpebras
abaixadas escorriam lágrimas que se perdiam entre o musgo; ela não dormia.
François teria preferido gritos, censuras, em vez daquela mágoa silenciosa.
Começou então a falar da Indochina, do Tonquim que conhecera quando
criança, da baía de Ha Long, uma das mais lindas paisagens do mundo, da
gentileza dos habitantes, da inteligência e da coragem de todo aquele povo que
lutava por sua liberdade, de Sainteny e Leclerc que haviam percebido o
problema, das tentativas de Auriol; explicou como se julgava capaz de reiniciar
as negociações de paz, tanto com os nacionalistas, comunistas, como com os
franceses que lá se encontravam...
De olhos cerrados, ela ouvia, surpresa. Descobria um novo aspecto que
desconhecia em François; ele nunca lhe falara de sua infância indochinesa, do
amigo de quem tanto gostava, da irmã deste, por quem estivera tão apaixonado,
quando adolescente.
— ...Quando a guerra acabar, eu te levarei. Chegaremos por mar.
Escolherei um navio que atravessará o canal Profundo, mais pitoresco do que o
canal Henriette. Ladearemos a ilha de Cat Ba com estreitos fiordes, a ilha da
Paz, a da Estrela, as ilhotas do Sapo. Navegaremos por entre muralhas
abruptas, ora lisas como mármore, ora esculpidas como obras de artistas
dementes. É um universo opressor, vertiginoso, irreal. Quanto mais se avança,
mais o canal torna-se estreito e, finalmente, maravilha da maravilhas, penetra-
se no mar Azul, onde, segundo a lenda, o dragão desceu para traçar as
correntes. Você experimentará a sensação de estar renascendo, saindo do Caos
inicial. Se chegarmos na hora do sol poente, terá a impressão de assistir a um
gigantesco incêndio anunciando o fim do mundo; mas se o céu estiver nublado,
cinzento, poderão surgir os gênios da água. Jamais esqueci todas aquelas
belezas; tais recordações ajudaram-me a suportar momentos difíceis. Quem,
assim como eu quando adolescente, navegou ao longo dos milhares de ilhas do
arquipélago, aguardando o fim das tempestades escondido em uma gruta,
permanece para sempre preso àquele encanto.
— Eu não conhecia esse seu lado poético... Quando viajamos?
— Mas estamos em guerra! — exclamou ele profundamente acabrunhado.
— Guerra! Guerra! Estou começando a acreditar que, para nós, ela nunca
terminará!

— Não fale assim...
— E por que não? A guerra é tão divertida! Faz com que os homens
possam fugir da rotina, das responsabilidades, acrescentando um pouco de
pimenta à sua existência tão mesquinha... Veja bem, te entendo perfeitamente:
se a gente deixar de lado o medo, o sangue, o sofrimento, a morte, a guerra é
muito divertida!... Infelizmente na guerra, as pessoas morrem e eu já estou
cheia de assistir à morte daqueles que amo, por causa desta porcaria de guerra!
Chega!...
Léa martelava o peito de François com os punhos, transfigurada pela raiva
e a mágoa... O rapaz lembrou-se dela alguns anos atrás, quase no mesmo
lugar, atingindo-o da mesma maneira, e ele rindo e tentando dominá-la. Mas
agora não ria. Não se tratava mais de uma mocinha chorando, mas de uma
mulher marcada pelo sofrimento e que merecia um pouco de paz e repouso. E
qual era a sua proposta, logo após o casamento?... Deixá-la para novamente
mergulhar na luta! Argentina, Berlim, a Resistência, a guerra na Espanha, será
que já não bastava? Léa tinha razão: ele gostava da guerra!
François teve a impressão de que a sua boca enchia-se de fel e sentiu-se
inundado por um violento sentimento de náusea.
— Perdão — murmurou.
Durante muito tempo, permaneceram calados, sem se tocar, esmagados
pelo peso do passado, assustados como futuro. Léa, que não suportava mais o
desânimo do marido, tentou se dominar.
— Você foi obrigado a aceitar essa missão?
— Não posso voltar atrás quanto à minha decisão.
— E não pode me levar com você?
— Impossível. A maioria dos franceses está saindo da Indochina. Todos os
dias acontecem atentados, mortes, seqüestros com reféns.
— O que você vai fazer, exatamente?
— Não posso contar. Já sabe demais.
— O tempo da Gestapo já passou!
— Claro, mas existem coisas que convém ignorar para permanecer vivo.
— Estará de volta para o nascimento do bebê?
— Naturalmente! Na pior das hipóteses, ficarei por lá cerca de dois ou três
meses...
— Dois ou três meses? Mas o que vou fazer durante tanto tempo?
— Vá para Paris, arrume o apartamento da rua da Universidade... No
entanto, viajarei muito mais sossegado se souber que você está aqui, mimada

por Ruth e Françoise. Aliás, Charles ficou tão contente com tua vinda a
Montillac.
— Parto contigo para Paris. Depois, veremos.
Ele concordou, resignado:
— Como quiser, meu amor.

Capítulo 5

O avião iniciava a descida. Morto de frio, François Tavernier dobrou o Le
Figaro; logo mais, à noite, terminaria a leitura do artigo de François Mauriac.
Como de hábito, admirou a correção da análise política do escritor católico.
Logo ele que, na juventude, costumava zombar dos padres! ...
Estou ficando velho, pensou. Do lado de fora, a tempestade estava no
auge, sacudindo o aparelho cuja estrutura estremecia violentamente. Pela
janelinha, viam-se relâmpagos ininterruptos.
Inicialmente bem-vindo, agradável em seguida, o calor acabou se tornando
insuportável. Depois de quase morrer de frio, os passageiros corriam o risco de
falecer sufocados, isso se conseguissem escapar ao temporal. As rajadas de
vento levantando a poeira não o deixavam assistir à chegada sobre Hanói O
Dakota pousou brutalmente.
Completamente surdo, com os tímpanos doloridos, François jurou que Léa
jamais chegaria à Indochina por via aérea.
Quando o avião parou, o tufão já se encontrava longe. Resmungando de
satisfação e dor, François esticou o corpo imenso, reclamando da cabine
incômoda. Por um instante, certo temor tomou conta dele: o que iria encontrar?
Enviara um telegrama de Saigon comunicando a hora da sua chegada a Martial
Rivière, de quem não recebera notícias durante os quatro anos em que a França
havia sido ocupada. François sabia que caíra prisioneiro dos japoneses e que a
sua esposa falecera de mágoa.
Apesar de tudo, ele não quisera regressar à França. Hai, o filho mais velho,
após um brilhante curso de medicina na metrópole, abrira um consultório em
Huê alguns meses antes da chegada dos japoneses. O segundo filho, Bernard,
trabalhava no Banco da Indochina. O caçula, Kien, só lhe trazia problemas: o
pai tivera de gastar uma fortuna para evitar que o rapaz fosse preso por tráfico
de ópio e divisas. A filha Lien, a menina dos seus olhos, tomava conta da casa.
Lá fora, o ar parecia quase frio se comparado ao calor que reinava no
avião. De pé na passarela, François sentiu-se dominado por violenta emoção
que tentou reprimir. Retornara ao país dos loucos sonhos de sua adolescência.
Nunca antes pudera sentir os laços que existiam entre aquela região e ele.
Parecia algo selvagem, irracional. Pensou em Léa, em seu amor por Montillac:
sabia que ela entenderia.
Os inúmeros soldados e veículos militares circulando pelas pistas
danificadas lembraram-lhe que o país de sua infância estava em guerra.
Colocando no ombro uma pesada sacola de lona, desceu os degraus metálicos
em busca de um rosto amigo.

Uma jovem vestindo o tradicional traje vietnamita e usando na cabeça um
nonlà, que ela segurava com a mão, veio correndo em sua direção.
Deteve-se diante dele, ofegando. Ergueu o rosto e o encarou. Era de rara
beleza.
— É o senhor Tavernier? — perguntou em tom hesitante.
— Sim.
— Não se lembra mais de mim?
Dessa vez, foi ele quem a encarou.
— Não. Você é... você se parece com Lien.
— Sou prima dela, me chamo Kim.
Ele a ergueu nos braços como uma criança.
— Me deixa... Estão olhando para nós!
Divertido, François colocou-a no chão.
— Você é tão bonita quanto a sua prima. Por que ela não veio?
— Não pôde. Está à sua espera com Hai. Tem outras malas?
— Não. Vamos.
Dirigiram-se para o prédio da alfândega.
— Seu passaporte — pediu o funcionário. — Qual o objetivo de sua
viagem, senhor Tavernier?
— Negócios.
— Quanto tempo pretende ficar aqui?
— O necessário. Um ou dois meses.
A resposta evasiva satisfez o funcionário que devolveu o passaporte,
inclinando-se.
— Desejo-lhe uma boa estada, senhor.
Já era noite quando Kim e François chegaram ao bulevar Henri-Riviêre,
onde ficava a linda moradia de Martial Riviêre. Nenhuma relação entre o rico
comerciante e o capitão de navio morto perto de Hanói pelos Pavilhões Negros
em 1882; no entanto, os tonquineses jamais acreditaram nessa simples
coincidência. Tudo estava escuro, as persianas abaixadas não deixavam entrar
um só raio de luz. Na frente da porta havia uma grade feita com barras de
madeira. Ela se abriu antes de chegarem à soleira.
— Entrem logo!
Braços perfumados enlaçaram o pescoço de François.
— Faz tanto tempo que espero por este momento...

— Lien!
Ela era ainda mais bela do que em suas lembranças. Ele acariciou a seda
dos seus longos cabelos negros.
— Irmãzinha, deixa um pouco pra mim! Não vê que ele está sufocando?
— Hai! ... Deixe-me abraçá-lo, meu irmão.
Os dois homens abraçaram-se, apalparam-se em meio a risadas,
verificando que não se tratava de uma alucinação.
— Onde está o pai de vocês?
As risadas cessaram.
— Vem, ele te espera.
Diante de um grande buda de madeira dourada com sorriso enigmático, o
incenso ardia.
O aposento pouco iluminado no qual François Tavernier penetrou parecia
um local de meditação.
Sobre um leito chinês muito alto, encontrava-se deitado Martial Rivière. A
seu lado, um ancião com longa barbicha branca, vestindo o traje dos
mandarins, seu sogro, Lê Dang Doanh, descendente da antiga dinastia dos Lê.
A medida que se aproximava do leito, François Tavernier sentiu-se
dominado pela certeza de que o seu amigo, o amigo de seu pai, estava
morrendo. Parou e, por um instante, fechou os olhos. Ao abri-los novamente,
percebeu os de Martial fixos nele. Nesse olhar profundo, marcado por olheiras
escuras, havia um certo brilho de felicidade. Ele chegou mais perto, tentando
conter a emoção, e segurou a mão leve, diáfana e ardente do amigo. Como era
densa aquela mão sem peso!
— Você está aqui! Agradeço a Deus por tua vinda. Sinto-me menos
angustiado com a idéia de deixá-los... Agora, já posso morrer.
— Não diga tolices.
— Não são tolices — murmurou Lê Dang Doanh. — Quando soube que
você ia chegar, ele me sussurrou: "Vou agüentar até lá." E agüentou, apesar do
seu sofrimento. Mas não creio que conseguisse suportar tanta dor por mais
tempo. Vou deixá-los; ele tem muitas coisas para lhe dizer.
— Não, fique... Foste o meu único amigo aqui. Deu-me a tua única filha, a
mim, um estrangeiro, e me amaste como a um filho. Foi graças a ti e a ela que
este país tornou-se meu também, que pude entendê-lo e amá-lo...
— Sei de tudo isso. Poupe as tuas forças... É com ele que precisas
conversar.
Lien, que se aproximara, enxugou a testa do pai, encharcada de suor.
— Obrigado, querida, estou bem... Fique com o teu irmão.

Contra a sua vontade, a jovem recuou.
— François, aproxime-se. Doanh tem razão, não me resta muito tempo... O
país está afundando em uma situação inexplicável... O Vietminh encontra-se
impotente em face do aumento das seitas... Os caodaístas infiltram-se por toda
parte... A morte do bonzo louco, Huynh Phu So... os pequenos senhores da
guerra... o regresso de Bao Dai... tudo isso se mescla.., na maior confusão... A
França abandonou a Indochina.., é um erro... está deixando o lugar aos
comunistas.., não é disso que o país necessita... eu o conheço muito bem...
Mas, agora, acho que é tarde demais... Tenho medo pelos meus filhos
mestiços... François, prometa-me que tomará conta de Lien... Leve-a para a
França...
— Martial, não era isso que queria lhe dizer!
— Doanh... Sim, claro... François, precisa encontrar-se com Hô Chi Minh...
Agora, ele está isolado dos franceses...
Os dedos de Tavernier apertaram sem querer os do moribundo. Como! Ele
estava a par de tudo?
— Ficou surpreso? Você deveria saber que, na Ásia, é muito difícil guardar
um segredo... Bernard ouviu no Banco da Indochina uma conversa de Jean
Laurent pelo telefone... Tratava-se de você e de Sainteny...
Concluímos que você não vinha à Indochina apenas para fazer negócios.
Estou enganado?
— Não — fez Tavernier com a cabeça.
— Você deve encontrar-se com tio Hô; é assim que o chamam... Eu o
conheço. Acredito que ele foi sincero na época dos acordos de 6 de março...
Oh!...
O corpo de Martial Rivière curvou-se sob o efeito da dor. Lê Dang Doanh
inclinou-se sobre ele, entreabriu a boca do moribundo e despejou entre os seus
lábios algumas gotas de um licor contido em um frasco de jade.
Imediatamente, os traços de Martial descontraíram-se.
— Obrigado... — sussurrou.
— Agora descanse — murmurou François.
— Vou ter todo o tempo!... Encontre-se com Chi Minh, diga-lhe que as
minhas últimas palavras.., foram palavras de amor para o povo vienamita... e
de desejo de paz... Agora, quero ver meus filhos...
Ele se ergueu com dificuldade. Todos os moradores do casarão estavam
presentes, apertados uns contra os outros. Crianças e empregados, todos
choravam. Martial olhou para eles, esboçou um sorriso e caiu em seguida, com
os olhos abertos. Lien deu um grito e atirou-se sobre o corpo do pai enquanto
Lê Dang Doanh cerrava-lhe suavemente os olhos.

Capítulo 6

Não havia nada nem ninguém que detivesse Léa em Paris.
Nos dias que se seguiram à partida de François, ela percorreu butiques,
lojas de departamentos, antiquários, galerias de exposições, cinemas.
Regressava à noite, esgotada, com os braços carregados de embrulhos, tomava
um banho e voltava a sair para beber nas adegas da moda em Saint-Germain-
des-Prés, na esperança de encontrar velhos conhecidos de Laure. Nenhum
vestígio de Franck, o amigo de sua irmã: há meses que ele não aparecia no
Tabou.
— Ouvi dizer que resolveu alistar-se para a Indochina- disse uma jovem,
com os cotovelos apoiados no balcão.
"Puxa vida, a Indochina está na moda!", pensou Léa.
Ao deixar o Tabou, dirigiu-se automaticamente para a rue Grégoire-de-
Tours. Teve uma vertigem repentina e precisou apoiar-se na parede do prédio
onde Laure e ela haviam morado... Ouviu os tiros... os pneus do carro dos
assassinos cantando no asfalto... os gritos de Franck... sentia o corpo da irmã
deslizando contra o seu... lembrou-se do peso daquele corpo...
Invadida por uma violenta náusea, Léa vomitou na calçada. Ao se
reerguer, viu um homem olhando para ela. Sentiu o rosto em chamas. O sujeito
aproximou-se.
— Está passando mal, senhorita Delmas?
Léa teve um sobressalto.
— Como sabe o meu nome? Tenho a impressão de que já nos
encontramos...
— Sou o policial encarregado da investigação sobre a morte de sua irmã.
— Ah sim, eu me lembro.
— Ainda não prendemos os assassinos. Na verdade, você não ajudou
muito naquele caso.
— O que quer dizer?
— Não contou toda a verdade, naquela ocasião.
— Acha então que conheço a verdade?
— Em parte, pelo menos.
— Só sei de uma coisa: minha irmã morreu e seus assassinos são
nazistas.

— Como pode estar tão convicta?
— Eu sei, apenas isso.
— Não é uma prova suficiente. Você faz parte daquelas pessoas que
enxergam nazistas por toda parte.
Léa sentiu-se dominada por um sentimento de profunda raiva contra
aquele tira, estúpido e seguro de si.
— De fato, encontram-se em toda parte. Só que ninguém quer ver.
— Senhorita! A guerra acabou anos atrás...
— Para você, talvez. Mas não para eles. Estão escondidos. Aguardam a
hora certa. Quando prontos, sairão da toca com idéias de vingança e crime.
Então será tarde demais e a doutrina deles irá espalhar-se novamente como a
peste.
— Está delirando, senhorita. Isso tudo não passa de romantismo!
— Romantismo!...
Então, eram românticos os nazistas argentinos que perseguiram e
mataram os seus amigos judeus?... Aqueles jovens pertencentes à elite da
sociedade argentina que costumavam se reunir diante do retrato de Hitler?...
Era romântico o chefe de polícia que soltava os assassinos, prendia os
militantes comunistas, mandava torturá-los em haciendas iguais aos centros
de interrogatório da Gestapo?...
— Seu vocabulário é muito estranho... — observou Léa com desprezo. —
Adeus, senhor.
— Adeus, senhorita. Talvez seja preciso outro depoimento seu. O caso não
foi arquivado.
— O caso não foi arquivado?...
Fazia um calor insuportável. Léa necessitava de uma bebida fresca e bem
forte. No bulevar Saint-Germain, entrou na Rhumerie martiniquaise e pediu um
ponche gelado. No segundo gole, sentiu- se muito melhor e olhou à sua volta
para os fregueses sentados no terraço. Alguns soldados americanos de
uniforme, jovens excessivamente maquiadas, casais de namorados. Em uma
das mesas, perto da sua, quatro homens conversavam animadamente: Samuel
Zederman encontrava-se entre eles.
Envelhecera muito desde a viagem de Léa a Buenos Aires; os traços do seu
rosto estavam mais vincados, o cabelo embranquecera, as mãos tremiam.
Devido talvez à insistência do olhar de Léa, ele se virou em sua direção. Com
um gesto discreto, deteve o impulso de Léa. Habituada à clandestinidade, ela
desviou os olhos. Profundamente perturbada, Léa pagou a conta e saiu. Se
Samuel quisesse lhe falar, sabia onde encontrá-la.

Mal chegara ao apartamento da rua da Universidade e o telefone tocou. -
— Alô, Léa?... É Samuel. Desculpe-me pelo incidente, mas eu não queria que os
meus companheiros notassem a tua presença.
— Entendi. Gostaria muito de falar contigo.
— Eu também... Perdão, preciso ir embora. Voltarei a ligar.
Léa desligou, preocupada. Percebeu logo que Samuel continuava a sua
luta. Quando é que tudo aquilo chegaria ao fim?
Cansada e deprimida, deitou-se. No entanto, os pesadelos que haviam
deixado de atormentar-lhe o sono depois do seu regresso à França,
mantiveram-na acordada boa parte da noite. Só conseguiu adormecer de
madrugada.
Foi a campainha que a despertou; era a zeladora entregando a
correspondência. Léa encontrou uma carta de François:
Minha querida, Hanói, 5 de setembro Após uma viagem cansativa, o avião
aterrissou no aeroporto de Gia Lam. Muitas ruínas, estradas danificadas. A
famosa ponte Paul-Doume, orgulho dos franceses de Hanói, continua de pé
com seus dois quilômetros de aço sobre o rio Vermelho. A grande quantidade de
água devido às chuvas da monção vai levando corpos apodrecidos, troncos de
árvores, tábuas. O veículo no qual eu me encontrava avançou lenta- mente em
meio a uma multidão de vietnamitas puxando carros de mão sobrecarregados,
triciclos, carros militares de todo tipo. Parecia as estradas durante o êxodo. O
rosto da guerra é sempre o mesmo em toda parte. Quando cheguei a Hanói, já
era noite. Nas ruas quase desertas, as pessoas tinham pressa de chegar em
casa antes do toque de recolher Meu amor nada disso deve despertar o teu
interesse! Tu gostarias, sem dúvida, que eu falasse de ti, do bebê, de mim, dos
meus amigos... Meu amor.. Encontro-me nesta cidade há poucas horas e, no
entanto, tenho a impressão de que já se passaram anos. Eu queria tanto que
esta primeira carta fosse composta exclusivamente de palavras amorosas, de
carícias da alma que as mulheres, segundo Balzac, apreciam muito; no
entanto, minha querida, a primeira coisa que encontrei aqui foi a morte.
Sim, a morte do amigo do meu pai, Martial Rivière, que tomou conta de
mim quando fiquei órfão, o homem a quem eu mais amava e respeitava, que fez
de sua vida uma obra- prima de equilíbrio e bondade, que tinha a respeito da
honra uma idéia tão bela e tão simples...
Era amado por todos os que, assim como ele, respeitavam o poder da
palavra, e temido pelos trapaceiros e mentirosos. Durante todos aqueles anos
sombrios, se não sucumbi diante de certas tentações, certas facilidades, foi
porque nunca deixei de pensar nele, sabendo que não poderia encará-lo após
certos atos...
Ele me esperou para morrer. Faleceu segurando a minha mão, entregando-
me seus filhos e seu país, o Vietnã. Deixei a casa em meio aos prantos e vim
derramar as minhas próprias lágrimas neste quarto, repleto de recordações da

minha adolescência. Pensei em ti, em nós, na criança que vai nascer e que vai
precisar de pai. Agora posso perceber melhor o quanto é importante a presença
de um pai, ou de alguém que o substitua quando o pai verdadeiro está ausente.
Tome conta dele. Desde que nos conhecemos, costumo ficar preocupado
contigo e, hoje, mais do que nunca. Por uma questão de orgulho bobo, como
um verdadeiro macho, como diriam nossos amigos argentinos, com receio de
que se aproveitasse da situação, eu nunca te confessei tudo quanto representas
para mim. Mas aqui, tão distante, posso te dizer o quanto te amo, e como, sem
ti, a vida perderia todo valor A vida... É tão importante, a vida!
Minha garotinha querida, estão batendo à porta, querem falar comigo.
Pense em mim, pense com todas as suas forças em teu marido que te ama.
François "Eu também te amo", pensou Léa apertando a carta contra o
peito. Fragmentos de prece subiam até os seus lábios, como costumava
acontecer nos momentos de profunda emoção, acompanhados da imagem de
sua mãe ensinando-lhe o pai-nosso e a ave-maria. Aquela ternura, aquela paz
perdidas para sempre, fizeram com que Léa suspirasse de saudade.
Um pontapé do bebê veio arrancá-la de sua melancolia.
Léa contemplou no espelho a silhueta que começava a se tornar mais
pesada. Abriu o robe de seda e examinou com muita seriedade o ventre e os
seios. Faltavam ainda cinco meses! Como Françoise podia afirmar que só se
sentia bem grávida e que desejava vários filhos?
No caso de Léa, havia um certo bloqueio que não lhe permitia ver-se como
mãe. Parecia-lhe inconcebível. Sua metamorfose física inspirava-lhe ao mesmo
tempo temor e repulsa, ela receava tornar- se menos sedutora; no entanto,
lembrava-se do rosto feliz e tranquilo de Camille apertando nos braços o
pequeno Charles ou Françoise mostrando-lhe com orgulho o seu bebê recém-
nascido.
Inclinando-se para trás, girou o corpo e admirou no espelho seus seios
fartos, suas nádegas firmes, suas coxas esguias. Aquela imagem de plenitude
deixou-a perturbada, provocando-lhe um desejo que ela conhecia
perfeitamente. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, os dedos deslizaram pelo
ventre. Com os olhos fixos no espelho, sua respiração tornou-se ofegante e uma
violenta sensação de prazer arrancou-lhe um gemido. Ela caiu de joelhos e,
sentada nos calcanhares, começou a chorar.
François, por que me abandonou?
Foi nessa posição que a senhora Dumas a encontrou, quando chegou para
arrumar o apartamento.
— O que foi, senhora? Será que sente dor?... Por que está chorando?
Recebeu uma notícia mim?...
Vamos, o que é isso, assim não, não vai ser bom para o garotão...

— Como sabe que vai ser um menino? — perguntou Léa entre dois
soluços.
A senhora Dumas deitou-a na cama e cobriu-a com o lençol.
— Não dá para negar, tem um corpo e tanto.
— Por que disse que estou esperando um menino?
— Vi nas cartas.
— Nas cartas? Acredita nesse negócio?
— Não zombe — disse a senhora Dumas, magoada. — Não é um negócio, é
muito científico.
Léa deu uma risada gostosa. Seu acesso de riso aumentou diante da cara
zangada daquela mulher tão simpática.
— Desculpe-me, eu não quis ofendê-la...Científico! Não foi o que disse:
científico?
— Exatamente, senhora: científico! Durante a guerra, as cartas me
revelaram um monte de coisas.
Sem elas, eu nem estaria aqui conversando.
— Como é? — perguntou Léa, que continuava rindo.
— Está zombando de mim! Não vou contar mais nada.
— Claro que não, senhora Dumas, juro que não estou zombando!
— Então por que está rindo desse jeito?
— É o meu sistema nervoso. Ainda há pouco estava chorando, agora rio.
Prefere que eu chore?
— Deus do céu, claro que não! Não faz bem para a senhora.
— Pois então, vamos, me conte como foi salva pelas cartas.
— Promete que vai parar de rir?
— Juro.
— Bem, então...
A campainha fez com que as duas mulheres se assustassem.
— Está esperando alguém?
— Não. Pode abrir a porta.
— Quem será?
Léa levantou-se, vestiu o robe e passou a mão pelo cabelo despenteado.
— É um senhor que deseja vê-la. Parece estranho, não quis dizer o nome...
Mas o que é isso, senhor...

— Perdão, senhora. Desculpe-me, Léa, eu precisava ver você.
— Pode deixar, senhora Dumas, conheço este senhor.
— Mas...
— Eu já falei, está tudo bem. Faça um café para nós.
Léa empurrou gentilmente a faxineira e fechou a porta.
— Samuel, o que houve? Parece transtornado...
— E não sem razão! Imagina quem encontrei no bulevar Saint-Germain?
— Como posso saber?
— Raimondo Navarro, o dono do carro com o qual Rik Vanderveen te
seqüestrou...
— Oh meu Deus!
— E tem mais. Ele estava com um homem que conheci em Buenos Aires,
um alemão que também era freguês do ABC. Pelo jeito com que as pessoas que
tomavam cerveja se comportavam em relação a ele, devia ser alguém
importante na Alemanha.
— Você se lembra do nome?
— Ouvi um dos garçons chamá-lo de Wilhelm Dietrich, mas não deve ser o
certo. Fiquei preocupado porque acho que também me reconheceram.
— Porquê?
— Alguma coisa na atitude deles...
— Você deve estar enganado.
— Pode ser. Mas prefiro agir com prudência. Minha tarefa ainda não
terminou.
— Que tarefa?
— Vingar meu povo e meu irmão.
— Como mudou, Samuel, logo você, que costumava acalmar Sarah!...
— Sarah e Daniel morreram. Quer que eu deixe a morte deles impune?
— Você não pode devolver-lhes a vida.
Samuel Zederman levantou os ombros.
— Sei muito bem. Entretanto, depois do meu regresso da Argentina, não
consigo dormir ou então, quando chego a cochilar, por algum milagre, ouço
uma voz dizendo: "Samuel, o que fez com seu irmão?"Então acordo assustado,
gritando como um louco. Não agüento mais.
Léa olhou para Samuel: com o rosto entre as mãos, todo o seu corpo
tremia. Não ouviram as batidas na porta. A senhora Dumas entrou, trazendo

uma bandeja com duas xícaras de porcelana estampada, uma cafeteira, um
açucareiro de prata e um pratinho de biscoitos.
— Achei que ainda não tinham tomado o desjejum — Está ótimo.
A senhora Dumas saiu, de má vontade.
— Quanto açúcar você quer?
— Só uma colher, obrigado.
— Onde está hospedado?
— No hotel La Louisiane. Preciso avisar os amigos com quem você me viu
ontem à noite.
— Pode telefonar daqui, se quiser.
— Posso mesmo? Obrigado.
— Vai até a sala. Enquanto isso, vou trocar de roupa.
Léa tomou o café, pegou um biscoito e trancou-se no banheiro. Quando
saiu, a senhora Dumas estava arrumando a cama.
— Meu amigo já telefonou?
— Aquele moço é mesmo muito estranho. Desligou de repente e saiu
correndo como se fugisse do diabo!
— Não falou nada?
— Não, estava muito pálido.
— Faz tempo que ele saiu?
— Cerca de quinze minutos.
— Rápido, senhora Dumas, traga os meus sapatos azuis-marinhos.
— Para onde vai?
— Rápido, preciso fazer uma compra... Onde foi que deixei a minha bolsa?
Obrigada... Até logo, senhora Dumas, até amanhã.
Sem esperar o elevador, Léa desceu a escada correndo, segurando-se no
corrimão.
— Cuidado, assim vai acabar caindo! — gritou a senhora Dumas,
inclinando-se no vão da escada.
O sol estava quente. Uma luz dourada inundava a rua da Universidade. Já
está com cheiro de outono, pensou Léa. No carrefour Buci, um grupo de
pessoas, contidas pelos guardas, empurravam- se em volta de uma viatura da
polícia.
— Andando, minha gente, não há nada para ver.

Uma violenta angústia tomou conta de Léa que teve de se apoiar na vitrine
do sapateiro. Com uma guimba entre os lábios e um avental de couro, o artesão
sacudiu a cabeça:
— Onde já se viu, em plena luz do dia! Não temos mais nenhuma
segurança... Qual é a do governo, que não está fazendo absolutamente nada?
São todos uns safados preguiçosos! Está pior do que na época dos chucrutes!
Ao preço de um imenso esforço, Léa conseguiu soltar-se da vitrine e
caminhou com movimentos mecânicos tropeçando nos transeuntes. Sentiu
quando uma mão a deteve. Era o inspetor que encontrara na véspera.
— Não olhe, o espetáculo nada tem de bonito.
Mas Léa já vira. Embora uma parte do rosto tivesse sido arrancada,
reconheceu Samuel. Não conseguiu reprimir um gemido. O policial obrigou-a a
recuar.
— Bem que avisei, não é um espetáculo...
— Preciso me sentar...
Ele quase a carregou até o terraço do café, na esquina da rua de laSeine...
— Garçom, um conhaque. Você não tem mesmo sorte neste bairro.
Conhecia o homem que foi morto?
— Não — mentiu Léa.
— Ainda bem! Tome, aqui está o seu conhaque, beba... Mais um pouco!
Ela tinha a impressão de que o álcool espalhava-se em suas veias e a
queimava, enquanto o rosto ficava em chamas.
— Está melhor? Seu rosto mudou de aspecto. Fique quietinha, preciso ir.
Volto daqui a pouco, espere aqui.
Ele desapareceu na multidão. Léa pagou a conta. Justo na hora em que se
levantou para sair, seu olhar cruzou com ode um homem jovem e sedutor. Já o
vi antes, pensou atravessando a rua. Na rua Jacob, Léa percebeu que ele a
seguira e acelerou o passo. Ele fez o mesmo.
Não se deixar dominar pelo pânico, caminhar normalmente.
Por que não esperara o policial como ele mesmo havia pedido?
Justo ele que não acreditava nas organizações nazistas!... Pegaram
Samuel... Ele não se enganara ao afirmar que o reconheceram...
Será que o seguiram até a casa dela?
— Senhorita! Senhorita!... Espere! Não corra assim...
Novamente o pavor de ser apanhada... Correndo em linha reta, torcendo os
pés com os saltos altos, Léa atravessa a rua Bonaparte sem prestar a mínima
atenção. A seu lado, uma massa escura, imensa... um rangido metálico.., um
barulho enorme... A besta está aqui, selvagem.., um choque...

Não quero ser apanhada!... Ela se levanta, atira-se para a frente... Não,
não pode... Tudo gira... um imenso cansaço... O bebê! Não!
Léa cai na calçada coberta de poeira... Seu vestido claro está sujo... Os
joelhos, os braços, as mãos estão sangrando... Os cabelos compridos
escondem-lhe o rosto... Tudo pára durante alguns segundos... Em seguida
gritos...
— Não foi minha culpa... Ela se jogou debaixo das rodas...Freei, freei... Não
pude evitar! — grita o motorista do ônibus, transtornado.
Um rapaz ofegante inclina-se sobre Léa, vira seu corpo lentamente. Seu
rosto parece intacto...Ela geme baixinho, abre os olhos... reconhece-o... Tenta
erguer-se e volta a cair.
— Desculpe-me, não queria assustá-la... Sou amigo de Samuel...
Desculpe-me... Meu nome é Jonathan Cohen...
— Saiam! Deixem-me passar, polícia!
O rapaz se levanta e vai saindo de costas. O inspetor empurra-o e se
inclina sobre Léa.
— Meu Deus!

Capítulo 7

Toda a cidade de Hanói assistiu ao funeral de Martial Riviére, na catedral
Saint-Joseph. Os vietnamitas compareceram para prestar a última homenagem
àquele homem que tanto estimavam e respeitavam. Hô Chi Minh, que o
conhecia bem, enviou à família uma mensagem de condolências: nela, ele
também lamentava que a França não tivesse mandado ao Vietnam um número
maior de homens da mesma fibra, que pudessem evitar uma guerra impiedosa
entre os dois países. O alto comissário, Emile Bollaert, fez-se representar pelo
chefe de gabinete. Paul Mus, que havia sido um dos seus amigos, enviou um
longo telegrama expressando os seus sentimentos aos filhos de Rivière. Albert
Sarraut, que recebera Martial Rivière, na qualidade de governador, quando de
sua chegada à Indochina em 1916, enviou uma coroa de orquídeas.
O sepultamento transcorreu na mais estrita intimidade, Os galhos de um
majestoso flamboaiã inclinavam-se sobre o túmulo dominado por uma estela
esculpida com ideogramas. A mais profunda paz reinava no local.
Apesar de sua dor, François Tavernier sentia-se sereno. Seu amigo deixara
de sofrer e encontrara a mulher que amava. A mão de Lien agarrava-se à sua,
fria e úmida. O que aconteceria com ela? Por que não se casara? Os
pretendentes assustavam-se com sua grande beleza? Quando adolescente,
François estivera loucamente apaixonado por ela, porém profundamente
intimidado por aquela formosura que lhe parecia inacessível. Era por isso que
costumava dedicar-se desesperadamente, na companhia de Hai, à escalada dos
três cumes do monte Tam Dao, à caça do javali ou do cervo perto da cascata de
Prata, a cavalgadas ao longo das praias de Van Ly? A profunda seriedade de
Lien também o amedrontava. Ela era a melhor aluna da Escola do Extremo
Oriente. Entre o avô e a jovem estabeleciam-se longas conversas a respeito de
livros redigidos em chu nôm1 ou de edições anamitas redigidas por chineses.
Tais conversas cultas, como dizia Hai, costumavam afugentá-los.
Quando jovem, Lien tivera de suportar as ofensas de suas colegas
francesas na escola de freiras.
Ao tomar consciência do teor racista daquelas injúrias, ela se recusou a
freqüentar o estabelecimento, profundamente envergonhada e magoada. Foi
graças à persuasão e à ternura do avô, Lê Dang Doanh, amado e venerado pela
neta, que aceitou voltar às aulas. Certa manhã, de mãos dadas com o pai e o
avô, ela se apresentou na sala da diretora que a recebeu com muito afeto.
Foi ela que a levou pessoalmente até a sala de aula e, diante de toda a
turma, falou:

— Eu lhe peço, Lien, para perdoar as suas colegas por seu
comportamento, e a mim também que não soube mostrar-lhes que somos todos
irmãos e iguais em Jesus. Aceita perdoar-me, minha filha?
Transtornada, dominada por sentimentos contraditórios, porém educada
demais para se revoltar, Lien, em prantos, atirou-se aos braços da freira. Após
beijar-lhe a testa e acariciar seus longos cabelos negros, a diretora empurrou a
menina até as colegas que a abraçaram com profunda emoção. A partir daquele
dia, Lien renegou a religião católica e adotou a atitude, a seus olhos hipócrita,
das religiosas encarregadas de sua educação e das demais alunas. Pouco a
pouco, a adolescente fechou-se sobre si mesma: só ria e brincava, como
qualquer menina de sua idade, na companhia das crianças da boyeríe. Mais
tarde, François teve muita dificuldade para domesticá-la e fazer com que
olhasse para os brancos com menos severidade. Até o seu pai, que a menina
adorava, sofreu com tal prevenção. O tempo conseguira sanar aquela ferida,
porém apenas na superfície.
Ao ficar mais velha, sua beleza fez com que os irmãos de suas colegas
esquecessem o sangue anamita que corria em suas veias. Alguns dentre eles,
sinceramente apaixonados, chegaram a se aproximar de Lien. Em vão. Ela
costumava afastá-los com um sorriso tão gentil que todos se sentiam amados.
O avô, que fazia as vezes de confidente, apreciava esse tipo de comportamento.
Embora ele sentisse afeto e uma grande estima para com o genro, Lê Dang
Doanh não apreciara muito a união de sua única filha com um homem de
outra raça e de outra cultura. Não fizera comentário algum, mas Martial Rivière
havia percebido que esse casamento representava para ele uma certa traição
em relação à terra dos seus antepassados. Os franceses não eram, depois dos
chineses, os ocupantes deste país, que haviam transformado em uma das suas
colônias? Quanta humilhação por baixo daquela palavra!
Sem os laços familiares que o uniam a um dos homens mais importantes
da Indochina, Lê Dang Doanh teria sido preso várias vezes devido à ajuda
oferecida a diferentes correntes nacionalistas.
Por diversas ocasiões, sua casa servira de asilo a compatriotas procurados
pela polícia. Apesar de tudo, o almirante Decoux, governador geral da época,
não hesitara a recorrer a ele em suas difíceis relações com o governo chinês.
Em compensação, o almirante nunca conseguiu convencê-lo a participar de um
encontro com o general ou qualquer outro membro do estado-maior japonês. De
maneira geral, ele considerava os japoneses uns brutos cuja presença
desonrava tanto a França como a Indochina. O golpe nipônico de 9 de março de
1945 não o surpreendeu.
Com a ajuda de um de seus amigos nacionalistas, conseguiu fugir de
Hanói em companhia de Lien e Kien, chegar à fronteira chinesa e depois a Nan-
ning. Ali, ficou sabendo que sua filha e o marido haviam sido presos. Foi a
presença dos netos que o impediu de voltar para tentar libertá-los. Quando
pôde finalmente regressar a Hanói, sua amada filha acabara de falecer em

conseqüência dos maus-tratos recebidos dos japoneses. Foi a dor comum que
aproximou Lê Dang Doanh e Martial Rivière.
Por isso, aquele ancião chorou a morte do genro como se fosse a de seu
próprio filho. Percebera o fim próximo, tentara se preparar, mas sua
preocupação maior havia sido com os netos. Ele temia o futuro e previa que a
guerra contra os franceses seria muito longa.
A presença de François na hora da morte de Martial acalmou um pouco o
seu receio. Sempre tivera o maior apreço por aquele jovem francês que
costumava passar as férias com seu pai adotivo, como ele costumava dizer. O
ancião percebeu logo que Lien estava apaixonada por ele, e que aquele amor
seria infinito. Durante os longos anos de separação, esse sentimento só fizera
aumentar. Ao saber do casamento de François, o professor Doanh chegara a
temer um gesto de desespero da parte de Lien. No entanto, entregue à dor de
perder o pai, a jovem, na hora, pareceu não entender o que se passara. Mas o
avô desconfiava daquela aparente indiferença; conhecia a violência da neta e
receava o momento em que ela tomasse consciência da perda do homem que
amava.
Pouco tempo depois da morte do pai, ele mandou chamar os seus três
netos para comunicar-lhes seus últimos desejos e temores quanto à irmã.
Hai, na qualidade de filho mais velho, foi o primeiro a falar:
— Avô, não se preocupe no que diz respeito a Lien, minha casa será dela
também. Minha esposa Phuong e eu teremos o maior prazer em recebê-la.
— Obrigado, meu filho, nunca tive dúvidas quanto a isso. Mas a guerra
está se ampliando em nosso país. O que pensa fazer?
Hai ergueu a cabeça com orgulho e falou com voz firme:
— Lutar!
— Você está louco! — exclamou Bernard. — Esqueceu que é meio francês?
Hai sorriu e respondeu suavemente:
— Também sou meio vietnamita.
— Você pode fazer o que quiser, mas Geneviève e eu vamos regressar à
França. Levaremos Lien, se ela quiser.
— Essa é boa — zombou Kien, o caçula dos três irmãos. — Os ratos
abandonam o navio...
— Eu te proíbo de falar assim!
— Oh, perdão, eu me esqueci: o senhor se considera francês de verdade,
principalmente depois de se casar com aquela metida...
— Minha esposa não é nenhuma metida, é filha de uma excelente família
de Estrasburgo...

— ...com um sotaque germânico que ela não consegue perder!
— Se continuar, vou quebrar a sua cara! Está com ciúmes, pois além das
prostitutas chinesas, você não entende nada de mulher.
— Nisso você está certo. Prefiro mil vezes as putas às mulheres honestas!
Com elas, pelo menos, sabe-se onde se pisa!
— Kien, Bernard, que vergonha, na frente do vovô!
Lê Dang Doanh assistira com profunda tristeza àquela altercação entre os
netos. Não era a primeira vez. Desde crianças, suas discussões costumavam
transformar-se em verdadeiros combates; com a guerra, essas brigas tornavam-
se mais violentas. Eram tão diferentes entre si...
No caso de Hai, não se notava que tivesse sangue francês nas veias, exceto
talvez por sua altura, mais elevada que na média dos tonquineses. Ele sempre
se sentira anamita, apesar do pai, da amizade com François e das viagens à
França. Seu país era o Vietnã. Era para ele que iniciara os estudos de medicina
e se especializara em doenças tropicais, sem deixar de lado seus conhecimentos
de medicina chinesa. Desposara uma mulher com as mesmas aspirações que
ele e cujo pai, Nguyên Van Dong, era membro do partido comunista indochinês
e se juntara a Hô Chi Minh na resistência. Juntos, haviam jurado combater
pela independência de seu país. Tinham duas filhas às quais deram o nome das
irmãs Trung, que combateram, no ano 40, os invasores Han: Trac e Nhi.
Quanto a Bernard, em contrapartida, não revelava praticamente nenhum
vestígio de sua ascendência anamita: lembrava muito o pai e sentia-se branco,
desejava-se branco, pensava branco, o que costumava revoltar Hai e levava o
avô a sorrir com tristeza. Seu casamento com uma francesa não fora surpresa
para ninguém. Ele tinha uma menina, Mathilde, loura como a mãe.
No caso de Kien, após causar o desespero dos pais com suas aventuras,
sua insolência, suas fugas, sua inclinação em freqüentar maus elementos com
quem praticava todo tipo de comércio ilegal, passara agora a ser a causa da
aflição do avô. Este não exercia a menor autoridade sobre o neto. O cinismo do
rapaz espantava-o e o ancião se censurava por não conseguir ser mais severo
com o rapaz. Quando criança, Kien já costumava mandar no avô, nos pais e
nos irmãos. Sedutor, de uma beleza equívoca, causava profunda impressão em
homens e mulheres.
Kien não preservara nada do modelo familiar e dos seus valores. Crescera
completamente isento de qualquer complexo, de qualquer obrigação. Corajoso,
violento, brigão, louco por façanhas aéreas, consumado cavaleiro, marinheiro
intrépido, campeão de boxe tailandês, a guerra representava para ele uma
maneira de enriquecer, dar asas a seu gosto pela aventura, fugir daquela
família em relação à qual sentia apenas uma grande irritação.
Lien era a única que lhe agradava; lembrava-lhe a mãe, o único ser que
havia amado e cuja morte deixara-o completamente desamparado. Enquanto
desfrutara de sua companhia, o rapaz havia moderado seus instintos; porém,

após o seu falecimento, nada mais o detinha, nem mesmo o seu afeto para com
Lien. Kien sempre experimentara em relação a François Tavernier um misto de
admiração, inveja e ódio. Não suportava o fato de ser considerado um garoto
pelo francês. Mesmo agora, observara perfeitamente quando François lhe disse,
com o mesmo tom irônico de antigamente: "E aí, tudo bem, garoto?..." Quem
achava que era, aquele francês puro-sangue? O fato de participar da guerra na
França, Espanha, Alemanha, não lhe dava o direito de falar assim com ele! Kien
também fazia guerra, à sua maneira: iria mostrar a todos o seu valor!
Paciência, ele tinha todo o tempo. Pensando bem, só estava com vinte e três
anos!
— Vovô, não se preocupe comigo — afirmou Kien. — Vou ficar aqui e
tomar conta de você e de Lien.
Lê Dang Doanh baixou os olhos para dissimular a sua emoção. Quem
sabe? Kien talvez não fosse tão mau... As esperanças do avô em relação ao neto
preferido renasceram.
— Muito obrigado, meu filho, entretanto acho que seria mais prudente
Lien regressar à França com Bemard...
— Nada disso, vovô. Quero ficar com você. Meu lugar é aqui, nesta casa,
neste país onde meus pais foram enterrados.
Lien, que acabara de entrar na sala, tinha ouvido a conversa dos irmãos.
— Vovô, foi pouco delicado de sua parte não me manter a par de suas
decisões. Não sou mais nenhuma criança e, apesar de todo o meu respeito por
você, convém não esquecer que já sou maior de idade.
O avô olhou-a com ternura e orgulho. A jovem era a jóia daquela casa; a
beleza de seu rosto refletia a de sua alma. Ele pressentiu que toda essa beleza,
tendo em vista a situação do país, não demoraria a representar um obstáculo
dos mais sérios. Para preservá-la, estava pronto a se separar da neta.
— Você fará o que eu mandar! — exclamou com severidade.
A dureza de sua voz fez com que os olhos de Lien se enchessem de
lágrimas.
— Oh, vovô — suspirou ela baixando a cabeça.
O velho intelectual faria qualquer coisa para deter o pranto daquela
menina tão amada; no entanto, diante dos irmãos, precisava salvar as
aparências. Foi Hai quem o ajudou:
— Vovô, sua preocupação para conosco é muito comovente, mas a nossa
pátria precisa de nós todos e não seria justo que a nossa irmã não tomasse
parte em sua libertação.
— Sou da mesma opinião que vovô: Lien estará muito melhor na França,
conosco; o lugar de uma mulher não é no centro da guerra.

— Quanta tolice, pobre Bernard! O presidente Hô Chi Minh não faz a
menor diferença entre os combatentes, sejam eles homens ou mulheres!
— Teu presidente Hô está levando o país à destruição. A Indochina deve
continuar sendo a jóia do império. Graças à França, conhecemos todos os
benefícios da cultura ocidental, participamos do progresso, enquanto o
comunismo só irá conduzi-lo à anarquia ou à burocracia...
— Cale-se, nem sabe do que está falando! Foram os melhores que se
filiaram ao partido!
— Deixaste teu sogro e tua esposa fazerem a tua cabeça. É mestiço, não se
esqueça disso. Duvido muito que te aceitem de boa vontade em suas fileiras...
— Meus filhos, parem de brigar! — ordenou Lê Dang Doanh, com a mão no
peito.
— Vovô, está doente? — perguntou Lien, atirando-se aos pés do ancião.
— Vou examiná-lo — disse Hai aproximando-se do avô.
— Deixem-me, preciso ficar só para pensar.
— Mas...
Com um gesto, ele deteve as palavras de Lien e despediu a todos com um
simples aceno.

Capítulo 8

Sentado em uma cadeira de junco toda remendada, um braço na tipóia, o
outro encostado na mesa imunda em cuja madeira viam-se queimaduras de
cigarros, marcas de copos, iniciais feitas a faca, Jean Lefèvre, vestindo o
uniforme da Legião, alheio a tudo, olhava para a frente sem ver as dançarinas
do Paramount circulando em grupos de duas, abraçadas, piscando os olhos
para atrair os clientes. Alguns homens, sentados à mesa ou encostados no
balcão, embebedavam-se com cerveja ou conhaque com soda. Os ventiladores
não conseguiam refrescar a sala comprida e estreita, com as paredes pretas e
vermelhas, cujo piso de mosaicos amarelos desaparecia sob uma camada de
serragem, pontas de cigarros, resíduos de cana-de-açúcar mastigados pelas
mulheres. Ao fundo, sobre um estrado, uma orquestra "argentina" de olhos
repuxados tocava um paso doble desafinado que dois legionários dançavam
com a maior seriedade sob as risadas e as vaias dos companheiros.
Uma minúscula tonquinesa desaparecia entre os joelhos de um imenso
pára-quedista. Nova na profissão, o olhar apavorado, a coitada arqueava o
corpo, com os braços esticados e as mãos apoiadas nas coxas monstruosas que
cingiam sua cintura. A fumaça era tão densa que praticamente dissimulava a
claridade das lâmpadas com bandeira vermelha; mal se distinguia o formato
dos bancos de couro arrumados ao redor da sala, onde as mulheres
saracoteavam em poses propositadamente provocantes.
Com o copo na mão, Jean levantou-se e caminhou titubeante na direção
do bar.
— O mesmo — disse à chinesa que servia atrás do balcão.
Como ela atendeu com certa lentidão, Jean arrancou-lhe a garrafa de
conhaque e serviu-se à vontade.
— Cuidado!
O copo, ao se chocar na garrafa, acabara de derramar todo o seu conteúdo
sobre um freguês.
— Lefèvre!
— Tavernier!
Entre os dois homens que se encaravam, surgiu então a lembrança da
mulher que ambos amavam:
Léa. François foi o primeiro a reagir:
— Venha comigo, precisamos conversar — disse, arrastando o outro até
uma mesa vazia. — Garçom, dois conhaques duplos.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Jean Lefèvre com voz tensa. —
Você e Léa não deviam...
— Casar? — prosseguiu François Tavernier. — Já casamos. Léa ficou na
França e estou aqui a negócios.
— Negócios!... Você faz parte daqueles que especulam sobre a piastra,
vindo para cá ganhar dinheiro enquanto outros pobres coitados estão sendo
mortos! Você não passa de um canalha safado!
François apertou os punhos; no entanto, preferiu ignorar a insolência do
admirador de Léa.
— Sua ferida foi grave?
— Não muito, no ombro... Mas o que tem a ver com isso?
— Nada, só quis ser amável com um compatriota. Mas já que estou
aborrecendo você...
— Não, fique. Fale-me da França...
Ele queria dizer fale-me de Léa. Foi exatamente o que fez Tavernier.
Enquanto conversava, a voz tornou-se mais suave, o ritmo mais lento,
entrecortado por pausas cada vez mais freqüentes.
Ele também a ama, pensou Lefèvre; o que veio fazer aqui? Sem se dar
conta, formulou o pensamento em voz alta.
— Já lhe disse — respondeu François —, estou aqui a negócios. O amigo
do meu pai que dirigia a nossa empresa faleceu. Após o falecimento do meu pai,
este homem e seus filhos substituíram minha própria família. Pretendo
regressar à França daqui a dois meses.
— Qual a reação da França diante da situação neste país?
— Praticamente nenhuma. Os franceses têm outros problemas, mais
prementes: o racionamento, as greves, a reconstrução do país, o isolamento do
partido comunista, a guerra fria, as propostas do general Marshall, as
divergências políticas, a criação da União do Povo Francês...
— Você não parece muito favorável ao partido do general De Gaulle?
— Estou muito indeciso. Não tenho certeza de que seja este o melhor
momento: ele coloca em perigo as instituições da República, acentua as
divisões da França, a fragilidade de sua posição no mundo...
— Pensei que fosse gaullista.
— E sou. Mas não a ponto de aceitar tudo sem questionar. Talvez eu
deixasse de entender certos fatos, durante a minha viagem à Argentina... E
você, não questiona nada?
— Garçom, outra dose!... Quanto à política? Melhor não perguntar nada.
Quando jovens, meu irmão e eu tínhamos certa preferência pelos anarquistas.

Se ainda estivesse vivo, certamente seria comunista, em homenagem a vários
camaradas nossos, fuzilados, torturados ou deportados...
— Não foram os únicos.
— Claro. O tio de Léa, padre Adrien, e todos os membros do seu grupo não
eram comunistas; mas nós, e nossos companheiros da Resistência, tínhamos
certa inclinação pelo partido. Encontrei aqui, na Legião e em outros lugares, ex-
membros do movimento; muitos não se sentem à vontade nesta guerra, e não
apenas por causa da propaganda Vietminh, mas porque não estão no lugar
certo: esta luta não lhes diz respeito, é uma guerra suja, sentem vergonha de
combater...
Esvaziou o copo de um só gole.
— Garçom, outra dose... E quando não suportam mais a vergonha, eles
vêm encher a cara, isso na melhor das hipóteses. Ou então acabam com a
própria vida para deixar de olhar para esses combatentes com rosto de
crianças, descalços, cujas armas não passam de ferro-velho...
— Senhor, temos de voltar...
— Vê se não enche, Pujol, não está vendo que estou com um amigo?
— Vi, sim senhor, mas sabe como é o capitão...
— O capitão pode ir se foder, ouviu bem? Se foder!
— Lefèvre, ele tem razão...
— Me deixa em paz! Vá se foder também! — disse ele em meio a arrotos,
varrendo a mesa com um movimento desastrado.
Cambaleando, ele começou a golpear todos aqueles que se encontravam a
seu alcance. Estava tão bêbado que girava o próprio corpo como um pião em
meio às risadas e aos gritos dos presentes. O chinês dono do bar, corria entre
as mesas:
— Vamos, senhores, levem o seu amigo, não quero brigas aqui... Vou
chamar a polícia militar... Senhores!...
Uma cadeira atirada em seu peito deteve-o no meio da frase.
Com a ajuda de Pujol, Tavernier conseguiu tirar Lefèvre do Paramount e o
instalou numa caixa de fósforos. Pujol sentou a seu lado. O condutor bateu
com o chicote e o cavalo começou a trotar — Obrigado, senhor! — gritou o
soldado, olhando para trás.
— Ora, que beleza esse exército francês! Não vai ser com isso que
ficaremos livres da ralé vietminh!
Um homem corpulento, vestindo um impecável terno branco, fumando um
charuto malcheiroso, encontrava-se ao lado de François Tavernier.
— Como disse?

— Eu disse que o exército francês é uma bele...
O punho do francês amassou o charuto.
— O que pretende?... Ficou louco! — gaguejou o homem obeso.
— Não gosto que falem mal de meus amigos.
— Mas...
— É melhor cair fora. Hoje, estou de péssimo humor.
Limpando com um lenço a boca sangrando, ele se afastou proferindo
ameaças. Escondido atrás de uma porta, alguém bateu palmas.
— Bravo! Você acaba de se tornar inimigo de um dos homens mais
poderosos de Hanói.
— Ah, é você!... Posso te pagar uma bebida?
— Sim, por que não?
— Conhece algum outro lugar?
— Não, aqui está ótimo. A não ser que você não queira ser visto na
companhia de um nhá que'...
Tavernier levantou os ombros e entrou no Paramount seguido de Kien.
— O que deseja tomar?
— Uma cerveja.
O dono do bar parecia mais tranqüilo:
— Ah, é o senhor! Está me devendo o que tomou com aquele seu amigo.
— Tudo bem, traga duas cervejas.
A orquestra "argentina" executava um tango. Com os cabelos pretos cheios
de brilhantina impecavelmente repartidos ao meio, o cantor, grotesco em seu
terno de gala — camisa de cetim azul com amplas mangas bufantes, cinto largo
amarelo, calça preta enfiada nas botas de gaúcho —, interpretava Adios
muchachos, compañeros de mi vida... tudo se confunde, as paredes recuam, os
militares e as dançarinas desaparecem... duas jovens estão dançando...
lindíssimas, estranhas... a ampla saia do vestido de tafetá azul gira em torno da
capa vermelha.., as lágrimas escorrem pelo rosto da mulher de azul... na
cabeça raspada da mulher de vermelho brilha, sinistra, a suástica que ela
desenhou com batom... Dos lagrimas sinceras derrama a mi partida...
— Não se sente bem? Está tão pálido... Ah!...
O copo que François segurava na mão partiu-se em mil pedaços. O sangue
começou a jorrar.
Em volta, os presentes interromperam suas conversas; instantes mais
tarde, deram de ombros e retomaram as discussões. Kien olhou para o amigo
com uma curiosidade divertida.

— Paddy, me dá um guardanapo limpo e uma garrafa de conhaque —
pediu ele. — Espero que você não tenha a intenção de realizar tarefas delicadas!
Afaste os dedos...
— Merda!
— Sim, eu sei, dói muito, mas não existe nada melhor do que um bom
conhaque para desinfetar. Tome um gole. Não esqueça de mostrar sua mão a
Hai, você se machucou bastante...
Enquanto falava, Kien fez um curativo na mão de François com o
guardanapo. Era o intervalo e a orquestra parara de tocar.
— Não gostou da música?
Tavernier deu uma risada sarcástica.
— Como você é perspicaz!
— Aquele tango te lembrou alguma mulher?
A mesma risada, ainda mais amarga.
— Sabe, garoto, você parece vidente!
— Pare de me chamar de garoto. Ainda não percebeu que já cresci
bastante, desde a baía de Ha Long?
— Então, chega de perguntas... Não fique aborrecido, não quero te ofender,
mas quando a gente se despediu, devias ter uns onze ou doze anos. Para mim,
continuas sendo um menino. Preciso de tempo para me acostumar.
— Tudo bem, não estou chateado. Mas toma cuidado, não me faça perder
a cabeça. Teu amigo tava com um pileque daqueles! Já o conhecia?
— Lá vem você de novo. Que mania! Sim, trata-se de um amigo de infância
de Léa.
— Léa?
— Minha esposa.
— É mesmo! Esqueci que era casado. Ela é bonita?
— Muito.
— Tanto quanto Lien?
— É diferente, mas, além de Lien, é a mulher mais linda que já conheci.
— Você a ama?
— Sim.
— Não consigo te ver casado.
— Já me disseram a mesma coisa. Mas, com ela, é diferente... Agora,
chega de falar de mim! Não sei nada a teu respeito, exceto que não presta e que
todas as mulheres são loucas por você.

— Quem te contou? — perguntou Kien, com um sorriso de satisfação que
não escapou a François.
— Digamos que se trata de um boato conhecido de todos.
— Um boato divulgado por Hai ou Bernard?
— Deixa os teus irmãos em paz, não precisei deles para saber de tudo
sobre ti e tuas atividades.
— Nada muito grave.
— Mesmo assim, é bom tomares cuidado. O alto comissário deu ordens
bastante explícitas e teu pai não está mais entre nós para te proteger.
— Não preciso de ninguém, já sou homem para me proteger sozinho.
— Como quiser. Mas o que eu te disse, foi por causa de Lien e do teu avô.
— Não é você que vai me ensinar o que está acontecendo em Hanói. A
cidade mudou muito desde a época em que costumava vir para cá. Passou pela
ocupação japonesa, a chegada dos chineses, a instalação do vietminh, os
combates de rua, a entrada das tropas de Leclerc, a fome, os assassinatos, as
torturas, os seqüestros. Não sobrou nada da doçura colonial. Eu me encontro
em melhor situação, para proteger Lien e meu avô, do que Hai e seus
camaradas vietminh, ou do que Bernard e seu Banco da Indochina!
— É verdade, tudo mudou. Você acha que os franceses ainda têm chance
de voltar a se instalar aqui?
— E você, o que acha?... Os franceses fracassaram; na Ásia, você sabe
muito bem que é imperdoável. Nós, como orientais, só respeitamos a força e
vocês perderam todos os meios de utilizá-la. Aqui, estão fritos.
— Está sendo muito duro; você fala como se não fosse meio francês.
— Só meio, mas prefiro a minha metade anamita. E o que Hai e eu temos
em comum. Ele ainda possui uma leve camada de verniz ocidental, eu não.
Pertenço a este país, apesar de não dar a mínima para que se torne ou não
independente! Gosto de viver aqui porque um homem consegue ser mais livre
do que em qualquer outro lugar... com a condição de impor a sua lei, de ser o
dono!
— Esta é a sua ambição?
Kien limitou-se a sorrir.
— Vou até um bar onde se fuma ópio. Vem comigo?
— Hoje não, prefiro voltar para casa.
— Como quiser... Fiquei contente em conversar com você — disse ele após
uma breve hesitação.
Separaram-se na calçada. Pensativo, François Tavernier caminhou pela
rua Paul-Bert.

Capítulo 9

— Tenho de falar com ela.
— Só dez minutos, inspetor. Ela precisa de muito repouso.
— Apareceu alguém para saber notícias dela?
— A faxineira, acho.
— O quarto da senhora Tavernier, por favor? — perguntou um rapaz,
carregando um imenso buquê.
— Pode deixar, vamos lhe entregar.
O policial pegou o envelope preso nas flores, tirou o cartão e leu:

Acabo de saber que foi vítima de um terrível acidente. Assim que os
médicos permitirem, irei visitá-la.
Minhas mais sinceras saudações.
Jean Sainteny.

— Se esta pessoa vier, por favor, me avise — disse o inspetor ao abrir a
porta do quarto.
Léa se encontrava deitada, de olhos fechados, os cabelos soltos no
travesseiro, a respiração regular, as mãos agarradas ao lençol, a perna
engessada apoiada em uma almofada. Para atenuar a claridade, a cortina de
tecido branco estava puxada.
Que moça encantadora, pensou o policial entrando no aposento. Léa abriu
os olhos.
— Ah, é você, inspetor...?
— Inspetor Berthineau. Bom dia, fico contente com a sua melhora. Os
médicos disseram que teve muita sorte e que estava passando bem.
— Isso porque a perna quebrada não é a deles! — exclamou Léa
aborrecida.
— Mas podia morrer na hora ou então perder o bebê!
A porta do quarto abriu-se novamente e o médico entrou, acompanhado
por duas enfermeiras.
— Então, moça, pelo que vejo as coisas estão melhorando. Você e a criança
foram muito sortudos! É bom sinal: vai nascer um garotão.

— Doutor, tem certeza de que tudo está em ordem com o bebê?
— Claro. Só precisa de muito repouso. Essa perna quebrada veio a calhar:
prefiro que você fique deitada por mais alguns dias. Vamos, comporte-se.
O médico saiu enquanto uma das enfermeiras colocava as flores num
jarro.
— Eu também prefiro que você permaneça na cama. Aqui, pelo menos,
podemos vigiá-la.
— Vigiar? Mas por quê?
— Por que alguém a assustou e eu gostaria muito de saber quem foi!
— Ninguém me assustou.
Aquela voz aguda chamou a atenção da enfermeira que olhou para Léa,
surpresa, antes de deixar o quarto.
— Então, por que fugiu, no outro dia? E quem era o rapaz com quem
conversava justo na hora em que caiu?
— Não me lembro de nenhum rapaz.
— O que foi que viu ou ouviu e que a levou a fugir daquela maneira?
— Não estou entendendo nada de toda essa história!
— Será que voltou a encontrar nazistas?
As mãos de Léa crisparam-se, seu rosto alterou-se.
— Deixe-me, estou cansada.
— Eu também — disse ele profundamente abatido, deixando- se cair em
uma cadeira de ferro pintado.
Ao ver a expressão do rosto frustrada, Léa deu uma risada.
— Além de tudo, ainda zomba de mim!
— Desculpe, é de nervoso. Eu bem que gostaria de poder ajudá-lo, mas
não sei como.
— Não fui eu, foi você mesma quem falou de nazistas, no outro dia. Algo
me diz que conhecia o homem assassinado na rua de Buci.
— Está enganado — disse Léa em voz baixa.
O inspetor Berthineau não tinha vasta experiência, mas estava convicto de
que aquela linda moça mentia. Pediria ao comissário para vigiá-la. Talvez
houvesse alguma pista em relação a ex- colaboracionistas, saudosos da época
da ocupação alemã. Seu medo dos nazistas não era fingido, mas daí a imaginar
que pudessem passear tranqüilamente pelas ruas de Paris... No entanto, como
costumava dizer a sua mãe, tratava-se de um período muito estranho!
— Conhece um homem chamado Jean Sainteny?

— Por quê? — perguntou Léa erguendo-se na cama.
Berthineau apontou para as flores, pegou o cartão e lhe entregou.
— Foi ele quem mandou.
— São lindas. Jean Sainteny?... Esse nome não me é estranho. Ah sim,
meu marido já me falou a seu respeito, mas nunca estivemos juntos.
— E o que é que ele faz?
— Não sei exatamente... É governador na Indochina ou algo parecido.
Como soube do meu acidente?
A enfermeira entrou.
— Inspetor, a visita acabou. A senhora Tavernier precisa descansar.
— Muito bem, voltarei amanhã. Se conseguir se lembrar de alguma coisa,
me telefone, na delegacia ou em casa; minha mãe dará o recado.
Léa pegou o cartão e o deixou na mesinha-de-cabeceira.
— Você volta comigo para Montillac. Nem pense em ficar sozinha em Paris
— decretou Françoise, que viera buscar a irmã. — Depois da tua carta, não
tenho mais sossego! Quando penso que podia perder a criança... François não
iria agüentar... Já que ele não está, cabe a nós tratar de você. Alain e Ruth
queriam vir, mas acabaram entendendo que a gente não podia deixar a casa
sem ninguém responsável...
— E então você fez o sacrifício! — disse Léa rindo. — Estou tão contente de
te ver... Como vão os teus filhos e o meu pequeno Charles?
— Estão todos ótimos, mas Charles sente muitas saudades tuas. É um
menino estranho, quieto, sempre mergulhado nos livros ou tentando
reconhecer os pássaros pelo canto. Trata-se de uma criança meiga e reservada;
lembra muito a mãe.
— Não vejo a hora de nos encontrarmos. Eu também sinto falta dele.
— Quando acha que poderá sair daqui?
— Não sei. Disseram que queriam me manter em observação.
— Vou falar com o médico.
Este entrou no quarto neste exato momento.
— Em que o médico pode ajudar?
— Bom dia, doutor. Esta é a minha irmã, senhora Lebrun, que gostaria de
me levar para casa.
— É um pouco prematuro. Nossa paciente sofreu um choque, está grávida
e não quero que corra mais riscos. Creio que poderá sair dentro de uns quinze
dias.
— Quinze dias!

— Senhora Tavernier! Convém lembrar-se de que espera um filho e, apesar
do seu excelente estado geral, o acidente deixou-a bastante fragilizada. Tenha
um pouco mais de paciência, quinze dias passam rápido. Senhora, se tiver
alguma influência sobre a sua irmã, faça com que ela entenda.
— O doutor tem razão, querida... Não posso ficar a teu lado todo esse
tempo, mas não viajo agora, e voltarei para te buscar.
Léa concordou, embora mal conseguisse conter as lágrimas. O médico
despediu-se e saiu.
Durante os cinco dias que passou em Paris, Françoise fez o possível para
distrair a irmã, o que se revelou mais fácil do que imaginara.
No dia seguinte à sua partida, Léa recebeu a visita de Jean Sainteny.
Ela foi imediatamente seduzida por seu ar de franqueza, pela impressão de
segurança que emanava de sua pessoa. Olharam-se calados, intimidados. Léa
foi a primeira a romper o silêncio:
— Agradeço pelas lindas flores. Foi muito gentil de sua parte preocupar-se
comigo.
— O médico me disse que ficará boa em breve. Fico muito contente. Seu
marido foi avisado?
— Mandei uma carta, mas o correio é tão demorado...
— Quer que eu lhe envie um telegrama?
— Não, obrigada, não devemos assustá-lo. Creio que ele já tem muitos
problemas por lá. Seu sócio morreu, como já deve saber.
— Estou a par. Tratava-se de um homem extraordinário.
— Chegou a conhecê-lo?
— Encontramo-nos por duas vezes em 1946 e ouvi falar dele por
intermédio do meu sogro, Albert Sarraut, que o estimava muito.
— E os filhos? François me contou que a moça é linda.
Sainteny não conseguiu reprimir um sorriso.
— Você não está com ciúmes, está?
Furiosa, Léa sentiu o rosto em chamas.
— Claro que não! Falei por falar — De fato, dizem que ela é muito bonita.
"Onde fui me meter!", censurou-se Léa. Mudou imediatamente de assunto:
— François me contou que esteve na Resistência e que foi preso pela
Gestapo.
— Sim, mas tive muita sorte. Consegui fugir.
— Vários amigos meus não tiveram a mesma sorte — suspirou Léa.

Calaram-se durante alguns instantes, dominados por suas respectivas
lembranças.
— O que posso fazer por você? Necessita de alguma coisa?
— Não, muito obrigada. A única coisa que desejo, no momento, é sair
daqui o quanto antes.
— O que dizem os médicos?
— Que preciso de repouso.
— Devem ter toda razão. Pense em seu estado...
— Não tenho como não pensar — disse Léa, apontando para a barriga com
uma expressão mal-humorada que o fez sorrir mais uma vez.
— Após as flores que lhe mandei, recebi a visita de um inspetor de
polícia...
— Berthineau?
— Sim, isso mesmo. Ele me fez várias perguntas a seu respeito, às quais,
obviamente, não respondi.
Falou-me das circunstâncias da morte de sua irmã, que horror! Comentou
também que você estava convicta de que foram os nazistas que a
assassinaram...
— Não quero mais falar nisso...
Sainteny ignorou sua interrupção.
— Sei, mas ele não está a par do que aconteceu na Argentina:
sua participação e a de Tavernier na caça aos criminosos de guerra, a
morte de amigos seus, da primeira esposa de Tavernier... O homem que foi
assassinado na rua Buci era judeu, membro de uma rede de caçadores de
nazistas. Encontrava-se na Argentina na mesma época que vocês, O inspetor
acha que o conhecia.
— Por que está me contando tudo isso? De que se trata?
— Entendo a sua desconfiança, mas você sabe quem sou, pode confiar em
mim. O policial me disse: "Ela vê nazistas em toda parte!" Parecia incrédulo. Eu
não. Por isso mesmo, se sabe de alguma coisa, peço-lhe que me conte!
Atuando na Resistência, Léa aprendera a suspeitar de todos. François só
lhe falara de Sainteny em relação ao seu encontro com o general Leclerc.
Alguém que mantinha contato com Leclerc não podia ser um canalha. No
entanto, ela não se sentia à vontade para relatar seus temores, confessar que
conhecia Samuel Zederman e que o encontrara pouco antes de sua morte.
Receava cair novamente no universo insensato e gélido dos serviços secretos.
Só desejava uma coisa: nunca mais ouvir semelhantes histórias. Por que
François não se encontrava a seu lado, quando mais precisava dele? A ele sim,

Léa podia contar tudo, François entendia e partilhava suas angústias. Como
confiar a um desconhecido, por mais simpático que fosse, tudo o que Samuel
lhe revelara: a presença em Paris de argentinos conhecidos por sua postura
pró-nazista? Algo lhe dizia que Jonathan Cohen não tardaria a se manifestar.
Mas, por enquanto, ela precisava manter-se calada.
— Não sei de nada.
— Como quiser — respondeu ele, decepcionado. — Se precisar de mim,
pode me telefonar. Tudo bem?
— Tudo bem. Desculpe-me: mal o conheço...
— Não pense mais nisso. Fique boa logo!
— Até logo — murmurou Léa ajeitando-se na cama.

Capítulo 10

No cruzamento dos bulevares Henri-Rivière e Rolande, o condutor do
pequeno carro onde François Tavernier se encontrava freou com tanta força,
para evitar o caminhão militar que vinha em cima deles, que o passageiro foi
quase ejetado do frágil veículo.
— Que loucura! — resmungou, equilibrando-se no assento.
— Tudo bem, senhor? — perguntou o condutor com um sorriso sereno.
Ao chegar ao hotel Métropole, François pagou a corrida e entrou no
estabelecimento. O saguão estava repleto de repórteres estrangeiros e oficiais
dos diversos setores do exército. Apesar dos imensos ventiladores, reinava calor
sufocante. Não havia um só lugar no bar. O terraço também estava lotado.
— François! ... Aqui.
Em companhia de três colegas do Banco da Indochina, Bernard Rivière
acenava para que François viesse sentar-se com eles. Tavernier abriu caminho
em meio à multidão inquieta e excitada.
— Sente-se aqui. Apresento meus colegas de trabalho: Raymond Georges,
Raoul Dupuis e Jacques Vauzelie, que voltam para a metrópole em breve. Que
bom para eles, estou com inveja! O que você quer tomar?
— Uma cerveja.
Bernard levantou para ir buscar a bebida no bar.
— Pertenço à secretaria-geral do banco, meus amigos trabalham junto aos
funcionários locais — disse Jacques Vauzelle. — Fui eu quem abriu a sua
conta. É amigo do diretor-geral?
— Não, só faço negócios com o senhor Laurent.
— Trata-se de um homem extraordinário, um grande banqueiro —
observou Raoul Dupuis.
— Extraordinário — confirmou Raymond Georges, erguendo o copo.
— Pretende ficar aqui por muito tempo? — perguntou Vauzelie.
— O tempo necessário para acertar a herança do meu amigo Rivière.
— Um conselho: não se demore muito nesse país — recomendou Vauzelle.
— Por que diz isso? O exército mantém a situação sob controle —
argumentou Dupuis.
— Que posso fazer, meu caro, depois do ataque de 19 de dezembro, perdi a
confiança. Além do mais, os viets estão por toda parte: a gente mata dez deles,

surgem outros cem, mil, ninguém sabe de onde. Estamos sentados sobre um
formigueiro vermelho. Não, não vamos conseguir acabar com eles. São eles que
vão dar cabo da gente. Prefiro me mandar antes que aconteça... Não estou
certo, senhor Tavernier?
— É um ponto de vista. Foi muito ruim, em 1946?
— Horrível: roubos, espancamentos, prisões, desaparecimentos,
seqüestros, estupros, assassinatos marcaram aquele ano. Nas ruas,
assistíamos a uma seqüência de insultos e ofensas, isso sem falar nas
agressões físicas. Era praticamente impossível chegar até o bairro chinês para
falar com os clientes. Ao anoitecer, as ruas da Seda, da Laca, dos Cambistas,
dos Tijolos, as que levam ao portão Jean-Dupuis, transformaram-se em pontos
de grande perigo. Quando precisávamos ir a Lang Son ou Haifong, passávamos
pela ponte Paul-Doumier, conhecendo todos os riscos que corríamos.
Acabaram-se as tardes agradáveis às margens do Pequeno Lago.
Acabaram-se as lindas garotas: foram todas substituídas por policiais!
Acabaram-se as caminhadas pelas ruas: por toda parte, só se viam barricadas,
trincheiras, obstáculos antitanques! Ser mestiço era mau sinal: foram eles os
primeiros a ser seqüestrados, os primeiros assassinados. A partir do fim de
novembro, sabia-se que o vietminh iria atacar, apenas os responsáveis militares
desconheciam o fato.
— Até aí, nada de novo! — exclamou Dupuis.
— Convém dizer que nossos dirigentes não eram dos mais estáveis —
prosseguiu Vauzeile. — Em apenas alguns meses, tivemos o general Valluy, o
general Crépin, em seguida o general Morlière, e isso, durante a ausência de
Sainteny detido na França pela visita de seu amigo Hô Chi Minh e a conferência
de Fontainebleau. Era óbvio que o modus vivendi assinado entre o Tio Hô e
Marius Moutet não podia contar com a aprovação dos dirigentes comunistas,
notadamente de Pham Van Dong e de Vô Nguyên Giap; mas iria permitir que os
dois lados ganhassem tempo. Por alguns dias apenas, nós, os ex-
representantes da colônia, pensamos estar enganados: de fato, os nativos
respeitavam ao pé da letra o artigo 9 do modus vivendi: "Os atos de violência e
hostilidade de ambas as partes deverão cessar, assim como a propaganda
inamistosa..." A animação voltou às ruas, com os comerciantes na porta das
lojas; havia filas imensas no Olympia para ver Jean Gabin e Michèle Morgan, a
confeitaria Michaud vivia lotada, os bondes circulavam quase normalmente, um
concerto de música de câmara foi apresentado no Grand Théâtre, os fregueses
não saíam dos bares dos hotéis, os triciclos, os mendigos, as lindas mulheres,
tudo voltara a ser como antes...
— Não durou muito! Só os "franceses novos", que nada sabiam a respeito
da mentalidade indochinesa, para acreditar que os antigos prisioneiros
vietminh não tentariam se vingar dos carcereiros! — disse Raymond,
interrompendo o amigo.

— De fato, tudo aconteceu muito rápido: as relações entre o governo
vietnamita e o alto comissário tornaram-se cada vez mais tensas, as brigas
entre soldados franceses e vietnamitas passaram a ocorrer diariamente, apesar
ou por causa dos pedidos de calma da parte de Hô Chi Minh. "O povo
vietnamita não deseja a guerra, mas se esta lhe for imposta, ele lutará. A
guerra será violenta...", declarava ele com a voz melosa que funcionou como
uma verdadeira armadilha com os intelectuais da metrópole...
— Lembre-se: desde o dia 17 de dezembro, em oposição aos militares,
percebemos que tudo estava perdido. As ruas de Hanói transformaram-se em
campos de batalha: por toda parte, só havia barricadas, bombas escondidas
entre as árvores, minas. De início, os tuve atiraram em uma autometralhadora
francesa, matando dois compatriotas nossos. Em represália, os soldados
franceses incendiaram um posto vietnamita e as casas mais próximas. Segundo
o prefeito de Hanói, doutor Hung, houve cerca de cinqüenta mortos. Na hora
exata em que as famílias francesas isoladas receberam a ordem de se agrupar
em hotéis, clínicas, colégios requisitados com esse objetivo, o Tong Bô enviou
aos comitês administrativos da cidade a ordem de mandar evacuar as
mulheres, as crianças e os velhos vietnamitas. No bairro nativo permaneceram
apenas os rapazes encarregados de vigiar as casas e avisar caso os soldados
franceses quisessem entrar...
— Sem Fernand Petit, um eurasiano que, em um fim de tarde, avisou o
estado-maior do ataque dos viets, todos nós teríamos sido massacrados. Tem
um ar cético, senhor Tavernier... — observou Raoul Dupuis.
— Claro que não. Ao contrário, estou ouvindo com o maior interesse. Na
França, tivemos uma visão muito distorcida dos fatos aqui ocorridos.
— Desculpe, François. No bar, reina a maior confusão — disse Bernard
trazendo um copo de cerveja. - Meus colegas lhe aborreceram?
— Nada disso, fizeram um relato excitante dos acontecimentos de 19 de
dezembro. Onde você esteve, naquele dia?
— Trancado em casa, armado até os dentes, com todos os empregados.
— E a tua mulher com a criança?
— Foram para Saigon, para a casa dos pais de Geneviève.
— Lutou como um verdadeiro leão — comentou Dupuis. — Ele sozinho
conseguiu acabar com uns dez daqueles safados.
— Que belo resultado! — exclamou Tavernier.
A ironia mal disfarçada na voz de seu amigo de infância não passou
despercebida e o rosto de Bernard ficou em chamas; tentou dissimular o mal-
estar esvaziando o copo.
— Não é? — insistiu Dupuis. — Seu sangue francês falou mais alto...
— Chega, não quero mais falar nisso.

— Por quê? Não é nenhuma vergonha! Sempre te consideramos um dos
nossos!
"O rapaz está remexendo na ferida...", pensou François. Com pena de
Bernard, mudou de assunto:
— No mesmo dia em que Sainteny foi ferido?
— Sim, ao querer juntar-se ao general Morlière na Cidadela. Ah, o belo
Sainteny, que tanto acreditava em seu amigo Hô Chi Minh, deve ter caído do
cavalo! — ironizou Jacques Vauzelie em tom sarcástico.
— Meu pai sempre achou que Hô Chi Minh fosse sincero.
— Pobre Bernard — disse Dupuis. — Teu pai, apesar de todo o respeito
que merecia, era muito ingênuo.
Como pôde confiar na boa-fé de um comunista, membro eminente de um
partido que recebe ordens de Moscou!
— Ele era acima de tudo nacionalista.
— Bobagem! Foi para atrair os católicos, os caodaístas, os Binh Xuyên1 e
outros pequenos senhores da guerra...
— Pobre Dupuis, você enxerga senhores da guerra em toda parte, e pensa
que este país ainda se encontra na Idade Média! A tão famosa civilização
milenar não passa de um truque para camuflar a bestialidade, a barbárie...
— Você não acha que, neste assunto, os europeus não têm moral para
servir de modelo? — interrompeu Tavernier.
— Não costumamos cortar a cabeça dos nossos inimigos...
— Fizemos muito melhor do que isso: nós os escravizamos utilizando
mulheres e crianças nas tarefas mais pesadas, vendendo- lhes ópio a preço de
banana, prostituindo as filhas, tratando-os como cães...
— Esqueceu-se das escolas, pontes, hospitais, estradas e vias férreas que
construímos para eles?
— Sabe muito bem que construímos tudo aquilo para nós mesmos!
Estradas, pontes e vias férreas serviram para levar borracha, madeira e arroz
para nossas próprias necessidades, sem pensarmos neles...
— E as escolas, esqueceu-se das escolas e dos hospitais?
— E o que lhes ensinamos, nessas famosas escolas? Que os gauleses eram
seus antepassados?
— Está usando de má-fé. Não foi lá que gente como Nguyên Ai Quô&,
Giap, Pham Van Dông, aprendeu a ler e escrever?
— O que lhes ensinamos, antes de mais nada, foi que um branco vale
sempre mais do que um amarelo. Felizmente ou não — tudo depende de que
lado a gente está —, aprenderam também as três palavras que representam a

base da república: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. E não entenderam por
que os herdeiros da revolução faziam tão pouco caso dessa herança.
Seguiu-se um pesado silêncio, durante o qual François chegou a visualizar
os fantasmas dos revolucionários do ano II evoluindo no céu de Hanói.
— O que acha desta república onde só há dois deputados de oposição em
um total de setenta? O que aconteceu com os demais? Foram todos presos, a
maior parte deles assassinados, O que acha de uma república que, por um
simples decreto, autoriza a prisão em campos especiais, de qualquer pessoa
capaz de prejudicar, com suas palavras ou seus atos, a luta pela
independência, o regime, a segurança pública ou a união nacional? Se estou
bem certo, a imprensa francesa não falou da prisão em massa de 29 de outubro
de 1946 durante a qual trezentas pessoas foram deportadas para Hanói, a
campos de concentração. O que acha de tudo isso? São fatos concretos —
declarou Raymond Georges.
— É lamentável, mas qualquer processo de emancipação costuma começar
com derramamento de sangue — comentou François laconicamente,
levantando-se para se despedir.
Ao deixar o Métropole, Tavernier foi caminhando até a casa de Martial
Rivière. Os filhos do seu amigo haviam insistido para que François se instalasse
com eles. Todos os dias, encontrava-se com Lien e o avô. Juntos, lembravam os
momentos felizes passados na companhia do morto. Apesar da guerra e das
restrições, Lien realizava verdadeiros milagres para variar o cardápio. Hai e a
esposa vieram visitar o avô cujo estado precário deixara o jovem médico
preocupado.
— Você devia proibir que ele fumasse ópio, isso vai acabar por matá-lo.
— Não, ao contrário, ajuda-o a suportar a existência. O futuro deixa-o
apavorado. Sem a nossa presença, tenho a certeza de que acabaria com a
própria vida. Ah, François, que bom... Uma má notícia...
— Léa?
— Não. O general Leclerc morreu na Argélia num desastre aéreo.
— Não pode ser!
— Infelizmente a informação foi confirmada pelo Alto Comissariado.
— Quando aconteceu?
— No dia 28 de novembro.
François sentou-se em um banquinho, dominado por profunda tristeza
que o surpreendeu; de fato, ele se encontrara apenas uma vez com o general,
mas percebia que com Philippe de Hauteclocque uma parte da honra de seu
país acabara de se extinguir. Desaparecia o homem que compreendera
perfeitamente a situação indochinesa e que poderia, se regressasse àquele país,
encontrar uma saída honrosa para a França.

Tavernier experimentou a sensação de irremediável desperdício. Devia
levar a cabo a sua missão?
Leclerc havia sido o seu mentor; morto, o que lhe restava? Sem novas
ordens de Paris, seria por fidelidade ao general que François iria prosseguir em
seus contatos visando o encontro com Hô Chi Minh. No entanto, com essa
perda, uma parte de sua juventude e de seu ideal deixaram de existir. Havia
forte desejo de mostrar bom desempenho junto a personalidades como Leclerc
ou De Gaulle; porém, em relação aos políticos da Quarta República desde já
ofegante, impotente, a vontade era de largar tudo, entregar a outros as
tentativas de uma paz em que os próprios protagonistas haviam deixado de
acreditar.
— Hai, esta noite eu gostaria de fumar.
— Lien vai preparar tudo para você.
François foi até o quarto, despiu-se e vestiu um robe de seda.
Sobre um estreito tablado coberto por um fino colchão, no pequeno
aposento com papel de parede vermelho-escuro estampado com caracteres
chineses, repousava o velho Lê Dang Doanh, com um leve sorriso no rosto
macilento e imóvel. François instalou-se no outro estrado e deitou a cabeça no
travesseiro. A luz era muito suave. Na penumbra, Lien preparou o primeiro
cachimbo. Após fumar o terceiro, François sentiu-se mais leve; após o quinto,
um imenso bem-estar inundou todo o seu ser; após o sétimo, viu Léa
inclinando-se sobre ele; após o décimo, adormeceu profundamente.
Antes de reabrir os olhos, sentiu o olhar de Lien fixo nele. Estendeu a mão.
A jovem entregou-lhe a sua, cujo frescor era muito agradável.
— Obrigado, irmãzinha — murmurou.
François adivinhou seus pensamentos ao sentir Lien se contraindo. Desde
criança, ela o amava. As palavras tornavam-se desnecessárias para perceber
que se mantivera virgem para ele e que bastava uma palavra para que Lien
fosse sua amante. Em outras circunstâncias, ele não resistiria àquele pedido
silencioso; sabia, porém, que agora o seu gesto traria apenas mágoa e
desamparo. Não se tratava de nenhuma provocação da parte de Lien:
encontrava-se ali, simplesmente, submissa diante do homem ao qual se sentia
destinada, a ponto de esquecer que ele era casado e apaixonado pela esposa.
Alguns instantes atrás, em meio à fumaça do ópio, François pronunciara o
nome dessa mulher!

Capítulo 11

O filho de Léa nasceu em 30 de janeiro de 1948 às três horas da manhã,
duas semanas antes da data prevista. Léa deu-lhe o nome de Adrien.
Durante os dias que antecederam o parto, a jovem não parava de chorar, a
ponto de Ruth afirmar: "Ela acaba matando o bebê."
Mas a criança não parecia ter sofrido com a tristeza da mãe. Era um lindo
bebê esfomeado cujos vigorosos gritos revelavam a sua vontade de viver.
Segundo Françoise e Ruth, era a cara do pai.
Léa achou o menino muito feio, com a cabeleira preta e o rostinho todo
amassado. Sentia-se magoada: não fosse por causa dele, estaria ao lado de
François. François, cuja última carta chegara a mais de um mês! Sentada na
cama, agasalhada com xales, relia a missiva pela enésima vez:

Minha querida,
Dezembro de 1947
Sinto a tua falta, esta viagem está se prolongando demais. Toda manhã,
chego apensar: volto amanhã e, no dia seguinte, continuo no mesmo lugar
Ainda não consegui concluir o que vim fazer na Indochina. Aqui, nada
transcorre normalmente, a menor tarefa representa um enorme problema e não
se pode confiar em ninguém. Todos desconfiam de todos: os vietnamitas dos
franceses, o que é fácil de se entender; mas também os vietnamitas entre eles,
assim como nossos compatriotas. Cada um vê o vizinho como um espião,
embora fossem amigos antes! Tu podes ter uma idéia do clima de desconfiança
que reina neste país!
Meus amigos Rivière sofrem mais do que os demais devido à condição de
mestiços: não pertencem a nenhuma das duas comunidades. Bernard, o mais
branco dos quatro filhos de Martial, escolheu o seu campo: é pró-francês,
enquanto o irmão Hai é pró-Vietminh, assim como Lien, irmã deles; quanto ao
jovem Kien, trata-se de um bandido que trafica com ópio e piastras. Não
percebem que suas divergências estão apressando a morte do avô. O futuro dos
quatro me preocupa muito.
Sabia que, mesmo aqui, só se fala de ti? Ah, já sei que estás interessada e
vou contar tudo.
Sob as ordens do general Salan, vinte batalhões franceses atacaram as
defesas vietminh de Bac-Kan, ao norte do Tonquim. Tu nunca adivinharás
como batizaram essa operação!...

Preste bem atenção: chamaram-na OPERAÇÃO LÉA!... Eu te asseguro que
não é brincadeira. OPERAÇÃO LÉA! Ao ouvir o teu nome, quase comecei a
chorar.. Não ria, juro que não estou brincando. Deram o teu nome a uma
operação militar! Depois de me informar melhor; fiquei sabendo que também é
o nome de uma montanha na esplendorosa região serrana de Cao Bang. Por
pouco, o general Beaufre e seus homens não capturaram Hô Chi Minh e Giap.
No conjunto, a operação representou um quase-sucesso para nossas tropas.
Pronto, bela Léa, teu nome entrou para a História!
Quando esta guerra terminar; pois terminará um dia de uma forma ou de
outra, vou te levar até o monte Léa, naquela região linda e selvagem onde se
mesclam selva e pedra, pinheiros e flamboaiãs. Tu verás o amanhecer nos
arrozais em vários níveis, a fumaça das aldeias subindo em meio à névoa,
crianças nuas cavalgando búfalos, mulheres graciosas e frágeis carregando
pesados fardos, anciões com longas barbichas brancas apoiados em seus
cajados aquecendo os velhos ossos diante das suas palhoças, bonzos com a
cabeça raspada em seu longo traje cor de açafrão pedindo esmola, velhas com
os dentes laqueados fumando cachimbo e ninando o recém-nascido da família,
rapazes fazendo palhaçadas para chamar a atenção das moças e estas rindo e
se afastando. Tomaremos chá na cabana chamada "Café", pintada de azul ou
de verde, felizes só pelo fato de estarmos aqui.
Quantos anos teremos de esperar para que esse sonho se torne realidade?
Só espero que não estejamos muito velhos.
Que saudade sinto de ti!... Poder acariciar a barriga... Deve estar
redondinha, agora. Como tu és linda!... E teus seios!... Fecho os olhos e toco a
suavidade da tua pele... Só de pensar nisso, meu sexo endurece... Eu te quero
tanto... Esquecer em ti tudo o que não é teu... Te amo, querida, te amo...

Léa fechou os olhos, com a mão entre as coxas, os seios rijos, doloridos.
— Eu também sinto a tua falta — murmurou.

Fico feliz em saber que se encontra em Montillac. Françoise escreveu que
tu costumas ficar triste. Por favor, faça um esforço, em breve estaremos juntos.
Quero assistir ao nascimento do nosso filho... Imagine só: um filho, vamos ter
um filho!...

"Nasceu sem você", esse filho, pensou Léa com certo rancor.

Eu gostaria tanto que fosse uma menina, que se parecesse contigo! Como
vou niná-la, protegê-la! Segurar em meus braços uma pequena Léa... Não vejo a
hora de abraçar as duas!... Mas, se for um menino, ficarei louco de alegria, vou

ensiná-lo a nadar, cavalgar, navegar, amar e respeitar as mulheres. Conosco,
tu nunca mais sentirás medo.
Viajo amanhã para Dalat onde devo encontrar-me como professor da
SF10, Louis Caput. Dizem que se trata de um homem honesto que conhece
muito bem a Indochina onde vem lecionando há mais de vinte anos. Depois, irei
a Saigon para uma entrevista com o alto comissário, Émile Bollaert. Em
seguida... regresso à França!
Agradeço a Françoise e Alain pelo carinho que têm contigo; meus
cumprimentos à tua tia e lembranças a Ruth; um beijo para Charles que levarei
comigo para pescar assim que regressar Para ti, meu amor todo o meu desejo e
a minha ternura. Te cuida bem.
Eu te amo,
François.

No quarto ao lado, o bebê chorava. Alguém tirou-o do berço, pois os gritos
pararam em seguida.
Logo depois, Françoise entrou, com o menino nos braços.
Como ela mudara! Nada mais se via daquela mulher tão magoada,
insultada e arrasada sob as risadas da multidão parisiense, naquele sinistro
dia de agosto de 1944, quando se mesclaram tanto heroísmo e tanta vileza.
Agora, seus cabelos estavam compridos; penteava-os para cima, o que alongava
o pescoço e realçava o perfil muito delicado. O amor de seu marido e a nova
maternidade devolveram-lhe a dignidade na qual ela própria deixara de
acreditar. Ninguém ousaria lembrar o passado àquela nova mulher. Seus
sofrimentos ensinaram-lhe a indulgência. Ela sabia partilhar os dos outros e
lamentava não poder voltar a exercer a sua profissão de enfermeira. Françoise
era a boa alma de Montillac a quem se costumava contar todas as desgraças,
as preocupações. Léa não queria entregar-se àquela excessiva bondade.
— Ah, aqui está o bonequinho! — exclamou Ruth entrando como um
furacão pelo quarto. — Pensei que alguém o tivesse levado!
— Quem iria carregar um recém-nascido? — observou Léa irritada.
— Eu, agora mesmo! — responderam em coro Ruth e Françoise.
— Vocês estão loucas!
— Hora de mamar! — disse Françoise entregando o bebê a Léa.
— Outra vez? Mas ele só faz comer!... Deixem-me, não gosto que fiquem
olhando para mim, pareço uma vaca alimentando o bezerrinho!
— Claro que não, é uma linda cena... Aliás, falando nisso, você se
esqueceu que o fotógrafo de Langon está vindo para cá?...

— Esqueci por completo. Os retratos vão ficar maravilhosos, com a minha
cara e esse monstrinho...
— Não fale assim de Adrien, é uma linda criança, e você está um encanto.
— Está bem, está bem...
Léa esperou que fechassem a porta para dar de mamar ao bebê, colocando
o mamilo de seu seio entre os pequenos lábios que o agarraram com avidez.
— Ai! Seu bruto... Igual ao pai!
A sensação era ao mesmo tempo dolorosa e voluptuosa.
Alguns dias após a visita do fotógrafo, chegou outra carta de François.

Meu amor
Dezembro de 1947
O que houve? Estou sem notícias tuas. Sei que o correio atrasa muito, mas
mesmo assim!... Fico preocupado. Porque não me contou que Samuel foi morto
na sua frente? Foi Jean de Sainteny que me avisou. Tu estavas a par de sua
presença em Paris? Encontraram-se? Falou com a polícia? É a melhor coisa
que tem afazer Fico louco só de saber que estás sozinha com aqueles canalhas
à tua volta... Enviei um telegrama a Sainteny para tomar conta de ti. Ele me
deve essa!
Finalmente, minha tarefa está chegando ao fim, Minha viagem a Dalat teve
um resultado positivo. Louis Caput revelou-se muito útil, trata-se de um
homem que conhece a Indochina e sua história melhor do que ninguém, apesar
de seu profético pessimismo quanto ao fim dos combates. Conhece
pessoalmente o presidente Hô Chi Minh que, segundo dizem, o considera
muito. Graças a ele, começo a entender a situação com mais clareza. Dentre em
breve, estarei a teu lado.
Sabe quem encontrei em Hanói, por duas vezes? Teu amigo Jean
Lefèvre!Alistou-se na Legião por amor a ti. Não diga nada, é tão óbvio, e entendo
perfeitamente o comportamento dele! A primeira vez em que o vi encontrava-se
ferido e completamente bêbado. Ontem voltamos a nos encontrar. Ele
participou da Operação Léa e contou que só por milagre não foram todos
massacrados, tendo em vista a superioridade do Vietminh. Nossos chefes
deveriam entender que não temos a menor chance; essa gente luta em casa e
não temos nada a ver com isso! Sua ferida está quase curada e Lefèvre aprecia
a convivência com os companheiros da Legião.
Os homens que ele comanda são quase todos alemães. Nenhum deles sabe
que Jean esteve em um campo de concentração. Para ele, trata-se de um ponto
de honra: faz absoluta questão de não contar nada a ninguém e considera esses
soldados iguais a quaisquer outros. Falamos de ti, a jovem e linda Léa que
costumava virar a cabeça de todos os homens da região. Ele me julga com certo

desprezo, pensando que sou algum negociante da metrópole; não lhe dei a
menor explicação quanto à minha presença na Indochina. Pediu que eu
transmitisse as suas lembranças. Pronto, está feito.
Viajo amanhã para o norte do Tonquiin onde espero terminar minha
tarefa.
Como vai o nosso bebê? Peça que espere por mim para vir ao mundo, não
quero perder um acontecimento desses!
Tu já sabes e nem vou repetir que te adoro e que sinto muita saudade. Te
cuida bem. Eu te amo.
François.

Essa carta levara quase dois meses para chegar a Montillac. Quanto tempo
ainda faltava para o regresso de François?
Léa tinha a impressão de que ele não lhe contara a verdade sobre a sua
viagem. Percebia que a imprensa não divulgava com exatidão o que ocorria na
Indochina. Algo lhe dizia que Sainteny talvez pudesse responder às suas
dúvidas.
Um envelope com selo de outro país encontrava-se em meio à
correspondência que Ruth lhe entregou. Léa abriu-o.

Cara senhora,
Jerusalém, 30 de dezembro de 1947
Pude finalmente obter o seu endereço! Sou o rapaz que a seguia no dia do
seu acidente.
Mais uma vez, peço desculpas, eu só queria avisá-la. Samuel e o irmão
eram amigos meus.
Não posso contar mais nada. Estou na Palestina há dois meses, na casa de
tios. Representam toda a minha família, pois meus pais faleceram em
Buchenwald. Como tantos outros jovens judeus, só penso em vingança. Vou
regressar à França, para Bordeaux, e retomar os estudos. Poderemos
encontrar-nos? Montillac fica a poucos quilômetros de Bordeaux, se bem vi no
mapa.
Consegui seu endereço graças a Uri Ben Zohar Lembra-se dele, não é?
Esperando poder encontrá-la em breve, envio minhas mais sinceras
saudações.
Jonathan Cohen.

Léa lembrou-se do rosto expressivo do rapaz inclinado sobre ela. Será que
todos aqueles fantasmas da guerra não acabariam nunca?
"Não quero que ele venha aqui, nunca mais quero ouvir falar nessa
história. Agora, acabou!", pensou.
Automaticamente, Léa abriu o último envelope.

Cara senhora,
Paris, 2 de fevereiro de 1948
Muito obrigado por comunicar-me o nascimento de seu filho. Deve ser uma
grande felicidade para você. No entanto, imagino sua mágoa causada pela
ausência do pai. Mas que alegria quando vocês três se encontrarem!
Tem recebido notícias do seu marido? Eu havia solicitado várias
informações e ele devia manter-me a par da situação como fez no início da sua
estada. Mas já faz tempo que não recebo nada. Você poderia fazer o favor de me
telefonar ou me escrever a respeito?
Mais uma vez, parabéns pelo bebê. Minhas mais sinceras saudações.
Jean Sainteny.

Nem uma palavra sobre o que a imprensa chamava de "caso Sainteny".
Uma ou duas semanas antes, Alain Lebrun entrara no seu quarto,
sacudindo Le Figaro:
— Toma, leia! Trata-se de Jean Sainteny. Léa tirou-lhe o jornal das mãos e
leu:
UM INQUÉRITO foi ABERTO CONTRA O SENHOR JEAN SAINTENY POR
DANO À SEGURANÇA EXTERNA DO ESTADO
O ex-comissário da república em Hanói prestou depoimento perante o juiz
de instrução do Tribunal Militar de Paris. Acusado de denunciar um
companheiro da Resistência, ele foi detido pela primeira vez após a libertação e
em seguida solto por falta de provas. Hoje, ele é inculpado de dano à segurança
externa do Estado. Contra o réu paira o fato de ter recebido da Indochina, que
ele deixou em dezembro passado, 94 documentos secretos trazidos por um
capitão e que podem comprometer a nossa ação na região. Após longo
depoimento ao juiz militar, Sainteny foi mantido em liberdade provisória. A
investigação prossegue.

Alguns dias mais tarde, em 17 de janeiro, Le Figaro publicou a seguinte
nota:

Baseados em um comunicado à imprensa, publicamos anteontem que
Sainteny havia sido preso, quando da libertação, pelas autoridades francesas. A
verdade é outra: Sainteny, membro da rede Aliança da Resistência, foi detido
pela Gestapo e conseguiu fugir da rua des Saussaies após ter sido torturado,
sem passar qualquer informação ao inimigo.

La Nouvelle République, de Bordeaux, publicou a seguinte manchete:
"Sainteny declara-se vítima de maquinações políticas."
O artigo divulgava certas declarações do ex-comissário da república e
comunicava que o seu ex-ajudante de campo, o capitão de cavalaria Roger
Larroque, servindo em Saigon, costumava trazer- lhe a cada uma de suas
viagens, documentos relacionados com a situação na Indochina.
"Em 7 de dezembro, o capitão me trouxe 94 documentos que nem
consultei. Não ofereciam para mim nenhum caráter confidencial. Daquela vez, o
capitão Larro que teria deixado a Indochina com uma ordem de missão
irregular Foi esse fato, ao que parece, que despertou a atenção.
Conseqüentemente, provocou suspeitas a meu respeito — quando da
conferência Bollaert-Bao Daïem Genebra — segundo as quais eu obtinha
informações e trabalhava para uma potência estrangeira; em resumo, doía me
acusarem de ser agente duplo foi um passo..."
A queixa fora apresentada pelo ministro da França Ultramarina, senhor
Coste-Floret, e em seguida pelo general Vallury, alto comissário provisório na
Indochina, na ausência de Emile Bollaert.
Tal queixa fora retirada.

Ao longo de dezenas de artigos, os jornais acertavam as contas com o
governo, a Resistência, De Gaulle, ou ainda com o traidor de Império, o
"muniquense Sainteny". Quanto ao capitão Larroque, encontrava-se
secretamente encarcerado na prisão do Cherche-Midi.
François teria algo a ver com tudo aquilo? A carta de Sainteny levantava
certas dúvidas a respeito.
Na mesma hora, Léa tomou a decisão de viajar para Paris a fim de
encontrar Sainteny. Fazia questão de lhe arrancar toda a verdade sobre a
viagem de François. A partir de então, deixou de acreditar que os seus negócios
haviam-no levado àquele país, mantendo-o longe no momento do nascimento
do filho do casal.

Capítulo 12

François Tavernier utilizou um comboio militar para viajar até Dalat, onde
Louis Caput aceitara encontrar-se com ele. Por sorte, a viagem transcorreu sem
nenhum ataque vietminh. Tavernier aproveitou uma parada de quarenta e oito
horas em Huê para visitar a antiga cidade imperial, situada a doze quilômetros
do mar, sobre o rio dos Perfumes. Formada por três bairros cercados por
muros, conforme todas as capitais chinesas, a cidade fortificada trazia as
marcas da guerra. A montante, as sepulturas reais desapareciam sob farta
vegetação. As imensas figueiras ladeando o rio pareciam querer proteger o
Túmulo da Piedade Filial, de Minh Mang, da dinastia dos Nguyên.
Atrás deles, começava a sombria e vasta floresta de pinheiros. No pátio
principal, dois leões de bronze dourado, dois cavalos e dois elefantes de pedra
formavam a guarda ritual da necrópole.
As escadas de granito com corrimão em forma de dragão apresentavam
falhas em vários pontos.
No interior, as construções outrora reservadas às esposas do rei e às suas
criadas estavam sujas de fumaça, com as colunas de madeira de lei
danificadas. Apesar da temperatura extremamente branda e da claridade
suave, reinava naquele local sagrado em épocas passadas, um clima de tristeza
e abandono. "Um lugar predileto para os fantasmas", pensou François.
À noite, no Grand Hotel, sem eletricidade, ele se embriagou em companhia
dos militares da escolta.
Chegou a Dalat sem maiores problemas, exausto, desejando apenas uma
coisa: um bom banho e uma cama. Louis Caput não deixou que François
realizasse o seu sonho.
O velho militante socialista recebeu o representante oficioso de Vincent
Auriol no escritório de sua casa na rua das Rosas, repleto de livros, esculturas
e objetos indochineses. Com cerca de cinqüenta anos, dentre os quais vinte
dedicados ao ensino em Dalat, uma expressão constantemente preocupada, a
testa alta e calva marcada por rugas, ele atendeu o visitante de maneira
abrupta:
— Muitas coisas mudaram após a saída de Sainteny. As posições do
estado-maior vietminh endureceram consideravelmente. Seus dirigentes
deixaram de confiar nos franceses. O que é perfeitamente compreensível!
Entretanto, logo após a libertação, manifestaram-se todas as esperanças de
reparação, todos os franceses pareciam possuídos pelo mesmo e sincero desejo
de devolver à França poder e prestígio. Os próprios partidos marxistas
reconheciam a necessidade de uma pausa em sua tarefa internacionalista, para

se dedicarem exclusivamente ao renascimento francês. Como essa unidade
quanto ao sentimento patriótico pôde chegar à situação letal em que nos
encontramos atualmente, em plena confusão e em plena discórdia? Na verdade,
a situação internacional pesa, e muito, nos comportamentos nacionais e
individuais; opõe cada vez mais duas ideologias ou melhor: dois sistemas
políticos e econômicos, o que não justifica tudo! Após a humilhação da derrota
e aquela, ainda mais dolorosa, da ocupação, a França, no conflito que a opõe ao
Vietnã, não percebeu que esse país também sofreu um violento transtorno com
a Segunda Guerra Mundial. Ela não entendeu que era insensato sonhar em se
tornar uma grande potência econômica. Julgaram que era possível devolver-lhe
o poderio militar e colonial, manter a qualquer preço o seu império e impor aos
povos de além-mar uma política altiva de prestígio com a manutenção
incondicional de sua soberania. O grande erro, o erro monstruoso foi
desconhecer o verdadeiro destino da França e oferecer-lhe outro, que não
correspondia aos seus meios e nem às suas tradições...
— E agora, em que pé estamos?
— Minhas tentativas para conversar com Hô Chi Minh têm sido vãs. Não
obtive resposta alguma. Em compensação, no que lhe diz respeito, parece que o
seu pedido está sendo estudado.
— Quando teremos o resultado?
— Logo. Foi por isso que o mandei chamar.
— Sabe onde se encontra Hô Chi Minh?
— Alguns afirmam tê-lo visto em Hoang Tru, sua aldeia natal, perto de
Vinh. Parece-me improvável:
lá todos o reconheceriam. Outros dizem que está em Hong Kong, em
companhia de Pham Van Dong; não acredito muito nessa versão. Creio que ele
se encontra no Tonquim, perto da fronteira chinesa. Trata-se de uma região de
acesso muito difícil, onde inúmeras grutas podem facilmente servir de
esconderijo aos membros da resistência e a proximidade da China é muito
prática em caso de retirada. Mas, se não for confidencial, tem propostas
concretas a fazer ao presidente Hô Chi Minh?
— Não. Minha função é bastante vaga. Consiste, de início, a retomar os
contatos; mas parece que essa perspectiva já foi ultrapassada.
— Receio que sim. Não imagino Hô Chi Minh aceitando reabrir as
negociações.
— Acredita que ele receba ordens de Moscou?
— Não. Esta guerra é, antes de mais nada, uma guerra de independência
nacional. Obviamente, está sendo conduzida pelos comunistas em primeiro
lugar, mas Tio Hô possui grande habilidade para fazer do comunismo seu
cavalo de batalha. Em compensação, se ganhar esta guerra...
Durante alguns instantes, os dois homens mantiveram-se calados.

— Vamos jantar, deve estar esfomeado...
Na pequena sala de jantar, um velho boy fazia as vezes de garçom. Após a
sopa tradicional, Tavernier perguntou:
— Ainda há pouco, quando o interrompi, estava dizendo que a França
cometeu um erro terrível ao dar as costas à sua verdadeira vocação. Qual?
— Deixamos de lado o nosso maior trunfo: a nossa influência cultural, o
único capaz de fazer com que mantivéssemos e afirmássemos a presença
francesa, não com frases vazias de sentido, não com ameaças ou jogos de cena,
o único que não provocasse desconfiança e pudesse trazer até nós a
unanimidade de um povo ávido de saber, respeitoso dos valores intelectuais.
Desprezamos esse trunfo e jogamos com a pior carta do baralho, a do falso
prestígio baseado na força militar e na pressão administrativa. O primeiro
problema que se apresenta hoje em dia é o da língua. Nas regiões que fogem ao
nosso controle, e onde se refugiou a maior parte da juventude e dos
intelectuais, a aversão para com o francês é total. Trata-se de conseqüência
inevitável de um estado de guerra, um reflexo de defesa provocado tanto pelo
sentimento de xenofobia despertado como por uma reação sentimental, o
resultado de uma propaganda que se exerce pelos meios mais diversificados e
que pretende atingir o inimigo no seu ponto vital: a influência espiritual.
— Posso entender essa reação no que se refere ao povo, mas não no caso
dos intelectuais. O Vietnã precisa do francês como vetor científico, tecnológico e
diplomático...
— O Vietminh pensou nisso, estudou a questão com o maior afinco ejá
começa a se mostrar convencido da capacidade da língua vietnamita em
expressar todas as formas de pensamento, não apenas científico como também
político e filosófico. Trabalhos de lexicografia e tradução já foram iniciados para
enriquecer esse idioma, destinado a substituir o francês como veículo do saber
universal. Na melhor das hipóteses, o francês passará a ser um instrumento
auxiliar, ensinado apenas às gerações mais novas; convém lembrar que o
francês também sofre ameaças externas que tentam suprimi-lo, como as da
China e principalmente dos Estados Unidos, que são os donos do Pacífico.
Nessas condições, será que nosso idioma continuará mantendo o seu lugar
privilegiado? A propaganda adversa não deixará de evocar a época em que ela
foi um instrumento de assimilação e conversão políticas às ordens de um
colonialismo ultrapassado.
— Não está sendo muito pessimista?
— Infelizmente, não! Se esse recuo continuar, será catastrófico para a
França, tanto quanto para o Vietnã, o que implodirá a evolução, a adaptação à
vida moderna e a reconstrução. Se eu pudesse conversar com os dirigentes do
vietminh, encaminharia todos os meus esforços para esse campo, a fim de
defender o interesse comum dos nossos dois países.
— Esses dirigentes são todos francófonos?

— Quase todos, e mesmo aqueles que nunca puseram os pés na França,
como o general Giap, por exemplo, falam perfeitamente o francês. Hô Chi Minh
costuma levar com ele uma pequena antologia da poesia francesa, que já leu
mais de mil vezes. Mas todos têm consciência de que não conseguirão levar a
cabo a revolução se continuarem utilizando a língua do opressor. Quer mais
café?
— Não, obrigado. Faz muito tempo que não tomo um café tão gostoso.
— Não é? Para mim, o café vietnamita é o melhor do mundo. Mas deve
estar exausto, venha, vou lhe mostrar o seu quarto.
No dia seguinte, o céu estava coberto e a temperatura mais fresca; chovera
durante a noite. Não se distinguia o cume das montanhas. Tavernier acordou
cedo e rodeou o lago a pé. Diante dos hotéis, os condutores de triciclo ainda
dormiam em seus veículos; grupos de estudantes apressavam-se, de mochila às
costas; caminhões militares perturbavam o silêncio daquela manhã provinciana
com seus ruídos. Tudo lembrava uma aldeia nas montanhas dos Vosges ou dos
Pirineus.
O dono da casa já se encontrava à espera de François quando este
regressou.
— Tenho uma boa notícia: um representante do presidente Hô Chi Minh
aguarda a sua chegada a Saigon.
— Saigon!
— Sim, sua partida está marcada para daqui a uma hora com um comboio
de suprimentos. Sabe dirigir um caminhão?
— Já fiz isso antes — respondeu François irritado.
— Parece um pouco decepcionado.
— Não é isso... Pensei que pudesse voltar logo para a França; tenho a
impressão de que a data do meu regresso foi adiada.
— Não é tão certo assim... Tem um encontro com o representante de Tio
Hô no Grand Monde, em Cholon. Deve entregar-lhe isto.
Louis Caput deu a François um exemplar já bastante manuseado dos
Pensamentos de Pascal na coleção "Petits Classiques" da Larousse.
— Ele trocará pelas Fábulas de La Fontaine, da mesma série. Serão estas
as suas senhas.
— Como irei identificá-lo?
— É ele quem vai reconhecê-lo. O encontro está marcado para daqui a dois
dias, às vinte e uma horas e trinta. Vá arrumar suas coisas; virão buscá-lo
dentro de dez minutos.
Instantes mais tarde, François despediu-se de Louis Caput, o exaltado
defensor da cultura francesa que ele divulgara na Indochina por mais de vinte

anos. Agora, o país rejeitava essa mesma cultura. Será que chegara a aceitá-la
realmente?
Os motores de cerca de trinta caminhões já estavam ligados diante do
Palace Hôtel. O velho estabelecimento não sofrera muitos danos durante a
guerra. Adolescente, François costumava ficar hospedado junto com os filhos
de Rivière quando estes vinham passar o verão com a mãe e as empregadas.
Lembrava-se de suas correrias pelos amplos salões e das alegres refeições na
imensa sala de jantar de onde a vista sobre o lago e os jardins era magnífica.
Em pequenos grupos, ao lado dos caminhões, os motoristas e os soldados
franceses encarregados de escoltá-los conversavam e fumavam, enquanto as
pequenas vendedoras de bebidas não paravam de importuná-los. Três veículos
do exército vieram colocar-se à frente do comboio.
— É você o tal amigo do senhor Caput? — perguntou um indivíduo alto de
cabelo ruivo.
— Sim, e você é Michel Poitevin?
— Isso mesmo. Só tem essa mala? — disse ele, pegando a bagagem de
François sem esperar pela resposta.
Abriu a porta de um Ford novo em folha.
— É melhor colocá-la na cabine; por aqui só dá ladrão. Venha logo, já
vamos partir.
Após um misterioso sinal, os motoristas e seus auxiliares subiram nos
caminhões. O comboio de suprimentos começou a rodar em meio a um
concerto de rugidos de motores, buzinas e gritos. Até a saída da cidade, foram
acompanhados por um bando de garotos agarrados aos estribos, meninas
oferecendo cerveja, suco de laranja ou cigarros e mendigos maltrapilhos.
Aumentaram a velocidade. Os caminhões avançavam, com um intervalo de
cerca de quinze metros entre eles, levantando espessas nuvens de poeira.
— Estamos bem no meio do comboio. Em tese, a gente tem mais
segurança do que na frente ou lá atrás; mesmo assim, em caso de emboscada,
corre-se o risco de ficar entalado como um bando de babacas — comentou
Poitevin, abraçado ao volante. — Que estrada filha da puta! ... Que viets filhos
da puta! ... Na ida, perdemos três horas tapando as trincheiras que eles
cavaram durante a noite.
O motorista não devia ter mais de vinte anos e falava com o sotaque de
Belleville.
Só para dizer algo, François perguntou:
— O que transporta?
— Frutas, legumes, as especialidades da região. Na ida, levo ferramentas,
móveis, tecido, o que me dão, está entendendo? Prefiro a volta, a estrada desce

o tempo todo, assim não cansa tanto o caminhão. A gente passa sem perceber
dos mil e duzentos metros de Dalat aos arrozais de Saigon.
Trezentos quilômetros de puro passeio, não fossem os viets. Estou
contente em voltar... Está ficando cada vez mais difícil. Na ida, fomos atacados
traiçoeira- mente, meu mecânico morreu e cinco ou seis caminhões pegaram
fogo. Foi a minha quarta emboscada desde que estou na estrada. Antes,
costumava viajar pela fronteira do Laos, mas vi um monte de companheiros
mortos ou o que restava deles depois de presos pelos viets... Aqueles canalhas
fazem igualzinho à comida deles: cortam tudo em pedacinhos!
— Os negócios devem dar um bom lucro, você tem um belo caminhão.
— Depende. O Ford, eu comprei a prestação da viúva de um cara. O
babaca não morreu por causa dos viets, foi um marido ciumento que o pegou
na cama com a esposa.
— Assim, você ficou com o caminhão e... a viúva!
— Como adivinhou? — perguntou ele, espantado.
— Experiência de vida — respondeu François com a maior seriedade.
— Deve ser isso mesmo — disse o outro em tom respeitoso.
Avançaram alguns instantes em silêncio, muito sacudidos pelos
solavancos.
— Faz muito tempo que está na Indochina?
— Desde o fim da guerra. Na França, lutei na Resistência. Depois, todos os
combatentes ficamos completamente perdidos. Um dos nossos tenentes falou:
"Ei, rapazes, estão alistando para a Indochina, vamos ver como é?" Foi assim
que desembarcamos em maio de 1945. A gente nunca se entediou. Com os
"Leclerc", acabamos com a raça de muitos viets, inclusive vários caras tiveram
problemas por causa disso. Depois de um ano, fiquei de saco cheio e me
mandei. Disseram que eu era desertor. Na verdade, foi a minha pele que eu
quis salvar. Percebi que a situação estava ficando preta. Não se deve brincar
com a sorte. No início, trabalhei para um rico comerciante chinês, mas fui
apanhado na fronteira laosiana com cem quilos de ópio.
— Você foi preso?
— Não, o meu patrão encheu o bolso do chefe de polícia. Ele tem muito
conhecimento no governo.
Acabei de pagar tudo para ele; agora sou o meu próprio patrão. E você,
trabalha no comércio?
— Possuo um negócio de seda em Hanói — Está indo bem?
— Não muito, mas eu me viro.
Pararam em Bao Lôc. Semelhantes a uma nuvem de gafanhotos, crianças
e mercadorias abateram- se sobre o comboio em meio a gritos. François

comprou rodelas de abacaxi espetadas em pequenas hastes de bambu. Poitevin
preferiu cerveja.
— Se vai comer, eu fico aqui mesmo. Estou farto da cozinha deles. Meu
sonho é um bife malpassado com fritas e um copo de vinho geladinho. Você
não?
Mulheres idosas encontravam-se instaladas com todos os seus apetrechos
de cozinha perto de um atoleiro cheio de poças de água; havia vários
banquinhos à espera dos fregueses. François sentou-se diante de uma daquelas
vendedoras. A velha sorriu:
— Rot hon ông toi nha tôi an. Tôi lamp bep ngon hon tat ca moi ngoi. ng
muon an gi?
(Fizeste bem em te instalares aqui, eu sou a melhor cozinheira. O que
deseja?)
— Mot tô my.
(Uma tigela de sopa.)
— Ng co biêt noi tieng Viet không?'
(Fala vietnamita?)
"Não", fez François com a cabeça, sorrindo para ela.
A velha levantou a tampa da panela e serviu uma tigela de sopa fervente
que colocou no chão. Em uma vasilha, arrumou pimentões, meio limão, rodelas
de cebola e uma colher de porcelana. Ele pegou os pauzinhos e limpou-os com
a camisa. Aprovando com a cabeça a disposição dos ingredientes, ela olhava
para François comendo, tal como um chefe de cozinha satisfeito ao ver sua
comida sendo degustada.
Mais uma vez, ele ficou surpreso com o sabor das sopas vietnamitas,
preparadas à beira da estrada com a água verde do lamaçal. Junto com o chá,
tomou um comprimido de quinino.
Os soldados, marroquinos em sua maioria, haviam saltado dos seus GMC.
Interpelavam as mulheres com risadas irônicas, em sua própria língua. Pela
atitude, percebia-se que os anamitas estavam atemorizados. Pareciam mais
descontraídos e simpáticos com os suboficiais franceses que os comandavam.
François pagou e afastou-se, enquanto fumava um cigarro.
— Todos subindo! — gritou um sargento caminhando ao longo da coluna
de veículos.
Novamente a estrada, as nuvens de poeira, os solavancos e uma câimbra
no estômago provocada pelo medo de um eventual ataque vietminh.
Poitevin tirou uma metralhadora escondida sob o assento.
— Sabe como funciona?

— Sim. Você acha que vamos precisar?
— Sei lá, mas é melhor a gente se prevenir.
Com a mão, enxugou a testa encharcada de suor.
— Na última vez, atacaram no quilômetro 70. Havia um monte deles,
surgindo de toda parte. Nem sei como me saí dessa.
— Duvido muito que ataquem exatamente no mesmo lugar.
— Com eles, nunca se sabe.
O comboio avançava à velocidade de setenta ou oitenta quilômetros por
hora. Os camponeses, vestidos de preto, afastavam-se às pressas. Após a
floresta, os pomares, passando por arrozais onde mulheres inclinadas,
protegidas por um imenso chapéu cônico, com as calças arregaçadas,
plantavam arroz enquanto as crianças, fluas, montadas em búfalos cor de
lama, acenavam para os soldados.
— Estamos chegando, pode guardar a metralhadora.
Já era noite quando entraram em Saigon. Poitevin estacionou o caminhão
no bulevar Charner.
— Posso lhe oferecer um trago? — perguntou François.
— Até que seria bom, mas a minha namorada está me esperando. Até logo,
senhor Tavernier.
— Até logo.
Pegou a mala e foi até o hotel, o Continental Palace. Um telegrama
esperava por ele na recepção.
Nova ordem de Paris, missão cancelada. Deve regressar imediatamente
para a França. Louis Caput.
"O que significa isso?", pensou Tavernier enfiando o telegrama no bolso.
Após uma chuveirada, trocou de roupa e resolveu ir mesmo assim até o
Grand Monde. Lá veria o que fazer. No bolso, os Pensamentos de Pascal.

Capítulo 13

O triciclo deixou François em Cholon, na entrada da rua dos Marinheiros.
Uma multidão imunda amontoava-se ao longo dos altos muros amarelados que
abrigavam Le Grand Monde, empurrando- se para passar entre as correntes
que guarneciam as duas estreitas entradas. Todos deixavam que os revistassem
sem reclamar: as mulheres por velhas desdentadas, usando um traje todo
amassado a que chamavam de uniforme; os homens por rapazes de short e
camiseta com cara de criminosos. O guarda não notou o pequeno revólver que
trazia preso no tornozelo.
François penetrou no imenso pátio de terra batida, iluminado por milhares
de lâmpadas, entrecortado por aléias ladeadas de pequenas construções de
metal onde se encontravam cinco ou seis mesas de jogo pintadas de verde —
devia haver cerca de duzentas — ao redor das quais uma multidão composta de
cules, velhas com cabelo cortado à escovinha, camponesas, pequenos
comerciantes, prostitutas, mulheres carregando o filho às costas, jovens
delinquentes, anciões apoiados em bengalas espremiam-se para jogar as
piastras ganhas com tanta dificuldade.
Nas mesas de tai xiêu, jovens crupiês, com o corpo moldado nos vestidos
chineses de cores vivas, excessivamente maquiadas, sacudiam os três dados no
sino de vidro e anunciavam os resultados em um tom de voz cantado com
inflexões roucas e ríspidas. Os crupiês, de camiseta, juntavam as notas sujas
dobradas em quatro e as abriam, enquanto a crupiê recomeçava o jogo com
uma breve melopéia. Do alto do seu banco, o fiscal da mesa tomava conta da
partida.
François deteve-se diante de uma mesa de bac quan onde se jogava com
quatro dados. Qualquer que fosse o número de dados, os pobres coitados não
tinham a menor chance de ganhar e pareciam acomodar-se à situação com
certo fatalismo. O que os motivava era o jogo em si, o fato de ganhar ou não
vinha em segundo lugar.
Ao redor dos casebres que abrigavam as mesas, havia bares, dois cinemas,
um apresentando um faroeste, o outro um filme chinês, três teatros, estrados
com lutadores, malabaristas, acrobatas, mágicos, médiuns com as faces
trespassadas por agulhas, encantadores de serpentes e um pagode onde se
encontravam várias mulheres. Por toda parte, pairava um cheiro de fritura,
sujeira, suor, perfumes e incenso misturados.
De repente, dominando o canto das crupiês, os gritos, a música e os mais
diversos ruídos, golpes de gongo e címbalos detiveram por um instante a
multidão de jogadores, os quais se aproximaram apressadamente de um
estrado onde acabavam de acender grandes lanternas vermelhas. Um homem

de terno e gravata apresentou-se, acompanhado por um meirinho. Do teto,
protegendo o estrado, descia uma caixinha metálica. O homem tirou uma chave
do seu bolso, mostrou-a à multidão tensa e calada e abriu a caixinha. Tirou
uma cesta que apresentou ao meirinho e depois aos espectadores.
— Con khi no thang. (O macaco ganhou.) — gritou o meirinho.
— Tôi da thang. (Ganhei.) — disse uma velha perto de François.
Cinco ou seis pessoas ergueram os bilhetes. As demais deram meia-volta,
resignadas.
Louis Caput falara com François a respeito desse jogo diabólico que
permitia aos freqüentadores do Grand Monde enviar centenas de vendedores
pelas ruas mais afastadas de Saigon ou de Cholon, oferecendo a todos, pobres
ou ricos, velhos ou jovens, papéis de cor amarela onde constava uma frase em
caracteres chineses e vietnamitas, com um desenho que se referia às lendas, às
guerras, ao teatro e à poesia. Tratava-se do jogo dos Trinta e Seis Bichos e dos
Quatro Gênios, numerados de um até quarenta. Consistia em adivinhar qual
seria o animal ou o gênio escolhido e jogar o número correspondente. O
ganhador recebia o montante de sua aposta multiplicado por trinta e três.
Arruinando a arraia-miúda e enriquecendo o consórcio macaísta que liderava
todos os estabelecimentos, o jogo suscitava tal divertimento que o Alto
Comissariado chegara a pensar na possibilidade de proibir os Trinta e Seis
Bichos. Entretanto, o delegado do consórcio, um certo Triêu Tuong, chinês
obeso, sempre vestido de sharkshi e que só andava de Cadillac azul-petróleo,
após negociações das mais ladinas, conseguira fazer com que as autoridades
mudassem de opinião. O jogo recomeçou com entusiasmo ainda maior.
Tavernier, com muita dificuldade, conseguiu deixar de lado o fascínio
daquele local e dirigiu-se até o cabaré. Numa pista imensa, dançavam casais,
compostos em sua maioria de um europeu e uma jovem vietnamita. No bar, a
confusão era tanta que François precisou abrir caminho à força.
— Um conhaque com soda, por favor.
— Dois — disse uma voz feminina a seu lado.
François virou-se. Vestindo túnica de seda verde bordada com flores que
deixava aparecer a pantalona de seda branca, uma jovem encantadora sorria
para ele. Fez um gesto com a cabeça e os longos cabelos negros e brilhantes
deslizaram ao longo de seu busto delgado. De uma bolsinha dourada tirou um
estojo de pó-de-arroz, abriu-o e começou a retocar a maquiagem. Na bolsa
entreaberta, François avistou as Fábulas de La Fontaine. Surpreso, vagamente
irritado, tirou do bolso o seu exemplar dos Pensamentos.
— Aqui estão os dois conhaques, senhor.
— Obrigado. Tome — disse François empurrando o copo em direção à sua
vizinha.
— Vou brindar ao êxito dos seus projetos.

Ela tomou um gole e, em seguida, voltou a se maquiar. Seu rosto parecia
mais duro.
— Não olhe para trás — murmurou. — Finja que está me contando algum
segredo no ouvido. Darei uma risada, você ficará furioso e me deixará aqui, de
forma grosseira. Irei encontrá-lo no hotel, à noite. Esteja pronto para sair logo.
Qual é o número do seu quarto?
— 320.
Tavernier representou seu papel à perfeição. Saiu do bar resmungando:
— Sua filha da puta!
Um chinês de smoking, mordiscando um charuto grande demais para ele,
aproximou-se de François:
— Algum problema, senhor?
— Não, está tudo bem, tudo bem, mas achei os preços proibitivos!
— Nossas mulheres foram escolhidas a dedo, senhor: são todas jovens de
boa família.
— Não duvido, mas mesmo assim é muito caro.
— Talvez haja uma solução para as suas dificuldades financeiras.
— Ah é? Qual?
— O jogo, senhor, o jogo!
— Boa idéia. O que é que se joga por aqui?
— O ba quan americano, o tai xieu, o tu sac e a roleta também, assim
como o bacará...
— Chega, vou dar uma olhada.
— Boa sorte, senhor! Fica nos fundos do pátio.
No fim de uma ruela escura encontrava-se a entrada do que devia ser,
pensou François, o centro nevrálgico do estabelecimento. Uma sucessão de
salas com paredes móveis atrás das quais tinham lugar diversas partidas,
excessivamente iluminadas, sem enfeites e sem ruídos, tendo mesas de jogo
como únicos móveis, além de assentos e enormes escarradeiras, recebiam os
jogadores, em sua maioria asiáticos: obesos chineses milionários, ricas viúvas
anamitas cobertas de jóias, comerciantes, prostitutas metidas a refinadas,
banqueiros, armadores, traficantes. Ali, ocorria todo tipo de jogos de dinheiro.
Na primeira sala, jogava-se roleta chinesa; em outra, ronda; na terceira, menor,
bacará. Apareceu um lugar vago; François sentou-se; era o único francês
presente.
Na terceira partida, ganhou uma bela soma. Levantou-se com ar de
satisfação e deu uma boa gorjeta aos crupiês.
— Está com sorte, devia continuar — disse o chinês, que o seguira.

— Já chega, ganhei o suficiente para poder pagar por uma mulher —
respondeu com uma risada sarcástica, dando um tapinha no ombro do outro.
François voltou ao bar. Como já esperava, a mulher não se encontrava
mais. Tentou ver se estava por perto.
— Está procurando a senhorita Hong? — perguntou o barman. — Já saiu,
mas a senhorita Rose, amiga dela, terá o maior prazer em substituí-la.
O nome da amiga fora muito bem escolhido: a túnica, a maquiagem, o
cabelo eram cor-de-rosa. Na bolsinha entreaberta, ele avistou o exemplar das
Fábulas.
— O que deseja beber?
— Champanha rosado.
Claro, sorriu François disfarçadamente.
O champanha, na temperatura ideal, estava perfeito. Ao erguer a taça,
lembrou-se de Léa, no Maxim's, erguendo a sua; ela também gostava muito de
champanha rosado. Aquela recordação entristeceu-o. Rose notou a mudança
em seu rosto:
— Você ficou melancólico, de repente. Está pensando em alguma
mulher?... Claro, foi isso... Vamos, beba, assim vai deixar de pensar.
Como era possível? A lembrança despertava-o todas as noites, com um
tesão insuportável! Desde a sua saída da França, mantinha-se casto.
Entretanto, tornava-se cada vez mais difícil resistir e Rose percebeu tudo. Pôs a
mão sobre seu sexo que enrijeceu imediatamente. Ela deu uma risadinha:
— Desse jeito, você não vai agüentar a noite toda.
Aquele gesto, vindo de uma vietnamita, fora tão inesperado. A safada tinha
toda razão!
— Quanto?
— Cinqüenta dólares.
— Tudo bem, mas vamos para sua casa.
Ela lhe lançou um olhar profundo.
— Espere por mim.
Alguns instantes mais tarde, voltou. O chinês com o charuto acenou para
eles com ar cúmplice.
Do lado de fora, a temperatura era muito agradável. Crianças maltrapilhas
acorreram, com as mãos estendidas. Rose tirou da bolsa algumas notas que
distribuiu dizendo:
— Bây gio thi du rôi, chung may dê tao yên.

Os meninos espalharam-se em meio a gritos. Mais adiante, jovens
descalças, sentadas em um banquinho diante da porta, aguardavam os
clientes. No interior de cada casa, via-se o altar dos antepassados muito
iluminado e as espirais da fumaça do incenso. Algumas velhas com os dentes
laqueados cuspiam ao vê-los passarem.
— Não estão acostumadas a ver um branco passeando a pé por aqui.
Essas jovens nunca transam com um europeu, são reservadas aos vietnamitas
que não têm meios de pagar pela companhia de uma mulher como eu. Mas
todas elas morrem de inveja de mim.
Rose entrou em uma rua escura.
— Já vamos chegar.
"Tudo isso parece uma armadilha", pensou François, segurando o revólver
que o porteiro não havia encontrado ao revistá-lo.

Capítulo 14

A embarcação balançou assim que François subiu a bordo. Ele deu a mão
a Rose. A jovem transpôs o parapeito e a sampana começou a se afastar do
cais, deslizando entre outras embarcações sobre o arroio chinês. Via-se apenas
a silhueta preta do remador a gingar. Percebiam-se outras presenças humanas
sob o habitáculo em forma de domo. Apesar da hora avançada, a luz ainda
brilhava nas janelas dos bancos do cais da Bélgica. Na embocadura do rio de
Saigon, a corrente diminuiu a velocidade do barco. François acendeu um
cigarro. No cais Le-Myre-de-Villiers, um bando de farristas, saindo do hotel de
la Rotonde, caminhava pela rua Catinat gritando canções obscenas. Um
marinheiro içou a única vela.
— Venha — disse Rose levando François até o habitáculo onde brilhava
um pequeno luzeiro.
Três homens sentados sobre esteiras fumavam calados. Um deles acenou
para que François se instalasse próximo a eles, enquanto outro servia chá. Em
seguida, o mais velho, um ancião magricela com uma longa barbicha, tomou a
palavra:
— Senhor, seja bem-vindo à nossa humilde embarcação. Tivemos de
modificar um pouco a ordem das coisas, pois a polícia francesa estava à sua
espera no hotel para lhe fazer algumas perguntas.
Julgamos que o seu tempo era muito precioso para perdê-lo com
interrogatórios fastidiosos e que a sua missão vinha em primeiro lugar.
Mandamos apanhar a sua mala.
"Pensaram em tudo. Muito bem, aqui estamos", pensou François
sacudindo a cabeça.
— O general Leclerc, tragicamente desaparecido, e o governador Sainteny
eram amigos do presidente Hô. O presidente confiava neles, assim como confia
em Louis Caput, cujo coração honesto e sincero ele conhece muito bem. Mas
será que pode depositar a mesma confiança em um governo que troca de
presidente do Conselho como quem troca de camisa, que não cumpre os seus
compromissos, que envia todos os dias tropas frescas para atacar os nossos
soldados em luta pela independência do país?... Um governo que aqui favorece
a corrupção, a traição, que se cerca do que existe de mais podre, tanto do lado
francês como do lado vietnamita? Responda, senhor Tavernier, de que maneira
o nosso presidente poderia conceder um crédito maior ao seu novo presidente
do Conselho, senhor Robert Schuman?
— Não conheço o senhor Schuman, e não foi ele quem me enviou nesta
missão junto ao presidente Hô Chi Minh. Mas tenho certeza de uma coisa: esta

guerra entre os nossos povos precisa cessar e os poucos homens de boa
vontade que ainda restam em ambos os campos estão fazendo tudo o que
podem para chegarmos à paz.
— Palavras sábias. Mas o tempo das palavras já passou, precisamos de
atos! Se a França retirar as suas tropas do Norte e mandá-las de volta a
Haifong, aí sim, poderemos discutir.
— Não está falando sério. A França ocupa uma boa parte do Norte. No
Centro e no Sul, nossas tropas avançam, conquistando dia após dia regiões
inteiras...
— Nunca lhe passou pela cabeça que os seus soldados progridem com
demasiada facilidade, conquistando, como disse, regiões inteiras sem grandes
problemas? Não pensou na possibilidade de uma armadilha que estaria se
fechando sobre eles? — perguntou um rapaz de rosto redondo, com um amplo
sorriso.
Um arrepio percorreu o corpo de Tavernier. Não, nunca pensara que era
fácil demais, principalmente quando ouvia o relato dos soldados de licença. As
feições cansadas, o olhar assustado, as mãos trêmulas, as feridas, a lembrança
dos companheiros mortos, eram testemunhos do seu sofrimento. Mas François
percebeu que o homenzinho sabia exatamente do que se tratava. A guerra não
passava de uma cilada para acabar com milhares de jovens envolvidos no que
imaginavam ser um combate em defesa dos valores e dos interesses da França;
na realidade, tratava-se de uma luta entre partisans e ocupantes, onde tudo
era permitido, sem o menor respeito às regras ou às convenções.
— Uma cilada também pode ser fatal para aqueles que a armaram.
— Avaliamos todos os riscos. Existem, mas são menores em comparação
ao que vocês vão encontrar pela frente. Lembre-se do que disse Tio Hô a um
dos seus ministros socialistas: "Vocês podem matar dez homens meus, eu só
matarei um dos seus. No entanto, mesmo assim, vocês não agüentarão e sou
eu quem irá vencer..."
Responder o quê? Tavernier sentiu o desânimo tomando conta dele.
Acendeu outro cigarro.
— Você é igual ao nosso presidente, fuma demais. Não faz bem à saúde.
François levantou os ombros com fatalismo.
— Não podemos pensar na hipótese de retomarmos as negociações?
— Quer que eu lhe forneça a relação dos pedidos de negociação
formulados pelo Tio Hô desde o dia 19 de dezembro de 1946? Foi ele mesmo
quem preparou: "21 e 23 de dezembro de 1946; 1°, 7, 10 de janeiro de 1947; 18
de fevereiro e 5 de março de 1947." Alguns dentre eles foram entregues aos
agentes consulares de outras potências. O presidente Ramadier afirmou, no
entanto, que a carta enviada pelo presidente Hô ao ex-presidente Bium trazia
uma assinatura falsa, e que, desde então, o governo francês não recebera

mensagem alguma. Já que os representantes da França ocultaram
conscientemente todos aqueles pedidos, devem ser responsabilizados por isso.
O ministro Moutet declarou que, desde o dia 19 de dezembro de 1946, ninguém
mais vira Tio Hô e não se sabia se ele estava vivo ou morto. Em 26 de abril de
1947, nosso presidente enviou ao alto comissário Bollaert, por intermédio do
nosso ministro das Relações Exteriores, senhor Hoang Minh Giam, uma
mensagem propondo "a suspensão imediata das hostilidades e o início de
negociações visando um acerto pacífico do conflito".
Sabe o que aconteceu com esse pedido? O senhor Bollaert encarregou o
senhor Paul Mus, por quem o nosso dirigente tem grande estima e afeto, de
apresentar as seguintes propostas: abandonar as armas, aceitar a livre
circulação de tropas francesas em todo o território vietnamita, entregar os não-
vietnamitas que combatem do nosso lado... O professor Mus formulou tais
condições profundamente humilhantes com um sentimento de vergonha, sem
qualquer ilusão quanto à resposta.
O nervosismo do Tio traduziu-se então por um consumo ainda maior de
cigarros. Mas todos nós sabíamos que seu coração estava ferido e foi com a
maior emoção que ele respondeu ao representante da França: "Na União
francesa, não existe lugar para os covardes; se aceitasse essas condições, eu
seria um deles."
Pelo vento mais fresco que começara a soprar do sul, François Tavernier
percebeu que a embarcação já se encontrava em alto-mar. Para onde o
levavam? O barco deslizava rapidamente sobre as águas. Os homens reunidos a
bordo mantinham-se calados.
Durante cerca de meia hora, ouviu-se apenas o marulho das ondas contra
o casco. Em seguida, o vietnamita de barbicha tomou a palavra:
— Não creio que consiga encontrar-se com o presidente Hô Chi Minh. Não
tem nenhuma proposta a apresentar para ele...
— É mais ou menos isso — interrompeu François. — No entanto, na falta
de propostas, eu gostaria de saber a opinião dele sobre a maneira de convencer
o governo francês a reatar as relações em bases honrosas, e quanto ao que a
opinião pública francesa precisa saber sobre a realidade desta guerra.
Enquanto falava, Tavernier não tirava os olhos dos de seus interlocutores.
Ao perceber olhares mais brilhantes, entendeu que atingira o alvo. Pedir a
opinião do Tio representava sinal de grande respeito, muito apreciado por eles.
— Vamos repousar um pouco.
Sem esperar pela resposta, François perguntou:
— Estamos indo para onde?
— Senhor Tavernier, pegue esta manta, as noites costumam ser frias no
mar.
— Obrigado.

François levantou e agasalhou-se com o cobertor. Sentia vontade de
esticar o corpo, mas a embarcação estreita não permitia movimentos muito
amplos. Inclinou-se sobre o parapeito com um profundo suspiro de satisfação.
Ao se reerguer, ouviu uma risadinha. Rose olhava para ele; esquecera-se por
completo de sua presença.
O frio despertou-o ao amanhecer. Avançavam em meio à neblina. A seu
lado, a jovem tremia.
— Encoste-se em mim, vou aquecê-la.
Após um instante de hesitação, ela se aproximou de François.
— Obrigada, assim é bem melhor — disse Rose.
— Por que você também veio?
— Era mais prudente, tanto para eles como para mim.
— Faz muito tempo que trabalha para o vietminh?
Ela se retraiu, mas não respondeu. Ambos cochilaram: ao abrirem os
olhos, a névoa desaparecera.
Um rapazinho trouxe duas xícaras de chá.
— Cam on. — disse Rose.
O ancião de barbicha aproximou-se do casal.
— Vamos nos despedir, senhor Tavernier.
François teve a impressão de que seu coração deixara de bater; será que
iriam matá-lo assim, sem mais nem menos? Sua mão procurou o bolso... O
revólver desaparecera. Um olhar para Rose foi o bastante para entender. Puta!
— Meus amigos e eu mesmo consideramos que não nos cabia julgar os
fundamentos de seu encontro com o presidente Hô Chi Minh. Resolvemos,
então, deixar essa tarefa para pessoas mais competentes. Um junco rápido
encontra-se à nossa espera perto daqui, com um representante do Tio. É ele
quem irá decidir se você deve ou não ser levado à presença de Hô.
— E se a decisão de vocês fosse outra?
— O senhor estaria agora na companhia das sereias- respondeu o rapaz de
rosto redondo, com o sorriso de sempre.
— Creio que agiram com muito discernimento — replicou François,
tentando dominar o tremor que a raiva provocava em sua voz.
— Caberá ao futuro dizer se estávamos certos, senhor Tavernier.
Perguntou a Rose há quanto tempo trabalhava para o vietminh. Desde a morte
do pai, senhor Tavernier, assassinado pelos guardas na prisão de Paulo
Condore.
— Por que razão?

— Distribuição de panfletos divulgando a luta pela independência,
conferências nas universidades, publicações diversas.
— O que não justifica o ato dos guardas!
— Na prisão, ele continuou catequizando os detentos mais novos; graças a
ajuda externa, conseguiu que lhe mandassem livros proibidos de Marx, Engels,
Lenin, Stalin...
— Nada de muito especial — resmungou François.
— O que disse?
— Nada.
— Quer saber como o mataram?
— Já que faz questão de me contar.
— Pregaram por todo o seu corpo as páginas dos livros após cobri-las de
mel. Durante dois dias e duas noites, ele gritou e gemeu. Quando o soltaram,
milhares de moscas e formigas fugiram: haviam devorado tudo.
Como ele entendia o ódio contido em cada uma daquelas palavras!
François baixou a cabeça.
— Tratava-se do meu pai; Rose é minha irmã. Odiamos os franceses. Se
dependesse apenas de nós, o senhor já estaria morto a uma hora dessas.
— Minha hora ainda não chegou. Sei o que está sentindo, já tive a
oportunidade de experimentar a mesma dor... Mas não transforme a luta pela
independência de seu país em assunto pessoal: com o seu ódio, corre o risco de
decidir erradamente, o que pode prejudicar os objetivos que tem em mente.
— E o que sabe a respeito dos nossos objetivos? — gritou Rose. — Nosso
pai só estará vingado quando o último francês deixar este país. Até lá, não
vamos desistir! Meu irmão e eu fizemos um juramento.
Sem a peruca rosa, ela parecia muito jovem: dezesseis, dezessete anos? É
sempre difícil avaliar a idade certa de uma vietnamita... Seu rosto transtornado
pelo ódio lembrava o de Léa, diante dos carrascos alemães. Essa recordação
provocou um sorriso em seus lábios.
— Está zombando de nós! Nossa história lhe dá vontade de rir! —
exclamou Rose atirando-se sobre ele.
François segurou-a pelos punhos.
— Engano seu, eu não estava zombando. Lembrei-me da minha esposa,
com quem você se parece, principalmente quando ela fica com raiva.
Frustrada com essa resposta, Rose encarou-o com ar incrédulo. Não
conseguiu dominar a sua curiosidade:
— Ela se encontra no Vietnã?
— Não, está na França. Acaba de ter um filho.

— É bonita? Como se chama?
— É sim... Chama-se Léa.
— Léa... Que lindo.
— Você e seu irmão falam francês muito bem. Onde aprenderam?
— Meu pai lecionava no colégio de Huê. Admirava muito a França, o país
dos direitos do homem, a Revolução francesa... Infelizmente, após uma estada
por lá, ele percebeu que, para a Indochina, todas essas palavras não tinham o
menor sentido. Assim, aderiu às teses marxistas. E foi por causa disso que o
mataram.
— Senhor Tavernier, sua nova embarcação chegou.
Um junco com a vela marrom-escuro oscilava perto da sampana. François
trocou de barco.
— Até logo, senhor Tavernier. O capitão ficou com seu revólver e sua mala.
— Desejo-lhe êxito — gritou o ancião de barbicha, inclinando-se na
embarcação.
As velas foram içadas logo em seguida. Ojunco era mais amplo e
aparentemente mais confortável.
Sob o habitáculo, dois sofás com finas almofadas de seda bordada
vermelha, exibindo motivos florais, cercavam uma mesa baixa sobre a qual se
encontravam uma chaleira e cálices de porcelana.
Sentada em um dos sofás, estava a primeira mulher com as Fábulas de La
Fontaine, vestida à moda das camponesas vietnamitas, com pantalona preta e
corpete branco. Uma espécie de turbante de veludo preto mantinha os cabelos
presos.
— Ora, voltamos a nos encontrar!
— Deseja chá, senhor Tavernier? — perguntou, oferecendo- lhe uma
pequena taça.
François agradeceu com a cabeça.
— Ficou espantado com a minha presença aqui?
— Faz muito tempo que nada mais me surpreende! Mas não teria sido bem
mais simples se você mesma tratasse de tudo desde o início?
— Não foi possível. Havia um grupo de matadores à sua espera no quarto
do hotel. Um dos funcionários do Continental mandou me avisar. Suas coisas
encontram-se a bordo. Chegou uma carta da França para você.
— Pode me entregar.
De um bolso da calça, ela tirou um envelope amassado. A letra de Léa...
Ele procurou a data, mas os diversos carimbos dificultavam a leitura. Fez um
esforço para abrir o envelope com toda a calma.

"Meu amor...
Nosso filho nasceu..."

François deu um pulo, com o rosto radiante.
— Tenho um filho!... Minha esposa está me anunciando o nascimento do
meu filho!
— Parabéns, fico contente por você.
— Obrigado... — gaguejou ao retomar a leitura.
A criança nascera, a mãe e o bebê estavam bem; Léa dera-lhe o nome de
Adrien, em homenagem àquele tio que tanto amava. Adrien... François sentou-
se sob o peso da emoção que o dominava...
Léa... Minha garotinha... Como pude te deixar sozinha?
— Tem um cigarro? Senhorita...?
— Hong.
— Será que tem um cigarro, senhorita Hong? — perguntou ele com voz
rouca.
Ela lhe ofereceu um maço de Players.
— Muito obrigado — respondeu François — Não tem outra marca?
— Não. Mas, se cruzarmos com contrabandistas, compraremos um maço
de sua preferência...
Ele acendeu um cigarro, tragou e fez uma careta.
— Parece palha.

Capítulo 15

— François!
O grito de Léa despertou o bebê que começou a chorar.
Às apalpadelas, ela procurou o interruptor, furiosa com Ruth que, mais
uma vez, apagara a lâmpada alegando que as crianças precisam se habituar a
dormir no escuro. As crianças talvez, mas ela não! Já fazia algumas noites que
o mesmo pesadelo perturbava o seu sono, acordando-a em meio a gritos. Um
bando de homens, usando máscaras representando animais, atacavam
François e levavam-no, espancando-o sem parar, em meio a uma paisagem de
horror. Ela despertava justo na hora em que uma espécie de pássaro gigante
com rosto de mulher abatia-se sobre ele, com garras afiadas e ameaçadoras. A
última imagem era a do rosto de François coberto de sangue.
Léa levantou-se, pegou o bebê e voltou para a cama apertando-o nos
braços. Seus gritos diminuíram. Ao senti-lo tão pequeno, tão frágil e indefeso,
as batidas de seu próprio coração acalmaram-se e o pesadelo dissipou-se.
Naquela noite, Léa resolveu parar de amamentar a criança e viajar sozinha
para Paris assim que fosse possível.
Françoise e Alain mostraram-se compreensivos e aceitaram ficar com o
filho de Léa e François.
Adrien tinha apenas um mês.
Na véspera da viagem, Jonathan Coben apareceu em Montillac. Inscrito na
faculdade de Bordeaux, pretendia recomeçar os estudos de direito. Tentou
impedi-la de partir para a capital:
— Não vá. Sabemos que não deixaram a França. Há vingadores atrás
deles, aguardando a hora certa de agir. Executaram aquele que matou Samuel,
mas os outros continuam soltos. Se você tiver algum problema, encontre-nos
na rue Roi-de-Sicile número 6, na casa de Joseph Binder. Não vai se esquecer?
Joseph Binder. Mostre-lhe isso.
Entregou a Léa uma medalha gravada com as tábuas da lei de Moisés.
Ela ergueu os ombros e guardou-a na bolsa.
Após um inverno frio e chuvoso, a primavera anunciava-se muito
agradável. Em fins de abril, Léa deixou Montillac com a impressão de que não
voltaria tão cedo.
Há três meses não recebia notícias de François. Teria ele recebido as
cartas onde Léa falava do filho? Jean Sainteny, com quem falara por telefone,
também não tinha notícias do amigo. Mostrara- se evasivo diante das suspeitas

de Léa quanto ao verdadeiro motivo da estada de seu marido na Indochina: ela
estava convencida de que não se tratava de uma simples viagem de negócios.
Sainteny protestou quando ela sugeriu pedir uma audiência ao ministro do
Ultramar. Insistiu para que Léa não tomasse qualquer medida antes de falar
com ele!
Léa voltou para o apartamento da rua da Universidade, o que não lhe deu
a menor satisfação. Ficou vagando pelos aposentos gelados que tinham cheiro
de mofo.
No dia seguinte à sua chegada, encontrou-se com Jean Sainteny no bar do
Ritz. Ele parecia tenso, cansado. Léa, em compensação, estava linda com seu
encantador tailleur Lanvin marrom que realçava sua cintura novamente fina.
Sainteny olhou-a com admiração ao perceber a elegante silhueta.
— Cara senhora, a maternidade só fez aumentar sua beleza. Como vai o
menino?
— Muito bem, obrigada. Não vim até aqui para falar do menino e sim do
pai. Onde está?
— Não sei mesmo — respondeu ele preocupado. — A última vez em que o
viram, foi em Saigon. Pedi a vários amigos que ainda tenho por lá que
tentassem encontrá-lo. Até o momento, não conseguiram nada.
— E em Hanói? O que dizem em Hanói?
— A família Rivière também está sem notícias. Hai, médico e pró-vietminh,
garantiu-me que os comunistas e os nacionalistas nada têm a ver com esse
misterioso desaparecimento.
— Mas não podemos ficar aqui de braços cruzados! Quero saber o que
aconteceu com meu marido!
Irei até lá, se for preciso... Achou graça? Falo sério!
— Estou certo que sim. Só que, como civil, jamais conseguirá obter a
autorização de viajar para a Indochina.
— Encontrarei um meio. Ainda posso me realistar na Cruz Vermelha.
— Vai ser difícil, agora está casada e tem um filho. Além do mais, parece
que oficialmente a instituição deixou de aceitar mulheres para a Indochina.
Creio que foram repatriadas no início de 1947.
— Preciso me informar. Se não for possível, pensarei em algo diferente.
— No momento, minha situação não é das mais brilhantes, mas pode
contar com o meu auxílio.
— Obrigada. Como se encontra o seu caso? Por que está sendo acusado de
espionagem?

— Prefiro não falar a respeito. Sinto-me enojado com toda essa gente
covarde e comprometida. Voltei às minhas antigas atividades na firma de
seguros.
— Será que não vai achar tudo isso muito monótono?
— Certamente! — disse ele sorrindo. — Fique tranqüila, não me limito
apenas aos seguros... Em compensação, você é que devia se dedicar
exclusivamente a seu filho. Tavernier vai acabar voltando.
— Em quanto tempo? E se ele foi feito prisioneiro?
— Costumam manter os prisioneiros e os reféns apenas como trunfos para
o caso de troca. Se o seu marido estivesse detido, já saberíamos...
— Não pode me contar nada sobre o motivo real de sua viagem àquele
país?
— Só sei o que ele mesmo me disse. Você deveria tirar da cabeça todas
essas suposições.
— Não consigo. Hoje à tarde, tenho uma entrevista na Cruz Vermelha com
a senhora de Peyerimhoff. Ela é rude mas tem bom coração. Se for possível, vai
enviar-me à Indochina. Até logo, darei notícias.
Sem mais nem menos, Léa deixou Sainteny, furioso com ele mesmo.
As calçadas da place Vendôme brilhavam sob o sol primaveril. As vitrines
da rue de la Paix exibiam as suas jóias mais lindas e Léa, maravilhada,
diminuiu o passo. Parou diante de um broche de ouro e diamantes
representando o sol. De repente, uma sombra refletida na vidraça deixou-a
apavorada.
Tudo se passou em câmera lenta. Ela só teve tempo de se abaixar. A bala
estraçalhou o vidro, uma mulher gritou, ouviu-se outro tiro, um guarda surgiu,
Léa saiu correndo na direção da place de l'Opéra.
— Senhorita... espere!
Léa entrou no metrô, empurrando as pessoas pelos corredores.
— Senhorita, seu bilhete! — reclamou o funcionário.
— Não tenho...
— Compre um.
— Por favor, estou com muita pressa...
— Mas não pode viajar sem bilhete!
— Por favor!
— Bem, dessa vez passa, mas cuidado com o fiscal...
— Obrigada, senhor!

A composição entrava na estação. Léa subiu no primeiro vagão. Sentou-se,
ofegante. Jonathan tinha razão: eles continuavam em Paris. Como conseguiram
saber, tão rápido, que ela também se encontrava na capital? Uma coisa era
certa: era preciso deixar a França o quanto antes. Por intermédio da Cruz
Vermelha, na hipótese de que fosse aceita, levaria muito tempo. A rue Roi-de-
Sicile devia ficar atrás do bazar do Hôtel-de-Ville... Desceu na estação Arts-et-
Métiers ,esforçando-se para não correr. No número 6, havia uma livraria de
obras religiosas. Léa empurrou a porta. Uma alegre campainha anunciou sua
entrada. O local exalava cheiro de repolho e incenso. Por trás de uma pilha
torta de livros no balcão, surgiu um homem baixinho com um imenso chapéu
preto, barbicha e cachinhos de cada lado do rosto.
— O que deseja?
— Venho em nome de Jonathan Cohen.
— Jonathan Cohen?
— Ele me disse que podia vir em caso de perigo. Tome, foi ele quem me
deu.
Léa procurou na bolsa. Nervosa, despejou todo o conteúdo sobre o balcão.
Encontrou logo a medalha. Joseph Binder também viu. Pegou-a e passou a
examiná-la com atenção.
— Como conseguiu isso?
— Foi Jonathan Cohen que me deu como salvo-conduto — respondeu
irritada.
— Como se chama?
— Léa Delmas... não, senhora Tavernier.
— Já sei, foi você quem assistiu ao assassinato de Samuel Zederman?
Léa acenou afirmativamente e pegou a medalha que o homem lhe
devolveu. Arrastando os pés, o dono da livraria foi fechar a porta da loja.
— Assim, ninguém poderá nos incomodar. Vamos, ficaremos melhor nos
fundos.
Ela se esgueirou entre as caixas repletas de livros.
— O que aconteceu?
— Ainda há pouco, na rue de la Paix, um homem atirou em mim. Não sei
para onde ir.
— Ninguém a seguiu?
— Acho que não.
— Não tem parentes? Marido?
— Meu esposo encontra-se na Indochina. Estou sem notícias há vários
meses.

— Ele pertence ao exército?
— Não, parece que viajou a negócios, mas acho que não é verdade. Alguns
dias antes de partir, encontrou-se com o general Leclerc. Tenho certeza de que
lhe deram uma missão.
— Por que pensa assim?
— Eu estava grávida. Ele jamais me deixaria sozinha para tratar de
negócios.
— Você conhece alguém na Indochina?
— Sim e não. Meu marido falou de amigos que moram por lá: os Riviêre.
— Tem dinheiro para viajar?
— Sim.
— Seu passaporte está em ordem?
— Sim.
— Tentarei fazer com que parta para Saigon. Tem onde dormir durante
uns três ou quatro dias?
— Estou com medo de voltar para casa, eles conhecem meu endereço.
— Minha irmã, que mora neste prédio, poderá hospedá-la Dê-me a sua
chave; vou mandar alguém apanhar as suas coisas. Pode me descrever o
homem que atirou em você?
— Era magro, com o cabelo cortado à escovinha, olhos claros. Foram os
olhos que chamaram a minha atenção: terrivelmente frios.
— Poderia reconhecê-lo?
— Creio que sim.
Uma mulher gorda, toda de preto, entrou nos fundos da loja.
— Myriam, essa jovem está com problemas. Pode hospedá-la por uns dias?
— Pobre pombinha, quem seria tão mau assim para querer machucá-la?
— As mesmas pessoas que procuramos — disse o livreiro.
— Venha, minha filha. Aqui, você está em segurança. Joseph vai tratar de
tudo. Meu irmão é um homem esperto.
Léa deu o seu endereço e a chave ao velho judeu.
— Obrigada, senhor.
— Não me agradeça. Descanse, deixe tudo comigo.
— Meu passaporte encontra-se na mala em cima da cama.
Depois de conversar com Joseph Binder, Léa escreveu à irmã e a Jean de
Sainteny:

Querida Françoise,
Quando receberes esta carta, estarei quase chegando à Indochina. Não
posso te contar as razões dessa viagem precipitada;fique sabendo, porém, que
se trata de uma questão de vida ou morte para mim. Parto para me encontrar
com François de quem não tive mais notícias.
Quanto a ti, escreve a ele para que esteja a par da minha chegada. Deixo
Adrien contigo. Sei que, a teu lado, nada lhe faltará. Dê um beijo em Charles e
explique que voltarei logo. Conto contigo para avisar tia Lisa e Ruth com muito
cuidado. Me perdoem, tu e Alain, pelo transtorno que estou causando. Quando
François e eu voltarmos, vamos dar uma grande festa e esquecer tudo isso.
Obrigada por tudo, irmãzinha. Diga a meu filho que o amo muito.
Abraços,
Léa.

Senhor!
Não acreditou em mim quando eu lhe disse que eles continuavam entre
nós. Acabo de escapar de um atentado. Sei que, da próxima vez, não irão
falhar. Viajo para me encontrar com meu marido. Acho que pode anunciar-lhe
a minha chegada, pois não sei para onde me dirigir; ainda não recebi notícias
dele.
Senhor, minhas sinceras saudações,
Léa Tavernier

Ao reler as suas palavras, Léa censurou-se pelo tom frio da carta. "Tanto
pior! Foi por culpa dele que François viajou para aquele país", pensou enquanto
fechava o envelope.
Léa permaneceu três dias com o livreiro e sua irmã. Na manhã do quarto
dia, Joseph apresentou- lhe dois primos cujos pais haviam desaparecido na
Alemanha:
— Nathanael e Jean vão acompanhá-la de trem até Marselha. Serão os
seus seguranças. Conseguimos pegar o homem que agrediu você. A polícia
também tinha a pista dele, mas chegou muito tarde. Nossos companheiros
acabaram com ele. Em Marselha, há um lugar reservado em seu nome para
Saigon a bordo do Dumont-Durville. Lá, ficará hospedada por algum tempo no
Continental Palace. Amigos nossos, os Müller, cuidarão de você, aos quais você
entregará esta carta. Boa viagem! Se encontrar o seu marido, volte para nos
ver: minha irmã e eu teremos o maior prazer em recebê-los.
Myriam chorou ao abraçar Léa:

— Que Deus te abençoe, minha pombinha!
O sol inundava a fachada e a escada faunianas da estação Saint-Charles.
Os dois primos empurraram Léa para um táxi que desceu pela Canebière.
Naquela manhã, Marsellie tinha um perfume de cravo. Nada indicava que a
cidade fosse tão antiga quanto Roma: nem uma ruína, nem um monumento,
alguns edifícios datando do Segundo Império ou da III República, cercados ao
longe por colinas e, coroando o conjunto, o ridículo ultrajante de Notre-Dame-
de-la-Garde. No porto, as regateiras ofereciam a sua mercadoria aos gritos.
Grupos de idosos já tomavam licor de anis, sentados no terraço dos pequenos
bares, mastigando azeitonas. Orgulhosas de si, lindas jovens com pesados
fardos na cabeça passavam e, com um movimento dos quadris, afastavam as
mãos bobas dos rapazes de camiseta listrada que vagavam, gingando o corpo,
com um cigarro entre os lábios.
O táxi parou na entrada do cais. O Dumont-Durville já iniciara o
embarque dos passageiros. Soldados carregando as suas sacolas empurravam-
se para subir a bordo. Nathanael e Jean ajudaram Léa a se instalar na ponte.
Só a deixaram quando as amarras foram soltas e continuaram durante um
longo tempo no cais, olhando para o navio que se afastava.
Com os cotovelos no parapeito, aflita, Léa pensou no bebê que
abandonara. Ao deixar Montillac, tivera o pressentimento de que sua ausência
seria demorada e que enfrentaria novos sofrimentos.
Sentiu um arrepio e entrou na sua cabine onde permaneceu trancada
durante quase toda a viagem.

Capítulo 16

— Senhorita Hong, pode me dizer para onde está me levando?
— Até o presidente Hô Chi Minh.
— Pensei que fossem me interrogar primeiro.
— Nossos dirigentes julgaram que um homem recomendado por Louis
Caput e Jean de Sainteny, enviado pelo presidente Vincent Auriol, a conselho
do general Leclerc, não podia ser mau e convinha ouvi-lo.
— Finalmente! Quanto tempo perdido!
— Precisávamos estar convictos de sua sinceridade.
— Em que as condições de hoje se modificaram em relação às de ontem?
— Não sei — respondeu Hong secamente. — Poderá fazer a pergunta ao
Tio em pessoa.
— Sem falta.
O dia transcorria lentamente. François cochilava na proa do barco. Em
breve, a noite chegaria. Por enquanto, o sol emprestava ao mar uma cor
dourada. Hong veio sentar-se a seu lado.
— Ali fica a província onde nasceu o nosso presidente.
— Em Vinh?
— Já sabia?
— E bom não se esquecer que seu presidente esteve na França há menos
de dois anos e os jornais parisienses publicaram a biografia dele nos mínimos
detalhes. Você jáo encontrou?
— Não. Talvez, graças a você, eu consiga essa honra.
Três marinheiros apareceram, nervosos, gesticulando, falando todos ao
mesmo tempo.
— O que dizem?
Hong empalidecera.
— Três juncos se aproximam e se recusam a se identificar.
— O que isso significa?
— Que se trata de piratas.
— Desde a minha infância, sempre sonhei encontrar-me com eles!

— Acho que os seus sonhos de criança vão se realizar mais cedo do que
pensava.
Em meio ao sol poente, as velas avermelhadas dos juncos lembravam as
asas de enormes vampiros prontos a cair sobre a presa. Ouviu-se um tiro; um
dos marinheiros tombou, com um buraco na testa. O segundo deu um grito e
caiu ao mar.
— Dê-me uma arma! — gritou François.
Com a ajuda de varas com ganchos, os piratas rebocaram o barco e
subiram a bordo. Tavernier lutou com os punhos, tentando proteger Hong. A
jovem acabou caindo na ponte. Um dos atacantes pulou em cima dela,
brandindo um facão. Um pontapé de François desviou o golpe mortal. O homem
virou-se, com um ricto nos lábios. Não era vietnamita e nem chinês; tratava-se
de um malaio, cuja roupa limitava-se a uma espécie de short branco rasgado e
uma faixa na testa; sua cartucheira parecia datar do século passado e ele
usava um fuzil Lebel preso às costas.
"Eis um modelo que remonta à época da conquista", pensou François ao
dar outro pontapé no queixo do pirata.
O homem tropeçou, segurando-se na vela. Já ia partir para o ataque
quando foi detido por um punhal, atirado com precisão, que o atingiu na região
do coração. Desabou, com uma expressão de espanto, arrastando a vela atrás
dele.
Tavernier virou-se: só restava Hong.
— Pode trazer meu punhal? Faço questão de não perdê-lo!
Para extrair a arma, foi preciso abrir a mão crispada do malaio.
— Obrigado — disse François ao devolvê-la à jovem.
Os piratas, porém, voltaram à carga e venceram. Com as mãos amarradas
às costas, os sobreviventes foram embarcados no menor dos três juncos e a
embarcação rebocada.
No porão, reinava calor sufocante devido ao cheiro de petróleo e salmoura
que dificultava a respiração. Após soltar as mãos dos prisioneiros, prenderam-
lhes os pés com ferros. O homem que parecia ser o chefe ofereceu chá. Após ele
mesmo tomar duas xícaras, perguntou:
— Para onde estavam indo?
— Este senhor é jornalista, redige uma série de artigos sobre o litoral
vietnamita. Queríamos chegar até Haifong...
— Mentira, vocês não passam de vietminh! ... Mataram cinco dos meus
homens e pagarão por isso! De Saigon, recebemos informações a seu respeito —
acrescentou ele apontando para François. — Foi encarregado de uma missão
junto a Hô Chi Minh. É o que contam em sua cidade natal. Aliás, estamos
perto. Quando devia encontrá-lo?

— Não sei do que está falando — replicou Tavernier.
— Seria bem melhor se respondesse logo; temos meios de persuasão muito
eficazes...
— Não duvido, mas por mais eficazes que sejam, não conseguirão fazer
com que eu diga o que não sei.
— Vamos, senhor Tavernier, não seja teimoso!
Conhecia o seu nome. Era mais sério do que imaginara. Hong achava o
mesmo, pois o seu rosto empalidecera ainda mais.
— Pense bem, senhor Tavernier, temos muito tempo. A noite costuma ser
boa conselheira, como se diz em seu país.
Saiu levando a lâmpada.
— É profundamente desagradável quando os inimigos se dirigem a nós em
nossa própria língua. Que sensação doentia — observou François.
— A mesma coisa quando os inimigos nos impõem a deles — respondeu
Hong.
— Nunca tinha pensado nisso antes... — comentou François pensativo.
O barco avançava ao longo da costa. Algumas luzes escassas revelavam
um porto ou uma aldeia.
De vez em quando, cruzavam com um barco de pescadores. No porão
escuro, Hong adormecera, com a cabeça apoiada no colo de François.
Os demais prisioneiros fumavam em silêncio. O corpo leve da jovem
lembrava-lhe o de Léa quando costumava adormecer no carro pelas estradas
retilíneas dos pampas argentinos. Preciosa e irrisória recordação: o peso de
uma cabeça, o perfume de uma cabeleira... Onde estava aquela mulher?...
Em sua carta, anunciando o nascimento do bebê, ela falava do seu desejo
em vir ao encontro de François. Era bem capaz disso. Tavernier contava com
Sainteny para impedi-la de realizar tal loucura. Sorriu, duvidando da eficiência
do ex-governador da Indochina... Se Léa tomara a decisão de viajar, não havia
nada nem ninguém que pudesse fazer com que mudasse de opinião. O filho,
talvez... Mas François imaginava que Léa era mais mulher do que mãe. Quanta
saudade sentia dela!
Que loucura, a dele, ao se atirar nesse tipo de expedição... François já
tomara parte em tudo! Conhecia a aventura, o perigo... Pobre sujeito, essa
necessidade, além disso, vai acabar contigo! Aliás, parece que já acabou...
Hong mexeu-se, aninhando-se em seus braços. Quanta suavidade no
corpo de uma mulher... Ele adormeceu também, sonhando com Léa.
A crua luz do dia despertou-o. Pelo alçapão aberto, avistava-se o céu claro
devido ao calor. Ele tentou ver as horas; o seu relógio desaparecera. Um após
outro, subiram à ponte para satisfazer as necessidades. Em seguida, deram a

cada prisioneiro uma colher de arroz, um peixe ressecado e uma tigela de chá.
François apreciou o rústico desjejum. Na ponte, Hong conversava com os
seqüestradores.
— Esperam conseguir um importante resgate por sua causa — contou
Hong quando regressaram ao porão, sentando-se perto de François.
— Estão profundamente enganados: não conheço ninguém capaz de pagar
um resgate por mim.
— E o seu governo?
— Não vim para cá oficialmente.
— Sua esposa?
— Como iria saber que me encontro prisioneiro dos piratas do mar da
China?
— As notícias espalham-se depressa, nesta região.
— Talvez, mas daí a chegar à França...
— E seus amigos Rivière?
— Tudo depende da quantia.
— É preciso avisá-los.
— Como?
— Deixe comigo. Abordo, encontra-se um primo do meu pai. Em diversas
ocasiões, este evitou que ele fosse punido com a pena de morte. Tem uma
dívida para com a minha família.
— O que pretende fazer?
— Em primeiro lugar, perguntar para onde estamos indo, se vamos fazer
alguma escala, e, se for o caso, enviar uma mensagem aos Riviêre.
— Você acha que ele aceitará?
— Não tem outra escolha — disse Hong secamente.
Transcorreu mais um dia. Em seguida, atracaram em um pequeno porto.
Durante mais de uma hora, caminharam por trilhas íngremes em meio a densa
vegetação. Finalmente, alcançaram uma aldeia cercada por uma paliçada, com
casas construídas sobre pilotis. Homens e mulheres estavam sem camisa. Os
homens usavam armas.
Com o auxilio de uma escada de bambu, subiram até a provável moradia
do chefe da aldeia.
Mandaram-nos sentar-se em esteiras trançadas com desenhos
geométricos. A bandeja com o chá foi servida. Iniciou-se então uma longa
discussão entre os habitantes da aldeia e os piratas.
— O que estão dizendo?- murmurou François no ouvido de Hong.

— Não consigo entender, falam um dialeto que se parece com o dos
muong, mas é diferente. Acho que se trata de você. O chefe não parece
concordar... Disse que os franceses estão por perto.
— Mas você disse que não entendia...
— Pois é, mas agora ele acaba de se expressar em vietnamita, certamente
para nos avisar... Sim, é isso mesmo: ele não quer a nossa presença aqui, com
medo de represálias por parte dos franceses. Os piratas estão chateados...
— Hong, toi dây' — gritou o chefe dos piratas.
A jovem levantou-se e aproximou-se dos homens.
— Noi voi thang Tây, dông bao cua no o trong xom nay. Nêu no Iam tiêng
dông nao hay môt cu chi nghi ngo nao chung tao se ban ngay. Hiêu chua? May
ra noi voi no!
Hong voltou para transmitir a mensagem. Tavernier acenou com a cabeça,
entendendo de que se tratava.
— Desde quando os franceses se encontram nesta região?
— Há um posto perto daqui. Os soldados costumam comprar suprimentos
com essa gente.
— Seu primo conseguiu avisar meus amigos?
— Sim.
Um pirata interrompeu aquele diálogo.
— Ng noi gi?... Ng không co quyên noi chuyên. Hay dem nhân tudi.
Fizeram com que descessem sem a menor consideração. Pequenas corujas
cinzentas voavam rasantes para cá e para lá. Atiraram Tavernier em uma
palhoça escura como telhado semidestruído.
Ele rolou pelo chão de terra batida coberto de palha. O guarda deu-lhe um
cigarro já aceso que ele fumou com uma sensação de volúpia. Em seguida,
ficou tateando na escuridão. Bateu com a mão em um jarro úmido: água. Tirou
do bolso um comprimido de quinino que engoliu empurrado por fartos goles.
Deitou-se e adormeceu rapidamente, apesar dos grilhões que lhe prendiam os
pés.
Ele foi despertado por gritos e tiros. Uma luz esverdeada penetrava na
palhoça. François abriu a cortina de bambu. Viu mulheres correndo,
carregando uma criança ou um porco preto. Uma delas tombou, atingida por
uma bala entre os ombros. Um ancião que vinha atrás pegou o bebê que ela
segurava no colo. Ouviu-se o — crepitar de chamas. Era preciso sair o quanto
antes. A porta trancada por um enorme cadeado era muito resistente. Restava o
telhado. Tavernier começou pela parte mais baixa; abriu facilmente um buraco
por onde conseguiu fugir. Justo na hora em que seu corpo caiu ao lado do
cadáver da mulher, um dos piratas atirou-se sobre ele com um imenso facão.

Da primeira vez, François evitou o golpe; na segunda tentativa, um corte
profundo lacerou-lhe o peito. O pirata já se aprontava para desferir o terceiro
golpe quando sua cabeça estourou. O corpo permaneceu de pé por um instante,
com o braço levantado, antes de tombar lentamente.
— Acho que foi na hora certa.
Diante dele, erguia-se uma espécie de gigante com o rosto coberto de
fuligem, vestindo o pijama preto dos nhà que, descalço e com o chapéu cônico
na cabeça.
— Rápido, antes que percebam que somos apenas cinco!
— Com todo o prazer, mas não consigo andar — disse Tavernier,
apontando para a corrente em seus pés.
— Afaste as pernas.
François mal teve tempo de obedecer: uma rajada de metralhadora
seccionou os anéis de ferro.
— Toma, segura isso.
Tavernier agarrou as duas granadas lançadas pelo gigante.
"Esse cara é louco!", pensou.
— Tome cuidado com as granadas, cortei as buchas. Assim que caem no
chão, explodem. Antes, os viets tinham dez segundos para atirá-las de volta;
agora, arrebentam na fuça deles.
"Louco de pedra!..."
— Havia uma mulher presa junto comigo, já foi encontrada?
— Rápido, naquela moita!
François lançou uma granada. Três corpos caíram, retalhados.
Os habitantes encontravam-se reunidos na entrada da aldeia, em uma
clareira cercada por arvoredos com flores vermelhas. Mulheres e crianças
permaneciam agachadas entre as raízes de uma imensa figueira. Os homens
eram vigiados por dois soldados vietnamitas trajados e besuntados igual ao
gigante.
— O que vamos fazer com eles, Vanden?
— Doan, veja quem é o chefe.
— Eu sei, já vi o homem no posto: é ele — disse apontando com o cano da
metralhadora para o indivíduo que recebera os piratas na véspera.
— Pergunte se havia uma mulher entre os prisioneiros.
O chefe deve ter entendido, pois iniciou um longo monólogo em sua
própria língua.
— O que é que ele tanto fala?

— Está dizendo que os piratas levaram-na antes do ataque à aldeia.
— Mentira: ninguém deixou a aldeia. Avise que vamos matá-lo se não
contar a verdade.
O outro transmitiu a mensagem, mas o chefe do vilarejo continuou
negando a presença de uma mulher.
— Matem-no! — gritou o gigante.
— Không xin ông!
Uma jovem precipitou-se, com as mãos estendidas, colocando- se entre o
chefe e a arma apontada para ele.
— No dang o duoi hâm, tôi se dat anh dên nhung dung ban cha tôi.
— Fique aí — disse Vanden.
Segurou o braço da moça e mandou que lhe mostrasse o caminho.
Acompanhados por Tavernier, seguiram por uma trilha estreita, passando por
cima dos cipós apelidados de garras-do-diabo. De ambos os lados, compacta, a
vegetação erguia-se como uma parede intransponível. Um forte cheiro de menta
acompanhava seus passos. A moça afastou os galhos de açafrão com flores
amarelas que dissimulavam a entrada de uma gruta. No chão, ardia uma vela
de sebo. Mal conseguiram enxergar uma forma toda encolhida. Empurrando
Vanden, François abaixou-se. Hong, os braços cruzadas sobre o peito desnudo,
respirava com dificuldade. Ele afastou lentamente as suas mãos.
— Seus canalhas!
Os seios de Hong estavam ensangüentados, uma chaga horrenda.
— Ajudem-me a tirá-la daqui.
Em silêncio, Vanden obedeceu.
— Vamos embora. Seu acampamento fica longe?
— A cerca de cinco quilômetros. Pensa em levá-la assim mesmo?
— Sim.
— Vai atrasar a nossa caminhada.
— Tanto pior. Vamos levá-la.
Os cinco quilômetros floresta adentro contaram como cem para François
que sentia uma dor insuportável devido à sua ferida. Hong gemia baixinho. O
sol já ia alto quando chegaram ao posto.
Tavernier entrou logo, deu mais alguns passos e acabou caindo no meio do
pátio.
Ao despertar, encontrava-se deitado em um catre, com um curativo limpo
em volta do peito.
Ergueu-se. Um homem de blusa branca estava a seu lado.

— Não se mexa, meu caro. Tive de costurá-lo, foi um corte feio.
— Onde está Hong?
— Não se preocupe, já tratei dela. Os canalhas, que selvageria! Fiz o
melhor que pude, mas as marcas ficarão para sempre.
— Onde ela está?
— Dormindo, tomou morfina por causa da dor.
— Ah, acordou! Pelo que estou vendo, nosso médico consertou tudo. O
tenente já vem falar com você — disse Vanden surgindo na enfermaria.
— Na noite passada, quando vocês atacaram a aldeia, já estavam a par da
nossa presença?
— Sim, um dos piratas veio nos avisar. Mas sabíamos que se encontravam
na região.
— Como assim?
— Pelo Vietminh.
— O Vietminh?... Não entendi.
— Vocês não se encontravam na companhia de membros do vietminh
quando foram atacados pelos piratas?
— Sim.
— Conseguiram informar os viets da Resistência. Interceptamos um deles
que não criou muitas dificuldades para falar. Tinham ordem de recuperá-los a
qualquer preço. Você deve ser muito importante para eles, Tavernier.
— Sabe meu nome, mas eu não conheço o seu. Como se chama?
— Cabo Vandenberghe.
— É belga?
— Meu pai era flamengo.
— Costuma lutar disfarçado de nhaque?
— Sempre que necessário. Formei um pequeno comando que só opera à
noite. Durante o dia, não tem problema. Os viets costumam atacar ao
anoitecer. Usamos os mesmos métodos que eles. É muito mais eficaz.
Tavernier olhava, divertido, para aquele jovem gigante de nariz grande,
queixo proeminente, olhar frio.
— Faz muito tempo que está lutando?
— Desde a Resistência.
— Nunca foi ferido?

— Sim, nos Vosges em 1945, em Chiem Hoa, no Tonquim, em 1947, e no
mês de janeiro deste ano. E você, onde esteve durante a guerra?
— Fui agente de ligação entre diversos pontos da Resistência,
principalmente no sudoeste, e enviado pelo general De Gaulle à União Soviética
em 1944. Em 1945, entrei em Berlim com os russos.
— Eu gostaria de ter feito o mesmo.
Os dois homens calaram-se, perdidos em seus sonhos de batalhas
passadas, que foram interrompidos pela chegada de um jovem oficial.
— Bom dia, Vandenberghe.
— Bom dia, tenente.
— Bom dia, senhor Tavernier. Sou o tenente Saunier. Fico feliz em ver que
os meus homens conseguiram tirá-lo daquele covil.
— A minha própria felicidade é ainda maior, tenente.
— Sua história é bastante confusa. Pode me explicar o que faz um civil
nessa região?
— Já que todos parecem mais ou menos a par das razões de minha
presença na Indochina, posso lhe contar que fui encarregado, a pedido do
presidente Vincent Auriol, de contactar Hô Chi Minh.
Alguns membros do Vietminh me levavam até ele — pelo menos foi o que
me disseram — quando nossa embarcação foi atacada por piratas.
— Possui uma ordem de missão?
— Não, essa missão não tem nenhum caráter oficial. Esqueci de lhe dizer
meu codinome.
— E você acha que vou engolir essa?
— Confesso que não é fácil.
— Preciso relatar o fato aos meus superiores.
— É o seu dever, mas vão responder que nunca ouviram falar de mim e
receberá a ordem de me prender.
— Talvez você seja apenas um desertor que se juntou ao Vietminh; existem
alguns...
— Pode repetir o que disse, tenente?
— Um daqueles traidores que...
Saunier não conseguiu terminar a frase; Tavernier, apesar de seu
ferimento, deu-lhe um soco no meio da cara. O outro cambaleou.
— Ficou louco!

— Não gosto que me chamem de desertor, ainda menos de traidor! Vamos
acabar logo com isso: se você não confia em mim — e reconheço que há pouca
coisa a meu favor — entregue-me à polícia militar; senão, deixe que eu vá
cumprir minha missão.
Saunier, sem jeito, olhava para Tavernier e esfregava o queixo.
— Está convicto de que conseguirá algo concreto, se por acaso encontrar
Hô Chi Minh?
— Não faço a menor idéia; o general Leclerc também pensava assim. Se
houver uma chance, por menor que seja, vale a pena tentar. No entanto, posso
lhe assegurar que se dependesse de mim, regressaria à França com o maior
prazer!
— Nesse ponto, pelo menos, estamos de acordo... Como ter a certeza de
que...
— Você não pode ter certeza de coisa alguma.
— Vamos entregá-lo ao Vietminh. Se for mesmo um traidor, acabarão com
a raça dele! — sugeriu Vandenberghe.
— Está completamente louco! — exclamou o tenente. — Você sabe muito
bem que não aprecio os seus métodos...
— Claro que sei, tenente, mas eles têm a vantagem de ser muito eficazes.
Saunier levantou os ombros.
— Desculpe-me, tenente — interveio François —, mas a idéia do cabo no
me parece tão tola assim...
— Ah, viu só!
— Cale-se, Vandenberghe. Explique-se, Tavernier.
— A jovem que se encontrava comigo parece ocupar um cargo importante
no Vietminh. Interrogue-a e mantenha-a como refém.
— Podemos interrogá-la, doutor?
— Só amanhã. Com a dose de morfina que tomou, vai dormir horas a fio.
Saunier andava de um lado para o outro, fumando com grande
nervosismo. Parou à frente de François, franzindo atesta, dominado por uma
profunda angústia.
— Não conhece ninguém na Indochina que possa se responsabilizar por
você?
François refletiu e chegou à conclusão de que o testemunho dos Rivière
poderia parecer suspeito às autoridades francesas. De repente, lembrou-se de
um nome:
— Jean Laurent, do Banco da Indochina; ele conhece o meu codinome.

— Já ouvi falar deste homem. Um dos meus tios lutou com ele na
Resistência. Você acha possível que ele se encontre atualmente na Indochina?
— Não sei.
— Descanse agora. Tentaremos contatá-lo.

Capítulo 17

Em qualquer outra circunstância, a chegada em Saigon representaria uma
festa; no entanto, perdida naquele universo estrangeiro, Léa mal conseguia
conter as lágrimas. Muita gente no cais: militares, marinheiros, cules, mulheres
carregando bandejas repletas de alimentos em cestas penduradas nas pontas
de balanceiros, crianças correndo por todos os lados em meio àquela confusão,
cheiros de baunilha, peixe e escapamentos de gás.
Olhou à sua volta, esperando ver François. Homens trajados de branco ou
cáqui roçavam-na a todo instante.
— Senhora Tavernier?
Um jovem asiático de terno imaculado dirigiu-se a Léa.
— Sim...
— Sou Philippe Müller. Meu tio mandou-nos um telegrama. Parece
surpresa: pensou que eu fosse parecido com tio Joseph?
— Não... nem sei o que dizer...
— Minha mãe, irmã dele, casou-se com um rico chinês de Cholon. Durante
vários anos, a sua família recusou-se a recebê-la. Mas o tempo passou. Fiz
meus estudos em Paris. A guerra impediu-me de regressar. Assim que foi
possível, viajei de volta. Nesse meio-tempo, meu pai faleceu. Minha mãe juntou-
se a ele no ano do meu retorno. Pronto: já sabe tudo a meu respeito. Meu boy
está tomando conta de sua bagagem. Vamos, meu carro encontra-se perto
daqui.
Parou diante de um esplêndido Rolls-Royce. Um motorista chinês abriu a
porta.
— Vamos ao Continental.
O suntuoso veículo abriu caminho em meio à multidão, evitando as
inúmeras bicicletas, triciclos e pedestres que atravessavam constantemente o
caminho.
No terraço do Continental, era a hora do aperitivo. A maior parte dos
fregueses eram homens, todos eles brancos. Quando o carro estacionou diante
da entrada do hotel, houve um repentino silêncio.
Todos contemplaram com inveja a luxuosa limusine; foi ainda pior quando
Léa saltou. Fascinados por sua mocidade e beleza, encaravam-na abertamente.
— Os homens costumam olhar assim para as mulheres, em seu país? —
perguntou ela ao companheiro.

— Não para todas elas. Mas você é excepcionalmente linda.
O porteiro recebeu-os demonstrando o mais profundo respeito.
— Seu quarto está pronto, senhora Tavernier. Desejamos uma boa estada
entre nós.
— Obrigada.
— Aceitaria jantar comigo esta noite — perguntou Philippe Müller —, ou
prefere descansar?
— Já descansei e me aborreci bastante durante os últimos vinte dias!
Desejo sair. Aceito o seu convite e agradeço muito.
— Virei buscá-la às vinte horas. Está bem?
— Perfeito. Até breve.
O quarto, enfeitado com lindos buquês de flores, era amplo e fresco. Sobre
a mesa, encontrava-se uma imensa cesta de frutas, a maioria delas
desconhecidas para Léa.
Ela abriu suas malas, preparou um banho no qual deixou cair algumas
gotas de perfume.
Envolta em felpudo penhoar branco, com os cabelos molhados, ela se
deitou na cama e acendeu um cigarro.
— François, estou aqui... — murmurou antes de adormecer.
A campainha do telefone despertou-a. As apalpadelas, tirou o fone do
gancho.
— Senhora Tavernier? O senhor Müller encontra-se à sua espera.
Léa provocou a maior sensação ao atravessar o saguão do Continental com
um vestido de um azul carregado de eletricidade. De smoking branco, Philippe
Müller recebeu-a:
— Vou levá-la ao Sporting. Toda a alta sociedade de Saigon costuma
freqüentar o local. Ali, circulam as últimas notícias a respeito da guerra, os
boatos, as fofocas. Para quem souber ver e ouvir, trata- se de uma preciosa
fonte de informações. Foi lá que ouvi falar do seu marido.
Léa segurou com força a manga do seu paletó.
— O que está dizendo? Ouviu falar de François e não me contou?
— Eu teria esquecido o fato não fosse meu tio, no primeiro telegrama,
pedir para que me informasse a respeito de Tavernier, e obedeci. A última vez
em que ele foi visto, encontrava-se na companhia de uma mulher, em uma rua
mal-afamada de Cholon.
— Mas ninguém desaparece assim, sem mais nem menos!

— Na Indochina, é freqüente. Mas não perdi as esperanças de obter outras
informações. Antes de vir a Saigon, ele viajou para Dalat, à casa de um velho
socialista, Louis Caput. Sei, inclusive, que no dia de sua chegada aqui recebeu
uma mensagem desse homem.
— Onde esteve, em Cholon?
— Foi visto no hotel Le Grand Monde. Faço negócios com o dono do
estabelecimento. A pedido meu, ele investigou o caso. Ficou sabendo que o
mordomo do hotel que atendeu a seu marido sumiu. Em compensação, o
barman lembra-se perfeitamente que seu marido tomou uísque com uma
primeira mulher e, depois, champanha rosado em companhia de uma segunda,
com quem saiu. Essa jovem também desapareceu. Ela pode ter sido
seqüestrada pelos Bin Xuyên.
— O que é isso?
— Uma sociedade secreta que trabalha ora para o Vietminh, ora para os
franceses. O chefe, Bay Vien, é um ex-prisioneiro chamado, com certo exagero,
de dono de Cholon. Trata-se de um homem cruel, perigoso e... inteligente.
Devemos encontrá-lo esta noite. Ele poderá nos dizer o que foi feito do seu
marido. Pronto, chegamos ao Sporting.
Em meio à multidão que se comprimia no bar, havia correspondentes da
imprensa internacional, soldados franceses, velhos colonos, porém nenhum
asiático, exceto os garçons. A chegada de Léa foi saudada por assobios de
admiração.
Um boy guiou-os:
— Senhor Müller, senhorita, por aqui...
Philippe pediu uma garrafa de champanha.
— Müller, meu amigo, apresente-me a senhorita...
— Olá, Adriani. Veio beber no concorrente? Senhora, apresento-lhe o
senhor Adriani, uma das personalidades de Saigon, dono de La Croix du Sud e
do Mirador. Senhora Tavernier...
Adriani beijou cerimoniosamente a mão de Léa.
— Seja bem-vinda, senhora, à nossa querida cidade de Saigon. Permita
que lhe dê um conselho: deveria escolher melhor seus amigos. Müller não é dos
mais recomendáveis.
— Enquanto que o senhor é o melhor de todos!
O corso deu uma risada sonora.
— Isso sim é que é mulher! O que veio fazer em uma região dessas?
— A senhora Tavernier veio se encontrar com o marido.
— Sorte a dele! Espero voltar a vê-la, cara senhora.

Com o copo na mão, Léa olhava ao seu redor com curiosidade.
— Quem são essas pessoas?
— Ali, aquele indivíduo enorme que não pára de se mexer é Lucien Bodard,
correspondente do France-Soii com o seu grupo:
Max Olivier, da AFP, Jenkins, da agência Reuter... Não conheço os demais.
Costumam estar mais bem informados quanto às ações do Vietminh do que o
alto-comando.
— Talvez conheçam o paradeiro de François?
— Já pensei nisso; no entanto, Jenkins, com quem me dou, nunca ouviu
falar do seu marido.
— Tem um cigarro? Esqueci os meus...
— Que marca fuma?
— Philip Morris.
— Igual ao presidente Hô Chi Minh, segundo contam...
Léa tragou a fumaça com certa volúpia. Seu rosto fino inclinado para trás
e os olhos semicerrados transmitiam uma impressão de profunda sensualidade.
— Você é muito bonita — balbuciou Müller.
Ela soltou aquela risada gutural que tanto provocava os homens.
Seu olhar cruzou o do companheiro e o que ela percebeu provocou um
sorriso de sua parte.
— Estou com fome — disse Léa.
— Reservei uma mesa no melhor restaurante da cidade, o Palais de Jade.
Gosta de comida chinesa?

Capítulo 18

Philippe Müller, admirando Léa que comia e manifestava a sua satisfação
com pequenos suspiros de prazer, mal tocou na suntuosa refeição.
— Não agüento mais — disse ela ao pousar os pauzinhos na mesa.
Os garçons aproximaram-se com guardanapos perfumados e pequenas
tigelas com aguardente de arroz.
— Faz muito tempo que não comia tão bem.
— Contudo, a cozinha francesa ainda é a melhor do mundo?
— É, sim, exceto nos períodos de restrições! A guerra acabou, mas por
enquanto nada voltou ao normal. Aqui, vendo tanta fartura, não consigo
imaginar que este país também esteja em guerra.
— Sabe, é exatamente como a França durante a ocupação: o mercado
negro funciona às mil maravilhas.
— Você me disse que iríamos encontrar alguém que talvez tivesse
informações sobre o meu marido.
— Sim: Bay Vien. Pode crer que ele está a par da nossa presença aqui. Só
aparecerá quando julgar conveniente. Temos de esperar, a não ser que você
prefira ir ao Grand Monde, o presente envenenado do almirante d'Argenlieu a
Saigon?
— De que presente está falando?
— Pouco antes de sua partida, o almirante autorizou a abertura de um
complexo de jogos e tráficos de todo tipo, semelhante ao Grand Monde de
Shangai. Tanto aqui como lá, são os chineses de Macau que mantêm o controle
de tudo. Você não acha estranho que um monge, membro da Resistência, com
uniforme de oficial da marinha, tivesse dado a sua bênção a uma empresa de
perdição?
— Talvez nem soubesse de que se tratava.
— O almirante? Você está brincando! Estava a par de tudo. A renda diária
do Grand Monde trazia um lucro de cem mil piastras ao Alto Comissariado.
Além do mais, ele encontrou um meio de se manter informado a respeito das
perversões de cada um...
— Não vejo a hora de conhecer esse antro do vício... Mas quem é o tão
famoso Bay Vien?
— Levaria horas para lhe explicar. Nasceu no início do século em Cholon,
o bairro chinês de Saigon, exatamente onde estamos agora. O pai, um mestiço

chinês, era um importante chefe da ralé, o patriarca de uma sociedade secreta,
Nghia Hoa, o que significa Justiça e Concórdia . Era considerado justo e
valente. Aos dezesseis anos, o filho abandonou a família. Passou a viver de
roubos, extorsões de fundos, ficou preso durante meses, e retomou os seus
negócios. Como líder de um pequeno bando, assegurava a proteção a
companhias de ônibus, cobrava taxas sobre os jogos e as brigas de galos. Tinha
uma participação no lucro de cabarés, restaurantes, destilarias clandestinas e
até de uma empresa de táxis. Viveu na maior fartura até 1936, quando foi
detido por assalto à mão armada. Condenado a doze anos de prisão e mandado
para a penitenciária de Poulo Condore, conseguiu fugir em 1940, após a quinta
tentativa. Detido novamente e preso em Saigon, foi libertado pelos japoneses
em 1945. Desde então, conheceu uma fulgurante ascensão. Com os demais
fugitivos, assaltantes de Binh Xuyên, juntou-se ao Vietminh e lutou contra os
homens do general Leclerc. Em 1946, foi eleito comandante-em-chefe das
forças Binh Xuyên, sob as ordens do terrível Nguyên Binh. Mas as relações
entre os comunistas puros e duros do vietminh e esses fora-da-lei são as piores
possíveis... Bay Vien, cujo nome verdadeiro é Lê Van Vien, e que reina
atualmente sobre Cholon, não consegue mais suportar a autoridade de Nguyên
Binh. Até o momento, o fato de pertencer a sociedades secretas deu-lhe uma
certa proteção. Em Saigon, corre o boato de que ele estaria prestes a se aliar
aos franceses...
— Que indivíduo mais estranho! Pelo modo como você fala dele, até parece
que sente uma certa admiração para com este homem!
— Sabe, qualquer jovem chinês de Cholon, mesmo mestiço, não pode
deixar de experimentar um sentimento de simpatia em relação a esse tipo de
aventureiro.
— Um aventureiro? Você quer dizer um bandido, isso sim! Ainda bem que
não assassinou ninguém...
— Isso nunca foi provado, mas suspeita-se de que ele tenha cometido
cerca de dez homicídios - precisou Philippe com voz suave.
— Só isso! E é este o tipo de homem que você quer me apresentar?
— Sim, pois é o único capaz de lhe trazer algum tipo de auxilio.
— Já que é assim... — suspirou Léa.
— Podemos ir quando você quiser.
— Muito bem, então vamos! Não será a primeira vez que enfrento o perigo!
O ar quente da noite envolveu-os. Léa segurou o braço do companheiro.
— Se não for muito longe, prefiro caminhar.
— Como quiser; o carro virá atrás de nós.
A rua dos Marinheiros estava repleta de gente e a situação tornava-se
ainda pior na entrada das casas de jogo ou das boates como o Arc-en-Ciel, o

Kim Son, o Vau Cam ou o Grand Monde. As pessoas espremiam-se diante das
portas laqueadas. Guardas armados vestidos de short, camisa e meias brancas
vigiavam a entrada. Jovens lacaios e as dançarinas chamavam os fregueses.
Conheciam Philippe Müller e abriram caminho para os dois em meio à
aglomeração. Léa olhava, fascinada, para toda aquela multidão multicolorida,
luxuosa ou miserável, que circulava diante das lojas onde se encontrava à
venda tudo o que se pudesse imaginar.
As feiras da Idade Média deviam se parecer com esse tipo de espetáculo,
pensou Léa. Havia de tudo: malabaristas, vendedores de sopa ambulantes,
mendigos, criancinhas despidas, mulheres lindas, velhas com dentes
laqueados, soldados, marinheiros, cães, pássaros engaiolados, vendedores de
amuletos, chá, jornais, livros, cartões-postais, relógios, jóias, inúmeras mesas
de jogo pintadas de verde, teatros de fantoche, dois cinemas que só
apresentavam westerns e filmes chineses, ringues, bandas. O "pátio das mesas
populares" ficava separado do cabaré por uma grande parede, uma boate
luxuosa com uma pista de dança única no mundo: cem metros por trinta de
assoalho colocado sobre molas! Mulheres maravilhosas, com vestidos de seda,
ondulavam ao som da orquestra de Guy Paquinet de smoking branco, com um
cravo vermelho na lapela. De lá, era possível chegar diretamente à sala dos
jogos franceses: ronda, bacará, roleta e outros. Nos fundos do grande pátio,
longe do barulho das mesas populares, situava-se o clube privado, um pavilhão
de madeira à prova de balas: a madeira de lei ocultava o concreto, as paredes
eram de vidro blindado opaco. Tratava-se do território dos jogadores de peso de
Cholon, banqueiros, armadores, ricos negociantes. Poucos brancos
costumavam aparecer: as apostas eram muito altas, os ganhos e as perdas
chegavam a dezenas de milhões.
Sem saber de nada, Léa seguia exatamente o mesmo trajeto que
François...
Um chinês de ombros largos, exalando uma impressão de força e agilidade
em seu impecável smoking branco, aproximou-se do casal. De perto, aquela
impressão de poder tornava-se ainda mais intensa. Sob as grossas
sobrancelhas, os olhos muito negros, ligeiramente repuxados, encararam Léa.
— Ba co phai la Ba Tavernier không? (Senhora Tavernier, imagino?) —
perguntou ele ao se inclinar.
— Senhora, apresento-lhe Bay Vien — disse Philippe. — Ele não fala
francês, vou servir de intérprete.
— Bom dia, senhor. Poderia, ao que parece, me dar notícias a respeito do
meu marido?
— Você é muito impaciente... É um traço tipicamente francês. Aqui,
encontramo-nos na Ásia e as coisas não costumam acontecer dessa maneira.

— Claro, mas estou certa de que uma mulher, seja ela vietnamita ou
francesa, revelará a mesma impaciência para saber o que foi feito de seu
marido. O senhor não acha?
Bay Vien olhou para Léa com ar pensativo, vagamente irônico. Passou a
mão nos cabelos fartos, jogando para trás a cabeça de testa larga e alta.
— As mulheres vietnamitas e francesas têm pelo menos algo em comum.
Venha sentar-se, vou lhe contar tudo o que sei.
Instalaram-se em uma mesa afastada. Bay Vien pediu champanha.
Quando a bebida chegou, ele começou a falar; Philippe traduzia aos poucos.
— Seu marido esteve aqui. Saiu em companhia de uma dançarina
chamada Rose. Essa mulher trabalha para o vietminh e sabemos que o seu
esposo desejava encontrar-se com o presidente Hô Chi Minh. É possível que
essa jovem tivesse sido encarregada de levá-lo até ele. Seu marido foi conduzido
a bordo de um junco que se dirigiu para o Norte. Em pleno mar, os passageiros
trocaram de embarcação. O senhor Tavernier se achava entre eles. O resto é
bem mais confuso. Parece que alguns pescadores encontraram uma
embarcação parcialmente incendiada onde havia um morto.
Outros pescadores acolheram marinheiros cujo barco afundara. Outros
ainda afirmam que um grupo de bandidos atacou um junco ao largo da costa.
Mandei procurar pelos marinheiros para interrogá-los.
— Por que está fazendo tudo isso?
— Para ser gentil com meu amigo Philippe Müller e com uma linda mulher.
— Em sua opinião, qual a versão mais aceitável?
— Todas são. Seu marido pode ter sido seqüestrado por bandidos que vão
pedir um resgate, o que freqüentemente costuma acontecer no mar da China.
Ou então o Vietminh mandou que o seqüestrassem, temendo uma traição.
Uma encantadora chinesa inclinou-se e sussurrou algumas palavras no
ouvido de Bay Vien.
— Noi voi no toi Day. (Mande-o se aproximar.) — respondeu o dono do
Cholon.
Um rapaz, bastante alto para um vietnamita, bonito, de ar insolente,
aproximou-se da mesa.
— Apresento-lhes um dos meus auxiliares: Kien Rivière.
— Rivière? — murmurou Léa.
— Sim, senhora. É filho daquele amigo do seu marido, recentemente
falecido em Hanói.
— Isso mesmo. Você é o caçula... Boa noite, senhor. O que sabe a respeito
de François?

— Ele foi seqüestrado por bandidos, junto com três importantes membros
do Vietminh. O resgate desses três está sendo negociado e não deve apresentar
muitas dificuldades. Em compensação, no que diz respeito a François, a coisa
se complica bastante. Os bandidos não conseguem entrar em acordo sobre o
valor do resgate.
— Se for só isso, basta acrescentar cem mil piastras — observou Bay Vien.
— Seria fácil se Tavernier não se encontrasse em mãos de Pham Van Tac.
Sabe que se trata de um louco. Só aceita negociar com o alto comissário em
pessoa!
— As negociações já se iniciaram?
— Não.
— É melhor assim. Você pode contatá-lo com rapidez?
— Sim, meu barco está ancorado numa enseada da baía de Ha Long,
vizinha à dele.
— Vá para lá hoje mesmo. Meu avião encontra-se pronto para decolar. O
piloto te deixará em Haiphong.
— Também vou! — exclamou Léa.
— Impossível, é muito perigoso! — interveio Philippe.
— Não importa. Ou também vou ou conto tudo ao alto comissário!
— Que loucura, não posso aceitar! Meu tio pediu que eu tomasse conta da
senhora, sou responsável por sua segurança.
— Caro Philippe — disse Léa com suave firmeza-.-, agradeço sinceramente
a sua preocupação, mas sei perfeitamente o que devo fazer. Já tomei a minha
decisão, nada me fará mudar de idéia. Antes de mais nada, preciso passar no
hotel para trocar de roupa.
Bay Vien levantou-se.
— Desejo-lhe o maior sucesso. Conto com você, Kien, para me manter a
par dos acontecimentos. Lembre-se de que nossa reputação está em jogo. Seja
inflexível. Precisa de mais alguma coisa?
— Está tudo em ordem.
— Senhor Müller, leve a senhora Tavernier ao Continental e depois ao
aeroporto.
Completamente desamparado, Philippe aquiesceu.
— Senhora, espero ter o prazer de voltar a encontrá-la em breve.
— Obrigada, senhor. Eu também.
No hotel, Léa arrumou uma pequena sacola, vestiu calças compridas, um
pulôver de algodão preto e sandálias.

Assim, ela fica ainda mais bonita, pensou Philippe ao apanhar a sacola.
— Continua com essa louca idéia de querer viajar? — perguntou.
— Mais do que nunca! Não se preocupe, tudo vai dar certo.
O motor do pequeno avião já estava ligado quando chegaram ao aeroporto.
Kien Rivière aguardava Léa na passarela.
— Nossa viagem vai ser das mais agradáveis, o tempo está excelente.
— Obrigada por tudo, Philippe. Assim que for possível, entrarei em contato
com você.
Philippe Müller continuou observando o céu escuro e estrelado muito
tempo depois do aparelho ter decolado.
A bordo, o ruído era tão forte que se tornava impossível trocar duas
palavras. Léa, em sua roupa leve, tremia de frio. Kien deu-lhe um cobertor de
cheiro repulsivo, mas cujo calor foi muito bem- vindo. Léa adormeceu com a
testa apoiada nas costas do companheiro.
Amanhecia quando aterrissaram em Haiphong. Um carro encontrava-se à
espera e levou-os ao porto. Ali, só havia ruínas, sucata enferrujada, montes de
imundícies.
— Esta é a obra dos franceses — disse Kien apontando para os escombros.
— Ng muôt tô pho không? — perguntou uma garotinha carregando no
ombro um balanceiro em cujas extremidades encontravam-se penduradas
panelas fumegantes e vasilhas.
— Vâng, hai tô.
A menina agachou-se, colocou a carga no chão e encheu cuidadosamente
as tigelas de sopa.
— Tem um cheiro bom — comentou Léa.
Kien agachou-se perto da vendedora para comer. Léa fez o mesmo. A sopa,
além do cheiro agradável, tinha um sabor delicioso.
— Gostaria de tomar mais um pouco — disse Léa estendendo sua tigela.
Com um lindo sorriso, a menina voltou a enchê-la.
Satisfeita, Léa levantou esticando o corpo.
— Essa posição não é das mais confortáveis!
— Vai acabar se acostumando. Ao contrário, ajuda a relaxar.
— Tomara que sim, mas prefiro uma boa poltrona!
— Vamos, nosso barco já está pronto para partir.

Ele a ajudou a subir a bordo. Sentada na proa, os joelhos entre os braços,
Léa viu surgir diante dos seus olhos a paisagem única no mundo da baía de Ha
Lang, a respeito da qual François já lhe falara com tanta emoção.
"Você desejava tanto me mostrar este lugar, meu amor, e agora estou aqui,
sozinha, procurando por ti..."
Uma ligeira névoa flutuava sobre o mar, agarrando-se às pontas dos
abrolhos que afloravam à superfície. A bordo dos juncos com as velas fechadas,
os pescadores acenavam com a mão; crianças mergulhavam, apostando corrida
com o barco durante alguns instantes. Uma embarcação aproximou-se,
carregada de frutas e suprimentos diversos. Kien comprou uma melancia,
algumas papaias, doces embrulhados em folhas de bananeira, assim como um
chapéu cônico com o qual ele cobriu a cabeça de Léa. Assim, ela parecia uma
jovem vietnamita.
— Agora, você está protegida contra o sol e a chuva. Já vamos chegar perto
da enseada onde se encontra o meu junco.
— Então, fica perto do local onde François está?
— De fato, não é longe. Só lhe peço uma coisa: seja como for não se meta,
além de pôr tudo a perder poderia ser presa também.
As mulheres brancas são muito mais valiosas do que os homens, em caso
de troca, a menos que os bandidos fiquem com elas para seu uso pessoal...
— Está dizendo isso para me assustar!
— Não. Agora, silêncio: chegamos.

Capítulo 19

Com suas velas abaixadas, um junco com a pintura toda lascada
balançava-se na enseada. Um marinheiro zarolho deu a mão a Kien Rivière que
pulou para a ponte.
"Parece um romance de Claude Farrère ou Jean d'Esme, só falta a perna
de pau", pensou Léa.
— Patrão, que bom vê-lo por aqui. Já estávamos enferrujando a bordo.
— Eu também, meu velho Dragão, estou feliz por me encontrar com vocês.
Está tudo bem? Já embarcou tudo o que lhe pedi: alimentos, armas?
— Está tudo em ordem, patrão, pronto para zarpar.
— Muito bem. Acomode esta senhora em minha cabine, e veja que não lhe
falte nada.
— Ela vai ficar com a gente?
— Sim. Tem alguma coisa contra?
— Não, capitão, mas uma mulher a bordo nunca é bom. É sempre uma
fonte de aborrecimentos.
— Pare com isso, seu velho misógino! Ela está aqui a pedido de Bay Vien.
Esse nome produziu um efeito mágico. O marinheiro zarolho pegou logo a
sacola de Léa.
— Por aqui, senhora...
Léa deteve-se na escada, dominada pelo contraste entre o aspecto externo
do barco, imundo e deteriorado, e o interior que ela descobrira. Biombos
chineses enfeitavam as paredes da coxia da embarcação onde espessos tapetes
abafavam os passos. Lanternas com abajures de seda vermelha oscilavam
lentamente, suavizando a claridade.
"Parece as portas do inferno", pensou Léa, teatral.
Uma divisória deslizou silenciosamente sobre um trilho. O aposento no
qual a jovem penetrou lembrava a caverna de Ali Babá. Por toda parte, uma
profusão de tapetes, cortinas de seda bordada, móveis com incrustações de
pedras e madrepérola, cofres supostamente repletos de jóias e baixelas de ouro.
Frente a frente, um leito alto esculpido em madeira escura, coberto de
almofadas finíssimas e um buda de olhos cerrados, com uma surpreendente
expressão de suavidade no rosto. A sua volta, ardiam bastonetes de incenso. De
cada lado da cama, mesinhas baixas sobre as quais se encontravam bandejas
de frutas e alimentos variados. Em um balde de prata, uma garrafa de

champanha com cubos de gelo. Léa lembrou-se do estranho apartamento onde
costumava encontrar-se com François durante a guerra; o champanha também
fazia parte do cenário... Essa recordação trouxe lágrimas aos seus olhos.
O marinheiro olhava para ela com tanta intensidade, apesar de seu único
olho, que Léa sentiu-se irritada.
— O que está esperando? Pode deixar a minha bagagem.
Sem deixar de devorá-la com o olhar, ele obedeceu.
Entretanto, continuava parado no mesmo lugar.
— Você é tão bonita... O patrão tem muita sorte!
'Pobre coitado", pensou Léa. "Com essa cara, não deve conseguir muitas
namoradas."
— Como é, Dragão, está fazendo o quê? Suba para a ponte e dê ordem
para içar a vela. Será que ele a incomodou?
— Não, obrigada, O lugar é suntuoso.
— Considere-se em sua própria casa. Se quiser tomar um banho, é por
aqui...
— Com muito prazer. Já tem alguma notícia a respeito de François?
— Já, Pham Van Tac conduziu-o até o continente. Meus informantes estão
tentando saber para que aldeia foi levado.
— O que vamos fazer?
— Esperar.
— Esperar! Mas não quero esperar, tão perto do alvo!
— Não temos escolha, e aliás nem sabemos se estamos perto do alvo. Aqui
entre nós, o futuro é muito incerto. Hoje estamos aqui mas, amanhã, aonde
iremos? Vou aproveitar esse tempo vago para lhe mostrar a baía de Ha Long.
Meu pai e François gostavam muito daqui. Para mim, trata-se de um lugar
onde me sinto livre, protegido pelo dragão que está sempre cochilando no fundo
das águas.
Vou lhe mostrar aspectos da baía que seu marido nem conhece, grutas
onde, há mais de mil anos, reúnem-se todos os bandidos e onde são enterrados
os mais valentes, praias virgens ao abrigo dos olhares curiosos, enseadas
ocultas onde a água é mais transparente que o vidro...
— Ótimo, mas vai demorar muito? — interrompeu Léa com certa
impaciência... O rapaz referia-se ao local com a mesma admiração de François.
Seja como for, ele oferecia a Léa todos os seus tesouros e era essa a sua
reação!

— Vai demorar o tempo que for necessário — respondeu em tom brusco e
com certo desprezo. — Troque de roupa. Naqueles baús poderá encontrar
vestidos como você nunca viu iguais!
A sós, Léa sentiu um arrepio. A fisionomia do rapaz assustara-a
profundamente. O barco começou a vibrar. Lentamente, a costa foi se
afastando. Um sentimento de pânico tomou conta da jovem. O que estava
fazendo aqui com esse indivíduo tão estranho e aqueles marinheiros parecendo
mais bandidos? Philippe Müller tinha toda a razão, que loucura!
O principal era não se entregar ao pânico. Cativar Kien Riviêre,
tranqüilizá-lo, obrigá-lo a falar.
Enquanto pensava, Léa despia-se. Atrás de um biombo, Kien observava
todos os seus gestos. Ao vê-la nua, sentiu forte desejo que conseguiu reprimir.
Entretanto, não pôde evitar um pequeno ruído na divisória. Léa estremeceu e
cobriu-se com a primeira roupa que encontrou. A seda provocou uma suave
sensação de frescor em sua pele. Olhando à volta, tentou adivinhar de onde
viera aquele barulho. Não ouviu mais nada. Léa soltou o pano com que se
protegera.
O banheiro era de um luxo surpreendente: as torneiras de ouro, a
banheira feita de mosaicos amarelos e verdes, as toalhas de brancura
imaculada; nas prateleiras, diversos frascos de perfumes e óleos finíssimos. Ela
abriu as torneiras, prendeu o cabelo enquanto se admirava no imenso espelho.
Ao ver sua imagem, sorriu de satisfação. O corpo voltara a ficar esbelto, os
seios fartos realçavam a cintura fina. Os mamilos endurecidos estavam
doloridos. Os pequenos lábios de Adrien sabiam como acalmar aquela
sensação.
"Meu bebê, como sinto a tua falta! ..."
Léa deu de ombros; não era hora para sentimentalismos. Fizera a sua
escolha, nada a impediria de ir até o fim e trazer de volta o pai de seu filho.
Enxugando as lágrimas com um sentimento de raiva, entrou na banheira e
despejou na água algumas gotas de uma essência de Guerlain. O ar encheu-se
de um perfume de musgo e rosa. Lentamente, seu corpo relaxou, alegres
recordações tomaram conta de sua mente.
Quando Léa saiu do banho, a água estava quase fria; ela devia ter
adormecido. Agasalhada no penhoar, voltou ao quarto, à procura dos trajes
mencionados por Kien. No primeiro baú, encontrou sapatos de feltro bordado;
no segundo, chapéus guarnecidos com fitas compridas; no terceiro e no quarto,
finalmente, os famosos vestidos. Era um verdadeiro sonho feito de brilhos
coloridos, cada roupa mais linda do que a outra. Léa espalhou tudo à sua volta,
incapaz de se decidir.
— Quer a minha ajuda?

Kien entrara no aposento sem que Léa percebesse, entretida com aquele
espetáculo. Ele usava um suntuoso traje de mandarim.
— São todos maravilhosos, não sei escolher.
— Vista aquele, cor de marfim; os bordados são muito finos.
— Muito bem. Agora saia, por favor.
Ele se inclinou e deixou o aposento.
O modelo parecia ter sido concebido para Léa. Era um vestido chinês de
gola alta, aberto do lado.
Com os grampos compridos que encontrou em uma almofada, prendeu os
cabelos para cima. Assim, lembrava uma princesa oriental. Bateram à porta.
— Entre.
Um rapazinho vestido de branco trouxe uma pesada bandeja.
— O capitão mandou perguntar se pode entrar.
— Pode sim — respondeu Léa com certa ênfase.
Instantes mais tarde, Kien voltou ao aposento. Com aquele traje de
mandarim, sua beleza tornava-se ainda mais ambígua. A boca de lábios
túrgidos lembrava a de uma mulher, os olhos com cílios intermináveis pareciam
maquiados. As mãos finas e ao mesmo tempo fortes, onde brilhavam vários
anéis, estendiam-se para Léa. Profundamente perturbada, a jovem recuou.
— Sou eu quem a deixa assustada?
Não, fez Léa com a cabeça, surpresa com o desejo que lhe invadira o corpo.
Sentou-se afastada dele, em uma poltrona alta. Quando Kien foi pegar a garrafa
de champanha, seu traje roçou o joelho de Léa. Ela estremeceu da cabeça aos
pés, dominada por uma languidez que a deixou completamente inerte.
"Tomara que ele não repare",pensou, enquanto segurava a taça que Kien
lhe ofereceu. Tomou tudo de um só trago. Atento, ele voltou a servi-la.
— Tem um cigarro?
— Sim — respondeu ele oferecendo um estojo de ouro — Philip Morris. São
os que você fuma?
— Sim — murmurou Léa.
Fechou os olhos ao acender o cigarro com a chama que ele lhe estendia.
Ambos fumaram calados durante alguns instantes.
— Gosta de música chinesa?
— Não conheço.
Ele deu corda em uma vitrola que Léa não havia notado. Uma voz feminina
invadiu o quarto.

— Trata-se de uma das maiores cantoras da China. Gosta?
Léa não encontrava beleza alguma na voz que soava fanhosa, assim como
nas bizarras sonoridades que a acompanhavam.
— Gosta? — voltou a perguntar Kien quando o disco parou.
— Não muito...
— Entendo. Vocês, brancos, são incapazes de apreciar esse tipo de
música. Não passam de bárbaros.
Quem ele pensava que era?
— E você, será que pode apreciar a música de Mozart, Bach, Chopin?
— Esqueceu que sou meio branco!
De fato, ela nem pensara nesse detalhe. Mas ele era tão pouco europeu...
— Neste caso, eu gostaria de ouvir Mozart.
Os primeiros compassos da Sinfonia Júpiter invadiram o barco. Léa, de
olhos cerrados, deixou-se levar pela música. Estava em Montillac, no escritório
do pai, ouvindo-a, aninhada em seus braços.
Nem tentou reprimir as lágrimas.
Kien a fitava. Pela primeira vez, experimentava a necessidade de proteger
alguém, demonstrar ternura. Como ela parecia frágil! Por que Tavernier
abandonara essa mulher? Ele saberia protegê-la, fazê-la feliz. Descobriu, em
seu interior, imensa generosidade, desconhecido desejo de se dedicar a outrem.
Agachou-se e segurou as mãos de Léa. Ela não reagiu.
— Não chore, vou ajudá-la. Se for preciso, lutarei com Pham Van Tac e
trarei François de volta para você.
Por entre os cílios abaixados, Léa olhava aquele belo rapaz tentando
consolá-la. O que ela descobriu era muito estranho: sentia-se ao mesmo tempo
assustada e atraída por Kien. Por um triz confiaria nele, embora dele emanasse
um quê de violento, cruel e perverso. Léa conhecia a violência, mas a crueldade
e a perversidade, isso não. Bateram à porta.
— Venham, a refeição está pronta.
Ela se levantou, enxugando os olhos disfarçadamente. Sobre uma mesa
coberta por uma toalha finíssima, o rapaz arrumava bandejas de ouro e prata.
— Deseja continuar tomando champanha ou prefere vinho?
— Champanha, por favor.
— Só temos frutos do mar, espero que goste.
Apesar de sua angústia, Léa gostou de tudo e apreciou o jantar.
— Seu cozinheiro é maravilhoso.

— Sim, você o conhece, é Dragão.
— Dragão? — disse Léa colocando na mesa os pauzinhos que seguravam
um camarão empanado com um molho perfumado e bastante apimentado.
— Ele foi chefe de cozinha a bordo de um transatlântico francês. Após uma
escala em Haiphong, resolveu ficar na Indochina. Abriu um restaurante que
logo se tornou muito conhecido, mas a sua paixão pelo jogo pôs tudo a perder.
Seus credores venderam- no a um bandido famoso de quem o comprei há
alguns meses.
Durante um combate, ele salvou a minha vida. Foi quando eu lhe devolvi a
liberdade; mas preferiu permanecer comigo. Você pode comer sem receio. Ele só
serve produtos da melhor qualidade.
Mais tranqüila, Léa experimentou cada prato e bebeu bastante.
— Recebi discos de Paris. O que gostaria de ouvir? Charles Trenet, Edith
Piaf, Georges Ulmer, Line Renaud...
— Charles Trenet.
A voz do seu cantor preferido, quando adolescente, invadiu a sala:

Rever Paris
Uma breve estada de um mês
Rever Paris
E me encontrar em casa
Sozinho sob a chuva
Em meio à multidão das grandes avenidas
Que alegria infinita
Poder caminhar assim ao acaso...

Os olhos de Léa encheram-se de lágrimas.
— Eu não conhecia esta canção — disse com uma entonação de menina.
— Acaba de ser gravada. Desculpe-me, eu não queria entristecê-la.
— Não foi nada, mas só de ouvir cantar Paris, tão longe da França...
— Entendo... Venha repousar.
Dócil, Léa deixou que Kien a levasse até o leito elevado onde ele a deitou.
Colocou sob a sua cabeça uma pequena almofada redonda. Em uma bandeja,
perto da cama, encontravam-se todos os apetrechos de quem fuma: cachimbos
compridos, uma lamparina com o pavio aceso, uma espécie de faca, finos
estiletes de aço, potes de faiança, de marfim e diversos pequenos instrumentos.

Kien pegou um cachimbo de prata com o fornilho de porcelana branca.
— Veja como é lindo! É muito antigo e precioso. Seu tubo é fino para que
não fique muito pesado nas mãos do fumante. Em todo o seu comprimento, o
artista esculpiu motivos chineses maravilhosas.
Olhe só, homens e mulheres enredados: os homens são lavradores ou
piratas, corteses e impassíveis; as mulheres, jovens de Pak-Hoi, Nau-Chau ou
Hainan; sua pele suave brilha como cetim cor de âmbar. Ali, o nó apresenta
uma saliência de prata maciça talhada em forma de rato.
— Sim, é lindo — disse Léa reprimindo um bocejo.
Kien abriu um dos potes no qual mergulhou a ponta de um estilete.
Retirou uma gota espessa de uma espécie de líquido que lembrava mel e
colocou-a sobre a chama para aquecê-la: ela inchou, contorceu-se e
transformou-se em uma bolha esférica; Kien deu-lhe forma cônica, enrolando-a
sobre a plataforma da lâmpada, e introduziu-a no fomilho de porcelana.
Deitado ao lado de Léa, com a bandeja entre eles, aproximou o fomilho virado
sobre o vidro da lamparina, aspirou-o lenta e profundamente e ofereceu o
cachimbo a Léa. A primeira baforada pareceu-lhe insossa.
— É ópio? Não tem gosto, prefiro tabaco.
— Não seja tão impaciente, continue fumando.
Após o terceiro cachimbo, ela experimentou uma espécie de serenidade, de
alegre relaxamento; tinha a impressão de flutuar em um banho gelado que lhe
aliviava o corpo: dentro dela, escorria a água de uma fonte que a fascinava. Os
sons amplificavam-se: o marulho contra o casco do junco, o roçar de um tecido,
o zumbir de um inseto, um simples sussurro...
Após o sexto cachimbo, Léa abandonou o próprio corpo, sobrevoou mares,
montanhas, desertos, cidades, juntando-se a François, que lhe estendia os
braços. Perto dele, uma criancinha a fitava. Suas mãos soltaram o cachimbo.
— François — murmurou ao adormecer.
Kien cobriu-a com uma manta leve. Durante muito tempo, permaneceu ali,
contemplando-a à luz da lâmpada, feliz por vê-la mergulhada no sono que
trazia o esquecimento. Em seguida, começou a fumar vários cachimbos e
adormeceu sereno, com uma das mãos sobre o corpo de Léa.
Uma violenta enxaqueca martelava a cabeça de Léa. Com a boca amarga,
engoliu a saliva com dificuldade e endireitou-se. A seu lado, Kien parecia um
garoto amuado. O que estavam fazendo, tão próximos um do outro? Ela tentou
se lembrar, mas o esforço era muito grande e lhe acentuava a dor. Levantou-se,
foi até o banheiro; tomou um copo de água da garrafa e escovou os dentes.
Despiu o traje chinês e abriu a torneira do chuveiro. Lentamente, voltou à
realidade.

Agasalhada no penhoar, com os cabelos encharcados, ela foi até a ponte. A
claridade ofuscante obrigou-a a fechar os olhos. Dragão aproximou-se,
carregando uma bandeja.
— Beba isso, vai lhe fazer bem.
O chá fervente devolveu-lhe toda a lucidez.

Capítulo 20

Uma semana mais tarde, François e Hong, escoltados por Vandenberghe e
seu comando, deixaram o posto francês durante a noite. Contrariando todas as
expectativas, ordens provenientes de Saigon mandavam deixar que Tavernier
encontrasse o Vietminh. O grupo de resistentes mais próximo aceitou a tarefa.
Durante mais de duas horas, caminharam em silêncio através dos arrozais.
Hong estava exausta; teria caído sem o auxilio de François.
— Vamos descansar — murmurou ele.
— Estamos quase chegando — disse Vandenberghe.
— Ela não agüenta mais.
— Doanh, Minh, continuem andando à nossa frente.
Os dois vietnamitas desapareceram em meio à escuridão. Uma brisa leve
fazia estremecer os talos de arroz.
— Não estou gostando desse silêncio — murmurou o flamengo.
— Qual a razão do seu temor? Não fizemos um acordo com eles? —
perguntou Tavernier em voz baixa.
— Sim, mas estou desconfiado. Só esperam uma oportunidade para nos
capturar. Eles já suportaram tanta coisa por nossa causa! Daí, com ou sem
acordo... Cale-se! — disse ele de repente.
Fez um gesto para que mergulhassem na água. Tarde demais. François
reagiu primeiro: pulou atrás de um pequeno dique, com o punhal na mão.
Ouviu-se um estertor que foi logo abafado.
Vandenberghe virou-se e enfiou a faca no peito de outro agressor.
— Cuidado!
O tiro de Tavernier deteve o ataque de mais um viet que tombou na água,
brandindo seu facão.
— Obrigado — disse simplesmente o cabo.
— Agora estamos quites. Você acha que tem mais?
— Não, vi dois fugindo. Vamos adiante, é perigoso ficar aqui. É você,
Minh?
— Sim, voltei quando ouvi o tiro. Foram atacados?
— Matamos três, dois fugiram.
— Os canalhas! Foi uma armadilha.

— Não obrigatoriamente. Onde está Doanh?
— Negociando com o chefe. É primo dele.
Finalmente, a terra firme apareceu. Uma espécie de ilha no meio dos
arrozais, com algumas tendas para abrigar os homens cansados. Hong deixou-
se cair, gemendo de dor. Tomaram com gratidão o chá oferecido por uma jovem.
Agachado perto do chefe Vietminh, Vandenberghe bebia calado.
— Não respeitou o seu compromisso — acabou dizendo.
— Lamento profundamente, pode acreditar. Aqueles homens agiram por
conta própria. Serão castigados.
— Para três dentre eles não será necessário.
O rosto do vietnamita permaneceu impassível.
— Como podemos ter certeza de que o senhor Tavernier e a senhorita Hong
vão ser bem-tratados?
— Recebemos instruções do próprio general Giap. Ordens que fossem
levados a Hoa Binh. Ali, outros combatentes irão tomar conta deles.
— É uma boa caminhada, até Hoa Binh; a mulher está gravemente ferida.
— Já sabíamos e arranjei uma maca.
— Aqueles seus homens descontrolados não podem matá-los durante a
viagem?
— Aqueles homens descontrolados, como os chamou, serão julgados por
desobediência. Não são os nossos homens que me assustam e sim os seus...
— Vou pedir ao tenente para avisar os postos situados no seu trajeto. É o
máximo que posso fazer. Quando acha que poderão começar a viagem?
— Ao anoitecer. Assim, terão tempo para descansar.
— Se não se importa, ficaremos com eles até lá.
— Como quiser — disse ele num tom que significava exatamente o
contrário.
Hong conseguira arrastar-se sob um toldo estendido sobre galhos de
bambu e gemia baixinho.
— Tem certeza de que ela vai agüentar? — perguntou Vandenberghe,
abaixando-se para penetrar no abrigo.
— Apliquei uma injeção de morfina — respondeu François —, deve aliviar
a dor durante um certo tempo.
A viagem vai ser longa?
— São mais ou menos duzentos quilômetros daqui até Hoa Binh. Na
melhor das hipóteses, leva cinco ou seis dias. Hong não vai agüentar.

— Vou, sim — murmurou a jovem com voz embargada.
— Não fale, descanse. Vamos chegar lá — acrescentou François colocando
a mão na testa da jovem.
— Você também devia descansar até a hora da partida. Meus
companheiros e eu permaneceremos atentos.
— Obrigado, Vandenberghe.
Uma chuva fina persistia. Para passar o tempo, Tavernier e o cabo jogaram
cartas com um baralho imundo que o chefe vietminh emprestou.
Ao anoitecer, prepararam-se para partir. Hong conseguira dormir uma boa
parte do dia e a febre baixara. Tentou recusar a maca, mas François explicou
que, caso contrário, ela ficaria. Diante daquela ameaça, ela se deitou sem
reclamar.
— A próxima vez em que nos encontrarmos, espero que possamos tomar
juntos uma boa cerveja, em Hanói ou Saigon! — disse Tavernier estendendo a
mão ao flamengo.
— Está certo! Mas não facilitem, não confio neles de modo algum.
— Eu também não, mas não tenho outra escolha...
Ao amanhecer, o grupo parou. Esgotados, os homens caíram na lama, sem
forças para se abrigar da chuva incessante entre as moitas. Durante longos
minutos, cada um deles permaneceu imóvel, tentando recobrar as energias.
Em seguida, o chefe vietminh levantou-se e deu novas ordens.
Imediatamente, os membros da resistência obedeceram. Três dentre eles se
afastaram para ficar de sentinela, outro acendeu um pequeno fogareiro a álcool
sobre o qual colocou uma chaleira com água. Distribuam a todos uma porção
de arroz e um pedaço de peixe defumado. Finalmente, a chuva parou. Após
comerem em silêncio, tomaram chá fumegante e começaram a fumar.
— Não tem medo de que o cheiro de tabaco possa atrair os franceses? —
perguntou François oferecendo seu maço ao comandante.
— Não, o próximo posto situa-se a uma hora de caminhada — respondeu
ele, aceitando um cigarro.
Após algumas baforadas, o vietnamita começou afazer perguntas:
— Já conhece o cabo há muito tempo?
— Não, foi a primeira vez quando ele nos libertou dos piratas.
— É um guerreiro valente. Pena que não pertença aos nossos combatentes.
Soube adaptar-se ao terreno, conhece todas as nossas técnicas de luta. Ele é
muito temido por meus companheiros. Já matou muitos com o auxilio dos
fantoches da seção 24, que ele comanda.

Agora, o sol estava a pino. Exausto, Tavernier não respondeu. Foi
rastejando até a moita onde os carregadores colocaram a maca. Hong
encontrava-se com os olhos cerrados, o rosto banhado em suor; respirava com
dificuldade. Ele levantou a cabeça dela e ajudou-a a tomar um pouco de chá.
Hong agradeceu com um sorriso triste. A testa ardia. François deu-lhe
quinino. Olhou para ela mais uma vez, deitou-se e adormeceu.
Uma dor repentina despertou-o. Tirou os sapatos e as meias encharcadas.
Em volta dos tornozelos, uma dúzia de sanguessugas refestelavam-se com seu
sangue. Arrancou-as com a faca e despejou um pouco de álcool sobre as feridas
em forma de cruz.
Do lado de fora da moita, parecia uma fornalha. Do chão, subia um vapor
quente que se impregnava no cabelo e na roupa. Sob aquele sol implacável,
tudo adquiria uma tonalidade cinzenta.
Havia um cheiro fétido e sufocante de lodo e plantas apodrecidas. A
sombra dos juncos, sapos-bois coaxavam.
— Senhor Tavernier, não fique assim ao desabrigo!
— Com um calor desses, duvido muito que os soldados franceses cheguem
até aqui!
— Os franceses talvez não, senhor Tavernier, mas há os senegaleses. Na
semana passada, ao meio- dia, fomos atacados por eles. São verdadeiros
demônios! Gritavam e pulavam como selvagens.
Conseguimos dominar a situação, mas muitos dos nossos valentes
homens morreram. Os vietnamitas não gostam de lutar com aqueles coitados
que, assim como nós, sofrem a opressão dos colonialistas. Vocês, brancos, que
costumam considerar-nos sub-homens, ficam satisfeitos em poder contar com
árabes, negros ou amarelos, enviando-os para o massacre. Em 1914-18, em
1939-40, fomos nós todos que estivemos na linha de frente e quando, por
milagre, não fomos mortos e voltamos para casa, vocês passaram a nos chamar
de sujos, negros ou nhà que. Mas agora acabou, o povo vietnamita está se
vingando. Logo vocês serão expulsos daqui, mesmo que custe a morte de
centenas de milhares dos nossos.
— Essas centenas de milhares de mortes podiam ser evitadas.
— Acho que não, os imperialistas franceses não vão desistir com tamanha
facilidade...
— No entanto, você sabe por que vim para cá?
— Sei, mas não acredito na sinceridade de sua tarefa.
— Apesar de tudo, ajuda-me no cumprimento de minha missão...
— Obedeço ordens. Se dependesse de mim, jáo teria fuzilado.

— Obrigado pela franqueza. Agora sei com quem estou lidando. Onde
aprendeu a falar tão bem a nossa língua?
— Em Huê, com os padres.
— Pelo menos a França lhe trouxe algo de bom.
— É muito pouco, comparado a tudo o que roubou de nós.
Outra noite chegou. O grupo recomeçou a caminhar sob um céu coalhado
de estrelas. Cigarras e sapos-bois executavam uma cacofonia, interrompida vez
por outra e reiniciada com maior vigor. A temperatura era suave. Os homens
andavam rápido sobre os diques e se revezavam para carregar a maca onde
Hong cochilava.
Quando o dia começou a clarear, o grupo parou nas proximidades de uma
aldeia amiga. Os toldos foram armados e todos os que não estavam de sentinela
puderam descansar um pouco.
Algumas mulheres vieram para trocar o curativo de Hong; o aspecto do seu
ferimento não era dos melhores. O dia transcorreu igual ao anterior.
Entretanto, a refeição que os habitantes ofereceram aos soldados foi excelente e
conseguiu relaxar a mente de todos. Via-se menos animosidade no olhar dos
vietnamitas e percebia-se, até, um esboço de sorriso em alguns dentre eles. Ao
anoitecer, a caminhada recomeçou.
No crepúsculo do quinto dia, ocorreu o encontro a poucos quilômetros de
Hanói, em Ky Son.
Com os olhos vendados, pés e mãos amarrados, Hong e Tavernier foram
embarcados em meio às trevas em um dos afluentes do rio Vermelho. A viagem
durou apenas duas horas.
Desembarcaram antes de desaguar no próprio rio volumoso e revolto. A
venda foi retirada e soltaram-lhes os pés e as mãos. Após alguns quilômetros de
marcha, atravessaram o rio acima de Viêt-Tri. Ao amanhecer, fizeram uma
pausa em Phong Chau.
Hong estava desacordada. Durante os raros momentos de lucidez, ela
parecia sofrer intensamente. François não tinha mais morfina e, transtornado
com sua impotência diante do sofrimento da jovem, observava seu rosto.
Outras mulheres trocaram mais uma vez o curativo.
Pelos olhares que lançavam, percebia-se que consideravam Hong um caso
perdido.
À noite, percorreram um, talvez dois ou três quilômetros. François não
discernia mais nada. Alcançaram outro no. Ali, barcos compridos de fundo
achatado encontravam-se à sua espera. A noite inteira, os remadores se
revezaram para subir a correnteza do rio Claro. Ao amanhecer, chegaram a
Tuyên Quang, um importante povoado onde todos ainda dormiam.

Hong estava lívida e seu rosto desfeito preocupava Tavernier. O homem
que parecia ser o chefe prometeu que um médico viria examiná-la. Levaram-nos
até uma construção onde mal se lia a palavra hospital. Atravessaram salas
antiqüíssimas e imundas onde os doentes, deitados em leitos de metal
enferrujados, olhavam para eles sem manifestar o menor espanto. Em uma
delas, crianças mutiladas fitaram-nos com um olhar vazio.
— Pisaram sobre minas — disse o chefe Vietminh com a mesma voz que
usaria ao constatar o mau tempo.
Na ala das cirurgias, o médico acabava de amputar uma mulher sem
anestesia. Há muito tempo não havia mais éter nem clorofórmio. Administrava-
se aos pacientes um copo de xarope opiado de fabricação local, que era ingerido
com gratidão. Dessa maneira, a dor atroz que experimentavam parecia-lhes
irreal. A mulher, cuja perna fora cortada acima do joelho, nem gritava, apenas
gemia de vez em quando. Um enfermeiro ergueu-a e a levou enquanto outro
colocava Hong sobre a mesa manchada de sangue. François ficou transtornado.
A mão da jovem agarrava-se à dele; arregalava os olhos de medo.
— Posso ficar com ela? — perguntou François ao jovem cirurgião.
Este deu de ombros, como se quisesse dizer: "Na situação em que
estamos", sem parar de recortar o curativo sujo de lama e de sangue. Ao
terminar de tirar o penso, não conseguiu reprimir violenta náusea; o mau
cheiro proveniente da chaga era tão forte que todos recuaram; parecia carne
putrefata. Os lábios crispados, com o auxilio de uma enfermeira, o médico
começou a limpar o pobre corpo mutilado, retirando pedaços inteiros de pele.
As unhas de Hong penetravam na mão de François. Apesar do ópio, a dor devia
ser lancinante; mesmo assim, ela não gritava. De repente, François percebeu
que Hong perdera os sentidos, pois deixara de lhe apertar a mão.
— É melhor para ela — comentou o cirurgião.
Durante alguns instantes, ele trabalhou em silêncio...
— Nhip tim cua no ra sao?
(Como está o seu pulso?)
— Râtlayêu bac si a.
(Muito fraco, doutor.)
Ele prosseguiu, enxugando com a mão o suor na testa.
— Que cães fizeram isso?
— Piratas, creio.
— Cães! — repetiu ele.
Quando o médico acabou o curativo, Hong permanecia desacordada.
— Disseram-me que também estava ferido, deixe-me ver.

— Não precisa, doutor.
— Sou eu quem decide.
De má vontade, Tavernier abriu a camisa. O curativo estava impregnado
de sangue coagulado. O médico retirou-o sem a menor atenção. Por duas ou
três vezes, François deixou escapar um gemido de dor.
— Você não vai demonstrar menos coragem do que uma mulher — disse o
vietnamita.
Tavernier teve de se conter para não lhe dar um soco no rosto. Olhou para
a ferida quase fechando, apesar do aspecto, que não era dos mais atraentes.
— Teve muita sorte, um pouco mais fundo e... Mostre sua mão.
— Não é nada, apenas uns arranhões.
— Esse tipo de arranhão pode matá-lo muito mais do que sua ferida —
prosseguiu o médico encharcando a mão de François com aguardente de arroz.
— Bac si oi! No da tinh lai roi, — disse a enfermeira Doutor, ela está
acordando!
François inclinou-se sobre o corpo de Hong.
— Hong, está tudo bem, você recebeu todos os cuidados necessários.
Agora, descanse.
Ela aquiesceu com um sorriso imperceptível e fechou os olhos.
Um oficial vietminh surgiu na sala de cirurgia.
— Vista-se, senhor Tavernier, vamos embora.
— Ela não está em condição de viajar.
— Pois vai ficar aqui.
— O que será feito dela?
— Não se preocupe, senhor Tavernier, ela se encontra em boas mãos. O
camarada Lun é um excelente médico. Se o comitê permitir, poderá vê-la na
volta.
Não havia outra alternativa. François deu um beijo na testa de Hong.
— Deixo-a com você — disse ao doutor Lun.
— Aviso logo que a viagem vai ser longa e difícil — observou o oficial
comandante da expedição.
— Pensei que o Vietminh mantivesse a região sob controle!
— Apenas em parte. Apesar de pesadas perdas, os franceses ainda têm
certos postos relativamente bem protegidos por um punhado de legionários ou
de homens que bancam os senhores da guerra. É só uma questão de tempo,
vão ser aniquilados um por um. Cidades como Cao Bang, Lang Son continuam

sob a ocupação do exército francês, mas o interior é nosso, assim como a
montanha e a floresta. A estrada colonial N.4, a RC4 , como a chamam, e que
desejam controlar a qualquer preço, está repleta de cadáveres deles. Os
generais têm demonstrado grande incompetência ou terrível desprezo para com
a vida de seus homens, obrigando-os a permanecer em uma região onde nos
sentimos tão à-vontade quanto peixes na água. O estado-maior francês agarra-
se como pode ao longo da RC4 com a esperança de separar o Vietminh do resto
da China. Mas acho que se trata, antes, de uma maneira de salvar as
aparências, permanecendo nos postos conquistados à custa de tantas mortes e
dando a impressão de que não estão recuando.
A primeira parte da viagem sobre o rio Claro ocorreu sem problemas até
Na Hang. Tavernier dormira bastante. O trajeto, que deveria ser árduo, como
lhe disseram, lembrava por enquanto uma simples excursão, apesar do frio
intenso da noite. Após se reabastecer em Na Hang, o grupo recomeçou a
caminhar até Chao Ra por uma trilha apenas projetada.
— Veja essa montanha — indicou o capitão-, é o monte Léa. O general
Salan deu este nome à mais importante operação efetuada pelo exército francês
no Tonquim do Norte. Por pouco, Beaufre e seus homens não prenderam o
nosso presidente, o general Giap e todo o estado-maior. Tivemos muita sorte,
nossa DCA do 74. regimento de Cao Bang abateu o avião que transportava o
coronel Lambert. Recuperamos a pasta com os planos completos da operação
que ele chefiava, e os enviamos ao nosso alto comando. Um dos nossos agentes
de ligação, um verdadeiro herói, correu durante quatro dias e quatro noites, de
Cao Bang até Yen Thong, para entregar os papéis às autoridades.
— Mas nem assim vocês conseguiram vencer os doze mil homens do
general Salan.
— Não, mas a vitória que ele esperava não aconteceu e o número de baixas
foi impressionante.
Tavernier conhecia essa região,já a visitara quando adolescente em
companhia de Martial Rivière e Hai. Era um lugar lindo, de selvagem beleza, de
onde os infelizes soldados franceses não tiveram a menor chance de escapar
com vida.
Deitado, com os olhos semicerrados, François contemplava o famoso
monte Léa. Pouco importava a origem daquele nome, também era o da mulher
amada. Ele a imaginava acalentando o pequeno Adrien, caminhando em meio
aos vinhedos e contemplando a terra pela qual havia lutado... Assim como eles,
pensou olhando para os seus companheiros — dentre os quais se encontravam
garotos de tenra idade — que se aproveitavam da pausa para descansar. Um
deles estava mergulhado na leitura de um livro. François aproximou-se.
Sentindo-se culpado, o rapaz fechou o volume, guardou-o no bolso, levantou-se
e afastou-se com ar zangado. O vietnamita estava lendo As Contemplações.
Emocionado, o francês desviou o olhar, tentando conter um sorriso. Talvez
tudo não estivesse perdido enquanto houvesse um bo doi1 lendo Victor Hugo.

Capítulo 21

Já fazia uma semana que Léa navegava pela baía de Ha Long.
Já que era preciso esperar, resolveu tirar proveito desse cruzeiro
inesperado. Passou horas a fio encostada no parapeito ou deitada de bruços, na
proa do junco, contemplando aquelas montanhas calcárias emergindo do fundo
do mar, sem areia nem terra, cuja única vegetação não passava de escassos
silvados, e, às vezes, antigos ciprestes, pinheiros com troncos retorcidos cujas
raízes entrelaçadas cingiam o penhasco, penetrando na mais ínfima rachadura
ou pendendo sobre o abismo.
Léa sentia-se deslumbrada diante daquelas formas sempre renovadas; ora
lembravam um animal fantástico surgido das águas e fossilizado por algum
gênio, ora um guerreiro petrificado em pleno impulso ou um gigantesco junco
imobilizado para todo o sempre. Tinha-se a impressão de navegar eternamente
sobre mares internos cercados de esculturas monumentais produzidas pelo
talento de um criador desvairado. Não se avistava saída alguma e de repente,
entre rochedos vertiginosos, uma passagem desembocava em outro mar
interno, mais amplo ou mais estreito, onde penedos colossais ficavam de
sentinela.
Pouco a pouco, porém, uma tensão secreta começou a dominá-la enquanto
admirava com incrédulo encanto o luar sobre aquele cenário angustiante feito
de catedrais, pirâmides, em meio a um silêncio repleto de sombrios presságios.
Durante todos aqueles dias, sua única tristeza era de não poder partilhar
tantas maravilhas com François. A cada manhã, apesar de todos os obstáculos,
esperava encontrá-lo a seu lado.
Necessitava então de um certo tempo para espantar o medo noturno que
costumava reaparecer, lancinante. Durante a segunda noite a bordo, Léa
acordou sobressaltada; gritava, soluçava. Kien apareceu, com o revólver na
mão.
— O que houve? Está passando mal?
— Não, foi um pesadelo, fiquei muito assustada.
— Tenho o que você precisa para afugentar esse sonho mau.
Desde então, todas as noites, antes de adormecer, ela passou a fumar
alguns cachimbos de ópio.
Certa noite, Kien tentou possuí-la; no entanto, apesar da fraqueza de suas
reações, devido à droga, Léa conseguiu rechaçá-lo. Na manhã seguinte, ele se
desculpou e Léa não se mostrou zangada.

Ele era um agradável companheiro de viagem, um excelente contador das
lendas surgidas naquele caos — as do dragão vindo do céu para reinar sobre o
mar fascinaram-na particularmente; semelhante a uma criança, ela não parava
de interrompê-lo para pedir maiores detalhes. Com que orgulho ele a levara
para visitar a gruta das Maravilhas, ajudando-a com mão firme a subir os
noventa degraus para alcançar a entrada! A imensidão e a beleza da primeira
sala, a luz que brilhava nos pilares de calcário forjados lentamente há milênios,
deixaram-na assombrada, sem fala, dominada pelo temor e pelo respeito. A
reação foi a mesma na segunda sala onde a claridade, penetrando pela abóbada
e pelos lados, dava às paredes e às colunas tonalidades surpreendentes; e a
terceira, menor, inundada por uma luz dourada, impregnada de uma umidade
enlanguescedora que a tornava ainda mais sedutora. A gruta da ilha da
Surpresa deslumbrou-a igualmente. Mais ao norte, entre os altos paredões
verticais do Circo, ela gritou o nome de François que o eco repercutiu até o
infinito — onde ele se encontrasse, ao ouvir aquele grito, não deixaria de
responder. E Kien gritou o nome de Léa. A reverberação do seu próprio nome
provocou uma sensação de mal-estar que ela mal conseguiu disfarçar.
No imenso túnel de Quang Hanh, iluminado por tochas, ela só pôde
dominar o pavor daquele universo esverdeado, onde a umidade impregnava o
cabelo e a roupa, aninhando-se nos braços de Kien. Como se estivesse agarrada
a uma bóia, ela fixava a luz fraca que anunciava a saída e acolheu a claridade
do sol com uma sensação de alívio que provocou o riso do jovem companheiro.
Ele parecia o dono do lugar, pois sentia-se muito à-vontade, conhecendo todas
as passagens, os abrigos contra as tempestades, o nome da ilhota mais
insignificante e de quase todos os pescadores que encontraram. Todos o
cumprimentaram com grande respeito.
— Essa gente parece gostar muito de você — disse Léa.
— Algumas pessoas me conhecem desde criança; quanto às outras, eu as
protejo.
— Protege? De quê?
— Dos piratas.
— Mas não encontramos nenhum.
— Porque você não sabe ver. Cada enseada, cada desvio, cada lagoa, cada
caverna pode esconder seus juncos.
— O que eles fazem?
— O que fazem os piratas do mundo inteiro: seqüestram viajantes,
pescadores, marinheiros, vendedoras de legumes, todos aqueles que negociam
na baía.
— E quando as pessoas não têm dinheiro, o que acontece?
— Seqüestram uma linda jovem ou um belo rapaz e vendem- nos a ricos
chineses, ou então matam todo mundo após estuprar as mulheres.

— Está brincando! Hoje em dia, esse tipo de coisas não existe mais.
— Mas você bem que acreditou na existência dos piratas, no caso de seu
marido, não?
— É verdade... Estou sendo incoerente. Como protege as pessoas?
— Possuo várias embarcações rápidas e leves que patrulham o mar — pelo
menos uma parte — e formam uma espécie de polícia. Sua presença afasta os
piratas e tranqüiliza os pescadores.
— Por que faz isso?
— Por dinheiro, claro. Cada proprietário de barco me paga um tipo de
seguro para ele, sua família e seu junco.
— E esse negócio é rentável?
Com que desprezo ela pronunciara aquelas palavras! Kien empalideceu,
profundamente ofendido.
A noite não jantou com ela. Durante a tarde e boa parte da noite, ele riu,
bebeu e cantou com a tripulação. Ao amanhecer, aproximou-se da porta de Léa
e acabou indo embora. Finalmente, ela adormeceu. Ao se encontrarem
novamente, na tarde do dia seguinte, ambos mantiveram-se calados quanto aos
acontecimentos da véspera. Um pequeno junco aproximou-se e um homem com
quem Kien teve uma longa conversa subiu a bordo. A noite, ele disse:
— Tive notícias do seu marido. Está no Tonquim, em companhia do
Vietminh...
— Prisioneiro?
— Parece que não. Em breve, você vai se livrar de mim; vou levá-la para
Hanói onde ficará aos cuidados do meu irmão Hai. Amanhã de manhã, faremos
escala em Hong Gai e, de lá, subiremos para o norte pela estrada.
— Kien, não fique assim. Graças a você, passei momentos inesquecíveis e
sou-lhe muito grata.
Vamos ser amigos.
Estendeu as mãos e ele as beijou. Com aquela espontaneidade que fazia
todo o seu encanto, Léa abraçou o rapaz e deu-lhe um beijo nas duas faces.
Kien apertou-a contra ele. Léa precisou fazer força para se soltar daquele corpo
cuja harmoniosa flexibilidade ela tanto admirara durante os banhos de mar, do
cheiro daquela pele jovem e saudável, daquele sexo que enrijecera ao contato de
seu ventre. Sua castidade forçada, desde a viagem de François, encontrara uma
compensação com o nascimento de Adrien; mas, depois de deixar o menino, a
necessidade de carícias tornava-se a cada dia mais imperiosa. A noite, o ópio
acalmava o seu desejo e a sua angústia, mas, ao amanhecer, despertava com a
mão entre as coxas, úmida e gemente. A suavidade da brisa, o esplendor da
baía, os corpos seminus dos marinheiros, a comida apimentada, a falta de
atividades, a beleza de Kien tornavam-na vulnerável. Na hora da sesta, ela

tentava em vão espantar a lembrança dos abraços de François e as imagens de
Kien pronto a satisfazer-lhe a concupiscência. Ela despertava daquele momento
de repouso com profundas olheiras, as pernas bambas, de péssimo humor.
Muito mulherengo, Kien percebia tudo. Em outras circunstâncias, não
teria escrúpulos; mas o fracasso de sua primeira tentativa, seguido da noite de
completa embriaguês, tomavam-no circunspeto. Entretanto, algo lhe dizia que
ela lhe pertenceria um dia. Desejava possuí-la e queria que Léa experimentasse
a mesma vontade. Era a primeira vez que isso lhe acontecia; geralmente, não
passava por esse tipo de hesitação: quando uma jovem lhe agradava, Kien a
seduzia. Com Léa, só isso não seria suficiente. Surpreendia-se sonhando com
ela. Um ciúme desenfreado dominara-o quando, em pleno Circo, ela gritara o
nome de François. Diante de tanto sofrimento, Kien pensara:
"Eu a amo!..." e ficara completamente transtornado. Logo ele, Kien Rivière,
amigo de Bay Vien, pirata, chefe de um bando de malfeitores, impiedoso para
com todos aqueles que cruzavam o seu caminho, apaixonado como um maricas
qualquer? Imagens de suavidade e infinita ternura surgiam em sua mente
exaltada: os belos rostos da mãe e da irmã apareciam, Kien imaginava sentir
suas mãos refrescantes sobre a testa febril...
Chegaram a Hong Gai nesse estado de profunda tensão. Kien pediu a Léa
para puxar o cabelo para trás e usar o turbante branco das viúvas anamitas.
Com aquele penteado, o grande chapéu, o rosto bronzeado, apesar dos olhos
claros, ela podia passar por nativa, pelo menos aos olhos dos soldados
franceses. A fim de completar o quadro, Léa vestiu o traje tradicional das
mulheres vietnamitas: pantalona de seda preta e túnica branca.
Saíram do junco em Na Chai, diante da ilha das Moitas. Entregue aos
cuidados de Dragão — que olhava com mágoa profunda para seu dono,
partindo na companhia daquela linda mulher que parecia tê-lo enfeitiçado — a
embarcação afastou-se na baía de Port-Courbet.
Dois homens, dentre os quais um francês, esperavam-nos em um veículo
parecido com as ambulâncias que Léa dirigira antes na Alemanha. Kien
assumiu o volante, instalou a companheira a seu lado e mandou que os dois
homens sentassem atrás. As apresentações foram das mais lacônicas:
Fred... Vinh... Senhora Tavernier.
Avançaram sob a chuva numa estrada intransitável, Operários
sobrecarregados afastavam-se com indolência para deixá-los passar.
— Estamos em plena região mineira. Tudo pertence à Sociedade de Minas
de Carvão do Tonquim. As concessões hulheiras usam nomes próprios. Na ilha,
são duas: Lucette e Paul. Antes da guerra, existia aqui um sanatório.
A chuva piorou. Kien calou-se, atento ao caminho que enlaçava colinas
plantadas com pinheiros.
Atravessaram a ponte do arroio Tiêu Rao debaixo de um verdadeiro dilúvio.

— Quantos quilômetros faltam até Hanói? — perguntou Léa agarrada ao
assento para enfrentar os solavancos.
— Cento e cinqüenta, cento e sessenta... Fica perto e longe ao mesmo
tempo. Tudo depende das condições da estrada, do tempo, dos controles do
exército francês. Na verdade, não temos o direito de circular nesse setor
estratégico.
— O que poderá acontecer se passarmos por uma patrulha?
— Nada que algumas piastras não possam resolver. Se, por acaso, não for
suficiente, Fred mantém excelente relacionamento com o comando de Bac
Ninh...
Kien ia concluir a frase quando, na entrada da aldeia de Uông Bi, logo
depois de atravessarem uma imensa ponte de cimento, foram detidos por uma
barreira.
— Fiquem todos de cabeça baixa, como se estivessem dormindo.
Sentados sob um abrigo improvisado, os soldados ergueram olhares
indiferentes para o veículo. Fred saltou e foi andando até lá, tentando evitar as
poças de lama.
— Que país filho da puta! — disse ao estender a mão para o suboficial que
se levantou de má vontade.
— É mesmo, não vejo a hora de me mandar! Para onde estão indo?
— Para Hanói.
— Cadê a sua autorização?
Fred tirou do bolso da calça um monte de documentos amassados que o
francês olhou com a maior indiferença.
— Tudo bem, podem continuar.
— Obrigado, até a próxima.
Dois soldados afastaram os cavaletes.
Como a chuva piorava, pararam em Bi Cho, a aldeia mais próxima, diante
de um casebre com um cartaz desbotado onde se lia, semi-apagada, a palavra
"Café". A calçada transformada em torrente de lama parecia intransponível aos
olhos de Léa. Kien ergueu-a e a carregou para dentro do botequim. No chão de
terra batida, recoberto em certos lugares por esteiras rasgadas, criancinhas
nuas infernizavam a vida de um filhote de gato sob as risadas do público. A
brusca entrada de Léae dos seus companheiros salvou o bichinho que fugiu
miando, enquanto os jovens carrascos escondiam-se por entre as pernas de
suas mães, lançando olhares curiosos na direção dos recém- chegados.
Sem pensar nas conseqüências do seu gesto, Léa tirou o turbante molhado
e sacudiu a cabeça para soltar os cabelos. Criou-se um silêncio estupefato.
Todos os olhares foram atraídos pela farta cabeleira de reflexos dourados.

Aquela sala com as paredes de barro amassado com palha era agradável; a
luz quente de uma lâmpada a petróleo emprestava-lhe um aspecto
tranqüilizador.
— Xin chut tra vapho. (Chá e sopa.) — pediu Kien para quebrar o mutismo
que se tornava visivelmente hostil.
— Eu bem que tomaria algo mais forte, estou gelado — disse Fred. — Você
acha que tem conhaque nesta baiúca?
— Pensa que isso aqui é Saigon? A única coisa que deve encontrar é
aguardente de arroz — declarou Vinh.
— Tudo bem. Quer pedir um pouco, por favor?
Vinh dirigiu-se até o homem que parecia ser o dono do estabelecimento,
fumando um cachimbo comprido atrás de uma espécie de balcão. Voltou,
trazendo um pequeno frasco de porcelana e minúsculas tigelas. As pessoas
retomaram suas conversas.
— Ele me garantiu que era da melhor qualidade...
— E você acreditou?... Já ouviu algum dono de bar dizer que sua
mercadoria é uma boa merda?
Uma após outra, as crianças aproximaram-se de Léa, tocaram a sua
roupa, acariciaram o seu cabelo. Uma garotinha mais esperta passou por entre
as suas pernas e seus olhos puxados examinaram-na com tranqüilidade e
segurança. Seduzida, Léa segurou-a no colo, enlaçando o seu corpinho ágil e
suave. Aquele contato perturbou-a profundamente, sentiu uma espécie de
queimadura na pele, uma tristeza imensa tomou conta dela e seus olhos
encheram-se de lágrimas.
Tentou esconder a emoção nos cabelos despenteados da menina; pela
primeira vez, desde que deixara a França, Léa experimentou uma violenta
saudade do filho. Sem perceber o que fazia, apertou com mais força a
garotinha; esta, sem entender o que estava acontecendo, retorceu-se para
conseguir soltar-se daquele abraço que a assustava. Uma mulher surgiu e
arrancou-a dos braços de Léa que permaneceu, espantada, desamparada, com
os braços abertos, inconsciente das lágrimas que lhe inundavam o rosto.
A hostilidade dos presentes foi substituída por uma súbita manifestação
de compaixão, especialmente da parte das mulheres, como se percebessem o
que aquela estrangeira estava sentindo. Uma delas se aproximou com um
copinho de chá e disse com esforço e aplicação:
— Você, mãe?
Léa fez que sim com a cabeça e pegou o copo. Foi o suficiente para
distender os ânimos; as mulheres cercaram-na sorrindo.
O chá quente lhe fez bem, seus dedos duros de frio relaxaram com o calor
da porcelana. Léa também sorriu àqueles rostos amigáveis. Estimulada por

essa reação, uma velha desdentada agachou-se e colocou as mãos minúsculas
e deformadas sobre sua coxa:
— Você tem filho?... um menino?
— Sim.
— Está longe dele e por isso ficou triste? Precisa voltar e ficar com ele, o
menino necessita dos teus cuidados. Ele se encontra em Hanói, não é?
— Não, encontra-se na França.
— Então, volte para ele, teu lugar não é aqui.
— Eu bem que gostaria — prosseguiu Léa suspirando.
— Dê no yên, may không thây thi no mêt? (Deixe-a em paz, não vê que
está exausta.?) — interrompeu Kien, empurrando a velha.
— May con nho lham, may không hiêu su dau cua môt nguoi me la cai Gil.
(Você não passa de um garoto, não sabe o que significa a tristeza de uma mãe.)
— retrucou a mulher erguendo-se. — Coragem, minha linda, vai encontrar o
teu filho! Volte o quanto antes para o teu país, aqui nada te diz respeito. Assim
como também não diz respeito aos brancos... todos os brancos — especificou
com ar de desafio.
— Onde aprendeu a falar francês? — perguntou Léa.
— Com as irmãs de Haiphong, já faz muito tempo.
— Aqui, todas as pessoas falam francês?
— Não, mas a maioria entende. O que faz nesta região, tão longe do teu
filho?
— Estou procurando pelo pai dele.
A resposta satisfez a anciã pois ela se afastou.
Uma jovem encantadora, com uma pantalona preta e uma túnica amarelo-
claro, trouxe uma bandeja com terrinas de sopa e bolinhos dourados.
Pouco apouco, Léa habituara-se à comida vietnamita. Segurou os
pauzinhos com mão firme e mergulhou um bolinho na taça de molho
apimentado.
— Está gostoso — falou com a boca cheia, enquanto se servia novamente.
Kien contemplava-a, esquecendo-se de comer. Assim como a maioria dos
homens, ficava fascinado com aquela maneira de se alimentar, alegre, selvagem
e voluptuosa, onde se percebia o sinal de uma sensualidade repleta de
promessas.
— Você não come? — perguntou Léa, atacando a sopa.
— Se deixar um pouco para mim — respondeu Kien sorrindo.
— Oh, me desculpe, já acabei com quase tudo.

Aquele lanche devolvera a Léa todo o seu ânimo. "Não existe tristeza,
exceto a morte de uma pessoa querida, que resista a uma boa refeição",
costumava dizer o seu pai, talvez para justificar a própria gula. Léa se parecia
com ele.
Sentia-se sossegada naquele fim de mundo na Indochina, no interior de
uma cabana fustigada pelo vento e pela chuva, entre todas essas pessoas que
falavam, riam e comiam ruidosamente. As crianças voltaram a brincar,
esfregando-se na poeira. O gatinho apareceu por trás de uma banqueta; todos
foram correndo em sua direção, mas novamente ele conseguiu escapar.
Fred e Vinh saíram mas voltaram logo em seguida:
— Parou de chover, acho melhor irmos embora- avisou Fred.
Kien pagou a conta e levou Léa que saiu contra a sua vontade,
distribuindo acenos e sorrisos de despedidas.
Durante quinze minutos, avançaram sem pronunciar uma palavra.
— Nunca mais faça isso — observou Kien. — Quase provocou nosso
linchamento. Meus compatriotas não gostam que riam de suas tradições,
inclusive das que se referem à roupa.
— Desculpe-me, foi distração minha. Não voltará a acontecer.
Atravessaram o Da Bach em Phi Liêt em um balsa sobrecarregada. Agarrada ao
assento, Léa fixava com angústia a água cor de barro que, em certos
momentos, cobria o assoalho da embarcação. Em seguida, com alívio,
retomaram a estrada deteriorada, atravancada pelos mais diversos veículos e
por um exército de cules carregando sacos de carvão.
— Estamos agora no segundo segmento da estrada de Haiphong, a das
minas; tem sempre muito tráfego — disse Kien inclinando-se para Léa.
Apesar dos solavancos, ela conseguira adormecer. Com um gesto de
ternura, Kien apoiou a cabeça da jovem no ombro dele.
Ao despertar, Léa surpreendeu-se com a ausência de trancos. Tudo estava
calmo, silencioso, exceto o ruído de um motor exalando um forte cheiro de
gasolina. Procurou por Kien, mas percebeu que se encontrava sozinha na
cabine; o ruído do motor não era o do veículo deles. Espantada, ela se ergueu e
constatou que estava cercada pela água onde flutuava o Dodge. Dominada pelo
pânico, olhou pela janela. Sentado no degrau, o olhar perdido no horizonte,
Kien fumava tranqüilamente.
— Que lugar é esse? O que estamos fazendo nesta jangada?
— É o meio mais seguro e mais rápido de viajar. Passaremos a noite em
Dong Triêu, na casa dos pais de Vinh.
— Dormi muito?
— Mais de quatro horas.

— Quando vamos chegar? Estou com fome.
— Dentro de vinte minutos.
— Dê-me um cigarro, por favor.
A chuva cessara. Com os olhos semicerrados, Léa olhava a noite caindo
sobre as florestas de pinheiros e os rochedos calcários que dominavam o rio.
No cais do Kinh Thay, pequenas vendedoras de sopa e frutas deixaram de
lado as suas brincadeiras para se atirar aos gritos sobre os recém-chegados.
Kien e Vinh afastaram-nas sem o menor cuidado.
— Temos mais três quilômetros pela frente antes do jantar.
"Ainda bem!", pensou Léa que se segurava para resistir aos solavancos.
Em Dong Triêu, abriram caminho com sonoras buzinadas através da
multidão de uma feira ao ar livre; inúmeras pequenas lâmpadas a álcool
encontravam-se penduradas em galhos de bambu ou colocadas à frente das
barracas, no chão encharcado, diante das vendedoras agachadas e cercadas de
filhos com as pernas cobertas de lama. O forte cheiro de especiarias quase
conseguia dominar o bafo de gasolina, peixe defumado e urina.
— Chegamos — disse Kien ao parar diante de uma tenda que desaparecia
sob um amontoado de utensílios de alumínio e esmalte azul, gaiolas de
pássaros, lâmpadas, vassouras, chapéus pontudos de folhas de palmeira, rodas
de bicicleta, correntes, cordas, ratoeiras, cadeiras, banquinhos, tamancos de
madeira, pneus, calças compridas, casacos e longas túnicas coloridas.
Na loja, o cafarnaum era maior ainda. Vinh, acompanhado pelos
companheiros, avançou por entre caixas, barris, jarros de óleo, pilhas de latas
de conserva, até alcançar um estrado onde se encontrava uma anciã com rosto
severo e autoritário. Usava o penteado das viúvas e fumava um cachimbo de
haste comprida. Vinh cumprimentou-a com o mais profundo respeito.
— Ba oi, chau se dên voi ban be cua chau, chau da noi voi ho, Ba se tiêp
ho hinh nhu Ba tiêp chau.
(Minha casa não é hotel, filho, e não gosto de estrangeiros.)
— Nha tôi khôngphai la môtphong ngu chau oi va tôi không ua nhung
nguoi ngoai quôc.
(Senhora, garantiram-me que na sua casa seríamos bem recebidos.)
— Ba oi nghe noi nha Ba thi luc nao tiêp don rât la Don. (Vovó, vim com
meus amigos, afirmei que você os receberia como se fossem eu.) — disse Kien
pontuando suas palavras com gestos da mão e dos dedos.
De repente, o comportamento da mulher mudou. Inclinou-se e um sorriso
obsequioso mostrou-lhe os dentes pretos.
— Nguoi ta noi dung! Chung chau luc nao se duoc tiêp dai rât la tu tê
trong nha Ba. Di di lo ma tiêp ho di. Dua ho vao trong nha, moi ho uông va an

va minh chuân bi môt chô ngu cho ho. (Não é mentira, você e seus amigos
serão sempre bem-vindos em minha casa. Vamos, vamos, tratem bem dos
nossos hóspedes, levem-nos à minha sala, sirvam comida e bebida para eles, e
preparem-lhes um lugar para dormir.) — gritou ela a um grupo de rapazes e
moças que permaneciam aos pés do estrado, mortos de medo.
— Cam on Ba. Ba co thê cho tôi it nuoc nong dê Ba Tavernier rua mat?
(Muito agradecido, senhora. Seria possível conseguir um pouco de água
quente para o banho da senhora Tavernier?)
A anciã aquiesceu com um sorriso constrangido. Kien agradeceu com a
cabeça e seguiu Vinh que acenava para ele. Atravessaram um depósito meio
desarrumado, em seguida chegaram a uma série de apartamentos privados que
lembravam a caverna de Ali Babá. O leito, os assentos e a mesa desapareciam
sob algodão em rama, cortes de cetim, raiom e seda. Diante do altar dos
antepassados, ardiam bastonetes de incenso e lanternas vermelhas estavam
acesas. Vinh inclinou-se e acendeu um pacote de bastonetes.
— O que você lhe disse para que ela se transformasse tão rápido? —
perguntou Léa.
— Com certos sinais, fiz com que entendesse que seria melhor para ela nos
receber.
— E como soube que ela entenderia?
— Todos os comerciantes reconhecem, por esses sinais, que pertenço à
organização dos Binh Xuyên.
— Os Binh Xuyên?
— Salteadores, mas salteadores honestos que só roubam os ricos,
protegem os pobres e os fracos, praticam a solidariedade para com os irmãos.
— Igual a Robin Hood, de certa forma!
— Isso mesmo. Não posso dizer nada mais, sob pena de morte. A
organização nasceu em meados dos anos vinte na região do Rung Sat e dos
pântanos de Ly Nhon, a uns trinta quilômetros de Cholon. Esses pântanos
serviam de abrigo aos foragidos. Escolheram o nome da aldeia onde se reuniam
para eleger seus chefes. Estes usavam tatuagens rituais, o que faz com que eles
possam se reconhecer.
— As suas são tatuagens de chefe Binh Xuyên?
— Você é muito curiosa, não posso responder.
— Então, quem é o chefe?
— Já o viu, trata-se de Bay Vien.
Fred veio interromper a conversa.
— Senhora, se quiser me acompanhar, o jantar está servido.

— Ainda bem, estou morta de fome! — exclamou Léa seguindo-o.
As travessas cobriam a mesa. Duas jovens criadas ofereceram
guardanapos úmidos, quentes e perfumados. Todos os quatro atiraram-se
sobre os suculentos pratos. Durante certo tempo, ouviram-se apenas ruídos de
mastigação, pauzinhos batendo nas tigelas e suspiros de satisfação de Léa. Do
lado de fora, as crianças agrupadas sob a janela não perdiam um detalhe
sequer daquele espetáculo e quase todas tinham água na boca.
— Choho vai cai gi ho cân. (Sirvam alguma coisa a essas crianças.) —
disse Kien às empregadas, apontando para as crianças.
Ao vê-las, Léa envergonhou-se de sua gula e corou. Embora continuasse
com fome, colocou na mesa os pauzinhos.
— Você não deve deixar de comer por causa delas. Vão lhes dar arroz e
carne.
Após um breve instante de hesitação, ela aceitou a travessa de bolinhos
dourados que lhe ofereciam.
Estavam deliciosos. Invadida por um sentimento de remorso, lançou outro
olhar para a janela. As crianças haviam desaparecido. Então Léa pôde comer à
vontade, sem se sentir culpada. Fred e Vinh saíram da mesa. Satisfeita, Léa
acendeu um cigarro.
— Então, você é um bandido.
Surpreso, Kien olhou para ela e deu uma gargalhada.
— Certas pessoas diriam que sim.
— Mas você se considera o chefe de um bando?
Kien pensou sem parar de sorrir.
— Não. Com você, posso falar a verdade: meu vínculo com os Binh Xuyên
só serve para dar um certo tom exótico à minha existência. Minha ficha está
limpa, em oposição à maioria.
— Teve muita sorte. Na França, já teria sido preso mais de vinte vezes.
— Felizmente para mim, não estou na França!
Léa levantou os ombros.
— Dây la nuoc nong cho Ba va cai va li cua Ba.
(Eu trouxe água quente para a senhora e sua mala também.)
Uma jovem aproximou-se, carregando uma larga bacia, acompanhada por
três garotos trazendo baldes cheios de água fumegando, e por outro menor que
puxava a mala.
— Onde fica o meu quarto?
— Escolha — disse Kien fazendo um amplo gesto com a mão.

— Aqui?... Nesta sala?
Ele abriu um biombo com enfeites de madrepérola.
— Pronto, assim poderá ficar perfeitamente à vontade.
Os garotos despejaram a água na bacia. Uma mulher de certa idade entrou
no aposento trazendo toalhas. Murmurou algumas palavras no ouvido de Kien.
— Ela quer saber se precisa ajudá-la a tomar banho.
— Agradeça por mim. Já sou crescida o bastante para me lavar sozinha.
Agora saia, por favor. Não, espere... Onde vou dormir?
Ele apontou para um alto leito de madeira sobre o qual uma criada
colocava esteiras de palha.
— Sei que não parece muito confortável, mas é muito gostoso dormir ali,
você vai ver.
— Vou me lembrar da guerra — disse ela com tom resignado escondendo-
se atrás do biombo.

Capítulo 22

— Senhor Tavernier... Senhor Tavernier, acorde!... O presidente Hô Chi
Minh aceita recebê-lo.
François abriu os olhos com dificuldade. O jovem oficial Vietminh,
debruçado sobre ele, sacudia-o com força.
— Rápido, temos de partir.
— Não vamos aguardar até a noite?
— Não, temos o controle de toda a região.
— Eu gostaria de fazer a barba antes de me encontrar com o presidente.
— Não há tempo, as ordens foram formais. Precisamos sair agora mesmo.
Caminharam o dia inteiro e atravessaram Nguyên Binh durante a noite. O
capitão deu ordem de parar. Os soldados e ele mesmo caíram ao chão,
exaustos. Não chovia, mas havia uma névoa úmida que se infiltrava, tomando
todas as coisas pegajosas. François esforçava-se para respirar profundamente,
tentando assim acalmar as batidas do seu coração; finalmente, estava perto do
seu objetivo, ia poder conversar com o homem que, segundo Leclerc, era o
único capaz de trazer a paz à Indochina. Mas não seria tarde demais?
Tanto sangue já fora derramado desde o encontro do chefe da 2ª divisão
blindada com o velho revolucionário, tantas promessas não cumpridas, tantas
mentiras acumuladas, só muito otimismo para acreditar que alguma coisa de
positivo pudesse sair de tudo isso.
Entretanto, só o fato de concordar em receber o representante, embora
oficioso, do presidente da república francesa, levava a crer que as relações não
haviam sido totalmente cortadas.
Uma espécie de esgotamento dominou François: o que iria dizer ao
presidente Hô Chi Minh? Não trazia mensagem alguma, proposta alguma. Ao
contrário, havia recebido ordens de abandonar a missão, regressar à França, e
não obedecera. Tudo o que ele dissesse, fizesse ou obtivesse de nada adiantaria,
pois François encontrava-se agora na ilegalidade. Os franceses poderiam
inclusive acusá-lo de traição apesar da ajuda inesperada de Saigon. "Aqui estou
eu, metido mais uma vez em um formigueiro até o pescoço", pensou, tentando
prender a sola do seu sapato com um pedaço de arame. Ah, a aparência do ex-
representante de Vincent Auriol não era das melhores, com as roupas rasgadas,
manchadas de sangue e lama, barbado, despenteado e um forte cheiro de bode!
Um jovem soldado ofereceu-lhe um copo de metal todo amassado cheio de
chá quente.

— Camon. (Obrigado.)
Pouco a pouco, seus companheiros de viagem começaram a se levantar; da
sacola de arroz que levavam no pescoço ou na cintura, tiraram um bolinho
pegajoso que mastigaram lentamente, o olhar perdido. O capitão entregou-lhe
uma vasilha de arroz frio e grudado sobre o qual despejou algumas gotas de
nuoc-mâm.
Esfomeado, François não desperdiçou uma única migalha. Depois,
acendeu um cigarro. Todos fumavam e buscavam em cada tragada uma
sensação de quietude.
Uma grande calma reinava. Em certos momentos, ouviam-se o grito de
uma ave noturna, um ruído de asas entre os galhos, a fuga furtiva de algum
bichinho, mico ou lagartixa, ou o bramar isolado de um veado na floresta. A
guerra parecia distante. Finalmente, após um sinal do capitão, todos se
ergueram e recomeçaram a viagem.
As árvores tornaram-se mais escassas; a lua apareceu, revelando uma
paisagem montanhosa. O caminho por onde subiam era íngreme; pedras
rolavam sob seus pés. Atravessaram um bosque de pinheiros, deslizaram sobre
o solo coberto de agulhas, e chegaram a uma espécie de ampla bacia cercada
por altos rochedos.
— Chamamos esta região de "Blockaus Vermelhos", devido à cor
avermelhada da montanha — disse o capitão.
— Essa depressão lembra a de Lam Son; eu costumava vir até aqui na
minha adolescência.
O capitão olhou para ele com surpresa e desconfiança.
— Parece que conhece bem o Bac Bô.
— Conheço sim.
A curiosidade do oficial Vietminh e a vontade de perguntar eram evidentes.
— Como se chama, será que não o conheço? — perguntou François.
— Sou o capitão Dang Van Viêt.
— Não tem o sotaque das pessoas da montanha, de onde você é?
— Nasci no Nghe An, no centro do Vietnã. Estava cursando medicina em
Hanói quando a revolução começou, em agosto de 1945. Alistei-me no exército
revolucionário onde me entregaram a direção da escola militar e política do
Trung Bô. Fui designado pelo alto comando para escoltá-lo até aqui.
— Então já chegamos?
— Sim, do outro lado da bacia, aos pés da montanha, instalou- se
provisoriamente a sede do comitê interprovincial do partido. Encontra-se ali o
presidente Hô Chi Minh.

Por entre os rochedos, surgiram homens apontando armas heteróclitas
para o grupo. Sua presença não fora anunciada por ruído algum. O capitão
aproximou-se erguendo seu kalachnikov. Após um breve conciliábulo, Dang
Van Viêt fez um sinal à sua tropa e a Tavernier para que viessem a seu
encontro. Os recém- chegados fitaram François com curiosidade. Em seguida,
todos voltaram a caminhar. Pouco tempo depois, o capitão Viêt mandou parar e
penetrou sozinho numa cabana construída no flanco da montanha.
Saiu de lá dez minutos mais tarde.
— O presidente está à sua espera. Não o canse, ele não passa bem.
Por sua vez, ele subiu a escada de bambu. Apenas uma lâmpada na mesa
iluminava o aposento com as paredes de palha onde o mandaram entrar.
Sentado diante de vários mapas abertos sobre a mesa, um homem de cerca de
quarenta anos, com uma farta cabeleira preta, ergueu a cabeça. O que mais
surpreendia, naquele rosto cor de âmbar com as maçãs salientes, as narinas
largas, a testa muito alta, a boca bem desenhada e com lábios sensuais, era a
intensidade do olhar, assim como a inteligência que dele emanava. O homem,
vestido simplesmente como um camponês, sorriu para François. Este
experimentou uma simpatia imediata e fez o mesmo inclinando a cabeça.
— O presidente Hô irá recebê-lo em alguns instantes. Tenha a bondade de
sentar — disse o homem apontando para um banquinho.
— Muito obrigado. Desculpe-me, mas tenho a impressão de que já nos
vimos antes...
— É possível. Em 1946, acompanhei o presidente Hô Chi Minh à França.
— Já me lembro. Você era o chefe da delegação vietnamita em
Fontainebleau... É o senhor Pham Van Dông.
— Exato, senhor Tavernier.
Uma jovem vestida com uma pantalona e um casaquinho azul subiu a
escada. Trazia uma bandeja de ráfia onde se encontravam vários copinhos e
uma chaleira de barro. Com gestos graciosos, serviu o chá.
— Sirva-se, senhor Tavernier. Seja bem-vindo entre nós.
François agradeceu com a cabeça e tomou um gole do líquido fervente.
— Então, senhor Tavernier, quais são as notícias da França?
Que novas mentiras a república francesa pediu que nos contasse?
Ah, ainda me lembro da atitude do seu país na conferência de
Fontainebleau, quando nos chamaram para falarmos da reunião dos três Ky As
três regiões constitutivas do Vietnã: o Tonquim, o Aname e a Cochinchina.
enquanto em Dalat, exatamente no mesmo dia e na mesma hora,
preparava-se a sua separação!

— Mas eu não me encontrava na França naquela ocasião e nem estava a
par do teor daquelas discussões.
— Bah! De qualquer maneira, tudo isso já é passado. Mas tornamo-nos
desconfiados, senhor Tavernier, muito desconfiados — concluiu com uma
risada surpreendente, antes de retornar ao estudo dos seus mapas.
Um homem saiu de trás de uma parede de palha.
— Sou o secretário do presidente Hô, queira entrar.
— Bac no khoe không? (Como ele está?) — perguntou Pham Van Dông.
— Do nhung cai sôt van con rât nong. (Melhor, mas a febre continua alta.)
François penetrou em um aposento escuro que cheirava a feno. Suspensa
na viga, uma pequena lâmpada irradiava escassa luz.
— Aproxime-se, senhor Tavernier — disse uma voz fraca.
Pouco a pouco, seus olhos habituaram-se à semipenumbra. Em um canto
do quarto, deitado no leito feito de bambu, as costas apoiadas em almofadas de
cores vivas, pernas e ombros cobertos com mantas militares, Hô Chi Minh, com
os olhos brilhantes, um cigarro na boca, olhava para François sorrindo.
Tavernier encontrava-se finalmente diante daquele que, segundo Leclerc e
Sainteny, tinha o poder de deter aquela guerra. No entanto, ele não pôde deixar
de considerar a situação com certa ironia: um homem enfermo, com o rosto
cansado, deitado em uma cabana perdida no fim do mundo, enfrentava um
país cem vezes mais poderoso que o dele, e um falso emissário do tal país,
maltrapilho, encontrava-se ali também, tão perto...
— Está sorrindo, senhor Tavernier?... Gosto das pessoas sorridentes. Nós,
vietnamitas, gostamos de rir. Infelizmente, não temos tido muitas
oportunidades, já faz algum tempo. Sente-se mais perto de mim, está muito
longe e assim preciso falar mais alto, o que cansa o ancião em que me
transformei. Poderia me dar o meu maço de cigarros?... Obrigado. Tem fogo?...
Após várias tentativas, François conseguiu que seu isqueiro funcionasse.
— Obrigado. Meus amigos dizem que fumo demais e que faz mal à saúde.
Mas não consigo passar sem este pequeno prazer. Sirva-se, senhor Tavernier, a
não ser que prefira o fumo francês?
— De fato, prefiro sim, senhor presidente, mas o tabaco americano
também serve.
— Nunca me acostumei com os seus Gauloises ... Mas existem tantas
outras coisas boas de que gosto muito, em seu país!
Os dois homens fumaram calados durante um certo tempo. Hô Chi Minh,
com os olhos semicerrados, aspirava profundamente a fumaça. Os longos dedos
manchados de nicotina seguravam o cigarro com muita elegância.
— Por que sorriu, ainda há pouco, senhor Tavernier?

François hesitou.
— Perdoe-me, senhor presidente, achei a nossa situação bastante
inconveniente.
Hô Chi Minh ajeitou as almofadas e começou a rir, depois a tossir. Quando
a tosse se acalmou enxugou com a mão as lágrimas que brilhavam em seus
olhos.
— Inconveniente é a palavra certa, senhor Tavernier. Mas tudo é
inconveniente: a situação, você, eu, a guerra... Você considera correto que
lutemos, embora tenhamos o maior interesse, de ambos os lados, em
mantermos boas relações? O que queria o povo vietnamita? A independência...
Viver livre na terra dos seus antepassados, ser feliz e em paz, na união e na
fraternidade, adotando a declaração dos direitos do homem e do cidadão da
revolução francesa de 1791, a qual proclama:
"Os homens nascem e permanecem livres e iguais de direito." Verdade
inegável, não é?... E no entanto, durante mais de oitenta anos, os colonialistas
franceses, fazendo pouco da bandeira da liberdade, da igualdade e da
fraternidade, violentaram a nossa terra e oprimiram os nossos compatriotas. Os
atos deles opõem-se profundamente aos ideais de humanidade e justiça.
Impuseram-nos leis desumanas. Constituíram três regimes políticos
diferentes no norte, no centro e no sul do Vietnã, para destruir a unidade
nacional e impedir a união do nosso povo... Construíram mais prisões do que
escolas. Demonstraram a maior crueldade contra nossos patriotas. Afogaram
nossas revoluções em rios de sangue... Sufocaram a opinião pública e
praticaram uma política de obscurantismo... Impuseram-nos o uso do ópio e do
álcool para enfraquecer a nossa raça... No setor econômico, exploraram-nos até
a medula, levaram o nosso povo à mais negra miséria e saquearam
impiedosamente o nosso país... Espoliaram nossos arrozais, nossas minas,
nossas florestas, nossas matérias- primas. Detiveram o privilégio da emissão de
moeda e o monopólio do comércio exterior...
Com os olhos brilhantes, o rosto animado, Hô Chi Minh erguera-se na
cama. Não era mais aquele doente, cansado, que falava, e sim um acusador,
um homem repleto de profundos ressentimentos, de um ódio violento em
relação a todos os que queriam reconquistar o seu país. Sobre uma cadeira, ao
lado do leito, ele pegou um copinho de chá que tomou de uma só vez; em
seguida, atirou a guimba em uma lata de conserva quase cheia. Após acender
outro cigarro, prosseguiu:
— E tem mais. No outono de 1940, quando os fascistas japoneses, com o
objetivo de combater os aliados, invadiram a Indochina para organizar novas
bases de guerra, os colonialistas franceses renderam-se de joelhos para
entregar-lhes o nosso país... Desde então, nosso povo, sob o duplo jugo japonês
e francês, não parou de sangrar, literalmente falando. O resultado foi aterrador
nos últimos meses de 1944 e no início de 1945: do Quang Tri até o Vietnã do
Norte, mais de dois milhões de nossos compatriotas morreram de fome. Em 9

de março de 1945, quando os japoneses desarmaram as tropas francesas, os
colonialistas franceses fugiram ou se entregaram. Assim, em vez de nos
proteger, no espaço de cinco anos, por duas vezes, venderam o nosso país aos
japoneses. Antes de 9 de março, em várias ocasiões, a Liga Vietminh convidou
os franceses a se juntar a ela para lutar contra os japoneses. Os colonialistas
franceses, em vez de responder ao apelo, seviciaram com mais violência ainda
os partisans do Vietminh. Quando de sua fuga, chegaram a assassinar um
grande número de prisioneiros políticos encarcerados em Yen Bay e em Cao
Bang... Apesar de tudo isso, nossos compatriotas continuaram mantendo, para
com os franceses, uma atitude clemente e humana. Após os acontecimentos de
9 de março, a Liga Vietminh ajudou numerosos franceses a atravessar a
fronteira, salvou muitos outros das prisões nipônicas e protegeu a vida e os
bens de todos os franceses... Na verdade, desde o outono de 1940, nosso país
deixou de ser uma colônia francesa para se transformar em possessão
nipônica. Após a rendição dos japoneses, nosso povo ergueu-se como um todo
para reconquistar a soberania nacional e fundou a República Democrática do
Vietnã. No entanto, nosso povo retomou sua independência das mãos dos
japoneses, mas não dos franceses.
Sem fôlego, com a testa molhada de suor, Hô Chi Mii encostou-se e
permaneceu calado e de olhos fechados durante um certo tempo. Ouvia-se
apenas sua respiração ofegante. François não sabia se devia ficar ou sair —
Ainda está aí?
— Sim, senhor presidente.
— Fez uma viagem horrível para chegar até aqui. O que tem a me dizer da
parte do governo francês? Espero que suas propostas, se é que existem, sejam
menos humilhantes para nossos países do que aquelas que meu amigo Paul
Mus trouxe no ano passado. Quando eu me lembro que já tínhamos colocado o
champanha na geladeira para festejar o entendimento entre as nossas duas
nações! Quanta ingenuidade! Estávamos prontos a colaborar amigavelmente
com o povo da França. Por isso assinamos a Convenção preliminar de 6 de
março e o modus vivendi de 14 de setembro de 1946. Mas a reação colonialista,
deixando de cumprir a sua promessa, considerou tais acordos como meros
pedaços de papel. Desejávamos sinceramente, em cargos precisos, a presença
de franceses: professores, jornalistas, médicos, engenheiros, queríamos ter
muitos deles, mas não administradores. Podíamos perfeitamente dar um jeito
entre nós mesmos. Atualmente, julgamos que em momento algum a França
pensou em honrar seus compromissos em relação ao Vietnã.
— Não diga isso, senhor presidente. Homens como Sainteny, o general
Leclerc, eram sinceros...
— Foi justamente por pensar assim e por ter vindo em nome deles que
aceitei encontrá-lo, senhor Tavernier, embora, nesse ínterim, o general tenha
falecido e o senhor Sainteny tenha sido acusado de traição pelos próprios
amigos. E há quem fale da duplicidade dos asiáticos!...

François sentia-se cansado, sua ferida doía muito, mas não pôde deixar de
sorrir com a última frase de Tio Hô. Não, em matéria de duplicidade, os
franceses jamais alcançariam o nível dos vietnamitas; eram muito cartesianos,
metidos em sua racionalidade, para se igualarem aos adeptos de Confúcio e de
Lenin no que se refere ao não-dito!
— Sorriu de novo, senhor Tavernier. No entanto, não vejo nada de
engraçado nisso tudo. Vejamos, o que tem a me dizer? Estou ouvindo.
François pensou rapidamente. Vários dias haviam decorrido desde o seu
encontro com Louis Caput e o telegrama recebido em Saigon, que anulava sua
missão. O Vietminh tinha espiões por toda parte, era mais do que provável que
Hô Chi Minh já tivesse sido informado do conteúdo desse telegrama.
— Neste exato momento, senhor presidente, represento apenas a mim
mesmo. Eu era o enviado oficioso do presidente da República. No entanto, ele
anulou a minha missão, assim nada mais tenho a lhe dizer da parte dele.
Com um cigarro na boca, Hô Chi Mnii olhava-o atentamente.
— E, apesar de tudo, você veio — constatou sem tirar os olhos de François.
— Por que, senhor Tavernier?
François levantou-se, tomou conta do espaço limitado com sua alta
silhueta e ergueu os braços com um gesto fatalista.
— Por causa do general Leclerc. Convencera-me de que, talvez, tudo não
estivesse perdido para nossos dois países. Embora ele tenha falecido, senti-me
na obrigação de lhe trazer uma resposta.
Mais uma vez, o silêncio instalou-se entre os dois homens. A jovem trouxe
chá, eles beberam e fumaram. No quarto, a fumaça estagnava-se a meia altura.
— Senhor Tavernier, agradeço-lhe a sua franqueza. Eu já estava a par da
anulação de sua missão. Se você me mentisse, teria mandado fuzilá-lo. Sua
atitude é a de um homem de honra e quero cumprimentá-lo pelo seu respeito à
palavra em relação ao falecido.
Eu tinha a maior estima e amizade pelo general Leclerc. Durante nossas
conversas, percebi nele grande dignidade junto com certa ingenuidade. Senti
muito não me encontrar com ele durante a minha estada na França em 1946.
Sempre pensei que recebera ordens de não falar comigo. Seu desaparecimento
representa uma grande perda para os nossos dois países... Já que você não tem
mensagem alguma para mim, me fale sobre a França. O país anda se refazendo
de todas suas provações? As cidades estão sendo reconstruídas? A população
consegue alimentar-se corretamente? O que pensa o povo francês desta guerra
que seus dirigentes desencadearam a milhares de quilômetros de distância?
— A vida na França continua muito difícil, senhor presidente. Pão,
manteiga, carvão, tecidos, ainda são racionados. As cidades mais destruídas
refazem-se lentamente. A indústria tenta reerguer- se, assim como a

agricultura. Após aqueles quatro anos tão terríveis, os franceses parecem
resolvidos a tomar parte no soerguimento do país.
— Mas o que pensam desta guerra? Durante a minha estada na França
não tive a impressão de que se preocupavam muito com isto.
"A maioria não liga nem um pouco para a guerra da Indochina", pensou
François.
— É verdade, senhor presidente, os franceses estão muito ocupados com
os problemas internos do seu próprio país para se preocupar com uma guerra
tão distante, exatamente como o senhor pôde observar.
— Uma guerra que mata muitos dos seus irmãos e filhos. Senhor
Tavernier, sabe quantas perdas o exército francês sofreu no decorrer do ano de
1947?
— 5.345 mortos e 9.790 feridos. É demais para um país como a França,
que acaba de sair de uma guerra mortífera. Pode argumentar que nem todos
são franceses, e que, dentre os mortos, há muita gente proveniente das
colônias... Ah!, a França manda pagar suas benfeitorias com sangue! A mãe
pátria não derrama muitas lágrimas sobre esse tipo de mortos. Meu coração se
enche de amargura e tristeza ao ver aqueles pobres negros combatendo contra
nós, seus irmãos de escravidão... Não responde nada, senhor representante do
presidente da república francesa?
O que mais Tavernier poderia acrescentar? Sentia-se dominado por um
extremo cansaço e um desgosto tão profundo...
— Você conhece — prosseguiu Hô Chi Minh — os efetivos do corpo
expedicionário na Indochina em 31 de março de 1948? 110.245 homens, dentre
os quais 61.343 europeus, 11.233 norte-africanos, 3.768 senegaleses e...
33.901 vietnamitas!
François ergueu a cabeça e fitou seu interlocutor.
— Percebo que ficou surpreso, senhor Tavernier. Para nós, isso representa
uma vergonha, uma dor profunda... Como é possível trair dessa maneira os
seus próprios irmãos?
O presidente fechou os olhos, exausto. François analisava aqueles
números fornecidos por Hô Chi Minh: os 53.000 homens do início das
hostilidades haviam sido ultrapassados...
A noite caíra. No aposento ao lado, ouviam-se as batidas de uma máquina
de escrever; do lado de fora, um oficial dava ordens a jovens recrutas com a
mesma brutalidade de todos os outros exércitos do mundo. Um cheiro de sopa
chegou até o quarto, despertando a fome de François. Com a mão apoiada no
peito, levantou-se com dificuldade, provocando a queda do banquinho. Hô Chi
Minh abriu os olhos.
— Perdoe-me, senhor presidente.

— Eu não estava dormindo, senhor Tavernier, pensava.
— Bac oi! Bac phai cân nghi. (Tio, deveria descansar.) — disse Pham Van
Dong ao entrar no aposento.
— Dungh lo, anh Tô, tôi cam thây do. (Não se preocupe, Dong, já estou
melhor.) — Senhor Tavernier — prosseguiu ele em francês —, muito obrigado
por sua visita. Talvez voltemos a nos encontrar. Aproveite para recuperar as
suas forças.
— Obrigado por sua cordialidade, senhor presidente. Desejo- lhe uma boa
noite.
Após descer a escada, François desmaiou.

Capítulo 23

Apesar das objeções de Fred, Kien fez questão de parar nos Sete Pagodes,
em Pha Lai, apelidado de Cidadela Abandonada. Outrora centro militar, a
região ainda abrigava acampamentos quase todos em ruínas, espalhados entre
as colinas onde se encontravam tropas da Legião Estrangeira.
Recorrendo ao dinheiro e às ameaças, Kien requisitou uma das balsas que
serviam de meio de transporte entre Dong Triêu e Bac Ninh e aceitou que um
grupo de dez monges budistas em peregrinação para Kiêp Bac também
embarcasse, apenas para evitar as manifestações de hostilidade da multidão.
Uma pequena vendedora de sopa e a irmã conseguiram passar e se esconder
sob a balsa. A embarcação navegava há mais de meia hora quando Vinh
percebeu a presença das duas garotas.
— Anh Kien oi, minh se iam cai gi voi ho? Minh liên xuõnh duoi nuoc hay
không?
(O que vamos fazer, patrão? Podemos atirá-las na água?
As meninas correram na direção de Léa, aos gritos.
— Por que estão berrando assim?
— Vinh quer atirá-las na água.
Incrédula, Léa olhou para Kien.
— Ele deve estar brincando!
— Acho que não, o lugar delas não é aqui.
— Mas vocês não passam de um bando de selvagens! — exclamou Léa,
protegendo as duas garotas com os braços.
Kien deu uma gargalhada.
— Aqui, é cada um por si. Sabiam perfeitamente que não podiam subir a
bordo e que, se fossem descobertas, corriam o risco de acabar na água. Mas,
pode ficar tranqüila, não vou lhes fazer mal algum.
Bây gio chung may da co dây rôi, tui may nghich ngon qua, cu di nâu pho
cho chung tôi ma phai thât la ngon!
(Já que estão aqui, suas danadinhas, preparem uma boa sopa para nós!)
Após inúmeras lai, elas tiraram das cestas um pequeno fogão, legumes,
vasilhas, e começaram a preparar comida para agradar a Kien.
A chuva cessara e uma claridade de tempestade iluminava o pórtico do
templo real situado sobre uma alta colina coroada de árvores seculares. Léa e

os companheiros penetraram no amplo pátio onde magníficas figueiras
abrigavam peregrinos e vendedores agachados entre as gigantescas raízes.
— Para nós, vietnamitas, essas árvores são sagradas. Chamamos de
thiêng, pois são dotadas de poderes sobrenaturais. Antes da guerra, na grande
peregrinação anual de Koêp Bac, na oitava lua, uma multidão de Tonquim
costumava vir até aqui. Celebra-se ao mesmo tempo o culto dos gênios do sol,
do ar, da água e o dos mortos. Representa o ponto de encontro dos ông dông e
dos ba dông, que tentam acalmar os chung sinh e os ma qui. Mas pode
acontecer que os fantasmas e as almas errantes se encarnem nos feiticeiros.
— Pare, vai acabar me assustando! Nunca gostei de histórias de
fantasmas.
— Em seu lugar, teria mais medo dos vivos do que dos pobres espíritos
que vagueiam em busca do descanso eterno.
— Você deve ter razão, mas aqui reina uma estranha atmosfera, além do
tempo...
Kien olhou para ela, profundamente perturbado. O que uma simples
mulher, uma ocidental que desconhecia tudo da história do país, de sua
cultura e de seus hábitos, poderia entender a respeito deste lugar? No entanto,
ele já notara que Léa se mostrava atenta a tudo o que a cercava e não
costumava cometer erros em suas apreciações.
Penetraram no santuário cujo chão era coberto de esteiras e tiraram os
sapatos. A fumaça amarela dos milhares de bastonetes de incenso tornava o ar
opaco e sufocante. Painéis de madeira vermelha laqueada, marcados com
inscrições douradas em caracteres chineses, encontravam-se pendurados ao
longo dos muros. Sobre os diversos altares recobertos de seda estavam
dispostas, de frente para enormes estátuas de Buda, dos seus discípulos e de
Confúcio, as oferendas dos fiéis. Estes, ajoelhados ou de pé, salmodiavam suas
preces em forma de lai incessantemente repetidos.
A multidão vestida de preto, com exceção das túnicas coloridas de algumas
jovens e dos trajes berrantes dos monges, era composta em sua maioria de
mulheres e anciões. As crianças usavam roupas escuras ou de cor apagada —
apenas os bebês, no colo das mães, vestiam roupas vermelhas e toucas
bordadas.
— Aqui encontra-se enterrado um dos nossos heróis, o príncipe Hung Dao.
Em 1288, salvou Hanói das tropas mongóis que perseguiu e venceu em Van
Kiêp, perto deste lugar. Mandou executar dois dos principais generais inimigos
e atirar as suas cabeças no rio. Mas o espírito dos mortos sem sepultura
permaneceu errando, espalhando o terror e o mal entre as populações. Assim,
os habitantes da região, periodicamente, recorreram ao salvador da pátria,
Hung Dao, um gênio bondoso, para acalmar e afastar aquelas almas errantes.
Os altares que cercam o seu túmulo são dedicados ao espírito de sua mãe, de
seus filhos, de suas filhas e de dois dos seus generais. Este templo também

costuma ser assombrado por um gênio maldoso, o príncipe Tran Kien, que
conduzia os invasores sino-mongóis do príncipe Thoat-Hoan. Ele foi morto
durante a retirada pelos guerreiros anamitas do príncipe Hung Dao. Aqui,
chamam-no de Pham Nhan, Rosto de Abelha. E ele quem enfeitiça as mulheres,
impedindo-as de conceber. Mas o santo vigia e expulsa o demônio do corpo da
mulher.
Os pais dela também ajudam: chegam em imensas procissões
acompanhados pelo tantã e a flauta. Sobre um enorme tabuleiro coberto com
um pano vermelho, uns doze homens com turbante de seda laranja carregam
um boi assado. Atrás, seguem- se outras oferendas e, cercada pela família, a
mulher, com os seios apertados numa larga tira de seda da mesma cor
alaranjada das celebrações. Perto dela, encontram- se carregadores de sabres
de madeira laqueada vermelha, bandeiras verdes ou vermelhas, cofres de laca
preta contendo os papéis das súplicas. As oferendas são depositadas com toda
pompa sobre a mesa dos sacrifícios. Em seguida, acompanhado pelo som
abafado do tantã e dos gongos, e do som mais estridente da flauta, inicia-se o
cerimonial do exorcismo. É muito impressionante. Eu era criança quando
assisti a esta solenidade; muito tempo depois, acordei chorando. Chamei a
minha mãe, pois achei que estava possuído por Pham Nham, o espírito do mal.
Igual aquelas infelizes que se precipitavam para afogar o ma qui, eu queria
atirar-me no rio Vermelho. Toda ternura da minha mãe, a paciência do meu pai
e a sabedoria do meu avô foram necessárias para me trazer de volta à realidade
e acalmar a minha angústia.
Enquanto ele falava, alcançaram uma fonte ao redor da qual ardiam
bastonetes de incenso.
Inúmeras mulheres apanhavam água com a ajuda de pequenas vasilhas
de barro ou com as próprias mãos. Molhavam o rosto, os seios e o ventre
despidos ou então bebiam-na.
— Por que fazem isso? — perguntou Léa.
— Para que possam ter filhos lindos e saudáveis. Mas também contam que
a fonte milagrosa de Kiêp Bac realiza os pedidos dos namorados.
Léa aproximou-se, pegou um pouco de água na palma das mãos.
— Gênio cujo nome esqueci, faça com que eu possa encontrar François —
murmurou.
Kien imitou-a sem deixá-la com os olhos, em seguida acendeu um
punhado de bastonetes de incenso que acabara de comprar.
Trajada como uma verdadeira vietnamita, o cabelo escondido sob o grande
chapéu pontudo, Léa passava despercebida. Quanto a Fred, chamava a atenção
e a multidão de fiéis lançava-lhe olhares curiosos, disfarçando logo em seguida.
— Convém regressares ao Dodge, tua presença aqui é muito gritante.
— Mas, Kien, não pode ficar sem segurança!

— Não se preocupe à-toa, não estamos em Cholon; além do mais tenho
Vinh. Lembre-se, ele atira mais depressa que você!
Fred afastou-se, aborrecido, afundando o chapéu sujo e deformado sobre o
rosto. Vinh fez um gesto obsceno em sua direção, mas Léa conseguiu sustar.
Do terraço que ficava acima do rio, contemplaram as colinas em forma de
pão doce, a massa verde- escura das árvores, a água lodosa riscada por uma
multidão de embarcações de pescadores e vendedores. A bordo dos juncos,
bandos de crianças acenavam com a mão ou mergulhavam para voltar à tona
um pouco mais adiante. Mulheres apanhavam água, penteavam-se ou
amamentavam os filhos, enquanto as mais velhas fumavam seus longos
cachimbos. Havia pássaros cantando, fiéis rezando.
— Na época das grandes cerimônias da oitava lua, ao longo do no com as
águas aumentadas pelos aluviões escarlates, vê-se uma procissão infinita de
juncos enfeitados com grinaldas, bandeirolas e flores, carregados de peregrinos
com trajes elegantes, dentre os quais alguns carregam pequenos altares de
madeira vermelha e dourada para homenagear os antepassados. Um espetáculo
magnífico ocorre então aos pés das colinas de Van Yên.
Começou a chover. A superfície da água ficou marcada por milhões de
gotinhas. Por toda parte, guarda-chuvas — com certeza de gente importante —
abriram-se. As pessoas caminhavam sem pressa, o tempo não tinha
importância. Um garoto ofereceu a Léa um frasco contendo uma espécie de pó
cinzento.
— O que é? — perguntou ela ao segurá-lo.
— Um pouco de terra apanhada atrás do altar do gênio bom: um talismã.
Guarde-o.
Kien deu umas moedas ao vendedor que os encarou e depois saiu
correndo.
— Ele percebeu que você não era vietnamita, agora vai avisar aos outros.
— É muito grave?
— Não, mas é melhor partirmos logo. Vinh, vá até o caminhão.
Vinh saiu correndo enquanto, a passos lentos, eles foram caminhando até
a saída do santuário. Já se encontravam na metade do caminho quando os
jipes do exército francês surgiram no pátio em meio aos rangidos dos pneus e
dos freios. Vários legionários pularam dos veículos, com as metralhadoras no
quadril. O cenário permaneceu imóvel, em seguida as mães gritaram o nome
dos filhos, começaram a correr em todas as direções, empurrando os anciões,
enquanto os suboficiais lançavam ordens. Começaram a rolar na lama os
cestos das vendedoras, os pacotes de incenso, os rolos das súplicas, as moedas
das oferendas, as bandeirolas coloridas, os estandartes bordados. Os budas
pintados foram pisoteados por soldados que, com coronhadas, empurravam a
multidão para um canto do pátio. Léa caiu. Kien levantou-a e tentou alcançar o

pórtico. Um fuzil atirado no meio das suas pernas fez com que perdesse o
equilíbrio; ele tropeçou; sua cabeça bateu em uma raiz, perdeu os sentidos.
A rapidez e a violência daquele ataque deixaram Léa completamente
paralisada; tinha a impressão de estar revivendo a invasão de Montillac pelos
milicianos de Bordeaux. Não teve a menor reação quando um dos legionários
levou-a junto com os outros.
Ouviram-se tiros. Do alto do pórtico, um rapaz caiu, arrastando atrás de si
uma bandeira vermelha com uma estrela amarela que se abriu ao longo da
pedra onde ficou presa por uma das saliências.
Ao ver aquele estandarte, os legionários tornaram-se ainda mais furiosos e
passaram a atirar nele até perfurá-lo completamente. Perdida no meio dos
vietnamitas, Léa sentiu os corpos enrijecendo e viu os punhos se fechando. A
seu lado, uma jovem vietnamita chorava calada, com os olhos fixos na
bandeira. Léa baixou a cabeça. De repente, ouviu-se um ronco, seguido de uma
luz forte. Léa começou a tremer... Haviam voltado... Visualizou a sua tia
Bernadette transformada em tocha humana... as mesmas risadas... os mesmos
gritos... Com seu lança-chamas na mão, um jovem legionário ria ao ver queimar
a bandeira vietnamita. Virou-se então para a multidão que recuou. O pavor
tomou conta de Léa. Urrando como os outros, tentou abrir caminho e surgiu da
multidão, arrancou o chapéu que lhe escondia o rosto e correu até os soldados.
— Parem!... parem!... sou francesa!
O jovem legionário fitou-a, espantado.
— Alto!
A ordem brutal do tenente fez com que ela se detivesse. A chuva caía com
mais força. O tenente aproximou-se, com a arma no peito, o capacete jogado
para trás sobre a nuca escanhoada. Parou a dois passos de Léa e fixou-a
atentamente.
— É mesmo, você não é vietnamita! O que é que está fazendo aqui, com
toda essa fantasia?
Léa tentou falar, mas nenhum som saía de sua garganta.
— Sargento, chegue aqui, pegamos uma espécie muito rara!
— Mas o que é que é isso?
— Capitão, capitão, espere!...
Fred vinha correndo na direção deles.
— Capitão...
— Não sou capitão!
— Perdão, tenente... Esta senhora está comigo, assim como o senhor
Rivière — disse Fred, apontando para Kien que se aproximava — o rosto todo
ensangüentado, cercado por dois legionários.

— Senhor Rivière, isso aí? — gritou o tenente com desprezo.
Aquele tom fez com que Léa saísse do seu torpor.
— O senhor Rivière é francês, sou a senhora Tavernier. Aqui estão os meus
documentos...
O tenente examinou tudo com atenção, estendeu a mão para Kien que lhe
entregou os seus. Fred fez o mesmo.
— Mas que diabo estão fazendo nesta região? Os civis não têm direito de
circular por aqui.
— Eu não sabia — prosseguiu Léa com ar descontraído. — Estamos
visitando os templos e os pagodes. Há muitos neste setor, como pôde constatar.
— Então, são turistas?
— Isso mesmo, tenente. Podemos ir embora? Esperam por mim em Hanói.
— Seus documentos estão em ordem. Vou mandar escoltá-los até o seu
veículo. No entanto, senhora, só mais uma pergunta: por que este tipo de
roupa?
— É mais confortável para viajar — respondeu Léa com certa rispidez.
Sob o pórtico, desviou o olhar ao passar perto do corpo mutilado do jovem
vietnamita. Em seguida, deteve-se e lançou ao tenente:
— O que vai fazer com toda esta gente?
— Verificar se não estão escondendo armas em seus cestos ou por baixo
da roupa. Este lugar não oferece a menor segurança, vários soldados nossos
foram massacrados pelos Vietminh. Encontram- se em toda parte. Aquele que
foi abatido com a bandeira não estava sozinho, tenho certeza disso. A
população protege-os, com medo das represálias.
— Mas, entre eles, só há mulheres e crianças!
— E anciões... Na sua opinião, onde estão os homens?
Léa levantou os ombros, não via a hora de poder afastar-se dos Sete
Pagodes.
Sob uma chuva violenta, subiram no caminhão vigiado por Vinh. Kien
ligou o motor. O tenente acenou com a mão. O veículo afastou-se e,
rapidamente, teve de diminuir a velocidade devido ao mau estado do caminho.
Acabou parando diante de um impressionante buraco. Os homens saltaram,
Léa segurou o volante. Com a ajuda dos legionários, conseguiram passar.
Agarrada ao volante. Léa sorriu a um dentre eles: aquele rosto coberto de lama
e barba, aqueles olhos pretos lembravam-lhe alguém. O homem também olhava
para ela, com as sobrancelhas franzidas. O Dodge acabou saindo do lamaçal.
— Continue na mesma velocidade — gritou Kien pulando a seu lado.

Agarrando-se na traseira, Fred e Vinh também conseguiram subir. O
veículo avançou até o cais onde embarcaram imediatamente na balsa.
Kien e Léa fumavam em silêncio.
— Viu como os franceses se comportam no Vietnã — disse ele cobrindo a
ferida com um lenço. — É a cena a que você assistiu não foi das piores. Na
maioria das vezes, costumam atirar ao acaso...
— Não posso acreditar!
— Acredite no que quiser. Teria sido muito interessante ver o que iriam
fazer se você não saísse da multidão gritando: "Sou francesa!" Confessa que
ficou com medo?
— Sim... Fico com medo de tudo o que usa um uniforme e até... Oh! meu
Deus!...
Léa levou a mão à boca. Lívida, com os olhos esbugalhados, começou a
tremer.
— O que está sentindo?
Com os dedos contraídos no rosto, ela se balançava de trás para a frente,
cada vez mais rápido, fazendo não com a cabeça. Kien segurou-lhe o braço e
sacudiu-a.
— Pode me dizer o que está acontecendo?
— Pensei... pensei... — mal conseguiu balbuciar.
— Pensou o quê?
— Pensei...
— O quê? — gritou Kien sacudindo-a com mais força ainda.
— Pensei ver um argentino.
— Um argentino?... Onde?... Quando?...
— Ainda há pouco... Um daqueles legionários que nos ajudaram a
atravessar o buraco na estrada.
— Por que ficou tão assustada?
— Trata-se de um nazista... O pai dele hospedava alemães que fugiram
com a chegada dos aliados, ajudava os que eram procurados como criminosos
de guerra. Sua hacienda servia de local para as reuniões de alemães e
argentinos pró-nazistas. Seu filho Jaime era responsável pela propaganda junto
aos jovens de Buenos Aires e de Mar dei Plata. Na Argentina, mataram dois
amigos meus.
Mas deve ser um engano... O que faria Jaime na Indochina? Esta guerra
não tem nada a ver com ele... Não, não pode ser ele. Não é verdade?
— disse ela num só jato.

— Claro, você foi vítima de uma grande semelhança. Descanse. Dentro de
uma hora, chegaremos a Bac Ninh. Ali, alguns amigos do meu pai poderão nos
receber. Como se chamava seu argentino?
— Jaime Ortiz.
Kien não estava tão calmo quanto desejava mostrar. Ele deixara de lhe
contar que qualquer pessoa podia alistar-se na Legião Estrangeira, que vários
alemães haviam aparecido para fugir das perseguições ou continuar a guerra
contra os comunistas, que certas unidades contavam até oitenta por cento
deles; o que representava sérios problemas para o comando, que não desejava
que o alemão passasse a ser a língua oficial da Legião...
Em Bac Ninh, hospedaram-se na casa de um casal de professores
franceses que viviam na Indochina há vinte anos. Apesar das pressões da
família e dos filhos que moravam na França, recusavam-se a deixar o país que
tanto amavam e consideravam como o deles. Perseguidos pelos japoneses,
haviam sido salvos e escondidos por ex-alunos. Atualmente, alguns dentre eles
encontravam-se nas fileiras do Vietminh; outros, nas do exército francês.
Devido às dificuldades de abastecimento, os Duval pediram mil desculpas
diante da escassez de alimentos em sua mesa. Entretanto, a refeição foi
excelente e farta. Ao lado daquela mulher que lembrava suas tias, Léa sentiu-se
em segurança e dormiu como não fazia há muito tempo.
No dia seguinte, separaram-se com certa tristeza.
Entraram em Hanói pela famosa ponte Paul-Doumer que transpunha o rio
Vermelho numa extensão de 1.652 metros. Uma verdadeira onda humana
parecia assaltar os poucos veículos presos em meio à multidão.

Capítulo 24

François Tavernier recuperou a consciência mais tarde. O coração batia
com tanta força que ele chegava a tremer. No local da ferida, experimentava
uma sensação de frescor; sentia-se leve, com uma imensa fraqueza. Lembrou-
se do rosto doentio de Hong com tanta intensidade que abriu bruscamente os
olhos. Seu olhar chocou-se com a pedra por onde corriam fios elétricos. A
abóbada, muito baixa, não permitia que ficasse de pé. Um homem, usando uma
camisa que já fora branca, avançava curvado, passando por cima dos feridos
deitados como François sobre esteiras.
Encontrava-se em um hospital subterrâneo do Vietminh. As lâmpadas
suspensas espalhavam uma luz fraca que, em certos momentos, ameaçava
apagar-se. Numerosos feridos haviam sido amputados de um braço, ou de uma
perna, às vezes dos dois. François ergueu-se e soltou um gemido. O homem de
blusa clara virou-se. Disse umas palavras a um dos seus auxiliares e caminhou
na direção de François.
— Vejo que conseguiu despertar, senhor Tavernier. É tão frágil quanto
uma mulher!
Em primeiro lugar, não ficar furioso. Por experiência própria, sabia que os
vietnamitas adoravam tirar os brancos do sério, fazer com que se sentissem em
situação de inferioridade, enquanto eles permaneciam gentis e sorridentes.
— Sou o doutor Tuân. Sua ferida é muito feia, mas nada grave. Diferente
das deles — disse, apontando para os coitados deitados em esteiras imundas.
Os feridos, em sua maioria, permaneciam calados, emitindo apenas alguns
suspiros.
— Tenho sede — murmurou François.
— Dua cho no uông nuoc.
Um dos auxiliares do doutor Tuân levantou a cabeça de François e deu-lhe
um pouco de chá muito doce.
— O que pôs nesse chá?
— Xarope de ópio. Vai ajudá-lo a dormir. À noite, as dores despertam, você
poderia atrapalhar o sono dos companheiros com seus gritos. Boa noite, senhor
Tavernier.
"Vá para o inferno!", pensou François ao fechar os olhos.
Durante dois dias e duas noites, ele não teve consciência do tempo que
passava. Na manhã do terceiro dia, despertou tão bem-disposto que,
esquecendo-se de onde se encontrava, deu um pulo e bateu com a cabeça. Meio

tonto, caiu de volta em sua esteira. A seu lado, um rapaz que perdera a perna
deu uma gargalhada. François lançou-lhe um olhar zangado. A hilaridade do
ferido só fez aumentar. O médico e a enfermeira, que assistiram à cena,
imitaram o rapaz e em seguida, todos aqueles que tinham condição de fazê-lo,
riram à vontade. Diante de tanta alegria, apesar das dores de cabeça, o próprio
Tavernier foi sacudido por um acesso de riso.
Tratava-se de um espetáculo muito estranho: todos aqueles aleijados
brincando como garotos, esquecendo-se do seu sofrimento com o riso.
Foi o médico que se recompôs em primeiro lugar:
— Preciso agradecer-lhe, senhor Tavernier, por ter sido a causa, embora
involuntária, desse momento de lazer para meus companheiros.
— Foi um prazer para mim, doutor Tuân.
— Deixe-me ver esse dodói... Não foi nada. Só vai ficar com um lindo galo.
Cuidado ao levantar. Tem água na entrada da gruta, pode lavar-se. O senhor
Dông está à sua espera.
Curvado, ele seguiu Tuân. Antes de sair, virou-se para trás: dezenas de
olhares fitavam-no. Quantos dentre aqueles coitados conseguiriam sobreviver
aos ferimentos? Acenou para todos.
Lá fora, fazia muito frio. Tuân mostrou-lhe um barril cheio de água perto
do qual alinhavam-se várias bacias amassadas, de esmalte azul ou branco
desbotado. Com a ajuda de uma lata de conserva, François pegou um pouco de
água que despejou em uma das bacias, e lavou o rosto e as mãos.
— Gostaria de fazer a barba. Sabe onde estão as minhas coisas?
— Não. Mas vá falar com o camarada que o trouxe até aqui. Saberá
informá-lo.
Sem esperar, François tirou a camisa e a calça, duros de sujeira e de
sangue, e ficou de cueca.
Após um instante de hesitação, tirou-a também e jogou fora com certo
nojo. Nunca, durante a guerra de Espanha ou a batalha de Berlim, ele se
sentira tão sujo. À sua volta, os soldados vietnamitas zombavam dele.
"Como se diz sabão?", pensou enquanto despejava uma bacia de água na
cabeça e no peito.
Foi salvo por Tran Van Viêt que lhe trouxe uma toalha e um pedaço de
sabão cinzento. François pegou-o e esfregou-se vigorosamente. Como o curativo
no peito atrapalhava sua toalete, ele o arrancou. A cicatriz vermelha e inchada
não era das mais bonitas. Apesar do galo que aumentava sob seus dedos,
friccionou a cabeça com energia. Em volta dos seus pés, uma poça
sanguinolenta e escura espalhava-se.
Viêt deu-lhe a toalha.

— Obrigado. Sabe onde estão as minhas coisas?
— Sinto muito, senhor Tavernier, não conseguimos encontrá-las.
— Não posso voltar a vestir esses trapos. Encontre roupas para mim!
— Não temos nada do seu tamanho, senhor Tavernier, é muito alto...
Agachadas diante do fogo onde cozinhavam arroz, algumas anciãs com os
dentes laqueados riam às gargalhadas enquanto as mais novas escondiam o
rosto com as mãos.
— Senhor Tavernier, é um cômico nato. Vamos mantê-lo aqui, pois assim
que aparece, a alegria toma conta dos corações! — disse o doutor Tuân saindo
do seu hospital.
— Dua cho ông Tavernier nhung quan ao cua nguoi nhân tu Phap. Sat
den no không cân nua.
(Tragam para o senhor Tavernier as roupas do prisioneiro francês. Em
breve, não precisará mais delas...)
Um enfermeiro partiu correndo e retornou em seguida, carregando uma
trouxa de roupas. Após um sinal do médico, entregou tudo a François.
Cuidadosamente lavado, passado e dobrado, um uniforme do exército francês,
roupa de baixo, meias cerzidas com minúcia, um par de sapatos engraxados
foram arrumados sob os olhos espantados de Tavernier.
— Onde conseguiu tudo isso?
— Com um dos seus compatriotas moribundo.
— Há feridos franceses aqui?
— Já tivemos. A maior parte morreu, exceto dois que não vão durar muito.
— Vocês não cuidam deles?
— Quem pensa que somos, senhor Tavernier, simples açougueiros?
Carrascos? Sou médico, senhor, sei qual é o meu dever.
— Desculpe-me, doutor Tuân, não pretendia ofendê-lo. Entenda o meu
espanto... Eu poderia vê-los?
— Vou falar com o comandante. Enquanto isso, vista-se, o senhor está
ridículo.
Aquele tom não admitia discussão. François vestiu com grande prazer as
roupas limpas. As mangas do casaco e as pernas da calça estavam um pouco
curtas, os sapatos um pouco apertados; no entanto, assim trajado, sentia-se
outro homem. Sua única tristeza era não ter feito a barba.
— Está pronto? O senhor Dông espera pelo senhor. Tome, seus
documentos e seu dinheiro.
— Já vou, obrigado — respondeu François ao pentear com os dedos o
cabelo muito comprido e molhado.

Pham Van Dông esperava, sentado sob um pinheiro, encostado no tronco;
estava lendo.
— Anh 7, dây la ông Tavernier.
(Aqui está o senhor Tavernier, camarada Dông.)
— Cam on, anh Viêt. Dê chung tôi yên.
(Obrigado, Viet. Deixe-nos a sós.)
— Sente-se, senhor Tavernier.
François obedeceu.
— Fico feliz ao ver que está melhor. Epa! ... Acho que bateu com a cabeça
no teto do nosso hospital! Ora! Ora!
François tocou na cabeça, onde havia um galo de tamanho respeitável, e
fez uma careta.
— Dói, não é? Ahahah!
"Não posso entender o que há de tão engraçado sim", pensou François,
dissimulando o mau humor.
— O presidente Hô Chi Minh pediu-me para lhe dizer que se sentia feliz em
conhecê-lo e quis que eu conversasse um pouco com o senhor...
— Não terei oportunidade de revê-lo?
Pham Van Dông não respondeu à pergunta e prosseguiu:
— Temos sido muito pacientes, senhor Tavernier, em relação à França que
nunca nos tratou como interlocutores iguais, e que usou uma linguagem dúbia,
separando os três Ky-3 dividindo o norte e o sul, entregando o poder a um
homem tão corrupto quanto o ex-imperador Bao Day. Já que a França quis
assim, iremos conquistar a nossa independência pelas armas. Para isso, o povo
vietnamita está pronto a enfrentar os mais pesados sacrifícios. O presidente Hô
Chi Minh disse tudo às autoridades francesas, mas não foi ouvido. Seu país vai
sofrer as conseqüências. Por outro lado, senhor Tavernier, quero lhe lembrar
que deixou de ser um representante, mesmo oficioso, do seu governo. Não se
encontra em condições de transmitir mensagem alguma. Vamos levá-lo até um
posto francês, que tomará conta do senhor.
A respeito de Pham Van Dông, François só sabia o que lhe tinham contado
Lê Dang Doanh e Hai Rivière: filho de um mandarim da corte de Huê, órfão
muito cedo, foi educado pelos irmãos.
Interno no colégio de Hanói, participou, junto com os colegas, de
manifestações nacionalistas. Preso e novamente solto, foi para a China onde se
encontrou com um compatriota, Nguyên Ai Quoc, o futuro Hô Chi Minh, que o
iniciou no marxismo. Comunista convicto, regressou à Indochina em 1927 para
prosseguir a luta. Em Saigon, foi professor de francês no colégio particular
Nguyen Van Chiêu, em Cholon. Detido após os sangrentos motins de 1930, foi

deportado durante seis anos para Poulo Condore, onde cumpriu pena de
trabalhos forçados. Libertado pelo governo da Frente Popular, passou a viver
junto à família. Repórter do La Volonté indochinoise, continuou a participar das
atividades legais do partido comunista indochinês. Tinha ido para Moscou,
como afirmava Hai, ou encontrara-se com Hô Chi Minh em Cantão, como
pensava Lê Dang Doanh? Só Pham Van Dông podia dizer. Após a criação do
Vietminh em 1941, entrou clandestinamente no Tonquim para participar
ativamente da guerrilha, apesar de seu estado de saúde bastante precário.
Quando da conferência de Fontainebleau, em julho de 1946, chefiou a
delegação vietnamita. Furioso por não ter conseguido que fixassem a data e as
modalidades de um referendo na Cochinchina, ultrajado pelo que considerava
uma mutilação da pátria, a ocupação dos planaltos moi pelas tropas do general
Leclerc, ele deixou a sala de conferências em meio ao maior tumulto,
interrompendo assim as discussões. De volta ao Vietnã, os dirigentes Vietminh,
apesar do modus vivendi assinado in extremis por Hô Chi Minh e o ministro da
França para o Ultramar, Marius Moutet, endureceram as suas posições e
efetuaram numerosas prisões entre os representantes da oposição, embora
dessem a ordem de cessar- fogo. Era óbvio que o Vietminh aproveitara-se desse
cessar-fogo para reforçar os seus dispositivos militares, aumentar o poder sobre
as populações e "reconstituir no sul as forças armadas desbaratadas pelo
inimigo.
Atualmente, Pham Van Dông era ministro das Finanças do Vietminh e
íntimo do presidente Hô Chi Minh.
François experimentava certa atração por esse homem de rosto bronzeado
e marcado pelo cansaço.
A testa alta, a boca larga e carnuda, os olhos maliciosos, as mãos finas e
bonitas, ele possuía uma voz quente e encantadora com entonações
melodiosas. No decorrer de sua vida tumultuosa, o francês sempre tivera
irreprimíveis ímpetos de simpatia que, qualquer que fosse o desenrolar dos
acontecimentos, nunca haviam sido frustrados. Ele lamentou ter de partir sem
vislumbrar a menor possibilidade de entendimento.
— Está muito calado, senhor Tavernier. Eu esperava uma onda de
palavras mentirosas da parte de um embaixador da França!
— Senhor Dông, fui enviado até aqui pelo presidente Auriol com o sincero
desejo de reatar os contatos entre nossos dois países...
— Quanta presunção! Como tem a audácia de falar em sinceridade
quando, desde 1945, o governo francês nunca parou de nos enganar,
mantendo-nos na dúvida quanto às suas verdadeiras intenções por intermédio
de homens em quem o presidente Hô Chi Minh depositara toda sua confiança?
Não acredito de forma alguma que o general Leclerc, o senhor Jean de
Sainteny, o senhor Paul Mus ou Louis Caput estivessem a par de suas
intenções. Usaram-nos para levar adiante a política do general De Gaulle, com
a qual concordava servilmente o almirante d'Argenlieu e, depois, a de Georges

Bidault e dos negociantes de todo tipo que pretendiam retomar a exploração do
povo indochinês. Mas agora deixamos de ser tão ingênuos! A nação vietnamita
lutou para sobreviver e desenvolver- se durante vários milênios, conheceu
páginas de uma História dolorosa e épica, brutal e gloriosa. Possui uma
vitalidade poderosa e durável, um espírito de luta indomável, está repleta de
um grande orgulho nacional e de um intenso desejo de independência. Seus
compatriotas não perceberam nada disso!
O rosto de Pham Van Dông animara-se, com os olhos negros brilhando e o
queixo duro apontado para a frente. Todo seu ser emanava uma vontade
incansável.
— O presidente Hô Chi Minh, Giap, numerosos camaradas e eu mesmo,
tivemos a ingenuidade de acreditar que a França, saindo de quatro anos de luta
contra o invasor alemão, seria capaz de compreender nosso desejo de
independência. Pois sim! Quanta candura! Mas nossa revolução nacional já
começou e nada conseguirá detê-la. Mais tarde, será a vez da revolução
proletária...
Seu rosto, virado para a montanha, pareceu iluminar-se como se visse à
sua frente aqueles "amanhãs que cantam" prometidos por Lenin e seus
companheiros.
Ao ler os pensamentos do francês, Pham Van Dông prosseguiu:
— Só encontraremos nossa libertação no socialismo e no comunismo —
declarou desde o início dos anos 1920 o presidente Hô Chi Minh. O partido
comunista e o povo vietnamita aproveitaram-se dessa oportunidade única em
mil anos para tomar o poder, proclamar a independência nacional e fundar o
novo Vietnã. Mas os inimigos da independência e da liberdade no Vietnã, que
não estavam completamente liquidados, reapareceram. Os colonialistas
franceses e, junto com eles, as forças imperialistas mundiais, em primeiro lugar
os imperialistas americanos, não poderiam aceitar que uma colônia se
transformasse na República Democrática do Vietnã. Obviamente, muito sangue
será derramado antes que o seu país e o resto do mundo reconheçam a
independência do nosso país. Mas nós venceremos, senhor Tavernier, nós
venceremos!
Com o rosto iluminado por uma visão interior, Pham Van Dông calou-se.
— Poderei falar com o presidente Hô Chi Minh?
— Não, ele foi embora durante a noite. Entende, senhor Tavernier, vamos
deixá-lo partir e não podemos correr risco algum...
— Anh Tô, bây gio phai di.
(Camarada Dông, está na hora de partir.)
— Vâng, tôi dên ngay.
(Já vou, camarada.)

— Senhor Tavernier, apresento-lhe as minhas despedidas. Um dia, quando
a guerra acabar, talvez possamos nos rever. Sabe, apesar de todos os
obstáculos entre nós, estou convicto de que o povo vietnamita e o povo francês
ainda podem se entender.
Pham Van Dông estendeu a mão direita que, fina e bronzeada,
desapareceu na larga palma do francês. Com a mão esquerda, o revolucionário
cobriu então os dois punhos unidos e apertou-os com força, como se quisesse
comunicar a sua convicção a François. Incapaz de pronunciar uma única
palavra, este experimentou uma emoção que não conseguia analisar.
Permaneceram assim durante um longo tempo, sorridentes, olhos nos olhos.
Em seguida, Pham Van Dông abriu as mãos e afastou-se contra a sua
vontade.
Pensativo, François caminhou até o hospital. O doutor Tuân acabava de
lavar as mãos.
— Doutor, comunicou o meu desejo de falar com os meus compatriotas
feridos?
— Sim, senhor Tavernier, transmiti o seu pedido e foi aceito. Só poderá
falar com um dos feridos. Um já morreu e o outro não passará desta noite.
Siga-me.
François nem notara, perto da entrada do hospital, uma construção de
bambu diante da qual se encontrava um homem armado com um fuzil que se
afastou após um sinal do médico.
Na cabana, a temperatura estava morna e não havia luz. A claridade
penetrava através das folhas de bambu, iluminando dois leitos. Num deles,
agitava-se um ferido. François aproximou-se.
— Nós o encontramos no fundo de um barranco, as duas pernas
arrancadas por uma mina, junto com cinco ou seis companheiros mortos e a
mesma quantidade de feridos graves. Um deles, quando nos viu, matou-se com
um tiro na cabeça. Levamos os sobreviventes, mas quando chegamos três
dentre eles já haviam perecido. Cuidamos dos outros. Este é o último, mas irá
logo ao encontro dos seus antepassados — disse o doutor Tuân.
As faces por barbear, a testa encharcada de suor, os olhos marcados por
olheiras profundas, os cotos de suas pernas atados com curativos imundos, o
rapaz gemia. François agachou-se e tocou-lhe o ombro. O soldado abriu os
olhos. Durante um certo tempo, ficou encarando o homem debruçado sobre ele.
— Você é francês? — perguntou com voz fraca onde transparecia um certo
espanto.
— Sim.
— Os meus companheiros?... Vão sair dessa, não vão, doutor?... Esqueci-
me do que aconteceu!... Ah!

Ele foi sacudido por um violento tremor, tentou erguer-se e caiu, o torso
nu e brilhante de suor agitado por uma intensa perturbação, as mãos
estendidas na direção de François.
— Doutor... me fale... minhas pernas?... Não!... É mentira!... Doutor!... É
brincadeira, não é, doutor, é brincadeira?... Responda!
O ferido segurava François pela camisa e sacudia-o com uma força
demente.
— Descanse, vão tratar de você — murmurou François, transtornado,
tentando livrar-se das mãos crispadas do ferido.
As lágrimas corriam pelas faces cinzentas do soldado, seu pobre corpo
estava agitado por violentos soluços que sacudiam a cama.
— Minhas pernas!... Minhas pernas!... Estou com medo... Mamãe!... Dói...
Mamãe!...
Este último grito encheu a cabana e depois o silêncio instalou-se.
Cabisbaixo, François não se movia. O doutor Tuân aproximou-se:
— Acabou, senhor Tavernier. O coitado deixou de sofrer.
Lá fora, as montanhas estavam lindas, o céu riscado de nuvens com
formas estranhas, o ar suave perfumado como odor marinho dos pinheiros; os
rebeldes vietnamitas preparavam a evacuação do campo, crianças brincavam
de pegar, duas jovens, com o fuzil a tiracolo, a cabeça coberta com o grande
chapéu de folhas de bananeira, conversavam animadamente. Mais adiante, no
vale, um grupo de mulheres trabalhava no meio dos arrozais, búfalos mansos
puxavam arados primitivos.
Tudo estava calmo, silencioso, imutável.
Um rapaz francês de vinte anos acabara de morrer longe de sua pátria, de
sua mãe, e esse fato não tinha a menor importância.

Capítulo 25

Foi uma família enlutada que recebeu Léa no início do mês de julho. Uma
semana antes, o avô amado e venerado juntara-se aos ancestrais. Lê Dang
Doanh apagara-se durante o sono. A serenidade do seu rosto levara os netos a
afirmar que ele havia falecido em paz. Só Lien tinha uma opinião diferente. Nos
últimos tempos, o avô fizera-lhe certas confidências a respeito de suas
angústias quanto ao futuro de seu país e de sua descendência:
— Sei que o presidente Hô Chi Minh é um homem de bom coração,
honesto, que luta pela independência do Vietnã; mas trata-se também de um
chefe comunista que deve manter o partido a par dos acontecimentos. Saberá
como afastar os elementos mais radicais? E quanto a vocês, meus queridos, o
que irá lhes acontecer quando os franceses deixarem o país? Sabe, minha filha,
nosso povo vai ganhar esta guerra e é correto que seja assim. Mas, após o
banho de sangue da independência, o da revolução me apavora. As revoluções
precisam de carne fresca para instaurar- se. Como mestiços, todos vocês estão
fadados a ser os bodes expiatórios. Isso dilacera a minha alma, e eu preferiria
que partissem para o país de seu pai.
Após o funeral, Lien falou com os irmãos Hai e Bernard sobre o desejo do
avô.
— Nem pensar! — exclamou Hai. — Este país é o meu. Minha esposa é
vietnamita, meus filhos são vietnamitas. Quanto a mim, sinto-me mais
vietnamita que francês. Vou ficar e continuar lutando para defender a minha
pátria.
— O Vietnã não tem a menor chance de existir sem a França — protestou
Bernard — e não quero que se torne um Estado comunista às ordens de
Moscou. Devemos tudo à França. Sem ela, continuaríamos vivendo na
ignorância e na miséria!
— Como pode dizer tantas tolices?... Não conhece a riqueza da nossa
cultura, a beleza dos nossos palácios, dos nossos pagodes? Nossa ilustre
família e nosso avô, respeitados por todas as pessoas cultas do país, não
representam nada para você?... E quanto ao povo, acredita mesmo que o
colonialismo lhe trouxe o conhecimento, a segurança, a riqueza e a felicidade?
Esqueceu-se da nossa raiva, quando costumávamos ler o livro de Andrée Viollis
que François nos mandou às escondidas? Esqueceu-se das nossas lágrimas, da
nossa vergonha por sermos meio-franceses, diante da injustiça cometida com
os prisioneiros políticos, os processos arquivados, as falsas testemunhas, as
execuções sumárias, as espoliações de todo tipo?
— As coisas mudaram desde 1931.

— Você acredita nisso?
Bernard baixou a cabeça. Lembrava-se da leitura de SOS. Indochine e do
sentimento de revolta que o dominara. Mas, desde então, embora não ousasse
contar ao irmão, aquele sentimento fora substituído por uma impressão de
mácula: isso mesmo, seu sangue francês estava sendo maculado pelo sangue
anamita da mãe. E, como adorava a mãe e o avô, o adolescente passou a se
considerar uma anomalia da natureza, um renegado, e escondeu no âmago do
seu ser o que costumava chamar secretamente de sua tara. O físico pouco
asiático e o nome foram de grande utilidade para tornar-se amigo dos filhos da
colônia que freqüentavam o liceu Albert-Sarrault. Ele nunca foi visto brincando
com um colega anamita. Durante certo tempo, aquela rejeição do seu sangue
vietnamita levou-o à recusa da própria língua vietnamita, que ele não falava e
fingia não entender. A severidade do pai, os socos do irmão não conseguiram
vencer a sua teimosia. No entanto, após violenta febre que pôs a sua vida em
perigo, e graças às palavras suaves da mãe, o rapazinho foi procurar proteção
em seus braços e disse chorando:
— Xin lôi me, con thuong me. Xin lôi.
(Me perdoe, mamãe, eu te amo, me perdoe).
Sua convalescença foi demorada. O avô contou-lhe antigas lendas, leu
poemas franceses e vietnamitas, com preferência marcada por Victor Hugo.
Freqüentemente, o jovem Bernard recitava esses versos com voz tonitruante:

As encruzilhadas estão repletas de choques e combates.
As multidões vão e vêm pelas ruas.
Turba! sulcos abertos por seus insípidos arados:
Noite, dor luto! campo triste onde tem germinado
Uma espiga que assusta aos que a semearam!
Vida e morte! vaga onde a hidra enleia-se ao infinito!
Povo oceano desaguando na escuma da populaça!

Para ele, a espiga semeada que assustava era o comunismo, que precisava
combater. Lien poderia compartilhar o seu ponto de vista, pois era
profundamente nacionalista, mas depositava em Hô Chi Minh a mais profunda
confiança e acreditava que ele colocava os interesses do país acima do partido.
Por enquanto, era necessário obter da França a independência tão
ardorosamente desejada, até mesmo pela força, se fosse preciso.
Conforme inúmeros compatriotas seus, ela não acreditava no que
chamavam de solução Bao Daï. O ex-imperador, ex-conselheiro de Hô Chi
Minh, suscitava a desconfiança do governo francês assim como a dos patriotas

vietnamitas. Estes denunciavam como uma grande palhaçada a assinatura do
acordo de 5 de junho de 1948, na baía de HaLong, abordo do cruzador
DuguayTrouin, na presença do próprio Bao Daí. Rubricado pelo alto comissário
Emile Bollaert e o general Nguyên Van Xuân, o texto "reconhecia solenemente a
independência do Vietnã, a quem cabia efetivar livremente a sua unificação".
Ainda estipulava o seguinte: "O Vietnã proclama sua adesão, na qualidade de
Estado associado, à União francesa." Na verdade, pela primeira vez, a França
aceitara o termo independência, doe lap, tanto tempo pedido, em vão, por Hô
Chi Minh; mas em nenhum momento o povo fora consultado.
Lien reprovava os atos sangrentos do Vietminh, mas havia outra escolha?
O ataque em Dalat, em 10 de março, a um comboio de setenta veículos quase
todos civis, escoltados pelo exército, causara noventa mortos. Entre os cento e
cinqüenta civis levados como reféns, estavam a sua melhor amiga com os dois
filhos. Depois disso, nenhuma notícia deles, apesar da intervenção de sua
cunhada Phuong junto ao pai Nguyên Van Dong, um dos líderes da Resistência.
Hai contou-lhe, então, sob o selo do segredo, que iria juntar-se à
resistência para tratar dos feridos em companhia da esposa. Ela aceitaria
tomar conta das duas filhas do casal? Lien atirou-se aos braços do irmão e
consentiu em cuidar das sobrinhas.
— O que vou dizer a Bernard e a Kien quando me perguntarem por que as
meninas estão aqui?
— Dirá que achamos que elas estarão mais seguras em Hanói.
— Não vão acreditar em mim!
— Claro que não, mas não tem importância. O que eles precisam é salvar
as aparências.
Bernard tomou as providências necessárias para que sua mulher,
Geneviève, e a filha Mathilde pudessem partir para a França. O falecimento do
avô apenas adiara essa viagem.
No dia seguinte ao falecimento, a família Rivière recebeu a carta de Léa
anunciando a sua chegada à Indochina. Aquela mensagem levara dois meses
para alcançar Hanói. Bernard contatou imediatamente seu correspondente no
Banco da Indochina de Saigon. A senhora Tavernier permanecera alguns dias
no hotel Continental, mas já saíra de lá: foi o que lhe disseram. Um rico
mestiço chinês, muito conhecido em Saigon, chamado Philippe Müller, viera
apanhar as suas coisas.
Segundo ele, a senhora Tavernier partira em busca do marido.
Quanto a Hai, tentou saber onde se encontrava François. Seu sogro,
Nguyên Van Dong, mandou avisar que o presidente Hô Chi Minh aceitara
recebê-lo e que ele fora levado até um posto, entre Cao Bang e Lang Son; o
resto era com os franceses. Só restava aguardar a sua volta a Hanói.

Léa chegou em primeiro lugar. Houve um espanto geral quando Kien
apresentou a jovem que o acompanhava, vestida com o tradicional traje
vietnamita:
— Esta é a esposa de François.
O cansaço, a falta de maquiagem, a simplicidade de suas roupas davam a
Léa um ar muito jovem.
"Não passa de uma criança", pensou Lien, com um aperto no coração,
cumprimentando-a à moda indochinesa.
"Como ela é linda!", pensou Léa, dando-lhe a mão.
Hai e Bernard, completamente seduzidos, mostraram-se mais expansivos.
— Sabem onde está François? — perguntou Léa rispidamente.
— Sabemos que ele se encontra no norte — respondeu Hai.
— Fica longe daqui?
— Não muito: duzentos, duzentos e cinqüenta quilômetros, em princípio
ocupados pelo exército francês.
— Por que em princípio?
— Porque, ao cair da noite, fora das cidades, o Vietminh controla tudo.
Léa encolheu os ombros e começou bruscamente a chorar, de pé, os
braços pendentes igual a uma garotinha.
A bondade natural de Lien foi mais forte que seu ciúme. Segurou o braço
de Léa e levou-a para dentro de casa.
— Venha, você está cansada. Vou levá-la até o seu quarto. Thuong, di sua
soan buông tam. (Thuong, vá preparar um banho.)
A jovem criada saiu correndo.
A sós, os três irmãos tomaram o chá que lhes oferecia um jovem boy.
— Será que pode explicar como você se encontrou com a senhora
Tavernier? — perguntou Bernard.
— Levaria muito tempo para contar tudo detalhadamente — respondeu
Kien deitando-se no sofá. - Encontrei-a em Saigon onde fiquei sabendo da
presença de François graças aos meus informantes. Ofereci-me para ser seu
guia. Infelizmente, o marido não se encontrava mais no local indicado. Resolvi,
então, trazê-la até aqui onde deverá aguardar a volta dele.
— Ficar passeando assim em tua companhia foi extremamente perigoso!
Onde estiveram?
— Parece um interrogatório! Visitamos a baía de Ha Long, ela gostou
muito...

— Não creio que tenha vindo até aqui para fazer turismo — observou Hai
rispidamente. — Você tinha a obrigação de nos avisar que ela se encontrava no
Vietnã.
— Hai, pare de bancar o chefão. Como vai vovô? Ele foi informado da
nossa chegada?
Bernard e Hai baixaram os olhos. A chegada do irmão, em companhia de
Léa, fizera com que se esquecessem do luto por um instante. Nenhum dos dois
tinha coragem de contar a Kien a triste notícia. Surpreso com aquele silêncio,
ele os fitou atentamente.
— Mas que cara é essa? Vovô está doente?
A última sílaba ficou em suspenso. Apesar do tom bronzeado de sua pele,
ele empalideceu, o rosto tornou-se mais sério enquanto o coração batia mais
forte.
O sofrimento do irmão caçula despertou o deles. Hai nem tentou conter as
lágrimas.
— Quando? — perguntou Kien entre soluços.
— Há uma semana — respondeu Bernard. — Ele não sofreu, morreu
dormindo. Foi ao encontro de nossa mãe, sua bem-amada filha. Que descanse
em paz.
Kien chorou como um menino.
O banho morno e perfumado trouxe grande bem-estar a Léa. Lien lhe
dissera para não se preocupar, pois o regresso de François era iminente. Se
fosse preciso, mandariam alguém até Lang Son. "Eu mesma irei", pensou ao
adormecer na água.
Kien sumiu durante três dias. Voltou na madrugada do quarto dia, sujo,
cheirando a álcool, o rosto marcado por socos, as mãos machucadas. Desabou
no saguão. Acordada, Lien tentou arrastá-lo até o seu quarto, mas teve de
desistir. Chamou Thuong para ajudá-la a carregar o rapaz.
— Di muc nuoc va lây môt cuc xa bông.
(Vá buscar água e sabão.)
Despiu o corpo inerte do irmão e lembrou-se dos banhos que lhe dava
quando criança. Ela corou ao vê-lo nu. Com o auxílio de Thuong, que ria
nervosamente ao olhar às escondidas para o sexo de Kien, Lien o lavou dos pés
à cabeça.
— Cam on, em. (Obrigado, irmãzinha.) — murmurou Kien enquanto ela
saía do quarto.
Dormiu profundamente até o dia seguinte.
Léa preenchera os últimos dias conversando com oficiais, funcionários que
pudessem saber o que acontecera com François. Nenhum deles pôde ou quis

fornecer-lhe a menor informação. Em Hanói, reinava um calor sufocante, sem
vento algum. Ela voltava com prazer para a moradia arejada dos Rivière, que
lhe falava de um François totalmente desconhecido. Com Lien, folheara os
álbuns de fotografias cobertos de seda que contavam a juventude do homem
que ela amava, suas brincadeiras e suas risadas. Com uma ponta de ironia,
perguntou à jovem:
— Naquela época, ele estava apaixonado por você?
Lien corou e respondeu:
— Acho que gostava de mim.
— Oh, mais do que isso! Ele me contou que a amava.
Lien nada retrucou, mas suas lindas mãos crisparam-se sobre o álbum.
— Fale-me a seu respeito: como ele era?
— Era um rapaz muito educado. Meu pai, minha mãe e meu avô gostavam
muito dele. Assim que chegava para passar as férias, a casa ficava na maior
desordem, os criados nem sabiam o que fazer devido às suas brincadeiras e à
bagunça que ele provocava. Mas era tão alegre e encantador que ninguém
conseguia ficar aborrecido. Em sua companhia, as férias passavam rápido. A
cada dia, inventava jogos inéditos, propunha novas excursões, promovia festas,
pescarias, partidas de xadrez, cartas, tênis. Não tínhamos um só instante de
descanso. Os únicos momentos em que permanecia quieto, eram aqueles em
que vovô lhe dava aula de vietnamita ou então lhe pedia que lesse poemas
franceses; obedecia gentilmente e com muito talento. Com cada um de nós,
conseguia tudo o que queria. Gostávamos muito dele, mas também o
admirávamos. Assim que chegava, tornava-se naturalmente o líder. Nem Hai
nem Bernard ficavam aborrecidos por causa disso. Parecia a coisa mais natural
do mundo...
Léa entendia perfeitamente, com ciúme de todos aqueles jogos dos quais
não participara. Ao ouvir Lien e ao olhar para ela, entendia por que aquele
adolescente se apaixonara. E era óbvio que Lien também o amava. Teria
acontecido algo entre os dois depois que se reencontraram? Com a recordação
dos dias felizes de sua juventude, o rosto de Lien se iluminara, tornando-a
ainda mais bela. Léa sentiu-se inquieta. Encontrar François o quanto antes e
regressar para a França: aqui, a concorrência era muito forte!
Apesar de seu luto, Lien fez questão de levá-la para conhecer Hanói. De
manhã cedo, ou no final da tarde, as duas tomavam um triciclo e passeavam
pela cidade. No início, Léa não apreciou muito esse meio de transporte, mas
habituou-se rapidamente.
Hanói voltara a oferecer o seu aspecto de prefeitura colonial de
antigamente. Exceto os sacos de areia protegendo os prédios administrativos e
os militares caminhando pelas ruas, tudo era como antes da proclamação da
independência, pelo menos aparentemente.

O objetivo do primeiro passeio das duas jovens foi o Pequeno Lago: o
condutor deu a volta, pedalando lentamente à beira d'água à sombra das
imensas árvores. Deixou-as na entrada do templo Ngoc Son, na ilha de Jade.
Lien comprou vários pacotes de bastonetes de incenso.
— Veja o que está escrito no alto do portão; significa o seguinte: "Porta da
Montanha do Lago" e dos lados: "Este caminho conduz à água e à montanha, é
a entrada das regiões maravilhosas."
— Como se chama o lago?
— Nós o chamamos de Hoan Kiêm Hô, o lago da Espada Restituída.
— O que quer dizer?
— A história remonta à época em que os chineses ocupavam nosso país,
no início do século XV Nosso antepassado, Le Loi, nascido na aldeia de Lam
Son, era pescador. Certo dia, atirou a rede no Pequeno Lago e, em vez de peixe,
trouxe uma espada reluzente. Escondeu-a. Obedecendo às ordens dos
Invisíveis, partiu pelo país afora para incitar o povo contra o invasor chinês.
Após alguns anos, liderou os partisans que conseguira juntar e combateu o
inimigo, armado com a espada que lançava faíscas. Aquela guerra de
independência durou dez anos, de 1418 a 1428. Houve muito sofrimento,
muitas mortes, mas o povo anamita acabou vencendo. Após essa vitória, Lê Loi
foi entronizado em Thanh Long, outrora o nome de Hanói, e, encabeçando um
cortejo, carregando a espada milagrosa, ofereceu um sacrifício ao gênio do lago
Long Quân. Ao chegar à margem, uma terrível trovoada sacudiu aterra, a água
do lago ficou negra e ondas imensas ergueram-se diante do rei e de sua corte,
completamente enfeitiçados. Todos viram, então, com o maior espanto, a
espada saindo de sua bainha. Após perfurar uma tartaruga reluzente como
uma esmeralda trabalhada, transformou-se em um dragão cor de jade que
afundou nas águas do lago. A multidão e o monarca caíram de joelhos e
inclinaram-se por várias vezes, agradecendo ao gênio do lago que assumira a
forma de uma espada e recorrera a Lê Loi para expulsar os chineses.
Apoiada no parapeito da pequena ponte que levava ao templo, Léa ouvira
boquiaberta a história do dragão transformado em espada, como na época de
sua infância, época em que seu pai lhe contava histórias semelhantes antes de
dormir. Ele costumava lhe dizer: "Fecha aboca, menina, as fadas vão te lançar
um mau-olhado!" Léa obedecia; porém, cativada pelas aventuras da Bela e a
Fera, Barba Azul ou o Pequeno Polegar, a boquinha entreabria-se novamente;
era assim que ela revelava todo o seu prazer.
"Ela não passa de uma criança", pensou Lien. "Kien fazia o mesmo quando
vovô contava as lendas da nossa família..."
— Essa pequena ponte onde nos encontramos chama-se Thê Huc, a Ponte
onde descansa o Sol Nascente — explicou ela. — Agora vamos entrar.
Deram a volta pela ilhota, detendo-se para contemplar as águas
avermelhadas pelo poente que cobria de chamas um pagode octogonal dedicado

ao gênio do lago. Alguns patos passaram, riscando a superfície lisa. Houve
alguns instantes de profundo silêncio, logo quebrado pelas vozes agudas das
vendedoras de suvenires e de incenso, gritando para atrair os fregueses.
Antes de penetrar no templo, Lien tirou os sapatos, imitada por Léa.
Atravessaram a porta de madeira vermelha. No interior, o cheiro de incenso era
intenso, pequenas lâmpadas a óleo mal iluminavam o local. Umas dez mulheres
prostemavam-se diante de estátuas com o rosto deformado ou se inclinavam
com pequenos movimentos, as mãos juntas. Lien acendeu um punhado de
varetas que deu a Léa. Seguindo seu exemplo, esta enfiou-as em bacias de
cobre cheias de areia.
— Estamos no templo de Tran Hung Dao, vencedor dos mongóis —
sussurrou Lien.
A fumaça do incenso, o brilho das lâmpadas lembraram a Léa o santuário
de Verdelais, mas a semelhança parava ali. A mobília do templo limitava-se a
uma espécie de gongo com três estelas engastadas e dois sinos, um bem maior
do que o outro.
Léa seguiu Lien a uma outra sala, dedicada ao gênio protetor das letras,
Van Xuong. Diante de sua estátua, flanqueada pela de seus discípulos, duas
gruas de cobre desempenhavam a função de candelabros.
— No passado, os letrados reuniam-se aqui para ler poemas, preparar os
concursos literários, estudar e meditar sobre os livros canônicos. Veja aquele
obelisco em forma de pincel; os caracteres chineses gravados na pedra
significam: "caligrafando sobre o firmamento". O pórtico recoberto com
sentenças chama-se o Pórtico do Tinteiro. François gostava muito de vir aqui...
Mas já é noite, precisamos voltar...
No dia seguinte, Kien acompanhou-as. A manhã ainda não chegara ao fim
quando os três jovens, vestidos de branco, alcançaram o bairro chinês.
— Por que chinês? — perguntou Léa quando saltaram do bonde, na praça
do Négrier.
— Antes da guerra, os chineses eram os principais comerciantes —
respondeu Kien. — Atualmente, diminuíram bastante, mas não mudamos o
nome do lugar. Foi neste bairro que se refugiaram os patriotas perseguidos
pelos japoneses e depois pelos franceses. Existe toda uma rede subterrânea
interligando as casas. Trata-se de um labirinto que nos permitiu vencer o
exército francês. Não faz tanto tempo assim, era imprudente para um branco
ficar passeando por aqui.
— E agora?
— A situação parece mais calma, mas é melhor não confiar muito. Convém
você não vir sozinha. Lien, o que deseja visitar?
— Gostaria de ir até o mercado. Vamos passar pela rua das Balanças,
voltaremos pela rua da Seda.

Na rua das Balanças, como o nome indica, vendiam-se apenas
instrumentos de medição de todo tipo. Na esquina da rua das Cestas, Léa
extasiou-se diante da perfeição dos trabalhos em vime; à porta das butiques, as
vendedoras acenavam para que se aproximassem. Léa ia de loja em loja, sem
conseguir tomar uma decisão.
— Pegue este — disse Kien, dando-lhe um cesto que ele mesmo pagou.
Entraram na rua dos Medicamentos. Na calçada, médicos davam
consultas, prescreviam receitas que os pacientes levavam às farmácias;
dentistas arrancavam raízes de dentes quebrados sob os olhos esbugalhados
das crianças que se amontoavam à volta. Em almofarizes, os boticários
amassavam substâncias inomináveis, agachados diante das suas tendas
enfeitadas com painéis vermelhos escritos com caracteres chineses. Na rua,
pairava um perfume de cravo-da-índia.
Léa virou à direita, rua da Laca, seguida por seus alegres companheiros.
— Estamos voltando — observou Lien.
— Vejam só aquelas caixinhas, aqueles biombos, que maravilha! Por favor,
me deixem olhar!
Conformado, Kien sentou-se em um banquinho e acenou para uma
mulher que trazia nos cestos de sua maromba um fogão, uma chaleira e
xícaras e, no outro, uma criança novinha:
— Rot cho chung tôi nuoc cha, ba tachi.
(Queremos chá, três xícaras.)
Do outro lado da rua, quatro moças olhavam disfarçadamente para Kien,
tentando chamar-lhe a atenção com suas risadas. Ainda sob o choque da perda
de seu avô, este não percebia nada, experimentando apenas um imenso
cansaço. O frescor da mão de Lien em sua testa despertou-o de sua melancolia.
— Em oi, thôi dung qua buôn nua.
(Irmãozinho, não fique triste assim.)
— Onde está Léa?
— Tentando negociar.
— Não podemos deixá-la sozinha — disse ele levantando-se.
Léa vinha em sua direção, carregada de pacotes.
— Olhem para esta caixa. Não é uma beleza?
— Quer chá?
— Com muito prazer! — exclamou ao se sentar em um banquinho,
ajeitando as pregas da saia branca.
Havia um toque de irrealidade no fato de estar sentada ali, em uma
calçada poeirenta, tomando chá fervente, sob os olhos dos transeuntes, em

companhia de um rapaz e de uma moça de tão grande beleza que ambos
pareciam pertencer a outro mundo.
Permaneceram assim por um longo tempo, perdidos em seus
pensamentos. A queda de um ciclista e de sua bicicleta, desaparecendo sob
enormes montes de palha, trouxe-os de volta à realidade.
À medida que se aproximavam do mercado, a multidão carregada de
sacolas, cestos, marombas tornava-se cada vez mais compacta, os cheiros cada
vez mais intensos, o chão cada vez mais sujo, coberto de detritos entre os quais
os cães famélicos catavam avidamente em companhia de porcos pretos. Na rua
do Arroz erguia-se a carcaça enferrujada do grande mercado coberto construído
no fim do século passado. Após a atmosfera densa e a luminosidade da rua, a
penumbra e o relativo frescor do imenso empório provocavam uma sensação
agradável.
Com a autoridade adquirida pelo hábito, Lien penetrou o labirinto,
interpelada pelos comerciantes debruçados no balcão de suas barracas. Léa
estava fascinada com toda aquela profusão oriental.
Em uma das aléias mais largas, encontravam-se no chão as gaiolas dos
vendedores de serpentes, macacos, esquilos, filhotes de cães, patos, frangos,
tartarugas. Mais adiante, penduradas em varas de bambu, outras com
periquitos ou diferentes aves. Finalmente, Lien deteve-se no mercado das flores.
Duas jovens cumprimentaram-na efusivamente e responderam às suas
perguntas com acenos positivos que se acentuaram quando ela lhes ofereceu
um monte de notas.
Lá fora, o calor surpreendeu-os novamente. Com o mesmo gesto, Léa e
Lien cobriram a cabeça com o chapéu.
— Que tal irmos almoçar? — sugeriu Kien.
— Excelente idéia! — aprovou Léa. — Estou morta de fome.
— Onde? — perguntou Lien.
— No chinês da rua dos Véus, perto do templo Bach Ma, o estabelecimento
de Thai Tô.
Quase todas as casas da rua dos Véus eram dedicadas à arte culinária e
as mais diversas especialidades encontravam-se expostas sob os olhos gulosos
dos transeuntes. Entraram em um restaurante em cuja fachada estavam
pendurados todo tipo de pássaros e carcaças de animais untados com uma
espécie de molho marrom e dourado.
— Aqui, vão degustar o melhor pato do Tonquim, a menos que prefiram
pombo ou pardal?
Com os dedos manchados de molho, Léa atacava o segundo pombo
quando sentiu que lhe seguravam o tornozelo. Abaixou os olhos e soltou um
grito. Aos seus pés, um indivíduo com os membros semelhantes aos de uma
gigantesca aranha, o tronco disforme coberto de trapos, erguia em sua direção

o rosto com olhos purulentos. De um salto, Kien ergueu-se, segurou o aleijado
pelos farrapos e atirou-o à rua. Profundamente enjoada, trêmula, Léa levantou-
se. Na poeira, caído de costas, o monstro tentava virar-se sob as risadas e as
piadas da multidão que se formara à sua volta.
Através dos farrapos, via-se a pele cinzenta da barriga. Apesar de seus
esforços e para a alegria dos espectadores, o mendigo não conseguia erguer-se.
Lágrimas de impotência deixavam rastros mais claros em sua face imunda. Léa
avançou e lhe estendeu a mão. O pavor tomou conta do rosto daquele
desgraçado, que hesitou antes de segurar a mão que se estendia em sua
direção.
O gesto de Léa fez com que a multidão se calasse, vagamente reprovadora.
Pouco a pouco, as pessoas foram se afastando. O homem endireitou os trapos
que lhe cobriam os braços e as pernas e tentou mover-se, como um inseto
repugnante, arrastando as patas atrás dele.
Transtornada e lívida, Léa entrou no restaurante.
Lien não se movera.

Capítulo 26

Fazia mais de vinte minutos que Tran Van Viet largara François Tavernier
em uma cavidade rochosa da RC4, com uma sacola de lona contendo um
bolinho de arroz grudento embrulhado em uma folha de bananeira, um cantil
com água, um maço de cigarros, seus documentos e alguns comprimidos de
quinino envolvidos em um pedaço de jornal chinês. Agachado naquele buraco,
François raciocinava. A sua frente, a selva parecia estender-se até o infinito,
sombria e hostil. Um sol plúmbeo fazia o ar vibrar acima da estrada danificada.
Por toda parte, reinava um silêncio pesado, freqüentemente quebrado pelo grito
de um animal, um roçar de asas, a fuga de um réptil.
— Cao Bang fica a cinco ou seis quilômetros daqui — observara o oficial
vietminh ao deixá-lo.
François levantou-se e tomou a direção da cidade conquistada pelos
franceses em 1886. Ele ficou logo encharcado de suor. Sob o amplo chapéu
disforme e imundo que lhe deixara Viet, o galo em sua cabeça latejava como um
coração. Deteve-se. Parecia-lhe ouvir uma espécie de ronco; prestou atenção e
virou-se para trás. Lá embaixo, erguia-se uma nuvem de poeira. O ruído
amplificou-se.
"Um comboio", pensou François. Amigo ou inimigo? Voltou a caminhar,
atento aos menores indícios suspeitos.
— Tome cuidado — recomendara Tran Van Viet —, existem muitas minas,
dos franceses e nossas também.
O ruído aproximava-se. François deu mais alguns passos e escondeu-se
entre a alta vegetação que ladeava a estrada.
Precedendo o carro-metralhadora da dianteira, soldados marroquinos, com
o fuzil no peito, o dedo no gatilho, ou trazendo um detector de minas à sua
frente, avançavam à espreita. A tensão era tão intensa que François podia
percebê-la. Não era a hora de sair de seu esconderijo: os marroquinos atirariam
nele como se fosse um coelho. Deixou o carro passar, aguardando pelo veículo
de comando.
O estrondo tornou-se ensurdecedor, a poeira infiltrava-se através da
folhagem. Em meio a uma auréola esbranquiçada, passavam caminhões com
cargas extravagantes ou abrigando dezenas de passageiros sob um telhado de
palha; reconheciam-se os veículos chineses pelos grandes caracteres vermelhos
pintados nas carrocerias. Seguiam-se carros-metralhadoras, GMC, jipes, e
novamente caminhões civis... O comboio parecia interminável. O sol começava
a se pôr. Um jipe parou. Um sargento da Legião saltou e aproximou-se para
urinar ao lado de François... Este surgiu de seu esconderijo como um fantasma

diante do legionário apavorado, com o membro na mão. François não conseguiu
conter o riso. Mas o outro, sem se preocupar com o que segurava, puxou a
pistola.
— Aqui, legionários!
Em menos de um segundo, uma dúzia de soldados cercaram François e
apontaram para ele.
Lentamente, ergueu os braços.
— Quem é você? O que diabos está fazendo aqui?
— Meu nome é François Tavernier, vou para Cao Bang.
— O senhor está indo para Cao Bang, sem mais nem menos, com as mãos
nos bolsos! Revistem-no...
— Ele não possui absolutamente nada, chefe.
— Deixe-me ver a sua sacola... Tudo bem, pode abaixar os braços.
Atrás deles, a caravana impacientava-se.
O sargento examinou cuidadosamente os documentos.
— Parecem em ordem, mas nada justifica o que o senhor veio fazer aqui.
François notou a mudança de tratamento.
— Vou explicar às autoridades militares responsáveis de Cao Bang. Posso
subir com vocês?
— Está bem, vamos indo! Cuidado, não tenho a menor confiança em você.
Ao menor movimento suspeito, faço-o descer!
O jipe deu um salto para a frente, projetando os passageiros uns contra os
outros. Atrás deles, o comboio imobilizado deu a partida em meio ao cantar dos
pneus.
— Só faltam dois quilômetros. Agora, nada mais pode atrapalhar. É
preciso festejar, minha gente!
— De onde estão vindo? — perguntou François.
— De Hanói, passando por Thai Nguyên, Bac Can e Lang Lat. É a primeira
vez que viajo sem que aqueles viets filhos da puta ataquem o nosso comboio.
Mas não podemos cantar vitória enquanto não chegarmos. Há um mês,
exatamente no lugar onde o senhor se encontrava, tivemos um capitão e mais
dez homens mortos, além de vinte feridos e quinze caminhões destruídos.
Nunca se sabe quando vão aparecer.
— Mas falta tão pouco para chegarmos!
O sargento lançou-lhe um olhar de desprezo enquanto cruzava os dedos:
— Já disse que não se deve cantar vitória antes de o último veículo entrar
na cidade. A cada dia, eles se tornam mais ousados. A natureza representa o

seu aliado mais seguro, confundem-se com ela; a selva é uma verdadeira mãe
para eles, embora represente um perigo mortal para o corpo expedicionário.
Temos de reconquistar essa estrada todos os dias; se a controlamos antes de
Lang Son, é minada pelos vermelhos perto de Cao Bang e sitiada diante de
Nguyên Binh, bombardeada no desfiladeiro de Lung Phai. Cada quilômetro já
teve a sua emboscada, cada metro o seu morto. Esta estrada é o caminho do
inferno. Dê-me um cigarro, vou devolver em Cao Bang.
— Não precisa.
— Obrigado!
Em nenhum momento, os olhos do sargento permaneceram imóveis, iam e
vinham da direita para a esquerda, examinando as profundezas da selva. Logo
apareceram as primeiras casas de Cao Bang ou melhor o que delas restava.
Uma espessa poeira cinzenta e gordurosa encobria as ruínas e a vegetação que
as cercava. Nuas, cobertas de lama ressecada, crianças magricelas deslizavam
ao longo dos muros, das árvores, prontas a se espalhar ao menor ruído
suspeito. Outras, mais ousadas, caminhavam ao longo do comboio com as
mãos estendidas.
— Na semana passada, um garoto escorregou para baixo da lagarta do
meu carro-metralhadora, foi um espetáculo dos mais deprimentes. Pensa que
os outros ficaram preocupados? Parecia que nada acontecera. Conseguimos
retirar o que restava do menino, enquanto esperávamos que os pais surgissem,
armados de paus! Nada! Mais tarde, os que vinham atrás de nós afirmaram ter
visto uma mulher apanhar os restos do menino e guardar tudo numa sacola.
Fiquei perturbado; aquele garoto de olhos grandes não tinha mais do que sete
ou oito anos. No entanto, não foi o primeiro filho de nhá que matei... mas, com
as crianças, não consigo me acostumar, entende...
François entendia que a guerra e seus horrores haviam-no alcançado
novamente e que os pequenos vietnamitas juntavam-se, em suas lembranças,
aos pequenos espanhóis fugindo das tropas franquistas, aos pequenos judeus
massacrados nos campos, aos pequenos franceses queimados vivos, aos
pequenos alemães caídos sob os tanques soviéticos. Todos aqueles milhões de
crianças que nunca iriam crescer... Pensou em seu filho que acabara de nascer
e jurou fazer o impossível para que vivesse em paz. Mas de que valeria uma paz
que não fosse mundial? De que valeriam tantas mortes se o mesmo flagelo
reaparecia constantemente aqui ou ali? La teria razão ao afirmar que os
homens apreciam a guerra, a caça, a violência e o sangue, que a morte é o
preço que deve ser pago pelo delírio no qual gostam de viver? "É como um jogo",
dizia ela, "um jogo ainda mais excitante pelo fato de ser mortal. Tenho a
impressão de que nunca acabará, e que, vítimas ou carrascos, todos nós somos
cúmplices, responsáveis pelas regras desse jogo. Aliás, os papéis são
intercambiáveis; se não for morta, a vítima de hoje poderá ser o carrasco de
amanhã. Compreendo esse tipo de fascínio: tenho a impressão de que essa
loucura sanguinária dá um preço especial à vida e que o maior luxo do ser
humano consiste em dilapidar o que ele possui de mais precioso: sua vida e a

das pessoas a quem ama. As mães não parecem partilhar esse ponto de vista;
no entanto, são elas que criam os filhos: por que não conseguem extirpar de
suas almas esse germe nefasto? Por quê? Por quê?..."
Durante alguns instantes, François deixou de ouvir o roncar dos
caminhões, o berro das ordens, os gritos, o retinir das armas; lembrou-se do
terraço de Montillac, com Léa em seus braços, dominada pelo desejo de
reconstruir o mundo. Como estava linda com toda aquela indignação, tão linda
que François experimentou um louco desejo de fazer amor ali mesmo, naquele
terraço. Léa se debateu, ele conseguiu agarrá-la, mas ela fugiu por entre
arbustos. François perseguiu-a, apesar de seu membro enrijecido pelo desejo.
Pelos vinhedos, o vestido claro de Lea parecia um farol. Conseguiu alcançá-la,
atirando-a ao chão. Léa não pôde escapar e, sem ligar para os seixos que a
machucavam, ele a penetrou.
— Tudo bem, companheiro?... Parece que está vendo o próprio Deus! —
gritou o sargento, intrigado com a expressão de beatitude que se espalhara pelo
rosto de seu passageiro.
— Foi quase isso... Lembrei-me da minha esposa!
— Puxa! Parece que ela mexe bastante com o senhor! — exclamou o
legionário em meio a uma gargalhada.
Nada mais restava das fortificações construídas no século XVII pelos reis
usurpadores da dinastia dos Mac e nada, também, das construções coloniais
do início do século. Os templos, erguidos em sua maioria pelos Nguyên, haviam
sido destruídos ou desapareciam entre as novas construções ou a vegetação
que invadia os escombros. Aquela cidade, cujo nome significa "Paz Dominante",
parecia um imenso canteiro que drena toda uma população de mão-de-obra,
vendedores, prostitutas, bandidos, aventureiros, administradores, todos às
ordens de dois ou três mil guerreiros provenientes dos meandros formados pela
confluência dos rios Hiên e Mang Giang. Nesse oásis, os militares encontravam
tudo o que as piastras permitissem adquirir. De ambos os lados da rua
principal destruída e coberta de imundície, reinava, em meio aos escombros,
uma atividade comercial tão intensa quanto a da rua da Seda em Hanói ou da
rua dos Marinheiros em Saigon. Uma multidão de mulheres e crianças oferecia
as mercadorias mais inesperadas em uma cidade abrigando uma guarnição de
um país em guerra:
lingerie de cores agressivas, cigarros ingleses e americanos, revistas
pornográficas, livros em francês e em vietnamita, cartões postais amarelados,
vitrolas. Trechos de uma canção chegaram aos ouvidos de François, apesar do
barulho: Esperarei dia e noite, esperarei sempre a tua volta...
— Aqui, tudo está à venda: pessoas e coisas. Não há nada que um
punhado de piastras não possa conseguir. Deseja um menino, uma garotinha?
Basta escolher e pagar. O comércio, a prostituição, o tráfico de ópio e as armas
enriqueceram a cidade, particularmente os chineses que, aqui como em todo
lugar, mandam nos negócios. Veja só: retiraram os escombros, construíram

cinemas, restaurantes, boates, bordéis, butiques. A cidade vive conforme o
ritmo dos comboios que passam, pois tudo o que se vende, tudo o que vive
chegou até aqui pela RC4. A população, assim como o exército, permanecem
atentos às notícias transmitidas pelo rádio do comboio, divulgadas por toda
parte, tanto no cassino dos oficiais como no mercado. "Conseguimos passar
pelo quilômetro 32 sem problemas... Os veículos de vanguarda explodiram em
Na Cham... A estrada encontra-se bloqueada no desfiladeiro de Lung Phai... Os
viets atacam com granadas... Numerosos caminhões estão em chamas... O
tenente acaba de ser morto a meu lado... Estão chegando de todos as partes...
Mandem socorro..." Então o alto comando envia tanques, carros-metralhadoras.
Profundo silêncio toma conta da cidade para ouvir melhor o rádio do comboio
atacado, que descreve o desenrolar dos combates. Às vezes, a voz se cala: sabe-
se assim que o soldado morreu ou foi gravemente ferido.
Em seguida, ouve-se outra voz. Até agora, sempre apareceu um
sobrevivente para relatar os fatos...
Algumas horas mais tarde, chega o que resta do comboio, os carros que
não foram destruídos, carregando mortos e feridos. Naqueles momentos, a
gente se lembra dos companheiros que tombaram. Após os relatórios, o enterro,
a gente enche a cara ou vai transar. E chora enquanto trepa. Por mais putas
que sejam, mostram-se carinhosas e ninam a gente como crianças, todas
aquelas mulheres cujos irmãos, maridos ou amantes lutam contra nós e nos
matam. Vai ver que, quando se encontram, fazem o mesmo com eles.
O comboio parou em uma praça imensa e repleta de caminhões militares.
Tavernier e o sargento saltaram do veículo.
— Venha, vou conduzi-lo até o tenente.
Atravessaram a praça onde se erguia a carcaça dos correios e penetraram
em uma construção em ruínas cujas fissuras haviam sido vedadas com
cimento. No interior, parecia uma delegacia de bairro, os fundos da venda de
algum comerciante chinês, a sala de espera de uma estação do interior. O
cheiro era exatamente o mesmo, realçado pelos odores da sopa tonquinesa e do
nuoc- mâm. O sargento bateu numa das portas.
— Entre.
Um gigante barbudo cuja camisa aberta até a cintura revelava o peito forte
e peludo, sentado atrás de uma mesa coberta de papelada e garrafas de cerveja,
empurrou com o pé uma anamita bem jovem e abotoou a calça com toda
acalma. Seu rosto vermelho e suado trazia a marca do prazer provocado pela
garotinha que limpou a boca com a mão. Ela permanecia imóvel, extremamente
miúda com sua túnica branca.
— Dên dây.
— Vem até aqui — ordenou o tenente.

Colocou algumas notas em sua mão. Ela agradeceu, com as duas mãos
juntas, inclinando-se inúmeras vezes.
— Tro nai ngay mai cung gio nay.
(Volte amanhã na mesma hora.)
François experimentou uma profunda aversão por aquele homem.
— Como foi o seu passeio, sargento? Não houve nenhum encontro
desagradável?
— Não, tenente, foi tudo bem.
— E esse aí, quem é?
— Um civil, tenente, encontrado na estrada.
— Passeando também, com certeza, a menos que seja um daqueles
franceses comunistas, safados, que desertam sob as ordens de Moscou para se
juntar ao Vietminh? Seu cafajeste, traidor, não é mesmo? Confesse logo, é isso,
não é?
O tenente levantou-se e tentou dar um soco no rosto de François que se
esquivou, O outro por pouco não caiu no chão, o que só fez aumentar a sua
raiva. Com os olhos vermelhos, atirou-se para a frente. Um violento murro fez
com que ele desabasse no meio do aposento.
— Ah, quer lutar, seu filho da puta! Você vai levar uma sova!
— Não faço a menor questão, não vim até aqui para isso — disse François
com toda a calma. — Gostaria de falar com o seu coronel. Mas, já que quer
assim...
— Seu canalha!
Os dois homens atiraram-se um contra o outro, ambos dando e recebendo
socos. O ruído daquela briga chamou a atenção dos legionários que
estimulavam o tenente com a voz e com gestos, embora a maioria ficasse feliz
com a surra que o homem tomava. De fato, apesar da ferida que doía muito e
voltara a sangrar, manchando-lhe a camisa, François levava a melhor.
— O que está acontecendo?
Os legionários permaneceram imóveis e impecáveis em posição de sentido.
O tenente mostrou-se menos formal.
— Descansar. Vou repetir a minha pergunta: o que está acontecendo?
— É minha culpa, coronel.
— Quem é você? Não faz parte do regimento?
— Não, coronel. Solicito uma entrevista. Meu nome é François Tavernier.
Pelo brilho do olhar do oficial, François percebeu que o homem fora
informado de sua presença no Tonquim do Norte.

— Vá trocar o seu curativo. Estava esperando por você hoje, às dez horas
da noite. Basta perguntar onde fica a residência do coronel Simon. Quanto a
você, Thévenet, eu gostaria que moderasse os seus impulsos. Acompanhe o
senhor Tavernier até a minha casa. Encontre um lugar decente para ele se
hospedar.
— Tudo bem, coronel.
Era uma noite quente e clara. Quase todas as ruas encontravam- se
mergulhadas na penumbra, rompida em certos lugares pela claridade de um
fogareiro ou de uma lâmpada a óleo. Tudo estava calmo. Apenas o latido de um
cão quebrava o silêncio a intervalos regulares. Após toda aquela confusão, as
luzes, a multidão compacta da rua dos bordéis e dos bares, tinha-se a
impressão de outro mundo.
Tavernier e Thévenet não trocaram uma única palavra depois que saíram
do estabelecimento de Mãe Casse-Crôute, onde os legionários costumavam
reunir-se em volta de uma garrafa de champanha ou de conhaque. François
pagou diversas rodadas. A proprietária, uma anamita com o rosto cheio de
espinhas, corria para cá e para lá para atender a tão generoso freguês. Vários
alemães começaram a entoar Liii Mariene ao som do acordeom de um rapaz
parisiense, enquanto um espanhol, um grego, um polonês, dois franceses, um
russo e um português acompanhavam-nos, cantarolando.
François juntou-se ao grupo, sensível àquela atmosfera de cumplicidade
viril que partilhara tantas vezes durante a guerra. Durante uma simples
canção, uma boa bebida, os homens esqueciam-se dos companheiros mortos,
do país perdido, das rivalidades em meio ao calor de um barzinho...
O tenente manteve-se afastado, bebendo muito. Mesmo assim, foi ele
quem acenou para François para que partissem.
Após caminharem ao longo do rio, pararam finalmente diante de um
casarão em estilo europeu. Um sentinela montava a guarda.
— Tenente Thévenet, visita para o coronel.
— O coronel os espera, podem entrar.
O interior da casa lembrava todas as moradias dos militares destacados
para servir em uma guarnição: mobília comum, iluminação sinistra. Apenas
alguns lindos tapetes alegravam o local.
Debaixo de uma lâmpada, uma mulher bordava. Levantou-se, deixou a
costura e veio em direção aos recém-chegados.
— Boa noite, tenente. Boa noite, senhor Tavernier, não é? Sou a senhora
Simon, esposa do coronel.
Queira sentar, meu marido já vem.
Um boy chinês apareceu.
— Traga bebida para esses senhores e chame o coronel.

Mal acabara de falar quando este entrou.
— Boa noite, senhores. Thévenet, faça companhia à minha esposa. Vamos,
senhor Tavernier, precisamos conversar.
Foram até um aposento com as paredes cobertas de mapas da região. O
coronel pegou uma garrafa de conhaque em uma bandeja e encheu dois copos.
— Sente-se — disse, oferecendo um copo ao convidado. — Fui avisado
oficiosamente de sua presença no Tonquim. Conseguiu falar com Hô Chi Minh?
— Sim, coronel.
— E daí?
Nada. A época das negociações já passou. O presidente está determinado a
prosseguir com uma guerra, convicto de que a vencerá.
— Não tem nada mais a me dizer?
— Nada, coronel. Conversei com um homem doente, enfraquecido, porém
muito decidido.
Tem como situar o local do seu encontro?
— Pode acreditar que se fosse possível, nunca me soltariam.
— É uma pena. Em várias ocasiões, bombardeamos aquela região sem o
menor resultado. Estou profundamente convencido de que, se capturássemos
ou matássemos Hô Chi Minh, a guerra acabaria em seguida. Não pensa assim?
Não, coronel. A resistência vietnamita não é composta de um homem só,
mas de todo um povo.
— Todo um povo, não, senhor Tavernier! O Vietnã conta com mais de
cinqüenta etnias, algumas delas seriamente hostis à maioria viet. Aqui, os meo,
os mien, os hmong, os giay; no centro e no sul, os cham, os jarai, os rhadê, os
hroi, sem contar os diversos grupos religiosos, visceralmente anticomunistas. A
todos estes, podemos acrescentar as populações que se colocaram sob a nossa
proteção e que, às vezes, sacrificam a própria vida por causa disso; de fato, o
Vietminh considera traidores todas essas pessoas. Ai!...
— O que está sentindo, coronel?
— É aquela maldita bala que me dá enxaqueca. Às vezes, tenho a
impressão de que me dão marteladas no crânio. Enquanto não conseguirem
extraí-la...
O coronel Simon tomou um gole de conhaque.
— Coronel, posso perguntar quem o informou de minha presença?
— Tudo se sabe, na Indochina, mesmo as coisas mais secretas.
Rapidamente, o alto comando tomou conhecimento de sua missão. Recebemos
ordens de não oferecer obstáculo algum.
— Quer dizer que tinham de facilitar a minha tarefa?

— Não chegaram a tanto...
— Cheguei a ficar surpreso... E quanto à situação atual, quais são as suas
instruções, coronel?
— Não há nada muito concreto. Mas, para você assim como para nós, seria
preferível regressar à França. O que acha?
— É o meu desejo mais sincero, coronel. Mas antes preciso passar em
Hanói.
— Um comboio parte para lá amanhã de madrugada, poderá ir junto.
— Está bem, coronel... Eu soube que o general Salan também foi embora.
Quem o substitui?
— O general Blaizot.
— Gostaria de poder encontrá-lo.
— Desta vez, não vai ser possível: o general encontra-se em Saigon. Um
conselho, senhor Tavernier:
não se demore muito em Hanói.
— Não é a minha intenção, coronel.
— Vamos juntar-nos à minha esposa e a seu amigo o tenente Thévenet.
Trata-se de um homem um pouco impulsivo, mas excelente soldado...
No salão, a esposa do coronel retomara seu bordado.
— Falávamos do administrador e da sua esposa. Sabia que foi deportado
para Mauthausen?
— Sim, minha cara, eu já sabia... Esses senhores estão se despedindo.
Tenente, quem lidera o comboio de amanhã para Hanói?
— Eu, coronel.
— Muito bem. O senhor Tavernier partirá com o comboio. Conto com você
para a segurança dele. A responsabilidade será toda sua.
— Tudo bem, coronel.
Após os cumprimentos habituais, os dois homens voltaram a enfrentar a
noite. Caminhavam calados há uns dez minutos quando François virou-se para
o companheiro:
— Sinto muito por impor-lhe a minha presença amanhã.
— Vá se foder! Ouviu as ordens, vou obedecer. Até lá, vê se cala a boca.
Acertaremos as nossas contas em Hanói.
— Quando quiser.

Capítulo 27

Minha querida Léa,
Finalmente, notícias tuas! Aqui, estávamos todos loucos de preocupação.
Eu te suplico, não nos deixe tanto tempo na incerteza. Após a tua partida,
recebemos a visita de um policial que fez um monte de perguntas que, é claro,
não pudemos responder Se quiser que te ajudemos, não deve esconder nada da
gente! O senhor Sainteny escreveu, igualmente preocupado com você. Minha
querida, por favor. volte logo! Aqui, todos nós precisamos de ti, principalmente
Charles que sofre muito com a tua ausência, nem imaginas quanto. O menino
dá pena de ver Logo ele, tão bom aluno, só tem notas péssimas, não quer
brincar, passa horas perto do berço de Adrien consolando-o quando chora, o
que torna o bebê ainda mais manhoso. Mas nem Ruth nem Alain e nem eu
temos coragem de brigar com ele, de tão infeliz que se sente.
Quanto a Adrien, podes ficar tranqüila: está ótimo. Pesa sete quilos, tem
um dente, cabelo louro cacheado, olhos da cor dos teus, é muito alegre e ri às
gargalhadas quando Alain brinca com ele de pular. Em resumo, é uma criança
maravilhosa! As fotos que te mando não mostram o rapazinho tal como ele é na
vida real. No entanto, espero que possam te estimular a pegar o primeiro avião
e voltar para casa. Uma criança tão novinha não deve ficar longe da mãe por
tanto tempo.
Quando esta carta te alcança,; espero que tu e François já estejam juntos,
e que a ausência tenha contribuído para aumentar o amor entre os dois.
Aqui, as coisas estão indo bem. Como já sabes, 1947 foi um bom ano — o
ano do século, como afirmam certas pessoas. Na semana passada, Alain
recebeu compradores estrangeiros; os mais velhos acharam que o Montillac
alcançou a perfeição. Se visses como Alain se sentia orgulhoso ao ouvir esse
elogio, parecia papai! Todos os dias agradeço aos céus por ter encontrado um
homem igual a ele, bom, honesto, paciente. Ele considera Pierre como seu
próprio filho, por isso o menino o adora. Estou feliz, Léa: finalmente encontrei a
paz; estou certa de que papai me perdoou por toda a tristeza que causei, e que
Otto, de onde estiver, nos protege, a mim e a seu filho. Minha pequena Isabelle
é linda como uma flor; Ruth vive dizendo que é a tua cara. Ruth, nossa querida
Ruth, voltou a ser como na nossa infância; tirando o seu cabelo branco, ela
está exatamente igual, sempre agitada, incapaz de descansar um só instante.
Nossa querida Lise declina lentamente, comportando-se como uma criança.
A vida em nossa província retomou o ritmo de antes da guerra, ou quase:
há muitos ausentes, muitas feridas não cicatrizadas, muito ódio, ciúme, mas o
tempo que passa vai curar tudo.

Responda logo, por favor Todos se juntam a mim para te mandar
lembranças e os beijos mais afetuosos.
Tua irmã que te ama muito,
Françoise.
P.S. Acrescento a carta e o desenho que Charles fez questão de te mandar.
Não esqueça de responder!

Minha Léa querida,
Quando vais voltar? Tua viagem está sendo muito demorada. Adrien se sente
muito triste por não ver a mãe, chora o tempo todo, eu fico com ele para
consolá-lo e falar de ti, mas nem sempre funciona Eu também sinto muito a
tua falta. Não se esqueceu da gente, não é?
Adrien e eu mandamos muitos beijos para ti.
Charles que te ama.

Léa soluçava violentamente.
Perdão, perdão, balbuciava diante das fotos do filho espalhadas pela cama.
Em uma delas, via-se Charles como bebê no colo. Havia no rosto do menino
uma expressão que parecia dizer: eu o protejo, ai de quem quiser machucá-lo!
Incrédula, Léa contemplava as fotos de Adrien: como mudara! Achava-o muito
bonito, mas tão crescido, tão grande... Quanto ao desenho de Charles,
representava a casa vista do terraço; era muito ingênuo, porém muito parecido.
Ela sentou-se à escrivaninha do quarto e começou a redigir:

Meu menino querido,
Tua carta me deu o maior prazer Agradeço do fundo do coração por
cuidares tão bem de Adrien. Diga-lhe que voltarei em breve, assim que
encontrar o pai dele. Sinto muita falta de ambos. Quando eu estiver em casa,
vou te fazer muitos carinhos para recuperarmos o tempo perdido. Não se
esqueça de estudar bastante na escola, é importante.
Charles, quero te dar um abraço do tamanho do meu amor por ti, com
todo o meu coração.
Conto contigo para dizer a Adrien que a mãe não pára de pensar nele. Dá
um monte de beijos da minha parte,
Léa.
P.S. Teu desenho se parece muito com a realidade. Vou mandar emoldurá-
lo e levarei sempre comigo, prometo.

Querida Françoise,
Obrigada por tua carta tão gentil e, principalmente, pelas fotos. Como o
meu filho está lindo e forte, como parece feliz com a vida! Obrigada por cuidar
dele tão bem.
Após inúmeras peripécias, cheguei a Hanói, à casa dos Rivière que me
receberam com muita amabilidade. Assim como eu, não tinham notícias de
François. Ainda não as temos, mas não devem demorar segundo Hai, o amigo
de François. Não vou te contar todos os meus esforços junto às autoridades
francesas, podes imaginar o que tive de fazer.
Não vejo a hora de voltar para casa, mas o pouco que vi da Indochina será
suficiente para que eu tenha saudades deste país. Aqui, sentimo-nos ao mesmo
tempo em casa e estrangeiro.
Muitos nativos falam francês, geralmente muito bem. As mulheres, lindas
em sua maioria, costumam usar uma longa túnica colorida por cima de uma
pantalona branca ou preta.
Ficam muito bem com esse traje. As crianças são encantadoras e muito
mimadas pelos pais. O que mais me surpreendeu, são os pesados volumes que
carregam homens e mulheres. E a guerra, nisso tudo, não é a pergunta que
queres fazer? Em Hanói, a presença de nossos soldados faz com que se pense
nela o tempo todo; no mais, a vida parece normal. Em compensação, no campo,
a guerra faz vítimas todos os dias, tanto do lado vietnamita quanto do lado
francês. Em Saigon, dizem que as bombas explodem vez por outra, mas eu
nunca vi nada. Ao Contrário, vejo pessoas que só pensavam em se divertir e
que, brancos ou amarelos, pobres ou ricos, gastavam milhares de piastras no
jogo.
Diga a tia Lisa e a Ruth que estou ótima e que mando beijos carinhosos
para as duas.
Agradeça a Atam por tudo e lhe dê lembranças minhas. Muitos beijos aos
teus filhos e, sobretudo, obrigada do fundo do meu coração por tudo o que
estás fazendo com o meu bebê, obrigada! Tua irmã querida,
Léa.

O dia ainda estava claro quando Léa saiu para ir até o bulevar Francis-
Garnier expedir as cartas.
O calor afugentara as pessoas das ruas. Os grandes ventiladores dos
correios não conseguiam refrescar o ar, mas à sombra era agradável. Por trás
do guichê, os funcionários cochilavam. Apenas o ruído das hélices quebrava o
silêncio. Entreabrindo os olhos, o funcionário colou os selos, pegou a nota das
mãos de Léa e devolveu o troco sem pronunciar uma única palavra. Ela
percebeu uma certa agitação entre os mendigos, imóveis em seus farrapos. Sob
o alto pórtico, o calor era insuportável.

— Madame, madame, deseja carro?
Afundado em seu triciclo, um condutor chamava-a sem grande
entusiasmo. Léa fez que não com a mão e atravessou a rua correndo na frente
de um bonde cujo motorneiro furioso agitou a campainha.
A água cinzenta do Pequeno Lago cintilava ao sol. Os patos e os
vendedores abrigavam-se sob os flamboaiãs. Ali, também, todos pareciam
entorpecidos. Até as velhas com os dentes laqueados cochilavam, agachadas
sobre o banquinho diante das barracas de massas, laranjas e bebidas, cigarros
4 AS e Kotab.
A sombra de uma gigantesca figueira, Léa tirou o chapéu de palha e
despenteou os cabelos colados à nuca. O suor grudava em seu peito, de
maneira impudica, o vestido de fino algodão azul. Ela nunca sentira calor tão
intenso, até mesmo em pleno verão na região de Bordeaux. Sentou-se em um
banco, abanando-se com o chapéu. Uma forma deslizou atrás da árvore.
Nenhum ruído, nenhum grito de pássaro. Tudo parecia à espera...
De início, foi igual a um ronco abafado que se amplificava. Subindo do
bulevar Dong-Khanh, uma nuvem de poeira. O primeiro carro-metralhadora
cortou a rua Paul-Bert e avançou ao longo do Pequeno Lago, seguido de outro,
e de mais três caminhões repletos de soldados, e de mais outro onde gritavam
umas vinte jovens vestidas com roupas de cor forte, as prostitutas do inevitável
bordel de campanha. O sol vibrava. As vendedoras ergueram a cabeça e
cuspiram com desprezo; algumas moças aproximaram-se, um grupo de garotos
correu ao longo do comboio, alguns anciões agitaram as mãos. Léa levantou-se.
Dos caminhões partiram assobios de admiração. Um legionário barbudo
mandou beijos. Em seguida, chegaram Outro carro-metralhadora, três
caminhões, um jipe com quatro homens.
— Léa!
Alguém gritara o seu nome. Ela olhou à sua volta, só havia vietnamitas.
— Léa!
Do jipe parado, acabara de saltar um militar que corria, com os braços
estendidos, gritando:
— Léa! Léa!
Ela também correu, a voz embargada pelas lágrimas:
— Jean!
Enlaçaram-se brutalmente. Léa não se furtou aos lábios do rapaz e beijou-
os ardentemente. Atrás deles, os soldados estimulavam-nos sem parar.
— Vamos lá, tenente! — gritaram do jipe.
Jean Lefèvre, atordoado, afastou Léa, olhando para ela com incredulidade.
— O que está fazendo aqui?

Sua imensa felicidade dissipou-se imediatamente.
— Vim em busca de François... Estou sem notícias dele.
— Ele sabe que você se encontra aqui?
— Não — fez Léa com a cabeça.
Deus, como ela estava linda, com aquelas lágrimas, o olhar desesperado, o
corpo trêmulo! Jean apertou-a novamente nos braços.
— Lefèvre, rápido, assim vai atrasar todo o comboio! Desculpe-me,
senhorita, mas o subtenente está sendo aguardado.
— Já vou, só mais dois minutos, ficarei no fim do comboio.
— Aceito por causa dos seus lindos olhos, senhorita. O danado do Lefèvre,
que sortudo!
Após um sinal do oficial, o comboio deu a partida, enquanto o jipe
estacionava mais adiante.
— Oh, Jean, que felicidade te encontrar! Vais me ajudar a encontrar
François?
— Eu bem que gostaria, mas estou de partida para o meu posto na
fronteira chinesa.
— Não pode ser verdade! Vai embora justo quando mais preciso de você?
Ela era assim mesmo! O mesmo monstrinho cheio de egoísmo de antes da
guerra, achando que bastava dizer "eu quero" para que todos ao seu redor
satisfizessem as suas vontades! Ele sorriu:
— Não tenho escolha, sou soldado. Vi Tavernier aqui, em Hanói, há cerca
de três meses.
— Como estava ele?
O grito de paixão feriu-o profundamente.
— Como você o ama... — suspirou.
A dor contida daquela voz trouxe Léa de volta à realidade. Deu-lhe um
beijo carinhoso no rosto.
— Desculpe-me, eu também te amo.
— Claro que você me ama! — zombou Jean. — Teu querido esposo estava
ótimo, quando nos encontramos, pode ficar tranqüila. Não entendi os motivos
da sua estada na Indochina. Negócios, com certeza...
Com que desprezo ele dissera tudo aquilo!
— Por favor, não fale de François neste tom. Mal acabamos de nos
encontrar ejá começamos abrigar! Estou muito infeliz, Jean, deixei meu bebê
para vir à procura dele, ninguém consegue me dizer o que aconteceu, e você..,
em vez de me ajudar...

Léa voltou a sentar-se no banco; com a cabeça escondida no braço apoiado
no encosto, começou a soluçar como uma criança. Jean aproximou-se e sentou
atrás dela.
— Não chore mais, por favor, não chore, não suporto te ver chorar! Vou me
informar. No exército, sabemos de coisas que não são contadas aos civis.
Preciso ir embora. Para onde posso te escrever?
— Na casa dos Rivière, bulevar Henri-Rjvjêre.
— Aquela linda casa cercada por um jardim? Já sei. Quanto a você, se
tiver alguma notícia, pode escrever ao Departamento do Pessoal do Exército,
para o subtenente Lefèvre, 30 REI. Mandarão as cartas para mim. Coragem,
Tavernier vai conseguir se safar. Está sorrindo.,. Isso mesmo, muito bem!...
Cuide-se... Dê-me um abraço... Já estou indo!... Deixe-me partir...
Imóvel no banco, Léa olhou para Jean que se afastava, O jipe arrancou no
encalço do comboio.
A cidade saíra de sua letargia. Bondes, triciclos, carros, caminhões,
pedestres enchiam novamente as ruas com sua algazarra. O sol começava a
declinar, as sombras tornavam-se maiores. Atrás da árvore, algo se moveu.
Léa ergueu a cabeça e conteve um grito. O mendigo que ela ajudara, na
rua das Velas, encontrava- se à sua frente, igual a um monstruoso inseto.
Lembrou-se da maçã incrustada na carapaça de Gregor Samsa, o herói de
Kafka, após a sua metamorfose... O aleijado, com o rosto erguido em sua
direção, sorria e exibia a boca desdentada. Sentindo pena dele, Léa devolveu o
sorriso e procurou algum dinheiro na bolsa.
— Não, senhorita, não, não quero nada. Tome, é para você...
Embrulhada em uma folha de papel, entregou-lhe uma manga
artisticamente recortada. Léa hesitou.
No entanto, no olhar daquele pobre coitado lia-se um desejo tão intenso de
que o seu presente fosse aceito, que ela o pegou.
— Obrigada, estava morta de sede.
Uma expressão de intensa felicidade espalhou-se no rosto do mendigo e
Léa ficou contente por ter disfarçado a sua náusea. Saboreou a fruta: estava
deliciosa.
— Fez muito bem, senhorita, em aceitar o presente do pobre Giau. Que
Deus a abençoe.
Um velho padre anamita trajado com a batina branca dos missionários
encontrava-se à sua frente.
Léa se levantou.
— Boa tarde, padre. Conhece este homem?

— Sim, nós o tiramos, muito tarde, infelizmente, das mãos de sua família
que batia nele e o torturava a fim de aleijá-lo. Como pode ver, funcionou muito
bem.
— Que horror! Como podem fazer coisas desse tipo?
— Trata-se de um costume bastante comum entre os pobres. Não pense
que a Ásia tenha o privilégio desses hábitos tão selvagens; em seu país, na
França, vigoravam até pouco tempo atrás.
— Não é verdade, não acredito no senhor!
— Pois então está chamando Victor Hugo de mentiroso! Não leu O homem
que ri? Nunca ouviu falar do pátio dos milagres e das suas fábricas de aleijados
a quem se mandava pedir esmola nas esquinas ou no adro das igrejas?
Trechos de suas leituras de infância surgiram em sua mente.
— Eu havia esquecido. Foi o senhor que lhe ensinou a falar francês?
— A ler e também a escrever. Aliás, ele foi um excelente aluno, antes que
um acidente terminasse a tarefa iniciada por seu padrasto. Ele foi derrubado e
atropelado pelo filho de um novo proprietário branco, que depois fugiu.
— Não o encontraram?
— Sim, mas o juiz considerou que a culpa era de Giau. Recusou-se a
reconhecer que o motorista dirigia completamente bêbado. O pai do rapaz
pagou-nos uma certa quantia e pronto.
— É muito baixo! Mas, já que o educou, instruiu, por que deixá-lo pedir
esmolas?
— Isso é uma outra história, senhorita. Após o acidente, ele se comportou
muito mal, tivemos de mantê-lo afastado. Não pensávamos que fosse descer tão
baixo. Não fomos recompensados pelo bem que lhe fizemos.
Léa lançou-lhe um olhar fulminante, profundamente chocada com as
palavras do padre. Ao perceber a reação da jovem, ele se despediu rapidamente.
Enquanto durara aquela conversa, Giau mantivera os olhos fixos sobre o
rosto de Léa, acompanhando cada um dos seus pensamentos.
— Você é diferente dos outros Tay, e dos vietnamitas também. Meus
compatriotas costumam zombar de mim e sempre me espancam. Atiram a
comida para mim como se eu fosse um animal.
No entanto, faço favores para todo mundo. Mas você foi boa comigo, nunca
vou esquecer. Ouvi ainda há pouco que estava procurando alguém. Quem sabe
eu posso ajudar?
— Como assim?
— Consigo entrar em toda parte, ninguém liga para mim, ou então me
escorraçam com um pontapé e continuam as conversas. Os Tay não podem

imaginar que entendo tudo; quanto aos vietnamitas, para eles, eu
simplesmente nem existo. Diga-me o nome de quem está procurando...
— Trata-se de meu marido, François Tavernier.
— Eu precisaria de uma foto.
Léa procurou na bolsa. Dentre as cinco ou seis fotografias de François que
se encontravam em sua carteira, e escolheu uma em que ele estava de frente.
Antes de entregá-la, beijou o papel lustroso.
Após uma rápida olhada, Giau guardou a foto sob os trapos.
— Em breve vai anoitecer, deveria voltar para casa. Não é prudente ficar
por aqui sozinha. Até logo, senhorita.
— Quando vou revê-lo?
— Logo.
Com a ajuda dos antebraços e dos joelhos, ele se afastou com uma
agilidade surpreendente.
Léa também foi embora, perturbada com todos os encontros daquele dia:
Jean, que aparecera tão de repente e sumira da mesma maneira; Giau, o
monstro, que lhe oferecera seus préstimos... Não havia a menor lógica nisso,
mas ela depositava uma certa esperança na intervenção daquele homem.
Ao chegar à casa dos Rivière, a família e os criados estavam rezando diante
do altar dos antepassados, como costumavam fazer todas as noites desde a
morte do avô. Léa juntou as mãos e inclinou-se.
Na qualidade de filho mais velho, cabia a Hai homenagear as almas dos
defuntos, mais particularmente as dez almas do seu avô — as suas três almas
elevadas, as suas sete almas grosseiras — a fim de que o espírito daquele
homem permanecesse entre eles. Num estojo laqueado vermelho, enfeitado com
desenhos geométricos dourados, a placa representando Lê Dang Doanh
encontrava-se entre as dos antepassados até a quinta geração. Sobre o altar,
estavam colocadas as oferendas e as espirais da fumaça do incenso envolviam a
estátua de Buda.
— Onde esteve? Ficamos preocupados — perguntou Hai após o término da
prece.
— Fui colocar as cartas no correio e caminhei ao longo do Pequeno Lago.
Encontrei um amigo da França. Infelizmente, estava de partida para o norte.
— Não é o legionário que fez companhia a François em Saigon? —
perguntou Kien.
— É sim, trata-se de um amigo de infância, Jean Lefèvre.
— Um regimento inteiro de legionários partiu para o norte hoje. Espero
que todos sejam mortos! - exclamou Phuong, a esposa de Hai.

— Você esqueceu que se encontra na presença da nossa convidada e da
minha esposa! — protestou Bernard.
— Não esqueci; mas, todos os dias, os nossos caem sob as balas dos teus
amigos franceses; isto sim, você esquece!
— Phuong, aqui não é o lugar para tratar desse problema. Saia., por favor
— disse Hai com certa tristeza.
A jovem deixou o aposento com ar de desprezo. Muito pálida, Geneviève
Rivière apertava a filha nos braços.
Permaneceram calados por algum tempo, profundamente abatidos.
— Papai, quando vamos embora? Não quero mais ficar aqui, tia Phuong
não gosta da gente - murmurou a pequena Mathilde.
— Não diga isso, querida. Tia Phuong gosta muito de nós e nós também a
amamos, mas o pai dela e os irmãos estão lutando, e ela se sente muito infeliz
— explicou a mãe.
— Mas todos eles querem matar os brancos, foi Trac e Nhic que me
contaram.
Não havia nada mais disparatado do que aquelas três garotinhas de cerca
de oito anos: Mathilde, loura e rosada; Trac e Nhi, com olhos pretos repuxados
sob um capacete de cabelos cor de azeviche.
— Lien, quer levar as crianças, por favor? — pediu Hai.
Assim que saíram, Bernard explodiu.
— Como deixa tuas filhas dizerem esse monte de horrores? Tu e a tua
esposa nunca aceitaram o meu casamento com uma branca, como costumam
dizer os seus amigos Vietminh.
— Bernard!
— Por favor, Geneviève, já estou cansado como renegam o sangue francês
que corre em suas veias e tratam a gente, na casa do meu pai, como
verdadeiros intrusos! — E você, não está renegando o seu sangue anamita? —
gritou Kien.
— Sim, quando este sangue grita pela morte da minha esposa, da minha
filha e dos meus compatriotas franceses! Mas não é capaz de entender, justo
você que se faz passar por francês ou por vietnamita, conforme as suas
conveniências...
Ao ouvir o insulto, Kien deu um pulo e acertou um soco no rosto do irmão.
O golpe atingiu o nariz que começou a sangrar com abundância. Kien estava
pronto a desferir outro golpe, mas Hai segurou-lhe o braço. Geneviève e
Mathilde precipitaram-se sobre Bernard, gemendo.
— Papai, meu papai, ele vai morrer!

— Meu Deus, Hai, Léa, façam alguma coisa, está perdendo muito sangue!
— Fique calma, Geneviève, não foi nada, vá buscar uma toalha. Pronto,
leve Mathilde.
— Deixe-me examiná-lo — disse Hai. — Aconteceu exatamente o que eu
temia, você quebrou o nariz. Kien, não devia ter feito isso!
— Pouco me importa! Ele não devia me insultar.
— Que novidade, agora ficou suscetível no que se refere à honra! Foi o
contato com os bandidos Binh Xuyên que tornou você tão sensível?
— Bernard, já chega! Deveriam ficar envergonhados de brigar assim
quando precisamos tanto permanecer unidos. Kien, vá buscar minha maleta no
quarto. Léa, poderia nos deixar a sós, por favor.
Geneviève voltou com uma toalha e Kien trouxe a maleta.
— Obrigado. Agora, podem sair.
— Mas...
— Geneviève, tenho de conversar com Bernard em particular.
A jovem saiu de má vontade.
Hai limpou o rosto do irmão com muita ternura.
— O que tenho a lhe dizer deve ficar entre nós. Você vai jurar sobre o altar
dos nossos antepassados!
— Juro.
— Muito bem. Não me interrompa. Desde a nossa mais tenra idade,
sempre fomos diferentes, tanto no físico como moralmente também. Quando
pequeno, você rejeitou o seu lado asiático, apesar do amor que sentia por nossa
mãe e nosso avô. Não lhe quero mal por causa disso, sei que você não consegue
evitar esse sentimento. Desde o início da guerra, só deseja a vitória dos
franceses, pensando sinceramente que apenas eles podem trazer felicidade e
prosperidade ao povo vietnamita. Quanto a mim, penso exatamente o contrário.
Não renego o meu lado francês, mas não me tornarei cúmplice da repressão do
desejo de independência do meu país, muito pelo contrário. Já faz algum
tempo, você deve ter pressentido ou já sabe de tudo, eu me juntei ao Vietminh.
Vou partir para o norte com Phuong para tratar dos feridos. Valendo-me do
nome do papai e do vovô, escrevi ao presidente Hô Chi Minh a fim de
comunicar meu desejo de ajudar na luta, deixando bem claro que não
combaterei os franceses. Recebi a resposta: ele aceita e me deu a sua palavra
de que não precisarei fazê-lo. Vamos embora hoje à noite. Lien está a par de
tudo, aceitou cuidar das nossas filhas.
— Mas...
— Espere, não terminei. Interprete as minhas palavras como um sinal de
meu afeto e a conclusão de longas horas de reflexão. Você deve partir para a

França com a família. Creio que não estão em segurança aqui. Todos conhecem
as suas posições pró-francesas; certas pessoas podem sentir raiva de você e
querer a tua morte.
— Foram os teus amigos vietminh que mandaram falar comigo?
— Não. Lembre-se dos atos de ódio contra os mestiços em 45 e 46. Podem
recomeçar a qualquer momento.
— Tu corres os mesmos riscos que eu.
— Sim e não. Todos conhecem as minhas posições. Mas não tenho a
menor ilusão. Ao menor problema, seremos sempre o bode expiatório.
— Sendo assim, por que ficar aqui?
Hai deu um suspiro de desanimo:
— Por que você finge não entender o problema?
— Supondo que eu entenda: Lien e Kien estão com a vida em jogo tanto
quanto nós.
— Sei perfeitamente. Kien saberá como se virar, não estou preocupado
com ele. Em compensação, a nossa irmã me inspira muitos cuidados. Você
sabe tão bem quanto eu que Lien não aceita sair do país, por nada neste
mundo. Voltei a falar-lhe a respeito e ela pediu que me calasse.
— Aconteceu o mesmo comigo. Mas só de pensar em deixá-la —
Precisamos respeitar a sua escolha. O que você decide?
— Vou embora, é claro. Não quero correr risco algum com Geneviève e
Mathilde. Iremos primeiro encontrar a família dela na Índia e, depois,
viajaremos para a França.
— Deixei com Lien e com o tabelião as procurações das quais você poderá
precisar para a herança do nosso pai.
— Muito obrigado, pelo que vejo já pensou em tudo.
— Sim, posso ser morto a qualquer momento.
Bernard segurou a mão do irmão.
— Não diga uma coisa dessas!
Olharam-se demoradamente sem tentar dissimular a emoção.
— Fique tranqüilo, não tenho a menor vontade de morrer Pronto, já acabei
— disse Hai colocando um curativo no nariz machucado de Bernard. — Aquele
canalha fez um bom trabalho Tome esses comprimidos, vai sentir dor durante
dois ou três dias; depois, apenas um certo desconforto.
— Obrigado. E Léa, o que vai acontecer com ela?

— Não tive tempo de lhe contar: encontraram uma pista de François. Ele
está em Cao Bang. Deverá sair da cidade no próximo comboio para Hanói.
Mandei um telegrama para informá-lo que a esposa se encontra em nossa casa.
— Finalmente uma boa notícia! Quando você vai embora?
— Depois do jantar.
— Pois então vou me despedir logo e desejar boa sorte. Quando voltaremos
a nos ver?
Hai fez um gesto fatalista e estendeu os braços para o irmão.
— Aqui!...

Capítulo 28

François deixara a cidade de Cao Bang havia duas horas quando chegou o
telegrama anunciando a presença de Léa em Hanói.
O tenente Thévenet não abrira a boca desde a partida ao amanhecer.
Pierre Morion, o cabo que dirigia o jipe, assobiava uma marcha da Legião entre
duas enumerações das emboscadas e dos mortos ao longo da RC4. O sargento
Fleury, responsável pelo rádio, apertava nervosamente o fuzil- metralhadora
com uma das mãos e os aparelhos de escuta com a outra, enquanto o
subtenente Ribaud dava profundas tragadas em seu cigarro sem deixar de
examinar atentamente a selva densa e compacta.
A estrada destruída, estreita, ia subindo pelas montanhas, serpenteava no
fundo dos desfiladeiros, ladeava precipícios, atravessava dezenas de arrozais
em vários níveis, penetrava na selva que formava, de ambos os lados, uma
parede impenetrável. A cada curva, temia-se uma tocaia.
— Quilômetro 28 — cantarolou o cabo Atras, cada vez menos visível, o
comboio estendia-se.
— Estamos chegando ao desfiladeiro do Túnel, tenente.
— Já percebi — resmungou Thévenet.
Pierre Morion acendeu os faróis. Durante cerca de cem metros,
atravessaram a montanha. Do outro lado, a estrada descia numa encosta
íngreme na direção de Dong Khe.
— Ali, houve dez mortos — resmungou o cabo, crispado ao volante.
Embaixo, na planície, os camponeses estavam absortos no trabalho no
meio dos arrozais, as crianças montadas nos búfalos, as mulheres inclinadas
sob o imenso chapéu. Tudo parecia calmo sob um céu ameaçador de
tempestade.
— Vai cair uma tromba-d'água!
Mal Morion terminou a frase, a chuva literalmente desabou. Em segundos,
os quatro homens ficaram encharcados; a água transbordou do ressalto da
estrada e formou pequenas torrentes furiosas carregando calhaus e depois
pedregulhos bem mais pesados. Embaixo, a aldeia de Dong Khe transformou-se
em lamaçal onde chafurdavam porcos pretos e crianças.
— Vamos parar por uma hora — disse Thévenet, saltando na lama em
frente a um café pintado de azul.
— Ribaud, vigie a chegada de todo o comboio.

François acompanhou o tenente ao interior do bar, cujo cheiro lembrava o
de um dormitório na volta dos exercícios, embora as recrutas fossem jovens
com trajes que revelavam claramente sua profissão.
— O que vai tomar, tenente?
— Um conhaque e uma cerveja.
— Um conhaque, duas cervejas e uma sopa — pediu François à dona do
lugar, que não era das mais feias apesar do excesso de maquiagem.
Thévenet tomou a cerveja e o conhaque um atrás do outro. Estalou os
dedos e levantou-se, acompanhado por uma jovem. O casal desapareceu atrás
de um biombo de bambu trançado.
A sala encheu-se de oficiais e suboficiais encharcados. Em breve, a
algazarra tornou-se insuportável. Com a tigela de sopa na mão, François saiu e
foi se refugiar sob uma espécie de alpendre de metal ondulado. Algumas
mulheres e seus filhos, anciões, agruparam-se com certo receio para lhe dar
lugar. Ele lhes sorriu e pensou mais uma vez que, desde que se encontrava
entre as tropas francesas, exceto aqueles que estavam servindo, não encontrara
nenhum nativo na força da idade. Provavelmente, todos eles se encontravam na
resistência!...
A chuva parou tão subitamente quanto começara. Um sol tímido tentava
furar as pesadas nuvens.
Na praça, os vendedores espalhavam suas mercadorias em meio às poças.
Thévenet saiu, o rosto congestionado, e deu a ordem de partida. Os motores
roncaram, a fumaça azul dos canos de descarga misturou-se ao vapor que
subia do chão. O ar estava sufocante.
Novamente os solavancos da estrada, as curvas, as encostas abruptas, as
descidas vertiginosas, a densidade da selva e, onipresente, o medo. Um medo
que contraía a barriga, apertava a garganta, crispava os dentes, umedecia as
mãos.
Pelo rádio, uma voz anunciou que o caminho estava livre.
— Imagine só! — resmungou o motorista. — Pois eu acho que, neste exato
momento, estão nos observando, aguardando o melhor momento, eles não têm
pressa. São os donos da floresta...
— Vê se cala a boca! — gritou o tenente.
Sem ligar para aquela interrupção, Morion prosseguiu seu monólogo:
— ...Somos alvos ideais para eles... Avançando a vinte quilômetros por
hora, até um maneta conseguiria pegar a gente... Essa região é maldita...
Rangendo, sacudindo a carroceria, o comboio subia com dificuldade o
desfiladeiro de Luong Phai, um dos trechos mais sangrentos da RC4. Os
olhares sondavam à direita, à esquerda, à frente, atrás...

— Aqui, houve um verdadeiro massacre. Atacaram com machetes...
— Cala-te ou vou te atirar na estrada! — berrou Thévenet.
O cabo calou-se durante cerca de cem metros, mas o medo do Viet era
mais forte que as ameaças do tenente.
— ...Ali, todos foram queimados... Aqui, plantaram as cabeças na beira da
estrada... Estamos nos aproximando do "buraco que uiva", como costumam
chamar os Thos... Dá azar...
Ao término de uma hora e meia de subida, avistaram finalmente o topo da
montanha. Um rochedo atravessado por um enorme buraco preto dominava a
estrada. Com os olhos fixos nele, Morion esboçou um sinal-da-cruz. Thévenet
saltou do jipe.
— Não pare, volto já.
— O que ele vai fazer? — perguntou François.
— Tem sempre essa mania. Cada vez que passa por aqui, costuma encher
o cantil na fonte.
— Mas não tem fonte!
— Claro que sim, ali, a cabeça de naja feita de pedra.
— Já vi. E o que essa água tem de especial?
— Ele afirma que é excelente para combater todos os tipos de febre. Não
sei se é verdade, mas pelo menos não provoca diarréia!
Thévenet voltou correndo e subiu no jipe.
— Se manda, rapaz, está cheio de viets por aqui!
O jipe deu um salto para a frente.
— Epa, assim a gente vai acabar no chão! Dê-me o microfone — ordenou
ao sargento Fleury. — Ligue-me com os outros. Atenção, atenção, fiquem
atentos...
Presença inimiga possível... Atenção, atenção...
O jipe descia pela encosta íngreme a toda velocidade. Embaixo, aos pés da
montanha, o abrigo: That Khe, a Cidade dos Sete Riachos, outrora local de
encontro dos garimpeiros de ouro chineses, cercada por sossegados arrozais.
Ao saírem de uma curva, depararam-se com um monte de entulhos
atravessados na estrada. O motorista freou em vão: o veículo encravou-se na
barricada. O responsável pelo rádio berrou ao microfone, antes de cair, o rosto
ensangüentado:
— Emboscada à frente, emboscada à...

Thévenet, Morion, Ribaud e Tavernier saíram do jipe às pressas. O tenente
tirou o pino de uma granada que atirou atrás dos entulhos. Esta explodiu,
ouviram-se gritos; alcançara o seu objetivo.
Thévenet lançou outra.
— O saco de granadas ficou sob o meu assento...
— Cubram-me, vou buscar! — gritou François.
As balas retiniam sobre a carroceria; uma delas carregou o chapéu imundo
de François na hora em que ele pegava o saco de granadas. Abaixou-se...
— Tenente, o tanque furou, é melhor a gente se mandar!
— Temos de recuperar o material do rádio e a arma de Fleury!
Por um segundo, Tavernier achou que o outro talvez desejasse vê-lo
explodindo junto com o veículo.
Mal conseguira sair do jipe, segurando contra o peito o fuzil-metralhadora
e o equipamento de rádio, quando tudo explodiu, projetando pelos ares o corpo
do pobre cabo que caiu em pedaços sobre o monte de pedras. Os quatro
homens mergulharam na selva e correram sempre em frente. O chão
escorregadio deslizava sob os pés, a vegetação atrapalhava com raízes, galhos,
cipós e espinhos. De uma gruta, surgiram labaredas. Deitados no meio das
plantas, François e o tenente, com um só gesto, atiraram ambos uma granada.
Um ruído abafado, gritos surdos, fumaça, e em seguida o mais completo
silêncio.
— Pegamos eles, tenente!
— Esconda-se, seu idiota!
Na estrada, acima deles, a batalha estava no auge.
— Morion, fique aqui. Tente se juntar aos de That Khe e peça reforço.
Ribaud, Tavernier, vamos voltar para a estrada e dar uma ajuda.
— Já que quer assim...
Curvados, subiram até a RC4. Chegaram a uns cem metros da barricada
que os detivera. Ali reinava a mais terrível carnificina. Quatro caminhões
estavam em chamas, com todos os seus ocupantes. Os feridos conseguiram se
arrastar até o acostamento, mas foram massacrados a facadas. Mais adiante,
uma explosão misturara em uma espécie de mingau infame cabeças, pés,
troncos, mãos e braços. Escorregava-se na merda e no sangue. Sufocados pela
fumaça negra e ácida, correram em ziguezague ao longo da coluna. Mais acima,
os legionários haviam organizado a defesa. Os feridos foram arrastados para
dentro de uma gruta; o médico e o jovem capelão juntaram-se a eles. Na
entrada da gruta, sete ou oito mortos vietminh; alguns, deitados de bruços,
pareciam estar dormindo. Com o pé, Thévenet virou os corpos.

— Garotos e camponeses! Estamos lutando com crianças e camponeses!
Um exército de descamisados, sem uniforme! — exclamou.
"Na verdade, o aspecto deles não é dos melhores", pensou François, "com
sandálias feitas de pneus e quân nâu, mas a Alta Região lhes pertence."
O ataque vietminh durara apenas alguns minutos. Os agressores
desapareceram na floresta, levando os seus feridos.
— Levavam vantagem, não entendo por que desistiram — resmungou
Thévenet, falando sozinho.
— Tenente, tenente, pegamos um!
O legionário empurrava à sua frente um homenzinho que avançava aos
tropeços, com os braços para cima.
— Onde o capturou?
— Tentava se esconder sob uma rocha, peguei ele pela perna.
— Estava sozinho?
— Sim... acho que sim...
— Como é, você acha?...
— Pois é... Não olhei bem.
— Veja só que babaca, feliz com a sua captura!... Não olhou muito bem!...
Deixa ele comigo.
Com um empurrão, fez com que o prisioneiro caísse.
— Onde estão os outros?... Você vai falar, seu canalha!... Quantos eram?...
— Roi không biêt. (Eu não sei.)
— Ah, não sabe! Vou te refrescar a memória!
Os pontapés sucederam-se.
— Tenente!
— Deixe-me em paz! Aquele safado precisa falar!
François afastou-se. No lugar de Thévenet, o que mais poderia fazer?
Aborrecido com a situação, juntou-se aos soldados que limpavam a estrada,
enquanto outros ficavam de sentinela de ambos os lados, examinando
atentamente a muralha verde. Em breve, o caminho ficou livre, os feridos foram
levados a bordo dos caminhões. Das chapas de ferro ardentes, arrancaram
corpos calcinados que foram cuidadosamente deitados; retiraram nove
cadáveres dos veículos destruídos pelo fogo.
Preciso e eficiente, Thévenet comandava os trabalhos. O Vietminh,
brutalmente interrogado, deixara de se mover. François inclinou-se.

Com os olhos esbugalhados, o rosto intumescido, falecera. O olhar de
Tavernier encontrou o do tenente que cuspiu com desprezo:
— Essa gente não tem boa saúde... Vê se encontra o subtenente e o cabo!
A barricada estava quase toda demolida. Apenas as poças de sangue preto
testemunhavam a emboscada. Nenhum vestígio de Ribaud e Morion: os
legionários não se lembravam de tê-los visto desde o início do ataque.
Tavernier penetrou na selva. Esta se fechou atrás dele com seu cheiro de
húmus e menta selvagem, quente, úmida, carnal, envolvente, hostil e ao
mesmo tempo cúmplice, vibrante com o zumbido de milhões de insetos, o ruído
das folhas. O roçar dos répteis, os gritos dos macaquinhos, o marulho das
fontes, o fluxo das cascatas compunham um mosaico de sons que remontavam
às origens do mundo... Ele não encontrava a gruta de onde saíram as
labaredas; devia ficar um pouco mais para baixo, à direita.
Não foi a gruta que ele encontrou e sim os corpos torturados de Morion e
Ribaud, com as entranhas saindo do ventre rasgado, os órgãos sexuais
introduzidos na boca. Os infelizes haviam falecido recentemente, os rostos
ainda estavam mornos. François cerrou-lhes os olhos, e deixou-se cair de
costas para eles. Com a coronha do fuzil-metralhadora enfiada na terra, a testa
apoiada no cano, chorou. Foi nessa posição que Thévenet e dois soldados o
encontraram.
— Puta merda! — xingou o tenente.
Aquele brutamontes teve então gestos de surpreendente ternura. Retirou o
membro e os testículos da boca dos mortos e colocou- os sob as camisas
pesadas de sangue que ele abotoou. Com a mesma delicadeza, pegou os
intestinos que repôs nos buracos abertos. Para impedir que escorregassem,
tirou a própria camisa cujas mangas amarrou em volta da cintura de Morion.
Um dos soldados deu a dele; afastou-se para vomitar.
Em seguida, tudo foi muito rápido.
Os legionários caíram, com a garganta rasgada. Thévenet e Tavernier
foram espancados e amordaçados. Bastaram apenas alguns segundos. Calados,
os homenzinhos amarelos desapareceram na selva, levando as suas presas.
Quando recobraram os sentidos, pensaram quejá fosse noite. No entanto,
pouco a pouco, seus olhos começaram a se habituar à escuridão e perceberam
que se encontravam no fundo de uma gruta, com as mãos e os tornozelos
amarrados. Ergueram-se resmungando.
— É você, Tavernier?
— Sim.
— Onde estão os outros?
— Só nós estamos aqui. Alguém vem vindo.
Uma voz gritou:

— Saiam e não tentem fugir! Ao menor sinal, meus homens têm ordem de
atirar para matar.
— Para onde estão nos levando? — perguntou François ao se levantar.
O outro nada respondeu. Na entrada da gruta, cerca de quinze soldados
Vietminh comiam ou fumavam. Após um gesto do homem que parecia ser o
chefe, deram-lhes um bolinho de arroz embrulhado numa folha e uma lata de
conserva cheia de água. Thévenet, com o rosto e a barba cobertos de sangue e
lama, tomou tudo de um só gole. François agachou-se e comeu lentamente,
mastigando cada bocado; seus olhos brilhavam numa máscara lamacenta.
Novamente, a calma que pairava na selva exerceu sobre ele um efeito
benéfico. Como sempre, quando se encontrava em situações perigosas,
François relaxou, tentando juntar todas as suas forças morais e físicas. Acima
de tudo, fazer o possível para não revelar nada, observar e ouvir, já que, por
sorte, conseguia entender em parte as palavras do inimigo, e aguardar o
momento propício para fugir. Com os olhos semicerrados, examinou os
guerrilheiros. Trajados com seu uniforme de cor quân nâu, uma tira da mesma
cor em volta da testa, calçavam sandálias de borracha e traziam um fuzil e um
facão a tiracolo; apenas alguns dentre eles estavam equipados com granadas
amarradas no cinto de fibras. A maioria tinha a pele escura dos camponeses;
apesar da roupa, três dentre eles, mais altos, com a pele mais clara, pareciam
estudantes. Um pouco mais velho, revelando ar intelectual, o rapaz que parecia
ser o chefe fitava Thévenet atentamente. Levantou-se.
— Lên duong. (Vamos indo.) — falou.
Todos obedeceram. Um estudante aproximou-se e aplicou uma leve
coronhada em Thévenet.
— De pé! Vamos embora.
— Não me toca, seu filho da puta!
O vietnamita ergueu o fuzil; Thévenet rolou pelo chão, esquivando-se do
golpe.
— Convém não irritá-los — aconselhou François.
— Cala a boca! — disse o tenente erguendo-se. -Puta merda, como é que
querem que eu ande, amarrado como um burro?
Uma pancada fez com que ele tropeçasse; equilibrou-se xingando.
Amarrados como estavam, só conseguiam dar passos curtos, tropeçando
nas raízes. Arranhando-se nos espinhos, golpeados pelos galhos, trotaram
horas a fio no inferno vegetal, subindo, descendo, virando à direita, à esquerda.
Avançavam como robôs, drogados pela dor.
Apesar de seu estado, François teve a súbita impressão de que a selva
tornava-se menos densa, a trilha mais larga, a vegetação parecia diferente.
Observou as flores violetas das bananeiras selvagens acariciadas por pequenas

abelhas. Atravessaram um bosque de altos bambus. Vez por outra, aparecia o
vermelho gritante das flores de acácia. A floresta afrouxava seus laços.
Contornaram uma cerca de bambus e espinhos: "Uma aldeia", pensou.
Penetraram em uma estreita clareira ao redor da qual haviam sido construídas
cabanas a um metro do chão. Galinhas, porcos, patos procuravam alimento na
lama. Mulheres de quân nâu empenhavam-se em volta de uma panela
fumegante. Um homem de uniforme americano explicava a um grupo de
camponeses o funcionamento de um fuzil; outro, o da metralhadora. Em meio à
clareira, uma figueira estendia seus galhos acima das cabanas. Mais adiante, a
aldeia espalhava-se entre os bosques. De avião, mesmo a baixa altitude, ela
devia ser invisível, supondo-se que um avião pudesse sobrevoar aquela região
montanhosa tão compacta.
As pequenas corujas cinza, os imensos e pesados morcegos riscavam a
clareira em todas as direções, anunciando o entardecer. Rapidamente, a noite
chegou.
Os prisioneiros tiveram de subir por uma pequena escada. Permaneceram
um instante deitados de bruços, exaustos. Uma luz piscou. François virou-se:
uma lâmpada elétrica oscilava acima de suas cabeças.
"Como conseguiram eletricidade?", pensou.
Agora, todas as suas feridas doíam e ele sentia uma sede insuportável.
Arrastou-se, sentou-se, encostou-se na parede de palha. Sua dor de cabeça era
insignificante comparada à dor nas pernas.
Baixou os olhos: as cordas haviam penetrado na carne. Ao redor de todos
os inchaços de seu corpo, formaram-se bolsas de sangue. Seus dedos,
completamente entorpecidos, tiveram muita dificuldade em arrancar as
sanguessugas escorregadias agarradas à pele.
Entraram algumas mulheres, acompanhadas de dois soldados que
apontaram com os fuzis para os franceses.
— Cât dy troi cua ho. (Cortem seus laços.) — disse um às mulheres.
Com a ajuda de uma faca de lâmina curta, cortaram as cordas
impregnadas de sangue.
— Bây gio di lây nuoc va dô ân. (Agora, vão buscar água e comida.) —
ordenou o membro da resistência com ar de intelectual que acabara de
penetrar na cabana.
Sem ligar para a presença daquele homem, François terminou de arrancar
as sanguessugas com as quais fez um montinho a seu lado. Em seguida, com
dificuldade, tirou os sapatos. Apesar do bem- estar imediato, o estado de seus
pés, inchados, esbranquiçados, feridos e imundos, provocou nele uma sensação
de náusea intensa. Entre os dedos, tirou outras duas sanguessugas que pôs no
montinho. Em seguida, pegou um dos calçados e, lentamente, com certa

volúpia, esmagou aquelas chupadoras de sangue sob o olhar de consenso do
intelectual.
— Deveria fazer o mesmo — disse ele dirigindo-se a Thévenet.
Desligando-se do problema, Tavernier encostou-se na parede, de olhos
fechados, remexendo os dedos dos pés.
— Senhor, me desculpe por interromper o seu descanso, mas nosso
comandante gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
— Não pode esperar até amanhã? — perguntou Tavernier sem abrir os
olhos.
— Receio que não. No entanto, se quiser se lavar um pouco, fique à
vontade. Aqui tem água.
De má vontade, François entreabriu as pálpebras.
A sua frente, uma jovem oferecia-lhe uma toalha cinzenta e um pedaço de
sabão. Umedeceu um canto da toalha e começou a limpar o rosto. O sangue
coagulado não queria sair e um corte comprido voltou a se abrir. Sem pressa
alguma, ele lavou o peito e as pernas. A água suja caía entre as ripas de bambu
do assoalho. Depois de seco, a mulher deu-lhe um par de sandálias. Era uma
grande gentileza de sua parte, mas eram muito pequenas; ele as calçou como se
fossem chinelos.
— Vamos.
Ele seguiu o oficial vietminh, escoltado por um dos soldados, até uma
cabana afastada das outras e cercada por sentinelas. Na frente de uma mesa
comprida, encontravam-se um homem de cerca de quarenta anos, de cabelos
ralos, os olhos protegidos por lentes fumê, o outro que os prendera e um dos
"estudantes". O homem de óculos usava um blusão que lembrava uma camisa
de uniforme e fumava com uma longa piteira. Diante dele, os documentos que
François levava quando o prenderam.
— Qual é o seu nome?
A voz feminina, melosa, provocou uma impressão desagradável.
— François Tavernier.
— Você não é militar. O que estava fazendo naquele comboio?
— Ia para Hanói.
— O que faz no Tonquim?
François hesitou. Devia falar a verdade?
— Não ouviu a minha pergunta?
— Fui encarregado pelo governo francês de contatar os dirigentes
Vietminh.
Os três homens entreolharam-se, incrédulos.

— Senhor Tavernier, conte outra!
— É a pura verdade, senhor...
— Trate-me de coronel. Então, foi encarregado de contactar nossos
dirigentes? E conseguiu?
— Sim, coronel.
— Muito bem, senhor Tavernier... E com quem falou?
— Com o presidente Hô Chi Minh.
— O presidente Hô Chi Minh! Que interessante!... O que achou dele?
— Achei-o cansado.
— Cansado?... Ah, sim, claro, o presidente tem tantas preocupações, não
é, senhores?... Está rindo de mim, senhor Tavernier! Cuidado, minha paciência
tem limites... Como ousa dizer que o presidente Hô Chi Minh o recebeu, logo
você, um francês!... Ele odeia os franceses e perdeu toda a confiança em suas
promessas... Vê se muda o disco, senhor Tavernier!
— Mantenho tudo o que eu disse, coronel.
— Senhor Tavernier, temos diversos meios de obrigá-lo a falar. Mas vou
ser amável com o senhor, o dia foi muito cansativo para todo o mundo: vá
descansar, amanhã voltaremos a conversar. Boa noite, senhor Tavernier.
— Boa noite, coronel.
O oficial e o soldado que o haviam acompanhado encontravam- se aos pés
da escada.
— Coi chung, no cân thân, no thi rât cung dâu. (Cuidado com ele, trata-se
de um homem muito teimoso.) — gritaram do interior da cabana.
A escuridão era quase total, viam-se alguns pontos luminosos que
revelavam a presença humana. A aldeia parecia mergulhada nas trevas.
— Não devia responder assim ao coronel — murmurou o oficial segurando-
lhe o braço. — Trata-se de um homem rancoroso, não suporta que zombem
dele.
— Mas não zombei dele de forma alguma!
— Chegamos.
Tateando com as mãos, François subiu. Na cabana, uma vela enfiada no
gargalo de uma garrafa de cerveja difundia uma luz trêmula; num canto, via-se
o ponto vermelho de um cigarro aceso.
— Thévenet?
— Cale-se! Quer um cigarro? Tome, pode ficar com o maço todo. Boa
noite... Ah, ia me esquecendo: não está amarrado, mas não tente sair, há
armadilhas por toda parte, a maioria delas envenenadas.

François acendeu um cigarro na chama da vela; a fumaça ácida provocou
uma agradável sensação.
Em seu canto, o tenente se mexeu:
— O que foi que lhe perguntaram?
Tavernier estremeceu, devia estar adormecido.
— Quem eu era e o que estava fazendo nesta região.
— E daí?
— Não acreditaram em mim.
— Foi espancado?
— Não.
— Não?... É muito estranho.
— Também acho. Você acha que ele estava blefando, com aquela história
de armadilhas?
— Não. Já fiquei com o pé todo furado com esse tipo de babaquice. Tive
sorte, não estava envenenada. Dois companheiros morreram assim, foi horrível:
faleceram sufocados, inchados, completamente roxos. Por isso, quando prendo
um deles, jogo pesado para obrigá-lo a falar.
— Acontece com freqüência?
Thévenet aproximou-se rastejando.
— Vocês, civis, não podem entender! Antes de chegar a este país filho da
puta, nunca tinha ouvido falar em tortura. Aqui, eles são verdadeiros
especialistas. O que conseguem, com um simples bambu bem afiado, é uma
loucura. Comparado com eles, a gente não passa de anjinhos! Para essa gente,
a tortura em si é uma coisa boa. Para nós, permite ganhar tempo.
Quantas vezes evitamos o pior obrigando um preso viet a falar! Claro,
existem excessos, algumas pessoas costumam abusar um pouco do telefone ou
do funil. O que é que você quer, trata-se de uma guerra suja, a gente luta com
armas sujas... Ainda há pouco, na RC4, fiquei irritado.., não gosto que matem
os meus homens. Geralmente, sou mais calmo. Mas não somos santos: quando
vemos os companheiros tratados como aconteceu com Morion e Ribaud,
acabamos perdendo a cabeça, pegamos o nhà que catador de bambu e ele tem
de falar!
— O alto comando aceita esse tipo de coisas?
— Nem quer saber. Oficialmente, a tortura não existe. Fazemos a guerra
aqui como se estivéssemos na Europa; teria sido preciso formar os caras para
combater como os viets, com as mesmas armas que eles, os mesmos métodos, a
capacidade que têm de desaparecer em meio à vegetação. Mas que nada! Não

passa de uma farsa! Enquanto isso, o corpo expedicionário está sendo dizimado
porque, nos altos escalões, ninguém liga para nós!
Era óbvio que Thévenet estava farto; há mais de dois anos vinha brigando
desde a Planície dos Juncos até os calcários do Tonquim, vendo morrer tantos
companheiros, transando com tantas mulheres, matando tantos viets,
obedecendo sem jamais fazer qualquer pergunta; o paludismo, a disenteria, as
feridas, o álcool acabaram transformando aquele homem em um animal doente
e perigoso, incapaz de se dominar, corajoso frente à morte.
Acendeu outro cigarro. François pôde avistar seu olhar fixo nele.
— Para um civil, até que luta bem. Daria um excelente legionário.
— Obrigado pelo elogio!
— Este país vai acabar sendo o nosso túmulo.
Tavernier pensou ter ouvido mal.
— O que disse?
— Nada, um pressentimento. Em 1884 e 1885, contra os chineses que se
recusavam em reconhecer os direitos da França sobre o Aname e o Tonquim, a
Legião já pagou um pesado tributo à conquista.
Em Son Tay, em Bac Ninh, em Tuyen Quang, as perdas foram terríveis.
Por toda parte, os legionários lutaram como leões, nossos chefes à frente: era
uma honra morrer sob as suas ordens. Conhece o magnífico poema que o
capitão Borelli escreveu após aqueles combates?... Claro que não. Ouça:

Meus companheiros, sou eu, bons guerreiros,
É o seu chefe de ontem quem vem falar aqui
Daquilo que não se sabe, ou pouco se sabe;
Meus mortos, eu vos saúdo e digo: Obrigado!
Ora, ouçam isto: "Desertores! Mercenários!
Conjunto de estrangeiros sem honra e sem fé!"
Abram o coração e perguntem por quê.
Sem honra? Ah, tudo bem!
E sem fé? Que significa isso?
Que mais faltava e o que mais queriam?
Vocês não cumpriram, até o martírio,
As promessas e os acordos?
Mercenários? Sem dúvida: é preciso comer para viver

Desertores? Cabe a nós tal julgamento?
Estrangeiros? Tudo bem. E daí?
Quem afirma ser
O Marechal de Saxe francês?
E quando os franceses irão entender
Que a guerra se faz dente por dente, olho por olho,
E que os estrangeiros que morreram, na verdade,
Cada vez, ao morrer; lhes poupavam um luto?
Por isso mesmo basta de raiva inútil,
Vocês não precisam de tanta defesa;
Eis o rio Vermelho e o rio Claro
E me dirijo apenas a vocês, de vocês que perdi!
Jamais guarda de rei, de imperador, de autocrata,
De papa ou de sultão; jamais nenhum regimento
Vestido de ouro, trajado de azul ou vermelho
Avançou com mais orgulho e ousadia.
Vocês tinham braços fortes e corpos bem-feitos
Que mais realçavam seus farrapos rasgados;
E eu me sentia mais jovem vendo suas barbas grisalhas,
E eu estremecia de prazer ao vê-los tão belos.

A voz crescia, vibrante; percebia-se que Thévenet via aqueles legionários e,
como o capitão Borelli, achava-os bonitos.

Quanto a saber se tudo foi assim
E se vocês não morreram por nada,
Se não tombaram por uma causa já morta,
Meus pobres amigos, nem queiram saber!
Durmam na grandeza de seu sacrifício,
Durmam, que mágoa alguma venha perturbá-los,
Durmam naquela paz ampla e libertadora
Onde meu pensamento enlutado virá visitá-los.

Sei onde encontrar, em sua última etapa,
Todos aqueles cuja imensa barba tingiu-se de sangue,
E os que foram tragados pelas armadilhas de sapa,
E os que foram devorados pela febre e o sol.
E minha fiel compaixão, unido à lembrança,
Vai desde o velho Wunderli, que tombou primeiro,
Seguindo uma longa e vermelha litania,
Até você, meu Streiblel; morto em último lugar!
Desde aqui eu os vejo, arrumados às pressas pelo chão
Na fossa onde eu os deixei,
Rígidos, vestindo suas roupas de guerra
Com estranhos lençóis feitos de juncos trançados.
Os sobreviventes disseram — e fui eu o padre! —
O adeus do companheiro aos seus corpos magoados;
Certos gestos talvez tenham sido desajeitados,
Entretanto creio que ninguém achou graça!
Mas alguém os elevava em sua glória estrelada
E os mostrava de cima aos que rezavam em baixo,
Quando eu dizia para todos, com a voz embargada,
O Pater e o Ave, que vocês não sabiam!
Companheiros, eu quis lhes falar dessas coisas
E dizer em poucas palavras por que tanto os amava:
Quando o esquecimento aumenta ao longo dos túmulos,
Pelo menos estarei a velar e nunca esquecerei.

A voz de Thévenet tremeu. Ele se deteve, acendeu um cigarro e prosseguiu
num tom mais firme:

Se às vezes, na selva onde o tigre passa próximo
E o som do canhão deixa de ser ouvido,
Tiverem a impressão de que um dedo toca em seu ombro,
Se pensarem estar ouvindo alguém chamando o seu nome,

Soldados que descansam numa terra longínqua
E cujo sangue derramado me deixa remorsos,
Imaginem simplesmente: "É nosso capitão
Que se lembra de nós... e conta os seus mortos."

Os ruídos da selva, seus odores, sua umidade, a noite profunda que os
cercavam tornavam aquela declamação irreal. A emoção contida na voz rouca
de Thévenet sensibilizou Tavernier. Em outras circunstâncias, ele talvez
achasse graça, zombasse, mas agora!... Ergueu a vela para acender um cigarro;
a luz trêmula revelou um rosto perturbado do companheiro. Embaraçado,
Tavernier baixou lentamente a vela.

Capítulo 29

Conforme haviam anunciado, Hai e a esposa Phuong foram juntar- se ao
Vietminh no norte. As despedidas entre os irmãos foram frias. Apenas Lien
sentiu sua partida. A viagem de Bernard e Geneviève para a França
aproximava-se. Quanto a Kien, declarou que voltaria para Saigon.
Na véspera, levara Léa para jantar no hotel Métropole. Tiveram dificuldade
em encontrar um lugar no bar invadido por oficiais e jornalistas que falavam
alto. Usando um vestido justo de seda preta, que revelava braços e costas, Léa
atraía todos os olhares. Ao sentar-se, a saia estreita subiu e as pernas
apareceram. Um assobio de admiração saiu de um grupo de correspondentes
sentados no bar. Furioso, Kien quis reagir; Léa não deixou. Com um copo de
conhaque na mão, o homem que assobiara aproximou-se:
— Desculpe-me, senhora Tavernier, mas sua beleza fez com que eu não
conseguisse me conter. Encontrou o seu marido?
— Como me conhece?
— Na Indochina, todo mundo conhece todo mundo. Já nos encontramos
em Saigon.
— Já me lembrei de você, é o jornalista de France-Soir?
— Às suas ordens, senhora — disse Lucien Bodard inclinando-se de
maneira cômica.
— Já que sabe de tudo, deveria saber que não encontrei o meu marido,
mas... talvez tenha notícias dele?
— Notícias, não... Boatos, por aqui, por ali...
— Quais? Por favor...
— Nada de concreto. Fala-se de um encontro com Hô Chi Minh... de
seqüestro pelo Vietminh... do ataque na RC4 a um comboio militar no qual se
encontrava um representante do governo francês...
— Talvez seja ele!
— Seu marido foi enviado pelo governo francês?
Léa percebeu então a súbita curiosidade do jornalista. Ela não devia dizer
nada que pudesse prejudicar François!
— Não sei de nada.
— Vai ficar algum tempo em Hanói?
— Sim.

— Se souber de alguma coisa, avisarei logo. Até breve, senhora Tavernier.
Boa noite, senhor Rivière.
Léa virou-se para Kien.
— Acha que ele pode trazer notícias de François?
— Trata-se de um dos jornalistas mais bem-informados da Indochina. Se
ele não conseguir nada, é porque não existe nada — respondeu Kien. — O que
deseja beber?
— Tanto faz.
— Duas taças de champanha!
Um grupo de mulheres de uniforme entrou, recebido por novos assobios.
— Eu não sabia que havia mulheres no exército da Indochina —
surpreendeu-se Léa.
Beberam calados enquanto comiam canapés.
— Você devia vir comigo a Saigon...
— Kien, já falamos a respeito e você sabe que não posso. Preciso ficar em
Hanói à espera das notícias que Hai talvez consiga junto a...
— Cale-se, não diga certos nomes aqui, é muito perigoso! Além dos
jornalistas, existem outras pessoas em busca de informações...
— O barulho é demais, vamos jantar.
O rapaz seguiu Léa na sala de jantar. Um mordomo indiano conduziu-os
até a mesa.
— Tem um novo chef francês que é excelente, segundo ouvi dizer. Tome,
veja o cardápio — disse Kien.
— Oh!
— O que foi?
— Confit de pato! — exclamou Léa com voz trêmula.
— E foi isso que a perturbou tanto? O que o confit tem de tão
extraordinário?
— Você não pode entender. Trata-se de toda a minha infância... Meu pai
costumava dizer que só minha mãe sabia como preparar o confit.
— Já que é assim, vou pedir também!
O confit, muito bem feito, e um excelente vinho bordeaux puseram Léa de
excelente humor; a vida parecia-lhe bem menos complicada, o futuro menos
sombrio. Ria, falava muito: do seu filhinho que iria rever em breve; de François,
de quem sentia muitas saudades; de Lien tão linda e tão triste; dele mesmo que
queria partir.

— Fique até a volta de François...
Kien olhava para ela como nunca olhara para mulher alguma. Desejava-a,
desejava-a só para ele.
François não podia regressar: mandaria homens de sua confiança
encontrá-lo antes de Hai, e a emboscada ficaria por conta do Vietminh...
— Você nem me ouviu... Por que me fita dessa maneira? Você me assusta!
Ele segurou a sua mão.
— Estava pensando em nosso futuro.
Léa apertou-lhe a mão sorrindo, mais uma vez sensibilizada pela beleza do
rapaz.
— Que tal irmos dançar?
— Não há muitos lugares decentes...
— E quem falou de lugar decente? Quero dançar, só isso!
— Muito bem, vamos ao Paramount. François gostava muito dessa boate.
Léa não percebeu a maldade do tom.
Um criado do Métropole levou-os sob um imenso guarda-chuva até o
triciclo. O condutor cobriu- lhes as pernas com um oleado onde o aguaceiro
crepitava com violência.
Uma espécie de cartaz de neon piscava vez por outra, indicando a entrada
do bar em frente ao qual estacionavam vários veículos mergulhados na cortina
de chuva. Léa e Kien penetraram correndo no estabelecimento. Apesar de tudo,
a água transformara o vestido de Léa numa segunda pele; ainda bem que o
calor do bar iria enxugá-lo rapidamente.
Havia pouca gente, quase nenhum soldado, várias dançarinas
desocupadas. Paddy, a barmaid, entorpecida atrás do balcão, a mão apoiada no
queixo, olhava vagamente para uns poucos casais que dançavam ao som da
música lenta de uma orquestra argentina. Ao ver Kien e Léa, ergueu-se e,
contornando o balcão, veio andando na direção do casal.
— Por onde andou? Faz um tempão que não te vejo! Boa noite, senhorita...
— Olá, Paddy! Sirva para a gente uma boa garrafa. Que tristeza, por aqui!
— É mesmo! Os legionários se foram e os outros encontram-se
concentrados na Cidadela.
— Algo está para acontecer?
— Não que eu saiba. Um acesso de zelo por parte do Alto Comando.
— Ofereça bebida à orquestra da minha parte, talvez assim consiga
despertar.

Do estrado, os músicos ergueram os copos em sua direção. Instantes mais
tarde, ouviram-se as primeiras notas de uma rumba animadíssima.
Kien tinha o dom da música e dançava muito bem. Segura e conduzida
com firmeza, Léa acompanhava cada movimento do corpo de seu parceiro com
uma agilidade voluptuosa. De início, entregue ao prazer da dança, deixou-se
levar; mas a pressão de Kien tornou-se tão embaraçosa que ela tentou se soltar.
— Está me machucando!
Kien relaxou seu abraço.
— Desejo você — sussurrou enquanto procurava os lábios de Léa.
— Cale-se, não diga tolices — disse ela desviando a cabeça.
— Desculpe-me...
Dançaram mais um pouco, belos e harmoniosos, o mesmo langor tomando
conta de ambos. Léa sabia que devia recusar, pôr fim àquela exibição que tanto
a perturbava, mas o prazer que experimentava ao sentir o seu membro
enrijecido contra ela tirava- lhe as forças. Não conseguiu reprimir um intenso
frisson. Este irradiou-se pelo corpo de Kien que soltou um longo gemido. Nada
mais importava, exceto aquele desejo que vinha crescendo. Léa ergueu para
Kien um olhar perturbado. Dominada por um violento tremor, conseguiu
finalmente soltar-se dos braços do rapaz.
Permaneceram frente a frente, imóveis; em seguida, Léa afastou-se e
caminhou até a saída. Kien veio atrás e a deteve:
— Aonde vai?
— Quero voltar para casa, me leve.
— Não, quero que fique comigo!
— Proíbo-lhe de me tratar com essa intimidade!
— Não seja tão metida... Ainda há pouco eu poderia ter feito o que bem
quisesse com você.
Ela o encarou, com os olhos brilhando, pálida de raiva:
— É verdade! Há muito tempo não faço amor, mas não é você quem eu
quero.
— Está mentindo, mentindo para você mesma! Não precisa de um marido
velho e sim de um amante jovem e vigoroso.
— Cale-se, François não é velho, eu o amo. Você, não!
— E se ele não voltar?
Léa teve a impressão de levar uma facada, o corpo dobrou-se e ela pôs as
mãos no ventre. Ele recuou. Nos olhos fixos da jovem, lia-se ódio, loucura.

A orquestra fez uma pausa e todos os olhares fixaram-se naquele estranho
casal. O silêncio repentino trouxe Léa de volta à realidade. Erguendo a cabeça,
saiu com arrogância.
Deu alguns passos, fustigada por rajadas de chuva. A água morna,
misturada às lágrimas de seu rosto, trouxeram-lhe uma sensação de bem-
estar. Sacudida por intensos soluços, encostou-se numa árvore. A escuridão
era total; não se via luz alguma.
— Léa!...
Correndo, Kien passou por ela sem vê-la.
A voz afastou-se.
— Não pode ficar aqui — disse alguém no escuro.
Léa estremeceu e tentou distinguir quem era. Não viu ninguém.
— Sou eu, Giau!
"O monstro", pensou Léa, "só faltava ele!"
— Vou chamar um triciclo para você, fique aqui!
Ela o ouviu rastejando em meio às poças. Logo em seguida, um triciclo
parou diante da árvore.
— No dâu rôi? Toi không thây no...
(Onde ela está? Não vejo ninguém.)
— Senhorita!...
Giau escorregou para fora do veículo.
— Saia, venha logo! Ele não quer acreditar em mim...
Léa saiu da sombra e subiu no triciclo.
— Dât no toi dai lô Henri-Rivjère.
(Leve-a até o bulevar Henri-Riviére.)
— Não vem comigo?
— Não, não convém que a vejam em minha companhia. Cuidado com Kien
Rivière, está apaixonado por você. A senhorita ri?
— Até logo, Giau... Obrigada!
O aleijado, tão rente ao chão que mal dava para enxergá-lo, permaneceu
um longo momento olhando na direção de Léa.
No dia seguinte, Kien partiu sem falar com Léa. Ela ficou triste, sentindo
aquela partida como um abandono. O tempo custava a passar. Para distraí-la,
Lien propôs que fossem juntas à estréia de uma jovem violinista prodígio, Pham
Thi Nhu-Mai.

— Você vai ver, possui imenso talento. Os pais dela eram amigos dos
meus; graças a meu pai, pôde estudar no conservatório de Lyon. A guerra
surpreendeu-os naquela cidade. Os anos que a família ali permaneceu foram
muito difíceis. Para que a filha pudesse prosseguir os estudos, os pais
trabalharam duro, mas o sacrifício foi recompensado. Nhu-Mai, que só tem
dezesseis anos, é considerada uma das violinistas mais promissoras do mundo;
tem tudo para seguir uma excelente carreira. No entanto, fez questão de
retornar ao seu país antes de iniciar uma turnê internacional.
Este concerto em prol dos órfãos de guerra representa a sua despedida.
— Devíamos levar as crianças — sugeriu Geneviève.
— Já tinha pensado nisso, mas queria falar com você primeiro.
— Não se preocupe, vou até o teatro comprar as entradas. Vem comigo,
Léa? Parou de chover.
Do bulevar Henri-Rivière até o teatro, no fim da rua Paul-Bert, havia
apenas trezentos metros.
Como a chuva cessara, os habitantes de Hanói circulavam pela antiga rua
dos Incrustadores, detendo-se diante das vitrines, nos terraços dos bares, ou
conversando antes de retomar os afazeres.
Sacos de areia protegiam a entrada do prédio que conservava ainda as
marcas dos combates de 19 de dezembro de 1946, quando Jean de Sainteny
fora gravemente ferido. Como habituée, Geneviêve dirigiu-se, através do grande
vestíbulo, até o balcão de reservas. Já havia cinco ou seis pessoas na fila, com
quem Geneviève começou a conversar.
Léa preferiu conhecer o prédio. Subiu os dois lances da escada; as
esculturas do foyer deserto lembravam certos teatros parisienses. As janelas da
sacada dominando a praça estavam abertas.
Encostada no parapeito, ela contemplou a cidade. Mal acabara de se
afastar quando um som de incrível pureza fez com que ela se detivesse no meio
do foyer. Atraída, empurrou uma porta e penetrou em um camarote. No palco,
presa ao feixe de luz, uma jovem esbelta tocava violino.
Trêmula, Léa sentou-se e deixou-se levar pela melodia.
Jamais experimentara tal perturbação. Bruscamente, as luzes apagaram-
se; o teatro mergulhou, então, no mais profundo silêncio. Durante alguns
segundos, Léa, desamparada, esperou que a iluminação voltasse, junto com
aquele som que quase a fazia chorar. Como nada acontecia, ela procurou no
escuro a porta do camarote e encontrou-se no foyer. Ao descer a escada, ouviu
novamente o violino.
— Nhu-Mai está ensaiando — disse Geneviêve com as entradas na mão.
Léa empurrou-a e entrou na platéia. Ali, com uma auréola de luz, de olhos
fechados, a maravilhosa artista tocava novamente, como se estivesse fora da

terra. Com as mãos cruzadas no peito para reprimir as batidas de seu coração,
Léa aproximou-se do poço da orquestra e, erguendo os olhos, perto da
violonista, extasiada, ouviu... Quando a última nota extinguiu-se, Léa
permaneceu presa aos movimentos do arco. A mãozinha que o segurava baixou
lentamente.
Sentia-se subjugada e não conseguia aplaudir. Boquiaberta, de olhos
esbugalhados, tinha a impressão de se fundir no espaço. Os olhares das duas
jovens cruzaram-se e, na mesma hora, experimentaram ambas a mesma
atração fulminante.
— Nhu-Mai, con iam cai gi?
(Você virá ao concerto?)
Incapaz de falar, Léa fez que sim com a cabeça.
— Me oi, con dên ngay!
(Até logo mais, à noite.)
Nhu-Mai deixou o palco correndo.
— Ah, você está aqui! Procurei-a por toda parte. Vamos, já vão fechar —
exclamou Geneviève.
Contra vontade, Léa foi ao encontro da silhueta da jovem que se recortava
no vão da porta.
— O que aconteceu? — perguntou a amiga. — Parece tão feliz... Desde que
chegou, é a primeira vez que a vejo assim. Ficou ainda mais bonita!
— Obrigada. Foi a música...
— Ouviu Nhu-Maj ensaiando... Ela é extraordinária. Que bom podermos
assistir a esse concerto antes de partir.
— É mesmo, vocês vão embora dentro de pouco tempo. Deve estar feliz,
esperou por esse dia com tanta impaciência!
— Sim e não... Sim, porque tenho maus pressentimentos, sinto medo por
Bernard e Mathilde; além do mais, a vida aqui nunca mais será como antes.
Neste país, tive uma infância maravilhosa: meu pai ocupava um cargo em Huê,
junto ao imperador, tínhamos uma linda casa, um jardim magnífico sob os
cuidados de minha mãe. Morávamos no bairro europeu, perto da legação. O rio
dos Perfumes passava ao lado do nosso jardim. Com meus irmãos,
percorríamos o rio. O Templo do Céu não tinha segredos para nós. Escondidos,
assistíamos a todas as cerimônias. Mas o nosso lugar preferido era as velhas
arenas onde, parece, ocorriam combates de panteras, tigres, búfalos ou
elefantes. Nunca chegamos a ver os animais, mas imaginávamos tudo com
tanta perfeição... Até a chegada dos japoneses, era o paraíso na terra.
Pensávamos que, com a chegada dos franceses novos, tudo voltaria a ser como
antes... Nós nos enganamos. Toda a minha família regressou à França, só eu
não fui. Agora, não dá mais...

Quando chegaram em casa, a chuva voltara a cair.
No saguão do teatro, uma multidão de franceses e anamitas comprimia-se,
crianças bem-vestidas corriam por toda parte. Trac e Nhi, fugindo da vigilância
de Lien, fizeram o mesmo, embora não conseguissem levar Mathilde, que não
largava a mão da mãe. Bemard pegou as duas meninas e, segurando-as com
firmeza, fez com que ocupassem os seus lugares. A platéia estava lotada, o
público agitado e barulhento.
— É a primeira vez, desde que a guerra começou, que tantos vietnamitas e
franceses se encontram juntos no teatro — comentou ele ao se instalar entre
Léa e a esposa.
Finalmente, as luzes se apagaram, ouviram-se as três pancadas
tradicionais e a cortina vermelha foi suspensa. Sob os aplausos, Nhui-Mai
aproximou-se, usando o traje tradicional tonquinês: o ao dai' e a pantalona de
seda branca, com o cabelo preso num coque, enfeitado com uma orquídea.
Inclinou- se, pequena e frágil, perdida no imenso palco austero. O instrumento
parecia pesado em suas mãos minúsculas, o arco leve ergueu-se lentamente...
Imediatamente, a mesma emoção invadiu Léa, o corpo perdeu toda a
gravidade; sua alma alçou vôo, transformando-se em música. Com a magia de
sua arte, a jovem violinista abolira o tempo, o universo inteiro era apenas
sensações que dilatavam o coração e a mente. O encanto dominava toda a
assistência.
As turbulentas Trac e Nhi permaneciam fascinadas, maravilhadas, com os
olhos esbugalhados.
Esquecida a fragilidade de mulher, Nhu-Mai arrancava de seu instrumento
sons suaves e melodiosos, duros e vibrantes, viris e selvagens, audaciosos e
tímidos, fortes e fracos, puros e perturba- dores, de intensidade e uma maestria
inigualáveis. Todos os espectadores sentiam-se subjugados.
As tensões da guerra, a angústia, as separações, a humilhação e a morte
haviam sido esquecidas: naquela noite, franceses e vietnamitas comunicavam-
se graças à música.
Ao término da última peça, pairou um silêncio perturbador, seguido de
uma explosão de aplausos.
Nbu-Mai deixou o violino sobre o piano e voltou para inclinar-se diante do
público de pé. As mãos ardentes de Léa doíam; entretanto, não parava de
aplaudir, sorridente, com o rosto coberto de lágrimas. Após cerca de vinte
chamados, Nhu-Mai não voltou. A ovação continuou por muito tempo após a
sua saída do palco.
A sala foi se esvaziando. Após a saída da maioria dos espectadores, Léa,
Lien e Bernard foram até os bastidores, enquanto Geneviève levava as crianças
para casa. Cerca de dez pessoas aguardavam a violinista. Finalmente, ela saiu
do camarote, usando um robe muito grande, com o rosto e o cabelo molhados.

Assim, parecia ainda mais jovem. A mãe apresentou- lhe os seus conhecidos.
Nhu-Mai sorria, dirigindo uma palavra a cada um. Abraçou Lien com ternura
quando a mãe lembrou que se tratava da filha do seu benfeitor e cumprimentou
Bernard com entusiasmo. Ao chegar a vez de Léa, a menina teve um sorriso
radiante:
— Você é a moça desta tarde... Estou tão feliz de revê-la...
— O que Léa experimentou naquele momento foi incrível; uma profunda
emoção dominou-a, sem saber exatamente por quê.
— Toquei para você — sussurrou Nhu-Mai em seu ouvido.
Léa corou.
— Você apreciou Le trilie du diable? Gosto muito da Sonata n°1 em sol
menor de Bach. Mas também aprecio Tzigane, de Ravel. Na verdade, tudo me
agrada. Nunca consigo saber qual é a- minha preferência. E você?
Atordoada por esse fluxo de palavras, Léa sorria também, sem saber o que
responder.
— Nhu-Mai, vá se vestir, precisamos voltar para casa!
— Só mais um instante, mamãe. Tenho certeza de que não vou conseguir
dormir, estou muito nervosa.
— Venham tomar chá conosco amanhã — disse Lien à mãe.
— Faz tanto tempo que não nos vemos.
— Oh sim, mamãe, aceite! — exclamou Nhu-Mai, juntando as mãos como
uma garotinha.
— Aceito, mas com a condição de que você vá se vestir agora mesmo.
— Sim, mamãe — respondeu a jovem virtuose, com ingenuidade. — Vem
comigo? — disse, virando-se para Léa. — Fique com os teus amigos, mamãe, a
senhora Tavernier vai me ajudar.
No camarote, uma anciã esperava, sentada numa cadeira.
— Co oi, dê tôi yên, me tôi muôn hoi co cai gi.
(Pode deixar, tia, minha mãe quer falar com você.)
Após fechar a porta, ela se virou lentamente e examinou Léa com espanto.
Aquela garotinha tão simpática, saltitante e falante transformara-se por
completo. O sorriso desaparecera do seu lindo rosto cujo olhar tornara-se
severo.
— Preciso de sua ajuda. Não diga nada... Tenho pouquíssimo tempo para
falar com você. Meus pais, principalmente a minha mãe, aceitaram para mim
uma turnê mundial. Dentro de dez dias, devo tocar em Londres, depois em
Roma, Madri, Atenas e Viena. Depois, irei para os Estados Unidos, Canadá e

Argentina, não sei mais onde... Vai levar meses e meses, vai demorar muito...
Não quero ir!
Léa olhava-a, atordoada: seria recebida em triunfo por toda parte e não
queria ir? Devia estar apaixonada...
— Porquê?
— Quero ficar aqui!
— Ficar aqui?
— Sim, é meu país. Fiquei afastada durante seis anos, mas agora acabou,
não quero mais sair.
— E a sua carreira?
— Verei mais tarde. Não posso pensar nela enquanto meu povo está em
guerra.
Então era isso? Ela também, igual a Hai e Phuong, fora dominada pelo
desejo de combater pela independência de seu país. Léa lembrou-se de si
mesma em Montillac, durante a ocupação. Era extremamente desagradável
estabelecer uma comparação entre os alemães daquela época, ocupando a
França, e os franceses de agora, lutando para manter a Indochina no seio do
império; experimentou uma sensação de profundo mal-estar e, com certa má-
fé, culpou a menina por tudo o que sentia.
— Não vejo como eu, estrangeira neste país, poderia ajudá-la.
— Exatamente, assim minha mãe não irá desconfiar!
— Ah!, é por isso... — disse ela, com um aperto no coração.
Nhu-Mai percebeu que ofendera Léa; seus lábios tremiam como se fosse
chorar.
— Desculpe-me, não quis magoá-la. Mas você precisa me entender. Minha
mãe me vigia o tempo todo, nunca fico sozinha. Desde o nosso regresso, não
encontrei ninguém em quem confiar. Pensei que você pudesse ser minha amiga.
Minha família odeia os comunistas e só reza pela cartilha da França; só enxerga
através dos olhos dos Rivière e dos habitantes de Lyon que nos ajudaram
durante a guerra. Não querem se lembrar de todos aqueles que obrigaram meu
pai a trabalhar como um burro de carga, exploraram minha mãe muito além
das suas forças...
— Não pode deixar de reconhecer que foi graças a eles que você se
tornou...
— Claro que reconheço! Em Lyon, no conservatório, não paravam de me
repetir essas coisas, a tal ponto que quase parei de tocar para não dever nada a
ninguém.
— Teria sido uma pena — disse Léa com certa rispidez.

O tom chamou a atenção de Nhu-Mai.
— Você é igual a eles, foi loucura minha pensar que fosse diferente.
Esqueça tudo o que eu lhe contei!
Escondeu-se atrás do biombo, tirou o robe e, fungando, começou a se
vestir.
— Não chore. Vou tentar ajudá-la...
A linda cabecinha com o cabelo despenteado surgiu por trás do biombo. -
— É verdade?
— Vou pensar no assunto. Voltaremos a falar amanhã, quando vier à casa
de Lien.

Capítulo 30

Não foi a luz verde filtrando através das frestas da parede de bambu que
despertou François, mas o frio. Ele abriu os olhos, encharcado de suor e
batendo os dentes.
— Você está tendo uma boa crise de paludismo — disse Thévenet que o
observava, mastigando um palito de fósforo.
"Só faltava essa!", pensou.
Com o corpo sacudido por violentos arrepios, conseguiu erguer-se e
procurou nos bolsos da camisa os preciosos comprimidos de quinino; só achou
um mingau cinzento.
— Também não tenho — resmungou Thévenet. — Pedi a um dos nossos
guardas que mandasse chamar o médico da aldeia. Nada até agora... Veja só,
quando se fala no diabo...
Uma cabeça coberta com uma espécie de capacete de palmeira surgiu no
alto da escada. O homem segurava em uma das mãos duas vasilhas cheias de
arroz e, na outra, um cantil todo amassado que colocou na frente dos
prisioneiros.
— Trouxe os comprimidos?
O homem mostrou que não entendia.
— Merda! — exclamou Thévenet empurrando uma das vasilhas para o
companheiro. Passaram esperando a manhã e o resto da tarde. Incapaz de
engolir o que quer que fosse, François não parava de tremer. A noite, um oficial
veio buscá-los. Quase que carregado pelo legionário, Tavernier arrastou-se até a
cabana aonde fora levado na véspera. As mesmas pessoas encontravam-se
sentadas ao redor da mesa.
— Sentem-se, senhores — disse o homem de óculos.
Agachados em banquinhos, a cabeça deles mal alcançava a mesa, para
que se sentissem em inferioridade.
— Parece doente, senhor Tavernier...
— Dêem-nos quinino — pediu Thévenet.
— Tenente, temos pouquíssimos medicamentos, e nossos soldados têm
prioridade...
— Segundo as convenções, precisamos ser tratados!
— Eu sou encarregado de aplicar as convenções. De qualquer forma, não
passamos de bárbaros: não é o que pensam de nós?

Thévenet levantou os ombros.
— Não é, tenente?...
Um violento soco sacudiu a mesa.
— Foi você quem disse.
— Linh canh! (Sentinela!)
O tuvê subiu às pressas.
— Ng nay không kinh trong tôi, cho no môt bai hoc.
(Esse homem me faltou com o respeito. espanque-o.)
Uma coronhada no estômago fez com que Thévenet dobrasse o corpo, a
segunda fez com que erguesse a cabeça. Antes de entender o que estava
acontecendo, o magricela tu vê foi projetado para fora da cabana.
Rápido como um raio, o legionário passara à sua frente e corria na direção
da floresta.
— Dung giêt no! (Não o matem.) — gritou o coronel. (— Quero-o vivo.) —
acrescentou, mirando com cuidado.
Com um esforço sobre-humano, Tavernier conseguiu levantar- se e,
atirando-se sobre o braço erguido, fez com que o tiro perdesse a direção.
— Seu francês filho da puta! — exclamou o oficial vietminh, espancando-o
com o cano de sua pistola.
Ao recobrar os sentidos, mãos e tornozelos estavam amarrados.
Através da névoa provocada pela febre altíssima, ele percebia uma espécie
de gemido. Tentou abrir os olhos; o sangue, ao secar, grudara suas pálpebras.
A cabana estava vazia.
Ao cair da noite, atiraram-no em uma espécie de jaula de bambu onde não
era possível deitar ou ficar de pé. Soltaram-lhe pés e mãos. Todo encolhido,
tremendo de frio a ponto de sacudir o cárcere, François passou a noite em um
estado de vigília comatoso. Ao amanhecer, a chuva começou a cair e só parou
no final da tarde. Por um instante, gritos violentos arrancaram-no do torpor em
que se encontrava; outro prisioneiro fora atirado numa jaula ao lado. O homem
parecia uma estátua de lama. François tentou chamá-lo, mas nenhum som
saiu de sua garganta. Exausto, voltou a cair no chão, insensível à chuva que o
encharcava.
Outro dia clareou. Um sofrimento agudo arrancou-o de seu torpor. Uma
nova dor fez com que ele se virasse. Alguns garotos de cinco ou seis anos,
completamente nus, riam às gargalhadas, armados com varas de bambu
afiadas. Brincavam de espetá-lo, encantados com os espasmos involuntários da
vítima.

Tavernier parecia um touro enlouquecido devido às bandarilhas. Fez uma
terrível careta e os jovens carrascos fugiram gritando.
— Na verdade, sua cara está de assustar a qualquer um! — disse o homem
da outra gaiola.
— E a sua não está muito melhor — articulou François com dificuldade.
De tantas pancadas, o rosto de Thévenet tornara-se irreconhecível: não
passava de um conjunto de chagas e inchaços.
Pouco a pouco, François voltou a si. Teve a impressão de que a febre
baixara e que a crise de malária diminuía. Era preciso poupar as forças, acima
de tudo... Quanto tempo mais ficariam sem cuidados médicos, chafurdando
nos próprios excrementos, devorados pelos insetos? Uma noite se passou.
De manhã, embora muito fraco, François sentiu-se curado.
— Thévenet!... Está me ouvindo?
Ele devia estar dormindo; durante a noite toda, havia delirado.
Um tu vê passou, carregando dois baldes imensos.
— Ei! — chamou François.
O outro aproximou-se.
— Água! — disse ele, apontando para o balde.
O rapaz olhou à sua volta; todos ainda dormiam. Tirou do cinto uma lata
de conserva que ele mergulhou na água.
François arrancou-lhe a lata com precaução e bebeu com avidez.
— Cam on — murmurou François ao devolver a lata.
Thévenet continuava imóvel.
Pouco a pouco, a aldeia despertava. Algumas mulheres passaram,
carregando pesados fardos na cabeça ou saltitando conforme o balanço de suas
cestas transbordantes; um grupo de tu ve atravessou a clareira a passos largos;
um rebanho de suínos pretos desapareceu na floresta, empurrado por um
minúsculo porqueiro. Na frente da grande cabana, o coronel andava de um lado
para o outro.
— Ah, seus calhordas!
Thévenet recobrava os sentidos.
— Puta merda, meu pé! ... Tavernier, está aí?
— Sim.
— Há quanto tempo me encontro nesta porra?
— Não sei, perdi a noção do tempo. Uns dois dias...

— Dois dias! Se não pegar gangrena... Meu pé ficou preso numa daquelas
malditas armadilhas...
Deixaram as pontas enfiadas lá dentro; preciso de um médico... Socorro!...
Ajudem-me!...
— Co ma la chuyên gi? Tai sao nhu vây? (O que houve? Por que está
gritando assim?) — perguntou o jovem soldado que acorrera aos gritos de
Thévenet.
— Bac si, tôi muon bac si.
(Um médico, quero um médico.)
— Oi se di hoi.
(Vou chamar.)
O soldado foi correndo até a grande cabana. Após um certo tempo, voltou,
acompanhado por dois companheiros. Um deles inclinou-se sobre Thévenet.
— Co chuyên gi vây? Gioi oi!
(O que houve? Puxa vida!)
Essa voz... François virou-se na direção do homem que falara, mas só pôde
ver as suas costas.
— Dem no ra khoi dây tôiphai mô no.
(Tirem-no daí, preciso operá-lo.)
— Rápido!
— Você é médico? — perguntou Thévenet preocupado.
— Sou. Há quanto tempo isso tudo aconteceu?
— Dois ou três dias.
— Mau len!
— Ma bac si...
(Mas, doutor...)
— Không coma bac si!Mo ra dem nodên nha coy ta.
(Não tem mas nenhum! Abra a porta e leve-o para a enfermaria.)
O médico virou-se. François sentiu um aperto no coração: então ele
conseguira juntar-se ao Vietminh!
— Hai... — sussurrou ele.
Durante longos segundos, os dois amigos se entreolharam. Não podiam
revelar que já se conheciam...
— Dem no ra luôn mau di. May phai nghe loi!
(Levem esse também. Rápido, obedeça!)

François foi retirado de sua jaula. Entorpecido por todos aqueles dias de
imobilidade forçada, não tinha a menor condição de ficar de pé.
— Agarre-se às minhas costas — sussurrou Hai...
— Tói se thanh cong may di giut do dông bon cua may!
(Vou conseguir, vá ajudar seus companheiros.)
— Procuramos por você em toda parte; se eu soubesse... Há quanto tempo
está aqui?
— Cerca de uma semana.
— Soube que Léa se encontrava em Hanói?
— Léa?
— Faz mais de três meses que chegou à Indochina à sua procura.
— Como está ela?
— Ótima. É uma mulher muito corajosa. Ficou em nossa casa, com Lien e
minhas filhas. Phuong está aqui, acabamos de chegar. Trata-se do meu
primeiro contato com a guerra e precisava ser justo com você!
— Precisa nos ajudar a fugir!
— Não vai ser fácil, não conheço bem esta região. Cuidado, o coronel vem
vindo...
— Bac si, tay sao ma bê ông nay?
(Doutor, por que ajuda esse homem?)
— Ng &ii ta no bi thuong. 1oi di sân soc no.
(Ele está ferido, camarada coronel. Vou tratar dele.)
— Tu khi nao tui cho Tây di truoc nhung nguoi chiên si can dam cua
chung minh, dong chi bac si?
(Desde quando os cães franceses são atendidos antes dos nossos valentes
combatentes, camarada doutor?)
— Tôi la bac si tôi co nhiem vu diêu tri tât ca nhung nguoi bi thuong, ban
be hay dich thu.
(Sou médico, meu dever é cuidar de todos os feridos, tanto os amigos como
os inimigos.)
Um pequeno grupo de pessoas encontrava-se na entrada da enfermaria.
Dentre elas, um homem de barbicha, ainda jovem, com óculos de aros
redondos e lentes grossas, vestindo uma espécie de pijama azul.
— Ong dai ta, bac si noi dung loi tuyên thê cua Hippocrate, bât buôc no
phai Iam nhu vây (Camarada coronel, o camarada médico tem razão: o

juramento de Hipócrates obriga-o a agir dessa maneira.) — disse o homem com
voz suave.
François não ouviu a resposta do coronel que se afastou, visivelmente
aborrecido.
Os prisioneiros nem haviam notado aquela cabana escondida em meio ao
alto bambuzal. Cerca de vinte feridos estavam deitados em esteiras. Uma
mulher inclinava-se sobre um deles. Ergueu-se e virou-se para trás.
François reconheceu Phuong.
— No chêt roi. (Este já está morto.) — disse ela dirigindo-se ao marido.
Naquele instante, ela viu também quem era o homem que Hai ajudava a se
deitar com tantas precauções. Um brilho maldoso iluminou-lhe os olhos. Nunca
aceitara a amizade entre os dois homens: sentia ciúmes; além de tudo, a
presença de François lembrava-lhe o sangue maldito que corria nas veias do
esposo que ela tanto amava. Durante muito tempo lutara contra esse amor,
censurando o seu sentimento, embora o próprio pai, Nguyên Van Dông,
aprovasse o casamento com o neto de Lê Dang Doanh. Apesar de jamais tocar
no assunto, os dois amigos haviam percebido essa antipatia, mas nunca
ligaram para tal comportamento.
Hai interpretava-o como uma atitude devida à timidez; para François, tudo
se devia à falta de interesse que manifestara para com a jovem quando voltara
a se encontrar com a família Rivière.
Não tivera o tempo necessário para reparar a sua involuntária descortesia.
— Phuong, co thê dên không?
(Phuong, pode vir até aqui?)
Vestida com um casaco curto e uma calça preta, o cabelo escondido sob
uma touca da mesma cor, ela se aproximou.
— Não fale com ninguém — sussurrou ele.
Um sorriso maldoso aflorou aos cantos dos lábios de Phuong.
— Trata-se de um inimigo do povo!
— Não diga besteiras, ele é nosso amigo.
— Meu não.
Hai agarrou-lhe o punho.
— Se contar que o conhecemos, não é só a vida dele que estará em perigo,
mas as nossas. Pense nas meninas!
O argumento produziu o efeito desejado.
— Co y ta, di lây bâng dan va thuoc ki nin.
(Enfermeira, vá buscar ataduras e quinino.)

Sem olhar para François, Phuong saiu.
— Ela não vai falar — disse Hai para tranqüilizar-se.
Um rapaz magro, de olhar assustado, vestindo uma blusa branca,
aproximou-se deles.
— Sân soc no ruoc di. Lây ra cay do cua cay chân. (Trate dele primeiro,
tire aquela porcaria do seu pé) — pediu François.
— O que devo fazer com o outro francês? Sua ferida está fedendo.
Deitado em sua esteira, Thévenet perdera os sentidos.
— Dem no dê trên ban.
(Coloque-o sobre a mesa.)
Duas estacas de bambu haviam perfurado o pé e o tornozelo do legionário
através do calçado. Hai teve muita dificuldade para conseguir cortá-lo. Junto
com ele, colados no couro, retirou também fragmentos de carne putrefata. Sob
o efeito da descompressão, o sangue jorrou de todos os lados. A dor foi tão
intensa que Thévenet voltou a si urrando.
François conseguiu levantar-se e aproximou-se da mesa de cirurgia. O que
viu era tão repugnante que ele se afastou e vomitou. Phuong voltou, com a mão
tapando o nariz.
— Vai buscar clorofórmio e meus instrumentos — disse Hai.
Ela saiu correndo.
Hai cortou a calça e examinou a perna. A cada toque, o ferido estremecia.
— Receio ter de amputá-la.
— Não, isso não!
François precisou recorrer a toda sua força para impedir que ele se
erguesse.
— Isso não, doutor! Isso não! — berrava Thévenet.
Os olhares dos outros feridos estavam fixos neles.
— Não há outra saída?
— Vou tentar...
Hai tocou de leve um dos dardos. Escorado, Thévenet quase caiu da mesa;
em seguida, desfaleceu novamente.
— É melhor para ele — murmurou Hai ao pegar a maleta das mãos de
Phuong.
"O doutor Lun disse a mesma coisa", pensou François.
Phuong colocou uma compressa de clorofórmio sobre o nariz do legionário.

Ambos trabalharam em silêncio, executando gestos precisos. O cheiro e o
calor eram insuportáveis.
François teve a impressão de que jamais terminariam. Experimentou uma
violenta vertigem. Sentiu que caía em câmera lenta.
Quando recobrou a consciência, encontrava-se deitado na sua esteira, com
um curativo limpo. A seu lado, uma jovem lia à luz de uma lâmpada a óleo.
Ergueu os olhos e, ao vê-lo acordado, sorriu.
— oidinhânôngbacsj.
(Vou avisar o médico.)
Após alguns instantes, voltou em companhia de Hai.
— Fiquei com medo, ainda há pouco... Pensei que fosse um ataque
cardíaco!
— Como está Thévenet?
— Não muito bem. Mas é um homem forte. As feridas não são tão feias
quanto imaginei. Se não houver gangrena, ele tem uma chance de não perder a
perna. Pediu para falar com você.
— Agora?
— Já disse a ele que você não estava passando bem. Respondeu que não
ligava a mínima e que você lhe devia essa.
— Onde ele está?
— Mandei que ficasse isolado, na cabana ao lado da tua.
— O que está esperando? Vamos. Ajude-me!
— Corro riscos enormes fazendo isso... Mas você é meu amigo, não tenho
outra escolha.
— Obrigado.
Apoiando-se em Hai, François desceu a escada. Embaixo, uma sentinela
apontou a arma para eles.
— Tat ca thi tôt, dong clii. Dê tôi lo, anh cu o dôy.
(Está tudo certo, camarada. Ele está comigo, fique no seu posto.)
Havia uma lâmpada a óleo no chão perto da esteira onde se encontrava
Thévenet. Sua respiração era ofegante e entrecortada. Hai tomou-lhe o pulso
olhando para o relógio. Fez uma careta e tirou uma seringa da maleta.
— Vou lhe dar uma injeção.
François pôs a mão no ombro ardente do ferido. Thévenet abriu os olhos
de uma clareza surpreendente; seus lábios intumescidos esboçaram um
sorriso:

— Parece conhecer muito bem esse nhà que...
— É um amigo, um amigo de infância.
— Você é um cara estranho. Não vou sair dessa... Não fale nada, meu
tempo é curto... Não quero que os amarelos tratem do meu cadáver, quero que
seja você.., quero que você coloque uma cruz sobre a minha barriga e diga as
preces... Não acredito em todas aquelas babaquices... mas não quero ser
enterrado como um cão... Precisa jurar isso para mim... Senão, vou contar que
o tal nhà é seu amigo...
— Seu canalha! Em vez de falar do seu enterro, me ouça. O médico disse
que você ainda tem uma chance de se safar.
Os olhos do ferido iam de François a Hai.
— É verdade?... Não estão rindo de mim?
— É verdade, mas fique quieto. Amanhã, saberemos exatamente qual é a
sua situação — disse Hai.
— Gostaria de poder ficar com ele.
— Como quiser.
— Linh canh, lai dây trôi nguoi tu lai. (Sentinela, venha amarrar o
prisioneiro.) — Desculpe, me desculpe.
Quando Hai e a sentinela saíram, François deitou-se ao lado de Thévenet.
— Tudo bem? — perguntou.
— Tudo. Você acha que vou conseguir?
— Hai é um excelente médico. Tente dormir.
Thévenet começou a rir com uma careta de dor.
— Você parece até minha babá. Não estou acostumado, não tenho nem pai
nem mãe... Minha família é a Legião, devo tudo a ela; sozinho, teria virado um
marginal... Com dezoito anos, eu me alistei em Marselha... Uma semana depois,
já estava em Sidi Bel Abês... Meus chefes tinham orgulho de mim... Depois,
tudo se passou muito rápido: a Tunísia... o deserto da Líbia... Em Bir Hakeim,
fiz parte dos jock-colonnes. A Legião tinha como tarefa vigiar os campos
minados entre Bir Hakeim e Gazala... Koenig chamava a gente de profissionais
do deserto...
Sua voz ofegante, em certos momentos inaudível, expressava todo o seu
orgulho, os olhos alucinados reviam aquela epopéia.
— Lutamos como verdadeiros leões com Rommel e os seus homens...
Tivemos mais de mil mortos... Por nada, dirão certas pessoas... mas acho que
foi aí que começou o fim da guerra, na África... Três meses mais tarde foi
abatido a meu lado Dimitri Amilakvari, o príncipe legionário... Pela primeira vez
chorei e não fui só eu... Nunca mais iríamos ouvi-lo gritando: "Avancem, todas

essas balas não matam!"... Perdi então o pai, o irmão que nunca tive... Estou
com sede...
Tavernier pegou água no balde perto da lâmpada.
— Obrigado.
Permaneceu algum tempo com os olhos fechados.
— Descanse.
Thévenet estendeu a mão.
— Jure que fará o que lhe pedi, se...
— Juro, meu velho.
No dia seguinte, quando François despertou, o legionário ainda dormia.
Apesar da barba e das equimoses, parecia melhor; ele só acordou durante a
tarde.
— Não morri? — falou, abrindo os olhos.
— Ainda não foi desta vez — disse Hai, após examinar o ferido. —
Consegui que lhe sirvam sopa com carne.
— Opa, doutor, por essa eu não esperava!... Mimado pelos viets! ... Com
isso, já passei por tudo nesta minha vida de merda. Mas, quem sabe, só quer
me curar para se divertir melhor depois, quando me cortar em pedacinhos?...
— Pára de falar besteira, Thévenet, e aproveite o que estão te oferecendo.
— Tem razão, preciso recobrar as minhas forças.
A noite, François foi levado de volta à sua cabana. Sentado aos pés da
escada, Hai fumava. Acenou para que o bô dôi * saísse e seu amigo sentou-se
perto dele; ofereceu-lhe um maço de 4 AS.
(* Soldados da infantaria do exército vietminh.)
Permaneceram calados durante certo tempo.
— Parece um barulho de máquina — disse François.
— É a gráfica.
— Gráfica?
— Sim, existem diversas por todo o país. A maior parte é subterrânea e o
local costuma mudar com freqüência.
— E o que imprimem?
— Tudo, dinheiro, relatórios, comunicados dirigidos aos bô dôi e aos du
kich, documentos sobre armamento, conselhos para atacar os postos, armar as
emboscadas, inclusive poemas.
— Fale-me de Léa.

— Ela chegou com Kien alguns dias após o falecimento do vovô...
— O sábio Lê Dang Doang morreu!... Sinto muito. Como está Lien?
— Bem, na medida do possível. Não quer sair de Hanói. Quanto a Bernard
e sua família, neste exato momento devem se encontrar na França.
— O que é que Kien estava fazendo com Léa?
— Ela mesma te contará quando se encontrarem.
— Você precisa nos ajudar a fugir.
— Por favor, não fale mais nisso. Só de tratar de vocês dois, já me tornei
suspeito.
— Mas você está apenas cumprindo o seu dever de médico.
— Foi exatamente o que eu disse a Phuong...
Linh canh, hay lo cho nguoi nhân tu.
(Sentinela, tome conta do prisioneiro.)
Hai levantou-se e caminhou na direção do coronel e do comissário do povo
que se aproximavam.

Capítulo 31

O dia seguinte ao concerto era domingo. O tempo anunciava-se ótimo.
Apesar dos preparativos para a viagem, Geneviève fez questão de assistir pela
última vez à missa na catedral Saint-Joseph, com Mathilde, e pediu a Léa que a
acompanhasse.
Outrora, para as elegantes francesas e anamitas, a missa cantada
representava um pretexto para vestir um novo traje recém-chegado de Paris,
um chapéu ou um ke dao bordado. Atualmente, as mulheres mostravam-se
muito menos vaidosas e mais devotas.
A rua Borgnis-DesbordeS e a rua da Mission estavam repletas de triciclos,
bicicletas, carros e jipes. Grupos de mulheres vestidas de preto, carregando
crianças, corriam entre os veículos.
A catedral de monsenhor Puginier, construída no final do século passado,
na fronteira dos bairros europeu e indígena, dominava com suas altas torres
cinzentas a pequena praça cercada de casas baixas protegidas por uma Virgem
de bronze. Em meio ao estrépito dos sinos, as pessoas se empurravam,
interpelavam-se, riam, conversavam sobre banalidades, os militares
cumprimentavam-se, as freiras reuniam as crianças do orfanato. Apesar da
presença dos uniformes, como a guerra estava distante...
No templo lotado, o som do órgão explodiu. Uma multidão de vietnamitas
invadira os bancos, as cadeiras, agachando-se, ajoelhando-se no próprio chão.
Sentada perto deles, Léa experimentava o fervor estampado naqueles rostos
erguidos para o altar. O mesmo sentimento de devoção parecia dominar tanto
civis como militares.
Havia, naquele lugar sagrado, uma comunhão de preces à qual Léa
juntou-se instintivamente. Pela primeira vez, depois de muito tempo, voltaram
à sua mente as palavras singelas e ingênuas das orações de sua infância: "Meu
Deus, protegei François, fazei com que possamos nos rever em breve, protegei
também meu filhinho, Charles, e todos aqueles a quem amo, fazei com que esta
guerra acabe. Amém."
Geneviève e boa parte do público levantaram-se para comungar. Alguém se
aproximou furtivamente de Léa.
— Nhu-Mai!
— Eu tinha certeza de que você viria à missa, foi por isso que fingi
concordar com mamãe. Preciso falar-lhe na saída. Tente ficar sozinha. Vou
dizer à minha mãe que você me pediu para acompanhá-la ao Van Miêu, o
Templo da Literatura — o Pagode dos Corvos, como costumam chamá-lo os
franceses. Tudo bem?

Sem esperar pela resposta, Nhu-Mai dirigiu-se até o altar, a cabeça baixa e
as mãos juntas.
"Sua pequena hipócrita!", pensou Léa.
Conforme previsto, Geneviève quis voltar para casa para fechar as malas.
A mãe de Nhu-Mai, detida pelos fãs da jovem virtuose, permitiu que a filha
servisse de guia à senhora Tavernier. Ambas subiram em um triciclo.
O condutor freou bruscamente, não ouvira o bonde da rua Duvillier
chegando.
— Está surdo! — disse Nhu-Mai entre risos, antes de gritar:
— Chung tôi da dên, doi chung tôi!. (Chegamos, espere por nós!)
Sob a proteção de Confúcio, construído pelo rei Lê Thai Tô, o Van Miêu
tornara-se o templo oficial do reino dos Lê e, depois, sob a dinastia dos Nguyên,
o de Tonquim. Quando Kien o visitara com ela, explicando-lhe as
particularidades dos cinco pátios da construção, detiveram-se demoradamente
sob as velhas mangueiras, diante das tartarugas de pedra com estelas sobre as
quais se encontravam inscritos os nomes dos laureados em concursos
literários; deram a volta ao lago, onde floresciam nenúfares que serviam de
abrigo a centenas de pequenas rãs; sentaram-se no parapeito e queimaram
bastões de incenso diante das estátuas de Confúcio e de seus discípulos. Léa
apreciara a calma do templo. Os tumultos do mundo detiveram-se no portão
Dai Thanh. Encostada em um dos quarenta pilares de madeira laqueada
vermelha, diante do altar dourado trazendo quatro candelabros e defumadores,
ao lado das gruas de bronze colocadas sobre as tartarugas, ela experimentara,
então, sentimento de profunda paz.
Hoje, em companhia de Nhu-Mai, sentia apenas uma vaga inquietude.
Sentadas no parapeito que cercava o lago, as duas jovens olhavam-se com
amizade.
— Você falou de nossa conversa com alguém?
— Claro que não.
— Quer me ajudar?
— A se juntar ao Vietminh?
— Não sei se será ao Vietminh, mas a todos aqueles que combatem pela
libertação do meu povo, isto sim!
Com que paixão pronunciara aquelas palavras...
— Era melhor falar com Lien.
— Não tenho coragem. Lien me conhece desde criança, é muito ligada aos
meus pais; iria contar as minhas intenções.
— Não creio. Não a conheço muito bem, mas não acho que seja capaz de
trair você.

— Talvez tenha razão...
Nhu-Mai ficou pensativa, atirando na água minúsculos seixos.
— Conheci um contrabaixo e um flautista da Opera, que são caodaístas.
Vão se juntar aos combatentes vietnamitas.
— Caodaístas?...
— São os adeptos do caodaísmo, uma religião fundada em 1926 pelo
profeta Ngo Van Chiêu: uma mistura de cristianismo, budismo, islamismo,
induísmo e taoísmo... Por que está rindo?
— Pare!... Oh, a senhora me desculpe...
— Vamos deixar de formalidade. Prefiro que me trate de "tu".
— Eu também. Só queria te perguntar se acredita em tudo isso e se essa
salada não te parece um tanto confusa. Só falta o judaísmo!
— Não brinca! Meus amigos músicos acreditam de verdade.
— Como se a humanidade já não tivesse religiões suficientes para se
destruir!
— Porque diz isso?
— Porque foi justamente em nome das religiões que foram cometidos os
maiores crimes.
— Não sei nada a respeito disso. Os caodaístas comunicam-se com os
espíritos, são fiéis ao culto dos antepassados, praticam o jejum, a castidade.
Homenageiam grandes personalidades como Joana d'Arque, René Descartes,
Victor Hugo, assim como Shakespeare e Lenin...
— Não achas o resultado dessa mistura muito estranho?
— Tu te recusas a me ajudar...
— Não foi o que eu disse! Desculpe-me, mas os teus caodaístas não me
parecem muito sérios...
Nhu-Mai atirou uma pedra que atingiu uma rã. O pobre batráquio pulou
na água coaxando. A jovem violinista levantou-se e caminhou ao redor do lago,
franzindo as sobrancelhas, mergulhada em pensamentos sombrios. Léa sentiu
pena dela.
— Como posso te ajudar? — gritou.
Nhu-Mai voltou correndo, o rosto radiante.
— Preciso que me ajudes a tirar as minhas coisas de casa.
— Quando?
— Hoje à noite. Após o chá, direi à minha mãe que desejas ouvir a Partita
número 3 de Bach...

— E depois?
— Virás me encontrar na estação de trem às dez horas. Estarei esperando
com um grupo de amigos. Posso contar contigo?
Do outro lado do lago, entre as duas fileiras de tartarugas, Léa pensou ver
algo se movendo.
— Vamos embora daqui — disse ao se levantar. — Este lugar é muito
deserto.
— Posso contar contigo? — repetiu Nhu-Mai.
— Sim, apesar de achar que você deveria pensar melhor.
Nhu-Mai acendeu varetas de incenso e inclinou-se repetidas vezes diante
do altar de Confúcio.
Léa saiu e sentou-se à entrada do santuário, perto de um arbusto talhado
em forma de grou.
Novamente a sensação de estar sendo observada... Entretanto, não havia
ninguém. Finalmente Nhu-Mai chegou.
— Vamos logo, chegaremos atrasadas para o almoço! Lá fora, o triciclo
aguardava pacientemente.
— Estávamos à sua espera para começar a refeição — disse Lien,
aproximando-se das duas jovens. — O passeio foi bom?
— Tia Lien, é verdade que Mathilde vai pegar um avião? — perguntou Trac,
irrompendo como um tufão na sala de jantar, acompanhada da irmã.
— Sim, querida, ela viaja para a França com os pais.
— Eu também quero ir para a França! Quero pegar o avião!
— É impossível, seus pais estão aqui...
— E porque ela é branca que vai embora! A gente não pode, só porque não
é branca?
Uma fugaz expressão de sofrimento toldou o lindo rosto de Lien.
— Não diga besteira. Aqui, todos nós pertencemos à mesma família e nos
amamos...
— Não gosto de Mathilde! Tem olhos redondos e seu cabelo é da cor da lua.
Minha mãe também não gosta dela.
Lien agachou-se na frente da menina e ergueu seu rostinho teimoso. Era
difícil imaginar o menor laço de parentesco entre as três crianças. O capacete
preto brilhante formado pelos cabelos de Trac e Nhi contrastava com a loura
cabeleira de Mathilde cuja tez muito pálida tornava ainda mais escura a pele
das duas irmãs.

— Na verdade, vocês são muito diferentes; todavia o mesmo sangue corre
em suas veias. Seu avô amava vocês três com a mesma ternura; teu
comportamento deve entristecê-lo profundamente. Eu também, estou muito
triste...
Os lindos olhos puxados encheram-se de lágrimas.
— Perdão, tia Lien, não quero magoar o vovô nem você. Mas... eu gostaria
tanto de poder subir em um avião, igual a Mathilde!
— Prometo que você também pegará um avião em breve — disse Lien
abraçando a menina. — Agora, vá logo lavar as mãos para almoçar.
A refeição, apesar de deliciosa, foi entediante; cada um dos presentes
encontrava-se muito absorto em seus pensamentos para conversar. Com um
aperto no coração, Lien sabia que após a partida do irmão ficaria sozinha; Léa
pensava no que poderia fazer para dissuadir Nhu-Mai de fugir; Bernard
censurava-se por não ter coragem de se alistar no exército francês e combater o
comunismo; Geneviève esperava que seu vôo não fosse cancelado e que, ao
chegar à França, estivesse finalmente em segurança; Mathilde sentia-se feliz
com a perspectiva de rever os avós franceses; Trac sonhava com viagens de
avião; quanto a Nhi, muito gulosa, entupia-se de musse de chocolate que o bepi
fazia com perfeição.
Depois do almoço, cada um foi para o seu quarto para a sesta.
Eram quase cinco horas da tarde quando Nhu-Mai e a mãe chegaram à
casa dos Rivière. A senhora Pham queixou-se sucessivamente das condições de
vida em Hanói, de suas responsabilidades, do marido que não era do seu nível,
da filha que lhe causava inúmeras preocupações, do Vietminh que acabava com
a vida de tanta gente boa, do exército francês que pouco fazia para liquidálo...
Lien ouvia educadamente aquele dilúvio de palavras; NhuMai, embaraçada,
permanecia calada.
— Sua cunhada tem toda razão de regressar à França, senhorita Lien,
devia fazer o mesmo.
— Não entendo por que as pessoas permanecem neste país, se têm a
possibilidade de mudar de vida.
— Exatamente, cara senhora, não posso mudar de vida — respondeu Lien
com sua voz suave e ponderada. — Gosto muito do país do meu pai, mas só me
sinto em casa no país da minha mãe...
— Pois eu, depois de morar na França, me sinto uma estranha neste país.
— Mamãe! Como pode falar assim?
— Isto mesmo, minha filha: uma estranha! — exclamou com ar de desafio.
— Tenho pena da senhora... murmurou Lien.
Um silêncio constrangedor pairou sobre os presentes.

— Vou ter de deixá-los, preciso fazer tantas coisas — disse a senhora
Pham levantando-se. — Obrigada pelo delicioso lanche.
— Mamãe, a senhora Tavernier vem conosco — prometi tocar a Partita
número 3 para ela.
— Mas é claro, assim você poderá ensaiar mais um pouco. Vai nos
desculpar pela moradia tão modesta...
Léa e Nhu-Mai comprimiram-se no mesmo triciclo, enquanto a senhora
Pham subia em outro.
Ao longo do Pequeno Lago, encontravam-se numerosas famílias muito
bem-vestidas. A beira da calçada, vendedoras de sopa, bolinhos e frutas
cortadas em fatias serviam os fregueses. Lindas jovens com túnicas coloridas
passavam, com ar muito digno, usando luvas, segurando uma sombrinha com
uma das mãos e guiando a bicicleta com a outra. Na praça de Négrier, uma
pequena multidão deteve-as na entrada da rua da Seda. Um orador, trepado em
um barril, discursava para os transeuntes.
— O que ele está dizendo? — perguntou Léa.
— Que todos os vietnamitas devem se juntar à luta pela liberdade.
— Os outros não parecem muito convencidos.
— Tenho medo dos delatores e da polícia francesa. Tais ajuntamentos no
meio da rua são proibidos. É preciso muita coragem para participar deste tipo
de manifestação.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Quando começou este teu desejo de se juntar aos combatentes?
— Logo após a minha chegada. Minha mãe me levou para visitar alguns
membros da família e velhas amigas. Em todas as casas, havia filhos, pais,
maridos ou irmão mortos ou presos pelos franceses em 1945-46. Nem todos
eram vietminh, mas todos acreditavam na independência. Numerosos
sobreviventes juntaram-se então à resistência. Um rapaz que perdera o braço
durante um ataque francês acabou abrindo os meus olhos ao descrever o
horror das prisões, dos cárceres onde eram detidos os combatentes e os
militantes políticos há mais de cinqüenta anos. Tantos sofrimentos me levaram
a tomar consciência da injustiça. Era inaceitável. Em Lyon, meus pais e eu
sentíamo-nos solidários, participamos da alegria geral ao acompanhar os
desfiles das FF1 e a prisão dos colaboracionistas. Achávamos justa a
resistência diante do ocupante. Por que não acontece o mesmo aqui? Por que os
libertadores de Paris e de Estrasburgo acabaram esquecendo o seu ideal
quando vieram para cá?
O que Léa poderia responder? Entendia muito bem Nhu-Mai. Na escola,
sempre mentiram ao repetir que aquelas colônias distantes pertenciam à

França. Relataram as conquistas, o império, os nativos tirados da ignorância,
da selvageria, da doença e do paganismo, graças aos benefícios da civilização
ocidental. Quantas vezes ela ouvira falar com admiração dos feitos heróicos de
Lyautey ou de Gallieni, do sacrifício do padre Foucauld, da abnegação dos
missionários e das freiras! Aos nove anos, Léa sonhava em partir e converter os
pequenos africanos ou os pequenos chineses, sofrendo o martírio em vez de
abjurar. Jamais questionara os direitos da colonização, porque simplesmente
nunca pensara a respeito. Os poucos meses passados na Indochina abriram-
lhe os olhos. "Por que esperar ser envolvido pelos acontecimentos para começar
a entender a realidade?", pensou.
— Moro perto da Cidadela, na casa da mãe do meu pai. Vamos chegar
logo.
O triciclo parou na avenida Marechal Foch, diante das fortificações.
— Trong môt tiêng nua tro lai rim ba dai lô Henri d 'Orléans, truoc nguoi
ban chim. May se doi o dây. May da hiêu ro chua?
(Dentro de uma hora, volte para buscar essa senhora, no bulevar Henri-
d'Orléans, na frente do vendedor de pássaros. Espere por ela nesse lugar.
Entendeu bem?)
— Vâng, tôi hiêu rôi.
(Entendi, estarei lá.)
Nhu-Mai abriu uma porta estreita e, guiando Léa, caminhou ao longo de
um corredor sombrio.
Chegaram a um pátio no meio do qual um grupo de mulheres lavava roupa
em uma fonte.
— Nhu-Mai oi, me may da di vê rôi. (Bom dia, Nhu-Mai, sua mãe já
chegou.) — disse uma mulher alta com os dentes laqueados.
Em volta do pátio, em dois andares, abriam-se sacadas onde a roupa
secava. Uma atrás da outra, subiram a escada em meio a crianças brincando.
O apartamento da família Pham era composto de três cômodos. Em
respeito à sua arte, deram a Nhu-Mai um quarto só para ela, o que
representava um raro favor. A avó dormia na sala de jantar e cozinhava em um
canto que a fumaça tomara negro. Com as mãos juntas, Nhu-Mai
cumprimentou a avó, inclinou-se diante do altar dos antepassados e levou Léa
até o seu quarto.
— Enquanto eu toco, pegue a mala que está em cima do armário.
— Pesa uma tonelada. O que você pôs dentro?
— Livros, partituras...
— Talvez fosse melhor deixar tudo aqui...
Você acha mesmo?

— Claro. Só deve levar o essencial: roupa de baixo, remédios, dinheiro,
alguns vestidos simples e confortáveis.
— Pode escolher — disse Nhu-Mai tirando o violino da caixa. Durante
alguns instantes, rápida e precisa, Léa separou, dobrou, guardou, de costas
para Nhu-Mai, aparentemente indiferente à música que invadia o aposento.
Fechou a mala e virou-se lenta- mente. A imagem da jovem violinista absorta
na execução daquela peça tão difícil tocou-a profundamente.
Quanto tempo durou o encanto?... Quando a música parou, ambas
permaneceram frente a frente, incapazes de pronunciar uma única palavra.
Uma batida na porta trouxe-as de volta à realidade.
— Nhu-Mai, troi sâp tôi roi, ba Tavernierphai vê nha ba...
(Nhu-Mai, já anoiteceu e a senhora Tavernier precisa voltar para casa.)
— Cam on me.
(Obrigada, mamãe.)
— Veja — disse para Léa abrindo uma cortina —, esta porta dá para outra
escada que sai no bulevar Henri-d'Orléans, justo no lugar onde o triciclo se
encontra à tua espera. Você vai sair pela frente e voltar pelos fundos para
apanhar a minha mala. Nos encontraremos na estação às dez horas.
Após cumprimentar a avó, a mãe e o pai de sua nova amiga, a quem
abraçou com muita ternura, Léa encontrou-se diante da Cidadela. Entrou
numa ruela à direita. Na avenida, o triciclo achava-se estacionado bem em
frente da loja do vendedor de pássaros. Léa viu logo a escada por onde subiu no
escuro, temendo escorregar nos degraus sujos e desiguais. Diante de uma
porta, encontravam-se a mala e o precioso violino.
"Mandarei um triciclo", dissera Nhu-Maj.
Devia ser o que se encontrava na frente da casa dos Rivière. Léa subiu, o
condutor deu logo a partida e pedalou a toda velocidade pelas ruas sombrias.
Os fogões das vendedoras de sopa instalados nas encruzilhadas lançavam
clarões intermitentes. O bulevar Gambetta estava deserto.
Apertando o violino nos braços, Léa sentia-se inquieta.
Diante da estação mal iluminada, grupos de pessoas cochilavam,
aninhadas umas contra as outras; triciclos aguardavam, soldados negros
andavam de um lado para outro. O saguão parecia sinistro.
Léa percebeu que agira corretamente ao se vestir de vietnamita,
escondendo o cabelo sob uma espécie de turbante. Sentou-se sobre a mala,
sem soltar o violino, e esperou.
"O que estou fazendo aqui? Se François me visse..."
Tal pensamento entristeceu-a. Um trem chegou. O relógio marcava dez e
meia.

— Ah, você está aqui! Fiquei com medo de que já tivesse ido embora.
Minha mãe levou horas para se deitar... Estes são meus amigos, Khoi e a irmã
Kiêu.
To jovens! Era difícil imaginar os dois irmãos, de corpo frágil, manuseando
o fuzil ou a faca.
— O trem já vai partir — disse Khoi. — Apressemo-nos. Nhu-Mai contou o
que você fez por ela: receba os nossos agradecimentos em nome da revolução...
Ao ouvir aquele tom enfático, Léa teve vontade de dar uma gargalhada.
Na plataforma, os passageiros cheios de embrulhos, cestas repletas de
aves ou legumes, empurravam-se para embarcar. Sem o menor cuidado, Khoi
puxou um ancião que quase caiu sobre os trilhos. Sem ligar para os bons
modos, Nhu-Mai atirou-se nos braços de Léa. Despediram-se emocionadas. Léa
lembrou-se de Sarah afastando-se na plataforma de uma estação e a
recordação deixou-a apavorada.
— Não te preocupes. Obrigada por tudo. Nunca vou te esquecer...
— Mau lên, Nhu-Mai oi!
A jovem entrou no compartimento. Debruçada na janela, pôs alguma coisa
na mão de Léa.
— Fique com isso, vai te dar sorte: nunca me abandonou desde que nasci.
Soou o apito da locomotiva, resfolegou, soltou uma fumaça negra e pôs-se
em movimento, envolta por um vapor branco.
Léa permaneceu na plataforma, olhando o trem que se afastava.
Um funcionário da estrada de ferro disse-lhe umas palavras que não
entendeu. Devia ser para ela ir embora.
Em frente à estação, não viu mais o triciclo. Atordoada, olhou à sua volta.
— Venha cá...
Sem mesmo vê-lo, Léa soube que Giau se encontrava por perto e caminhou
em sua direção. O monstro escondia-se perto de uma carroça.
— Não deve vir aqui sozinha, é muito perigoso.
— Meu triciclo foi embora!
— Já sei, vou procurar outro, mas antes preciso lhe dizer uma coisa.
Abaixe-se, não podemos ser vistos juntos. Tenho notícias do seu marido...
Léa abafou um grito.
— Cale-se! Ouça... Ele está nas mãos do Vietminh...
— Mas por quê?
— Não sei. Meu informante acha possível ajudá-lo a fugir. Trata-se de uma
questão de dinheiro. Rápido, Nhu-Mai.

— Quanto?
— Não tenho idéia. Assim que souber, voltaremos a falar. Agora, vá para
casa. Pronto, seu riquixá chegou.
— Ele está bem de saúde?
— Suba. Sofreu um ferimento leve. — Em seguida, falou com o condutor:
Di, may da biêt cho nao phai dua no di. (Vá andando, sabes para onde deves
levá-la.)
Com o coração a mil por hora, Léa chegou à casa dos Rivíère. Desde a
entrada, percebeu uma certa agitação. Lien, com os olhos vermelhos,
despenteada, apareceu com o ruído da porta se fechando.
— Onde esteve? Procuramos por você em toda parte.
— Saí para tomar um pouco de ar fresco.
— Tomar ar fresco? Que loucura e quanta imprudência!
— O que houve?
— Hai encontrou-se com François...
Então era verdade, encontraram sua pista!
— Por favor, não vá desmaiar!
— Não — respondeu Léa desmoronando.

Capítulo 32

Graças aos cuidados de Hai e a uma alimentação mais sólida e farta,
François e Thévenet recobravam parte de suas forças.
Contradizendo todas as expectativas, o legionário conseguira escapar da
septicemia. Só pensava em fugir e não falava em outra coisa sempre que se
encontrava com o companheiro de cativeiro.
O comissário do povo que interrogara Tavernier por duas vezes deixou
claro que, apesar das dificuldades com o coronel, enviara um emissário ao
presidente Hô Chi Minh. Era preciso aguardar a sua volta para conhecer o
destino do prisioneiro.
Agora, com François curado, Hai evitava-o propositadamente. Consciente
do perigo, Tavernier respeitava seu comportamento.
As horas, os dias passavam com uma lentidão insuportável. De manhã,
sempre acompanhado por um tu vê, um con be' vinha retirar as correntes que
lhe prendiam os tornozelos e dava-lhe um bolinho de arroz envolto numa folha,
às vezes uma fruta e, mais raramente, uma tigela de sopa.
Seu único alimento até a noite. Deram-lhe permissão para se lavar no
reservatório de água, perto da enfermaria, e de ficar a sós atrás de uma árvore
para satisfazer as necessidades, embora um soldado o obrigasse a ficar falando
para ter certeza de sua presença. De volta à cabana, a espera recomeçava. Ele
se distraía, olhando pelas frestas da parede de bambu, a atividade da aldeia.
Atividade essa bastante reduzida, pois os habitantes encontravam-se
espalhados pela selva. De manhã cedo, os estudantes iam à escola, tão
barulhentos como os do mundo inteiro, as mulheres passavam carregando
água ou bandejas de arroz, finalmente os bô dôi regressavam de sua expedição
noturna. E tudo permanecia calmo até a noite.
Certo dia, ao retornar das suas abluções, François encontrou em sua
esteira um exemplar desbotado das Iluminações, de Arthur Rimbaud, na edição
de 1914 do Mercure de France. Quem lhe mandara tal presente? Hai não:
sempre detestara esse poeta. Quem, naquele fim de mundo, possuía as
Iluminações? Ele folheou o livro. Um trecho marcado com lápis vermelho
chamou sua atenção e leu as linhas intituladas DEMOCRACIA:
A bandeira passa na paisagem imunda e nosso patoá abafa o tambor Nos
centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas
lógicas.
Aos países apimentados e encharcados! — a serviço das mais monstruosas
explorações industriais ou militares.

Até logo aqui, em qualquer lugar Conscritos da boa vontade, teremos a
filosofia feroz; ignorantes quanto à ciência, devassos quanto ao conforto; que se
arrebente o mundo que avança. É o verdadeiro caminho. Ordinário, marche!

Este trecho seria para ele? O vermelho perdera um pouco da sua cor.
Tanto faz, pensou François, assim o tempo custará menos a passar!
À noite, com o sono perturbado pelo rugido rouco dos tigres, a fuga dos
gamos, a corrida dos pangolins, as perseguições dos macacos, ele recordava
algumas passagens do livro. Em seguida, pensava em Léa. Desde que soubera
de sua presença na Indochina, essas recordações transformaram-se em
obsessão. A lembrança dos seus abraços torturava-lhe corpo e alma. Esses
versos de Rimbaud, estudados há tanto tempo, quando adolescente, voltavam à
sua mente. A que poema pertenciam mesmo?...
Oh! quem beberia
Teu gosto de framboesa e morango,
O carne de flor!
Rindo ao vento fresco que te beija
Como um ladrão...
Teu peito sobre o meu peito...
Tu virás, virás, te amo! Será lindo.
Um dia, aviões sobrevoaram a floresta.

Galhos pendurados nas folhagens das árvores que cercavam a clareira
foram arrancados e arrumados de modo a formarem um teto acima do espaço
aberto. Até então, François nem notara o astucioso estratagema. De cima, os
pilotos não conseguiam ver nada.
Mais do que nunca, pensou em fugir No dia seguinte à passagem dos
aviões, ao retornar do reservatório, ajudou uma mulher exausta a carregar o
seu pesado fardo. Na mesma noite, um tu vê veio buscá-lo para prestar auxílio
na construção de uma cabana. Em troca, ofereceram-lhe uma tigela de sopa.
No dia seguinte, e depois também, aconteceu o mesmo. No quarto dia,
encontrou-se com Hai.
— Diga que está doente e peça para ser levado à enfermaria, — sussurrou
Hai ao passar perto dele.
Ao anoitecer, um Tavernier contorcendo-se de dor foi levado ao médico.
— Co chuyên gi vây?
(O que está havendo?
— Nhung nguoi nhân tu bi dau bung.

(O prisioneiro tem dor de barriga.)
— Hodaângi?
(O que ele comeu?)
— Tôi không biêt, bac si a.
(Não sei, doutor.)
— Duoc rôi, bây gio dê chung tôi yên.
(Tudo bem, deixe-nos a sós.)
— Não pare de se fingir de doente...
— Sinto muita dor, doutor — O coronel, como eu imaginava, nunca
mandou emissário algum. Trata-se de um desequilibrado de quem ninguém
gosta no campo. Só está esperando o melhor momento para te matar. Grite...
— Aaah!...
— Em linha reta, estamos a cerca de trinta quilômetros de Lang Son. O 30
REI encontra-se por lá. Grite!
— Pára!...
— Tu poderás alcançar Lang Son pelo song Ky Cung. São três horas de
caminhada até o rio. Demarquei o caminho, como na época em que
brincávamos de caça ao tesouro. Lembras? Não te afastes dessa trilha, há
armadilhas por toda parte. Vais encontrar um barco escondido entre os galhos.
Guardei alguns mantimentos para ti. Cuidado com as corredeiras, são muito
perigosas. Deves chegar antes do amanhecer. Não te esqueças de apagar os
meus indícios e as marcas dos teus passos.
— Obrigado, Hai. Mas não vou sem Thévenet.
— Já esperava por essa resposta... Pensei em tudo, ele vai contigo.
Muito emocionado para falar, François olhou para o amigo com uma
expressão que revelava seus sentimentos.
— Ele sabe onde te encontrar — prosseguiu Hai.
— Quando partimos?
— Daqui a pouco. Vou chamar a sentinela e pedir para ir apanhar a minha
maleta no hospital. Você terá de fugir naquele momento.
— E você, o que pretende fazer?
— Não se preocupe. Só espero que Thévenet consiga andar. Grite!
— Aaah!...
— Linh canh, nguoi nhân tu dau rât nâng, tôi phai chich thuoc cho no. Di
lây cho tôi hôp cuu thuong o nha thuong. Mau lên!

(Sentinela, o prisioneiro está muito doente. Vou lhe aplicar uma injeção.
Vá buscar a minha maleta no hospital, rápido!)
— Toma, remédios e dinheiro. Calce essas sandálias, pegue o facão e o
relógio. Agora, saia logo e vá na direção da escola. Quando encontrar minha
irmã e minhas filhas, abrace-as por mim. Agora vá, irmão.
Com um aperto no coração, François afastou-se. A uns cem metros da
aldeia, encontrou-se com Thévenet, o pé ferido amarrado numa espécie de lona
de plástico até o joelho. Para andar, apoiava- se num cajado.
— Aquele rapaz é seu amigão de verdade — disse ele à guisa de boa-noite.
A embarcação encontrava-se no local indicado. Por várias vezes quase se
perderam na selva.
Usaram o isqueiro de Thévenet para encontrar a trilha ou apagar o rastro.
Hai calculara certo: levaram três horas caminhando.
De ambos os lados do rio, as falésias calcárias erguiam a sua massa
escura contra o céu onde a lua brilhante brincava de esconder com nuvens de
formas estranhas. A corrente, muito violenta, foi levando a frágil canoa que
François tinha a maior dificuldade em conduzir com o auxilio de uma vara. No
entanto, pouco a pouco, a correnteza tornou-se mais branda e passaram a
navegar como se estivessem na superfície de um lago. Ao longe, na margem
oposta, fogos revelavam presença humana: amiga ou inimiga? Para François e
Thévenet, tanto uma quanto outra eram perigosas.
Como seriam recebidos em Lang Son, maltrapilhos e sem documentos?
A correnteza reapareceu, sob um céu claro. De pé, lutando contra as águas
enfurecidas, os dois homens representavam um alvo ideal. As falésias foram
substituídas por uma vegetação densa porém não muito alta. Apesar de tudo,
conseguiram alcançar a margem onde içaram a embarcação.
Carregando-a na cabeça, caminharam ao longo do rio, tropeçando nas
raízes. O perfume das plantas esmagadas sob os pés dominava o da água. Um
estrondo deteve-os. Prestaram atenção, tentando identificar o ruído; a idéia de
sair do rio e caminhar em terra firme havia sido correta. Recomeçaram a andar.
O fragor aumentou até tornar-se ensurdecedor. Sob a lua, o espetáculo das
cataratas era feérico.
— Teu amigo podia ter avisado — resmungou Thévenet.
Agacharam-se, o fundo do barco parecendo uma espécie de telhado de
palha trançada sobre a cabeça, e contemplaram o balé das águas cavalgando
entre as rochas com ardor impetuoso. Levantaram-se e reiniciaram a
caminhada. Em breve, tiveram condição de navegar novamente.
A paisagem mudara completamente. A selva, os rochedos abruptos, as
águas revoltas haviam desaparecido; como por encanto, a montanha afastara-
se e entrava-se na bacia de Lang Son. Para François, aquele nome evocava as
páginas dos antigos exemplares da revista l'Illustration, descrevendo as

façanhas de Francis Garnier, do almirante Courbet ou do general de Négrier.
Henri Rivière, capitão de marinha e letrado, amigo de Flaubert, de Dumas filho,
era o seu herói preferido.
Decapitado pelos piratas, sua cabeça e suas mãos colocadas em uma caixa
laqueada, haviam sido enterradas na estrada principal, quase à superfície, a
fim de serem pisoteadas pelos passantes, em sinal do mais profundo desprezo.
Mais tarde, por ocasião da sua primeira estada na Indochina, Tavernier quis
visitar a Ponte do Papel, local do último combate do dramaturgo. O adolescente
da época interpretava aquele feito colonial como uma manifestação da grandeza
da França. Seu entusiasmo levara logo uma ducha fria ao freqüentar os meios
anamitas. Apesar de nunca ter presenciado perseguições mais sérias, rebelara-
se em várias ocasiões contra a atitude mesquinha e limitada de inúmeros
franceses da Indochina...
Algo mudou no céu, amanhecia. Os primeiros casebres dos arredores de
Lang Son surgiram, adormecidos, mergulhados na bruma; alguns cães latiram.
Numa das curvas do song Ky Cung, François e Thévenet avistaram as ruínas de
antigas casas. Passaram diante dos destroços de um pagode e do que deveria
ter sido uma central elétrica. Aqui e ali, via-se fumaça saudando a pálida
claridade vinda por trás das montanhas da China, anunciando o sol nascente.
Os galos cantaram.
Novamente o rio tornou-se sinuoso. De repente, surgiu uma ponte
metálica de estrada de ferro. Os dois homens pararam justo embaixo, em meio
a montes de detritos acumulados entre os pilares.
Desceram e afundaram na lama até os joelhos.
O toque de uma corneta chegou até eles, distante. Alcançaram a margem
do rio, escorregando no lixo; cobertos de lama, caminharam ao longo dos
trilhos. Thévenet mal conseguia acompanhar o amigo. De ambos os lados da via
férrea, novas construções haviam sido edificadas sobre as ruínas. Avistaram
um cinema, um campo de tênis danificado, coberto de detritos e invadido por
erva daninha, um hotel sórdido, tabernas de onde saía um cheiro de sopa, um
pagode que continuava milagrosamente de pé, os restos da estação. Na
plataforma, a habitual agitação asiática. Detiveram-se à procura de um rosto
francês.
Penetraram no prédio para ver se havia, por acaso, algum trem saindo
para Hanói. Dois soldados dirigiram-se em sua direção. François chamou-os.
— Deixe-me falar com eles — disse o legionário. — Cabo, sou o tenente
Thévenet, do 3º REI. Quanto a ele, trata-se de um civil, chama-se Tavernier.
Leve-nos até o rancho da mãe Casse Croúte.
— Tudo bem, tenente.
No café, a proprietária e suas serventes distribuíam aos homens da tropa
chá, garrafas de aguardente de arroz e sopa. Esfomeados, Tavernier e Thévenet

engoliram duas tigelas de sopa antes de trocar uma palavra sequer com os
soldados.
— Continua sendo o coronel Vicaire a comandar a região? — perguntou
Thévenet após um arroto retumbante.
— Sim, ele vai conosco para Cao Bang.
— Cao Bang?... Então também vou!
— O que está fazendo aqui, tenente?
Um oficial baixinho, magro e nervoso, acabara de entrar. Sem pensar no
pé machucado, Thévenet tentou levantar-se, mas não agüentou, desabando na
cadeira.
— Desculpe, comandante, é por causa desta ferida filha da puta...
— Fique quieto. Estou feliz em te rever, mesmo que todo ruim. Depois do
ataque, procuraram por ti em toda parte: tinhas desaparecido por completo,
seu animal... Achamos que era muito azar cair vivo nas mãos deles e agora aí
estás. E ele, quem é?
— Foi feito prisioneiro comigo, estava no mesmo comboio. Fugimos juntos.
Posso dizer que foi ele quem salvou a minha vida.
— Sou o comandante Santoni — disse o oficial, de pé para não parecer
mais baixo do que já era. - Obrigado, meu velho. Por mais que o tenente seja
um saco, com um temperamento fodido, gostamos muito dele.
— Foi um grande prazer para mim, comandante — disse François irônico.
— Como posso chegar até Hanói?
— Klauss, vem cá! — gritou Santoni.
— Sim, comandante.
— Continua negociando com aquele chinês da rua dos Alfaiates?... Vai
responder ou não?...
— Mais ou menos, comandante.
— Otimo, você vai levar... Qual é o seu nome?
— Tavernier.
— Bem, vais acompanhá-lo até a loja do teu china e pedir para encontrar
um carro que leve Tavernier até Hanói.
— Vai precisar de salvo-conduto, comandante.
— Ortega preparará um. Tavernier, tive o maior prazer em conhecê-lo.
Saiu de cabeça, erguida, sem que François tivesse tempo de responder.
— É um sujeito legal, foi com a tua cara. O comandante Santoni é gente
boa; sempre liderando os homens. Ferido várias vezes na Líbia, foi um dos

primeiros a ser lançado de pára-quedas no Tonquim. Conhece o lugar como a
palma da mão.
— Estou com pressa, contarás em outra oportunidade as façanhas do
comandante...
— Preciso te dizer uma coisa, antes que vás embora. Vamos sair.
— Por que não aqui mesmo?
— Não discute.
Apoiando-se no cajado e pulando em um pé só, ele saiu do café. Já
amanhecera. Thévenet sentou- se na amurada destruída. Tavernier esperava
calmamente. Finalmente, o legionário falou:
— Tive um probleminha antes de sair da aldeia... A mulher do teu amigo
me espionava. Cada vez que o médico vinha te visitar, ela andava atrás dele às
escondidas. Um dia, os dois brigaram, ele lhe deu uma bofetada mas não
bastou. Acho que se ele te ajudou a fugir, foi porque temia que a mulher te
denunciasse. Na noite da nossa partida, ela apareceu na cabana, a pretexto de
olhar meu curativo, e depois foi embora. Era justamente quando o con be vinha
me amarrar. O médico já tinha avisado que se ele não aparecesse, seria o sinal
da fuga. Dez minutos depois da hora prevista, anoiteceu e saí da cabana. Ao
alcançar o limite da aldeia, percebi que me seguiam. Parei e fiquei esperando:
era a mulher...
François entendeu tudo.
— Não tive outra escolha... Ela estava prestes a gritar... Vi em seus olhos...
— E você a matou como?
Muito sem jeito, Thévenet mostrou as mãos.
— Eu podia não te contar nada... talvez nunca ficasses sabendo. Não
gostei do que fiz... mas era ela ou nós... Sinto muito por teu amigo... Não tenho
muita simpatia por você, mas foi legal comigo... Não quis mentir.
Abatido, François permaneceu calado. Pensava em Hai procurando
Phuong e encontrando-a morta. Ele nunca iria perdoá-lo. Como François
poderia negar a sua participação nesse crime?
Klauss aproximou-se.
— Podemos ir falar com o chinês quando quiserem.
— Vamos logo — disse Tavernier, que saiu sem olhar para o tenente.
Dois dias mais tarde, François encontrava-se numa pick-up em
companhia do filho de Tchao Han, dirigindo-se para Hanói pela RCI. Na traseira
do veículo, havia cerca de dez homens. O tráfego era intenso. Cruzaram com
um longo comboio militar onde gritavam jovens recrutas. Tiveram de aguardar
um certo tempo em Phu Hang Thuong antes de embarcar na balsa que fazia a
travessia do song Thuong. Em Bac Ninh, foi pior ainda; o song Cau estava com

tanto movimento que teria sido mais fácil atravessar a pé, passando de uma
embarcação para outra.
Mal-humorado, com um cigarro na boca, Tavernier caminhava pela
margem do rio, aguardando a hora de partir. A lembrança da tristeza de Hai
ofuscava a felicidade que o esperava ao se encontrar com Léa. Parou diante de
um bar ao ar livre e pediu chá.
A sua volta, a multidão passava, silenciosa, carregando todo tipo de
embrulhos. Percebia-se, entre aquela gente, uma exaustão resignada. Poucos
homens na força da idade, principalmente mulheres, anciões e crianças. Alguns
aleijados também, que tentavam superar as suas dificuldades. Um batalhão de
senegaleses fazia muito barulho; numerosos legionários esperavam,
fleumáticos, tomando cerveja. De longe, o motorista chinês acenou pois estava
na hora de embarcar. François levantou-se, mas foi empurrado por um anamita
que fugiu na direção do rio.
Sob o impulso, seu corpo balançou e ele tentou segurar-se numa cesta de
frutas. Laranjas, mangas e melões caíram pelo chão. Enquanto o vendedor
recolhia a sua mercadoria, François perdeu o equilíbrio e foi de cara na lama.
Um senegalês observara aquela cena; aproximou-se e começou a gritar:
— Tenente! Tenente!
— Por que está berrando assim, Ahmed?
— Ali, tenente... Tem um branco...
— E daí, um branco?
— Está com uma faca nas costas, tenente.
— Não podia dizer logo, seu imbecil!
O tenente chegou perto de François. Este se encontrava cercado por um
pequeno grupo de pessoas gesticulando, enquanto o filho de Tchao Han,
atordoado, olhava para o seu passageiro.
— Chame o major — gritou o tenente. — Você o conhece? — perguntou ao
chinês.
Sim, fez o outro com a cabeça.
— Alguém viu como aconteceu?... — Claro que não — constatou diante do
mutismo dos presentes. — Ah, major, ainda bem que chegou! Examine este
homem. Afastem-se...
Com muito cuidado, o médico ergueu Tavernier e tirou-lhe a camisa.
— Não é grave, ele teve muita sorte, a lâmina deslizou pela costela — disse
ao retirar o punhal. — Veja, ele está voltando a si. Não se mexa! Só vai precisar
de alguns dias de repouso.
Desinfetou a ferida e colocou uma atadura no peito de François.

— Tem alguma idéia? — perguntou o tenente.
— Nenhuma. Já perguntou?...
— Não viram nada, como pode imaginar. Vou preparar meu relatório. Qual
é o seu nome?
— Não será necessário, tenente, está perdendo o seu tempo e o meu
também. Obrigado...
— Mas...
— Desculpe-me, estou com pressa, não posso mais atrasar o motorista.
Quer me dar a faca?
— Trata-se de uma arma curiosa — observou o major entregando o
punhal. — Olhe o cabo esculpido em pau-ferro e a lâmina com gravuras
estranhas... Parece uma faca de iniciação... Eu lhe apliquei a vacina
antitetânica. Faça um exame geral e nada de esforço pesado.
— Certo. Obrigado, doutor; obrigado, tenente.
Apoiando-se no ombro do chinês, François voltou para a pickup onde
desmaiou. Antes de apagar, ainda teve tempo de dizer:
"Rápido, vamos logo."
Recobrou os sentidos na balsa que, sobrecarregada, avançava lentamente.
Do outro lado do song Cau, reinava a maior confusão. Levaram duas horas
para conseguir escapar da multidão. No interior da cabine, apesar das janelas
abertas, reinava um calor insuportável. Finalmente, chegaram em frente do rio
Vermelho. O caos era tal, diante da famosa ponte Paul-Doumer, que François
resolveu continuar a pé, indiferente às reclamações do chinês.
A ponte, que também servia de passagem para trens, carros, bicicletas e
pedestres, lembrava a trilha aberta no mar Vermelho por Moisés para que os
judeus pudessem fugir. Assim como entre os hebreus escapando do faraó,
percebia-se naquela multidão que passava pela ponte o mesmo desejo de ir
embora, o mesmo medo de ser atirada às ondas.
Cerrando os dentes, François caminhava, a testa encharcada sob um
disforme chapéu, sujo, barbado, com as roupas manchadas de sangue e lama.
Já caminhara cerca de um quilômetro quando percebeu que só havia bicicletas
e pedestres. Mais adiante, um pesado caminhão imobilizado interrompia todo o
tráfego.
Léa não agüentara mais esperar todos os dias por notícias de François.
Sabia que estava em Lang Son. Apesar dos conselhos de Lien, Léa resolveu
viajar para lá. Encontrava-se em um caminhão, com destino à grande cidade do
povo thai. Para sua comodidade, usava a roupa típica vietnamita e o grande
chapéu de palmeira, levando os documentos e o dinheiro colados no corpo. Sua
única bagagem era composta de uma pequena trouxa.

Giau fora atrás dela e escondera-se sob o caminhão sem ser visto. No meio
da ponte, o veículo enguiçou; os passageiros saltaram para empurrá-lo. Léa,
desistiu logo e foi andando pelo viaduto.
Entre os trilhos, havia menos gente.
Ela caminhava, levada pela vontade de encontrar François, a fim de acabar
com aquele pesadelo.
Ele continuava, sentindo o sangue escorrer pelas costas, animado pelo
único desejo de revê-la, abraçá-la, partir, esquecer os sofrimentos e as mortes
daquele país que tanto amava, mas pelo qual nada mais podia fazer.
Mais adiante, uma mulher vietnamita, sozinha entre os trilhos,
aproximava-se.
Na direção oposta, um homem tropeçava nas pedras do lastro e titubeava
entre os dormentes.
O vento forte levou o chapéu da mulher, seu cabelo soltou-se... O homem
pára...a mulher aproxima-se... ela corre... Oh, como corre... o homem atira-se...
cai... levanta-se e sai correndo... ambos penetram em uma espécie de neblina..,
enxergam apenas a silhueta que parece querer subir para o céu... estão
sozinhos acima do rio Vermelho... suas mãos se roçam, se tocam... caem de
joelhos um de frente para o outro... o coração batendo a mil por hora... os dois
rostos, iluminados por uma imensa felicidade, estão cobertos de lágrimas...

 

 

                                                   Régine Deforges         

 

 

 

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