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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SABOR DE DESEJO / Jessica Hart
SABOR DE DESEJO / Jessica Hart

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Justamente quando pensava ter chegado ao fundo do poço, a executiva Jacqueline Grant conheceu Marcel Tregowan... Havia perdido o emprego e o noivo num só dia, e a oferta de Marcel parecia ser sua única opção.

Marcel sabia tudo sobre profissionais obstinadas como Jacqueline: eram egoístas, arrogantes e, infelizmente, muito atraentes. Jacqueline exibia todas essas características. Bem, não havia nada que o trabalho duro, do tipo antigo, como cozinhar e fazer faxina, não pudesse curar. E Marcel faria com que Jacqueline tivesse muito o que fazer! Além disso, ele também descobriu que um beijo era uma maneira bastante eficiente de mantê-la quieta...

 

 

 

 

                               CAPÍTULO I

Era como bater contra uma rocha.

— Ai!

De cabeça baixa, lutando para arrastar a pesada mala, Jacqueline não notou o homem dirigindo-se à mesma porta do terminal até colidir com ele. Não sabia que um corpo masculino podia ser tão sólido.

A força do impacto deixou-a sem fôlego, e teria caído se uma mão forte não a houvesse amparado.

— Cuidado!

A garra de aço em torno de seu braço relaxou e Jacqueline recuperou o equilíbrio, ergueu a cabeça e viu o rosto intrigado que a observava.

Era um homem bronzeado, com cabelos castanhos e traços frios e atentos, e a primeira coisa que passou por sua cabeça foi que ele não era tão grande quanto parecera quando fora ao encontro de seu corpo musculoso. A força do desconhecido era evidente, mas compacta e controlada. A segunda impressão que teve foi de que ele parecia pouco amistoso.

— Não acha que devia olhar por onde anda com essa coisa? — ele disse, apontando para a mala que ela derrubara segundos antes.

Jacqueline, que chegara a abrir a boca para desculpar-se, irritou-se com o comentário rude. Ainda estava assustada e sem fôlego, e o braço doía onde ele apertara.

— Estou com pressa — respondeu, a voz mais áspera do que pretendia. Mas ele também não pedira desculpas por tê-la atropelado, certo? — Não o vi.

— É evidente que não.

A nota sardônica na voz do desconhecido a fez encará-lo, e de repente ela descobriu-se fitando um par de olhos incrivelmente verdes, de um tom escuro que beirava o cinzento e muito, muito observadores.

Só então teve consciência de como devia estar horrível. Viajara durante trinta e seis horas, e tinha certeza de que devia parecer tão exausta e amarrotada quanto sentia-se. O conjunto branco e cor de creme, tão impecável quando saíra de Londres, estava completamente amassado, e os sapatos dourados que combinavam com o cinto apertavam seus pés inchados e doloridos.

Jacqueline não era muito alta, mas normalmente demonstrava um dinamismo que compensava a falta de altura. Infelizmente, esse homem não parecia ser do tipo que se deixa impressionar por dinamismo, especialmente num momento de contrariedade. Veria apenas uma mulher baixinha e cansada, cujo rosto devia estar suado e vermelho depois da corrida entre os terminais.

Provavelmente perceberia que suas meias estavam desfiadas. Parecia ser esse tipo de homem...

— Meu avião aterrissou há poucos minutos — ela explicou. — Houve um atraso de horas, mas soube que ainda posso embarcar no último vôo para Port Lincoln, se me apressar. Acabei de atravessar o terminal internacional correndo... — Por que estava dando tantas explicações? O sujeito não parecia interessado no pesadelo em que transformara-se sua viagem.

Apressada, consultou o relógio de pulso. Oito e quarenta. O vôo partiria dentro de cinco minutos.

— Nesse caso, não devia ter ficado no seu caminho. Foi muita falta de consideração — o sujeito comentou.

Havia algo em sua voz, uma espécie de desprezo velado, que provocou a ira de Jacqueline. O típico machista; superior, autoritário, disposto a fazer qualquer mulher sentir-se insensata, mesmo que não o fosse! Suportara muitos deles recentemente! E só tivera de pôr os pés na Austrália para tropeçar em mais um da mesma categoria.

Apertando os lábios, abaixou-se para colocar a mala novamente sobre as rodinhas. Devia poder puxá-la sem nenhuma dificuldade, mas ela insistia em desviar-se do eixo e bater contra suas pernas o tempo todo. As meias estavam arruinadas, e os tornozelos estariam roxos no dia seguinte.

Jacqueline desenvolvera um ódio profundo e apaixonado pelas rodas desde que deixara seu apartamento. Infelizmente, a mala era pesada demais para que a carregasse de qualquer outra maneira.

O desconhecido a observava enquanto ela lutava para erguê-la. De repente inclinou-se com uma exclamação irritada, obviamente disposto a resolver o problema com a superioridade de um macho competente, e a atitude confirmou a opinião de Jacqueline a seu respeito. Era como todos os outros: convencido de que uma mulher não podia fazer nada sozinha.

— Posso cuidar disso sozinha! — ela protestou.

— Não parece estar cuidando de nada — o sujeito retrucou com o mesmo tom sardônico de antes. — Não acha que tudo seria mais fácil se viajasse com uma mala menor?

— Posso ser pequena, mas isso não significa que meu cérebro não tenha crescido. Por que os homens sempre pensam que as mulheres são incapazes de cuidar de si mesmas? Consegui atravessar o mundo sem um homem para me dizer como viajar ou o que carregar em minha mala!

Como que para provar o que dizia, ela ergueu a mala com um último e definitivo esforço.

— Está vendo? — perguntou, encarando-o com um olhar triunfante. — Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma!

— Pois eu acho que esforçou-se por nada. Pessoalmente, teria preferido agarrar a chance de alcançar meu avião, em vez de provar um ponto de vista sem importância. Mas, se acha que pode levar essa mala até o balcão sozinha, é melhor apressar-se. Na verdade, se ainda quer pegar o último vôo para Port Lincoln, é melhor correr.

— Era exatamente o que eu estava fazendo — Jacqueline respondeu com um tom gelado, preparando-se para puxar a maldita mala. Em tese, ela deveria segui-la como um cão amestrado, mas na prática a coisa era bem diferente. — Se me der licença — ela disse com cortesia exagerada.

Mas a altivez do comportamento não combinava com a figura baixinha e amassada tentando arrastar uma enorme mala que recusava-se a obedecê-la, e um brilho divertido iluminou os olhos verdes do desconhecido.

— É claro — ele respondeu com a mesma educação.

Certa de que ele a considerava ridícula, Jacqueline ergueu o queixo e tentou aproximar-se do balcão da companhia aérea, mas a partida digna foi arruinada pela mala obstinada, que tombou depois do segundo passo.

Resmungando uma palavra nada recomendável para uma dama, Jacqueline ergueu-a mais uma vez, consciente do olhar divertido e atento às suas costas. O rosto queimava de vergonha e raiva, e de repente sentia-se invadida por uma obscura convicção de que ele era o único culpado.

A mala caiu mais duas vezes antes de ela alcançar o balcão e, a essa altura, já era tarde demais. O funcionário da companhia foi solidário, mas positivo. O avião decolara, e o próximo para Port Lincoln só partiria no dia seguinte.

Sabia que estava atrasada, mas esperava que esse avião seguisse a regra que parecia ter sido implantada em todos os aeroportos do mundo desde que deixara Londres e também se atrasasse. Saber que o perdera por alguns poucos minutos tornava tudo muito pior.

Estava começando a arrepender-se de ter decidido vir à Austrália. A partida apressada, os atrasos e as conexões perdidas, as péssimas condições e a comida intragável, a criança de dois anos que gritara por quatro horas a fio... Suportara tudo com coragem e obstinação, prometendo a si mesma que o sacrifício seria recompensado quando chegasse a Port Lincoln.

Chris e Mike estariam lá para recebê-la, e então poderia jogar aquela maldita mala no fundo de um armário e esquecê-la por três longos meses. Decidira chegar naquela noite, e saber que teria de adiar o fim da viagem mais uma vez quase a fez chorar de frustração e cansaço.

Pelo canto do olho, podia ver o homem com quem colidira pouco antes. Não teria conseguido embarcar de maneira alguma, o que significava que era ridículo culpá-lo por ter perdido o avião. Mesmo assim, não conseguia deixar de observá-lo com ressentimento.

Ele conversava com um funcionário do terminal alguns metros à frente, e parecia irritantemente calmo e seguro. Gostaria de sentir as mesmas coisas. Para onde o sujeito estaria indo? Usava uma calça bem-cortada e uma camisa de manga curta com gravata, um conjunto simples, embora evidentemente caro. A única bagagem que carregava era uma discreta pasta de couro, o que indicava que não podia ir muito longe.

Estaria voltando para casa, para a família? Havia algo de passional nele que tornava difícil imaginá-lo cercado por filhos e uma esposa, ela decidiu, mudando de idéia ao vê-lo sorrir de alguma coisa que o funcionário dizia.

O efeito totalmente inesperado do sorriso dissolvia a expressão reservada e suavizava as linhas duras que marcavam o rosto bronzeado. Mesmo à distância podia apreciar a perfeição dos dentes muito brancos, e de repente sentia-se como se houvesse colidido com ele mais uma vez. Por que não notara quanto ele era atraente antes?

Aturdida pela transformação, Jacqueline esqueceu a própria situação momentaneamente, mas de repente ele virou-se e seus olhos encontraram-se. A expressão do desconhecido era completamente relaxada, e Jacqueline sentiu todos os músculos do corpo enrijecerem-se, consciente de como devia parecer ridícula apoiada naquele balcão. Tinha certeza de ter detectado um brilho debochado naqueles olhos verdes. Devia estar lembrando como, momentos antes, ela afirmara poder cuidar de si mesma sozinha.

E podia! Jacqueline ergueu o corpo. Decidira chegar a Port Lincoln essa noite, e chegaria, nem que isso a matasse, nem que fosse apenas para provar-se capaz aos olhos inquietantes do desconhecido. A possibilidade de ele jamais saber se chegara ou não não tinha nenhuma importância. O que importava era mostrar a ele que não se deixaria abater por nada!

Determinada, sorriu para o funcionário atrás do balcão. Apesar do cansaço, ainda havia algum brilho nos cabelos castanhos e curtos que emolduravam o rosto delicado de nariz pequeno e grandes olhos castanhos.

— Não existe um meio de se chegar a Port Lincoln esta noite? — suplicou, deixando-o perceber o brilho das lágrimas em seus olhos.

Poucos homens resistiam à expressão aflita de Jacqueline Grant.

— Lamento muito, mas a menos que... — O rapaz parou ao notar alguém atrás dela. — Talvez esteja com sorte, afinal! Aquele é Marcel Tregowan. Ele viaja no próprio avião, e parece que está voltando a Port Lincoln. Se explicar sua situação, tenho certeza de que ele não recusará uma carona — e acenou. — Marcel, pode vir até aqui, por favor?

Mesmo antes de virar-se, Jacqueline já imaginava quem era Marcel Tregowan.

Era ele. Claro que era ele! E estava caminhando em sua direção com passos seguros e calmos, os olhos iluminados por um brilho divertido, quase zombeteiro.

Por que tinha de ser ele? A única pessoa que podia ajudá-la era justamente a única a quem não poderia pedir ajuda. Fechando os olhos, estremeceu ao lembrar como recusara-se a aceitar seu auxílio com a mala, vangloriando-se do fato de não precisar de um homem para locomover-se.

Marcel cumprimentou o funcionário atrás do balcão. Parecia ser amigo de todos por ali. Devia passar o tempo todo no aeroporto. Estavam afastados por alguns passos, mas podia sentir a força daquele corpo como se estivesse colado ao dela.

A idéia a fez estremecer. Marcel virou-se em sua direção e ergueu uma sobrancelha.

— Esta passageira veio de Londres num vôo que atrasou-se, e ela perdeu a conexão. Ela está bastante ansiosa para chegar a Port Lincoln ainda esta noite. Está voltando para lá?

— Sim — Marcel respondeu, ignorando o pedido velado de carona.

Jacqueline mordeu o lábio. Depois de tudo que havia dito pouco antes, não podia culpá-lo por não facilitar as coisas. O cansaço alcançava proporções assustadoras. Não queria engolir o orgulho e implorar uma carona; não queria ir a lugar algum com ele. O que realmente queria era sentar-se e chorar, mas não podia... Não quando era observada por aqueles olhos atentos e sarcásticos.

E queria chegar a Port Lincoln. Se pudesse encontrar Chris e Mike, tudo acabaria bem. Chegara ao ponto em que isso era tudo que importava.

Apertando os lábios, Jacqueline respirou fundo e encarou-o.

— Meu nome é Jacqueline Grant. Se vai para Port Lincoln, ficaria muito grata se pudesse levar-me em seu avião.

— Não pode estar dizendo que quer ajuda, afinal! Pensei que fosse capaz de chegar a Port Lincoln sem o auxílio de ninguém.

— Seria, se não houvesse perdido o avião.

— E a culpa deve ter sido minha, por ter sido atropelado?

— Não — ela admitiu com honestidade. — Estava atrasada antes de encontrá-lo.

Estava tentando decidir se devia explicar que a colisão fora apenas o último de uma série de desastres que começara seis semanas antes, quando havia perdido o emprego e atirado a aliança no rosto de Rupert. Desde então tudo dera errado, mas Jacqueline seguira em frente, recusando-se a deixar-se abater pelas circunstâncias.

Olhando para o rosto sério e contido de Marcel Tregowan, teve certeza de que ele não entenderia.

— Foi uma longa viagem — disse simplesmente, optando pelo caminho mais curto.

Marcel examinou a mulher pequena e tensa parada ao lado da enorme mala de viagem. Não era bonita, mas os olhos grandes e castanhos, o nariz pequeno e os lábios cheios tinham personalidade, e havia algo de galante na maneira teimosa com que continha as lágrimas. Parecia determinada, forte... e muito cansada.

Marcel suspirou resignado.

— É melhor vir comigo — disse.

— Obrigada — Jacqueline respondeu, estranhando a súbita mudança de atitude.

Mas estava aliviada por poder finalmente chegar a Port Lincoln esta noite, conforme previra, e por isso decidiu não fazer perguntas.

— Estou partindo imediatamente — ele preveniu, como se já se arrependesse da decisão de levá-la.

— Ótimo — Jacqueline respondeu, abaixando-se para erguer a mala. — Estou pronta.

— Nesse caso, podemos ir. — Marcel seguiu na frente sem dizer mais nada, deixando-a sozinha para agradecer o funcionário e segui-lo.

Como não podia deixar de ser, Jacqueline teve de esforçar-se para não perder a calma com a mala, que insistia em deslizar para os lados e chocar-se contra suas pernas. Marcel virava-se de quando em quando para observar seu progresso lento com uma expressão impaciente e irritada. Não oferecera-se para levar a mala, e ela não pediria sua ajuda nem que estivesse à beira da morte. Engolir o orgulho em troca da carona já havia sido demais.

— Ai! — O impacto da mala em seu tornozelo aconteceu um segundo antes de ela cair com um estrondo que ecoou pelo corredor vazio.

— Parece estar enfrentando alguma dificuldade — Marcel comentou. — Ou esse é mais um exemplo de como sabe cuidar de si mesma?

— Essa porcaria devia deslizar sobre as rodas, mas ela parece disposta a destruir minhas pernas! Minhas meias estão arruinadas!

Marcel não estava interessado em meias desfiadas.

— É bobagem culpar a mala. Ela não foi projetada para carregar todo esse peso. Se houvesse posto menos coisas dentro dela, talvez o resultado fosse melhor.

— Já tive de deixar metade das minhas roupas para trás! De que serve uma mala que não pode ser enchida?

— De que serve uma mala que não se pode carregar? — ele devolveu, levantando o volume do chão.

— Eu posso...

— Pare com isso! Não pode carregá-la, pode?

— Não — ela reconheceu de cabeça baixa. — Gostaria de ter trazido outra menor. Pronto! Está satisfeito agora, ou quer que eu escreva a frase cinquenta vezes e assine as páginas em duplicata?

Marcel encarou-a. Não estava exatamente sorrindo, mas os olhos frios brilhavam com um toque de humor.

— Nunca ouviu falar em desistir com classe?

— Não gosto de desistir.

— É melhor acostumar-se.

Ressentida, Jacqueline o viu carregar sua mala com facilidade, como se estivesse vazia, e lembrou mais uma vez como sentira a solidez daqueles músculos ao colidir com ele. A recordação era nítida a ponto de tornar-se incômoda.

Marcel abriu uma porta com o pé e segurou-a para que ela passasse. Lá fora, uma fileira de pequenos aviões aguardava pelos pilotos, e Jacqueline o seguiu até a última aeronave da fila. Marcel abriu a porta, jogou a mala para o interior do avião e embarcou com facilidade.

Jacqueline ficou parada, assustada com o tamanho reduzido da aeronave.

— Vamos voar nisso?

— O que esperava? Um Concorde?

— Pensei que tivesse um jato.

— Um jato particular seria ótimo, mas exagerado para a distância reduzida entre Port Lincoln e Adelaide. Este é mais que adequado.

— Não é muito grande... — ela comentou, os olhos fixos na hélice no nariz do avião.

— Pode transportar até quatro pessoas, se necessário, o que significa que há espaço suficiente para nós dois e sua mala. Mas, se preferir, pode ficar e esperar o vôo comercial de amanhã.

— Não — ela apressou-se. — Prefiro ir com você, obrigada.

Marcel estendeu a mão.

— Nesse caso, é melhor embarcar de uma vez.

Jacqueline o encarou com a testa franzida e depois olhou para a porta, que ficava mais ou menos na altura de seu ombro.

— Não tem uma escada?

— Não. Existem algumas escadas no terminal, mas se acha que vou voltar até lá para apanhar uma delas, está completamente enganada.

— Como vou subir, então?

— Tem braços e pernas, não? Segure minha mão e suba!

— Subir? Precisaria de um guindaste para chegar à essa altura!

— Não seja ridícula! — Marcel exclamou impaciente. — É muito simples. Vamos, segure minha mão.

Ele inclinou-se e Jacqueline obedeceu relutante, tomando consciência de um estranho arrepio assim que os dedos encontraram-se. Ao olhar para as mãos entrelaçadas, ela imaginou como um simples contato formal e corriqueiro podia provocar tão intensa reação.

— Não sei quanto a você, mas tenho mais o que fazer. Não posso passar a noite toda aqui, segurando sua mão. Se prefere ficar em Adelaide, não faça cerimônia. Mas, se quer ir para Port Lincoln comigo, trate de subir imediatamente!

Jacqueline tentou. Conseguiu colocar um braço e um ombro no piso do avião, enquanto Marcel a puxava pelo outro braço, mas as pernas balançavam de um lado para o outro, presas na saia justa e curta, e no final ela acabou caindo de costas, bufando de humilhação e vergonha.

— Eu disse que não conseguiria. Não sou nenhuma Mulher Maravilha!

— Não foi a impressão que me deu há pouco — Marcel apontou irritado. — Pensando bem, se fosse mesmo tão competente como diz, não viajaria usando uma saia como essa.

— Se soubesse que participaria de uma aventura aérea, teria usado um macacão de combate! — ela devolveu, esquecendo que dependia dos favores de Marcel para alcançar seu destino. — De qualquer maneira, nunca mais poderei usar esse conjunto — concluiu, tentando limpar a manga da jaqueta que havia ficado mais prejudicada pelo tombo.

Marcel desceu do avião e respirou fundo, lutando para não perder a calma.

— Francamente, sua roupa é o que menos me preocupa neste momento — disse, segurando-a pela cintura e praticamente jogando-a dentro do avião.

Jacqueline gritou, surpresa com o movimento inesperado, mas conseguiu passar pela abertura sem nenhum ferimento.

As mãos deslizaram de sua cintura para as pernas, por onde a empurraram até que ela estivesse totalmente dentro da aeronave.

Por um momento ficou parada, ofegante como um peixe retirado da água, imaginando que diabos estava fazendo deitada de bruços no chão de um avião minúsculo em companhia de um estranho desagradável que a jogava como se fosse um saco de batatas.

— Bem-vinda a bordo — Marcel riu.

Jacqueline sentou-se e olhou para as mãos sujas.

— A British Airways oferece um serviço de bordo melhor — suspirou.

Marcel sorriu e ela perdeu o fôlego, atingida pelo impacto da intensa transformação no rosto moreno.

— Onde está o piloto? — perguntou, tentando esquecer as reações estranhas que ele provocava em seu corpo.

— Você parece ter estranhas idéias a respeito de minha posição. Lamento desapontá-la, mas, além de não ter um jato particular, também não tenho um piloto.

— Quer dizer... que voa sozinho?

— Por que não?

— Bem, pensei que... Ora, você parece bem-sucedido o suficiente para contratar um piloto.

— De onde tirou essa idéia?

Do andar confiante, do olhar firme... Mas não podia dizer a verdade.

— Das roupas que usa.

— Uma camisa e uma calça... Sempre tira conclusões tão apressadas?

— Não pode dizer que me enganei completamente. É bem-sucedido, ou não teria seu próprio avião.

— A Austrália é um país muito grande — ele comentou, preparando-se para decolar. — Voar é a melhor maneira de locomover-se.

Jacqueline acompanhava os procedimentos com certo nervosismo. Jamais viajara em nada menor que um jumbo, e começava a arrepender-se de ter pedido carona a Marcel. Teria sido melhor passar a noite em Adelaide, onde tomaria um banho, dormiria e mudaria de roupas, e no dia seguinte chegaria a Port Lincoln limpa e descansada. Agora se apresentaria na porta de Chris parecendo uma maltrapilha. Por que não pensara nisso antes?

Gostava de pensar em si mesma como sendo profissional, mas a verdade era que sempre fora impetuosa, com uma tendência para decisões precipitadas e uma persistente mania de atirar-se contra o objetivo sem parar para pensar em todos os aspectos envolvidos.

Não podia imaginar Marcel agindo sem pensar. Era muito controlado e deliberado, muito contido em seus gestos e movimentos. Agora, por exemplo, manejava os instrumentos com um mínimo de esforço, absolutamente concentrado.

Rupert teria girado os braços, tentando impressioná-la com uma demonstração de conhecimentos e habilidade. Não teria ficado ali sentado, ignorando-a e cumprindo sua rotina, como Marcel fazia.

De repente percebeu que não conseguia visualizar o rosto de Rupert, e havia sido noiva dele até aquela desastrosa tarde, seis semanas antes. Era impossível que o houvesse esquecido em tão pouco tempo! Fechando os olhos, fez um esforço para conjurar a imagem, mas tudo que podia ver eram os olhos de Marcel, a boca bem definida e o sorriso perturbador de Marcel, as mãos de Marcel...

— Pronta? — ele perguntou, trazendo-a de volta à realidade.

Jacqueline respirou fundo.

— Acho que sim.

Era tarde demais para mudar de idéia agora, mas na próxima vez pensaria muito antes de tomar uma decisão.

Apavorada, manteve os olhos fechados até sentir que haviam decolado. Quando abriu-os, Marcel a observava com um misto de humor e irritação.

— Arrependida de não ter esperado o vôo de amanhã, afinal?

— Não — ela mentiu, erguendo o queixo e forçando um sorriso.

— Teimosa, não?

Realmente, precisara de muita determinação para vencer na carreira de publicitária, mas nem toda essa obstinação anulara o fato de ser uma mulher. Mas mostraria a eles!

— As vezes é necessário — disse.

— Por que fez tanta questão de chegar a Port Lincoln?

— Só queria chegar lá esta noite.

— E o que você quer, você consegue... sem importar-se com a possibilidade de causar inconvenientes a outras pessoas?

Jacqueline encarou-o curiosa, tentando imaginar o que provocara a súbita amargura em sua voz.

— Não — respondeu devagar, pensando no dia em que seu mundo desmoronara e havia perdido o emprego e o noivo numa única tarde. — Nem sempre.

— É mesmo? Cheguei a pensar que fosse uma profissional nesse traje elegante.

— Pensei que não aprovasse o hábito de tirar conclusões baseadas nas roupas que as pessoas usam.

— Tirei conclusões a partir do seu comportamento, não das roupas que usa, roupas bastante inoportunas, a propósito. Toda frágil e feminina quando é conveniente, mas dura como o aço sob essa aparência.

— O que quer dizer?

— Ah, vamos lá! Vi como piscava para o pobre rapaz do balcão da companhia aérea! Pensei que fosse chorar! Uma performance e tanto, devo admitir. Infelizmente, já vi a mesma encenação antes, e sei que ela só dura até a atriz principal atingir seu objetivo. É cheia de belas palavras sobre não precisar dos homens, mas não hesita em usá-los quando considera necessário, não é?

Jacqueline estava pálida de raiva.

— E quanto aos homens que usam as mulheres? Acha correto que suguem nossos talentos e habilidades, dispensando-nos assim que começamos a exigir reconhecimento e compensações? Devemos suportar os homens e ajudá-los, preenchendo o tempo antes de voltarmos correndo para os nossos lugares de mães e donas de casa. Tem idéia das dificuldades que uma mulher enfrenta para progredir profissionalmente? Em vez de demonstrar competência, temos de mostrar que podemos ser rudes e grosseiras como nossos colegas, e então eles nos acusam de sermos pouco femininas. E se somos femininas, então nos acusam de lutarmos com armas desiguais e injustas. Por que não podemos ter as mesmas oportunidades profissionais que os homens? Por que não temos o direito de mostrar nossa competência?

— Muito veemente — Marcel respondeu. — Isso prova que estava certo sobre ser uma profissional.

— Sim, eu me dedico à carreira que escolhi, e orgulho-me disso.

— O que faz?

— Atuo no ramo da publicidade.

— E como pode orgulhar-se disso?

— É simples. Nossas propagandas afetam a opinião das pessoas a respeito de quase tudo, e assumimos nossas responsabilidades com muita seriedade. É um negócio muito profissional.

Teria prosseguido, mas nesse momento Marcel soltou os comandos e reclinou-se na poltrona, apoiando os pés no painel.

— O que está fazendo? — ela perguntou horrorizada.

— Ei, não precisa entrar em pânico — ele suspirou com impaciência. — Estamos no piloto automático.

— Não entrei em pânico. Fiquei apenas... preocupada.

— Devia guardar sua preocupação para uma sociedade submetida a um bombardeio de propagandas inúteis — Marcel opinou, virando-se para apanhar uma garrafa térmica atrás do assento.

O aroma de café fresco invadiu a cabine, distraindo-a dos argumentos que pretendia usar em favor do ramo publicitário. Comera pela última vez em algum lugar entre Singapura e Adelaide, e parecia ter sido há muito tempo.

— Quer um pouco? — Tregowan ofereceu, enchendo a tampa que servia como xícara.

O cheiro era irresistível.

— Sim, por favor — aceitou, abandonando a dignidade e a intenção de argumentar.

Os pés inchados ameaçavam matá-la, e ela suspirou aliviada ao livrar-se dos sapatos.

Ao tomar a xícara da mão de Marcel, os dedos encontraram-se e mais uma vez ela espantou-se com o efeito provocado pelo contato.

Séria, tentou concentrar-se no café, mas os olhos insistiam em buscá-lo. O perfil equilibrado atraía sua atenção de maneira irresistível, provocando uma intensa resposta em seu corpo.

Devia estar mais cansada do que imaginara. Havia algo de irreal em estar ali sentada no escuro, muitos metros acima do chão, bebendo café com um estranho e ouvindo o som de um motor de avião. Mas Marcel parecia real. Real, sólido e imediato.

Tudo nele era distinto. Podia ver os músculos das pernas apoiadas no painel e pressentir a força do corpo poderoso. Podia até imaginar a textura de sua pele, e a sensação era tão nítida que teve de olhar para as próprias mãos a fim de certificar-se de que não o tocava.

Gostaria de não lembrar com tanta clareza todas as vezes em que ele a tocara, pois o corpo respondia como se cada contato houvesse ficado gravado para sempre em sua pele. E se um contato breve e impessoal provocava impressões tão fortes e duradouras, como seria se ele a acariciasse, deslizando as mãos por seu corpo e explorando recantos íntimos...?

Jacqueline engoliu o resto do café e respirou fundo. Que diabos estava acontecendo? Mal conhecia Marcel Tregowan, e não gostava do que vira até então. Por que podia imaginá-lo fazendo amor com tanta nitidez?

Exaustão. Estava confusa e desorientada em consequência da longa viagem, e o corpo acusava o cansaço respondendo de maneira nada habitual. Jacqueline agarrou-se à explicação com verdadeiro desespero, pois ela significava que havia uma razão perfeitamente lógica para o súbito e assustador desejo que a assaltava, uma razão que não tinha absolutamente nada a ver com Marcel Tregowan!

 

                               CAPÍTULO II

Ela devolveu a xícara, tomando cuidado para não tocá-lo novamente.

— Obrigada.

Marcel ergueu uma sobrancelha ao identificar a formalidade em sua voz, mas não fez nenhum comentário. Em vez disso, serviu-se de um pouco de café.

— O que vai fazer em Port Lincoln? Não sabia que o lugar era uma espécie de meca do mundo publicitário. Ou recebeu a missão de divulgar nossa imagem para o mundo?

— Estou de férias. Três meses — Jacqueline respondeu. Não revelaria que o emprego que tanto amava já não lhe pertencia.

— Três meses de férias?

— Decidi me afastar do trabalho por um longo período para reciclar-me profissionalmente.

— Port Lincoln não me parece a melhor escolha para esse objetivo. Sempre imaginei que profissionais ambiciosas fizessem apenas coisas que pudessem ser boas para seus históricos.

— E você parece saber muito sobre profissionais.

— Aprendi da maneira mais difícil.

— A lição não deve ter sido completa, ou teria aprendido que não somos todas iguais. Para sua informação, vou visitar uma prima.

— Ah! Então está mesmo de férias!

— Foi o que eu disse. É claro que pretendo passear e divertir-me, mas tomei o cuidado de escolher uma época adequada para a empresa.

— Se eles podem sobreviver três meses sem você, provavelmente não precisam dos seus serviços. Tem certeza de que ainda terá um emprego quando voltar?

— Não só terei um emprego, como serei promovida — Jacqueline respondeu orgulhosa.

Era o que esperava. A Liedermann, Marshall & Jones se arrependeria de ter dado seu emprego a alguém menos capaz e experiente, cuja única vantagem era a de ser homem. Prometera a si mesma que os faria rastejar e implorar para aceitar o emprego de volta, bem como uma excelente promoção, e sonhara tanto com isso que a idéia já parecia um fato estabelecido.

— Enquanto isso, passará três meses em Port Lincoln, pensando na vida? — Marcel perguntou com tom incrédulo.

— Isso mesmo. Irei conhecer outras partes da Austrália, mas passarei a maior parte do tempo com Chris.

Felizmente Marcel engoliu a isca e não fez mais perguntas sobre sua carreira.

— Chris é sua prima?

— Sim. O pai dela, que é irmão de minha mãe, emigrou para a Austrália há anos e casou-se com uma australiana. Só comunicava-me com Chris através de cartas, até que ela e o marido foram à Inglaterra a trabalho. Eles hospedaram-se em minha casa em Londres e a simpatia foi imediata. Foi maravilhoso descobrir uma grande amiga numa parente, e desde então mantemos contato frequente, embora não nos vejamos há cinco anos. Moramos tão longe, que nunca pensei em vir visitá-la.

— O que a fez mudar de idéia?

— Chris mandou-me uma fotografia. — Jacqueline abriu a bolsa em busca do retrato. Carregava-a como um talismã desde que a carta da prima aterrissara em sua porta junto com uma pilha de cartões de Natal.

Sorrindo, olhou mais uma vez para a foto de Chris e Mike num barco, a lua suave do entardecer banhando o cenário num dourado encantador. Pareciam relaxados e felizes com o vento agitando seus cabelos e o sol obrigando-os a estreitar os olhos. Era difícil explicar agora, mas o mar era de um azul tão profundo e brilhante que ficara fascinada.

Ainda sorrindo, mostrou a fotografia a Marcel, que ficou imediatamente tenso. Jacqueline não notou.

— Sei que é só um retrato comum, mas chegou num terrível dia de dezembro. Nevava muito, e tudo parecia úmido, gelado e cinzento.

— Entendo que tenha ficado encantada com essa paisagem — ele respondeu com tom estranho.

— Talvez, se o retrato houvesse chegado num dia gelado, porém ensolarado, não tivesse significado tanto. Sempre fui uma pessoa urbana, mas quando vi essa foto quis estar aqui com eles. — Sentira um enorme desejo de fugir do frio e da chuva, deixando para trás o emprego perdido e o noivado desfeito.

— E por coincidência, tinha três meses de férias à sua espera. É isso? — Marcel perguntou com sarcasmo.

Jacqueline ficou vermelha, mas felizmente a luz era insuficiente para que ele visse seu rosto.

— Mais ou menos — disse. — Ainda não havia decidido o que faria. — Só sabia que provaria que a empresa e Rupert estavam errados, mas a carta de Chris e o convite afetuoso mudaram tudo.

Nada a impedia de viajar. Recebia um excelente salário, e trabalhara tanto que mal tivera tempo para gastá-lo. Não tinha compromissos, especialmente depois do rompimento com Rupert, e em vez de enfrentar um começo de ano gelado e úmido, podia ir passear e voltar para casa bronzeada e refrescada, pronta para provar-se competente.

— Podia ter ido a qualquer lugar, mas a foto me fez perceber que seria uma excelente oportunidade para rever Chris e Mike.

— Eles parecem pessoas alegres.

— Eram... Mas agora as coisas são diferentes.

— Por quê?

— Mike sempre foi inquieto, mas ele e Chris finalmente decidiram administrar uma companhia de fretamento marítimo usando seus dois iates. Era um pequeno negócio, mas pelo menos pertencia a eles... até que uma companhia rival decidiu acabar com a competição.

Jacqueline ergueu o corpo no assento, lembrando a indignação que sentira ao ler a carta em que Chris contara toda a história.

— Chris e Mike não poderiam ameaçar ninguém, mas isso não fez diferença para os sujeito que os obrigou a desistir. Tudo que importava era quanto ele lucraria. Ele não quis saber quanto esforço meus primos haviam investido na empresa, sem mencionar o tempo e todas as economias que perderam. Esse tipo de empresário não se importa com pessoas. Apenas chutam para o lado quem quer que se coloque em seu caminho.

— Não sabia que havia alguém tão duro em Port Lincoln. Sabe o nome do tal empresário?

Apesar do tom grave, Jacqueline tinha a impressão de que ele divertia-se com alguma coisa.

— Infelizmente não sei. Chris só disse que haviam perdido a empresa para uma companhia maior. Ela não forneceu detalhes, mas sei como são essas transações entre empresas de diferentes portes, e não acredito que na Austrália seja diferente.

— Ah, mas acho que está enganada. Port Lincoln é um lugar muito diferente de Londres. Muito diferente...

O aeroporto de Port Lincoln ficava muito longe da cidade. Desanimada, Jacqueline viu o brilho distante das luzes quando a aeronave baixou e aproximou-se de um conjunto de prédios aparentemente vazios na escuridão.

— Sua prima veio esperá-la? — Marcel perguntou ao desligar o motor. — O horário previsto para a chegada do vôo era oito e quarenta e cinco.

— Ela não sabe que estou chegando — Jacqueline respondeu, constatando que a jornada ainda não chegara ao fim. Teria de percorrer a distância entre o aeroporto e a casa de Chris. — Quero dizer, ela sabe que estou chegando, mas não imagina quando. Todos os vôos para a Austrália estavam lotados, e tive de entrar numa lista de espera. Soube que poderia embarcar pouco antes do horário previsto, e só tive tempo para fazer a mala. Tentei telefonar para Chris, mas não a encontrei em casa e, temendo perder o avião, achei que seria melhor vir e...

Jacqueline parou de repente, percebendo que falava como se estivesse confessando uma idiotice, em vez de uma decisão perfeitamente razoável. Sentira vontade de vir, a oportunidade surgira e ela a agarrara. O que havia de errado nisso?

— Quer dizer que decidiu uma viagem longa como essa de última hora? Parece uma maneira estranha de organizar três meses de férias.

— Tomei todas as providências — ela defendeu-se, sem saber por que aborrecia-se em dar explicações a Marcel Tregowan. — Não foi nenhuma decisão impetuosa.

Bem, fora, mas o agente de viagens levara três semanas para encaixá-la numa lista de espera. Era dezembro, e todos os vôos saíam de Londres lotados. Para chegar à Austrália teria de fazer quatro conexões em aeroportos asiáticos, mas na época estava tão desesperada que nem pensara a respeito.

Marcel abriu a porta e jogou a mala para o lado de fora. Jacqueline encolheu-se ao ouvir o baque provocado pela queda, lembrando de todos os xampus, cremes e hidratantes que encaixara em todos os espaços disponíveis, dentro de sapatos ou envoltos em roupas íntimas. Se em todos os aeroportos sua bagagem houvesse sido tratada com a mesma falta de cuidado demonstrada por Marcel, tremia ao pensar no que encontraria ao abrir a mala.

Suspirando, tentou calçar os sapatos, mas os pés haviam inchado tanto que não cabiam dentro deles. Mandando a elegância para o inferno, decidiu concluir a terrível viagem descalça.

Subir no avião fora um sacrifício; descer parecia uma missão ainda mais difícil e humilhante. Jacqueline segurou a bolsa junto ao peito com uma das mãos, o sapato com a outra, e olhou para Marcel, que a observava com uma expressão de resignação irritada.

— Pode passar da porta à asa e saltar de lá, se preferir — ele instruiu com impaciência. — Mas, o que quer que decida, seja rápida!

Jacqueline decidiu saltar de onde estava. A altura era a mesma, e não teria de fazer novos malabarismos dentro da saia justa.

Respirando fundo, jogou a bolsa e os sapatos e ergueu a saia de forma a sentar-se na porta e passar as pernas para o lado de fora. A altura nem era tão grande, mas a idéia de aterrissar sobre os pés inchados e doloridos era suficiente para fazê-la estremecer.

Marcel resmungou alguma coisa e abriu os braços.

— Pensei que tivesse pressa de chegar a Port Lincoln.

— E tenho.

— Então, por que não salta de uma vez?

Vencendo o receio, ela jogou o corpo para a frente e preparou-se para a dor, mas de repente braços fortes a seguraram pela cintura e a colocaram no chão com suavidade.

Apoiando as mãos nos ombros musculosos, Jacqueline encarou-o para agradecer e arrependeu-se ao ver o brilho em seus olhos. As palavras morreram antes de brotar de seus lábios, as mãos a queimavam através do tecido da roupa e os dedos pareciam querer deslizar por aqueles ombros largos até alcançar os cabelos curtos e brilhantes.

Assustada com o rumo dos próprios pensamentos, livrou- se das mãos que a seguravam e sentiu-se grata pela escuridão que escondia o rubor de seu rosto.

— Não sei por que não providencia uma escada — disse, em vez de agradecer como pretendia.

— Normalmente transporto passageiros sensatos que vestem-se de maneira apropriada.

— Bem, eu... Ah, esqueça — ela inquietou-se, abaixando-se para apanhar a bolsa e os sapatos. — Obrigada pela carona. — Erguendo a mala sobre as rodas, pôs a bolsa no ombro, ajeitou os sapatos numa das mãos e despediu-se com um rápido aceno.

— Aonde vai? — ele perguntou com tom divertido.

— Não quero mais abusar de sua gentileza. Pegarei um táxi até a casa de meus primos.

— Seria muita sorte encontrar um táxi aqui a esta hora da noite!

— Darei um jeito.

— Ainda está tentando provar que pode cuidar de si mesma, Jacqueline?

— Eu posso! — ela exclamou, dirigindo-se ao terminal sem esperar pela resposta.

Gostaria de caminhar com alguma dignidade, mas os pés inchados doíam tanto que teve de conformar-se com os passos trôpegos e nada elegantes. Pelo menos a mala cooperava. Só caiu uma vez e, ao abaixar-se para erguê-la, Jacqueline olhou na direção do avião e viu que Marcel fechava as portas sem nenhum sinal de preocupação, como se ela nem existisse.

Determinada, retomou a caminhada em direção ao terminal, certa de jamais ter visto aeroporto menor. O saguão era pouco maior que a sala de estar de sua casa, mas iluminado, limpo e moderno... e completamente vazio. Ao passar pelas portas de vidro, olhou para trás e viu que Marcel desaparecera.

Melhor assim. Era o sujeito mais desagradável que já conhecera, e sentia-se feliz por pensar que nunca mais teria de vê-lo.

Do lado de fora, parou no que parecia ser a área de embarque e desembarque de passageiros e constatou o que Tregowan dissera pouco antes. Não havia táxis, nem mesmo um único ônibus à espera. Estava presa!

Se estivesse raciocinando com clareza, teria percebido que Marcel devia ter um carro, ou que podia usar um telefone para falar com Chris e pedir que viessem buscá-la, mas estava cansada e desorientada, e raciocinar era a última coisa que fazia no momento.

Desesperada, sentou-se sobre a mala e chorou como há muito não chorava. Nem quando perdera o emprego, nem quando rompera o noivado. De repente o mundo parecia desabar sobre sua cabeça nesse pequeno aeroporto da Austrália, e já não podia mais conter as lágrimas de amargura e frustração.

A porta se abriu às suas costas e ela ouviu passos.

Marcel.

Limpando as lágrimas, virou o rosto para o lado mais escuro, tentando impedir que ele percebesse quanto estava perturbada.

— O que aconteceu?

A pergunta simples destruiu o pouco controle que ainda lhe restava.

— O que acha que aconteceu? — ela devolveu furiosa.

— Acabei de enfrentar o pior mês de minha vida, seguido pela pior viagem que já fiz, e agora estou presa no meio do nada, quando tudo que quero é chegar à casa de Chris. Terei de passar a noite aqui. Estou cansada, com frio e com fome, meus pés doem e quero ir para casa! — Enterrando o rosto entre as mãos ela entregou-se ao pranto convulsivo. — Não sou chorona, mas estou exausta...

— É difícil cuidar de si mesma, não?

Odiava a maneira como a irritação misturava-se ao deboche em sua voz.

— Vá embora!

A única resposta foi um longo suspiro. Ao olhar pelo vão dos dedos, Jacqueline percebeu que ele a atendera e afastava-se devagar. Ia deixá-la ali, sozinha, no meio da noite!

Preferia morrer a correr atrás dele, mas a idéia de esperar até o dia seguinte para poder tomar um banho e descansar foi mais do que pôde suportar, e ela abaixou a cabeça e entregou-se ao desespero.

Estava chorando tanto que não ouviu o som de um motor no estacionamento, e só percebeu a aproximação do automóvel quando a luz dos faróis ofuscou-a.

— Deixe-me em paz! — ela exclamou ao ver Marcel Tregowan saltar do veículo e caminhar em sua direção.

Sem dizer nada, ele a fez levantar-se e começou a puxar a mala.

— O que está fazendo?

— O que pensa que estou fazendo? Se quer saber, também tive um dia longo e difícil, que terminou com uma mulher estranha dentro do meu avião. Não estou disposto a lidar com histeria à esta hora da noite. Portanto, entre de uma vez!

— Não sou histérica! Só estou cansada...

— Já sei, e seus pés estão doendo. Se parar de pensar neles, a dor será bem menor.

— E se soubesse quanto eles doem, não faria uma sugestão tão ridícula.

Consciente de como devia estar horrível, enxugou o rosto com o dorso da mão e ajeitou os cabelos atrás das orelhas. O gesto a fez parecer vulnerável, descalça e pequena em seu conjunto de saia e jaqueta, suja e amarrotada depois da difícil viagem. Os olhos castanhos eram enormes no rosto pálido, e o brilho intenso de antes fora apagado pela exaustão.

— Nada poderia me fazer pensar em outra coisa que não fossem meus pés — ela resmungou, erguendo um deles para inspecioná-lo e imaginando se algum dia conseguiria andar normalmente outra vez.

— É melhor pensar em alguma coisa que a faça parar de sentir pena de si mesma.

— Se é tão esperto, por que não sugere alguma coisa?

— Está bem. O que acha... disso?

Sobre um pé só, Jacqueline perdeu o equilíbrio e caiu sobre o peito musculoso, agarrando-se automaticamente à sua camisa enquanto ele inclinava a cabeça para beijá-la.

O efeito do toque daqueles lábios foi eletrizante. Foi um beijo suave, provocante, e sua reação a assustou.

Era como se de repente não tivesse mais nenhum controle sobre o corpo, que sucumbia sem ao menos tentar resistir. Por mais que a mente enviasse ordens para afastar-se, os lábios abriam-se sob os dele e as mãos deslizavam pelas costas largas e musculosas, saboreando a perfeição daquele corpo.

Não tinha idéia de quanto tempo havia durado o beijo, mas quando Marcel afastou-se ela piscou, aturdida e confusa.

— E agora, como estão seus pés?

— Meus pés?

— Sabia que isso funcionaria — ele riu, virando-se para abrir a porta do carro. — Só precisava de alguma distração.

— Distração?

Então era isso! Marcel a beijara da maneira mais casual possível, e ela reagira com uma ansiedade humilhante.

— Tem de admitir que o resultado foi positivo. No futuro, vou me lembrar disso como uma cura para histeria iminente.

Jacqueline abriu a boca para protestar contra a acusação de histeria, mas lembrou como correspondera ao beijo e preferiu ficar em silêncio, temendo alegar perfeito controle mental e ser acusada de coisas piores. A última coisa que queria era que Marcel imaginasse que soubesse o que estivera fazendo.

— Vai entrar, ou não? — Marcel perguntou, segurando a porta aberta.

— Não entrarei nesse carro com um homem que... que acabou de me agarrar!

— Foi por uma boa causa. Disse que devia pensar em outra coisa, você pediu uma sugestão, e eu atendi ao pedido.

— Um beijo não era exatamente o que eu tinha em mente.

— Mas funcionou, não? Podia estar choramingando de dor nos pés, mas agora está reclamando porque a beijei.

— O que espera que eu faça? Beije seus pés?

— Podia demonstrar um pouco mais de gratidão.

— Não me sinto grata.

— Mas sente-se melhor. Caso contrário, não estaria recusando uma carona até a cidade. Suponho que prefira ir andando? Levaremos cerca de vinte minutos de carro, mas a pé... Talvez chegue ao amanhecer. A estrada é deserta e escura, mas se prefere andar até amanhã, sozinha, no escuro...

— Ah, já chega! — ela explodiu, entrando no carro e batendo a porta com força.

Era estranho, mas sentia-se segura com esse desconhecido. Era como se já conhecesse seu rosto, o toque de suas mãos e o calor de seu corpo. E a boca...

De repente desejou poder voltar a pensar nos pés doloridos.

As luzes de Port Lincoln já podiam ser vistas à frente e, perturbada, Jacqueline forneceu o endereço da casa de Chris. Marcel afirmou com a cabeça em silêncio, deixando-a com a estranha convicção de que não precisava ter se preocupado com esse detalhe. A convicção tomou-se ainda mais forte quando, minutos depois, ele parou diante de um bangalô.

— Aqui estamos nós. Número quarenta e três — disse, sem sequer olhar na direção da casa.

— Sabia para onde estávamos indo, não?

— Tenho de admitir que já estive aqui antes — ele suspirou, descendo para apanhar a mala no bagageiro.

— Conhece Chris e Mike?

— Muito bem. Eu os reconheci assim que vi a fotografia.

— Podia ter dito!

— Podia, mas sabia que acabaria descobrindo sozinha.

— Quer dizer que voltaremos a nos encontrar? — ela perguntou irritada, pensando em como seria embaraçoso ter de encará-lo novamente depois daquele beijo.

— Receio que sim — ele riu. — Bem, está entregue. As luzes estão acesas, o que significa que Chris está em casa. Não vai entrar?

De repente sentia-se frustrada. Ansiara pelo momento em que poderia expressar sua opinião a respeito do comportamento desse homem odioso, mas agora que sabia tratar-se de um amigo de Chris e Mike, teria de engolir os desaforos e suportar a frustração. Além do mais, não estaria na casa da prima sem a ajuda de Marcel Tregowan, e isso a aborrecia.

Marcel a observava com um sorriso divertido, provavelmente interpretando sua expressão. Jacqueline respirou fundo e reuniu o que restava de dignidade para encará-lo.

— Sim, vou entrar — disse, estendendo a mão para que ele não pensasse em beijá-la novamente. — Obrigada... por tudo.

— Tudo mesmo? — ele riu, segurando a mão dela com firmeza desnecessária.

Nervosa, ela afastou-se rapidamente.

— Nem tudo — respondeu, sabendo que ele referia-se àquele beijo.

— Bem, espero que aprecie sua estada em Port Lincoln.

Marcel não despediu-se. Apenas entrou no carro e partiu, deixando-a com uma perversa sensação de desapontamento por não ter tentado beijá-la mais uma vez.

Irritada, balançou a mão para livrar-se da sensação deixada pelo último contato, agarrou a bolsa e os sapatos, empurrou o portão e mancou os últimos metros até a porta da casa de Chris.

 

                               CAPÍTULO III

Meia hora mais tarde, Jacqueline estava encolhida numa poltrona com uma taça de champanhe na mão. A calorosa recepção que recebera de Chris compensara todo o sacrifício da viagem, e agora ela retribuía o sorriso afetuoso da prima.

Apesar da enorme diferença entre as duas, tanto de temperamento quanto de aparência, o entendimento fora perfeito desde o primeiro instante.

Sem nenhuma vaidade, loira, serena e alta, Chris preferia roupas simples e confortáveis, enquanto Jacqueline era famosa pelos brincos extravagantes e os sapatos incômodos. Chris preferia o sossego do campo, enquanto Jacqueline adorava a correria da cidade grande e o ritmo frenético das festas, do trabalho e da academia de ginástica. Mesmo assim, partilhavam de uma cumplicidade que a distância não conseguia diminuir.

Agora estavam sozinhas. Mike fora a Queensland em busca de melhores oportunidades para uma nova companhia de fretamento marítimo.

— Deve ter sido horrível para vocês — Jacqueline comentou solidária depois de ouvir como haviam perdido o negócio para uma empresa chamada Sailaway.

— Podia ter sido pior — Chris respondeu com o costumeiro otimismo. — Conseguimos um bom preço por nossos barcos, e não ficamos exatamente desempregados. Mike continua supervisionando os grupos inexperientes, e quando viu-se repentinamente sem secretária, Marcel contratou-me no lugar dela.

— Marcel? — Jacqueline respondeu com voz fraca.

— Marcel Tregowan, o dono da Sailaway. Por que essa cara assustada?

— Por nada — ela gemeu. — Por nada.

— Marcel tem sido absolutamente fantástico. Ele não precisava comprar nossa empresa. Teria sido mais simples esperar que falíssemos, mas ele apareceu a tempo de salvar-nos da ruína. Também não precisava dar o emprego de supervisor a Mike, pois existem outros marinheiros mais experientes loucos para trabalhar para ele. Na verdade, o próprio Marcel é um excelente marinheiro. Ele já ganhou a Sydney-Hobart duas vezes.

— O que é isso? — Jacqueline quis saber, tentando lembrar o que dissera a Marcel sobre a empresa que comprara o pequeno negócio de sua prima.

Por que não ficara de boca fechada? Chris não reclamara na carta, mas, ainda sofrendo os efeitos do próprio desemprego, deduzira que a experiência da prima havia sido tão amarga quanto a dela. Por isso Marcel havia se comportado como se a história o divertisse.

Tregowan podia ter dito a verdade, mas preferira deixá-la fazer papel de boba, certo de que descobriria a verdade em breve.

Chris ainda falava sobre a tal Sydney-Hobart.

— É uma das corridas marítimas mais difíceis do mundo. As condições geográficas são terríveis! Adoro velejar, mas você não me veria nessa prova. Marcel é uma das lendas vivas da disputa, e parece muito à vontade dentro de um barco. Ninguém diria que cresceu num ambiente tão rico. A companhia de Tregowan é uma das maiores em New South Wales. Marcel chegou a administrá-la durante algum tempo, mas acabou optando pela gestão proporcional e agora apenas supervisiona os interesses da companhia em Adelaide. Ele diz que não quer desperdiçar a vida atrás de uma mesa quando pode estar num barco.

— Parece ser uma personagem e tanto — Jacqueline comentou com falsa indiferença. Gostaria de perguntar mais, mas temia que a prima estranhasse a súbita demonstração de interesse por um homem que nem conhecia.

Evitara explicar como chegara a Port Lincoln àquela hora da noite, suja e amassada, e agora parecia tarde demais para revelar toda a história.

— Ah, pode apostar nisso! — Chris concordou com entusiasmo. — Se não amasse Mike, acabaria me apaixonando por Marcel! Falando nisso, o que aconteceu com o tal Rupert de quem falava nas cartas? Pensei que estivessem noivos. Ele não pôde vir?

— Ele não foi convidado.

— Não? O que aconteceu? Tudo que você disse ao telefone foi que planejava vir passar três meses conosco e embarcaria no primeiro vôo disponível.

— Não disse que fui demitida?

— Não! — Chris espantou-se. — Não acredito! Você adorava aquele emprego!

— Sim, mas não tive escolha. A Pritchard Price era uma agência pequena, e quando a Liedermann, Marshall & Jones assumiu o controle, a diretoria decidiu não aceitar uma mulher no cargo de diretora de contas. Eles deram meu emprego a um de seus executivos. Homem, é claro! Parece que meu sucesso profissional nos últimos dois anos não fez muita diferença. Eles disseram que as substituições faziam parte da reorganização necessária num processo de fusão de duas agências, mas aposto que ainda estaria lá, se fosse um homem.

— Rupert não trabalha para a empresa que a demitiu, não é?

— Rupert? Oh, não, ele é comerciante do ramo de vinhos. Bem-sucedido, tradicional, sempre formal em sua gravata de seda, esse tipo de coisas. Acho que devia ter interpretado os sinais...

— Por quê? O que Rupert fez de tão grave?

— Fiquei tão furiosa quando fui demitida que o procurei para desabafar. Pensei que ele entendesse quanto o trabalho era importante para mim, mas o sujeito teve a coragem de dizer que estava feliz, pois sabia que tudo acabaria da melhor forma possível. Não estávamos noivos há muito tempo, e ainda não havíamos discutido quando seria o casamento, ou o que aconteceria depois dele. Presumi que tudo continuaria como antes, mas Rupert é do tipo que acredita que as esposas devem ficar em casa. Perder o emprego significava que eu poderia esquecer essa bobagem de carreira e profissão e me dedicar a cuidar dele!

— Meu Deus... — Chris espantou-se.

— Agora vejo que não nos conhecíamos o suficiente para pensarmos em casamento, e que a separação foi a melhor solução para nós. Mas acabamos tendo uma violenta discussão, e eu joguei a aliança no rosto dele antes de sair de seu escritório.

— Oh, Jacq, sinto muito! Dois golpes num só dia!

— O pior foi descobrir que a perda do emprego era muito mais dolorosa que o fim do noivado. Cheguei a pensar que ele fosse perfeito, entende? Bonito, rico, bem-educado, atencioso... Mas não podia me casar com alguém que me considerava um simples objeto decorativo.

— Confesso que também acreditei que houvesse encontrado o homem ideal — Chris suspirou. — Bem, talvez seja como eu e precise de alguém diferente para ser feliz.

Por alguma razão, a imagem de Marcel Tregowan surgiu diante dos olhos de Jacqueline.

— No momento, só preciso me afastar de todos os problemas por algum tempo.

— Nesse caso, escolheu o lugar certo. Infelizmente a época é de muito trabalho na marina, e estarei ocupada durante boa parte do tempo. É claro que pode ir comigo, se quiser. O trabalho é duro, mas divertido. E garanto que vai gostar muito de Marcel.

Sabia que tinha de dizer à prima que já conhecera Marcel Tregowan e não gostara dele, mas as palavras pareciam estar enroscadas em sua garganta. Chris parecia achá-lo maravilhoso, e não queria desiludi-la com a dura realidade. Deixaria todas as explicações para o dia seguinte.

Mas Jacqueline não teve oportunidade de contar a complicada história que vivera desde que saíra de Londres. Exausta, adormecera assim que pousara a cabeça no travesseiro, e só acordou com o sol entrando no quarto.

Um telefone tocava em algum lugar. O som parou de repente, o que indicava que Chris ainda estava em casa.

Jacqueline ficou deitada por algum tempo, tentando lembrar a última vez que vira um sol tão forte e brilhante, mas os pensamentos insistiam em voltar à noite anterior. Teria realmente atravessado a noite escura naquele avião minúsculo? E havia sido ela quem soluçara sentada sobre a mala de viagem? E o beijo que trocara com Marcel Tregowan... havia sido real?

Jacqueline sentou-se repentinamente. Teria sido ótimo concluir que tudo não passara de um pesadelo, mas a lembrança de Marcel era nítida demais para desprezá-la.

Pulando da cama, vestiu um roupão atoalhado e, bocejando, dirigiu-se à cozinha. Chris estava lá, falando ao telefone de costas para a porta, mas virou-se ao pressentir a presença da prima.

A expressão em seu rosto a fez esquecer Marcel Tregowan.

— Chris! O que aconteceu? Você está com uma cara horrível!

— É Mike — ela explicou em voz baixa. — Acabaram de telefonar do hospital em Brisbane. Ele sofreu um acidente com o carro. Oh, Jacq, o que vou fazer?

Jacqueline pagou o motorista do táxi e olhou para a marina. Iates imponentes e luxuosos balançavam suavemente sobre as ondas, os mastros altos e retos contra a vastidão do céu azul. A esquerda, um pequeno edifício de madeira ostentava uma placa sobre a porta: SAILAWAY. Engolindo em seco, enxugou o suor das mãos na calça. Tudo parecera muito fácil quando prometera a Chris que resolveria tudo com Marcel Tregowan, mas a perspectiva de encontrá-lo novamente fazia seu coração bater mais depressa.

Jacqueline ergueu os ombros. Isso era ridículo! Enfrentara situações mais difíceis, acalmara clientes furiosos e resolvera problemas aparentemente insolúveis, e seria capaz de lidar com Marcel Tregowan. Havia prometido a Chris.

A prima entrara em pânico ao tomar conhecimento do acidente do marido, e fora ela quem providenciara o vôo para Brisbane, chamara um táxi e fizera a mala. Agora estava ali para cumprir a promessa que fizera ao despedir-se no aeroporto.

Respirando fundo, Jacqueline começou a caminhar na direção do escritório da Sailaway. A porta estava aberta, mas ela hesitou do lado de fora. A confusão da noite anterior havia sido tão grande, que provavelmente construíra um Marcel Tregowan que não existia, um homem desproporcional cuja imagem monstruosa a enchera de medo. A luz do dia ele provaria ser um homem perfeitamente normal e inofensivo.

Mas, ao passar pela porta e vê-lo parado ao lado do arquivo, soube que não havia imaginado as coisas que a atormentavam. Marcel virara-se ao ouvir as batidas delicadas, e suas sobrancelhas estavam erguidas em sinal de surpresa.

Ele deixou a pasta que analisava sobre o arquivo e fechou a gaveta com um movimento firme.

— Ora, ora — disse. — Que visita inesperada! Precisa de uma carona para algum outro lugar?

— Não. — Por que comportava-se como uma idiota confusa sempre que o via? — Vim conversar com você.

— Estou lisonjeado. — Ele tirou uma pilha de catálogos de uma cadeira e convidou-a a sentar-se com um gesto debochado. — É melhor ficar mais à vontade.

Sem saber por onde começar, Jacqueline olhou em volta. Janelas amplas em três lados da sala ofereciam uma boa visão da marina, e através da porta dos fundos podia vislumbrar um almoxarifado cheio de toalhas, lençóis e material de limpeza. Havia um rádio de comunicação sobre a mesa, e Marcel inclinou-se para abaixar o volume.

— Suponho que Chris tenha dito onde poderia encontrar-me — ele comentou, sentando-se na cadeira giratória atrás da mesa. — Não esperava vê-la tão cedo. Ontem à noite, tive a impressão de que ficaria feliz se nunca mais me encontrasse.

Vermelha, lembrou como havia sido grosseria e ingrata ao despedir-se.

— Isso foi ontem à noite. Além do mais, estou aqui por minha prima. Mike sofreu um acidente e Chris teve de ir a Brisbane.

Um acidente? Tregowan perguntou com evidente preocupação. — Sabe se ele está muito ferido?

Ainda não sabemos. Esta manhã, quando telefonaram do hospital, ele ainda não havia recuperado a consciência.

— Sabem o que aconteceu de fato?

— Mike estava dirigindo por uma estrada de Brisbane a caminho de casa. Uma testemunha disse à polícia que ele tentou desviar de um caminhão que vinha em sentido contrário e capotou. Chris estava em pânico. Eu a embarquei num vôo para Brisbane há cerca de uma hora, e ela prometeu telefonar esta noite para me dar notícias.

— Há alguma coisa que eu possa fazer?

— Sim — Jacqueline respondeu depressa, feliz por ele ter dado a abertura. — Pode me deixar substituir Chris enquanto ela estiver fora.

— O quê?

— Chris está preocupada com o trabalho. Com Mike fora de circulação, esse será o único rendimento que terão, e ela teme perder o emprego se ficar afastada por algum tempo. Aparentemente essa é a época mais atribulada do ano nesse ramo.

— É verdade, mas Chris não perderá o emprego. Além de ser um empregador responsável, jamais faria isso a um ser humano. Ela e Mike são meus amigos.

— Não precisa me bater por causa disso! A idéia não foi minha. Disse a Chris que só um monstro a demitiria em tais circunstâncias, mas ela não estava em condições de raciocinar. Quando alguma coisa assim acontece, perdemos o senso de proporção e transformamos contratempos corriqueiros em desastres tenebrosos!

Marcel a encarava com um sorriso nos lábios. Sabia que estava lembrando como ela sentara sobre a mala e chorara na noite anterior, e o olhar penetrante a fez mover-se no assento em busca de uma posição mais confortável. Como seus problemas haviam sido ridículos comparados ao de Chris!

— Chris é fantástica — ela prosseguiu, tentando mostrar-se calma e razoável, bem diferente da garota que rompera em lágrimas só porque estava cansada e com dor nos pés. — Ela ficou desesperada para ir ao encontro do marido, mas preocupou-se em não abandoná-lo sem uma assistente. Queria ir com ela a Brisbane, mas a única maneira de acalmá-la foi prometer que viria falar com você e me ofereceria para substituí-la. Assim ela poderia ir tranquila, sabendo que ainda teria um emprego ao voltar.

Marcel pôs as mãos nos bolsos e virou-se para a janela, a testa franzida.

— Vai ter de falar com sua prima e dizer a ela que não precisa preocupar-se. É claro que terei de providenciar alguém para me ajudar enquanto ela estiver fora, mas será apenas uma medida temporária, e continuarei pagando seu salário normalmente. Chris poderá voltar ao trabalho quando quiser, e Mike também, é claro. Se estiver muito ferido precisará de algum tempo até poder voltar a velejar, mas o lugar estará sempre esperando por ele.

— Não quer que eu venha trabalhar para você, não é?

— Francamente, não. Prefiro procurar alguém mais adequado.

— O que quer dizer com mais adequado? O que há de errado comigo?

— Para começar, você é inglesa.

— E daí?

Marcel voltou à cadeira giratória.

— Contratei uma inglesa para o último verão. Ela parecia ter a experiência ideal, e achei que devia dar uma chance às relações internacionais, mas a tentativa foi um fracasso. Ela só precisou de algumas semanas para decidir que o trabalho era duro demais e partir para Adelaide. Não fosse por Chris, teria ficado numa situação difícil. Inglesas não fazem parte de minha lista de preferências nesse momento.

— Não estou pedindo para gostar de mim.

— Tem idéia do que está envolvido nesse tipo de trabalho?

— Chris não teve tempo para me contar muito, mas pelo que entendi o emprego envolve cozinha e limpeza.

— É muito mais que isso — Marcel corrigiu irritado. — Opero quinze barcos daqui. Alguns são fretados por marinheiros experientes, outros grupos precisam de um supervisor como Mike para acompanhá-los. Ocasionalmente algum grupo traz tudo que é necessário, mas a maioria espera que providenciemos todas as provisões. É tudo muito flexível. Eles podem levar os mantimentos que compramos e preparar a própria comida, ou Chris prepara quantas refeições forem necessárias e as congela antecipadamente, de forma que os clientes só precisam aquecê-las. Sabe cozinhar?

— É claro que sim. Meus jantares são famosos.

— Estou falando sobre comida simples e caseira, não sobre pratos pretensiosos. Marinheiros não se interessam por nouvelle cuisine.

— Bem, acho que posso cozinhar algo sem graça, se é isso que quer. Não pode ser tão difícil.

— Ficaria surpresa — ele preveniu. — Chris não só planeja os cardápios para cada barco, como faz as compras, estoca os refrigeradores e armários e prepara as refeições congeladas para aqueles que as encomendam. Ela também limpa os barcos quando são devolvidos, de forma que fiquem prontos para o próximo grupo. Isso significa trocar a roupa de cama das cabines, verificar o estoque e repor o que for necessário. Tudo tem de ser perfeito. Ela também ajuda no escritório atendendo telefonemas, datilografando, esse tipo de coisa.

— Isso não é um emprego, é escravidão! — Jacqueline exclamou espantada.

— Não esperava que gostasse. Chris faz tudo parecer muito fácil, mas você não está acostumada a trabalhar.

— É claro que estou! — Quando pensava nas horas que passara no escritório, trabalhando até alta madrugada para concluir um relatório ou uma apresentação especial! — Saiba que estou habituada a trabalhar duro!

— Está habituada a sentar-se atrás de uma mesa e pensar. Isso não é trabalho. Preciso de alguém que não tenha medo de enrolar as mangas e sujar as mãos, não de alguém com um título elegante cujo maior esforço físico seja erguer o fone do gancho!

— Posso não sujar as mãos, mas preciso ser forte para sobreviver. Tenho de lidar com pessoas, assumir responsabilidades e organizar o trabalho de forma que ele seja feito da maneira mais eficiente possível. Em vez de ficar criticando, devia pensar em como tirar proveito de minhas habilidades administrativas.

Não precisa saber organizar um comitê de recepção ou ditar memorandos para limpar um barco! — ele apontou, inclinando-se para segurar as mãos dela. — Veja isso. Essas mãos não suportariam semanas a fios de vassouras e escovas!

Jacqueline sentiu a boca seca, o corpo todo subitamente afetado pelo toque casual daqueles dedos.

— Garanto que elas se acostumarão disse, forçando-se a permanecer calma.

— E você? — ele perguntou, soltando suas mãos e voltando à posição confortável na cadeira giratória.

— Sou mais dura do que pareço.

— Não acredito que seja forte como gosta de acreditar que é.

— Por que não me deixa demonstrar?

A irritação era evidente em seu rosto.

— Ontem à noite você não se cansava de dizer que era uma executiva poderosa com uma importante carreira. Está me pedindo para acreditar que ficaria feliz cortando cebolas e lavando banheiros pelas próximas semanas?

— Farei o que for necessário para tranquilizar minha prima. Escute aqui, não quero passar meu tempo na Austrália trabalhando para você, mas prometi a Chris que viria, e é isso que vou fazer. Talvez não seja a pessoa mais adequada, mas não terá o trabalho de procurar alguém. Talvez até descubra que sou mais forte do que imagina — ela concluiu de queixo erguido.

Marcel encarou-a em silêncio por alguns minutos, os olhos verdes iluminados por um brilho que pareciam ser de admiração.

— Talvez — ele resmungou, subitamente tenso. — Por que está fazendo isso, Jacqueline? Podia providenciar outra pessoa, e diríamos a Chris que você a estava substituindo. Seria muito mais simples.

Não poderia mentir para minha prima.

— E quanto às suas férias? Não devia passar os próximos meses pensando em sua carreira e preparando-se para uma promoção?

Jacqueline desviou os olhos dos dele. Havia esquecido essa mentira. Se Marcel não se mostrasse tão sarcástico a respeito de ter uma carreira, poderia até dizer a verdade. Mas, nas atuais circunstâncias, não daria a ele essa satisfação.

— Vim para cá para distanciar-me de tudo. Realmente preciso de tempo para pensar, e presumo que poderei refletir enquanto estiver lavando os banheiros. Ou essa seria uma atitude muito executiva para o seu gosto?

— Não, refletir é permitido — Marcel riu. — Discutir é que não é. Deixe sua carreira em casa antes de vir trabalhar. Não quero saber como é importante, ou como as coisas seriam diferentes se eu não fosse tão preconceituoso e radical. A maior parte do trabalho é entediante e repetitivo, e não quero ouvir reclamações!

— Quer dizer que vai me aceitar? — Jacqueline concluiu, erguendo o corpo na cadeira.

Marcel suspirou.

— Só por causa de Chris. Se isso significa tanto para ela, então estou preparado para aceitá-la por aqui. Mas só se estiver disposta a trabalhar duro como ela.

Prometo — Jacqueline respondeu apressada.

— Vamos esperar que não seja por muito tempo. Quando Chris e Mike voltarem, tenho certeza de que os receberemos de braços abertos, mas até lá... Bem, parece que estamos presos um ao outro.

 

                                   CAPÍTULO IV

Decisão tomada, Marcel tornou-se imediatamente brusco e profissional.

— Tem carteira de motorista?

— Sim, mas não a trouxe comigo — Jacqueline respondeu embaraçada. — Soube que poderia embarcar em cima da hora, e mal tive tempo para fazer a mala. Não pensei em trazer a carteira de motorista.

— A julgar pelo tamanho de sua mala, parece ter pensado em todo o resto. Imaginei que uma executiva de sucesso como você fosse mais organizada...

— Como poderia saber que precisaria da carteira?

— Esperava que Chris e Mike fossem seus motoristas?

— Não sabia o que esperar! E que importância tem isso, afinal?

— Pensei em mandá-la às compras com a van, mas parece que terei de transportá-la por aí. Isso está começando a tornar-se um hábito!

— Pois pode estar certo de que não estou satisfeita com esse hábito!

— Ah, ia me esquecendo! Você é a garota que sabe cuidar de si mesma — ele comentou com sarcasmo. — Engraçado como isso parece envolver sempre outra pessoa fazendo todo o trabalho.

— Estamos falando apenas de uma viagem ocasional ao mercado — Jacqueline lembrou irritada. — Se isso o incomoda tanto, encontrarei outra maneira de locomover-me.

— Como fez ontem à noite?

Ontem à noite foi diferente. Estava fora de mim, e você sabe disso. Qualquer um teria desistido depois da viagem que enfrentei, e também não me ajudou muito sendo tão... tão... tão desagradável!

— Desagradável? Carreguei sua mala, trouxe-a de avião até Port Lincoln, deixei-a na porta da casa de sua prima... O que fiz de tão desagradável?

Jacqueline sentiu-se encurralada e tentou pensar numa prova de seu comportamento inconveniente.

— Você me beijou — disse, incapaz de formular qualquer outra acusação.

— Não se comportou como se isso fosse desagradável.

— Você tirou proveito de mim!

— Bem, então estamos quites, não?

Jacqueline foi a primeira a baixar os olhos. Por que tocara no assunto do beijo? A lembrança parecia eletrizar o ar entre eles, provocando arrepios que a percorriam dos pés à cabeça.

— Deve haver uma maneira de locomover-me — ela disse, tentando levar a conversa de volta ao terreno neutro. — Não existem ônibus por aqui?

— Não estamos em Londres — Marcel respondeu impaciente. — Talvez consiga chegar ao mercado, mas como voltaria para cá carregando as compras?

— Posso pegar um táxi?

— Pode, se estiver disposta a pagar por ele. Porque não vou jogar dinheiro fora quando disponho de uma van completamente vazia! Está pensando em vir de táxi todas as manhãs, também?

— Não havia pensado nisso.

— É bom começar a pensar. A casa de sua prima fica longe da marina, e certamente não encontrará um ônibus esperando no final da estrada.

— Consegui manter um emprego de alto nível e viver sozinha durante muitos anos, e em Londres! É evidente que conseguirei sobreviver em Port Lincoln!

— É uma questão de ponto de vista — Marcel suspirou antes de apontar a janela. — Moro naquela casa, do outro lado da marina. É bem perto daqui, e poderia vir caminhando todas as manhãs. É melhor ir hospedar-se em minha casa.

— Na sua casa? Prefiro dormir na praia!

— Não sei como chegou ao topo de sua bem sucedida carreira, mas certamente não foi através do tato!

— E você não chegou aonde está usando de simpatia! O convite não foi dos mais delicados que já recebi, e... Ah, não importa! Não vou me hospedar na sua casa!

— Isso não é nenhum truque para agarrá-la, se é isso que a preocupa. Não precisa reagir como uma solteirona ultrajada. Francamente, sou capaz de pensar em companhias muito mais agradáveis. Também não aprecio a idéia de passar as próximas semanas ao lado de um furacão de saias, mas não vejo outra alternativa.

— Pois eu vejo! Ficarei na casa de Chris e Mike, e o assunto está encerrado.

— E como chegará aqui todas as manhãs?

— Pensarei numa solução.

— A casa é grande o bastante para nós dois.

— Prefiro ficar onde estou — Jacqueline insistiu com firmeza. A idéia de encontrá-lo todos os dias já a perturbava, mas morar na mesa casa... Arrepiava-se só de imaginar.

Marcel olhou para a figura sentada diante dele com evidente irritação.

— Por que tem sempre de aprender da maneira mais difícil?

— Por que recusa-se a entender que sou capaz de cuidar de mim mesma? Sei que fui patética ontem à noite, mas não voltará a acontecer. Sou boa no que faço, e serei competente aqui também. Espere e verá!

— Bem, se está tão determinada a provar-se competente, é melhor começar agora mesmo — Marcel sugeriu enquanto levantava-se. — Vou levá-la para conhecer o lugar, e depois poderá começar a trabalhar. Temos muito o que fazer esta semana.

Marcel levou-a ao depósito e depois explicou o funcionamento do arquivo e do rádio de comunicação.

— Mantemos o aparelho ligado vinte e quatro horas por dia na frequência dos nossos barcos. Se alguém chamar e eu não estiver por perto, atenda o mais depressa possível. As vezes terá de dar algum conselho prático, ou alguma sugestão. Entende alguma coisa de navegação?

— Bem, eu... Não.

— Não? Deve ter noções básicas. Nunca velejou?

— Não. Onde moro, esse é um hobby pouco apreciado em função das condições climáticas. Chris e Mike adoram velejar, mas eu prefiro um bom livro e uma cadeira confortável ao sol.

— Não é muito parecida com sua prima, é?

— Nem um pouco — Jacqueline sorriu. — Às vezes gostaria de ser mais parecida com ela. Chris é tão... tranquila!

— Uma palavra que ninguém usaria para descrevê-la — Marcel concordou.

— Ah, e que palavra usaria?

— Prefiro não revelar — ele sorriu.

O sorriso a pegou de surpresa. Quando já estava decidindo que o sujeito era ainda mais insuportável do que imaginara, ele a desarmava com aquele sorriso encantador!

Estava temendo perder o fôlego, completamente fascinada com a mudança na expressão de Marcel, quando ele a encarou com o olhar duro de antes e ela lembrou-se onde estava e o que devia estar fazendo.

Respire fundo... E fácil quando se tenta.

O sol brilhava forte no céu azul, e Jacqueline teve de estreitar os olhos enquanto o seguia na direção dos barcos. A brisa do mar soprava seus cabelos curtos e castanhos, obrigando-a a levar a mão à cabeça para segurá-los longe dos olhos. O sorriso do sujeito ainda estava impresso em sua memória.

A água parecia um espelho límpido sob o sol intenso, mas podia ouvir as ondas batendo contra o quebra-mar e balançando as embarcações. Observava o movimento hipnótico como se jamais houvesse visto um iate antes, notando o contraste entre a retidão dos mastros e as linhas irregulares da paisagem.

Devia ser alguma coisa no ar, decidiu, sentindo a enorme diferença entre a luz radiante do sol australiano e a luminosidade suave da Inglaterra. Aqui, nesse lugar distante e quente, podia sentir na pele a promessa inebriante da liberdade e do frescor do mar.

Fechando os olhos, virou o rosto para o sol e aspirou o perfume salgado que a brisa trazia, sorrindo ao ouvir as gaivotas que mergulhavam na água.

Eram sons muito diferentes dos que costumava ouvir: telefones tocando, dedos velozes sobre as teclas de um computador, vozes exaltadas numa discussão, gargalhadas, o ruído abafado do trânsito além da janela do escritório ou uma sirene aflita. Os sons da marina eram, ao mesmo tempo, estranhos e familiares.

Apesar de tudo, de repente sentia-se feliz por ter vindo, e ainda sorria quando abriu os olhos e virou-se para Marcel.

Ele a observava com uma expressão estranha.

— Pensei que estivesse dormindo — disse, como se tivesse de esforçar-se para manter o tom ácido.

— Estava apenas... pensando.

— É bom variar — ele disparou, virando-se para indicar que deviam seguir com as explicações. — A maioria dos barcos está fora no momento, mas vou apresentá-la aos que ficaram. Esse mais próximo de nós é Persephone. Ao lado dele está Dora Dee, e depois vem Calypso. Foi devolvido ontem, e ainda precisa de limpeza, como Valli — e apontou para a embarcação ancorada ao lado de Calypso.

— Valli — Jacqueline repetiu, certa de que o nome soava familiar. — Esse barco pertencia a Chris e Mike, não?

— Sim, até eu chegar e destruí-los com minha vil proposta de compra.

Jacqueline sentiu o rosto quente.

— Lamento o que disse — ela desculpou-se, lembrando como o acusara do que considerava ter sido o infortúnio da prima. — Chris contou-me o que realmente aconteceu e falou da gratidão que sente por você. Acho que tirei conclusões precipitadas a partir daquela carta. Na época, transações como essa eram uma espécie de tabu para mim.

Quer dizer que agora tirou as conclusões certas a meu respeito?

Havia um brilho de provocação nos olhos verdes e no sorriso irônico que distendia seus lábios. O vento agitava seus cabelos e colava a camiseta aos músculos definidos de seu peito.

Por um momento Jacqueline sentiu-se derreter diante da visão de perfeição física, e o ressentimento a fez soar mais fria do que pretendia.

— Acho que prefiro guardar minhas opiniões até conhecê-lo melhor.

— A cautela não faz parte de suas características naturais...

— Como pode saber? — ela perguntou, seguindo-o pelo quebra-mar.

— Sou observador — Marcel respondeu, saltando para o convés da embarcação com o nome Ariadne pintado no casco. Virando-se, ele estendeu a mão para ajudá-la. — Você mesma disse que é impulsiva, e o que vi até aqui me leva a concluir que é do tipo que pula antes de olhar.

Relutante, Jacqueline aceitou a mão estendida e saltou para dentro do iate. Uma súbita rajada de vento balançou a embarcação, jogando-a de encontro ao peito musculoso.

Vermelha, ela afastou-se apressada e tropeçou nas cordas enroladas que alguém deixara no convés.

— É surpreendente como alguém de aparência tão frágil e delicada pode ser tão desajeitada.

— Não sou desajeitada! Qualquer um teria tropeçado nessa corda estúpida jogada no meio do caminho!

— Não notei nenhuma corda no meio do caminho quando lidava com sua mala ontem à noite.

Jacqueline preferiu não responder. Em silêncio, seguiu-o pela escada que levava ao salão arejado e claro sob o convés. Duas cadeiras estofadas, uma pequena mesa, uma bancada e um pequeno fogão de acampamento constituíam a mobília. Sobre a bancada de trabalho, um puxador de metal atraiu sua curiosidade.

— O que é isso? — ela perguntou, erguendo a tampa e examinando o compartimento com uma caixa escura fixa na lateral.

— Um refrigerador movido à bateria — Marcel respondeu. — Colocamos um bloco de gelo no interior e ele conserva os alimentos por uma semana. Vai precisar ter esse prazo em mente quando planejar seus cardápios.

— Então essa é a cozinha? — ela espantou-se, olhando em volta e reconhecendo os armários nas portas travadas.

— Exatamente.

Jacqueline conheceu as três cabines e o pequeno banheiro que completavam o espaço do iate. Marcel mostrava tudo com orgulho evidente, apontando rádios, mapas e bússolas, e uma infinidade de instrumentos para os quais ela limitava-se a olhar em silêncio, até que ele a acusou de não estar prestando atenção.

— Estou — ela protestou. — É que tudo isso é muito confuso para quem nunca esteve num barco. — Além do mais, seria muito mais fácil concentrar-se se o espaço reduzido não os obrigasse a permanecer tão próximos.

Furiosa, não conseguia banir da memória o beijo da noite anterior, o calor daqueles lábios e a poderosa reação do próprio corpo ao ser tocado pelas mãos dele.

Por isso sentiu-se tão aliviada quando Marcel levou-a de volta ao convés.

— E então, o que acha? — ele perguntou.

— Acho que gosta mais dos barcos que de mulheres. É interessante que tenha batizado todos eles com nomes femininos.

— Não há nada de interessante nisso. Mas, já que mencionou, tem razão. Gosto mais dos barcos que das mulheres. Ambos são muito caros, mas nenhuma mulher jamais me deu o prazer que sinto quanto estou em alto mar, sem ninguém para discutir comigo ou pedir para voltar para casa assim que um vento mais forte desmancha seu penteado.

O tom subitamente amargo a fez imaginar se ele estaria lembrando alguém em particular. Como seria ser a mulher que Marcel levava para velejar, a garota que ele acariciava e amava? Era difícil imaginar alguém capaz de preocupar-se com penteados ao lado dele.

— Quer dizer que não há espaço para mulheres em sua vida?

— Eu não disse isso — ele negou, ajudando-a a voltar ao quebra-mar.

— Mas insinuou que ainda não encontrou alguém capaz de competir com seus iates.

Jacqueline pretendia soar sarcástica, mas só conseguiu mostrar-se decepcionada ao retirar a mão da dele com um movimento brusco.

Marcel estudou seu rosto delicado, os grandes olhos castanhos e os cabelos brilhantes sob o sol. Parecia delicada e vibrante, apesar da atitude sempre desafiante.

— Ainda não — ele respondeu devagar.

Jacqueline sentiu-se perturbada sob o olhar intenso, e por isso tratou de mudar de assunto.

— Conserva algum barco para uso próprio, ou todos são fretados?

— Normalmente deixo aquele ancorado no final do quebra-mar para quando quero velejar — Marcel respondeu, mudando de tom ao apontar para o elegante iate no final da fila. — O Ali B. é lindo, não?

— Maravilhoso — ela respondeu com sarcasmo, traindo uma ponta de ciúme.

— Quer ir conhecê-lo?

— Pensei que estivesse aqui para trabalhar. O que devo fazer primeiro?

— Já que prefere assim... Pode começar limpando o Calypso. — Marcel a levou de volta ao escritório, onde equipou-a com um balde de alumínio repleto de utensílios de limpeza. — Encontrará água nas torneiras do quebra-mar.

Jacqueline apanhou o balde e examinou o conteúdo com incredulidade.

— Só isso?

— O que mais esperava?

— Bem... não vai me dizer o que devo fazer?

— Você é a grande profissional! Use sua competência para descobrir sozinha. Parecia tão certa de sua capacidade para o trabalho! Agora chegou a hora de provar que é capaz. Irei fazer uma inspeção quando terminar, e informarei se está à altura do meu padrão de qualidade.

Saber que seu trabalho seria inspecionado por Marcel Tregowan a fez erguer o queixo. Mostraria a ele que era competente, nem que tivesse de esfolar as mãos para isso!

Cinco minutos mais tarde ela deparou-se com o primeiro problema: entrar no Calypso sozinha. O vento agitava a superfície do mar, balançando o barco e afastando-o do quebra-mar. Quando conseguiu passar uma perna sobre a balaustrada, uma rajada mais forte quase a derrubou, obrigando-a a atirar-se ao convés para não cair na água. Só esperava que ninguém a estivesse observando.

— Quer que eu traga água, Jacqueline? — A voz de Marcel a fez virar-se. — Parece ter tido uma certa dificuldade para chegar aonde está.

Ele estava observando! Jacqueline pensou em respondeu que poderia ir buscar água sozinha, mas então imaginou como seria repetir a façanha com o balde cheio e mudou de idéia.

— Obrigada — respondeu com tom frio, passando o recipiente por cima da balaustrada.

— Tenho certeza de que uma profissional competente como você será capaz de dominar a arte de entrar e sair de um barco em pouco tempo — Marcel disse sorrindo minutos depois, quando voltou para devolver o balde cheio.

O trabalho era mais duro do que havia imaginado. O sol aquecia a fibra de vidro sobre sua cabeça, e sem a brisa do mar Jacqueline logo começou a sentir muito calor. A camiseta e a calça aderiam à pele úmida, e podia sentir o suor escorrendo por suas costas.

O Calypso ostentava todos os sinais da ocupação recente. Seis pessoas durante uma semana, seis pessoas que haviam passado a maior parte do tempo na praia, a julgar pela quantidade de areia a bordo. Também haviam passado um bom tempo comendo e bebendo, o que a obrigou a lavar quase todos os pratos. O churrasco organizado na popa deixara marcas tão evidentes que ela decidiu deixar a limpeza da grelha para mais tarde, quando dispusesse de água quente e um bom par de luvas.

Depois de esfregar o chão, lavar o fogão, recolher areia e fazer brilhar cada centímetro das cabines, Jacqueline foi levar a roupa de cama ao convés e deixou-se refrescar pela brisa do mar.

O rosto estava vermelho e suado, os cabelos grudavam no pescoço, e ver Marcel relaxado no barco ao lado não contribuiu para melhorar seu estado de espírito. Ele estava sentado ao lado da balaustrada, polindo os metais, e parecia fresco e confortável.

— Vejo que acredita em dar o exemplo de trabalho duro aos empregados — Jacqueline comentou com tom ácido, deixando os lençóis no chão.

Marcel observou sua aparência prejudicada com bom humor. Mal podia reconhecer nela a jovem bem vestida que conhecera no aeroporto de Adelaide.

— Tenho de estar em algum lugar onde possa ouvir o rádio e o telefone — ele explicou, deixando de lado a estopa. — Podia sentar no escritório e esperar, mas prefiro ficar ao ar livre, fazendo algo de útil.

— Podia ouvi-los da cabine, enquanto eu ficaria aqui fora, aproveitando o sol e a brisa!

— Sabe como manejar os equipamentos de bordo?

— Não.

— É por isso que está aí, enquanto eu fico aqui. Se quer um trabalho confortável, vai ter de aprender um pouco mais sobre barcos.

— Estou aprendendo o suficiente aqui, obrigada — ela disparou, desaparecendo além da escada que levava às cabines.

Assim que terminou, Jacqueline subiu ao convés, despejou a água suja por sobre a balaustrada, recolheu o material de limpeza no balde e, sarcástica, convidou Marcel para uma inspeção.

Ele aceitou de imediato, verificando as cabines com atenção irritante.

— Não limpou a geladeira. Ela ainda está cheia de água. E os armários sob os assentos estão uma bagunça. Mas o restante... nada mal.

Nada mal! Jacqueline afastou os cabelos sujos dos olhos e encarou-o. Nunca trabalhara tão duro em sua vida, e tudo que ele sabia dizer era... nada mal!

— Ainda precisa lavar o convés e a cabine de comando — ele lembrou. — E não esqueça de fazer o inventário.

— Agora? — Não conseguia nem sustentar-se em pé, e ele ainda queria obrigá-la a trabalhar mais?

Marcel franziu a testa.

— Amanhã — decidiu. — Você parece ter sido atropelada por uma jamanta. Sente-se bem?

— Sinto-me um pouco estranha.

Estivera muito bem até sentar-se, mas de repente a exaustão a tomava de assalto, provocando uma repentina tontura.

— Deve ser o resultado da viagem — Marcel opinou. — Era só o que faltava!

— Estarei perfeitamente bem depois de descansar por cinco minutos — ela respondeu, disposta a não dar motivos para ser chamada de fraca e patética.

Mas Marcel ignorou seus protestos e a fez levantar-se.

— Venha, vou levá-la para casa.

— Para a casa de Chris...

— Está bem, para a casa de Chris — ele suspirou. — É sempre tão teimosa?

— Não sou uma espécie de escrava sobre a qual adquiriu todos os direitos através de uma transação comercial. Tenho opinião própria.

— Pena que ela não venha acompanhada de um mínimo de bom senso. Vou levá-la para a casa de Chris, mas esta será a última vez. Terá de vir à marina sozinha amanhã cedo, e se acha que vou reembolsar seus passeios de táxi, pode esquecer!

Jacqueline sabia que a resposta provocaria uma reação explosiva, e por isso esperou que ele a deixasse na porta da casa de Chris para dizer:

— Não precisarei de um táxi. Irei até a marina andando.

 

                                   CAPÍTULO V

— Está atrasada!

Jacqueline apoiou-se na porta e encarou-o com hostilidade. Não precisara de muito tempo para arrepender-se da decisão de ir ao trabalho a pé. O sono profundo a deixara lenta e preguiçosa, e já havia apanhado o telefone para chamar um táxi quando lembrara-se que, na pressa de embarcar para Port Lincoln, não trocara nenhum dinheiro.

Chris a deixara com alguns trocados, mas havia sido suficiente apenas para o táxi que a levara à marina no dia anterior. Assim, tivera realmente de ir caminhando até lá.

— Desculpe, mas levei mais de uma hora para chegar aqui.

Os pés doíam, mas pelo menos lembrara-se de usar um chapéu. E era com ele que abanava-se na tentativa de refrescar o rosto vermelho e suado.

Marcel mostrava-se irritado.

— Devia ter pensado nisso antes de insistir em vir a pé. Amanhã terá de acordar uma hora mais cedo. Três desses barcos foram fretados para depois de amanhã, e eles não estarão prontos se chegar a esta hora todos os dias.

— Já pedi desculpas — ela resmungou, tirando os sapatos para massagear os pés doloridos. — Não voltarei a me atrasar.

— Espero que não. Se quer conservar esse emprego para Chris, vai ter de ser melhor do que foi até agora. E agora, pode ir terminar a limpeza no Calypso. Depois cuide do Valli e do Dora Dee.

Jacqueline estava pálida de raiva quando saiu levando o balde. Adoraria dizer a Marcel o que poderia fazer com esse emprego, mas Chris telefonara na noite anterior, e mostrara-se tão cansada e ansiosa com a saúde do marido, que não tivera coragem de acrescentar mais um item à sua lista de preocupações.

Teria de suportar Marcel, o Insuportável, embora estivesse ainda mais furiosa agora que sabia que a prima falara com ele sobre a mudança para sua casa e ficara entusiasmada.

— Ficaria mais tranquila se soubesse que está lá com ele, e não aí sozinha — ela justificara. — É uma casa adorável, e ele prometeu cuidar de você por mim.

Prometera pensar no assunto, mas mostraria a Marcel que não precisava de ninguém para cuidar dela.

A raiva serviu como uma espécie de combustível, e Jacqueline terminou de limpar o primeiro barco em tempo recorde. Irada, passou ao segundo e continuou limpando e esfregando, lamentando não poder apagar as lembranças que a atormentavam com água e sabão. Por que tinha de recordar aquele beijo com tanta insistência?

O tempo passou depressa, e mal pôde acreditar quando, ao atender um chamado de Marcel, descobriu que passava de uma da tarde.

— Venha almoçar — ele disse. — Precisa de um descanso.

O trabalho duro a ajudara a livrar-se da raiva, e de repente compreendia que fora tolice jogar toda a culpa nas costas de Tregowan. Afinal, ela atrasara-se uma hora, e merecera o sermão.

— Não tenho dinheiro — disse. — Há algum banco próximo onde possa trocar parte do que trouxe comigo?

— Poderá cuidar disso amanhã, quando formos ao mercado. Por ora, pagarei seu almoço. Parece estar precisando de uma boa refeição. Quando comeu pela última vez?

— Comi algumas frutas no café da manhã, mas ontem à noite não estava com fome — Jacqueline respondeu enquanto saía do barco, surpresa com a prática rapidamente adquirida. — Acho que não como adequadamente desde o avião.

— Não se pode chamar a comida que servem no avião de adequada. Iremos ao restaurante da marina.

— Não posso ir a um restaurante vestida desse jeito! — Ela protestou, mostrando a camiseta e o short jeans que escolhera para o trabalho duro.

Não se trata de um restaurante elegante. Se quer saber minha opinião, está melhor agora do que naquele conjunto ridículo que usou para viajar. Aquela imagem sofisticada não condiz com sua verdadeira personalidade.

— Está enganado! Sei que não dá muita importância à elegância, mas em minha profissão a aparência é muito importante.

— Então, talvez essa profissão não combine com sua verdadeira personalidade.

— Bobagem! Minha profissão é o que há de mais forte e importante em mim.

— Eu diria que o mais forte e importante em você é o fato de dispor-se a esfregar o chão de um barco para ajudar sua prima num momento difícil.

Confusa, Jacqueline o viu virar-se e caminhar pelo quebra-mar. Já descobrira que discordar dela era típico dele, mas certamente ouvira uma nota de respeito em sua voz!

Conforme Marcel prometera, o restaurante era informal, mas a comida era deliciosa. Sentaram-se num terraço com vista para a marina, e ela saboreou o prato de frutas do mar e a salada fresca e saborosa com apetite invejável.

— Sempre faz tudo com tanta determinação? — Marcel riu.

— Não percebi que estava com tanta fome — Jacqueline desculpou-se com certo embaraço.

— Estou me referindo à disposição com que limpou aqueles barcos.

— Ah, aquilo foi porque... Bem, sempre acreditei em fazer tudo da melhor maneira possível.

— Entendo. É uma dessas pessoas para quem não existe meio-termo, certo? Para você é tudo, ou nada.

— Sim, acho que isso explica minha natureza. Estou sempre preparada a dar tudo de mim ao trabalho, seja ele qual for.

— E quanto ao amor? Também atira-se a ele com a mesma integridade, ou está ocupada demais cuidando de sua preciosa carreira?

O tom amargo a fez erguer a cabeça para encará-lo, e a tensão estampada em seus olhos verdes espantou-a.

— O que há com você, afinal?

— Nada. Estava apenas imaginando se é uma dessas mulheres obcecadas pela carreira, dispostas a vencer a qualquer preço.

— Isso é bobagem! O que sabe sobre mulheres que dedicam-se à profissão?

— Fui casado com uma delas durante cinco anos.

Casado? Jacqueline deixou cair os talheres no prato, aturdida com a profundidade da própria reação diante da revelação.

— Não sabia que havia sido casado.

— Fui, e não pretendo repetir a experiência. Minha esposa sempre foi mais apaixonada pela carreira do que por mim.

Jacqueline lembrou como havia descoberto que perder o emprego doera mais que perder Rupert, e moveu-se na cadeira com certo desconforto.

— Talvez ela quisesse aliar a satisfação profissional ao amor? — sugeriu, tentando justificar a própria posição ao discutir o comportamento de uma mulher que nem conhecera, embora não conseguisse imaginar-se sentindo a mesma coisa com Marcel. — Os homens podem ter as alegrias do casamento e da profissão. Por que não podem reconhecer o mesmo direito para as mulheres? Deve ser possível ter as duas coisas.

— É claro que sim — ele respondeu. — Mas isso só funciona quando a carreira não se transforma numa obsessão que anula todas as outras coisas importantes da vida.

— Essa é boa, especialmente vindo de um homem que prefere os barcos às mulheres!

Marcel riu.

— Não se preocupe, Jacqueline. Faço questão de dedicar-me a outros interesses, inclusive às mulheres.

— O que faz com seu tempo não me interessa.

— É claro que não — ele riu, como se soubesse tratar-se de uma mentira.

Jacqueline voltou a concentrar-se na refeição, mas o brilho que vira naqueles olhos ficara gravado em sua memória.

Sentia-se tensa, confusa. Num minuto podia jurar que ele a desprezava, e no instante seguinte tinha certeza de que estava começando a gostar dela, apesar de tudo. O fato de sentir exatamente o mesmo por ele não era exatamente reconfortante.

Não o odiava, mas sempre desprezara chauvinistas cheios de boas razões para impedir as mulheres de dedicarem-se à carreira com a mesma tenacidade dos homens. O fato de Rupert ter se revelado um deles só piorara a aversão. E Marcel nem tinha as vantagens de Rupert para compensar; não perdia tempo com elogios e galanteios, era desagradável e deliberadamente provocativo, não escondia que a considerava irritante e ridícula...

E no entanto...

Havia algo de intrigante nele. Estava começando a questionar se imaginara o executivo poderoso que julgara ter visto no aeroporto de Adelaide com sua pasta de couro e suas roupas caríssimas. Agora ele parecia muito à vontade com as roupas informais, quase feliz por passar o dia engraxando partes de um motor ou polindo os metais de um barco.

O que via não combinava com a imagem que sempre fizera sobre o comportamento do proprietário de uma frota de barcos, um avião e uma enorme van. Pelo que Chris havia contado, dinheiro não era problema para esse empresário de sucesso que administrava a própria companhia e todos os interesses da Tregowan no sul da Austrália.

Por que ele não contratava alguém para reparar os motores e cuidar da papelada? E se não queria uma secretária, por que não comprava ao menos um telefone celular? Assim, não teria de correr pelo quebra-mar cada vez que o telefone tocasse no escritório.

Naquela tarde, quando terminou a limpeza, Jacqueline sentia-se exausta e dolorida. Dessa vez encontrou Marcel sentado no escritório, verificando alguns papéis. Quando perguntou se havia mais alguma coisa que devia fazer ele respondeu que não, pois já havia feito demais para um único dia.

— Vá para casa — ele instruiu, a mente concentrada nos papéis.

Jacqueline hesitou. Se pudesse contar com um tapete mágico para voltar à casa da prima ficaria encantada com a sugestão, mas continuava sem dinheiro, e Marcel não parecia disposto a levá-la de carro. Assim, teria de contar com os pés inchados e feridos para chegar em casa, uma perspectiva nada agradável.

Mesmo assim, era melhor ir de uma vez, ou jamais chegaria. Praguejando contra a teimosia que a levara a ficar na casa de Chris, despediu-se com um aceno rápido, ergueu os ombros e saiu.

A brisa matinal deixara de soprar, e o ar era quente e parado. A estrada vazia indicava que não conseguiria uma carona até a cidade e, suspirando, ela começou a caminhar pelo acostamento. De repente parou.

— Isso é ridículo! — disse a si mesma.

Decidida, voltou sobre os próprios passos até estar novamente no escritório de Marcel.

— Esqueceu alguma coisa? — ele perguntou ao vê-la.

— Não.

— Então...?

Tinha certeza de que ele sabia o que estava fazendo ali. O brilho divertido em seus olhos e o sorriso malicioso que distendia seus lábios eram prova disso.

— Não pode deixar de ser desagradável? Sabe muito bem por que voltei. Já recusei o convite para ficar em sua casa, e não tenho o direito de pedir que o repita. Tenho sido teimosa, insensata e rude desde que nos conhecemos, e admito que sou a única culpada por estar tão cansada. O fato é que não posso dar nem mais um passo. Acreditaria se eu dissesse que sinto ter sido tão grosseira, que gostaria que me desculpasse e repetisse a generosa oferta para hospedar-me em sua casa?

— Uau! Seus pés devem estar doendo de verdade!

— Estão.

— Bem, acho que também tenho do que desculpar-me — ele ofereceu, surpreendendo-a com a súbita demonstração de simpatia. — Receber um balde cheio de utensílios de limpeza e ser levada a um barco imundo não deve ter sido a recepção que imaginava ter na Austrália.

— Nada tem sido como eu imaginava. Caso contrário, não estaria me comportando de maneira tão estranha à minha natureza. Normalmente não sou tão suscetível. Também não me orgulho do que fiz na outra noite, chorando e me lamentando quando só queria me ajudar. Acha que pode esquecer tudo e fingir que acabamos de nos conhecer?

— Não sei se posso esquecer absolutamente tudo — ele respondeu devagar, os olhos fixos nos lábios dela. — Você pode?

Jacqueline sentiu o tremor que brotava de seu ventre e ficou feliz por estar sentada, ou teria estremecido de maneira visível. Isso era ridículo! O sujeito só precisava olhar para ela e o corpo todo reagia como se tivesse vontade própria. Havia sido apenas um beijo sem importância! Por que a histeria?

Francamente, tinha de conter-se.

— Estou disposta a tentar, se também estiver — disse, assustada com a rouquidão da voz.

— Está bem, vamos começar do zero, então — Marcel decidiu, inclinando-se e estendendo a mão. — Não acha que devemos nos cumprimentar?

Estava fazendo de propósito! Não sabia o quanto o toque de seus dedos a perturbava? Não podia sentir sua resposta imediata? Respirando fundo, Jacqueline apertou a mão estendida, mas foi pega de surpresa pelo movimento brusco com que ele obrigou-a a levantar-se. Por um momento teve a impressão de que seria beijada novamente, mas ele apenas olhou para as mãos entrelaçadas.

— Está certa sobre uma coisa, Jacqueline.

— O quê?

— É muito mais forte do que parece. É preciso coragem para admitir que errou, como acabou de fazer. Se quer saber a verdade, estou começando a achar que também me enganei a seu respeito.

Jacqueline sentou-se na varanda com o copo de vinho na mão e olhou na direção da marina, sem realmente ver os reflexos das luzes na superfície escura do mar.

Estava feliz por ter se retratado, mas, em vez de acabar com a tensão, o gesto só servira para carregar ainda mais a atmosfera entre ela e Marcel. De repente tinha consciência ainda maior de cada movimento que ele fazia, e um olhar mais demorado era suficiente para deixá-la sem fôlego.

Não devia ser assim. Esperava que o recomeço a ajudasse a provar que podia ser competente e profissional, mas, em vez disso, comportava-se como uma colegial confusa e tímida às vésperas do primeiro encontro.

Marcel a levara à casa de Chris para apanhar sua mala, e em seguida haviam seguido para a adorável casa na encosta de uma colina. Jacqueline apreciara os aposentos amplos e arejados e deliciara-se com a paisagem descortinada pelas janelas altas e largas.

Marcel era tão competente na cozinha quanto em todas as outras áreas de sua vida. Havia preparado uma salada e um peixe grelhado na churrasqueira ao lado da varanda e, ao vê-lo, ela tentara imaginá-lo numa vida de feliz domesticidade.

Em algum momento devia ter sido feliz com a esposa, mas havia uma independência, um distanciamento que tornava impossível imaginá-lo desistindo da liberdade em troca de um novo casamento. Sem perceber, Jacqueline suspirou.

Felizmente estava sozinha. Marcel havia ido atender o telefone na sala e, a julgar pelo que podia escutar da conversa, ele falava com Chris.

— Era Chris — Tregowan confirmou ao voltar. — Contei que estava aqui comigo e ela ficou bastante aliviada.

— Como está Mike?

— Continua na Terapia Intensiva, mas já recuperou a consciência. Chris me pareceu mais animada.

— Ela tem idéia de quanto tempo Mike terá de permanecer no hospital?

Marcel sentou-se ao lado dela e olhou na direção da marina.

— Ainda não. Receio que tenha de conformar-se com uma estadia prolongada em minha casa.

— Oh, Deus...

— Não parece muito satisfeita com a notícia.

— Não é isso. Estava pensando em você. Quero dizer, não acredito que esperasse uma estadia tão longa quando me convidou a vir para cá.

Marcel encarou-a, a boca encurvada num esboço de sorriso.

— Devo admitir que está certa.

Houve um silêncio prolongado, e Jacqueline sentiu os olhos serem atraídos para aquele rosto. Não queria fitá-lo, pois temia que ele percebesse a vulnerabilidade sob a aparência dura e competente. Cada vez que o encarava, perdia a capacidade de raciocinar, falar e até respirar!

— De qualquer maneira, acredito que não teremos nenhum problema — ele concluiu. — Como pode ver, há muito espaço nessa casa, e você poderá ficar quanto tempo quiser.

— Obrigada — ela murmurou.

Temendo sucumbir à tentação de tocá-lo, reuniu as forças que ainda lhe restavam para levantar-se. Não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que, se não se afastasse imediatamente, acabaria fazendo algo de que certamente se arrependeria.

— Aonde vai? — Marcel perguntou, levantando-se em seguida.

— Eu... eu... acho que vou escrever algumas cartas.

— Saudades do noivo?

— Noivo? — Jacqueline repetiu surpresa.

— Chris falou muito sobre você. Sei quase tudo sobre a famosa prima inglesa. Como seu trabalho é importante, como a decoração de seu apartamento é requintada... e como envolveu-se com um sujeito esperto que faz tudo funcionar a seu favor.

Se não o conhecesse um pouco, Jacqueline teria interpretado o tom hostil como um disfarce para o ciúme.

— Está sempre falando sobre seu trabalho, mas ainda não disse nada a respeito do noivado. Por quê?

— Não houve oportunidade — ela respondeu perturbada. Podia revelar que o noivado havia sido rompido, mas sentia-se mais segura fingindo que o compromisso ainda existia.

— Falamos sobre amor na hora do almoço... ou não associa o sentimento ao seu noivo?

— É claro que sim — Jacqueline afirmou com frieza, grata pela hostilidade que voltara a distanciá-los. — Rupert é muito especial para mim, e não senti vontade de discutir sobre ele com você, só isso.

— Rupert? — Marcel repetiu, exagerando na pronúncia. — Esse é o nome dele?

— Qual é o problema?

— É muito... inglês.

— Sei que isso o coloca em desvantagem sob seu ponto de vista, mas para mim não importa. Caso não tenha notado, também sou inglesa.

— Como podia deixar de notar? A maneira como ergue o queixo e o nariz não deixa dúvidas!

— Nesse caso, vai concordar que Rupert e eu fomos feitos um para o outro.

— Não sei... Diria que você precisa de um homem cuja personalidade seja mais forte que a sua, e não podem existir muitos desses por aí!

Um minuto antes estivera nervosa e aflita, mas agora estava furiosa.

— O que o faz pensar que sabe alguma coisa sobre a personalidade de Rupert?

— Bem, se fosse minha noiva, não a deixaria viajar até a Austrália sozinha. Faria questão de mantê-la bem debaixo dos meus olhos.

— Talvez Rupert confie em mim? Talvez admire e encoraje minha independência, o que, obviamente, não foi capaz de fazer por sua esposa.

Foi um golpe baixo, e Marcel encarou-a em silêncio por alguns instantes. Mas, quando voltou a falar, não respondeu à provocação.

— Então Rupert confia em você, não é? Continuaria confiando, se soubesse que está aqui em minha casa, sozinha comigo?

Sabia que Rupert teria ficado furioso com o arranjo, caso ainda estivessem noivos, mas Marcel jamais saberia disso.

— Naturalmente. Na verdade, estava prestes a escrever uma carta para ele contando onde estou e como você é, e tenho certeza de que isso será suficiente para tranquilizá-lo.

— Parece que essa carta será muito aborrecida — Marcel devolveu irritado, dando alguns passos na direção dela.

Jacqueline tentou contornar a mesa, mas tropeçou numa cadeira e acabou encurralada contra a balaustrada da varanda.

— Não queremos que Rupert imagine que não está se divertindo na Austrália. Por que não descobrimos algo mais excitante, algo que possa contar em sua carta?

Jacqueline não teve chance de responder, porque no instante seguinte ele a beijou, as mãos em sua cintura impedindo-a de fugir.

Foi um beijo longo e provocante. No início ela ainda tentou resistir, mas desistiu assim que o calor que brotava de seu ventre espalhou-se pelo resto do corpo. Marcel a acariciava com delicadeza, despertando sensações que jamais experimentara em outros braços, e quando ele afastou-se foi como se o mundo perdesse todas as cores.

— Mande lembranças minhas a Rupert quando escrever — ele murmurou. — Ou ele é muito corajoso, ou é o maior de todos os estúpidos por deixar uma garota como você sair sozinha por aí.

E, sem dizer mais nada, Marcel virou-se e desapareceu no interior da casa.

 

                                    CAPITULO VI

Nas três semanas seguintes nenhum dos dois referiu-se ao beijo. Jacqueline passara noites em claro tentando vencer a humilhação e a vergonha, e acabara decidindo que a melhor tática seria ignorar o incidente. Seria educada e distante, e talvez Marcel esquecesse a garota quente e disponível que tivera nos braços.

Felizmente foram dias de muito trabalho. Passava horas escrevendo listas de compras, revisando estoques e preparando temperos aromáticos na cozinha de Marcel. Ele raramente a perturbava quando estava ocupada, e por isso era fácil convencer-se de que havia superado o beijo.

Entretanto, as horas passadas na marina eram mais difíceis. Apesar de todo o trabalho duro que a esperava todas as manhãs, não conseguia ignorar a presença de Marcel como gostaria de fazer.

Ele estava sempre por perto, tão ocupado quanto ela, mas sempre movendo-se com a mesma competência pausada e firme. Tratava-a como se nada houvesse acontecido, com um misto de humor e impaciência, e jamais demonstrara qualquer tipo de perturbação por estarem tão próximos.

Jacqueline ressentia-se ao constatar a maneira tranquila com que ele conseguia ignorá-la. Para ela tudo era mais difícil. Orgulhava-se das demonstrações de frieza e controle, mas por dentro estava sempre sobressaltada, esperando reagir à menor tentativa de aproximação. Frustrada com a própria instabilidade, entregava-se à limpeza dos barcos com vigor invejável.

Com o passar do tempo, o constrangimento foi desaparecendo e, com ele, a frieza com que passara a tratá-lo. Às vezes esquecia o beijo por completo e conversava e ria até os olhos encontrarem os dele, trazendo de volta a lembrança.

Aos poucos aprendia a amar a vida casual da marina, o som das ondas e o balanço dos barcos, o cheiro do mar e o brilho reluzente do sol. Gostava da camaradagem dos navegantes que paravam para conversar com Marcel, e invejava a confiança com que saltavam para dentro de seus barcos e içavam velas rumo ao mar misterioso.

Considerava-os alegres, simpáticos e divertidos, e tinha consciência cada vez mais clara da própria inadequação. Não sabia nada sobre barcos e iates, e atrapalhava-se com o vocabulário típico dos marinheiros. Certa vez, ao ouvir Marcel comentando como trocava os nomes das coisas, decidira aprimorar seus conhecimentos e comprara um livro especializado no assunto. Mostraria a ele que não era tão estúpida quanto imaginava!

Estudava diariamente em segredo, mas precisava unir a teoria à prática. Passava o dia todo dentro de um barco, mas estava sempre tão ocupada que a única coisa que aprendia era como um iate pode ficar sujo num período de uma semana.

— Ah, Jacqueline, a garota que eu queria! — Marcel exclamou certo dia ao vê-la entrar no escritório, os braços repletos de lençóis sujos. Ele segurava o microfone do rádio. — Estou falando com o Valli. Eles encontraram um Tupperware cheio de migalhas de endro e querem saber para que serve.

Jacqueline deixou a carga sobre uma cadeira e ergueu as sobrancelhas.

— Serve para adornar — respondeu, surpresa com a pergunta.

— Adornar? Por que não pensei nisso antes?

O sarcasmo irritou-a.

— Não sei, mas para mim é tudo muito óbvio.

— Para você, não para quatro homens que estão pescando em alto-mar. Pensei ter dito para providenciar muita cerveja, pão e algumas batatas.

— E providenciei tudo. Mas como disse que eles só comeriam peixe, achei que um pouco de endro seria o acompanhamento ideal. Um pouco de verde é sempre bom...

— Jacqueline, essas pessoas não estão interessadas na apresentação artística de seus pratos! Você não trabalha para um restaurante cinco estrelas! Quando se está velejando, a única coisa que interessa é ter muita comida nutritiva e saborosa. Ninguém pensa em enfeitar os pratos. Tem oferecido essa esquisitice a todos os clientes?

— É claro que sim. Endro é perfeito para pratos de peixe. Eles não precisam usá-lo como enfeite, se a sutileza for excessiva para um grupo de homens. Podem rechear o peixe com a erva, ou picá-la e misturar à maionese...

— Não estou interessado em suas receitas — ele cortou, voltando ao rádio. — Valli, aqui fala Sailaway. Acabei de descobrir que a caixa com endro foi deixada aí deliberadamente. Jacqueline informou que podem misturá-lo à maionese, ou usá-lo como uma espécie de guarnição. Câmbio.

— Entendido — respondeu uma voz masculina com tom bem-humorado. — Se sua Jacqueline é responsável pelo tempero que saboreamos ontem à noite, não esqueça de parabenizá-la. Estava fantástico! Pena não termos encomendado mais. Câmbio final.

— Câmbio final, desligando — Marcel deixou o microfone sobre o suporte e balançou a cabeça para Jacqueline. — Guarnições! Qual será a próxima novidade? Canapés e coquetéis?

Ei, não é uma má idéia! Poderíamos...

— Não, não poderíamos — ele cortou, os olhos iluminados por um sorriso discreto. — Minha reputação certamente poderá superar comentários sobre guarnições e adornos culinários, mas canapés serão meu fim. Quer me transformar na piada do mundo do iatismo?

— Parece que não consigo acertar, não é? — ela suspirou.

Ei, essa não é a Jacqueline que conheço. — Marcel empurrou a cadeira e levantou-se. — O que aconteceu com toda aquela confiança? Jurou provar que era mais forte do que parecia, e conseguiu. Trabalhou duro nas últimas três semanas. Ouviu o que o pessoal do Valli acabou de dizer, e não é a primeira vez que elogiam a comida. Não esperava que pudesse se sair tão bem.

Jacqueline ficou quieta, tentando ignorar o calor que partia de seu coração e espalhava-se por todo o corpo em ondas.

A atmosfera estava carregada com um novo tipo de tensão. Marcel deu um passo em sua direção e a tensão aumentou, rompendo-se subitamente quando uma figura alta e sorridente surgiu na porta.

— Ei, não sabia que tinha uma nova assistente!

— Rod! — Marcel exclamou, recuperando-se com esforço e apertando a mão do recém-chegado. — Não o esperava tão cedo.

— Consegui antecipar meu vôo. Pensei que não se importaria com a surpresa, e estou feliz por ter vindo antes — ele sorriu, examinando Jacqueline com interesse evidente. — Não vai nos apresentar?

Marcel não fez questão de disfarçar a reserva.

Jacqueline, este é Rod Franklin. Ele vai capitanear Persephone para o grupo que partirá amanhã. Rod, Jacqueline Grant.

Em seguida ele contou sobre o acidente de Mike e como Jacqueline oferecera-se para substituir Chris.

— É uma pena para Mike, mas uma alegria para todos nós — Rod riu, apertando a mão dela com simpatia. — Já velejou muito?

Jacqueline ainda está aprendendo a diferença entre a proa e a popa — Marcel respondeu por ela.

— Mas gostaria muito de aprender mais — Jacqueline acrescentou, sorrindo para Rod com simpatia exagerada.

— Bem, meu grupo só chegará amanhã à tarde. Se quiser, posso levá-la para um passeio rápido amanhã cedo — ele ofereceu-se.

Jacqueline abriu a boca para responder, mas Marcel, que tornara-se subitamente sério, adiantou-se.

— Amanhã ela já tem muito o que fazer.

— Ah, bem... Outro dia, então?

— Estarei esperando ansiosamente pela oportunidade — ela ofereceu com um sorriso doce.

— Não sabia que queria aprender a velejar — Marcel disparou assim que ficaram sozinhos.

— Você nunca perguntou. — O antagonismo retornara com força total. Marcel havia admitido que errara em seu julgamento, mas ainda não deixara de tratá-la como escrava! — Não precisa preocupar-se — ela garantiu com acidez. — Não esqueci que estou aqui para trabalhar, e não para me divertir!

Rod passaria a noite na casa de Marcel, e ele ficou encantado ao descobrir que Jacqueline estava hospedada no mesmo local. O marinheiro revelou-se uma agradável companhia, cheio de histórias divertidas e emocionantes. A noite teria sido deliciosa, se Marcel não estivesse de mau humor.

Ele insistiu em levar os dois hóspedes para jantar, mas o humor de Jacqueline também azedou quando ela descobriu que uma amiga de Tregowan os acompanharia.

Val, uma loira alta e escultural, parecia ter sido escolhida justamente para contrastar com a morena baixinha e sem graça que ele contratara como sua assistente temporária. Dona de uma beleza fresca e natural, ela tinha algo que fazia lembrar Chris, embora lhe faltasse o calor e o sorriso fácil de sua prima.

Val, Jacqueline logo descobriu, era uma experiente iatista, e participara da equipe feminina que disputara a última Sydney-Hobart. Em pouco tempo também ficou evidente seu interesse por Marcel, embora ele não desse sinais de reconhecê-lo.

Não seria surpreendente se o retribuísse. Val seria muito mais apropriada ao tipo físico de Marcel que uma morena baixinha, magra e sem graça, totalmente voltada para a carreira e absolutamente ignorante em matéria de navegação. Por alguma razão, a conclusão a deprimia.

Deixada fora da conversa pela esperteza de Val, Jacqueline aproveitou para observar Marcel Tregowan. Ele ouvia o que a convidada relatava sobre as condições climáticas na região, a cabeça ligeiramente inclinada na direção do copo de vinho e a expressão absorta. Era impressionante como um simples olhar tinha o poder de fazê-la arder de desejo!

De repente ele virou-se e encarou-a. Assustada com a possibilidade de ele ler seus pensamentos, Jacqueline desviou os olhos dos dele e encontrou os de Val, que, tendo perdido a atenção de Marcel, a encarava com hostilidade. Jacqueline sorriu e virou-se para Rod, monopolizando sua atenção pelo resto da noite.

Rod era o único que parecia estar se divertindo. Não fazia segredo de seu interesse por Jacqueline, que respondia aos elogios com entusiasmo, ignorando a expressão carrancuda de Marcel. Val jogava os cabelos loiros e tentava levar a conversa de volta aos temas referentes à navegação, mas Rod estava fascinado por Jacqueline. No final, Marcel e Val tiveram de continuar a conversa em voz baixa, e Jacqueline disse a si mesma que era justamente isso que desejava.

Rod partiu com o grupo na tarde seguinte, e Jacqueline e Marcel passaram os dias seguintes evitando qualquer tipo de proximidade. Marcel saía todas as noites. Jamais dizia para onde ia, mas Jacqueline imaginava que fosse encontrar Val, com quem partilhava intermináveis histórias do mar e ria da tola assistente que não sabia nada sobre barcos.

Numa dessas noites, sentia-se tão deprimida que nem mesmo o telefonema de Chris conseguiu alegrá-la. Mike melhorava depressa, e esperavam estar em casa dentro de quinze dias. Então Jacqueline poderia realmente começar as férias. Não teria mais de limpar ou cozinhar, e não precisaria mais ir à marina.

O que significava... que não veria Marcel todos os dias.

Por falta do que fazer, decidira usar as noites para preparar quantidades enormes de comida, que congelava para os próximos grupos. Enquanto esperava que os pratos ficassem prontos, sentava-se à mesa da cozinha com o livro sobre navegação e praticava nós de marinheiro usando o pano de pratos e as costas de uma cadeira.

Estava insistindo num nó particularmente difícil quando, numa dessas noites, Marcel entrou na cozinha. Passara o dia em Adelaide e ainda usava roupas formais, o que a fez lembrar o primeiro encontro. Acostumara-se a vê-lo nas camisetas desbotadas que usava para trabalhar, e foi um choque recordar que seu empregador ainda era um empresário rico e bem-sucedido.

Sobressaltada, Jacqueline escondeu o livro sob uma revista de receitas e levantou-se para mexer uma caçarola.

— Voltou cedo — disse, odiando-se por ficar ofegante sempre que o via.

— Desta vez não tive de esperar nenhuma inglesa arrastando uma enorme mala. Isso tornou a viagem muito mais fácil.

— Deve ter sido muito aborrecido.

— Devo admitir que o avião realmente pareceu vazio sem você — ele confessou relutante, sentando-se numa cadeira enquanto afrouxava o nó da gravata. — Não devia passar as noites trabalhando, Jacqueline. As coisas já estão mais tranquilas.

— Não me importo — ela respondeu, duvidando do que acabara de ouvir. Marcel Tregowan confessara que havia sentido sua falta? — Estou estocando o freezer, de forma que Chris não terá de trabalhar muito quando voltar.

— Entendo. Ela tem idéia de quando Mike sairá do hospital?

— Dentro de duas semanas. Ela telefonou esta noite para dar as últimas notícias.

— Duas semanas? — Marcel parecia ter ouvido a nota desapontada em sua voz, porque esforçou-se para parecer mais entusiasmado. — Essa sim é uma excelente notícia!

— É verdade.

— Deve estar ansiosa para começar suas férias.

— Sim, estou.

Marcel parecia prestes a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia. Em vez disso, ergueu o pano amarrado às costas da cadeira.

— O que é isso?

— Oh, nada — Jacqueline respondeu apressada, aproximando-se da mesa para resgatar o livro antes que ele o visse.

Mas Marcel levantou a revista e o descobriu antes que ela pudesse recuperá-lo. O sorriso que distendeu seus lábios quase a fez desfalecer.

— Fazendo o dever de casa?

— Só queria tentar alguns nós...

— Entendo. Isso aqui devia ser um deles? — ele riu, apontando para o pano de pratos.

— Ainda preciso de alguma prática. As instruções são muito complicadas, e fiquei confusa.

— Posso imaginar. Venha até aqui, Jacqueline. Vou ensiná-la a fazer um verdadeiro nó de marinheiro.

Nervosa, ela sentou-se ao lado dele e observou a demonstração, tentando concentrar-se. Mas, ao ver os dedos movendo-se com firmeza e habilidade, só conseguiu pensar em como fora senti-los em seu corpo, no rosto, nas próprias mãos...

— Pronto. Fácil, não?

Jacqueline engoliu em seco e afirmou com a cabeça.

— Agora é sua vez.

Segurando o pano como se jamais houvesse visto nada igual antes, ela tentou raciocinar com clareza, mas uma intensa onda de desejo a impedia de pensar em outra coisa que não fossem aquelas mãos.

Notando sua confusão, Marcel decidiu guiar os movimentos de seus dedos, o que só piorou seu estado. Finalmente terminaram e ele recostou-se em sua cadeira, soltando-a.

— Nós não têm muita importância até que possa praticá-los num barco — ele disse. — Já é hora de levá-la para velejar. O que acha de passarmos alguns dias no Ali B.

— Pensei que estivesse muito ocupado.

— Isso foi na semana passada. Não teremos nenhum grupo chegando ou partindo nos próximos dias, e posso controlar tudo pelo rádio do iate. Além do mais, prometi a Chris que cuidaria de você. Não que você precise de cuidados, é claro...

— Não — ela respondeu, notando que lhe faltava a firmeza de antes. Assustada com o tremor da voz, tentou mostrar-se mais confiante. — Mas adoraria velejar... se não for atrapalhar.

— Não, se fizer o que eu disser. E isso não pode ser muito difícil, mesmo para você!

Jacqueline estava em pé no quebra-mar, segurando a jaqueta contra o corpo. O céu era azul e claro, mas o vento ameaçava derrubá-la enquanto Marcel transportava todos os utensílios e mantimentos para o iate. A frente, as velas de outras embarcações inclinavam-se em ângulos assustadores, e de repente a idéia de navegar já não parecia tão excitante.

— Por que não fico aqui cuidando do escritório? — ela sugeriu ao ver Marcel no convés.

— Pensei que quisesse aprender a velejar.

— Acabei de lembrar que não sou exatamente o tipo esportivo. Tem certeza de que será seguro? Esse vento...

— Vento? Bobagem! — Marcel decretou, estendendo a mão para ajudá-la a embarcar. — A brisa é perfeita para quem quer velejar.

— E se eu enjoar?

— Procure ficar do lado direito do barco, e perto da balaustrada — ele avisou enquanto ligava o motor.

Assim que afastaram-se da marina o vento ficou ainda mais forte. Marcel ia dando algumas instruções simples que ela seguia sem dificuldade. A certa altura, o vento arrancou a corda da vela de suas mãos e ela caiu de costas ao lado dele.

— Não tenho força suficiente — disse.

Marcel analisou-a. Os cabelos curtos e encaracolados dançavam ao vento, e os olhos eram grandes pontos brilhantes no rosto rosado.

— Vai acostumar-se — ele afirmou.

Repetiram a manobra algumas vezes, e Jacqueline foi aperfeiçoando os movimentos. Já estava orgulhosa do próprio progresso quando ele demonstrou sua falta de entusiasmo.

— É como ter um filhote de elefante a bordo! — exclamou, ajudando-a a levantar-se pela décima vez.

— Não estou acostumada a operar num ângulo de quarenta e cinco graus!

Finalmente nivelaram a embarcação e deixaram o vento encher as velas. Aproveitando a calmaria, Jacqueline sentou-se ao lado de Marcel para apreciar a beleza do céu azul e limpo. O nervoso anterior havia desaparecido, e não sentira nenhum sinal de enjôo. Na verdade, estava entusiasmada com a excitante experiência. A presença capaz e relaxada de Marcel a tranquilizava, e de repente percebeu que ele estava feliz, como se a água fosse seu elemento natural.

E ela? Qual seria seu lugar no mundo? Era uma mulher urbana, não? Adorava o congestionamento das ruas, o movimento dos bares e o brilho das festas.

Por que então tinha a sensação de jamais ter sido tão feliz? Por que largara tudo e correra atrás da imagem de uma foto? Por que tinha a impressão de estar preparada para esquecer passado e futuro, entregando-se completamente ao presente?

Urna onda mais forte espalhou uma chuva fina e salgada que molhou seu rosto e ela sorriu, o rosto iluminado pelo sol. Marcel retribuiu o sorriso e foi como se a felicidade corresse por suas veias, borbulhante como o champanhe e doce como o mel.

— Veja! — ele disse, apontando para o local onde um golfinho saltava as ondas formadas pelo iate.

Encantada, Jacqueline viu como muitos outros seguiam o primeiro, alegres e barulhentos. Era como viver um sonho!

De repente tinha a impressão de estar recebendo um presente inesperado. Havia algo de mágico nos golfinhos, e quando desapareceram eles deixaram parte desse encanto para trás como uma bênção. Para Jacqueline, o acontecimento foi o selo de perfeição num dia de muita alegria.

O vento transformara-se numa brisa suave quando ancoraram numa baía tranquila e deserta. Marcel estendeu uma lona entre a balaustrada e um dos mastros para providenciar uma sombra, colocou um chapéu sobre a cabeça e, bem acomodado, jogou a linha de pescar na água azul e cristalina.

Incapaz de ficar quieta, Jacqueline preparou um drinque e começou a escrever uma carta, mas não foi além da data.

Na verdade, não sabia sequer para quem escrever. Os amigos eram poucos e distantes, e a esta altura estariam brigando com o tráfego londrino, acumulando agasalhos para diminuir o efeito do vento gelado e da chuva fina, enquanto ela estava sentada ao sol, entregando-se ao mais completo ócio.

Finalmente decidiu pintar as unhas dos pés de vermelho, e estava concentrada na tarefa quando algo a fez erguer a cabeça. Marcel a observava com uma mistura de espanto, humor e irritação.

— Qual é o problema? — ela espantou-se.

— Nenhum.

Tensa, tentou retomar a tarefa, mas tremia tanto que acabou borrando várias unhas. Somente a paz da tarde ensolarada ajudou-a a acalmar-se e, sem nada para fazer, ela decidiu deitar no convés e bronzear-se, ouvindo os sons da natureza e deliciando-se com a cor intensa do céu.

Mais tarde Marcel desceu para falar com os outros barcos pelo rádio, e Jacqueline fechou os olhos para deliciar-se com o som melodioso e profundo.

— Agora que aprendeu a relaxar, parece que entregou-se à atividade com o exagero habitual — Marcel comentou ao encerrar a transmissão.

Jacqueline sentou-se relutante e virou-se para encará-lo além do teto da cabine. A brisa perdera toda a força e o sol começava a debruçar-se sobre o horizonte, anunciando o fim de um dia perfeito.

— Venha, vamos caminhar um pouco pela praia — ele convidou com um sorriso.

Rápida, foi à cabine para vestir uma camiseta sobre o maiô e espantou-se ao ver o próprio rosto no espelho. Os cabelos estavam horríveis, a camiseta era velha e desbotada, mas havia uma luz intensa em seus olhos, uma espécie de antecipação.

Antecipação? Marcel só a convidara para andar na praia!

— Cuidado — disse para o próprio reflexo. — Esse homem despreza tudo que você valoriza e representa tudo que você mais detesta. Tem sido rude, hostil e desagradável, e quando Chris e Mike voltarem você nunca mais o verá, e ficará feliz por isso. Está saindo para uma caminhada, não para um encontro romântico. Portanto, apague esse sorriso estúpido do rosto e lembre-se de quanto o despreza.

Jacqueline franziu a testa diante do espelho, mas seus olhos continuavam brilhando. E quando saiu para ir ao encontro de Marcel, seu imprevisível e desleal coração parecia cantar...

 

                           CAPÍTULO VII

Marcel esperava no bote inflável atado ao iate. Erguendo a cabeça, fitou-a e sorriu, e Jacqueline sentiu-se derreter.

— Cuidado! Desça devagar. E não pule, ou iremos os dois para dentro da água.

Cauteloso, ele levantou-se para ajudá-la a acomodar-se no bote.

Não ia tão mal, até ele segurar sua mão e provocar a reação que começava a tornar-se familiar. Teria caído se Marcel não a segurasse pela cintura e a amparasse com firmeza, apesar do balanço desesperador do pequeno bote.

— E ainda diz que não é desajeitada!

Dessa vez ele sorria, e Jacqueline retribuiu sem tentar livrar-se das mãos que a seguravam. De repente uma onda mais forte balançou o bote e quase os derrubou.

Rindo, os dois sentaram-se e ele tratou de acionar o pequeno motor, deixando-a sozinha para concluir se havia sido imaginação, ou se teriam mesmo ficado a um passo de mais um beijo antes de quase caírem na água.

Sabia que não devia gostar dele, mas, enquanto caminhavam descalços pela praia, não conseguia lembrar por quê. A luz do sol banhava a areia branca e macia num brilho dourado, e as ondas cantavam uma adorável canção de paz e alegria.

Subiram as dunas baixas cobertas por vegetação, e ao olhar para trás Jacqueline viu apenas as próprias pegadas ao lado das dele. Era como se fossem as primeiras pessoas a pisar nessa terra. O iate balançava em águas mais profundas, e o bote de borracha era uma mancha colorida na praia. Além disso, não havia nenhum sinal de civilização, apenas os pássaros mergulhando em busca de alimento e o céu estendendo-se até o infinito.

Depois, Jacqueline não conseguiria lembrar o que ela e Marcel haviam conversado naquela tarde dourada, mas a magia do passeio silencioso ficaria eternamente gravada em sua memória. Cada vez que Marcel sorria, encarava-a ou comentava qualquer coisa, era como se um manto quente e aconchegante envolvesse seu coração.

O sol já escondia-se no horizonte quando voltaram ao iate. Sentados no convés, apreciaram o espetáculo da natureza e acompanharam a mudança gradual nas cores que tingiam o céu. De laranja a dourado, e daí a um vermelho profundo que logo traria a noite.

— Gostaria de guardar esse momento para sempre — Jacqueline suspirou, encostando-se à cabine. — Não seria bom se pudéssemos congelar o tempo? Não teríamos de nos preocupar com coisas práticas como vistos, pagar contas e procurar emprego.

Marcel virou-se da churrasqueira onde assava um peixe e fitou-a com ar surpreso.

— Pensei que tivesse um emprego.

— Não — ela confessou, os olhos fixos no horizonte. — Era diretora de contas de uma agência de publicidade chamada Pritchard Price, e adorava o que fazia. Mas a Pritchard foi comprada por uma empresa maior, e meu cargo foi dado a outra pessoa. Disseram que havia um conflito de interesses entre os clientes deles e os meus, e que isso os levara a rearranjar os grupos. Mas o tal rearranjo não passou de uma operação simples e rápida: todos os meus clientes foram transferidos para o mais inexperiente diretor de contas dessa nova agência, um sujeito que, além de contar com amigos influentes nos lugares certos, teve a sorte de nascer homem.

— Por que disse que estava gozando férias prolongadas?

— Não sei — ela confessou com sinceridade. — Acho que tinha dificuldade para aceitar a realidade. Minha vida girava em torno daquele emprego, e quando o perdi foi como se não pudesse mais existir no mundo. Jurei a mim mesma que conseguiria um emprego melhor e faria a Liedermann, Marshall & Jones arrepender-se de ter me demitido, mas... Bem, o Natal não é uma boa época para procurar emprego, e então achei que podia aproveitar a oportunidade para vir visitar Chris e pensar no que gostaria de fazer em seguida. Para mim o período seria realmente de férias. A única diferença era que, em vez de voltar ao emprego anterior, assumiria um novo trabalho.

— E agora? Mudou de idéia sobre continuar no ramo da publicidade?

— Eu... — A pergunta abriu um precipício sob seus pés, e de repente ela sentiu-se despencando rumo a uma descoberta que não sabia se queria fazer. A carreira já não parecia tão importante quanto antes, mas o que mais poderia fazer, senão atuar em publicidade? Não poderia ficar na Austrália para sempre. Teria de ir embora quando o prazo do visto expirasse, e o mais natural seria procurar outro emprego no ramo em que tinha experiência. Algumas semanas antes concentrara toda sua energia na idéia de voltar, mas agora a perspectiva a deixava estranhamente deprimida. — Não, acho que voltarei.

— Não parece muito entusiasmada. Pensei que estivesse determinada a provar sua competência mais uma vez.

— E estou — Jacqueline afirmou, recuperando-se do estranho transe.

— Quanto tempo pretende ficar na Austrália?

Marcel soava desapontado, e Jacqueline fitou-o com curiosidade.

— Não sei. Mais um mês, talvez.

— Rupert deve ser muito paciente. Ele está disposto a esperar até que decida voltar para casa?

— Não. Não fui completamente honesta quando falei sobre meu noivado com Rupert. A verdade é que rompemos quando descobri que não poderia ser a esposa que ele queria. Rupert esperava que eu ficasse satisfeita com o papel de dona de casa, mas só compreendi sua intenção quando fui demitida. Então ele demonstrou sua verdadeira crença. Achava que meu trabalho era apenas uma brincadeira, um passatempo com que me ocuparia até tornar-me a mulher do Rupert, uma objeto decorativo sem opinião própria.

— Essa é boa! — ele riu. — Jacqueline sem opinião? Não consigo sequer imaginar!

— Rupert conseguiu. Estou começando a acreditar que todos os homens gostariam de ter esposas dóceis e submissas.

Marcel virou o peixe na grelha e foi sentar-se diante dela.

— Sabe que isso não é verdade.

— Não? Não era o que queria? Também não gostou de ser casado com uma profissional bem-sucedida.

— Nunca me importei com o sucesso de Jonelle. O que me incomodava era que, depois de um tempo, esse sucesso passou a ser tudo para ela. Disse que não queria ser a mulher do Rupert. Pois bem, no meu casamento eu fui o marido da Jonelle. Não teria me importado, se ela também fosse a esposa de Marcel de vez em quando, mas Jonelle jamais abria mão de qualquer coisa. Essa é uma das razões de seu sucesso, e o principal motivo do fracasso de nosso casamento. Agora entendo que não devíamos ter nos casado, mas na época...

— Por que se casou?

— Jonelle era... é muito bonita. Cabelos longos e dourados, grandes olhos verdes e um par de pernas de enlouquecer. Sabia como ela era, porque nos conhecemos desde a adolescência, mas acreditei que nos amássemos o suficiente para superarmos as diferenças. Em pouco tempo percebi que estava enganado.

— Sei o que sentiu.

— Oh, a princípio foi tudo maravilhoso. Morávamos em Sydney, e Jonelle trabalhava para uma agência de artistas. Nunca quis morar numa metrópole, mas meu pai estava doente e queria que eu assumisse o controle dos negócios. Papai garantiu que o arranjo seria temporário, e não tive coragem de recusar quando percebi quanto ele estava doente. Jonelle gostava do prestígio associado ao nome dos Tregowan, e assumiu o papel de anfitriã para ampliar seus contatos. Ela era competente, sem dúvida, mas quanto mais progredia, menos eu a via. Trabalhava até tarde no escritório, e quando não estava lá podia ser encontrada em alguma festa, fazendo contatos, como costumava dizer — ele sorriu com amargura, balançando a cabeça.

— Mas você também devia estar muito ocupado. Talvez ela tenha se cansado de esperá-lo em casa.

— Por isso eu a encorajei a trabalhar. Imaginei que ela se tornaria obsessiva por outra coisa, se não trabalhasse. De qualquer maneira, o resultado foi que passamos a nos ver muito pouco. Ela costumava me arrastar para suas festas, mas não conseguia me misturar às pessoas com quem ela relacionava-se, e no final ela desistiu de me convidar. Não foi uma época muito boa. Tentei salvar nosso casamento, mas Jonelle não estava interessada. Mantinha um barco em Pittwater, e às vezes a convidava para passar um final de semana comigo, certo de que tudo voltaria ao normal se tivéssemos um pouco de privacidade. Mas ela odiava velejar, e dizia que sentia-se isolada sem um telefone à mão. Teríamos arrastado esse relacionamento falido por muitos anos, se Jonelle não houvesse concretizado seu sonho dourado. Ela recebeu uma proposta de trabalho irrecusável e mudou-se para a Califórnia. Isso aconteceu na mesma semana em que meu pai morreu, e ela não esperou nem mesmo pelo funeral. Nada a teria feito correr o risco de perder a chance com que tanto sonhara.

— E então separaram-se?

— Ainda não. Mesmo depois de tudo isso eu tentei. Iria encontrá-la depois do enterro de meu pai, mas Jonelle escreveu-me dos Estados Unidos dizendo que conhecera outra pessoa, um americano, que seria muito mais útil à sua carreira do que eu havia sido.

— Eu... sinto muito — Jacqueline murmurou. Gostaria de ter coragem para abraçá-lo, pois podia ver a amargura estampada em seu rosto. Talvez já houvesse esquecido a esposa, mas um rompimento dessa espécie devia ter sido terrível para alguém tão orgulhoso.

— Não precisa lamentar. Apenas agradeça à sorte por você e Rupert terem descoberto que esperam coisas diferentes da vida antes que fosse tarde demais.

Agora podia entender a hostilidade de Marcel. Devia ter parecido outra Jonelle em seu conjunto de linho, desfilando sofisticação e vociferando sua competência profissional como se só isso fosse importante. E era... Mas, depois de conhecer a Austrália e apreciar um pôr-de-sol, depois de caminhar pela praia sentindo a brisa morna no rosto, descobrira quantas coisas importantes andara desprezando.

Marcel estava de cabeça baixa, os olhos fixos na garrafa de cerveja que segurava entre as mãos, mas virou-se para fitá-la.

— Desculpe tê-la aborrecido com uma história tão amarga. Não deixe que isso a faça desistir do casamento, está bem? Nem sempre é tão difícil. Pense em Chris e Mike. Eles sabem que um relacionamento afetivo não é fácil, mas tentam fazer o melhor que podem. Não vivem competindo, e são apenas o que são: honestos, leais e generosos.

— Chris e Mike se amam.

— Sim, eu sei, e são felizes porque reconhecem os defeitos um do outro e continuam se amando, apesar deles. Ou por causa deles... Nenhum dos dois espera perfeição.

— Esperei que Rupert fosse perfeito, e essa expectativa não me fez muito bem.

— Tudo ou nada?

Jacqueline sorriu constrangida.

— Acho que também não sou muito boa nessa coisa de ceder. Se não posso estar completamente apaixonada, prefiro não me interessar.

— E por que fingiu que ainda era noiva de Rupert quando perguntei por ele?

A pergunta casual a pegou desprevenida. Tentara esquecer aquela noite e o beijo que a fizera derreter em seus braços, mas havia sido impossível, e agora temia encará-lo e trair-se.

Usara o noivado como um escudo para esconder as fraquezas, certa de que a mentira a ajudaria a ignorar a forte atração que sentia por Marcel, mas de repente percebia a inutilidade do truque.

Por que continuar negando? Queria Marcel. Queria estar em seus braços novamente e sentir os lábios dele nos seus...

Jacqueline prendeu o fôlego, assustada com a verdade que acabara de descobrir em seu coração e extremamente grata pela escuridão que escondia sua expressão apavorada.

Marcel a encarava curioso e, com esforço, ela lembrou a pergunta.

— Eu... eu... Na época me pareceu uma boa idéia.

Podia ver o sorriso divertido e incrédulo no rosto dele.

Isso significava que Marcel também podia interpretar o que sentia através de sua expressão?

Desesperada, tentou mudar o rumo da conversa.

— O que o trouxe a Port Lincoln?

— Depois que Jonelle partiu, não havia motivo para permanecer em Sydney. Mantive-me atento aos interesses da empresa, é claro, mas entreguei a administração diária ao meu irmão caçula e comprei o Ali B. Já vivemos muitas aventuras juntos, como a viagem ao Pacífico Sul e por toda a costa australiana. Por algum tempo mantive-me em trânsito, mas quando cheguei a Port Lincoln senti que era hora de lançar âncora. Comecei com alguns barcos, e quando me dei conta o negócio havia crescido. Ainda vou a Sydney regularmente e cuido dos interesses da Tregowan em Adelaide, daí o avião, mas sempre que sinto-me inquieto ou insatisfeito venho para cá. Este é meu verdadeiro lar, num convés, sob as estrelas.

— Nunca sente solidão?

— Não. Mas isso não quer dizer que jamais sentirei...

Houve um longo período de silêncio durante o qual a tensão alcançou um nível quase insuportável, e de repente Marcel levantou-se para ir verificar o peixe. Com entusiasmo exagerado e artificial, ele anunciou que o jantar estava pronto. Jacqueline foi buscar a salada que havia preparado, sentindo uma estranha decepção pelo fim da tensão. Antes o ar estivera carregado de expectativas e ansiedade, mas agora havia apenas o desconforto.

No dia seguinte tudo permaneceu igual. Jacqueline ficara na cama até mais tarde, pensando no que faria se a porta da cabine se abrisse e Marcel entrasse. Mas ele não apareceu, e a ausência obrigou-a a lembrar que ele não estava interessado nela. Gostava de loiras de pernas longas e bem torneadas, não de morenas baixinhas e sem encantos, especialmente se essa morena tivesse um único ponto em comum com sua ex-esposa, justamente a característica que provocara o fracasso do casamento.

Não, melhor não alimentar fantasias tolas. Mesmo que Marcel também sentisse alguma atração, a que isso levaria? A algumas noites juntos? A uma dolorosa despedida? Tudo ou nada, Jacqueline recordou com tristeza. Era o que Marcel havia dito, e ele estava certo. Mais cedo ou mais tarde teria de partir, e seria melhor ir embora com o coração e o orgulho intactos.

Na manhã seguinte Jacqueline foi educada, mas fria, e Marcel retribuiu com um comportamento seco e distante. Um dos barcos, ancorado do outro lado da enseada, entrou em contato pelo rádio para comunicar problemas com o motor e Marcel usou o bote inflável para ir ajudá-los.

Sozinha, Jacqueline decidiu escrever cartas para passar o tempo, e depois dos pais, do irmão e dos amigos, foi a vez de Rupert. Ouvir a história do casamento fracassado de Marcel a levara a examinar a situação do ponto de vista de Rupert, e agora arrependia-se pelas coisas odiosas e ofensivas que dissera. Não estava arrependida por ter rompido o noivado, mas queria que ele soubesse que havia compreendido o próprio egoísmo e gostaria de conservar a amizade.

Quando terminou sentia-se muito melhor. Estava selando o envelope quando ouviu o ruído do bote e, apressada, escondeu papéis e envelopes para ir ao encontro de Marcel, que já subira ao convés. Assustada com a alegria que sentia por vê-lo novamente, tentou mostrar-se gentil, embora distante.

— Conseguiu solucionar o problema?

— Sim — ele resmungou.

— O que havia acontecido?

— Sabe alguma coisa sobre um motor a diesel?

— Não.

— Então é inútil tentar explicar, não acha?

Jacqueline não respondeu. Estava disposta a tratá-lo com gentileza, mas se ele preferia assim, que fosse! Só estava facilitando as coisas para ela.

No momento de partir, Marcel posicionou-se e começou a gritar ordens apressadas para Jacqueline, irritando-se quando ela demorava a cumpri-las.

— Pensei que quisesse aprender a velejar!

— Não se para isso tenho de suportar um sargento frustrado. No futuro, ficarei com os pés bem plantados em terra firme!

— A decisão é sua, mas por enquanto faz parte da tripulação deste barco, e isso significa que terá de fazer o que eu disser!

A viagem foi tensa, apesar do mar azul e do céu sem nuvens. A alegria do dia anterior havia desaparecido, e agora comportavam-se novamente como inimigos. Jacqueline procurou em vão pelos golfinhos, certa de que só eles poderiam restituir a magia de antes, mas eles pareciam ter desistido de tão árdua missão.

A atmosfera era tão tensa que esperava que Marcel sugerisse voltarem à marina, mas em vez disso ele anunciou que dirigiam-se a outra enseada próxima.

— Chris não me perdoaria se não a levasse para conhecer a Enseada da Lembrança — ele explicou.

Jacqueline preferia que ele tomasse a decisão por razões próprias, mas dizer isso seria revelar os sentimentos e atrair encrenca.

— De onde vem esse nome?

— Matthew Flinders ancorou lá em 1802. Ele foi um grande explorador e navegador, mas perdeu oito de seus homens quando um barco virou nesse lugar. Os corpos nunca foram encontrados, e então ele nomeou a enseada em memória de seus tripulantes.

Apesar da história triste, quase sombria, não havia nada de deprimente na Enseada da Lembrança. Montanhas cobertas por vegetação abundante desciam até encontrar a praia de areia branca e macia. O mar era de um azul profundo e cristalino, e as cores eram tão intensas e luminosas que feriam os olhos de Jacqueline.

Marcel anunciou que cuidaria da manutenção do iate, mas que a levaria à praia no bote, se preferisse. Interpretando a sugestão como uma tentativa de livrar-se de sua presença, Jacqueline aceitou de imediato. Com água pelos joelhos, segurando os sapatos e o livro junto ao peito, viu o bote afastar-se levando Marcel Tregowan de volta ao Ali B. e disse a si mesma que assim era melhor. Preferia ficar sozinha a ter de suportar os olhares hostis daquele sujeito desagradável.

Depois de algum tempo sentada na areia quente, desistiu de tentar concentrar-se na leitura e foi explorar a enseada. Um incêndio recente destruíra parte das árvores no início da trilha, criando um cenário de desolação no meio do paraíso. Gostaria que Marcel estivesse por perto. A amplidão do espaço e o silêncio eram assustadores sem ele.

Amava Marcel Tregowan.

A certeza esgueirou-se lentamente até plantar-se em sua mente. Ela, que sempre orgulhara-se da própria independência, sentia-se perdida sem ele. Perto dele sentia-se confiante, segura... Marcel era seu foco, sua âncora. Sem ele, se deixaria arrastar de volta ao turbilhão de antes, perdendo-se na atividade frenética que até então a impedira de conhecer os próprios sentimentos. E a idéia a apavorava.

Jacqueline caminhou sem prestar atenção na direção que seguia, entregue aos próprios pensamentos. Havia sido terrível admitir que desejava Marcel Tregowan, mas apaixonar-se por ele era um desastre! Como acontecera? Como se libertaria e voltaria a enfrentar a vida sem ele?

Jacqueline não sabia quanto tempo caminhara antes de descobrir-se num patamar de onde via toda a enseada. A vida sem Marcel... Como superaria essa noite, sabendo que o amava, estando tão perto sem poder tocá-lo. Agora, mais que nunca, não podia permitir que ele soubesse.

A praia parecia isolada do patamar onde estava por uma massa de vegetação exuberante, mas, olhando atentamente, era possível ver uma pequena trilha descendente. Se buscasse com determinação e esforço, talvez pudesse encontrar uma saída para a situação em que encontrava-se. As coisas podiam mudar. Marcel podia mudar. Ela podia mudar.

Com determinação, Jacqueline começou a descer devagar. A princípio foi fácil. Os arbustos arranhavam suas pernas nuas, mas o solo era firme. Aos poucos, entretanto, o terreno foi se tornando mais acidentado, e a terra seca passou a deslizar sob seus pés. Jacqueline olhou para baixo e engoliu em seco. Não havia percebido a distância que a separava da praia. Talvez o destino estivesse buscando uma forma de mostrar que cometera um engano? Talvez devesse aceitar que o amor que sentia por Marcel jamais seria correspondido, afinal?

Havia percorrido um trecho bastante longo, e a subida seria igualmente difícil. Gostaria de jamais ter tentado chegar à praia por aquele lado. Havia sido uma idéia estúpida, mas agora a única alternativa era continuar descendo.

Cautelosa, havia dado alguns passos quando um dos pés deslizou sobre o terreno árido e ela perdeu o equilíbrio. A inclinação da encosta era tão acentuada que a queda adquiriu velocidade vertiginosa, e em poucos segundos estava deslizando sobre os arbustos.

Apavorada, girava os braços na intenção de agarrar-se a alguma coisa, e finalmente conseguiu segurar um galho mais firme que a sustentou. Por alguns instantes ficou parada, o rosto voltado para o chão e as mãos fechadas convulsivamente em torno do galho salvador, o coração disparado e a respiração ofegante. Não tinha coragem de olhar para cima nem para baixo.

E então, como que por milagre, alguém gritou no alto da encosta.

— Jacqueline!

— Marcel!

A intenção havia sido responder no mesmo tom, mas a voz era apenas um sussurro.

— Não se mova! — ele gritou, aproximando-se com cuidado e agilidade.

Jacqueline esperou pelo que pareceu uma eternidade, fechando os olhos para evitar que os fragmentos de terra deslocados pelos pés de Marcel os ferissem. Finalmente ele chegou e envolveu-a com seus braços fortes, segurando-a ao encontro do indescritível conforto de seu corpo.

— Está machucada?

— Não — ela gemeu, incapaz de soltá-lo. — Foram só alguns arranhões.

— Melhor assim. Pode levantar-se?

As pernas ainda tremiam, mas o apoio seguro de Marcel era toda a ajuda de que precisava. Com o rosto sério e tenso, ele a amparou em silêncio até alcançarem a trilha, alguns metros distante do patamar onde começara a perigosa aventura. Lá ele a soltou, usando uma das mãos para remover a terra que ficara grudada em seu rosto assustado.

— Tem certeza de que está bem?

— Sim, estou bem. Como já disse, foram só alguns arranhões... e um susto dos grandes.

— Nesse caso, será que pode explicar que diabos estava fazendo naquele lugar?

Jamais vira Marcel tão furioso!

— Eu... queria ver a praia.

— A praia? Por quê? O que há de errado com a praia onde estava sentada antes de desaparecer? A maioria das pessoas ficaria satisfeita com areia branca e mar azul, mas não Jacqueline! Não, ela tem de escolher a praia mais perigosa e inacessível que puder vislumbrar e tentar quebrar o pescoço para chegar até lá! Que diabos deu em você?

Não podia dizer que ficara desesperada com a idéia de viver sem ele. Não podia revelar que o caminho até a praia fora uma espécie de solução imaginária, uma promessa de dias melhores e cheios de amor.

— Eu não pensei...

— É claro que não! — Marcel explodiu. — Você nunca pensa, não é? Apenas vê alguma coisa que quer e vai atrás dela sem pesar as possíveis consequências, ou quem terá de salvá-la da confusão! O que teria feito se eu não a houvesse encontrado naquele precipício? Podia ter ficado ali por muitos dias até ser encontrada!

— Eu sei, eu sei! Desculpe!

— Vive dizendo que é capaz de cuidar de si mesma, mas não posso deixá-la sozinha por cinco minutos que já se mete em alguma encrenca! Decidi segui-la quando a vi afastar-se da praia, mas nunca pensei que sua estupidez pudesse levá-la tão longe! Jogar-se num precipício!

— Eu não me joguei!

— O resultado foi o mesmo. Como um ser adulto pode ser tão inconsequente? Não entendo...

Marcel continuou falando durante todo o trajeto de volta à praia, e não economizou adjetivos para descrevê-la. Mimada, estúpida, egoísta, irresponsável, imatura, arrogante...

Jacqueline manteve-se em silêncio. Afinal, Marcel estava certo. Envergonhava-se da própria estupidez, e caminhava ao lado dele de cabeça baixa, os ombros encurvados sob o peso do medo que passara e da tristeza provocada pela raiva do homem a seu lado. A mandíbula doía em resposta ao esforço que fazia para não desmanchar-se em lágrimas diante dele.

Quando chegaram à praia Marcel silenciou, mas a frieza de sua atitude era ainda pior que a explosão de raiva que a antecedera. Jacqueline caminhou até que a água banhasse a metade inferior de suas pernas, trazendo alívio para os arranhões. Unindo as mãos, tentou refrescar o rosto congestionado e quente com a água do mar. Queria morrer...

Quando abaixou as mãos, os olhos arregalados dominavam o rosto pálido. O cabelo molhado cobria parte da testa suada, e gotas de água ainda permaneciam em seus cílios, brilhando à luz do sol. Parecia abalada e assustada, muito vulnerável, e ao perceber que Marcel a observava ela virou-se, tentando esconder a infelicidade estampada em seus olhos.

A raiva desapareceu do rosto de Tregowan, que a segurou pelos braços e a fez virar-se para encará-lo.

Jacqueline! Eu não quis...

 

                             CAPITULO VIII

Jacqueline jamais soube o que Marcel pretendia dizer. Um grito vindo do mar os fez virar e, juntos, viram o barco que aproximava-se rapidamente dirigido por uma figura alta e familiar.

— Rod — Marcel reconheceu contrariado, tirando as mãos dela.

Rod e seu grupo ficaram encantados com o encontro. Haviam vindo à praia para organizar um churrasco, e fizeram questão da presença de Marcel e Jacqueline.

Ao todo eram cinco pessoas, todos homens, unânimes em afirmar que, apesar da diversão proporcionada pela semana de pescaria, adorariam contar com uma companhia feminina.

A última coisa que Jacqueline queria nesse momento era uma confraternização, mas temia as surpresas que a noite poderia trazer, e por isso sorriu e aceitou o convite. Para sua surpresa, Marcel mostrou-se menos entusiasmado. Talvez quisesse estender seu sermão pela noite adentro.

Recusando-se a entrar no bote com ele, Jacqueline nadou até o iate, deixando a água fresca limpar a terra de suas roupas e suavizar o ardor dos ferimentos. Depois de uma ducha rápida, vestiu uma camiseta de algodão e uma velha bermuda jeans e sentiu-se viva novamente.

Marcel não tinha o direito de censurá-la naquele tom, ela decidiu enquanto escovava os cabelos. Admitia ter cometido um erro, mas não causara nenhuma tragédia!

Quando voltaram à praia para o churrasco, Jacqueline conseguira recuperar o ar desafiante de antes. Pelo menos a tarde servira para demonstrar que era inútil pensar na possibilidade de Marcel apaixonar-se por ela. Agora sabia quanto ele a desprezava, e estava ainda mais determinada a esconder seus sentimentos.

O restante do grupo não notou a tensão entre Marcel e Jacqueline. Ela sentou-se bem longe de Tregowan, mas certificou-se de que ele via o quanto divertia-se.

Rindo, conversando e flertando, Jacqueline tentava convencer-se de que não se incomodava por ele ignorá-la, enquanto ela não perdia nenhum movimento daquelas mãos fortes e bronzeadas.

Marcel esforçava-se para ser agradável com o grupo de clientes, mas a tensão era visível na maneira como contraía as mandíbulas e na rigidez do corpo. Apesar de toda a determinação anterior isso a enervava, e era com desespero crescente que ria e conversava com os outros, exclamando em voz alta quanto divertia-se.

Já era tarde quando todos partiram. Jacqueline despediu-se com entusiasmo exagerado, e acenou com energia enquanto Marcel pilotava o bote inflável que os levava de volta ao iate.

— Não foi uma noite adorável? — perguntou, sorrindo para disfarçar o pânico que ameaçava assaltá-la ao chegarem ao iate. — Seus clientes são realmente divertidos.

— Sua opinião ficou bem evidente ao longo da noite. De minha parte, não sei o que há de tão divertido num grupo de homens adultos babando em cima de uma única mulher.

— Não seja ridículo. Você estava lá... Viu que estávamos apenas conversando.

— Eu não descreveria seu comportamento como o de alguém que está apenas conversando. Todos aqueles risinhos, aqueles olhares lânguidos, aquelas exclamações exageradas... Francamente, nunca vi uma exibição tão revoltante!

— Pensei que esperasse que eu fosse agradável com seus clientes. Você certamente não foi! Nunca ouviu falar em relações públicas?

— O tipo de relação que estava prometendo não tinha nada de pública. A esta altura eles devem estar sonhando com você...

— Como se atreve?

— Não gosta de ouvir a verdade, não é? Deve ser sua formação profissional. Prefere fingir que as coisas são como você quer que sejam, em vez de encarar os fatos como realmente são.

— É melhor que ser puritano, cabeça-dura e preconceituoso! — ela devolveu furiosa. — Não se preocupe, Marcel Tregowan! Chris e Mike logo estarão de volta, e então não terá mais de suportar meu comportamento ofensivo.

— Ótimo! Tinha uma vida tranquila e agradável antes de você chegar. Agora passo metade do meu tempo querendo esganá-la, e a outra metade...

— Continue!

De repente ele estava muito perto. Jacqueline encarou-o, mas ao ver o brilho intenso em seus olhos a raiva desapareceu, deixando-a vulnerável e exposta. Marcel estendeu a mão e puxou-a lentamente em sua direção.

— A outra metade do meu tempo fico sonhando com isto... — e beijou-a.

O mundo derreteu em torno de Jacqueline, junto com todas as resoluções de preservar seu orgulho e manter distância desse homem. O desejo os dominou por completo. Esse não era o momento de falar, nem de explicar ou imaginar como a tensão do dia os levara a esse ponto, fazendo-os agarrarem-se um ao outro com verdadeiro desespero, trocando beijos e carícias que os conduziam para momentos muito mais íntimos.

Os dedos firmes e experientes de Marcel foram removendo suas roupas devagar. Em seguida ele despiu-se e levou-a para uma das cabines, cujo teto basculante, aberto, deixava ver a luz da lua e das estrelas. Sorrindo, abraçaram-se e entregaram-se ao desejo que os queimava.

A medida que o prazer ia ocupando todos os recantos de sua mente ela entregava-se mais completamente às carícias com que tantas vezes sonhara, tocando e explorando o corpo que ocupara suas fantasias mais recentes. Marcel retribuía cada toque, correspondendo à urgência demonstrada pela parceira.

Dominados pelo ritmo frenético dos acontecimentos, deixaram-se arrastar pela enxurrada que os levou ao desfecho inevitável, a explosão de prazer que os fez imaginar as estrelas ainda mais brilhantes e a lua, mais prateada.

Jacqueline acordou com o suave balançar do barco. Espreguiçando-se, satisfeita e feliz como só sentira-se em sonhos, virou-se e encontrou Marcel apoiado sobre um cotovelo, observando-a. A luz do sol penetrava na cabine e tornava seus olhos ainda mais verdes. Por um momento encararam-se em silêncio, enquanto as lembranças da doce noite de prazer os envolvia num manto de ternura.

Inexplicavelmente tímida depois de toda a intimidade que partilharam, ela tentou desviar o rosto vermelho, mas não conseguiu escapar ao encanto quase hipnótico daqueles olhos.

— Olá — cumprimentou-o.

— Olá — ele respondeu, dissolvendo o constrangimento com um sorriso inesperado.

Marcel beijou-a e Jacqueline sentiu o mundo derreter novamente, abraçando-o e entregando-se às mãos experientes que certamente a levariam à loucura mais uma vez.

Mais tarde a realidade atingiu-a com impacto ainda maior que antes.

Banhada pelo encanto da noite, esquecera as resoluções do dia anterior. Afastara da mente a certeza do adeus e ignorara o fato de ele não ter revelado seus sentimentos. A realidade não significava nada com o sol banhando seu corpo nu e as mãos de Marcel acariciando-a.

Mas a realidade não aceitava ser ignorada. Estavam começando a trocar mais um beijo quando alguém bateu na lateral do barco e uma voz forte os interrompeu.

— Ei, vocês aí dentro! Estão acordados?

Marcel ergueu a cabeça e suspirou.

— É melhor ir ver do que se trata, ou virão nos chamar pessoalmente.

Jacqueline sorriu, espreguiçou-se e ficou deitada, observando os reflexos dourados que espalhavam-se pela cabine. Podia ouvir a voz de Marcel e a de uma segunda pessoa no convés, mas estava sonolenta demais para prestar atenção. Queria ficar ali o dia todo, cochilando ao sol.

— Eles vieram nos convidar para o café da manhã — Marcel informou, reaparecendo na soleira já totalmente vestido. — Lamento, mas não consegui pensar numa boa desculpa para recusar o convite. Parece que seus admiradores recusam-se a partir sem vê-la novamente.

Vermelha, ela riu ao lembrar as desesperadas tentativas de convencê-lo de seu desinteresse. Por que perdera tempo? Sorrindo, levantou-se e vestiu uma camiseta e um short antes de ir lavar o rosto. Longe iam os dias das roupas formais e da maquiagem completa...

Quando saiu da cabine, Marcel estava limpando o salão.

— Salvando as aparências? — ela provocou, deslizando as mãos por suas costas ao vê-lo abaixar-se para recolher a camiseta que ela havia usado na noite anterior.

— Tripulantes desorganizados são punidos com racionamento de comida — Marcel respondeu, levantando-se para entregar a camiseta.

— Não sei como isso foi parar aí, Capitão. Mas prometo que não voltará a acontecer.

Marcel riu e afagou seus cabelos.

— Não precisamos levar essa coisa de organização tão longe. Vamos, é melhor ir guardar essas coisas — e recolheu a bermuda e as roupas íntimas que haviam ficado jogadas no chão.

— E já que vai até a cabine, guarde isso também — e apontou para as cartas que ela deixara sobre a mesa, escondidas sob alguns papéis. — Quando entrei, essa papelada estava toda espalhada pelo salão. Deve ter sido o vento.

— Sim, senhor Capitão! — Jacqueline tentou uma saudação militar, mas as cartas escorregaram de cima das roupas que ela carregava e espalharam-se pelo chão.

Os dois abaixaram-se para recolhê-las, e Marcel tornou-se subitamente tenso ao ler a subscrição num envelope antes de entregá-lo.

Jacqueline examinou-o e o nome escrito em tinta preta a fez lembrar a amarga realidade.

— Eu... escrevi para Rupert — disse, sem saber por que tinha de repetir algo que ele já sabia.

— Eu percebi.

— Queria explicar...

— Não precisa explicar nada, Jacqueline.

— Estava dizendo que queria explicar a Rupert que... Bem, eu só...

— Não quero saber.

— Mas, Marcel...

Jacqueline foi interrompida novamente, dessa vez por um grito do lado de fora.

— O café está pronto!

Sem dizer nada, Marcel virou-se e subiu ao convés. Em silêncio, desceram ao bote para ir ao encontro dos outros.

Jacqueline não conseguia acreditar na rapidez com que a atmosfera havia mudado. De repente a tensão retornara com força total, apagando a alegria que haviam conhecido no início da manhã. Todas as dúvidas voltaram a atormentá-la. Se Marcel a amasse, não teria se tornado tão frio de uma hora para outra, e sem qualquer provocação. Dificilmente teria encontrado uma maneira mais eloquente de demonstrar que a noite anterior não havia mudado nada entre eles.

— Parece estar sofrendo — Rod disse ao vê-la. — Lamentando todo aquele vinho de ontem à noite?

Por um momento os olhos de Jacqueline encontraram os de Marcel.

— Estou lamentando muitas coisas relativas à noite de ontem.

Marcel desviou os olhos dos dela, mas não a tempo de esconder a súbita rigidez dos músculos do rosto.

Partiram assim que puderam, apesar da insistência para que ficassem. Marcel ofereceu uma desculpa qualquer sobre ter de voltar à marina e Jacqueline confirmou o pretexto com um sorriso forçado. Assim que chegaram ao Ali B. ele começou a preparar-se para levantar âncora, e sua eficiência teve o poder de impeli-la a agir.

Era ridículo deixar as coisas azedaram dessa maneira.

— Marcel, a respeito de Rupert... — ela tentou, vendo-o preparar o mastro principal.

— Não quero ouvir nada sobre Rupert. Tem o direito de escrever para quem quiser, e não estou interessado no que sente sobre seu noivado rompido ou no que pretende fazer quando voltar à Inglaterra. Não tenho nada a ver com isso.

Antes que pudesse responder ele já estava erguendo a âncora. Tensa, Jacqueline esperou que ele voltasse à cabine e ligasse o motor.

— A noite passada não significou nada para você?

— Foi muito bom — ele respondeu com indiferença espantosa. — Não vou fingir que não gostei. Mas o que aconteceu não muda o fato de sua vida estar enraizada na Inglaterra, muito longe daqui. Se quer uma farra enquanto está longe de casa, por mim está ótimo. Mas será apenas uma farra. Aprendi essa lição com Jonelle. Não quero ser parte de sua vida, espremido entre sua carreira e outros compromissos. Pode guardar esse papel para Rupert.

— Marcel, não é nada disso! Eu...

— Vamos encerrar o assunto, está bem?

Jacqueline desistiu. Marcel dissera que não queria ser parte de sua vida. E o que esperava? Que a noite de prazer fosse suficiente? Que a paixão ardente e gloriosa mudasse os fatos? Marcel estava certo. A Austrália não era o seu lugar. Estava apenas vivendo... uma farra.

Jacqueline lembrou o termo com amargura. Podia ter sido uma farra para ele, mas para ela havia sido toda a força e a satisfação do amor. Marcel não pudera ler o sentimento em seus olhos?

Aturdida, olhou para as ondas e sentiu a infelicidade invadi-la, fria e corrosiva.

Marcel franziu a testa. Estivera diante do timão, olhando do mar para a vela, checando o vento e os instrumentos, o rosto fechado e os lábios apertados. Seguiam na frente do vento, o que a deixava sem nada para fazer a não ser esperar, mas adoraria ouvir os gritos autoritários de Marcel. Qualquer coisa seria melhor que essa horrível indiferença.

Quando ele falou Jacqueline assustou-se.

— Assuma o timão, sim?

— O que vai fazer? — ela perguntou enquanto ocupava o posto indicado.

— Vou ver se consigo erguer a vela auxiliar. Se a alinhar com a principal de forma a recolher todo esse vento, chegaremos muito mais depressa.

— O que devo fazer?

Marcel apontou para a bússola.

— Apenas mantenha o curso, e não deixe o barco ficar perpendicular ao vento, está bem?

Jacqueline afirmou com a cabeça. As palavras não tinham muito significado, mas ele arrancaria sua cabeça se começasse a fazer perguntas.

Marcel saiu da cabine e subiu a escada para o convés. Os olhos dela o seguiram numa reação automática. Não tivera oportunidade de observá-lo durante toda a manhã, mas agora ele estava de costas e podia desfrutar de toda a beleza daqueles ombros largos, dos quadris proporcionais e das pernas fortes e bronzeadas. Estava tão fascinada que esqueceu de manter-se atenta à bússola.

Entregue às recordações, não notou que afrouxara as mãos sobre o timão até que o Ali B. girou e o vento mudou a direção da vela, que chocou-se contra a lateral do barco com um estrondo assustador. Antes de encontrar a fibra do iate o mastro atingiu as costas de Marcel, que só não foi jogado ao mar graças à balaustrada.

— Marcel! — Jacqueline gritou, largando o timão para ir ajoelhar-se ao lado dele. — Oh, Marcel! Oh, meu Deus! Por favor, fale comigo!

Por um momento teve medo de tê-lo matado, mas então ele gemeu e ela explodiu num pranto desesperado.

— Marcel, eu sinto muito... Não sabia... Está machucado?

Com esforço, ele ergueu o corpo devagar até sentar-se e empurrou-a, tentando respirar.

— O que aconteceu? — murmurou, levando as mãos à cabeça.

— O mastro... ele girou e não consegui contê-lo.

— Eu disse para manter-se à frente do vento!

Marcel arrastou-se até a cabine, onde deixou-se cair numa cadeira e encolheu-se, as mãos sobre o peito.

O barco seguia ao sabor do vento, as duas velas balançando freneticamente.

— O que devo fazer?

Desesperada, olhou em volta em busca de outro barco. Se Marcel estivesse seriamente ferido, não conseguiria levar o iate de volta à marina sem ajuda.

— Não... toque... em nada — ele resmungou, os olhos fechados.

— Mas estamos à deriva!

Marcel levantou a cabeça e olhou em volta, constatando o que acabara de ouvir. Felizmente estavam cercados por muita água.

— Não vamos bater em nada — disse com dificuldade, deitando-se no chão e fechando os olhos. — E vou me sentir mais seguro se você sentar-se e não mexer em nada.

Algum tempo se passou antes que ele voltasse a sentar-se. Não permitia que ela fizesse nada, recusando-se até mesmo a permitir que o tocasse para verificar a extensão dos ferimentos. Rejeitada, culpada e preocupada, Jacqueline sentou-se num canto e o viu ranger os dentes para conter a dor enquanto assumia o timão.

— Não acha melhor ir deitar-se na cabine? — ela arriscou.

— E quem vai comandar o barco? Você? Se tivesse caído ao mar e perdido a consciência, teria morrido afogado antes que conseguisse voltar para me salvar!

— Sinto muito...

— Tudo que tinha de fazer era segurar o timão e manter o curso por dois minutos, mas é incapaz de concentrar-se por tanto tempo!

— Não entendi o que devia fazer. Entrei num barco pela primeira vez na vida, e você quer que eu me comporte como o Capitão Gancho!

— Se não entendeu, por que não perguntou?

— Porque você teria sido desagradável mais uma vez! Como espera que eu aprenda, se tudo que faz é gritar comigo?

Mais tarde, Jacqueline não saberia dizer como chegaram à marina. A única certeza que tinha era a de nunca mais querer viver uma experiência parecida.

Preocupava-se com Marcel, que recusava qualquer tipo de ajuda, apesar do sofrimento evidente. Ele parecia encontrar algum alívio na selvageria com que a acusava, e quando finalmente baixaram âncora ela estava pálida de raiva, espanto e humilhação.

Desprezando as insistentes ofertas de auxílio, Marcel foi para o hospital enquanto ela ficava sozinha com a limpeza do barco. Ultimamente essa parecia ser sua única habilidade. Quando terminou a limpeza e voltou para casa, Marcel já estava lá.

— O que o médico disse?

— Três costelas quebradas, dezenas de hematomas e uma leve concussão. Ele disse que devo repousar, e por isso estou indo para a cama.

— Posso fazer alguma coisa?

— Pode. Fique fora do meu caminho por algum tempo.

Jacqueline sentou-se numa cadeira e, sozinha, deixou as lágrimas correrem livres. Ainda esta manhã ele a abraçara e beijara, e agora voltara a ser um estranho novamente. Como havia sido ingênua ao acreditar que uma noite de amor poderia resolver tudo!

O toque do telefone obrigou-a a levantar a cabeça e controlar-se.

— Jacqueline? O que está havendo? — Chris perguntou preocupada, pressentindo a tensão na voz da prima.

— Nada — Jacqueline respondeu com esforço. — Estou apenas cansada. Como vai Mike?

— Longe da perfeição, mas pelo menos já levantou-se da cama. Devemos estar de volta dentro de uma semana.

— Uma semana? — Jacqueline repetiu, tentando banir a tristeza da voz. Sabia que devia mostrar-se animada e feliz, mas não conseguia deixar de pensar em como seria triste viver sem Marcel.

— Isso mesmo. O que está acontecendo por aí? — Chris insistiu.

Jacqueline hesitou. Não podia dizer a verdade sobre Marcel, mas precisava inventar alguma coisa, antes que ela ficasse realmente preocupada.

— Eu... estou sentindo saudades de Rupert — improvisou.

— Rupert? Mas eu pensei que você houvesse decidido pelo rompimento.

— É verdade, mas... Bem, tive algum tempo para pensar em tudo que aconteceu, e talvez tenha cometido um engano. Mas não se preocupe com isso, está bem? Trate de cuidar de Mike e voltar logo para casa.

— É o que estou fazendo, Jacqueline. É o que estou fazendo...

Os dias seguintes foram difíceis. Marcel estava frio e distante, e Jacqueline escondia a dor atrás de um escudo de hostilidade. Para piorar, Val decidira atacar com força total, e passava o tempo todo na marina, cercando-o de atenção e cuidados.

Mike melhorava dia a dia, e logo estaria em casa. Ainda não decidira se desejava acabar de uma vez com esse tenebroso pesadelo em que transformara-se sua viagem, ou se preferia prolongar o sofrimento para estar ao lado de Marcel, mas o certo era que não tinha escolha. Assim que Chris voltasse, teria de partir e encarar o futuro de solidão que a esperava.

Certa manhã, estava apanhando lençóis limpos no depósito atrás do escritório quando ouviu a porta rangendo e soube que alguém acabara de entrar.

— Em que posso ajudá-lo? — Marcel perguntou de onde estava, sentado atrás da mesa.

Houve um murmúrio que Jacqueline não conseguiu distinguir e em seguida ele a chamou. Confusa, saiu do depósito levando uma pilha de lençóis e toalhas, e quase desmaiou ao ver quem a esperava na porta.

— Rupert!

 

                             CAPÍTULO IX

— Jacqueline, querida! — Rupert sorriu.

Marcel olhou do rosto perfeito de Rupert para o de Jacqueline, perplexo, e sua expressão tornou-se dura.

— Essa é evidentemente uma visita pessoal — constatou com frieza.

— Pode apostar nisso — o visitante respondeu, virando-se para Jacqueline com um sorriso nos lábios. — Há algum lugar onde possa conversar com privacidade, querida?

Marcel levantou-se.

— Podem ficar aqui. Mas sejam breves. Jacqueline tem muito o que fazer, e não é paga para ficar fofocando o dia todo.

Rupert encarou-o com antipatia evidente.

— Temos coisas melhores para fazer além de fofocar. Não vejo Jacqueline há mais de dois meses, e temos muitos assuntos a discutir.

— Nesse caso, sugiro que os discutam quando ela estiver de folga. Posso conceder cinco minutos, mas aviso que terão de adiar o emocionante reencontro até o final do expediente. Se alguém me procurar, estarei no Calypso — ele avisou, dirigindo-se a Jacqueline.

— Ele é um tanto mal-humorado, não? — Rupert comentou, fechando a porta do escritório. — Como veio trabalhar para um tipo tão rude?

— É uma longa história — ela suspirou. — E você, como conseguiu me encontrar aqui?

Rupert parecia surpreso, como se esperasse que ela se atirasse em seus braços.

— Acabei de chegar de Londres. Pensei que a encontraria no endereço de sua prima, mas uma vizinha dela disse que provavelmente a acharia na marina. Assim, aqui estou eu.

— Você sempre foi tão avesso à idéia de vir à Austrália! Lembro-me de tê-lo convidado para vir visitar minha prima, e você respondeu que tinha coisas melhores a fazer com suas férias do que ficar sentado no meio do nada fotografando cangurus. Por acaso veio a negócios?

— Negócios pessoais — ele riu, aproximando-se para segurar as mãos dela. — Vim procurá-la para dizer que quero levá-la de volta. Fiquei aborrecido depois daquela horrível discussão que tivemos, mas assim que partiu percebi o quanto sinto sua falta. Andei pensando em tudo que aconteceu, e compreendi que não tenho o direito de interferir em sua carreira. Se quiser continuar trabalhando depois do casamento, prometo que não me oporei.

— Quer dizer... que ainda quer se casar comigo?

— É claro que sim! — Rupert abraçou-a, certo de que ela corresponderia, e pareceu ofendido quando ela o empurrou e afastou-se. — O que houve, querida?

Quando rompera o noivado, havia jurado fazê-lo arrepender-se por ter zombado de sua profissão. Agora ela estava ali, dizendo-se arrependido e pedindo para voltar. Devia ser o final perfeito, mas a única coisa que conseguia sentir era pânico. Nesse conto de fadas, estava no cenário errado com o herói errado.

Mas como dizer isso a Rupert? Melhor esperar que ele descansasse da viagem, e então poderiam conversar como adultos civilizados.

— Não podemos discutir esse assunto aqui — ela disse. — Por que não deixamos para conversar depois que descansar um pouco?

— É claro — Rupert sorriu, certo de que ela acabaria concordando com sua proposta. — Está surpresa, não é? Por isso está se comportando de maneira tão estranha.

Jacqueline foi ao Calypso para dizer a Marcel que ausentaria-se por algum tempo, e encontrou-o polindo os metais do barco com gestos furiosos. Ao vê-la, ele largou a estopa e limpou as mãos num pano branco.

— Então aquele é Rupert! Muito aristocrático! Será que ele não ficou ofendido por eu ter esquecido de me inclinar?

Jacqueline cerrou os punhos.

— Ele não tocou no seu nome.

— O que esse sujeito está fazendo aqui, afinal?

— Não acho que isso seja de sua conta.

— Deixe-me imaginar! — Marcel disse com sarcasmo enquanto retomava o polimento. — Ele veio salvá-la dessa terra de selvagens e levá-la de volta ao castelo da família, onde poderá usar todo o seu talento de empresária para organizar jantares e chás beneficentes! Nada mais de cozinha ou faxina! Lamento, mas tenho certeza de que acabará entediada. Rupert não é homem bastante para uma mulher como você.

— Ele é homem bastante para desculpar-se, coisa que você jamais foi capaz de fazer — Jacqueline disparou. Em seguida respirou fundo e contou até dez. — Rupert está cansado. Vou levá-lo de volta à casa de Chris para que ele possa dormir. Ele alugou um carro, e vou aproveitar para levar minhas coisas.

— Muito romântico! Acha que conseguirá sobreviver sem um mordomo?

Jacqueline ignorou a ironia.

— Voltarei no final da tarde, de táxi.

— Não se incomode. Longe de mim pensar em arrancá-la dos braços de um homem que veio de tão longe para vê-la.

— Pensei que só pudesse me conceder cinco minutos.

— Já consegui cuidar de tudo sozinho antes, e certamente não morrerei sem você aqui.

E ela? Conseguiria sobreviver sem Marcel?

— Então estarei aqui amanhã cedo.

Tregowan não respondeu e ela afastou-se devagar, de cabeça baixa. No entanto, quando virou-se antes de entrar no escritório, ele havia interrompido o trabalho para segui-la com os olhos.

Enquanto Rupert dormia Jacqueline foi sentar-se na varanda. Conseguira convencê-lo a não pressioná-la, e agora dispunha de algum tempo para organizar as idéias.

Precisava mesmo pensar. Já enganara-se antes, não? Podia estar errada outra vez. Talvez Marcel tivesse razão. Talvez vivesse uma insanidade temporária que passaria assim que voltasse à velha rotina. Devia dar a Rupert a oportunidade de fazê-la lembrar as coisas que um dia haviam sido importantes.

Jacqueline limpara a geladeira antes de ir hospedar-se na casa de Marcel, e por isso tiveram de sair para comer. Conhecendo os hábitos de Rupert, levara-o ao restaurante mais sofisticado da cidade, mas irritou-se com o tom glacial com que ele criticava tudo e com os olhares de reprovação que lançava à sua volta.

— Francamente, não sei como pôde permanecer tanto tempo num lugar tão... sem recursos.

— Por favor, Rupert...

— Está bem, está bem. Não vamos discutir o cenário. O que importa é o enredo, certo? — ele riu. — A Liedermann, Marshall & Jones andou procurando por você. Parece que a querem de volta. Na verdade, Barry Shillingworth pediu-me para dizer que entre em contato com eles assim que voltar. Como vê, querida, todos a querem!

Marcel não a queria. Impedindo que ele segurasse sua mão sobre a mesa, olhou sobre o ombro de Rupert em busca de alguma diversão e descobriu-se fitando um par de olhos verdes e familiares. Por um momento imaginou se a força de seu pensamento o teria conjurado, mas em seguida viu que ele estava com Val e que já saboreavam a refeição.

Enciumada, Jacqueline encarou-o por alguns segundos. Seus olhos eram brilhantes e hostis, os dele, frios e acusadores.

— Parece que não ficou muito entusiasmada — Rupert comentou. — Pensei que ficaria eufórica. Afinal, vivia gritando aos quatro ventos a importância de sua carreira!

— Desculpe, Rupert, mas acho que as coisas estão acontecendo muito depressa. Preciso de algum tempo para me habituar.

— Não entendo. Não estamos discutindo coisas novas. Você só precisa voltar ao ponto de onde partiu há pouco mais de dois meses. Pensei que fosse justamente o que quisesse.

— Tive muito tempo para pensar desde que vim para cá. Será que não entende? Não posso simplesmente fingir que a LMJ nunca me demitiu, ou que não tivemos aquela discussão.

— Não terá outra chance como essa, Jacqueline. Pelo que entendi, poderá até ser promovida ao voltar. Você nunca foi de perder uma boa oportunidade!

— É verdade. Sei que construí minha vida em torno do trabalho, mas agora tive uma chance de parar e pensar, e não sei se quero voltar à publicidade.

— Quer dizer que não quer mais trabalhar? — ele animou-se. — Então podemos nos casar assim que voltarmos para casa!

— Não foi isso que eu disse. Estou apenas tentando fazê-lo entender que nesse momento não sei o que quero fazer.

— Você mudou — Rupert concluiu desconfiado.

Sem que pudesse evitar, Jacqueline olhou por sobre o ombro dele e encontrou os olhos de Marcel.

— Sim, mudei.

Rupert não estava disposto a desistir.

— Podemos voltar para casa dentro de alguns dias. Não precisa mais ficar aqui, agora que já provou seu ponto de vista.

— Isso não é um jogo. Por favor, não me pressione. Não quero tomar outra decisão precipitada.

O jantar parecia interminável. Jacqueline tentou de tudo para manter os olhos afastados de Marcel, mas eles pareciam ter vontade própria. Marcel também a encarava como se quisesse devorá-la, e à certa altura ela temeu que Rupert e Val criassem um escândalo dentro do restaurante.

Finalmente Marcel e Val levantaram-se para partir. Infelizmente, para chegar à porta teriam de passar pela mesa onde Jacqueline e Rupert ainda comiam.

— Olá! — Val exclamou surpresa ao vê-la. — Não sabia que estava aqui.

— Mundo pequeno — Jacqueline sorriu. — Olá, Marcel — cumprimentou-o, como se não houvessem passado a última meia hora trocando olhares cheios de significados.

— Esse é o noivo de Jacqueline. Rupert, não? — Marcel perguntou com evidente descaso.

— Rupert Deverell — ele apresentou-se, sem saber se devia ficar ofendido com o tom ou feliz por ter sido reconhecido como o noivo.

Pensei que quisessem uma noite de privacidade. A reconciliação já acabou?

— É claro que não — Rupert respondeu com arrogância. — Precisamos comer.

— Se houvesse passado dois meses sem ver minha noiva, a última coisa em que pensaria seria comer. Pensando bem, se tivesse uma noiva, especialmente uma como Jacqueline, não permitiria que ela se afastasse de mim por dois meses.

— O que quer dizer com isso? — Rupert enfezou-se, ameaçando levantar para enfrentá-lo.

— Ele quer dizer que não tem uma noiva porque ninguém suportaria casar com alguém tão desconfiado e possessivo — Jacqueline interferiu, puxando-o de volta à cadeira e olhando para Marcel com ar furioso.

— Não sabia que era noiva — Val comentou, impedindo que os dois retomassem a discussão.

— Não? — Afinal, por que Marcel apresentara Rupert como seu noivo? Dissera a verdade quando contara a história sobre o rompimento, mas não podia repeti-la agora, antes de dizer ao principal interessado que não mudaria de idéia.

— Se soubesse que estavam aqui, teria feito questão de convidá-los à nossa mesa — Val prosseguiu. — Estávamos planejando uma viagem de volta ao mundo, e seus conselhos culinários teriam sido muito úteis. Não sabemos absolutamente nada sobre cozinha, não é, Marcel?

Jacqueline sentiu-se como se houvesse sido atingida por uma espada. Marcel e Val numa viagem em torno do mundo? Os dois juntos, deitados sob as estrelas, talvez na mesma cabine em que ela e Marcel haviam estado?

— Tenho certeza de que Marcel comentou quanto sou inútil num barco — disse, encarando-o com um misto de desafio e acusação.

— O quê? — Rupert riu. — Quer dizer que andou navegando? Deus, preciso levá-la para casa antes que se torne uma verdadeira esportista. E prefiro você dentro de casa, minha querida. De preferência... na cama — ele concluiu, pousando a mão sobre a dela.

A expressão de Marcel tornou-se tão sombria que por um momento Jacqueline teve medo de que ele agredisse Rupert, mas depois de alguns instantes o viu segurar o braço de Val e empurrá-la na direção da porta.

— É melhor não atrapalharmos mais os pombinhos. Eles devem estar ansiosos para voltar para casa... e para a cama.

— Ora, ora! — Rupert exclamou ao vê-los saindo. — Quem esse sujeito pensa que é?

Os olhos de Jacqueline o seguiram até que ele desapareceu além da porta, deixando o lugar imensamente triste e vazio.

— Marcel nem sempre é assim — disse, lembrando os sorrisos cintilantes que tivera a alegria de ver naquele rosto.

— Não sei como a namorada o suporta.

Namorada... Val... A mulher que teria a sorte de acordar ao lado dele todos os dias...

— Ela deve achar que o sacrifício vale a pena.

Por mais que o considerasse desagradável, adoraria ser submetida ao mesmo sacrifício!

— Estava começando a pensar que havia alguma coisa entre vocês — Rupert confessou. — Deve ser a maneira como ele olha para você... e para mim! Mas se vai fazer a volta ao mundo com aquela garota, é porque está interessado nela. Ou existe alguma coisa entre você e aquele sujeito?

— Não — Jacqueline respondeu triste. — Não há nada entre nós.

Na manhã seguinte ela tomou um táxi para ir ao trabalho, apesar de todos os protestos indignados de Rupert. Combinaram que ele iria buscá-la no final da tarde, quando estivesse mais descansado, pois Jacqueline não queria perder uma das últimas chances que teria de estar perto de Marcel.

Passara a noite em claro, pensando nele e em Val. Teria feito alguma diferença se soubesse antes do envolvimento? E por que ele a amara tão intensamente, se pretendia partir com outra? Não encontrava respostas. Tudo que sabia era que o sonho de um futuro feliz ao lado de Marcel morrera, levando junto todos os outros sonhos que já havia acalentado.

Marcel evitou-a durante todo o dia, e só procurou-a no final da tarde, quando Jacqueline já havia concluído a limpeza dos barcos e guardava os utensílios no depósito.

— Chris telefonou há algumas horas. Mike está melhor do que esperavam, e eles estarão de volta amanhã.

— Amanhã? — ela repetiu atordoada.

— Irei buscá-los no aeroporto, e é melhor que fique em casa para recebê-los. Não precisa mais vir para cá. O movimento caiu nos últimos dias, e posso cuidar de tudo sozinho até Chris voltar ao trabalho.

— Entendo — ela respondeu. — Bem, então agora é... adeus?

— Sim — Marcel concordou, levantando-se como se quisesse dizer mais alguma coisa. Mas, quando voltou a falar, sua voz era tensa e formal. — Obrigado pela ajuda.

— Por nada. — Jacqueline tinha a impressão de que o corpo já não lhe pertencia. Não podia partir assim, sem dizer o que sentia por ele. — Marcel? Marcel, eu... Eu só queria dizer...

O som de uma buzina a interrompeu. Através da janela, podia ver Rupert sentado ao volante do carro alugado, e de repente seus ombros inclinaram-se como se carregassem o peso do mundo.

O rosto de Marcel tornou-se sombrio.

— É melhor ir embora. Não vai querer fazer seu querido nobre esperar.

Jacqueline mordeu o lábio e afirmou com a cabeça. Não podia falar sobre seus sentimentos por Rupert olhando para ele através da janela. Talvez não tivesse de ser. Talvez o tempo a fizesse compreender que havia sido melhor assim.

— Adeus — despediu-se em voz baixa, antes de sair apressada.

Rupert ainda não aceitara o fato de ter passado o dia todo sozinho, e reclamou durante todo o trajeto até a casa de Chris.

— Não entendo por que teve de ir trabalhar — ele continuou quando entraram. — Aquele sujeito não teve a dignidade nem de oferecer um salário decente!

— Isso não importa.

— E o que importa? Ele não faz parte de uma instituição de caridade, e não gosto de saber que minha noiva passa os dias trabalhando como uma criada qualquer, especialmente para um tipo como aquele.

Não sou sua noiva! — ela disparou, jogando a bolsa sobre uma cadeira e virando-se para encará-lo. — Não somos mais noivos desde que devolvi sua aliança.

— Pensei que houvéssemos decidido esquecer tudo isso.

— Você decidiu. Eu não.

— Está tentando dizer que fiz essa longa viagem por nada?

Jacqueline suspirou.

— Fiquei aborrecida depois daquela discussão. Mesmo assim, se houvesse ido me procurar no dia seguinte para dizer as coisas que disse ontem, provavelmente teria me atirado em seus braços e voltaríamos ao que éramos antes. Agora estou feliz por não ter sido assim.

— Feliz?

— Agora sei que nosso casamento teria sido um terrível engano. Não nos conhecemos o suficiente, Rupert. Até aquela discussão, não havia percebido quanto somos diferentes.

— Não somos diferentes! Temos os mesmos interesses, as mesmas amizades, o mesmo estilo de vida... O que há de diferente nisso?

— Pensamos de maneira diferente.

— Que absurdo! A Austrália deve ter afetado seu cérebro. Vai mudar de idéia assim que voltar para casa.

— Não quero mudar de idéia. Sinto muito, Rupert. Não quero me casar com você porque não o amo. Acho que nunca o amei.

A expressão dele tornou-se uma máscara de fúria.

— Tem idéia de tudo que deixei em Londres para vir atrás de você? Não foi fácil abandonar a empresa nessa época do ano. Deus sabe o que pode estar acontecendo enquanto estou ausente. A viagem me custou caro, perdi dois dias nesse fim de mundo, e minhas costas nunca mais serão as mesmas depois das noites que dormi naquela cama desconfortável. E agora você simplesmente diz que não quer se casar comigo?

— Não pedi para vir me encontrar — Jacqueline apontou, irritada com as acusações injustas. — Lamento que tenha perdido tempo e dinheiro, mas podia ter escrito uma carta, como eu fiz.

— Eu nunca recebi sequer um cartão-postal de você!

— É verdade. Não cheguei a enviar a carta — e abriu a bolsa para apanhar o envelope amassado, alisando-o entre os dedos.

Por um momento foi como se voltasse no tempo e vivesse novamente aquele momento em que Marcel recolhera o envelope do chão do iate, pondo um ponto final no breve período de felicidade que haviam conhecido juntos.

— Aqui está — ela disse, entregando a correspondência ao destinatário. — Poderá ler tudo nessa carta.

Rupert aceitou-a com um olhar desconfiado e abriu-a, lendo-a rapidamente.

— Entendo — disse. — Podia ter evitado toda essa jornada até aqui. Você já havia tomado sua decisão, não?

— Não sabia que viria. Sinto muito.

— O que pretende fazer?

— Não sei — ela admitiu com sinceridade.

Rupert partiu naquela mesma noite, e Jacqueline passou a noite sozinha na casa da Chris, entregue às recordações de um sonho que se desfizera.

Na manhã seguinte Jacqueline acordou cedo para arrumar e limpar a casa, e estava terminando de ajeitar as flores que pusera num vaso sobre a mesa da sala quando ouviu o motor de um carro. Tensa, foi até a porta para receber Chris e Mike, certa de que o encontro com Marcel não seria fácil.

Ele foi o primeiro a descer do automóvel. Solícito, ajudou Mike com as muletas e tirou a bagagem do casal do porta-malas, enquanto Chris cumprimentava a prima com entusiasmo e comentava quanto ela parecia diferente.

— Não quer entrar, Marcel? — Chris convidou, notando que ele preparava-se para partir. — Ainda não tivemos tempo para agradecer tudo que fez.

— Não, obrigado — ele respondeu, os olhos fixos em Jacqueline. — Essa é uma reunião de família. Além do mais, Jacqueline tem novidades sobre Rupert.

Sem esperar para ver que reação causaria o comentário, ele entrou no carro e partiu.

 

                                 CAPÍTULO X

Jacqueline ouviu todas as novidades do casal e soube que eles pretendiam vender a casa e mudar-se para outra cidade, onde Mike encontrara uma pequena companhia de fretamento marítimo. Só então explicara toda a história sobre a surpreendente chegada de Rupert à Austrália. Em seguida Chris e Mike perguntaram sobre como havia sido o relacionamento entre ela e Marcel e, com esforço, ela conseguira responder de maneira evasiva, sem demonstrar a tristeza.

Mais tarde, depois de ajudar Mike a ir deitar-se, Chris voltou e sentou-se ao lado de Jacqueline na varanda.

— E então?

— Então, o quê? — Jacqueline espantou-se.

— O que está havendo entre você e Marcel?

— Nada!

— Vamos lá, Jacq! Vi sua cara quando perguntei como haviam se relacionado em minha ausência. Marcel também estava bastante perturbado, e algo me diz que o problema é você.

— Eu? Bobagem!

— Por que está tentando fingir que está bem, quando é evidente que sente-se triste e deprimida?

— Não estou triste.

— Está, e como Rupert foi excluído da lista de possibilidades, só resta Marcel. Por coincidência, ele também parece estar passando por um período difícil.

— Se está, não tenho nada a ver com isso. Ele me odeia!

— Jacqueline explodiu, perdendo a batalha contra os sentimentos. — Sinto muito, Chris. Não pretendia chorar e estragar sua chegada, justamente quando estão tão felizes!

— É melhor me contar o que está acontecendo de uma vez.

Aos poucos, Jacqueline relatou todos os eventos dos últimos meses, e finalmente Chris pôde emitir uma opinião a respeito do assunto.

— Bem, ele me pareceu mais confuso que você.

— Não vi nenhuma confusão nos olhos dele. Primeiro Marcel afirmou que não queria fazer parte de minha vida, e depois ficou furioso quando o mastro o atingiu nas costas.

— Se fosse atingida por um mastro também ficaria furiosa — ela riu. — E me parece que ele ficou mais irritado quando percebeu que também havia sido culpado pelo acidente. Afinal, se houvesse dado as explicações necessárias, você certamente teria controlado o iate. Não sei como pode ser tão cega, Jacqueline. O homem está se roendo de ciúme!

— Está enganada, Chris. Marcel vai viajar em torno do mundo com Val.

— O quê? De onde tirou essa idéia?

— Ela mesma me contou.

— Pois eu não acreditaria antes de ouvir essa história do próprio Marcel. Val é uma pessoa agradável, e acredito que Marcel simpatize com ela à sua maneira, mas largar tudo para segui-la numa viagem dessas? Duvido!

— Ele estava lá! Ouviu o que ela disse sobre a viagem e não tentou negar!

— Talvez tenha pensado que você pretendia partir com Rupert. Francamente, Jacq! Não acredito que duas pessoas sensatas e inteligentes como você e Marcel tenham conseguido criar tamanha confusão. Se quer um conselho, vá procurá-lo imediatamente e repita tudo que acabou de me dizer.

— Não posso!

— Tem certeza de que o ama?

— Sim — ela sussurrou.

— Então diga a ele. Vá lavar o rosto enquanto chamo um táxi.

Quando chegou à marina, Jacqueline constatou que Marcel estava no Ali B., polindo os metais do barco com expressão distante, como se os pensamentos estivessem muito longe dali. Hesitante, chamou-o e perguntou se podia subir a bordo.

— Sim... é claro que sim — Marcel respondeu surpreso, os olhos subitamente iluminados por uma estranha e intensa emoção.

Por alguns instantes ficaram sentados na cabine, encarando-se em silêncio.

— Onde está Rupert? — Marcel finalmente perguntou.

— Foi embora.

— Pensei que pretendesse segui-lo.

— Ele me pediu para voltar, mas... decidi ficar.

— Por quê? — ele perguntou, os olhos fixos nos dela em busca da verdade. — Queria seu emprego na Inglaterra, e queria reatar o noivado. Rupert é perfeito para você... Bem-sucedido, sofisticado, e interessado a ponto de vir até aqui para desculpar-se. Vocês nasceram um para o outro — Marcel concluiu com voz amarga.

— Era o que eu pensava, mas agora sei que estava enganada. — Jacqueline respirou fundo e decidiu ser direta, apesar do receio de uma rejeição. — Meu lugar é aqui.

Marcel empalideceu. Em silêncio, encarou-a como se as palavras o atingissem lentamente, e depois de alguns segundos um sorriso distendeu seus lábios.

— Quer ficar aqui?

Jacqueline afirmou com a cabeça e o viu estender as mãos para fazê-la levantar-se e puxá-la para mais perto.

— Quer ficar comigo? — Marcel insistiu.

— Se você me quiser...

— Se a quero? Estava aqui sentado em desespero, certo de que havia partido com aquele tal Rupert e que nunca mais a veria!

De repente estava nos braços dele, sendo beijada como tantas vezes sonhara. Finalmente podia dizer a verdade sem medo.

— Oh, Marcel, quero ficar aqui com você!

— Jacqueline... Meu amor! Tem certeza de que também me ama?

— Como nunca amei ninguém.

— E quer se casar comigo? Acha que pode ficar aqui para sempre?

— E isso que desejo.

Mais tarde, depois de muitos beijos e abraços, estavam sentados na cabine, olhando o horizonte ensolarado, quando Jacqueline comentou:

— Pensei que me desprezasse.

— Eu tentei — ele confessou. — A princípio pensei que você parecida com Jonelle, mas agora vejo quanto estava longe da verdade. Quando a vi no aeroporto com aquelas roupas elegantes e aquele ar arrogante... Meu Deus, pensei que fosse exatamente como minha ex-mulher, disposta a tudo pela carreira. Depois, quando vi que era capaz de esfregar o convés de um barco para ajudar uma prima em dificuldades... Tem idéia de como lutei contra o que sinto por você?

— Para ser franca, a única coisa que notei foi como me considerava ridícula — ela respondeu.

— Tenho de confessar que você me divertia — Marcel riu. — Sempre tão teimosa, tão determinada a me contrariar... e tão linda! — ele sussurrou, afagando seus cabelos.

Jacqueline estremeceu sob o calor daquelas mãos.

— Não pensei que fosse seu tipo. Você havia mencionado uma certa loira de pernas longas e bem torneadas...

— Esqueça! Agora prefiro as morenas baixinhas e temperamentais — Tregowan afirmou antes de beijá-la delicadamente. — Quando penso nas coisas horríveis que disse! Mereci aquele mastro nas minhas costas!

Ei, não foi de propósito!

— Eu sei. E a dor que senti naquele momento não foi nada comparada ao sofrimento de ouvi-la dizer a Chris que sentia falta de Rupert.

— Você ouviu?

— Não pude evitar. Estava no quarto, pronto para atender ao telefone, quando você começou a falar. Sei que não devia ter ficado na porta, escutando a conversa, mas esperava que dissesse alguma coisa a meu respeito, qualquer coisa que me desse esperanças de um dia conquistá-la, e então você mencionou seu ex-noivo e pensei que fosse morrer de dor.

— Só disse aquilo porque não queria que ela soubesse que estava louca por você.

— Por que não me disse?

— Por que você não disse?

— Orgulho estúpido, acho. Quando Rupert apareceu aqui fiquei furioso e enciumado, especialmente porque ele era exatamente o tipo que combinava com sua imagem. Um tipo que eu jamais conseguiria ser.

— Bobagem — Jacqueline sorriu, tocando o rosto de Marcel com ternura. — Talvez Rupert tenha sido meu tipo um dia, mas depois que conheci você tudo mudou. Eu mudei. Ou talvez tenha sido assim o tempo todo, sem nunca ter notado. Soube que não amava Rupert assim que o vi chegar, mas não achei justo dizer isso a ele cinco minutos depois de ter desembarcado.

— Por isso disse a Val que era noiva?

— Foi você quem disse isso!

— Mas você não desmentiu.

— O que esperava? Não podia esmagar as esperanças de Rupert diante de uma platéia. Além do mais, não pensei que fizesse diferença. Você e Val pareciam muito felizes juntos, fazendo planos para a viagem em torno do mundo...

— Eu e Val? De onde tirou essa idéia?

— Ela disse que vocês estavam planejando uma viagem.

— Eu estava apenas ajudando nos planos. Val vai viajar sozinha. E, francamente, depois que a vi com Rupert naquela mesa, a viagem de Val passou a ser a última coisa em minha mente. Quase enlouqueci de ciúme.

— Foi o que Chris disse.

— Ah, andou conversando com Chris?

— A princípio tentei negar o que sinto por você, mas ela conseguiu descobrir toda a verdade. Foi ela quem me convenceu a vir até aqui e confessar meus sentimentos.

— Nesse caso, ela merece ser a primeira a compartilhar de nossa felicidade — Marcel decidiu, beijando-a mais uma vez antes de levá-la para fora do barco e da marina.

Três horas mais tarde estavam novamente na marina. Chris e Mike haviam sugerido uma comemoração, mas Marcel e Jacqueline tinham outros planos. Quando a luz do entardecer começou a tingir o céu de dourado o Ali B. partiu lentamente, as velas infladas pelo vento suave. Voltavam à Enseada da Lembrança, um lugar cujo nome passara a ter um significado todo especial. Para eles as lembranças eram doces, tão doces quanto o futuro cheio de amor que os esperava. 

 

                                                                                Jessica Hart  

 

 

                      

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