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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SALAMMBÔ / Gustave Flaubert
SALAMMBÔ / Gustave Flaubert

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

- Barca, Cartago precisa que tomes o comando geral das forças púnicas contra os mercenários.

- Recuso! - respondeu Amílcar.

- Damos-te autoridade plena - gritaram os chefes dos sissitas.

- Não!

- Sem qualquer reserva, sem divisões, todo o dinheiro que quiseres, todos os cativos, todos os despojos, cinquenta zerets de terra por cada cadáver do inimigo.

- Não! Não! Porque é impossível vencê-los convosco!

- Tens medo?

- Porque sois cobardes, avarentos, ingratos, pusilânimes e loucos!

 

 

 

 

               O FESTIM.

ESTAVA-SE em Megara, nos arredores de Cartago, nos jardins de Amílcar.

Os soldados que comandara na Sicília participavam num grande festim para celebrar o aniversário da batalha de Eryx, e, como o chefe estava ausente e eram muitos, comiam e bebiam com toda a liberdade.

Os chefes, com coturnos de bronze, estavam no caminho do meio, debaixo de um toldo púrpura de franjas douradas, que se estendia das paredes das cavalariças até ao primeiro terraço do palácio; os soldados tinham-se espalhado por entre as árvores, no meio das quais se distinguiam vários edifícios de telhado plano, lagares, celeiros, arrecadações, padarias e arsenais, com um pátio para elefantes, fossas para os animais ferozes, uma prisão para os escravos.

As cozinhas estavam cercadas por figueiras; um bosque de sicômoros prolongava-se até ao maciço de verdura, onde as romãs sobressaíam entre os tufos brancos dos algodoeiros; videiras, carregadas de cachos, subiam pelos ramos dos pinheiros; sob os plátanos estendia-se um roseiral; da relva surgiam, aqui e ali, lírios que balançavam; uma areia negra, misturada com pó do coral, cobria os caminhos; e, ao meio, a avenida dos ciprestes era, de uma extremidade a outra, como uma dupla colunata de obeliscos verdes.

O palácio, de mármore numídico raiado de amarelo, tinha, ao fundo, assentes sobre pedras enormes de cantaria, quatro andares em terraços. A grande escadaria de madeira de ébano, vinda da proa de uma galera vencida, tinha nos ângulos de cada degrau, as portas vermelhas marcadas com uma cruz negra, as grades de bronze que o protegiam dos escorpiões; e as rótulas de barras douradas que fechavam as suas aberturas na parte superior, lembravam aos soldados, na sua opulência inacessível, tão solene como impenetrável o rosto de Amílcar.

O Conselho tinha escolhido a sua casa para realizar o festim; os convalescentes que estavam instalados no templo de Eschmoun, apoiados nas muletas, tinham partido ao alvorecer. Chegavam continuamente. De todos os caminhos, desembocavam incessantemente como correntes que se precipitam para um lago. Por entre as árvores corriam os escravos da cozinha, espavoridos e quase nus; as gazelas saltavam na relva balindo; era a hora do pôr-do-sol e o perfume dos limoeiros tornava ainda mais pesada a exalação de toda esta gente suada.

Estavam ali homens de todas as nações: liguros, lusitanos, baleares, negros e fugitivos de Roma. Ao lado do pesado dialecto dório, soavam as sílabas célticas, fortes como carros de batalha, e as terminações jónicas chocavam-se com as consoantes do deserto, ásperas como gritos de chacal. Os gregos reconheciam-se pela sua figura magra, os egípcios pelos ombros altos, os cantábricos pelas barrigas das pernas muito grandes. Os cários baloiçavam orgulhosamente as penas do capacete; os archeiros da Capadócia tinham pintado flores enormes no corpo, e alguns lídios, que envergavam vestidos de mulher, jantavam de pantufas e brincos nas orelhas. Outros, que por vaidade se tinham pintado de vermelho, pareciam estátuas de coral.

Estavam reclinados em coxins, comiam acocorados em volta de grandes bandejas, ou melhor, deitados de barriga para baixo, tiravam bocados de carne, e comiam apoiados nos cotovelos, na pose pacífica dos leões quando fazem em pedaços as suas presas. Os que tinham chegado em último lugar, de pé, apoiados às árvores, olhavam para as mesas baixas, meias cobertas pelos panos escarlates, e aguardavam a sua vez.

Como as cozinhas de Amílcar não eram suficientes, o Conselho tinha-lhe mandado escravos, loiça, camas; e no meio do jardim, como num campo de batalha, quando se queimam os mortos, havia uma fogueira onde se assavam os bois. Pães polvilhados de anis alternavam com grandes queijos mais pesados do que discos, e cântaros cheios de vinho, e jarros cheios de água, ao pé de vasos de filigrana de ouro onde tinham sido colocadas flores. A alegria de poderem, finalmente, comer à vontade dilatava os olhos de todos; aqui e ali as canções começavam.

Primeiro serviram-lhes aves com molho verde, em pratos de argila vermelha com desenhos a preto, a seguir toda a espécie de mariscos que se encontram nas costas púnicas, papas de trigo, de fava e de cevada, e caracóis com cominhos, em pratos âmbar-amarelo.

A seguir as mesas ficaram cobertas de carnes: antílopes com os chifres, pavões com penas, carneiros inteiros cozidos em vinho doce, coxas de camela e de búfalo, ouriços com garum, cigarras fritas e marmotas de conserva. Nas gamelas de madeira de Tam-rapani boiavam, no meio do açafrão, grandes bocados de gordura. Tudo cheirava a salmoura, a túberas e a assa fétida. Pirâmides de fruta desabavam sobre bolos de mel, e não foram esquecidos esses cães pequenos de ventre grande e pêlo rosado que eram engordorados com borras de azeite, iguaria cartaginesa abominada pelos outros povos. A surpresa de novos alimentos excitava a cupidez dos estômagos. Os gauleses de cabelos compridos presos no alto da cabeça pegavam em melancias e em limões que comiam com a casca. Os negros que nunca tinham visto lagostas cortavam o

rosto com as pontas vermelhas. Os gregos, barbeados, mais brancos do que o mármore, deitavam para trás de si os restos dos pratos, enquanto os pastores do Brútio, vestidos com peles de lobos, devoravam silenciosamente, com a cara próxima do seu bocado.

A noite caía. Tiraram o toldo que cobria a avenida de ciprestes, e trouxeram archotes.

As luzes vacilantes do petróleo que ardia nos vasos de pórfiro assustaram os macacos consagrados à Lua, que estavam em cima dos cedros. Começaram aos gritos, o que encheu de alegria os soldados.

Chamas alongadas oscilaram sobre as couraças de bronze. Das travessas incrustadas de pedras preciosas saíam toda a espécie de cintilações. As grandes taças, com bordas de espelhos convexos, multiplicavam a imagem aumentada das coisas; os soldados comprimiam-se em volta, olhavam espantados e faziam caretas para se rirem. Deitavam-se por cima das mesas, dos escabelos de marfim e das espátulas de ouro. Bebiam com grandes golos os vinhos gregos guardados em odres, os vinhos da Campânia que vinham em ânforas, os vinhos dos Cantábricos que estavam em tonéis e os vinhos de jujubeia, de cinamono e de lótus. Havia no chão poças em que se escorregava. O fumo das carnes assadas subia por entre as folhas juntamente com o vapor da respiração. Ouvia-se ao mesmo tempo o mastigar, o barulho das palavras, as canções, as pancadas, o cair dos vasos da Campânia que se partiam em mil bocados, ou o som claro de uma travessa grande de prata. À medida que a embriaguez aumentava, lembravam-se mais da injustiça de Cartago.

A República, esgotada pela guerra, deixara juntar na cidade todos os bandos que lá apareciam. Gíscon, o seu general, tinha tido a prudência de os fazer regressar, uns após os outros, para facilitar o pagamento do soldo, e o Conselho chegara a acreditar que eles acabariam por aceitar uma diminuição. Mas agora não lhes queriam pagar. Esta dívida confundia-se no espírito do povo com os três mil e duzentos talentos euboicos exigidos por Lutácio; e eram, como Roma, um inimigo de Cartago. Os mercenários compreendiam-no; a sua indignação explodia também em ameaças e excessos. Tinham pedido para se reunirem a fim de celebrarem uma das suas vitórias, e o partido da paz cedera, vingando-se de Amílcar que tanto tinha apoiado a guerra. Esta terminara, apesar de todos os seus esforços em contrário, e, sem fé em Cartago, tinha entregue a Gíscon o comando dos mercenários. Escolher o seu palácio para os receber, era deitar sobre ele parte do ódio que lhe tinham. Além disso, a despesa devia ser enorme; teria de a suportar quase toda.

Orgulhosos por terem obrigado a República a ceder, os mercenários estavam convencidos de que iam finalmente regressar a suas casas, com o soldo do seu sangue no capuz do capote. Contudo as suas canseiras, vistas através dos vapores da embriaguez, pareciam-lhes prodigiosas e muito mal recompensadas. Mostravam uns aos outros os seus ferimentos, falavam dos seus combates, das suas viagens e das caçadas nas suas terras. Imitavam os gritos dos animais ferozes, os seus saltos. Depois vieram as apostas imundas; metiam a cabeça nas ânforas e bebiam sem parar como dromedários sedentos. Um lusitano, de estatura gigantesca, com um homem na extremidade de cada um dos braços, passava por entre as mesas deitando fogo pelas narinas. Lacedemónios, que não tinham tirado as couraças, saltavam com passos pesados. Alguns caminhavam imitando as mulheres e fazendo gestos obscenos; outros despiam-se para combater à maneira dos gladiadores; e uma companhia de gregos dançava em volta de um vaso adornado com ninfas, enquanto um negro batia com um osso de boi num escudo de bronze.

De súbito, ouviram um canto plangente, um canto forte e suave, que descia e subia nos ares como o bater das asas de uma árvore ferida.

Era a voz dos escravos no ergástulo. Os soldados, para os libertarem, levantaram-se de um salto e desapareceram.

Voltaram, arrastando por entre gritos, pela poeira, vinte homens que se distinguiam pela palidez do rosto. Um pequeno boné de forma cónica, de feltro preto, cobria as cabeças rapadas; traziam todos sandálias de madeira e o barulho das correntes de metal lembrava carros em marcha.

Chegaram à avenida dos ciprestes, onde se dispersaram por entre a multidão. Um deles mantinha-se afastado, de pé. Pelos rasgões da túnica viam-se os ombros raiados de longas cutiladas. Baixando o queixo, olhava em volta com desconfiança e cerrava um pouco as pálpebras por causa da luz dos archotes. Quando viu que nenhum destes homens armados pretendia nada "dele, deixou escapar um grande suspiro; balbuciava, sorria sob as lágrimas claras que lhe corriam pelo rosto; depois, pegou pelas asas num cântaro cheio, levantou-o direito no ar a todo o comprimento dos braços de onde pendiam cadeias e, olhando para o céu, enquanto segurava o vaso, disse:

- Salve primeiro a ti, Baal-Eschmoun libertador, a quem os povos da minha terra chamam Esculápio! e a vós, Génios das fontes, da luz e dos bosques! e a vós, Deuses escondidos sob as montanhas e nas cavernas da terra! e a vós, homens fortes de armaduras reluzentes, que me libertaram!

Baixou o vaso e contou a sua história. Chamava-se Spendius. Os cartagineses tinham-no feito prisioneiro na batalha das Eginosas; e em grego, liguro e púnico, agradeceu uma vez mais aos mercenários; beijou-lhes as mãos, por fim, felicitou-os pelo banquete mostrando-se muito admirado por não ver as taças da Legião sagrada. Estes vasos, com uma videira em esmeraldas sobre cada uma das seis faces em ouro, pertenciam a uma milícia exclusivamente composta por jovens patrícios, os mais altos de entre eles. Era um privilégio, quase uma honra sacerdotal; também nenhum dos tesouros da República era mais invejado pelos mercenários. Detestavam a Legião por causa disto e havia até quem arriscasse a vida pelo inconcebível prazer de beber por elas.

Decidiram então mandar buscar as taças. Estavam à guarda dos sissitas, companhias de comerciantes que comiam em comum. Os escravos voltaram. Àquela hora todos os sissitas estavam a dormir.

- Acordem-nos! - replicaram os mercenários.

Depois de uma segunda tentativa, explicaram-lhes que estavam no templo.

- Abram-no! - responderam.

E quando os escravos, trémulos, declararam que estavam em poder do general Giscon, clamaram:

- Ele que as traga!

Giscon apareceu, daí a pouco, no fundo do jardim com uma escolta da Legião sagrada. O seu amplo capote negro, seguro na cabeça com uma mitra de ouro ornada de pedras preciosas, e que caía toda à volta até aos cascos do cavalo, confundia-se, ao longe, com a cor da noite. Só se via a sua barba branca, o cintilar do chapéu e a tripla gola de grandes placas azuis que lhe cobria o peito.

Os soldados, quando ele chegou, saudaram-no ruidosamente, gritando:

- As taças! As taças!

Começou por declarar que, se se tivesse em conta a sua coragem, eram dignos delas. A multidão deu berros de alegria, aplaudindo.

Sabia-o bem, ele que os tinha comandado e que tinha voltado com a última coorte na última galera!

- É verdade! É verdade! - diziam.

Todavia - continuou Giscon - a República tinha respeitado as suas divisões por povos, os seus costumes, os seus cultos; eram livres em Cartago! Quanto aos vasos da Legião sagrada, são propriedade particular. De súbito, perto de Spendius, um gaulês lançou-se por cima das mesas e correu direito a Giscon, que ameaçava gesticulando com duas espadas desembainhadas.

O general, sem se interromper, bateu-lhe na cabeça com um pesado bastão de marfim; o bárbaro caiu. Os gauleses berraram, e o seu furor, comunicando-se aos outros, era uma ameaça para os legionários! Giscon encolheu os ombros; a sua coragem seria inútil contra estas bestas brutas, exasperadas. Mais valia vingar-se mais tarde em qualquer litígio; fez sinal aos soldados e afastou-se lentamente. Depois, à porta, voltando-se para os mercenários advertiu-os de que se arrependeriam.

O festim recomeçou. Mas Gíscon podia voltar, e, cercando a extremidade que liga com as últimas muralhas, esmagá-los contra os muros. Sentiram-se sós apesar de serem muitos; e a grande cidade que dormia a seus pés, na sombra, meteu-lhes medo, com os seus labirintos de escadas, as casas altas e negras e os seus deuses vagos, ainda mais ferozes do que o seu povo. Ao longe, no porto, viam-se as lanternas dos barcos, e havia luzes no templo de Khamon. Lembraram-se de Amílcar. Onde é que ele estava? Porque é que os tinha abandonado mal a paz fora concluída? As suas dissenções com o Conselho não eram, sem dúvida, senão um jogo para os perder. O seu ódio insaciável caía sobre eles; e maldiziam-no, exasperando-se uns aos outros pela sua própria cólera. Neste momento formava-se um ajuntamento sob os plátanos. Era para ver um negro que se rebolava pelo chão, batia com os membros no solo, os olhos fixos, o pescoço torcido, espuma nos lábios. Houve quem dissesse que ele estava envenenado. Todos se sentiram envenenados. Lançaram-se sobre os escravos; uma vertigem de destruição assolou o exército embriagado. Atacaram ao acaso à sua volta, partiram, mataram; alguns deitaram archotes para as folhas; outros, apoiando-se na balaustrada dos leões, massacraram-nos com golpes de flechas; os mais destemidos correram para os elefantes; queriam cortar-lhes a tromba e comer o marfim.

Entretanto os besteiros baleares que, para pilharem comodamente, tinham contornado o palácio, foram obrigados a parar por uma alta barreira feita de junco das índias. Partiram as correias da fechadura com os punhos e encontraram-se na fachada que dava sobre Cartago, num outro jardim cheio de vegetação tratada. Linhas de flores brancas, colocadas umas a seguir às outras, descreviam na terra azulada longas parábolas, como linhas de estrelas. As matas, de trevas profundas, exalavam cheiros quentes, melíficos.

Havia troncos de árvores pintados de cinabre, que pareciam colunas sangrentas. No meio, doze pedestais de cobre tendo, cada um, em cima, uma grande bola de vidro verde; raios encarniçados enchiam confusamente estes globos ocos como pupilas enormes que palpitassem ainda. Os soldados iluminavam-se com archotes, tropeçando continuamente no chão muito trabalhado.

Depararam com um pequeno lago dividido em várias bacias por muros de pedra azul. A água era tão límpida que as luzes se reflectiam até ao fundo, num leito de pedras brancas e de poeira dourada. A água agitou-se e palhetas luminosas deslizaram, e peixes grandes, que traziam pedras preciosas na boca, apareceram à superfície.

Os soldados, rindo-se muito, passaram-lhes os dedos pelas guelras e trouxeram-nos para as mesas.

Eram os peixes da família Barca. Descendiam todos desses gadidos primordiais que tinham partido o ovo místico onde se escondia a deusa. A ideia de cometer um sacrilégio avivou a gula dos mercenários; fizeram fogo debaixo dos vasos de bronze e divertiram-se a ver aqueles belos peixes a lutarem na água a ferver.

Os soldados, em magote, empurravam-se. Já não tinham medo. Recomeçaram a beber. Os perfumes que lhes escorriam da fronte, em grandes gotas, molhavam-lhes as túnicas de pano. Apoiando-se com as mãos nas mesas que lhes pareciam oscilar como navios, perscrutavam o espaço em volta com grandes olhos ébrios, para devorarem com a vista aquilo a que não podiam chegar. Outros, andavam por entre as travessas sobre as toalhas de púrpura, partiam a pontapé os escabelos de marfim e as garrafas de vidro. As canções misturavam-se com o estertor dos escravos agonizantes entre os vasos quebrados. Pediam vinho, carnes, ouro. Exigiam mulheres. Deliravam numa centena de línguas. Uns pensavam que estavam numa estufa por causa do vapor que os envolvia, outros, ao repararem nas folhas das árvores, imaginavam-se à caça e corriam sobre os companheiros como animais selvagens. O incêndio ia atingindo, de uma extremidade à outra, todas as árvores e as altas massas de verdura, de onde saíam longas espirais brancas, pareciam vulcões a entrar em erupção. O clamor redobrava; os leões feridos rugiam na sombra.

O terraço mais alto do palácio iluminou-se de súbito, a porta do meio abriu-se; e uma mulher, a filha de Amílcar, ela própria, toda vestida de negro, apareceu na soleira. Desceu a primeira escada, que se estendia obliquamente do primeiro andar ao segundo, ao terceiro, e parou no último terraço, no alto da escadaria das galeras. Imóvel, de cabeça baixa, olhava para os soldados.

Atrás dela, de cada lado, duas longas filas de homens pálidos, vestidos com fatos brancos de franjas vermelhas, que caíam a direito sobre os pés. Não tinham barba, não tinham cabelo, não tinham sobrancelhas. Nas mãos onde brilhavam anéis seguravam liras enormes e cantavam todos, com uma voz aguda, um hino à divindade de Cartago. Eram os sacerdotes eunucos do templo de Tânia que Salammbô chamava muitas vezes a sua casa.

Por fim, desceu a escada das galeras. Os sacerdotes seguiram-na. Avançou pela avenida dos ciprestes; caminhava lentamente entre as mesas dos chefes que recuavam ligeiramente para a ver passar. O cabelo, empoado com uma reia violeta e preso à moda das virgens cananeias, fazia-a parecer maior. Fios de pérolas presos às têmporas desciam até aos cantos da boca, rosada como uma romã aberta. Tinha sobre o peito um conjunto de pedras luminosas, que imitavam pela sua combinação as escamas de uma moreia. Os braços, guarnecidos de diamantes, saíam nus da túnica sem mangas, guarnecida de flores vermelhas sobre fundo negro. Tinha presa aos tornozelos uma corrente de ouro para regular a marcha, e o seu grande manto púrpura, feito de um tecido desconhecido, era arrastado, ondulando a cada passo como se uma onda enorme a seguisse.

Os sacerdotes tiravam, de vez em quando, das suas liras acordes quase abafados; e nos intervalos da música, ouvia-se o ruído da cadeia de ouro e o bater regular das sandálias de papiro. Ninguém a conhecia. Só se sabia que ela vivia retirada entregue a práticas piedosas.

Soldados tinham-na visto uma noite, no alto do seu palácio, de joelhos diante das estrelas, no meio de perfumadores acesos. Era a Lua que a fazia parecer tão pálida, mas havia qualquer coisa de divino que a envolvia num vapor subtil. As suas pupilas pareciam olhar para além dos espaços terrestres. Caminhava com a cabeça inclinada e tinha na mão direita uma lira pequenina de ébano. Ouviram-na murmurar.

- Mortos! Todos mortos! Não obedeceram à minha voz, quando, sentada na borda do lago, vos deitava sementes de melancia! O mistério de Tânita estava no fundo dos vossos olhos, mais límpidos que os glóbulos dos rios. - E chamava-os pelos seus nomes, que eram os nomes dos meses. - Siv, Sivan, Tammouz, Eloul, Tischri, Schebar! Ah! tem piedade de mim, deusa.

Os soldados sem compreenderem o que dizia, juntavam-se à volta dela; estavam espantados com os seus adornos. Quedou-se a olhar para eles com uma expressão admirada; depois enterrando a cabeça nos ombros estendeu os braços e repetiu várias vezes:

- Que fizeram! Que fizeram!

«E, todavia, tinham à vossa disposição, pão, carne, azeite, tudo o que havia nos celeiros! Mandei vir bois de Hecatompyle, mandei caçadores ao deserto!

A voz elevou-se e o rosto ruborizou-se. Acrescentou:

- Onde é que estão afinal? Numa cidade conquistada, ou no palácio de um senhor? E de que senhor? o sufete Amílcar, meu pai, servidor de Baal! As vossas armas, vermelhas de sangue dos seus escravos, foi ele que os recusou a Lutácio! Conhecem alguém nas vossas terras que saiba conduzir melhor as batalhas? Reparem! As escadas do nosso palácio estão cheias dos símbolos das nossas vitórias! Continuem! Deitem fogo! Levarei comigo o génio da minha casa, a minha serpente negra que dorme ali nas folhas de lótus! Assobiarei e ela seguir-me-á; e se eu embarcar numa galera, ela irá na esteira do meu navio sobre a espuma das ondas.

As suas narinas estreitas palpitavam. Cravava as unhas nos adornos que tinha ao peito.

Os olhos tornavam-se maiores; prosseguiu :

- Ah! pobre Cartago! Lamentável cidade! Já não tens para te defenderem os homens fortes de outrora, que atravessavam os oceanos para construírem templos nas suas costas. Todos os países trabalhavam à tua volta, e as planícies do mar, sulcadas pelos teus remos, baloiçavam as tuas colheitas.

Começou então a cantar as aventuras de Melkart, deus dos sidónios e pai da sua família.

Falou da subida das montanhas de Ersiphonie, da viagem de Tartessos, e da guerra contra Masisabal para vingar a rainha das serpentes:

- Perseguiu na floresta o monstro cuja cauda ondulava sobre as folhas mortas como um regato de prata; e chegou a um prado onde mulheres, com corpo de dragão, estavam reunidas em volta do fogo, apoiadas na ponta da cauda. A Lua, cor de sangue, resplandecia num círculo pálido, e raios escarlates, como arpões dos pescadores, alongavam-se, recurvando-se até à chama.

Depois Salammbô, sem parar, contou como Melkart, depois de ter vencido Masisabal, colocou na proa do navio a cabeça cortada:

- A cada batimento das vagas, afundava-se na espuma; o sol embalsamou-a; fez-se mais dura do que o ouro; os olhos nunca defxaram de chorar, e as lágrimas caíam continuamente na água.

Cantou tudo isto no velho idioma cananeu que os bárbaros não entendiam. Perguntavam a si próprios o que é que ela lhes poderia estar a dizer com os gestos terríveis com que acompanhava o discurso; e trepados às mesas, às camas, aos ramos dos sicômoros, a boca aberta e a cabeça estendida, procuravam captar estas vagas histórias que passavam diante da sua imaginação, através da obscuridade das teogonias, como fantasmas nas nuvens.

Só, os sacerdotes sem barba compreendiam Salammbô. De mãos encrespadas, sobre as cordas das liras, tremiam, e de tempos a tempos tiravam um acorde lúgubre; porque, mais fracos do que anciãs, tremiam pela emoção mística e pelo medo que sentiam dos homens. Os bárbaros não se importavam de nada; ouviam a virgem cantar.

Nenhum olhava para ela como um jovem chefe númida que estava na mesa dos comandantes, entre os soldados da sua nação. Tinha tantos dardos à cintura que formavam uma bossa sob a capa, atada às têmporas com uma tira de couro. O tecido, que se abria sobre os ombros, envolvia em sombra o rosto, e a única coisa que se via era a chama dos seus olhos. Era por acaso que se encontrava no festim - o pai obrigava-o a viver em casa dos Barca, de acordo com o costume dos reis que mandavam os seus filhos para junto das grandes famílias a fim de prepararem as alianças. Há seis meses que Narr'Havas ali vivia, mas nunca tinha visto Salammbô; e, sentado nos calcanhares, com a barba a tocar a haste dos dardos, olhava para ela, de narinas frementes, como um leopardo escondido nos bambus.

Do outro lado da mesa estava um líbio de estatura colossal, de cabelos negros curtos e frisados. Tinha só o gibão militar, cujos fios de bronze rasgavam a púrpura do leito. Um colar de luas de prata embaraçava-se nos pêlos do peito. Salpicos de sangue manchavam-lhe o rosto, estava apoiado no cotovelo esquerdo; e, com a boca grande aberta, sorria.

Salammbô já não falava em ritmo sagrado. Empregava simultaneamente todos os idiomas bárbaros, delicadeza de mulher para apaziguar a sua cólera. Aos gregos falou em grego; depois voltou-se para os liguros, para os campanianos, para os negros; e todos eles, ao escutarem esta voz, encontravam a doçura da pátria. Arrebatada pelas recordações de Cartago, cantava agora as antigas batalhas contra Roma; aplaudiram. Perante as espadas nuas, o seu espírito exaltou-se; gritava de braços abertos. A lira caiu, calou-se; e, levando as mãos ao coração, ficou uns minutos de olhos fechados saboreando a agitação de todos estes homens.

Mâtho, o líbio, inclinou-se para ela. Involuntariamente aproximou-se dele, e, levada pelo reconhecimento do seu orgulho, deitou-lhe numa taça de ouro uma boa quantidade de vinho para assim se reconciliar com o exército.

- Bebe! - ordenou.

Ele pegou na taça e preparava-se para a levar aos lábios, quando um gaulês, o mesmo que Gíscon tinha ferido, lhe bateu no ombro, dizendo com um ar jovial graças na língua do seu país. Spendius não estava longe; ofereceu-se para as explicar.

- Os deuses te protejam, vais ser rico. Quando é o casamento?

- Que casamento?

- O teu! Porque entre nós - retorquiu o gaulês - quando uma mulher dá de beber a um soldado, está a oferecer-lhe o seu leito.

Ainda não acabara e já Narr'Havas, levantando-se de um pulo, tirava um dardo da cintura e, apoiado no pé direito, na borda da mesa, o lançava a Mâtho.

O dardo assobiou por entre as taças, e, atravessando o braço do líbio, cravou-o na toalha com tanta força, que o cabo ficou a tremer no ar.

Mâtho arrancou-o imediatamente; mas não tinha armas, estava nu; por fim, levantando com os dois braços a pesada mesa, arremessou-a a NarrHavas, no meio de uma multidão que se precipitava entre eles. Os soldados e os númidas estavam tão juntos que não podiam puxar pelas espadas. Mâtho avançava dando grandes cabeçadas. Quando levantou a cabeça, Narr'Havas tinha desaparecido. Procurou-o com os olhos. Salammbô tinha partido também.

Olhou para o palácio e viu, lá em cima, a porta vermelha com a cruz preta que se fechava. Começou a correr.

Viram-no passar por entre as proas das galeras, reaparecer nos três lances de escadas até à porta vermelha contra a qual se atirou. Arquejante, apoiou-se contra a parede para não cair.

Um homem tinha-o seguido, e apesar da escuridão, porque as luzes do festim estavam escondidas pelo ângulo do palácio, reconheceu Spendius.

- Vai-te embora! - ordenou.

O escravo, sem responder, começou a rasgar a túnica com os dentes; depois, ajoelhando-se aos pés de Mâtho, pediu-lhe delicadamente o braço, e apalpou-o na escuridão para descobrir a ferida.

À luz da lua que passava por entre as nuvens, Spendius viu no meio do braço uma chaga aberta. Enrolou em volta o bocado de pano; mas o outro, irritando-se, disse-lhe:

- Deixa-me! Deixa-me!

- Não! - retorquiu o escravo. - Livraste-me do ergástulo. Sou teu! Tu és o meu senhor! Ordena!

Mâtho, apalpando o muro, deu a volta ao terraço.

Ficava à escuta a cada passo, e, pelo intervalo das grades douradas, espreitava para as salas silenciosas. Parou, por fim, com uma expressão desesperada.

- Escuta! - disse-lhe o escravo. - Oh! não me desprezes pela minha fraqueza! Vivi no palácio. Posso, como uma víbora, deslizar entre as paredes. Vem! na Câmara dos Anciães há um lingote de ouro sob cada uma das lajes; um corredor subterrâneo conduz aos seus túmulos.

- Bem! E isso que importa? - replicou Mâtho. Spendius calou-se.

Estavam no último terraço. Uma massa escura e enorme, que lembrava montes de contornos indistintos, vagas de um oceano negro petrificado, estendia-se diante deles.

Contudo uma barra luminosa levantou-se do Oriente.

À esquerda, em baixo, os canais de Megara começavam a raiar com as suas sinuosidades brancas o verde dos jardins. Os telhados cónicos dos templos heptagonais, as escadas, os terraços, as muralhas desenhavam-se, pouco a pouco, na luz pálida da aurora; e, em volta da península cartaginesa, uma cintura de espuma branca oscilava, enquanto o mar cor de esmeralda parecia congelado na frescura da manhã. À medida que o céu rosado se alargava, as casas altas reclinadas nas encostas tornavam-se maiores e cresciam, como um rebanho de cabras pretas descendo a serra.

As ruas desertas alongavam-se; as cisternas cheias pareciam escudos de prata pendurados nos corredores; o farol do promontório de Hermeum começava a enfraquecer. No alto da Acrópole, no bosque dos ciprestes, os cavalos de Eschmoun, pressentindo a luz, puseram os cascos no parapeito de mármore e relincharam voltados para o Sol.

Ele apareceu; Spendius, levantando os braços, deu um grito.

Tudo se agitava num vermelho dilatado, porque o deus, como se se tivesse ferido, lançava a jorros sobre Cartago a chuva de ouro das suas veias. Os beques das galeras brilhavam, o telhado de Khamon parecia todo em chamas, e apercebiam-se luzes no fundo dos templos onde as portas se abriam. Carros grandes chegavam do campo rolando as rodas sobre as lajes das ruas. Dromedários carregados desciam as rampas. Os comerciantes levantavam os anteparos das lojas.

Cegonhas levantaram voo, velas brancas palpitavam. No bosque de Tânita ouvia-se o tamborim das cortesãs sagradas, e, na ponta dos Mappales, os fornos para cozer os ataúdes de argila começavam a fumegar.

Spendius inclinou-se para fora do terraço; os dentes batiam, repetia:

- Ah! sim... sim... senhor! Compreendo porque é que desdenhas agora da pilhagem da casa.

Mâtho foi como que acordado pelo sibilar da sua voz, parecia não ter compreendido; Spendius prosseguiu:

- Ah! que riquezas! E os homens que as possuem não têm nem sequer ferro para as defender!

Então, apontando com a mão direita algumas pessoas que se encontravam ao pé do molhe, na areia, para apanharem palhetas de ouro, disse:

- Olha! A República é como esses miseráveis: curvada à beira dos oceanos, enterra em todas as praias os braços vazios, e o barulho das ondas enche de tal maneira os seus ouvidos que não escutará os passos de um senhor atrás de si!

Levou Mâtho à outra extremidade do terraço, e mostrou-lhe o jardim, onde as espadas dos soldados penduradas nas árvores brilhavam:

- Mas aqui há homens fortes cujo ódio está exasperado! E nada há que os prenda a Cartago: nem família, nem juramento, nem deuses!

Mâtho continuava apoiado à parede; Spendius, aproximando-se, prosseguiu em voz baixa:

- Compreendes-me, soldado? Passear-nos-íamos cobertos de púrpura como sátrapas. Lavar-nos-íamos com perfumes; teria, por minha vez, escravos! Não estás farto de dormir na terra dura, de beber o vinagre dos campos, e de estar sempre a ouvir a trombeta? Vais descansar mais tarde, não é? Quando te tirarem a couraça para lançarem o teu cadáver aos abutres! ou talvez, apoiado a um pau, cego, coxo, doente, possas ir de porta em porta, falar da tua juventude às crianças e aos vendedores de salmoura. Lembras-te de todas as injustiças dos teus chefes, dos acampamentos na neve, das marchas ao sol, das tiranias da disciplina e da eterna ameaça da cruz! Depois de tantas misérias deram-te um colar de honra, como se pendura ao peito dos burros uma enfiada de guizos para os aturdir na marcha, e fazer que não sintam a fadiga. Um homem como tu, mais bravo que Pirro! Contudo, se tu quisesses! Ah! como serias feliz nas grandes salas frescas, ao som das liras, deitado sobre flores, com bobos e com mulheres! Não me digas que a empresa é impossível! Os mercenários não tiveram já Régio e outras praças fortes na Itália? Que te impede? Amílcar está ausente; o povo detesta os ricos; Gíscon não pôde fazer nada com os cobardes que o rodeiam. Mas tu és bravo, tu! Obedecer-te-ão. Comanda-os; Cartago é nossa; vamos!

- Não! - respondeu Mâtho - a maldição de Moloch pesa sobre mim. Senti-o diante dele, e ainda agora vi no templo um carneiro preto que recuava.

Acrescentou, olhando à sua volta:

- Onde é que ela está?

Spendius compreendeu que ele estava entregue a uma preocupação imensa; não ousou dizer mais nada.

As árvores atrás deles fumegavam ainda; dos ramos escurecidos, carcaças dos macacos meio queimadas caíam de vez em quando no meio dos pratos.

Soldados embriagados ressonavam, a boca aberta, ao lado dos cadáveres; e os que não estavam a dormir baixavam a cabeça, ofuscados pelo dia. O chão pisado desaparecia sob as poças vermelhas. Os elefantes baloiçavam entre as estacas das jaulas as trombas ensanguentadas. Nos celeiros abertos viam-se sacos de trigo entornados, e, à porta, uma fila compacta de carros amontoados pelos bárbaros; os pavões empoleirados nos cedros abriam a cauda e lançavam os seus gritos.

A imobilidade de Mâtho espantava Spendius; estava ainda mais pálido do que antes, e, com os olhos fixos, seguia qualquer coisa no horizonte, apoiando as mãos no parapeito do terraço. Spendius, inclinando-se, acabou por descobrir o que se passava. Um ponto dourado voltava ao longe, no meio da poeira, para a estrada de Útica; era a roda de um carro puxado por dois machos; um escravo corria na frente da lança do carro, segurando-os pelo freio. No carro iam, sentadas, duas mulheres. As crinas dos animais estavam levantadas à moda pérsica, com uma rede de pérolas azuis. Spendius reconheceu-as; reteve um grito.

Por trás, uma grande vela flutuava ao vento.

 

                     EM SICCA.

DOIS dias mais tarde, os mercenários saíam de Cartago. Tinham dado uma moeda de ouro a cada um com a condição de irem acampar em Sicca, e tinham-lhes dito com toda a espécie de gentilezas:

- Sois os salvadores de Cartago! Mas os víveres faltarão se aqui ficardes; tornar-se-ia insolvente. Afastai-vos! A República agradecer-vos-á essa condescendência. Vamos imediatamente lançar impostos; o vosso soldo será completado e serão equipadas galeras para vos levarem às vossas terras.

Não sabiam responder a um discurso destes. Estes homens acostumados à guerra, aborreciam-se quando estavam instalados numa cidade; não foi difícil convencê-los, e o povo subiu aos muros para os ver partir.

Desfilaram pela Rua de Khamon e pela Porta de Cirta, todos misturados, os archeiros com os hoplitas, os chefes com os soldados, os lusitanos com os gregos. Marchavam num passo intrépido, batendo com os borzeguins na laje. As armaduras amolgadas pelas catapultas e os rostos escurecidos pela acção do tempo nos campos de batalha.

Gritos roucos saíam das barbas espessas; as cotas de malha rasgadas batiam nos punhos das espadas e, pelos buracos de bronze, viam-se os membros nus, medonhos como máquinas de guerra. As sarrissas, os machados, os chuços, os bonés de feltro e os capacetes de bronze, tudo oscilava ao mesmo tempo, num só movimento. Enchiam a rua até fazer estalar os muros, e esta longa massa de soldados armados estendia-se por entre as casas de seis andares pintadas com betume. Por trás das grades de ferro ou de madeira, mulheres, com a cabeça coberta por um véu, assistiam, em silêncio, à passagem dos bárbaros.

Os terraços, as fortificações, os muros desapareciam sob a multidão dos cartagineses, vestida de fatos pretos; as túnicas dos marinheiros pareciam manchas de sangue entre esta multidão sombria; crianças quase nuas gesticulavam nos capitéis das colunas ou entre os ramos das palmeiras. Anciães tinham-se colocado na plataforma das torres; e não se sabia porque é que, de vez em quando, se via uma figura de barba comprida em atitude sonhadora. De longe, parecia vaga como um fantasma, e imóvel como pedras. Estavam todos oprimidos pela mesma inquietação; temia-se que os bárbaros, ao verem-se tão fortes, tivessem a fantasia de querer ficar. Partiam, contudo, com tanta confiança que os cartagineses se atreveram a juntar-se aos soldados. Faziam-lhes promessas e abraçavam-nos. Deitavam-lhes perfumes, flores e moedas de prata. Davam-lhes amuletos contra as doenças; mas tinham-lhes cuspido três vezes para atrair a morte, ou metido lá dentro pêlos de chacal para os fazer cobardes. Invocavam em voz alta os favores de Melkart e em voz baixa a sua maldição.

Depois vinha a balbúrdia das bagagens, dos animais de carga e de tracção. Os doentes gemiam em cima dos dromedários; outros apoiavam-se, coxeando, ao punho de um pique. Os bêbados levavam odres, glutões bocados de carne, fruta, manteiga em folhas de figueira, água gelada em sacos de tela. Levavam chapéus de sol na mão, papagaios ao ombro. Faziam-se seguir por dogues, gazelas ou panteras. Mulheres de raça líbia, montadas em burros, invectivavam as negras que tinham abandonado, pelos soldados, os bordéis de Malqua; algumas amamentavam crianças presas ao peito por correias de couro. Os machos, que eram espicaçados com as pontas das lanças, tinham o dorso dobrado ao peso dos fardos das tendas; havia uma quantidade de criados e de carregadores de água, pálidos, amarelos por causa das febres e de toda a espécie de vermes, a ralé da plebe cartaginesa, que se ligava aos bárbaros.

Depois de terem passado, as portas fecharam-se atrás deles; o povo não desceu dos muros; o exército estendia-se, daí a pouco, pelo istmo.

Dividia-se em grupos desiguais. Depois as lanças apareceram como caules altos de plantas herbáceas; por fim, tudo se perdeu num rasto de poeira; os soldados que se voltaram para Cartago não viram mais do que as suas longas muralhas, com as ameias vazias recortando-se no céu.

Os bárbaros ouviram um grito enorme. Julgaram que alguns deles, que tivessem ficado na cidade (porque não sabiam o seu número) se estivessem a divertir pilhando o templo. Riram-se muito com esta ideia, mas continuaram o seu caminho.

Sentiam-se felizes por se encontrarem como dantes marchando todos juntos em pleno campo; e os gregos cantavam a velha canção dos mamertinos:

«Com a minha lança e a minha espada, trabalho e colho; sou eu que sou o senhor da casa! O homem desarmado cai a meus pés e chama-me Senhor e Grande Rei.»

Gritavam e saltavam; os mais alegres começaram a contar histórias; o tempo das misérias tinha acabado. Ao chegarem a Tunes, alguns repararam que faltava um grupo de besteiros baleares; não deviam estar longe; não se pensou mais nisso.

Uns instalaram-se em casas, os outros acamparam ao pé dos muros, e os habitantes da cidade vieram conversar com os soldados.

Durante a noite foram vistos fogos que brilhavam no horizonte, ao lado de Cartago; chamas, como archotes gigantes, estendiam-se pelo lago imóvel.

Ninguém, no exército, sabia que festa é que se celebrava.

No dia seguinte, os bárbaros atravessaram um campo coberto de culturas. As propriedades agrícolas dos patrícios sucediam-se pela estrada fora; regatos corriam pelos bosques de palmeiras; os olivais faziam longas linhas verdes; vapores rosados flutuavam sobre as gargantas das colinas; as montanhas azuis apareciam por trás. Soprava um vento quente. Camaleões rastejavam sob as folhas grandes dos cactos. Os bárbaros abrandaram o passo.

Iam em destacamentos isolados, ou iam uns atrás dos outros com grandes intervalos. Comiam uvas à beira das vinhas. Deitavam-se na erva e olhavam com admiração para os grandes chifres dos bois torcidos artificialmente, as ovelhas revestidas de peles para proteger a lã, os regos que se entrecruzavam de maneira a formar losangos, e orelhas de charrua que pareciam âncoras de navios, e romãzeiras que eram regadas com resina. Esta opulência da terra e estas invenções da inteligência excitavam-nos.

À noite estenderam-se sobre as tendas sem as desdobrarem; e, adormecendo com o rosto voltado para as estrelas, lamentavam o festim de Amílcar.

No meio do dia seguinte, pararam à beira de um rio, no meio de tufos de loureiros. Libertaram-se imediatamente das lanças, dos escudos, dos cintos. Lavavam-se gritando, tiravam a água com os capacetes, mas outros bebiam, deitados de barriga para baixo, no meio dos animais de carga, cujas bagagens caíam.

Spendius, sentado num dromedário que tinha roubado no parque de Amílcar, viu ao longe Mâtho, que, com o braço apertado contra o peito, sem nada na cabeça e de rosto baixo, deixava o macho beber olhando para a água a correr. Atravessou a multidão chamando:

- Senhor! Senhor!

Mâtho mal lhe agradeceu as suas bênçãos. Spendius, não reparando nisso, começou a andar atrás dele, e, de vez em quando, voltava os olhos inquietos para Cartago.

Era filho de um mestre de retórica grego e de uma prostituta campesina. Tinha enriquecido primeiro a vender mulheres, depois, arruinado por um naufrágio, tinha feito a guerra contra os romanos com os pastores do Sâmnio. Capturaram-no, fugiu. Voltaram a apanhá-lo, e tinha trabalhado nas estradas, arquejado nas estufas, gritado nos suplícios, passado muitos senhores, conhecido todas as violências. Um dia, desesperado, tinha-se lançado ao mar do alto da trirreme, em que era remador. Marinheiros recolheram-no moribundo e levaram-no para Cartago no esgástulo de Megara. Como os transfugas deviam ser entregues aos romanos, tinha-se aproveitado da desordem para fugir com os soldados.

Durante todo o caminho manteve-se ao pé de Mâtho; levava-lhe os alimentos, ajudava-o a descer, punha-lhe um tapete debaixo da cabeça, à noite. Mâtho acabou por se comover com esta persistência, e, pouco a pouco, foi abrindo os lábios.

Nascera no golfo da Sirte. O pai tinha-o levado em peregrinação ao templo de Ámon. Depois tinha caçado elefantes nas florestas dos Garamantes. Mais tarde, fora contratado para o serviço de Cartago. Tinham-no nomeado tetrarca na tomada de Drépanon. A República devia-lhe quatro cavalos, vinte e três medidas de trigo e o soldo de um Inverno. Era temente aos deuses e desejava morrer na sua pátria.

Spendius falou-lhe das suas viagens, dos povos e dos templos que tinha visitado, e conhecia muitas coisas; sabia fazer sandálias, chuços, redes, domesticar animais ferozes e cozer peixes.

Por vezes, interrompendo-se, lançava do fundo da garganta um grito rouco; o macho de Mâtho estugava o passo; os outros apressavam-se para os seguirem, depois Spendius recomeçava, sempre agitado pela sua angústia. Acalmou-se, na tarde do quarto dia.

Seguiam lado a lado, à direita do exército, pela encosta de uma colina; a planície, lá em baixo, perdia-se na neblina da noite.

As colunas de soldados que passavam abaixo deles, faziam ondulações na sombra. De vez em quando passavam pelas zonas mais altas iluminadas pela lua; uma estrela tremeluzia na ponta das lanças, os capacetes tornavam-se por instantes espelhos, tudo desaparecia, e surgiam outros, continuamente. Ao longe, os rebanhos acordados baliam, e qualquer coisa de uma doçura infinita parecia descer sobre a terra.

Spendius, transtornado e com os olhos semicerrados, aspirava com grandes suspiros a frescura do vento; estendia os braços e mexia os dedos para sentir melhor esta carícia que lhe percorria o corpo. As esperanças de vingança, que voltavam, exaltavam-no. Pôs a mão na boca para parar os soluços; e, meio tonto de embriaguez, largou a cabeça do dromedário que avançava com grandes passos regulares. Mâtho estava outra vez entregue à sua tristeza; as pernas pendiam até ao chão, e as ervas, ao roçarem pelos coturnos provocavam um assobio contínuo.

A estrada seguia sem ter fim. Ao chegar ao fim da planície deparava-se sempre com uma colina de forma arredondada; depois descia-se para um vale, e as montanhas que pareciam tocar no horizonte, à medida que se aproximavam delas afastavam-se, como se deslizassem. De vez em quando surgia um rio na verdura das tamargueiras, para se perder quando se contornava as colinas. Por vezes, deparavam com um rochedo enorme, parecido com a proa de um barco ou com o pedestal de qualquer colosso desaparecido.

Encontravam, a intervalos regulares, pequenos templos quadrangulares, para os peregrinos que se dirigiam a Sicca. Eram fechados como túmulos. Os líbios, que os queriam ver abertos, batiam com força à porta. Ninguém respondia.

As culturas passaram a ser mais raras. Entrava-se de repente em faixas de areia, eriçadas de plantas espinhosas. Rebanhos de carneiros pastavam entre as pedras; uma mulher, com uma faixa de lã azul, guardava-os. Fugiu, gritando, mal viu entre os rochedos as pontas das lanças dos soldados.

Marchavam por uma espécie de corredor comprido, ladeado por duas cadeias de montículos avermelhados, quando chegou às suas narinas um cheiro nauseabundo, e julgaram ver no alto de uma alfarrobeira qualquer coisa extraordinária: uma cabeça de leão surgia por cima das folhas.

Correram para lá. Era um leão, com os quatro membros pregados a uma cruz como um criminoso. A juba enorme caía-lhe sobre o peito, e as duas patas anteriores cobertas de pêlos enormes, estavam estendidas como as duas asas de uma ave. As costelas sobressaíam uma a uma sob a pele estendida; os membros posteriores, pegados um ao outro, estavam um pouco subidos e sangue negro, correndo por entre os pêlos, tinha formado estalactites na parte de baixo da cauda, que pendia direita ao longo da cruz. Os soldados divertiam-se; chamavam-lhe cônsul e cidadão de Roma e deitavam-lhe com pedras para os olhos para fazerem voar as moscas.

Cem passos mais adiante encontraram dois outros; depois, de repente, apareceu uma longa fila de cruzes com leões. Alguns estavam mortos há tanto tempo que sobre a madeira não havia mais do que os restos dos esqueletos; outros meio carcomidos abriam a goela numa carantonha horrível; havia enormes; a árvore da cruz vergada ao seu peso; e balançavam ao vento, enquanto bandos de corvos voavam em círculo sem parar. Era assim que se vingavam os cartagineses do campo quando apanhavam um animal selvagem; esperavam com este exemplo aterrorizar os outros. Os bárbaros deixando de rir, mostraram o seu espanto.

«Quem é este povo - pensavam - que se diverte a crucificar os leões?»

Eram, sobretudo, os homens do norte, vagamente inquietos, preocupados, doentes já. Feriam as mãos nos espinhos dos aloés; mosquitos grandes zumbiam-lhes aos ouvidos, e já havia desinterias no exército. Estavam aborrecidos por não verem Sicca. Tinham medo de se perder e de irem ter ao deserto das areias e do terror.

Muitos já não queriam avançar. Outros retomaram o caminho de Cartago.

Por fim, no sétimo dia, depois de terem seguido durante muito tempo pelo sopé da serra, voltaram bruscamente à direita; surgiu então uma linha de muralhas assente sobre rochas brancas e confundindo-se com elas. De súbito apareceu toda a cidade; véus azuis, amarelos e brancos agitavam-se sobre os muros, no vermelho da tarde. Eram as sacerdotisas de Tânita, que vinham receber os homens. Estavam alinhadas ao longo da muralha, tocando tamborins, dedilhando as liras, agitando as castanholas, e os raios de sol, que se escondia lá atrás, nas montanhas da Numídia, passavam entre as cordas das harpas acima das quais se viam os seus braços nus. Os instrumentos calavam-se de vez em quando, todos ao mesmo tempo, e um grito estridente irrompia, precipitado, furioso, contínuo, uma espécie de latido que faziam batendo com a língua nos dois cantos da boca. As outras ficavam apoiadas nos cotovelos, de queixo entre as mãos, e mais imóveis do que esfinges, seguiam com os seus grandes olhos negros o exército que subia.

Apesar de Sicca ser uma cidade sagrada, não podia receber tanta gente; só o templo com as suas dependências ocupava metade. Assim os bárbaros instalaram-se na planície à sua vontade, os que eram disciplinados por grupos regulares, e os outros, por nações ou segundo a sua fantasia.

Os gregos alinharam em filas paralelas as tendas de peles; os iberos dispuseram em círculo os seus pavilhões de pano; os gauleses fizeram barracas com tábuas, os líbios cabanas de pedras secas, e os negros cavaram na areia, com as mãos, buracos para dormirem. Muitos, sem saberem onde é que se haviam de meter, erravam pelo meio das bagagens e, à noite, deitaram-se no chão cobertos com as suas capas rotas.

A planície estendia-se à volta deles, toda limitada por montanhas. Aqui e ali uma palmeira inclinava-se sobre uma colina de areia, pinheiros e castanheiros salpicavam os precipícios. Às vezes uma chuva de trovoada, como um xaile comprido, pendia do céu, Salammbô avançou até à beira do terraço, enquanto o campo, sereno, permanecia envolto numa neblina azul; depois um vento morno levantava remoinhos de poeira; e um regato descia em cascata da parte mais alta de Sicca onde se erguia, com o seu telhado de ouro sobre colunas de bronze, o templo da Vénus cartaginesa, senhora da região. Parecia enchê-la com a sua alma. Por estas convulsões do terreno, estas alterações na temperatura e estes jogos de luzes, manifestava a extravagância da sua força com a beleza do seu sorriso eterno. As serras, no cume, tinham a forma de um crescente; outras pareciam peitos de mulher com os seios entumecidos, e os bárbaros sentiam pesar para lá das suas fadigas uma opressão que estava cheia de delícias.

Spendius, com o dinheiro do dromedário tinha comprado um escravo. Dormia todo o dia diante da tenda de Mâtho. Às vezes acordava, julgando ouvir no seu sonho, o assobio dos negociantes de lãs; passava as mãos pelas cicatrizes das pernas, no sítio onde durante tanto tempo tinha trazido os ferros; depois voltava a adormecer.

Mâtho aceitava a sua companhia; Spendius, com uma espada que lhe caía ao longo da coxa, escoltava-o como um lictor; ou melhor, Mâtho apoiava sem cerimónia o braço no ombro dele, porque Spendius era baixo.

Uma tarde, quando atravessavam juntos as ruas do acampamento, viram homens cobertos com capas brancas; entre eles estava Narr'Havas, o príncipe dos númidas. Mâtho estremeceu.

- A tua espada! - pediu. - Quero matá-lo.

- Ainda não! - retorquiu Spendius obrigando-o a parar. Narr'Havas avançava já para ele.

Baixou os dois polegares em sinal de aliança, rejeitando a cólera que a embriaguez do festim provocara; falou durante muito tempo contra Cartago, mas não disse o que é que o levara para junto dos bárbaros.

Era para os trair a eles, ou à República? - perguntava a si próprio Spendius; e, como esperava aproveitar-se de todas as desordens, sentia-se contente com o procedimento de Narr'Havas, de cujas perfídias futuras suspeitava.

O chefe númida ficou com os mercenários. Parecia querer ligar-se a Mâtho. Mandava-lhe cabras gordas, pó de ouro e penas de avestruz. O líbio, espantado com estas gentilezas, hesitava entre responder e exasperar-se. Mas Spendius acalmava-o e Mâtho deixava-se dirigir pelo escravo, sempre irresoluto e num torpor invencível, como o daqueles que dantes tomavam bebidas de que deviam morrer.

Uma manhã, quando os três partiam para a caça ao leão, Narr'Havas escondeu um punhal na capa. Spendius foi sempre atrás dele e voltaram sem que tivesse mexido no punhal.

De outra vez, Narr'Havas levou-os para mais longe, até aos limites do seu reino. Chegaram a uma garganta estreita; Narr'Havas sorriu, declarando-lhes que não conhecia o caminho; Spendius encontrou-o.

Todavia, a maior parte das vezes Mâtho, melancólico como um augúrio, partia ao nascer do sol para o campo por onde vagueava. Deitava-se na areia, e ficava imóvel até à noite.

Consultou um após outro todos os adivinhos do exército, os que observam a marcha das serpentes, os que lêem nas estrelas, os que sopram sobre as cinzas dos mortos. Comeu gálbano, séseli e veneno de víbora que gela o coração; mulheres negras, cantando ao luar palavras bárbaras, picaram-lhe a pele da testa com estiletes de ouro; encheu-se de colares e amuletos; invocou Baal, Khamon, Moloch, os sete Cabiras, Tânita a Vénus dos gregos. Gravou um nome sobre uma placa de cobre, e enterrou-a na areia à entrada da tenda. Spendius ouvia-o gemer e falar sozinho.

Uma noite entrou.

Mâtho, nu como um cadáver, estava deitado de bruços em cima de uma pele de leão, com a face entre as mãos; uma lamparina suspensa iluminava-lhe os braços encostados ao suporte da tenda.

- Sofres? - perguntou-lhe o escravo. - O que é que queres? Responde-me! - E agarrou-lhe o ombro para o abanar enquanto chamava: - Senhor! Senhor!... Mâtho levantou os seus grandes olhos angustiados para ele.

- Ouve! - disse em voz baixa, com um dedo sobre os lábios. - É a cólera dos deuses! - Apertou o peito como uma criança aterrorizada com um fantasma. - Diz-me! Estou doente! Vou-me curar! Tentei tudo! Mas tu, é possível que tu conheças deuses mais fortes, ou alguma invocação irresistível?

- Para quê? - perguntou Spendius. Respondeu, batendo com os punhos na cabeça:

- Para me libertar disto!

Depois, disse, falando consigo mesmo e fazendo longos intervalos:

- Sou, sem dúvida, vítima de algum holocausto que ela teria prometido aos deuses?... Tem-me ligado por uma cadeia que não se vê. Se ando é porque ela caminha; quando paro é porque ela descansa! Os seus olhos queimam-me, oiço a sua voz. Anda à minha volta e penetra-me. É como se ela se tivesse tornado a minha alma!

«E, todavia, há entre nós duas vagas invisíveis de um oceano sem limites! Está distante e inacessível! O esplendor da sua beleza faz à volta dela uma nuvem de luz; e creio, por momento, nunca a ter visto... que ela não existe... e que tudo isto é um sonho!»

Mâtho chorava na escuridão; os bárbaros dormiam.

Spendius, olhando para ele, lembrou-se dos jovens que, com vasos de ouro nas mãos, lhe faziam pedidos quando ele passeava pelas cidades o seu grupo de cortesãs; sentiu piedade e disse:

- Sê forte, meu senhor! Chama a tua vontade e não implores mais os deuses; eles não se voltam para atender os apelos dos homens! Choras como um fraco! Não te sintas humilhado por uma mulher te fazer sofrer tanto!

- Sou uma criança? - disse Mâtho. - Estás convencido que me enterneci com o seu rosto e com as suas canções? Também as tivemos em Drépano para varrerem as nossas cavalariças não me faltaram no meio dos assaltos, sob tectos que caíam e quando a catapulta vibrava ainda! Mas esta, Spendius, esta!... O escravo interrompeu-o:

- Se ela não fosse a filha de Amílcar...

- Não! - exclamou Mâtho. - Ela é diferente de todas as outras filhas dos homens! Viste os olhos dela tão grandes sob as sobrancelhas espessas, como sóis sob arcos de triunfo? Lembras-te: quando ela apareceu como todos os archotes empalideceram. Entre os diamantes do seu colar, o seu peito resplandecia; ficava atrás dela o perfume de um templo, e havia qualquer coisa que se escapava de todo o seu ser que era mais suave do que o vinho e mais terrível do que a morte. Ela caminhava e depois parou.

Ficou estupefacto, a cabeça baixa, os olhos fixos.

- Mas eu quero! Preciso dela! Desejo-a ardentemente! À ideia de a ter nos meus braços, sinto-me transportado por uma alegria imensa, e todavia odeio-a, Spendius! Apetece-me bater-lhe! Que fazer? Apetece-me vender-me para ser seu escravo. Tu foste-o, tu! Podias vê-la; fala-me dela! Não é verdade, que todas as noites, ela sobe ao terraço do seu palácio? Ah, as pedras devem estremecer sob as suas sandálias e as estrelas devem inclinar-se para a ver!

Voltou a cair num estado de excitação, berrando como um touro ferido:

- Perseguiu na floresta o monstro cuja cauda ondulava sobre as folhas mortas como um regato de prata. - E afinando a voz, imitava a voz de Salammbô, enquanto as mãos estendidas imitavam duas mãos hábeis sobre as cordas de uma lira.

A todas as consolações de Spendius respondia com os mesmos discursos; as suas noites passavam no meio destes gemidos e exortações.

Mâtho queria aturdir-se com vinho. Depois da embriaguez ficava mais triste ainda. Tentou distrair-se com jogos e perdeu uma a uma todas as medalhas de ouro do seu colar. Deixou-se levar a casa das servas da deusa; mas desceu a colina soluçando, como se regressasse de um funeral.

Spendius, pelo contrário, estava cada vez mais ousado e mais alegre. Aparecia nas tabernas, debaixo da folhagem, discursando no meio dos soldados. Arranjava as couraças velhas. Fazia habilidades com punhais. Ia apanhar ervas para os doentes. Dizia graças, era subtil, cheio de invenções e de palavras: os bárbaros tinham-se acostumado aos seus serviços; procurava conquistar amizades.

Entretanto, esperavam um embaixador de Cartago que lhes devia trazer, em machos, cestos carregados de ouro; e fazendo sempre o mesmo cálculo, desenhavam com o dedo números na areia. Todos faziam projectos para a sua vida; teriam concubinas, escravos, terras; outros queriam enterrar o tesouro ou arriscá-lo num barco. Contudo, nesta inactividade, os espíritos exaltavam-se; havia disputas contínuas entre os cavaleiros e os soldados de infantaria, os bárbaros e os gregos, e ouvia-se, sem cessar, a voz estridente das mulheres.

Todos os dias, apareciam grupos de homens quase nus, com folhas na cabeça para os proteger do Sol; eram os devedores dos ricos de Cartago, obrigados a trabalharem as suas terras, e que tinham fugido. Os líbios afluíam, gente do campo arruinada pelos impostos, proscritos, malfeitores. Depois, à hora dos mercadores, todos os vendedores de vinho e de azeite, furiosos por não lhes pagarem, revoltavam-se contra a República; Spendius fazia discursos contra ela. Em breve os víveres diminuíam. Falava-se de uma entrada em massa em Cartago e de um apelo aos romanos.

Uma noite, à hora da ceia, ouviram-se sons graves, embora altos, que se aproximavam, e, ao longe apareceu uma coisa vermelha nas ondulações do terreno.

Era uma liteira grande púrpura, enfeitada nos ângulos com penas de avestruz. Cadeias de cristal, com grinaldas de pérolas, batiam na cortina fechada. A seguir vinham os camelos que faziam tocar o sino preso ao peito, e viam-se em volta deles cavaleiros com uma armadura de placas douradas desde os calcanhares aos ombros.

Pararam a trezentos passos do acampamento, para retirarem as caixas que traziam nas garupas, o escudo redondo, a espada e o capacete à moda da Beócia. Alguns ficaram com os camelos; os outros puseram-se em marcha. Apareceram, por fim, os símbolos da República, isto é, os bastões de madeira azul encimados por cabeças de cavalo ou pinhas. Os bárbaros levantaram-se todos, aplaudindo; as mulheres precipitaram-se para os guardas da Legião, beijando-lhes os pés.

A liteira avançava aos ombros de doze negros, que andavam, como era hábito, com passos pequenos e rápidos. Iam da direita para a esquerda, ao acaso, por causa das cordas das tendas, dos animais que vagueavam por ali e dos tripés onde se cozia a carne. Às vezes uma mão gorda, cheia de anéis, entreabria a cortina; uma voz rouca proferia injúrias; os carregadores paravam, depois tomavam outro caminho através do acampamento.

As cortinas vermelhas levantaram-se; e sobre uma grande almofada distinguiram uma cabeça humana impassível e grande; as sobrancelhas pareciam dois arcos de ébano ligados pelas pontas; palhetas de ouro brilhavam nos cabelos crespos, e o rosto estava tão pálido que parecia empoado com pó de mármore. O resto do corpo desaparecia nas mantas que enchiam a liteira.

Os soldados reconheceram neste homem reclinado o sufete Hanão, o que tinha contribuído pela sua lentidão para a derrota na batalha das Ilhas Aegates; e, quanto à sua vitória de Hecatompyle sobre os líbios, se procedera com clemência fora por cupidez, pensavam os bárbaros, porque tinha vendido por sua conta todos os prisioneiros, embora tivesse comunicado à República que tinham morrido.

Quando, daí a algum tempo, encontrou um lugar cómodo para falar aos soldados, fez um sinal; a liteira parou, e Hanão, amparado por dois escravos, pôs os pés no chão, cambaleando.

Calçava botas de feltro preto, enfeitadas com luas de prata. Trazia faixas, como as das múmias, enroladas em volta das pernas, e a carne aparecia entre as tiras cruzadas. O ventre saía do fraque escarlate que lhe cobria as coxas; as pregas do pescoço caíam-lhe até ao peito como a barbela de um boi; a túnica pintada com flores estalava nas cavas; tinha uma espécie de xaile, um cinto e uma grande capa preta de mangas duplas presas. A exuberância do seu vestuário, o colar de pedras azuis, os alfinetes de ouro e os brincos compridos tornavam ainda mais hedionda a sua deformidade. Dir-se-ia um ídolo talhado num bloco de pedra, porque a palidez que lhe cobria o corpo, dava-lhe a aparência de uma coisa inerte. Contudo, o nariz, adunco como um bico de abutre, dilatava-se violentamente, a fim de aspirar o ar, e os seus olhos pequenos, com as sobrancelhas ligadas, tinham um brilho duro e metálico. Tinha na mão uma espátula de aloés, para se coçar.

Por fim, dois arautos tocaram as trompas de prata; o tumulto extinguiu-se, e Hanão principiou a falar.

Começou por fazer o elogio dos deuses e da República; os bárbaros deviam congratular-se por a ter servido. Era preciso, todavia, mostrarem-se mais razoáveis, os tempos estavam difíceis, «e se um senhor só tem três oliveiras, não é justo que guarde duas para ele»?

O velho sufete intercalava no seu discurso provérbios e apólogos, fazendo sinais com a cabeça para solicitar qualquer espécie de aprovação.

Falava púnico, e os que o rodeavam (os mais expeditos tinham acorrido sem armas) eram os campanianos, os gauleses e os gregos, pelo que nenhum deles o compreendia. Hanão ao verificar isto, parou, e ficou a balançar-se pesadamente numa perna e na outra, reflectindo.

Teve a ideia de convocar os comandantes; os arautos deram esta ordem em grego, língua que, desde Xantipas servia para dar ordens aos exércitos cartagineses.

Os guardas, à chicotada, dispersaram os soldados, e daí a pouco os comandantes das falanges espartanas e os chefes das coortes bárbaras chegaram, com as insígnias do seu posto e a armadura da sua nação.

A noite tinha caído, pela planície corriam rumores; aqui e ali ardiam fogueiras; iam de uma para outra e perguntavam: «O que é?» e porque é que o sufete não distribuía o dinheiro. Expunha aos comandantes os encargos infinitos da República. O tesouro estava esgotado. O tributo aos romanos esgotava-a.

- Não sabemos o que havemos de fazer!... É digna de dó! De vez em quando, esfregava as pernas com a espátula de aloés,

ou parava para beber por uma taça de prata, que um escravo lhe estendia, uma tisana feita com a cinza de doninha e espargos cozidos em vinagre; depois enxugava os lábios com um guardanapo escarlate e prosseguia:

- O que valia um siclo de prata vale hoje três shekels de ouro, e as culturas abandonadas durante a guerra não dão nada! Os nossos pesqueiros de púrpura estão quase perdidos, as próprias pérolas atingiram um valor exorbitante; se tivéssemos ao menos unguentos para o serviço dos deuses! Quanto às coisas da mesa, já nem falo, é uma calamidade! Por não termos galeras faltam-nos as especiarias, e temos muita dificuldade em conseguir lazer por causa das rebeliões dos escravos na fronteira de Cirene. A Sicília, onde havia tantos escravos, está-nos vedada! Ainda ontem por um banheiro e quatro criados de cozinha dei mais dinheiro do que dantes por um par de elefantes!

Desenrolou um grande bocado de papiro, e leu, sem passar um único número, todas as despesas que o governo tinha feito; tanto para reparações dos templos, para lajear as ruas, para a construção de barcos, para os pesqueiros de coral, para uma maior grandeza das sissitas e para as máquinas nas minas na Cantábria.

Mas os chefes, como os soldados, não entendiam o púnico, embora os mercenários se cumprimentassem nessa língua. Eram destacados geralmente, para os exércitos bárbaros oficiais cartagineses a fim de servirem de intérpretes; depois da guerra tinham-se escondido com medo de vinganças; Hanão não tinha pensado na hipótese de os levar com ele; além disso, a sua voz baixa perdia-se com o vento.

Os gregos, apertados com os cinturões de ferro, apuravam o ouvido, tentando adivinhar as palavras, enquanto os homens das montanhas, cobertos de peles como ursos, olhavam para ele com um ar de desafio ou bocejavam, apoiados nas mocas com pregos de bronze. Os gauleses desatentos abanavam, zombando, as cabeleiras, e os homens do deserto escutavam imóveis, todos cobertos com os seus fatos de lã cinzenta; chegavam outros; os guardas, que a multidão empurrava, vacilavam em cima dos cavalos; os negros seguravam, com os braços estendidos, ramos de pinheiro acesos; e o grande cartaginês continuava a arengar, trepado a um montículo de ervas.

Os bárbaros impacientavam-se, os murmúrios elevaram-se, injuriavam-no. Hanão gesticulava com a espátula; os que queriam fazer calar os outros, gritavam ainda mais forte, ajudando à confusão.

De repente, um homem de aspecto miserável saltou para junto de Hanão, tirou a trombeta a um dos arautos, soprou, e Spendius (porque era ele) anunciou que queria dizer uma coisa importante. A esta declaração, rapidamente traduzida em cinco línguas, grego, latim, gaulês, líbio e balear, os comandantes meio a rir, meio surpreendidos, responderam:

- Fala! Fala!

Spendius hesitou; tremia; por fim, dirigindo-se aos líbios, que eram os mais numerosos, disse-lhes:

- Ouviram todos as horríveis ameaças deste homem!

Hanão não reagiu, pois não compreendia o líbio; e, para continuar a experiência, Spendius repetiu a mesma frase nos outros idiomas bárbaros.

Olharam uns para os outros surpreendidos; depois todos, como por um acordo tácito, julgando talvez ter compreendido, baixaram a cabeça em sinal de assentimento.

Então, Spendius começou numa voz veemente:

- Disse primeiro que os deuses dos outros povos não eram mais do que sonhos ao pé dos deuses de Cartago!

Chamou-vos cobardes, mentirosos, cães e filhos de cadelas! A República, sem dúvida (disse isto!), não seria obrigada a pagar o tributo dos romanos, e que pelos vossos excessos se esgotaram os perfumes, as substâncias aromáticas, os escravos e o lazer, porque se entenderam com os nómadas na fronteira de Cirene! Mas os culpados serão castigados! Leu a lista dos cúmplices; serão obrigados a trabalhar no lajeamento das ruas, na construção de barcos, no embelezamento das sissitas, e outros serão enviados para trabalharem nas minas da Cantábria.

Spendius disse a mesma coisa aos gauleses, aos gregos, aos campanianos, aos baleares. Reconhecendo vários nomes próprios que tinham despertado a sua atenção, os mercenários ficaram convencidos que ele relatava de forma exacta o discurso do sufete. Alguns gritaram:

- Mentes!

A sua voz perdeu-se no tumulto dos outros; Spendius acrescentou :

- Não viram que ele deixou fora do campo uma reserva de cavaleiros? A um sinal acorrerão para vos degolar a todos.

Os bárbaros voltaram-se para este lado, e quando a multidão se dispersava, apareceu no meio dela, avançando com a lentidão de um fantasma, um ser humano curvado, magro, inteiramente nu, coberto até aos rins pelos cabelos compridos de que caíam folhas secas, poeira e espinhos.

Tinha em volta da cintura e dos joelhos argamassa feita de barro e palha, bocados de pano; a pele mole e terrosa pendia dos membros descarnados, como farrapos de ramos secos; as mãos tremiam continuamente, e caminhava apoiado a um ramo de oliveira.

Chegou ao pé dos negros que empunhavam os archotes. Uma espécie de riso idiota descobriu as gengivas pálidas; os olhos amedrontados fixaram a multidão reunida à sua volta.

Mas, dando um grito de terror, lançou-se para o meio deles defendendo-se com os seus corpos; gaguejava:

- Estão ali! estão ali! - indicando os guardas do sufete, imóveis nas armaduras brilhantes.

Os cavalos escavavam no chão, ofuscados pela luz dos archotes: crepitavam nas trevas; o espectro humano debatia-se e bramava:

- Mataram-nos!

A estas palavras ditas em balear, os baleares aproximaram-se e reconheceram-no; sem lhes responder repetia:

- Sim, mataram-nos todos, todos! Esmagados como uvas! Os belos jovens! Os besteiros! Meus companheiros, os vossos!

Deram-lhe vinho, e ele chorou; recomeçou a falar.

Spendius mal podia conter a sua alegria, explicando aos gregos e aos líbios as coisas horríveis que Zarxas contava; nem podia acreditar, tão a propósito vinham. Os baleares empalideciam, ao saberem como os seus companheiros tinham perecido.

Era um grupo de trezentos besteiros, desembarcados na véspera, e que, nesse dia, tinham dormido até muito tarde. Quando chegaram ao palácio de Khamon, os bárbaros tinham partido, e encontraram-se sem defesa, pois as balas de argila tinham sido carregadas nos camelos com o resto da bagagem. Deixaram-nos passar para a Rua de Satheb, até à porta de castanho reforçada com placas de bronze; e o povo, num só movimento investiu contra eles.

Com efeito, os soldados lembravam-se de ter ouvido um grito enorme; Spendius que vinha à frente das colunas não tinha ouvido.

Depois, os cadáveres foram colocados nos braços dos deuses que rodeavam o templo de Khamon. Condenavam-nos por todos os crimes dos mercenários: gula, roubos, impiedades, desdém e pela morte dos peixes no jardim de Salammbô. Os corpos sofreram mutilações infames; os sacerdotes queimaram-lhes os cabelos para lhes atormentarem as almas; penduraram-nos aos bocados nos talhos; alguns chegaram a cravar-lhes os dentes, e à noite, para acabar, fizeram fogueiras nos cruzamentos.

Eram essas chamas que luziam no lago. Algumas casas incendiaram-se, tinham deitado por cima dos muros o que restava dos cadáveres e dos moribundos; Zarxas ficara até ao dia seguinte nos juncos do lago; depois errara pelo campo, procurando o exército pelos traços na poeira. De manhã, escondia-se nas cavernas; à noite, punha-se em marcha, com as chagas sangrentas, faminto, doente, vivendo de raízes e de cadáveres de animais; um dia, enfim, descobriu as lanças no horizonte e tinha-as seguido. O seu espírito estava perturbado pelos terrores e miséria.

A indignação dos soldados, contida enquanto ele falava, rebentou como uma trovoada; queriam chacinar a guarda e o sufete. Alguns interpuseram-se, dizendo que era preciso ouvi-lo e saber se ao menos iam ser pagos. Gritaram todos: - O nosso dinheiro! Hanão respondeu que o tinha trazido. Correram aos postos avançados, e as bagagens do sufete chegaram ao meio das tendas, puxadas pelos bárbaros. Sem ouvirem os escravos, desmancharam os embrulhos; encontraram vestidos de jacinto, esponjas, raspadores, escovas, perfumes e punções em antimónio para pintar os olhos - tudo isto pertencia aos guardas, homens ricos acostumados a estas delicadezas. A seguir, descobriram num camelo uma vasilha grande de bronze; era do sufete tomar banho quando estava em viagem; porque tinha tomado toda a espécie de precauções, até ao ponto de trazer, em gaiolas, doninhas de Hecatompyle que queimavam vivas para fazer a sua tisana. Como a doença lhe fazia muita fome trazia uma grande quantidade de víveres e vinho, de salmoura, de carnes e de peixes com mel em pequenos potes de Comagene, gordura de ganso coberta de gelo e de palha cortada. As provisões eram consideráveis; à medida que abriam os pacotes, estas coisas iam aparecendo: ouviam-se risos e palavras de troça.

Quanto ao soldo dos mercenários, enchia, mais ou menos, dois cestos de esparto; num deles havia dessas rodelas de couro de que a República se servia como numerário; e como os bárbaros pareciam muito surpreendidos, Hanão declarou-lhes que, as contas deles eram muito difíceis e que os Anciães não tinham tido tempo de as examinar. Enviavam-lhes este dinheiro por conta.

Então foi tudo revisto e rebuscado: mulas, criados, liteira, provisões, bagagens. Os soldados tiraram o dinheiro dos sacos para lapidarem Hanão. Montou com grande dificuldade um burro; fugiu agarrando-se às crinas, berrando, chorando, sacudido, martirizado e pedindo a maldição de todos os deuses sobre o exército. O colar de pedras chegava-lhe às orelhas. Segurava com os dentes a capa muito comprida que se arrastava, e de longe os bárbaros gritavam:

- Vai-te embora, cobarde! Porco! Excremento de Moloch! Sua o teu ouro e a tua peste! Mais depressa! Mais depressa!

A escolta, sem ordem, seguia a seu lado.

A fúria dos bárbaros não se apaziguou. Lembraram-se que muitos dos que tinham partido para Cartago não tinham voltado; tinham-nos morto, sem dúvida? Tanta injustiça exasperou-os, puseram-se a tirar os paus das tendas, a enrolar as mantas, a selar os cavalos; cada um deles pegou no capacete e na espada, e num instante tudo ficou pronto. Os que não tinham armas foram à mata cortar paus.

O dia começava a nascer; os habitantes de Sicca acordados agitavam-se pelas ruas.

- Vão a Cartago - dizia-se, e este rumor em breve se estendia pela região.

De todos os atalhos, de todas as ravinas surgiam homens. Viam-se pastores que desciam as encostas correndo.

Quando os bárbaros partiram, Spendius passou revista à planície, montado num garanhão púnico, com o seu escravo que puxava um terceiro cavalo.

Só restava uma tenda. Spendius entrou.

- De pé, senhor! Levanta-te! Vamo-nos embora!

- Para onde vão? - perguntou Mâtho.

- Para Cartago! - respondeu Spendius.

Mâtho saltou para o cavalo que o escravo segurava à porta.

 

                  SALAMMBÔ.

A Lua levantava-se ao nível das ondas; e, sobre a cidade ainda coberta de trevas, pontos luminosos e brancos brilhavam: a lança de uma carruagem num pátio, um farrapo pendurado, o ângulo de um muro, um colar de ouro ao peito de um deus. As bolas de vidro nos telhados dos templos brilhavam aqui e ali como grandes diamantes. Mas as ruínas vagas, os montes de terra preta, os jardins apareciam como manchas mais escuras na obscuridade; e, abaixo de Malqua, as redes de pescadores estendiam-se de uma casa a outra, como morcegos gigantes estendendo as suas asas. Já não se ouvia o ranger das rodas hidráulicas que levavam a água para o último andar dos palácios; e no meio dos terraços os camelos repousavam tranquilamente deitados sobre o ventre, à maneira das avestruzes. Os porteiros dormiam nas ruas encostados à soleira das casas; as sombras dos colossos alongavam-se pelas praças desertas; ao longe, o fumo de um sacrifício que ardia ainda escapava-se pelas telhas de bronze, e a brisa pesada trazia perfumes dos arómatas, o cheiro da maresia e exalação das muralhas, aquecidas pelo sol. Em volta de Cartago as ondas imóveis resplandeciam, porque a lua iluminava ao mesmo tempo o golfo cercado de montanhas e o lago de Tunes, onde os corais entre os bancos de areia formavam longas linhas rosadas, enquanto do outro lado, sob as catacumbas, a grande lagoa salgada brilhava como um bocado de prata. A abóbada do céu azul afundava-se no horizonte, de um lado na poeira da planície, do outro nas brumas do mar e no cimo da Acrópole os ciprestes piramidais que ladeavam o templo de Eschmoun balançavam e fazia um murmúrio, como as ondas regulares que batiam lentamente no molhe abaixo das muralhas.

Salammbô subiu ao terraço do palácio, amparada por uma escrava que trazia uma travessa de ferro com carvões a arder.

Havia no meio do terraço uma pequena cama de marfim, coberta de pele de lince com almofadas de penas de papagaio, animal fatídico consagrado aos deuses, e nos quatro cantos estavam colocados quatro perfumadores compridos, cheios de nardo, de incenso, de cinamomo e de mirra. A escrava deitou fogo aos perfumes. Salammbô olhou para a estrela polar; saudou lentamente os quatro pontos do céu e ajoelhou-se no chão no meio do azul semeado de estrelas de ouro até ao limite do firmamento. Depois, com os cotovelos encostados às ilhargas, os antebraços estendidos e as mãos abertas, voltando a cabeça batida pelos raios da lua, disse:

- Oh, Rabbetna!... Baalet!... Tânita!. - E a sua voz arrastava-se num tom plangente, como se chamasse por alguém. - «Anaites! Astarte! Derceto! Astorete! Mylitta! Athara! Elissa! Tiratha!... Pelos símbolos escondidos, pelos cistros sonoros, pelos sulcos da terra, pelo silêncio eterno e pela fecundidade eterna, dominadora do mar tenebroso e das praias azuis, oh, rainha das coisas húmidas, salve!»

Balançou o corpo duas ou três vezes, depois deitou-se de bruços na poeira, de braços estendidos.

A escrava levantou-a rapidamente, porque era preciso, segundo os ritos, que uma pessoa viesse arrancar o suplicante da sua prostração: queria dizer que os deuses lhe davam a sua aprovação, e a ama de Salammbô não faltava nunca a este dever de piedade. Mercadores de Getulia tinham-na trazido pequenina para Cartago; e, depois da sua libertação, não tinha querido abandonar os seus senhores, como o provava a orelha direita, onde se via um grande buraco. Usava uma saia de riscas de várias cores, em que se entrechocavam dois círculos de estanho. O rosto, quase sem relevo, era amarelo como a túnica. Agulhas de prata muito compridas formavam como que um sol por trás da sua cabeça. Trazia numa das narinas um botão de coral, e mantinha-se junto da cama, mais direita que uma mísula, com as pálpebras baixas. Salammbô avançou até à beira do terraço. Os seus olhos percorreram, por um instante, o horizonte; depois baixaram-se sobre a cidade adormecida, e o suspiro que deu, erguendo-lhe os seios, fez ondular de uma extremidade a outra a longa toga branca que lhe caía dos ombros sem colchetes nem cinto. As suas sandálias de pontas recurvadas desapareciam num amontoado de esmeraldas, os cabelos ao abandono enchiam uma rede de fio de púrpura. Levantou a cabeça para contemplar a Lua, e, juntando às suas próprias palavras fragmentos de hinos, murmurou:

- Que tu voltes depressa, sustentada pelo éter impalpável! Vai-se polir em volta de ti, e é o movimento da tua agitação que distribui os ventos e os orvalhos fecundos. Segundo tu crês e descrês, assim se tornam maiores ou se contraem os olhos dos gatos e as manchas das panteras. As esposas clamam pelo teu nome nas dores do parto! Putreficas os cadáveres! Formas as pérolas no fundo do mar!

«E todos os germes, oh, deusa! Fermentam nas profundezas obscuras da tua humidade.

«Quando tu apareces, estende-se sobre a terra uma quietude; as flores fecham-se, as ondas ficam apaziguadas, os homens fatigados deitam-se com o peito voltado para ti, e o mundo com os seus oceanos e as suas montanhas, como num espelho, revê-se na tua imagem. Tu és branca, doce, luminosa, imaculada, auxiliadora, purificadora, serena!»

A Lua, no quarto crescente, estava agora sobre as montanhas das Águas-Quentes, no chanfro dos dois cumes, do outro lado do golfo. Havia mais abaixo uma pequena estrela e em volta um círculo pálido. Salammbô prosseguiu:

- Mas tu és terrível senhora!... É por ti que se produzem os monstros, os fantasmas terríveis, os sonhos enganadores; os teus olhos devoram as pedras dos edifícios, os macacos adoecem todas as vezes que rejuvenesces.

«Onde vais? Porque é que mudas constantemente de forma? Ora fina e recurvada, deslizas nos espaços como uma galera sem mastro, ou no meio das estrelas pareces um pastor que guarda o seu rebanho. Brilhante e redonda, tocas ao de leve o cimo dos montes como a roda de um carro.

«Oh Tânita, tu não me amas, pois não? Olhei tantas vezes para ti! Mas não! Tu corres no teu azul, e eu fico na terra imóvel.

«Taanach, toma o teu náblio e toca baixinho a corda de prata, porque o meu coração está triste!»

A escrava pegou numa espécie de harpa de madeira de ébano, mais alta do que ela e triangular como um delta; fixou a ponta num globo de cristal e começou a tocar com os dois braços.

Os sons sucediam-se, surdos e precipitados como o zumbido das abelhas e, cada vez mais sonoros, passavam na noite como o lamento das vagas e o frémito das grandes árvores no cimo da Acrópole.

- Cala-te - ordenou Salammbô.

- Que tens, senhora! A brisa que sopra, uma nuvem que passa, tudo neste momento te inquieta e te agita!

- Não sei - disse ela.

- Fatigas-te com orações muito demoradas!

- Oh! Taanach, gostaria de me dissolver nelas como uma flor no vinho!

- É talvez o odor dos teus perfumes?

- Não! - responde Salammbô. - O espírito dos deuses habita nos odores agradáveis.

Então a escrava falou-lhe do pai. Julgavam que tinha partido para a região do âmbar, para lá das colunas de Melkart.

- Mas se ele não voltar - dizia é preciso, pois era essa a tua vontade, que escolhas um esposo entre os filhos dos Anciães; e os teus desgostos extinguir-se-ão nos braços de um homem.

- Porquê? - perguntou a jovem. Todos os que tinha visto lhe faziam horror com os seus risos de cabritos monteses e os seus membros grosseiros.

- Às vezes, Taanach, partem do fundo do meu ser como que baforadas quentes, mais pesadas do que os vapores de um vulcão. Há vozes que me chamam, um globo de fogo rola e sobe no meu peito, abafa-me, vou morrer; e depois, há qualquer coisa de suave, que, jorrando da fronte até aos pés, passa pela minha carne... é uma carícia que me envolve, e sinto-me aniquilada como se um deus se estendesse sobre mim. Oh! quereria perder-me na bruma das noites, na agitação das fontes, na seiva das árvores, sair do meu corpo, não ser mais do que uma brisa, do que um raio, e deslizar, subir até ti, oh, Mãe!

Levantou os braços o mais alto possível, dobrando-se, pálida e leve como a lua com as suas vestes brancas. Depois caiu no leito de marfim, ofegante; mas Taanach pôs-lhe em volta do pescoço um colar de âmbar com dentes de delfim para banir os terrores, e Salammbô disse numa voz que mal se ouvia:

- Vai buscar Schahabarim.

O pai não tinha querido que ela entrasse no colégio das sacerdotisas, nem mesmo que lhe falassem da Tânita popular. Reservava-a para uma aliança que lhe pudesse servir a sua política, pelo que Salammbô vivia sozinha no palácio; a mãe morrera há muito tempo.

Tinha crescido fazendo abstinências, jejuns e purificações, sempre rodeada de coisas estranhas e graves, o corpo saturado de perfumes, a alma cheia de orações. Nunca tinha provado o vinho, nem comido carnes, nem tocado num animal imundo, nem entrado na casa de um morto.

Ignorava os simulacros obscenos, porque cada deus se manifestava por formas diferentes, os cultos muitas vezes contraditórios manifestavam o mesmo princípio, e Salammbô adorava a deusa na sua imagem sideral. Uma influência tinha descido da Lua sobre a virgem; quando o astro começava a diminuir, Salammbô enfraquecia. Apática todo o dia reanimava-se à noite. Durante um eclipse por pouco não morrera.

Contudo, a Rabbet ciumenta vingava-se desta virgindade, ignorava os seus sacrifícios, e atormentava Salammbô com obsessões tão fortes como vagas, nascidas desta crença e avivadas por ela.

A filha de Amílcar preocupava-se constantemente com Tânita. Conhecia as suas aventuras, as suas viagens e todos os seus nomes, que repetia sem que tivessem para ela qualquer significado distinto. A fim de penetrar nas profundezas do seu dogma queria conhecer o mais possível o segredo do templo deste velho ídolo com o manto magnífico de onde dependiam os destinos de Cartago, porque a ideia de um deus não se separava nitidamente da sua representação, e ter ou mesmo ver a sua imagem, era tirar-lhe uma parte da sua virtude e, de alguma maneira, dominá-lo.

Salammbô voltou-se. Reconhecera o som dos sinos de ouro que Schahabarim trazia na bainha da túnica.

Subiu as escadas; depois, à entrada do terraço parou, cruzando os braços.

Os olhos encovados brilhavam como lâmpadas de um sepulcro; o corpo magro e alto perdia-se dentro da túnica de linho, de que pendiam guizos que alternavam nos calcanhares com esmeraldas redondas. Tinha membros débeis, crânio oblíquo, queixo pontiagudo; a pele dava ideia que era fria ao tacto e o rosto amarelo, sulcado por rugas profundas, como que se contraía num desejo, num desgosto eterno.

Era o sumo sacerdote de Tânita, aquele que tinha educado Salammbô.

- Fala! - disse. - Que queres?

- Esperava... Quase me tinhas prometido... - Balbuciava, tremia, depois de chofre: - Porque me desprezas? De que é que me esqueci nos ritos? Tu és o meu senhor e disseste-me que ninguém como eu entendia as coisas respeitantes à deusa; mas há qualquer coisa que tu não queres dizer. É verdade, oh sacerdote? Schahabarim lembrou-se das ordens de Amílcar; respondeu: - Não, não tenho mais nada para te ensinar.

- Um génio - prosseguiu ela - empurra-me para este amor. Percorri os caminhos de Eschmoun, deus dos planetas e das inteligências; dormi debaixo da oliveira de ouro de Melkart, senhor das colónias tírias; abri as portas de Baal Khamon, explorador e fertilizador; fiz sacrifícios às Cabiras subterrâneas, aos deuses dos bosques, dos ventos, dos rios e das montanhas; mas estão todos muito longe, muito alto, muito insensíveis, compreendes? Quanto a ela, sinto-a confundida na minha vida; enche a minha alma e estremeço aos movimentos interiores como se ela tentasse escapar. Parece-me que vou ouvir a sua voz, ver a sua imagem, luzes ofuscam-me; depois caio nas trevas.

Schahabarim mantinha-se calado. Ela lançava-lhe um olhar suplicante.

Fez sinal para a escrava se ir embora porque não era de raça cananeia. Taanach desapareceu, e Schahabarim, levantando um braço, começou:

- Antes dos deuses, as trevas estavam sozinhas, e um sopro flutuava, pesado e indistinto como a consciência de um homem num sonho. Contraiu-se criando o Desejo e a Nuvem, e do Desejo e da Nuvem saiu a Matéria primitiva. Era uma água lamacenta, preta, gelada, profunda. Encerrava monstros insensíveis, partes incoerentes das formas por nascer e que estão pintadas nas paredes dos santuários.

- Depois a Matéria condensou-se. Tornou-se um ovo. Abriu-se. Uma metade formou a Terra, a outra o firmamento. O Sol, a Lua, os ventos, as nuvens apareceram; e, com o estrépito do raio, os animais inteligentes acordaram. Então Eschmoun estendeu-se pela esfera estrelada; Khamon brilhou no Sol; Melkart, com os braços, empurrou-o para trás de Gades; os Cabirim desceram para baixo dos vulcões e Rabbetna, como uma ama, inclinou-se sobre o mundo, jorrando a sua luz como um leite e a noite como um manto.

- E depois? - perguntou ela.

Ele tinha contado o segredo das origens para a distrair das suas perspectivas mais altas; mas o desejo da virgem reavivou-se com estas últimas palavras e Schahabarim, cedendo um pouco, prosseguiu :

- Inspira e governa os amores dos homens.

- Os amores dos homens! - repetiu Salammbô, sonhando.

- É a alma de Cartago - continuou o sacerdote - e embora esteja em toda a parte, é aqui que mora, sob o véu sagrado.

- Oh, sacerdote - exclamou Salammbô - vou vê-la, não vou? Vais levar-me lá! Há tanto tempo que hesitava; a curiosidade acerca da sua forma devora-me. Piedade! Ajuda-me! Partamos!

Empurrou-a com um gesto veemente e cheio de orgulho.

- Nunca! Não sabes que ela morre assim? Os Baals hermafroditas só tiram o véu para nós, homens pelo espírito e mulheres pela fraqueza. O teu desejo é um sacrilégio; contenta-te com a ciência que tens!

Ela pôs-se de joelhos, com os dedos nas orelhas em sinal de arrependimento; e soluçava, vencida pela palavra do sacerdote, cheia de cólera contra ele, de terror e de humilhação. Schahabarim, de pé, estava insensível. Olhava para ela de cima para baixo, tremendo a seus pés; e experimentava uma espécie de alegria vendo-a sofrer pela divindade, que também ele não entendia inteiramente. As aves já cantavam, soprava um vento frio, pequenas nuvens corriam no céu mais pálido.

De súbito, viu na linha do horizonte, por trás de Tunes, como que uma mancha escura, que se arrastava contra o Sol; depois foi uma grande cortina de pó cinzento perpendicular, e, nos turbilhões desta massa numerosa, apareceram cabeças de dromedários, lanças, escudos. Era o exército dos bárbaros que avançava sobre Cartago.

 

           JUNTO ÀS MURALHAS DE CARTAGO

A GENTE do campo, montada em burros ou correndo a pé, pálida, sem fôlego, louca de terror, chegou à cidade. Fugiam diante do exército. Em três dias tinha percorrido a distância que o separava de Sicca para vir a Cartago e exterminar tudo.

Fecharam-se as portas. Os bárbaros apareceram quase imediatamente; mas pararam no meio do istmo, na margem do lago.

Primeiro não anunciaram nada hostil. Alguns aproximaram-se com palmas na mão. Foram repelidos com flechas tão grande era o terror.

De manhã e ao anoitecer, vagabundos erravam ao longo das muralhas. Distinguia-se sobretudo um homem baixo, envolto cuidadosamente numa capa, e cujo rosto desaparecia por baixo de uma viseira muito baixa. Ficava horas a olhar para o aqueduto, e com uma persistência tal que tinha, sem dúvida, como objectivo enganar os cartagineses sobre as suas verdadeiras intenções. Acompanhava-o outro homem, uma espécie de gigante que aparecia de cabeça descoberta.

Cartago estava, contudo, defendida em toda a largura do istmo: primeiro por um fosso, depois por uma protecção de vegetação, por fim por um muro com trinta côvados, de pedras de cantaria, com dois andares. Ali estavam instalados os estábulos para trezentos elefantes com arrecadações para os seus caparazões, entraves, peias e alimentação, depois estábulos para quatro mil cavalos com provisões de cevada e arreios, e casernas para vinte mil soldados com as armaduras e todo o material de guerra. A partir do segundo andar levantavam-se torres, todas guarnecidas de ameias, com escudos de bronze suspensos de cantoeiras.

Esta primeira linha de muralhas abrigava imediatamente o Malqua, o bairro da gente do mar e dos tintureiros. Viam-se os mastros em que se secavam os tecidos de púrpura e, sobre os últimos terraços, fornos de argila para cozer a salmoura.

Para trás, a cidade mostrava as suas casas altas de forma cúbica, dispostas em anfiteatro. Eram de pedra, de madeira, de calhaus, de canas, de conchas, de terra batida. Os bosques dos templos eram como que lagos de verdura neste amontoado de cores diversas.

As praças públicas nivelavam-na a distâncias desiguais; as ruas entrecruzavam-se e cortavam-na de alto a baixo. Distinguiam-se as áreas de três velhos bairros, agora confundidos; surgiam aqui e ali como bancos de areia, ou alargavam-se por superfícies enormes, meio cobertas por flores, escurecidas, manchadas pelas imundicies deitadas para ali, e as ruas passavam pelas aberturas como rios sob pontes.

A colina da Acrópole, no centro de Byrsa, desaparecia sob uma desordem de monumentos. Eram templos de colunas torneadas com capitéis de bronze e correntes de metal, cones de pedras secas com barras azuis, cúpulas de cobre, arquitraves de mármore, contrafortes babilónicos, obeliscos assentes sobre a ponta como archotes voltados. Os peristilos atingiam os frontões; as volutas desenrolavam-se entre as colunatas; muros de granito mantinham tabiques de telha; todos uns sobre os outros escondendo-se, de uma forma maravilhosa e incompreensível.

Sentia-se a sucessão das idades como as recordações de pátrias esquecidas.

Por detrás da Acrópole, nos terrenos vermelhos, o caminho dos Mappales, ladeado de túmulos, estendia-se em linha recta da praia às catacumbas; casas grandes surgiam no meio de jardins, e este terceiro bairro, o Megara, a cidade nova, estendia-se até à beira da falésia, onde estava um farol gigante que se acendia todas as noites.

Cartago revelava-se assim aos olhos dos soldados instalados na planicie.

De longe, distinguiam os mercados, as ruas e discutiam entre si a localização dos templos. O de Khamon, diante dos Sissitas, com telhas de ouro; Melkart, à esquerda de Eschmoun, tinha o telhado de ramos de coral; Tânita, arredondava nas palmeiras a sua cúpula de cobre; o negro Moloch ficava abaixo das cisternas, do lado do farol. Viam-se nos ângulos dos frontões, em cima dos muros, no canto das praças, por toda a parte, divindades de cabeça hedionda, colossais ou atarracadas, com ventres enormes, ou desmesuradamente achatados, abrindo a goela, estendendo os braços, tendo na mão forcados, correntes ou dardos; e o azul do mar estendia-se ao fundo das ruas, que a perspectiva tornava ainda mais escarpadas.

Um povo tumultuoso enchia-as de manhã à noite; jovens, tocando campainhas gritavam à porta dos banhos; das lojas de bebidas quentes saía vapor, pelo ar repercutia-se o barulho das bigornas, os galos brancos consagrados ao Sol cantavam nos terraços, os bois que se abatiam mugiam nos templos, os escravos corriam com cestos à cabeça; e, à entrada dos pórticos, aparecia um sacerdote, vestindo uma capa escura, descalço e com um boné pontiagudo. Este espectáculo de Cartago irritava os bárbaros. Admiravam-no, odiavam-no, queriam ao mesmo tempo aniquilá-lo e viver nele. Mas o que é que havia no porto militar dividido por uma muralha tripla? Por trás da cidade, ao fundo de Megara, mais alto do que a Acrópole, aparecia o palácio de Amílcar.

Os olhos de Mâtho voltavam-se a cada instante para lá. Subia às oliveiras, e espreitava, com as mãos sobre os olhos. Os jardins estavam desertos, a porta vermelha com a cruz preta estava constantemente fechada.

Deu mais de vinte vezes a volta às muralhas, procurando uma abertura para entrar. Uma noite, deitou-se ao golfo e nadou três horas, sem parar. Chegou à parte baixa dos Mappales, quis trepar pela falésia. Feriu os joelhos, partiu as unhas, caiu nas ondas e voltou.

A sua impotência exasperava-o. Tinha ciúmes desta Cartago em que Salammbô estava fechada, como de alguém que a tivesse possuído. A fraqueza deu lugar a um ardor de acção louco e contínuo. O rosto em fogo, os olhos irritados, a voz rouca, percorria com um passo rápido o campo; ou sentado na praia esfregava com areia a espada comprida. Lançava flechas aos abutres que passavam. Do coração transbordavam palavras furiosas.

- Deixa ir a tua cólera como um carro sem governo - dizia Spendius. - Grita, blasfema, enfurece-te e mata. A dor apazigua-se com o sangue, e, como não podes saciar o teu amor, proclama o teu ódio; ele manter-te-á!

Mâtho retomou o comando dos seus soldados. Fazia-os treinarem-se, sem piedade. Respeitavam-no pela sua coragem, pela sua força sobretudo. Aliás, ele inspirava como que um temor místico; julgavam que ele falava, de noite, com fantasmas. Os outros comandantes animaram-se com o seu exemplo. O exército estava, daí a pouco, disciplinado. Os cartagineses ouviam em casa as trombetas que regulavam os exercícios. Por fim, os bárbaros aproximaram-se.

Seria preciso para os esmagar no istmo que dois exércitos os pudessem apanhar ao mesmo tempo por trás, um partindo do fundo do golfo de Útica, o outro da montanha das Águas-Quentes. Mas que fazer com a única legião sagrada, com seis mil homens no máximo? Se se inclinassem para o Oriente, iam juntar-se aos nómadas, interceptar a rota de Cirene e o comércio do deserto.

Se se voltassem para o Ocidente, a Numídia revoltar-se-ia. Por fim a falta de víveres fá-los-ia mais cedo ou mais tarde devastar, como gafanhotos, os campos em redor; os ricos temiam pelos seus belos castelos, pelas vinhas, pelas culturas.

Hanão propôs medidas atrozes e impraticáveis, como prometer uma soma enorme por cada cabeça de bárbaro ou incendiar com barcos e máquinas o acampamento. O seu colega Gíscon queria, ao contrário, que lhes pagassem. Por causa da sua popularidade, os anciães detestavam-no; temiam a contingência de um senhor, e, com medo da monarquia, esforçavam-se por atenuar o que subsistia dela ou o que a podia restabelecer.

Havia fora das fortificações pessoas de outra raça e de uma origem desconhecida, todos caçadores de porcos, apreciadores de moluscos e serpentes. Iam às cavernas apanhar hienas vivas, que se divertiam a fazer correr pela praia de Megara, entre os cipos dos túmulos. As cabanas, de lodo e de sargaço, encostavam-se à falésia como ninhos de andorinhas. Viviam ali, sem governo e sem deuses, numa confusão, completamente nus, débeis e violentos ao mesmo tempo e, desde há séculos, odiados pelo povo, por causa dos seus alimentos imundos. As sentinelas verificaram uma manhã que eles tinham partido todos.

Finalmente, os membros do Grande Conselho decidiram-se. Foram ao acampamento, sem colares nem cintos, de sandálias, como vizinhos. Caminhavam com um passo tranquilo, cumprimentando os comandantes, paravam mesmo para falar aos soldados, dizendo-lhes que tudo tinha acabado e que as suas reclamações iam ser atendidas.

Muitos deles viam pela primeira vez um acampamento de mercenários. Em vez da confusão que tinham imaginado, havia uma ordem e um silêncio espantosos. Uma protecção encerrava o exército numa muralha alta e à prova das catapultas. O chão das ruas estava regado; pelas aberturas das tendas, olhos claros que brilhavam no escuro. Os feixes de lanças e as panóplias suspensas pareciam espelhos.

Falavam em voz baixa. Tinham medo de deitar ao chão alguma coisa com os seus fatos compridos.

Os soldados exigiram víveres, dizendo-lhes para os pagarem com o dinheiro que lhes deviam.

Mandaram-lhes bois, carneiros, pintadas, frutos secos e tremoços, com cavalas fumadas, essas cavalas excelentes que Cartago expedia para todos os portos. Mas olhavam desdenhosamente para gado magnífico; e, depreciando o que cobiçavam, ofereciam por uma ovelha o valor de um pombo, por três cabras o preço de uma romã. Os que comiam coisas imundas, arvoravam-se em árbitros, afirmando que os estavam a enganar. Puxavam das espadas, ameaçando matar.

Os comissários do Grande Conselho escreveram o número de anos que se devia a cada soldado. Era, todavia, impossível saber quantos mercenários tinham sido contratados e os anciães ficaram aterrados com a soma exorbitante que teriam de pagar. Era preciso vender a reserva de lazer, lançar impostos nas cidades mercantis; os mercenários impacientavam-se, Tunes estava com eles; e os ricos, atordoados com as iras de Hanão e as censuras do seu colega, recomendaram aos seus compatriotas que conhecessem bárbaros para os irem visitar imediatamente, a fim de reconquistarem a sua amizade dizendo-lhes boas palavras. Esta confiança acalmá-los-ia.

Mercadores, escribas, operários do arsenal, famílias inteiras foram ao encontro dos bárbaros.

Os soldados deixaram entrar todos os cartagineses, mas só por uma passagem onde quatro pessoas já se acotovelavam. Spendius, encostado à vedação, mandava-os revistar; Mâtho, diante dele, examinava esta multidão procurando alguém que pudesse ter visto em casa de Salammbô.

O acampamento parecia uma cidade, tanta gente e tanta agitação havia ali. Os dois grupos distintos misturavam-se sem se confundirem, uns vestidos com fatos de algodão ou de lã com barretes de feltro que pareciam pinhas, os outros vestidos de ferro e com capacetes.

Por entre os criados e os vendedores circulavam mulheres de todas as nações, morenas como tâmaras maduras, de um tom esverdeado como azeitonas, amarelas como laranjas, vendidas por marinheiros, escolhidas nos bordéis, roubadas nas caravanas, apanhadas no saque das cidades, com os animais de carga abandonados. As mulheres dos nómadas traziam vestidos de pêlo de dromedário, quadrados e fulvos que lhes tocavam nos calcanhares; músicas da Cirenaica, envoltas em gazes violetas e com as pálpebras pintadas, cantavam acocoradas em esteiras; negras velhas de seios pendentes amassavam, para fazer lume, excrementos de animais que se punham a secar ao sol; as siracusanas tinham placas de ouro no cabelo, as mulheres dos lusitanos colares de conchas, as gaulesas peles de lobo sobre o peito branco; e as crianças robustas cobertas de insectos, nuas, não circuncidadas, davam cabeçadas na barriga das pessoas que passavam, ou vinham por trás, como tigres pequenos, mordê-las nas mãos.

Os cartagineses passeavam pelo acampamento, surpreendidos com a quantidade de coisas que ali se encontravam. Os mais miseráveis estavam tristes, os outros dissimulavam a sua inquietação. Os soldados davam-lhes pancadinhas no ombro incitando-os a que se mostrassem alegres. Quando viam alguém importante convidavam-no para os seus jogos. No disco, faziam o possível por o magoar nos pés, e no pugilato, tentavam atingi-lo no queixo logo no primeiro golpe. Os besteiros amedrontavam os cartagineses com as bestas, os domesticadores de serpentes com víboras, os cavaleiros com os cavalos. Estes indivíduos de ocupações pacatas, a todas estas afrontas, baixavam a cabeça e tentavam sorrir. Alguns, para se mostrarem corajosos, diziam por sinais que gostariam de se tornar soldados. Davam-lhes lenha para rachar e mulas para almofaçar. Metiam-nos numa armadura e faziam-nos rebolar, pelas ruas, como tonéis. Depois, quando se dispunham a partir, os mercenários arrepelavam os cabelos com gestos grotescos. Muitos, por ignorância ou preconceito, julgavam ingenuamente todos os cartagineses muito ricos, e iam atrás deles suplicando-lhes que lhes dessem qualquer coisa. Pediam tudo o que lhes parecia bonito: um anel, um cinto, sandálias, a franja de um vestido, e, quando o cartaginês gritava: «Mas eu já não tenho mais nada. Que queres?», respondiam: «A tua mulher!» Outros diziam: «A tua vida!»

As contas militares foram entregues aos comandantes, lidas aos soldados, definitivamente aprovadas. Pediram tendas e deram-lhes tendas. Os polemarcas dos gregos pediram algumas daquelas belas armaduras que se faziam em Cartago; o Grande Conselho votou somas para esta aquisição. Mas era justo, afirmavam os cavaleiros, que a República os indemnizasse pelos seus cavalos; um afirmava ter perdido três num cerco, outro cinco numa marcha, outro catorze nos precipícios. Ofereceram-lhes garanhões de Hecatompyle; teriam gostado muito mais de dinheiro.

Depois pediram que lhes pagassem em prata (em moedas de prata e não em dinheiro de couro) todo o trigo que lhes deviam, e ao preço mais alto pelo qual tinha sido vendido durante a guerra, embora exigissem por uma medida de farinha quatrocentas vezes mais do que tinham pago por um saco de trigo. Esta injustiça exasperava; era preciso ceder, contudo.

Os delegados dos soldados e do Grande Conselho reconciliaram-se, jurando pelo Génio de Cartago e pelos deuses dos bárbaros. Com as manifestações e as verbosidades orientais pediram desculpa e fizeram carícias. Depois os soldados exigiram, como prova de amizade, a punição dos traidores que os tinham indisposto contra a República.

Fingiram que não os tinham compreendido. Explicaram mais claramente que queriam a cabeça de Hanão.

Saíam do campo várias vezes por dia. Passeavam junto às muralhas. Exigiam aos gritos a cabeça do sufete, e estendiam as pontas dos fatos para a receber.

O Grande Conselho teria cedido, talvez, sem uma derradeira exigência mais injuriosa do que as outras: pediram em casamento, para os seus chefes, virgens escolhidas nas grandes famílias. Era uma ideia de Spendius que muitos achavam simples e de execução fácil. Esta pretensão de se quererem misturar com o sangue púnico indignou o povo; mostraram-lhes de forma brutal que não tinham nada a receber. Bradaram afirmando que os tinham enganado: se dentro de três dias o soldo não chegasse, iriam eles mesmos buscá-lo a Cartago.

A má fé dos mercenários não era tão completa como o pensavam os seus inimigos. Amílcar tinha-lhes feito promessas exorbitantes, vagas, é verdade, mas solene e reiteradas. Foram levados a acreditar que, ao desembarcarem em Cartago, lhes entregariam a cidade, que partilhariam os seus tesouros; mas quando viram que o soldo lhes era pago com tanta dificuldade, sofreram uma desilusão que feriu tanto o seu orgulho como a sua cupidez. Dionísio, Pirro, Agátocles e os generais de Alexandre não tinham dado o exemplo de fortunas maravilhosas? O ideal de Hércules, que os cananeus confundiam com o Sol, resplandecia no horizonte dos exércitos. Sabia-se que simples soldados tinham trazido diademas e a fama dos impérios que se desmoronavam fazia sonhar o gaulês na sua floresta de castanheiros, o etíope nas suas areias. Mas havia um povo sempre disposto a utilizar a coragem; e o ladrão expulso da tribo, o parricida errando pelos caminhos, o sacrílego perseguido pelos deuses, todos os esfomeados, todos os desesperados conseguiam chegar ao porto onde o corretor de Cartago recrutava os soldados. Geralmente cumpria as suas promessas. Desta vez, todavia, no ardor da sua avareza, entregara-se a uma infâmia perigosa. Os númidas, os líbios, a África inteira iam lançar-se sobre Cartago. Só o mar estava livre. Encontrava aí os romanos e, como um homem perseguido por assassinos, sentia a morte à sua volta.

Era preciso recorrer a Gíscon; os bárbaros aceitaram a sua mediação. Uma manhã, viram as correntes do porto baixarem-se, três barcos chatos passarem pelo canal de Tenia e entrarem no lago.

No primeiro, à proa, viram Gíscon. Atrás dele, e mais alto do que um catafalco, estava uma caixa enorme, guarnecida com elos que ficavam pendentes e pareciam coroas. Vinha a seguir a legião dos intérpretes, com a cabeça coberta como as esfinges, com um papagaio tatuado no peito. Seguiam-nos os amigos e os escravos, todos sem armas, mas em tão grande número que ficavam encostados ombro a ombro. As três embarcações compridas, tão cheias que quase se afundavam, avançavam por entre as aclamações do exército, que as seguia com os olhos.

Quando Gíscon desembarcou, os soldados correram ao seu encontro. Com sacos mandou levantar uma tribuna e declarou que não se iria embora sem lhes ter pago.

Estalaram aplausos. Esteve muito tempo sem poder falar.

Depois censurou as injustiças da República e as dos bárbaros; o mal estava em alguns motins que pela violência tinham aterrorizado Cartago. A melhor prova das suas boas intenções era o facto de o terem enviado a ele, o eterno adversário do sufete Hanão! Não deviam supor que o povo tinha a inépcia de irritar os bravos, nem a ingratidão de não reconhecer os seus serviços; e Gíscon começou a pagar aos soldados, a principiar pelos líbios. Como tinham considerado as listas erradas, não se serviam delas.

Desfilavam diante dele por nações, mostrando os dedos para indicarem o número de anos; marcavam-nos sucessivamente no braço esquerdo com tinta verde; enquanto uns escribas mexiam no cofre aberto, os outros, com um estilete, faziam buracos na lâmina de chumbo.

Passou um homem que caminhava pesadamente, como os bois.

- Chega aqui ao pé de mim-ordenou o sufete, suspeitando de uma fraude - quantos anos serviste?

- Doze anos - respondeu o líbio.

Gíscon passou-lhe o dedo pelo queixo, porque a parte de baixo do capacete provocava, com o tempo, duas calosidades; chamavam-lhes os vergões, e ter vergões era uma expressão que significava veterano.

- Ladrão! - berrou o sufete. - O que te falta na cara deves ter nos ombros! - e rasgando-lhe a túnica, mostrou as feridas ensanguentadas; era um trabalhador de Hippo-zaryte. Ouviram-se brados; decapitaram-no.

Quando se fez noite, Spendius foi acordar os líbios. Disse-lhes:

- Quando os liguros, gregos, baleares e os homens da Itália receberem o seu dinheiro, vão-se embora. Mas vocês vão ficar na África, separados das vossas tribos, e sem nenhuma defesa! É então que a República se vai vingar! Desconfiem da viagem! Vão acreditar em todas as palavras deles? Os dois sufetes estão de acordo! Estão a abusar de vocês! Lembrem-se da Ilha das Ossadas e de Xantipas que mandaram para Esparta numa galera podre!

- O que é que havemos de fazer? - perguntaram.

- Pensem! - respondia Spendius.

Nos dois dias seguintes pagaram aos homens de Magdala, de Leptis, de Hecatompyle; Spendius apareceu entre os gauleses.

- Estão a pagar o soldo aos líbios depois vão pagar aos gregos, aos baleares, aos asiáticos, e a todos os outros! Mas a vocês, que não são muitos, não vos darão nada! Nunca mais regressarão às vossas terras! Não terão barcos! Vão matar-vos para pouparem víveres.

Os gauleses foram ter com o sufete. Autharite, o que ele tinha ferido em casa de Amílcar, interpelou-o. Desapareceu empurrado pelos escravos, mas jurando vingar-se.

As reclamações, as queixas, multiplicaram-se. Os mais obstinados entraram na tenda do sufete; para o comoverem pegam-lhe nas mãos, faziam-no apalpar as bocas sem dentes, os braços muito magros e as cicatrizes das feridas. Aqueles que ainda não tinham recebido irritavam-se, os que tinham recebido o soldo pediam outro para os cavalos; e os vagabundos, os proscritos, apoderando-se das armas dos soldados, afirmavam que se tinham esquecido deles. A cada instante chegavam como que turbilhões de homens; as tendas desmantelavam-se, caíam; a multidão encerrada entre as vedações do campo vacilava no meio da maior gritaria desde as portas até ao centro.

Quando o tumulto era muito grande, Gíscon punha um cotovelo no ceptro de marfim, e, olhando o mar, ficava imóvel, os dedos enterrados na barba.

Mâtho afastava-se muitas vezes para conversar com Spendius; depois colocava-se diante do sufete, e Gíscon sentia constantemente aqueles olhos, como archotes em chamas, apontados para ele.

Da multidão vinham, por vezes, injúrias, que eles não ouviam. Todavia a distribuição continuava, e o sufete encontrava uma saída para todos os obstáculos.

Os gregos quiseram levantar dificuldades por causa da diferença do dinheiro. Deu-lhes explicações tais que eles se retiraram sem um murmúrio. Os negros exigiram conchas brancas como as que eram usadas no comércio no interior da África. Ofereceu-se para as mandar buscar a Cartago; então, como todos os outros, aceitaram o dinheiro.

Tinham prometido aos baleares uma coisa, isto é, mulheres. O sufete respondeu que estavam à espera, para eles, de uma caravana de virgens; o caminho era longo pelo que precisavam de seis luas. Quando elas estivessem gordas e bem perfumadas com benjoim, seguiriam de barco para os portos das Baleares.

De súbito, Zarxas, já restabelecido e vigoroso, saltou como um bobo para os ombros dos seus amigos, e perguntou, apontando para a porta de Khanon:

- Que é que reservaste para os cadáveres?

Com os últimos raios de sol, as placas de bronze que a guarneciam de alto a baixo resplandeciam; os bárbaros julgaram ver sobre ela um rasto de sangue. Quando Gíscon fazia menção de falar, recomeçavam os gritos. Por fim, desceu com passos graves e fechou-se na tenda.

Quando saiu, ao nascer do sol, os seus intérpretes, que dormiam cá fora, já não se mexiam; estavam de costas, os olhos fixos, a língua entre os dentes e o rosto azulado. Mucosidades brancas escorriam-lhes das narinas, e os membros estavam rígidos, como se o frio da noite os tivesse gelado.

Todos eles tinham em volta do pescoço um laço de junco.

A partir daqui a rebelião não mais parou. Este assassínio dos baleares provocado por Zarxas confirmava as suspeitas de Spendius. Estavam convencidos de que a República pretendia sempre enganá-los. Era preciso acabar com isto! Passariam sem intérpretes! Zarxas, com uma ligadura na cabeça, cantava canções de guerra; Autharite brandia a espada comprida; Spendius dizia um segredo a um, dava um punhal a outro. Os mais fortes pagavam-se a si próprios, os menos furiosos exigiam que a distribuição continuasse. Ninguém largava as armas, e todas as cóleras se dirigiam contra Gíscon num ódio tumultuoso.

Alguns manifestavam as suas opiniões. Enquanto vociferavam injúrias, escutavam-nos com paciência, mas se diziam a mais pequena palavra que fosse a favor dele, eram imediatamente lapidados, ou eram abatidos por trás com um golpe de sabre na cabeça. O monte de sacos estava mais vermelho do que um altar.

Tornavam-se terríveis depois das refeições, quando tinham bebido vinho! Era uma alegria punida com a pena de morte nos exércitos púnicos, e levantavam as taças na direcção de Cartago num desafio à disciplina. Depois voltaram para o local onde estavam os escravos das finanças e recomeçaram a matá-los. A palavra «bate» é diferente de uma língua para outra, mas todos a compreendiam.

Gíscon sabia muito bem que a pátria o abandonava, mas não queria desonrá-la. Quando lhe lembraram que tinha prometido barcos, jurou por Moloch que ele próprio os forneceria, por sua conta, e, tirando o colar de pedras azuis arremessou-o para o meio da multidão como prova do juramento.

Os africanos exigiram, então, trigo, segundo os compromissos do Grande Conselho. Gíscon abriu as contas dos sissitas escritas a violeta em peles de carneiro; leu tudo o que tinha entrado em Cartago, mês por mês e dia por dia.

De súbito parou, com os olhos muito abertos, como se tivesse descoberto entre os números a sua sentença de morte.

Os anciães tinham-no reduzido fraudulentamente, e o trigo, vendido durante a época mais calamitosa da guerra, estava registado a preços tão baixos, que só no caso de cegueira se podia acreditar.

- Fala! - gritavam. - Mais alto! Ah! está a procurar a maneira de mentir, o cobarde! Desconfiemos.

Hesitou durante algum tempo. Retomou, finalmente, a sua tarefa.

Os soldados, sem terem dúvidas que os estavam a enganar, aceitaram como verdadeiras as contas dos sissitas. A abundância em que tinham encontrado Cartago lançava-os numa inveja furiosa. Quebraram a caixa de sicômoro; três quartas partes já estavam vazias. Tinham visto sair tais somas que a julgavam inesgotável; Gíscon tinha-se refugiado na sua tenda. Treparam pelos sacos. Mâtho conduzia-os; e como gritavam: «O dinheiro! O dinheiro!» Gíscon por fim respondeu:

- O vosso general que vo-lo dê!

Olhava para eles de frente, sem falar, com os seus olhos grandes e amarelos e o rosto comprido mais pálido do que a barba. Uma flecha, presa pelas penas, estava pendurada na orelha de uma grande argola de ouro, e um fio de sangue corria-lhe da tiara até ao ombro.

A um gesto de Mâtho, todos avançaram. Ele estendeu os braços; Spendius, com um nó corrediço, prendeu-o pelos pulsos; um outro deitou-o ao chão e ele desapareceu na desordem da multidão que escorregava dos sacos.

Saquearam a tenda. Só encontraram as coisas indispensáveis para viver; depois, procurando melhor encontraram três imagens de Tânita, e numa pele de porco, uma pedra preta caída da Lua. Muitos cartagineses tinham querido acompanhá-lo; eram homens importantes e todos defensores da guerra.

Puxaram-nos para fora das tendas e deitaram-nos para a fossa das imundícies.

Com correntes de ferro foram amarrados pela cintura a estacas sólidas, e estendiam-lhes a comida na ponta de um dardo.

Autharite, quando os vigiava, invectivava-os constantemente: como não compreendiam a língua dele, não respondiam; o gaulês atirava-lhes, de vez em quando, pedras à cara para os fazer gritar.

No dia seguinte uma espécie de lassidão invadiu o exército. Quando a cólera se extinguiu vieram as inquietações. Mâtho sentia uma tristeza vaga. Parecia-lhe que tinha ultrajado indirectamente Salammbô; estes homens ricos eram como que uma coisa dependente da sua pessoa. Ia, de noite, até à borda da fossa, e encontrava nos seus gemidos aquela voz de que o seu coração estava cheio.

Contudo, acusavam, todos, os líbios, pois só eles é que tinham recebido. Mas, se por um lado reavivam as antipatias nacionais com os ódios particulares, por outro havia consciência do perigo de se entregarem a eles. As represálias, depois de um atentado destes, seriam terríveis. Contudo era preciso evitar a vingança de Cartago. Os conciliábulos, as conversas não tinham fim. Todos falavam e não se ouvia ninguém, e Spendius, geralmente tão loquaz, abanava a cabeça a todas as propostas.

Uma noite perguntou negligentemente a Mâtho se ele não tinha amigos no interior da cidade.

- Nem um! - respondeu Mâtho.

No dia seguinte, Spendius levou-o até à margem do lago.

- Senhor! - disse o antigo escravo - se o teu coração é intrépido, levo-te a Cartago.

- Como? - perguntou o outro ofegante.

- Juras executar todas as minhas ordens, seguir-me como uma sombra!

Mâtho levantou o braço para o planeta de Chabar e respondeu:

- Por Tânita, juro! Spendius respondeu:

- Amanhã, depois do pôr-do-sol, espera-me ao pé do aqueduto,

entre a nona e a décima arcada. Traz uma picareta de ferro, um capacete sem penacho e sandálias de couro.

O aqueduto de que ele falava atravessava obliquamente todo o istmo - obra considerável, aumentada mais tarde pelos romanos. Apesar do seu desdém pelos outros povos, Cartago aproveitara ainda que rudemente esta nova invenção, como Roma tinha feito com a galera púnica; e cinco filas de arcos sobrepostos, de uma arquitectura atarracada, com contrafortes na base e cabeças de leão na cimalha, confinando com a parte ocidental da Acrópole, passava pela parte debaixo da cidade para se ramificar quase como um rio nas cisternas de Megara.

À hora combinada, Spendius encontrou Mâtho. Prendeu uma espécie de harpão na extremidade de uma corda, fê-la rodar rapidamente como uma funda, o gancho de ferro ficou preso; e começaram, um atrás do outro, a escalar o muro.

Quando chegaram ao primeiro andar, o harpão, todas as vezes que o deitavam, caía; era preciso encontrar uma fissura, andar pela beira da cornija; à medida que caminhavam pelas filas de arcos verificavam que a cornija se ia tornando mais estreita. Depois a corda soltou-se. E, várias vezes, esteve prestes a partir-se.

Chegaram, finalmente, à plataforma superior. Spendius inclinava-se, de vez em quando, para tactear as pedras com a mão.

- É aqui - disse. - Comecemos! - E com o auxílio da picareta que Mâtho tinha trazido conseguiram afastar uma das pedras.

Viram, ao longe, um grupo de cavaleiros que montavam sem rédeas. Os braceletes de ouro sobressaíam das pregas vagas das capas. Distinguia-se à frente um homem coroado com plumas de avestruz e que galopava com uma lança em cada mão.

- Narr'Havas - exclamou Mâtho.

- Que importa? - respondeu Spendius; e saltou para o buraco que tinham feito ao afastar a pedra.

Mâtho, seguindo as suas instruções, tentou empurrar um dos blocos. Todavia, por falta de espaço, não podia mexer os cotovelos.

- Voltaremos - disse Spendius. Põe-te à minha frente.

Aventuraram-se, então, pela conduta da água. Chegava-lhes à barriga. Daí a pouco já não conseguiam equilibrar-se e tiveram de começar a nadar. Os braços e as pernas esbarravam contra as paredes do canal muito estreito. A água corria quase imediatamente sobre a garganta superior; feriram-se no rosto. Depois a corrente levou-os. Um ar mais pesado do que um sepulcro esmagava-lhes o peito; e a cabeça debaixo dos braços, os joelhos um contra o outro, o mais esticados que podiam, passavam como flechas na escuridão, arfando, agonizantes, quase mortos. De súbito, fez-se tudo negro, diante deles, e a velocidade das águas redobrou. Caíram.

Quando voltaram à superfície, estiveram alguns minutos estendidos de costas, a respirar o ar com prazer. As arcadas, umas por trás das outras, abriam-se no meio de largas muralhas que separavam as bacias. Estavam todas cheias, e a água continuava numa só toalha ao longo das cisternas. As cúpulas do tecto deixavam descer pelo respiradouro uma claridade pálida que se espalhava pelas ondas como discos de luz; as trevas em redor, estendiam-se até aos muros, recuando-os indefinidamente; o menor ruído fazia um eco enorme.

Spendius e Mâtho recomeçaram a nadar, e passando pelas aberturas dos arcos, atravessaram várias câmaras, umas a seguir às outras. Duas outras filas de bacias estendiam-se paralelamente de cada lado. Perderam-se; nadaram em redor, voltaram. Havia qualquer coisa que resistia debaixo dos calcanhares. Era o pavimento da galeria que ligava às cisternas.

Então, avançando com grandes precauções, apalparam o muro para encontrarem uma saída. Mas os pés escorregavam; caíam nas bacias fundas. Conseguiam levantar-se, mas voltavam a cair; sentiam uma fadiga horrível, como se todos os seus membros ao nadarem estivessem debaixo de água. Os olhos fechavam-se; estavam agonizantes.

Spendius bateu com a mão contra as barras de uma grade. Sacudiram-na, ela cedeu, e encontraram-se nos degraus de uma escada.

Em cima, havia uma porta de bronze. Com a ponta de um punhal, afastaram a barra que servia para abrir do lado de fora; de súbito, sentiram-se envoltos pelo ar puro.

Na noite reinava o silêncio mais completo, e o céu tinha uma altura desmesurada. Filas de árvores seguiam ao longo das muralhas. Toda a cidade dormia. As fogueiras dos postos avançados brilhavam como estrelas perdidas.

Spendius, que tinha passado três anos no ergástulo, conhecia mal os bairros. Mâtho pensava que para se chegar ao palácio de Amílcar, se devia seguir pela esquerda, atravessando os Mappales.

- Não - dizia Spendius - leva-me ao templo de Tânita. Mâtho quis falar.

- Lembra-te - retorquiu o antigo escravo; e, levantando o braço mostrou-lhe o planeta de Chabar que resplandecia.

Mâtho voltou-se silenciosamente para a Acrópole.

Rastejaram pelas sebes de nopal que bordejavam os caminhos. A água escorria-lhes do corpo para o pó. As sandálias húmidas não faziam barulho; Spendius, com os olhos mais brilhantes do que archotes, tacteava as moitas; ia atrás de Mâtho, as mãos nos dois punhais que tinha nos braços, seguros sob as axilas por um círculo de couro.

 

                       TÂNITA.

QUANDO saíram dos jardins, verificaram que estavam fechados dentro dos muros de Megara. Descobriram, contudo, uma brecha na muralha alta e passaram.

O terreno era a descer e formava um vale muito largo. Era um lugar descoberto.

- Escuta - disse Spendius. - Primeiro não temas nada!... Cumprirei a minha promessa...

Calou-se, parecia reflectir, como que para procurar as palavras.

- Lembras-te daquela vez, ao sol poente, no terraço de Salammbô, quando te mostrei Cartago? Éramos fortes nesse dia, mas tu não quiseste ouvir nada! - Depois numa voz grave: - Senhor, há no santuário de Tânita um véu misterioso, caído do céu, e que cobre a deusa.

- Eu sei - retorquiu Mâtho. Spendius continuou:

- É divino, porque faz parte dela. Os deuses residem onde estão os seus simulacros. É por isso que Cartago o possui, que Cartago é poderosa. - E chegando-se ao seu ouvido: - Vou-te levar comigo para o roubares!

Mâtho recuou horrorizado.

- Desaparece! Procura outro! Não te quero ajudar numa empresa tão detestável.

- Mas Tânita é tua inimiga - replicou Spendius -, persegue-te e morres por causa da sua cólera. Vais vingar-te. Ela obedecer-te-á. Tornar-te-ás quase imortal e invencível.

Mâtho baixou a cabeça; ele continuou:

- Sucumbiríamos; até o exército dela seria aniquilado. Não temos nem fuga a esperar, nem socorro, nem perdão! Que castigo dos deuses podes temer, se vais ter a sua força nas mãos? Preferes perecer na noite de uma derrota, miseravelmente, abrigado numa moita, ou no meio do rancor da populaça, no meio das chamas dos carrascos? Senhor, um dia entrarás em Cartago, entre os colégios dos pontífices, que beijarão as tuas sandálias; e se o véu de Tânita ainda te preocupar, podes entregá-lo no seu templo. Segue-me! Anda buscá-lo.

Uma cobiça imensa devorava Mâtho. Teria querido, sem o sacrilégio, possuir o véu. Dizia para consigo que talvez não fosse necessário tirá-lo para conseguir a virtude. Não ia até ao fundo do seu julgamento, ficava no ponto em que ele o aterrorizava.

- Vamos! - disse; e afastaram-se com um passo rápido, um ao lado do outro sem falarem.

O terreno subia e as casas aproximaram-se. Voltaram para as ruas estreitas, no meio das trevas. Bocados de esparto que fechavam as portas batiam contra as paredes. Numa praça, camelos ruminavam junto de montes de ervas cortadas. Passaram por baixo de um arco de folhagem; uma matilha de cães ladrou. De súbito encontraram-se num espaço aberto, e reconheceram a fachada ocidental da Acrópole. Abaixo de Byrsa notava-se uma longa mancha negra: era o templo de Tânita, conjunto de monumentos e jardins, alamedas e áleas, cercado por um pequeno muro de pedras secas. Spendius e Mâtho saltaram-no.

Neste primeiro recinto havia um bosque de plátanos, por precaução contra a peste e a infecção do ar.

Aqui e ali apareciam as tendas onde durante o dia se vendiam cremes depilatórios, perfumes, vestuário, bolos em forma de lua, e imagens da deusa com cópias do templo cinzeladas em blocos de alabastro.

Não havia nada a temer porque nas noites em que o astro não aparecia suspendiam todos os ritos; todavia, Mâtho abrandava o passo; parou diante dos três degraus das escadas de ébano que levavam ao segundo recinto.

- Anda - disse Spendius.

As romãzeiras, as amendoeiras, os ciprestes e as murtas, imóveis como folhas de bronze, alternavam regularmente; o caminho, pavimentado com pedras azuis, estalava debaixo dos pés, e rosas abertas bordejavam toda a álea. Chegaram diante de um buraco oval, protegido com uma grade. Mâtho, a quem este silêncio confrangia, disse a Spendius:

- É aqui que se misturam as águas doces com as águas salgadas.

- Já vi tudo isso - retorquiu o antigo escravo -, na Síria, na cidade de Maphug. - E, por uma escada com seis degraus de prata, subiram para o terceiro recinto.

Um cedro enorme ocupava o meio. Os ramos mais baixos desapareciam sob os bocados de pano e colares que os fiéis ali tinham preso. Deram mais alguns passos e a fachada do templo apareceu.

Dois pórticos compridos, cujas arquitraves assentavam sobre pilares grossos, flanqueavam uma torre quadrangular, ornamentada na plataforma por um crescente. Nos quatro ângulos do pórtico e nos quatro cantos estavam vasos cheios de arómatas acesas. Romãs e coloquíntidas cobriam os capitéis. Cifras entrelaçadas, losangos, filas de pérolas alternavam-se nas paredes, e um fio de filigrana de prata formava um grande semicírculo diante da escadaria de bronze, que descia do vestíbulo.

Havia na entrada, entre uma esteia de ouro e uma esteia de esmeralda, um cone de pedra; Mâtho, ao passar ao lado, baixou a mão direita.

A primeira câmara era muito alta; havia inúmeras aberturas na abóbada; levantando a cabeça podiam ver as estrelas.

Em volta da muralha, nos cestos de cana, amontoavam-se as barbas e os cabelos, primícias dos adolescentes; e, no meio da sala circular, o corpo de uma mulher saía de um invólucro coberto de seios. Gorda, barbuda, e de pálpebras descidas, parecia sorrir com as mãos cruzadas sobre a parte de baixo do ventre enorme, polido pelos beijos.

Chegaram depois ao ar livre, num corredor transversal, onde estava um altar de proporções exíguas encostado a uma porta de marfim. Não se passava para o lado de lá; só os sacerdotes a podiam abrir, porque o templo não era local de reunião para as multidões, mas a morada particular da divindade.

- A empresa é impossível - dizia Mâtho. - Não tinhas pensado nisso! Voltemos!

Spendius examinava as paredes. Queria o véu, não porque tivesse confiança na sua virtude (Spendius só acreditava no Oráculo), mas estava persuadido de que os cartagineses, ao verem-se privados dele, cairiam num grande abatimento. Para encontrarem uma entrada deram a volta por trás.

Distinguiam-se, por baixo do pequeno bosque de lentiscos, edículas de forma diferente. Aqui e ali um falo de pedras; veados grandes passeavam tranquilamente, poisando as patas nas pinhas caídas.

Chegaram a duas galerias que corriam paralelas. Pequenas celas abriam para ali. Tamborins e címbalos estavam encostados às colunas de cedro. Mulheres dormiam nas celas, deitadas em esteiras. Os corpos, engordurados pelos unguentos, exalavam um cheiro a especiarias e perfumes queimados; estavam tão cobertas de tatuagens, colares, anéis, vermelhão, antimónio, que podiam passar, se não fosse o movimento do peito, por ídolos deitados no chão. Flores de lótus cercavam uma fonte onde nadavam peixes semelhantes aos de Salammbô; depois, ao fundo, contra a muralha do templo, estendia-se uma vinha cujos sarmentos eram de vidro e os cachos de esmeralda, os raios das pedras preciosas faziam jogos de luzes, entre as colunas pintadas, sobre os rostos adormecidos.

Mâtho sufocava na atmosfera quente que vinha das divisórias de cedro. Todos estes símbolos da fecundação, estes perfumes, estas luzes, este bafo, acabrunhavam-no. No meio destes deslumbramentos místicos pensava em Salammbô. Confundia-a com a própria deusa; e o seu amor crescia mais forte, como os grandes lótus que se estendiam sobre as águas.

Spendius calculava o dinheiro que teria ganho com a venda destas mulheres; e, ao passar, com um olhar rápido, avaliava os seus colares de ouro.

O templo era deste lado, como do outro, impenetrável. Voltaram atrás da primeira câmara. Enquanto Spendius procurava, investigava, Mâtho, diante da porta, dirigia-se a Tânita. Suplicava-lhe que não permitisse este sacrilégio. Tentava apaziguá-la com palavras ternas, como se faz com uma pessoa irritada.

Spendius descobriu uma abertura estreita por cima da porta.

- Levanta-te - disse a Mâtho, e mandou encostar, de pé, à parede. Depois, colocando um pé nas mãos dele, e o outro na cabeça, chegou à altura da pequena abertura, passou por ela e desapareceu. Depois Mâtho sentiu cair-lhe no ombro uma corda de nós, aquela que Spendius tinha enrolado em volta da cintura antes de penetrar nas cisternas; e, segurando-se com as duas mãos, encontrou-se daí a pouco numa grande sala escura.

Atentados como este eram uma coisa extraordinária. A insuficiência de meios para os evitar eram a prova de que os julgavam impossíveis. O terror, mais do que as paredes, defendia os santuários. Mâtho esperava morrer, a cada passo.

O luar vacilava no fundo das trevas; aproximaram-se. Era uma lâmpada que ardia numa concha sobre o pedestal de uma estátua, que tinha na cabeça a touca dos Cabiras. Discos de diamante estavam dispersos pelo seu longo vestido azul; e correntes, que partiam das lajes, ligavam-na ao chão pelos calcanhares. Mâtho reprimiu um grito. Balbuciava: «Ah! está ali! Está ali!»

Spendius pegou na lamparina para se iluminar.

- Que ímpio que tu és! - murmurou Mâtho. Todavia, seguiu-o.

A sala onde entrara nada mais tinha além de uma pintura preta, representando outra mulher. As pernas subiam até à parte de cima da parede. O corpo ocupava o tecto todo. Do umbigo pendia, preso por um fio, um ovo enorme, e passava para a outra parede, com a cabeça voltada para baixo, até ao nível das lajes, a que chegavam os dedos pontiagudos.

Para passarem adiante, afastaram uma tapeçaria; mas o vento soprou, e a luz apagou-se.

Erraram, então, perdidos nas complicações da arquitectura. De súbito sentiram debaixo dos pés uma coisa de uma suavidade estranha. Fagulhas cintilavam e brilhavam; caminhavam sobre o lume. Spendius tacteou o chão e verificou que estava cuidadosamente atapetado com peles de lince; depois pareceu-lhes que uma grossa corda molhada, fria e viscosa lhes deslizava entre as pernas. Fissuras, feitas na parede, deixavam passar pequenos raios brancos. Avançaram para esta luz incerta. Descobriram, por fim, uma grande serpente negra. Deslizou depressa e desapareceu.

- Fujamos! - gritou Mâtho. - É ela! Sinto-a; vem aí.

- Não! - respondeu Spendius - o templo está vazio.

Uma luz deslumbrante fê-los baixar os olhos. Depois viram em redor uma infinidade de animais, magros, arquejantes, as garras de fora, e postos uns por cima dos outros numa desordem misteriosa que fazia terror. As serpentes tinham patas, os touros tinham asas, os peixes com cabeça de homem devoravam frutos, e flores desabrochavam na boca dos crocodilos, e elefantes, de tromba levantada, passavam, orgulhosamente, como águias. Um esforço terrível distendia os seus membros incompletos ou multiplicados. Pareciam, ao mostrarem a língua, que queriam fazer sair a alma; e todas as formas se encontravam ali como se o receptáculo dos germes, numa eclosão súbita, se tivesse esvaziado pelas paredes da sala.

Doze globos de cristal azul limitavam-na circularmente, apoiados por monstros que pareciam tigres. As pupilas salientes como os olhos dos caracóis, e, curvando os dorsos largos, voltavam-se para o fundo, onde resplandecia, sobre um carro de marfim a Rabbet suprema, a Omnifecunda, a última inventada.

Escamas, penas, flores e aves subiam-lhe até ao ventre. Como brincos tinha cimbalos de prata que lhe batiam no rosto. Os olhos fixos olhavam a direito; uma pedra luminosa, encastoada na testa num símbolo obsceno, iluminava toda a sala, reflectindo-se por cima da porta, sobre os espelhos de cobre vermelho.

Mâtho deu um passo; uma das lajes cedeu sob os seus pés, e as esferas puseram-se a girar, os monstros a rugir; uma música elevou-se melodiosa e estrepitosa como a harmonia dos planetas; a alma tumultuosa de Tânita jorrava liberta. Ia levantar-se, grande como a sala, com os braços abertos. De repente todos os animais ferozes fecharam a boca; os globos de cristal deixaram de andar à roda.

Depois uma modulação lúgubre, espalhou-se pelo ar, durante algum tempo, acabando por se extinguir.

- O véu? - disse Spendius.

Não o viam em parte alguma. Onde é que estaria? Como é que o haviam de descobrir? E se os sacerdotes o tivessem escondido? Mâtho experimentava uma mágoa no coração e uma decepção na sua fé.

- Por aqui - cochichou Spendius. Uma inspiração guiava-o. Puxou Mâtho para trás do carro de Tânita, onde se via uma fenda com um côvado, na parede, de alto a baixo.

Penetraram numa pequena sala redonda, e tão alta que parecia o interior de uma coluna. Tinha no meio uma pedra grande preta meio esférica como um tamboril; havia chamas por cima; estava por trás um cone de ébano, com uma cabeça e dois braços.

Para lá, como que uma nuvem onde brilhavam estrelas; figuras apareciam nas profundezas das suas dobras; Eschmoun com as Cabiras, alguns dos monstros já vistos, os animais sagrados dos babilónios, depois outros que eles não conheciam. Algo passava como um manto diante dos olhos do ídolo, e, estendendo-se pela parede, estava preso nos ângulos mostrando-se ao mesmo tempo azul como a noite, amarelo como a aurora, púrpura como o Sol, harmonioso, diáfano, resplandecente, leve. Era o manto da deusa, o zaimph santo que não se podia ver. Empalideceram um e outro.

- Tira-o - disse por fim Mâtho.

Spendius não hesitou; apoiando-se no ídolo, despregou o véu que caiu no chão. Mâtho pôs a mão em cima; depois meteu a cabeça pela abertura, envolveu-se nele, e estendeu os braços para melhor se contemplar.

- Vamos embora! - disse Spendius.

Mâtho, ofegante, tinha os olhos fixos no chão. De súbito exclamou:

- E se eu fosse a casa dela? Já não tenho medo da beleza dela! O que é que ela pode fazer contra mim? Sou mais do que um homem, agora. Atravessaria as chamas, caminharia sobre o mar! É um ímpeto que me leva! É um ímpeto que me leva! Salammbô! Salammbô! Sou o teu senhor!

A sua voz ressoava. Spendius tinha a sensação de que ele estava mais alto e transfigurado.

Um barulho de passos que se aproximavam, uma porta que se abre, e um homem apareceu, um sacerdote, com o boné alto e os olhos arregalados. Sem lhe dar tempo para fazer um gesto, Spendius precipitou-se sobre ele, prendeu-o com os braços e espetou-lhe os seus dois punhais nos rins. A cabeça bateu ruidosamente contra as lajes.

Imóveis como cadáveres, ficaram algum tempo à escuta. Só se ouvia o murmúrio do vento pela porta entreaberta.

Dava para uma passagem estreita. Spendius penetrou por ali e Mâtho seguiu-o. Encontraram-se quase imediatamente no terceiro recinto, entre os pórticos laterais, onde estavam as habitações dos sacerdotes.

Por trás das celas devia haver, para se sair, um caminho mais curto. Apressaram-se.

Spendius, inclinando-se sobre o muro da fonte, lavou as mãos sujas de sangue.

As mulheres dormiam. A vinha de esmeralda brilhava. Puseram-se em marcha.

Alguém corria atrás deles, por baixo das árvores; e Mâtho, que levava o véu, sentiu várias vezes que lho puxavam por baixo, muito docemente. Era um grande cinocéfalo, um dos macacos que viviam em liberdade no recinto da deusa. Como se tivesse consciência do roubo, agarrava-se ao manto. Contudo, Mâtho não ousava bater-lhe, com medo de fazer aumentar os seus gritos; de súbito a sua cólera apaziguou-se, caminhava ao lado deles, balançando o corpo, com os braços compridos que pendiam. Depois, na sebe, com um salto, pulou para uma palmeira.

Quando saíram do último recinto, dirigiram-se para o palácio de Amílcar. Spendius compreendera que era inútil querer dissuadir Mâtho.

Tomaram pela rua dos Curtidores, pela praça de Muthumbal, o mercado das Forragens e o caminho de Cynasyn. Na esquina de um muro, um homem recuou, aterrorizado com aquela coisa brilhante que atravessava as trevas.

- Guarda o zaimph! - aconselhou Spendius. Cruzaram-se com outras pessoas; mas ninguém reparou neles. Reconheceram, por fim, as casas de Megara.

O farol, que ficava por trás, no cimo da falésia, iluminava o céu com um grande clarão vermelho, e a sombra do palácio, com os seus terraços sobrepostos, projectava-se sobre os jardins como uma pirâmide monstruosa. Entraram pela sebe de jujubeira, cortando os ramos com os punhais.

Tudo conservava ainda vestígios do festim dos mercenários.

Os parques estavam devastados, os regos secos, as portas do ergástulo abertas. Não saía ninguém das cozinhas ou das adegas. Estavam admirados com este silêncio, interrompido às vezes pelo sopro rouco dos elefantes que se agitavam nas suas jaulas, pelo crepitar do farol, onde ardia um ramo de aloés.

Mâtho, contudo, repetia:

- Onde é que ela está? Quero vê-la! Leva-me lá!

Olhava para eles de frente, sem falar. A um gesto de Mâtho, todos avançaram

- É uma loucura! - respondia Spendius. - Ela chamará, os escravos acorrerão, e, apesar da tua força, morrerás!

Chegaram assim à escada das galeras. Mâtho levantou a cabeça, e julgou ver, lá em cima, uma vaga claridade brilhante e suave. Spendius quis retê-lo; ele lançou-se pelas escadas.

E voltando aos lugares onde a tinha visto, o intervalo dos dias decorridos apagou-se na sua memória. Imediatamente ela começou a cantar entre as mesas; ela tinha desaparecido, e depois ele subia continuamente esta escadaria. O céu, sobre a sua cabeça, estava coberto de fogo; o mar estendia-se até ao horizonte; a cada um dos seus passos a imensidão que o rodeava tornava-se maior, e ele continuava a subir com a estranha facilidade que se experimenta nos sonhos.

O ruído do véu roçando nas pedras lembrava-lhe o seu poder novo: no excesso da sua esperança, já não sabia o que devia fazer; esta incerteza intimidou-o.

De vez em quando, encostava a cara às aberturas quadrangulares dos quartos fechados, e julgou ver várias pessoas a dormir.

O último andar, mais estreito, formava como que a base de uma coluna no cimo dos terraços. Mâtho subiu lentamente.

Uma luz leitosa enchia as folhas de talco que tapavam as pequenas aberturas da parede; e, simetricamente dispostas, pareciam nas trevas filas de pérolas finas. Reconheceu a porta vermelha com a cruz preta. As pancadas do coração redobraram. Teria querido fugir. Empurrou a porta e ela abriu-se.

Uma lâmpada em forma de galera ardia, suspensa na parte mais afastada do quarto; e três raios, que se escapavam da sua quilha de prata, tremeluziam nos lambris altos, pintados de vermelho com riscas pretas. O tecto era coberto de pequenas traves, que tinham ametistas no meio do dourado e topázios nos nós da madeira. Entre os dois cantos do quarto estava uma cama muito baixa, feita de correias brancas; e havia abóbadas em feitio de concha, que se abriam em cima, na espessura da parede e de onde saíam panejamentos que caíam até ao chão.

Uma bacia oval com uma cercadura de ónix; pantufas finas de pele de serpente estavam junto de um jarro de alabastro. Percebiam-se os traços de passos húmidos junto dela. Perfumes estranhos evaporavam-se.

Mâtho tocava ao de leve as lajes incrustadas de ouro, de nácar e de vidro; e, apesar do polimento do chão, parecia-lhe que os pés se afundavam como se caminhasse sobre areia.

Tinha visto por trás da lâmpada de prata um grande quadrado azul que estava suspenso por quatro cordas e avançou com as costas curvadas e a boca aberta.

Asas de quirópteros, presas a ramos de coral preto, apareciam por entre as almofadas de púrpura e os leques de escamas, as caixinhas de cedro, as espátulas de marfim. Em chifres de antílope estavam enfiados anéis e pulseiras; e vasos de barro refrescavam ao vento, na fenda da parede, sobre uma caniçada. Tropeçou várias vezes, porque o chão tinha diferentes níveis, que constituíam uma espécie de apartamentos dentro do mesmo quarto. Ao fundo, balaústres de prata cercavam um tapete semeado de flores pintadas. Chegou, enfim, junto do leito suspenso, perto de um escabelo de ébano que servia para subir à cama.

A luz ia até à beira; e a sombra, como uma grande cortina, só descobria o ângulo de um colchão vermelho com um pé poisado sobre o tornozelo. Mâtho puxou a lâmpada muito suavemente.

Dormia com o rosto sobre uma das mãos e o outro braço estendido. Os anéis do cabelo espalhavam-se em volta dela, eram tantos que ela parecia estar deitada num colchão de penas pretas, e a túnica branca e larga descia em pregas suaves até aos pés, seguindo as formas do corpo. Distinguiam-se ligeiramente os olhos sob as pálpebras semicerradas. As cortinas, perpendiculares ao leito, envolviam-na numa atmosfera azulada, e o movimento da respiração, comunicando-se às cordas, parecia balançá-la no ar. Um mosquito zumbia.

Mâtho, imóvel, segurava a galera de prata; o mosquiteiro inflamou-se de repente, desaparecendo, e Salammbô acordou.

O fogo extinguiu-se por si próprio. Ela não falava. A lâmpada fazia oscilar sobre os lambris grandes ondas de luz.

- O que é isto? - perguntou. Ele respondeu:

- É o véu da deusa!

- O véu da deusa! - exclamou Salammbô que, apoiada nas mãos fechadas, se inclinou para fora, tremendo. Ele prosseguiu:

- Fui procurá-lo para ti no interior do santuário! Olha! - O zaimph brilhava todo coberto de raios.

- Lembras-te? - dizia Mâtho. - À noite, aparecias nos meus sonhos; mas eu não conseguia adivinhar a ordem muda dos teus olhos! - Pôs um pé no escabelo de ébano. - Se eu tivesse compreendido, teria acorrido; teria abandonado o exército; não teria saído de Cartago. Para te obedecer, desceria à caverna de Hadrumeta no reino das Sombras!... Perdoa! era como se montanhas pesassem sobre os meus dias; e todavia havia qualquer coisa que me puxava! Procurava vir até ti! Sem os deuses, nunca teria ousado!... Partamos! é preciso seguir-me! ou, se tu não quiseres, eu fico. Que me importa!... Alimenta a minha alma com o ar que respiras! Que os meus lábios se aniquilem ao beijarem as tuas mãos!

- Deixa-me ver! - dizia ela. - Mais perto! Mais perto!

O dia começava a nascer, e uma luz pálida passava pelas folhas de talco das paredes. Salammbô encostou-se, desfalecendo, aos coxins do leito.

- Amo-te - exclamou Mâtho. Ela balbuciava:

- Dá-mo!

Aproximaram-se. Ela avançava de túnica branca com os seus olhos grandes presos no véu. Mâtho contemplava-a, deslumbrado com o esplendor da sua cabeça, e estendendo-lhe o zaimph, ia envolvê-la num abraço. Ela estendia os braços. De súbito ela parou e ficaram inclinados, olhando-se.

Sem compreender o que é que ele solicitava, sentiu-se tomada por uma espécie de horror. Franziu as sobrancelhas finas, entreabriu os lábios; tremia. Por fim, bateu numa das páteras de bronze que estavam suspensas no canto do colchão azul, gritando:

- Socorro! Socorro! Para trás, sacrílego! Infame! Maldito! Cheguem aqui! Taanach, Kroum. Ewa, Micipsa, Schaoul!

E o rosto amedrontado de Spendius, apareceu entre os jarros de argila.

- Foge! Eles vêm aí - gritou.

Ouviu-se um grande tumulto pelas escadas, e uma multidão de mulheres, criados, escravos, entrou de rompante no quarto com chuços, paus, cutelos, punhais. Ficaram como que paralisados de indignação ao verem um homem; as mulheres lançavam o pranto e os eunucos empalideciam sob a pele negra.

Mâtho estava atrás dos balaústres. Envolto no zaimph parecia um deus sideral no meio do firmamento. Os escravos iam atacá-lo. Ela fê-los parar.

- Não lhe toquem! É o manto da deusa!

Tinha recuado para um dos cantos; mas deu um passo para ele, estendendo o braço nu:

- Que a maldição caia sobre ti, que tiraste o véu a Tânita! Ódio, vingança, chacina e dor! Que Gurzil, deus das batalhas, te fira. Que Mastiman, deus dos mortos, te estrangule! E que o outro, aquele cujo nome não é preciso dizer, te queime!

Mâtho deu um grito como se tivesse sido ferido por uma espada. Ela repetiu várias vezes:

- Vai-te embora! Vai-te embora!

Os criados afastaram-se, e Mâtho, baixando a cabeça, passou lentamente pelo meio deles; parou à porta, porque a franja do zaimph se tinha preso a uma das estrelas de ouro que estavam presas ao chão. Puxou-o, bruscamente, com o ombro e desceu as escadas.

Spendius, saltando de terraço em terraço e pulando por cima das sebes, das regueiras, tinha fugido para os jardins. Chegou ao pé do farol. A muralha neste ponto estava abandonada, de tal maneira a falésia era inacessível. Avançou até à borda, deitou-se de costas, e, com os pés para a frente, deixou-se deslizar até abaixo; atingiu a nado o cabo dos Túmulos, fez um grande desvio pela lagoa salgada, e à noite entrou no acampamento dos bárbaros.

O Sol já tinha nascido; e, como um leão que se afasta, Mâtho descia os caminhos, olhando em volta com uns olhos terríveis.

Um rumor indeciso chegava aos seus ouvidos. Partia do palácio, e recomeçava ao longe, do lado da Acrópole. Uns diziam que tinham roubado o tesouro da República do templo de Moloch; outros falavam de um sacerdote assassinado. Pensava-se além disso que os bárbaros tinham entrado na cidade.

Mâtho, que não sabia sair, caminhava a direito; viram-no; levantou-se um clamor. Todos tinham compreendido; sentiram uma consternação e depois uma cólera imensa.

Do fundo dos Mappales, do cimo da Acrópole, das catacumbas, das margens do lago, a multidão acorreu. Os patrícios saíam dos seus palácios, os vendedores das suas lojas; as mulheres abandonavam os filhos; pegaram nas espadas, nos machados, nos paus; mas o obstáculo que tinha detido Salammbô, deteve-os também. Como reaver o véu? Só vê-lo era um crime; era a natureza dos deuses e o seu contacto fazia morrer.

No peristilo dos templos, os sacerdotes desesperados apertavam os braços. Os guardas da Legião galopavam ao acaso; subiam para cima das casas, para os terraços, para os ombros dos colossos e para os mastros dos navios. Ele continuava a caminhar, e a cada um dos seus passos aumentavam a raiva e o terror. As ruas ficavam vazias à sua aproximação, e esta torrente de homens que fugia afluía dos dois lados até ao cimo das muralhas. Não via mais nada além de dois grandes olhos abertos como que para o devorar, dentes que batiam, punhos estendidos; e as imprecações de Salammbô repercutiam-se multiplicando-se.

De súbito, uma flecha comprida assobiou, depois outra, enquanto as pedras caíam; mas tanto umas como as outras, mal dirigidas (porque tinham medo de atingir o zaimph), passavam por cima da sua cabeça.

Fazendo do véu um escudo, puxava-o para a direita e para a esquerda e para diante e para trás; e eles não arranjavam nenhuma solução para isto. Ia cada vez mais depressa, seguindo pelas ruas desertas. Estavam bloqueadas com cordas, carros, armadilhas; em cada desvio, voltava para trás. Entrou, por fim, no palácio de Khamon, onde os baleares tinham perecido; Mâtho parou, empalidecendo como se fosse morrer. Estava perdido, desta vez; a multidão batia as palmas.

Correu até à porta fechada. Era muito alta, toda de ébano, com pregos de ferro e reforçada a bronze. Mâtho arremessou-se contra ela. O povo rejubilava vendo a impotência da sua fúria; agarrou na sandália, cuspiu e bateu nas tábuas imóveis. Toda a cidade gritava. O véu já estava esquecido, e iam atacá-lo. Mâtho olhou para a multidão com uma expressão vaga. As pulsações eram tão fortes que ele se sentia atordoado, dominado pelo embotamento daquela gente embriagada. De súbito, viu a corrente usada para manobrar a báscula da porta. Com um salto, esticando o braço, e apoiando os pés, agarrou-se a ela; e, por fim, os batentes enormes entreabriram-se.

Quando chegou lá fora, tirou do pescoço o grande zaimph e levantou-o sobre a cabeça o mais alto possível. O tecido, levantado pelo vento do mar, resplandecia ao sol com as suas cores, as suas pedras e o rosto dos deuses. Mâtho, levando-o assim, atravessou a planície até às tendas dos soldados; e o povo, nos muros, via partir a fortuna de Cartago.

 

                               HANÃO.

- DEVIA tê-la trazido! - dizia ele nessa noite a Spendius. - Devia ter-me apoderado dela, devia tê-la tirado de casa! Ninguém teria ousado fazer nada contra mim! Spendius não o ouvia. Deitado de costas, descansava satisfeito, perto de um jarro cheio de água adoçada com mel, onde de vez em quando mergulhava a cabeça para beber mais. Mâtho continuou:

- O que é que hei-de fazer?... Como é que hei-de voltar a entrar em Cartago?

- Não sei - respondeu Spendius. Esta impassibilidade exasperou-o.

- Eh! a culpa é tua! Levas-me e depois abandonas-me; és um cobarde! Porque é que eu havia de te obedecer? Julgas que és o meu senhor? Ah! prostituidor, escravo, filho de escravo! - dizia ele rangendo os dentes e levantando a mão para Spendius.

O grego não respondeu. Uma lâmpada de argila ardia brandamente contra o mastro da tenda, onde o zaimph brilhava na panóplia.

De súbito, Mâtho calçou os coturnos, vestiu o colete de lâminas de bronze e pegou no capacete.

- Onde vais? - perguntou Spendius.

- Vou voltar! Deixa-me! Hei-de trazê-la! E se eles aparecerem, esmago-os como cobras! Ela vai morrer, Spendius.

E repetiu:

- Sim! Vou matá-la! Verás, matá-la-ei.

Spendius, que estava à escuta, pegou bruscamente no zaimph e atirou-o para um canto, deitando-lhe para cima algumas peles. Ouviu-se um murmúrio de vozes, archotes brilhavam e Narr'Havas entrou, seguido por uns vinte homens.

Traziam capas de lã branca, punhais compridos, golas de couro, brincos de madeira, calçado de pele de hiena; e, ficando à entrada, apoiaram-se nas lanças como se fossem pastores. Narr'Havas era o que estava melhor; tiras enfeitadas com pérolas apertavam-lhe os braços; uma espécie de diadema de ouro segurava-lhe o manto de onde caía, para trás do ombro, uma pena de avestruz; um sorriso permanente descobria-lhe os dentes; os olhos pareciam aguçados como flechas, e havia em toda a sua pessoa qualquer coisa de atento e subtil.

Declarou que se vinha juntar aos mercenários porque a República ameaçava há muito o seu reino. Tinha, por isso, interesse em socorrer os bárbaros, e podia também ser-lhe útil.

- Fornecer-vos-ei elefantes (nas minhas florestas há muitos), vinho, azeite, cevada, tâmaras, pez e enxofre para os cercos, vinte mil soldados de infantaria e dez mil cavalos. Se me dirijo a ti, Mâtho, é porque a posse do zaimph te tornou o primeiro do exército- afirmou ele, acrescentando: - Somos velhos amigos, aliás.

Mâtho olhava para Spendius, que ouvia sentado nas peles de carneiro, fazendo com a cabeça pequenos sinais de assentimento. Narr'Havas falava. Tomava os deuses por testemunhas, maldizia Cartago. Nas suas imprecações partiu um dardo. Todos os seus homens deram ao mesmo tempo um grito, e Mâtho, levado por esta cólera, declarou que aceitava a aliança.

Trouxeram um touro branco e uma ovelha preta, símbolo do dia e da noite. Mataram-nos à beira de uma fossa. Quando esta estava cheia de sangue, mergulharam lá os braços. Depois Narr'Havas pôs a mão no peito de Mâtho, Mâtho pôs a sua no peito de Narr'Havas. Repetiram este estigma no pano das suas tendas. Passaram a noite a comer, e os restos da carne foram queimados com as peles, os ossos, os chifres e as unhas.

Mâtho fora recebido com uma aclamação imensa, quando regressou com o véu da deusa; os que não eram de religião cananeia sentiram um vago entusiasmo por este génio que aparecia. Quanto a tentar apoderarem-se do zaimph, ninguém pensou nisso; a maneira misteriosa como ele o tinha conseguido bastava, no espírito dos bárbaros, para legitimar a sua posse. Assim pensavam os soldados de raça africana. Os outros, cujo ódio era menos antigo, não sabiam que pensar. Se tivessem barcos, ter-se-iam ido imediatamente embora.

Spendius, Narr'Havas e Mâtho enviaram homens a todas as tribos do território púnico.

Cartago extenuava o seu povo. Lançava impostos exorbitantes; os ferros, o machado e a cruz puniam os retardatários e até mesmo os que murmuravam. Era preciso cultivar o que convinha à República, fornecer o que ela exigia; ninguém tinha o direito de possuir uma arma; quando uma aldeia se revoltava, vendiam-se os habitantes; os governadores eram considerados prensas, segundo a quantidade que faziam render. Para lá das regiões directamente submetidas a Cartago, havia os aliados que só pagavam um tributo medíocre; depois dos aliados vinham os nómadas, que se podiam abandonar a si próprios. Por este sistema, as colheitas eram sempre abundantes, as coudelarias suavemente conduzidas, as plantações soberbas. O velho Catão, um mestre em lavoura e escravos, noventa e dois anos mais tarde ficou atónito com isto, e o grito de morte que repetia em Roma não era senão a exclamação de uma cupidez invejosa.

Durante a última guerra, as exacções tinham redobrado, enquanto as cidades da Líbia, quase todas, se tinham entregue a Régulo. Para os castigar, tinham-lhe exigido mil talentos, vinte mil bois. trezentos sacos de pó de ouro, quantidades consideráveis de cereais, e os chefes das tribos tinham sido crucificados ou deitados aos leões.

Tunes, sobretudo, odiava Cartago! Mais antiga que a metrópole, não lhe perdoava a sua grandeza; estava diante dos seus muros, presa na lama, à beira de água, como um animal venenoso olhando para ela. As deportações, as chacinas e as epidemias não a enfraqueciam. Tinha suportado Archate, filho de Agátocles. Aqueles que comiam coisas imundas encontraram aí, imediatamente, armas.

Os mensageiros ainda não tinham partido e já nas províncias reinava uma alegria universal. Sem esperarem por mais nada, estrangularam nos banhos os intendentes das casas e os funcionários da República; retiraram-se das cavernas as armas que estavam escondidas; com o ferro das charruas fizeram-se espadas; as crianças, às portas, aguçavam dardos, e as mulheres deram os colares, anéis, brincos, tudo o que podia servir para a destruição de Cartago. Todos queriam contribuir. Havia pilhas de lanças nos burgos, como medas de milho. Enviavam-se animais e prata. Mâtho pagou imediatamente o soldo; e esta ideia de Spendius valeu-lhe ser nomeado general-chefe, schalischim dos bárbaros.

Ao mesmo tempo, afluíam homens. Primeiro apareceu gente de raça autóctone, depois os escravos dos campos. Caravanas de negros foram apanhadas, armaram-nos, e os comerciantes que iam a Cartago na esperança de um lucro mais certo, juntaram-se aos bárbaros. Chegavam incessantemente grupos numerosos. Do cimo da Acrópole via-se o exército que aumentava.

Sobre a plataforma do aqueduto, os guardas da Legião estavam de sentinela; e perto deles, a distâncias regulares, viam-se cubas de bronze onde fervia pez. Em baixo, na planície, a grande multidão agitava-se tumultuosamente. Estavam indecisos, experimentando o embaraço que as muralhas inspiram sempre aos bárbaros.

Útica e Hippo-Zaryte não quiseram entrar na aliança.

Colónias fenícias como Cartago, tinham o seu governo próprio, e, nos tratados estabelecidos com a República, faziam incluir cláusulas que as distinguissem. Respeitavam, todavia, esta irmã mais forte, que as protegia e não estavam convencidas de que aquele grupo desordenado de bárbaros fosse capaz de a vencer; seriam, pelo contrário, exterminados. Queriam ficar neutras e viver tranquilas.

Mas a sua posição tornava-as indispensáveis. Útica, ao fundo de um golfo, estava em boa posição para levar a Cartago o socorro exterior. Se só Útica fosse conquistada, Hippo-Zaryte, a seis horas de distância pela costa, substituí-la-ia, e a metrópole, assim revitalizada, tornar-se-ia inexpugnável.

Spendius queria que se fizesse imediatamente o cerco. Narr'Havas discordava; era preciso primeiro ir à fronteira. Era a opinião dos veteranos, a do próprio Mâtho, e foi decidido que Spendius iria atacar Útica e Mâtho Hippo-Zaryte; o terceiro corpo do exército, tendo como apoio Tunes, ocuparia a planície de Cartago; Autharite encarregou-se disso. Quanto a Narr'Havas, devia voltar ao seu reino para ir buscar elefantes, e com a sua cavalaria ocupar as estradas.

As mulheres aprovaram esta decisão; cobiçavam as jóias das mulheres púnicas. Os líbios também quiseram ir. Tinham-nos chamado contra Cartago, e iam partir! Os soldados partiram quase sozinhos. Mâtho comandava os seus companheiros com os iberos, os lusitanos, os homens do ocidente e das ilhas e todos os que falavam grego tinham pedido para irem com Spendius por causa do seu espírito.

Foi com grande surpresa que viram o exército partir de um momento para o outro; afastou-se pela serra de Ariane, pelo caminho de Útica, do lado do mar. Uma parte ficou diante de Tunes, o resto desapareceu, e reapareceu na margem do golfo, na orla do bosque, onde penetrou.

Eram, talvez, uns oitenta mil homens. As duas cidades tírias não resistiram; regressaram a Cartago. Eram aguardados por um exército considerável que ocupava a base do istmo; e em breve se morreria de fome, porque a cidade não podia viver sem o auxílio das províncias, os cidadãos, como acontecia com Roma, não pagavam contribuições. Faltava a Cartago o génio político. A sua eterna avidez impedia-a de ter esta prudência que as ambições mais altas dão. Galera ancorada na areia líbia, mantinha-se à força de trabalho. As nações, como as ondas, rugiam em volta dela, e a mais pequena tempestade abalava esta máquina formidável. O tesouro esgotara-se na guerra romana, fora desperdiçado, perdido, enquanto se negociava com os bárbaros. Precisava, contudo, de soldados, e nenhum governo confiava na República! Ptolomeu tinha-lhe recusado, há pouco, dois mil talentos. Além disso, o roubo do véu desencorajava-os. Spendius bem o previra. Este povo que se sentia odiado, tinha, porém, no fundo do seu coração, o seu dinheiro e os seus deuses; e o seu patriotismo era mantido pela própria constituição do seu governo.

Primeiro, o poder dependia de todos, sem que houvesse alguém suficientemente forte para o monopolizar. As dívidas particulares eram consideradas como dívidas públicas. Os homens de raça cananeia tinham o monopólio do comércio. Multiplicando os benefícios da pirataria pelos da usura, explorando rudemente as terras, os escravos e os pobres, chegavam às vezes à riqueza. Só ela abria todas as magistraturas; e, embora o poder e o dinheiro se perpetuassem nas mesmas famílias, tolerava-se a oligarquia, porque havia a esperança de a atingir.

As sociedades de comerciantes, onde se elaboravam as leis, escolhiam os inspectores das finanças, que, ao deixarem o seu cargo, nomeavam os cem membros do conselho dos anciães, dependentes por sua vez da Grande Assembleia, reunião geral de todos os ricos. Quanto aos dois sufetes, a estes vestígios de monarquia, menos do que cônsules, eram escolhidos no mesmo dia em duas famílias distintas. Entregavam-se a toda a espécie de ódios para se enfraquecerem reciprocamente. Não podiam fazer deliberações sobre a guerra; e, quando eram vencidos, o Grande Conselho crucificava-os.

Assim a força de Cartago emanava dos sissitas, quer dizer, de um grande palácio no centro de Malqua, no local em que, segundo se dizia, tinha abordado a primeira barca com marinheiros fenícios, mas que estava agora bastante afastado do mar. Era um conjunto de pequenas salas de uma arquitectura arcaica, com troncos de palmeira, com os ângulos das paredes de pedra, e separados uns dos outros para receber os diferentes grupos. Os ricos estavam ali todo o dia, para debater os assuntos que lhes interessavam e os que interessavam ao governo, desde a questão da pimenta até ao extermínio de Roma. Três vezes por lua mandavam colocar os leitos no terraço que dava para o muro do palácio; podiam ser vistos sentados à mesa, sem coturnos e sem capas, com os diamantes nos dedos que passeavam sobre as carnes e os brincos grandes que caíam entre os jarros, fortes e gordos, meio despidos, felizes, rindo e comendo em pleno azul, como grandes tubarões divertindo-se no mar.

Neste momento, todavia, não podiam disfarçar a sua inquietação, estavam muito pálidos; a multidão que os esperava à porta escoltava-os até aos seus palácios para saber as novidades. Como nas alturas de peste, todas as casas estavam fechadas; as ruas enchiam-se e ficavam desertas de um momento para o outro; subiam à Acrópole ou corriam para o porto; todas as noites o Grande Conselho deliberava. Por fim, o povo foi convocado ao palácio de Khamon, onde se decidiu entregar tudo a Hanão, o vencedor de Hecatompyle.

Era um homem devoto, astuto, impiedoso para os povos da África, um verdadeiro cartaginês. Os seus bens eram iguais aos de Barca. Ninguém tinha uma experiência como a dele nas coisas da administração.

Decretou o alistamento de todos os cidadãos válidos, colocou catapultas nas torres, exigiu provisões de armas exorbitantes, ordenou mesmo a construção de catorze galeras que não eram precisas; e exigiu que tudo fosse registado, cuidadosamente escrito. Ia ao arsenal, ao farol, ao tesouro dos templos; a sua liteira era constantemente vista balançando-se de degrau em degrau, pela escadaria da Acrópole. No seu palácio, à noite, como não podia dormir, para se preparar para a batalha, berrava, com uma voz terrível, manobras de guerra.

Toda a gente, por excesso de terror, se tornava valente. Os ricos, desde o cantar do galo, que se alinhavam ao longo das Mappales; e, pegando nas túnicas exercitavam-se no manejo da lança. Mas, à falta de instrutores, lutavam uns com os outros; sentavam-se, estafados, nos túmulos, depois recomeçavam. Alguns impuseram a si próprios um programa. Uns, pensando que era preciso comer muito para arranjar forças, comiam muito, e outros, incomodados pela corpulência, faziam dietas rigorosas para emagrecerem.

Útica já tinha pedido várias vezes socorro a Cartago. Mas Hanão não queria partir enquanto não estivesse colocado o último prego nas máquinas de guerra. Perdeu ainda três luas a equipar os mil e duzentos elefantes que estavam instalados na muralha; eram os vencedores de Régulo; o povo gostava muito deles; era pouco tudo o que se fizesse por estes velhos amigos. Hanão mandou fundir placas de bronze para enfeitar o peitoral, dourar as suas defesas, aumentar as suas torres, e fazer em púrpura os mais belos caparazões bordados com franjas muito pesadas. Depois convocou os seus condutores indianos (designação dada porque os primeiros vieram, sem dúvida, da índia) e ordenou que se vestissem à moda da índia, quer dizer, com barretes brancos acolchoados nas fontes, e calção de bisso, cujas pregas transversais formavam como que duas metades de uma concha aplicada sobre as ancas.

O exército de Autharite continuava diante de Tunes. Escondia-se por trás de um muro feito com a lama de um lago e defendido no cimo por silvas. Os negros tinham colocado, aqui e ali, em grandes paus, caras horríveis, máscaras humanas formadas com penas de aves, cabeças de chacal ou de serpente que abriam a boca ao inimigo para o amedrontar; e, por este meio, julgando-se invencíveis, os bárbaros dançavam, lutavam e divertiam-se, convencidos de que Cartago não tardaria a perecer; outro que não fosse Hanão teria esmagado facilmente esta multidão, embaraçada pelos animais e pelas mulheres; além disso, não compreendiam nenhuma manobra e Autharite, desencorajado, já não exigia mais nada.

Afastavam-se, quando ele passava olhando em volta com os seus grandes olhos azuis. Depois, quando chegava à beira do lago, tirava o colete de pele de foca, desatava a fita que prendia os longos cabelos ruivos e mergulhava-os na água. Estava arrependido de não ter desertado para se entregar aos romanos com os dois mil gauleses do templo de Eryx.

Às vezes, durante o dia, o Sol perdia, de súbito, o brilho dos seus raios. Então, o golfo e o mar na maré cheia pareciam imóveis como chumbo fundido. Uma nuvem de poeira castanha, em linhas perpendiculares, corria em turbilhão; as palmeiras curvavam-se, o céu desaparecia, ouviam-se cair pedras nas garupas dos animais; e os gauleses, com os lábios colados aos buracos das tendas, tremiam de cansaço e de melancolia. Sonhavam com o cheiro das pastagens nas manhãs de Outono, com os flocos de neve, com os mugidos dos auroques perdidos no nevoeiro; e, fechando os olhos, julgavam ver o fumo das cabanas compridas, cobertas de palha, tremer nos pântanos, ao fundo dos bosques.

Havia outros que pensavam na pátria, embora esta não estivesse muito longe. Os cartagineses cativos podiam distinguir do lado de lá do golfo, na encosta de Byrsa, os velários das suas casas, mas as sentinelas andavam continuamente em volta deles. Estavam todos presos a uma corrente comum. Cada um tinha uma golilha de ferro e a multidão não se cansava de os vir ver. As mulheres mostravam às crianças os fatos de pele de carneiro, que pendiam dos membros emagrecidos.

Todas as vezes que pensava em Gíscon, Autharite sentia ira ao recordar a sua injúria; tê-lo-ia morto se não fosse o juramento que tinha feito a Narr'Havas. Entrava então na tenda, bebia uma mistura de cevada e cominho até se embriagar para acordar, manhã alta, devorado por uma sede horrível.

Mâtho, entretanto, cercava Hippo-Zaryte.

A cidade estava protegida por um lago que comunicava com o mar. Tinha três recintos, e na parte mais alta havia um muro fortificado com torres. Nunca comandara nenhuma empresa como esta. Contudo, o pensamento de Salammbô obcecava-o, e sonhava com os prazeres da sua beleza, como as delícias de uma vingança que o enchia de orgulho. Era uma necessidade voltar a vê-la desabrida, furiosa, permanente. Tinha mesmo o sonho de se oferecer como negociador, na esperança de, uma vez em Cartago, chegar até ela. Dava muitas vezes o sinal de assalto, e, sem esperar por mais nada, lançava-se sobre o molhe que procuravam construir no mar. Arrancava as pedras com as mãos, virava, partia, espetava a espada por toda a parte. Os bárbaros precipitavam-se desordenados; as escadas partiam-se com grande estrondo, e muitos homens precipitavam-se nas águas que formavam ondas vermelhas contra os muros; o tumulto diminuía, e os soldados afastavam-se para recomeçar.

Mâtho ia-se sentar fora das tendas; enxugava o rosto salpicado de sangue com o braço, e, voltado para Cartago, olhava para o horizonte.

Diante dele, oliveiras, palmeiras, murtas e plátanos, estendiam-se por dois grandes pântanos que se ligavam a um lago cujos contornos não se percebiam. Por trás de uma montanha surgiam outras montanhas e, no meio do lago imenso, surgia uma ilha toda preta de forma piramidal. Sobre a esquerda, na extremidade do golfo, montes de areia pareciam grandes vagas loiras paradas, enquanto o mar, plano como um lajedo de lápis-lazúli, subia insensivelmente até ao céu. A verdura dos campos desaparecia em alguns locais sob longas placas amarelas; as alfarrobas brilhavam como botões de coral; pâmpanos caíam dos sicômoros; ouvia-se o murmúrio da água; as cotovias de poupa saltavam, e os últimos fogos do Sol douravam a carapaça das tartarugas que saíam dos juncos para suspirar a brisa.

Mâtho suspirava alto. Deitava-se de bruços; metia as unhas na terra e chorava; sentia-se miserável, fraco, abandonado. Nunca a possuiria. Nem sequer conseguia conquistar uma cidade.

À noite, sozinho, na sua tenda, contemplava o zaimph. Para que é que esta coisa dos deuses servia? E as dúvidas apossavam-se do pensamento do bárbaro. Depois, parecia-lhe que, pelo contrário, a veste da deusa dependia de Salammbô, e que uma parte da sua alma pairava ali mais subtil que um sopro; apalpava-o, cheirava-o, afogava ali o rosto, beijava-o soluçando. Cobria os ombros para ter a ilusão de que estava ao pé dela.

Às vezes desaparecia, passando por cima dos soldados que dormiam enrolados em mantas, montava no seu cavalo, e, duas horas mais tarde, encontrava-se em Útica na tenda de Spendius.

Primeiro, falava do cerco; mas viera unicamente para aliviar a sua dor falando de Salammbô; Spendius recomendava-lhe prudência.

- Afasta da tua alma essas misérias que a degradam! Tu obedecias outrora, agora comandas um exército, e se Cartago não for conquistada, vai ceder-nos províncias; tornar-nos-emos reis!

Como é que a posse do zaimph não lhes trazia a vitória? Segundo Spendius, era preciso esperar.

Mâtho pensava que o véu dizia exclusivamente respeito aos homens de raça cananeia, e, na sua subtileza de bárbaro dizia: «Desta forma, o zaimph não fará nada por mim; mas como eles o perderam também não fará nada por eles.»

A seguir, começou a sentir escrúpulos. Tinha medo, de, ao adorar Aptouknos, o deus dos líbios, ofender Moloch; e perguntou timidamente a Spendius a qual dos deuses seria bom sacrificar um homem.

- Sacrifica sempre! - respondeu Spendius, rindo.

Mâtho, que não compreendia esta indiferença, desconfiou de que o grego tinha um génio de que não queria falar.

Todos os cultos, como todas as raças, estavam representados neste exército bárbaro, e respeitavam-se os deus dos outros porque se temiam também. Muitos juntavam à sua religião natal práticas estranhas.

Embora não quisessem adorar as estrelas, esta constelação era tida como funesta, aquela como auxiliadora e faziam-lhes sacrifícios; um amuleto desconhecido, encontrado, por acaso num perigo, tornava-se uma divindade; ou era um nome, nada mais do que um nome que se repetia sem mesmo se procurar compreender o seu significado. Mas, à força de terem pilhado templos, visto tantas nações e morticínios, muitos acabavam por não acreditar senão no destino e na morte; e, adormeciam, todas as noites, na tranquilidade dos animais ferozes. Spendius teria cuspido nas imagens de Júpiter o Olímpico; todavia, não ousava falar em voz alta na escuridão, e não deixava, todos os dias, de calçar primeiro o pé direito.

Diante de Útica havia um grande terraço quadrado. Mas, à medida que subia, a muralha crescia também; o que era destruído por uns, era quase imediatamente levantado por outros. Spendius dirigia os seus homens, sonhava com os seus planos; tentava lembrar-se dos estratagemas de que ouvira falar nas suas viagens. Porque é que Narr'Havas não voltava? Havia já bastante inquietação.

Hanão tinha terminado os seus preparativos. Numa noite sem lua, deu ordem para as jangadas atravessarem o golfo de Cartago com os elefantes e soldados. Depois contornaram a serra das Águas-Quentes para evitarem Autharite, e continuaram com uma lentidão tal que, em vez de surpreenderem os bárbaros uma manhã, como o sufete tinha pensado, chegaram com o Sol alto, no terceiro dia de viagem.

Útica tinha, do lado do Oriente, uma planície que se estendia até à grande lagoa de Cartago; por trás limitava em ângulo recto um vale compreendido entre duas serras baixas que terminavam abruptamente; os bárbaros estavam acampados mais adiante para a esquerda, de forma a bloquearem o porto; dormiam nas suas tendas (nesse dia os dois grupos, demasiado fatigados para combater, descansavam), quando, surgindo de trás das colinas, o exército cartaginês apareceu.

Os soldados armados com fundas estavam espaçados pelas alas. Os guardas da Legião, com as armaduras de escamas de ouro, formavam a primeira linha, com os seus cavalos grandes sem crina, sem pêlos, sem orelhas, e que tinham no meio da fronte um chifre de prata para os tornar semelhantes aos rinocerontes. Entre os seus esquadrões, jovens, com um pequeno capacete, balançavam em cada mão um dardo de freixo; as lanças compridas da infantaria pesada vinham atrás. Todos estes homens traziam em cima de si o maior número possível de armas; havia quem trouxesse ao mesmo tempo uma lança, um machado, um maço, duas espadas; outros, com porcos-espinhos, estavam eriçados de dardos, e os seus braços saíam das couraças de lâminas de chifre ou de placas de ferro. Por fim apareceram os andaimes das máquinas altas: carrobalistas, onagros, catapultas e escorpiões, oscilando sobre carros puxados por mulas e quadrigas de bois; e à medida que as forças iam avançando, os comandantes, afadigados, corriam da direita e da esquerda para comunicarem ordens, fazerem cerrar fileiras -e manterem os intervalos. Os anciães que tinham vindo para comandar, vestiam casacas púrpuras cujas franjas magníficas se embaraçavam nas correias dos coturnos. Os rostos, todos cobertos de vermelhão, reluziam sob os capacetes enormes enfeitados com deuses; e, como tinham colares debruados de marfim coberto com pedrarias, pareciam sóis passando sobre paredes de bronze.

Os cartagineses manobravam tão pesadamente que os soldados, por troça, apanharam-nos quando se iam a sentar. Declaravam, gritando, que lhes iam esvaziar os ventres grandes, limpar o dourado da pele e fazê-los beber ferro.

No alto do mastro colocado diante da tenda de Spendius, apareceu um cordeiro de tecido verde: era o sinal. O exército cartaginês respondeu com trombetas, timbales, flautas de osso de burro que tocavam ruidosamente. Os bárbaros já tinham saltado para fora da paliçada. Estavam armados com dardos e encontravam-se face a face.

Um besteiro balear avançou um passo, colocou na correia uma das suas balas de argila, voltou o braço; um colar de marfim partiu-se e os dois exércitos misturaram-se.

Com a ponta das lanças, os gregos, picando os cavalos nas narinas, fizeram-nos voltar-se contra os cavaleiros. Os escravos que deviam lançar as pedras tinham-nas escolhido muito grandes; caíam junto deles. Os soldados de infantaria púnicos, ao levantarem as espadas compridas, descobriam o flanco direito. Os bárbaros forçaram as suas linhas; degolavam-nos à espada; estrebuchavam sobre os moribundos e os cadáveres, cegos pelo sangue que lhes escorria do rosto. Este monte de lanças, capacetes, couraças e membros, voltava-se sobre si próprio, alargando-se e fechando-se com contracções elásticas. As coortes cartaginesas abriam-se cada vez mais, as máquinas não podiam sair da areia; de súbito, a liteira do sufete (a sua grande liteira de berloques de cristal), que se via desde o princípio, balançada pelos soldados como uma barca sobre as ondas, desapareceu. Teria morrido? Os bárbaros estavam sozinhos.

A poeira em volta deles caía e começavam a cantar, quando o próprio Hanão apareceu em cima de um elefante. Estava de cabeça descoberta, debaixo de um guarda-sol de bisso, que um negro que vinha atrás segurava. O colar de placas azuis assentava sobre as flores da túnica preta; aros de diamantes comprimiam os seus braços, e, com a boca aberta, brandia uma lança enorme, que se abria na extremidade como um lótus e era mais brilhante do que um espelho. De repente a terra estremeceu, e os bárbaros viram correr, numa única linha, todos os elefantes de Cartago com as defesas douradas, as orelhas pendentes azuis, revestidos de bronze, e sacudindo por baixo dos caparazões de escarlate torres de couro, onde os archeiros, três em cada uma, mantinham um grande arco aberto.

Os soldados quase não tinham armas; tinham-se colocado ao acaso. Um terror gelou-os; ficaram indecisos. Já do alto das torres os atacavam com dardos, flechas, lanças; com maços de chumbo; alguns para subirem agarravam-se às franjas das caparazões. Com cutelos cortavam-lhes as mãos e caíam sobre as espadas estendidas. As lanças muito fracas partiam-se, os elefantes passavam como javalis por tufos de ervas; arrancaram as estacas do campo com as trombas, atravessaram-no de um lado ao outro voltando as tendas com o peito; todos os bárbaros tinham fugido. Escondiam-se nas colinas que limitavam o vale por onde os cartagineses tinham vindo.

Hanão, vencedor, apresentava-se diante das portas de Útica. Fez soar a trombeta. Os três juízes da cidade apareceram, no cimo de uma torre, na abertura das ameias.

A gente de Útica não queria receber hóspedes tão armados. Hanão ficou zangado. Por fim, consentiram em deixar entrar uma pequena escolta.

As ruas eram muito estreitas para os elefantes. Foi preciso deixá-los lá fora.

Logo que o sufete entrou na cidade, as individualidades mais importantes foram saudá-lo. Ordenou que o levassem aos banhos públicos e chamou os cozinheiros.

Três horas mais tarde, ainda estava mergulhado no óleo cinamomo de que tinham cheio a bacia; e, enquanto tomava banho, comia, sobre uma pele de boi estendida, línguas de fenicópteros com grãos de dormideira tratados com mel. Junto dele, o seu médico grego, imóvel na longa túnica amarela, mandava de vez em quando aquecer o banho, e dois jovens, inclinados sobre os degraus, esfregavam-lhe as pernas. Mas os cuidados com o corpo não prejudicavam o seu amor pela causa pública, porque ditava uma carta para o Grande Conselho, e, como acabavam de fazer prisioneiros, perguntava a si próprio que castigo terrível inventar.

- Pára! - disse ele a um escravo que escrevia, de pé, na palma da mão. - Tragam-nos! Quero vê-los.

E, do fundo da sala cheia de um vapor esbranquiçado, onde os archotes projectavam manchas vermelhas, surgiram três bárbaros: um samnita, um espartano e um capadócio.

- Continua! - ordenou Hanão.

- Rejubilai, luz dos Baals! O vosso sufete exterminou os cães vorazes! Bênçãos para a República! Ordenai preces! - Viu, então, os cativos, e desatando a rir disse: - Ah! ah! meus bravos de Sicca! Não vão falar assim tão alto hoje! Sou eu! Reconhecem-me? Onde estão as vossas espadas? Que homens terríveis, na verdade! E fingia que se queria esconder, como se tivesse medo. - Pedem cavalos, mulheres, terras, magistraturas, sem dúvida, e sacerdotes! Porque não? Pois bem, vou fornecer-vos terras de onde nunca mais saireis! Vão ligar-vos a potências inteiramente novas! O vosso soldo! Será fundido na boca em lingotes de chumbo! e eu colocar-vos-ei em bons lugares, no meio das nuvens, para estarem próximos das águias!

Os três bárbaros, cabeludos e cobertos de andrajos, olhavam-no sem compreenderem o que é que ele dizia. Feridos nos joelhos, tinham-nos apanhado deitando-lhes cordas, e as correntes grossas das mãos, presas pela extremidade, arrastavam-se pelas lajes. Hanão indignou-se com a sua impassibilidade.

- De joelhos! De joelhos! Chacais! Poeira! Vermes! Excrementos! E não respondem! Basta! Ficam calados! Esfolem-nos vivos! Não! Imediatamente!

Soprava como um hipopótamo, revirando os olhos. O óleo perfumado escorria debaixo da massa do seu corpo, e, colando-se às escamas da pele, à luz dos archotes, fazia-a parecer cor-de-rosa.

Continuou:

- Sofremos muito com o Sol durante quatro dias. Na travessia do Maçar, os machos perderam-se. Apesar da sua posição de coragem extraordinária... Ah! Demónades! como sofro! Aqueçam os tijolos, aqueçam-nos até ficarem vermelhos!

Ouviu-se o barulho de ancinhos e dos fornos. O incenso saiu mais forte dos grandes turíbulos e os massagistas, todos nus, que suavam como esponjas, colocaram-lhes nas articulações uma pasta composta de trigo candial, enxofre, vinho tinto, leite de cadela, mirra, gálbano e estiráceas. Uma sede incessante devorava-o; o homem vestido de amarelo não cedeu a este desejo, e estenderam-lhe uma taça de ouro onde fumegava um caldo de víbora:

- Bebe! - disse ele - para que a força das serpentes, nascidas do Sol, penetre na medula dos teus ossos, e tem coragem, oh, reflexo dos deuses! Tu sabes, além disso, que um sacerdote de Eschmoun observa em volta do Cão as estrelas cruéis de onde deriva a tua doença. Estão a tornar-se pálidas como as manchas da tua pele, e tu não deves morrer.

- Oh! sim, não é? - repetiu o sufete - não devo morrer! E dos seus lábios violáceos saiu um hálito mais nauseabundo que a exalação de um cadáver. Dois carvões pareciam arder no lugar dos olhos, que já não tinham sobrancelhas; um alto de pele rugosa pendia-lhe sobre a testa; as orelhas, afastando-se das fontes, começavam a crescer; e as rugas profundas que formavam semicírculos em volta das narinas davam-lhe um aspecto estranho e assustador, o aspecto de um animal feroz. A voz desnaturada parecia um rugido; disse:

- Talvez tenhas razão, Demónades? Com efeito, há úlceras que se fecharam. Sinto-me forte. Olha! vê como me delicio com estas iguarias!

E mais por ostentação do que por apetite, e para provar a si próprio que estava bem, servia-se de queijo e de orégãos, peixes sem espinhas, abóbora, ostras com ovos, rábanos silvestres, trufas e espetadas de aves. Olhando para os prisioneiros deleitava-se a imaginar o suplício deles. Lembrava-se, contudo, de Sicca, e a raiva de todas as suas dores transformava-se em injúrias contra

estes três homens.

- Ah! traidores! Ah! miseráveis! Infames! Malditos! A ultrajarem-me a mim, a mim, sufete! Os seus serviços, o preço do sangue! - Depois falando consigo próprio: - Perecerão todos! Não se venderá nem um só! Seria melhor levá-los para Cartago! Ver-me-iam... Mas eu não trouxe com certeza tantas correntes?

Escreve: Enviem-me... Quantos são eles? Vão perguntar a Muthum-bal! Vai! Sem piedade! E que me tragam num cesto todas as mãos cortadas!

Mas ouviram-se gritos estranhos, roucos e agudos ao mesmo tempo, na sala, por cima da voz de Hanão e do bater dos pratos que colocavam à volta dele. Redobraram e de repente sentiu-se o urro furioso dos elefantes, como se a batalha tivesse recomeçado. Havia grande tumulto em redor da cidade.

Os cartagineses não tinham tentado sequer perseguir os bárbaros. Tinham-se instalado ao pé do muro, com as suas bagagens, os criados, todo o seu conjunto de sátrapas; e divertiam-se nas suas belas tendas debruadas com pérolas, enquanto o campo dos mercenários era, na planície, simplesmente, um montão de ruínas. Spendius tinha recuperado a coragem. Enviou Zarxas a Mâtho, percorreu os bosques, reuniu os seus homens (as baixas não eram consideráveis) e furiosos por terem sido vencidos sem terem lutado, estavam a formar as suas linhas, quando descobriram uma cuba de óleo abandonada sem dúvida pelos cartagineses. Então Spendius mandou buscar porcos às quintas, salpicou-os com betume, deitou-lhes fogo e conduziu-os para Útica.

Os elefantes, amedrontados pelas chamas, fugiram. O terreno subia, atiravam-lhes com dardos, voltaram para trás; e com os grandes dentes de marfim e com os pés desventraram os cartagineses, asfixiaram-nos, esmagaram-nos. Os bárbaros desciam a colina atrás deles; o campo púnico sem paliçadas, foi saqueado logo à primeira carga e os cartagineses viram-se empurrados contra as portas, porque não as queriam abrir com medo dos mercenários. O dia nascia; do lado do ocidente apareceram os soldados de infantaria de Mâtho. Ao mesmo tempo apareceram cavaleiros; era Narr'Havas com os númidas. Saltando por cima de barrancos e silvados, perseguiram os fugitivos como quem caça lebres. Esta alteração na situação interrompeu o sufete. Gritava para que o viessem ajudar a sair do banho. Os três cativos continuavam diante dele.

Um negro (o mesmo que na batalha trazia o seu chapéu-de-sol) inclinou-se para o seu ouvido.

- E então - respondeu o sufete lentamente. - Ah! mata-os! - acrescentou num tom brusco.

O etíope tirou da cintura um punhal comprido, e as três cabeças caíram. Uma delas, rebolando por entre os restos do festim, saltou para a bacia, e aí ficou a flutuar durante algum tempo, de boca aberta, olhos fixos. A luz da manhã entrava pelas fendas da parede; os três corpos, deitados de bruços, jorravam sangue aos borbotões como três fontes e um lençol de sangue corria sobre os mosaicos cobertos de pó azul. O sufete meteu a mão neste líquido grosso e quente e esfregou os joelhos; era um remédio.

À noite fugiu da cidade com a sua escolta, e meteu-se pela montanha para se juntar ao seu exército.

Conseguiu encontrar os destroços.

Quatro dias mais tarde estava em Gorza, no alto de um desfiladeiro, quando os soldados de Spendius apareceram em baixo. Vinte lanças boas atacando a frente da coluna, tê-los-ia feito facilmente parar; os cartagineses viram-nos passar estupefactos. Hanão reconheceu na retaguarda o rei dos númidas; Narr'Havas inclinou-se para o saudar fazendo um sinal que ele não compreendeu.

Voltaram a Cartago com toda a espécie de terrores. Só andavam de noite; de dia, escondiam-se nos bosques e nos olivais. Em todas as caminhadas morriam alguns; por várias vezes julgaram que se tinham perdido. Chegaram, por fim, ao cabo de Hermeum, onde os barcos os foram buscar.

Hanão estava tão cansado, tão desesperado - a perda dos elefantes era o que mais o acabrunhava - que pediu veneno a Demónades. Aliás, sentia-se já preso à cruz.

Cartago não tinha força para se indignar com ele. Tinha perdido quatrocentos mil e novecentos e setenta e dois siclos de prata, quinze mil seiscentos e vinte e três shekels de ouro, dezoito elefantes, catorze membros do Grande Conselho, trezentos ricos, oito mil cidadãos, trigo para três luas, uma bagagem considerável e todas as máquinas de guerra! A deserção de Narr'Havas era certa, os dois cercos recomeçavam. O exército de Autharite estendia-se agora de Tunes a Rhades. Do alto da Acrópole, via-se no campo o fumo que subia até ao céu; eram os castelos dos ricos que ardiam.

Havia só um homem que podia ter salvo a República. Arrependiam-se de o terem avaliado mal, e até o partido da paz fez holocaustos pelo regresso de Amílcar.

O facto de ter visto o zaimph deixou Salammbô perturbada. Julgava ouvir, de noite, os passos da deusa, e acordava aterrada gritando. Mandava, todos os dias, levar alimentos aos templos. Taanach não tinha descanso para executar estas ordens e Schahabarim nunca a deixava.

 

                             BARCA.
O anunciador das luas, que estava de vigia todas as noites no alto do templo de Eschmoun, para assinalar com a trombeta as agitações do astro, viu uma manhã, do lado do ocidente, uma coisa semelhante a uma ave a roçar as asas compridas sobre a superfície do mar.

Era um navio de três ordens de remos; tinha um cavalo esculpido na proa. O Sol nascia; o anunciador das luas pôs a mão diante dos olhos; depois, pegando no clarim com o braço estendido, lançou sobre Cartago um grande clamor de bronze.

Saiu gente de todas as casas; não queriam acreditar nas palavras, discutiam, no molhe reuniu-se uma multidão. Reconheceram por fim a trirreme de Amílcar.

Avançava de uma maneira orgulhosa e feroz, a antena muito direita, a vela convexa ao longo do mastro, abrindo a espuma à sua volta; os remos enormes batiam na água em cadência; de vez em quando a extremidade da quilha, como a relha de um arado, aparecia; e, sob o beque que terminava a proa, o cavalo de cabeça de marfim, mergulhando os seus dois pés, parecia correr sobre as planícies do mar.

Na volta do promontório, como o vento tinha cessado, a vela caiu, e junto do piloto podia ver-se um homem de pé, de cabeça descoberta; era ele, o sufete Amílcar! Trazia em volta das ancas lâminas de ferro que reluziam; uma capa vermelha presa aos ombros deixava ver os braços; duas pérolas muito compridas pendiam-lhe das orelhas, e caía sobre o peito a barba preta e farta. Entretanto a galera passava por entre os rochedos e contornava o molhe, e a multidão seguia pelo lajedo gritando:

- Salve! Bênção! Olho de Khamon! Ah! liberta-nos! Foi um erro dos ricos! Querem que morras! Toma cautela, Barca!

Não respondia, como se o clamor dos oceanos e das batalhas o tivesse ensurdecido completamente. Mas quando chegou ao fundo da escada que descia da Acrópole, Amílcar levantou a cabeça, e, de braços cruzados, olhou para o templo de Eschmòun. Os seus olhos dirigiram-se mais para cima, para o grande céu azul; com uma voz áspera deu uma ordem aos marinheiros; a trirreme oscilou; tocou ao de leve no ídolo colocado no ângulo do molhe para parar a tempestade; e, no porto comercial cheio de imundícies, bocados de madeira e cascas de fruta, abalroou, desventrou os outros navios amarrados às estacas que terminavam em forma de mandíbulas de crocodilo. O povo acorria, algumas pessoas deitaram-se a nado. Já se encontrava ao fundo, diante da porta guarnecida de pregos. A porta levantou-se, e a trirreme desapareceu sob a abóbada profunda.

O porto militar estava completamente separado da cidade quando os embaixadores chegavam, era preciso passar entre duas muralhas, num corredor que desembocava à esquerda, diante do templo de Khamon. Esta grande extensão de água, redonda como uma taça, tinha em volta um conjunto de cais onde estavam os abrigos para os navios. Diante de cada um deles havia duas colunas, que tinham nos capitéis chifres de Ammon, o que formava uma continuidade de pórticos em volta da bacia. No meio, numa ilha, estava uma casa para o sufete do mar. A água era tão límpida que se via o fundo, pavimentado de pedras brancas. O barulho das ruas não chegava até ali, e Amílcar, passando, reconhecia as trirremes que comandara outrora.

Não restavam mais do que umas vinte, no abrigo, por terra, inclinadas sobre o flanco ou direitas sobre a quilha, com as popas muito altas e as proas convexas, cobertas de ouro e de símbolos místicos. As borboletas tinham perdido as asas, as estátuas dos deuses os braços, os touros os chifres de prata; e, todas meio pintadas, inertes, apodrecidas, mas cheias de história a exalar ainda o cheiro das viagens, pareciam dizer-lhe, como os soldados mutilados ao voltarem a ver o seu senhor:

- Somos! Somos nós! E também tu estás vencido!

Ninguém, com excepção do sufete do mar, podia entrar na casa-almirante. Embora não tivessem a prova da sua morte, consideravam-no existindo ainda. Os anciães evitavam pôr lá mais alguém, e Amílcar limitara-se a obedecer ao costume.

O sufete avançou pelas salas desertas. Encontrava, a cada passo, armaduras, móveis, objectos conhecidos que ainda o surpreendiam, e até mesmo no vestíbulo ainda havia, num perfumador, a cinza dos perfumes acesos à partida para conjurar Melkart. Não era assim que ele esperava regressar! Tudo o que ele tinha feito, tudo o que ele tinha visto desenrolou-se na sua memória: os assaltos, os incêndios, as legiões, as tempestades, Drépano, Siracusa, Lilibeia, o monte Etna, o planalto de Eryx, cinco anos de batalhas, até ao dia funesto em que, depondo as armas, se tinha perdido a Sicília. Depois revia os pomares de citrinos, os pastores com cabras nas montanhas cinzentas; e o seu coração pulsava com o sonho de outra Cartago, estabelecida ali. Os projectos, as recordações sucediam-se na sua cabeça, ainda aturdida pelo balanço do barco; uma angústia acabrunhava-o, e, vendo-se fraco de repente, sentiu a necessidade de se aproximar dos deuses.

Subiu então ao último andar da sua casa; depois, tendo retirado de uma concha de ouro, que estava suspensa do seu braço, uma espátula guarnecida de pregos, abriu um pequeno quarto oval.

Rodelas pretas e finas, embutidas na parede e transparentes como vidro, iluminavam-no docemente. Entre as filas destes discos iguais, estavam escavados buracos semelhantes aos das urnas nos columbários. Cada um deles tinha uma pedra redonda, escura, que parecia muito pesada. Só as pessoas de espírito superior honravam fragmentos caídos da Lua. Pela queda, significavam os astros, o céu, o fogo; pela cor, a noite tenebrosa, e pela sua densidade, a coesão das coisas terrestres. Uma atmosfera pesada enchia este local místico. Areia da praia, que o vento tinha empurrado por baixo da porta, cobria ligeiramente as pedras redondas, colocadas nos nichos. Amílcar, contava-as uma a uma com o dedo; depois escondeu o rosto num véu cor-de-açafrão, e, pondo-se de joelhos, prostrou-se por terra, com os dois braços estendidos.

A claridade exterior batia nas folhas de loureiro preto. Arborescências, montículos, turbilhões, animais vagos, desenhavam-se na sua espessura diáfana; e a luz chegava, terrível e pacífica ao mesmo tempo, como deve ser por trás do Sol, nos espaços mornos das criações futuras. Esforçava-se por banir do seu pensamento todas as formas, todos os símbolos e os apelos dos deuses, a fim de alcançar o espírito imutável que as aparências ocultavam. Qualquer coisa das vitalidades planetárias o penetrava, enquanto sentia pela morte e por todos os acasos um desdém mais esclarecido e mais íntimo.

Quando se levantou estava cheio de uma intrepidez serena, invulnerável à misericórdia, ao receio, e, como se sentisse uma opressão no peito, foi até ao cimo da torre que dominava Cartago.

A cidade descia fazendo uma curva larga, com as suas cúpulas, os seus templos, os seus telhados de ouro, as suas casas, as suas matas de palmeiras, aqui e ali, as bolas de vidro onde brilhavam as chamas, e as muralhas eram como que uma orla gigantesca desta amalteia de abundância que se estendia a seus pés. Via lá em baixo os portos, as praças, o interior dos palácios, o desenho das ruas, os homens muito pequenos quase ao nível das lajes. Ah! se Hanão não tivesse chegado tão tarde às Ilhas Aegates!

Os seus olhos mergulharam no extremo do horizonte, e estendeu os braços trémulos na direcção de Roma.

A multidão ocupava os degraus da Acrópole. Na Praça de Khamon empurravam-se para verem o sufete sair, os terraços iam-se enchendo a pouco e pouco de gente; alguns reconheceram-no, saudaram-no; retirou-se a fim de provocar ainda mais a impaciência do povo.

Amílcar encontrou em baixo, na sala, os homens mais importantes do seu grupo: Istatten, Subeldia, Hictamon, Yeoubas, e outros. Contaram-lhe tudo o que se tinha passado depois da conclusão da paz: a avareza dos anciães, a partida dos soldados, o seu regresso, as suas exigências, a captura de Gíscon, o roubo do zaimph, Útica socorrida e depois abandonada; mas ninguém ousava falar daquilo que lhe interessava. Separaram-se, por fim, para se voltarem a encontrar durante a noite, na assembleia dos anciães, no templo de Moloch.

Acabava de sair quando se ouviu um burburinho junto à porta. Apesar da intervenção dos criados, estava ali alguém que queria entrar; e como o barulho se intensificava, Amílcar mandou chamar o desconhecido.

Apareceu então uma velha negra, dobrada, cheia de rugas, trémula, de expressão parada e envolta até aos calcanhares em grandes véus azuis. Avançou até junto do sufete, ficaram a olhar um para o outro durante algum tempo; de repente Amílcar estremeceu; fez um gesto com a mão e os escravos foram-se embora. Então, fazendo-lhe um sinal para andar com cuidado, conduziu-a pelo braço para uma sala distante.

A negra prostrou-se a seus pés para os beijar; levantou-a brutalmente.

- Onde o deixaste, Iddibal?

- Lá, senhor - e, desembaraçando-se dos véus, limpou o rosto com a manga; a cor preta, o tremor senil, as costas curvadas, tudo desapareceu.

Era um velho robusto, cuja pele parecia bronzeada pela areia, pelo vento e pelo mar. Tinha uma poupa de cabelos brancos no crânio como a poupa de algumas aves; e, com um olhar irónico, mostrou o disfarce caído no chão.

- Fizeste bem, Iddibal! Está bem! - Depois, percebendo o seu olhar penetrante: - Ninguém suspeita?...

O velho jurou-lhe pelas Cabiras que o mistério estava guardado. Não deixara a cabana a três dias de Hadrumete, praia povoada por tartarugas, com palmeiras nas dunas.

- E de acordo com as tuas ordens, senhor, ensinei-lhe a lançar o dardo e a conduzir carros!

- É forte, não é?

- Sim, senhor, e intrépido também! Não tem medo nem de serpentes, nem da trovoada, nem dos fantasmas. Corre descalço, como um pastor, à beira dos precipícios.

- Fala! Fala!

- Inventa armadilhas para os animais ferozes. Na outra lua, calcula, surpreendeu uma águia; apanhou-a, e o sangue da ave e o sangue da criança misturaram-se no ar em grandes gotas, como rosas desfolhadas. O animal, furioso, envolveu-o no batimento das asas; puxou-a contra o peito e à medida que ela agonizava, o seu riso redobrava, sonoro e soberbo como o tocar de espadas.

Amílcar baixava a cabeça, deslumbrado por estes presságios de grandeza.

- Mas há algum tempo que é agitado por uma inquietação. Segue ao longe as velas que passam no mar; está triste, não aceita o pão, quer saber coisas acerca dos deuses e quer conhecer Cartago.

- Não, não! Ainda não! - exclamou o sufete.

O velho escravo parecia saber o perigo que aterrorizava Amílcar, e retorquiu:

- Como havemos de o reter? Já tenho de lhe fazer promessas, e vim só a Cartago para lhe comprar um punhal de cabo de prata com pérolas. Depois contou que tendo visto o sufete no terraço tinha-se feito passar junto dos guardas do porto por uma das mulheres de Salammbô, a fim de chegar até ele. Amílcar ficou muito tempo como que perdido em deliberações até que por fim

falou:

- Amanhã apresentas-te em Megara, ao pôr-do-sol, por trás das fábricas de púrpura, imitando por três vezes o grito de um chacal. Se não me vires, no primeiro dia de cada uma das luas, voltas a Cartago. Não te esqueças de nada! Ama-o! Agora, podes falar-lhe de Amílcar.

O escravo vestiu o fato e saíram juntos de casa e do porto.

Amílcar continuou Sozinho, a pé, sem escolta, porque as reuniões dos anciães eram, nas circunstâncias extraordinárias, sempre secretas e decorriam misteriosamente.

Dirigiu-se primeiro para a frente oriental da Acrópole, passou pelo mercado das Forragens, pelas galerias de Kinisdo, o bairro dos Perfumadores. As raras luzes extinguiam-se, as ruas mais largas tornam-se silenciosas, depois as sombras deslizavam nas trevas. Elas seguiam-no, outras sobrevieram, e todas se dirigiam como ele para o lado dos Mappales.

O templo de Moloch era construído ao pé de uma garganta escarpada, num local sinistro. Debaixo só se viam as altas muralhas subindo indefinidamente, como as paredes de um túmulo. A noite tinha caído, uma tempestade cinzenta parecia pesar sobre o mar. Batia contra a falésia com um barulho de respiração e de soluços; e as sombras desvaneceram-se pouco a pouco, como se tivessem passado através das paredes.

Mal se atravessava, porém, o limiar da porta, passava-se para um vasto pátio quadrangular cercado de arcadas. No meio elevava-se um conjunto arquitectónico de oito lanços iguais. Eram encimados por cúpulas que se reuniam em volta de um segundo andar que suportava uma espécie de rotunda de onde saía um cone de curva reentrante, terminado por uma bola no cimo.

As chamas brilhavam nos cilindros de filigrana, espetados em perchas que homens levavam. Estas luzes vacilavam com as rajadas de vento e davam tonalidades vermelhas aos pentes de ouro que fixavam à nuca os cabelos entrançados.

Corriam chamando-se uns aos outros, para receberem os anciães.

Nas lajes, aqui e ali, estavam deitados, como esfinges, leões enormes, símbolos vivos do Sol devorador. Dormiam de pálpebras entreabertas. Mas, acordados pelos passos e pelas vozes, levantavam-se lentamente, vinham ter com os anciães, que reconheciam pelo fato, roçavam-se pelas suas pernas levantando o dorso e rugindo; o vapor da respiração deles passava sobre a luz dos archotes. A agitação redobrou, as portas fecharam-se, e os anciães desapareceram sob as colunas que faziam em volta do templo um vestíbulo profundo.

Estavam dispostas de maneira a reproduzirem pelas suas filas circulares, integradas umas nas outras, o período saturnino contendo os anos, os anos os meses, os meses os dias, que se encontravam, por fim, na parede do santuário.

Era ali que os anciães colocavam os bordões em chifre de narval - porque uma lei, que era sempre observada, punia com a morte o que entrasse na reunião com uma arma. Alguns traziam na parte de baixo do fato um rasgão rematado com um galão púrpura, para mostrar bem que, embora chorando a morte de parentes próximos, não tinham poupado os fatos, e este testemunho de tristeza impedia que o rasgão se tornasse maior. Outros guardavam a barba num saco de pele violeta, que traziam preso por dois cordões às orelhas. Todos se cumprimentavam abraçando-se. Rodearam Amílcar felicitando-o; pareciam irmãos que tornavam a ver um irmão.

Estes homens eram geralmente baixos e entroncados, com narizes aduncos como os dos colossos assírios. Alguns, todavia, pelas maçãs do rosto salientes, pela sua altura e pelos pés mais estreitos, evidenciavam uma origem africana, de antepassados nómadas. Os que viviam continuamente no fundo dos seus escritórios tinham o rosto pálido; outros tinham a severidade do deserto, e jóias estranhas cintilavam em todos os dedos das mãos, queimadas por sóis desconhecidos. Distinguiam-se os navegadores pelo seu passo

balanceado, enquanto os homens da agricultura cheiravam a lagar, a ervas secas, e a suor de macho. Estes velhos piratas lavravam os campos, estes homens que juntavam dinheiro equipavam navios, estes proprietários de culturas alimentavam escravos que exerciam os seus ofícios. Eram todos entendidos nas disciplinas religiosas, peritos em estrangeiras impiedosos e ricos. Tinham um ar cansado pelos muitos cuidados. Os olhos incandescentes tinham um olhar de desafio; e o hábito das viagens e das desconfianças, do tráfico e do comando, dava a toda a sua pessoa um aspecto de astúcia e de violência, uma espécie de brutalidade discreta e convulsiva. Além disso, a influência do deus tornava-os sombrios.

Passaram primeiro por uma sala abobadada, que tinha a forma de um ovo. Sete portas, correspondentes aos sete planetas, fixavam contra a muralha sete quadrados de cores diferentes. Depois de uma sala comprida, entraram numa outra sala, semelhante.

Um candelabro todo coberto de flores cinzeladas estava aceso ao fundo e em cada um dos seus oito braços de ouro havia um cálice de diamantes com uma mecha de bisso. Estava colocado no último dos degraus que conduziam a um altar grande, que terminava nos cantos com chifres de bronze. Duas escadas laterais conduziam à parte de cima, que era plana; não se viam as pedras; era como uma montanha de cedros acumulados, e qualquer coisa de indistinto fumegava por cima, lentamente. Do outro lado, mais alto que o candelabro, e ainda mais alto que o altar, estava Moloch, todo de ferro, com peito de homem onde havia aberturas. As asas abertas estendiam-se sobre a parede, as mãos alongadas desciam até ao chão; três pedras pretas, que cercavam um círculo amarelo, representavam três olhos na fronte, e, como se fosse mugir, levantava num esforço terrível a cabeça de touro. Em volta da sala estavam alinhados escabelos de ébano. Por trás de cada um deles, um tigre em bronze apoiado em três garras onde estava um archote. Estas luzes reflectiam-se nos losangos de madrepérola do chão da sala. Era tão alta que a cor vermelha das paredes, ao subirem para a abóbada, se tornava preta, e os três olhos do ídolo, apareciam em cima, como estrelas meio perdidas na noite.

Os anciães sentaram-se nos escabelos de ébano, depois de terem posto as saias das túnicas por cima da cabeça.

Estavam imóveis, de mãos cruzadas dentro das mangas largas, e o chão de madrepérola parecia um rio luminoso que, correndo do altar para a porta, deslizava sob os seus pés nus.

Os quatro pontífices estavam no meio, voltados de costas uns para os outros, em quatro bancos de marfim que formavam a cruz: o sumo sacerdote de Eschmoun com uma túnica cor de topázio, o sumo sacerdote de Tânita com uma túnica de linho branco, o sumo sacerdote de Khamon com uma túnica de lã fulva, e o sumo sacerdote de Moloch com uma túnica púrpura.

Elevou-se então uma voz aguda, outra respondeu e os cem anciães, os quatro pontífices, e Amílcar, de pé, entoaram todos ao mesmo tempo um hino; repetindo sempre as mesmas sílabas e reforçando os sons, as suas vozes subiram, repercutiram-se, tornaram-se terríveis; depois, ao mesmo tempo, calaram-se.

Ficaram à espera algum tempo. Por fim, Amílcar tirou do peito uma pequena estatueta de três cabeças, azul como safira, e colocou-a diante de si. Era a imagem da Verdade, o próprio génio da sua palavra. Voltou a colocá-la no peito, e todos, como que dominados por uma cólera súbita, gritaram:

- São os teus bons amigos os bárbaros! Traidor! Infame! Voltas para nos veres perecer, não é? Deixem-no falar! Não! Não!

Vingavam-se do constrangimento a que o cerimonial político os tinha obrigado há pouco; embora tivessem desejado o regresso de Amílcar, indignavam-se agora por ele não ter previsto os seus desastres, ou melhor ainda, por não os ter suportado como eles.

Quando o tumulto acalmou, o pontífice de Moloch levantou-se:

- Perguntamos-te porque é que não voltaste a Cartago?

- Que vos importa?-respondeu desdenhosamente o sufete. Os seus gritos redobraram:

- De que me acusam? Conduzi mal a guerra, talvez?

Viram a disposição das minhas batalhas, os que deixaram comodamente aos bárbaros...

- Basta! Basta!

Continuou, em voz baixa, para se fazer ouvir melhor:

- Oh! isto é verdade! Estou enganado luzes dos Baals; há entre vós intrépidos! Gíscon, levanta-te! - E,. percorrendo o degrau do altar como se procurasse alguém, repetiu: - Levanta-te, Gíscon! Podes acusar-me, eles defender-te-ão! Mas onde é que ele está? Ah! em casa, sem dúvida? rodeado pelos filhos, comandando os escravos, feliz, e contando na parede os colares de honra que a pátria lhe deu - disse como se reconsiderasse.

Agitava-se, levantando os ombros, como se estivesse a ser flagelado com correias. E prosseguiu:

- Não sabem mesmo se está vivo ou se morreu! - E sem se preocupar com os clamores, acrescentou que abandonando o sufete, era a República que abandonavam. Além disso, a paz romana, por mais vantajosa que lhes parecesse, era mais funesta que vinte batalhas. Alguns aplaudiram, os menos ricos do Conselho, suspeitos de se inclinarem sempre para o povo ou para a tirania. Os seus adversários, chefes dos sissitas e administradores, triunfavam pelo número; os mais consideráveis estavam junto de Hanão, que estava instalado no outro lado da sala, diante da porta alta, tapada com uma tapeçaria cor de topázio.

Tinham-lhe pintado as úlceras do rosto. Mas o pó de ouro dos cabelos tinha-lhe caído para os ombros, onde fazia duas placas brilhantes, e pareciam esbranquiçados, finos e eriçados como a lã. Panos embebidos num perfume gordo que pingava nas lajes, envolviam-lhe as mãos, e a sua doença tinha aumentado consideravelmente, porque os olhos desapareciam sob as pregas das pálpebras; para ver tinha de voltar a cabeça. Os seus partidários queriam que falasse. Por fim, com uma voz rouca e horrível, disse:

- Menos arrogância, Barca! Estamos todos vencidos! Cada um suporta a sua infelicidade! Resigna-te!

- Diz-nos primeiro - acrescentou sorrindo Amílcar - como conduziste as galeras da frota romana?

- Fui impelido pelo vento - respondeu Hanão.

- Tu fazes como os rinocerontes que pisam os seus excrementos: ostentas as tuas patetices! Cala-te! - E começaram a recriminar-se por causa da batalha das ilhas Aegates.

Hanão acusava-o de não ter vindo ao seu encontro.

- Mas isso era a retirada de Eryx. Era preciso ir para o largo; que te impedia?... Ah! os teus elefantes têm medo do mar!

Os homens de Amílcar acharam tanta graça que começaram a rir muito alto. A abóbada repercutia, como se estivessem a tocar timbales.

Hanão denunciou a indignidade de um ultraje destes, sofria desta doença desde um resfriamento no cerco de Hecatompyle; e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto como uma chuva de Inverno numa muralha em ruínas.

Amílcar prosseguiu:

- Se gostassem assim tanto de mim, haveria agora uma grande alegria em Cartago! Quantas vezes apelei para vós! E recusaram-me sempre o dinheiro!

- Precisávamos dele - disseram os chefes dos sissitas.

- E quando o nosso empreendimento chegou a um ponto desesperado - bebemos urina de macho e comemos as correias das nossas sandálias - quando eu quis que os caules das ervas fossem soldados, e fazer batalhões com a putrefacção dos nossos mortos, lembraram-se, aqui, do que restava dos meus barcos!

- Não podíamos arriscar tudo - respondeu Baal-Baal, proprietário de minas de ouro na Getúlia.

- Que faziam entretanto, aqui, em Cartago, nas vossas casas, refugiados atrás dos muros? Havia os gauleses em Eridan que era preciso repelir, os cananeus em Cirene que teriam vindo, enquanto os romanos enviavam embaixadores a Ptolomeu...

- Os romanos estão orgulhosos connosco, neste momento!

Houve alguém que lhe perguntou:

- Quanto te pagaram para os defenderes?

- Pergunta às planícies do Brútio, às ruínas de Locre, de Metaponte e de Heracleia! Queimei as suas árvores, pilhei todos os seus templos e até à morte dos netos dos seus netos...

- Eh! declamas como um retórico! - disse Kapouras, um mercador muito ilustre. - Que queres então?

- Digo que é preciso ser mais engenhoso ou mais terrível! Se a África rejeita o vosso jugo, é porque não sabem, senhores débeis, prendê-la aos seus ombros. Agátocles, Régulo, Cépio, qualquer homem corajoso só tem que desembarcar para a conquistar; e quando os líbios que estão a oriente chegarem a acordo com os númidas que estão a ocidente e quando os nómadas vierem do sul e os romanos do norte... - Um grito de horror elevou-se. - Oh! baterão no peito, rolarão na poeira e rasgarão os mantos! Não importa! É preciso ir rodar a mó no Suburre e fazer a vindima nas colinas do Lácio.

Batiam na coxa direita para marcar o escândalo, e as mangas das túnicas levantavam-se como asas de aves amedrontadas. Amílcar, empolgado por um espírito, continuava de pé, no degrau de cima do altar, trémulo, terrível; levantava os braços, e os raios do candelabro que ardia por cima dele passavam entre os dedos como dardos de ouro.

- Perderão os vossos navios, as vossas herdades, os vossos carros, os vossos leitos suspensos e os vossos escravos que vos friccionam os pés! Os chacais dormirão nos vossos palácios, a charrua abrirá sulcos sobre as vossas sepulturas. Não haverá mais nada além do grito das águias e do desmoronamento das ruínas. Cairás, Cartago!

Os quatro pontífices, estenderam as mãos para afastar o anátema. Tinham-se levantado todos. Mas o sufete do mar, magistrado sacerdotal sob a protecção do Sol, era mais inviolável do que os ricos julgavam. O pânico apoderou-se do altar. Recuaram.

Amílcar calara-se. De olhar fixo e rosto tão pálido como as pérolas da tiara, respirava com dificuldade, quase aterrorizado por si próprio, e o espírito perdido em visões fúnebres. Da altura em que estava, todos os archotes nos suportes de bronze pareciam uma vasta coroa de fogo, ao nível do chão; fumos negros, saindo, subiam nas trevas da abóbada; o silêncio foi, durante alguns minutos totalmente profundo, a tal ponto que se ouvia o mar. Depois os anciães começaram a interrogar-se. Os seus interesses, a sua existência, estavam a ser atacados pelos bárbaros. Mas não se podia vencê-los sem o auxílio do sufete; esta conclusão, apesar do seu orgulho, fê-los esquecer todas as outras coisas. Chamaram à parte os seus amigos. Houve reconciliações interessadas, subentendidos e promessas. Amílcar não queria comprometer-se com nenhum governo. Todos o conjuraram. Suplicaram-lhe; e, como a palavra traição voltava aos seus discursos, encolerizou-se. O único traidor, era o Grande Conselho, porque o compromisso dos soldados expirava com a guerra e tornavam-se livres logo que a guerra acabava; elogiou a sua bravura e referiu todas as vantagens que se poderia ter se os interessassem pela República com donativos e privilégios.

Então Magdassan, um antigo governador das províncias, revirando os olhos amarelos:

- Na realidade, Barca, à força de viajares, tornaste-te grego ou latino, não sei bem! Falas de recompensas para estes homens? Mais vale que pereçam dez mil bárbaros do que um de nós!

Os anciães faziam sinais aprovativos com a cabeça, murmurando:

- Sim, é preciso preocuparmo-nos tanto? Arranjam-se sempre!

- E desembaraçam-se deles facilmente, não é? Abandonam-se, como fizeram na Sardenha. Informámos o inimigo do caminho que eles deviam tomar, como aconteceu com esses gauleses na Sicília, ou desembarcam-se no meio do mar. Ao voltar, vi o rochedo todo branco dos ossos deles!

- Que importa! - disse impudentemente Kapouras.

- Não se entregaram eles cem vezes ao inimigo? - exclamaram os outros.

Amílcar retorquiu:

- Porquê então, e apesar das vossas leis, é que se lembraram deles em Cartago? E quando eles chegaram à vossa cidade, muitos e pobres no meio de todas as vossas riquezas, porque é que não tiveram a ideia de os enfraquecer com a divisão por mais pequena que fosse! A seguir mandaram-nos embora com as mulheres e com os filhos, todos, sem ficarem com um único refém! Julgavam que eles se iam matar para vos poupar a dor de manterem os vossos juramentos? Odeiam-nos porque eles são fortes! Odeiam-me mais ainda, a mim, o seu senhor! Oh! senti-o imediatamente, quando me beijavam as mãos, e que se reprimiam para não as morderem!

Se os leões que dormiam no pátio tivessem entrado berrando, o seu barulho não teria sido mais terrível. Mas o pontífice de Eschmoun levantou-se e, com os joelhos um contra o outro, os cotovelos junto ao corpo, muito direito e de mãos meio abertas, disse:

- Barca, Cartago precisa que tomes o comando geral das forças púnicas contra os mercenários.

- Recuso! - respondeu Amílcar.

- Damos-te autoridade plena - gritaram os chefes dos sissitas.

- Não!

- Sem qualquer reserva, sem divisões, todo o dinheiro que quiseres, todos os cativos, todos os despojos, cinquenta zerets de terra por cada cadáver do inimigo.

- Não! Não! Porque é impossível vencê-los convosco!

- Tens medo?

- Porque sois cobardes, avarentos, ingratos, pusilânimes e loucos!

- Ele dirige-os!

- Para se colocar à cabeça deles - disse um.

- Para vir sobre nós - acrescentou outro; e do fundo da sala Hanão resmungou:

- Querer-se fazer rei!

Levantaram-se, então, deitando ao chão as cadeiras e os escabelos; o grupo avançava para o altar; brandiam os punhais. Mas, metendo as mãos nas mangas, Amílcar tirou dois cutelos grandes; e, meio curvado, o pé esquerdo à frente, os olhos brilhantes, os dentes cerrados, desafiava-os, imóvel sob o candelabro de ouro. Assim, por precaução, tinham trazido as armas; era um crime; olhavam uns para os outros, aterrorizados. Como todos podiam ser culpados, todos eles se apaziguaram rapidamente; e, pouco a pouco, voltando as costas ao sufete, voltaram a descer, furiosos de humilhação; pela segunda vez, recuaram diante dele. Durante algum tempo, ficaram de pé. Muitos dos que se tinham ferido nos dedos levavam-nos à boca ou esfregavam-nos ao de leve na bainha da capa, e iam-se embora quando Amílcar ouviu estas palavras:

- Eh! é uma delicadeza para não afligir a filha dele! Uma voz mais alta elevou-se:

- Sem dúvida, porque ela escolhe os amantes entre os mercenários.

Vacilou, os olhos procuraram rapidamente Shahabarim. Só o sacerdote de Tânita tinha ficado no seu lugar; e Amílcar via, ao longe, o seu barrete alto. Todos troçavam dele na sua cara. À medida que aumentava a sua angústia, a alegria deles aumentava, e, no meio da algazarra, os que estavam atrás gritavam:

- Viram-no sair do quarto dela!

- Uma manhã do mês de Tammouz!

- Foi o ladrão do zaimph!

- Um homem muito bem constituído!

- Mais alto do que tu!

Tirou a tiara, insígnia da sua dignidade - a sua tiara com oito filas místicas que tinham a meio uma esmeralda - e com as duas mãos, com todas as suas forças, deitou-a para o chão; os círculos de ouro partindo-se, saltaram, e as pérolas rebolaram pelo chão fazendo barulho. Viram então na brancura da fronte uma longa cicatriz; agitava-se como uma serpente entre as sobrancelhas; todos os seus membros tremiam. Subiu uma das escadas laterais que conduziam ao altar, e começou a andar lá em cima! Era votar-se ao deus, oferecer-se em holocausto. O movimento da capa agitava as luzes do candelabro abaixo das suas sandálias, e o pó fino, que os seus pés levantavam, rodeava-o como uma nuvem até ao ventre. Parou entre as pernas do colosso de bronze. Pegou em dois punhados desta poeira que fazia tremer de horror os cartagineses, só de vê-la, e disse:

- Pelas cem luzes das vossas inteligências! Pelos oito fogos das Cabiras! Pelas estrelas, os meteoros e os vulcões! Por tudo o que brilha! Pela sede do Deserto e o sal do Oceano! Pela caverna de Hadrulete e o império das almas! Pela exterminação! Pela cinza dos vossos filhos, e a cinza dos irmãos dos vossos avós, com quem confundo agora a minha! Vós, os cem do Conselho de Cartago, mentistes ao acusar a minha filha! E eu, Amílcar Barca, sufete do mar, chefe dos ricos e dominador do povo, perante Moloch de cabeça de touro, juro - esperava-se qualquer coisa de terrível; continuou numa voz mais alta e mais calma - que eu próprio não lhe falarei!

Os servidores sagrados, trazendo pentes de ouro, entraram, uns com esponjas de púrpura, outros com ramos de palmeira. Levantaram a cortina de jacinto que estava pendurada diante da porta; e, pela abertura deste ângulo, via-se ao fundo das outras salas o grande céu rosado que parecia continuar a abóbada, apoiando-se no horizonte sobre o mar todo azul. O Sol, saindo das ondas, nascia. Bateu, de súbito, no peito do colosso de bronze, dividido em sete compartimentos que fechavam as aberturas. A boca de dentes vermelhos abria-se num bocejo horrível; as narinas enormes dilatavam-se, a claridade do dia animava-o, dando-lhe um ar terrível e impaciente, como se quisesse saltar para fora para se misturar com o astro, o Deus, e percorrerem juntos as imensidades.

Os archotes espalhados pelo solo brilhavam ainda, alongando-se aqui e ali, sobre o chão de madrepérola, como manchas de sangue. Os anciães cambaleavam fatigados; aspiravam a plenos pulmões a frescura do ar; o suor corria pelos rostos lívidos; tinham gritado tanto que não se ouviam. Mas a sua cólera contra o sufete não se acalmara; à maneira de adeus fizeram-lhe ameaças, e Amílcar respondeu-lhes:

- Na próxima noite, Barca, no templo de Eschmoun!

- Estarei lá!

- Far-te-emos condenar pelos ricos!

- E eu pelo povo!

- Toma cuidado para não acabares na cruz!

- E vós, rotos nas ruas!

Quando chegaram à entrada do pátio, retomaram uma aparência calma.

Os criados e os cocheiros esperavam-nos à porta. A maior parte partiu em mulas brancas. O sufete saltou para o carro, pegou nas rédeas; os dois animais, curvando o pescoço e batendo em cadência nas pedras que ressoavam, subiram a galope toda a Rua dos Mappales, e o abutre de prata, na ponta da lança do carro, parecia voar tal era a velocidade que o carro levava.

A estrada atravessava um campo, com lajes compridas, aguçadas em cima, como pirâmides, e que tinham cinzeladas no meio, a mão aberta, como se um morto, deitado por baixo, a tivesse estendido para o céu a pedir alguma coisa. A seguir, estavam disseminadas cabanas de terra, de ramos, de canas de junco, todas de forma cónica. Pequenos muros de pedra, regos de água corrente, cordas de esparta, canas de nopal separavam irregularmente estas habitações, que se empilhavam cada vez mais, subindo na direcção dos jardins do sufete. Amílcar mantinha os olhos numa grande torre cujos três andares formavam três monstruosos cilindros, o primeiro feito de pedra, o segundo de tijolos, o terceiro todo de cedro, suportando uma cúpula de cobre sobre vinte e quatro colunas de zimbro, de onde caíam, em forma de grinalda, correntes de bronze entrelaçadas. Este edifício alto dominava as outras construções que se estendiam à direita, armazéns, a casa comercial, enquanto o palácio das mulheres aparecia ao fundo dos ciprestes, alinhados como duas muralhas de bronze. Depois de ter entrado ruidosamente pela porta estreita, parou sob um alpendre grande, onde os cavalos, presos a traves, comiam molhos de ervas cortadas.

Todos os criados acorreram. Faziam um grande grupo, os que trabalhavam nos campos, que por temerem os soldados, tinham sido trazidos para Cartago. Os lavradores, vestidos com peles de animais, puxando correntes presas aos tornozelos; os homens que trabalhavam na manufactura de púrpura tinham os braços vermelhos como carrascos; os marinheiros com boinas verdes; os pescadores com colares de coral; os caçadores com uma rede ao ombro; e os habitantes de Megara, com túnicas brancas ou pretas, calções de couro, solidéus de palha, de feltro ou de pano, segundo as suas diferentes actividades e indústrias.

Atrás comprimia-se uma multidão em farrapos. Estes viviam, sem qualquer ocupação, sem casa, dormiam à noite nos jardins, devoravam os restos das cozinhas, bolor humano que vegetava à sombra do palácio. Amílcar tolerava-os por prevenção e ainda mais por desdém. Todos, como sinal de alegria, tinham posto uma flor na orelha, e muitos deles nunca o tinham visto.

Contudo, homens penteados como esfinges e munidos de grandes paus saíram da multidão batendo para a direita e para a esquerda. Era para afastar os escravos curiosos que queriam ver o senhor, e impedir que ele fosse subjugado, tal era o seu número, e incomodado pelo seu cheiro.

Então, todos se deitaram de bruços gritando:

- Olho de Baal, que a tua casa floresça!

E entre estes, que se tinham deitado assim por terra na avenida dos ciprestes, estava o intendente dos intendentes, Abdalonim, com uma mitra branca, o qual avançou para Amílcar com um incensor na mão.

Salammbô descia a escadaria das galeras. Todas as suas escravas vinham atrás dela, e, a cada um dos seus passos, elas desciam também. As cabeças das negras marcavam grandes pontos negros na linha de bandós com fios de ouro em volta da cabeça das romanas. Outras tinham no cabelo flechas de prata, borboletas de esmeraldas, ou agulhas compridas colocadas como raios de Sol. Na confusão destas vestes brancas, amarelas e azuis, os anéis, os alfinetes, os colares, as franjas, as pulseiras, resplandeciam; havia um rumor de tecidos leves; ouvia-se o bater de sandálias juntamente com o barulho surdo dos pés descalços pousando no chão; e, aqui e ali, um eunuco de grande estatura, a quem elas davam pelo ombro, sorria, com a cara levantada. Quando a aclamação dos homens se extinguiu, escondendo o rosto com as mangas, soltaram um grito bizarro, semelhante ao uivo de um lobo; e era tão furioso e tão estridente que parecia fazer vibrar, de alto a baixo, como uma lira, a grande escadaria de ébano toda coberta de mulheres.

O vento levantava os seus véus; os caules finos do papiro baloiçavam docemente. Estava-se no mês de Schebar, em pleno Inverno. As romãzeiras em flor curvavam-se contra o azul do céu e, através dos ramos, o mar aparecia, como uma ilha longínqua, meio perdida na bruma.

Amílcar parou, ao ver Salammbô. Tinha sobrevivido depois da morte de vários filhos varões. Além disso, o nascimento de raparigas era considerado uma calamidade nas religiões do Sol. Os deuses, mais tarde, tinham-lhe enviado um filho; mas ele conservava alguma coisa da sua esperança traída, apesar da maldição que tinha proferido contra ela. Salammbô, todavia, continuava a descer.

Pérolas de cores variadas caíam em cachos das orelhas pelos ombros até aos cotovelos. O cabelo estava coberto de forma a simular uma nuvem. Trazia, em volta do pescoço, pequenas placas de ouro quadrangulares representando uma mulher entre dois leões empinados; e o seu vestido era uma representação fiel das vestes da deusa. O vestido de jacinto, de mangas largas, ajustava-se ao corpo, alargando para baixo. O vermelho dos lábios fazia com que os dentes parecessem mais brancos, e o antimónio das pálpebras que os olhos parecessem maiores. As sandálias, feitas com penas de aves, tinham os saltos muito altos, e ela estava extraordinariamente pálida, por causa do frio sem dúvida.

Chegou finalmente ao pé de Amílcar, e, sem olhar para ele, sem mesmo levantar a cabeça, disse-lhe:

- Salve! Olho de Baalim, glória eterna! Triunfo! Repouso! Satisfação! Riqueza! Há muito que o meu coração estava triste e a casa esmorecia. Mas o senhor que chega é como Tammouz ressuscitado; e sob o teu olhar, oh, pai, uma alegria, uma existência nova vai espalhar-se por toda a parte!

E tirando das mãos de Taanach um pequeno vaso oblongo onde fumegava uma mistura de farinha, de manteiga, de cardamomo e de vinho, disse:

- Bebe de um trago, a bebida do regresso preparada pela tua serva.

Ele replicou:

- Bênçãos para ti! - e pegou maquinalmente no vaso de ouro que ela lhe estendia.

Contudo, ele examinava-a com uma expressão tão ríspida que Salammbô, perturbada, balbuciou:

- Disseram-te, oh, senhor!...

- Sim! Eu sei! - respondeu Amílcar em voz baixa.

Era uma confissão? ou falava dos bárbaros? E acrescentou algumas palavras vagas sobre os embaraços públicos que esperava dissipar sozinho.

- Oh, pai! - exclamou - não apagarás o que é irreparável! Ele recuou e Salammbô ficou espantada com a sua consternação

porque não estava a pensar em Cartago, mas no sacrilégio de que fora cúmplice. Este homem que fazia tremer as legiões e que ela mal conhecia amedrontava-a como um deus; ele tinha adivinhado, ele sabia tudo, ia acontecer qualquer coisa terrível. Ela exclamou:

- Graças!

Amílcar baixou lentamente a cabeça.

Embora se quisesse acusar, não ousava abrir os lábios; sentia, todavia, uma necessidade enorme de se lamentar, de ser consolada. Amílcar sentia uma tentação de quebrar o seu juramento.

Mantinha-o por orgulho, ou pelo receio de acabar assim com a sua incerteza; e olhava-a de frente, com toda a sua coragem, para procurar o que ela escondia no fundo do seu coração.

Pouco a pouco, respirando com dificuldade, Salammbô meteu a cabeça entre os ombros, esmagada por este olhar tão pesado. Ele tinha a certeza agora de que ela tinha cedido ao abraço de um bárbaro; tremia e levantou os dois punhos. Ela deu um grito e caiu entre as suas mulheres, que a rodeavam. Amílcar voltou para trás. Todos os intendentes o seguiram. Abriram as portas dos armazéns, e ele entrou numa vasta sala redonda, para onde convergiam como os raios de uma roda longos corredores que levavam para outras salas. Ao centro estava um disco de pedra com balaústres para as almofadas que se amontoavam nos tapetes.

O sufete começou a andar de um lado para o outro com passos rápidos; respirava ruidosamente, batia com os calcanhares no chão e agitava a mão como se estivesse a ser importunado pelas moscas. Abanou a cabeça, mas ao aperceber-se da acumulação das suas riquezas, acalmou-se; o seu pensamento seguia as perspectivas dos corredores, estendia-se pelas outras salas cheias de tesouros ainda mais raros. Placas de bronze, lingotes de prata, e barras de ferro alternavam com barras de estanho trazidas das Cassetidas pelo mar tenebroso; borracha da terra dos negros saía dos sacos de casca de palmeira; e o pó de ouro guardado noutras fugia imperceptivelmente pelas costuras muito velhas. Filamentos finos, tirados das plantas marinhas, estavam pendurados entre os linhos do Egipto, da Grécia, da Taprobana e da Judeia; madrepérolas, grandes como moitas, levantavam-se ao pé das paredes; e um cheiro indefinido flutuava no ar, exalação dos perfumes, dos cabedais, das especiarias e das penas de avestruz atadas em molhos na abóbada. Diante de cada um dos corredores, dentes de elefantes, de pé, reunidos pelas pontas, formavam um arco por cima da porta.

Por fim, subiu para o disco de pedra. Todos os intendentes ficaram de braços cruzados, de cabeça baixa, enquanto Abdalonim levantava com um ar orgulhoso a mitra pontiaguda.

Amílcar interrogou o chefe dos navios. Era um velho piloto de pálpebras escarapeladas pelo vento, e flocos brancos chegavam-lhe às ancas, como se a espuma das tempestades lhe tivesse ficado na barba.

Respondeu que tinha enviado uma frota para Gades e Thymiamata para alcançar Eziongraber, dobrando o Corno-do-Sul e o promontório dos Arómatas.

Outros tinham continuado a oeste, durante quatro luas, sem tocarem na costa; mas a proa dos navios embaraçava-se nas ervas, no horizonte ouvia-se continuamente o barulho das cataratas, tempestades cor de sangue obscureciam o Sol, uma brisa carregada de perfumes adormecia as tripulações; e, neste momento, não podia dizer mais nada, de tal forma a sua memória estava perturbada. Tinham, todavia, subido o rio Scythes, entrado na Colchide, no território dos jugrianos e dos estianos, raptado no Arquipélago mil e quinhentas virgens e afundado todos os barcos estrangeiros que navegavam para lá do cabo Estrymon, para que o segredo das rotas não fosse conhecido. O rei Ptolomeu retinha o incenso de Schesbar; Siracusa, Elathia, Córsega e as ilhas não tinham fornecido nada, e o velho piloto baixou a voz para anunciar que uma trirreme tinha sido assaltada em Rusicada pelos númidas, «porque eles estão com eles, senhor».

Amílcar franziu o sobrolho; depois fez sinal para falar ao chefe das viagens, que vestia uma túnica castanha sem cinto, e a cabeça coberta por um xaile comprido de um tecido branco, que, passando junto à boca, lhe caía para trás sobre o ombro.

As caravanas tinham partido normalmente no equinócio do Outono. Todavia de mil e quinhentos homens que se dirigiam para o extremo da Etiópia com excelentes camelos, odres novos e provisões de telas pintadas, só um regressou a Cartago, os outros tinham morrido de fadiga ou tinham enlouquecido com o terror do deserto; e dizia ter visto muito para lá da Harousch-Preta, depois dos Atarantas e da terra dos macacos grandes, reinos imensos onde o utensílio mais insignificante é de ouro, um rio cor de leite, vasto como o mar, florestas de árvores azuis, colinas de arómatas, monstros com rosto humano vegetando nos rochedos e cujos olhos se abriam como flores; depois, por trás dos lagos cheios de dragões, montanhas de cristal onde o Sol pousava, Outros tinham vindo da índia com pavões, pimenta e tecidos novos. Quanto aos que vão negociar com os calcedónios pelo caminho dos Syrtes e o templo de Ammon, tinham perecido, sem dúvida, nas areias. As caravanas da Getúlia e da Fezânia tinham trazido as provisões habituais; mas ele, chefe das viagens, não ousava equipar nenhuma.

Amílcar compreendeu; os mercenários ocupavam o campo. Com um gemido surdo apoiou-se no outro cotovelo; e o chefe das propriedades agrícolas tinha tanto medo de falar que tremia horrivelmente, apesar dos seus ombros largos e das grandes pupilas vermelhas. O nariz chato, como o de um cão, estava meio encoberto por uma rede de fios de palmeira; trazia um cinturão de pêlo de leopardo, onde reluziam dois cutelos formidáveis.

Logo que Amílcar se voltou, começou a invocar, em altos brados, os Baals. Não era por sua culpa! Não podia fazer nada! Tinha observado as temperaturas, os terrenos, as estrelas, feito as plantações no solstício de Inverno, as podas no decurso da Lua, vigiado os escravos, dominado os seus hábitos.

Amílcar irritou-se com esta loquacidade. Deu um estalo com a língua e o homem dos cutelos começou a falar muito depressa: - Ah! senhor! Pilharam tudo! Saquearam tudo! Destruíram tudo! Três mil pés de árvores foram cortados em Maschala, e em Ubada os celeiros foram destruídos e as cisternas entulhadas! Em Tedes, levaram mil e quinhentos gomors de farinha; em Marazzana, mataram todos os pastores, comeram os rebanhos, deitaram fogo à tua casa, a tua bela casa de traves de cedro, onde ias passar o Verão! Os escravos de Tuburbo, que ceifavam a cevada, fugiram para as montanhas; e os burros, as cargas, os machos, os bois de Taormine, e os cavalos oringes, nem um só! Foram todos levados! É uma maldição! Não sobreviverei a isto! - e continuou chorando. - Ah! se tu soubesses como os celeiros estavam cheios e as charruas brilhantes! Ah! que belos carneiros! Ah! que belos touros!... A cólera de Amílcar fazia-o perder a respiração. Bradou:

- Cala-te! Estou então pobre? Nada de enganos! Diz a verdade! Quero saber tudo o que perdi, até ao último siclo, até ao último cabriole! Abdalonim, traz-me as contas dos barcos, das caravanas, das propriedades agrícolas, da casa! E se a vossa consciência está perturbada, que a infelicidade caia sobre as vossas cabeças! Saiam!

Os intendentes, andando às arrecuas e com as mãos quase a tocarem no chão, saíram.

Abdalonim foi buscar a um armário na parede cordas com nós, tiras de pano ou de papiro, omoplatas de carneiro com escrita fina. Colocou-as aos pés de Amílcar, pôs-lhe nas mãos um quadro de madeira guarnecido com três fios interiores onde estavam presas bolas de ouro, de prata e de chifre, e começou:

- Cento e noventa e duas casas nos Mappales, alugadas a cartagineses novos à razão de um beka por lua.

- Não! É de mais! Toma em consideração os pobres! E escreverás os nomes dos que te parecerem em piores condições, procurando saber se eles estão ligados à República! Depois?

Abdalonim hesitava, surpreendido com esta generosidade. Amílcar arrancou-lhe das mãos as tiras de pano.

- Que é isto? Três palácios na zona de Khamon a doze kesitah por mês! Põe vinte! Não quero que os ricos me devorem.

O intendente dos intendentes, depois de uma demorada saudação, prosseguiu:

- Emprestado a Tigillas, até ao fim da estação, dois kikar ao juro de três, juro marítimo; a Bar-Malkarth mil e quinhentos siclos com o penhor de trinta escravos. Mas doze morreram nas salinas.

- É porque não eram robustos - afirmou rindo o sufete.

- Não importa! Se ele precisa de dinheiro, cede-lho. É preciso emprestar sempre, e a juros diferentes, segundo a riqueza das pessoas.

O servo apressou-se a ler o que as minas de ferro de Annaba tinham rendido, as recolhas de coral, as fábricas de púrpura, o imposto dos gregos domiciliados, a exportação de prata para a Arábia onde valia dez vezes o que valia o ouro, os apresamentos de barcos, dedução feita do décimo para o templo da deusa.

- Declarei sempre um quarto a menos, senhor!

Amílcar contava com as bolas; faziam barulho debaixo dos seus dedos.

- Basta! Que pagaste?

- A Stratonicles de Corinto e a três mercadores de Alexandria, sobre estas cartas (que deram entrada) dez mil dracmas atenienses e doze talentos de ouro sírios. Os víveres para os tripulantes que custavam vinte mines por mês para uma trirreme...

- Eu sei! Quantas se perderam?

- Aqui está a conta nestas lâminas de chumbo - disse o intendente.- Quanto aos navios fretados em comum, como foi preciso muitas vezes deitar a carga ao mar, dividiram-se as perdas em partes iguais pelos associados. Pelo cordame que se pediu emprestado aos arsenais e que foi impossível entregar, os sissitas exigiram oitocentos kesitah, antes da expedição de Útica.

- Ainda eles! - exclamou Amílcar baixando a cabeça; e ficou algum tempo como que esmagado pelo peso de todos os ódios que sentia sobre si: - Mas não vejo as despesas de Megara?

Abdalonim, empalidecendo, foi buscar a outro armário, tabuinhas de sicômoro, enfiadas por grupos em cordas de couro.

Amílcar escutava-o, cheio de curiosidade pelos pormenores domésticos, acalmando com a monotonia desta voz que enumerava verbas; Abdalonim ia falando cada vez mais devagar. De súbito deixou cair as placas de madeira e deitou-se de bruços, de braços estendidos, na posição dos condenados. Amílcar, sem se comover, pegou nas tabuinhas; e os seus lábios abriram-se e os olhos ficaram maiores, quando viu, na despesa de um dia, um consumo exorbitante de carne, peixe, aves, vinhos, arómatas, vasos quebrados, escravos mortos, tapetes estragados.

Abdalonim, sempre prostrado, falou-lhe do festim dos bárbaros. Não tinha conseguido opor-se à ordem dos anciães. Salammbô, aliás, não queria que se poupasse dinheiro para se receber bem os soldados.

Ao ouvir o nome da filha, Amílcar levantou-se de um salto. Depois, cerrando os lábios, deixou-se cair nos coxins; rasgou as franjas com as unhas, respirando ruidosamente, os olhos fixos.

- Levanta-te! - ordenou, descendo.

Abdalonim seguiu-o; os joelhos tremiam-lhe. Mas pegando numa barra de ferro, pôs-se a arrancar, como um louco, as lajes do chão. Um disco de madeira saltou, e em breve apareceram ao longo do corredor as tampas grandes que cobriam as fossas onde se guardavam os cereais.

- Tu vês, Olho de Baal - disse o servo tremendo - ainda não levaram tudo! e elas são fundas, cada uma tem cinquenta côvados, e estão cheias até aos bordos! Durante a tua viagem mandei cavar nos arsenais, nos jardins, por toda a parte! A tua casa está cheia de trigo, como o teu coração está cheio de sabedoria!

Um sorriso passou pelo rosto de Amílcar:

- Está bem, Abdalonim! - Depois inclinando-se para o ouvido deste acrescentou: - Mandas vir da Etrúria, do Brútio, de onde te apetecer, seja por que preço for! Junta e guarda! Quero possuir, eu sozinho, todo o trigo de Cartago.

Quando eles chegaram à extremidade do corredor, Abdalonim, com uma das chaves que tinha pendurada à cintura, abriu um grande quarto quadrado, dividido ao meio por pilares de cedro. Moedas de ouro, de prata, de bronze, dispostas sobre mesas ou metidas em nichos subiam ao longo das quatro paredes até aos lambris do tecto. Cestos enormes de pele de hipopótamo seguravam, nos cantos, filas inteiras de sacos mais pequenos; havia montículos de ouro nas lajes; e, aqui e ali, uma pilha mais alta tinha caído e parecia uma coluna em ruínas.

As moedas grandes de Cartago que representavam Tânita com um cavalo debaixo de uma palmeira, misturavam-se com as das colónias, marcadas com um touro, uma estrela, um globo ou uma cruz. Tinham arrumado, por somas diferentes, moedas de todos os valores, de todas as dimensões, de todas as épocas, desde as velhas moedas da Assíria, finas como uma unha, até às moedas velhas do Lácio, mais grossas que a mão, com os botões de Egina, as placas da Bactriana, às réguas curtas da antiga Lacedemónia; algumas estavam cobertas de ferrugem, ensebadas, esverdeadas por causa da água ou escurecidas pelo fogo, tinham sido apanhadas nas redes, ou, depois dos cercos, entre os escombros das cidades. O sufete calculou rapidamente se as somas presentes correspondiam aos ganhos e às perdas que acabavam de ser lidas; já se ia embora quando viu três jarras de bronze completamente vazias. Abdalonim voltou a cabeça em sinal de horror! Amílcar resignado não disse uma palavra.

Atravessaram outros corredores, outras salas, e chegaram, por fim, a uma porta onde, para a guardar melhor, um homem estava atado pelo ventre à corrente comprida presa à parede, costume dos romanos recentemente introduzido em Cartago. A barba e as unhas tinham crescido imenso, e ele balançava-se para a direita e para a esquerda com a oscilação contínua dos animais cativos. Quando reconheceu Amílcar voltou-se para ele, exclamando:

- Graças, Olho de Baal! Piedade! Mata-me! Há dez anos que não vejo o Sol! Em nome de teu pai, graças!

Amílcar, sem lhe responder, bateu as palmas; apareceram três homens; e, todos quatro ao mesmo tempo, estendendo os braços, retiraram os anéis da barra enorme que fechava a porta. Amílcar pegou num archote e desapareceu nas trevas.

Era, julgava-se, o lugar onde estavam as sepulturas da família; mas não havia mais nada além de um poço grande. Tinha sido aberto unicamente para afastar os ladrões e não escondia nada. Amílcar passou ao lado; depois, baixando-se, fez voltar sobre as suas rodas uma mó muito pesada, e por esta abertura entrou numa sala em forma de cone.

Escamas de bronze cobriam as paredes; no meio, sobre um pedestal de granito, estava uma estátua de um cabiro chamado Aletes, inventor das minas da Celtibéria. Contra a base, no chão, estavam colocados em cruz escudos de ouro e vasos de prata monstruosos, com o gargalo fechado, com uma forma extravagante que não podia servir; porque havia o costume de fundir assim quantidades de metal para que as dilapidações e até mesmo a mudança de lugar fossem quase impossíveis.

Com o archote, acendeu uma espécie de candeia de mineiro que estava colocada no barrete do ídolo; chamas verdes, amarelas, azuis, violetas, cor de vinho, cor de sangue, iluminaram de repente a sala. Estava cheia de pedras preciosas que se encontravam em cabaças de ouro penduradas como lampadários de placas de bronze, ou nos blocos originais colocados na parte debaixo da parede. Eram pedras preciosas azuladas ou verde-mar arrancadas das montanhas com fundas, carbúnculos formados pela urina do lince, dentes de fóssil de peixe caídos da Lua, tianos, diamantes, sandastrum, berilos, com três espécies de rubis, as quatro espécies de safiras e as doze espécies de esmeraldas. Brilhavam como salpicos de leite, como bolas azuis, como pó de prata, e deitavam as suas luzes em cascatas, em raios, em estrelas. As cerâunias geradas pela trovoada brilhavam ao pé das calcedónias que curam a peçonha. Havia topázios do monte Zabarca para evitar os terrores, opalas de Bactriana que evitam os abortos, e chifres de Ammon que se colocam debaixo da cama para se sonhar.

As luzes das pedras e as chamas da lamparina miravam-se nos grandes escudos de ouro. Amílcar, de pé, sorria, com os braços cruzados; e deleitava-se mais com a consciência das suas riquezas do que com o espectáculo. Eram inacessíveis, inesgotáveis, infinitas. Os seus antepassados, dormindo debaixo dos seus pés, enviavam ao seu coração qualquer coisa da sua eternidade.

Sentia-se muito perto dos génios subterrâneos. Era como a alegria de um cabiro; e os grandes raios luminosos batendo-lhe no rosto pareciam a extremidade de uma rede invisível, que, através dos abismos, o ligavam ao centro do mundo.

Teve uma ideia que o fez estremecer, e, colocando-se atrás do ídolo, avançou direito à parede. Examinou entre as tatuagens do braço uma linha horizontal com duas outras perpendiculares, o que exprimia, em algarismos cananeus, o número treze. Contou até à décima terceira das placas de bronze, voltou a levantar a manga; e, a mão direita estendida, lia noutro ponto do braço outras linhas mais complicadas, enquanto passeava delicadamente os dedos, como um tocador de lira. Por fim, com o polegar, deu sete pancadas; e num só bloco, uma parte da parede voltou-se.

Escondia uma espécie de adega, onde estavam encerradas coisas misteriosas, que não tinham nome, mas que eram de um valor incalculável. Amílcar desceu três degraus, tirou de uma cuba de prata uma pele de lama que flutuava num líquido escuro, e voltou a subir.

Abdalonim pôs-se a andar à frente dele. Batia no chão com uma bengala enfeitada com campainhas na parte superior, e, diante de cada uma das salas, proclamava o nome de Amílcar, seguido de louvores e bênçãos.

Na galeria circular onde iam dar todos os corredores tinham amontoado junto às paredes algas, sacos de lausónia, torrões de terra de Lemnos, e carapaças de tartaruga cheias de pérolas. O sufete, ao passar, tocava-lhes com a túnica, sem olhar sequer para os bocados enormes de âmbar, matéria quase divina formada pelos raios de Sol.

Desprendeu-se uma nuvem de vapor aromático.

- Empurra a porta!

Entraram.

Homens nus amassavam farinha, trituravam ervas, abanavam carvões, deitavam azeite em jarros, abriam e fechavam pequenas células ovóides colocadas em volta da parede, e tão numerosas que o compartimento parecia o interior de um cortiço. Havia mirobálano, bdélio, açafrão e violetas por toda a parte. Espalhado pelo chão havia borrachas, pós, raízes, frascos de vidro, ramos de filipêndulas, pétalas de rosas; e sentia-se falta de ar no meio destes cheiros, apesar dos turbilhões das estiráceas que se encarquilhavam no meio em cima de um tripé de bronze.

O chefe dos odores suaves, pálido e comprido como um archote de cera, dirigiu-se a Amílcar para esmagar nas suas mãos um rolo de metópio, enquanto outros dois lhe esfregavam os calcanhares com folhas de bacaris. Afastou-os: eram cireneus de costumes infames, mas a quem era dada uma certa consideração por causa dos seus segredos.

A fim de mostrar a sua vigilância, o chefe dos odores ofereceu ao sufete, numa colher de electro, um pouco de malobatro para provar; depois, com uma sovela, furou três besoárticos indianos. O senhor, que conhecia os artifícios, pegou num chifre cheio de bálsamo e deitou-o sobre a túnica: apareceu uma mancha castanha, era uma fraude. Olhou fixamente para o chefe dos odores, e, sem dizer uma palavra, atirou-lhe com o chifre de gazela à cara.

Embora ficasse muito indignado com as falsificações de que era vítima, ao ver pacotes de nardo embalados para seguirem para os territórios ultramarinos, mandou juntar antimónio para os tornar mais pesados.

Depois perguntou por três sacos de psacálio, reservados para seu uso.

O chefe dos odores declarou que não sabia de nada; soldados tinham vindo com facas, aos gritos; ele abrira as caixas.

- Tens mais medo deles do que de mim! - exclamou o sufete; e através do fumo, os seus olhos, como archotes, incidiam sobre o homem pálido que começava a compreender.

- Abdalonim! Antes do pôr-do-sol darás ordem para que seja açoitado: dilacera-o.

Esta falta, inferior às outras, tinha-o exasperado; porque, apesar dos seus esforços para os afastar do seu pensamento, encontrava continuamente os bárbaros. Os seus excessos confundiam-se com a vergonha de sua filha, e ele queria conhecê-la em toda a casa e não queria falar dela. Mas havia qualquer coisa que o obrigava a afundar-se na sua infelicidade; e, tomado por uma fúria de inquisição, visitou as caves dos armazéns, as traseiras da casa de comércio, as provisões de betume, de madeira, de tintas e de cordas, de mel e de cera, o armazém dos tecidos, as reservas de víveres, o telheiro dos mármores, o celeiro do lazer.

Foi ao outro lado do jardim, inspeccionar, nas suas cabanas, os artífices domésticos cujos produtos eram vendidos. Alfaiates bordavam mantos, outros faziam redes, outros penteavam coxins, cortavam sandálias, operários do Egipto com uma concha poliam papiro, a lançadeira do tecelão batia, as bigornas das fábricas de armas ressoavam.

Amílcar disse-lhes:

- Façam espadas! Façam sempre! Vão-me ser precisas. Quando chegava ao pé dos operários, Abdalonim, para desviar

a sua cólera, tentava irritá-lo desacreditando as suas obras com murmúrios.

- Que trabalho! É uma vergonha! Verdadeiramente o senhor é muito bom. - Amílcar, sem o ouvir afastava-se.

Abrandou o passo, porque árvores grandes calcinadas de uma extremidade a outra, como é costume encontrar nos bosques onde os pastores acampam, obstruíam os caminhos; e as vedações estavam partidas, a água das regadeiras perdia-se, bocados de vidro, de ossos de macaco, apareciam no meio de charcos lamacentos. Farrapos pendiam das moitas; debaixo dos limoeiros as flores que apodreciam faziam um fumo amarelo. Com efeito, os criados tinham abandonado tudo, convencidos de que o senhor não voltaria.

Descobria a cada passo um novo desastre, mais uma prova daquilo em que ele não queria acreditar. Acabava de sujar os coturnos de púrpura ao pisar imundícies; e não tinha estes homens, todos diante dele, em frente de uma catapulta para os fazer voar aos bocados! Sentia-se humilhado por os ter defendido; era uma burla, uma traição; e como não se podia vingar nem dos soldados, nem dos anciães, nem de Salammbô, nem de ninguém, e como a sua cólera procurava alguém, condenou de uma só vez às minas todos os escravos dos jardins.

Abdalonim tremia todas as vezes que o via aproximar-se dos parques, mas Amílcar tomou o atalho do moinho, de onde vinha uma melopeia lúgubre.

No meio do pó, as mós pesadas rodavam, isto é, dois cones de pórfiro sobrepostos, o mais alto dos quais tinha um funil e virava sobre o segundo com o auxílio de barras fortes. Com o peito e com os braços havia homens que empurravam, enquanto outros, amarrados, puxavam. O atrito na catapulta tinha formado em volta das axilas crostas purulentas, como se vê na cernelha dos burros, e o andrajo preto e mole que apenas lhes cobria os rins, caindo para trás, batia-lhes nos tornozelos como uma cauda comprida. Os olhos estavam vermelhos, os ferros dos pés faziam barulho e os peitos arfavam ao mesmo tempo. Tinham uma mordaça para lhes ser impossível comerem farinha, e luvas sem dedos cobriam-lhes as mãos para não permitir que a apanhassem. À entrada do senhor, as barras de madeira bateram com mais força. O grão, ao ser moído, rangia. Alguns caíram de joelhos; os outros continuavam, passando-lhes por cima.

Perguntou por Giddenem, governador dos escravos; e esta figura apareceu, exibindo a sua riqueza no fato que trazia; porque a túnica, aberta aos lados, era de púrpura fina, argolas pesadas caíam-lhe das orelhas, e, para juntar às tiras de tecido que lhe envolviam as pernas, um atacador de ouro, como uma serpente em volta de uma árvore, subia dos tornozelos até às coxas. Tinha os dedos cheios de anéis, um colar de ágatas com que se reconheciam os homens sujeitos ao mal sagrado.

Amílcar fez sinal para tirarem as mordaças. Então todos, com gritos de animais esfaimados, atiraram-se sobre a farinha, que devoravam metendo a cara no monte. - Fazes com que estejam extenuados! - afirmou o sufete.

Giddenem respondeu que era preciso proceder assim para os domar.

- Não valeu a pena mandar-te a Siracusa, à escola dos escravos. Manda vir os outros!

E os cozinheiros, os despenseiros, os palafreneiros, batedores, carregadores de liteiras, os homens das estufas e as mulheres com os filhos alinharam-se todos nos jardins numa só fila, desde a casa do comércio até ao parque dos animais fulvos. Sustinham a respiração. Um silêncio enorme enchia Megara. O Sol estendia-se sobre a lagoa, da parte de baixo das catacumbas. Os pavões piavam. Amílcar andava a passo.

- O que é que vou fazer destes velhos? - disse. - Vendê-los. Há muitos gauleses e são bêbados! e muitos cretenses, são mentirosos! Compra-me capadócios, asiáticos e negros.

Ficou espantado por haver tão poucas crianças e disse:

- Todos os anos, Giddenem, deve haver nascimentos cá em casa. Deixas todas as noites as cabanas abertas para que eles se misturem em liberdade.

Mandou apresentar a seguir os ladrões, os preguiçosos, os desordeiros. Distribuiu castigos e censuras a Giddenem; e Giddenem, como um touro, baixava a fronte, onde se cruzavam as sobrancelhas grossas.

- Repara, Olho de Baal - disse, mostrando um líbio robusto - surpreenderam-no com a corda ao pescoço.

- Ah! tu queres morrer - observou desdenhosamente o sufete. E o escravo respondeu num tom intrépido:

- Sim!

Então, sem se preocupar com o exemplo nem com o prejuízo pecuniário, Amílcar ordenou aos criados:

- Levem-no!

Talvez tivesse em mente a intenção de um sacrifício? Era uma infelicidade que ele procurava para evitar outras mais terríveis. Giddenem tinha escondido os mutilados atrás dos outros. Amílcar avistou-os.

- Quem te cortou o braço?

- Os soldados, Olho de Baal.

Depois a um samnita que vacilava como uma garça ferida:

- E a ti, quem te fez isso?

Tinha sido o governador, fracturando a perna com uma barra de ferro.

Esta atrocidade imbecil indignou o sufete; e arrancou das mãos de Giddenem o seu colar de ágatas:

- Maldição para o cão que fere o rebanho! Estropiar escravos, bondade de Tânita! Ah! arruinas o teu senhor! Sufoquem-no no estrume. E os que faltam? Onde estão? Assassinaste-os com os soldados?

A sua expressão era de tal forma terrível que as mulheres fugiram. Os escravos empurrando-se faziam um círculo em volta dele; Giddenem beijava freneticamente as suas sandálias; Amílcar, de pé, mantinha os braços levantados por cima dele.

Mas, de inteligência lúcida como na mais violenta das batalhas, lembrou-se de mil coisas odiosas, das ignomínias de que se tinha afastado; e, à luz da sua cólera, como à luz dos raios de uma trovoada, viu num único relance todos os desastres. Os governadores das herdades tinham fugido com medo dos soldados, por conivência talvez; todos o enganavam, há muito tempo já que se continha.

- Tragam-nos - ordenou - e marquem-nos na testa com ferros em brasa, como se faz aos cobardes!

Trouxeram e colocaram, no meio do jardim, peias, golilhas, facas, correntes para os condenados às minas, cipos que apertavam as pernas, argolas que juntavam os ombros, e escorpiões, chicotes de três correias com garras de bronze.

Todos foram colocados de modo a ficarem com o rosto voltado para o Sol, do lado do Moloch devorador, deitados no chão de bruços ou de costas, e os condenados à flagelação, de pé, encostados às árvores com dois homens junto deles, um que contava as chicotadas e o outro que as desferia.

Ele batia com os dois braços; as correias assobiavam fazendo voar a casca dos plátanos. O sangue espalhava-se como chuva pela folhagem, e massas vermelhas juntavam-se ao pé das árvores gemendo. Os que estavam a ser marcados com ferros rasgavam a carne com as unhas. Ouviam-se as roscas de madeira gemer; ouviam-se pancadas surdas; às vezes, sem se contar, um grito agudo atravessava o ar. Do lado das cozinhas, entre fatos em farrapos e cabelos cortados, homens, com abanos, atiçavam os carvões, e um cheiro a carne queimada enchia o ar. Os flagelados desfaleciam, mas presos pelas cordas que lhes prendiam os braços, deixavam cair a cabeça entre os ombros fechando os olhos.

Os outros, que estavam a ver, puseram-se a gritar apavorados, e os leões, lembrando-se talvez do festim, lançavam-se rugindo para a borda das fossas.

Avistaram Salammbô na plataforma do seu terraço. Percorria-a rapidamente da direita para a esquerda, muito espavorida. Amílcar viu-a. Pareceu-lhe que ela levantava o braço na sua direcção pedindo misericórdia; com um gesto de horror, dirigiu-se para o parque dos elefantes.

Estes animais eram o orgulho das grandes casas púnicas. Tinham sido trazidos pelos antepassados, triunfado nas guerras, e eram venerados como favoritos do Sol.

Os de Megara eram os mais fortes de Cartago. Amílcar antes de partir, tinha exigido a Abdalonim a promessa de que os vigiaria. Mas tinham morrido vitimados pelas suas mutilações; e só havia três deitados no meio do pátio, no pó, diante dos restos das suas manjedouras.

Reconheceram-no e vieram ter com ele. Um tinha as orelhas horrivelmente rasgadas, o outro tinha num dos joelhos uma grande cicatriz, e o terceiro tinha a tromba cortada.

Olhavam para ele com um ar triste, como pessoas razoáveis, e o que não tinha tromba, baixando a cabeça enorme e dobrando os joelhos tentava acariciá-lo docemente com a extremidade horrível da tromba amputada.

A esta carícia do animal saltaram-lhe dos olhos duas lágrimas. Agarrou Abdalonim. - Ah! miserável! À cruz! À cruz! Abdolanim, desmaiando, caiu de bruços no chão. Por trás das fábricas de púrpura, cujo fumo lento e azul subia no céu, ouviu-se um grito de chacal; Amílcar parou.

A lembrança do filho, como o contacto com um deus, tinha-o acalmado de repente. Era um prolongamento da sua força, uma continuação indefinida da sua pessoa que ele entrevia, e os escravos não compreendiam de onde tinha vindo este apaziguamento.

Ao dirigir-se para as fábricas de púrpura, passou diante do ergástulo, uma casa comprida de pedra preta, construída numa fossa quadrada com um pequeno caminho em volta e quatro escadas nos ângulos.

Para acabar o seu sinal, Iddibal esperava, sem dúvida, a noite. Não há pressa agora, pensou Amílcar; e entrou na prisão. Alguns gritaram-lhe: «Volta»; os mais corajosos seguiram-no.

A porta aberta batia com o vento. O crepúsculo entrava pelas aberturas estreitas, e viam-se no interior correntes partidas, penduradas das paredes.

Era tudo o que restava dos prisioneiros de guerra! Amílcar empalideceu extraordinariamente, e os que estavam debruçados do lado de fora da fossa viram-no apoiar-se à parede com a mão, para não cair.

Mas o chacal deu mais três gritos. Amílcar levantou a cabeça; não proferiu uma palavra, não fez um gesto. Depois, quando o Sol se pôs completamente, desapareceu por trás da sebe de nopal; e à noite, na assembleia dos ricos, no templo de Eschmoun, disse, ao entrar:

- Luzes dos Baalim, aceito o comando das forças púnicas contra o exército dos bárbaros!

 

                         A BATALHA DE MAÇAR.

No dia seguinte Amílcar obteve dos sissitas duzentos e vinte e três mil kikar de ouro, decretou um imposto de catorze hekel sobre os ricos. Até mesmo as mulheres contribuíram; pagava-se pelos filhos e - coisa monstruosa para os hábitos cartagineses - obrigou os colégios de sacerdotes a darem dinheiro.

Exigiu todos os cavalos, todos os machos e todas as armas. Alguns quiseram esconder as suas riquezas, venderam-lhes os bens; e, para intimidar a avareza dos outros, deu sessenta armaduras e mil e quinhentos gommor de farinha, tantos dele como da companhia do marfim.

Mandou comprar soldados à Ligúria, três mil montanheses habituados a lutar com ursos; e como adiantamento pagaram-lhes seis luas, a quatro mines por dia.

Era preciso, contudo, um exército. Mas não aceitou, como Hanão, todos os cidadãos. Pôs de parte primeiro as pessoas que tinham ocupações sedentárias, depois os que tinham o ventre muito grande ou que tinham aspecto pusilânime; admitiu homens considerados sem honra, a escória de Malqua, os filhos dos bárbaros, dos livres. Como recompensa, prometeu aos cartagineses novos o direito de cidadania total.

O seu primeiro cuidado foi reformar a Legião. Estes belos jovens, que se consideravam como a majestade militar da República, tinham o seu próprio governo. Degradou os oficiais; tratava-os com rudeza, fazia-os correr, saltar, subir de uma vez a encosta de Byrsa, lançar dardos, lutar corpo a corpo, dormir, à noite, nas praças. As famílias vinham vê-los e lamentavam-nos.

Mandou fazer espadas mais curtas, borzeguins mais fortes. Fixou o número de criados e reduziu as bagagens; e, como o templo de Moloch era guardado por trezentos pilums romanos, apesar das reclamações do pontífice, pô-los ao seu serviço.

Com os que tinham vindo de Útica, e com outros que particulares possuíam, organizou uma falange de setenta e dois elefantes e tornou-os formidáveis. Armou os seus condutores com um mascoto e um formão para lhes poderem abrir o crânio se, no meio da luta, ficassem feridos.

Não permitiu que os generais fossem nomeados pelo Grande Conselho. Os anciães tentaram levantar objecções, ele ignorou-as; ninguém ousava murmurar, todos cediam à violência do seu génio.

Era ele sozinho que se encarregava da guerra, do governo e das finanças; e, a fim de evitar acusações, pediu que ficasse, como examinador de contas, o sufete Hanão.

Andavam a trabalhar nas muralhas e, para ter pedras, mandou demolir as velhas muralhas interiores, nesta altura inúteis. Contudo, a diferença de fortunas, substituindo a hierarquia das raças, continuava a manter separados os filhos dos vencidos e os dos conquistadores; também os patrícios assistiram irritados à destruição destas ruínas, enquanto a plebe, sem saber muito bem porquê, se alegrava.

As tropas armadas, de manhã à noite, desfilavam pelas ruas; a cada momento, ouvia-se o soar das trombetas; nos carros passavam escudos, tendas, lanças; os pátios estavam cheios de mulheres que rasgavam pano; o entusiasmo comunicava-se de uns para outros; a alma de Amílcar enchia a República.

Tinha dividido os soldados em números pares, tendo tido o cuidado de colocar ao comprimento das filas, alternadamente, um homem forte e um homem fraco, para que o menos vigoroso ou o mais fraco fossem levados ao mesmo tempo e empurrados pelos outros. Mas estes três mil liguros e os melhores de Cartago, só podiam formar uma falange simples de quatro mil e noventa e seis hoplitas, protegidos com capacetes de bronze, e que mantinham sarrissas de freixo, com catorze côvados de comprimento.

Dois mil jovens tinham fundas, um punhal e sandálias. Reforçou-os com oitocentos armados com escudo redondo e espada à romana.

O grosso da cavalaria era constituído por mil e novecentos guardas que restavam da Legião, cobertos com placas de bronze vermelho, como os clinabares assírios. Tinha mais de quatrocentos archeiros a cavalo, dos que se designavam por tarentinos, com barretes de pele de lontra, uma machada de lâmina dupla e uma túnica de couro. Por fim mil e duzentos negros do bairro das caravanas que, misturados com os clinabares, deviam correr ao pé dos cavalos apoiando uma mão na crina. Tudo estava preparado, e todavia Amílcar não partia.

Muitas vezes à noite saía de Cartago, sozinho, e passava para lá da lagoa, na direcção da foz do Maçar. Queria juntar-se aos mercenários? Os liguros, que estavam acampados nos Mappales, cercavam a sua casa.

As apreensões dos ricos pareciam justificadas quando um dia viram aproximar-se dos muros trezentos bárbaros. O sufete abriu-lhes as portas; eram desertores; vinham juntar-se ao seu senhor, levados pelo receio ou pela fidelidade.

O regresso de Amílcar não tinha surpreendido os mercenários; este homem, segundo pensavam, não podia morrer. Voltava para cumprir as suas promessas: esperança que não tinha nada de absurdo, tão profundo era o abismo entre a pátria e o exército.

Aliás, eles não se consideravam culpados; tinham esquecido o festim.

Os espiões, que haviam surpreendido, tinham-nos enganado. Foi um triunfo para os obstinados; até os tíbios ficaram furiosos. Depois os dois cercos enchiam-nos de aborrecimento; nada avançava; mais valia uma batalha! Assim muitos homens tinham-se ido embora e andavam pelo campo. Quando tiveram conhecimento do armamento voltaram; Mâtho estava muito contente: - Enfim! Enfim! - exclamava.

O ressentimento que sentia por Salammbô transferiu-se para Amílcar. O seu ódio apercebia agora uma presa determinada; e como a vingança se tornava mais fácil de conceber, julgava que já a tinha e deleitava-se com isso. Ao mesmo tempo, sentia-se dominado por uma ternura mais elevada, devorado por um desejo mais acre. Ora se via no meio dos soldados, brandindo uma espada sobre a cabeça do sufete, ora no quarto do leito de púrpura, estreitando a virgem nos seus braços, cobrindo-lhe o rosto de beijos, passando-lhe a mão pelos longos cabelos negros; e este sonho, que sabia irrealizável, era um suplício para ele. Jurou, uma vez que os seus companheiros o tinham nomeado schalishim, conduzir a guerra; a certeza de que não voltaria levava-o a ser implacável.

Foi ter com Spendius e disse-lhe:

- Vais buscar os teus homens! Eu trarei os meus! Avisa Autharite! Estamos perdidos se Amílcar nos ataca! Estás a ouvir-me? Levanta-te!

Spendius ficou estupefacto perante este ar de autoridade. Mâtho, habitualmente, deixava-se conduzir, e os entusiasmos que tinha tido esmoreciam depressa. Mas neste momento parecia ao mesmo tempo mais calmo e mais terrível; uma vontade soberba fulgurava nos seus olhos, semelhante à chama de um sacrifício.

O grego não escutava as suas razões. Vivia numa das tendas cartaginesas bordadas a pérolas, tomava bebidas frescas em taças de prata, jogava, deixava crescer o cabelo, e conduzia o cerco com lentidão.

Além disso conseguira certas informações secretas na cidade e não queria partir, certo de que dentro de poucos dias ela se abriria.

Narr'Havas, que andava entre os três exércitos, estava agora ao pé dele. Apoiava a sua opinião, e censurava até o líbio por querer, por um excesso de coragem, abandonar a sua empresa.

- Vai-te embora, se tens medo! - comentou. - Tinhas-nos prometido pez, enxofre, elefantes, soldados de infantaria, cavalos! Onde é que estão?

Narr'Havas lembrou-lhe que tinha sido ele que tinha exterminado as últimas coortes de Hanão; quanto aos elefantes estavam a ser caçados nas florestas, estava a armar os soldados de infantaria, os cavalos estavam a caminho; e o númida, afagando a pena de avestruz que lhe caía sobre o ombro, voltava os olhos como uma mulher e sorria de uma maneira irritante. Mâtho, diante dele, não encontrava nada para responder.

Um homem, que eles não conheciam, entrou, molhado de suor, assustado, os pés ensanguentados, o peito descoberto; a sua respiração sacudia os flancos magros como se fosse rebentar e, exprimindo-se num dialecto ininteligível, abria os olhos grandes, como se estivesse a falar de uma batalha. O rei saiu e chamou os seus cavaleiros.

Alinharam-se na planície, formando um círculo diante dele. Narr'Havas, a cavalo, baixava a cabeça e mordia os lábios. Por fim separou os seus homens em duas metades, disse à primeira para esperar; depois, num gesto imperioso ordenou aos outros que o seguissem a galope, desapareceu no horizonte, do lado das montanhas.

- Senhor - murmurou Spendius - não gosto destes incidentes extraordinários, o sufete regressa, Narr'Havas vai-se embora...

- Então? Que importa? - respondeu desdenhosamente Mâtho. Juntar-se a Autharite era mais um motivo de advertência para

Amílcar. Contudo, se se abandonasse o cerco das cidades, os seus habitantes sairiam, atacá-los-iam por trás, e teriam pela frente os cartagineses.

Depois de muitas palavras foram resolvidas e executadas as medidas seguintes.

Spendius com quinze mil homens ia para a ponte construída sobre o Maçar, a três milhas de Útica; fortificaram-se os ângulos com quatro torres enormes onde tinham sido colocadas catapultas. Com troncos de árvores, bocados de rocha, entrelaçados de espinhos e muros de pedras, bloquearam-se todos os atalhos da montanha, todos os desfiladeiros; nos cumes, fizeram montes de ervas a que se deitou fogo para servirem de sinais, e pastores que viam muito bem ao longe foram colocados aqui e ali.

Era evidente que Amílcar não seguiria com Hanão pela montanha das Águas-Quentes. Devia pensar que Autharite, senhor do interior, lhe barraria o caminho. Depois, um malogro ao princípio da campanha perdê-lo-ia, enquanto a vitória recomeçaria em breve, estando os mercenários bem longe. Podia ainda desembarcar no cabo das Uvas, e dali marchar sobre uma das cidades. Todavia, desta forma, encontrava-se entre os dois exércitos, imprudência de que não era capaz com forças tão pouco numerosas. Devia, então, marchar ao longo da base da Ariana, voltar à esquerda para evitar a foz do Maçar e seguir a direito para a ponte. Era ali que Mâtho o esperava.

À noite, à luz dos archotes, vigiava os sapadores. Corria a Hippo-Zaryte, às obras das montanhas, voltava, não descansava. Spendius enviou a sua força; mas, pela direcção dos espiões, a escolha das sentinelas, a arte das máquinas e todos os meios defensivos, Mâtho escutava docilmente o companheiro; e já não falavam de Salammbô, um não pensava nisso e o outro sentia uma espécie de pudor.

Muitas vezes ia para os lados de Cartago, a fim de tentar ver as tropas de Amílcar. Percorria o horizonte com os olhos; deitava-se de bruços, e no pulsar das artérias julgava ouvir um exército.

Disse a Spendius que, caso dentro de três dias, Amílcar não viesse, iria com todos os seus homens ao seu encontro para lhe dar batalha.

Passaram-se ainda mais dois dias. Spendius retinha-o; na manhã do sexto, partiu.

Os cartagineses não estavam menos impacientes do que os bárbaros. Nas tendas e nas casas havia o mesmo desejo, a mesma angústia; todos se interrogavam sobre as razões desta demora de Amílcar.

De vez em quando, subia à cúpula do templo de Eschmoun, ao pé do anunciador das luas, e verificava a direcção do vento.

Um dia, o terceiro do mês de Tibby, viram-no descer a Acrópole em passo precipitado. Nos Mappales, levantou-se um grande clamor. Daí a pouco as ruas agitavam-se, e por toda a parte os soldados começaram a armar-se entre as mulheres que choravam agarradas a eles; depois correu para o palácio de Khamon, para se juntar às suas forças. Não se podia falar com eles, como não era permitido as pessoas aproximarem-se das muralhas; durante alguns minutos reinou um silêncio sepulcral na cidade. Os soldados pensavam, apoiados às lanças; e os outros, em casa, suspiravam.

Ao pôr-do-sol, o exército saiu pela porta ocidental; mas, em vez de tomar o caminho de Tunes ou de se dirigir para as montanhas na direcção de Útica, continuou pela beira-mar; e daí a pouco chegava à lagoa, onde elevações redondas, todas brancas de sal, cintilavam como travessas de prata esquecidas na margem.

Depois as poças de água multiplicavam-se. O solo tornava-se, pouco a pouco, mais mole; os pés enterravam-se; Amílcar não se voltou. Seguia sempre à frente; e o seu cavalo, coberto de manchas amarelas como um dragão, deitando espuma em sua volta, avançava no lodo com passos largos. A noite caiu, uma noite sem Lua. Alguns clamavam que iam perecer; tirou-lhes as armas, que entregava aos criados. A lama era cada vez mais funda. Era preciso montar nos animais de carga; outros agarravam-se à cauda dos cavalos; os mais fortes puxavam os mais fracos e o corpo dos liguros empurrava a infantaria com a ponta das lanças. A escuridão tornou-se ainda maior. Tinham-se perdido. Pararam todos.

Os escravos do sufete partiram à frente, para procurarem balizas colocadas aqui e ali, por sua ordem. Gritavam nas trevas e, de longe, o exército seguia-os.

Sentiam a resistência do chão. Uma curva esbranquiçada desenhava-se vagamente,, e eles encontraram-se na margem do Maçar. Apesar do frio, não acenderam fogueiras.

Ao meio da noite, levantaram-se rabanadas de vento. Amílcar mandou acordar os soldados, mas não se ouviu tocar uma trombeta; os comandantes batiam-lhes mansamente no ombro.

Um homem alto desceu para a água. Não chegava à cintura;

podia-se passar.

O sufete mandou colocar trinta e dois elefantes no rio cem passos mais adiante, enquanto os outros, mais abaixo, deteriam os homens levados pela corrente; e todos, com os braços levantados acima da cabeça, atravessaram o Maçar como se estivessem entre duas muralhas. Ele tinha reparado que o vento do ocidente, ao empurrar a areia, obstruía o rio e formava, ao comprimento, uma espécie de caminho natural.

Agora estava na margem esquerda, diante de Útica, e numa vasta planície, vantagem para os seus elefantes que constituíam a força do seu exército.

Este golpe de génio entusiasmou os soldados. Queriam ir imediatamente ao encontro dos bárbaros; o sufete mandou-os descansar duas horas. Quando o Sol apareceu, formaram em três linhas na planície: primeiro os elefantes, a infantaria ligeira com a cavalaria atrás dela, a falange marchava a seguir.

Os bárbaros acampados em Útica e os quinze mil que se encontravam em volta da ponte ficaram surpreendidos ao verem ao longe a terra a ondular. O vento, que soprava muito forte, levantava remoinhos de areia; elevaram-se como arrancados do solo, levantaram-se como grandes farrapos amarelos-claros, depois rasgavam-se e recomeçavam sempre, escondendo aos mercenários o exército púnico. Por causa dos chifres dos capacetes, uns julgavam que era uma manada de bois; outros, enganados pela agitação dos capotes, julgavam distinguir asas, e os que tinham viajado mais, encolhiam os ombros, explicando que se tratava de uma miragem. Contudo, havia qualquer coisa enorme que continuava a avançar. Um vapor leve, subtil como a respiração, corria sobre a superfície do deserto; uma luz incomodativa, e que parecia vibrar, fazia recuar o fundo do céu, e, penetrando os objectos, tornava difícil calcular a distância. A planície imensa estendia-se para todos os lados a perder de vista; e as ondulações do terreno, quase imperceptíveis, prolongavam-se quase até ao extremo do horizonte, fechado por uma grande linha azul que se sabia ser o mar. Os dois exércitos, que tinham saído das tendas, olhavam; os habitantes de Útica, para verem melhor, tinham subido às muralhas.

Distinguiram várias barras transversais, com pontas iguais. Tornavam-se mais espessas e maiores; montículos negros balançavam; de súbito apareceram uma espécie de moitas quadradas; eram elefantes e lanças; ouviu-se um grito em uníssono:

- Os cartagineses!

Sem sinal, sem ordem, os soldados de Útica e da ponte correram em desordem para irem ao encontro de Amílcar. A este nome, Spendius estremeceu. Repetia arfando:

- Amílcar! Amílcar! - Mâtho não estava ali! Que fazer? Não havia um meio de fugir. A surpresa do facto, o seu medo do sufete e, sobretudo, a urgência de uma resolução imediata desorientavam-no; via-se atravessado por mil espadas, decapitado, morto. Contudo, chamavam-no; trinta mil homens iam segui-lo: sentiu a fúria que se levantava contra ele; para esconder a sua palidez, esfregou as faces com vermelhão, afivelou as cnemides, a couraça, bebeu uma pátera de vinho puro e correu atrás dos seus homens que corriam para os de Útica.

Juntaram-se os dois com tal rapidez que o sufete não teve tempo de alinhar os seus homens para a batalha. Pouco a pouco, ia moderando o passo. Os elefantes pararam; balançavam as cabeças pesadas enfeitadas com penas de avestruz, batendo no lombo com a cauda.

No fundo dos seus intervalos, distinguiam-se as coortes dos vélites, mais longe os capacetes grandes dos clinabares, com os ferros que brilhavam ao Sol, couraças, penachos, estandartes agitados. O exército cartaginês, com onze mil trezentos e noventa e seis homens, parecia ter dificuldade em os conter, porque formava um quadrado comprido, estreito nos flancos e fechado sobre si mesmo.

Ao verificarem que estavam tão fracos, os bárbaros foram tomados por uma alegria desordenada; não viam Amílcar. Tinha ficado mais para trás, talvez? Que importava, aliás! O desprezo que sentiam por estes mercadores reforçava a sua coragem; antes de Spendius ter comandado a manobra, todos a tinham compreendido e já a executavam.

Formaram uma grande linha direita que contornava as alas do exército púnico, a fim de o envolver completamente. Mas, quando estavam a trezentos passos de intervalo, os elefantes, em vez de avançarem, voltaram para trás; mas eis que os clinabares, dando meia volta, partem atrás deles; e a surpresa dos mercenários tornou-se ainda maior ao verem que todos os homens com dardos se vinham juntar a eles. Os cartagineses tinham medo, fugiam! Um clamor formidável elevou-se das fileiras dos bárbaros, e, do alto do seu dromedário, Spendius gritava:

- Ah! eu tinha a certeza! Para a frente! Para a frente!

As azagaias, dardos, balas de fundas partiram ao mesmo tempo. Os elefantes, de dorso ferido pelas flechas, puseram-se a galopar mais depressa; uma poeira grossa envolvia-os, e, como sombras numa nuvem, desapareciam.

Ouvia-se ao fundo grande barulho de passos, dominado pelo som agudo das trombetas que tocavam com fúria. Este espaço que os bárbaros tinham diante deles, cheio de agitação e de tumulto, puxava como um remoinho; alguns lançaram-se para lá. Apareceram coortes de infantaria; fechavam-se; e, ao mesmo tempo, todos viam acorrer infantes com cavaleiros a galope.

Amílcar tinha ordenado à falange para abrir as suas secções, aos elefantes, às tropas ligeiras e à cavalaria para passarem por estes intervalos para atingirem os flancos e tinha calculado tão bem a distância dos bárbaros, que-, no momento em que vieram ao seu encontro, todo o exército cartaginês fazia uma linha direita.

No meio estava a falange formada em grupos ou quadrados fechados, com dezasseis homens de cada lado. Todos os chefes de todas as filas apareciam entre ferros compridos e aguçados que os excediam de forma desigual, porque as seis primeiras filas cruzavam as sarissas segurando-as pelo meio e as dez filas inferiores apoiavam-nas no ombro dos companheiros que estavam à sua frente. Os rostos estavam meio encobertos pela viseira dos capacetes; cnemides de bronze cobriam as pernas direitas; escudos grandes e cilíndricos desciam até aos joelhos; e esta horrível massa quadrada movia-se como uma peça única, parecia viver como um animal e funcionar como uma máquina. Eram limitadas regularmente por duas coortes de elefantes; arripiando-se, faziam cair os fragmentos das flechas que estavam presos à sua pele preta. Os indianos acocorados na cernelha, entre tufos de penas brancas, mantinham-nos parados com a ponta do arpão, enquanto, nas torres, homens encobertos até aos ombros, faziam oscilar, na extremidade de grandes arcos estendidos, barras de ferro com estopa acesa. À direita e à esquerda dos elefantes, andavam à volta os besteiros, uma funda na cintura, uma segunda na cabeça e uma terceira na mão direita. Os clinabares, cada um com um negro ao lado, seguravam as lanças entre as orelhas dos cavalos, cobertos de couro como eles. A seguir, estavam os soldados de armaduras leves com escudos de pele de lince, de onde saíam as pontas dos dardos que eles seguravam na mão esquerda; e os tarentinos, conduzindo dois cavalos emparelhados, davam altura às duas extremidades desta muralha de soldados.

O exército dos bárbaros, pelo contrário, não pudera manter o alinhamento. Com um comprimento exorbitante fazia ondulações e tinha espaços em branco; estavam ofegantes por terem corrido.

A falange pôs-se em marcha pesadamente empunhando todas as sarissas; sob este peso enorme a linha dos mercenários, muito fina, dobrou-se pelo meio.

As alas cartaginesas tomaram posições para os cercar; os elefantes seguiram-nas. Com as lanças em posição oblíqua, a falange dividiu os bárbaros; dois troços enormes agitaram-se; as alas, a golpes de funda e de flecha, empurravam-nos para as falanges mais pequenas. Para se desembaraçarem do inimigo faltava-lhes a cavalaria, pois só duzentos númidas tinham conseguido atacar o esquadrão direito dos clinabares. Os outros estavam cercados, não podiam sair das linhas. O perigo era iminente e era precisa uma resolução urgente.

Spendius mandou atacar a falange simultaneamente por dois flancos, a fim de passar pelo meio. Contudo as fileiras mais estreitas deslizaram sob as mais compridas e regressaram ao seu lugar; e voltou-se contra os bárbaros, tão terrível nos lados como fora na frente.

Embateram contra a haste das sarissas; a cavalaria, por trás, organizava o seu ataque; e a falange, apoiada pelos elefantes, fechava-se e alongava-se, apresentava-se em quadrado, em cone, em losango, em trapézio, em pirâmide. Fazia-se continuamente um duplo movimento interior da frente para trás porque os que estavam nas últimas filas acorriam às primeiras filas, e estes, por fadiga ou por causa dos ferimentos, concentravam-se mais adiante. Os bárbaros estavam comprimidos pela falange. Era impossível avançar; dir-se-ia um oceano onde se agitavam penachos vermelhos com escamas de bronze, enquanto os escudos claros rolavam como uma espuma de prata. Às vezes, de um extremo ao outro, desciam grandes correntes, depois subiam, e no meio uma massa pesada mantinha-se imóvel. As lanças inclinavam-se e levantavam-se alternadamente. Aliás era uma agitação de espadas nuas tão precipitada que só as pontas apareciam, e turmas de cavalaria alargavam os círculos, que se fechavam atrás delas em turbilhão. Por cima a voz dos comandantes, o soar dos clarins e o ranger das liras, as bolas de chumbo e as bolas de argila, passando no ar, assobiavam, fazendo saltar as espadas das mãos, o cérebro dos crânios. Os feridos, protegendo um braço com o escudo, apoiando o punho da espada contra o chão, e outros, em poças de sangue, voltavam-se para morderem os calcanhares. A multidão era tão compacta, â poeira tão espessa, o tumulto tão grande, que era impossível distinguir fosse o que fosse; os cobardes que se queriam entregar não eram ouvidos. Quando as mãos estavam vazias, lutava-se corpo a corpo; os peitos rangiam contra as couraças, e os cadáveres deixavam cair a cabeça para trás, entre os braços crispados. Uma companhia de sessenta umbrianos que, firmes nos jarretes, a lança diante dos olhos, inabaláveis e rangendo os dentes, obrigaram a recuar dois grupos ao mesmo tempo. Pastores epirotas correram para o esquadrão da esquerda dos clinabares, agarraram os cavalos pela crina fazendo-os andar à roda; os animais, deitando os homens ao chão, fugiram pela planície. Os besteiros púnicos, espalhados por aqui e por ali, estavam estupefactos. A falange começava a oscilar, os comandantes corriam desvairados, os cerra-filas empurravam os soldados, e os bárbaros tinham-se formado de novo: voltavam; a vitória estava do seu lado.

Mas um grito - um grito terrível - soou, um rugido de dor e de cólera: eram os setenta e dois elefantes que se precipitavam sobre uma linha dupla, pois Amílcar tinha esperado que os mercenários se juntassem num ponto para os soltar sobre eles; nos peitos fora colocado um chuço, nos dorsos uma couraça; os dentes tinham sido alongados com lâminas de ferro curvas como sabres, e para os tornar mais ferozes, tinham-nos embriagado com uma mistura de pólvora, vinho puro e incenso. Sacudiam as coleiras de guizos, berravam; e os condutores dos elefantes baixavam a cabeça porque as flechas começavam a voar à volta deles.

A fim de resistirem melhor, os bárbaros juntaram-se numa massa compacta; os elefantes arremessaram-se para o meio, impetuosamente. As esporas do peitoral, como proas de navio, abriam caminho entre as coortes; refluíram em borbotões.

Com as trombas asfixiavam os homens, ou melhor, levantando-os do chão com a tromba, entregavam-nos aos soldados das torres; com os dentes estripavam-nos, deitavam-nos ao ar, e grandes bocados de intestinos pendiam dos dentes de marfim como cordame dos mastros. Os bárbaros tentavam espetar-lhes os olhos, cortar-lhes as jarretas, ou, deslizando para debaixo do seu ventre, espetar-lhes uma espada até ao punho, morrendo esmagados; os mais intrépidos trepavam pelas correias; sob as chamas, sob as balas, sob as flechas, continuavam a serrar os couros, e a torre de vime desmoronava-se como uma torre de pedras. Catorze dos que se encontravam na extremidade direita, irritados com os ferimentos, voltaram-se para a segunda fila; os indianos pegaram no maço e no escopro e, com toda a força, aplicaram-lhes um golpe violento.

Os animais enormes baixaram-se, caíram uns sobre os outros. Foi como uma montanha; e, sobre este monte de cadáveres e de armaduras, um elefante monstruoso a que chamavam Fúria de Baal, preso por uma perna nas cadeias, ficou até à noite a berrar, com uma flecha num dos olhos.

Os outros, como conquistadores que se deleitam com a exterminação, derrubavam, esmagavam, calcavam, excitavam-se com os cadáveres, com os despojos. Para repelir os manípulos fechados em coroa em volta deles, apoiavam-se nas patas traseiras, num movimento de rotação contínuo, avançando sempre. Os cartagineses sentiram redobrar o seu vigor e a batalha recomeçou.

Os bárbaros enfraqueciam; hoplitas gregos deitaram fora as armas. Viram Spendius deitado sobre o dromedário, com dois dardos nos ombros. Todos se precipitaram para as alas e correram em direcção a Útica.

Os clinabares, cujos cavalos não podiam mais, nem tentaram segui-los. Os liguros, sequiosos, pediam que os levassem para o rio. Mas os cartagineses, colocados no meio das falanges, e porque tinham sofrido menos, batiam com os pés no chão perante a vingança que lhes fugia; já se tinham lançado na perseguição dos mercenários; Amílcar apareceu.

Segurava as rédeas de prata do seu cavalo tigrado todo coberto de suor. As fitas presas aos chifres do capacete batiam com o vento que vinha de trás, e ele tinha posto debaixo da coxa esquerda o escudo oval. Com um movimento da sua lança de três pontas, fez parar o exército.

Os tarentinos saltaram imediatamente para o segundo cavalo, e partiram para a direita e para a esquerda para o rio e para a cidade.

A falange exterminou sem dificuldade tudo o que restava dos bárbaros. Quando viam as espadas, esticavam os pescoços fechando os olhos. Outros defendiam-se até à última; avistavam-se ao longe, debaixo das rochas, como cães raivosos. Amílcar tinha mandado fazer cativos; mas os cartagineses obedeciam-lhe com rancor, tal era o prazer que sentiam em enterrar as espadas nos corpos dos bárbaros. Como tinham muito calor trabalhavam com os braços nus como os ceifeiros; e quando paravam para tomarem fôlego, seguiam com os olhos, um cavaleiro a galope atrás de um soldado que corria; conseguia apanhá-lo pelos cabelos, mantinha-o assim durante algum tempo, depois abatia-o com um golpe de machado.

A noite caiu. Os cartagineses, os bárbaros tinham desaparecido.

Os elefantes, que tinham fugido, erravam na linha do horizonte com as torres incendiadas. Ardiam nas trevas, aqui e ali, como faróis meio perdidos na bruma; e não se via outro movimento na planície além da ondulação do rio, cujas águas tinham subido com os cadáveres que arrastava para o mar.

Duas horas mais tarde, Mâtho chegou. Percebeu, à claridade das estrelas, montes desiguais, lançados por terra.

Eram as fileiras dos bárbaros. Baixou-se; estavam todos mortos. Chamou; ninguém respondeu.

Nessa mesma manhã, tinha deixado Hippo-Zaryte com os seus soldados para marchar sobre Cartago. Em Útica, o exército de Spendius tinha acabado de partir, e os habitantes começavam a incendiar as máquinas. Todos se tinham batido com tenacidade.

Todavia, como o tumulto que se ouvia do lado da ponte redobrava de forma incompreensível, Mâtho optara pelo caminho mais curto, pela montanha; e, como os bárbaros fugiam para a planície, ele não tinha encontrado ninguém.

Diante dele, pequenos montes piramidais desenhavam-se na escuridão, e, aquém do rio, mais perto, havia ao nível do chão luzes imóveis. Com efeito, os cartagineses tinham-se juntado atrás da ponte, e, para enganar os bárbaros, o sufete tinha instalado muitos postos na outra margem do rio.

Mâtho, continuando a avançar, julgou distinguir estandartes púnicos, porque cabeças de cavalo que não mexiam apareciam no ar, fixadas em varas em feixes que não se podiam ver; e ele ouviu mais longe um grande rumor, um barulho de canções e de taças partidas.

Sem saber onde se encontrava nem como havia de descobrir Spendius, angustiado, amedrontado, perdido nas trevas, voltou pelo mesmo caminho, mais impetuosamente. A aurora começava a surgir, quando do alto da montanha viu a cidade, as carcaças das máquinas escurecidas pelas chamas, como esqueletos de gigante que se apoiassem aos muros.

Tudo repousava num silêncio e numa prostração extraordinária. Entre os seus soldados, junto das tendas, homens quase nus dormiam de costas, ou com a testa apoiada no braço que segurava a couraça. Alguns tiravam das pernas ligaduras ensanguentadas. Os que iam morrer voltavam a cabeça muito devagar; outros, arrastando-se, levavam-lhes qualquer coisa para beberem. Ao longo dos caminhos estreitos as sentinelas andavam de um lado para o outro, a fim de se aquecerem, ou voltavam o rosto para o horizonte, com a lança ao ombro, numa atitude feroz.

Mâtho encontrou Spendius abrigado debaixo de um trapo preso a dois paus, os joelhos entre as mãos e a cabeça baixa.

Estiveram muito tempo sem falar.

Por fim, Mâtho murmurou:

- Vencidos!

Spendius retorquiu com uma voz triste:

- Sim, vencidos!

E respondia a todas as perguntas com gestos desesperados, Suspiros, estertores chegavam até eles. Mâtho entreabriu o pano.

O espectáculo fê-lo recordar outro desastre, no mesmo local, e

rangendo os dentes:

- Miserável! Já uma vez... Spendius interrompeu-o:

- Tu também não estavas lá!

- É uma maldição! - exclamou Mâtho. - Todavia, no fim, atingi-lo-ia! Vencê-lo-ia! Matá-lo-ia! Ah! se eu lá tivesse estado!... - A ideia de não ter estado na batalha desesperava-o ainda mais do que a derrota. Tirou a espada, deitou-a ao chão. - Como é que os cartagineses vos venceram?

O antigo escravo começou a contar as manobras. Mâtho julgava estar a vê-las e irritava-se. O exército de Útica, em vez de correr para a ponte, deveria ter surpreendido Amílcar por trás.

- Bem! Isso também eu sei! - afirmou Spendius.

- Era preciso duplicar a profundidade, não comprometer os vélites contra a falange, dar espaço aos elefantes. No último momento podíamos ganhar tudo; nada obrigava a fugir.

Spendius respondeu:

- Vi-o passar com a sua grande capa vermelha, os braços levantados, mais alto que a poeira, como uma águia que voasse no flanco das coortes; e, a todos os sinais da sua cabeça elas cerravam-se e arremetiam; a multidão comprimia-nos uns contra os outros; ele olhava para mim; senti no meu coração como que o frio de uma espada.

- Terá talvez escolhido o dia? - dizia para consigo, muito baixo, Mâtho.

Interrogavam-se, procurando descobrir o que é que tinha trazido o sufete na circunstância mais desfavorável. Para atenuar a falta ou para dar coragem a si próprio, Spendius afirmou que ainda havia esperança.

- Mesmo que não haja, não importa! - respondeu Mâtho.- Continuarei sozinho a guerra!

- E eu também! - exclamou o grego mexendo-se e começando a caminhar com grandes passadas; os olhos brilhavam e um sorriso estranho contraía o seu rosto de chacal.

- Recomeçaremos, nunca mais me deixes! Não sou feito para batalhas quando está Sol; o brilho das espadas perturba-me a vista; é uma doença, vivi muito tempo no ergástulo. Mas dá-me muralhas para escalar à noite, e entrarei nas cidades, e os cadáveres estarão frios antes de o galo cantar! Mostra-me alguém, alguma coisa, um inimigo, um tesouro, uma mulher - ele repetiu - uma mulher, seja ela filha de um rei, e eu trarei o que for do teu desejo a teus pés. Censuras-me por ter perdido a batalha contra Hanão, todavia ganhei-a. Confessa! a minha vara de porcos fez-nos um serviço maior do que uma falange de espartanos. - E, cedendo à necessidade de se reanimar e de se apoderar da vingança, enumerou tudo o que tinha feito pela causa dos mercenários.- Fui eu, nos jardins do sufete, que empurrei o gaulês! Mais tarde, em Sicca, enfureci-os todos com o medo da República! Gíscon voltou a mandá-los, mas eu não quis que os intérpretes pudessem falar. Ah! como a língua lhes pendia da boca! Lembras-te? Levei-te a Cartago; roubei o zaimph. Levei-te a casa dela. Farei ainda mais: verás! - Começou a rir como um louco.

Mâtho olhava para ele estupefacto. Experimentava uma espécie de mal-estar ao pé deste homem, que era ao mesmo tempo tão cobarde e tão terrível.

O grego retomou um tom jovial, fazendo estalar os dedos:

- Ora! Depois da chuva, vem o Sol! Trabalhei nas pedreiras e bebi massamorda num barco, sob um toldo de ouro, como um Ptolomeu. A infelicidade deve servir para nos tornar mais hábeis. À força de trabalho, junta-se fortuna. Ama os políticos. Cederá!

Veio até junto de Mâtho, e segurando-lhe o braço:

- Senhor, neste momento os cartagineses estão seguros da sua vitória. Tu tens um exército que não combateu, e os teus homens obedecem-te! Coloca-os à frente; os meus, para se vingarem, irão. Tenho três mil cários, mil e duzentos besteiros e archeiros, coortes inteiras! Pode-se mesmo formar uma falange, partamos!

Mâtho, atordoado com o desastre, não tinha até este momento pensado numa saída. Ouvia de boca aberta, e as placas de bronze colocadas ao lado levantavam-se com as pulsações do coração. Pegou na espada, gritando:

- Segue-me, marchemos!

Os batedores, quando voltaram, anunciaram que os mortos dos cartagineses tinham sido recolhidos, que a ponte estava em ruínas e que Amílcar tinha desaparecido.

 

                           EM CAMPANHA.

TiNHA pensado que os mercenários o esperariam em Útica e que o atacariam; e, não achando as suas forças suficientes para dar ataque ou para o suportar, tomara o caminho do sul, pela margem direita do rio, o que o punha imediatamente a coberto de uma surpresa.

Queria, fechando primeiro os olhos à sua revolta, afastar todas as tribos da causa dos bárbaros; depois, quando estivessem bem isolados no meio das províncias, cairia sobre eles e exterminá-los-ia.

Em catorze dias, restabeleceu a paz na região compreendida entre Thuccaber e Útica, com as cidades de Tigicabá, Tessurá, Vacca, e outras ainda a ocidente. Zunghar, nas montanhas, Assuras, célebre pelo seu templo, Djeraado com os seus bosques de zimbro, Thapitis e Hagur enviaram-lhe embaixadas. A gente do campo vinha carregada de víveres, implorava a sua protecção, beijava-lhe os pés e os dos soldados, e queixavam-se dos bárbaros. Alguns vinham oferecer-lhe, em sacos, as cabeças que tinham cortado aos cadáveres dos mercenários mortos por eles, diziam; porque muitos tinham-se perdido ao fugirem e tinham sido encontrados mortos, aqui e ali, debaixo das oliveiras e nas vinhas.

Para deslumbrar o povo, Amílcar, enviara, no dia seguinte ao da vitória, para Cartago, os dois mil homens que tinham sido feitos prisioneiros no campo de batalha. Chegaram em longas companhias de cem homens cada, os braços ligados a uma barra de bronze que os prendia à nuca, e os feridos, ensanguentados, corriam também; os cavaleiros, atrás deles, fustigavam-nos com o chicote.

Foi um delírio de alegria! Repetia-se que tinham sido mortos seis mil bárbaros; os outros não resistiriam, a guerra tinha acabado; beijavam-se nas ruas, e friccionavam o rosto dos deuses com manteiga e cinamomo, para lhes agradecer. Com os seus grandes olhos, os ventres grandes e os braços levantados até aos ombros, os deuses pareciam viver sob a pintura mais fresca e participar na alegria do povo. Os ricos deixavam as portas abertas; pela cidade repercutia-se o rufar dos tambores; os templos estavam iluminados todas as noites, e as servas da deusa desceram a Malqua e instalaram nas esquinas cavaletes de sicômoro, onde se prostituíam. Votavam-se terras para os vencedores, holocaustos para Melkart, trezentas coroas de ouro para o sufete; os seus partidários propunham que lhe fossem dadas novas prerrogativas e novas honras.

Tinha solicitado aos anciães para fazerem diligências junto de Autharite para se trocar por todos os bárbaros, se fosse preciso, o velho Gíscon e os cartagineses detidos. Os líbios e os nómadas que compunham o exército de Autharite mal conheciam estes mercenários, homens de raça italiota ou grega; se a República oferecia tantos bárbaros por tão poucos cartagineses, é porque uns não tinham valor nenhum e os outros tinham um valor considerável. Temiam uma armadilha. Autharite recusou.

Os anciães decretaram a execução dos cativos, embora o sufete lhes tivesse mandado dizer por escrito que não os matassem. Tencionava incorporar os melhores nas suas tropas e provocar assim as deserções. Mas o ódio impediu todas as reservas.

Os dois mil bárbaros foram atados nos Mappales às estelas dos túmulos; e mercadores, serventes de cozinha, bordadores e até mesmo mulheres, as viúvas dos soldados com os filhos, todos os que queriam, vinham matá-los com flechas. Faziam pontaria com toda a lentidão para prolongarem o suplício; baixavam o braço e levantavam-no de vez em quando; e a multidão comprimia-se, ruidosa. Os paralíticos vinham em padiolas; muitos, por precaução, traziam alimentos e ficavam ali até à noite; outros pernoitavam lá. Tinham armado tendas onde se podia beber. Houve quem ganhasse muito dinheiro a alugar arcos.

Deixavam de pé estes cadáveres crucificados que assim, sobre os túmulos, pareciam estátuas vermelhas; e a exaltação chegava à gente de Malqua, descendente das famílias autóctones e geralmente desinteressadas pelas coisas da pátria. Reconhecendo os prazeres que ela lhes dava, interessavam-se agora pelo seu destino, sentiam-se púnicos; e os anciães acharam hábil juntar assim numa mesma vingança todo o povo.

Não faltava a sanção dos deuses porque de todos os lados do céu surgiam corvos. Voavam em círculo no ar dando grandes gritos roucos, e formavam uma nuvem que rolava sobre si própria continuamente. Via-se Clypea, Rhades e o promontório Hermeum. Por vezes, dividia-se, alargando ao longe as suas espirais negras; Era uma águia que aparecia no meio e depois partia. Nos terraços, nas cúpulas, na extremidade dos obeliscos e no frontão dos templos, havia, aqui e ali, grandes aves que tinham o bico vermelho da carne humana.

Por causa do cheiro, os cartagineses resignaram-se a desfazerem-se dos cadáveres. Cremaram alguns; deitaram outros ao mar, e as vagas, empurradas pelo vento do norte, trouxeram-nos para a praia, ao fundo do golfo, diante do campo de Autharite.

Este castigo tinha aterrorizado os bárbaros, sem dúvida, porque do alto de Eschmoun viram-nos derrubar as tendas, reunir os rebanhos, carregar as bagagens nos burros, e nessa mesma noite todo o exército partiu.

Devia, depois de atravessar a serra das Águas-Quentes até Hippo-Zaryte, impedir que o sufete se aproximasse das cidades tírias com a possibilidade de um regresso a Cartago.

Entretanto, os dois exércitos tentavam chegar ao sul, Spendius pelo Oriente, Mâtho pelo ocidente, de maneira a juntarem-se os três para o surpreender e cercar. Um reforço que eles não esperavam apareceu: NarrHavas voltou com trezentos camelos carregados de betume, vinte cinco elefantes e seis mil cavaleiros.

O sufete, para enfraquecer os mercenários, tinha julgado prudente ocupá-lo ao longe no seu reino. Do fundo de Cartago, tinha-se entendido com Masgaba, um salteador que queria fazer um império. Com muito dinheiro púnico, tinha revoltado os estados númidas prometendo-lhes a liberdade. Narr'Havas, prevenido pelo filho da ama, tinha entrado em Cirta, envenenado os vencedores com a água das cisternas, cortado algumas cabeças, restabelecido tudo; e fez frente ao sufete mais furioso do que os bárbaros.

Os chefes dos quatro exércitos chegaram a acordo sobre as disposições da guerra. Seria longa; era preciso prever tudo.

Convinha primeiro pedir o auxílio dos romanos, e ofereceram esta missão a Spendius; como era trânsfuga, não ousou encarregar-se dela. Doze homens das colónias gregas embarcaram em Annaba, numa chalupa dos númidas. Depois, os chefes exigiram de todos os bárbaros o juramento de obediência total. Todos os dias os comandantes inspeccionavam o vestuário e o calçado; tinham mesmo proibido as sentinelas de usarem escudo, porque muitas vezes apoiavam-se às lanças e adormeciam de pé; os que tinham bagagem foram obrigados a desfazerem-se dela; tudo, à maneira romana, devia ser levado às costas. Por precaução contra os elefantes, Mâtho organizou um corpo de cavaleiros catafractas, em que o homem e o cavalo desapareciam sob uma couraça de pele de hipopótamo coberta de pregos; e para proteger os cascos dos cavalos fizeram-lhes umas botinas em fio de esparta.

Foi proibido pilhar os burgos e tiranizar os habitantes de raça não púnica. Como os víveres da região se estavam a esgotar, Mâtho mandou distribuí-los pelos soldados, sem se preocupar com as mulheres. Contudo eles dividiram-nos com elas. Por falta de alimentos muitos estavam a enfraquecer. Era uma ocasião de querelas e de invectivas contínuas, alguns atraíam as companheiras dos outros enganando-as ou prometendo-lhes mesmo o seu quinhão. Mâtho mandou persegui-las sem piedade. Elas refugiaram-se no campo de Autharite; os gauleses e os líbios, à força de ultrajes, obrigaram-nas a irem-se embora.

Foram até aos muros de Cartago implorar a protecção de Ceres e de Prosérpina, porque havia em Byrsa um templo e sacerdotes consagrados a estas deusas, em expiação dos horrores cometidos outrora no cerco de Siracusa. Os sissitas, alegando os seus direitos sobre uma coisa sem dono, exigiram as mais novas para vender; e os cartagineses novos casaram-se com as lacedemónias, que eram louras.

Algumas teimavam em seguir os exércitos. Corriam ao lado das falanges, junto dos comandantes. Chamavam pelos seus homens, puxavam-lhes pela capa, batiam no peito amaldiçoando-os e com os braços estendidos mostravam os filhos nus que choravam. Este espectáculo comovia os bárbaros; eram um embaraço, um perigo. Repeliram-nas várias vezes, mas elas voltavam; Mâtho mandou que os cavaleiros de Narr'Havas as atacassem com golpes de lança; e quando os baleares disseram que precisavam de mulheres respondeu:

- E eu? Não tenho nenhuma!

Neste momento, o génio de Moloch dominava-o. Apesar das rebeliões da sua consciência, executava coisas espantosas, imaginando obedecer à voz de um deus. Quando não podia assaltar os campos, Mâtho deitava pedras para lá a fim de os tornar estéreis.

Em mensagens repetidas, incitava Autharite e Spendius a apressarem-se. Todavia as operações do sufete eram incompreensíveis. Acampava sucessivamente em Eidus, em Monchar, em Tehent; batedores julgavam vê-lo nos arredores de Ischiil, perto das fron teiras de Narr'Havas, e soube-se que ele tinha atravessado o rio acima de Teburda, como se pretendesse regressar a Cartago. Mal chegava a um lugar mudava-se para outro. Os caminhos que tomava eram sempre desconhecidos. Sem dar batalha, o sufete conservava as suas vantagens; perseguido pelos bárbaros, parecia conduzi-los.

Estas marchas e contramarchas fatigavam ainda mais os cartagineses; e as forças de Amílcar, não sendo renovadas, diminuíam de dia para dia. Agora, a gente do campo trazia-lhe víveres com menos assiduidade. Encontrava por toda a parte uma hesitação, um ódio taciturno; apesar das suas súplicas ao Grande Conselho, não vinha qualquer auxílio de Cartago.

Dizia-se (acreditava-se talvez) que não era preciso. Era um ardil, ou queixas inúteis; e os partidários de Hanão, a fim de o prejudicarem, exageravam a importância da sua vitória. Pelas tropas que comandava, faziam-se sacrifícios mas não se ia satisfazer sempre as suas exigências. A guerra já era bem pesada! Tinha custado muito; e, por orgulho, os patrícios da sua facção apoiavam-no com indulgência.

Então, desesperado com a República, Amílcar tirou pela força às tribos tudo o que era preciso para a guerra: cereais, azeite, madeira, animais e homens. As populações começaram a fugir. As localidades que atravessavam estavam desertas; revistavam as cabanas sem encontrarem nada; daí a pouco uma solidão horrível envolveu o exército púnico.

Os cartagineses, furiosos, puseram-se a saquear as províncias; entulhavam as cisternas, incendiavam as casas. As chamas, levadas pelo vento, espalhavam-se ao longe, e nas serras, florestas inteiras ardiam; limitavam os vales numa coroa de fogos; para passar para o lado de lá, era preciso esperar. Depois retomavam a marcha, à luz do dia, sobre as cinzas quentes.

Às vezes viam, à beira de uma estrada, luzir qualquer coisa que parecia os olhos do gato-tigre. Era um bárbaro acocorado, coberto de poeira para se confundir com a folhagem; ou quando

passavam por uma ravina, os que seguiam nas alas ouviam de repente rolar pedras; e, levantando os olhos, viam no desvio da garganta um homem descalço que vacilava.

Todavia Útica e Hippo-Zaryte estavam livres, pois os mercenários já não as cercavam. Amílcar ordenou-lhes que viessem em seu auxílio. Não ousando comprometer-se, responderam-lhe com palavras vagas, cumprimentos, desculpas.

Voltou para o norte, bruscamente decidido a conseguir uma das cidades tírias, ainda que tivesse que a cercar. Faltava-lhe um ponto na costa, para tirar das ilhas ou de Cirene as provisões e os soldados, e escolheu o porto de Útica por ser o mais perto de Cartago.

O sufete partiu para Zuitin e contornou o lago Hippo-Zaryte com prudência. Em breve via-se obrigado a formar os seus regimentos em coluna para subirem a montanha que separa os dois vales. Ao pôr-do-sol, desciam o cume em forma de funil, quando viram diante deles, ao nível do chão, lobos de bronze que pareciam correr na erva.

De súbito levantaram-se grandes penachos; e ao ritmo de flautas ouviu-se um canto formidável. Era o exército de Spendius; porque os campanianos e os gregos, por execração por Cartago, tinham aprendido os ensinamentos de Roma. Ao mesmo tempo, pela esquerda, apareciam lanças compridas, escudos de pele de leopardo, couraças de linho, ombros nus. Eram os iberos de Mâtho, os lusitanos, os baleares, os getúlios; ouvia-se o relinchar dos cavalos de Narr'Havas; espalharam-se em volta da colina; depois chegou a multidão comandada por Autharite; os gauleses, os líbios, os nómadas; e distinguiam-se entre eles os que comiam coisas imundas nas espinhas de peixe que traziam no cabelo.

Desta forma os bárbaros, combinando exactamente as marchas, tinham-se juntado. Contudo, surpreendidos, ficaram alguns minutos imóveis, consultando-se.

O sufete tinha colocado os homens em círculo, de forma a oferecer uma resistência igual em qualquer ponto. Os escudos altos, espetados no chão uns ao pé dos outros, cercavam a infantaria. Os clinabares estavam por fora, e mais longe, aqui e ali, elefantes. Os mercenários estavam cansadíssimos; mais valia esperar até ao dia seguinte; e, certos da sua vitória, os bárbaros estiveram a comer toda a noite.

Tinham acendido fogueiras que, iluminando-os, deixavam no escuro o exército púnico que estava abaixo deles. Amílcar mandou cavar em volta do seu campo, como os romanos, um fosso com quinze passos de largo, dez côvados de profundidade, com a terra mais alta no interior formando um parapeito onde tinham sido colocadas estacas aguçadas que se entrelaçavam; e, ao nascer do Sol, os mercenários ficaram surpreendidos por verem os cartagineses entrincheirados como numa fortaleza.

Reconheceram, no meio das tendas, Amílcar, que andava de um lado para o outro distribuindo ordens. Tinha uma couraça castanha que formava pequenas escamas; e, seguido pelo cavalo, parava de vez em quando para mostrar qualquer coisa com o braço estendido.

Houve então mais do que um que se lembrou de manhãs semelhantes, quando, ao toque dos clarins, ele passava diante deles lentamente, e do seu olhar que os fortificava como taças de vinho. Sentiram uma espécie de ternura. Os que, pelo contrário, não conheciam Amílcar, na alegria de se defrontarem com ele, deliravam.

Se todos atacassem ao mesmo tempo, prejudicar-se-iam mutuamente no espaço demasiadamente estreito. Os númidas podiam atacar de lado; mas os clinabares defendidos pelas couraças esmagavam-nos; depois como é que haviam de franquear as paliçadas? Quanto aos elefantes não estavam suficientemente instruídos.

- São todos uns cobardes! - berrava Mâtho.

E, com os melhores, precipitou-se para a trincheira. Uma carga de pedras repeliu-os, porque o sufete tinha levado para a ponte as catapultas abandonadas.

Este revés fez mudar bruscamente o espírito inconstante dos bárbaros. O excesso de bravura desapareceu; queriam vencer, mas arriscando-se o menos possível. Segundo Spendius, era preciso guardar cuidadosamente a posição que se tinha, e matar à fome o exército púnico. Os cartagineses começaram a escavar buracos; e, nas serras que rodeavam a colina, descobriram água.

Do cimo da paliçada lançavam flechas, terra, estrume, pedras que arrancavam do chão, enquanto as seis catapultas rodavam incessantemente ao longo do terrado.

Mas até as fontes secavam; os víveres esgotavam-se, usar-se-iam as catapultas; os mercenários, dez vezes mais numerosos, acabariam por triunfar.

O sufete imaginou negociações a fim de ganhar tempo; e, uma manhã, os bárbaros encontraram nas suas linhas uma pele de carneiro toda escrita. Justificava-se pela sua vitória; os anciães tinham-no obrigado a aceitar a guerra. Para lhes mostrar que cumpria a palavra dada, oferecia-lhes a pilhagem de Útica ou de Hippo-Zaryte, à escolha deles; a terminar, Amílcar declarava não os temer porque apanhara traidores através dos quais chegaria facilmente a todos os outros.

Os bárbaros ficaram perturbados; esta proposta de um saque imediato fazia-os sonhar; pensavam numa traição, sem suspeitarem de uma armadilha na fanfarrice do sufete, e começaram a olhar-se com desconfiança. Observavam as palavras e as atitudes; os terrores acordavam-nos de noite. Alguns abandonaram os companheiros; seguindo a sua fantasia escolhiam o seu exército; os gauleses com Autharite iam juntar-se aos homens da Cisalpina, cuja língua compreendiam.

Os quatro chefes reuniram-se todas as noites na tenda de Mâtho; e, acocorados em volta de um escudo, avançavam e recuavam com toda a atenção pequenas figuras de madeira, inventadas por Pirro para reproduzir as manobras. Spendius demonstrava as possibilidades de Amílcar; suplicava para que não comprometessem a situação e jurava por todos os deuses. Mâtho, irritado, andava de um lado para outro, gesticulando. A guerra contra Cartago era um assunto pessoal; indignava-se por os outros quererem interferir sem lhe quererem obedecer.

Autharite, adivinhando o sentido das suas palavras pela expressão do rosto, aplaudia. Narr'Havas levantava o queixo em sinal de desdém; não havia uma medida que ele não considerasse funesta; e já não sorria; suspirava como se recalcasse a dor de um sonho impossível, o desespero de um empreendimento não realizado.

Enquanto os bárbaros, hesitantes, deliberavam, o sufete aumentava as suas defesas; fez cavar do lado de dentro das paliçadas um segundo fosso, levantar uma segunda muralha, construir torres de madeira nos cantos; os escravos iam até ao meio dos postos avançados enterrar as armadilhas. Contudo os elefantes, cujas rações tinham sido reduzidas agitavam-se nas jaulas. Para ter mais erva, deu ordem aos clinabares para matarem os cavalos mais pequenos. Alguns recusaram-se; mandou-os decapitar. Comeram-se os cavalos. A recordação desta carne fresca causou grande tristeza nos dias seguintes.

Do fundo do anfiteatro onde se encontravam encerrados viam em volta deles, lá mais acima, os quatro campos dos bárbaros em grande agitação. As mulheres andavam com odres à cabeça, as cabras baliam por baixo dos montes das lanças; mudavam as sentinelas, comiam em volta dos tripés. As tribos forneciam-lhes víveres com abundância, e eles perguntavam a si próprios até que ponto a sua inactividade aterrorizava o exército púnico.

Logo no segundo dia, os cartagineses repararam que no campo dos nómadas havia um grupo de trezentos homens que estavam afastados dos outros. Eram os ricos, detidos como prisioneiros desde o começo da guerra. Os líbios tinham-nos alinhado à beira do fosso, e, com dardos, tinham feito uma muralha em volta dos seus corpos. Mal se podiam reconhecer estes miseráveis, de tal forma os seus rostos desapareciam sob os bichos e a porcaria. As peladas deixavam a descoberto as úlceras da cabeça; e estavam tão magros e disformes que pareciam múmias em mortalhas rotas. Alguns soluçavam com uma expressão estúpida; outros pediam aos amigos que atirassem sobre os bárbaros. Havia um que estava imóvel, de cara baixa, e que não falava; a barba branca descia-lhe até às mãos cobertas de correntes; e os cartagineses, sentindo no fundo do coração a ruína da República, reconheceram Gíscon. Embora o sítio fosse perigoso, iam espreitar. Tinham-lhe posto uma tiara grotesca, em pele de hipopótamo, incrustada de pedras. Fora uma ideia de Autharite; mas desagradava a Mâtho.

Amílcar, exasperado, mandou abrir as paliçadas, resolvido a entrar em acção fosse como fosse; e, num arremesso de fúria, os cartagineses subiram até a meio da encosta, uns trezentos passos. Foi tal a vaga de bárbaros que desceu que eles foram obrigados a recuar para as suas linhas. Um dos guardas da Legião, que ficara de fora, estrebuchava entre as pedras. Zarxas acorreu, e, deitando-o ao chão, espetou-lhe um punhal na garganta; tirou-o debruçando-se sobre a ferida; e, com a boca ali colada, com roncos de alegria e sobressaltos que o sacudiam até aos calcanhares, sugava o sangue com força; depois, tranquilamente, sentou-se em cima do cadáver, levantou a cara voltando o pescoço para aspirar melhor o ar, como fazem as corças quando acabam de beber numa torrente; e, com uma voz aguda, cantou uma canção balear, uma melodia vaga cheia de modulações prolongadas, interrompendo-se, alternando-se, como ecos que respondem uns aos outros nas montanhas; chamava os irmãos mortos e convidava-os para o festim; depois deixou cair as mãos entre as pernas, baixou lentamente a cabeça, e chorou. Esta coisa atroz encheu de horror os bárbaros, os gregos sobretudo.

Os cartagineses, a partir deste momento, não fizeram mais nenhuma surtida; não pensavam render-se porque estavam certos de que pereceriam nos suplícios.

Contudo os víveres, apesar dos cuidados de Amílcar, diminuíam aterradoramente. Para cada homem, não havia mais do que dez k'hommer de trigo, três hin de milho e doze betza de frutos secos. Já não havia carne, azeite, alimentos salgados, nem um grão de cevada para os cavalos; viam-nos baixarem os pescoços magros, procurarem no pó bocadinhos de palha calcada. Às vezes as sentinelas que se encontravam de vigia no terrado viam, à luz do luar, um cão dos bárbaros que vinham rondar a trincheira, nos montes de imundícies; arremessavam-lhe pedras para o matarem, e, com o auxílio das correias do escudo, desciam pelas paliçadas, e sem dizerem nada a ninguém, comiam-no. Às vezes havia latidos horríveis e o homem não voltava a subir. Na quarta divisão da décima segunda falange, três falangistas, que disputavam um rato, mataram-se à facada.

Todos se lembravam das suas famílias, das suas casas; os pobres, das cabanas em forma de cortiço, com conchas nas ombreiras das portas, uma rede pendurada, e os patrícios das suas grandes salas com uma penumbra azulada, quando à hora mais calma do dia, descansavam, escutavam o ruído vago das ruas e o rumor da folhagem que se agitava nos seus jardins; e, para se poderem deter melhor neste pensamento, para melhor se deliciarem com ele, fechavam os olhos; a dor numa ferida acordava-os. Cada minuto era um compromisso, um alerta novo; as torres ardiam, os que comiam coisas imundas saltavam as paliçadas com machados, cortavam-lhes as mãos; outros acorriam; uma chuva de ferro caía sobre as tendas. Faziam-se sebes de junco para evitar os projécteis. Os cartagineses fechavam-se lá dentro; nem se mexiam.

Todos os dias o Sol, que dava a volta à colina, abandonando, logo às primeiras horas, o fundo do desfiladeiro, deixava-os na sombra. À frente e atrás, as encostas cinzentas cobertas de pedras manchadas por um líquen raro; e, sobre as suas cabeças, o céu continuamente limpo, estendia-se mais liso e frio que uma cúpula de metal. Amílcar estava tão indignado com Cartago que sentia vontade de se juntar aos bárbaros para os conduzir contra ela. Os carregadores, os vivandeiros, os escravos começavam a murmurar, e nem o povo nem o Grande Conselho, ninguém lhes dava uma esperança! A situação era intolerável, sobretudo porque havia a ideia de que se ia tornar pior.

À notícia do desastre, Cartago vacilava de cólera e de ódio: teriam detestado menos o sufete, se, desde o princípio, ele se tivesse deixado vencer.

Contudo, para comprar outros mercenários, faltava o tempo e o dinheiro. Quanto a arranjar soldados na cidade, como é que haviam de ser equipados? Amílcar tinha levado todas as armas! E quem é que os comandaria? Os melhores comandantes estavam com ele! Os homens enviados pelo sufete chegavam às ruas, davam gritos. O Grande Conselho irritou-se e arranjou maneira de os fazer desaparecer.

Era uma medida inútil; todos acusavam Barca de se ter deixado levar pela incúria. Devia, depois da vitória, ter aniquilado os mercenários. Porque é que tinha enfurecido as tribos? Já se tinham imposto sacrifícios tão pesados! E os patrícios deploravam a sua contribuição de catorze shekels, os sissitas os seus duzentos e vinte e três mil kikar de ouro; os que não tinham dado nada lamentavam-se como os outros. A populaça tinha inveja dos cartagineses novos aos quais ele tinha prometido o direito de cidadania completo; e os ligúrios, que se tinham batido com tanta valentia, confundiam-nos com os bárbaros e amaldiçoavam-nos, como os amaldiçoavam a eles; a sua raça tornara-se um crime, uma cumplicidade. Os comerciantes à porta das lojas, os operários que passavam com uma régua de chumbo na mão, os vendedores de salmoura que lavavam os cestos, os banheiros nos banhos públicos, e os vendedores de bebidas quentes, discutiam todos as operações da campanha. Traçavam no chão, com o dedo, os planos da batalha; até o operário mais humilde sabia corrigir os erros de Amílcar.

Era, diziam os sacerdotes, o castigo pela sua longa impiedade. Ele não tinha oferecido holocaustos; não tinha purificado as tropas; tinha-se mesmo recusado a levar com ele augúrios; e o escândalo do sacrilégio reforçava a violência dos ódios contidos, a raiva das esperanças traídas. Recordavam-se os desastres da Sicília, todo o peso do seu orgulho que tinham suportado durante tanto tempo!

Os colégios dos pontífices não lhe perdoavam o ter-se apoderado do seu tesouro, e exigiram ao Grande Conselho que o crucificasse, se ele voltasse.

O calor do mês de Eloul, excessivo este ano, era outra calamidade. Das margens do lago vinha um cheiro nauseabundo; atravessava o ar com os fumos dos arómatas que ardiam nas esquinas das ruas. Ressoavam continuamente hinos. Vagas de povo ocupavam as escadas dos templos; os muros estavam cobertos de véus negros; círios ardiam em frente das imagens dos deuses, e o sangue dos camelos degolados em sacrifício, correndo pelas rampas, formava, nos degraus, cascatas vermelhas. Um delírio fúnebre agitava Cartago. Do fundo das ruelas mais estreitas, das portas mais escuras, surgiam rostos pálidos, homens de perfil de víbora que rangiam os dentes. Os gritos estridentes das mulheres enchiam as casas, e, saindo pelas grades, faziam voltar-se os que conversavam, em pé, nas praças. Pensava-se às vezes que os bárbaros tinham chegado; tinham sido vistos por trás da serra das Águas-Quentes; estavam acampados em Tunes; as vozes multiplicavam-se, aumentavam, confundiam-se num único clamor. Depois, estabelecia-se um silêncio geral; uns seguravam-se ao frontão dos edifícios, com a mão aberta por cima dos olhos, enquanto outros, deitados de bruços ao pé das muralhas, apuravam o ouvido. Passado o terror, a cólera voltava. Todavia, a convicção da sua impotência fazia-os mergulhar daí a pouco na mesma tristeza. Redobrava todas as tardes, quando todos nos terraços, davam, inclinando-se nove vezes, um grande grito, para saudar o Sol. Ele punha-se lentamente, por trás da lagoa; depois, de súbito, desaparecia nas montanhas, do lado dos bárbaros.

Esperava-se a festa três vezes santa em que, do alto de uma pira, uma águia voava para o Sol, símbolo da ressurreição do ano, mensagem do povo ao Baal supremo, e que ele considerava como uma espécie de união, uma forma de se unir à força do Sol. Aliás, cheio de ódio voltava-se agora inocentemente para Moloch homicida, e todos abandonavam Tânita. A Rabbet, sem véu, estava como que despojada de uma parte da sua virtude.

Recusava o bem das suas águas, tinha abandonado Cartago; era uma trânsfuga, uma inimiga. Alguns, para a ultrajar, arremessavam-lhe com pedras. Contudo, ao invectivarem-na, muitos lamentavam-na; ainda gostavam dela, e mais profundamente talvez.

Todas as infelicidades vinham da perda do zaimph. Salammbô tinha participado indirectamente, olhavam-na com o mesmo rancor; devia ser punida. A ideia vaga de uma imolação circulava entre o povo. Para apaziguar os Baalim, era preciso sem dúvida oferecer-lhe alguma coisa de valor incalculável, um ser belo, jovem, virgem, de uma casa antiga, descendência dos deuses, um astro humano. Todos os dias, homens que ninguém conhecia entravam nos jardins de Megara; os escravos, temendo por si próprios, não ousavam resistir. Todavia não passavam da escadaria das galeras. Ficavam cá em baixo, com os olhos levantados para o último terraço; ouviam Salammbô; e, durante horas, dirigiam-se a ela aos gritos, como cães latindo à Lua.

 

                     A SERPENTE.

Os clamores da populaça não aterrorizavam a filha de Amílcar.

Estava perturbada por inquietações mais altas: a sua serpente grande, a píton, definhava; e a serpente era para os cartagineses um feitiço ao mesmo tempo nacional e particular. Consideravam-na filha da lama da terra, dado que emerge das suas profundezas e não precisa de pés para a percorrer; a sua marcha lembrava as ondulações dos rios, a sua temperatura as trevas antigas, viscosas, cheias de fecundidade, e o círculo que descreve ao morder a cauda o conjunto dos planetas, a inteligência de Eschmoun.

A de Salammbô tinha recusado várias vezes os quatro pardais vivos que lhe davam na lua cheia e na lua nova. A sua bela pele, coberta como o firmamento de manchas de ouro sobre um fundo todo negro, estava amarela agora, flácida, enrugada e muito larga para o corpo; tinha um bolor esponjoso em volta da cabeça; e no ângulo das pálpebras, viam-se pequenos pontos vermelhos que pareciam mexer. De vez em quando, Salammbô aproximava-se do cesto de fio de prata; afastava a cortina púrpura, as folhas de lótus,

as penas de ave; estava sempre enrolada sobre si mesma, mais imóvel do que um cipó murcho; à força de olhar para ela, acabava por sentir no coração como que uma espiral, como que outra serpente, que pouco a pouco subia até à garganta e a estrangulava.

Estava desesperada por ter visto o zaimph; todavia, experimentava uma espécie de alegria, um orgulho íntimo. Um mistério fora revelado no esplendor das suas pregas; era a nuvem envolvente dos deuses, o segredo da existência universal, e Salammbô, sentindo horror por si própria, lamentava não o ter levantado.

Estava quase sempre encolhida no fundo dos seus aposentos, segurando com as mãos a perna esquerda dobrada, de boca entreaberta, queixo descaído, olhar fixo. Lembrava-se com horror da cara do pai; queria ir às montanhas da Fenícia, em peregrinação do templo de Aphaka, onde Tânita tinha descido sob a forma de uma estrela; tinha toda a espécie de sonhos que a atraíam e a amedrontavam; além disso, a solidão que a rodeava era cada dia maior. Não sabia mesmo o que tinha acontecido a Amílcar. Cansada dos seus pensamentos, levantava-se, e, arrastando as sandálias que a cada passo batiam nos calcanhares, passeava ao acaso no grande quarto silencioso. As ametistas e os topázios do tecto faziam surgir aqui e ali manchas luminosas, e Salammbô, continuando a andar, voltava um pouco a cabeça para os ver. Segurava no gargalo das ânforas que estavam penduradas; refrescava o peito debaixo das ventoinhas ou entretinha-se a queimar cinamomo nas pérolas esmagadas. Ao pôr-do-sol, Taanacha retirava os losangos de feltro preto para tapar as fendas da parede; então as suas pombas brancas, perfumadas com almíscar como as pombas de Tânita, entravam e as patas rosadas deslizavam sobre a laje de vidro entre grãos de centeio que ela tinha deitado às mãos cheias, como um semeador. De repente, começava a soluçar e ficava estendida num leito grande feito de correias de pele de boi, sem se mexer, repetindo uma palavra, sempre a mesma, de olhos abertos, pálida como uma morta, insensível, fria; ouvia, contudo, o grito dos macacos nos bosques de palmeiras, com o chiar contínuo da grande roda, que, por andares, trazia uma torrente de água pura para a bacia de pórfiro.

Às vezes, durante vários dias, recusava-se a comer. Via em sonhos astros confusos, que passavam sob os seus pés. Chamava Schahabarim, e, quando ele vinha, não tinha nada para lhe dizer.

Não podia viver sem o consolo da sua presença. Contudo revoltava-se interiormente contra este domínio; sentia pelo sacerdote, ao mesmo tempo, terror, ciúme, ódio e uma espécie de amor, reconhecendo a voluptuosidade que sentia perto dele.

Tinha reconhecido a influência da Rabbet, hábil na distinção dos deuses que enviavam as doenças; e, para curar Salammbô, regara os seus aposentos com loções de verbena e de amianto; comia todas as manhãs mandrágoras; dormia com a cabeça sobre um saco de arómatas misturadas pelos pontífices; tinha mesmo empregado o baaras, raiz cor de fogo que repele no setentrião os génios funestos; por fim, voltando-se para a Estrela Polar, murmurava três vezes o nome misterioso de Tânita; mas Salammbô continuava a sofrer, as suas angústias tornavam-se cada vez maiores. Não havia ninguém em Cartago tão entendido como ele. Quando era jovem tinha estudado no colégio dos Mogbeds, em Borsippa, perto de Babilónia; depois tinha visitado Samotrácia, Pessinunte, Éfeso, Tessália, a Judeia, os templos dos nabateus que se tinham perdido nas areias, e as cataratas até ao mar, tinha percorrido a pé as margens do Nilo. Com o rosto coberto por um véu e enquanto acenava com archotes deitou um galo preto numa fogueira de Sandáraca, diante do peito da esfinge, o pai do terror. Tinha descido às cavernas de Prosérpina; tinha visto contornar as quinhentas colunas do labirinto de Lemnos e resplandecer o candelabro de Tarento, com tantos lampadários na haste como os dias do ano; à noite, às vezes, recebia gregos para os interrogar. A constituição do mundo não o inquietava menos do que a natureza dos deuses; com as armilhas colocadas no pórtico de Alexandria, tinha observado os equinócios, e acompanhado até Cyrene bematistas de Evergete, que medem o céu calculando o número de passos; e agora formava-se no seu espírito uma religião particular, sem fórmula distinta e, por isto mesmo, cheia de desvarios e de excessos. Já não acreditava que a terra fosse como uma pinha; acreditava sim que era redonda e que caía eternamente na imensidade, com uma velocidade tão prodigiosa que as pessoas não se apercebiam da queda.

Quanto à posição do Sol por cima da Lua, interpretava-a como a predominância de Baal, de que o astro é apenas o reflexo e a figura; aliás, tudo o que via das coisas terrestres forçava-o a reconhecer como supremo o princípio do macho exterminador. Depois, acusava secretamente Rabbet pelo infortúnio da sua vida. Não fora por ela que o grande pontífice, avançando entre o som de timbales, se tinha apoderado da sua virilidade futura? E seguia com um olhar melancólico os homens que se perdiam com as sacerdotisas nos bosques de lentiscos.

Os seus dias passavam-se a inspeccionar os turíbulos, os vasos de ouro, as pinças, os forcados para as cinzas do altar e as vestes das estátuas até à agulha de bronze que servia para frisar os cabelos de uma Tânita velha, na terceira edícula, perto da vinha de esmeralda. Às mesmas horas, levantava as grandes tapeçarias das mesmas portas que voltavam a cair; ficava com os braços abertos na mesma atitude, rezava prostrado nas mesmas lajes, enquanto em volta dele os sacerdotes andavam descalços pelos corredores onde reinava o crepúsculo eterno.

Contudo, na aridez da sua vida, Salammbô era como que uma flor na fenda do sepulcro. Todavia, era duro para com ela e não a poupava a penitências nem a palavras amargas. A sua condição estabelecia entre eles como que a igualdade de um sexo comum, e queria mais mal à jovem por a achar tão bela e tão pura do que pelo facto de não a poder possuir. Via muitas vezes que ela se fatigava a seguir os seus pensamentos. Então ficava mais triste; sentia-se mais abandonado, mais só, mais vazio.

Palavras estranhas escapavam-lhe às vezes e passavam diante de Salammbô como clarões iluminando abismos.

Era à noite, no terraço, quando os dois, sozinhos, olhavam as estrelas, e quando Cartago se estendia a seus pés, com o golfo e a maré cheia vagamente perdidos na cor das trevas.

Expunha-lhe a teoria das almas que descem à terra, seguindo a mesma rota que o Sol pelos signos do Zodíaco. Com o braço estendido, mostrava no Carneiro a porta da geração humana, no Capricórnio, a do regresso dos deuses; e Salammbô tentava vê-las, porque tomava estas concepções por realidades; aceitava como verdadeiro em si símbolos puros e até as formas de linguagem, distinção que, também para o sacerdote, nem sempre era muito clara.

- As almas dos mortos - dizia - decompõem-se na Lua como os cadáveres na terra. São as lágrimas que fazem a sua humidade; é uma permanência obscura, cheia de lama, destroços e tempestades.

Ela perguntava no que é que se tornaria.

- Primeiro definharás, leve como o vapor que se balança sobre as ondas; e, depois de provas e angústias maiores, irás para a casa do Sol, para a própria fonte da inteligência!

Todavia ele não falava da Rabbet. Salammbô pensava que era por pudor pela deusa vencida, e designando-a por um substantivo comum que queria dizer Lua, alargava-se em bênçãos para o astro fértil e doce. Por fim ele interrompia-a:

- Não! Não! Ela tira do outro toda a sua fecundidade! Não a vês vagueando em volta dele como uma mulher apaixonada que corre atrás de um homem num campo? - E exaltava, sem cessar, a virtude da luz.

Longe de abrandar os seus desejos místicos, pelo contrário, solicitava-os, e parecia mesmo sentir alegria em entristecê-la com revelações de uma doutrina impiedosa. Salammbô, apesar das dores do seu amor, passava por cima disso com entusiasmo.

No entanto, Schahabarim quanto mais sentia que duvidava de Tânita mais queria crer nela. No fundo da sua alma, o remorso fazia-o parar.

Precisava de uma prova, de uma manifestação dos deuses e, na esperança de a obter, imaginou uma empresa que podia ao mesmo tempo salvar a sua pátria e a sua fé.

Começou a deplorar, na presença de Sallambô, o sacrilégio e as infelicidades que daí tinham resultado nas regiões do céu. Depois, de súbito, anunciou o perigo em que o sufete se encontrava, cercado por três exércitos comandados por Mâtho que era considerado pelos cartagineses, por causa do véu, como o rei dos bárbaros; acrescentou que a Salvação da República e de seu pai dependia dela.

- De mim! - exclamou. - Como é que eu posso?... O sacerdote acrescentou com um sorriso de desdém:

- Tu nunca consentirás!

Ela suplicou-lhe. Por fim Schahabarim disse-lhe:

- É preciso que vás ao local onde os bárbaros se encontram, buscar o zaimph!

Ficou como que prostrada no escabelo de ébano, e com os braços descaídos sobre os joelhos e um arrepio percorreu-lhe o corpo como uma vítima ao pé do altar quando espera o golpe do machado. As têmporas latejavam, via rodarem círculos de fogo, e, no seu abatimento, só compreendia uma coisa, é que certamente ia morrer em breve.

«Mas se a Rabbet triunfava, se o zaimph fosse entregue a Cartago, que importava a vida de uma mulher!» - pensava Schahabarim.

Talvez ela conseguisse obter o véu e não perecesse.

Esteve três dias sem vir; na noite do quarto ela mandou-o buscar.

Para lhe inflamar mais o coração, trazia-lhe todas as invectivas que se proferiam contra Amílcar em pleno Conselho, dizia-lhe que ela tinha falhado, que devia reparar o seu crime e que a Rabbet ordenava este sacrifício.

Por vezes um grande clamor que atravessava os Mappales chegava a Megara. Schahabarim e Salammbô saíam imediatamente; e, do alto da escadaria das galeras, olhavam.

Era a multidão na Praça de Khamon que exigia armas. Os anciães não lhas queriam fornecer, considerando este esforço inútil; outros, que tinham partido sem general, tinham sido chacinados. Por fim permitiram-lhes que se fossem embora e, por uma espécie de homenagem a Moloch ou por uma vaga necessidade de destruição, arrancaram dos bosques dos templos ciprestes, e, tendo-os acendido nos archotes das Cabiras, percorriam as ruas cantando. Estas chamas monstruosas avançavam, balançadas docemente; arremessavam bolas de vidro em chamas para o telhado dos templos, para os ornamentos dos colossos, para o beque dos navios, passavam os terraços e pareciam sóis rolando pela cidade. Desceram a Acrópole. O porto de Malqua abriu-se.

- Estás pronta? - perguntou Schahabarim - ou recomendaste-lhes que dissessem ao teu pai que o tinhas abandonado? - Ela escondeu o rosto nos véus, e as luzes afastaram-se, baixando-se pouco a pouco, à beira-mar.

Um terror indeterminado retinha-a; tinha medo de Moloch, medo de Mâtho. Esse homem enorme que era senhor do zaimph dominava tanto Rabbet como o Baal e aparecia-lhe rodeado pelas mesmas fulgurações; depois a alma dos deuses visitava, às vezes, o corpo dos homens. Schahabarim, ao falar disto, não dizia que ela devia vencer Moloch? Estavam juntos um e outro; ela confundia-os; perseguiam-na os dois.

Queria conhecer o futuro e aproximou-se da serpente, porque os augúrios eram interpretados a partir da atitude das serpentes. O cesto estava vazio; Salammbô ficou perturbada.

Encontrou-a enrolada pela cauda a um dos balaústres de prata, perto do leito suspenso, roçando-se nele para se libertar da velha pele amarelada, enquanto o corpo todo luzidio e claro se alongava como uma espada meio saída da bainha.

Nos dias seguintes, à medida que ela se ia deixando convencer, que estava mais disposta a socorrer Ranit, a píton ia-se curando e tornando maior; parecia reviver. A certeza de que Schahabarim exprimia a vontade dos deuses instalava-se no seu espírito.

Uma manhã acordou decidida, e perguntou o que era preciso fazer para que Mâtho lhe entregasse o véu.

- E se ele recusar?

O sacerdote olhou para ela fixamente com um sorriso que ela nunca tinha visto.

- Sim, como hei-de fazer? - repetiu Salammbô.

Rolava entre os dedos a ponta das fitas que lhe caíam da tiara até aos ombros, de olhos baixos, imóvel. Por fim, vendo que ela não o compreendia acrescentou:

- Estarás sozinha com ele.

- E depois? - disse ela.

- Sozinha na tenda dele.

- E então?

Schahabarim mordeu os lábios. Procurava uma frase, uma saída.

- Se tiveres de morrer será mais tarde! Não receies nada! E, aconteça o que acontecer não chames ninguém! Não tens medo? Serás humilde, entendes, e submissa ao seu desejo porque esta é a ordem do céu!

- Mas o véu!

- Os deuses avisar-te-ão - respondeu Schahabarim. Ela acrescentou:

- Se tu me acompanhasses, oh, sacerdote?

- Não!

Mandou-a pôr-se de joelhos, e, mantendo a mão esquerda levantada e a direita estendida, jurou por ela trazer para Cartago o manto de Tânita. Com imprecações terríveis, ela entregava-se aos deuses, e, todas as vezes que Schahabarim pronunciava uma palavra, desfalecendo, repetia-a.

Indicou-lhe todas as purificações, os jejuns que devia fazer e como devia chegar até junto de Mâtho. Aliás, um homem que conhecia os caminhos acompanhá-la-ia.

Sentia-se livre. Não pensava noutra coisa senão na alegria de ver o zaimph, e agora bendizia Schahabarim e as suas exortações.

Estava-se na época em que as pombas de Cartago emigravam para a Sicília, para a montanha de Erix, em volta do templo de Vénus. Antes da partida, durante vários dias, procuravam-se, chamavam-se para se reunirem; partiram um fim de tarde; o vento empurráva-as e numa grande nuvem branca deslizavam no céu, por cima do mar, muito alto.

Uma cor de sangue cobria o horizonte. Parecia descerem para as ondas, pouco a pouco; depois desapareceram como se tivessem sido tragadas, metendo-se na boca do Sol. Salammbô, que as via afastarem-se, baixou a cabeça; Taanach, julgando adivinhar o seu desgosto, disse com doçura:

- Elas voltarão, senhora.

- Sim! Eu sei.

- E tu voltarás a vê-las.

- Talvez! - respondeu a jovem suspirando.

Não tinha confiado a ninguém a sua resolução; para a realizar mais discretamente, mandou Taanach comprar no bairro de Kinisdo (em vez de comprar aos mercadores) todas as coisas de que precisava: vermelhão, arómatas, um cinto de linho e fatos novos. A velha escrava ficou espantada com estes preparativos, sem ousar, todavia, fazer perguntas; e chegou o dia, fixado por Schahabarim, em que Salammbô devia partir.

Pela décima segunda hora, viu ao fundo dos sicômoros um velho cego com uma das mãos apoiada no ombro de uma criança, que caminhava à sua frente, e com uma espécie de cítara de madeira preta na outra. Os eunucos, os escravos e as mulheres tinham sido escrupulosamente afastados; nenhum deles podia saber o mistério que se preparava.

Taanach acendeu nos cantos do aposento quatro tripés cheios de estróbile e cardamomo; depois desdobrou grandes tapeçarias babilónicas e colocou-as em cordas, em volta do quarto; porque Salammbô não queria ser vista através das paredes. O tocador de kinor estava acocorado atrás da porta, e o rapaz, de pé, punha na boca uma flauta de cana. Ao longe o barulho das ruas diminuía, sombras violeta alongavam-se diante do peristilo dos templos e, do outro lado do golfo, no sopé das montanhas, os olivais e os campos amarelados, ondulando indefinidamente, confundiam-se num vapor azulado; não se ouvia um ruído, uma pressão indefinível pesava no ar.

Salammbô pôs-se de cócoras no degrau de ónix, na borda da bacia; levantou as mangas largas que atou nas costas, e começou as suas abluções, metodicamente, segundo os ritos sagrados.

A seguir Taanach trouxe-lhe, num frasco de alabastro, uma coisa ao mesmo tempo líquida e coagulada; era o sangue de um cão preto, degolado por mulheres estéreis, numa noite de Inverno, nas ruínas de um sepulcro. Esfregou as orelhas, os calcanhares, o polegar da mão direita, e até a unha ficou um pouco vermelha, como se tivesse esmagado um fruto.

A Lua levantou-se; então a cítara e a flauta, ao mesmo tempo, puseram-se a tocar.

Salammbô tirou os brincos das orelhas, o colar, as pulseiras, a longa túnica branca; desatou bandós de cabelo, e, durante alguns minutos, sacudiu-os sobre os ombros, suavemente, para se refrescar e para os separar. A música lá fora continuava; eram três notas, sempre as mesmas, precipitadas, furiosas; as cordas gemiam; a flauta roncava; Taanach marcava a cadência batendo as palmas; Salammbô, balançando todo o corpo, entoava orações, e as suas vestes, uma após outra, iam caindo em volta dela.

A tapeçaria pesada tremeu, e, por cima da corda em que estava pendurada apareceu a cabeça da píton. Desceu lentamente, como uma gota de água que corre por uma parede, rastejou entre os panejamentos abertos, depois, com a cauda pegada ao chão, levantou-se muito direita; e com os olhos, mais brilhantes que carbúnculos, dirigiu-se para Salammbô.

O horror do frio ou um pudor, talvez, fê-la hesitar primeiro. Lembrou-se, contudo, das ordens de Schahabarim e avançou; a píton baixou-se poisando-lhe na nuca o meio do corpo, deixou cair a cabeça e a cauda como um colar cujas extremidades caíam até ao chão.

Salammbô enrolou-a em volta das ancas, debaixo dos braços, entre os joelhos; depois, segurando-a pela mandíbula, aproximou a boca triangular dos seus dentes; e, semicerrando os olhos, voltou-se para os raios da Lua. A luz branca parecia envolvê-la num nevoeiro de prata, a forma dos seus passos húmidos brilhava nas lajes, estrelas palpitavam na profundidade da água; apertava contra ela os anéis pretos listrados de dourado. Salammbô estava ofegante sob este peso enorme, os rins dobravam-se, sentia-se desfalecer; depois a música cessou, a píton caiu.

Taanach veio ter com ela; trouxe dois candelabros cujas luzes brilhavam em bolas de cristal cheias de água, pintou-lhe as palmas das mãos com losna, pôs-lhe vermelhão nas faces, antimónio nas pálpebras, e prolongou-lhe as sobrancelhas com uma mistura de cola, almíscar, ébano e patas de mosca esmagadas.

Salammbô, sentada numa cadeira com costas de marfim, abandonava-se aos cuidados da escrava. O contacto das mãos, o cheiro dos arómatas e os jejuns que tinha feito, enervavam-na. Ficou tão pálida que Taanach parou.

- Continua! - ordenou Salammbô, e, endireitando-se reanimou-se rapidamente. Começou a ficar impaciente; dizia a Taanach que se apressasse, e a velha escrava, resmungando, dizia:

- Bem! Bem! Senhora!...?Não tens ninguém à tua espera!

- Sim - respondeu Salammbô. - Está uma pessoa à minha espera.

Taanach recuou surpreendida, e para saber mais alguma coisa:

- Que me ordenas, senhora? Porque se tens de ficar arranjada. ..

Salammbô soluçava; a escrava dizia:

- Tu sofres! O que é que tens? O que é que não te corre bem? Conta-me! Quando eras pequena e choravas, pegava-te e apertava-te contra o coração e fazia-te rir com a ponta dos mamilos; secaste-os, senhora! - Batia no peito seco. - Agora, estou velha! Já não posso fazer nada por ti! Já não gostas de mim! Escondes-me as tuas dores, desprezas a tua ama! - E de ternura e de despeito, as lágrimas corriam pelas suas faces, nas cicatrizes das tatuagens.

- Não! - respondeu Salammbô. - Eu gosto de ti! Consola-te! Taanach, com um sorriso semelhante a uma momice de um

macaco velho, retomou a sua ocupação. De acordo com as recomendações de Schahabarim, Salammbô tinha-lhe ordenado que a tornasse magnífica; e ela arranjava-a ao gosto bárbaro em que havia ao mesmo tempo experiência e ingenuidade.

Sobre uma primeira túnica, fina, e de cor de vinho, vestiu uma segunda, bordada com penas de ave. Tinha escamas de ouro espalhadas pelas ancas e de um cinto largo partia a roda das calças azuis, com estrelas de prata. A seguir Taanach vestiu-lhe um vestido comprido, de pano de Seres, branco com riscas verdes. Pregou no ombro um quadrado de púrpura, onde para fazer peso tinham sido colocados grãos de sandiz; e, por cima de tudo isto, pôs uma capa preta com uma cauda que arrastava; depois contemplou-a, e, orgulhosa com a sua obra, não se pôde conter que não dissesse:

- Não estarás mais bonita no dia das tuas núpcias!

- As minhas núpcias! - repetiu Salammbô; ficou a sonhar com os cotovelos apoiados à cadeira de marfim.

Taanach colocou diante dela um espelho de cobre tão largo e tão alto que ela se podia ver toda. Levantou-se, e, com um gesto leve, ajeitou um caracol que estava mais descaído.

Os cabelos estavam cobertos de pó de ouro, encaracolados à frente e caídos pelas costas em tranças compridas que rematavam com pérolas. A luz dos candelabros avivava a pintura do rosto, o ouro dos vestidos, a brancura da pele; tinha em volta do corpo, nos braços, nas mãos e nos dedos das mãos e dos pés, uma tal abundância de pedras que o espelho, como um sol, projectava raios; e Salammbô, de pé ao lado de Taanach, inclinando-se para a ver, sorria neste deslumbramento.

Pôs-se a passear para a frente e para trás, sem saber o que havia de fazer do tempo que lhe restava.

De súbito, ouviu-se o canto do galo. Colocou rapidamente um véu comprido amarelo sobre os cabelos, atou um lenço ao pescoço, enfiou os pés nas botas de couro azul, e disse a Taanach:

- Vai às murtas ver se não está lá um homem com dois cavalos. Taanach ainda mal acabara de entrar quando ela começou a descer a escadaria das galeras.

- Senhora! - gritou a ama.

Salammbô voltou, pôs um dedo nos lábios, em sinal de discrição e imobilidade.

Taanach deslizou devagarinho ao longo das proas até à parte debaixo do terraço; e, de longe, à luz da Lua, distinguiu na avenida dos ciprestes, uma sombra gigantesca que caminhava obliquamente ao lado esquerdo de Salammbô e que era presságio de morte.

Taanach voltou para o quarto. Deitou-se ao chão arranhando a cara com as unhas; arrancava os cabelos, e dava gritos.

Apercebeu-se de que a podiam ouvir e calou-se.

Ficou a soluçar baixinho, a cabeça entre as mãos, e o rosto no chão.

 

                             NA TENDA.

O homem que conduzia Salammbô fê-la subir até ao farol, pelas catacumbas, depois descer pelo bairro de Molouya, pelas suas ruas escarpadas. Por vezes, ramos de palmeira, que saíam dos muros, obrigavam-nos a abaixar a cabeça. Os dois cavalos, caminhando a passo, deslizavam; e chegaram assim à porta de Teveste.

Os batentes pesados estavam entreabertos; fecharam-se atrás deles.

Seguiram durante algum tempo junto à muralha e, na altura das cisternas, tomaram o caminho de Tenia, uma fita estreita de terra amarela, que, separando o golfo do lago, se prolongava até Rhades.

Não havia ninguém nos arredores de Cartago, nem no mar, nem no campo. As ondas cor de ardósia batiam docemente, e o vento suave, empurrando a espuma aqui e ali, fazia-lhes rasgões brancos. Apesar de todos os seus véus, Salammbô tremia com o frio da manhã; o movimento e o ar atordoavam-na. Depois o Sol nasceu; batia-lhe na parte de trás da cabeça; involuntariamente adormeceu. Os dois animais, lado a lado, seguiam a passo, enterrando as patas na areia silenciosa.

Depois de terem passado pela serra das Águas-Quentes, continuaram com um passo mais rápido, o Sol estava mais quente.

Os campos, embora se estivesse na época das sementeiras e das fainas agrícolas, tanto quanto a vista abrangia, estavam abandonados como um deserto. Havia, aqui e ali, medas de trigo; noutros pontos, grãos de cevada queimados caíam por si. No horizonte claro, as aldeias apareciam a preto, com formas incoerentes e desenhadas.

De vez em quando, aparecia à borda da estrada um bocado de muralha meio calcinado. Os telhados das cabanas estavam a cair, e, no interior distinguiam-se utensílios de barro, peles de vestuário e toda a espécie de objectos e coisas queimadas, irreconhecíveis! Às vezes um ser coberto de farrapos, de cara terrosa e olhos brilhantes, saía destas ruínas. Mas punha-se logo a correr ou desaparecia num buraco. Salammbô e o seu guia nunca paravam.

As planícies abandonadas sucediam-se. Nos grandes espaços de terra loura surgia, em manchas desiguais, um pó de carvão que os seus passos levantavam. Às vezes passavam por locais agradáveis, um regato que corria por entre ervas altas; e, ao passar para a outra margem, Salammbô, para refrescar as mãos, arrancava folhas molhadas. Num bosque de loureiros, o seu cavalo fez um desvio ao deparar com o cadáver de um homem, caído por terra.

O escravo voltou imediatamente a instalá-la nas almofadas. Era um dos servos do Templo, um homem que Schahabarim chamava para missões perigosas.

Por excesso de precaução, ia agora a pé, junto dela, entre os cavalos; chicoteava-os com a ponta de uma fita de couro enrolada ao braço, ou tirava de um saco que trazia ao peito bolinhas de trigo, tâmaras e gemas de ovos, envolvidas em folhas de lótus, e oferecia-as a Salammbô, sem falar, continuando a correr.

A meio do dia cruzaram-se no atalho com três bárbaros vestidos com peles de animais.

Pouco a pouco, apareceram outros, errando em grupos de dez, doze, vinte cinco homens; alguns puxavam cabras ou alguma vaca que coxeava. Os varapaus pesados estavam cheios de pontas de bronze; os cutelos brilhavam, presos aos fatos de uma sujidade horrível e abriam os olhos com uma expressão de ameaça e espanto. Ao passarem alguns proferiam uma bênção banal; outros graças obscenas; o homem de Schahabarim respondia a todos no idioma deles. Dizia-lhes que era um jovem doente que ia procurar a cura num templo distante.

Anoitecia. Ouviram-se latidos; aproximaram-se.

À luz fraca do crepúsculo, viram uma cerca de pedras secas, que rodeava uma construção de formas vagas. Um cão corria pelo muro. O escravo lançou-lhe pedras; entraram numa sala alta abobadada.

No meio, uma mulher que estava acocorada, aquecia-se numa fogueira de mato e o fumo saía pelas fendas do tecto. Os cabelos brancos que lhe caíam até aos joelhos quase que a encobriam; e sem querer responder, com um ar idiota, murmurava palavras de vingança contra os bárbaros e contra os cartagineses.

O servo remexia à direita e à esquerda. Foi ter com ela, por fim, exigindo-lhe qualquer coisa para comerem. A velha acenou com a cabeça, e, com os olhos fixos nos carvões, murmurava:

- Era a mão. Os dez dedos estão cortados. A boca já não come.

O escravo mostrou-lhe uma mão cheia de moedas de ouro. Soergueu-se, mas daí a pouco retomava a sua imobilidade.

Chegou-lhe ao pescoço um punhal que tinha à cintura. Então, tremendo, foi levantar uma pedra grande e trouxe uma ânfora de vinho, com peixes de Hippo-Zaryte conservados em mel.

Salammbô afastou-se destes alimentos imundos; e adormeceu sobre caparazões de cavalos que estavam a um canto da sala.

Antes do Sol nascer, acordou-a.

O cão uivava. O escravo aproximou-se devagarinho; e, com um único golpe de punhal degolou-o. Depois, esfregou o sangue nas narinas dos cavalos para os reanimar. A velha lançou-lhe uma última maldição.

Salammbô apercebeu-se, e apertou o amuleto que trazia sobre o coração.

Puseram-se em marcha.

De vez em quando, ela perguntava se ainda faltava muito para chegarem. A estrada ondulava sobre pequenas colinas. Só se ouvia o canto das cigarras. O Sol aquecia a erva amarelecida; a terra estava toda coberta de gretas que ao dividi-la faziam como que lajes monstruosas. Às vezes passava uma víbora, as águias voavam; o escravo continuava a correr; Salammbô sonhava debaixo dos seus véus, e apesar do calor não os afastava, com receio de sujar as suas vestes tão bonitas.

A distâncias regulares, elevavam-se torres, construídas pelos cartagineses para vigiarem as tribos. Entravam à procura de sombra, mas voltavam a partir.

Na véspera, por prudência, tinham feito um grande desvio. Mas, agora, não encontravam ninguém; a região era estéril, os bárbaros não tinham passado por ali.

A devastação recomeçava pouco a pouco. Por vezes, no meio de um campo, viam-se mosaicos, tudo o que restava de um castelo desaparecido; e as oliveiras, que não tinham folhas, pareciam ao longe matas de arbustos espinhosos. Atravessaram uma localidade cujas casas tinham sido completamente destruídas pelas chamas. Viam-se junto das paredes esqueletos humanos, de dromedários e de machos. Carcaças de animais meio carcomidas vedavam as ruas.

A noite caía. O céu estava baixo e coberto de nuvens.

Subiram ainda durante duas horas na direcção do ocidente, e, de súbito, diante deles viram uma quantidade enorme de pequenas fogueiras.

Brilhavam no fundo de um anfiteatro. Aqui e ali placas de ouro faziam reflexos ao moverem-se. Eram as couraças dos clinabares, o campo púnico; depois distinguiram em volta outras luzes ainda mais numerosas, porque os exércitos dos mercenários, juntos agora, se estendiam por um vasto espaço.

Salammbô fez um movimento para avançar, mas o homem de Schahabarim levou-a para mais longe, e caminharam ao longo do terraço que encerrava o campo dos bárbaros. Havia uma brecha e o escravo desapareceu.

No alto da trincheira passeava uma sentinela com um arco numa mão e uma lança ao ombro.

Salammbô continuava a aproximar-se; o bárbaro ajoelhou-se e uma flecha comprida atravessou a parte debaixo da capa. Como ela continuava imóvel, perguntou-lhe, aos gritos, o que é que ela queria.

- Falar a Mâtho - respondeu ela. - Sou uma trânsfuga de Cartago.

Houve um assobio que se repetiu de longe em longe.

Salammbô ficou à espera; o cavalo, amedrontado, voltava-se farejando.

Quando Mâtho chi gou, a lua levantava-se por trás dela. Todavia, como tinha um véu amarelo com flores pretas que lhe cobria o rosto e vestia tantas túnicas era inpossível adivinhar fosse o que fosse. Do alto do terraço examinava esta forma vaga que se vestia como um fantasma nas sombras da noite.

Finalmente, ele disse-lhe:

- Leva-me para a tua tenda! É isso que eu quero!

Uma recordação que ele não podia precisar atravessou-lhe a memória. Sentia o coração a bater. Este ar de comando intimidava-o.

- Segue-me! - respondeu.

A barreira elevou-se; entrou imediatamente no campo dos bárbaros.

Havia um grande tumulto e uma grande multidão. As fogueiras ardiam sob as panelas suspensas; os reflexos vermelhos iluminavam certos pontos e deixavam outros completamente às escuras. Gritava-se, chamava-se; os cavalos presos a traves formavam longas linhas direitas no meio das tendas; eram redondas e quadradas, de couro ou de pano; havia cabanas de cana e buracos na areia semelhantes aos que os cães fazem.

Os soldados transportavam faxinas, estavam deitados no chão, ou enrolavam-se na esteira, preparando-se para dormir; e o cavalo de Salammbô para passar por cima estendia uma perna e saltava.

Lembrava-se de já os ter visto; mas as suas barbas estavam mais compridas, os rostos ainda mais pretos, as vozes mais roucas. Mâtho, caminhando à sua frente, afastava-os com o braço, que levantava a capa vermelha. Alguns beijavam-lhe as mãos; outros, dobrando-se, abordavam-no para lhe pedirem ordens; porque ele era agora o verdadeiro, o único chefe dos bárbaros; Spendius, Autharite e Narr'Havas sentiam-se desencorajados, e ele tinha mostrado tanta audácia e tanta obstinação que todos lhe obedeciam.

Salammbô, seguindo-o, atravessou todo o campo. A sua tenda era numa extremidade, a trezentos passos da trincheira de Amílcar.

Reparou à direita numa grande fossa, e pareceu-lhe que havia rostos na beira, ao nível do solo, como se fossem cabeças cortadas. Contudo os olhos mexiam-se, e das bocas entreabertas saíam gemidos em língua púnica.

Dois negros, com archotes de resina, estavam postados ao lado da porta. Mâtho levantou o pano bruscamente. Ela seguiu-o.

Era uma tenda grande, com um pau ao meio. Um grande lampadário em forma de lótus cheio de azeite amarelo onde flutuavam bocados de estopa, iluminava-a, distinguindo-se na sombra objectos militares que reluziam. Uma espada sem bainha estava apoiada a um escabelo, perto de um escudo; chicote de pele de hipopótamo, tímbales, guizos, colares, estavam presos ao acaso nas cordas de esparta; migalhas de pão escuro sujavam uma cobertura de feltro; num canto, em cima de uma pedra redonda, havia dinheiro de cobre negligentemente amontoado, e, pelos rasgões da tenda, o vento trazia a poeira lá de fora e o cheiro dos elefantes, que se ouviam comer, sacudindo as correntes.

- Quem és tu? - perguntou Mâtho.

Sem responder, olhou em volta, lentamente; os seus olhos pararam ao fundo, onde, sobre um leito de folhas de palmeira, estava caída uma coisa azulada e cintilante.

Dirigiu-se rapidamente para lá. Deu um grito. Mâtho, atrás dela, bateu com o pé no chão.

- Quem te trouxe? Porque é que vieste? Respondeu, mostrando o zaimph:

- Para o levar!

E com a outra mão tirou os véus que lhe cobriam a cabeça. Ele recuou, de cotovelos para trás, estupefacto, quase aterrorizado.

Ela sentia-se como que apoiada pela força dos deuses; e, olhando-o de frente, pediu-lhe o zaimph; reclamava-o com expressões ricas e soberbas.

Mâtho não ouvia; contemplava-a, e os fatos, para ele, confundiam-se com o corpo. O reflexo das sedas era, como o esplendor da sua pele, qualquer coisa de especial que só lhe pertencia a ela. Os seus olhos, os seus diamantes, brilhavam; o colorido das unhas continuava a delicadeza das pedras que enfeitavam os dedos: os dois colchetes da túnica, levantando um pouco os seios, aproximavam-nos um do outro, e o seu pensamento perdeu-se no intervalo estreito, por onde descia um fio que tinha uma placa de esmeraldas, que aparecia mais abaixo sob a gaze violeta. Nas orelhas tinha duas pequenas balanças brancas de safiras onde estava uma pérola esmagada, impregnada de um perfume líquido. Pelos buracos da pérola caía, de vez em quando, uma pequenina gota que lhe molhava o ombro nu. Mâtho via-a cair.

Sentiu-se tomado por uma curiosidade invencível; e, como uma criança que leva na mão um fruto desconhecido, tremendo, com a ponta do dedo, tocou-lhe, ao de leve, na parte de cima do peito; a carne um pouco fria cedeu com uma resistência elástica.

Este contacto, que mal se sentia, abalou Mâtho até ao fundo de si mesmo. Um acordar de todo o seu ser atraía-o para ela. Queria envolvê-la, absorvê-la, bebê-la. O peito estalava, batia os dentes.

Segurando-a pelos pulsos, puxou-a docemente; e sentou-se numa couraça, perto do leito de folhas de palmeira que cobria uma pele de leão. Ela estava de pé. Olhava para ela de alto a baixo e, segurando-a entre as pernas, repetia:

- Como és bela! Como és bela!

Os olhos dele continuamente fixos nos seus faziam-na sofrer; este mal-estar, esta repugnância aumentavam de uma forma tão aguda que Salammbô fazia um esforço para não gritar. Lembrou-se de Schahabarim; resignou-se.

Mâtho conservava as mãos dela entre as suas; e, de vez em quando, apesar das ordens do sacerdote, voltando o rosto, tentava libertar-se sacudindo os braços. Ele abriu as narinas para aspirar melhor o perfume que se exalava da sua pessoa. Era um cheiro indefinível, fresco, mas que o atordoava como o fumo perfumador. Cheirava a mel, a pimenta, a incenso, a rosas, mas havia outro odor ainda.

Mas como é que ela se encontrava junto dele, na sua tenda, à sua discrição? Alguém, sem dúvida, a tinha mandado! Não tinha vindo por causa do zaimph? Deixou cair os braços, baixou a cabeça, acabrunhado por um sonho súbito.

Salammbô para o enternecer, disse-lhe com uma voz triste:

- O que é que eu te fiz para quereres a minha morte?

- A tua morte! Ela prosseguiu:

- Vi-te uma noite, à luz do luar, nos meus jardins que ardiam, entre taças fumegantes e escravos degolados, e a tua cólera era tão grande que te lançaste contra mim obrigando-me a fugir! Depois o terror entrou em Cartago. Lamentava-se a devastação das cidades, o incêndio nos campos, a chacina de soldados; foste tu que os perdeste, foste tu que os assassinaste! Odeio-te! Só o teu nome me faz corar como um remorso! És mais terrível do que a peste e a guerra romana! As províncias estremecem com a tua fúria, as fossas estão cheias de cadáveres! Segui o caminho dos teus fogos como se caminhasse atrás de Moloch!

Mâtho levantou-se de um salto; um orgulho colossal encheu-lhe o coração; tinha a envergadura de um deus. Com as narinas abertas, os dentes cerrados, ela continuava:

- Como se não bastasse o teu sacrilégio foste a minha casa, quando eu estava a dormir, coberto com o zaimph! Não compreendi as tuas palavras, mas entendi que me querias levar para qualquer coisa terrível, para o fundo de um abismo.

Mâtho, torcendo os braços, exclamou:

- Não! Não! Era para to dar! Para to entregar! Estava convencido de que a deusa tinha deixado a sua veste para ti e que te pertencia! No seu templo ou na tua casa, que importava? Não és toda-poderosa, imaculada, radiosa e bela como Tânita? - E, com um olhar cheio de uma adoração infinita:

- A menos que sejas Tânita?

- Eu, Tânita! - interrompeu Salammbô.

Calaram-se. Ouvia-se a trovoada ao longe. Os carneiros baliam com medo da tempestade.

- Oh!?aproxima-te - disse ele. - Aproxima-te! Não tenhas medo!

Outrora era simplesmente um soldado confundido na plebe dos mercenários, e era tão afável que transportava madeira às costas para os outros. Estou preocupado com Cartago! A multidão dos seus homens agita-se como que perdida na poeira das tuas sandálias e todos os seus tesouros, com as províncias, as esquadras e as ilhas, não suscitam em mim o desejo que suscitam a frescura dos teus lábios e o torneado dos teus ombros. Queria derrubar as suas muralhas para chegar até ti, para te possuir! Assim, enquanto esperava, vingava-me! Neste momento, esmago homens como conchas, e lanço-me contra as falanges, afasto as sarissas com as mãos, paro os cavalos pelas fossas nasais e uma catapulta não me matará! Oh! se soubesses como, no meio da guerra, pensava em ti! Às vezes, a recordação de um gesto, de uma prega do teu vestido, dominava-me de repente e enlaçava-me como uma rede! Via os teus olhos nas chamas das faláricas e no brilho das couraças!

Ouvia a tua voz no som dos timbales. Volto-me e tu não estás lá! E então embrenho-me outra vez na batalha!

Levantava os braços onde as veias se entrecruzavam como a hera nos ramos das árvores. O suor corria-lhe pelo peito, entre os músculos quadrados; e a respiração profunda sacudia-lhe as ancas cobertas com o cinto de bronze guarnecido de correias que lhe caíam até aos joelhos, mais firmes do que o mármore. Salammbô acostumada aos eunucos estava atordoada com a força deste homem. Era o castigo da deusa, ou a influência de Moloch circulando em volta dela, nos cinco exércitos. Sentia-se dominada por um turpor; escutava com assombro o grito intermitente das sentinelas que respondiam umas às outras.

As chamas do candeeiro tremiam com as correntes de ar quente. Formavam-se, por momentos, grandes clarões; depois a escuridão tornava-se maior; ela só via as pupilas de Mâtho, como dois carvões na noite. Sentia, contudo, que uma fatalidade a rodeava, que tocava um momento supremo, irrevogável; com esforço, voltou-se para o zaimph e levantou as mãos para pegar nele.

- O que é que estás a fazer? Ela respondeu com calma:

- Volto a Cartago.

Ele avançou cruzando os braços com uma expressão tão terrível que ela ficou colada ao chão.

- Voltar a Cartago! - balbuciava. E repetia rangendo os dentes:

- Voltar a Cartago! Ah! vinhas buscar o zaimph, para me vencer e depois desaparecer! Não, não! Tu pertences-me! Ninguém agora te tirará daqui! Oh! não esqueci a insolência dos teus grandes olhos tranquilos e como me esmagavas com a magnificência da tua beleza! Chegou a minha vez, agora! És minha prisioneira, minha escrava, minha serva! Chama se quiseres o teu pai e o seu exército, os anciães, os ricos e o teu povo execrável, todo inteiro! Sou senhor de trezentos mil soldados! Irei procurá-los na Lusitânia, nas Gálias e no fundo do deserto e destruirei a tua cidade, incendiarei os teus templos; as trirremes navegarão sobre vagas de sangue!

Não quero que fique uma casa, uma pedra nem uma palmeira! E se me faltarem homens, mandarei ursos da montanha e lançarei os leões! Não tentes fugir porque eu mato-te! Pálido e com os punhos crispados, tremia como uma harpa cujas cordas estão prestes a partir-se. De súbito começou a soluçar, pondo-se de joelhos:

- Ah! perdoa-me! Sou um infame, e mais vil do que os escorpiões, o lodo e o pó! Há pouco, enquanto falavas, a tua respiração passou pelo meu rosto, e eu deleitava-me como um moribundo que bebe de bruços num ribeiro. Pisa-me para que eu sinta os teus pés! Maldiz-me para que eu ouça a tua voz! Não te vás embora! Tem piedade! Amo-te! Amo-te!

Estava de joelhos, no chão, diante dela; rodeou-lhe o corpo com os braços, a cabeça descaída para trás, as mãos errantes; os discos de ouro das orelhas luziam sobre o pescoço bronzeado; lágrimas grandes como bolas de prata rolavam dos seus olhos; suspirava de uma forma acariciadora e murmurava palavras vagas, mais leves que a brisa e suaves como um beijo.

Salammbô sentia-se dominada por uma voluptuosidade que a fazia perder a consciência de si própria. Uma coisa ao mesmo tempo íntima e superior, uma ordem dos deuses obrigava-a a abandonar-se; o pesar agitava-a; desfalecendo, caiu sobre o leito nas peles de leão. Mâtho pegou-lhe pelos calcanhares, a corrente de ouro rebentou-se, e as duas extremidades, soltando-se, bateram no tecido como duas víboras que tivessem saltado. O zaimph caiu, envolvendo-a; viu o rosto de Mâtho curvando-se sobre o seu peito.

- Moloch, queimas-me! - E os beijos do soldado, mais devoradores do que as chamas, percorriam-na; era como se fosse levada por um furacão, tomada pela força do Sol.

Beijou os dedos das mãos, os braços, os pés e de uma ponta a outra as suas tranças compridas.

- Leva-o - dizia ele. - É isso que eu tenho! Leva-me com ele! Abandono o exército! Renuncio a tudo! Do outro lado de Gades, a vinte dias de mar, há uma ilha coberta de pó de ouro, de verdura e de aves.

Nas serras, flores grandes cheias de perfumes que ao baloiçarem são como turíbulos eternos; nos limoeiros, mais altos do que os cedros, serpentes cor de leite fazem cair os frutos na relva com os diamantes da sua boca; o ar é tão suave que não se morre. Oh! encontrá-la-ei, verás. Não vive lá ninguém, serei o rei daquela terra.

Sacudiu a poeira dos coturnos; quis que ela pusesse entre os lábios o quarto de uma granada; colocou-lhe debaixo da cabeça peças de vestuário para lhe fazer uma almofada. Procurava meios para a servir, para se humilhar, e pôs mesmo sobre as pernas dela o zaimph, como se fosse uma coberta.

- Tens sempre - dizia ele - aqueles chifres de gazela onde penduras os teus colares? Vais dar-mos! Gosto muito deles! - Porque falava como se a guerra tivesse acabado, dava gargalhadas de alegria; os mercenários, Amílcar, todos os obstáculos tinham desaparecido. A Lua deslizava entre duas nuvens. Via-a por uma abertura da tenda. - Ah! passei noites a contemplá-la! Parecia-me um véu que escondia o teu rosto; olhavas-me de lado; a sua recordação misturava-se com os seus raios; já não vos distinguia!- E, com a cabeça entre os seus seios, chorava copiosamente.

- É este - pensava ela - o homem formidável que faz tremer Cartago?

Ele adormeceu. Então, libertando-se do seu braço, pôs um pé no chão, e apercebeu-se de que a corrente estava partida...

As virgens das grandes famílias estavam acostumadas a respeitar estes entraves como uma coisa quase sagrada; Salammbô, corando, enrolou em volta das pernas os dois bocados da corrente de ouro.

Cartago, Megara, a sua casa, o seu quarto e os campos que tinha atravessado misturavam-se na sua memória em imagens tumultuosas, mas claras. Havia, contudo, um abismo que a fez recuar para longe dela, para uma distância infinita.

A trovoada afastara-se; gotas de água caíam uma a uma fazendo oscilar o tecto da tenda.

Mâtho, como se estivesse embriagado, dormia deitado de lado, com um braço passado para o outro lado do leito. A faixa de pérolas que lhe segurava os cabelos estava um pouco subida pelo que se lhe via a testa. Um sorriso afastava-lhe os dentes. Brilhavam entre a barba preta e nas pálpebras semicerradas havia uma alegria silenciosa e quase ultrajante.

Salammbô olhava para ele, imóvel, de cabeça baixa, mãos cruzadas.

Na cabeceira da cama, estava um punhal preso a um ramo de cipreste; ao ver esta lâmina brilhante sentiu-se inflamada por desejos sanguinários. Ouviram-se, ao longe, na escuridão, vozes que se erguiam num tom de lamento, como um coro de Génios, solicitando-a. Aproximou-se; pegou no ferro pelo cabo. Com o ruído do seu vestido Mâtho abriu os olhos, colocando a boca na mão dela e o punhal caiu.

Ouviram-se gritos; uma luz medonha surgiu por trás do pano. Mâtho levantou-o; viram chamas alterosas que envolviam o campo dos líbios.

As suas cabanas de canas ardiam; as hastes, torcendo-se, estalavam no meio do fumo e saltavam como flechas; no horizonte vermelho, sombras negras corriam perdidas. Ouviam-se os gemidos dos que estavam nas cabanas; os elefantes, os bois e os cavalos corriam por entre a multidão que empurravam, deitando ao chão as munições e as bagagens que se tiravam do incêndio. Soaram trombetas. Chamavam-no: «Mâtho! Mâtho!» As pessoas que estavam à porta queriam entrar.

- Vem! É Amílcar que está a incendiar o campo de Autharite! Deu um salto. Ela encontrou-se sozinha. Examinou o zaimph; e depois de o ter contemplado bem, ficou surpreendida por não ter tido a felicidade que imaginara. Sentiu-se melancólica no seu sonho realizado.

A parte de baixo da tenda levantou-se e apareceu uma forma monstruosa. Salammbô distinguia só dois olhos e uma barba branca e comprida que caía até ao chão; porque o resto do corpo, envolto em andrajos, arrastava-se pelo chão; a cada movimento que fazia para avançar, as mãos entravam na barba, depois caíam. Arrastando-se assim chegou aos seus pés e Salammbô reconheceu o velho Gíscon.

Os mercenários, para evitarem que os anciães cativos fugissem, tinham-lhe partido as pernas com barras de bronze e eles apodreciam, numa fossa, no meio de imundícies. Os mais robustos, quando ouviam o barulho das gamelas punham-se a gritar; fora assim que Gíscon tinha visto Salammbô. Tinha adivinhado que era uma cartaginesa, pelas bolas de sandáraca que batiam contra os coturnos; e, no pressentimento de um mistério considerável, procurando o auxílio dos seus companheiros, tinha conseguido sair da fossa; depois, com os cotovelos e as mãos, tinha-se arrastado mais vinte passos, até à tenda de Mâtho. Ouviu duas vozes. Tinha estado à escuta e tinha ouvido tudo.

- És tu! - disse ela por fim, quase aterrorizada. Erguendo-se, apoiado nos punhos, replicou:

- Sim, sou eu! Julgavam que eu tinha morrido, não é? Ela baixou a cabeça. Ele prosseguiu:

- Ah! porque é que os Baals não me fizeram essa misericórdia! - E aproximando-se tanto dela que lhe podia tocar: - Ter-me-iam poupado ao desgosto de ter de te amaldiçoar!

Salammbô recuou apressada, tanto era o medo que sentia deste ser imundo, que era repelente como uma larva e terrível como um fantasma.

- Em breve farei cem anos - afirmou ele. - Vi Agátocles; vi Régulo e as águias dos romanos passarem pelas searas dos campos púnicos! Vi todos os horrores das batalhas e o mar coberto pelos destroços das nossas frotas! Os bárbaros que eu comandava amarraram-me os quatro membros como se fosse um escravo homicida. Os meus companheiros, um após outro, morreram à minha volta; o cheiro dos seus cadáveres acorda-me de noite; afasto as aves que vêm picar os olhos; e todavia, nem uma só vez perdi a esperança em Cartago! Ainda que eu tivesse visto todos os exércitos da terra contra ela, e as chamas do cerco a erguerem-se acima dos templos, teria ainda acreditado na sua eternidade! Mas, neste momento, tudo acabou! Tudo está perdido! Os deuses odeiam-na! A maldição caia sobre ti, que precipitaste a sua ruína com a tua ignomínia! Ela abriu a boca.

- Ah! eu estava ali! - exclamou ele. - Ouvi-te suspirar de amor como uma prostituta; depois ele falou-te do seu desejo, e tu permitiste que ele te beijasse as mãos! Mas, se o furor da tua impudicícia te dominava, devias fazer como os animais que se escondem para a cópula, e não expores a tua vergonha até aos olhos do teu pai!

- Como? - perguntou.

- Ah! não sabias que os dois acampamentos estão a sessenta côvados um do outro, e que o teu Mâtho, por excesso de orgulho, se colocou mesmo em frente de Amílcar. Está ali, o teu pai, atrás de ti; e se pudesse subir o carreiro que leva à plataforma, gritava-lhe: Vem ver a tua filha nos braços do bárbaro! Pôs para lhe agradar a veste da deusa; e, abandonando o seu corpo, ela entrega, com a glória do teu nome, a majestade dos deuses, a vingança da pátria, a salvação de Cartago! - O movimento da boca desdentada fazia mexer a barba; os olhos, fixos nela, devoravam-na; e repetia arfando na poeira:

- Ah! sacrilégio! Maldita sejas tu! Maldita! Maldita! Salammbô tinha afastado o pano e mantinha-o levantado a todo

o comprimento do braço, e, sem lhe responder, olhava para o lado em que estava Amílcar.

- É por aqui, não é? - perguntou.

- Que te importa? Afasta-te! Vai-te embora! Encosta a cara ao chão! É um lugar sagrado que a tua vista mancharia!

Ela pôs o zaimph pelas costas, prendeu rapidamente os véus, a capa e o lenço do pescoço.

- Vou-me embora! - gritou. E, fugindo, Salammbô desapareceu.

Primeiro, caminhou nas trevas sem encontrar ninguém, porque todos estavam no incêndio; e o clamor redobrava, as chamas altíssimas avermelhavam o céu atrás dela; um grande terraço fê-la parar.

Voltou para a direita e para a esquerda, ao acaso, procurando uma escada, uma corda, uma pedra, qualquer coisa para a ajudar. Tinha medo de Gíscon, e parecia-lhe que estava a ser perseguida por gritos e passos. O dia começava a clarear. Viu uma sentinela na trincheira. Pegou com a ponta dos dentes na bainha do vestido, que lhe dificultava os movimentos, e, em três saltos, encontrou-se na plataforma.

Ouviu um grito sonoro que vinha de um ponto abaixo daquele em que se encontrava. Vinha do escuro e era o mesmo que ela tinha ouvido na escadaria das galeras; inclinando-se reconheceu o homem de Schahabarim com os cavalos.

Tinha errado toda a noite entre as duas trincheiras; depois, preocupado com o incêndio, tinha voltado para trás, procurando perceber o que é que se estava a passar no campo de Mâtho; e, como sabia que este era o ponto mais próximo da sua tenda, para obedecer ao sacerdote, não se tinha mexido.

Montou um dos cavalos. Salammbô deixou-se puxar para cima dele; e fugiram a galope rodeando o campo púnico, para encontrarem uma porta.

Mâtho voltou à tenda. O candeeiro iluminava mal e ele ficou convencido que Salammbô estava a dormir; apalpou com cuidado a pele de leão, no leito de folhas de palmeira. Chamou, ela não respondeu; afastou um bocado de pano para deixar entrar a luz; o zaimph tinha desaparecido.

A terra tremia com milhares de passos. Gritos, relinchos, choques de armaduras elevavam-se no ar, e as fanfarras de clarins tocavam a carregar. Parecia que se tinha levantado um furacão à sua volta. Um furor desordenado fê-lo procurar as suas armas e saiu.

Longas filas de bárbaros desciam, correndo, a encosta; os quadrados púnicos avançavam contra eles com uma oscilação pesada e regular. O nevoeiro, rasgado por raios de Sol, formava pequenas nuvens que se balançavam; pouco a pouco, e à medida que subiam, descobriam os estandartes, os capacetes e a ponta das espadas. Com as evoluções rápidas, porções de terreno ainda na sombra pareciam deslocar-se num só bocado; aliás, dir-se-iam torrentes que se entrecruzavam, e, entre elas, massas espinhosas ficavam imóveis. Mâtho distinguia os comandantes, os soldados, os arautos e até os criados que vinham atrás montados em burros. Em vez de guardar a sua posição para cobrir a infantaria, Narr'Havas voltou bruscamente a direito, como se quisesse ser esmagado por Amílcar.

Os seus cavaleiros passaram para lá dos elefantes que abrandaram o passo; e todos os cavalos estenderam a cabeça sem arreios, galopavam tão depressa que o ventre parecia tocar no chão. De repente, Narr'Havas encaminhou-se para uma sentinela. Deitou fora a espada, a lança, os dardos e desapareceu no meio dos cartagineses.

O rei dos númidas chegou diante da tenda de Amílcar, e disse-lhe, apontando os seus homens, que tinham ficado mais ao longe:

- Barca! Trago-tos. São teus.

Prostrou-se em sinal de escravatura e, como prova da sua fidelidade, lembrou a sua conduta desde o início da guerra.

Tinha evitado o cerco de Cartago e a chacina dos prisioneiros; não se tinha aproveitado da vitória sobre Hanão depois da derrota de Útica; quanto às cidades tírias, fora porque se encontravam nas fronteiras do seu reino. Finalmente, não tinha participado na batalha de Maçar; e tinha-se ausentado voluntariamente para fugir à obrigação de lutar contra o sufete.

Narr'Havas, com efeito, não se tinha querido engrandecer com as usurpações nas províncias púnicas, e, segundo as possibilidades de vitória, ora tinha socorrido ora tinha abandonado os mercenários. Vendo, todavia, que o mais forte seria definitivamente Amílcar, voltara-se para ele; talvez houvesse na deserção rancor por Mâtho, fosse por causa do comando, fosse por causa do seu antigo amor.

O sufete escutou-o sem o interromper. O homem que se apresentava assim num exército onde se podiam vingar dele não era um auxiliar para desdenhar; Amílcar adivinhou imediatamente a utilidade de tal aliança para os seus projectos. Com os númidas, desembaraçar-se-ia dos líbios. Depois seguiria para o ocidente à conquista da Ibéria; e, sem lhe perguntar porque é que não tinha vindo mais cedo, nem lhe revelar nenhuma das suas suspeitas, beijou Narr'Havas, batendo três vezes com o seu peito contra o dele.

Fora para acabar, e por desespero, que ele tinha deitado fogo ao campo dos líbios. Este exército chegava-lhe como um auxílio dos deuses; e escondendo a sua alegria, respondeu:

- Que os Baals te sejam favoráveis! Ignoro o que é que a República fará por ti, mas Amílcar não é ingrato.

O tumulto aumentava; os comandantes entraram. Armavam-se conversando:

- Vamos, volta! Com os teus cavaleiros, baterás a infantaria deles entre os teus elefantes e os meus! Coragem, extermina!

E Narr'Havas preparava-se para se afastar, quando Salammbô apareceu.

Saltou depressa do cavalo, abriu a capa, e, estendendo os braços, mostrou o zaimph.

A tenda de couro, levantada nos cantos, deixava ver toda a montanha coberta de soldados, de todos os lados podiam ver Salammbô. Ouviu-se um clamor imenso, um grito prolongado de triunfo e de esperança. Os que estavam em marcha pararam; os moribundos, apoiando-se no cotovelo; voltaram-se para a bendizer. Os bárbaros sabiam agora que ela se tinha apoderado do zaimph; de longe viam-na ou julgavam vê-la; e outros gritos, mas de raiva e de vingança, ressoaram, apesar dos aplausos dos cartagineses; os cinco exércitos, na encosta, aplaudiam e gritavam em volta de Salammbô.

Amílcar, sem poder falar, agradecia com sinais de cabeça.

Os seus olhos passavam alternadamente do véu para ela; a corrente estava quebrada. Sentiu um arrepio perante aquela suspeita horrível. Mas, retomando rapidamente a sua impassibilidade, olhou de lado para Narr'Havas, sem voltar a cara.

O rei dos númidas mantinha-se afastado numa atitude discreta; tinha na testa um pouco do pó em que tinha tocado ao prostrar-se. Por fim o sufete avançou para ele, e, com uma expressão muito grave disse:

- Em recompensa dos serviços que me fizeste, Narr'Havas, dou-te a minha filha. - E acrescentou: - Sê meu filho e defende o teu pai!

Narr'Havas fez um gesto de surpresa, mas depois agarrou-lhe nas mãos, que cobriu de beijos.

Salammbô, calma como uma estátua, parecia não ter compreendido. Corou um pouco, baixando as pálpebras; as pestanas compridas e encaracoladas faziam sombra nas faces.

Amílcar quis imediatamente uni-los por esponsais indissolúveis. Puseram nas mãos de Salammbô uma lança que ela ofereceu a Narr'Havas; ataram os polegares um ao outro com um fio de pêlo de boi, depois deitaram-lhes trigo pela cabeça; e os grãos que caíram à volta deles lembravam o granizo.

 

                               O AQUEDUTO.

DOZE horas mais tarde, dos mercenários só restava um monte de mortos e agonizantes.

Amílcar, saindo bruscamente do desfiladeiro, desceu a encosta ocidental sobranceira a Hippo-Zaryte; e, como havia mais espaço neste lugar, tinha tido o cuidado de atrair para ali os bárbaros. Narr'Havas tinha-os cercado com os seus cavalos; o sufete, entretanto comprimia-os, esmagava-os; estavam antecipadamente vencidos pela perda do zaimph; até mesmo os que não se preocupavam com essas coisas sentiram uma angústia e como que um enfraquecimento. Amílcar, que nem por orgulho quis guardar para si o campo de batalha, retirou-se um pouco para mais longe, para a esquerda, num ponto mais elevado de onde os dominava.

Reconhecia-se a forma dos campos nas suas paliçadas inclinadas. Um monte de cinzas pretas fumegava no acampamento dos líbios; a terra revolta tinha ondulações como o mar; e as tendas, com os panos em farrapos, pareciam navios vagos, meio perdidos nos escolhos. Couraças, forcados, clarins, bocados de madeira, de ferro e de bronze, trigo, palha e peças de vestuário estavam espalhados entre cadáveres; aqui e ali pequenas fogueiras prestes a extinguir-se ardiam nas pilhas de bagagens; a terra, em certos pontos, desaparecia sob os escudos; os corpos dos cavalos seguiam-se como uma série de montículos; viam-se pernas, sandálias, braços, cotas de malha e cabeças metidas nos capacetes seguros pelas passadeiras do queixo e que rolavam como bolas; cabelos pendiam dos espinhos; em poças de sangue, elefantes, com as entranhas abertas, agonizavam, deitados com as torres; andava-se sobre coisas viscosas e havia poças de lama, embora não tivesse chovido.

Esta confusão de cadáveres ocupava, de cima a baixo, toda a montanha.

Os que tinham sobrevivido não se mexiam mais do que os mortos. Formando grupos desiguais, olhavam-se, amedrontados, e não falavam.

Na extremidade de um vasto prado, o lago de Hippo-Zaryte resplandecia ao Sol poente. À direita, casas brancas ultrapassavam a linha das muralhas; depois o mar estendia-se indefinidamente; e, com o queixo nas mãos, os bárbaros suspiravam ao pensarem nas suas pátrias. Uma nuvem de poeira cinzenta caía.

O vento da tarde soprou; todos os peitos se dilataram; à medida que a frescura aumentava podiam-se ver os vermes, que abandonavam os corpos que arrefeciam, correndo sobre a areia quente. No cimo das pedras grandes, corvos imóveis estavam voltados para os agonizantes.

Quando a noite caiu, cães de pêlo amarelo, esses animais imundos que seguiam os exércitos, chegaram mansamente junto dos bárbaros. Primeiro lamberam as postas de sangue nos cotos ainda mornos; mas daí a pouco já estavam a devorar os cadáveres, começando pelo ventre.

Os fugitivos reapareciam um a um, como sombras; as mulheres também se apressaram a vir, porque ainda havia algumas entre os líbios, sobretudo, apesar da chacina terrível que os númidas tinham feito.

Alguns foram buscar bocados de corda que acenderam para servir de archotes.

Outros pegavam em lanças entrecruzadas. Punham em cima os cadáveres que levavam para locais afastados. Estavam estendidos em longas filas deitados de costas, a boca aberta, com as lanças ao pé deles; ou amontoavam-se ao acaso, e muitas vezes, para descobrir os que faltavam era preciso deitar abaixo um monte; depois passavam, lentamente, o archote sobre o rosto. Armas hediondas tinham-lhes feito ferimentos complicados. Farrapos esverdeados pendiam-lhes da fronte; cortados em bocados, esmagados até à medula, azulados pela asfixia, ou com golpes profundos feitos pelos dentes dos elefantes. Embora tivessem sido mortos quase ao mesmo tempo, havia diferenças na sua corrupção. Os homens do norte estavam entumecidos e lívidos, enquanto os africanos, mais nervosos, tinham um aspecto denegrido e já estavam a secar. Reconheciam os mercenários pela tatuagem das mãos; os velhos soldados de Antíoco tinham um gavião; os que tinham servido no Egipto, a cabeça de um cinocéfalo; nas casas dos príncipes da Ásia, um machado, uma granada, um martelo; nas repúblicas gregas, o contorno de uma cidadela ou o nome de um arconte; e havia alguns cujos braços estavam inteiramente cobertos por estes símbolos multiplicados, que se misturavam com as suas cicatrizes e com as feridas recentes. Os homens de raça latina, os samnitas, os etruscos, os campanianos, os brucianos, fizeram quatro grandes fogueiras.

Os gregos, com a ponta das espadas, cavaram fossas. Os espartanos, tirando as capas vermelhas, envolveram os mortos; os atenienses puseram-nos com o rosto voltado para o Sol nascente; os cantábricos sepultaram-nos debaixo de um monte de pedras; os nasamones dobravam-nos em dois com correias de pele de boi, e os garamandes iam deitá-los à praia para que fossem perpetuamente arrastados pelas ondas. Os latinos estavam desolados por não poderem recolher as suas cinzas nas urnas; os nómadas lamentavam o calor das areias onde os corpos se mumificavam, e os celtas, três pedras em bruto, sob um céu pluvioso, no fundo de um golfo cheio de areias.

Ouviam-se vozes seguidas de um longo silêncio. Era para obrigar as almas a voltarem. E o clamor voltava, a intervalos regulares, obstinadamente.

Desculpavam-se junto dos mortos por não os poderem honrar como prescreviam os ritos; porque iam, por causa desta falta, circular, durante períodos infinitos, no meio de toda a espécie de acasos e de metamorfoses; interpelavam-nos, perguntavam-lhes o que é que eles desejavam; outros injuriavam-nos por se terem deixado vencer.

A luz das fogueiras empalidecia os rostos exangues, deitados aqui e ali sobre os destroços das armaduras; e as lágrimas provocavam lágrimas, os soluços tornavam-se mais agudos, os encontros e os abraços mais frenéticos. Mulheres deitavam-se sobre os cadáveres, boca com boca, testa com testa; era preciso bater-lhes para se afastarem, quando deitavam a terra. Pintavam a cara de negro; cortavam os cabelos; derramavam sangue e deitavam-no nas fossas; faziam golpes à imitação das feridas que desfiguravam os mortos. Ouviam-se gritos mais altos que o barulho dos timbales. Alguns arrancavam os amuletos, cuspiam-lhes em cima. Os moribundos rebolavam-se na lama ensanguentada mordendo de raiva os punhos mutilados; e quarenta e três samnitas, toda uma mocidade sagrada, degolaram-se como gladiadores. Daí a pouco faltava a lenha para as fogueiras, as chamas extinguiram-se, todos os lugares estavam ocupados; e, cansados por terem chorado, enfraquecidos, irresolutos, adormeceram ao lado dos irmãos mortos, os que se agarravam à vida cheios de inquietações e os outros, que desejavam não mais acordar.

À primeira luz da aurora, apareceram nos limites do campo dos bárbaros soldados que desfilavam com os capacetes levantados na extremidade das lanças; saudando os mercenários perguntaram-lhes se eles não queriam mandar dizer nada para as suas pátrias.

Aproximaram-se outros, e os bárbaros reconheceram alguns dos seus antigos companheiros.

O sufete tinha proposto a todos os cativos que servissem nas suas tropas. Muitos tinham recusado intrepidamente; como havia decidido que não os alimentaria nem os entregaria ao Grande Conselho, tinha-os mandado embora com ordens para não combaterem contra Cartago. Quanto aos que o medo dos suplícios tinha tornado dóceis, tinham-lhes distribuído as armas dos inimigos; e agora apresentavam-se aos vencidos não tanto para os seduzir, mas levados por um movimento de orgulho e de curiosidade.

Contaram que tinham sido bem tratados pelo sufete; os bárbaros escutavam-nos sentindo inveja embora os desprezassem. Às primeiras palavras de reprovação os cobardes insurgiram-se; de longe mostravam-lhes as suas próprias espadas, as suas couraças e incitavam-nos com injúrias a irem buscá-los. Os bárbaros pegaram em pedras; todos fugiram; e não viram mais nada senão no cume da montanha as pontas das lanças a passarem por trás das paliçadas.

Uma dor, mais pesada que a humilhação da derrota, acabrunhou os bárbaros. Pensavam na inutilidade da sua coragem. Ficavam com os olhos fixos, rangendo os dentes.

Tiveram a mesma ideia. Precipitaram-se em tumulto para os prisioneiros cartagineses. Os soldados do sufete, por acaso, não os tinham descoberto, e, como ele se tinha retirado do campo de batalha, encontravam-se ainda na fossa profunda.

Arrastaram-nos para um lugar plano. Sentinelas fizeram um círculo em volta deles; e deixaram as mulheres entrar em grupos de trinta ou quarenta. Querendo aproveitar o pouco tempo que lhes davam, corriam de um para outro, indecisas, palpitantes; depois, inclinadas sobre estes pobres corpos, batiam-lhes como as lavadeiras batem a roupa; gritando o nome dos esposos, rasgavam-lhes a carne com as unhas; espetavam-lhes os olhos com os ganchos dos cabelos. Vieram depois os homens; supliciavam-nos desde os pés, que cortavam pelos tornozelos, até à testa, de onde retiravam coroas de pele para as porem na cabeça.

Os que comiam coisas imundas foram atrozes nas ideias que tiveram. Infectavam as feridas deitando-lhes pó, vinagre, bocados de barro; outros esperavam atrás deles; o sangue corria, e eles rejubilavam como vindimadores em volta das cubas fumegantes.

Mâtho estava sentado no chão, no mesmo lugar em que se encontrava quando a batalha tinha terminado, com os cotovelos sobre os joelhos, as têmporas nas mãos; não via nada, não ouvia nada, já não pensava.

Aos gritos de alegria da multidão, levantou a cabeça. Diante dele, um bocado de pano preso a uma percha, que arrastava confusamente cestos, tapetes, uma pele de leão. Reconheceu a sua tenda; e os seus olhos ficaram presos ao chão como se a filha de Amílcar, ao desaparecer, tivesse sido tragada pela terra.

O pano rasgado batia ao vento; às vezes os farrapos passavam-lhe diante da boca, e ele viu uma marca vermelha semelhante à impressão de uma grande mão. Era a mão de Narr'Havas, o sinal da sua aliança. Mâtho levantou-se. Pegou num tição que ainda fumegava, e deitou-o, desdenhosamente, sobre os destroços da sua tenda. Depois, com a ponta do coturno, atirava para a chama as coisas que estavam por ali, para que não subsistisse nada.

De súbito, sem que ninguém pudesse adivinhar de que ponto surgia, apareceu Spendius.

O velho escravo tinha espetados na coxa dois bocados de lança; coxeava de uma forma que fazia compaixão, lamentando-se.

- Tira isso - disse-lhe Mâtho. - Sei que és um bravo! - Porque estava tão esmagado pela injustiça dos deuses que nem tinha forças para se indignar com os homens.

Spendius fez-lhe um sinal, e levou-o para uma gruta num outeiro, onde Zarxas e Autharite se tinham escondido.

Tinham fugido como o escravo, um apesar de ser cruel, o outro apesar da sua valentia. Mas que se poderia ter empreendido - diziam - com a traição de Narr'Havas, o incêndio dos líbios, a perda do zaimph, o ataque súbito de Amílcar, e sobretudo as suas manobras que os obrigavam a voltar do fundo da montanha por causa dos ataques imediatos dos cartagineses?

Spendius não confessava o seu terror e continuava a dizer que tinha fracturado a perna.

Por fim os três chefes e o schalischim perguntaram o que era preciso decidir agora.

Amílcar fechava-lhes a estrada de Cartago; estavam presos entre os seus soldados e as províncias de Narr'Havas; as cidades tírias juntavam-se aos vencedores; acabariam por ficar encurralados na praia, e todas aquelas forças reunidas esmagá-los-iam. Era isso que ia inevitavelmente acontecer.

Não havia um único meio para evitar a guerra. Era preciso pois continuar até ao fim. Mas, como fazer compreender a necessidade de uma batalha interminável a toda aquela gente desencorajada, cujos ferimentos ainda sangravam?

- Eu encarrego-me disso! - declarou Spendius.

Duas horas mais tarde, um homem, que vinha do lado de Hippo-Zaryte, trepou a encosta a correr. Trazia umas tabuinhas na mão e como gritava muito alto, os bárbaros rodearam-no.

Tinham sido mandadas pelos soldados gregos da Sardenha. Recomendavam aos seus companheiros da África que vigiassem Gíscon e os outros prisioneiros. Um mercador de Samos, um certo Hipponax, que tinha vindo de Cartago, tinha-lhes dito que se estava a organizar uma conspiração para os fazer evadir e aconselhavam os bárbaros a preverem tudo; a República era poderosa.

O estratagema de Spendius não deu o resultado que ele esperava. Esta garantia de um novo perigo, longe de excitar os ânimos, veio aumentar os terrores; e, lembrando-se da advertência de Amílcar lançada ao acaso para o meio deles, esperavam qualquer coisa imprevista e que seria terrível. A noite passou-se numa grande angústia; alguns até deitaram fora as armas, para receberem o sufete quando ele aparecesse.

No dia seguinte, na terceira vigília do dia, apareceu um segundo homem ainda mais cansado e mais preto de pó do que o primeiro. O grego arrancou-lhe das mãos um rolo de papiro escrito em fenício.

Pedia-se aí aos mercenários que não perdessem a coragem; os bravos de Tunes iam chegar com grandes reforços.

Spendius começou por ler a carta três vezes seguidas; e, amparado por dois capadócios que o tinham aos ombros, fez-se transportar de um lugar para outro, e voltava a lê-la. Falou durante sete horas.

Lembrava aos mercenários as promessas do Grande Conselho; aos africanos, as crueldades dos intendentes; a todos os bárbaros, a injustiça de Cartago. A benevolência do sufete era uma isca para os apanhar. Os que se entregavam eram vendidos como escravos; os vencidos morreriam supliciados. Quanto a fugir, por que estradas? Nenhum povo os queria receber; assim se continuassem com os seus esforços obteriam ao mesmo tempo a liberdade, a vingança, dinheiro! Não esperariam muito tempo porque os homens de Tunes, a Líbia inteira, viriam em socorro deles. Mostrava o papiro desenrolado:

- Olhem! Leiam! Estão aqui as promessas deles! Não minto. Os cães andavam por ali, com o focinho preto todo sujo de

vermelho. O Sol aquecia as cabeças descobertas. Dos corpos mal enterrados vinha um cheiro nauseabundo; alguns estavam mesmo fora da terra até ao ventre. Spendius chamava-os para darem testemunho das coisas que ele dizia; depois levantava os punhos na direcção de Amílcar.

Mâtho observava-o, e, para encobrir a sua cobardia, mostrava uma cólera pela qual a pouco e pouco se sentiu dominado. Consagrando-se aos deuses, acumulou maldições sobre os cartagineses. O suplício dos prisioneiros fora uma brincadeira de crianças. Porque é que se haviam de poupar e porque é que se havia de trazer sempre atrás este gado inútil?

- Não! É preciso acabar com isto! Os seus projectos são conhecidos! Um só pode perder-nos! Nada de compaixão! Reconhecer-se-ão os bons pela velocidade das pernas e a força do golpe.

Lançaram-se contra os prisioneiros. Alguns agonizavam ainda; mataram-nos metendo-lhes o calcanhar na boca ou espetando-lhes a ponta de uma lança.

A seguir pensaram em Gíscon. Não o viam em parte nenhuma; ficaram inquietos. Queriam ao mesmo tempo convencer-se da sua morte e participar nela. Três pastores samnitas descobriram-no a quinze passos do local onde antes se erguera a tenda de Mâtho. Reconheceram-no pelas suas barbas compridas e chamaram os outros.

Deitado de costas, os braços ao longo do corpo e os joelhos juntos, parecia um morto preparado para o sepulcro. Todavia, o peito muito magro subia e desciay e os olhos muito abertos no rosto muito pálido, olhavam de uma forma continua e intolerante.

Os bárbaros olharam para ele com espanto. Vivia há tanto tempo na fossa que quase o tinham esquecido; constrangidos por antigas recordações, mantinham-se à distância e não ousavam tocar-lhe.

Contudo os que estavam atrás resmungavam e empurravam-se, até que um garamante furou por entre a multidão; brandia uma foice; todos compreenderam a sua ideia; coraram e, cheios de vergonha, gritavam:

- Sim! Sim!

O homem com o ferro recurvado aproximou-se de Gíscon. Pegou-lhe na cabeça, e, apoiando-a no joelho, cortou-a com golpes rápidos; caiu; dois jactos de sangue fizeram um buraco no pó. Zarxas tinha saltado, e, mais lesto do que um leopardo, corria em direcção aos cartagineses.

Quando tinha subido dois terços da encosta, tirou do peito a cabeça de Gíscon e segurando-a pela barba, voltou o braço várias vezes, e a massa, lançada por fim, descreveu uma parábola e desapareceu atrás da trincheira púnica.

Daí a pouco apareciam nas paliçadas dois estandartes cruzados, sinal combinado para se pedirem os cadáveres.

Então quatro arautos, escolhidos por terem o peito largo, foram com quatro clarins grandes; e, falando pelos tubos de bronze, declararam que não havia nada entre os cartagineses e os bárbaros, nem fé, nem piedade, nem deuses, que recusavam antecipadamente todas as diligências e que os intermediários regressariam com as mãos cortadas.

Logo a seguir, enviaram Spendius a Hippo-Saryte para ir buscar víveres; a cidade tíria enviou-os nessa mesma tarde. Comeram avidamente. Quando se sentiram reconfortados, juntaram rapidamente o que restava das bagagens e das armas partidas; as mulheres puseram-se no meio; e, sem se preocuparem com os feridos que ficavam a chorar, partiram para a costa, com passos rápidos, como uma alcateia de lobos que se afasta.

Marchavam sobre Hippo-Zaryte, decididos a conquistá-la, porque precisavam de uma cidade.

Amílcar, ao vê-los ao longe, ficou desesperado, apesar do orgulho que sentia por os ver fugir diante dele. Era preciso atacá-los imediatamente com novas tropas. Mais um dia, e a guerra estava acabada! Se as coisas se arrastassem, eles tornar-se-iam mais fortes; as cidades tírias juntar-se-iam a eles; a sua clemência para com os vencidos não tinha servido de nada. Tomou a resolução de ser implacável.

Nessa mesma tarde, enviou ao Grande Conselho um dromedário carregado com as pulseiras tiradas aos mortos, e, com ameaças terríveis, ordenava que lhe mandasse outro exército.

Há muito que todos o julgavam perdido; ao terem conhecimento da sua vitória sentiram uma admiração que era quase um terror. O regresso do zaimph, vagamente anunciado, completava a maravilha. Assim os deuses e a força de Cartago pareciam agora pertencer-lhe.

Nenhum dos seus inimigos ousava fazer uma queixa ou uma recriminação. Entre o entusiasmo de uns e a pusilanimidade de outros, antes do prazo fixado, ficou pronto um exército de cinco mil homens.

Chegou rapidamente a Útica para apoiar o sufete pela retaguarda, enquanto três mil homens dos melhores seguiram de barco para Hippo-Zaryte, a fim de repelirem os bárbaros.

Hanão tinha aceite o comando; mas confiou o exército ao seu adjunto Magdassan, que devia dirigir pessoalmente o desembarque das tropas, porque ele já não podia suportar os balanços da liteira.

O seu mal, corroendo-lhe os lábios e nas narinas, tinha-lhe deixado na cara um buraco enorme; a dez passos, via-se-lhe o fundo da garganta, e reconhecendo como estava horrível punha um véu pela cabeça, como as mulheres.

Hippo-Zaryte já não ouvia as suas intimidações como não ouvia as dos bárbaros; mas, todas as manhãs, os habitantes desciam cestos com víveres, e, gritando do alto das torres, desculpavam-se com as exigências da República e pediam-lhes que se fossem embora. Faziam por sinais os mesmos protestos aos cartagineses que estavam no mar.

Hanão limitava-se a bloquear o porto sem arriscar um ataque. Convenceu, todavia, os juízes de Hippo-Zaryte a receberem trezentos soldados. Depois dirigiu-se para o cabo das Uvas e fez uma grande volta antes de cercar os bárbaros, operação inoportuna e mesmo perigosa. A sua inveja impedia-o de socorrer o sufete; prendia os seus espiões, dificultava todos os seus planos, comprometia a empresa. Amílcar escreveu ao Grande Conselho dizendo que queria que o demitissem, e Hanão regressou a Cartago, furioso com a baixeza dos anciães e a loucura do seu colega. Depois de tantas esperanças, encontravam-se numa situação ainda mais deplorável; procurava-se não se pensar nem falar nisso.

Como se não houvesse já bastantes desgraças, soube-se que os mercenários da Sardenha tinham crucificado o seu general, ocupado as praças fortes e morto os homens de raça cananeia. O povo romano ameaçava a República com hostilidades imediatas se ela não desse mil e duzentos talentos com a ilha da Sardenha toda inteira. Tinha aceite a aliança com os bárbaros, e mandou-lhes barcos de fundo chato carregados de farinha e carnes secas. Os cartagineses perseguiram-nos, capturaram quinhentos homens; mas, três dias mais tarde, uma frota que vinha de Bysacene, trazendo víveres para Cartago, afundou-se durante uma tempestade. Os deuses tinham-se nitidamente declarado contra ela.

Então os habitantes de Hippo-Zaryte, alegando alarme, mandaram subir para as muralhas os trezentos homens de Hanão; depois, vindo por trás deles, puxaram-lhes as pernas e fizeram-nos cair do outro lado da muralha. Alguns que não tinham morrido foram perseguidos e acabaram por morrer afogados no mar.

Útica suportava os soldados, porque Magdassan tinha feito como Hanão, e, segundo as suas ordens cercava a cidade, surdo aos pedidos de Amílcar. A estes deram-lhes vinho misturado com mandrágora e depois degolaram-nos enquanto dormiam. Ao mesmo tempo, os bárbaros chegaram; Magdassan fugiu, as portas abriram-se ; as duas cidades manifestaram a partir de então uma dedicação perseverante aos seus novos amigos e um ódio inconcebível aos seus antigos aliados.

Este abandono da causa púnica era um conselho, um exemplo. As esperanças de libertação voltaram a nascer. Populações, indecisas ainda, não hesitaram mais. Tudo se punha em movimento. O sufete percebeu-o; e não esperava qualquer auxílio! Estava agora irremediavelmente perdido.

Mandou Narr'Havas embora para guardar os limites do seu reino. Quanto a ele, resolveu voltar a Cartago para arranjar soldados e recomeçar a guerra.

Os bárbaros instalados em Hippo-Zaryte viram o seu exército quando descia a encosta.

Para onde é que iam os cartagineses? A fome fustigava-os, sem dúvida; e, se enlouquecidos pelo sofrimento, apesar da sua fraqueza, viessem dispostos a travar combate? Mas voltaram para a direita; fugiam. Podiam esperá-los, esmagá-los todos. Os bárbaros lançaram-se em sua perseguição.

Os cartagineses foram obrigados a parar no rio. Estava largo desta vez, e o vento de leste não tinha soprado. Uns atravessaram-no a nado, os outros em cima dos escudos. Voltaram a pôr-se em marcha. A noite caiu. Não se viam.

Os bárbaros não pararam; subiram para encontrarem um ponto mais estreito. Os habitantes de Tunes acorreram; levaram os de Útica. Em todas as moitas o seu número aumentava; e os cartagineses, deitados no chão, ouviam o barulho dos seus passos nas trevas.

De vez em quando, para que eles abrandassem a marcha, Barca mandava deitar flechas da retaguarda; vários foram mortos. Quando o dia nasceu, estavam nas montanhas de Ariana, no ponto em que o caminho faz um cotovelo.

Mâtho, que ia à frente, julgou distinguir no horizonte uma coisa verde, no cimo de uma elevação. O terreno baixava; e apareceram obeliscos, cúpulas, casas; era Cartago. Apoiou-se a uma árvore para não cair, de tal forma o seu coração batia depressa.

Pensava em tudo o que tinha sido a sua existência desde a última vez que tinha passado por ali. Era uma surpresa infinita, um assombro. Sentiu uma grande alegria ao pensar que ia voltar a ver Salammbô. As razões pelas quais devia odiar este pensamento vieram-lhe à memória; rejeitou-as imediatamente. Trémulo, com o olhar fixo, contemplava, para lá de Eschmoun, o terraço alto de um palácio, por cima das palmeiras; um sorriso de êxtase iluminou-lhe o rosto, como se tivesse descido sobre ele uma luz; abriu os braços e mandando beijos pela brisa murmurava: «Vem! Vem!» Um suspiro encheu-lhe o peito, e duas lágrimas, do tamanho de pérolas, caíram-lhe na barba.

- O que é que te retém? - perguntou Spendius. - Apressa-te! O sufete vai-nos escapar! Mas os teus joelhos fraquejam e olhas para mim como se estivesses embriagado.

Batia os pés no chão, de impaciência; incitava Mâtho; e piscava os olhos como se estivesse diante de um alvo há muito visado:

- Ah! aqui estamos! Eis-nos aqui! São meus!

Tinha um ar tão convencido e triunfante que Mâtho, surpreendido na sua apatia, se sentia arrastado. Estas palavras atingiam-no no mais profundo da sua angústia, levavam o seu desespero à vingança, mostravam um alimento para a sua cólera. Saltou para um dos camelos que estavam nas bagagens, arrancou-lhe a arreata; com a corda comprida agredia os soldados da retaguarda; corria da direita para a esquerda, alternadamente, na parte de trás do exército como um cão que conduz um rebanho.

À sua voz sonora as linhas de homens voltaram a cerrar-se; até os coxos estugaram o passo; no meio do istmo, a distância diminuiu. Os primeiros bárbaros iam na poeira dos cartagineses. Os dois exércitos aproximavam-se, iam colidir. Mas a porta de Malqua, a porta de Tagaste e a grande porta de Khamon abriram os batentes. O quadrado púnico dividiu-se; três colunas meteram-se por ali, gerando-se grande confusão sob os pórticos. Daí a pouco esta massa compacta que se apertava a si própria deixou de poder avançar; as lanças entrelaçavam-se no ar e as flechas dos bárbaros batiam nas muralhas.

No pórtico de Khamon, viram Amílcar. Ele voltou-se ordenando aos seus homens para se afastarem. Desceu do cavalo; e com a espada que tinha na mão, picou-o na garupa, mandando-o sobre os bárbaros.

Era um cavalo de raça alimentado com bolas de farinha e que dobrava os joelhos para o dono subir. Para que é que o mandava assim? Era um sacrifício?

O cavalo galopava no meio das lanças, deitava homens ao chão, e, tropeçando nos arreios, caía e levantava-se com saltos furiosos; e, enquanto tentavam fazê-lo parar ou ficavam a olhar surpreendidos, os cartagineses tinham-se reunido; entraram; a porta enorme fechou-se atrás deles, com estrondo.

Não cedeu. Os bárbaros juntaram-se contra ela; e, durante alguns minutos, a todo o comprimento do exército, houve uma oscilação cada vez mais fraca até que por fim cessou.

Os cartagineses tinham mandado soldados para o aqueduto; começaram a arremessar pedras, bolas, barrotes. Spendius defendia que não valia a pena obstinarem-se. Foram instalar-se mais longe, resolvidos a cercar Cartago.

Entretanto as notícias sobre a guerra tinham passado os confins do império púnico; e, das colunas de Hércules até para lá de Cyrene, os pastores sonhavam enquanto guardavam os seus rebanhos; e as caravanas conversavam à noite, à luz das estrelas. A grande Cartago, dominadora dos mares, esplêndida como o Sol e terrível como um deus, havia homens que ousavam atacá-la!

Anunciaram várias vezes a sua queda; e todos tinham acreditado nela, porque todos a desejavam: as populações submissas, as aldeias tributárias, as províncias aliadas, as hordas independentes, os que a odiavam pela sua tirania, ou que invejavam o seu poder ou que cobiçavam a sua riqueza. Os mais bravos juntaram-se rapidamente aos mercenários. A derrota de Maçar tinha feito parar todos os outros. Tinham readquirido a confiança, tinham avançado, tinham-se aproximado; e, agora, homens das regiões orientais, encontravam-se nas dunas de Clypea, do outro lado do golfo. Logo que viram os bárbaros, mostraram-se.

Não eram os líbios dos arredores de Cartago; há muito que formavam o terceiro exército; mas nómadas do planalto de Barca, os bandidos do cabo Phiscus e do promontório de Derne, os de Phazania e da Marmarica. Tinham atravessado o deserto bebendo nos poços de água salobra tapados com ossos de camelo; os zuaeses, cobertos com penas de avestruz, tinham vindo em quadrigas; os garamantes com um véu negro, sentados atrás nas suas éguas pintadas; outros em burros, onagros, zebras, búfalos; e alguns traziam a família e os ídolos, o telhado da cabana em forma de chalupa. Havia amonitas com os membros enrugados por causa da água quente das fontes; atarantes que maldizem o Sol; trogloditas, que enterram os mortos por baixo de ramos de árvores; os horríveis auseanos que comem gafanhotos; os aquirmachides que comem piolhos, e os gisantes, pintados de vermelhão, que comem macacos.

Estavam todos alinhados à beira-mar formando uma grande fila direita. Avançaram em seguida como remoinhos de areia levantados pelo vento. No meio do istmo a multidão parou, os mercenários instalados à frente deles, perto da muralha, não se queriam mexer.

Depois, do lado de Ariana, apareceram homens do ocidente, o povo dos númidas. Com efeito, Narr'Havas só governava os massilianos; além disso havia um costume que lhes permitia depois de um revés abandonarem o rei. Estavam reunidos junto do Zaino, que tinham atravessado quando do primeiro movimento de Amílcar. Acorreram primeiro todos os caçadores do Malethut-Baal e do Garafos, vestidos com peles de leão, e que conduziam com o cabo das lanças cavalos pequenos e magros de crinas compridas; depois vinham os getúlios com couraças de pele de serpente; farusianos, com coroas altas feitas de cera e de resina; os caunes, os marcares, os tilabares, cada um com dois dardos e um escudo redondo, de pele de hipopótamo. Pararam por baixo das catacumbas, nas margens da lagoa.

Mas quando os libios foram desalojados, viu-se, no lugar que ocupavam, como uma nuvem junto ao solo, uma multidão de negros. Tinham vindo do Harusch branco, do Harusch preto, do deserto de Augila e até da grande região de Agazymba, que fica quatro meses a sul dos garamantes, e mais longe ainda! Apesar dos enfeites de madeira vermelha, a sujidade da pele preta tornava-os semelhantes a amoras que tivessem rebolado na poeira. Traziam calções de fios de casca de árvore, túnicas de ervas secas, focinhos de animais felinos na cabeça; e, gritando como lobos, sacudiam varões de ferro guarnecidos de anéis e acenavam com caudas de vaca presas na extremidade de um pau, como se fossem estandartes.

Por trás dos númidas, dos maurusianos e dos getúlios comprimiam-se os homens amarelos que viviam para lá de Taggir, nas florestas de cedros. Carcazes de pêlo de gato batiam-lhes nos ombros; e traziam à trela cães enormes, tão altos como burros, e que não ladravam.

Finalmente, como se a África não estivesse ainda suficientemente vazia, e como se fosse preciso concentrar a ira indo até às raças mais baixas, podiam ver-se, atrás de todos, homens de perfil de animal que riam com uma expressão idiota; miseráveis vítimas de doenças horríveis, pigmeus disformes, mulatos de sexo ambíguo, albinos cujos olhos vermelhos não aguentavam a luz do Sol; articulando sons ininteligíveis, metiam um dedo na boca para mostrarem que tinham fome.

A confusão das armas não era menor do que a do vestuário e dos povos. Não havia uma única invenção para matar que não estivesse ali presente, desde os punhais de madeira, os machados de pedra e os tridentes de marfim, até aos sabres compridos dentados como serrotes, finos, e feitos de uma lâmina de cobre que dobra. Tinham cutelos que se bifurcavam em várias pontas como os chifres dos antílopes, podadeiras atadas na extremidade de uma corda, triângulos de ferro, mocas, furadores. Os etíopes de Bam-botus escondiam no cabelo pequenos dardos envenenados. Muitos tinham trazido pedras nos sacos. Outros, com as mãos vazias, batiam os dentes.

Um movimento contínuo agitava a multidão. Os dromedários, sujos de alcatrão como navios, deitavam ao chão as mulheres que traziam os filhos à anca. As provisões nos cestos aumentavam; pisava-se sal, bocados de goma, tâmaras apodrecidas, nozes de guru; e por vezes, num peito coberto de vermes, pendia de um cordão fino um diamante procurado pelo sátrapa, uma pedra quase fabulosa e que chegava para comprar um império. Uma fascinação, uma curiosidade, impelia-os; nómadas que nunca tinham visto uma cidade sentiam-se amedrontados com a sombra das muralhas.

O istmo desaparecia agora com tantos homens; esta vasta superfície, onde as tendas pareciam cabanas durante uma inundação, estendiam-se até às primeiras linhas dos outros bárbaros, simetricamente formadas nos dois lados do aqueduto e entre as quais sobressaíam as armas.

Os cartagineses ainda não estavam refeitos do pavor da chegada, quando viram vir na sua direcção, como monstros e como edifícios - com os mastros, os braços, o cordame, as articulações, os capitéis e as carapaças - as máquinas de cerco, que as cidades tírias tinham enviado; sessenta carros, oitenta onagros, trinta escorpiões, cinquenta tolenos, doze aríetes e três catapultas gigantes que lançavam bocados de rocha com o peso de quinze talentos. Grupos compactos de homens, agarrados à base, empurravam-nos; a cada passo eram sacudidos por um estremecimento; ficaram diante dos muros.

Eram precisos ainda vários dias para concluir os preparativos do cerco. Os mercenários, que tinham aprendido com os seus erros, não queriam arriscar movimentos inúteis: e, tanto de um lado como do outro não havia pressa, pois sabiam bem que se ia iniciar uma acção terrível, da qual resultaria a vitória ou o extermínio completo.

Cartago podia resistir; as suas muralhas, bastante grandes, tinham uma série de ângulos salientes e reentrantes, posição vantajosa para repelir os assaltantes.

Do lado das catacumbas, havia uma parte que se tinha desmoronado e, nas noites escuras, por entre os blocos mal apoiados viam-se luzes nas casas de Malqua. Dominavam em certos pontos a altura das muralhas. Era ali que viviam, com os novos esposos, as mulheres dos mercenários perseguidas por Mâtho. Ao vê-los, os seus corações não aguentaram mais. Agitaram os lenços; depois, a coberto da noite, foram conversar com os soldados pela fenda do muro, e o Grande Conselho soube uma manhã que tinham fugido todas. Umas tinham passado por entre as pedras; as outras mais corajosas tinham descido por cordas.

Finalmente Spendius decidiu-se pela realização do seu projecto.

A guerra, mantendo-o afastado, não lho tinha permitido; e, desde que estavam diante de Cartago, parecia-lhe que os habitantes suspeitavam da sua empresa. Daí a pouco reduziam as sentinelas no aqueduto. Não tinham muita gente para a defesa do recinto.

O antigo escravo treinou-se durante vários dias a atirar flechas para as plantas do lago. Por fim uma noite em que a Lua brilhava, pediu a Mâtho para acender a meio da noite uma grande fogueira de palha enquanto todos os seus homens gritavam; e levando consigo Zarxas partiu para a margem do golfo, na direcção de Tunes.

Por altura dos últimos arcos, voltaram na direcção do aqueduto;o lugar era descoberto; avançaram de rastos até à base dos pilares.

As sentinelas da plataforma andavam tranquilamente de um lado para o outro.

Apareceram chamas altas; ouviram-se os clarins; os soldados que estavam de sentinela, julgando que se tratava de um assalto, precipitaram-se para o lado de Cartago.

Ficou um homem. Era um vulto preto no fundo do céu. Com a Lua por trás dele, a sombra descomunal parecia, ao longe da planície, um obelisco a andar.

Zarxas pegou na funda; por prudência ou por crueldade, Spendius fê-lo parar, dizendo:

- Não, a bala faria barulho! Olha!

Abriu o arco com toda a força, apoiando a parte inferior do arco no dedo grande do pé esquerdo; fez pontaria, e a flecha partiu. O homem não caiu. Desapareceu.

- Se ele tivesse ficado só ferido, ouvi-lo-íamos! - afirmou Spendius; e subiu apressadamente pelo muro, como tinha feito da primeira vez, com o auxílio de uma corda e de um harpão. Quando chegou lá acima, ao pé do cadáver, deixou-a cair. O balear espetou ali um picão com um martelo e foi-se embora.

As trombetas já não soavam. Tudo estava agora tranquilo. Spendius tinha levantado uma das lajes, penetrara na água e voltara a fechá-la.

Calculando a distância pelo número dos passos, chegou ao local onde tinha visto uma racha oblíqua; e durante três horas, até de manhã, trabalhou de forma contínua, furiosa, mal respirando pelos interstícios das lajes superiores, dominado pela angústia, julgando vinte vezes que ia morrer. Por fim, ouviu-se um estrondo; uma pedra enorme, ressaltando sobre os arcos inferiores, rolou até lá abaixo, e, de repente, uma catarata, um verdadeiro rio caiu do céu sobre a planície. O aqueduto cortado ao meio, desmoronava-se. Era a morte de Cartago, a vitória dos bárbaros.

Num instante, os cartagineses acordados apareceram nas muralhas, nos telhados das casas e dos templos.

Os bárbaros empurravam-se, gritavam. Dançavam delirantes em volta da grande queda de água, e, na excitação da sua alegria vinham ali molhar a cabeça.

Viram no cimo do aqueduto um homem com uma túnica castanha, .rasgada. Estava debruçado na borda, com as mãos na cintura; olhava para baixo como se estivesse admirado com a sua obra.

Depois, voltou-se. Percorreu o horizonte com um ar superior que parecia dizer: «Tudo isto é meu agora!» Os aplausos dos bárbaros fizeram-se ouvir; os cartagineses, compreendendo por fim o desastre de que eram vítimas, gritavam de desespero. Começou a correr de uma extremidade à outra da plataforma e, como o condutor de um carro vencedor nos jogos olímpicos, Spendius, cheio de orgulho, levantava os braços.

 

                               MOLOCH.

OS bárbaros não tinham necessidade de uma circunvalação da costa da África; ela pertencia-lhes. Para tornar mais fácil a aproximação das muralhas, foram demolidas as trincheiras que limitavam o fosso. A seguir, Mâtho dividiu o exército em grandes semicírculos, de forma a cercar melhor Cartago. Os hoplitas dos mercenários foram colocados na primeira fila, atrás deles os besteiros e os cavaleiros; ao fundo, as bagagens, os carros, os cavalos; para lá desta multidão, a trezentos passos das torres, estavam as máquinas.

Sob a variedade infinita das suas designações (que mudaram várias vezes no decurso dos séculos), podiam-se reduzir a dois sistemas: umas servindo de fundas e as outras de arcos.

As primeiras, as catapultas, eram formadas por um quadrado com dois montantes verticais e uma barra horizontal. Na parte anterior tinham um cilindro com cabos, onde estava seguro um timão com uma colher para receber os projécteis; a base estava presa numa meada de fios torcidos; quando se largavam as cordas, o timão levantava-se e ia bater na barra, que, obrigando-a a parar com uma forte sacudidela, multiplicava a sua força.

Os segundos tinham um mecanismo mais complicado: numa pequena coluna estava fixada, pelo meio, uma travessa onde vinha a dar em ângulo recto uma espécie de canal; nas extremidades da travessa levantavam-se dois capitéis com um rolo de crinas; duas vigotas estavam ali presas para manter as extremidades de uma corda que se estendia até à extremidade do canal, sobre uma espécie de prateleira de bronze. Esta placa de metal separava-se numa abertura, e, deslizando por ranhuras, empurrava as flechas. As catapultas também se chamavam onagros, como os cavalos selvagens que lançam pedras com os pés, e as balistas escorpiões, por causa de um gancho da placa que se levantava com um murro e fazia saltar a mola.

A sua construção exigia cálculos complicados; a madeira devia ser escolhida entre as espécies mais duras, as engrenagens eram todas de bronze; eram apertadas com alavancas, cadernais, cabrestantes ou carretos; gonzos fortes variavam a direcção do tiro, avançavam por meio de cilindros, e as maiores, que eram trazidas peça por peça, eram montadas em frente do inimigo.

Spendius tinha três catapultas grandes para os três ângulos principais; diante de cada uma das portas colocou um aríete, diante de cada torre uma balista, e carrobalistas cercavam-na por trás. Mas era preciso estar prevenido contra o fogo dos sitiados, e entulhar primeiro o fosso que os separava das muralhas.

Trouxeram galerias de juncos verdes e arcos de castanho, que lembravam escudos enormes deslizando sobre três rodas; pequenas cabanas cobertas de peles frescas e cobertas de sargaço abrigavam os trabalhadores; as catapultas e as balistas foram defendidas por cortinas de cordame que tinham sido mergulhadas em vinagre para ficarem incombustíveis. As mulheres e as crianças iam buscar pedras à praia, juntavam a terra com as mãos e traziam-na aos soldados.

Os cartagineses também se preparavam.

Amílcar tinha-lhes dado nova confiança ao anunciar-lhes que a água das cisternas chegava para cento e vinte e três dias.

Esta afirmação, a sua presença no meio deles, e sobretudo a do zaimph, trouxeram-lhes a esperança. Cartago superou o seu abatimento; os que não eram de origem cananeia foram levados pelo entusiasmo dos outros.

Armaram-se os escravos, despejaram-se os arsenais; cada cidadão tinha o seu posto e a sua tarefa. Dos trânsfugas restavam mil e duzentos homens, o sufete fê-los todos comandantes; e os carpinteiros, os armeiros, os ferreiros e os operários foram encarregados das máquinas. Os cartagineses tinham guardado algumas, apesar das condições da paz romana. Foram reparadas. Eram peritos nestes trabalhos.

Os dois lados setentrional e oriental, defendidos pelo mar e pelo golfo, continuavam inacessíveis. Na muralha que ficava em frente dos bárbaros, foram colocados ramos de árvore, mós de moinho, vasos cheios de enxofre, cubas cheias de azeite e construíram fornos. Amontoaram pedras na plataforma das torres, e as casas que ficavam mais perto da muralha foram cobertas de areia para as tornar mais firmes e aumentar a sua espessura.

Perante estas medidas os bárbaros irritaram-se. Queriam entrar imediatamente em combate. Os pesos que puseram nas catapultas eram de um tamanho tal que os timões se partiram; o ataque foi adiado.

Por fim no décimo terceiro dia do mês de schabar, ao nascer do Sol, ouviu-se um grande estrondo na porta de Khamon.

Setenta e cinco soldados puxavam as cordas atadas na base de uma trave enorme, suspensa horizontalmente por correntes de um cavalete; era encimada por uma cabeça de carneiro, de bronze. Estava enfeitada com pele de boi; tinha anéis de ferro aqui e ali; era três vezes mais espessa que o corpo de um homem, tinha vinte côvados de comprimento, e, pela força dos braços nus que a empurravam e conduziam, avançava e recuava com uma oscilação regular.

Outros aríetes diante das outras portas começaram a mover-se. Nas rodas ocas dos carretos podiam ver-se homens que subiam degrau a degrau. As roldanas dos capitéis rangeram, os montes de cordame baixaram, e as pedras e as flechas partiram ao mesmo tempo; todos os besteiros dispersos correram. Alguns aproximaram-se da muralha, escondendo sob os escudos potes de resina que depois arremessavam. Todas estas balas, dardos e materiais incandescentes passavam por cima das primeiras filas e faziam uma curva que terminava para lá dos muros. Todavia, na parte superior apareceram guindastes de mastrear; e daqui partiam pinças enormes que terminavam por dois semicírculos dentados no interior. Apanharam os besteiros. Os soldados que estavam agarrados à trave recuaram; os cartagineses tentavam fazê-la subir; e a luta prolongou-se até à noite.

No dia seguinte, quando os mercenários retomaram a sua tarefa, a parte de cima das muralhas estava inteiramente coberta por fardos de algodão, panos, coxins; as seteiras estavam atulhadas com esteiras; e, na muralha, entre os guindastes, via-se uma fila de forcados e de trinchas encabadas em paus. Começou uma resistência furiosa.

Troncos de árvores, seguros por cabos, caíam e subiam alternadamente batendo nos besteiros; as flechas, lançadas pelas balistas, arrancavam o telhado das cabanas; e, da plataforma das torres, partiam torrentes de sílex e pedrinhas.

Os aríetes danificaram a porta de Khamon e a porta de Tagaste, mas os cartagineses tinham colocado uma tal quantidade de coisas do lado de dentro que os batentes não se abriram. Continuaram de pé.

Empurraram então para as muralhas os tardos que, aplicados nas juntas dos blocos, os separavam. As máquinas foram dirigidas de uma maneira mais acertada, com os homens divididos por grupos; funcionaram sem interrupção de manhã à noite com a precisão monótona do trabalho do tecelão.

Spendius não se cansava na sua posição de chefia. Era ele mesmo que apertava as cordas das balistas. Para que houvesse, nas suas tensões gémeas, uma paridade completa, as cordas eram apertadas batendo ora na direita ora na esquerda até ao momento em que os dois lados tivessem um som igual.

Spendius trepava para cima dela. Com a ponta do pé batia numa e noutra suavemente e punha-se de ouvido à escuta como um músico a afinar uma lira. Depois, quando o timão da catapulta se levantava, quando a coluna da balista tremia, com o safanão do disparo, quando as pedras partiam como raios e os dardos como torrentes, inclinava-se e levantava os braços como se estivesse a segui-los. Os soldados, admirando a sua destreza, executavam as suas ordens. Na alegria do trabalho, diziam gracejos a propósito dos nomes das máquinas. Assim às tenazes de prender os aríetes chamavam «lobos», e às galerias cobertas «latadas»; eram cordeiros, iam fazer a vindima; e, ao armarem as peças diziam aos onagros: «Vamos, escouceia bem!» e aos escorpiões: «Atravessa-os até ao coração!» Estas brincadeiras, sempre as mesmas, ajudavam-nos a manter a coragem.

Todavia, as máquinas não demoliam a muralha. Era formada por dois muros e estava cheia de terra; destruíam a parte superior. Os sitiados voltavam a construí-la. Mâtho mandou construir torres de madeira tão altas como as torres de pedra. Deitaram no fosso erva, paus de ponta aguçada, pedras e carros com rodas, a fim de o encherem mais depressa; antes de ele estar cheio, a multidão imensa dos bárbaros ondulava na planície com um só movimento acabando por bater na base do muro como o mar embravecido. Fizeram avançar as escadas de corda, as escadas verticais e as sambucas, isto é, dois mastros por onde desciam, por meio de talhas, uma série de bambus que terminava numa ponte móvel. Formavam várias linhas direitas apoiadas contra a parede; e os mercenários, uns atrás dos outros, subiam com as armas na mão. Não se via um cartaginês; estavam já a dois terços da altura da muralha. As seteiras abriram-se, vomitando, como da boca de um dragão, chamas e fumo; a areia espalhava-se, entrava pelas juntas das armaduras; o petróleo pegava-se aos fatos; o chumbo salpicava os capacetes e fazia buracos na carne; uma chuva de faíscas caía nos rostos, e as órbitas sem olhos pareciam chorar lágrimas grandes como amêndoas.

Homens, todos amarelos de azeite, tinham o cabelo a arder. Começaram a correr pegando fogo aos outros. Asfixiavam-nos deitando-lhes, de longe, para a cara, capotes impregnados de sangue. Alguns que não estavam feridos ficavam imóveis, mais direitos do que estacas, com a boca aberta e os braços abertos.

O assalto recomeçou nos dias seguintes pois os mercenários esperavam triunfar por um excesso de força e de audácia.

Às vezes um homem aos ombros de outro conseguia meter uma fixa entre as pedras de que se servia como se fosse um degrau para colocar uma segunda e uma terceira; e, protegido pela orla das seteiras um bocadinho mais saliente que a muralha, subia assim; mas, sempre a uma certa altura, caíram. O fosso grande já muito cheio deitava por fora; debaixo dos pés dos vivos, os feridos misturavam-se com os cadáveres e com os moribundos. No meio das entranhas abertas, dos crânios esfacelados e das poças de sangue, os troncos calcinados formavam manchas pretas; e braços e pernas formavam um monte como se fossem estacas numa vinha incendiada.

Como as escadas não eram suficientes, recorreram a tolenos - instrumentos compostos por uma trave comprida colocada transversalmente sobre outra tendo na extremidade um cesto quadrado onde se podiam instalar trinta soldados de infantaria com as respectivas armas.

Mâtho quis subir para a primeira que ficou pronta. Spendius impediu-o.

Havia homens curvados sobre um molinete; a trave grande levantou-se, ficou horizontal, tomou uma posição quase vertical, e, como tinha muito peso na extremidade, dobrou-se como uma cana imensa. Os soldados, escondidos até ao queixo, comprimiam-se; só se viam as plumas dos capacetes. Por fim, quando estava a cinquenta côvados no ar voltou-se para a direita e para a esquerda várias vezes, depois baixou-se; e, como um braço de gigante que tivesse na mão uma coorte de pigmeus, colocou na borda do muro o cesto cheio de homens. Saltaram para o meio da multidão, e nunca mais voltaram.

Todos os outros tolenos foram rapidamente preparados; eram precisos cem vezes mais para tomarem a cidade. Utilizaram-nos de uma forma homicida: archeiros etíopes instalaram-se nos cestos; depois, os cabos foram fixados e eles ficaram suspensos e disparavam flechas envenenadas. Os cinquenta tolenos, dominando as seteiras, cercavam Cartago como abutres monstruosos; - e os negros riam ao verem os guardas da muralha morrerem depois de convulsões atrozes.

Amílcar mandou para ali hoplitas; bebiam todas as manhãs o sumo de determinadas ervas que os protegiam contra os venenos.

Uma tarde, num dia escuro, embarcou os seus melhores soldados em gabarras e em jangadas que voltando à direita do porto foram desembarcar a Taenia. Avançaram até às primeiras linhas dos bárbaros, e, surpreendendo-os pelo flanco fizeram uma grande carnificina. Homens suspensos por cordas desciam de noite do alto dos muros com archotes na mão, deitavam fogo às obras dos mercenários e voltavam a subir.

Mâtho estava irritado; a cada obstáculo a sua cólera intensificava-se; chegava assim a coisas terríveis e extravagantes. Convocou mentalmente Salammbô para um encontro; esperou. Ela não veio: isto foi para ele uma traição nova; todavia, odiava-a. Se tivesse visto o seu cadáver, talvez se tivesse ido embora. Duplicou as guardas-avançadas, mandou colocar forcados na base da muralha, colocou armadilhas no chão; e ordenou aos líbios que trouxessem uma floresta para lhe deitarem fogo e queimarem Cartago como um covil de raposas.

Spendius persistia no cerco. Procurava inventar máquinas monstruosas.

Os outros bárbaros, acampados, mais longe, no istmo, estavam admirados com esta lentidão; murmuravam; deixaram-nos ir. Precipitaram-se com os cutelos e os dardos com que arrombavam as portas.

O facto de estarem praticamente despidos tornava-os mais vulneráveis, os cartagineses chacinaram-nos em grande número; e os mercenários juntaram-se, sem dúvida, porque não queriam perder a pilhagem. Houve querelas, combates entre eles. A campanha agravava-se e daí a pouco lutavam pelos víveres. Perdiam a coragem. Hordas enormes partiam. A multidão era maior do que parecia.

Os melhores tentaram esvaziar as minas; o terreno mal apoiado aluiu. Recomeçaram noutros pontos; Amílcar adivinhava sempre a sua direcção encostando à orelha um escudo de bronze. Abriu as contraminas sob o caminho que as torres de madeira deviam percorrer; quando as quiseram empurrar cairam nos buracos.

Reconheceram, por fim, que a cidade era inexpugnável, embora tivessem levantado até à altura das muralhas um grande terraço que permitia combater ao mesmo nível; pavimentaram a parte de cima para fazerem rolar as máquinas. Seria impossível a Cartago resistir.

Começava a ter sede. A água, que valia no princípio do cerco dois kèsitah por albarda, vendia-se agora a um shekel de prata; as provisões de carne e de trigo estavam também a esgotar-se; temia-se a fome; alguns falavam de bocas inúteis, o que aterrorizava toda a gente.

Desde a Praça de Khamon até ao templo de Melkart os cadáveres enchiam as ruas; e, como se estava no fim do Verão, grandes moscas varejeiras importunavam os combatentes. Velhos transportavam os feridos e as pessoas devotas organizavam cerimónias fúnebres convencionais, em memória dos parentes próximos e dos amigos mortos na guerra. Estátuas de cera com cabelos e fatos bloqueavam as portas de um lado ao outro. Derretiam-se por causa do calor dos círios que ardiam perto delas; a tinta corria pelos ombros, e as lágrimas brilhavam nos rostos dos vivos, que entoavam, por sua vez, canções tristes. A multidão, entretanto, corria; os comandantes davam ordens e ouvia-se continuamente o choque dos aríetes.

As temperaturas eram tão elevadas que os corpos inchavam e não cabiam nas urnas. Incineravam-nos no meio dos pátios. As fogueiras num espaço muito limitado incendiavam as muralhas vizinhas e chamas altas saíam das casas como o sangue a jorrar de uma artéria. Moloch possuía assim Cartago; rolava nas ruas e devorava até mesmo os cadáveres.

Os homens, que traziam, em sinal de desespero, casacos de farrapos cosidos, instalavam-se às esquinas. Falavam contra os anciães, contra Amílcar, prediziam uma ruína total para o povo e incitavam-no a destruir tudo e a fazer tudo o que lhe apetecesse. Os mais perigosos eram os que bebiam meimendro; nas suas crises julgavam ser animais ferozes e saltavam sobre as pessoas que passavam rasgando-lhes os fatos. Formavam-se grupos em volta deles; esquecia-se a defesa de Cartago. O sufete pensava pagar a outros para apoiarem a sua política.

A fim de manter na cidade o génio dos deuses, tinham coberto de cadeias os seus simulacros. Punham véus negros nas imagens e cilícios em volta dos altares; procuravam excitar o orgulho e a inveja dos baals dizendo-lhes ao ouvido:

- Tu vais-te deixar vencer! Os outros são mais fortes talvez? Mostra-te! Ajuda-nos! Para que os povos não digam: Onde estão agora os seus deuses?

Uma ansiedade permanente agitava os colégios dos pontífices. Os de Rabbetna sobretudo tinham medo, a recuperação do zaimph não tinha servido de nada. Estavam fechados no terceiro recinto, inexpugnável como uma fortaleza. Só um deles ousava sair: o grande sacerdote Schahabarim.

Ia a casa de Salammbô. Mas ficava calado, contemplando-a com o olhar fixo ou falava com grande veemência; e as censuras que lhe fazia eram mais severas do que nunca.

Por uma contradição inconcebível, não perdoava à jovem ter obedecido às suas ordens; Schahabarim tinha adivinhado tudo e a obsessão desta ideia avivava os ciúmes derivados da sua impotência. Acusava-a de ser a causa da guerra. Mâtho, segundo se julgava, cercava Cartago para se apoderar do zaimph; e proferia imprecações e fazia ironia acerca deste bárbaro que pretendia possuir coisas santas. Não era isto, contudo, que o sacerdote queria dizer.

Salammbô não sentia o menor terror; a angústia de que dantes sofria tinha-a abandonado. Sentia-se possuída por uma tranquilidade singular. Nos seus olhos, menos errantes, brilhava uma chama límpida.

A píton voltara a adoecer; e, como Salammbô parecia pelo contrário curar-se, a velha Taanach rejubilava, convencida que ela recebia com este enfraquecimento a apatia da dona.

Uma manhã, encontrou-a por trás da cama de peles de boi, enrolada sobre si própria, mais fria do que o mármore, com a cabeça escondida num monte de vermes. Salammbô acorreu aos seus gritos, e a escrava ficou surpreendida com a sua insensibilidade.

A filha de Amílcar já não fazia jejuns com tanto fervor. Passava os dias no seu terraço, com os cotovelos apoiados à balaustrada, divertindo-se com o que se passava à sua frente. A parte de cima das muralhas na extremidade da cidade cortava o céu em ziguezagues desiguais, e as lanças das sentinelas pareciam uma cercadura de espigas. Via ao longe, entre as torres, as manobras dos bárbaros ; nos dias em que o cerco estava interrompido podia mesmo seguir as suas ocupações. Consertavam as armas, untavam o cabelo, ou lavavam os braços ensanguentados no mar; as tendas estavam fechadas; os animais de carga comiam; e ao longe, as gadanhas dos carros, todos em semicírculo, pareciam uma cimitarra de prata na base dos montes. As palavras de Schahabarim vinham-lhe à memória. Esperava o seu noivo, Narr'Havas. Queria, apesar do seu ódio, voltar a ver Mâtho. De todos os cartagineses, era talvez a única pessoa que tinha falado com ele sem medo.

O pai vinha muitas vezes ao seu quarto. Sentava-se nos coxins e olhava para ela com uma expressão quase comovida, como se encontrasse neste espectáculo repouso para as suas canseiras. Às vezes fazia-lhe perguntas sobre a sua ida ao campo dos mercenários. Perguntou-lhe se alguém, por acaso, a tinha levado a isso; com um sinal de cabeça, ela respondeu que não, de tal forma Salammbô se sentia orgulhosa por ter salvo o zaimph.

Contudo o sufete voltava sempre a Mâtho com o pretexto de querer informações militares. Não compreendia o que é que tinha acontecido nas horas que ela tinha passado na tenda. Com efeito, Salammbô não falava de Gíscon; pois as palavras tinham por si próprias um poder efectivo, as maldições que se contavam a uma pessoa podiam cair sobre ela; calava o seu desejo de homicídio, com medo de ser censurada por não ter cedido. Dizia que o schalischim parecia furioso, que tinha gritado muito, e que acabara por adormecer. Salammbô não contava mais nada, por vergonha talvez, ou por um excesso de candura que fazia com que ela não ligasse muita importância aos beijos do soldado. Tudo isto, aliás, passava na sua cabeça melancólica e confusa como a recordação de um sonho opressivo; não saberia de que maneira e por que palavras o havia de exprimir.

Uma noite em que se encontravam os dois, Taanach apareceu assustada. Estava no pátio um velho com uma criança e queria ver o sufete.

Amílcar empalideceu, mas replicou com ardor:

- Ele que suba!

Iddibal entrou sem se prostrar. Trazia pela mão um rapazinho com uma capa de pele de cabra; e tirando o capuz que lhe cobria o rosto, disse:

- Aqui o tens, senhor! Recebe-o!

O sufete e o escravo afastaram-se para um canto do quarto.

A criança tinha ficado no meio; com um olhar mais atento do que admirado, percorria o tecto, os móveis, os colares de pérolas nas tapeçarias de púrpura, e esta jovem majestosa que se inclinava para ele.

Teria talvez dez anos e não era mais alto que uma espada romana. Os cabelos muito encaracolados caíam para a testa arrendada. Dir-se-ia que os olhos procuravam os espaços. As narinas do nariz fino palpitavam; em toda a sua pessoa havia o esplendor indefinível dos que são destinados a grandes empreendimentos.

Depois de tirar a capa pesada ficou vestido com um fato de pele de lince apertado na cintura; estava descalço e os pés brancos de poeira assentavam bem firmes nas lajes. Pressentia, sem dúvida, que se tratava de qualquer coisa importante, porque se mantinha imóvel, uma das mãos atrás das costas, de queixo baixo, com um dedo na boca.

Amílcar chamou Salammbô com um sinal e disse-lhe em voz baixa:

- Vais ficar com ele nos teus aposentos, percebes! É preciso que ninguém, mesmo que seja da casa, saiba da sua existência!

Depois, já do outro lado da porta, ainda perguntou a Iddibal se ele tinha a certeza que não tinham sido vistos.

- Não! - respondeu o escravo. - As ruas estavam desertas. A guerra atingia todas as províncias e ele sentira-se receoso por causa do filho do seu senhor. Sem saber onde é que o havia de esconder, tinha vindo ao longo da costa, numa chalupa; e há três dias que bordejava o golfo, observando as muralhas; nessa noite, como a zona de Khamon parecia deserta, atravessou rapidamente o canal e desembarcou perto do arsenal pois a entrada do porto estava livre.

Todavia, daí a pouco os bárbaros colocavam ali uma jangada enorme para impedir os cartagineses de saírem. Levantavam as torres de madeira, e ao mesmo tempo o terraço subia.

Interceptadas as comunicações com o exterior, começou uma fome intolerável.

Foram mortos todos os cães, todos os machos, todos os burros, depois quinze elefantes que o sufete tinha trazido. Os leões do templo de Moloch estavam furiosos; os hieródulos não ousavam aproximar-se. Alimentavam-nos primeiro com os bárbaros feridos; recusaram-nos e morreram. Ao crepúsculo havia gente que errava pelas antigas cercas para colher entre as pedras ervas e flores que ferviam em vinho; o vinho era mais barato do que a água. Outros rastejavam até às linhas avançadas do inimigo e passavam por baixo das tendas para roubarem alimentos; os bárbaros ficavam tão estupefactos que, às vezes, os deixavam irem-se embora. Chegou o dia em que os anciães resolveram matar os cavalos de Eschmoun. Eram animais santos, cujas crinas eram entrançadas pelos pontífices com fitas douradas, e que significavam pela sua existência o movimento do Sol, a ideia do fogo na forma mais elevada. A carne, cortada em bocados iguais, foi escondida atrás do altar. Depois, todas as noites, alegando qualquer devoção, os anciães subiam ao templo, regalavam-se às escondidas; e levavam debaixo das túnicas um bocado para os filhos. Nos bairros desertos, junto dos muros, os habitantes menos miseráveis, com medo dos outros, tinham-se barricado.

As pedras das catapultas e as demolições exigidas pela defesa tinham acumulado montes de destroços no meio das ruas. Às horas mais tranquilas, apareciam de repente multidões gritando; e, do cimo da Acrópole, os incêndios pareciam farrapos de púrpura dispersos pelos terraços que o vento distorcia.

As três catapultas grandes não paravam. Os seus estragos eram extraordinários; a cabeça de um homem foi cair no frontão dos Sissitas; na Rua de Kinisdo uma mulher que acabava de dar à luz uma criança foi esmagada por um bloco de mármore e o filho com a cama foram cair no cruzamento de Cinasyn, onde foi encontrada a coberta.

O mais irritante eram as balas dos besteiros. Caíam nos telhados, nos jardins e no meio dos pátios quando se estava sentado à mesa e se tinha diante uma refeição magra e o coração cheio de suspiros. Estes projécteis atrozes traziam letras gravadas que se cravavam na carne; e nos cadáveres liam-se injúrias, como por exemplo: «porco», «chacal», «verme» e por vezes gracejos como: «toma» ou: «bem o mereci».

A parte da muralha que se estendia desde o ângulo dos portos até à altura das cisternas foi derrubada. Desta forma a gente de Malqua estava entre a antiga cerca de Byrsa, por trás, e os bárbaros, pela frente. Mas havia muito com que engrossar a muralha e torná-la o mais alta possível, sem que fosse necessário ocuparem-se deles; abandonaram-nos; morreram todos; e, embora, de uma forma geral, fossem odiados, Amílcar passou a ser visto com um grande horror.

No dia seguinte, abriu as caves onde guardava o trigo; os seus intendentes deram-no ao povo. Durante três dias empanturraram-se. A sede tornava-se intolerável; e viam diante deles a cascata que a água transparente do aqueduto fazia a cair.

Amílcar não fraquejava. Contava com um acontecimento, com qualquer coisa de decisivo, de extraordinário.

Os seus próprios escravos arrancaram lâminas de prata do templo de Merkart; tiraram do porto quatro barcos grandes; com cabrestantes levaram-nos até à parte debaixo dos Mappales, o muro que dava para o rio foi aberto; e eles partiram para as Gálias a fim de comprarem mercenários, fosse por que preço fosse.

Entretanto Amílcar estava desolado por não poder comunicar com o rei dos númidas, que ele sabia estar atrás dos bárbaros e prestes a lançar-se sobre eles. Todavia Narr'Havas, demasiadamente fraco, não se ia arriscar sozinho; o sufete mandou levantar a muralha mais doze palmos, juntar na acrópole todo o material dos arsenais e, uma vez mais, reparar as máquinas.

Para os baraços das catapultas usavam-se tendões do pescoço dos bois, ou melhor ainda, das jarretas dos veados. Não havia em Cartago nem veados nem touros. Amílcar pediu aos anciães os cabelos das suas mulheres; todas os sacrificaram; a quantidade não foi suficiente. Havia nas instalações dos sissitas, mil e duzentas escravas núbias, as que se destinavam à prostituição na Grécia e na Itália e os cabelos delas, elásticos por causa do uso de unguentos, revelaram-se maravilhosos para as máquinas de guerra. A perda mais tarde seria considerável. Foi então decidido que se escolheriam entre as mulheres dos plebeus, as melhores cabeleiras. Sem qualquer preocupação com as necessidades da pátria, choraram desesperadas quando os servos dos Cem, com as tesouras, as agarraram.

Os bárbaros estavam animados por um furor redobrado. Podiam ver-se ao longe a recolher a gordura dos mortos para olearem as máquinas; outros arrancavam as unhas que cosiam umas às outras para fazerem couraças. Imaginaram colocar nas catapultas vasos cheios de serpentes levadas pelos negros; os recipientes de argila partiram-se nas lajes, as serpentes corriam, pareciam pulular, e eram tantas que pareciam sair dos muros naturalmente. Os bárbaros descontentes com a sua invenção aperfeiçoaram-na; lançavam toda a espécie de imundícies: excrementos humanos, bocados de animais corruptos, cadáveres. A peste reapareceu. Os dentes dos cartagineses caíam da boca - e tinham as gengivas descoloradas como as dos camelos depois de uma longa viagem.

As máquinas foram levadas para o terraço, embora este não atingisse ainda a altura da muralha. Diante das vinte e três torres das fortificações erguiam-se vinte e três torres de madeira. Todos os tolenos tinham voltado a ser montados; e, no meio, mais atrás, aparecia a formidável helépole de Demétrio Poliorcete, que Spendius tinha finalmente reconstruído. Piramidal como o farol de Alexandria, tinha cento e trinta côvados de altura e vinte e três de largura, com nove andares cujo tamanho ia diminuindo para o cume e que eram protegidos por placas de bronze, com muitas portas cheias de soldados; na plataforma superior estava uma catapulta ladeada por duas balistas.

Amílcar mandou levantar cruzes para os que falavam em render-se; até mesmo as mulheres foram mobilizadas. Dormiam nas ruas e esperavam cheios de angústia.

Por fim, uma manhã, pouco antes do nascer do Sol (era o sétimo dia do mês de Nyssan), ouviram um grito imenso que vinha do campo dos bárbaros; as trombetas de tubo de chumbo soaram, os grandes chifres panagonienos mugiam como touros. Todos se levantaram e correram para a muralha.

Uma floresta de lanças, piques e espadas estava ali, junto das muralhas. Saltou para os muros, as escadas foram encostadas; e, na abertura das ameias, apareceram as cabeças dos bárbaros.

Traves seguras por longas filas de homens batiam nas portas; nos pontos em que não havia terraço, os mercenários, para demolirem o muro, chegavam com coortes cerradas, a primeira linha de cócoras, a segunda com os joelhos dobrados e assim sucessivamente até aos últimos que estavam muito direitos; para subir os mais altos iam à frente e os mais baixos atrás; e todos, com o braço esquerdo, apoiavam os escudos nos capacetes segurando-os pela beira tão próximos uns dos outros, que se diria uma aglomeração de tartarugas. Os projécteis deslizavam por estas massas oblíquas. Os cartagineses arremessavam mós de moinho, pilões, cubas, tonéis, camas, tudo o que era pesado e podia matar. Alguns espreitavam pelas canhoneiras das muralhas com uma rede de pescar; quando o bárbaro chegava, encontrava-se sob as malhas e debatia-se como um peixe. Demoliam as seteiras; bocados de muros desabavam levantando uma grande poeira; as catapultas da muralha e as catapultas do terraço atiravam uma sobre a outra e as suas pedras ao baterem umas contra as outras faziam-se em mil bocados que caíam sobre os assaltantes como chuva grossa.

Daí a pouco os dois grupos não eram mais do que uma grande cadeia de corpos humanos; invadia os intervalos do terraço, e, um pouco menos compacta nas extremidades, rolava sem avançar perpetuamente. Apertavam-se deitados de bruços como lutadores; as mulheres debruçadas das ameias gritavam. Puxavam-nas pelos véus, e a brancura da pele descoberta brilhava entre os braços dos negros que lhes espetavam punhais. Havia cadáveres que estavam tão comprimidos pela multidão e não caíam; apoiados nos ombros dos companheiros, continuavam alguns minutos de pé com o olhar fixo. Alguns, com as têmporas atravessadas por uma azagaia, balançavam a cabeça como ursos. As bocas abertas para gritar ficavam escancaradas; mãos cortadas voavam. Houve ataques tão violentos que os sobreviventes falaram deles durante muito tempo. As flechas partiam do cimo das torres de madeira e das torres de pedra. Os tolenos faziam andar rapidamente as suas antenas compridas; e como os bárbaros tinham saqueado as catacumbas do velho cemitério dos autóctones, lançavam sobre os cartagineses as pedras tumulares. Sob o peso dos cestos muito pesados, os cabos partiam-se; e grupos de homens, levantando os braços, caíam do alto dos ares.

Até ao meio do dia, os veteranos dos hoplitas tinham-se encarniçado contra a Taenia para penetrarem no porto e destruir a frota. Amílcar mandou acender no telhado de Khamon um fogo de palha húmida; o fumo cegava-os e eles fugiram para a esquerda indo aumentar a balbúrdia horrível de Malqua. As falanges compostas por homens robustos, escolhidos expressamente, tinham forçado três portas; as barreiras altas, feitas com tábuas guarnecidas de pregos, fizeram-nos parar; uma quarta cedeu facilmente; lançaram-se numa correria e caíram numa fossa onde tinham sido escondidas armadilhas. No ângulo sueste Autharite e os seus homens abateram a muralha, cuja abertura tinha sido tapada com tijolos. O terreno atrás era inclinado; subiram lestamente. Encontraram, todavia, uma segunda muralha, formada por pedras e seixos compridos alternando como um tabuleiro de xadrez. Era uma moda gaulesa adoptada pelo sufete por necessidade da situação; os gauleses julgaram-se diante de uma cidade da sua terra natal. Atacaram sem energia e foram repelidos.

Desde a Rua de Khamon até ao mercado das forragens, todo o caminho pertencia agora aos bárbaros, e os samnitas acabavam de matar à paulada os moribundos; com um pé no muro contemplavam, lá em baixo, as ruínas fumegantes; e ao longe a batalha que recomeçava.

Os besteiros, colocados atrás, atiravam sempre. Contudo, de tanto servir, a mola das fundas tinha-se partido, e alguns, como pastores, arremessavam pedras com a mão; os outros lançavam bolas de chumbo com o cabo de um chicote. Zarxas, com os ombros cobertos por longos cabelos negros, aparecia por toda a parte e incitava os baleares. Tinha dois sacos atados à cintura, e o braço direito rolava como a roda de um carro.

Mâtho tinha-se afastado do combate, para comandar melhor todos os bárbaros ao mesmo tempo. Tinham-no visto no golfo com os mercenários, perto da lagoa com os númidas, nas margens do lago entre os negros; e, do fundo da planície, dirigia massas de soldados que chegavam incessantemente contra a linha das fortificações. Pouco a pouco tinha-se aproximado; o cheiro do sangue, o espectáculo da carnificina e o alarido dos clarins tinham acabado por lhe fazer vacilar o coração. Tinha entrado na tenda, e, tirando a couraça, pusera a pele de leão, mais cómoda para a batalha; a juba adaptava-se à cabeça, as presas faziam um círculo em volta do rosto; as duas patas anteriores cruzavam-se no peito, e as unhas das patas posteriores chegavam abaixo dos joelhos.

Tinha ficado com o cinturão grosso, onde luzia um machado de lâmina dupla, e com a espada grande nas mãos tinha-se precipitado por uma brecha, impetuosamente. Como um podador que corta ramos de salgueiro, e que tenta abater o maior número possível para ganhar mais dinheiro, caminhava, desbaratando os cartagineses que estavam à sua volta. Os que tentavam apanhá-lo pelos lados eram derrubados com o punho da espada; quando o atacavam de frente trespassava-os, abria-os. Dois homens saltaram-lhe ao mesmo tempo para as costas; deu um salto para trás contra uma porta e esmagou-os. A espada desceu e levantou-se. Estalou no ângulo do muro. Pegou no pesado machado; e pela frente, por trás, estripava os cartagineses como um rebanho de ovelhas. Afastava-se cada vez mais e chegou diante da segunda cerca, por baixo da Acrópole. Os materiais lançados de cima cobriam os degraus e caíam por cima do muro. Mâtho, no meio das ruínas, voltou-se para chamar os companheiros.

Viu os penachos disseminados entre a multidão; eles desapareciam, iam morrer; correu para eles; a vasta coroa de penas vermelhas foi-se cerrando e daí a pouco estavam juntos e cercavam-no. Das ruas laterais vinha uma multidão enorme. Pegaram-lhe, ergueram-no e levaram-no para fora da muralha, para um ponto onde o terraço era alto.

Mâtho deu uma ordem, todos os escudos desceram sobre os capacetes; saltou para cima, procurando um lugar que lhe permitisse voltar a entrar em Cartago; e, brandindo o machado terrível, corria sobre os escudos semelhantes a vagas de bronze, como um deus marinho sobre as ondas.

Todavia um homem de vestes brancas passeava à beira da muralha, impassível e indiferente à morte que o rodeava. Punha às vezes a mão direita sobre os olhos para descobrir alguém. Mâtho acabava de passar por baixo dele. De repente os seus olhos brilharam, a face lívida crispou-se; e levantando os braços magros começou a proferir injúrias.

Mâtho não as ouviu, mas sentiu entrar no seu coração um olhar tão cruel e furioso que gemeu. Arremessou-lhe com o machado; alguns homens lançaram-se sobre Schahabarim; Mâtho, que já não o via, caiu de costas, aniquilado.

Sentia-se a aproximação de um barulho terrível, misturado com vozes roucas que cantavam em cadência.

Era a grande helépole, cercada por um grupo enorme de soldados. Puxavam-na com as duas mãos, arfavam por causa das cordas, empurravam-na com o ombro, porque o declive da planície para o terraço, embora fosse extremamente suave, era impraticável para máquinas com um peso tão prodigioso. Tinha oito rodas com aro de ferro, e, desde a manhã que avançava assim, lentamente, como uma montanha levantada sobre outra. Da sua base saiu um aríete enorme; as portas caíram e do interior, como colunas de ferro, saltaram soldados couraçados. Havia gente que subia e descia as escadas que ligavam os dois andares. Alguns esperavam para sair que as fechaduras das portas tocassem na parede; no meio da plataforma superior, as meadas das balistas rodaram e o timão grande da catapulta baixou-se.

Amílcar estava, neste momento, de pé no telhado de Melkart. Tinha pensado que ela devia vir ter directamente com ele, no ponto mais vulnerável da muralha, e por causa disso mesmo, sem sentinelas. Há já algum tempo que os escravos estavam a trazer odres pelo caminho, onde tinham levantado, com argila, dois anteparos transversais que formavam uma espécie de bacia. A água corria no terraço; Amílcar, coisa extraordinária, não parecia estar inquieto.

Quando a helépole estava a cerca de trinta passos, mandou colocar tábuas sobre as ruas, entre as casas, desde as cisternas à muralha; e as pessoas em fila passavam, de mão em mão, capacetes e ânforas que despejavam continuamente. Os cartagineses sentiam-se indignados com a água que se estava a perder. O aríete demolia a muralha; de repente, surgiu uma fonte das pedras desconjuntadas. Então a massa alta de bronze, de nove andares e que continha e ocupava mais de três mil soldados, começou a oscilar suavemente como um navio. Com efeito, a água ao penetrar no terraço tinha feito abater o caminho; as ruas atolavam-se; e no primeiro andar entre a cortina de couro, apareceu a cabeça de Spendius, soprando com toda a força uma corneta de marfim. A grande máquina, como que levantada convulsivamente, avançou uns dez passos; mas o terreno estava cada vez mais mole, a lama chegava aos eixos das rodas, e a helépole parou, inclinando-se assustadoramente para um lado. A catapulta rolou até à borda da plataforma: e, levada pela carga do timão, caiu, esmagando os andares inferiores. Os soldados que estavam de pé às portas, deslizaram para o abismo, ou ficaram na extremidade das traves aumentando, com o seu peso, a inclinação da helépole, que se desmembrava, rangendo em todas as junturas.

Os outros bárbaros precipitaram-se para os socorrer. Formavam uma multidão compacta. Os cartagineses desceram a muralha, e, atacando-os por trás, mataram-nos sem dificuldade. Contudo, os carros apetrechados com ganhadas acorreram. Galopavam sobre os contornos desta multidão; subiu a muralha; a noite caía; pouco a pouco os bárbaros retiraram-se.

Na planície só se via uma espécie de formigueiro preto, desde o golfo azulado até à lagoa toda branca; e o lago, para onde o sangue tinha corrido, estendia-se até mais longe como um grande charco de púrpura.

O terraço estava agora tão cheio de cadáveres que se poderia julgar que tinha sido construído com corpos humanos. No meio estava a helépole coberta de armaduras; e, de vez em quando, desprendiam-se fragmentos enormes como as pedras de uma pirâmide que se desmorona. Podiam-se distinguir nas muralhas traços compridos feitos de chumbo; uma torre caída que ardia; e as casas apareciam vagamente como os degraus de um anfiteatro em ruínas. Os fumos pesados subiam levando fagulhas que se perdiam no céu preto.

Contudo, os cartagineses, que a sede devorava, tinham-se precipitado para as cisternas. Arrombaram as portas. Uma poça de água lamacenta enchia o fundo.

O que é que se devia fazer? Os bárbaros eram inúmeros, e, mal tivessem descansado recomeçariam.

O povo deliberou, toda a noite, em grupos reunidos nas esquinas. Uns diziam que deviam mandar embora as mulheres, os doentes e os velhos; outros propunham que se abandonasse a cidade para se irem estabelecer mais longe, numa colónia. Faltavam, contudo, os barcos e o Sol nasceu sem que se tivesse decidido coisa alguma.

Não se fez nada nesse dia, estavam todos muito acabrunhados. As pessoas que estavam a dormir pareciam cadáveres.

Os cartagineses, ao pensarem na causa dos seus desastres, lembraram-se de que não tinham mandado para a Fenícia a oferta anual devida a Melkart-Tírio; e sentiram-se dominados por um terror imenso. Os deuses, indignados contra a República, iam prosseguir com a sua vingança.

Eram considerados senhores cruéis, que eram apaziguados com súplicas e que se deixavam corromper à força de presentes. Todos eram fracos perto de Moloch, o devorador. A existência, a própria carne dos homens pertencia-lhe; assim, para a salvar, os cartagineses tinham o costume de lhe oferecer uma porção que acalmava as suas fúrias. Queimavam as crianças na testa e na nuca com mechas de lã; e esta forma de satisfazer o Baal dava muito dinheiro aos sacerdotes, que não se cansavam de a recomendar como a mais fácil e a mais suave.

Desta vez, porém, tratava-se da própria República. Se todo o lucro devia ser comprado com qualquer perda, se toda a transacção se regulava segundo a necessidade do mais fraco e a exigência do mais forte, se não havia dor considerável para o deus, porque se deleitava com as mais horríveis que estavam agora à sua discrição, era preciso saciá-lo. Os exemplos provavam que este meio constrangia o flagelo a desaparecer. Acreditavam, além disso, que uma imolação pelo fogo purificaria Cartago. A ferocidade do povo estava antecipadamente aliciada. Aliás a escolha devia cair exclusivamente sobre as grandes famílias. Os anciães reuniram-se.

A sessão foi demorada. Hanão tinha vindo. Como já não se podia sentar tinha ficado deitado junto da porta, meio escondido pelas franjas da tapeçaria; e quando o pontífice de Moloch lhes perguntou se consentiriam em entregar os seus filhos, a sua voz veio, de súbito, da sombra, como o rugido de um Génio no fundo de uma caverna. Lamentava, dizia, não poder dar o seu próprio sangue; e contemplava Amílcar, à sua frente na outra extremidade da sala. O sufete ficou de tal maneira perturbado com este olhar que baixou a cabeça. Todos aprovaram fazendo um sinal com a cabeça; e depois do rito deviam responder ao sacerdote: «Sim, faça-se assim!» Então os anciães decretaram o sacrifício servindo-se de uma perífrase tradicional porque há coisas mais difíceis de dizer do que de fazer.

A decisão foi conhecida em Cartago. Ouviram-se lamentações. Por todo o lado as mulheres choravam; os maridos consolavam-nas ou invectivavam-nas com censuras.

Três horas mais tarde, espalhou-se uma notícia extraordinária:

o sufete tinha encontrado nascentes por baixo da falésia. Correram para lá. De buracos na areia saía água; e já alguns deitados de bruços bebiam.

Amílcar não sabia dizer se tinha sido um conselho dos deuses, ou a vaga recordação de uma revelação que o seu pai lhe fizera outrora; mas ao deixar os anciães tinha descido à praia, e com os seus escravos, tinha começado a cavar o cascalho.

Deu fatos, calçado e vinho. Ofereceu o resto do trigo que guardava em sua casa. Deixou mesmo a multidão entrar no palácio e abriu as cozinhas, os armazéns e todos os quartos - com excepção do de Salammbô. Anunciou que seis mil mercenários galeses vinham a caminho e que o rei da Macedónia ia enviar soldados.

Contudo, no segundo dia, as fontes começaram a deitar menos; na noite do terceiro, estavam completamente esgotadas. O decreto dos anciães voltou a circular em todos os lábios, e os sacerdotes de Moloch iniciaram a sua missão.

Homens de fato preto apresentaram-se nas casas. Alguns abandonavam-nas muito antes com o pretexto de irem tratar de um assunto ou comprar uma guloseima; os servos de Moloch apareciam inopinadamente e levavam as crianças. Outros entregavam-nas eles mesmos, estupidamente. Levavam-nas para o templo de Tânita, cujas sacerdotisas tinham ordens para os entreter e alimentar até ao dia solene.

Chegaram inesperadamente a casa de Amílcar, e encontrando-o nos jardins:

- Barca! Vimos para o que sabes... o teu filho! -Acrescentaram que havia pessoas que o tinham visto uma noite da outra Lua, em Mappales, pela mão de um velho.

Primeiro ficou sufocado, mas compreendendo imediatamente que qualquer negação seria vã, Amílcar inclinou-se; e levou-os para a casa comercial. A um sinal os escravos acorreram para vigiarem a área.

Entrou no quarto de Salammbô desvairado. Segurou Aníbal com uma das mãos, arrancou com a outra o cordão de um vestido, amarrou-lhe os pés e as mãos, meteu-lhe uma extremidade na boca para fazer uma mordaça e escondeu-o debaixo do leito de peles de boi, deixando cair até ao chão uma tapeçaria comprida.

Pôs-se a passear da direita para a esquerda; levantava os braços, voltava-se, mordia os lábios. Depois ficava de olhar fixo, arfando como se fosse morrer.

Bateu as palmas três vezes. Giddenem apareceu.

- Ouve! - disse. - Vais escolher entre os escravos um rapaz de oito a nove anos de cabelos pretos e testa abaulada! Trá-lo aqui! Depressa!

Giddenem voltou pouco depois com um rapazinho.

Era uma criança magra e inchada ao mesmo tempo; a pele era acinzentada como os farrapos infectos com que se cobria; encolhia a cabeça entre os ombros e com as costas das mãos esfregava os olhos cheios de moscas.

Como é que o poderiam confundir com Aníbal? E não havia tempo para escolher outro! Amílcar olhava para Giddenem; tinha vontade de o estrangular.

- Vai-te embora! - o encarregado dos escravos desapareceu. A infelicidade que ele temia há tanto tempo tinha vindo e ele fazia um esforço imenso para encontrar uma maneira, um meio para escapar.

Abdalonim falou, de repente, do outro lado da porta. Perguntava pelo sufete. Os servos de Moloch estavam a ficar impacientes.

Amílcar reteve um grito, como se se tivesse queimado com ferro em brasa; e recomeçou a andar de um lado para o outro como um louco. Chegou-se à beira da balaustrada; e, com os cotovelos sobre os joelhos, segurava a cabeça com os punhos fechados.

A bacia de pórfiro ainda tinha um bocadinho de água limpa para as abluções de Salammbô. Apesar da sua repugnância e do seu orgulho, o sufete meteu ali a criança, e, como um mercador de escravos, começou a lavá-lo e a esfregá-lo com estrígis e terra vermelha. Tirou dos armários da parede dois quadrados de púrpura, pôs-lhe um nas costas e outro no peito e prendeu-o com dois alfinetes de diamantes. Deitou-lhe perfume na cabeça; pôs-lhe ao pescoço um colar de electro e calçou-lhe umas sandálias de salto de pérola, as sandálias de sua filha. Mas tremia de vergonha e de irritação; Salammbô, que se apressava a servi-lo, estava tão pálida como ele. A criança sorria, maravilhada com estes esplendores e atreveu-se mesmo a saltar quando Amílcar o levou.

Segurava-o pelo braço, com força, como se tivesse medo de o perder; a criança, a quem estava a magoar, chorava baixinho, correndo ao lado dele.

Por altura do ergástulo, debaixo de uma palmeira, ouviu-se uma voz triste e suplicante. Murmurava:

- Senhor. Oh! Senhor!

Amílcar voltou-se e viu ao seu lado um homem de aspecto abjecto, um desses miseráveis que viviam ao acaso na casa.

- O que é que queres? - perguntou o sufete. O escravo que tremia horrivelmente, balbuciou:

- Eu sou o pai!

Amílcar continuava a andar; o outro seguia-o, com as costas dobradas, os joelhos flectidos, a cabeça para a frente. O rosto estava transtornado por uma angústia indizível, e os soluços que retinha sufocavam-no, embora tivesse ao mesmo tempo vontade de lhe fazer perguntas e de lhe dizer: «Graças!»

Ousou, por fim, tocar-lhe levemente com um dedo no cotovelo.

- Vais...? - Não teve forças para acabar e Amílcar parou, espantado com esta dor.

- Nunca tinha pensado - de tal maneira era imenso o abismo que os separava - que pudesse haver entre eles uma coisa comum. Pareceu-lhe uma espécie de ultraje e de usurpação dos seus privilégios. Respondeu com um olhar mais frio e mais pesado que o machado de um carrasco; o escravo, desmaiando, caiu no chão, a seus pés. Amílcar passou por cima dele.

Os três homens vestidos de preto esperavam-no na sala grande, de pé, encostados ao disco de pedra. Rasgando os fatos deitou-se no chão dando gritos agudos:

- Ah! pobre e pequeno Aníbal! Oh! meu filho! Minha consolação! Minha esperança! Minha vida! Matem-me também! Levem-me! Que infelicidade! Que infelicidade!

- Arranhava a cara com as unhas, arrancava cabelos e lamentava-se como as carpideiras nos funerais. - Levem-no então! Sofro muito! Vão-se embora! Matem-me como a ele! - Os servos de Moloch ficaram surpreendidos por o grande Amílcar ter um coração tão fraco. Quase se sentiam compadecidos.

Ouviu-se o barulho de uns pés descalços e de uma respiração irregular semelhante à de um animal feroz em corrida; e no limiar da porta da terceira galeria, entre os montantes de marfim, apareceu um homem pálido, terrível, os braços abertos; gritou:

- Meu filho!

Amílcar, com um salto, lançou-se sobre o escravo; e cobrindo-lhe a boca com a mão gritou mais alto ainda:

- É o velho que o educou! Chama-lhe meu filho! Vai ficar louco! Basta! Basta! - E, empurrando pelos ombros os três sacerdotes e a sua vítima, saiu com eles fechando a porta com o pé.

Amílcar ficou à escuta alguns minutos, temendo vê-los voltar. Pensou a seguir desfazer-se do escravo, para ter a certeza que ele não falaria; mas o perigo não desaparecia completamente, e esta morte, se os deuses se irritassem por causa dela, podia voltar-se contra o seu filho. Então, mudando de ideias, mandou-lhe por Taanach o que havia de melhor nas cozinhas: um quarto de bode, favas e conservas de romã. O escravo, que não comia há muito tempo, precipitou-se para as iguarias; as lágrimas caíam-lhe no prato.

Amílcar, voltou finalmente para junto de Salammbô, desatou as cordas de Aníbal. A criança, exasperada, mordeu-lhe na mão até fazer sangue. Afastou-o com uma carícia.

Para o sossegar, Salammbô quis assustá-lo com Lamia, o papão de Cirene.

- Onde é que ele está? - perguntou a criança. Disseram-lhe que os ladrões vinham lá para o meter na prisão.

Ele respondeu:

- Pois que venham, que eu mato-os!

Amílcar contou-lhe a verdade terrível. Mas ele insurgiu-se contra o pai, afirmando que podia muito bem aniquilar o povo, porque era o senhor de Cartago.

Por fim, esgotado pelos esforços e pela cólera, adormeceu com um sono sobressaltado. Falava a sonhar, as costas apoiadas na almofada escarlate; a cabeça descaía um pouco para trás, e o bracito, afastado do corpo, estava muito direito, numa atitude de autoridade.

Quando escureceu, Amílcar pegou-lhe com cuidado e desceu sem luz a escada das galeras. Ao passar pela casa de comércio pegou num cesto de uvas e num jarro de água; a criança acordou quando passava pela estátua de Aletes na sala das pedrarias; e sorria, como o outro, nos braços de seu pai, na claridade dos reflexos que o cercavam.

Amílcar tinha a certeza que não lhe podiam levar o filho. Era um lugar impenetrável, que comunicava com a praia por um subterrâneo que só ele conhecia, e, olhando em volta, respirou fundo. Depois colocou-o num escabelo, perto dos escudos de ouro.

Ninguém o estava a ver agora; já não tinha mais nada para observar; sentiu-se aliviado. Como uma mãe que encontra o primogénito perdido, agarrou o filho; estreitou-o contra o coração, ria e chorava ao mesmo tempo, chamava-lhe os nomes mais ternos, cobria-o de beijos; o pequeno Aníbal, assustado com esta ternura terrível, calava-se.

Amílcar afastou-se sem ruído, tacteando as paredes à sua volta; chegou à sala grande, onde a luz da Lua entrava por umas aberturas na cúpula; no meio, o escravo, bem alimentado, dormia deitado ao comprido no chão de mármore. Olhou para ele e sentiu uma espécie de piedade. Com a ponta do coturno pôs-lhe um tapete debaixo da cabeça. Depois levantou os olhos e fixou a Tânita, cujo quarto crescente brilhava no céu, e sentiu-se mais forte que os Baals e cheio de desprezo por eles.

Os preparativos para o sacrifício já tinham começado.

No templo de Moloch deitaram abaixo um bocado de muro para tirarem o deus de bronze sem tocarem nos cedros do altar. Logo que o Sol nasceu os hieródulos começaram a puxá-lo para a Praça de Khamon.

Recuava, deslizando sobre cilindros; os ombros ultrapassavam a altura das muralhas; ainda que estivessem longe os cartagineses, quando o viam, fugiam a toda a pressa, porque não se podia contemplar impunemente o Baal no exercício da sua cólera.

Um cheiro a arómatas espalhou-se pelas ruas. Todos os templos se tinham aberto ao mesmo tempo; saía dos tabernáculos colocados em carros ou liteiras, que os pontífices traziam. Grandes penachos de plumas balançavam-se nos ângulos; e raios escapavam-se dos remates agudos, terminados por bolas de cristal, de ouro, de prata ou de cobre.

Eram os Baalim cananeus, desdobramentos do Baal supremo, que voltavam para o seu princípio, para se humilharem diante da força e se aniquilarem no seu esplendor.

O pavilhão de Melkart, de púrpura fina, protegia uma chama de petróleo; sobre o de Khamon, cor de jacinto, havia um falo de marfim cercado de pedrarias; entre as cortinas de Eschmoun, azuis como o éter, uma píton adormecida fazia um círculo com a cauda; e os deuses patecos, nos braços dos sacerdotes, pareciam grandes crianças esmaltadas, cujos calcanhares roçavam no chão.

A seguir vinham todas as formas inferiores da divindade: Baal-Salim, deus dos espaços celestes; Baal-Peor, deus dos montes sagrados; Baal Zebub, deus da corrupção, e os dos territórios vizinhos e das raças congéneres: o Iarbal da Líbia, a Adrammelech da Caldeia, o Kijun dos sírios; o Derceto, com rosto de virgem, a rastejar com as barbatanas; e o cadáver de Tammuz era puxado no meio de um catafalco, entre archotes e cabeleiras. Para colocar os reis do firmamento ao serviço do Sol e para impedir que as suas influências particulares prejudicassem a deste, traziam na extremidade de paus compridos estrelas de metal de cores diversas; todos estavam aí representados, desde o preto Nebo, génio do Mercúrio, até ao horrível Rahab, que é a constelação do Crocodilo.

As Abaddirs, pedras caídas da Lua, estavam colocadas em fundas com fios de prata; pães pequenos, representando o sexo de uma mulher, eram levados em cestos pelos sacerdotes de Ceres; outros levavam os seus feitiços, os seus amuletos; ídolos esquecidos reapareciam; e tinham-se mesmo retirado dos barcos os símbolos místicos, como se Cartago tivesse querido recolher-se toda inteira num pensamento de morte e de desolação.

Diante de cada um dos tabernáculos, um homem mantinha em equilíbrio, sobre a cabeça, um grande vaso onde ardia o incenso. Havia nuvens aqui e ali; e distinguiam-se, neste vapor denso, as tapeçarias, os pingentes e os bordados dos pavilhões sagrados. Avançavam lentamente por causa do peso enorme. O eixo dos carros enterrava-se às vezes nas ruas; os devotos aproveitavam a ocasião para tocar nos Baalim com o fato, que guardavam como coisa santa.

A estátua de bronze continuava a avançar para a Praça de Khamon. Os ricos, que traziam ceptros com bolas de esmeralda, partiram do fundo de Megara; os anciães, com diademas na cabeça, tinham-se reunido em Kinisdo; e os senhores das finanças, os governadores das províncias, os mercadores, os soldados, os marinheiros e a horda numerosa que trabalhava nos funerais, todos com as insígnias da sua magistratura ou os instrumentos do seu ofício, dirigiam-se para os tabernáculos que desciam da Acrópole, entre os colégios dos pontífices.

Por deferência para com Moloch, tinham-se enfeitado com as suas jóias mais esplêndidas. Os diamantes brilhavam sobre as vestes pretas; mas os anéis muito grandes caíam das mãos emagrecidas, e não havia nada mais lúgubre do que esta multidão silenciosa em que os brincos batiam contra os rostos pálidos, em que as tiaras de ouro ornavam frontes crispadas por um desespero atroz.

Por fim, o Baal chegou mesmo ao meio da praça. Os pontífices fizeram uma divisão com canas para afastarem a multidão e ficaram de pé em redor dele.

Os sacerdotes de Khamon, de fatos de lã fulva, alinharam diante do templo, debaixo das colunas do pórtico; os de Eschmoun, com casacos de linho, colares e tiaras pontiagudas, instalaram-se nas escadas da Acrópole; os sacerdotes de Melkart, com túnicas violetas, ocuparam os seus lugares a ocidente; os sacerdotes dos Abaddirs, apertados com tiras de pano frígio, colocaram-se a oriente; e puseram a sul, com os necromantes todos cobertos de tatuagens, as carpideiras com capas remendadas, os servos dos patecos e os Yidonim que, para conhecerem o futuro, metiam na boca um osso de morte. Os sacerdotes de Ceres, com túnicas azuis, tinham parado, prudentemente, na Rua de Satheb, e entoavam em voz baixa um hino em dialecto megariano.

De vez em quando chegavam filas de homens completamente nus, de braços esticados segurando-se uns aos outros pelos ombros. Lançavam das profundezas do peito um grito rouco e cavernoso; os olhos, voltados para o colosso, brilhavam na poeira, e balançavam o corpo com intervalos iguais, todos ao mesmo tempo, como que abalados por um único movimento. Estavam tão furiosos que, para estabelecer a ordem, os hieródulos, com paus, fizeram-nos deitar de bruços, o rosto apoiado nas divisórias de bronze. Foi nesta altura que, do fundo da praça, surgiu um homem vestido de branco. Atravessou lentamente a multidão, e todos reconheceram um ministro de Tânita, o grande sacerdote Schahabarim. Ouviram-se gritos, porque a tirania do princípio masculino prevalecia nesse dia em todas as consciências, e a deusa estava de tal forma esquecida que nem tinham reparado na ausência dos seus pontífices. O espanto redobrou, quando o viram abrir, na cerca, uma das portas destinada aos que entrariam para oferecer as vítimas. Era, na opinião dos sacerdotes de Moloch, um ultraje que ele acabava de fazer ao seu deus; com grandes gestos, tentaram afastá-lo. Alimentados com as carnes dos holocaustos, vestidos de púrpura como reis e com barretes de três andares, aviltavam este eunuco pálido, extenuado por mortificações; e risos de cólera sacudiam-lhes o peito e a barba preta, exposta ao Sol.

Schahabarim, sem responder, continuava a andar; e, atravessando passo a passo todo o recinto, parou sob as pernas do colosso, tocou-lhe dos dois lados, estendendo os braços, o que era uma fórmula solene de adoração. Desde há muito tempo que a Rabbet o torturava; por desespero, ou talvez por falta de um deus que satisfizesse completamente o seu pensamento, tinha-se decidido, por fim, por este.

A multidão, aterrorizada por esta apostasia, começou a murmurar. Sentia-se romper o último elo que ligava as almas a uma divindade clemente.

Contudo Schahabarim, por causa da sua mutilação, não podia participar no culto do Baal. Os homens de mantos vermelhos expulsaram-no da cerca; depois, lá fora, voltou-se sucessivamente para todos os colégios; e o sacerdote, agora sem deus, desapareceu na multidão. Afastou-se do seu próximo.

Todavia uma fogueira de aloés, de cedro e de loureiro ardia entre as pernas do colosso. As suas asas compridas mergulhavam na extremidade da chama; os unguentos com que tinha sido esfregado corriam como suor sobre os membros de bronze. Em volta da laje redonda em que apoiava os pés, as crianças, envoltas em véus negros, formavam um círculo imóvel; e os braços, extraordinariamente compridos, baixavam as palmas até eles, como que para segurar esta coroa e levá-la para o céu.

Os ricos, os anciães, as mulheres, toda a multidão estava calada atrás dos sacerdotes e nos terraços das casas. As grandes estrelas pintadas já não se voltavam; os tabernáculos estavam colocados no chão; e o fumo dos turíbulos subia perpendicularmente, como árvores enormes estendendo no meio do azul os ramos azulados.

Alguns desapareceram; outros ficaram inertes, petrificados no êxtase. Uma agonia infinita pesava nos peitos. Os últimos clamores foram-se extinguindo um a um, e o povo de Cartago arfava, absorvido pelo desejo do seu terror.

Por fim, o sumo sacerdote de Moloch passou a mão esquerda por baixo dos véus das crianças, e arrancou-lhes uma madeixa de cabelo que deitou no lume.

Então os homens de manto vermelho entoaram um hino sagrado;

«Homenagem a ti, Sol! rei das duas zonas, criador que se engendra, Pai e Mãe, Pai e Filho, Deus e Deusa, Deusa e Deus!» - E as suas vozes perderam-se na explosão dos instrumentos que soavam todos ao mesmo tempo, para abafar os gritos das vítimas. Os scheminith de oito cordas, os kinnor de dez e os nebal de doze, gemiam, assobiavam, roncavam. Odres enormes com muitos tubos faziam um ruído agudo; os tambores, em que batiam com toda a força, ressoavam com pancadas surdas e rápidas; e, apesar do furor dos clarins, os salsalim batiam, como asas de gafanhoto.

Os hieródulos, com um gancho comprido, abriram os sete compartimentos do corpo do Baal. No mais alto introduziram farinha; no segundo, duas rolas; no terceiro, um macaco; no quarto, um cordeiro; no quinto, uma ovelha; como não havia bois deitaram no sexto uma pele curtida que tinham trazido do santuário. A sétima divisão ficou aberta.

Antes de fazerem alguma coisa, era bom experimentar os braços do deus. Cadeias finas partindo dos dedos chegavam aos ombros e caíam para trás, onde homens puxando de cima, faziam subir, até à altura dos cotovelos, as duas mãos abertas que, aproximando-se, chegavam ao ventre; mexeram-se várias vezes a seguir com pequenos safanões. Depois os instrumentos calaram-se. O fogo crepitava.

Os pontífices de Moloch passeavam pela laje grande, examinando a multidão.

Era preciso um sacrifício individual, uma oblação voluntária que era considerada como o princípio para as outras. Até agora ninguém se tinha mostrado; e sete áleas que conduziam das barreiras ao colosso estavam completamente vazias. Para encorajar o povo, os sacerdotes tiraram dos cinturões estiletes com que feriam a cara. Mandaram entrar no recinto os devotos que estavam deitados no chão lá fora. Deitaram-lhes um pacote com ferros horríveis e cada um deles escolheu a sua tortura. Passavam espetos pelo peito; cortavam as faces; punham coroas de espinhos na cabeça; depois deram o braço uns aos outros; e cercando as crianças, formaram um outro círculo grande, que se contraía e se alargava. Chegaram à balaustrada, recuavam e voltavam a começar, atraindo a multidão com a vertigem deste movimento, cheio de sangue e de gritos.

Pouco a pouco, as pessoas começaram a surgir no fundo das áleas; lançavam para as chamas pérolas, vasos de ouro, taças, archotes, todas as suas riquezas; as ofertas multiplicavam-se e tornavam-se melhores. Finalmente um homem que cambaleava, um homem pálido e medonho pelo terror, empurrou uma criança; depois viu-se entre as mãos do colosso uma pequena massa negra: mergulhou na abertura tenebrosa. Os sacerdotes inclinaram-se à beira da laje grande; e um canto novo soou, louvando as alegrias da morte e o renascimento para a eternidade.

Subiam lentamente, e como o fumo subia em remoinhos, parecia de longe desaparecer numa nuvem. Ninguém se mexia. Estavam ligados pelos pulsos e pelos tornozelos; e o tecido escuro não os deixava ver nem serem reconhecidos.

Amílcar, de manto vermelho como os sacerdotes de Moloch, estava ao pé do Baal, de pé diante do dedo grande do pé direito. Quando trouxeram a quarta criança toda a gente viu que ele teve um gesto de horror. Mas retomando rapidamente a calma cruzou os braços; e ficou a olhar para o chão. Do outro lado da estátua, o sumo pontífice estava imóvel como ele; baixando a cabeça coberta por uma mitra assíria, observava a placa de ouro coberta de pedras fatídicas que tinha ao peito, e onde as chamas se reflectiam em raios entrecruzados; empalideceu, confundido. Amílcar inclinava a fronte: e estavam ambos tão perto da fogueira que a bainha dos mantos, ao levantar-se, lhe tocava de vez em quando.

Os braços de bronze trabalhavam mais depressa. Já não paravam. Todas as vezes que ali colocavam uma criança, os sacerdotes de Moloch estendiam a mão sobre ela, a fim de lhe atribuir os crimes do povo, clamando: «Não são homens, mas bois!» e a multidão repetia: «Bois! bois!» Os devotos gritavam: «Senhor! come!» e os sacerdotes de Prosérpina, conformando-se com o terror pelas necessidades de Cartago, murmuravam a fórmula eleusíaca: «Derrama a chuva! Concebe!»

As vítimas, mal chegavam à beira da abertura, desapareciam como uma gota de água numa placa incandescente; e um fumo branco subia na grande cor escarlate.

Todavia o apetite do deus não se apaziguava. Queria mais. Para lhe dar mais, empilhavam-nos nas mãos com uma corrente grossa por cima, que os segurava. Os devotos no princípio tinham querido contá-los, para verem se o número correspondia aos dias do ano solar; mas puseram outros; e era impossível distingui-los no movimento vertiginoso dos braços horríveis. Isto demorou muito tempo, indefinidamente, até à noite. As paredes interiores tomaram um brilho mais sombrio. Viu-se então a carne que ardia. Alguns julgavam mesmo reconhecer cabelos, membros, corpos inteiros.

O dia acabou; acumulavam-se nuvens por cima do Baal. A fogueira, sem chamas neste momento, fazia uma pirâmide de carvão até aos joelhos; completamente vermelho como um gigante todo coberto de sangue, parecia, com a cabeça que se virava, cambalear sob o peso da embriaguez.

À medida que os sacerdotes se apressavam, o frenesim do povo aumentava; o número de vítimas diminuía e, enquanto uns gritavam para as pouparem, outros diziam que ainda eram precisas. Dir-se-ia que os muros apinhados de gente se desmoronavam sob os gritos de terror e de volúpia mística. Apareceram fiéis nas áleas arrastando crianças que se agarravam a eles; batiam-lhes para se deixarem agarrar e para as entregarem aos homens vestidos de vermelho. Os tocadores de instrumentos paravam, às vezes, esgotados; ouviam-se então os gritos das mães, o silvar da gordura que caía nos carvões. Os homens que bebiam meimendro, andando de gatas, davam voltas ao colosso e rugiam como tigres; os Yidonim vaticinavam, os devotos cantavam com os lábios fendidos; as cercas estavam partidas e todos queriam ter a sua parte no sacrifício; e os pais cujos filhos tinham morrido deitavam ao fogo as suas efígies, os seus brinquedos, as suas ossadas. Alguns, que tinham facas, lançaram-se sobre outros. Matavam-se uns aos outros. Com joeiras de bronze, os hieródulos tiravam da beira da laje as cinzas caídas; e deitavam-nas ao ar a fim de que o sacrifício se espalhasse sobre a cidade até à região das estrelas. Este barulho e esta luz tinham atraído os bárbaros para junto dos muros; comprimindo-se para verem melhor sobre os destroços da helépole, olhavam boquiabertos de horror.

 

                       O DESFILADEIRO DO MACHADO.

OS cartagineses ainda não tinham entrado em casa quando se começaram a formar grandes nuvens; os que estavam voltados para o colosso sentiram cair-lhes na cara uns pingos grossos; chovia.

A chuva caiu toda a noite, abundantemente, às catadupas; a trovoada ribombava; era a via de Moloch; tinha vencido Tânita; e, agora fecundada, abria do alto do céu o seu vasto seio. Via-se às vezes num clarão luminoso reclinada sobre coxins de nuvens; depois as trevas tornaram-se maiores como se, ainda demasiadamente cansada, quisesse voltar a dormir; os cartagineses - que acreditavam que a água era gerada pela Lua - gritavam para lhe facilitarem a sua missão.

A chuva batia nos terraços e saltava por cima, formando poças nos pátios, cascatas nas escadas, remoinhos nas esquinas das ruas. Caía em massas tépidas e fios estreitos; dos ângulos de todos os edifícios saltavam jactos de espuma; junto às paredes formavam-se como que toalhas esbranquiçadas vagamente suspensas, e os telhados dos templos, lavados, brilhavam no escuro, à luz dos relâmpagos.

Por mil caminhos torrentes desciam da Acrópole; de súbito algumas casas desmoronaram-se, e traves, caliça, móveis, passavam nas enxurradas, que corriam impetuosamente sobre as lajes.

Tinham-se posto na rua ânforas, jarros, panos; mas os archotes apagavam-se; acenderam fachos na fogueira do Baal, e os cartagineses para beber voltavam a cabeça para cima e abriam a boca. Outros, à borda dos charcos lamacentos, mergulhavam os braços até às axilas, e bebiam tanta água que vomitavam. Aquela frescura ia-se estendendo pouco a pouco; aspiravam o ar húmido estendendo os membros, e na felicidade desta embriaguez, surgia daí a pouco uma esperança imensa. Todas as misérias foram esquecidas. A pátria renascia uma vez mais.

Sentiam uma espécie de necessidade de lançar sobre outros o excesso do furor que não tinham podido empregar contra si próprios. Um sacrifício daqueles não devia ser inútil; embora não sentissem qualquer remorso, sentiam-se possuídos por aquele frenesim que a cumplicidade dos crimes irreparáveis traz.

Os bárbaros tinham suportado a trovoada nas suas tendas mal fechadas; transidos, ainda no dia seguinte chapinhavam na lama, à procura das munições e das armas estragadas, perdidas.

Amílcar foi procurar Hanão; e, de acordo com os seus plenos poderes, confiou-lhe o comando. O velho sufete hesitou alguns momentos entre o rancor e o desejo de autoridade. Aceitou-os, todavia.

A seguir Amílcar mandou sair uma galera, armada com uma catapulta em cada uma das extremidades. Colocou-a no golfo em frente da jangada; depois embarcou nos navios disponíveis os soldados mais robustos. Foi-se embora; e, tomando a direcção do norte, desapareceu na bruma.

Todavia três dias mais tarde (o ataque ia recomeçar), habitantes da costa líbia chegaram tumultuosamente; Barca tinha ido à terra deles. Tinham levado víveres e instalaram-se na região.

Os bárbaros sentiam-se indignados como se ele os tivesse traído.

Os que estavam mais aborrecidos, os gauleses sobretudo, não hesitaram em deixar os muros para tentarem juntar-se a ele. Spendius queria voltar a reconstruir a helépole; Mâtho tinha traçado uma linha ideal desde a sua tenda a Megara, tinha jurado segui-la; e nenhum dos seus homens se mexia. Contudo os que eram comandados por Autharite foram-se embora, abandonando o sector ocidental da muralha. A incúria era tão grande que ninguém pensou em substituí-los.

Narr'Havas espiava-os de longe, das montanhas. Deu ordem para todos os seus homens passarem durante a noite para o lado exterior da lagoa, pela beira do mar, e entrou em Cartago.

Apresentou-se como um salvador, com seis mil homens, trazendo todos farinha debaixo dos capotes, e quarenta elefantes carregados de forragens e de carnes secas. Juntaram-se imediatamente em volta deles e deram-lhes nomes. O espectáculo destes animais fortes consagrados ao Baal alegrou mais os cartagineses do que a chegada de um auxílio destes. Era o penhor da sua ternura, uma prova de que ia enfim, para os defender, participar na guerra.

Narr'Havas recebeu os cumprimentos dos anciães. Depois subiu para o palácio de Salammbô.

Nunca mais a tinha voltado a ver desde aquela vez em que, na tenda de Amílcar, entre os cinco exércitos, tinha sentido a sua mão pequena, fria e terna contra a sua; depois dos esponsais, ela tinha partido para Cartago. O seu amor, desviado por outras ambições, voltara; e agora contava poder gozar dos seus direitos, desposá-la, possuí-la.

Salammbô não compreendia como é que este jovem poderia alguma vez ser seu senhor! Embora pedisse todos os dias a Tânita a morte de Mâtho, o seu horror pelo líbio diminuía. Sentia confusamente que o ódio que a tinha perseguido era uma coisa quase religiosa; e ela teria querido ver na pessoa de NarrHavas um reflexo desta violência que a perturbava. Desejava conhecê-lo melhor, e todavia a sua presença embaraçava-a. Mandou-lhe dizer que não o devia receber.

Além disso, Amílcar tinha ordenado ao seu pessoal que não deixasse entrar em sua casa o rei dos númidas; retardando até ao fim da guerra esta recompensa, esperava manter o seu interesse; e Narr'Havas, com receio do sufete, retirou-se.

Mostrou-se, contudo, altivo na presença dos Cem. Alterou as suas disposições. Exigiu prerrogativas para os seus homens e colocou-os nos postos mais importantes; também os bárbaros ficaram de olhos muito abertos ao verem os númidas nas torres.

A surpresa dos cartagineses foi ainda maior quando viram chegar, numa velha trirreme púnica, quatrocentos homens dos deles, feitos prisioneiros durante a guerra da Sicília. Com efeito, Amílcar tinha enviado secretamente aos quiritas as equipagens dos barcos latinos apresados antes do abandono das cidades tírias; e Roma, em retribuição, mandava-lhe agora os seus prisioneiros. Desdenhou a acção dos mercenários na Sardenha e não quis reconhecer como súbditos os habitantes de Útica.

Hierão, que governava Siracusa, foi influenciado por este exemplo. Precisava, para conservar os seus estados, de um equilíbrio entre os dois povos; tinha interesse no bem-estar dos cananeus, e declarou-se seu amigo, enviando-lhes mil e duzentos bois e cinquenta e três mil nebel de trigo puro.

Uma razão mais profunda fazia abalar Cartago; era evidente que, se os mercenários triunfassem, desde o soldado ao lavador de escudelas, todos se insurgiriam, e nenhum governo, nenhuma casa poderia resistir.

Amílcar fazia, entretanto, as campanhas orientais. Juntou os gauleses; e os bárbaros encontraram-se como que cercados.

Começou então a provocá-los. Chegava-se, afastava-se, e renovando sempre esta manobra ia-os deslocando pouco a pouco dos seus acampamentos. Spendius foi obrigado a segui-los; Mâtho cedeu, por fim, como ele.

Não passou além de Tunes. Fechou-se dentro dos seus muros. Esta obstinação estava cheia de sabedoria, porque daí a pouco viram Narr'Havas sair pela porta de KJiamon com os seus elefantes e os seus soldados; Amílcar chamava-o. Todavia já os outros bárbaros erravam pelas províncias em perseguição do sufete.

Tinha recebido em Clipeia três mil gauleses. Tinha mandado vir cavalos da Cirenaica, armaduras do Brútio, e recomeçou a guerra.

Nunca como agora o seu génio fora tão impetuoso e fértil. Durante cinco luas arrastou-os atrás dele, até ao ponto para onde os queria conduzir.

Os bárbaros tinham tentado primeiro cercá-lo com pequenos destacamentos; ele escapava sempre. Nunca mais se afastaram. O exército deles tinha cerca de quarenta mil homens, e tiveram várias vezes a alegria de verem os cartagineses recuar.

O que os atormentava, eram os cavaleiros de Narr'Havas! Muitas vezes, nas horas mais difíceis, quando avançavam pelas planícies dormitando sob o peso das armas, surgia de súbito uma linha de poeira que subia no horizonte; ouvia-se um galope, e do meio de uma nuvem onde se distinguiam olhos brilhantes, caía uma chuva de dardos. Os númidas, com capotes brancos, davam grandes gritos, levantavam os braços, apertavam os cavalos com os joelhos e, fazendo-os voltar bruscamente, desapareciam. Tinham a alguma distância, nos dromedários, provisões de dardos e voltavam mais terríveis, uivando como lobos e fugindo como abutres. Os bárbaros, que estavam nas extremidades, caíam um a um; e continuavam assim até à noite, altura em que tentavam refugiar-se nas montanhas.

Embora fosse perigoso para os elefantes, Amílcar participava também. Seguia a longa cadeia que se estendia desde o promontório de Hermeum até ao pico de Zaghuan. Era, julgavam, um meio de esconder a insuficiência das suas tropas. Mas a incerteza contínua em que os mantinha acabou por os exasperar mais do que a derrota. Não perdiam a coragem e caminhavam atrás dele.

Por fim, uma noite, entre a Montanha de Prata e a Montanha de Chumbo, no meio de grandes rochas, à entrada de um desfiladeiro, surpreenderam um corpo de vélites: o exército inteiro estava com certeza à frente destes, porque se ouvia um barulho de passos e de clarins; os cartagineses fugiram imediatamente pela garganta do desfiladeiro. Foram desembocar a uma planície com a forma da lâmina de um machado e cercada por falésias altas. Ao fundo, entre bois que galopavam, outros cartagineses corriam tumultuosamente. Viram um homem de capote vermelho; era o sufete; sentiram-se levados por uma fúria e por uma alegria mais intensas. Alguns, por preguiça ou prudência, tinham ficado à entrada do desfiladeiro. Todavia a cavalaria, saindo de um bosque, com lanças e sabres empurrava-os contra os outros; e daí a pouco todos os bárbaros estavam lá em baixo, na planície.

Depois, esta grande massa de homens que tinha oscilado durante alguns minutos, parou; não descobriam nenhuma saída.

Os que estavam mais perto do desfiladeiro voltaram; a passagem tinha desaparecido completamente. Gritavam para os da frente para que continuassem; iam contra a montanha, e, de longe, invectivavam os companheiros que já não sabiam encontrar o caminho.

Com efeito, ainda mal os bárbaros tinham acabado de descer e já homens, escondidos por trás dos rochedos, levantando-os com traves, os tinham feito rolar; e, como a vertente era inclinada, estes blocos enormes, rebolando ao acaso, tinham tapado completamente a entrada.

Na outra extremidade da planície havia um longo corredor, que tinha aqui e ali algumas aberturas, e que conduzia a um barranco que subia para um planalto superior, onde estava o exército púnico. Neste corredor, contra a parede da falésia, tinham sido colocadas antecipadamente escadas; e, protegidos pelas sinuosidades das fendas, os vélites, antes de se terem juntado aos outros, pareciam ter chegado ao pé delas e estarem a subir. Alguns foram mesmo até à parte debaixo da ravina; puxavam-nos com cabos porque o terreno aqui era formado por areias movediças e tinha uma inclinação tal que mesmo de joelhos, era impossível subir. Os bárbaros chegaram ali quase imediatamente. Contudo um cavalo de frisa, com quarenta côvados de altura, e feito à medida do intervalo, desceu de repente na frente deles, como uma muralha que tivesse caído do céu.

Desta forma as combinações do sufete tinham tido êxito. Nenhum dos mercenários conhecia a montanha, e, marchando à cabeça das colunas, tinha arrastado os outros. Os rochedos, estreitos na base, voltavam-se facilmente; e enquanto todos corriam, o seu exército, no horizonte, tinha gritado como se estivesse aflito. Amílcar, é verdade, podia perder os vélites, só lhe restava metade. Teria sacrificado vinte vezes mais pelo êxito de uma empresa destas.

Até de manhã, arrastaram-se em filas compactas de uma extremidade à outra da planície. Tacteavam a montanha com as mãos à procura de uma passagem.

Por fim o dia nasceu; viram à sua volta uma grande muralha branca, talhada a pique. E nem um meio de salvação, nem uma esperança! As duas saídas naturais estavam fechadas pelo cavalo de frisa e pelo monte de rochas.

Olhavam uns para os outros sem falar. Ficaram vergados sobre si próprios, sentindo um frio glacial nos rins e um peso insuportável nas pálpebras.

Levantaram-se e puseram-se a empurrar os rochedos, mas os mais baixos, comprimidos pelo peso dos outros, não se moviam. Tentaram trepar para atingirem a parte de cima; a forma abaulada destas massas enormes obrigou-os a pôr de parte qualquer diligência. Tentaram abrir o terreno nos dois lados da garganta; as ferramentas partiram-se. Com os paus das tendas fizeram uma fogueira; o fogo não podia incendiar a montanha.

Voltaram-se para o cavalo de frisa; tinha pregos compridos, grossos como estacas, aguçados como os picos de um porco-espinho e mais fechados do que as cerdas de uma escova. Contudo, a sua raiva era tanta que se precipitaram contra ele. Os primeiros foram enterrar-se até à espinha dorsal, os segundos saltaram para cima; e caíram todos, deixando nestas pontas horríveis farrapos humanos e cabeleiras ensanguentadas.

Quando o desânimo acalmou um pouco, verificaram os víveres de que dispunham. Os mercenários, que tinham perdido as suas bagagens, só tinham provisões para dois dias; e os outros não tinham nada, porque esperavam um carregamento prometido pelas aldeias do sul.

Havia, todavia, touros, os que os cartagineses tinham soltado no desfiladeiro para atrair os bárbaros. Mataram-nos com as lanças; comeram-nos e os estômagos ficaram cheios, os pensamentos eram menos lúgubres.

No dia seguinte, mataram todos os machos, que eram cerca de quarenta; rasparam as peles e cozeram as vísceras, moeram os ossos, e ainda não desesperavam; o exército de Tunes, que sem dúvida fora prevenido, havia de vir.

Contudo, na noite do quinto dia a fome redobrou; roeram as correias das espadas e as esponjas dos capacetes.

Estes quarenta mil homens estavam fechados numa espécie de hipódromo formado pelas montanhas que os cercavam. Alguns estavam diante do cavalo de frisa ou da base das rochas; os outros cobriam a planície confusamente. Os fortes evitavam-se e os tímidos procuravam os bravos, que, todavia, não os podiam salvar.

Tinham enterrado imediatamente os vélites por causa da peste; o sítio das fossas já não se percebia.

Todos os bárbaros languesciam, deitados no chão. Entre duas linhas, aqui e ali, passava um veterano; proferia maldições contra os cartagineses, contra Amílcar - e contra Mâtho, embora este não tivesse culpa do seu desastre; mas parecia-lhe que as suas dores seriam menores se fossem partilhadas. Gemiam; alguns choravam baixinho como crianças.

Iam ter com os comandantes e suplicavam-lhes uma coisa ou outra que lhes apaziguasse os seus sofrimentos. Os chefes não respondiam nada, ou, cheios de raiva, pegavam numa pedra e deitavam-lha à cara.

Alguns guardavam cuidadosamente, num buraco na terra, uma reserva de alimentos, um punhado de tâmaras, um pouco de farinha; e comiam durante a noite, escondendo a cabeça no capote. Os que tinham espadas seguravam-nas desembainhadas; os mais atrevidos ficavam de pé, encostados à montanha.

Acusavam os chefes e ameaçavam-nos. Autharite não ousava aparecer. Com esta obstinação de bárbaro a quem nada consegue descoroçoar, ia vinte vezes por dia até ao fundo, junto das rochas, esperando todas as vezes encontrá-las deslocadas; e, encolhendo os ombros largos cobertos de peles, lembrava aos seus companheiros um urso saindo da gruta, na Primavera, para ver se a neve já está derretida.

Spendius, rodeado de gregos, estava escondido numa das fendas; como tinha medo, mandou espalhar o boato da sua morte.

Estavam agora de uma magreza terrível; a pele fazia pregas azuladas. Na noite do nono dia morreram três iberos.

Os companheiros aterrorizados deixaram o local em que se encontravam. Despiram-nos; e estes corpos nus e brancos ficaram na areia, ao Sol.

Os garamantes puseram-se a andar de um lado para o outro lentamente. Eram homens habituados à solidão e não adoravam nenhum deus. Por fim o mais velho do grupo fez um sinal, e baixando-se sobre os cadáveres, com as facas tiraram as correias; depois, acocorados, começaram a comer. De longe, os outros olhavam para eles; ouviam-se gritos de horror; muitos, contudo, do fundo da alma, sentiam inveja pela sua coragem.

No meio da noite, alguns destes aproximaram-se, e, dissimulando o seu desejo, pediam um bocadinho, só para experimentar, diziam. Os mais ousados seguiram-nos; o seu número aumentou; daí a pouco havia aí uma multidão. Embora quase todos ao sentirem esta carne nos lábios afastassem a mão, havia outros que, pelo contrário, a comiam deliciados.

A fim de serem levados pelo exemplo, excitavam-se mutuamente. De tal forma que alguns que se tinham recusado iam ver os garamantes já não voltavam. Espetavam os bocados na ponta de uma espada e assavam-nos nas brasas; salgavam-nos com pé e disputavam os melhores.

Quando só havia três cadáveres, os olhos estenderam-se pela planície, à procura de outros.

Mas não tinham cartagineses, vinte prisioneiros do último recontro e de quem ninguém mais se tinha lembrado? Desapareceram; era, aliás, uma vingança. Depois, como era preciso viver, como o gosto desta comida se tinha desenvolvido, como se morria, mataram-se os carregadores de água, os palafreneiros, todos os servos dos mercenários. Todos os dias se matava gente. Alguns comiam muito, recuperavam as forças e já não estavam tristes.

Daí a pouco este recurso deixou de existir. Voltaram-se para os feridos e para os doentes. Uma vez que não se podiam curar podiam aliviá-los das suas torturas; e, logo que um homem cambaleava, todos clamavam que ele estava perdido e devia servir aos outros. Para acelerar a sua morte, utilizavam ardis; roubavam-lhe o resto da sua ração imunda, como por acaso passavam por cima deles; os agonizantes para que acreditassem no seu vigor, tentavam estender os braços, levantar-se, rir. Homens desmaiados voltavam a si ao contacto de uma lâmina mal afiada que lhes cortava um membro; e matavam-se ainda, por ferocidade, sem necessidade, para satisfazer a sua fúria.

Um nevoeiro denso e tépido, como acontece nestas regiões no fim do Inverno, desceu sobre o exército no décimo quarto dia. Esta alteração de temperatura provocou muitas mortes, e a corrupção era terrivelmente rápida por causa da humidade quente retida pelas paredes da montanha. A chuva miúda que caía sobre os cadáveres, amolecendo-os, transformou rapidamente toda a planície num campo de podridão. Vapores brancos pairavam; faziam arder as narinas, penetravam na pele, congestionavam os olhos; e os bárbaros julgavam ver neste bafo as almas dos companheiros. Estavam acabrunhados por um terror imenso. Já não queriam nada, preferiam morrer.

Dois dias mais tarde o céu estava limpo e voltaram a sentir fome. Às vezes parecia-lhes que lhes arrancavam o estômago com tenazes.

Rebolavam-se com convulsões, metiam punhados de terra na boca, mordiam os braços e riam-se com gargalhadas frenéticas.

A sede ainda os atormentava mais porque não havia uma gota de água, os odres estavam completamente vazios desde o nono dia. Para enganarem a sede punham a língua nas escamas metálicas dos cinturões, nos punhos de marfim das espadas. Os antigos condutores de caravanas comprimiam o ventre com cordas. Outros chupavam uma pedra. Bebiam urina, arrefecida nos capacetes de bronze.

Continuavam à espera do exército de Tunes! O tempo de viagem, segundo as suas conjecturas, fazia prever a sua chegada para breve. Além disso Mâtho, que era um bravo, não os abandonaria. «É amanhã!» - diziam; e o dia seguinte passava.

No princípio, tinham feito preces, promessas, praticado toda a espécie de sortilégios. Neste momento só sentiam ódio pelas divindades, e, por vingança, procuravam não acreditar nelas.

Os homens de carácter violento pereceram primeiro; os africanos resistiram melhor do que os gauleses. Zarxas, entre os baleares, ficava deitado, os cabelos por cima do braço, inerte. Spendius encontrou uma planta de folhas grandes cheias de um suco abundante, e, tendo declarado que era venenosa, para afastar os outros, alimentava-se dela.

Estavam demasiadamente fracos para abaterem com uma pedrada os corvos que voavam. Às vezes, quando um gipaeto, pousado num cadáver, o retalhava há algum tempo, um homem começava a rastejar na direcção dele com um dardo entre os dentes. Apoiava-se na mão e depois de ter feito pontaria lançava a arma. A ave de penas brancas, perturbada com o barulho, interrompia-se, olhava em volta com um ar tão tranquilo como um alcatraz num banco de areia, e voltava a mergulhar o seu horrível bico amarelo; e o homem desesperado caía de bruços na terra.

Alguns conseguiram descobrir camaleões, serpentes. Contudo o que os fazia viver era o amor pela vida.

Enchiam exclusivamente a alma com esta ideia e prendiam-se à existência com um esforço de vontade que a prolongava.

Os mais estóicos estavam uns ao pé dos outros, sentados em círculos no meio da planície, aqui e ali, entre os mortos; e, envoltos nos capotes, abandonavam-se silenciosamente à sua tristeza.

Os que tinham nascido nas cidades lembravam-se das ruas barulhentas, das tabernas, dos teatros, dos banhos, e das barbearias onde se ouvem as histórias. Outros viam os campos ao pôr-do-sol, quando o trigo amarelo ondula e os bois sobem as colinas com a relha da charrua ao pescoço. Os viajantes sonhavam com cisternas, os caçadores com florestas, os veteranos com batalhas; e, na sonolência que os entorpecia, os seus pensamentos confundiam-se com a exaltação e a nitidez dos sonhos. As alucinações apoderavam-se deles de repente; procuravam nas montanhas a porta para fugirem e queriam passar por ela. Outros, julgando navegar numa tempestade, comandavam a manobra de um navio, ou recuavam apavorados, vendo, nas nuvens, batalhões púnicos. Havia quem pensasse que estava num festim e cantasse.

Muitos, por uma estranha mania, repetiam a mesma palavra ou faziam continuamente o mesmo gesto. Depois, quando levantavam a cabeça e olhavam uns para os outros, começavam a soluçar ao descobrirem a desolação horrível dos seus rostos. Alguns já não sofriam, e para ocuparem as horas, contavam os perigos de que tinham escapado.

A morte estava certa, iminente. Quantas vezes tinham eles tentado abrir uma passagem! Quanto a implorar condições ao vencedor, por que meio? Nem sequer sabiam onde é que Amílcar se encontrava.

O vento soprava do lado da ravina. Fazia passar a areia por baixo do cavalo de frisa em cascatas, continuamente; e os capotes e os cabelos dos bárbaros ficavam cobertos como se a terra, subindo sobre eles, os quisesse sepultar. Nada mexia; a eterna montanha, parecia-lhes, em cada manhã, ainda mais alta.

Às vezes bandos de aves passavam em voo rápido, em pleno céu azul, na liberdade do ar. Fechavam os olhos para não as verem.

Sentiam primeiro um zumbido nos ouvidos, as unhas escureciam, o frio penetrava-lhes no peito; deitavam-se de lado e pereciam sem um grito.

No décimo nono dia tinham morrido dois mil asiáticos, mil e quinhentos do Arquipélago, oito mil da Líbia, os mercenários mais novos e tribos completas, ao todo vinte mil soldados, metade do exército.

Autharite, que não tinha mais de cinquenta gauleses, ia dar ordens para o matarem, quando, no cume da montanha, diante dele, julgou ver um homem.

Este homem, por causa da altura, não parecia maior do que um anão. Contudo Autharite distinguiu no braço esquerdo um escudo em forma de trevo. Exclamou:

- Um cartaginês!

E, na planície, diante do cavalo de frisa e das rochas, todos se levantaram imediatamente. O soldado andava para trás e para diante na beira do precipício: em baixo os bárbaros olhavam.

Spendius pegou numa cabeça de boi; depois, com dois cintos fez um diadema, colocou-o nos chifres na extremidade de um pau, como sinal de intenções pacíficas. O cartaginês desapareceu. Eles ficaram à espera. Por fim à noite, como uma pedra que se se separasse da falésia, caiu de repente do alto um boldrié. Era de couro vermelho bordado com três estrelas de diamante e tinha no meio a marca do Grande Conselho: um cavalo sob uma palmeira. Era a resposta de Amílcar, o salvo-conduto que ele enviava.

Não tinham nada a temer; todas as alterações do destino conduziriam ao fim dos seus males. Uma alegria imensa agitou-os; beijavam-se, choravam. Spendius, Autharite e Zarxas, quatro italiotas, um negro e dois espartanos ofereceram-se para servirem de intermediários. Aceitaram-nos. Não sabiam, contudo, como é que haviam de ir.

Ouviu-se um estrondo, porém, do lado dos rochedos; e o mais alto, depois de ter oscilado sobre si próprio, rebolou até lá abaixo.

Com efeito, se, do lado dos bárbaros, eram inabaláveis, pois teria sido preciso levantar um plano oblíquo (e, além disso, estavam presos pela estreiteza da garganta), do outro, pelo contrário, bastava bater-lhes com força para que caíssem. Os cartagineses empurraram-nas e, ao romper do dia, avançavam pela planície como degraus de uma escadaria imensa em ruínas.

Os bárbaros ainda não conseguiam subir. Passaram-lhes escadas, todos acorreram para elas. A descarga de uma catapulta fê-los juntarem-se; só os Dez é que foram levados.

Caminhavam entre os clinabares e apoiavam a mão na garupa dos cavalos para se aguentarem.

Agora que a primeira alegria tinha passado, começavam a ficar inquietos. As exigências de Amílcar seriam cruéis. Spendius, contudo, tranquilizava-os.

- Eu é que falo! - E orgulhava-se de saber o que devia dizer para bem do exército.

Por trás de todas as moitas, encontravam sentinelas emboscadas. Curvavam-se diante do boldrié que Spendius tinha posto ao ombro.

Quando chegaram ao campo púnico, juntou-se muita gente à volta deles e ouviam-se cochichos e risos. A porta de uma tenda abriu-se.

Amílcar estava ao fundo, sentado num escabelo, junto de uma mesa baixa onde brilhava uma espada desembainhada. Os comandantes, de pé, cercavam-no.

Ao ver estes homens, fez um movimento para trás, mas depois inclinou-se para os examinar.

Tinham as pupilas extraordinariamente dilatadas, com um grande círculo preto em volta dos olhos, que se prolongava até abaixo das orelhas; os narizes azulados sobressaíam das faces mirradas, cobertas de rugas profundas; a pele do corpo, grande demais para os músculos, desaparecia sob uma poeira cor de ardósia; os lábios ficavam colados entre os dentes amarelos; exalavam um cheiro nauseabundo; dir-se-iam túmulos entreabertos, sepulcros vivos.

No meio da tenda, havia sobre uma esteira, em que os comandantes se tinham ido sentar, um prato de abóboras que fumegava. Os bárbaros não desviavam dali os olhos tremendo e mal retendo as lágrimas. Continham-se contudo.

Amílcar voltou-se para falar. Eles precipitaram-se e ficaram de bruços. As caras metidas na gordura; o barulho da deglutição misturava-se com os soluços de alegria. Sem dúvida, mais por admiração do que por piedade deixaram-nos acabar com o que estava na gamela. Quando eles se levantaram, Amílcar ordenou, com um sinal, ao homem que trazia o boldrié para falar. Spendius tinha medo; balbuciava.

Amílcar, enquanto o ouvia fazia rodar em volta do dedo um grande anel de ouro, o que tinha o sinete com que fora gravado o selo de Cartago no boldrié. Deixou-o cair; Spendius apanhou-o imediatamente; diante do senhor, retomava os seus hábitos de escravo. Os outros estremeceram, indignados com esta humilhação.

Contudo o grego levantou a voz e, relatando os crimes de Hanão, que sabia ser inimigo de Barca, tentava suscitar a compaixão com o pormenor das suas misérias e da lembrança da sua dedicação e falou durante muito tempo de uma forma rápida, insidiosa, violenta mesmo; por fim, esquecia-se, levado pelo calor do seu espírito.

Amílcar respondeu que aceitava as desculpas. A paz ia ser concluída, e agora seria definitiva! Mas exigia que lhe entregassem dez mercenários, à sua escolha, sem armas e sem túnica. Não esperavam esta clemência; Spendius exclamou:

- Oh! vinte se tu quiseres, senhor!

- Não! Bastam-me dez - respondeu calmamente Amílcar. Mandaram-nos sair da tenda para poderem deliberar. Logo que

se encontraram sozinhos, Autharite protestou por causa dos companheiros sacrificados e Zarxas disse a Spendius;

- Porque é que não o mataste? A espada dele estava mesmo ao pé de ti!

- A ele! - exclamou Spendius e repetiu várias vezes - a ele! A ele! - como se a coisa tivesse sido impossível e Amílcar fosse imortal.

A sua fadiga era tão grande que se deitaram de costas no chão sem saberem o que haviam de resolver.

Spendius incitava-os a ceder. Concordaram e voltaram a entrar.

Então o sufete colocou a sua mão na mão dos dez bárbaros, um de cada vez, apertando os polegares; depois esfregou a mão no fato, porque a pele viscosa das mãos deles provocava uma sensação desagradável de flacidez, uma comichão que arrepiava. A seguir disse-lhes:

- Sois na verdade, vós todos, os chefes dos bárbaros e jurastes por eles?

- Sim! - responderam.

- Sem constrangimento, do fundo da alma, com a intenção de cumprir as promessas?

Garantiram que voltariam junto dos outros para as cumprirem.

- Bem! - disse o sufete - segundo o acordo estabelecido entre mim, Barca, e os embaixadores dos mercenários, sois vós que eu escolhi, fico convosco!

Spendius desmaiou e caiu na esteira. Os bárbaros, como se o abandonassem, encostaram-se uns aos outros; e não se ouviu uma palavra ou uma queixa.

Os companheiros, que os esperavam, não os vendo voltar julgaram que tinham sido traídos. Sem dúvida, os intermediários tinham-se entregue ao sufete?

Esperam dois dias; depois na manhã do terceiro tomaram uma resolução. Com cordas, picaretas e flechas dispostas como degraus entre farrapos, conseguiram escalar as rochas; e deixando atrás deles os mais fracos, cerca de três mil, puseram-se em marcha para irem ao encontro do exército de Tunes.

Para lá da garganta estendia-se uma pradaria com arbustos pouco densos; os bárbaros devoraram os gomos. A seguir encontraram um faval; e tudo desapareceu como se uma nuvem de gafanhotos tivesse passado por ali.

Três horas mais tarde chegaram a um segundo planalto, que limitava uma série de colinas.

Entre as ondulações destes montes, feixes cor de prata brilhavam, distanciados uns dos outros; os bárbaros, encadeados pelo Sol, mal conseguiam ver por baixo destas grandes massas pretas. Levantaram-se. Eram lanças, nas torres de elefantes terrivelmente armados.

Além do chuço do peitoral, dos furadores dos dentes, das placas de bronze que cobriam os flancos e dos punhais de couro onde estava preso o cabo de um cutelo muito grande; tendo partido todos do fundo da planície, avançavam dos dois lados paralelamente.

Um terror sem nome petrificou os bárbaros. Não tentaram sequer fugir. Já estavam cercados.

Os elefantes entraram nesta massa de homens e as esporas dos peitorais dividiam-na, as lanças dos dentes voltavam-na como relhas de charruas; corriam, cortavam, retalhavam com os cutelos das trombas; as torres, cheias de faláricos pareciam vulcões em marcha; não se via mais do que um grande amontoado onde a carne humana fazia manchas brancas, os bocados de bronze placas cinzentas, o sangue fios vermelhos; os animais horríveis, passando no meio de tudo isto, abriam sulcos pretos. O mais furioso era conduzido por um númida coroado com um diadema de plumas. Deitava as lanças com uma rapidez impressionante, fazendo nos intervalos um assobio agudo; os animais enormes, dóceis como cães, olhavam para o lado durante esta carnificina.

O círculo ia-se apertando pouco a pouco; os bárbaros enfraquecidos, não resistiam; daí a pouco os elefantes estavam no centro da planície. Faltava-lhes espaço; amontoavam-se meio empinados, os dentes de marfim chocavam uns com os outros. De súbito Narr'Havas acalmou-os, e, voltando a garupa, regressaram a trote às colinas.

Dois grupos de uma falange tinham-se refugiado, contudo, à direita, numa dobra do terreno, deitando fora as armas: e, todos de joelhos, voltados para as tendas púnicas, levantavam os braços para implorar misericórdia.

Amarraram-lhes as pernas e as mãos; depois, quando estavam deitados no chão uns ao pé dos outros, trouxeram os elefantes.

Os peitos estalaram como caixas que se partem; com um passo esmagavam dois; as patas enormes afundavam-se nos corpos com um movimento da garupa de tal forma que parecia que coxeavam. Continuaram e foram até ao fim.

O nível da planície tornou-se imóvel. A noite caiu. Amílcar deleitava-se perante este espectáculo de vingança; de súbito estremeceu.

Ele via, e todos viam a seiscentos passos, à esquerda, no cimo de uma colina, mais bárbaros! Com efeito, quatrocentos dos mais robustos dos mercenários etruscos, líbios e espartanos, tinham conseguido chegar lá acima logo no princípio e tinham ficado ali na incerteza. Depois da chacina dos companheiros resolveram atravessar os cartagineses; desciam já em colunas cerradas, de uma maneira maravilhosa e formidável.

Mandaram imediatamente um arauto ao seu encontro. O sufete precisava de soldados; recebia-os sem condições, de tal forma admirava a sua bravura. Podiam mesmo, acrescentou o homem de Cartago, aproximarem-se um pouco, para um local que ele lhes indicou e onde se encontravam os víveres.

Os bárbaros correram para lá e passaram a noite a comer. Então os cartagineses começaram a murmurar contra a parcialidade do sufete em relação aos mercenários.

Cedeu nestas atitudes a um ódio irascível ou era um refinamento de perfídia? No dia seguinte apareceu sem espada, de cabeça descoberta, com uma escolta de clinabares e declarou-lhes que como tinha muita gente para alimentar não era sua intenção conservá-los. Todavia, como precisava de homens e não sabia que meio utilizar para escolher os bons iam defrontar-se em duelo; depois admitiria os vencedores na sua guarda particular. Esta morte valia bem a outra; e então, afastando os soldados (porque os estandartes púnicos tapavam o horizonte aos mercenários), mostrou-lhes os cento e noventa e dois elefantes de Narr'Havas formando uma única linha e em cujas trombas tinham sido ligados ferros grandes, semelhantes a braços de gigantes com machados suspensos sobre as suas cabeças.

Os bárbaros olharam uns para os outros em silêncio. Não era a morte que os fazia empalidecer, mas a situação horrível em que se encontravam.

A vida em comum tinha estabelecido entre estes homens amizades profundas. O acampamento, para a maioria, substituía a pátria; vivendo sem família, transferiam para um companheiro a necessidade de ternura, e dormiam lado a lado, debaixo do mesmo capote à luz das estrelas. Nesta vadiação perpétua através de toda a espécie de países, de assassínios e de aventuras, tinham-se formado amores estranhos - uniões obscenas tão sérias como casamentos, ou o mais forte defendia o mais novo no meio das batalhas, ajudava-o a passar os precipícios, limpava-lhe da testa o suor das febres, roubava para lhe dar de comer; e o outro, criança apanhada à beira de um caminho, que se tornava depois mercenário, pagava esta dedicação com mil cuidados delicados e atenções de esposa.

Trocavam os colares e os brincos, presentes que tinham dado outrora, depois de um grande perigo, nas horas de embriaguez. Todos pediam para morrer, e nenhum queria atacar. Via-se, aqui e ali, um jovem dizer a um homem de barba grisalha:

- Não! Não, tu és o mais forte! Tu vais vingar-nos, mata-me! O homem respondia:

- Tenho menos anos para viver, atingi-me no coração, e não penses mais nisso!

Os irmãos contemplavam-se com as mãos apertadas, e o amante dizia ao seu amante um adeus eterno, de pé, chorando no seu ombro.

Tiraram as couraças para a ponta das espadas penetrarem mais depressa. Apareceram então as marcas dos golpes que tinham recebido por Cartago; dir-se-iam inscrições de colunas.

Puseram-se em quatro filas iguais à maneira dos gladiadores, e começaram com ataques tímidos. Alguns tinham tapado os olhos e as espadas cortavam o ar, docemente, como bengalas de cego. Os cartagineses berraram dizendo-lhes que pareciam cobardes. Os bárbaros animaram-se, e em breve o combate foi geral, precipitado, terrível.

Por vezes dois homens paravam e todos ensanguentados caíam nos braços um do outro e morriam beijando-se. Ninguém recuava. O delírio era tão furioso que os cartagineses, de longe, tinham medo.

Por fim, pararam. Dos seus peitos saía um barulho rouco e os olhos distinguiam-se entre os longos cabelos que caíam como se eles tivessem saído de um banho de púrpura. Alguns rodavam sobre si mesmos, rapidamente, como panteras feridas. Outros mantinham-se imóveis olhando para um cadáver a seus pés; depois, de repente, rasgavam o rosto com as unhas, pegavam na espada com as mãos e espetavam-na no ventre.

Ainda tinham ficado sessenta. Pediram que lhes dessem de beber. Disseram-lhes que deitassem fora as espadas; e depois de as terem lançado para longe, trouxeram-lhes água.

Enquanto bebiam com a cara metida nos vasos, sessenta cartagineses, saltando sobre eles, mataram-nos espetando-lhes estiletes nas costas.

Amílcar tinha feito isto para satisfazer os instintos do seu exército e, por esta traição ligá-lo à sua pessoa.

A guerra tinha acabado; pelo menos estava convencido disso; Mâtho não resistiria; na sua impaciência, o sufete ordenou imediatamente a partida.

Os batedores vieram dizer-lhe que tinham visto uma coluna que seguia para a Montanha de Chumbo. Amílcar não ficou preocupado. Uma vez os mercenários aniquilados, os nómadas não lhe causariam embaraços. O importante era tomar Tunes. Com grandes jornadas subiam.

Tinha mandado Narr'Havas a Cartago para levar a notícia da vitória; e o rei dos númidas, orgulhoso com os seus êxitos, apresentou-se em casa de Salammbô.

Ela recebeu-o nos jardins, debaixo de um grande sicômoro, entre almofadas de pelica amarela, com Taanach ao pé. Tinha o rosto coberto por um lenço branco, que lhe tapava a boca e a testa deixando só a descoberto os olhos; mas os seus lábios brilhavam na transparência do tecido como as pedras preciosas dos seus dedos, porque Salammbô tinha as mãos envoltas e, durante todo o tempo que estiveram a falar, não fez um gesto.

Narr'Havas anunciou-lhe a derrota dos bárbaros. Ela agradeceu-lhe com uma bênção os serviços que tinha prestado a seu pai. Então ele começou a contar-lhe toda a campanha.

As pombas, nas palmeiras em volta deles, arrulhavam docemente, e outras aves esvoaçavam entre as ervas: galinholas de colar, codornizes de Tartessus e pintadas púnicas. O jardim, há muito inculto, tinha multiplicado a vegetação; colocíntidas subiam pelos ramos das cássias, asclepiádeas salpicavam os campos de rosas, todas as espécies de vegetação formavam entrançados, berços; e raios de Sol, que desciam obliquamente, marcavam aqui e ali, como nos bosques, a sombra de uma folha no chão. Os animais domésticos, que se tinham tornado selvagens, fugiam ao mais pequeno ruído. Às vezes, via-se uma gazela puxando com as pequenas patas negras penas dispersas de um pavão. O barulho da cidade, ao longe, perdia-se nos murmúrios das ondas. O céu estava todo azul; não havia nem uma só vela no mar.

Narr'Havas tinha-se calado; Salammbô, sem lhe responder, olhava para ele. Tinha um vestido de linho, com flores pintadas e uma franja de ouro na bainha; duas flechas de prata seguravam-lhe o cabelo entrançado, junto das orelhas; e apoiava a mão direita no punho de uma lança enfeitada com círculos de lectro e tufos de pêlo.

Enquanto olhava para ele, foi assaltada por uma vaga de pensamentos. Este jovem de voz doce e figura feminina cativava os seus olhos pela graça da sua pessoa e parecia-lhe uma irmã mais velha enviada pelos Baals para a proteger. A recordação de Mâtho apoderou-se dela; não resistiu ao desejo de saber o que lhe tinha acontecido.

Narr'Havas respondeu que os cartagineses avançavam para Tunes a fim de o prenderem. À medida que ele expunha as suas possibilidades de êxito e a fraqueza de Mâtho, ela parecia rejubilar numa esperança extraordinária. Os lábios tremiam e o peito arfava. Quando ele prometeu matá-lo, ela exclamou:

- Sim! Mata-o! É preciso!

O númida replicou que desejava ardentemente esta morte, dado que uma vez terminada a guerra seria seu esposo.

Salammbô estremeceu e baixou a cabeça.

Contudo Narr'Havas, prosseguindo, comparou os seus desejos às flores lânguidas depois da chuva, aos viajantes perdidos que esperam o dia. Disse-lhe ainda que ela era mais bela do que a Lua, melhor do que a brisa da manhã e do que a expressão do anfitrião. Mandaria vir, da terra dos negros, coisas como não havia em Cartago, e as salas da casa deles seriam cobertas com pó de ouro.

A noite caía, os turíbulos de bálsamo fumegavam. Olharam-se em silêncio durante muito tempo: e os olhos de Salammbô, no fundo das pregas do lenço, pareciam duas estrelas na abertura de uma nuvem. Antes de o Sol se pôr, ele retirou-se.

Os anciães ficaram muito inquietos quando ele deixou Cartago. O povo tinha-o recebido com aclamações ainda mais entusiásticas do que o recebera da primeira vez. Se Amílcar e o rei dos númidas triunfassem sozinhos sobre os mercenários, seria impossível resistir-lhes. Resolveram, então, para enfraquecer Barca, fazer participar na libertação da República aquele de quem eles gostavam, o velho Hanão.

Partiu imediatamente para as províncias ocidentais, a fim de se vingar nos locais que tinham visto a sua vergonha. Os habitantes e os bárbaros estavam mortos, tinham-se escondido ou tinham fugido.

A sua cólera desabou sobre o campo. Deitou fogo às ruínas das ruínas, não deixou uma única árvore, uma haste de erva; as crianças e os doentes que encontraram, supliciaram-nos; dava aos soldados as mulheres para serem violentadas antes de serem mortas, as mais belas eram levadas para a sua liteira, porque a sua doença atroz provocava-lhe desejos impiedosos; saciava-se com toda a fúria de um homem desesperado.

Muitas vezes, no cimo das colinas, tendas negras abatiam-se como se tivessem sido voltadas pelo vento, e grandes discos de aros brilhantes, que eram identificados como rodas de carros, rodando com um gemido penetravam pouco a pouco nos vales. As tribos, que tinham abandonado o cerco de Cartago, erravam assim pelas províncias esperando uma ocasião, alguma vitória dos mercenários para voltarem. Todavia, fosse por terror ou por medo, tomaram todos os caminhos para a sua terra e desapareceram.

Amílcar não teve inveja do êxito de Hanão. Tinha, contudo, pressa de acabar; mandou avançar sobre Tunes; e Hanão, no dia fixado, estava junto aos muros da cidade.

Tinha para a defender a população autóctone, doze mil mercenários, depois todos os homens que comiam coisas imundas, porque estavam como Mâtho voltados para o horizonte de Cartago; e a plebe e o schalischim contemplavam de longe as suas muralhas altas, sonhando com prazeres infinitos. Neste acordo de ódios, a resistência foi rapidamente organizada. Arranjaram odres para fazer capacetes, cortaram todas as palmeiras dos jardins para fazerem lanças, abriram cisternas; e quanto aos víveres, pescavam nas margens do lago grandes peixes brancos, que se alimentavam com cadáveres e imundícies. As muralhas, que estavam em ruínas por causa da inveja de Cartago, eram tão fracas, que se podiam desmoronar com o ombro. Mâtho tapou os buracos com as pedras das casas. Era a última luta; não esperava nada; todavia dizia que a fortuna mudava.

Os cartagineses, ao aproximarem-se, repararam que nas muralhas estava um homem a quem as seteiras davam pela cintura.

As flechas que voavam em volta dele não pareciam amedrontá-lo mais do que um bando de andorinhas. Nenhuma, por extraordinário que parecesse, o atingiu.

Amílcar instalou o seu campo no lado meridional; Narr'Havas, à sua direita, ocupava a planície de Rhades; Hanão na margem do lago; e os três generais deviam conservar as suas respectivas posições para atacarem a fortaleza todos ao mesmo tempo.

Amílcar queria primeiro mostrar aos mercenários que os castigaria como escravos. Mandou crucificar os dez embaixadores, uns ao pé dos outros, num montículo, em frente da cidade.

Ao verem isto, os sitiados abandonaram a muralha.

Mâtho tinha dito que se pudesse passar por entre os muros e as tendas de Narr'Havas muito rapidamente para os númidas não terem tempo de sair, cairia sobre os últimos homens da infantaria cartaginesa que se encontravam entre a sua divisão e as do interior.

Passou para fora com os veteranos.

Narr'Havas viu-o; atravessou a praia do lago e aconselhou Hanão a mandar homens em auxílio de Amílcar. Considerava Barca tão fraco para resistir aos mercenários? Era uma perfídia ou uma tolice? Nunca ninguém conseguiu saber.

Hanão, movido pelo desejo de humilhar o seu rival, não hesitou. Mandou tocar as trombetas, e todo o seu exército se precipitou sobre os bárbaros. Voltaram-se e correram na direcção dos cartagineses; deitaram-nos ao chão, esmagaram-nos sob os seus pés, e, pisando-os, chegaram à tenda de Hanão, que estava no meio de trinta cartagineses, os anciães mais ilustres.

Parecia estupefacto com a sua audácia; chamava os seus comandantes. Avançavam todos com as mãos na garganta proferindo injúrias. A multidão comprimia-se e os que o tinham agarrado, mal o conseguiam segurar. Ele tentava dizer-lhes ao ouvido:

- Dou-te tudo o que quiseres! Sou rico! Salva-me! Puxaram-no; por muito pesado que fosse os seus pés não tocavam no chão. Tinham levado os anciães. O seu terror redobrou.

O último dos bárbaros representava todos os bárbaros... Vingava-se nele dos seus desastres

- «Batestes-me! Sou vosso prisioneiro! Eu resgato-me! Escutai, meus amigos!»

E, levado por todos estes ombros que o seguravam pelas ancas, repetia:

- Que ides fazer? Que quereis? Eu não me obstino, estais a ver! Sempre fui bom!

Uma cruz enorme tinha sido colocada à porta. Os bárbaros gritavam:

- Aqui! Aqui!

Ele levantou a voz ainda mais alto; e, em nome dos seus deuses, pediu-lhes para lhe trazerem o schalischim porque tinha uma coisa para lhe confiar de que dependia a salvação deles.

Detiveram-se, alguns afirmavam que era aconselhável chamar Mâtho. Foram à procura dele.

Hanão caiu na erva; e via à sua volta outras cruzes, como se o suplício em que ia perecer se tivesse antecipadamente multiplicado; fazia um esforço para se convencer que estava enganado, que só estava ali uma, e até mesmo que não estava ali nenhuma. Finalmente levantaram-no.

- Fala! - ordenou Mâtho.

Ofereceu-se para entregar Amílcar, depois entrariam em Cartago e seriam ambos reis.

Mâtho afastou-se fazendo um sinal aos outros para se apressarem. Era, pensava, uma artimanha para ganhar tempo.

O bárbaro estava enganado; Hanão estava num daqueles momentos extremos em que não se pensa em mais nada; além disso odiava de tal maneira Amílcar, que, pela menor esperança de salvação, teria sacrificado todos os seus soldados.

Os anciães estavam prostrados na base das trinta cruzes; já tinham as cordas passadas pelas axilas. Então o velho sufete, compreendendo que era preciso morrer, chorou.

Tiraram-lhe o que lhe restava das suas vestes; e o horror da sua pessoa apareceu. Úlceras cobriam aquela massa sem nome; a gordura das pernas cobria-lhe as unhas dos pés; caía dos dedos como farrapos esverdeados; e as lágrimas que corriam entre os tumores das faces davam ao seu rosto qualquer coisa terrivelmente triste, como se ocupassem mais lugar do que sobre outro rosto humano. O bandó real, meio desfeito, misturava-se com os cabelos brancos no pó.

Pensaram que não tinham cordas bastante fortes para o subir até ao cimo da cruz, e pregaram-no, antes de ser levantado à moda púnica. Mas o seu orgulho acordou na dor. Começou a proferir injúrias. Escumava e contorcia-se, como um monstro marinho que se mata na praia, profetizando que acabariam todos mais horrivelmente ainda, e que seria vingado.

Era-o. Do outro lado da cidade, de onde saíam agora chamas com colunas de fumo, os embaixadores dos mercenários agonizavam.

Alguns, que tinham perdido os sentidos, voltavam a si com a frescura do vento; mas ficavam com o queixo descaído sobre o peito, e os corpos desciam um pouco apesar de os pregos dos braços estarem fixados acima da cabeça; o sangue caía em gotas grandes dos calcanhares e das mãos, lentamente, como frutos maduros caindo dos ramos de uma árvore, e Cartago, o golfo, as montanhas e as planícies, tudo parecia girar como uma roda imensa; às vezes, uma nuvem de poeira partindo do chão envolvia-os nos seus remoinhos; sentiam uma sede horrível que os queimava, a língua voltava-se na boca e sentiam correr um suor glacial com a alma que partia.

Entreviam, contudo, a uma distância infinita, ruas, soldados em marcha, movimento de espadas; e o tumulto da batalha chegava-lhes vagamente, como o barulho do mar aos náufragos que morrem agarrados ao mastro de um navio. Os italiotas, mais robustos do que os outros, ainda gritavam; os lacedemónios, calavam-se, mantinham as pálpebras fechadas; Zarxas, tão vigoroso antes, pendia como uma cana partida; o etíope, perto dele, tinha a cabeça voltada para trás por cima dos braços da cruz; Autharite, imóvel, revirava os olhos; a sua cabeleira farta, presa

numa fenda da madeira estava afastada da testa e o estertor mais parecia um grito de cólera. Quanto a Spendius demonstrava uma coragem estranha; agora desprezava a vida pela certeza que tinha de uma libertação quase imediata e eterna e esperava impassível a morte.

Apesar do seu desfalecimento, estremeciam às vezes com um roçar de penas pela boca. Grandes asas faziam oscilar sombras em volta deles, grasnadas cruzavam o ar; e, como a cruz de Spendius era a mais alta, foi sobre a dele que o primeiro abutre pousou. Voltou-se para Autharite e disse-lhe lentamente, com um sorriso indefinível:

- Lembras-te dos leões na estrada de Sicca?

- Eram nossos irmãos! - respondeu o gaulês, expirando.

O sufete, entretanto, tinha passado a cerca e tinha chegado à cidadela. Com uma rabanada de vento o fumo afastou-se, descobrindo o horizonte até às muralhas de Cartago; julgou mesmo distinguir gente na plataforma de Eschmoun; depois, voltando os olhos, viu, à esquerda, na margem do lago, trinta cruzes enormes.

Para as tornar mais horríveis, os bárbaros tinham-nas feito com os mastros das tendas atados uns aos outros; e os trinta cadáveres dos anciães apareciam bem alto, no céu. Tinham no peito como que borboletas brancas; eram as penas das flechas com que de baixo os tinham atingido.

Na parte de cima da maior brilhava uma fita dourada; caía sobre o ombro e o braço deste lado faltava. Amílcar teve dificuldade em reconhecer Hanão. Os ossos esponjosos não tinham aguentado os pregos de ferro e bocados dos membros tinham-se separado; e na cruz não havia mais nada além de despojos sem forma, semelhantes a bocados de animais suspensos nas portas dos caçadores.

O sufete não podia saber mais nada: a cidade, diante dele, escondia tudo o que se passava para lá; e os comandantes enviados sucessivamente aos generais não tinham voltado a aparecer.

Chegavam fugitivos que falavam da derrota; e o exército púnico parou. Esta catástrofe caindo no meio da vitória deixava-os estupefactos. Já não escutavam as ordens de Amílcar.

Mâtho aproveitava para continuar com as suas devastações entre os númidas.

Destruído o acampamento de Hanão, voltou-se contra eles. Os elefantes saíram. Os mercenários com archotes que tinham tirado das paredes avançaram pela planície agitando as chamas; os animais enormes, aterrorizados, precipitaram-se correndo no golfo, onde, debatendo-se, se mataram uns aos outros e se afogaram sob o peso das couraças. Já Narr'Havas tinha saído com a cavalaria; todos se deitaram de bruços no chão; depois, quando os cavalos estavam a trezentos passos deles voltaram-se abrindo os animais com uma punhalada e metade dos númidas tinham perecido quando Barca apareceu.

Os mercenários, esgotados, não podiam fazer frente às suas tropas. Recuaram em boa ordem até à montanha das Águas-Quentes. O sufete, por prudência, não os perseguiu. Dirigiu-se para a foz do Maçar.

Tunes pertencia-lhes; mas não era mais do que um monte de escombros fumegantes. As ruínas caíam pelas fendas dos muros, até ao meio da planície; ao fundo, entre as margens do golfo, os cadáveres dos elefantes, empurrados pelo vento, chocavam uns com os outros, como um arquipélago de rochas negras flutuando na água.

Narr'Havas, para apoiar esta guerra, tinha esgotado as suas florestas, levado jovens e velhos, homens e mulheres, e a força militar do seu reino não se salvava. O povo que, de longe, o tinha visto perecer, afastou-se desolado; os homens lamentavam-se nas ruas chamando-os pelos seus nomes, como amigos mortos:

- Ah! o Invencível! A Vitória! O Fulminante!

E falava-se mais disto no primeiro dia do que nos cidadãos mortos. No dia seguinte, viram as tendas dos mercenários na montanha das Águas-Quentes. Então o desespero foi tão profundo, que muita gente, mulheres sobretudo, se deitaram de cabeça para baixo, do alto da Acrópole.

Ignoravam-se os planos de Amílcar. Vivia sozinho, na sua tenda, tendo unicamente junto dele um rapaz, e nunca ninguém comia com ele, nem mesmo Narr'Havas. Tinha, contudo, desde a morte de Hanão, atitudes extraordinárias; mas o rei dos númidas estava demasiadamente interessado em tornar-se seu filho para desconfiar.

Esta inércia escondia manobras hábeis. Por toda a espécie de artifícios, Amílcar seduzia os chefes das aldeias; e os mercenários foram perseguidos, repelidos, cercados como animais ferozes. Quando entravam numa floresta as árvores em seu redor começavam a arder; quando bebiam numa fonte estava envenenada; tapavam as grutas onde se tinham escondido para dormir. As populações, que os tinham defendido até aí, com os anciães como cúmplices, perseguiam-nos agora; reconheciam sempre nestes grupos armas cartaginesas.

Alguns tinham dartros vermelhos na cara; tinham apanhado este mal, pensavam, por terem tocado em Hanão. Outros achavam que era por terem comido os peixes de Salammbô; e, longe de se arrependerem, sonhavam com sacrilégios ainda mais abomináveis, para que a humilhação dos deuses púnicos fosse ainda maior. Teriam querido exterminá-los.

Arrastaram-se assim três meses ao longo da costa oriental, depois por trás da montanha de Selum até às primeiras areias do deserto. Procuravam um lugar para se refugiarem, não importava qual. Útica e Hippo-Zaryte eram as únicas que não os tinham traído; mas Amílcar cercava estas duas cidades. Depois dirigiram-se para o norte, ao acaso, sem mesmo conhecerem as estradas. À força de misérias, a cabeça estava perturbada.

Não tinham mais do que um sentimento de exasperação que se ia desenvolvendo; e encontraram-se um dia nos desfiladeiros de Corbus, uma vez mais diante de Cartago!

Os recontros multiplicaram-se. A sorte mantinha-se igual; mas tanto uns como os outros estavam tão cansados que desejavam que, em vez das escaramuças, se travasse uma grande batalha, contanto que fosse a última.

Mâtho gostava de ser ele mesmo a fazer esta proposta ao sufete. Um líbio encarregou-se disso. Ao verem-no partir, todos ficaram convencidos que não voltaria.

Voltou nessa mesma noite.

Amílcar aceitava o desafio. Encontrar-se-iam no dia seguinte, ao nascer do Sol, na planície de Rhades.

Os mercenários quiseram saber se ele não tinha dito mais nada; o líbio acrescentou:

- Como eu continuava diante dele, perguntou-me o que é que eu esperava; respondi: «Que me mates!» Então ele retorquiu: «Não! Vai-te embora! Isso fica para amanhã, com os outros.»

Esta generosidade espantou os bárbaros; alguns ficaram aterrorizados ; Mâtho lamentou que o emissário não tivesse sido morto.

Restavam ainda três mil africanos, mil e duzentos gregos, mil e quinhentos campanianos, duzentos iberos, quatrocentos etruscos, quinhentos samnitas, quarenta gauleses e um grupo de Naffur, bandidos nómadas encontrados na região das tamareiras, ao todo, sete mil duzentos e dezanove soldados, mas não havia nem uma falange completa. Tinham tapado os buracos das couraças com omoplatas de quadrúpedes e substituído os coturnos de bronze por sandálias de pano. Placas de cobre ou de ferro tornavam os fatos mais pesados; as cotas de malha caíam-lhes em farrapos, e as cicatrizes pareciam fios de púrpura entre os pêlos dos braços e dos rostos.

As cóleras dos companheiros mortos voltavam-lhes à alma e multiplicavam o seu vigor; sentiam confusamente que eram serventuários de um deus disseminado pelos corações dos oprimidos e como pontífices da vingança universal. Além disso, enraivecia-os a dor de uma injustiça exorbitante e, sobretudo, à vista de Cartago no horizonte. Juraram combater uns pelos outros até à morte.

Mataram os animais de carga e comeram o mais possível para terem forças; a seguir dormiram. Alguns rezaram voltados para diferentes constelações.

Os cartagineses chegaram à planície antes deles. Tinham esfregado a beira dos escudos com azeite para as flechas escorregarem melhor; os soldados de infantaria, que tinham os cabelos compridos, cortaram-nos na testa, por prudência; e Amílcar mandou voltar todas as gamelas, a partir da quinta hora, pois sabia que é desvantajoso combater com o estômago muito cheio. O seu exército tinha catorze mil homens, praticamente o dobro do exército bárbaro. Nunca tinha experimentado uma inquietação como a que sentia; se ele sucumbisse, era o aniquilamento da República e morreria crucificado; se, pelo contrário, triunfasse pelos Pirenéus, as Gálias e os Alpes, chegaria à Itália, e o império dos Barca seria eterno. Durante a noite levantou-se umas vinte vezes para verificar tudo, ele mesmo, até aos mínimos pormenores. Quanto aos cartagineses, estavam exasperados pelo seu longo terror.

Narr'Havas duvidava da fidelidade dos númidas. Além disso, os bárbaros podiam vencê-los. Estava dominado por uma fraqueza estranha; bebia constantemente grandes taças de água.

Então um homem que ele não conhecia abriu a tenda e colocou no chão uma coroa de sal-gema, enfeitada com desenhos hieráticos feitos com enxofre e losangos de nácar; por vezes enviava-se ao noivo a coroa de casamento; era uma prova de amor, uma espécie de convite.

Contudo a filha de Amílcar não sentia por Narr'Havas qualquer espécie de ternura.

A recordação de Mâtho torturava-a de forma intolerável; estava convencida de que a morte deste homem a libertaria dos seus pensamentos e, como as pessoas que curam a mordedura das víboras esmagando-as na ferida, procedera assim. O rei dos númidas estava na sua dependência; esperava impaciente o casamento e, como ele se devia seguir à vitória, Salammbô fazia-lhe este presente para excitar a sua coragem. As suas angústias desapareceram; só pensava na felicidade de possuir uma mulher tão bela.

A mesma visão tinha Mâtho; afastou-a imediatamente, e o seu amor, que ele recalcava, espalhou-se pelos seus companheiros de armas. Acarinhavam-no como partes da sua pessoa, do seu ódio - e sentia-se o espírito mais alto, os braços mais fortes; tudo o que era preciso executar parecia-lhe claro. Se deixava escapar um suspiro era porque estava a pensar em Spendius.

Alinhou os bárbaros em seis filas iguais. No meio, instalou os etruscos, todos ligados por uma cadeira de bronze; os homens que estavam armados com dardos ficaram atrás, e pelas duas extremidades distribuiu os homens de Naffur, montados em camelos de pêlo raso, cobertos com penas de avestruz.

O sufete colocou os cartagineses por uma ordem semelhante. Do lado de fora a infantaria, perto dos vélites, colocou os clinabares, para lá destes os númidas; quando o dia surgiu, estavam alinhados assim, frente a frente. Contemplavam-se todos, de longe, com grandes olhos ferozes. Houve primeiro uma hesitação. Finalmente os dois exércitos puseram-se em marcha.

Os bárbaros avançavam lentamente para não se cansarem, batendo com os pés no chão; o centro do exército púnico formava uma curva convexa. Houve um choque terrível, semelhante ao estrondo de duas frotas que se abalroam. A primeira fila dos bárbaros abriu rapidamente, e os soldados armados, escondidos atrás dos outros, lançavam balas, flechas, dardos. A curva dos cartagineses ia diminuindo pouco a pouco até formar uma linha recta para depois se voltar a dobrar; então as duas secções dos vélites aproximaram-se paralelamente, como as pontas de um compasso que se fecha. Os bárbaros, açulados contra a falange, entraram pela abertura; perderam-se. Mâtho fê-los parar; e, enquanto as alas cartaginesas continuavam a avançar, mandou retirar as três filas inferiores da sua linha; daí a pouco passavam para lá dos flancos e o seu exército apareceu com o triplo do comprimento.

Contudo os bárbaros colocados nas extremidades estavam mais fracos, os da esquerda sobretudo, porque tinham esgotado os carcazes e os vélites aproximando-se deles provocaram muitas baixas.

Mâtho mandou-os recuar. À direita estavam os campanianos armados com machados; levou-os pela esquerda cartaginesa; o centro atacava o inimigo; e os da outra extremidade, fora de perigo, mantinham os vélites em respeito.

Amílcar dividiu os cavaleiros por esquadrões, meteu entre eles os hoplitas e mandou-os ao encontro dos mercenários.

Estas massas em forma de cone apresentavam uma frente de cavalos, e os lados estavam eriçados de lanças. Era impossível os bárbaros resistirem; só os soldados de infantaria gregos tinham armaduras de bronze; todos os outros, com os cutelos na ponta de um pau, foices de que se tinham apoderado nas quintas, espadas feitas da camba de uma roda; as lâminas muito fracas dobravam-se ao baterem, e, enquanto estavam de cócoras a endireitá-las, os cartagineses, da direita e da esquerda, chacinavam-nos comodamente.

Os etruscos ligados uns aos outros não se mexiam; os que estavam mortos não podiam cair e faziam uma barreira com os corpos; e esta linha grossa de bronze abria-se e fechava-se, flexível como uma serpente, sólida como um muro. Os bárbaros vinham formar-se atrás dela, descansavam um minuto; partiam com os pedaços das armas na mão.

Muitos já não tinham nada e saltavam sobre os cartagineses que mordiam na cara como cães. Os gauleses, por orgulho, tinham tirado os saios; mostravam ao longe os corpos brancos; para amedrontar o inimigo abriam as feridas. No meio das falanges púnicas já não se ouvia a voz do arauto que dava as ordens; os estandartes por cima da poeira repetiam os sinais, e cada um ia, levado pela oscilação da grande massa que o cercava.

Amílcar ordenou aos númidas que avançassem, mas os Naffur precipitaram-se ao seu encontro.

Vestidos com túnicas pretas e largas, um tufo de cabelos no alto da cabeça e um escudo de pele de rinoceronte, manobravam um ferro sem cabo preso por uma corda; e os camelos, todos cobertos de penas, davam gritos roucos. As lâminas caíam nos lugares precisos, depois subiam com um golpe seco, com um membro depois delas. Os animais furiosos galopavam por entre as falanges. Alguns, cujas pernas tinham sido fracturadas, saltavam como avestruzes feridas.

Toda a infantaria púnica voltou sobre os bárbaros; dividiu-os. Os manípulos volteavam, espaçados uns dos outros. As armas cartaginesas mais brilhantes cercavam-nos como coroas de ouro; havia um formigueiro no meio, e o Sol, batendo de cima, dava às pontas das espadas luzes brancas que voltejavam. Todavia as filas de clinabares continuavam na planície; os mercenários tiravam as armaduras, voltavam a pô-las e retomavam o combate. Os cartagineses, enganados várias vezes ficaram no meio deles! A incapacidade de raciocinarem imobilizava-os, ou melhor, retrocediam, e os clamores de triunfo que se ouviam ao longe pareciam impeli-los como os destroços numa tempestade. Amílcar estava desesperado; tudo ia perecer sob o génio de Mâtho e a coragem invencível dos mercenários!

Do horizonte veio o som de tamboris. Era uma multidão: velhos, doentes, crianças de quinze anos e até mulheres que, não podendo resistir mais à sua angústia, tinham partido de Cartago; e, para se porem sob a protecção de uma coisa formidável, tinham levado, de casa de Amílcar, o único elefante que a República possuía nesse momento, o elefante da tromba cortada.

Os cartagineses tiveram a sensação que a pátria, abandonando as suas muralhas, lhes vinha ordenar que morressem por ela. O seu furor redobrou, e os númidas levaram consigo todos os outros.

Os bárbaros, no meio da planície, estavam reunidos junto de um montículo.

Não tinham nenhuma possibilidade de vencer, nem sequer de sobreviver; mas eram os melhores, os mais intrépidos e os mais fortes.

A gente de Cartago começou a mandar por cima dos númidas, espetos, lardeadeiras, martelos; aqueles de quem os cônsules tinham medo morriam debaixo dos paus arremessados pelas mulheres; a populaça púnica exterminava os mercenários.

Tinham-se refugiado no alto da colina. O círculo fechava-se cada vez que se abria uma brecha; desceu duas vezes, um forte abalo repeliu-o imediatamente; e os cartagineses estendiam os braços ao acaso; estendiam as lanças por entre as pernas dos companheiros e batiam sem destino. Escorregavam no sangue; o declive acentuado do terreno fazia rolar rapidamente os cadáveres. O elefante que tentava subir o montículo tocava com o ventre no chão; dir-se-ia que isso lhe dava prazer e a tromba, encurtada, larga na extremidade, levantava-se de vez em quando, como uma sanguessuga enorme.

Todos pararam. Os cartagineses, rangendo os dentes, olhavam para o alto da colina, onde os bárbaros estavam de pé; por fim, precipitaram-se e o recontro recomeçou.

Muitas vezes os mercenários deixavam-nos aproximarem-se dizendo-lhes que se queriam render; depois, com um riso de escárnio terrível matavam-se; e à medida que os mortos caíam, os outros para se defenderem subiam para cima deles. Era como uma pirâmide, que crescia pouco a pouco.

Daí a pouco não eram mais do que cinquenta, depois que vinte, que três e que dois somente, um samnita armado com um machado e Mâtho que ainda tinha a espada.

O samnita, com os joelhos dobrados, pegava alternadamente no machado com a esquerda e com a direita advertindo Mâtho dos golpes que se preparavam contra ele. - Senhor, por aqui! Baixa-te!

Mâtho tinha perdido os espaldares, o capacete e a couraça; estava completamente nu, mais lívido do que os mortos, os cabelos escorridos, com placas de espuma aos cantos da boca; e a espada rodava com tal rapidez que fazia uma auréola em volta dele. Uma pedra quebrou-lhe o punho; o samnita foi morto e a vaga dos cartagineses cerrou-se; tocavam uns nos outros. Levantou ao céu as duas mãos vazias, fechou os olhos, e, abrindo os braços, como um homem que do alto de um promontório se deita ao mar, arremessou-se contra as lanças.

Estas afastaram-se diante dele. Correu várias vezes na direcção dos cartagineses, mas eles recuavam sempre voltando as armas.

Bateu com o pé numa espada. Mâtho quis apanhá-la. Sentiu-se agarrado pelos pulsos e pelos joelhos e caiu.

Era Narr'Havas que o seguia há já algum tempo, passo a passo, com uma dessas redes de apanhar animais selvagens; aproveitando o momento em que ele se tinha baixado, apanhou-o.

Amarraram-no em cima do elefante, os quatro membros em cruz; e todos os que não estavam feridos, escoltando-o, precipitaram-se em grande tumulto para Cartago.

A notícia da vitória já ali tinha chegado, e, coisa inexplicável, desde a hora terceira da noite; a clepsidra de Khamon tinha deitado a quinta quando eles chegaram a Malqua; Mâtho abriu os olhos. Havia tanta luz sobre as casas que a cidade parecia que estava em chamas.

Um clamor imenso vinha até ele, vagamente; e, deitado de costas, olhava as estrelas.

Uma porta fechou-se, e as trevas envolveram-no.

No dia seguinte, à mesma hora, o último dos homens que tinham ficado no desfiladeiro de Hache expirava.

No dia em que os seus companheiros tinham partido, zuaeces que regressavam tinham feito desabar as rochas e tinham-nos alimentado durante algum tempo.

Os bárbaros esperavam voltar a ver Mâtho; e não queriam deixar a montanha por desencorajamento, por fadiga, por essa obstinação dos doentes que se recusam a mudar de lugar; quando as provisões acabaram, os zuaeces foram-se embora. Sabia-se que eles não eram mais de mil e trezentos, e não era preciso para os exterminar empregar soldados.

Os animais ferozes, leões sobretudo, nos três anos que a guerra durara tinham-se multiplicado. Narr'Havas tinha feito uma grande batida; correndo atrás deles, depois de ter amarrado cabras aqui e ali, leva-os para o desfiladeiro do Machado; e todos viviam ali, quando chegou o homem enviado pelos anciães para saber o que restava dos bárbaros.

Pela planície estavam deitados leões e cadáveres, e os mortos confundiam-se com os fatos e armaduras. Muitos não tinham cara ou faltava-lhes um braço; alguns ainda pareciam intactos; outros estavam completamente ressequidos e os crânios empoeirados enchiam os capacetes; pés que já não tinham carne saíam direitos dos cnémides e esqueletos com capotes; ossos, limpos pelo Sol, faziam manchas brilhantes no meio da areia.

Os leões com o peito contra o chão e as patas estendidas, cerrando as pálpebras por causa da luz do dia, intensificada pela reverberação das rochas brancas. Outros, sentados nas patas de trás, olhavam fixamente para a frente, ou melhor, perdidos nas jubas enormes, dormiam enrolados como bolas, e todos tinham um ar saciado, indolente, enfastiado. Estavam imóveis como a montanha e os mortos. A noite descia; grandes barras vermelhas raiavam o céu a ocidente.

De um destes montes que davam uma forma irregular à planície, levantou-se uma coisa ainda mais vaga que um espectro. Então um dos leões levantou-se projectando com a sua forma monstruosa uma sombra preta no fundo do céu púrpura; quando chegou junto do homem, voltou-o, de uma só vez, com a pata.

Depois, deitado ao comprido, ia tirando, lentamente, com os dentes as entranhas.

A seguir abriu a goela enorme e durante alguns minutos ouviu-se o seu rugido cujos ecos foram repetidos pela montanha até que se perdeu na solidão.

De súbito, o cascalho começou a rolar do alto. Ouviu-se o barulho de passos rápidos; e do lado do cavalo de frisa, do lado do desfiladeiro, focinhos pontiagudos, orelhas direitas apareceram; os olhos fulvos brilhavam. Eram os chacais que chegavam para comer os restos.

O cartaginês, que olhava debruçado do alto do precipício, foi-se embora.

 

                             MATHO.

CARTAGO estava alegre, uma alegria profunda, universal, imoderada, frenética; tinham tapado os buracos das ruínas, pintado as estátuas dos deuses, ramos de murta estavam espalhados pelas ruas, nas esquinas os turíbulos fumegavam, e a multidão nos terraços formava com os seus fatos coloridos como que ramos de flores desabrochando.

O barulho contínuo das vozes era dominado pelo grito dos carregadores de água que molhavam as lajes; escravos de Amílcar ofereciam, em seu nome, cevada torrada e bocados de carne crua; falavam uns com os outros; beijavam-se chorando; as cidades tírias tinham sido conquistadas, os nómadas dispersos, todos os bárbaros aniquilados. A Acrópole desaparecia sob os toldos de cores; os beques das trirremes, alinhadas do lado de fora do molhe, resplandeciam como um dique de diamantes; sentia-se por toda a parte a ordem restabelecida, uma existência nova que recomeçava, uma grande felicidade: era o dia do casamento de Salammbô com o rei dos númidas.

No terraço do templo de Khamon, gigantescos trabalhos de ourivesaria seguravam três mesas compridas onde se iam sentar os sacerdotes, os anciães e os ricos, e havia uma quarta mais alta, para Amílcar, para Narr'Havas e para ela; como Salammbô ao restituir o véu salvara a pátria, o povo fazia das suas núpcias um motivo de alegria nacional e, em baixo, na praça, esperava que ela aparecesse.

Outro desejo mais acre irritava a sua impaciência: a morte de Mâtho estava prometida para a cerimónia.

Tinha sido proposto primeiro esfolá-lo vivo, deitar-lhe chumbo nas entranhas, fazê-lo morrer de fome; atá-lo a uma árvore para um macaco, por trás dele, lhe bater na cabeça com uma pedra; tinha ofendido Tânita, os cinocéfalos de Tânita vingá-la-iam. Outros eram da opinião de que ele devia percorrer as ruas num dromedário depois de lhe terem passado pelo corpo mechas de linho embebidas em azeite; e deliciavam-se com a ideia de um animal passeando pelas ruas este homem que se contorcia nas chamas como um candelabro agitado pelo vento.

Mas que cidadãos seriam encarregues do seu suplício e porque é que se havia de impedir outros? Desejava-se um género de morte em que toda a cidade participasse, e em que todas as mãos, todos os braços, todas as coisas cartaginesas, até às pedras da rua e às ondas do golfo o pudessem ferir, esmagar, aniquilar. Então os anciães decidiram que ele iria da prisão à Praça de Khamon, sem escolta, com os braços atados atrás das costas; e era proibido atingi-lo no coração para poder viver mais tempo, vasar-lhe os olhos, a fim de poder ver até ao fim a sua tortura, lançar fosse o que fosse contra a sua pessoa e atacá-lo com mais de três dedos de cada vez.

Embora ele só devesse aparecer ao fim do dia, às vezes julgavam vê-lo, e a multidão precipitava-se para a Acrópole, as ruas ficavam desertas, depois voltava num murmúrio que se prolongava por muito tempo. Havia pessoas que estavam de pé no mesmo local desde a véspera, e de longe interpelavam-se e mostravam as unhas que tinham deixado crescer para melhor as enterrarem na carne.

Outros passeavam agitados; alguns estavam pálidos como se esperassem a sua própria execução.

De súbito, por detrás dos Mappales, leques de penas levantaram-se acima das cabeças. Era Salammbô que saía do seu palácio; ouviu-se um suspiro de alívio.

Contudo o cortejo demorou muito; avançava a passo.

Primeiro desfilaram os sacerdotes dos patecos, depois os de Eschmoun, os de Melkart e todos os outros colégios sucessivamente, com as mesmas insígnias e pela mesma ordem que tinham observado para o sacrifício. Os pontífices de Moloch passaram de cabeça baixa; e a multidão, por uma espécie de remorso, afastava-se deles. Todavia os sacerdotes da Rabbetna avançavam com um passo orgulhoso, com liras na mão; as sacerdotisas vinham a seguir, com vestidos transparentes amarelos ou pretos, dando gritos de ave e torcendo-se como víboras; ou rodavam ao som das flautas para imitar a dança das estrelas, e os seus vestidos leves faziam pairar sobre as ruas nuvens de perfumes suaves. Entre estas mulheres eram aplaudidos os Kedeschim de pálpebras pintadas, simbolizando o hermafrodismo da Divindade; e perfumados e vestidos como mulheres, eram parecidos com elas, apesar de não terem seios e das ancas mais estreitas. Aliás, o princípio feminino dominava nesse dia, associava-se a tudo; uma lascívia mística circulava no ar tornando-o pesado; já ardiam archotes no fundo dos bosques sagrados; devia haver ali durante a noite uma grande prostituição; tinham chegado da Sicília três barcos com cortesãs e tinham vindo mais do deserto.

Os colégios, à medida que chegavam, iam-se arrumando nos pátios do templo, nas galerias exteriores e ao longo das escadarias duplas que subiam para as muralhas, aproximando-se pela altura. Filas de fatos brancos apareciam entre as colunatas e o edifício enchia-se de estátuas humanas, imóveis como estátuas de pedra.

Surgiram depois os senhores das finanças, os governadores das províncias e todos os ricos. Levantou-se em baixo um grande tumulto. As ruas vizinhas estavam apinhadas de gente, hieródulos faziam-nos recuar com paus; e no meio dos anciães, coroados com tiaras de ouro, numa liteira com um dossel de púrpura, via-se Salammbô.

Ouviu-se um grito imenso; os timbales e os crótalos tocaram mais forte, os tamborins soaram e o dossel de púrpura desapareceu entre dois pórticos.

Reapareceu no primeiro andar. Salammbô vinha a pé, lentamente; depois atravessou o terraço para se sentar ao fundo, numa espécie de trono feito da carapaça de uma tartaruga. Puseram-lhe debaixo dos pés um escabelo de marfim com três degraus; na beira do primeiro duas crianças negras estavam de joelhos, e ela apoiava, às vezes, nas suas cabeças os dois braços, carregados com pulseiras muito pesadas.

Das axilas às ancas tinha uma rede de malhas estreitas imitando escamas de peixe e que luziam como nácar: uma parte azul justa ao corpo deixava ver os dois seios, por duas chanfraduras em forma de quarto crescente; pingentes de carbúnculos escondiam os mamilos. Tinha um penteado feito com penas de pavão, enfeitado com pedras; um grande manto, branco como a neve, caía-lhe das costas - e, com os cotovelos encostados ao corpo, os joelhos juntos, com argolas de diamantes na parte superior do braço, estava muito direita, numa atitude hierática.

Em dois lugares mais abaixo estavam o pai e o esposo; Narr'Havas, com uma toga amarela clara, tinha a coroa de sal-gema de onde saíam duas tranças dobradas como os chifres de Ammon; e Amílcar, com uma túnica violeta bordada a ouro, tinha cingido a espada de guerra.

No espaço entre as mesas, a píton do templo de Eschmoun, no chão, no meio de poças de óleo rosado, descrevia, mordendo com a cauda, um grande círculo preto. Havia no meio do círculo uma coluna de cobre com um ovo de cristal em cima; como o Sol incidia nele, saltavam raios em todas as direcções.

Atrás de Salammbô estavam os sacerdotes de Tânita de fato de linho; os anciães, à sua direita, formavam, com as suas tiaras, uma grande linha de ouro, e, do outro lado, os ricos, com os seus ceptros de esmeralda, uma grande linha verde, enquanto, ao fundo, onde estavam os sacerdotes de Moloch, dir-se-ia, por causa dos seus mantos, que havia uma muralha de púrpura. Os outros colégios ocupavam os terraços inferiores. A multidão enchia as ruas. Havia homens trepados às casas e iam em filas compactas até ao cimo da Acrópole. Tendo assim o povo a seus pés, o firmamento por cima da cabeça, em volta dela a imensidade do mar, o golfo, as montanhas e as perspectivas das províncias, Salammbô, resplandecente, confundia-se com a Tânita e parecia o próprio génio de Cartago, a sua alma encarnada.

O festim devia durar toda a noite, e lampadários de vários braços tinham sido colocados, como árvores, nos panos de lã tingida que cobriam as mesas baixas. Galhetas de prata, ânforas de vidro azul, colheres de concha e pãezinhos redondos estavam colocados na série dupla de pratos com orla de pérolas; cachos de uvas com as folhas estavam enrolados como tirsos em cepas de marfim; blocos de neve fundiam-se sobre suportes de ébano, e limões, romãs, abóboras e melancias faziam montículos sob a baixela alta; javalis, de boca aberta, rolavam no pó das especiarias, lebres, cobertas com os pêlos, pareciam correr entre flores; carnes cozinhadas enchiam conchas; os pastéis tinham formas simbólicas; quando se tiravam as tampas das terrinas voavam pombas.

Todavia, os escravos de túnica arregaçada, andavam em bicos dos pés; de vez em quando, as liras tocavam um hino, ou elevava-se um coro de vozes. O murmurar do povo, contínuo como o barulho do mar, passava vagamente sobre o festim e parecia embalá-lo numa harmonia maior; alguns lembraram-se do banquete dos mercenários; abandonavam-se a sonhos de felicidade; o Sol começava a descer, e a Lua, em quarto crescente, levantava-se já do outro lado do céu.

Salammbô, porém, como se alguém a tivesse chamado, voltou a cabeça; o povo que olhava para ela, seguiu a direcção dos seus olhos.

No alto da Acrópole, a porta da prisão, talhada na rocha da base do templo, acabava de se abrir; e, à entrada daquele buraco negro estava um homem de pé.

Saiu dobrado ao meio, com o ar assustado dos animais felinos quando são de repente libertados.

A luz ofuscava-o; ficou algum tempo imóvel. Todos o tinham reconhecido, e sustinham a respiração.

O corpo desta vítima era para eles uma coisa especial e rodeada de um esplendor quase religioso. Inclinavam-se para o ver, as mulheres, sobretudo. Estavam ansiosas por ver aquele que tinha feito morrer os filhos e os maridos; e do fundo da alma surgia, apesar de tudo, uma curiosidade infame, o desejo de o conhecer completamente, desejo misturado com remorsos que se transformava num ódio ainda maior.

Por fim começou a andar; o atordoamento da surpresa desvaneceu-se. Levantaram-se muitos braços e ele deixou de ser visto.

A escadaria da Acrópole tinha sessenta degraus. Desceu-os como se fosse arrastado por uma torrente do alto de uma montanha; por três vezes deu a ideia que tombava, mas depois, mais abaixo, caiu de pé.

Os ombros sangravam, o peito arfava com grandes soluços; e ele fazia um tal esforço para partir as cordas que os braços cruzados sobre os rins se intumesciam como bocados de serpente.

Do ponto em que ele se encontrava partiam várias ruas. Em cada uma delas uma fila tripla de cadeias de bronze, fixadas ao umbigo dos deuses patecos, estendiam-se de uma extremidade à outra, paralelamente; a multidão estava encostada às casas, e, no meio, os servos dos anciães passeavam agitando correias.

Um deles empurrou-o para a frente desferindo um golpe; Mâtho pôs-se em marcha.

Passavam os braços por cima das correntes, dizendo que lhe tinham deixado o caminho muito largo; e ele seguia, apalpado, picado, golpeado por todos aqueles dedos; quando se encontrava na extremidade de uma rua, aparecia outra; pôs-se de lado, várias vezes para os morder; afastavam-se muito depressa, as correntes não o deixavam, e a multidão ria-se.

Uma criança rasgou-lhe a orelha; uma rapariga, que tinha escondida debaixo da manga uma ponta de fuso, fez-lhe um golpe na cara; arrancavam-lhe punhados de cabelos, bocados de carne; outros com paus com esponjas embebidas em imundícies esfregavam-lhas na cara. Da face direita jorrava sangue; o delírio começou imediatamente. O último dos bárbaros representava todos os bárbaros, todo o exército; vingavam-se nele dos seus desastres, dos seus terrores, dos seus opróbrios. A raiva do povo desenvolvia-se enquanto se saciava; as correntes muito esticadas curvavam-se; iam-se partir; não sentiam os escravos que lhes batiam para os fazer voltar aos seus lugares; em todas as aberturas das muralhas havia cabeças; e o mal que não lhe podiam fazer exprimiam-no por palavras.

Eram injúrias atrozes, imundas, com encorajamentos irónicos e imprecações; e como se a dor presente não bastasse anunciavam-lhe outras ainda mais terríveis para a eternidade.

Este alarido enchia Cartago com uma continuidade estúpida. Muitas vezes uma única sílaba - uma entoação rouca, profunda, frenética - era repetida durante alguns minutos por todo o povo. Da base ao cimo os muros vibravam, e Mâtho tinha a sensação de que as paredes vinham ao seu encontro para o levantar do chão, como dois braços imensos que o asfixiavam no ar.

Lembrava-se, todavia, de ter experimentado, outrora, uma sensação semelhante. Era a mesma multidão nos terraços, os mesmos olhares, a mesma cólera; mas nessa altura caminhava livre, todos se afastavam, um deus protegia-o; e esta recordação tornando-se pouco a pouco mais nítida trazia-lhe uma tristeza que o abatia. Passavam sombras diante dos seus olhos; a cidade girava na sua cabeça, o sangue jorrava de um ferimento na anca, sentia-se morrer; os joelhos dobravam-se, deixava-se cair.

Houve alguém que foi buscar ao peristilo do templo de Melkart, a barra de um tripé que estava em brasa, e, passando por debaixo da primeira corrente, tocou-lhe com ela na chaga. Viu-se a carne a fumegar; os gritos do povo abafaram a sua voz; pôs-se de pé.

Seis passos mais longe, caiu uma terceira e uma quarta vez; havia sempre um suplício novo que o fazia levantar-se. Com tubos deitavam-lhe gotinhas de azeite a ferver; punham-lhe debaixo dos pés bocados de vidro; ele continuava a andar. À Esquina da Rua Sateb encostou-se no alpendre de uma loja e não andou mais.

Os escravos do Conselho bateram-lhe com chicotes de pele de hipopótamo, tão furiosamente e durante tanto tempo que as franjas das túnicas ficaram molhadas de suor. Mâtho parecia insensível; de súbito, respirou fundo, e pôs-se a correr ao acaso, fazendo com os lábios o barulho que fazem as pessoas que tremem de frio. Meteu pela Rua de Budes, a Rua Soepo, atravessou o mercado das forragens e chegou à Praça de Khamon.

Agora pertencia aos sacerdotes; os escravos vieram afastar a multidão; havia mais espaço. Mâtho olhou em seu redor e os seus olhos encontraram Salammbô.

Tinha-se levantado logo que ele dera o primeiro passo; depois, à medida que ele se aproximava tinha avançado pouco a pouco até à borda do terraço; e daí a pouco, todas as coisas exteriores desapareceram e ela só via Mâtho. Tinha-se feito silêncio na sua alma - um desses abismos onde o mundo inteiro desaparecia sob a pressão de um único pensamento, de uma recordação, de um olhar. Este homem que avançava para ela atraía-a.

Com excepção dos olhos, nada nele tinha aparência humana; era uma forma longa, completamente vermelha; as cordas que se tinham quebrado caíam-lhe ao longo das coxas, mas não se distinguiam os tendões dos pulsos descobertos; a boca estava aberta; das órbitas saíam duas chamas que pareciam chegar ao cabelo; e o miserável continuava a andar!

Chegou junto do terraço. Salammbô estava debruçada da balaustrada; estes olhos terríveis contemplavam-na, e teve consciência de tudo o que ele tinha sofrido por ela. Embora ele agonizasse, via-o na tenda, de joelhos, abraçado a ela, balbuciando palavras ternas; desejava senti-lo ainda, ouvi-lo; ia gritar. Ele caiu de costas e não se voltou a mexer.

Salammbô, quase desmaiada, foi levada para o trono pelos sacerdotes que a rodeavam. Felicitavam-na; era obra sua. Todos batiam as palmas gritando o seu nome.

Um homem lançou-se sobre o cadáver. Embora não tivesse barba tinha pelos ombros o manto dos sacerdotes de Moloch e à cintura a faca de que se serviam para cortar as carnes sagradas e que terminava, na extremidade do punho, por uma espátula de ouro. De um só golpe abriu o peito de Mâtho, arrancou-lhe o coração, colocou-o numa colher; e o Schahabarim, levantando o braço, ofereceu-o ao Sol.

O astro descia por trás das ondas; os raios chegavam como flechas compridas ao coração vermelho. O astro mergulhava no mar à medida que as pulsações diminuíam; à última palpitação desapareceu.

Então, desde o golfo até à lagoa e do istmo até ao farol, de todas as ruas, de todas as casas e de todos os templos, partiu um só grito; parava algumas vezes e depois recomeçava; os edifícios tremiam; Cartago estava abalada pelo espasmo de uma alegria titânica e de uma esperança sem limites.

Narr'Havas, cheio de orgulho, passou o braço esquerdo em volta da cintura de Salammbô em sinal de posse; e com a direita pegou numa pátera de ouro e bebeu ao génio de Cartago.

Salammbô levantou-se como o esposo, com uma taça na mão, para beber também. Caiu, com a cabeça para trás, por cima do espaldar do trono, pálida, rígida, de lábios entreabertos e cabelos soltos que tocavam no chão.

Assim morreu a filha de Amílcar por ter tocado no manto de Tânita.

 

                                                                                        Gustave Flaubert

 

 

GLOSSÁRIO DAS PALAVRAS POUCO CONHECIDAS

AEGATES (ilhas), ilhotas situadas na ponta ocidental da Sicília, em frente da cidade de Drepanum. É aqui que o cônsul Latácio constrói a frota cartaginesa e conclui o tratado que pôs fim à primeira guerra púnica, no ano de 512 de Roma (241 a. C).

ÁGUAS-QUENTES, montanha na margem do golfo de Tunes, a actual Bukomine. (No sopé, fontes quentes.)

ALETES, herói espanhol que descobriu as minas de prata. Havia ao pé de Cartago um túmulo com o seu nome.

ALGUMIN (ALGUMIN ou ALMUGIN), coral ou madeira preciosa vermelha que vinha de Ophir.

ANAITES, deusa lunar, infernal e guerreira, que os assírios adoravam sob este nome como esposa de Anu (o Céu).

ANNABA (em latim Hippo Regius), actualmente um porto da Argélia que se chamou Bona durante a presença francesa.

APAKA ou APHAKA, no Líbano; foi aqui que Adónis foi morto pelo javali e chorou pela sua deusa.

ARIANA, colina situada 6 km ao norte de Tunes e 10 km a ocidente de Cartago.

ASTARTE, nome fenício, Astoreth, modernizado.

ASTORETH, nome fenício da deusa Tânita. Segundo a pronúncia moderna é Astarte.

ATARANTES, povo nómada da antiga África, vizinho dos Garamantes, na Líbia interior.

ATHARA, provavelmente uma corrupção de Athor, a deusa egípcia em que os gregos julgaram reconhecer a sua Vénus Afrodite, e que parece uma forma secundária e tenebrosa da grande ísis.

BAALET, significa senhora.

BACCARIS, planta usada nos encantamentos.

BDÉLIO, goma-resina.

BEKA, dinheiro israelita que equivalia a meio siclo, isto é, a 5,712 g de prata.

BEMANTISTAS, agrimensores geómatras.

BESOARS (Bezoard, forma antiga da palavra persa Padzehr), pedras que passavam por antídotos.

BYZACENA, actual região de Susa, na Tunísia-Sul.

BISSO, tecido muito precioso que se fazia dos tufos de filamento de certas conchas bivalves.

CAB, medida para matérias secas (Bíblia), ver em K CABIROS. CALCEDÓNIA, variedade de ágatas.

CALLAIS, pedra preciosa, de uma cor verde-mar, tirada do Cáucaso.

CANTHARE, objecto para beber em barro, de origem grega, geralmente com duas asas.

CASSETÉRIDAS, nome dado pelos antigos às ilhas Scilly, grupo de ilhotas e de rochedos situado na extremidade ocidental do condado da Cornualha.

CHABAR, planeta Vénus.

CANANEUS, originários de Canaan, como os fenícios fundadores de Cartago.

CLINABARES, filhos de soldados ou cavaleiros cobertos de um tecido de malhas de aço tão desligados e tão flexíveis que todo o invólucro de metal aderia exactamente ao corpo, sem dificultar os movimentos.

CNÉMIDES, placas de metal que cobriam as pernas.

CORNOS-DO-SUL, limite extremo do périplo de Hanão, no século V a. C, na costa ocidental da África. Os Camarões (?).

CESTAS, espécie de açafates ou ceira de embalagem.

CRÓTALOS, guizos e castanholas.

DERCERTO, deusa feminina de Dagon, uma das muitas divindades dos filisteus que a representavam também com uma cabeça humana e um corpo de peixe.

DILOCHIA, divisão militar que compreendia 32 homens em duas

filas e 16 linhas.

DREPANUM, antiga cidade da Sicília, na costa ocidental, onde

os romanos foram derrotados pelos cartagineses.

ELATEIA, cidade da Grécia central.

ELECTRO, liga de três partes de ouro e uma de prata, de que se faziam as taças próprias para revelar o veneno.

ELISSA, nome fenício de Dido.

ÊLOUL, mês de Setembro.

ERSIPHONIE, em hebreu, terra do Norte, relativamente à Sicília, à África, à Ligúria, etc.

ERIZA, cidade da Sicília antiga, perto da montanha do mesmo nome. - Quartel-general de Amílcar Barca, durante os quatro últimos anos da primeira guerra púnica.

ESCHMOUN, o oitavo deus planetário, que os gregos confundiram com Esculápio; era muito honrado na Fenícia e em Cartago, a julgar pela quantidade de nomes próprios na formação dos quais ele entra.

ESCOMBROSIDES, espécie de peixes de mar que compreende a cavala.

ESTIÕES, povo do noroeste da Ásia Menor.

EZIONGABER, (Ezien-Guéber, a espinha dorsal do gigante), Cabo do sul do Mar Vermelho.

FALÁRICOS, dardos envolvidos em matérias incendiárias. FÈNICÓPTERO, o flamingo cor-de-rosa.

FILIPÊNDULA, planta da família das rosáceas, cujas folhas têm poderes curativos (A rainha dos prados).

GADES, velha cidade da Bética (parte meridional da antiga Espanha), actualmente Cádis, que permitia aos cartagineses controlar as vias comerciais do Atlântico e foi a sua base de acção no interior da Espanha.

GAGATES, nome dado pelos antigos a uma pedra preta que se julga ser o azeviche.

GÁLBANO, goma-resina conhecida desde tempos muito remotos e empregue como arómata.

GARAMANTES, antiga tribo bárbara e guerreira da Líbia, que habitava o território sul da Fezânia actual (a Phazania dos Antigos) com Garama (ou Germa) como capital. Aníbal tinha uma cavalaria equipada com carros garamânticos. Eram talvez os ancestrais dos Tuaregues.

GARUM, espécie de salmoura que se preparava com os intestinos e restos de peixes.

GETÚLIA, região a leste do Sara.

HADRAMAUTE, antiga cidade da África, a sueste de Cartago, actualmente Susse, na Tunísia.

HARUSCH-PRETA, cadeia de montanhas da África setentrional (deserto tripolitano).

HECATOMPYLE (Das cem portas), antiga cidade da Ásia, na Hircânia.

HELEPOLE, (conquistadora de cidade). Torre armada com aríetes. HEPTÁGONO, de sete lados. O número 7 tinha um valor religioso. HERMEUM, o Cabo Bom.

HIPPO-ZARYTE, Bizerta, colónia fenícia aliada de Cartago.. HOPLITA, infante do exército grego com armas pesadas.

JUGRIÕES, povo aparentado com os húngaros, das margens do Mar Negro.

KHAMON, (Baal-Khamon), deus de Tânita. A força benéfica do Sol.

KESITAH, espécie de dinheiro que vale 4 siclos (Bíblia e Talmude), 45,696 g de prata.

KICAR, dinheiro israelita que tinha o valor de 3000 siclos, isto é, 34,272 kg de prata.

LAMAT, espécie de antílope cuja pele, depois de uma preparação, podia resistir ao ferro.

LASER, planta à qual se atribuía certa propriedade médica e de que se extraía uma goma considerada preciosa. Era recolhida na Líbia, perto de Cirene.

LAUSÓNIA, vulgarmente a hena oriental, arbusto cujo suco serve para fazer o cor-de-rosa vivo.

LOTA, peixe da família dos gádidas, como a pescada, o bacalhau, etc.

LUTÁCIa, cônsul romano que venceu os cartagineses na batalha das ilhas Aegates.

MAÇAR, (rio), o Medjerda.

MAMERTINOS (os filhos de Marte), habitantes de Mamértio, cidade da Itália antiga, no Brútio, em frente de Messina. Eram mercenários campanianos ou samnitas ao serviço de AGÁTOCLES. No regresso de uma campanha apoderaram-se de Messina por traição e chacina dos habitantes. Cercados pelos cartagineses, chamaram os romanos em seu socorro e, foram, assim a causa da primeira guerra púnica.

MARAZANA, cidade da Bizacene, província cartaginesa.

MASCHALA (Máscula, Maxula, Maxala), cidade da Numídia.

MASISABAL, (mitologia fenícia), encantador que Melkart amarrou a uma árvore e decapitou.

MEDIMNE, medida grega para secos; cerca de cinquenta litros.

MELKART, o Hércules fenício.

MOGBEDS, palavra persa moderna, que designa os magos, adoradores do fogo.

MOLOBATHRE ou MALABATHRE, loureiro das índias, de onde se extrai um perfume (caneleira).

MOLOCH, deus fenício que parece simbolizar a força ardente, devoradora do Sol.

MONTANHA-DE-CHUMBO, um dos montes de Zaghuan.

MYLITTA, deusa babilónia.

MIROBÁLANO, fruto aromático.

NARR'HAVAS, Fogo do sopro, do nome númida Nar-el-haouah. NEBAL, instrumento hebreu semelhante à guitarra.

NYSSAM, mês de Abril entre os fenícios.

OESTRYMON, (cabo), cabo da Espanha do noroeste (?).

ORYNGES, (grego ôrugges), espécie de zebras, cavalo com cobertura às riscas.

ORÉGÃO, planta herbácea aromática de propriedades estimulantes.

PATECOS, deuses embrionários confundidos em certa época com os Cabiros.

PHAZZANA (ou PHAZAN1A), antigo nome de uma região da Líbia interior (a Fezània) ao sul da qual se encontram os Garamantes.

PILO, arma romana de arremesso, de cerca de sete pés de comprimento.

RABBETNA, significa Nossa Senhora.

RUSICADA, antiga cidade da Numídia.

SARISSAS, espécie de lanças com que se armavam os hoplitas de origem macedónia.

SCHABAR, provavelmente Schebat, mês de Fevereiro.

SESELI, planta aromática.

SICCA, cidade da Tunísia (El-Kef).

SICLO, unidade de peso israelita de 11,424 g (8,42 g na Mesopotâmia e na Pérsia) e também, como dinheiro, moeda de prata deste peso.

SAMARRA (palavra italiana), vestido de cauda comprida.

STYRAX, substância renisa e balsâmica.

SUFETES, os dois altos magistrados eleitos todos os anos em Cartago.

SYNTAGME, subdivisão da falange grega, que compreendia um quadrado de 16 homens de lado. Havia 16 numa falange.

SORTES, nome antigo dos dois golfos formados pelo Mediterrâneo na costa setentrional da África, entre o Egipto e o cabo Hermeum (hoje golfo de Sidre e Gabes, ou Grande e Pequena Sirta).

TAMMUZ, mês de Julho.

TAMRAPANI, provavelmente Tatnprápami, designação ariana de Taprobana (ilha de Ceilão).

TÂNITA, a Lua, a deusa de Cartago.

TARTESSUS, ilha da Hispânia (a antiga Espanha), na costa da Bética.

THYMIAMATA, provavelmente Thymiatéria, cidade na costa ocidental da Mauritânia, identificada com Mamora dos nossos dias.

TILBY, mês de Janeiro.

TIRATHA, no sentido do sexo, símbolo da deusa.

TREMOÇO, papilionácea com folha em leque e com semente nutritiva; para forragem e ornamentação: certas espécies são tóxicas.

TUBURGO, provavelmente Tuburbo, cidade da África.

ÚTICA, colónia fenícia ao norte de Cartago.

ZERET, medida hebraica de comprimento; provavelmente meio côvado.

 

 

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