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Publicado em 1856, “Rúdin” foi o romance de estreia de Turguêniev e tem como objeto um tema que estava sendo abordado por outros autores da época: a construção do “homem supérfluo”. Esse termo foi utilizado para ilustrar a nova geração, marcada por jovens que iam para a Europa Ocidental para estudar, voltavam para a Rússia com vontade de fazer mudanças, mas se viam impossibilitados pelo governo do Tzar Nicolau I. O “homem supérfluo” é, portanto, o homem das ideias, o idealista que não consegue colocar em prática as suas ideias.
E nesse livro, o conceito do homem supérfluo está em Rúdin, o personagem principal, que passa a frequentar um círculo fechado de aristocratas rurais, causando sensações diferentes em cada um dos demais personagens. Nos deparamos com uma senhora rica e proprietária de terras; uma filha romântica e sentimental; um criado que quer agradar a patroa a todo custo; um amigo da família que causa repulsa com seus discursos machistas, e por aí vai. Os diálogos construídos pelo autor entre os personagens são muito inteligentes e com um toque recorrente de humor.
Por isso, a despeito de um enredo simples, o livro traz um excelente retrato da sociedade russa da época e desperta reflexões interessantes no leitor. E é nesse momento que percebemos o quanto são atuais as angústias de Rúdin. A partir desta obra, questionamos a nossa utilidade para a coletividade e a força que os nossos propósitos podem desempenhar.
Capítulo I
Era uma manhã de verão. O sol já estava bem alto no céu puro, mas o orvalho ainda brilhava nos campos; do vale há pouco desperto soprava um frescor perfumado, e na floresta, ainda úmida e em silencio, os primeiros pássaros cantavam alegremente. No cume de uma colina de encostas suaves, de cima abaixo coberta de centeio em floração recente, via-se uma pequena aldeia. Em direção a ela, por um caminho estreito, caminhava uma jovem vestida de musselina branca, chapéu de palha redondo e sombrinha a mão. A alguma distância, acompanhava-a o moço.
A jovem ia devagar e parecia deliciar-se com o passeio. Em torno, matizando-se em movimentos ora verde-prata e ora avermelhados, longas ondas de centeio crescido deslizavam num suave murmúrio, lá em cima, bem no alto, o chilrear das cotovias. A moça vinha da própria aldeia de sua propriedade distante não mais de uma vierstá O da localidade aonde se dirigia. Chamava-se Alexandra Pavlóvna Lipina, viúva sem filhos e rica; vivia com o irmão, Sierguiei Pavlítch Volíntsev, segundo-capitão reformado, que era solteiro e administrava a propriedade da irmã.
Alexandra Pavlóvna chegou a aldeola, deteve-se diante da isbá mais próxima, muito baixa e velha e chamando o criado, mandou-o entrar e indagar da saúde da dona da casa. O moço voltou logo, em companhia de um mujique decrépito de barba branca.
— E então? — indagou Alexandra Pavlóvna.
— Ainda vive... — respondeu o ancião.
— Pode-se vê-la?
— Como não? Tenha a bondade.
Alexandra Pavlóvna penetrou na isbá: apertada, ar sufocante e cheio de fumaça. Alguém se moveu e gemeu numa cama ao pé da estufa. Alexandra Pavlóvna voltou-se para aquele ponto e lobrigou na obscuridade a cabeça de uma velhinha, amarela, enrugada e envolvida em xale de xadrez. Coberta até o peito por um pesado capote, respirava com dificuldade e suas mãos maceradas moviam-se debilmente.
Alexandra Pavlóvna aproximou-se da anciã e chegou os dedos a sua fronte, que estava em brasa.
— Como te sentes, Matriona? — indagou, inclinando-se sobre a enferma.
— Ui, ui! — gemeu a velha, cravando os olhos na recém-chegada. — Mal, muito mal, minha cara! Chegou a minha hora, pombinha!
— Deus é misericordioso, Matriona. talvez te restabeleça. Tomaste o remédio que te enviei?
A doente gemeu tristemente e não respondeu. Não ouvira a pergunta.
— Tomou — proferiu o velho, que se detivera a porta.
A visitante dirigiu-se a ele.
— Não há ninguém que cuide dela, além de ti? — inquiriu.
— Há uma menina, a neta, mas está sempre ausente. Não fica parada um instante: um azougue. Até de dar água a vovó tem preguiça. E eu sou muito velho. Que utilidade posso ter?
— Não seria melhor que fosse levada ao hospital de minha aldeia?
— Não! Para que? Morreria da mesma forma. Já viveu muito; agora, seja feita a vontade de Deus. Não suportaria a viagem se fosse transladada daqui. Basta tentar erguê-la da cama, e ela entregará a alma ao Criador.
— Ai — gemeu a enferma; — minha bela senhora, não abandones minha órfã; o amo está longe, e tu...
A anciã, já sem forças, calou-se.
— Podes ficar descansada — tranquilizou-a Pavlóvna, tudo será feito. Trouxe-te chá e açúcar. Se quiseres, bebe um pouco... Tens samovar, não é? — acrescentou, olhando para o velho.
— Samovar? Não, não temos, mas posso conseguir.
— Então providencia; se não, trarei o meu. Dize a neta que não se ausente, pois é um procedimento vergonhoso.
O velhote nada respondeu, porém tomou com ambas as mãos o embrulho de chá e açúcar.
— Bem, adeus, Matriona! — exclamou Alexandra Pavlóvna. — Ainda virei ver-te; não percas a coragem e toma pontualmente o remédio...
A velha ergueu a cabeça e inclinou-se para a interlocutora.
— Permite que te beije a mão — balbuciou.
Alexandra Pavlóvna não lhe estendeu a mão, inclinou-se e beijou-lhe a fronte.
— Presta atenção — disse ao ancião, ao sair; o medicamento deve ser ministrado rigorosamente de acordo com a receita. E não te esqueças de lhe dar o chá.
O velho de novo nada respondeu, limitando-se a uma reverencia.
Ao encontrar-se ao ar livre, Alexandra Pavlóvna ficou calma. Abriu a sombrinha e ia voltar a casa, mas de chofre surgiu de uma esquina da isbá, numa aranha baixa, de corrida, um homem dos seus trinta anos, velho sobretudo cinza de linho e boné do mesmo pano. Ao ver a moça, imediatamente deteve o animal e voltou para ela o rosto. Este, largo e pálido, olhos de um castanho suave e bigode esbranquiçado, se casava a cor do vestuário.
— Bom-dia — disse ele com um sorriso irônico e indolente; — que faz aqui, se posso sabê-lo?
— Acabo de visitar uma doente. E de onde vem, Mikhaílo Mikhaílitch?
O interpelado olhou-a nos olhos e esboçou o mesmo sorriso.
— É louvável ação — continuou, visitar a enferma; não seria melhor, porém, transferi-la para o hospital?
— Está demasiado fraca: não se pode removê-la.
— E você não pretende acabar com o hospital?
— Acabar? E por quê?
— E por que não?
— Que ideia estranha! Como lhe veio à cabeça?
— Você é amiga íntima de Lassúnskaia e, ao que parece, vive sob sua influência; segundo ela, hospitais e escolas são coisas ridículas, fantasias desnecessárias. A caridade deve ser pessoal, e a educação também: são questões de foro íntimo... é a sua expressão, pelo que me consta. Quem lhe sopra essas ideias? Gostaria de saber.
Alexandra Pavlóvna desatou a rir.
— Dária Mikháilovna é inteligente; gosto muito dela e a respeito, mas também pode enganar-se, e não lhe acompanho todas as pegadas.
— E age mui acertadamente — observou Mikháílo Mikhaílitch, que continuava sentado na aranha, porque ela mesma dá pouco crédito as próprias palavras. Estou satisfeito por este encontro.
— Mas por quê?
— Ora, que pergunta! Como se vê-la não fosse sempre um prazer! Hoje está tão louçã e bela quanto a manhã que nos envolve.
Alexandra Pavlóvna de novo posse a rir.
— Em que acha graça?
— Ora, ora! Se pudesse ver com que expressão indolente e fria disse o galanteio! Admira-me que não tenha bocejado na última palavra.
— Expressão fria... você quer fogo; mas que utilidade tem? Inflama-se, deita fumaça e se apaga.
— Mas aquece — acrescentou Alexandra Pavlóvna.
— Sim... e queima.
— Pois bem, que queime! Não é um mal. É melhor que...
— Quero ver o que dirá quando se queimar bem, uma só vez que seja! — atalhou-a contrariado Mikháílo Mikhaílitch e vibrou as rédeas no dorso do animal. — Adeus!
— Mikháílo Mikhaílitch, espere! — bradou Alexandra Pavlóvna. — Quando virá visitar-nos?
— Amanhã; meus respeitos a seu irmão.
E a aranha ganhou distância.
Alexandra Pavlóvna acompanhou-o com os olhos.
“Que saco!” — pensou. Curvado, coberto de poeira, voltado para a nuca o boné de onde se projetavam desordenadamente madeixas de cabelos louros, de fato lembrava um grande saco de farinha.
Alexandra Pavlóvna tomou lentamente o caminho de casa. Andava de cabeça baixa. O bater próximo de patas de cavalo levou-a a deter-se e a erguer os olhos. A cavalo, vinha-lhe ao encontro o irmão; ao lado dele um jovem de baixa estatura, sobrecasaca leve desabotoada, gravata e chapéu cinza também leves e bengala a mão. Já antes sorria para Alexandra Pavlóvna embora visse que estava pensativa sem nada notar, mas logo que ela se deteve aproximou-se e disse com alegria, quase ternura:
— Bom-dia, Alexandra Pavlóvna, bom-dia!
— Oh! É Konstantín Diomíditch? Bom-dia! — respondeu. — Vem da casa de Maria Mikháilovna?
— Exatamente, isso mesmo! — apressou-se o moço com expressão radiante. — De Dária Mikháilovna, que me mandou procurá-la; preferi vir a pé... A manhã está tão linda, e a distância é de apenas quatro vierstás. Cheguei e não a encontrei em casa. Seu irmão disse-me que tinha ido a Siemionóvka, e ele próprio se preparava para sair ao campo: então resolvi vir com ele, a seu encontro. Perfeitamente. Que prazer!
O jovem falava russo com pureza e acerto, porém com sotaque estrangeiro, embora difícil fosse com precisão determinar qual. Nos traços de sua fisionomia havia algo de asiático. O longo nariz aquilino, os grandes os olhos imóveis e esbugalhados, os lábios sanguíneos c carnudos, fronte inclinada, cabelos negros como breu Indo nele revelava origem oriental; no entanto, Panduliév era o nome de família do jovem, que se dizia natural de Odessa, embora fora educado em alguma parte da Bielórrússia, as expensas de uma benfeitora, viúva e rica. Outra viúva o encaminhara no funcionalismo público. Em geral as damas de idade madura de boa vontade apadrinhavam Konstantín Diomíditch: sabia procurá-las e encontrá-las. Agora mesmo morava na mansão de uma latifundiária rica, Dária Mikháilovna Lassúnskaia, na qualidade de agregado ou parasita. Era muito amável, obsequioso, sentimental e, em segredo, voluptuoso; possuía voz agradável, tocava regularmente piano e quando falava com alguém tinha o hábito de cravar-lhe os olhos. Vestia-se com asseio e usava os ternos por muito tempo, escanhoava cuidadosamente o amplo queixo e penteava-se com zelo minucioso.
Alexandra Pavlóvna esperou que terminasse de falar e dirigiu-se ao irmão:
— Hoje parece ser o dia dos encontros: acabo de falar com Lejniev.
— Ah! com ele? Ia a algum lugar?
— Sim; e, imagina! em aranha de corrida, trajando uma espécie de saco de linho, e todo empoeirado... Que excêntrico!
— Sim, talvez; mas é excelente pessoa.
— Como assim? O Sr. Lejniev? — indagou Pandaliévski, que parecia surpreso.
— Sim, Mikhaílo Mikhaílitch Lejniev — respondeu Volintsev. — Pois bem, adeus, irmã; preciso ir ao campo, para ver a semeadura do trigo sarraceno. O Sr. Pandaliévski vai levar-te a casa.
E Volintsev afastou-se a trote.
— Com o maior prazer! — exclamou Konstantín Diomíditch e ofereceu a dama a mão.
Ela estendeu a sua e ambos tomaram a estrada em direção a propriedade.
Andar de braço dado com Alexandra Pavlóvna causava, evidentemente, profunda satisfação a Konstantín Diomíditch, que avançava a passos curtos, sorria e seus olhos orientais até se tornavam úmidos, o que, aliás, não lhe acontecia raramente: nada lhe custava enternecer-se e derramar lágrimas. E quem não se sentiria lisonjeado por estar em companhia de uma mulher bela, jovem e elegante? De Alexandra Pavlóvna toda a província era unânime em reconhecer os encantos sem qualquer possibilidade de errar. Bastava-lhe o narizinho, reto e ligeiramente arrebitado, para tornar louco qualquer mortal, já sem falar dos aveludados olhos castanhos, dos cabelos ruivos com reflexos dourados, das covinhas nas faces redondas e de outros encantos. No entanto, o melhor dela era a graciosa expressão fisionômica: confiante, amável e meiga, impressionava e atraía. A moça olhava e ria como criança; as senhoras da província achavam-na simplória. Poder-se-ia desejar algo mais?
— Dária Mikháilovna o mandou procurar-me, não é? — perguntou ela a Pandaliévski.
— Sim, mandaram-me — respondeu ele, articulando a letra s como se pronuncia o inglês.
— Põem grande empenho em que vá hoje jantar com eles e pedem encarecidamente que não deixe de atendê-los. (Ao falar de terceiras pessoas, em particular do sexo feminino, Pandaliévski atinha-se rigorosamente ao plural). Esperam um novo visitante, a quem desejam muito apresentá-la.
— Quem é?
— Um tal de Muffiel, barão, camarista de Sua Majestade, procedente de Petersburgo. Recentemente Dária Míkháilovna foi-lhe apresentada no solar do príncipe Gárin e a ele se refere com grandes elogios a amabilidade e a educação. O senhor barão também cuida de Literatura, ou, melhor... Oh, que linda borboleta! Olhe, por favor!... ou, melhor, de Economia Política. Escreveu um artigo sobre questão muito interessante e deseja submetê-lo a apreciação de Dária Mikháilovna.
— Artigo sobre Economia Política?
— Do ponto de vista do estilo, Alexandra Pavlóvna, do ponto de vista da linguagem. Creio que sabe que Dária Mikláilovna é autoridade no assunto. Jukóvski consultava-a, e meu antigo benfeitor o venerável Roksolan Miediaróvitch... — Certamente já ouviu falar dele, não é?
— De modo nenhum. Nunca ouvi falar dele.
— Não ouviu falar dele? Impressionante! Queria dizer que também ele sempre teve em alta conta os conhecimentos de Dária Mikháilovna quanto a língua russa.
— E esse barão não é pedante? — inquiriu Alexandra Pavlóvna.
— Absolutamente não; Dária Mikháilovna diz que, ao contrário, nele logo se vê o homem do mundo. Sobre Beethoven falou com tamanha eloquência que até o velho príncipe ficou entusiasmado. Confesso que eu o teria ouvido com prazer, pois se trata do meu ponto fraco. Permita que lhe ofereça esta bela flor silvestre.
Alexandra Pavlóvna tomou da flor e, após andar um pouco, deixou-a cair na estrada. Até a casa restavam uns duzentos passos, não mais. Recém-construída e caiada, janelas amplas e claras, e destacando-se entre o verde espesso de velhas tílias e aceres, a mansão tinha aspecto acolhedor.
— Posso então informar a Dária Mikháilovna — disse Pandaliévski, ligeiramente ofendido pela sorte que coubera a flor, que você vai ao jantar? Ela e o irmão insistem.
— Sim, iremos, sem falta. E como vai Natacha?
— Goza de boa saúde, graças a Deus. Vejo, porém, que já passamos a curva próxima a propriedade de Dária Mikháilovna. Permita que me despeça.
Alexandra Pavlóvna deteve-se.
— E não quer entrar? — indagou hesitante.
— Teria imenso prazer, mas temo atrasar-me. Dária Mikáilovna deseja ouvir um novo estudo de Thalberg: é, pois, preciso que me prepare e ensaie. Ao demais, sou franco: duvido que minha palestra possa causar-lhe algum prazer.
— Oh, não! O que o leva a pensar assim?
Pandaliévski suspirou e significativamente baixou os olhos.
— Até breve, Alexandra Pavlóvna! — proferiu após curto silencio, fez-lhe uma reverencia e deu um passo atrás.
A moça voltou-se e se encaminhou para a casa.
Konstantín Diomíditch também fez o mesmo. Do rosto desapareceu lhe logo toda a alegria, dando lugar a uma expressão de teimosia quase severa. Até seu andar modificou-se: agora as passadas eram mais amplas e pesadas. Agitando com determinação a bengala, venceu umas duas vierstás e súbito sorriu mostrando os dentes: vira ao lado da estrada uma jovem camponesa bastante graciosa, que expulsava bezerros do aveal. Cauteloso qual gato, aproximou-se dela e entabulou conversação. A princípio a moça silenciou, enrubesceu e riu; enfim cobriu os lábios com a manga do vestido, voltou-se e disse:
— Afasta-te, meu senhor, francamente...
Konstantín Diomíditch ameaçou-a com o dedo e ordenou que lhe trouxesse escovinhas.
— Para que queres escovinhas? Talvez para trançar uma coroa? — replicou a jovem. — Por favor, afasta-te, realmente...
— Ouve, minha amável belezinha — proferiu Pandaliévsski.
— Ora, deixa-me em paz — atalhou-o a camponesa. — Moços fidalgos se aproximam.
Konstantín Diomíditch olhou em torno. De fato; pela estrada corriam Vânia e Piétia, filhos de Dária Mikháilovna; acompanhava-os o professor, Bassistov, jovem de vinte e dois anos, recém-formado, fisionomia de simplório, nariz grande, lábios desenvolvidos, olhos de suíno, feio e desajeitado, porém bom, honesto e franco. Vestia-se com negligência, sem cortar os cabelos — não por afetação, mas por preguiça; gostava de comer, de dormir, porém, apreciava igualmente um bom livro, o debate acalorado e devotava ódio profundo a Pandaliévski.
Os filhos de Dária Mikháilovna adoravam Bassistov e não lhe tinham medo nenhum; ele mantinha relações estreitas com todos os demais da casa, o que não era bem do agrado da dona, embora ela não deixasse escapar qualquer oportunidade para dizer que era totalmente isenta de preconceitos.
— Bom dia, queridinhos! — disse Pandaliévski. — Vieram passear bem cedo hoje, hein? Quanto a mim — acrescentou, dirigindo-se a Bassistov, há muito estou fora de casa; minha paixão é admirar a natureza.
— Percebemos bem sua maneira de deleitar-se com os encantos da Mãe Natura — resmungou Bassistov.
— Você é materialista: só Deus sabe o que agora lhe ocupa a mente. Sei com quem estou tratando!
Quando falava com Bassistov ou com pessoas de igual condição, Pandaliévski irritava-se facilmente e pronunciava a letra s com pureza, mesmo com um pequeno assobio.
— Que queria com esta donzela? Talvez lhe perguntasse o caminho, não é? — perguntou Bassistov movendo os olhos a direita e a esquerda.
Sentia o olhar de Pandaliévski fixo diretamente em seu rosto, o que o molestava em extremo.
— Repito que é materialista e nada mais. Necessariamente deseja ver em tudo apenas o lado prosaico...
— Meninos! — comandou Bassistov de chofre. — Estão vendo aquela giesta ali no prado? Vejamos quem chega lá primeiro. Um, dois, três!
E os garotos lançaram-se a toda a velocidade na direção da planta. Bassistov fez o mesmo.
“Mujique! — pensou Pandaliévski. — Vai estragar as crianças... Não passa de um labregol”
E com prazer lançando um olhar a própria figura, elegante e refinada, deu dois tapas com os dedos abertos na manga do sobretudo, endireitou o colarinho e seguiu adiante. lima vez em seus aposentos, vestiu um velho chambre e com ar preocupado sentou-se ao piano.
Capítulo II
A mansão de Dária Mikháilovna Lassúnskaia era considerada uma das primeiras em toda a província. Espaçosa, de pedra, construída segundo projeto de Rastrelli e ao gosto do século passado, erguia-se majestática no cume de um outeiro, em cujo sopé passava um dos principais rios da Rússia central. A própria dona era uma barínia1 nobre e rica, viúva de um Conselheiro Secreto. Embora Pandaliévski afirmasse que ela conhecia toda a Europa e está a conhecia a ela, o fato é que a Europa pouco a conhecia; mesmo em Petersburgo não representava papel importante; em compensação, todos a conheciam e a frequentavam em Moscou. Pertencia a alta roda e era tida como mulher um tanto estranha, não de uma bondade adamantina, porém muito inteligente. Na juventude fora uma beldade. Poetas escreviam-lhe versos, jovens por ela se apaixonavam, cavalheiros circunspectos cortejavam-na. No entanto, desde então passaram-se vinte e cinco ou trinta anos, e das antigas louçanias nem traço ficou.
— É possível — perguntava involuntariamente a si mesmo todo aquele que a via pela primeira vez, é possível que esta mulher magra, pálida, nariz afilado e ainda não velha tenha possuído outrora beleza impressionante? É possível que seja ela, a mesma pela qual terçavam as liras?
E todos ficavam intimamente impressionados com a transitoriedade de tudo o que é deste mundo. Verdade é que Pandaliévski achava que, quanto aos magníficos olhos, ela ainda os tinha; deve-se considerar, porém, que era ele mesmo o autor da assertiva dei que toda a Europa a conhecia.
Dária Mikháilovna todo verão visitava sua aldeia e trazia os filhos. Eram três: Natália, de dezessete anos, e dois filhos, de nove e dez anos. Vivia de casa aberta, isto é, franqueava-se aos homens, principalmente solteiros; não podia suportar as fidalgas da roça e essas vingavam-se, aplicando-lhe a pena de talião: dente por dente, olho por olho. Segundo elas, a barínia era orgulhosa, imoral, e horrível tirana; e, sobretudo, ao falar permitia-se liberdades tais que fariam corar até as pedras!
De fato, Dária Mikháilovna não se atinha a cerimonias quando estava no campo, e na simplicidade desatada de suas maneiras notava-se um ligeiro sintoma do desdém com que uma leoa metropolitana trata as pessoas obscuras e insignificantes que a cercam... Também em relação aos conhecidos da cidade comportava-se com acentuada desenvoltura, que raiava pelo escárnio, porém não se via qualquer sinal de desprezo.
A propósito, leitor: já notou que o indivíduo habitualmente desatencioso em relação aos subordinados, jamais assim é em relação aos que estão acima dele? Qual a razão? Aliás, questões desse gênero a nada levam.
Decorado, enfim, o estudo de Thalgerb, Pandaliévski desceu de seu limpo e alegre quarto para a sala de visitas e ali encontrou reunidos todos os familiares. O sarau já começara. Num amplo canapé, as pernas encolhidas e manuseando um novo folheto francês, via-se a dona da casa ao pé da janela trabalhando com bastidores; de um lado a filha de Dária Mikháilovna e, do outro, Mlles. Boncourt, a governanta, solteirona velha e seca de aproximadamente sessenta anos, peruca de cabelos pretos sob touca multicor e algodão nos ouvidos; num canto, ao lado da porta, localizara-se Bassistov, que lia um jornal; perto dele Piétia e Vânia jogavam damas; encostado a estufa e mãos atrás das costas, estava de pé um senhor de baixa estatura, cabelos desgrenhados e grisalhos, rosto trigueiro e olhos negros e fugidios um tal de Afrikán Siemiónitch Pigássov.
O Sr. Pigássov era uma criatura estranha. Amargurado contra tudo e todos em particular contra as mulheres ralhava de manhã a noite, as vezes com muita propriedade, de outras com bastante grosseria, porém sempre com deleite. Sua irritação chegava a infantilidade; o riso, o som da voz, todo seu ser parecia mergulhado no fel. A dona da casa acolhia-o de boa vontade: suas venetas a divertiam. E, de fato, eram muito engraçadas. Tudo exagerar era sua paixão. Por exemplo: qualquer que fosse a desgraça que lhe contassem o relâmpago incendiou uma aldeia, a água rebentou o moinho, um mujique decepou a própria mão com o machado sempre indagava com rancor:
— Como se chama? Isto é, o nome da mulher causadora do mal, porque, segundo ele, a causa de todos os infortúnios é a mulher, conclusão a que se chega quando se penetra fundo na questão.
De uma feita atirara-se de joelhos ao pé de uma barínia, quase desconhecida, que insistia em que aceitasse um refresco. Com lágrimas nos olhos e a fúria estampada no rosto, posse a suplicá-la que o poupasse porque nunca lhe fizera qualquer mal e pretendia não mais voltar aquela casa.
Certa ocasião um cavalo desembestou montanha abaixo com uma das lavadeiras de Dária Mikháilovna, atirou-a num fosso e quase a matou. Desde então, quando se refere ao animal, Pigássov só emprega os termos “magnífico, excelente cavalinho”, e acha pontos extremamente pitorescos a própria montanha e a vala.
Pigássov nunca foi feliz na vida e daí o comportamento extravagante. Era de família pobre. O pai exercera várias funções subalternas, mal sabia ter e escrever e não cuidara da educação do filho; alimentava-o e o vestia e só. A mãe o mimava, porém morreu logo. Pigássov educou-se a si mesmo, ele próprio se matriculou na escola do distrito, depois no ginásio, aprendeu línguas: francês, alemão e até latim e, formado com distinção, dirigiu-se para Dorpat, onde constantemente lutou contra as necessidades, mas chegou ao fim do curso de três anos. Sua capacidade não ultrapassava os limites da mediocridade; distinguia-se pela paciência e pela perseverança; o que mais o impulsionava era, porém, a ambição, o desejo de incluir-se na boa sociedade e não ficar aquém dos demais, apesar de todos os contratempos de um destino adverso. Estudava com afinco e foi a ambição que o levou a ingressar na universidade de Dorpat. A pobreza o irritava e nele desenvolveu a capacidade de observação e a astúcia. A maneira de falar era-lhe peculiar; desde cedo assimilara um gênero particular de eloquência sarcástica e mordente. Seus pensamentos não se elevavam acima do nível comum, mas falava de tal maneira que se tinha a impressão de 'Se tratar de um homem não só perspicaz como muito inteligente.
Conseguido o diploma de candidato, resolveu dedicar-se ao ensino: compreendia que em qualquer outra carreira de forma nenhuma poderia acompanhar os colegas (procurava escolhê-los entre a nata e sabia conquistar-lhes as boas graças, chegava mesmo a lisonjeá-los, embora não deixasse de praguejar). No entanto, falando-se, francamente, para tanto faltava-lhe tutano. Autodidata não por amor a ciência, na realidade sabia muito pouco. Fracassou redondamente na defesa de sua tese, enquanto outro estudante, o colega de quarto, do qual sempre caçoava, indivíduo sumamente limitado, mas com o lastro de uma educação acertada e sólida, triunfou cabalmente. O revés tornou Pigássov furioso; lançou ao fogo todos os livros e cadernos e ingressou no funcionalismo público.
A princípio tudo marchou bem: era principalmente um burocrata, não muito eficiente, mas em extremo presunçoso e audaz. No entanto, queria subir o mais depressa possível emaranhou-se, tropeçou e foi forçado a demitir-se. Viveu uns três anos numa aldeola que comprara e súbito viu-se casado com uma proprietária de terras, quase educada que ele conseguira pescar por suas maneiras desembaraçadas e satíricas. No entanto, já se sentia demasiado irritado e azedo; a vida doméstica pesava-lhe como fardo incomodo... A mulher, após viver com ele alguns anos, partiu em segredo para Moscou e vendeu a propriedade a um hábil trapaceiro, sem considerar que o marido recentemente construirá ali uma vila. Profundamente abalado por mais esse golpe, Pigássov deu início a uma ação contra a esposa, porém nada ganhou... Daí em diante manteve-se solteiro; visitava os vizinhos, a quem criticava pelas costas e mesmo face a face; e estes o acolhiam com uma espécie de riso estrangulado, embora receio sério não lhes inspirasse e desde nunca mais se viu um livro em suas mãos. Possuía cerca de cem servos, que não viviam mal.
— Ah, Constantin! — exclamou Dária Mikháilovna logo que Pandaliévski penetrou na sala de visitas. — Alexandrine virá?
— Alexandra Pavlóvna mandou-me agradecer-lhe pelo grande prazer que lhe dá — expressou-se Konstantín Diomíditch inclinando-se amavelmente para todos os lados e tocando os cabelos impecavelmente penteados com a mãozinha gorducha e alva em que se notava o corte triangular das unhas. — Volíntsev também virá?
— Também.
— Então, Afrikán Siemiónitch — continuou Dária Mikháilovna voltando-se para Pigássov, a seu ver todas as moças são sofisticadas?
Os lábios do interpelado franziram-se para um lado e um tremor nervoso percorreu os braços.
— Afirmo — disse em voz arrastada (no auge da raiva falava lentamente e com precisão), afirmo que, em tese, as senhoritas — com exceção, é claro, das que estão presentes...
— Essa circunstância não o impede, porém, de incluí-las — atalhou-o Dária Mikháilovna.
— Calo-me em relação a elas — repetiu Pigássov. — Em geral todas as moças são afetadas no mais alto grau afetadas na manifestação de seus sentimentos. Por exemplo: se uma senhorita se assusta, se algo lhe causa alegria ou tristeza, primeiro e invariavelmente movimentará o corpo numa curvatura refinada e Pigássov projetou o talhe de maneira disforme e estendeu os braços e só depois exclama: oh! e ri ou chora. lima vez, porém, e Pigássov sorriu satisfeito, consegui surpreender as expressões verdadeiras e naturais de uma dama incrivelmente amaneirada!
— Como assim?
Os olhos de Pigássov brilharam.
— Alcancei-a sorrateiramente e golpeei as ilhargas com uma estaca de choupo. Ela pôs-se a gritar, e eu: bravo! bravo! Era a voz da natureza, um grito natural... Aconselho-os a agirem sempre assim!
Todos os presentes riram.
— Que tolices você diz, Afrikán Siemiónitch!! — exclamou Dária Mikháilovna. — Quer que acredite que pretende perseguir as moças com porretes?
— Juro por Deus, com estaca, bem grande, do tamanho das que se empregam nas defesas dos fortes.
— Mais c’est une horreur ce que vous dites la, monsieur — esganiçou Mlles. Boncourt, olhando ameaçadoramente para as crianças, que riam a bandeiras despregadas.
— Não acreditem no que ele diz — observou Dária Mikháilovna.
— Será que não o conhecem?
No entanto, indignada, a francesa não pode conter-se por muito tempo, e continuou resmungando algo entre dentes.
— Talvez não me creiam — continuou a calma voz de Pigássov, mas disse a pura verdade. Quem poderia sabê-lo, senão eu? Assim sendo, é provável que também julguem que esteja mentindo ao afirmar que nossa vizinha Tchepuzova, Helena Antonovna, de moto próprio — notem bem, ela pessoalmente — me contou haver assassinado o próprio sobrinho?
— Ora, que patranha!
— Perdão, perdão! Ouçam até o fim e julguem. Observem que não desejo caluniá-la, até gosto dela, tanto quanto, é claro, se pode gostar de uma mulher; em toda a casa não possui um só livro, e o único objeto que ali há com palavras impressas é um calendário; não sabe ter senão em voz alta e esse exercício fá-la suar; depois se queixa de que seus olhos querem sair das órbitas... Em suma, é uma boa mulher, e suas camareiras estão gordas. Por que razão iria caluniá-la?
— Hum! — exclamou Dária Mikháilovna. — Afrikán Siemiónitch montou no corcel favorito e nele cavalgará até a noite.
— Meu corcel... As mulheres não têm menos de três, dos quais nunca apeiam — ou talvez só o façam quando vão dormir.
— Que três corcéis são esses?
— Censura, insinuação e acusação.
— Sabe de uma coisa, Afrikán Siemiónitch? — observou Dária Mikháilovna. — Não é por acaso que tem tanto ódio as mulheres. lima delas talvez o tenha...
— Ofendido, é o que quer dizer? — atalhou Pigássov.
A anfitriã ficou um pouco desconcertada; lembrou-se do casamento infeliz do interlocutor... e limitou-se a um gesto de cabeça.
— Realmente: uma mulher me magoou — continuou Pigássov baixando a voz.
— Quem é?
— Minha mãe — articulou Pigássov baixando a voz.
— Sua mãe?! Como poderia tê-lo ofendido?
— Por me trazer ao mundo...
A dona da casa carregou o cenho.
— Parece-me — observou — que nossa palestra assume feição desagradável. Constantin, toque-nos um novo estudo de Thalberg. É provável que a música acalme o nosso amigo. Com ela Orfeu domava feras.
Konstantín Diomíditch sentou-se ao piano e tocou um estudo mui satisfatoriamente. A princípio Natália Aleksieievna prestou atenção e depois voltou ao trabalho.
— Merci, c’est charmant — proferiu Dária Mikháilovna. — Gosto de Thalberg. II est si distingué. Em que pensa, Afrikán Siemiónitch?
— Penso — respondeu Pigássov com lentidão — haver três espécies de egoístas: aqueles que vivem e permitem que o próximo viva; os que vivem e não permitem que os demais vivam; afinal, os egoístas que tanto não vivem como não permitem que os demais vivam... A maior parte das mulheres pertencem a terceira categoria.
— Que amabilidade! O que me causa espécie, Afrikán Siemiónitch, é a sua segurança em emitir conceitos; parece infalível.
— Quem o diz! Também eu cometo erros; também o homem pode errar. Sabe, porém, a diferença entre nossos erros e os das mulheres? Não? É esta: um homem pode, por exemplo, afirmar que dois e dois não são quatro, mas cinco ou três e meio; mas a mulher dirá dois e dois são... uma vela de estearina.
Creio que já o ouvi dizer a mesma coisa. Mas, com licença: que relação há entre sua ideia das três espécies de egoístas e a música que acabamos de ouvir?
— Nenhuma. Não prestei atenção a música.
— Ora, pelo que vejo, irmão, és incorrigível; seria melhor que te emendasses” — replicou a anfitriã, desfigurando ligeiramente o verso de Griboiédov. — De que gosta, afinal, já que também a música não lhe causa prazer? De literatura, talvez?
— Gosto de literatura, mas não da moderna.
— Por quê?
— Vou dizer por quê. Recentemente atravessei de barca o Oka com um fidalgo. A embarcação atracou ao pé de uma ladeira: era preciso arrastar as carruagens a muque. O bárin tinha um coche muito pesado. Enquanto os carregadores punham a alma pela boca ao arrastarem O carro para a margem, o fidalgo, de pé na barca, gemia tanto que cheguei a sentir pena dele. Um novo exemplo, pensei, do sistema de divisão do trabalho! Assim acontece com a literatura de hoje: geme enquanto outros mourejam.
Dária Mikháilovna sorriu.
— E a isso se chama retratar a vida moderna! — continuou o incansável Pigássov. — Profunda simpatia pelas questões sociais e ainda... Oh! Essas expressões altissonantes me deixam doente!
— Pois as mulheres, a quem tanto atacas elas pelo menos não usam termos grandiloquentes.
Pigássov encolheu os ombros.
— Não usam porque são ignorantes.
A anfitriã enrubesceu ligeiramente.
— Já começa a tornar-se insolente, Afrikán Siemiónitch! — observou com sorriso contrafeito.
Tudo silenciou no ambiente.
— Onde é Zolotonocha? — indagou súbito um dos meninos a Bassistov.
— Na província de Poltava, meu caro — respondeu Pigássov, bem no coração da Topetolândia2. O (Alegrou-o a possibilidade de mudar de assunto). — Falávamos de literatura — continuou; — se tivesse dinheiro de sobra, tornar-me-ia imediatamente um poeta ucraniano.
— Que ideia é essa? Que bom poeta! — retorquiu Dária Mikháilovna. — Por acaso sabe o idioma ucraniano?
— Nem um pingo; mas não seria necessário.
— Sim?
— Isso mesmo, não seria necessário. Basta tomar de uma folha de papel e escrever em cima “Balada”; depois comece assim: “Oi, minha sina, triste sina minha! Ou: “O cossaco Nalivaiko está sentado no morro”, e então acrescente: “Ao pé de verde colina, grai, grai, vorapai, upa! upa!” ou algo do mesmo gênero. E pronto! Imprima e edite. O ucraniano lerá, ficará de queixo caído e infalivelmente se desmanchará em choro — uma alma tão sensível!
— Que barbaridade! — exclamou Bassistov. — Que está dizendo? Nem tem pé nem cabeça. Vivi na Ucrânia, amo-a e conheço-lhe a língua. Esse grai, grai, voropai é puro absurdo.
— Talvez, mas o fato é que o topete desata na choradeira. Você se refere a língua, mas pode-se afirmar que exista? Certa vez pedi a um topete que me traduzisse esta frase, a primeira que me veio à cabeça: “Gramática é a arte de ler e escrever com acerto”. Traduziu-a assim: Khramatica é a arte de leder e escreber corretamente. A isso você chama língua? Idioma independente? Prefiro ver meu melhor amigo reduzido a pó num pilão que concordar com tal disparate.
Bassistov quis replicar.
— É deixá-lo falar — proferiu Dária Mikháilovna. — Sabe que dele só se ouvem paradoxos.
Pigássov esboçou um sorriso sardônico. Um lacaio surgiu e anunciou a chegada de Alexandra Pavlóvna e do irmão.
A dona da casa levantou-se ao encontro dos recém-chegados.
— Bim-dia, Alexanãrine! — exclamou, aproximando-se dela. — Fez muito bem em vir. Como vai, Sierguiei Pávlitch?
Volinstev apertou a mão de Daria Mikhâilovna e aproximou-se de Natália Aleksieievna.
— Seu novo amigo, o barão, virá hoje? — indagou Pigássov.
— Sim, virá.
— Dizem que é um grande filósofo: pode ombrear com Hegel.
Dária Mikhâilovna nada respondeu, sentou-se Alexandra Pavlóvna no canapé e acomodou-se ao lado dela.
— A Filosofia — continuou Pigássov — é o mais elevado ponto de vista! Esses elevados pontos de vista acabam por me matar. E de cima, o que se pode perceber? É claro que, quando queremos adquirir um cavalo, não vamos examiná-lo do alto de uma torre!
— Esse barão queria mostrar-lhe um artigo, não é? — inquiriu Alexandra Pavlóvna.
— Sim, um artigo — respondeu Dária Mikhâilovna com exagerada indiferença — sobre a relação entre o comércio e a indústria na Rússia. Mas não tenha medo: não pretendemos lê-lo aqui. Não foi para isso que a chamei. Le baron est aussi aimable que savant.3 E fala tão bem o russo! C’est un vrai torrent... il vous entraîne.4
— Fala tão bem o russo — resmungou Pigássov — que merece um elogio em francês.
— Continue a resmungar, Afrikán Siemiónitch, continue. Assenta muito bem a sua guedelha. Mas por que ele não vem? Atenção, messieurs et mesdames — acrescentou, olhando em torno, vamos ao jardim. Até o jantar falta cerca de uma hora, e o tempo está excelente.
Toda a companhia ergue-se e dirigiu-se ao jardim.
O jardim de Dária Mikháilovna alcançava o próprio rio, e nele se viam muitas velhas alamedas de tílias cor de ouro escuro e perfumadas, com clareiras esmeralda pelas extremidades e muitos caramanchões de acácias e lilases.
Acompanhado de Natália e Mlle. Boncurt, Volínstev meteu-se no ponto mais espesso do jardim. Ia ao lado de Natália e mantinha-se em silencio. Mlle. Boncurt os acompanhava a curta distância.
— Que fez hoje? — indagou enfim Volínstev, cofiando as extremidades do belo bigode castanho-escuro.
A moça assemelhava-se muito a irmã pelos traços fisionômicos, porém em sua expressão havia menor mobilidade e menos vida; os olhos, belos e cheios de ternura, tinham um que de melancolia.
— Ora, nada — respondeu Natália. — Ouvi as discussões de Pigássov, bordei e li.
— Leu o que?
— Li... a História das Cruzadas — respondeu Natália com ligeira hesitação.
Volíntsev olhou para ela.
— Ah! — exclamou afinal. — Deve ser interessante!
Arrancou um ramo e pôs-se a girá-lo no ar. Deram
mais uns vinte passos.
— Que barão é esse com quem sua mãe travou conhecimento? — indagou de novo.
— Camarista de Sua Majestade, recém-chegado a estas bandas; maman o elogia muito.
— A senhora sua mãe é bastante atraente.
— O que demonstra que de espírito ainda é muito jovem — observou Natália.
— Sim. Vou trazer-lhe o cavalo. Já está quase domado. Quero ensinar-lhe a partir a galope, e creio que conseguirei.
— Merci. Mas sinto remorsos. Você próprio se esforça por amestrá-lo. Dizem que é muito difícil.
— Você sabe, Natália Aleksieievna, que para lhe dar o menor prazer estou pronto... Eu... e não essas ninharias...
Volíntsev titubeava.
Natália olhou-o amistosamente e repetiu: merci!
— Sabe — continuou Sierguiei Pávlitch ao cabo de longo silencio não haver nada... Porém, para que o dizer? Já está a par de tudo.
Nesse instante na casa ressoou a sineta.
— Ah! la cloche du diner! — exclamou Mlle. Bon-court. — Rentrons!
“Quel dommage” — pensou consigo mesma a velha francesa ao galgar os degraus da escada atrás de Volíntsev e Natália — quel dommage que ce charmant garçon ait si peu de ressources dans la conversation”, o que em russo pode ser traduzido assim; és um moço amável e interessante, mas um pouco curto de inteligência.
O barão não apareceu para o jantar. Esperaram-no meia hora. À mesa a palestra não progredia. Sierguiei Pávlitch limitou-se a olhar para Natália, a cujo lado se encontrava, e a deitar-lhe zelosamente água no copo. Pandaliévski, cauteloso, procurava chamar a atenção da vizinha, Alexandra Pavlóvna; era todo doçura, ao passo que ela quase bocejava.
Bassistov rolava bolinhas feitas de miolo de pão e não retinha o pensamento em coisa alguma; o próprio Pigássov se mantinha calado; e quando Dária Mikháilovna observou que não estava muito amável, respondeu lúgubre:
— Mas quando fico amável? Não é meu ofício... — E, sorrindo irônica e amargamente, acrescentou: — Tenha um pouco de paciência. Sou apenas kvas,5 o Simples kvas russo, enquanto seu camarista...
— Bravo! — exclamou Dária Mikháilovna. — Pigássov está com inveja, inveja antecipada!
No entanto, ele nada respondeu e limitou-se a olhá-la de soslaio.
Soaram sete horas e todos de novo se reuniram na sala de visitas.
— Parece mesmo que não virá — observou Dária Mikháilovna.
Mas ouviu-se o rodar de uma carruagem, um pequeno tarantas penetrou no pátio e ao cabo de alguns instantes o lacaio penetrou na sala de visitas e entregou a anfitriã uma carta sobre uma bandeja de prata. Ela a leu até o fim e, dirigindo-se ao criado, indagou:
— E onde está o senhor que a trouxe?
— Ficou lá fora. Ordena que o faça entrar?
— Sim.
O lacaio saiu.
— Imaginem que desgosto! — proferiu Dária Mikháilovna. — O barão recebeu ordem de voltar imediatamente a Petersburgo. Enviou-me o artigo por intermédio de um amigo, o Sr. Rúdin. O barão desejava apresentar-me, pois o elogia muito. Que maçada! Esperava que o barão ficasse aqui por algum tempo...
— Dmítri Nikoláitch Rúdin — anunciou o lacaio.
Capítulo III
Entrou um homem de cerca de trinta e cinco anos, alto, um tanto curvado, cabelos crespos, moreno, rosto irregular, mas expressivo e inteligente, um brilho baço nos olhos rápidos e azul-escuros, nariz reto e largo e lábios de belos traços. A roupa era usada e apertada, como se tivesse engordado.
Aproximou-se desembaraçadamente de Dária Mikháilovna e, inclinando-se ligeiramente, disse que há muito desejava ter a honra de lhe ser apresentado e que seu amigo, o barão, muito lamentava não ter podido despedir-se pessoalmente.
A voz fina de Rúdin não correspondia a sua estatura e peito amplo.
— Sente-se... muito prazer — proferiu a anfitriã e, após apresentá-lo a todos, indagou se era dali ou forasteiro.
— Minha fazenda está situada na província — respondeu Rúdin mantendo o chapéu sobre os joelhos. — Cheguei aqui recentemente. Vim a negócios e por enquanto estou instalado na capital do distrito.
— Com quem?
— Um médico, velho colega de universidade.
— Ah, o médico! É muito elogiado. Afirma-se que entende do riscado. E conhece o barão de longa data?
— Conheci-o em Moscou no inverno passado e agora passei cerca de uma semana em casa dele.
— É muito inteligente, o barão.
— Não se pode negar.
Dária Mikháilovna cheirou o nó do lenço embebido de água de colônia.
— E funcionário público? — indagou.
— Quem? Eu?
— Sim, o senhor.
— Não. Estou aposentado.
Sobreveio curto silencio. Reatou-se a conversação geral.
— Desculpe-me a curiosidade — disse Pigássov dirigindo-se a Rúdin; conhece o conteúdo do artigo enviado pelo senhor barão?
— Sim.
— O artigo trata das relações entre o comércio... ora, não, entre a indústria e o comércio em nossa Pátria. Não é assim que se expressou, Dária Mikháilovna?
— Sim, o tema é justamente esse — respondeu a dona da casa e chegou a mão a fronte.
— Infelizmente, pouco entendo do assunto — continuou Pigássov, mas devo confessar que o próprio título do trabalho me parece muito... como dizê-lo de modo mais delicado?... sumamente obscuro e confuso.
— Mas por que julga assim?
Pigássov sorriu ironicamente e lançou um olhar fugidio a Dária Mikháilovna.
— E o senhor, acha claro o título? — continuou de novo voltando o rosto de raposa para Rúdin.
— Eu? Sim.
— Hum... Não há dúvida de que sabe o que diz.
— Está com dor de cabeça? — indagou Alexandra Pavlóvna a Dária Mikháilovna.
— Não. Não há nada... C’est nerveux.
— Desculpe-me a curiosidade — ouviu-se de novo a voz fanhosa de Pigássov: — seu amigo, o senhor barão Muffiel... não é esse o nome?
— Perfeitamente.
— O senhor barão Muffiel é especialista em Economia Política, ou dedica a essa interessante ciência as horas de lazer que lhe sobram dos prazeres mundanos e da função pública?
Rúdin olhou atentamente para Pigássov.
— Nesse campo o barão é diletante — respondeu, enrubescendo ligeiramente, mas o artigo contém muitas afirmações justas e curiosas.
— Não posso discutir com o senhor sem conhecer o trabalho..., mas atrevo-me a perguntar: é provável que a obra de seu amigo, o barão Muffiel, mais se atenha a conceitos gerais que a fatos.
— Nela há tantos fatos como conceitos a base de fatos.
— Muito bem, muito bem. Afirmo-lhe que, a meu ver... e posso dizê-lo quando se faz mister: passei três anos em Dorpat... tudo isso que se chama conceitos gerais, hipóteses e sistemas... perdoe-me, sou provinciano, digo a verdade nua e crua... para nada prestam. Não passam de filosofismos — que só servem para deitar poeira nos olhos do próximo. Deem-nos fatos, senhores e basta!
— Francamente! — retrucou Rúdin. — E o sentido dos fatos, deve-se propagá-lo?
— Conceitos gerais — continuou Pigássov. Põem me doente esses conceitos gerais, análises e conclusões!
Tudo se baseia nas chamadas convicções; exigem respeito a elas e se pavoneiam com elas. Com a breca!
E Pigássov sacudiu o punho no ar. Pandaliévski pôs-se a rir.
— Esplendido! — exclamou Rúdin. — Por conseguinte, a seu ver não há convicções?
— Não, não existem.
— Está convencido disso?
— Estou.
— Então como afirma não haver convicções? Para começar. Já é uma.
Todos os presentes sorriram e entreolharam-se.
— Com licença, com licença, mas... — começara Pigássov, porém Dária Mikháilovna bateu palmas, exclamou:
— Bravo, bravo, derrotado Pigássov, derrotado! e de mansinho tirou o chapéu da mão de Rúdin.
— Ainda é cedo para manifestações de júbilo, minhas senhoras: esperem um pouco! — disse Pigássov contrariado. — Não basta fazer, com aparência de superioridade, uma observação aguda: é preciso demonstrar, refutar... Afastamo-nos do ponto em debate.
— Perdão — observou Rúdin com frieza — o problema é muito simples. Não vê utilidade nos conceitos gerais, não crê em convicções...
— Não acredito, não acredito, não creio em coisa alguma!
— Muito bem. É um cético.
— Não vejo necessidade de empregar palavra tão rebuscada. Aliás...
— Não os interrompamos mais! — ordenou Dária Mikháilovna.
“Morda-o, arrase-o, destrua-o” — disse com seus botões Pandaliévski nesse instante e ficou todo jubiloso.
— A palavra expressa meu pensamento — continuou Rúdin. — É do conhecimento de todos; por que então não a usar? Diz não acreditar em nada. Por que então aceita os fatos?
— Porque, como? Essa é boa! Os fatos são coisa assentada, todo mundo sabe o que são... Julgo-os pela experiencia, pelos próprios sentidos.
— E os sentidos não podem enganá-lo? A vista lhe mostra' que o sol gira em torno da terra... ou, talvez, não concorda com Copérnico? Também nele não acredita?
Um sorriso de novo percorreu todos os rostos e os olhos de todos fixaram-se em Rúdin. “Não é nada tolo”, pensou cada um.
— Gosta de pilheriar — observou Pigássov. — Tudo isso é muito original, é verdade, mas não vem ao caso.
— No que disse até agora — replicou Rúdin, infelizmente há muito pouca originalidade. São pontos há muito sabidos e milhares de vezes repisados. A questão é outra...
— E qual será? — indagou Pigássov com certa insolência.
Quando discutia, primeiro caçoava do adversário, depois tornava-se grosseiro e afinal ficava de mau humor e em silencio.
— Vejamos — continuou Rúdin. — Confesso lamentar sinceramente que pessoas inteligentes ataquem, na minha presença...
— Os sistemas? — atalhou-o Pigássov.
— Pois sim, os sistemas, digamos. Por que a palavra o assusta tanto? Todo sistema se baseia no conhecimento de leis fundamentais, dos princípios da vida...
— Mas conhecê-los, descobri-los... ninguém pode, não venha me dizer o contrário!
— Com licença. Não são acessíveis a todos, é claro, e errar é humano. Todavia, provavelmente concordará comigo que, por exemplo. Newton descobriu pelo menos algumas dessas leis básicas. Segundo o consenso, foi um gênio; contudo, as descobertas do gênio são grandes porque se tornam patrimônio de todos. A tendência a descobrir princípios gerais em fenômenos particulares é um dos atributos fundamentais do espírito humano, e toda nossa educação...
— Que voo as nuvens! atalhou-o Pigássov com voz arrastada. — Sou homem prático e não me meto e nem quero meter-me em todas essas sutilezas metafísicas.
— Muito bem! Seja feita a sua vontade. Observe, porém, que seu próprio desejo de ser exclusivamente homem prático já é uma espécie de sistema, de teoria...
— Educação, diz o amigo! — Pigássov de novo interpôs-se. — É com isso que pretende impressionar? Que bem nos faz, a tão elogiada educação! Para mim não vale dez réis de mel coado!
— Que modos de discutir, Afrikán Siemiónitch! — observou Dária Mikháilovna, intimamente mui satisfeita pela calma e polidez refinada do novo personagem. — “C’est un homme comme il faut — pensou, cravando os olhos com atenção benevolente na fisionomia de Rúdin. — Devo tratá-lo bem”. As últimas palavras foram mentalmente pronunciadas em russo.
— Não é meu propósito defender a educação — continuou Rúdin ao cabo de curto silencio, pois não necessita de defesa. Você não a aprecia... e gostos não se discutem. Ao demais, iríamos muito longe. Permita-nos; apenas lembrar-lhe um velho provérbio: “Júpiter, estás
furioso: prova cabal de que tens culpa no cartório”. Só quero dizer que todos esses ataques contra os sistemas, os conceitos gerais etc. — são realmente lamentáveis porque, junto com eles, pretende-se em geral negar o conhecimento, a ciência e a fé nela e, por conseguinte, a fé em nós mesmos, em nossas forças. E os homens necessitam dessa fé: não podem viver só de impressões, é um pecado temer o pensamento e não crer nele. O ceticismo sempre se distinguiu pela esterilidade e pela impotência.
— Palavras, palavras! — tartamudeou Pigássov.
— Talvez. Permita-se, porém, observar que, quando exclamamos “palavras, palavras!”, o mais das vezes estamos desejando nos livrar da necessidade de dizer algo mais útil que meras palavras.
— Como assim? — indagou Pigássov e comprimiu os olhos.
— Entendeu o que quis dizer — replicou Rúdin com impaciência involuntária, porém logo contida. — Repito: se o homem não obedece a princípios sólidos, nos quais acredita, não há base em que possa firmar-se, e como poderá compreender as necessidades, a importância e o futuro de seu povo? Como pode saber que papel ele próprio deve representar, se...
— Concedo-lhe as honras e o lugar! — proferiu Pigássov abruptamente, inclinou-se e afastou-se, sem olhar para ninguém.
Rúdin olhou-o, sorriu ligeira e ironicamente e calou-se.
— Oh! Bateu em retirada! — observou Dária Mikháilovna. — Não se incomode, Dmítri... Perdão — acrescentou com amável sorriso, qual é seu patronímico?
— Nikoláitch.
— Não lhe faça caso, meu caro Dmítri Nikoláitch. Ele não conseguiu enganar a nenhum de nós. Deseja aparentar que não quer mais discutir. Sente que não pode continuar o debate com o senhor. É melhor que o amigo se sente perto de mim, para palestrarmos mais à vontade.
Rúdin aproximou dela a poltrona em que estava sentado.
— Como se explica que até hoje não nos tenhamos conhecido? — continuou Dária Mikháilovna. — Admira-me que assim seja. Leu este livro? C’est de Tocqueville, vous savez?
E a anfitriã estendeu a Rúdin um opúsculo francês.
Rúdin tomou do livrinho, voltou algumas páginas e, colocando-o de novo sobre a mesa, respondeu que, propriamente falando, essa obra do Sr. Tocqueville não lera, mas com frequência pensara na questão que ela aborda. A conversação tomou rumo. A princípio Rúdin pareceu vacilar, não se decidia a manifestar-se, não encontrava palavras, porém afinal animou-se e soltou a língua. Um quarto de hora depois apenas sua voz ressoava no ambiente. Todos haviam formado um círculo em torno dele.
Só Pigássov mantinha-se afastado, a um canto, ao pé da lareira. Rúdin falava com inteligência, fervor e proveito; revelava vastos conhecimentos e muita leitura. Ninguém esperara que fosse tão notável... A roupa adstringia-se tanto a mediania, falava-se tão pouco dele! O fato a todos pareceu incompreensível e estranho: como explicar que surgisse de repente na roça indivíduo tão capaz e inteligente? Mais uma razão para impressionar e, pode-se dizer, encantar a todos, começando por Dária Mikháilovna, que se orgulhava do achado o já estava pensando e introduzi-lo na melhor sociedade. Em suas primeiras impressões havia algo que muito se aproximava da infantilidade, apesar da idade. Para dizer a verdade, Alexandra Pavlóvna pouco entendera do que Rúdin dissera, mas ficara muito surpresa e satisfeita; o irmão também estava impressionado; Pandaliévski observara Dária Mikháilovna e ficara com inveja; Pigássov pensava: “Poderia obter um rouixnol melhor por quinhentos rublos!”
No entanto, eram Bassistov e Natália que estavam mais surpreendidos. Bassistov quase perdera o folego; ficara durante todo o tempo /de boca aberta e olhos esbugalhados — ouvindo-o como jamais ouvira alguém antes, e, quanto a Natália, ruborizara-se, e o olhar, imóvel e fixo em Rúdin, ora tornava-se sombrio, ora brilhava...
— Que belos olhos ele tem! — cochichou-lhe Volíntsev.
— Sim, bonitos.
— É pena que as mãos sejam grandes e vermelhas.
Natália nada respondeu.
Serviram o chá. A palestra tornou-se mais geral, mas já pela espontaneidade com que todos se calavam logo que Rúdin abria a boca se podia julgar do vigor da impressão por ele causada. Súbito a dona da casa quis caçoar de Pigássov. Aproximou-se dele e disse a meia voz:
— Por que está calado e se limita a sorrir com sarcasmo? Tente batalhar com ele de novo — e, sem esperar resposta, chamou Rúdin com um gesto de mão.
— Ainda não sabe um particular a respeito dele — disse-lhe ela, apontando para Pigássov: — odeia profundamente as mulheres e não para de atacá-las; queira reconduzi-lo ao caminho da verdade.
Rúdin olhou para Pigássov — com desdém involuntário: era bem mais alto que ele, que quase estremeceu de raiva e cujo rosto bilioso empalideceu.
— A ilustre anfitriã se engana — disse em tom inseguro: — não ataco só as mulheres: o fato é que não aprecio muito o gênero humano.
— O que o levou a uma opinião tão desfavorável? Indagou Rúdin.
— Pigássov cravou-lhe diretamente os olhos.
— Provavelmente o estudo do próprio coração, em que cada dia descubro mais e mais lixo. Julgo os demais por mim mesmo. Talvez seja injusto, porque sou muito pior que os outros; mas, que fazer? O hábito!
— Entendo-o e tenho dó do senhor — disse Rúdin. — Que alma nobre não sentiu a sede de humilhar-se? Mas não deve deter-se numa situação tão crítica.
— Agradeço humildemente o atestado de nobreza que concede a minha alma — replicou Pigássov — e, quanto a minha situação, é satisfatória, tanto que, se houver possibilidade de me descartar dela — Deus me livre! — não serei eu quem irá procurá-la.
— Isso quer dizer, porém — perdoe-me a expressão — que prefere a satisfação do amor-próprio ao desejo de ser sincero e viver na verdade...
— Naturalmente! — exclamou Pigássov. — Amor-próprio é algo que eu e, espero, o senhor e os demais — entendo; mas a verdade — que coisa é? Onde está?
— Está-se repetindo, previno-o — observou Dária Mikháilovna.
Pigássov deu de ombros:
— Que importância tem? Pergunto: onde está a verdade? Nem os filósofos sabem defini-la. Kant afirma; isto é a verdade; Hegel diz: não, mentes, é aquilo.
— E sabe o que a respeito dela disse Hegel? — indagou Rúdin sem erguer a voz.
— Repito — continuou Pigássov, excitado — que não posso entender o que seja a verdade. A meu ver, simplesmente não existe, isto é, há a palavra, mas não a própria coisa.
— Que vergonha! — exclamou Dária Mikháilovna. — Não se sente vexado de dizer tal barbaridade, velho pecador? A verdade não existe? Se assim for, que sentido tem a vida?
— O que realmente penso, Dária Mikháilovna — replicou Pigássov contrariado — é que, em todo caso, lhe seria mais fácil viver sem a verdade que sem seu cozinheiro Stiepán, tão perito em fazer sopas! E para que lhe serve a verdade, diga, por favor? Com ela não pode fazer uma touca!
— Pilhéria não é argumento — observou a interlocutora, principalmente quando cheira a calúnia...
— Nada sei da verdade filosófica, mas percebo que uma verdade simples nem sempre é tragável — resmungou Pigássov e, colérico, afastou-se.
Rúdin entrou a falar do orgulho, e com muita pertinência. Demonstrou que, sem o orgulho, o homem nada significa, que o orgulho é a alavanca de Arquimedes com que se pode deslocar a Terra, mas que, ao mesmo tempo, só merece o título de homem aquele que sabe dominar o próprio orgulho, como o cavalheiro o corcel, quem se sacrifica pelo bem comum.
— O egoísmo — assim concluiu — é o suicídio. O egoísta seca qual árvore isolada e estéril; por outro lado, o orgulho, como tendência ativa a perfeição, é a origem de tudo o que é grande. Sim! O homem deve vencer o egoísmo tenaz de sua personalidade a fim de lhe dar o direito de manifestar-se!
— Pode arranjar-me um lápis? — dirigiu-se Pigássov a Bassistov.
Este não entendeu logo o que lhe pedia aquele.
— Lápis, para que? — indagou afinal.
— Quero tomar nota da última frase do sr. Rúdin. Se não o fizer, será esquecida. E, sinceramente, tal frase equivale a um trunfo no momento decisivo do jogo.
— Há coisas que não se devem ridicularizar e que não podem ser objeto de pilhérias, Afrikán Siemiónitch! É um pecado! — proferiu Bassistov indignado, e se afastou de Pigássov.
Nos entrementes Rúdin aproximava-se de Natália. A moça ergueu-se, seu rosto revelava embaraço.
Volíntsev, que estava sentado ao lado dela, também se ergueu.
— Vejo um piano — disse Rúdin com a suavidade e a ternura de um príncipe viajante; — toca?
— Sim — respondeu Natália, mas não muito bem. Konstantin Diomíditch toca muito melhor que eu.
Pandaliévski adiantou o rosto e mostrou os dentes num sorriso amplo e alvar.
— É muita modéstia, Natália Aleksieievna: toca tão bem quanto eu.
— Conhece Erlkönig, de Schubert? — indagou Rúdin.
— Ora, se conhece! — interpôs-se Dária Mikháilovna. — Sente-se, Constantin. E gosta de música, Dmítri Nikoláitch?
Rúdin limitou-se a inclinar ligeiramente a cabeça e passou a mão pelos cabelos, como a preparar-se para ouvir. Pandaliévski começou a tocar.
Natália estava ao pé do piano, bem defronte de Rúdin, cuja fisionomia adquiriu expressão radiante logo
ao primeiro som. Seus olhos azul-escuros erravam lentos e fugidios, de quando em quando detendo-se em Natália. Pandaliévski terminou.
Rúdin nada disse e aproximou-se da janela aberta. lima névoa perfumada estendia um véu macio sobre o jardim; uma fresquidão emanava lentamente das árvores próximas. As estreias tremeluziam suavemente. A noite era doce e inspirava ternura. Rúdin olhou para o escuro jardim e voltou-se.
Esta música e esta noite — observou — me lembram meus tempos de estudante na Alemanha: as reuniões, as serenatas...
— E esteve na Alemanha? — perguntou Dária Mikháilovna.
— Passei um ano em Heidelberg e cerca de outro em Berlim.
— E vestia-se como estudante? Afirma-se que lá se vestem de maneira especial.
— Em Heidelberg usava botas grandes com esporas e jaqueta de bussardo húngaro com atacadores, os cabelos compridos, até os ombros. Em Berlim os estudantes se vestem como todo o mundo.
— Conte-nos alguma coisa de sua vida de estudante — pediu Alexandra Pavlóvna.
Rúdin atendeu-lhe a solicitação, mas não narrava com muito êxito. Faltavam-lhe cores as descrições, e não sabia imprimir graça ao relato. Aliás, de suas aventuras no estrangeiro passou logo a afirmações gerais a respeito da importância da educação e da ciência, das universidades e da vida universitária em geral. A traços amplos e ousados pintou um vasto quadro. Todos o ouviam com profunda atenção... Falava com mestria, de modo empolgante, porém sem clareza cem-por-cento..., mas essa
mesma ambiguidade emprestava-lhe encanto particular a fala.
A abundância de pensamentos impedia que se expressasse com justeza e precisão. Imagens substituíam-se por imagens; metáforas, ora inesperadamente ousadas, ora de uma fidelidade impressionante, decorriam uma da outra. Não era o preciosismo cheio de autossuficiência do orador experiente, pois o improviso impaciente revelava inspiração. Não procurava as palavras: de si mesmas, obedientes e livremente, afloravam-lhe aos lábios, e tinha-se a impressão de que cada uma delas lhe brotava do fundo d’alma, ferventes de todo o fogo da convicção. Rúdin era mestre do que talvez seja o maior dos mistérios a música da eloquência. Tocando apenas as fibras do coração, sabia obrigar todas as demais a ressoar e a vibrar imprecisamente. É possível que algum dos ouvintes não percebesse a sutileza do discurso, mas o peito erguia alto, telas o desdobravam-se dos olhos e algo radiante brilhava a vista.
Todos os pensamentos de Rúdin pareciam encarar o futuro, o que os tornava impetuosos e juvenis... Ao pé da janela, sem olhar para ninguém em especial, falava e, inspirado pela simpatia e atenção gerais, pela proximidade de mulheres jovens, pelos encantos da noite, arrebatado pela caudal das próprias sensações, alçava-se aos paramos da eloquência e da poesia. O próprio som da voz, concentrada e suave, aumentava a fascinação; parecia que algum poder supremo, que a ele próprio surpreendia, falava-lhe através dos lábios... Rúdin tecia considerações a respeito daquilo que infunde significação eterna a breve vida humana.
— Lembro-me de uma lenda escandinava — terminou acompanhado de seus soldados, um rei está sentado em torno de uma fogueira num galpão escuro e longo. É uma noite de inverno. Súbito um passarinho penetra voando pela porta aberta e sai da mesma forma pela outra. O rei observa que o pássaro era como o homem no mundo: saíra da escuridão e voara para a escuridão, e um rápido instante banhara-se de calor e de luz.
— ó rei — replica o mais velho dos guerreiros, nem nas trevas o pássaro se perde e ali mesmo sabe tecer o ninho. Com efeito: nossa vida é rápida e insignificante, mas tudo o que é grande se realiza através do homem. A consciência de ser instrumento dessas forças superiores deve substituir-lhe todas as demais alegrias: na própria morte encontra a vida, o ninho...
Rúdin deteve-se e baixou os olhos com um sorriso de acanhamento involuntário.
— Vous etes un poete — disse Dária Mikháilovna a meia voz.
E todos com ela concordaram intimamente — todos, menos Pigássov, que, sem esperar o fim do longo discurso de Rúdin, calmamente tomou do chapéu e, ao sair, balbuciou colérico para Pandaliévski, que estava de pé perto da porta:
— Chega! Vou procurar a companhia de imbecis!
Aliás, ninguém o reteve e nem notou sua ausência.
Os criados trouxeram a ceia e, meia hora depois,
todos se dispersaram, a pé ou de carruagem. Dária Mikháilovna persuadiu Rúdin a pernoitar ali. De volta com o irmão a casa, Alexandra Pavlóvna manifestou, através de muitas exclamações, sua admiração pela extraordinária inteligência de Rúdin. Volíntsev concordou com ela, observando, porém, que as vezes ele se expressa um tanto obscuramente... isto é, não de todo inteligível.
Acrescentou desejando, provavelmente, esclarecer seu pensamento, mas tornou-se carrancudo, e o olhar, fixo num canto do carro, pareceu ainda mais lúgubre.
Preparando-se para dormir e tirando os suspensórios bordados de seda, Pandaliévski disse em voz alta:
— Muito hábil, o sr. Rúdin! e de chofre, olhando. severamente para o camarista, ordenou-lhe que saísse.
Bassistov passou toda a noite sem dormir e sem se despir: até de manhã ficara escrevendo uma carta a um amigo de Moscou; quanto a Natália, embora despida e deitada no leito, nem um minuto sequer conseguiu conciliar o sono e fechar os olhos. A cabeça apoiada na mão, a vista fixa na escuridão, as veias pulsavam-lhe febrilmente e um profundo suspiro com frequência erguia o peito.
Capítulo IV
Na manhã seguinte Rúdin mal acabara de se vestir e já um criado o procurava para dizer-lhe que Dária Mikháilovna o convidava para tomar chá em seu gabinete. Rúdin encontrou-a só. Ela cumprimentou-o mui amavelmente, indagou se passara bem a noite, serviu-lhe chá com as próprias mãos, chegou a perguntar se era bastante a quantidade de açúcar, ofereceu-lhe um cigarro e repetiu umas duas vezes sua admiração por não o ter conhecido há mais tempo. Rúdin ia sentar-se um pouco a distância, mas a anfitriã apontou-lhe um sofá perto da poltrona, e, ligeiramente inclinada para ele, começou a perguntar-lhe a respeito da família, de seus planos e propósitos. A dona da casa falava com indiferença e ouvia distraidamente, mas Rúdin compreendia muito bem que ela o cortejava e quase o bajulava. Não por acaso marcara aquele encontro matinal, propositalmente vestira-se com simplicidade, porém com elegância, a la Madame Récamier! Aliás, logo deixou de fazer perguntas: começou a falar de si mesma, de sua juventude e das pessoas que conhecera. Rúdin com interesse ouvia-lhe a tagarelice, embora — que estranho! Qualquer que fosse a pessoa a que Dária Mikháliovna se referisse, em primeiro plano ficava ela, só ela, ao passo que a outra parecia recuar e desaparecer.
Em compensação, Rúdin ficou sabendo, em detalhe, o que precisamente ela dissera a tal ou tal dignitário famoso, e que influência exercera sobre tal ou tal poeta famoso. A se julgar por suas palavras, poder-se-ia imaginar que todas as celebridades do último quarto de século só almejavam vê-la e merecer-lhe as boas graças. Falava delas com simplicidade, sem entusiasmo ou elogio particular, como se tratasse de familiares, e a alguns cognominava de excêntricos. Assim discorria e, qual rica moldura em tomo de joia, seus nomes eram uma coroa de brilhantes a envolver o nome principal o de Dária Mikháilovna!
E Rúdin a ouvia, e fumava o cigarro e se mantinha em silencio, só de quando em quando interrompendo com pequenas observações a declamação da loquaz barínia. Ele sabia falar e gostava de falar; ignorava a arte de manter um diálogo, mas sabia ouvir. Todo aquele a quem não impressionasse logo de início, tornava-se confiante em sua presença, tão ao gosto e aprobativamente acompanhava o fio da palavra alheia. Nele havia muito de singeleza, da bonomia particular que distingue os indivíduos habituados a se sentirem acima dos demais. Quando falava raramente permitia que o adversário se manifestasse, e o esmagava com sua dialética impetuosa e cheia de paixão.
Dária Mikháilovna falava em russo. Gabava-se de conhecer a língua pátria, embora seu verbo abundasse em galicismos e palavras francesas. De propósito usava simples maneira de dizer do povo, mas nem sempre com acerto. O ouvido de Rúdin não se ofendia com essa estranha mistura de vocábulos, e talvez nem lhe desse atenção.
A anfitriã afinal se cansou e, reclinando a cabeça na almofada traseira da poltrona, cravou os olhos em Rúdin e fez silencio.
— Agora percebo — começou ele com lentidão, percebo por que passa todos os verões no campo. Esse repouso lhe é indispensável; a calma da roça, após uma temporada na capital, refresca-a e a fortalece. Estou certo de que deve sentir profundamente as belezas naturais.
Dária Mikháilovna olhou de esguelha para Rúdin.
— A natureza... sim... sim, é claro... sou louca por ela; mas... sabe de uma particularidade, Dmítri Nikoláitch? Nem na aldeia dispenso a boa sociedade. E aqui quase ninguém há. Pigássov é o mais inteligente destas bandas.
— O velho zangado de ontem? — indagou Rúdin.
— Sim, o mesmo. Para o campo, aliás, serve — pelo menos as vezes diverte.
— Não é nada tolo — replicou Rúdin, mas está em caminho falso. Não sei se compartilha de minha opinião, Dária Mikháilovna, mas a negação a negação pura e simples — é estéril. Negue tudo, e pode com facilidade passar por inteligente: é um ardil conhecido. Os simples chegam logo a conclusão de que estamos acima daquilo que negamos, o que com frequência não é verdade. Em primeiro lugar, em tudo se pode encontrar manchas, e, em segundo, se temos razão, tanto pior; nosso espírito, voltado só para a negação, empobrece e seca. Ao satisfazer nosso orgulho, privamo-nos dos prazeres reais da compreensão; a vida a essência da vida — foge a nossa mesquinha e biliosa capacidade de observar, e acabamos nas ofensas e no ridículo. Só aquele que ama tem o direito de criticar e de censurar.
— Voila Mr. Pigassoff enterré6 — proferiu Dária Mikáilovna. — Que mestre em definir o próximo! É provável, aliás, que ele não o entenda. E, quanto a amar, só ama a si mesmo.
— E a censura para ter o direito de criticar os outros — observou Rúdin.
Dária Mikháilovna desatou a rir.
— É rir... como se diz?... o roto do esfarrapado. A propósito: que pensa do barão?
— O barão? Boa pessoa, coração bom, e instruído..., mas não tem força de vontade... e durante toda a vida será meio-sábio e meio-mundano, um diletante, isto é, falando sem subterfúgios — uma nulidade! Que pena!
— Sou da mesma opinião — concordou Dária Mikháilovna. — Li o artigo Entre nous... cela a assez peu de fond!
— Quais são os outros vizinhos? — inquiriu Rúdin após curto silencio.
Dária Mikháilovna sacudiu com o mindinho a cinza do cigarro.
— Quase não há ninguém mais. Alexandra Pavlóvna Lipina, a quem ontem você viu: muito amável — mas apenas isso. O irmão é também pessoa excelente, un parfait honnete homme. Já conhece o príncipe Gárin. É tudo. Há ainda dois ou três, porém nada representam. Assumem atitudes afetadas — presunção e água benta... cada qual toma a que quer — ou evitam companhias ou então revelam um desembaraço sem propósito. Quanto as senhoras, não me dou com elas, como sabe. Há outro vizinho, muito educado, segundo dizem, mesmo sábio, porém cheio de manias, um visionário. Alexandrine O conhece e, ao que parece, não lhe é indiferente... lima ideia: seria bom que se ocupasse dela, Dmítri Nikoláitch: é uma criatura muito gentil; só é preciso desenvolvê-la um pouco, o que lhe faria muito bem!
— É muito simpática — observou Rúdin.
— Muito infantil, Dmítri Nikoláitch, verdadeira criança. Era casada, mais c’est tout comme... Se fosse homem, só gostaria de mulheres desse tipo.
— Deveras?
— Juro. Essas mulheres, pelo menos, estão na aurora da vida, o que é incompatível com a hipocrisia.
— E quanto a tudo o mais, há compatibilidade? — perguntou Rúdin e pôs-se a rir, o que lhe acontecia muito raramente. Quando ria seu rosto assumia expressão estranha, quase senil, os olhos contraíam-se, o nariz enrugava-se...
— E quem é esse visionário, conforme se expressa, em relação a quem a sra. Lipina não é indiferente? — indagou.
— Um tal de Mikháilo Mikhaílitch, proprietário de terras.
Rúdin ficou atônito e ergueu a cabeça.
— Mikhaílo Mikhaílitch Lejniev? — perguntou. — É seu vizinho?
— Sim. Conhece-o?
Rúdin silenciou por um instante.
— Conhecia-o antes... há muito tempo. É rico, não é? — acrescentou, beliscando o revestimento da poltrona.
— Sim, rico, embora se vista horrivelmente e use aranha de corrida, como um ecônomo qualquer. Desejaria atraí-lo a minha casa; é inteligente, segundo se
afirma; além disso, tenho um negócio a tratar com ele. Como sabe, eu própria administro minha propriedade.
Rúdin inclinou a cabeça.
— Sim, eu mesma — continuou Dária Mikháilovna. — Não adoto nenhuma dessas tolices estrangeiras e me mantenho fiel aos nossos costumes russos e, como vê, as coisas não vão mal — acrescentou com um gesto que abrangia tudo era torno.
— Sempre estive convicto — observou Rúdin respeitosamente — da profunda injustiça daqueles que as mulheres negam senso prático.
Dária Mikháilovna sorriu satisfeita.
— É muito amável — observou. — Mas que queria eu dizer? De quem falávamos? Oh! de Lejniev. Tenho a resolver com ele o problema da demarcação das propriedades. Várias vezes convidei-o a vir aqui, e mesmo hoje o espero; porém ele, só Deus sabe por que, se recusa a comparecer... um maníaco!
A cortina da porta abriu-se suavemente e surgiu o mordomo, de elevada estatura grisalho e calvo, fraque preto, gravata e colete brancos.
— Que desejas? — perguntou Dária Mikháilovna e, dirigindo-se ligeiramente a Rúdin, acrescentou a meia voz: n’est-ce pas, comme u ressemble a Canning?
— Mikhaílo Mikhaílitch Lejniev está aqui — informou o mordomo. — Ordena que entre?
— Ah, santo Deus! — exclamou a dona da casa. — Basta falar no demônio... Que entre!
O mordomo saiu.
— O extravagante afinal chegou, e não no momento oportuno: interrompeu nossa palestra.
Rúdin ergueu-se, mas Dária Mikháilovna o deteve.:
— Aonde vai? Podemos falar na sua presença. Desejo que o defina, como fez com Pigássov. Quando você fala, vous gravez comme avec un burin. Fique.
Rúdin ia dizer algo, porém pensou um instante e ficou.
Mikhaílo Mikhaílitch, já conhecido do leitor, penetrou no gabinete. Trajava o mesmo sobretudo cinza e nas mãos tisnadas pelo sol segurava o mesmo boné velho. Inclinou-se calmamente para Dária Mikháilovna e aproximou-se da mesa de chá.
— Afinal dá-nos a honra de sua visita, mecie Lejniev! — disse Dária Mikháilovna. — Tenha a bondade de sentar-se. Creio que já se conhecem continuou apontando para Rúdin.
Lejniev olhou para Rúdin e sorriu de maneira um pouco estranha.
— Conheço o sr. Rúdin — proferiu numa ligeira reverencia.
— Frequentamos juntos a universidade — observou Rúdin a meia voz e baixou os olhos.
— Também depois nos encontramos — observou Lejniev com frieza.
Dária Mikháilovna olhou com certo espanto para ambos e pediu que Lejniev se sentasse, o que ele fez.
— Manifestou o desejo de ver-me — disse, é a respeito da demarcação das terras?
— Sim, mas também desejava vê-lo. Somos vizinhos próximos e quase parentes.
— Muito grato — respondeu Lejniev. — Quanto a demarcação das terras, encerrei o assunto com seu administrador: concordei com todas as suas propostas.
— Sei disso.
— Ele me disse, porém, que os papéis só poderão ser assinados após uma entrevista com a senhora.
— Sim; é uma praxe que estabeleci. A propósito, permita perguntar-lhe; todos os seus servos pagam renda, não é?
— Exatamente.
— E você mesmo se dá ao trabalho de cuidar dos limites da propriedade? Merece elogios.
Lejniev silenciou por um instante.
— Pois bem, aqui estou para a entrevista pessoal — disse.
Dária Mikháilovna sorriu ironicamente.
— Percebo que sim. Fala num tom... talvez tenha resistido muito a vir visitar-me.
— Não frequento ninguém — retrucou Lejniev fleumaticamente.
— Ninguém? E que me diz de Alexandra Pavlóvna?
— Há muito conheço o irmão dela.
— O irmão! Aliás, não pretendo forçar ninguém..., no entanto, perdoe-me, Mikhaílo Mikháilovitch; sou vários anos mais velha que você e posso censurá-lo: que prazer é esse de viver vida de casmurro? Ou é minha casa que não lhe agrada? Não lhe sou simpática?
— Não a conheço, Dária Mikáilovna, e por isso não há motivo que me faça desapreciá-la. A casa é excelente; contudo, confesso com franqueza, não gosto de incomodar-me. Não tenho uma casa apresentável; luvas, também não; o fato, é que não pertenço a sua sociedade.
— Pela origem e pela educação, sim, Mikhaílo Mikhaílitchi Vous etes desnotrês.
— A origem e a educação nada tem a ver com o caso, Dária Mikháilovna! Não se trata disso...
— O homem é um ser social, Mikhaílo Mikhaílitch! Que capricho é esse de viver como Diógenes no tonel?
— Em primeiro lugar, ele se sentia muito bem e, em segundo, por que afirma que fujo ao convívio humano?
Dária Mikháilovna mordeu os lábios e observou:
— Seja feita a sua vontade! Só me resta lamentar que não mereça a honra de estar incluída no número das pessoas que o amigo frequenta.
— Mecie Lejniev — interpôs-se Rúdin, acho que está exagerando uma qualidade bastante louvável — o amor a liberdade.
Lejniev nada respondeu e limitou-se a olhar para Rúdin. Sobreveio curto silencio.
— Creio — disse Lejniev, erguendo-se — que posso considerar nosso negócio fechado e dizer ao administrador que me mande os papéis.
— Pode... embora eu reconheça que não seja muito amável. Deveria dizer que não.
— Ora, a demarcação lhe é mais vantajosa que a mim.
Dária Mikháilovna deu de ombros.
— Nem mesmo deseja almoçar conosco? — perguntou.
— Agradeço-lhe do mais fundo do coração; nunca almoço e, ao demais, estou com pressa.
Dária Mikháilovna ergueu-se.
— Não o retenho — disse, aproximando-se da janela. — Não ouso retê-lo. Lejniev começou a despedir-se.
— Adeus, mecie Lejniev! Desculpe-me havê-lo incomodado.
— Ora, não diga isso — replicou Lejniev e retirou-se.
— Que tal? — perguntou Dária Mikháilovna a Rúdin. — Ouvi dizer que ele é um excêntrico, mas creio que ultrapassa os limites!
— Sofre a mesma doença de Pigássov — observou Rúdin: — o desejo de ser original. O outro pretende ser Mefistófeles, e este — cínico. Em tudo isso há muito egoísmo, muito orgulho e pouco de realidade, de amor. São, com efeito, atitudes calculadas: o indivíduo se afivela a máscara da indiferença e da indolência para que alguém pense: quanto talento perdido! Todavia, se olharmos mais de perto, não veremos nenhum talento.
— Et de deux! — proferiu Dária Mikháilovna. — É um, perito em analisar a psicologia do próximo. Nada lhe escapa.
— Acha? — indagou Rúdin. — Aliás, realmente não devia falar de Lejniev; gostei dele, e muito, como amigo..., mas depois, em virtude de vários mal entendidos...
— Brigaram?
— Não, mas separamo-nos, e creio que para sempre.
— Então é por isso que durante sua visita você não se sentia à vontade. Fico-lhe profundamente grata pela excelente manhã que me proporcionou, mas chegou o momento de cuidar de outros assuntos. Deixo-o livre até o almoço, pois tenho agora de tratar das questões relativas a administração da fazenda. Talvez já esteja me esperando meu secretário: Constantin, o senhor o viu, c’est lui qui est mon secrétaire. Recomendo-o ao amigo: é um moço excelente, muito prestativo, e ficou entusiasmado com você. Até logo, cher Dmítri Nikoláitch! Que agradecida estou ao barão por nos fazer travar conhecimento!
E Dária Mikháilovna estendeu a mão a Rúdin, que primeiro a apertou, depois a levou aos lábios e dirigiu-se ao salão, e dali ao terraço, onde encontrou Natália.
Capítulo V
Natália Aleksieivna, filha de Dária Mikháilovna, à primeira vista poderia não agradar. Ainda não se desenvolvera plenamente, era magra, morena, mantinha-se um pouco curvada. No entanto, os traços fisionômicos eram graciosos e corretos, embora demasiado grandes para uma moça de dezessete anos. Particularmente bela era a fronte, que se estendia lisa e igual sobre supercílios finos, que pareciam partidos ao meio. Falava pouco, ouvia e olhava com atenção, quase fixamente — dando a impressão de que procurava tudo entender. Com frequência conservava-se imóvel, braços pendentes e pensativa; em seu rosto expressava-se então o trabalho íntimo da mente... Um sorriso mal perceptível surgia-lhe súbito nos lábios e desaparecia ao mesmo instante; os olhos grandes e negros erguiam-se mansos...
— Qu’avez vous? — perguntava-lhe Mlle. Boncourt e começava a censurá-la, afirmando não ser conveniente que uma donzela pareça pensativa e abstrata. Mas Natália não era distraída: ao contrário, estudava com aplicação, lia e trabalhava com prazer. Seus sentimentos eram profundos e vigorosos, porém ocultos; mesmo na infância raramente chorava, e agora suspirava pouco, e só empalidecia ligeiramente quando algo a entristecia. A mãe considerava-a menina de bons costumes e sensata, por brincadeira chamava-a: mon honnete homme de filie, porém não tinha opinião elevada a respeito de sua capacidade mental.
— Minha Natácha felizmente é fria — costumava dizer. — Não saiu a mim... Tanto melhor. Será feliz.
Dária Mikháilovna enganava-se. Aliás, é rara a mãe que compreenda a própria filha. Apesar do amor filial, Natália não lhe confiava todos os seus sentimentos.
— Nada tens a ocultar-me — disse-lhe de uma feita a mãe, pois do contrário recorrerias a astúcia: és tão reservada...
Natália cravou os olhos na mãe e pensou; “E que mal há em ser reservada?”
No momento em que Rúdin penetrou no terraço, ela e Mlle. Boncourt se dirigiam ao quarto a fim de pôr o chapéu para irem ao jardim. As aulas matinais haviam terminado. Já não tratavam Natália como criança, e Mlle. Boncourt há muito não lhe dava lições de mitologia e de geografia; contudo, Natália devia, todas as manhãs e na sua presença, ler livros de história, de viagens e outras obras edificantes. Quem as escolhia era a mãe, que, segundo constava, se atinha a um sistema que ela própria ideara. Na realidade, limitava-se a encaminhar a filha tudo o que lhe enviava um livreiro francês de Petersburgo, com exceção, é claro, dos romances de Dumas Filho & Cia., obras que ela mesma lia. Com ar em que transparecia muita severidade e azedume, Mlle. Boncourt, através dos óculos, fitava Natália, quando esta lia livros de história: segundo a velha francesa, toda a história estava cheia de impropriedades, embora, não se sabe por que, dos grandes homens da antiguidade ela só conhecesse Cambyses e, entre os modernos, Luiz XIV e Napoleão, a quem odiava. E Natália também lia livros de cuja existência ela nem suspeitava: conhecia de cor todo o Puchkin...
A moça enrubesceu ligeiramente ao ver Rúdin.
— Vai passear? — perguntou ele.
— Sim. Vamos ao jardim.
— Posso ir com vocês?
Natália olhou para Mlle. Boncourt.
— Mais certainement, monsieur, avec plaisir apressou-se a responder a velha solteirona.
Rúdin tomou do chapéu e acompanhou-as.
A princípio Natália ficou embaraçada ao andar ao lado de Rúdin por um estreito caminho, mas depois sentiu-se um pouco mais à vontade. Ele entrou a indagar a respeito de seus estudos e se gostava da vida na roça. Ela respondia com timidez, mas sem o acanhamento apressado que com tanta frequência é tido e aceito como modéstia. O coração palpitava-lhe mais rápido que de costume.
— Não sente tédio na aldeia? — indagou Rúdin, envolvendo-a com um olhar de soslaio.
— É possível que se sinta? Estou muito contente por viver aqui. Sinto-me muito feliz.
— É feliz... lima grande afirmação. Aliás, compreende-se: é jovem.
Rúdin disse a última palavra de maneira um tanto estranha: não se poderia concluir que tivesse inveja ou pena da moça.
— Ó, a mocidade! — acrescentou. — Todo o objetivo da ciência é alcançar conscientemente aquilo que a juventude possui de graça.
Natália olhou atentamente para Rúdin: não o compreendera.
— Passei toda a manhã a palestrar com sua mãe — continuou ele. — É uma mulher extraordinária. Agora vejo que por todos os nossos poetas apreciavam a amizade.
— Você gosta de poesia? —' acrescentou, ao cabo de um instante de silencio.
“Está me examinando” — pensou Natália e respondeu:
— Sim, muito.
— A poesia é a linguagem dos deuses. Eu mesmo gosto de versos, mas não só neles encontramos poesia; está em toda a parte, em torno de nós... Olhe para estas árvores, para este céu... em tudo há beleza e vida, e onde estas estão também há poesia.
— Sentemo-nos aqui, neste banco — continuou.
— Assim. Tenho a impressão de que, quando se acostumar comigo (e sorrindo, fixou os olhos no rosto da moça) seremos bons amigos. Que acha?
“Trata-me como se eu fosse menina inexperiente” — pensou de novo Natália e, sem saber o que responder, perguntou-lhe se pretendia permanecer muito tempo na aldeia.
— Todo o verão, o outono e, talvez, também o inverno. Como sabe, não sou rico; meus negócios estão em estado lastimável além disso já estou cansado de perambular de um sítio para outro. É tempo de descansar.
Natália tornou-se pensativa.
— Julga sinceramente que já lhe chegou a hora de repousar? — indagou timidamente.
Rúdin voltou para ela o rosto.
— Que quer dizer?
— Quero dizer — replicou um tanto perturbada — que outros podem descansar, mas você... você deve trabalhar, deve esforçar-se por ser útil. Que outro, a não ser você...
— Agradeço-lhe a lisonjeira opinião — atalhou-a Rúdin. — Ser útil... É fácil dizer! (Passou a mão pelo rosto). Ser útil! — repetiu. — Se pelo menos eu tivesse convicção firme da maneira de ser útil — no caso de depositar confiança em minhas próprias forças — onde encontrar almas amigas e sinceras?
E Rúdin agitou os braços com tal desesperança e tão triste baixou a cabeça, que involuntariamente a moça perguntou a si mesma se teriam de fato sido dele as palavras entusiastas e cheias de esperança que ouvira na véspera.
— Aliás, não — acrescentou ele, sacudindo de chofre os cabelos leoninos. — É absurdo, e você tem razão. Agradeço-lhe, Natália Aleksieievna, agradeço-lhe com sinceridade. (Natália decididamente não sabia o motivo do agradecimento). Suas poucas palavras lembraram-me o dever, apontaram-me o caminho... Sim, devo agir. Não devo ocultar meu talento, se de fato o tenho; não devo dissipar minhas energias apenas em tagarelice vã inútil, só em palavras...
E seu verbo espraiou-se como rio caudaloso. Falou com beleza, fervor e convicção sobre a vergonha da covardia e da preguiça, sobre a necessidade da ação prática. Derramou-se em censuras contra si mesmo, demonstrou que argumentar de antemão a respeito do que queremos fazer é tão prejudicial quanto picar com alfinete um fruto na maturação, que se trata apenas de uma perda vã de forças e de suco. Afirmou não haver um pensamento nobre que não encontre simpatia e que incompreendidos ficam apenas aqueles que não sabem o que querem ou não merecem que sejam entendidos.
Falou muito e terminou por agradecer-lhe uma vez mais, e de modo inteiramente inesperado apertou-lhe a mão, dizendo:
— É uma bela e nobre criatura!
Essas maneiras livres impressionaram Mlle. Boncourt que, apesar de seus quarenta anos de permanência na Rússia, dificilmente entendia o russo e estava admirada com a beleza, rapidez e fluência da palavra nos lábios de Rúdin. Aliás, a seu ver ele era uma espécie de virtuose ou de artista; de tais pessoas, segundo ela, não se poderia esperar que observassem as regras do bom-tom.
Levantou-se e, impetuosamente ajeitando o vestido, declarou a Natália que era hora de ir para casa, tanto mais que monsieur Volinsoff (assim chamava Volíntsev) prometera comparecer ao almoço.
— E ei-lo que vem! — acrescentou, olhando para uma das aleias que vinham da casa.
De fato, Volíntsev surgira a certa distância.
Aproximou-se a passo indeciso, de longe cumprimentando a todos e, dirigindo-se a Natália com expressão de dor no rosto, proferiu:
— Ah! Está passeando?
— Sim — respondeu a moça, mas já íamos para casa.
— Ah! — repetiu Volíntsev. — Então vamos.
E todos tomaram a direção da casa.
— Como vai sua irmã de saúde? — perguntou Rúdin a Volíntsev com voz particular mente amável. Também na véspera fora muito amável com ele.
— Humildes agradecimentos. Vai bem. Hoje, talvez, estará... Creio que discutiam quando cheguei?
— Sim, conversava com Natália Aleksieievna, que me disse algo que me impressionou bastante...
Volintsev não indagou do que se tratava e, em profundo silencio, todos voltaram a casa de Dária Mikhailovna.
Antes do jantar de novo reuniram-se todos. Pigássov não compareceu. Rúdin não se achava inspirado e passou todo o tempo a pedir a Pandaliévski que tocasse Beethoven. Volíntsev silenciava e tinha os olhos fixos no chão.
Natália não se afastava da mãe e ora ficava pensativa e ora bordava. Bassistov não tirava a vista de Rúdin, esperando que dissesse algo interessante. Assim passaram-se três horas bem monótonas. Alexandra Pavlóvna não veio ao jantar e Volintsev, logo que se ergueram da mesa, mandou preparar a carruagem e saiu furtivamente, sem se despedir de ninguém.
Sentia-se mal. Há muito amava Natália, mas nunca se animara a declarar-se... Ela o tratava com gentileza, mas seu coração permanecia tranquilo: ele bem o compreendia, e não esperava inspirar-lhe sentimento de maior ternura: só aguardava o momento em que ela se acostumasse bem com ele e se tornassem amigos estreitos. O que então o tornava agitado? Que mudança observara nos dois últimos dias? Natália continuava a tratá-lo da mesma forma que antes...
Acaso lhe ocorrera a ideia de que ele talvez nada soubesse do temperamento da moça, que esta era mais estranha do que pensara? Ou talvez o ciúme começasse a corroê-lo? O fato é que confusamente pressentia que algo não ia bem..., mas sofria, por mais que procurasse persuadir-se do contrário.
Quando chegou à casa da irmã ali encontrou Lejniev.
— Por que voltaste tão cedo? — indagou Alexandra Pavlóvna.
— Simplesmente porque me senti entediado.
— Rúdin está lá?
— Sim.
Volíntsev tirou o boné e sentou-se.
Alexandre Pavlóvna voltou-se vivamente para o irmão.
— Por favor, Sieriója, ajuda-me a convencer a este teimoso (apontou para Lejniev) que Rúdin é muito vivo e eloquente.
Volíntsev resmungou algo.
— Não pretendo contradizê-la — começou Lejniev. — Não duvido da inteligência e da eloquência do sr. Rúdin; só afirmo que ele não me agrada.
— E já o viu? — indagou Volíntsev.
— Eu o vi hoje de manhã em casa de Dária Mikháilovna. No momento é o Grão-Vizir dela. Chegará o dia em que o mandará embora o que jamais fará com Pandaliévski — porém agora ele impera. Sim, vi-o! Estava sentado e ela me aponta: olhe, irmão, que criaturas originais surgem por aqui! Não sou animal de circo e por isso não estou acostumado a exibições. Em vista disso, retirei-me logo.
— E por que foi lá?
— Tratar da demarcação das terras, mas era um pretexto dela; só queria ver-me a cara. Sabemos quão caprichosas são essas fidalgas!
— Ofende-o a superioridade de Rúdin — isso é que é! — replicou com calor Alexandra Pavlóvna. — É o que não pode perdoar-lhe. Estou certa de que, além da inteligência, tem um coração excelente. Observe-lhe os olhos, quando ele...
— “Da sublime honradez fala” — atalhou-a Lejniev.
— Se você me fizer ficar com raiva, não poderei conter-me, e vou chorar. Lamento sinceramente não ter ido à casa de Dária Mikháilovna e ficado com você. Não o merece. Chega de torturar-me — acrescentou com voz queixosa. — É melhor que me fale da mocidade dele.
— Da mocidade de Rúdin?
— Sim. Foi você que me falou que o conhece bem, e há muito tempo.
Lejniev levantou-se e entrou a andar pela peça.
— Sim — disse, conheço-o muito bem. Quer que lhe relate sua juventude? Pois não. Nasceu em seus genitores tinham terras e eram pobres. O pai morreu logo, e ele ficou só em companhia da mãe, que era boníssima e o idolatrava: alimentavam-se exclusivamente de farinha de aveia, e todos os recursos que ela conseguia eram empregados em benefício dele. Foi educado em Moscou, primeiro à custa de um tio, e depois, quando chegou a maioridade, à custa de um príncipe rico, cujas graças servilmente conquistou... Ora, perdão, não pretendo... cuja amizade granjeou. Depois ingressou na universidade. Ali o conheci e ficamos amigos íntimos. A respeito de nossa vida de então pretendo falar-lhe mais tarde. Agora não posso. Em seguida viajou ao estrangeiro...
Lejniev continuava a passear pelo quarto; Alexandra Pavlóvna acompanhava-o com o olhar.
— Do estrangeiro— continuou — Rúdin escrevia a mãe mui raramente, e visitou-a apenas uma vez, uns dez dias... A velha morreu sem vê-lo, cuidada por mãos alheias, mas até o último suspiro não retirou os olhos de seu retrato. Visitei-a certa ocasião, quando vivia em Y. Bela alma, sumamente hospitaleira; estava sempre a regalar-se com doce de cereja. Adorava profundamente o seu Mítia. Os cavalheiros da escola Pietchórin lhe dirão sempre gostamos daqueles que tem pouca capacidade de amar; julgo, porém, que todas as mães amam os filhos, sobretudo os ausentes.
Posteriormente encontrei Rúdin no estrangeiro. Ali lima barínia se ligara a ele, uma compatriota, literata presunçosa, já entrada em anos e feia, como soem ser. ('lie andou muito tempo com ela e, afinal, abandonou-a... isto é, perdão; ela o abandonou. E na mesma ocasião também nos separamos. É tudo.
Lejniev calou-se, passou a mão pela fronte e, como .SC estivesse cansado, deixou-se cair numa poltrona.
— Quer minha opinião, Mikháilo Mikhaílitch? — Indagou Alexandra Pavlóvna.
— Pelo que vejo, é mau; francamente, não melhor que Pigássov. Estou certa de que tudo o que disse é verdade, que nada inventou, mas que hostilidade manifestou em suas palavras! A pobre anciã, sua dedicação, sua morte no esquecimento, essa barínia... A que vem tudo isso? Sabe que se pode apresentar a vida do melhor homem sob um prisma e sem nada acrescentar, observe — que pode causar horror a qualquer um? E uma espécie de calúnia!
Lejniev ergue-se e de novo, pôs-se a andar pela peça.
— De forma nenhuma quis causar-lhe horror, Alexandra Pavlóvna — proferiu afinal. — Não sou caluniador. Aliás — acrescentou após pensar um pouco, no que há uma parte da verdade. Não caluniei Rúdin, mas quem sabe? — é possível que desde então se tenha modificado. É provável que eu esteja sendo injusto.
— Ah vê como tenho razão? Prometa-me, então, renovar suas relações com ele, conhecê-lo bem e então dar-me sua opinião definitiva a respeito dele.
— Pois não... Por que estás calado, Sierguiei Pávlitch?
Volintsev estremeceu e ergueu a cabeça como se o tivessem despertado.
— Que tenho a dizer? Não o conheço. Ao demais, estou com dor de cabeça.
— Realmente: estás hoje um pouco pálido — observou Alexandra Pavlóvna. — É alguma doença?
— Dor de cabeça — repetiu Volintsev e retirou-se.
Alexandra Pavlóvna e Lejniev acompanharam-no com a vista e trocaram olhares, mas nada disseram um ao outro. Nem para ele e nem para ela era segredo o que ia pela alma do amigo.
Capítulo VI
Decorreram pouco mais de dois meses. Durante todo esse tempo Rúdin quase não sairá da casa de Dária Mikháilovna, que não podia passar sem ele. Contar-lhe sua vida e ouvir-lhe os conceitos o tornara-se uma necessidade. Um dia ele quis ir embora a pretexto de que gastara todo o seu dinheiro: ela lhe deu quinhentos rublos. Ele pediu a Volíntsev mais duzentos emprestados. Muito mais raramente que antes, Pigássov a visitava; a presença de Rúdin o sufocava. Aliás, não era só Pigássov que sentia essa pressão.
— Não gosto desse sabichão — dizia; — não fala com naturalidade; é, sem tirar nem pôr, uma personagem de novela russa. Diz: eu, e com emoção se detém... Eu de repente ele, eu... Emprega palavras tão rebuscadas! Espirramos e ele logo começa a nos explicar, tim por tim, porque naquele momento espirramos, ao invés de tossirmos. Quando se elogia, parece estar promovendo a si próprio... Começa a censurar a si mesmo, cobre-se de lama; bem pensamos, agora não terá coragem de surgir a luz do dia. Qual nada! Fica mais alegre, como se estivesse se deliciando com o néctar dos deuses.
Pandaliévski temia Rúdin e cautelosamente o cortejava. Estranhas eram as relações entre Volíntsev e Rúdin. Rúdin chamava-o paladino e o elogiava, na presença e na ausência, mas isso não lhe conquistava a simpatia, e toda a vez em que Rúdin em sua presença se referia a seus méritos ele sentia contrariedade e impaciência involuntária. “Não caçoará de mim?” — pensava, e o coração enchia-se de hostilidade. Procurava dominar-se, mas tinha ciúmes dele por causa de Natália. É possível que o próprio Rúdin, embora sempre o acolhesse com estardalhaço, embora o chamasse paladino e lhe pedisse dinheiro emprestado, no fundo sentisse por ele certa antipatia. Seria difícil precisar os sentimentos que propriamente dominavam ambos quando, apertando-se amigavelmente as mãos, encaravam-se nos olhos.
Bassistov continuava a venerar Rúdin e a beber cada uma de suas palavras, mas ele pouca atenção lhe dedicava. De uma feita passou com ele toda uma manhã, discutiu com ele as questões e problemas mundiais mais importantes, nele despertando o maior entusiasmo; todavia, em seguida não lhe deu mais importância... Era claro que só em palavras procurava almas puras e dedicadas. Com Lejniev, que começara a frequentar Dária Míkháilovna, Rúdin nem mesmo discutia e parecia evitá-lo. Lejniev pagava-lhe com a mesma moeda tratando-o com frieza e, aliás, não manifestava opinião definitiva a seu respeito, o que muito contrariava Alexandra Pavlóvna, que rendia homenagens a Rúdin, mas também acreditava em Lejniev.
Todos em casa de Dária Míkháilovna atendiam aos caprichos de Rúdin: seu menor desejo era satisfeito. Dele dependia a ordem das ocupações diárias. Nenhuma excursão ou piquenique se fazia sem ele. Aliás, não era grande amador de quaisquer passeios ou fantasias súbitas e deles participava qual adulto em brinquedo de criança: com condescendência amável e ligeiramente entediada. Por outro lado, interessava-se por tudo; discutia com Dária Mikháilovna os problemas administrativos, a educação dos filhos, a fazenda e os negócios cm geral; ouvia seus planos, não desprezava o menor detalhe, propunha mudanças e inovações. Dária Mikháilovna mostrava-se encantada, mas... só em palavras. Quanto as questões relativas a propriedade seguia os conselhos do administrador, ucraniano de idade madura, caolho, velhaco, astuto e simplório.
— Macaco velho, Manduca, não mete a mão em cumbuca costumava dizer, sorrindo tranquilamente e piscando o único olho.
Depois da própria dona da casa, era com Natália que Rúdin conversava com frequência e longamente. Em segredo fornecia-lhe livros, confiava-lhe seus planos, lia Ihe as primeiras páginas de artigos e obras em elaboração, cujo sentido muitas vezes era inacessível a moça. Aliás, ao que parece, Rúdin não se preocupava muito que entendesse — bastava que o ouvisse. As relações entre os dois não eram muito do agrado da anfitriã, que pensava:
— Mas deixemos que ela tagarele com ele na roça. Como moçoila, ela o diverte. Não há grande mal, e aos poucos ela irá adquirindo juízo. Em Petersburgo modificarei tudo...
Dária Mikháilovna enganava-se. Não era como rapariga inexperiente que Natália conversava com Rúdin: com sofreguidão lhe ouvia as palavras, procurava apreender seu significado; pedia-lhe opinião sobre seus pensamentos e dúvidas: ele era seu mentor e chefe. Por enquanto era só a cabeça da moça que estava em efervescência..., mas uma cabeça jovem por pouco tempo agita-se só. Que instantes felizes passava Natália quando sentada no banco do jardim, na leve e arejada penumbra do freixo, Rùdin lia-lhe o Fausto de Goethe, Hoffmann ou As Cartas de Bettina, ou Novalis, detendo-se sempre para explicar-lhe os trechos que lhe pareciam obscuros! Falava mal o alemão como quase todas as nossas fidalgas, mas o entendia bem, e Rúdin estava todo mergulhado na poesia alemã, no mundo do romantismo e da filosofia germânica, e arrastava-a para essas regiões proibidas. Belas e misteriosas, revelavam-se a seu olhar atento; das páginas do livro que Rúdin tinha a mão imagens maravilhosas e pensamentos novos e luminosos emanavam como ondas sonoras e lhe invadiam a alma, e em seu coração, comovido pela nobre alegria das grandes sensações, nascia e se inflamava a sagrada centelha do êxtase.
— Diga-me, Dmítri Níkoláitch — disse ela um dia, sentada ao pé da janela, a bordar, é certo que vai passar o inverno em Petersburgo?
— Não sei — respondeu Rúdin, colocando sobre os joelhos o livro que folheava; — se conseguir recursos, irei.
Falava com indolência: sentia-se cansado e desde manhã nada fizera.
— Por que não há de arranjar meios?
Rúdin abanou a cabeça.
— É o que lhe parece!
E significativamente olhou para um lado.
Natália quis dizer-lhe algo, mas se conteve.
— Olhe — observou Rúdin e apontou-lhe a janela: — está vendo a macieira? Quebrou-se pelo peso e quantidade dos próprios frutos. Fiel emblema do gênio...
— Partiu-se porque não tinha apoio — retrucou Natália.
— Compreendo-a, Natália Aleksieieyna, porém ao homem não é tão fácil encontrar esse apoio.
— Parece-me que a simpatia dos demais., em todo o caso, a solidão...
Natália enredou-se um pouco e enrubesceu.
— E que fará no campo durante o inverno? — apressou-se a acrescentar.
— Que vou fazer? Tenciono terminar meu ensaio — você o conhece — sobre o trágico na vida e na arte. Anteontem expus-lhe o plano: vou mostrar-lhe.
— Pretende imprimi-lo?
— Não.
— Como não? Em benefício de quem então trabalha?
— Para você, por exemplo.
Natália baixou os olhos.
— Não tenho capacidade para entendê-lo, Dmítri Nikoláitch!
— De que trata o ensaio, permite perguntar? — indagou modestamente Bassistov, sentado a alguma distância.
— Do trágico na vida e na arte — repetiu Rúdin. — O sr. Bassistov, pelo menos, o lerá. Aliás, ainda não consegui dominar bem a ideia fundamental. Até agora não pude assimilar bem a Significação trágica do amor.
Rúdin se referia ao amor com prazer e frequência. A princípio, ao ouvir a palavra amor, Mlle Boncourt estremecia e aguçava o ouvido qual cavalo velho de regimento ao ouvir a trombeta, mas depois acostumou-se e as vezes limitava-se a contrair os lábios e a cheirar pausadamente o rapé.
— Creio — observou Natália com timidez — que o trágico no amor é o amor infeliz.
— De modo nenhum! — retrucou Rúdin. — É antes o lado cômico do amor. Deve-se encarar a questão de maneira inteiramente diversa... É preciso mergulhar bem fundo! O amor! — continuou, tudo nele é mistério: a origem, o desenvolvimento, a morte. Ora surge de chofre, indubitável, alegre como o dia, ora arde longamente como fogo sob a cinza, e penetra n’alma como chama quando tudo já está destruído; ora insinua-se no coração como serpente, ora súbito afasta-se dele... Sim, sim, é um problema importante. E quem ama em nossa época, quem é bastante audaz para amar?
E Rúdin tornou-se pensativo.
— Por que Sierguiei Pávlitch não aparece há tanto tempo? — indagou de repente.
Natália enrubesceu e inclinou a cabeça sobre o trabalho.
— Não sei — balbuciou.
— Que bela alma, que nobreza de caráter! — proferiu Rúdin, erguendo-se. — É um dos melhores espécimes de autêntico fidalgo russo...
Mlle. Boncourt mirou-o de esguelha com seus olhinhos franceses.
Rúdin pôs-se a andar pela peça.
— Notaram — entrou a falar, voltando-se bruscamente sobre os calcanhares — que as velhas folhas do carvalho e o carvalho é uma árvore vigorosa — só caem quando as novas começam a nascer?
— Sim — respondeu Natália lentamente, notei.
— Exatamente o mesmo acontece com um velho amor num coração varonil: já morreu, mas ainda insiste; só outro amor, um novo amor, pode expulsá-lo.
Natália nada respondeu.
“Que quer dizer?” — pensou.
Rúdin deteve-se, sacudiu os cabelos e se retirou, enquanto Natália se dirigia para a alcova. Esteve por longo tempo absorta, sentada na cama, cogitando nas últimas palavras de Rúdin, e de repente apertou as mãos e chorou amargamente. Porque chorava — Só Deus sabe! Ela mesma não poderia explicar por que as lágrimas lhe brotavam dos olhos tão inesperadamente. Enxugou-as, porém elas rolaram de novo, qual água de manancial há muito represado.
No mesmo dia Alexandra Pavlóvna e Lejniev falaram a respeito de Rúdin. A princípio ele teimou em calar-se, porém ela estava decidida a obrigá-lo a ser franco.
— Percebo — disse ela — que Dmitri Nikoláievitch continua a não merecer sua simpatia. De propósito até hoje não insisti nas minhas perguntas, mas já teve tempo de verificar se nele ocorreu alguma mudança, e quero saber por que não é do seu agrado.
— Como queira — replicou Lejniev com a fleuma habitual, já que está tão impaciente; mas não vá ficar zangada comigo...
— Pois bem, diga, diga.
— E prometa ouvir tudo até o fim.
— Sem dúvida, comece.
— Assim sendo — começou Lejniev, sentando-se lentamente no divã, comunico-lhe que Rúdin, de fato, não me agrada. É inteligente...
— Não se pode negar!
— É de uma inteligência notável, embora no fundo vazia...
— É fácil dizê-lo!
— Embora no fundo vazia — repetiu Lejniev, mas o mal ainda não está aí: todos nós somos gente oca. Nem mesmo o acuso por ser, no íntimo, um déspota, um preguiçoso, um meia-ciência...
Alexandra Pavlóvna cruzou as mãos.
— Um meia-ciência! Rúdin! — exclamou.
— Um meia-ciência — repetiu Lejniev no mesmo tom — que gosta de viver a custa alheia, de representar papéis etc. Tudo isso não foge aos usos e costumes. No entanto, o mal está em ser frio qual gelo.
— Ele, essa alma ardente, frio! — atalhou-o Alexandra Pavlóvna.
— Sim, frio qual gelo, e bem o sabe, mas finge-se de entusiasta. O pior é que — continuou Lejniev, pouco a pouco inflamando-se — faz um jogo perigoso não para ele, é claro; não arrisca um só copeque e nem um fio de cabelo, enquanto outros empenham a próprio alma...
— O que? Que está dizendo? Não o entendo — assustou-se Alexandra Pavlóvna.
— O mal dele é a desonestidade. É inteligente, e por isso deve saber o valor das próprias palavras e as diz como se lhe custassem algo. É eloquente, não se nega: mas é a eloquência russa. E, afinal, perdoa-se a retórica a um moço, mas na sua idade é uma vergonha divertir-se com o som da própria voz, é uma vergonha ostentar-se!
— A meu ver, Mikhaílo Mikhaílitch, ao ouvinte é indiferente que o orador se pavoneie ou não...
— Desculpe, Alexandra Pavlóvna, não é indiferente. Alguns dizem uma palavra que nos causa profunda impressão, enquanto outros repetem a mesma, ou outra mais bela, que entra por um ouvido e sai pelo outro. For que que acontece?
— Conclusão: é você que não a ouve — atalhou-o Alexandra Pavlóvna,
— Sim, não a ouço — retrucou Lejniev, embora talvez tenha orelhas bem grandes. A questão é que as palavras de Rúdin não passam de sons que nunca se concretizam em atos. Todavia, elas podem perturbar e deitar a perder um coração jovem.
— Como assim? De quem se trata?
Lejniev deteve-se.
— Deseja saber ã quem me refiro? A Natália Aleksieievna.
Alexandra Pavlóvna perturbou-se por um instante, mas logo sorriu ironicamente.
— Ora, ora, ora! — exclamou. — Que pensamentos estranhos sempre tem! Natália é ainda uma criança; e, enfim, se realmente houvesse algo, julga que Dária Mikháilovna...
— Dária Mikháilovna, em primeiro lugar, é egoísta e vive para si mesma; e, em segundo, está tão certa de sua capacidade em educar os filhos que nem pensa em se incomodar com eles. Que vergonha! Quem poderia imaginar o contrário?! Um gesto de mão, um olhar cheio de majestade e tudo correrá como num mar de rosas. É o que pensa essa fidalga, que se imagina uma Mecenas, uma proximidade, e só Deus sabe o que mais, mas na realidade não passa de velha mundana. E, quanto a Natália, não é uma criança: pode estar certa de que raciocina com maior frequência e profundeza que todos nós. E, infelizmente, natureza tão honesta, apaixonada e ardente houve de encontrar um ator, um coquete! Aliás, também isso não está na ordem das coisas.
— Coquete! Você o chama coquete?
— Claro que é coquete. Veja por si mesma, Alexandra Pavióvna; que papel representa em casa de Dária Mikháuovna? Ser ídolo, oráculo da casa, imiscuir-se na ordem doméstica, nas tagarelices e rusgas da família será atitude digna de homem?
Perplexa, Alexandra Pavióvna encarou Lejniev.
— Não o conheço, Mikhaílo Mikhaílitch — proferiu. — Erubesceu, ficou agitada. — Creio que algo diferente se oculta atrás de tudo isso.
— Ora essa, muito bem! Revelamos a uma mulher coisas sensatas, de que estamos certos, e ela não se dá por satisfeita enquanto não inventa um motivo qualquer, ínfimo e irrelevante, que nos obrigou a falar justamente o que acabamos de dizer.
Alexandra Pavióvna encolerizou-se.
— Bravo, mecie Lejniev! Começa a atacar as mulheres não menos que o sr. Pigássov; no entanto, é livre para proceder como lhe apraz; porém, por mais arguto que seja, é-me difícil acreditar que em prazo tão curto tenha podido compreender tudo e todos. Acho que está enganado. A seu ver, Rúdin é uma nova encarnação de Tartufo.
— O mal é que nem mesmo Tartufo. Aquele, pelo menos, tinha consciência do que pretendia; quanto a este, apesar de todo o talento...
— Então, quem é ele? Desembuche! Acabe de falar, homem injusto e repugnante!
Lejniev levantou-se.
— Ouça, Alexandra Pavióvna — continuou, injusta é você, e não eu. Fica zangada por minha opinião desfavorável em relação a Rúdin: tenho o direito de assim proceder! Talvez caro me tenha custado esse direito. Conheço-o tão bem como a palma de minha mão; convivi com ele durante muito tempo. Lembre-se de que lhe prometi contar, em momento oportuno, nossa vida om Moscou. Vê-se que a ocasião chegou. Mas terá a paciência de ouvir-me até o fim?
— Fale, fale!
— Bem, com sua licença.
Lejniev pôs-se a andar a passos lentos pela peça, de quando em quando detendo-se e inclinando a cabeça para adiante.
— Talvez saiba — continuou — ou talvez não saiba que perdi os pais muito cedo e já aos dezesseis anos não tinha quem me governasse. Vivia na casa de uma tia, em Moscou, e minha vontade era o único limite as minhas ações. Era um jovem muito vazio e presunçoso, gostava de contar rodela e de gabar-me. Ingressei na universidade; ali comportava-me como irresponsável e logo me meti numa encrenca. Não vou contar-lhe: não vale a pena. Mentia, e com bastante vileza... Fui pego em flagrante, acusaram-me, cobriram-me de vergonha... Perdi a cabeça e desatei a chorar como criança. Isso ocorreu no apartamento de um amigo, na presença de muitos colegas. Todos puseram-se a rir de mim, todos, com exceção de um estudante que, note bem, contra mim sentia indignação maior que a dos outros enquanto eu teimava e não admitia ter mentido. Talvez por haver ficado com dó de mim, o fato é que me travou do braço e me levou para casa.
— Era Rúdin? — indagou Alexandra Pavióvna.
— Não, não era Rúdin. Era um homem... já morreu... era um homem extraordinário. Chamava-se Pokórski. Não tenho capacidade para descrevê-lo em poucas palavras e, quando se começa a falar dele, não se quer falar de mais ninguém. Era uma alma elevada, pura, e inteligência que não mais se encontraria. Pokórski morava num quarto pequeno e baixo, no sótão de velha casa de madeira. Era muito pobre e mal conseguia viver à custa das lições que dava. Às vezes não podia obsequiar os visitantes nem sequer com uma xícara de chá, e seu único divã estava tão desmantelado que parecia uma canoa. Todavia, apesar de todo esse desconforto, era muita a gente que o procurava. Amavam-no, atraía os corações. Não pode imaginar quão doce e alegre era estar em sua pobre mansarda! Nela travei conhecimento com Rúdin. Já então se afastara do príncipe.
— Que havia de tão particular nesse Pokórski? — indagou Alexandra Pavlóvna.
— Como dizê-lo? A poesia e a verdade — eram os ímãs com que atraía a todos. Apesar da mentalidade lúcida e ampla, era agradável e divertido qual criança. Até hoje ressoa-me aos ouvidos sua gargalhada cristalina, e ao mesmo tempo ele
Flamejava como candeia de meia-noite perante o sacrário do bem...
Assim a ele se referia um poeta quase Iouco e muito amável de nosso círculo.
— E como falava? — indagou de novo Alexandra Pavlóvna.
— Falava bem, quando estava disposto, mas não de modo incomum. Mesmo então Rúdin era vinte vezes mais eloquente que ele.
Lejniev deteve-se e cruzou os braços.
— Pokórski e Rúdin eram o oposto um do outro. Em Rúdin havia espalhafato e muito mais brilho, mais frases e, talvez, maior entusiasmo. Parecia muito mais dotado que outro, mas na realidade era um pobretão em confronto com ele. Rúdin desenvolvia muito bem qualquer pensamento, discutia com mestria, porém as ideias não surgiram em sua cabeça; tomava-os do próximo, em particular de Pokórski. Aparentemente, este era calmo e suave, mesmo fraco e gostava das mulheres até a loucura a, apreciava uma farra e não permitiria que ninguém n (I fendesse. Rúdin parecia cheio de fogo, audácia e vida, mais no fundo era frio e quase tímido enquanto não lhe ofendiam o amor-próprio; aí perdia as estribeiras. Procurava por todos os meios dominar os outros, mas em nome dos princípios e das ideias gerais e, com efeito, em muitos exercia profunda influência. Verdade é que ninguém gostava dele; talvez só eu me sentisse atraído. Suportavam o jugo... enquanto a Pokórski todos se entregavam de boa vontade. Em compensação, Rúdin nunca se recusava a argumentar e a discutir com o primeiro que encontrava. Não lera muitos livros, mas em todo o caso muito mais que Pokórski e todos nós; além disso, tinha mente sistemática e notável memória, e é isso o que atua sobre a juventude! Que conclusões! Que críticas! Embora falsas, mas impressionavam! Um indivíduo de honestidade ilibada não se presta a tais papéis. Experimente dizer aos moços que não lhes pode apresentar a verdade absoluta, porque você mesmo não a possui... e eles lhe voltarão as costas. Mas também não pode enganá-los. É preciso que você mesmo acredite possuir a verdade, nem que seja uma meia-verdade. É por isso que Rúdin exerceu então tamanha preponderância.
“Já disse que Rúdin leu poucos livros, mas os que lia versavam filosofia, e tal era a conformação de sua mente que de imediato chegava a conclusões gerais, penetrava bem no fundo da questão e depois desse ponto da partida estendia para todos os lados os fios de um pensamento claro e justo, a revelar novos horizontes espirituais. Para dizer a pura verdade, nosso círculo constituía-se então de rapazes — donos de uma meia-cultura. Filosofia, arte, ciência, a própria vida — considerávamos tudo isso meras palavras, talvez até conceitos, tentadores, belos, porém dispersos e separados. A conexão universal entre eles, esses conceitos, a lei fundamental que rege o universo era um enigma, não a apreendíamos, embora confusamente discutíssemos a respeito, esforçando-nos por compreende-la... “Ao ouvir Rúdin tínhamos pela primeira vez a impressão de que afinal a captávamos, essa conexão universal, e de que a ponta do véu afinal erguia-se! Admitamos que as palavras não fossem fruto de sua própria cabeça que importava? — Se uma ordem harmoniosa passava a imperar em tudo o que sabíamos, tudo o que estava disperso súbito tornava-se um todo coerente a se erguer diante de nós qual edifício, tudo se tornava claro e arejado... Nada continuava sem sentido e casual; em tudo manifestava-se a necessidade racional e a beleza, tudo se impregnava de sentido claro e ao mesmo tempo misterioso; de per si cada fenômeno vital vibrava em acorde, com uma espécie de terror religioso e doce palpitar do coração, nós próprios nos sentíamos como continentes vivos da verdade eterna, instrumentos dela, eleitos de uma grande causa... Tudo isso não lhe parece ridículo?”
— De modo nenhum! — replicou lentamente Alexandra Pavlóvna. — Por que pensa assim? Não o entendo muito bem, mas o que diz não me parece ridículo.
— Desde então progredimos um pouco mais, é claro — continuou Lejniev. — Tudo isso agora pode nos parecer infantilidade. Contudo, repito que então devíamos muito a Rúdin. Pokórski estava incomparavelmente acima dele, não se discute; em todos nós infundia entusiasmo e vigor; as vezes, porém, sentia-se fraco e silenciava. Era nervoso e doente; em compensação, quando abria as asas — Santo Deus! a que alturas remontava! Bem ao fundo azul do céu! E em Rúdin, nesse jovem belo imponente, havia muitas minúcias; chegava a mexericar; sua paixão era meter-se em tudo, tudo definir e explicar. Seu incansável dinamismo nunca se acalmava... temperamento de político! Descrevo o Rúdin que conhecia então. Aliás, infelizmente não se modificou. Por outro lado, também suas ideias continuam as mesmas e isso aos trinta e cinco anos! Nem todos podem dizer o mesmo a respeito de si próprios.
— Sente-se — proferiu Alexandra Pavlóvna. — Por que se move pela sala como um pêndulo?
— Sinto-me melhor assim — retrucou Lejniev. — Pois bem: logo que comecei a frequentar o círculo de Pokórski regenerei-me inteiramente: serenei, tornei-me inquisitivo, estudioso, alegre e reverente — em suma, parecia haver penetrado num templo qualquer. E, com efeito, recordando nossas reuniões, verifico que tinham muito de bom e mesmo de tocante: Imagine cerca de cinco ou seis jovens reunidos, uma vela de sebo a queimar, um chá horrível e pedaços de pão duro e velhíssimo; mas se visse nossos rostos e ouvisse nossas palavras! Os olhos brilhando de entusiasmo, as faces em brasa, o coração a palpitar, entrávamos a falar de Deus, na Verdade, do futuro da humanidade, da poesia as vezes dizíamos absurdos e inflamávamo-nos com bagatelas, mas... que importava? Pokórski ali estava, as pernas cruzadas, o rosto pálido apoiado na mão, os olhos a luzirem intensamente. De pé ao centro da peça, Rúdin fala palavras belas, um jovem Demóstenes em carne e osso diante do mar encapelado; o descabelado poeta Subbótin de quando em quando emite, como se estivesse a sonhar, exclamações abruptas; o estudante Scheller, de quarenta anos, filho de um pastor alemão, tido entre nós como pensador profundo por seu silencio eterno que nada conseguia quebrar que, com solenidade ímpar, nunca dizia uma só palavra; o alegre Sítov, o Aristófanes de nossas reuniões, calmo e a sorrir com afetação; dois ou três calouros a ouvir com prazer extático... E a noite voa calma e macia como se tivesse asas.
“E chega a manhã cinza e nos separamos comovidos, alegres, honestos, sóbrios (na época nem ouvíamos falar de vinho) com um cansaço agradável n’alma... E mesmo para as estreias olhamos com certa confiança, como se se tornassem mais próximas e decifráveis, ó, que magnífica quadra aquela, e nem quero acreditar que tenha passado em vão! Mas não foi inútil — nem mesmo para aqueles que a vida depois degradou. Quantas vezes encontrei-os depois, os antigos colegas! Tinha a impressão de que o indivíduo se tornara uma verdadeira fera, mas bastava dizer em sua presença o nome de Pokórski e os últimos resquícios de nobreza vinham à tona, como se um quarto sujo e escuro destampássemos um frasco de perfume”.
Lejniev calou-se; seu rosto pálido estava coberto de rubor.
— Mas por que e quando brigou com Rúdin? — indagou Alexandra Pavlóvna, a olhar perplexa para Lejniev.
— Não briguei; separei-me dele quando fiquei sabendo em definitivo quem realmente era. Já em Moscou tivera motivos para afastar-se dele, pois me pregara uma boa peça.
— Que foi?
— Vejamos. Eu... como dizê-lo? Não casa bem a minha figura..., mas sempre fui muito inclinado ao amor.
— Você?
— Eu. É estranho, não é? No entanto, digo a verdade. Pois bem: fiquei então enamorado de uma garota muito gentil..., mas por que me olha assim? Poder-lhe-ia contar um fato ainda mais impressionante.
— Que é, se posso saber?
— Isto; eu, naqueles tempos de Moscou, ia a noite encontrar-me... sabe com quem? Com uma jovem tília nova na extremidade de meu jardim. Abraçava-lhe o caule delgado e elegante e tinha a impressão de estar a envolver toda a natureza, e meu coração ampliava-se e se enternecia como se, de fato, toda a natureza nele se infundisse... Assim era eu! Que? Talvez pense que não escrevesse versos? Escrevi, e cheguei a compor todo um drama, a imitação de Manfredo. Entre os personagens havia um fantasma com o peito ensanguentado, mas não com o próprio sangue, veja bem, e sim com o sangue da humanidade em geral... Sim, sim, não fique admirada. Mas comecei a falar de meus amores. Fiquei conhecendo uma jovem...
— E deixou de procurar a tília? — indagou Alexandra Pavlóvna?
— Sim. A moça era uma criatura muito boa e bela, olhos alegres e claros e voz argentina.
— Descreve muito bem — observou Alexandra Pavlóvna com um. sorriso irônico.
— E você é um crítico muito severo — retrucou Lejniev. — Pois bem: a donzela vivia com o velho pai...
Aliás, não vou descer a detalhes. Só lhe direi que a moça tinha realmente um coração de ouro — sempre me servia três quartos dum copo de chá, quando pedia apenas metade! No terceiro dia após o primeiro encontro com ela já estava inflamado e no sétimo não pude conter-me e revelei tudo a Rúdin. É fácil a um jovem apaixonado desatar a língua, e lhe revelei todo o segredo. Então achava-me todo sob sua influência, e essa influência, para lhe ser franco, era útil em vários sentidos. Fora o primeiro a não me desdenhar, a polir-me as maneiras. Gostava muito de Pokórski e tinha certo medo diante de sua pureza moral, porém, quanto a Rúdin sentia-se mais próximo. Ao saber de meu amor, deixou-se tomar de entusiasmo indescritível: deu-me os parabéns, abraçou-me e logo pôs-se a argumentar comigo, a explicar-me toda a importância de minha nova situação. Eu era todo ouvidos... Bem, você lhe conhece a eloquência. Suas palavras impressionaram-me profundamente. Súbito o respeito que devia a mim mesmo aumentou consideravelmente, assumi aspecto sério e deixei de rir. Lembro-me de que até comecei a andar com mais cuidado, como se tivesse no peito um vaso cheio de líquido precioso que temia derramar... Sentia-me muito feliz, tanto mais porque pai e filha me acolhiam muito bem. Rúdin desejou conhecer minha amada; creio que eu mesmo insistia em apresentá-lo.
— Ora, oral vejo, percebo agora do que se trata — atalhou-o Alexandra Pavlóvna. — Rúdin roubou-lhe o amor, e até hoje não pode perdoar-lhe. Aposto que não me engano!
— Perderia a aposta, Alexandra Pavlóvna: engana-se. Rúdin não me roubou a amada e nem ele queria tal; no entanto, destruiu minha felicidade, embora, julgando friamente, agora reconheça que lhe deva agradecer o favor. Na ocasião, porém, quase perdi a cabeça. Rúdin de forma nenhuma desejava prejudicar-me ao contrário! — mas, em consequência de seu amaldiçoado hábito de cravar palavras em cada movimento da vida, tanto da sua como da do próprio, como se prega borboletas com alfinetes, pôs-se a nos explicar, a nós ambos, nossas relações, como deveríamos nos comportar, despoticamente exigia que lhe comunicássemos todos os nossos sentimentos e ideias, elogiava-nos, censurava-nos, mantinha até correspondência conosco, veja só! Conclusão: deixou-nos inteiramente confusos! É claro que não me casaria então com a moça (pois ainda me restava um pouco de bom senso), mas, pelo menos, teria passado com ela alguns meses deliciosos, a Paulo e Virgínia; mas surgiram mal entendidos, tensões de toda ordem uma mixórdia, em suma. Afinal, numa bela manhã, Rúdin convenceu-se de que a ele, como amigo, cabia o sacratíssimo dever de revelar tudo ao velho pai e assim o fez.
— Não diga! — exclamou Alexandra Pavlóvna.
— Sim, e, note, com meu consentimento — o que é mais espantoso! Lembro-me até hoje do caos que então me dominava a cabeça: tudo se enredava e girava como numa câmara escura: o branco parecia preto, o preto — branco; a mentira — verdade; a fantasia — dever... ó, até hoje tenho vergonha de lembrá-lo! Rúdin esse não se deixava abater... ele não! Agitava-se num monte de confusão e mal entendidos como andorinha sobre o lago.
— E você se separou da namorada? — perguntou Alexandra Pavlóvna, ingenuamente inclinando a cabeça para o lado e erguendo o sobrolho.
— Separei-me... e não com elegância: de modo canhestro e humilhante, com estardalhaço e escândalo desnecessário. Eu chorava, ela também, e só o demônio sabe o que aconteceu. O nó górdio apertava-se — tivemos de cortá-lo, apesar dos sofrimentos e dores! Aliás, hora a hora Deus melhora: ela casou-se com um homem bom e hoje vive feliz...
— Confesse que não pode perdoar Rúdin... atalhou-o Alexandra Pavlóvna.
— É claro — continuou Lejniev. — Chorei como criança quando ele partiu para o estrangeiro. No entanto, para dizer a verdade, a semente já tinha sido lançada em meu coração. E quando o encontrei posteriormente no estrangeiro... bem, já estava mais velho... vi Rúdin em sua verdadeira luz.
— O que precisamente descobriu nele?
— Tudo o que lhe disse há uma hora. Aliás, basta de falar dele. Talvez tudo corra bem. Só queria demonstrar-lhe que, se minha opinião a seu respeito é severa, não é porque não o conheça. Quanto a Natália Aleksieievna, não quero gastar palavras supérfluas, mas preste atenção em seu mano.
— Em meu mano! Que há?
— Observe-o. Acaso nada descobriu?
Alexandra Pavlóvna baixou a cabeça.
— Tem razão — proferiu. — Com efeito. Meu irmão... ultimamente tem tido atitudes estranhas. Mas você pensa...
— Caluda! Parece que se aproxima — cochichou Lejniev. — Quanto a Natália, não é criança, creia-me, embora, infelizmente, lhe falte experiencia. Espere e verá essa moça ainda nos surpreenderá a todos.
— Como assim?
— Assim: você sabe que são justamente as jovens de seu tipo que se afogam, tomam veneno etc.? Não se deixe enganar pelas aparências: sua calma dissimula paixões violentas e caráter vigoroso.
— Ora, creio que está ultrapassando os limites e caindo na poesia. A um fleumático como você talvez eu pareça um vulcão.
— Ó, não! — exclamou Lejniev sorrindo. — E quanto a caráter, você, graças a Deus, não tem nenhum.
— Que audácia é essa?
— Audácia? É o maior galanteio, creia...
Volíntsev entrou e suspeitosamente encarou Lejniev e a irmã. Emagrecera nos últimos dias. Ambos conversaram com ele, porém mal sorria em resposta as pilhérias e parecia, segundo a expressão de Pigássov, uma lebre tristonha. Aliá, é provável que ainda não tenha havido no mundo um homem que, mesmo uma vez na vida, não apresentasse aparência pior. Sentia que Natália dele se afastava e tinha a impressão de que, junto com ela, também a terra lhe fugia sob os pés.
Capítulo VII
No dia seguinte era domingo e Natália levantou-se tarde. Na véspera estivera muito taciturna até a noite, intimamente envergonhada das lágrimas que derramara; dormira muito mal. Sentada quase nua diante de seu pequeno piano, ora lhe tirava acordes mal audíveis a fim de não despertar Mlle. Boncourt, ora encostava a fronte nas teclas frias e ficava longo tempo imóvel. Pensava — não no próprio Rúdin, mas em uma palavra qualquer que dissera, e ficava absorta na meditação. Raramente Volíntsev lhe vinha a memória. Sabia que ele a amava, mas sua imagem logo lhe fugia da cabeça. Sentia uma agitação estranha ainda manhã, vestiu-se apressadamente, desceu e, após cumprimentar a mãe, valeu-se de um instante oportuno e dirigiu-se sozinha ao jardim... o dia era quente, claro, radiante, apesar da chuvinha miúda e intermitente.
Pelo céu claro deslizavam suavemente, sem ocultar o sol, nuvens baixas e nevoentas, e de quando em quando caiam sobre os campos bátegas abundantes de uma rajada súbita e instantânea. Gotas grandes e brilhantes derramavam-se rápidas, com um ruído seco, qual diamantes; o sol brilhava através dessa rede tremeluzente; a relva, ainda recentemente agitada pelo vento, não se movia, tragando sofregamente a umidade; regadas, as folhas das árvores trepidavam languidamente; era contínuo o cantar dos pássaros, e uma alegria ouvir-lhes o chilreio acima do barulho da chuva refrescante. As estradas poeirentas fumegavam e matizavam-se levemente sob os golpes bruscos das espessas rajadas. Eis senão quando uma nuvenzinha passa, a brisa flutua, a relva toma coloridos de esmeralda e ouro... Apesar de aderentes uma a outra, a luz brilha através das folhas das árvores, um aroma penetrante ergue-se por toda a parte.
O céu já estava quase todo limpo quando Natália alcançou o jardim, cheio de frescura e calma, a calma suave e feliz a que o coração do homem reage com a languidez doce da simpatia secreta e de vagos desejos.
Natália caminha ao longo do lago, pela comprida alameda de choupos prateados. Súbito diante dela surge Rúdin, como se brotasse do chão.
Eia ficou confusa. Ele cravou-lhe o olhar.
— Está só? — perguntou ele.
— Sim, só — respondeu Natália. — Aliás, saí por um instante... Devo voltar.
— Vou acompanhá-la.
E ele pôs-se ao lado dela.
— Creio que está triste? — proferiu ele.
— Eu?... Eu também ia observar-lhe que você parece abatido.
— E possível... acontece comigo as vezes. A mim é mais perdoável que a você.
— Por quê? Acaso pensa que não tenho motivos para ficar triste?
— Na sua idade deve-se gozar a vida.
Natália deu alguns passos em silencio.
— Dmítri Nikoláitch! — proferiu ela.
— Que?
— Lembre-se... da comparação que ontem fez... lembra-se?... com o carvalho.
— Sim, lembro-me. Que quer dizer?
Natália olhou-o de soslaio.
— Por que... que dizer com aquela imagem?
Rúdin ergueu a cabeça e dançou o olhar a distância.
— Natália Aleksieievna! — disse com a habitual expressão contida e imponente que sempre levava o ouvinte a pensar que não revelava nem a décima parte daquilo que lhe ia n’alma. — Pode notar que pouco falo de meu passado. Há algumas cordas que conservo esquecidas. Meu coração... quem tem necessidade de saber o que nele se passa? Exibi-lo sempre me parece um sacrilégio. Com você, porém, sou franco: tenho confiança em você... Não posso ocultar-lhe que amei e sofri como todos. Quando e como? Não vale a pena voltar ao passado, mas minha alma experimentou muitas alegrias e muitos pesares...
Rúdin silenciou por um instante.
— O que lhe disse ontem — continuou — pode, até certo ponto, aplicar-se a mim, a minha situação atual. Mas também não vale a pena falar do assunto. Esse lado da vida para mim não mais existe. Só me resta agora arrastar-me pela estrada quente e poeirenta, de estação a estação, aos solavancos de uma carruagem... Aonde vou chegar, se de fato chegar — só Deus sabe. É melhor falarmos de você.
— É possível, Dmítri Nikoláitch — atalhou-o Natália — que nada espere da vida?
— Ó, não! Muito espero, mas não para mim. Da atividade, da alegria que ela concede, jamais me furtarei, mas não pretendo mais o prazer. Minhas esperanças, meus sonhos e minha própria felicidade nada tem de comum. O amor (a esta palavra deu de ombros) ... o amor não é para mim; eu... não o mereço; a mulher que ama tem o direito de exigir todo o homem, e já não posso entregar-me todo. Ao demais, ser atraente é um dever do moço: já passei da idade. Como poderia dar volta ao juízo de uma mulher? Que Deus me de forças para aguentar a própria cabeça sobre os ombros!
— Compreendo — proferiu Natália — que quem visa a um objetivo elevado não deve pensar em si mesmo; contudo, acaso uma mulher não pode apreciar tal homem? Ao contrário; creio que com maior facilidade recusará um egoísta. Todos os moços, os jovens de que falou, a seu ver são todos egoístas, só pensam em si, mesmo quando amam. Acredite que a mulher não só é capaz de compreender o sacrifício: ela própria sabe sacrificar-se.
As faces de Natália cobriram-se de leve rubor e seus olhos brilhavam. Antes de conhecer Rúdin nunca falaria tanto e com tal calor.
— Por mais de uma vez ouviu minha opinião a respeito da vocação da mulher — observou Rúdin com um sorriso de condescendência. — Sabe que, segundo penso, só Joana d’Arc pode salvar a França..., mas a questão é outra. Senti desejo de conversar com você. Está no limiar da vida... Falar de seu futuro seria tão agradável quanto útil. Ouça: sabe que sou seu amigo; tenho por você um interesse quase fraternal... E por isso espero que não achará minha pergunta indiscreta; diga: seu coração permaneceu até agora perfeitamente tranquilo?
Natália ficou vermelha e nada respondeu. Rúdin parou, e ela também.
— Não ficou zangada comigo? indagou ele.
— Não — respondeu ela, mas de forma nenhuma esperava...
— Aliás — continuou ele, pode deixar de responder-me. Conheço seu segredo.
Quase assustada, Natália olhou para ele.
— Sim... sim; sei quem lhe agrada. E devo confessar que não poderia ter feito melhor escolha. É uma excelente pessoa; saberá apreciá-la; não foi castigado pela vida — é simples e de alma pura... saberá fazê-la feliz.
— De quem fala, Dmítri Nikoláitch?
— Pretende não saber de quem falo? De Volíntsev, é claro. Pois bem: não estou certo?
Natália recuou um pouco. Estava inteiramente perplexa.
— Acaso ele não a ama? Não diga! Não tira de você os olhos, observa todo movimento seu; e, afinal, será possível ocultar o amor? E você mesma não o quer? Tanto quanto pude observar, é também do. agrado da senhora sua mãe. A escolha...
— Dmítri Nikoláitch — atalhou-o Natália que, atônita, estendeu a mão a um arbusto próximo, confesso que não é muito desagradável falar do assunto; afirmo-lhe, porém, que... está enganado.
— Estou enganado? — repetiu Rúdin. — Não acho... Fui-lhe apresentado há pouco tempo, mas já a conheço bem. Que significa a transformação que noto em você, noto com clareza? Será a mesma moça que encontrei há seis semanas? Não, Natália Aleksieievna, seu coração não está em paz.
— Talvez — respondeu Natália em tom mal audível, mas está enganado.
— Como assim? — inquiriu Rúdin.
— Deixe-me, não me faça perguntas! — retrucou Natália e a passos rápidos dirigiu-se a casa.
Ela própria ficara horrorizada com tudo o que de chofre sentia em seu íntimo.
Rúdin alcançou-a e a deteve.
— Natália Aleksieievna — disse ele, nossa conversa não pode terminar assim: é também muito importante para mim... Como devo entendê-la?
— Deixe-me! — repetiu a moça.
— Natália Aleksieievna, pelo amor de Deus!
A fisionomia de Rúdin revelava agitação. Estava pálido.
— Entende tudo, e a mim também deve entender! — disse Natália, retirou-lhe a mão e adiantou-se sem olhar para trás. — Uma só palavra! — bradou Rúdin ao seu encalço.
Ela se deteve, porém sem se voltar.
— Perguntou-me o que queria dizer com minha comparação de ontem. Saiba, então, que não quero enganá-la. Falei de mim, de meu passado e de você.
— Como? De mim?
— Sim, de você; repito, não quero decepcioná-la. Agora sabe de que sentimento, de que novo sentimento falei então... Até hoje nunca me teria decidido...
Súbito Natália cobriu o rosto com as mãos e correu para casa.
Estava tão abalada pelo final inesperado do diálogo com Rúdin que nem notara a presença de Volíntsev, diante do qual passou correndo. Ele estava imóvel, encostado numa árvore. Um quarto de hora antes procurara Dária Mikháilovna e a encontrara na sala de visitas; dissera umas duas palavras, saíra sem que ninguém percebesse e fora procurar Natália. Guiado pelo instinto peculiar aos amantes, encaminhara-se direto ao jardim e deparara com ela e com Rúdin no mesmo instante em que ela afastava a mão dele. Volíntsev sentiu a vista escurecer. Após seguir Natália com o olhar, afastou-se da árvore e deu uns dois passos, sem saber para onde e por quê. Rúdin o viu e alcançou-o. Ambos se odiaram nos olhos, inclinaram-se e se dispersaram em silencio.
“Isso não pode terminar assim” — pensaram ambos.
Volíntsev andou até o fundo do jardim. Sentia-se amargurado e infeliz; um peso de chumbo oprimia-lhe o coração e de quando em quando o sangue fervia furioso. A chuvinha miúda pôs-se de novo a cair. Rúdin voltou a seu quarto. Também ele não estava calmo: os pensamentos giravam em sua cabeça qual remoinho. Mesmo os desumanos ficam comovidos ao contato inesperado de uma alma jovem e honesta.
À mesa houve certo constrangimento geral. Toda pálida, Natália mal se mantinha na cadeira e não erguia os olhos. Como sempre, Volíntsev estava ao lado dela e de quando em quando conseguia dominar-se e dirigir-lhe a palavra. Nesse dia Pigássov também jantava ali e era o que mais falava. Um momento de sua arenga começou a demonstrar que, assim como acontece com os cães, os homens podem ser divididos em duas espécies: os de cauda longa e os de cauda curta. Estes assim são pelo nascimento ou por culpa própria. Vivem mal: nada conseguem, pois não tem confiança em si mesmos. Em compensação, é um felizardo o que possui cauda longa e felpuda. Pode ser pior e mais fraco que o de apêndice curto, mas é presunçoso; basta estender a cauda para impressionar a todos. E eis o que causa admiração: a cauda é uma parte do corpo inteiramente inútil, não é? Para que serve? No entanto, é a pedra de toque de nossos méritos.
— Pertenço — acrescentou com um suspiro a espécie de rabo curto, e, o que é mais triste, eu próprio cortei o meu.
— Isto é, quer dizer — observou Rúdin com indiferença, o que, aliás, muito antes afirmou La Rochefocauld: tenha confiança em si próprio e os outros terão confiança em você. O que a cauda vem fazer aí é que não entendo.
— Permita que cada um — retrucou bruscamente Volíntsev, os olhos em brasa, permita que cada um se expresse como queira. Fala-se de despotismo... A meu ver, não há despotismo pior que o dos chamados homens inteligentes. O diabo que os carregue!
A maneira rude de Volíntsev deixou todos atônitos; fez-se silencio. Rúdin encarou-o, mas não lhe suportou o olhar; voltou-se, sorriu e não mais abriu a boca.
“Ora veja! Também tens o rabo curto!” — pensou Pigássov; quando a Natália, estava transida de medo. Dária Mikháilovna, perplexa, esteve longo tempo a olhar para Volíntsev e, afinal, foi a primeira a romper o silencio; pôs-se a falar de um certo cão extraordinário, do ministro N...
Volíntsev partiu logo após o jantar. Despedindo-se de Natália, não pode conter-se e disse-lhe:
— Por que está tão perturbada, como se tivesse cometido alguma crime? Não tem culpa alguma!
A moça nada entendeu e limitou-se a acompanhá-lo com os olhos. Antes do chá Rúdin aproximou-se dela e, inclinando-se sobre a mesa, como se examinasse os jornais, murmurou:
— Tudo parece um sonho, não é verdade? Preciso sem falta vê-la a sós, nem que seja por um minuto. — E, dirigindo-se a Mlie. Boncourt; — Eis o folhetim que procurava e de novo inclinando-se para Natália, acrescentou baixinho: — procure estar as dez horas ao lado do terraço, no caramanchão lilás: vou esperá-la...
O herói da noite foi Pigássov. Rúdin cedeu-lhe o campo de batalha. Muito divertiu a dona da casa; primeiro falou de um vizinho que, trinta anos sob o domínio da mulher, tanto se efeminou que, ao pular um dia uma poça rasa, levou o braço para trás e repuxou de lado a aba da sobrecasaca, como fazem as mulheres com a saia. Em seguida referiu-se a outro latifundiário que primeiro fora maçom, depois hipocondríaco e afinal desejou ser banqueiro.
— E que fez para ser maçon, Filipp Stiepánitch? — perguntou-lhe Pigássov.
— Ora, já sabe: deixei crescer a unha do mindinho.
Quem mais achou graça foi Dária Mikháilovna
quando Pigássov pôs-se a falar do amor e a afirmar que por ele suspirava, que uma fogosa alemã chegou a chamá-lo de “delicioso Afrikanzinho”. A anfitriã ria, porém Pigássov não mentia: tinha realmente o direito de gabar-se de suas conquistas. Assegurava nada haver de mais fácil que levar uma mulher a perder a cabeça: basta repetir-lhe durante dez dias seguidos que seus lábios são o paraíso, os olhos o céu e que, em comparação com ela, as demais mulheres não passam de megeras; no décimo primeiro dia ela própria estará a dizer que seus lábios são o paraíso e os olhos o céu, e que nos ama. Neste mundo tudo é possível, e talvez Pigássov tenha razão.
Às nove e meia Rúdin estava no caramanchão. Nas profundezas distantes e pálidas do céu iam surgindo as primeiras estreias; o ocidente ainda estava coberto de purpura e ali o horizonte mostrava-se claro e límpido; a lua minguante brilhava como ouro através da tela negra de uma bétula plangente. As demais árvores ou se projetavam isoladas como gigantes lúgubres com milhares de reflexos que lembravam olhos, ou fundiam-se em massas compactas e sombrias. Nenhuma folha se movia; os galhos superiores dos lilases e das acácias pareciam atentos e se estendiam pelo ar cálido. Próxima, a massa escura de uma casa; as longas janelas iluminadas desenhavam-se como manchas avermelhadas. A noite era calma e meiga; no silencio, porém, ouvia-se o suspirar de uma paixão contida.
De pé, os braços cruzados sobre o peito, Rúdin ouvia com atenção tensa. O coração pulsava-lhe forte, e involuntariamente retinha a respiração. Afinal ouviu passos leves e apressados no caramanchão penetrou Natália.
Rúdin precipitou-se para ela e tomou-lhe as mãos, frias como gelo.
— Natália Aleksieievna! — disse num tremulo balbucio; — quis vê-la... não podia esperar até amanhã. Devo dizer-lhe o que não suspeitava e de que não tinha consciência nem hoje cedo: amo-a!
As mãos de Natália estremeceram ligeiramente nas dele.
— Amo-a — repetiu, e como pude por tanto tempo enganar-me, por que há muito não percebi que a amo? E você?... Natália Aleksieievna, responda-me, e você...
Natália mal podia dominar a própria ansiedade.
— Vê que aqui estou — disse afinal.
— Mas, diga-me, você me ama?
— Parece-me... que sim... — balbuciou ela.
Rúdin apertou-lhe ainda mais as mãos e quis atrai-la a si...
Natália lançou um rápido olhar em torno.
— Solte-me, tenho medo, pressinto que alguém está nos ouvindo. Pelo amor de Deus, tenha cuidado! Volíntsev suspeita.
— Que nos importa ele? Você viu que hoje não lhe respondi. Ah! Natália Aleksieievna, que feliz sou! Já agora nada nos vai separar!
Natália mirou-o nos olhos.
— Solte-me, murmurou, devo ir.
— Um instante...
— Não, solte-me, solte-me...
— Não confia em mim?
— Não é isso; devo ir...
— Pelo menos repita, uma vez mais...
— Você diz que é feliz? — perguntou a moça.
— Eu? Não há homem no mundo mais feliz que eu! Acaso dúvida?
Natália ergueu a cabeça. Belo era seu rosto pálido, nobre, jovem e agitado na penumbra misteriosa do caramanchão, a luz débil que vinha do céu noturno.
— Saiba então — respondeu ela — que serei sua.
— Oh, Deus! — exclamou Rúdin.
No entanto, Natália afastou-se e saiu. Rúdin deixou-se ficar por alguns instantes e depois abandonou lentamente o caramanchão. A lua o iluminava claro o rosto; em seus lábios vagava um sorriso.
— Sou feliz — disse a meia voz. Sim, sou feliz — repetiu, como se desejasse convencer-se a si mesmo.
Retesou-se, sacudiu os anéis dos cabelos e atravessou agilmente o jardim, agitando com alegria os braços.
No entrementes, no caramanchão de lilases arbustos se separavam de mansinho e surgia a figura de Pandaliévski. Olhou cuidadosamente em torno, abanou a cabeça, comprimiu os lábios e disse com ar significativo;
— Sim senhor! É preciso levar tudo ao conhecimento de Dária Mikháilovna e desapareceu.
Capítulo VIII
Ao voltar a casa, Volíntsev estava tão triste e sombrio, tão a contragosto respondera a irmã e tão depressa fechara-se no gabinete que ela resolveu mandar um portador a procura de Lejniev. Recorria a ele em todas as ocasiões difíceis. Lejniev mandou dizer-lhe que viria no dia seguinte, na manhã seguinte Volíntsev continuava de mau humor. Quis ir trabalhar após o chá, mas ficou, deitou-se no divã e posse a ler um livro, o que não lhe acontecia com frequência. Não sentia atração pela literatura e, quanto a poesia, simplesmente a temia. “Tão obscuro como poesia” costumava dizer e para confirmar declamava o seguinte verso do poeta Aibulat:
E até o fim do triste dia nem a altiva experiencia e nem a razão logrará amarrotar com a própria mão as cruentas lembranças da vida.
Alexandra Pavlóvna assustada olhava para o irmão, porém não o importunava com perguntas. Ouviu-se uma carruagem aproximar-se.
— Bem — pensou ela, graças a Deus, é Lejniev.
Um criado surgiu e anunciou a chegada de Rúdin.
Volíntsev atirou o livro no chão e ergueu a cabeça.
— Quem é? — indagou.
Rúdin, Dmítri Nikoláitch — repetiu o servo.
Volíntsev ergueu-se.
— Que entre — proferiu. — Deixa-nos a sós, irmã — acrescentou, dirigindo-se a Alexandra Pavlóvna.
— Mas por quê?
— Sei o que faço — atalhou-a com veemência; — peço-te.
Rúdin entrou. De pé ao centro da peça, Volíntsev inclinou-se friamente e não lhe estendeu a mão.
— Creio que não me esperava — disse Rúdin e colocou o chapéu na janela.
Os lábios tremeram-lhe ligeiramente. Sentia-se canhestro, mas procurava ocultar o embaraço.
— Realmente, não o esperava — respondeu Volíntsev. — Após o dia de ontem, só poderia esperar alguém com um recado de sua parte.
— Compreendo o que quer dizer — disse Rúdin, sentando-se, muito me alegra sua franqueza. Tanto melhor. Vim aqui por saber que é pessoa de sentimentos nobres.
— Não poderíamos dispensar as lisonjas? — observou Volíntsev.
— Desejo explicar-lhe o motivo de minha visita.
— Somos amigos: por que não nos frequentarmos? Ao demais, não é a primeira vez que me honra com sua presença.
— Já que é homem de bem, procuro-o na mesma qualidade — repetiu Rúdin. — Desejo agora valer-me de seu próprio julgamento... Deposito-lhe a mais plena confiança...
— Mas de que se trata? — inquiriu Volíntsev, que continuava na mesma posição e lugubremente olhava
para Rúdin, de quando em quando repuxando as pontas do bigode.
— Perdão... vim para uma explicação, não nego; todavia, é impossível dizer tudo de uma só vez.
— Por que não?
— Uma terceira pessoa está envolvida no assunto...
— Que terceira pessoa?
— Sierguiei Pávlitch, você sabe o que quero dizer.
— Dmítri Nikoláitch, não sei absolutamente aonde quer chegar.
— Então deseja...
— Desejo que fale sem subterfúgios! — exclamou Volíntsev.
Começava a ficar realmente colérico.
Rúdin franziu a testa.
— Pois não... estamos sós... Devo dizer-lhe — aliás, é provável que já percebeu do que se trata (Volíntsev, impaciente, deu de ombros) devo dizer-lhe que amo Natália Aleksieievna e tenho o direito de supor que também ela me ama.
Volíntsev empalideceu, mas nada respondeu; aproximou-se da janela e ficou de costas para Rúdin.
— Compreenda, Sierguiei Pávlitch — continuou Rúdin — que se não tivesse certeza...
— Ora, ora, ora! — atalhou-o impetuosamente Volíntsev. — De nada duvido. Pois bem! Que lhe faça bom proveito! Só me admira isto: por que diabo teve a ideia de trazer-me essa notícia? Que tenho a ver com o caso? Que me importa a quem ame e quem o ame? Com franqueza: não o entendo.
Volíntsev continuava a olhar para fora da janela. Surdo era o tom de sua voz.
Rúdin levantou-se.
— Vou dizer-lhe, Sierguiei Pávlitch, porque resolvi procurá-lo, porque não me considerei com o direito de ocultar-lhe nosso... nossa inclinação mútua. Respeito-o muito e por isso aqui estou; não quis... ambos não queremos representar diante de você uma comédia. Soube de seus sentimentos em relação a Natália Aleksieievna... Creia que conheço meu próprio valor: sei quão pouco mereço substituí-lo no coração da moça; contudo, já que tal devia acontecer, seria melhor usar de astúcias, embustes e hipocrisia? Seria melhor estarmos sujeitos a mal entendidos ou mesmo a possibilidade de cenas como a que houve ontem ao jantar? Que acha, Sierguiei Pávlitch?
Volíntsev cruzou os braços sobre o peito como a esforçar-se por se dominar.
— Sierguiei Pávlitch! — continuou Rúdin. — Feri seus sentimentos, confesso. No entanto, tenta nos compreender... veja que não tínhamos outro meio de demonstrar-lhe nosso respeito por sua sincera nobreza. A franqueza, a sinceridade absoluta não seria aconselhável em relação a todos, relação a todos, mas em relação a você é um dever. Alegra-nos saber que nosso segredo está em suas mãos.
Volíntsev prorrompeu em gargalhadas forçadas.
— Grato pela confiança! — exclamou, embora, note bem, não queria nem saber desse segredo e nem lhe revelar o meu, mas você dispõe dele como se fosse patrimônio próprio. Mas, com licença: suponho que não fala só por si. Por conseguinte, posso admitir que Natália sabe de sua visita e do objetivo dela?
Rúdin ficou um tanto perturbado.
— Não; não comuniquei a Natália Aleksieievna
meu propósito; todavia, sei que concorda com meu modo de pensar.
— Tudo isso é muito bonito — continuou Volíntsev ao cabo de curto silencio, e pôs-se a tamborilar no vidro com os dedos, contudo, confesso, seria muito melhor se você me respeitasse menos. A dizer a verdade, seu respeito nem ao diabo aproveita; mas que quer agora de mim?
— Nada quero... ou, melhor, desejo isto: que não me considere insidioso e astuto, que me compreenda. Espero que já agora não pode duvidar de minha sinceridade. Aspiro a que continuemos amigos e que, como antes, continue a estender-me a mão!
E Rúdin aproximou-se de Volíntsev.
— Desculpe-me, ilustre cavalheiro — proferiu Volíntsev voltando-se e dando um passo atrás, estou pronto a fazer plena justiça as suas intenções; tudo isso é muito belo, mesmo elevado, admitamos, mas somos gente simples, alimentamo-nos do trivial, não estamos em condições de acompanhar os voos de espíritos tão profundos como o seu... O que lhe parece sincero temos como importuno e imodesto. O que lhe é simples e claro, para nós é confuso e obscuro. Ostenta aquilo que dissimulamos: quem somos nós para entendê-lo?! Perdoe-me, mas não posso considerá-lo amigo e nem lhe estender a mão. Talvez seja uma mesquinharia, mas eu próprio sou mesquinho.
Rúdin pegou do chapéu.
— Sierguiei Pávlitch! — disse tristemente. — Adeus! Falhou-me a expectativa. De fato, minha visita é bem estranha, mas esperava que você... (Volíntsev fez um movimento de impaciência) ... Desculpe, não mais mencionarei o assunto. Tudo considerado, vejo que tem l'uzuo e não poderia proceder de outro modo. Adeus e permita, pelo menos uma vez mais, a última, assegurá-lo (ia pureza de minhas intenções... Estou certo de sua distração...
— Está ultrapassando os limites! — exclamou Volíntsev e tremeu de cólera. — Nunca pretendi sua confiança e, por isso, não tem nenhum direito de contar com minha discrição!
Rúdin quis dizer algo, porém limitou-se a um gesto de mãos, inclinou-se e saiu, enquanto Volíntsev atirava-se ao divã e voltava o rosto para a parede.
— Pode-se entrar? — ouviu-se a porta a voz de Alexandra Pavlóvna.
Volíntsev não respondeu logo e as escondidas passou a mão pelo rosto.
— Não, Sacha — respondeu com voz um tanto transtornada. — Espera um pouco.
Meia hora depois Alexandra Pavlóvna de novo chegou a porta.
— Mikhaílo Mikhaílitch está aqui — anunciou ela. — Queres vê-lo?
— Sim — respondeu Volíntsev, que venha.
Lejniev entrou.
— Que há? Estás doente? — indagou, sentando-se na poltrona ao lado do divã.
Volíntsev soergueu-se, apoiou-se no cotovelo, esteve longamente a olhar para o amigo e então repetiu-lhe a conversa com Rúdin, palavra por palavra. Até então nunca insinuara a Lejniev seus sentimentos em relação a Natália, embora pressentisse que para ele não eram segredo.
— Bem, irmão, estou perplexo — observou Lejniev logo que o outro terminou o relato. — Muita surpresa esperava dele, mas isso... Aliás, aí também se revela o que é.
— Com mil raios! — exclamou Volíntsev, agitado. — É simplesmente uma insolência! Estive a ponto de atirá-lo fora da janela! Queria gabar-se diante de mim, ou se acovardou? E a que propósito? Decidir-se a procurar uma pessoa...
Volíntsev atirou as mãos atrás da cabeça e calou-se.
— Não, irmão, não é o que julga — replicou tranquilamente Lejniev. — Talvez não me creia, mas o fato é que ele o fez com boa intenção. É verdade... Além de demonstrar nobreza e sinceridade, era uma ocasião que se apresentava para falar, e se pôs eloquente; é uma de suas necessidades, e sem atender a ela não pode viver. A língua lhe é inimiga, mas também serva.
— Com que solenidade entrou e falou, não pode ter uma ideia!
— Bem, não pode deixar de ser assim. Ao abotoar uma sobrecasaca parece cumprir um dever sagrado. Gostaria de colocá-lo numa ilha deserta e de observar-lhe o comportamento ali. E fala de simplicidade!
— Irmão; diga-me, pelo amor de Deus — inquiriu Volíntsev que é isso? Filosofia?
— Como dizer-lhe? Por um lado, não há dúvida de que se trata de filosofia, mas por outro, em absoluto não é. Não se deve culpar a filosofia de um absurdo qualquer.
Volíntsev cravou-lhe os olhos.
— E ele não mentiu, que acha?
— Não, filho meu, não mentiu. Aliás, sabe de uma coisa? Basta de discutir o assunto. Vamos fumar cachimbo e solicitar a companhia de Alexandra Pavlóvna. Perto dela é melhor falar, e mais fácil guardar silencio. Ela nos servirá o chá.
— Pois não — concordou Volíntsev. — Sacha, vem cá! — bradou.
Alexandra Pavlóvna entrou. Ele agarrou-lhe a mão e fervorosamente levou-a aos lábios.
Rúdin voltou a casa em estado de espírito estranho e tumultuoso. Estava irritado e censurava-se de infantilidade e precipitação imperdoável. Bem disse alguém nada haver de mais penoso que a consciência do erro há pouco cometido.
O arrependimento torturava-o.
— Foi uma ideia do demônio — murmurou — entre dentes, procurar esse latifundiário! Que inteligência tenho! Sujeitar-me a desaforos!
Entrementes, na casa de Dária Mikháilovna ocorria algo fora da rotina. A própria dona da casa não aparecera durante toda a manhã e não comparecera ao almoço; segundo a informação de Pandaliévski, a única pessoa que recebia, ela estava com dor de cabeça. Rúdin também quase não via Natália, que se conservava em seus aposentos com Mlle. Boncourt... Encontrando-se com o hóspede na sala de jantar, a francesa olhou-o com tanta tristeza que ele sentiu uma pontada no coração. A governanta estava com as feições diferentes, como se uma desgraça lhe acontecera desde o dia anterior. Vagos pressentimentos começaram a torturar Rúdin. A fim de distrair-se de alguma forma, ocupava-se de Bassistov, conversava com ele muito e verificou tratar-se de jovem ardente e vivo, que alimentava grandes esperanças e uma fé ainda virgem.
À tarde Daria Mikhâilovna esteve por umas duas horas na sala de visitas. Foi amável com Rúdin, mas se mantinha um pouco a distância, ora ria e ora franzia a testa, falava fanhoso e no mais das vezes através de insinuações. Era toda a dama palaciana que se manifestava. Parecia haver esfriado um tanto seu entusiasmo em relação a Rúdin.
— Que mistério é esse? — pensava ele, olhando de soslaio para sua cabeça erguida.
Não teve que esperar muito a revelação do enigma. Ao voltar para o quarto, as doze horas da noite, no corredor escuro súbito alguém lhe meteu na mão um bilhete. Olhou em torno: afastava-se dele uma jovem, que lhe pareceu ser a camareira de Natália. Entrou na alcova, mandou que o criado se retirasse, abriu o bilhete e leu as seguintes linhas, escritas por Natália:
“Vá amanhã de manhã, as sete horas o mais tardar, ao Lago Avdiúkhin, atrás do carvalhal. Qualquer outra hora não serve. Será nosso último encontro, e tudo terá fim, se... Não deixe de ir. Precisamos resolver...
P. S. Se eu não comparecer, significa que não mais nos veremos: nesse caso escrever-lhe-ei.”
Rúdin ficou pensativo, examinou o recado, colocou-o sob o travesseiro, despiu-se, deitou-se, mas não adormeceu logo; teve sono leve, e ainda não eram cinco horas da madrugada quando despertou.
Capítulo IX
O Lago Avdiúkhin, a beira do qual Natália marcara
0 encontro com Rúdin, há muito deixará de ser lago. Há uns trinta anos havia rompido a represa e desde então ficara abandonado. Só pelo leito igual e liso da ravina, outrora coberto de lodo pegajoso, e pelos restos da represa podia-se perceber que ali houvera um lago. Ao lado havia existido uma vila, há muito desaparecida. Dois imensos pinheiros lembravam-na; o vento sibilava sem cessar e lugubremente agitava as folhas verdes.
Corriam entre o povo rumores misteriosos de crimes horríveis que teriam sido cometidos a sua sombra; falava-se também que nenhum deles cairia sem causar morte de alguém; que antes ali havia mais um pinheiro, que uma tempestade desabara e esmagara uma moça. Toda a região em torno do velho lago era considerada fatídica; vazia e nua, porém árida e lúgubre, mesmo nos dias de sol, parecia ainda mais estéril e tétrica em vista (Ia proximidade de um velho carvalhal, há muito morto e seco. Os raros esqueletos cinza das enormes árvores elevavam-se qual fantasmas tristes acima de arbustos rasteiros. Dava medo olhá-los tinha-se a impressão de que velhos maus estavam reunidos a arquitetar algo tenebroso. Um caminho estreito e raramente palmilhado serpeava ao lado. Sem grande necessidade ninguém se aventuraria a passar perto do Lago Avdiúkhin. Fora de propósito que Natália escolhera ponto tão isolado. Distava não mais de meia vierstá da casa de Dária Mikháilovna.
O sol há muito nascera quando Rúdin chegou ao Lago Avdiúkhin, mas a manhã não era alegre. Nuvens compactas, cor de leite, cobriam todo o céu; assobiando e ganindo, o vento expulsava-as com rapidez. Rúdin pôs-se a andar para a frente e para trás pela represa, coberta de bardana resistente e urtiga escura. Não se sentia tranquilo. Os encontros e as novas sensações estimulavam-no, mas também o agitavam, em particular após o bilhete do dia anterior. Percebia que se aproximava a solução do caso e intimamente se atormentava, embora ninguém o suspeitaria na firmeza concentrada com que cruzava os braços sobre o peito e olhava em torno. Não por acaso uma vez Pigássov dissera que ele, qual boneco chinês, estava sempre a abanar a cabeça. No entanto, só com a cabeça, por mais poderoso que seja, é difícil ao homem saber mesmo aquilo que nele próprio ocorre...
Rúdin, o inteligente e sagaz Rúdin, não poderia afirmar com certeza se amava ou não Natália, se sofria ou não, ou se iria ou não padecer no caso de separar-se dela. Por que então, já que não pretendia ser nem mesmo um Novelasse devemos render-lhe essa justiça, fizera a pobre donzela perder a cabeça? Por que a esperava naquela ansiedade secreta? Para tal só há uma resposta: ninguém se deixa arrebatar tão facilmente como os temperamentos frios.
Enquanto andava pela represa, Natália apressava-se através do campo, sobre a relva úmida.
— Senhorita, senhorita, está molhando os pés! — dizia-lhe a camareira Mácha, que mal conseguia acompanhá-la.
Natália não lhe prestava atenção e corria sem olhar para trás.
— Oh, se derem por nosso ausência! — continuava Mácha. — É um milagre termos conseguido escapar sem ser vistas. E se Mlle. Boncourt tivesse acordado? Ainda bem que é perto. E ei-lo que espera acrescentou, ao ver de repente a figura imponente de Rúdin, pitorescamente de pé na represa, mas não devia postar-se a vista de todos; seria melhor que estivesse numa depressão.
Natália deteve-se.
— Espera aqui, Mácha, ao pé dos pinheiros — proferiu e desceu ao lago.
Rúdin aproximou-se dela e estacou atônito. Tal expressão ainda não lhe vira no rosto. Os sobrolhos estavam rentes, os lábios contraídos, os olhos miravam fixos e severos.
— Dmítri Nikoláitch — começou ela, não temos tempo a perder. Só disponho de cinco minutos. Devo dizer-lhe que mamãe sabe tudo. O sr. Pandaliévski nos viu anteontem e contou-lhe nossa entrevista. Sempre foi espião de mamãe. Ela ontem falou comigo.
— Santo Deus! —exclamou Rúdin. — Que horror! Mas que disse sua mãe?
— Não se zangou comigo, não me disse palavras rudes e se limitou a me censurar a leviandade.
— Só?
— Sim, e declarou que prefere me ver morta que sua esposa.
— É possível que tenha dito isso mesmo?
— Sim; e acrescentou que você próprio de forma nenhuma deseja casar, que só desejou flertar comigo para distrair-se, e que ela não esperava tal procedimento de sua parte; que, aliás, ela mesma é culpada, pois permitiu-me vê-lo com tanta frequência... que ela conta com meu bom senso, que eu a deixara perplexa... e já não me lembro de quantas coisas mais me disse.
Natália articulou tudo isso com uma voz curiosamente igual, quase sem tonalidade.
— E você, Natália Aleksieievna, que lhe respondeu? — inquiriu Rúdin.
— Que lhe respondi? — repetiu Natália. — O que você agora pretende fazer?
— Santo Deus, Santo Deus! — exclamou Rúdin. — Que crueldade! Tão cedo! Que golpe inesperado! E sua mãe ficou muito indignada?
— Sim... sim; nem ouvir falar de você quer.
— Que horror! Por conseguinte, nenhuma esperança há? i
— Nenhuma.
— Por que somos tão infelizes? É um vil esse Pandaliévski! Pergunta-me, Natália Aleksieievna, que pretendo fazer? Estou tonto e nenhuma decisão posso tomar. Só sinto a desgraça... e me admira que você possa manter o sangue-frio!
— Pensa que me é fácil? — respondeu Natália.
Rúdin entrou a andar pela represa. A moça não lhe
tirava os olhos.
— Sua mãe submeteu-a a interrogatório? — disse ele afinal.
— Perguntou-me se o amo.
— Bem... e que respondeu?
Natália silenciou por um instante.
— Não menti.
Rúdin tomou-lhe a mão.
— Sempre e em tudo nobre e magnânima! Oh, o coração da virgem é feito de ouro puro! Mas é mesmo verdade que sua mãe tão firmemente declarou sua decisão quanto a impossibilidade de nosso consórcio?
— Sim, sem deixar margem a dúvida. Já lhe disse: está convicta de que você próprio não pensa em casar comigo.
— Por conseguinte, ela me considera um impostor! Que lhe fiz para tratar-me assim?
E Rúdin levou as mãos à cabeça.
— Dmítri Nikoláitch! — proferiu Natália. — Estamos gastando tempo em vão. Lembre-se de que é a última vez que o vejo. Não vim aqui para chorar e nem para queixar-me — está vendo que não choro e sim em busca de um conselho.
— Mas que conselho lhe posso dar, Natália Alieksieievna?
— Que conselho? É homem: acostumei-me a confiar em você, e continuarei assim. Diga-me: quais são suas intenções?
— Minhas intenções? É provável que sua mãe não me receba mais em casa.
— Talvez. Já ontem me declarou que será forçada a romper relações com você..., mas não respondeu a minha pergunta.
— Que pergunta?
— Que pensa que devemos fazer agora?
— Que devemos fazer? — retrucou Rúdin. — Submetermo-nos, é claro.
— Submetermo-nos — repetiu lentamente Natália, e seus lábios empalideceram.
— Conformarmo-nos com a sorte — continuou Rúdin. — Que fazer? Sei muito bem quanto é amargo, penoso, insuportável; todavia, julgue você mesma, Natalia Aleksieievna: sou pobre. Verdade é que posso trabalhar; contudo, mesmo se fosse rico, estaria você em condições de suportar a separação de sua família, a cólera de sua mãe? Não, Natália Aleksieievna; nem devemos pensar nisso. Vê-se que não estamos destinados a viver juntos, e a felicidade, com a qual sonhei, não me pertence!
Súbito Natália cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar. Rúdin aproximou-se dela.
— Natália Aleksieievna! Querida Natália! — pôs-se ele a falar com calor. — Não chore, pelo amor de Deus, não me torture, console-se...
A moça ergueu a cabeça.
— Aconselha-me a consolar-me — respondeu ela, e seus olhos brilhavam através das lágrimas, mas não choro pelo motivo que pensa. Não é isso que me causa dor: sofro porque você me decepcionou. Como?! Vim pedir-lhe um conselho e em que instante! e sua primeira palavra é de resignação! Resignação! É assim que põe em prática seus conceitos de liberdade, de sacrifícios, que...
Faltou-lhe a voz.
— Mas, Natália Aleksieievna — retrucou o agitado Rúdin, lembre-se de que... não fujo a minhas palavras... apenas...
— Você me perguntou — continuou ela com novo vigor — o que respondi a minha mãe quando me declarou que preferia minha morte a nossa união: respondi-lhe que antes morrer que se casar com outro. E você
aconselha a renúncia! Portanto, ela tem razão; de fato, você só queria se distrair; brincou comigo...
— Juro, Natália Aleksieievna... afirmo-lhe... — repetia Rúdin, porém ela não lhe dava ouvidos.
— Por que então não me deteve em tempo? Por que você próprio... ou não contava com obstáculos? Sinto vergonha de falar disso..., mas agora tudo está acabado.
— É preciso acalmar-se, Natália, Aleksieievna — replicou Rúdin, é necessário pensarmos os dois, que medidas...
— Com tanta frequência falou de auto sacrifício — atalhou-o ela, mas sabe que se me dissesse hoje, agora mesmo: “Amo-te, mas não posso casar, não respondo pelo futuro, estende-me a mão e segue-me” — sabe que o acompanharia, sabe que estava disposta a tudo? No entanto, há grande distância entre a palavra e ação, e agora está tão acovardado quanto anteontem, ao jantar, diante de Volíntsev.
O rubor aflorou as faces de Rúdin. A exaltação inesperada de Natália impressionou-o, porém, suas últimas palavras feriram o amor-próprio.
— Está muito irritada, Natália Aleksieievna — respondeu, não pode compreender quão cruelmente me ofende. Espero que com o tempo me renderá justiça; compreenderá quanto me custou recusar a felicidade que, como você mesma diz, não me impunha nenhum compromisso. Acima de tudo no mundo prezo a sua felicidade, e seria o homem mais vil se decidisse valer-me...
— Talvez, talvez — interrompeu-o Natália, talvez tenha razão, e ou não saiba o que esteja falando. No entanto, até agora tinha confiança em você, acreditava em cada uma de suas afirmações. Doravante, por favor, pese suas palavras, não as lance ao vento. Quando lhe
disse que o amo, sabia da significação da palavra: estava disposta a tudo. Agora só me resta agradecer-lhe a lição e despedir-me.
— Espere, pelo amor de Deus, Natália Aleksieievna, suplico-lhe. Não mereço seu desprezo, juro-lhe. Ponha-se no meu lugar. Respondo por você e por mim. Se eu não lhe dedicasse o amor mais profundo sim, santo Deus!
— Agora mesmo eu próprio lhe proporia fugir comigo. Cedo ou tarde, sua mãe nos perdoaria... e então... Contudo, antes de pensar na minha própria felicidade...
Calou-se aí. O olhar de Natália, fixo diretamente nele, o perturbava.
— Procura demonstrar-me que é honesto, Dmítri Nikoláitch — proferiu ela. — Não duvido. Não pode agir por cálculo; mas era disso que queria me convencer, foi para tanto que vim aqui...
— Fui tomado de surpresa, Natália Aleksieievna...
— Ah, é aí que se revela! Sim, não esperava tudo isso, não me conhecia. Não se incomode... você não me ama, e não pretendo impor-me a ninguém.
— Amo-a — exclamou Rúdin.
Natália empertigou-se.
— Talvez; mas de que maneira! Lembro-me de todas as suas palavras, Dmítri Nikoláitch. Recarda-se do que me falou? Sem plena igualdade não há amor... Para eu está colocado era altura muito elevada, não há termo de comparação entre nós. Bem feito! fui castigada. Pretendi coisas mais dignas de você. Jamais me esquecerei do dia de hoje. Adeus!
— Natália Alksieievna, vai-se embora? É possível que nos separemos assim?
E estendeu para ela os braços. A moça se deteve. A voz suplicante de Rúdin pareceu fazê-la vacilar.
— Não — proferiu ela afinal, sinto que algo se rompeu em mim. Aqui vim e falei com você como se estivesse febril; é preciso que volte a meus sentidos. Não deve suceder, você mesmo o disse, e assim será. Santos Deus! quando marchava para aqui, despedia-me intimamente de minha casa, de todo meu passado e que houve? quem encontrei aqui? Um pusilânime! E por que sabe que não sou capaz de suportar a separação da família? “Sua mãe não concorda... Que horror! “É tudo o que ouvi de você. Você é assim, você é assim, Rúdin? Não! Adeus... Ah! se de fato me amasse eu o sentiria agora neste instante... Não, não, adeus!
Voltou-se rapidamente e correu para Mácha, que havia muito começara a intranquilizar-se e a fazer-lhe sinais.
— É você que se acovarda, e não eu! — bradou-lhe Rúdin ao encalço.
Ela já não lhe prestava atenção e apressava-se para a casa, através do campo. Voltou sem contratempo a alcova, mas, apenas transposto o limiar da porta, as forças lhe faltaram e sem sentidos caiu nos braços de Mácha.
Quanto a Rúdin, ainda deixou-se ficar por muito tempo na represa. Afinal, um calafrio percorreu o corpo, a passos trôpegos tomou o caminho estreito e lentamente avançou por ele. Estava muito envergonhado e desgostoso.
— Que mulher! — pensava. — E aos dezoito anos! não, não a conhecia. Notável criatura! Que força de vontade! Tem razão; merece o amor, mas não o que eu por ela sentia. Sentia? — perguntou a si mesmo. — Será que não mais o sinto? E assim devia terminar tudo! Quão mesquinho e insignificante fui diante dela!
O leve rolar de uma aranha de corrida levou Rúdin a erguer os olhos. Dele se aproximava Lejniev, dirigindo o seu invariável trotão. Rúdin contemplou-o em silencio, e, talvez impressionado por ideia instantânea, largou a estrada e tomou rapidamente o rumo da mansão de Dária Mikháilovna.
Lejniev esperou que se afastasse, acompanhou-o com os olhos e, após pensar um instante, também tocou para trás o animal e voltou para a casa de Volíntsev, em que passara a noite. Encontrou-o dormindo, não quis que o acordassem e, enquanto esperava o chá, sentou-se na varanda e acendeu o cachimbo.
Capítulo X
Volíntsev levantou-se as 10 horas e, ao saber que Lejniev estava na sacada, ficou muito admirado e mandou que o chamassem.
— Que houve? — perguntou-lhe. — Não ia para casa?
— Sim, mas encontrei Rúdin. Estava só a andar pelo campo, a fisionomia tão transtornada, que resolvi voltar.
— Voltou porque encontrou Rúdin?
— Isto é para dizer a verdade, eu próprio não sei por que voltei; provavelmente porque me lembrei de você; senti vontade de ficar mais um pouco em sua companhia; não tenho pressa de voltar a casa.
Volíntsev sorriu irônica e orgulhosamente.
— Sim, não se pode pensar agora em Rúdin sem pensar também em mim. — Criado! — gritou — Serve-nos chá.
Os dois amigos puseram-se a tomar chá. Lejniev entrou a falar de sua propriedade, de um novo processo de cobrir celeiros com papel...
Súbito Volíntsev saltou da poltrona e com tanto vigor deu um soco na mesa que as xícaras e os pires retiniram.
— Não! — exclamou. — Não suporto mais tudo isso! Vou desafiar esse sabichão, e que ele me acerte, porque,
se não, procurarei meter-lhe uma bala na caixa da inteligência!
— Que é isso, que é isso? Tenha paciência! — tartamudeou Lejniev. — Por que gritar assim? Até deixei cair o chibuque. Que há com você?
— Não posso ouvir-lhe o nome com indiferença: fico com o sangue a ferver.
— Basta, irmão, basta! Não sente vergonha? — replicou Lejniev, erguendo o cachimbo do chão. — Esqueça-o! O diabo que o leve!
— Ofendeu-me — continuou Volíntsev, dando passadas largas pela peça. — Sim! ofendeu-me! Você mesmo deve achar que sim. A princípio não o compreendia, era para mim um enigma; sim, e quem poderia esperá-lo? Mas vou mostrar-lhe que não se brinca comigo impunemente. Vou matá-lo, esse amaldiçoado filósofo, como se mata uma perdiz.
— E ganhará muito com isso, pois não! Já não falo de sua irmã. É claro que está dominado por paixão violenta... e nem pensa na própria irmã! Em relação a outra pessoa, julga que, uma vez morto o filósofo, conseguirá o que deseja?
Volíntsev atirou-se na poltrona.
— Então vou tomar um rumo qualquer! Aqui a tristeza me sufoca o coração! nem sei o que fazer de mim!
— Ir embora... é outra coisa! Nisso estamos de acordo. E sabe o que lhe proponho? Vamos juntos — para o Cáucaso ou simplesmente para a Ucrânia, comer seus bolinhos de massa cozidos na sopa ou ao forno. Magnífica ideia, irmão!
— Sim; e minha irmã, com quem vamos deixar?
— E por que Alexandra Pavlóvna não vai conosco? Seria esplendido, juro! Cuidar dela — disso me incumbo!
Não faltará nada; se quiser, toda noite haverá uma serenata a sua janela; o cocheiro recenderá a água de colônia, e de flores as estradas cobrirei. Eu e você, irmão, renasceremos; vamos nos divertir tanto, voltaremos de barriga tão grande que nenhum amor não mais nos tentará!
— Sempre pilheriando, Micha!
— De modo nenhum. Foi sua cabeça que teve essa brilhante ideia.
— Não, é uma tolice! — bradou de novo Volíntsev. — Quero lutar, bater-me contra ele!
— De novo! Está hoje com a cachorra, irmão!
Um lacaio entrou com uma carta na mão.
— De quem é? — indagou Lejniev.
— De Rúdin, Dmítri Nikoláitch. Trouxe-a um criado de em Lassúnskaia.
— De Rúdin? — repetiu Volíntsev; — para quem?
— Para o senhor.
— Para mim?... dá cá.
Volíntsev agarrou a carta, abriu-a rapidamente e entrou a lê-la. Lejniev olhava-o atentamente: uma perplexidade estranha, quase alegre, refletia-se no rosto do amigo, que deixou pender os braços.
— De que se trata? — inquiriu Lejniev.
— Leia — respondeu Volíntsev a meia voz e estendeu-lhe a missiva.
Lejniev pôs-se a ler. Vejamos o que escrevia Rúdin:
“Meu caro sr. Sierguiei Pávlovitch!
“Retiro-me hoje da casa de Dária Mikháilovna, e para sempre. É provável que essa minha atitude lhe cause espanto, sobretudo após o que houve ontem. Não posso explicar-lhe o que realmente me obriga a assim proceder: no entanto, sinto que devo lhe anunciar minha
partida. O senhor não me aprecia, e mesmo me considera sem caráter. Não tenciono justificar-me: o tempo me renderá justiça. A meu ver é tanto indigno do homem quanto inútil demonstrar a um supersticioso a improcedência de seus preconceitos. Aquele que quiser compreender-me me perdoará, e aquele que não quer ou não pode me entender — suas acusações não me atingem. Enganei-me a seu respeito. A meus olhos continua a ser o mesmo homem nobre e honesto; todavia, supunha que se saberia se colocar acima do meio em que cresceu... Enganei-me. Que fazer? Não é a primeira vez e nem será a última. Repito: parto. Desejo que seja feliz. Creia que esse desejo é todo desinteressado, e espero que agora será feliz. Talvez com o tempo modificará a opinião que tem de mim. Não sei se ainda nos veremos alguma vez, mas em todo caso, acredite no sincero respeito de
D. R.
“P. S. Vou mandar os duzentos rublos que lhe devo logo que chegar a minha aldeia, província X. Peço-lhe também não mencionar esta carta na presença de Dária Mikháilovna.”
“P. P. S. Outro pedido, o último, porém importante: já que agora me afasto, espero que revelará a Natália Aleksieievna a visita que lhe fiz”.
— Bem, que diz? — indagou Volíntsev logo que Lejniev acabou de ler a carta.
— Nada há a dizer! — retrucou Lejniev. — Exclamemos a oriental: “Alá! Alá!” e coloquemos na boca o dedo da estupefação — é tudo o que nos cabe fazer. Ele parte... Pois não! A estrada que lhe seja leve. Há, porém, um ponto curioso: também considerou dever mandar-lhe esta carta, e visitou-o por um sentimento de dever... A i-.ada passo esses senhores estão as voltas com o sentimento do dever, e tudo é dever mais dever — acrescentou Lejniev com um sorriso zombeteiro e apontando para o postscriptum.
— E que retórica! — exclamou Volíntsev. — Eu o decepcionei: esperava que me erguesse acima de certo meio... Que tolice, santo Deus! Pior que poesia!
Lejniev nada respondeu; só seus olhos sorriam. Volíntsev levantou-se.
— Desejo ver Dária Mikháilovna — disse. — Quero saber o que tudo isso significa.
— Espere, irmão: de tempo a que ele se vá. Para que chocar-se outra vez contra ele? O fato é que desaparece — que mais quer? É melhor que se deite e durma um pouco; esteve durante toda a noite a virar-se na cama, mas agora suas coisas se encaminham bem...
— Por que você chega a essa conclusão?
— Assim me parece. Realmente, seria melhor que dormisse um pouco, enquanto vou fazer companhia a sua irmã.
— Não estou com sono nenhum. Porque iria dormir-Prefiro ir examinar a lavoura — disse Volíntsev ajeitando as abas do sobretudo.
— A ideia não é má. Vá então, irmão, vá olhar os campos...
E Lejniev encaminhou-se para os aposentos de Alexandra Pavlóvna. Encontrou-a na sala de visitas. Ela o acolheu amavelmente. Sempre sentia prazer em vê-lo, mas sua fisionomia continuou triste. Intranquilizava-a a visita feita por Rúdin no dia anterior.
— Esteve com meu irmão? — perguntou a Lejniev. — Que tal está ele hoje?
— Bem; foi ver a lavoura,
Alexandra Pavlóvna silenciou por um instante.
— Diga, por favor — começou ela, examinando com atenção a fímbria do lenço, sabe por que...
— Rúdin esteve aqui? — concluiu Lejniev. — Sei: veio despedir-se.
Alexandra Pavlóvna ergueu a cabeça,
— Como? Despedir-se?
— Sim. Será que não sabe? Ele se retirara da casa de Dária Mikháilovna.
— Vai embora?
— Para sempre; pelo menos é o que diz.
— Mas como compreendê-lo, depois de tudo o que...
— Compreender é outra coisa. Não é possível entendê-lo, pois assim é seu temperamento. Talvez algo tenha havido entre eles. A corda estava muito tensa e rompeu-se.
— Mikháilo Mikhaílitch! — exclamou Alexandra Pavlóvna — nada percebo; parece-me que está caçoando de mim...
— Ora, juro que não! Só lhe digo que ele parte, e mesmo informa os amigos por escrito a respeito. Concede que, de certo ponto de vista, o fato não é mau; no entanto, sua partida impediu a realização de um plano muito interessante, que eu e seu irmão havíamos começado a discutir.
— Que diz? Que plano?
— Espere. Propus a seu irmão que fossemos fazer uma viagem de recreio, e levaríamos você conosco. Prometi cuidar sobretudo de você.
— Magnífico! — exclamou Alexandra Pavlóvna. — Imagino como cuidaria de mim. Iria morrer de fome.
— Assim fala porque não me conhece, Alexandra Pavlóvna. Pensa que sou um estúpido, um idiota completo, um perna de pau; saiba, porém, que sou capaz de me derreter como tablete de açúcar, e passar dias e dias de joelho.
— Confesso que gostaria de vê-lo!
Lejniev ergueu-se de chofre.
— Case comigo, Alexandra Pavlóvna, e verá tudo isso.
Alexandra Pavlóvna enrubesceu até as orelhas.
— Que disse, Mikhaílo Mikaílitch? — falou perplexa.
— Disse — respondeu Lejniev — o que há muito e milhares de vezes veio a boca. Afinal consegui expulsá-lo, e você pode reagir como quiser. E, a fim de não a importunar, retiro-me agora. Se desejar ser minha esposa... Vou-me. Se não for contra, basta que me mande chamar; compreenderei...
Alexandra Pavlóvna quis reter Lejniev, mas ele saiu às pressas e sem chapéu. Dirigiu-se ao jardim, apoiou-se na cancela e estendeu a vista ao longe.
Mikhaílo Mikhaílitch! — ouviu-se atrás dele a voz da camareira. a barinia quer vê-lo. Mandou chamá-lo.
Mikhaílo Mikhaílitch voltou-se, para grande espanto da criada tomou-lhe a cabeça com ambas as mãos e beijou-lhe a testa, e encaminhou-se para Alexandra Pavlóvna.
Capítulo XI
Ao voltar a casa imediatamente após o encontro com Lejniev, Rúdin fechou-se no quarto e escreveu duas cartas: uma a Volíntsev, que já é do conhecimento dos leitores, e outra a Natália. Quanto a essa, esteve longo tempo a redigi-la, muito nela emendou e refez e, após copiá-la cuidadosamente em papel fino de carta, dobrou-a tanto quanto possível e a colocou no bolso. Com a dor estampada no rosto, andou várias vezes pelo quarto, sentou-se na poltrona diante da janela e apoiou a cabeça na mão; lágrimas mansas surgiram-lhe nas pestanas... Ergueu-se, abotoou-se todo, chamou o criado e mandou-o perguntar a Dária Mikháilovna se podia vê-la.
O lacaio voltou logo e informou que a dona da casa estava a sua espera. Rúdin foi ter com ela, que o acolheu no gabinete como da primeira vez, dois meses antes. Agora, porém, não estava só: a outra pessoa era Pandaliévski, modesto, loução, asseado e melífluo como sempre.
Dária Mikháilovna saudou amavelmente Rúdin, e este inclinou-se com cortesia, mas nos rostos sorridentes de ambos qualquer pessoa, mesmo pouco experiente, perceberia logo que entre eles algo ia mal, embora não confessado. Rúdin sabia que Dária Mikháilovna estava agastada com ele, e a anfitriã suspeitava que o hóspede já soubesse de tudo.
A denúncia de Pandaliévski a deixara transtornada. A arrogância de fidalgo nela se sublevava. Rúdin — pobre, sem títulos e por enquanto desconhecido — tivera u ousadia de marcar encontro com sua filha — com a filha de Dária Mikháilovna Lassúnskaia!
— Admitamos que seja inteligente, um gênio! — retorquiu ela, mas isso o que prova? Assim qualquer um poderia candidatar-se a meu genro.
— Estive por longo tempo a não crer nos próprios olhos! — acrescentou Pandaliévski. — Admira-me que muitos não saibam colocar-se no lugar que lhes compete!
Dária Mikháilovna estava muito agitada e Natália arcava com as consequências.
Mme. Lassúnskaia pediu a Rúdin que se sentasse. Ele o fez, mas já não como o Rúdin de antes, quase dono da casa, nem como bom amigo, e sim como visitante e não íntimo. Tudo isso se fizera num abrir e fechar de olhos... Também água de repente se transforma em gelo duro.
— Aqui estou, Dária Mikháilovna — começou Rúdin — para agradecer sua hospitalidade. Acabo de receber uma notícia de minha aldeia e devo hoje mesmo partir, sem falta.
A dona da casa olhava-o fixamente.
“Antecipou-me; penso que pressentiu tudo — pensava ela. — Livra-me de unia explicação penosa; tanto melhor. Vivam os inteligentes!”
— Será possível? — proferiu ela em tom elevado.
— Oh, quanto sinto! Pois bem: que fazer? Espero vê-lo no próximo inverno em Moscou. Em breve partiremos.
— Não sei, Dária Mikháilovna, se poderei estar cm Moscou, mas se conseguir meios será um dever vê-la.
“Ora veja, irmão! — pensou por sua vez Pandaliévski, há pouco dispunha disto aqui como se fosse o próprio dono, mas agora como se expressa!”
— Pelo que posso concluir recebeu má notícia da aldeia? — indagou ele com a habitual voz arrastada.
— Sim — respondeu Rúdin secamente.
— Má colheita, talvez?
— Não... outro assunto... Acredite, Dária Mikháilovna — acrescentou Rudin — que nunca me esquecerei dos dias em que estive em sua casa.
— E eu, Dmítri Nikoláitch, sempre me lembrarei com prazer de nossas relações. Quando parte?
— Hoje depois do jantar.
— Que pressa! Bem, desejo-lhe boa viagem. Aliás, se seus negócios não o retiverem, talvez ainda nos encontre aqui.
— Disponho de pouco tempo — retrucou Rúdin e ergueu-se. — Desculpe-me — acrescentou, não posso agora pagar o que lhe devo; porém, logo que chegue a aldeia...
— Basta, Dmítri Nikoláitch! — atalhou-o a dama.
— Quem está pensando em dívida? Mas que horas são? — indagou.
Pandaliévski tirou do bolso do colete um reloginho de ouro esmaltado e olhou para ele, cuidadosamente inclinando a face rosa sobre o colarinho duro e branco.
— Duas horas e trinta e três minutos — respondeu.
— É hora de vestir-me — observou Dária Mikháilovna. — Até logo, Dmítri Nikoláitch!
Rúdin levantou-se. Toda a conversa entre ele e a anfitriã tivera caráter protocolar. Os atores assim ensaiam os papéis, nas conferências ou diplomatas assim trocam frases de antemão preparadas...
Rúdin retirou-se. Agora sabia, pela própria experiencia, que a alta sociedade não chega a atirar fora: simplesmente deixa cair o indivíduo que se tornou desnecessário, como o faz com a luva após o baile, o papel que embrulhava o doce, o bilhete branco da loteria.
Pez a mala às pressas e com impaciência começou a esperar o instante da partida. Todos os da casa admiraram muito ao saber de sua intenção; até a criadagem olhava-o perplexa. Bassistov não escondia sua amargura. Natália evitava-o claramente. Procurava não o encarar; no entanto, ele conseguiu passar-lhe a mão a carta. Ao jantar Dária Mikháilovna repetiu uma vez mais que esperava vê-lo antes de partir para Moscou, porém Rúdin nada respondeu. Pandaliévski era o que mais lhe dirigia a palavra. Por mais de uma vez Rúdin teve ímpetos de atirar-se sobre ele e amassar o rosto loução e corado. Com estranha malícia nos olhos, Mlle. Boncourt olhava com frequência para Rúdin; nos cães de mostra velhos e muito inteligentes pode-se as vezes notar tal expressão...
— Sim senhor! — parecia ela dizer com seus botões. — Vieste buscar lã e saíste tosquiado!
Afinal bateram seis horas e o tarantas de Rúdin surgiu diante da casa. lie despediu-se apressadamente de todos. Sentia a alma em pandarecos. Não esperava que assim saísse daquela casa: tinha a impressão de que o expulsavam...
— A que situação cheguei! E para que tanta pressa? Aliás, ponhamos ponto final em tudo — é o que pensava, inclinando-se para todos os lados com um sorriso contrafeito. Pela última vez olhou para Natália, e sentiu uma pontada no coração: o triste adeus de seus olhos era cheio de censura.
Desceu agilmente a escada e subiu no tarantás. Bassistov ofereceu-se a acompanhá-lo a primeira estação e sentou-se ao lado dele.
— Lembra-se — disse Rúdin logo que a carruagem saiu do pátio e tomou a larga estrada, ladeada de abetos, lembra-se do que disse Dom Quixote a seu escudeiro quando saiu do palácio da duquesa? “A liberdade — afirmou, meu amigo Sancho, é um dos mais preciosos patrimônios do homem, e feliz é aquele a quem o céu deu um pedaço de pão, pelo qual não se sente devedor a ninguém!” O que Dom Quixote sentia então — sinto-o agora. Que Deus lhe permita, meu bom Bassistov, alguma vez experimentar o mesmo!
Bassistov apertou a mão de Rúdin, e o coração do honesto moço palpitou-lhe forte no peito emocionado. Até a estação falou Rúdin da dignidade do homem, do sentido da liberdade real falou com entusiasmo, nobreza e realismo e quando sobreveio o instante da despedida Bassistov não pode conter-se, atirou-se ao pescoço do amigo e pôs-se a soluçar. O próprio Rúdin derramou lágrimas, mas não chorava por separar-se de Bassistov: seu pranto era o do orgulho ferido.
Natália recolheu-se a alcova e leu a carta de Rúdin.
“Querida Natália Alekieievna o escrevia, resolvi partir. Não encontro outra solução. Resolvi partir antes que pedissem claramente meu afastamento. Com minha retirada cessam todos os mal entendidos, e duvido que alguém lamente minha decisão. Que mais esperar? É coisa assentada; mas para que então escrever-lhe?
“Despeço-me de você provavelmente para sempre, no entanto, deixar-lhe lembrança de mim pior que a que
mereço seria demasiado amargo. Vejamos por que lhe escrevo. Não quero nem me justificar e nem culpar ninguém a não ser eu mesmo: desejo, tanto quanto possível, esclarecer a questão. Os acontecimentos dos últimos dias foram tão inesperados e tão repentinos...
“A entrevista que tive hoje com você me serviu de lição memorável. Sim, tem razão: sem qualquer fundamento, julguei que a conhecia! Durante minha vida tenho tratado com gente de toda espécie e entrado em contato com muitas mulheres e moças; todavia, ao encontrá-la, pela primeira vez fiquei conhecendo uma alma profundamente honesta e franca. Não estava habituado a tanto, e não soube dar-lhe o justo valor. Senti-me atraído por você desde o primeiro instante o que você deve ter notado. Passei com você horas e horas, mas não a fiquei conhecendo; é provável que nem procurasse compreendê-la... e, apesar disso, supunha amá-la! Por esse erro sou agora castigado.
“Já antes amara uma mulher, e ela me amava. Meus sentimentos em relação a ela eram complexos, tanto quanto os dela em relação a mim; todavia, como ela própria não era simples, tudo deu certo. Não percebi então a verdade: também agora não a vi, quando se apresentou diante de mim... Enxerguei-a, afinal, porém demasiado tarde! O passado não volta... Nossas vidas poderiam fundir-se, mas isso nunca acontecerá. Como demonstrar-lhe que poderia amá-la com o verdadeiro amor do coração, e não da imaginação quando eu próprio não sei se sou capaz de tal sentimento!
“A natureza foi liberal comigo bem o seu, e por falsa modéstia não vou me fazer de humilde diante do você, sobretudo agora, em instante tão vergonhoso para mim. Sim, a natureza me deu muito, contudo, morrerei sem fazer nada digno de minhas forças, sem deixar atrás de mim qualquer obra proveitosa. Toda minha riqueza se perderá em vão; não verei minha semente frutificar. Falta-me... eu mesmo não posso dizer o que precisamente me falta. Falta-me, provavelmente, aquilo sem o que tanto é impossível mover o coração dos homens quanto empolgar o coração das mulheres; e o domínio sobre a inteligência, apenas é tão precário quanto inútil. Meu destino é estranho, quase cômico: procuro entregar-me todo, com fervor, integralmente — porém não o consigo. E término por sacrificar-me a qualquer absurdo, em que nem acredito... Santo Deus! Tenho trinta e cinco anos e ainda me preparo para fazer algo!
“Nunca me revelei assim a ninguém — esta é a minha confissão,
“No entanto, basta de falar de mim. Quero falar de você, dar-lhe alguns conselhos: não sirvo para nada mais... Ainda é jovem; contudo, por mais que viva, ouça sempre a voz do coração, sem nunca se subordinar nem a própria inteligência e nem a alheia. Acredite que quanto mais simples e estreito o círculo em que decorra a vida, tanto melhor; não se trata de descobrir nela novos aspectos, e sim de que todas as transições se façam em tempo. “Abençoado é aquele que foi jovem em sua mocidade”. Noto, porém, que esses conselhos dizem mais respeito a mim que a você.
“Confesso-lhe, Natália Aleksieivna, que me sinto muito mal. Nunca me enganei quanto a natureza do sentimento que inspirei a Dária Mikháilovna; no entanto, esperava ter encontrado um refúgio, embora temporário. Agora terei de novo que vagar pelo mundo. Longe de você, o que me substituirá o som de sua voz, sua presença, seu olhar atento e compreensivo? Eu próprio sou culpado, mas há de concordar que o destino parece ter alimentado o propósito de zombar de nós. Há uma semana eu mesmo mal imaginava que a amo. Anteontem à tarde, no jardim, pela primeira vez ouvi de você..., mas para que lembrar-lhe o que disse então e já hoje parto, coberto de vergonha, após a cruel entrevista, sem levar comigo qualquer esperança... E ainda não sabe a que ponto sou culpado perante você. Possuo uma espécie de franqueza e de tagarelice estúpida..., mas que adianta falar a respeito? Parto para sempre”.
(Aqui Rúdin quis revelar a Natália a visita a Volíntsev, mas pensou e cortou o trecho, e na carta a Volíntsev acrescentou o segundo postscriptum.)
“Continuarei só no mundo para dedicar-me, como você me disse hoje de manhã sorrindo cruel e ironicamente, a outra ocupação mais condizente com meu temperamento. Oxalá pudesse, realmente, dedicar-me a ela, vencendo afinal a próprio indolência! Mas não! Continuarei sendo a mesma criatura inacabada que tenho sido até hoje. Fui vencido ao deparar com o primeiro obstáculo; o que aconteceu conosco demonstrou-o. Se, pelo menos, tivesse oferecido meu amor em holocausto ao meu futuro trabalho, a minha vocação! Mas não: simplesmente deixei-me assustar pela responsabilidade que cabia e por isso não sou realmente digno de você. Não mereço que abandone, por minha causa, o círculo em que vive. Aliás, talvez tudo isso tenha um sentido evolutivo. Dessa prova é possível que eu saia mais puro e mais forte,
“Desejo-lhe plena felicidade. Adeus! Lembre-se de mim de quando em vez. Espero que ainda receba notícias minhas.
Natália deixou cair a carta de Rúdin nos joelhos e conservou-se por muito tempo imóvel, os olhos fixos no chão. A epístola, mais clara que todos os argumentos possíveis, demonstrava-lhe quanta razão tinha quando, ao separar-se de Rúdin de manhã, exclamara involuntariamente que ele não a amava! No entanto, essa constatação não a fez sentir-se melhor. Não se movia; tinha a impressão de que ondas negras, sem fazer barulho, juntavam-se lhe sobre a cabeça e ela ia ao fundo, paralisada e muda. Todos sentem profundamente a primeira desilusão; mas é quase insuportável para uma alma sincera, estranha a leviandade e ao exagero, que não deseja enganar a si mesma.
Lembrou-se Natália da infância, quando, as vezes, passando a tarde, sempre procurava tomar o rumo do lado do horizonte iluminado, onde o pôr do sol brilhava, e não a direção do lado escuro. Escura se tornava agora a vida diante dela, e suas costas voltavam-se para a luz...
Lágrimas brotaram-lhe dos olhos. Nem sempre fazem bem. São consoladoras e saudáveis quando, por longo tempo! a ferver no peito, afinal rolam a princípio com ímpeto, depois cada vez mais leves e doces; são o bálsamo da angústia e da dor surda. Há, porém, lágrimas frias, que deslizam em fio tênue; gota a gota expulsam do coração a carga pesada e imóvel do mal que o sufoca; não consolam e nem aliviam. São frutos amargos da necessidade, e ainda não foi infeliz aquele que ainda não as derramou. Natália conheceu-as nesse dia.
Passaram-se cerca de duas horas. Depois, a moça cobrou ânimo, levantou-se, enxugou os olhos, acendeu a vela, queimou toda a carta de Rúdin e atirou as cinzas fora da janela. Em seguida abriu ao acaso um livro de Púchkin e leu as primeiras linhas que se lhe depararam (com frequência procurava saber dessa maneira sua sorte).
Aquele que amou é perseguido pelo fantasma dos dias irrevogáveis...
Em nada encontrará alegria,
Suas memórias são o ferrão da serpente,
E do remorso a lhe corroer o coração...
Ela deteve-se um instante, olhou-se no espelho com um sorriso frio e, com um ligeiro movimento da cabeça de cima para baixo, desceu para a sala de visitas.
Logo que a viu, Dária Mikháilovna levou-a ao gabinete, sentou-se ao pé de si, carinhosamente deu-lhe um tapinha na face e com atenção, quase com curiosidade, olhou-lhe os olhos. Sentia um receio secreto: pela primavera vez lhe vinha a cabeça que, no fundo, não conhecia a própria filha. Ao saber por Pandaliévski de seu encontro com Rúdin, não só se encolerizara como se admirara de que a sensata Natália pudesse decidir-se a tal passo. Mas quando a chamou e se pôs a censurá-la de forma nenhuma, como se poderia esperar de uma mulher europeia, e sim aos berros e sem elegância as firmes respostas da filha e a determinação de seus olhares e movimentos perturbaram e mesmo assustaram a mãe.
A partida repentina e um tanto inexplicável de Rúdin tirou-lhe um grande peso do coração, mas esperava lágrimas e ataques histéricos...
A tranquilidade aparente de Natália de novo a deixou perplexa.
— E então, minha filha — disse Dária Mikháilovna — como estás hoje?
Natália olhou para a mãe.
— Ele partiu... o teu amado. Não sabes por que tão depressa?
— Mamãe! — retrucou Natália com voz calma. — Juro-lhe que se a senhora mesma não o mencionar, de mim jamais ouvirá seu nome.
— Admites, por conseguinte, que não estavas procedendo bem?
Natália baixou a cabeça e repetiu:
— De mim jamais ouvirá nada a respeito.
— Bem, toma cuidado! — replicou com um sorriso Dária Mikháilovna. — Creio na tua palavra. Mas anteontem, lembras-te? Quando... Ora, ponhamos uma pedra sobre isso. Terminado, resolvido e enterrado. Não é verdade? Vejo em ti de novo minha filha, pois estava inteiramente perplexa. Bem, agora um beijo, querida!
Natália levou a mão de Dária Mikháilovna aos lábios, enquanto está lhe beijava a cabeça inclinada.
— Ouve sempre meus conselhos e não esquece de que és uma Lassúnskaia e minha filha — acrescentou, e serás feliz. Agora podes ir.
Natália saiu em silencio. Dária Mikháilovna acompanhou-a com os olhos e pensou: “Puxou a mim — temperamento facilmente entusiasmável: Tuais elle aura moins d’ahandonj” E mergulhou em recordações do passado... de um passado mui recente...
Em seguida mandou que chamassem Mlle. Boncourt e esteve longamente com ela, a portas fechadas. Despedida a governanta, pediu a presença de Pandaliévski. Queria saber, de qualquer maneira, a causa real da partida de Rúdin..., mas Pandaliévski deixou-a inteiramente tranquila. Era sua especialidade e para tanto dotado de habilidade especial.
No dia seguinte Volíntsev e a irmã compareceram ao jantar. Dária Mikháilovna sempre foram muito amável com ele, mas desta vez tratou-o com gentileza especial. Natália sentia-se insuportavelmente magoada, porém Volíntsev foi tão respeitoso e tão timidamente falava com ela que intimamente a moça não pode deixar de agradecer-lhe.
O dia decorreu calmo, bastante enfadonho, mas todos, ao se dispersarem, sentiam haver retomado a rotina, o que se reveste de bastante significação, de muita mesmo.
Sim, todos haviam retomado a rotina... todos, menos Natália. Afinal só, com dificuldade arrastou-se até o leito e, cansada e destroçada, caiu de rosto no travesseiro. A vida parecia-lhe tão amarga, repugnante e vil, sentia tanta vergonha de si mesma, de seu amor, de sua tristeza e de suas mágoas, que nesse instante é provável que acolheria bem a morte. Ainda lhe restavam muitos dias penosos, noites de insônia e a pesada agonia de um espírito torturado, mas era jovem a vida apenas começava, e, cedo ou tarde, faria valer seus direitos. Por maior seja a desgraça que atinja o homem, no mesmo dia ou no seguinte — perdoe-me a rudeza da expressão procurará alimentar-se, e já é o primeiro consolo...
Natália sofria horrivelmente, sofria pela primeira vez..., mas os primeiros sofrimentos, assim como o primeiro amor, não se repetem e graças a Deus!
Passaram-se cerca de dois anos. Vieram os primeiros dias do maio. Na sacada de sua mansão via-se Alexandra Pavlóvna, agora não Lipina, e sim Lejnieva; havia mais do um ano estava casada com Mikihaílo Mhdiaílitch. Continuava bonitinha, embora ultimamente houvesse engordado um pouco. Diante da varanda, que por uma escada se comunicava com o jardim, passeava uma ama de leite que tinha nos braços uma criança de camisolão e pompom branco na touca. Alexandra Pavlóvna de quando em quando olhava para o bebê, que se mantinha em silencio, com pose chupava o dedo e tranquilamente olhava em torno. Prometia ser um filho digno do pai, Mikhaílo Mikhaílitch.
Sentado ao lado de Alexandra Pavlóvna estava o nosso velho amigo Pigássov. Desde quando nos separamos dele, tornara-se bem grisalho, curvado, magro e silvava quando falava: estava privado de um dos dentes dianteiros; o silvar emprestava-lhe maior mordacidade a fala... O humor cáustico não lhe diminuíra com os anos, porém a verve embotara-se e se repetia com mais frequência que antes. Mikhaílo Mikhaílitch não estava em casa; esperavam-no para o chá. O sol já se pusera no ponto em que sumira estendia-se ao longo do horizonte uma faixa cor de limão ouro-pálido. Do lado oposto havia duas: uma mais baixa, azul-claro, a outra mais alta, vermelho-lilás. Nuvens ligeiras dissolviam-se nas alturas. Tudo prometia tempo firme.
Súbito Pigássov pôs-se a rir.
— Que há, Afrikán Siemiónitch? — indagou Alexandra Pavlóvna.
— Ora, nada... Ontem ouvi um mujique dizer a mulher, que falava pelos cotovelos: “Não guincha!” Gostei muito. “Não guincha!” E, com efeito: a mulher tem alguma capacidade de raciocínio? Como sabe, sempre excluo as que estão presentes. Nossos avoengos oram mais inteligentes. Nos contos de fada, a beldade está sempre sentada a janela, uma estreia a fronte, sem tugir nem mugir. É assim que deve ser. Pois do contrário, veja bem: anteontem a esposa do marechal da nobreza quase me deu um tiro na testa: disse que detesta minhas tendências! Tendências! Não seria melhor para ela e para todos que, por qualquer disposição sábia da natureza, fosse de repente privada do uso da língua?
— Você não emenda, Afrikán Siemiónitch: está sempre a atacar-nos, as pobrezinhas. Saiba que é uma infelicidade sua, francamente. Tenho pena de você.
— Infelicidade? Não me diga! Primeiro, a meu ver, no mundo só há três desgraças: morar no inverno em casa fria, no verão andar de botas apertadas, e dormir num quarto em que choraminga uma criança, sobre a qual se pode aspergir pó da Pérsia; segundo, sou agora a criatura mais pacífica do mundo. É assim que me comporto moralmente.
— Comporta-se muito bem, sem dúvida! Ontem mesmo leliéna Antonovna queixou-se de você.
— Com a breca! E que lhe disse, se posso saber?
— Disse-me que, durante toda a manhã, a todas as suas perguntas você se limitou a responder “Que? que” e ainda por cima com voz esganiçada.
Pigássov pôs-se a rir.
— Boa ideia, não foi, Alexandra Pavlóvna?
— Maravilhosa! É admissível tanta descortesia para com as mulheres, Afrikán Siemiónitch?
— Como assim? Na sua opinião leliéna Antonovna é mulher?
— E, a seu ver, o que é ela?
— Um tambor, ora bolas, um tambor comum, desses que são surrados por duas baquetas...
— Ah, sim! — atalhou-o Alexandra Pavlóvna, desejando mudar de assunto. — Está de parabéns, não é?
— Por quê?
— Por ter ganho a questão. Os prados de Glínov são agora seus.
— Sim, meus — respondeu Pigássov com ar sombrio.
— O processo corria há muitos anos, e agora você parece descontente.
— Tenho a dizer-lhe, Alexandra Pavlóvna — proferiu Pigássov lentamente — que nada pode ser pior e mais vexatório que uma felicidade tardia. Não pode causar-nos prazer e, por outro lado, priva-nos do direito, do precioso direito de xingar e amaldiçoar a sorte. Sim, minha senhora, é uma peça amarga e ofensiva — um bem que chega tarde demais.
Alexandra Pavlóvna limitou-se a dar de ombros.
— Ama — observou — julgo que é hora de Micha dormir. Dá-me cá.
E, enquanto Alexandra Pavlóvna ocupava-se do filho, Pigássov se afastava, resmungando, para a extremidade oposta da varanda.
De repente, a curta distância, pela estrada que passa ao longo do jardim, surgiu Mikhaílo Mikhaílitch na aranha de corrida. Diante do cavalo corriam dois grandes cães: um amarelo e outro cinza, de aquisição recente. Estavam sempre a brigar, porém eram os maiores amigos. Foi-lhes ao encontro, saindo do portão, um velho vira-lata, abriu a boca como se pretendesse latir e terminou por bocejar e voltar, abanando amistosamente a cauda.
— Olha aqui. Sacha — bradou Lejniev, de longe, a mulher, quem te trago...
Alexandra Pavlóvna não reconheceu logo o indivíduo que estava sentado atrás do marido.
— Ah, o sr. Bassistov! — exclamou afinal.
— Ele, ele mesmo — respondeu Lejniev, e que boas notícias trouxe! Espera um pouco: vai dizê-las já.
E entraram no pátio.
Alguns instantes depois ele e Bassistov surgiram na sacada.
— Urra! — exclamou e abraçou a mulher. — Sierioja vai casar-se!
— Com quem? — indagou Alexandra Pavlóvna, agitada.
— Com Natália, é claro. Um amigo trouxe essa notícia de Moscou, e uma carta para ti. Estás ouvindo, Michuk? — acrescentou, tomando o filho nos braços. — Teu tio vai casar-se! Oh, tens uma calma fantástica! Limitas-te a mover os olhos!
— Está com sono — observou a ama.
— Sim — proferiu Bassistov, aproximando-se de Alexandra Pavlóvna, vim hoje de Moscou, a mandato de Dária Mikháilovna, para conferir as contas relativas a fazenda. E aqui está a carta.
Alexandra Pavlóvna apressou-se a abrir a carta do irmão. Continha poucas linhas. Ao primeiro ímpeto de alegria informava a irmã que fizera a proposta a Natália, conseguira seu assentimento e o da mãe, prometia escrever mais no correio seguinte e mandava abraços e beijos a todos. Notava-se que escrevia num estado parecido a embriagues.
Serviram o chá e Bassistov sentou-se. lima saraivada de perguntas caiu-lhe sobre a cabeça. Todos, mesmo Pigássov, manifestavam alegria pela notícia que trouxera.
— Diga, por favor — perguntou Lejniev entre outras coisas, chegaram-nos rumores sobre um tal de sr. Kortcháguin, foi uma tolice, portanto?
(Kortcháguin era um belo jovem um leão mundano, sumamente soberbo e emproado: sua postura era de uma majestade ímpar, dando a impressão de não ser criatura viva, mas a própria estátua, erguida por subscrição pública).
— Não, não uma tolice integral — respondeu Bassitov, sorrindo. — Dária Milíháilovna mostrava-se muito bem disposta em relação a ele, porém a filha nem queria ouvir falar de tal sujeito.
— Conheço-o — proferiu Pigássov, é um beócio de marca maior... Santo Deus! Se todos se parecessem com ele, eu viveria só se me pagassem muito bom dinheiro... Santo Deus!
— Talvez — retrucou Bassistov, mas representa papel destacado nos círculos da alta sociedade.
— Ora, não importa! — exclamou Alexandra Pavlóvna. — Deixemos o homem em paz! Oh, que satisfação meu irmão me dá! E Natália está alegre e feliz?
— Sim. Continua calma como sempre — já a conhece, mas parece satisfeita.
A noite decorreu em palestra agradável e animada. Serviram a ceia.
— E, a propósito, perguntou Lejniev a Bassistov, servindo-lhe o Lafitte, sabe que é feito de Rúdin.
— Agora realmente não sei. No último inverno esteve por pouco tempo em Moscou, em seguida dirigiu-se a Simbírsk em companhia de uma família; mantive correspondência com ele por algum tempo; na última
carta me informava de que deixava Simbírsk — sem dizer para onde e desde então não mais recebi notícias suas.
— Não se perderá! — observou Pigássov. — Está cm algum lugar, a fazer pregação. Esse cavalheiro sempre encontrará dois ou três admiradores que o ouçam de boca aberta e lhe emprestem dinheiro. Vejam que acabará por falecer em Tsarievokokcháisk ou Tchukhlóm nos braços de uma velha solteirona de peruca, que o guardará na memória como o homem mais genial do mundo...
— Teve uma opinião nada lisonjeira em relação a ele — observou Bassistov a meia voz e com desgosto.
— Qual nada! — retrucou Pigássov. — Perfeitamente justa. A meu ver não passa de um parasita. Esqueci-me de dizer-lhe — continuou dirigindo-se a Liejniev — que conheci o Tierlákhov, em cuja companhia Rúdin viajou no estrangeiro. Ora bolas! Sim senhor! O que me contou a respeito dele nem pode ter ideia — é de arrebentar de tanto rir! Francamente. O curioso é que, com o tempo, todos os amigos e discípulos de Rúdin se tornam seus inimigos.
— Peço-lhe excluir-me do número desses amigos! — atalhou-o Bassistov com veemência.
— Bem, no seu caso a coisa muda de figura. Não se trata de você.
— E que lhe contou Tierlákhov? — indagou Alexandra Pavlóvna.
— Tanto que não me lembro de tudo. O melhor, porém, é o que lhe sucedeu. Desenvolvendo-se sem parar (esses senhores estão sempre a desenvolver-se: os simples mortais, por exemplo, simplesmente dormem ou comem, enquanto eles estão no instante de desenvolvimento do sono ou da alimentação; não é assim, sr. Bassistov?
Este nada respondeu.
— Assim, desenvolvendo-se constantemente, Rúdin chegou, através da filosofia, a conclusão de que devia amar. Começou a procurar um objeto digno de conclusão tão maravilhosa. A fortuna sorriu-lhe. Travou relações com uma francesa, modista de notável beleza. A cena sucedeu numa cidade alemã, no Reno, notem bem. Começou a frequentá-la, a levar-lhe vários livros e a falar-lhe da natureza e de Hegel. Podem imaginar a situação em que a moça ficou? Julgou que se tratava de um astrônomo. No entanto, sabem que é bem simpático e, tratando-se de um estrangeiro, um russo, deu no goto da modista. Afinal ele marca um encontro, uma entrevista muito romântica: no rio, numa gondola. A francesa concordou; pôs o melhor vestido e tomaram a gondola. Assim remaram umas duas horas. De que se ocupou ele durante todo esse tempo? Que acham? Alisa a cabeça da francesa, pensa, o olhar absorto no céu, e várias vezes repetiu sentir por ela ternura paternal. A francesa voltou a casa furiosa e depois contou tudo a Tierlákhov. Vejam que espécie de homem é!
E Pigássov desatou em gargalhadas.
— Você é um velho cínico! — observou com tristeza Alexandra Pavlóvna, e cada vez mais me convenço de que mesmo aqueles que censuram Rúdin nada podem dizer de mal a seu respeito.
— Nada de mal? Tenha paciência! E seu eterno viver a custa alheia, os empréstimos... Mikhaílo Mikháilitch! Ele também não lhe pediu dinheiro emprestado?
— Ouça, Afrikán Siemiónitch! — retrucou Lejniev e seu rosto assumiu expressão séria.
— Ouça: você sabe, e minha mulher também, que nos últimos tempos não me sentia bem disposto em relação a Rúdin e mesmo com frequência o condenava. Apesar de tudo (Lejniev encheu de champanha as taças), eis o que proponho; acabamos de beber a saúde de nosso querido irmão e de sua noiva; agora proponho-lhes que bebamos a saúde de Dmítri Rúdin!
Perplexos, Alexandra Pavlóvna e Pigássov olharam para Lejniev, ao passo que Bassistov estremecia todo, enrubescia de alegria e arregalava os olhos.
— Conheço-o bem — continuou Lejniev e a suas debilidades; mas esses próprios defeitos revelam que não se trata de um medíocre.
— Rúdin é um homem de gênio! — acrescentou Bassistov.
— É possível que possua genialidade — replicou Lejniev, mas, quanto ao homem... É aí justamente onde se encontra o mal: não é homem bastante..., mas não quero tratar disso. Desejo falar do que nele há de bom e de raro. Tem entusiasmo, o que creiam em mim, que sou fleumático é a qualidade mais preciosa de nosso tempo. Todos nós nos tornamos insuportavelmente serenos, indiferentes e frouxos; modorrentos e fossilizados; devemos agradecer aquele que, mesmo por um instante, nos sacode e aquece! Já é tempo! Lembras-te, Sacha, que de uma feita falei contigo a respeito dele e o censurei de frieza? Então tinha razão e ao mesmo tempo não a tinha. Essa frieza está no sangue e de que não é culpado e não no cérebro. Não é ator, como o chamei, nem trapaceiro e nem velhaco; vive a custa alheia não como intruso, mas qual criança. Sim, realmente, morrerá em alguma parte na miséria e na pobreza; contudo, devemos por isso atirar-lhe pedras? Ele próprio nada faz justamente porque em sua natureza não há sangue; contudo, quem tem o direito de afirmar que não será útil ou que já não o foi que suas palavras não tenham finto germinar muitas sementes boas nas almas jovens a quem a natureza não recusou, como a ele, o poder da ação prática, a capacidade de atingir os próprios ideais? Eu próprio fui o primeiro a sentir essa influência. Sacha sabe que o Rúdin representou para mim na mocidade. Lembro-me de haver sido também um dos que afirmavam que as palavras de Rúdin não poderiam atuar sobre os homens; mas então me referia aos que eram iguais a mim, na minha idade atual, homens já vividos e castigados pela vida. Um tom falso no discurso bastava para deitar a perder toda a sua harmonia — era o que sentíamos; quando somos moços, porém, felizmente não temos a audição tão apurada e tão deturpada. Se a essência do que ouve lhe parece bela, não lhe importa o tom! Ele próprio o encontrará em si mesmo.
— Bravo, bravo! — exclamou Bassistov. — É isso mesmo! E, quanto a influência exercida por Rúdin, juro-lhe que ele sabe tanto sacudir-nos quanto deslocar-nos do lugar; não permite que nos detenhamos, revira-nos do avesso e nos incendeia!
— Está ouvindo? — continuou Lejniev dirigindo-se a Pigássov. — De que prova precisa mais? você ataca a filosofia; ao referir-se a ela, não encontra palavras capazes de revelar todo o seu desprezo. Eu próprio não lhe dou muita importância e pouco entendo; mas não é ela a responsável pelos nossos males principais! As sutilezas e as utopias da filosofia nunca dominarão o russo: para tanto possui bastante senso comum; no entanto, não podemos admitir que toda aspiração honesta a verdade e ao conhecimento seja atacada como filosofia. A desgraça de Rúdin está em não conhecer a Rússia, o que é, com efeito, a maior infelicidade. A Rússia pode dispensar cada um de nós, porém nenhum de nós pode passar sem ela. Pobre de quem assim pensa, desgraçado é aquele que realmente não a leva em conta! O cosmopolitismo é uma tolice, o cosmopolita é um zero, pior o nada; fora da nacionalidade não há arte, nem vida, absolutamente nada. Sem fisionomia própria não pode haver rosto ideal; só um rosto inexpressivo não tem fisionomia. Repito, porém que Rúdin não tem culpa; ó seu destino, amargo e penoso, pelo qual não podemos incriminá-lo. Chegaríamos a muito longe se quiséssemos compreender por que surgem Rúdins em nosso meio. E devemos agradecer-lhe pelo que tem de bom. É mais fácil que ser injusto para com ele, e devemos confessar que fomos injustos. Castigá-lo não nos cabe, e nem é preciso; castigou-se a si mesmo com muito maior crueldade do que a merecida. E permita Deus que o sofrimento extirpe dele tudo o que há de mau e só lhe deixe o que é belo! Bebo a saúde de Rúdin! Bebo a saúde do companheiro de meus melhores anos, bebo a juventude, as suas esperanças, aos seus ideais, a sua fé e honestidade, a tudo o que nos fez palpitar o coração aos vinte anos, pois nada de melhor conhecemos e nunca conheceremos em toda a vida. Bebo aquela idade de ouro, bebo a saúde de Rúdin!
Todos acompanharam Lejniev no brinde. Entusiasmado, Bassistov quase quebrou o copo e esvaziou a um só trago, enquanto Alexandra Pavlóvna apertava a mão de Lejniev.
— Não suspeitava, Mikhaílo Mikhaílitch, que fosse tão eloquente — observou Pigássov — tanto quanto o próprio sr. Rúdin até eu fiquei impressionado.
— Não sou nada eloquente — retrucou Lejniev com certo azedume. — Quanto a você, creio ser muito difícil ficar impressionado. Aliás, basta de falar sobre Rúdin; mudemos de assunto. Aquele... como é seu nome?... Pundaliévski continua a viver em casa de Daria Mikhâilovna? — acrescentou, dirigindo-se a Bassistov.
— Como não? Continua firme! Ela conseguiu uma colocação muito boa.
Lejniev sorriu ironicamente:
— Esse não morrerá na miséria, posso garantir.
A ceia terminou. Os presentes dispersaram-se. A sós com o marido, Alexandra Paplóvna, sorrindo, cravou-lhe os olhos.
— Estiveste magnífico hoje, Micha — observou ela, acariciando a fronte; — que inteligência e que nobreza de palavras! Confessa, porém, que tanto te empolgaste a favor de Rúdin quanto antes te atiraste contra ele...
— Não se deve bater no vencido... e naquela época eu temia que ele te virasse a cabeça.
— Estás enganado — replicou a esposa com simplicidade; — sempre me pareceu demasiado inteligente, temia-o e não sabia o que dizer em sua presença. Não achas que Pigássov debochou muito dele hoje?
— Pigássov? — proferiu Lejniev. — Defendi tão calorosamente Rúdin porque ele estava presente. Tem a audácia de chamar Rúdin de parasita! A meu ver, o papel que ele, Pigássov, representa, é cem vezes pior. Tem patrimônio próprio, zomba de todo o mundo, porém como se prosterna diante dos poderosos e dos ricos! Sabes que esse mesmo Pigássov, que com tanta fúria escarnece de tudo e de todos, e ataca a filosofia e as mulheres — sabes que, quando era funcionário público, deixava-se subornar? e como! Quem tem telhado de vidro não deve atirar pedras ao do vizinho.
— Será possível? — exclamou Alexandra Pavlóvna.
— Essa não esperava! Ouve, Micha —- acrescentou, após curto silencio — o que quero te perguntar.
— O que?
— Que achas? Meu irmão será feliz com Natália?
— É difícil dizê-lo... há muita probabilidade... A cabeça do casal será ela — não precisamos negá-lo entre nós, pois é mais inteligente, porém ele é excelente criatura e a ama do fundo d’alma. Que é preciso mais? Nós dois, por exemplo, amamo-nos um ao outro e somos felizes, não é?
Alexandre Pavlóvna sorriu e apertou a mão do marido.
No mesmo dia em que tudo o que acabamos de relatar ocorria na casa de Alexandra Pavlóvna numa das províncias afastadas da Rússia arrastava-se pela estrada real, sob um sol escaldante, uma pobre kibitka coberta de esteira e puxada por três matungos. Na boleia via-se, com as pernas apoiadas de viés no balancim, um mujique grisalho, de cafetã roto, que de quando em quando puxava as rédeas feitas de corda e brandia o pequeno chicote; na carruagem, sentado numa pequena mala, um homem de elevada estatura, boné e velha capa empoeirada. Era Rúdin, de cabeça baixa e a paia do boné sobre os olhos. Os solavancos desiguais do carro lançavam-no de lado a lado; parecia totalmente sem sentidos, como se dormisse. Afinal retesou-se.
— Quando chegaremos a estação? — perguntou ao mujique sentado na boleia.
— Meu amo — respondeu o camponês e repuxou com mais força as rédeas, quando chegarmos ao topo daquele morro teremos umas duas vierstás, não mais... Eia, tu aí! Estás pensando na morte da bezerra? Vou ensinar-te a pensar — acrescentou com vozinha fina, pondo-se a chicotear o animal da direita.
— Pareces um mau cocheiro — observou Rúdin. — Estamos nos arrastando desde manhã e nunca chegamos. Seria melhor que cantasses algo para nos distrair.
— Que fazer, meu amo? Como o senhor pode ver, os animais são péssimos... e ainda por cima esse cair dos diabos. Quanto a cantar, não podemos; não somos cocheiros de posta... Cordeiro, ó cordeirinho! — exclamou súbito, dirigindo-se a um pedestre de sobretudo marrom e sandálias cambadas, sai do caminho, cordeiro!
— Que cocheiro, heim?! — tartamudeou o pedestre ao seu encalço, e deteve-se. — Julga-se um moscovita! — acrescentou em tom cheio de censura, abanou a cabeça e continuou a mancar.
— Aonde vais? — proferiu o mujique com pausa, dominando o animal do centro. — Ora, o astucioso! À direita, malandro!
Os exaustos rocins arrastaram-se penosamente, afinal, até o pátio da estação de posta. Rúdin desceu da kibitka, pagou o mujique (que não se inclinou para ele e por longo tempo esteve a observar o dinheiro na palma da mão — isto é, mal dava para o vodka) e por si mesmo levou a mala para dentro da estação.
Um dos meus amigos, que muito viajou pela Rússia, fez a observação de que, se nas paredes da estação de posta há quadros com cenas de O Prisioneiro do Cáucaso ou de generais russos, se pode conseguir logo animais de muda; mas se os quadros são da vida do célebre jogador George de Germain, o viajante não deve contar com uma partida rápida; terá tempo bastante de observar as voltas do coque, o colete branco e a calça extremamente estreita e curta do jogador na mocidade, e sua expressão de furor quando, já velho, mata o próprio filho com uma cadeira na cabana de teto íngreme. Na peça onde entrou Rúdin viam-se justamente os (quadros de Os Trinta Anos ou A Vida De um Jogador. A sem chamado atendeu o chefe da estação, estremunhado (e quem já viu um chefe de estação que não tenha cara do sono), que, sem mesmo esperar que Rúdin perguntasse, declarou com voz frouxa não ter cavalos.
—Como pode afirmar não haver animais — retrucou Rúdin — sem mesmo saber aonde vou? Os que me trouxeram aqui são péssimos.
— Não temos animais para parte alguma — respondeu o interlocutor. — E para onde vai o senhor?
— Para X.
— Não há cavalos — repetiu o chefe e saiu.
Contrariado, Rúdin aproximou-se da janela e atirou o boné na mesa. Não mudara muito, mas empalidecera nos últimos dois anos; fios de prata brilhavam aqui e ali na cabeleira anelada, e os olhos, ainda belos, pareciam haver perdido um pouco do brilho antigo; pequenas rugas, vestígios de sentimentos amargos e tumultuosos, contornavam os lábios e se estendem pelas faces e pelas frontes.
O terno era usado e velho, e nem sinal de roupa branca. A época de seu florescimento evidentemente passara; segundo a expressão dos jardineiros, ele ficara para semente.
Pôs-se a ler as inscrições nas paredes... distração comum aos viajantes entediados... e de chofre a porta rangeu e entrou o chefe da estação.
— Cavalos para... X não há e não haverá tão cedo — disse, mas há os que vão voltar a... ov.
— A ...ov? — proferiu Rúdin. — Que maçada! Inteiramente fora do caminho. Vou a Penza, e ...ov está, parece-me, na direção de Tambov.
— Que fazer? De Tambov.
— Que fazer? De Tambov poderá viajar, e, se não, de qualquer forma tomar um atalho de ...ov.
Rúdin pensou um pouco.
— Pois bem — disse afinal — Mande preparar os cavalos. Não importa: vou para Tambov.
Atrelaram os animais, Rúdin levou a maleta, subiu na télega, sentou-se e baixou a cabeça, como antes. Havia um que de desalento e de submissão melancólica em sua curvada figura... E a tróica arrastou-se a trote lento, retinindo os guisos.
EPÍLOGO
Passaram-se mais alguns anos.
Era um dia frio de outono. Da escadaria do principal hotel da capital da província X aproximou-se uma caleça de viagem; esticando-se e pigarreando levemente, dela desceu um senhor ainda moço, mas que já adquirira o volume de tronco que temos por hábito considerar como marca de respeitabilidade. Galgou as escadas, chegou ao segundo andar, deteve-se a entrada de um amplo corredor e, sem ver ninguém diante de si, em voz alta perguntou qual era seu apartamento. Ouviu-se o ranger de uma porta, de detrás de um biombo baixo saltou um lacaio pernilongo que se adiantou num andar ágil e oblíquo, fazendo brilhar na penumbra da passagem as costas lustrosas e as mangas arregaçadas.
Logo que penetrou no apartamento, o viajante tirou o capote e cachecol, sentou-se no divã e, apoiando os punhos nos joelhos, primeiro olhou em torno como se tivesse acordado naquele momento e depois mandou chamar o criado. O lacaio fez um movimento evasivo e desapareceu. O viajante era Lejniev. O recrutamento o tirara na aldeia e o trouxe a Z.
O criado de Lejniev, jovem, cabelos crespos e faces rubicundas, capote cinza cingido por faixa azul-celeste e sandálias leves, entrou na peça.
— Bem, irmão, afinal chegamos — disse Lejniev, e tu sempre a temer que o aro da roda saísse.
— Chegamos! — exclamou o criado, esforçando-se por sorrir através da gola erguida do capote, mas admira-me que o aro não tenha saído...
— Ó de casa! — ressoou uma voz no corredor.
Lejniev estremeceu e aguçou o ouvido.
— Ó de casa! — repetiu a voz.
Lejniev ergueu-se, aproximou-se da porta e abriu-a num ímpeto.
Diante dele achava-se um homem de elevada estatura, quase todo grisalho e curvado, numa velha sobrecasaca de belbutina com botões de bronze. Lejniev reconheceu-o logo.
— Rúdin! — exclamou, emocionado.
Rúdin voltou-se. Não pode distinguir os traços de Lejniev, de costas voltadas para a luz, e, perplexo, olhava para ele.
— Não me reconhece? — indagou o outro.
— Mikhaílo Mikhaílitch! — exclamou Rúdin estendendo a mão, mas perturbou-se e ia retirá-la...
Lejniev apressou-se a agarrá-la com ambas as suas.
— Entre, entre! — disse a Rúdin e introduziu-o no apartamento.
— Como está mudado! — reparou Lejniev após curto silencio e involuntariamente baixando a voz.
— Sim, é o que dizem! — respondeu Rúdin, lançando um olhar errante pela peça. — A idade..., mas você nada mudou. Como vai Alexandra... sua esposa?
— Muito obrigado — bem. Que feliz acaso o traz aqui?
— Eu? É uma longa história. Propriamente falando, vim ter aqui por casualidade. Procurava um amigo. Aliás, estou muito satisfeito...
— Onde vai jantar?
— Eu? Não sei. Numa hospedaria qualquer. Devo hoje mesmo ir embora.
— Deve?
Rúdin sorriu irônica e significativamente.
— Sim, devo. Estou me enviando para minha aldeia, vou viver ali.
— Jante comigo.
Pela primeira vez Rúdin olhou diretamente nos olhos de Lejniev.
— Convida-me a jantar com você — indagou.
— Sim, Rúdin, como nos velhos tempos, fraternalmente. Quer? Não esperava encontrá-lo, e só Deus sabe quando nós veremos de novo. É claro que não devemos nos separar assim!
— Pois não, aceito.
Lejniev apertou a mão de Rúdin, chamou o criado, ordenou o jantar e mandou colocar no gelo uma garrafa de champanha.
Como se tivessem combinado de antemão, durante o jantar os dois amigos só falaram dos tempos de estudante, lembraram-se de muita coisa e de muitos — vivos e mortos. A princípio Rúdin falava a contragosto, mas bebeu alguns cálices de vinho e seu sangue se esquentou. Afinal, o lacaio retirou o último prato. Lejniev ergueu-se, fechou a porta e, voltando a mesa, sentou-se diretamente contra Rúdin e calmamente apoiou o queixo em ambas as mãos.
— Bem, agora — disse, conte-me tudo o que lhe aconteceu desde que não nos vemos.
Rúdin olhou para Lejniev.
“Santo Deus! — pensou Lejniev de novo. — Como está mudado o pobrezinho!”
Os traços de Rúdin pouco haviam se modificado, sobretudo desde quando o vimos na estação, embora a marca da velhice próxima já estivesse patente, mas sua expressão era diferente. Os olhos tinham outro colorido; em todo o seu ser, nos movimentos, ora retardados e ora desconexamente impetuosos, e na fala, que havia perdido o calor e parecia exausta, manifestava-se o cansaço definitivo, uma mágoa secreta e desalentada, muito diversa da melancolia quase simulada que ostentava outrora, procedimento comum aos jovens cheios de esperança e de amor-próprio confiante.
— Contar-lhe tudo o que me sucedeu? — repeti ele. — Não posso contar tudo e nem vale a pena... Sofri muito, e perambulei não só física espiritualmente. A desilusões que me causaram os homens e as coisas, Sant Deus! e com que pessoas travei relações! Sim, que criaturas! — repetiu Rúdin ao notar que Lejniev o olha com interesse particular. — Quantas vezes minhas próprias palavras se me tornaram odiosas — já não falo em meus lábios, mas nos lábios de quem compartiu minhas opiniões! Com que frequência passei da irritabilidade infantil a estúpida insensibilidade do cavalo q não mais abana o rabo, apesar dos golpes do chicote.
Quantas vezes alegrei-me, alimentei esperanças, lutei e rebaixei-me em vão! Quantas vezes alcei-me ao céu como falcão e voltei de rastos como caracol cuja concha fora destruída! Onde não estive eu, que estradas não percorri?! E há estradas cobertas de lama — acrescentou Rúdin, e virou o rosto. — Você sabe... — continuou.
— Ouça — atalhou-o Lejniev, antigamente tratávamo-nos por tu. Queres? Lembremos o passado. Bebamos a fraternidade!
Rúdin estremeceu, levantou-se e diante dos olhos passou-lhe algo que a palavra não pode expressar.
— Bebamos — respondeu. — Obrigado, irmão, bebamos!
Lejniev e Rúdin esvaziaram os copos.
— Tu sabes — continuou Rúdin, sorrindo e pronunciando com ênfase a palavra tu — que tenho dentro de mim um verme que me corrói e consome, e não permite que fique de todo tranquilo. Atira-me contra os homens que, a princípio, se submetem a minha influência, mas depois...
E Rúdin fez um vago gesto de mão.
— Desde que nos vimos pela última vez passei por várias experiencias e tentei muitos e diferentes caminhos.
Recomecei a viver, tentei o novo umas vinte vezes e que em situação estou!
— Não tiveste perseverança — observou Lejniev como se falasse consigo mesmo.
— Como dizes, faltou-me perseverança! Nunca soube construir nada; e é difícil, irmão, construir quando não temos terra sob os pés, quando a nós mesmos cabe levantar o próprio alicerce! Todas as minhas aventuras, isto é, propriamente falando, todos os meus fracassos, não vou descrever-te. Só vou mencionar dois ou três fatos, aqueles de minha vida em que o êxito já me sorria, ou, melhor, quando começava a esperá-lo — o que não é exatamente a mesma coisa.
Rúdin atirou para trás os cabelos grisalhos e já raros com o mesmo movimento de mão que outrora movia os cachos negros e espessos.
— Bem, ouve — começou. — De uma feita travei relações em Moscou com um cavalheiro bastante estranho, muito rico e possuidor de vastos latifúndios; não era burocrata. Sua paixão principal e única era o amor a ciência, a ciência em geral. Até hoje não pude compreender por que lhe surgiu essa paixão! Assentava-lhe tão bem como uma sela no dorso de uma vaca. A inteligência dificilmente se lhe revelava e quase não sabia falar, limitando-se a mover expressivamente os olhos e a abanar significativamente a cabeça. Confesso, irmão, que ainda não encontrara natureza menos dotada e menos pobre que a sua... Na província de Smolensk há lugares assim areia e nada mais, raramente uma relva que nenhum animal se atreve a comer. Nada em que pusesse as mãos lograva êxito tudo parecia escapar-lhe, mantendo-se a distância, e ainda por cima tinha a mania de tornar difícil tudo o que era fácil. Se dependesse de sua vontade, creme que passaríamos a comer com os calcanhares. Trabalhava, escrevia e lia incansavelmente. Cortejava a ciência com perseverança teimosa e incrível paciência; era excessivamente orgulhoso e tinha vontade de ferro. Vivia só e consideravam-no excêntrico. Conheci-o... bem, ficou gostando de mim. Confesso que logo o compreendi, e seu ardor me contaminou. Ao demais, possuía tantos recursos, tanto bem essencial se poderia fazer por intermédio dele... Instalei-me em sua casa e, afinal, parti com ele para a aldeia. Eu arquitetava planos fantásticos, irmão: sonhava com vários aperfeiçoamentos e inovações.
— Como aconteceu na mansão de Madama Lassúnskaia, lembra-te? — observou Lejniev com sorriso bonachão.
— Qual nada! Lá eu tinha a certeza de que pregava no deserto, mas ali... ali campo de todo diferente abria-se me diante dos olhos. Levei comigo vários livros sobre agricultura..., mas a verdade é que nenhum deles cheguei a ler até o fim. Bem, pus; mãos à obra. A princípio não deu os resultados que esperava, mas depois parecia encaminhar-se bem. Meu novo amigo mantinha-se sempre em silencio, limitava-se a olhar e não me opunha obstáculos, isto é, até certo ponto. Aceitava minhas propostas e as punha em prática, porém com obstinação teimosa e descrença secreta, acabando sempre por voltar as próprias. Valorizava muito cada um de seus pensamentos. Trepava nele com esforço, como uma preguiça a extremidade de um galho, e ali ficava sentado, sempre dando a impressão de que ia abrir as asas e voar — mas de chofre cai, e de novo toca a arrastar-se para cima...
“Não te admiras das comparações: já então ferviam-me na cabeça. Foi assim que me esforcei uns dois anos. A coisa marchava mal apesar de todos os meus cuidados. Comecei a ficar cansado, meu amigo me importunava, pus-me a escarnecer dele, e ele me sufocava qual colchão de penas; sua desconfiança transformou-se em irritação surda, um sentimento de hostilidade nos dominava a ambos, já não podíamos tratar qualquer assunto com calma. Furtivamente, porém sem cessar, procurava fazer-me perceber que não se submetia a minha influência, deturpava minhas indicações ou as revogava por completo... Notei, enfim, que vivia na mansão do senhor latifundiário na qualidade de parasita a cargo de fornecer-lhe exercícios intelectuais. Senti-me amargurado por gastar tempo e energias em pura perda, era profundo meu pesar por reconhecer que de novo minhas esperanças haviam sido frustradas. Sabia muito bem o que perderia se saísse dali, mas não pude conter-me e, após cena lamentável e degradante, de que fora testemunha e que me mostrara o amigo sob um prisma demasiadamente desfavorável, discuti pela última vez e parti abandonando o fidalgo pedante, mistura bastarda de farinha de estepe e melado alemão...
— Isto é, abandonou o pão nosso de cada dia — observou Lejniev e colocou ambas as mãos nos ombros de Rúdin.
— Sim, e uma vez mais estava no espaço vazio, sem roupa e com fome, livre para voar aonde quisesse... Oh, bebamos!
— À tua saúde — proferiu Lejniev, ergueu-se e beijou a testa de Rúdin. — À tua saúde e em memória de Pokórski. Ele também soube manter-se pobre.
— Acabei de contar-te minha aventura número 1 — disse Rúdin após curto silencio. — Devo continuar?
— Sim, por favor.
— Puxa! já não sinto vontade de falar. Estou cansado, irmão. Bem, paciência, vamos ao assunto. Perambulei ainda por vários lugares... A propósito: poderia contar-te como cheguei a ser secretário de um dignitário de boas intenções, e como tudo acabou; contudo, isso nos levaria muito longe. Pois bem: após bater a várias portas, resolvi, afinal, tornar-me... não rias, por favor... homem de negócios, homem prático. Aconteceu o seguinte: travei relações com um... talvez tu tenhas ouvido falar dele... com um tal de Kurbieiev... não ouviste falar dele?
— Não, não ouvi. Mas como se explica, Rúdin, que tu, com tua inteligência, não tenhas percebido que a solução para teu negócio não era fazeres-te — perdoe o trocadilho — homem de negócios?
— Bem o seu, irmão; aliás, qual seria ela? Mas se visses Kurbieiev! Por favor, não penses que se tratasse de um tagarela qualquer. Dizem que outrora fui eloquente. Diante dele simplesmente nada significo. Era homem de amplos conhecimentos, instruído, cabeça criadora, inteligência para empreendimentos industriais e comerciais. Os projetos mais ousados e inesperados ferviam na mente. Liguei-me a ele e resolvemos dedicar nossas energias a uma obra de utilidade pública.
— Qual era, posso saber?
Rúdin baixou os olhos.
— Vais rir.
— Ora, por quê? Não, prometo não rir.
— Decidimos tornar navegável um rio da província X — proferiu Rúdin com sorriso contrafeito.
— Sim senhor! Portanto, esse Kurbieiev é capitalista?
— Mais pobre que eu — retrucou Rúdin e calmamente baixou a cabeça grisalha.
Lejniev pôs-se a dar gargalhadas, porém de repente se conteve e tomou a mão de Rúdin.
— Desculpa-me, irmão, por favor — disse, porém, tal coisa não esperava. Então o empreendimento ficou no papel?
— Não de todo. Iniciamos as obras. Contratamos operários... e o trabalho começou. Aí, porém, surgiram vários obstáculos. Em primeiro lugar, os proprietários de moinhos não nos quiseram compreender; além sem máquinas não podíamos lidar com a água, e não havia dinheiro com que as adquirir. Moramos seis meses em choças de taipa. Kurbieiev só se alimentava de- pau e eu também pouco comia. Aliás, não é disso que me queixo: a natureza lá é maravilhosa. Lutamos, lutamos, procurávamos persuadir os comerciantes, escrevíamos cartas e circulares. Terminei por gastar meu último copeque no projeto.
— Isso — observou Lejniev — de gastar seu último ceitil não foi difícil.
— É mesmo, foi fácil.
Rúdin olhou através da janela.
— Quando ao projeto, juro que não era mal e poderia trazer grandes benefícios.
— E onde foi parar esse Kurbieiev? — inquiriu Lejniev.
— Ele? Está agora na Sibéria; tornou-se garimpeiro. E verás que constituirá um patrimônio; não é tolo.
— Talvez; quanto a ti, já sei que não conseguirás nada mais.
— Eu? Que fazer! Aliás, sei que sempre me julgou criatura vazia.
— Tu? Não diz isso, irmão! Houve época cm que, com efeito, só me saltava aos olhos teus aspectos negativos; agora, porém, acredita-me, aprendi a dar te u justo valor. Não conseguirás fortuna..., mas gosto de ti justamente por isso... digo-o com sinceridade!
Rúdin esboçou um leve sorriso irônico.
— Realmente?
— Respeito-te por isso mesmo! — repetiu Lejniev. — Compreendes?
Ambos guardaram um instante de silencio.
— E então, devo narrar a aventura número 3? — perguntou Rúdin.
— Por obséquio.
— Pois não. É a última. Dela só saí agora. Mas não te estou aborrecendo?
— Fala, fala!
— Vejamos — começou Rúdin. — Certa ocasião estava a pensar, num instante de lazer — sempre os tive, e muitos — no seguinte: possuo bastantes conhecimentos, e o desejo de fazer o bem... ouve: pretendes negar-me também o desejo de fazer o bem?
— É claro que não!
— Já que em todos os demais setores eu mais ou menos fracassara, por que não me tornar pedagogo, ou, simplesmente, professor? Seria melhor que viver assim em vão...
Rúdin deteve-se e suspirou.
— Do que viver em vão, não é melhor me esforçar por transmitir ao próximo o que sei? É possível que meus conhecimentos lhe tragam pelo menos algum proveito. Afinal, minha capacidade está acima da média, e conheço o idioma. Por isso resolvi dedicar-me a essa nova função. Custou-me muito conseguir um lugar; não queria dar lições particulares, e nada tinha a fazer nas escolas primárias. Afinal, consegui um posto de professor no ginásio local.
— Professor de que? — indagou Lejniev.
— Professor de literatura russa. Afirmo-te que nunca lancei a nada com tanto entusiasmo como ao magistério. A ideia de exercer influência sobre a juventude me entusiasmava. Gastei três semanas compondo a conferência inaugural.
— Ainda a tens? — atalhou-o Lejniev.
— Não: perdi-a. Não foi má e agradou. Ainda vejo claramente a fisionomia dos ouvintes — boas, jovens, a revelar atenção concentrada, interesse e mesmo admiração. Subi a cátedra e pronunciei a conferência em estado febril; pensei que duraria mais de uma hora, mas terminei-a em vinte minutos. O inspetor estava presente — velho seco, óculos de prata e peruca curta e de quando em quando inclinava a cabeça em minha direção. Quando terminei e desci, disse-me:
— Muito bem; apenas um pouco elevada e obscura, e do próprio tema falou pouco.
“Quanto aos ginasianos, respeitosamente acompanhavam-me com os olhos — não nego. É por isso que a mocidade é preciosa! A segunda aula, levei-a escrita, a terceira também... e depois passei ao improviso.”
— E foi feliz? — perguntou Lejniev.
— Muito. Ouvintes chegavam aos montes. Transmitia-lhes tudo o que tinha n’alma. Entre eles havia três ou quatro jovens realmente notáveis; os demais mal me entendiam. Aliás, devo confessar que mesmo aqueles que me compreendiam as vezes me perturbavam com perguntas. No entanto, não perdia a coragem. Não havia dúvida de que gostavam de mim, e nos exames dava boas notas a todos. Contudo, armou-se contra mim uma intriga... ou, antes, não houve nenhuma intriga; o fato é que, francamente, não me sentia em meu elemento. Incomodava os outros e era incomodado. A ginasianos dava aulas que nem sempre estudantes universitários conseguem; meus alunos pouco lucravam com elas... e eu próprio sabia pouco dos fatos. Ao demais, não me satisfazia o círculo de ação a que estava limitado... o que, como sabes, é um dos meus pontos fracos. Queria transformações radicais, e juro-te, eram tão fáceis quanto práticas. Esperava pô-las em andamento através do diretor, criatura honesta e boa, sobre o qual a princípio eu tivera influência. Sua esposa me ajudava. Irmão: durante toda minha vida não encontrei muitas mulheres de seu quilate. Já chegava aos quarenta anos, mas acreditava no bem, amava tudo o que era belo qual moça de quinze anos, e não temia revelar suas convicções diante de ninguém. Jamais me esquecerei de seu nobre entusiasmo e de sua pureza. A seu conselho comecei a elaborar um plano..., porém nessa ocasião me atacaram e me caluniaram diante dela. Quem mais me prejudicou foi o professor de matemática, homenzinho de baixa estatura, sagaz, bilioso e que em nada acreditava, do gênero Pigássov, porém muito mais ativo que ele... A propósito: como vai Pigássov? Ainda está vivo?
— Vive e, imagina! Casou-se com uma pequeno-burguesa que, dizem, bate nele.
— Bem feito! Natália Aleksieievna, vai bem de saúde?
— Sim.
— É feliz?
— Sim.
— Sim.
Rúdin silenciou por um instante.
— Mas de que estava falando? Ah! do professor de matemática. Odiava-me: comparava minhas conferências a fogos de artifício, captava toda expressão não muito clara, de uma feita chegou a apontar-me um erro quanto a certo momento do século XVI... e, sobretudo, suspeitava das minhas intenções; minha última bolha de sabão atingiu-o e rebentou, como se chocasse contra um alfinete. O inspetor, que, desde o primeiro instante, não me inspirara muita simpatia, lançou contra mim o diretor; houve uma cena; não quis ceder, fiquei furioso, a questão chegou ao conhecimento das autoridades superiores; fui forçado a demitir-me. Não parei aí, quis demonstrar que comigo não se podia proceder assim... mas puderam fazer o que quiseram... e agora devo sair daqui.
Calou-se. Ambos os amigos estavam sentados e de cabeça baixa.
Rúdin foi o primeiro a quebrar o silencio.
— Sim, irmão — disse, agora posso repetir com Koltsov:
Aonde me levaste, ó minha mocidade?
Sofri tanto, que já todas as estradas
Estão fechadas para mim!
E, no entanto, será possível que não servi para nada, será que não tenho ocupação na terra? Com frequência fiz a mim mesmo essa pergunta, e por mais que procurasse rebaixar-me perante minha própria consciência, não pude deixar de sentir em mim a presença de energias que não são dadas a todos! Por que então esse vigor se torna estéril? E mais ainda: lembras-te de que, quando estávamos no estrangeiro, eu era presunçoso e complexo? O fato é que então não sabia o que queria, embriagava-me com palavras e perseguia utopias; agora, porém, juro-te, posso em altas vozes e diante de todos revelar tudo o que desejo. Com efeito, nada tenho a ocultar; no amplo sentido da expressão, sou proximamente bem intencionado; estou pronto a circunstâncias, quero pouco, pretendo alcançar um objetivo próximo, ser de alguma utilidade, embora insignificantemente. Mas não! Não consigo! Que se conclui daí? O que me impede viver e agir como os outros? Agora só penso nisso. Contudo, mal obtenho determinada situação, mal me coloco em certo ponto, o destino me expulsa dali... Cheguei a temê-lo o meu destino... Por que assim é? Decifra-me esse enigma!
— Enigmai — repetiu Lejniev. — Sim, é mesmo um enigma. Também para mim sempre foste um enigma. Mesmo na mocidade, quando, as vezes, após qualquer capricho insignificante, súbito te punhas a falar, de tal maneira que eu sentia uma pontada no coração, e logo começavas... Bem, sabes o que quero dizer... mesmo então não te entendia; é por isso que me antipatizei contigo. Possuías tanta energia, tão incansável aspiração ao ideal...
— Palavras, meras palavras! Nada de ação prática! — atalhou-o Rúdin.
— Nada de ação prática! Mas que ação...
— Que ação? lima mulher cega e toda a família sustentar com o próprio trabalho, como o fazia Priajentsev... lembras-te? Eis uma ação prática.
— Sim, mas uma boa palavra é também um feito.
Rúdin olhou em silencio para Lejniev e mansamente
abanou a cabeça. O amigo quis dizer algo e passou a mão pelo rosto.
— Enfim, partes para a aldeia? — indagou afinal.
— Sim.
— Mas ainda a tens?
— Ainda resta alguma coisa. Dois servos ou pouco mais. Há um canto onde possa morrer. Talvez conjetures neste instante: “E nem agora dispensa uma frase de efeito!” De fato, as palavras foram minha ruína; consumiram-me a vida, e nunca pude libertar-me delas. No entanto, o que acabo de dizer não é mera retórica. Nem o são estes cabelos brancos e estas rugas, e nem sequer esta sobrecasaca puída nos cotovelos. Sempre foste severo para comigo, e tinhas razão; todavia, não se trata de severidade agora, quando tudo está acabado, não há azeite na candeia, a própria candeia está quebrada e o pavio se acaba. A morte, irmão, é a paz absoluta...
Lejniev deu um salto.
— Rúdin! — exclamou. — Por que me falas assim? Que fiz para merecê-lo? Que juiz sou, e que espécie de homem seria, se, ao ver-te as faces encovadas e as rugas, a expressão frase de efeito pudesse ocorrer-me? Queres saber o que penso de ti? Pois não! É isto; eis um homem que, com tal capacidade, o que não poderia haver alcançado, que recursos materiais não possuiria agora, se apenas os quisesse!... mas vejo-te faminto e sem lar...
— Desperto tua piedade — observou surdamente Rúdin.
— Não, estás enganado. É respeito o que me inspiras — não nego. Quem te impediu de passar anos e anos com esse latifundiário, teu amigo, que, tenho plena certeza, se quisesses de adaptar a ele, consolidaria tua situação? Por que não pudeste te acomodar no ginásio, por que — homem estranho! — sempre terminaste, não obstante tuas intenções iniciais, por sacrificar teus interesses pessoais, sem criar raízes em solo adverso, por mais rico que fosse?
— Nasci judeu errante — respondeu Rúdin com sorriso irônico e triste. — Não posso ficar parado.
— É verdade; mas não podes ficar parado porque um verme te corrói, conforme disseste. Não carregas tal parasita, não tens o espírito da intranquilidade vã; o fato é que arde em ti a flama do amor a verdade e, polo que se vê, apesar de todas as tuas contradições, mais forte em ti que em muitos que nem mesmo se julgam egoístas e talvez te consideram intrigante. Em teu lugar ti primeira coisa que eu teria feito há muito tempo era fazer silenciar em mim esse verme e adaptar-me a tudo; no entanto, nem ficaste amargurado e, estou certo, hoje mesmo, agora, estás disposto a lançar-te a novo trabalho com o entusiasmo de um jovem.
— Não, irmão, estou cansado — proferiu Rúdin. — Para mim basta.
— Cansado! Outro teria morrido há muito. Afirmas que a morte apazigua; pensas que a vida não? Quem viveu e não se tornou tolerante em relação a seus semelhantes não merece condescendência. E quem pode afirmar que não precisa de indulgencia? Fizeste o que estava ao teu alcance, lutaste enquanto pudeste... Que mais poderias ter feito? Nossos caminhos se separaram...
— Irmão: és por inteiro diferente de mim — interrompeu-o Rúdin suspirando.
— Nossos caminhos se separaram — continuou Lejniev, talvez justamente porque, graças a minha fortuna, sangue-frio e outras circunstâncias felizes, nada me impediu de ficar sentado, como espectador, os braços cruzados; quanto a ti, tiveste de sair ao campo, de arregaçar as mangas, de pelejar e de trabalhar. Nossos caminhos se separaram..., mas olha como estamos próximos um do outro! O fato é que temos uma linguagem quase comum e basta um gesto para nos entendermos; crescemos com os mesmos sentimentos. Pouco resta de nós, irmão; somos os últimos mohicanos! Podíamos divergir e mesmo nos hostilizar nos velhos tempos, pois ainda tínhamos muita vida diante de nós; agora, porém, quanto nossas fileiras se tornam rarefeitas, quando as novas gerações nos deixam para trás com os olhos fitos em ideais diferentes dos nossos, é preciso que nos apoiemos rigorosamente um no outro. Choquemos nossos copos, velho amigo, e cantemos nosso velho Gaudeamus igitur!
Os amigos tilintaram os copos e, profundamente emocionados, cantaram, da melhor maneira russa e com voz de falsete, a velha canção estudantil.
— Agora vais para a aldeia — Lejniev retomou a palavra. — Não acho que ficarás muito tempo ali e não posso imaginar onde, quando e como terminarás tua vida. Lembra-te, porém, disto: não importa o que te aconteça, sempre terás um lugar, o ninho em que poderás abrigar-te: é a minha casa. Estás ouvindo, velho amigo? O pensamento também tem suas pessoas com deficiência: é necessário que igualmente conte com um teto.
Rúdin ergueu-se.
— Muito obrigado, irmão! — respondeu. — Grato por tudo! Jamais me esquecerei de teu bom coração, mas não mereço um abrigo. Estraguei minha vida e não servi as ideias como devia.
— Não blasfemes! — retrucou Lejniev. — Cada qual é produto de seu próprio temperamento, e nada mais se pode exigir. Disseste que és um judeu errante... E pôr o saberes, talvez devas vagar eternamente; é possível que assim estejas cumprindo a missão que tu próprio desconheces: não é por acaso que a sabedoria popular diz estarmos todos sob a égide de Deus. Vais embora? — indagou Lejniev ao ver que o amigo tomava do boné. Não pernoitas aqui?
— Já é tempo! Adeus. Obrigado. E meu fim será triste.
— Só Deus o sabe. Estás mesmo decidido a ir?
— Sim. Adeus. Não me queiras mal.
— Bem, perdoa também o mal que eu te possa haver causado... e não te esqueças do que te disse. Adeus!
Os amigos abraçaram-se Rúdin saiu às pressas.
Lejniev esteve longo tempo a caminhar pela peça, parou diante da janela, pensou e disse a meia voz: “pobrezinho!” e, sentando-se a mesa, começou a escrever uma carta a esposa.
E lá fora ergueu-se o vento, a uivar ominoso e com força contra os vidros das janelas, fazendo-os retinir. Começava uma longa noite de outono. Feliz é aquele que, em tais ocasiões, se vê protegido pelo teto da casa, aquele desfeito; seus defensores sobreviventes a abandonavam e só cuidavam de salvar-se quando súbito, bem no ponto mais elevado, sobre o chassi de um ônibus destroçado, surgiu um homem alto, velha sobrecasaca atada a cintura por uma chapa vermelha e chapéu de palha nos cabelos grisalhos e desgrenhados. Numa das mãos segurava uma bandeira vermelha e na outra um sabre curvo e cego; gritava algo com rispidez e voz fina, escalando a barricada e agitando tanto o estandarte quanto a arma. Um carabineiro de Cincennes fez pontaria e atirou... O rebelde largou a bandeira e, qual saco, caiu de a quem não falta um cantinho confortável e tépido! E que Deus ajude a todos os nômades sem lar!
A 26 de julho de 1848, em Paris, sob o sol escaldante do meio-dia, quando o levante das oficinas nacionais já estava quase sufocado, numa das estreitas travessas do bairro de Santo Antônio um batalhão das tropas de linha tomava uma barricada. Alguns tiros de canhão a havia rosto para baixo como se fosse tocar a terra com a testa, numa profunda reverencia a alguém. A bala atravessara-lhes o coração.
— Tiens! — disse um dos insurretos em fuga a outro — on vient de tuer le Polonais.
— Bigre! — Respondeu o outro, e ambos se lançaram ao porão de uma casa com todas as venezianas fechadas e as paredes marcadas de balas e obuses.
O polonais era Dmítri Rúdin.
Ivan Turgueniev
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