Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SAFRA VERMELHA / Dashiell Hammett
SAFRA VERMELHA / Dashiell Hammett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A PRIMEIRA vez que ouvi dar a Personville o nome de Poisonville (Cidade-Veneno) foi em Butte, no Big Ship, dos lábios de um malandro de cabelos vermelhos chamado Hickey Dewey. Ele também dizia shoit referindo-se à sua camisa (shirt). Não liguei importância à modificação do nome da cidade. Posteriormente, ouvi outros indivíduos mais capazes de articular os rr pronunciá-lo da mesma forma. Ainda assim, não vi no caso mais que essa espécie de humorismo sem significação, que, na gíria dos gatunos, transforma dictionary em richardsnary. Alguns anos mais tarde, fui a Personville e mudei de idéia.

Dirigindo-me a um dos telefones da estação, liguei para o Herald, chamei Donald Willsson, e disse-lhe que acabava de chegar.

- Pode ir a minha casa esta noite, às dez? - O jornalista falava com uma voz incisiva, muito agradável. - É em Mountain Boulevard, 2101. Tome um bonde da Broadway, desça em Laurel Avenue, e siga duas quadras para oeste.

Prometi ir. Depois um carro me conduziu ao Great Western Hotel. Deixei lá as minhas malas e saí para ver a cidade.

Não era bonita. A maior parte dos construtores tinham-se empenhado em edificações vistosas. Talvez o tivessem conseguido, a princípio. Depois a fumaça amarela das fundições, cujas chaminés de tijolo se erguiam altaneiras contra uma sombria montanha ao sul, havia encardido tudo. O resultado era uma feia cidade de quarenta mil habitantes, edificada numa feia depressão entre duas feias montanhas que a exploração das minas cobrira de escórias. Por cima disso tudo se desdobrava um céu fuliginoso que parecia ter saído das chaminés das fundições.

 

 

 

 

 

 

O primeiro policial que vi, estava por barbear. O segundo, faltavam-lhe dois botões no surrado uniforme. O terceiro achava-se postado no meio do principal cruzamento da cidade - entre a Broadway e a Union Street - dirigindo o tráfego com um charuto no canto da boca. Depois disso, deixei de reparar neles.

Às nove e meia tomei um bonde da linha Broadway e segui as instruções que Donald Willsson me dera. Fui ter a uma casa de esquina, construída dentro de um terreno coberto de relva e cercado de sebes.

A criada que veio abrir a porta disse-me que Mr. Willsson não estava em casa. Enquanto eu lhe explicava que tinha marcado encontro com ele, aproximou-se da porta uma loura esbelta, de pouco menos de trinta anos, vestida de crepe verde. Quando sorria, os olhos azuis não perdiam a dureza. Repeti-lhe a explicação que dera à criada.

- Meu marido não está agora. - Arrastava os rr de maneira quase imperceptível. - Mas se ele esperava o senhor, provavelmente não há de demorar.

Fez-me subir ao andar de cima, introduzindo-me numa peça situada na parte da casa que dava para a Laurel Avenue. Era uma sala vermelha e parda, com muitos livros. Sentamo-nos em cadeiras de couro, em parte voltados um para o outro, em parte voltados para uma grelha com carvões acesos, e ela tratou de descobrir o assunto que eu tinha a tratar com o marido.

- Mora em Personville? - começou.

- Não. San Francisco.

- Mas é a primeira vez que vem aqui?

- É.

- Realmente? Que acha da cidade?

- Ainda não vi o bastante para julgar. - Isso era mentira. Eu já tinha visto o suficiente. - Cheguei esta noite.

Seus olhos brilhantes cessaram de perscrutar-me enquanto ela dizia:

- Vai achar triste o lugar. - Em seguida tornou à sua inquirição: - Suponho que todas as cidades mineiras sejam assim. O senhor se ocupa de mineração?

- Atualmente não.

Olhou para o relógio que estava em cima da lareira e disse:

- É muita desconsideração de Donald fazê-lo vir aqui e deixá-lo esperar até esta hora da noite, depois de sair do trabalho.

Respondi que não fazia mal.

- Embora o senhor talvez não tenha vindo a negócios - sugeriu.

Não dei resposta.

Ela riu - uma risada de timbre um tanto áspero.

- Eu, na verdade, não costumo ser tão intrometida como decerto supõe - disse alegremente. - Mas o senhor é tão reservado que não posso deixar de me mostrar curiosa. O senhor não é contrabandista de bebidas, é? Donald muda-os freqüentemente.

Deixei-a interpretar como pudesse o meu sorriso.

No rés-do-chão soou a campainha do telefone. Mrs. Willsson estendeu para os carvões em brasa os pés calçados de chinelos verdes, fingindo não ter ouvido. Não compreendi por que razão ela julgou necessário fazê-lo.

- Parece-me que tem... - falou e deteve-se para olhar a criada que aparecera à porta.

A criada disse que chamavam Mrs. Willsson ao telefone. Ela pediu licença e saiu com a empregada. Não desceu ao andar de baixo; falou por uma extensão colocada no pavimento superior, ao alcance do meu ouvido. Escutei:

- Aqui fala Mrs. Willsson... Sim... Como?... Quem?... Não pode falar um pouco mais alto?... O quê?... Sim... Sim... Quem é que fala?... Alô! Alô!

Ouviu-se o bater repetido do gancho do telefone.

Os passos de Mrs. Willsson soaram ao longo do corredor - passos apressados.

Acendi um cigarro e fiquei a contemplá-lo até que a ouvi descer a escada. Fui então a uma janela, ergui uma ponta da cortina e olhei para a Laurel Avenue e para a garagem branca e quadrada que se via nos fundos da casa, daquele lado.

Pouco depois, uma mulher delgada, de chapéu e casaco escuros, surgiu diante dos meus olhos, caminhando rapidamente da casa à garagem. Era Mrs. Willsson. Saiu num Buick. Voltei à minha cadeira e esperei.

Passaram três quartos de hora. Às onze e cinco, ouviu-se o ranger de freios de automóvel lá fora. Passados dois minutos, Mrs. Willsson entrou na sala. Tinha tirado o chapéu e o casaco. O rosto estava branco, os olhos quase negros.

- Lamento muito - disse, movendo espasmòdicamente os lábios apertados - mas foi inútil sua espera durante todo esse tempo. Meu marido não virá para casa esta noite.

Respondi que falaria com ele de manhã no Herald.

Retirei-me perguntando a mim mesmo por que razão a ponta verde de seu chinelo esquerdo estava úmida e escura, como se estivesse manchada de sangue.

 

Dirigi-me à Broadway e tomei um bonde. Três quadras ao norte do meu hotel, saltei para ver que estava fazendo a multidão reunida em torno de uma entrada lateral do City Hall.

Trinta ou quarenta homens e um punhado de mulheres achavam-se na calçada olhando para uma porta com o letreiro Departamento de Polícia. Havia mineiros e fundidores, ainda com as roupas de trabalho, rapazes em trajes vistosos, vindos de salas de bilhar e salões de dança, homens untuosos, de rosto pálido e nédio, sujeitos com o ar estúpido de maridos respeitáveis, umas poucas mulheres igualmente respeitáveis e broncas, e algumas damas noturnas.

Detive-me diante dessa aglomeração, junto de um homem atarracado, de roupa cinzenta amarfanhada. Tinha a cara também cinzenta, inclusive os lábios grossos, embora não pudesse contar mais de trinta anos. O rosto era largo, de feições grosseiras e expressão inteligente. Quanto ao colorido, irrompia de uma gravata vermelha que flamejava sobre a camisa de flanela cinzenta.

- Que foi que houve? - perguntei-lhe.

Olhou-me cuidadosamente antes de responder, como se quisesse assegurar-se de que a informação ia cair em boas mãos. Seus olhos eram cinzentos como o traje, porém mais vivazes.

- Don Willsson foi sentar-se à mão direita de Deus, se Deus não se importa de ver buracos de balas.

- Quem o matou? - perguntei.

O homem cor de cinza cocou a nuca e respondeu:

- Alguém que tinha uma arma de fogo.

Eu queria informações, e não gracejos. Teria tentado a sorte com outro componente da multidão, se a gravata vermelha não me tivesse interessado.

- Sou forasteiro. Pode fazer troça. É para isso que servem os forasteiros.

- Donald Willsson, redator do Morning e Evening Heralds foi encontrado há pouco em Hurricane Street, morto a tiros por pessoas desconhecidas - recitou em rápida melopéia. - Isso acalma os seus melindres?

- Obrigado. - Toquei com um dedo numa das pontas da sua gravata. - Tem alguma significação? Ou usa só por usar?

- Sou Bill Quint.

- Veja só! - exclamei, tratando de recordar-me do nome. - Por Deus, tenho muito prazer em conhecê-lo!

Saquei da carteira e corri os olhos pela minha coleção de cartões que reunira aqui e ali, por diversos meios. Era o cartão vermelho o que eu queria. Apresentava-me como Henry F. Neill, marinheiro de primeira classe, membro proeminente da Associação Internacional de Trabalhadores na Indústria. Não havia ali uma só palavra de verdade.

Passei esse cartão a Bill Quint, que o leu atentamente, anverso e reverso, devolveu-o, e me olhou do chapéu aos sapatos, sem muita confiança.

- Ele não vai morrer outra vez - disse. - Em que direção vai você?

- Qualquer direção.

Descemos juntos a rua, dobramos uma esquina, aparentemente sem rumo determinado.

- Que é que o traz aqui, se é marinheiro? - inquiriu em tom despreocupado.

- De onde lhe veio essa idéia?

- Está no seu cartão.

- Eu tenho outro que prova que eu sou lenhador - retruquei. - Se quer que eu seja um mineiro, arranjo-lhe amanhã o cartão correspondente.

- Nada disso. Sou eu que os dirijo aqui.

- E se você recebesse um telegrama de Chi? - interroguei.

- Para o diabo com Chi! Aqui sou eu o chefe. - Sacudiu a cabeça na direção da porta de um restaurante, e perguntou: - Bebe?

- Só quando encontro o que beber.

Atravessamos o restaurante, subimos uma escada, e entramos numa sala estreita do segundo andar, com um balcão comprido e uma fileira de mesas. Bill Quint inclinou a cabeça e disse: "Olá!" a alguns dos rapazes e pequenas que se achavam ao balcão e às mesas, e conduziu-me a um dos reservados com cortinas verdes junto da parede oposta ao bar.

Passamos as duas horas seguintes bebendo uísque e conversando.

O homem de roupa cinzenta não me julgava com direito a usar o cartão que eu lhe mostrara, nem o outro a que eu me havia referido. Não acreditava que eu fosse um bom camarada. Como figura principal da I. W. W. em Personville, achou que era seu dever tomar informações sobre mim, sem, por seu lado, fazer qualquer confidencia a respeito dos assuntos radicais enquanto procedia à sondagem.

Eu não tinha objeção. Estava interessado nos assuntos de Personville. Ele não se importava de discuti-los comigo entre casuais incursões no caso dos meus cartões vermelhos.

O que logrei arrancar-lhe consistia, em suma, no seguinte:

Durante quarenta anos o velho Elihu Willsson - pai do homem assassinado essa noite - fora dono de Personville, corpo, alma, pele e tudo. Era presidente e principal acionista da Personville Mining Corporation e do First National Bank, proprietário do Morning Herald e do Evening Herald, os únicos jornais da cidade, e pelo menos co-proprietário de quase todas as outras empresas de alguma importância. Além dessas propriedades, possuía uni senador, dois representantes federais, o governador, o prefeito, e a maior parte da legislatura estadual. Elihu Willsson era Personville, e quase o Estado inteiro.

Na época da guerra, a I. W. W. - então em plena florescência no Oeste - arregimentara o pessoal da Personville Mining Corporation. O pessoal nunca fora propriamente tratado a pão-de-ló. Valeu-se da força recém-adquirida para exigir as coisas de que precisava. O velho Elihu concedeu o que tinha de conceder, e esperou a sua oportunidade.

Esta chegou em 1921. Os negócios iam mal. O velho não se importava de fechar as portas por algum tempo. Rasgou os acordos que fizera com os operários e começou a restabelecer as condições de pré-guerra.

Naturalmente o proletariado gritou por socorro. Bill Quint foi enviado pela chefia da I. W. W., em Chicago, a fim de lhes orientar a ação. O enviado pronunciou-se contra uma greve, um franco abandono do trabalho. Aconselhou que adotassem o velho sistema de sabotagem, permanecendo no trabalho e minando internamente a produção. Mas o método não era bastante enérgico para a malta de Personville. Queriam chamar a atenção do mundo, fazer história trabalhista.

Declararam-se em greve.

A greve durou oito meses. Houve morticínio de ambos os lados. O proletariado teve de realizar a sua parte da carnificina com as suas próprias mãos. O velho Elihu contratou pistoleiros, fura-greves, guardas nacionais e até corpos do exército regular. Depois que se rachara o último crânio, e se quebrara a última costela, a organização trabalhista em Personville era um foguete queimado.

Mas, disse Bill Quint, o velho Elihu não conhecia a história italiana. Venceu a greve, mas perdeu o controle da cidade e do Estado. Para derrotar os mineiros, tivera de afrouxar a rédea aos bandidos que contratara. Terminada a greve, não pôde desembaraçar-se deles. Entregara-lhes a cidade e não tinha bastante força para recuperá-la. Personville agradou-lhes, e tomaram conta do lugar. Tinham vencido a greve para o velho, e ficaram com a cidade como despojo. O velho não podia romper abertamente com os homens que estavam a par de muitas coisas comprometedoras. Ele era responsável por tudo que haviam feito durante a greve.

Chegados a este ponto, Bill Quint e eu já estávamos íntimos. Ele esvaziou novamente o copo, afastou o cabelo dos olhos, e concluiu a sua narração:

- Agora, o mais forte deles é, provavelmente, Pete, o Finlandês. Isto que nós estamos bebendo é dele. Depois há o Lew Yard. Tem uma casa de empréstimos em Parker Street, presta fianças, faz os trabalhos mais escusos, segundo me consta, e é unha e carne com o chefe de polícia, Noonan. Aquele garoto Max Thaler - o Cochicho - também conta com muitos amigos. Um sujeitinho moreno, maneiroso, com um defeito na garganta. Não pode falar. Jogador. Esses três, e mais Noonan, ajudam Elihu a dominar a cidade - ajudam até mais do que ele queria. Mas o velho vê-se obrigado a trabalhar com eles, senão...

- E o homem que foi liquidado esta noite - o filho de Elihu - em que situação se achava?

- Na situação em que o papai o colocou, e agora está onde o papai o pôs.

- Quer dizer que o velho mandou...?

- Pode ser, mas não é isso o que eu penso. O tal Don veio para cá e se encarregou de dirigir os jornais para o pai. O diabo velho, embora estivesse com um pé na cova, não tinha o hábito de deixar os outros levarem vantagem sem reagir. Mas tinha de se cuidar com essa gente. Mandou vir de Paris o filho e a nora francesa, e serviu-se dele para tirar as castanhas do fogo - um diabo dum expediente paternal. Don lança nos jornais uma campanha de reforma, para extirpar o vício e a corrupção da cidade - o que quer dizer expulsar Pete, e Lew, e o Cochicho, se a reforma for até as últimas. Entende? O velho servia-se do rapaz para afastá-los daqui. Calculo que eles se cansaram dessa amolação.

- Não me parece muito certo isso - disse eu.

- Há muita coisa que não anda certa neste lugarejo infame. Já bebeu bastante?

Respondi que sim. Descemos à rua. Bill Quint me disse que estava no Hotel dos Mineiros, em Forest Street. Em seu caminho passava pelo meu hotel, de modo que fomos juntos. Em frente do meu hotel, um sujeito gordo, com cara de polícia, em traje civil, estava parado no meio-fio, conversando com o ocupante de um carro de turismo Stutz.

- Aquele do auto é o Cochicho - disse-me Bill Quint. Olhei além do gordo e vi o perfil de Thaler. Era moço, moreno e miúdo, de belas feições, tão regulares que pareciam esculpidas.

- É simpático - observei.

- Hum-hum - concordou o homem de roupa cinzenta - a dinamite também é.

 

                       O Czar de Poisonville

O Morning Herald dedicava duas páginas a Donald Willsson e à sua morte. O retrato mostrava uma fisionomia agradável e inteligente, cabelos crespos, olhos e boca sorridentes, queixo fendido e gravata listrada.

A história da morte era simples. Na noite anterior, às dez e meia, Willsson recebera quatro ferimentos à bala, no estômago, no peito e nas costas, morrendo imediatamente. O atentado se dera na décima primeira quadra de Hurricane Street. Moradores dessa quadra, que olharam para fora ao ouvir os tiros, viram o cadáver caído na calçada. Inclinados sobre ele achavam-se um homem e uma mulher. A rua estava muito escura para se poder ver claramente o que quer que fosse. O homem e a mulher desapareceram antes que alguém chegasse à rua. Ninguém os sabia descrever. Ninguém os tinha visto retirarem-se.

Haviam sido disparados seis tiros, de uma pistola de calibre 32, contra Willsson. Dois erraram o alvo, indo atingir a frente de uma casa. Seguindo a trajetória desses dois projéteis, a polícia apurou que os tiros partiram de uma viela estreita, do outro lado da rua. Era só o que se sabia.

Em editorial, o Morning Herald sumariou a breve carreira do morto como reformador cívico, e expressou a crença de que ele fora assassinado por alguma das pessoas que não desejavam o saneamento de Personville. Dizia que o melhor meio de o chefe de polícia demonstrar a sua não-cumplicidade era obter prontamente a prisão e condenação do assassino ou assassinos. O editorial era rude e acrimonioso.

Terminei-o juntamente com a minha segunda xícara de café, tomei um bonde da Broadway, desci na Laurel Avenue e encaminhei-me à casa do morto.

Estava a meia quadra da residência quando algo me fez mudar de intenção e de rumo.

Um homem de pequena estatura, vestido de marrom, atravessou a rua na minha frente. Tinha um bonito perfil moreno. Era Max Thaler, por alcunha o Cochicho. Alcancei a esquina do Mountain Boulevard a tempo de vislumbrar a sua perna, coberta pela calça marrom, desaparecendo na porta de entrada da casa de Donald Willsson.

Voltei à Broadway, descobri um drug store com cabina telefônica, procurei na lista o número de Elihu Willsson, e disquei para lá. Atendeu-me alguém que se dizia secretário do velho; declarei-lhe que tinha vindo de San Francisco por ordem de Donald Willsson, que estava a par de alguns fatos relacionados com a sua morte, e que queria falar com o seu pai.

Quando consegui tornar-me bastante convincente, fui convidado a apresentar-me.

O czar de Poisonville estava meio reclinado na cama quando o secretário - um homem de quarenta anos, silencioso, esguio, de olhos penetrantes - me introduziu.

A cabeça do velho era pequena, e de forma redonda quase perfeita sob os cabelos à escovinha. Tinha as orelhas muito pequenas e muito pegadas aos lados da cabeça, para destruir a impressão de esfericidade. Também o nariz era pequeno, prolongando a curva da testa ossuda. Boca e queixo eram linhas retas que cortavam a esfera. Abaixo deles, o pescoço grosso e curto mergulhava no pijama branco, entre os ombros cheios e quadrados. Um dos braços estava em cima da coberta - um braço curto, maciço, terminado em mão rude, de dedos grossos. Os olhos eram redondos, azuis, pequenos e úmidos. Pareciam estar-se escondendo atrás da camada aquosa e das espessas sobrancelhas brancas, unicamente à espera do momento de projetar-se e capturar alguma coisa. Elihu Willsson não era da espécie de homem cuja carteira a gente tentaria furtar, a não ser que se tivesse muita confiança nos dedos.

Com uma pequena sacudidela da cabeça, mandou-me sentar numa cadeira ao pé da cama, e com outra despachou o secretário. Depois disse:

- Que história é essa a respeito de meu filho?

A voz era áspera. O peito desempenhava um papel muito mais importante do que a boca na emissão das palavras, de modo que estas não saíam muito claras.

- Sou empregado da Agência Continental de Detetives, seção de San Francisco - respondi. - Há dois dias recebemos de seu filho um cheque e uma carta, em que pedia que lhe mandassem um homem a fim de executar certo trabalho. Esse homem sou eu. Ele me disse que fosse à sua casa a noite passada. Fui, mas ele não apareceu. Quando voltei à cidade, soube que seu filho tinha sido morto.

Elihu Willsson espreitou-me com desconfiança, e perguntou:

- Bem, e daí?

- Enquanto eu esperava, sua nora recebeu um recado pelo telefone, saiu, voltou com uma mancha, que parecia de sangue, no calçado, e disse-me que o marido não ia voltar para casa. Ele foi morto às dez e quarenta. Ela saiu às dez e vinte e voltou às onze e cinco.

O velho sentou-se direito na cama e disse um mundo de coisas sobre a jovem Mrs. Willsson. Quando esgotou o repertório de impropérios, ainda lhe restava um pouco de fôlego, do qual se serviu para me berrar:

- Ela está na cadeia? Respondi que me parecia que não.

O velho não gostou da resposta. Ficou irritado. Gritou umas quantas coisas que não me agradaram, terminando por perguntar:

- Que diabo está você esperando?

Ele era muito velho e muito doente para ser esmurrado. Ri-me, e disse:

- Provas.

- Provas? Que é que lhe falta? Você disse...

- Não seja tolo - interrompi. - Por que razão ia ela matá-lo?

- Porque é uma francesa atrevida! Porque ela... A cara assustada do secretário assomou à porta.

- Saia daí! - trovejou o velho, e a cara desapareceu.

- Ciumenta? - perguntei, antes que o velho pudesse continuar com o berreiro. - Se não gritar, pode ser que eu ouça do mesmo jeito. Ando muito melhor da surdez desde que comecei a tomar fermento.

O velho fincou um punho em cima de cada uma das saliências que as suas coxas faziam nas cobertas e avançou o queixo quadrado para mim.

- Velho e doente como estou - disse, pausadamente - tenho muita vontade de me levantar e dar-lhe um pontapé no traseiro.

Repeti, sem lhe dar atenção:

- Ela era ciumenta?

- Era - volveu, já sem gritar - e autoritária, e dengosa, e desconfiada, e gananciosa, e mesquinha, e inescrupulosa, e dissimulada, e egoísta, e ruim - ruim como uma verdadeira peste!

- Havia razão para os ciúmes?

- Acho que sim - respondeu, acremente. - Eu fico possesso só de pensar que um filho meu era fiel a semelhante mulher. Mas, provavelmente, era. Ele tinha dessas.

- Mas não conhece nenhum motivo que a pudesse levar a matar o marido?

- Se não conheço nenhum motivo? - Estava gritando de novo. - Eu já não lhe disse que...

- Sim. Mas nada disso tem importância. É infantil.

O velho arremessou as cobertas e fez menção de sair da cama. Depois pensou melhor, ergueu a cara vermelha, e rugiu:

- Stanley!

Abriu-se a porta para deixar passar o secretário.

- Ponha para fora esse patife! - ordenou, brandindo o punho na minha direção.

O secretário voltou-se para mim. Abanei a cabeça e sugeri:

- É melhor ir buscar auxílio.

O homem franziu a testa. Tínhamos aproximadamente a mesma idade. Ele era magro; avantajava-se a mim quase por uma cabeça, mas pesava cinqüenta libras menos. Parte das minhas cento e noventa libras era gordura, mas nem tudo. O secretário encafifou, deu um sorriso de desculpa, e retirou-se.

- Como eu ia dizendo - observei para o velho - tencionava falar com a mulher de seu filho esta manhã. Mas vi Max Thaler entrar na casa, de modo que adiei a visita.

Elihu Willsson cuidadosamente estendeu de novo as cobertas sobre as pernas, tornou a reclinar a cabeça nos travesseiros, cravou os olhos no teto, e disse:

- Hum, então é assim, hem?

- Isto significa alguma coisa?

- Ela o matou - volveu ele com convicção. - Aí está o que isto significa.

Ouviu-se ruído de passos no corredor, mais pesados que os do secretário. Haviam justamente alcançado a frente da porta quando eu perguntei:

- Você se utilizava do seu filho para...

- Saiam daí! - bradou o velho aos que se achavam lá fora. - E deixem fechada essa porta. - Fez uma carranca e inquiriu: - Para que é que eu me utilizaria do meu filho?

- Para meter a faca no peito de Thaler, Yard e o Finlandês.

- Você é um mentiroso.

- Não fui eu que inventei a história. Todos dizem isso em Personville.

- É mentira. Eu entreguei os jornais a Donald. Meu filho fez o que quis com eles.

- Devia explicar isso aos seus parceiros. Haviam de acreditar.

- Para o inferno com o que eles haviam de acreditar! É assim como eu estou lhe dizendo!

- E daí? Seu filho não vai ressuscitar só porque foi morto por engano - se o foi.

- Aquela mulher o matou.

- Talvez.

- Para o diabo, você e suas dúvidas. Matou, sim.

- Talvez. Mas o outro aspecto do caso também deve ser examinado... o aspecto político. Pode me dizer...

- Posso lhe dizer que aquela mulher o matou, e que qualquer outra idéia imbecil que você tiver está errada.

- Mas é preciso tomá-las em consideração - insisti. - E você conhece por dentro a política de Personville melhor do que qualquer outra pessoa que eu possa encontrar. Ele era seu filho. O mínimo que pode fazer é...

- O mínimo que posso fazer - vociferou - é dizer-lhe que volte para Frisco, você e suas asnáticas...

Levantei-me e disse, sem muita amabilidade:

- Estou no Great Western Hotel. Não me importune, a não ser que queira falar direito, para variar.

Saí do quarto e desci a escada. O secretário estava parado no último degrau, sorrindo propiciatòriamente.

- Velhote abusado - rosnei.

- Notável personalidade - murmurou ele.

 

No escritório do Herald, procurei a secretária do morto. Era uma garota miúda, de dezenove ou vinte anos, grandes olhos castanhos, cabelos castanho-claro, rosto pálido e bonito. Chamava-se Lewis.

Declarou ignorar que eu tinha sido chamado a Personville pelo seu patrão.

- Mas acontece - explicou - que Mr. Willsson costumava guardar segredo das coisas, tanto quanto possível, Era... Eu acho que ele não tinha inteira confiança em ninguém aqui.

- Nem na senhora? Enrubesceu, e disse:

- Não. Mas, naturalmente, ele estava aqui há tão pouco tempo, e não conhecia bem a nenhum de nós.

- Devia haver mais alguma coisa nisso.

- Bem - a secretária mordeu o lábio e pôs-se a calcar o polegar ao longo da lustrosa borda da escrivaninha do falecido patrão - seu pai não... não gostava muito do que ele estava fazendo. Sendo o pai o verdadeiro dono dos jornais, era natural que Mr. Donald desconfiasse que alguns empregados fossem mais leais a Mr. Elihu de que a ele.

- O velho não estava de acordo com a campanha de reforma? Por que a permitiu, se os jornais eram seus?

Ela inclinou a cabeça e examinou as impressões digitais que fizera. Quando falou, foi em voz baixa.

- Não é fácil compreender, a menos que o senhor saiba... A última vez que Mr. Elihu adoeceu, mandou chamar Donald... Mr. Donald. Mr. Donald, o senhor sabe, tinha passado a maior parte da vida na Europa. O Dr. Pride disse a Mr. Elihu que teria de abandonar a gerência dos seus negócios, de modo que ele passou um cabograma ao filho para que voltasse. Mas quando MT, Donald chegou, Mr. Elihu não pôde resolver-se a largar tudo. Mas queria que Mr. Donald ficasse, e deu-lhe os jornais... isto é, fê-lo redator. Mr. Donald gostou. Tinha-se interessado pelo jornalismo em Paris. Quando descobriu em que terrível situação estava tudo aqui - os assuntos políticos e tudo o mais - lançou aquela campanha de reforma. Não sabia - tinha estado ausente desde menino - não sabia...

- Não sabia que o pai estava tão atolado nisso como qualquer outro - sugeri.

Ela continuou a examinar as impressões digitais, um pouco atrapalhada, mas não me contradisse, e continuou:

- Mr. Elihu e ele tiveram um desentendimento. Mr. Elihu disse-lhe que parasse de revolver esses assuntos, mas Mr. Donald não queria. Talvez concordasse em parar, se soubesse... se soubesse de tudo. Mas, segundo penso, nunca lhe ocorreu que seu pai estivesse mesmo seriamente comprometido. E o pai não lhe quis dizer. Acho que seria difícil para um pai ter de dizer uma coisa dessas ao filho. Ameaçou tirar-lhe os jornais. Não sei se tencionava fazê-lo ou não. Mas adoeceu novamente, e tudo continuou da mesma forma.

- Donald Willsson não lhe fazia confidencias? - perguntei.

- Não - respondeu quase num sussurro.

- Então onde ouviu tudo isso?

- Eu estou procurando... procurando ajudá-lo a descobrir quem matou Mr. Donald - fez ela com veemência. - O senhor não tem o direito de...

- A melhor ajuda que a senhora me pode dar agora é dizer onde ouviu tudo isso - insisti.

Ela quedou-se de olhos fixos na escrivaninha, mordiscando o lábio inferior. Esperei. Pouco depois respondeu:

- Meu pai é secretário de Mr. Willsson.

- Obrigado.

- Mas não pense que nós...

- Para mim não tem importância - assegurei-lhe. - Que estava fazendo Willsson em Hurricane Street a noite passada, quando tinha entrevista marcada comigo em sua casa?

Disse que não sabia. Perguntei-lhe se o ouvira dizer-me pelo telefone que fosse à sua casa às dez horas. Respondeu que sim.

- Depois disso, que fez ele? Procure recordar tudo quanto foi dito ou feito desde esse momento até que a senhora saiu, terminado o seu trabalho.

Ela recostou-se na cadeira, fechou os olhos e franziu a testa.

- O senhor chamou - se foi com o senhor que ele marcou encontro em casa - mais ou menos às duas horas. Depois disso, Mr. Donald ditou algumas cartas, uma à fábrica de papel, outra ao Senador Keefer sobre certas modificações do regulamento do serviço postal, e... Oh, sim! Ele esteve fora uns vinte minutos, pouco antes das três. E antes de sair encheu um cheque.

- A favor de quem?

- Não sei, mas vi-o escrever o cheque.

- Onde está o livro de cheques? Carregava-o consigo?

- Está aqui. - Ergueu-se de um pulo, rodeou a escrivaninha de Willsson, e tentou abrir a gaveta de cima. - Fechada à chave.

Aproximei-me, endireitei um clip de arame, e, com aquilo e a lâmina da minha faca logrei abrir a gaveta.

A pequena tirou um delgado livro de cheques do First National Bank. O último canhoto usado estava assinalado: $ 5.000. Nada mais. Nenhum nome. Nenhuma explicação.

- Ele saiu com este cheque - disse eu - e demorou-se vinte minutos? Tempo suficiente para ir ao banco e voltar?

- Não levaria mais de cinco minutos para ir lá.

- Não ocorreu nada mais, antes de ele encher este cheque? Pense. Alguma mensagem? Cartas? Chamados telefônicos?

- Deixe ver. - Fechou novamente os olhos. - Ele estava ditando a correspondência e... Oh, que tonta eu sou! Teve um chamado telefônico. Respondeu: "Sim, posso estar aí às dez, mas terei de me demorar pouco." Depois disse de novo: "Muito bem, às dez." Foi tudo o que disse, a não ser "sim, sim", diversas vezes.

- Estava falando com homem ou mulher?

- Não sei.

- Pense. Devia haver alguma diferença na voz dele. Ela refletiu, e disse:

- Então era mulher.

- Qual dos dois - a senhora ou ele - saiu primeiro à tarde?

- Fui eu. Ele... Eu já lhe disse que meu pai é secretário de Mr. Elihu. Ele e Mr. Donald tinham um encontro marcado para o entardecer - algo relacionado com as finanças do jornal. Papai chegou pouco depois das cinco. Iam jantar juntos, parece-me.

Era tudo o que a pequena Lewis podia contar-me. Não sabia de nada que explicasse a presença de Willsson na décima primeira quadra de Hurricane Street, afirmou. Também admitiu que nada sabia de Mrs. Willsson.

Vasculhamos a escrivaninha do morto, e nada encontramos que nos esclarecesse alguma coisa. Tentei abordar as telefonistas, e não obtive nenhuma informação útil. Andei uma hora às voltas com mensageiros, redatores locais e outros empregados, e a minha indagação nenhum resultado trouxe. O morto, como bem dissera a sua secretária, sabia guardar consigo os seus assuntos.

 

                                           Dinah Brand

No First National Bank, dirigi-me a um dos caixas, chamado Albury, um jovem de uns vinte e cinco anos, louro, bem-parecido.

- Eu visei o cheque para Willsson - declarou, depois que lhe expliquei a que vinha. - Foi emitido à ordem de Dinah Brand - $5.000.

- Sabe quem é?

- Oh, sim! Conheço-a.

- Não há inconveniente em me dizer o que sabe a seu respeito?

- Absolutamente. Teria muito prazer, mas já estou com oito minutos de atraso para um encontro com...

- Pode jantar comigo esta noite e contar-me tudo então?

- Seria ótimo.

- Às sete horas no Great Western?

- Perfeitamente.

- Já vou indo, e deixo-o livre para atender ao seu compromisso, mas diga-me, ela tem conta no banco?

- Sim, e depositou o cheque esta manhã. A polícia o tem em seu poder.

- Ah! E onde é que ela mora?

- Hurricane Street, 1232.

- Eu respondi: "Bem, bem!" e: "De noite nos encontramos", e fui-me embora.

Minha próxima parada foi no gabinete do chefe de polícia, no City Hall.

Noonan, o chefe, era um homem gordo de olhos esverdeados que cintilavam numa cara redonda e prazenteira. Quando eu lhe expliquei o que fazia na cidade, mostrou-se satisfeito. Deu-me um aperto de mão, um charuto e uma cadeira.

- Agora - disse, depois de nos acomodarmos, - conte-me quem foi que fez o serviço.

- Ainda estou às escuras.

- Eu, idem - volveu, jovialmente, em meio às baforadas. - Mas quem supõe o senhor que seja?

- Não sou muito bom em suposições, principalmente quando não estou a par dos fatos.

- Não é preciso muito tempo para lhe relatar todos os fatos já conhecidos - disse ele. - Willsson visou um cheque de cinco pacotes em nome de Dinah Brand, ontem, pouco antes de fechar o banco. A noite passada, foi morto por balas 32, a menos de uma quadra da casa dela. Pessoas que ouviram os tiros avistaram um homem e uma mulher inclinados sobre o cadáver. Hoje de manhã bem cedo a referida Dinah Brand deposita o dito cheque no mesmo banco. E então?

- Quem é essa Dinah Brand?

O chefe largou a cinza do charuto no centro da sua escrivaninha, floreou o charuto na mão rechonchuda, e tornou:

- Uma pomba transviada, como se diz por aí; uma vigarista de luxo, uma cavadora-de-ouro, de alto coturno.

- Já foi falar com ela?

- Não. Há um ou dois detalhes a considerar antes. Estamos de olho na pequena, e esperando. O que eu lhe disse deve ficar entre nós.

- Sim. Agora escute - e contei-lhe o que tinha visto e ouvido enquanto esperava em casa de Donald Willsson, na noite anterior.

Quando terminei, o chefe contraiu os grossos lábios, assobiou baixinho e exclamou:

- Homem, essa coisa que você me contou é interessante. Então era sangue que havia no chinelo? E a mulher disse que o marido não ia voltar para casa?

- Foi o que me pareceu - respondi, à primeira pergunta, e: - sim - à segunda.

- Falou com ela depois disso? - perguntou o chefe de polícia.

- Não. Eu ia lá esta manhã, mas um camarada chamado Thaler entrou na casa antes de mim, de modo que deixei a visita para mais tarde.

- Que está dizendo? - Seus olhos esverdeados brilharam de satisfação. - O Cochicho esteve lá?

- Esteve.

Atirou o charuto no chão, levantou-se, firmou as mãos gordas na escrivaninha, inclinou-se sobre ela e fitou-me resplandecendo de júbilo.

- Homem, você fez algo - arruinou. - Dinah Brand é a pequena desse tal Cochicho. Vamos, nós dois, falar com a viúva.

 

Saltamos do carro do chefe de polícia em frente à residência de Mrs. Willsson. O chefe deteve-se um instante, com um pé no último degrau, para olhar o crepe negro amarrado à campainha. Depois disse: - Bom, o que é preciso tem de ser feito - e subimos os degraus.

Mrs. Willsson não estava ansiosa por nos ver, mas as pessoas geralmente recebem o chefe de polícia quando ele insiste. Assim aconteceu desta vez. Fomos conduzidos ao pavimento superior, à biblioteca, onde se achava sentada a viúva de Donald Willsson. Trajava-se de preto. Seus olhos azuis estavam gélidos.

Noonan e eu, cada um por sua vez, mastigamos as nossas condolências, e depois ele começou:

- (Queríamos apenas fazer-lhe algumas perguntinhas. Por exemplo, onde é que a senhora foi a noite passada?

Ela me fitou com ar hostil, voltou-se para o chefe, contraiu o cenho, e disse, altaneira:

- Posso saber por que me interrogam deste modo? Enquanto eu procurava lembrar-me de quantas vezes já tinha ouvido aquela pergunta, palavra por palavra e no mesmo tom, o chefe, não lhe dando atenção, prosseguiu amavelmente:

- E há também a história de uma mancha num dos seus sapatos. O direito, ou talvez o esquerdo. De qualquer forma, era um dos dois.

Um músculo começou a contrair-se no lábio superior da mulher.

- Era só isso? - perguntou-me o chefe. Antes que eu pudesse responder, ele deu um estalido com a língua e voltou novamente o rosto prazenteiro para a viúva. - Ia-me esquecendo. Há ainda a história de a senhora saber que seu marido não ia voltar para casa.

Ela ergueu-se, pouco firme, segurando o espaldar da cadeira com a mão branca.

- O senhor decerto me desculpará...

- Perfeitamente. - Noonan fez um amplo gesto com a manopla. - Não queremos incomodá-la. Queremos apenas saber onde a senhora foi, e o caso da mancha no sapato, e como sabia que seu marido não ia voltar. E agora que me lembro há outra coisa: - Que é que o Thaler veio fazer aqui esta manhã.

Mrs. Willsson sentou-se outra vez, muito rígida. O chefe olhou-a. Um sorriso, que procurava ser terno, sulcava-lhe comicamente o rosto gordo em rugas e refegos. Depois de algum tempo os ombros da mulher caíram, o queixo se alongou, as costas se curvaram.

Pus uma cadeira diante dela e sentei-me.

- A senhora tem de nos contar, Mrs. Willsson, - disse eu, com o tom mais cordial que pude. - Essas coisas precisam ser explicadas.

- Pensam que eu tenho algo a ocultar? - perguntou ela em tom de desafio, inteiriçando-se novamente e articulando com muita precisão todas as palavras, salvo os ss, que eram um tanto indistintos. - Eu saí. A mancha era de sangue. Sabia que meu marido estava morto. Thaler veio falar comigo a respeito da morte de meu marido. Acha que já respondi às suas perguntas agora?

- Sabíamos tudo isso - volvi. - Estamos lhe pedindo que o explique.

Levantou-se outra vez, e disse, abespinhada:

- Não gosto dos seus modos. Recuso submeter-me a... Noonan interrompeu:

- Perfeitamente, Mrs. Willsson, mas teremos de lhe pedir que venha conosco ao Hall.

Ela voltou-lhe as costas, respirou fundo e gritou-me:

- Enquanto estávamos esperando Donald aqui, eu recebi um chamado telefônico. Era um homem que não quis dar o nome. Disse que Donald fora à casa de uma mulher chamada Dinah Brand com um cheque de cinco mil dólares. Deu-me o endereço dela. Então eu fui de automóvel e esperei a alguma distância até que Donald saísse. Enquanto estava esperando, avistei Max Thaler, que eu conhecia de vista. Dirigiu-se à casa da mulher, mas não entrou. Afastou-se. Então Donald saiu e desceu a rua. Não me viu. Nem eu queria que me visse. Tencionava tocar para casa - chegar antes dele. Acabava de acionar o motor quando ouvi os tiros, e vi Donald cair. Desci do carro e corri para lá. Estava morto. Fiquei desatinada. Então se aproximou Thaler. Advertiu que, se me encontrassem lá, iam dizer que eu o matara. Fez-me voltar para o carro e vir embora.

Seus olhos estavam úmidos, mas escrutavam-me o rosto através das lágrimas, como se quisesse ver o que eu pensava da história. Não respondi nada. A mulher perguntou:

- Era isso o que queria?

- Praticamente - disse Noonan. Tinha dado uma volta e postara-se a seu lado. - Que disse Thaler hoje?

- Instou comigo para que me calasse. - A sua voz estava agora débil e inexpressiva. - Disse que suspeitariam de um de nós, ou de ambos, se soubessem que estivemos lá, porque Donald tinha sido morto ao sair da casa da mulher depois de ter dado dinheiro a ela.

- De onde vieram os tiros? - perguntou o chefe.

- Não sei. Não vi nada... salvo - quando levantei os olhos - Donald caindo.

- Foi Thaler quem atirou?

- Não - respondeu vivamente. Depois, os olhos e a boca se alargaram. Pôs a mão no peito. - Não sei. Não julguei que fosse, e Thaler disse que não o tinha feito. Não sei onde estava ele. Não sei por que não me ocorreu a idéia que pudesse ter sido Thaler.

- Que acha agora? - perguntou Noonan.

- Podia... podia ter sido ele.

O chefe piscou-me o olho - uma piscadela atlética, em que todos os músculos faciais tomavam parte - e retrocedeu mais um pouco:

- A senhora não sabia quem lhe tinha telefonado?

- Não me quis dizer o nome.

- Não reconheceu a voz?

- Não.

- Que espécie de voz era?

- O homem falava em voz baixa, como temeroso de que o ouvissem. Eu tinha dificuldade em entender.

- Falava num murmúrio? - A boca do chefe de polícia ficou aberta depois de emitir o último som; os olhos esverdeados cintilavam avidamente no rosto gordo.

- Sim, um murmúrio rouco.

O delegado fechou de estalo a boca, depois abriu-a de novo para dizer em tom suasório:

- A senhora conhece a voz de Thaler...

A mulher teve um sobressalto, e virou para mim os olhos esbugalhados.

- Era ele - exclamou. - Era ele.

 

Robert Albury, o jovem auxiliar de caixa do First National Bank, estava sentado no vestíbulo quando voltei ao Great Western Hotel. Subimos ao meu quarto, mandamos trazer água com gelo, utilizamos os pedaços de gelo para refrigerar uma mistura de Scotch, suco de limão e xarope de romã, e depois descemos à sala de jantar.

- Agora fale-me da mulher - disse eu - enquanto tomávamos a sopa.

- Já a viu? - perguntou-me.

- Ainda não.

- Mas ouviu alguma coisa a seu respeito?

- Unicamente que ela é perita no seu gênero de ocupação.

- De fato - concordou. - Suponho que você há de encontrá-la. Ficará decepcionado, a princípio. Depois, sem saber como ou quando isto se deu, verificará que esqueceu a sua decepção e se surpreenderá contando-lhe a história da sua vida, e todos os seus anseios e esperanças. - Riu com infantil acanhamento. - Então você estará agarrado, irremissivelmente.

- Obrigado pelo aviso. De onde lhe veio a informação? Sorriu contrafeito por cima da colher e confessou:

- Comprei-a.

- Suponho então que deve ter-lhe custado bastante. Ouvi dizer que ela gosta de plata.

- É louca por dinheiro, sem dúvida alguma; mas, de certo modo, a gente não se importa. Ela é tão completamente mercenária, tão francamente gananciosa, que isso não tem nada de desagradável. Compreenderá o que eu quero dizer quando travar conhecimento com ela.

- Talvez. Não se importa de me revelar como veio a deixá-la?

- Não, não me importo. Gastei tudo, aí está.

- Tão fria assim?

Albury ruborizou-se um pouco, e cabeceou afirmativamente.

- Você parece ter-se conformado.

- Não havia outro remédio. - Acentuou-se a vermelhidão do rosto, e ele prosseguiu com hesitação. - Acontece que eu ainda lhe fiquei devendo obrigações por isso. Ela... Vou-lhe contar. Quero que a veja sob este outro aspecto. Eu tinha algum dinheiro. Depois de tê-lo dissipado... Deve lembrar-se de que eu era moço e estava embeiçado. Acabado o meu dinheiro, havia o do banco. Eu tinha... A você não lhe interessa saber se eu cheguei a fazer alguma coisa, ou se estava simplesmente pensando nisso. De qualquer modo, ela descobriu. Eu nunca pude esconder-lhe nada. E isso foi o fim.

- Ela rompeu com você?

- Sim, graças a Deus! Se não fosse ela, você a estas horas poderia andar à minha procura... por desfalque. Devo esta obrigação a ela! - Enrugou a testa, ansioso. - Você não vai propalar isto... sabe o que quero dizer. Mas eu queria mostrar-lhe que ela também tem o seu lado bom. Há de ouvir falar bastante dele.

- Talvez tenha. Ou talvez ela simplesmente achasse que o lucro não compensaria o risco de meter-se em apuros.

O rapaz refletiu, depois sacudiu a cabeça.

- Em parte poderia ser esse o motivo, mas não inteiramente.

- Segundo depreendi, tudo com ela é à base de dinheiro-à-vista.

- E quanto a Dan Rolff? - perguntou Albury.

- Quem é esse?

- Julgam ser irmão, meio-irmão, ou coisa que o valha. Não é. É um molambo - tuberculoso. Mora com ela. A mulher sustenta-o. Não está apaixonada por ele, nem coisa parecida. Simplesmente encontrou-o em alguma parte, e trouxe-o consigo.

- Algo mais?

- Há ainda aquele radical com quem ela costumava andar. Não é provável que tenha conseguido muito dinheiro dele.

- Que radical?

- Um que veio no tempo da greve - Quint, é o nome do sujeito.

- Então esse também estava na lista?

- Supõe-se que seja essa a razão de ter ele ficado aqui depois de terminada a greve.

- De modo que ainda está na lista?

- Não. Ela me disse que o temia. O sujeito ameaçou matá-la.

- Ao que parece, ela teve a todos enrolados na teia, em alguma época.

- Todos quantos quis - disse Albury, muito a sério.

- Donald Willsson foi o último? - perguntei.

- Não sei - respondeu. - Nunca tinha ouvido dizer nada sobre eles, e nunca vi nada. O chefe de polícia nos fez procurar algum cheque que ele pudesse ter emitido a seu favor anteriormente, mas não encontramos. Ninguém se lembra de ter visto nenhum.

- Qual foi o último freguês, que você saiba?

- Ultimamente eu a tenho visto muitas vezes com um tipo chamado Thaler - que dirige algumas casas de jogo aqui. Tem o apelido de Cochicho. Provavelmente ouviu falar nele.

 

Às oito e meia, separei-me do jovem Albury e me dirigi ao Hotel dos Mineiros, em Forest Street. A meia quadra do hotel, encontrei-me com Bill Quint.

- Olá! - cumprimentei. - Vinha à sua procura. Deteve-se diante de mim, olhou-me de alto a baixo, e rosnou:

- Então você é um investigador.

- Que peso - lamentei-me. - Vim até aqui só para assuntar e encontro-o de sobreaviso.

- Que deseja saber agora?

- É a respeito de Donald Willsson. Conhecia-o não?

- Conhecia.

- Muito?

- Não.

- Que pensava dele? Fez um muxoxo, e disse:

- Um liberal nojento.

- Conhece Dinah Brand? - perguntei.

- Conheço. - O seu pescoço ficou mais curto e mais grosso que antes.

- Acha que ela matou Willsson?

- Claro. Ainda duvida?

- Então não foi você?

- Com os diabos, foi sim - retrucou. - Fomos nós dois juntos. Tem mais alguma pergunta a fazer?

- Tenho, mas não quero perder tempo. Você só diria mentiras.

Voltei à Broadway, encontrei um táxi, e pedi ao motorista que me levasse a Hurricane Street 1232.

 

                                     Hurricane Street

ENCAMINHEI-ME a um chalé cinzento. Quando toquei a campainha, veio abrir um homem magro, de rosto cansado e pálido, exceto duas manchas vermelhas do tamanho de moedas de meio dólar no alto das faces. Este, pensei, devia ser o tísico Dan Rolff.

- Gostaria de falar com Miss Brand - disse-lhe.

- Que nome devo anunciar? - Sua voz era a de um homem educado e doente.

- O nome não teria nenhuma significação para ela. Quero falar-lhe a respeito da morte de Willsson.

Ele fixou calmamente em mim os olhos escuros e fatigados, e disse:

- Ah, sim?

- Sou da Agência Continental de Detetives, seção de San Francisco. Estamos interessados no caso.

- É muita gentileza dos senhores - volveu ironicamente. - Pode entrar.

Fui conduzido a um aposento do rés-do-chão, onde uma mulher moça se achava sentada a uma mesa juncada de papéis. Alguns dos papéis eram boletins financeiros, previsões da Bolsa de Valores e títulos. Via-se também um programa de corridas.

A sala apresentava um aspecto desordenado. Havia demasiados móveis, e nenhum parecia estar no devido lugar.

- Dinah - disse o tísico, apresentando-me, - este cavalheiro veio de San Francisco a mandado da Agência Continental de Detetives para investigar a morte de Mr. Donald Willsson.

A mulher levantou-se, arredou com o pé alguns jornais que lhe embaraçavam o caminho, e aproximou-se com a mão estendida.

Excedia-me em altura por uma ou duas polegadas, medindo, portanto, cerca de cinco pés e oito. Tinha ombros largos, peito cheio, quadris arredondados e pernas grandes, musculosas. A mão que me estendeu era macia, cálida e vigorosa. O rosto era o de uma mulher de vinte e cinco anos, mostrando já sinais de desgaste. Pequenos vincos lhe cortavam os cantos da boca larga e carnuda. Rugas, menos pronunciadas, começavam a formar pés-de-galinha em torno dos olhos grandes, azuis, pestanudos e um pouco injetados.

Seus cabelos grossos, castanhos, estavam pedindo cabeleireiro; o risco era irregular. Num dos lados do lábio superior havia mais batom do que no outro. O vestido, de uma cor de vinho particularmente inapropriada, estava aberto aqui e ali a um dos lados, nos pontos onde ela se esquecera de apertar os colchetes, ou estes se haviam separado. Havia um fio corrido ao longo da meia esquerda.

Tal era a Dinah Brand que escolhia à vontade entre os homens de Personville, segundo me tinham informado.

- Naturalmente foi o pai dele que o mandou, - disse a moça, enquanto tirava um par de chinelos de couro de lagarto e uma xícara com o pires de cima de uma cadeira, para me dar lugar.

Sua voz era suave, indolente. Respondi-lhe a verdade:

- Donald Willsson me chamou. Eu estava esperando para falar com ele, quando foi morto.

- Não precisa ir embora, Dan - disse ela a Rolff.

Este voltou à sala. Dinah Brand tomou novamente o seu lugar diante da mesa. O homem sentou-se no lado oposto e apoiou o rosto fino sobre a mão descarnada, olhando-me com indiferença.

A moça contraiu as sobrancelhas, formando duas rugas entre elas, e perguntou:

- Quer dizer que Donald sabia que alguém tencionava matá-lo?

- Não sei. Ele não explicou o que queria. Talvez pretendesse apenas que o ajudássemos na campanha de reforma.

- Mas o senhor...?

- Não tem graça nenhuma ser detetive quando outra pessoa nos rouba o papel e faz todas as perguntas - reclamei.

- Gosto de saber o que se está passando - disse ela, e uma risadinha gorgolejou-lhe no fundo da garganta.

- O mesmo se dá comigo. Por exemplo, gostaria de saber por que é que a senhora fez visar o cheque.

Com um ar muito despreocupado, Dan Rolff remexeu-se na cadeira, inclinou-se para trás e escondeu as mãos magras debaixo da borda da mesa.

- Então descobriu isso? - perguntou Dinah Brand. Cruzou a perna esquerda sobre a direita e baixou a vista. Seus olhos se fixaram no fio corrido da meia. - Por Deus, vou deixar de usá-las!.- queixou-se. - Vou andar sem meias. Paguei cinco dólares por estas, ontem. Veja agora as malditas. Todos, todos os dias - um fio corrido!

- Não é segredo - respondi. - Refiro-me ao cheque, não às meias. Está em poder de Noonan.

A moça deu uma olhadela a Rolff, que cessou de me observar o tempo suficiente para inclinar a cabeça.

- Se quisesse falar o meu idioma - fez ela em voz arrastada, cravando em mim os olhos entreabertos - eu talvez pudesse prestar-lhe algum auxílio.

- Talvez, se eu soubesse de que se trata.

- Dinheiro - explicou - Quanto mais, melhor. Gosto dele.

Tornei-me sentencioso:

- Dinheiro poupado é dinheiro ganho. Posso poupar-lhe dinheiro e tribulações.

- Isso para mim não tem significação alguma, - volveu - embora pareça ser dito a sério.

- A polícia ainda não lhe fez nenhuma pergunta sobre o cheque?

Sacudiu a cabeça negativamente. Eu prossegui:

- Noonan está pensando em inculpá-la, bem como ao Cochicho.

- Não me assuste - balbuciou. - Eu não passo de uma criança.

- Noonan apurou que Thaler sabia do cheque. Averiguou que Thaler veio cá durante a visita de Willsson, mas não entrou. Sabe que Thaler estava pela vizinhança quando Willsson foi morto. Sabe que Thaler e uma mulher foram vistos inclinando-se sobre o cadáver.

A moça apanhou da mesa um lápis e cocou pensativamente a face. O lápis desenhava pequenos riscos pretos sobre o ruge.

Os olhos de Rolff tinham perdido a expressão de fadiga. Estavam brilhantes, febris, pregados nos meus. Inclinou-se para a frente, mas continuou com as mãos escondidas embaixo da mesa.

- Essas coisas - interveio - interessam a Thaler, e não a Miss Brand.

- Thaler não é um estranho para Miss Brand, - retruquei. - Willsson trouxe a esta casa um cheque de cinco mil dólares, e foi morto ao sair. Assim sendo, Miss Brand poderia ter encontrado dificuldade em cobrá-lo... se Willsson não tivesse tido a cautela de o avisar.

- Meu Deus! - protestou a mulher. - Se eu tencionasse matá-lo, tê-lo-ia feito aqui, onde ninguém visse, ou teria esperado que ele se afastasse mais da casa. Por que espécie de idiota o senhor me toma?

- Não tenho certeza de que a senhora o haja matado - volvi - mas estou certo de que o chefe de polícia pretende lançar-lhe a culpa.

- Aonde é que o senhor quer chegar?

- À descoberta do assassino. Não de quem podia tê-lo morto, mas de quem realmente o matou.

- Eu poderia prestar-lhe alguma ajuda - disse ela - mas seria preciso que tivesse algo a ganhar nisso.

- Segurança - lembrei-lhe, mas Dinah Brand abanou a cabeça.

- Eu quero dizer que isso teria de me dar lucro pecuniário. A informação lhe seria de algum valor, e o senhor deve pagá-la, ainda que não seja uma fortuna.

- Não pode ser - retorqui, sorrindo. - Esqueça-se da nota e seja caridosa. Faça de conta que eu sou Bill Quint.

Dan Rolff pulou da cadeira, com os lábios tão brancos como o resto do semblante. Sentou-se novamente quando viu a mulher rir - uma risada indolente, bem-humorada.

- Ele pensa que eu não lucrei nada com Bill, Dan. - Inclinou-se para mim e pôs-me a mão no joelho. - Suponhamos que o senhor soubesse com bastante antecipação que os empregados de uma companhia estavam para se declarar em greve, e quando, e soubesse também com bastante antecipação quando iam terminas: a greve. Não podia levar essa informação e dinheiro à Bolsa de Valores, e tirar algum proveito, especulando com os títulos da companhia? Claro que sim! - arrematou, com expressão de triunfo. - Portanto, não pense que Bill Quint não pagou a seu modo.

- A senhora está mal acostumada - disse eu.

- Por Deus, de que serve ser tão seguro? - perguntou. - Não é a mesma coisa que se tivesse de sair do seu bolso. O senhor tem uma ajuda de custas, não tem?

Nada respondi. Ela franziu a testa, fitou-me, baixou os olhos sobre o fio corrido da meia, volveu-os para Rolff e disse-lhe:

- Talvez ele fique mais camarada se beber alguma coisa. O tísico ergueu-se e saiu da sala.

Dinah Brand fez um trejeito de amuo, cutucou-me a perna com a ponta do pé, e disse:

- Não é tanto pelo dinheiro. É por princípio. Se uma pequena tem uma coisa de valor para alguém, é uma boba se não cobrar.

Mostrei os dentes.

- Por que não quer ser bonzinho? - suplicou.

Dan Rolff entrou com um sifão, uma garrafa de gim, limões, e uma malga de gelo partido. Tomamos um drinque. O tísico retirou-se. A mulher e eu discutimos a questão do dinheiro enquanto tomávamos novos drinques. Eu procurava desviar a conversa para Thaler e Willsson. Ela teimava em falar da recompensa que merecia. Continuamos desse modo até esvaziar a garrafa. Meu relógio indicava uma e quinze.

Ela mastigou um pedaço de casca de limão e disse, pela trigésima ou quadragésima vez:

- Não vai sair do seu bolso. Que lhe importa?

- Não é pelo dinheiro - redargüi - é por princípio.

Fez-me uma careta e pôs o copo onde supunha que estava a mesa. Errou por oito polegadas. Não me lembro se o copo quebrou ao bater no chão, ou o que foi que lhe aconteceu. Apenas me lembro de que isso me deu coragem.

- Outra coisa - disse eu, enveredando por nova linha de argumentação. - Talvez não precise do que a senhora possa revelar-me. Posso prescindir das suas informações.

- Seria muito bom, mas não esqueça que fui eu a última pessoa que o viu ainda com vida, além de quem o matou.

- Engana-se - respondi. - A esposa viu-o sair, afastar-se e cair.

- A esposa!

- Sim. Estava dentro dum carro estacionado na rua.

- Como é que ela sabia que o marido estava aqui?

- Diz que Thaler a avisou pelo telefone de que o marido tinha vindo para cá trazendo o cheque.

- Está brincando comigo - disse a mulher. - Max não podia saber.

- Estou lhe contando o que Mrs. Willsson nos disse, a Noonan e a mim.

A pequena cuspiu no soalho o que restava da casca de limão, desarrumou ainda mais os cabelos passando os dedos entre eles, enxugou a boca com as costas da mão, e bateu na mesa.

- Perfeitamente, Senhor Sabe-Tudo - disse. - Vou ajudá-lo. Não pense que não lhe vai custar nada; hei de receber o que é meu antes de termos terminado. Acha que não? - inquiriu desafiadora, olhando-me como se eu estivesse a uma quadra de distância.

Não era o momento adequado para ressuscitar o assunto do dinheiro, de modo que respondi: "Assim o espero." Creio tê-lo dito três ou quatro vezes, muito gravemente.

- Pode ficar certo. Agora escute. Você está bêbedo, e eu também, o bastante para lhe dizer tudo o que quiser saber. Eu sou assim. Se gosto duma pessoa, conto-lhe tudo o que deseja saber. Pergunte-me só. Vamos, pergunte.

Obedeci:

- Para que é que Willsson lhe deu cinco mil dólares?

- Por brincadeira. - Inclinou-se para trás e riu. Depois: - Escute. Ele andava à procura de fatos escandalosos. Eu tinha o que ele queria; uns affidavits e outras coisas que eu pensei que algum dia pudessem ser de utilidade. Sou uma pequena que gosta de embolsar alguns cobres quando pode. De modo que pus de lado essas coisas. Quando Donald começou a investigar transações suspeitas, fiz-lhe saber que tinha em meu poder aqueles papéis, e que estavam à venda. Deixei-o olhar o tempo suficiente para verificar que eram bons. E eram. Depois discutimos o preço. Ele não era tão sovina como você (nunca ninguém o foi), mas era um pouco seguro. De modo que o negócio esteve pendente até ontem.

- Então eu apertei o homem; telefonei-lhe e disse que tinha outro freguês, e que, se quisesse ficar com os papéis, devia aparecer aquela noite, com cinco mil dólares em dinheiro, ou com um cheque visado. Era mentira, mas ele não era muito esperto, e caiu.

- Por que às dez horas? - perguntei.

- Por que não? É uma hora tão boa como outra qualquer. Num negócio desses, o principal é dar um prazo limitado. Quer saber agora por que tinha de ser dinheiro sonante ou um cheque visado? Perfeitamente, vou-lhe dizer. Vou-lhe dizer tudo o que quiser saber. Aí está a espécie de pequena que eu sou. Sempre fui assim.

Continuou por uns cinco minutos, explicando minuciosamente a espécie de pequena que ela era, e sempre fora, e por quê. Eu ia respondendo: "Sim; sim", até encontrar oportunidade de intercalar:

- Perfeitamente; agora, por que motivo tinha de ser um cheque visado?

Fechou um olho, sacudiu-me o polegar, e disse:

- Para que ele não pudesse suspender o pagamento. Porque não poderia utilizar-se dos documentos que eu lhe vendi. Eram bons, sem dúvida. Bons demais. Teriam mandado o velho para a cadeia, junto com os outros. Teriam comprometido o Papai Elihu, mais que a qualquer outro.

Ri com ela, enquanto procurava combater o efeito do gim que eu havia emborcado.

- A quem mais comprometeriam? - perguntei.

- O bando todo. - Agitou a mão. - Max, Lew Yard, Pete, Noonan e Elihu Willsson: o bando todo.

- Max Thaler sabia o que você estava fazendo?

- Não, naturalmente. Ninguém sabia, a não ser Donald Willsson.

- Tem certeza?

- Claro que tenho. Pensa que eu andava me gabando a todo o mundo, antes do tempo?

- Quem julga você que o saiba agora?

- Não me interessa. Era só uma brincadeira. Ele não poderia servir-se dos papéis.

- Pensa que os camaradas, cujos segredos você vendeu, vão achar graça? Noonan está procurando pôr a culpa em você e Thaler. Isso quer dizer que encontrou os papéis no bolso de Donald Willsson. Todos julgavam que o velho Elihu se utilizava do filho para os combater, não é?

- Sim, senhor - retorquiu - e eu sou uma das que pensa o mesmo.

- Provavelmente se engana, mas isso não tem importância. Se Noonan encontrou no bolso de Donald Willsson as coisas que você lhe vendeu, e soube quem lhes tinha vendido, por que não chegaria à conclusão de que você e seu amigo Thaler se haviam bandeado para o velho Elihu?

- Ele pode muito bem ver que o velho seria mais prejudicado do que qualquer outro.

- Que papéis eram esses que você vendeu?

- Construíram um novo City Hall há três anos - explicou - e nenhum deles perdeu dinheiro no negócio. Se Noonan tem em seu poder os papéis, logo há de verificar que são tão comprometedores para o velho Elihu como para qualquer outro, ou mais ainda.

- Isso não faz nenhuma diferença. Ficará convencido de que o velho encontrou uma escapatória. Ouça o que lhe digo, companheira; Noonan e seus amigos pensam que você, Thaler e Elihu os estão traindo.

- Pouco me importa o que pensarem - retorquiu obstinadamente. - Foi só uma brincadeira. Essa era a minha intenção. Nada mais.

- Muito bem - grunhi. - Você pode ir para a forca de consciência limpa. Viu Thaler depois do crime?

- Não, mas Max não o matou, se é isso o que você está pensando, embora estivesse ali perto.

- Por quê?

- Por muitas razões. Primeiro, Max não o teria feito pessoalmente. Mandaria alguém, e estaria muito longe, com um álibi que ninguém seria capaz de anular. Segundo, Max usa um 38, e qualquer pessoa que ele mandasse para executar a tarefa levaria um revólver desse calibre, ou maior. Que espécie de pistoleiro ia usar um 32?

- Então quem foi?

- Já lhe contei tudo o que sei - retrucou. - Falei até demais.

Ergui-me e disse:

- Não, você revelou apenas o bastante.

- Quer dizer que julga ter descoberto quem o matou?

- Sim, embora haja uma ou duas coisas que eu tenho de verificar antes de efetuar a prisão.

- Quem? Quem? - Levantou-se, quase curada repentinamente da embriaguez, puxando-me pela lapela do casaco. - Diga-me quem foi.

- Agora não.

- Seja camarada.

- Agora não.

Soltou-me, pôs as mãos atrás das costas, e riu-me na cara.

- Muito bem. Guarde o segredo para si - e procure adivinhar que parte do que eu lhe contei é verdade.

Respondi:

- De qualquer forma, obrigado por essa parte de verdade, e pelo gim. E se tem algum interesse por Max Thaler, avise-o de que Noonan está procurando deitar-lhe a unha.

 

                         O Velho Elihu Fala Direito

ERAM quase duas e meia da madrugada quando cheguei ao hotel. Juntamente com a chave, o porteiro da noite me entregou um memorando em que me pediam que chamasse Poplar 605. Eu conhecia o número. Era de Elihu Willsson.

- Quando chegou isto? - perguntei ao porteiro.

- Pouco depois de uma hora.

Parecia urgente. Fui a uma cabina telefônica e disquei para a casa do velho. Foi o secretário quem atendeu, pedindo-me que fosse lá imediatamente. Prometi apressar-me, pedi ao porteiro que me arranjasse um táxi, e subi ao quarto para tomar um trago de Scotch.

Preferiria estar inteiramente lúcido, mas não estava. Se a noite ainda me reservava mais trabalho, não queria enfrentá-lo com álcool atuando dentro de mim. O gole reanimou-me bastante. Passei mais algum King George para dentro dum frasco, meti-o no bolso, e desci para tomar o táxi.

A casa de Elihu Willsson estava iluminada de alto a baixo. O secretário abriu a porta antes que eu pusesse o dedo no botão da campainha. Seu corpo magro tremia dentro do pijama azul-pálido e do roupão de banho azul-escuro. O rosto afilado refletia grande excitação.

- Depressa! - disse. - Mr. Willsson está esperando. E, por favor, procure convencê-lo a nos deixar remover o cadáver, sim?

Prometi, e segui-o ao quarto do velho.

Elihu achava-se deitado como da outra vez, mas agora se via sobre as cobertas uma pistola automática, perto de uma das suas mãos rosadas.

Assim que me viu, levantou a cabeça dos travesseiros, sentou-se direito na cama e rosnou:

- Você terá tanta fibra como parece?

A cara tinha um tom vermelho-escuro doentio. Os olhos já não estavam eram embaciados, mas duros e brilhantes.

Deixei-o esperar pela resposta enquanto olhava o corpo caído entre a porta e o leito.

Um homem baixo, atarracado, vestido de marrom, jazia de costas no chão com os olhos arregalados para o teto sob a pala do boné cinzento. Um pedaço do maxilar fora quebrado. O queixo estava erguido, mostrando o lugar onde outro projétil atravessara a gravata e o colarinho, e abrira um orifício no pescoço. Um dos braços estava dobrado debaixo do corpo. A mão visível segurava um cacete do tamanho de uma garrafa de leite. Havia muito sangue.

Ergui os olhos daquilo e pousei-os no velho. Seu sorriso era maligno e estúpido.

- Você tem língua - disse ele - isso eu sei. É agressivo e desbocado. Mas tem alguma coisa mais? Terá tanta fibra como aparenta? Ou é só prosa?

Era inútil tentar acomodar-me ao velho. Fechei a carranca e lembrei-lhe:

- Não lhe adverti que não me incomodasse enquanto não estivesse disposto a falar direito, para variar?

- Sim, meu rapaz. - Sua voz tinha algo de infantilmente alvissareiro. - E vou falar-lhe direito. Preciso de um homem para me limpar este chiqueiro desta Poisonville, para tocar daqui os ratos, grandes e pequenos. É trabalho para um homem. Você é homem?

- Para que poetizar a história? - grunhi. - Se tem necessidade dos meus serviços para algum trabalho honesto, e está pronto a pagar um preço decente, talvez me encarregue dele. Mas essas bobagens de ratos e chiqueiros não têm nenhum sentido para mim.

- Perfeitamente. Quero que livrem Personville dos bandidos e tratantes. Assim está bastante claro?

- Você não o queria esta manhã - retruquei. - Por que quer agora?

A explicação foi longa, ímpia e proferida em voz estrondosa. Na essência, consistia no seguinte: ele construíra Personville com as próprias mãos, tijolo por tijolo, e tencionava conservá-la para si ou riscá-la do mapa. Ninguém podia ameaçá-lo na sua própria cidade, fosse lá quem fosse. Tinha-os deixado em paz, mas quando se metiam a ensinar-lhe, a ele, Elihu Willsson, o que devia fazer e o que não podia fazer, havia de mostrar-lhes com quem estavam tratando. Arrematou o discurso apontando para o corpo e fanfarronando:

- Isso lhes mostrará que o velho ainda tem ferrão.

Eu quisera não ter bebido. A sua parlapatice me desorientava. Não podia atinar com o que havia no fundo daquilo.

- Foram os seus parceiros que o mandaram? - perguntei, sacudindo a cabeça na direção do corpo.

- Eu só lhe falei com isto - respondeu, acariciando a automática sobre as cobertas - mas calculo que foram.

- Como se deu o fato?

- Muito simplesmente. Ouvi a porta abrir-se, acendi a luz, e lá estava ele; fiz fogo, e lá ficou ele.

- A que horas?

- Cerca de uma hora.

- E deixou-o ficar estendido ali todo esse tempo?

- Deixei. - O velho riu ferozmente e recomeçou a bravatear:

- A vista dum homem morto lhe revolta o estômago? Ou é do espírito dele que você tem medo?

Ri-lhe nas barbas. Agora compreendia. O velho achava-se transido de pavor. Era medo o que havia no fundo da sua arrogância. Esse o motivo das fanfarronadas, e de não permitir que levassem o cadáver. Queria-o ali, a fim de olhar, de afugentar o terror, como prova visível da sua capacidade para se defender. Percebi a minha posição.

- Quer realmente que desinfete a cidade? - perguntei.

- Eu disse que queria, e quero.

- Será preciso que eu tenha carta branca - não peça favores a ninguém - possa executar o trabalho como me aprouver. E será preciso um pagamento adiantado de dez mil dólares.

- Dez mil dólares! Por que diabo eu havia de dar esse dinheiro a um homem que nunca vi mais gordo? Um homem que até agora, que eu saiba, ainda não fez senão tagarelar?

- Não seja tolo. Quando digo eu, estou-me referindo à Continental. Você conhece os meus chefes.

- Sim. E eles me conhecem. E devem saber que eu sou capaz de...

- O caso não é esse. Os homens que você quer aniquilar eram seus amigos ontem. Talvez tornem a ser amigos, daqui a uma semana. Isso não me interessa. Mas eu não vou fazer política para você. Não vou alugar os meus serviços para o ajudar a impor disciplina entre os seus parceiros - e depois ser dispensado. Se quer que lhe faça o trabalho, terá de desembolsar o bastante para pas;ar o trabalho completo. Tudo o que sobrar lhe será devolvido. Mas terá de aceitar um serviço completo, ou nada. Assim é que tem de ser. É pegar ou largar.

- Não quero, com um milhão de diabos! - berrou ele. Esperou até que eu estivesse na metade da escada, antes de me chamar novamente.

- Estou velho - resmungou. - Se tivesse dez anos menos... - Fitou-me enfurecido e a custo fechou a boca. - Vou-lhe dar o maldito cheque.

- E autorização para trabalhar a meu modo?

- Sim.

- Vamos tratar disso agora. Onde está o seu secretário? Willsson apertou um botão que estava sobre a mesa de cabeceira e o secretário surgiu de um canto qualquer onde estava escondido. Eu disse:

- Mr. Willsson quer emitir um cheque de dez mil dólares a favor da Agência Continental de Detetives, e escrever uma carta à Agência - seção de San Francisco - autorizando-a a empregar os dez mil dólares na investigação do crime e da corrupção política em Personville. Na carta deve constar explicitamente que a Agência conduzirá a investigação da maneira que lhe parecer mais adequada.

O secretário olhou interrogativamente para o velho, que franziu o sobrolho e inclinou a cabeça.

- Mas antes - disse eu ao secretário, que deslizava em direção à porta - é bom avisar à polícia que temos aqui um ladrão morto. Depois chame o médico de Mr. Willsson.

O velho declarou que não queria saber de médico.

- Você vai levar uma boa agulhada no braço para poder dormir - prometi-lhe, passando por cima do cadáver a fim de tirar o revólver preto de cima da cama. - Vou ficar aqui esta noite, e passaremos a maior parte do dia de amanhã esmiuçando os negócios de Personville.

O velho estava cansado. Quando, de um longo fôlego e com muitas imprecações, me disse o que pensava da minha imprudência ao decidir o que mais lhe convinha, a sua voz mal chegou a vibrar nas vidraças.

Tirei o boné da cabeça do morto para melhor lhe observar as feições. Estas não me revelaram nada. Recoloquei o boné.

Quando me endireitei, o velho perguntou, em tom mais moderado:

- Conseguiu alguma coisa na sua busca ao assassino de Donald?

- Penso que sim. Mais um dia, e deverá estar terminada.

- Quem? - perguntou.

O secretário entrou com a carta e o cheque. Dei-os ao velho, em lugar da resposta à sua pergunta. Ele apôs uma assinatura trêmula a cada um, e, quando a polícia chegou, já os tinha dobrado e metido no bolso.

O primeiro policial a entrar no quarto foi o chefe em pessoa, o gordo Noonan. Fez um aceno amistoso a Willsson, apertou-me a mão, e pousou os olhos esverdeados e cintilantes no cadáver.

- Bem, bem - disse. - Bom serviço, quem quer que o tenha feito. Yakima Shorty. E olhem só a borracha que ele tem na mão! - Com um pontapé, fez saltar o cacete da mão do cadáver. - Bastante grande para afundar um couraçado. Foi você que o derrubou? - inquiriu-me.

- Mr. Willsson.

- Bem, foi ótimo - tornou, felicitando o velho. - Poupou um mundo se incômodos a muita gente, inclusive a mim. Carreguem com ele, rapazes - disse aos quatro homens que o seguiam.

Os dois policiais uniformizados levantaram Yakima Shorty pelas pernas e pelas axilas, e levaram-no para fora, enquanto um dos outros apanhava o cacete e uma lanterna elétrica que se achava oculta debaixo do corpo.

- Se todos fizessem o mesmo com outros gatunos, seria ótimo - prosseguiu tagarelando o chefe. Sacou três charutos dum bolso, atirou um em cima da cama, estendeu-me outro, e pôs o terceiro na boca. - Eu estava justamente pensando onde poderia encontrá-lo - disse-me, enquanto acendíamos os charutos. - Tenho um servicinho a fazer e achei que você gostaria de tomar parte. Por esse motivo é que eu estava acordado quando recebemos o aviso. - Aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou: - Vamos prender o Cochicho. Quer ir conosco?

- Quero.

- Foi o que eu pensei. Olá, doutor!

Apertou a mão a um homem que acabava de entrar, um homenzinho rechonchudo, de rosto oval fatigado e olhos cor de cinza ainda sonolentos.

O doutor dirigiu-se à cama, onde um dos subordinados de Noonan interrogava Willsson a respeito do ocorrido. Segui o secretário ao corredor e perguntei-lhe:

- Outros homens na casa além do senhor?

- Sim; o chofer e o cozinheiro chinês.

- Mande o chofer ficar esta noite no quarto do velho. Vou sair com Noonan. Voltarei logo que puder. Acho que não vai haver mais barulho aqui, mas, suceda o que suceder, não deixe o velho sozinho. E não o deixe a sós com Noonan, ou qualquer dos acólitos de Noonan.

O secretário escancarou a boca e os olhos.

- A que horas o senhor se despediu de Donald Willsson a noite passada? - perguntei.

- Quer dizer a penúltima noite, em que ele foi assassinado.

- Sim.

- Às nove e meia em ponto.

- Esteve com ele desde as cinco até então?

- Desde as cinco e um quarto. Examinamos alguns balancetes e coisas assim, no escritório dele, até às oito horas. Depois fomos para a Bayard e terminamos o trabalho enquanto jantávamos. Foi-se embora às nove e meia, dizendo que tinha um compromisso.

- Que mais disse ele sobre esse assunto?

- Nada mais.

- Não lhe deu nenhuma indicação a respeito do lugar aonde ia, ou da pessoa com quem ia encontrar-se?

- Disse apenas que tinha um encontro.

- E o senhor não sabia nada a esse respeito?

- Não. Por quê? Pensou que eu sabia?

- Pensei que ele podia ter-lhe dito alguma coisa. Tornei aos acontecimentos da noite: - Que visitas recebeu Willsson hoje, sem contar a do homem que ele matou?

- Tem de me perdoar - fez o secretário, com um sorriso de desculpa - mas eu não posso dizer-lhe isso sem permissão de Mr. Willsson. Sinto muito.

- Não esteve aqui algum dos potentados locais? Digamos Lew Yard, ou...

O secretário sacudiu a cabeça, repetindo:

- Sinto muito.

- Não vamos brigar por causa disto - respondi, desistindo e caminhando para a porta do quarto.

O médico saiu, abotoando o sobretudo.

- Agora há de dormir - disse apressadamente. - Alguém deve ficar junto dele. Voltarei de manhã.

Desceu correndo as escadas.

Entrei no quarto. O chefe e o homem que interrogara Willsson estavam parados ao pé da cama. O chefe sorriu como se tivesse prazer em me ver. O outro fechou a cara. Willsson estava deitado de costas, de olhos pregados no teto.

- Parece que aqui não temos mais nada que fazer - disse Noonan. - Que tal se fôssemos andando?

Anuí, e dei boa noite ao velho. Ele disse: "Boa noite", sem me olhar. O secretário entrou com o chofer, um rapagão alto e moreno.

O chefe, o outro investigador - um tenente da polícia chamado McGraw - e eu descemos e entramos no automóvel do chefe. McGraw sentou-se ao lado do motorista. O chefe e eu tomamos assento atrás.

- Vamos efetuar a prisão ao amanhecer - explicou Noonan enquanto o carro partia. - O Cochicho tem uma espelunca em King Street. Geralmente deixa o estabelecimento de manhã. Nós podíamos tomar de assalto a baiúca, mas é melhor não nos afobarmos. Liquidaremos o caso quando ele sair.

Perguntei a mim mesmo se o chefe queria dizer que ia liquidar o caso, ou liquidar o indivíduo. Inquiri:

- Conseguiu provas suficientes contra ele?

- Suficientes? - Riu, bem-humorado. - Se o que a mulher de Donald Willsson nos contou não é suficiente para o enforcar, eu sou um batedor de carteiras.

Ocorreram-me algumas boas respostas a isso, mas guardei-as comigo.

 

                                       A Espelunca do Cochicho

NOSSA corrida de automóvel terminou sob um renque de árvores, numa rua escura, não longe do centro da cidade. Saltamos e fomos até a esquina.

Um homem corpulento de paletó cinza e chapéu da mesma cor, puxado para cima dos olhos, veio ao nosso encontro.

- O Cochicho foi avisado - participou ao chefe. - Telefonou a Donohoe dizendo que vai ficar na baiúca. Se o senhor pensa que pode tirá-lo de lá, que experimente, diz ele.

Noonan deu uma risadinha, cocou a orelha, e perguntou jovialmente:

- Quantos você acha que estão lá com ele?

- Uns cinqüenta, decerto.

- Ora, vamos! A estas horas da madrugada não pode haver tantos.

- Como não? - rosnou o homem. - Desde a meia-noite que vêm chegando, um a um.

- É assim? Houve algum erro. Talvez você não devesse deixá-los entrar.

- Talvez - o homenzarrão estava irritado. - Mas eu fiz o que o senhor mandou. O senhor disse para deixar entrar ou sair quem quisesse, mas quando o Cochicho aparecesse...

- Prendê-lo - arrematou o chefe.

- Pois é - concordou o outro, olhando-me furioso.

Outros homens vieram juntar-se a nós, e tivemos um bate-boca. Todos estavam de mau humor, menos o chefe. Este parecia regalar-se com a situação. Eu não compreendia por quê.

O antro do Cochicho era um edifício de tijolos, de três andares, no meio da quadra, entre duas casas de dois pavimentos. O rés-do-chão estava ocupado por uma tabacaria, que servia de entrada e disfarce para a casa de jogo dos andares superiores. Lá dentro, a se confiar na informação do homem corpulento, o Cochicho reunira meia centena de amigos prontos para a briga. Fora, a força de Noonan espalhara-se em torno da casa, na rua fronteira, na viela de trás, e nos tetos adjacentes.

- Bem, rapazes - disse afavelmente o chefe, depois que todos tinham dado a sua opinião - acho que o Cochicho, como nós, não deseja barulho; senão, já teria aberto fogo para poder sair, se é que tem tantos homens consigo, embora eu, por mim, não creia que ele tenha - pelo menos não tantos.

O homenzarrão que nos tinha informado repontou:

- Pois sim que ele não tem.

- De modo que - prosseguiu Noonan - se o Cochicho não quer barulho, talvez se consiga alguma coisa falando com ele. Você, Nick, vá lá e veja se pode convencê-lo a ser razoável.

- Pois sim que eu vou - disse o homenzarrão.

- Fale pelo telefone, então - sugeriu o chefe.

O corpulento Nick rosnou: - Assim, sim - e afastou-se. Ao voltar, parecia plenamente satisfeito.

- Ele disse: "Vá para o inferno" - informou.

- Tragam o resto dos rapazes para cá - disse Noonan alegremente. - Vamos atacar logo que clarear o dia.

O volumoso Nick e eu acompanhamos o chefe enquanto este se assegurava da posição dos seus homens. Não me causaram boa impressão - uma turma reles de olhar esquivo, sem entusiasmo pelo serviço que tinha à sua frente.

O céu ia-se tornando de um cinzento desmaiado. O chefe, Nick e eu paramos à porta de uma funilaria, em diagonal com o nosso objetivo.

O estabelecimento do Cochicho estava escuro, cerradas as janelas dos pavimentes superiores, fechados os postigos das vitrinas e da porta da tabacaria.

- Repugna-me empreender o ataque sem dar uma oportunidade ao Cochicho - disse Noonan. - Não é um mau rapaz. Mas de nada serve procurar falar com ele. Nunca simpatizou muito comigo.

Olhou-me. Fiquei calado.

- Você não quereria fazer uma tentativa? - perguntou.

- Sim, vou experimentar.

- Ótimo. Certamente lhe ficarei agradecido se for. Veja se pode convencê-lo a se entregar sem barulho. Você sabe o que dizer - que é para o próprio bem dele, e essas coisas todas.

- Sim - respondi, e cruzei a rua em direção à tabacaria, tomando o cuidado de balançar as mãos vazias em ambos os lados do corpo.

O dia ainda tardava. A rua estava cor de fumaça. Meus passos ressoavam na calçada.

Parei diante da porta e bati com os nós dos dedos na vidraça, não muito forte. O postigo verde, no interior, fazia do vidro um espelho, por onde vi dois homens moverem-se no lado oposto da rua.

Não ouvi nenhum som. Bati com mais força, depois baixei a mão para sacudir o trinco.

Lá de dentro veio um conselho:

- Arrede daí enquanto pode.

Era uma voz abafada, mas não um sussurro, de modo que, provavelmente, não era a do Cochicho.

- Quero falar com Thaler.

- Vá falar com a bola de graxa que o mandou.

- Eu não venho em nome de Noonan. Thaler está em lugar de onde possa ouvir-me?

Uma pausa. Depois a voz abafada respondeu: "Sim."

- Sou o agente da Continental que avisou a Dinah Brand que Noonan o estava vigiando - disse eu. - Preciso falar uns cinco minutos com você. Nada quero com Noonan, exceto estragar-lhe os planos. Estou só. Se você o quiser largarei o revólver aqui fora. Deixe-me entrar.

Esperei. Tudo dependia de haver a pequena falado na nossa entrevista. Esperei o que me pareceu um longo tempo. A voz abafada tornou a fazer-se ouvir:

- Quando abrirmos, entre depressa. E nada de espertezas.

- Entendido.

Soou o estalido do ferrolho. Atirei-me para dentro ao mesmo tempo que se abria a porta.

Do outro lado da rua, uma dúzia de revólveres começaram a disparar. Estilhaços de vidro voaram da porta e das janelas, tinindo em torno de nós.

Alguém me passou uma rasteira. O medo me deu três cérebros e meia dúzia de olhos. Eu estava numa enrascada. Noonan me pregara uma peça. Aqueles sujeitos não poderiam deixar de pensar que eu estava de combinação com o chefe de polícia.

Fui ao chão, virando-me, a fim de cair voltado para a porta. Já estava de revólver na mão no momento em que meu corpo tocou o assoalho.

No lado fronteiro, o robusto Nick emergia de um portal para atirar com ambas as mãos contra nós.

Firmei o braço no chão. O corpo de Nick avultava do outro lado. Apertei o gatilho. Nick cessou de atirar. Cruzou as pistolas sobre o peito e aluiu na calçada.

Seguraram-me pelos artelhos e puxaram-me para trás. O soalho arranhou-me o queixo. Fechou-se de estalo a porta. Algum jocoso disse:

- Hum-hum, o pessoal não gosta muito de você. Ergui-me e gritei no meio do tumulto:

- Eu nada tenho com essa gente.

O tiroteio esmoreceu, depois cessou. Os postigos da porta e das janelas estavam crivados de buracos cinzentos. Na escuridão, ouviu-se um cochicho rouco:

- Tod, tu e Slats fiquem vigiando aqui embaixo. Os outros podem subir comigo.

Atravessamos uma peça que ficava atrás da tabacaria, percorremos um corredor, subimos uma escada atapetada, e entramos num aposento do segundo andar, onde havia uma mesa verde para o jogo de dados. Era uma sala pequena, sem janelas, e as luzes estavam acesas.

Éramos cinco. Thaler sentou-se e acendeu um cigarro. Moço, moreno e de pequena estatura, com uma cara bonita de cantor de coro, até se reparar melhor nos lábios finos e cruéis. Um rapazola anguloso, louro, de não mais de vinte anos, em tweeds, estirou-se de costas num sofá e pôs-se a soprar fumaça de cigarro para o teto. Outro rapaz, igualmente louro e jovem, mas não tão anguloso, endireitava a gravata encarnada e alisava os cabelos amarelos. Um homem de cara afilada, de trinta anos, quase sem queixo sob a boca larga e mole, caminhava de um lado para outro, com ar aborrecido, trauteando Rosy Cheeks.

Sentei-me numa cadeira a dois ou três pés da de Thaler.

- Até quando Noonan pretende continuar com isso? - perguntou. Na sua voz rouca e sumida não transparecia emoção, mas unicamente certo enfado.

- É você que ele quer pegar desta vez - respondi. - Creio que vai levar a coisa até o fim.

O jogador teve um sorrisinho desdenhoso.

- Devia saber que probabilidades tem com uma acusação dessas contra mim.

- Ele não espera provar nada em juízo - disse eu.

- Não?

- Você deve ser morto ao resistir à voz de prisão, ou procurando fugir. Depois disso, Noonan não terá grande necessidade de provas.

- Está ficando brabo na velhice. - A boca delgada se curvou em outro sorriso. O Cochicho não parecia dar muita importância à ferocidade do chefe de polícia. - Toda vez que me jogar no chão, eu bem o mereço. Que é que ele tem contra você?

- Calcula que eu ainda vou dar o que fazer.

- É pena. Dinah me disse que você é um bom sujeito, só um pouco pão-duro.

- Nós estivemos conversando bastante. Não me quer contar o que sabe da morte de Donald Willsson?

- Foi a mulher dele que o matou.

- Você viu?

- Via-a um segundo depois, com o revólver na mão.

- Isso não nos serve de nada - volvi. - Não sei até que ponto você preparou a sua defesa. Bem ajeitada, poderia fazê-la prevalecer no tribunal, talvez, mas você não vai ter essa oportunidade. Se Noonan o pegar, ha de ser bem morto. Conte-me o que sabe. É só o que me falta para descobrir tudo.

Cochicho deixou cair o cigarro no chão, esmagou-o com o pé, e perguntou:

- Já chegou a esse ponto?

- Conte-me o que sabe, e estou pronto para efetuar a prisão... se puder sair daqui.

Acendeu outro cigarro e inquiriu:

- Mrs. Willsson disse que fui eu quem lhe telefonou?

- Sim - depois de persuadida por Noonan. Agora ela acredita... talvez.

- Você liquidou o Big Nick - disse Thaler. - Vou arriscar. Um homem me telefonou aquela noite. Não o conheço, não sei quem era. Disse que Willsson tinha ido à casa de Dinah com um cheque de cinco pacotes. Que diabo me importava isso? Mas, você vê, era esquisito que um desconhecido viesse avisar-me. De modo que fui. Dan me afastou da porta. Estava certo. Mas ainda assim aquele negócio do telefonema era esquisito como o diabo.

- Subi a rua e me postei num alpendre. Vi o auto de Mrs. Willsson parado na rua, mas não sabia então de quem era, nem que ela estava dentro do carro. Willsson saiu pouco depois e desceu a rua. Não vi quem atirou, mas ouvi os tiros. Então a mulher saltou do carro e saiu correndo na direção do homem. Eu sabia que não tinha sido ela que atirara. Devia ter-me escapulido. Mas aquilo tudo era muito estranho, e assim, quando vi que a mulher era Mrs. Willsson, aproximei-me, procurando averiguar o que acontecera. Foi uma tolice minha, compreende? De modo que tive de arranjar um meio de me salvar, no caso de transpirar alguma coisa. Tratei de reanimar a mulher. Isso foi tudo - palavra.

- Obrigado - disse eu. - Foi para saber isso que eu vim. Agora o problema é sair daqui sem ser chumbado.

- Problema nenhum - garantiu-me Thaler. - Podemos ir à hora que quisermos.

Quero sair agora. Se eu fosse você, também iria. Pode meter Noonan em apuros por esse rebate falso; mas para que arriscar? Ponha-se ao fresco e fique escondido até o meio-dia, que o plano dele fracassará.

Thaler meteu a mão no bolso das calças e tirou um grosso rolo de notas. Separou uma ou duas de cem, algumas de cinqüenta, de vinte, de dez, e estendeu-as ao homem sem queixo, dizendo:

- Compra-nos um passe livre, Jerry, e não dês, a quem quer que seja, mais do que está acostumado a receber.

Jerry apanhou o dinheiro, pegou um chapéu de cima da mesa, e saiu calmamente. Meia hora mais tarde, voltou e devolveu algumas das cédulas a Thaler, dizendo em tom displicente:

- Temos de esperar na cozinha até recebermos o aviso.

Descemos à cozinha. Estava escuro ali. Outros homens vieram reunir-se a nós.

Em breve, algo veio chocar-se contra a porta.

Jerry abriu-a, e descemos ao pátio por três degraus. Era quase dia claro. O nosso grupo se compunha de dez homens.

- Só isso? - perguntei a Thaler. Ele fez que sim.

- Nick disse que vocês eram uns cinqüenta.

- Cinqüenta para enfrentar aqueles pobres-diabos! - tornou Thaler, com desprezo.

Um polícia fardado abriu o portão, murmurando, nervoso:

- Por favor, apressem-se, rapazes.

Eu estava disposto a apressar-me, mas os outros não lhe deram a mínima atenção.

Atravessamos uma viela, um homenzarrão de traje pardo nos fez passar por outro portão, entramos numa casa, saímos na rua próxima, e subimos a um automóvel preto parado junto ao meio-fio.

Um dos rapazolas louros tomou a direção. Sabia o que era velocidade.

Eu disse que queria descer nas vizinhanças do Great Western Hotel. O chofer olhou para o Cochicho, que inclinou a cabeça. Cinco minutos depois, deixavam-me em frente do meu hotel.

- Mais tarde nos encontramos - sussurrou o jogador, e o carro afastou-se rapidamente.

A última coisa que vi, foi a chapa da chefatura de polícia desaparecendo numa esquina.

 

                           Foi por Isso que Eu lhe Atei as Mãos

ERAM cinco e meia. Caminhei algumas quadras, até deparar com um letreiro luminoso apagado que dizia Hotel Crawford. Subi as escadas, fui ao escritório do segundo andar, registrei-me, deixei um aviso para me chamarem às dez horas, fui conduzido a um quarto todo esburacado, passei para o estômago um pouco de Scotch guardado no frasco de algibeira, e levei comigo para a cama o cheque de dez mil dólares do velho Elihu e o meu revólver.

Às dez, vesti-me, fui ao First National Bank, encontrei o jovem Albury, e pedi-lhe que me visasse o cheque de Willsson. Fez-mc esperar algum tempo. Suponho que telefonou para a casa do velho, a fim de verificar se o cheque estava regular. Trouxe-o finalmente de volta, devidamente assinalado.

Filei um envelope, meti dentro dele o cheque e a carta do velho, enderecei-o à Seção da Agência em San Francisco, preguei-lhe um selo, e saí para o depositar na caixa da esquina. Depois voltei ao banco e disse ao rapaz:

- Agora conte-me por que o matou. Albury sorriu e perguntou:

- Cock Robin ou o Presidente Lincoln?

- Não quer confessar logo que você matou Donald Willsson?

- Não desejo ser descortês - retorquiu, ainda a sorrir - mas prefiro não confessar.

- Então vai ser desagradável - queixei-me. - Não podemos ficar aqui parados muito tempo sem ser interrompidos. Quem é aquele homem gordo, de óculos, que vem em nossa direção?

O rapaz corou.

- Mr. Dritton, o gerente - disse.

- Apresente-me.

Albury mostrou-se inquieto, mas chamou o gerente pelo nome. Dritton - um homem corpulento, de rosto liso e rosado, uma franja de cabelos brancos em volta da cabeça calva e cor-de-rosa, e óculos sem aro - aproximou-se.

O caixa murmurou as fórmulas de apresentação. Apertei a mão de Dritton, sem deixar de observar o rapaz.

- Eu estava dizendo - expliquei a Dritton - que nós íamos precisar de algum lugar mais reservado para conversar. Provavelmente o rapaz não há de confessar enquanto eu não tiver apertado com ele, e não quero que todos os presentes ouçam os meus berros.

- Confessar?! - A língua do gerente apareceu entre os lábios.

- Claro. - Tratei de conservar a expressão suave do rosto, voz e maneiras, arremedando Noonan. - Não sabia que foi Albury quem matou Donald Willsson?

Atrás dos óculos do gerente, o sorriso polido, com que recebeu o que considerava um gracejo idiota, transformou-se em perplexidade quando ele volveu os olhos para o seu auxiliar. O rapaz estava rubro, e a maneira como forçava a boca a estirar-se num sorriso era horrível de ver.

Dritton pigarreou e disse com entusiasmo:

- Linda manhã. Temos tido um tempo excelente.

- Mas não há uma sala particular onde nós possamos conversar? - insisti.

O gerente teve um sobressalto, e perguntou ao rapaz:

- Que... que é isto?

O jovem Albury disse algo que ninguém poderia ter entendido.

Eu continuei:

- Se não há, vou ter de levá-lo ao City Hall.

Dritton segurou os óculos, que lhe iam escorregando pelo nariz abaixo, recolocou-os no lugar, e disse:

- Vamos lá para os fundos.

Seguimo-lo ao longo do corredor, passamos por uma porta, e entramos num escritório que tinha o letreiro: Presidente - o escritório do velho Elihu. Não havia ninguém ali.

Fiz Albury sentar-se numa cadeira, e tomei outra para mim. O gerente postou-se à nossa frente, irrequieto, com as costas apoiadas na escrivaninha.

- Bem, senhor, quer agora explicar isto? - perguntou.

- Lá chegaremos - disse-lhe eu, e voltei-me para o rapaz. - Você foi um amiguinho de Dinah, e levou o fora. Você ó a única pessoa, das que a conheciam intimamente, que podia saber do cheque visado, a tempo para telefonar a Mrs. Willsson e a Thaler. Willsson foi morto com uma pistola 32. É um calibre muito usado nos bancos. Talvez a pistola que você usou não fosse do banco, mas creio que era. Talvez não a tenha reposto no lugar. Nesse caso, há de estar faltando uma. De qualquer modo, vou mandar um perito em armas de fogo examinar com os seus microscópios e micrômetros as balas que mataram Willsson e as balas disparadas por todas as pistolas do banco.

O rapaz fitou-me calmamente e não respondeu. Já recobrara o autodomínio. Aquela tática não servia. Eu tinha de me mostrar cruel. Continuei:

- Você estava embeiçado pela pequena. Confessou-me que só por oposição dela é que não...

- Não, não, por favor! - fez ele, ofegante. Seu rosto estava novamente vermelho.

Olhei-o, procurando mostrar uma expressão de escárnio. Por fim, baixou os olhos. Eu disse:

- Você falou demais, meu garoto. Estava muito ansioso por fazer da sua vida um livro aberto. Ê o hábito dos criminosos amadores. Vocês sempre exageram na franqueza.

O rapaz observava as próprias mãos. Bati noutra tecla:

- Você sabe que o matou. Sabe se usou uma pistola do banco, e se a repôs no lugar. Se foi assim, agora está irremediavelmente perdido. Os peritos em armas de fogo se encarregarão disso. Caso contrário, hei de agarrá-lo de qualquer maneira. Perfeitamente. Não tenho por que lhe dizer se há alguma probabilidade a seu favor, ou não. Você sabe.

- Noonan está procurando inculpar o Thaler por este crime. Não vai poder obter uma condenação, mas, se Thaler for morto ao resistir à prisão, as provas que Noonan tem em seu poder são bastante convincentes para o justificar. É isso o que ele pretende: matar o Cochicho. Thaler conseguiu manter os policiais à distância na casa de King Street, a noite inteira. Ainda está levando a melhor - a não ser que tenham conseguido aproximar-se dele. O primeiro polícia que lograr chegar perto dele - adeus Thaler.

- Se você acha que tem alguma probabilidade de escapar, e está disposto a deixar que outro homem morra em seu lugar, isso é problema seu. Mas se sabe que não tem nenhuma probabilidade - e não tem, se a pistola for encontrada - em nome de Deus, dê uma oportunidade a Thaler, livrando-o dessa acusação.

- Eu gostaria... - fez Albury com voz arrastada. Despregou os olhos das mãos, viu Dritton, e disse novamente: - Eu gostaria... - e parou.

- Onde está o revólver? - perguntei.

- No guichê de Harper.

Voltei-me para o gerente e perguntei-lhe:

- Quer ir buscá-lo?

Dritton saiu como se tivesse muito prazer em retirar-se.

- Eu não tinha a intenção de matá-lo - disse o rapaz" - Acho que não tinha essa intenção.

Acenei encorajadoramente com a cabeça, procurando mostrar-me solenemente condoído.

- Acho que não tinha a intenção de matá-lo - repetiu - embora tenha levado a arma comigo. Você tem razão em dizer que eu estava apaixonado por Dinah - então.

- 'Em certos dias, era pior que nos outros. Quando Willsson trouxe o cheque, eu estava num dos maus dias. Não podia pensar noutra coisa senão que eu a tinha perdido porque não possuía mais dinheiro, e ele ia levar-lhe um cheque de cinco mil dólares. Foi o cheque. Você pode compreender isso? Eu sabia que ela e Thaler estavam... você entende. Se eu soubesse que Willsson e ela andavam de amores sem ter visto o cheque, não teria feito nada. Tenho certeza. Foi a vista do cheque - e a idéia de que eu a perdera porque não tinha dinheiro.

- Aquela noite, fui espiar a casa, e vi-o entrar. Eu estava com medo do que poderia fazer, pois aquele era um dos meus maus dias, e tinha a pistola no bolso. Palavra que não tencionava fazer nada. Estava com medo. Não podia pensar noutra coisa que não o cheque, e o motivo de eu tê-la perdido. Sabia que a mulher de Willsson era ciumenta. Todo o mundo sabia. Pensei que, se eu lhe telefonasse, e dissesse... Não sei bem o que pensei, mas entrei num armazém da esquina, e telefonei-lhe. Depois avisei Thaler. Queria que estivessem lá. Se me lembrasse de mais alguém que tivesse alguma coisa que ver com Dinah ou com Willsson, também o teria chamado.

- Então voltei e pus-me a vigiar a casa de Dinah. Veio Mrs. Willsson, depois Thaler, e ambos ficaram lá, espreitando a casa. Alegrei-me. Com a presença deles, eu já não tinha tanto medo do que pudesse fazer. Depois de certo tempo, Willsson saiu e começou a descer a rua. Olhei para o carro de Mrs. Willsson e para a porta onde eu sabia que estava Thaler. Nenhum deles fez coisa alguma, e Willsson ia-se afastando. Então compreendi por que tinha desejado a presença deles lá. Esperava que fizessem algo... e então eu não precisaria fazê-lo. Mas não se moveram, e Willsson ia-se afastando. Se um deles o abordasse, ou pelo menos se pusesse a segui-lo, eu não teria feito nada.

- Mas não se moveram. Lembro-me de ter tirado a pistola do bolso. Via tudo embaciado na minha frente, como se estivesse chorando. Talvez estivesse. Não me lembro de ter apontado e puxado o gatilho deliberadamente - mas posso recordar-me dos estampidos, e de que eu sabia que o som vinha da pistola que eu tinha na mão. Não me lembro como estava Willsson, se caiu antes que eu virasse as costas e começasse a correr pelo beco, ou não. Quando cheguei a casa, limpei e tornei a carregar a arma, e na manhã seguinte recoloquei-a no guichê do pagador.

 

A caminho do City Hall, com o rapaz e a pistola, pedi desculpas pelo modo como tinha começado o interrogatório, e expliquei:

- Eu tinha de fazê-lo perder a calma, e esse era o melhor meio que conhecia. A maneira como você havia falado na pequena demonstrou que você era um ator muito bom para capitular a um ataque direto.

Ele pestanejou, e respondeu pausadamente:

- Eu não estava representando, de forma alguma. Quando me vi em perigo, confrontado com a força, Dinah não... não me parecia tão importante. Eu não podia... não posso agora... compreender bem... completamente... por quê fiz aquilo. Sabe o que quero dizer? Aquilo parece que torna tudo - e a mim também - insignificante. Quero dizer, toda a história, desde o princípio.

Não encontrei nada que dizer, salvo alguma coisa sem sentido, como:

- A vida é assim.

No gabinete do chefe, achamos um dos homens que tinham feito parte da força atacante na noite anterior - um oficial de cara vermelha, chamado Biddle. Enviesou-me os olhos cinzentos cheios de curiosidade, mas não fez nenhuma pergunta a respeito dos sucessos de King Street.

Biddle chamou um jovem legista chamado Dart, no gabinete do promotor público. Albury estava repetindo sua narração a Biddle, Dart e um estenógrafo, quando chegou o chefe de polícia, com cara de quem acabava de sair da cama.

- Bem, é um grande prazer vê-lo de novo - disse Noonan, sacudindo-me a mão ao mesmo tempo que me dava palmadinhas nas costas. - Por Deus! você escapou por um triz a noite passada... os tratantes! Eu estava certo de que eles tinham dado cabo de você, até que arrombamos a porta e encontramos a casa vazia. Diga-me de que maneira os patifes conseguiram sair de lá.

- Dois dos seus homens nos fizeram sair pela porta dos fundos, conduziram-nos por dentro da casa que ficava atrás daquela, e nos levaram num carro da polícia. Eu tive de vir junto, de modo que não pude avisá-lo.

- Dois dos meus homens fizeram isso? - perguntou, sem dar mostras de surpresa. - Bem, bem! Que jeito tinham eles?

Descrevi-os.

- Shore e Riordan - disse o chefe. - Eu devia ter desconfiado. Que é isto agora? - fez ele, sacudindo a cabeça na direção de Albury.

Contei-lhe, em poucas palavras, enquanto o rapaz continuava a ditar as suas declarações.

Noonan deu uma risadinha e disse:

- Bem, bem, eu fui injusto com o Cochicho. Terei de procurá-lo para me justificar. Então você pegou o rapaz? Ótimo, certamente. Parabéns e obrigado. - Sacudiu-me novamente a mão. - Não vai deixar já a nossa cidade, não é?

- Por enquanto, não.

- Ótimo - assegurou-me.

Saí para tomar um lanche. Depois tratei de cortar o cabelo e fazer a barba, telegrafei à Agência pedindo que remetessem Dick Foley e Mickey Linehan a Personville, fui ao meu quarto a fim de mudar de roupa, e tomei o rumo da casa do meu cliente.

O velho Elihu estava sentado numa cadeira de braços, embrulhado em cobertores, junto a uma janela por onde entrava o sol. Estendeu-me a mão grossa, e agradeceu-me a captura do assassino de seu filho.

Dei uma resposta mais ou menos apropriada. Não lhe perguntei como soubera da notícia.

- O cheque que eu lhe dei ontem à noite - disse o velho - não foi mais que uma justa retribuição pelo trabalho que você fez.

- O cheque de seu filho foi mais que suficiente para pagar isso.

- Então digamos que o meu foi uma bonificação.

- O regulamento da Continental nos proíbe aceitar bonificações ou recompensas - respondi.

O velho começou a ficar vermelho.

- Bem, com os diabos...

- Você não esqueceu que aquele cheque era destinado a cobrir o custo das investigações sobre o crime e a corrupção imperantes em Personville, hem?

- Aquilo foi tolice - rosnou. - Nós estávamos excitados ontem à noite. Aquela ordem está cancelada.

- Para mim não.

Ele proferiu alguns palavrões e depois berrou:

- O dinheiro é meu, e não quero que seja gasto em idiotices. Se você não quer aceitá-lo em paga do que fez, dê-mo de volta.

- Deixe de gritar - retruquei. - Eu vou fazer-lhe um bom servicinho de saneamento. Foi o que você ajustou, e é o que hei de fazer. Agora já sabe que seu filho foi morto pelo jovem Albury, e não por um dos seus parceiros. Eles sabem agora que Thaler não era seu cúmplice. Morto seu filho, você agora pode prometer-lhes que os jornais não vão mais divulgar as sujeiras. Tudo está novamente em harmonia.

- Eu lhe disse que esperava uma coisa dessas. Foi por isso que lhe atei as mãos. E você está de pés e mãos atados. O cheque foi visado, de maneira que você não pode suspender o pagamento. A carta de autorização talvez não tenha validade contratual, mas você terá de recorrer aos tribunais para o provar. Se quer sujeitar-se a tanta publicidade, muito bem. Encarrego-me de lhe proporcionar bastante.

- O seu gordo chefe de polícia tentou assassinar-me a noite passada. Não gostei disso. Sou bastante rancoroso para desejar vingar-me. Agora vai começar o meu jogo. Tenho seus dez mil dólares com que jogar. Vou abrir Poisonville, desde o pomo-de-adão até o tornozelo. Providenciarei para que você receba os meus relatórios tão regularmente quanto possível. Espero que lhe sejam agradáveis.

E deixei a casa, com as pragas do velho a zunir-me nos ouvidos.

 

                            Um Palpite Infalível

PASSEI quase toda a tarde escrevendo os relatórios de três dias sobre o caso Donald Willsson. Depois sentei-me aqui e ali, fumando Fátimas e pensando no caso Elihu Willsson, até a hora do jantar.

Desci à sala de refeições do hotel, e acabava de me decidir por um bife de alcatra com cogumelos, quando ouvi o mensageiro chamar-me.

Fui conduzido a uma das cabinas do vestíbulo. A voz indolente de Dinah Brand soou no receptor:

- Max quer falar com você. Pode dar uma chegada aqui esta noite?

- À sua casa?

- Sim.

Prometi ir, e voltei ao salão. Terminada a refeição, subi ao meu quarto, uma das peças da frente no quinto andar. Dei volta à chave e entrei, acendendo a luz.

Uma bala passou sibilando pela minha cabeça e foi abrir um buraco na ombreira da porta.

Outras balas abriram novos buracos na porta, nas ombreiras e na parede, mas já então eu me tinha refugiado num canto onde não me podiam ver da janela.

Sabia que do outro lado da rua havia um edifício de quatro pavimentos, ocupado por escritórios, com telhado um pouco acima do nível da minha janela. O telhado devia estar escuro. A luz do meu quarto estava acesa. Eu nada lucraria se tentasse espiar para fora, nessas condições.

Olhei em torno, à procura de alguma coisa que pudesse atirar na lâmpada; encontrei uma bíblia e arremessei-a. A lâmpada estourou, deixando-me nas trevas.

Os tiros cessaram.

Arrastei-me até a janela, e me ajoelhei, aplicando o olho a um dos ângulos inferiores. O telhado fronteiro estava escuro, e era muito alto para que eu pudesse enxergar além da beirada. Dez minutos assim à espreita, com um olho só, não me trouxeram outro resultado senão uma dor no pescoço.

Dirigi-me ao telefone e pedi à telefonista que mandasse o detetive do hotel.

Era um homem forte, de bigodes brancos, com a testa redonda de uma criança. Trazia no cocuruto um chapéu muito pequeno, que lhe punha a testa à mostra. Chamava-se Keever. Ficou muito excitado quando soube dos tiros.

Entrou o dono do hotel, um homem rechonchudo, de rosto, voz e maneiras cuidadosamente controladas. Não se mostrou nada excitado. Tomou a atitude de quem considerava a coisa insólita, mas não realmente grave, como um faquir de rua cujos aparelhos enguiçassem durante uma demonstração.

Arriscamo-nos a acender a luz, arranjando nova lâmpada, e contamos os buracos das balas. Eram 10.

Policiais entraram, saíram, e regressaram informando que não havia probabilidade de seguir qualquer pista que alguém pudesse ter deixado. Noonan telefonou. Falou com o sargento encarregado do serviço, e depois comigo.

- Não faz um minuto que ouvi falar dos tiros - disse ele. - Quem pensa você que estaria interessado em atacá-lo dessa maneira?

- Não faço a mínima idéia - menti.

- Não lhe acertaram nenhuma?

- Não.

- Ótimo - disse com fervor. - E havemos de pegar o maroto, pode ficar certo. Não quer que eu deixe um ou dois dos meus rapazes aí, só para impedir que haja mais alguma coisa?

- Não, obrigado.

- Se quiser, é só dizer - insistiu.

- Não, obrigado.

Fez-me prometer que o procuraria na primeira oportunidade, garantiu-me que a polícia de Personville estava à minha disposição, deu-me a entender que toda a sua vida ficaria arruinada se me acontecesse alguma coisa, e por fim consegui livrar-me dele.

A polícia retirou-se. Mandei levar meus badulaques para outro quarto, onde as balas não pudessem entrar tão facilmente. Mudei de roupa e saí em direção a Hurricane Street, a fim de comparecer ao encontro com Cochicho.

 

Dinah Brand abriu-me a porta. Desta vez os seus grandes lábios carnudos se achavam bem pintados, mas os cabelos ainda estavam por cortar, o repartido era irregular, e havia nódoas na frente do vestido de seda, alaranjado.

- Então você ainda está vivo - disse ela. - Suponho que não há nada a fazer. Entre.

Passamos para a desordenada sala de estar. Dan Rolff e Max Thaler jogavam pinochle. Rolff acenou-me com a cabeça. Thaler ergueu-se e me apertou a mão.

Na sua voz baixa e rouca, disse:

- Ouvi falar que você declarou guerra a Poisonville.

- Não me queira mal por isso. Tenho um cliente que quer ver saneado o lugar.

- Quer, não; queria - corrigiu, enquanto nos sentávamos. - Por que não desiste?

Fiz um discurso:

- Não. Eu não gostei do modo como Poisonville me tratou. Agora chegou a minha oportunidade, e vamos ajustar contas. Suponho que vocês se entenderam novamente, são todos irmãos outra vez, e o passado passou. Querem que os deixem em paz. Houve um tempo em que eu queria que me deixassem em paz. Se o tivessem feito, talvez agora eu estivesse de volta a San Francisco. Mas não foi assim. Principalmente o gordo Noonan não me deixou em paz. Em dois dias, atentou duas vezes contra mim. É demais. Agora me toca a vez de dar em cima dele, e é isso precisamente o que vou fazer. Poisonville está madura para a ceifa. É um trabalho a meu gosto, e tenciono realizá-lo.

- Enquanto for vivo - advertiu o jogador.

- Sim - concordei. - Ainda esta manhã eu li no jornal a notícia de um homem que morreu engasgado na cama com um bombom de chocolate.

- Pode ser - disse Dinah Brand, com o corpanzil refestelado numa cadeira de braços - mas isso não estava no jornal desta manhã.

Acendeu um cigarro e atirou o fósforo embaixo do sofá Chesterfield. O tísico tinha recolhido as cartas e pusera-se a baralhá-las distraidamente.

Thaler franziu o sobrolho e disse:

- Willsson está disposto a deixar que você fique com os dez pacotes. Aceite a proposta.

- Eu tenho espírito mesquinho. Uma tentativa de assassinato me enfurece.

- Isso não vai lhe trazer senão dissabores. Estou com você. Foi você que impediu Noonan de me pegar na arapuca. Por isso lhe digo: esqueça-o, e volte para Frisco.

- Eu estou com você - retorqui. - Por isso lhe digo: rompa com eles. Já quiseram traí-lo uma vez. Tornarão a fazê-lo. E, de qualquer forma, eles estão condenados à ruína. Retire-se enquanto é tempo.

- Eu estou muito bem - volveu. - E sou capaz de cuidar de mim mesmo.

- Talvez. Mas você sabe que a situação é boa demais para durar. Já lhe rendeu o mais que poderia render. Chegou o momento de cair fora.

Sacudiu a cabeça morena e respondeu:

- Acho que você é bamba, mas macacos me mordam se o julgo bastante bom para ganhar esta batalha. É dura demais. Se acaso você contasse com alguma probabilidade, eu me poria do seu lado. Você sabe o que houve entre mim e Noonan. Mas não há de conseguir nada. Desista.

- Não. Hei de lutar até o último níquel dos dez mil dólares de Elihu.

- Eu lhe disse que ele era muito cabeçudo para escutar os seus conselhos - observou Dinah Brand, bocejando. - Não há nada na geladeira que se possa beber, Dan?

O tísico ergueu-se da mesa e saiu. Thaler deu de ombros, e disse:

- Faça como entender. Decerto sabe o que está fazendo. Vai às lutas de boxe amanhã de noite?

Respondi que tencionava ir. Dan Rolff entrou com gim e outros ingredientes. Tomamos alguns drinques cada um. Conversamos sobre as lutas de boxe. Não se falou mais no meu duelo versus Poisonville. O jogador parecia ter lavado as mãos, mas não mostrava levar a mal a minha teimosia. Até me deu o que devia ser um palpite certo sobre as lutas - dizendo-me que quem quisesse ganhar uma aposta na luta principal tinha de lembrar que Kid Cooper provavelmente poria Ike Bush fora de combate no sexto round. Parecia saber o que dizia, e a informação não era nenhuma novidade para os outros.

Saí um pouco depois das onze, e voltei ao hotel sem que me acontecesse nada.

 

                                                 A Faca Preta

DESPERTEI na manhã seguinte com uma idéia na cabeça. Personville tinha apenas uns quarenta mil habitantes. Não devia ser difícil espalhar uma notícia. Às dez horas, já eu a estava espalhando.

Fazia-o em salas de bilhar, tabacarias, botecos, lanchonetes, esquinas - onde quer que encontrasse um ou dois homens ociosos. Minha técnica era mais ou menos assim:

- Tem um fósforo?... Obrigado... Vai assistir às lutas de boxe esta noite?... Ouvi dizer que Ike Bush vai deixar o outro ganhar no sexto round... Deve ser verdade: foi o Cochicho que me disse... E ele sabe o que diz.

Não há quem não goste de informações confidenciais, e em Personville tudo o que levava a chancela do nome de Thaler era tido na conta de muito confidencial. A notícia se propagou rapidamente. Metade dos homens a quem a passei, empenharam-se quase tanto como eu em difundi-la, só para mostrar que estavam bem informados.

Quando comecei, andavam apostando sete por quatro em que Ike Bush venceria, e dois por três, que venceria por knock-out. Pelas duas da tarde, nenhum dos estabelecimentos que aceitavam apostas oferecia mais de um contra um, e às três e meia Kid Cooper era o favorito por dois contra um.

Minha última etapa foi no balcão de uma lanchonete, onde passei a informação a um garçom e dois fregueses enquanto comia um sanduíche quente de carne.

Ao sair, encontrei um homem à minha espera junto da porta. Tinha pernas tortas, e uma queixada longa e pontuda como a de um porco. Fez-me um aceno com a cabeça e pôs-se a caminhar a meu lado pela rua, mascando um palito e olhando-me de esguelha. Chegados à esquina, ele disse:

- Sei que não é verdade.

- O quê? - perguntei.

- Isso de Ike Bush ser derrotado. Sei que não é verdade.

- Então não tem por que se preocupar, Mas os bem-avisados estão apostando dois contra um em Cooper, que não é tão bamba, a não ser que Bush permita.

A queixada suína cuspiu o palito quebrado e mostrou-me os dentes amarelos.

- Foi o Ike Bush mesmo quem me disse à noite passada que Cooper era canja para ele, e Bush não ia fazer uma coisa dessas - pelo menos a mim.

- É amigo seu?

- Não propriamente, mas ele sabe que eu... Escutei O Cochicho lhe disse aquilo... de verdade?

- De verdade. Praguejou violentamente.

- E eu botei os meus últimos trinta e cinco dólares naquele tratante, a conselho dele mesmo. Eu, que podia enrascar o canalha por... - Deteve-se e olhou rua abaixo.

- Podia enrascar Ike Bush por quê - perguntei.

- Muita coisa - tornou. - Nada. Sugeri:

- Se você sabe de alguma coisa contra ele, é melhor nós discutirmos o caso. Eu, por mim, não me importo de ver Bush ganhar. Se você está a par de alguma coisa que seja de utilidade, por que não fala com ele?

Olhou-me, mirou a calçada, procurou outro palito no bolso dô colete, meteu-o na boca e resmungou:

- Quem é você?

Dei-lhe um nome, algo assim como Hunter, ou Hunt, ou Huntington e perguntei o dele. Disse que se chamava MacSwain, Bob MacSwain, e que eu podia perguntar a qualquer um se não era verdade.

Respondi que acreditava e interpelei-o:

- Que diz? Vamos apertar com Bush?

Seus olhos desferiram pequenas faíscas, que logo se apagaram.

- Não - tartamudeou - Não sou desses. Eu nunca...

- Você nunca fez nada senão deixar que os outros lhe passem a perna. Não precisa ir lá falar com ele, MacSwain. Conte-me tudo, e eu me encarrego do caso... se valer a pena.

MacSwain ruminou a proposta, lambendo os lábios e deixando cair da boca o palito, que ficou pegado ao casaco.

- Você não vai revelar que eu estou metido nisso? - perguntou. - Eu sou daqui, e se viessem a saber, ia ficar mal visto. E você não vai denunciá-lo? Só se aproveitará da história para obrigá-lo a lutar?

- Está entendido.

Agarrou-me excitadamente a mão, e disse:

- Palavra?

- Palavra.

- O verdadeiro nome dele é Al Kennedy. Tomou parte no assalto ao Keystone Trust, em Philly, há dois anos, quando a quadrilha do Scissors Haggerty matou dois mensageiros. Não foi Al o assassino, mas estava junto com o bando. Costumava lutar na zona de Philly. Os outros foram presos, mas ele fugiu. E por isso que veio se meter aqui, e nunca permite que lhe ponham o retrato nos jornais ou em cartões. Por isso toma parte em jogos de categoria inferior, embora seja um dos melhores. Compreende? Este Ike Bush é o Al Kennedy que os tiras de Philly andam procurando por causa da história do Keystone. Compreende? Tomou parte no...

- Compreendo, compreendo - atalhei, fazendo parar o carrossel. - Agora a questão é dar com ele. Onde poderemos encontrá-lo?

- Mora no Maxwell, em Union Street. Deve estar lá agora, descansando para a luta.

- Descansando para quê? Ele não sabe que vai lutar de verdade. Mesmo assim, nos vamos experimentar.

- Nós! Nós! De onde é que você tirou esse nós? Você disse... você jurou que não me delatava.

- Sim - respondi - agora me lembro. Que jeito tem ele?

- Um rapaz de cabelos pretos, meio delgado, com uma orelha cortada, e sobrancelhas unidas. Não sei se ele vai gostar da história.

- Deixe isso comigo. Onde nos encontramos depois?

- Eu vou ficar ali pelo Murry. Não se esqueça de que prometeu não me delatar.

 

O Maxwell era igualzinho a uma dúzia de hotéis da Union Street que tinham portas estreitas entre casas de comércio, e escadas encardidas que levavam a escritórios no primeiro andar. O escritório do Maxwell era simplesmente um compartimento largo do vestíbulo, com o escaninho das chaves e da correspondência atrás dum balcão de madeira, que estava precisando urgentemente de pintura. Em cima do balcão achava-se uma campainha de latão e um sujo registro de hóspedes. Não havia ninguém ali.

Tive de recuar oito páginas antes de encontrar Ike Bush, Salt Lake City, 214, registrado no livro. O escaninho que tinha aquele número estava vazio. Subi mais alguns degraus e bati à porta correspondente. Não atenderam. Experimentei duas ou três vezes mais e depois voltei à escada.

Alguém vinha subindo. Fiquei parado no alto da escada, esperando-o a fim de ver-lhe a cara. Havia luz escassamente suficiente para isso.

Era um rapaz delgado e musculoso, de camisa militar, traje azul, boné cinzento. Por cima dos olhos, as sobrancelhas pretas formavam uma linha reta.

- Olá - disse eu.

Ele inclinou a cabeça sem se deter nem dizer nada.

- Vai vencer esta noite? - perguntei.

- Assim espero - respondeu laconicamente, passando por mim.

Deixei-lhe dar quatro passos na direção do seu quarto, antes de dizer:

- EU também. Ficaria aborrecido se tivesse de mandá-lo de volta a Philly, Al.

O rapaz deu mais um passo, virou-se lentamente, encostou o ombro na parede e, com olhos sonolentos, grunhiu:

- Ahn?

- Se você fosse derrubado no sexto ou qualquer outro round por um pexote como Kid Cooper, eu ficaria contrariado - volvi. - Não faça isso, Al. Você não quer voltar para Philly.

Ele encostou o queixo no pescoço e se aproximou novamente. Quando estava à distância do comprimento do braço, parou, virando um pouco para a frente o lado esquerdo. Suas mãos pendiam ao longo do corpo. As minhas estavam dentro dos bolsos do sobretudo.

- Ahn? - repetiu.

- Procure lembrar-se - tornei. - Se Ike Bush não vencer esta noite, Al Kennedy estará viajando para leste amanhã de manhã.

Bush alçou um pouco o ombro esquerdo. Movi a pistola dentro do bolso. Ele rosnou:

- Quem andou lhe dizendo que eu não vou vencer?

- Ouvi por aí. Não pensei que houvesse nisso algo extraordinário, exceto uma passagem de volta para Philly, talvez.

- Eu devia quebrar-lhe o focinho, seu gorducho sem-vergonha.

- Esta é a melhor ocasião - lembrei-lhe. - Se você ganhar esta noite, decerto não me tomará a ver. Se perder, ver-nos-emos de novo, mas você não estará com as mãos livres.

Encontrei MacSwain no Murry, uma sala de bilhar da Broadway.

- Falou com ele? - inquiriu.

- Falei. Tudo arranjado - se não se raspar, nem disser alguma coisa aos companheiros, nem fizer pouco caso do que eu disse, nem...

MacSwain mostrou-se nervoso.

- É melhor ter cuidado - avisou. - Podem querer descartar-se de você. Ele... tenho de ir falar com um camarada ali adiante - e abandonou-me.

 

As lutas de boxe em Poisonville realizavam-se num vasto ex-cassino de madeira, num antigo parque de diversões nos arrabaldes da cidade. Quando cheguei, às oito e meia, a maior parte da população parecia estar lá, comprimida em cerradas fileiras de assentos dobradiços ao nível do chão, e ainda mais comprimida nos bancos de duas pequenas galerias.

Fumaça. Fedentina. Calor. Barulho.

O meu lugar era na terceira fila, a contar do ringue. Ao dirigir-me para lá avistei Dan Rolff num assento lateral, a pequena distância, com Dinah Brand a seu lado. Ela resolvera finalmente mandar cortar os cabelos, e ondulá-los; parecia uma ricaça no enorme casaco cinzento de peles.

- Apostando em Cooper? - perguntou, depois que trocáramos uns "olás".

- Não. Você está jogando forte?

- Não tão forte como queria. Nós esperamos, pensando que as apostas iam melhorar, mas baixaram como o diabo.

- Toda a cidade parece saber que Bush vai deixar-se vencer - disse eu. - Vi apostarem quatro contra um em Cooper, há poucos minutos. - Inclinei-me sobre a cadeira de Rolff e pus a boca onde a gola de pele cinzenta escondia a orelha da pequena, cochichando: - A combinação foi anulada. É melhor jogar contra Cooper enquanto há tempo.

Seus grandes olhos injetados se abriram e escureceram de ansiedade, cobiça, curiosidade e desconfiança.

- Fala sério? - perguntou em voz rouca.

- Sim.

Mordeu os lábios vermelhos, franziu as sobrancelhas, e inquiriu:

- Como soube?

Não lhe quis dizer. Ela mordiscou mais um pouco os lábios e perguntou:

- Max já sabe?

- Não o vi. Ele veio?

- Creio que sim - respondeu, distraída, com um olhar distante. Pôs-se a mover os lábios como se estivesse fazendo cálculos consigo mesma.

- Faça como entender - disse eu - mas a coisa é certa.

Ela inclinou-se para olhar-me fixamente nos olhos, rangeu os dentes, abriu a bolsa, e tirou um rolo de notas do tamanho de uma latinha de café. Estendeu parte do dinheiro a Rolff.

- Toma, Dan, joga isto em Bush. De qualquer forma, tens ainda uma hora para ver como estão as apostas.

Rolff pegou o dinheiro e saiu. Sentei-me na sua cadeira. Dinah pôs-me a mão no antebraço e disse:

- Deus lhe acuda se me fizer perder aquela grana. Fingi achar ridícula a idéia.

Começaram as lutas preliminares, competições de quatro rounds entre boxeadores de classe inferior. Eu procurava Thaler, mas não o via em parte alguma. A pequena estorcia-se na cadeira próxima, sem prestar muita atenção às lutas, ora perguntando onde tinha eu conseguido aquela informação, ora ameaçando-me com o inferno e as penas eternas se eu lhe tivesse pregado uma peça.

Estávamos na semifinal quando Rolff voltou e entregou-lhe um punhado de bilhetes. Ela pôs-se a examiná-los com o olhar ansioso, enquanto eu me retirava para o meu lugar. Sem erguer os olhos, ela me gritou:

- Quando terminar, espere-nos na saída.

Enquanto eu me esforçava para abrir caminho até o meu lugar, Kid Cooper subiu ao ringue. Era um rapaz maciço, vermelho, de cabelos cor de palha, rosto encaroçado, e com excesso de carne na cintura envolta no calção lilás. Ike Bush, aliás Al Kennedy, meteu-se por entre as cordas no ângulo oposto. Seu corpo apresentava melhor aspecto - delgado, músculos bem pronunciados, flexível - mas a cara estava pálida, preocupada.

Depois da apresentação, dirigiram-se ao centro do tablado para ouvir as informações habituais, tornaram aos seus cantos, tiraram o roupão de banho, estenderam os braços nas cordas, soou o gongo, e começou a peleja.

Cooper era um pobre diabo desajeitado. Tinha um par de punhos grossos que deviam magoar quando acertassem em alguém; mas qualquer um que possuísse dois pés podia evitá-los. Bush tinha classe - pernas ágeis, uma esquerda firme e pronta, e uma direita que se deslocava rapidamente. Seria um crime colocar Cooper dentro dum ringue junto com aquele rapaz, se ele se empenhasse a fundo. Mas Bush não se empenhava. Isto é, não se esforçava por vencer. Procurava não derrotar o adversário, e era nisso que as suas mãos estavam ocupadas.

Cooper gingava pelo tablado, atirando os seus punhos grossos em todas as direções, desde as luzes até os postes dos cantos. O seu sistema consistia simplesmente em arremessá-los ao acaso, e deixá-los acertar onde pudessem. Bush avançava e recuava, roçando a luva no antagonista quando queria, não passando disso.

Antes de terminar o primeiro round, a assistência começara a vaiar. O segundo round foi igualmente enfadonho. Eu não me sentia muito bem. Ike Bush não parecia ter ficado grandemente impressionado com o nosso pequeno colóquio. Com o canto do olho, vi Dinah Brand procurando chamar-me a atenção. Mostrava-se furiosa. Tomei o cuidado de não deixar que a minha atenção fosse desviada.

A brincadeira continuou no ringue durante o terceiro round, entre os berros da multidão: "Fora com eles!" e "Por que não se beijam?" e "Façam-nos brigar!" Aqueles giros de valsa trouxeram os dois competidores ao ângulo próximo da minha cadeira justamente quando a vaia cessou por um instante.

Fiz das minhas mãos um megafone e bradei:

- Para Philly, Al.

Bush estava de costas para mim. Lutando com Cooper, descreveu um semicírculo e empurrou-o sobre as cordas, ficando - ele, Bush - virado para o meu lado.

De outra direção, de algum ponto no meio da assistência, partiu novamente o grito:

- Para Philly, Al.

Supus que fosse MacSwain.

A um lado, um bêbedo ergueu a cara balofa e repetiu o grito, rindo-se como se se tratasse de uma boa pilhéria. Outros o imitaram sem nenhuma razão especial, apenas para molestar Bush.

Os olhos dele iam de um lado para outro, sob a negra barra das sobrancelhas.

Um dos enormes punhos de Cooper atingiu-o lateralmente no queixo.

Ike Bush foi ao chão, aos pés do árbitro.

O árbitro contou cinco em dois segundos, mas o gongo interrompeu-o.

Olhei para Dinah Brand e ri. Não havia outra coisa a fazer. Ela me olhou e não riu. Tinha o rosto tão pálido como o de Rolff, e muito mais irritado que o do companheiro.

Os massagistas puseram-se a esfregar Bush, mas com pouca energia. Bush abriu os olhos e ficou a contemplar os pés. Bateu novamente o gongo.

Kid Cooper avançou pachorrentamente, sungando os calções. Bush esperou até que o pobre-diabo estivesse no centro do tablado, depois se aproximou rapidamente.

A luva esquerda de Bush desceu e afundou - praticamente afundou - no ventre de Cooper. Este fez: "Uf", e recuou, dobrando-se em dois.

Bush endireitou-o com um soco da mão direita na boca, e baixou novamente a esquerda. Cooper disse novamente: "Uf", e vergou os joelhos.

Bush esmurrou-o em ambos os lados da cabeça, preparou a direita, acomodou cuidadosamente a cara de Cooper com a esquerda, e lançou a outra diretamente de sob o seu queixo ao queixo de Cooper.

Todos os presentes sentiram o soco.

Cooper caiu no chão, repinchou, e aquietou-se. O árbitro levou meio minuto para contar dez segundos. O resultado seria o mesmo se tivesse levado meia hora. Kid Cooper estava sem sentidos.

Depois de retardar o mais que pôde a contagem, o árbitro ergueu finalmente a mão de Bush. Cada qual estava mais apavorado.

Chamou-me a atenção um lampejo no ar. Um risco prateado desceu obliquamente de uma das pequenas galerias.

Uma mulher gritou.

O risco prateado foi terminar no ringue, com um som que era em parte um baque, em parte um estalo.

Ike Bush desprendeu o braço da mão do árbitro e tombou por cima de Kid Cooper. Um cabo preto de faca saía-lhe da nuca.

 

                                         Procura-se Um Crime

QUANDO, meia hora depois, deixei o edifício, Dinah Brand estava sentada à direção de um pequeno Marmon azul-pálido, falando com Max Thaler que se achava parado na estrada.

A moça erguia o queixo quadrado. A enorme boca vermelha soltava brutalmente as palavras, e as rugas que lhe cruzavam as comissuras estavam fundas, endurecidas.

O jogador mostrava tão má catadura quanto ela. Seu belo rosto estava amarelo e duro como carvalho. Ao falar, seus lábios adelgaçavam-se.

Parecia uma agradável reunião familiar. Não me teria aproximado deles se a pequena não me houvesse visto e gritado:

- Meu Deus, pensei que você não viesse mais.

Dirigi-me para o carro. Thaler olhou-me sem nenhuma cordialidade, por cima da capota.

- Ontem à noite eu lhe aconselhei que voltasse para Frisco. - Seu cochicho estava mais estridente que o grito de qualquer outra pessoa. - Agora eu lhe digo que vá embora.

- Obrigado, de qualquer maneira - respondi, entrando e sentando-me ao lado da pequena.

Enquanto ela acionava o motor, Thaler disse-lhe:

- Esta não é a primeira vez que você me vende. É a última.

Ela pôs o carro em movimento, voltou a cabeça para trás, e cantou-lhe:

- Para o inferno, meu amor! Entramos velozmente na cidade.

- Bush morreu? - perguntou, dirigindo o carro para a Broadway.

- Inquestionavelmente. Quando viraram o corpo, via-se a ponta da faca saindo na frente do pescoço.

- Devia saber que não convinha atraiçoar o bando. Vamos arranjar alguma coisa para comer. Ganhei quase mil e cem dólares nas apostas, de modo que se meu amiguinho não gostou, tanto pior. E você, como se saiu?

- Não joguei. Então o seu Max não ficou satisfeito?

- Não jogou? - exclamou ela. - Que espécie de asno é você? Onde se viu uma pessoa não jogar quando o resultado estava assim combinado?

- Eu não tinha certeza de que estivesse combinado. Então o seu amiguinho Max não está satisfeito com o desfecho da história?

- Adivinhou. Ele perdeu muito. E ainda por cima está danado porque eu tive o bom senso de mudar de palpite e apostar no vencedor. - Freou violentamente o carro diante de um restaurante chinês. - Que vá para o inferno, o nanico pretensioso!

Seus olhos estavam úmidos e brilhantes. Passou um lenço por eles enquanto descíamos do carro.

- Meu Deus, estou com uma fome! - disse, levando-me de arrasto pela calçada. - Quer-me comprar uma tonelada de chow mein?

Não chegou a comer uma tonelada, mas deu cabo da sua travessa, bem cheia, e metade da minha. Depois voltamos ao Marmon e fomos para a sua casa.

Dan Rolff achava-se na sala de jantar. Sobre a mesa, à sua frente, via-se um copo d'água e uma garrafa parda sem rótulo. Rolff estava muito aprumado na cadeira, com os olhos fixos na garrafa. A peça cheirava a láudano.

Dinah Brand desvencilhou-se do casaco de peles, deixando-o cair, parte numa cadeira e parte no chão, e estalou os dedos para o tísico, dizendo impaciente:

- Cobraste?

Sem erguer os olhos da garrafa, Rolff tirou do bolso interior do casaco um maço de dinheiro e largou-o em cima da mesa. A mulher agarrou-o, contou duas vezes as notas, estalou os beiços e meteu o dinheiro na bolsa.

Foi à cozinha e começou a quebrar gelo. Sentei-me e acendi um cigarro. Rolff continuou de olhos pregados na garrafa. Ele e eu nunca parecíamos ter muita coisa que dizer um ao outro. Dali a pouco ela trouxe gim, suco de limão, soda e gelo.

Bebemos, e ela disse a Rolff:

- Max está por conta. Soube que tu andaste apostando em Bush à última hora, e o idiota pensa que fiz falseta com ele. Que tinha eu com a coisa? Não fiz senão o que qualquer pessoa atilada teria feito - apostar no vencedor. Eu nada tinha que ver com isso, não é verdade? - perguntou-me.

- É.

- Naturalmente. O que há é que Max tem medo que os outros pensem que ele também estava metido nisso, e que Dan não só jogou com o meu dinheiro, mas com o dele. Ora, isto é lá com ele. Por mim, pode ir pentear macacos, aquele nanico piolhento. Mais um trago não era mal.

Serviu-se, e a mim. Rolff não tocara no seu primeiro drinque. Sem desfitar a garrafa, ele observou:

- Não podes esperar que ele fique alegre com a história. A pequena fechou a cara e retrucou, acrimoniosa:

- Posso esperar tudo o que me der na cabeça. E ele não tem o direito de me falar daquele modo. Não é meu dono. Talvez pense que é, mas vou-lhe mostrar que está enganado. - Esvaziou o copo, largou-o com força na mesa, e virou-se na cadeira para me encarar. - É verdade que você recebeu dez mil dólares de Elihu Willsson para limpar a cidade?

- É sim.

Seus olhos injetados reluziram com avidez.

- E se eu o ajudar ficarei com parte dos dez...?

- Não podes fazer isso, Dinah. - A voz de Rolff estava abafada, mas suavemente firme, como se falasse a uma criança. - Seria verdadeiramente asqueroso.

A mulher virou lentamente o rosto para ele. A boca tomou o aspecto que eu lhe vira ao falar com Thaler.

- É o que vou fazer - disse. - Isso me faz verdadeiramente asquerosa, não é?

Rolff não respondeu, nem ergueu os olhos da garrafa. O semblante de Dinah Brand tornou-se vermelho, duro, cruel. Sua voz estava doce, meiga:

- É uma pena que um cavalheiro da tua pureza, embora um pouco enfermiço seja obrigado a conviver com uma vagabunda asquerosa como eu.

- Isso pode-se remediar - volveu o outro lentamente, levantando-se. Estava intoxicado até a raiz dos cabelos.

Ela pulou da cadeira e deu rapidamente a volta à mesa. Rolff mirou-a com os olhos estupidificados. Dinah aproximou o rosto do dele e inquiriu:

- Então eu agora sou asquerosa demais para ti, não é? Dan Rolff retorquiu, impassível:

- Eu disse que vender os teus amigos a esse camarada seria verdadeiramente asqueroso, e assim é.

Dinah Brand agarrou-lhe um dos pulsos finos e torceu-o até obrigar o homem a ajoelhar-se. Com a outra mão, aberta, bateu-lhe no rosto escaveirado, meia dúzia de vezes em cada face, fazendo-lhe balancear a cabeça de um lado para outro. Rolff poderia ter levantado o braço livre para proteger o rosto, mas não o fez.

A mulher soltou-lhe o pulso, virou-lhe as costas, e estendeu a mão para o gim e a soda. Sorria. Não gostei do sorriso.

Rolff levantou-se pestanejando. Tinha o pulso vermelho no lugar em que ela o segurara, e o rosto ferido. Endireitou o corpo firmando-se na mesa, e fitou-me os olhos mortiços.

Sem alteração na impassibilidade da fisionomia e dos olhos, o tísico meteu a mão debaixo do casaco, sacou uma pistola automática preta, e atirou contra mim.

Mas estava muito trêmulo para o fazer com rapidez e precisão. Tive tempo de lhe arremessar um copo, que o atingiu no ombro. A bala passou por cima da minha cabeça.

Pulei antes que atirasse segunda vez - pulei sobre ele, e estava bastante próximo para lhe derrubar a arma. A segunda bala penetrou no soalho.

Esmurrei-lhe o queixo. Ele recuou e caiu, ficando estendido no chão.

Virei-me.

Dinah Brand preparava-se para me atirar a garrafa de soda na cabeça - um sifão pesado, que certamente me converteria o crânio numa polpa.

- Não faça isso! - berrei.

- Você não devia esmurrar o rapaz desse modo - bufou a mulher.

- Bom, agora já está feito. É melhor você cuidar dele.

Largou o sifão, e eu ajudei-a a carregar o homem até a cama. Quando Rolff começou a mover os olhos, deixei-a terminar sozinha o trabalho e desci novamente à sala de jantar. Quinze minutos depois ela veio reunir-se a mim.

- Já está bem - disse. - Mas você podia tê-lo dominado sem precisar fazer aquilo.

- Sim, mas eu o fiz para o bem dele. Sabe por que razão o rapaz atirou contra mim?

- Para que eu não tivesse a quem vender os segredos de Max?

- Não. Porque eu tinha visto você esbofeteá-lo.

- Não compreendo isso - volveu ela. - Fui eu que dei as bofetadas.

- Ele está apaixonado por você, e não é a primeira vez que isso acontece. Rolff portou-se como se já soubesse que de nada servia resistir. Mas você não pode esperar que ele goste que outro homem a veja bater-lhe na cara.

- Eu pensava que conhecia os homens - queixou-se ela - mas, por Deus, não os conheço. São todos uns lunáticos.

- De modo que o esmurrei para lhe devolver um pouco de respeito próprio. Você sabe, eu o tratei como a um homem, e não como a um pobre infeliz em quem até as mulheres batem.

- Como quiser - suspirou. - Desisto. Devíamos tomar outro drinque.

Tomamo-lo, e eu disse:

- Você ia dizendo que trabalharia comigo se lhe desse uma parte do dinheiro de Willsson. Eu lhe darei.

- Quanto?

- O que você ganhar. O que valer o seu trabalho.

- Isso é muito incerto.

- Assim é a sua ajuda, que eu saiba.

- É? Posso dar-lhe informações em penca, amigo; não pense que não. Sou uma pequena que conhece a sua Poisonville. - Baixou os olhos sobre as meias cinzentas, sacudiu uma perna na minha direção e disse indignada: - Olhe para isto. Outro fio corrido. Já viu coisa igual? Francamente! Vou andar sem meias.

- Suas pernas são grandes demais - disse eu. - Forçam muito o material.

- Basta. Qual é o seu plano para purificar a nossa aldeia?

- Se não me mentiram, Thaler, Pete e o Finlandês, Lew Yard e Noonan são os homens que fizeram de Poisonville a mixórdia perfumada que é agora. Ao velho Elihu também cabe uma parte da culpa, mas decerto não toda. Além disso, é meu cliente, embora contra a vontade, por isso prefiro não o tratar com rigor.

- A melhor idéia que tenho é procurar desenterrar o máximo de sujeira que seja comprometedora para os outros, e tirar dela todo o proveito possível. Talvez ponha um anúncio nos jornais:

Procura-se um Crime - Qualquer Sexo. Se eles são tão patifes como me parece, eu não teria muita dificuldade em encontrar uma acusação ou duas contra essa gente.

- Era isso que você pretendia quando transtornou a combinação da luta de boxe?

- Aquilo foi unicamente uma experiência, só para ver o que acontecia.

- Então é assim que vocês, detetives científicos, trabalham. Meu Deus! Para um camarada gordo, maduro, cabeçudo e escolado, você tem os mais vagos planos de trabalho que eu conheço.

- Às vezes, um plano é coisa muito útil - disse. - Outras vezes, dá bom resultado revolver um pouco as coisas - se se é bastante rijo para sobreviver, e manter os olhos abertos a fim de ver quando o que se procura sobe à superfície.

- Isso faz jus a outro drinque - disse ela.

 

                                    A Colher de Dinah Brand

TOMAMOS outro drinque. Dinah Brand largou o copo, lambeu os lábios, e disse:

- Se agitar um pouco as coisas é o seu sistema, eu tenho uma ótima colher para você. Nunca ouviu falar de Tim, o irmão de Noonan, que se suicidou há uns dois anos em Mock Lake?

- Não.

- Não teria ouvido muita coisa boa. De qualquer forma, não foi suicídio. Max matou-o.

- É?

- Pelo amor de Deus, desperte, homem. Isso que eu estou lhe dizendo é um fato. Noonan era como um pai para o Tim. Leve-lhe as provas, e ele sairá atrás de Max como uma fera. É o que você quer, não?

- Temos provas?

- Duas pessoas encontraram Tim ainda com vida, e ele contou-lhes que tinha sido Max o assassino. Ambas ainda estão na cidade, mas uma delas não há de viver por muito tempo. Que tal?

Ela parecia estar falando verdade, posto que nas mulheres, mormente as de olhos azuis, isso nem sempre queira dizer alguma coisa.

- Vamos ouvir o resto - retorqui. - Gosto de saber os detalhes e essas coisas todas.

- Já lhe conto. Nunca foi a Mock Lake? Pois é o nosso ponto de veraneio, a trinta milhas pela estrada do canyon. É uma biboca, mas muito fresca no verão, de modo que vale a pena. Foi no verão há um ano, no último fim de semana de agosto. Eu tinha ido para lá com um camarada de nome Holly. Está agora na Inglaterra, mas isso não importa, porque ele não tem nada que ver com o caso. Era um tipo engraçado, parecia uma mulher velha - usava meias de seda branca viradas do avesso para que os fios soltos não lhe magoassem os pés. Recebi carta dele a semana passada. A carta deve andar por aí, mas isso não faz diferença.

- Nós estávamos lá, e Max também com uma pequena com quem às vezes se juntava - Myrtle Jennison. Ela está agora no hospital - o City - morrendo do mal de Bright, ou coisa que o valha. Naquele tempo era uma garota bem bonita, uma loura delgada. Sempre gostei dela, embora ficasse importuna quando bebia muito. Tim Noonan andava louco por ela, mas, naquele verão, Myrtle só via Max.

- Tim não queria deixá-la em paz. Era um irlandês corpulento e bem-parecido, mas um imbecil e velhaco que só andava solto porque o irmão era chefe de polícia. Em qualquer parte aonde Myrtle fosse, lá aparecia ele mais cedo ou mais tarde. Myrtle não gostava de falar nisso a Max, pois não queria que Max se metesse em furdunço com o irmão de Tim, o chefe.

- De modo que Tim naturalmente foi a Mock Lake naquele sábado. Myrtle e Maz tinham ido sós. Holly e eu estávamos num rancho; mas falei com Myrtle, e ela me contou que tinha recebido um bilhete de Tim, pedindo-lhe que fosse encontrar-se com ele por alguns minutos naquela noite, num dos caramanchões do terreno do hotel. Jurava que se mataria se ela não fosse. Foi um troça para nós - o grande farsante! Procurei dissuadi-la de ir, mas Myrtle tinha bebido o bastante para se sentir alegre, e respondeu que ia dizer algumas verdades a Tim.

- Aquela noite, estávamos todos dançando no hotel. Max andou algum tempo por ali, e depois não o vi mais. Myrtle dançava com um sujeito chamado Rutgers, um advogado aqui da cidade. Deixou-o pouco depois e saiu por uma das portas laterais. Piscou-me o olho ao passar, e fiquei sabendo que ia encontrar-se com Tim. Logo depois que saiu, ouvi o tiro. Ninguém mais prestou atenção. Creio que também não teria notado se não soubesse da entrevista entre Myrtle e Tim.

- Disse a Holly que queria falar com Myrtle, e saí atrás dela, sozinha. Devo ter deixado o salão cinco minutos depois de Myrtle. Chegando ao terreiro vi luzes embaixo, num dos caramanchões, e gente. Desci para lá, e... Isso de falar muito dá sede.

Enchi dois copos de gim. Dinah dirigiu-se à cozinha para buscar outro sifão e mais gelo. Misturamo-los, bebemos, e ela tornou à sua narração:

Lá estava Tim Noonan, morto, com um buraco na fonte e a pistola caída no chão, ao seu lado. Havia talvez uma dúzia de pessoas em torno - gente do hotel, hóspedes e um dos homens de Noonan, um policial chamado MacSwain. Assim que me viu, Myrtle afastou-se comigo da multidão e conduziu-me para a sombra de umas árvores.

- Max matou-o - disse. - Que é que vou fazer? Perguntei-lhe como tinha sido aquilo. Contou-me que

vira o clarão do tiro, e que a princípio pensara que Tim afinal de contas se matara mesmo. Achava-se muito longe, e estava bastante escuro, para poder enxergar mais alguma coisa. Desceu às carreiras, e encontrou-o rolando-se no chão e gemendo: "Ele não precisava me matar por causa dela. Eu podia..." Myrtle não conseguiu entender o resto. Tim rolava-se, deitando sangue pelo buraco da têmpora.

- Myrtle temia que tivesse sido Max, mas queria certificar-se, de maneira que se ajoelhou e procurou levantar a cabeça de Tim, perguntando: - Quem foi, Tim?

Ele estava nas últimas, mas antes de morrer teve bastante forças para dizer-lhe: - Max!

Myrtle não cessava de me perguntar: - Que é que vou fazer? - perguntei-lhe se havia mais alguém que tivesse ouvido Tim, e respondeu que o detetive ouvira, pois tinha chegado quando ela procurava erguer a cabeça de Tim. Myrtle achava que ninguém mais tinha estado bastante perto para ouvir, mas o detetive sim.

- Eu não queria ver Max em apuros por ter matado um sacripanta como Tim Noonan. Mas, naquele tempo, não era nada para mim, mas eu gostava dele, e não me agradava de nenhum dos Noonans. Conhecia o guita - MacSwain. Também tinha conhecido a mulher dele. MacSwain era bom rapaz, muito direito, antes de entrar na força pública. Depois tomou o mesmo caminho dos outros. A mulher suportou o mais que pôde, depois abandonou-o.

- Conhecendo o polícia, eu disse à minha amiga que achava que podíamos dar um jeito. Um pouco de dinheiro havia de enfraquecer a memória de MacSwain, e, se ele não topasse, Max podia mandar liquidá-lo. Myrtle tinha em seu poder o bilhete de Tim, com a ameaça de suicídio. Se o detetive entrasse na combinação, o buraco feito na cabeça de Tim com o seu próprio revólver, e o bilhete, bastariam para desviar as suspeitas.

- Deixei Myrtle embaixo das árvores e fui em busca de Max. Não o encontrei por ali. Não havia muita gente, e eu podia ouvir a orquestra do hotel tocando música de dança. Não consegui achar Max, de modo que voltei para junto de Myrtle. Ela estava com outra idéia. Não queria que Max soubesse que ela havia descoberto o seu crime. Estava com medo dele.

- Compreende o que quero dizer? Myrtle tinha medo que, se um dia os dois brigassem, ele, sabendo que a pequena estava ao par de fatos suficientes para o enforcar, procurasse dar cabo dela. Eu sei o que Myrtle sentia. Tive a mesma idéia mais tarde, e também guardei silêncio. Assim, resolvemos que, se pudéssemos arranjar tudo sem Max saber, tanto melhor. Eu também não queria ver-me metido na história.

- Myrtle voltou sozinha para o grupo que rodeava Tim e abordou MacSwain. Afastaram-se um pouco e fecharam negócio. Ela trazia algum dinheiro consigo. Deu-lhe duzentos e um anel de diamante que tinha custado mil dólares a um sujeito chamado Boyle. Pensei que MacSwain tornaria a exigir dinheiro, mais tarde. Mas não o fez. Cumpriu lealmente o trato. Com o auxílio da carta, conseguiu tornar verossímil a história do suicídio.

- Noonan sabia que havia algo suspeito na explicação, mas não pôde descobrir nada. Creio que desconfiou que Max tivera alguma coisa com aquilo. Mas- pode ter certeza - Max arranjou um álibi irrefutável, e penso que o próprio Noonan terminou pondo a idéia de lado. Mas Noonan jamais acreditou que o fato ocorrera como parecia ter ocorrido. Expulsou MacSwain da força pública - atirou-o no olho da rua.

- Max e Myrtle separaram-se pouco depois. Não houve briga nem nada - apartaram-se um do outro, simplesmente. Acho que ela nunca mais se sentiu à vontade perto dele; mas, que me conste, Max nunca desconfiou de que a pequena soubesse alguma coisa. Myrtle está doente agora, como já lhe disse, e não tem vida para muito tempo. Creio que não se importaria muito de contar toda a verdade, se lhe pedissem. MacSwain ainda está na cidade. Com certeza falará, se tiver alguma coisa a ganhar com isso. Os dois podem provar o crime de Max - e Noonan, como havia de se regalar! Acha isso bastante para começar a sua obra de revolver as coisas?

- Não podia ter sido suicídio? - perguntei. - E Tim Noonan ter-se lembrado, no último instante, de atirar a culpa em Max?

- Aquele bigorrilha, matar-se? Não há perigo.

- E Myrtle, não poderia tê-lo matado?

- Noonan não esqueceu essa hipótese. Mas Myrtle não podia ter percorrido nem um terço da ladeira quando se ouviu o tiro. Havia manchas de pólvora na cabeça de Tim, e ele não podia ter sido ferido e depois rolado ladeira abaixo. Myrtle está fora de questão.

- Mas o Max não tinha um álibi?

- Oh, certamente. Sempre tem. Esteve todo o tempo no bar do hotel, no outro lado do edifício. Quatro homens confirmaram. Se bem me recordo, eles o disseram abertamente e várias vezes, muito antes que alguém lhes perguntasse. Havia outros homens no bar que não se lembravam se Max estava lá ou não: mas aqueles quatro lembravam-se. Lembrar-se-iam de tudo que Max quisesse.

Seus olhos se alargaram, depois estreitaram-se em fendas tarjadas de preto. Inclinou-se na minha direção, derrubando o seu copo com o cotovelo.

- Peak Murry era um dos quatro. Ele e Max estão de mal, agora. Peak talvez queira contar direito a história. É o dono de uma sala de bilhar na Broadway.

- Esse MacSwain por acaso não se chama Bob? - perguntei. - Um homem de pernas tortas e queixada de porco?

- Sim. Conhece-o?

- De vista. Que faz ele agora?

- É um batoteiro em pequena escala. Que é que você acha do caso?

- Não é mau. Talvez eu possa tirar partido dele.

- Então vamos tratar dos cobres.

Sorri à cobiça que lhe transparecia nos olhos, e retruquei:

- Ainda não, mana. Temos de ver o que vai sair daí, antes de começarmos a esparramar nossos vinténs.

Ela me chamou de sovina dos diabos, e estendeu a mão para o gim.

- Eu não quero mais, obrigado - disse-lhe, olhando o relógio. - Já são quase cinco da madrugada, e tenho pela frente um dia cheio.

Dinah Brand descobriu que tinha fome outra vez. Isso me fez lembrar que também estava com fome. Foi preciso meia hora para arranjar filhos, presunto e café no fogão. Foi necessário algum tempo mais para passá-los ao estômago e fumar alguns cigarros com xícaras extras de café. Eram seis e tanto quando me preparei para sair.

Voltei ao hotel e meti-me numa banheira de água fria. Revigorou-me bastante, e eu bem o precisava. Aos quarenta anos, podia passar com gim com o sucedâneo do sono, mas não muito agradavelmente.

Depois de me vestir, sentei-me e redigi uma declaração:

 

Antes de morrer, Tim Noonan declarou-me que fora baleado por Max Thaler. O detetive MacSwain ouviu essa declaração. Dei ao detetive MacSwain $200 e um anel de brilhante no valor de $1,000 para se calar e fazer que parecesse suicídio.

 

Com esse papel no bolso, desci ao rés-do-chão, tomei outra refeição composta quase unicamente de café, e dirigi-me ao City Hospital.

A hora de visita era à tarde, mas, exibindo as minhas credenciais da Agência Continental de Detetives e dando a entender a todo o mundo que uma pequena demora poderia causar milhares de mortes, ou coisa parecida, consegui licença para falar com Myrtle Jennison.

Estava numa sala do terceiro andar, sozinha. Os outros quatro leitos achavam-se vazios. Ela tanto podia ser uma moça de vinte e cinco anos como uma mulher de cinqüenta e cinco. Seu rosto era uma máscara intumescida e sarapintada. Sobre o travesseiro estendiam-se duas trancas de um amarelo sem vida.

Esperei a saída da enfermeira que me conduzira. Depois estendi-lhe o papel e disse:

- Quer fazer o favor de assinar isto, Miss Jennison? Fitou-me carrancuda, com seus olhos empapuçados, depois

volveu-os para o documento; por fim, tirou uma gorda mão disforme debaixo das cobertas e o agarrou.

Levou cinco minutos para ler as quarenta e duas palavras que eu tinha escrito. Deixou cair o documento sobre as cobertas e perguntou:

- Onde arranjou isso? - Sua voz era débil, irritadiça.

- Dinah Brand mandou-me falar com a senhora. Ela perguntou sofregamente:

- Dinah brigou com Max?

- Que eu saiba, não - menti. - Suponho que ela apenas quer ter isso à mão no caso de poder ser-lhe útil.

- E levar um talho na garganta, a idiota. Dê-me um lápis.

Dei-lhe a minha caneta automática e firmei o meu caderno de notas embaixo do documento, enquanto ela garatujava a sua assinatura, para o ter nas mãos assim que terminasse. Enquanto eu sacudia o papel a fim de secá-lo, Myrtle Jennison disse:

- Se é isso o que ela quer, está bem. Que me importa o que os outros façam agora? Estou liquidada. Que vão todos para o inferno! - Teve um acesso de riso, e subitamente levantou as cobertas até os joelhos, mostrando-me um corpo inchado numa camisola branca e grosseira. - Que tal lhe pareço? Veja, estou liquidada.

Estendi novamente as cobertas por cima dela, e disse:

- Obrigado, Miss Jennison.

- Está bem. Já não tem nenhuma importância para mim. Apenas... - seu queixo balofo tremeu - é um inferno ter de morrer assim miseravelmente.

 

                                     Uma Nova Política

SAÍ à procura de MacSwain. Nem no anuário da cidade, nem no guia telefônico, encontrei informações a seu respeito. Andei pelas salas de bilhar, tabacarias, botecos, primeiramente olhando, depois fazendo discretas indagações. Nada consegui. Percorri as ruas, atentando nas pernas tortas que encontrava. Nada. Resolvi tornar ao hotel, dormir uma sesta, e recomeçar de noite a busca.

No vestíbulo, a um canto afastado, um homem baixou o jornal atrás do qual se escondia e veio ao meu encontro. Tinha pernas tortas, queixada de porco, e era MacSwain.

Acenei-lhe despreocupadamente e continuei a caminhar na direção do elevador. Ele me seguiu, sussurrando:

- Eh! Pode dispor de um minuto?

- Um minuto, posso. - Parei, simulando indiferença.

- Vamos para algum lugar mais retirado - fez MacSwain, nervosamente.

Levei-o para o meu quarto. Escarranchou-se numa cadeira e meteu um palito de fósforo na boca. Sentei-me na borda da cama e esperei que falasse. Mastigou o palito por algum tempo e começou:

- Vou abrir-me com você, companheiro. Eu...

- Por outra, você vai confessar que me conhecia quando falou comigo ontem de tarde? - atalhei. - E vai confessar que Bush não lhe tinha dito que apostasse nele? E que você só apostou depois? E que conhecia os antecedentes dele porque você foi da polícia? E que pensou que, se pudesse induzir-me a falar com o rapaz, poderia arrecadar alguns cobres jogando nele?

- Macacos me mordam se eu tencionava confessar tudo isso - retorquiu. - Mas, uma vez que falou, respondo que sim.

- Você ganhou?

- Ganhei seiscentos bagarotes. - Empurrou o chapéu para trás e cocou a testa com a ponta mascada do fósforo. - Depois perdi tudo aquilo e mais duzentos e tantos numa partida de dados. Que me diz a isso? Levanto seiscentos dólares brincando, e tenho de pechinchar cinqüenta cents para o almoço.

Respondi que era muito azar, mas que o mundo era assim mesmo.

Ele fez "hum-hum", tornou a pôr o palito de fósforo na boca, mastigou-o mais um pouco, e acrescentou:

- Foi por isso que eu pensei em vir falar com você. Também fiz parte do bando, e...

- Por que é que Noonan lhe deu o bilhete azul?

- Bilhete azul? Que bilhete? Eu pedi demissão. Houve uma mudança na minha sorte quando a patroa morreu num desastre de automóvel - um seguro de vida - e pedi demissão

- Ouvi dizer que ele o pôs no olho da rua quando o irmão se matou.

- Então informaram-no mal. Foi logo depois daquilo, mas pode perguntar a Noonan se eu não me demiti.

- Não me interessa tanto assim. Continue a me contar por que veio falar comigo.

- Estou na pindaíba. Sei que você é agente da Continental, e calculo o que está fazendo aqui. Tenho relações com uma turma que anda metida em todos os negócios escusos desta cidade. Sendo um ex-detetive, e conhecendo as coisas por dentro, eu podia fazer muita coisa para você.

- Quer ser meu espião?

Olhou-me diretamente nos olhos e disse com pachorra:

- Não há motivo para um homem escolher a pior palavra que pode encontrar.

- Vou dar-lhe um trabalho, MacSwain. - Tirei do bolso a declaração de Myrtle Jennison e lhe entreguei. - Esclareça-me esta história.

MacSwain leu atentamente, soletrando as palavras e sacudindo o fósforo para cima e para baixo na boca. Levantou-se, pôs o papel na cama, a meu lado, e fitou-o com ar sombrio.

- Primeiro tenho de averiguar uma coisa - disse, muito solenemente. - Daqui a pouco estou de volta e conto-lhe tudo.

Ri, e retruquei:

- Não seja tolo. Bem sabe que eu não vou deixá-lo escapar.

- Isso é que eu não sei. - Sacudiu a cabeça, ainda solene. - Nem você. Tudo o que pode garantir é que vai procurar deter-me.

- A resposta é sim - volvi, enquanto refletia que o sujeito era bastante forte e rijo, com seis ou sete anos e vinte ou trinta libras menos do que eu.

Ele quedou-se ao pé da cama, fitando-me com um olhar grave. Eu continuava sentado na beira da cama e olhava-o o mais firmemente que podia. Ficamos assim cerca de três minutos.

Empreguei parte do tempo medindo a distância existente entre nós, e imaginando o plano de atirar-me de costas no leito e virar de lado para lhe meter os calcanhares na cara, se ele quisesse pular em cima de mim. Estávamos muito próximos para eu poder puxar o revólver. Acabava de fazer o meu mapa mental quando o homem falou:

- O raio do anel não valia nada. A muito custo consegui vendê-lo por duzentas pratas.

- Sente-se e conte-me tudo.

Sacudiu novamente a cabeça e retorquiu:

- Primeiro quero saber o que você tenciona fazer.

- Engaiolar o Cochicho.

- Não é isso. Pergunto o que vai fazer de mim.

- Terá de ir ao Hall comigo.

- Não vou.

- Por que não? Você é apenas uma testemunha.

- Sou apenas uma testemunha que Noonan pode acusar de suborno, ou de cumplicidade após o ato, ou as duas coisas. E para ele essa oportunidade seria um presente do céu.

O bate-papo não parecia trazer nenhum resultado. Eu retruquei:

- É pena. Mas você vai falar com ele.

- Experimente levar-me.

Endireitei o corpo e levei a mão direita ao quadril.

MacSwain pulou. Atirei o corpo para trás, virei-me de lado e arremessei os pés contra ele. Era uma boa manobra, mas falhou. Na sua pressa de pôr-me as mãos, o ex-detetive deu um encontrão na cama e arredou-a o suficiente para me fazer cair ao chão.

Tombei estirado de costas. Continuava tentando puxar o revólver, ao mesmo tempo que procurava rolar para baixo da cama.

Errando o pulo, MacSwain tropeçou na travessa da cama, bateu na borda e virou uma cambalhota, caindo com a nuca no chão.

Encostei-lhe o cano do revólver no olho esquerdo e disse:

- Você nos está convertendo num bom par de palhaços. Fique quieto enquanto eu me levanto, ou abro-lhe um buraco na cabeça para deixar sair os miolos.

Levantei-me, encontrei e meti no bolso o documento, e deixei que ele se erguesse também.

- Ajeite o chapéu e a gravata, a fim de não me envergonhar na rua - ordenei, depois de passar-lhe a mão pela roupa e verificar que não trazia nenhum volume que pudesse ser uma arma. - Pode ficar tranqüilo, que vou pôr esta pistola no bolso do sobretudo, com a minha mão em cima dela.

Endireitou o chapéu e a gravata, e disse:

- Escute aqui; eu creio que estou entalado, e não adianta estrilar. Suponhamos que eu me porte bem. Você será capaz de esquecer esta escaramuça? É que... talvez eu seja mais bem tratado se pensarem que não foi preciso você me levar de arrasto.

- Está bem.

- Obrigado companheiro.

 

Noonan tinha saído para comer. Tivemos de esperar meia hora na ante-sala. Quando chegou, acolheu-me com os costumeiros "como vai?", "mas que prazer" e assim por diante. Não disse nada a MacSwain - limitou-se a olhá-lo friamente.

Entramos no gabinete particular do chefe. Ele aproximou da sua escrivaninha uma cadeira para mim, e sentou-se na sua, ignorando o ex-policial.

Dei a Noonan a declaração da moça doente.

O chefe de polícia lançou-lhe um olhar, pulou da cadeira, e assentou um punho do tamanho de um melão na cara de MacSwain.

A força do murro atirou MacSwain de encontro à parede. A parede rangeu, e uma fotografia emoldurada, de Noonan e outros dignitários locais recebendo algum figurão de polainas, caiu ao chão ao mesmo tempo que o homem.

O gordo chefe de polícia seguiu-o bamboleando, apanhou o quadro e espatifou-o na cabeça e nos ombros de MacSwain.

Depois, Noonan voltou à escrivaninha, bufando, sorrindo-me, e dizendo alegremente:

- Esse sujeito é um refinado canalha.

MacSwain sentou-se e olhou em torno de si, com boca, nariz e cabeça a sangrar. Noonan rugiu-lhe:

- Venha cá, você.

MacSwain disse: "Sim chefe", levantou-se com esforço e correu para a escrivaninha.

Noonan ordenou: - Conte tudo, ou eu o mato.

- Sim, chefe - tornou MacSwain. - Foi assim como ela disse, só que aquela pedra não valia mil dólares. Mas ela me deu a pedra e mais duzentos dólares para calar o bico, porque eu cheguei lá justamente quando ela estava perguntando: "Quem foi, Tim?" e ele respondia: "Max!" Ele falou assim numa voz alta e aguda, como se estivesse fazendo força para dizer aquilo antes de morrer, porque morreu logo em seguida, quase antes de poder terminar. Foi assim, chefe, mas a pedra não valia...

- Vá para o diabo com a sua pedra - vociferou Noonan. - E pare de sangrar no meu tapete.

MacSwain tirou do bolso um lenço sujo, enxugou o nariz e a boca, e continuou:

- Foi assim, chefe. Tudo o mais foi como eu contei naquele tempo, só não disse que o ouvi declarar que tinha sido Max. Sei que não devia...

- Cale a boca - interrompeu Noonan, e apertou um dos botões da sua escrivaninha.

Entrou um policial de uniforme. O chefe sacudiu o polegar na direção de MacSwain e disse:

- Leve este garoto para o porão e deixe a rapaziada malhá-lo à vontade antes de metê-lo na cadeia.

MacSwain começou uma súplica desesperada: "Oh, chefe!" mas o policial levou-o antes que pudesse prosseguir.

Noonan apresentou-me um charuto, bateu com outro no documento, e perguntou:

- Onde está essa tipa?

- No City Hospital, à morte. Vai pedir ao promotor que obtenha dela uma declaração em regrar Essa não é tão boa legalmente; eu a redigi apenas para fazer efeito. Outra coisa: ouvi dizer que Peak Murry e Cochicho estão desavindos. Murry não era uma das testemunhas dele?

- Era - volveu o chefe, e apanhando um dos telefones, disse: - McGraw - e depois: - Procure Peak Murry e peça-lhe que venha cá. E mande prender Tony Agosti por aquela facada de ontem.

Largou o fone, levantou-se, soltou uma nuvem de fumaça e disse através dela:

- Eu nem sempre andei direito com você.

Achei a expressão muito moderada, mas calei-me, enquanto Noonan continuava:

- Você sabe onde tem o nariz. Sabe como é o nosso serviço. É preciso ouvir uns e outros. Por um homem ser chefe de polícia, não quer dizer que é o chefe. Talvez você moleste alguém que possa a vir molestar-me. Que eu ache que você é um sujeito decente, isso não faz diferença. Tenho de ajudar os que me ajudam. Compreende?

Balancei a cabeça para mostrar que compreendia.

- A coisa era assim - prosseguiu. - Mas agora não é mais. Isto é uma nova política. Quando a velha estirou a canela, Tim era ainda um rapazote. Ela me disse: "Cuida dele, John", e eu prometi. Depois o Cochicho o mata por causa daquela vagabunda. - Curvou-se e tomou-me a mão. - Está vendo aonde eu quero chegar? Foi há um ano e meio, e você me dá a primeira oportunidade de provar o crime. De hoje em diante, não consinto que ninguém procure amofiná-lo.

Isso me agradou e manifestei-lhe minha satisfação. Estivemos arrulhando até que introduziram um homem esguio com um nariz extremamente arrebitado no meio de uma cara redonda e sardenta. Era Peak Murry.

- Nós estávamos pensando - disse o chefe, depois de apresentar uma cadeira e um cigarro a Murry - onde andaria o Cochicho quando morreu Tim. Você estava em Mock Lake naquela noite, não estava?

- Estava - retorquiu Murry, e a ponta do nariz se fez mais aguçada.

- Com o Cochicho?

- Não, não estive com ele.

- Estava com ele no momento do tiro?

- Não.

Os olhos do chefe se tornaram menores e mais brilhantes. Perguntou suavemente:

- Sabe onde ele estava?

- Não.

O chefe deu um suspiro de satisfação e inclinou-se para trás em sua cadeira.

- Diabo, Peak - observou - você nos disse, antes, que estava com ele no bar.

- Sim, disse - admitiu o escanifrado Murry. - Mas isso não quer dizer nada; ele me pediu, e eu não me importo de ajudar um amigo.

- Escute, você não se importa de ser processado por perjúrio?

- Não brinque. - Murry cuspiu vigorosamente na escarradeira. - Eu não disse nada em juízo.

- E quanto a Jerry, George Kelly e O'Brien? - perguntou o chefe. - Também disseram que tinham estado com o Cochicho só porque ele pediu?

- O'Brien sim. Quanto aos outros, não sei. Eu ia saindo do bar quando dei de cara com o Cochicho, Jerry e Kelly, e voltei para tomar um gole com eles. Kelly me disse que tinham liquidado o Tim. Vai o Cochicho e diz: "Não faz mal a ninguém ter um álibi. Nós estivemos aqui todo o tempo, não é?" e olha para O'Brien, que está atrás do balcão. O'Brien diz: "Claro que estávamos, e quando o Cochicho olha para mim eu dou a mesma resposta. Mas não sei por que havia de proteger o Cochicho agora.

- E Kelly disse que Tim havia sido liquidado? Não disse que o tinham encontrado morto?

- "Liquidado" foi o que ele disse.

- Obrigado, Peak - tornou o chefe. - Você não devia ter dito aquilo; mas o que está feito, está feito. Como vão os garotos?

Murry disse que iam bem, apenas o bebê não era tão gordo como ele desejaria. Noonan telefonou ao gabinete do promotor e fez Dart e um estenógrafo registrarem as declarações de Peak antes que este se fosse.

Noonan, Dart e o estenógrafo dirigiram-se ao City Hospital a fim de obter o depoimento completo de Myrtle Jennison. Não os acompanhei. Precisava dormir, disse ao chefe de polícia que nos encontraríamos mais tarde, e voltei ao hotel.

 

                                         $ 200,10

TINHA desabotoado o colete quando soou a campainha do telefone.

Era Dinah Brand, queixando-se que desde as dez horas procurava falar comigo.

- Você fez alguma coisa a respeito daquele assunto que eu lhe falei? - perguntou.

- Estive investigando. Parece que serve. Talvez atire a bomba esta tarde.

- Não faça isso. Suspenda tudo até falar comigo. Pode vir agora?

Olhei para a cama vazia e retorqui, sem muito entusiasmo:

- Posso.

Outro banho de água fria me fez tão pouco bem, que quase adormeci dentro da banheira.

Dan Rolff me fez entrar quando toquei a campainha da casa da mulher. Portava-se como se não tivesse ocorrido nada anormal na noite anterior. Dinah Brand veio ao vestíbulo para me ajudar a tirar o sobretudo. Trazia um vestido de lã parda, descosido cerca de cinco centímetros num dos ombros.

Levou-me à sala de estar. Sentou-se a meu lado no sofá Chesterfield, e disse:

- Vou-lhe pedir um favor. Você gosta bastante de mim, não é?

Admiti que sim. Ela contou os nós de minha mão esquerda com um dedo morno, e explicou:

- Quero que você não dê mais nenhum passo a respeito daquilo que eu lhe contei a noite passada. Agora espere um minuto. Espere até que eu termine. Dan tinha razão. Eu não devia atraiçoar Max daquela forma. Seria verdadeiramente asqueroso. Além disso, é principalmente Noonan que você quer pegar, não é? Bem, se você for bonzinho e deixar Max de lado desta vez, eu lhe darei o bastante para arrasar Noonan por toda a vida. Você preferirá isso não é? E gosta muito de mim para se aproveitar da informação que eu lhe dei quando estava enfurecida com o que Max tinha dito, não é?

- Que é que tem a dizer sobre Noonan? - perguntei. Ela comprimiu o bíceps, e murmurou:

- Promete?

- Ainda não.

Fez um muxoxo e disse:

- Estou de mal com Max, palavra. Você não tem o direito de me obrigar a fazer uma ursada.

- Que é que você queria dizer sobre Noonan?

- Primeiro, prometa.

- Não.

Ela fincou os dedos no meu braço e perguntou asperamente:

- Já foi falar com Noonan?

- Já.

Soltou-me o braço, franziu as sombrancelhas, deu de ombros, e disse sombriamente:

- Bom, que é que eu vou fazer? Ergui-me, e uma voz disse:

- Sente-se.

Era um cochicho rouco - a voz de Thaler.

Virei-me e vi-o parado na porta da sala de jantar, com um enorme revólver em cada uma das mãos pequenas. Um homem de cara vermelha e cicatriz na face estava atrás dele.

Enquanto me sentava, a outra porta - a que dava para o vestíbulo - encheu-se. O homem de boca mole e sem queixo que eu ouvira Thaler chamar de Jerry, entrou por ela, avançando um passo. Trazia duas pistolas. Por cima do seu ombro espreitava o mais anguloso dos rapazotes louros que tinham estado no antro de King Street.

Dinah Brand levantou-se do Chesterfield, virou as costas para Thaler, e falou-me numa voz rouca de raiva.

- Isso não foi obra minha. Ele veio aqui sozinho, declarou que lamentava tudo o que tinha dito, e mostrou-me como poderíamos ganhar dinheiro em penca entregando-lhe Noonan. Era uma armadilha, mas eu me deixei apanhar. - Juro por Deus! Ele devia ficar esperando lá em cima enquanto eu falava com você. Eu não sabia da presença dos outros. Não...

A voz displicente de Jerry engrolou:

- Se eu lhe desse um tiro nos pés, ela decerto se sentava, e talvez se calasse. Que tal?

Eu não podia ver o Cochicho, porque a pequena se interpusera entre nós. Mas ouvi-o dizer:

- Agora não. Onde está Dan?

O rapazola anguloso e louro disse:

- No banheiro. Tive de meter-lhe a borracha.

Dinah Brand voltou-se para encarar Thaler. As costuras das meias faziam curvas no dorso das suas grossas pernas. Ela disse:

- Max Thaler, você é um maldito... O outro sussurrou calmamente:

- Cale a boca e saia da frente.

Ela surpreendeu-me fazendo ambas as coisas, e manteve-se quieta enquanto o Cochicho me falava:

- Então você e Noonan estão querendo atirar a morte do irmão dele nas minhas costas?

- Não foi preciso atirar. Chegou lá naturalmente.

Contraiu os lábios finos e disse:

- Você é tão velhaco quanto ele. Retruquei:

- Você bem sabe. Estive do seu lado quando ele procurou envolvê-lo injustamente. Desta vez Noonan o quer, prender com razão.

Dinah Brand irritou-se novamente e pôs-se o sacudir os braços no meio da sala, gritando:

- Saiam daqui, vocês todos. Que diabo tenho eu que ver com as suas questões? Saiam.

O rapaz louro que tinha esbordoado Rolff espremeu-se entre Jerry e a porta, e entrou sorrindo na sala. Agarrou um dos braços que a pequena agitava e dobrou-lho às costas.

Ela se torceu na direção do rapazote e esmurrou-lhe o ventre com o outro punho. Foi uma pancada respeitável - com a força de um homem. Fê-lo soltar-lhe o braço e recuar dois passos.

O rapaz engoliu uma golfada de ar, sacou de um cacete que trazia à cintura, e avançou novamente.

Jerry deu uma risada que fez desaparecer o pouco de queixo que tinha.

Thaler sussurrou asperamente:

- Deixa-a!

O rapaz não ouviu. Rosnava ameaçadoramente para a mulher.

Ela o olhava, com a fisionomia dura como um dólar de prata, enquanto firmava a maior parte do corpo no pé esquerdo. Pensei que o rapazola iria defender-se de um pontapé, quando ele avançou.

O ruivo ameaçou com a mão esquerda desocupada e descarregou-lhe o cacete no rosto.

Thaler murmurou novamente: - Deixe-a - e fez fogo.

O projétil atingiu-o debaixo do olho direito; o rapaz girou sobre si mesmo e caiu para trás, nos braços de Dinah Brand.

Parecia aquele o momento mais azado que se me podia deparar.

Eu me aproveitei da confusão para levar a mão ao quadril. Saquei do revólver e atirei contra Thaler, visando-o no ombro.

Foi um erro. Se tivesse procurado um alvo melhor, teria acertado. Jerry, o sem queixo, estava alerta. Atirou antes do que eu. Sua bala queimou-me o pulso, desviando-me a pontaria. Mas o meu projétil, não atingindo Thaler, foi derrubar o outro homem, o de cara vermelha, que estava atrás dele.

Desconhecendo a gravidade do ferimento no meu pulso, passei a arma para a mão esquerda.

Jerry alvejou-me outra vez. A pequena atrapalhou-o, atirando-lhe o cadáver do rapaz louro. A cabeça inerte foi bater-lhe nos joelhos. Aproveitando a momentânea perda de equilíbrio de Jerry, pulei sobre ele.

O pulo salvou-me do tiro de Thaler, e levou-me de cambulhada com Jerry para o vestíbulo.

Jerry não era duro de lidar, mas eu precisava agir rapidamente. Tinha deixado Thaler atrás de mim. Esmurrei duas vezes Jerry, dei-lhe pontapés e umas cabeçadas, e procurava lugar onde morder quando o senti afrouxar-se debaixo de mim. Golpeei-o novamente no queixo - só para me certificar de que não estava fingindo - e afastei-me de gatinhas pelo vestíbulo, procurando afastar-me da porta.

Acocorei-me de costas contra a parede, apontei o revólver para a parte da casa em que se achava Thaler, e aguardei. No momento, não podia ouvir nada, exceto o sangue a latejar-me nas têmporas.

Dinah Brand apareceu na porta onde passáramos, olhou para Jerry, depois para mim. Sorriu com a língua entre os dentes, fez-me um aceno com a cabeça, e voltou à sala de estar. Segui-a cautelosamente.

Cochicho estava no meio da sala. Tinha as mãos vazias, e o rosto inexpressivo. Tirante a boca maligna, parecia um manequim exibindo roupas na vitrina de uma loja.

Atrás dele estava Dan Rolff, com o cano de uma pistola encostado ao rim esquerdo do jogador. A cara de Rolff achava-se coberta de sangue. O rapazote louro - agora morto no soalho, entre mim e Rolff - havia-o esbordoado a valer.

Sorri para Thaler e disse: - Bem, isso é esplêndido - antes de perceber que Rolff segurava outra arma apontada ao meu peito. Aquilo já não era tão esplêndido. Mas eu tinha o meu revólver razoavelmente erguido na mão. No mínimo, as minhas probabilidades eram iguais.

Rolff disse:

- Baixe a pistola.

Olhei para Dinah um tanto perplexo. Ela deu de ombros e disse-me:

- Parece que Dan agora é o rei da festa.

- Ah, é? Alguém devia dizer-lhe que eu não gosto de brincadeiras assim.

Rolff repetiu:

- Baixe a pistola. Retruquei com azedume:

- Macacos me mordam se o fizer. Gastei vinte libras para apanhar este pássaro e posso gastar outras tantas com o mesmo fim.

Rolff tornou:

- Não me interessa o que há entre vocês, e não tenho a intenção de entregar nenhum dos dois...

Dinah Brand pôs-se a caminhar pela sala. Ao colocar-se atrás de Rolff, eu interrompi o tísico dizendo à pequena:

- Se você lhe passar uma rasteira agora, certamente fará dois amigos: Noonan e eu. Não pode mais fiar-se em Thaler, de modo que é inútil ajudá-lo.

Ela riu e disse:

- Vamos tratar de dinheiro, querido.

- Dinah! - protestou Rolff. Estava à sua mercê. Dinah se postara atrás dele, e era bastante forte para o dominar. Não era provável que Dan disparasse contra ela, e nenhuma outra coisa a impediria de fazer o que decidisse.

- Cem dólares - propus.

- Santos Deus! - exclamou a mulher. - Afinal consegui que você me oferecesse dinheiro! Mas não basta.

- Duzentos.

- Está ficando pródigo. Mas ainda não posso ouvir.

- Abra os ouvidos - tornei. - Posso oferecer isso para poupar-me o trabalho de fazer saltar a pistola da mão de Rolff com um tiro; mas é o máximo.

- Você começou bem. Não desanime. Mais um lance, ao menos.

- Duzentos dólares e dez cents, e só.

- Seu tratante - disse ela - Não aceito.

- Como quiser. - Fiz uma careta ao Cochicho e avisei-lhe: - Aguarde os acontecimentos e faça o favor de ficar quieto.

Dinah gritou:

- Espere! Você vai mesmo fazer alguma coisa?

- Vou levar Thaler comigo, custe o que custar.

- Duzentos e dez cents?

- Está bem.

- Dinah - exclamou Rolff, sem desviar de mim os olhos - tu não...

Mas a pequena riu, aproximou-se dele, e rodeou-o com os braços vigorosos, fazendo-o baixar os seus e conservando-os presos junto ao corpo.

Arredei Thaler do caminho com o braço direito, e conservei a pistola apontada contra ele enquanto tirava as armas das mãos de Rolff. Dinah soltou-o.

O tísico deu dois passos na direção da sala de jantar e disse em voz fraca: - Não há... - e caiu sem sentidos no chão.

Dinah correu para ele. Eu empurrei Thaler pela porta do vestíbulo, fi-lo passar por Jerry, ainda inconsciente, e conduzi-o até o vão da escada da frente, onde havia um telefone.

Chamei Noonan e comuniquei-lhe que tinha pegado Thaler, na casa de Dinah.

- Santa Mãe de Deus! - disse o chefe de polícia. - Não o mate antes de eu chegar aí.

 

                                 Max

ESPALHOU-SE rapidamente a notícia da captura do Cochicho. Quando Noonan, os policiais que levara consigo, e eu, conduzimos o jogador e o já desperto Jerry ao City Hall, havia pelo menos cem pessoas em torno do edifício a observar-nos.

Nem todos pareciam satisfeitos. Os policiais de Noonan - uma turma bastante esfarrapada - circulavam por ali, de rostos pálidos e desfigurados. Mas Noonan era o homem mais radiante a oeste do Mississipi. Nem o seu malogro em tentar intimidar Cochicho conseguiu estragar-lhe a felicidade.

Cochicho resistiu a tudo que lhe puderam fazer. Falaria ao seu advogado, disse, e a mais ninguém; e fechou-se em copas. Por mais que Noonan o odiasse, não podia maltratar aquele prisioneiro, não podia entregá-lo à sua rapaziada. Cochicho matara o irmão do chefe de polícia, e o chefe tinha-lhe ódio; mas Thaler ainda dispunha de muita influência em Poisonville para que o pudessem seviciar.

Finalmente;, Noonan cansou-se de esgrimir com o seu prisioneiro, e mandou que o encerrassem na prisão, no último andar do City Hall. Acendi outro charuto de Noonan e li as minuciosas declarações que o chefe obtivera da mulher no hospital. Não havia nada que eu já não soubesse por intermédio de Dinah ou MacSwain.

O chefe convidou-me a jantar em sua casa, mas pretextei que o meu pulso - agora envolto em ataduras - me incomodava. Na realidade, era pouco mais que uma queimadura.

Enquanto falávamos sobre isso, dois detetives em traje civil trouxeram o indivíduo de cara vermelha a quem eu ferira com a bala destinada a Cochicho. Tivera uma costela quebrada, e escapulira-se pela porta dos fundos durante o nosso entrevero. Os homens de Noonan tinham-no capturado num consultório médico. O chefe não conseguiu arrancar-lhe nada, e mandou-o para o hospital.

Levantei-me e dispus-me a sair, dizendo:

- Dinah Brand foi quem me deu as primeiras informações sobre este assunto. Por isso lhe pedi que os deixasse em paz, a ela e a Rolff.

O chefe apoderou-se da minha mão esquerda, pela quinta ou sexta vez nas últimas duas horas.

- Se você quer que ela seja protegida, é o quanto basta - assegurou-me. - Mas se Dinah Brand colaborou para prender aquele miserável, pode dizer-lhe que, quando precisar de alguma coisa, é só avisar.

Respondi que transmitiria o recado e fui para o hotel, pensando naquela cama branca e acolhedora. Mas eram quase oito horas e o meu estômago exigia atenção. Dirigi-me à sala de refeições e aquietei-o.

Então uma cadeira de couro me tentou a deter-me no vestíbulo enquanto fumava um charuto. Fui assim levado a uma palestra com o inspetor de estradas de ferro que conhecia em St. Louis um colega meu. Depois houve um tiroteio na rua.

Chegando à porta, verificamos que os tiros provinham das vizinhanças do City Hall. Descartei-me do inspetor e encaminhei-me para lá.

Tinha percorrido dois terços da distância quando vi um automóvel descer velozmente a rua na minha direção, despejando chumbo para trás.

Recuei para a entrada de um beco e destravei a pistola. O carro aproximou-se. A luz de um foco incidiu sobre dois rostos no assento dianteiro. O do chofer era-me desconhecido. A parte superior do outro estava oculta por um chapéu bem enterrado na cabeça; a parte inferior era a do rosto de Cochicho.

No lado fronteiro da rua estava a entrada de outra quadra da viela, iluminada na extremidade oposta. Entre mim e a luz, alguém se moveu precisamente quando o carro de Cochicho passou estrepitando rua abaixo. Esse alguém esgueirava-se de uma sombra para outra.

O que me fez esquecer Cochicho foi que as pernas da pessoa pareciam tortas.

Uma carrada de policiais passou zunindo e atirando contra o automóvel dos fugitivos.

Atravessei correndo a rua e entrei na parte da viela onde se achava o homem de pernas tortas.

Se era o que eu procurava, podia apostar que não estava armado. Confiando nisso, avancei pelo meio da lodosa viela, perscrutando as sombras com os olhos, ouvidos e nariz.

Três quartos de quadra, e uma sombra destacou-se de outra sombra - um homem escapando-se precipitadamente.

- Pare! - gritei, estugando o passo. - Pare ou faço fogo, MacSwain.

Deu mais meia dúzia de passos e parou, voltando-se.

- Oh, é você - disse, como se pouco lhe importasse quem o levaria de volta ao xadrez.

- Sim - confessei. - Que é que vocês andam fazendo às soltas por aí?

- Não sei de nada. Alguém dinamitou o pavimento da cadeia. Atirei-me pelo buraco, junto com os outros. Havia uns caras mantendo os policiais a distância. Escapuli-me com um grupo. Depois nos separamos, e eu estava projetando acoitar-me nos morros. Não tenho nada com a coisa. Só saí com os outros, quando a cadeia explodiu.

- Cochicho foi preso esta tarde - disse eu.

- Diabo! Então é isso. Noonan devia saber que não poderia conservar aquele sujeito engaiolado, nesta terra.

Ainda estávamos na viela, no ponto em que MacSwain parará de correr.

- Sabe por que é que ele foi preso? - perguntei.

- Hum-hum; por assassinar Tim?

- Sabe quem matou Tim?

- Ahn? Naturalmente, foi ele.

- Foi você.

- Ahn? Que é isso? Você está doido?

- Tenho uma pistola na mão esquerda - avisei.

- Mas olhe aqui - ele não disse àquela mulher que tinha sido o Cochicho? Que é que há com você?

- Ele não disse Cochicho. Já ouvi as mulheres chamarem Thaler de Max, mas nunca ouvi um homem aqui chamá-lo por outro nome que não seja Cochicho. Tim não disse Max. Disse MacS... - o princípio de MacSwain - e morreu antes de poder terminar. Não se esqueça da minha pistola.

- Por que motivo eu havia de assassinar Tim? Ele estava perseguindo a amiga do...

- Ainda não apurei isso - reconheci - mas deixe ver: Você e sua mulher tinham brigado. Tim era metido a conquistador, não? Talvez haja alguma coisa aí. Terei de verificar. O que me fez pensar nisso foi você nunca ter tentado extorquir mais dinheiro da pequena.

- Cale a boca - suplicou. - Bem sabe que é absurdo. A troco de que eu ia ficar ali por perto? Trataria de arranjar um álibi, como o Cochicho.

- Porque você era um policial nesse tempo. Aquele era o lugar que lhe convinha, para ver se não havia novidade, para tratar pessoalmente do assunto.

- Você bem sabe que isso não pode ser, que é absurdo. Cale-se, pelo amor de Deus.

- Não importa que pareça tolice - retruquei. - É coisa para expor a Noonan quando voltarmos. Ele decerto há de estar fora de si com a evasão do Cochicho. Isto lhe distrairá o espírito.

MacSwain caiu de joelhos na lodosa viela e exclamou:

- Oh, por Deus, não! Ele me estrangularia.

- Levante-se e deixe de gritar - grunhi. - Quer me contar tudo direito agora?

MacSwain choramingou:

- Ele é capaz de me estrangular.

- Está bem. Se não quer falar, eu terei de conversar com Noonan. Se contar tudo, farei o que puder por você.

- Que é que você pode fazer por mim? - perguntou, desesperado, e recomeçou a fungar. - Que certeza posso ter de que você vai tentar fazer alguma coisa?

Arrisquei uma pequena verdade:

- Você disse que calculava o que eu ando fazendo aqui em Poisonville. Então deve saber que o meu jogo é atirar Noonan e o Cochicho um contra o outro. Se eu deixar que Noonan continue considerando Cochicho como assassino de Tim, conservá-los-ei apartados. Mas se você não quer fazer o meu jogo, então eu me alio a Noonan.

- Quer dizer que não vai dizer nada a Noonan? - perguntou ansiosamente. - Promete?

- Não lhe prometo nada - disse. - Por que havia de prometer? Você está a minha mercê. Há de falar a mim ou a Noonan. E resolva depressa. Não vou ficar parado aqui toda a noite.

Resolveu confessar a mim.

"Não sei até que ponto você está informado, mas foi assim como disse; minha mulher se apaixonou por Tim. Foi o que estragou a minha vida. Pode perguntar a quem quiser se eu não era um bom rapaz antes disso. Eu era assim: tudo o que ela queria, eu procurava dar-lhe. Em geral me custava muito. Mas não podia proceder de outra maneira. A nossa vida teria sido melhor se eu tivesse recursos. De modo que a deixei ir embora e requeri divórcio para que se casasse com Tim, pensando que era essa a intenção dele.

"Pouco depois comecei a ouvir dizer que ele andava atrás dessa tal Myrtle Jennison. Não pude suportar tal coisa. Tinha-lhe dado uma oportunidade com Helen. E agora ele a abandonava por essa Myrtle. Eu não estava disposto a permitir isso. Helen não era peteca de ninguém. Mas foi por casualidade que nos encontramos em Mock Lake, naquela noite. Quando o vi descer para os caramanchões, saí-lhe no encalço. Parecia um lugar sossegado, muito conveniente para um ajuste de contas.

"Desconfio que tínhamos bebido além do normal. De qualquer forma, a discussão foi acalorada. Quando se tornou acalorada demais para ele, Tim puxou o revólver. Mas era um poltrão. Segurei-lhe o revólver, e na luta que se seguiu a arma disparou. Juro por Deus que não atirei contra ele a não ser assim. A arma disparou quando nós dois a estávamos segurando. Eu fugi para uma moita. Mas quando cheguei lá, ouvi-o gemer e falar. Vinha vindo gente - uma pequena que tinha saído correndo do hotel, a tal Myrtle Jennison.

"Eu queria voltar e escutar o que Tim estava dizendo para saber qual era a minha situação; mas tinha medo de ser o primeiro a chegar. De modo que esperei até a pequena alcançar o local, ouvindo-o gritar todo o tempo, embora a distância fosse muito grande para eu poder entender o que dizia. Quando Myrtle chegou, corri para lá bem no momento em que ele morria tentando dizer o meu nome.

Não me ocorreu que aquele era o nome do Cochicho, até que ela me fez a proposta sobre a carta, os duzentos dólares e a pedra. Eu tinha ficado por ali, fingindo que investigava o caso - pois fazia parte da polícia naquele tempo - e procurando descobrir se não suspeitavam de mim. Então ela vem com a proposta, e eu percebo que estou em ótima posição. E assim ficamos, até que você começou a desenterrar o passado."

Bateu com os pés na lama e acrescentou:

- Na semana seguinte minha mulher morreu - um acidente. Hum-hum, um acidente. Seu Ford foi chocar-se contra o n.° 6, na ladeira da estrada que vem de Tanner.

- Mock Lake fica neste condado? - perguntei.

- Não, no de Boulder.

- É fora da jurisdição de Noonan. Que tal se eu o levasse para lá e o entregasse ao xerife?

- Não. O xerife é Tom Cook - o genro do Senador Keeffer. Dá no mesmo. Noonan podia deitar-me a mão por intermédio de Keeffer.

- Se o fato se deu como você diz, teria pelo menos alguma probabilidade de ser absolvido pela justiça.

- Não me darão ensejo. Eu me arriscaria se houvesse uma pequena probabilidade de julgamento imparcial - mas com essa gente não há.

- Vamos voltar para o Hall - disse eu. - Guarde silêncio. Noonan caminhava de um lado para outro, amaldiçoando

a meia dúzia de subordinados que se achavam ali, e que ansiavam por se ver a cem milhas de distância.

- Aqui está o que encontrei vagabundeando pela rua - disse eu, empurrando MacSwain para a frente.

Noonan derrubou o ex-detetive com um murro, deu-lhe alguns pontapés, e disse a um dos policiais que o levasse.

Chamaram Noonan ao telefone. Escapuli sem dar boa noite, e regressei ao hotel.

Para o norte ressoaram alguns tiros.

Um grupo de três homens passou por mim de olhos esquivos, caminhando nas pontas dos pés.

Um pouco mais adiante, outro homem afastou-se até o meio-fio, deixando-me espaço mais que suficiente para passar. Eu não o conhecia, e não creio que ele me conhecesse.

Um tiro isolado soou a pequena distância.

Quando cheguei ao hotel, um carro de turismo, preto e desmantelado, vinha descendo a rua a não menos de cinqüenta milhas por hora, apinhado de homens.

Segui-o com o olhar, sorrindo. Poisonville começava a ferver sob a tampa, e eu já me sentia tão aclimatado que nem a lembrança da parte muito pouco agradável que eu tivera na agitação me impediu de dormir doze horas a fio.

 

                                 A Estalagem de Cedar Hill

MICKEY Linehan serviu-se do telefone para me acordar um pouco depois do meio-dia.

- Aqui estamos - disse-me. - Onde está o comitê de recepção?

- Provavelmente parou no caminho para arranjar uma corda. Registrem as malas e venham ao meu hotel. Quarto 537. Não façam estardalhaço com a visita.

Já estava vestido quando chegaram.

Mickey Linehan era um homenzarrão desajeitado, de ombros caídos e corpo informe que parecia estar a pique de se desconjuntar. As orelhas sobressaíam, semelhando asas rubras, e a cara vermelha e redonda trazia habitualmente o sorriso alvar de um idiota. Mickey tinha o aspecto e era realmente um comediante.

Dick Foley era um canadense do tamanho de um garoto, com uma cara fina e irritadiça. Usava tacões altos para aumentar a estatura, perfumava os lenços e falava o mínimo possível.

Ambos eram bons investigadores.

~ Que foi que o velho lhes disse a respeito do nosso trabalho? - perguntei, depois que se sentaram. O velho era o chefe da seção de San Francisco da Continental. Também o conheciam por Pôncio Pilatos, porque sorria benignamente ao mandar-nos crucificar em missões suicidas. Era um homem brando, delicado, de meia-idade, que não tinha mais calor do que uma corda de carrasco. Os espirituosos da Agência afirmavam que ele era capaz de cuspir flocos de neve no rigor do verão.

- O velho não parecia saber muito bem de que se tratava - disse Mickey - exceto que você havia pedido auxílio por telegrama. Disse que não recebia relatórios seus há uns dois dias.

- Com toda a probabilidade, terá de esperar outros dois dias. Vocês sabem alguma coisa sobre Personville?

Dick sacudiu a cabeça. Mickey disse:

- Só ouvi uns sujeitos chamarem-na de Poisonville como quem esta falando sério.

Contei-lhes o que sabia e o que tinha feito. A campainha do telefone interrompeu-se na última parte da narração. Ouvi a voz indolente de Dinah Brand:

- Olá! Como está o pulso?

- Só uma queimadura. Que é que você pensa da fuga?

- A culpa não foi minha - disse ela. - Eu cumpri a minha parte. Se Noonan não pode segurá-lo, tanto pior. Vou descer à cidade para comprar um chapéu esta tarde. Lembrei-me de dar uma chegada ai e falar uns dois minutos com você, se estiver no hotel.

- A que horas?

- Oh, lá pelas três.

- Muito bem; vou esperá-la, e dar-lhe aqueles duzentos dólares e dez cents que eu lhe devo.

- Sim - volveu-me. - É para isso que eu vou lá. Tá, tá. Voltei à minha cadeira, e à narração.

Quando terminei, Mickey Linehan assobiou e disse:

- Não admira que você tenha medo de enviar relatórios. O velho não ficaria muito satisfeito se soubesse em que você anda metido, hem?

- Se a coisa produzir o resultado que eu espero, não terei de relatar os pormenores desagradáveis - respondi. - É natural que a Agência tenha normas e regulamentos, mas quando a gente anda fazendo um serviço, é obrigado a trabalhar da melhor maneira que pode. E quem quer que traga princípios éticos a Poisonville, terá de deixá-los enferrujar. De qualquer forma, um relatório não é lugar apropriado para detalhes sujos, e eu não quero que vocês mandem nada a San Francisco sem me mostrar primeiro.

- Que espécie de crimes tem você para nós desencavarmos? - perguntou Mickey.

- Quero que você se encarregue de Pete, o Finlandês. Dick se incumbirá de Lew Yard. Terão de proceder como eu tenho procedido - fazer o que puderem e quando puderem. Desconfio que os dois vão tratar de induzir Noonan a deixar em paz o Cochicho. Não sei o que Noonan fará. É esperto como o diabo, e tem mesmo vontade de se desforrar da morte do irmão.

- Depois que apanhar esse finlandês, - disse Mickey - que faço com ele? Não quero bancar o pateta, mas este serviço para mim é grego. Compreendi tudo, menos o que você tem feito e por quê, e o que pretende fazer e de que maneira.

- Você pode começar por segui-lo. Preciso arranjar um meio de meter uma cunha entre Pete e Yard, Yard e Noonan, Pete e Noonan, Pete e Thaler, ou Yard e Thaler. Se conseguirmos fazer suficientes estragos - destruir a combinação - eles mesmos se porão a esfaquear-se uns aos outros, fazendo o serviço para nós. A briga entre Thaler e Noonan é um começo. Mas pode esfriar se não fizermos força.

- Eu podia comprar mais informações a Dinah Brand. Mas de nada serve levar uma pessoa ao tribunal por mais provas que se tenha contra ela. Essa gente é dona dos tribunais, e, além disso, a justiça é demasiada vagarosa para nós, agora. Eu me enredei num negócio, e assim que o velho farejar a história (e San Francisco não está bastante longe para lhe desorientar o faro) vai pegar e telegrafar pedindo explicações. Preciso conseguir resultados práticos com que encobrir os detalhes. De modo que provas são inúteis. O que necessitamos é dinamite.

- E quanto ao nosso respeitável cliente, Mr. Elihu Willsson? - perguntou Mickey. - Que é que você tenciona fazer com ou para ele?

- Talvez arruiná-lo, talvez obrigá-lo a nos apoiar. Para mim tanto faz uma coisa ou outra. É melhor você se hospedar no Hotel Person, Mickey; e Dick pode ir para o National. Não andem juntos, e se não querem que eu seja posto no olho da rua, aviem-se com o trabalho antes que o velho meta o nariz. Convém que tomem nota disto.

Dei-lhes nomes, descrições, e endereços, quando os tinha; de Elihu Willsson; Stanley Lewis, seu secretário; Dinah Brand; Dan Rolff; Noonan; Max Thaler, por alcunha o Cochicho; seu braço direito Jerry, o homem sem queixo; Mrs. Donald Willsson; a filha de Lewis, que fora secretária de Donald Willsson; e Bill Quint, o radical ex-amigo de Dinah.

- Agora mãos à obra - disse-lhes. - E não se iludam pensando que há leis em Personville, exceto a que vocês mesmos fizerem para uso próprio.

Mickey respondeu que eu ficaria surpreendido quando soubesse de quantas leis ele podia prescindir. Dick disse: "Até à vista"; e retiraram-se.

Depois do almoço, fui ao City Hall.

Noonan tinha os olhos empanados, como se não tivesse dormido, e estava um pouco pálido. Sacudiu-me a mão com o mesmo entusiasmo de sempre e falou-me com a cordialidade habitual.

- Alguma informação sobre o Cochicho? - perguntei, depois de serenadas as efusões.

- Creio que consegui alguma coisa. - Olhou para o relógio da parede, e depois para o telefone. - Estou esperando a comunicação a qualquer momento. Sente-se.

- Quem mais escapou?

- Jerry Hooper e Tony Agosti são os únicos que ainda andam soltos. Pegamos o resto. Jerry é o braço direito do Cochicho, e o gringo faz parte do bando. Foi quem matou Ike Bush na noite da luta de boxe.

- Prenderam mais alguém da quadrilha do Cochicho?

- Não. Só engaiolamos aqueles três, além de Buck Wallace, o camarada que você baleou. Está no hospital.

O chefe olhou novamente o relógio de parede, e consultou o relógio. Eram precisamente duas horas. Virou-se para o telefone, cuja campainha soou. Noonan tomou o fone e disse:

- Aqui é Noonan... Sim... Sim... Sim... Muito bem. Empurrou o aparelho para um lado e pôs-se a tamborilar

na fileira de botões de madrepérola que havia na secretária. O gabinete encheu-se de policiais.

- Estalagem de Cedar Hill - disse ele. - Você, Bates, siga-me com o seu destacamento. Terry, voe pela Broadway e arrebanhe pelo caminho os rapazes encarregados do serviço do tráfego. É provável que precisemos de toda a gente que pudermos reunir. Duffy, leve os seus pela Rua Union e pela estrada da antiga mina. McGraw ficará tomando conta aqui da chefatura. Recolha todos os que puder e mande-os atrás de nós. Despachem-se!

Agarrou o chapéu e saiu atrás dos subordinados, gritando-me por cima do ombro robusto:

- Vamos, homem, a presa está acuada.

Segui-o à garage da chefatura de polícia, onde estrepitavam os motores de meia dúzia de carros. O chefe tomou assento ao lado do motorista. Eu me sentei atrás, com quatro detetives.

Os homens metiam-se dentro dos outros carros. Desenfardavam-se metralhadoras. Distribuíam-se braçadas de fuzis e riot-guns, e pacotes de munições.

O carro do chefe partiu primeiro, com um solavanco que nos fez bater os queixos. Passamos a meia polegada da ombreira da porta, pusemos um par de pedestres a correr pela calçada, saltamos desta para o meio da rua, escapamos por um triz de colidir com um caminhão, e lançamo-nos King Street afora com as sirenas uivando.

Automóveis, tomados de pânico, fugiam para a direita e para a esquerda, desatentos às normas do tráfego, a fim de nos deixar passar. Era divertido.

Olhei para trás; vi outro carro da polícia seguindo-nos, e um terceiro enveredando pela Broadway. Noonan mordiscou um charuto apagado, e disse ao chofer:

- Mais velocidade, Pat.

Pat fez-nos rodear o cupê de uma mulher assustada, enfiou-se entre um bonde e uma carroça de lavanderia - um vão tão estreito que não poderíamos passar se o nosso automóvel não estivesse tão bem envernizado - e disse:

- Muito bem, mas os freios não prestam.

- Estão ótimos - contestou o detetive à minha esquerda, um sujeito de bigodes grisalhos. Não parecia falar sinceramente.

Além do centro da cidade não havia tanto tráfego para nos estorvar, mas o calçamento era mais áspero. Foi uma boa corrida de meia hora, e todos tiveram oportunidade de sentar-se nos joelhos uns dos outros. Nos últimos dez minutos, corremos por uma estrada desigual, com barrancos suficientes para nos impedir de esquecer o que Pat dissera acerca dos freios.

Paramos em frente a um portão encimado por um velho letreiro luminoso que, antes de perder as lâmpadas, dizia: Cedar Hill Inn. A estalagem, a vinte pés além do portão, era um edifício acaçapado, de madeira, pintado de um verde bolorento e cercado de lixo. Porta e janelas estavam cerradas.

Noonan saltou, e nós o imitamos. O carro que nos seguia apareceu numa curva da estrada, estacou ao lado do nosso, e despejou sua carga de homens e armas.

Noonan deu algumas ordens.

Um grupo de policiais rodeou cada um dos oitões do edifício. Três outros, incluindo um com metralhadora, permaneceram junto ao portão. Os restantes nos encaminhamos por sobre latas vazias, garrafas e jornais velhos, para a frente da casa.

O detetive de bigode grisalho que viera sentado à minha esquerda trazia um machado vermelho. Subimos ao alpendre.

Debaixo do peitoril de uma janela ouviu-se- um rumor, seguido de uma rajada de fogo.

O detetive de bigode grisalho foi ao chão, cobrindo o machado com o seu cadáver.

Nós fugimos.

Eu disparei junto com Noonan, e escondemo-nos na vala ao lado da estrada. Era bastante profunda, e a terra acumulada na borda chegava a altura suficiente para nos permitir ficar em pé, quase eretos, sem servir de alvo.

O chefe estava excitado.

- Que sorte! - exclamou, radiante. - Ele está aqui, por Deus, ele está aqui!

- O tiro saiu de baixo do peitoril - observei. - Bom estratagema.

- Mas havemos de estragá-lo - retorquiu ele jovialmente. - Vamos crivar a casa de balas. A estas horas, Duffy devia estar chegando pela outra estrada, e Terry Shane não tardará muito. Eh, Donner! - gritou para um homem que espiava de trás de um bloco de pedra. - Dá volta e diz a Duffy e a Shane que comecem o ataque assim que chegarem, fazendo fogo com todas as armas que tiverem. Onde está Kimble?

O homem apontou com o polegar uma árvore situada além dele. Da nossa vala só podíamos ver a copa.

- Dize-lhe que prepare a máquina e comece a atirar - ordenou Noonan. - Pontaria baixa, ao longo da parede da frente; deve fazer o serviço como quem corta um queijo.

Donner desapareceu.

Noonan andava para cá e para lá no fosso, arriscando de vez em quando a cabeça por cima da borda para observar em torno, e de tempos em tempos gritava ou fazia gestos para os seus homens.

Voltou, agachou-se a meu lado, deu-me um charuto, e acendeu outro.

- Vai dar resultado - disse, satisfeito. - O Cochicho não tem por onde escapar. Está liquidado.

A metralhadora postada junto à árvore deu oito ou dez tiros intermitentes, por experiência. Noonan sorriu e soltou um anel de fumaça pela boca. A metralhadora, como uma pequena e ativa fábrica de morte, começou a despejar chumbo. Noonan soprou outro anel de fumaça e observou:

- É isso precisamente o que vai resolver o assunto.

Concordei. Inclinamo-nos contra a parede de argila e continuamos a fumar, enquanto, mais além, outra metralhadora punha-se a funcionar, e depois uma terceira. Fuzis, pistolas e espingardas tomavam parte no concerto, atirando irregularmente. Noonan balançou a cabeça com ar de aprovação e disse:

- Cinco minutos dessa música hão de mostrar ao Cochicho que existe um inferno.

Transcorridos os cinco minutos, sugeri-lhe que fôssemos dar uma olhadela aos despojos. Ajudei-o a subir e depois galguei a borda.

A estalagem parecia tão desabitada e vazia como antes, porém mais arruinada. Nenhum tiro partiu de lá, ao passo que choviam balas sobre a casa.

- Que acha? - perguntou Noonan.

- Se há uma adega, talvez se encontre algum rato vivo.

- Bem, poderemos acabar com ele depois.

Tirou do bolso um apito e soprou com força. Sacudiu os braços roliços, e os tiros começaram a rarear. Tivemos de esperar que o aviso fosse ouvido por todos.

Então arrombamos a porta.

Até a altura do tornozelo, o rés-do-chão estava coberto de bebida, que ainda borbotava dos buracos de bala abertos nos caixões e barris empilhados que enchiam quase toda a casa.

Atordoados com os vapores do álcool derramado, percorremos o edifício até encontrar quatro homens mortos e nenhum vivo. Os quatro mortos eram trigueiros, de aspecto estrangeirado, e vestiam trajes de operários. Dois estavam praticamente estraçalhados.

Noonan disse:

- Deixem-nos aqui e saiam.

A voz era jovial, mas a luz de uma lanterna elétrica mostrou-me os seus olhos amedrontados.

Saímos com muito prazer, embora eu tivesse demorado o bastante para enfiar no bolso uma garrafa intacta, que tinha o rótulo Dewar.

Nesse momento, um policial de uniforme caqui pulou de uma motocicleta em frente ao portão e gritou-nos:

- O First National foi assaltado. Praguejando furiosamente, Noonan berrou:

- Ele nos tapeou, diabos o levem! Todos para a cidade.

Todos, exceto os que tinham vindo com o chefe, correram para os veículos. Dois deles carregaram consigo o detetive morto.

Noonan olhou-me de esguelha e disse:

- Isso é sério, não é brincadeira.

- Bem - retorqui, e dando de ombros, dirigi-me tranqüilamente para o carro, onde o motorista já estava na direção. Fiquei de costas para a casa, conservando com Pat. Não me lembro sobre o que falamos. Dali a pouco, Noonan e os outros investigadores se reuniram a nós.

Pela porta aberta da estalagem, só se via uma pequena labareda, quando a perdemos de vista numa curva do caminho.

 

                             Jerry Deixa o Palco

UMA multidão rodeava o First National Bank. Rompemos por ela e alcançamos a porta, onde encontramos o irritado McGraw.

- Eram seis mascarados - informou ao chefe enquanto entrávamos. - Chegaram pelas duas e meia. Cinco deles escaparam com o dinheiro. O guarda aqui da casa chumbou um deles, Jerry Hopper, que está acolá, em cima do banco, morto. Mandei fechar as estradas, e telegrafar para as redondezas, se não for tarde demais. Foram vistos pela última vez quando entraram na King Street, num Lincoln preto.

Fomos ver o cadáver de Jerry, estendido num dos bancos do vestíbulo, com um pano escuro por cima. A bala tinha penetrado embaixo da omoplata esquerda.

O guarda do banco, um velho de aparência inofensiva, enfunou o peito e contou:

- A princípio não havia jeito de fazer nada. Antes que a gente desse acordo, eles já estavam aqui dentro. E como trabalharam ligeiro! Foram direto à caixa e arrecadaram a grana. Não havia como reagir naquele momento. Mas eu disse cá comigo: "Perfeitamente, rapazes, vocês agora estão fazendo o que bem entendem, mas esperem até o momento de irem embora."

- E eu cumpri a palavra, pode crer. Corri direto à porta atrás deles e despejei a pistola velha. Acertei naquele camarada justamente quando ele ia entrando no auto. Aposto que teria derrubado outros se tivesse mais cartuchos, porque é meio difícil atirar assim para baixo, parado no...

Noonan cortou o monólogo batendo nas costas do pobre-diabo até lhe esvaziar os pulmões, ao mesmo tempo que lhe dizia: "Ótimo, ótimo, certamente."

McGraw estendeu novamente o pano sobre o corpo e grunhiu:

- Não identificaram ninguém. Mas com Jerry no meio, com certeza a travessura foi do Cochicho.

O chefe balançou alegremente a cabeça e disse:

- Vou deixar o caso nas tuas mãos, Mac. - E para mim: - Pretende ficar por aqui, ou volta comigo ao Hall?

- Nem uma coisa nem outra. Tenho um encontro e quero trocar de sapatos.

 

O pequeno Marmon de Dinah Brand estava parado em frente ao hotel. Não a vi. Subi ao meu quarto e fechei a porta apenas com o trinco. Tinha tirado o chapéu e o casaco, quando ela entrou sem bater.

- Santo Deus, que cheiro de álcool tem o seu quarto - disse.

- São os meus sapatos. Noonan me fez patinhar em rum.

Dinah dirigiu-se à janela, abriu-a, sentou-se no parapeito, e perguntou:

- Para quê?

- Ele pensou que ia encontrar o seu Max num galpão chamado Cedar Hill Inn. De modo que fomos até lá, crivamos a casa de chumbo, matamos alguns gringos, derramamos galões de uísque e deixamos o lugar entregue às chamas.

- A estalagem de Cedar Hill? Pensei que estivesse fechada a um ano ou mais.

- Assim parecia, mas estava servindo de depósito para alguém.

- Mas não encontraram Max? - perguntou.

- Ao que parece, enquanto estávamos lá, ele andou assaltando o First National Bank, de Elihu.

- Eu presenciei o assalto. Acabava de sair da loja de Bengren, duas casas adiante. Já tinha entrado no automóvel, quando vi um rapagão taludo saindo do banco às arrecuas, com um saco e uma pistola, e um lenço preto no rosto.

- Max estava com eles?

- Não, Max não se meteria nisso. Mandaria Jerry e os rapazes. É para isso que os quer. Jerry estava lá. Reconheci-o logo que desceu do carro, apesar do lenço. Todos tinham a cara coberta com um lenço preto. Quatro deles saíram do banco e correram para o auto. Jerry e outro sujeito estavam no carro. Quando os quatro atravessaram a calçada, Jerry saltou e foi ao seu encontro. Foi aí que começaram os tiros, e Jerry caiu. Os outros entraram no automóvel e rasparam-se. E o dinheiro que você me deve?

Contei dez notas de vinte dólares, e mais uma moeda de dez cents. Dinah deixou a janela para apanhá-las.

- Isso é por sujeitar Dan, para que você pudesse prender Max, - disse ela, depois de guardar o dinheiro na bolsa. - E agora, o que eu devia receber por lhe revelar onde poderia encontrar as provas do assassinato de Tim Noonan?

- Você terá de esperar até que ele seja processado. Como é que vou saber se a revelação tem alguma utilidade?

Dinah franziu a testa e perguntou:

- Que é que você faz com todo o dinheiro que não gasta? - Seu rosto animou-se. - Sabe onde está Max agora?

- Não.

- Quanto dá pela informação?

- Nada.

- Eu lhe direi por cem dólares.

- Não quero abusar assim de você.

- Digo-lhe por cinqüenta dólares. Sacudiu a cabeça.

- Vinte e cinco.

- Não estou à procura dele - retruquei. - Não tenho interesse em saber onde está. Por que não vai oferecer a informação a Noonan?

- Sim, e ver se ganho alguma coisa. Você usa rum só para se perfumar, ou tem também para beber?

- Aqui está uma garrafa de suposto Dewar, que eu soneguei esta tarde em Cedar Hill. Na minha mala há uma garrafa de King George. Qual prefere?

Dinah Brand votou pelo King George. Tomamos um trago, puro, e eu disse:

- Sente-se e distraia-se com ele enquanto mudo de roupa. Quando, vinte e cinco minutos mais tarde, saí do banheiro,

encontrei-a sentada à escrivaninha, fumando um cigarro e examinando uma caderneta que eu tinha guardado num bolso lateral da minha mala.

- Calculo que estas sejam contas das despesas que você apresentou em outros casos - disse ela, sem levantar os olhos. - Diabos me levem se compreendo por que razão você não pode mostrar-se mais liberal comigo. Olhe, aqui está um lançamento de seiscentos dólares, marcado Inf. Isso é informação que você comprou a alguém, não é? E aqui estão cento e cinqüenta dólares, embaixo - Top - seja lá o que for. E aqui temos outro dia em que você gastou quase mil dólares.

- Devem ser números de telefones - volvi, tomando-lhe o caderninho. - Onde é que você foi educada? Revistando a minha bagagem!

- Fui educada num convento - respondeu ela. - Em todos os anos que estive lá, ganhei o prêmio de bom comportamento. Eu pensava que as meninas que punham açúcar demais no chocolate iam para o inferno por pecado de gula. Antes dos dezoito anos, nem sabia que existiam nomes feios. A primeira vez que ouvi um, pouco me faltou para desmaiar. - Cuspiu no tapete à sua frente, pôs os pés em cima da minha cama, e perguntou: - Que pensa disso?

Tirei-lhe os pés de cima da cama, e retorqui:

- Fui criado numa taverna à beira-mar. Não ponha saliva no soalho do meu quarto, ou atiro-a pela janela.

- Primeiro vamos tomar outro trago. Escute, quanto me dá pela história da negociata com a construção do City Hall - a história dos papéis que eu vendi a Donald Willsson?

- Não me interessa. Experimente outra.

- E a maneira como enviaram a primeira Mrs. Lew Yard para o manicômio?

- Não.

- King, o nosso xerife, devia oito mil dólares há quatro anos; hoje é o dono de algumas quadras da zona comercial. Não posso fornecer-lhe todos os dados, mas posso indicar-lhe onde os encontrar.

- Continue experimentando - disse eu encorajadoramente.

- Não. Você não quer comprar nada. Apenas espera colher alguma informação grátis. Não é mau Este uísque. Onde o arranjou?

- Trouxe-o de San Francisco.

- Que idéia e essa de não se interessar por nenhuma das revelações que lhe estou oferecendo? Pensa que pode consegui-las mais barato?

- Revelações dessa espécie não me são de grande utilidade agora. Tenho de andar depressa. Preciso de dinamite - algo que os separe violentamente.

Ela riu e pôs-se em pé, com os olhos a cintilar.

- Tenho um dos cartões de Lew Yard. Podíamos mandar a garrafa de Dewar que você surripiou e mais o cartão, a Pete. Não seria isso considerado uma declaração de guerra? Se Cedar Hill era um depósito de bebidas, devia ser de Pete. A garrafa e o cartão de Lew não o fariam pensar que Noonan destruiu o depósito por ordem do outro?

Refleti, e disse:

- Muito ruim. Pete não se deixaria enganar. Ademais, no ponto em que estão as coisas, eu preferia atirar Pete e Lew contra o chefe de polícia.

Ela fez um muxoxo e disse:

- Você pensa que sabe tudo. Não se pode tratar com você. Quer sair comigo esta noite? Tenho um vestido novo que vai deixar a turma de boca aberta.

- Certo.

- Vá buscar-me lá pelas oito.

Deu-me umas palmadinhas no rosto com a mão quente, disse: "Tá, tá" e saiu no momento em que soava a campainha do telefone.

 

- O meu homem e o de Dick estão na casa do nosso cliente - informou Mickey Linehan. - O meu tem andado numa roda-viva, se bem que eu ainda não tenha descoberto o que há. Alguma novidade?

Respondi que não, e estendi-me na cama para conferenciar comigo mesmo. Tratei de imaginar o resultado do ataque de Noonan à estalagem de Cedar Hill e o do Cochicho ao Banco. Daria muita coisa para poder ouvir o que estavam dizendo Pete, Lew Yard e o velho Elihu, na casa deste. Mas não podia, e nunca fui muito bom em conjeturas; assim, depois de torturar os miolos por meia hora, resolvi dormir uma sesta.

Eram quase sete horas quando despertei. Lavei-me, vesti-me, pus nos bolsos uma pistola e um quartilho de uísque escocês, e dirigi-me à casa de Dinah.

 

                                   Reno

ELA me conduziu à sala de estar, recuou um pouco, deu uma volta em torno de si mesma, e perguntou-me que achava do vestido novo. Respondi que gostava. Explicou-me que a cor era rosa-bege, e que os penduricalhos dos lados eram não sei o quê, e rematou:

- Você acha mesmo que eu fico bonita nele?

- Você sempre está bonita - respondi. - Lew Yard e Pete, o Finlandês, foram visitar o velho Elihu esta tarde.

Dinah fez-me um trejeito, e disse:

- Você não liga a mínima importância ao meu vestido. Que estavam fazendo lá?

-. Um comício, decerto.

Ela me fitou por entre as pestanas, e inquiriu:

- Você não sabe mesmo onde está o Max?

Sim, já então eu sabia. Era inútil confessar que não o percebera desde o princípio. Respondi:

- Em casa de Willsson, provavelmente, mas eu não tenho tido tanto interesse que procurasse averiguá-lo.

- Pois faz mal. Ele tem bastante motivo para não gostar de você e de mim. Aceite o conselho da mamãe e deite-lhe depressa a unha, se quer viver e se quer que a mamãe também continue viva.

Ri-me, e disse:

- Você não sabe do pior. Max não matou o irmão de Noonan. Tim não disse Max. Tentou dizer MacSwain, e morreu antes de poder terminar.

Dinah agarrou-me os ombros e procurou sacudir as minhas cento e noventa libras. Quase tinha a força precisa para o fazer.

- Diabos o levem! - Senti no rosto o seu hálito quente. Dinah tinha as faces brancas como os dentes. A pintura destacava-se-lhe como um rótulo vermelho no rosto e na boca. - Se você armou uma conspiração contra ele, com o meu auxílio, tem de matá-lo agora.

Não gosto de ser sacudido, mesmo por mulheres moças que quando estão exasperadas parecem entidades mitológicas. Tirei-lhe as mãos dos meus ombros, e disse:

- Pare de rezingar. Você ainda está viva.

- Sim, ainda. Mas conheço Max melhor do que você. Sei que probabilidades tem de continuar vivo quem conspira contra ele. Já seria bastante mau se o tivéssemos acusado com razão, mas...

- Não se aflija tanto. Eu tenho posto milhares de homens assim na cadeia, e nada me aconteceu. Ponha o chapéu e o casaco, e vamos comer. Você se sentirá melhor depois.

- Está maluco, se pensa que eu vou sair, quando...

- Pare com isso, companheira. Se o homem é assim tão perigoso, tanto poderá liquidá-la aqui como em qualquer outra parte. Portanto, que diferença faz?

- Muita... Você sabe o que vai fazer? Vai ficar aqui até que dêem cabo de Max. A culpa é sua, e terá de me proteger. Não tenho nem sequer o Dan comigo. Está no hospital.

- Não posso - respondi. - Tenho o que fazer. Você está-se alarmando sem motivo. Max provavelmente já a esqueceu a esta altura. Ponha o chapéu e o casaco. Estou morto de fome.

Ela aproximou novamente o rosto, e seus olhos pareciam ter encontrado algo terrível nos meus.

- Oh, você é ruim - disse. - Pouco se importa com o que me possa acontecer. Serve-se de mim como dos outros - a tal dinamite de que precisava. E eu confiava em você.

- Você é dinamite, sem dúvida, mas quanto ao mais é pura tolice. A sua aparência é muito melhor quando você está contente. Suas feições são duras. A cólera torna-as francamente brutais. Estou morto de fome, amiga.

- Comerá aqui - respondeu. - Não vai tirar-me de casa depois de escurecer.

Falava sério. Trocou o vestido novo por um avental, e fez um inventário da geladeira. Havia batatas, alface, sopa enlatada e metade de um bolo de frutas. Fui à rua e comprei duas fatias de carne, pães, espargos e tomates.

À volta, encontrei-a misturando gim, vennute e hitter de laranja numa coqueteleira de dois quartilhos, sem deixar o mínimo espaço para o líquido se mover.

- Viu alguma coisa? - perguntou.

Escarnei amistosamente. Levamos os coquetéis à sala de jantar e bebemos enquanto a refeição estava a cozinhar. A bebida animou-a bastante. À hora em que nos sentamos para comer, tinha quase esquecido o seu susto. Dinah não era muito boa cozinheira, mas comemos como se o fosse.

Emborcamos um copo de gim com gengibirra em cima do jantar.

Decidiu que tinha de sair e pôr-se em movimento. Nenhum nanico piolhento havia de obrigá-la a viver encafuada, porque sempre procedera lisamente com ele, até que o sujeito se irritara sem motivo, e se não gostasse do que ela havia feito podia ir pentear macacos ou lamber sabão, e nós iríamos à Flecha de Prata, aonde ela tencionara levar-me, porque tinha prometido a Reno que compareceria à sua festa, e por Deus que haveria de ir, e quem pensasse que ela não iria era idiota. E que achava eu daquela idéia?

- Quem é Reno? - perguntei, enquanto a pequena apertava ainda mais o avental puxando as tiras ao contrário do que devia.

- Reno Starkey. Vai gostar dele. Um bom rapaz. Prometi comparecer à sua festa, e é o que vou fazer.

- Que é que ele está festejando?

- Que diabo tem este avental? Reno foi solto esta tarde.

- Vire-se que eu o desato. Por que estava preso? Fique quieta.

- Por arrombar um cofre, há seis ou sete meses - na joalheria de Turlock. Reno, Put Collings, Blackie Whalen, Hank O'Marra, e um sujeitinho coxo, chamado Passo-e-Meio. Tinham quem os apadrinhasse - Lew Yard - mas os detetives da sociedade de joalheiros conseguiram provar o crime, a semana passada. De modo que Noonan se viu compelido a mexer-se. Mas isso não tem importância. Foram soltos sob fiança esta tarde, às cinco horas, e nada mais se há de ouvir falar sobre o assunto. Reno está acostumado. Já foi solto sob fiança por outras três travessuras. Você podia fazer mais um coquetel enquanto ponho o vestido.

 

A Flecha de Prata ficava a meio caminho entre Personville e Mock Lake.

- Não é mau o estabelecimento - disse-me Dinah, enquanto o pequeno Marmon nos conduzia ao lugar. - Polly De Voto é uma boa pequena, e tudo o que ela vende é bom, salvo talvez o Bourbon, que sempre dá a impressão de haver sido extraído dum cadáver. Vai gostar dela. Pode fazer o que quiser lá, menos bagunça. Polly não tolera barulho. Ali está a casa. Está vendo as luzes vermelhas e azuis entre as árvores?

Saindo dos bosques, chegamos à estalagem, uma imitação de castelo muito iluminada a luz elétrica, perto da estrada.

- Quem foi que disse que ela não tolera barulho - perguntei, escutando o coro de pistolas que cantavam pum-pum-pum.

- Há novidade - murmurou a mulher, parando o carro.

Dois homens, arrastando uma mulher, saíram correndo pela porta da frente e mergulharam na escuridão. Um homem escapuliu-se por uma porta lateral. As pistolas continuavam a cantar. Não se viam os clarões dos tiros.

Outro indivíduo saiu e desapareceu pelos fundos.

Um homem debruçou-se numa janela do primeiro andar, com uma pistola preta na mão.

Dinah respirou pesadamente.

De uma sebe junto à estrada, um jato luminoso dirigiu-se, rápido, para o homem da janela. A pistola deste fuzilou apontada para baixo. O homem inclinou-se mais na janela. Da sebe não tornou a partir nenhum tiro.

Q homem passou uma perna sobre o peitoril, curvou-se, segurou-se com as mãos, e deixou-se cair.

O nosso automóvel arrancou. Dinah tinha o lábio inferior apertado entre os dentes.

O homem que se atirara da janela levantou-se de gatinhas.

Dinah meteu o rosto diante do meu e gritou:

- Reno!

O homem pôs-se em pé, de um salto, com a cara voltada para nós. Enquanto íamos passando à sua frente, ganhou a estrada em três pulos.

Dinah tinha já aberto a portinhola do Marmon, quando os pés de Reno pousaram no estribo do meu lado. Rodeei-o com os braços, e por pouco não os desloquei tratando de segurá-lo. Ele me deu ainda mais trabalho inclinando-se para fora a fim de alvejar aqueles que despejavam chumbo em torno de nós.

Então terminou tudo. Estávamos fora da vista e do alcance da Flecha de Prata, correndo velozmente na direção oposta a Personville.

Reno virou-se e tratou de segurar-se sem a minha ajuda. Recolhi os braços para dentro do carro e verifiquei que todas as articulações ainda funcionavam. Dinah estava ocupada com o carro.

Reno disse:

- Obrigado, pequena. Eu precisava mesmo que me tirassem de lá.

- Está bem - disse ela. - Então são essas as festas que você dá?

- Tivemos hóspedes não convidados. Conhece a estrada de Tanner?

- Conheço.

- Tome por ela. Vai dar ao Mountain Boulevard, e podemos voltar à cidade por lá.

A pequena balançou a cabeça, diminuiu um pouco a velocidade, e perguntou:

- Quem eram os hóspedes não convidados?

- Alguns pulhas que não têm bastante juízo para me deixar em paz.

- São conhecidos meus? - perguntou ela, em tom indiferente, dirigindo o carro para uma estrada mais estreita e áspera.

- Deixa isso, pequena - volveu Reno. - É melhor tirar do calhambeque tudo o que ele puder dar.

Dinah fez o Marmon ganhar mais quinze milhas por hora. Tinha agora ocupação bastante em manter o carro direto pela, estrada, e Reno em segurar-se. Nenhum dos dois tornou a falar, até que a estrada nos levou a outra mais bem pavimentada.

Então Reno perguntou:

- Com que então você despachou o Cochicho?

- Hum-hum.

- Dizem que você fez uma ursada com ele.

- Tinham de dizer. Que é que você pensa?

- Largar de mão o homem está direito. Mas juntar-se com um detetive e revelar-lhe tudo fica feio. Muito feio, se quer saber a minha opinião.

Olhou-me enquanto falava. Era um homem de trinta e quatro ou trinta e cinco anos, bastante alto, robusto e pesado, mas não gordo. Tinha olhos grandes, castanhos, inexpressivos, e muito separados numa longa cara de cavalo um pouco descorada. Era uma cara estólida, mas nem por isso desagradável. Fitei-o e não disse nada.

A pequena retrucou:

- Se é assim que você pensa, pode...

- Cuidado - grunhiu Reno.

Tínhamos dobrado uma curva. Um longo carro preto estava atravessado na estrada, à nossa frente - uma barricada.

Balas esfuziaram ao redor de nós. Reno e eu disparamos as nossas pistolas, enquanto Dinah lidava com o pequeno Marmon como com um cavalinho de pólo.

Atirou-o à esquerda da estrada, deixou as rodas esquerdas subirem pelo barranco, atravessou novamente a estrada, com o meu peso e o de Reno no interior, pôs as rodas esquerdas em cima do barranco da direita, precisamente quando um dos lados do veículo começava a levantar-se a despeito do nosso peso, trouxe-nos de volta à estrada com as costas viradas para o inimigo, e tirou-nos do local ao mesmo tempo em que já esvaziávamos as pistolas.

Tinha havido tiros à beca, mas, até onde podíamos verificar, ninguém fora ferido.

Segurando-se nas portinholas com o cotovelo enquanto metia outro pente de balas na automática, Reno disse:

- Belo trabalho, pequena. Você maneja o carro como quem sabe o que faz.

Dinah perguntou:

- Para onde, agora?

- Para bem longe, primeiro. Vá seguindo a estrada. Temos de agir por palpite. Parece que atiraram toda a população contra nós. Aperte o acelerador.

Pusemos mais dez ou doze milhas entre nós e Personville. Passamos por alguns carros, sem nada ver que nos fizesse suspeitar que estávamos sendo perseguidos. Uma pequena ponte estrondeou debaixo de nós. Então Reno disse:

- Vire à direita, quando chegarmos ao alto.

Viramos, tomando por uma estrada de terra batida que serpeava entre as árvores sobre a encosta de uma colina pedregosa. Dez milhas horárias era grande velocidade ali. Depois de nos arrastarmos por mais cinco minutos, Reno deu ordem de parar. Não vimos nem ouvimos nada, durante a meia hora em que ficamos parados ali, na escuridão. Depois Reno disse:

- Há uma cabana a uma milha daqui, seguindo a estrada. Vamos acampar lá, hem? É absurdo procurar voltar outra vez à cidade esta noite.

Dinah respondeu que estava disposta a tudo para não servir de alvo novamente. Eu disse que estava de acordo, embora preferisse tentar encontrar algum atalho que nos reconduzisse à cidade.

Seguimos cautelosamente pela estrada até que a luz dos nossos faróis bateu numa pequena casa de madeira que estava necessitando urgentemente da pintura que nunca recebera.

- É aqui? - perguntou Dinah a Reno.

- Hum-hum. Fiquem esperando enquanto eu dou uma olhadela.

Deixou-nos, aparecendo logo no feixe de luz que iluminava a porta da cabana. Experimentou algumas chaves no cadeado, acertou com uma, abriu a porta, e entrou. Pouco depois veio à porta e gritou:

- Tudo bem. Entrem e fiquem à vontade. Dinah desligou o motor e saiu do Marmon.

- Há alguma lanterna no carro? - perguntei.

Ela respondeu: - Sim - entregou-me e bocejou: - Meu Deus, como estou cansada. Espero que haja algo que beber neste covil.

Disse-lhe que trazia comigo um frasco de Scotch. A notícia reanimou-a.

A cabana consistia num só aposento, com uma tarimba sobre a qual havia cobertores pardos estendidos, uma mesa de pinho com um baralho e algumas pegajosas fichas de pôquer em cima, um fogão de ferro, quatro cadeiras, um lampião a óleo, travessas, panelas, caçarolas e baldes, três prateleiras com alimentos enlatados, uma pilha de lenha e um carrinho de mão.

Reno estava acendendo o lampião quando entramos.

- Não é tão ruim - disse. - Vou esconder o carro e depois arranchamos até clarear o dia.

Dinah dirigiu-se à tarimba, levantou os cobertores, e comunicou:

- Talvez haja bichos aqui, mas não estão fervilhando. Agora vamos ver o seu uísque.

Desatarraxei o frasco e entreguei-lho enquanto Reno saía para esconder o automóvel. Quando ela terminou, tomei um trago.

O roncar do Marmon foi diminuindo. Abri a porta e olhei para fora. Colina abaixo, através das árvores e arbustos, pude ver réstias dum foco de luz que se afastava. Quando o perdi definitivamente de vista, voltei para dentro e perguntei à pequena:

- Você nunca teve de voltar para a casa a pé?

- O quê?

- Reno safou-se com o carro.

- O canalha! Graças a Deus que ainda nos resta uma cama.

- Isso não lhe serve de nada.

- Não?

- Não. Reno trazia a chave deste pardieiro. Aposto que os perseguidores conhecem o lugar. Por isso nos largou aqui. Espera que fiquemos discutindo com eles, retendo-os por algum tempo.

Levantou-se furiosa, lançando imprecações contra Reno, contra mim, contra todos os homens desde Adão, e disse rabugenta:

- Você sabe tudo. Que fazer agora?

- Vamos procurar um lugar confortável ao ar livre, não muito longe daqui, e esperar para ver o que acontece.

- Vou levar os cobertores.

- Talvez não reparem na falta de um, mas você nos denunciará se levar mais.

- Diabos o carreguem - resmungou, mas pegou só um cobertor.

Apaguei o lampião, fechei a porta com o cadeado atrás de nós, e com o auxílio da lanterna fui abrindo caminho entre as ervas.

Encosta acima, encontramos uma pequena abertura donde se podia avistar a estrada e cabana através de uma folhagem bastante densa para nos ocultar, a menos que acendêssemos luz.

Estendi o cobertor ali, e acomodamo-nos.

A pequena encostou-se em mim e queixou-se que o chão estava úmido, que tinha frio, apesar do casaco de peles, que sentia cãibras nas pernas, e que queria um cigarro.

Fiz-lhe tomar outro gole do frasco. Isso me valeu dez minutos de sossego.

Depois ela disse:

- Estou-me resfriando. À hora em que vier alguém, se vier, estarei espirrando e tossindo bastante alto para me ouvirem na cidade.

- Será uma vez só - disse-lhe eu. - Logo estará estrangulada.

- Há um rato ou coisa parecida arrastando-se embaixo do cobertor.

Provavelmente é apenas uma cobra.

- Você é casado?

- Não comece.

- Então é?

- Não.

- Aposto que sua mulher se alegra com isso.

Estava procurando uma boa resposta quando lobriguei uma luz distante que subia a estrada. Desapareceu no momento em que eu impunha silêncio à pequena.

- Que é? - perguntou ela.

- Uma luz. Apagou-se agora. Os nossos visitantes deixaram o automóvel e estão terminando o trajeto a pé.

Decorreu longo espaço de tempo. A pequena tiritava, com a face quente encostada à minha. Ouvimos passos e vimos vultos escuros movendo-se na estrada e em torno da cabana, sem termos a certeza de que não estávamos enganados.

Uma lanterna elétrica pôs fim à nossa dúvida formando um círculo de luz na porta do casebre. Uma voz forte disse:

- A mulher pode sair.

Houve meio minuto de silêncio enquanto esperavam resposta de dentro. Depois a mesma voz perguntou: "Não vem?" E novo silêncio.

O som de tiros, que já se nos tornara familiar essa noite, rompeu o silêncio. Ouviu-se alguma coisa martelando as tábuas da parede.

- Venha - sussurrei à pequena. - Vamos tentar apoderar-nos do carro deles enquanto estão fazendo todo esse furdunço.

- Deixe-os em paz - respondeu ela, puxando-me o braço no momento em que eu procurava levantar-me. - Por hoje estou farta disso. Estamos muito bem aqui.

- Venha - insisti.

Ela disse: "Não vou", e não quis ir; enquanto discutíamos, perdeu-se a oportunidade. Os homens tinham arrombado a porta e encontrado a casa vazia, e estavam chamando a gritos o motorista do carro.

Este aproximou-se, recebeu uma carga de oito homens, e partiu ladeira abaixo, no encalço de Reno.

- Podíamos ir novamente para dentro - disse eu. - Não é provável que voltem aqui esta noite.

- Espero em Deus que ainda tenha sobrado algum Scotch naquele frasco - disse ela, enquanto eu a ajudava a se pôr em pé.

 

                                                   Painter Street

NA provisão de alimentos enlatados da cabana, nada encontramos que nos tentasse o apetite para o desjejum. Fizemos uma refeição de café preparado com a água choca de um balde galvanizado.

Uma caminhada de uma milha nos levou a uma granja onde encontramos um garoto que não tinha objeção a ganhar alguns dólares conduzindo-nos à cidade no Ford da família. Fez-nos umas quantas perguntas, a que dávamos respostas falsas, ou não respondíamos. Deixou-nos em frente a um pequeno restaurante do alto de King Street, onde comemos grandes quantidades de bolos de trigo mourisco e presunto.

Um táxi levou-nos à porta de Dinah um pouco antes das nove. A pedido revistei-lhe toda a casa, do teto ao porão, e não encontrei sinal de visitantes.

- Quando vem outra vez? - perguntou-me, seguindo-me até a porta.

- Tratarei de aparecer antes da meia-noite, ainda que seja só por uns minutos. Onde mora Lew Yard?

- Painter Street, 1622. Essa rua fica a três quadras daqui. O número 1622 está a quatro quadras, subindo a rua. Que vai fazer lá? - Antes que eu pudesse responder, pôs as mãos no meu braço e rogou: - Prenda o Max, sim? Tenho medo dele.

- Talvez eu açule Noonan contra ele, mais tarde. Depende do desenrolar da situação.

Dinah disse que eu era um urso e não sei que mais, que não me importava com a sorte dela, contanto que fosse executado o trabalho sujo de que me encarregara.

Dirigi-me a Painter Street. O número 1622 era uma casa de tijolos vermelhos com uma garage embaixo do alpendre da frente.

Uma quadra adiante encontrei Dick Foley num Buick alugado. Entrei no carro, perguntando:

- Que há de novo?

- No lugar às duas. Fora às três e meia, para o escritório de Willsson. Mickey. Cinco. Para casa. Movimento. Firme. Fora às três, sete. Nada ainda.

Isso era para me informar que tinha começado às duas da tarde anterior; que seguira Lew Yard até a casa de Willsson às três e meia, e lá encontrara Mickey na pista de Pete, o Finlandês; que Yard tinha deixado a casa do velho às cinco, e ele o seguira a sua residência; que vira gente entrar e sair, mas não acompanhara ninguém; que vigiara a casa até às três da madrugada, e voltara ao serviço às sete; e que desde então não tinha visto ninguém entrar nem sair.

- Você vai ter de abandonar isto e vigiar a casa de Willsson - disse eu. - Ouvi dizer que o Cochicho Thaler está escondido lá, e gostaria que o trouxessem de olho enquanto resolvo se lhe denuncio o paradeiro a Noonan, ou não.

Dick inclinou a cabeça e pôs a funcionar o motor. Saí e voltei para o hotel.

Havia um telegrama do velho:

 

     MANDE PRIMEIRO CORREIO

     INFORMAÇÕES COMPLETA

     ATUAL OPERAÇÃO E CIRCUNSTÂNCIAS

     EM QUE ACEITOU JUNTAMENTE

     COM RELATÓRIOS DIÁRIOS ATÉ ESTA DATA.

 

Guardei o telegrama no bolso e fiz votos para que os acontecimentos continuassem a se desenrolar velozmente. Mandar então as informações que ele desejava seria o mesmo que enviar o meu pedido de demissão.

Pus um colarinho limpo no pescoço e encaminhei-me ao City Hall.

- Olá - cumprimentou Noonan. - Eu esperava que você aparecesse. Procurei comunicar-me com você no hotel, mas informaram-me que não tinha estado lá.

O chefe de polícia não apresentava bom aspecto naquela manhã, mas, para variar, sob as suas costumeiras efusões, parecia genuinamente satisfeito em me ver.

Quando me sentei, um dos seus telefones chamou. Noonan aproximou o receptor do ouvido, disse: "Pronto", ficou escutando um momento, tornou: "É melhor você mesmo ir lá, Mac" e falhou duas vezes na tentativa de pendurar o fone no gancho, antes de o conseguir. Seu rosto se tornara um tanto pastoso, mas a voz estava quase normal quando me disse:

- Lew Yard foi liquidado agorinha mesmo - baleado quando descia os degraus da frente de sua casa.

- Algum detalhe? - perguntei, enquanto me amaldiçoava interiormente por ter afastado Dick Foley de Painter Street cedo demais. Era falta de sorte.

Noonan sacudiu a cabeça, com os olhos fitos no colo.

- Vamos dar uma olhadela aos despojos? - sugeri, erguendo-me.

Mas o chefe não se levantou, nem olhou para mim.

- Não - disse, desalentado. - A falar verdade, não tenho vontade de ir. Não sei se poderia suportá-lo agora. Este morticínio está me deixando doente. Está me abalando os nervos.

Sentei-me novamente, sondando-lhe o pensamento, e perguntei:

- Calcula quem poderá tê-lo matado?

- Sabe Deus quem foi - murmurou. - Todos estão-se matando uns aos outros. Em que vai dar isso?

- Acha que foi Reno?

Noonan pestanejou, fez menção de erguer os olhos para mim, mudou de idéia, e repetiu:

- Sabe Deus quem foi. Ataquei-o por outro lado:

- Alguma vítima na batalha da Flecha de Ouro, a noite passada?

- Só três.

- Quem eram?

- Um par de arrombadores chamados Blackie Whalen e Put Collings, que tinham sido soltos sob fiança ontem pelas cinco da tarde, e Dutch Jake Wahl, um capanga.

- Que foi que houve?

- Apenas uma bagunça, creio eu. Parece que Put, Blackie, e os outros que também foram soltos, estavam festejando a sua libertação com alguns amigos, e a coisa terminou em frege.

- Todos do bando de Lew Yard?

- Não sei - respondeu.

Levantei-me, disse: "Oh, perfeitamente", e dirigi-me para a porta.

- Espere - chamou. - Não vá embora assim. Creio que eram.

Voltei à minha cadeira. Noonan olhava o topo de sua escrivaninha. Estava com o rosto cor de cinza, flácido, úmido, como massa fresca de vidraceiro.

- Cochicho está em casa de Willsson - comuniquei-lhe.

Noonan levantou abruptamente a cabeça. Seus olhos escureceram. Depois repuxou a boca, e pendeu novamente a cabeça. Os olhos fizeram-se mortiços.

- Não posso continuar - disse entre dentes. - Estou farto desta carnificina. Não posso agüentar mais.

- Está disposto a desistir da idéia de vingar a morte de Tim, se obtiver paz com isso? - perguntei?

- Estou.

- Foi o que deu começo à rebordosa - lembrei-lhe. - Se está pronto a desistir, talvez seja possível terminá-la.

Levantou o rosto e encarou-me com o olhar de um cão fitando um osso.

- Os outros devem estar tão fartos disso como você - prossegui. - Diga-Lhes o que sente. Convoque uma reunião e proponha a paz.

- Vão pensar que eu estou lançando mão de alguma tramóia - objetou, agoniado.

- Faça a reunião em casa de Willsson. Cochicho está escondido lá. Você é que se arrisca a alguma traição, indo à toca do outro. Têm medo disso?

Noonan franziu o sobrolho, e perguntou:

- Você vai comigo?

- Se quiser.

- Obrigado - disse ele. - Eu... eu vou tentar.

 

                                         A Conferência da Paz

TODOS os outros delegados à conferência de paz estavam presentes quando Noonan e eu chegamos à casa de Willsson na hora combinada, às nove daquela noite. Todos nos acenaram com a cabeça, mas as saudações não foram além disso.

Pete, o Finlandês, era O' único que eu ainda não conhecia. O contrabandista de bebidas orçava pelos cinqüenta, era ossudo e tinha a cabeça completamente calva. A testa era pequena, e as mandíbulas enormes - largas, maciças, de músculos salientes.

Sentamo-nos em torno da mesa da biblioteca de Willsson.

Elihu tomou assento à cabeceira. Os cabelos cortados rente no seu crânio redondo e rosado pareciam prata à luz elétrica. Os olhos azuis e redondos estavam duros, autoritários, sob as espessas sobrancelhas brancas. Boca e queixo eram duas linhas horizontais.

À sua direita, Pete, o Finlandês, mirava os presentes com uns olhinhos pretos e fixos. Reno Starkey sentava-se ao lado do contrabandista. Sua lívida cara de cavalo estava tão aparvalhada e impassível como os olhos.

Max Thaler atirara-se para trás na cadeira à esquerda de Willsson. As pernas das calças cuidadosamente vincadas estavam negligentemente cruzadas uma sobre a outra. Um cigarro pendia-lhe a um canto dos lábios apertados.

Eu sentara-me logo depois de Thaler. Noonan colocara-se à minha esquerda.

Elihu Willsson abriu a sessão.

Disse que as coisas não podiam continuar como estavam. Todos éramos homens feitos, sensatos, razoáveis, e tínhamos vivido o bastante para saber que um homem não podia ter tudo o que queria, fosse ele quem fosse. Concessões eram coisas que toda a gente se via obrigada a fazer de vez em quando. Para conseguir o que queria, um homem tinha de dar a outros o que eles desejavam. Estava certo de que aquilo que todos nós mais desejávamos nesse momento era fazer parar o insensato morticínio. Estava convencido de que todos os assuntos podiam ser francamente discutidos e consertados em uma hora, sem necessidade de converter Personville num matadouro.

Não foi um mau discurso.

Quando terminou, houve um momento de silêncio. Thaler volveu os olhos para Noonan, como se esperasse alguma coisa dele. Os outros seguimos-lhe o exemplo, fitando o chefe de polícia.

Noonan corou e disse em voz rouca:

- Cochicho, vou esquecer que você deu cabo de Tim. - Levantou-se e estendeu a mão rechonchuda. - Aqui está a minha mão.

A fina boca de Thaler curvou-se num sorriso maligno.

- O patife do seu irmão bem precisava ser morto, mas eu não o matei - sussurrou friamente.

O rosto do chefe de polícia passou do vermelho ao púrpura.

Eu disse em voz alta:

- Espere, Noonan. Estamos tomando uma direção errada. Não chegaremos a nenhum acordo, a menos que todos falem com inteira franqueza. De outro modo, ficaremos pior do que antes. Foi MacSwain que assassinou Tim, você bem sabe.

Noonan cravou em mim os olhos pasmados. Abriu a boca. Não percebera ainda o que eu lhe fizera.

Olhei para os outros, procurando parecer muito virtuoso, e perguntei:

- Isso está liquidado, não é? Vamos acertar as outras diferenças. - Dirigi-me ao Finlandês. - Que me diz do acidente ocorrido ontem no seu depósito e com seus quatro homens?

- Acidente, uma ova - rosnou. Eu expliquei:

- Noonan ignorava que você estava ali. Foi até lá julgando-o vazio, com o único fim de desembaraçar o caminho para um serviço na cidade. Os seus homens atiraram primeiro, e então ele pensou que tinha realmente acertado com o esconderijo de Thaler. Quando descobriu que havia posto o pé no seu terreno, perdeu a cabeça e tocou fogo na casa.

Thaler observava-me com um risinho duro nos olhos e na boca. Reno mantinha-se estupidamente impassível. Elihu inclinava-se para o meu lado, com os olhos penetrantes e suspeitosos. Não sei o que estava fazendo Noonan. Não me atrevia a olhá-lo. Achava-me em boa situação se soubesse jogar as minhas cartas, e em péssima posição no caso contrário.

- Os homens são pagos para se arriscarem - disse Pete, o Finlandês. Quanto ao mais, com vinte e cinco pacotes fica tudo acertado.

Noonan acudiu ansiosamente:

- Muito bem, muito bem, Pete; eu lhos darei.

Tive de apertar os lábios para não rir do terror que lhe transparecia na voz.

Agora podia olhá-lo sem perigo. Estava vencido, aniquilado, disposto a tudo para tentar salvar a pele. Fitei-o.

Não me devolveu o olhar. Sentou-se e não olhou para ninguém. Esforçava-se por fingir que não esperava ser estraçalhado antes de deixar a companhia daqueles lobos a quem eu o entregara.

Levei adiante a minha obra, virando-me para Elihu Willsson:

- Tem alguma coisa a dizer sobre o assalto ao seu banco, ou não?

Max Thaler cutucou-me o braço e sugeriu:

- Talvez pudéssemos decidir melhor quem tem o direito de reclamar, se você primeiro nos dissesse o que sabe.

Acedi com muito prazer.

- Noonan queria prendê-lo - disse-lhe - mas, ou recebeu ordem aqui de Yard e Willsson, ou esperava recebê-la, para o deixar em paz. Então lhe ocorreu a idéia de organizar um assalto ao banco, de modo que parecesse ser você o autor, confiando em que assim os seus patronos o abandonariam e permitiriam que ele o perseguisse. Yard, suponho, havia de consentir tudo, visto que você estaria invadindo o território dele e roubando Willsson. Tal era o plano. Noonan esperava que os outros se exasperassem o bastante para ajudá-lo a prender você. Ignorava que você estivesse aqui.

- Reno e seu bando estavam na cadeia. Reno era o braço direito de Yard, mas não duvidava em voltar-se contra o seu chefe. Tinha já na mente o propósito de se apossar dos domínios de Yard. - Voltei-me para Reno e perguntei: - Não é assim?

Olhou-me com a sua cara de pau e retorquiu:

- Você é quem diz. Continuei:

- Noonan simula um aviso de que você está em Cedar Hill, e leva todos os policiais em quem não pode confiar; tira até os de serviço na direção do tráfego na Broadway, desembaraçando assim o caminho para Reno. McGraw e os subordinados que estão a par da trama deixam Reno e o seu bando sair da cadeia, executar o trabalho, e regressar. Excelente álibi. Depois os homens são libertados sob fiança, duas horas mais tarde.

- Parece que Lew Yard farejou a trama. À noite passada mandou Jake Wahl e alguns outros à Flecha de Prata, para ensinar Reno e seus homens a não tomarem daquelas liberdades. Mas Reno escapou, e voltou à cidade. Desde esse momento, era ele ou Lew. Tratou de garantir a seu favor o resultado da luta postando-se diante da casa de Lew, com uma pistola na mão, à hora em que Lew saía para a rua. Reno parece ter acertado, pois vejo que está ocupando uma cadeira que seria de Lew Yard, se Lew não tivesse sido liquidado.

Todos estavam muito quietos, como querendo chamar a atenção para a sua imobilidade. Ninguém podia contar com nenhum amigo entre os presentes. Não era ocasião para movimentos descuidados da parte de quem quer que fosse.

Se o que eu dissera significava alguma coisa para Reno, este não o demonstrou.

Thaler disse baixinho:

- Você não omitiu nada?

- Refere-se ao caso de Jerry? - Eu continuava sendo o animador da festa. - Ia tratar disso. Não sei se ele também se evadiu ao mesmo tempo que você e foi capturado mais tarde, ou se permaneceu na prisão. E não sei se participou de bom grado no assalto ao banco, ou não. Mas acompanhou os assaltantes e foi morto, e deixado em frente ao banco porque era o seu braço direito, e, com a presença dele lá, você ficaria implicado. Retiveram-no dentro do automóvel até o momento de irem embora. Então o empurraram para fora e alvejaram-no pelas costas. Estava de frente para o banco, e de costas para o carro, quando recebeu o tiro.

Thaler olhou Reno e sussurrou:

- Então?

Reno pousou em Thaler os olhos inexpressivos e perguntou calmamente:

Thaler levantou-se, murmurou: "Vou cair fora", e dirigiu-se para a porta.

Pete pôs-se em pé, firmou-se na mesa com as grandes mãos ossudas, e falou do fundo do peito:

- Cochicho. - E quando Thaler parou e se virou: - Quero dizer uma coisa. A você, Cochicho, e a vocês todos. Esses tiroteios têm de acabar. Todos sabem. Vocês não têm cabeça para saber o que mais lhes convém. Por isso eu lhes digo. Esse rebuliço do inferno prejudica os negócios. Não o consentirei mais. Portem-se bem, ou eu terei de obrigá-los a isso.

- Eu tenho um batalhão de rapazes que sabem o que devem fazer diante de uma pistola. Preciso deles no meu serviço. Se me vir obrigado a empregá-los contra vocês, não hesitarei. Querem brincar com pólvora e dinamite? Eu lhes mostro como é que se brinca com elas. Gostam de brigar? Eu lhes dou brigas. Ouçam o que estou dizendo. É só.

Pete sentou-se.

Thaler ficou pensativo por um instante, e logo se retirou sem dizer nem mostrar o que pensara.

A sua saída deixou inquietos os restantes. Ninguém desejava permanecer ali até que o outro tivesse tempo de reunir alguns pistoleiros nas vizinhanças.

Dentro de poucos minutos, Elihu Willsson e eu ficamos sós na biblioteca.

Continuamos sentados, olhando um para o outro.

Dali a pouco, Elihu perguntou:

- Você gostaria de ser chefe de polícia?

- Não. Eu não sirvo para moço de recados,

- Não digo com essa gente. Depois que nos livrarmos dela.

- E arranjar outros iguaizinhos a estes,

- Diabos o levem - disse ele. - Não lhe faria mal nenhum falar com mais delicadeza a um homem que tem idade para ser seu pai.

- E que esbraveja contra mim, prevalecendo-se da idade. A cólera intumesceu-lhe uma veia da testa. Depois, o velho riu-se.

- Você é um garoto atrevido - disse - mas não posso negar que executou o serviço que lhe encomendei.

- E grande ajuda você me deu.

- Precisava de quem lhe prestasse ajuda? Eu lhe dei dinheiro e carta branca. Foi o que você pediu. Que mais queria?

- Velho pirata - retruquei - Foi preciso usar de um estratagema para o obrigar a isso, e você sempre me solapou o trabalho, até perceber que eles estão mesmo resolvidos a engolirem-se uns aos outros. Agora se lembra de falar no que fez por mim.

- Velho pirata - repetiu. - Meu filho, se eu não tivesse sido pirata, ainda estaria trabalhando por um salário miserável na Anaconda, e não existiria a Personville Mining Corporation. Você mesmo parece um pobre cordeirinho. Eu estava em situação de inferioridade, filho. Havia coisas de que não gostava - e outras piores, que ignorava até agora - mas sentia-me impotente, e vi-me obrigado a esperar uma oportunidade. Pois tenho sido um prisioneiro na minha própria casa, um refém, desde que aquele Cochicho Thaler veio para cá!

- É duro. E qual é a sua atitude agora? - perguntei, - Está do meu lado?

- Se a vitória for sua. Levantei-me e disse:

- Espero em Deus que você leve a breca junto com eles. O velho retrucou:

- Acredito, mas não será assim. - Olhou-me de soslaio, divertido. - Eu o estou financiando. Isso prova que tenho boa intenção, não é? Não seja muito severo comigo, filho. Ando meio...

- Vá para o inferno - disse eu, retirando-me.

 

                                              Láudano

DICK Foley estava na esquina próxima, com o seu automóvel alugado. Levou-me até a uma quadra da casa de Dinah Brand, e percorri a pé o resto do caminho.

- Você parece fatigado - disse ela, depois que a segui à sala de estar. - Esteve trabalhando?

- Assisti a uma conferência de paz que deve resultar em uma dúzia de mortes, pelo menos.

A campainha do telefone tilintou. Dinah atendeu e chamou-me.

A voz de Reno Starkey fez-se ouvir:

- Pensei que talvez lhe interessasse saber que Noonan foi alvejado e morto quando descia do automóvel em frente de sua casa. Não é possível estar mais completamente morto. Devem ter-lhe metido umas trinta balas no corpo.

- Obrigado.

Dinah interrogou-me com os olhos azuis.

- Primeiros frutos da conferência da paz, colhidos por Cochicho Thaler - disse-lhe eu. - Onde está o gim?

- Era Reno quem falava, não?

- Sim. Pensou que eu gostaria de saber que Poisonville está sem chefe de polícia.

- Quer dizer...?

- Noonan esticou as pernas esta noite, a crer em Reno. Não tem gim? Ou prefere fazer-me esperar?

- Você sabe onde está. Andou praticando alguma de suas espertezas?

Fui à cozinha, ergui a tampa do refrigerador, e ataquei o gelo com um instrumento de haste aguçada como a de uma sovela, medindo seis polegadas, com o cabo azul e branco. A pequena ficara no limiar da porta, fazendo perguntas. Não respondi enquanto misturava gelo, gim, suco de limão e soda em dois copos.

- Que foi que você andou fazendo? - inquiriu ela, quando levávamos os copos para a sala de jantar. - Está com uma aparência horrível.

Pus o meu copo em cima da mesa, sentei-me diante dele, e queixei-me:

- Este lugarejo dos diabos está me contaminando. Se não for embora logo tornar-me-ei tão sanguinário como essa gente daqui. Já houve o quê? Dúzia e meia de assassínios desde que cheguei aqui. Donald Willsson; Ike Bush; os quatro gringos e o policial em Cedar Hill; Jerry; Lew Yard; Dutch Jake, Blackie Whalen e Put Collings na Flecha de Prata; Big Nick, o policial que eu liquidei; o rapazola louro que o Cochicho baleou aqui; Yakima Shorty, o gatuno que entrou na casa do velho Elihu; e agora Noonan. São dezesseis em menos de uma semana, e mais ainda estão por vir.

Ela franziu a testa e disse rispidamente:

- Não me olhe assim. Ri-me e prossegui:

- Eu mesmo já cometi uma ou duas mortes no meu tempo, quando era preciso. Mas esta é a primeira vez que pego a febre. É esta cidade excomungada. Não se pode proceder lisamente aqui. Emaranhei-me desde o princípio. Quando o velho Elihu me abandonou, nada me restava a fazer senão procurar lançar os homens uns contra os outros. Tive de dirigir a operação da melhor maneira possível. Que ia fazer, se a melhor maneira tinha de resultar numa porção de mortes? O trabalho não podia ser realizado de outro modo sem o apoio de Elihu.

- Bem, se você não podia fazer de outro modo, para que se afligir? Tome o seu drinque.

Bebi a metade do copo e senti-me impelido a continuar a falar.

- Brinque muito com homicídios, e de duas uma: Ou você fica doente, ou começa a gostar. O primeiro caso foi o que se deu com Noonan. Ficou verde de náuseas quando Yard foi morto: tinha o estômago embrulhado, e estava pronto a fazer qualquer coisa para conseguir paz. Passei-lhe o mel na boca, sugerindo que ele e os outros sobreviventes se reunissem e acertassem as suas diferenças.

- Realizamos a reunião em casa de Willsson, esta noite. Foi uma linda festa. Simulei querer esclarecer todos os mal-entendidos falando com inteira franqueza, depenei e entreguei Noonan aos outros - Noonan e Reno. Isso pôs fim à reunião. Cochicho retirou-se. Pete disse a todos o que pensava deles. Declarou que as brigas lhe prejudicavam o negócio de contrabando de bebidas, e estava decidido a soltar os seus homens contra quem desse novo passo. Cochicho não pareceu impressionado. Nem Reno.

- É natural - disse a mulher. - Que foi que você fez a Noonan? Quero dizer, como os depenou, a ele e a Reno?

- Disse aos outros que ele, desde o princípio, sabia que MacSwain tinha matado Tim. Foi a única mentira que eu disse. Depois revelei que o assalto ao banco tinha sido maquinado por Noonan e Reno, e que Jerry fora levado e deixado morto no local a fim de implicar Cochicho. Eu sabia que tinha sido assim, se é verdade que Jerry saiu do carro, caminhou para o banco e foi alvejado, como você me contou. A bala lhe entrara pelas costas. Isso condizia com a informação prestada por McGraw, de que o carro tinha sido visto pela última vez quando dobrava a esquina de King Street. Os rapazes iam voltando para o City Hall, para o seu alibi na cadeia.

- Mas o guarda do banco não disse que havia matado Jerry? Foi assim que saiu nos jornais.

- Disse, mas ele estava pronto a dizer o que quer que fosse, e acreditar no que afirmava. Provavelmente descarregou a pistola de olhos fechados, e quem fosse ferido era seu. Você não viu Jerry cair?

- Sim, e ele estava de frente para o banco; mas tudo foi muito confuso para que eu pudesse ver quem o matou. Havia uma porção de homens atirando, e...

- Pois é. Eles providenciariam para que isso acontecesse. Também proclamei o fato (pelo menos, a mim me parece um fato) de que Reno deu cabo de Lew Yard. Esse Reno é duro, não? Noonan ficou espavorido, mas só o que conseguiram de Reno foi um "E daí?' Tudo se passou de maneira muito correta e cavalheiresca. Estavam divididos em facções equivalentes - Pete e Cochicho contra Noonan e Reno. Mas nenhum deles podia contar com o auxílio do sócio no caso de arriscar um lance. E quando terminou a sessão, os pares estavam separados. Noonan era carta fora do baralho, e Reno e Cochicho, inimizados, tinham Pete contra si. De modo que ficaram todos sentados, imóveis, espiando-se uns aos outros, enquanto eu espalhava a morte e a desolação.

- O primeiro a sair foi o Cochicho, e parece ter tido tempo de reunir alguns capangas diante da casa de Noonan antes que o chefe de polícia chegasse. O chefe foi morto. Se Pete estava falando sério - e tem cara de quem fala sério, mesmo - deve ter saído à procura do Cochicho, Reno tinha tanta culpa da morte de Jerry como Noonan; de modo que Cochicho deve estar de tocaia contra ele. Sabendo disso, Reno há de querer matá-lo primeiro. Ademais, Reno decerto está tendo trabalho com os homens de Lew Yard que não o aceitam como novo chefe. Em suma, uma verdadeira mixórdia.

Dinah Brand estendeu a mão por cima da mesa e afagou a minha. Tinha os olhos inquietos. Disse:

- A culpa não é sua, querido. Você mesmo disse que não podia proceder de outro modo. Termine de beber o seu drinque, e vamos preparar outro.

- Havia muitos outros modos de proceder - contestei. - Elihu desertou-me, a princípio, simplesmente porque esses sujeitos sabiam de muitas coisas comprometedoras para que ele se arriscasse a uma ruptura sem ter a certeza de poder exterminá-los. Não acreditava que eu fosse capaz de fazê-lo, de modo que se bandeou com eles. O velho não é da mesma pistola que esses assassinos, e, além disso, considera a cidade como sua propriedade particular e não gosta da maneira como eles lha arrebataram.

- Eu podia tê-lo procurado esta tarde e provado que vencera os outros. Elihu me ouviria. Ter-se-ia posto do meu lado, dando-me o apoio que eu necessitava para solucionar o caso legalmente. Eu podia ter feito isso. Mas é mais fácil deixar que se matem; mais fácil e mais seguro; e, agora, com o novo estado de ânimo em que estou, é também mais satisfatório. Não sei como me avirei com a Agência. O nosso velho me cortará em pedacinhos se um dia descobrir o que andei fazendo. É esta maldita cidade. Poisonville é um nome muito bem aplicado. Ela me envenenou.

- Olhe. Eu me sentei à mesa de Willsson esta noite, brinquei com os homens como o gato com um rato, e estava me divertindo imensamente. Olhei para Noonan, compreendi que não lhe restava uma única oportunidade em mil de viver mais um dia, por causa do que eu lhe fizera; e apesar disso ri-me, sentindo um calor e uma felicidade lá por dentro. Eu não era assim. Tenho uma casca bastante dura a recobrir o que resta da minha alma, e, depois de lidar com crimes durante vinte anos, posso olhar para qualquer homicídio sem ver nele mais que o meu ganha-pão. Mas isso de ter prazer em planejar mortes não é natural em mim. Aí está o que me fez esta cidade.

Dinah sorriu-me com suavidade, e falou com bastante indulgência:

- Você exagera, meu bem. Eles merecem tudo o que lhes acontecer. Eu quisera que você não me olhasse assim. Dá arrepios.

Sorri, tomei os copos, e fui buscar mais gim na cozinha. Quando voltei, ela franziu as sobrancelhas por cima dos olhos cheios de ansiedade e perguntou:

- Mas para que é que traz o quebrador de gelo?

- É para você ver como anda a minha cabeça. Uns dois dias atrás, se eu me desse o trabalho de pensar nele, seria apenas como um bom utensílio para arrancar pedacinhos de gelo. - Corri um dedo pela sua lâmina de seis polegadas de aço redondo, até a ponta aguçada. - Não é má arma para cravar num homem. Ê assim que eu ando, palavra. Não posso nem ver um isqueiro de mola sem pensar em enchê-lo de nitroglicerina para alguém que me aborreça. Há um pedaço de arame de cobre na sarjeta diante de sua casa - fino, macio, bastante comprido para rodear um pescoço, com duas pontas para segurar. Tive um trabalho dos diabos em me abster de apanhá-lo e metê-lo no bolso, só para o caso de...

- Você está doido.

- Eu sei. Ê o que eu lhe disse. Estou ficando com a mania do homicídio.

- Pois bem, isso não me agrada. Leve essa coisa para a cozinha, venha sentar-se e tenha juízo.

Obedeci a dois terços da ordem.

- O seu mal - disse ela, repreendendo-me - é que anda com os nervos abalados. Tem tido muita excitação nos últimos dias. Continue assim e vai sofrer um colapso nervoso.

Levantei uma das mãos, com os dedos estendidos. Estava bastante firme.

Dinah olhou e disse:

- Não significa nada. A coisa está dentro de você. Por que não se retira para descansar uns dois dias? Você dispôs a situação aqui de tal maneira que ela se desenrolará por si mesma. Vamos a Salt Lake. Far-lhe-á bem.

- Não posso, filha. Alguém tem de ficar para contar os mortos. Além disso, o programa todo está baseado na atual combinação de pessoas e fatos. A nossa saída da cidade modificará essa combinação, e é muito provável que eu tivesse de recomeçar tudo outra vez.

- Ninguém saberia que você tinha ido embora, e eu não tenho nada com a coisa.

- Desde quando?

Ela curvou-se para a frente, apertou os olhos, e perguntou:

- Que é que está insinuando agora?

- Nada. Apenas queria saber como é que você se tornou um espectador desinteressado, assim de uma hora para outra. Já esqueceu que Donald Willsson foi morto por sua causa, dando começo a toda essa rebordosa? Esqueceu que foi a sua revelação sobre Cochicho que impediu que a coisa chegasse a um ponto morto?

- Você sabe, tão bem como eu, que nada disso foi por culpa minha - tornou, com indignação. - E, de qualquer forma, tudo é coisa do passado. Você o recorda agora só porque está de mau humor e com vontade de discutir.

- Não era coisa do passado ontem à noite, quando você estava louca de medo de ser assassinada pelo Cochicho.

- Não quer parar de falar em assassinatos?

- O jovem Albury me disse uma vez que Bill Quint ameaçara matá-la - observei.

- Pare com isso.

- Você parece ter o dom de despertar idéias homicidas nos seus amiguinhos. Lá está Albury aguardando julgamento por matar Willsson. O Cochicho trás você num pânico, tremendo pelos cantos. Nem eu escapei à sua influência. Veja em que me transformei. E sempre tive o palpite de que Dan Rolff qualquer dia vai atentar contra você.

- Dan! Você está maluco. Eu...

- Sim. Ele estava tísico e era um miserável. Você o trouxe para casa; deu-lhe um lar, e todo o láudano de que necessitava. Utiliza-o como moço de recados, esbofeteia-o na minha "frente, bate-lhe diante dos outros. Está apaixonado por você. Qualquer dias destes, quando você acordar, descobrirá que Dan lhe cortou o pescoço.

Ela estremeceu, pôs-se em pé, e sorriu.

- Se você sabe de que está falando, estimo muito, porque eu não sei - disse, levando os nossos corpos vazios para a cozinha.

Acendi um cigarro e perguntei a mim mesmo por que razão me achava naquele estado de espírito, e se não me estaria tornando um psicótico, se haveria alguma base para os meus pressentimentos, ou simplesmente estava com os nervos despedaçados.

- A melhor coisa que pode fazer, se não quer sair da cidade - ponderou a mulher, voltando com os copos cheios - é tomar um pifão e esquecer tudo por algumas horas. Eu pus uma dose dupla de gim no seu copo. Você está precisando.

- Não sou eu - volvi, sem saber bem porque o dizia, mas divertindo-me com aquilo. - É você. Cada vez que falo em assassinatos, dá o estrilo. Você é mulher. Pensa que, não se tocando no assunto, talvez nenhum dos - sabe Deus quantos - habitantes desta cidade que têm razão para isso vai tentar matá-la. É uma tolice. Nada do que nós dissermos ou deixarmos de dizer fará com que o Cochicho, por exemplo...

- Por favor, parei Eu sou tola. Tenho medo das palavras. Tenho medo deles. Eu... Oh, por que não deu cabo deles quando lhe pedi?

- Sinto muito - disse sinceramente.

- Acha que Max...?

- Não sei - respondi - e desconfia que você tem razão. De nada serve falar sobre isso. O certo é beber, embora este gim não pareça lá muito forte.

- Ê você, não o gim. Quer mesmo tomar uma boa dose?

- Esta noite eu era capaz de beber nitroglicerina.

- É mais ou menos o que eu vou lhe dar - prometeu.

Fez tinir algumas garrafas na cozinha, e trouxe-me o que parecia ser o mesmo líquido que nós tínhamos estado a beber, Cheirei e disse:

- Um pouco do láudano de Dan Rolff, hem? Ainda no hospital?

- Sim. Creio que tem o crânio fraturado. Aí está o seu estimulante, moço, se é isso o que deseja.

Engoli a droga. Em breve me senti disposto. O tempo corria enquanto nós bebíamos e falávamos num mundo cor-de-rosa, alegre, cheio de camaradagem e paz.

Dinah só bebeu gim. Experimentei fazer o mesmo por algum tempo, depois tomei outro gim com láudano.

Começamos então a jogar. Eu tentava manter os olhos abertos como se estivesse acordado, embora não enxergasse nada. Quando vi que não conseguia mais iludi-la, desisti.

A última coisa de que me lembro foi Dinah ajudando-me a alcançar o Chesterfield da sala de estar.

 

                                       O Décimo Sétimo Homicídio

SONHEI que estava sentado num banco, em Baltimore, diante do chafariz de Harlem Park, ao lado de uma mulher que trazia o rosto coberto por um véu. A mulher tinha vindo comigo. Eu a conhecia bem. Mas esquecera repentinamente quem era ela. Não podia ver-lhe o rosto por causa do longo véu negro.

Pensei que, dizendo-lhe alguma coisa, poderia reconhecer-lhe a voz quando respondesse. Mas sentia-me embaraçado, e levei muito tempo procurando o que dizer. Por fim, perguntei-lhe se conhecia um homem chamado Carrol T. Harris.

Ela respondeu, mas o escachoar da fonte abafou-lhe a voz, e nada pude ouvir.

Carros de bombeiros tomaram pela Edmondson Avenue. A mulher deixou-me e saiu correndo atrás deles. Enquanto corria, gritava: "Fogo! Fogo!" Então reconheci a voz e me lembrei quem era ela, e que era uma pessoa de grande importância para mim. Pus-me a correr no seu encalço, mas demasiado tarde. Ela e os carros de bombeiros tinham desaparecido.

Percorri muitas ruas à sua procura, metade das ruas dos Estados Unidos, Gay Street e Mount Royal Avenue, de Baltimore, Colfax Avenue, de Denver, Aetna Road e St. Clair Avenue, de Cleveland, McKinney Avenue, de Dallas, as ruas Le-martine, Cornell e Amory, de Boston, o Berry Boulevard, de Louisville, Lexington Avenue, de New York, até chegar à Victória Street, de Jacksonville, onde tornei a ouvir a voz da mulher, embora continuasse sem poder enxergá-la.

Percorri novas ruas, escutando-lhe a voz. - Estava gritando um nome - não o meu; um nome que me era estranho - mas, por mais depressa que eu caminhasse, fosse em que direção fosse, não conseguia aproximar-me da voz. Permanecia sempre à mesma distância, tanto na rua que passa diante do Edifício Federal de El Paso, como no Grand Circus Park de Detroit. Depois a voz se calou.

Cansado e desanimado, entrei no vestíbulo do hotel fronteiro à estação ferroviária de Rocky Mount, North Carolina, a fim de repousar. Enquanto estava sentado ali, chegou um trem. A mulher desceu do trem, entrou no vestíbulo, caminhou para mim, e começou a beijar-me. Eu me sentia constrangido porque toda a gente em redor nos olhava, rindo.

Esse sonho terminou aí.

Depois sonhei que me achava numa cidade estranha, procurando um homem que eu odiava. Tinha no bolso uma faca desembainhada com que tencionava matá-lo quando o encontrasse. Era um domingo de manhã. Repicavam sinos, e magotes de pessoas estavam nas ruas, dirigindo-se para a igreja ou voltando de lá. Caminhei quase tanto como no primeiro sonho, mas sempre nessa mesma cidade estranha.

Então o homem que eu buscava gritou-me, e eu o avistei. Era baixo, moreno, e usava um enorme sombreiro. Estava parado nos degraus dum alto edifício, do outro lado de uma grande praça, rindo-se de mim. Entre nós, havia a praça, apinhada de gente.

Segurando com uma das mãos a faca no bolso, corri em direção ao homenzinho moreno, passando por cima das cabeças e ombros da multidão reunida na praça. Cabeças e ombros eram de alturas diferentes, e desigualmente espaçados. Eu tropeçava e debatia-me em cima deles.

O homem continuava parado nos degraus, rindo até que me viu prestes a alcançá-lo. Então correu para dentro do alto edifício. Persegui-o por milhas e milhas de uma escada em caracol, tendo-o sempre a apenas uma polegada da minha mão. Chegamos ao teto. Ele correu direto à borda e saltou, no momento preciso em que minha mão o tocava.

Seu ombro escorregou-me dos dedos. Minha mão derrubou o sombreiro e agarrou-lhe a cabeça. Era uma cabeça lisa, dura, redonda, não maior que um ovo grande. Meus dedos rodeavam-na completamente. Apertando-lhe a cabeça com uma das mãos tratei de tirar a faca do bolso com a outra - e verifiquei que me despenhara da beira do telhado junto com o homem. Caímos às tontas em direção aos milhões de caras voltadas para cima na praça, lá embaixo, a milhas de distância.

Abri os olhos à luz débil do sol da manhã, filtrada pelas cortinas da janela.

Estava deitado de bruços no soalho da sala de jantar, com a cabeça apoiada no braço esquerdo. O direito estava estendido, e a mão segurava o cabo redondo, azul e branco, do quebrador de gelo de Dinah Brand. As seis polegadas da aguçada lâmina do instrumento estavam embebidas no peito esquerdo de Dinah.

Ela achava-se deitada de costas, morta. Suas longas e musculosas pernas estavam estiradas na direção da porta da cozinha. Havia um fio corrido na frente da meia direita.

Lentamente, mansamente, como temeroso de despertá-la, soltei o quebrador de gelo, retirei o braço, e pus-me em pé.

Os olhos me ardiam. Garganta e boca estavam quentes,, ásperas. Dirigi-me à cozinha, encontrei uma garrafa de gim, emborquei-a na boca, e bebi até me faltar o fôlego. O relógio da cozinha marcava sete e quarenta e um.

Com o gim no estômago, voltei à sala de jantar, acendi as luzes e contemplei o cadáver da pequena.

Não se via muito sangue; uma mancha do tamanho de um dólar de prata em redor do buraco aberto pelo instrumento no vestido de seda azul. Havia uma contusão na face direita, logo abaixo do malar. Notava-se outra lesão, causada pela pressão de um dedo de homem, no pulso esquerdo. Movi-a o suficiente para verificar que não havia nada embaixo do corpo.

Examinei a sala. Ao que parecia, nada tinha sido mudado ali. Voltei à cozinha, e não encontrei nenhuma alteração perceptível.

Na cozinha, o trinco de mola estava fechado, e não apresentava sinais suspeitos. Fui à porta da frente e não encontrei sinal algum. Percorri a casa de alto a baixo, e nada descobri. As janelas estavam fechadas. As jóias da mulher, em cima do toalete (exceto os dois anéis de brilhantes, que estavam nas suas mãos), e quatrocentos dólares guardados na sua bolsa, sobre uma cadeira do quarto de dormir, achavam-se intactos.

De volta à sala de jantar, ajoelhei-me ao lado do cadáver e, com o lenço, limpei o cabo do quebrador de gelo, a fim de apagar qualquer marca que os meus dedos pudessem ter deixado nele. Fiz o mesmo com os copos, garrafas, portas, interruptores e os móveis que eu tinha tocado, ou podia ter tocado.

Depois lavei as mãos, examinei as minhas roupas à cata de manchas de sangue, certifiquei-me de que não esquecera nenhum objeto meu, e dirigi-me à porta da frente. Abri-a, limpei o botão interior, fechei-a atrás de mim, limpei a maçaneta exterior, e afastei-me.

 

De uma farmácia da Broadway, telefonei a Dick Foley pedindo-lhe que fosse ao meu hotel. Chegou poucos minutos depois de mim.

- Dinah Brand foi morta em sua casa à noite passada ou esta manhã ainda cedo - disse-lhe. - Apunhalada com um quebrador de gelo. A polícia ainda não sabe. Eu lhe contei o suficiente a respeito dela para você saber que muita gente podia ter motivos para matá-la. Há três pessoas cujos passos eu queria conhecer, antes de tudo - Cochicho, Dan Rolff e Bill Quint, o radical. Você tem as descrições. Rolff está no hospital com o crânio fraturado. Não sei em que hospital. Experimente primeiro o City. Procure Mickey Linehan - ele ainda está vigiando Pete, o Finlandês, - e diga-lhe que deixe Pete descansar enquanto ajuda você nesta investigação. Descubram onde estiveram esses três sujeitos à noite passada. E o tempo é precioso.

O pequeno canadense estivera a observar-me curiosamente enquanto eu falava. Fez menção de dizer alguma coisa, mudou de idéia, grunhiu: "Está certo", e retirou-se.

 

Saí à procura de Reno Starkey. Depois de uma hora de indagações, localizei-o, por telefone, numa casa de cômodos da Ronney Street.

- Sozinho? - perguntou, quando eu lhe disse que desejava vê-lo.

- Sim.

Disse-me que podia ir, e me ensinou como encontrar a casa. Fui de táxi. Era um prédio de dois andares, encardido, nos arrabaldes.

Havia dois homens parados diante de uma mercearia, na esquina que eu acabava de passar. Outro par estava sentado nos degraus de uma casa, na esquina seguinte. Nenhum dos quatro primava pela aparência.

Quando toquei a campainha, dois homens abriram a porta. Não pareciam muito delicados.

Conduziram-me a um quarto da frente, no andar superior; sem colarinho, em mangas de camisa e colete, Reno se achava sentado numa cadeira inclinada para trás, e com os pés em cima do peitoril da janela.

Inclinou a lívida cara de cavalo, e disse:

- Puxe uma cadeira.

Os homens que me haviam introduzido retiraram-se, fechando a porta. Sentei-me e disse:

- Preciso de um álibi. Dinah Brand foi assassinada a noite passada, depois que deixei a casa. Não me podem prender por causa disso, mas agora, morto Noonan, eu não sei como andam as minhas relações com a polícia. Não quero dar-lhes o mínimo pretexto para tentar inculpar-me de alguma coisa. Sendo preciso, posso provar onde estava esta noite, mas você me pouparia muitos incômodos se quisesse.

Reno encarou-me com os olhos inexpressivos e perguntou:

- Por que procura a mim?

- Você me telefonou ontem de noite. É a única pessoa que sabe da minha presença, lá, na primeira parte da noite. Eu teria de regularizar esse ponto com você, embora arranjasse o álibi noutra parte, não?

Ele inquiriu:

- Não foi você quem a matou, foi?

- Não - retorqui, em tom indiferente.

Reno olhou para fora por algum tempo, antes de tornar a falar. Perguntou:

- Que foi que lhe deu razão para esperar ajuda de minha parte? Devo-lhe alguma obrigação pelo que você me fez ontem em casa de Willsson?

- Não lhe fiz mal algum - retruquei. - De qualquer forma, o caso já começava a transpirar. Cochicho sabia o suficiente para adivinhar o resto. Eu apenas pus as cartas na mesa. Que lhe importa? Você é capaz de cuidar de si mesmo.

- Não tenho outro remédio senão experimentar - concordou. - Perfeitamente. Você estava na Tanner House, em Tanner. É um lugarejo a vinte e três milhas daqui, pela estrada do cerro. Foi para lá depois de deixar a casa de Willsson, e só voltou de manhã. Um camarada chamado Ricker, que está quase sempre com o seu carro de praça estacionado perto do bilhar de Murry, conduziu-o na ida e na volta. Você deve saber explicar o que estava fazendo lá. Dê-me a sua assinatura, e eu me encarrego de mandar registrá-la em Tanner House.

- Obrigado - disse eu, enquanto desatarraxava a minha caneta automática.

- Não me agradeça. Estou fazendo isso porque preciso de todos os amigos que puder arranjar. Quando chegar o momento de nos encontrarmos com o Cochicho e Pete, espero que você não se volte contra mim.

- Não farei - prometi. - Quem vai ser o chefe de polícia?

- McGraw está tomando conta da chefatura. Provavelmente ficará com o lugar.

- Qual é a posição dele?

- Ao lado do Finlandês. A agitação prejudica-o tanto quanto a Pete. Terá de ser prejudicado. Eu seria um grande idiota se ficasse quieto quando um sujeito como o Cochicho anda solto. Ou ele ou eu. Acha que ele matou a pequena?

- Motivos não lhe faltavam - tornei, dando-lhe o pedaço de papel em que escrevera o meu nome. - Dinah fez-lhe muitas ursadas.

- Você e ela eram bastante íntimos, não? - perguntou. Deixei-o sem resposta, acendendo um cigarro. Reno esperou algum tempo, depois disse:

- É melhor você procurar Ricker para que ele o veja bem, de modo a poder descrevê-lo se for preciso.

Um rapaz de cerca de vinte e dois anos, pernilongo, com uma cara fina e sardenta e olhos irrequietos, abriu a porta e entrou no quarto. Reno mo apresentou como Hank O'Marra. Levantei-me para lhe apertar a mão, e depois perguntei a Reno:

- Posso procurá-lo aqui, se houver necessidade?

- Conhece Peak Murry?

- Já o vi, e conheço o estabelecimento.

- Pode me mandar qualquer recado por intermédio dele - tornou. - Nós vamos deixar isto aqui. Não é lá muito bom. Aquele assunto de Tanner está arranjado.

- Perfeitamente. Obrigado - e retirei-me.

 

                                         O Quebrador de Gelo

DE volta ao centro encaminhei-me primeiro à chefatura de polícia. McGraw estava sentado à escrivaninha do chefe. Lançou-me um olhar desconfiado, por entre as pestanas louras; as rugas do seu rosto coriáceo fizeram-se ainda mais fundas e acrimoniosas que de costume.

- Quando viu Dinah Brand pela última vez? - perguntou, sem qualquer preâmbulo, nem sequer um aceno de cabeça. Sua voz ressoava desagradavelmente pelo nariz ossudo.

- A noite passada, às dez e quarenta, mais ou menos - respondi. - Por quê?

- Onde?

- Em casa dela.

- Quanto tempo esteve lá?

- Dez minutos, talvez quinze.

- Por que?

- Como, por quê?

- Por que não se demorou mais?

- Que é - perguntei, sentando-me na cadeira que ele não me oferecera - que lhe dá o direito de meter o nariz nisto?

McGraw olhou-me fixamente enquanto enchia os pulmões para gritar-me na cara: "Assassinato". Ri-me, e disse:

- Você decerto não pensa que ela tem alguma coisa que ver com a morte de Noonan?

Senti vontade de fumar, mas os cigarros são um recurso muito conhecido das pessoas que se acham nervosas, e não quis arriscar-me a acender um naquele momento.

McGraw tentou olhar-me no fundo dos olhos. Deixei-o olhar, confiado em que, como tanta gente, eu respirava candidez quando estava mentindo. Dali a pouco, desistiu do escrutínio e perguntou:

- Por que não?

Era uma réplica bastante fraca. Com ar indiferente, retorqui: - Com efeito, por que não? - Ofereci-lhe um cigarro, tirei um para mim, e acrescentei: - A minha opinião é que foi o Cochicho.

- Ele estava lá? - desta vez McGraw defraudou o nariz, soltando as palavras por entre dentes.

- Onde?

- Em casa de Brand.

- Não - respondi, enrugando a testa. - Por que havia de estar, se nesse momento se achava longe, matando Noonan?

- Para o diabo com Noonan! - exclamou irritado o chefe em exercício. - A troco de quê você está sempre trazendo Noonan à baila?

Procurei fitá-lo como se o julgasse doido. McGraw disse:

- Dinah Brand foi assassinada esta noite.

- Ah, sim? - volvi-lhe.

- Agora quer responder às minhas perguntas?

- Naturalmente. Eu estava em casa de Willsson com Noonan e os outros. Depois de sair, lá pelas dez e meia, fui até a casa de Dinah para lhe dizer que precisava ir a Tanner. Tinha marcado um encontro com ela. Demorei-me uns dez minutos, o tempo suficiente para tomar um drinque. Não havia mais ninguém lá, a não ser que estivesse escondido. Quando foi morta? E como?

McGraw contou-me que havia mandado dois dos seus subordinados - Shepp e Vanaman - falar com a mulher aquela manhã, para ver se ela podia e queria prestar auxílio à polícia na detenção de Cochicho como assassino de Noonan. Os detetives chegaram à casa por volta das nove e meia. A porta da frente estava entreaberta. Ninguém acudiu ao toque da campainha. Entraram e encontraram a pequena deitada de costas na sala de jantar, morta, com uma punhalada no peito esquerdo.

O médico que examinou o cadáver disse que ela fora morta com uma lâmina fina, redonda, aguçada, de cerca de seis polegadas de comprimento, mais ou menos às três horas da madrugada. Escrivaninhas, armários, baús, tudo parecia ter sido cabalmente saqueado. Não havia dinheiro na bolsa da mulher, nem em qualquer outra parte da casa. Sobre a toalete, o estojo de jóias estava vazio. Havia dois anéis de brilhantes nos dedos do cadáver.

A polícia não encontrara a arma com que Dinah tinha sido apunhalada. Os peritos em dactiloscopia nada descobriram que fosse de utilidade. Nem portas nem janelas pareciam ter sido forçadas. A cozinha mostrava que a mulher tinha estado bebendo com um ou mais visitantes.

- Quinze centímetros, redonda, fina, pontuda - fiz eu meditativamente, repetindo a descrição da arma. - Lembra-me o quebrador de gelo de Dinah.

McGraw estendeu a mão para o telefone e disse a alguém que mandasse Shepp e Vanaman. Shepp era um homem alto, de ombros caídos, cuja boca larga lhe dava um ar de feroz honestidade, provavelmente por causa dos maus dentes. O outro detetive era baixo, atarracado, de veias purpurinas no nariz, e quase sem pescoço.

McGraw nos apresentou, e inquiriu-os acerca do quebrador de gelo. Não o tinham visto, estavam certos de que o instrumento não se achava na casa. Não lhes teria passado despercebido um objeto desse gênero.

- Ele estava lá a noite passada? - perguntou-me McGraw.

- Eu a vi arrancar pedaços de gelo com o quebrador.

Descrevi-o. McGraw ordenou aos detetives que dessem nova busca na casa, e depois procurassem o instrumento nas vizinhanças.

- Você conhecia a mulher - disse, depois que Shepp e Vanaman se retiraram. - Qual é a sua opinião?

- Ainda não tive tempo de formar a minha opinião - volvi, esquivando-me à pergunta. - Dê-me uma ou duas horas para refletir. Que é que você acha?

Tornou à primitiva acrimônia, grunhindo:

- Como diabo vou saber?

Mas o fato de me ter deixado ir embora sem fazer novas perguntas revelava que já havia chegado à conclusão de que fora o Cochicho o assassino da pequena.

Perguntei a mim mesmo se realmente ele a matara, ou se aquela era outra das acusações infundadas que os chefes de polícia de Poisonville gostavam de lançar-lhe. Não parecia fazer muita diferença agora. Era óbvio que ele - pessoalmente ou por intermédio de algum assecla - tinha liquidado Noonan, e só podiam enforcá-lo uma vez.

 

Havia uma porção de homens no corredor, quando deixei McGraw. Alguns eram muito jovens - nada mais que rapazinhos - muitos eram estrangeiros, e em geral pareciam tão rudes como era de esperar.

Perto da porta, encontrei Donner, um dos agentes que tinham participado da expedição a Cedar Hill.

- Olá - saudei. - Para que essa gente? Esvaziando a cadeia a fim de arranjar lugar para outros?

- São os novos polícias especiais - respondeu, com ar de quem não lhes dava muita importância. - Vamos aumentar a força policial.

- Parabéns - disse eu, e saí.

Encontrei Peak Murry na sua sala de bilhar, sentado a uma escrivaninha atrás do balcão da tabacaria, falando com três homens. Sentei-me no outro lado da sala e fiquei olhando dois rapazes que jogavam. Dentro de poucos minutos, o escanifrado proprietário aproximou-se.

- Se se encontrar com Reno - disse-lhe - podia avisar-lhe que Pete, o Finlandês, mandou o bando dele engajar-se na força especial da polícia.

- Sim - concordou Murry.

 

Quando voltei ao hotel, Mickey Linehan estava sentado no vestíbulo. Seguiu-me ao quarto, e informou:

- O seu Dan Rolff raspou-se do hospital depois da meia-noite. Os médicos estão por conta. Parece que eles contavam extrair-lhe alguns pedacinhos de osso dos miolos, esta manhã. Mas o homem desapareceu com os seus tarecos. Ainda não demos com o paradeiro do Cochicho. Dick está procurando Bill Quint. Como foi essa história da facada na mulher? Dick me disse que você esteve lá antes dos tiras.

- Não...

A campainha do telefone soou.

Uma voz de homem, deliberadamente oratória, pronunciou o nome seguido de um ponto de interrogação.

- Sim - respondi. A voz disse:

- Aqui fala Mr. Charles Proctor Dawn. Creio que lhe será conveniente aparecer no meu escritório o mais breve possível.

- Ah, sim? Quem é o senhor?

- Mr. Charles Proctor Dawn, advogado. Meu escritório fica no edifício Rutledge, Green Street 310. Creio que lhe será...

- Quer-me esclarecer de que se trata? - perguntei.

- Há assuntos que é melhor não discutir por telefone. Creio que será... -

- Perfeitamente - interrompi outra vez. - Darei uma chegada aí esta tarde, se tiver tempo.

- Será muito, muito aconselhável - assegurou-me. Desliguei.

Mickey disse:

- Você ia-me contar a história da morte de Dinah Brand.

- Não - volvi. - Eu ia dizer que não havia de ser difícil seguir os passos de Rolff, andando pela cidade com o crânio fraturado, e provavelmente umas quantas ataduras. Suponhamos que você experimente. Procure primeiro em Hurricane Street.

Mickey alargou num sorriso sua cara avermelhada de comediante, disse: "Não me conte nada do que se passa - eu estou apenas trabalhando com você", agarrou o chapéu e saiu.

Estendi-me na cama, fumei vários cigarros, meditando nos sucessos da noite anterior - o meu estado de espírito, o meu sono profundo, os sonhos, e a situação em que me encontrara ao despertar. A meditação era bastante desagradável para eu "me sentir satisfeito ao vê-la interrompida.

Unhas arranharam a porta, do lado de fora. Abri-a.

O homem que estava parado diante da porta era-me estranho. Jovem, delgado, aparatosamente vestido, tinha sobrancelhas espessas e um bigode pequeno, preto como carvão num rosto muito pálido, nervoso, mas não tímido.

- Sou Ted Wright - disse, estendendo a mão como se eu tivesse muito prazer em conhecê-lo. - Creio que já ouviu o Cochicho falar em mim.

Apertei-lhe a mão, e fí-lo entrar, fechei a porta, e perguntei:

- É amigo do Cochicho?

- Como não? - Levantou a mão, mostrando dois dedos apertados um contra o outro. - Unha e carne, ele e eu.

Não respondi. O homem olhou em torno, sorriu nervosamente, foi até a porta aberta do banheiro, espiou, voltou para junto de mim, passou a língua pelos lábios, e fez a sua proposta:

- Se quiser, dou cabo dele por quinhentos dólares.

- Do Cochicho?

- Sim, e é pra lá de barato.

- Por que razão desejaria vê-lo morto? - perguntei.

- Ele o deixou sem a sua amiguinha, não?

- Ah, foi?

- Ora, você não é tão tolo assim.

Uma idéia brotou-me na mente. Para lhe dar tempo de desenvolver-se, disse ao homem:

- Sente-se. Isto é assunto que exige discussão.

- Não exige coisa alguma - retrucou, olhando-me fixamente, sem se mover na direção de nenhuma das cadeiras. - Ou você quer que se liquide o Cochicho, ou não quer.

- Então não quero.

Ted Wright disse lá no fundo da garganta alguma coisa que não percebi, e virou-se para a porta. Interpus-me no seu caminho. Ele parou com os olhos assustados.

- Então o Cochicho morreu? - perguntei.

O homem recuou e levou a mão às costas. Empurrei-lhe o queixo, apoiando as minhas cento e noventa libras no punho.

Ele embaraçou as pernas, uma na outra e caiu.

Ergui-o pelos pulsos, aproximei a sua cara da minha com um sacalão, e grunhi:

- Desembuche. Que plano era esse?

- Eu não lhe fiz nada.

- Vamos ver. Quem matou o Cochicho?

- Não sei de nada que...

Soltei-lhe um dos pulsos, bati-lhe no rosto com a mão aberta, agarrei-lhe novamente o pulso, e experimentei triturar suas munhecas enquanto repetia:

- Quem matou o Cochicho?

- Dan Rolff - Gemeu. - Ele chegou-se e cravou-lhe o mesmo espeto que o Cochicho tinha usado contra a mulher. Foi assim.

- Como sabe que foi o mesmo instrumento com que o Cochicho tinha matado a pequena?

- Dan Rolff disse.

- E que disse o Cochicho?

- Nada. Estava muito esquisito, ali parado com a ponta do espeto saindo por um dos lados. De repente puxou o revólver e meteu duas balas em Dan, uma atrás da outra. Os dois caíram ao mesmo tempo, batendo com as cabeças, a de Rolff com as ataduras empapadas de sangue.

- E depois?

- Depois, nada. Virei-os e vi que estavam mortos. Tudo o que lhe contei é a pura verdade.

- Quem mais estava presente?

- Mais ninguém. Cochicho andava escondido, e eu era o único intermediário entre ele e a quadrilha. Tinha matado Noonan, e não queria fiar-se em ninguém, a não ser eu, por uns dias, até ver em que dava a coisa.

- De modo que você, muito espertinho, pensou em se dirigir aos inimigos dele e juntar uns cobres para o matar depois que já estava morto?

- Eu andava na lona, e isto aqui não vai ser lugar para os companheiros do Cochicho, quando se souber que ele foi morto - gemeu Wright. - Tinha de arranjar algum dinheiro para ir embora.

- Quanto levantou até agora?

- Ganhei cem de Pete, e cento e cinqüenta de Peak Murry - por conta de Reno - e ambos me prometeram mais quando eu fizesse o serviço. - A sua voz de lamentosa passou a blasonadora. - Aposto que seria capaz de arrancar também alguma coisa a McGraw, e pensei que você havia de entrar com um pouco.

- Devem andar muito aéreos para gastar dinheiro num negócio duvidoso como esse.

- Não sei - disse Wright, com ar superior. - Não é um plano tão ruim assim. - Fez-se novamente humilde. - Dê-me uma oportunidade, chefe. Não me estrague o negócio. Eu lhe darei cinqüenta dólares agora, e uma parte do que receber de McGraw, se calar o bico até eu terminar a coleta e apanhar um trem.

- Ninguém mais sabe onde se acha o Cochicho?

- Ninguém mais, salvo Dan, que está tão morto como ele.

- Onde estão?

- No antigo armazém Redman, em Porter Street. Em cima, nos fundos, o Cochicho tinha um quarto com cama, fogão e alguns mantimentos. Dê-me uma oportunidade. Cinqüenta agora, e uma parte do resto.

Soltei-lhe o braço e disse:

- Não quero o dinheiro, mas vá. Dou-lhe umas poucas horas. Devem ser suficientes.

- Obrigado chefe. Obrigado, obrigado - e afastou-se apressadamente.

Pus o casaco e o chapéu, e saí em demanda de Green Street e o Edifício Rutledge. Era um prédio de madeira, já muito velho. O escritório de Mr. Charles Proctor Dawn era no primeiro andar. Não havia elevador. Subi uma escada de madeira, gasta e desconjuntada.

O advogado tinha duas salas, ambas sujas, malcheirosas e fracamente iluminadas. Esperei na sala exterior enquanto um secretário, que quadrava muito bem com as salas, levava o meu nome ao causídico. Meio minuto depois o secretário abriu a porta e acenou-me para que entrasse.

Mrs. Charles Proctor Dawn era um homenzinho gordo, de mais de cinqüenta anos. Tinha olhos triangulares, curiosos, muito claros, um nariz curto e carnudo, boca ainda mais carnuda, cuja avareza só em parte se dissimulava entre um cerdoso bigode grisalho e um hirsuto cavanhaque também grisalho. As roupas eram escuras e enxovalhadas, sem chegar a ser sujas.

Não se ergueu de onde estava, e durante toda a minha visita conservou a mão direita na borda de uma gaveta da escrivaninha, aberta umas seis polegadas.

Disse:

- Ah, meu caro senhor, alegro-me imenso em ver que teve a sensatez de reconhecer o valor do meu conselho.

Sua voz estava ainda mais oratória do que ao telefone. Não respondi.

Sacudindo as suíças como se a falta de resposta fosse outra prova de sensatez, continuou:

- Posso dizer, com toda a justiça, que o senhor há de perceber a conveniência de seguir os ditames do meu parecer em todos os casos. Posso dizê-lo, meu caro senhor, sem falsa modéstia, considerando, ao mesmo tempo com humildade e com um profundo senso dos valores reais e perduráveis, as minhas responsabilidades, bem como as minhas prerrogativas na qualidade de um - e por que me dignaria esconder o fato de que há quem se creia justificado em preferir o artigo definido ao indefinido? - na qualidade de um reconhecido luminar da advocacia neste próspero Estado.

Sabia uma porção de frases como essas, e não teve dúvidas em empregá-las comigo. Finalmente rematou:

- Assim, aquele modo de proceder que, num profissional menos eminente, poderia parecer irregular, torna-se, quando usado por quem ocupa lugar tão indiscutivelmente elevado na sua comunidade - e, posso dizer, não apenas na imediata comunidade - que o coloca acima do temor de censura, simplesmente aquela ética superior que desdenha os mesquinhos convencionalismos quando defrontados com o ensejo de servir a humanidade na pessoa de um dos seus representantes individuais. Portanto, meu caro senhor, não vacilei em pôr desdenhosamente de lado todas as considerações triviais dos precedentes autorizados, para o chamar e dizer-lhe franca e sinceramente, meu caro senhor, que terá os seus interesses melhor defendidos contratando-me como seu representante legal.

- Quanto custará? - perguntei.

- Isso - volveu altaneiro - é de importância meramente secundária. Todavia, é um pormenor que tem o seu merecido lugar nas nossas relações, e não deve ser esquecido nem desprezado. Diremos mil dólares agora. Posteriormente, sem dúvida...

Cocou as suíças, e não terminou a frase. Respondi que, por certo, não trazia comigo tão elevada quantia.

- Naturalmente, meu caro senhor. Naturalmente. Mas isso não tem a mínima importância. Absolutamente nenhuma. Qualquer momento serve, qualquer momento até amanhã às dez horas.

- Amanhã às dez - assenti. - Agora, eu gostaria de saber por que motivo me supõe necessitado de representantes legais.

Ele assumiu uma expressão indignada.

- Meu caro senhor, isto não é caso para gracejos, eu lhe asseguro.

Expliquei-lhe que não estava gracejando, que realmente me achava perplexo.

Ele pigarreou, franziu o sobrolho com certa importância, e disse:

- É muito possível, meu caro senhor, que não compreenda inteiramente os perigos que o rodeiam, mas é sem dúvida absurdo que o senhor pretenda fazer-me crer que não tem a mínima suspeita das dificuldades - as dificuldades legais, meu caro senhor - com que está para ser defrontado, oriundas, como são, de fatos ocorridos a uma data não mais remota que a noite passada, meu caro senhor, a noite passada. No entanto, agora não disponho de tempo para entrar nesse assunto. Tenho uma audiência urgente com o juiz Leffner. Amanhã terei prazer em examinar detalhadamente as mais insignificantes ramificações da situação - e asseguro-lhe que são numerosas - em companhia do senhor. Esperá-lo-ei amanhã às dez horas da manhã.

Prometi comparecer à hora marcada, e saí. Passei o resto do dia no meu quarto, bebendo uísque ruim, pensando em coisas desagradáveis, e esperando em vão os informes de Mickey e Dick. Fui dormir à meia-noite.

 

                                 Mr. Charles Proctor Dawn

ESTAVA já meio vestido, na manhã seguinte, quando Dick Foley chegou. Com o seu laconismo habitual, informou que Bill Quint se retirara do Hotel dos Mineiros na véspera ao meio-dia, sem deixar endereço para o envio da correspondência. Um trem partia de Personville para Ogden às doze e trinta e cinco. Dick telegrafara à filial da Continental em Sair Lake para mandar um homem a Ogden com o fim de seguir o rastro de Quint.

- Não podemos desprezar nenhuma pista - disse eu - mas não creio que Bill Quint seja o homem que procuramos. Ela lhe deu o fora há muito tempo. Se tencionasse fazer alguma coisa, já o teria feito antes. Suponho que, ao ouvir dizer que a pequena tinha sido assassinada, resolveu fugir, visto que era um ex-amante, e a havia ameaçado.

Dick fez um gesto de assentimento, e disse:

- Tiroteio na estrada esta noite. Contrabandistas. Quatro caminhões de bebidas capturados, incendiados.

Parecia ser a resposta de Reno Starkey à notícia da incorporação dos homens de Pete na força policial como agentes especiais.

Mickey Linehan entrou quando eu acabava de vestir-me.

- Dan Rolff esteve, realmente, na casa - informou. - O merceeiro grego da esquina viu-o sair ontem de manhã por volta das nove. Desceu a rua cambaleando e falando sozinho. O grego pensou que Rolff estava embriagado.

- Como é que o grego não contou à polícia? Ou contou?

- Não lhe perguntaram. Linda chefatura de polícia tem este lugarejo. Que faremos: procurar o homem e entregá-lo com todas as provas do crime?

- McGraw está convencido de que foi o Cochicho - respondi - e não vai perder tempo com nenhuma pista que leve a outra direção. E, a menos que tenha voltado mais tarde para buscar o quebrador de gelo, não foi Dan o assassino. Ela foi morta às três da manhã. Dan Rolff não se achava lá às oito e meia, e o instrumento ainda estava cravado no corpo. Era...

Dick Foley postou-se na minha frente e perguntou:

- Como sabe?

Não gostei da maneira como me olhou e falou. Retorqui:

- Você sabe porque eu lhe estou dizendo.

Dick não disse nada. Mickey abriu os lábios no seu sorriso idiota, e perguntou:

- Onde vamos agora? É melhor acabar com esta história.

- Tenho um encontro às dez - disse-lhes. - Fiquem aqui pelas vizinhanças até eu voltar. Cochicho e Rolff provavelmente estão mortos, de modo que não precisamos sair à procura deles. - Fiz uma carranca para Dick e acrescentei: - Contaram-me isso. Não matei nenhum dos dois.

O pequeno canadense inclinou a cabeça sem baixar os olhos.

Almocei só, e depois me encaminhei ao escritório do advogado.

Ao dobrar a esquina de King Street, avistei a cara sardenta de Hank O'Marra num automóvel que subia a Green Street. Vinha sentado junto de um homem que eu não conhecia. O rapaz acenou-me com o braço e parou o carro. Aproximei-me.

- Reno quer falar com você - disse ele.

- Onde o encontrarei?

- Venha conosco.

- Agora não posso - respondi. - Provavelmente só de tarde.

- Quando puder, fale com Peak.

Disse que assim o faria. O'Marra e seu companheiro prosseguiram Green Street acima. Caminhei meia quadra para o sul e cheguei ao Edifício Rutledge.

Com um pé em cima do primeiro dos carcomidos degraus que conduziam ao pavimento do advogado, parei para olhar uma coisa.

Estava escassamente visível a um canto obscuro do rés-do-chão. Era um sapato. Achava-se numa posição que um sapato vazio não pode tomar por si mesmo.

Tirei o pé do degrau e acerquei-me. Agora podia ver um tornozelo e a bainha da perna de uma calça preta acima do sapato.

Isso me preparou o espírito para o que não tardei a descobrir.

Mrs. Charles Proctor Dawn estava estirado entre duas vassouras, um esfregão e um balde, em um pequeno desvão formado pela escada e um canto da parede. O cavanhaque se achava manchado de sangue, que escorria de um talho aberto obliquamente na testa. A cabeça estava torcida para um lado e para trás, num ângulo que só era possível com um pescoço quebrado.

Lembrei-me da frase de Noonan: "O que é necessário fazer tem de ser feito", e, puxando uma das abas do casaco do morto, esvaziei-lhe o bolso interno, passando para o meu próprio bolso uma caderneta de capa preta e um maço de papéis. Em dois outros bolsos, nada encontrei que me interessasse. O restante, eu não o podia apanhar sem virar o corpo, o que não quis fazer.

Cinco minutos depois estava de volta ao hotel, entrando por uma porta lateral a fim de evitar Dick e Mickey, no vestíbulo, e subindo à galeria intermediária para tomar o elevador.

Chegando ao quarto, sentei-me e examinei o meu botim.

Tomei primeiro a caderneta, um pequeno livrete de imitação a couro, desses que se vendem por baixo preço em qualquer papelaria. Continha alguns apontamentos fragmentários que nada significavam para mim, e trinta e tantos endereços igualmente sem utilidade, com uma exceção:

 

                 Helen Albury

                 Hurricane St. 1229A

 

Isso era interessante; primeiro, porque um jovem chamado Robert Albury estava na prisão, tendo confessado que, num acesso de ciúmes provocado pelo suposto êxito de Donald Willsson junto a Dinah Brand, matara Willsson a tiros; e, em segundo lugar, porque Dinah Brand residira e fora assassinada em Hurricane Street 1232, na casa fronteira ao número 1229A.

Não encontrei meu nome na caderneta.

Pu-la de parte e comecei a desdobrar e ler os papéis que trouxera juntamente com ela. Também aqui tive' de examinar uns quantos papéis sem interesse, até encontrar um que me chamou a atenção.

Era um monte de quatro cartas unidas por um elástico.

As cartas estavam em envelopes rasgados que traziam carimbos datados com uma diferença média de uma semana. A mais recente fora enviada havia um pouco mais de seis meses. Estavam sobrescritadas a Dinah Brand. A primeira - isto é, a mais antiga - não era tão má, para uma carta de amor. A segunda era um pouco mais piegas. A terceira e a quarta eram uma excelente demonstração do grau de imbecilidade a que um apaixonado ardoroso e mal-sucedido pode chegar, especialmente se já entrado em anos. As quatro cartas traziam a assinatura de Elihu Willsson.

Não encontrei nada que me esclarecesse por que Mr. Charles Proctor Dawn julgara poder extorquir-me mil dólares, mas a busca proporcionou-me muita coisa em que pensar. Estimulei o cérebro com dois Fátimas, depois desci ao vestíbulo.

- Ponha-se a andar e veja se consegue algumas informações a respeito de um advogado de nome Charles Proctor Dawn - disse a Mickey. - Seu escritório é em Green Street. Não vá por lá. E não perca muito tempo com a indagação. Quero apenas alguns dados, o mais prontamente possível.

Ordenei a Dick Foley que deixasse passar cinco minutos e depois me seguisse até as vizinhanças de Hurricane Street 1229A.

 

O número 1229A era o sobrado de uma casa de dois pavimentos, quase em frente à residência de Dinah. O prédio n.° 1229 estava dividido em dois apartamentos, cada um com a sua entrada particular. Toquei a campainha do sobrado.

A porta foi-me aberta por uma jovem esbelta de dezoito ou dezenove anos, com olhos escuros muito juntos num rosto amarelado e reluzente, e cabelos castanhos curtos que pareciam úmidos.

Abriu a porta, emitiu um som abafado, atemorizado, gutural, e recuou, tapando com ambas as mãos a boca aberta.

- Miss Helen Albury? - perguntei.

Sacudiu violentamente a cabeça. Não havia veracidade na sua expressão. Os olhos estavam desvairados.

- Gostaria de entrar e falar-lhe por alguns minutos. - Ao dizer isso fui entrando e fechando a porta.

A moça não disse nada. Subiu a escada adiante de mim, com a cabeça torcida para trás a fim de me vigiar com os olhos apavorados.

Entramos numa sala parcamente mobiliada. Das janelas, via-se a casa de Dinah.

A moça parou no centro da peça, ainda com as mãos na boca.

Perdi tempo e palavras tentando convencê-la de que não ia fazer-lhe nenhum mal. Foi inútil. Tudo o que eu dizia parecia concorrer para lhe aumentar o pânico. Era irritante. Por fim desisti, e fui direto ao assunto.

- É irmã de Robert Albury? - perguntei.

Nenhuma resposta; nada, salvo o insensato olhar de terror. Prossegui:

- Depois que ele foi detido pelo assassínio de Donald Willsson, você veio ocupar este apartamento para vigiar Dinah Brand. Com que fim?

Nem uma palavra. Tive de dar eu mesmo a resposta:

- Vingança. Você a considerava responsável pelos dissabores de seu irmão. Espreitou a sua oportunidade. Esta chegou anteontem de noite. Você introduziu-se na casa, encontrou Dinah embriagada, e apunhalou-a com o quebrador de gelo que estava lá.

A moça não disse nada. Eu não conseguira abalar o estupor da sua cara atemorizada. Continuei:

- Dawn ajudou-a, organizou o plano. Queria as cartas de Elihu Willsson. Quem foi o homem que ele enviou para roubá-las, o autor material do assassinato? Quem foi?

Nada consegui com isso. Nenhuma mudança na sua expressão, ou falta de expressão. Nenhuma palavra. Pensei em espancá-la. Disse:

- Eu lhe dei um ensejo de falar. Estou pronto a ouvir a história contada do seu ponto de vista. Mas faça o que entender.

Ela fez o que entendia, conservando-se em silêncio. Renunciei. Tinha-lhe medo, medo de que fizesse alguma loucura ainda maior se eu insistisse. Retirei-me sem saber ao certo se a moça compreendera uma única palavra do que eu tinha dito.

Na esquina, disse a Dick Foley:

- Há ali uma pequena, Helen Albury, dezoito anos, cinco pés e seis, magra, não mais de cem libras, se tanto, olhos muito juntos, castanhos, tez amarelada, cabelos castanhos curtos, lisos, traje cinzento agora. Siga-a, Se estrilar, meta-a na cadeia. Tenha cuidado - ela está fora de si.

Dirigi-me ao bilhar de Peak Murry, a fim de saber o paradeiro de Reno e ver o que ele queria. A meia quadra dali, parei à porta de um edifício de escritórios, para avaliar a situação.

Em frente à baiúca de Murry havia um carro de patrulha da polícia. Homens eram conduzidos, carregados, arrastados da casa para o carro. Os que os conduziam, arrastavam ou carregavam, não pareciam polícias comuns. Eram, supus, os asseclas de Pete, o Finlandês, transformados em agentes especiais. Ao que parecia, Pete estava pondo em execução, com a ajuda de McGraw, a sua ameaça de proporcionar a Cochicho e a Reno a guerra que eles desejavam.

Enquanto eu espreitava, uma ambulância chegou, encheu-se, e foi embora. Achava-me demasiado longe para reconhecer quem quer que fosse. Quando parecia haver passado o auge da excitação, rodeei algumas quadras e voltei ao hotel.

Mickey Linehan já estava lá com as informações a respeito de Mr. Charles Proctor Dawn.

- O homem deve ser aquele de que fala a anedota: "É um criminalista?" "Sim, o próprio." Alguém, da família daquele Albury, que você deteve, contratou Dawn para o defender. Albury não quis saber dele quando o advogado foi procurá-lo. Esse rábula de três nomes quase foi parar na cadeia o ano passado, sob acusação de chantagem, algo relacionado com um clérigo de nome Hill; mas conseguiu tirar o corpo fora. Possui alguns bens em Libert Street, sei lá onde. Quer que continue indagando?

- Isso basta. Vamos ficar por aqui até recebermos notícias de Dick.

Mickey bocejou e disse que estava de pleno acordo, pois nunca fora homem que precisasse de andar correndo de um lado para outro a fim de fazer circular o sangue; depois perguntou se não sabia que estávamos ganhando fama por todo o país.

Perguntei-lhe o que queria dizer.

- Dei de cara com Tommy Robins - respondeu. - A Consolidated Press mandou-o fazer a cobertura dos acontecimentos daqui. Contou-me que outras agências de informações e um ou dois jornais das grandes cidades iam enviar correspondentes especiais para fazer reportagens sobre as nossas atribulações.

Eu estava formulando uma das minhas queixas favoritas - que os jornais não serviam senão para emaranhar as coisas, de modo que ninguém pudesse desenredá-las - quando ouvi um garoto salmodiar o meu nome. Por dez cents, informou que me chamavam ao telefone.

Dick Foley:

- Ela saiu em seguida. Para Green Street 310. Cheia de polícias. Criminalista chamado Dawn morto. Guardas levaram a moça para o Hall.

- Ainda está lá?

- Sim, no gabinete do chefe.

- Fique aí, e avise-me qualquer coisa que souber.

Voltei para junto de Mickey Linehan e dei-lhe a chave do meu quarto e as instruções.

- Tome conta do meu quarto. Receba tudo o que houver para mim e faça-mo chegar às mãos. Estarei no Shannon, ali na esquina, registrado com o nome de J. W. Clark. Revele o meu paradeiro a Dick, e a mais ninguém.

Mickey perguntou: "Mas, que diabo...?" e, não recebendo resposta, dirigiu-se desengonçadamente ao elevador.

 

                                           Procurado pela Polícia

DIRIGI-ME ao Shannon Hotel, registrei o nome falso que adotara, paguei a minha diária, e fui conduzido ao quarto 321.

Transcorreu uma hora antes que o telefone chamasse. Dick Foley avisou que vinha procurar-me. Chegou dentro de cinco minutos. O rosto fino e preocupado não estava nada amistoso. Tampouco a voz. Disse:

- Expedidos mandados de prisão contra você. Homicídio. Dois itens: Brand e Dawn. Telefonei. Mickey disse que ia ficar. Informou-me onde você estava. A polícia deteve-o. Apertando com ele agora.

- Sim, eu esperava isso mesmo.

- Eu também - respondeu Dick Foley. Interpelei-o, arrastando as palavras:

- Você acha que fui eu que os matei, não, Dick?

- Se não foi, é tempo de dizer.

- Vai-me denunciar? - inquiri.

Fechou a boca. Seu rosto passou do pardo ao amarelo claro.

- Volte para San Francisco, Dick - falei. - Já tenho muito que fazer sem precisar vigiá-lo.

Pôs cuidadosamente o chapéu na cabeça, e com igual cuidado cerrou a porta ao sair.

Às quatro horas mandei trazerem ao meu quarto um lanche, cigarros e o Evening Herald.

O assassínio de Dinah Brand, e o mais recente de Charles Proctor Dawn, dividiam entre si a primeira página do jornal, com Helen Albury a ligá-los.

Li que Helen Albury era irmã de Robert Albury, não obstante a confissão de Robert, estava persuadida de que o irmão não era culpado de homicídio, mas vítima de uma conspiração. Contratara Charles Proctor Dawn para o defender. (Presumi que o finado Charles Proctor a procurara, e não ela a ele). O irmão recusou confiar a sua defesa a Dawn, ou a qualquer outro advogado, mas a moça (convenientemente estimulada por Dawn, sem dúvida) não se deu por vencida.

Encontrando um apartamento desocupado em frente à casa de Dinah Brand, Helen Albury tinha-o alugado, instalando-se nele com um binóculo e uma idéia - provar que Dinah e seus parceiros eram os culpados da morte de Donald Willsson.

Ao que parecia, eu era um dos "parceiros". O Herald descrevia-me como "um homem que se diz detetive particular de San Francisco, e se acha há vários dias na cidade, mantendo íntimas relações com Max (Cochicho) Thaler, Daniel Rolff, Oliver (Reno) Starkey, e Dinah Brand". Éramos nós os conspiradores que tínhamos encarcerado injustamente Robert Albury.

Na noite em que Dinah fora assassinada, Helen Albury, espiando pela sua janela, vira coisas que, segundo o Herald, eram extremamente significativas, quando consideradas em relação à subseqüente descoberta do cadáver de Dinah. Assim que a moça soubera do assassínio, levara as suas relevantes observações ao conhecimento de Charles Proctor Dawn. Este, apurou a polícia ao ouvir os seus auxiliares, mandara-me chamar em seguida e passara aquela tarde em conferência secreta comigo. Mais tarde dissera aos empregados que eu devia voltar na manhã seguinte - a desse dia - às dez horas. Essa manhã, eu não comparecera ao encontro marcado. Às dez e vinte e cinco, o zelador do Edifício Rutledge encontrara o corpo de Charles Proctor Dawn em um canto atrás da escada, assassinado. Acreditava-se que papéis de valor haviam sido subtraídos dos bolsos do morto.

No mesmo momento em que o zelador encontrava o corpo do advogado, eu, provavelmente, tendo forçado a entrada, achava-me no apartamento de Helen Albury, ameaçando-a. Esta, depois que lograra fazer-me sair, correra ao escritório de Dawn, chegando enquanto a polícia estava lá e contando tudo o que sabia. Os policiais enviados ao meu hotel não me encontraram, mas acharam no meu quarto um certo Michael Linehan, que também se apresentou como detetive particular de San Francisco. Michael Linehan ainda estava sendo interrogado pela polícia. Cochicho, Reno, Rolff e eu estávamos sendo procurados sob a acusação de homicídio. Esperavam-se importantes revelações.

A segunda página trazia uma interessante meia-coluna. Os detetives Shepp e Vanaman, os descobridores do corpo de Dinah Brand, haviam desaparecido misteriosamente. Temia-se alguma perfídia de parte dos "parceiros" de Dinah.

Nada havia no jornal a respeito do ataque aos caminhões na noite anterior, nem acerca da batida policial à baiúca de Peak Murry.

 

Saí ao anoitecer. Queria pôr-me em contato com Reno. Telefonei de um drug store para o bilhar de Peak Murry.

- Peak está? - perguntei.

- É ele mesmo - disse uma voz que em nada se parecia à de Peak Murry. - Quem fala?

Respondi aborrecido: - Aqui é Lilian Gish - pendurei o receptor no gancho, e retirei-me das vizinhanças.

Renunciei à idéia de encontrar Reno e decidi ir visitar o meu cliente, o velho Elihu, e tentar obrigá-lo a proceder direito, acenando-lhe com as cartas de amor que ele escrevera a Dinah Brand, e que eu surripiara ao cadáver de Dawn.

Pus-me a caminho, procurando sempre o lado mais escuro das ruas mais sombrias. Era uma caminhada bastante longa para um homem que detesta exercícios físicos. Ao aproximar-me da casa de Willsson, achava-me suficientemente mal-humorado para ser capaz de suportar a espécie de conversa que ele e eu costumávamos ter. Mas ainda não chegara o momento de nos encontrarmos.

Já me dirigia para a calçada da casa, quando alguém me chamou com um psiu! abafado.

Provavelmente não cheguei a pular a uma altura de vinte pés.

- Tudo bem - sussurrou uma voz.

Estava escuro ali. Espreitando por baixo de um arbusto - eu me encontrava de gatinhas no jardim de uma casa - pude lobrigar o vulto de um homem agachado junto a uma sebe, do mesmo lado que eu.

Tinha já o meu revólver na mão. Não havia nenhum motivo para duvidar da sua afirmação de que tudo ia bem.

Pus-me em pé e fui direto a ele. Quando cheguei bastante perto, reconheci-o como um dos homens que me haviam aberto a porta da casa de Ronney Street, no dia anterior.

Sentei-me nos calcanhares a seu lado e perguntei:

- Onde poderei encontrar Reno? Hank O'Marra disse-me que ele queria falar comigo.

- Sim, quer. Sabe onde fica o bar de Kid McLeod?

- Não.

- Fica em Martin Street, adiante da King, na esquina do beco. Pergunte pelo Kid. Recue três quadras por aquele caminho, depois desça. Não tem como errar.

Respondi que iria, e deixei-o acocorado atrás da sebe, vigiando a casa do meu cliente, esperando - calculei - uma oportunidade de alvejar Pete, Cochicho, ou qualquer dos outros desafetos de Reno que resolvesse visitar o velho Willsson.

Seguindo as suas instruções, fui dar a um estabelecimento de bebidas não-alcoólicas, todo pintado de vermelho e amarelo. Perguntei por Kid McLeod. Conduziram-me a uma sala dos fundos, onde um homem gordo, de colarinho sujo, com uma porção de dentes de ouro, e uma orelha só, afirmou que era McLeod.

- Reno mandou chamar-me - disse-lhe. - Onde poderei encontrá-lo?

- E quem é o senhor? - perguntou.

Expliquei-lhe quem era. Saiu sem dizer nada. Esperei dez minutos. O homem voltou trazendo consigo um rapazinho de uns quinze anos com uma expressão vaga na cara vermelha e cheia de espinhas.

- Vá junto com Sonny - disse-me Kid McLeod.

Seguindo o rapaz, passei por uma porta lateral, percorri duas quadras de uma viela, cruzei um terreno arenoso, transpus um portão desmantelado, e subi os degraus da porta dos fundos de uma casa de madeira.

O rapaz bateu à porta, e de dentro lhe perguntaram quem era.

- Sonny, com um gajo que o Kid mandou - respondeu ele.

A porta foi aberta por Hank O'Marra. Sonny retirou-se. Entrei numa cozinha onde Reno Starkey e outros quatro homens se achavam sentados a uma mesa onde havia grande quantidade de cerveja. Notei que duas pistolas automáticas estavam penduradas em pregos sobre a verga da porta por onde eu entrara. Seriam muito úteis para o caso de algum dos ocupantes da casa abrir a porta, encontrar ali fora um inimigo empunhando um revólver, e receber a ordem de levantar as mãos.

Reno encheu-me um copo de cerveja e conduziu-me através da sala de jantar a um compartimento da frente da casa. Lá estava um homem deitado de bruços, com um olho colado a uma fenda entre a cortina e a parte inferior da janela, espiando a rua.

- Pode voltar para os fundos e tomar uns copos de cerveja - disse-lhe Reno.

O homem levantou-se e foi embora. Acomodamo-nos em duas cadeiras próximas.

- Quando lhe arranjei aquele álibi em Tanner, - observou Reno - eu lhe disse que o fazia por precisar de todos os amigos que pudesse arranjar.

- Pode contar com um.

- Já apresentou o álibi? - perguntou.

- Ainda não.

- Há de valer - assegurou-me - a menos que eles tenham muitas provas contra você. Acha que têm?

Eu achava que sim. Respondi:

- Não. McGraw está apenas com vontade de brincar. Isso se arranjará de um jeito ou de outro. E você, em que situação se acha?

Reno esvaziou o seu copo, enxugou a boca nas costas da mão, e disse:

- Hei de me safar. Mas era por isso que eu queria falar com você. As coisas estão neste pé: O Finlandês bandeou-se com McGraw. De modo que agora estão os polícias e a quadrilha de contrabandistas contra mim e o Cochicho. Mas, que diabo! Eu e o Cochicho estamos mais empenhados em nos combatermos um ao outro do que em derrotar a coligação. É uma loucura. Enquanto nos atrapalhamos mutuamente, os malandros nos engolem.

Observei que também estivera pensando nisso. Reno prosseguiu:

- Cochicho lhe dará ouvidos. Quer ir procurá-lo? Exponha-lhe o caso. Aqui está a proposta: ele pretende dar cabo de mim por causa da morte de Jerry Hooper, e eu pretendo antecipá-lo. Esqueçamos a nossa questão por uns dias. Ninguém precisa fiar-se em quem quer que seja. De qualquer modo. Cochicho nunca toma parte nas ações. Limita-se a enviar os seus rapazes. Farei o mesmo desta vez. Vamos apenas reunir os nossos bandos para destruir aquela corja. Juntamos os bandos, liquidamos o maldito finlandês e depois teremos bastante tempo para ajustar as nossas contas.

- Explique-lhe bem. Não quero que o Cochicho pense que eu tenho medo dele ou de outro qualquer. Diga-lhe isto de minha parte: se nós arredarmos Pete do nosso caminho, teremos mais espaço para brigarmos depois. Pete está entocado em Whiskeytown. Eu não tenho bastante gente para ir até lá e dar cabo dele. Cochicho também não. Nós dois juntos temos. Pondere-lhe isso.

- Cochicho está morto - disse eu.

- Está? - perguntou, como se não acreditasse.

- Dan Rolff matou-o ontem de manhã, no velho armazém de Redman; cravou-lhe o quebrador de gelo com que o Cochicho matara a pequena.

- Tem certeza? Não está apenas fazendo conjeturas?

- Tenho certeza.

- É esquisito que a gente dele continue portando-se como se o chefe não estivesse morto - disse, mas começava a dar-me crédito.

- Ainda não sabem. Cochicho estava oculto, e só Ted Wright conhecia o seu esconderijo. Ted soube da morte do chefe, e tratou de explorar a situação. Ele me disse que recebeu cento e cinqüenta de você, por intermédio de Peak Murry.

- Eu teria dado duas vezes mais àquele imbecil pela notícia - grunhiu Reno. Esfregou o queixo e disse: - Bem, com isso temos de pôr de lado o Cochicho.

- Não - acudi.

- Que quer dizer?

- Se o bando não sabe onde está o chefe - sugeri - nós podemos dizer-lhe. Já o libertaram uma vez, quando Noonan o prendeu. Acha que eles tentariam novamente a coisa se se espalhasse a notícia de que McGraw lhe deitara a mão secretamente?

- Continue - disse Reno.

- Se os amigos dele tentassem assaltar novamente a cadeia, pensando que o Cochicho estava preso lá, a força policial, inclusive os polícias especiais de Pete, teriam bastante com que se ocupar. Enquanto isso, poderíamos tentar a sorte em Whiskeytown.

- Talvez - tornou ele pausadamente - talvez o bando fizesse isso mesmo.

- Deve dar bom resultado - retruquei encorajando-o, e ergui-me. - Nós nos encontraremos...

- Fique aqui. É um lugar tão bom como qualquer outro, já que há um mandado de prisão contra você. E vamos precisar de um camarada da sua fibra na nossa expedição.

Não gostei muito da proposta. Mas calei-me prudentemente. Tornei a sentar-me.

Reno tomou providências para que se espalhasse o boato. O telefone entrou em função. A porta da cozinha pôs-se a funcionar incessantemente, dando passagem a homens que entravam e saíam. Era maior o número dos que entravam. A casa se encheu de homens, fumaça, tensão.

 

                                               Whiskeytown

À UMA e meia, Reno, acabando de atender a um chamado telefônico, disse:

- Vamos embora.

Subiu ao andar superior. Quando desceu, trazia consigo uma valise preta. Já então a maior parte dos homens haviam saído pela porta da cozinha.

Reno deu-me a valise preta, dizendo:

- Não a sacuda muito. Era pesada.

Eu e os outros seis que ainda tinham ficado na casa saímos pela porta da frente e entramos num carro de turismo, com cortinas, que O'Marra acabava de encostar ao meio-fio. Reno sentou-se ao lado de O'Marra. Eu fiquei espremido entre os homens do assento de trás, com a valise apertada entre as pernas.

Outro carro apareceu no primeiro cruzamento e pôs-se a correr à nossa frente. Um terceiro seguia-nos. À nossa velocidade orçava pelas quarenta milhas. Era suficiente para nos fazer chegar a tempo, e não o bastante para chamar a atenção.

Estávamos quase ao termo do percurso quando fomos molestados pela primeira vez.

A ação começou numa quadra de casas térreas, pequenas, no extremo meridional da cidade.

Um homem pôs a cabeça para fora duma porta, enfiou os dedos na boca, e emitiu um silvo estridente.

Alguém do terceiro automóvel derrubou-o a tiros.

Na esquina seguinte atravessamos sob uma saraivada de balas de pistola.

Reno voltou-se para me dizer:

- Se acertam na maleta, vamos todos pelos ares. Abra-a. Teremos de andar ligeiro quando chegarmos.

Eu terminara de desprender os fechos quando estacamos junto ao meio-fio, diante de um edifício escuro de tijolos, com três pavimentes.

Os homens se arrastavam por cima de mim, abrindo a maleta, apoderando-se do conteúdo, que constava de bombas feitas com pequenos pedaços de cano de duas polegadas, guardados em serradura dentro da valise. Balas arrancavam pedaços das cortinas do nosso carro.

Reno estendeu a mão para trás, apanhou uma das bombas, saltou para a calçada, e, sem dar atenção a um fio de sangue que repentinamente lhe brotou da face esquerda, atirou o seu pedaço de cano recheado com explosivo contra a porta do edifício de tijolos.

Uma labareda se fez seguir de um ruído ensurdecedor. Fragmentos de materiais saltaram em torno de nós, enquanto nos esforçávamos por não perder o equilíbrio com a explosão. Depois, já não havia porta que impedisse a entrada de ninguém.

Um homem correu, balançou o braço, e atirou uma bomba pela porta. As persianas soltaram-se das janelas do rés-do-chão, e atrás delas voaram pedaços de vidro e línguas de fogo.

O carro que nos seguira estava parado mais acima, trocando tiros nas redondezas. O que nos precedera entrara numa rua lateral. Ouviam-se, nos fundos do edifício de tijolos, tiros de pistola entre as explosões, mostrando que o primeiro carro controlava a porta traseira.

No meio da rua, O'Marra inclinou-se e atirou uma bomba contra o telhado da casa. A bomba não explodiu. O'Marra levantou um pé no ar, levou a mão à garganta, e caiu de costas.

Outro dos nossos caiu sob os projéteis que jorravam sobre nós de um prédio de madeira contíguo ao de tijolos.

Reno praguejou atoleimado e disse:

- Fogo neles, Fat.

Fat agarrou uma bomba, rodeou, correndo, o automóvel, e balançou o braço.

Afastamo-nos da calçada, esquivamo-nos aos pedaços de madeira que voavam em torno de nós, e vimos a casa toda desconjuntada, com chamas subindo pelas paredes.

- Sobrou alguma? - perguntou Reno enquanto olhávamos em derredor, gozando a novidade de não sermos alvejados.

- Aqui está a última - disse Fat, apresentando uma bomba.

O fogo dançava nas janelas mais altas da casa de tijolos. Reno mirou-o, tomou a bomba das mãos de Fat, e disse:

- Para trás. Eles vão sair. Afastamo-nos da frente da casa. De dentro, uma voz berrou:

- Reno!

Reno esgueirou-se para a sombra do nosso carro antes de responder:

- Que é?

- Estamos liquidados - gritou uma voz cavernosa. - Vamos sair. Não atire.

Reno perguntou:

- Quem são vocês?

- Eu sou Pete - disse a voz. - Ficamos só quatro.

- Saia você primeiro - ordenou Reno - com as mãos em cima da cabeça. Os outros venham depois, um de cada vez, da mesma forma. E meio minuto de diferença é suficiente. Aviem-se.

Esperamos um momento, e então Pete, o Finlandês, apareceu na porta dinamitada, com as mãos ao alto da cabeça calva. Ao clarão do incêndio na casa contígua, pudemos ver-lhe a cara cortada, as roupas esfrangalhadas.

Passando por cima dos escombros, o contrabandista desceu lentamente os degraus da porta.

Reno chamou-lhe piolhento, comedor de peixe, e alvejou-o no rosto e no corpo.

Pete caiu por terra. Atrás de mim, um homem riu.

Reno arremessou a última bomba pela porta.

Saltamos para dentro do automóvel. Reno sentou-se à direção. O motor não funcionava. Fora atingido pelas balas.

Reno tocou a buzina enquanto nós outros descíamos atabalhoadamente.

O carro que parará na esquina aproximou-se. Enquanto esperávamos, olhei a rua iluminada pelo incêndio dos dois edifícios. Havia alguns rostos nas janelas, mas todos os pedestres tinham desaparecido. Não muito longe, um sino tocava a rebate.

O outro carro diminuiu a velocidade para nos deixar subir. Já estava cheio. Empilhamo-nos em camadas, transbordando pelos estribos.

Passamos por cima das pernas do cadáver de Hank O'Marra e tomamos a direção de Personville. Percorremos uma quadra do caminho, senão com comodidade, pelo menos em segurança. Depois, não tivemos nem uma nem outra.

Uma limusine entrou na rua adiante de nós, avançou meia quadra na nossa direção, virou-se de lado, e parou. Do lado da limusine, jorrou fogo de pistola.

Outro automóvel rodeou-a e investiu contra nós. Dele partiram novos tiros.

Fizemos o possível, mas estávamos excessivamente aglomerados para combater bem. Não é possível fazer boa pontaria quando se tem um homem sentado aos joelhos, outro pendurado ao ombro, enquanto um terceiro faz fogo a uma polegada do ouvido da gente.

O nosso outro carro - o que estivera atacando os fundos do edifício - acudiu em nosso auxílio.

Mas já então dois automóveis tinham vindo aumentar as forças do inimigo. Pelo visto o assalto da quadrilha do Cochicho à prisão devia ter acabado, de um modo ou de outro, e os homens de Pete, enviados em socorro da polícia, voltavam a tempo de nos cortar a retirada. Era uma trapalhada dos diabos. Curvei-me sobre uma pistola em ação e berrei no ouvido de Reno:

- Assim não é possível. Alguns de nós deviam saltar e fazer fogo na rua.

Achou boa idéia, e ordenou:

- Desçam alguns de vocês, hombres, e atirem das calçadas.

Fui o primeiro a sair, com um olho na entrada de um beco escuro.

Fat seguiu-me. No meu abrigo, virei-me para ele e grunhi:

- Não se aproxime. Arranje um buraco para você. Ali adiante há a entrada de um porão que deve servir.

Seguindo o conselho, Fat correu naquela direção, e foi atingido ao terceiro passo.

Explorei o meu beco. Media apenas vinte pés de comprimento, e terminava numa cerca de tábuas altas, com um portão fechado à chave.

Firmei o pé numa lata de lixo e pulei por cima do portão, entrando num pátio calçado com tijolos. Galgando uma cerca lateral, passei a outro pátio, e desse a um terceiro, onde um fox-terrier pôs-se a ladrar furiosamente contra mim.

Afastei o cachorro com um pontapé, transpus a cerca fronteira, desenredei-me de uma corda de secar roupa, atravessei mais dois pátios, fui ameaçado de uma janela e alvejado com uma garrafa, e finalmente caí numa rua pavimentada de pedras redondas.

O tiroteio continuava atrás de mim, mas não suficientemente longe. Fiz o possível para remediar isso. Devo ter percorrido tantas ruas como no meu sonho da noite em que Dinah foi assassinada.

O meu relógio marcava três e meia da madrugada quando o consultei nos degraus da porta de Elihu Willsson.

 

                                     Chantagem

TIVE de apertar a campainha da porta do meu cliente várias vezes até conseguir ser atendido.

Finalmente a porta foi aberta pelo chofer alto e bronzeado. Vestia camiseta e calças e trazia na mão um taco de bilhar.

- Que deseja - perguntou; e, depois de me ter visto melhor: - Ah, é você, não? Bem, que deseja?

- Quero ver Mr. Willsson.

- Às quatro da madrugada? Ora saia daí - e começou a fechar a porta.

Meti o pé na soleira, impedindo-o de fechá-la. O motorista olhou-me de alto a baixo, sopesou o taco de bilhar, e perguntou:

- Está querendo que lhe rebentem a rótula?

- Não é brincadeira - insisti. - Preciso falar com o velho. Vá avisá-lo.

- Não vejo por que avisá-lo. Ele me disse ainda ontem de tarde que, se você aparecesse, não queria falar-lhe.

- Ah, sim? - Tirei do bolso as quatro cartas de amor, escolhi a primeira e menos ridícula, apresentei-a ao chofer, e disse: - Entregue-lhe isso e diga-lhe que estou sentado nos degraus da frente com o resto das cartas. Que esperarei cinco minutos e depois irei levar as outras a Tommy Robins, da Consolidated Press.

O chofer examinou carrancudo a carta, disse: - Para o inferno com Tommy Robins e sua avó torta! - agarrou a carta e fechou a porta.

Quatro minutos depois, abriu-a novamente e disse:

- Entre.

Segui-o ao quarto do velho Elihu, no andar superior.

O meu cliente estava sentado na cama, com a sua carta de amor amarrotada num redondo punho cor-de-rosa, e o envelope no outro.

Tinha os cabelos brancos eriçados. Os olhos redondos estavam tão vermelhos quão azuis. As linhas paralelas da boca e do queixo quase se tocavam. O velho achava-se num estado de espírito encantador.

Assim que me viu, vociferou:

- Então, depois de toda sua prosa, você teve de recorrer ao velho pirata para salvar a pele, não?

Respondi que não era nada disso. Que, se ele pretendia continuar a falar como um paspalhão, devia baixar a voz para que os habitantes de Los Angeles não ouvissem as suas paspalhices.

O velhote fez a voz subir de tom berrando:

- Só porque você furtou uma ou duas cartas que não lhe pertencem, não vá pensar que...

Tapei os ouvidos com os dedos. Não consegui abafar o barulho, mas exasperei o velho a ponto de fazê-lo cessar abruptamente a gritaria.

Tirei os dedos dos ouvidos e disse:

- Mande embora o lacaio para podermos conversar. Não vai precisar dele. Não tenciono fazer-lhe nenhum mal.

- Saia - disse o velho ao chofer.

Ele olhou-me com expressão pouco amistosa e deixou-nos, fechando a porta.

Elihu interpelou-me rispidamente, exigindo que lhe entregasse as cartas sem demora, perguntando-me, entre estrondosas blasfêmias, onde as conseguira e o que fazia com elas, ameaçando-me com isso e mais aquilo e mais aquiloutro, e lançando-me imprecações a maior parte do tempo.

Não entreguei as cartas e disse:

- Tirei-as do homem que você contratou para as reaver. Foi muito peso seu que ele tivesse de matar a pequena.

O sangue refluiu-lhe das faces em quantidade suficiente para deixá-las normalmente rosadas. Apertou os lábios, cravou os olhos em mim, e disse:

- É esse o seu plano?

A voz saiu-lhe relativamente plácida do fundo do peito. Estava preparado para lutar.

Puxei uma cadeira para junto do leito, sentei-me, sorri com a expressão mais divertida que pude, e respondi:

- É um dos meus planos.

Mirou-me, movendo os lábios e guardando silêncio. Prossegui:

- Você é o cliente mais impossível que eu já tive. Que faz? Contrata-me para limpar a cidade, muda de idéia, abandona-me, põe-se contra mim até que começa a parecer-lhe que sairia vencedor, declara-se neutro, e agora que me considera novamente derrotado não quer nem dar-me acesso à casa. Por sorte eu consegui encontrar aquelas cartas.

- Chantagem - rugiu o velho. Ri-me e retruquei:

- Veja só quem está falando em chantagem. Perfeitamente, chame-lhe assim. - Bati com o dedo indicador na beira da cama. - Não fui derrotado, meu velho. Saí vencedor. Você veio queixar-se a mim que alguns homens maus lhe haviam roubado a sua cidadezinha. Pete, o Finlandês, Lew Yard, o Cochicho Thaler, e Noonan. Onde estão eles agora?

- Yard morreu na terça-feira de manhã, Noonan na mesma noite, Cochicho na quarta-feira de manhã, e o Finlandês ainda há pouco. Vou-lhe devolver a cidade, quer queira, quer não. Se isso é chantagem, muito bem. Agora, eis aqui o que você vai fazer. Vai chamar o seu prefeito - suponho que esta aldeola tem um - e você e ele vão telefonar ao governador... Fique quieto até que eu termine.

- Vão dizer ao governador que perderam o controle da polícia e da cidade, devido ao engajamento de contrabandistas como guardas especiais, e assim por diante. Vão pedir-lhe auxílio - a guarda nacional seria preferível. Não sei em que deram várias das rixas menores da cidade, mas sei que os cabeças - aqueles que você temia - estão mortos. Os que conheciam muitos fatos comprometedores para que você tivesse a coragem de rebelar-se. Há muitos rapazes ativos trabalhando para apoderar-se das posições dos defuntos. Quanto mais, melhor. Tornarão mais fácil aos soldados de gola branca dominar a situação. E decerto nenhum dos substitutos é capaz de prejudicá-lo muito.

- Você vai fazer o prefeito ou o governador - qualquer dos dois que tiver competência para tanto - ocupar a polícia e deixar que as tropas estaduais assumam o controle da cidade, até poder organizar-se outra força policial. Disseram-me que tanto o prefeito como o governador são de propriedade sua. Farão o que você ordenar. E é isso que vai ordenar-lhes. A coisa pode ser feita, e tem de fazer-se.

- Então você terá novamente em seu poder a cidade, limpinha e pronta para outra rebordosa. Se não o fizer, eu entrego estas cartas de amor aos abutres da imprensa - não à sua gente de Herald, mas às agências de notícias. Recebi as cartas das mãos de Dawn. Você terá com que se divertir procurando provar que não contratou o advogado para as reaver, e que ele não matou a pequena ao tentar arrancar-lhas. Mas o seu divertimento não há de ser nada em comparação com o divertimento do povo ao ler as cartas. São notáveis. Nunca ri tanto na minha vida, desde que os porcos comeram meu irmãozinho.

- Parei de falar.

O velho tremia, mas não havia medo no seu tremor. O rosto fizera-se novamente purpurino. Abriu a boca e rugiu:

- Publique-as e vá para o diabo!

Tirei-as do bolso, larguei-as em cima da cama, levantei-me, pus o chapéu na cabeça e disse:

- Eu daria a minha perna direita para poder crer que a pequena foi assassinada por alguém encarregado por você de recuperar as cartas. Por Deus, eu gostaria de coroar a minha obra mandando-o para a forca!

Willsson não tocou nas cartas. Perguntou:

- É verdade o que você disse de Thaler e Pete?

- Sim. Mas que diferença faz? É só para você cair nas mãos de outros.

Ele arremessou as cobertas para um lado e passou as pernas achaparradas, cobertas pelo pijama, e os pés cor-de-rosa, por cima da borda da cama.

- Você terá coragem - rosnou - de aceitar o posto que já lhe ofereci uma vez - de chefe de polícia?

- Não. Eu perdi a fibra lutando pelos seus interesses enquanto você se enconchava no leito e excogitava novos meios de me renegar. Procure outra ama-seca.

Olhou-me ferozmente. Depois, rugas maliciosas se formaram em torno dos seus olhos. Balançou a cabeça e disse:

- Está com medo de aceitar o cargo. Então foi você mesmo que matou a pequena?

Deixei-o como o tinha deixado da última vez, dizendo "Vá para o inferno!" e retirando-me.

O chofer, ainda sopesando o taco de bilhar e encarando-me com expressão pouco amistosa, encontrou-me no andar térreo e acompanhou-me até a porta, com ar de quem esperava alguma coisa. Não lhe satisfiz a vontade. Depois que saí, bateu com a porta atrás de mim.

 

A rua estava cinzenta com o alvorecer.

No fim da rua, avistei um carro negro parado embaixo de umas árvores. Não pude ver se havia alguém no seu interior. Por via das dúvidas, tomei a direção oposta. O carro pôs-se em marcha atrás de mim.

Não há vantagem em correr pela rua com automóveis no nosso encalço. Parei, e fiz frente àquele carro. Aproximou-se. Retirei a mão do quadril ao distinguir a cara vermelha de Mickey Linehan atrás do pára-brisa.

Mickey abriu a portinhola para me deixar entrar.

- Pensei que talvez você viesse cá - disse ele, enquanto me sentava a seu lado - mas cheguei um ou dois segundos atrasado. Vi-o entrar, mas estava muito longe para o alcançar.

- Como se arranjou com a polícia? - perguntei. - É melhor você continuar a dirigir enquanto conversamos.

- Eu não sabia de nada, não suspeitava de nada, não tinha a mínima idéia do que você estava fazendo aqui; chegara à cidade e encontrara-me com você, simplesmente. Velhos amigos - a conhecida tapeação. Ainda insistiam quando começou o tumulto. Estávamos num dos pequenos gabinetes do outro lado da sala de reunião. Quando se estabeleceu a confusão eu dei o fora.

- Como terminou o tumulto? - perguntei.

- Os policiais fizeram um tiroteio infernal. Tinham recebido aviso com meia hora de antecedência, e as vizinhanças estavam coalhadas de polícias especiais. Parece que esteve feia a coisa - não foi nenhuma canja para os tiras. A quadrilha do Cochicho, segundo ouvi dizer.

- Isso mesmo. Reno e Pete, o irlandês, atracaram-se a noite passada. Soube de alguma coisa?

- Apenas que houve briga.

- Reno matou Pete e caiu numa emboscada quando se retirava. Não sei o que aconteceu depois. Falou com Dick?

- Fui ao hotel e soube que ele tinha saldado as contas e tomado o noturno.

- Mandei-o de volta - esclareci. - Ele parecia pensar que eu tinha assassinado Dinah Brand. Estava-me fazendo mal aos nervos.

- E então?

- Se eu a matei? Não sei, Mickey. Estou procurando descobrir. Quer continuar comigo ou prefere ir embora também para a Costa, como Dick?

Mickey disse:

- Não fique tão irritado só por causa de um assassinatozinho cujo autor talvez nem tenha sido você. Mas que diabo! Você sabe que não roubou os berloques e o dinheiro da mulher.

- Nem o assassino. Ainda se achavam lá quando saí naquela manhã, depois das oito. Dan Rolff esteve na casa entre essa hora e as nove. Também não deve ter sido o ladrão. Os. Achei! Os policiais que encontraram o cadáver - Shepp e Vanaman - chegaram às nove e meia. Além das jóias e do dinheiro, algumas cartas que o velho Willsson tinha escrito à pequena foram - devem ter sido - surripiadas. Encontrei-as mais tarde no bolso de Dawn. Os dois detetives desapareceram nesse entretempo. Compreende?

- Quando Shepp e Vanaman deram com a mulher morta, saquearam a casa antes de dar o alarma. Como o velho Willsson é um milionário, suas cartas pareceram-lhe aproveitáveis, de modo que as levaram juntamente com os outros objetos de valor, e entregaram-nas ao rábula para que as negociasse com Elihu. Mas Dawn foi morto antes de poder dar qualquer passo neste sentido. Eu me apoderei das cartas. Shepp e Vanaman, quer soubessem que as cartas não tinham sido encontradas em poder do morto, quer não o soubessem, assustaram-se. Temiam que alguém seguisse a pista das cartas, desmascarando-os. Tinham o dinheiro e as jóias. Fugiram.

- Parece basta plausível - concordou Mickey - mas não nos ajuda a descobrir o assassino.

- Sempre aclara um pouco o mistério. Vamos tentar aclarar mais um pouquinho. Veja se encontra Porter Street e um antigo armazém chamado Redman. Segundo me contaram, Rolff matou o Cochicho lá dentro; aproximou-se dele e cravou-lhe o quebrador de gelo que tinha tirado do corpo da pequena. Se é exato, então não foi o Cochicho quem a matou, pois, em caso contrário, devia esperar alguma coisa desse gênero; não teria deixado o tísico aproximar-se tanto. Eu gostaria de olhar os cadáveres dos dois e verificar isso.

- Porter fica além de King Street - disse Mickey. - Experimentaremos primeiro na extremidade meridional. É mais próxima, e há mais probabilidades de encontrarmos armazéns. Que acha desse Rolff?

- Fora de questão. Se matou o Cochicho pode ter assassinado a pequena, fica livre de suspeita. Demais, ela apresentava lesões no pulso e na face, e Rolff não era bastante forte para lutar com Dinah. Minha opinião é que ele deixou o hospital, passou a noite sabe-se lá onde, foi à casa da mulher depois que eu saí, abriu a porta com a sua chave, encontrou o cadáver, concluiu que aquilo fora obra do Cochicho, retirou o quebrador de gelo, e saiu à cata do outro.

- Muito bem - disse Mickey. - E de onde lhe veio a idéia de que podia ter sido você?

- Cale a boca - rosnei, enquanto entrávamos em Porter Street. - Vamos procurar o nosso armazém.

 

                                       Velhos Armazéns

DESCEMOS a rua olhando para todos os lados, à procura de prédios que tivessem o aspecto de armazéns abandonados. Já estava bastante claro para se enxergar distintamente.

Em breve avistei um edifício grande, quadrado, vermelho ferrugíneo, no centro de um terreno coberto de ervas. Por toda a parte se notavam sinais de abandono. Podia muito bem ser o armazém procurado.

- Pare na primeira esquina - disse eu. - Parece ser este o lugar. Fique no automóvel enquanto vou fazer uma exploração.

Caminhei duas quadras desnecessariamente, para entrar no terreno dos fundos da casa. Atravessei-o com cautela; não à sorrelfa, mas evitando fazer qualquer ruído.

Experimentei de mansinho a porta dos fundos. Estava 'fechada à chave, naturalmente. Dirigi-me a uma janela, tentei espiar para dentro, mas não consegui por causa da escuridão e da sujeira; procurei mover a vidraça, e não pude.

Fui à janela seguinte, e tive a mesma sorte. Rodeei o canto do edifício e comecei a experimentar todas as janelas do lado norte. A primeira tentativa saiu frustrada. Na segunda janela, logrei erguer lentamente a vidraça, sem fazer muito barulho.

Pela lado de dentro, a janela estava tapada com tábuas pregadas horizontalmente. De onde eu estava, pareciam firmes e sólidas.

Amaldiçoei-as, e recordei esperando que a janela não tinha feito muito ruído quando eu a levantara. Trepei no peitoril, apoiei a mão nas tábuas, e empurrei suavemente.

Cederam.

Empurrei com mais força. As tábuas desprenderam-se do lado esquerdo, mostrando uma fileira de brilhantes pontas de pregos.

Afastei-as mais, olhei para dentro; não vi nada a não ser trevas, e nada ouvi.

Com a pistola na mão direita, transpus o peitoril e entrei no edifício. Dei um passo à esquerda, afastando-me da luz pálida que entrava pela janela.

Passei a pistola para a mão esquerda, e com a direita repus as tábuas no lugar.

Fiquei escutando um minuto, contendo a respiração. Nada ouvi. Colei ao corpo o braço armado de pistola, e comecei a explorar o local. Os meus pés, avançando polegada por polegada, nada encontraram afora o soalho. A mão esquerda estendida não tocou em nada, até bater numa parede áspera. Eu devia ter atravessado uma peça vazia.

Movi-me ao longo da parede, procurando uma porta. Meia dúzia de passos prudentes me conduziram à porta desejada. Encostei o ouvido nela e não ouvi nenhum som.

Encontrei a maçaneta, torci-a lentamente e entreabri a porta.

Ouvi um sibilar agudo.

Fiz quatro coisas ao mesmo tempo; larguei a maçaneta da porta, pulei, puxei o gatilho, e recebi no braço o embate de algo duro e pesado como uma pedra tumular.

O clarão da minha pistola não me mostrou nada. É o que se dá sempre, embora a gente pense que viu muitas coisas. Não sabendo que outra atitude tomar, atirei mais duas vezes.

Uma voz de velho suplicou:

- Não faça isso, companheiro. Não é preciso.

- Acenda a luz - disse eu.

Um fósforo crepitou junto ao soalho, acendeu-se, e iluminou com sua vacilante luz amarela um rosto escalavrado. Pertencia ao gênero de rostos insignificantes, inúteis, encontradiços em bancos de parques. O homem estava sentado no chão, com as pernas finas estiradas num ângulo muito aberto. Não parecia estar ferido. A seu lado jazia um pé de mesa.

- Levante-se e acenda a luz - ordenei. - E não pare de queimar fósforos até acendê-la.

Riscou outro fósforo, resguardou-o cuidadosamente com as mãos enquanto se levantava, atravessou a peça, e acendeu uma vela que estava sobre uma mesa de três pés.

Segui-o de perto. Se não tivesse o braço esquerdo entorpecido, teria agarrado o velho para maior segurança.

- Que está fazendo aqui? - perguntei, quando a vela começou a arder.

Não precisei de resposta. Uma das extremidades do aposento estava cheia de caixas de madeiras em pilhas de seis, com a marca Xarope de Bordo Perfection.

O velho pôs-se a explicar que, por Deus, não sabia de nada, que só sabia que um homem chamado Yates o contratara dois dias antes, como vigia, e que se havia algo de mal ele estava inteiramente inocente; enquanto isso, levantei a tampa de uma das caixas.

As garrafas traziam rótulos de Canadian Club que davam a idéia de terem sido impressos com um carimbo de borracha.

Deixei as caixas e, impelindo o velho à minha frente com a vela na mão, esquadrinhei todo o depósito. Como esperava, nada encontrei que indicasse ser aquele o armazém que o Cochicho ocupara.

Quando voltamos ao compartimento das bebidas, o meu braço direito já estava bastante forte para levantar uma garrafa. Meti-a no bolso e dei uns conselhos ao velho:

- É melhor dar o fora. Você foi contratado para substituir alguns dos homens que Pete, o Finlandês, transformou em polícias especiais. Mas Pete está morto, e a quadrilha se dispersou.

Quando galguei a janela, o velho estava postado diante das caixas, fitando-as com um olhar ganancioso e contando nos dedos.

 

- Então? - perguntou Mickey, quando voltei ao carro. Saquei do bolso a garrafa do que podia ser tudo menos

Canadian Club, tirei a rolha, passei-lhe a garrafa, e depois bebi eu próprio um bom trago.

Mickey perguntou novamente:

- E então?

- Vamos procurar o armazém Redman - respondi.

- Você ainda se estrepa por falar demais - disse ele pondo o carro em movimento.

A três quadras dali, rua acima, deparamos com uma tabuleta desbotada: Redman & Company. O prédio correspondente era comprido, baixo e estreito, com teto de chapas de ferro e poucas janelas.

- Vamos deixar o carro ali na esquina - disse eu. - Desta vez você vem comigo. Não foi muito divertido ir sozinho, na primeira tentativa.

Quando descemos do carro, uma viela à nossa frente parecia dar acesso aos fundos do armazém. Tomamos por ela.

Já algumas pessoas andavam na rua, mas era muito cedo para começar a atividade nas fábricas, que abundavam nessa parte da cidade.

Nos fundos do prédio encontramos algo de interessante. A porta estava fechada. A sua borda, bem como a ombreira, estavam arranhadas. Alguém introduzira ali um pé-de-cabra.

Mickey experimentou a porta. Não estava fechada à chave. Empurrando-a seis polegadas de cada vez, com pausas nos intervalos, abriu-a o bastante para nos deixar passar de lado.

Entramos e ouvimos uma voz. Não podíamos distinguir o que dizia. Só ouvíamos o rumor débil e distante de uma voz masculina que soava irritada.

Mickey apontou com o polegar as esfoladuras da porta e sussurrou:

- Não foram polícias.

Dei dois passos para dentro, apoiando todo o meu peso nos saltos de borracha. Mickey seguiu-me. Eu sentia-lhe o hálito na minha nuca.

Ted Wright me dissera que o esconderijo do Cochicho ficava no andar superior, aos fundos. A voz distante podia perfeitamente vir de lá.

Voltei o rosto para trás e perguntei a Mickey:

- Onde está a lanterna?

Ele a colocou na minha mão esquerda. Com a direita, eu segurava a pistola. Continuamos, pé ante pé.

A porta, ainda entreaberta, deixava entrar bastante luz para nos mostrar o caminho que levava a uma passagem, do outro lado da peça. Dali em diante estava escuro.

Lancei um feixe de luz através da escuridão, encontrei uma porta, apaguei a luz, e avancei. Da próxima vez, a lanterna mostrou-nos uma escada que conduzia ao pavimento superior.

Subimos os degraus como se tivéssemos medo que se partissem sob os nossos pés.

A voz agastada silenciara. Havia outra coisa no ar. Não sabíamos o quê. Talvez uma voz não bastante forte para se ouvir, se é que isso tem algum sentido.

Eu contara nove degraus, quando uma voz se fez ouvir distintamente acima de nós. Dizia:

- Sim, eu matei a mulher.

Uma pistola vomitou quatro tiros, retumbando como um fuzil de 16 polegadas sob o teto de ferro.

A primeira voz tornou: "Perfeitamente."

Já então Mickey e eu havíamos galgado os degraus restantes e empurrado uma porta, e procurávamos tirar as mãos de Reno Starkey da garganta do Cochicho.

Foi um trabalho insano e inútil. O Cochicho estava morto.

Reno reconheceu-me e deixou cair as mãos.

Tinha os olhos tão mortiços, a cara tão impassível, como sempre.

Mickey levou o corpo do jogador para um catre que se achava numa das extremidades da sala, e estendeu-o ali.

A sala, que devia ter sido antigamente um escritório, tinha duas janelas. À luz que por ela se coava, avistei um corpo escondido embaixo do catre: Dan Rolff. Uma Colt automática estava caída no meio do assoalho.

Reno curvou os ombros, titubeando.

- Ferido? - perguntei.

- Ele acertou-me todos os quatro - respondeu calmamente, inclinando-se para diante a fim de apertar os antebraços contra a parte ferida do corpo.

- Chame um médico - disse eu a Mickey.

- É inútil - acudiu Reno. - Já nem tenho mais tripas.

Puxei uma cadeira dobradiça e assentei-o nela, de modo que pudesse curvar-se para frente e firmar o corpo. Mickey saiu e desceu precipitadamente a escada.

- Você sabia que ele não estava morto? - perguntou-me Reno.

- Não. Eu lhe contei o que Ted Wright me disse.

- Ted foi embora cedo demais - tornou. - Eu suspeitava algo assim, e vim certificar-me. Ele me tapeou lindamente, fazendo-se de morto até que me achei diante da pistola. - Mirou aparvalhado o cadáver do Cochicho. - Tipo valente, diabos o levem. Morto, mas não quis ficar estendido no chão; aplicou os curativos em si mesmo e ficou esperando aqui sozinho. - Sorriu, o único sorriso que eu já lhe vira. - Mas é de carne, e não muita agora.

A voz se lhe tornava pastosa. Uma pequena poça vermelha se formara por baixo da borda de sua cadeira. Eu tinha medo de tocá-lo. Só a pressão dos seus braços, e a posição inclinada, o impediam de se desmantelar.

Reno cravou os olhos na poça de sangue e perguntou:

- Como é que você descobriu que não tinha liquidado a pequena?

- Tive de me contentar com a esperança de não ter sido eu - respondi. - Desconfiava de você, mas não tinha certeza. Achava-me dopado aquela noite, e tive uma porção de sonhos, com vozes e tanger de sinos, e coisas assim. Ocorreu-me que talvez não fossem verdadeiramente sonhos, e sim pesadelos de bêbado, provocados pelo que estava acontecendo nas proximidades.

- Quando despertei, as luzes estavam apagadas. Não acreditei que tivesse matado a mulher, apagado a luz, e voltado para segurar o quebrador de gelo. Mas podia ter acontecido de outra maneira. Você sabia que eu estava lá aquela noite. Não relutou em me ajudar a forjar um álibi. Isso me deu o que pensar. Dawn procurou extorquir-me dinheiro ao saber da história de Helen Albury. A polícia, depois de ouvi-la, inculpou a todos nós - você, o Cochicho, Rolff e eu. Depois de ver O'Marra a meia quadra da casa, encontrei Dawn morto. Naturalmente o rábula também tinha tentado extorquir-lhe dinheiro. Isso, e as suspeitas da polícia, fizeram-me pensar que os detetives tinham tantos indícios contra você como contra mim. O que sabiam contra mim era que Helen Albury me vira entrar, ou sair, ou ambas as coisas, aquela noite. Foi fácil adivinhar que o mesmo se dera com vocês. Havia razões para pôr fora de questão o Cochicho e Rolff. Restava você... e eu. Mas por que você a matara, eis o que me custava compreender.

- Sem dúvida - respondeu Reno, contemplando a poça vermelha a crescer no assoalho. - Foi tudo culpa dela. Dinah me telefona, avisa-me que o Cochicho tenciona ir lá, e diz que se eu chegar primeiro poderei dar cabo dele. Vou, fico esperando por ali, e o Cochicho não aparece.

Calou-se, fingindo interesse na forma que a poça vermelha ia tomando. Eu sabia que a dor o obrigara a calar-se, mas que continuaria a falar, logo que recobrasse o domínio de si. Tencionava morrer como tinha vivido, dentro da mesma concha rude. Falar podia ser uma tortura, mas isso não o impediria de prosseguir, pelo menos enquanto houvesse alguém perto. Era Reno Starkey, o homem pronto a suportar sem uma queixa tudo o que o mundo lhe infligisse; e assim havia de continuar até o fim.

- Cansei-me de esperar - prosseguiu, um momento depois. - Bati-lhe à porta e perguntei o que havia. Ela fez-me entrar, dizendo que não estava mais ninguém na casa. Duvidei, mas a mulher jurou que estava só, e passamos para a cozinha. Conhecendo-a bem, comecei a desconfiar que tinha sido contra mim, e não contra Cochicho, que se armara a cilada.

Mickey entrou, dizendo que pedira pelo telefone uma ambulância.

Reno aproveitou a interrupção para descansar, e depois retomou o fio da narrativa:

- Mais tarde, descobri que realmente o Cochicho lhe telefonou dizendo que ia lá, e que chegou antes de mim. Você estava dopado. Ela teve medo de deixá-lo entrar, de modo que Cochicho foi embora. Mas a pequena não me disse nada, temendo que eu me retirasse deixando-a sem proteção no caso de reaparecer o Cochicho, uma vez que você estava embriagado. Mas eu não sabia, e desconfiei que tinha caído numa armadilha, pois conhecia bem a mulher. Pensei em agarrá-la e fazê-la confessar à força. Experimentei. Ela agarrou o quebrador de gelo e soltou um grito. Nesse momento, ouvi as pisadas de um homem. A armadilha fechou-se, pensei.

Reno falava mais devagar, levando mais tempo e esforçando-se para pronunciar calma e pausadamente cada palavra, à medida que sentia maior dificuldade em falar. A sua voz se tornara indistinta, mas, se ele o percebia, fingia ignorá-lo.

- Não quis ser a única vítima. Arranquei-lhe da mão o quebrador de gelo e cravei-lhe no peito. Você entrou de roldão, dopado até às bordas, atirando-se contra tudo com os olhos fechados. Ela tropeçou em você, que foi ao chão e pôs-se a rolar até que a sua mão resvalou no cabo do quebrador de gelo. Agarrando-se a ele, você adormeceu, ficando tão quieto como a pequena. Compreendi então o que tinha feito. Mas que diabo! Ela estava morta. Não havia nada a fazer. Apaguei a luz e retirei-me. Quando você...

Dois enfermeiros de ar cansado - Poisonville dava-lhes trabalho à beca - entraram com uma padiola, pondo fim à narração de Reno. Folguei com isso. Já obtivera todas as informações que queria, e não era agradável estar ali sentado, ouvindo-o, vendo-o agonizante e sem parar de falar.

Levei Mickey para um canto e murmurei-lhe ao ouvido:

- Doravante o trabalho é seu. Vou dar o fora. Eu não devia ter nada a temer, mas conheço muito bem a minha Poisonville para me arriscar. Irei no seu carro até alguma estação à beira da estrada, onde possa tomar um trem para Ogden. Vou hospedar-me no Roosevelt Hotel, com o nome de P. F. King. Você fica encarregado do serviço, e avise-me quando for aconselhável retomar o meu nome verdadeiro ou fazer uma viagem a Honduras.

Despendi a maior parte da semana que passei em Ogden tentando redigir o meu relatório, de tal modo que não parecesse ter eu infringido tantos artigos do regulamento da Agência e das leis estaduais, e quebrado tantos ossos humanos como na realidade o fizera.

Mickey chegou na sexta noite.

Contou-me que Reno estava morto, que eu deixara de ser oficialmente um criminoso, que a maior parte do dinheiro roubado ao First National Bank fora recuperado, que MacSwain confessara a autoria do assassínio de Tim Noonan, e que Personville, sob a lei marcial, se estava convertendo num leito de rosas perfumadas e sem espinhos.

Eu bem podia ter-me poupado o trabalho que tivera procurando tornar inofensivos os meus relatórios. Não consegui tapear o velho, que me passou uma descompostura infernal.

 

 

                                                                  Dashiell Hammett

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades