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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RUMORES / Hugo Claus
RUMORES / Hugo Claus

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

R U M O R E S

 

Dolf Catrijsse está de pé em frente da janela, de costas para a sala de jantar e para a pessoa sentada no cadeirão de verga com almofadas às florinhas que há muitos anos é só dele, Dolf.

Essa pessoa é da sua família. Essa pessoa é o seu filho René, que apareceu de repente, depois de uma ausência de quase três anos, e está agora sentado no cadeirão à beira do fogão de sala, como se não soubesse que aquele era o lugar do pai.

As costas de Dolf estão imóveis sob a bata. O silêncio é total. Já dura uma hora. Há uma hora que ele resmoneou pela última vez qualquer coisa sobre o calor. Se estava a falar do calor do fim do Verão ou do calor húmido de África, de onde acaba de chegar, não se sabia.

Dolf pensa se não será má educação estar assim de costas para o filho, com o seu silêncio incómodo, embaraçado. Mas é mais forte do que ele: não consegue olhar René de frente. Nunca conseguira.

Já lá vão quase três anos.

Esta noite, já de madrugada, um leve tamborilar na vidraça de uma janela da frente, seguido de um arranhar e um esgadanhar insistentes de gato esfomeado.

E Alma a pôr o robe pelas costas e a sair esvoaçante pela porta do quarto.

E lá fora uma voz rouca, quase irreconhecível:

- Ei, ei! (E não, pai, pai!)

E Alma a arrastar os chinelos pelo chão, de regresso ao quarto, a chiar de alegria, toda apressada como se, no seu sono, já esperasse esse mulo furtivo no meio da noite. - É ele - disse.

Ele? Ele quem?

- René - respondeu com uma cara de ansiedade alegre que Dolf já não lhe via há meses.

Era ele. O René de antigamente, sempre com os nervos à flor da pele, mau, traiçoeiro e, ao mesmo tempo, esse homem desvairado e exausto que, mal olhando para o pai, se espapaçou no cadeirão de verga onde está sentado agora. Sem despir o blusão, com os bolsos de cima atafulhados. Trazia umas sapatilhas com nódoas de ferrugem ou de sangue e uma mochila militar, pousada agora aos seus pés.

Vê-se que dormiu vestido, esta noite. Talvez até deitado no soalho. Dolf tinha ouvido uns estalidos, uns gemidos.

Agora Dolf vê o reflexo do filho na vidraça, como uma fotografia desfocada de jornal. Na Tribuna de Waregem, o jornal local, veio na primeira página uma fotografia de Dolf sentado ao lado de Alma, no banco do jardim lá de casa. Atrás deles, gerânios, dálias, as traseiras da casa. Têm os dois os olhos fixos na lente, Alma sisuda, Dolf com uma expressão de escárnio e medo. Por baixo, um texto dizendo que eram pais trabalhadores e tementes a Deus e sentiam grande desgosto por nunca terem recebido notícias do filho mais velho, René, visto pela última vez na ilha de Zânzibar, na companhia de três outros desertores belgas que faziam parte da comitiva do feroz ditador Xeque Karume. E que a família Catrijsse rezava todos os dias a Nossa Senhora de Fátima para que ele voltasse são e salvo, de corpo e de espírito.

De vez em quando, Dolf e Alma viam na televisão soldados brancos, recurvados para a frente, embrenhando-se no mato africano. De repente, uma chuva de flechas passava-lhes por cima das cabeças. Barafustavam uns com os outros em dialecto da Flandres Ocidental. Uma das vozes até podia ser a de René. Os soldados corriam uns para os outros agitando os braços no ar, mas nenhum deles se parecia com René. Nem o último que, não conseguindo entrar no helicóptero, ficou em terra, de joelhos, com umas boas dezenas de flechas espetadas no pescoço e nas costas.

Os perseguidores negros, a berrar, a dançar e a disparar as metralhadoras em direcção ao helicóptero, eram rapazes de catorze anos vestidos de mulher, com cabeleiras cor de palha e boinas do exército belga. Alguns deles traziam sutiãs brancos com os bicos pintados com sangue.

A manhã continua cinzenta. A fotografia na vidraça move-se e esbate-se.

A figura deformada enrola um cigarro, acende-o e a sala fica envolta num fumo adocicado e penetrante. Dolf olha ainda para a horta, para o campo de futebol do Excelsior Alegem, para além desta, e para as chaminés da fábrica de cerveja, mais adiante. Como se se despedisse de uma ordem que nunca mais seria a mesma depois da chegada de René. Volta-se para o seu filho.

- A tua mãe foi ao supermercado - diz. - Vamos ver se ela não se esquece dos nossos cigarros. Dizem que, para a semana, vão ficar mais caros. Até esse prazer o governo nos tira. É o que acontece quando se juntam no governo católicos e socialistas.

Dolf entra na sala de jantar familiar, envolta agora no fumo adocicado.

Esta noite, René disse, no máximo, três frases, aos arrancos, como se lhe custasse falar. Dolf não percebeu nada do que ele disse, as suas palavras dirigiam-se exclusivamente a Alma e eram constantemente interrompidas por ataques de tosse.

- René não quer que ninguém saiba que está cá - disse Alma, mais tarde, na cama. - Um dos amigos pô-lo na rua. Perguntei-lhe se eu o conhecia e se era alguém daqui das redondezas, mas ele não respondeu. Ficou calado, como um cão antes de morder. Até dá pena olhar para ele. Às tantas, está a chocar alguma doença. Por causa dessa bicharada toda que há lá pelo Congo. Principalmente, mosquitos da malária. Quando entrou no quarto dele, olhou em redor como se fosse a primeira vez. E nós preocupados em deixar tudo como estava, em não tirar nada do sítio. Eu bem tentei fazê-lo falar, mas ele quase não reagiu. Reparei depois que tinha adormecido em pé, em frente do meu nariz; nem precisou de deitar-se na cama. Meu Deus! Se calhar apanhou a doença do sono. Disse-lhe: «Há quem diga por aí que os soldados brancos não se contentam em matar os pretos e que vocês, quando estão bêbedos, disparam uns contra os outros. Quando ouvi isso fiquei várias noites sem dormir. E o teu pai, e o teu irmão Noél a mesma coisa!». Mas ele continuou a dormir em pé, muito direito, com a mochila na mão. Contei-lhe que assistimos a uma conferência muito esclarecedora, com diapositivos e tudo, na escola da aldeia, organizada pelo professor Arsène, e que o orador explicou que se tratava do Congo e doutros territórios ultramarinos, e onde ficámos a saber que os brancos, com o medo, se embebedavam e, por isso, desatavam aos tiros. E disse também que os pretos ficavam de boca aberta, não conseguiam entender o que se passava.

Também lhe contei que tu adormeceste e que eu te dei um encontrão quando ele estava a falar do gado africano, porque pensava que te interessava saber que os pretos têm o costume de furar uma veia às vacas, aparar o sangue para uma tigela, misturá-lo com leite e farinha e de tapar, depois, o buraco com lama.

Depois de uma hora, Dolf começa a preocupar-se. Não por causa de René, que olha mudo para a televisão apagada. Por causa da Alma. Onde se terá metido?

A estrada é muito perigosa e a Alma, excitada por ter reencontrado o filho que julgava perdido, distrai-se, dá uma guinada com o guiador da bicicleta, cai no meio da estrada e é apanhada por um camião. Rebola para um lado e para outro dez vezes, um carro vindo da outra direcção esmaga-lhe o cesto das compras, outro carro, empoeirado de farinha e açúcar, passa-lhe por cima do peito e esborracha-lhe a cabeça.

Dolf pergunta a René se quer café. René diz que não com a cabeça, de olhos franzidos.

Tem ar gasto, pensa Dolf, é essa a palavra, gasto como uma puta derreada por um dia de labuta. É este o nosso René, o nosso pequenito que, há uns anos, aqui na cozinha, ficou meia hora a berrar por causa da queda mortal de Stan Ockers na pista de ciclismo traiçoeiramente reluzente do Palácio de Desportos de Antuérpia? Stan Ockers, recorde mundial de velocidade. Deve ter chegado aí a uns setenta e cinco quilómetros à hora. Se não foi tanto, pouco faltou.

Tento outra vez. Se ele não responder, que vá para o inferno.

- René.

René dã um grunhido. Nada mau, para começar. Agora é preciso prender-lhe a atenção com qualquer coisa interessante. Anda lá, desembucha. - Os pretos sabem lidar com dinheiro?

O jovem, pálido como um cadáver, fica atento a um ruído vindo da rua e dá a impressão de ir responder. Nesse preciso momento, Alma bate nos vidros da janela da cozinha.

Grita da cozinha: - Uhuh! - O que também já não faz há anos, depois que essa criança embirrenta partiu para a sua selva, o seu deserto, os seus massacres.

- Mas ainda não fizeste café para o rapaz ! - Dolf assusta-se com a alegria esfuziante da mulher.

- Eu perguntei-lhe se queria. Foi ou não foi, René?

- Trouxe bananas - disse Alma, espalhando sobre o oleado da mesa aos quadrinhos as coisas que comprara para o seu mais que tudo, para esse desgraçado do seu filho. Bolachinhas de todas as formas e feitios, barras de chocolate negro e de leite, salsichas, pastilhas elásticas, cigarros para a família inteira, uns saquinhos transparentes cheios de frutos exóticos com nomes que Dolf nunca conseguia fixar (há um que se chama japapas, ou coisa do género.)

- No supermercado, tive de conter-me para não contar a novidade. E a Nicole, sabes quem é, aquela empregada que está agora na charcutaria, olha para mim e diz: «Alma, estás muito sorridente.» E eu digo: «Eu? Quando?» E ela: «Agora, aqui, em frente do meu nariz. Não terás por aí um admirador?» Foi pena não lhe poder contar tudo. Para mais que um irmão dela trabalha nos escritórios da Kilambo. Ou é nos telefones?

Alma tem os mesmos olhos frios, claros de René. O outro filho dela, Noêl, o meu outro filho, tem os meus olhos. E o meu carácter, desgraçadamente. Somos bons de mais, não prestamos para nada, o Noêl e eu. Cagam-nos em cima da cabeça e ainda dizemos obrigado. Veja-se o René. O que ele me fez a mim e à mãe, nem um romance chegava para contar. E apesar de tudo, agora que o tenho aqui outra vez à minha frente, tão transtornado, tão desfigurado, dói-me o coração. Mas ele fica para ali, como antigamente, com o seu ar fechado, a matutar na melhor maneira de me tramar. Porque podemos ter a certeza de que nos vai arranjar sarilhos, tão certo como eu estar aqui. Por exemplo, por causa dessa coisa proibida que ele fuma. Basta um lavrador entrar no nosso estabelecimento, sentir o cheiro e ir logo direi-tinho à esquadra fazer queixa ao inspector Blaute. Aparece-nos à porta uma carrinha da polícia, os gendarmes põem-nos umas algemas, e lá estamos nós outra vez na primeira página da Tribuna de Waregem.

- Que fazemos com a Julia? - pergunta Alma. Dolf não sabe a quem é dirigida a pergunta. René conhece bem a Julia, mas não pergunta por ela. Quando muito, um leve franzir da testa lisa e abaulada.

- Vamos falar do assunto logo à noite com o Noél, quando ele nos trouxer a gazeta. - Como a testa do filho continua franzida, ela insiste nesse amor caturra de mãe galinha. - Porque o senhor Bijttebier costuma guardar a gazeta para nós. Às vezes, vê-se que nem a abriu. Um ataque de tosse é a sua resposta.

- Notas alguma mudança? O dono da fábrica de cerveja acha que devíamos pôr uma lâmpada fluorescente aqui no estabelecimento. Parece que sai mais barato, com o tempo...

Com o tempo. Aquilo a que Alma chama estabelecimento era antigamente a nossa sala de estar. Dolf e Alma esvaziaram a sala, a rir-se como adolescentes, disparatadamente, fervendo de excitação. Estavam casados há cinco anos quando decidiram abrir um estabelecimento de bebidas. Venderam o aparador, cortaram os reposteiros em retalhos, que serviram para fazer umas roupinhas para o René e o Noêl, e levaram os sofás para o sótão. Depois, pregaram umas prateleiras na parede, pintaram-nas com tinta bege e instalaram uma vitrina que tinham recebido da fábrica de cerveja. Quantas garrafas de genebra teriam na primeira semana nas prateleiras a reluzir de tinta? Cinco? Seis? Não devia ser muito mais. E quantas garrafas de vinho tinto? Alma fora pedir conselho ao reverendo Lamantijn, que vai todos os anos a França tratar pessoalmente do abastecimento da sua garrafeira particular. Nos primeiros dois anos, encheram o estabelecimento de garrafas de Sauvignolles. Até que descobriram que a maioria dos conterrâneos se mordia de inveja deles. E que até os seus amigos e conhecidos preferiam ir ao supermercado.

O Sauvignolles acabou por azedar.

- Para o jantar há borrego com couve flor em molho branco - diz Alma. - Não penses que ia fazer arroz ou mandioca só por tua causa. A não ser que me digas: - Mãe, tenho tantas saudades de comer comida africana! - Não? Diz o que queres comer, René, que eu arranjo-te. Vá lá.

Com o tempo, as prateleiras foram-se enchendo, a campainha da porta passou a retinir mais vezes, a gente da aldeia começou a demorar-se mais tempo na loja para dois dedos de conversa e Alma começou a perceber mais de leis, decretos, regulamentos, impostos, amortizações. Mas continuava com medo dos dois cavalheiros que podiam aparecer a qualquer momento, de fato escuro, com a lei das contribuições do seu lado, uma lei elástica, imprevista, impenetrável que, se fosse preciso, iria desencantar nos tempos de antanho uma cláusula estúpida que daria aos fulanos o direito de impedirem um cliente de atravessar a soleira da porta, e de passarem uma multa pesada ao dono se o cliente levasse menos de duas garrafas de genebra.

- Acredita se quiseres - diz Alma -, mas quando passei à porta do Café Coroa e vi lá dentro o professor Arsène, tive tanta vontade de entrar, sentar-me à mesa dele e dizer-lhe: -Professor Arsène, o seu melhor aluno, não precisa de pensar muito para descobrir quem é, voltou para casa, para nós, como vê, ele não pode passar sem os seus pais». Tinha estas palavras a dançar na ponta da língua, mas contive-me. Como sempre.

- Ah, é verdade, vieram cá dois cavalheiros. Primeiro até pensei que eram das contribuições, mas afinal eram dois polícias à paisana. Queriam saber o teu paradeiro. Eu respondi-lhes: «Está no estrangeiro». «Sim, sim, já conhecemos essa, no estrangeiro, mas em que parte do estrangeiro?». Não acreditaram em mim quando lhes disse que não sabia. «Está na América? Na Ásia? Na Austrália? Ou aqui na Europa?». Eu disse: «Acho que ele está no continente de que você ainda não disse o nome». «Madame Catrijsse», disse o de bigode, «não vai continuar a fazer pouco de nós, pois não?». E eu: «Tenho muita pena, mas realmente não sei». E eu fiquei para ali, com a cara a arder de vergonha, uma mãe que não sabe onde está o seu filho, um filho que não se lembra de dar a morada e o número de telefone à sua própria mãe.

Com o tempo, pensa Dolf, vamos deixar de ter vergonha do nosso filho. Com o tempo, a Alma não precisará mais de se esfalfar por causa daquele ali, igualzinho a ela, esse indivíduo de olhos luminosos, cabelo sujo cortado à escovinha, com esse seu silêncio arrogante.

Alma

Alma está enfadada com Dolf. Mesmo não sendo culpa dele. Estou totalmente destrambelhada, pensa. A minha mãe diria, neste caso: «a nossa Alma parece uma vitela desmamada». Irrita-a o boné na cabeça tisnada de Dolf. O boné aperta-lhe as orelhas, que parecem dobradas, não lhe fica nada bem, quantas vezes ela lhe pediu para o tirar quando entrasse em casa.

Alma irrita-se com a irritação que sente. Porque não continua a sentir euforia, a mesma que sentiu nessa noite quando levou o filho morto de cansaço para o seu antigo quarto, para a cama que ela fizera para ele?

Herdei isto da minha mãe. Tanto ela como eu não queremos que ninguém nos conforte.

Porque é que não hei-de gozar a vida enquanto ando cá por este mundo? Sei a resposta, mas abafo-a sempre antes de sair.

Não será melhor telefonar à minha mãe? René era o seu neto favorito. Ia ao colo dela, quando fomos os três visitar a tia Virgínia no dia em que fazia oitenta anos. Um homem meio bêbedo de olhos papudos, sentado no compartimento do comboio, à nossa frente, não tirava os olhos da minha mãe, que olhava fixamente para as hortas, os jardins, os cais de embarque, as fábricas plantadas no meio dos campos, a correr diante da janela. Mais ou menos por altura de Dendermonde, o homem, que vestia um fato de três peças às riscas e trazia no pulso um relógio de ouro, pousou a mão na coxa da minha mãe.

- Minha senhora, tenho a sensação de que a conheço de qualquer lado.

A minha mãe não tirou os olhos da janela. O comboio abrandou. O homem virou-se para mim e disse:

- E a si também. Trabalhou como enfermeira durante a guerra. É ou não é verdade? Na fábrica de borracha Fénix. Em Eschwege.

Levantou-se, pegando numa maleta de cartão.

- Tem toda a razão em querer esquecer tudo. Foram tempos muito difíceis.

- Cavalheiro - disse a minha mãe sem erguer os olhos. - Deixe-me em paz e meta-se na sua vida.

- Minha senhora - disse o homem após um instante. - Eu já vi muita coisa na minha vida, mas nunca vi ninguém com umas ventas tão pretensiosas.

- Cavalheiro - disse a minha mãe com a voz arrastada.

- Sim, minha senhora. Diga.

A minha mãe embalava no regaço o pequeno René, espantado. - E o cavalheiro tem um focinho em que apetece cagar em cima.

O homem sacudiu a cabeça. Várias vezes. A estação de Dendermonde apareceu lentamente na moldura da janela.

- É estranho - disse o homem -, mas já ouvi isso antes doutra pessoa. A minha mãe, dantes tão altiva e rancorosa, é agora um monte de ossos,

uma dentadura a bater como castanholas, uma pele sem vida, um cancro nos intestinos.

Telefono-lhe mais tarde.

E depois o René come sofregamente duas sandes de toucinho cozido, quase sem mastigar. No fim, acende uma ponta de cigarro retorcida que exala um cheiro perfumado.

- Era melhor tirares a camisa - disse Alma. - Podia lavá-la e entretanto vestias uma camisa do pai.

- Não - responde René.

- Ou uma do Noél.

- Não.

- Então, não. Mas, com certeza, deixas-me lavar e passar a ferro isto aqui. - Alma faz menção de lhe tirar um pelinho do lenço de seda de cores garridas que traz ao pescoço mas ele dá-lhe uma palmada na mão. O lencinho escorrega. Alma aponta para uma mancha arroxeada no pescoço, uma violetazinha com uma orla ocre.

- Tiveste alguma zaragata? Num bar? Num desses bares de má fama?

- Desde que não seja por causa da política - diz Dolf. - Hoje em dia, andam todos malucos com a política. E a culpa é desse saco de batatas dos Negócios Estrangeiros, o Paul-Henri Spaak.

René aconchega o lenço ao pescoço. Vai para a cozinha, sai para a marquise e segue pelo carreiro de saibro que dá para a horta.

Espero que os vizinhos não o vejam; bem, só se, por azar, um dos rapazes dos Agneessens estiver à espreita no postigo do telhado. Dolf observa os passos vacilantes de René. Os passos dum estranho.

Há muito tempo, no hospital, Dolf vira-lhe a cabecinha encorrilhada cor de âmbar. Alma estava sentada na cama, com seis ou sete almofadadas atrás das costas. Riu-se ensonada para Dolf.

- Que tal?

- Tenho de me habituar. É tão amarelinho.

- Essa cor desaparece.

- Oxalá que sim.

- Acha-lo bonito ou não?

- Bonito, muito bonito. Nem posso acreditar que é meu.

- Também não é teu.

Dolf procurou qualquer coisa engraçada, travessa, na cara jovem, reluzente da mulher. Reparou nos mamilos escuros por baixo da camisa de noite molhada. Sabia que tinha de entrar no jogo, era um lado dela que continuava a estranhar.

- De quem é, então? - conseguiu articular.

- Olha bem para ele.

- O nariz?

- Dolf, o meu pai também tem um nariz assim. Olha com mais atenção.

- Esta covinha no queixo?

- O professor Arsène também tem uma covinha assim.

- Oh, não, Alma, não, não me digas que é do Arsène, peço-te. Ela deu uma gargalhada.

- Vem cá - disse enleando o braço roliço, duro e morno no seu pescoço. Sussurrou-lhe algo ao ouvido que ele não percebeu e disse:

- Nunca o saberás. - E soprou-lhe para dentro do ouvido um som agudo, de trompete. Ele deu um grito. A parteira disse: -Vocês parecem dois miúdos!

- Patetinha - disse Alma. - Olha-me para estes dedinhos. Os dedos dos pés são teus, de mais ninguém.

René volta para a sala. Não posso dizer, pensa Dolf, que tenha ficado contente por ele ter voltado. Tenho mais medo dele agora do que quando fugiu, certo dia, com a guarda nacional e a polícia (pela primeira vez unidos fraternalmente) atrás dele como cães.

- Ainda não perguntaste pelo teu irmão - diz Alma. - Vocês entendiam-se tão bem. Não vais reconhecê-lo.

- Ele arranjou emprego - diz Dolf. - Na fábrica Bijttebier. Cargas e descargas. Está satisfeito. É um trabalho quase sempre ao ar livre. Faz-lhe bem. De vez em quando, trata do jardim do reverendo ou faz de motorista quando ele não tem vontade de conduzir.

- O teu pai e eu achamos que ele tem uma namorada. Nunca vais adivinhar quem é.

- A Julia Rombouts - diz Dolf. - Vem buscá-lo cá a casa, de vez em quando, para irem ao cinema ou à discoteca. Foi ela quem o ensinou a dançar.

- Essa história não me agrada nada. Já sei que não vai durar muito tempo e, depois, nós é que ficamos com os problemas. Enfim, talvez seja melhor assim.

Alma franze o nariz. Ninguém, nada é bom que chegue para os seus dois filhos, o meigo Noêl e o arisco René. Mesmo que a rainha Juliana da Holanda viesse aqui à nossa loja e se pusesse de joelhos à minha frente com um cheque de cinco milhões de francos belgas na mão cheia de anéis e pedisse o René em casamento para uma das princesas, a Alma franziria o nariz, encaramujaria os lábios e responderia: «Majestade, preciso de uma noite para pensar no assunto. Porque, assim à primeira vista, não acho isso muito boa ideia».

René pigarreia, leva a mão ao pescoço e pressiona a pisadura com dois dedos cautelosos, sobre o lenço, dizendo:

- Que carro guia o nosso Noêl?

- O do reverendo.

- UmZ3AF55?

- Um desses de mudanças automáticas?

- Acho que sim - diz Dolf.

 

A minha mãe está muito acabada, pensa René. Parece que mirrou, dantes andava sempre tão direita. Também vejo que tem dificuldades em engolir.

Já é a quarta vez que me pergunta se estou contente por ter voltado. Este estabelecimento é tão acanhado. Mal se consegue respirar aqui dentro. Quatro passadas de comprido, três passadas de largura.

Estão a beber cerveja.

O tabaco cultivado pelo meu pai é mais forte do que eu tinha na memória. Quantas vezes pensei nele nos tempos em que andava sob o céu de breu de Bamako.

A minha mãe quer pôr-me uma compressa no pescoço. Afasto-a outra vez. Ela olha para mim, enfadada. Durante quatro minutos, controlei pelo meu relógio.

Vai buscar ervilhas para descascar.

- Aqui, prova. Isto não tinhas tu no exército, hem, ervilhinhas frescas? Não é? Só se fossem de lata. Mas frescas, de certeza que não.

As ervilhas são frescas, quebradiças, desfazem-se na boca. A noite aqui é dum cinzento escuro, trémulo. Mais umas vinte noites. Trinta. Mais umas trinta alvoradas. A campainha da loja.

- Esconde-te - cicia a minha mãe.

Devo estar muito lento, porque ela puxa-me pela manga e arrasta-me até à copa.

- Aqui, Georges, aqui, já! - diz alguém.

Reconheço a voz de Félicien, que fica à entrada. Agacho-me atrás da porta.

- Félicien, então - diz o meu pai, jovial. O meu pai verga-se diante de toda a gente, seja quem for. Nunca aprendeu outra coisa.

- Como vamos?

- Cá vamos andando - diz a voz de impostor. As galochas rangem.

- Mas diz lá, Félicien, em que te posso servir? - A minha mãe, insuportavelmente alegre.

- Almazinha, minha filha, mede-me lá um meio litrinho da genebra de Balegem. Porque a genebra francesa faz-me azia. E sabes muito bem como a nossa família tem estômago delicado. Uma comida mais picante ou a mínima ralação e a parede do estômago grita logo ó da guarda. E eu no domingo tenho visitas, aí umas dez pessoas, vêm à missa do aniversário da minha falecida mãezinha.

- Achas que uma garrafinha chega, Félicien?

- Se fossem educados, Dolf, traziam eles as bebidas. Georges! Aqui! Aqui, já disse!

O cão Georges empurra com a pata a porta entreaberta. Tosse. Entra na copa e vê-me agachado. Georges, um lulu cor de escarro, começa a rosnar. Saio de trás da porta, de cócoras, agarro-lhe o cachaço e com a mão esquerda aperto-lhe o focinho. O bicho começa a rosnar. Aperto ainda mais, agarro-lhe a cabeça, puxo-a até junto da cara. Sopro-lhe no focinho. Desata a ganir como uma criança rouca, sacode o nariz molhado, com a baba a escorrer-lhe dos dentes. Largo-o e ele foge para a porta a arrastar as patas pelo chão.

- Aqui, Georges, aqui.

- Pronto, Félicien, obrigado e até à próxima.

- Um bom-dia para todos.

O suor escorre-me em catadupa pelas costas e pelas virilhas. Vou para a sala.

- Deste um pontapé ao cão? - pergunta ela.

- O cão tem sempre qualquer maleita - diz o meu pai.

A minha mãe põe as mãos na nuca, curva-se para a frente e quase toca com a cabeça nos joelhos. Foi enfermeira e campeã de voleibol no Sudoeste da Flandres, mas já não sei quando e em que categoria.

Quando acaba as suas flexões, o meu pai traz-lhe uma garrafa de cerveja pale-ale. Para ganhar forças. Para ser ela a ir ao meu funeral.

Beijei as beiças a tanta badalhoca estrangeira e àquela ali, com espuma de cerveja sobre o lábio, nunca toquei, nem sequer fiz uma festa, nunca lhe dei um beijo nas faces de âmbar, na nuca húmida com caracoizinhos pretos. Nem tampouco na teia de rugas aos cantos dos olhos.

- Que achas do nosso televisor? - pergunta o meu pai. - Fizeram-nos um rico desconto, lá na loja. O canal que se vê melhor é o de Bruxelas, em francês. Ou o da Holanda. Mas na Holanda passam a vida a discutir coisas que não interessam a ninguém. Só mostram aleijados ou mongolóides. Ou então é o serão inteiro a falar da guerra. Já lá vão vinte anos e continuam a falar da guerra.

Na parede, por cima do televisor, está uma fotografia que dantes estava pousada na chaminé da lareira. A preto e branco, coberta de sulcos trémulos e dos pontinhos brancos da ampliação. Um soldado perdido numa tempestade de neve. O capacete enterrado na cabeça ensombra-lhe metade da cara. Uma metade oval, vaga e enlameada. O capote cinzento chega-lhe aos calcanhares. Agita no ar uma espingarda, mas a sua presa é invisível, fica fora da moldura. Flocos de neve dançam no ar em turbilhão. Ao fundo, adivinha-se um bosque de bétulas.

- Mas como? - perguntei uma vez à minha mãe. - Como é que se sabe que é um bosque? O soldado, com a neve, não vê bosque nenhum.

Era Inverno. A minha mãe, sentada à beira do fogão de sala de Mali-nes, rosado da braseira, tinha os pés descalços pousados no rebordo de níquel baço. Eu estava a fazer os deveres. Como gostaria que ela pousasse no meu colo os pés húmidos cor de âmbar.

- Nós, que olhamos para a fotografia, é que podemos adivinhar o bosque.

- Alma, deixa o rapaz fazer os deveres. Mas ela não ligou.

- O soldado está perdido - disse. - Não consegue ver o bosque de bétulas porque está cego pela neve. Porque, se ele o visse e o reconhecesse, encontrava facilmente o caminho para o seu Lagef", bastava seguir as suásticas e as setas gravadas nos troncos das árvores. Mas está perdido.

 

* Lagerno original: acampamento. (N. da T.)

 

- Alma, não chateies o rapaz com essas histórias de antigamente.

Mais tarde, tinha aí uns quinze anos, o professor Arsène, ao ver a fotografia ampliada, comentou: - A espingarda parece uma Garand. É impossível que fosse a sua arma regulamentar, a Mauser 43. Isso quer dizer que ele a surripiou a algum soldado americano morto.

Na minha infância, os únicos momentos em que vi a minha mãe mais ou menos feliz ou satisfeita era quando o meu irmão Noêl não estava em casa e ela se punha a falar da fotografia. Às vezes comigo sentado no colo dela.

- Que vês mais no meio da neve, René?

- Ursos brancos.

- Sim, muito bem. E que mais?

Eu cismava, cismava. Lembro-me de que, nessa noite, o tractor do lavrador Félicien, parado na rua com o motor ligado, me baralhava os pensamentos. Quando o tractor arrancou, eu disse: - Bichos de neve.

Ela repetiu baixinho: - Bichinhos de neve. - A sorrir, como se gostasse de mim e só nesse momento o tivesse descoberto, como se fosse impossível vir a esquecê-lo alguma vez.

 

E nestes momentos que me faz falta um telefone. Mas o Dolf não quer, por causa da despesa. Assim, poderia telefonar ao Noêl.

Não quero fazer nenhuma diferença entre os meus dois filhos. Esse cachorro que está ali, a olhar não sei para onde, que não se digna abrir a boca, e o outro, o Noèl, o desgraçado, que também me desgraçou a mim, quando me rasgaram toda para o tirar das minhas entranhas. Pesava quatro quilos.

O que também me faz falta é o banjo do Noél. O professor Arsène disse uma vez: - Quem nunca ouviu o Noêl tocar numa bela noite de Verão à beira da água, não sabe o que é arte.

Às vezes, penso no que faria se tivesse de escolher qual dos dois deveria ficar vivo, qual dos dois eu deixava atirar para debaixo dum comboio ou para dentro duma fossa. É pecado pensar assim, Alma. É melhor jogares na Lotaria Colonial.

Se tivesse telefone: - Senhor Bijttebier, podia fazer o favor de chamar o meu filho Noêl? Não, não é nada de grave. Obrigada, senhor Bijttebier. Noêl? Noél, não te assustes, não aconteceu nada, o teu irmão voltou, mas não quero que contes a ninguém. Sim, está aqui sentado na cozinha. Não, ele não está ferido, não, também não está zangado contigo. Não, Noêl, se te estou a dizer que não! Ele ainda não contou muita coisa e nota-se que passou um mau bocado, mas o mais importante é que tu mais logo... não, não precisas de sair mais cedo por causa disso, fica para mais logo, mas não contes a ninguém, nunca, que ele está cá... então àJulia nem pensar. Noêl, tu sabes que gosto dela, da Julia, mas ela não sabe guardar um segredo, não é de propósito, mas não consegue calar-se, não descansa enquanto não espalha tudo por aí... não digo isto por maldade.., Noêl tu sabes tão bem como eu que a Julia é uma tagarela de primeira apanha, está-lhe na natureza. Sai à mãe, os Romboutsen têm todos essa mania e a mãe da Julia é a pior.

 

Noêl entra no pátio montado na bicicleta. Tenta encostá-la ao murinho de betão, com todo o cuidado e atenção, como a mãe lhe recomendou tantas vezes. Segura o guiador com uma mão e, com a outra, o jornal Tribuna de Waregem, que o senhor Bijttebier lhe entrega todas as manhãs, depois de ler as notícias e fazer as palavras cruzadas. Vê René. Larga a bicicleta e a sua garrafa-termo rola pelo carreiro de saibro. O rapaz aproxima-se da janela, espreita para dentro, arregala os olhos, pragueja, acena.

Entra na sala de estar, dá o jornal à mãe.

- Ora vejam, ora vejam, quem ele é! O René!

- Sim - diz Dolf-, afinal sempre se resolveu a aparecer. Alma diz-lhes para apertarem a mão. Eles obedecem.

- Continuas a usar o cabelo curto - diz Noêl. - Olha que está fora de moda.

A sua cabeleira cor de cobre cai-lhe sobre os ombros.

René apanha a mochila do chão, pousa-a no colo, enfia a mão lá dentro e tira para fora uma faca de mato com lâmina serrilhada. Estende-a ao irmão. Noél recua assustado. - Não, não faças isso! - exclama.

- É um presente - diz Alma. - Pega, é para ti.

Noél gira a faca como se quisesse furar o ar e devolve-a.

- Ainda fazia por aí alguma asneira.

- Se não queres, está bem - diz René. Enfia a faca na mochila atafulhada, provocando um som agudo ao roçar no cano de metal baço duma pistola. Corre para o pátio. Ouvem-no vomitar para cima das folhas de ruibarbo.

- Parece que está doente - diz Noèl.

- Não parece, está - diz Dolf. - Lá no exército mexeram-lhe com os fígados e com a cabeça. E, cá para mim, deve precisar de óculos, está sempre a franzir os olhos.

Os dois irmãos estão no quarto que dantes era de René. Este está deitado de lado na cama, de olhos fechados. De vez em quando sacode os ombros.

Noél diz:

- Trabalho na fábrica Bijttebier. O dono, o senhor Bijttebier gosta muito de mim. Fabricamos carrinhos de bebé com cromados. O senhor Bijttebier também é presidente do Sporting Clube de Bousekerke. E patrocinador dos Caracóis, o conjunto onde a Julia às vezes canta. Os Caracóis foram convidados para actuar em Torremolinos. A Julia disse-me que, se eu quisesse, podia ir com eles, mas eu acho que a mãe prefere que eu não vá. E, depois, a Julia vai com o Serge Michiels, o guitarra-baixo.

Já és sargento-major? É um grau acima de sargento, não é? Nós recebemos o teu postal de Kibombo, diz-se assim? Nessa manhã, a mãe fartou-se de chorar. Contei as palavras todas. Eram exactamente vinte e duas. «Querido pai, querida mãe, querido Noêl. Dou-me bem por cá, mas não há nada como a Europa. O vosso René Catrijsse, sargento.» E, depois desse postalzi-nho, mais nada, nunca mais. Eu compreendo, queres viver a tua vida e pessoas como os nossos pais e eu só servem para estorvar. Por que foste para lá como voluntário? Para combater os rebeldes que assassinam os nossos missionários? Foi assim? Então percebi logo tudo. Só vinte e duas palavras, não tens vergonha? Na escola, o professor dizia sempre que as tuas redacções eram muito bonitas e que os nossos pais te deviam mandar para a fundação dos sobredotadas, podias estudar à custa do Estado.

Eu gostava muito de entrar para os Caracóis, mas não consigo ficar atento durante muito tempo e o Serge Michiels toca sempre tão alto e tão desafinado, não entendo o que a Julia vê nesse palerma. A Julia é minha noiva. Só que ainda não sabe. Quando chegar a altura, digo-lho.

Mataste muitos pretos com essa faca? Não, não respondas, prefiro não saber. Era capaz de ficar com essas histórias na cabeça e ficar a cismar nos pretos mortos. Não tarda muito é o Dia dos Fiéis Defuntos, o dia em que as almas dos mortos do mundo inteiro, pretas, brancas, amarelas ou vermelhas como a pele dos índios suspendem a respiração até Deus voltar à Terra. Só que ninguém sabe exactamente o ano em que isso vai acontecer. Mas, mesmo assim, temos de estar preparados para esse dia, o dia em que as almas de todas as cores se puserem a flutuar por cima da nossa aldeia, como morcegos de todas as cores, e começarem a girar e a rodopiar até o Sol nascer e Deus aparecer em pessoa. Mas enquanto não soubermos a data, não acontece nada: as almas dos mortos dão umas voltas no céu e voltam para os seus ninhos, nas nuvens, a piar tristemente. Ainda não te apetece falar comigo? Estás a dormir? Queres que eu saia?

Apesar de quase não se mexer, dá a impressão de estremecer dentro da sua carcaça descarnada, sob a T-shirt puída e pegajosa. Faz um trejeito com a boca, que parece um sorriso. Vira-se para o outro lado muito devagar e manda sair Noêl com a mão, num aceno crispado: «Sai, sai, vai-te embora», quase como um backhand no pingue-pongue, mão parada e pulso dobrado, o mesmo com que tinha sido campeão no Centro Cultural de Bousekerke.

Noêl sai do quarto em bicos de pés. Ao cimo das escadas, ocorre-lhe que se esquecera de uma coisa importante, mas não sabe o que é. Bem, se fizer um esforço, há-de lembrar-se. Senta-se num degrau, mas a única coisa que lhe vem à cabeça são duas palavras: Paulo Tolo, que logo afasta do pensamento.

O pai dá um ronco de vez em quando, um ronco sinistro, como um estertor de moribundo em luta com a morte.

- René - diz Noél, mas agora sem som -, quero tocar outro instrumento. Acabou-se o banjo. Tocar banjo passou de moda, diz a Julia. Vou tocar gaita-de-beiços. No Metro, as pessoas gostam de gaita-de-beiços, é por causa do Bob Dylan e do Toots Thielemans, num estilo mais antiquado. Isso se os meus dedos, os meus lábios e os meus pensamentos quiserem, é claro. O doutor Vermeulen diz que me faz bem tocar gaita, tal como nadar e dançar, para deitar cá para fora, com o suor, a maldade que fermenta dentro da gente.

As pessoas são, geralmente, melhores do que pensam, só que estão sempre a tentar enganar-me. Como o doutor Vermeulen. Ele acha que, acima de tudo, devemos amar-nos uns aos outros. Mas, René, já vês, eu só tenho um irmão e, mesmo assim, não é possível. Porque não queres falar comigo. Quando devias contar-me histórias sobre os outros soldados, sobre os pretos. Contar-me como os pretos andam vestidos na selva, o que comem, como fodem, como é melhor apartá-los quando se engalfinham uns nos outros e por que se riem por tudo e por nada.

Noêl apura o ouvido para escutar a resposta do irmão. Bate com a palma da mão na testa. Como é que o René poderia ouvir essa sua tagarelice toda se só falou para dentro?

O pai pára de roncar.

Noêl adormece. Uma ave nocturna acorda-o. Volta devagarinho ao quarto de René, empurra a porta entreaberta. Na penumbra, vê estendido na cama um vulto nu, branco como cera, tal qual uma estátua de gesso tombada do pedestal, ou melhor, um torso, porque os braços, a cabeça e as pernas não se vêem, engolidas pela escuridão do quarto.

- Tens de me ajudar - diz Noêl à entrada da porta. - Quem era o Paulo Tolo, lembras-te? Ao ver-te outra vez, vem-me à cabeça qualquer coisa que aconteceu há muito tempo. O que é?

Noêl solta um gemido, porque se chega perto de mais da cama e assusta-se com o envoltório magro que guarda dentro de si aquilo que há muito tempo, noutra parte, foi o seu irmão René, algo que fugiu, e perdeu pelo caminho nome e significado.

Noêl enfia quatro dedos na boca.

É verdade que René fez muito mal enquanto esteve aqui com a gente e lá longe, em África. Mas porque é que Deus o castiga desta maneira?

As costas de René reluzem, há papos por todo o lado e, por cima dos papos, uma rede de feridas abertas, sulcos de um vermelho-escuro, estrias paralelas e regulares de crostas e de sangue, como se tivessem sido tatuadas na pele com uma forquilha.

- Eu não conto a ninguém. Juro - diz Noêl com uma voz inaudível.

 

Já vai alta a noite quando René Catrijsse recupera a consciência. A luz suave da lua desenha um quadrado na cama. Veste a camisa e as calças. Ata os cordões dos sapatos e põe-nos ao ombro. Já ao cimo das escadas, ouve um gorgolejar vindo do quarto dos pais. René desce, apoiado no corrimão, na parede fria, pintada a cal. Com extrema lentidão, gira a chave na fechadura da porta das traseiras.

Caminha encostado às casas. A aldeia, iluminada pela luz da lua e pelos lampiões, está deserta. A casa do pároco rodeada de marmeleiros. Um cheiro fétido sobe do charco. A criação de martas.

O largo com o busto de Modest Tanghe, que escreveu mais de cinquenta livros, quase todos sobre os gregos antigos. O Café Hoogentroost onde Dolf Catrijsse jogava whist aos sábados à noite. O prédio da escola com a casa do professor ao lado. No centenário do nascimento ou da morte de Modest Tanghe, a classe inteira participara no Concurso Provincial de Desenho organizado pela Tribuna de Waregem. A classe onde conviviam lado a lado as cantiguinhas dos pequenitos e as contas indecifráveis dos mais velhos. A nossa tarefa era desenhar o deus Apoio, de que nos tinha falado o professor Arsène a semana inteira. Era proibido usar borracha. Os traços tinham de ser a lápis. Se nos enganássemos, nem que fosse só uma vez, tínhamos de recomeçar tudo do princípio. O professor Arsène achava sempre mais bonitos os desenhos dos pequenitos. Quanto mais desajeitados, mais esborratados, mais distantes do deus Apoio, mais bonitos ele os achava. A agitar os braços no ar, exclamava: - É isto mesmo, exactamente. Comparado com isto aqui, o Miguel Angelo não vale nada. Se este desenho não ganhar o primeiro prémio, vou queixar-me ao governador.

O deus Apoio era eu. Diante do quadro de ardósia, empoado de giz, dentro dos meus calções sujos e coçados. Com os braços erguidos, na posição do deus a tanger a sua lira. A tiritar de frio. E, sempre que deixava cair um braço, o professor Arsène berrava-me: - Apoio dum raio, toca-me essa lira!

René procura estugar o passo, correr, mas faltam-lhe as forças. Toma fôlego, ajoelha-se, tomba para a frente, fica deitado no chão, de lado. Perscruta o céu e encontra a Ursa Maior, a Via Láctea. Calça os sapatos. Avança aos tropeções diante da fábrica de leite, envolta em vapores brancos tórridos e ruídos cavernosos. Atravessa prados, passa por granjas isoladas. Chega, finalmente, ao bosque de Lete. E à furgoneta.

- Já não era sem tempo! - diz Charlie. Aperta na bochecha um pedaço de khat, um risco cor de espinafre escorre-lhe do canto da boca até ao pescoço.

Charlie abre a porta sem parar de mascar. René entra, estende as pernas. Ao fim de três dias, o khat perdeu o aroma e a força estimulante. Mas Charlie continua a mascar, com saudades de Kibombo, de Ngami.

- Ostenda, here we comei - exclama Charlie, ligando o motor. René tira a chave do contacto e enfia-a no bolso de cima de Charlie.

- Acho que não aguento a viagem.

- Não faz mal. Então não vamos.

- Vai tu sozinho a Ostenda.

- Nem pensar. Sair juntos, voltar juntos.

Um bater de asas no meio da vegetação. Pombos bravos. Saudades de Kibombo. Os pretos mascavam khat o dia inteiro. Uma sensação de paz, quase de felicidade. Com os cantos da boca gretados e o coração a saltar dentro do peito. Sem desejo de mulher.

- Estive a pensar - diz Charlie - que, quando formos para Ostenda, podemos fazer um desvio por Lissewege. íamos fazer uma visita à mulher do Wijnants. É nossa obrigação e ficava-nos bem. Afinal, o Wijnants era nosso camarada. Pateta mas leal. Sair juntos, voltar juntos. Tenho estado a pensar no assunto. É que ainda tenho a máquina fotográfica dele e a mulher tem todo o direito de ficar com ela. Mas como é que explicamos o que se passou? «Madame, o seu marido foi cilindrado por um elefante». Sei que não vou conter o riso. E tu também não.

Estávamos no meio do capim, de cócoras. Ainda disse a Wijnants: «Cala o bico!»

Foi quando os vimos, a mãe elefante com a sua cria. E não é que o idiota do Wijnants se levanta e se aproxima deles, de máquina fotográfica em punho? Tenho a impressão de que o ouvi dizer para os animais «Ei, ei, mastodontes!» O grande palerma, que já tinha passado por tantos sarilhos, escapado aos Simbas e à polícia de Mobutu e nunca tinha apanhado beribéri. «Mastodontes!», repetiu, focando a lente com todo o vagar do mundo. Sem pensar no perigo. O elefante vai para o Wijnants, levanta-o ao ar, atira-o ao chão com toda a força e esborracha-o com as patas da frente. Ouvimos Wijnants a rachar como um galho de árvore. Dividimos entre nós o dinheiro que trazia. O Cap disse: «Era estúpido mas valente. Um ás nas cartas. E muito limpo. O que não se pode dizer de todos os presentes».

- Já tomaste a tua quinina? - pergunta Charlie. René diz que não com a cabeça. Charlie agarra com uma mão enorme e perfumada na bochecha de René e, com a outra, enfia-lhe três pastilhas na boca.

- Coragem - diz Charlie -, já passámos por coisas piores, como dizia Elliot Ness.

Puxa-me para ele. Encosto a cabeça no seu ombro e, com o nariz espremido contra a sua clavícula, volto a adormecer. Passámos por tudo. Camelos mortos, mato calcinado, abutres aos guinchos.

Charlie puxa-me o cabelo.

- Estive a pensar, René. E se eu fosse a Ostenda sozinho? Falo com o Cap, discutimos aquilo que não nos agrada, tento endireitar o barco, para ver se o Cap nos deixa em paz. Tanto ele como eu gostamos da roleta e o Cap conhece por lá magotes de mulheres bonitas. Livro-me desta carripana e arranjo uma coisa melhor.

- O pároco daqui tem um DAF 55 … - digo, enquanto vejo descer sobre mim um céu carregado de estrelas. O calor pegajoso de África. Um miúdo aí de uns doze anos, manchado de lepra, com um capacete belga enfiado na cabeça e de cigarro na boca, leva aos ombros um irmãozito ou irmãzita. O miúdo agita no ar uma pistola de plástico, pisca-me o olho.

- Em que número vamos? - pergunta o Cap como se fosse a coisa mais natural do mundo.

- Vinte e quatro - responde René.

O Cap anota o número no seu livrinho de notas e diz:

- Dieu le veut! ( Nota )

René dispara. O céu continua a descer sobre a terra em rolos de nuvens negras, embrulhando René como se fosse um lençol de pano negro. O pano cheira às martas de criação do senhor Cantillon, no rádio do carro uma música melancólica de espineta.

 

Em francês no original. (N. da T.)

 

Estamos no Café Abafado à espera que as mulheres saiam da missa do primeiro aniversário da morte da mãe de Félicien. As nossas únicas preocupações são a partida de futebol de logo à tarde, a qualidade da cerveja da Flandres Ocidental, cada vez pior por causa das mistelas químicas, e as eleições, mas não vamos aborrecê-lo com essas coisas, somos governados por um professor que representa o papel de primeiro-ministro, não digo mais nada, a não ser que esteja a falar das eleições locais, nesse caso só precisa de saber que, como burgomestre, o Willem Naessens transformou, por encanto, quarenta e três hectares de terra para fins agrícolas em lotes para construção de casas, Jesus, lá em Canaã, com a sua arte de mudar água em vinho, não lhe chega aos calcanhares, não digo mais nada, a não ser que me pergunte se o senhor Cantillon é um candidato mais sério, ao que lhe respondo cara a cara que é tudo a mesma corja, comem todos da mesma panela, um cidadão normal nunca consegue lá chegar, por isso é que essa mocidade é tão rebelde, olhe para aqueles jovens ali encostados à jukebox, com o cabelo até aos ombros, as fraldas de fora e as calças de ganga de braguilha desbotada, onde é que a gente vai parar se, pelas costas, já ninguém distingue um rapaz duma rapariga? E se nós aqui, no nosso café, já não nos entendemos por causa da zaragata que fazem esses tipos a abanar o eu e a cantar com voz de mulher. Fizemos esta pergunta ao professor Arsène que, à sua maneira, é um médico da alma, e ele começa a desfiar um rosário sobre as características económicas e os motivos e as razões da rebeldia através dos séculos, já se está mesmo a ver, antes que a gente se precatasse fomos parar à filosofia, sobre a qual o professor Arsène diz que se pode ler de uma maneira não-filosófica, bem, já está a ver, metemo-nos pela enésima vez por um labirinto e ficamos de boca aberta, sem entender nada, embora o professor Arsène diga que é a favor do ilumin... da iluminação ou coisa parecida, mas quem não ia ser a favor da iluminação em Bousekerke, com tanto lampião por essas ruas?

A cerveja da Flandres Ocidental, apesar de já não ser o que era, é muito falada por aí e, sejamos ou não predestinados, exista ou não um ser superior, o que sei é que o Gerard não tem mãos a medir, é só abrir garrafas. Porque daqui a pouco acaba a missa, entram as mulheres e acabam-se as conversas sérias. Anda lá, Gerard, mais uma rodada do mesmo, despacha-te, Gerard.

E foi então que reparámos num anão a espreitar pela janela para dentro do café, enfiado num fato preto reluzente e, para nosso espanto, o tipo abre a porta e entra. Por trás dele, a cem metros de distância, as mulheres espalham-se pelo cemitério à volta da igreja, a apontar para as campas.

- Olhem, olhem, quem ele é!

- Félicien, grande sacana!

- Ninguém te põe a vista em cima nos últimos tempos!

- E de cara lavada e barba feita. Estarei a ver bem?

Félicien Doolage mede um metro e cinquenta. É careca, apagado, proprietário de muitas terras, que se estendem por duas aldeias. Não é um dia como os outros, pois ninguém se lembra de ver o Félicien entrar num café. Deve ter a ver com a herança da sua muito amada tia Stasie Doolage, segundo contou o notário Albrecht, eram tantos os milhões que até lhes perdeu a conta e, logo, o Frans Goddeeris, que sempre foi um descarado: - Então, Félicien, vai ser agora que nos pagas um copo?

Félicien apanha um susto dos diabos.

- Pagar um copo, por que raios?

- Porque é domingo.

- Pelos nossos lindos olhos.

- Pela alma da tua tia.

- Pelos milhões que meteste ao bolso.

- Mas, meus amigos, que é isso! Pronto, pronto, se tem de ser, que seja.

Quatro cervejas. Três genebras. E, para ele, uma gasosa. - Disse cá para os meus botões: acho que é melhor sair do buraco.

A cabecinha cómica reluz de gordura. Os berlindes dos olhos seguem os movimentos das mulheres no cemitério.

- Tens toda a razão, Félicien.

- Sim, aproveita enquanto é tempo.

- E que boas novas nos trazes, Félicien?

- Não sei se é boa notícia para a paróquia, mas vocês não adivinham de certeza quem eu vi. Vão apanhar um susto dos diabos. Como eu apanhei. E eu não sou desses que se assustam por qualquer coisa.

- Conta lá, Félicien.

- Desembucha.

- Não faças rodeios.

- O mais velho dos Catrijsses.

- Não, não pode ser.

- Onde?

- Na casa deles. A Alma e o Dolf não se descoseram, mas eu, que não sou burro, topei logo. O nosso Georges também, ficou com o pêlo eriçado e o rabo teso.

- Como eu, quando vejo a minha Mariette pôr-se a postos.

- E a guarda já sabe?

A jukebox pára de tocar, a mocidade barulhenta e provocadora sai do café em atropelo para ver uma Kawasaki, parada em frente.

Um silêncio incómodo enche o café. Só se ouve o Gerard a lavar os copos.

- Disse cá para os meus botões: tenho de contar isto a alguém.

- E com toda a razão, Félicien.

[Não vamos alargar-nos aqui sobre a infelicidade que esse desgraçado do René Catrijsse trouxe à nossa aldeia. Os fregueses habituais do café também não o fizeram. Daí o silêncio incómodo. Pensou-se logo no incêndio no centro de convívio dos escuteiros, nos assaltos durante a noite, um deles à farmácia Goeminne, nos sérios danos ao busto de Modhest Tanghe (que ficou sem nariz e sem orelhas)].

- Não sei - diz Félicien - se não devíamos participar o caso no posto da guarda. Mas vocês sabem como são as coisas - onde, como e porquê e antes de se poder dizer uf!, lá se foi uma tarde ao ar. E quem é que me trata dos bichos?

Tem cinquenta e dois anos, mas parece ter setenta. Só lhe restam sete dentes.

Ao que o Jules Piron, com a sua voz solene de trovão - já trabalhou como oficial de diligências - responde:

- Félicien, meu amigo, porque não mandas os criados tratar dos bichos?

- Criados? - exclama Félicien, estupefacto. - E quem é que vai...?

- Se usasses melhor esse juízo, vendesses os trastes e pusesses o dinheiro a render no banco de Roulers, podias ir para a Riviera italiana e deitar-te de cu para o ar a apanhar banhos de sol.

- E... e... eu?

- Sim. Com os juros dos juros da tua fortuna vivias como um príncipe no teu palacete italiano, com cinco criados e uma cozinheira de primeira...

- Era, era, com as minhas úlceras!

- Passavas a vida sentado à beira da piscina, dia sim dia não uma gal-déria italiana de dezoito anos aos teus pés, que sabe do ofício e te faz subir às nuvens...

- Dia sim dia não? Mas Jules, que é isso, na minha idade...

- E todos os dias champanhe - grita Gerard do balcão.

- Era, era, com o meu fígado!

Félicien olha para os joelhos, afasta-os e cospe, por entre as pernas, no chão de tijoleira.

- Essas tais galdérias de dezoito anos punham-se a mexer com o meu dinheiro na primeira oportunidade e eu ficava para ali a tostar ao sol, à beira do Mediterrâneo, de bolsos vazios. Bonito! É isso que me desejas para o Ano Novo, Jules? Muito obrigado.

Lá fora, a sua família forma um grupo fechado. De vez em quando, as mulheres espreitam para o café que esconde o homem de quem vão receber herança.

- Por falar em bichos - diz Félicien -, o nosso Georges não anda nada bem. Não quer comer. Dei-lhe o restinho das minhas batatas assadas e ele nem sequer as farejou. Sua muito e anda muito pálido, se isso se pode dizer dum cão. E farta-se de tremer e de tossir. As moscas não lhe largam o focinho e o pobrezinho nem força tem para espirrar.

 

Julia Rombouts, que canta de vez em quando no conjunto do Sudoeste da Flandres «Os caracóis», está deitada na cama com o robe vestido. Tem vinte e dois anos, é virgem, loura natural e pesa quarenta e oito quilos.

Levanta uma perna, estende-a, admira o brilho acetinado da pele da perna, da coxa. Julia gostava de ter as pernas mais magras, o seu ideal é a Twiggy. Afaga a coxa, distraída. Da casa de banho, a irmã, Alice, grita-lhe que se despache. Que mania ela tem de se meter onde não é chamada! Ainda tem, pelo menos, vinte minutos para chegar ao Salão Jeanine, onde as senhoras estão à sua espera.

Julia gosta do Salão, do ar perfumado da laca, da tagarelice das clientes, das atençõezinhas constantes que esperam de si e de Jeanine, dos elogios que recebe delas.

- Ai Julia, eu dava rios de dinheiro para ter uma cintura como a tua!

- A natureza é tão injusta! Porque é que Deus te deu umas pestanas tão compridas e tão bonitas?

- E esse teu cabelo, Julia, tão grosso, tão forte, tão brilhante. Olha aqui para o meu. Depois de ter o meu mais novo, o Leon, nunca mais consegui fazer nada com ele.

A princípio, Julia desconfiava desse esbanjamento de elogios. Agora não. Ri-se para o espelho do guarda-fatos, mostra os dentes como os modelos intangíveis da Marie Claire. Noutra época, noutro país, com outros pais, também poderia ser admirada na Marie Claire.

Julia acaricia a parte de dentro das coxas, já menos distraída. Deixa-se escorregar da cama para o chão. Como se alguém lá deitado a puxasse para si, até se ver no espelho, descomposta, com o robe arregaçado até ao pescoço. Afasta as pernas, ergue os joelhos. Esse alguém também a está a ver agora. Sorri para esse alguém sem rosto. Depois fecha os olhos, aquele que a espiava desaparece debaixo da cama. Belisca com força os bicos do peito, põe-se de lado apoiada nos dois cotovelos, empina as nádegas para trás, levanta uma perna tão alto quanto pode. Cai de costas, pega no cinto do robe, mete-o entre as coxas e estica-o para cima, o mais alto possível, enterrando-o entre as nádegas até a fita molhada lhe entrar na carne. Puxa-o para cima e para baixo até a dor ficar insuportável. -Julia - diz Alice, encostada à ombreira da porta.

- O que é que queres?

Julia deixa cair o cinto, mas fica estendida de pernas abertas, sem tirar os olhos do espelho.

- Despacha-te!

Alice fixa os olhos na vulva de Julia.

-Já vou.

Julia boceja e, com quatro dedos, esfrega a greta reluzente.

- Já chegaste duas vezes atrasada ao Salão - resmunga Alice enquanto se ajoelha. Afasta a mão de Julia com um safanão e começa a lamber-lhe a anca, a barriga achatada, a virilha. Com o dedo abre as pregas para os lados e passa a língua pelos lábios mornos, umas seis ou sete vezes. Alice endireita-se de repente.

- Levanta-te, calaceira - diz rezingona.

- Calçaste outra vez as minhas meias - diz Julia.

As meias brancas rendadas que a Julia comprara em Londres, juntamente com a capa de oleado lilás às florinhas cor-de-rosa.

- Mas tu também gostas de calçar os meus sapatos dourados de cordões - respinga Alice.

Enquanto Júlia riça o cabelo e põe laca, a irmã conta-lhe que alguém tinha visto o René Catrijsse na aldeia.

Julia fica furiosa. E Noêl não lhe disse nada!

A caminho do Salão Jeanine, em cima da motorizada, acalma. É evidente que Noél não ia trair o irmão. Laços de família. Está ansiosa por vê-lo, o homem que voltou do mato com fetos da altura de gente, lianas cheias de cobras, para esta parvalheira. Como será esse fanfarrão na cama, do tipo de roncar, de gemer, de se derreter todo...?

Ou será o rude guerreiro, sobre quem correm por aí tantos rumores, um maricas de primeira e, por isso, é que fora para o Congo, para a beira dos compinchas, para ter um regimento por sua conta? Será por isso que nunca teve olhos para mim? Ou porque se bastava a si próprio, esse homem endurecido, estigmatizado? Já vai sendo tempo de ela se apaixonar outra vez. Até agora só teve duas paixões a sério e uma mais ou menos. John de Holander fora o número um. Enquanto estivera na Bélgica. Quando se resolveu a voltar para a sua Amesterdão e para os seus provos*, a paixão arrefecera.

Longe da vista, longe do coração. É pena. Seguiu-se o Edgar, que tinha uma boca sensual, cabelo ondulado, gostava de usar T-shirts coloridas e parecia uma criança, com os seus amuos. Também se foi embora. Perdeu a paciência porque eu não lhe dava o que ele queria.

Deixava-lhe fazer tudo. A ele e ao Bernard e ao Eddy e ao Jan e aos gémeos do notário, até ao pateta do filho do burgomestre, deixava-os fazer tudo menos isso. Porque sou muito romântica. É o que estão sempre a dizer-me as senhoras do Salão Jeanine. Ai, Julia, és romântica de mais, rapariga! - Mas, Julia, até parece que estás à espera dum Romeu. - Não esperes tempo de mais, rapariga, porque o tempo das rosas e das cerejas passa depressa. - E de que te serve um Romeu, se fores obrigada a comer todos os dias pão seco?

O Noêl ainda é aquele a quem deixo fazer mais coisas. Quer dizer, de todos, era ao Noêl a quem deixaria fazer mais coisas. Se ele quisesse, é claro. Noêl e eu somos como os dois Filhos do Rei do poema, que nunca se chegam a encontrar.

O Noêl é muito pudico. Um dia destes, quando me viu com a minha mini-saia rosa vivo, estilo baby-doll, disse-me:

- Acho essa saia muito curta.

- Na Inglaterra toda a gente usa mini-saia.

- Os rapazes não.

- As raparigas, patetinha.

- Tu disseste toda a gente.

 

* Provos: representantes de um movimento dos anos 60 na Holanda, geralmente jovens, que se insurgiam contra a ordem estabelecida através do seu comportamento provocador. ( N. da T. )

 

Gosto do Noêl por causa das recordações do passado. Um passado em cores pastel à luz da vela e nós crianças inocentes, com ele a chupar-me os bicos dos peitos, nessa altura metade do que são agora. Depois deu aquele tombo, antes de ter tempo de se fazer homem.

- Em que sítio me deixas, Julia?

- Em toda a parte. - Debaixo dos braços, nas virilhas, no pescoço, na boca e no cabelo, o meu sítio favorito. Pego nessa coisa reluzente e latejante e roço-a pelo meu corpo, acaricio-a até ele soltar um gemido, espantado, repetir o meu nome dez vezes e surgir-lhe nos lábios o sorrisinho oblíquo, meigo e desconfiado da Alma. E repete mais uma vez o meu nome. «Julia, quando é que me ensinas a dançar La Bamba ?? ».

 

Acabámos o jogo. O professor Arsène, que conta cartas como ninguém e que, depois de distribuídas, sabe exactamente quem tem o quê, não recebeu uma de jeito. «Os deuses estão contra mim», diz.

- Que deuses? No Café Abafado só conhecemos um.

- Sim, e qual é ele?

- Homem, estás a ficar esquecido. Na tua idade!

- Devias comer mais peixe. Dizem que o fósforo é bom para a memória.

- Apoio, tenho a certeza.

- Não foi uma história com o filho mais novo dos Catrijsses?

- O Noêl.

- Sim, o Noél. O rapaz tinha aí uns catorze, quinze anos, um rapagão. Era ou não era, professor?

- O René era o primeiro da classe. O Noêl o segundo.

- Lembro-me de que ele ia sentado atrás no tandem, com a Alma a pedalar contra o vento. Ou porque o Noêl não tinha vontade de pedalar ou estava ainda com a cabeça na escola, enfim, tinha de ser ela a pedalar pelos dois, porque se a pessoa que vai atrás não ajuda, é um peso morto. E a Alma grita então para o filho: «Noél, mandrião, toca a pedalar!». E o Noêl começa a pedalar, com tanta força que a gente pensava...

- Estavas lá para ver?

- Claro. Estávamos sentados no banco em frente do Café Floris, que ainda existia nessa altura, quando os rins do Floris ainda não tinham deixado de funcionar, ai, o que a criatura sofreu, vocês nem imaginam, principalmente por ser tão cristão e ter um medo terrível do além. Nós, como somos cristãos, não temos tantos problemas porque sabemos que não há nada depois da morte, que ninguém nos vai chatear com o que dizem ser os nossos pecados. Enfim, o Floris de pé à porta do café Floris e nós sentados no banco, vemos o Noél a pedalar como se quisesse ganhar uma etapa da Volta à França. Os dois passam como uma flecha pelo Café Raymond, que ainda não tinha fechado nessa época, inclinados para a frente, com o cabelo a esvoaçar ao vento, e nós a pensarmos cá para nós: Essa Alma é uma mulher de fibra para a idade que tem», pergunte aqui ao Gerard se quiser. Era, digamos, um pedaço duma mulher, não como essas tábuas de engomar que estão na moda, só pele e osso. Esta mocidade de agora, rebelde e incómoda, ah, é melhor calar-me.

- Com essa conversa toda nunca mais chegas ao que interessa. Desembucha homem!

- Tens medo de perder o comboio, é?

- Mais uma rodada, Gerard.

- Enfim, o Noél e a mãe iam a conversar, e a conversa, soubemos depois, era sobre a aula que o professor Arsène tinha dado nessa tarde. É ou não é assim, professor?

O professor Arsène bebe um golo, arrota educadamente, suspira e diz:

- Infelizmente, infelizmente.

- E, enquanto pedalava, o Noêl gritou tão alto que, se quisermos, ainda ouvimos agora: «E o deus Apoio desceu sobre os prados!» «O quê?», grita a Alma e, sem abrandar a velocidade, olha para trás, para o Noél.

- Ora isso é a última coisa que se deve fazer quando se anda de tandem.

- Ela olhou para trás ou porque não entendeu o que o filho dizia ou porque o Noêl estava a fazer pouco dela ou porque ficou espantada por ele gritar uma frase tão despropositada no meio da aldeia, porque não se pode dizer que Apoio faça parte do vocabulário dum rapazito da sua idade, da sua origem e do seu ambiente. E a Alma pergunta: «Apoio?», e como não ouve ou não percebe a resposta, tanto faz, olha um segundo, que digo eu?, um décimo de segundo para o filho e, pumba, bate com o pneu da frente nos blocos de cimento que o nosso burgomestre acha que ficam a matar nas ruas da nossa aldeia, diga-se entre parênteses que o cimento veio da fábrica do cunhado.

Com o choque, o guiador gira e bate-lhe com toda a força na barriga e, na minha opinião e na opinião dos médicos especialistas, essa pancada é que esteve na origem dos problemas e das complicações que apoquentam a família Catrijsse, mas não quero alargar-me mais sobre o assunto, as pessoas já têm ralações que chegue. A Alma estampa-se no chão e, com a fatalidade matemática, lógica e geométrica, o seu filhinho inocente estatela-se também nas pedras da calçada onde já correu muito sangue depois da Guerra de Catorze.

Depois... à sua saúde, professor... ficaram os dois espapaçados no chão, ali à nossa frente. Três ou quatro fregueses do café e o próprio Floris aproximaram-se para avaliar os danos. A Alma levanta-se a custo e diz: «Noêl, abre os olhos». Sem entrar em pânico. Quase com serenidade. Noutros tempos, nesses tempos de que é melhor não falar, ela foi enfermeira. «Noêl, consegues mexer o braço? Noél, mexe a perna, sentes o meu beliscão?». «Sim, mãezinha», responde Noêl. «Então não deve ser nada de grave, não estás paralisado». «Não, não estou paralisado, mãezinha». E o rapaz lá se levanta com grande esforço, chora, berra, funga, refunga e diz: «Oh, deus Apoio, que velavas sobre os prados». E, raios me partam, não é que o rapaz se põe a desfiar o texto inteirinho que tinha aprendido com o nosso professor nessa tarde? Agora vocês pensam de certeza que ficou com o cérebro afectado. Mas estão enganados. Muitíssimo enganados. Porque na ambulância, com a Alma a segurar-lhe na mão, o Noêl pôs-se a recitar o texto sobre o Apoio. E só três dias depois de ter tido alta do hospital é que começou a ter um comportamento esquisito. Na minha opinião e da Alma, que não somos especialistas, lá no hospital não trataram a cabeça do rapaz em condições. Devem ter-lhe dado injecções trocadas na medula e electrochoques que põem qualquer um doente.

Vocês sabem como as pessoas são más e como se divertem com o sofrimento alheio. Mais tarde, se o Noél se lembrava de aparecer no centro da aldeia, havia sempre alguém que lhe gritava: «Então, o Apoio está tolo?» Uma coisa puxa a outra, o texto começou a ficar gasto e muito depressa passou a: «Então, Apoio Tolo?». Eu sei que é maldade da nossa parte, mas o que é que vocês querem, uma pessoa anda neste mundo para chatear ou para foder o seu semelhante.

 

Na sua inocência, o nosso René pensa que não sei das suas escapadas nocturnas. Parece que está melhor, já diz umas palavrinhas de vez em quando, come, vê o Zorro na televisão e durante o resto do tempo fica deitado na cama a olhar para o tecto. A mãe e o pai pensam que a cura está perto e que ele está melhor, graças aos seus cuidados. Nada disso. Eu é que sei porquê. Ele tem uma namorada e encontra-se com ela todas as noites. Gostava de segui-lo como nos filmes, encostado às casas, silencioso, de sapa-tilhas, e, cada vez que ele olhasse para trás, escondia-me atrás dum camião.

Não me atrevo a perguntar-lhe nada sobre a namorada. Como é que ele conseguiu arranjar namorada tão depressa. Se é casada e se, apesar de todos os obstáculos, o amará para todo o sempre, como a Julia me costuma prometer.

É a namorada que lhe trata das feridas.

Ele deve estar mesmo muito melhor porque salta pela janela, esgueira-se pelo telhado dobrado em dois, ágil como um macaco, e, como um macaco, enrola o corpo ferido a um ramo mais grosso da nogueira.

Eu dantes também era um trepador de primeira. E conseguia contar tintim por tintim páginas e páginas do Winnetou ( Nota 1 ), agora, depois de três ou quatro palavras, já me esqueci das proezas dele. O outro, o Old..., está a ver, não consigo lembrar-me do resto do nome do cow-boy, do grande amigo do... hã... do índio.

Quando ainda trepava às árvores, às vezes ficava uma hora encavalitado na nogueira, só já não me lembro do que fazia lá. Há qualquer coisa

 

( Nota 1 ) - Winnetou: índio, herói dos livros de Karl May. (N. da T.)

 

na minha cabeça que se partiu, precisamente naquele carocinho do cérebro que ajuda a fixar as coisas. O que eu gostava de trazer à memória sempre que me apetecesse era a queda da minha mãe, e como eu, logo a seguir ou ao mesmo tempo, vi o muro de paralelepípedos a erguer-se à minha frente, parecia que a rua toda me caía em cima. Se eu quiser, ainda consigo ouvir a cana do nariz a rachar ao meio. Mas se fico muito tempo a cismar nessas coisas, começo logo a tremer e a bater o dente, até tenho de ter cuidado para não trincar a língua porque ainda preciso dela, nem que seja só para a Julia de quem vou ficar noivo em breve, com edital na junta de freguesia e tudo, mesmo ela ainda não sabendo de nada.

Se não tivesse a Julia, enforcava-me na nogueira. Ou, para não pregar um susto aos vizinhos, principalmente os dois Agneessens aqui ao lado que são muito bons para mim, na trave do nosso telhado onde o caruncho faz tic-tic. Agora é fácil falar, mas às tantas, no último momento, era capaz de não ter coragem, é que sei muito bem que, um dia, todas as criaturas deste mundo se hão-de reunir no cimo duma montanha muito, muito alta para, como diz o reverendo Lamantijn, prestar contas a Deus por todos os pecados que depois ficam gravados lá nas rochas em letras escarrapachadas para toda a gente ler.

Ia ser difícil para mim lá nessa montanha, por cima das nuvens, no meio de tantos pecadores, dizer que me matei por ter saudades da Julia. Todas as mortes têm de ter um motivo sério, ao contrário do nascimento, para o qual ninguém consegue encontrar um motivo capaz.

Não; se, por qualquer motivo, a Julia me faltasse, o que nem quero pensar, mas mesmo assim penso, ia sentir só um grande desgosto. Que acabaria por desaparecer com o tempo. O que é o pior de tudo.

Fico-me por aqui. Talvez a minha queda fosse só para me pôr à prova, para ver se eu aguento, para ver até que ponto eu consigo aguentar tanto desgosto. O que não falta ao diabo é imaginação.

 

Parece que isso é possível, é verdade que nunca vivi nada do género nem nunca ouvi falar do assunto, acho que li isso num romance que trouxe da biblioteca: uma rapariga que é a encarnação da beleza, com pele, pernas e peito perfeitos, olha com compaixão e altivez para a irmã mais velha, menos bonita do que ela, apesar de ser bem feita e ter uma bela cabeleira loira, uma noite... Será possível acontecer tal coisa, como um dia de sol, em Março, pode escurecer de um momento para outro.

Que a rapariga mais velha, um bocado tímida e com vergonha do seu corpo (mesmo não sendo mau de todo), que não pode mudar... de repente, numa noite em que não devia acontecer nada de inesperado, uma noite branca com farrapos de sonhos, se transforma, por artes mágicas, da cabeça aos pés, na versão flamenga, graciosa da Elizabeth Taylor. E se depois a rapariga mais nova que, dantes, enchia homens e mulheres de admiração, numa só noite cheia de desejos sombrios, ficasse com a cara, os braços, a barriga cobertos de rugas e com a expressão azeda de uma velha aos cantos da boca.

 

O René nunca foi de parar em canto nenhum. Nunca gostou de recintos fechados, como a cave ou a arrecadação.

Eu sei donde vem esse medo. Mas, mesmo sabendo a origem, não há remédio.

Cubículos escuros, caixões, camisas de forças, solitárias, uma pessoa pode levar-lhe a mal que perca a cabeça e se ponha aos pinotes, parta tudo, desate aos berros (mesmo que não se ouça nada)?

Agora está menos insuportável do que quando chegou, mas continua um tirano.

Com que naturalidade ele, ontem, sentado no cadeirão de Dolf, estendeu a perna na direcção do Noél. E o Noêl se ajoelhou à frente dele e lhe apertou os atacadores. As sapatilhas estavam manchadas de verde, parecia que tinha enfiado os pés num balde de tinta verde, mas as manchas vermelhas eram mais fortes.

- Porque é que ele não lava os pés ao René, como a Maria Madalena? - rosnou Dolf. - Mas é melhor a gente não se queixar. Tem estado mais manso, ultimamente. Talvez as andanças por esse mundo lhe tenham adoçado o carácter.

Para o Dolf, um autêntico discurso. Mas sem pés nem cabeça. Eu também viajei muito, e veja-se no que deu. Andei pelas cidades calcinadas de Magdeburgo, Northeim, Prenzlau, estive em Eschwege, na fábrica de borracha carbonizada. E não fiquei com mais sabedoria por isso. Antes pelo contrário. () que é o contrário da sabedoria? Amor, pensava eu nessa época. E agora?

De vez em quando, entram fregueses no estabelecimento só por curiosidade, na esperança de ver o René. Mas não há um só que pergunte por ele, como se isso fosse alguma vergonha. Apareceram aqui noutro dia alguns fregueses, que eram de certeza da cidade, até podiam ter sido mandados por Ele. Foi o que cheguei a pensar, na minha ingenuidade, nos breves íns tantes em que me dou ao luxo de pensar nele, ele a quem chamei Meu Amor e Minha Morte e Meu Tudo, como fui ingénua em esperar que ele, Ele para mim, me tivesse mandado dois mensageiros para saber notícias de mim ou do René.

Compraram meio litro de Elixir d'Anvers.

Usavam fatos cor de pelo de rato e sapatos com solas grossas.

Olharam para mim com desconfiança e compaixão, como se fosse uma viúva.

Perguntaram se não queria fazer uma assinatura da Enciclopédia da Horta e do Jardim, mandavam-me um fascículo todos os meses, como se eu fosse alguma camponesa.

(«Minha camponesinha», dizia Ele. Enquanto me fazia cócegas, diante dos olhos escandalizados das outras enfermeiras. Os dois deitados, bem colados um ao outro, no bunker gelado, enquanto a artilharia antiaérea, muito perto, fazia tremer o chão e trepidar as paredes. Enquanto me apertava contra o peito e eu lhe sussurrava ao ouvido: «Meu amorzinho, meu anjo salvador, meu senhor que me pões as entranhas em fogo, meu guerreiro da neve».)

Chega. Eu falei de breves instantes. Chega de amores de antigamente, um teatro de sombras de cartão, uma manta de retalhos.

Cruzo-me com o Noél no patamar. Grito-lhe e ele assusta-se.

- Que eu não te veja mais a apertar-lhe os atacadores!

- Mas, mãe, o René podia tropeçar neles.

- E depois? Que dê uma vez com as ventas no chão. Para ver se aprende o que é levar uma pancada na barriga sem estar a contar.

- Porque tem esses rompantes quando fala do René?

Não tenho resposta. Ainda não. E o mais certo é nunca vir a encontrá-la nesta vida.

 

Charlie diz:

- René, acho que engordaste. Muito bem. Mas vê se não ficas como o bucha do Leo, que Deus tenha a sua alma. Cento e vinte quilos e quatro lanças na barriga. Nunca na minha vida vi esguichar tanto sangue. Se me perguntares se estou pronto para ir a Ostenda para a reunião com o Cap, eu digo: porque não ?

Cabeça ao alto, René. A gente não se tem safado sempre ? Ou tens cagaço de enfrentar o Cap ? Olha que o nosso Capitão já perdeu muitos dos seus penachos, depois da ilha de Maremba, terra de amor e de sol, ai quem me dera estar lá contigo.

Se o Cap disser uma palavrinha menos acertada, eu esfrego-lhe a cara na merda que ele fez em Maremba, onde perdeu seis dos seus homens, e digo-lhe : - “ Cap, onde é que eles estão, os seis que confiavam em ti cegamente e que te seguiram pelos três continentes ? Vais lavar outra vez as mãos como Pilatos, capitão dos meus tomates ? “

Mas o Cap é esperto, vai pôr água na fervura. Digo-lhe : “ Cap, há quanto tempo nos conhecemos já ? ”. E ele responde : “ homem, então não sabes, dos tempos da Coreia, não é ? “ E eu : “ Ora exactamente, Cap. E eu sempre te dei ouvidos, antes, durante e depois dos combates. Cap, a gente fartou-se de rir os dois, hem ?” . E ele: “ sim, e como “. E eu: “ Cap, quanto queres para nos deixares em paz, a mim e ao René ? “.

“ Isso depende, “ vai ele responder. Ao que eu digo: “ De quê ? Que tal isto aqui ? “

Charlie tira pela cabeça uma tira de couro húmida que traz ao pescoço, e em que está pendurado um saquinho de carneira, também húmido, despeja na palma da mão, sem cuidado especial mas com um gesto seguro, várias vezes repetido, um punhado de diamantes, aí um terço do conteúdo.

- A não ser que ele esteja totalmente apanhado pelas maleitas dos trópicos e, por pura cobiça, saque da MR de 73 mm e dê cabo de mim, vai dizer: «Obrigado, Charlie, dá um abraço ao René, pronto, eu finjo que não vos conheço de lado nenhum, dou ordens aos meus dois homens para vos largar o rasto e juro pela alma da minha mãe que vocês estão na Argentina».

- O que a gente se riu com as botas dele - diz René, a tremer e a arquejar. Charlie não lhe bate nas costas, e sabe muito bem porquê.

 

Era Primavera, em Ngami. O Cap tinha rachado o crânio a dois feiticeiros, por achar amargo o vinho de palma. Mas, como nas redondezas não havia outra coisa para beber, acabou por esvaziar a caneca dum trago. Depois tombou no chão e adormeceu. Como conseguiu isso, não sei, ficámos de boca aberta, a macaca Maria, presa por um cadeado ao tronco duma árvore em frente da palhoça, tirou as botas ao Cap enquanto ele dormia, rasgou-âs em tiras e pôs-se a mastigá-las alegremente. Quando o Cap voltou a si, queria fazer o mesmo com ela. Os homens é que não deixaram. Nunca se deve eliminar uma mascote.

O Cap meteu-se pela rua da aldeia aos ziguezagues, por entre casinhas a fumegar, palhoças calcinadas, carcaças de automóveis e cães esfomeados.

- Alto aí! Ei, não ouves? - gritou o Cap para um preto baixinho a borrar-se de medo dentro da djellaba cor de neve, que passava de bicicleta e acenou ao Cap para apaziguar a ira do Bwana. O cérebro enevoado do Cap interpretou o aceno como um gesto de desprezo pela sua pessoa. Pegou na pistola e disparou quatro vezes sobre o ciclista, que se estatelou no chão, e depois disse com um ar contundido para o cadáver perplexo: «Basta fazer sempre o que o Cap diz. O Cap é que sabe». Tirou os mocassins dos pés do morto, ainda em bom estado, experimentou um, praguejou, ex perimentou o outro, rugiu de fúria e, então, numa versão raivosa do que tinha feito a macaca Maria, enfiou o sapato nas goelas do ciclista morto.

 

- Não era o número dele - diz Charlie. - O Cap calçava quarenta e seis ou mais.

Volta a pendurar a tira de couro ao pescoço e mete o saquinho baço e húmido por dentro da camisa.

- Nem que seja só por isto aqui, por causa destas pedrinhas que são nossas. É motivo de sobra para ficares comigo. Agora só me tens a mim, a mim e a mais ninguém. Os teus pais são pessoas de respeito e o teu irmão é um pateta, mas quando as coisas começam a ficar pretas, quando as coisas dão para o torto, não está ninguém em casa. Só me tens a mim, e a mim ninguém mete medo. Tu és a minha família. Vamos juntos a Ostenda falar com o Cap. E, logo que pudermos, consultar um especialista.

- Não - diz René.

- Tem de ser, amigo. Tens o corpo, o sangue e os ossos cheios de chumbo. É este o meu diagnóstico. E o cérebro também. Já não consegues dominar os impulsos. E é preciso dominá-los. Assim como é preciso dominar os parasitas. Porque eles são espertos, mais espertos do que nós. Não saem do sítio, não viajam, são preguiçosos de mais para viajar, as pessoas é que gostam de viajar.

Que achas? Vamos amanhã? Depois de amanhã? Dois linguadozinhos fritos para cada um, na doca de Ostenda, uma conversazinha com o Cap, vamos às putas e depois para a roleta? Essa história dos dois homens que apareceram à tua mãe ficou-me atravessada na garganta. Vendedores de enciclopédias não compram Elixir d'Anvers. O Cap tem de mandá-los regressar à base, são dois caçadores.

Charlie roça com a língua por dentro da bochecha, o papo mexe.

- Voleibol - diz René.

- Exactamente. Estávamos a jogar voleibol quando perdemos o nosso Corry, que gostava de pintar as unhas de vermelho.

- Muçulmanos.

- Exactamente. Estávamos encurralados entre os muçulmanos e os cristãos e os indianos. Quantos muçulmanos mandámos para o outro mundo? O Cap pode verificar no seu livrinho de notas. Pelo menos uns vinte. Ainda os vejo deitados na água, depois de rolarem pela areia até à beira do mar, todos de boca escancarada. E a água a ir e vir por cima deles até lhes enxaguar o sangue todo, só ficaram os buracos das balas.

E nenhum dos gajos trazia dinheiro ou jóias ou anéis, porque o dinheiro é a origem de todo os males, diz o Profeta. Ou teria sido outro tipo? Podem dizer de nós o que quiserem, mas agimos correctamente.

Encomendaram-nos um massacre, regulamentar, e nós cumprimos o trato. Na nossa qualidade de assessores antropológicos, económicos t cómicos e de irregulares ( Nota 1 ) .

Charlie carrega nuns botões. O rádio foi montado por ele. Que seria de nós sem este Charlie, tão habilidoso e bem disposto?

- Ora ouve - diz.

- Estou a ouvir - diz René.

- Haydn. Quando eu dava aulas, costumava comparar as sonatas de Haydn com diamantes, desenterrados das entranhas da terra e elevados à transcendência. Esta aqui deve ser em majeur. Opus 31. De 1766 ou 1768. Pena não termos aqui umas pitadinhas de Líbano vermelho, para apreciarmos melhor a música.

 

( Nota 1 ) - Tropas irregulares. (N. da T.)

 

A senhora Rombouts está-se a arranjar para ir ao Rotary Club de Waregem assistir a uma prelecção de uma antiga dama de honor da rainha Isabel sobre a Fundação de Assistência Médica aos Indígenas, criada pela própria soberana depois de uma viagem ao Congo.

- Sabias que o pai dela, além de Duque da Baviera, era também um oftalmologista famoso?

- Não, mamã.

A mamã senta-se na beira da cama de Julia. Sem ninguém lhe pedir. Cruza as pernas magras, examina os joelhos.

- O Gert Doolage também vai estar lá esta noite - diz com um desprendimento exagerado.

- Mamã, escusas de insistir que não vale a pena.

- Não sei o que te vai na cabeça, Julia. Gert é desportivo, bem-edu-cado, tem estudos, sabe lidar com as pessoas.

- Não insistas, mamã, não vale a pena.

A mamã suspira. Porquê? Que fez ela para ter uma filha tão egoísta, uma fedúncia malcriada? Nestes tempos modernos, os filhos só servem para dar dores de cabeça.

- Olha que o pai dele não deve durar muito.

Julia conhece bem esse arzinho manhoso de camponesa, essas pálpebras semicerradas a espiá-la.

- Se o pai dele teve «a infelicidade de...».

- Mamã, o velho Félicien ainda nos vai enterrar a todos.

- O padre já lá foi a casa.

- Mesmo que o velho já estivesse debaixo dos torrões, eu não queria o Gert para nada. Mamã, é um labrego, não gosto dele, dá-me nojo!

- É um lavrador abastado. Anda mais de Mercedes que de tractor. E é bem capaz de deixar a lavoura quando o pai já não estiver cá para ver. Quer ser engenheiro agrónomo e tem muita razão. Já há muito tempo que não pensa noutra coisa.

- E eu a julgar que ele só pensava em mim... -Julia, és uma estúpida e uma burra.

- Obrigada, mamã.              

- O rapaz beija o chão que tu pisas.

- Mamã.

- E não te esqueças de que já não és das mais novas, Julia.

- Obrigada. É melhor alargar a saia do tailleur, para esconder as regueifas da cintura.

A senhora Rombouts posta-se em frente do espelho do guarda-fatos e endireita o laço de veludo preto do cabelo.

-Julia, sabes muito bem que não tens futuro na música. Nunca tiveste talento, nem vais ter. Tantas lições de canto, tantas despesas, para nada. Ah, é verdade, o Georges morreu.

- Que Georges!

- O cão do Félicien.

- Atropelado?

- Não sabem de que morreu. O Félicien não quis ir ao veterinário. Vê lá que até deixou o cão dormir na cama dele. O que nunca fizera antes. O bicho ficava preso dias a fio, tinha o pescoço quase sempre em carne viva. Morreu nos braços do Félicien. E, depois disso, o velho tem piorado a olhos vistos. «E depois disso», diz o Gert, «não há um dia em que o meu pai não deixe cair umas lágrimas no prato da sopa».

A senhora Rombouts enxuga a testa com um lencinho perfumado. Franze o nariz.

- E quanto vai herdar o Gert? - ouve-se Julia perguntar.

- O teu pai acha que as propriedades devem valer uns bons dez milhões. - O perfume da senhora Rombouts fica a flutuar no quarto.

Com meio milhão podia ir com o Noèl à América, consultar os melhores especialistas. O Noêl disse à Julia que ela cantava muito bem, quando cantaram a «Nossa Se-nho-ra da Flan-dres», em coro, na classe do professor Arsène. A voz sonora do professor abafava a voz dos outros. Com a bata empoada de giz e a barriga empinada, a balançar o tronco sobre as pernas Curtas e gordas, afastadas. Parecia um barco ao sabor das ondas.

O Noêl dava sempre a mão a Julia. As outras raparigas tinham ciúmes por ser ela a escolhida. O Noêl só deixou de dar-lhe a mão depois da queda. Agora ela canta sozinha.

Lendo-lhe os pensamentos, a mamã diz:

- E quanto tempo pensas ainda andar com o pateta alegre do Noel? Que isso não chegue aos ouvidos do teu pai. Sabes muito bem o que ele costuma dizer: que Deus nos livre dos pobres de espírito.

 

Como sou carteiro, portanto, funcionário público, quer dizer, alguém que serve o interesse público, conheço esta região como a palma da minha mão, a própria composição do solo e a natureza selvagem do bosque de Lete. Aos domingos, ando por aí a tirar fotografias a cores. Há tanta coisa esquecida, destruída, arruinada, desbaratada. Se não há ninguém capaz de travar este descalabro, que haja ao menos alguém para registar as coisas antes de desaparecerem do mapa. Tenho a minha caveça cheia de álbuns de património à espera de serem organizados, classificados. Fica para quando me reformar.

Nessa segunda-feira, saí muito cedo de casa, a neblina ainda flutuava sobre os campos.

Recordo-me que ia a pensar que, um dia, havia de examinar por que o meu saco de cartas era mais leve à segunda-feira do que no resto da semana. Fica para quando me reformar.

Recordo-me que ia a cantar muito alto, tentando abafar o barulho do motor da minha Solex. A última canção do Adamo que tocam na rádio a toda a hora e momento, apesar de ser em francês e nós não pagarmos taxa para a rádio propagar uma língua inimiga do povo. Mas eu aproveitava para aperfeiçoar o meu francês.

Lembro-me do que levava no saco nessa segunda-feira. O prémio de seguro do carro do professor Arsène, que se atrasa sempre nos pagamentos. Um postal ilustrado com uma fotografia da Brigitte Bardot de fato de banho com o texto: «Ai quanta beleza em Saint-Tropez, ai quem me dera estar com você», assinado D.

O D. é de Dora, que deixou o farmacêutico dela em casa e anda a passear pelo Sul de França com uma amiga, isso foi o que ela disse. Um recibo das Finanças de 34 500 francos para a viúva Ariaens, o que acho muito. Uma carta de amor da Alemanha para a pequena Lucie. Outra carta bastante confusa de R. Tiberghein ao sogro, em que sugere e explica, bem, tenta explicar, porque a mim, pessoalmente, não me convence, que o sogro devia investir na Fábrica de Tecelagem Toribas, o que é esquisito, pois toda a gente sabe que os têxteis estão a dar as últimas.

Quando a neblina se desfez, pensei: antes de fazer a ronda, ainda posso ir apanhar uns cogumelos, a minha Mariette vai ficar toda contente. Meto-me então pelo bosque de Lete e ouço, por entre as bétulas prateadas, música clássica. Ora, eu sou, toda a gente sabe, um furão por natureza, a minha Mariette chama-me Edmond, o furão, e pensei: Oi oi, deve andar por aí algum campista a estragar a natureza com a tenda, o petromax, as pontas de cigarro, o rádio e a amásia, que é muito sensível aos violinos e a grandes orquestras, e descortino ao longe uma furgoneta. Escondo logo estes noventa e cinco quilos o melhor que posso atrás duma árvore, meto a minha motorizada no meio dos arbustos sem fazer barulho e vejo dois homens abraçados um ao outro.

Lembro-me que pensei logo: são forasteiros, não é gente da terra. Não faço rodeios, são coisas que prefiro não ver. Uma pessoa sabe que existem, tanto na nobreza como no povo, e como carteiro já vi e ouvi muita coisa, tenho um espírito aberto, bem, sim, apesar de tudo, mas quando essas coisas acontecem assim às escâncaras é o mesmo que pedir chatices. Não que estivessem nus, não vou mentir, a um deles nem sequer consegui ver a cara, mas, como dizer, num ambiente tão idílico, no bosque de Lete, uma das maiores atracções turísticas da nossa região, uma cena dessas era um autêntico atentado à natureza.

Tiro a motorizada do meio dos arbustos com toda a cautela, enfio-me por um carreiro lamacento e atravesso um silvado. Estava tão fora de mim que me esqueci totalmente do raio dos cogumelos.

Recordo-me que os raios de Sol entravam pela folhagem e pensei cá para mim: ora vejam a inocência desse Sol a iluminar este mundo perdido. Estava tão fora de mim que entrei no pátio da casa do Félicien. Não tinha notícias nem cartas nem postais para ele, ninguém sabe que ele existe. Félicien também nunca me ofereceu uma pinguinha, podia ser que fosse agora uma boa altura.

Irma, a criada, está a fazer manteiga. Eu digo: - Então, Irma, como é que está o patrão?

Ela encolhe os ombros. Teve cinco filhos e três são do Félicien. Há um com cabeça de água e outro vesgo, que se chama Edmond como eu. li o que menos me agrada na história.

- Foi outra vez confessar-se - diz Irma. - Por ele, era capaz de não sair do confessionário o dia inteiro. Está com um medo dos diabos de esquecer algum pecado. Se ainda o queres ver em vida, aproveita agora.

Não há ninguém em casa. Os jornaleiros estão no campo. Dou com ele deitado num quartinho de arrumações, de camisa de noite, com o Sol a bater-lhe nas barbas.

O cubículo não tem janelas e cheira mal que tolhe.

- Então Félicien, que tal?

- Isso são modos de falar comigo?

Inclino-me para ele e sussurro-lhe na orelha gretada e cheia de crostas: - Quantos por cento recebes agora?

Porque há uma ou duas semanas apanhei uma carta do Banco de Rou-lers em que lhe propunha 3,7 por cento de juros. Não vinha indicada a quantia ou então, com os nervos, não vi. Se um dia alguém se lembrar de estudar cientificamente o sistema nervoso dos carteiros, vai haver muita gente a apanhar sustos.

- Quatro por cento - grita Félicien. - Quatro.

Os seus olhinhos, habitualmente tão manhosos e malignos, estavam baços. Aos pés da cama, embrulhado numa trouxa de camisas sujas, cuecas e camisolas rotas, estava deitado o Georges, morto, rodeado dum enxame de moscas que lhe pousavam no focinho imóvel, na língua quieta e sarrosa. Félicien virou-se para o outro lado e escondeu a cara por baixo duma ponta do lençol. Afastei o lençol para trás. Apurei o ouvido e percebi que a Irma ainda estava ocupada com a manteiga.

- Quatro por cento - disse eu. - Mais do que suficiente para um porco avarento como tu. Mas, espera, que não vais gozar muito tempo do dinheiro!

- Oh, Georges, Georges - gemia o Félicien, com restos de comida, ovo, salsa agarrados aos pelos espetados da barba.

-Já estás com os pés para a cova, Félicien, não tenhas dúvidas.

- Tu também - berrou ele. - Tu também, grande porco.

Fiquei satisfeito por vê-lo tão dado à luta. Pus-lhe a mão na testa.

Recordo-me de que me assustei com o calor que senti na palma da mão e lhe saía da pele a arder. Tirei o boné. Fiquei estonteado com os vapores húmidos que saíam do Félicien, dos lençóis rançosos e do cão morto. Saí a correr daquele cubículo agoirento.

- Bem, Félicien, se não nos voltarmos a ver, boa viagem.

 

Pela janela aberta, ouve-se a Rádio Bruxelas anunciar uma largada de pombos de várias cidades da França.

O carteiro toca à campainha da sua tirana de treze anos. A dita, Lucie, aparece à porta. Tem as pálpebras inchadas como se tivesse chorado toda a noite. Os lábios amuados sorriem sem se moverem. O carteiro, a quem não arrefeceu a corrida pelos campos, tira o boné e abana-se com ele.

- Onde está a tua mãe?

- Não tens nada com isso.

- Trouxe-te aqui uma coisa que te vai pôr o coração aos saltinhos.

- Da Alemanha?

- Talvez.

- Dá-me a carta.

- Primeiro tens de me dar o que prometeste.

- Eu? O que é que eu te prometi?

- A semana passada. Sabes muito bem o quê.

- O preço aumentou.

- Quanto?

- Cem francos.

- Lucie, estás boa da cabeça?

- Então não levas nada - diz, pondo a ponta da língua de fora.

O carteiro abana para um lado e para o outro a sua cabeça afogueada. Ninguém na rua. Põe o boné na cabeça. Tira a carta do saco e sacode-a diante da cara. Ela arranca-lhe a carta da mão e entra em casa. Ele segue-a. Ela rasga o envelope. Lê. Senta-se. O carteiro aproxima-se da janela e vê que a rua está deserta. Em frente da junta de freguesia há miúdos a jogar a macaca. O que hoje em dia quase já não se vê. O carteiro solta o nó da gravata. Até parece que o fogão de sala está aceso. Aproxima-se de Lucie e tira-lhe a carta.

«Querida Lucie» - diz passando a carta perto do nariz. - «Hinnom-shein. Sinto-me tão só sem ti, não me interessa mais nada neste mundo, só penso em ti e em mais ninguém, o que tu me dás não encontro em mais lado nenhum, só quero estar junto de ti. Roger Vandelanotte. P.S. Está tudo bem com o Jefke.»

- Quem é o Jefke?

A rapariga pousa a mão entre as coxas e estica o indicador.

- Bonito, o tipo tem cá umas maneiras. Vejam só, escrever a uma miúda de treze anos uma coisa dessas, falar do Jefke.

Passa na rua um camião do lixo com rapazes em fato-macaco pendurados atrás, a disparatar uns com os outros. É impressão do carteiro ou os quatro rapazes a arder de excitação olham todos ao mesmo tempo para a casa de Lucie?

Remexe no bolso húmido das calças, no outro lado, no bolso do casaco, até encontrar o porta-moedas donde tira uma nota de cem francos. Lucie não repara nisso ou não quer reparar. Ele pega-lhe no pulso frio e enfia-lhe a nota na mão.

- Obrigado - diz ele.

- Obrigada - diz ela.

- Estou com uma certa pressa - diz o carteiro -, ainda tenho de fazer a minha ronda.

- Primeiro quero fumar um cigarro.

- Mas ainda és muito nova para fumar.

Sem dizer nada, atira para a frente o rosto magro de lábios carnudos, fazendo troça da Brigitte Bardot, de que usa o vestido aos quadradinhos vermelhos e brancos.

- Eu que-ro um ci-ga-rro.

- Na tua idade, Lucie. A nicotina, meu anjo!

Ela enrola a nota, faz um canudinho da grossura dum dedo e enfia-o na boca.

- Então fumo isto aqui. Empresta-me o teu isqueiro.

Ele sente o suor a escorrer-lhe pelo pescoço. Com as mãos inchadas, abre o maço verde todo amarrotado de St. Michel e dá-lhe um cigarro. Ela põe o cigarro atrás da orelha, o sósia do canudinho que prende no cantinho da boca. Olha para o relógio de pulso.

- O.K. - diz ela. - Por cem francos.

Agarra o vestidinho Vichy pela bainha, com os dedos delicados, e levanta-o. O carteiro repara no chumaço dentro das calcinhas, brancas às riscas cor-de-rosa.

- Estás a ver?

Ele emudece. Depois gagueja:

- Essa coisa aí não preciso de ver.

- Queres que te devolva os cem francos? Ele diz que sim com a cabeça.

- O.K. - diz ela - eu sou desportiva. Podes ficar com eles, com os teus cem francos, meu queridinho, meu rebuçadinho, meu carteirinho de chocolate.

Afasta o chumacinho e um lado das calcinhas, pondo à mostra uma penugem húmida encaracolada. Tira da boca o canudo dos cem francos e empurra-o para dentro da outra boca.

Nesse preciso momento, penoso e predestinado, ouve-se lá fora chiar os travões do Fiat da mãe de Lucie.

Sem pressa nenhuma, Lucie tira para fora a nota amolecida de cem francos e mete-a no bolso do casaco do uniforme de Edmond Staelens. O carteiro cambaleia em direcção à janela de vidros embaciados, mas ainda consegue ver a mãe de Lucie de vestido cor de beringela a remexer no saco das compras.

- Mamã, olha o que eu tenho aqui - grita Lucie com vivacidade.

A mamã leva as compras para a cozinha, volta para a sala, com um ar desconfiado.

- Há correio?

- Uma cartinha do Roger - responde Lucie, toda doçuras, toda melaço, puxando pudicamente o vestido por cima dos joelhos.

- Mas, homem, Staelens, está a suar em bica!

- É da freima. Lá nos correios a gente anda sempre numa roda viva. Passei pela casa do Félicien. O coitado estava na cama e nem se mexia, É esquisito ver assim uma pessoa de quem se gosta e se conhece há tanto tempo.

- Uma pinguinha, quer?

- Se não incomodar.

O carteiro leva o copo à boca bebe um golinho. Lucie mexe as pernas, tenta dominá-las. O fogo da genebra do Norte de França queima o estômago do mensageiro Staelens que olha de soslaio para Lucie e vê que ela tem a mão direita metida entre as pernas. Só um espectador a arder por dentro como o carteiro repararia nessa mão com o dedo médio recurvado, saciador, a mexer-se muito discretamente, e no gozo diabólico espelhado nos olhos de Lucie.

 

Foi na segunda sexta-feira do mês - sabemos a data de cor porque nessa noite os Caracóis actuavam na Parada dos Jovens, esse grupinho de terceira categoria nascido aqui na nossa humilde aldeia - que o professor Arsène deu a Fernand Bossuyt, o servente da escola que se apodava de «contínuo», a ordem de limpar a fundo com fenol o soalho da sala de aula porque na semana seguinte o inspector ia fazer uma visita à escola. O homem estava a cumprir essa ordem à risca quando, por volta das cinco horas, Lucie Vaneynde espreitou pela janela aberta atraída pelo cheiro a queimado.

Disse ao servente que tinha esquecido, na gaveta da sua carteira, uma tablete de chocolate de leite com avelãs. Bossuyt perguntou-lhe se ela gostava dele um bocadinho. Ela respondeu: «Não». Bossuyt perguntou-lhe se ela então gostava mais do Roger Vandelanotte. E ela respondeu: «Talvez. Mas não tem nada com isso».

Bossuyt deu-lhe para a mão o chocolate e pediu-lhe um bocadinho. Mesmo não gostando nada de leite. Ela partiu um quadradinho e, brincalhona, enfiou-o na boca perplexa de Bossuyt. Quando ia para retirar a mão, o servente mordiscou-lhe o indicador e a seguir lambeu-lha entre os dedos, lambuzando-lhe a palma da mão com cuspe.

- Cabrão, porco, filho da puta - gritou ela.

- Magoei-te? - perguntou o porco. - Mas, meu coraçãozinho, não era essa a minha intenção, não fiz de propósito, foi sem querer.

Ela atravessou o recreio com passadas largas e furiosas, gritando para o contínuo:

- Que um raio te caia em cima, porco velho!

A vizinha Augustina Falot ouviu estas palavras, mas, apesar de ser muito curiosa, não achou que valesse a pena perder o episódio empolgante do folhetim dramático que estava a dar na rádio. Só depois de acabar, uma hora mais tarde, é que se apercebeu de uma espécie de gemido que parecia um gato a miar, vindo dos lados da escola. Foi ver o que era e encontrou o gato a um metro de distância de Fernand Bossuyt vergado para a frente, todo contorcido, com a cabeça enfiada no balde de ácido clorídrico a catorze por cento. Augustina Falot garantiu que o ácido ainda chiava e que a cara do homem estava toda comida.

Augustina lembrava-se ainda de que a voz esganiçada que ela ouvira a praguejar e ecoara em todo o recreio era a voz de Lucie, do que não se admirava nada. Essa miúda merecia uma educação melhor da que a mãe, a Madeleine, lhe dava. A rapariga tinha ficado marcada pela maneira como o pai a abandonara e à mãe. O pai desaparecera sem uma palavra, sem um sinal, sem um adeus de despedida. Segundo dizem para aí, com uma camareira do bar Tricky.

 

Como é natural, o reverendo Lamantijn não só conhece os seus paroquianos como a palma da sua mão, mas também é capaz de citar de memória, sem precisar de consultar as suas fichas, os defeitos e as virtudes dos hereges, dos blasfemos, dos protestantes e dos ex-comunistas da aldeia. Hubert van Hoof, por exemplo, tem vinte e três anos, é vegetariano, agente de seguros nas horas livres, correspondente do jornal Tribuna de Waregem nas horas livres, casado, mas não confia nas mulheres, enófilo, mas não tem dinheiro para comprar um Grand Cru. E que mais? Tem as unhas roídas até ao sabugo. Usa um aftershave com um cheiro penetrante. Neste momento, está sentado, desconfortavelmente, numa das quatro cadeiras em forma de concha na sala de visitas da casa paroquial, a beber um Banyuls na companhia do reverendo. A nossa Diana, a governanta, gasta e coçada até ao fio, já com um pé na cova, traz uma tacinha de prata com amendoins e azeitonas. A nossa Diana acha que o Hubert van Hoof é um pedante. Não percebe como é que o seu príncipe eclesiástico, um santo com uma existência tão atribulada, perde tempo com tipos destes. Por isso, diz com insistência, quase com insolência, que o senhor padre está cansado e que o senhor Van Hoof terá de ser breve.

- Com certeza - responde Hubert van Hoof. O reverendo anui com a cabeça:

- Depois da Ocupação nunca mais administrei tanta extrema-unção como agora. É como se os meus paroquianos tivessem sido eleitos para o Juízo Final. Quem poderia imaginar que o nosso carteiro ia entregar a alma a Deus assim tão de repente, um flamengo cristão até ao miolo, tão amante da vida e a respirar saúde por todos os poros. Nunca mais teremos um carteiro como ele. Pergunta-se por aí: porquê? Porque é que Vós, Senhor, colheis primeiro as flores mais belas?

- Sim, porquê? - exclama Van Hoof.

- Ao menos, podemos tirar uma lição dos acontecimentos, ou seja, que nós, pobres criaturas, andamos a tactear no escuro, incapazes de desvendar os mistérios, quanto mais resolvê-los. Só nos resta viver a nossa fé ainda com mais fervor.

Já sei que vai repetir esta lengalenga na prédica de domingo, pensa Van Hoof. Mede o pulso. Sente-se sonolento, deve ser do Banyuls. Teria o reverendo, que só muito raramente deixa transparecer qualquer emoção na sua cara bolachuda, misturado no vinho alguma pastilha para dormir?

- Reverendo, não vou à igreja as vezes que devia.

- Diga antes nunca.

- Sim, tem razão, nunca- Mas como não tenho mais ninguém com quem falar dos meus problemas... Por exemplo, do que o carteiro me contou, uns dias antes do seu fim lastimável.

O reverendo escuta-o com a cabeça de lado e o queixo apoiado na mão, como no confessionário.

Van Hoof enfia uma mão-cheia de amendoins na boca. Que vinho tão doce!

- Por exemplo, que o René Catrijsse regressou.

- Isso já eu sabia.

- E que ele costuma sair, geralmente à noite, para ir para o bosque de Lete, onde passa umas horas na companhia de um homem, um desertor como ele, provavelmente. Ora, põe-se-me aqui a questão se eu, sendo colaborador da Tribuna de Waregem, devo ou não comunicar esta ocorrência ao redactor-chefe. E escrever um artigo sobre o assunto, se ele me pedir.

- Temos de ter cuidado com os rumores. Transformam-se muito depressa em verdade, ou melhor, numa espécie de verdade.

- Exactamente. Por isso é que me pergunto se tenho o direito de divulgar através dum órgão de comunicação o que me foi confidenciado por uma fonte tão fidedigna que, infelizmente, acabou por falecer. Que alguém anda a urdir, debaixo do nosso nariz, nesta nossa região tão pacífica, planos terroristas.

- E o nosso carteiro viu tudo isso com os próprios olhos?

- Sim. Até uma pistola, no carro deles. E uma caixa de papelão cheia de granadas.

- O nosso saudoso amigo viu tudo isso?

- Sim.

Hubert van Hoof não gosta do tom altivo, da maneira quase insolente como o padre reage ao seu relato. Fica exasperado com o ar incrédulo com que escuta a sua história.

- Mas ele contou muito mais.

- Quando?

-Já estava acamado, foi pouco antes de morrer.

- E estava lá alguma testemunha?

- Da sua morte? Sim, a mulher dele, a Mariette. Ela deu-lhe a mão e ele ferrou-lhe os dentes até sangrar.

- Quero dizer, quando ele contou essa história.

- Não.

- Ah.

O padre esvazia a garrafa nos dois cálices, examina o rótulo:

- É um digestivo excelente. Como aperitivo acho-o pesado de mais.

- É possível.

Para pôr o padre incrédulo no seu lugar, diz:

- O nosso carteiro, paz à sua alma, disse-me que o René Catrijsse se entregava a obscenidades com o outro, a pessoa não identificada.

Van Hoof reparou que estava a falar como um padre. Também quando se fala com um gago, a tendência é para se começar a gaguejar.

- René Catrijsse estava de joelhos, com a cabeça no colo do outro.

- E quer escrever isso no seu jornal?

- Estava a pensar no título: «Filho pródigo regressa do inferno africano».

O padre sai da sala e volta com uma garrafa de Montredon numa mão e dois cálices na outra.

- Acha melhor cobrir essa história toda com o manto da misericórdia? - pergunta Van Hoof, beato. - Isso dá-me grandes problemas, é um grande dilema para mim. Pode crer. Nesta nossa vida tão breve, uma pessoa não tem tempo para se conhecer a si próprio, quanto mais aos outros.

O reverendo Lamantijn ergue a mão, com a palma voltada para Hubert van Hoof.

- Hum - bebe, saboreia, estala a língua e pergunta: - Então?

Van Hoof não sabe se ele quer que continue com o seu exame de consciência babujento ou se quer uma opinião sua sobre o vinho. Mato dois coelhos duma cajadada, pensa Van Hoof, e diz:

- Um ano excelente e um travo aveludado, mas, reverendo, eu preferia realmente evitar que, no leito de morte, me venham interrogar sobre a moral da nossa aldeia e, às tantas, me digam: «E tu, Hubert van Hoof, tu não sabias de nada?» E eu tenha de responder: «Sim, sabia, mas abafei a história, à boa maneira flamenga».

- Sabe uma coisa, meu caro? - interroga o padre. Irritado, levanta-se e abre a janela.

- Não.

- Vamos deixar passar uma noite sobre o assunto.

Se este conselho foi inspirado por uma compreensível turbação ou pelo cansaço que sentia ao ser confrontado com a morte súbita dos seus paroquianos (incluindo o cão Georges) ou por uma consternação geral dos órgãos, não sabemos, nós que estamos no Abafado a ouvir o relato de Hubert, nunca ficamos satisfeitos com uma única explicação. As coisas estão ligadas umas com as outras, só não sabemos como.

O senhor Devos, que acabou de chegar de Bruxelas e que, antes de ir para casa, ainda veio beber uma pinguinha no Abafado, diz:

- É melhor deixar as teorias por lá e trazer os factos para aqui.

- Para o Abafado, senhor Devos?

- Para aqui.

O senhor Devos bate na barriga. Às vezes, não é nada fácil seguir o raciocínio do senhor Devos, que vai todas as semanas a Bruxelas, de comboio, para tratar de negócios, mas nunca vai mais longe do que a Gare du Nord, com as suas montras iluminadas a lilás. Hoje já vai na quarta pinguinha. Talvez isso explique a falta de clareza das suas intervenções.

- Quando se trata dum assunto importante, os padres têm sempre que receber autorização dos seus superiores hierárquicos. Pensar pela sua cabeça é coisa que não se admite, lá no clube deles - diz o notário Albrecht.

E, quatro dias mais tarde, aí pelas sete da manhã, caía uma chuva miudinha, Lucie, a miúda desavergonhada, entrou na cozinha em camisa de noite e disse à mãe, que lhe estava a fazer papas de aveia:

- Mamã, acho que hoje não vou à escola.

- Não te sentes bem, filha?

- Não, mamã.

- Podes levar o guarda-chuva.

- Eu não me portei bem, mamã, portei-me mal e fui castigada.

- Vamos, vamos, come a tua aveia.

- Acho que te vou deixar, mamã.

- Que queres dizer com isso, Lucie?

- O diabo vem buscar-me.

- Lucie, não digas disparates.

- Mamã, não tenho tempo para te explicar tudo, mas sei que vou direitinha para as profundezas do inferno.

Madeleine mete o termómetro debaixo do braço de Lucie e sente um cheiro esquisito, fareja melhor, e de repente lembra-se que já há três dias que sente no ar esse fedor a amoníaco. Tira pela cabeça a camisa de noite da filha, que não reage, como se a mãe lhe estivesse a provar um vestido que não achava nem bonito nem feio.

Madeleine repara então que Lucie tem a pele tenra e macia toda perlada de suor. O suor escorre-lhe do nariz, do peito e do umbigo e tresanda a urina. Enfia a filha na cama e os lençóis ficam encharcados e os vidros das janelas embaciados.

- Por cem francos, mamã, por cem francos - diz Lucie docemente, já a delirar -, deixei o diabo tocar-me.

- O diabo não existe, Lucie. Até a própria Igreja já o declarou.

- É disúria - diz o doutor Vermeulen. -Já ouvi falar dessa doença, mas ainda não conhecia nenhum caso. É interessante, a dor localiza-se no epigastro e de lá desce até às solas dos pés.

- Temos de levá-la para o Hospital Universitário - diz, um quarto de hora mais tarde, depois de ter visto Lucie vomitar golfadas de urina.

Madeleine não deixou.

- É compreensível - disse o senhor Devos - porque desse hospital só poucos voltam para casa. Lá, ou operam uma pessoa porque têm curiosidade em descobrir as complicações e aproveitam para fazer uma demonstração aos estudantes, ou então prendem uma pessoa o tempo que podem para receberem um tanto por quarto e por noite.

- Sim, sim, Lucie, minha pequenina.

- Se ela não for recebida logo nos braços do Senhor, deve haver qualquer coisa errada no universo - diz Jules Piron que, desde que se reformara, era muito beato.

- Ah, parece que ainda estou a vê-la, à nossa Lucie.

- Para o fim, ela esfarrapava como uma louca todas as camisas de noite que lhe vestiam. Uma atrás da outra.

- Nos povos semitas, isso é sinal de luto - diz o professor Arsène.

 

O reverendo Lamantijn telefonou quatro vezes para o episcopado. E quatro vezes lhe responderam que Sua Eminência não podia atender. À quinta disseram-lhe que o bispo estava de férias, em Roma, evidentemente. Depois telefonou ao governador da província. Disseram-lhe que o governador lhe telefonaria mais tarde. Transformei-me num pária, pensou o reverendo. Tudo começou quando não quis dar aulas no Seminário Menor e preferi ficar na minha terra, sim, nesta parvónia.

- Eu sei o alcance da minha desobediência - balbuciou o reverendo Lamantijn. A cara do bispo era serena, ascética, modelada à imagem de Sua Santidade, vencida por uma crise de soluços.

O reverendo Lamantijn pediu perdão, ajoelhado ao lado da sua cama. Em cima da mesinha de cabeceira, estava pousado o retrato da mãe dentro duma moldurazinha prateada. Ao lado, a estatueta policromada do século xviii, de São Roque, padroeiro de Bousekerke. Sobretudo o cãozinho que lambia a coxa desnuda do santo estava esculpido, como dizia o catálogo do leilão, com particular sensibilidade.

Perdoai-me, Senhor, por ter caído uma vez mais em pecado. Perdoai-me a minha soberba e o meu orgulho. Não me poderíeis, por acaso, recompensar por nunca ter essa atitude com os pobres e os desfavorecidos mas só com a classe média?

Perdoai-me, Senhor. O Van Hoof, quando estava a falar comigo, cheirava tão mal, a carne podre, parecia.

O padre ficou à espera de resposta, apurou o ouvido.

Ao amanhecer, rezou por todos os que vagueiam neste mundo como espectros da morte.

 

Depois de ter esperado o número conveniente de dias de luto, que se seguiram ao funeral do carteiro Staelens, o agente de seguros Hubert van Hoof apresentou-se na casa da viúva para falar de vários assuntos relacionados com a pensão de reforma, as aplicações de capitais, os seguros e a papelada mais complicada. Tudo chinês para a viúva.

- Estou-lhe muito reconhecida por não se ter esquecido de mim - disse ela. - Não se assuste com os meus desabafos e com as minhas lamentações pela perda tão brusca do meu marido, mas eu sei que ele sempre o estimou muito e, realmente, você é assim como uma espécie de sósia dele. Tem a mesma estatura e é, como ele, muito educado com as pessoas, delicado com as mulheres.

- Realmente...

- Não digo com isso que pode ocupar o lugar dele, é claro.

- Não.

- Por outro lado... - suspirou, os peitos, espremidos pela blusa, subiam e desciam. - Por outro lado, um homem também pode ser delicado de mais. Não quero maçá-lo mais com o assunto, mas, senhor Van Hoof, muitos dos meus desejos ficaram por realizar. Entendíamo-nos bem, nunca levantámos a voz um para o outro. Era porque ele estava todo o dia fora, andava sempre na rua, falava com outras pessoas, pelo menos não me andava a empecilhar aqui em casa, mas, mesmo assim, não sabia aquilo de que uma mulher gosta, aquilo que lhe faz falta, percebe onde quero chegar?

- Sim, acho que sim...

Passaram a hora seguinte a organizar rapidamente os papéis de Staelens.

O carteiro não se tinha desmazelado na administração da herança, não, não se podia dizer isso do falecido, mas enquanto numas coisas fora meticuloso de mais, noutras precipitara-se um bocado («Precipitado, ele?», admirou-se o professor Arsène. «Digamos antes desenvolto, errático, críptico, aleatório»,)

Por exemplo, por que carga de água tinha ele guardado seis pastas com recortes de jornais do futebol feminino na Bélgica? A Mariette tinha a certeza absoluta de que ele nunca fora ver nenhuma partida.

Procuraram em vão um testamento.

Só encontraram um caixote cheio de selos, a maioria do Congo.

-Talvez seja melhor vendê-los em Lille - disse Mariette.

- Os coleccionadores belgas são normalmente muito miudinhos e querem saber tudo tintim por tintim, quando e onde foram comprados e sei lá que mais. Nos leilões franceses fecham mais os olhos.

Ela pegou numa caixa de sapatos, destapou-a e pousou-a sobre os joelhos apertados.

- E encontrei também isto aqui, numa das gavetas da sua escrivaninha, que estava sempre fechada à chave. Dinheiro, dinheiro belga em notas de mil. Eu sabia que ele juntava dinheiro às escondidas, mas nunca lho censurei. Um homem tem as suas necessidades.

- Tal como uma mulher tem as suas?

- Sim. Mas o que me intriga é isto aqui.

Tirou um envelope com um maço de postais ilustrados a sépia, todos amarfanhados. Nele estava escrito a caneta de feltro 14 de Set. Luc. e retirou cuidadosamente, com os dedos em pinça, uma nota muito bem enrolada. Com a mesma delicadeza, deu-a ao agente de seguros.

- Quem é este Luc? - perguntou.

- Sim, quem é ele?

- Conhece algum Luc?

- O Luc de Tremmerie, mora em Hasselt, é correspondente da Tribuna de Limburgo. Ainda no ano passado fizemos juntos a peregrinação à Torre de Yser.

- Terá alguma coisa a ver com o assunto?

- Com o quê?

- Com isto aqui - disse ela irritada, apontando para a nota.

Só nessa altura ele se apercebeu de umas manchas cor de ferrugem no papel.

- O que significará isto?

- O quê?

- É isso que lhe pergunto. Dinheiro e sangue, não haverá atrás disto um significado qualquer? Teria o Staelens contactos com a mafia?

- Aqui em Bousekerke?

- Porque não?

Ela contou que tinha visto uma vez um episódio dos Intocáveis, em que era sequestrado um velho rico. Como a família se recusava a pagar o resgate, mandaram umas fotografias com o sequestrado nu em pêlo, algemado a uma cama de campanha.

- Nu em pêlo na televisão flamenga? Não pode ser! - exclamou Van Hoof.

- Então foi noutra série qualquer. Seja como for, havia um homem rico algemado a uma cama. O bandido, um rapaz muito novo de cabelo encaracolado, pegou numa lâmina e fez-lhe um golpe no pescoço. O sangue começou a sair em borbotões e depois, depois -, agora é que fica interessante - o bandido tapa a ferida com uma nota de cem dólares.

- Deve ter sido mil dólares - disse Van Hoof. - Ao longe, as notas americanas são todas iguais.

- Cem, tenho a certeza, estava escrito nas legendas. Cá para mim, isso queria dizer que, se não lhes pagassem imediatamente o resgate, tiravam a nota da ferida e era a sangria completa do ricaço.

- Isso é o que fazem os Masai, no Quénia.

- Então não conhece nenhum Luc?

- Não, lamento.

Quando se despediu, teve a sensação de que ela lhe ia dar um beijo.

- Espere - disse, e por um segundo terrivelmente longo, ele receou que ela fosse à cozinha para tirar as calcinhas, mas afinal só foi buscar uma fotografia a cores.

- Tome. Para pensar nele de vez em quando. Quando ele estava de cama, já moribundo, tirei-lhe umas dez, a família dele é muito grande.

Reconhecia-se o carteiro principalmente por causa do boné que lhe ensombrava a cara redonda azulada.

- Parece que precisava de mais exposição - disse Van Hoof com cautela.

- Por causa dessa cor azulada? Era essa mesmo a cor dele. Até o cuspe lhe saía azul.

Tinha consigo outra fotografia a cores.

- Pode escolher, se quiser, com ou sem boné.

Na fotografia sem boné, o carteiro tinha na testa um vinco azul, ai um centímetro acima das sobrancelhas. Tinha uns tufos de cabelo azul colados à cabeça calva. Os lóbulos das orelhas também eram azuis.

 

Já no carro, a caminho de casa, perto do bosque de Lete, Hubert Van Hoof começou a sentir-se mal. O carteiro tinha-lhe dito: «No meio das bétulas, na margem do riachozinho». Mas Van Hoof não viu bétulas nenhumas.   Praguejou. Teria comido qualquer coisa estragada? A mulher tinha-lhe feito a comida do costume- Bife com batatas fritas. Talvez a maionese? A mulher tinha razão devia consultar quanto antes o doutor Vermeulen. Mas, antes disso tinha uma missão a cumprir. Era um compromisso para consigo Próprio. Finalmente, um exclusivo seu na Tribuna de Waregem. A outra missão era pôr o reverendo Lamantijn no seu lugar - que prelado tão arrogante !

Van Hoof sentiu o volante do seu Fiat trepidar. Mas era ele que tremia. Quando já tinha decidido voltar para trás e ir como um raio ao consultório do doutor Vermeulen, viu à sua frente as malditas bétulas.

«O nosso repórter foi o primeiro a descortinar... a assinalar... a descobrir nos nossos muito queridos bosques flamengos as tão características... bétuas brancas... procurar o nome latino... O nosso repórter recebeu agradecimentos e elogios por parte da Guarda Nacional e da Brigada Especial. Investigação, cujas averiguações não começariam tão depressa... no que respeita ao terrorismo internacional... ligado ao tráfico de armas.,.».

Continuou deixando as bétulas para trás, e estacionou o carro com todo o cuidado num carreirinho ladeado de silvas, voltando a pé para o sítio onde tinha parado Depois de ter andado cerca de um quarto de hora, viu um jipe O carteiro tinha dito uma furgoneta. Deitado sobre o volante, com a cara apoiada nos braços, René Catrijsse estava a dormir ou a morrer. Van Hoof não se atreveu a aproximar-se.

«O nosso repórter manteve na sua mira o criminoso... o arguido... o suspeito desertor enquanto este dormitava na... na sua viatura militar.»

Viu um homem a sair dos silvados. Tinha uma cara simpática e lábios bem desenhados, femininos. Usava um blusão e umas calças de ganga com manchas molhadas nas coxas, como se tivesse andado pelo meio das silvas cobertas de orvalho. Girava na mão uma chave de fendas.

- Ora viva - disse Van Hoof.

O homem sorriu, afável. Tinha coladas ao cabelo, aos ombros e às costas penas de galinha pedrês. Em cima da capota do motor havia as mesmas peninhas. Uma espécie de penugem branca tinha-lhe ficado presa às sobrancelhas farfalhudas. Na fotografia da primeira página da Tribuna de Waregem passaria por psicopata.

- Ando a apanhar cogumelos - disse Van Hoof.

- Ah sim - disse o homem. - Acordou hoje de manhã cedo e pensou: ora muito bem, está um belo dia para apanhar cogumelos; foi assim?

- Tal e qual.

- E onde é que pensava guardar os cogumelos? Nos bolsos das calças? Onde estão as galochas? E os seus amigos?

E René Catrijsse continuava sem se mexer.

Van Hoof hesitou. Fez um gesto largo com o braço como se quisesse acalmar um pelotão de pára-quedistas deitados de bruços no meio das silvas.

- Estou sozinho - disse.

- Ah - fez o homem. - O Pequeno Polegar só e abandonado no meio da floresta cheia de perigos. E não haverá, por acaso, por aí nenhum anâozinho do Cap ou da Brigada Especial?

- Matou o René Catrijsse? - perguntou Van Hoof como aquele detective que, quando já vai a sair, se volta para trás e pergunta: By the way, did you murder René Catrijsse?

- Ainda não - disse o homem da chave de fendas e da cara simpática. - Mas digo-lhe que era melhor para si não reconhecer o René Catrijsse.

- Ele não pode ser reconhecido?

- Não por pessoas estranhas ao serviço.

O homem reluzia da cabeça aos pés, três anéis de ouro na mão direita, uma cruzinha de prata suspensa num fio de ouro pendurado no pescoço, uma pulseira grossa com rubis incrustados e o cabo metálico da chave de fendas.

Do meio dum monte de camisas, de meias sujas e de livros de bolso, o homem consegue pescar uma frigideira enegrecida pelo fumo.

- Não me vai dizer que não a uns ovinhos, pois não? Hem? Vou fazer-lhe uma omelete de cinco estrelas, perdoe-me a falta de modéstia. Na minha frigideira de cinco estrelas. Não uso manteiga, mas um azeitinho virgem com um grau de acidez mínimo.

Procura qualquer coisa, franze a testa. As sobrancelhas farfalhudas são iguais às da macaca Marie, a nossa mascote.

- Não, não é possível que não haja mais ovos. René, René, acorda! Os ovos acabaram. Para que quero eu uma frigideira sem ovos?

A frigideira desenha no ar uma curva graciosa, guina para o lado e desce a pique. O seu rebordo bate na têmpora de Van Hoof e esmaga-lhe a orelha.

- Não - diz Van Hoof com uma vozinha de criança. Fica lívido.

- Não, não - diz estupefacto, e cai no chão, de joelhos. Da segunda vez, a frigideira acerta-lhe na nuca, depois na moleirinha.

- Sim, sim - diz Charlie.

Van Hoof ficou estendido no chão, com a cabeça apoiada no cotovelo, numa posição confortável. Tem a cara toda vermelha, como se alguém lhe tivesse virado um balde de tinta por cima da cabeça. Ampara o queixo no punho, mas não por muito tempo, o queixo escorrega num líquido vermelho pegajoso e cai em cima duma chapa de automóvel pousada no chão. Dá a impressão de que Van Hoof tenta ler a matrícula da chapa com o olho direito ensanguentado.

Charlie agacha-se e esvazia-lhe os bolsos. Um bando de pombos-torca-zes levanta voo nesse momento. René não se mexe.

Sentado no chão, encostado à porta amolgada da furgoneta, de joelhos erguidos, Charlie lê os dados do bilhete de identidade de Van Hoof e diz admirado:

- O tipo nasceu em Gande, quem diria? Não tem cara de ser de lá. Levanta-se e roça a mão pelos troncos das bétulas, sem perder de vista

o agente de seguros agonizante, tal como um gato, aparentemente distraído, desinteressado, desviando os olhos da presa morta. Os malditos pombos, a arrulhar, a espanejar as asas, aproximam-se da cabeça escarlate de olhos escarlates.

- René - diz Charlie sem esperar resposta -, René, primeiro vamos ver se o cavalheiro de Gande não nos mentiu. Porque a gente de lá já nasce a mentir. Deixa-te ficar bem deitadinho. Se aparecer por aí alguém, diz que eu volto às... às... por volta das sete.

Charlie decide fazer uma ronda pelas redondezas. Sempre foi bom em operações de reconhecimento. Encontra logo o carro de Van Hoof. É claro. Ainda te lembras de chafurdarmos na lama ocre, disfarçados de turistas, de camisola e calções à havaiana, fazendo de conta que tirávamos fotografias aos sítios pitorescos da selva? E, entretanto, íamos reconhecendo o terreno mais adequado para a largada prevista dos blindados.

- Não há batedor como o nosso Charlie - dizia o Cap. - Com o Charlie ao nosso lado não precisamos de binóculos. Agora que não me venha com palpites, eu é que mando. Ainda sou o Cap.

Charlie regressa. Tem agarrados à cara vermelha de pele seca e coberta de pó uns dez moscardos. Enxota para longe as criaturinhas de Deus.

- Não precisavas de fazer isso - diz René enrolando um charro.

- Que sabes tu do que é ou não preciso? Estamos no fim do nosso latim, camarada. E tu mais do que eu, sem dúvida. Mas temos de fazer pela vida, não podemos ficar de braços cruzados. Pego no carro do cavalheiro de Gande e levo-o para Ostenda. Talvez ainda dê um salto a Damme, para despejar o cavalheiro no canal.

Charlie pega num maço de notas e mete uma porção delas no bolso da camisa de René.

- Se as coisas correrem mal com o Cap...

- Nesse caso, de certeza que aparecem por aí os seus dois gorilas privativos - diz René, comprimindo os olhos como se tivesse o sol de frente.

Dos cantos da boca saem-lhe dois riscos irregulares de saliva seca azulada, que lhe vão até ao queixo.

- Tens o número de telefone de Ostenda - diz Charlie. - Se for preciso, vem cá alguém buscar-te.

- Tu.

- Eu ou outro qualquer.

Charlie enxota os moscardos. E um pombo-torcaz.

- Tu.

- Sim, eu.

Acabam de fumar o charro.

- Vamos, vamos - diz Charlie. -A gente divertiu-se ou não à grande em Kibombo?

- Sim. E como.

Em Kibombo, Michiels só cortava aos pretos as pichas mais compridas. Tinha pena das pequenas. Ou das muito finas. Às vezes, os pretos ficavam a observá-lo enquanto ele coçava a cabeça cor de palha, vendo um ariano perplexo, vacilante diante de um problema, um obstáculo, de olhos fixos no sexo preto à sua frente. Pequeno ou grande, qual era o critério? A decisão dependia só dele. Depois de Kibombo, deixou de fazer essas coisas porque a noiva, uma professora primária de Hasselt, lho proibiu terminantemente. Disse-lhe numa carta: «Essas coisas só servem para acender desejos de vingança no adversário».

Em Kibombo, havia uma rua onde só podiam morar camponeses ou sem braços ou sem pernas, cortados um pouco acima do cotovelo, um pouco acima do joelho. Eram bem alimentados. Periodicamente, sobretudo quando havia visitas dos chefes de tribo, iam buscar os mutilados de camioneta, levavam-nos para o palácio de Simon Bukule e punham-nos a jogar futebol de salão na sala do trono.

Em Kibombo, o Cap e os seus hoínens eram convidados muitas vezes para festas em que Simon Bukule, muito gordo, de pele cor de pomba, envolto num bornéu branco como neve e acompanhado de três acordeo-nistas, cantava Ican'tget no-o satisfaction. Bukule tinha o costume de pagar pessoalmente ao Cap com diamantes em bruto, que tirava de dentro dum saquinho de linho bordado. De longe a longe, o Cap dava um ao guerreiro que mais se tinha distinguido. Umas vezes, o contemplado era o melómano Charlie, outras vezes era o Marc de Jong, que tinha recebido a instrução na Coreia do Norte.

Antes de ser promovido a cabo, Bukule servira nove anos no exército do governo como soldado raso. Só depois de muitos anos de rebeldia, de fome, prisão, de intrigas políticas, de febres dos pântanos, de ferimentos e de sede de vingança, é que os irregulares o puseram no poleiro. Tinham bastado dois blindados, umas bombas, umas granadas, uns estrangulamentos e um massacre à catanada. Simon Bukule acabara, por habituar-se à boa vida, e agora já não passava sem os seus banhos de imersão, sem a sua pedicura, sem as suas putas brancas.

- Simon - disse o Cap -, eu, no teu lugar, prestava mais atenção aos países vizinhos, a todos os três.

- Cap - disseram os beiços fendidos -, quando dois elefantes lutam, quem é que sofre mais?

Quando o Cap se põe a pensar, fica, como o Michiels, com uma expressão de estupidez pré-histórica.

- O mais fraco - respondeu.

Simon Bukule fungou uma linha de cocaína, encostou-se para trás, olhou saciado e trocista para o Cap e disse:

- O capim.

 

O que apetecia a René era pegar na furgoneta e ir para a casa dos pais> mas seria um erro táctico. Embrenha-se na Penumbra do bosque. Ampara-se em troncos de árvores que não conhece e é obrigado a sentar-se várias vezes na terra molhada.

Ouve uma locomotiva a vapor, vê o comboio serpentear pelos montes azuis arenosos. Sobe do chão um cheiro a cravinho. Pretinhos de carapinha branca escondem-se quando René olha para trás, por cima do ombro. Quando se volta para a frente, os miúdos acenam-lhe com bandeirinhas de papel com o símbolo da margarina Solo. Têm vestidas camisas de caqui do exército. Um deles traz uns óculos de sol só com uma lente.

- Vinde cá - ordena René à multidão invisível. Sente a falta de Charlie. Sente a falta do Cap que dá instruções, dá ordens, gosta de beber e diz: «Um soldado sern uísque é um carro sem gasolina», caminha pela paisagem monótona e grita Dieu le veut, um grito em que ecoam escolas incendiadas, bombas a cair sobre mercados, explosões de tanques de gasolina. Do Cap, que ensina como se enterra ou desenterra uma mina anti-pessoal. Só que o dinheiro nunca chega para contratar especialistas de desminagem. Braços, pernas, tripas voam pelo ar, esborracham-se no chão.

René levanta-se. Gatinha pelo meio das silvas. Por vezes, é obrigado a esquivar-se aos galhos cheios de espinhos. Sente as pernas e os braços a fraquejar, escorrega, rola para o lado, as tripas baldeiam-lhe dentro da barriga. Com cada movimento mais brusco, sente as costas a arder, a camisa cola-se às costas e aos ombros queimados, à pele em carne viva.

Entra na aldeia à vista de toda a gente. Caminha muito direito, ninguém o cumprimenta. O povo de Bousekerke tem medo. Quem sabe que vingança terrível se abateria sobre as suas cabeças? É que os desertores são muito unidos, têm uma moral própria, secreta e perigosa, tal como a Legião Estrangeira.

Nada anuncia a sua chegada à rua onde moram os pais. A campainha da loja solta um som agudo. René segura-se ao balcão, agarra-se ao puxa dor da porta, ao rebordo do aparador. Alma larga a malha que tem nas mãos, esfrega as cruzes. A cara de Dolf ilumina-se.

- Ora vejam quem temos aqui - diz Dolf.

- Estava tão preocupada contigo - diz Alma. Não é uma queixa. Ela não espera resposta.

- Mal chegaste e já te vais embora. E nós aqui sempre à tua espera.

- Mãe - diz René. Uma palavra que se lhe escapa da boca.

- Estiveram aqui dois cavalheiros à tua procura - diz Dolf. - A princípio, até pensei que fossem fiscais das finanças.

 

Célia, a filha mais nova do director da fábrica de leite, estava a brincar com o hoola-hoop, mas não havia ninguém por perto para admirar os seus requebros. Decidiu entrar no bosque à procura do lobo mau. Mas não o encontrou. No momento em que já tinha desistido de procurar, porque prometera à mamã voltar para casa antes das cinco, encontrou uma furgoneta com as portas escancaradas. Parecia que tinha havido uma luta de galos lá dentro: os assentos, o chão, os vidros, estava tudo coberto de penas. Sentou-se ao volante mas não se atreveu a buzinar. «Tu-tu-tu», gritou. Mas só as pombos-torcazes lhe responderam.

Inspeccionou a tralha espalhada por todo o lado. O proprietário devia ser um tipo estrambólico. Célia pensou em acender o fogareiro de petróleo, mas não encontrou fósforos. Pegou num cantil e bebeu uns goles de cerveja choca. Enfiou três dedos num boião de compota de laranja fermentada, lambeu-os e enxugou-os à manga duma camisa de militar. Mordiscava um pedaço ressequido de chocolate Bounty, enquanto lia muito compenetrada um álbum de banda desenhada bastante esquisito que descobrira em cima do assento.

- Por onde andaste? Deus do Céu, tens a cara a arder! - exclamou a mãe. E virando-se para o pai: - De certeza que tem febre.

O pai meteu-lhe o termómetro debaixo do braço.

- Esta porcaria deve estar estragada - resmungou. Foi ao quarto buscar outro. - Este também não está bom. Mas não é possível! O mercúrio subiu até ao máximo!

- Tenho a impressão de que está com febre tifóide - disse o doutor Vermeulen.

- A pobrezinha berrou toda a noite - disse a mãe.

- Nunca vi coisa parecida - disse o doutor Vermeulen.

- Fico maluca com os gritos dela. E o meu marido também!

- Ou é febre tifóide ou tétano, das duas uma.

No dia seguinte, foi ele quem pôs o termómetro a Célia, na boca, no ânus, na uretra. Quarenta graus. No dia seguinte, quarenta e um.

- Não há célula animal que resista. Custa-me dizer-lhe isto, mas a sua filha é uma salamandra humana.

Nas poucas horas em que Célia se manteve consciente, não parou de trautear uma cançãozinha de Natal.

A canção perseguiu o director da fábrica de leite vários dias depois da morte da filha. O infeliz fartou-se de entrar em livrarias e de folhear álbuns de banda desenhada, mas não encontrou nada semelhante ao exemplar amarfanhado e besuntado que a sua filha tinha no bolso do casaco e em que o Tintim, com um membro de adulto, sodomizava Milou em cima dum baloiço, enquanto a Bianca Castafiori, à espreita, se masturbava com uma garrafa de Coca-Cola.

O pobre pai não se atreveu a contar a ninguém onde encontrara o álbum obsceno, nem à mulher. De vez em quando, na fábrica, tinha ataques de riso que os trabalhadores achavam embaraçantes mas compreensíveis.

- É neurose - disse o doutor Vermeulen. - Afecta o sistema vaso-motor e pode provocar histeria.

 

Não falávamos doutra coisa no Abafado, na aldeia, na região. Stan, o guarda-florestal, depois de emborcar umas dez cervejas, disse que não tinha recebido dos superiores ordens para averiguações oficiais, antes pelo contrário, o inspector-chefe achava que essas mortes todas em Bouse-kerke eram mero acaso e que, para o ano, até era capaz de não haver nenhuma.

- Não há dúvida, Stan, que nos sossegas muito com essa tua história.

- A necessidade - disse o reverendo Lamantijn pensativo. - É verdade, mas que necessidade? - Diana, dá cá um Pommard, a garrafa que está na terceira prateleira, à esquerda.

A nossa Diana, velha e caquética, às vezes é um bocado esquecida. Quando chega à cave, fica especada diante da terceira prateleira, à esquerda, mas já não sabe que Château o padre lhe pediu. E ele, esquecido como ela, ou talvez distraído, não disse qual Château era. Ela esqueceu-se disso e sente-se atormentada. Vê chegar a triste manhã em que será obrigada a abandonar o seu amo corpulento e terno. Tem a certeza de que, sem ela, ele é capaz de, como já sucedera na semana passada, na sua inocência meditativa, ir para a igreja ouvir confissões de pantufas de sola de crepe aos quadradinhos.

- Os pensamentos sombrios não o deixam em paz - diz a nossa Diana. - Ele, que costumava andar sempre tão bem-humorado e era mestre em incutir coragem às suas ovelhas.

- Ovelhas? - perguntou-lhe o irmão, um criador de cavalos ateu.

- Então, ele não é um pastor das almas?

- Ah, pois. Talvez seja porque anda a beber de mais.

- Ele só bebe vinho. Como Jesus Cristo. E tu, com a tua mania do uísque, bebes mais numa semana do que ele num ano.

- Diana, a minha profissão assim o exige!

- É tudo rumores - disse o professor Arsène, eram dez e meia da noite. - E cada rumor acaba por se transformar em verdade e passa a ser História. E cada relato concreto descobre que o objecto que lhe deu origem já se encontra especificado.

- Tem toda a razão, professor - disse Jules Piron.

- Atenção - disse o professor Arsène. - Prestem muita atenção. O ponto de vista dos rumores, as definições dadas por outros aos rumores, muita atenção, depressa se transformam em complexas interacções, e as palavras não servem de muito, palavras, juízos, ênfase dada por outros.

- Tiraste-me as palavras da boca - disse Frans Godderis. Havia cada vez menos motivos para risota.

E Medard, o açougueiro, que, entre parênteses, cheira a peixe porque tem o costume de comer arenque em vinagre, de manhã em jejum e à noite depois do jantar, diz:

- Se fôssemos um bocadinho humanos, guardávamos um minuto, um minutinho de silêncio por Hubert Van Hoof, que pescaram do rio Leie com a cara toda comida.

- No rio Leie ainda há enguias? Eu julgava que as nossas enguias vinham da Formosa.

- Hubert era um homem sério, mas quando a gente tinha um acidente de nada, demorava uma eternidade para pagar a indemnização.

- Eu ainda me lembro de quando havia enguias no Leie. Enterráva-mo-nos na lama, de calções até aos joelhos e com o nosso garfinho, upa... Isso é que eram tempos.

- Atenção - disse o professor Arsène. Cala-se e olha em redor.

- Sim, professor, desembuche.

- Devíamos...

- Lá está ele outra vez a mandar a gente fazer qualquer coisa.

- Nós podíamos...

- Bem, assim já é mais educado.

- Depor uma coroa de flores na campa do Van Hoof. Juntamos aí, digamos, uns duzentos francos e mandamos fazer uma coroa com uma fita amarela e preta, simples, com estilo, onde se podia escrever com umas letrinhas pequenas prateadas estilo gótico: «Dos amigos do Abafado.

- Então era melhor escrever só Abafado. Os amigos que encomendam uma coroa em seu nome se quiserem.

- Pomos então: «Dos frequentadores habituais do Abafado em home- a um flamengo autêntico».

Isso é comprido de mais. Mas o professor disse: «Letrinhas pequenas».

- E porquê amarelo e preto, professor? Hubert não era só flamengo, era também belga? Então, merece levar as três cores.

- Sim, temos de juntar o vermelho, senão vão pensar que o Hubert era flamingante ( Nota 1 )

- Mas essas são as cores do Clube Atena, campeão do futebol feminina? - disse o professor Arsène timidamente. Depois grita: - Rapaziada! - como se estivesse a chamar os miúdos do recreio. - O tal minutinho.

Esperaram, com a cerveja numa mão e a outra no bolso das calças, num silêncio relativo, porque, no salão da Câmara, o coral «Amor e esperança» estava a ensaiar nesse momento uma canção lúgubre para o funeral do homem sem rosto.

 

( Nota 1 ) - Flamingantes: nacionalistas flamengos. (N. da T.)

 

FClaudine, a mulher do sapateiro Bierens, entra na loja, com uma nota de cem francos na mão. Alma fica perplexa. A conta dos Bierens ainda não está assim tão comprida.

- Alma, não sei como dizer, mas isto aqui é o que te estávamos a dever.

Alma pega na nota. Enquanto faz o troco, pergunta:

- Obrigada. E agora, o que levas?

- Para já, não precisamos de nada.

- Nada... - diz Alma, com um pressentimento.

- Só queria que me assinasses aqui este recibo.

Alma assina com a caneta Bic que está sempre em cima do balcão.

- Também te trouxe o sapato do Dolf. Ora vê como o conserto está bem feito. O Jules esmerou-se.

- Quanto te devo? - pergunta Alma com secura.

- Nada. Ele disse que não era nada. Já tens problemas que chegue. Assim ficamos quites e não temos mais nada a ver contigo nem com a tua família.

- Como quiseres.

O tom indiferente de Alma põe Claudine nervosa.

- Alma, no supermercado o conhaque sai muito mais barato. A grur bra francesa também.

- São outras marcas, de certeza.

- Não, Alma, são as mesmas. O Jules bebe sempre a mesma coisa.

Agarra no puxador da porta da loja e abre-a para trás. Por baixo dos tinidos da campainha, murmura qualquer coisa que Alma não entende e depois:

- Se tens problemas foste tu que os arranjaste.

- Põe-te a mexer, desaparece, Claudine!

- Não precisas de ser grosseira. Sim, de certa maneira, a culpa é tua. Sabes muito bem que não temos nada contra ti. Mas devias ter prestado mais atenção aoRené. Não deste educação nenhuma ao rapaz. Bem, eu sei que, nessa altura, não podias fazer muita coisa, andavas sempre doente.

- Rua!

- Ah, é assim que me agradeces.

Alma atira com o sapato de Dolf à cabeça de Claudine e apanha-lhe um lado da cara.

Claudine dá um grito:

- Deixa estar que não perdeis pela demora, tu e o teu filho leproso e fedorento! - diz esfregando a cara freneticamente.

Alma fecha a porta, não consegue conter mais o riso. Ainda tem a mesma força e a mesma pontaria dos seus tempos do voleibol. Há muito, muito tempo.

 

Como as pragas do Egipto. As pragas vieram do céu. Ou da terra. Vai-se lá saber.

- O calor bem podia ter vindo da terra, melhor dizendo, da lava.

- Se se pegasse numa broca ou numa sonda e se começasse a escavar aqui no Abafado, por baixo dos meus pés, atravessasse a crosta terrestre e a lava, onde é que se saía? Na minha opinião, e se os meus conhecimentos não me traírem, saía-se do outro lado, na Nova Zelândia.

- Diz-se que no Egipto há umas doenças muito esquisitas. Ninguém me apanha lá. Nem que me paguem.

- Para uma grande praga basta um bichinho tão pequeno que nem se vê.

- Do Congo.

- Não digas uma coisa dessas, Leon, são só suspeitas, não há provas de nada, são rumores. É melhor deixarmos essa história para quem de direito. É ou não é assim, senhor Blaute?

- Uma coisa dessas também pode aparecer sem nenhum motivo, surgir do nada.

- Vamos lá! Nada pode surgir do nada.

- O doutor Vermeulen é que vai ficar milionário. Nunca teve tanto trabalho na vida dele.

- E o laboratório continua a dizer que não é nada. Mas então como é que o cunhado do Versmissen, que é especialista, apanhou um susto dos diabos quando viu os papos, as nódoas negras com uma roda dourada na volta que, quando se carrega nelas, esguicham um líquido amarelado e viscoso, até parece esperma. Deve ser coisa séria, para um especialista se assustar.

- O cunhado do Versmissen? Não era ele que tinha um Morgan?

- Sim, desses carros que têm a carroçaria quase a arrastar pelo chão. Dá uma trabalheira arranjar peças sobressalentes para os danados.

- Era ele, mas já o vendeu. Agora tem um Jaguar.

- Pois é, já se sabe, especialistas...

- Há quem fale de um negócio de hormonas.

- Agora o que não faltam por aí são hormonas.

-Já usavam hormonas nos tempos da grã-duquesa Isabel de Portugal, e estamos a falar do princípio do século XVII. (Claro que foi uma saída do professor Arsène que, com a cara papuda, as lentes grossas, o corpo balofo, era o homem mais sabichão das redondezas e já se vê para que é que isso lhe serve. Um canalizador ganha três vezes mais do que ele.) (Depois, foi a vez do ex-comissário Blaute dar a sua opinião. Ele não costuma aparecer muito pelo Abafado, prefere ir ao Café Richelieu, que é mais chique e porque está lá o presidente do Clube de Coleccionadores Trulalá.)

- Pulgas congolesas - disse Blaute. - Saltam dos pretos para os cães dos brancos, normalmente labradores, e de lá saltam para os donos dos labradores e é assim que nos dão conta dos tomates. Porque as pulgas, pelo menos dessa espécie, já não me lembro do nome, pertencem à família dos pulices, que se agarram às partes duma pessoa. E então quando se usa calças apertadas e o recheio aumenta, a temperatura sobe e, como as pulgas congolesas se dão bem no quentinho, reproduzem-se como coelhos. E é um engano pensar que, ao esmagar uma, se fica livre delas, os ovinhos espalham-se e como as danadas ficam só um bocado combalidas voltam à fornicação.

- Pulgas combalidas ainda capazes de foder - disse alguém com um ar sonhador.

- Mais vale uma pulga a foder que o eu a doer - acudiu um espirituoso.

- Já vamos em quantas vítimas? - perguntou outro dos presentes, preocupado.

- Prefiro não contar. Quando me ponho a contar o dinheiro, fico sempre desanimado.

- E o Michel Blommaert, que esteve três dias seguidos a deitar espuma azul pela boca e vomitou litros de cuspe azul, eu próprio vi com estes olhos que a terra há-de comer.

- E a Ariane Verkest, que ardia de febre e tinha a cabeça i-m In h l,i de tanto coçar. Para o fim, até já arrancava os cabelos. A avó dela, uma criatura da velha guarda, disse-lhe para lavar a cabeça com cerveja da Flandres Ocidental, tão espumosa que na televisão até lhe chamam champanhe flamengo. A Ariane comprou uma grade de doze cervejas, às vezes difíceis de abrir, e esvaziou-as em cima da cabeça. A cerveja espumava e esparramava para todos os lados e a miúda ficou realmente melhor, mas, passados quatro dias, o efeito desapareceu.

- Vejam o Johan Debaere, uma pessoa que nunca foi de beber nem de fumar e só vivia para o tiro aos pombos, o seu desporto favorito. Deitou-se, adormeceu e não queria acordar mais. O Doutor Vermeulen disse para a mulher: «Deixe-o dormir. Só lhe faz bem». E nunca mais acordou. A mulher pergunta: «Mas, senhor doutor, porquê, porquê?». E vocês sabem o que o doutor Vermeulen, diplomado e tudo, respondeu? «Os Debaers nunca aguentaram o peso da vida». O que eu acho, no mínimo, falta de tacto, pois que, o ano passado, o pai do Johan, o Wilfried Debaere, foi encontrado debaixo das rodas dum comboio de mercadorias, ou melhor, aquilo que restava dele.

- E então a Filipinne Geirnaert? Que, quando estava a falar com a Frida do padeiro, não sabemos de quê, mas podemos imaginar, de homens, é claro, começou de repente a gaguejar. A Frida diz: «Então, Filipinne, o que é isso, não sabia que eras tatebitate. Falas assim só comigo, ou é com toda a gente?». Bem, vocês sabem, a Filipinne era das que fervia em água fria, sempre a pensar que tinha o mundo inteiro contra ela, e a Frida pensa: «Isso já passa, devem ser os nervos». Mas não passou, a coitada começa a terrincar os dentes, a bater com os pés no chão, a bufar. A Frida até pensou que era um ataque de epilepsia e, destrambelhada como estava, enfia-lhe pela goela abaixo um dos pastéis que estavam na montra. Quando toda a gente sabe que é a última coisa que se deve fazer num caso des tes. A Filipinne não consegue engolir e cai redonda no chão, batendo com a cabeça na arca frigorífica, mas ainda diz: «Frida, minha filha, chegou a minha hora». E tinha razão.

- Uma pessoa pode até rir-se com certas coisas, mas chega o momento em que pergunta: porquê, porquê, meu Deus?

- Parece que também se pode apanhar doenças esquisitas dos periquitos.

- Então aqui o nosso Frans tem de ter cuidado, com tanto periquito na gaiola. Não é, Frans?

Frans continuou com os olhos fixos no cartaz da Marilyn Monroe. As palavras que balbuciou dirigiam-se à deusa lânguida e leitosa: - Se alguém se atreve a pôr um dedo que seja nos meus pássaros...

- O que é que fazias, Frans?

- Olha que não estamos a falar do teu pássaro, Frans, mas dos teus pássaros. No plural.

- Eu... eu...

- Lovebirds, é como lhes chamam em inglês - explicou o Jules Piron. - Porque não podem ficar longe uns dos outros. Eu dou-te uma bicadinha no eu, tu dás-me uma bicadinha no pescoço e passamos o dia às bicadinhas. Antes eles do que eu.

- Agora que já não estou de serviço - disse o inspector reformado Blaute -, sou um homem livre e posso dizer o que tenho a dizer em voz alta. No meu tempo, as averiguações teriam corrido doutra maneira. Porque é que o processo não avança? Ordens do governador. A investigação tem de avançar piano, pianinho. No meu tempo, já havia pelo menos dois em prisão preventiva.

Os fregueses do Abafado emudeceram.

- A independência do juiz de instrução. Ah, ah, deixem-me rir. E as ordens das ordens vindas de lá de cima!

Frans Godderis parecia que estava a ler a legenda do cartaz da Marilyn Monroe quando disse:

- Tudo maçons.

- Nunca me ouviste dizer isso.

O inspector bebeu um golinho do seu Pernod, uma bebida que combina melhor com o Sol dos países do Sul.

- Mas parece-me coincidência a mais que toda a desgraça tenha começado no dia ou na altura em que o mais velho dos Catrijsses voltou para casa. Para bom entendedor...

Quando era inspector, Blaute perseguia constantemente o René Ca-trijsse, transformava impiedosamente as suas brincadeiras de rapaz em violação da lei, ia buscar René Catrijsse ao grupo de jovens que dançava freneticamente na discoteca Nova, esvaziava-lhe os bolsos e levava-o para a esquadra, onde o metia na cela por algazarra nocturna, perturbação da ordem pública, resistência à autoridade e, mais tarde, por posse de estupefacientes e de arma branca, com lâmina mais comprida do que era permitido por lei. Nesse tempo, Blaute era um autêntico cão de guarda, ao serviço da lei, como se os regulamentos e as prescrições fossem a sua única razão de existir, lhe dessem sentido à vida. E não é que vemos o seu lado intratável de antigamente vir outra vez à tona? A gordura excessiva de reformado a derreter? A sua antiga cara de carrasco a mostrar-se outra vez? Gerard, o dono do café, testemunha das nossas mínimas contrariedades, apercebe-se do fenómeno (e fica com receio, porque, se Blaute resolve voltar a tomar nas mãos as rédeas policiais, também é capaz de vir meter o nariz aqui e trazer cá algum dos amigos das finanças) e diz:

- Então, o senhor inspector devia participar o caso.

- Mas a quem?

- A quem de direito.

Blaute encolhe os ombros.

- Caros amigos, se vocês soubessem um milésimo daquilo que eu sei, falariam doutra maneira. Mas eu não posso.

E ele que acaba de dizer que é um homem livre... Ainda há muita coisa que nos vai deixar de boca aberta, podemos ter a certeza.

 

Nessa manhã estava frio. Alma tremia dentro do robe, mas não lhe apetecia ir ao quarto buscar uma camisola e acordar Dolf. Espirrou várias vezes seguidas. Abriu a janela e empurrou para os lados as portadas de madeira.

Viu, parado na curva, um carro verde-erva com um homem encostado, imóvel, à porta da frente.

Abriu para trás a porta da loja e reconheceu Frans Godderis, um freguês que gostava de se meter com ela de vez em quando. Cumprimentou-o com uma veniazinha e prendeu os taipais à parede. Ele não reagiu e continuou a chupar a beata que tinha ao canto da boca. Foi então que notou que a fachada estava toda riscada a alcatrão. Foi para o meio da rua, aconchegou melhor o robe e viu cinco suásticas pintadas de fresco, ligadas umas às outras pela tinta que escorria.

- Quem teria feito uma coisa destas?

- Quem pensas que foi? - perguntou Frans Godderis.

Ela olhou para a mão que tirou a beata da boca e a atirou na sua direcção. A mão não tinha vestígios de alcatrão. Fosse quem fosse que tivesse pintado as suásticas, fizera-o nervosamente, atabalhoadamente.

- Não vai ser nada fácil tirar isso da parede, Alma. Talvez com ácido...

- Mas que mal fiz eu?

- Tu não.

- Então quem?

- Não tens uma ideia?

- Vocês pagam-mas, vão ver - disse Alma com azedume.

- Força.

- E quando menos esperarem.

- Pela calada da noite, como ladrões? -Já ides ver.

- Eu tenho todo o tempo do mundo, Alma.

- Porque é que me fazes uma coisa destas?

- Tu sabes que tenho um fraco por ti.

- Porquê?

- És o meu tipo. Dizes o que tens a dizer. Sabes do que um homem gosta.

- Porque é que fizeram isto?

- Achas que a gente vai esquecer, Alma, que andaste com um Obergruppenfúhrer ( nota 1 ) flamengo?

- Sim.

Frans Godderis levantou a mão e disse olá às irmãs Tanghe, as herdeiras do especialista em usos e costumes da Grécia Antiga, que iam para a igreja de braço dado. Pararam.

- Mas, Alma, o que é isto aqui?

- Olhem-me para isto!

- Não vais conseguir tirar a tinta da parede.

- Mas porque é que se há-de voltar sempre às histórias da guerra?

- Alma, é melhor lavares a parede depressa. As pessoas, às tantas, vão pensar que nós aqui em Bousekerke estávamos do lado dos alemães.

- Sim, tira isso daí o mais depressa possível. Frans Godderis desencostou-se do carro.

- Porquê tanta pressa? Assim as pessoas podem ver que esta casa é a casa das pragas de...

Já não se lembrava donde vinham as pragas. Era um país do princípio da Ásia, talvez até fosse Israel, mas não tinha a certeza.

- Nós ouvimos falar disso, mas pensávamos que eram só rumores. Irma, anda. Senão chegamos tarde à missa.

Enquanto se afastavam, olharam para trás várias vezes.

- Alma - disse Godderis, abrindo a porta do carro onde estava pintada

 

( Nota 1 ) - Em alemão no original. (N. da T)

 

a inscrição Móveis Godderis em letras oblíquas prateadas, muito bem desenhadas -, não penses que tenho alguma coisa contra ti, sabes muito bem que te trago nas palminhas das mãos.

- Quem é contra o René é contra mim - disse, virando-lhe as costas. Dolf e René ainda estavam a dormir. Sentou-se à mesa da cozinha com

os cotovelos pousados na toalha de oleado com motivos escoceses.

- Os bichos de neve voltaram - disse. - Andam por aí outra vez... A nuvem grossa e acre do passado entrou-lhe pelas narinas, pelos ouvidos, pela boca sôfrega de ar, pelos olhos que ardiam mas não queriam chorar.

 

Noêl voltou da sua corrida diária de três quilómetros, conforme lhe tinha receitado o doutor Vermeulen, que costuma participar na meia-maratona de Antuérpia. Queria apagar as suásticas da fachada, mas a Alma disse-lhe que decidira deixá-las como estavam. A sua conversa acordou Dolf que, contra o habitual, desatou a praguejar como um possesso: - A Câmara é que vai pagar, ai vai vai! Suásticas, quem é que se foi lembrar de uma coisa destas? O Frans Godderis? Se o vejo por aí, arranco-lhe as orelhas! A guerra já acabou há mais de vinte anos, porra!

Durante toda a tarde, a gente da aldeia desfilou em frente da casa, rindo-se à socapa ou mostrando a sua inquietação. Mas ninguém entrou no estabelecimento. A não ser a nossa Diana, para nos dar os cumprimentos do reverendo Lamantijn. - O melhor é não levar o assunto muito a peito - era esta a mensagem do padre. E a Julia, que pegou na mão de Noél e o arrastou atrás de si até ao quintal, envolto nos odores da sentina.

- Vou estar uns dois ou três dias fora com o Serge. Fomos convidados para participar no Festival de Abercrombie.

Ele pensava que ela o ia confortar por causa das cruzes negras, mas, pelos vistos, estava tão excitada com o Festival que nem sequer tinha reparado na parede enxovalhada.

- Olha que Abercrombie é dos festivais mais famosos e mais chiques. Que queres que te traga de lá?

- Um cão.

- A sério!

- Dois cães.

- Noêl, não brinques, diz lá.

- Três cães para te guardarem, que te sigam para todo o lado, tanto lá Inglaterra como aqui na aldeia, e ataquem e mordam todas as pessoas que te quiserem fazer mal.

- Mas ninguém me quer fazer mal.

- Isso é o que tu julgas, porque és boa, não te apercebes disso. Eu sei que há, pelo menos, três homens que te querem desonrar.

- E um deles é o Serge.

- Sim, o Serge.

- És uma autêntica criança.

Faz-lhe cócegas. Ele ri-se, arrulha como uma rola até ter um ataque de tosse que faz Alma aparecer à porta da cozinha. -Julia, deixa o rapaz sossegado!

- Quando é que tu e o Serge partem?

- Quarta-feira.

- Quarta-feira. Faltam só quatro noites. Quarta-feira chega depressa.

- E domingo também chega depressa e já cá estarei outra vez.

Noêl acompanhou-a à porta e, no corredor, cruzaram-se com René, que trazia uma T-shirt e umas calças de caqui.

- Então, já não me conheces? - disse Julia ao ver que René ficou especado a olhar para ela, sem dizer nada.

- Ela vai cantar no estrangeiro - disse Noél. - E a parede da nossa casa está toda pintada de gatafunhos pretos. A mãe diz que são suásticas. Ela sabe porque trabalhou para o Hitler no tempo da guerra.

- Não para o Hitler, patetinha, na Alemanha. A tua mãe ajudou a tratar os soldados feridos. Ninguém lhe pode levar isso a mal. O teu irmão está de acordo, não está?

René parece um cão raivoso. Arreganha os dentes brancos do dentí-frico, brancos com um tom azulado como o diamante que me mostrou uma vez. a pele brilha de suor.

- Eu não gosto que chames patetinha ao meu irmão, ouviste?

- Não foi por mal.

- Que eu não ouça isso outra vez - resmoneou.

Tenho vontade de chorar porque as duas pessoas de quem mais gosto não se entendem.

Vamos ver juntos a fachada. Ela tagarelando entusiasmada, ele com os olhos baixos de lobo de alsácia. Apontam para as cruzes, abanam com a cabeça. René entra. Irá buscar a pistola?

Julia pega-me no cotovelo, faz-me uma festa na cabeça e começa a trautear uma cantiguinha dos Caracóis: «Pensa em mim, pensa em inim, sim...». Sobe para a bicicleta e afasta-se. É como se, ao desaparecer da minha vista, desaparecesse da minha vida.

Em casa, todos nós, o pai, a mãe, René e eu, fomos atacados por uma doença muito esquisita. Passamos a vida de olhos postos no chão, calados, como se tivéssemos perdido alguma coisa. René é o primeiro a ficar curado, e diz que vai telefonar.

- Ao teu amigo? - pergunta a mãe.

Ele baixa os olhos e aperta os lábios roxos.

- Gostas dele? - pergunta a mãe.

- Não da maneira que pensa.

- Como é que sabes o que eu penso? Vais, vens, não dizes nada, ou dizes qualquer coisa sem olhares sequer para nós. Até mesmo agora, agora que estás aqui à nossa frente, já estás longe. Lá vais tu outra vez e lá ficamos nós outra vez à tua espera. Mas isso pouco te importa, fazes de conta que não é nada contigo e desapareces quando te dá na real gana.

Tenho a impressão de que ela não está a falar com o René mas com outra pessoa qualquer, com alguém que não está nesta sala e talvez até já tenha morrido ou desaparecido há muito.

- Charlie, o teu amigo.., - diz Dolf. - Não é que eu queira acusá-lo injustamente, mas tem posto os lavradores das redondezas em alvoroço. Roubou-lhes umas dez galinhas ou mais e até comeu um pedaço de um cão de guarda. A polícia encontrou os restos do bicho. E o Claerhout contou-me que viu o Charlie a atirar aos gansos com uma espingarda. O que é que o tipo tem contra os animais? Esse teu compincha está a passar das marcas, até já entra em casa das pessoas a meio da noite. Uma vez deu-lhe para esvaziar o frigorífico do Claerhout, com a criatura a ressonar mesmo por cima da cabeça dele. Oxalá que não se lembre de entrar na criação <!<• martas do senhor Cantillon, porque aí comete o maior erro da vida dele Quem se atrever a tocar numa marta do senhor Cantillon não fica cá para contar.

Vejo René a pensar. Está sentado muito direito, sem tocar com as costas no espaldar da cadeira. E só eu sei porquê. Sei o que ele está a pensar.

René pensa: O que estou a fazer à minha família? Por que é que só provoco zangas e desentendimentos e só arranjo sarilhos e problemas e espalho a infelicidade por toda a parte? Terei recebido esta cruz de Deus quando nasci? Todos sofremos com o pecado original, a nossa primeira maldição, mas porquê eu (pensa René) mais do que os outros? É isto que ele deve pensar. Apesar de que... ninguém pensa no pecado original, ele já faz parte duma pessoa, está no sangue.

- Mas, afinal, o que é que eles têm contra ti? - pergunta o meu pai.

- Contra mim? - pergunta René. - Quem?

- Os tipos que enxovalharam a fachada da nossa casa.

- Não é contra mim.

Estaremos a ouvir bem? O René rosnou estas palavras sem erguer os olhos.

- Ah não? - diz Dolf, o meu pai, como se estivesse a brincar. - Então contra quem é?

- Alguém quer uma fatia do bolo de nozes? - pergunta a mamã, com a voz sonora e entusiasmada duma rapariga que está a jogar futebol e acaba de marcar um golo.

- Por que é que estás a olhar para mim, Noêl? Por que estás com essa carinha tão triste? - pergunta-me.

Não posso dizer-lhe, nem a ela nem a ninguém, mas não consigo deixar de pensar em Serge, o cabeleireiro falhado que gosta de imitar o Bob Dylan, com os sapatos bicudos e a camisa às riscas e a voz rouca e tremida, e que está agora com a Julia no estrangeiro e, num quarto abafado de hotel, espreita para dentro da passarinha arreganhada dela.

 

O reverendo Lamantijn tinha enfiado na manga um lencinho lavado e passado a ferro. Com as suas deambulações do altar para o púlpito e vice-versa, o lencinho tinha ficado encharcado de suor. Enxugou a testa, que continuou molhada.

- Meus queridos paroquianos - começou a sua prédica. - Depois desta cerimónia, iremos todos fraternalmente à quermesse, onde o reverendo deão nos espera para a inauguração e onde contamos com a presença do conjunto Os Caracóis. Face a outras circunstâncias, sobre as quais não me pronunciarei agora mas que continuam a devastar as nossas almas, serei, à luz dos últimos acontecimentos, muito breve. Estes acontecimentos, queridos paroquianos, são inexplicáveis à primeira vista, mas à segunda vista inexplicáveis apenas para quem não crê, porque, como exprimiu tão primorosamente Sua Eminência o Cardeal Patriarca, quando não se crê, perde-se muito, tanto no campo terreno como no campo divino. Se não houvesse fé, o próprio Jesus, por exemplo, só seria um indivíduo interessante sobre quem se escreveu umas coisas instrutivas e edificantes, mas não muito mais que isso. As Sagradas Escrituras seriam um livro interessante ou até mesmo empolgante, cheio de mistérios, mas não muito mais que isso. O que seria mesmo da Santa Missa? Apenas um ritual com lindas melodias, agradáveis ao ouvido, mas não muito mais que isso. E assim em diante. De facto, portanto, afinal, se, com base nos factos, quereis chegar à factualidade, ao fundo das coisas, ao Grund, como dizem os alemães, é claro como água, mesmo para os mais cépticos, que nada tem sentido se não for à luz da fé.

E era sobre isto que eu queria que reflectísseis nestes tempos de angústia e de inquietação, Podeis crer, meus amigos, que aquilo que agora não passa de uma amálgama de rumores, de suposições e de imponderáveis, será esclarecido e revelará o seu significado mais profundo e verdadeiro.

Abençoou as seis senhoras idosas, as classes da escola do professor Arsène e Noêl, o rapaz de olhos encovados, boquiaberto de admiração ou de êxtase.

 

René tinha passado o dia na cama. Vestiu-se e, sem um olhar ou uma palavra, passou à frente da mãe e dirigiu-se para a porta da rua, parando na soleira para respirar fundo. Como é possível ter tido saudades desta aldeia bafienta, apagada, parada e beata, das fachadas de tijolo em redor do cemitério, da torre truncada da fábrica de moagem e do cocoruto do campanário da igreja, cuja única iluminação vinha das montras com rádios e electrodomésticos, um amontoado monótono de obediência mimé-tica, de saturação quezilenta!

Atravessou a aldeia deserta com passadas largas. Alguém estava a ouvir a Canzonissima. No Abafado havia dois fregueses: o sapateiro Bierens e um homem com óculos de aros de tartaruga, a tamborilar no balcão ao compasso de uma música que só ele ouvia, e que não ergueu os olhos quando René entrou.

- Gerard - disse René.

- René. Homem, nunca pensei voltar a ver-te. Depois de tudo o que disseram de ti, acho-te com bom aspecto.

O homem dos óculos inspeccionou René.

- Se esse aí tem bom aspecto, eu sou o Marlon Brando.

- Senhor Mortelmans - disse Gerard -, acredite se quiser, mas eu acho que ele tem às vezes qualquer coisa do Marlon Brando. Que queres beber?

- Nada.

- Olha que me fazes uma afronta, vê lá.

- Deixa-me pagar-te um copo - disse o sapateiro. - René, não leves a mal essa história com a minha mulher. Porque, de certo modo, tens de compreender que, para governar a casa, uma mulher tem de pensar no porta-moedas e deves reconhecer que os preços no supermercado são muito mais baixos que lá no teu estabelecimento.

- Eu não tenho estabelecimento nenhum.

- No da tua mãe.

- Ouvi dizer que o inspector Blaute costuma vir cá.

- Ex, ex-inspector - corrige o homem de óculos. - Com reforma antecipada por motivos que ficarão bem enterrados debaixo de todas as lápides da Flandres Ocidental.

- O que é que queres dele? - perguntou o sapateiro.

- O seguinte: quando ele cá vier e puser um pé na soleira da porta, diga-lhe que eu estive aqui e que se ele levantar um dedo que seja...

René Catrijsse, apesar de estar na flor da idade e endurecido pela vida, parecia não se segurar nas pernas. Apoiou-se na jukebox e prosseguiu: - Quero que as cruzes negras que pintaram na nossa casa fiquem onde estão, para quem passar ver como esta parvónia está atrasada. Nem por cem mil francos eu deixo apagarem da parede esse estigma imbecil. E diga ao senhor Ex que se ele levantar nem que seja só ... Se se lembrar alguma vez...

Depois de dizer estas palavras ficou sem forças, totalmente exausto. Dos cantos da boca saía-lhe uma espuma azul-clara.

- Chega - murmurou, e encaminhou-se para a porta. Sentia uma sede horrível.

Reprimiu-se ao passar pelo Café Hoogentroost, onde ressoava nesse rnomento a voz de Adamo.

Afrouxou o passo, tinha as solas dos pés causticadas, em fogo. Pelagra? Não, disse o Cap, os sintomas são os mesmos mas não é isso.

Deu consigo à porta do Bar Tricky. Entrou.

Dois serventes da fábrica de cerveja, que estavam a descarregar barris, não lhe deram atenção.

- Ah, és tu - disse Camila. Fechou o livro que estava a ler, levantou-se com as dobradiças bem oleadas, os seios ainda firmes, a cintura bem apertada. Beijou-o no pescoço, na cara. Tal como noutros tempos, ecoava na sala a Madame Butterfly.

- Não espero ninguém hoje - disse Camila. - O senhor Cantillon está com a Nedjima e é capaz de demorar um bocado.

Pegou-lhe na mão e levou-o até ao escritório, um salão com uma mesa estilo Império com uma pilha de livros em cima, entre os quais dez edições encadernadas em couro de Bordéus com letras douradas na capa. René lembrava-se do Le Monde Animal com estampas coloridas na mão e de ela, uma vez, numa noite de Inverno, virar as páginas pausada mente e comentar: «Como o mundo é bonito! Tão bonito como tu». E ele, muito mais novo que agora, imitara o sotaque holandês dela: «Tão bonito como tu, pombinha».

Camila disse:

- Que diz a tua mãe? De te teres transformado de um dia para o outro no bombo de festa da aldeia e arredores, de ninguém comprar mais nada no vosso estabelecimento, de terem enxovalhado as paredes da vossa casa? E só Deus sabe o que mais virá: atirar tijolos contra as vidraças, deitar fogo à casa? Sabia que mais tarde ou mais cedo te lembrarias de mim.

Encheu-lhe um cálice de genebra. Enquanto bebia, René sentiu um braseiro nas costas, como se ela lhe encostasse à pele um isqueiro aceso.

- E sempre vieste cá parar - disse Camila.

- Mas não me perguntes como.

- Como?

Um quarto de hora mais tarde, ele contou-lhe tudo.

- Um amigo, o Charlie, acompanhou-me. Em comboios de mercadorias, em helicópteros, em caixas de camionetas, esmagados por porcos moribundos, em camiões com doentes que se esquartejavam a golpes de baioneta e catana. Quando os camiões chegavam ao hospital, não havia um inteiro. Em cada barreira, paragem, estação de comboio, podiam deitar-nos a mão.

Pedir a repatriação? O cônsul não quis receber-nos no consulado. No bar Sans-Souci, em Ngwabi, isso sim. «Aconselho-vos a passarem a frontcini quanto antes», disse-nos. «Se ficardes, não posso continuar a responsabilizar-me pela vossa segurança». Monsenhor Ballard, o vigário apostólico, que também estava lá, vestido com calças e blusão de ganga, disse-nos que não podíamos voar nos aviões da Sabena. Quando contei isto ao Charlie, ele ficou vermelho de raiva. Foi buscar o Wijnants, um rapaz de Lissewege que gostava de tirar fotografias a elefantes e preferia armadilhar a desarmadilhar minas. Antes de embarcarmos no avião da AirFrance, o Wijnants passou pela casa do cônsul, foi pelas traseiras e disse à criada que tinha uma encomemda para o patrão, e antes que o Wijnants tivesse tempo de apertar o cinto de segurança, a casa voou pelos ares. Com criada e tudo

- Foste tu que mandaste o Wijnants fazer isso?

- Não, foi o Charlie, numa altura em que estava totalmente drogado. A filhinha do cônsul também foi para os anjinhos, chamava-se Marie-Ange, segundo escreveram no jornal Le Soir. É claro que nós éramos os suspeitos principais, mas nessa altura já estávamos bem seguros no Quénia, onde o Wijnants foi longe de mais na sua mania de fotografar elefantes.

- Não queres deitar-te um pouco?

- Não.

- Continua.

- Quénia. Zanzibar. Regressámos ao Congo, sem papéis. Hendriks morto. Morelon morto. Safaram-se só dois: Charlie, por causa do speed, e eu, por causa do mau carácter.

- Tu, tu safaste-te porque és protegido dos deuses

O senhor Cantillon vinha a descer as escadas. Camila foi ao seu encontro, mas ele empurrou-a para o lado para ver René melhor

- Pareces um cadáver, Catrijsse.

- Ainda não.

Com uma mão, Camila carregou para dentro a barriga inchada do senhor Cantillon, espremida num colete aos quadrados e, com a outra, apertou-lhe a braguilha aberta. Cantillon entregou-lhe um cheque e ela meteu-o numa gaveta da mesinha Império.

Pairava um aroma a aftershave e a algo de bestial em redor do vulto rechonchudo do criador de martas, que disse:

- Catrijsse, encontraram um carro roubado em Calais. O carro em que tu e o teu amigo vieram para Bousekerke. O senhor Blaute, que é especialista no assunto, não tem dúvidas de que vocês o usaram. Encontraram indícios. Mas o que tu nunca devias ter feito era roubar ao Paul Reusens os galos de luta e comê-los. O homem está de cabeça perdida. Um deles, o Roberto, acho eu, era campeão de Tourcoing. Uma falta de gosto imperdoável. Mas continuamos bons amigos, não é verdade? Se trouxeste da nossa ex-colónia qualquer coisa que me interesse e pensas: isto vinha mesmo a calhar para o Herbert Cantillon, podia ceder isto por um preço de amigo ao Herbert Cantillon, sabes do que estou a falar, não sabes?, podíamos discutir o assunto.

- Pedras. Pedras brancas com um reflexo azulado.

- Assim é que a gente se entende. Não é preciso dizer mais nada Pedras, chega. Vou telefonar ao meu primo Lucien, de Antuérpia, para ele vir cá com a lupazinha dele e é só fechar o negócio. Right?

- Right.

- Os rumores que correm para aí a teu respeito, Catrijsse, não me aquecem os tomates que, aliás, já estão bem quentes depois do tratamento da Nedjima - disse fazendo uma vénia com a cabeça a Camila, que lhe retorquiu que muito se alegrava com isso.

- A rapariga tem muito talento - aduziu o senhor Cantillon. - Mas é claro que não chega aos calcanhares do que a Camila tem para oferecer. E, para meu desgosto, és tu agora o privilegiado, Catrijsse. Como é que estamos de armas? Tenho de enriquecer a minha colecção pessoal.

- Uma Glock35, uma Smith & Wesson 374Magnum, uma Colt38 snubnose.

- E bazucas?

- Não. Desta vez não trouxe.

- Deixe-o que ele está cansado - cortou Camila. -Já percebi - disse o senhor Cantillon.

. Não havia, de facto, mais fregueses no bar Tricky. Só quando apareceram no céu as primeiras estrelas, só quando René foi ao jardim mijar, quando as letras de néon se apagaram, quando Nedjima, enfiada num robe cor de limão, folheava, sentada no chão de joelhos afastados, o Le Monde Animal, fascinada pelas ilustrações de traços finíssimos de aranhas e escorpiões, quando Camila estava com a cabeça deitada no regaço de René e a Maáame Butterfly chegou ao fim, só então René prosseguiu:

- Rendemo-nos uns aos outros, o Charlie, o Zarolho e eu, quando fugíamos de jipe com os filhos da puta a perseguir-nos. Os irregulares tiveram que se pôr a andar porque as acções da fábrica de chocolate Jacques já não valiam nada. Constava que tudo voltaria ao normal, portanto, todos os grupos que operavam autonomamente tinham de ser desmantelados, porque eram mantidos sobretudo graças ao dinheiro dos russos. Johnson e De Gaulle decidiram fazer uma limpeza. Os simbas foram os primeiros a abichar-se. Berraram que se fartaram por causa do cânhamo indiano.

No jipe, íamo-nos rendendo uns aos outros. Não víamos um palmo à frente do nariz com a camada de gordura colada ao pára-brisas. No fundo talvez até fosse melhor a gente não ver os estragos. Atravessámos nuvens de poeira da altura de casas. Parecemos camelos, disse o Charlie. Os camelos, que vêem não só através das pestanas grossas mas até das pálpebras fechadas de pele quase transparente.

- Zarolho - disse Charlie -, não são as balas dum-dum que hão-de dar cabo de mim, mas a ingratidão, a ingratidão humana.

- E porque me dizes isso a mim? - perguntou o Zarolho.

- A quem é que havia de dizer?

- E eu sou ingrato, por acaso? Di-lo na minha cara, vá.

- Sim, és um cachorro ingrato.

Eu não podia fazer nada por causa das minhas costas. Enquanto o jipe oscilava dum lado para o outro e avançava aos solavancos, os dois engalfinharam-se e só se soltaram quando o Charlie conseguiu atirar o Zarolho pela porta fora. Ficou estendido na areia com uma chave de fendas espetada num olho. O Charlie traz sempre consigo uma colecção de chaves de fendas de vários tamanhos.

Nedjima tinha adormecido com o Le Monde Animal pousado no regaço.

- E depois?

- O Cap era unha com carne com o Ferdi Machoune, que era secretário da Réunion des Peuples e também um dos manda-chuvas da Union Mé-tallique, embora se mantivesse sempre à sombra do presidente. Tendo farejado perigo no ar, deviam andar a tramar uma reviravolta qualquer, uma insurreição, uma revolução palaciana ou uma mudança de governo, Ferdi Machoune resolveu não esperar até o chão o aquecer debaixo dos pés e pediu ao Cap: «Vem comigo, atravessamos o rio e pedimos asilo ao padre Emile Mkonde». E lá atravessámos nós o rio. Depois de nos ter levado para a mansão dele, o padre Emile disse: «Enquanto governar esta terra, tanto vocês como a vossa família e os vossos conselheiros podem contar com a minha protecção». Ferdi instalou-se lá com as mulheres, os filhos, as avós e os criados. Passávamos a vida deitados à beira da piscina, a jogar cartas. Tínhamos mulheres à farta, ou melhor, miúdas. Conversávamos com os pretos, alguns tinham estudado em Lovaina, até que um dia o Cap disse: «Esta vida airada vai acabar». O Cap tinha nariz para essas coisas. E, fosse porque Ferdi Machoune tinha saudades da sua região e da sua tribo, fosse porque se aborrecia por não jogar cartas nem petanca e estava farto de aturar as queixas das quatro mulheres, que também se aborreciam, ou fosse porque sentia que estava a perder influência sobre os seguidores ou porque o poder lhe escapava, pois já não recebia informações da outra margem do rio e sem informações lá se vai a influência, para ser breve...

- Temos todo o tempo do mundo - disse Camila. Da sua posição desconfortável, encheu dois cálices de conhaque e acendeu um cigarro de mentol. Depois deu um beijo no sexo de René que se erguia lentamente e encostou nele a sua cara fresca.

- E depois? - perguntou.

- Dois busardos descem e caem em cima da cabeça dum porco selvagem. O porco guincha, cambaleia, escorrega e cai na fossa pestilenta onde assomam cotos de mãos e de pés, já não se distingue a diferença.

- Não, fala dos tempos que passaste na casa do padre, dos tempos em que vocês viviam como Deus em África.

Ele ia para se levantar, mas ela não deixou.

- Que é, meu coraçãozinho?

René disse que tinha de ir mijar. Ela esticou-se toda, qual acrobata lasciva, e conseguiu chegar com a mão ao balde do champanhe. Nedjima acordou com o barulho das pingas a caírem dentro do balde e desatou a rir, aprovando com a cabeça: - Três bien, mon grand. - Fechou o livro dos insectos e, enquanto se afastava, acenou-lhes com os dedinhos a tocar num piano imaginário.

René olhou pensativo para as calças descidas até aos tornozelos. Apertou os olhos.

- Depois, chegou-nos aos ouvidos que o Ferdi Machoune tinha contactado vários embaixadores para saber o que o presidente pensava da sua...

- Deserção - completou Camila.

- Da deserção, da insurreição e dos mortos, centenas a boiar no rio. E, passado pouco tempo, ouvimos o presidente dizer na televisão: - Ferdinaru I Machoune não tem nada a recear. Absolutamente nada. Ferdinand e eu somos irmãos, somos da mesma tribo. Como presidente da nossa poderosa nação, digo: Ferdinand, volta, que te abraçaremos como a um irmão. Não tenhas medo porque a palavra de um irmão de tribo é sagrada.

O Cap disse: - Ferdi, tem cuidado. Olha que ele é manhoso. Se não fosse, não tinha chegado a presidente.

- Violar a lei da fraternidade seria o maior crime contra a humanidade - disse o padre Emile Makonde.

A partir daí, Ferdi nunca mais conseguiu pregar olho. Resolveu consultar uma feiticeira da sua tribo, uma velha de fato de saia e casaco, que lhe disse: - Tens de voltar a ver a tua mãe, que é estimada pelos deuses.

Ferdi e os seus guarda-costas, as mulheres sempre engalfinhadas umas nas outras, duas freiras negras, cinco europeus, entre os quais Charlie, todos no ferry-boat. Pelo rio abaixo. Ferdi aparentemente calmo. Quando vi o passadiço, compreendi logo o que ia acontecer e o Charlie também. Nem foi preciso olhar para ele. Desatámos a correr para a parte de trás do tombadilho e deitámo-nos de bruços. Meio minuto depois começou a festa. Rajadas de metralhadora vindas de três direcções. As freiras, duas das mulheres do Ferdi, dois guarda-costas, todos mortos. Nós, Charlie e eu, nem um arranhão. Os soldados do presidente levaram-nos para a escola das freiras e pediram três mil dólares por cabeça. O Cap tratou do assunto. Levaram o Ferdi para o recreio da escola que ainda gritou: «Viva os bons cidadãos que me apoiaram na luta pela autodeterminação! Não me vingueis, bons cidadãos, os anjos vão levar-me para as nuvens em cima das suas asas». O primeiro golpe de catana acertou-lhe no pescoço, mas, como tinha os nervos duros - Ferdi era um fanático da musculação - foram precisos três, quatro, cinco golpes. Todas as rãs do charco atrás da escola começaram a coaxar.

René bebe de olhos fechados. Entretanto, o seu sexo encolhera. Camila acaricia-lhe a anca, a virilha.

- Os indígenas emudeceram, não dormiam, esperavam. Só ao fim de três dias de luto pelo Ferdi Machoune, quando viram que nenhum deus se tinha manifestado, é que aclamaram o seu monstruoso e omnipresente governante e reconheceram que era todo-poderoso. Porque ele era superior a um ser humano sujeito às leis da fraternidade, porque tinha desafiado o deus da chuva, o deus da tartaruga, o deus do céu, tinha-lhes cuspido na cara, tinha-os provocado e os deuses não apareceram. Temiam este presidente que não era um ser humano.

- Devíamos ter protegido melhor o Ferdi. Foi um lapso dos diabos. Nessa altura comecei a pensar no meu fim. Passei os três dias de luto e os dias seguintes a beber, fechado no hotel Albion, até andar de gatas pela passadeira. Não deixava entrar ninguém no meu quarto e, se alguém tentava, eu crivava a porta de balas. Foi quando o Cap resolveu intervir . – René, chega ou não chega? Se não chega, não contes mais comigo. Chega? Mas ainda não chegava, ainda estava muito longe do fim. Só estava no princípio. Enchi-me até perder a consciência.

René levanta-se, puxa as calças para cima, mete as fraldas da camisa por dentro e faz uma vénia. É uma espécie de despedida. Camila julga queele vai tombar para a frente e segura-lhe no braço. Talvez por se sentir preso, René solta-se e dá uma pancada no estômago da mulher com o nó saliente do dedo médio. Com um vómito, ela estatela-se em cima do balde de champanhe que tomba no chão.

- Um lapso - diz René, ajudando-a a levantar-se do chão. Ela enfia na boca um cigarro de mentol e apanha um tomo do Le Monde Animal encadernado em couro vermelho. Está todo molhado de urina. Enxuga-o com a ponta do vestido.

- E depois? - pergunta Camila, mas não recebe resposta. Observa René afastando-se pelo carreiro de saibro, cabisbaixo (um homem marcado, pensa).

Volta a tocar o disco com excertos da Madame Butterfly.

 

De quinze em quinze dias, depois do jantar, um grupo de eleitos reúne-se na casa do pároco. Nesses dias, a nossa Diana anda num sininho, mas com os nervos à flor da pele. Mesmo sabendo que os cavalheiros lhe perdoariam um lapso eventual, afinal são eminentes cristãos, treme de nervosismo.

Até a grosseirona da mulher de Beyers, o açougueiro, nota logo, quando vê a Diana entrar no seu estabelecimento, que é dia de visitas: - Diana, é hoje, é? Vais ter lá em casa essa gente fina outra vez?

Na realidade, uma pessoa devia pôr gente como ela no seu lugar, mas uma pessoa é demasiado educada para fazer uma coisa dessas. Também podia mudar de talho, mas o reverendo Lamantijn acha que o presunto de Baiona que lá vendem é o que combina melhor com vinho de Borgonha. E ele já provou muitos presuntos. Até o de Parma. Uma vez o Beyers fez uns comentários sobre os sefões do reverendo. A nossa Diana já não se lembra exactamente de quando foi, mas ele disse qualquer coisa como: o vinho que corre a jorros lá em casa do pároco custou a vida a muitos seres humanos. Ou teria dito que era pecado beber vinho quando no Terceiro Mundo havia tantos seres humanos a morrer à fome? Do que a nossa Diana se lembra muito bem é da sua resposta: - Senhor Beyers, uns homens que eu cá sei gastam muito mais dinheiro com mulheres perdidas, com carros, com velharias antigas e com idas a certos bares.

Será impressão da nossa Diana ou a reunião de hoje à noite (o farmacêutico Goeminne, o doutor Vermeulen, o notário Albrecht, o senhor Can-tillon e o melhor amigo do reverendo, o reverendo Diels) é mais calma, menos exuberante do que o costume? Mas isso não a aflige. Era de admirar que os cavalheiros, zeladores da saúde das almas e dos interesses do povo de Bousekerke, estivessem preocupados com essas mortes esquisitas que tem havido?

Já é quase dia quando ouve no corredor as vozes baixas e os risos abafados dos cavalheiros. Salta da cama, corre para a janela e ainda os vê a despedir-se. Trocam palmadinhas nas costas, enquanto o fumo de charutos se mistura com a neblina matinal.

Apaziguada, a nossa Diana vê o reverendo Diels afastar-se de bicicleta em direcção a Oudenarde. Depois, ouve os passinhos elegantes e familiares a dirigir-se para casa, a subir os degraus de cantaria. A chave gira na fechadura. Ela precipita-se pelas escadas abaixo. De robe. Passa-se qualquer coisa com o meu amo e senhor, tenho as tripas num nó por causa dele, o meu amo e senhor tem de repousar nas minhas mãos em paz e segurança, mesmo que esteja a cair de sono.

Encontra-o sentado na Chesterfield, de pernas afastadas, uma manta sobre o regaço e os calções pretos de jogar futebol. Na boca, a chupeta, o charuto apagado.

- Os cavalheiros divertiram-se?

- Assim o espero.

- E o reverendo?

- Ah, Diana - diz e Diana sente enorme felicidade por o seu amo e senhor a tratar pelo seu primeiro nome.

- Que acharam os cavalheiros do Domaine de la Gautière?

- Interessante.

- Só?

- O notário disse que lhe faltava corpo.

- É claro, os vinhedos do Domaine de Ia Gautière estão voltados para Norte!

- Mais baixo!

- Por isso é que ele é tão vigoroso. Não me diga, senhor padre, que ele o preferia mais velho. Eu, pessoalmente, acho que o sabor só fica a ganhar como está.

- Na sua opinião, paguei de mais por ele.

- Nem um franco a mais. Este ano só houve meia colheita.

- O Diels achou o Domaine de la Citadelle...

-Eu acho que o Diels tem conversa de mais para um vigário. O que é que ele disse?

- Que era forte de mais.

A nossa Diana funga com desprezo.

- Treze vírgula seis por cento de graduação. Problema dele, se não aguenta. E o Riesling deBeyerS

- Suave mas nada de extraordinário.

- Também há sempre qualquer coisa a apontar - diz a nossa Diana. Bebe um golinho do Hermitage de Chave, saboreia e dá um salto. A manta tinha escorregado das pernas do seu amo e senhor. Repara nas manchas que ele tem nas pernas, nos calcanhares, nos pés. Não grita, não geme.

- Também o senhor padre - diz meiga.

Pouco depois, ajoelha-se diante do seu senhor maculado, enfia-lhe os pés dentro de uma bacia de esmalte e passa-lhe um paninho fumegante pelas pernas atacadas pela doença. Tal e qual Maria Madalena, pensa.

Depois das várias injecções que lhe deu o doutor Vermeulen, o padre ficou com a impressão de que as manchas estavam a desaparecer.

O reverendo Lamantijn agradeceu a Deus, rezou, pôs a sua contabilidade em dia, absteve-se de beber vinhos franceses e passou a beber água da torneira. Uma bela noite, levantou-se e foi para o jardim admirar a Via Láctea. Como muitas outras vezes, ficou consciente da pequenez da humanidade, consciente e um nadinha receoso. Tinha passado o serão com uma sensação de desconforto, algo de funesto se anunciava, havia alguém no seu jardinzinho das traseiras, na rua ou nas redondezas que o ameaçava com qualquer coisa do passado. Foi então que viu uma sombra mover-se e desaparecer por trás do seu carro, parado em frente à garagem. Nada de pânico. O reverendo pôs as mãos atrás das costas e resolveu continuar a observar o firmamento inóspito. Depois, encaminhou-se com altivez para a porta da cozinha. Uma vez lá dentro, levou as duas mãos ao peito e sentiu o coração a galopar. Telefonar à polícia? Acordar a Diana? Quantas vezes o asqueroso do Blaute lhe dissera para ter em casa uma pistola, nem que fosse só de gás para fazer chorar (ou era para fazer rir?). Calma. O reverendo ligou o gira-discos e pôs no prato um disco do Ludwig von, a sua paixão secreta. Depois pensou: «É a minha casa, o meu jardim, o meu carro» e saiu para o jardim, quase bem disposto, em bicos de pés, encoberto pela sombra. Viu um homem magro inclinado sobre o automóvel a mexer na porta, a raspar na chapa.

- Bom dia, ou melhor, boa noite - disse o padre.

O homem tinha algo de militar, com os seus ombros quadrados e o cabelo grisalho cortado à escovinha. Endireitou-se, ficou de pé, com as pernas afastadas, enfiou qualquer coisa no bolso das calças e avançou <> pé direito, mostrando uma bota suja de lama amarelada. A cara não era anlipn tica de todo, mas tinha um aspecto brutal talvez por causa das sobrancelhas farfalhudas pegadas, formando uma espécie de escova.

- Dantes eu era um dos melhores - disse o homem com sotaque da Antuérpia. - Arrombava cem carros num abrir e fechar de olhos. Mas os dedos gastam-se com o tempo. Como todas as coisas, não é verdade?

- O que pensava fazer com o meu carro?

- Ia pedir-lho emprestado. Juro. Depois trago-lho, sem uma amolga-dela.

- Vejo que é de Antuérpia.

- De Borgerhout.

Devia fazer qualquer coisa, pensou o padre, assumir uma atitude viril, radical contra esse pecado de terceira categoria.

- Vou voltar para Borgerhout - disse o homem como se estivesse num café, encostado ao balcão. - Para junto da minha namorada. Chama -se Anabela.

Anabela. Nome de vaca ou de rapariga estúpida. Estúpida mas bela.

O padre pigarreia, sente que deve dizer algo apaziguador, que os impeça de qualquer gesto fatídico, de provocar um banho de sangue. Mas eu não passo de uma lebre apanhada pelo foco da pilha eléctrica do caçador furtivo.

- Bem, acho que chegou o momento de desaparecer - diz o homem. -Já estou farto disto aqui. Não é um sítio onde se fique muito tempo. Está mais que provado. Vou despedir-me da minha Anabela e do meu camarada.

- O Catrijsse?

- O René Catrijsse, sim. Mas ele fica por cá. Voltou para morrer aqui.

O homem foi enfermeiro, muita experiência e muito tédio nessa cara de boca frouxa.

- É a quinta em dó maior? O minuete? - pergunta o enfermeiro.

- Sim. Tirado do quator em dó maior de Mozart. Os quatro instrumentos começam em simultâneo, o que é raro nas primeiras composições de Beethoven.

Quando afinal o que eu devia fazer era dar-lhe a absolvição, rezar as últimas orações antes do caixão sair da igreja. Porque também ele veio para morrer.

Escutam o último movimento, o allegro, e os roncos da nossa Diana.

Então o homem diz:

- Não tenho manchas. Pode examinar-me da cabeça aos pés. Explique-me então, você que estuda o destino das pessoas, porque é que o René Catrijsse tem manchas e eu não. E eu pequei mais do que ele, muito mais. Porque é que a graça do Senhor o abandonou e desce sobre os outros, o pai, o irmão, os eleitos?

- E a mãe.

- A mãe não - diz o homem com secura.

- Não? - pergunta o padre, sentindo descer sobre si não a graça mas uma angústia indizível. Pousa as mãos sobre o coração em sobressalto.

- Então o culpado é o René? - consegue ainda articular.

- E quem não é? Uns mais do que outros, mas que diferença faz? Vamos!

- Para onde? (Para o matadouro).

- As chaves do carro.

- Estão na cozinha - diz o padre, antecipando-se ao outro. - Cuidado para não tropeçar nas lajes, estão soltas.

Na cozinha, Charlie enfia no bolso do blusão uma garrafa de Mont Redon e recebe as chaves da mão trémula.

- Você, você não vale nada - diz caminhando devagar em direcção ao carro. O reverendo Lamantijn fica à entrada da porta. - Pode ir buscar o carro depois de amanhã ao parque de estacionamento da estação de Deurne. Verdade, verdadinha!

Scherzo.

No dia seguinte, o reverendo Lamantijn entra no estabelecimento com a fachada coberta de suásticas.

- Alma, tu vais tirar aquela porcaria, não vais? Não fica bem

- Nunca.

- É uma provocação. Saíste-me mais teimosa do que eu pensava, pior que uma burra.

Ela enche-lhe um cálice de metserke, uma genebra fraca que os pedreiros podem beber à vontade nos invernos rigorosos, sem cair dos andaimes.

- O René? Não tenho mão nele - diz a Alma. - Nunca tive. E no estado em que ele está agora...

- Nenhum estado pode justificar um estado muito pior.

Alma mete na boca um cigarro Groene St. Michel de tabaco ama «que mantém as gengivas acordadas» - um slogan publicitário que o professor Arsène mandou para o concurso da Tribuna de Waregem.

- Alma, tenho de falar com o René.

- Ele está no bosque.

- Na companhia desse criminoso do Charlie.

- O ar puro faz-lhe bem. No tempo que ainda lhe resta. Dolf entra com um molho de alhos porros.

- São do nosso quintal, senhor padre, sem gota de sulfato. A nossa Diana vai ficar toda contente.

- Obrigado, Dolf.

- Vou lavá-los para tirar a terra.

- Alma, acho que não medes o alcance dos actos do René.

Diante da cara insensível e fechada dela, ele não encontra mais palavras.

Quando Dolf volta da cozinha com os alhos porros, o padre já vai a atravessar a rua.

 

O reverendo Lamantijn estava no púlpito dos fins do século xviii, diante dos seus fiéis paroquianos - umas vinte cadeiras vazias e, ao fundo, um grupinho de escuteiros, oito rapazes cabeludos e malcriados. Via-se o bafo a sair da boca do padre.

Eram estas as suas palavras: «Meus queridos fiéis, um rapaz do campo seguia pela estrada que levava à granja dos seus pais. Há dois anos que não via nem o pai nem a mãe, porque tinha passado esse tempo na prisão por homicídio involuntário. A seu lado, seguia um homem invisível, ou talvez não fosse um homem, mas uma dessas forças impenetráveis a que se chamava antigamente anjo ou diabo. Essa força segredou ao rapaz: - Valha-me Deus, que vais tu fazer à casa do teu pai? És um bandido, não há lá lugar para ti. Fazias um grande favor a todos se te enforcasses naquela pereira ali. - Se é esse o teu desejo, eu obedeço - disse o rapaz, lançando uma corda por cima dum ramo e esquecendo-se de que o suicídio é um dos piores pecados que atormentam o ser humano, porque se atira à face de Deus a dádiva que Dele se recebeu, a prenda mais bela de todas, a dádiva da vida. Como por milagre, o rapaz pensou na sua mãe. Viu-a diante de si e ela pareceu-lhe tão triste que soltou a corda e desatou a correr para casa. No fim, já corria tão depressa que, ao entrar no pátio, tropeçou e caiu em cima da estrumeira. A mãe, lavradeira, que ia buscar água ao poço com a cântara debaixo do braço, viu o filho. E o filho viu-a e apanhou um susto porque ela, nesses dois anos de tribulações, tinha ficado com o cabelo todo branco. O rapaz soltou um grito dilacerante: - Mãezinha, o que lhe fiz eu na leviandade da minha juventude?

- Não digas isso - balbuciou a mãe, pondo os braços cansados em redor do pescoço do filho. Tudo está esquecido e perdoado. – Oh, meu filhinho, estou tão feliz por teres reencontrado o caminho da nossa casa, porque o teu pai faleceu, entretanto. Está lá em cima a olhar para nós, tenho a certeza de que o seu desejo é que tomes sobre os ombros a administração dos nossos bens. Ficas aqui, não precisas de voltar a meter-te por esse mundo cheio de perigos, podes cuidar das nossas terras e viver feliz na nossa aldeia.

Esta parábola pastoral, queridos fiéis, pertence a uma época que infelizmente está já muito longe de nós e jamais voltará.

E vós aí atrás, os escuteiros, toca a tirar a pastilha elástica da boca! Porque a parábola que eu vos vou contar agora é própria destes tempos modernos. Escutai. Um rapaz do campo voltou para a granja dos seus pais depois de ter passado dois anos na cadeia. Nenhuma força sobrenatural, boa ou má, o acompanhava. Entrou na granja, viu a mãe e disse: - Mãe, eu apanhei uma doença de que não posso falar na sua presença e que é fatal. Mas sinto-me tão feliz que quero abraçá-la mesmo assim. Venha aos meus braços e tu também, irmazinha, e você, avó, também e tu também, meu cão fiel que ladras aos forasteiros, e tu, rebento mais novo da nossa família, tu, meu sobrinho tão inocente nesse teu bercinho. - Esse inocenti-nho, queridos fiéis, recebe no seu rosto puro o ar infectado que sai dos pulmões do rapaz. Em dois dias, a granja enche-se de mortos e de gemidos de moribundos. E a mãe, o que há-de fazer? Deixar que o monstro continue a expelir o seu hálito maligno sobre os seus semelhantes e semear a destruição por todo o país, por todo o mundo, por todo o planeta? Ou será melhor, com discrição, com toda a higiene e o mais drasticamente possível, debelar a fonte dessa infelicidade, extirpar o mal pela raiz? Eu prossigo. Não será a mãe, que, de certo modo, trouxe ao mundo a infelicidade na pessoa do seu filho, por ter sido obrigada a tomar uma decisão que o lançará nas trevas eternas?

A pergunta é, portanto: devemos seguir aquilo que nos diz São Paulo na sua Epístola aos Romanos, XII, 21: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem»? ou dar um fim radical, impiedoso, eventualmente cruel, ao culpado de tudo?

Estas palavras causaram grande burburinho entre os escuteiros. Os outros fiéis presentes na igreja viram-se para trás, curiosos. O seu chefe, com a cara coberta de espinhas, pede licença para fazer um comentario.

- Diz lá - responde o reverendo Lamantijn, agarrando-se com força à balaustrada do púlpito, com os nós das mãos mais brancos que cera.

O chefe disse:

- Nós, jovens com os olhos postos no futuro, achamos que esse homem tem de ser condenado à morte, mas não sem antes confessar a origem dessa doença imunda. Não é preciso que tenha origem no Terceiro Mundo.

- Deixo isso à vossa alma e à vossa consciência - disse o padre.

Ou porque se sentiu mal ou porque queria descer do púlpito para se dirigir mais democraticamente aos seus ouvintes e discutir lá em baixo com eles sobre a predestinação e o livre arbítrio, ou foi um ataque de gota, fosse o que fosse, o reverendo Lamantijn tropeçou, escorregou pelos degraus dos fins do século xviii, encerados fanaticamente pela nossa Diana, estatelou-se numa lápide de cantaria e não se levantou mais.

 

Só nos faltava mais esta! - exclamou o notário Albrecht, e nós concordámos.

Estávamos no Café Riviera quando os escuteiros, em sobressalto, nos contaram o que se tinha passado na igreja. Deram-lhes umas cervejas para acalmar. O seu chefe disse que tinha sido pena porque o reverendo estava crestes a ter com ele uma conversa séria de homem para homem sobre a actualidade da Igreja.

Quando a ambulância, com o morto lá dentro, disparou pelas ruas da aldeia com a sirene a ganir a toda a altura, várias mulheres acorreram ao Café Riviera. Por aquilo que conseguimos apanhar no meio da sua tagarelice, o padre encontrava-se de perfeita saúde antes do incidente. É preciso dizer que ele era um mestre da palavra, o nosso reverendo. Era capaz de, a partir do nada, construir uma fábula ou uma parábola, com a maior facilidade do mundo.

- Está bem, abelha - disse Hedwige, a mulher de Rombouts. - Com essas comparações e insinuações, como a parábola do Filho Pródigo, conseguiu dizer o que queria.

Não, não se pode dizer que a Hedwige mereça a nossa simpatia. As duas filhas, Julia e Alice, ainda vá que não vá, mas a mãe... Não aceita que os anos passem por ela, é esse o problema. Por mais que esfregue a cara com pós e cremes, não consegue tapar a velhice e, sobretudo, o mau génio, que lhe fazem estalar a máscara: fica toda rachada como o leito dum rio seco. Não, não gostava nada de dar comigo por baixo da Hedwige Rombouts.

Enquanto jogamos aos dardos, ouvimo-la tagarelar com o chefe espinhento dos escuteiros.

Como é possível haver tanta maldade na mesma pessoa, é esse o tema da conversa.

- É esquisito - diz ela - que alguém que nunca fez mal a uma mosca tenha tanta infelicidade. Estou a pensar no nosso Santo Padre, que morreu dum ataque de soluços. Ou na minha sobrinha, que tem um quisto no pescoço.

O escuteiro replica com a boquinha franzida que o dom da ubiquidade torna inverosímil a existência de um Deus Todo-Poderoso. Mas isto não nos dá o direito de deitar a perder aquilo que há de bom em nós, de deixar de combater o mal, mesmo que não haja nada lá em cima.

- Se é assim - diz Hedwige Rombouts -, tens que começar a combater o René Catrijsse.

- E quem é ele?

- O filho pródigo de que falava o nosso desafortunado pároco. É o tal que sofre de uma dessas moléstias sem cura. O reverendo disse-o sem rodeios. O René Catrijsse é a doença em pessoa.

- E onde está o fulano?

- Escondido no bosque. Ou na casa da mãe.

Leipe Nietje, que é lenta de mais para acompanhar uma conversa, diz:

- Já não tenho confiança nenhuma em Deus. Ele é esperto e sábio e tenho a impressão de que Ele existe para nos ajudar, só que nunca nos diz quando.

Foi esta, com mais pozinhos menos pozinhos, a conversa que conseguimos apanhar no Café Riviera, assim baptizado pelo nosso burgomestre e dono do estabelecimento que teve uma namorada em Itália que morava à beira dum rio, sim, a uma riviera que em italiano quer dizer rio.

 

No corredor. Tenho os pés frios. É da má circulação. Herdei-a da minha mãe, como outras coisas. Pus os óculos porque eu, estúpida, penso que assim ouço melhor. A mãe e o pai estão a barafustar com a Julia. A voz do pai, autoritária, a voz da mãe, que percorreu todas as estações da via sacra, lamentosa. Oh, como detesto vê-la fazer o papel de mártir.

A ela, à Julia, não ouço. Ou mal. Deixa-os gritar, faz de conta que não é com ela. Tanto quanto me lembro, ela sempre se saiu bem e com brio deste tipo de situações.

- Não há nada a fazer - grita o meu pai. - O povo da nossa aldeia decidiu assim e a gente tem de se conformar.

- A vontade do povo? - diz Julia trocista.

- Está fora do nosso alcance...

Para quê usar palavras tão caras numa situação tão barata?

- Os Catrijsse estão queimados. Para sempre.

- Hector, deixa-me...

Que pena não poder apreciar a cena. Hector, o ofendido, Hedwige, a mártir, e Julia, a filha insubmissa da comédia à moda antiga: Pais efilhos.

Pelo buraco da fechadura não se vê nada, só uma mancha de lã parda - a camisola da minha mãe. Pelo buraco da fechadura entra um arzinho frio. Tenho sorte que ninguém se lembre de enfiar do outro lado uma agulha de tricô.

- Vê lá se queres que venham cá à noite encher-nos de suásticas as paredes da casa ou do armazém.

- Hedwige, não lhe dês conversa. Ela tem de fazer o que os pais mandam, é tudo.

- O pai ainda é de antes da guerra.

A minha irmã, amante imperturbável. Tem a curva do peito ideal, segundo os testes da Marie Claire.

-Julia, deixa de andar com o Noêl. Tira essa família toda da cabeça.

- E com quem é que o pobre do rapaz vai falar?

- O problema não é nosso. E ele já não é uma criança.

A hipócrita da minha mãe. Toda a gente sabe que Noêl ainda é uma criança. Tenho de me conter para não escancarar a porta e desatar aos berros.

- Eu não digo que ele não seja bonzinho. Bonzinho. Que palavra detestável.

- Hedwige, ser bonzinho ou mauzinho não interessa para o caso. Não é disso que estamos a falar. A questão é que a nossa aldeia é ameaçada por uma coisa muito pior do que os nazis no tempo da guerra e que o culpado de tudo é o René Catrijsse. As autoridades, com o inspector Blaute à cabeça, acham que isso está provado cientificamente. Agora é só tirar daí as nossas conclusões. O mal tem de ser arrancado pela raiz.

- O que eu não entendo - diz a minha mãe -, é porque ainda não meteram o René na cadeia. Deve haver no meio outros interesses mais altos, acredita no que te digo.

- Mas não há provas de nada - diz Julia, renitente.

- Seja como for, a loja não se aguenta - diz o meu pai com o seu espírito prático. - Bem se podem emborrachar com os stocks.

- Pai, devia ter vergonha - diz Julia, a minha irmã caprichosa e rebelde, que vai ficar de alma destroçada quando descobrir que o Noêl é meu e de mais ninguém.

 

Dolf Catrijsse já antes entrava pouco no Abafado, mas agora não põe lá os pés. Tem vergonha, com certeza. Nós gostamos dele, do Dolf, e não nos importávamos que ele viesse cá beber uma cerveja, talvez assim até ficássemos a saber mais alguma coisa. Mas ele não aparece. Como teve vergonha - lembra-se? - no dia da Libertação, quando foi à Câmara perguntar se podia mudar o primeiro nome, Adolf. Porque pode imaginar a quantidade de piadas que faziam à custa dele. Os rapazes então tinham a mania de estender o braço quando ele passava e gritar Heil, Adolf! Na Câmara, Elga, uma prima de Hedwige Rombouts, grávida no fim do tempo, disse-lhe que não era possível.

- Estava a pensar em Alexandre... - disse Dolf.

E Elga dá uma gargalhada e diz: - Alexandre, o grande ou o pequeno?

- Ou Ademar, que é o nome do meu tio missionário no Extremo Oriente.

- Não, Dolf, tens de ter um motivo sério para isso. És Adolf e ficas Adolf. Devias ter pensado nisso há mais tempo.

- Quando?

- Quando te baptizaram.

- Mas nessa altura o meu pai não podia saber que Adolf era o nome desse patife alemão.

- Austríaco, queres tu dizer. Não, Dolf, esquece. Mas, a propósito, ;i tua noiva, a Alma - perguntou Elma manhosamente -, também quer mudar de nome?

- E por que havia de querer?

- Por nada - respondeu Elga, fazendo-se desentendida. - Esquece. E ele esqueceu. Com vergonha.

Consta-se por aí que é melhor a Alma esquecer a herança da tia Ivone, que não é nada de desperdiçar: um apartamento em Sint-Idelsbald, uma enfiada de casas num bairro operário de Ipres, umas terras aqui e ali. Isto só para falar de imóveis, porque merece ser vista a sua colecção de pratas dos anos 20, que estão fora de moda, mas basta esperar e a moda volta. O eterno retorno.

Alguém pôs ajukebox a tocar. Está a ficar frio. Chega-nos aos ouvidos a melodia de Sur ma vie desse anão francês fanhoso. Por este andar, onde iria parar a nossa música ligeira? Antigamente, este tipo, que não canta mas gargareja, já teria levado um pontapé no eu.

- Não sei - diz Leipe Nietje pensativa.

- O que é que não sabes, Nietje?

- Esse tal eterno retorno. Se eu gostaria de retornar. E ainda por cima eternamente.

 

Face aos fenómenos insólitos dos últimos tempos na aldeia de Bousekerke, geralmente tão pacífica, autêntica pérola da coroa flamenga, a família Catrijsse aparece sob uma luz que decerto nunca desejou». Era este o começo de um artigo na Tribuna de Waregem. O sucessor do falecido Hubert Van Hoof não tinha nem os seus escrúpulos nem o seu estilo pertinente. O artigo estava cheio de alusões, insinuações, calúnias. A nós, que sempre sentimos simpatia pela família Catrijsse e, em especial, pela Alma, custa-nos ler essas coisas. Havia sobretudo uma frase que nos incomodava:

«Durante a ocupação, cujos horrores e excessos sangrentos ainda estão frescos no imaginário colectivo do povo do Sudoeste da Flandres, Alma Moens não mostrou, como era sua obrigação, indiferença perante os inimigos do nosso país. Muitos dos habitantes de Bousekerke que sobreviveram à tirania germânica ainda se recordam dos tempos em que ela se pavoneava pela aldeia na sua farda de enfermeira alemã».

Histórica e iconograficamente, um erro grosseiro. A Alma foi vista, é verdade, porque a nossa Resistência tinha olhos nas costas, de farda, é verdade, mas nunca de farda de enfermeira alemã, que era cinzenta clara com touca branca. Ela trazia a farda, isso sim, das Brigadas Femininas Flamengas, um movimento anti-belga, é verdade, mas, em si, achamos nós, não se trata de um acto punível pela lei. O que é que o fedelho do jornalista sabe a esse respeito? Nada.

Nós, nessa época ainda jovens, inteligentes, bonitos e fogosos, andava mos todos de cabeça perdida pela Alma. Era um prazer para os olhos vê-la passar na rua principal a dar às ancas e ao rabo, de costas direitas e olhar altivo! E nós, mesmo no termo das hostilidades, com a Alemanha já grogue e no fim do seu latim, não estávamos todos embeiçados, prontinhos a segui-la na retirada para a Heimat ( nota 1 ) , arrasada pelas bombas nos últimos meses do Império dos Mil Dias?

Foi ou não foi?

Quando digo «nós», sabe muito bem a quem me refiro. Siga o meu olhar. Vê aqueles dois homens carecas e encarquilhados a jogar bilhar americano e a fingir que não ouvem nem entendem nada? São os senhores Kooiman e Blabink que, como Guardas Flamengos, seguiram as pisadas de Alma até aos escombros fumegantes da Alemanha. Como ela não conseguia escolher, andava com os dois ao mesmo tempo, aqueles ali que estão a jogar bilhar, muito calados, e que nunca chegaram ao desempate. Foram os dois parar à cadeia, mas não foram soltos ao mesmo tempo, porque o Kooiman apanhou vinte anose o Blabink quinze, o que eles acharam de bradar aos céus, não o número de anos mas a desigualdade. Esses anos de prisão amoleceram-nos. Vêm cá jogar bilhar todas as sextas-feiras à noite, mas quase não trocam uma palavra. Também não se casaram e julgo que até se esqueceram de terem sido alguma vez fulminados pela faísca do deus do amor. Quanto ao que se passou com a Alma, na Alemanha, correm por aí vários rumores.

Mas é melhor mantermos abafado o caldeirão da guerra, para não deixar sair o fedor pútrido a merda.

 

( NOTA 1 ) - Em alemão no original: pátria. ( N. da T.)

 

Telefonei à Julia de uma cabina e disse-lhe: -Julia, é o Noél. Estou à tua espera à beira da tília que tu sabes, por volta das cinco, convém-te? Se não, às cinco e meia.

Ela disse que aparecia lá às cinco. E quando eu já estava quase a desistir de esperar, ela apareceu. Estava a pensar: mato quem lhe puser as mãos sem o meu consentimento, despejo-lhe gasolina pela cabeça abaixo. Foi então que ela apareceu, subimos para a bicicleta e fomos para o charco de Moerbeke. Ainda estava quente e aproveitámos para nadar. Éramos os únicos. E ela diz, a certo momento: - Deves ter pensado... - E eu: - Sim, por onde terás andado. Estiveste na Itália ou noutro país estrangeiro? - E ela: - Também estive na Itália, mas fiquei quase sempre por aqui, pela Bélgica, só que me proibiram de ir a tua casa e também não me deixam andar com ninguém da tua família, nem falar contigo. Ameaçaram pôr-me na rua se eu desobedecesse.

- Uma sorte no azar - digo, só porque gosto de dizer esta frase, serve para tudo. E ela dá uma gargalhada e beija-me. Diz-me que é uma estupidez dos pais castigarem-nos por uma coisa que René fez ou quis fazer ou fez contra a sua vontade. E se o René já foi bem castigado e continua a ser castigado pela sua vida e pelas suas feridas em carne viva, porque havemos nós de agravar ainda mais o castigo de Deus? - Olha - diz ela e eu olho mas só vejo um charco com nenúfares e, ao longe, um pescador debaixo de um guarda-chuva. - Olha - repete - se a gente estivesse num filme da televisão, saltávamos para a água de mãos dadas, com uma mó atada ao pescoço.

- Onde é que se arranja uma pedra dessas? E quanto custa?

- Mas como não estamos na televisão, faço isto. - Ajoelha-se e desabotoa-me a braguilha. E eu deixo-a fazer o que ela quer.

- Comeste alho - diz Julia -, sinto o gosto.

- Perna de borrego - digo, porque sei que as mulheres estão sempre a falar de receitas. E porque tenho medo que a Julia me pergunte como se faz e quanto tempo leva a fazer e se o borrego era assado ou estufado. Puxo-a para cima.

- Não podemos voltar a ver-nos - diz. - Tu sabes como é, numa aldeia tão pequena tudo se sabe.

- Não tudo.

- Não me atrevo....

- Tens medo dos teus pais?

- Não quero que me ponham fora de casa.

Estamos de pé, um diante do outro, como dois réus no tribunal. Estendo-lhe a mão. Ela aperta-a.

- Bem, então - digo - felicidades...

- É pena que não tenhas telefone.

- Para dizer o quê? Que acabou tudo?

- Falar com alguém alivia o desgosto, passa mais depressa.

- Isso é o que dizem. Vou pensar em ti, mais do que nunca.

- Não penses. - Solta-me a mão.

-Já sei que vais direitinha para a beira do Serge. E vais casar com ele. Não posso zangar-me, mas esse nome faz-me subir o sangue à cabeça.

- Talvez - diz Julia.

Não devia dizer, mas digo: - Ele não sabe cantar. Ela desvia os olhos de mim e ergue-os para as andorinhas que descem do céu.

- Quando vocês estiverem casados, ele vai consolar-se em encher-te a barriga.

Digo outra vez o que não queria dizer. - Não merecia isto. - Por que é que digo isto? Quem tem aquilo que merece? A minha mãe, que ultimamente não pára de tossir, ou o meu pai que fuma como uma chaminé e nem um pigarro na garganta?

Quero fugir daqui. Meter-me pelo bosque dentro. Correr até ao sanatório. Mas sento-me na relva e ela senta-se ao meu lado. Espeta-me um dedo na barriga. - Porque é que aceitas tudo o que os outros te dizem? - pergunta. - Irrita-me que dês sempre razão aos outros.

As mulheres sabem sempre dar uma volta às coisas, descaradamente, desde pequenas.

- E tu ?

- Se me resigno, é porque quero. Agora tu não. Não devias ser tão obediente.

Sorriu como se sentisse uma dor.

- Vou deitar-me aqui - diz - à tua beira. Olha.

Levanta a saia, mostrando umas calcinhas roxas de renda com caracoi-zinhos castanhos a espreitar dum lado e do outro. Puxa-as para baixo, empina o rabo, fá-las deslizar pelas pernas abaixo e atira-as para o meio da erva. O pescador lá ao fundo olha na nossa direcção.

- Ele não nos vê de tão longe - diz a Julia.

- Se tiver binóculos, sim.

Ela deixa-se cair para trás e arregaça o vestido até aos ombros. Tenta livrar-se do soutiã muito branco, pousa-o na erva e, impaciente, tira o vestido pela cabeça. Espreguiça-se. Já sei o que ela quer que eu faça. Chupo-lhe os bicos do peito, acaricio-lhe as nádegas, mas não é como das outras vezes. Ela afasta-me a mão e ajoelha-se na erva, apoiada num cotovelo. Pega nas calcinhas e espreme-as entre as coxas, o enchumaço entra quase todo dentro dela.

- Vem - ordena-me.

Quando me endireito, pega-me na picha, aperta-a, empurra-a para um lado e para o outro como uma alavanca de velocidades e guia-a até ao meio das nádegas.

- Olha que não deixo fazer isto a ninguém - diz Julia com voz rouca. - Só a ti, meu Noêlzinho.

Enterra a cara no vestido e pousa a testa no braço. Uma mão escorrega até às nádegas, abre-as para os lados.

- Aqui - diz a voz de Julia abafada pelo pano do vestido. - Aqui e só aqui.

Não posso obedecer-lhe. Fico à espera. A mão de Julia esmaga a minha picha dura e empurra-a para dentro da racha.

- Não te enganes no buraquinho - diz ela.

Faço força para entrar na estrelinha do mar encorrilhada. Não consigo passar, penetrar. Julia suspira. Porque ela suspira como se eu tivesse feito algum disparate, porque o pescador continua com os olhos fixos em nós, porque estou furioso comigo próprio por ser um pateta e um bruto, porque a carne branca e tenra das nádegas já tem sinais de celulite, um dos temas preferidos das senhoras no cabeleireiro, e porque quero dizer à Julia que dizem que é um problema fácil de resolver. Por causa de tudo isto, entro nela de rompante, carrego sobre ela num triunfo bestial, enfio-me no meio dessa ondulação de carne branca em que a Julia tem as unhas cravadas como garras. - Sim. - diz, comprimindo o rabo contra o meu baixo-ven-tre. Conto os sins e perco-lhes a conta, mordo-lhe na nuca, no ninho de pêlos, e desabo em cima das costas dela. - Fica, fica, não saias daí - diz, autoritária como a mãe dela, e eu fico muito quieto, de olhos fechados. Ela canta-me Petit Papa Noêl ao ouvido e diz: - Não te mexas, fica assim. É a última vez. Não digas nada! - Eu obedeço. Sou feliz e sei-o muito bem.

 

Quem forneceu ao presidente, um tirano sanguinário como toda a gente sabe, mil matracas capazes de dar electrochoques de 150 000 volts nos testículos dum preso? Perguntem ao nosso governo.

Quem deu instruções aos militares escolhidos especialmente pelo presidente para manejar aparelhos eléctricos de segurança? Perguntem ao nosso governo.

É o mestre Arsénio que uma vez mais faz uso da palavra no Abafado, em defesa dos direitos humanos, o seu cavalo de batalha. Ninguém lhe presta atenção. Consta-se que a Leipe Nitje está em coma.

- Coma, coma, isso é fácil de dizer. O que interessa é em que estádio do coma se encontra! Há muito mais estádios do que se julga.

- Professor, professor, não me diga que também nos quer dar lições de medicina.

- Primeiro - diz o professor com a cara rechonchuda inflamada pelo ímpeto indomável de ensinar. - Primeiro, há um estado de sonolência profunda, o prolongamento da perda de consciência. Não há qualquer reflexo ou reacção.

A cara rechonchuda deixa pender a língua. Uma estupidez planetária espalha-se pelas grossas lentes dos óculos, pela testa larga e franzida, pelas bochechas descaídas.

- Embora se encontre no estado vegetativo, o doente ainda consegue mover os membros. Pode até sorrir, se lhe apetecer- e porque não Mu-havia de apetecer? - mas não se apercebe do que se passa à sua volta, que até pode ser uma bênção, acreditem. Segue-se um fenómeno a que se chama síndroma de fechamento, que foi o que paralisou a Leipe Nietje.

Apesar de não poder falar, está mentalmente lúcida e consegue comunicar por movimentos oculares. Então, que tal?

Leipe Nietje tinha o corpo coberto de pústulas. Desde as solas dos pés até à cocuruto da cabeça. A sua luta contra a morte eStava a durar mais tempo do que era habitual em Bousekerke. O cabelo caía-lhe aos molhos e a pele esfolava a olhos vistos. Até que saiu do coma e disse que ia morrer. Pois foi tal e qual o que aconteceu.

 

Fiquei à espera, de toalha na mão, uma lavada que tirei do armário. O doutor Vermeulen lavou as mãos na bomba da água. Só por hábito, pois nem sequer tinha tocado no René. Depois bebeu dois ou três cálices de genebra. A mãe ficou com vontade de abraçá-lo por ter declarado oficialmente à Justiça que o seu filho René não estava em condições de ser submetido a interrogatório. Tinha dito aos cavalheiros de pasta de couro que o René sofria de anticriptogamas que, numa base de arsénico, alastravam o cancro. Não sou tão estúpido que não consiga fixar essas coisas mas, mesmo assim, por mais que me esforce, dá-me até dores na nuca, há coisas que me escapam. Mesmo sem entender, devia ao menos fixar os sons antes de se evaporarem no ar.

A alta tensão dos neurónios, a tensão eléctrica com descargas misteriosas nos nossos processos metal... diabólicos. Ou coisa parecida.

Entretanto, a cara do René parece-se cada vez mais com uma caveira. Estou sentado ao lado da cama dele. Gostava que, em vez do René, Deus me levasse a mim. Gostava que Deus tivesse feito de mim outra pessoa, só por brincadeira. Mas Deus não brinca. Também Ele tem de obedecer. Não me perguntem a quem. Mas Deus devia ter pensado: ao fazer-me dar um trambolhão, qualquer coisa se estragou dentro da minha cabeça e, como o conserto foi mal feito, a segunda versão do Noêl Catrijsse não saiu grande coisa.

René chia, cicia, respira agitadamente.

- Ele vai-se embora - sussurro. - Eu sei, mãe.

- Para onde? - pergunta ela muito alto.

- Isso ninguém sabe.

- Para junto dos bichos de neve? - pergunta. O meu pai ouve e grita que não é o momento de estar com conversa fiada e dizer disparates. - Num momento destes, raio!

O doutor Vermeulen diz que são cento e oitenta francos. - É menos que da última vez - diz a mãe.

- Também tive menos trabalho.

- Chegou a hora dele? - pergunta o meu pai.

- Talvez. Tenho de ir. Olhem que ele não pode apanhar frio. Mesmo que tenha calor, não lhe tirem os cobertores de cima.

Ainda bem que o René não ouve, ele que não aguenta nenhum tipo de calor; nem o do Equador nem o do nosso fogão de sala.

- Tenho de ir. Os Hendriksen chamaram-me, têm uma vaca que vomita a toda a hora e não pára de morder nas tetas das outras vacas. É um caso muito interessante. Depois tenho de passar pela casa do Fredje Delooi que, vejam bem, apanhou o sarampo aos quarenta e quatro anos. A seguir, tenho de falar com o inspector da Segurança do Estado. Nós, médicos, temos a obrigação de participar casos destes, mas só se se tratar de infecções de agentes múltiplos, é claro.

Depois examina a mãe, à parte, no quarto dela. Quando voltam para a cozinha, noto que estão muito calmos. O doutor Vermeulen sai e a mãe põe em cima da mesa chouriça de sangue e puré de maçã para eu comer. Sinto-me um bocado esquisito, não estou bem, o que não é novidade para ninguém, mas desta vez é uma sensação diferente. Eu que, quando vejo chouriça de sangue, sobretudo a que tem passas, sinto logo a água a crescer-me na boca, agora até fico enjoado só de olhar para ela. - O que diz o médico das estrias nas costas?

A mãe diz: - Que desaparecem com o tempo. Só há um problema com o baço, parece que está todo desfeito e que perdeu muito sangue por causa disso, mas que não é muito grave.

Ela mente. Eu sei que se pode viver sem baço. Mas mente no resto. Tem esse direito.

- E o que é que ele disse de si?

- Nada de especial.

- Está a mentir.

- A chouriça de sangue não está boa? Por que não comes?

Ela põe as mãos sobre os olhos, mesmo por cima dos saquinhos das lágrimas. Geme: - Eu sei que mereço ser castigada, mas porque é que tem de ser o meu filho a pagar por mim?

- Alma - diz o meu pai. - Por favor, Alma.

- Sim, mãe, por favor.

- Levantei o dinheiro todo da conta a prazo.

- Todo? - diz o meu pai, de repente muito apressado.

- Tenho de ir para o hospital de Waregem - diz. - Não tínhamos mais dinheiro. Não temos vendido nada. E as freiras também deixaram de me comprar peças de malha. Semanas e semanas a dar à agulha e a Irmã Clara diz-me: - Eu por mim não me importava, mas a Madre Superiora proibiu-me terminantemente. - Disse-me que as irmãs da Ordem dela foram violadas e executadas a tiro por brancos em farda de pára-quedistas e juram por Deus que o René era um deles.

- A Madre Superiora - diz o meu pai - é de Izegem, está tudo dito. Gostava de saber o que posso fazer pelo René e pela minha mãe. Ou

pelo meu pai. Ou pelas pessoas da aldeia que, cegas e estúpidas, pensam que nós, os Catrijsses, somos os culpados dessa doença. - A peste da Flandres Ocidental alastra-se - disseram na rádio, por entre as notícias sobre os crimes do Vietname e a fome num país que pouco mais é do que deserto, por que diabo é que vive lá gente?

À tardinha, bate-nos à porta um estudante universitário que parece que descobriu qualquer coisa. Usa luvas de couro preto. É novo de mais e insignificante de mais. Pega num frasco embrulhado em papel de alumínio e diz para fecharmos todas as janelas porque o líquido que está no seu interior não pode apanhar luz. Cipadenobol. Ou coisa do género. Ataca os tecidos. O jovem charlatão deita três gotas na boca de René com um conta-gotas. A mãe fica de braços cruzados, mas vê-se que está a ferver por dentro.

O universitário pega no pulso de René e põe-se a contar. Quando chega a dez, René deita pela boca um escarro de pus esverdeado. A pieira na sua garganta faz lembrar os latidos do cachorrinho da Julia.

René reconhece-me. - Então, patetinha - diz.

Quando vai a sair, já à porta da loja, o jovem milagreiro diz que está muito nervoso porque a poção mágica só dá resultado em três de dez casos.

- E você ainda se atreve... - diz a mãe.

- Quando se está a investigar, madame, é preciso tentar tudo.

Sinto-me tão aliviado por René ir ficar melhor que penso na Julia deitada de bruços com o queixo apoiado no braço. Vejo-a abrir as nádegas para os lados e vejo a estrelinha do mar lá ao fundo.

- Em que estás a pensar? - pergunta a mãe.

Na Julia que era a minha Julia. Com três dedos recurvados em redor do meu sexo, como se estivesse a comer um éclair com creme. Tenho de ver se consigo varrer a Julia dos meus pensamentos, porque senão tenho de ir logo à meia-noite deitar fogo à casa do Hector e da Hedwige.

 

Alma lavou-se com água fria, em casa, duas horas antes. Quer chegar à Sua presença fresca, sensual, desenvolta. Esqueceu-se de como o caminho da estação até à casa Dele é tão longo e tortuoso. Em todos esses anos, construíram à beira da estrada uns quatro ou cinco stands de automóveis e dois supermercados. Ruas novas, uma escola. Só quando chega junto do bloco de pedra com a inscrição «Arcádia», reconhece a propriedade Dele, os ciprestes, os plátanos, os arbustos, o jardim antes arranjado tão artisticamente e agora coberto de ervas daninhas e ressequido. O portão enferrujado está aberto. Na álea que conduz à porta principal há quatro carcaças de automóveis.

Ainda há pouco, enquanto caminhava ao longo do canal, não, antes disso, quando saiu da estação e passou pelos cafés a cheirar a cerveja e a café, tentava imaginar a sua chegada à casa dos três telhados e via-O ao cimo das escadas, à sua espera. Ele ia perguntar-lhe por onde tinha andado todos esses anos e ela respondia: - Eu é que te devia fazer essa pergunta.

E ele, nada retórico: - Quantos anos?

E ela: - Conta-os tu, não eu, que tenho sofrido tanto. - Não, era melhor não se pôr com lamúrias.

Parece que nunca mais chego. A casa, ao longe, uma granja dum convento remodelada. As telhas dos três telhados todas diferentes, vermelhas, mas em vários tons. Dois telhados cobertos de colmo cinzento escuro. Já se vê o redil das ovelhas, com paredes de tijolo abauladas. Alma encosta-se ao tronco sarapintado dum plátano enorme. Aos seus pés, raízes sinuosas v inchadas como serpentes petrificadas.

Quando acorda do seu sonho, vê um homem, a uns dez metros de distância, a olhar para ela, de pernas afastadas, enfiado numa pelerina de loden verde, amparado a uma forquilha. Faz-lhe uma vénia. Num momento de delírio, pensa que quem está diante dela é Ele, encarquilhado, desdentado, careca. Não se enxerga um único cabelo em redor das orelhas nem na nuca do homem, que traz uma boina na cabeça. O homem tem aspecto de serviçal, de criado. Faz outra vénia.

- Suponho que se perdeu - diz.

- Não. Venho vê-Lo.

- Como as coisas estão actualmente, minha senhora, só com a expressa autorização do Senhor.

- Não posso perder o comboio de regresso.

Na cara envelhecida de campónio surge um risinho trocista.

- Olhe que perder um comboio não é fácil.

Ela passa pela frente do serviçal e dirige-se para a casa. Modera o passo, não pode aparecer diante Dele esbaforida. Quando chega em frente da casa, fica à espera.

- Está mudada - diz o homem. -Já nem sei como se chama, mas está mudada. Antigamente, não era loira?

- Loira platinada.

- E agora tem cabelo grisalho. Inclina a cabeça, servil como um criado.

- Pensava que ia ser a senhora a mandar nisto tudo, não era? Confesse. Entretanto, aconteceu muita coisa por aqui.

- Acredito.

Um risinho travesso: - Veio aqui uma vez coscuvilhar. Em todos os quartos, lembra-se? Já lá vão mais de vinte anos. Ele já estava na Argentina nessa altura. Fugiu e deixou a porta aberta. Três das nossas vacas também fugiram nessa altura. - Abre a porta de carvalho maciço e deixa-a passar.

Lá dentro nada mudou. Os móveis estão nos mesmos sítios, as paredes continuam forradas de papel a imitar mármore. Alma encontra a mesma casa que tentou recordar durante tantos anos, geralmente à noite, antes de adormecer. Só a luz é que mudou. Através das portas de vidro de proporções invulgares, com uns três metros de altura, já não passa a luz crua do Sol de antigamente.

Ela sente-se como uma turista em visita ocasional a um museu de província.

- Faça o favor de se sentar - diz o serviçal, afastando-se a arrastar os pés com uma leveza respeitosa.

Devia ter apanhado um táxi na estação. Sentia-se exausta.

O armário Boule ornado a cobre, estanho e madrepérola. Os dois grandes espelhos de Dresden. O candelabro de cobre da Holanda. A mesa octogonal do século XVII ou XVI. Um jarrão de bronze estilo Império a que faltava uma asa que se partira quando uma Sua amante holandesa lho atirara à cabeça, uma holandesa que só comia pão com queijo ou chocolate, mas que, em contrapartida, bebia tudo que estivesse ao seu alcance. Pelo menos era o que Ele lhe tinha contado na fábrica de borracha de Eschwege, quando ela lhe perguntou se ia para a cama com mulheres feias.

Os cortinados madrepérola, cobertos de pó. O homem volta à sala.

- Ele ainda está a dormir. Quando achar que nos deve receber, dá sinal.

Um sinal para os dois. Eu e o criado no mesmo nível. Para seu espanto, vê o serviçal sentar-se num cadeirão Império e cruzar as pernas. Por trás dele, um gobelin representando uma cena de caça com um veado a esvair-se em sangue, no canto esquerdo.

- Como se chama? - pergunta Alma.

- Brauns.

- E o primeiro nome?

- Trate-me por Brauns.

Ela tira o espelho da carteira e vê como tem as faces coradas. Retoca os lábios com o batom, vermelho escarlate, de mulher ordinária.

- Não é preciso - diz Brauns - ele quase já não vê nada.

- Quase?

- Vê manchas cinzentas. E não há esperança de melhorar. Não vai reconhecê-la, não tem a memória visual do seu criado.

- Não quero perder o...

- Comboio. Se me permite, posso levá-la à estação no nosso carro. Deseja dizer-me o seu destino, ou prefere guardar segredo? Então, se qui ser, posso deixá-la um pouco antes da estação. Também podemos emprestar-lhe um guarda-chuva porque, como já deve ter reparado, começou a chover.

Continua a chover.

Um quarto de hora mais tarde, retine uma campainha, um eco longínquo da nossa loja, a minha vida é regulada por campainhas.

- Acordou.

Brauns vê que Alma se quer levantar e faz-lhe sinal para esperar.

- O facto de estar acordado não quer dizer que suporte a companhia de outras pessoas.

Alma vai para o vestíbulo com mosaicos de mármore preto e branco e o busto do Prince de Ligne, de quem Ele lhe falou uma vez. É ela a dona e senhora desta casa. Tal como o foi durante um dia, quando veio aqui já com a criança no ventre.

Sobe a escadaria sumptuosa. Tal como outrora, nesse dia, na casa vazia. Agora mais devagar, com menos agilidade, mais ofegante, mas é melhor não pensar nisso. Encontra o quarto ao fundo do corredor, abre a porta e vê-O - quem mais podia ser, senão o objecto do seu desejo?

Ele está incrivelmente gordo, não tem pescoço. O tronco nu, à vista, os botões do robe de brocado estão desapertados, reluz como se estivesse untado de óleo. A barriga cai-lhe sobre as coxas. É o mais corpulento e mais alto de todos os homens que Alma conheceu. Está a dormir numa poltrona, de pernas afastadas com joelhos de vitelo, segurando na mão a campainha de prata cinzelada.

Alma reconhece as feições do rosto por baixo das camadas descoradas de gordura. Brauns passa por trás, pela frente dela, de pés descalços. Alma tem a sensação de que Ele a está a ver de soslaio, através das suas pálpebras quase transparentes. Inspecciona o quarto. Atrás do sofá há uma porta entreaberta, deve ser o vestiário. Alma sente no nariz o cheiro de couro quando Brauns entra e quando regressa com um pano de seda estampado com linguazinhas de fogo laranja e vermelho sobre fundo verde. Põe-Lho sobre os ombros. A massa de carne não reage. Afinal, parece que sim. Abre a boca, mostrando dentes escuros. Podia pensar-se que ela sorri, mas só tenta retomar o fôlego.

- Ele tem de ter sempre um lenço ao pescoço - diz Brauns inesperadamente alto. - Sem ele não se sente à vontade para falar com as pessoas. O que lhe pus ontem está empastado em ranho e vou pô-lo logo na máquina de lavar. - Brauns tira-lhe debaixo das coxas um pano com as mesmas cores garridas, cheira-o. Sobre a chaminé há um busto de terracota de um dos Seus antepassados, um homem obeso de suíças farfalhudas e colarinho alto engomado, que fora ministro das Finanças no tempo de Leopoldo I. Alma pigarreia. O ruído parece acordá-Lo. Os olhos oblíquos, duas fendazinhas a espreitar por trás das bolsas de gordura orladas de sobrancelhas finas, procuram localizar a origem do pigarro.

- A senhora estava caída na relva - diz Brauns. - Teve um desfalecimento de paixão. Deve amá-lo muito.

- Sim - diz Alma, aproximando-se.

- Ai... ai... ai... - faz ele, tentando imitar um doente.

- Vamos - diz Alma - vamos. Faz um esforço.

- Alma - diz ele claramente. Alma não consegue conter as lágrimas, mas não diz: - Como és doce, meu dono e senhor, e como eu gosto de ser tua, como adoro o teu perfume a óleo, oh, cospe-me na boca com todo o teu desdém, sei que desprezas a raça felina, frívola e frágil das mulheres, oh, faz-me delirar mais uma vez, só por um instante, nunca mais delirei depois que me deixaste, desde que mergulhei no banho morno de amor pelo semelhante que, por acaso, é agora meu marido.

Oh, meu dono e senhor, a medula dos meus ossos, todo o meu corpo o sabe, o sente, o reconhece e grita de júbilo.

Não enxuga as lágrimas, os olhos ardem-lhe.

Ele pousa sobre os joelhos as mãos papudas com manchas escuras, um movimento necessário para erguer o corpo desmedido.

Terá captado os murmúrios de Alma? Estende o braço direito. Irá fazer a saudação nazi? Não, não é possível, não pode ser.

- Alma - repete mas com mais clareza e limpidez. A sua mão desce e encontra a face molhada, o queixo molhado e faz-lhe uma carícia.

- Que dia, que dia! - diz Brauns. - Quem diria que havíamos ainda de assistir a uma coisa destas?

- Alma - diz Ele, como para se certificar.

- Que deseja? - pergunta Brauns.

- Nada.

- Krug.

- Não.

- Roederer Cristal?

- Não.

Ela pega-lhe no pulso. Na presença dele, sente voltar os gestos bruscos, mas ainda assim ternos, de enfermeira. Senta-se na beira do sofá.

O corpo Dele, reluzente, derrama-se para todos os lados.

- Porque vim ver-te? Queria falar-te da criança. Contar-te tudo.

- Da criança - repete Ele, quase alegre por notar que a sua memória funciona.

Dá a impressão de que os dois estão a representar uma cena do passado. O tempo pára, o passado regressa, areias movediças. Ela diz: - Tenho de voltar para casa, já. Continuo a mesma virgem louca de outros tempos, mas só à tua beira.

Ele tira o lenço de dentro do colarinho, põe-no por cima da cabeça e esconde nas mãos a cabeça envolta no véu finíssimo. Ela está-lhe grata, não por ele lhe poupar o espectáculo da sua degradação, mas porque as suas palavras irão ser absorvidas, engolidas pela escuridão dos seus olhos, dos seus ouvidos.

- Tens o direito de saber o que se passou. Mesmo sabendo que nunca te interessou o que se passou comigo e se, por acaso te interessou, nada fizeste. Com demasiada facilidade, esperaste, embora sem esperança, esperaste que eu sobrevivesse e que não fôssemos condenados a descer ao fundo do Valhala. Estás a ouvir-me? Nem por um instante eu pensaria em procurar-te, se não fosse por causa da criança. Quando soube que tinhas voltado da Argentina onde, se os rumores se confirmam, fizeste uma grande fortuna, voltado à tua terra natal, como um tipo da mafia siciliana regressado da América, o lado obscuro do meu ser, como se costuma dizer, desejou rever-te para te falar da criança, mas já era tarde de mais.

- Muda de assunto - diz ele e ela obedece, mais uma vez cegamente, e fala-lhe da praga que mata as pessoas da sua aldeia mais rapidamente, mais estranhamente, mais inesperadamente e como os médicos deitam mãos à cabeça sem saber o que fazer e falam mais do acaso do que da necessidade, como diz o mestre Arsène.

- Stateyour business- diz Ele, mas ela não entende.

- Business - repete ela e fica à espera.

- Já ouvi o suficiente - diz o colosso, ainda vergado para a frente, por sobre as pernas brancas finas, os dedos dos pés compridos de asiático.

Ela ajoelha-se e beija-lhe o tornozelo, o calcanhar, a barriga da perna. Com um aperto no peito, fala-lhe da criança, que se chama René por ter renascido. Nasceu a primeira vez na Alemanha, no momento em que foi concebido entre as paredes em chamas do hospital de campanha, na cidade fosforescente rodeada de montanhas, e a segunda vez, quando saiu do seu corpo, numa aldeia silenciosa e morta.

- Não gosto de surpresas - diz Ele endireitando-se. O lenço cai-lhe para cima dos ombros e escorrega para o tapete. Afasta-se dela com passadas elegantes, abre os cortinados para trás, deixa-se cair na cama por fazer, com lençóis muito coçados, arrepanhando na mão fechada as abas do robe.

- Perdi a memória - diz - e as minhas capacidades de julgamento, as minhas cognitive abilities. Foi assim que decidiu o tribunal.

O corpo volumoso vira-se pesadamente para o outro lado. Ele abre a gaveta da mesinha de cabeceira e tira para fora um pacotinho de bolachas de baunilha. Oferece-lhe uma, mas ela não aceita.

- O que faz o René? - pergunta.

- Caiu na cama e nunca mais de lá saiu.

- E de que é que ele vive?

- Durante algum tempo foi militar no Congo.

- Em que escalão?

- Não sei.

- É casado?

- Não.

- Prefere os homens?

- Não, que eu saiba.

Então ela conta-lhe que, na aldeia, as pessoas pensam que a doença de René é a origem de todas as calamidades que acontecem.

Ele devora metade do pacote das bolachas.

Ela diz que, às vezes, pensa que só haverá cura quando o René já não for deste mundo. Surpreende-se com a gargalhada convulsiva que faz estremecer o colosso deitado na cama. Ele engasga-se com o riso, fica com a cara roxa, só as quatro ou cinco verrugas continuam cinzentas.

- Oh, oh, oh! - faz Ele, hilariante, batendo nas almofadas amontoadas. - É mesmo meu filho. Tal e qual como eu esperava. «Ah sim, vou morrer? Então levo essa corja toda atrás de mim.» São os meus genes, não há dúvida!

Pega na campainha de prata e sacode-a. Parece dez anos mais novo.

- Alma.

- Sim. (Sempre sim. Só para ti, para mais ninguém.)

- Ele é e continua a ser uma ameaça para a comunidade. Mesmo que amanhã de manhã os moribundos desistissem de morrer e vivessem até ao dia do Juízo Final, mesmo assim ele já fez mais mal do que é legítimo a um ser humano. A propósito, acho que sou alérgico a amendoins. Quando como amendoins, falta-me o ar e fico com comichão no corpo todo.

- Uma injecçãozinha de anti-histamínico - diz Alma, a enfermeira de antigamente. Brauns entra pé ante pé.

- As bolachas de baunilha acabaram - diz Ele.

- Já trato do assunto - diz Brauns desaparecendo com o mesmo silêncio e o mesmo sorriso com que entrara.

- A culpa é tua - diz Alma. - Não podes negar, todos os caminhos conduzem a ti. Todas as causas te são atribuídas e é assim que deve ser. Quem se queixa merece ser punido. Para que serve ter opiniões e tomar decisões, se tu existes para impedir que a gente quebre a cabeça a tentar descobrir o que é bom ou mau para nós? Tu é quem decides e o que te agrada é bom, tão simples como isso.

Brauns deixou a porta do quarto aberta. Um erro que, aparentemente, nunca comete. Sente-se uma corrente de ar. Ele procura aconchegar o robe, que mais parece uma casula e deve ter sido feito por medida para Ele, antes de ter inchado tão deploravelmente. Porque não foi Alma a cortar, a costurar, a acariciar este robe?

Alma olha para Ele como se fosse pela última vez, para Ele cuja cabeça trespassada de melenas finas cor sépia assoma do colarinho como da carapaça duma tartaruga, empoada de talco ocre. A cabeça treme. Parkinson. Como é monstruoso o objecto do seu amor.

Não tão monstruoso, porque, ao instalar-se confortavelmente nas almofadas, diz que, desde que se sente mal, lhe aparecem filhos de todos os cantos do mundo. Que mães totalmente desconhecidas se dão a conhecer com o fruto das suas entranhas, das suas e de mais ninguém, com provas evidentes e atestados de advogados e notários, e algumas delas até têm a coragem de lhe bater à porta. O que vale é que o Brauns as escorraça imediatamente para longe.

- E por que é que ele não me escorraçou a mim?

- Brauns gosta às vezes de fechar os olhos, de desobedecer às minhas ordens. Sente-se mais jovem assim.

Brauns diz do umbral da porta: - A nenhuma delas ficava tão bem o luto como à senhora.

- Nota-se assim tanto?

- Para quem sabe ver, sim.

Brauns aproxima-se da cama com uma taça de prata cintilante na mão, cheia de bolachas de baunilha. Enquanto Ele as mordisca e mastiga num silêncio religioso, Alma olha lá para fora, pela janela. De repente, Ele diz: - Fiquei com alergia à maioria das coisas. Sinto as verrugas crescer, sinto-me descalcificar, fossilizar. Às vezes, as verrugas fazem-me comichão, é pelo menos a prova de que estou vivo. O que é que René tem? Malária? Beribéri? Manda-o saltar à corda. Se ele não conseguir levantar os calcanhares do chão, está com beribéri. Ah, os pés, os pés! O Hermann gordo quase não conseguia andar por ter usado a vida inteira botas apertadas. Esse é que os levou à certa lá em Nuremberga.

Um terço das bolachas da taça já desapareceu.

- Vem cá.

Ela aproxima-se até sentir os joelhos bater na beira da cama.

- Mais perto. - Ela apoia-se numa almofada. Nota de perto que as córneas dos seus olhos azuis estão raiadas de sangue.

- O que queres, minha queridinha? Um cheque? De quanto?

- Não foi por isso que vim cã - diz com a voz estrangulada.

- Não grites! - ordena ele. - Ora diz-me, o René usa o cabelo comprido? Anda de camisa às florinhas? Fuma? Cheira coca? O que é que ele toma?

- Nada. Só anfetaminas de vez em quando.

Ele deu um grunhido aprovador. - Adolfine. Era o que Hitler dava aos pilotos do Wehrmacht.

Antes que Ele deslize novamente? para o passado, ela diz: - Mais tarde ou mais cedo, prendem-no, enfiam-no numa cela, interrogam-no. Não aguento essa ideia. Quero que enxotes esses cães dele. Que telefones ao ministro de Estado, ele já te fez uns favores, noutros tempos.

- E eu a ele.

- René tem direito a...

- Não me venhas com direitos - corta Ele com secura. - Não na minha presença. Brauns, leva esta mulher daqui.

- Se não fazes o que eu digo, escrevo aos jornais, à televisão a contar tudo. Vão ficar muito contentes por voltar a desenterrar o teu caso.

- Eu não fui condenado.

- Foste sim, à revelia.

- O meu processo foi arquivado - diz Ele, com a respiração pesada.

- Olha bem para mim, vês-me? - pergunta Alma, agarrando-lhe nos ombros e puxando-o para ela. Os seus narizes quase se tocam.

- Se quiser. - A cara estragada e disforme persiste na sua teimosia.

- Então vês que nada nem ninguém me impedirá de conseguir os meus propósitos. Há um antigo inspector, chama-se Blaute, tem de ser preso. Grava bem este nome na tua memória.

- Blaute - diz com o mesmo tom de voz dela.

- E os homens da Judiciária. Pede um adiamento. O teu filho já não deve durar muito tempo. Larga-O e Ele cai para trás, sobre as almofadas.

Brauns diz.- - Venha. - E: - Venha, Alma.

É tudo, era só isto, mais nada? Alma sabe que vai arrepender-se amargamente de ter vindo, de ter agido como uma fêmea, de ter destruído as recordações, ter retirado ao passado o seu poder devorador.

- Não te voltarei a ver. - É a única coisa que consegue articular e o deus do amor escuta-a e continua a enchê-la de júbilo porque diz com a boca cheia de bolacha: - Ainda me lembro de tudo. De tudo que aconteceu nesses três dias na fábrica de borracha Phenix em Eschwege.

- Sim? - pergunta ela, incrédula.

- De tudo. Também dos bichos de neve.

Alma sente um nó na garganta. - Obrigada - diz, absorvendo tudo que vê, as traças sarapintadas a ouro na almofada, os lençóis num molho, as vidraças sujas das janelas, que mal deixam ver os ciprestes, a piscina vazia com uma vedação de arame farpado à volta, o herbanário ressequido, e também o ascético Brauns, e o monstro do seu amor, que fica mudo e imóvel. E ela, a virgem louca do seu passado, dirige-se para a porta sem olhar para trás, transpõe o umbral, desce as escadas, muito direita, inabalável.

 

Dolf no jardim. O gato dos vizinhos roça-lhe a perna. Às vezes, há nos jornais uma rubrica em que se pergunta a flamengos importantes, desses que costumam aparecer nos jornais ou na televisão, o que pensarão e farão daí a vinte e cinco anos. Eu não conseguia responder a essa pergunta. Estou contente com os últimos vinte cinco anos, que hei-de querer mais? Mas, se me perguntassem o que gostaria de mudar quando andava pelos quarenta, aí não precisava de puxar muito pela cabeça. Se possível, gostaria de ter conhecido a Alma uns anos mais cedo, em quarenta e dois, por exemplo, ou se me desse total liberdade de escolha, ainda mais cedo, pouco antes da guerra, quando fui mobilizado para o exército belga.

Mas essas suposições só servem para pôr a cabeça maluca a uma pessoa. Começa-se a fantasiar e isso dá sempre mau resultado. A Alma, já há três dias de cama, também não pára de fantasiar. O René a mesma coisa. O Noél idem aspas.

- Olha aqui, Dolf, como os botõezinhos já estão a rebentar - dizia-me a Alma sempre no começo da Primavera. Eu ao lado dela e ela a apontar com o dedo. Este ano nem olhou para os botõezinhos, nem uma vez só. Perdi-a para sempre, nunca pensei que me pudesse acontecer tal coisa e mesmo agora não posso acreditar que ela não quer saber de mim para nada. Embora sabendo que ela não faz de propósito. Ainda há bocadinho, fui espreitar ao quarto: - Alma, não queres uma chávena de leite com mel?

- Não, Dolf, obrigada. Não me apetece - disse sem abrir os olhos. Ao menos ainda respirava, já não era mau.

E o outro também de cama como ela, já há dois dias.

Às vezes, encontro-me aqui no jardim com o meu falecido pai, ele ajoelha-se, remexe na terra e espreita para ver se os morangos já estão maduros ou não apodrecem com a chuva toda que caiu. Apesar de morto e enterrado há tanto tempo. diz: - Meu rapaz, foste infeliz, sentiste desespero? Sim? Então não te conheço, nunca te conheci e fica a saber que, depois de morreres, o desespero não acabará.

O velho, que chegou a estudar de graça no seminário de Roulers, sempre foi um bocado complicado. Bem, é melhor voltar depressa para dentro, para a beira dos meus dois desesperados, cada qual na sua cama, e perguntar-lhes se precisam de alguma coisa.

E René diz: - Pai.

- Sim, meu rapaz.

- Acho que vou morrer.

- Eu também, meu rapaz. Chega a vez a todos.

- Eu dei-lhe muitos desgostos, pai.

Se eu fosse italiano ou árabe, pregava-lhe dois beijos na cara. Mas a gente não foi educada assim.

- Desejas alguma coisa? - pergunto como um empregado de mesa.

- Sim. Se fosse possível, gostava ainda de trocar duas palavrinhas com o professor Arsène.

- Vou perguntar-lhe se pode passar por cá logo à noite.

- Não, na escola. Tem de ser na escola.

- E tens forças para chegar lá?

- Eu não ia a pé. Alguém me levava lá.

- De bicicleta? Podias sentar-te à frente, em cima da barra...

- Então vou vestir-me-

Gostava mais dele como dantes, casmurro e calado. Uma motorizada estraleja, ronca, trepida, pára. A campainha da loja. Desço e vejo Julia de cabelos ao vento, com um ar sadio. Digo-lhe que o Noèl chega mais tarde, porque foi ao notário, o intermediário no negócio do dono da fábrica de cerveja.

- Que negócio?

- O dono da fábrica da cerveja quer pedir indemnização por causa dos pingos de tinta das suásticas que caíram em cima da nossa tabuleta.

Julia vê René que vem a descer as escadas, amparado na parede, com passos cautelosos, um degrau de cada vez.

- Ora vejam, o nosso doente. Vinha cá convidar o Noêl a dar uma voltinha de motorizada. O Serge ofereceu-ma, este modelo já esta fora de moda. Esteve a semana passada em Amesterdão e não viu uma só em toda a cidade.

- Chegas mesmo na altura certa - diz René.

 

Agora o Abafado está quase sempre às moscas. E já não falo dos jovens, que vão para os dancings Voodoo ou Paddock em ranchos de oito, todos enfiados num carro, sabe Deus a que horas chegam, a altas horas da madrugada com certeza, mas isso não é coisa que nos tire o sono. Nem o saber que só aguentam a noite inteira à custa de pastilhinhas, pozinhos ou injecçõezinhas. Parece que inventaram uma pastilha que faz reviver o nascimento, o instante em que se saiu da barriga da mãe. Eu cá por mim nem pensar em experimentar uma coisa dessas. Mas não era disso que eu queria falar, mas sim das pessoas sérias, gente como nós, que dantes vinham ao café e agora passam as noites com os olhos colados ao televisor. E quando houver televisão a cores ainda vai ser pior.

O assunto de que falamos agora, com sincero pesar e desgosto, é da morte misteriosa do Michel Pesseroy, trinta anos, preste atenção, não por ter ficado, uma semana inteira, sem ir à casinha fazer as suas necessidades, mas por causa do suor azul que lhe escorria pela testa e pela cara abaixo e da bílis azul que vomitava em farfalhos. O pobre do Michel fez tudo o que pôde, mas não conseguiu livrar-se desse azul maldito. De pouco serviu lavar e esfregar. O doutor Vermeulen ainda tentou com éter, mas nada, o azul escureceu e ficou raiado das marcas vermelhas da esfrega, deu-lhe um purgante salgado, e nada, foi então que o Michel disse à mulher: - Andrea, vou jogar ténis, para fazer um pouco de movimento. -Já se está a ver o que aconteceu, lá no clube mijaram-se de rir, quando é que se viu um tenista azul? E quando o pobre do Michel ia para fazer um serviço, estica-se todo, como é normal, o coração não aguenta e vai-se abaixo.

- Ele estava casado há pouco, não estava?

- O Michel? Não.

- É que se costuma dizer isso dos casadinhos de fresco, quando se entusiasmam de mais. Ponham-se no lugar deles... E o ténis, ainda por cima...

Agora é um escândalo que nem a justiça, nem a administração, nem a alfândega, nem as brigadas especiais, nem o governo, nem a província tomem medidas contra o culpado disto tudo. O tipo tem as costas quentes, mas porquê, como e quem lhas aquece? Já não há justiça neste mundo, nem na Bélgica. É preciso fazer qualquer coisa, com lei ou sem ela. Não vamos ficar à espera até batermos todos a bota, começarmos a cair para aí como moscas, velhos e crianças incluídos. Até ficarmos todos azuis. Não, não.

Estávamos nesta, encostados ao balcão, de copo de cerveja na mão, quando vemos um vulto desfilar à frente da nossa retina.

Uma Vespa, uma dessas motorizadas que quase já desapareceram de circulação, com a Julia Rombouts a conduzir e, atrás, a personagem das nossas conversas, o renegado em carne e osso, o René Catrijsse, agarrado a ela, com as mãos mesmo por baixo dos peitos que, diga-se de passagem, são um regalo para a vista, sobretudo no Verão, quando anda por aí mais arejada.

Godderis pragueja e corre em direcção à porta. E nós atrás dele! Mas deve compreender, quando uma pessoa já tem a sua ração de cerveja no papo, fica com os reflexos mais lentos. Entretanto, já se tinha formado um ajuntamento dos diabos à porta do café, empurrão para aqui safanão para ali, ninguém se entendia. Resumindo e concluindo, quando conseguimos chegar à rua ainda vemos a Vespa a meter-se pela estrada para Vyve-Saint-Éloi.

Dos nossos há quem garanta que o Catrijsse ainda olhou para trás e nos acenou como para dizer: - Vocês aí, grandes palermas, podem lamber-me o eu. - Outros afirmam a pés juntos que, ao passar pelo café, ele nos atirou com um lenço contaminado com os tão temidos bacilos africanos. Duma maneira ou doutra, tratava-se de provocação deliberada. Voltámos para dentro do café, ofendidos, humilhados, e bebemos mais um copo para esquecer. Queríamos ir imediatamente à loja dos Catrijsse, já não éramos responsáveis pelos nossos actos, havia circunstâncias atenuantes, éramos objecto de uma pulsão irreprimível (conforme prevê o artigo 77" do Código Penal, nas palavras do ex-oficial de diligências Jules Piron), mas sabe como nós somos, bebemos o último copo e depois mais um para rematar, e resolvemos dar livre curso à nossa indignação num momento mais oportuno.

Foi assim que René Catrijsse e a sua família cúmplice escaparam por um triz à ira colectiva de Bousekerke.

 

Tal como os atletas têm alturas na vida em que, estimulados ou não por substâncias químicas, transpõem a fronteira das suas possibilidades e vão parar a essa terra de ninguém, à glória do sobre-humano em que cada neurónio, cada célula é açoitada, sacudida por forças interiores insuspeitáveis... - anotava o mestre Arsène no seu diário. Pousou a sua Waterman, mudou de óculos e olhou para a mulher que, no recreio, ensinava os pequenitos a jogar voleibol. Saltitava, atirava a bola, esticava-se toda, gritava de entusiasmo. Riamo-nos e convivamos com os nossos, engalfinhemo-nos e morramos com os outros.

Depois voltou à tábua pousada em cima dum cavalete a que ele chamava escrivaninha, mudou de óculos, releu as últimas linhas, escritas na sua letra indecifrável, constatou que as letrinhas irregulares eram, apesar de tudo, mais legíveis do que as de Montaigne ou de Tomás de Aquino, sentou-se, fazendo ranger a madeira, e escreveu: - Foi nesse estado que R.C. entrou na minha sala de aula, amparado em J.R., a quem ordenou com um gesto autoritário, quase brutal, que esperasse por ele na fábrica de leite. J.R. obedeceu. O rabo dela não é nada de desperdiçar, mas, pessoalmente, prefiro o rabo mais modesto da irmã A.

R.C. começou a falar do passado, que parece pesar-lhe sobre os ombros como um fardo. Segundo ele, eu tinha tolhido a sua educação ao ignorá-lo duma forma ostensiva, quando ele só pedia atenção, mesmo fazendo-o por meio de disparates, de inconveniências e de uma insolência sem limites. Se eu, por acaso, não tinha notado, disse com veemência, que só estava a pedir afecto, ternura, que não recebia na casa   C. com loja anexa. Observou que eu estava com muito bom aspecto, o que me lisonjeou bastante, é claro, (embora a minha mulher ache que me pareço cada vez mais com um dog francês), mas só mais tarde é que fiquei consciente da Ironia dessa alusão.

Depois de ter enumerado mais umas tantas patetices da minha parte, que, segundo ele, eram responsáveis a) pelo seu comportamento insolente nessa época, b) pelos excessos de toda a espécie a que se entregou na companhia de rapazolas da sua laia e que não passavam de desafios à autoridade, c) pela incapacidade de exprimir as suas ideias (sic).

Perguntei-lhe sem rodeios em que podia ajudá-lo e acrescentei que, comparando com antigamente, o achava mais sereno (o que, evidentemente, não era verdade, mas uma jogada táctica da minha pessoa para descortinar o verdadeiro objectivo da sua vinda).

Ele disse-me que queria lançar um último olhar ao recreio da sua infância. Autorizei-o a dar uma volta pela escola. Mas, aparentemente, o que viu não lhe deu a alegria que esperava. Disse então que notava a falta da tília que estava antigamente no meio do recreio (o símbolo indo-germâ-nico de hospitalidade - mas que sabe um labrego como ele dessas coisas). A lengalenga que se seguiu andava sobretudo em torno da noção de saudade e, como tal, era de natureza bastante melancólica. Posso introduzir aqui um detalhe, na minha opinião, muito elucidativo? O R.C. maquilha-se. Não sei o que haverá por trás dessas manobras de sedução, que efeito pretenderá provocar ao pintar os lábios de azul, a mim, pelo menos, isso não me excita, deixa-me completamente indiferente. O que me impressionou mais nesta despedida estranha e inesperada? O notar que ele não queria falar dos anos passados no continente africano. Ou seria porque, no seu estado, não era capaz de produzir um relato coerente? Receio que seja esta a explicação, porque a uma minha pergunta muito concreta sobre o continente africano, mais concretamente, o que achava do nosso papel e da nossa missão de europeus privilegiados junto das populações oprimidas dessas paragens, ele respondeu com ruídos guturais incompreensíveis, uma espécie de estalidos com a língua que, julgo eu, se assemelhavam à língua falada pelos nativos. Para mim aquilo era língua de preto, se me é permitido falar assim. Temerário, respondi-lhe com os mesmos sons, mas a minha tentativa gerou nele uma repulsão tal, bem expressa no seu olhar hostil que eu engoli o último estalido.

Repeti a minha pergunta mais resumida e aduzi-lhe uma pergunta acessória, concretamente, se não seria possível o entendimento entre a maioria das populações ignorantes através de uma forma simplificada do esperanto. É claro que não lhe contei que sou um esperantista de gema e que conheci a minha esposa por intermédio de um clube da Língua da Esperança. Mas embati numa barreira intransponível.

Resolvi então perguntar-lhe outra vez, sem rodeios, como justificava os serviços prestados ao exército belga que apoiava a exploração do Terceiro Mundo.

Tive a impressão de que, talvez por lhe fazer uma pergunta tão directa, ia replicar, mas, infelizmente, limitou-se a repetir a palavra «exploração». Fiel à minha vocação, achei meu dever - como se o tivesse ainda diante de mim, de calções, sentado na sua carteira - explicar-lhe sucintamente o processo em que se cria, primeiro, um grupo de seres humanos classificados de inferiores e, depois, um sistema ideológico que os considera inferiores, sendo esta inferioridade, afinal, que nos permite justificar a nossa exploração sistemática.

Não me respondeu, o que é pena, porque me podia ter esclarecido até que ponto a sua própria rebeldia de criança na minha escola tinha algum paralelismo com a rebeldia dos povos oprimidos. Porque é que ele se rebelava e porque é que os rebeldes em África deitam fogo a tudo o que lhes aparece pela frente? Porque, confessemos, é totalmente irracional deitar fogo às suas posses, às suas palhotas, à sua aldeia. Ou não será?

- E, no entanto - prossegui com uma certa petulância -, esse niilismo, essa autodestruição é a única alternativa, a única solução (li esta frase ainda esta semana, não sei onde, mas motus, é claro). - Mas ele já não conseguia seguir este meu raciocínio. Notei que cabeceava como se assistisse a uma aula monótona, solarenga e interminável. Seria por causa da minha exposição ou era algum resto de luxúria escondido na sua carcaça esquelética que o empurrava para a J.R. que o esperava lá fora? R.C. levantou-se.

Já à porta da rua, quando lhe desejei boa sorte e felicidades e disse que o apoiava na provação que estava a atravessar, ele disse como se nada fosse: - Você é e será sempre um mestre-escola com cara de cu mal lavado.

Não senti o mínimo de compaixão quando o vi cambalear na rua.

 

René levava as mãos cruzadas por baixo do peito de Julia, cujas saliências lhe assentavam nos polegares. Os seios subiam e desciam com os solavancos nas pedras da calçada. Por que não tinha ela escolhido a estrada de terra batida paralela, por baixo das árvores inclinadas pelo vento do mar?

No começo, ela perguntou-lhe como é que ele se sentia. À medida que se aproximavam da abadia de Moerskapelle, uma construção maciça e atarracada com um telhado enorme que se divisava de muito longe, ela esqueceu-se dele, absorta pelos solavancos da Vespa, pelos saltos e ressaltos do baixo ventre. Salta cavalinho, upa, upa. Ele sentia-lhe o calor das costas e das nádegas, cavalgava para o inferno envolto no calor dela. De vez em quando, ela dava uma guinada e ele apertava-a mais contra si. Outras vezes, ele tinha a impressão de que ela fechava os olhos, enquanto acelerava e abrandava a marcha.

Por fim, a motorizada parou. René sentiu a dor que tinha cravada no peito e agora se alastrava a todo o corpo. Amparado a ela, deitou-se de lado na margem do canal. Parece que é minha sina depender sempre da ajuda das mulheres. Julia, sentada a seu lado, observava a dança aturdida de uma libelinha por cima da água cortada por estrias.

- O que estás a trautear? - perguntou ele.

- Nada de especial. Nem me tinha apercebido disso. Tens dores?

Ao longe, a fábrica de nuvens brancas e gélidas de hidrogénio respondeu com o som assustadoramente estridente de uma sirene.

-Já passa.

- Sabes, ainda agora, em cima da motorizada, gozei aí umas três vezes.

- Parabéns.

- A certa altura até pensei que ia cair da motorizada.

- Obrigado.

- Caía, de braços estendidos, e tu tombavas devagarinho por cima de mim.

A libelinha ficou suspensa no ar com os olhinhos vidrados, a cabeça gorda e redonda, as asas transparentes a tremular e a tremeluzir à luz do Sol.

- Em quantos países já estiveste?

René começou a contar.

- Chega.

- Deves ter visto coisas muito esquisitas.

- Bem podes dizê-lo.

- Hábitos esquisitos.

Ele descolou cuidadosamente a camisa encharcada das costas a arder.

 

Tornou-se hábito a gente correr, escorregar, caminhar aos encontrões, atolados na lama barrenta, com um rancho de miúdos atrás de nós, que, graças a Deus, atarantados pelo khat, nem sequer se esforçavam por apontar a metralhadora como deviam. Escorregavam dentro das sapatilhas, riam sem parar, alguns cantavam Ican'tget no satisfaction. Quando, de repente, um deles, com uns nove, dez anos de idade, nos apareceu à frente a dançar convulsivamente, a brandir a catana, e desatou a correr na nossa direcção tão depressa que fiquei tolhido de medo. Não me saía um som das goelas. A catana passou a rasar pela cara do Charlie. À noite, no CaféMatadi, Charlie contou que a catana lhe tinha partido o cigarro ao meio.

Nessa época tirámos a tosse aí a uns dez. O Cap é que sabe exactamente quantos foram. Também umas miúdas. Deixámo-las estendidas no chão. Para servir de exemplo. No dia seguinte, vimos na palhoça-quitanda as suas caveiras e os seus órgãos genitais em exposição. Enterrar uma caveira no jardim garante êxito comercial absoluto. Guardar olhos em casa afasta a miopia. Peitos decepados asseguram a fertilidade.

- Num outro tempo e num outro país talvez as coisas se tivessem arranjado entre nós - disse René.

- Quem sabe?

- O deus dos cem peidos velozes. Julia dá uma gargalhada.

- É o nome que os ubangis dão à metralhadora.

- Isso é invenção tua.

-Não. Pergunta aos meus camaradas.

- Prefiro não falar com eles.

- Como quiseres. Também não ia ser fácil encontrá-los. No Congo éramos doze. Ainda há uns seis vivos e quatro estão na choça. Sempre chega o momento em que se passa das marcas.

Ela deitou-se ao lado dele, lambeu-lhe o sal da cara.

- Não me toques nas costas - disse ele atirando-a ao chão e comprimindo-lhe os ombros contra a erva.

- Cuidado.

Parecia-lhe uma cena do livro Enfermeira Susete da Enfermaria Sete que andava a ler. Qualquer coisa como: «Os seus seios, despertos pelo estalar e o oscilar do pónei italiano de metal, ficam quentes, frouxos, pesados e comprimem-se violentamente contra ele, cuja boca desliza pela sua face ao mesmo tempo que lhe sussurra, por entre gemidos e grunhidos, que a ama, fazendo-lhe sentir um arrepio na nuca. Ela sente o corpo amolecer de puro gozo e, enquanto chega ao clímax, ele chupa o nariz dela, como um bebé».

- Ainda eras virgem? - perguntou ele.

- Achas isso estranho?

- Sim.

- Na minha idade?

- Sim. A sério, nunca ninguém meteu lá dentro? Uma vez só?

- Não. Eu preferi guardar-me.

- Para o príncipe de cavalo branco?

- Para ti.

Capítulo quatro do livro Enfermeira Susete da Enfermaria Sete que terminava: «Como é que, na entrega a esse jogo animalesco, o amor se transformava em morte?».

- Escuta - disse Julia -, não digas nada ao Noêl. Prometes?

- Prometo - disse ele lambendo-lhe o sangue da coxa.

O miúdo de dez anos fez um passo de dança. Ergueu a catana no ar. Charlie saltou para o lado e deu um grito. Eu peguei na minha metralhadora e bati com força na têmpora da cabeça da criança gordurosa e cor de azeviche. Caiu para o lado. Apanhei a catana. Usar sempre as armas do inimigo. Dei-lhe um golpe no crânio que rachou ao meio, o cérebro branco e rosado saltou da sua concha e caiu em cima do seu peito trémulo.

 

Já há muito que se consta que a família Catrijsse está a passar por um mau bocado. A maioria não deixa de dormir por causa disso e o resto está-se totalmente nas tintas. Gerard, dá cá mais uma cervejinha e uma tablete de chocolate de leite com avelãs para levar para a patroa. Há outros que acham que o que aconteceu aos Catrijsses não é nada, comparado com toda a desgraça que vai por esse mundo, mas, por este andar, passava-se a vida a comparar tudo, não há justiça na Natureza, pronto, não temos nada que refilar, há sempre pior, basta olhar para o Extremo Oriente, onde os tipos se esfolam uns aos outros como coelhos, devem achar que são todos donos da verdade. Gerard, não tens aí umas rodelas de chouriço para acompanhar a cerveja?

Veja-se o Tijtgat, por exemplo, que ficou com o corpo cheio de nódoas lilases com rebordo dourado. A princípio, ele até pensava que era uma doença que tinha apanhado dalguma badalhoca ou das suas brincadeiras com o assobio. Não foi ao doutor Vermeulen porque tinha lá em casa os fiscais das finanças a controlar-lhe os livros todos, só lhe largaram a porta ao fim de dois dias, e quando os cavalheiros se foram embora aconselharam-no a arranjar um bom especialista em impostos e disseram-lhe que, por acaso, até conheciam um de muita confiança, um antigo colega, a criatura nem teve tempo para telefonar ao tal homem de confiança. Começou a escarrar azul e, pronto, bateu a bota. E os professores do Hospital Universitário ficaram a coçar a cabeça sem saber o que pensar. O que aconteceu, aliás, há quinze mil anos, quando andavam à procura da explicação para a coqueluche ter passado dos porcos para os homens.

-Já havia professores nessa época?

É só uma maneira de dizer! Contigo parece que tem de ser tudo à letra.

- E contigo à palavra.

Ainda há milagres neste mundo, porque não é que, nesse preciso momento, aparece à entrada da porta, assim sem mais nem menos, o Noêl Catrijsse!

Está bêbedo. Talvez pela primeira vez na sua vida.

Não temos nada contra o rapaz, que fique bem claro, mas a sua aparição no Abafado é muito esquisita. E porque é uma coisa tão fora do vulgar,. todos nós, sem excepção, nos sentimos inclinados a perdoar-lhe por ser um Catrijsse. Dizemos: - Ora vejam, o nosso Noêl! - Os últimos a chegar são sempre os melhores fregueses. - Senta-te aqui que eu pago-te um copo. - Bons olhos te vejam! - E assim por diante. Noêl, encostado ao balcão, de costas para nós, não se mexe.

Gerard, que já viu de tudo no seu café, dá-lhe uma cerveja. Noél pega no copo e olha para ele como se nunca tivesse visto cerveja na sua vida. Depois volta-se para trás e olha para nós com um ar do género: Que está a fazer aqui esta gente toda? Balança com o copo de cerveja por cima das nossas cabeças e grita: - Apolo! Aqui tendes o Apolo!

Quem fica mais molhado é o Jules Piron, sentado logo à frente, no seu fato impecável de oficial de diligências. Mas quem fica mais furioso é, naturalmente, o Leon Schamphelaere, colérico por temperamento e condenado uma vez por, num ataque de fúria, ter mandado o cunhado para o hospital. Leon levanta-se, mas o Gerard pega no braço de Noêl e diz-lhe: - Noél, amigo, agora vais dizer ali àquele meu cliente que foi um acidente devido ao teu estado e pedes-lhe desculpa educadamente. Senão vejo-me obrigado a dar-te um murro nas ventas, Apolo ou não Apolo, e pôr-te lá fora com um pontapé no eu.

Gerard é celibatário e um bocado fanfarrão. Se lhe perguntarem qual é a capital da Espanha, ele não sabe, mas não há como ele para lidar com as pessoas. E, acredite ou não, o Noèl volta a olhar para nós, vendo provavelmente os mesmos tipos esquisitos de há pouco, mas agora todos borrifados de cerveja e diz:

- Gerard, tens razão, não sou pessoa de andar metido em cafés. Desculpa. A sério, desculpa-me. - E desata a chorar. - Eu que só quero que haja paz e alegria e estejam todos felizes e contentes, eu que amo o meu semelhante, sem excepção, eu que era capaz de pôr as mãos no fogo por todos vós, faço um disparate destes. Perdão. Por favor, perdoem-me.

Bom, nós aqui no Abafado temos os nossos sentimentos e não ficamos indiferentes a alguém que chora, a alguém que, apesar de não ser freguês habitual do Abafado, é nosso conterrâneo. Dizemos: - Noél, deixa lá, pronto. Pode acontecer a qualquer um derramar cerveja ou deixar cair o copo. Anda, vamos lá buscar outra cerveja.

Noêl foi buscar mais uma, mais outra e mais outra. De vez em quando, dizia como os bêbedos ordeiros com o costume de falar sozinhos: - Nunca mais na minha vida eu digo Apoio. - e - A carne é fraca. - e - Uma rodada por minha conta. - O Leon Schamphelaere chegou-se a ele e disse: - Tiveste sorte por eu ter-me controlado, Noél, senão podia ter-te sucedido a ti o mesmo que sucedeu ao meu cunhado Mareei. - E, pela quinquagé-sima vez, temos de aturar a litania gabarola das lesões que apresentava o cunhado quando chegou ao hospital: «Contusão da omoplata esquerda, contusão e esfacelamento do pescoço em consequência de esganamento, músculos abdominais doridos ao toque, dores na região renal em consequência de pancadas, contusão na tíbia esquerda.»

Noêl estava boquiaberto e nós enjoados da mesma conversa de sempre. Depois de umas sete ou oito cervejas, o Noêl tentou atirar uns dardos. Mas as flechas ficaram todas espetadas no papel de parede à volta do alvo, uma delas até foi parar ao cartaz com a fotografia de Rik van Looy, que participa no Campeonato do Mundo de Ciclismo. Depois ficou calado durante um bom bocado, falar com ele era o mesmo que falar para o muro de Jerusalém. A certa altura, tirou do bolso de dentro do casaco uma chave de fendas, virou-se para nós e gritou-nos que deixássemos o irmão em paz e que ele era o único culpado do que se passava na aldeia. - Sim, eu, Noêl Catrijsse, sou o culpado de tudo e vou pagar por isso, juro por todos os santos.

- E por Apolo - disse um engraçado.

- Sim, por Apolo - disse Noêl sorumbático. Gira a chave de fendas entre o polegar e o indicador e espeta a ponta aguda e achatada na palma da mão. Só depois vemos como entrou fundo, lhe trespassou a mão. E, antes de termos tempo para recuperar do susto, ele vai e faz o mesmo com a outra mão. O sangue esguicha para todos os lados. Um engraçado diz: - Não sabia que eras faquir. - Leon Schamphelaere vai atrás do balcão, pega no pano da louça, que o Gerard usa para enxugar os copos e, às vazes, o suor, e rasga-o ao meio. - Não aguento ver uma coisa dessas - diz, embrulhando as mãos de Noêl nas tiras de pano.

O Noêl fica de olhos fixos nas ligaduras improvisadas, como se olhasse para as mãos empanadas doutra pessoa.

o é por estarmos habituados a quase todos os tipos de violência, mas não sentimos grande pena do Noèl. Preferimos desviar os olhos. Porque ó que se passou diante do nosso nariz se parece mais com violência desenfreada e disso é melhor fugir. É que vivemos guerras pavorosas, fomos vítimas de catástrofes. E, afinal, não é verdade que escapámos sem grandes arranhões? E tudo porque não fizemos muitas ondas e ficámos com os olhos bem abertos para ver de que lado soprava o vento.

Foi o Leon Schamphelaere, o diabo em figura de gente, quem levou o Noêl para casa.

 

Como é que posso ser tão estúpida? Alma levanta-se da cama- o cheiro a batatas esturricadas mistura-se com o cheiro do febrão. Desce as escadas a correr e mete-se pelo corredor. O cheiro que vem da cozinha é cada vez mais forte. Acende a luz. - Ai, ai, ai. - As batatas com toucinho frito ficaram como tições. Abre o postigo.

Da penumbra da sala alguém imita o seu «Ai, ai, ai.»

- René?

Responde um rísinho trémulo.

- Noêl?

Está deitado no sofá com os cachos do cabelo colados à cara desvairada. Mostra-lhe as mãos empanadas.

- Fiz disparatei Também eu.

Enquanto ele conta o que aconteceu, ela tira-lhe das mãos os farrapos imundos. Não há desgraça neste Mundo que não me venha bater à porta.

- E o que foste fazer a essa espelunca?

-Queria ser como toda a gente.

- Tu és como toda a gente - Toda a gente tem de carregar a sua cruz. A tua está dentro da tua cabeça, é tudo. Meu patetinha.

Pincela-lhe as palmas das mãos com tintura de iodo.

- Nem sequer sabe o meu nome.

- Não digas disparates.

- Mas quando entrou na sala, disse René.

Ela pôe-lhe ligaduras limpas.

- Dói-te?

- Não.

- Noêl - diz mais alto -, dói-te ou não te dói?

- Um bocadinho.

- Patetinha.

Ela vai para a cozinha e raspa as batatas coladas ao fundo do tacho, pensando que é pecado deitar fora comida mesmo estragado. Pousa o tacho em cima duma tábua e come tudo.

- Devias ter-me deitado na retrete, quando nasci - diz Noêl, que se levanta do sofá para rapar as crostas que tinham ficado no tacho, sentado com os pés bem juntos em cima da travessa da cadeira.

Como é indefeso este meu filho! O que se passa comigo nos últimos tempos? Cada palavra ou cada gesto dos meus rapazes faz-me vir as lágrimas aos olhos.

- Eu podia ocupar o lugar do René - diz Noêl. - Quando Deus estiver distraído, Ele tem tanto que fazer neste mundo que não pode vigiar-nos a toda a hora e momento; nessa altura, eu e o René, podíamos trocar de inteligência e de pele.

- E porquê?

- Para eu o... aliviar.

- Aliviar de quê?

- Para aliviá-lo - diz com gravidade - da sua cruz.

Ela pega-lhe na mão direita informe e encosta-a à face.

 

Na sala de jantar da vivenda paterna, Alice enfrenta desafiadora Hector, seu pai. Pousa na mesa de acaju uma maleta com os objectos de estimação para, no último momento, atirar lá para dentro mais um objecto de estimação.

Parte do princípio de que o pai não lhe baterá, não é o estilo praticado na casa dos Rombouts, mas fica com certas dúvidas quando o vê de cara afogueada e a bufar de raiva.

Acabaram de ter uma conversa a três, durante a qual duas das partes envolvidas se insultaram como nunca tinham feito antes, e que terminou com a ameaça de Hector: se Alice atravessasse a soleira da porta, seria para sempre.

- Compreendo que queiras dar uma mãozinha a essa gente - diz Hedwige Rombouts. - Sempre tiveste inclinação para Florence Nightin-gale.

- Mais para Padre Damian, acho - diz Hector. - Esse também ficou com o corpo coberto de pústulas.

- Mas que queiras mudar-te para esse ninho infectado, é coisa que não me entra na cabeça.

- Eles nem sequer têm quarto de banho.

- Hector, isso não interessa para o caso.

- Meu Deus, que fiz eu para merecer isto?

- Alice - diz a mãe -, vais para o teu quarto, metes a mala dentro do armário, voltas cá para baixo, pões um avental, pegas no ferro de engomar e não se fala mais do assunto.

- Alguém tem de tratar da Alma.

- Lá isso é verdade. Mas porquê tu, diz-me.

- Porque não há mais ninguém.

- Tu vais tratar é do retardado, confessa.

- Também dele.

Alice inspecciona o pai, de quem herdou o queixo quadrado e os olhos encovados, que diz:

- Percebo-te muito bem. Estás a ver a tua grande oportunidade. A Julia pôs-se a andar e deixou um lugar vago à beira do pateta alegre. Tens ciúmes da tua irmã e queres esmigalhar-lhe um tomate.

- Hector, cuidado com a linguagem.

Deu uma gargalhada ao imaginar a Julia com o tomate que lhe restava a espreitar pelo lado das cuecas.

- Ri-te, ri-te, palhaço - gritou Hector Rombouts. - Meu Deus, que fiz eu para merecer isto? - pergunta às duas mulheres, à aldeia, às estrelas do firmamento. - Com que cara vou aparecer aos meus clientes? As minhas duas filhas a espalhar por aí a peste bubónica! Tenho a certeza de que um dia destes vamos dar com a fachada da casa coberta de suásticas. Se não se lembram de nos pôr uma bomba-relógio à porta.

Pensa bem no que fazes, Alice. Pensa que não temos mais ninguém, pensa que já nos basta o desgosto que a tua irmã nos deu ao fugir com o desgraçado do René. Se não fosse a tua mãe, já tinha posto a polícia em acção.

- E ainda por cima mentir à própria mãe! Porque, quando lhe perguntei aonde estava, ela respondeu: - Algures no campo. - E eu a ouvir, ao fundo, e tu sabes como tenho o ouvido apurado, raios me partam, a sirene do barco do correio de Ostenda. Cabrona!

- Mamã, cuidado com a linguagem.

- Ri-te, ri-te.

- Palhaço - diz Hector Rombouts com a voz apagada.

 

Caem do céu flocos de neve muito grossos. A montanha é uma massa branca granulosa percorrida por veiozinhos negros, os abetos têm os ramos pontiagudos. No vale, a neve tem dois metros de altura. A neve cobre todos os vestígios de pegadas. Não faz sentido sair do acampamento. No entanto, no meio desse branco excessivo há um homem de capote com gola de pele e óculos escuros. É assim que Alma o vê pela primeira vez, umas costas, um vulto muito direito, a caçadeira. O vulto aproxima-se da ravina e desaparece, por duas vezes ela chega a pensar que se despenhou no abismo, de braços abertos como um pára-quedista em queda livre.

(Foi numa quarta-feira, o dia de distribuição de pão alemão, escuro e ácido, não era ao jantar mas ao almoço. A padaria não funcionava a cem por cento. Alma estava na bicha e, quando lhe estenderam o naco de pão, ela pegou nele com um gesto brusco antes que uma enfermeira, uma Schwes-ter, de grau superior ao dela, lhe deitasse a mão.)

Tentou encontrar o centro do turbilhão dos flocos em rodopio monótono, o núcleo da tempestade de neve, e foi então que viu o vulto em redor do qual o vento redemoinhava. O homem tem na cabeça um capacete de pára-quedista, segura a espingarda debaixo do cotovelo esquerdo, provavelmente uma arma apreendida aos americanos. Encaminha-se para a ravina, avança de lado para oferecer menos resistência ao vento e desaparece por trás da crista do monte.

(Isto passou-se catorze dias antes da chegada dos americanos, quando já não havia ninguém para dar ordens e quase todos os oficiais tinham fugido.)                                                                                      

Nesse mesmo primeiro dia, ela dá de caras com ele quando entra de rompante na sala de operações, com o capote a flutuar em seu redor. Ajuda-o a desfazer-se do abrigo e nota que ele tem as sobrancelhas e as pestanas cobertas de neve e pontinhos dourados nas íris azuis. É eficiente, brusco, irascível. As enfermeiras têm uma veneração cega por ele. Extrai um baço e põe talas numa perna.

É então que repara, pelo seu sotaque, que não é alemã, e exclama num tom jovial: «E dizer que precisei de andar tantos quilómetros para encontrar uma compatriota! Há quanto tempo estás aqui?».

- Há uma semana - responde ela atarantada. Ele é bonito e tem a pele bronzeada como Luis Trenker, o campeão de alpinismo. Tem mãos largas e tisnadas de trabalhador. É dois palmos mais alto do que ela.

- Vemo-nos mais logo - diz limpando as mãos a uma toalha que Helena, a enfermeira-chefe, lhe estende. Alma preferia que ele tivesse limpo as mãos aos seus cabelos.

- Se continuar a nevar assim, não aparece por aí nenhum americano, os tipos são uns cagões. Udets não hesitava um segundo. Ao contrário, é exactamente deste tempo que ele gosta.

- Udets?

- Não sabes quem...?

- Não.

- Vai à cantina. Lá encontras um monte de revistas Der Adler. Em todos os números, há uma fotografia dele.

Ele acha que sou uma labrega, uma burra.

- Donde é? - Faz esta pergunta com uma voz tão tímida, tão baixa, que ele nem lhe responde.

Ajuda-o a tirar a camisa manchada de ocre e vermelho, parece uma cerimónia, e pousa a camisa dobrada no braço, como se fosse uma casula. Ele afasta-se em direcção ao acampamento. De repente, pára de nevar. Por cima dos campos, um céu parado e pesado. O cheiro das fábricas, dos fornos.

Os americanos não aparecem. Ele também não.

Nessa noite, ficou à espera dele. Do chuveiro só saíam umas gotas cor de ferrugem. Frisou o cabelo, pôs um pouquinho de água de colónia. Deitada na cama, sentia-se furiosa, triste. Começou a apalpar-se, mas parou logo a seguir.

Depois, impelida pelo seu amor repentino e impossível de aquietar, precipitou-se para a cantina onde deu com ele, bêbedo, a dançar rodeado de enfermeiras alemãs e três flamengas. Wir machen Musik, da geht uns der Hut hoch e Wie is...e uma cantiga dos Ramblers.

Ele não dança ao ritmo da música, mas como um bávaro a bater estupidamente nas nádegas e nas barrigas das pernas.

Só depois de um quarto de hora, quando ela suplicou baixinho: - Idiota, olha para aqui para este lado, vais ver que não te arrependes - é que ele se apercebeu da sua presença. Largou Helga, uma electricista de Lubeque, no meio da dança e, com a maior naturalidade do mundo, encaminhou-se para ela. Fingiu que inventava um novo passo de dança grosseiro e apertou-a contra ele.

- Ei - disse ela. - Ei.

- Que é isso de ei? Não sou nenhum cavalo.

- Não. Não és um cavalo mas um cachorro cobarde.

- Não acordes o cachorro do seu sono - replicou.

Ela não se riu, não apreciava trocadilhos. Sentiu nele o cheiro a sabonete Sunlight.

- Anda comigo - disse.

- Mas, eu tenho...

- Não tens nada. Nada de nada.

Foram parar, ele cambaleante, ela triunfante, ao quarto dele. Ficaram lá fechados durante três dias, ao som das explosões das bombas. Ele possuiu-a a ela e ela a ele. As horas que passaram no hospital eram horas perdidas no tempo que lhes restava. Depois, já, sob o jugo do Seu amor, ela começou a achá-Lo repugnante, tresloucado. Quando, por exemplo, algumas vezes na companhia dum médico amigo, mas geralmente sozinho, ia para o meio da neve, à caça dos Untermenschen que tinham conseguido evadir-se. Sem ele notar, ela tirou-Lhe uma fotografia no meio duma tempestade de neve. Para depois, quando ele tivesse sido fuzilado pelos aliados.

 

Pelo que conseguimos apurar, Adhemar, o criado do senhor Cantillon, o responsável pela colónia de furões, que, nessa noite, já bastante tarde, tinha ido ao bar Tricky, era um cliente muito estimado. Segundo Nedjima, que nessa noite se ocupara do notário Albrecht, com pouco sucesso diga-se de passagem, Camila estava a curar uma bebedeira triste, o que, aliás, acontecia com frequência nos últimos tempos, mais precisamente depois da visita de René Catrijsse ao seu estabelecimento. Nedjima conta até que, enquanto examinava com uma lupa um livro de estampas pousado no regaço, as lágrimas escorriam pela cara de Camila abaixo, o que a levou a pensar: «Daqui a pouco, as lágrimas caem em cima desse livro tão bonito e instrutivo» e, pronto, foi o que aconteceu. As cores da estampa com uma libélula em tamanho natural ficaram todas esborratadas. E, segundo ela, Camila terá dito: - Tudo aquilo em que ele toca fica conspurcado, infectado e destruído.

Adhemar tem um coração de ouro, é muito zeloso e prestável, mas, apesar disso, dizemos às vezes: «Deve ter qualquer vício escondido». Como acha que a Camila precisa de um empurrãozinho, ele diz: - Por que não vens comigo para o castelo do senhor Cantillon? O patrão está no apartamento dele, em Bruxelas. Teve de ir votar ao Senado com urgência, horas extraordinárias. - Camila (que não só se interessa pela vida dos animais, mas também é assinante da enciclopédia Casas e Castelos) diz: - Por que não? Já há muito tempo que gostava de ver o castelo por dentro. - E gritou: - Nedjima, como é que está a situação com o notário, ainda demoras? - Não gosto de pressas - grita-lhe o notário de volta -, senão já sei que fico a ver navios. - Nedjima, não te esqueças de apagar as luzes! - grita Camila, e vai com Adhemar para o seu Lada.

Ele mostra-lhe as divisões todas do castelo, ela fica pasmada. Oferece-lhe champanhe, Cuvée de Cantillon especial, no salão dos retratos dos antepassados. Tudo leva a crer que ela esqueceu a sua tristeza e que Adhemar vai conseguir levá-la para a cama antiga de família. Ele está a pensar se ela usará ou não calcinhas e se o obrigará ou não a pagar o serviço ou os serviços por inteiro, quando lhe sobe um grito à garganta. Agarra-se à coxa, onde uma lontra de pêlo cinzento lhe cravou as garras e os dentes aguçados. Camila, com o susto, não consegue articular palavra, corre para o fogão de sala e pega num atiçador. Gira com ele no ar como se o bicho fosse levantar voo e despenhar-se em cima da cabeça dela. Deixa cair o atiçador quando vê, aterrorizada, como Adhemar crava os dedos no pescoço do animal para obrigá-lo a largar a carne da coxa e a soltar-se das suas calças ensanguentadas, lhe bate com a cabeça contra as tábuas do soalho e o esmaga com o tacão da bota. Não satisfeito, o criado ainda lhe espezinha a cabeça e o rabo inchado.

Camila fica petrificada.

O criado apanha o animal do chão e cheira-o. - Raios me partam, é o Victor - diz perplexo. Entra em pânico. - Tu não sais daqui, ouviste? - ladra. Camila grita: - Não, nem pensar. Não quero ficar aqui sozinha.

- Nem mais uma palavra. Vais para ali e ficas sentada naquele canto até eu voltar.

Sai da sala a coxear e atravessa o relvado a correr.

- Coitadinho, pobre bichinho - diz Camila para a massa cabeluda e fedorenta. Espirra e tosse de indignação. Pega no atiçador e segue Adhemar sorrateiramente, escondida na sombra dos rododendros.

Agora o que não se sabe é se a sua intenção era realmente matar o Adhemar com o atiçador porque, conforme já antes se disse, era uma defensora fanática dos direitos dos animais e queria vingar a fauna toda.

Ela própria garante que só estava preocupada com o destino dos colegas engaiolados do Victor (que afinal não se chamava Victor mas Marie-Ange, com os nervos, o Adhemar tinha-se enganado) e que não tocou num cabelo do Adhemar e que, antes de abrir as trinta e duas gaiolas, esperou até vê-lo desaparecer no patamar, desvairado, para ir, com certeza, telefonar ao seu patrão em Bruxelas, e que se sentiu aturdida pelos gemidos e pela chiadeira dos bichinhos que tinham saído, de facto, em tropel das suas gaiolas mas que, em vez de fugirem para longe, tinham ficado a rondar a sua prisão, a saltar uns para cima dos outros, arrancando à dentada pedaços de carne, ou a correr de novo para dentro das gaiolas, onde giravam sobre si próprios como piões e batiam com a cabeça contra as grades. Em suma, sentiam, tal como o homem, a angústia da liberdade.

Encontraram Adhemar no salão oriental, a uns três metros do telefone, estendido sobre um tapete de Kashkai, a esvair-se em sangue. Na sua pressa de remediar o mal que fizera, deve ter tropeçado e batido com a cabeça contra o rebordo de uma lingam de pedra.

E o excesso de chumbo no sangue? Como disse o doutor Vermeulen.

Excesso de chumbo nos ossos. Se não fosse o chumbo, talvez Adhemar não tivesse caído, porque o chumbo ataca o cérebro e diminui a capacidade de reprimir os impulsos. O doutor Vermeulen vê chumbo em toda a parte.

Depois chega o senador Jules Arnaud Lambert de Cantillon, chamado com a maior urgência. É um prazer para os olhos vê-lo sair do seu Lancia, todo enfarpelado, com os cabelos ralos penteados para trás e empastados de Brylcream, a pele sem uma ruga como alguém que sofreu de febre amarela durante muito tempo. É um prazer para os olhos, o nosso Cantillon, com o fato de três peças Príncipe de Gales, o lacinho e os sapatos ingleses de couro pontilhado.

Inspeccionou os cadáveres das martas estendidos serenamente no chão, desembaraçados das suas glândulas desregradas, da pestilência do medo. É evidente que as peles estavam inutilizadas, estraçalhadas e cobertas de crostas de sangue seco com um tom azul quase fosforescente.

Ora, é preciso dizer que a dinastia Cantillon há séculos que possui um talento nato para o rancor, para a vingança.

Organizou-se uma reunião restrita no salão de jogos do castelo, em que estavam presentes o governador, um cónego, um subdirector do Banco de Roulers, o professor Maereback, uma autêntica barra em doenças in-fecto-contagiosas misteriosas e Gilbert Blaute, o tão temido ex-inspector. Beberam vinho do Porto morno. O professor Mareback trouxera consigo documentos com gráficos e tabelas que explicou com anedotas sem graça. O cónego evocou o martírio do reverendo Lamartijn. Blaute pouco disse, nem quando a assembleia se declarou convencida pelas conclusões do sábio, que se resumiam a confirmar que as ilações tiradas só tinham servido, até à data, para aumentar ainda mais o enigma da epidemia. Todos concordaram com a proposta do cónego de manter a máxima discrição, porque, disse, o nosso povo alarma-se por pouca coisa. Também foram unânimes na necessidade de debelar a origem do mal. O mais depressa possível, discretamente e de uma vez por todas.

Ainda houve objecções, hesitações, admoestações e considerações tácticas, mas, quando o jantar foi servido, um pâté sauvage auxpistaches (o que deu origem à pergunta maliciosa do professor Maereback se por acaso não lhe tinham juntado uns pedaços de marta) e uma blanquette de veau (em porções frugais, como é de esperar de uma refeição aristocrática), tudo bem regado com um Volnay e um Pommard, todos concordaram em incumbir o senhor Blaute dos trâmites e das diligências que o caso Catrijsse exigia. Quando o incorrigível professor Maereback disse que ficava bem ao cónego corroborar esta incumbência de Blaute com um Nihil obstat, este retorquiu: - Não diga disparates.

O governador aquiesceu: Scripta manent.

O subdirector do Banco de Roulers afiançou que, para o cumprimento da missão, se apelaria ao Fundo Especial das Tropas Irregulares de África. Acrescentou que a ironia do destino não escapava decerto aos seus interlocutores, pois o fundo que servira para angariar o irregular em causa serviria igualmente para eliminá-lo.

O governador deu também a entender que lhe tinham chegado das instâncias superiores sugestões informais mas vinculativas, instruções até, em cujos termos se afigurava conveniente que, num futuro próximo, se falasse o menos possível, ou mesmo que não se falasse mais, dessas tropas especiais. Era preciso reconhecer que os nossos homens deram em tão longínquas paragens um grande contributo para o prestígio e a consolidação da nossa presença no continente negro, mas agora a sua missão estava terminada.

 

O Hotel Verdelhão é um edifício maciço, estilo mansão, situado no meio das dunas e mandado construir pelo município logo a seguir à Primeira Guerra Mundial. Era para as férias de Sua Majestade, mas o rei vendeu-o mais tarde ao grupo Hilton.

As paredes dos quartos estão forradas a seda cor-de-rosa, o mobiliário é de fabrico sueco e a alcatifa é verde-mar.

No décimo dia depois de Julia e René terem chegado ao hotel, o porteiro entrega-lhes, com um sorriso cúmplice, um envelope no momento em que iam a sair para o seu passeio nocturno na praia. Julia vê como René empalidece.

- Quem entregou isto aqui? - balbucia. O porteiro olha contrariado para Julia.

- Quem foi? - pergunta ela. O medo de René passa para ela.

- Um rapaz.

- Que tipo de rapaz?

- Um rapaz. Entregou o envelope na recepção e saiu a correr pela porta fora. Usava o uniforme dos escuteiros.

No envelope está escrito quarto 12. René rasga-o e retira um postal ilustrado representando uma gárgula esbotenada da catedral de Notre-Dame. Por trás, as palavras: «As mesas estão em cacos. Hoje à. noite, às oito, os cacos vão ser distribuídos na Marina».

René arrasta Julia atrás de si na direcção da porta giratória, cujas vidraças fragmentam o molhe, a praia e o farol. Estuga o passo. Ela tem dificuldade em acompanhá-lo, mas está contente por ver nele essa energia recuperada.

René olha três vezes para trás, corre na direcção do parque de estacionamento, agacha-se atrás dum carro, sem lhe largar o braço.

- Tu não voltas mais para o hotel - disse, arquejante.

- Mas, e o meu dinheiro, o meu passaporte, os meus papéis...

- Podemos mandar alguém vir buscá-los. Não precisas deles agora. Vai ao cinema. Não entres no Casino.

Depois diz-lhe, desajeitadamente mas com decisão que vai ter com ela, por volta da meia-noite, à gelataria em frente da estação.

É inútil pedir explicações. Julia diz-lhe que o ama, umas seis ou sete vezes, e pede-lhe desculpa por se ter esquecido de lhe untar de manhã as costas empoladas, como costumava fazer todos os dias com toda a meiguice. Mas promete que à noite não se esquece de certeza.

- Tem cuidado contigo - diz-lhe, mesmo sabendo que é inútil.

Ela verá duas vezes seguidas um filme sobre uma fotografia tirada ao acaso, através da qual o fotógrafo consegue descobrir um assassínio. A história é difícil de seguir, vêem-se raparigas a andar à roda, nuas ou vestidas com roupa de Mary Quant e com penteado à Jean Shrimpton. Chorará por duas vezes quando vê, nas actualidades cinematográficas, um incêndio nuns armazéns que fez 355 mortos, e dará duas vezes uma risadinha maldosa e ordinária quando as mesmas actualidades têm a audácia de noticiar o terceiro aborto da rainha. Comerá vorazmente um pacotinho de batatas fritas mornas com maionese e entrará num dancing cheio de ingleses zaragateiros. Na casa de banho, um gandula com caracóis engordurados chateá-la-á e perguntar-lhe-á se pode beijá-la porque faz anos. Ela dirá que não gosta de aniversários. Depois irá a pé até à ponta do molhe, aterrorizada e abandonada por toda a gente menos por René. Por fim, encaminhar-se-á com extrema lentidão para a gelataria, comerá quatro gelados e ficará à espera.

Mais dois Pêche Melba com natas. E, enjoada, ficará à espera.

 

A Marina é um mastodonte dum barco de recreio oferecido pela cidade a Sua Majestade quando fez 50 anos e vendido depois pelo rei a um grande industrial. Há anos que está fundeado no porto, completamente esquecido, a desfazer-se lentamente por baixo da porcaria das gaivotas.

À meia-noite, René salta para a coberta. Não vê ninguém. Não lhe apetece vasculhar o barco, fica na proa. A cidade está toda iluminada. Senta-se em cima dum monte de cordame. Observa a Ursa Maior, a Andrómeda, Perseu, que estão a ser observadas também neste momento por Julia. Não teve tempo de lhe explicar a mensagem do Cap. O Cap é doido por joguinhos, mascaradas, códigos pueris. Tem passaportes em nome de Abraham Ickx, Dr. Midas, Pierre Perruche, etc.

- Julia - diz René -, é muito simples. As mesas são de pedra, trata-se portanto de pedras. Diamantes são pedras e estão agora em cacos, despojadas da sua força, minério da terra transformado, convertido em dinheiro, dividido pelos irregulares especiais.

Vai para lhe explicar também porque é que há no postal uma gárgula, o símbolo da camaradagem nas circunstâncias mais sórdidas, quando o Cap salta por cima da amurada e aterra atlético, duro e nervoso, do outro lado. Levanta-se imediatamente.

- Olá.                                      

- Olá.

O Cap tomou anfetaminas, tem os olhos vermelhos e estremece de vez em quando.

- Não encontraste ninguém pelo caminho?

- Não.

- Então está bem - diz o Cap.

- Não... Afinal encontrei - diz René. - Espera.

Tenta detectar um sinal de contrariedade, de desconfiança no Cap, mas ele tem a cara impassível dos seus melhores dias.

- Cruzei-me com dois tipos de fato cinzento na Praça de Ensor. Um deles tinha o lábio rachado.

- São gente minha. Apoio logístico.

- Então está bem.

- Onde está a Julia?

- No cinema.

- A esta hora?

- Ela está num sítio seguro, não te preocupes. O Charlie?

-Já recebeu a parte dele. É para comprar um andar em Bruges. Muito romântico, com vista para o Lago do Amor.

Não faz sentido perguntar-lhe como descobriu o nosso hotel, como sabe que a Julia está comigo. Estava.

Estão encostados à amurada. O Cap graceja. - A primeira coisa que o Charlie fez com o dinheiro, que lhe queimava os dedos, foi enfiar-se nas lojas da Carnaby Street. Havias de vê-lo, com um lenço indiano ao pescoço e uma camisa às florinhas e a cara de idiota lá por cima.

- Onde está o meu dinheiro?

- Em boas mãos.

- Não o tens contigo?

- Eu não sou parvo.

- Então o que vim cá fazer?

- Explicar-me por que é que a tua mãe escreveu uma carta em francês ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

- Ao Spaak?

- Ao Paul-Henri Spaak, dizendo que não pode acontecer nada de mal ao seu filho René.

- A minha mãe não sabe francês.

- É estranho, porque o ministro até comentou que a carta estava escrita num francês impecável.

- E que mais?

- Ameaçava que podia causar incómodos a certas pessoas cujo nome preferia não dizer para já.

- A minha mãe deve estar maluca.

- Não fales assim da tua mãe, René. Respeitinho. Não te esqueças que foi ela quem te trouxe ao mundo.

O Cap parte uma tablete de chocolate de leite ao meio e dá metade a René que atira o chocolate à água. O Cap reflecte e diz: - Correm por aí uns rumores. - Os agentes da Segurança são terminantes, dizem: - O René é presa fácil, perdeu a vontade de viver. Mas antes de ir ao fundo, é capaz de tudo! Tal e qual a mãe! - Eu digo: - É estranho, o nosso René sempre tem sido impecável. Leal e de confiança. - Cap - dizem -, o René já não é o que era. - Tu conheces-me, sempre respeitei os meus homens, sempre os considerei meus camaradas e é por isso que estou aqui, porque não quero deixar o trabalho sujo para os outros. O Cap fica vosso amigo até ao último momento.

René devia ter explicado a Julia que os seus homens, como o Cap lhes chamava tinham rituais entre si, tanto nas margens dos rios caudalosos e barrentos do Congo como no deserto. No deserto, comiam escorpiões brancos no Congo, os colhões crus ou assados dos simbas. Tanto num sítio como no outro, embebedavam-se até cair de vinho de palma ou de arak e, depois, vomitavam na boca uns dos outros. Daí o postal ilustrado.

- Deixa a minha mãe em paz - diz René.

- A tua mãe é das rijas. Podem dizer o que disserem, mas isso é que conta Por isso, dói-me o coração por ver os homens escolhidos por mim, todos de primeira, a desaparecer da face da terra, um atrás do outro. Não me digas que não tratei bem os meus homens até ao último momento. Não

te atrevas.

O Cap mete uma pastilha na boca. Faz uma careta, e amarga.

- Tenho sede - diz. - E tu, não tens? René não consegue responder.

- O Maarten Vosselaere - prossegue o Cap. - Fiz por ele o que nunca teria feito por mais ninguém. No hospital onde ele já estava mais morto que vivo. Em agonia, mal conseguia respirar e, mesmo assim tinha a picha tesa Eu digo: - Enfermeira, não podia ajudar o rapaz? - e ela, a bada-lhoca, desandou a toda a pressa pela porta fora e eu é que tive de tratar do assunto.

- Morreu consolado - diz René.

- Respeitinho, vê lá se queres levar um murro no focinho.

Um vento repentino do mar, um safanão húmido. As algas a fustigar o casco do barco. As gaivotas a gritar.

- Está a ficar frio, não achas?

René não consegue responder.

 

O hospital era um dos três hospitais ambulantes instalados em camiões, aerodinâmicos e completamente apetrechados, chegados da Bélgica há seis meses. Ao fim de dois dias de serviço, descobriu-se que não saíam do sítio. Ou o motor era fraco de mais ou os pneus eram lisos de mais ou o peso do camião era excessivo ou o solo pantanoso e lamacento. Ficaram por lá e as pilhagens não se fizeram esperar. Crivados de balas, geralmente das nossas metralhadoras .50. Doentes e feridos ficavam às vezes dias a fio nas camas ferrugentas com colchões infestados de sanguessugas. Quem passou lá mais tempo em agonia foi um preto albino. Ou era um pigmeu? Foi lá que enfiámos Patteeuw, o nosso rancheiro, quando fomos obrigados a parar por causa de uma obstrução.

- Ei lá - rugiu o Cap. - Toca a largar as armas.

Charlie abrandou, parou, mas sem desligar o motor do Landrover. Escondemos à pressa as nossas Brownings .9 dentro do blusão, como tínhamos treinado dias a fio. Era uma barragem guardada por miúdos armados com rifles AK47. Alguns tinham na cabeça uma peruca loura platinada. Um deles, um rapaz mais espigadote de dezassete anos, com dentes limados e preto como um tição, trazia na cabeça um boné à Sherlock Holmes. Acenou-nos. Disse que era major e queria revistar o nosso jipe com os seus homens. Nas bermas da estrada, havia cabeças e mãos cortadas espalhadas pelo chão. Em cima de uma fogueirinha alimentada a lenha, estavam corpos a cozer dentro dum caldeirão.

- Estão bêbedos que nem uns cachos - disse Charlie.

O Cap cordial: - OK, OK, OK- disse erguendo a mão. O major disse: - OK- e também ergue a mão. Com um gesto suave, o Cap agarrou na mão negra e puxou para si o major estupefacto. - Dieu le veut!- gritou o Cap, o grito de guerra dos cruzados, comprimiu a sua pistola contra a têmpora do major e disparou. - Dieu le veut!- gritámos em coro, disparando em redor. Patteeuw, o nosso rancheiro, foi atingido. O Cap contou pausadamente os pretos mortos, anotou o total no seu livrinho de notas e distribuiu alguns tiros de misericórdia. Tirámos os amuletos juju dos pescoços sarnosos e bebemos até à última gota a aguardente de cana que traziam com eles.

 

Então os irregulares especiais meteram-se no carro e foram para a casa de Simon Bukule.

Jogaram futebol no relvado. Bukule também, todas as bolas iam parar aos seus pés, a bola já ia longe dele e ele ainda passava rasteiras a torto e a direito. Quem se atravessasse no seu caminho arriscava-se a levar uma cotovelada no estômago. Marcou seis golos. No último, rolou pela baliza dentro agarrado ao guarda-redes.

Depois jogaram póquer no terraço, ao som dos tiros monótonos de morteiro vindo dos lados do vulcão. Ao fundo, as vozes dos papagaios invisíveis que faziam coro com Charlie quando entoava a sua canção favorita: «Ah, Mariquinhas, as rosas hão-de florir, mesmo depois de estares longe...». Pelo meio, os gritos lamentosos da macaca Maria, entrecortados por ruidosos estalidos com a língua.

- A Maria está triste - disse Simon Bukule. - Viu os pigmeus a matarem à catanada o irmão Nené. É esquisito porque, em geral, as fêmeas suportam melhor o luto.

Segurava o naipe de cartas muito perto do nariz. Como era vaidoso, recusava-se a usar óculos. O pé esquerdo, muito delicado, balançava dentro de uma sapatilha número quarenta e seis.

René não aguentava mais essa imagem do pé enfiado na sapatilha. Levantou-se.

- Ainda me deves seiscentos dólares - disse Bukule.

- Seiscentos dólares?

- Seiscentos dólares.

- Simon é como os Habsburgos - disse o Cap -, não se esquece de nada mas também não aprende nada.

- Ter dívidas é o maior crime no país que eu governo - disse Bukule. René pagou e afastou-se para trás das moitas.

O tratador da Maria estava estendido no chão, a ressonar. Cem metros adiante, a silhueta negra j>eluda.

- Maria-maria-maria! - chamou René.

A macaca estava presa por um cadeado ao tronco dum embondeiro, a «árvore de pão de macaco». Partiu um galho e começou a arrancar os pêlos do peito.

- Não faças isso, Maria.

A macaca obedeceu e parou. René deu-lhe uma lata de coca-cola e o animal esvaziou-a dum trago, chupando no fim o líquido que tinha ficado no rebordo da lata. Agachou-se à beira dela e chamou-a pelo nome. Ela começou a balouçar-se dum lado para o outro, lambendo com a língua azul a coca-cola que lhe escorria pelas bochechas ásperas.

- Maria, Maria.

A macaca estendeu o braço para ele, puxou-o para si cautelosamente, exalando um fedor a alho, khat e trampa. Olhou para ele serenamente, esfregou o focinho reluzente e farejante na sua manga.

Não o largou mais, nem quando amarfanhou umas folhas de khat e as enfiou na boca de René, que começou a mascar avidamente. Ao tentar afastá-la de si, a sua mão deslizou pelas pregas molhadas do pescoço, pelas peladas do peito, pelos mamilos a pingar gordura. Ecoou nos ares um gargarejo cavernoso. Ela bocejou, arreganhando os dentes cor de açafrão. Depois apertou-o nos seus braços em tenaz. O cadeado magoava-lhe no pulso, deu uns esticões para se livrar dele. O corpo enorme tapava totalmente René. As convulsões de fúria não abrandaram quando, com um ronco satisfeito, começou a despedaçar o colete anti-bala de René. De repente, ele sentiu-lhe garras cravarem-se nas suas costas. Como ganchos de açougueiro. A vaga de dor atingiu o clímax. René ouviu ao longe gargalhadas, vozes estridentes, multiplicadas pelos gritos dos papagaios cujas penas azuis e douradas tremulavam como os archotes com que incendiavam o mato. Viu uma floresta a arder, com línguas de fogo até ao céu, uma catedral em chamas, e ele em baixo na nave da selva, com as labaredas a lamber-lhe os ombros. E, a partir desse momento, não sentiu mais nada a não ser o braseiro animalesco que lhe calcinava o sexo.

 

- As pedras - diz René.

- Os diamantes - diz o Cap.

- A minha parte.

- Vai para os herdeiros. Para ninguém dizer que o Cap aldrabou as contas.

- Uma metade para a Julia.

- Tu mandas.

- A outra metade para a minha mãe.

- Tu mandas.

O Cap vira as costas a René, para pegar na faca.

- Chega de conversa - diz.

René fica à espera de algo que se aproxima com o zunir de uma brisa fresca mas, quando ergue os olhos, não acredita no que vê. O Cap faz uma cruz no ar com a faca de lâmina serrilhada, o mesmo gesto que, antigamente, em Bousekerke, as camponesas faziam antes de cortar o pão.

- Dieu le veut - diz o Cap.

Nunca tinha pronunciado estas palavras com tanta ternura. E, então, a faca desce, fustigando o ar, não encontra resistência na maçã de adão, só nas vértebras cervicais. Mas o capitão está bem treinado nestas coisas e tem experiência que chegue em atrocidades. Dá um salto para trás, para evitar que o sangue lhe salpique a roupa, mas não consegue evitar que um esguicho vermelho, que escapa da goela de René, lhe manche a camisa e a coxa. René sucumbe, cai de joelhos, emitindo um som rouco, gutural, como se vomitasse pelo buraco que tinha no pescoço.

- Pronto, já está - diz o Cap.

Tira o relógio de pulso a René, pega na carteira do bolso de dentro, nas notas de mil soltas dentro do bolso das calças. Tapa o morto com um oleado. Põe-se em sentido diante do corpo de um dos seus homens mais devotados. Vai para a coberta e escorraça as gaivotas que insistem em voltear por cima da sua cabeça.

 

Acabaram-se os fenómenos estranhos. A nossa aldeia está salva. No laboratório do professor Maereback, conseguiram isolar um parasita que, pelo vistos, é composto de ciclosporina de framboesa da Guatemala e de uma bactéria proveniente da fábrica de leite de Bousekerke. Nos dois casos, o primeiro sintoma é uma hemorragia do pâncreas. Mas há um antídoto.

Dolf sente-se cada vez mais atormentado pelas saudades. Tem saudades dos pregões de rua de antigamente, do amolador de tesouras e navalhas, do homem dos mexilhões, do sorveteiro com o carrinho pintado de cores garridas puxado pelo pónei de bafo morno. E o pior é que não pode falar com ninguém desse sentimento. Mas talvez até seja melhor assim, porque, ah, uma pessoa diz uma coisa, acaba por acreditar no que diz e, no fim, confunde-se com aquilo que diz.

A viúva de Van Hoof não é infeliz. Só se preocupa porque tem a mania de se ralar com qualquer ninharia, como com o carro do marido que guindaram do fundo do canal e ninguém quer comprar.

Agora devo dizer que, um destes dias nos fartámos de rir com o Leon Schamphelaere. Você sabe, aquele fulano que tem os nervos à flor da pele e ferve em água fria. Jogávamos às cartas. O Abafado estava muito cheio para um dia da semana e, a certa altura, reparámos que o Leon ficou de olhos parados, não conseguia seguir o jogo. Julgávamos que estava a pensar na mãe doente, com quem vive, ou no cunhado, que ainda ficou pior depois da sova que o Leon lhe deu, e ele disse de repente: - É curioso, mas se olhar em volta, não me chegam os dedos para contar os tipos que puseram as mãos na minha mulher. - Nós pensámos: Mas que grande sarilho, lá se vai o nosso Abafado, não vai ficar pedra sobre pedra, a fúria vai chegar para lá das nossas fronteiras, a escala de Richter ainda rebenta. Bem, pode ser que não. Antes pelo contrário. O Leon Schamphelaere disse: - Pois bem, meus amigos, só espero que tenham gostado, e ela também. - Olhou para as cartas e perguntou: - É a vez de quem?

A nossa Diana não consegue ficar sentada com o nervosismo. Está à espera do padre novo. Já não cozinha. Ah, a sopa americana de lata é boa que chegue para mim sozinha. A família do reverendo Lamantijn entrou na cave e levou as garrafas todas.

A Alice e o Noêl casaram-se. Parece que estava escrito nos astros. Havia muita gente na igreja, gente fina. Mas acabou em bandalheira. A noiva e o noivo, ela de branco e ele com a sua cara de pateta, não só estiveram no Abafado mas fizeram a ronda completa pelo Fantasia, o Derby, o índigo, ficaram bêbedos que nem uns cachos. Que grande carraspana! A Alice cismou que queria passar a noite de núpcias num hotel chique. Só que, quando chegaram à porta do Canterbury, o porteiro, quando os viu sair do táxi a cambalear e a subir as escadas aos encontrões, a rir ao desatino, amparados um ao outro (o que o professor Arsène veria como metáfora do matrimónio), não os deixou entrar.

- Não, madame, não, cavalheiro, não podemos permitir uma coisa dessas, temos de guardar a nossa reputação, não queremos perder a menção honrosa do guia Michelin.

- Pronto, está bem! - disse o motorista do táxi. - Se tem de ser assim, que seja, mas é desumano estragar desta maneira um casamento de branco. Nem sabe as ganas que tenho de o mandar para o hospital!

O Noêl acalmou o motorista e a Alice disse: - Deixe lá, vamos beber um copo ao Rainbow.

Está-se mesmo a ver no que deu. Já o Sol ia alto e os três num estado deplorável, mas cheios de entusiasmo, com grande dificuldade em manter os olhos abertos, põem-se a taramelar sobre os bons velhos tempos, quando Bousekerke ainda tinha os seus fenómenos estranhos e acontecia alguma coisa nessa aldeia tão respeitadora da ordem. E onde é que foram parar os borrachões da noiva e do noivo? Não é difícil de adivinhar: ao bar Tricky.

A Camila não estava. A Nedjima, que já tinha visto de tudo na sua vida de norte-africana, não se espantou nada ao ver os nubentes. Antes pelo contrário, mandou-os entrar, levou-os para o quarto que a Camila, com o apoio dos Serviços Públicos de Protecção do Património, transformara num aposento estilo Luís XVI. Resumindo, os dois só acordaram às três da tarde com a preta cor de bronze no meio. - Há males que vêm por bem - disse Noèl. Como é seu costume dizer.

Parece que lhe deu outra vez para pegar no banjo e pôr-se a tocar, mas, segundo dizem os entendidos, não tem feito grandes progressos.

Agora a Julia. Foi para Amesterdão, onde tudo parece prestes a explodir e onde se preparam para criar um mundo novo e diferente em que, se bem percebi, talvez ainda haja problemas, só que serão repartidos por todos irmamente. Juntou-se ao Serge e cantam os dois em inglês com sotaque de Londres. Escolheram o nome The Flamingos. No Natal vão aparecer na televisão num programa infantil. Ou é num programa juvenil? Seja como for, Hedwige Rombouts diz que a filha tem uma actividade muito criativa. Agora, aqui que ninguém nos ouve, eu acho que a Julia continua a encontrar-se com o René Catrijsse às escondidas e, por isso, é que foi para Amesterdão. O amor vence sempre.

Mas, na opinião do Gerard, que não esconde o que pensa aos outros fregueses do Abafado, o René foi banido para sempre deste planeta. Chegou a essa conclusão por causa do à-vontade e da serenidade com que o ex-inspector Blaute anda agora por aí. - Esses seus passos mansinhos não me agradam nada - diz o Gerard. Mas como é que a gente consegue imaginar alguém da nossa aldeia, que conhecemos desde criança, assassinado debaixo do nosso nariz, assim sem mais nem menos e com tanta impunidade? Isto aqui não é a Sicília! O melhor parece é uma pessoa duvidar de tudo.

- Duvidar é saudável - diz o professor Arsène. - A dúvida mostra a nossa falta de capacidade de enfrentar a realidade. - E como, a essa hora, ninguém do Abafado o interrompia, ele pôs-se a divagar sobre as tendências totalitárias do espírito, sobre a descontinuidade do eu e por aí fora. E não se teria calado, se não começássemos a falar de assuntos mais sérios, por exemplo, das inundações, as maiores dos últimos cem anos, mil e quinhentos hectares alagados, tantos animais mortos. Ou um pouco mais longe daqui, apesar dessa água toda, um camião-cisterna, que transportava gás propano líquido, tombou e transformou vinte pessoas em archotes vivos. Ah, cavalheiro, é melhor mudar depressa de assunto. - O escândalo que é a morte – começou o professor Arsène, mas não o deixámos continuar. – Professor, deixe-se disso, não está na escola.

E depois a Alma. Tem de mudar de casa porque o dono da fábrica de cerveja vai trespassar o estabelecimento para o primo. Não pára de tossir, e é só pele e osso. De vez em quando, um sorriso desconsolado para o Dolf.

Passa os dias sentada nas trazeiras da casa, numa cadeirinha de verga, no meio das folhas de ruibarbo e das ervas daninhas. – Para que havemos de arrancar as ervas daninhas, se nos vão pôr

daqui para fora – diz Dolf.

As ervas daninhas invadem tudo, escondem tudo, até o tandem enferrujado com a roda da frente fora do eixo, encostado à parede da casa.

Sabe uma coisa: se se lembrar, mande um postal ilustrado à Alma. Faz sempre bem...

 

                                                                                Hugo Claus  

 

                      

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