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Um farol enlouquecido deixa desamparados os homens do mar que circulam em torno da pequena e isolada ilha de La Duiva, expondo-os, todas as noites, às ameaças dos rochedos traiçoeiros. Sob sua luz vacilante, Cecília, matriarca da família Godoy, reconstitui as cicatrizes do passado com linhas e agulhas. Em dolorosa solidão, ela tece uma interminável tapeçaria em que entrelaça as sinas de Ivan, seu marido, e de seus filhos ausentes, elegendo uma cor para cada um.
Muitas gerações da família de origem espanhola zelaram pelo farol, naquela ilhota perdida no sul. Apesar da oposição de Doña, sua mãe, Ivan apaixona-se por Cecília.
Os dois se casam e têm seis filhos – Lucas, Julieta, Orfeu, as gêmeas Eva e Flora, e o temporão Tiberius – que povoam a ilha com suas personalidades marcantes e talentos misteriosos. Apaixonada pelos livros, a jovem Flora descobre que possui o dom para a literatura e começa a escrever um romance. Tão poderosas são suas palavras que certas cenas deixam o papel e transbordam para a realidade.
Depois de concluído, o manuscrito chega às mãos do inglês Julius Templeman, professor de literatura em Cambridge e um especialista em obras latino-americanas. Tomado de encanto pelo frescor e a vitalidade da criação da jovem escritora, ele decide deixar a Europa e ir até La Duiva, para conhecer pessoalmente a autora. A chegada do forasteiro provoca mudanças profundas e irreversíveis nos moradores de La Duiva e no próprio Julius. Ele desperta desejos, desencadeia paixões e torna-se o vértice de um inusitado triângulo amoroso, cujas consequências levam os filhos de Cecília a se espalharem pelo mundo em busca de outros verões.
IVAN, POR CECÍLIA
Uma mulher pode amar um único homem durante a vida inteira, amá-lo do começo ao fim dos seus dias e, no entanto, perdê-lo na esteira dos anos; perder-se dele, lenta
e silenciosamente como a areia escoa num daqueles relógios antigos. Homem e mulher na mesma casa, anos a fio, entre fraldas e mamadeiras, risos e choros, tombos
e arrependimentos, noites de tormenta, naufrágios, sopa quente em tigelas de porcelana, achas de lenha ardendo no fogão, o pó acumulando-se traiçoeiramente entre
os livros na estante, o vento lá fora... Bem, essas são as armadilhas de um casamento. Na maioria das vezes, não há sangue, nem gritos, nem feridas. Apenas o tempo
gotejando como uma velha torneira com o reparo gasto, e um dia você está assim de água até o pescoço.
Isso aconteceu aqui em La Duiva, com Ivan e comigo... Nossas misérias cotidianas e nossas pequenas alegrias, tudo junto, misturando-se num amálgama de memórias.
Eu, às vezes, quase nem sabia mais amá-lo. Mas não há nada como a morte para nos chamar à razão — quando Ivan se foi repentinamente naquela manhã lá no píer, um
vazio se abriu dentro de mim. Como se alguma coisa me comesse por dentro, de repente me vi roída, rota, vazia. O amor sabe ser silencioso, ora se sabe.
Claro, houve um tempo em que eu ardia por Ivan. Éramos jovens e sempre parecia verão, porque não ficou em minha memória nada que não as nossas tardes sob o sol,
os beijos entre as pedras do molhe, noites apinhadas de estrelas... Doña vigiava-nos de perto, tão de perto que nos encontrou aos beijos, e as coisas se precipitaram
então. Não creio que deva reclamar daquele tempo, já que Ivan e eu nos casamos exatamente como queríamos. Ah, as primeiras noites no nosso quarto, o calor de Ivan
junto a mim...
No entanto, os anos passaram. Os anos passaram sobre nós como as ondas do Atlântico lá na praia. Enchemos esta casa de filhos, fomos felizes e infelizes, um pouco
de cada. Ivan, aquele rapaz alto e circunspecto de olhos verdes, cujos sorrisos embalavam meu sono, foi ficando parecido com o pai, don Evandro. Ah, que medo eu
tinha ao acordar pela manhã com Ivan deitado ao meu lado, exausto da última tormenta, e ver que o tempo avançara nas trincheiras do rosto do meu marido, transformando
uma coisa em outra, a boca rosada do rapaz que eu adorava, a boca como um morango em dezembro, suculenta e linda, transmutando-se naquela outra boca, rasgada, dura,
a amarga boca do meu sogro — o tempo é como uma criança travessa que desbasta os canteiros de um jardim quando apenas nos afastamos um pouco em busca de mais gelo
para a limonada.
É claro, não foi apenas Ivan quem mudou. Um dia, dei por mim na frente do espelho do corredor, vasculhando meus próprios traços, e não encontrei mais ali a menina
loira que cantarolava pelos corredores de La Duiva... Mas a vida é assim, ela joga conosco. Casamos com o homem x ou a moça y mas, na verdade, o nosso matrimônio
verdadeiro, o único do qual não nos podemos apartar de maneira nenhuma, é com o tempo.
Está certo, eu estou fugindo do assunto — não estou? Como era Ivan realmente? Ah, ele era lindo, inóspito e dourado como um verão aqui na costa. Ele deixava um rastro
de verde em todas as coisas, era como uma gema preciosa, uma planta, um poço muito fundo — tinha um silêncio cheio de segredos. Eu pulei naquele poço e fui até o
fundo das coisas, até o âmago. Às vezes, podia ser extenuante, mas valia a pena. Agora que Ivan se foi, nada mais será como antes. Até a casa vem perdendo o viço,
enquanto eu fico aqui na sala tecendo o meu interminável tapete de lembranças.
ORFEU, POR IVAN
O passado resolveu-se para mim com o nascimento de Lucas. De repente, eu estava quite com a vida. Lucas era tão parecido comigo — mesmo quando pequeno, semente do
homem no qual se transformaria, eu podia perceber a semelhança entre nós. Lucas pensava como eu, e era fácil para mim entendê-lo e aceitá-lo.
Mas Orfeu? De que lira nasceu a inquebrantável voz de Orfeu? De que palheta as cores do seu rosto? Andando por La Duiva como um elfo, uma criatura mágica e misteriosa
iluminada por um sol particular, Orfeu parecia saído das páginas de um livro. Orfeu e seu caderno de desenhos, ele mesmo tão irreal como uma aquarela. Orfeu e seus
sorrisos, os poemas que deixava escapar dos seus lábios suspirantes.
Sempre tive um certo temor de Orfeu. Não dele, do meu filho... Mas medo do que Orfeu seria capaz de fazer para estar à altura daquela coisa toda que se adensava
ao seu redor. Como um ator na coxia esperando para entrar no palco, capaz de qualquer coisa para ouvir os aplausos da plateia.
E foi assim que a vida me mostrou que nada viria a ser tão fácil como parecia... Não estava tudo resolvido para os Godoy de La Duiva. Talvez Lucas tivesse mesmo
nascido para o farol, como sucedera comigo: eu tinha assumido com alegria as responsabilidades que outrora cabiam ao meu pai. Mas Orfeu – e em outra medida Flora,
Eva e Tiberius — bem, eles eram as variantes insondáveis do amanhã.
Desde o primeiro momento, eu soube que seria Orfeu quem abriria a caixa de Pandora do futuro. Havia alguma coisa nele, dentro dos seus olhos, uma vontade insaciável,
uma curiosidade em tudo, coisas grandes e pequenas — o jeito como Orfeu olhava as pessoas, vasculhando-as sem pudor: gestos, palavras, silêncios — ele estava sempre
atento. Não era tão óbvio, é claro. Apenas alguns podiam notar essa fome de Orfeu. Atrás do seu caderno de desenhos, andando pela praia como um náufrago sozinho
num mundo perdido, ele disfarçava bem. Parecia aluado, um rapazinho bonito e distraído, um pouco exótico. Orfeu era viril ao seu modo, com aquele corpo rijo e esguio
e flexível que ele tinha. As garotas da vila o queriam, mas ele parecia desinteressado demais de tudo que fosse simples ou fácil. Talvez uma moça da cidade, eu pensava,
de Oedivetnom ou da Europa. Nesse tempo, ninguém ouvira falar ainda no professor Julius Templeman...
Orfeu, Orfeu... Eu gostaria de ter conversado com você, conversado honestamente. Ao menos uma única vez. Mas foi mais fácil para mim fechar os olhos àquilo que eu
não podia compreender ou mensurar. Assim, o tempo passou à deriva de nós dois. O tempo, esse fio que Cecília trama com as suas agulhas. E agora que me pedem para
descrevê-lo, eu gasto todas essas linhas dando voltas em torno dessa minha dor tão grande... Desse meu arrependimento.
Como você era, Orfeu? Era bonito, bonito demais. Era corajoso, era gentil. As árvores se curvavam à sua passagem. Desde sempre, eu soube que La Duiva seria pequena
demais para você.
Orfeu, o terceiro filho da minha carne, aquele que ganhou o nome do argonauta que, com a sua voz, apaziguava os mares e neutralizava o temível canto enfeitiçado
das sereias.
JULIUS TEMPLEMAN, POR ORFEU
Eu esperei.
Solenemente, por meses a fio, anos inteiros, eu esperei. De peito aberto, jovem e ansioso, deixei-me ficar lá na praia, olhando o mar. Sentado na areia, o sol quente
mordendo a minha pele, todo aquele verde, o azul e o branco, a praia dentro de mim como uma música — ficava lá, esperando. De modo que não é estranho que eu realmente
estivesse lá quando ele chegou.
Seu nome era Julius Templeman. Chegara de muito longe e não trazia muita coisa consigo, apenas um livro lido e relido, cuja autora — que vinha a ser Flora, minha
irmã — ele procurava.
Eu estava no morro, sentado entre as sarças fazendo rabiscos no meu caderno de desenho e lembro como se fosse hoje, posso sentir no vento o cheiro amargo das algas
e posso provar o contato da areia e dos pedregulhos sob meus pés descalços. Foi mesmo sem preâmbulos, uma coisa crua e aguda. Mas não doeu, foi mais como uma epifania.
Como uma criança sedenta que, ao ver um copo de água, pega do copo e bebe seu conteúdo até a última gota. Água se bebe, pensa a criança, ou o instinto lhe sopra
isso nos ouvidos? Não me lembro de uma voz, não me lembro de nada: apenas a revelação, franca e serena, de que era por ele — por Julius Templeman — que eu esperara
durante todo aquele tempo.
Eu o amei.
Amei-o com todo o meu espírito e com cada gota do meu sangue. Amei-o no instante em que, lá na praia, ele desceu do barco de Tobias, usando um casaco pesado demais
e aqueles mocassins de pelica que não venceram a caminhada na areia até a nossa casa. Amei-o no seu espanto e na sua tímida deselegância, amei-o na sua palidez e
na sua corajosa solidão. Amei-o, e logo o quis, mas havia chão e havia pedras, e noites se estendiam à nossa frente como um tapete de espinhos, até que ele pudesse
ser mesmo meu como eu já era dele desde o princípio.
Julius... Tinha os olhos azuis iguais ao mar de La Duiva em fevereiro, e todo ele parecia tão expectante como uma criança numa dessas quermesses interioranas, crente
na promessa de que seus desejos seriam todos satisfeitos. Julius não imaginava como a sua vida estava por mudar. E assim, inocente do próprio fado, ele caminhou
desajeitadamente pela praia sem nunca erguer os olhos para as pedras, para a face do morro verde e cinzento onde eu estava sentado. Eu, Orfeu, o destino final daquela
sua tresloucada viagem.
FLORA, POR JULIUS
Sou sua personagem, de certa forma. Inventando-me em seu livro, Flora alinhava nossas vidas, a realidade da sua vida e da minha naquele outro espaço, naquele outro
plano, a ficção.
O que eu nunca saberei é de que modo uma coisa se derramou na outra... O fato é que atravessei meio mundo, de Londres até Oedivetnom e depois até La Duiva para conhecê-la.
Flora Godoy, a escritora inédita, a moça que escrevera O livro. Ela sabia usar as palavras, sabia mesmo.
Como era Flora? Era alta, tinha belos olhos, a tez dourada. A boca larga, de lábios finos, abria-se num belo sorriso. Quando estava amuada, seu narizinho se arrebitava.
Flora tinha lindos peitos, longas pernas. Falava pouco, lia muito. Seria uma excelente aluna, e eu teria me apaixonado se a tivesse conhecido em Cambridge, entregando-me
a ela com docilidade: quase posso vê-la jogada no sofá de veludo do meu apartamento, os cabelos soltos caindo-lhe pelas costas, descalça (depois da infância em La
Duiva, Flora nunca aprenderia a gostar de sapatos), mastigando uma maçã sem importar-se com o sumo que lhe escorria pelo canto da boca, lendo Dickens enquanto me
espera voltar das aulas na universidade.
Mas as coisas aconteceram de maneira bem diferente. E aconteceram em La Duiva... La Duiva foi como um antídoto — ou terá sido o próprio veneno? É claro que eu me
angustiei, andei suspirando pelos dias, bebendo espanto e mastigando medo enquanto fazia tudo de um outro jeito, de um modo absolutamente novo, sentindo tudo de
modo diverso e, sendo eu mesmo, já era completamente outro. Aquele eu cujos passos apressados ecoavam diariamente pelos corredores da universidade teria amado Flora
com loucura, mas tudo isso deixou de existir para todo sempre. Sobrou apenas este Julius: bronzeado de sol, trajando camisetas e se embebedando de vinho e de poemas,
cruzando o mundo atrás do sonho de Orfeu: um verão eterno.
Flora ficou em La Duiva. Não sei o que foi feito dela, mas merecia coisas grandes: era amável e inteligente e uma narradora genial. Para além do ponto final do livro
que ela escreveu, no entanto, a vida tinha curiosos planos para todos nós.
TIBERIUS, POR FLORA
A mamãe bordou-o em amarelo. Quando eu penso nele, penso em estrelas. Aldebaran, Sirius, Pollux, Nintaka. Talvez amarelo seja mesmo bom para uma estrela — não é
dessa cor que as crianças as pintam nos desenhos?
Tiberius. Um nome curioso — meus pais pareciam gostar disso, de escolher nomes exóticos. Não era bem uma tendência, pois temos Lucas e temos Eva, que vem a ser o
nome mais clássico do mundo, mas era como um vento que soprava às vezes e sacudia tudo: Julieta, a jovem apaixonada de Shakespeare, e Orfeu, o argonauta. Assim tivemos
também Tiberius, o imperador romano. Dizem os livros que ele foi um grande general, um estrategista. Tristissimus Hominum, assim chamou-o Plínio, o Velho. O mais
triste dos homens.
Engraçado isso, porque sempre achei o meu irmão caçula meio triste. Creio que o peso de todos os pressentimentos vergou-o como um desses pinheiros da costa que,
de tanto serem assolados pelo vento, já crescem tortos. Porém, têm grande resistência, apesar do caule fino, e talvez por isso mesmo dançam conforme as tempestades,
cedem espaço ao vento e suas raízes seguem firmemente entranhadas no chão.
Então é isso, Tiberius é o nosso pinheiro. Ele era aprazível como uma sombra numa tarde de verão, aquele menino calado e atencioso. Carregava seus livros de astronomia
para a escola local, e os garotos mais velhos se riam dele. Tiberius nunca lhes fez caso. Era tão pálido quanto um lírio, e tão bonito também — saiu mais à mamãe.
Sim, sim, sim, todos sabiam que era o seu filho preferido... Os olhares açucarados que ela lhe deitava! Mas acho que Tiberius merecia todo aquele amor, ele que era
o melhor de nós. No meu romance, dei-lhe o dom da premonição. A vida deu-lhe ainda mais coisas do que eu, mas cobrou caro por elas.
LUCAS, POR TIBERIUS
Meu irmão mais velho. Sempre ao lado do papai. Entendia de barcos, de ventos e de tormentas. Às vezes, era como se o pai falasse pela boca do Lucas. Os dois eram
tão parecidos que tinham o mesmo riso.
Lucas deixou a infância cedo e drasticamente, crescendo com uma faina que espantava mamãe, sempre às voltas com as bainhas das suas calças. Tinha um tipo de beleza
máscula, um tantinho mal-acabada, que fazia com que as mulheres se inquietassem nas cadeiras quando começavam as danças na quermesse e meu irmão Lucas escolhia seu
par.
Mas lá em casa não achávamos ele tão interessante, os irmãos e eu, pois era um cara quieto, reservado. Acho que quase não dava por mim em La Duiva, e não recordo
de uma única brincadeira, um jogo que tenha feito comigo, um passeio, nada.
Lucas... Ele partiu numa noite, isso foi depois que conheceu Laura. Depois daquela briga com o pai e de tudo o que veio em seguida. Não gosto de lembrar essas coisas.
Eu pressenti algo, um sopro de tragédia, como quando o pai parava lá no ancoradouro e, sorvendo o ar na tarde quieta, podia assegurar-nos que uma tormenta estava
chegando, escondida no azul do céu, na brisa quente vinda do mar.
Sobre Lucas, eu sempre soube muito pouco. Cheguei a ver uma mulher num sonho certa vez, acho que era Laura. Como uma cigana, os longos cabelos escuros, o riso alegre
como o chacoalhar de suas pulseiras. Ela veio feito um temporal, e Lucas esteve à deriva por muito tempo por sua causa. Não que lhe faltassem moças na vila ou até
mesmo em Oedivetnom, e havia ainda as turistas que vinham no verão conhecer La Duiva — Lucas às vezes se divertia com uma ou outra. Mas Laura marcou-o. No dia em
que a conheceu num café em Oedivetnom, ele voltou para casa mais calado — tinha ido com o pai visitar uma seguradora dessas que cuidam de cargas marítimas. Naquela
noite, sentado à mesa com um cálice de vinho, enquanto o vento do inverno soprava lá fora a sua cantilena, Lucas errou as contas e blasfemou baixinho. Era sempre
tão contido, mas o surgimento de Laura pareceu arrefecer os contornos do meu irmão mais velho, e depois disso Lucas fez coisas que eu não o imaginaria fazendo nem
nos meus sonhos mais malucos.
EVA, POR LUCAS
Às vezes, quando estou no Auguste, aparece alguma passageira como Eva. Não parecida com Eva, mas como ela... Falo desse tipo de mulheres que emana uma vibração,
uma energia — é quase como se tivessem um cheiro próprio, um odor que despertasse certos instintos e glândulas. Portanto, às vezes, alguma dessas fêmeas entra no
Auguste para um passeio, e então a recordação dela bate em cheio em mim, como um tapa na cara.
Como Eva, todas essas mulheres têm aquele olhar lânguido e, onde passam, uma esteira de homens põe-se a suspirar. É claro que alguns, os mais afoitos, vão atrás
em busca de uma chance. Mulheres-sereia, assim eu as chamo. Se um marinheiro distraído deixar-se enganar por seu canto melodioso de promessas, é tragédia certa.
Naufrágios incontáveis aconteceram por causa das sereias e, se você não acredita nelas, vá ler um pouquinho de mitologia. Se você não acredita mesmo nelas, gostaria
de levá-lo, não pelo Tejo até Belém como faço hoje em dia pilotando o Auguste, mas pelo tempo até a distante e perdida La Duiva da minha juventude. Sete, oito anos
atrás, cortemos a maré dos anos rumo ao sul das minhas lembranças...
O mar e o céu azul e todo aquele silêncio novo em folha, o dourado da tarde multiplicando-se na areia marcada pelas gaivotas e pelo vento. Assim era La Duiva, com
o velho farol para além dos molhes, onde as medusas vinham morrer sob o sol, e as dunas lisas, o morro recortado pelas pedras, verde aqui e ali de sarças, o vulto
da casa lá no alto a espiar o mar como um grande bicho dorminhoco. Em algum lugar disso tudo, em algum metro quadrado daquela praia, estaria Eva... Seus longos cabelos
vermelhos gritando sob o sol do verão, o belo corpo esguio, bronzeado, liso e lento. Sobre uma toalha, Eva de biquíni. Ela não lia nenhum livro, não era esse tipo
de garota — passava as tardes em comunhão com o céu e o mar. Linda, tão linda quanto aquela praia, e ainda mais agreste.
Eu ficava com o pai lá na oficina ou no ancoradouro, trabalhando duro por horas a fio. Havia sempre outros homens por lá, marinheiros jovens e velhos, e homens de
terno anotando cifras em planilhas complicadas — era a gente das seguradoras. Havia sempre um motor aberto ou uma carga a ser conferida, salva de alguma das muitas
tormentas que açoitavam a nossa costa, pois era assim que papai ganhava o seu dinheiro: salvando coisas do mar.
No meio disso, volta e meia um dos marinheiros jovens saía para dar um passeio pela praia. Depois de uma desculpa qualquer, o rapaz corria para ter com Eva. Ela
era farta e generosa em seus favores e, quando escolhia alguém, as suas impronunciáveis promessas eram muitas... A sua beleza tornara-se famosa em toda a região.
Eva trocava rapidamente de amores, mas, de qualquer modo, o ancoradouro e as oficinas do papai forneciam-lhe um constante e fácil fluxo de vítimas.
Ah, ela era uma sereia caprichosa... Queria sempre mais e mais. Houve um afogamento certa vez, tinha morrido um rapaz de La Malopa que estivera em La Duiva com Eva
por três ou quatro tardes ardentes. Depois chegou-lhe um bilhete, o último bilhete que o coitado escrevera antes do suicídio, um textinho desesperado de amor. Foi
Tobias, o barqueiro, quem trouxe o envelope para Eva. Lembro-me dela lendo aquelas linhas aos suspiros, depois passou-me a folha de papel em que a letra disforme
se esparramava em declarações desesperadas, e disse:
"Leia, Lucas. E depois me explique como alguém pode ser tão tolo. Será que ele não sabia que tudo não passava de uma brincadeira entre nós?"
Parecia triste, a bela Eva, mas não chorou uma lágrima — acho que nunca a vi chorando. Mas, saibam, eu gostava dela. Era sincera e mordaz, uma boa companhia quando
a gente não estava apaixonado por ela. Paixão é uma espécie de fraqueza, e minha irmã sempre detestou os fracos.
Às vezes vejo uma mulher ou outra como Eva aqui no Auguste, eu já disse, e trato de manter uma boa distância. Um navegador que se preze aprende rápido a fechar os
ouvidos aos perigos do outro mundo.
JULIETA, POR EVA
Calhou que eu tenho de apresentar-lhes Julieta, a minha irmã doente. Estaria Flora manipulando, uma vez mais, as coisas por aqui? Eu, a bruxa malvada, a garota insolente
e insaciável que tentou roubar o professor inglês dos braços do seu amor — eu, a sereia de La Duiva, a Lilith de Flora. Mas cumprirei com o meu papel — vou contar-lhes
um pouco de Julieta.
Julieta Godoy, morta aos vinte e um anos. Um acidente no parto e a segunda criança de Cecília teve uma existência triste, eterna vítima daqueles segundos sem oxigenação
que danificaram seu pequeno cérebro, estraçalhando seu futuro. Não mentirei por aqui — quando vocês lerem o livro, saberão que sou implacável, mas eu diria que sempre
fui apenas sincera. O mundo desaprendeu a sinceridade, e todos andam por aí aos salamaleques e sorrisos, uns bobos da corte que pelas costas alheias fazem as mesmas
intrigas shakespearianas de sempre. Eu não. Eu dou o tapa e mostro a mão — esta mão onde Leon colocou uma grossa aliança de ouro quando me levou embora de La Duiva
para sempre.
Portanto, digo-lhes: Julieta foi uma coitadinha, enfiada em suas fraldas, babando pelos cantos, com aqueles seus tristes olhos ausentes. Diziam coisas sobre ela,
é claro... Que enxergava o fantasma da avó, Doña, a malvada. Que este fantasma espicaçava-lhe as madrugadas, e que era por isso que ela gritava e gritava e gritava
até deixar-nos a todos exaustos.
Experimentem, meus queridos, dormir com uma ladainha daquelas... Os gritos roucos de Julieta pareciam vir do além — Julieta era o nosso fantasma, a nossa quase-presença,
o motivo dos eternos olhos úmidos de mamãe e do constrangimento seco de papai. Ela era como uma dessas massas de bolo que não crescem direito: a princípio, no calor
do forno, incham e sobem e brilham, depois caem para dentro de si mesmas, deixando atrás de si apenas a superfície das suas promessas não cumpridas. Havia no seu
rosto arruinado a sombra da beleza de mamãe, os traços delicados de mamãe misturados num amálgama, como se ela não fosse o quadro, mas a paleta de um pintor talentoso.
Se Doña vinha do outro mundo para incomodá-la, vinha por causa daquele espanto eterno que saltava dos seus olhos.
Bem, era maçante estar com Julieta. Chega um tempo em que você cansa de ter pena e simplesmente segue em frente. Ela foi um bom brinquedo na nossa infância, era
a nossa boneca desengonçada e quieta — depois a esquecemos, e mamãe seguiu escrava da rotina de amá-la e alimentá-la. Pobre mamãe, eu lhe tinha pena, mas ela parecia
até mesmo apreciar aquela filha doente e a sua eterna infância.
Então Julieta morreu; morreu sem gritos numa noite, depois de passar duas décadas ganindo pelas madrugadas. O seu quarto foi esvaziado, e a cama e todas aquelas
coisas de que ela necessitava para viver foram doadas para um lar de doentes em Oedivetnom. Quando ela morreu, Lilia também partiu. A casa começou a esvaziar até
que restou apenas mamãe. Mas acho que Julieta nunca foi embora realmente, seu espiritozinho confuso e assustado permaneceu lá em cima, no promontório, gritando com
o vento nas noites de inverno, como ela sempre gostara.
DOÑA, POR JULIETA
"Você morre no final, Julieta. É assim que eu ganho." A velha falava sempre isso. Parada ao lado da minha cama à noite, a velha falava. Tínhamos tempo, ela e eu,
todo o tempo do mundo. A doença e a morte são duas eternidades. "Você morre no final, Julieta. É assim que eu ganho." A velha repetia e eu gritava.
Tarde da noite, eu gritava, gritava. No escuro. Sozinha. Demorava muito até que acendessem a luz, e era sempre mamãe. "Não grite, Julieta", ela pedia. Mamãe não
sabia, nunca soube, que, junto com o desenho da sua boca, eu herdei o seu medo da velha. Doña. Foi ela quem apertou o cordão. Aquele cordão de sangue e de seiva
que me unia a mamãe, foi a mão dela que fez aquilo. Foi culpa dela, da velha que era minha avó e que jurou se vingar da mamãe. Lucas escapou, mas eu não. E, depois
de mim, Doña deixou os outros em paz.
Doña. Ela tinha um nome: Alba. A mãe do meu pai. O meu fantasma. Cada grito que eu dei, a culpa foi dela. Saía das reentrâncias entre os tijolos das paredes, saía
de dentro do copo de suco, da banheira, do armário do quarto. "Buu!", ela fazia. "Juuu", ela chamava. Ficávamos horas nos olhando, eu olhando pra ela, ela olhando
pra mim. "A nossa brincadeira", ela dizia. "O nosso pequeno jogo, meu e seu, menina maluca... E você morre no final."
Ela era má, muito má. Nem bonita, nem feia. Mas triste, de uma tristeza de caruncho. Triste como um campo incendiado, como uma árvore caída com as raízes secando
ao sol. Doña. Mas o nome dela era Alba, embora nunca ninguém mais se lembre disso por aqui.
ERNEST, POR DOÑA
Preto safado. Desde o começo, eu sempre soube. Não queria o Ernest lá. Sempre atrás do Evandro para cima e para baixo, era sim senhor, não senhor, mas ele tinha
um jeito de olhar, um jeito! Tinha uns olhos desrespeitosos, escrutinadores, brilhantes. Era como se o Ernest levasse o farol dentro dos olhos!
Depois que o meu filho cresceu, vivia atrás daquele preto. Não sei o que o Ivan via nele. Eu reclamava, mas o marido dizia, Deixa eles. Ernest foi uma má influência
para o meu Ivan, foi ele quem meteu na cabeça do menino aquela história de amar a Cecília. Lá na praia, eles falavam por horas e horas. Decerto o Ernest contava
histórias de amor pro meu filho, aquelas histórias que ele lia nos livros — porque o Ernest lia, lia muito! Passava pela varanda aos domingos com um livro embaixo
do braço, e então me olhava de esguelha, muito metido, muito airoso. Que diacho de homem aquele! E olha que deve ter tido um único par de sapatos na vida, era mais
pobre do que Jesus na manjedoura.
Eu sempre detestei o Ernest, sempre. Depois que o Evandro morreu, deixando tudo de pernas pro ar, e o meu filho casou com a Cecília, aquele maldito preto continuou
por lá, se espalhando feito água, dando conselhos para o Ivan, emprestando livros para a Cecília. Se eu não tomasse cuidado, o Ernest acabaria sentado à nossa mesa
fatiando o pão dos domingos.
E então, quando as coisas pareciam ter chegado ao fundo do poço e a Cecília empinava aquela barriga de grávida pelos corredores de La Duiva, eu fiquei doente, muito
doente. Foi praga do Ernest, Deus me valha. Foi praga daquele preto comedor de papel. Mas eu dei um jeito, ah se dei... Eu morri, mas acabei levando o Ernest comigo.
TOBIAS, POR ERNEST
Ele era um barqueiro, diria Ivan, que sempre foi tão pragmático. Para Flora, Tobias era um personagem como todos nós. Eu, que sempre gostei de histórias, que nunca
tive dinheiro no banco ou moradia própria, mas que podia declamar Shakespeare e Donne e conhecia Plínio e deliciava-me com Homero — eu, a cada vez que penso no Tobias,
penso no barqueiro de Hades, o velho Caronte.
Tiberius, apaixonado por astronomia, diria que Caronte era o satélite natural de Plutão. Eu digo que Tobias era o nosso Caronte. Já estava aqui quando eu cheguei,
atravessando incontáveis vezes o mar do vilarejo até La Duiva. Levava os vivos e os mortos, quando alguém morria nas bandas do lado de cá. Quando Don Evandro faleceu
naquela manhã fatídica, sem que ninguém visse meti-lhe uma moeda na boca, sob a língua: a paga de Caronte. Porque eu não queria que o patrão andasse pela praia feito
uma alma penada pelos próximos cem anos. E Tobias levou Don Evandro, e ele ganhou sua cova no pequeno cemitério da vila, onde viria a se encontrar com Ivan muitos
anos depois. Quando Doña morreu, nada de moedas. Tobias levou-a também, sem perguntas. Mas uma parte de Doña ficou por aqui, assombrando os vivos. Tobias me disse,
certa vez, que a viu numa noite de tormenta lá no alto do morro, magra e luminosa, um fantasma soprado pelo vento, os olhos de um vermelho feito brasa.
Tobias, o nosso barqueiro. Indo e vindo pelos anos e através das marés, levando e trazendo mantimentos, notícias e visitantes. Ah, ele viu e ouviu muita coisa. Levou
Lucas para o seu exílio, e Orfeu e seu amor partiram no seu barco naquele fatídico alvorecer de inverno. Tobias viu Flora na sua última noite, jogando ao vento as
folhas do seu único e inédito romance. Um dia depois, levou-a também para o outro lado. Tobias, o nosso Caronte... Velho como o tempo e silencioso como a lua.
CECÍLIA, POR TOBIAS
Cecília, era o seu nome. Ela chegou em La Duiva ainda usando meias grossas de menina e os cabelos atados numa trança. Cresceu rápido e virou uma mulher bonita. Eu
não me surpreendi quando meu contaram que Ivan, o filho de don Evandro, estava apaixonado por ela, a empregada da casa. Não porque os Godoy vivessem naquela ilha,
meio retirados do mundo, mas porque a beleza da moça era de chamar a atenção mesmo em cidade grande. Imagina os dois lá, tão jovens e todo aquele sangue correndo
nas veias... Foi dito e feito. Logo, estavam juntos, e o velho enterrado sob sete palmos de terra. Mas ele teria gostado de ver os filhos que aqueles dois fizeram,
teria mesmo! Encheram La Duiva de risos e alegria. Claro, teve a menina doente, mas até nisso dava gosto de ver a Cecília: nas fainas com a filha. Que boa mãe que
aquela rapariga saiu!
Depois os filhos cresceram, chegou aquele estrangeiro, o professor que falava enrolado, e as coisas mudaram por lá. Um a um, os filhos foram deixando a grande casa
no alto do morro, e Ivan morreu tão de repente quanto o pai. Cecília ficou lá. Ainda era muito bonita, dava pena aquela solidão... Sempre com o seu tricô, eu ia
e vinha todas as semanas, e ela lá, no ancoradouro, com uma fome de verdes e azuis, de amarelo-canário e violeta. Vivia de tecer — cada ponto, uma memória costurada,
materializada. Eu insistia com ela que saísse, que passeasse na vila, uma prosa com os velhos conhecidos, essas coisas que alargam a alma da gente. Mas ela? Nunca.
Parecia uma âncora enfiada na terra, segurando La Duiva para que até mesmo a ilha não inventasse de tomar outro rumo.
Na vila, começaram a falar. Uns diziam que estava ficando louca, matusquela; outros, que tinha um amante, que andava pela praia à noite esperando seu homem sob o
luar. As gentes sempre inventando... Veneno puro! Eu negava: "Pobre Cecília, fica lá sozinha com suas agulhas e o farol."
Eu podia provar, podia mesmo. Mas deixei pra lá. Enquanto falavam dela, Cecília parecia mais viva, mais real. Porque mesmo pessoalmente ela estava se apagando, igual
a uma pintura sob a chuva. Borrava-se, evaporava. Comecei a achar que não duraria muito. Tocava o barco para La Duiva com o coração pesado, aquele medo de não encontrá-la
no ancoradouro, de ter de subir pelo caminho entre as sarças até a varanda, e adentrar a casa, pisar as lajotas que o velho don Evandro mandou vir de Oedivetnom,
cruzar a sala ampla com seus móveis antigos e entrar naquele quarto nunca visto, apenas imaginado. Já carreguei muito morto nesta vida, neste barco aqui — mas Cecília...
Eu não queria, não queria mesmo. Preferia aposentar meu barco e passar o resto da vida no café lá da praça, jogando cartas com os outros velhos. Mas, como é mesmo
que se diz? Em qualquer poça d'água Deus pode fazer um peixe.
Então, um dia, quando Cecília já estava desbotada feito memória de infância, Deus estalou os dedos para ela. Eu estava lá, eu vi. Sou testemunha, e o mar também.
TRECHO DE
PARTE UM
O farol andava louco desde que Ivan morrera. Outrora emitia a sua luz a cada dois segundos, essa era a sua identidade. Um lampejo certeiro e brevíssimo a cada dois
segundos e então os marinheiros sabiam exatamente em que ponto da costa se encontravam, os barcos manobravam para longe das traiçoeiras rochas do litoral próximo
a Oedivetnom e seguiam viagem até o seu destino final.
Mas isso fora antes. Cecília achava que o farol sentia falta de Ivan; sentia-o como uma pessoa, sentia-o com a mesma agudeza que ela quando a noite caía e vagava
pela casa, trilhando os velhos e amplos cômodos vazios, sem que nem mesmo um único eco do passado pudesse vencer a barreira do tempo, atravessando o espaço para
lhe fazer alguma companhia.
O farol pusera-se triste, meio demente de saudades. Afundava barcos por capricho, enlouquecendo nas noites de tormenta, assim como Cecília quase enlouquecia na sua
cama, ouvindo os gemidos do vento e a reclamação contínua das ondas lá na praia como se fossem os seus filhos chorando quando eram crianças (e isso fazia muito tempo).
A dor do farol era também a dor de Cecília. Ela sentia falta de Ivan como se lhe faltasse um braço ou a palavra certa para completar uma frase, deixava cair as coisas
de repente ou calava-se no meio de um raciocínio.
Então era possível dizer que Cecília entendia o farol. Que ela aceitava que o farol, a despeito de ser coisa, tivesse as suas particularidades e até um gênio, e
com ele uma saudade – a saudade de Ivan. Porque aquele velho e robusto farol tinha sido como um filho para Ivan. O farol era uma espécie de âncora para a família
Godoy: eles tinham atravessado o mundo num navio – tinham atravessado o mundo várias vezes em vários navios –, mas fixaram-se ali naquela praia pequena e rochosa,
numa curva do continente, e ali procriaram e labutaram durante décadas, tendo construído a casa que ganhara o mesmo nome da ilha, La Duiva, muito antes que Ivan
viesse a dar nesta vida. Quando ele nasceu, quando abriu os olhos para o mundo, os olhos virgens e a alma ainda sem entendimento nem capacidade de juízo, a primeira
coisa que viu – isso dizia Ivan – foi o majestoso farol.
Ivan amara mais o farol do que amara Tiberius, amara-o mais do que amara Julieta, e Ivan nunca se decepcionara com o farol como se havia decepcionado com Orfeu ou
com Lucas.
Apesar de compreender o sofrimento do farol, Cecília achava que era necessário dar-lhe um basta. Havia coisas demais em jogo, e um farol, mesmo ferido de morte,
ou cumpre o seu destino de farol ou se apaga. De fato, tal loucura tinha que acabar. Cecília não queria mais despertar com restos de um naufrágio coalhando a brancura
da areia, com os gritos dos marinheiros, no escuro da noite, salvando sua preciosa carga com aquela coragem cega que ela conhecia tão bem, típica dos homens do mar.
Não... Os anos de naufrágios e salvamentos, de madrugadas insones, de vozes confabulando planos à beira do fogão a lenha, de homens molhados, exaustos e famintos
vagando pela sua cozinha, bem, tudo isso tinha se acabado. Tudo isso tinha se acabado junto com o próprio Ivan, e o pouco que Cecília lograra sustentar, enquanto
Tiberius ainda estava ao seu lado, até esse pouco hoje era demais, era absolutamente demais para ela.
Então, um dia Cecília despertou decidida. O sol brilhava lá fora no jardim, evocando todos os tons de verde e de azul e de vermelho. Jasmins do céu e rosas e as
flores na laranjeira, tudo estava vivo e parecia luzir. Impulsionada por toda aquela luz, Cecília sentou-se à mesa e, com bloco e caneta, escreveu à Capitania dos
Portos, devolvendo-lhes a administração do problemático farol que estivera aos cuidados da família por gerações. Teve que escrever a carta duas vezes, porque as
lágrimas molharam o papel até que ele se tornasse ininteligível, mas ela resistiu à dor daquela amputação, pois já comprovara que um farol enlouquecido era carga
demais. Ela não trazia no sangue aquela sina – filha que era de um quase desconhecido que se deitara com a mãe. Ademais, estava sozinha ali: tinha posto no mundo
três filhos homens, e todos os três tinham partido por um motivo ou outro.
O farol precisava de alguém à sua altura, um homem forte e jovem que pudesse domar-lhe o selvagem coração de luz, o ventre de concreto, as vísceras brancas e vermelhas.
Cecília seguiria vivendo na casa no alto do penhasco, a casa que fora erguida pelo bisavô de Ivan, e, lá do alto, esperaria a sua última madrugada, avançando pelos
anos de solidão que se estendiam à sua frente ancorada nas suas agulhas, tricotando em vermelhos e azuis, em amarelo-ouro e verde-floresta toda a história de uma
gente que tinha nascido das suas próprias entranhas. Era esse o seu plano, e nem o farol haveria de demovê-la disso. Se o farol teimasse, se apagasse a sua luz no
meio de uma tormenta, se cambiasse os seus clarões, jogando às rochas os barcos inocentes, então haveria de novo um homem para cuidar das coisas, para juntar os
pedaços, amarrar e encaminhar a carga salva, acionar a autoridade marítima competente e informar se havia mortos, quantos feridos, quem precisava de socorro, acionar
o seguro e chamar os funcionários em Oedivetnom para listar os estragos e assinar os formulários pendentes.
Quanto a Cecília, cuidaria das suas lãs e das suas recordações. Também não descartava que, um dia, Tiberius voltasse. Ainda havia alguma coisa pulsando entre eles.
De qualquer modo, enquanto ela não desse o último ponto, haveria tempo de estar com o filho. Trezentos e sessenta e cinco degraus para cobrir com o seu tapete de
tricô, da porta até o topo, lá no alto, e quando chegasse lá em cima com as suas agulhas, seu tempo estaria findo. Era um plano quase literário, pensava, digno de
Flora.
É claro que o novo administrador teria que conceder na sua entrada, ajudando-a a estender o longuíssimo tapete das suas memórias até o luminoso coração do farol.
Mas Cecília tencionava ficar amiga do novo administrador – não tinha se esquecido de pedir ao capitão do porto que lhe mandasse um bom homem, um bom vizinho. Um
faroleiro de bom coração, era só isso que Cecília pedia. Um faroleiro que aceitasse o seu tapete tecido ao longo dos meses, dos anos. E então, quando o último dos
degraus ganhasse a última carreira... bastaria apenas um instante. Um descuido do faroleiro e ela se jogaria no mar. Lá do alto, como um pássaro. Um último sopro
do vento salgado no seu rosto... Seria uma boa morte, Cecília achava que sim.
Viver mais para quê? Agora já não passava de um peão do tempo. A memória girando, girando como uma agulha tecendo a sua lã. A memória estava em todos os cantos daquela
vasta casa, brotava das gavetas, pulava de dentro dos armários, dormia envolta nas colchas, debruçava-se das janelas como uma criança travessa. Porque quando Cecília
tricotava, tec, tec, tec, as agulhas dançando a sua dança – quando Cecília tricotava, ela só fazia lembrar e lembrar e lembrar. Tudo voltava outra vez, erguendo-se
do nada ao seu redor, adquirindo cor e som e cheiro.
Tec, tec, tec... Ivan ao seu lado na cama. O calor do peito de Ivan. Ela andando na praia com Lucas no colo. Azul para tricotá-los juntos à beira-mar. Julieta na
sua cadeira olhando a tormenta. Tec, tec, tec. Mais um degrau... E Orfeu vagando pelo ancoradouro com o seu bloco de desenho. Os amores de Orfeu, vermelhos. E Eva
e Flora, que choravam juntas, e dormiam juntas de mãos dadas, e depois se separaram para sempre como uma única linha partida ao meio. Tec, tec, tec, tec. Tiberius
no seu colo, os loiros cabelos cacheados. Amarelo para o seu adorado Tiberius. E verde para Ivan. E para ela? Que cor para mim?, perguntou-se Cecília. O branco.
A sobreposição de todas as cores. Tec, tec, tec, tec.
O sol entrou pela janela da cozinha, deixando um rastro de luz no chão. Cecília levantou a cabeça, sequer olhou o relógio na parede. Sabia que já era tarde, a manhã
ia pelo meio. Selou a carta com cuidado. Quando o barqueiro chegasse com os mantimentos da semana, entregar-lhe-ia o envelope. Ainda naquela mesma tarde, a carta
estaria sobre a mesa do capitão. Ele logo mandaria um bom homem, um homem de pulso, alguém para acalentar e controlar a alma daquele pobre farol ensandecido.
Passava das dez e um verdilhão cantava lá fora, tentando atrair a sua fêmea. Cecília olhou a paisagem da janela. As rosas que vibravam sob o sol matinal. O verdilhão
estava certo, era um bom lugar para romance. Uma manhã de primavera cheia de sol, e toda aquela luz incendiando o jardim, esmeraldando o mar, avermelhando ainda
mais as rosas vermelhas. Ela já estava atrasada, o barqueiro devia estar ancorando.
Cecília abriu a porta da cozinha e saiu para o quintal. Ao deixar a casa, o sol a cegou por um momento. Tinha um rosto bonito e já meio apagado pelos anos. Ela cobriu
os olhos com a mão em concha e seguiu por entre os canteiros estufados de flores no caminho que serpenteava até a praia. Descia rapidamente, seu corpo seco e esguio
acostumado a cada pedra. A cada degrau cavado na encosta, os pés pisavam o chão com segurança.
O barqueiro descarregava o último pacote quando Cecília chegou ao ancoradouro. Trocaram um breve sorriso. Havia quantos anos que se conheciam? Ela ainda era uma
menina, e ele tinha os cabelos negros e bastos. O tempo tinha passado por eles, de fato.
O barqueiro, que se chamava Tobias, indicou os pacotes empilhados na areia a uma distância segura do mar.
“Já vou subir isso pra senhora”, disse ele, tirando o chapéu.
“Deixe”, respondeu Cecília com um sorriso. “Eu mesma faço isso, Tobias. Tenho tempo de sobra pra subir esses pacotes, todo o tempo do mundo.”
O barqueiro olhou-a com preocupação. Era um povoado pequeno e, excetuando-se os turistas que vinham em levas no verão, todos se conheciam. Tinham orgulho daquela
intimidade que comparavam com a vida agitada de Oedivetnom.
“Não quer ir até a cidade dar um passeio?”, perguntou Tobias gentilmente. “Voltamos antes de a maré subir. Comer um bolo gostoso na confeitaria, o que acha?”
Cecília estendeu-lhe o braço. Tinha uma carta na mão firme e um sorriso complacente no rosto.
“Eu não vou à cidade, Tobias. Mas queria que você levasse esta carta para mim. Para a Capitania dos Portos.”
O barqueiro pegou o envelope e guardou-o com cuidado no bolso da camisa listrada.
“O velho farol louco de novo?”
Ela aquiesceu.
“Precisa de um homem por perto antes que cheguem as tormentas de inverno.”
O barqueiro correu os olhos pela praia como se buscasse a prova das estrepolias do farol. Mas estava tudo limpo e calmo por ali. Seus olhos subiram pelo morro, contornando
as pedras cinzentas e pontiagudas, os tufos de capim, as sarças e os promontórios de areia, até pousarem lá em cima, na casa branca e azul debruçada sobre a praia,
em cujo jardim as flores borbulhavam em esfuziante euforia.
Tobias tornou a fitá-la.
“A senhora vai partir?”
“Eu?” Cecília riu. “Não tenho para onde ir, Tobias. Eu fico aqui. Ainda tenho trabalho a fazer. Muito verde e muito azul, sépia e amarelo... Você vai ter que trazer
comida para mim ainda por um bom tempo.”
“A senhora está mesmo precisando”, ele disse com um ar sério, fitando-lhe a cintura fina.
Cecília tirou do bolso o dinheiro já contado anteriormente e entregou-o ao barqueiro. Eles trocaram um olhar de adeus.
“A carta eu entrego ainda hoje”, garantiu Tobias.
Cecília ficou na praia vendo o barco partir, cortando as ondas mansas. Nenhum vento soprava, o que era raro nas primaveras daquela costa. Apesar disso, o ar estava
salgado e fresco. Ela acenou uma vez para o barco que se afastava, embora Tobias estivesse ocupado com alguma coisa e não notasse a mão branca bem erguida acima
da cabeça da mulher parada na areia. Ela acenou porque sentia falta de acenos. Apenas as suas próprias mãos haviam sobrado por ali.
“Adeus”, ela falou, experimentando aquela palavra já meio esquecida.
Adeus, adeus, adeus.
E então lá estava Cecília de novo, tudo de volta como antes, o tempo mordendo o próprio rabo como um cachorro maluco, e a sua boca de trinta anos atrás, cheia e
rubra outra vez, chamando por Ivan. Não um adeus, mas um sim. Aqueles tinham sido tempos de sins. E os acenos eram sempre acenos de chegada.
Leticia Wierzchowski
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