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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Sabor De Perigo / Tess Gerritsen
Sabor De Perigo / Tess Gerritsen

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Sabor De Perigo

 

Ela era uma linda noiva... Ou teria sido, se o noivo tivesse aparecido. Então, no exato momento em que Nina Cormier teria dito "sim, aceito", a igreja explodiu, enviando a mensagem clara de que alguém queria acabar com a noiva.

Alvo de um atentado, Nina precisava de um cavaleiro salvador, mas Sam Navarro era apenas um homem. O policial de Portland aprendera a duras penas como endurecer o coração diante de damas em perigo. Protegeria o corpo dela, mas não teceria fantasias a respeito. Sam não podia atravessar aquela linha, pois isso colocaria a ambos em risco. Então, cometeu o erro de olhar dentro dos grandes olhos castanhos de Nina...

 

O casamento estava cancelado.

Nina Cormier, sentada no vestiário da igreja, olhava fixamente para o espelho e perguntava-se por que não conseguia chorar. Sabia que a dor estava ali, profunda e terrível, escondida sob a sensação de anestesia que tomara conta de seu corpo. Ainda assim, não sentia nada. Ainda não. Só era capaz de permanecer sentada, os olhos secos mirando o reflexo no espelho. A imagem perfeita da noiva. O véu flutuava leve em torno de seu rosto, e o corpete do vestido, bordado com minúsculas pérolas, deixava os ombros à mostra. Os cabelos negros e longos encontravam-se presos num coque discreto. Todas as pessoas que haviam estado com ela naquela manhã — a mãe, a irmã Wendy, a madrasta — haviam elogiado a beleza da noiva.

E ela teria sido uma noiva bonita... se o noivo houvesse dado o ar de sua graça.

Ele nem tivera a coragem de dar-lhe a notícia pessoalmente. Após seis meses de planos e sonhos, ela recebera o bilhete do noivo vinte minutos antes da cerimônia, entregue pelo padrinho escolhido por ele.

 

Nina, preciso de tempo para pensar. Sinto muito. Deixarei a cidade por alguns dias. Ligarei para você.

Robert

 

Ela se forçou a ler o bilhete mais uma vez.

Preciso de tempo... Preciso de tempo...

De quanto tempo um homem precisaria?

 

Um ano antes, Nina mudara-se para o apartamento do dr. Robert Bledsoe. Segundo ele, aquela seria a única maneira de saberem se eram mesmo compatíveis. Casamento era um compromisso muito sério, permanente, e ele não queria cometer um erro. Aos quarenta e um anos, Robert tivera sua quota de relacionamentos desastrosos. Estava determinado a não cometer mais erros. Queria ter a certeza de que Nina era a mulher por quem ele esperara a vida inteira.

Nina estava absolutamente certa de que Robert era o homem de sua vida. Tão certa que, no mesmo dia em que ele sugerira que passassem a morar juntos, ela fora direto para casa e fizera as malas...

— Nina? Nina, abra a porta! — Era a irmã Wendy, forçando o trinco. — Por favor, deixe-me entrar.

Nina escondeu o rosto nas mãos.

— Não quero ver ninguém.

— Precisa de companhia.

— Só quero ficar sozinha.

— Escute, todos os convidados já se foram. Só eu fiquei aqui. A igreja está vazia.

— Não quero conversar. Vá para casa, por favor.

Após um longo silêncio, Wendy falou:

— Se eu for embora, como você vai para casa?

— Chamarei um táxi, ou pedirei ao reverendo Sullivan que me leve. Preciso de tempo para pensar.

— Tem certeza de que não quer conversar?

— Tenho. Ligo para você mais tarde.

— Se é o que deseja... — Wendy fez uma pausa e, então, acrescentou com ódio: — Robert é um patife! Eu nunca disse nada, mas jamais gostei dele.

Nina não respondeu. Continuou sentada com a cabeça apoiada nas mãos, querendo chorar, mas incapaz de derramar uma lágrima sequer. Ouviu os passos de Wendy afastarem-se, até a igreja mergulhar no silêncio. As lágrimas não vieram. Não podia pensar em Robert naquele momento. Sua mente parecia determinada a concentrar-se nos aspectos práticos de um casamento cancelado. O bufê contratado para a recepção e toda a comida intocada. Os presentes que teria de devolver. As passagens para a ilha de St. John, pelas quais não receberia reembolso. Talvez ela devesse fazer aquela viagem e esquecer o dr. Robert Bledsoe. Iria sozinha, tendo por companhia somente o seu biquíni. Assim, ao menos, sairia daquela desgraça toda com um belo bronzeado.

Devagar, ergueu a cabeça e voltou a olhar para o espelho. Não era uma noiva tão linda, assim, pensou. O batom estava borrado e o coque começava a se desfazer. Aos poucos, estava se transformando numa mulamba.

Num acesso de raiva, tirou a grinalda. Grampos voaram para todos os lados, libertando os cabelos negros. Atirou a grinalda na cesta de lixo. Fez o mesmo com o buquê de flores naturais. Sentiu-se melhor. A raiva era como um combustível potente correndo por suas veias. Levantou-se.

Saiu do vestiário, a cauda do vestido varrendo o seu caminho, e foi até a nave.

Os bancos encontravam-se vazios. Guirlandas .floridas enfeitavam os corredores e buquês adornavam o altar. O cenário fora preparado com perfeição e beleza para um casamento que jamais aconteceria. Porém, os resultados do trabalho hábil do florista passou despercebido para Nina, quando ela atravessou o altar e seguiu pelo corredor. Sua atenção concentrava-se na porta da frente. Na fuga. Nem mesmo o chamado preocupado do reverendo Sullivan diminuiu o ritmo de seus passos. Caminhou por entre os lembretes floridos do fiasco de seu casamento e abriu a porta.

Foi na escadaria da igreja que parou. O sol de julho ardeu em seus olhos e de repente, ela se deu conta do espetáculo lamentável que devia estar proporcionando: uma mulher sozinha, vestida de noiva, tentando chamar um táxi. Só então, prisioneira na armadilha do sol, Nina sentiu a ameaça das primeiras lágrimas.

Ah, não! Estava prestes a perder o controle e chorar bem ali, diante do trânsito agitado da Forest Avenue.

— Nina? Nina, querida.

Ela virou-se. O reverendo Sullivan estava no degrau de cima, fitando-a com ar preocupado.

— Posso fazer alguma coisa por você? Qualquer coisa? — ele perguntou com seu jeito dócil. — Se quiser, podemos entrar e conversar.

Ela sacudiu a cabeça com expressão infeliz.

— Quero ir embora daqui. Por favor, só quero ir embora. — É claro, minha querida. — Ele tomou-lhe o braço.

— Vamos, vou levá-la em meu carro.

O reverendo Sullivan levou-a até o estacionamento ao lado da igreja. Nina segurou a cauda do vestido, que já estava toda suja, e entrou no carro, empilhando o excesso de cetim no colo.

O reverendo sentou-se ao volante. O calor era insuportável dentro do carro, mas ele não deu a partida. Em vez disso, permaneceram em silêncio por alguns instantes.

— Sei que é difícil compreender o propósito que Deus possa ter em tudo isso — ele falou. — Mas, com certeza, há uma razão, Nina. Pode não ser aparente no momento. Na verdade, pode parecer a você que Ele lhe deu as costas.

— Foi Robert quem me deu as costas — ela murmurou entre lágrimas, e secou o rosto na cauda do vestido. — Deu-me as costas e fugiu.

— A ambivalência é um sentimento comum para os noivos. Tenho certeza de que dr. Bledsoe sentiu que este era um passo muito grande para ele...

— Um passo muito grande para ele? Por acaso, acha que para mim o casamento é tão simples quanto um passeio no parque?

— Não, não! Você entendeu mal.

— Por favor — Nina abafou um soluço. — Leve-me para casa.

Sacudindo a cabeça, ele pôs a chave na ignição.

— Eu só queria explicar-lhe, querida, que isto não é o fim do mundo. Trata-se da natureza da vida. O destino está sempre nos atirando surpresas, crises que não esperamos, coisas que parecem surgir do nada.

Um ruído ensurdecedor sacudiu a igreja. A explosão destruiu as janelas de vitral e uma chuva de caquinhos de vidro colorido caiu sobre o estacionamento. Livretos de hinos rasgados e fragmentos de bancos cobriram a capota do automóvel.

À medida que a fumaça branca se dissipava, Nina via inúmeras pétalas de flores caírem lentamente pelo ar, pousando sobre o pára-brisa, bem diante do olhar chocado do reverendo Sullivan.

— Sair do nada — Nina murmurou. — Não poderia ter escolhido palavras melhores.

 

— Vocês dois, sem a menor sombra de dúvida, são os maiores encrenqueiros do ano.

Sam Navarro, detetive da polícia de Portland, sentado diante do descontrolado Norm Liddell, nem sequer piscou. Eram cinco as pessoas presentes na sala de reuniões da delegacia, e Sam não estava disposto a dar àquele promotor almofadinha o prazer de vê-lo abalar-se em público. Nem se atreveria a negar as acusações, pois haviam mesmo se metido numa encrenca. Ele e Gillis haviam cometido um erro grave e, agora, um policial estava morto. Era verdade que o policial em questão era um grande idiota, mas, ainda assim, era um policial.

— Em nossa defesa — declarou Gordon Gillis, parceiro de Sam —, gostaria de dizer que, em momento algum, autorizamos Marty Pickett a se aproximar da área. Não tínhamos idéia de que ele havia atravessado o cordão de isolamento...

— Vocês ficaram encarregados da cena da explosão — Liddell interrompeu-o —, o que os torna responsáveis.

— Espere um instante — Gillis protestou. — O oficial Pickett teve grande parcela de culpa.

— Pickett era apenas um novato.

— Ele devia ter seguido as instruções. Se ele...

— Chega, Gillis — Sam falou.

Gillis virou-se para o parceiro.

— Sam, estou apenas tentando defender nossa posição.

— Não vai adiantar, pois é óbvio que já fomos escolhidos para bodes expiatórios. — Sam reclinou-se na cadeira e encarou Liddell. — O que deseja, sr. promotor? Uma retratação pública? Ou nosso pedido de demissão?

— Ninguém quer a sua demissão — quem respondeu foi o chefe de polícia, Abe Coopersmith. — E esta discussão não está nos levando a lugar algum.

— Precisamos tomar medidas disciplinares — disse Liddell. — Um policial está morto e...

— Acha que não sei disso? — replicou Coopersmith. — Eu tive de dar a notícia à viúva, para não falar daqueles malditos repórteres. Não me venha com essa história de nós, sr. promotor. Foi um dos nossos que morreu, um tira, não um advogado.

Sam olhou para o chefe surpreso. Era uma experiência nova ter Coopersmith do seu lado. O Abe Coopersmith que conhecia era um homem de poucas palavras, menos ainda elogiosas. Estava reagindo daquela maneira porque Liddell estava tentando encurralar todos eles. Quando se viam sob fogo cerrado, os policiais eram sempre unidos.

— Vamos voltar ao cerne do nosso problema — disse Coopersmith. — Temos alguém explodindo bombas na cidade, bem como nossa primeira fatalidade. O que descobrimos? — Olhou para Sam, chefe do recém-reinaugurado esquadrão antibombas. — Navarro?

— Não muito — Sam admitiu. Abriu a pasta e retirou diversas folhas de papel, distribuindo cópias para os quatro homens sentados em torno da mesa: Liddell, Coopersmith, Gillis e Ernie Takeda, especialista em explosivos do laboratório criminal do Estado de Maine. — A primeira explosão ocorreu por volta das duas e quinze da madrugada. A segunda, por volta de duas e trinta. Foi a segunda que realmente destruiu o armazém R. S. Hancock. Também causou danos menores a dois edifícios vizinhos. Foi o vigia noturno quem encontrou a primeira bomba. Percebeu sinais de invasão e revistou o prédio. A bomba foi deixada sobre a mesa de um dos escritórios. Ele fez a chamada à uma e trinta. Gillis chegou lá por volta de uma e cinqüenta. Eu, às duas. Isolamos a área e o esquadrão acabara de chegar, quando a primeira explodiu. Quinze minutos depois, antes que pudéssemos revistar o edifício a segunda bomba detonou. E matou o oficial Pickett. — Sam olhou para Liddell mas, desta vez, o promotor decidiu manter a boca fechada. — A dinamite foi fabricada pela Dupont.

— Com o mesmo número de lote das bombas do ano passado? — Coopersmith inquiriu.

— Provavelmente — Sam respondeu —, uma vez que aquele lote foi o único grande roubo de dinamite registrado em muitos anos.

— Mas o caso Spectre de explosões foi solucionado há um ano — disse Liddell. — E sabemos que Vincent Spectre está morto. Então, quem está fazendo estas bombas?

— Podemos estar lidando com um aprendiz de Spectre. Alguém que não só aprendeu a técnica de seu mestre como também tem acesso ao seu suprimento de dinamite. Aliás, devo lembrá-los de que o tal lote nunca foi encontrado.

— Você ainda não confirmou que a dinamite pertence ao mesmo lote — Liddell argumentou. — Talvez as explosões atuais não tenham nada a ver com as bombas de Spectre.

— Temos outra evidência — Sam continuou —, e acho que você não vai gostar. Por favor, Ernie — dirigiu-se a Takeda.

O técnico, que detestava falar em público, manteve os olhos fixos no relatório.

— Baseados nos materiais encontrados no local da explosão, podemos levantar hipóteses preliminares com relação à origem da bomba. Acreditamos que o fuso de ação elétrica foi disparado por um circuito eletrônico. Este, por sua vez, detonou a dinamite através de um fio detonador Prima. Os explosivos estavam atados por um adesivo elétrico verde. — Takeda finalmente ergueu os olhos. — Trata-se de um circuito idêntico ao que o falecido Vincent Spectre utilizou em suas explosões, no ano passado.

Liddell virou-se para Sam.

— O mesmo circuito, o mesmo lote de dinamite? Que diabos está acontecendo?

— Está evidente — disse Gillis —, que Vincent Spectre transmitiu parte de suas habilidades para alguém, antes de morrer. Agora, temos um louco de segunda geração em nossas mãos.

— Precisamos juntar as peças do perfil psicológico do novo criminoso — Sam anunciou. — Spectre agia por puro interesse financeiro. Era contratado para fazer o serviço e o fazia com eficiência e sangue frio. Nosso novo homem também deve estabelecer um padrão.

— Está dizendo — concluiu Liddell —, que espera que o sujeito ataque novamente.

Sam assentiu.

— Infelizmente, é exatamente o que estou dizendo.

Após uma leve batida na porta, uma policial entreabriu-a.

— Com licença. Há uma ligação para Navarro e Gillis.

— Eu atendo — Gillis falou e foi até o telefone instalado na parede.

Liddell continuava observando Sam.

— Então, é isto o que a elite policial de Portland pode fazer? Vamos esperar por mais uma explosão, para estabelecermos um padrão? Então, talvez tenhamos uma idéia do que estamos fazendo, com o que estamos lidando?

— Uma explosão, sr. Liddell — Sam falou calmamente —, é um ato de covardia. Trata-se da violência ocorrida na ausência de quem a perpetrou. Vou repetir: ausência. Não contamos com identidade, impressões digitais, testemunhas ou...

— Chefe — Gillis interrompeu-o, desligando o telefone. — Acaba de ocorrer uma nova explosão.

— O quê! — Coopersmith exclamou.

Sam já se adiantava para a porta.

— O que foi desta vez? — perguntou Liddell. — Outro armazém?

— Não — Gillis respondeu. — Uma igreja.

A polícia havia isolado a área, quando Sam e Gillis chegaram à igreja do Bom Pastor. A multidão reunida na rua espiava curiosa. Três carros de patrulha, dois de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados desordenadamente na Forest Avenue. O caminhão do esquadrão antibombas encontrava-se diante do que antes fora a entrada da igreja. A porta fora arrancada das dobradiças e jazia sobre os degraus da escadaria. Havia cacos de vidro por toda a parte. O vento espalhava páginas rasgadas dos livretos de hinos pela calçada.

— Esta foi grande — Gillis murmurou.

Quando se aproximaram da cena, o policial encarregado suspirou aliviado.

— Navarro! Que bom vê-lo aqui.

— Alguma vítima? — Sam perguntou.

— Nenhuma, até agora. A igreja estava vazia. Pura sorte. Um casamento estava marcado para as duas, mas foi cancelado de última hora.

— Quem ia se casar?

— Um médico. A noiva está ali, no carro-patrulha. Ela e o padre presenciaram a explosão. Estavam no estacionamento.

— Falarei com ela mais tarde — Sam anunciou. — Não a deixe ir embora. Nem o padre. Vou revistar o edifício, à procura de uma segunda bomba.

— Antes você do que eu.

Sam vestiu o colete protetor, feito de placas de aço revestidas de náilon, e levou a máscara, para o caso de encontrarem uma segunda bomba. Um especialista em explosivos, vestido com o mesmo equipamento, aguardava junto à porta da igreja. Gillis dirigiu-se para o caminhão. Sua tarefa seria fornecer as ferramentas e preparar tudo para o transporte de uma bomba.

—Muito bem — Sam falou ao especialista —, vamos entrar.

Entraram pelo que fora a porta da igreja.

A primeira coisa que Sam notou foi o cheiro forte e levemente adocicado. Dinamite, pensou. Reconhecia o odor residual. A força da explosão fizera com que os bancos dos fundos tombassem. Lá na frente, próximo ao altar, os bancos haviam sido reduzidos a pedaços. Todos os vitrais haviam se quebrado e, por onde antes existiam janelas voltadas para o sul, raios de sol entravam para iluminar a nave.

Sem trocar uma palavra, Sam e o especialista separaram-se e caminharam para lados opostos da nave. O edifício seria revistado com maior cuidado depois. No momento, concentrariam os esforços na localização de outros explosivos. A morte de Marty Pickett ainda pesava na consciência de Sam, e ele não permitiria quê ninguém mais entrasse ali, enquanto não tivesse certeza de que o local era seguro.

Movendo-se paralelamente, os dois homens avançaram pela nave, os olhos alertas na procura por explosivos. Os destroços tornavam o trabalho lento e difícil. À medida que avançavam, os danos tornavam-se visivelmente maiores, e o odor de dinamite, mais forte. Estamos chegando perto, Sam pensou. A bomba fora plantada em algum lugar por ali...

Em frente ao altar, no ponto onde a primeira fila de bancos deveria estar, encontraram a cratera de quase dez metros de diâmetro e pouca profundidade. A explosão destruíra o carpete e a forração, mas mal arranhara o concreto abaixo. Crateras rasas eram características de  explosões de baixa velocidade, compatíveis com dinamite. Cuidariam disso mais tarde. Continuaram na busca. Da nave, partiram para os corredores, vestiários, banheiros, escritórios e até a sala onde as aulas de catecismo eram ministradas aos domingos. Nada de bombas. Saíram pela porta dos fundos e examinaram a parte externa do edifício. Nada.

Finalmente satisfeito, Sam voltou para onde Gillis o esperava.

— O edifício está limpo — informou-o. — Já determinou quem vai proceder com a revista?

Gillis apontou para os seis homens reunidos ao lado do caminhão. Eram dois patrulheiros e quatro técnicos do laboratório criminal, todos carregando sacos plásticos para o recolhimento de evidências.

— Estão apenas esperando a ordem para entrar.

— Mande o fotógrafo entrar primeiro. Então, diga-lhes para entrar. A cratera encontra-se diante do altar, à direita.

— Dinamite?

Sam assentiu.

— Se posso confiar no meu nariz — falou. — Vou conversar com as testemunhas. Onde está o padre?

— Acaba de ser levado para o pronto-socorro, com dores no peito. Sabe como é, todo esse estresse...

Sam suspirou irritado.

— Alguém falou com ele?

— Os patrulheiros tomaram seu depoimento.

— Certo. Acho que só me resta a noiva.

— Ela ainda está no carro-patrulha. Chama-se Nina Cormier.

Sam passou por baixo da fita amarela de isolamento, abriu caminho pela multidão de curiosos e avistou a silhueta num dos carros-patrulha. A mulher não se moveu quando ele se aproximou, parecendo mais um manequim de loja de noivas. Sam abaixou-se e bateu no vidro.

Ela virou-se, fitando-o com seus grandes olhos escuros. Apesar do rímel borrado, o rosto de feições suaves era muito bonito. Sam fez um sinal para que ela abaixasse o vidro. Ela obedeceu.

— Srta. Cormier? Sou o detetive Sam Navarro, polícia de Portland.

— Quero ir para casa — ela disse. — Já falei com tantos policiais. Por favor, não posso ir embora?

— Primeiro, preciso fazer algumas perguntas.

— Algumas?

— Não — ele admitiu. — Farei muitas.

Ela suspirou e, só então, Sam notou a fadiga em seu semblante.

— Se eu responder às suas pergunta, detetive, vai me deixar ir para casa?

— Prometo que sim.

— Costuma cumprir suas promessas?

— Sempre.

Ela baixou os olhos para as mãos cruzadas.

— Claro — murmurou. — Os homens e suas promessas.

— O que disse?

— Ah, esqueça.

Sam deu a volta no carro, abriu a porta e sentou-se ao volante. A mulher a seu lado não disse nada. Limitou-se a olhar para baixo, em silêncio resignado. Parecia prestes a ser engolida por todas aquelas camadas de cetim branco. O penteado começava a se desfazer e madeixas de cabelo negro caíam-lhe sobre os ombros. Não lembrava em nada a imagem de uma noiva feliz. Parecia chocada e profundamente sozinha.

Onde se metera o noivo?

Reprimindo a onda instintiva de simpatia, Sam apanhou o bloco de anotações e abriu-o numa página em branco.

— Pode me dar seu nome e endereço completos?

A resposta foi um sussurro.

— Nina Margaret Cormier, Ocean View Drive, trezentos e dezoito.

Sam anotou e voltou a fitá-la. Ela continuava a olhar para as mãos.

— Muito bem, srta. Cormier, por que não me conta exatamente o que aconteceu?

Ela só queria ir para casa. Estava sentada naquela carro-patrulha havia uma hora e meia, conversara com três policiais diferentes e respondera a todas as suas perguntas. Seu casamento terminara em fiasco, ela mal escapara com vida, e a multidão reunida na rua continuava a observá-la, como se ela fosse um espetáculo de circo.

E aquele homem, aquele policial com a sensibilidade de uma pedra, esperava que ela contasse tudo de novo!

— Srta. Cormier — ele suspirou. — Quanto antes terminarmos, mais cedo poderá ir embora. O que exatamente aconteceu?

— A igreja explodiu. Posso ir embora?

— O que quer dizer com "explodiu"?

— Ouvimos um estrondo. Vimos muita fumaça e estilhaços de vidro. Eu diria que foi uma explosão típica.

— Mencionou fumaça. Que cor tinha?

— O quê?

— A fumaça era negra, branca?

— Faz diferença?

— Responda, por favor.

Ela suspirou exasperada.

— Era branca, eu acho.

— Acha?

— Está bem, tenho certeza.

Nina virou-se e, pela primeira vez, olhou com atenção aquele rosto. Se ele estivesse sorrindo, se demonstrasse algum traço de simpatia e sensibilidade, aquele seria um rosto mais do que agradável de se olhar. Parecia estar chegando perto dos quarenta anos, com cabelos castanho-escuros que deveriam ter sido cortados umas duas semanas antes. Os traços eram bem delineados, os dentes perfeitos, e os olhos verdes de brilho profundo exibiam aquele toque penetrante dos galãs de filmes policiais. Infelizmente, aquilo não era um filme. Aquele era um policial honesto e fiel ao seu distintivo, e não era nem um pouco charmoso. Parecia estudá-la com distância e objetividade, tentando determinar se era mesmo confiável como testemunha.

Ela sustentou-lhe o olhar, pensando: "Aqui estou eu, a noiva rejeitada. Provavelmente, ele está se perguntando o que há de errado comigo, que defeitos terríveis eu possuo, para ter sido abandonada no altar".

— Tenho certeza de que a fumaça era branca, se é que isso faz alguma diferença — declarou tensa.

— Faz muita diferença. A cor branca indica a relativa ausência de carbono.

— Compreendo — ela mentiu.

— Houve chamas?

— Não.

— Sentiu algum odor específico?

— Está falando de gás?

— Qualquer coisa.

— Não me lembro, mas estava fora do edifício.

— Onde, exatamente?

— O reverendo Sullivan e eu estávamos sentados no carro dele, no estacionamento ao lado da igreja. Portanto, eu não poderia ter sentido cheiro de gás. Mesmo porque, gás natural é inodoro, não é?

— Pode ser difícil de se detectar.

— Então, o fato de eu não ter sentido cheiro algum não quer dizer nada.

— Viu alguém perto da igreja, antes da explosão?

— Apenas o reverendo Sullivan e alguns dos meus familiares. Mas todos foram embora bem antes.

— E quanto a estranhos? Alguém que você não conhecesse?

— Não havia ninguém lá dentro, quando tudo aconteceu.

— Estou falando de antes da explosão, srta. Cormier.

— Antes?

— Viu alguém que não deveria estar lá?

Ela o fitou por um momento. Sam devolveu-lhe o olhar com firmeza.

— Está dizendo... Está pensando...

Ele não disse nada, continuou fitando-a com seus olhos verdes e profundos.

— Não foi um vazamento de gás? — ela perguntou num sussurro.

— Não. Foi uma bomba.

Ela afundou no banco, chocada. Não fora um acidente.

— Srta. Cormier?

Sem dizer palavra, voltou a olhar para o detetive. Algo no modo como ele a observava, no olhar desprovido de qualquer emoção, assustou-a.

— Lamento ter de fazer a próxima pergunta — ele falou —, mas deve compreender que sou obrigado a seguir esta linha.

— Que... que pergunta?

— Conhece alguém que possa ter qualquer motivo para matá-la?

 

— Isso é loucura! — ela exclamou.

— Tenho de explorar a possibilidade.

— Que possibilidade? De que a bomba fosse para mim?

— Seu casamento estava marcado para duas horas. A bomba explodiu às duas e quarenta, próximo à primeira fila de bancos. Para mim, não há dúvida de que, a julgar pela força da explosão, você e todos os seus convidados teriam sido mortos. Ou, na melhor das hipóteses, gravemente mutilados. Estamos falando de uma bomba, srta. Cormier. Não foi um vazamento de gás, não foi um acidente. Foi uma bomba. E foi plantada ali para matar alguém. O que tenho de descobrir é quem era o alvo.

Ela não disse nada. As possibilidades eram horrorosas demais para serem sequer contempladas.

—Quem foi convidado para o casamento? — ele perguntou.

— Havia... havia...

— Você e o reverendo Sullivan. Quem mais?

— Robert, meu noivo. E minha irmã Wendy, e Jeremy Wall, o padrinho...

— Mais alguém?

— Meu pai me levaria ao altar. E eu teria a dama de honra e o garoto das alianças...

— Só estou interessado nos adultos. Vamos começar por você.

Ela sacudiu a cabeça atordoada.

— Eu não poderia ser o alvo.

— Por que não?

— É impossível.

— Como pode ter tanta certeza?

— Porque ninguém poderia ter motivos para me matar!

O grito agudo pegou-o de surpresa. Por um momento, Sam permaneceu em silêncio. Na rua, um policial uniformizado virou-se e observou o carro. Sam fez-lhe um sinal de que estava tudo bem e o homem voltou a posicionar-se de costas.

Nina apertava o cetim entre as mãos. Aquele homem era horrível, incapaz de qualquer demonstração de calor humano. Embora estivesse ficando quente dentro do carro, Nina estremeceu, sentindo-se congelar pela falta de emoção do homem sentado ao seu lado.

— Podemos explorar a questão um pouco mais? — ele perguntou.

Ela não respondeu.

— Tem algum ex-namorado, alguém que pudesse ficar infeliz com o seu casamento?

— Não.

— Nenhum ex-namorado?

— Não... não no último ano.

— Estava com o seu noivo havia um ano?

— Sim.

— Dê-me o nome e endereço completos dele, por favor.

— Robert David Bledsoe, médico, Ocean View Drive, trezentos e dezoito.

— O mesmo endereço?

— Morávamos juntos.

— Por que o casamento foi cancelado?

— Terá de perguntar a Robert.

— Então, a decisão foi dele?

— Como costumam dizer, ele me deixou no altar.

— Sabe o motivo?

Ela soltou uma risada amarga.

— Cheguei à triste conclusão, detetive, que a mente dos homens é um completo mistério para mim.

— Ele não lhe deu nenhum tipo de aviso?

— Foi tão inesperado quanto aquela... aquela bomba.

— A que horas o casamento foi cancelado?

— Por volta de uma e meia. Eu já estava na igreja, pronta. Jeremy, o padrinho de Robert, chegou com o bilhete. Robert não teve sequer a coragem de me dizer pessoalmente. — Nina sacudiu a cabeça com ar de desgosto.

— O que dizia o bilhete?

— Que ele precisava de mais tempo e que sairia da cidade por uns dias. Só isso.

— É possível que Robert tivesse algum motivo para...

— Não, não é possível! — Nina fitou-o diretamente nos olhos. — Está perguntando se Robert teve algo a ver com a bomba, não é?

— Tenho de ficar aberto a qualquer possibilidade, srta. Cormier.

— Robert não é capaz de cometer nenhum ato violento. Ele é um médico!

— Certo. Vamos deixar isso de lado, por ora. Vamos examinar outras possibilidades. Está empregada?

— Sou enfermeira no centro médico Maine.

— Em que departamento?

— Emergência.

— Algum problema no trabalho? Algum conflito com colegas?

— Não. Tenho bom relacionamento com todos.

— Alguma ameaça? De pacientes, por exemplo?

— Detetive — ela falou irritada —, não acha que eu saberia, se tivesse algum inimigo?

— Não necessariamente.

— Está fazendo o possível para que eu fique paranóica.

— Estou pedindo que examine sua vida pessoal com objetividade e distanciamento. Pense em todas as pessoas que poderiam não gostar de você.

Nina afundou no banco. Todas as pessoas que poderiam não gostar de mim. Pensou na família. A irmã mais velha, Wendy, a quem nunca fora muito chegada. A mãe, Lydia, casada com um milionário esnobe. O pai, George, atualmente ao lado da quarta esposa, um troféu loiro de corpo perfeito, que considerava os filhos do marido uma grande chateação. Era verdade que se tratava de uma grande e complicada família, mas também era certo que não havia nenhum assassino entre eles. Sacudiu a cabeça.

— Ninguém, detetive.

Sam suspirou e fechou o bloco.

— Tudo bem, srta. Cormier. Por enquanto, é tudo.

— Por enquanto?

— Provavelmente, terei outras perguntas depois que conversar com os outros. — Abriu a porta, saiu e voltou a fechá-la. Pelo vidro aberto, falou: — Se pensar em algo, qualquer coisa, telefone. — Rabiscou o bloco, arrancou a página e entregou-a a ela, com seu nome, detetive Samuel I. Navarro, e um número de telefone. — Esta é a minha linha particular. Também posso ser localizado vinte e quatro horas por dia, através das telefonistas da polícia.

— Então... posso ir embora?

— Sim.

Ele começou a afastar-se.

— Detetive Navarro?

Sam voltou a fitá-la. Nina não se dera conta do quanto ele era alto. Agora, vendo-o em pé ao lado do carro, perguntou-se como ele conseguira sentar-se ao volante.

— Lembrou-se de alguma coisa, srta. Cormier? — ele perguntou.

— Disse que posso ir embora.

— Certo.

— Não tenho um carro, nem um telefone à disposição. Pode ligar para minha mãe e pedir-lhe que venha me buscar?

— Sua mãe? — Ele olhou em volta, obviamente ansioso para livrar-se daquele embaraço. Então, com ar resignado, deu a volta no carro e abriu a porta de Nina. — Venha. Podemos ir no meu carro. Vou levá-la.

— Só pedi para dar um telefonema.

— Não será problema. — Sam estendeu a mão para ajudá-la. — Eu teria de ir à casa de sua mãe, de qualquer maneira.

— Por quê?

— Ela estava na igreja. Terei de fazer-lhe algumas perguntas. Talvez, eu possa matar dois coelhos com um só tiro.

Ele não poderia ter escolhido palavras mais simpáticas, pensou Nina.

Ignorando a mão que Sam lhe estendera, Nina saiu do carro com dificuldade, uma vez que a cauda do vestido havia se enroscado em suas pernas. Quando, finalmente, viu-se de pé, fora do automóvel, deparou com o olhar divertido do detetive. Juntando o amontoado de cetim branco nos braços, empinou o queixo e passou por ele.

— Srta. Cormier?

— O que foi? — ela inquiriu por cima do ombro.

— Meu carro está do outro lado.

Ela parou, suas faces ardiam. O sr. detetive sorria.

— É o Taurus azul — ele apontou. — A porta está aberta. Estarei lá em um instante. — Virou-se e foi falar com os policiais reunidos diante da igreja.

Nina aproximou-se do Taurus. Olhou com desgosto pela janela. Teria de ir naquele carro? Naquela bagunça? Abriu a porta. Um copo de papel caiu no asfalto. No chão do carro, diante do banco do passageiro, havia um saquinho do McDonald's amassado e mais copos de papel, além de uma edição de dois dias atrás do Portland Press Herald. O banco de trás encontrava-se coberto por outros jornais, pastas de arquivo, uma maleta, um paletó e... uma luva de beisebol.

Retirou a bagunça do banco do passageiro, jogou-a no banco de trás e sentou-se, perguntando-se se o banco estaria limpo.

O detetive "pedra de gelo" dirigia-se para o carro. Parecia sentir calor. As mangas da camisa estavam arregaçadas, a gravata, frouxa. Enquanto ele tentava abandonar a cena da explosão, policiais seguravam-no pelo braço, fazendo perguntas.

Finalmente, entrou no carro e fechou a porta.

— Onde mora a sua mãe? — perguntou.

— Cape Elizabeth. Escute, sei que está muito ocupado e...

— Meu parceiro cuidará de tudo por aqui. Deixarei você na casa de sua mãe, conversarei com ela e, então, irei ao hospital para falar com o reverendo Sullivan.

— Ótimo. Assim, você poderá matar três coelhos com um só tiro.

— Acredito na eficiência.

Ficaram em silêncio. Nina nem sequer tentou conversar amistosamente, pois ali estava algo que nem passaria pela cabeça daquele homem. Limitou-se a olhar pela janela, deixando que seus pensamentos morosos se ocupassem da recepção e de todos aqueles canapês e sanduíches à espera de convidados que jamais chegariam. Teria de ligar para o bufê e pedir que entregassem toda a comida a algum albergue noturno, antes que tudo se estragasse. E, ainda, tinha de pensar nos presentes, dúzias deles, empilhados em casa. Correção: na casa de Robert. Aquela jamais fora realmente a sua casa. Apenas vivera lá, como uma inquilina. Fora dela a idéia de pagar metade da prestação da hipoteca. Robert costumava apontar o quanto respeitava a sua independência, sua insistência na preservação da própria identidade. Em qualquer boa relação, ele dizia, privilégios e responsabilidades deveriam ser partilhados igualmente. E fora assim que eles haviam se relacionado desde o início. Ele pagara a conta, no primeiro encontro. Ela, no segundo. Na verdade, Nina insistira nisso, a fim de mostrar a ele que era mesmo uma mulher independente, dona de si.

Agora, tudo parecia uma grande tolice.

Jamais fora dona de si, pensou. Estivera sempre pensando, esperando ansiosa pelo dia em que se tornaria a sra. Robert Bledsoe. Era o que a família esperava dela, o que sua mãe sonhara para ela: um bom casamento. Eles jamais haviam compreendido sua escolha pela carreira de enfermagem, senão como um meio de encontrar um bom marido. Um médico. E, sim, ela o encontrara.

E tudo o que consegui foi um amontoado de presentes para devolver, um vestido de noiva que não poderei devolver, e um dia que nunca conseguirei esquecer... ou superar.

Era a humilhação que mais a perturbava. Não era o fato de Robert ter fugido. Nem mesmo o fato de ela quase ter morrido na explosão da igreja. Na verdade, a explosão parecia tão remota quanto um melodrama de televisão. Tão remota quanto o homem sentado a seu lado.

— Está lidando com tudo isto muito bem — ele disse.

Surpresa ao ouvir a voz do detetive "pedra de gelo", ela o encarou.

— O que disse?

— Está enfrentando a situação com muita calma. Mais do que seria de esperar.

— Não sei de que outra maneira eu poderia me comportar.

— Depois de uma explosão a bomba, uma crise histérica não seria de surpreender.

— Sou enfermeira no setor de emergência de um pronto-socorro, detetive. Não costumo ter crises histéricas.

— Ainda assim, sofreu um choque muito grande, hoje. É possível que uma explosão emocional ainda esteja por vir.

— Está dizendo que esta é a calmaria que antecede, uma tempestade?

— Talvez. — Sam olhou para ela, fitando-a nos olhos. Com a mesma rapidez, voltou a concentrar-se na estrada e o contato se desfez. — Por que sua família não estava com você, na igreja?

— Mandei-os embora.

— Seria de esperar que você os quisesse por perto, para lhe dar apoio.

Nina voltou a olhar pela janela.

— Minha família não é exatamente o tipo que dá grande apoio. Além do mais, eu... precisava ficar sozinha. Quando um animal se fere, detetive, procura a solidão para lamber as feridas. Era o que eu precisava fazer... — parou de falar, lutando contra as lágrimas repentinas que embaçaram seus olhos.

— Sei que não se sente disposta a falar nisso agora, mas talvez possa responder uma pergunta. Consegue pensar em outra pessoa que pudesse ser o alvo? O reverendo Sullivan, por exemplo?

Ela sacudiu a cabeça.

— Ele seria a última pessoa que alguém desejaria ferir.

— Foi a igreja dele que explodiu. E ele estaria muito próximo ao centro da explosão.

— Reverendo Sullivan é o homem mais doce do mundo! No inverno, sai pelas ruas distribuindo cobertores. E está sempre conseguindo mais camas para o abrigo. Na emergência, quando deparamos um paciente que não tem para onde ir, é para ele que ligamos.

— Não estou questionando o caráter dele, mas sim a possibilidade de inimigos.

— Ele não tem inimigos — Nina afirmou convicta.

— E quanto ao resto dos convidados? Algum deles poderia ser o alvo?

— Não posso imaginar...

— O padrinho, Jeremy Wall. Fale-me sobre ele.

— Jeremy? Não há muito a dizer. Estudou medicina com Robert. Também trabalha no Maine. É radiologista.

— Casado?

— Não. É um solteirão convicto.

— E sua irmã, Wendy? Era a dama de honra?

— Sim. Ela é uma feliz dona de casa.

— Algum inimigo?

— Não, a menos que alguém se ressinta da perfeição.

— O que quer dizer?

— Digamos que ela seja a filha perfeita, o sonho de qualquer pai ou mãe.

— Ao contrário de você?

Nina deu de ombros.

— Como foi que adivinhou?

— Muito bem. Isso nos deixa um único personagem principal. Aquele que, por coincidência, decidiu não aparecer.

Nina fixou os olhos no pára-brisa. O que poderia dizer sobre Robert, quando ela mesma encontrava-se na mais completa escuridão?

Para seu alívio, Sam não insistiu no interrogatório. Talvez, ele houvesse se dado conta do quanto já a havia pressionado, do quanto ela estava perto de seu limite de controle. No trajeto pela estrada sinuosa que levava a Cape Elizabeth, Nina sentiu a fachada calma e controlada finalmente começar a ruir. O detetive não a avisara da possível explosão emocional? A dor começava a anular os efeitos da anestesia inicial. Ela havia se controlado bem, havia enfrentado dois choques devastadores com pouco mais que algumas lágrimas. Agora, suas mãos tremiam e, cada vez que respirava, Nina tinha de lutar contra os soluços.

Quando, finalmente, estacionaram diante da casa de sua mãe, Nina encontrava-se a um passo do descontrole total. Não esperou que Sam desse a volta no carro e abrisse sua porta. Saiu do carro por si mesma, desenroscando-se do vestido com gestos desajeitados. Quando Sam alcançou os degraus da entrada, Nina apoiava-se desesperada na campainha, rezando para que a mãe a deixasse entrar, antes que ela desmoronasse de vez.

A porta se abriu. Lydia, ainda elegantemente penteada e vestida, fitou a filha desarrumada.

— Nina? Ah, minha pobre Nina — murmurou, abrindo os braços.

Num impulso, Nina atirou-se automaticamente nos braços da mãe. Estava tão faminta de carinho que não se deu conta imediatamente de que Lydia encolhera-se, a fim de não amarrotar o vestido de seda verde. Porém, registrou a primeira pergunta da mãe:

— Teve notícias de Robert?

Nina ficou tensa. Por favor, não faça isso comigo!, pensou.

— Tenho certeza de que tudo se resolverá — Lydia afirmou. — Se você se sentar com Robert e tiver uma conversa honesta sobre o que o está incomodando...

Nina afastou-se.

— Não vou me sentar com Robert — falou. — E, quanto a uma conversa honesta, acho que nunca tivemos uma.

— Querida, é natural que esteja zangada...

— E você não está zangada, mamãe? Não vai se zangar por mim?

— Bem, sim. Mas não acho que deva esquecer Robert, só porque...

O som repentino de um homem limpando a garganta, fez Lydia erguer os olhos para Sam, que estava do lado de fora da porta.

— Sou o detetive Navarro, polícia de Portland — ele se apresentou. — É a sra. Cormier?

— Meu nome é Warrenton, agora — Lydia respondeu. — O que está fazendo aqui? O que a polícia tem a ver com isto?

— Houve um incidente na igreja, madame. Estamos investigando.

— Incidente?

— A igreja foi bombardeada.

Lydia fitou-o chocada.

— Está brincando.

— Estou falando sério. A bomba explodiu às duas e quarenta e cinco. Felizmente, ninguém se feriu. Mas, se o casamento houvesse se realizado...

Lydia ficou mortalmente pálida. Recuou um passo, incapaz de falar.

— Sra. Warrenton — Sam falou —, preciso lhe fazer algumas perguntas.

Nina não ficou para ouvir. Já ouvira perguntas demais. Subiu para o quarto de hóspedes, onde deixara a mala que fizera para a viagem à ilha de St. John. Dentro dela estavam seus trajes de banho, vestidos de verão e bronzeador. Tudo o que ela achara que precisaria para passar uma semana no paraíso.

Tirou o vestido de noiva e, com cuidado, colocou-o sobre a poltrona, onde ele permaneceu branco e sem vida. Inútil. Olhou para o conteúdo da mala, para os sonhos desfeitos, arrumados com cuidado. Foi então que os últimos vestígios de controle ruíram. Vestindo apenas as roupas de baixo, sentou-se na cama. Sozinha, em silêncio, finalmente permitiu que a tristeza a invadisse.

E chorou.

Lydia Warrenton não se parecia em nada com a filha. Sam percebera isso no momento em que ela abrira a porta. Impecavelmente maquilada e penteada, a silhueta valorizada pelo vestido verde, a imagem de Lydia não lembrava em nada a de mãe da noiva. A semelhança física com Nina era evidente. Ambas possuíam cabelos negros e grandes olhos escuros. Porém, enquanto Nina exibia um ar de suavidade e vulnerabilidade, Lydia parecia ser feita de aço, como se tivesse uma aura protetora, capaz de destruir quem quer que tentasse aproximar-se. E era muito rica, a julgar pela sala de sua casa.

A casa era espetacular. Sam notara o Mercedes estacionado na garagem, quando chegara. Agora, na sala de estar, deparava-se com uma vista do mar que devia valer um milhão de dólares. Lydia sentou-se no sofá e fez um sinal para que ele ocupasse uma das poltronas. O tecido delicado apresentava-se tão limpo que Sam teve o impulso de inspecionar sua roupa, antes de sentar-se.

— Uma bomba — Lydia murmurou, sacudindo a cabeça. — Não posso acreditar. Quem bombardearia uma igreja?

— Não é a primeira bomba que explode na cidade.

— Está falando do armazém, na semana passada? Li nos jornais que o episódio estaria ligado ao crime organizado.

— Foi apenas uma teoria.

— Mas, hoje, foi uma igreja. Como poderiam as duas explosões ter alguma ligação?

— Também não encontramos ligação, sra. Warrenton. Estamos tentando descobrir uma pista. Talvez possa nos ajudar. Conhece alguém que pudesse ter algum motivo para explodir a igreja do Bom Pastor?

— Não sei nada sobre aquela igreja, pois freqüento uma outra. Foi escolha de minha filha casar-se lá.

— Parece que a senhora não aprovou tal escolha.

Ela deu de ombros.

— Nina tem seu jeito estranho de fazer as coisas. Eu teria escolhido uma igreja mais luxuosa, além de uma lista de convidados mais longa. Mas Nina é assim. Queria uma cerimônia simples.

Simples não era uma palavra para descrever o estilo de Lydia Warrenton, Sam pensou, olhando em volta.

— Respondendo à sua pergunta, detetive, não conheço nenhuma razão para que a igreja do Bom Pastor fosse bombardeada.

— A que horas deixou a igreja?

— Pouco depois das duas, quando ficou evidente que não havia nada que eu pudesse fazer por Nina.

— Enquanto esperava, percebeu a presença de alguém que não deveria estar lá?

— Só as pessoas esperadas: o florista, o padre, os convidados.

— Nomes?

— Minha filha Wendy, o padrinho, cujo nome não me recordo, meu ex-marido, George, e sua última esposa.

— Última?

— Daniella. É a quarta.

— E quanto a seu marido?

— Edward chegaria mais tarde. Seu vôo deixou Chicago com duas horas de atraso.

— Então, ele ainda nem se encontrava na cidade?

— Não. Mas planejava comparecer à recepção.

Mais uma vez, Sam olhou em volta, apreciando as obras de arte e a vista do mar.

— O que faz o seu marido, sra. Warrenton?

— É presidente da Ridley-Warrenton.

— A companhia madeireira?

— Exatamente.

Aquilo explicava a mansão e o Mercedes. A Ridley-Warrenton era uma das maiores proprietárias de terras no Estado de Maine. Seus produtos, desde madeira ao mais fino papel, eram exportados para todo o mundo.

A pergunta seguinte era inevitável:

— Sra. Warrenton — Sam começou —, seu marido tem algum inimigo?

A resposta foi surpreendente. Lydia riu.

— Qualquer pessoa com muito dinheiro tem inimigos, detetive.

— Conhece algum em particular?

— Não. Terá de perguntar a Edward.

— É o que farei. — Sam levantou-se. — Assim que seu marido chegar, peca-lhe para me telefonar.

— Meu marido é um homem ocupado.

— Eu também.

Com um aceno de cabeça, Sam deixou a casa.

Lá fora, Sam sentou-se em seu Taurus e observou a mansão por alguns momentos. Era, sem dúvida, a casa mais impressionante que já vira, embora não estivesse acostumado a freqüentar mansões. Samuel Navarro era filho de um policial de Boston, cujo pai também fora policial em Boston. Aos doze anos, logo após a morte do pai, Sam mudara-se com a mãe para Portland. A vida nunca fora fácil para eles, um fato que sua mãe sempre aceitara com resignação.

Sam não fora tão resignado. Sua adolescência consistira em cinco longos anos de rebelião: brigas na escola, cigarros no banheiro, passeios com os jovens rebeldes de Monument Square. Não visitara nenhuma mansão na infância.

Deu a partida no carro e afastou-se. A investigação estava apenas começando. Ele e Gillis teriam uma longa noite pela frente. Ainda teriam de interrogar o padre, o florista; o padrinho, a dama de honra e o noivo.

Acima de tudo, o noivo.

O dr. Robert Bledsoe, afinal de contas, fora quem cancelara o casamento. Sua decisão, fosse por coincidência, fosse por algum motivo mais sério, salvara a vida de muita gente. Sam considerou tal sorte grande demais. Teria Bledsoe recebido algum aviso? Seria ele o alvo?

Teria sido essa a verdadeira razão que o levara a abandonar a noiva no altar?

A imagem de Nina Cormier voltou à mente de Sam. Aquele rosto não seria esquecido com facilidade. Havia mais que os grandes olhos castanhos e a boca bem desenhada. Fora o orgulho que mais o impressionara. Nina fora humilhada, abandonada e quase morrera na explosão. Ainda assim, mantivera a cabeça erguida e fora capaz de enfrentá-lo com resposta ácidas. Sam achara tal fato irritante e divertido ao mesmo tempo. Mas tinha de admirá-la. Para uma mulher que, provavelmente, crescera acostumada a receber tudo numa bandeja de prata, ela era uma sobrevivente.

Naquela tarde, haviam-lhe servido um prato bastante indigesto. E ela o aceitara sem choramingos. Uma mulher surpreendente.

Sam mal podia esperar para ouvir o que o dr. Robert Bledsoe tinha a dizer sobre ela.

 

Já passava das cinco horas, quando Nina finalmente saiu do quarto de hóspedes da casa de sua mãe. Calma, composta, ela agora vestia jeans e camiseta. Deixara o vestido de noiva no armário. Não queria voltar a vê-lo. As más lembranças pareciam haver colado ao tecido branco. Encontrou a mãe na sala, segurando um copo de cristal. O detetive Navarro fora embora. Lydia levou o copo aos lábios e, pelo tilintar dos cubos de gelo, Nina percebeu que suas mãos tremiam.

— Mamãe? — chamou.

Lydia sobressaltou-se.

— Você me assustou.

— Acho que vou embora. Você está bem?

— Claro que estou — Lydia respondeu e, como se houvesse se esquecido de perguntar antes, inquiriu: — E você?

— Ficarei bem. Só preciso de algum tempo... longe de Robert.

Mãe e filha fitaram-se por um momento, sem dizer nada, sem saber o que dizer. As coisas sempre haviam sido assim entre elas. Nina crescera faminta de afeto. A mãe sempre estivera preocupada demais consigo mesma para dedicar-se a ela. E ali estava o resultado: duas mulheres que mal se conheciam ou se compreendiam. A distância entre as duas poderia ser medida não em anos, mas em universos.

Nina observou a mãe bebericar seu drinque.

— Como foi sua conversa com o detetive? — perguntou.

Lydia deu de ombros.

— Ele fez perguntas, eu respondi.

— Ele disse alguma coisa sobre quem poderia ter feito aquilo?

— Não. É mais fechado que uma ostra. Nem um pouco charmoso.

Nina não poderia discordar. Já vira cubos de gelo menos frios que Sam Navarro. Mas ele era pago para fazer seu trabalho, não para ser simpático e charmoso.

— Fique para jantar — Lydia convidou-a. — Pedirei à cozinheira...

— Tudo bem, mamãe. Obrigada, mas não posso ficar.

— Por causa de Edward, não é?

— Não.

— É por isso que você quase nunca aparece. Por causa dele. Gostaria que não fosse tão dura com ele. Edward tem sido muito bom para mim, generoso. Tem de admitir, ao menos, isso.

Ao pensar no padrasto, "generoso" não foi a palavra que ocorreu a Nina. "Frio" e "dominador" seriam adjetivos mais adequados. Mas ela não queria pensar em Edward Warrenton.

Virou-se e encaminhou-se para a porta.

— Preciso ir para casa e fazer as malas, uma vez que está evidente que terei de me mudar.

— Não há possibilidade de você e Robert voltarem a se entender?

— Depois do que houve hoje? — Nina sacudiu a cabeça.

— E se tentar? Talvez, seja algo que você possa mudar...

— Mamãe, por favor.

Lydia afundou-se no sofá.

— De qualquer maneira, você está convidada para jantar conosco. Se mudar de idéia...

— Um outro dia, quem sabe. Adeus, mamãe.

Nina não ouviu resposta. Saiu para o jardim, onde seu Honda estava estacionado. Deixara-o ali pela manhã, quando se preparara para o casamento. Lydia a fitara com um sorriso de orgulho, quando as duas sentaram-se juntas na limusine. Aquela era a maneira como uma mãe deveria olhar para sua filha, como Lydia nunca a fitara antes.

E, provavelmente, jamais voltaria a fazer.

O que se passara entre elas no caminho para a igreja, os sorrisos, a alegria, pareciam ter acontecido havia anos. Nina deu a partida no Honda e deixou a casa da mãe.

Dirigiu-se para Hunts Point, para a casa de Robert. O que fora a sua casa, também. E se ele não tivesse mesmo saído da cidade? E se estivesse em casa? O que diriam um ao outro?

Que tal, "adeus"?

Apertou o volante e pensou nas coisas que gostaria de dizer a ele, como se sentia usada e traída. Um ano inteiro insistia em voltar à sua mente. Um ano inteiro de sua vida.

Depois de passar por Smugglers Cove, olhou para o retrovisor e notou o Ford preto. Era o mesmo que vira pouco antes, perto de Delano Park. Em outras circunstâncias, não teria dado atenção ao fato de um carro segui-la por uma distância tão longa. Mas, naquele dia, depois das possibilidades mencionadas pelo detetive Navarro...

Tentou livrar-se da sensação de desconforto e seguiu seu caminho. Virou à direita na Ocean House Drive.

O Ford fez o mesmo. Não havia motivo para alarmar-se. Afinal, a Ocean House Drive era uma das principais avenidas da região. Qualquer outro motorista poderia ter motivos para virar ali.

Apenas para diminuir a ansiedade, Nina decidiu dobrar à esquerda, no sentido de Peabbles Point. Tratava-se de uma estrada pouco movimentada. Certamente, o Ford deixaria de segui-la.

O Ford a seguiu e virou em seguida.

Agora, Nina começava a sentir medo de verdade.

Apertou o acelerador. O Honda ganhou velocidade. A oitenta quilômetros por hora, sabia que estava fazendo as curvas depressa demais, mas estava decidida a distanciar-se do Ford. Porém, não estava conseguindo realizar seu intento. O outro motorista também aumentara a velocidade e, na verdade, encontrava-se mais próximo.

Um instante depois, o Ford encontrava-se bem a seu lado, fazendo as curvas junto com ela.

Ele está tentando me fazer sair da estrada, Nina pensou.

Tentou vê-lo, mas só pôde divisar-lhe a silhueta. Por que estava fazendo aquilo com ela?

De repente, o Ford arremeteu contra o Honda, quase fazendo o carro de Nina girar sem controle. Ela lutou para mantê-lo na estrada.

Segurando o volante com firmeza, Nina pisou no freio.

O Ford disparou à frente, mas só por um momento. Logo, estava de volta a seu lado, colidindo com a lateral do Honda.

Nina voltou a olhar para o motorista e surpreendeu-se ao ver que o vidro fora abaixado. Conseguiu perceber que se tratava de um homem de cabelos escuros e óculos de sol.

Ao voltar a atenção para a estrada, Nina avistou outro carro, que acabara de sair da curva adiante e vinha na direção do Ford.

Nina ouviu o ruído dos pneus no asfalto, sentiu a colisão violenta, bem como os estilhaços do vidro atingindo seu rosto. Então, viu-se saindo da estrada.

Não perdeu a consciência em momento algum, mesmo enquanto o Honda capotava pelo barranco e parava de encontro a uma grande árvore.

Embora continuasse consciente, Nina não foi capaz de mover-se. Estava chocada demais para sentir medo ou dor. Estava apenas surpresa por continuar viva.

Gradualmente, a sensação de desconforto fez-se notar. Sentiu dores no ombro e no peito. O cinto de segurança, que salvara sua vida, ferira suas costelas.

Com um gemido, soltou o cinto e caiu sobre o volante.

— Ei, moça!

Nina virou-se e deparou com um rosto ansioso a fitá-la. Tratava-se de um senhor de idade. Ele abriu a porta.

— Você está bem? — perguntou.

— Eu... acho que sim.

— Vou chamar uma ambulância.

— Não, estou bem.

Nina respirou fundo e sentiu o peito dolorido. Mas aquele parecia ser o único problema. Com a ajuda do senhor mais velho, saiu do carro. Embora estivesse atordoada, conseguiu ficar de pé.

Seu carro estava destruído. Olhou para a estrada.

— Havia um outro carro... preto...

— Está falando daquele maluco que ultrapassou você?

— Onde está ele?

— Fugiu. Devia estar bêbado. É melhor você registrar queixa contra ele.

Bêbado? Não era o que Nina pensava. Trêmula, Nina voltou a olhar para estrada. Não havia o menor sinal do Ford preto.

 

Gordon Gillis ergueu os olhos de seu hambúrguer com fritas.

— Algo interessante? — perguntou.

— Nada — Sam respondeu, pendurando o paletó no cabide e sentando-se atrás de sua mesa.

— Como vai o padre?

— Bem, até agora. Os médicos duvidam que se trate de um ataque cardíaco, mas vão mantê-lo em observação por mais um dia.

— Ele não sabe nada sobre a bomba?

— Diz que não tem inimigos. E todas as pessoas com quem conversei concordam que ele é um santo. E você, conseguiu alguma coisa?

Gillis pôs-se a falar enquanto comia:

— Interroguei o padrinho, a dama de honra e o florista. Ninguém viu coisa alguma.

— E quanto ao zelador da igreja?

— Ainda estamos tentando localizá-lo. A esposa disse que ele costuma chegar em casa por volta das seis. Mandarei Cooley conversar com ele.

— Segundo o reverendo Sullivan, o zelador abre a porta da igreja às sete horas da manhã. E ela permanece aberta o dia todo. Qualquer um poderia ter entrado e deixado um pacote.

— A que horas ele fechou a porta na noite anterior? — Gillis perguntou.

— Geralmente, quem fecha a igreja é a secretária. Ela trabalha meio período. Costuma fechar às seis horas. Infelizmente, viajou em férias hoje de manhã. Ainda estamos tentando... — Sam parou de falar.

O telefone de Gillis começara a tocar. Ele atendeu:

— Sim, o que há?

Sam observou o parceiro rabiscar algo num bloco e estendê-lo para ele. Trundy Point Road era o que estava escrito. Um momento depois, Gillis falou:

— Iremos agora mesmo. — E desligou com cenho franzido.

— O que foi? — Sam inquiriu.

— Acabamos de receber um chamado de uma das unidades móveis. Trata-se da noiva... a que estava na igreja, hoje.

— Nina Cormier?

— O carro dela capotou para fora da estrada.

Sam empertigou-se alarmado.

— Ela está bem?

— Sim. Eles não teriam nos chamado, se ela não houvesse insistido muito para isso.

— Por um acidente? Por quê?

— Ela diz que não foi acidente. Diz que alguém tentou jogá-la para fora da estrada.

 

Suas costelas doíam, bem como seu ombro. Além disso, seu rosto exibia cortes provocados pelos estilhaços de vidro. Sua mente, porém, apresentava-se clara o bastante para Nina reconhecer o homem que saía do familiar Tau-rus azul que acabara de chegar ao local do acidente. Era Sam Navarro. Ele nem sequer olhou para ela.

No lusco-fusco do anoitecer, Nina observou-o conversar com um policial. Após alguns instantes, os dois desceram pelo barranco, até o que restara do carro dela. Enquanto Sam dava a volta no Honda amassado, Nina pensou num gato pronto para o ataque. Ele se movia com facilidade e graça felinas, os olhos focalizados em absoluta concentração. A certa altura, ele abaixou e examinou algo no chão. Então, voltou a erguer-se e inspecionou a janela do motorista. Ou melhor, o que restara dela. Pressionou o vidro estilhaçado, abriu a porta e entrou no carro. O que estaria procurando? Por um longo momento, ele ficou lá dentro, parecendo verificar cada centímetro do interior do automóvel. Era bom que não houvesse nada ali dentro que ela desejasse esconder de alguém, Nina pensou. Não tinha dúvidas de que o cuidadoso detetive Navarro seria capaz de detectar contrabando a quilômetros de distância.

Finalmente, ele saiu do carro, os cabelos despenteados e a calça amarrotada. Voltou a falar com o policial e, então, virou-se na direção dela.

E começou a aproximar-se.

No mesmo instante, o pulso de Nina acelerou. Alguma coisa naquele homem a fascinava e assustava. Era mais que sua presença física, que não deixava de ser bastante impressionante. Havia, também, o modo como ele olhava para ela, com aquele olhar completamente neutro. Aquela inescrutabilidade a irritava. A maioria dos homens a considerava atraente e sempre tentavam ser amigáveis.

Aquele homem parecia considerá-la ninguém mais que uma potencial vítima de homicídio. Merecia seu interesse intelectual e... nada mais.

Nina endireitou as costas e sustentou-lhe o olhar com firmeza, à medida que ele se aproximava.

— Você está bem? — ele perguntou.

— Sofri algumas escoriações, alguns cortes, mas foi só isso.

— Tem certeza de que não quer ir até o pronto-socorro? Posso levá-la.

— Estou bem. Sou enfermeira e acho que saberia se tivesse um problema mais sério.

— Dizem que médicos e enfermeiras são os piores pacientes. Vou levá-la ao hospital, por via das dúvidas.

Ela soltou uma risada incrédula.

— Isso soou como uma ordem!

— Para falar a verdade, foi mesmo.

— Detetive, eu realmente acho que saberia se...

Nina deu-se conta de que conversava com as costas dele. Ele tivera o desplante de dar-lhe as costas! Já se encaminhava para o carro.

— Detetive! — Nina chamou.

— Pois não? — ele respondeu por cima do ombro.

— Eu não... Isto não... — ela suspirou. — Ah, esqueça! — resmungou e seguiu-o.

De nada adiantaria discutir com aquele homem. Ele simplesmente lhe daria as costas de novo. Ao sentar-se no banco do passageiro, Nina sentiu uma forte pontada no peito. Talvez ele estivesse certo. Ela sabia que poderia demorar horas, ou até mesmo dias, para ferimentos internos se manifestarem. Por mais que detestasse admitir, o sr. Personalidade provavelmente tinha razão com relação à necessidade de levá-la ao pronto-socorro.

Nina sentia desconforto demais para conversar, a caminho do hospital. Foi Sam quem quebrou o silêncio.

— E então? Pode me contar o que aconteceu?

— Já fiz meu depoimento. Está tudo no relatório da polícia. Alguém me jogou para fora da estrada.

— Sim, um Ford preto, dirigido por um homem, com placa de Maine.

— Então, já sabe de todos os detalhes.

— A testemunha achou que se tratava de um bêbado que tentou ultrapassar você na curva. Não achou que tenha sido deliberado.

Ela sacudiu a cabeça.

— Já não sei mais o que pensar.

— Quando viu o Ford pela primeira vez?

— Perto de Smugglers Cove, eu acho. Percebi que parecia estar me seguindo.

— Parecia ser dirigido por um bêbado?

— Não.

— Poderia estar seguindo você há mais tempo?

— Não tenho certeza.

— E possível que estivesse perto da casa de sua mãe, quando você saiu de lá?

Nina observou-o. Sam olhava fixamente para a frente.

Suas perguntas haviam tomado um rumo totalmente diferente. No início, ele soara displicente e até mesmo cético. Porém, a última pergunta indicava que ele estava Considerando uma possibilidade diferente de um motorista bêbado. Uma possibilidade que a deixou gelada.

— Está sugerindo que ele estivesse esperando por mim?

— Estou apenas explorando as possibilidades.

— O outro policial achou que era mesmo um motorista bêbado.

— Ele tem a opinião dele.

— E qual é a sua opinião?

Ele não respondeu. Limitou-se a continuar dirigindo no seu modo calmo, que a enlouquecia. Nina perguntou-se se ele era capaz de mostrar algum tipo de emoção. Gostaria de vê-lo reagir, uma vez ao menos.

— Detetive Navarro — ela declarou —, eu pago impostos e, portanto, o seu salário. Acho que mereço algo mais que respostas lacônicas.

— Ah! A velha conversa do cidadão honesto, pagador de impostos.

— Vou usar qualquer conversa que precise, para arrancar uma resposta!

— Não estou certo de que deseja ouvir minha resposta.

— Por que não desejaria?

— Fiz uma breve inspeção do seu carro. O que encontrei confirma boa parte do que você disse. Há tinta preta na lateral esquerda, indicando que o carro que bateu no seu era mesmo preto.

— O que prova que não sou daltônica.

— Também descobri que a janela do motorista estava quebrada. O vidro estilhaçou seguindo um modelo de estrela. Não é o que eu esperaria de um capotamento.

— A janela já estava quebrada, quando saí da estrada.

— Como sabe?

— Lembro-me de ter sentido os estilhaços batendo contra meu rosto. Foi assim que consegui estes cortes. Foi antes de meu carro capotar.

— Tem certeza? — Sam fitou-a. — Absoluta?

— Claro. Faz alguma diferença?

Ele soltou o ar devagar.

— Faz muita diferença. E explica o que encontrei no interior de seu carro.

— O que exatamente você encontrou? — Nina perguntou perplexa.

— Estava na porta do passageiro, a que ficou prensada contra a árvore. A lataria estava muito amassada. Foi por isso que os outros policiais não perceberam. Mas eu encontrei o que procurava, pois sabia que estaria por ali.

— Encontrou o quê?

— Um buraco de bala.

Nina sentiu o sangue gelar em suas veias. Não era capaz de falar, ou mover-se. Permaneceu sentada em silêncio, chocada pelo impacto das palavras de Sam.

Ele continuou a falar em seu tom direto e calmo. Ele não é humano, pensou Nina. É uma máquina. Um robô.

— A bala deve ter atravessado o vidro, pouco atrás da direção da sua cabeça. Foi por isso que o vidro estilhaçou. Então, foi alojar-se na forração da porta do passageiro, onde ainda deve estar. Será retirada. Ainda hoje, teremos a confirmação do calibre e, possivelmente, do tipo de arma utilizado. O que ainda não sei... o que você terá de me dizer... é porque alguém está tentando matá-la.

Nina sacudiu a cabeça.

— Só pode ser um engano.

— Esse cara teve um grande trabalho. Bombardeou uma igreja, seguiu você, atirou em você. Não pode ser um engano.

— Tem de ser!

— Pense em todas as pessoas possíveis, que pudessem querer causar-lhe mal. Pense, Nina.

— Já lhe disse. Não tenho inimigos!

— Deve ter.

— Não tenho! Não... — ela soluçou e escondeu o rosto nas mãos. Então, murmurou: — Não tenho inimigos.

Após um longo momento de silêncio, Sam falou com voz suave.

— Sinto muito. Sei o quanto é difícil aceitar...

— Não, você não sabe! — ela ergueu a cabeça para fitá-lo. — Não faz idéia, detetive. Sempre acreditei que as pessoas gostavam de mim. Ou, ao menos, que não me odiavam. Agora, está me dizendo que existe alguém querendo... — Desviou os olhos para a estrada.

Sam deixou o silêncio estender-se. Sabia que Nina encontrava-se em condição frágil demais para mais perguntas. Além disso, suspeitava que ela estivesse sofrendo mais, física e emocionalmente, do que admitia. A julgar pelo estado do carro, aquele corpo delicado sofrerá um golpe terrível, poucas horas antes.

No pronto-socorro, Sam aguardou na sala de espera, enquanto Nina era examinada pelo médico de plantão. Depois de algumas radiografias, ela saiu, parecendo ainda mais pálida do que antes. A realidade começava a se impor, pensou Sam. O perigo era verdadeiro e ela já não podia negá-lo.

De volta ao carro de Sam, Nina sentou-se em silêncio. Ele a fitava de vez em quando, esperando por uma crise de choro, alguma reação histérica. Mas ela continuou quieta, deixando-o preocupado. Aquilo não era saudável.

— Não deveria ficar sozinha, esta noite — ele falou. — Tem algum lugar para onde possa ir?

A resposta foi um leve dar de ombros.

— A casa de sua mãe? — Sam sugeriu. — Irei com você até sua casa, para que faça a mala e...

— Não. Não quero ir para a casa de minha mãe — Nina murmurou.

— Por que não?

— Não quero... criar uma situação... embaraçosa para ela.

— Para ela? Desculpe perguntar, mas não é para isso que servem as mães? Para nos apanhar no colo, quando precisamos?

— O casamento de minha mãe não é dos mais... estáveis.

— Ela não tem o direito de receber a própria filha em sua casa?

— A casa não é dela, detetive. É do marido. E ele não gosta muito de mim. Para ser honesta, o sentimento é mútuo.

Nina voltou a olhar para a estrada e Sam deu-se conta do quanto ela era corajosa. Corajosa e solitária.

— Desde o dia em que se casaram, Edward Warrenton tem controlado cada detalhe da vida de minha mãe. Ele a maltrata, e ela aceita sem dizer palavra, porque o dinheiro faz o sofrimento valer a pena. Cansei de assistir àquilo tudo calada e, um dia, disse a ele tudo o que pensava a seu respeito.

— Pois me parece que era exatamente o que tinha de fazer.

— Minha atitude não ajudou em nada a harmonia familiar. Tenho certeza de que ele arranjou aquela viagem de negócios a Chicago só para poder estar ausente em meu casamento. Sei que não deveria ficar zangada com minha mãe, mas estou. Porque ela jamais o enfrentou.

— Muito bem. Então, não a levarei para a casa de sua mãe. E quanto ao velho e bom papai? Vocês se dão bem?

Nina assentiu.

— Acho que posso ficar na casa dele.

— Bom, pois não a deixaria sozinha esta noite, por nada neste mundo.

A frase mal escapara dos lábios de Sam, quando ele se deu conta de que não deveria tê-la pronunciado. Soara como se ele se importasse demais, como se os sentimentos estivessem se misturando ao dever. E ele era um bom policial, cauteloso o bastante para não permitir que isso acontecesse.

Sentiu o olhar surpreso de Nina na escuridão do carro.

Em tom mais frio do que desejava, falou:

— Você pode ser minha única ligação com o caso da bomba. Preciso mantê-la viva, para me ajudar nas investigações.

— Ah... Claro — ela murmurou, voltando a olhar para a frente. E não disse outra palavra, até chegarem à sua casa, na Ocean View Drive.

Assim que Sam estacionou, Nina abriu a porta e foi saindo do carro. Ele a segurou pelo braço e puxou-a de volta.

— Espere.

— O que foi?

— Espere aqui um instante.

Sam varreu a rua com seus olhos treinados, à procura de outros carros, outras pessoas, qualquer coisa suspeita. A rua estava deserta.

— Tudo bem — falou, saiu do carro e foi abrir a porta de Nina. — Faça apenas uma mala. Só teremos tempo para isso.

— Não planejei carregar toda a mobília.

— Estou só tentando tornar as coisas mais simples. Se alguém está mesmo atrás de você, é para cá que virá. Portanto, não vamos fazer hora, está bem?

O comentário, feito com o intuito de enfatizar o perigo, surtiu o efeito desejado. Nina saiu do carro e foi até a porta em velocidade surpreendente. Sam teve de convencê-la a esperar na varanda, enquanto ele fazia uma breve inspeção da casa.

Alguns minutos depois, ele voltou.

— Está vazia.

Enquanto Nina arrumava a mala, Sam passeou pela sala. Tratava-se de uma casa antiga, mas espaçosa, mobiliada com muito bom gosto, com uma linda vista para o mar. O tipo de casa na qual se esperava que um médico vivesse. Aproximou-se do piano Steinway e tocou algumas notas.

— Quem toca piano? — perguntou.

— Robert — a resposta veio do quarto. — Não tenho ouvido para música.

Sam concentrou-se no porta-retrato sobre o piano. Era uma foto instantânea de Nina e um sujeito de cabelos loiros e olhos azuis. Sem dúvida, tratava-se de Robert

Bledsoe. O doutor, ao que parecia, tinha tudo o que se poderia desejar: boa aparência, dinheiro e um diploma em medicina. E a mulher. Uma mulher que ele já não queria. Sam atravessou a sala e pôs-se a observar a grande coleção de diplomas pregados na parede. Dr. Bledsoe era o genro dos sonhos de qualquer mãe. Não era de se espantar que Lydia Warrenton houvesse tentando convencer a filha a reatar o relacionamento.

O telefone tocou, provocando uma descarga de adrenalina na corrente sangüínea de Sam.

— Devo atender? — Nina perguntou, parada na porta, com as feições tensas.

— Atenda.

Após um momento de hesitação, ela apanhou o fone. Sam aproximou-se, para ouvir.

— Alô?

Ninguém respondeu.

— Alô? — Nina repetiu. — Quem está falando? Alô?

Ouviu-se um clique e, então, o sinal de ocupado.

Nina olhou para Sam. Estavam tão próximos que os cabelos negros e sedosos quase roçaram o rosto dele. Sam descobriu-se a fitar as profundezas daqueles grandes olhos escuros e sentiu a reação do próprio corpo àquela proximidade.

Isto não deveria estar acontecendo. Não posso permitir que aconteça.

Recuou um passo, a fim de aumentar a distância entre eles. Mesmo afastados, ele ainda sentia a atração. Aquela mulher estava atrapalhando a sua capacidade de raciocínio claro e lógico. E isso era muito perigoso.

Baixou os olhos e descobriu que a luz da secretária eletrônica piscava.

— Você tem recados — falou.

— O que disse?

— A secretária eletrônica. Há três recados gravados.

Atordoada, Nina olhou para o aparelho e pressionou um botão.

Ouviram três sinais de bip, três momentos de silêncio, três sinais de ocupado.

Aparentemente paralisada, Nina olhou fixamente para o telefone.

— Por que? — murmurou. — Por que estão ligando e desligando?

— Só para verificar se você está em casa.

A implicação daquela resposta atingiu-a com força total. Nina afastou-se do telefone, como se fosse uma cobra.

— Preciso sair daqui — falou e correu para o quarto.

Sam seguiu-a. Ela atirava peças de roupa na mala, sem preocupar-se em dobrá-las. Calças, blusas e roupas de baixo amontoavam-se sem nenhuma ordem.

— Somente o necessário — ele disse. — Vamos embora.

— Sim, você tem razão — Nina concordou e correu para o banheiro.

Sam ouviu-a revirar os armários. Em seguida, ela voltou, carregando uma sacola de maquilagem lotada, que atirou na mala.

Ele fechou a mala.

No carro, ela sentou em silêncio, os braços em torno do corpo. Sam manteve os olhos atentos ao retrovisor, verificando se estavam sendo seguidos, mas não viu outro carro, nada suspeito.

— Relaxe. Está tudo bem. Vou levá-la até a casa de seu pai e poderá descansar um pouco.

— E então? — ela perguntou num fio de voz. — Por quanto tempo ficarei escondida lá? Semanas? Meses?

— O tempo necessário para resolvermos este caso.

Ela sacudiu a cabeça num gesto de tristeza e confusão.

— Nada disso faz sentido.

— É possível que tudo se esclareça, depois de conversarmos com o seu noivo. Faz idéia de onde ele possa estar?

— Parece que eu sou a última pessoa em quem Robert confia... O bilhete dizia que ele estaria deixando a cidade por alguns dias. Acho que ele precisava fugir... de mim.

— De você, ou de alguma outra pessoa?

Ela sacudiu a cabeça.

— Existem tantas coisas que não sei, que ele nunca se preocupou em me contar. Ah, como eu gostaria de compreender. Acho que seria capaz de enfrentar tudo se, ao menos, compreendesse o que está acontecendo.

Que tipo de homem era Robert Bledsoe?, Sam perguntou-se. Que tipo de homem deixaria sozinha uma mulher como aquela? Abandoná-la sozinha para enfrentar o perigo deixado em seu rastro.

— Quem quer que tenha feito aquela ligação poderá aparecer na casa — Sam falou. — Gostaria de ficar de guarda, descobrir quem aparece.

Nina assentiu.

— Sim, claro.

— Posso ter acesso?

— Está falando em... entrar?

— Se o suspeito aparecer, é provável que tente invadir a casa. Gostaria de estar à espera dele.

Ela fitou-o.

— Você pode ser morto!

— Acredite, srta. Cormier, não faço o tipo herói. Não corro riscos desnecessários.

— Mas, se ele aparecer...

— Estarei preparado.

Sam lançou-lhe um sorriso, tentando reassegurá-la. Ela não pareceu segura. Ao contrário, mostrou-se mais assustada do que nunca.

Por mim?, ele perguntou-se. E tal idéia, de maneira inexplicável, animou-lhe o espírito. Perfeito! O próximo passo seria enfiar a cabeça numa forca, tudo por causa de um par de grandes olhos castanhos. Aquela era uma situação típica, que todos os policiais eram advertidos a evitar: assumir o papel de herói para uma mulher atraente. Isso poderia levá-los à morte.

Poderia levá-lo à morte.

— Não deveria fazer isso sozinho — Nina falou.

— Não estarei sozinho. Pedirei reforços.

— Tem certeza?

— Sim, absoluta.

— Promete? Não vai correr riscos?

— Quem é você? Minha mãe? — Sam inquiriu irritado.

Nina apanhou as chaves na bolsa e atirou-as sobre o painel.

— Não, não sou sua mãe — retrucou. — Mas você é o tira designado e preciso que esteja vivo para resolver este caso.

Ele fizera por merecer tal resposta. Ela se mostrara preocupada com sua segurança, e ele reagira com sarcasmo. E nem sabia por quê. Tudo o que sabia era que, cada vez que fitava aqueles olhos fascinantes, era invadido pelo impulso de enfiar o rabo entre as pernas e sair correndo. Antes de cair na armadilha.

Minutos depois, atravessaram os portões de ferro da casa do pai de Nina. Ela nem esperou que Sam abrisse sua porta. Saiu do carro e subiu os degraus de pedra. Sam seguiu-a, carregando a mala e examinando o exterior da mansão. Era enorme e mais impressionante que a casa de Lydia Warrenton. Além disso, possuía a última palavra em sistemas de segurança. Ao menos por aquela noite Nina estaria a salvo.

A campainha soou como os sinos de uma igreja. Sam ouviu o eco dissipar-se pelo que deveriam ser dúzias de aposentos. A porta foi aberta por uma loira... e que loira! Com pouco mais de trinta anos, ela vestia um macacão de lycra brilhante, que aderia a cada curva. Uma camada fina de suor cobria seu rosto e, de um outro aposento, podia-se ouvir as batidas da música de um vídeo de ginástica.

— Olá, Daniella — Nina cumprimentou-a em voz baixa.

Daniella assumiu um ar de simpatia automático demais para parecer genuíno.

— Ah, Nina, sinto muito pelo que aconteceu hoje! Wendy telefonou e contou sobre a igreja. Alguém se machucou?

— Não, não. — Nina hesitou, como se temesse fazer a pergunta a seguir. — Posso passar a noite aqui?

A expressão de simpatia desvaneceu no mesmo instante. Daniella olhou para a mala que Sam carregava.

— Eu... vou conversar com seu pai. Ele está na banheira e...

— Nina não tem escolha. Terá de passar a noite aqui — Sam interrompeu-a, entrando na casa. — Não é seguro para ela ficar sozinha.

Daniella olhou para Sam e ele viu um brilho vago de interesse iluminar aquelas profundezas azuis.

— Acho que não ouvi seu nome — ela falou.

— Este é o detetive Navarro — Nina apresentou-o —, do esquadrão antibombas de Portland. E esta — disse a Sam —, é Daniella Cormier, minha... esposa de meu pai.

Madrasta seria o termo adequado, mas aquela loira de tirar o fôlego não poderia ser a mãe de ninguém. E o olhar que ela lançava para Sam podia ser tudo, menos maternal.

Daniella inclinou a cabeça num gesto que ele reconheceu como curioso e, ao mesmo tempo, provocante.

— Então, é um tira?

— Sim, madame.

— Esquadrão antibombas? Então, é o que realmente acha que aconteceu na igreja? Uma bomba?

— Não estou autorizado a falar do assunto — ele disse. — Não enquanto não encerrarmos as investigações. — Virou-se para Nina. — Se vai ficar bem aqui, então irei embora. Não se esqueça dê trancar os portões e acionar o alarme contra roubo. Falaremos pela manhã.

Ao despedir-se, seu olhar fixou-se no de Nina e, mais uma vez, ele foi tomado de surpresa pela própria reação àquela mulher. A atração era tão poderosa que ele se viu lutando para escapar com vida.

E conseguiu. Com um aceno, virou-se e saiu.

Lá fora, Sam observou a casa mais uma vez. Parecia segura. Com mais duas pessoas lá dentro, Nina estaria em segurança. Ainda assim, Sam perguntou-se se aquelas duas pessoas em particular seriam de grande ajuda num momento de crise. Um pai submerso na banheira e uma madrasta metida num macacão de lycra não inspiravam muita confiança. Nina, ao menos, era uma mulher inteligente. Sam sabia que ela se manteria alerta a qualquer sinal de perigo.

Voltou para a casa de Robert Bledsoe, na Ocean View, e estacionou o carro numa rua transversal.

Utilizando as chaves de Nina, entrou e ligou para Gillis, pedindo que enviasse uma patrulha para rondar a área. Então, fechou as cortinas e esperou. Eram nove horas.

As nove e meia, já se sentia inquieto. Andou de um lado para o outro da sala, foi à cozinha, à sala de jantar. Qualquer um que estivesse vigiando a casa esperaria ver luzes se acendendo e apagando em cômodos diferentes, em momentos diferentes. Talvez, o criminoso estivesse apenas esperando que os residentes fossem dormir.

Sam apagou a luz da sala e foi para o quarto.

Nina esquecera a gaveta da cômoda aberta. Sam, andando de um lado para o outro, diante da tentadora visão de roupas de baixo femininas. Uma peça de seda preta chamou-lhe a atenção. Incapaz de resistir, ele se aproximou e apanhou-a.

Era uma camisola minúscula, com rendas e fitas de cetim, feita para esconder pouco, muito pouco. Ele atirou-a de volta e fechou a gaveta.

Estava se distraindo de novo. Isso não podia acontecer. Nina Cormier o estava levando a agir como um novato tolo.

Até então, por força do seu trabalho, esbarrara em outras mulheres, incluindo as inevitáveis sedutoras. Mulheres como aquela perua de macacão de lycra, Daniella Cormier, a madrasta de Nina. Conseguira manter o zíper da calça fechado e a cabeça no lugar. Era uma questão de autocontrole, bem como de autopreservação. As mulheres que conhecia em seu trabalho estavam, geralmente, metidas em algum tipo de problema, e era comum considerarem Sam o seu cavaleiro salvador, a resposta masculina a todos os seus problemas.

Tratava-se de uma fantasia que jamais durava. Mais cedo ou mais tarde, o cavaleiro era despido de sua armadura e elas o viam pelo que realmente era: apenas um tira. Não era rico nem brilhante. Não possuía nenhuma qualidade que o destacasse.

Acontecera uma vez. Apenas uma vez. Ela era uma aspirante a atriz, tentando escapar de um namorado violento. Ele, um novato designado para vigiá-la. A química era certa. A situação era certa. Mas a garota era totalmente errada. Por algumas semanas, ele estivera apaixonado, acreditando que ela o amava.

Então, ela o dispensara.

Sam aprendera uma lição dura, porém duradoura: romance e trabalho policial não podem se misturar. Nunca mais ele havia cruzado aquela linha, enquanto estava de serviço, e não o faria com Nina Cormier.

Afastava-se da cômoda, quando ouviu um ruído.

Vinha de algum ponto próximo à entrada da casa.

Sam apagou a luz do quarto e sacou a arma. Avançou pelo corredor. Parou na porta da sala, os olhos treinados examinando a escuridão.

A luz da rua proporcionava-lhe visão suficiente para verificar que não havia o menor movimento no aposento.

Então, ouviu um som baixo, vindo da porta.

Sam mirou a porta. Estava agachado, pronto para atirar. A silhueta de um homem fez-se visível à luz da rua.

— Polícia! — Sam gritou. — Não se mova!

 

A silhueta imobilizou-se.

— Mãos para o alto — Sam ordenou. — Vamos, mãos ao alto!

As duas mãos ergueram-se.

— Não atire! — a voz masculina implorou aterrorizada.

Sam ergueu-se e acendeu a luz. Após um olhar para o homem à sua frente, proferiu um palavrão.

Dois policiais uniformizados entraram correndo, empunhando suas armas.

— Nós o tínhamos na mira, Navarro! — anunciou um deles.

— Agiram bem — Sam admitiu contrariado. — Mas podem ir. Este não é o nosso homem. — Guardou a arma e examinou o loiro que ainda exibia expressão assustada. — Sou o detetive Sam Navarro, polícia de Portland. Imagino que seja o dr. Robert Bledsoe.

— Sim, sou eu — Robert respondeu, nervoso. — O que está acontecendo? Por que está em minha casa?

— Onde esteve o dia todo, dr. Bledsoe?

— Eu... Posso abaixar as mãos?

— Claro.

Robert abaixou as mãos e olhou para os policiais às suas costas.

— Eles vão continuar apontando as armas para mim?

— Vocês podem ir embora — Sam informou aos policiais.

— E quanto à patrulha da área? Vai cancelar? — um deles perguntou.

— Duvido que algo aconteça esta noite. Mas, por via das dúvidas, continuem patrulhando até o amanhecer.

Os dois saíram e Sam repetiu:

— Onde esteve, dr. Bledsoe?

Sem as armas apontadas para suas costas, o medo de Robert transformou-se em raiva.

— Primeiro, você vai me explicar o que está fazendo em minha casa! Não tem autoridade para invadir domicílio alheio. Acabarei com a sua carreira, se não me apresentar um mandado agora mesmo!

— Não tenho mandado.

— Não? Invadiu minha casa e me ameaçou, sem um mandado?

— Não invadi sua casa — Sam respondeu com calma. — Entrei pela porta da frente...

— Claro.

Sam retirou as chaves de Nina da bolsa e balançou-as no ar.

— Com isto — completou.

— Estas chaves pertencem à minha noiva! Como as conseguiu?

— Ela me deu.

— Ela... o quê? Onde está Nina? Ela não tinha o direito de dar as chaves de minha casa a ninguém!

— Correção, doutor. Nina Cormier estava morando com você, o que a torna residente legal desta casa. Isso dá a ela o direito de permitir a entrada da polícia, como ela fez. Agora, vou repetir a pergunta pela terceira vez. Onde passou o dia, doutor?

— Fora — Robert respondeu em tom de desafio.

— Pode ser mais específico?

— Está bem. Fui a Boston. Precisava sair da cidade.

— Por quê?

— Isto é um interrogatório? Não sou obrigado a responder suas perguntas. Aliás, não devo dizer nada, sem a presença de meu advogado — Robert disse e apanhou o telefone.

— Não precisa de advogado. A menos que tenha cometido um crime.

— Um crime? — Robert virou-se para encará-lo. — Está me acusando de alguma coisa?

— Não estou acusando-o de nada. Mas preciso de respostas. Soube do que aconteceu na igreja, hoje?

Robert colocou o telefone no gancho e assentiu.

— Ouvi sobre a explosão. Foi por isso que voltei antes do que planejava. Fiquei preocupado com a possibilidade de alguém ter se ferido.

— Felizmente, não houve feridos. A igreja estava vazia no momento da explosão.

Robert suspirou aliviado.

— Graças a Deus! — murmurou. — Já sabem o que provocou a explosão?

— Sim. Foi uma bomba.

Robert sobressaltou-se.

— O noticiário informou apenas que ocorrera uma explosão. Não disseram nada sobre uma bomba.

— Ainda não fizemos uma declaração pública.

— Por que alguém bombardearia uma igreja?

— É o que estamos tentando descobrir. Se o casamento houvesse se realizado, dezenas de pessoas poderiam estar mortas, agora. Nina me contou que foi você quem decidiu cancelar tudo. Por quê?

— Eu não estava pronto para me casar — Robert confessou, escondendo o rosto nas mãos.

— Então seus motivos foram estritamente pessoais?

— O que mais poderia ser? — Robert voltou a erguer a cabeça, demonstrando súbita compreensão. — Ah, meu Deus! Pensou que a bomba tivesse algo a ver comigo?

— A idéia passou pela minha cabeça. Considere as circunstâncias. Você cancelou o casamento na última hora. Então, saiu da cidade. Achamos que poderia ter recebido algum tipo de ameaça.

— Não, não foi nada disso. Cancelei o casamento porque não queria me casar.

— Importa-se de me explicar o porquê?

— Sim, eu me importo.

Caminhou até o bar, serviu-se de uma dose de uísque e bebericou-o, sem olhar para Sam.

— Conheci sua noiva — Sam declarou. — Ela me pareceu uma mulher decente, inteligente, atraente. — Eu estou mais que atraído por ela, Sam acrescentou para si mesmo.

— Está me perguntando por que eu a abandonei no altar?

— Sim.

Robert não respondeu.

— Tiveram alguma briga?

— Não.

— O que houve, dr. Bledsoe? Nervosismo? Tédio? Outra mulher?

— Isso não é da sua conta. Saia de minha casa.

— Já que insiste... Mas devo avisá-lo que voltaremos a conversar. — Sam caminhou até a porta e parou. — Conhece alguém que pudesse desejar algum mal à sua noiva?

— Não.

— Alguém que pudesse querer vê-la morta?

— Que pergunta ridícula!

— Alguém tentou jogá-la para fora da estrada, hoje à tarde.

Robert encarou-o com evidente surpresa e preocupação.

— Nina? Quem fez isso?

— É o que estou tentando descobrir. O incidente pode ou não estar ligado à explosão. Tem idéia do que está acontecendo? Quem tentaria feri-la?

Robert hesitou por um instante.

— Não. Não faço idéia. Onde está ela?

— Está num lugar seguro por esta noite, mas não poderá se esconder para sempre. Portanto, se pensar em alguma coisa, telefone. Se ainda se importa com ela.

Robert não disse nada.

Sam virou-se e saiu.

A caminho de casa, ligou do telefone do carro para o parceiro. Gillis, como seria de esperar, ainda estava trabalhando.

— O noivo está na cidade — informou-o. — Diz que não faz idéia do porquê a igreja foi bombardeada.

— E por que eu não consigo ficar surpreso? — Gillis retrucou.

— Alguma novidade?

— Sim. Não conseguimos encontrar o zelador.

— O quê?

— O zelador da igreja. Estamos tentando localizá-lo. Ele não voltou para casa.

— Interessante.

— Já investigamos o sujeito. Chama-se Jimmy Brogan e tem uma ficha policial. Apenas pequenos furtos, anos atrás, nada mais sério. Mandei Cooley conversar com a esposa e revistar a casa.

— Brogan já se envolveu com explosivos?

— Até onde sabemos, não. A esposa jura que ele está limpo e que volta para casa todas as tardes, por volta das seis, para jantar.

— O que mais?

— É tudo. Estou exausto e vou para casa.

— Certo. Vejo você de manhã.

Durante o trajeto para casa, a mente de Sam girava com tantos fatos. Um casamento cancelado. Um zelador de igreja desaparecido. Um assassino num Ford preto.

E uma bomba.

Onde Nina Cormier se encaixava numa história louca como aquela?

Chegou em casa às onze e meia. Entrou, acendeu a luz e foi cumprimentado pela costumeira desorganização. Ora, a bagunça assumira proporções insustentáveis. Logo, teria de fazer uma boa faxina. Ou, talvez, devesse pensar em mudar-se. Seria mais fácil.

Andou pela sala, apanhando roupas e pratos sujos. Deixou os pratos na pia e pôs a roupa na máquina de lavar. Sábado à noite, e o solteirão fazia a faxina. Ótimo! Ficou parado na cozinha, pensando nas mudanças que poderia operar para tornar sua casa mais parecida a um lar. Que tal nova mobília? A casa em si era sólida e confortável. Mas Sam não conseguia parar de compará-la à casa de Robert Bledsoe, com seu piano Steinway. Era o tipo de casa em que qualquer mulher adoraria viver.

Ora, Sam não saberia o que fazer com uma mulher, mesmo que encontrasse uma louca o bastante para querer viver com ele. Vivia sozinho havia muito, muito tempo. Tivera romances ocasionais, é claro. Mas nenhum deles durara muito tempo. E tinha de admitir que a culpa era sua ou, quem sabe, do seu trabalho. Elas não podiam compreender por que um homem em sã consciência escolhia continuar com seu trabalho insano de lidar com bombas e malucos. Entendiam como afronta pessoal o fato de ele não mudar de trabalho para ficar com elas.

Talvez nunca houvesse encontrado uma mulher que o fizesse desejar mudar.

E este é o resultado, Sam pensou, olhando para a cesta cheia de roupas amarrotadas. A vida de solteirão.

Deixou a máquina de lavar funcionando e foi para a cama.

Como sempre, sozinho.

 

As luzes estavam acesas na casa trezentos e dezoito da Ocean View Drive. Seria a tal de Cormier? Robert Bledsoe? Ou ambos?

Dirigindo o jipe Cherokee verde devagar, ele deu uma boa olhada na casa. Notou os arbustos densos diante das janelas e a linha de árvores que delimitavam a propriedade. Havia muita cobertura, muitos esconderijos.

Então, percebeu o carro estacionado no quarteirão adiante e viu a silhueta de dois homens sentados dentro dele. Polícia, pensou. Estavam vigiando a casa.

Aquela noite não seria o melhor momento para fazer seu trabalho.

Virou a esquina e foi embora.

Aquele problema podia esperar. Tratava-se apenas de uma pequena limpeza, uma pendência que ele poderia resolver no seu tempo livre.

Tinha outro trabalho, mais importante, a fazer. E contava com apenas uma semana para isso.

Dirigiu-se para a cidade.

 

Às nove horas, os guardas foram escoltar Billy "Homem de Neve" Binford para fora de sua cela.

Seu advogado, Albert Darien, estava a sua espera. Através do vidro blindado que os separava, Billy examinou a expressão de Darien e soube que as notícias não eram boas. Sentou-se. Embora o guarda permanecesse a distância, Billy sabia que deveria ter cuidado com suas palavras. Aquela história de sigilo entre advogado e cliente era papo furado. Se os federais ou o promotor quisessem mesmo apanhá-lo, plantariam um microfone em qualquer um, até mesmo no padre. Era chocante o modo como violavam os direitos de um cidadão!

— Olá, Billy — Darien cumprimentou-o. — Como estão tratando você?

— Como acha que estão me tratando? Terá de me fazer alguns favores, Darien. Quero uma televisão na cela.

— Billy, temos problemas.

Billy não gostou do tom de Darien.

— Que problemas.

— Liddell não quer nem discutir nosso pedido de acordo. Está decidido a levá-lo a julgamento. Qualquer outro promotor aceitaria, mas acho que ele está usando você para as eleições.

— Liddell vai concorrer para governador?

— Ainda não anunciou publicamente, mas, se conseguir condená-lo, ficará numa posição muito vantajosa. E, Billy, para ser honesto, ele tem mais que o suficiente para obter a condenação.

— É para isso que estou pagando você. O que está fazendo a respeito?

— Eles têm muito contra você. Hobart será apresentado como testemunha do Estado,

— Hobart é um vira-casacas. Não será difícil tirar-lhe todo o crédito.

— Conseguiram todos os seus registros de transações. Está tudo no papel, Billy.

— Certo. Então, tente o acordo de novo. Faça qualquer coisa, mas trate de me tirar logo daqui.

— Já lhe disse que Liddell nem quer ouvir falar em acordo.

— Podemos cuidar de Liddell — Billy falou devagar.

Darien fitou-o.

— O que está insinuando.

— Trate de conseguir o acordo. Não se preocupe com Liddell. Estou cuidando...

— Não quero saber — Darien interrompeu-o, trêmulo. — Não quero ouvir uma palavra.

— Nem precisa. Estou cuidando de tudo pessoalmente.

— Não me envolva.

— Tudo o que quero, Darien, é não ir a julgamento. E trate de me tirar logo daqui. Compreendeu?

— Sim, sim. — Darien lançou um olhar nervoso ao guarda, que não prestava a menor atenção à conversa.

— Vou tentar.

— Você só tem de esperar — Billy falou com um sorriso maroto. — Na semana que vem, tudo será diferente. A promotoria ficará feliz com um pedido de acordo.

— Por quê? O que vai acontecer na semana que vem?

— Você não quer saber.

Darien respirou fundo e abaixou a cabeça.

— Tem razão. Não quero saber.

 

Nina despertou ao som da inconfundível música que acompanhava exercícios aeróbicos. Ao descer, encontrou Daniella deitada no chão da sala de ginástica, vestindo um macacão de lycra rosa, as pernas cortando o ar com facilidade, ao ritmo da música. Por um momento, Nina observou-a em silêncio, fascinada pela exibição de músculos rijos. Daniella cuidava muito do corpo. Na verdade, fazia pouco mais que isso. Desde que se casara com George Cormier, seu único objetivo parecia ser a perfeição de seu corpo.

A música terminou. Daniella pôs-se de pé com gestos graciosos. Quando virou-se para apanhar a toalha, viu Nina na porta.

— Bom dia — cumprimentou-a.

— Bom dia — Nina respondeu. — Acho que dormi demais. Papai já saiu para o trabalho?

— Você sabe como ele é. Gosta de começar o dia ao amanhecer.

Um silêncio pesado tomou conta do ambiente. Era sempre assim. Além de o relacionamento das duas não contar com a menor intimidade, as duas não tinham nada em comum, além de sua relação com George Cormier.

Daniella sentou-se na bicicleta e começou a pedalar.

— George tinha uma reunião esta manhã. Voltará para o jantar. E você recebeu duas ligações. Uma foi daquele detetive bonitão.

— Detetive Navarro?

— Sim. Queria saber se você estava bem.

Ora, ele se preocupava com ela, Nina pensou, sentindo nova animação. Ele se importara o bastante para precisar certificar-se de que ela estava bem. Ora, talvez, estivesse preocupado apenas em saber se não teria mais um cadáver em suas mãos.

Sim, esta era a razão mais provável para o telefonema.

Desanimada, Nina virou-se para sair da sala, mas parou na porta.

— Você disse que eram duas ligações — falou.

— Ah, sim. Robert também ligou.

— Robert? — Nina repetiu, chocada.

— Queria saber se você estava aqui.

— E onde ele está?

— Em casa.

— Devia ter me avisado.

— Você estava dormindo. Achei que não havia necessidade de acordá-la. Além do mais, ele disse que vai telefonar mais tarde.

Não vou esperar, Nina pensou, pois quero respostas imediatas e pessoalmente.

Com o coração aos saltos, saiu da casa e tomou emprestado o Mercedes de seu pai para ir até Ocean View Drive.

Quando estacionou diante da garagem de Robert, tremia dos pés à cabeça. O que diria a ele? E, pior, o que ele teria para dizer-lhe?

Teve de tocar a campainha, pois dera suas chaves a Navarro. De qualquer maneira, aquela não era mais a sua casa. Nunca fora.

A porta se abriu e Robert fitou-a com ar surpreso. Vestia short e camiseta, e seu rosto exibia o rubor saudável de exercício recente. Não lembrava em nada a figura de um homem sofrendo por sua noiva.

— Nina... Eu... eu estava preocupado com você.

— Não sei por que é tão difícil acreditar nisso.

— Telefonei para a casa de seu pai...

— O que aconteceu, Robert? Por que me abandonou daquela maneira?

Ele desviou os olhos.

— Não é fácil explicar.

— Também não foi fácil para mim dizer a todos que fossem embora, sem saber por que tudo havia terminado. Você poderia ter me falado uma semana antes, um dia antes. Mas preferiu me deixar lá, com aquele maldito buquê na mão, imaginando se era minha culpa, perguntando o que eu fiz de errado.

— Não foi você, Nina.

— O que foi, então?

Ele não respondeu. Continuou evitando-lhe o olhar, como se tivesse medo de encará-la.

— Vivi com você durante um ano — Nina falou com tristeza —, e não faço a menor idéia de quem é você.

Passou por ele e foi direto para o quarto.

— O que está fazendo? — Robert perguntou.

— Apanhando minhas coisas e saindo de sua vida.

— Nina, sejamos civilizados. Nós tentamos, mas não deu certo. Por que não podemos continuar amigos?

— É isso o que somos? Amigos?

— Por que não?

Nina soltou uma risada amarga.

— Amigos não se apunhalam pelas costas.

Entrou no quarto, abriu as gavetas e começou a atirar suas roupas sobre a cama. Queria sair daquela casa e nunca mais voltar. Até minutos antes, acreditara na possibilidade de salvar seu relacionamento com Robert. Agora, sabia que não havia a menor chance para eles. Na verdade, ela não o queria mais. Robert Bledsoe a atraíra por ser inteligente, espirituoso, carinhoso... Ora, ele fora um grande ator!

Robert observava da porta, com ar contrariado, como se ela fosse a culpada por tudo. Nina ignorou-o e continuou a empilhar as roupas.

— Precisa mesmo fazer isto agora? — ele perguntou.

— Sim.

— Não temos malas suficientes.

— Usarei sacos de lixo. E vou levar meus livros.

— Hoje? Mas, você tem toneladas de livros!

— Esta semana, tenho toneladas de tempo, já que tirei uns dias de folga para a minha lua-de-mel.

— Não está sendo razoável. Sei que está zangada e tem esse direito. Mas não precisa bater gavetas e portas desse jeito.

— Vou bater o quanto tiver vontade!

O som de alguém limpando a garganta fez os dois virarem sobressaltados. Sam Navarro estava na porta, observando-os.

— Será que os tiras nunca batem na porta? — Robert inquiriu irritado.

— Eu bati — Sam replicou. — Ninguém respondeu. E você deixou a porta aberta.

— Está invadindo minha casa sem um mandado... de novo.

— Ele não precisa de mandado — Nina declarou.

— A lei diz que sim.

— A menos que eu o convide a entrar.

— Você não o convidou. Ele entrou por conta própria.

— A porta estava aberta — Sam explicou —, e eu estava preocupado. Não foi uma atitude sensata, srta. Cormier, dirigir sozinha até aqui. Devia ter me avisado que pretendia sair da casa de seu pai.

— Sou sua prisioneira, agora? — Nina inquiriu e continuou a apanhar roupas. — Como descobriu que eu estava aqui?

— Telefonei para a sua madrasta. Você havia acabado de sair e ela achou que teria vindo para cá.

— Ela acertou. Estou aqui e estou ocupada.

— Sim — Robert resmungou. — Ela sabe como se manter ocupada.

Nina virou-se para encará-lo.

— O que está querendo dizer?

— Não sou o único culpado pelo que deu errado.

— Não fui eu quem deixou você plantado no altar.

— Não. Mas me abandonou todas as noites, durante meses a fio.

— O que está dizendo?

— Todas as noites, eu ficava aqui, sozinho! Teria apreciado voltar para casa e ter com quem jantar e conversar. Mas você nunca estava aqui!

— Precisavam de mim no plantão noturno. Eu não podia mudar isso.

— Poderia ter deixado o emprego!

— Deixar o emprego? E fazer o quê? Brincar de dona-de-casa para um homem que nem podia decidir se queria ou não casar comigo?

— Se me amasse, teria feito isso.

— Ah, não acredito que esteja tentando jogar a culpa para mim!

Sam interrompeu-os:

— Nina, precisamos conversar.

—Agora, não! — Nina e Robert falaram ao mesmo tempo. Então, Robert falou: — Eu só quero que saiba que tive as minhas razões para agir como agi. Um homem tenta ser paciente mas, em certo ponto, só lhe resta procurar pelo que precisa em outro lugar.

— Outro lugar? — Nina repetiu, subitamente compreendendo. — Então, você tem alguém.

— O que acha?

— Eu a conheço?

— Não faz diferença.

— Faz diferença para mim. Quando a conheceu?

— Há algum tempo.

— Quanto tempo?

— Isso é irrelevante...

— Passamos seis meses planejando o casamento... juntos. E você esqueceu de me contar o detalhe insignificante, de que estava saindo com outra mulher.

— E óbvio que você não está em condições de encarar as coisas de maneira racional. Enquanto for assim, eu me recuso a discutir a questão — Robert declarou e saiu do quarto.

— Estou sendo muito mais racional do que há seis meses! — Nina gritou.

A resposta foi a batida da porta da frente.

Outra mulher... Ela jamais sequer suspeitara.

Repentinamente invadida pela náusea, Nina sentou-se na cama. Não percebeu que a pilha de roupas tombou para O chão, assim como não se deu conta das lágrimas que corriam por suas faces. A única coisa da qual se dava conta era a dor profunda que ameaçava parti-la em duas. Mal percebeu quando Sam sentou-se a seu lado.

— Ele não merece suas lágrimas, Nina — ele falou em tom suave.

Quando ele cobriu a mão dela com a sua, Nina ergueu os olhos para fitá-lo.

— Não estou chorando por ele.

Sam tocou-lhe as faces molhadas com a ponta dos dedos.

— Acho que está.

— Não estou. Não estou! — Nina soluçou e afundou a cabeça no peito de Sam.

Teve apenas uma vaga noção dos braços dele envolvendo-lhe as costas, apertando-a contra o peito largo. Ele não disse nada. Como sempre, era o tira lacônico. Mas ela sentiu os lábios dele em seus cabelos, bem como as batidas rápidas de seu coração.

Ora, aquilo não significava nada. Ele estava apenas tentando confortá-la, como faria com qualquer cidadão em sofrimento. Afinal, era o que ela fazia todos os dias no pronto-socorro. Era o seu trabalho, assim como o dele.

Ah, mas era tão bom.

Foi preciso muita força de vontade para sair daquele abraço. Quando ergueu os olhos, Nina deparou com a expressão calma nos olhos verdes. Não havia paixão ou desejo. Ali estava o servidor público, no pleno controle de suas emoções.

Apressada, Nina secou as lágrimas. Sentiu-se tola e envergonhada, pois ele testemunhara tudo o que se passara entre ela e Robert. Sam sabia cada detalhe humilhante e ela mal podia suportar-lhe o olhar.

Levantou-se e começou a apanhar as roupas do chão.

— Quer conversar? — ele perguntou.

— Não.

— Acho que precisa. O homem que você amava acaba de deixá-la por outra mulher. Deve estar sofrendo.

— E verdade. Eu realmente preciso conversar, mas não com um tira frio que pouco se importa com meus sentimentos!

Houve um longo silêncio. Embora ele continuasse a fitá-la sem demonstrar nenhum traço de emoção, Nina sentiu que havia atingido um ponto fraco. Mas ele era orgulhoso demais para admitir.

— Desculpe — ela murmurou, afinal. — Sinto muito, Navarro. Você não merece isso.

— Na verdade, acho que mereço.

— Está apenas fazendo o seu trabalho e eu despejei toda a minha raiva em você. — Irritada consigo mesma, Nina sentou-se na cama, ao lado dele. — Acho que estou descontando em você. Estou furiosa comigo mesma por ter deixado Robert me fazer sentir culpada.

— Culpada?

— Sei que não deveria me sentir assim, mas, da maneira como ele fala, parece que eu o negligenciei. Eu não poderia abandonar o meu trabalho, nem mesmo por ele.

— Robert é médico. Também deve ter um horário duro. Noites inteiras, fins de semana.

— Ele sempre trabalhou nos fins de semana.

— E você reclamava?

— Claro que não. É o trabalho dele.

— Então? — Sam ergueu as sobrancelhas.

— Ah, o velho padrão de dois pesos, duas medidas.

— Exatamente. Eu jamais esperaria que minha esposa abandonasse seu trabalho só para me esperar com o jantar pronto todas as noites.

Nina baixou os olhos para as mãos.

— Não?

— Isso não é amor, é sentimento de posse.

— Acho que sua esposa é uma mulher de sorte.

— Falei apenas em teoria.

Nina fitou-o.

— Quer dizer... trata-se de uma esposa teórica?

Ele assentiu.

Ora, ele não era casado. A informação provocou um estranho sentimento de satisfação em Nina. O que estava acontecendo com ela?

Desviou os olhos, com medo de que ele percebesse sua confusão.

— Você disse que precisava conversar comigo.

— É sobre o caso.

— Deve ser importante, para você ter tido o trabalho de me encontrar.

— Temos novidades. Receio que não sejam nada agradáveis.

— Aconteceu alguma coisa?

— Diga-me o que sabe sobre o zelador da igreja.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não o conheço. Nem sei o nome dele.

— O nome dele era Jimmy Brogan. Passamos a noite tentando localizá-lo. Sabemos que ele abriu a igreja, ontem, e que fez seu trabalho habitual, pela manhã. Mas ninguém sabe para onde ele foi depois da explosão. Sabemos que não apareceu no bar, onde costuma ir todas as tardes.

— Você disse que o nome dele "era" Jimmy Brogan. Quer dizer...

Sam assentiu.

— Encontramos seu corpo pela manhã. Estava em seu carro, estacionado num campo em Scarborough. Morreu de um ferimento a bala na cabeça. A arma estava no carro e tem as impressões digitais dele.

— Suicídio?

— É o que parece.

Nina ficou em silêncio, chocada.

— Ainda estamos esperando pelo relatório do laboratório criminal. Há uma porção de detalhes que me incomodam. Tudo parece muito certinho, quase de encomenda para explicar todas as dúvidas que temos.

— Inclusive a bomba?

— Inclusive a bomba. Encontraram vários itens no porta-mala do carro, que ligariam Brogan à bomba: fio detonador, adesivo elétrico verde. Trata-se de evidências mais que convincentes.

— Você não me parece convencido.

— O problema é que Brogan nunca teve experiência om bombas, ao menos, que saibamos. E, também, não conseguimos determinar um motivo para que explodisse a igreja. Ou para o ataque a você. Pode me ajudar?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não sei nada sobre ele.

— O nome Brogan não é familiar?

— Não.

— Ele a conhecia. Encontramos um papel com o seu endereço no carro dele.

Nina fitou-o e sentiu-se amedrontada por aqueles olhos inescrutáveis.

— Por que ele teria o meu endereço? — perguntou.

— Deve ter alguma ligação com ele.

— Não conheço ninguém chamado Brogan.

— E por que ele tentaria matá-la, jogá-la para fora da estrada?

— Como sabe que foi ele?

— Por causa do carro em que encontramos o corpo.

Nina engoliu em seco.

— Era preto?

— Um Ford preto.

 

Sam levou-a ao necrotério. Falaram pouco. Sam evitava dar-lhe qualquer informação adicional, e Nina estava apavorada demais para querer saber detalhes. Ao longo do trajeto, ela continuava a perguntar-se: Quem era Jimmy Brogan e por que tentara matá-la?

No necrotério, Sam manteve a mão firme no braço de Nina, enquanto caminhavam pelo corredor que levava à sala refrigerada. Permaneceu ao lado dela quando o atendente levou-os até as gavetas. No momento em que a gaveta foi puxada, Nina encolheu-se num gesto involuntário. No mesmo instante, o braço de Sam envolveu-lhe a cintura, proporcionando-lhe um apoio seguro contra a terrível visão que ela estava prestes a enfrentar.

— Não é nada bonito — disse o atendente. — Está preparada?

Nina assentiu.

Ele deu um passo para o lado.

Como enfermeira de pronto-socorro, Nina estava habituada a ver coisas impressionantes. Aquilo, porém, era pior que tudo o que já vira. Olhou o rosto do homem, ou melhor, o que restara daquele rosto, e virou-se.

— Não o conheço — murmurou.

— Tem certeza? — Sam inquiriu.

Ela assentiu e, então, começou a oscilar. Sam segurou-a com firmeza e levou-a para fora.

Na sala do diretor, Nina segurava uma xícara de café, enquanto Sam falava com o parceiro ao telefone.

— ...não o reconheceu. Nem o nome. Tem certeza de que este é mesmo o homem?

Nina não bebeu o café, pois seu estômago não lhe permitia. Na mesa a seu lado estava o arquivo com toda a informação recolhida sobre Jimmy Brogan. Nada ali despertava-lhe qualquer lembrança, exceto o nome do empregador: igreja do Bom Pastor. Nina perguntou-se se o reverendo Sullivan já fora informado e como estaria passando. O pobre homem teria um choque duplo: primeiro, a explosão de sua igreja; depois, a morte do zelador. Decidiu visitá-lo e certificar-se de que ele estava passando bem...

— Obrigado, Gillis. Voltarei às três. Cuide de tudo, por favor. — Sam desligou e olhou para Nina. Ao ver-lhe as feições pálidas, perguntou preocupado: — Você está bem?

— Sim, estou.

— Pois não parece nada bem. Precisa recuperar as forças. Venha — estendeu-lhe a mão. — Está na hora do almoço e há uma lanchonete a um quarteirão daqui.

— Como pode pensar em comida?

— Costumo não perder a oportunidade de fazer qualquer refeição. Prefere que eu a leve para casa?

— Tanto faz — ela falou, levantando-se. — Só quero sair deste lugar.

Nina remexia sua salada, enquanto Sam devorava um hambúrguer.

— Não consigo entender como você consegue sair do necrotério diretamente para um almoço — Nina comentou.

— Necessidade. No meu trabalho, nunca se sabe quando será possível comer de novo.

— Deve ver tantas coisas horríveis, como policial.

— Você é enfermeira. Imagino que também veja sua cota de desgraças.

— Sim, mas elas costumam chegar vivas às minhas mãos.

— Verdade. Em casos de bombas, é muita sorte encontrar algum sobrevivente. Aliás, raramente encontramos pessoas inteiras.

— Como consegue conviver com isso? O que o faz gostar de um trabalho como esse?

— O desafio.

— Falando sério, Navarro, como lida com o horror de tudo isso?

— Meu nome é Sam. E a resposta à sua pergunta está no porquê eu faço isso. O desafio é mesmo boa parte de tudo. Pessoas que fazem bombas são um tipo especial de criminoso. Não são como os ladrões que invadem as lojas do bairro. São mais inteligentes e engenhosos. Alguns são verdadeiros gênios. Por outro lado, são covardes. Assassinos a distância. Esta combinação os torna especialmente perigosos. E torna o meu trabalho particularmente mais satisfatório, quando consigo apanhar um deles.

— Então, você realmente gosta do que faz.

— "Gostar" não é bem a palavra. Mas não consigo deixar o quebra-cabeças de lado. Fico examinando as peças, tentando compreender que tipo de mente seria capaz de fazer tal coisa. Talvez isso me faça tão monstruoso quanto eles, por encontrar tamanha satisfação em estudar esses caras.

— Ou, talvez, isso signifique que você é um excelente policial.

Sam riu.

— Ainda existe a possibilidade de eu ser tão maluco quanto eles.

Nina observou-o, perguntando-se de onde tirara a idéia de que aqueles olhos verdes eram tão frios. Bastava um sorriso para que Sam Navarro se transformasse num verdadeiro ser humano. Além de um homem muito atraente.

Não vou permitir que isto aconteça, ela pensou. Seria um grande erro sair de sua decepção com Robert diretamente para uma paixão maluca por um tira.

Forçou-se a desviar os olhos dos dele.

— Se foi mesmo Brogan o responsável pela bomba, devo concluir que não tenho mais nada com o que me preocupar.

— Se foi mesmo ele.

— As evidências parecem bastante sólidas. Por que você continua cético?

— Não sei explicar. É apenas... intuição. Instinto, eu acho. É por isso que quero que tenha cuidado.

Nina ergueu os olhos e descobriu que o sorriso se fora. O tira estava de volta.

— Não acredita que tudo esteja resolvido — ela murmurou.

— Não.

 

Sam levou Nina de volta à casa na Ocean View Drive, ajudou-a a encher o porta-malas do Mercedes com roupas e livros e certificou-se de que ela seguiria em segurança para a casa do pai.

Então, voltou à delegacia.

As três horas, iniciaram a reunião. Sam, Gillis, Tanaka, do laboratório criminal, e um terceiro detetive do esquadrão antibomba, Francis Cooley. Todos expuseram o que haviam conseguido até então.

Cooley foi o primeiro a falar:

— Verifiquei a ficha de Jimmy Brogan três vezes. Não há nenhum engano. Esse é o seu verdadeiro nome. Quarenta e cinco anos, nascido e criado em Portland, apanhado por pequenos furtos no passado. Casado há dez anos, sem filhos. Foi contratado pelo reverendo Sullivan há oito anos. Trabalhava como zelador e fazia todo tipo de consertos na igreja. Nunca criou problemas, exceto por duas ou três vezes, quando chegou atrasado e de ressaca, depois de eventuais noitadas com amigos. Não serviu o exército, abandonou a escola ainda criança. A esposa diz que ele era disléxico. Não consigo imaginar esse cara montando uma bomba.

— A sra. Brogan tem alguma idéia de por que o endereço de Nina Cormier estava no carro dele? — Sam perguntou.

— Não. Diz nunca ter ouvido o nome antes e afirma que aquela não é a caligrafia do marido.

— Estavam atravessando alguma crise conjugai?

— Pelo que ela diz, viviam felizes como dois pombinhos. Ela me pareceu arrasada de verdade.

— Então, temos um zelador feliz no casamento, fugido da escola, disléxico, como principal suspeito!

— Receio que sim, Navarro.

Sam sacudiu a cabeça.

— Isto está ficando pior a cada minuto. — Olhou para Tanaka. — Eddie, dê-nos algumas resposta, pelo amor de Deus!

Nervoso como sempre, Tanaka limpou a garganta.

— Não vai gostar do que tenho.

— Diga assim mesmo.

— Certo. Primeiro, a arma no carro foi roubada há um ano, em Miami. Não sabemos como Brogan a conseguiu. A esposa diz que ele não sabia como usar uma arma. Segundo, o carro de Brogan foi o mesmo que jogou a srta. Cormier para fora da estrada. Amostras de tinta confirmam isso. Terceiro, os itens encontrado no porta-malas do carro foram os mesmos usados na bomba da igreja. Adesivo elétrico verde, cabo detonador idêntico.

— Essa é a assinatura de Vincent Spectre —disse Gillis —, adesivo verde.

— O que significa que, provavelmente, estamos lidando com um de seus discípulos. Agora, tenho algo de que realmente não vão gostar. Acabamos de receber o relatório preliminar do legista. Não encontraram resíduos de pólvora na mão do morto. Embora o fato não seja conclusivo, uma vez que a pólvora pode dissolver-se, ele depõe contra a idéia de um ferimento auto-infligido. O que confirma a hipótese, porém, é a fratura no crânio.

— O quê? — Sam e Gillis inquiriram ao mesmo tempo.

— Uma fratura depressiva no osso parietal direito. Por causa dos danos causados pela bala nos tecidos, foi impossível notar de imediato. Mas, nas radiografias, a fratura é clara. Jimmy Brogan foi atingido na cabeça. Antes do tiro.

O silêncio estendeu-se por um longo instante. Então, Gillis falou:

— E eu quase acreditei!

— O sujeito é bom — Sam concluiu —, mas não é bom o bastante. Cooley, quero mais informações sobre Brogan. Ponha sua equipe a trabalho e descubram todos os amigos e conhecidos que Brogan tinha. Conversem com todos eles. Parece que o nosso zelador envolveu-se com o cara errado. Talvez alguém saiba de alguma coisa, tenha visto alguma coisa.

— Os rapazes da Homicídios não farão esse trabalho?

— Faremos o mesmo. Eles podem deixar passar alguma coisa. E não se metam em disputas infantis, está bem? Não queremos roubar-lhes a glória. Só queremos apanhar quem armou aquela bomba.

Cooley suspirou e pôs-se de pé.

— Acho que devemos voltar à viúva Brogan.

— Gillis — Sam continuou —, quero que fale de novo com o padrinho e a dama de honra. Veja se eles têm alguma ligação com Brogan, se reconhecem sua foto. Voltarei ao hospital e conversarei com o reverendo Sullivan. E falarei com Robert Bledsoe, também.

— E quanto à noiva? — Gillis perguntou.

— Já a interroguei mais de uma vez. Ela diz não saber de nada sobre o homem.

— Ela parece ser o centro de tudo.

— Eu sei. E não faz a menor idéia do porquê. Mas, talvez, o ex-noivo saiba.

A reunião terminou e cada um tratou de cuidar de mas tarefas. Seria preciso um bom trabalho de equipe para encontrarem o responsável pela bomba e, embora Contasse com bons homens trabalhando, Sam sabia que O número deles não era suficiente. Desde a morte daquele novato na explosão do armazém, uma semana antes, o pessoal de Homicídios assumira o caso, e estavam utilizando todos os homens e recursos que podiam. Para Homicídios, o esquadrão antibombas não passava de um bando de "técnicos", os caras que eram chamados quando eles não queriam arriscar a própria cabeça a ir pelos ares.

Os rapazes de Homicídios eram muito espertos.

Mas os rapazes do antibombas eram ainda mais espertos.

Foi por isso que Sam foi em pessoa ao Centro Médico Maine, para interrogar o reverendo Sullivan. As últimas informações sobre a morte de Jimmy Brogan haviam aberto um novo leque de possibilidades. Talvez Brogan fosse apenas uma vítima inocente. Poderia ter testemunhando algo estranho e contado ao padre.

No hospital, Sam foi informado de que o reverendo Sullivan fora transferido da UTI para um quarto, uma vez que o risco de ataque cardíaco estivesse definitivamente fora de questão.

Ao entrar no quarto, Sam encontrou o padre recostado nos travesseiros, com expressão sombria. Outro visitante chegara antes: Dick Yeats, de Homicídios. O detetive não constava da lista de pessoas favoritas de Sam.

— Olá, Navarro! — Yeats cumprimentou-o em seu tom cínico. — Não há a menor necessidade de estar aqui. Estamos no controle do caso Brogan.

— Gostaria de conversar com o reverendo Sullivan.

— Ele não sabe de nada que possa nos ajudar.

— Mesmo assim, gostaria de fazer minhas próprias perguntas.

— Como quiser — Yeats falou, ao dirigir-se para a porta. — Só acho que o pessoal de antibombas poderia usar melhor o seu tempo, se deixassem o pessoal de Homicídios fazer o seu trabalho.

Sam virou-se para o padre, que parecia mais do que infeliz diante da perspectiva de conversar ainda com outro policial.

— Sinto muito, reverendo, mas tenho de lhe fazer mais algumas perguntas.

O padre suspirou, evidentemente cansado.

— Não tenho mais nada a dizer, além do que já disse ao seu colega.

— Foi informado sobre a morte de Brogan?

— Sim, aquele detetive... o sujeito de Homicídios...

— Detetive Yeats.

— Ele foi mais exato do que o necessário. Eu não precisava de todos aqueles... detalhes.

Sam sentou-se. O padre apresentava-se menos pálido, mas ainda parecia muito frágil. Os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas haviam sido devastadores para ele. Primeiro, a destruição de sua igreja e, então, a morte violenta de seu zelador. Sam detestava pressionar ainda mais o pobre homem, mas não tinha escolha.

Infelizmente, não obteve nenhuma novidade. O reverendo Sullivan não sabia nada sobre a vida pessoal de Brogan. Nem podia pensar numa razão para Brogan, ou qualquer outra pessoa, bombardear a igreja do Bom Pastor. Ele relatou apenas pequenos incidentes sem importância, como alguns atos de vandalismo e o roubo da caixinha. Fora por isso que passara a fechar as portas durante a noite, o que lamentava profundamente, uma vez que acreditava que as igrejas deveriam permanecer abertas para os necessitados dia e noite. No entanto, a companhia de seguros insistira e o reverendo Sullivan instruíra seus funcionários para fecharem as portas às seis da tarde e reabri-las às sete da manhã.

— E não houve mais atos de vandalismo, depois disso? — Sam perguntou.

— Nenhum... até a explosão da bomba.

Estava num beco sem saída, Sam pensou. Yeats tinha razão. Não conseguiria nada de novo por ali.

Quando se levantava para sair, ouviu uma batida na porta. Em seguida, uma mulher corpulenta apareceu na fresta.

— Reverendo Sullivan? — ela chamou. — Está disposto a receber visitas?

O ar sombrio do padre logo se transformou em alívio. Gratidão.

— Helen! Que bom que voltou! Já soube do que aconteceu?

— Vi na televisão, hoje de manhã. Assim que soube, fiz as malas e voltei para casa. — Aproximou-se da cama e abraçou o padre com lágrimas nos olhos. — Acabei de passar em frente à igreja. Quanta destruição!

— Ainda não sabe o pior — disse o reverendo Sullivan, engolindo seco. — Jimmy está morto.

— Ah, meu Deus! — Helen recuou horrorizada. — Foi... na explosão?

— Não. Estão dizendo que se matou com um tiro. Eu nem sabia que ele tinha uma arma.

Helen pareceu oscilar e Sam correu para ampará-la e levá-la à poltrona que ele mesmo ocupara até momentos antes. Ela se sentou trêmula e pálida, atordoada pelas notícias.

— Com licença, madame — Sam falou com gentileza. — Sou o detetive Navarro, polícia de Portland. Posso perguntar-lhe seu nome completo?

— Helen Whipple.

— Trabalha como secretária na igreja?

— Sim, sim.

— Estávamos tentando localizá-la, srta. Whipple.

— Eu estava na casa de minha irmã, em Amherst. Não consigo acreditar... Vi Jimmy ainda ontem... Não dá para acreditar que esteja morto.

— Viu Brogan? A que horas?

— De manhã, antes de deixar a cidade. Parei para pagar algumas contas, antes de viajar.

— Conversou com ele?

— Naturalmente. Jimmy é tão... — ela conteve um soluço —, era tão amigável. Sempre ia ao escritório para conversar. Como eu estava saindo de férias e o reverendo Sullivan ainda não havia chegado, pedi a ele para fazer algumas coisinhas para mim.

— Que coisas?

— Ah, aquilo estava uma confusão, por causa do casamento. O florista não parava de entrar no escritório para usar o telefone. A pia do banheiro masculino estava vazando e precisávamos consertá-la logo. Tive de dar a Jimmy algumas instruções de última hora. Desde onde colocar os presentes até que encanador chamar. Fiquei tão aliviada quando o reverendo Sullivan chegou e eu pude ir embora.

— Desculpe, senhorita — Sam interrompeu-a —, mas falou algo sobre presentes de casamento?

— Sim. Ah, é uma chateação, sabia? Algumas pessoas insistem em mandar seus presentes para a igreja, em vez de para a casa da noiva, como seria correto.

— Quantos presentes foram entregues na igreja?

— Só um. Jimmy... Ah, pobre Jimmy! Não é justo! E sua esposa...

Sam lutou para não perder a paciência.

— E quanto ao presente?

— Ah, sim. Jimmy disse que um homem o entregara. Mostrou-me o embrulho. Era muito bonito, com aquele papel prateado e laçarotes coloridos.

— Srta. Whipple, o que fizeram com o presente?

— Ah, eu não sei. Pedi a Jimmy que entregasse à mãe da noiva. Imagino que ele tenha feito isso.

— Mas a mãe da noiva ainda não havia chegado. O que Jimmy poderia ter feito com o embrulho?

Helen deu de ombros.

— Imagino que ele o deixaria onde ela não pudesse deixar de vê-lo, no primeiro banco da igreja.

O primeiro banco. O centro da explosão.

— A quem estava endereçado o presente?

— À noiva e ao noivo, claro.

— Dr. Bledsoe e sua noiva?

— Sim. Foi o que li no cartão, Dr. e sra. Robert Bledsoe.

As peças começavam a se juntar, Sam pensou ao entrar no carro. O método de entrega. O momento da explosão. Mas o alvo ainda não estava claro. Quem deveria morrer? Nina Cormier ou Robert Bledsoe? Ou ambos?

Como ele já sabia, Nina não tinha nenhuma resposta, ou conhecimento de qualquer inimigo. Ela não poderia ajudá-lo.

Assim, Sam dirigiu-se à Ocean View Drive, para a casa de Robert Bledsoe. Desta vez, Bledsoe teria de lhe responder algumas perguntas, a começar por quem era a outra mulher com quem vinha mantendo um relacionamento e se ela seria ciumenta o bastante para chegar ao ponto de sabotar o casamento do amante. E matar uma dúzia de pessoas para isso.

Dois quarteirões antes, Sam deu-se conta de que havia algo errado. Viu as luzes dos carros de polícia e a multidão reunida na calçada.

Sam estacionou depressa e abriu caminho por entre os espectadores. A entrada da garagem de Bledsoe fora bloqueada por uma fita amarela da polícia. Sam exibiu suas credenciais e entrou apressado.

O detetive de Homicídios, Dick Yeats, cumprimentou-o com o seu familiar ar de superioridade.

— Olá de novo, Navarro. Já temos a situação sob controle.

— O que está sob controle? O que aconteceu?

Yeats apontou para o BMW estacionado na garagem. Devagar, Sam deu a volta pela traseira do carro. Só então viu o sangue. Estava espalhado sobre o volante e o banco do motorista, além de ter escorrido para o chão.

— Robert Bledsoe — Yeats esclareceu. — Levou um tiro na têmpora. A ambulância acabou de sair. Ele ainda está vivo, mas não acho que tenha a menor chance. Tinha acabado de chegar e ia sair do carro. Encontramos um saco com compras de supermercado no porta-malas. A vizinha viu um jipe verde afastar-se pouco antes de avistar o corpo de Bledsoe. Ela acha que um homem o dirigia, mas não conseguiu ver-lhe o rosto.

— Um homem? — Sam repetiu sobressaltado. — De cabelos escuros?

— Sim.

— Ah, meu Deus!

Sam virou-se e encaminhou-se para seu carro. Nina, pensou, e, de repente, estava correndo. Um homem de cabelos escuros a jogara para fora da estrada. Agora, Bledsoe estava morto. Seria Nina o próximo alvo?

Sam ouviu Yeats gritar seu nome, mas a essa altura já estava dando a partida no motor e saindo em disparada.

Dirigiu com a sirene ligada até a casa de George Cormier.

Pareceu-lhe estar tocando a campainha havia uma eternidade, sem que ninguém atendesse, quando a porta se abriu e o rosto perfeito de Daniella abriu-se num sorriso.

— Ora, como vai, detetive?

— Onde está Nina? — ele inquiriu, passando por ela e entrando na casa.

— Está lá em cima. Por quê?

— Preciso falar com ela. Agora.

Já ia subir a escada quando ouviu passos. Olhou para cima e a viu no patamar, os cabelos negros soltos numa cascata sedosa.

Ela está bem, pensou aliviado. Ela ainda está bem.

Nina vestia calça jeans e camiseta e levava uma bolsa ao ombro, como se estivesse prestes a sair.

A medida que ela descia a escada, o ar enchia-se do aroma de sabonete e xampu. O perfume de Nina, Sam pensou, com um delicioso senso de reconhecimento. Desde quando guardara o perfume dela na memória?

Quando chegou ao último degrau, Nina o fitava de cenho franzido.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou.

— Ninguém telefonou para você?

— Por quê?

— Robert.

Ela ficou imóvel, fitando-o com olhar intenso. Sam percebeu todas as perguntas que atormentavam aqueles grandes olhos castanhos. Mas ela não conseguia encontrar coragem para formulá-las.

Ele tomou-lhe a mão. Estava fria.

— É melhor vir comigo.

— Para onde?

— Para o hospital. Foi para onde o levaram.

Com delicadeza, Sam levou-a para a porta.

— Espere! — Daniella gritou.

Sam olhou para trás. Daniella parecia petrificada, fitando-os com ar de pânico.

— O que houve com Robert? O que aconteceu?

— Ele levou um tiro. Aconteceu há pouco, do lado de fora da garagem da casa dele. Receio que seu estado não seja nada bom.

Daniella recuou um passo, como se houvesse recebido um golpe físico. Foi sua reação, aquela expressão de horror em seus olhos, que disse a Sam tudo o que ele precisava saber. Então, era ela a outra mulher, ele pensou. Aquela loira, com seu corpo escultural e rosto perfeito.

Sentiu o braço de Nina tremer em sua mão. Levou-a para fora.

— É melhor irmos embora. Talvez não tenhamos muito tempo.

 

Passaram as quatro horas seguintes na sala de espera do hospital.

Embora Nina não fizesse parte da equipe que naquele momento lutava para salvar a vida de Robert, ela podia imaginar claramente o que se passava na sala de cirurgia. A corrida contra o tempo, a luta para controlar a hemorragia do paciente, para manter sua pressão sangüínea, seus batimentos cardíacos. .Conhecia tudo muito bem pois, em outras vezes, com outros pacientes, ela fizera parte da equipe. Agora, via-se relegada àquela função inútil de sentar-se e esperar. Embora seu relacionamento com Robert houvesse terminado de maneira irrevogável, embora não o houvesse perdoado a traição, era óbvio que não desejava-lhe nenhum mal.

Muito menos a morte.

Só a presença de Sam a mantinha calma durante aquela longa noite. Outros policiais entravam e saíam. À medida que as horas passavam, somente Sam permanecia a seu lado, a mão segurando a sua com firmeza, num gesto de apoio silencioso. Embora estivesse evidentemente cansado, ele não a deixou. Ficou a seu lado até as dez horas.

E estava ali quando o neurocirurgião veio informá-los de que Robert morrera na mesa de operações.

Nina assimilou o golpe em silêncio. Estava atordoada demais para derramar lágrimas, ou dizer qualquer coisa além de "Obrigada por ter tentado". Mal se deu conta do braço de Sam em torno de si. Foi somente quando as pernas falharam que ela sentiu todo o apoio e suporte que ele lhe oferecia.

— Vou levá-la para casa — ele falou. — Não há mais nada que possa fazer aqui.

Ela assentiu. Sam começou a levá-la na direção da saída, quando uma voz chamou:

— Srta. Cormier? Preciso que responda mais algumas perguntas.

Nina virou-se e deparou com o sujeito mal-encarado que a chamara. Não recordava o nome dele, mas sabia que era um policial. Ele entrara na sala de espera diversas vezes. Agora, ele a estudava com atenção, e Nina não gostou nem um pouco do que viu naqueles olhos.

— Agora, não, Yeats. A hora é péssima — Sam declarou levando-a para a porta.

— É o melhor momento para fazer perguntas. Logo após o evento.

— Ela já me disse que não sabia nada a respeito.

— Ela não disse para mim. Srta. Cormier, trabalho em Homicídios. Seu noivo não chegou a recuperar a consciência, portanto não pudemos interrogá-lo. E por isso que preciso falar com a senhorita. Onde estava hoje à tarde?

Confusa, Nina sacudiu a cabeça.

— Estava na casa de meu pai. Só fiquei sabendo do que havia acontecido quando...

— Quando eu contei a ela — Sam completou.

— Você, Navarro?

— Fui direto da cena do crime para a casa do pai dela. Nina estava lá. Pode pedir a Daniella Cormier que confirme os fatos.

— Farei isso. — Yeats voltou a encarar Nina. — Pelo que sei, você e o dr. Bledsoe haviam cancelado o casamento e você estava se mudando da casa dele.

— É verdade — Nina confirmou.

— Imagino que tenha ficado muito magoada. Chegou a considerar a possibilidade de... digamos, vingar-se dele?

Horrorizada pelas implicações daquela pergunta, ela sacudiu a cabeça com violência.

— Não está pensando que eu... que tive algo a ver com o que aconteceu, está?

— Responda.

Sam colocou-se entre os dois.

— Já chega, Yeats.

— O que você é, afinal, Navarro? O advogado dela?

— Ela não é obrigada a responder suas perguntas.

— E, sim. Talvez não esta noite. Mas terá de responder todas as minhas perguntas, sim, senhor.

Sam pegou Nina pelo braço e levou-a para fora.

— Cuidado, Navarro! — Yeats gritou atrás deles. — Está pisando em ovos.

Embora Sam não respondesse, Nina pôde sentir-lhe a fúria contida. Quando entraram no carro, ela falou:

— Obrigada, Sam.

— Por quê?

— Por ter me tirado de perto daquele homem horrível.

— Mais cedo ou mais tarde, você terá de falar com ele. Yeats pode ser insuportável, mas tem um trabalho a fazer.

Assim como você, ela pensou com uma pontada de tristeza. Virou-se para a janela. Ele voltara a ser o tira. Sempre o tira, tentando solucionar o quebra-cabeças. Ela não passava de mais uma peça no jogo.

— Terá de conversar com ele amanhã — Sam informou-a. — Devo avisá-la que ele costuma ser duro em seus interrogatórios.

— Não tenho nada para dizer a ele. Eu estava na casa de meu pai. Você sabe disso. E Daniella vai confirmar tudo.

— Ninguém poderá derrubar o seu álibi. Mas um assassinato não precisa ser, necessariamente, cometido em pessoa. Pode-se contratar um matador profissional.

Nina encarou-o incrédula.

— Você não está pensando...

— Estou apenas dizendo que esta será a lógica utilizada por Yeats. Quando alguém é assassinado, o suspeito número um é sempre o cônjuge ou amante. Você e Bledsoe acabaram de romper o noivado, da maneira mais pública e dolorosa possível. Não é preciso nenhum esforço de raciocínio lógico para se concluir sobre intenções assassinas de sua parte.

— Não sou uma assassina! Você sabe disso!

Ele não respondeu. Limitou-se a dirigir em silêncio, como se não houvesse registrado uma palavra sequer.

— Navarro, está me ouvindo? Não sou uma assassina!

— Eu ouvi.

— Então, por que não diz nada?

— Porque acho que temos novidades.

Só então Nina percebeu que ele olhava fixamente para o espelho retrovisor. Sam apanhou o telefone e discou.

— Gillis? Faça-me um favor. Descubra se Yeats designou alguém para seguir Nina Cormier. Sim, agora mesmo. Estou no carro. Ligue de volta.

Desligou.

Nina olhou para trás e viu o par de faróis atrás deles.

— Alguém está nos seguindo?

— Não tenho certeza. Só sei que aquele carro está atrás de nós desde que saímos do hospital.

— Seu colega de Homicídios deve mesmo acreditar que sou perigosa, para pôr um policial atrás de mim.

— Ele só está de olho vivo em sua principal suspeita.

Eu, ela pensou, afundando no banco e sentindo-se grata pela escuridão que escondia seu rosto. Perguntou-se se também seria a principal suspeita de Sam.

Ele dirigia com calma, sem fazer nenhuma manobra brusca que pudesse alarmar o motorista que os seguia. Naquele silêncio, o toque do telefone sobressaltou-os.

Sam atendeu:

— Navarro. — Fez uma pausa e falou: — Tem certeza? — Outra pausa. — Estou no cruzamento da Congress e Braeburn, no sentido oeste. Há um carro escuro, parece um jipe Cherokee, bem atrás de mim. Vou dar a volta e passar pela Houlton. Se você estiver lá, faremos um sanduíche desse cara. Não o assuste. Por enquanto, só se aproxime para dar uma boa olhada. Estou fazendo a volta, agora. Estarei aí em cinco minutos. — Sam desligou  e lançou um olhar nervoso para Nina. — Compreende o que está se passando?

— O que está se passando?

— Não é um tira quem está nos seguindo.

Ela olhou para os faróis. Não era um tira.

— Então, quem é?

— Vamos descobrir. Agora, ouça bem. Dentro de um minuto, quero que se abaixe no chão. Não agora. Não quero despertar as suspeitas do homem atrás de nós. Mas, quando Gillis se colocar atrás dele, a situação poderá esquentar. Está preparada para isso?

— Acho que não tenho escolha.

Sam fez a volta devagar, como se houvesse simplesmente decidido seguir por um caminho diferente.

O outro carro fez o mesmo.

Sam voltou à Congress Street. Iam para o leste, agora, voltando pelo mesmo caminho. O par de faróis ainda os seguia. As dez horas da noite de um domingo, o trânsito era calmo, o que facilitava-lhe ficar de olho no carro que os seguia.

— Lá está Gillis — Sam falou. — Bem na hora. Apontou para o Toyota azul que fazia a curva lentamente. — Agora, vamos ao sanduíche.

Estavam chegando a um semáforo que acabara de mudar para amarelo. Sam diminuiu a velocidade de propósito, a fim de manter os dois carros atrás de si.

De repente, o Cherokee saiu para a pista da esquerda, rangendo os pneus, e atravessou o cruzamento no instante em que o semáforo mudou para vermelho.

Sam murmurou um palavrão e pisou no acelerador.

Também atravessou o farol vermelho, tendo de desviar de uma camionete, numa manobra arriscada.

Um quarteirão adiante, o Cherokee dobrou à direita.

— Esse cara é esperto — Sam resmungou. — Percebeu que o estávamos encurralando.

— Cuidado! — Nina gritou, ao ver um outro carro deixar o meio-fio, bem à sua frente.

Sam buzinou e passou.

Isto é uma loucura, Nina pensou; estou passeando com um tira maníaco ao volante.

Viraram uma esquina e seguiram por uma ruela estreita. Agarrada ao painel, Nina teve uma visão confusa de latas de lixo voando, à medida que avançavam.

Ao chegarem ao final da ruela, Sam brecou.

Não havia sinal do Cherokee.

O Toyota de Gillis parou rangendo pneus bem atrás deles.

— Para que lado? — Gillis gritou.

— Não sei! — Sam respondeu. — Vou para o leste. Virou para a direita. Nina viu Gillis ir para a esquerda.

Certamente, um dos dois acabaria localizando sua presa. Quatro quarteirões adiante, ainda não haviam encontrado sinal do Cherokee. Sam apanhou o telefone e ligou para Gillis.

— Nada por aqui. E você, encontrou algo? — Ouviu a resposta e emitiu um som de decepção. — Está bem. Ao menos, agora temos o número da placa. Falaremos mais tarde.

Desligou.

— Então Gillis anotou a placa? — Nina perguntou.

— É de Massachusetts. Gillis já informou a central. Com um pouco de sorte, um dos carros-patrulha o apanhará. Não estou certo de que deva voltar à casa de seu pai.

Seus olhares se cruzaram por um longo momento. O que Nina viu naqueles olhos verdes confirmou seus temores.

— Acha que ele estava me seguindo — murmurou.

— Só queria entender por quê. Algo muito estranho está acontecendo, e envolve você e Robert. Tem de saber do que se trata.

Ela sacudiu a cabeça.

— Deve ser um engano. Só pode ser.

— Alguém não está poupando trabalho para garantir que vocês dois morram. Não acredito que ele, ou ela, se enganaria quanto ao alvo.

— Ela? Acredita que...

— Como já disse, um assassinato não tem de ser cometido em pessoa. Pode ser contratado e comprado. E pode ser que estejamos lidando com algo assim. Estou cada vez mais certo disso. Trata-se de um profissional.

Nina tremia, incapaz de falar ou de discutir. O homem a seu lado falava com tamanha naturalidade. Não era a vida dele que se encontrava ameaçada.

— Sei que não é fácil aceitar tudo isto — Sam continuou. — Mas, no seu caso, negar a realidade pode ser fatal. Portanto, vou falar com clareza. Robert está morto e você pode ser a próxima vítima.

Nina perguntou-se, mais uma vez, porque alguém desejaria matá-la. Não representava ameaça para ninguém.

— Não podemos colocar a culpa em Jimmy Brogan — Sam falou. — Acho que ele esteve inocente em tudo. Apenas viu algo que não deveria e livraram-se dele. Então, armaram a cena, para que sua morte parecesse suicídio e nós o considerássemos culpado. Foi tudo armado para desviar nossa investigação sobre a bomba. Nosso assassino é muito esperto. E bastante específico quanto a seus alvos. — Sam fitou-a e continuou em seu tom lógico. — Descobri uma outra coisa, hoje. Na manhã de seu casamento, um presente foi entregue na igreja. Jimmy Brogan deve ter visto o rosto do homem que o entregou. Acreditamos que Brogan tenha deixado o embrulho no primeiro banco da igreja, bem onde localizamos o centro da explosão. O presente estava endereçado a você e Robert.

Sam fez uma pausa, como se esperasse que Nina argumentasse contra a sua teoria.

Ela não foi capaz de manifestar-se. As informações estava chegando depressa demais, e ela encontrava dificuldade em digerir as implicações terríveis.

— Ajude-me, Nina — Sam incitou-a. — Dê-me um nome, um motivo.

— Já disse — ela falou com voz trêmula —, eu não sei!

— Robert admitiu que tinha outra mulher. Tem idéia de quem seja?

— Não.

— Alguma vez ocorreu a você que Robert e Daniella fossem mais íntimos do que deveriam?

Nina ficou imóvel. Daniella? A esposa de seu pai? Fez uma retrospectiva mental dos últimos seis meses. Lembrou-se das noites que ela e Robert haviam passado na casa de seu pai. Todos os convites, jantares. Sentira-se feliz pelo fato de seu noivo ter sido aceito com tanta facilidade e rapidez pelo pai e Daniella; feliz porque, ao menos uma vez, a harmonia fora alcançada na família Cormier. Daniella, que nunca fora muito chegada à enteada, passara a incluir Nina e Robert em todas as suas listas de convidados.

Daniella e Robert...

— Esta é outra razão — Sam falou — pela qual não acho que você deva voltar para a casa de seu pai.

Ela virou-se para fitá-lo.

— Você acha que Daniella...

— Ela será interrogada novamente.

— Mas, por que ela mataria Robert, se estava apaixonada por ele?

— Ciúmes! Se ela não podia tê-lo, então, ninguém mais o teria.

— Mas ele já havia cancelado o casamento! Estava tudo acabado entre nós!

— De verdade?

Embora a pergunta fosse formulada em voz baixa, Nina pressentiu a tensão contida por trás das palavras.

— Você estava lá, Sam. Ouviu nossa discussão. Ele não me amava. As vezes, acho que nunca amou. Para ele, estava tudo definitivamente terminado.

— E para você?

Os olhos de Nina encheram-se de lágrimas. Durante toda a noite, conseguira não chorar, não desmoronar. Ao longo daquelas horas de espera interminável, no hospital, ela se envolvera tão completamente por um manto de insensibilidade que, quando recebera a notícia da morte de Robert, registrara o fato em algum canto distante da mente, sem ter realmente sentido o que acontecera. Não sentira o choque, nem a dor. E sabia que deveria estar sofrendo. Por mais que Robert a tivesse magoado, por mais amarga que houvesse sido a separação, Robert ainda era o homem com quem ela vivera durante o último ano de sua vida.

Agora, tudo parecia uma vida diferente. Não era a dela, nem a de Robert. Tudo não passava de um sonho, sem a menor base na realidade.

Começou a chorar. Não eram lágrimas de dor, mas de puro cansaço.

Sam não disse nada. Continuou dirigindo, enquanto a mulher a seu lado derramava suas lágrimas silenciosas. Tinha muito a dizer. Queria dizer que Robert Bledsoe fora um patife, que não merecia aquelas lágrimas. Mas não era possível argumentar com lógica com uma mulher apaixonada. E ele estava certo de que Nina amava Bledsoe. Afinal, aquela era a explicação óbvia daquelas lágrimas.

Segurou o volante com força, sentindo a frustração castigar-lhe o peito. Sentiu-se frustrado diante da própria inabilidade de confortá-la. Os Roberts da vida não mereciam as lágrimas de mulher alguma mas, ainda assim, eram eles os homens por quem elas sempre choravam. Os garotos de ouro. Olhou para Nina, encolhida junto à porta do carro, e sentiu uma onda de simpatia. E algo mais, algo que o surpreendeu. Desejo.

No mesmo instante, reprimiu o sentimento. Aquele era mais um sinal de que não deveria estar naquela situação. Era normal um policial sentir simpatia, mas, quando os sentimentos atravessavam aquela linha invisível que os separavam de emoções mais perigosas, estava na hora de pular fora.

Mas não posso pular fora, pensou, ao menos, enquanto não tiver a certeza de que ela se encontra em segurança.

Sem olhar para ela, disse:

— Não pode ir para a casa de seu pai. Nem para a de sua mãe, pois não é segura. Não possui sistema de alarme, ou portões. E seria muito fácil o assassino encontrá-la lá.

— Eu... aluguei um apartamento, hoje. Ainda está sem mobília, mas...

— Imagino que Daniella saiba disso.

— Sim, ela sabe.

— Então, está fora de questão. E quanto aos seus amigos?

— Todos têm filhos. Se souberem que um assassino está à minha procura... Irei para um hotel.

Sam olhou para Nina e notou que ela endireitara as costas, tentando assumir uma aparência corajosa. Mas era só aparência. O que poderia fazer agora? Ela estava apavorada e tinha razões para isso. Estavam ambos exaustos. Ele não poderia, simplesmente, deixá-la em um hotel qualquer, àquela hora da noite. Não poderia deixá-la sozinha. Quem quer que estivesse tentando apanhá-la, fizera um trabalho dos mais eficientes ao se livrar de Brogan e Bledsoe. Para um assassino assim, localizar Nina seria uma brincadeira de criança.

A entrada para a Rota 1 norte estava bem à sua frente. Decidiu tomá-la.

Vinte minutos depois, passavam por entre um denso bosque. Ali, as casas eram escassas e distantes umas das outras. Mas as árvores haviam sido o principal motivo da atração de Sam por aquela região. Quando garoto, tanto em Boston quanto em Portland, sempre vivera no coração da cidade. Embora houvesse crescido entre concreto e asfalto, sempre fora sensível ao apelo do campo. Todo verão ia para o norte, para pescar em sua cabana à margem do lago.

Pelo resto do ano, tinha de se satisfazer com sua casa naquela região sossegada e arborizada.

Seguiu pela estrada de terra particular, que atravessava o bosque, antes de alargar-se na entrada de sua garagem. Foi somente quando desligou o motor e olhou para a casa que Sam foi assaltado pela dúvida. A casa não era nada de que pudesse gabar-se. Tratava-se de um chalé de dois quartos, feita de cedro, dois anos antes. E, quanto ao interior, ele não saberia dizer se estava apresentável.

Bem, não havia como mudar de planos, agora.

Saiu do carro e deu a volta para abrir a porta de Nina. Ela também saiu, olhando confusa para a casinha no meio do bosque.

— Onde estamos? — ela perguntou.

— Num lugar seguro. Mais seguro que qualquer hotel. É só por esta noite. Até conseguirmos um lugar melhor.

— Quem vive aqui?

— Eu.

Se o fato a perturbou, ela não demonstrou. Talvez estivesse cansada e assustada demais para importa-se. Em silêncio, esperou que ele abrisse a porta. Sam entrou logo atrás dela e acendeu a luz.

Depois de uma olhada rápida pela sala, murmurou uma prece de agradecimento. Não havia roupas sobre o sofá nem pratos sujos na mesinha. Não que o lugar fosse um exemplo de limpeza e organização. Com jornais espalhados e poeira acumulada nos cantos, o lugar apresentava aquele ar característico de recanto do solteirão. Mas, ao menos, também não lembrava um campo de batalha.

Sam trancou a porta.

Nina continuou parada, com ar confuso. Talvez fosse a condição da casa. Sam tocou-lhe o ombro e ela sobressaltou-se.

— Você está bem? — ele perguntou.

— Sim, estou.

— Não parece.

Na verdade, ela não parecia nada bem, com os olhos vermelhos de tanto chorar, as faces pálidas. Sam foi invadido pelo impulso de tomar aquele rosto entre as mãos e beijá-la. Má idéia. Estava se transformando num mo-lenga diante de mulheres em perigo. E aquela mulher estava, definitivamente, correndo sério perigo.

Virou-se e foi até o que deveria ser o quarto de hóspedes. Quando viu a bagunça, descartou a idéia. Aquilo não era lugar para se alojar um hóspede. Nem um inimigo. Só restava uma solução: ele dormiria no sofá e Nina dormiria em sua cama.

Lençóis. Ah, teria lençóis limpos?

Procurou no armário e, finalmente, encontrou um jogo limpo. Tudo estava se resolvendo, afinal. Virou-se e viu-se frente a frente com Nina.

Ela estendeu os braços para apanhar os lençóis.

— Arrumarei o sofá.

— Estes lençóis são para arrumar a cama. Você dormirá no meu quarto.

— Não, Sam. Já me sinto culpada demais. Deixe-me dormir no sofá.

Algo na maneira como ela o fitou disse a Sam que ela. estava cansada de aceitar o papel de objeto de piedade alheia. Ele lhe entregou os lençóis e um cobertor.

— Não é um sofá confortável. Não se importa?

— Tenho enfrentado muitos desconfortes, ultimamente. Nem percebi alguns deles.

Quase uma piada. Aquele era um bom sinal. Nina estava lutando para se recuperar, o que constituía um esforço admirável.

Enquanto ela arrumava o sofá, Sam foi à cozinha e telefonou para Gillis.

— Conseguimos informações sobre aquela placa de Massachusetts — Gillis anunciou. — Foi roubado há duas semanas. Ainda não conseguiram apanhá-lo. Cara, o sujeito é rápido!

— E perigoso.

— Acha que foi ele quem armou a bomba?

— Sim, e também quem matou nossas duas vítimas. Está tudo ligado, Gillis. Tem de estar.

— Como a explosão do armazém, na semana passada, se encaixa? Achamos que fosse um assunto de quadrilhas.

— Sim, uma advertência aos rivais de Billy Binford.

— Binford está na cadeia. Seu futuro não parece nada brilhante. Por que ele mandaria explodir uma igreja?

— A igreja não era o alvo, Gillis. Estou quase certo de que o alvo era Bledsoe ou Nina. Ou ambos.

— E como isso se liga a Binford?

—Não sei. Nina nunca ouviu falar nele. — Sam passou a mão pelo rosto, sentindo a barba crescida. Estava cansado demais para conseguir pensar em qualquer coisa. — Há um outro ângulo que devemos explorar. O velho crime passional. Você conversou com Daniella Cormier?

— Sim, logo depois da explosão. Que mulher!

— Notou algo estranho nela?

— A que está se referindo?

— Qualquer coisa incomum. As reações, as respostas.

— Não que me lembre. Ela se mostrou adequadamente chocada. No que está pensando?

— Acho que os rapazes de Homicídios deveriam ir até lá e conversar com ela ainda hoje.

— Passarei o recado para Yeats. Qual é o seu palpite?

— Ela e Robert Bledsoe estavam tendo um caso.

— E ela explodiu a igreja por ciúme? — Gillis riu alto. — Ela não me pareceu o tipo.

— Lembre-se do que dizem sobre esse tipo de mulher.

— Sim, mas não consigo imaginar aquela loira linda...

— Cuidado com os hormônios, Gillis.

O parceiro riu de novo.

— Se alguém está precisando cuidar dos hormônios, é você.

É o que tenho dito a mim mesmo, Sam pensou ao desligar. Permaneceu um momento na cozinha, dizendo a si mesmo tudo o que vinha repetindo, desde que conhecera Nina. Sou um tira, concluiu, estou aqui para servir e proteger... não para seduzir.

Não para me apaixonar...

Voltou para a sala. Bastou olhar para Nina para sentir sua determinação desvanecer. Ela estava junto à janela, espiando a escuridão lá fora. Não havia cortinas, pois Sam jamais sentira necessidade delas, ali em meio ao bosque. Agora, dava-se conta do quanto Nina estava aberta e vulnerável. E ficou mais preocupado do que gostaria de admitir.

— Eu me sentiria melhor se você não ficasse diante da janela — falou.

Ela virou, com olhar assustado.

— Acha que alguém pode ter nos seguido até aqui?

— Não. Mas gostaria que ficasse longe da janela, assim mesmo.

Nina foi sentar-se no sofá. Ela já transformara o sofá em cama e, só agora, Sam dava-se conta de como o cobertor estava surrado. Assim como os lençóis e a mobília. Aqueles eram detalhes que jamais o haviam incomodado antes. Havia tantos aspectos de sua vida de solteiro que não o incomodavam, simplesmente porque ele nunca parará para pensar sobre quanto sua vida poderia ser melhor, mais doce. Agora, com Nina sentada em sua sala, ele percebia a feiúra do ambiente. Era apenas a presença daquela mulher que dava vida ao aposento. E calor.

Logo, ela iria embora.

Quanto antes, melhor, disse a si mesmo. Antes que aquela presença criasse raízes mais profundas.

Andou de um lado para outro, procurando por algo para dizer.

— Deve estar com fome — falou afinal.

Ela sacudiu a cabeça.

— Nem posso pensar em comida. Não posso pensar em nada, senão...

— Robert?

Nina abaixou a cabeça e não respondeu. Estaria chorando de novo? Tinha esse direito. Mas ela se limitou a permanecer imóvel, em silêncio, como se lutasse para dominar as emoções.

Sam sentou-se na poltrona em frente a ela.

— Conte-me sobre Robert — falou. — Diga-me tudo o que sabe sobre ele.

Ela respirou fundo, antes de falar:

— Não sei o que dizer. Vivemos juntos por um ano. E, agora, sinto como se nunca o tivesse conhecido de verdade.

— Conheceram-se no trabalho?

— Sim, no pronto-socorro, turno da noite. Eu trabalhava lá havia três anos, quando Robert entrou para a equipe. Era um bom médico. Um dos melhores que já conheci. E era divertido conversar com ele. Já viajara para todos os lugares, feito de tudo. Lembro-me de que fiquei surpresa ao saber que não havia se casado.

— Nunca?

— Nunca. Disse que estava procurando pela mulher certa. Que ainda não havia encontrado a mulher com quem queria passar o resto de sua vida.

— Aos quarenta e um anos, ele devia ser mais do que um pouco exigente.

Nina fitou-o com um brilho divertido no olhar.

— Você não é casado, detetive. Quer dizer que é mais do que um pouco exigente?

— Está bem. Eu me declaro culpado da acusação. Mas, também, não tenho procurado de verdade.

— Não está interessado?

— Não tenho tempo para romances. E a natureza do meu trabalho.

Nina suspirou.

— Não, é a natureza da besta. Os homens simplesmente não desejam se casar.

— Eu disse isso?

— Trata-se de um conclusão que eu mesma tirei, depois de passar tantos anos solteira.

— Que somos todos iguais, uns ratos, e por aí afora? Vamos voltar a um rato específico. Robert. Disse que se conheceram no pronto-socorro. Foi amor à primeira vista?

Ela recostou no sofá, e Sam percebeu com clareza a dor provocada pelas lembranças.

— Não, não foi. Ao menos, não para mim. É claro que o achei atraente, na primeira vez em que o vi.

É claro, pensou Sam, com uma pontada de cinismo.

— Mas, quando ele me convidou para sair, não pensei que nosso relacionamento fosse continuar. Só me dei conta de que ele era um bom partido quando o apresentei à minha mãe. Mamãe ficou entusiasmadíssima com Robert. Todos esses anos, só namorei rapazes que ela considerava perdedores. E, então, eu apareço com um médico. Era mais do que ela jamais havia esperado de mim, e já começou a ouvir a Marcha Nupcial.

— E quanto a seu pai?

— Acho que ficou simplesmente aliviado pelo fato de eu estar namorando alguém que não se casaria comigo só por causa do dinheiro dele. Esta sempre foi a maior preocupação de papai. Seu dinheiro. E suas esposas. Ou melhor, seja quem for a esposa com quem ele esteja casado no momento.

Sam sacudiu a cabeça.

— Depois do que presenciou com os casamentos de seus pais, estou surpreso por você ainda querer se casar.

— Mas era justamente por isso que eu queria me casar! Para fazer dar certo. Nunca tive esse tipo de estabilidade em minha família. Meus pais se divorciaram quando eu tinha oito anos e, depois disso, foi um desfile interminável de madrastas e namorados de mamãe. Eu não queria viver a minha vida do mesmo jeito. Agora, eu me pergunto se não se trata de mais um mito urbano. Um casamento estável.

— Meus pais conseguiram. Tinham um bom casamento.

— Tinham?

— Antes de papai morrer. Era policial em Boston. Não completou seu vigésimo ano na polícia.

Sam falava sem olhar para Nina. Fixara um ponto distante, evitando qualquer demonstração de simpatia. Não queria a simpatia dela. As pessoas morriam, mas a vida continuava. Não havia escolha.

— Depois que meu pai morreu, mamãe e eu nos mudamos para Portland — ele continuou. — Ela queria viver numa cidade mais segura. Uma cidade onde ela não tivesse de viver preocupada com a possibilidade de seu filho levar um tiro na rua. — Sam riu. — Não ficou muito satisfeita, quando decidi me tornar um tira.

— E por que tomou essa decisão?

— Acho que foi genético. Por que você decidiu ser enfermeira?

— Definitivamente, não foi genética. Acho que eu queria ter aquela sensação de estar ajudando alguém, de uma maneira direta. Gosto do contato próximo. Isso era importante para mim. — Nina sorriu. — Disse que sua mãe não queria que se tornasse tira. Pois minha mãe não gostou nem um pouco da minha escolha de carreira.

— O que ela tem contra ser enfermeira?

— Nada. Apenas, não é a profissão adequada para a filha dela. Ela acha que é trabalho braçal, que outras mulheres deveriam fazer. Eu deveria fazer um bom casamento, me tornar uma excelente anfitriã e ajudar a humanidade organizando jantares beneficentes. Foi por isso que ela ficou tão feliz com meu noivado. Achou que, finalmente, eu tomara o caminho certo. Ela ficou... orgulhosa de mim, pela primeira vez na vida.

— Não foi por isso que decidiu casar-se com Robert, foi? Só para agradar sua mãe?

— Não sei. Já não sei dizer.

— E quanto ao amor? Devia amá-lo.

— Como posso ter certeza de alguma coisa? Acabo de descobrir que ele tinha outra mulher. E tenho a sensação de que estava vivendo uma simples fantasia. Apaixonada por um homem que eu inventei. — Nina fechou os olhos. — Não quero mais falar sobre isso.

— É importante que me conte tudo o que sabe. Que considere todas as razões possíveis para que alguém desejasse matá-lo. Um homem não se aproxima de outro e, simplesmente, dá-lhe um tiro na cabeça. O assassino tinha um motivo.

— Talvez hão. Talvez fosse um louco. Ou drogado. Robert pode apenas ter estado no lugar errado, na hora errada.

— Não acredita nisso, acredita?

— Não. Acho que não.

Sam observou-a por um momento, pensando no quanto ela lhe parecia vulnerável. Se fosse outro homem, já a estaria tomando nos braços e oferecendo-lhe o conforto de que ela precisava.

Então, sentiu-se revoltado consigo mesmo. Aquele era o pior momento para estar fazendo perguntas, para encenar o papel do tira. Porém, agir como tira era a única maneira de manter a distância necessária, de proteger-se... contra Nina.

Levantou-se.

— Acho que nós dois precisamos dormir um pouco.

Ela assentiu em silêncio.

— Se precisar de alguma coisa, meu quarto fica no final do corredor. Tem certeza de que não prefere dormir na minha cama e me deixar no sofá?

— Ficarei bem, aqui. Boa noite.

Aquela era a deixa para que ele se retirasse. E foi o que fez.

No quarto, Sam andou de um lado para o outro, enquanto desabotoava a camisa. Sentia-se mais inquieto do que cansado, a mente girando rápida. Nos últimos dois dias, uma igreja explodira, dois homens haviam sido mortos e uma mulher jogada para fora da estrada, numa aparente tentativa de assassinato. Estava certo de que tudo se conectava, talvez até a bomba do armazém, uma semana antes, mas não conseguia estabelecer a ligação. Talvez não estivesse conseguindo pensar com clareza, pois sua mente encontrava-se embriagada de hormônios.

Era tudo culpa dela. Ele não precisava nem queria aquela complicação. Por outro lado, não conseguia pensar naquele caso sem perder-se em pensamentos sobre ela.

E, agora, ela estava em sua casa.

Fazia muito, muito tempo que uma mulher não dormia sob seu teto. Seu último envolvimento fora um caso de poucas semanas com uma mulher que conhecera numa festa. Então, por acordo mútuo, terminara. Sem complicações nem corações partidos.

Sem muita satisfação, também.

Ultimamente, toda a satisfação que desfrutava vinha do desafio de seu trabalho. Ali estava algo com que podia contar: o mundo nunca deixaria de ter seus criminosos e psicopatas.

Apagou a luz e deitou-se, embora ainda não estivesse pronto para dormir. Pensou em Nina a poucos metros. Pensou no casal estranho que formariam. E em como a mãe dela ficaria horrorizada, se um tira começasse a andar com sua-filha. Se um tira tivesse a chance.

Fora um erro levar Nina para lá. E parecia que ele andava cometendo muitos erros, ultimamente. E não estava disposto a cometer mais um, apaixonando-se por ela. Amanhã, pensou, ela estará longe daqui. E eu voltarei a estar sob controle.

 

Nina sabia que deveria estar chorando, mas não conseguia. Deitada no sofá, na sala escura, pensou nos meses em que vivera com Robert, o período que imaginara ser o alicerce de seu casamento. Quando tudo tinha dado errado? Quando ele deixara de contar-lhe a verdade? Deveria ter percebido.

Lembrou-se de que, duas semanas antes, ele sugerira adiarem o casamento. Nina acreditara tratar-se do nervosismo usual de um noivo e, como a cerimônia e todos os outros detalhes estivessem preparados, não dera atenção ao assunto.

Ele devia ter se sentido preso numa armadilha.

Ah, Robert, pensou, por que não falou comigo honestamente?

Nina teria sido capaz de enfrentar a verdade, a dor, a rejeição. Afinal, era uma mulher forte e madura. O que não conseguia superar era a dor de saber que, durante tanto tempo, vivera ao lado de um homem que mal conhecia.

Agora, jamais saberia o que ele realmente sentira por ela. A morte de Robert tornara impossível qualquer chance que ela tivesse de compreendê-lo e perdoá-lo.

Finalmente, pegou no sono, mas o sofá era muito desconfortável e os sonhos não a deixavam em paz.

Não eram sonhos sobre Robert, mas sobre Sam Navarro.

Ele estava parado diante dela, os olhos desprovidos de emoção, como quem olha para um estranho. Estendeu as mãos, como se a chamasse para um abraço. Mas, quando ela abaixou os olhos, viu as algemas se fechando em torno de seus punhos.

— Você é culpada — ele dizia. — Culpada. Culpada.

Nina acordou com lágrimas nos olhos. Jamais em sua vida sentira-se tão sozinha. E estava mesmo só, reduzida à triste condição de ter de buscar refúgio na casa de um policial que não se importava a mínima com ela, que a considerava meramente como mais uma responsabilidade, mais uma dor de cabeça.

O movimento de uma sombra na janela chamou-lhe a atenção. Seu coração disparou. Nina fixou os olhos no vidro, à procura de outros sinais de movimento.

De novo. Uma sombra movendo-se lá fora.

No instante seguinte, Nina estava fora do sofá, correndo às cegas pelo corredor, na direção do quarto de Sam. Não bateu na porta, mas entrou apressada.

— Sam? — chamou baixinho. Ele não respondeu. Na urgência de acordá-lo, aproximou-se para sacudi-lo e suas mãos pousaram sobre a pele nua. — Sam!

Ele acordou sobressaltado.

— O que foi? — perguntou.

— Acho que tem,alguém lá fora!

Sam despertou completamente, saltou da cama e vestiu a calça.

— Fique aqui — sussurrou. — Não saia do quarto.

— O que vai fazer?

A resposta foi um clique metálico. Uma arma. Ora, ele tinha de ter uma arma. Afinal, era um tira.

— Fique aqui — ele repetiu, antes de sair do quarto.

É claro que ela não seria louca o bastante para andarpor uma casa escura, com um tira armado dentro dela. Apavorada, Nina permaneceu junto à porta, apurando os ouvidos. O silêncio era total. Teria Sam saído?

O som de passos aproximando-se puseram-na em pânico. Ela se afastou da porta e foi para o outro lado do quarto. Ao ver a silhueta na porta, escondeu-se atrás da cama. Só ergueu a cabeça quando ouviu a voz de Sam:

— Nina?

— Estou aqui — ela respondeu, sentindo-se ridícula ao sair de seu esconderijo.

— Não há ninguém lá fora.

— Mas eu vi alguém. Ou... alguma coisa.

— Pode ter sido um veado, uma coruja.

Sam deixou a arma sobre a mesa de cabeceira. Nina detestava armas, mas, nas circunstâncias atuais, não tinha escolha.

— Nina, sei que está assustada. Tem motivos de sobra para isso. Mas verifiquei a área e não há ninguém lá fora. — Sam estendeu os braços e tocou os dela. — Você está gelada!

— Estou com medo. Ah, Sam, estou tão apavorada...

Ele a segurou pelos ombros. A essa altura, Nina tremia tanto que já não conseguia falar. Desajeitado, ele a puxou para si, e ela aconchegou-se contra o peito largo. Se ao menos ele a abraçasse, se a envolvesse nos braços fortes e seguros... Quando Sam finalmente a abraçou, foi como se ela estivesse recebendo as boas vindas em sua própria casa. Sentiu-se envolvida em calor e segurança. Aquele não era o personagem de seu sonho, o tira frio e taciturno. Aquele era um homem que a abraçava e murmurava palavras de conforto em seu ouvido, que acariciava seus cabelos, que aproximava os lábios dos seus.

Foi um beijo terno e suave, muito diferente do que ela havia esperado de Sam Navarro. Na verdade, ela jamais se imaginara sendo abraçada e confortada por ele. Mas era o que estava acontecendo, e Nina descobriu-se mais protegida do que nunca.

Devagar, ele a levou para a cama e puxou as cobertas sobre seus corpos. Beijou-a mais uma vez, com gentileza e ternura. O calor da cama e da proximidade de seus corpos fez Nina parar de tremer. E ela começou a tomar consciência de outras coisas: o perfume da pele nua de Sam, peito largo e forte e, acima de tudo, o toque suave dos lábios dele nos seus.

Estavam muito próximos, os braços em torno um do outro, as pernas enroscando-se lentamente. O beijo ultrapassara os limites da ternura e do conforto e se transformara em desejo. Ao sentir a reação do corpo de Sam, Nina respondeu com a mesma intensidade.

Não havia esperado por isso, mas, à medida que o beijo tornava-se mais ardente, que a mão de Sam deslizava faminta pelas curvas de seu corpo, Nina dava-se conta de que aquele encontro era inevitável. Apesar da aparente frieza e dos olhares inescrutáveis, Sam possuía mais paixão que qualquer outro homem que ela conhecesse.

Ele foi o primeiro a recuperar o controle. De súbito, interrompeu o beijo, lutando para acalmar a respiração rápida.

— Sam?

Ele se afastou e sentou-se na beirada da cama. Nina observou-o passar as mãos pelos cabelos.

—Meu Deus — Sam murmurou. — O que estou fazendo?

Nina estendeu a mão e acariciou-lhe as costas. Sentiu sua reação de prazer e teve a certeza de que ele a desejava. Porém, Sam tinha razão. Aquilo era um grande erro. Ambos sabiam disso. Ela estava com medo, precisando de alguém que a protegesse. Ele era um homem sozinho, que não precisava de ninguém, mas, ainda assim, era um homem com suas necessidades. Era mais que natural que buscassem conforto nos braços um do outro, mesmo sabendo que a situação era temporária.

— Foi tão ruim? — ela murmurou. — O que houve entre nós há pouco?

— Não vou cometer o mesmo erro de novo. Não posso.

— Não precisamos assumir coisa alguma, Sam.

— É assim que você vê as coisas? Algo rápido e sem nenhum significado?

— Não. Não foi isso o que eu quis dizer.

— Mas é sempre assim que acaba. A armadilha clássica. Eu quero proteger você. Você precisa de um cavaleiro salvador. Será bom enquanto durar e, então, não restará nada. — Sam levantou-se. — Vou dormir no sofá.

Saiu do quarto.

Nina ficou sozinha da cama, tentando desfazer a confusão de emoções. Nada mais fazia sentido. Nada se encontrava sob controle. Tentou lembrar-se de quando sua vida era simples e tranqüila. Fora antes de Robert, antes de ela se deixar envolver pelas fantasias de um casamento perfeito. Fora aí que errara: ao acreditar em fantasias.

A realidade era que crescera num lar desfeito, assistindo à sucessão de padrastos e madrastas, filha de pais que se desprezavam. Até conhecer Robert, Nina nem sequer pensava em casar-se. Estivera contente com sua vida e seu trabalho. Fora isso o que sempre lhe dera o apoio necessário: o trabalho.

Podia recuperar aquela condição. E era o que ia fazer.

O sonho de um casamento feliz, aquela fantasia, estava fora de cogitação.

 

Sam acordou ao amanhecer. O sofá era mais desconfortável do que ele imaginara. Seu sono fora agitado, seu ombro doía e, às sete horas da manhã, ele não tinha a menor disposição para companhia. Por isso, quando o telefone tocou, ele teve de fazer um grande esforço para atender com civilidade.

— Alô?

— Navarro, você me deve uma explicação — Abe Coopersmith falou sem preâmbulos.

Sam suspirou.

— Bom dia, chefe.

— Acabo de ouvir o diabo de Yeats, de Homicídios. Eu não deveria ter de lhe dizer isto, Sam. Afaste-se da srta. Cormier.

— Tem razão. Não deveria ter de me dizer, mas já disse.

— Está tendo um caso com ela?

— Achei que ela corria perigo. Por isso, fiquei com ela.

— Onde ela está agora?

Sam ficou em silêncio. Não poderia esquivar-se à pergunta. Tinha de responder.

— Está aqui — admitiu. — Em minha casa.

— Droga!

— Alguém nos seguiu, ontem à noite. Achei que não seria prudente deixá-la sozinha, desprotegida.

— Então, levou-a para a sua casa! Onde, exatamente, você deixou o seu bom senso?

Não sei, Sam pensou, eu o perdi quando olhei para os grandes olhos castanhos de Nina Cormier.

— Não me diga que está envolvido com ela — disse Coopersmith. — Pelo amor de Deus, não me diga isso.

— Não estamos envolvidos.

— Peço a Deus que não estejam, pois Yeats a quer aqui para interrogatório.

— Pelo assassinato de Robert Bledsoe? Yeats está no caminho errado. Ela não sabe de nada.

— Ele quer interrogá-la. Traga-a para cá. Em uma hora.

— Ela tem um álibi inabalável;..

— Traga-a, Navarro.

Coopersmith desligou.

Não havia saída. Por mais que detestasse a idéia, Sam teria de entregar Nina aos rapazes de Homicídios. O interrogatório poderia ser brutal, mas eles tinham de fazer o seu trabalho. Como policial, Sam não poderia colocar-se no caminho deles.

Foi até o quarto e bateu na porta. Como ela não respondesse, ele a abriu com cuidado e espiou.

Ela dormia profundamente, os cabelos negros espalhados sobre o travesseiro. A visão provocou-lhe o desejo imediato. Teve de ficar parado alguns momentos, a fim de recuperar o controle. Só então entrou.

Ela abriu os olhos e fitou-o com ar sonolento e vulnerável. Sam sentiu um nó na garganta.

— Precisa levantar — informou-a. — Os detetives de Homicídios querem vê-la.

— Quando?

— Dentro de uma hora. Pode tomar um banho. Já preparei o café.

Ela não disse nada. Apenas fitou-o com expressão confusa. E não era de admirar. Afinal, poucas horas antes, estavam nos braços um do outro.

Agora, ele agia como um estranho.

Sam concluiu que errara ao entrar no quarto e aproximar-se da cama. Assim, afastou-se na direção da porta.

— Tenho certeza de que farão somente as perguntas de rotina — disse. — Mas, se preferir chamar um advogado...

— Por que eu precisaria de um advogado?

— Não é má idéia.

— Não preciso de advogado porque não fiz nada.

O olhar de Nina foi direto, um desafio. Sam quisera apenas proteger os direitos dela, mas ela compreendera mal e achara que ele a estava acusando.

No momento, ele não contava com a paciência necessária para explicações.

— Estão à nossa espera — falou ao sair do quarto.

Enquanto Nina tomava banho, Sam tentou reunir ingredientes para um verdadeiro café da manhã. Só conseguiu encontrar pãezinhos e uma caixa de cereais vencida. A geladeira e a despensa eram uma visão pátética. As desvantagens da vida de solteira estavam se tornando evidentes demais e ele não estava gostando nada do que via.

Contrariado, saiu para apanhar o jornal. Quando voltava, parou de repente, olhando para o chão.

Havia uma pegada.

Ou, melhor, uma série de pegadas. Seguiam pela terra macia, passavam pela janela da sala e desapareciam entre as árvores. Era a sola de um sapato masculino, tamanho quarenta e dois, no mínimo.

Olhou para a casa e perguntou-se o que o homem que deixara aquelas pegadas conseguira ver, na noite anterior. Apenas a escuridão? Ou teria visto Nina, andando de um lado para o outro, como se fosse um alvo móvel.

Foi até o carro e inspecionou de forma metódica e cuidadosa. Não encontrou nada.

Talvez estivesse paranóico. Aquelas pegadas podiam não significar nada.

Quando entrou na casa, encontrou Nina terminando sua xícara de café. Ela tinha as faces coradas é os cabelos ainda molhados. Ao olhar para ele, ela franziu o cenho.

— Algo errado? — Nina inquiriu.

— Não. Está tudo bem — Sam respondeu. — Acho que está na hora de irmos embora.

 

Eu deveria ter seguido o conselho de Sam, Nina pensou, e ter contratado um advogado.

Estava na delegacia, sentada diante de três detetives de Homicídios. Embora fossem cordiais, eles mal disfarçavam a ânsia de apanhá-la. O detetive Yeats, especialmente, lembrou-a de um cão de guarda, pronto para o ataque, à espera apenas de que lhe tirasse a coleira.

Nina olhou para Sam, esperando encontrar algum apoio moral. Nada. Durante o interrogatório, ele nem sequer olhara para ela. Ficara parado junto à janela, olhando para fora. Levara Nina até ali e, agora, a estava abandonando. O tira voltava a assumir o seu papel.

— Já lhe contei tudo o que sei — ela disse a Yeats. — Não tenho mais nada a dizer.

— Você era noiva dele. Se alguém pode saber, esse alguém é você.

— Não sei. Eu nem estava lá. Se perguntar a Daniella...

— Já perguntamos. Ela confirmou o seu álibi — Yeats admitiu.

— Então, por que continua me fazendo as mesmas perguntas?

— Porque um assassinato não tem de ser cometido em pessoa — disse um outro policial.

Yeats inclinou-se sobre a mesa, com ar de simpatia e voz suave.

— Deve ter sido muito humilhante ser deixada no altar, para que todos soubessem que ele não a queria.

Nina não disse nada.

— Lá estava o homem em quem você confiava, quem você amava. Durante semanas, meses talvez, ele a traíra. Provavelmente, ria de você pelas costas. Um homem assim não merece uma mulher como você, mas você o amava assim mesmo. E tudo o que conseguiu foi dor e sofrimento.

Nina abaixou a cabeça, mas continuou em silêncio.

— Ora, Nina. Não queria vingar-se dele? Feri-lo?

— Não... Não daquele jeito — ela murmurou.

— Mesmo quando descobriu que ele tinha outra mulher? Mesmo quando soube que se tratava da sua própria madrasta?

Ela encarou Yeats.

— É verdade. Falamos com Daniella e ela admitiu. Estavam tendo um caso havia algum tempo. Encontravam-se enquanto você trabalhava. Não sabia?

Nina engoliu seco. Sacudiu a cabeça em silêncio.

— Acho que, talvez, você soubesse, sim. É possível que tenha descoberto por si mesma. Ou que ele tenha lhe contado.

— Não.

— E como se sentiu? Magoada? Furiosa?

— Eu não sabia.

— Furiosa o bastante para vingar-se? Para encontrar alguém que se vingasse por você?

— Eu não sabia!

— Isso é simplesmente inacreditável, Nina. Espera que acreditemos que você não sabia de nada?

— Eu não sabia!

— Sabia. Você...

— Chega — Sam interrompeu-o. — O que pensa que está fazendo, Yeats?

— Meu trabalho — o outro respondeu.

— Está tentando confundi-la. Está interrogando Nina sem o benefício de um advogado.

— Por que ela precisaria de um advogado, se alega ser inocente?

— Ela é inocente.

Yeats olhou para os outros dois detetives com um sorriso maroto.

— Acho que está claro, Navarro, que você não tem mais nada a ver com esta investigação.

— Você não tem autoridade para tanto.

— Abe Coopersmith deu-me a autoridade necessária.

— Yeats, eu não ligo a mínima...

A resposta de Sam foi interrompida pelo toque do bip em seu bolso. Irritado, ele pressionou um botão.

— Ainda não terminei com você — falou, antes de sair. Yeats voltou a encarar Nina. A simpatia desaparecera de sua expressão.

— Agora, srta. Cormier, voltemos às perguntas.

 

O código anunciado pelo bip indicava que a chamada fora feita por Ernie Takeda, do laboratório criminal, e que se tratava de um assunto urgente. Sam telefonou de sua própria mesa.

Precisou discar várias vezes, pois a linha encontrava-se ocupada. Quando finalmente atendeu, Takeda exibia uma excitação pouco característica na voz.

— Temos uma coisa para você, Sam — Takeda anunciou. — Algo que vai deixar você feliz.

— Muito bem. Faça-me feliz.

— Uma impressão digital. Parte dela, em um dos fragmentos da bomba que explodiu o armazém, na semana passada. E suficiente para a identificação. Já mandei para o laboratório e teremos o resultado em poucos dias. Seja paciente e reze para o nosso homem constar de nossos arquivos.

— Tem razão, Ernie. Acaba de me fazer um homem feliz.

— Ah, mais uma coisa. Sobre a bomba na igreja.

— Sim?

— Baseado nos escombros, eu diria que a bomba estava embrulhada por papel de presente, ou algo assim. Como não havia nenhum dispositivo de tempo, imagino que tenha sido preparada para explodir quando o pacote fosse aberto. Mas detonou prematuramente. Provavelmente, o circuito sofreu algum tipo de choque.

— Mencionou papel de presente.

— Sim, prateado.

Sam pensou no embrulho que fora entregue na igreja, na manhã do casamento. Se a bomba fora preparada para explodir quando aberta, então não restava dúvidas quanto aos alvos escolhidos.

Mas, por que matar Nina? Sam repensou o mistério, enquanto voltava para a sala de interrogatório. Seria possível atribuir toda aquela confusão a uma mulher ciumenta? Daniella Cormier tinha um motivo, mas teria ido tão longe, a ponto de contratar um especialista em bombas?

Faltava uma peça no quebra-cabeças.

Abriu a porta e parou. Os três detetives continuavam lá, mas Nina se fora.

— Onde está ela? — Sam perguntou. Yeats deu de ombros.

— Foi embora.

— O quê?

— Irritou-se com nosso interrogatório e foi embora.

— Você a deixou ir embora sozinha?

— Não registramos acusação alguma contra ela. Está sugerindo que deveríamos ter feito isso, Navarro?

Sam respondeu com um palavrão e, invadido por extrema ansiedade, correu para a porta da frente dá delegacia. Na calçada, olhou para um lado e para outro.

Não encontrou o menor sinal de Nina.

Alguém está tentando matá-la, pensou, tenho de encontrá-la. Correu até seu carro.

Do telefone do carro, telefonou para a casa do pai de Nina, da mãe, para a casa de Bledsoe. Nina não estava em lugar algum.

Decidiu ir até a casa de Lydia Warrenton, refletindo que Nina poderia aparecer por lá. Encontrou Lydia.

— Não falei com ela, depois de ontem — Lydia contou. — Não sei se ela viria para cá.

— Tem idéia de onde ela poderia estar? Alguém que ela procuraria num momento como este?

— Minha filha e eu nunca fomos muito próximas. A verdade é que ela sempre foi uma criança difícil.

— O que quer dizer, sra. Warrenton?

Lydia sentou-se.

— Sei que pode soar terrível, mas devo admitir que Nina foi uma grande decepção para mim. Nós lhe oferecemos tantas oportunidades, como a de estudar num internato na Suíça. A irmã, Wendy, foi e obteve grandes benefícios com isso. Mas Nina recusou-se a ir, preferindo ficar em casa. E, também, trazia aqueles namoradinhos horríveis para casa e vestia aquelas roupas ridículas. Ela poderia ter uma vida muito melhor, mas nunca conseguiu atingir os objetivos.

— Ela tem um diploma de enfermeira.

Lydia deu de ombros.

— Assim como milhares de outras moças.

— Ela não é uma moça qualquer, sra. Warrenton. É sua filha.

— É por isso que eu esperava mais dela. Wendy fala três idiomas e toca piano e violoncelo. Casou-se com um advogado, que está a um passo da magistratura. Enquanto isso, Nina... Não entendo como duas irmãs podem ser tão diferentes.

— Talvez a verdadeira diferença — disse Sam, levantando-se —, está no amor que a senhora dedicou a cada uma.

Virou-se e caminhou para a porta. Ali, parou e olhou para trás. Lydia estava parada no corredor, impecável e elegante como sempre. Não parecia real ou, muito menos, atingível.

Tão diferente de Nina.

— O senhor faz uma idéia totalmente errada de mim e de minha filha — ela disse.

— Faz alguma diferença o que penso?

— Só quero que compreenda que fiz o melhor que podia, dadas as circunstâncias.

— Dadas as circunstâncias, ela também fez o melhor — Sam concluiu e saiu da casa.

De volta a seu carro, Sam não sabia para onde ir. Após mais uma série de telefonemas, continuava sem a menor pista. Onde Nina se metera?

O único lugar que não tentara era o novo apartamento alugado por Nina. Ela lhe dissera que ficava na Taylor Street. Provavelmente, ainda não haviam instalado o telefone. Teria de ir até lá.

Durante o trajeto, Sam ficou pensando no que Lydia lhe dissera. Pensou em como deveria ter sido difícil para Nina crescer como a ovelha negra da família, a criança-problema, sempre fazendo às coisas erradas, sem jamais conseguir a aprovação da mãe. Sam tivera sorte, pois sua mãe lhe dera todo o seu amor e o fizera consciente de sua própria competência e capacidade.

Agora, Sam compreendia por que Nina decidira casar-se com Robert. Aquele seria o caminho certo para obter aprovação da mãe. E, até aquela tentativa, terminara em fracasso.

Quando estacionou diante do novo apartamento de Nina, Sam estava furioso com Lydia, George Cormier e seu desfile de esposas, com toda a família Cormier, por maltratarem uma garotinha e acabarem com sua auto-estima.

Bateu na porta com mais força que a necessária.

Ninguém respondeu. Ela também não estava ali.

Onde estava Nina?

Estava prestes a ir embora quando seguiu um impulso e girou o trinco. A porta estava destrancada. Abriu-a.

— Nina? — chamou.

Então, seus olhos pousaram no fio. Era quase invisível. Tratava-se de uma linha prateada que seguia a linha da porta e subia para o teto.

Ah, meu Deus...

Num único movimento, Sam atirou-se para o lado e mergulhou no chão, para longe da porta.

A força da explosão arrancou a porta e destruiu a parede, provocando uma nuvem de madeira e gesso.

Ensurdecido e atordoado pela explosão, Sam ficou deitado, com o rosto contra o carpete, enquanto uma chuva de escombros caía sobre ele.

 

— Cara, você realmente destruiu o lugar — Gillis comentou.

Estavam na rua, atrás da fita amarela da polícia, esperando pelo resto do esquadrão antibombas. O edifício, ou o que restara dele, fora revistado e não havia outros explosivos no local. Agora, era a vez de Ernie Takeda agir. No momento, ele dava instruções aos seus técnicos, distribuindo sacos plásticos para armazenagem de evidências.

Sam já sabia o que iam encontrar: fragmentos de dinamite Dupont, fita adesiva elétrica verde e fio detonador Prima. Os mesmos três componentes encontrados na igreja e no armazém.

E em todas as explosões provocadas por Vincent Spectre.

Quem seria o herdeiro de Spectre? E por que Nina era o alvo, desta vez?

A simples tentativa de pensar sobre o assunto fez a cabeça de Sam latejar. Ainda estava coberto de poeira, tinha o rosto machucado e inchado, e mal podia ouvir do ouvido esquerdo. Mas não tinha do que se queixar. Estava vivo.

Nina não teria tido a mesma sorte.

— Preciso encontrá-la — disse —, antes que ele o faça.

— Entramos em contato com a família, de novo — Gillis informou-o. — Pai, mãe, irmã. Ela não apareceu.

— Para onde ela pode ter ido? — Sam começou a andar de um lado para outro, a preocupação transformando-se em agitação. — Ela saiu da delegacia e pode ter tomado um ônibus ou táxi. Então, para onde foi?

— Sempre que fica nervosa, minha mulher sai para fazer compras — Gillis arriscou.

— Vou telefonar para a família de novo — Sam falou, virando-se para seu carro. — Talvez ela já tenha dado notícias.

Estava estendendo o braço para apanhar o telefone dentro do Taurus quando parou, focalizando o olhar na multidão do outro lado da rua. A figura miúda, de cabelos negros, era inconfundível. Mesmo a distância, Sam percebeu o medo, o choque, no rosto pálido.

— Nina — murmurou e, no mesmo instante, pôs-se a correr, abrindo caminho pela multidão. — Nina!

Ela o viu e também começou a mover-se na sua direção. Quando finalmente se encontraram, abraçaram-se. Naquele momento, nada mais existia no mundo de Sam. Somente Nina. Em seus braços, estava a jóia mais valiosa que já existira.

Com um sobressalto, Sam deu-se conta da multidão que os cercava.

— Vou tirá-la daqui — disse.

Apertando-a contra si, levou-a até o carro, examinando rostos, atento a qualquer movimento suspeito.

Só depois de colocá-la em segurança dentro do carro Sam permitiu-se respirar aliviado.

— Gillis! — chamou. — Cuide de tudo por aqui!

— Para onde vai?

— Levá-la a um lugar seguro.

— Mas...

Sam não esperou para terminar a conversa. Manobrou o carro e dirigiu para longe dali. Para o norte.

Nina olhava fixamente para ele, para o ferimento em seu rosto, a poeira em suas roupas.

— Meu Deus, Sam! Você está ferido!

— Só estou um pouco surdo de um ouvido. De resto, tudo bem. — Percebendo que ela não se convencera, Sam continuou: — Atirei-me no chão um instante antes da explosão. O detonador estava programado para cinco segundos após a abertura da porta. — Fez uma pausa e acrescentou sombrio: — Foi endereçado a você.

Ela não disse nada. Nem precisava. Sam percebeu a compreensão nos olhos dela. Aquela bomba não poderia ter sido um engano. Nina era o alvo e já não fazia sentido negar a verdade.

— Estamos investigando todas as pistas que temos — Sam informou-a. — Yeats vai interrogar Daniella de novo, mas acho que não conseguirá nada. Encontramos uma impressão digital parcial nos fragmentos da bomba do armazém, e estamos esperando pelo laudo de identificação. Até lá, precisamos mantê-la viva. E isso significa que você terá de cooperar. Faça exatamente o que eu mandar. — Sam suspirou irritado e apertou os dedos no volante. — O que você fez hoje é inadmissível, Nina!

— Eu estava zangada. Precisava ficar longe de todos vocês, tiras.

— Então, desapareceu da delegacia sem me dizer para onde ia?

— Você me jogou para os leões, Sam. Pensei que Yeats fosse me colocar as algemas. E você me abandonou nas mãos dele.

— Eu não tinha escolha. De um jeito ou de outro, ele ia interrogar você.

— Yeats pensa que sou culpada. E, como ele tem tanta certeza, achei que... que você também tinha suas dúvidas.

— Não tenho dúvida nenhuma — Sam afirmou. — Não quanto a você. E, depois da bomba em seu apartamento, não creio que Yeats ainda acredite que seja culpada. Está evidente que você é o alvo do assassino.

Sam seguiu para a rodovia interestadual.

— Para onde vamos? — Nina inquiriu.

— Vou tirá-la da cidade. Portland não lhe oferece a menor segurança. Tenho uma cabana de pesca à margem do lago Coleman. É rústica, mas poderá ficar lá pelo tempo necessário.

— Não vai ficar comigo?

— Tenho um trabalho a fazer, Nina. É a única maneira de conseguirmos respostas. Se eu fizer o meu trabalho.

— Claro. Você está certo. Às vezes, eu me esqueço de que você é um tira.

 

Do outro lado da rua, ele observava o trabalho da polícia, despercebido em meio à multidão. A julgar pelos escombros na rua, a explosão fora impressionante. Mas fora assim mesmo que ele havia planejado.

Era uma pena que Nina Cormier continuasse viva.

Descobrira isso ao vê-la, escoltada pelo detetive Sam Navarro, no meio da multidão. Reconhecera Navarro no mesmo instante. Durante anos, acompanhara a carreira do detetive, lera cada artigo sobre o esquadrão antibombas. Também sabia tudo sobre Gordon Gillis e Ernie Takeda. Era o seu trabalho. Eles eram o inimigo e um bom soldado tem de conhecer o inimigo.

Navarro levou a mulher ao seu carro. Parecia mais cuidadoso e protetor que o normal. Não era do feitio de Navarro sucumbir a um romance enquanto trabalhava. Tiras como ele deveriam agir com extremo profissionalismo. Ora, já não se faziam servidores públicos como antigamente!

Navarro e a mulher afastaram-se do local.

Não faria sentido tentar segui-los. Outra oportunidade não tardaria a acontecer.

No momento, tinha um trabalho importante a fazer e só dois dias para terminá-lo.

Ajeitou as luvas e afastou-se, sem chamar a atenção, misturando-se à multidão.

 

Billy "Homem de Neve" Binford estava contente. Até sorriu para o advogado, sentado do outro lado do vidro blindado.

— Vai dar tudo certo, Darien — falou. — Já cuidei de tudo. Trate de preparar-se para negociar aquele acordo e me tirar daqui bem depressa.

Darien sacudiu a cabeça.

— Já lhe disse que Liddell não quer nem ouvir falar em acordo. Vai conseguir muitos votos com a sua condenação.

— Darien, você não tem fé?

— Tenho os pés no chão. Liddell sonha com o governo e, para isso, tem de meter você na cadeia pelo resto da vida.

— Ele não porá mais ninguém na cadeia, depois de sábado.

— O quê?

— Você não ouviu nada, entendeu? Eu não disse nada. Mas, pode acreditar, Liddell não será problema.

— Não quero saber. Não me conte nada.

Billy fitou-o com olhar divertido.

— Sabe o que. você parece? Aquele macaco que tapa as orelhas com as mãos!

— Isso mesmo — Darien concordou, sentindo-se miserável. — Sou igualzinho a ele.

 

Apesar do fogo na lareira, Nina continuava gelada. Lá fora, a noite caía, a última luz do dia morria atrás dos pinheiros. O grito de um pássaro ecoou fantasmagórico no lago. Nina nunca tivera medo do bosque, da escuridão ou de estar sozinha. Naquela noite, porém, estava apavorada, e não queria que Sam fosse embora.

Ao mesmo tempo, sabia que ele teria de partir.

Ele voltou ao chalé, carregando um pilha de lenha, que armazenou ao lado da lareira.

— Acho que será o suficiente por alguns dias — falou. — Acabo de falar com Henry Pearl e a esposa. A cabana deles fica logo acima, na estrada. Prometeram vir vê-la todos os dias. Conheço-os há anos e sei que posso contar com eles. Se precisar de qualquer coisa, basta chamá-los.

Ao terminar com a lenha, Sam tirou a poeira das mãos. Com as mangas arregaçadas e serragem na calça, ele mais parecia um lenhador do que um policial urbano. Colocou mais lenha na lareira e as chamas se ergueram.

Virou-se para Nina, mas sua expressão ficou escondida nas sombras.

— Estará segura aqui, Nina. Eu não a deixaria sozinha se tivesse qualquer dúvida sobre isso.

Ela assentiu e sorriu.

— Ficarei bem.

— Encontrará varas de pesca e iscas na cozinha, se quiser se distrair e pescar algumas trutas. E fique à vontade para usar qualquer roupa que encontre no armário. Nada vai servir, mas ao menos ficará aquecida. A esposa de Henry disse que vai trazer algumas roupas femininas amanhã. — Sam parou de falar e riu. — Também, não vão servir, já que ela tem duas vezes o meu tamanho!

— Darei um jeito, Sam. Não se preocupe comigo.

Houve um longo silêncio. Ambos sabiam que não havia mais nada a dizer mas, ainda assim, ele não se moveu. Olhou em volta, como se relutasse em partir. Parecia quase tão relutante como ela em vê-lo ir embora.

— A viagem de volta é longa — Nina falou. — Devia comer antes de ir. Que tal uma macarronada com queijo?

Ele sorriu.

— Direi sim a qualquer coisa que me oferecer.

Na cozinha, guardaram os itens que haviam comprado num supermercado no caminho e, logo, a mesa estava arrumada, com omelete de champignon, pão e vinho. Como a eletricidade ainda não houvesse chegado àquela parte do lago, comeram à luz de um lampião. Lá fora, a noite caíra escura, e os insetos noturnos faziam sua alegre sinfonia.

Nina observava Sam, sentado de frente para ela, as feições iluminadas pelo lampião. Focalizou o olhar no ferimento no rosto dele, pensando no quanto ele chegara perto da morte, naquela tarde. Mas aquele era exatamente o tipo de trabalho que ele fazia, o risco que corria o tempo todo. Bombas. Morte. Era insano, e ela não podia compreender como um homem em sã consciência podia fazer uma escolha como aquela. Tira maluco, ela pensou. E eu devo ser tão louca quanto ele, continuou a pensar, pois acho que estou apaixonada por esse cara.

Bebericou o vinho, consciente da presença masculina intensa diante de si. E, também, da atração que sentia por ele. Uma atração tão forte que ela estava se esquecendo de comer.

Forçou-se a lembrar que ele estava apenas fazendo seu trabalho, que ela não passava de mais uma peça no quebra-cabeças que ele tentava resolver. Ainda assim, não conseguiu evitar pensar em outros jantares, outras noites que poderiam passar juntos. Ali, no lago. Jantares à luz de velas, risadas alegres, filho. Nina considerou que ele daria um bom pai. Seria paciente, calmo e atencioso, como era com ela.

Como poderia saber? Estava sonhando. Fantasiando de novo.

Estendeu a mão para servir-lhe mais vinho.

Sam cobriu o copo com a mão.

— Preciso dirigir de volta.

— Claro.

Com movimentos nervosos, Nina depositou a garrafa na mesa e pôs-se a mexer com o guardanapo, sem olhar para ele. Mas quando finalmente ergueu os olhos, descobriu que Sam a fitava. Não como um tira olha para uma testemunha, como uma peça de um quebra-cabeças.

Ele a observava com olhar que um homem lança a uma mulher.

Sam falou apressado:

— Preciso ir embora...

— Eu sei.

— ...antes que fique muito tarde.

— Ainda é cedo.

— Vão precisar de mim, na cidade.

Nina mordeu o lábio e ficou calada. Era óbvio que ele tinha razão. A cidade precisava dele. Todos precisavam dele. Ela era apenas mais um detalhe que exigia sua atenção. Agora que Nina estava segura, ele poderia voltar ao seu verdadeiro trabalho, sua preocupações reais.

Mas ele não parecia nem um pouco ansioso para partir. Não se movera na cadeira nem deixara de fitá-la nos olhos. Foi ela que desviou o olhar, que derrubou a taça de vinho.

Nina sobressaltou-se quando Sam estendeu a mão para segurar a dela. Sem uma palavra, tirou o copo da mão dela e colocou-o sobre a mesa. Inclinou-se e depositou um beijo suave na palma da mão dela. Apesar de suave, o beijo provocou em Nina uma reação avassaladora.

Ela fechou os olhos e gemeu baixinho.

— Não quero que vá embora — murmurou.

— Não é uma boa idéia... eu ficar.

— Por quê?

— Por causa disto — ele falou, beijando-lhe a mão novamente. — E disto. — Sam deslizou os lábios pelo braço de Nina. — É um erro. Você sabe e eu sei.

— Cometo erros o tempo todo, mas nem sempre me arrependo.

Sam ergueu os olhos para fitá-la e reconheceu o medo e a coragem na expressão de Nina. Ela não escondia nada, naquele momento.

Sam levantou-se. Nina imitou-o.

Ele a puxou para si, segurou-lhe o rosto entre as mãos e pousou seus lábios nos dela. O beijo deixou Nina ofegante. Ela colou o corpo ao dele e envolveu-o nos braços. Antes que pudesse recuperar o fôlego, Sam a beijava de novo, com maior intensidade e paixão.

Sam apertou-a contra si, sem encontrar nenhuma resistência. Seus corpos encontravam-se unidos, de maneira que as reações de cada um não eram segredo para nenhum dos dois. As mãos dele deslizaram pelas curvas suaves arrancando gemidos e suspiros de Nina, o que o excitou ainda mais.

— Se vamos parar — ele murmurou —, é melhor que seja agora.

Nina respondeu com um beijo que acabou de vez com a necessidade de palavras. Seus corpos encarregaram-se de toda a comunicação dali por diante.

Começaram a despir-se, famintos pelo toque um do outro. Sem nunca descolar os lábios, foram para a sala, onde a lareira aquecera o ambiente. Ainda beijando-a, Sam tirou a colcha do sofá e estendeu-a no chão, diante da lareira.

Fitando-se, os dois ajoelharam-se. Os ombros largos de Sam refletiam a luz do fogo. Nina mal podia esperar para unir seu corpo ao dele, mas Sam fazia tudo devagar, saboreando cada momento, cada nova experiência com ela. Acariciou-lhe os seios com reverência e, apesar da suavidade de seu toque, Nina viu-se prestes a perder a consciência, tão intenso era o desejo que a consumia.

Devagar, Sam deitou-a sobre a colcha. O corpo de Nina era como fogo líquido, ardente e lânguido. Sam acabou de despi-la e, então, observou-a fascinado.

— Sonhei tantas vezes com você — confessou, enquanto suas mãos deslizavam sobre a pele clara e macia. — Ontem à noite, quando você estava em minha casa, sonhei que a abraçava e a tocava, exatamente como estou fazendo agora. Mas, quando acordei, disse a mim mesmo que isso jamais poderia acontecer, que tudo não passava de fantasia. E aqui estamos nós... — Beijou-lhe os lábios. — Eu não deveria estar fazendo isto.

— Quero que faça. Quero estar com você.

— Também quero, mas tenho medo que acabemos nos arrependendo.

— Então, deixemos para nos arrepender depois. Esta noite, vamos ser apenas você e eu. Vamos fingir que não existe mais nada, mais ninguém.

Sam beijou-a outra vez. E desta vez deu liberdade aos impulsos de acariciá-la na intimidade. Explorou cada centímetro daquele corpo, deleitando-se a cada gemido e suspiro de Nina. Sentiu-a pronta para recebê-lo, mas queria que aquele momento durasse mais, muito mais.

Deliciada, Nina entregou-se à felicidade de encontrar-se nos braços de um homem tão bonito, não só em aparência, mas também no espírito. Aqueles olhos verdes que antes haviam guardado tanto mistério, agora abriam-se para ela, permitindo-lhe conhecer-lhe a alma.

O prazer era intenso demais para que ela se lembrasse de detalhes banais, como modéstia ou vergonha. Arqueou o corpo, gemeu, implorou que ele a possuísse. Porém, Sam continuou com sua doce tortura, até sentir que ela estava à beira do clímax. Então, deitou-se sobre ela e penetrou-a, levando-a com habilidade a uma explosão de êxtase, da qual ele participou com intensa paixão.

Nina adormeceu, satisfeita e segura, nos braços de Sam.

Horas depois, despertou em meio à noite fria.

O fogo se apagara. Apesar de toda encolhida debaixo da colcha, Nina estava gelada.

E sozinha.

Embrulhando-se na colcha, foi até a cozinha e espiou pela janela. O carro de Sam não estava mais lá. Ele voltara para a cidade.

Deu-se conta de que já sentia a falta dele. A ausência era como um imenso vazio em sua vida.

Foi para o quarto e meteu-se debaixo das cobertas. Tentou parar de tremer, mas não pôde. Ao partir, Sam levara consigo todo o calor, bem como o prazer e a alegria.

Nina assustou-se com a intensidade de seus sentimentos. Não podia apaixonar-se por Sam. O que haviam partilhado naquela noite fora puro prazer. Como amante, ele era maravilhoso.

Mas, como um homem para amar, ele não servia para ela.

Não era de admirar que ele houvesse fugido como um ladrão, no meio da noite. Sam sabia que haviam cometido um grande erro. Assim como Nina sabia. Àquela altura, ele deveria estar se arrependendo do que haviam feito.

Nina afundou-se nos travesseiros e esperou pelo sono, ou pelo amanhecer, o que chegasse antes. Qualquer coisa que diminuísse a dor provocada pela ausência de Sam.

Mas a noite, fria e solitária, estendeu-se por uma eternidade.

Fora um erro. Um erro louco e estúpido.

Ao longo de todo o trajeto de volta a Portland, na estrada deserta e escura, Sam perguntou-se como podia ter deixado que aquilo acontecesse.

Na verdade, ele sabia como acontecera. A atração entre os dois era, simplesmente, forte demais. E os estivera pressionando desde o primeiro dia. Sam lutara contra aquela força, lembrando-se a todo momento que era um policial e que Nina representava uma peça importante em sua investigação. Um bom policial não se deixaria cair naquele tipo de armadilha.

Costumava considerar-se um bom policial. Agora, descobrira que era humano demais, que Nina era uma tentação à qual ele não podia resistir. E que toda a investigação provavelmente sofreria, porque ele perdera seu senso de objetividade.

Tudo porque ela passara a significar demais para ele.

E não era só a investigação que sofreria, mas ele também. E só teria a si mesmo para culpar. Nina estava assustada e vulnerável; era natural que se voltasse para o seu protetor, em busca de conforto. Cabia a ele manter a distância, manter os próprios sentimentos sob controle. No entanto, ele sucumbira, e, agora, ela era a única pessoa em que Sam conseguia pensar.

Segurou o volante com firmeza e forçou-se a concentrar a atenção na estrada.

Chegou à cidade por volta da uma hora. A uma e meia, encontrava-se sentado à sua mesa, examinando os relatórios preliminares de Ernie Takeda. Como esperava, a bomba no apartamento de Nina era similar às utilizadas no armazém e na igreja. A diferença entre as três estava no método de detonação. A bomba do armazém tinha um timer simples. A da igreja fora preparada para explodir quando o embrulho fosse aberto. A do apartamento de Nina deveria explodir após a abertura da porta. Estavam lidando com um sujeito versátil. Era capaz de provocar explosões de diversas maneiras. Ele variava o tipo de bomba de acordo com a situação, o que o tornava muito espero e perigoso.

Sam voltou para casa às cinco da manhã, dormiu umas poucas horas e voltou para a delegacia, a fim de comparecer a uma reunião, às oito.

Com três explosões em duas semanas, a pressão tornara-se insuportável. A tensão era visível no rosto de cada um em torno da mesa. Gillis mostrava-se exausto, Coopersmith estava de péssimo humor, e até o usualmente neutro Takeda exibia sinais de irritação. Parte daquela irritação devia-se à presença de dois agentes federais do departamento de Álcool, Fumo e Armas de Fogo. Os dois exibiam ares de especialistas em visita a um vilarejo do interior.

Porém, a maior fonte de irritação era a presença do estimado promotor, a perpétua dor de cabeça chamada Norm Liddell.

Liddell agitava a edição matinal do New York Times.

— Vejam a manchete: "Portland, Maine, a Nova Capital das Bombas?" É isso o que o pessoal de Nova York está dizendo a nosso respeito. Nós! — Atirou o jornal sobre a mesa. — Que diabos está acontecendo nesta cidade? Quem está armando estas bombas?

— Podemos lhe dar um perfil psicológico provável — disse um dos agentes federais. — Trata-se de um homem branco, inteligente...

— Já sei que é inteligente! — Liddell interrompeu-o. — Muito mais inteligente que nós. Não quero perfil psicológico. Quero saber quem ele é. Alguém tem alguma idéia da identidade do nosso homem?

Após um momento de silêncio, Sam falou:

— Sabemos quem ele está tentando matar.

— Está falando da srta. Cormier? Até agora, ninguém conseguiu sequer pensar numa boa razão para ela ser o alvo.

— Mas sabemos que é o alvo. Ela é nossa única ligação com o especialista.

— E quanto à explosão do armazém? — Coopersmith inquiriu. — Qual seria a ligação com Nina Cormier?

Sam fez uma pausa.

— Não sei — admitiu.

— Aposto dez contra um que foi o pessoal de Billy Binford quem encomendou aquela bomba — Liddell anunciou. — Trata-se de um movimento lógico. Ele queria assustar uma testemunha da promotoria. A srta. Cormier tem alguma ligação com Binford?

— Tudo o que ela sabe sobre ele foi o que leu nos jornais — Sam respondeu. — Não há nenhuma ligação.

— E quanto à família dela? Estão envolvidos com Binford?

— Também não — Gillis entrou na conversa. — Investigamos as finanças da família inteira de Nina Cormier: pai, mãe, padrasto, madrasta. Nenhuma conexão com Binford. O ex-noivo também estava limpo.

Liddell recostou-se na cadeira.

— Algo está para acontecer. Sinto no ar. Binford está planejando um golpe dos grandes.

— Como sabe? — perguntou Coopersmith.

— Tenho minhas fontes — Liddell respondeu e sacudiu a cabeça desanimado. — Quando, finalmente, consigo pôr o "Homem de Neve" atrás das grades, ele continua controlando suas operações e dando as cartas, fazendo piada do sistema judiciário. Estou convencido de que a bomba no armazém foi uma tática de intimidação. Está tentando assustar minhas testemunhas. Se eu não conseguir a sua condenação, ele será um homem livre em poucos meses. E, então, estará apto a assustá-las em pessoa.

— Mas as chances de condená-lo são boas — Coopersmith confortou-o. — Você conta com testemunhas de credibilidade, relatórios por escrito e um juiz acima de qualquer suspeita.

— Mesmo assim, Binford continua com suas manobras. Ele tem algum trunfo na manga. Eu só gostaria de descobrir qual é. — Liddell olhou para Sam. — Onde escondeu Nina Cormier?

— Num lugar seguro.

— Está mantendo o local em segredo?

— Devido às circunstâncias, prefiro que só eu e Gillis saibamos onde ela está. Se tiver perguntas a fazer a ela, posso perguntar por você.

— Só quero saber qual é a ligação dela com as bombas e porque Billy Binford a quer morta.

— Talvez nada disso tenha a ver com Binford — Sam sugeriu. — Ele está na cadeia e temos outro homem envolvido: um especialista em bombas.

— Certo. Então, encontre-o para mim — Liddell concluiu. — Antes que Portland comece a ser chamada de Beirute americana. — Levantou-se, indicando que a reunião estava encerrada. — Binford irá a julgamento dentro de um mês. Não quero minhas testemunhas intimidadas por outras explosões. Portanto, encontrem o cara, antes que ele destrua o meu caso.

Com isso, Liddell deixou a sala.

— Não há nada pior que ano eleitoral — Gillis resmungou.

Enquanto os outros também deixavam a sala, Coopersmith dirigiu-se a Sam.

— Navarro, gostaria de trocar uma palavrinha com você.

Sam esperou, sabendo muito bem o que viria. Coopersmith fechou a porta.

— O que está acontecendo entre você e Nina Cormier?

— Ela precisa de proteção e eu estou cuidando disso.

— É só isso?

Sam suspirou, cansado.

— Eu... Talvez esteja um pouco mais envolvido do que deveria.

— Foi o que imaginei É experiente demais para isso, Sam. Esse é o tipo de erro que os novatos cometem. Você, não!

— Eu sei.

— Essa situação poderia colocar vocês dois em perigo. Eu deveria tirá-lo do caso.

— Preciso ficar.

— Por causa dela?

— Porque quero apanhar esse cara. Vou apanhá-lo!

— Ótimo. Trate de ficar longe de Nina Cormier. Eu não deveria ter de dizer isto. Sempre que algo assim acontece, alguém se machuca. No momento, ela pensa que você é John Wayne. Mas, quando tudo terminar, ela vai descobrir que você é humano, como todos nós. Não se deixe cair nessa armadilha, Sam. Ela é bonita e tem um pai cheio do dinheiro. Não vai querer um tira em sua vida.

Ele está certo, pensou Sam. Sei disso por experiência própria. Alguém sempre sai machucado. E esse alguém será eu.

A porta se abriu de repente e um excitado Ernie Takeda entrou.

— Não vão acreditar nisto — anunciou, agitando uma folha de papel no ar.

— O que é? — perguntou Coopersmith.

— Identificaram a impressão digital do fragmento de bomba.

— E?

— Vincent Spectre.

— Impossível! — Sam exclamou.

Arrancou o papel da mão de Takeda e leu cada palavra do relatório enviado por fax. Não havia dúvida quando à identificação da impressão digital.

— Tem de ser um engano — Coopersmith protestou. — Encontraram o corpo dele. Spectre está morto e enterrado há meses.

Sam fitou-o.

— É claro que não.

 

Embora fosse velho, o barco a remo estava em boas condições. No final da tarde quente de. verão, Nina remou pelo lago quieto e pacífico..

Em vez de pescar, Nina simplesmente deitou-se e apreciou o céu azul, cortado de vez em quando pelo vôo de um pássaro ou de um inseto.

Então, ouviu alguém chamar seu nome.

Sentou-se tão depressa que quase virou o barco. Sam estava parado na margem, acenando.

Enquanto remava de volta, Nina sentiu o coração bater com força. Por que ele voltara tão cedo? Na noite anterior, havia partido sem nem sequer um adeus, como se jamais pretendesse voltar a vê-la.

Agora, lá estava ele, imóvel à beira da água, a expressão inescrutável como sempre. Ela não o compreendia e desconfiava que jamais o conseguiria. Aquele homem surgira em sua vida para anular sua capacidade de pensamento lógico. Teve de fazer um grande esforço para manter as emoções sob controle, à medida que se aproximava.

Atirou-lhe a corda, que ele amarrou no pontão. A pressão firme da mão dele no seu braço provocou-lhe um estremecimento de prazer. Porém, bastou um olhar para o rosto fechado, para Nina concluir que quem estava ali não era o amante, mas sim o policial frio e impessoal.

— Temos novidades — ele informou-a sem preâmbulos.

Ela sustentou-lhe o olhar.

— Novidades?

— Acreditamos saber quem é o nosso homem. Preciso que dê uma olhada em algumas fotografias.

No sofá diante da lareira, Nina folheava um álbum de fotografias. A mesma lareira que os aquecera na noite anterior, enquanto faziam amor, estava agora tão fria como Nina se sentia de corpo e espírito. Sam sentava-se a quase um metro de distância, sem tocá-la. Apenas observava-a ansioso para que ela reconhecesse um dos rostos naquele álbum.

Nina forçou-se a concentrar a atenção nas fotos. Examinou-as uma a uma, cuidadosamente. Quando chegou à última, sacudiu a cabeça.

— Não reconheço ninguém — disse.

— Tem certeza?

— Sim. Por quê? Quem eu deveria reconhecer?

Sem esconder a decepção, Sam reabriu o álbum na quarta página.

— Olhe para este rosto. Nunca viu este homem?

Após um longo momento de estudo atento, Nina respondeu:

— Não, não o conheço.

Com um suspiro de frustração, Sam afundou-se no sofá.

— Isto não faz o menor sentido.

Nina ainda concentrava-se na fotografia. Tratava-se de um homem na casa dos quarenta anos, de cabelos claros, olhos azuis e faces encovadas. Foram os olhos que lhe chamaram a atenção. Fitavam-na de maneira direta, intimidativa, como se a figura colada à página estivesse adquirindo vida. Estremeceu.

— Quem é ele? — perguntou.

— Seu nome é, ou era, Vincent Spectre. Tem um metro e setenta e cinco, setenta quilos, quarenta e seis anos. Ao menos, é como deveria ser... se ainda estiver vivo.

— Quer dizer que não sabe se o homem ainda vive?

— Pensamos que estivesse morto.

— Não tem certeza?

— Não mais.

Sam levantou-se do sofá e foi acender a lareira, pois a noite caía e a cabana começava a esfriar.

— Durante doze anos — Sam contou —, Vincent Spectre trabalhou nas operações de demolição do exército. Então, foi exonerado por má conduta, roubo. Não demorou muito a estabelecer uma segunda carreira. Tornou-se o que chamamos de especialista. Grandes explosões, altos pagamentos. Trabalhava para qualquer um que pagasse por sua habilidade: terroristas, mafiosos. Por alguns anos, ganhou muito dinheiro. Um dia, sua sorte acabou. Foi reconhecido na gravação de uma câmara de segurança de um banco. Foi preso, condenado, cumpriu um ano da pena. Então, fugiu. Seis meses atrás, os restos mortais de Spectre foram encontrados em meio aos escombros, depois que uma de suas bombas explodiu um armazém. Bem, as autoridades acreditaram ser o corpo dele. Agora, parece que o corpo encontrado pertencia a outra pessoa. E Spectre está vivo.

— Como sabe?

— Encontramos sua impressão digital num fragmento da bomba que explodiu o armazém, na semana passada.

— Acha que ele também explodiu a igreja?

— Estou quase certo. Vincent Spectre está tentando matar você.

— Mas não conheço esse homem! Nunca ouvi falar dele!

— E não o reconheceu na foto.

— Não.

— Mostramos a foto de Spectre para toda a sua família. Ninguém o reconheceu.

— Deve haver algum engano. Mesmo que esteja vivo, ele não tem nenhum motivo para querer me matar.

— Pode ter sido contratado para isco.

— Você já explorou essa possibilidade e só conseguiu pensar em Daniella.

— Ainda é uma possibilidade. Ela nega, é claro. E foi submetida ao detector de mentiras.

— Daniella permitiu que a submetessem ao detector?

— Sim.

Nina sacudiu a cabeça, perplexa.

— Ela deve ter ficado furiosa.

— Para ser honesto, acho que ela adorou ser o centro das atenções. Conseguiu virar a cabeça de todos os homens do departamento.

— Ora, ela é muito boa nisso. Conseguiu virar a cabeça de meu pai... e de Robert.

Sam pôs-se a caminhar de um lado para o outro.

— Voltemos à questão de Vincent Spectre e a ligação dele com você, ou com Robert.

— Já disse que nunca ouvi esse nome antes. E não me lembro de ter ouvido Robert mencioná-lo.

— Spectre está vivo e preparou uma bomba para matar você e Robert. Por quê?

Nina voltou a olhar para a foto. Por mais que se esforçasse, não conseguia evocar memória alguma daquele rosto. Os olhos, talvez, fossem vagamente familiares. Poderia ter visto aquele olhar antes. Mas nunca o rosto.

— Conte-me mais sobre ele — sugeriu.

Sam voltou a sentar-se.

— Vincent Spectre nasceu e cresceu na Califórnia. Entrou para o exército aos dezenove anos. Não demorou a mostrar aptidão para o trabalho com explosivos e foi treinado no serviço de demolições. Participou de operações militares em Grenada e Panamá. Foi quando perdeu o dedo, tentando desarmar uma bomba plantada por terroristas. Àquela altura, poderia ter se aposentado por invalidez, mas...

— Espere. Disse que ele perdeu um dedo?

— Sim.

— De que mão?

— Esquerda. Por quê?

Nina ficou imóvel, pensando, lembrando. Por que a imagem da mão sem um dedo parecia-lhe tão familiar?

— Foi o dedo médio da mão esquerda? — perguntou.

Sam apanhou uma pasta de arquivo de sua maleta.

— Sim — respondeu —, o dedo médio.

— Não sobrou nenhuma falange? A perda foi total?

— Isso mesmo. Tiveram de amputar as três falanges. — Sam a observava com atenção e ansiedade. — Então, você o conhece.

— Eu... não tenho certeza. Lembro-me de um homem sem o dedo médio da mão esquerda...

— Onde?

— No pronto-socorro. Há poucas semanas. Lembro-me de que usava luvas e não queria tirá-las. Mas eu tinha de tomar-lhe o pulso. Por isso, tirei a luva. E fiquei surpresa ao ver que lhe faltava um dedo. Ele usava algodão para estufar a luva. Acho que... demonstrei minha surpresa. Lembro-me de ter lhe perguntado como o perdera. Ele disse que fora um acidente com uma máquina.

— Por que ele estava no pronto-socorro?

— Tinha sido atropelado por uma bicicleta. Sofrerá um corte no braço e precisava de pontos. A parte mais estranha da história foi que ele simplesmente desapareceu, depois de ser atendido. Assim que terminamos a sutura, deixei a sala para apanhar alguma coisa e, quando voltei, ele não estava mais lá. Achei que havia fugido para não pagar a conta, mas, depois, descobri que ele pagara em dinheiro.

— Lembra-se do nome que ele usou?

— Não. Sou péssima para nomes.

— Descreva-o para mim. Diga tudo o que lembrar.

Nina ficou em silêncio por um momento, lutando para trazer da memória o rosto de um homem que só vira uma vez, semanas antes.

— Não era muito alto... Um pouco mais baixo que você.

— Tenho um metro e oitenta. Spectre tem um e setenta e cinco. E quanto aos cabelos, os olhos?

— Os cabelos eram escuros, quase pretos. E os olhos... — Nina lembrou-se da surpresa causada pela ausência do dedo, de ter erguido os olhos e deparado com os dele. — Eram azuis.

— Spectre tem olhos azuis. O cabelo é que não combina, mas ele pode tê-los tingido.

— Mas o rosto era diferente. Não tinha nada a ver com esta foto.

— Spectre possui recursos. Pode ter pago por uma cirurgia plástica, para alterar completamente suas feições. Durante seis meses, acreditamos que ele estivesse morto. Seria tempo suficiente para que ele mudasse totalmente e se transformasse num homem diferente.

— Certo. Se foi mesmo Spectre quem eu vi no pronto-socorro, por que ele quer me matar?

— Você o viu. Poderia identificá-lo.

— Muita gente deve tê-lo visto!

— Você é a única pessoa que poderia ligar aquele rosto com um homem que perdeu um dedo. Disse que ele usava luvas e não queria tirá-las.

— Sim, mas elas faziam parte do uniforme que ele usava. Talvez, a única razão para ele estar usando luvas fosse...

— Que uniforme?

— Uma jaqueta de mangas longas e botões metálicos. Luvas brancas. Calça com faixas dos dois lados. Como um ascensorista ou carregador de hotel.

— Notou algum logotipo bordado na jaqueta? Um desenho ou nome de hotel?

— Não.

Sam voltara a levantar-se e a andar para lá e para cá.

— Muito bem. Ele sofre um pequeno acidente, corta o braço e tem de ir ao pronto-socorro para levar pontos. Você vê o seu rosto, descobre que ele não tem um dedo e vê seu uniforme...

— Não é o bastante para me ameaçar.

— Talvez seja. No momento, ele está operando sob uma identidade totalmente nova. As autoridades não fazem a menor idéia da aparência dele. Mas a ausência do dedo o delataria. Você o viu. E viu o rosto dele. Poderia identificá-lo para nós.

— Eu não sabia coisa alguma sobre Vincent Spectre. Nem teria passado pela minha cabeça procurar a polícia.

— Já estávamos questionando a suposta morte dele, considerando a possibilidade de ele estar vivo e ativo. Mais uma explosão e teríamos chegado à verdade. Tudo o que teríamos de fazer seria informar o público de que estávamos à procura de um homem sem o dedo médio da mão esquerda. Você, certamente, se manifestaria.

— É claro.

— Deve ser disso que ele teve medo. Que você nos desse a única informação que não temos. A descrição dele.

Nina ficou em silêncio por um longo momento, olhando para a fotografia e pensando no dia em que vira o homem no pronto-socorro. Trabalhara tantos anos como enfermeira que todos os dias, pacientes, crises, tudo parecia igual. Mesmo assim, lembrou-se de mais um detalhe sobre a visita daquele homem. Um detalhe que fez o sangue gelar em suas veias.

— O médico — falou baixinho —, o médico que fez a sutura...

— Sim, quem era?

— Robert.

Sam fitou-a, compreendo toda a história. Assim como Nina. Robert estivera na mesma sala. Vira o rosto e o dedo amputado. Ele também poderia ter identificado Vincent Spectre.

Agora, Robert estava morto.

Sam tomou a mão de Nina.

— Venha — falou, fazendo-a levantar-se.

Estavam de pé, frente a frente, muito próximos. Nina reagiu de imediato àquela proximidade.

— Levarei você de volta a Portland — Sam informou-a.

— Hoje?

— Quero que tente fazer um retrato falado de Spectre.

— Não sei se serei capaz. Se o visse, tenho certeza de que o reconheceria. Mas, simplesmente descrever o rosto...

— Nosso técnico a ajudará. O mais importante é que temos um elemento para trabalhar. E, também, vou precisar da sua ajuda com os registros do pronto-socorro. Talvez ainda haja alguma informação de que você esteja se esquecendo.

— Mantemos um arquivo de todos os pacientes atendidos. Posso ajudá-lo a encontrar o dele.

Farei qualquer coisa que deseje, Nina pensou, desde que você pare de bancar o tira durão.

Enquanto olhavam um para o outro, ela teve a impressão de ver a sombra da paixão passar pelos olhos verdes. Mas, com extrema rapidez, ele se virou para apanhar um casaco no armário. Então, colocou-o sobre os ombros de Nina, o simples toque de seus dedos provocando-lhe uma torrente de emoções.

Ela virou-se para encará-lo. E confrontá-lo.

— Aconteceu alguma coisa entre nós? — perguntou.

— Do que está falando?

— Ontem à noite. Eu não sonhei, Sam. Nós fizemos amor bem aqui, nesta sala. Agora, fico me perguntando o que fiz de errado, porque você está tão... indiferente.

Ele suspirou, produzindo um som de cansaço ou, talvez, arrependimento.

— O que houve ontem à noite — falou —, não deveria ter acontecido. Foi um erro.

— Não achei.

— Nina, é sempre um grande erro apaixonar-se pelo tira designado para o caso. Você está assustada, buscando um herói. Eu, simplesmente, me encaixo no papel.

— Mas você não está desempenhando um papel! Nem eu! Eu me importo com você, Sam. Acho que estou me apaixonando...

Sam limitou-se a fitá-la em silêncio. Um silêncio mais eficiente que quaisquer palavras.

Nina virou-se, para não ter de sustentar aquele olhar frio e vazio.

— Ora, sinto-me uma grande idiota. É claro que isto deve acontecer com você o tempo todo. Mulheres se atirando nos seus braços.

— Não é bem assim.

— Não? O tira herói. Quem poderia resistir? E como eu comparo às outras?

— Não existem outras! Nina, não estou tentando me livrar de você. Só quero que entenda que foram as circunstâncias que nos aproximaram. O perigo. A intensidade. Você olha para mim, mas não vê meus defeitos, ou as razões pelas quais não sou o cara certo para você. Você estava noiva de Robert Bledsoe. Dinheiro, diploma em medicina, uma casa sobre o mar. O que eu sou, além de um servidor público?

Nina sacudiu a cabeça, os olhos cheios de lágrimas.

— Acha mesmo que é assim que o vejo? Como um servidor público? Um tira?

— É o que eu sou.

— Você é muito mais que isso. — Nina estendeu a mão para acariciar-lhe a face. Ele se manteve imóvel. — Ah, Sam. Você é gentil, atencioso e corajoso. Jamais conheci um homem como você. Muito bem, é um tira. Mas isto é só parte do que você realmente é. Salvou minha vida, tem cuidado de mim...

— É o meu trabalho.

— Só isso?

— Não — Sam admitiu com um suspiro. — Foi mais que isso. Você é mais que isso.

Nina sorriu de pura felicidade. Sentira isso na noite anterior: o carinho, a ternura. Por mais que Sam negasse, havia um ser humano por trás daquela máscara de indiferença. E ela queria tanto atirar-se em seus braços, forçar o verdadeiro Sam Navarro a sair de seu esconderijo.

Ele segurou-lhe a mão com delicadeza, mas afastou-a de seu rosto.

— Por favor, Nina. Não torne as coisas mais difíceis para nós dois. Tenho um trabalho a fazer e não posso me distrair. Seria muito perigoso, tanto para mim quanto para você.

— Mas você não é indiferente a mim. É tudo o que eu preciso saber.

Ele assentiu.

— Está ficando tarde. Precisamos ir embora — murmurou. — Esperarei no carro.

Nina estudou o rosto desenhado na tela do computador.

— Não está exatamente como deveria — falou.

— O que está errado? — Sam perguntou.

— Não sei. Não é fácil compor o rosto de um homem que só vi unia vez. Não registrei conscientemente a forma do nariz, ou do queixo.

— Acha que ele, ao menos, lembra o rosto na figura?

Nina voltou a examinar a tela. Por uma hora, haviam trabalhado com diferentes tipos de cabelo, de nariz, queixo. O resultado final parecia genérico e sem vida, como todos os retratos falados que ela já vira.

— Para ser honesta, não posso afirmar que ele seja assim. Se o pusesse numa fila, eu certamente o reconheceria. Mas não sou boa em recriar o que vi.

Sem esconder a decepção, Sam virou-se para o técnico:

— Mande imprimir assim mesmo — ordenou. — Envie cópias para os jornais e noticiários de televisão.

O técnico obedeceu de imediato.

Quando Sam e Nina saíram da sala, ela falou, desolada:

— Sinto muito. Acho que não ajudei como deveria.

— Tudo bem. Não é mesmo fácil recriar um rosto, especialmente quando se viu apenas uma vez. Tem certeza de que o reconheceria, se o visse?

— Tenho.

— Talvez seja isso o que faremos. Vamos ao próximo item na nossa agenda.

— O que é?

— Gillis está no hospital, estudando os relatórios. Vai precisar da sua ajuda.

— Isso eu sei que posso fazer.

Encontraram Gillis numa sala dos fundos do pronto-socorro, sentado diante de uma mesa coberta de papéis. Os sinais de fadiga eram evidentes em seu rosto. Já era quase meia-noite, e ele estava trabalhando desde sete horas da manhã. Assim como Sam.

E, para ambos, a noite estava apenas começando.

— Separei a ficha que achei ser a certa — Gillis informou-os. — Vinte e nove de maio, cinco horas da tarde. Está certo, srta. Cormier?

— Acho que sim.

Gillis estendeu-lhe a folha. Nina reconheceu a própria caligrafia. No topo, estava o nome Lawrence Foley, o endereço e os números de documentos de identificação. Na linha destinada a "Queixa Principal", ela escrevera "laceração do braço esquerdo". Logo abaixo, registrara: "homem branco, quarenta e seis anos, atropelado por bicicleta. Queda, corte no braço, sem perda de consciência".

Nina assentiu.

— É esta. Aqui está a assinatura de Robert, como médico responsável. Ele suturou o corte, quatro pontos, de acordo com o registro.

—Verificou o nome Lawrence Foley? — Sam perguntou a Gillis.

— Não há ninguém com este nome vivendo no endereço fornecido. E o número de telefone não existe.

— Bingo! — Sam exclamou. — Nome e endereço falsos. É ele o nosso homem.

— Mas não estamos nem perto de apanhá-lo — Gillis protestou. — Ele não deixou nenhuma pista. Pôr onde devemos começar?

— O retrato falado já está circulando. Sabemos que ele usava um uniforme, portanto, podemos verificar todos os hotéis. Tente encontrar ascensoristas ou carregadores que lembrem o retrato falado. — Sam fez uma pausa. — Por que ele estaria trabalhando num hotel?

— Precisava de um emprego — Gillis arriscou.

— Como carregador? — Sam sacudiu a cabeça. — Se esse é mesmo Vincent Spectre, deve ter um bom motivo para estar lá. Um contrato, um alvo...

Sam sentou-se e esfregou os olhos. Era evidente que estava exausto. Nina teve o impulso de tocá-lo, de aliviar a preocupação que via em seu semblante. Mas não se atreveria a fazê-lo na frente de Gillis. Talvez, nunca o fizesse. Ele deixara claro que não poderia distrair-se, pois seria perigoso. E Nina tinha de aceitar tal argumento.

Sam levantou-se e pôs-se a andar de um lado para outro, como se precisasse manter-se acordado.

— Temos de verificar em todos os hotéis e selecionar alguns funcionários para a fila de identificação. E, também, precisamos dos boletins de ocorrência policial. É possível que alguém tenha registrado o acidente com a bicicleta.

— Mandarei Cooley fazer isso.

— O que realmente precisamos saber é quem é o alvo.

— Não conseguiremos esta informação esta noite — Gillis. — Precisamos de mais elementos. Assim como precisamos dormir um pouco.

— Ele tem razão — disse Nina. — Não pode continuar trabalhando sem parar. Precisa descansar um pouco.

— Enquanto isso, Spectre está trabalhando sabe-se lá em que catástrofe. Até agora, tivemos sorte: apenas uma vítima de explosões. Mas, da próxima vez...

Sam parou no meio da sala, como se a energia o houvesse abandonado.

Gillis virou-se para Nina.

— Leve-o para casa, por favor. Antes que ele caia e eu tenha de carregá-lo.

Nina levantou-se.

— Venha, Sam. Dirigirei seu carro até sua casa.

Lá fora, Sam insistiu que podia dirigir, que estava em plenas condições. Com a mesma insistência, Nina convenceu-o de que ele seria uma ameaça pública ao volante.

Ele cedeu.

Nina mal deixara o estacionamento do hospital, e Sam já dormia.

Quando chegaram à casa dele, Nina acordou-o. Sam saiu do carro, entrou na casa e foi para o quarto. Lá, tirou os sapatos e desabou na cama. Suas últimas palavras foram de desculpas. No momento seguinte, dormia profundamente.

Sorrindo, Nina cobriu-o e foi verificar portas e janelas. Estava tudo trancado. A casa estava segura... tanto quanto era possível.

De volta ao quarto, ela se despiu no escuro e deitou-se ao lado de Sam. Ele nem se mexeu. Com cuidado, Nina afagou-lhe os cabelos e pensou: "Meu querido Sam, esta noite, sou eu quem vai cuidar de você".

Com um suspiro, ele se virou e envolveu-a com um braço firme. Mesmo dormindo, ainda tentava protegê-la.

Como nenhum outro homem que ela conhecera.

Nada poderia atingi-la naquela noite. Não enquanto estivesse nos braços dele.

 

Estavam mostrando o seu retrato no noticiário da manhã.

Vincent Spectre olhou o retrato falado e riu. Que brincadeira! Aquilo não se parecia em nada com ele. O que acontecera com a eficiência do departamento de polícia?

— Vocês não podem me pegar — murmurou.

Sam Navarro falhara, se aquele retrato era o melhor que podia conseguir. Uma pena. Navarro lhe parecera tão inteligente, um adversário digno. Agora, mostrava-se tão idiota quanto todos os outros tiras. Ainda assim, ele acertara numa conclusão.

Vincent Spectre estava vivo e de volta à ativa.

— Espere e verá o quanto estou vivo!

A tal srta. Cormier certamente o descrevera para o técnico da polícia. Embora o retrato não fosse motivo de preocupação, Nina Cormier o preocupava. Ela poderia reconhecê-lo, se o visse. Era a única pessoa capaz de ligar seu rosto à sua verdadeira identidade. A única capaz de arruinar seu plano. Teria de livrar-se dela.

Desligou a televisão e foi até o quarto, onde a mulher ainda dormia. Conhecera Marilyn Dukoff três semanas antes, no Stop Light Club, onde fora assistir ao show de strip-tease. Marilyn era a loura de biquíni roxo. Suas feições eram ligeiramente rudes, seu QI, uma piada. Mas o corpo era escultural. Assim como a maioria das dançarinas, precisava desesperadamente de dinheiro e afeto. Ele lhe oferecera ambos em abundância. Ela aceitara os presentes com genuína gratidão. Agia como um cãozinho que passara muito tempo abandonado: fiel e faminta de aprovação. O melhor era que não fazia perguntas.

Vincent sentou-se na beirada da cama e acordou-a.

— Marilyn?

Ela entreabriu os olhos sonolentos e sorriu.

— Bom dia.

Ele lhe retribuiu o sorriso e beijou-a. Como de costume, ela correspondeu com paixão. Gratidão. Vincent despiu-se e deitou-se ao lado daquele corpo perfeito. Não precisou esforçar-se para provocar nela a reação esperada.

Quando terminaram e ela deitou-se sorridente e satisfeita em seus braços, ele soube que aquele era o momento certo para falar.

— Preciso de mais um favor seu.

Duas horas depois, uma loira vestindo um conjunto cinza apresentou sua identidade ao oficial da prisão.

— Sou advogada e trabalho com Frick e Darien — falou. — Estou aqui para falar com nosso cliente, Billy Binford.

Momentos depois, foi escoltada até a sala de visitas. Billy "Homem de Neve" sentou-se do outro lado do vidro blindado e falou:

— Assisti ao noticiário esta manhã. O que diabos está acontecendo?

— Ele disse que se trata de uma farsa necessária — a loira explicou.

— Escute, só quero o trabalho feito conforme ele prometeu.

— Tudo já foi providenciado. O contrato será cumprido como combinaram. Tudo o que tem de fazer é sentar e esperar.

— Apostei tudo nisso.

— Não tem com o que se preocupar. Mas ele quer ter certeza de que vai manter a sua parte do acordo: pagamento no final da semana.

— Ainda não. Só pagarei quando o trabalho estiver completo. Meu julgamento se aproxima... muito depressa. Estou contando com ele.

A loira sorriu.

— Pode contar. Ele garante.

 

Sam acordou e sentiu o aroma de café e mais alguma coisa cozinhando. Delicioso. Era sábado. Embora estivesse sozinho na cama, não havia dúvida de que alguém mais se encontrava na casa. Podia ouvi-la na cozinha. Pela primeira vez, em muitos meses, levantou-se sorrindo e foi para o banho. Uma mulher preparava seu café da manhã. E era incrível como a casa inteira parecia mais humana e aconchegante por isso.

Quando saiu do banho e parou diante do espelho para barbear-se, o sorriso desvaneceu. Quanto tempo teria dormido? Nem sequer ouvira Nina levantar-se e tomar banho. Deu-se conta de que dormira tão profundamente que, se alguém houvesse tentado entrar na casa, ele não teria acordado.

Refletiu que não poderia perseguir Spectre e proteger Nina ao mesmo tempo. Estava colocando a vida dela em perigo.

O que temera estava acontecendo.

Vestiu-se e foi para a cozinha.

Ao vê-la parada diante do fogão, sentiu a determinação abalar-se. Nina virou-se e sorriu.

— Bom dia — ela cumprimentou-o e passou os braços em volta de seu pescoço.

Aquela era a maior fantasia de Sam. Uma mulher linda sorrindo para ele de manhã, o aroma de panquecas, o perfume feminino encantador.

Segurou-a pelos ombros e afastou-se.

— Nina, precisamos conversar.

— Sobre o caso?

— Não. Sobre nós dois.

O sorriso radiante se desfez. Nina percebeu o golpe que estava por vir. Voltou-se para o fogão e retirou a panqueca do fogo.

Sam odiou-se, embora soubesse que não havia outra coisa a fazer.

— O quê houve ontem à noite não deveria ter acontecido — falou.

— Nada aconteceu entre nós. Eu só trouxe você para casa e coloquei-o na cama.

— É disso que estou falando, Nina. Eu estava tão exausto que alguém poderia ter invadido a casa e eu não teria movido um músculo. Como posso protegê-la, se nem consigo manter os olhos abertos?

— Ah, Sam — Nina murmurou e aproximou-se, acariciando-lhe o rosto. — Não quero que seja o meu guardião. Ontem, eu queria cuidar de você. E fiquei feliz por fazê-lo.

— Eu sou o tira, Nina. Sou responsável pela sua segurança.

— Será que, por uma vez, não pode deixar de ser o tira? Não pode permitir que eu cuide de você? Não sou tão indefesa. E você não é tão duro que não precise de ninguém.

— Não sou eu quem está correndo risco de vida. Nós dois sabemos que não é uma boa idéia nos envolvermos. Não posso cuidar de você como deveria. Qualquer outro policial faria um trabalho melhor.

— Não confio em outro policial. Só em você.

— Isso poderia ser um erro fatal.

Sam afastou-se, tentando recuperar a firmeza e a clareza de raciocínio. A proximidade de Nina deixava-o perturbado. Encheu a xícara de café e, sem olhar para ela, acrescentou:

— Preciso me concentrar no caso, Nina, e encontrar Spectre. É a única maneira de garantir a sua segurança: fazendo o meu trabalho bem feito.

Ela não disse nada.

Sam virou-se e viu que Nina olhava fixamente para a mesa. Estava arrumada com pratos, talheres, copos de suco, potes de geléia. Sentiu uma pontada de remorso. Finalmente encontrei uma mulher que poderia amar, pensou, e estou fazendo tudo para afastá-la.

— O que você sugere, Sam? — ela perguntou em voz baixa.

— Acho que outro policial deveria ser designado para protegê-la. Alguém que não esteja envolvido com você.

— É isso o que temos? Um envolvimento pessoal?

— De que outra maneira você diria?

— Estou começando a pensar que não temos envolvimento algum.

— Ora, Nina, nós dormimos juntos! Como podem duas pessoas envolverem-se ainda mais?

— Para algumas pessoas, o sexo não passa de uma atividade física — ela declarou magoada.

Irritado, Sam decidiu não morder a isca. Nina tentava fazê-lo admitir que sentia mais que pura atração física por ela. E ele não estava disposto a deixá-la saber o quanto a idéia de perdê-la o aterrorizava.

Sabia o que tinha de ser feito.

Foi até o telefone. Ligaria para Coopersmith e pediria que designasse outro policial para cuidar da segurança de Nina. Naquele instante, o telefone tocou.

— Navarro — ele atendeu.

— Sam, sou eu.

— Bom dia, Gillis.

— Bom dia? Já é quase meio-dia! Já trabalhei um bocado, hoje.

— Lamento.

— Eu também. Já temos uma porção de carregadores para reconhecimento. Acha que pode trazer Nina para cá, antes da uma hora?

— Ela está aqui.

— Foi o que imaginei. Estejam aqui à uma.

— Sim, senhor.

Sam desligou. Quase meio-dia... Estava ficando preguiçoso, descuidado. A preocupação com o relacionamento sem futuro com Nina estava prejudicando sua atuação como policial. Se não fizesse seu trabalho direito, ela poderia sofrer as conseqüências.

— O que Gillis queria? — ela perguntou.

— Querem que você esteja lá à uma hora, para fazer o reconhecimento de alguns carregadores. Acha que pode fazê-lo?

— Claro. Quero ver esse caso encerrado, tanto quanto você.

— Bom.

— E você tem razão quanto à designação de outro policial para me proteger. Você tem coisas mais importantes a fazer do que ficar cuidando de mim.

Sam não discutiu. Porém, quando ela saiu da cozinha, deixando-o sozinho diante da mesa arrumada com tanto cuidado, ele pensou: "Você está enganada. Não há nada mais importante para mim do que cuidar de você".

 

Oito homens estavam alinhados do outro lado do espelho. Todos olhavam para a frente, aparentemente embaraçados por estarem ali.

Nina observava-os com atenção a cada detalhe.

— Nenhum deles usa o uniforme correto.

— Tem certeza? — Gillis perguntou.

— Sim. Não é nenhum destes.

Norm Liddell, parado ao lado de Gillis, emitiu um som de decepção. Sam não pronunciou uma palavra.

— Ora, estou perdendo o meu tempo, aqui — Liddell resmungou. — Isto foi tudo o que conseguiu, Navarro? Um punhado de carregadores?

— Sabemos que Spectre usava um uniforme parecido com o de carregador de hotel — Navarro explicou. — Queríamos que ela visse alguns.

— Conseguimos o boletim de ocorrência do atropelamento — Gillis informou-os. — O próprio ciclista o registrou, com medo de um processo judicial. Fez questão de enfatizar que atropelou um homem longe da faixa de pedestres. Aparentemente, Spectre caminhava apressado pela Congress Street, quando foi atingido.

— Congress? — Liddell franziu o cenho.

— Próximo ao hotel Pioneer — disse Sam —, onde o governador se hospedará depois de amanhã, para fazer uma palestra num seminário sobre comércio.

— Acha que o alvo de Spectre é o governador?

— É possível. Estamos revistando o hotel de ponta a ponta, especialmente o quarto do governador.

— E quanto aos carregadores do Pioneer?

— Nenhum deles sequer se aproxima da descrição de Spectre. Todos possuem os dez dedos nas mãos. Só queríamos que Nina desse uma olhada nos uniformes.

— Mas nenhum daqueles homens é Spectre.

— Não.

Nina concentrou-se no terceiro homem da fila.

— Todos os carregadores do Pioneer usam aquele uniforme? — perguntou.

— Sim — Gillis respondeu. — Por quê?

— Não foi o uniforme que vi.

— O que era diferente?

— O homem que vi usava uma jaqueta verde.

— Então, temos um problema — Gillis declarou. — O único hotel cujo uniforme é verde é o Marriott. Mas não fica na região.

— Interroguem os carregadores assim mesmo — Liddell ordenou. — Quero esse sujeito preso, antes que mate alguém importante. Quando o governador vai chegar?

— Amanhã à tarde.

— Temos vinte e quatro horas — Liddell concluiu. — Se surgir qualquer novidade, quero ser informado.

— Sim, sua alteza — Gillis resmungou.

Liddell lançou-lhe um olhar irritado, mas decidiu ignorá-lo.

— Minha esposa e eu estaremos no teatro Brant, à noite. Levarei o bip.

— Será o primeiro a ser informado — Sam garantiu.

— A imprensa está em cima de nós. Não vamos fazer nenhuma bobagem — Liddell declarou e saiu.

— Ainda vou pegar esse cara — Gillis falou furioso.

— Acalme-se, Gillis. Ele poderá ser o próximo governador.

— Nesse caso, eu mesmo vou ajudar Spectre a armar a bomba.

Sam segurou o braço de Nina e levou-a para fora da sala.

— Venha. Vou apresentá-la ao seu novo guarda-costas.

Nina sentiu-se um fardo.

— Por enquanto, vamos mantê-la em um hotel. Pressler é um bom policial e vai ficar com você. Confio nele.

— Quer dizer que eu deveria confiar, também?

— Sim. Telefonarei, caso apanhemos algum suspeito. Precisaremos de você para a identificação.

— Então, pode ser que eu não o veja por algum tempo.

Sam parou e fitou-a.

— Pode ser.

Fitaram-se por um momento. Aquele não era o momento, nem o lugar, de confessar a ele o que sentia. Mas Nina sofria por ter de afastar-se de Sam. E, mais ainda, sofria por ver aquele olhar frio e desprovido de emoção.

Bem, ele voltara a ser o servidor público. Depois do trauma da semana anterior, Nina poderia enfrentar aquela situação, inclusive a conclusão de que, mais uma vez, envolvera-se com o homem errado.

— Encontre Spectre e eu o identificarei. Mas faça isso depressa, para que eu possa cuidar da minha vida.

— Estamos trabalhando para isso. Tranqüilize-se, manteremos você informada.

— Posso contar com isso?

— Faz parte do meu trabalho.

O policial Leon Pressler não era de muita conversa.

Durante as três últimas horas, fizera uma imitação perfeita de esfinge. De quando em quando, verificava a porta e a janela e só respondia "sim, senhorita" e "não, senhorita" a perguntas diretas. Nina perguntou-se se ele seria algum tipo de robocop ou se teria recebido ordens de não tentar nenhuma aproximação.

Nina tentou ler um livro, mas o silêncio a deixava nervosa. Era no mínimo estranho passar o dia num quarto de hotel e nem sequer conversar com o acompanhante. Decidiu tentar:

— Faz tempo que é policial, Leon?

— Sim, senhorita.

— Gosta do seu trabalho?

— Sim, senhorita.

— Não tem medo?

— Não, senhorita.

— Nunca?

— Algumas vezes.

Nina pensou que, agora, a conversa seguiria. Porém, Pressler atravessou o quarto e olhou pela janela, ignorando-a. Nina insistiu.

— Não fica entediado com este tipo de trabalho?

— Não, senhorita.

— Eu ficaria. Passar o dia num quarto de hotel, fazendo nada.

— Pode acontecer alguma coisa.

— Tenho certeza de que estaria preparado.

Com um suspiro, Nina apanhou o controle remoto da televisão. Depois de verificar todos os canais, desligou-a.

— Posso dar um telefonema? — perguntou.

— Sinto muito.

— Preciso avisar a minha supervisora de que não vou trabalhar esta semana.

— O detetive Navarro proibiu telefonemas. Seria perigoso.

— O que mais o detetive Navarro lhe disse?

— Devo mantê-la sob vigilância, não baixar a guarda em momento algum. Porque, se algo acontecesse à senhorita... — Pressler parou de falar e tossiu nervoso.

— Continue.

— Ele... acabaria comigo.

— Um grande incentivo.

— Ele só queria ter certeza de que eu teria um cuidado especial. E eu devo isso a ele.

— O que quer dizer?

— Há alguns anos, fui chamado para atender um problema doméstico. O marido não gostou de me ver interferindo na sua vida particular. Atirou em mim.

— Meu Deus!

— Pedi ajuda pelo rádio. Navarro foi o primeiro a chegar. Portanto, devo-lhe minha vida.

— Conhece-o bem?

Pressler deu de ombros.

— É um bom policial, mas muito reservado. Acho que ninguém realmente o conhece bem.

Nem eu, ela pensou. O que Sam estaria fazendo? Afastou o pensamento depressa. Sam Navarro queria permanecer sozinho, e ela deveria fazer o mesmo.

 

O que Nina estaria fazendo, Sam perguntou-se. Tentou afastar o pensamento e concentrar-se na reunião. Mas sua mente não o obedecia. Estava preocupado com a segurança dela, embora tivesse todos os motivos para confiar em Pressler. O jovem policial era firme e confiável e, além disso, devia-lhe a vida.

Ainda assim, não conseguia livrar-se do medo, o que provava que perdera a objetividade, que seus sentimentos encontravam-se fora de controle.

— ...o melhor que podemos fazer? Sam?

Sam concentrou-se em Abe Coopersmith.

— O que disse?

— Onde está com a cabeça, Sam? — Coopersmith inquiriu com um suspiro.

— Desculpe. Acho que me distraí por um momento.

— O chefe quer saber se estamos seguindo alguma outra pista — Gillis esclareceu.

— Estamos seguindo todas as pistas — Sam falou. — O retrato falado está circulando. Verificamos todos os hotéis em Portland. Até agora, não encontramos nenhum funcionário que tenha perdido um dedo. O problema é que estamos agindo às cegas. Não sabemos quem, onde ou quando Spectre pretende atacar. Tudo o que temos é uma testemunha que viu seu rosto.

— E a cor do uniforme.

— Certo.

— Já mostrou os uniformes para a srta. Cormier, para que ela nos ajude a identificar o hotel?

— Estamos conseguindo outras amostras — disse Gillis. — Também interrogamos o ciclista. Ele não se lembra das feições do homem, pois tudo aconteceu depressa demais. Mas, assim como a srta. Cormier, afirma que a jaqueta era verde. E confirma que o acidente ocorreu na Congress Street, próximo à Franklin Avenue.

— Varremos toda a área — Sam falou. — Mostramos o retrato falado a todos os comerciantes. Ninguém o reconheceu.

— O governador chegará amanhã e temos um especialista em bombas escondido na cidade — Coopersmith declarou frustrado.

— Não sabemos se há ligação entre os dois. Spectre pode estar planejando outra coisa. Depende de quem o contratou.

— Talvez nem esteja mais na cidade — Gillis sugeriu —, pois já terminou o seu trabalho.

— Temos de assumir que ele ainda está aqui — Coopersmith reforçou.

Sam assentiu.

— Temos vinte e quatro horas, antes da chegada do governador. Até lá, descobriremos alguma coisa.

— Espero que sim. — Coopersmith levantou-se. — Não precisamos de mais uma explosão e, muito menos, de um governador morto em nossa cidade.

 

— Nunca consegui entender o jazz — admitiu o gerente do teatro Brant, que assistia ao ensaio. — Uma porção de notas amargas e todos os instrumentos lutando entre si.

— Eu gosto de jazz — disse o lanterninha.

— Ora, você também gosta de rap. Portanto, não posso confiar no seu gosto.

O gerente olhou em volta e verificou que tudo estava em ordem. A platéia daquela noite seria um tanto exigente: uma porção de advogados que não gostariam de encontrar bagunça ou sujeira por perto.

Um ano antes, aquele lugar era um cinema pornô, que exibia filmes de quinta categoria para uma platéia anônima. Agora, com dinheiro da iniciativa privada, o teatro Brant voltara a ser uma grande casa de espetáculos, que só apresentava artistas sérios. Infelizmente, o movimento dos filmes pornô costumava ser bem maior.

Ao menos, naquela noite, o movimento estava assegurado: quinhentos ingressos vendidos e a certeza de mais vendas de última hora, em benefício do departamento de Assistência Legal. O gerente achava engraçado todos aqueles advogados pagando para ouvir jazz ao vivo. Mas estava contente por saber que teria a casa cheia.

— Parece que teremos um homem a menos, esta noite — disse o lanterninha.

— Quem?

— Aquele cara novo que o senhor contratou pela agência. Apareceu antes de ontem. Depois disso, não o vi mais. Tentei telefonar, mas não consegui encontrá-lo.

— Não se pode confiar nessas agências — queixou-se o gerente.

— Verdade.

— Vai ter de dar conta do movimento com quatro homens.

— Não vai ser fácil. Já vendemos quinhentos ingressos.

— Deixe que alguns deles encontrem suas poltronas. São advogados e não devem ser burros. — O gerente consultou o relógio. Eram seis e meia. Mal teria tempo de comer o sanduíche que o esperava em sua sala. — As portas serão abertas em uma hora. É melhor jantarmos agora.

— Isso mesmo — concordou o lanterninha. Apanhou a jaqueta verde que deixara sobre uma poltrona e, assobiando, deixou o teatro.

Às sete e meia, Pressler escoltou Nina de volta à delegacia. O prédio encontrava-se quase deserto, em contraste com o que ela vira à uma da tarde.

Sam a esperava.

Ele a cumprimentou com frieza. Na sala, estavam Pressler, Gillis e outro policial. Nina não daria nenhuma demonstração de seus sentimentos. Assim como Sam.

— Queríamos que você desse uma olhada nestes uniformes — Sam falou, apontando para a mesa repleta de uniformes diferentes. — Temos carregadores, ascensorista e um lanterninha do Cineplex. Alguns deles lhe é familiar?

Nina examinou-os.

— Não era nenhum destes.

— E quanto ao verde?

— Não. O que vi tinha galões pretos, não dourados.

— As mulheres reparam em cada coisa! — Gillis exclamou.

— Está bem — Sam suspirou. — E só, por enquanto. Pressler, por que não aproveita e vai jantar? Levarei a srta. Cormier de volta ao hotel. Pode encontrar-se conosco lá, dentro de uma hora.

Todos saíram da sala, exceto Sam e Nina. Por um momento, os dois não se falaram nem olharam um para o outro.

— Espero que o quarto no hotel seja confortável — Sam falou.

— E é, mas vou ficar maluca se não sair logo de lá.

— Ainda não é seguro.

— E quando vai ser?

— Quando apanharmos Spectre.

— Isso pode nunca acontecer. Não posso continuar assim. Tenho um trabalho, uma vida. Não posso ficar num quarto de hotel com um tira que me faz subir pelas paredes.

— O que Pressler fez?

— Ele não pára de inspecionar portas e janelas, não me deixa usar o telefone e parece incapaz de conversar decentemente.

— Ah, é assim que Leon trabalha. É um bom policial.

— Pode ser, mas me deixa louca assim mesmo. Sam, não posso ficar fechada lá. Preciso tocar minha vida adiante.

— Vai fazer isso. Mas precisamos garantir que sobreviva para isto.

— E se eu sair da cidade?

— Podemos precisar de você, Nina.

— Não precisam. Vocês têm as impressões digitais, sabem que ele tem um dedo a menos...

— Precisamos apanhá-lo, primeiro. E, para isso, talvez precisemos de você, para reconhecê-lo. Por isso, precisa ficar na cidade, disponível. Nós a manteremos a salvo. Eu prometo.

— Tenho certeza que sim, pois quer apanhar o seu homem.

Ele a segurou pelos ombros.

— Essa não é a única razão. E você sabe.

— Sei?

Sam inclinou-se. Por um momento, Nina pensou que ele fosse beijá-la. Então, uma batida na porta sobressaltou-os. Gillis, evidentemente embaraçado, encontrava-se na porta.

— Eu... Vou comer um sanduíche. Quer que eu traga alguma coisa para vocês?

— Não — Sam respondeu. — Comeremos no hotel.

— Certo. Voltarei dentro de uma hora.

Saiu, deixando Sam e Nina sozinhos novamente.

Mas o momento se fora. Se Sam tivera a intenção de beijá-la, já dominara perfeitamente seus impulsos.

— Vou levá-la para o hotel — ele declarou.

No carro, era como se houvessem voltado ao primeiro dia, quando ele era o policial frio e ela a vítima indefesa. Era como se a última semana, as noites que haviam passado juntos, não houvesse acontecido. O único assunto seguro era o caso.

— Vi que o retrato falado está em circulação — ela falou.

— Sim.

— Alguma resposta?

— Recebemos uma porção de ligações. Passamos o dia inteiro investigando mas, até agora, não conseguimos nada.

— Acho que minha descrição não ajudou muito.

— Fez o melhor que podia.

— Se eu o visse, tenho certeza de que o reconheceria.

— É exatamente o que precisamos de você.

Só isso, ela pensou com tristeza.

— O que vai acontecer amanhã? — perguntou.

— Mais ou menos a mesma coisa. Seguiremos todas as pistas que surgirem e rezaremos para que alguém reconheça o retrato falado.

— Sabe se Spectre continua na cidade?

— Não. Ele pode ter ido embora. Mas meus instintos me dizem que ele está por perto e planeja algo grande. Você pode ser a única pessoa capaz de impedi-lo. É por isso que temos de mantê-la sob custódia.

— Não sei se vou agüentar isto por muito mais tempo. Não posso sequer dar um telefonema.

— Não queremos que ninguém saiba onde está.

— Prometo não dizer a ninguém. Estou me sentindo isolada do mundo.

— Está bem — ele suspirou. — Para quem quer ligar?

— Poderia começar com minha irmã, Wendy.

— Pensei que não fossem chegadas.

— Não somos. Mas ela ainda é minha irmã. E pode dizer ao resto da família que estou bem.

— Pode ligar para ela do telefone do carro. Mas não...

— Já sei. Não direi onde estou.

Nina apanhou o telefone e discou. A voz feminina que atendeu não soou familiar.

— Residência dos Hayward.

— Aqui fala Nina, irmã de Wendy. Ela está?

— A sra. e o sr. Hayward saíram. Sou a baby-sitter.

Nina sentiu-se mais abandonada do que nunca.

— Quer que ela lhe telefone quando chegar? — a moça perguntou.

— Não, não. Sabe a que horas ela vai voltar?

— Eles foram ao teatro Brant, para um show beneficente. Acho que termina às dez e meia. E, geralmente, eles vão jantar depois. Não devem chegar antes de meia-noite.

— Ligarei amanhã. Obrigada.

Nina desligou, desapontada.

— Ela não está em casa?

— Não. Eu deveria saber que eles não estariam. Na firma de advocacia de Jake, o dia não termina às cinco. As noites costumam ser ocupadas pelos negócios.

— Seu cunhado é advogado?

— Com ambições a juiz. E só tem trinta anos.

— Parece que é mesmo ambicioso.

— Ele é. E precisa de uma esposa tão ambiciosa quanto ele. Wendy é perfeita para ele. Aposto que, neste exato momento, ela está encantando algum juiz, no teatro. E faz isso sem o menor esforço. Sempre foi a política da família. — Nina olhou para Sam e notou que ele franzira o cenho. — Algo errado?

— Em que teatro eles estão?

— No Brant, onde está havendo o show beneficente.

— O Brant acabou de reabrir, não é?

— Sim, há um mês.

— Droga! Por que não pensamos nisso?

De súbito, Sam fez uma manobra e pôs-se a voltar para o centro da cidade.

— O que está fazendo? — Nina inquiriu.

— Quem acha que vai estar presente a um show em benefício do departamento de Assistência Legal?

— Uma porção de advogados.

— Certo. E o nosso estimado promotor público, Norm Liddell. Não que eu goste muito de advogados, mas também não quero apanhar seus corpos.

— Acha que o teatro Brant é o alvo?

— Precisarão de lanterninhas extras, esta noite. Pense bem. Que tipo de uniforme eles usam?

— Às vezes, só calça preta e camisa branca.

— Mas, num evento como este, deve estar usando jaquetas...

— É para lá que estamos indo?

— Sim. Quero que dê uma olhada e me diga se o uniforme se parece com o que já viu.

Chegaram ao teatro às oito e vinte. Sam não perdeu tempo, procurando vaga para estacionar. Deixou o carro bem na porta. Ao descer, ouviu um funcionário gritar:

— Ei! Não pode parar aí!

— Polícia! — Sam informou-o, exibindo a credencial. — Temos de entrar no teatro.

O porteiro abriu passagem.

O saguão estava deserto. Podia-se ouvir os acordes lamentosos do jazz.

Sam abriu uma das portas e desapareceu no teatro. Logo voltou, trazendo um lanterninha que protestava com veemência.

— Olhe para o uniforme — Sam disse a Nina. — Parece familiar?

— Foi este mesmo que eu vi.

— O que você viu? — inquiriu o lanterninha assustado,

— Quantos lanterninhas estão trabalhando esta noite?

— Quem é você, afinal?

Sam teve de exibir a credencial de novo.

— Polícia. É possível que haja uma bomba no teatro. Responda depressa: quantos lanterninhas?

— Uma bomba? Temos quatro lanterninhas.

— Só?

— Sim. Um deles não veio trabalhar.

— Ele tem um dedo a menos?

— Como vou saber? Todos nós usamos luvas. Acha mesmo que tem uma bomba lá dentro?

— Não podemos arriscar. Vou evacuar o prédio. — Sam virou-se para Nina. — Saia daqui. Espere no carro.

— Mas vai precisar de ajuda...

Sam já desaparecia pela porta. Caminhou até o palco e aproximou-se do indignado maestro. Também indignados e confusos, os músicos pararam de tocar. Sam apanhou o microfone.

— Senhoras e senhores, sou da polícia de Portland. Recebemos uma ameaça de bomba. Com calma, mas sem demora, por favor, evacuem o edifício.

Imediatamente, o êxodo teve início. Nina teve de afastar-se da porta, à medida que as pessoas buscavam a saída apressadas. Na confusão, perdeu Sam de vista, mas ainda podia ouvi-lo dando ordens e instruções.

— Por favor, mantenham-se calmos. Não há perigo imediato. Deixem o edifício sem confusão.

Ele será o último a sair, pensou Nina, a vítima mais provável, caso haja mesmo uma bomba.

A multidão atravessava as portas apressadas. O primeiro sinal de desastre foi o grito de uma mulher que, tendo tropeçado no vestido, caíra. Os outros entraram em pânico e tentaram correr.

 

Nina ficou horrorizada ao ver a mulher cair. Ao tentar ajudá-la, foi arrastada para fora do teatro. Era impossível voltar, pois estaria lutando contra a multidão, contra a força do pânico.

A rua já se encontrava repleta de gente, todos parecendo assustados. Para seu alívio, Nina avistou Wendy e Jake fora de perigo. Quase todos haviam saído.

Onde estava Sam?

Avistou-o saindo do saguão, ajudando um senhor idoso. Levou-o até a calçada e deixou-o apoiado em um poste.

Ao ver Nina encaminhando-se para ele, Sam gritou:

— Este homem precisa de ajuda! Cuide dele!

— Onde você vai?

— Retirar os que ainda estão lá dentro.

— Posso ajudá-lo...

— Fique fora do prédio e ajude aquele homem.

Ele tem um trabalho a fazer, Nina pensou, vendo-o desaparecer na porta. Eu também.

Voltou a atenção para o homem junto ao poste. Ajoelhou-se ao lado dele.

— O senhor está bem?

— Meu peito dói...

Ah, não! Um cardíaco! E nenhuma ambulância por perto. Imediatamente, Nina deitou-o na calçada, tomou-lhe o pulso e desabotoou-lhe a camisa. Estava tão ocupada que nem sequer percebeu a presença de um carro-patruIha diante do teatro. Aquela altura, a multidão estava muito alvoroçada, todos querendo saber o que estava acontecendo.

Nina ergueu os olhos e viu Sam saindo de novo. Desta vez, trazia a mulher que ela vira cair. Deixou-a junto de Nina.

— Ainda resta um — ele informou. — Cuide dela.

— Navarro! — uma voz gritou.

Sam olhou para o homem, que vestia um smoking.

— Que diabos está havendo?

— Não posso falar agora, Liddell. Tenho trabalho a fazer.

— Recebeu mesmo uma ameaça de bomba?

— Não.

— Então por que evacuou o teatro?

— O uniforme do lanterninha — Sam falou e voltou a virar-se para o prédio.

— Navarro! — Liddell trovejou. — Exijo uma explicação! Temos feridos por causa do que você fez! A menos que tenha uma boa desculpa...

Sam já desaparecera pela porta.

Liddell pôs-se a andar de um lado para o outro, como se não pudesse conter a ira. Finalmente, num acesso de fúria, gritou:

— Vai me pagar por isto, Navarro!

Aquelas foram as últimas palavras de Liddell, antes da explosão.

A força da explosão atirou Nina para trás, no meio da rua. Ela caiu pesadamente, seus cotovelos rasparam o asfalto, mas não sentiu dor. O choque do impacto foi forte demais, e deixou-a atordoada. Viu cacos de vidro caindo sobre os carros estacionados, espirais de fumaça subindo pelo ar e muitas outras pessoas caídas na rua, tão atordoadas quanto ela. E viu a porta da frente do teatro inclinada num ângulo estranho, pendurada por uma única dobradiça.

No silêncio que se seguiu, ela ouviu o primeiro gemido. Depois, mais um. Então, vieram os soluços e gritos dos feridos. Devagar, conseguiu sentar-se. Só então sentiu a dor. Seus cotovelos sangravam e sua cabeça latejava. Porém, ao mesmo tempo que a dor se tornou consciente, veio a lembrança do que ocorrera pouco antes da explosão.

Sam havia entrado no teatro.

Onde ele estava? Olhou para todos os lados, mas sua vista estava embaçada. Viu Liddell sentado na calçada, gemendo. A seu lado, estava o senhor que ela atendera antes. Ele também gemia e se movia. Mas não havia o menor sinal de Sam.

Nina pôs-se de pé. Uma onda de tontura quase a fez tombar, mas ela conseguiu caminhar e entrar no teatro.

Lá dentro, a escuridão era quase total. A única luz era o brilho fraco que vinha da rua. Nina tropeçou nos escombros e caiu de joelhos. Depressa, levantou-se, mas sabia que seria impossível encontrar alguém ali.

— Sam? — chamou. — Sam!

Ouviu o eco da própria voz, embargada pelo desespero.

Lembrou-se de que ele havia acabado de entrar, quando a bomba explodira. Podia estar em qualquer lugar. Voltou a chamar:

— Sam!

Desta vez, ouviu a resposta distante, vinda do lado de fora.

— Nina?

Virou-se e voltou na direção da porta. Antes que chegasse lá, ela o viu.

— Nina?

— Estou aqui — ela respondeu, apressando-se na direção da porta.

Então, foi envolvida por um abraço forte demais para ser gentil, aterrorizado demais, para ser reconfortante.

— Que diabos está fazendo aqui dentro? — ele inquiriu.

— Procurando por você.

— Devia ficar lá fora. Longe do prédio. Quando não encontrei você... — Os braços dele a apertaram com mais força. — Da próxima vez, faça o que eu mandar.

— Pensei que você estivesse lá dentro.

— Saí pela porta lateral.

— Eu não vi!

— Eu estava tirando o último homem. Acabávamos de sair, quando a bomba explodiu. Fomos derrubados na calçada.

Sam afastou-se para fitá-la. Então, Nina viu o sangue escorrendo de sua têmpora.

— Sam, você precisa de um médico...

— Muita gente aqui precisa de um médico. Eu posso esperar.

Nina olhou para o caos à sua volta.

— Precisamos fazer uma triagem dos feridos para as ambulâncias. Vou cuidar disso.

— Está se sentindo bem?

Ela assentiu e sorriu.

— Este é o meu trabalho, detetive: desastres.

Desapareceu na multidão.

Agora que sabia que Sam estava bem, Nina podia concentrar-se no que devia ser feito. Seria uma noite longa. Todos os hospitais da área teriam de chamar todas as suas enfermeiras.

Sua cabeça doía terrivelmente, e seus cotovelos ardiam, cada vez que ela dobrava os braços. Porém, ao que parecia, era a única enfermeira ali presente.

Olhou para a vítima mais próxima, uma mulher cuja perna sangrava. Ajoelhou-se, rasgou um pedaço do vestido da mulher e improvisou um torniquete, estancando a hemorragia.

Aquela fora apenas a primeira. Nina olhou em volta, à procura do próximo paciente. Havia dúzias de pessoas precisando de cuidados.

Do outro lado da rua, o rosto escondido pelas sombras, Vincent Spectre observou o caos e murmurou um palavrão. Tanto o juiz Stanley Dalton quanto Norm Liddell continuavam vivos. Spectre podia ver o jovem promotor sentado junto a um poste, segurando a cabeça com as mãos. A loira a seu lado devia ser a esposa. Estavam bem no meio da confusão, cercados de dezenas de outros feridos. Spectre não poderia, simplesmente, ir até lá e acabar com ele sem que um punhado de testemunhas o visse. Além disso, Sam Navarro encontrava-se a poucos metros de distância e, certamente, estaria armado.

Mais uma humilhação. Aquilo destruiria sua reputação, bem como sua conta bancária. O "Homem de Neve" oferecera-lhe quatrocentos mil dólares pelas mortes de Dalton e Liddell. Spectre considerara uma solução elegante matar os dois de uma só vez, juntamente com outras tantas vítimas. Assim, as identidades de seus alvos poderiam permanecer incógnitas para sempre.

Porém, os alvos continuavam vivos e não haveria pagamento algum a receber.

Seria muito arriscado completar o trabalho agora, especialmente com Navarro em cena. Graças ao policial, Spectre teria de esperar e dar adeus a seus quatrocentos mil.

Desviou os olhos e fixou-os em outra figura na multidão. Era a enfermeira Nina Cormier, que cuidava de um dos feridos. Spectre tinha certeza de que aquele fiasco era, em parte, responsabilidade dela. Ela, certamente, dera à polícia informações suficientes para que rastreassem a bomba. O uniforme de lanterninha, sem dúvida, fora uma pista vital.

Ela fora mais um detalhe que ele não se incomodara em limpar e, agora, ali estava o resultado: sem vítimas, sem dinheiro. E, ainda, o fato de que ela poderia identificá-lo. Embora o retrato falado fosse excessivamente genérico para surtir algum efeito, Spectre tinha o pressentimento de que se Nina visse seu rosto, se lembraria e o reconheceria. O que a transformava numa ameaça que ele já não podia mais ignorar.

Mas aquela não era a oportunidade, ou o lugar apropriado. A multidão era imensa. As ambulâncias começavam a chegar, e a polícia havia isolado a área.

Era hora de sair de cena.

Spectre virou-se e afastou-se, sentindo a frustração aumentar a cada passo. Sempre se orgulhara de prestar atenção a pequenas coisas. Qualquer um que lidasse com explosivos tinha de ser atento a detalhes. Do contrário, seus dias estariam contados. Spectre pretendia terminar aquele trabalho, o que significava que continuaria a dedicar-se aos detalhes.

E o próximo detalhe a cuidar chamava-se Nina Cormier.

Ela era magnífica. Exausto, Sam parou em meio aos cacos de vidro e gritos e observou Nina. Eram dez e meia, uma hora e meia depois da explosão, e a rua ainda era um caos. Carros de polícia e ambulâncias encontravam-se estacionados desordenadamente, as luzes piscando. O serviço de emergência estava lá, atendendo e triando vítimas. Os feridos mais graves já haviam sido removidos, mas ainda havia muita gente a ser transportada para os hospitais.

Em meio àquela confusão, Nina parecia uma ilha de calma e eficiência. Enquanto Sam a observava, ela se ajoelhou ao lado de um homem que gemia e enfaixou-lhe o ferimento no braço com uma bandagem improvisada. Então, com um tapinha no ombro e uma palavra de conforto, afastou-se para cuidar de outro ferido. Como se pressentisse que alguém a observava, ela olhou na direção de Sam. Por um momento, seus olhares se cruzaram e ela pôde ler a pergunta silenciosa: "Você está bem?"

Nina acenou e assentiu. Então, virou-se e concentrou-se no paciente.

Ambos tinham muito o que fazer. Assim, Sam voltou a concentrar-se na investigação da explosão.

Gillis chegara quarenta e cinco minutos antes, trazendo o equipamento de segurança. O restante da equipe foi chegando, um a um: três técnicos, Ernie Takeda, o detetive Cooley. Até mesmo Abe Coopersmith aparecera, embora sua presença fosse mais simbólica do que prática. O show pertencia a Sam, e todos sabiam disso.

Chegara o momento de entrar no edifício e revistá-lo, à procura de uma segunda bomba.

Utilizando capacetes com lanternas, Sam e Gillis entraram no teatro.

A escuridão tornava o trabalho lento e difícil. Pisando sobre escombros, Sam desceu pelo corredor da esquerda. Gillis foi pela direita. À medida que avançavam, o estrago ia se tornando maior.

— Dinamite — Gillis declarou, sentindo o odor no ar.

— Parece que o centro da explosão foi na frente. Sam aproximou-se do que fora o palco.

— Aqui está a cratera — Gillis anunciou.

Sam juntou-se a ele. Os dois examinaram o local. Gomo na igreja, a cratera era rasa: explosão de baixa velocidade. Dinamite.

— Ao que parece, esta era a terceira fila — Sam falou. — Quem estaria sentado aqui?

— Acha que os assentos foram pré-determinados?

— Espero que sim, pois teremos uma lista de alvos em potencial.

— Acho que não há outros explosivos por aqui — Gillis diagnosticou.

— Vamos chamar os outros.

Sam levantou-se e sentiu uma forte tontura. Eram os efeitos da explosão. Estivera em tantas delas ultimamente que sua mente parecia estar começando a embaralhar. Talvez um pouco de ar fresco lhe fizesse bem.

— Você está bem? — Gillis perguntou.

— Sim. Só preciso sair um pouco.

Lá fora, apoiou-se num poste e respirou fundo. A tontura desapareceu e, mais uma vez, ele focalizou a atividade na rua. Percebeu que a multidão diminuíra e que todos os feridos haviam sido removidos. Somente uma ambulância permanecia no local.

Onde estava Nina?

O pensamento clareou sua mente no mesmo instante. Olhou em volta, mas não viu o menor sinal dela. Teria ido embora? Ou fora levada?

Um jovem policial aproximou-se.

— Pois não, senhor?

— Havia um enfermeira em trajes civis, cuidando dos feridos. Para onde ela foi?

— Está falando da moça de cabelos negros? Aquela bonita? .

— Ela mesmo.

— Foi numa das ambulâncias, há uns vinte minutos. Acho que estava ajudando a cuidar de um paciente.

— Obrigado.

Sam foi até o carro e apanhou o telefone. Não correria riscos. Tinha de se certificar de que ela estava a salvo. Discou o número do pronto-socorro do Centro Médico Maine.

A linha estava ocupada.

Frustrado, ele entrou no carro.

— Vou até o hospital — gritou para Gillis. — Volto logo.

Ignorando o olhar confuso do parceiro, Sam dirigiu o carro para fora do cordão de isolamento. Minutos depois, estacionava próximo à entrada de emergência do hospital. O pronto-socorro estava lotado. Sam abriu caminho até a recepção.

— Sou o detetive Navarro, polícia de Portland — identificou-se. — Nina Cormier está trabalhando aqui?

— Nina? Não esta noite, que eu saiba.

— Ela veio numa das ambulâncias.

— Pode ser que eu não a tenha visto. Vou verificar.

— A enfermeira apertou um botão no interfone e disse:

— Há um policial aqui, procurando por Nina. Se ela estiver aí, pode pedir-lhe que venha à recepção?

Sam esperou por dez minutos, cada vez mais impaciente. Nina não apareceu. A sala de espera ficou ainda mais lotada e, para piorar a situação, a imprensa chegou com suas câmaras. A enfermeira da recepção tinha muito o que fazer e era evidente que esquecera-se de Sam.

Incapaz de esperar mais, ele passou pela recepção. Ocupada em acalmar o parente de uma vítima, que estava histérico, a enfermeira nem o viu tomar o corredor que levava à emergência.

Sam espiou em cada uma das salas. Todas estavam ocupadas por vítimas da explosão. Ele viu expressões de choque, roupas ensangüentadas, mas nenhum sinal de Nina.

Voltou pelo corredor e parou diante de uma porta fechada. Pelo ruído de vozes e o tilintar de instrumentos cirúrgicos, Sam percebeu que um paciente grave estava sendo atendido. Hesitou em entrar, mas não tinha alternativa. Precisava certificar-se de que Nina estava no hospital, sã e salva.

Abriu a porta.

Um homem encontrava-se deitado na maca, o corpo pálido e flácido sob a forte iluminação. Meia dúzia de médicos e enfermeiros o atendiam, numa corrida frenética contra o tempo. A cena provocou um efeito de choque em Sam.

— Sam?

Ao ouvir seu nome, ele percebeu que Nina aproximava-se, vestindo as mesmas roupas azuis das demais enfermeiras. Nem sequer a reconhecera, ao entrar.

Ela segurou-lhe o braço e levou-o para fora.

— O que está fazendo aqui? — Nina inquiriu.

— Você deixou o local da explosão e eu não sabia se estava tudo bem.

— Vim numa das ambulâncias. Achei que precisariam de mim. — Lançou um olhar para a porta fechada. — Acertei.

— Nina, você não pode simplesmente desaparecer, sem me avisar! Eu não fazia idéia do que havia acontecido!

Ela o fitou com expressão deliciada, mas não disse nada.

— Está me ouvindo? — Sam perguntou.

— Sim, mas não estou acreditando em meus ouvidos. Você parece realmente assustado.

— Não estou assustado. Eu só... Eu... Ora, é verdade. Estava muito preocupado. Não queria que nada de mal lhe acontecesse.

— Por que sou sua testemunha?

Sam fitou-a nos olhos, aqueles lindos olhos. Nunca em sua vida sentira-se tão vulnerável. Aquele era um sentimento totalmente novo e ele não estava gostando nem um pouco da novidade. Não estava acostumado a assustar-se com facilidade, e o fato de ter sentido um medo tão profundo diante da idéia de perder Nina provava que estava muito mais envolvido do que havia planejado.

— Sam? — Nina tocou-lhe a face.

Ele segurou-lhe a mão e afastou-a.

— Da próxima vez — instruiu —, quero, que me diga para onde vai. É a sua vida que está em jogo. Se quer arriscá-la, o problema é seu. Mas, enquanto Spectre estiver solto, sua segurança é minha responsabilidade. Compreendeu?

Nina retirou a mão da dele, deixando claro que seu afastamento não era somente físico, mas também emocional. Sam percebeu o fato e sofreu por isso. Tratava-se de um sofrimento resultante de sua própria escolha, o que tornava as coisas ainda piores.

— Compreendi perfeitamente — ela afirmou com frieza.

— Ótimo. Agora, acho que deveria voltar ao hotel, onde podemos mantê-la sob vigilância constante.

— Não posso ir embora. Precisam de mim, aqui.

— Eu também preciso de você. Viva.

— Olhe para isso! — Ela apontou para a sala de espera apinhada de feridos. — Esta gente precisa ser examinada e atendida. Não posso sair agora.

— Nina, tenho um trabalho a fazer. A sua segurança é parte dele.

— Eu também tenho um trabalho á fazer!

Fitaram-se por um momento, nenhum dos dois disposto a ceder.

Foi Nina quem quebrou o silêncio.

— Não tenho tempo para isto! — declarou e virou-se para entrar na sala.

— Nina!

— Farei o meu trabalho, Sam. Cuide do seu.

— Então, mandarei um de meus homens para ficar de olho em você.

— Faça como quiser.

— Quando acha que poderá sair daqui?

— Pelos meus cálculos, só pela manhã.

— Voltarei às seis horas para apanhá-la.

— Sim, senhor detetive — ela replicou e entrou na sala.

Ela dissera que faria o trabalho dela e o mandara cuidar do dele.

Estava certa, pensou Sam. Era exatamente o que ele deveria estar fazendo: concentrando-se no trabalho.

Do telefone do carro, ligou para o oficial Pressler e pediu-lhe que mandasse o policial que o renderia para o hospital, onde ele poderia vigiar Nina. Satisfeito por saber que ela estaria em boas mãos, voltou ao local da explosão.

Eram onze e meia. A noite estava apenas começando.

Nina suportou as sete horas seguintes por pura força de vontade. Sua conversa com Sam a deixara magoada e furiosa. Teve de forçar-se a concentrar-se no trabalho de atender as dezenas de pacientes à espera. Os ferimentos e a dor daquelas pessoas tinham de ser sua prioridade. Porém, de quando em quando, voltava a pensar em Sam e no que ele havia dito.

Tenho um trabalho a fazer e a sua segurança é parte dele.

Nina perguntou-se se era só isso que ela significava para ele: um trabalho, um fardo. O que esperava, afinal? Desde o início, ele havia se mostrado como o inabalável servidor público, a indiferença em pessoa. E claro que os momentos de calor humano haviam sido reais, bem como os breves vislumbres do homem escondido atrás do tira, de sua gentileza genuína. Porém, toda vez que ela acreditava ter conseguido alcançar o verdadeiro Sam Navarro, ele recuava como um gato escaldado.

O que poderia fazer com ele? E o que faria com os sentimentos que tinha por ele?

Foi o trabalho que lhe emprestou as forças necessárias para atravessar a noite. Ela nem percebeu quando o dia amanheceu.

As seis horas, Nina sentia-se tão cansada que mal podia andar. Felizmente, a sala de espera havia esvaziado e todos os pacientes haviam sido atendidos. A maior parte da equipe reunira-se na sala dos médicos, a fim de gozar de um merecido descanso. Ela estava prestes a juntar-se aos outros quando ouviu seu nome.

Virou-se e deparou com Sam, parado na sala de espera.

Ele parecia tão exausto quanto ela. Seus olhos estavam vermelhos, e as faces escurecidas pela barba por fazer. A raiva que Nina sentira a noite toda dissipou-se no mesmo instante.

Meu pobre Sam, pensou, você dá tanto de si mesmo e que tipo de conforto encontra no final do dia?

Aproximou-se. Ele não disse uma palavra, limitou-se a fitá-la com aquela terrível expressão de cansaço. Abraçaram-se e permaneceram assim por alguns instantes. Então, ele falou com ternura:

— Vamos para casa.

— Boa idéia — ela respondeu com um sorriso.

Nina jamais saberia dizer como foi a viagem até a casa.

Assim que entrou no carro, adormeceu, e, quando voltou a abrir os olhos, estavam diante da casa de Sam. Juntos, entraram e foram direto para o quarto. Nenhum tipo de desejo cruzou-lhe a mente, nem mesmo quando os dois se despiram e deitaram-se juntos, ou quando Sam pousou os lábios em sua testa, com extrema gentileza e ternura. Nina adormeceu no mesmo instante, nos braços de Sam.

Ela estava quente, segura, perfeita, deitada ao seu lado. Era como se pertencesse àquele quarto, àquela cama.

Sonolento, Sam fitou Nina ainda adormecida. Já era de tarde. Deveria ter se levantado horas antes, mas a exaustão o impedira.

Estava ficando velho demais para aquele tipo de trabalho. Durante os últimos dezoito anos, fora policial. Embora houvesse momentos em que detestava o trabalho, quando o lado feio se mostrava, sempre soubera que nascera para aquela carreira. E era surpreendente que, agora, ser policial era a última coisa a ocupar sua mente.

Só queria passar o resto da vida deitado naquela cama, olhando para aquela mulher. Queria estudar-lhe os traços delicados, desfrutar da visão privilegiada. Só se sentia seguro para fitá-la quando ela estava dormindo. Quando Nina estava acordada, Sam sentia-se muito vulnerável, como se ela pudesse ler seus pensamentos, entrar em seu coração. Tinha medo de admitir, até para si mesmo, os sentimentos que nutria por ela.

Enquanto a observava, concluiu que não fazia mais sentido negar: não podia suportar a idéia de vê-la sair de sua vida. O que isso significava? Que a amava? Não saberia responder.

Sabia que aquele não era o desfecho que desejara ou esperara.

Porém, na noite anterior, ao vê-la trabalhando na cena da explosão, passara a admirar uma dimensão da personalidade de Nina que ele vira pela primeira vez. Uma mulher cheia de compaixão e coragem.

Seria tão fácil apaixonar-se por ela. Seria um erro tão grande.

Em um mês, um ano, ela passaria a vê-lo pelo que ele era: não um herói com credenciais, mas um sujeito comum, fazendo o seu trabalho da melhor maneira que conhecia. E lá estaria ela, trabalhando no hospital, ao lado de homens como Robert Bledsoe. Homens com diplomas de medicina e casas na praia. Quanto tempo levaria para ela se cansar do tira que, por acaso, a amava?

Sentou-se na cama e passou as mãos pelos cabelos, tentando apagar os últimos vestígios de sono. Sua mente ainda não se encontrava totalmente alerta. Precisava de café, comida, qualquer coisa que o despertasse de vez. Eram tantos os detalhes a cuidar, pistas a seguir...

Então, sentiu um carinho suave nas costas. No mesmo instante, o trabalho desapareceu nos recessos mais remotos de sua mente.

Virou-se e deparou com Nina que o fitava sonolenta, com um sorriso tranqüilo nos lábios.

— Que horas são? — ela perguntou.

— Quase três.

— Dormimos tanto assim?

— Precisávamos descansar. Nós dois. Desta vez, podíamos baixar a guarda, pois Pressler estava vigiando a casa.

— Quer dizer que ele passou o dia todo lá fora?

— Combinei tudo ontem à noite, antes de ele sair de plantão. Eu já sabia que ia querer traze-la para cá.

Nina abriu os braços num convite tentador demais para ser ignorado. Sam não resistiu e rendeu-se à tentação. Desejavam-se mais que tudo na vida. Deitou-se junto de Nina e beijou-a, sentindo seus corpos se acenderem. Não podia parar, ou recuar. Queria amá-la, nem que fosse pela última vez. Se não podia tê-la para o resto da vida, então se contentaria em tê-la naquele momento. E, sempre, se lembraria daquele rosto, daquele sorriso, dos gemidos doces de prazer.

Ambos entregaram-se de corpo e alma.

Porém, mesmo quando alcançaram o clímax, quando Sam sentiu-se invadido pelas ondas de êxtase, pensou: isto não basta. Não queria conhecer apenas o corpo de Nina, mas também sua alma.

Embora a paixão estivesse temporariamente saciada, Sam sentiu-se insatisfeito e deprimido, deitado ao lado de Nina, depois de terem feito amor. Não era o que se esperaria de um solteirão, logo após uma conquista. O pior era que estava furioso consigo mesmo, por ter se deixado cair naquela situação. Por ter permitido que aquela mulher se tornasse tão importante em sua vida.

E ela continuava sorrindo, envolvendo-o ainda mais.

A reação de Sam foi afastar-se, levantar-se e ir para o chuveiro. Quando voltou, Nina observou-o com expressão fascinada.

— Preciso voltar ao trabalho — Sam anunciou, apanhando uma camisa limpa. — Pedirei a Pressler que entre e fique com você.

— Depois da explosão de ontem, Spectre deve estar a quilômetros daqui.

— Não posso correr o risco.

— Existem outras pessoas capazes de identificá-lo. Os lanterninhas do teatro, por exemplo.

— Um deles levou uma pancada na cabeça, na hora da explosão. Ainda não recobrou a consciência. O outro não é sequer capaz de dizer qual é a cor dos olhos de Spectre.

— Ainda assim, você tem outras testemunhas e Spectre sabe disso. Acho que isso nos tira de cena.

— O que quer dizer?

— Que eu posso parar de me preocupar com a possibilidade de ser um alvo, e você pode parar de se preocupar em me manter viva. Pode voltar ao seu verdadeiro trabalho.

— Isto é parte do meu trabalho.

— Já me disse isso. — Nina empinou o queixo e Sam notou o brilho das lágrimas. — Gostaria de ser mais. Gostaria...

— Nina, por favor. Não torne as coisas mais difíceis para nós dois.

Ela abaixou a cabeça. A visão de Nina magoada, silenciosa, era mais do que ele podia suportar. Sam ajoelhou-se diante dela e tomou-lhe as mãos nas suas.

— Você sabe que me sinto atraído por você.

Ela soltou uma risada irônica.

— Ora, isso é óbvio.

— E você sabe que a considero uma mulher maravilhosa. Se, algum dia, eu for parar no pronto-socorro, espero que você seja a enfermeira que venha me atender.

— Mas?

— Mas... Não consigo ver nós dois juntos. Não para o resto de nossas vidas.

Nina voltou a baixar os olhos, e Sam pôde sentir sua luta para manter o controle. Ele a magoara e se odiava por isso, odiava a própria covardia, pois não acreditava naquele relacionamento. Não acreditava nela.

Sua única certeza era de que jamais se esqueceria de Nina.

Sam pôs-se de pé. Nina não reagiu. Continuou sentada na cama, olhando para o chão.

— O problema não é você, Nina. Sou eu. Algo aconteceu comigo há anos, e me convenceu de que o tipo de situação em que nos encontramos agora não dura. É artificial. Uma mulher assustada e um tira formam o cenário perfeito para uma porção de expectativas nada realistas.

— Não me venha com uma aula de psicologia, Sam. Não preciso que me expliquem o que é transferência, ou sentimentos mal dirigidos.

— Mas, você precisa me ouvir. E entender. O efeito é o mesmo para os dois lados: o que você sente por mim e o que eu sinto por você. Também não sou capaz de evitar a necessidade que sinto de protegê-la.

Sam suspirou, sentindo-se frustrado e desesperado. É tarde demais, pensou, pois ambos sentimos o que não deveríamos sentir jamais. E, agora, é impossível voltar no tempo.

— Disse que algo aconteceu... — Nina falou. — Foi... outra mulher?

Ele assentiu.

— A mesma situação? Uma mulher assustada e um tira protetor?

Sam voltou a assentir.

Nina sacudiu a cabeça contrariada.

— Ora, parece que me encaixei direitinho no papel.

— Nós dois nos encaixamos.

— Quem abandonou quem, Sam? Estou falando da última vez em que aconteceu.

— Só aconteceu uma vez... antes de você. Eu era um novato de vinte e dois anos, designado para proteger uma mulher que estava recebendo ameaças. Embora ela tivesse vinte e oito, parecia ter quarenta, quando se tratava de sofisticação. Não é de surpreender que eu tenha me fascinado por ela. A surpresa foi ela retribuir o sentimento. Ao menos, até a crise terminar, e ela decidir que eu não era tão interessante assim. Estava certa. Trata-se daquela coisa maldita que chamamos de realidade, capaz de nos despir e mostrar o que realmente somos. No meu caso, sou apenas um policial trabalhador e honesto. Melhor que alguns, pior que outros. Em resumo, não sou o herói de ninguém. Quando, finalmente, ela se deu conta disso, partiu, deixando para trás um novato mais triste, porém muito mais experiente.

— E você acha que vou fazer a mesma coisa.

— É o que deveria fazer, por que você merece muito mais do que eu posso oferecer.

— O que eu quero não tem nada a ver com o que um homem pode me dar, Sam.

— Pense em Robert e no que poderia ter tido com ele.

— Robert foi o exemplo perfeito! Tinha tudo, exceto o que eu queria dele.

— O que você queria, Nina?

— Amor. Fidelidade. Honestidade.

Sam ficou profundamente abalado com aquela declaração. Era justamente aquilo o que ele tinha para dar... O que tanto temia dar.

— No momento, você pensa que isso é suficiente — argumentou. — Talvez descubra que não é.

— É mais do que tive com Robert. — Mais do que jamais terei com você, ela pensou com tristeza.

Embora lesse a mensagem nos olhos dela, Sam não tentou convencê-la do contrário. Simplesmente, virou-se para a porta.

— Vou chamar Pressler — informou-a. — Pedirei que fique com você.

— Não será preciso.

— Não deve ficar sozinha, Nina.

— Não ficarei. Voltarei para a casa de meu pai. Ele tem aquele magnífico sistema de segurança, além dos cachorros. Agora que sabemos que não foi Daniella quem saiu por aí armando bombas, creio que estarei segura. Não acho conveniente ficar aqui. Não na sua casa.

— Pode ficar por quanto tempo quiser.

— Não. Já que nossa relação não tem nenhum futuro, não faria o menor sentido eu ficar.

Sam não discutiu. E foi isso que mais a feriu.

— Levarei você até lá — ele disse e saiu do quarto, pois não suportaria mais um segundo ali dentro.

Não suportaria fitar aqueles olhos escuros nem mais um instante.

 

— Acho que sabemos quem era o alvo — Sam informou. — Nosso querido promotor, Liddell.

Coopersmith fitou Gillis e Sam do outro lado da mesa.

— Têm certeza?

— Todas as evidências apontam para isso. Localizamos o centro da explosão como sendo a fileira três, entre as poltronas G e J. Os lugares para a noite de ontem foram reservados com semanas de antecedência. Examinamos a lista de espectadores naquela fila e descobrimos que Liddell e a esposa estavam sentados bem no centro. Teriam morrido na hora.

— Quem mais estava naquela fila?

— O juiz Dalton estava a seis poltronas dali — Gillis falou. — Poderia ter sido morto, também. Ou, ao menos, seriamente ferido.

— E os outros espectadores?

— Verificamos todos eles. Um professor de direito da Califórnia, alguns parentes do juiz Dalton, dois advogados. Duvidamos que algum deles despertaria o interesse de um assassino de aluguel. Ah, talvez o senhor se interesse pelo relatório que recebemos de Ernie Takeda esta tarde. Foi dinamite Dupont, detonador Prima e fita adesiva elétrica verde.

— Spectre — disse Coopersmith com um suspiro cansado. Estavam todos exaustos. Haviam trabalhado a noite inteira, dormido poucas horas e voltado ao trabalho. Agora, eram cinco da tarde e mais uma noite se aproximava. — Meu Deus, o homem voltou com sede de vingança.

— Sim, mas ele não tem tido muita sorte — Gillis comentou. — Seus alvos continuam vivos: Liddell, o juiz Dalton, Nina Cormier. Eu diria que o legendário Vincent Spectre deve estar se sentindo muito frustrado, no momento.

— E envergonhado — Sam acrescentou. — Sua reputação está manchada. Com mais este fiasco, ele está acabado. Quem quer que tenha dinheiro para contratar um profissional, procurará outra pessoa.

— Sabemos quem o contratou?

Sam e Gillis entreolharam-se.

— Podemos arriscar um palpite — Gillis respondeu.

— Billy Binford?

Sam assentiu.

— O "Homem de Neve" irá a julgamento dentro de um mês. Liddell colocou-se inflexível com relação a qualquer pedido de acordo. Há rumores de que ele usaria a condenação como ponto de partida para uma campanha política. Acho que o "Homem de Neve" sabe que vai passar um longo tempo na prisão e quer Liddell fora da equipe da promotoria. Em caráter permanente.

— Se Sam não houvesse esvaziado o teatro — Gillis falou —, metade de nossos promotores estaria morta. Os julgamentos seriam adiados por meses. Nessa situação, os advogados de Binford poderiam conseguir algum tipo de acordo.

— E temos alguma prova disso?

— Ainda não. O advogado de Binford, Albert Darien, nega qualquer conhecimento do assunto. Não conseguiremos arrancar uma só palavra dele. Estamos examinando os videoteipes gravados pelas câmaras de segurança da prisão, à procura dos visitantes de Binford. É possível que um contato seja identificado.

— Acha que pode não ser o advogado?

— É possível. Se conseguirmos identificar o contato, talvez encontremos uma ligação com Spectre.

— Então, mãos à obra — disse Coopersmith. — Quero esse sujeito preso.

As cinco e meia, a reunião foi encerrada e Sam foi até a máquina de café, a fim de ingerir cafeína bastante para mantê-lo de pé pelas próximas oito horas. Quando bebia o primeiro gole, Norm Liddell entrou. Sam não pôde evitar a satisfação de ver os hematomas e arranhões no rosto de Liddell. Embora os ferimentos fossem leves, na noite anterior, depois da explosão, Liddell fora dos que mais gritara por auxílio médico. A própria esposa, que fraturara um braço, perdera a paciência e o mandara calar a boca e agir como homem.

Agora, lá estava ele, exibindo horríveis arranhões no rosto, assim como um ar de... Seria possível? Estava arrependido?

— Boa tarde, Navarro — Liddell cumprimentou-o em voz baixa.

— Boa tarde.

— Eu... — Liddell limpou a garganta e olhou em volta, como se verificasse se alguém o ouvia. Não havia ninguém.

— Como vai a sua esposa? — Sam perguntou.

— Bem. Terá de usar gesso por uns dias. Felizmente, foi uma fratura simples.

— Ela se portou muito bem, ontem à noite, considerando-se o ferimento que sofreu — Sam comentou e pensou: "Diferente de você".

— Sim, bem, minha esposa tem uma vontade de aço. Na verdade, é por isso que eu gostaria de falar com você.

— Pois não?

— Escute, Navarro, ontem à noite... Acho que fui injusto com você. Eu não sabia que você tinha informações sobre a bomba.

Sam não disse uma palavra, pois não queria interromper aquele momento tão prazeroso.

— Assim, quando você esvaziou o teatro... Eu deveria saber que você tinha suas razões. Mas, tudo o que vi, foram aquelas pessoas feridas na confusão. Achei que você os colocara em pânico por nada. — Liddell fez uma pausa, evidentemente lutando para pronunciar as palavras. — Bem, eu gostaria de lhe pedir desculpas.

— Desculpas aceitas.

Liddell respirou aliviado.

— Agora, pode dizer à sua esposa que já agiu como devia.

A expressão de Liddell confirmou as suspeitas de Sam.

O pedido de desculpa fora idéia da sra. Liddell, com sua vontade de aço. Sam não pôde evitar um sorriso, quando o outro virou-se e caminhou tenso na direção da sala de Coopersmith. O bom promotor, ao que parecia, não era quem usava calças em casa.

— Ei, Sam! — Gillis aproximou-se e puxou-o pelo paletó. — Vamos.

— Para onde?

— O pessoal da penitenciária quer nos mostrar um videoteipe do "Homem de Neve" com um visitante desconhecido.

Sam sentiu a descarga de adrenalina.

— Era Spectre?

— Não. Era uma mulher.

— Aquela. A loira — apontou o detetive Cooley.

Sam e Gillis inclinaram-se na direção da tela, os olhos fixos na imagem em preto e branco da mulher. A visão do rosto era bloqueada a todo instante por outros visitantes que passavam diante da câmara, mas era evidente que se tratava de uma loira, perto dos trinta anos, com jeito de artista de segunda categoria.

— Congele a imagem — Cooley pediu ao técnico. — Assim temos uma boa visão dela.

A imagem da mulher imobilizou-se, com o rosto virado para a câmara, sua figura era inteiramente visível. Vestia um conjunto de saia e blazer e carregava uma maleta. A julgar pelos trajes, poderia ser uma advogada. Porém, dois detalhes não combinavam.

Um eram os sapatos. A câmara capturara o pé direito, metido numa sexy sandália de salto altíssimo, presa ao tornozelo por uma fina corrente metálica.

— Não se vê esse tipo de sapato no tribunal — Sam comentou.

— A menos que esteja determinada a seduzir o juiz — Gillis acrescentou. — E veja a maquilagem.

Esse era o segundo detalhe que não combinava. Sam nunca vira advogada alguma maquilada daquela maneira. Os cílios eram postiços, e os olhos estavam carregados de sombra verde-água. Além disso, o batom vermelho ampliava os lábios já generosos.

— Cara, é óbvio que não se trata de uma de nossas vizinhas — Gillis concluiu.

— Que nome foi registrado na entrada? — Sam perguntou. Cooley examinou a lista de visitantes.

— Ela assinou como Marilyn Dukoff e alegou que sua visita ao "Homem de Neve" era uma consulta entre advogado e cliente.

Gillis riu.

— Se ela é advogada, vou prestar vestibular para Direito.

— Ela disse em que escritório trabalha? — Sam inquiriu.

— Frick e Darien.

— Checou a informação?

Cooley assentiu.

— Ela não consta da lista de pagamentos dos advogados mencionados, mas descobrimos onde ela trabalhou antes.

— Onde?

— No Stop Light.

Gillis olhou para Sam com uma expressão de "Eu não disse?".

Ninguém precisaria de explicações. Todos ali conheciam o Stop Light e seus shows.

— Deixe-me adivinhar — Sam falou. — Dançarina exótica?

— Acertou — Cooley confirmou.

— Tem certeza de que é a mesma Marilyn Dukoff?

— Acho que sim. Todos os visitantes têm de apresentar um documento na entrada da penitenciária. Ela mostrou a carteira de motorista. Verificamos o número e encontramos a foto. Veja. — Cooley estendeu a Sam a fotografia.

— É ela — Gillis declarou.

— Estamos falando da mesma Marilyn Dukoff — Cooley concluiu. — Parece que ela não se preocupou com documentos falsos. A única mentira foi a profissão.

— Que, evidentemente, não se encontra no âmbito legal — Gillis apontou.

Sam sorriu para Cooley.

— Bom trabalho — elogiou.

— Infelizmente — Cooley acrescentou —, não consegui localizá-la. Sabemos onde trabalhou, mas ela saiu de lá há duas semanas. Mandei um homem ao endereço constante da carteira de motorista, mas ninguém atendeu à campainha. E o telefone acaba de ser desligado. Acho que está na hora de obtermos um mandado de busca.

— Deixe comigo. — Sam levantou-se e olhou para Gillis. — Encontro você no carro em dez minutos.

— Vamos para o apartamento da loira?

— Sim, a menos que você tenha lugar melhor para ir.

Gillis virou-se para a tela, que ainda exibia o sapato sexy e o tornozelo bem torneado.

— Melhor que isso? — Riu. — Acho que não.

A polícia estava chegando perto demais, para que ele pudesse se sentir tranqüilo.

Spectre escondeu-se na porta de um edifício a um quarteirão e observou os policiais saírem do antigo apartamento de Marilyn. Minutos antes, ele estivera dentro daquele mesmo apartamento, verificando se Marilyn não deixara para trás qualquer pista de se atual paradeiro. Felizmente, saíra pouco antes da chegada de Navarro.

Eles haviam passado mais de uma hora lá dentro. Eram bons, mas Spectre era mais esperto. Horas depois da explosão, ele levara Marilyn para outro apartamento, do outro lado da cidade. Sabia que seu alvo poderia ser descoberto, assim que determinassem o centro da explosão no teatro. E também sabia que Marilyn não tardaria a ser identificada. Felizmente, ela cooperara.

Infelizmente, a utilidade dela se acabara, e estava na hora de pôr um fim àquela relação. Mas, antes, ele ainda precisaria de mais um favor.

As feições de Spectre tornaram-se tensas ao ver uma figura conhecida sair do edifício. Navarro de novo. O detetive passara a representar todas as falhas que Spectre cometera na última semana. Navarro era o cérebro por trás da investigação. O único responsável por Liddell continuar vivo.

Navarro lhe custara muito dinheiro.

Spectre observou os policiais reunidos na calçada. Eram cinco: três vestiam roupas civis, dois usavam uniformes. Mas foi em Navarro que ele concentrou toda a sua raiva. Aquilo se transformara numa batalha entre os dois, um teste de determinação. Em todos aqueles anos, atuando como assassino de aluguel, Spectre jamais deparara com um oponente tão capaz.

A atitude mais sensata seria sair da cidade e procurar contratos em outro lugar. Miami ou Nova Orleans. Porém, sua reputação sofrerá um forte golpe em Portiand e ele já não tinha certeza de que conseguiria novos contratos em qualquer outro lugar. Além disso, tinha o palpite de que Navarro não desistiria da perseguição. Onde quer que Spectre fosse, Navarro farejaria seu rastro e o seguiria.

E, também, havia a questão de honra. Spectre não iria embora sem antes acertar suas contas.

Os policiais entraram em seus carros e foram embora. Não havia encontrado nenhuma pista no apartamento de Marilyn. Spectre cuidara disso.

Pegue-me se puder, Navarro, ele pensou. Ou será que vou apanhá-lo primeiro?

Deixou o esconderijo e virou a esquina, para entrar em seu carro.

Navarro. Tinha de cuidar de Navarro de uma vez por todas. E tinha um plano perfeito. Precisaria da ajuda de Marilyn. Apenas um telefone, só pediria isso. Então, não pediria mais nada a ela.

Nunca mais.

 

O jantar estava ótimo. A companhia, péssima.

Daniella, vestindo um collant verde acetinado e uma saia excessivamente justa, petiscava sua salada sem apetite, ignorando o assado e o arroz de forno. Não falava com o marido, e ele não falava com ela. E Nina sentia-se desconfortável demais para falar com qualquer dos dois.

Depois de todos os interrogatórios da polícia, a questão do romance de Daniella com Robert viera à tona. Embora Nina não perdoasse Daniella pela traição, ainda era capaz de partilhar a mesa com ela, com civilidade.

Ao contrário do pai. Ele ainda estava em estado de choque pela descoberta. Sua esposa maravilhosa, a loira estonteante, trinta anos mais nova, não ficara satisfeita em casar-se com o dinheiro. Quisera um homem mais jovem. Depois de quatro casamentos, George Cormier ainda não sabia escolher a esposa correta.

Agora, parece que ele vai partir para o quarto divórcio, Nina pensou. Olhou para o pai e para Daniella. Embora amasse o pai, não pôde deixar de sentir que ele e Daniella se mereciam. No pior sentido.

Daniella abandonou o garfo.

—Vão me desculpar — falou —, mas estou sem apetite. Acho que vou ao cinema.

— E eu? — George retrucou. — Sei que sou apenas seu marido, mas algumas noites por semana com seu velho e chato esposo, não é pedir muito, é? Considerando-se todos os benefícios que você recebe em troca.

— Benefícios? — Daniella levantou-se indignada. — Nem todo o dinheiro do mundo poderia compensar o fato de estar casada com um bode velho como você!

— Bode velho?

— Bode velho, sim! Está me ouvindo? Velho! Em todos os sentidos da palavra.

Ele também levantou-se.

— Ora, sua cadela...

— Continue. Pode me xingar, pois também vou dizer tudo o que penso de você!

Agitando os cabelos dourados, ela se virou e saiu. George fitou a porta por alguns momentos e, então, voltou a sentar-se.

— Meu Deus — murmurou. — Onde eu estava com a cabeça, quando me casei com ela?

Nina tocou-lhe o braço de leve.

— Parece que nenhum de nós dois é muito bom na escolha de esposos, não é, papai?

George fitou a filha com ar de infelicidade partilhada.

— Espero, sinceramente, que você não tenha herdado o meu azar no amor, querida.

Permaneceram em silêncio por alguns momentos. O jantar continuava, quase intocado, sobre a mesa. Num outro aposento, a música alta começou a tocar, no ritmo marcado da ginástica aeróbica. Lá estava Daniella de novo, livrando-se da raiva, enquanto esculpia um corpo melhor. Garota esperta. Sairia de um divórcio com uma aparência que valeria um milhão de dólares.

Nina suspirou.

— Seja por azar, seja por defeitos de personalidade, papai, parece que algumas pessoas nasceram para viver solteiras.

— Não você, Nina. Precisa amar alguém. Sempre foi assim. E é por isso que é tão fácil amar você.

Ela riu com tristeza, mas não disse nada. Fácil de amar, fácil de deixar, pensou.

Mais uma vez, perguntou-se o que Sam estaria fazendo, no que estaria pensando. Com certeza, não pensava nela. Era um tira dedicado demais para se deixar distrair por detalhes sem importância.

Mesmo assim, quando o telefone tocou, ela não pôde reprimir a esperança repentina de que fosse ele. Permaneceu sentada à mesa, o coração aos saltos, enquanto ouvia a voz de Daniella que atendera o telefone.

Um minuto depois, Daniella apareceu na porta e disse:

— É para você, Nina, do hospital.

Decepcionada, Nina levantou-se para atender.

— Alô?

— Olá, aqui fala Gladys Power, supervisora do turno da noite. Desculpe incomodá-la. Conseguimos o seu telefone com sua mãe. Alguns dos enfermeiros estão doentes e gostaríamos de saber se você poderia cobrir as faltas no pronto-socorro.

— Turno da noite?

— Sim. Vamos precisar de você.

Nina olhou para a sala de ginástica de Daniella, onde a música tocava mais alto do que nunca. Tinha de sair daquela casa, afastar-se daquele verdadeiro campo de batalha emocional.

— Está bem. Cobrirei as faltas.

— Então, nos veremos às onze horas.

— Onze? — Nina franziu o cenho. O turno da noite geralmente começava à meia-noite. — Quer que eu chegue uma hora mais cedo?

— Se puder. Estamos com deficiência de pessoal no turno da tarde, também.

— Certo. Estarei aí às onze horas.

Desligou e respirou aliviada. Trabalhar era exatamente o que precisava. Talvez, oito horas de emergências ajudassem a pôr sua mente de volta nos eixos.

E longe das lembranças de Sam Navarro.

Marilyn desligou o telefone.

— Ela disse que vai estar lá.

Spectre assentiu com ar de aprovação.

— Você fez tudo direitinho.

— Claro.

Marilyn presenteou-o com aquele sorriso satisfeito de costume. Um sorriso que dizia: "Valho cada centavo que você me paga".

— Ela pareceu suspeitar de alguma coisa? — ele perguntou.

— Nada. Estou lhe dizendo, ela vai estar lá, às onze horas, como você queria. — Marilyn inclinou a cabeça para o lado e umedeceu os lábios com a língua. — E agora? Vou ter o que quero?

Spectre sorriu.

— O que você quer?

— Você sabe.

Ela se aproximou e desabotoou-lhe a calça. Ele prendeu a respiração ao sentir a mão quente e delicada deslizar para dentro. O toque era delicioso, experiente; a técnica visava transformar qualquer homem em pedinte. Ah, sim. Ele sabia exatamente o que ela queria.

E não era sexo.

Mas, por que não aproveitar o momento? Ela queria, e ele tinha tempo para aquilo. Ainda teria de esperar três horas, antes de Nina Cormier chegar ao hospital. Poderia desfrutar de um divertimento rápido com Marilyn para, depois, partir para assuntos mais sérios.

Ela se ajoelhou à sua frente.

— Disse que pagaria quanto eu valesse — ela murmurou.

Ele gemeu.

— Eu prometi...

— Valho um bocado, não acha?

— Com certeza.

— Posso valer ainda mais.

Spectre estremeceu de prazer e segurou-lhe o rosto entre as mãos. Com a respiração ofegante, ele acariciou-lhe as faces, o queixo, o pescoço. Um pescoço longo e delicado. Seria tão fácil pôr um fim àquilo tudo. Mas, primeiro, deixaria que ela terminasse...

— Ah — Marilyn sussurrou —, você está prontinho para mim.

Ele a puxou para si num gesto brusco e pensou: "É uma pena que você não vá ficar pronta para mim".

 

Eram dez e meia quando um cansado Sam entrou em sua casa. A primeira coisa que notou foi o silêncio, o vazio. Era uma casa que, de alguma maneira, perdera a sua alma.

Acendeu as luzes, mas nem mesmo aquele brilho intenso dissipou as sombras. Durante os últimos três anos, aquela fora a casa que ele chamara de lar, para onde voltara todas as noites depois do trabalho. Agora, o lugar parecia frio, como a casa de um estranho. Não era um lar.

Serviu-se de um copo de leite e bebeu-o em poucos goles sedentos. Aquele seria o seu jantar, uma vez que não lhe restava energia suficiente para cozinhar. Serviu-se de mais um copo e levou-o para perto do telefone. Durante toda a noite, quisera fazer aquela ligação, mas todas as vezes, algo o interrompera. Agora que gozava de alguns momentos de paz, ligaria para Nina. Diria a ela o que tanto temera contar-lhe, o que não podia mais negar, para ela ou para si mesmo.

A conclusão o atingira naquela tarde, de maneira estranha, enquanto revistava o apartamento de Marilyn Dukoff. Estava no quarto, olhando para as gavetas vazias, o colchão descoberto. De repente, fora atingido por um sentimento de solidão tão intenso que seu peito chegara a doer. De alguma maneira, aquele quarto representara a sua própria vida. Possuía um propósito, uma função, mas ainda assim, era vazio.

Refletiu que era policial havia muito tempo e que deixara o trabalho tomar conta de sua vida. Somente naquele momento, naquele quarto vazio, ocorrera.a ele que sua vida era muito, muito limitada. Não tinha esposa, filhos, família.

Nina havia aberto seus olhos para tais possibilidades. Sim, ele estava com medo. E sabia o quanto sofreria se ela o deixasse. Porém a alternativa era ainda pior: nem sequer tentar.

Fora um covarde. Mas não o seria por mais tempo.

Apanhou o telefone e discou o número da casa do pai de Nina.

Não foi Nina quem atendeu, mas sim Daniella, a maníaca por aeróbica.

— Aqui fala Sam Navarro. Desculpe ligar tão tarde. Posso falar com Nina?

— Ela não está.

A pontada repentina de decepção foi logo substituída pelo instinto policial. Como ela podia não estar lá? Deveria passar a noite em segurança, e não andar por aí, desprotegida.

— Pode me dizer para onde ela foi? — perguntou.

— Para o hospital. Telefonaram pedindo que ela trabalhasse no turno da noite.

— No pronto-socorro?

— Acho que sim.

— Obrigado.

Sam desligou, sentindo a decepção como um grande peso nos ombros. Que droga! Não podia mais se controlar. Tinha de dizer a ela. Logo.

Telefonou para o hospital.

— Pronto-socorro.

— Aqui fala o detetive Sam Navarro, da polícia de Portland. Posso falar com Nina Cormier?

— Ela não está trabalhando esta noite.

— Bem, quando ela chegar, pode pedir-lhe para telefonar para a minha casa?

— Ela não está escalada para o próximo turno.

— O que disse?

— Estou com a folha de serviço na mão. O nome dela não consta do turno da noite.

— Fui informado de que alguém ligou para ela, pedindo-lhe que trabalhasse no turno da noite.

— Não sei nada a respeito.

— Pode descobrir? É urgente.

— Vou falar com a supervisora. Pode aguardar na linha?

No silêncio que se seguiu, Sam pôde ouvir o sangue latejando nas veias. Algo estava errado. O velho instinto despertava.

A mulher voltou ao telefone.

— Detetive? Falei com a supervisora, e ela diz não ter conhecimento do assunto. De acordo com a escala, Nina só deverá voltar ao trabalho na semana que vem.

— Obrigado — Sam murmurou.

Por um momento, pensou no telefone que Nina recebera. Alguém conseguira informações suficientes para localizá-la na casa do pai e convencê-la a abandonar aqueles portões protetores no meio da noite, quando haveria poucas testemunhas para o que estava prestes a acontecer.

Não uma pessoa qualquer. Spectre.

Eram dez e quarenta e cinco.

Num segundo, ele atravessou a porta e entrou no carro. Enquanto arrancava em alta velocidade, sabia que já poderia ser tarde demais. Dirigindo apressado, segurou o volante com uma das mãos e usou a outra para discar o número.

— Gillis — o parceiro atendeu.

— Estou a caminho do Centro Médico Maine — Sam falou sem preâmbulos. — Spectre está lá.

— O quê?

— Nina recebeu um telefonema falso, chamando-a para o turno da noite. Tenho certeza de que foi ele. Ela já saiu de casa...

— Encontro você lá — Gillis replicou e desligou. Sam concentrou a atenção na estrada. O velocímetro marcava cento e vinte quilômetros por hora. Cento e quarenta.

Não permita que seja tarde demais, rezou. E afundou o pé no acelerador.

A garagem do hospital estava deserta, o que nem sequer chamou a atenção de Nina, pois estava acostumada a estar ali, chegando ou saindo do trabalho. Jamais tivera qualquer problema. Portland, afinal, era uma das cidades mais seguras do país.

Desde que não se estivesse na lista de assassinatos de alguém, lembrou a si mesma.

Estacionou o carro e ficou sentada ao volante por um momento, tentando acalmar-se. Queria começar seu turno com a mente focalizada claramente no trabalho. Não em ameaças de morte. Nem em Sam Navarro. Quando entrava por aquela porta era, acima de tudo, uma profissional. Muitas vidas dependiam disso.

Abriu a porta e saiu do carro.

Ainda faltava uma hora para a habitual troca de turnos. À meia-noite, a garagem ficaria repleta de membros da equipe, chegando ou saindo. Naquele momento, porém, não havia ninguém ali. Ela apressou o passo. O elevador ficava logo adiante. O caminho estava livre. Mais alguns metros e ela estaria dentro dele.

Nina não viu o homem sair de trás de um carro estacionado.

Apenas sentiu a mão firme em seu braço, beta como o contato gelado do cano de uma arma com sua têmpora. Seu grito foi impedido pelas primeiras palavras dele:

— Se gritar, estará morta.

A arma em sua cabeça deu a ênfase necessária para mantê-la calada.

Ele a arrastou para longe do elevador, na direção de uma fileira de carros estacionados. Nina teve um vislumbre do rosto dele, ao ser empurrada. Spectre.

Ele vai me matar agora, aqui, onde não há ninguém para testemunhar...

O sangue latejava com tamanha força em suas veias que, de início, ela nem ouviu o ranger de pneus.

Mas seu captor ouviu. Spectre imobilizou-se, apertando o braço de Nina com força ainda maior.

Agora, Nina também ouvia: pneus rangiam pelas curvas da rampa da garagem.

Com força selvagem, Spectre puxou-a para trás de um carro estacionado. Nina refletiu que aquela seria a sua única chance de escapar.

Pôs-se a lutar, tentando libertar-se. Spectre acertou-lhe um murro no queixo, cegando-a de dor. Ela oscilou e já ia cair, quando ele a sustentou e começou a arrastá-la. Nina, agora, sentia-se tonta demais para lutar.

O brilho intenso cegou-a. Ela ouviu o rangido de pneus freando e deu-se conta de que olhara diretamente para um par de faróis.

Uma voz gritou:

— Parado!

Sam. Era Sam.

— Solte-a, Spectre — ele ordenou.

O cano da arma pressionou a têmpora de Nina com maior intensidade.

— Não poderia ter escolhido momento melhor para chegar, Navarro — Spectre declarou, com um toque de pânico na voz.

— Já disse para soltá-la.

— É uma ordem, detetive? Espero que não, pois, considerando-se a situação da moça, ofender-me poderia fazer mal à saúde dela.

— Já vi o seu rosto, assim como os lanterninhas do teatro Brant. Não há razão para matá-la, agora.

— Não? Pense bem — Spectre provocou, caminhando devagar na direção de Sam, usando Nina como escudo. — Saia do caminho, Navarro.

— Ela não vale nada para você...

— Mas vale muito para você.

Nina fitou Sam nos olhos e reconheceu o pânico. Ele segurava a arma com as duas mãos, mas não atirou. Não o faria, enquanto ela 'estivesse na Jpha de fogo.

Ela tentou soltar o corpo, cair no chão. De nada adiantou a tentativa, pois Spectre era muito forte e a manteve presa, pressionando o braço em torno de seu pescoço.

— Afaste-se! — Spectre gritou.

— Você não a quer!

— Afaste-se, ou tudo acabará aqui mesmo, com os miolos dela espalhados pelo chão!

Sam recuou um passo, e outro. Embora mantivesse a arma em riste, ela de nada lhe servia. Naquele momento, o que Nina viu nos olhos dele foi mais que medo, mais que pânico. Foi desespero.

— Nina — ele falou. — Nina...

Foi a última visão de Nina, antes que Spectre a puxasse para dentro do carro de Sam. Ele fechou a porta e deu marcha-à-ré, voltando pela rampa.

Numa manobra rápida e arriscada, Spectre girou o carro e, um instante depois, eles saíam em disparada para a rua.

Antes que Nina pudesse recuperar os reflexos, a arma voltara a pressionar sua cabeça. Ela olhou pára Spectre e viu um rosto perfeitamente calmo. Era o rosto de um homem que sabia estar no comando da situação.

— Não tenho nada a perder, matando você — ele disse.

— Então, por que não me mata de uma vez?

— Tenho planos que podem incluí-la.

— Planos?

Ele riu divertido.

— Digamos que meus planos envolvam o detetive Navarro, o esquadrão antibombas e uma enorme quantidade de dinamite. Adoro finais espetaculares. Você não?

Ele sorriu. Foi então que Nina percebeu para quem olhava. Para o que olhava. Um monstro.

 

Sam desceu a rampa da garagem numa corrida desesperada. Saiu do edifício a tempo de ver o seu carro, com Spectre ao volante, desaparecer na avenida.

Eu a perdi, pensou, meu Deus, eu a perdi...

Ainda correu por meio quarteirão. Mas desistiu. As lanternas traseiras haviam desaparecido na noite.

O carro se fora.

Soltou um grito de desespero e ouviu o eco da própria voz. Era tarde demais. Chegara tarde demais.

Uma luz repentina o fez virar-se. Eram os faróis de um carro que acabara de virar a esquina e vinha na sua direção. Sam reconheceu-o.

— Gillis! — chamou.

O carro parou junto à calçada. Sam atirou-se no banco do passageiro.

— Siga! — ordenou.

Gillis fitou-o perplexo.

— O que disse?

— Spectre pegou Nina! Ande!

Gillis pôs o carro em movimento no mesmo instante.

— Em que direção?

— Esquerda.

Gillis fez a curva.

Sam avistou o próprio carro, dois quarteirões adiante, virando à direita.

— Ali!

— Já vi — Gillis falou, fazendo o mesmo trajeto.

Spectre também os vira, pois pisou fundo no acelerador e atravessou um farol vermelho. Carros brecaram e derraparam.

Enquanto Gillis desviava dos demais automóveis e continuava a perseguição, Sam apanhou o telefone do carro e pediu reforços de todos os carros-patrulha disponíveis. Com um pouco de sorte, conseguiriam encurralar Spectre.

Por enquanto, só tinham de mantê-lo à vista.

— Esse cara é um maluco — Gillis resmungou.

— Não a perca.

— Ele vai nos matar a todos. Veja o que está fazendo!

Logo adiante, Spectre passou para a pista da esquerda, ultrapassou um carro e voltou à direita, no exato momento em que um caminhão cruzava com ele, vindo em sentido contrário.

— Não o perca de vista! — Sam ordenou.

— Estou tentando!

Gillis também passou para a pista da esquerda, mas ao ver o grande número de veículos vindo na sua direção, retornou à direita.

Perderam alguns segundos, que Spectre soube utilizar em benefício próprio.

Gillis tentou novamente, desta vez tendo de voltar à direita, um segundo antes de colidir de frente com uma camionete.

Spectre sumira de seu campo de visão.

— Que droga! — Gillis praguejou.

Esquadrinharam a pista, viram lanternas aqui e ali, mas foi só. Continuaram seguindo adiante, prestando atenção a cada esquina, às ruas transversais. A cada quarteirão, o pânico de Sam crescia.

Pouco depois, foi obrigado a reconhecer o óbvio. Haviam perdido Spectre.

Perdera Nina.

Gillis dirigia em silêncio. O desespero de Sam o contagiara. Embora nenhum dos dois dissesse nada, ambos sabiam que Nina podia ser considerada morta.

— Sinto muito, Sam — Gillis murmurou. — Meu Deus, eu sinto tanto!

Tudo o que Sam pôde fazer foi continuar fitando a rua, a visão turvando por trás das lágrimas. Momentos se passaram. Uma eternidade.

Carros-patrulha se reportaram. Nem sinal do carro de Sam. Ou de Spectre.

Finalmente, à meia-noite, Gillis estacionou. Ambos permaneceram em silêncio.

— Ainda há uma chance — Gillis falou.

Sam escondeu o rosto nas mãos. Uma chance. Spectre poderia estar a quilômetros de distância, àquela altura. Ou, então, na esquina adiante. Sam daria tudo por uma única chance.

Baixou os olhos para o telefone do carro de Gillis.

Uma única chance.

Apanhou o fone e discou.

— Para quem está ligando? — Gillis perguntou.

— Spectre.

— O quê?

— Estou ligando para o telefone do meu carro.

Sam esperou cinco ou seis toques, antes que Spectre atendesse com uma bizarra voz de falsete:

— Alô. Você ligou para o esquadrão antibombas de Portland. No momento, não podemos atendê-lo, pois parece que perdemos nosso maldito telefone!

— Navarro falando — Sam identificou-se.

— Ora, como vai, detetive Navarro?

— Ela está bem?

— Quem?

— Ela está bem?

— Ah, deve estar falando da bela jovem. Acho que vou deixá-la falar com você.

Fez-se uma pausa. Sam ouviu o som de vozes abafadas e outros ruídos indistintos. Então, a voz de Nina soou assustada, porém controlada.

— Sam?

— Você está ferida?

— Não. Estou bem.

— Onde estão? Para onde ele levou você?

— Opa! — Spectre interrompeu-os. — Assunto proibido, detetive. Receio ter de cortar esta ligação.

— Espere! — Sam gritou.

— Deseja dar um adeus especial?

— Se alguma coisa acontecer a ela, Spectre, juro que vou acabar com você!

— Ora, estou mesmo falando com um representante da lei?

— É sério, Spectre. Vou matá-lo.

— Estou chocado. Chocado!

— Spectre!

A resposta foi uma gargalhada zombeteira. Então, a ligação foi interrompida.

Desesperado, Sam discou novamente. A linha estava ocupada. Contou até dez e discou de novo. Ocupado. Spectre retirara o fone do gancho.

Sam desistiu.

— Ela ainda está viva.

— Onde eles estão?

— Ela não teve chance de dizer.

— Já faz uma hora. Podem estar em qualquer lugar.

— Eu sei, eu sei.

Sam recostou no banco, tentando clarear o raciocínio em meio à onda de pânico. Durante todos aqueles anos trabalhando como policial, ele sempre conseguira manter a cabeça fria, os pensamentos ordenados. Naquela noite, porém, pela primeira vez em sua carreira, sentia-se paralisado pelo medo. Pelo conhecimento de que, cada minuto que passava, cada momento em que ele não fazia nada, as chances de sobrevivência de Nina diminuíam.

— Por que ele não a matou? — Gillis murmurou. — Por que ela continua viva?

Sam olhou para o parceiro. Gillis, ao menos, ainda mantinha a mente clara. E estava pensando, tentando decifrar a questão que deveria estar óbvia para ambos.

— Ele a está mantendo viva por alguma razão — Gillis continuou.

— Ela é um passaporte, a segurança dele, caso seja encurralado.

— Não, ele já se livrou de nós. Neste exato momento, ela representa mais um fardo do que uma ajuda. Reféns tornam a fuga mais lenta e difícil. Ainda assim, ele está permitindo que ela viva.

Até agora, Sam pensou, invadido por uma onda de raiva. Estava perdendo a capacidade de raciocínio, de pensar com clareza. A vida de Nina dependia dele. Não podia deixar aquilo acontecer.

Olhou para o telefone e teve uma lembrança. Algo que ouvira durante sua breve conversa com Spectre e Nina.

Uma sirene!

Apanhou o fone e discou 190.

— Emergência — a voz atendeu.

— Aqui fala o detetive Sam Navarro,, da polícia de Portland. Preciso de uma lista de todas as unidades despachadas para a região sul de Portland, nos últimos vinte minutos.

— Que veículos, senhor?

— Todos. Ambulâncias, bombeiros, polícia. Todos. Após um breve silêncio, outra voz veio ao telefone.

— Aqui fala a supervisora, detetive Navarro. Verifiquei junto ao serviço de despacho de unidades de Portland. Só três unidades foram despachadas nos últimos vinte minutos. As onze e cinqüenta e cinco, uma ambulância foi enviada para o número dois mil, duzentos e três da Green Street, em Portland. À meia-noite e dez, a polícia foi enviada para investigar o disparo de um alarme contra roubos, na Bickford Street, setecentos e cinqüenta e um. E, à meia-noite e treze, um carro-patrulha foi atender à queixa de desordem nas vizinhanças de Munjoy Hill. Não houve nenhum chamado para os bombeiros nesse período.

— Certo. Obrigado.

Sam desligou e apanhou um mapa no porta-luvas. Rapidamente, traçou círculos nos três pontos mencionados.

— E agora? — Gillis inquiriu.

— Ouvi uma sirene, enquanto falava com Spectre. Isso significa que ele tinha de estar próximo de algum veículo de emergência. Estes são os três locais para onde tais veículos foram despachados.

Gillis olhou para o mapa e sacudiu a cabeça.

— São dúzias de quarteirões! Desde o ponto de despacho até os destinos.

— Mas são pontos de partida.

— Como procurar uma agulha num palheiro.

— É tudo o que temos. Vamos começar por Munjoy Hill.

— Isto é loucura. Toda a força policial está varrendo a cidade, à procura do seu carro. Vamos enlouquecer, perseguindo sirenes.

— Munjoy Hill, Gillis. Vamos.

— Você está exausto. Eu estou exausto. Devíamos voltar à delegacia e esperar o desenrolar dos fatos.

— Quer que eu dirija? Então saia daí!

— Sam, está me ouvindo?

— Sim, droga! — Sam gritou, desabafando sua raiva. Então, segurou o rosto nas mãos. — A culpa é minha! Serei o responsável pela morte dela, Eles estavam bem na minha frente. E eu não consegui pensar num jeito de salvá-la. Um jeito de mantê-la viva.

Gillis suspirou compreensivo.

— Ela significa muito para você, não é?

— E Spectre sabe disso. De alguma maneira, ele sabe. É por isso que a está mantendo viva. Para me atormentar, me manipular. Está no comando da situação e sabe como fazer uso de sua vantagem. Temos de encontrá-la.

— No momento, ele se encontra em posição de vantagem. Tem em mãos alguém que significa- muito para você. E você parece ser o tira no qual ele se concentrou. O tira no qual quer desforrar seu fracasso. — O telefone do carro tocou. Gillis atendeu. Um momento depois, pôs o carro em movimento. — Vamos para a Jackman Avenue. Pode ser a pista que nos falta.

— O que há na Jackman Avenue?

— Um apartamento. Encontraram um corpo.

Sam ficou imóvel. Um pressentimento terrível apoderou-se de seu peito, dificultando-lhe a respiração.

— Corpo de quem?

— Marilyn Dukoff.

Ele cantava Dixie!, enquanto trabalhava com os fios coloridos. Nina, com os pés e mãos firmemente amarrados a uma cadeira, limitava-se a observá-lo impotente. Ao lado de Spectre havia uma caixa de ferramentas, uma solda e duas dúzias de bananas de dinamite.

— In Dixieland where I was born, early on a frosty mornin'...

Spectre terminou o trabalho com os fios e concentrou-se na dinamite. Com fita adesiva elétrica verde, juntou as bananas em feixes cuidadosos de três em três e colocou-os numa caixa de papelão.

— In Dixieland we'll make our stand, to live and die in Dixie. Away, away, áway down south, in Dixie! — ele cantou alto, a voz ecoava pelos cantos do imenso armazém vazio. Então, virou-se para Nina e curvou-se numa reverência.

— Você é louco — ela sussurrou.

— O que é a loucura? Quem pode dizer? — Spectre passou a fita adesiva em torno das três últimas bananas de dinamite. Então, examinou o trabalho com ar orgulhoso. — Como é que dizem? "Não enlouqueça, vingue-se"? Bem, não estou louco, de maneira alguma. Mas, que vou me vingar, ah, isso eu vou!

Apanhou a caixa com dinamite e a carregava na direção de Nina quando pareceu tropeçar. O coração de Nina quase parou, quando ela viu a caixa inclinar-se para o chão, bem à sua frente.

Spectre emitiu um som assustado um momento antes de endireitar a caixa. Para surpresa de Nina, ele explodiu em gargalhadas.

— É uma velha brincadeira — Spectre admitiu. — Mas sempre funciona.

Ele era realmente louco, Nina pensou, com o coração ao saltos.

Carregando a caixa de dinamite, ele deu a volta no armazém, colocando os feixes de dinamite a intervalos regulares.

— É uma pena — ele comentou —, gastar tanta dinamite de excelente qualidade num único edifício. Mas quero deixar uma boa impressão. Uma impressão duradoura. E já cansei de Sam Navarro e suas nove vidas. Isto vai pôr um fim a qualquer vida extra que ele ainda possua.

— Isto é uma armadilha!

— Ah, como você é inteligente!

— Por que quer matá-lo?

— Por que sim.

— Ele é apenas um policial fazendo o seu trabalho.

— Apenas um policial? Navarro é mais que isso. Ele é um desafio. Pensar que depois de todos esses anos de sucesso em cidades como Boston e Miami eu encontraria um verdadeiro oponente num lugarzinho como Portland. — Soltou uma risada de desprezo. — Meu caso com Navarro termina aqui, neste armazém.

Spectre aproximou-se de Nina, carregando o último feixe de dinamite. Ajoelhou-se ao lado da cadeira, onde ela se sentava, com os pés e mãos amarrados.

— Reservei a última explosão para você, srta. Cormier — disse, amarrando o feixe sob a cadeira. — Não vai sentir nada. Será tudo tão rápido que, quando se der conta, estará voando com asas de anjo. Assim como Navarro. Se é que ele vai ganhar alguma asa.

— Ele não é burro. Vai saber que é uma armadilha.

Spectre começou a desenrolar mais fios coloridos.

— Sim, ficará evidente que isto não se trata de uma ameaça. Todo este fio é para confundi-lo. Um circuito que não faz o menor sentido. — Cortou um fio branco e um vermelho. Com a solda, conectou as extremidades.

— E o tempo correndo. Minutos, depois segundos. Qual é o fio que liga o detonador? Que fio ele deveria cortar? Uma decisão errada e tudo voará pelos ares. O armazém, você e ele, se é que ele terá coragem de ir até o fim. Trata-se de um dilema inútil, percebe? Se ele ficar para desarmar a bomba, vocês dois morrem. Se ele se acovardar e fugir, você morre, deixando-o com um sentimento de culpa que ele jamais vai superar. De qualquer maneira, Navarro sofrerá. E eu vencerei.

— Você não pode vencer.

— Poupe-me de sermões moralistas. Tenho um trabalho a fazer e pouco tempo para terminá-lo.

Conectou os fios aos outros feixes de dinamite, trançando as cores e soldando extremidades.

Ele dissera que tinha pouco tempo. A que tempo estaria se referindo?

Nina olhou para os objetos no chão. Havia um timer digital, um radio transmissor... Ora, o timer seria acionado pelo rádio. Spectre estaria longe do edifício e em segurança, quando armasse a bomba. Fora de perigo, quando ocorresse a explosão.

Fique longe, Sam. Por favor, fique longe. E viva.

Spectre pôs-se de pé e consultou o relógio.

— Mais uma hora e estarei pronto para fazer a ligação. — Olhou para Nina e sorriu. — Três horas da madrugada é uma boa hora para morrer, não acha, srta. Cormier?

A mulher estava nua da cintura para cima, o corpo tombado no chão. Levara um tiro na cabeça.

— Recebemos o chamado às dez e quarenta e cinco

— informou Yeats, de Homicídios. — O vizinho de baixo percebeu manchas de sangue se formando no teto e chamou a zeladora. Ela abriu o apartamento, viu o corpo e nos chamou. Encontramos a identidade da moça na bolsa. Foi por isso que chamamos vocês.

— Alguma testemunha? Alguém viu, ou ouviu, alguma coisa? — Gillis perguntou.

— Não. Ele deve ter usado um silenciador. E saiu sem ser visto.

Sam olhou em volta, examinando o apartamento de mobília escassa. As paredes estavam nuas, os armários quase vazios, e havia caixas com roupas no chão: sinais de que Marilyn Dukoff ainda não se estabelecera ali.

Yeats confirmou-lhe as suspeitas:

— Ela se mudou ontem, usando o nome de Marilyn Brown. Pagou o depósito e o primeiro aluguel em dinheiro. Foi tudo o que a zeladora soube dizer.

— Ela recebeu alguma visita? — Gillis inquiriu.

— O vizinho do lado ouviu a voz de um homem, ontem, mas não o viu.

— Spectre — Sam concluiu.

Voltou a concentrar-se no corpo. Os criminalistas já estavam revistando tudo, em busca de impressões digitais ou qualquer outra evidência. Sam sabia que eles não encontrariam nada. Spectre teria cuidado de tudo.

Não fazia sentido perder tempo ali. Teriam maiores chances se fossem perseguir sirenes. Virou-se para a porta, mas parou ao ouvir um dos detetives dizer:

— Não há muita coisa na bolsa. Apenas uma carteira, chaves, contas...

— Que contas? — Sam perguntou.

— Energia elétrica, telefone, água. Parece que são do outro apartamento. O nome Dukoff consta de todas elas. Foram entregues a uma caixa postal.

— Deixe-me ver a conta telefônica.

Sam quase gemeu de frustração ao bater os olhos na conta. Eram duas folhas repletas de ligações interurbanas. A maioria havia sido feita para Bangor, Massachusetts e Flórida. Levaria horas para checar todos aqueles números, e a eles poderiam levar apenas a amigos e parentes da vítima.

Então, notou um número no final da lista. Tratava-se de uma ligação a cobrar, feita da região sul de Portland, com data de uma semana e meia antes, as dez e dezessete da noite. Alguém ligara a cobrar e Marilyn Dukoff aceitara a ligação.

— Isto pode nos levar a alguma pista — Sam falou. — Preciso localizar este número.

— Podemos ligar para a telefonista, do meu carro — Gillis ofereceu —, mas não sei o que poderemos conseguir.

— É só um palpite — Sam admitiu.

De volta ao carro de Gillis, Sam ligou para a telefonista. Depois de consultar o computador, ela confirmou que se tratava de um telefone público.

—Fica próximo da esquina da Calderwood com a Hardwick.

— Não há um posto de gasolina naquela esquina? — Sam perguntou.

— Pode ser, detetive. Não posso afirmar com certeza. Sam desligou e apanhou o mapa, onde apontou a localização do telefone público.

— Aqui — mostrou a Gillis.

— Existem apenas edifício industriais por ali.

— Exatamente o que torna uma ligação às dez e dezessete da noite muito interessante.

— Qualquer pessoa pode ter ligado: amigos, parentes. Pelo que sabemos...

— Foi Spectre — Sam afirmou convicto. — Vamos para lá. Agora.

— Para onde?

Sam exibiu o mapa a Gillis.

— Aqui está Bickford Street. Um carro-patrulha foi enviado para lá à meia-noite e dez. E aqui está o cruzamento da Calderwood com a Hardwick. O carro-patrulha teria passado exatamente por aqui..

— Acha que Spectre tem um esconderijo por lá?

Sam rabiscou um círculo no mapa, num raio de três quarteirões em torno do cruzamento mencionado.

— Ele está aqui. Tem de estar por aqui.

Gillis deu a partida no motor.

— Acho que nosso palheiro acaba de se tornar um bocado menor.

Vinte minutos depois estavam na esquina da Calderwood com a Hardwick. Havia mesmo um posto de gasolina, mas fora fechado e exibia uma placa com os dizeres: "Vende-se Propriedade Comercial". Por alguns instantes, Sam e Gillis limitaram-se a vigiar a rua. Não havia nenhum movimento.

Gillis subiu a Hardwick. A região era predominantemente industrial. Havia terrenos baldios, uma oficina de barcos, uma empresa madeireira, uma fábrica de móveis. Todos os estabelecimentos estavam fechados, os estacionamentos vazios, os edifícios às escuras. Viraram na Calderwood.

Poucos metros adiante, Sam divisou a pequena janela iluminada. Era a única janela do edifício. Ao se aproximarem, Gillis apagou os faróis e estacionou um quarteirão antes.

— É o velho armazém Stimson — Sam falou.

— Não há nenhum carro no estacionamento, mas parece que tem alguém em casa — Gillis comentou. — A Stimson não fechou no ano passado?

Sam não respondeu, pois já estava saindo do carro.

— Ei! — Gillis sussurrou. — Não deveríamos pedir reforços?

— Peça você, enquanto dou uma busca na área.

— Sam! — Gillis chamou. — Sam!

Com o coração acelerado, Sam ignorou a advertência do parceiro e aproximou-se do armazém. A escuridão estava a seu favor. Quem quer que estivesse lá dentro não perceberia a sua aproximação. Pelas frestas da grande porta, Sam avistou mais luz.

Deu a volta no edifício, mas não encontrou nenhuma janela baixa, nenhuma maneira de ver o que acontecia lá dentro. O armazém contava com duas portas: uma na frente, outra nos fundos. Ambas estavam trancadas. Diante do edifício, deparou com Gillis.

— O reforço está a caminho — Gillis informou-o.

— Preciso entrar.

— Não sabemos o que vamos encontrar lá dentro... — Gillis interrompeu-se.

O telefone de seu carro tocava. Os dois correram para atender. Navarro apanhou o fone.

— Navarro falando.

— Detetive Navarro — disse a telefonista da polícia —, temos uma ligação para o senhor. O homem diz ser urgente. Vou completar.

Houve uma pausa, alguns ruídos e, então, uma voz masculina falou:

— Fico contente em encontrá-lo, detetive. Esse telefone em seu carro é mesmo muito útil.

— Spectre?

— Gostaria de lhe fazer um convite pessoal, detetive. Só para você. Uma reunião com uma certa pessoa que está bem aqui, ao meu lado.

— Ela está bem?

— Está ótima. — Em tom de ameaça, Spectre acrescentou: — Por enquanto.

— O que quer de mim?

— Nada. Só quero que venha tirar a srta. Cormier do meu caminho. Ela se tornou uma grande inconveniência e eu tenho mais o que fazer.

— Onde ela está?

— Por acaso o nome Stimson lhe diz alguma coisa? Pode procurar o endereço. Desculpe, mas não estarei aqui para recebê-lo, pois preciso ir andando.

Spectre desligou o telefone e sorriu para Nina.

— Está na hora de eu ir embora. Seu herói chegará a qualquer momento.

Apanhou a caixa de ferramentas e colocou-a no carro.

Ele vai embora, Nina pensou, me deixando aqui como isca para a sua armadilha.

Embora estivesse um pouco frio dentro do armazém, ela sentiu uma gota de suor escorrer de sua testa, quando viu Spectre apanhar o radiotransmissor. Tudo o que ele teria de fazer seria apertar um botão, e a contagem regressiva começaria.

Dez minutos depois, o armazém explodiria.

Seu coração saltou ao vê-lo empunhar o transmissor.

Ele sorriu.

— Ainda não — falou. — Não quero que nada aconteça prematuramente.

Virou-se e caminhou para a porta do armazém. Acenou para Nina.

— Diga adeus a Navarro por mim. Diga-lhe que lamento perder o show.

Retirou a pesada tranca da porta e empurrou-a, fazendo com que deslizasse com ruído metálico. A porta estava quase totalmente aberta quando Spectre imobilizou-se.

Bem diante dele, os faróis de um carro se acenderam.

— Parado, Spectre! — o comando soou de algum ponto na escuridão. — Erga as mãos acima da cabeça!

Sam, Nina pensou, ele a encontrara.

— Mãos ao alto! — Sam gritou. — Agora!

Com a silhueta recortada pela luz dos faróis, Spectre pareceu hesitar por um instante. Então, lentamente, ergueu as mãos.

Ainda segurava o transmissor.

— Sam! — Nina gritou. — Há uma bomba! Ele está com o transmissor!

— Solte-o — Sam ordenou. — Solte-o ou vou atirar!

— É claro — Spectre concordou.

Devagar, abaixou-se e colocou o transmissor no chão. Mas, quando o fez, ouviu-se o inconfundível clique. Meu Deus, ele armou a bomba, pensou Nina.

— É melhor apressar-se — Spectre declarou e atirou-se para o lado, desaparecendo na escuridão.

Não foi rápido o bastante. Sam disparou dois tiros. As duas balas atingiram o alvo.

Spectre tropeçou, caiu de joelhos e começou a arrastar-se. Mas seus membros moviam-se como os de um bêbado, ou de um nadador tentando dar braçadas em terra firme. Com suas últimas forças, ainda praguejou:

— Mortos... Vocês estão todos mortos...

Sam passou por cima do corpo inerte de Spectre e foi direto na direção de Nina.

— Não! — ela gritou. — Fique longe!

Ele parou, fitando-a confuso.

— O que há?

— Há uma bomba sob a minha cadeira. Se tentar me libertar, ela explodirá!

No mesmo instante, Sam olhou para os fios ligados à cadeira e seguiu-os com o olhar, até o primeiro feixe de dinamite visível.

— Ele colocou dezoito bananas de dinamite em torno do armazém — Nina informou-o. — Três estão debaixo da cadeira. Estão armados para explodir em dez minutos. Menos, agora.

Seus olhares se encontraram. E, naquele momento, Nina viu o desespero de Sam. Ele logo recuperou o controle e aproximou-se da cadeira.

— Vou tirar você daqui — prometeu.

— Não há tempo!

— Dez minutos? — ele riu tenso. — É tempo de sobra. — Ajoelhou-se e espiou debaixo da cadeira. Não disse nada, mas, quando se levantou, sua expressão era sombria. Virou-se e chamou: — Gillis!

— Estou aqui — o parceiro respondeu, aproximando-se com cuidado. — Trouxe a caixa de ferramentas. O que temos?

— Três bananas de dinamite sob a cadeira e um timer digital. — Sam retirou o timer com cuidado e colocou-o no chão. — Parece um circuito paralelo simples. Preciso de tempo para analisá-lo.

— Quanto tempo temos?

— Oito minutos e quarenta e cinco segundos.

Gillis praguejou.

— Não há tempo para esperarmos o caminhão com o equipamento.

Uma sirene aproximou-se e dois policiais entraram no armazém.

— O reforço chegou — Gillis anunciou e correu para a porta. — Fiquem onde estão! Temos uma bomba aqui! Quero evacuação do perímetro agora mesmo! E chamem uma ambulância!

Não precisarei de ambulância, Nina pensou. Se esta bomba explodir, não sobrará nada de mim. Tentou acalmar-se e conter a histeria que a ameaçava. Mas o terror tomava conta de seu ser, tornando sua respiração difícil. Não havia nada que pudesse fazer para salvar a própria vida. Seus punhos estavam firmemente amarrados, assim como seus tornozelos. Se tentasse mover-se, a bomba poderia explodir.

Estava tudo nas mãos de Sam.

 

As feições de Sam mostravam-se tensas, enquanto ele estudava o circuito. Eram tantos fios! Levaria horas só para compreender suas ligações. Mas eles só contavam com minutos. Embora ele n&o pronunciasse uma palavra, Nina percebeu a urgência um seu semblante, e viu as primeiras gotas de suor formarem-se em sua fronte.

Gillis voltou para o lado do parceiro.

— Verifiquei todo o perímetro. Spectre espalhou quinze ou mais bananas de dinamite pelo armazém. Não há outros mecanismos detonadores. O único é este.

— É fácil demais — Sam murmurou. — Ele queria que eu cortasse este fio.

— Poderia ser um blefe? Ele sabia que suspeitaríamos. Assim, fez da maneira mais simples, só para nos confundir.

Sam engoliu seco.

— Parece que o centro do circuito está aqui. Mas bem acima ele soldou as extremidades dos fios. Pode ter invertido a ligação. Se eu tentar remover a solda, poderia detonar o sistema.

Gillis olhou para o timer.

— Temos cinco minutos.

— Eu sei, eu sei.

A voz de Sam estava rouca de tensão, mas suas mãos apresentavam-se absolutamente firmes, enquanto ele examinava o circuito. Um leve toque no fio errado, e os três seriam vaporizados.

Lá fora, mais sirenes chegavam e paravam. Nina ouvia as vozes e os sons de confusão.

Lá dentro, porém, o silêncio era total.

Sam respirou fundo e olhou para ela.

— Você está bem?

Ela assentiu tensa. E viu nos olhos dele os primeiros sinais de pânico. Ele sabe que não conseguirá decifrar o circuito a tempo.

Aquele fora exatamente o plano de Spectre. O dilema inútil. A escolha fatal. Que fio cortar? Um? Nenhum? Devia arriscar a própria vida? Ou tomar a decisão racional de abandonar o armazém... e ela?

Nina sabia que escolha Sam faria. Estava clara nos olhos dele.

Os dois morreriam.

— Dois minutos e meio — Gillis anunciou.

— Saia daqui — Sam ordenou-lhe.

— Você precisa de ajuda.

— E seus filhos precisam de um pai. Saia daqui!

Gillis não se moveu.

Sam pegou o alicate e isolou o fio branco.

— Está chutando, Sam. Não sabe que fio cortar.

— Instinto, camarada. Sempre tive bons instintos. É melhor você sair. Temos pouco mais de dois minutos. E você não está me ajudando em nada.

Gillis levantou-se, mas ficou onde estava, dividido entre sair e ficar.

— Sam...

— Saia!

Gillis falou baixinho:

— Estarei esperando por você com uma garrafa de uísque, camarada.

— Faça isso. Agora, saia daqui.

Sem mais uma palavra, Gillis deixou o edifício. Somente Sam e Nina ficaram.

Ele não precisa ficar, não precisa morrer.

— Sam — ela sussurrou.

Ele pareceu não ouvi-la. Estava concentrado no circuito, os alicates pairando sobre a escolha de vida ou morte.

— Saia, Sam — ela implorou.

— Este é o meu trabalho, Nina.

— Seu trabalho não é morrer!

— Não vamos morrer.

— Tem razão. Nós não vamos morrer. Você não vai. Se sair agora...

— Não vou sair. Compreendeu? Não vou.

Seu olhar encontrou o dela. E Nina viu, naqueles olhos firmes, que ele tomara a sua decisão. Escolhera viver, ou morrer, com ela. Não era o tira quem a fitava, mas sim o homem que a amava. O homem que ela amava.

Sentiu as lágrimas rolarem por suas faces. Só então percebeu que chorava.

— Temos pouco mais de um minuto. Farei uma tentativa — Sam falou. — Se estiver certo, cortar este fio resolverá o problema. Se estiver errado... — suspirou. — Saberemos em breve. — Deslizou o alicate para o fio branco. — Vou cortar este.

— Espere.

— O que foi?

— Quando Spectre estava preparando o explosivo, ele soldou um fio branco num fio vermelho. Então, cobriu-os com fita adesiva verde. Faz diferença?

Sam olhou para o fio que estivera prestes a cortar.

— Faz. Faz uma grande diferença.

— Sam! — Gillis gritou pelo alto-falante. — Você tem dez segundos!

Dez segundos para correr.

Sam não correu. Posicionou o alicate em torno de um fio preto e ergueu os olhos para Nina. Fitaram-se por um momento.

— Eu te amo — ele murmurou.

Ela assentiu, as lágrimas corriam soltas.

— Também te amo.

Seus olhares permaneceram fixos um no outro, mesmo enquanto Sam pressionava o alicate em torno do fio.

O fio partiu-se em dois.

Por um momento, nenhum dos dois se moveu. Continuaram petrificados, paralisados pela certeza da morte.

Então, lá de fora, Gillis gritou:

— Sam? A contagem terminou! Sam!

No instante seguinte, Sam cortava as amarras dos punhos e tornozelos de Nina. Ela estava abalada demais para se manter de pé, mas não foi preciso, pois ele a tomou nos braços e carregou-a para fora.

A rua era um festival de luzes dos veículos de emergência — carros-patrulha, ambulâncias, bombeiros. Sam carregou-a em segurança para fora do cordão de isolamento da polícia e colocou-a no chão.

No mesmo instante, estavam cercados por uma multidão de policiais. Coopersmith e Liddell estavam entre eles, todos querendo saber as condições da bomba. Sam ignorou-os. Limitou-se a ficar ali, abraçando Nina com força, protegendo-a do caos.

— Afastem-se todos! — Gillis ordenou. — Deixem-nos respirar! — Virou-se para Sam. — E quanto ao explosivo?

— Está desarmado — Sam respondeu. — Mas, tenha cuidado. Spectre pode ter preparado alguma surpresa.

— Terei cuidado — Gillis garantiu e virou-se para o armazém. Então, falou: — Sam?

— Sim?

— Acho que já merece a sua aposentadoria — falou com um sorriso e afastou-se.

Nina olhou para Sam. Embora o perigo houvesse passado, sentiu o coração dele bater forte. O seu acompanhava o ritmo.

— Você não me deixou — murmurou com lágrimas nos olhos. — Podia ter...

— Não, eu não podia.

— Eu pedi para você sair! Queria que você saísse!

— E eu queria ficar. — Sam segurou-lhe o rosto entre as mãos. — Não haveria outro lugar para mim, exceto ao seu lado, Nina. Não há outro lugar em que deseje estar.

Nina sabia que dezenas de pares de olhos os observavam. A imprensa já chegara com suas câmaras e holofotes. A noite estava repleta de vozes e luzes. Porém, naquele momento, quando Sam abraçou-a e beijou-a, não havia mais nada, ou ninguém.

Quando a manhã chegasse, ele ainda a teria nos braços.

 

O casamento estava de pé. Não havia a menor dúvida.

Ao som de uma doce melodia irlandesa, tocada pela flauta e harpa, Nina e o pai, de braços dados, caminharam pelo jardim. Sob o brilho avermelhado da folhagem de outono, Sam a esperava. Exatamente como ela sabia que seria.

Ele sorria, nervoso como um policial novato em sua primeira missão. A seu lado, estavam o padrinho, Gillis, e o reverendo Sullivan. Ambos sorriam. Um pequeno círculo de amigos e parentes encontrava-se à sombra das árvores: Wendy e o marido, o chefe Coopersmith, os colegas de trabalho de Nina. Lydia também estava lá, mostrando-se resignada ao fato de que a filha estava se casando com um reles policial.

Algumas coisa na vida, pensou Nina, não podiam ser alteradas. Já aceitara o fato. Quem sabe, um dia, Lydia aprendesse a lição.

A música terminou e as folhas de outono pairaram no ar. Sam estendeu-lhe a mão. Seu sorriso dizia tudo o que ela precisava saber. Estava tudo certo, como deveria ser.

Nina segurou-lhe a mão.

                                                                                            Tess Gerritsen

 

 

                      

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