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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SALVAR A PELE / Lisa Gardner
SALVAR A PELE / Lisa Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O meu pai explicou-mo pela primeira vez quando eu tinha sete anos. O mundo é um sistema. A escola é um sistema. Os bairros são um sistema. As cidades, os governos, qualquer grupo grande de pessoas. Aliás, o corpo humano é um sistema, alicerçado em subsistemas biológicos mais pequenos.
A justiça criminal é, decididamente, um sistema. A Igreja Católica... não o façam falar. Depois há os desportos organizados, as Nações Unidas e, bem entendido, o concurso de Miss América.
- Não tens de gostar do sistema - pregava-me ele. - Não tens de acreditar nele ou concordar com ele. Mas tens de o compreender. Se conseguires compreender o sistema, sobreviverás.
Uma família é um sistema.
Nessa tarde, cheguei da escola para deparar com os meus pais de pé fia sala da frente. O meu pai, professor de Matemática do MIT1, raramente estava em casa antes das sete. Contudo, dessa vez estava ao lado do precioso sofá de padrão floral da minha mãe, com cinco malas muito bem empilhadas aos pés. A minha mãe chorava. Quando abri a porta, ela lãrou o rosto, como se quisesse escondê-lo, mas eu via os seus ombros estremecer.
Ambos vestiam pesados casacos de lã, o que parecia estranho tendo em ponta a temperatura relativamente quente daquela tarde de outubro.
O meu pai foi o primeiro a falar:
- Vai ao teu quarto. Escolhe duas coisas. As duas coisas que mais quiseres. Mas despacha-te, Annabelle; não temos muito tempo.
Os ombros da minha mãe estremeceram com mais força. Pousei a mochila e recolhi ao meu quarto, onde fiquei a olhar para o pequeno espaço pintado de cor-de-rosa e
verde que me pertencia.
De todos os momentos do meu passado, esse é aquele que mais desejo recuperar. Três minutos no quarto da minha meninice. Os dedos a acariciar
1 Massachusetts Institute of Technology - Instituto de Tecnologia do Massachusetts. IN. da T.)
a secretária coberta de autocolantes, a deslizar sobre as fotografias emolduradas dos meus avós, a saltitar sobre a minha escova com banho de prata e o meu
enorme espelho de mão. Passei ao lado dos meus livros. Nem sequer considerei a minha coleção de berlindes ou a pilha de trabalhos artísticos do jardim de infância. Lembro-me de me debater com a escolha positivamente torturante entre o meu cão de peluche favorito e o meu tesouro mais recente, uma Barbie vestida de noiva. Optei pelo cão, Boomer, depois agarrei no meu bem-amado cobertor de bebé, de flanela cor-de-rosa escura debruada a cetim rosa-claro.
Não o meu diário. Não a coleção de bilhetinhos disparatados, cobertos de rabiscos, da minha melhor amiga, Dori Petracelli. Nem sequer o meu álbum de bebé, que pelo menos me proporcionaria fotografias da minha mãe para me acompanharem nos anos que haviam de vir. Era uma criança pequena e assustada, e comportei-me como tal.
Penso que o meu pai sabia o que eu ia escolher. Acho que ele anteviu tudo, já nessa altura.

 


 


Regressei à sala. O meu pai estava lá fora, a carregar o carro. A minha mãe tinha as mãos crispadas em torno do pilar que separava a zona de estar da zona de cozinha. Por um momento, pensei que não o largaria, que tomaria uma posição de força e exigiria que o meu pai pusesse fim àquela loucura.
Em vez disso, ela estendeu a mão e acariciou o meu comprido cabelo escuro.
- Gosto tanto de ti. - Agarrou-se a mim, abraçando-me ferozmente, com as bochechas molhadas coladas à minha cabeça. Um instante depois afastou-me, limpando o rosto com vivacidade.
- Lá para fora, querida. O teu pai tem razão; temos de nos despachar. Fui atrás da minha mãe até ao carro, com Boomer debaixo do braço e o
cobertor apertado com ambas as mãos. Instalámo-nos nos nossos lugares habituais: o meu pai no banco do condutor, a minha mãe ao lado, eu atrás. O nosso pequeno Honda saiu do caminho de acesso em marcha atrás. Folhas amarelas e cor de laranja rodopiavam dos ramos da faia, dançando diante da janela do carro. Esparramei os dedos no vidro, como se pudesse tocá-las.
- Acena aos vizinhos - indicou o meu pai. - Finge que está tudo normal.
Foi a última vez que vimos a nossa ruazinha fechada, salpicada de carvalhos.
Uma família é um sistema.
Fomos para Tampa. A minha mãe sempre quisera conhecer a Florida, explicou o meu pai. Não seria agradável viver entre palmeiras e praias de areia branca, depois de termos suportado tantos invernos de Nova Inglaterra?
Visto ter sido a minha mãe a escolher o sítio, o meu pai escolheu os nomes. De agora em diante eu seria Sally. O meu pai era Anthony e a minha
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mãe, Claire. Não era divertido? Uma nova cidade e um novo nome. Que grande aventura!
No princípio tive pesadelos. Pesadelos terríveis, dos quais acordava aos gritos.
- Vi uma coisa, vi uma coisa!
- É só um sonho - dizia o meu pai, tentando tranquilizar-me, afagando-me as costas.
- Mas tenho medo!
- Sossega. És demasiado nova para saberes o que é ter medo. É para isso que servem os papás.
Não vivíamos entre palmeiras e praias de areia branca. Os meus pais nunca falavam disso, mas, em retrospetiva, agora que sou adulta, compreendo que um doutorado em matemática dificilmente poderia retomar o fio da sua vida no ponto onde estava, sobretudo sob uma identidade falsa. Em vez disso, o meu pai arranjou emprego como motorista de táxi. Eu adorava o seu novo trabalho. Significava que estava em casa a maior parte do dia, e parecia bastante fascinante ir-me buscar à escola no meu próprio táxi.
A nova escola era maior do que a antiga. Mais rigorosa. Creio que fiz amigos, embora não me lembre dos pormenores dos nossos dias na Florida. Tenho antes uma sensação geral de um tempo e de um lugar surreais, onde as minhas tardes eram passadas em treinos de autodefesa para crianças dos primeiros anos, e até os meus pais me pareciam estranhos.
O meu pai, zumbindo constantemente pelo nosso apartamento de duas divisões:
- Que me dizes, Sally? Vamos decorar uma palmeira para o Natal! Sim, senhor, isto é que é divertido!
A minha mãe, trauteando com um ar ausente enquanto pintava a nossa sala de estar com um tom de coral muito vivo, rindo ao comprar fatos de banho em novembro, parecendo realmente interessada enquanto aprendia a cozinhar diferentes tipos de peixe branco que se desfaziam em lascas.
Creio que os meus pais foram felizes na Florida. Ou, pelo menos, resolutos. A minha mãe decorou o nosso apartamento. O meu pai retomou o seu passatempo de fazer esboços. Nas noites em que não ia trabalhar, a minha mãe posava para ele ao lado da janela e eu ficava deitada no sofá, satisfeita por ver os traços hábeis com que o meu pai captava o sorriso provocante da minha mãe num pequeno esboço a carvão.
Até ao dia em que cheguei da escola para deparar com as malas feitas, os rostos sombrios. Dessa vez não precisei de instruções. Dirigi-me para o meu quarto por iniciativa
própria. Peguei em Boomer. Procurei o meu cobertor. Depois fui para o carro e sentei-me no banco de trás.
Passou muito tempo antes que alguém dissesse uma palavra.
Uma família é um sistema.
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Não sei em quantas cidades vivemos. Nem quantos nomes adotei. A minha infância transformou-se num torvelinho de caras novas, cidades novas e as mesmas velhas malas. Chegávamos e procurávamos o apartamento de duas divisões mais barato possível. No dia seguinte, o meu pai saía e voltava sempre com um emprego qualquer: numa loja de fotografias, como gerente de um McDonakTs, como caixeiro. A minha mãe desemalava os nossos magros pertences. Eu era despachada para a escola.
Sei que deixei de falar tanto. A minha mãe também.
Só o meu pai continuava infatigavelmente animado.
- Phoenix! Sempre quis experimentar o deserto. Cincinnati! Isto sim, é o meu tipo de cidade. St. Louis! É o sítio certo para nós!
Não me lembro de ter mais pesadelos. Desapareceram, ou tiveram de ceder o lugar a preocupações mais prementes. As tardes em que chegava a casa e encontrava a minha mãe estendida no sofá, inconsciente. Os cursos intensivos de cozinha, pois ela já não conseguia aguentar-se em pé. Fazer café e enfiar-lho pela garganta abaixo. Tirar dinheiro da carteira dela, para poder comprar comida antes de o meu pai chegar do trabalho.
Quero acreditar que ele tinha de saber, mas até hoje continuo sem ter a certeza. Pelo menos no caso da minha mãe e no meu, parecia que quanto mais assumíamos outros nomes, mais renunciávamos a nós próprias. Até que nos tornámos silenciosas, sombras etéreas que seguiam na esteira borbulhante do meu pai.
Ela resistiu até aos meus catorze anos. Kansas City. Tínhamos aguentado nove meses. O meu pai chegara a gerente da secção automóvel da Sears. Eu estava a pensar ir ao meu primeiro baile.
Cheguei a casa. A minha mãe - Stella, era o seu nome nessa altura estava estendida de barriga para baixo no sofá. Dessa vez, não houve sacudidelas que a acordassem. Tenho uma vaga recordação de voar pelo patamar e bater freneticamente à porta da vizinha.
- A minha mãe, a minha mãe, a minha mãe! - gritava. E a pobre Mrs. Torres, a quem nunca fora concedido um sorriso ou um aceno de qualquer de nós, abriu a porta de par em par, atravessou o patamar a toda a pressa e, com as mãos a voar para os olhos subitamente húmidos, declarou que a minha mãe estava morta.
Vieram polícias. Técnicos de emergência médica. Vi-os levarem o corpo dela. Vi o frasco de remédio cor de laranja, vazio, deslizar-lhe do bolso. Um dos polícias
apanhou-o. Deitou-me um olhar de piedade.
- Alguém a quem devamos telefonar?
- O meu pai está quase a chegar.
O polícia deixou-me com Mrs. Torres. Ficámos sentadas no apartamento dela, com os seus ricos odores ajalapenos e tamales. Admirei as cortinas de riscas garridas que lhe ornavam as janelas e as ousadas almofadas às flores que cobriam o seu sofá castanho coçado. Perguntei-me como seria ter outra vez um lar a sério.
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O meu pai chegou. Agradeceu profusamente a Mrs. Torres. Levou-me para casa.
- Compreendes que não podemos dizer-lhes nada? - repetia sem cessar, mal regressámos à segurança do nosso apartamento. - Compreendes que tens de ter muito cuidado? Não quero que digas uma única palavra, Cindy. Nem uma palavra. Isto é tudo muito, muito complicado.
Quando os polícias voltaram, ele orientou a conversa. Eu aqueci canja de galinha com massa na pequena kitchenette. Não tinha grande fome. Só queria que o nosso apartamento cheirasse como o de Mrs. Torres. Queria que a minha mãe estivesse em casa.
Mais tarde fui dar com o meu pai a chorar. Enrolado no sofá, agarrado ao esfarrapado roupão cor-de-rosa da mulher. Não conseguia parar. Soluçava, soluçava e soluçava.
Essa foi a primeira noite em que o meu pai dormiu na minha cama. Sei o que estão a pensar, mas não foi isso.
Uma família é um sistema.
Esperámos três meses pelo corpo da minha mãe. O estado queria uma autópsia. Nunca cheguei a compreender bem o que se passava. Mas um dia devolveram-nos a minha mãe. Acompanhámo-la da morgue até à casa funerária. Foi metida num caixão rotulado com o nome de outra pessoa e enviada para as chamas.
O meu pai comprou dois pequenos frascos de vidro suspensos de correntes. Um para ele. Um para mim.
- Assim - declarou - ela pode ficar sempre perto do nosso coração.
Leslie Ann Granger. Era o verdadeiro nome da minha mãe. Leslie Ann Granger. O meu pai encheu os frascos com as cinzas e pendurámo-las ao pescoço. O resto dela foi atirado ao vento.
Para quê comprar uma lápide que só serviria para cimentar uma mentira?
Regressámos ao apartamento e o meu pai não teve de dizer nada; eu já tinha feito as nossas malas há três meses. Nada de Boomer ou cobertor. Metera-os no caixão de madeira da minha mãe e enviara-os com ela para as chamas.
Quando a nossa mãe morre, é tempo de acabarmos com as infantilidades.
Escolhi o nome de Sienna. O meu pai queria ser Billy Bob, mas eu opus-me a que ele ficasse com as iniciais B.B. Ele rolou os olhos, mas fez-me a vontade. Visto ter sido eu a fazer as honras dos nomes, ele escolheu a cidade. Partimos para Seattle; o meu pai sempre quisera conhecer a costa oeste.
Demo-nos melhor em Seattle, cada um a seu modo. O meu pai voltou à Sears e, sem nunca revelar que já tinha trabalhado noutra loja da cadeia,
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foi tomado por uma pessoa cheia de talento natural e subiu rapidamente na hierarquia. Eu matriculei-me noutra escola pública sobrelotada e subfinanciada, onde desapareci nas massas sem nome e sem rosto dos alunos com uma boa média.
Também cometi o meu primeiro ato de rebelião: aderi a uma igreja.
A pequena igreja congregacional ficava a um quarteirão de nossa casa. Passava por lá todos os dias, no caminho para a escola. Um dia, espreitei lá para dentro. No dia seguinte, sentei-me num dos bancos. No terceiro, dei por mim a falar com o reverendo.
Deus deixa-nos ir para o Céu, queria eu saber, se formos enterrados com o nome errado?
Nessa tarde falei longamente com o reverendo. Usava óculos com lentes tão grossas como fundos de garrafa. Cabelo grisalho ralo. Um sorriso bondoso. Quando cheguei a casa, já passava das seis, o meu pai estava à espera e não havia comida na mesa.
- Onde estiveste? - inquiriu ele.
- Demorei-me...
- Tens noção de como eu estava preocupado?
- Perdi o autocarro. Estive a falar com um professor acerca de um trabalho de casa. Eu... Tive de vir a pé para casa. Não quis incomodar-te no trabalho. - Estava incoerente, com as faces a arder, nada igual a mim própria.
O meu pai fitou-me de sobrolho franzido durante muito tempo.
- Podes sempre telefonar-me - disse ele abruptamente. - Estamos nisto juntos, miúda.
Afagou-me o cabelo.
Senti a falta da minha mãe.
Depois fui para a cozinha e comecei a preparar um guisado de atum.
Mentir. Era uma nova descoberta, tão viciante como uma droga. Pouco depois disse ao meu pai que tinha aderido ao grupo de debates. Isso, bem entendido, dava-me uma série de tardes que podia passar na igreja, a ouvir os ensaios do coro, a falar com o reverendo, a absorver simplesmente o espaço.
Sempre tive cabelo escuro comprido. A minha mãe costumava fazer-me tranças quando eu era pequena. Contudo, na adolescência transformei-o numa cortina impenetrável que me caía sobre o rosto. Um dia, concluí que o cabelo estava a bloquear a verdadeira beleza dos vitrais, pelo que fui à barbearia da esquina e cortei-o.
O meu pai não me falou durante uma semana.
E descobri, sentada na igreja, a ver os meus vizinhos entrarem e saírem, que as minhas enormes sweatshirts eram demasiado desprovidas de graça, que as minhas calças de ganga largas me ficavam mal. Gostava de ver as pessoas com cores vivas. Gostava da maneira como isso atraía as atenções para os seus rostos e fazia com que se reparasse nos seus sorrisos. Aquelas pessoas pareciam felizes. Normais. Afetuosas. Aposto que não faziam uma pausa de três segundos sempre que alguém lhes perguntava o nome.
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Portanto, comprei roupas novas. Para o grupo de debates. E comecei a passar todas as noites de segunda-feira na sopa dos pobres; uma exigência da escola, segundo disse ao meu pai. Toda a gente tinha de cumprir umas tantas horas de serviço comunitário. Por acaso, havia um rapaz simpático que também fazia voluntariado lá. Cabelo castanho. Olhos castanhos. Mart Fisher.
Mart levou-me ao cinema. Não me lembro que filme era. Tive consciência da sua mão no meu ombro, das minhas próprias palmas suadas, da súbita sensação de falta de ar. Depois do filme, fomos comer um gelado. Estava a chover. Ele protegeu-me cabeça com o seu casaco.
Então, aconchegada naquele casaco que cheirava a água-de-colónia, ele deu-me o meu primeiro beijo.
Flutuei até casa. com os braços à volta da cintura. Um sorriso sonhador estampado no rosto.
O meu pai veio receber-me à porta. Cinco malas perfilavam-se atrás dele.
- Sei o que tens andado a fazer! - declarou ele.
- Chiu! - disse eu, pousando-lhe um dedo nos lábios. - Chiu! Passei pelo meu aturdido pai em passo de dança. Deslizei para o meu
quarto desprovido de janelas. E, durante oito horas, deixei-me ficar estendida na cama e permiti-me ser feliz.
Às vezes ainda penso em Mart Fisher. Será casado? Terá filhos? Contará histórias acerca da rapariga mais louca que jamais conheceu? Beijou-a uma noite e nunca mais a viu.
Quando me levantei na manhã seguinte, o meu pai tinha saído. Regressou por volta do meio-dia e meteu-me os falsos bilhetes de identidade na mão.
- E não quero ouvir comentários acerca dos nomes - disse ele, ao ver-me arquear as sobrancelhas para a minha nova identidade como Tanya Nelson, filha de Michael. - Tentar arranjar papéis de um momento para o outro já me custou dois mil dólares.
- Mas foste tu a escolher os nomes.
- Foram os únicos que o tipo podia dar-me.
- Mas foste tu quem trouxe os nomes - insisti.
- Está bem, está bem, como queiras.
Já tinha uma mala em cada mão. Eu mantive-me firme, de braços cruzados, expressão implacável:
- Tu escolheste os nomes, eu escolho a cidade.
- Quando estivermos no carro.
- Boston - disse eu.
Ele arregalou os olhos. Vi perfeitamente que tinha vontade de discutir. Mas regras são regras.
Uma família é um sistema.
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Quando se passa a vida inteira a fugir da Coisa Má, é-se obrigado a pensar como nos sentiremos no dia em que essa coisa acabe por nos apanhar. Creio que o meu pai nunca teve de saber isso.
Os polícias disseram que ele saiu do passeio e o táxi, que vinha a alta velocidade, o matou instantaneamente. Projetou o seu corpo pelo ar, a uma distância de seis
metros. A sua testa embateu no poste metálico de um candeeiro de iluminação pública, esmagando-lhe o rosto.
Eu tinha vinte e dois anos. Tinha finalmente deixado de me arrastar ao longo de um infindável cortejo de escolas. Trabalhava no Starbucks. Andava muito a pé. Poupei
dinheiro para comprar uma máquina de costura. Fundei o meu próprio negócio, fazendo cortinados personalizados e almofadas decorativas a condizer.
Gostava de Boston. Voltar à cidade da minha meninice não me deixara paralisada de terror. Pelo contrário. Sentia-me segura entre as massas em movimento constante.
Gostava de passear pelo jardim público, de ver as montras na Newbury Street. Até gostava do regresso do outono, quando os dias adquirem um perfume a carvalho e as
noites arrefecem. Arranjei um apartamento incrivelmente pequeno no North End, de onde podia ir a pé até ao Mikes e comer cannolis frescos sempre que me apetecia.
Pendurava cortinas. Arranjei um cão. Até aprendi a cozinhar tamales de milho. À noite, punha-me à janela protegida por barras do meu apartamento no quinto andar,
aconchegando as cinzas da minha mãe na palma da mão e vendo os desconhecidos que passavam lá em baixo.
Disse a mim própria que agora era adulta. Disse a mim própria que já não tinha nada a temer. O meu pai dirigira o meu passado. Mas eu era senhora do meu futuro
e não o passaria a fugir. Havia escolhido Boston por uma razão e tinha vindo para ficar.
Então, um dia tudo se conjugou. Peguei no Boston Heralde li a notícia na primeira página: vinte e cinco anos depois, tinham-me finalmente encontrado morta.
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A campainha do telefone.
Virou-se. Agarrou numa almofada. Comprimiu-a sobre o ouvido.
A campainha do telefone.
Arremessou a almofada, puxou os cobertores para cima.
A campainha do telefone.
Gemido. Abriu um olho com relutância. Duas e trinta e dois da manhã.
- Raios, raios, raios... - Estendeu a mão, procurou o auscultador às apalpadelas, puxou-o para a orelha. - Que é?
- Bem-disposto como sempre, pelos vistos.
Bobby Dodge, o novo detetive da polícia estadual do Massachusetts, gemeu mais alto.
- É só o meu segundo dia. Não podes dizer-me que vou ser chamado de urgência no meu segundo dia. Hei! - As suas células cerebrais despertaram um pouco tarde. - Espera
um segundo...
- Conheces o antigo hospital psiquiátrico de Mattapan? - inquiriu a detetive D.D. Warren de Boston.
- Porquê?
- Tem uma cena de crime.
- Queres dizer que o Departamento da Polícia de Boston tem uma cena de crime. Ainda bem para ti. vou dormir.
- Põe-te cá daqui a meia hora.
- D.D... - Bobby fez um esforço para se sentar na cama, agora já bem acordado, contra a sua vontade, mas nada divertido. Ele e D.D. conheciam-se há muito tempo,
mas duas e meia da manhã eram duas e meia da manha. - Se tu e os teus amigos querem chatear um novato, metam-se com alguém do vosso próprio departamento. Não tenho
idade para estas merdas.
- Tens de ver isto - disse ela simplesmente.
- Ver o quê?
- Meia hora, Bobby. Não ligues o rádio. Não ouças os comunicados da central. Quero que olhes para isto sem ideias pré-concebidas. - Em voz mais baixa, acrescentou:
- Bobby, prepara-te. Esta vai ser feia. E desligou.
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Para Bobby Dodge, não era novidade ser tirado da cama a meio da noite. Fora franco-atirador da STOP1 da Polícia Estadual do Massachusetts durante quase oito anos,
o que significava estar de serviço vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, e ser inevitavelmente chamado sobretudo aos fins de semana e feriados. Nessa
altura, isso não o incomodava. Gostava do desafio, adorava fazer parte de uma unidade de elite.
No entanto, há dois anos a sua carreira entrara em declínio. Bobby não fora apenas chamado para uma ocorrência; matara um homem. O departamento acabara por concluir
que se tratara de uso justificado de força letal, mas as coisas nunca mais lhe tinham parecido as mesmas. Há seis meses, quando apresentara a sua demissão da STOP,
ninguém tentara retê-lo. E, mais recentemente, quando fizera com êxito o exame para detetive, toda a gente manifestara a sua concordância: a carreira de Bobby precisava
de um novo impulso.
Portanto, ali estava ele, detetive da Brigada de Homicídios há dois dias, já com meia dúzia de casos ativos, mas não urgentes, entre mãos. O suficiente para servir
de aquecimento. Depois de provar que não era totalmente parvo, talvez o deixassem dirigir uma investigação. Ou então podia alimentar a esperança de apanhar um caso,
de ter a sorte de ser o detetive de serviço arrancado da cama para tratar de um incidente sério. Os detetives gostavam de gracejar que os homicídios ocorriam às
três e cinco da manhã ou às dez para as cinco da tarde. Mesmo a tempo de fazer com que o turno do dia começasse cedo e se prolongasse pela noite inteira.
Telefonemas a meio da noite eram os ossos do ofício. Só que esses telefonemas deviam vir de outro agente da polícia estadual, não de uma detetive da polícia de Boston.
Bobby franziu o sobrolho, tentando perceber. Regra geral, os detetives da polícia de Boston detestavam convidar os seus homólogos da polícia estadual para as suas
festas. Além disso, se um detetive do Departamento da Polícia de Boston pensasse sinceramente que precisava do auxílio da polícia estadual, o seu superior hierárquico
contactaria o superior hierárquico de Bobby e todos trabalhariam com a abertura e confiança que seria de esperar de um tal casamento de conveniência.
Mas D.D. tinha-lhe telefonado diretamente. O que o levou a teorizar, enquanto enfiava as calças, se debatia com uma camisa de mangas compridas e molhava a cara com
água, que ela não pretendia auxílio da polícia estadual. Pretendia o auxílio dele.
E isso deixava-o desconfiado.
Uma última paragem diante da cómoda, a trabalhar na luminosidade fraca da luz de presença. Encontrou o seu distintivo de detetive, o seu bipe,
1 Special Tactis and Operations Team - Unidade de Táticas c Operações Especiais. (N. da T.)
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a sua Glock calibre 40, a arma mais valorizada por qualquer detetive, o seu minigravador Sony. Consultou o relógio.
D.D. dera-lhe meia hora, mas ele conseguiria despachar-se em vinte e cinco minutos. O que lhe dava cinco minutos para perceber o que raio se passava.
Pela 1-93, Mattapan ficava a dois passos do prédio de três andares de Bobby na zona sul de Boston. Excecionalmente, das três às cinco da manhã a 1-93 não estava
coberta por uma gigantesca serpente de veículos, pelo que Bobby fez um bom tempo.
Saiu em Granite Avenue e virou à esquerda, por Gallivan Boulevard, indo dar a Morton Street. Parou ao lado de um velho Chevrolet num semáforo. Os ocupantes, dois
jovens negros, lançaram um olhar conhecedor ao seu Crown Vic. Brindaram-no com o seu melhor olhar impenetrável. Bobby correspondeu com um aceno alegre. Assim que o sinal ficou verde, os dois miúdos viraram bruscamente à direita e desapareceram a grande velocidade, indignados.
Mais um momento glorioso do policiamento comunitário.
As ruas destinadas ao comércio e fechadas ao trânsito deram lugar a uma zona residencial. Bobby passou por ruas laterais asfixiadas por filas de prédios de três andares, cada um dos quais tinha um aspeto mais desgastado e delapidado do que o anterior. Secções inteiras de Boston tinham sido revitalizadas nos últimos anos.
Habitações sociais tinham dado lugar a condomínios de luxo na zona ribeirinha. Cais abandonados tinham-se transformado em centros de convenções. Toda a cidade fora
estratégica e cosmeticamente reorganizada em função dos caprichos do enorme túnel da Interestadual 93.
Alguns bairros tinham ganho. Era evidente que isso não acontecera com Mattapan.
Mais um semáforo. Bobby abrandou, consultou o relógio. Faltavam oito minutos para a Hora Prevista de Chegada. Virou bruscamente à esquerda, contornando o Cemitério
de Mt. Hope. Daquele ângulo, podia olhar pela janela do seu lado quando a enorme terra de ninguém que era o Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston surgisse à vista.
com setenta hectares de luxuriantes espaços verdes arborizados dentro do perímetro urbano, o Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston era atualmente o projeto de
desenvolvimento mais contestado do estado. Ao mesmo tempo, na sua qualidade de antigo manicómio com um século de existência, era um dos sítios mais assustadores
da cidade.
Dois delapidados edifícios de tijolo empoleiravam-se no alto da colina, piscando o olho à população com janelas que tinham endoidecido à força de vidros partidos.
Gigantescos carvalhos e faias por podar arranhavam o céu noturno, com os ramos nus formando silhuetas de mãos deformadas.
Contava-se que o hospital fora construído no meio de um terreno florestado para proporcionar um ambiente "sereno" aos doentes. Ao fim de
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várias décadas de edifícios superlotados, de estranhos gritos noturnos e dois homicídios violentos, os habitantes locais ainda falavam de luzes que se acendiam aleatoriamente
no meio das ruínas, de gemidos arrepiantes vindos de baixo das pilhas de tijolos ruídos, de silhuetas fugazes avistadas entre as árvores.
Até ao momento, nenhuma dessas histórias desanimara os empreiteiros. A Audubon Society reservara um canto da propriedade, transformando-o num parque natural muito popular. Estava em curso a construção de um importante projeto para um novo laboratório da Universidade do Massachusetts, enquanto em Mattapan corriam boatos de um futuro bairro social ou talvez de uma nova escola secundária.
O progresso acontecia. Mesmo em instituições psiquiátricas assombradas.
Bobby virou a última esquina do cemitério e avistou por fim a festa. Ali, no canto esquerdo do local de construção. Gigantescos feixes de luz irromperam através das faias nuas, rasgando o denso negrume da noite sem lua. Mais luzes, minúsculos pontos vermelhos e azuis, ziguezagueavam entre as árvores, à medida que novos carros da polícia aceleravam pela estrada sinuosa em direção a um canto da propriedade. Bobby esperava ver o contorno do antigo hospital, uma ruína de três pisos relativamente pequena, mas os carros-patrulha desviaram-se e embrenharam-se mais profundamente no bosque.
D.D. não mentira. O Departamento da Polícia de Boston tinha uma cena de crime e, a avaliar pelo trânsito, era uma coisa em grande.
Bobby terminou o seu périplo do cemitério. Faltava um minuto para a Hora Prevista de Chegada quando passou pelo portão negro escancarado e rumou às ruínas na colina.
Encontrou quase logo o primeiro agente uniformizado. Estava parado no meio da estrada, envergando um colete de segurança cor de laranja e brandindo uma lanterna potente. Mal parecia ter idade suficiente para fazer a barba. Contudo, compôs as feições numa bela carranca enquanto escrutinava o distintivo de Bobby, depois soltou um resmungo desconfiado, ao constatar que o recém-chegado pertencia à polícia estadual.
- Tem a certeza que veio ao sítio certo? - inquiriu o miúdo.
- Não sei. Digitei "cena do crime" no MapQuest e ele indicou este endereço.
O miúdo fitou-o inexpressivamente. Bobby suspirou:
- Recebi um convite pessoal da detetive Warren. Se tem algum problema, fale com ela.
- Refere-se à sargento Warren?
- Sargento? Bem, bem, bem.
O miúdo devolveu as credenciais de Bobby com um gesto brusco e o detetive dirigiu-se para o cimo da colina.
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O primeiro edifício abandonado surgiu à sua esquerda. As janelas quadriculadas devolviam-lhe reflexos gémeos dos seus faróis. A estrutura de tijolo afundava-se nos alicerces, com as portas da frente fechadas a cadeado, o telhado a desintegrar-se de dentro para fora.
Bobby virou à direita, passando por uma segunda estrutura mais pequena e ainda mais degradada. Ali, as bermas da estrada estavam atulhadas de carros, estacionados para-choques contra para-choques, à medida que os automóveis dos detetives, a carrinha do médico legista e os veículos dos elementos da polícia técnica disputavam o espaço.
No entanto, os holofotes estavam mais longe. Um brilho distante nos bosques cerrados. Bobby só ouvia o zumbido do gerador, trazido na carrinha da polícia técnica para iluminar a festa. Ao que parecia, tinha uma caminhada pela frente.
Estacionou num campo invadido pelo matagal, ao lado de três carros-patrulha. Pegou numa lanterna, papel e caneta. Depois, pensando melhor, agarrou num casaco mais quente.
A noite de novembro estava fria, com uma temperatura que rondava os quatro graus, e envolta numa névoa ligeira. Não se via ninguém, mas o feixe de luz da sua lanterna iluminou o caminho calcado pelos investigadores da morte que tinham chegado antes dele. As suas botas rangiam pesadamente ao caminhar.
Ainda ouvia o gerador, mas nada de vozes. Agachou-se para passar por baixo de um maciço de arbustos, sentindo a terra pantanosa sob os seus pés antes de se firmar de novo. Atravessou uma pequena clareira, reparou numa pilha de lixo: madeira apodrecida, tijolos, alguns baldes de plástico. A deposição ilegal de lixo nos terrenos do hospital fora um problema durante anos, mas a maior parte desse lixo era deixado ao longo da cerca. Aquilo era muito para o interior da propriedade. Deviam ser restos do próprio hospital, ou talvez entulho de um dos recentes projetos de construção. Velhos ou novos, era impossível distinguir àquela luz fraca.
O ruído intensificou-se, o zumbido do gerador cresceu até se transformar num rugido baixo. Bobby afundou mais a cabeça na gola do casaco, protegendo os ouvidos. Veterano de dez anos de patrulha, estivera presente na sua quota-parte de cenas de crime. Conhecia o barulho. Conhecia o cheiro.
Mas aquela era a sua primeira cena de crime como detetive a sério. Pensou que era por esse motivo que lhe parecia tão diferente. Então transpôs uma última fileira de árvores e estacou.
Homens. Por toda a parte. A maior parte à paisana, uns quinze, dezoito detetives e uma boa dúzia de agentes uniformizados. Depois havia os homens com o cabelo grisalho, metidos em quentes sobretudos de lã. Agentes mais velhos, a maior parte dos quais Bobby reconheceu de várias festas de reforma em honra de outros pesos pesados. Avistou um fotógrafo, quatro membros da polícia técnica. Por fim, uma mulher solitária: se a memória não lhe falhava, era uma assistente do Ministério Público.
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Era muita gente, sobretudo tendo em conta a política, há muito implementada em Boston, que exigia um relatório escrito de quem quer que acedesse a uma cena de crime.
Isso tinha uma certa tendência para afastar os polícias de giro e, o que era ainda mais importante, as altas patentes.
Mas naquela noite estavam lá todos, caminhando em pequenos círculos à luz forte dos holofotes, batendo os pés no chão para se aquecerem. O centro das operações
parecia ser o toldo azul que se erguia ao fundo da clareira. Mas, daquele ângulo, Bobby continuava sem ver quaisquer sinais de restos mortais ou de indícios de que
existisse sequer uma cena de crime por baixo da proteção da cobertura de lona.
Via um campo, uma tenda e uma grande quantidade de investigadores da morte muito calados.
Isso fez com que os cabelos se lhe eriçassem na nuca.
Um som roçagante veio da sua esquerda. Virou-se e viu duas pessoas surgir na clareira, vindas de um segundo caminho. A frente vinha uma mulher de meia-idade, metida da cabeça aos pés num fato de Tyvek; seguia-a um homem mais novo, o seu assistente. Bobby reconheceu a mulher imediatamente. Era Christie Callahan, do Instituto de Medicina Legal. Callahan era a antropóloga forense.
- Ah, merda!
Mais movimento. D. D. emergira do toldo azul, como que por magia. O olhar de Bobby passou das suas feições pálidas e cuidadosamente compostas para o fato de Tyvek que a cobria e daí para o negrume de breu atrás dela.
- Ah, merda! - murmurou de novo, mas era demasiado tarde. D.D. foi direito a ele.
- Obrigada por teres vindo - disse ela. Partilharam um momento incómodo, em que ambos tentavam decidir se deviam trocar um aperto de mão, um beijo na face, qualquer coisa. Por fim, D.D. pôs as mãos atrás das costas e isso resolveu o assunto. Seria uma simples relação profissional.
- Não quis desiludir um sargento - retorquiu Bobby.
Ela esboçou um sorriso tenso perante aquele reconhecimento do seu novo título, mas não comentou; não era o tempo nem o lugar para isso.
- O fotógrafo já tirou a primeira ronda de fotografias - disse ela, num tom enérgico. - Estamos à espera que o operador de vídeo dê a sua tarefa por concluída e depois podes ir lá abaixo.
- Lá abaixo?
- A cena é subterrânea. A entrada está por baixo do toldo. Não te preocupes; pusemos lá uma escada, portanto, não é de difícil acesso.
Bobby fez uma pausa, absorvendo a informação.
- De que tamanho?
- A câmara tem aproximadamente dois por três metros. Limitamos o número de pessoas lá em baixo a três de cada vez, ou ninguém se consegue mexer.
- Quem a encontrou?
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- Uns miúdos. Descobriram-na ontem à noite, calculo eu, enquanto se entregavam aos prazeres da bebida eou outras atividades recreativas semelhantes. Acharam que seria muito fixe regressarem esta noite com uma lanterna. Não repetirão a graça.
- Ainda aí estão?
- Não. Os técnicos de emergência médica deram-lhes sedativos e levaram-nos. É melhor assim. Não tinham qualquer utilidade para nós.
- Muitos agentes à paisana - comentou Bobby, olhando em redor.
- Pois.
- O detetive responsável? Ela levantou o queixo:
- Sou eu a felizarda.
- Lamento, D.D.
Ela fez uma careta, com o rosto mais sombrio, agora que estavam os dois sozinhos.
- Não duvides.
Alguém pigarreou atrás deles.
- Sargento?
O operador de vídeo emergira de baixo da lona e esperava que D.D. reconhecesse a sua presença.
- Voltaremos a filmar a intervalos certos - disse-lhe ela, voltando-se de novo para a multidão reunida. - Mais ou menos de hora a hora, para mantermos tudo atualizado. Podes ir beber um café, se quiseres, há uma garrafa térmica na carrinha. Mas não te afastes, Gino. Para o que der e vier.
O agente fez um sinal de assentimento e dirigiu-se para a carrinha onde o gerador trovejava energicamente.
- Muito bem, Bobby, é a nossa vez.
Começou a andar, sem esperar para ver se ele a seguia.
Sob o toldo azul, Bobby encontrou uma pilha de fatos-macaco de Tyvek, bem como proteções para os sapatos e redes de cabelo. Envergou o rato de material fino como papel sobre as suas roupas, enquanto D.D. trocava as proteções de sapatos sujas por umas novas. Havia duas máscaras de gás ao lado dos fatos-macaco, mas D. D. não pegou nelas, pelo que Bobby fez o mesmo.
- Eu vou à frente - disse D.D. - Grito "Livre" quando chegar ao fundo e depois vais tu.
Gesticulou em direção ao fundo do toldo e Bobby avistou um brilho fraco que se escoava de uma abertura no solo, com cerca de sessenta por sessenta centímetros. O topo de uma escada de mão metálica sobressaía do rebordo de terra. O detetive teve uma estranha sensação de déjà-vu, como se tivesse obrigação de saber exatamente o que estava a ver.
Então, no instante seguinte, percebeu. Sabia por que motivo D.D. lhe telefonara. E sabia o que ia ver quando descesse ao poço.
D.D. acariciou-lhe o ombro com as pontas dos dedos. O toque dela assustou-o. Estremeceu e ela recuou imediatamente. Os seus olhos azuis estavam sombrios, demasiado grandes para o seu rosto pálido.
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- Até já, Bobby - disse ela em voz baixa. Desapareceu pela escada abaixo.
Passados dois segundos, voltou a ouvir a voz dela:
- Tudo livre.
E Bobby desceu ao abismo.
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Não estava escuro. Tinham sido colocados focos no canto e penduradas firas de iluminação no teto; a polícia técnica precisava de luzes fortes para o seu trabalho laborioso.
Bobby manteve o olhar fixo diante de si, respirando frouxamente pela boca e absorvendo a cena do crime aos poucos.
A câmara era profunda, com pelo menos um metro e oitenta de altura; conseguia ficar de pé sem dificuldade. Era suficientemente larga para que três pessoas pudessem estar lado a lado e prolongava-se à sua frente com um comprimento de quase dois corpos. Não era um mero poço natural, pensou logo Bobby, mas um espaço construído intencional e metodicamente.
A temperatura era fresca, mas não gelada. Lembrava-lhe umas grutas que visitara na Virgínia: o ar mantinha-se a uma temperatura constante de treze graus, como uma câmara frigorífica.
O cheiro não era tão mau como ele temia. Um cheiro a terra misturado com um ligeiro odor a decomposição. O que quer que tivesse acontecido ali, já estava quase terminado, daí a presença da antropóloga forense.
Bobby apalpou a parede de terra com a mão enluvada. Parecia terra batida, ligeiramente estriada. Não era bastante irregular para ter sido cavada com uma pá; aliás, o espaço devia ser demasiado grande para esse tipo de trabalho. Calculou que teria sido aberta com uma retroescavadora. Talvez se tratasse de uma fossa sética, engenhosamente adaptada com outro propósito em mente.
Avançou um passo e chegou à primeira viga, uma tábua velha e lascada. Fazia parte de um botaréu tosco que formava um arco sobre o compartimento. Um segundo botaréu erguia-se a um metro do primeiro.
Explorou o teto com as pontas dos dedos. Não era de terra, mas de contraplacado.
D.D. reparou no gesto dele.
- O teto é todo de madeira - informou. - Completamente coberto de terra e entulho, exceto na abertura, onde deixou avista uma placa de madeira que se podia tirar e pôr. Quando aqui chegámos, parecia um monte de vulgar entulho largado no meio de um campo ao abandono.
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Nunca se adivinharia... Nunca se saberia... - Suspirou, baixou os olhos, depois fez um esforço para reagir.
Bobby fez um brusco aceno de assentimento. O espaço estava bastante limpo e dispunha de um mobiliário espartano: um velho balde de plástico de vinte litros colocado ao lado da escada de mão, as letras tão apagadas pelo tempo que tinham ficado reduzidas a sombras desvanecidas; uma cadeira de metal dobrada, com os cantos enferrujados, encostada à parede da esquerda; uma estante metálica, que ocupava todo o comprimento da parede do fundo, revestida de persianas de bambu à beira de se desintegrarem.
- A escada original? - perguntou Bobby.
- Uma escada de metal - respondeu D.D. - Já a embalámos como prova.
- Disseste que havia uma tampa de contraplacado a disfarçar a abertura? Encontraste paus adequados nas proximidades?
- Um com cerca de noventa centímetros de comprimento por três de diâmetro. A casca está gasta. Levanta a tampa de contraplacado mais ou menos como seria de esperar.
- E as prateleiras? - Bobby deu um passo na direção da estante metálica.
- Ainda não - atalhou D.D. num tom brusco.
Bobby disfarçou a surpresa com um encolher de ombros, depois voltou-se para a encarar; afinal, a festa era dela.
- Não vejo muitos marcadores da polícia técnica - observou ele por fim.
- Tudo parece estar limpo. Creio que o sujeito a tinha encerrado. Utilizou-a. Por uns tempos, sou capaz de apostar, até que, um belo dia, a deixou para trás.
Bobby fitou-a intensamente, mas ela não aprofundou a ideia.
- Parece antiga - comentou ele.
- Abandonada - especificou D.D.
- Tens uma data?
- Nada de científico. Teremos de aguardar o relatório da Christie. Bobby esperou de novo, mas, mais uma vez, D.D. recusou-se a fornecer informações adicionais.
- Pois, muito bem - disse ele, passado um momento. - Parece um trabalho dele. Mas tu e eu só dispomos de detalhes em segunda mão. Contactaste os detetives que trabalharam na cena de crime original?
D.D. abanou a cabeça:
- Estou aqui desde a meia-noite. Ainda não tive oportunidade de estudar o primeiro processo. Mas foi há muitos anos. Os agentes que trabalharam nele já devem estar reformados.
- Dezoito de novembro de 1980 - esclareceu Bobby baixinho. D.D. contraiu a boca numa expressão tensa.
- Sabia que te lembrarias - murmurou num tom sombrio. Endireitou os ombros. - Que mais?
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- O poço era mais pequeno, um metro e vinte por um e oitenta. Não me recordo de ver qualquer referência a vigas no relatório da polícia. Creio que é seguro dizer que era menos sofisticado do que este. Jesus. Ler uma descrição não é o mesmo que ver com os nossos próprios olhos. Jesus.
Apalpou novamente a parede, sentindo a terra batida. Catherine Gagnon, de doze anos, passara quase um mês naquela primeira prisão subterrânea, vivendo num negrume vazio e intemporal, interrompido apenas pelas visitas do seu captor, Richard Umbrio, que a mantinha como escrava sexual. Tinha sido encontrada por acaso, pouco antes do Dia de Ação de Graças, por um grupo de caçadores que tropeçaram na cobertura de contraplacado e ficaram aterrados ao ouvir os seus gritos abafados lá em baixo. Catherine fora salva; Umbrio, enviado para a prisão.
A história podia ter ficado por aí, mas não fora assim.
- Não me lembro de qualquer referência a outras vítimas durante o julgamento de Umbrio - disse D.D.
- Pois não.
- Mas isso não significa que nunca o tivesse feito.
- Pois não.
- Ela pode ter sido a sua sétima vítima, ou a oitava, ou a nona, ou a décima. Ele não era homem para falar, portanto, tudo é possível.
- Sem dúvida. Tudo é possível. - Bobby compreendia o que D.D. deixara por dizer: E não podemos propriamente perguntar-lhe. Umbrio morrera dois anos antes, baleado por Catherine Gagnon, em circunstâncias que tinham assinalado o verdadeiro dobre a finados da carreira dele na STOP. Era engraçado como certos crimes se prolongavam incessantemente, mesmo passadas décadas.
O olhar do detetive voltou às prateleiras tapadas, que D.D. continuava a evitar. Mas ela não lhe telefonara às duas da manhã para lhe mostrar uma câmara subterrânea. A polícia de Boston não destacara toda aquela gente por um poço quase vazio.
- D.D.? - insistiu ele em voz baixa. Ela fez um sinal de assentimento,
- Podes ver por ti mesmo. Estas, Bobby, são as que não foram salvas. São as que ficaram presas no escuro.
Bobby manuseou as persianas com cuidado. Os cordões pareciam muito velhos e desfaziam-se nas suas mãos. Algumas das delgadas vergas de bambu entrelaçado estavam a lascar, raspando nos fios, tornando a persiana difícil de enrolar. Ali, o cheiro era mais intenso. Doce, quase avinagrado. As mãos tremiam-lhe contra vontade e teve de fazer um esforço para acalmar as batidas do coração.
Estar simultaneamente dentro e fora do momento. Dissociado. composto. Concentrado.
A primeira persiana subiu. Depois a segunda.
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No fim, o que o ajudou mais foi a total incompreensão.
Sacos. Sacos de lixo, de plástico transparente. Seis ao todo. Três na prateleira de cima, três na de baixo, dispostos lado a lado, muito bem atados no topo.
Sacos. Seis ao todo. Plástico transparente.
Bobby recuou, cambaleando.
Não tinha palavras. Sentia a boca aberta, mas nada acontecia, nada lhe saía dos lábios. Limitou-se a olhar. E a voltar a olhar, porque uma coisa assim não podia existir, não podia ser. O seu cérebro via, rejeitava, depois via a imagem e lutava de novo com ela. Não era capaz... Não podia...
Bateu com as costas na escada. Pôs as mãos atrás de si e crispou-as nos degraus de metal com tanta força que sentiu as arestas enterrarem-se na carne. Concentrou-se nessa sensação, na dor aguda. Isso estabilizou-o. Permitiu-lhe não ter de gritar.
D.D. apontou para o teto, onde fora pendurada uma das fitas de iluminação.
- Não fomos nós que pendurámos aqueles dois ganchos - explicou em voz baixa. - Já lá estavam. Não encontrámos nenhuma lanterna, mas presumo...
- Sim - concordou Bobby roucamente, ainda a respirar pela boca.
- Sim.
- É a cadeira, bem entendido.
- Sim, sim. É a porra da cadeira.
- É, hum, mumificação húmida - disse D.D. em voz trémula, esforçando-se por se controlar. - Foi o que a Christie lhe chamou. Ele dobrou os corpos, enfiou cada um
no seu saco de plástico e amarrou o topo do saco. Quando a decomposição se iniciou... bem, os líquidos não tinham para onde ir. Basicamente, os corpos ficam em salmoura
nos seus próprios fluidos.
- Filho da mãe!
- Detesto o meu trabalho, Bobby - sussurrou D.D. de súbito, com veemência. - Valha-me Deus, nunca quis ver uma coisa assim. - Tapou a boca com a mão. Por um momento, pareceu que se ia abaixo, mas controlou-se, manteve-se firme. No entanto, virou as costas às prateleiras de metal. Mesmo para uma veterana da polícia, certas coisas exigem demasiado esforço.
Bobby teve de se obrigar a largar as travessas metálicas da escada de mão.
- É melhor subirmos - declarou D.D. com vivacidade. - A Christie deve estar à nossa espera. Só precisava de ir buscar sacos para os corpos.
- Está bem. - Mas Bobby não se virou para a escada. Em vez disso, regressou às prateleiras, à visão que o seu cérebro não conseguia aceitar, mas nunca esqueceria.
com o tempo, os corpos haviam ficado cor de mogno. Não eram os invólucros secos e vazios que vira em exposições de múmias egípcias. Tinham uma aparência robusta, quase coriácea, cada traço ainda bem distinto.
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Seguiu com o olhar as linhas longas, semelhantes a cordas, dos braços incrivelmente magros que envolviam pernas suavemente arredondadas, dobradas pelos joelhos. Contou dez dedos, entrelaçados à altura dos tornozelos. Distinguia cada um dos rostos, as bochechas encovadas, a ponta aguda do queixo repousando sobre os joelhos. Tinham os olhos fechados. As bocas cerradas. Os cabelos colados ao crânio, fios longos e escorridos a cobrir-lhes os ombros.
Eram pequenas. Estavam nuas. Eram do sexo feminino. Crianças, meras crianças, acocoradas dentro de sacos de lixo transparentes dos quais nunca escapariam.
Bobby compreendeu por que motivo os detetives não diziam palavra.
Estendeu a mão enluvada, tocou levemente no primeiro saco. Não sabia porquê. Não havia nada que pudesse dizer, nada que pudesse fazer.
Os seus dedos pousaram sobre um delgado fio de metal. Arrancou-o das pregas que se formavam no topo do saco e deparou com um pequeno medalhão de prata. Tinha apenas um nome gravado: Annabelle M. Granger.
- Ele etiquetava-as? - praguejou, furioso.
- Era mais como trofeus. - D.D. viera pôr-se ao seu lado. Passou a mão enluvada por trás de outro saco e revelou cuidadosamente um pequeno ursinho esfarrapado que pendia de um cordel. - Creio eu... Que diabo, não sei, mas cada saco tem um objeto. Algo com significado para ele. Ou para ela.
- Deus!
Agora a mão de D.D. repousava sobre o seu ombro. Ele não se apercebera da força com que cerrara os maxilares até sentir o toque dela.
- Temos de ir, Bobby.
- Sim.
- A Christie precisa de trabalhar.
- Sim.
- Bobby...
Ele arrancou a mão do saco com um gesto brusco. Olhou para elas uma última vez, sentindo a pressão, a necessidade, de gravar cada imagem no cérebro. Como se pudesse trazer-lhes conforto saberem que não seriam esquecidas. Como se ainda tivesse importância para elas saberem que não estavam sozinhas no escuro.
Dirigiu-se para a escada. Ardia-lhe a garganta. Não conseguia falar.
Respirou fundo três vezes e irrompeu pela abertura, sob a lona azul-clara.
De volta à noite fria e brumosa. De volta ao brilho dos holofotes. De volta ao ruído dos helicópteros das televisões, que tinham finalmente farejado a história e voavam em círculo no céu.
Bobby não foi para casa. Poderia fazê-lo. Viera a título de favor a D.D. Confirmara as suspeitas dela. Ninguém questionaria a sua partida.
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Serviu-se de uma chávena de café quente na carrinha da polícia técnica. Encostou-se ao flanco do veículo, embotado pelo ruído branco do gerador. Não chegou a beber o café. Limitou-se a fazer girar a chávena entre os dedos trémulos, uma e outra vez.
Eram seis da manhã, o Sol começou a espreitar acima da linha do horizonte. Christie e o seu assistente trouxeram os corpos para a superfície, agora já envoltos em sacos pretos para cadáveres. Cabiam três em cada maca, o que representou duas viagens até à carrinha do médico legista. A primeira paragem seria no laboratório da polícia de Boston, para que os sacos de lixo que continham os corpos pudessem ser polvilhados em busca de impressões digitais. Em seguida, os restos mortais seguiriam para o laboratório do Instituto de Medicina Legal, onde seriam efetuadas as autópsias.
Quando Christie partiu, a maioria dos detetives seguiu-lhe o exemplo. Aquele tipo de cenas de crime eram dirigidas pela antropóloga forense, portanto, não restava muito que fazer depois da partida dela.
Bobby despejou o seu café frio e deitou a chávena para o lixo.
Estava à espera no banco do passageiro do carro de D.D. quando ela saiu finalmente dos bosques. Então, porque se tinham amado outrora e até sido amigos depois disso, Bobby aconchegou a cabeça dela no seu ombro e abraçou-a enquanto ela chorava. i
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O meu pai adorava velhos ditados. Entre os seus favoritos: "Homem prevenido vale por dois." A prevenção, para o meu pai, era tudo. E começou a preparar-me no instante em que saímos de Massachusetts.
Começámos por segurança básica para crianças de sete anos. Nunca aceitar doces de desconhecidos. Nunca sair da escola com ninguém, nem mesmo com uma pessoa conhecida, a menos que dissesse a senha correta. Nunca me aproximar de um carro que me abordasse. Se o motorista quer que lhe indiquem o caminho,é remetê-lo para um adulto. Anda à procura de um cachorrinho perdido? E remetê-lo para a polícia.
Aparece um desconhecido no meu quarto a meio da noite? É gritar, berrar, bater nas paredes. Por vezes, explicou o meu pai, quando uma criança está profundamente aterrorizada, fica incapaz de utilizar as cordas vocais; nesse caso, é pontapear os móveis, derrubar um candeeiro, partir pequenos objetos, soprar no apito de alarme, tudo o que for necessário para fazer barulho. Podia destruir a casa toda, garantiu-me o meu pai, que, nessa situação, os meus pais não se zangariam.
Luta, disse-me o meu pai. Dá pontapés nos joelhos, unhadas nos olhos, dentadas na garganta. Luta, luta, luta.
com a idade, as minhas lições tornaram-se mais ativas. Karaté para a técnica. Atletismo para a velocidade. Indicações de segurança avançadas. Aprendi a trancar sempre a porta da frente, mesmo quando estava em casa em plena luz do dia. Aprendi a nunca abrir a porta sem espreitar primeiro pelo óculo e a nunca falar com alguém que não conhecesse.
Andar com a cabeça levantada, num passo decidido. Estabelecer contacto visual, mas não o manter. Apenas o suficiente para que os outros saibam que estamos conscientes
do que nos rodeia, sem atrairmos demasiada atenção. Se me sentisse incomodada, devia juntar-me ao grupo mais próximo que estivesse à minha frente e seguir na sua
esteira.
Se alguma vez fosse ameaçada numa casa de banho pública, devia gritar "Fogo!"; as pessoas reagem mais depressa a uma ameaça de incêndio do que a gritos de violação. Se me sentisse incomodada num centro comercial, devia correr para a mulher mais próxima; as mulheres tendem a tomar medidas mais facilmente do que os homens, que não se sentem muito à vontade
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para se envolverem. Se alguma vez fosse confrontada por alguém que me apontasse uma arma, devia desatar a correr; mesmo os melhores atiradores têm dificuldade
em atingir um alvo móvel.
Nunca deixar a proteção da nossa casa ou local de trabalho sem a chave do carro na mão. Dirigir-se para o veículo com a chave espetada entre os dedos cerrados, como um espigão. Não destrancar a porta se estiver um desconhecido atrás de nós. Não entrar no carro sem olhar primeiro para o banco de trás. Uma vez lá dentro, manter sempre as portas trancadas; se precisarmos de ar, podemos abrir uma fresta de dois centímetros na janela.
O meu pai não acreditava em armas; lera que as mulheres tinham grandes probabilidades de serem desarmadas e verem a sua própria arma utilizada contra elas. Foi por isso que, até aos catorze anos de idade, usei um apito pendurado ao pescoço, para utilizar em caso de emergência, e andei sempre com spray de pimenta.
Contudo, nesse ano derrotei o meu primeiro adversário num torneio de pugilismo para juniores no ginásio local por knockout. Tinha trocado o karaté pelo kickboxinv e revelei bastante jeito para aquilo. Os espectadores ficaram horrorizados. A mãe do rapaz que eu arrasara chamou-me monstro. :
O meu pai levou-me a comer um gelado e disse-me que me tinha saído muito bem.
- Não que esteja a aprovar a violência, nota bem. Mas se alguma vez fores ameaçada, Cindy, não te contenhas. És forte, és rápida, tens instintos de lutadora. Bate
primeiro, pergunta depois. Nunca se está suficientemente preparado.
O meu pai inscreveu-me em mais torneios. Enquanto aperfeiçoava as minhas aptidões, aprendi a focar a minha raiva. Sou rápida. Sou forte. Tenho instintos de lutadora. Tudo correu bem até que comecei a vencer demasiado, o que, bem entendido, atraiu atenções indesejadas.
Acabaram-se os torneios. Acabou-se a vida.
Por fim, comecei a atirar à cara do meu pai as suas próprias palavras:
- Preparados? Para que serve estarmos tão preparados, se não fazemos senão fugir?
- Pois é, querida - explicava ele infatigavelmente. - Mas se podemos fugir, é por estarmos tão preparados.
Mal saí do meu turno da manhã no Starbucks, fui direito ao Departamento da Polícia de Boston. Vinda de Faneuil Hall, só tinha de percorrer um quarteirão até ao metro, onde podia apanhar a linha laranja para Ruggles Street. Fizera os trabalhos de casa na véspera à noite e vestira-me para a ocasião: calças de ganga velhas, de cintura descaída e bainhas esfiapadas a arrastar pelo chão. Um top fino, cor de chocolate, sobre uma camisola preta e justa, de mangas compridas. Uma echarpe multicolorida, em tons de chocolate, preto, branco, rosa e azul, atada à cintura. Um enorme saco da April Cornell, azul às flores, a tiracolo.
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Deixei o cabelo solto, em fios escuros que me caíam até meio das costas, e pus umas gigantescas argolas de prata nas orelhas. Podia, e já o fizera algumas vezes, passar por hispânica. Pensei que essa aparência seria mais segura no sítio onde tencionava passar a tarde.
State Street estava uma confusão, como sempre. Inseri o meu bilhete na ranhura, desci a escada em direção ao cheiro rico e maravilhoso a urina que acompanha qualquer estação de metro. A multidão era típica de Boston: negros, asiáticos, hispânicos, brancos, ricos, velhos, pobres, profissionais liberais, operários, membros de gangues, todos a andar de um lado para o outro num colorido quadro urbano. Os liberais adoravam aquilo. A maior parte de nós desejava apenas ganhar a lotaria para poder comprar um carro.
Localizei uma senhora de idade que se deslocava em passos lentos, com uma neta adolescente a reboque. Parei ao lado delas, suficientemente longe para não me intrometer, mas bastante perto para parecer pertencer ao mesmo grupo. Todos olhavam fixamente para a parede oposta, todos tinham o cuidado de evitar os olhos uns dos outros.
Quando o comboio chegou por fim, avançámos como uma massa coesa, espremendo-nos para o tubo de metal. Depois as portas fecharam-se com um silvo e a carruagem arremessou-se pelo túnel dentro.
Naquela parte do trajeto não havia lugares suficientes. Fiquei em pé, agarrada a um varão metálico. Um rapaz negro, com uma fita vermelha na cabeça, uma sweatshirt demasiado grande e calças de ganga de corte largo, cedeu o lugar à senhora de idade. Ela agradeceu-lhe. Ele não disse nada.
Eu ia balouçando de um lado para o outro, com os olhos postos no mapa da rede de metro, codificado por cores, que encimava a porta, enquanto fazia o meu melhor para avaliar subtilmente o espaço em meu redor.
Homem asiático, não muito novo, classe operária, à minha direita. Sentado, de cabeça baixa, ombros descaídos; uma pessoa que tentava simplesmente chegar ao fim do dia. A senhora de idade ficara sentada ao lado dele, com a neta a montar guarda. Depois havia quatro jovens negros, envergando o uniforme oficial dos membros dos gangues. Os seus ombros oscilavam ao ritmo da carruagem, enquanto eles permaneciam sentados, com os olhos no chão, sem dizer palavra.
Atrás de mim ia uma mulher com duas crianças pequenas. A mulher parecia ser hispânica, as crianças, de seis e oito anos, brancas. Devia ser uma ama, a levar os seus jovens pupilos ao parque.
Duas raparigas adolescentes ao lado dela, ambas trajadas ao estilo chique urbano, com o cabelo entrançado, enormes piercings de brilhantes a cintilar nas orelhas. Não me virei, mas classifiquei-as como dignas de atenção. As raparigas são mais imprevisíveis-do que os rapazes e, portanto, mais perigosas. Os homens posam, as mulheres têm tendência para passar ao confronto e depois, se não recuamos, atacam com facas ocultas.
No entanto, não estava demasiado preocupada com as raparigas; eram desconhecidas conhecidas. São os desconhecidos desconhecidos que podem deitar-nos abaixo.
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A paragem de Ruggles Street chegou sem incidentes. As portas abriram-se, eu saí. Ninguém me dispensou um segundo olhar.
Pus o saco ao ombro e encaminhei-me para as escadas.
Nunca tinha ido ao novo quartel-general da polícia, em Roxbury. Só ouvira as histórias de tiroteios a meio da noite, no parque de estacionamento, de pessoas a serem assaltadas mesmo à frente das portas do edifício. Ao que parecia, a nova localização fora uma aposta política com o objetivo de aburguesar Roxbury ou, pelo menos, de tornar o bairro mais seguro à noite. Pelo que tinha lido na Internet, não estava a dar grande resultado.
Apertei bem o saco contra o flanco e caminhei nas pontas dos pés, pronta para qualquer movimento súbito. A estação de Ruggles Street era grande, muito movimentada e húmida. Esgueirei-me destramente por entre aquela massa de humanidade. Mostra-te decidida e concentrada. Lá porque estás perdida, isso não é razão para mostrares
que o estás.
À saída da estação, ao fundo de um íngreme lanço de escadas, distingui a imponente antena de rádio à minha direita e percebi a deixa. Contudo, quando comecei a caminhar pelo passeio, uma voz escarninha bradou nas minhas costas:
- Tens bom aspeto, Tacol Queres provar um burrito com carne a sério?
Rodei nos calcanhares, avistei um trio de rapazes afro-americanos e mostrei-lhes o dedo. Eles limitaram-se a rir. O líder, que aparentava uns treze anos, levou as mãos à braguilha. Foi a minha vez de rir.
Isso abateu-lhes um pouco a garimpa. Fiz meia volta e retomei o meu caminho, com passos calmos e regulares. Cerrei as mãos com força, para as impedir de tremer.
O Quartel-General da Polícia de Boston não passava despercebido. Primeiro, porque era uma vasta estrutura de vidro e metal, erigida no meio de habitações sociais castanhas degradadas. Depois, porque tinha barricadas de betão a toda a volta da entrada principal, como se o edifício se encontrasse na Baixa de Bagdade. A segurança nacional em qualquer edifício do governo perto de si.
Hesitei pela primeira vez. Desde que decidira o que ia fazer, na véspera à noite, não me permitira pensar mais acerca do assunto. Planeara. Agira. E agora ali estava.
Pousei o saco. Tirei de lá um blazer de bombazina cor de chocolate de leite e vesti-o. Era o melhor que podia fazer para me aperaltar. Não que isso tivesse importância: não tinha quaisquer provas. Os detetives teriam simplesmente de acreditar ou não na minha história.
Lá dentro havia uma fila em frente do detetor de metais. O agente de serviço exigiu a minha carta de condução. Inspecionou o meu enorme saco. Por fim, olhou-me da cabeça aos pés, de um modo que devia inspirar-me a dizer: "Sim, estou a contrabandear armasbombasdroga para o quartel-general da polícia." Mas eu não tinha nada a dizer, pelo que ele me deixou passar.
Na receção, puxei do artigo de jornal, verificando mais uma vez o nome da detetive, embora, para ser franca, o soubesse de cor.
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- Ela está à sua espera? - indagou o agente uniformizado com uma expressão severa. Era um homem robusto, com um bigode farfalhudo. Lembrei-me imediatamente de Dennis Franz.
- Não.
Novo olhar da cabeça aos pés.
- Sabe, ela está muito ocupada.
- Diga-lhe só que Annabelle Granger está aqui. Ela gostará de saber isso.
O agente não devia prestar grande atenção às notícias. Encolheu os ombros, pegou no telefone, deu o meu recado a alguém. Passaram alguns segundos. A expressão dele não mudou. Limitou-se a encolher novamente os ombros, pousou o telefone e disse-me que esperasse.
Estava mais gente na fila, pelo que peguei no meu saco e fui para o meio do comprido átrio abobadado. Alguém montara uma exposição que documentava a história do Departamento da Polícia. Estudei todas as fotografias, li as legendas, percorri a exposição de uma ponta à outra.
Os minutos sucediam-se. As minhas mãos começaram a tremer. Pensei que devia fugir enquanto podia. Depois pensei que talvez me sentisse melhor se pudesse vomitar.
Por fim, ouvi passos.
Uma mulher apareceu e veio direito a mim. Calças de ganga moldadas ao corpo, botas de saltos altos e finos, uma camisa justa, de colarinho branco, e uma arma verdadeiramente grande metida num coldre à cintura. O rosto era emoldurado por uma massa de caracóis louros. Dava a impressão de que devia ser modelo. Até se verem os seus olhos. Duros, diretos, nada divertidos.
Esses olhos azuis fixaram-se em mim e, por um momento, algo lhe perpassou pelo rosto. Parecia ter visto um fantasma. Depois percorreu o espaço que nos separava.
Respirei fundo.
O meu pai estava enganado. Há coisas na vida para as quais não é possível estarmos preparados. Como a perda da nossa mãe quando ainda somos crianças. Ou a morte do pai antes de termos oportunidade de deixarmos de o odiar.
- Que diabo? - quis saber a sargento D.D. Warren.
- O meu nome é Annabelle Mary Granger - declarei. - Creio que anda à minha procura.
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Os gabinetes da Brigada de Homicídios da polícia de Boston pareciam as instalações de uma companhia de seguros. Luminosos, com grandes janelas, tetos falsos de três metros e meio de altura, bonita alcatifa azul-acinzentada. Os cubículos bege eram modernos e elegantes, dividindo o grande espaço soalheiro em pequenas áreas equipadas com secretárias, onde arquivadores pretos e armários superiores cinzentos eram decorados com plantas, fotografias de família, o mais recente trabalho artístico de uma criança do primeiro ciclo.
Achei o conjunto dececionante. Lá se iam todos aqueles anos dedicados a ver A Balada de Nova Iorque.
A rececionista endereçou um sorriso amistoso à sargento Warren, quando entrámos. O seu olhar pousou depois em mim, franco, despretensioso. Desviei os olhos, remexendo
no saco com os dedos. Teria aspeto de criminosa? De informadora? Ou talvez de familiar de uma vítima? Tentei ver-me através dos olhos da rececionista, mas não deu
resultado.
A sargento Warren conduziu-me a uma salinha pequena, sem janelas. Uma mesa retangular ocupava a maior parte do acanhado compartimento, mal deixando espaço para as cadeiras. Esquadrinhei as paredes, em busca de um espelho, de qualquer coisa que correspondesse às expectativas criadas pela televisão. As paredes eram nuas, pintadas de branco-marfim. Mas continuava sem conseguir descontrair.
- Café? - inquiriu ela com vivacidade.
- Não, obrigada.
- Agua, refrigerante, chá?
- Não, obrigada.
- Como queira. Já volto.
Deixou-me na sala. Pensei que isso devia significar que eu não tinha ar de culpada. Pousei o saco, estudei o espaço que me rodeava. Mas não havia nada para onde olhar. Nada para fazer.
A sala era demasiado pequena, os móveis, demasiado grandes. De repente, dei por mim a detestá-la.
A porta abriu-se de novo. Warren regressava, desta vez com um gravador nas mãos. Abanei imediatamente a cabeça:
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- Não.
Ela avaliou-me com frieza:
- Julgava que tinha vindo prestar um depoimento.
- Nada de gravações.
- Porque não?
- Porque vocês acabaram de me dar como morta e tenciono que as coisas continuem assim.
Ela pousou o gravador em cima da mesa, mas não o ligou. Olhou-me longamente. Eu devolvi-lhe também longamente o olhar.
Tínhamos a mesma altura, um metro e sessenta e dois. Mais ou menos o mesmo peso. Pela largura dos seus ombros, pelo ligeiro volume dos seus braços cruzados, percebi que ela também praticava exercício com pesos. Trazia a arma à cinta. Mas as armas têm de ser tiradas do coldre, apontadas, disparadas. Eu não tinha nenhuma dessas limitações.
Esse pensamento reconfortou-me. Descruzei os braços. Sentei-me. Passado um momento, ela fez o mesmo.
A porta abriu-se de novo. Entrou um homem, de calças castanho-claras e camisa azul-escura de mangas compridas, com as credenciais presas no cinto. Presumi que fosse outro detetive dos homicídios. Não era muito grande, andaria por um metro e setenta e sete ou um metro e setenta e nove, mas tinha uma constituição seca e vigorosa, que condizia com as feições esguias e duras. Mal me viu, também vacilou por um instante, depois recuperou o autodomínio e afivelou uma expressão impassível.
Estendeu-me a mão:
- Detetive Robert Dodge, da polícia estadual do Massachusetts.
Apertei-lhe a mão com uma certa insegurança. Os seus dedos eram calejados, o aperto de mão, firme. Prolongou-o mais tempo do que seria necessário, e compreendi que estava a avaliar-me, a tentar ler-me. Tinha olhos cinzentos frios, do tipo que avalia a caça.
- Quer água? Qualquer coisa para beber?
- Ela já fez de Martha Stewart. - Indiquei a sargento Warren com um gesto brusco de cabeça. - com o devido respeito, só quero despachar isto.
Os dois detetives trocaram um olhar. Dodge sentou-se na cadeira mais próxima da porta. O espaço parecia sobrelotado, fechando-se sobre mim. Pousei as mãos no colo, tentando mante-las quietas.
- O meu nome é Annabelle Mary Granger - comecei. A mão de Dodge estendeu-se para o gravador. Warren deteve-o com um gesto.
- Estamos em carácter oficioso - informou. - Pelo menos, de momento.
Dodge anuiu. Respirei fundo mais uma vez, tentando ordenar os pensamentos dispersos. Passara as últimas quarenta e oito horas a ensaiar mentalmente a minha história. A ler obsessivamente os artigos de primeira página acerca da "sepultura" encontrada em Mattapan, dos seis cadáveres que tinham sido recolhidos no local. Os detalhes eram escassos: a antropóloga
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forense apenas podia confirmar que os corpos eram femininos, a porta-voz da polícia acrescentara que a sepultura devia ter várias décadas. Tinham publicado um único nome, o meu; as restantes identidades permaneciam envoltas em mistério.
Na ausência de verdadeiras informações e com a necessidade de preencher vinte e quatro horas de cobertura, as personalidades da televisão tinham começado a especular loucamente. O local seria uma antiga vala utilizada pela máfia, talvez um legado de Whitey Bulger, o mafioso cuja produção assassina continuava a ser desenterrada por todo o estado. Ou talvez fosse um antigo cemitério do hospital psiquiátrico. Ou talvez o horrendo passatempo de um dos respetivos doentes homicidas. Havia uma seita satânica que operava em Mattapan. Os ossos eram vítimas do Julgamento das Bruxas de Salem.
Toda a gente tinha uma teoria. Exceto, suponho, eu própria. Não fazia sinceramente a menor ideia do que acontecera em Mattapan. E não fora ao quartel-general da polícia pela ajuda que poderia prestar-lhes, mas pela ajuda que, segundo esperava, eles poderiam prestar-me a mim.
- A minha família fugiu pela primeira vez quando eu tinha sete anos
- contei aos dois detetives. Depois, com uma velocidade crescente, lancei-me na minha narrativa. A sucessão de mudanças de casa, o infindável cortejo de falsas identidades. A morte da minha mãe. Depois, a do meu pai. Não aprofundei demasiado os detalhes.
O detetive Dodge tomou algumas notas. D.D. Warren concentrou-se sobretudo em observar-me.
Esgotei a história mais depressa do que esperava. Nada de grande final. Apenas O Fim. Sentia a garganta seca. Desejei ter o tal copo de água, afinal de contas. Remeti-me a um silêncio desconfortável, com uma consciência aguda de que ambos os detetives continuavam a estudar-me.
- Em que ano partiu? - Era o detetive Dodge, de lápis a postos.
- Outubro de 82.
- E quanto tempo ficou na Florida?
Fiz o meu melhor para recordar toda a lista. Cidades, datas, nomes supostos. O tempo esbatera mais os pormenores do que eu pensava. Em que mês nos tínhamos mudado para St. Louis? Eu tinha dez ou onze anos quando fomos para Phoenix? E os nomes... Em Kansas City éramos Jones, Jenkins ou Johnson? Qualquer coisa assim.
Comecei a mostrar-me cada vez menos segura e mais defensiva, e eles ainda nem sequer tinham chegado às perguntas difíceis.
- Porquê? - inquiriu a sargento Warren sem rodeios, quando terminei a lição de geografia. Abriu as mãos. - É uma história interessante, mas não disse por que motivo a sua família fugia.
- Não sei.
- Não sabe?
- O meu pai nunca me deu detalhes. Considerava que a tarefa dele era preocupar-se e a minha era ser criança.
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Warren arqueou as sobrancelhas numa expressão de dúvida. Não podia censurá-la por isso. Aos dezasseis anos, também eu encarava esse lugar-comum com ceticismo.
- Certidão de nascimento? - perguntou ela com secura.
- com o meu verdadeiro nome? Não tenho.
- Carta de condução, cartão da Segurança Social? A certidão de casamento dos seus pais? Uma fotografia de família? Deve ter qualquer coisa.
- Não.
- Não?
- Documentação original pode ser encontrada e usada contra nós. Soava como um papagaio. Creio que fora um papagaio quase toda a vida.
A sargento Warren inclinou-se para a frente. Assim de perto, vi as sombras escuras sob os seus olhos, as rugas finas e as faces pálidas de alguém que estava a trabalhar com poucas horas de sono e ainda menos paciência.
- Por que diabo veio cá, Annabelle? Não nos disse nada, não nos deu nada. Está a tentar aparecer nas notícias?
É isso que quer? Vai reclamar a identidade de uma
pobre rapariga morta para conseguir os seus quinze minutos de fama?
- Não é nada disso...
- Tretas!
- Já lhe disse: tive poucos minutos para fazer as malas e não me lembrei de levar o meu álbum de recortes.
- Que coisa tão conveniente.
- Hei! - Também começava a irritar-me. - Querem provas? Arranjem-nas. Afinal, vocês são a polícia. O meu pai trabalhava no MIT. Russel Walt Granger. Procurem, deve lá haver um registo. A minha família vivia no número 282 de Oak Street, em Arlington. Procurem, deve haver lá um registo. Aliás, procurem nos vossos próprios arquivos. A minha família inteira desapareceu sem deixar rasto a meio da noite. E quase certo que deve haver lá a porra de um registo.
- Se sabe tudo isso - replicou ela calmamente -, porque não procurou?
- Porque não posso fazer perguntas - explodi. - Não sei de quem tenho medo!
Afastei-me bruscamente da mesa, desgostosa da minha explosão. A sargento Warren endireitou-se com mais lentidão. Ela e o detetive trocaram outro olhar, provavelmente
só para me irritarem.
Warren levantou-se. Saiu da sala. Cravei resolutamente os olhos na parede, sem querer dar ao detetive Dodge a satisfação de ser a primeira a quebrar o silêncio.
- Água? - perguntou ele. Abanei a cabeça.
- Deve ser difícil perder os pais assim - murmurou ele.
- Oh, cale-se! Polícia bom, polícia mau. Julga que não vejo filmes? Ficámos em silêncio até a porta se abrir de novo. Warren reapareceu
sobraçando um grande saco de papel.
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Calçara um par de luvas de látex. Pousou o seu fardo, desenrolou o topo e retirou um objeto das profundezas do saco. Não era grande. Tratava-se de um delicado fio de prata com um pequeno medalhão oval. De tamanho adequado a uma criança.
Estendeu-o na palma da mão enluvada. Mostrou-me a parte da frente, gravada com uma filigrana de espirais. Depois abriu-o, revelando duas ovais vazias. Por fim, virou-o. Na parte de trás havia apenas um nome gravado: Annabelle M. Granger.
- Que sabe dizer-me acerca deste medalhão?
Fiquei a olhar para o medalhão durante muito tempo. Tinha a sensação de estar a caminhar num nevoeiro denso, procurando cuidadosamente nas brumas do cérebro.
- Foi um presente - murmurei por fim. Levei inconscientemente os dedos ao pescoço, como se ainda sentisse lá o medalhão, a oval de prata fria contra a minha pele. - Ele disse-me que não podia ficar com ele.
- Quem lhe disse isso?
- O meu pai. Estava zangado. - Pestanejei, tentando lembrar-me.
- Não... não sei porque estava tão zangado. Não tenho a certeza de saber. Gostava do medalhão. Lembro-me de pensar que era muito bonito. Mas quando o meu pai o viu, obrigou-me a tirá-lo. Disse-me que tinha de o deitar fora.
- Deitou?
Abanei lentamente a cabeça. Levantei os olhos para eles e, de repente, tive medo. - Fui até ao caixote do lixo - sussurrei. - Mas não consegui deitá-lo lá para dentro. Era tão bonito... Pensei que, se esperasse, talvez ele mudasse de opinião. E me deixasse usá-lo de novo. A minha melhor amiga veio ver o que eu estava a fazer.
Ambos os detetives se inclinaram para diante. Senti a tensão súbita que os invadira. E sabia que estavam a compreender onde a história nos levaria.
- Dori Petracelli. Entreguei o medalhão à Dori. Disse-lhe que podia ficar com ele emprestado. Pensei que poderia recuperá-lo depois, talvez usá-lo quando o meu pai não estivesse. Só que não houve depois. No espaço de poucas semanas, tínhamos feito as malas. Nunca mais voltei a ver a Dori.
- Annabelle - perguntou o detetive Dodge em voz baixa -, quem lhe deu o medalhão?
- Não sei. - Levei os dedos às têmporas, massajando-as. - Um presente. No alpendre. Embrulhado na tira de banda desenhada dos Peanuts. Só para mim. Mas sem etiqueta. Gostei dele. Mas o meu pai... ficou furioso. Não sei... não me lembro. Tinha havido outras coisas, pequenas, inconsequentes. Mas nada deixou o meu pai tão zangado como o medalhão.
Fez-se outra pausa. Depois o detetive Dodge falou de novo:
- O nome Richard Umbrio diz-lhe alguma coisa?
- Não.
- E Mr. Bosu?
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- Não.
- Catherine Gagnon?
Warren lançou-lhe um súbito olhar hostil. Mas para mim não tinha qualquer significado. Também não conhecia aquele nome.
- Encontraram... Encontraram este medalhão num dos corpos? Foi por isso que julgaram que era eu?
- Não podemos comentar uma investigação em curso - retorquiu a sargento Warren com firmeza.
Não lhe prestei atenção. Fixei os olhos no detetive Dodge.
- É a Dori? Foi ela que encontraram? Aconteceu-lhe alguma coisa? Por favor...
- Não sabemos - respondeu ele com doçura. Warren franziu de novo o sobrolho, mas depois encolheu os ombros.
- Vão ser precisas semanas para identificar os corpos - explicou abruptamente. - Por enquanto ainda não sabemos grande coisa.
- Então é possível.
- É possível.
Tentei absorver a notícia. Sentia-me fria e trémula. Cerrei a mão esquerda num punho e comprimi-a contra o estômago.
- Podem procurá-la? - perguntei. - Procurar o nome dela. Verão se tem um endereço, carta de condução. Os corpos são de criança, não é? Era o que diziam as notícias. Portanto, se ela tiver carta de condução...
- Pode ter a certeza de que investigaremos isso - disse a sargento Warren.
A resposta não me agradou. Voltei-me mais uma vez para o detetive Dodge. Sabia que estava a suplicar, mas não podia evitá-lo.
- E se nos desse o seu número? - sugeriu ele. - Contactá-la-emos.
- Não me telefonem, eu ligar-lhe-ei - murmurei.
- Pode entrar em contacto connosco quando quiser.
- E se se lembrar de mais alguma coisa acerca do medalhão... - sondou a sargento Warren.
- Vendo a história à televisão por cabo.
Ela fitou-me, mas eu fez um gesto depreciativo:
- Não acreditariam mais em mim do que vocês, além de que não posso dar-me ao luxo de voltar dos mortos.
Pus-me em pé, peguei no meu saco e dei-lhes o meu número de telefone de casa, quando se tornou evidente que era indispensável deixar-lhes algum contacto.
No último momento, já à porta, hesitei:
- Podem dizer-me o que lhes aconteceu? As raparigas?
- Ainda estamos a aguardar esse relatório - retorquiu a sargento Warren, no habitual tom oficial.
- Mas é assassínio, não é? Seis corpos, todos na mesma sepultura...
- Alguma vez foi ao Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston? - interrompeu o detetive Dodge calmamente. - E o seu pai?
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Abanei a cabeça. Tudo quanto sabia acerca do local eram as guerras de desenvolvimento imobiliário acerca das quais ouvira falar nas notícias. Se chegara a conhecer
o hospital em criança, agora nada significava para mim.
A sargento Warren acompanhou-me ao rés do chão. Descemos as escadas em silêncio, com os saltos das botas a rufarem sonoramente nos degraus, em batidas que ressoavam
até lá acima.
No fundo das escadas, ela abriu a pesada porta de metal que dava para o átrio e estendeu-me o seu cartão com a mão livre.
- Entraremos em contacto consigo.
- com certeza - repliquei, sem a menor convicção. Ela fitou-me com intensidade:
- E, Annabelle...
Abanei imediatamente a cabeça:
- Tanya. Uso o nome de Tanya Nelson. É mais seguro. Novo arquear de sobrancelhas.
- Tanya, se se lembrar de mais alguma coisa acerca do medalhão, ou dos dias anteriores à vossa partida da cidade...
Tive de sorrir.
- Não se preocupe - repliquei. - Aprendi a fugir com os melhores. Transpus as portas de vidro, saí para o ar fresco de outono e iniciei
a jornada de regresso a casa.
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Bobby gostaria de acreditar que tinha sido convidado a colaborar na investigação do Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston devido ao seu natural brilhantismo e
à sua sólida ética de trabalho. Contentar-se-ia até se tivesse sido acolhido a bordo graças à sua aparência atraente e sorriso sedutor. Mas sabia a. verdade: D.D.
precisava dele. Ele era o trunfo que ela mantinha de reserva no bolso de trás. D.D. sempre fora boa a pensar no futuro.
Não se queixava. Ser o único detetive da polícia estadual numa equipa da cidade era desconfortável na melhor das hipóteses, ou tornar-se alvo de doses diárias de ressentimento na pior. Mas aquele tipo de acordos tinham precedentes. D.D. declarara que ele era uma fonte de "conhecimento local" e pronto, raptara-o para servir os seus propósitos. O facto de ele ser novo na função e não estar embrenhado em nenhuma investigação importante tornou a transição rápida e relativamente indolor. Um dia tinha-se apresentado nas instalações da polícia estadual, no seguinte estava a trabalhar numa minúscula sala de interrogatórios em Roxbury, Massachusetts. A vida de um detetive era assim mesmo.
Do seu ponto de vista, não havia que hesitar: participar numa unidade especial envolvida num caso mediático daria peso ao seu currículo. E depois de ter entrado naquela câmara subterrânea, de ter visto aquelas seis raparigas... Não era o tipo de coisa a que um polícia voltasse as costas. Era preferível trabalhar no caso do que sonhar com aquilo noite após noite.
A maioria dos outros detetives parecia sentir o mesmo. O caso era pródigo em horas extraordinárias. Há quase dois dias que Bobby estava no quartel-general do Departamento da Polícia de Boston. Se alguém desaparecia, era apenas para ir tomar um duche e fazer a barba. A alimentação consistia em pizas ou comida chinesa, consumida à secretária ou talvez durante uma reunião da unidade especial.
Não que a vida real tivesse desaparecido como que por magia. Os detetives continuavam a ter de comparecer a audiências perante o Grande Júri, previamente marcadas, de trabalhar em súbitos desenvolvimentos dos casos que tinham entre mãos. A chegada de um informador. O assassínio de uma testemunha importante. Os outros casos não paravam só porque um novo assassínio, mais chocante, entrara subitamente na refrega.
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Depois, havia a vida familiar. Telefonemas de última hora, a pedir desculpa por o pai não poder assistir ao jogo de futebol do filho. Homens que desapareciam nas salas de interrogatório às oito da noite, em busca de um pouco de privacidade para o telefonema que teria de fazer as vezes de um beijo de boas-noites. O detetive Roger Sinkus tinha um filho de duas semanas. A mãe do detetive Tony Rock estava nos cuidados intensivos, a morrer de insuficiência cardíaca.
As investigações de homicídios importantes eram uma dança, um fluxo complexo de agentes que entravam e saíam, de atender a tarefas críticas e abandonar todas as outras. De solteiros, como Bobby, a ficarem no trabalho até às três da manhã, para que um pai recente, como Roger, pudesse ir para casa à uma. De toda a gente a tentar puxar a brasa à sua sardinha. De ninguém conseguir o que precisava.
E, no vértice de tudo aquilo, encontrava-se D.D. Warren. Era o primeiro grande caso para a sargento acabada de promover. Bobby tinha tendência para ser um pouco cínico acerca daquele tipo de coisas, mas até ele estava impressionado.
Para começar, D.D. conseguira manter uma das cenas de crime mais sensacionais da história de Boston em segredo durante quase quarenta e oito horas. Nenhuma fuga oriunda do Departamento da Polícia de Boston. Nenhuma fuga oriunda do Instituto de Medicina Legal. Nenhuma fuga oriunda do Ministério Público. Era um milagre.
Em segundo lugar, mesmo trabalhando sob a pressão cerrada de uma dúzia de destacadas personalidades da televisão, que bramavam por mais informações, peroravam acerca do direito do público a ser informado e acusavam a polícia de encobrir uma ameaça grave à segurança pública, ela conseguira, apesar de tudo, organizar e implementar uma investigação decente.
O primeiro passo em qualquer caso de homicídio era estabelecer uma cronologia. Infelizmente para a unidade especial, essas cronologias costumavam ser geradas pelo relatório de vitimologia, que incluía uma estimativa da hora da morte. Contudo, a antropologia forense não era propriamente uma análise que produzisse resultados
de um dia para o outro. Além disso, em Boston, o cargo de antropólogo forense não constituía um trabalho a tempo inteiro, o que significava que a perita em tempo parcial, Christie Callahan, estava a debater-se com os restos mortais de seis vítimas. Depois havia que ter em conta o estado de mumificação desses restos mortais que, sem dúvida, exigia toda uma série de testes fastidiosos, metódicos e assustadoramente dispendiosos. Vendo bem as coisas, o mais certo era terem o relatório de vitimologia mais ou menos na mesma altura em que o bebé do detetive Sinkus chegasse à faculdade.
D.D. recrutara um botânico da Audubon Society para os ajudar. O perito estudara o matagal, a erva e as árvores novas que tinham lançado raízes por cima da câmara subterrânea. A sua melhor estimativa: trinta anos de crescimento vegetal, mais ou menos uma década.
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Não era a datação mais precisa do mundo, mas proporcionou-lhes um ponto de partida.
Uma equipa de três detetives começou a criar uma lista de raparigas desaparecidas no Massachusetts, remontando a 1965. Visto os registos só estarem informatizados a partir de 1997, isso significava folhear manualmente as pilhas de documentos impressos de cada caso de pessoas desaparecidas entre 65 e 97, identificando os que continuavam por resolver e envolviam uma menor do sexo feminino, depois registar os números desses processos para serem estudados separadamente com base em microfichas. De momento, a equipa estava a completar seis anos de pessoas desaparecidas a cada vinte e quatro horas. Também estava a consumir cerca de meio litro de café a cada noventa minutos.
Claro que a linha direta da Crime Stoppers também endoidecera. O público só sabia que tinham sido encontrados os restos mortais de seis vítimas do sexo feminino nos terrenos do antigo Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston, e que o local parecia ter sido datado. Isso foi quanto bastou para desencadear uma enxurrada de telefonemas desaparafusados. Relatos de luzes estranhas que apareciam à noite na propriedade. Rumores da existência de uma seita satânica em Mattapan. Duas pessoas telefonaram afirmando ter sido raptadas por OVNIs e visto as seis raparigas a bordo da nave. (Palavra? Que aspeto tinham elas? Que roupa vestiam? Disseram como se chamavam?) Essas pessoas tinham uma certa tendência para desligar rapidamente.
Outros telefonemas davam mais que pensar: namoradas a denunciar ex-namorados que se tinham gabado de ter feito "uma coisa horrível" nos terrenos do antigo hospital. Outros eram arrasadores: pais que ligavam de todo o país para perguntarem se os restos poderiam pertencer à sua filha desaparecida.
Cada telefonema gerava um relatório, cada relatório tinha de ter seguimento por um detetive, incluindo a chamada mensal de uma mulher da Califórnia que insistia em afirmar que o seu marido era o verdadeiro Estrangulador de Boston, pela excelente razão de que nunca gostara dele. Eram precisos cinco detetives para darem vazão ao trabalho.
Isso deixava a unidade de D.D. complementada por Bobby, a braços com todo o tipo de tarefas de gestão. Elaborar uma lista de "sujeitos a entrevistar", com base nos diversos empreendimentos imobiliários e projetos comunitários em curso no local. Tentar obter uma lista de doentes e administradores de um hospital psiquiátrico que encerrara há trinta anos. Introduzir os elementos da cena do crime no VICAP1, dada a singularidade da câmara subterrânea.
Investigar o único resultado correspondente - Richard Umbrio tornara-se o projeto de Bobby. Fora buscar as microfichas do processo ori-
1 Violent Criminal Apprehension Program, uma base de dados onde é possível cruzar informação, no intuito de encontrar crimes com características semelhantes. (N. do E.)
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ginal, incluindo uma razoável coleção de fotografias. Também telefonara ao detetive responsável, Franklin Miers, que se reformara e se mudara para Fort Lauderdale oito anos antes.
Agora Bobby estava sentado na minúscula sala de interrogatórios que lhe servia de gabinete temporário, a estudar um diagrama feito à mão da câmara que servira outrora de prisão a Catherine Gagnon, de doze anos.
Segundo os apontamentos de Miers, Catherine fora raptada ao regressar a casa da escola. Umbrio, que ia a passar de carro pelo bairro, abordara-a e perguntara-lhe
se podia ajudá-lo a procurar um cão perdido. Catherine caíra na esparrela.
Umbrio, que aos dezanove anos já era corpulento como um urso, não teve qualquer dificuldade em dominar a esguia rapariga do sexto ano. Levara-a para uma câmara subterrânea que preparara nos bosques e fora aí que começara a verdadeira provação de Catherine. Quase trinta dias num poço debaixo de terra, onde o seu único visitante era um violador com um fraquinho por pão da Wonder Bread.
Se os caçadores não tivessem tropeçado no poço, o mais provável era Umbrio ter acabado por a matar. Em vez disso, Catherine sobrevivera, identificara o seu atacante
e depusera contra ele. Umbrio fora para a prisão, Catherine ficara entregue à tarefa de reconstruir a sua vida. Ficara conhecida como milagre do Dia de Ação de Graças, mas a sua vida adulta não se revelara assim tão milagrosa. O facto de ter estado nas mãos de um monstro deixara claramente as suas marcas.
As notas de Miers descreviam um caso chocante, mas rotineiro. Catherine era uma testemunha credível e os indícios encontrados no poço uma escada de mão de metal, um balde de plástico, a tampa de contraplacado - confirmavam a sua história.
Umbrio era culpado. Umbrio fora preso. E há dois anos, quando lhe fora concedida liberdade condicional, por engano, voltara a perseguir Catherine, com o mesmo zelo homicida de que dera provas antes da sua detenção.
Em resumo, Umbrio era uma aberração da natureza, um homicida monstruoso perfeitamente capaz de matar seis raparigas e de enterrar os seus corpos nos terrenos de uma instituição psiquiátrica abandonada.
O problema é que Umbrio estava bem seguro atrás das grades em finais de 1980. E Annabelle Granger afirmava que só recebera o medalhão encontrado com os Restos Mumificados Não Identificados N.º 1 em
1982. O que significava...?
Ao fim de quarenta e oito horas de uma investigação crítica, Bobby não tinha quaisquer respostas, mas estava a criar uma fascinante lista de perguntas.
D.D. regressou por fim, depois de acompanhar Annabelle à porta. Puxou uma cadeira e deixou-se cair no assento como uma marioneta cujos fios tivessem sido subitamente cortados.
- Valha-me Deus! - desabafou.
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- Tem piada, estava a pensar a mesma coisa. Ela passou a mão pelo cabelo emaranhado:
- Preciso de um café. Não, espera, se bebo mais disto vou começar a mijar colombianos. Preciso de qualquer coisa para comer. Uma sanduíche. Rosbife em pão de centeio. com queijo suíço e um daqueles pickles de funcho muito grandes. E um pacote de batatas fritas.
- Pensaste maduramente no assunto. - Bobby pousou o diagrama. D-D. podia ter figura de supermodelo, mas comia como um camionista. Quando os dois namoravam, nos seus tempos de novatos, já lá iam dez anos e só Deus sabia quantas alterações na carreira, Bobby depressa aprendera que o conceito dela de preliminares incluía geralmente um buffet à discrição.
Sentiu outra vez um pequeno baque, uma nostalgia dos bons velhos tempos que só se tinham tornado bons graças à memória distante e à crescente solidão.
- O almoço é a única coisa boa que me espera hoje - retorquiu D.D.
- É pena. As probabilidades de conseguires uma sanduíche de rosbife decente por aqui são de cerca de uma em dez.
- Bem sei. Até o almoço é uma porra de um sonho impossível.
Os seus ombros estremeceram. Bobby deu-lhe um momento. A verdade é que também ele tinha a cabeça a andar à roda. Naquela manhã, conseguira convencer-se de que qualquer semelhança entre a câmara nos terrenos do hospital e o trabalho de Richard Umbrio era mera coincidência. Depois aparecera Annabelle Granger. Nas palavras de D.D. valha-me Deus.
- Vais obrigar-me a dizê-lo? - perguntou ela por fim.
- vou.
- Não faz sentido nenhum.
- Pois não.
- Quer dizer, sim, há uma semelhança. Mas há imensa gente parecida. Não se diz que toda a gente tem um sósia desconhecido algures no mundo?
Bobby limitou-se a olhar para ela.
D.D. exalou pesadamente, depois endireitou-se na cadeira, apoiada ao tampo da mesa, a sua posição de reflexão favorita.
- Vamos rever tudo desde o princípio.
- Estou contigo.
- O Richard Umbrio utilizou uma câmara subterrânea; o nosso sujeito utilizou uma câmara subterrânea - começou D.D.
- A câmara do Umbrio tinha um metro e vinte por um e oitenta e, tanto quanto parecia, não passava de um esgoto alargado à mão - disse Bobby, gesticulando na direção do diagrama que decorava o tampo da mesa. - O nosso sujeito utilizou uma câmara de dois por três, equipada com reforços de madeira.
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- Ou seja, o mesmo, mas diferente.
- O mesmo, mas diferente - corroborou Bobby.
- Exceto quanto ao "equipamento": a escada, a tampa de contraplacado, o balde de plástico de vinte litros.
- Exatamente o mesmo - concordou Bobby.
D.D. bufou, fazendo esvoaçar as madeixas de cabelo:
- Talvez seja o equipamento lógico para uma câmara subterrânea?
- É possível.
- Agora, a cadeira dobrável de metal e as prateleiras...
- Diferente.
- Mais sofisticado - corrigiu D.D. em voz alta. - Câmara maior, mais mobiliário.
- O que nos leva à outra diferença fundamental...
- Richard Umbrio raptou uma única vítima conhecida, Catherine Gagnon, de doze anos. O nosso sujeito raptou seis vítimas, todas jovens do sexo feminino.
- Precisamos de mais informações para fazermos uma análise adequada - atalhou Bobby. - Primeiro, não sabemos se as seis vítimas foram raptadas ao mesmo tempo. As raparigas estariam relacionadas? Membros da mesma família, da mesma confissão religiosa, filhas de pais que trabalhavam para a máfia? Terá havido sobreposição das estadias na câmara? Aliás, foram sequer mantidas vivas lá em baixo? Isso é uma presunção que estamos a fazer com base no caso da Catherine Gagnon. Mas talvez aquele espaço servisse apenas de câmara funerária. Um lugar onde o sujeito podia ir... estar com elas. Uma galeria de exposição. Ainda não sabemos o que puxava os cordelinhos deste tipo. Podemos deitar-nos a adivinhar, mas não sabemos.
D.D. assentiu lentamente:
- Só que depois há a Annabelle Granger.
- Sim, pois, há isso.
- Santo Deus, ela é igualzinha à outra. Não estou maluca, pois não? A Annabelle podia ser irmã gémea da Catherine Gagnon.
- Podia ser gémea da Catherine.
- Quais são as probabilidades de uma coisa dessas? Duas mulheres tão parecidas uma com a outra, ambas a viverem na mesma cidade, ambas a tornarem-se alvo de loucos que gostam de raptar miúdas e enfiá-las em poços subterrâneos?
- É aí que viramos à esquerda para a Quinta Dimensão - concordou Bobby.
D.D. recostou-se na cadeira. O seu estômago roncou e ela massajou-o distraidamente.
- Que achaste da história dela?
Bobby suspirou, recostou-se por sua vez e cruzou as mãos atrás da cabeça. Era a sua pose de reflexão favorita.
- Não consigo chegar a uma conclusão.
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- Parece bastante rebuscada.
- Mas rica em detalhes.
D.D. soltou uma fungadela de desprezo:
- Ela baralhou metade dos detalhes.
- O que a torna ainda mais realista - contrapôs Bobby. - Não era de esperar uma lista perfeita de datas e nomes de uma pessoa que não passava de uma criança.
- Achas que o pai sabia qualquer coisa?
- Queres dizer que ele teria pressentido que a filha fora marcada, de algum modo, e que foi por isso que fugiram? - Bobby encolheu os ombros. - Não sei, mas é aí que a vida se complica. Se se passava alguma coisa em Arlington no outono de 1982, então não era o Richard Umbrio. Foi posto em prisão preventiva em finais de 80, julgado em 81 e começou a cumprir pena em Walpole em janeiro de 82. O que significa que a ameaça teria de vir de outra fonte.
- Isso é perturbador. Há alguma hipótese de a Catherine se ter enganado acerca de Umbrio? Teria sido outra pessoa a apanhá-la? Quer dizer, sim, ela identificou-o, mas afinal só tinha doze anos.
- Os eventos subsequentes parecem excluir essa hipótese, já para não falar da montanha de provas corroborantes.
- Bolas!
Bobby abanou a cabeça, igualmente frustrado.
- É difícil, sem o pai para entrevistar - comentou abruptamente. A Annabelle não sabe, ou não quer, dizer-nos o suficiente.
- É muito conveniente tanto o pai como a mãe estarem mortos - resmungou D.D. num tom sombrio. Lançou-lhe um olhar de través. - Claro que poderíamos perguntar ao Umbrio, mas, convenientemente, ele também está morto.
Bobby não caiu na asneira de pegar na deixa.
- Tenho a certeza que a Annabelle Granger não acha assim tão conveniente os pais terem falecido. Parece-me que ela também não se importaria de fazer umas perguntas ao pai.
- Tens a lista de cidades e nomes supostos? - inquiriu D.D. com brusquidão. - Investiga-os. Vê o que consegues descobrir.
É um bom exercício detetivesco.
- Oh, muito obrigada, doutora.
D.D. pôs-se em pé. Ao que parecia, a sua pequena conferência chegara ao fim. Mas quando chegou à porta, deteve-se:
- Já tiveste notícias dela?
Não era preciso especificar a quem se referia.
- Não.
- Achas que vai telefonar-nos?
- Enquanto continuarmos a chamar sepultura à cena do crime, provavelmente não. Mas no momento em que os meios de comunicação perceberem que se tratava de uma câmara subterrânea...
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D.D. fez um sinal de assentimento:
- Mantém-me informada.
- Talvez sim, talvez não.
- Robert Dodge...
- Se queres uma conversa telefónica oficial com Catherine Gagnon, pega tu no telefone. Não sou teu lacaio.
O seu tom era calmo, mas o olhar, duro. D.D. aceitou a censura com tanta elegância quanto seria de esperar. Ficou rígida, na ombreira da porta, com as feições geladas.
- Nunca tive problemas com o tiroteio, Bobby - declarou com brusquidão. - Eu, muitos dos agentes que ali estão, respeitámos o facto de teres feito o teu trabalho e compreendemos que, por vezes, esse trabalho é uma treta. Não foi o tiroteio, Bobby. Foi a tua atitude daí em diante.
Bateu com os nós dos dedos na ombreira.
- O trabalho policial assenta na confiança. Ou se pertence ou não. Pensa nisso, Bobby.
Atirou-lhe um último olhar significativo e desapareceu.
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Quando tinha nove anos, apaixonei-me por uma caneca de café. Estava à venda na lojinha de conveniência ao lado da escola primária que frequentava. Por vezes, ia
lá comprar guloseimas depois das aulas, com o dinheiro que os meus pais me davam para o leite. A caneca era cor-de-rosa, decorada com flores pintadas à mão, borboletas e um gatinho ruivo tigrado. Havia-as com vários nomes. Eu queria a que dizia Ãnnabelle.
A caneca custava três dólares e noventa e nove cêntimos, mais ou menos o equivalente a duas semanas de dinheiro para chocolatesleite. Nunca questionei o sacrifício que isso representava.
Tive de esperar mais uma semana torturante até chegar uma quinta-feira em que a minha mãe anunciou que tinha assuntos para tratar e talvez fosse buscar-me um pouco mais tarde. Passei o dia num estado de nervos, quase incapaz de me concentrar, uma guerreira prestes a lançar-se na sua primeira missão.
A campainha da escola tocou às duas e trinta e cinco. Os alunos que não apanhavam a camioneta congregaram-se diante do edifício de tijolo, como pequenos molhos de flores. Eu frequentava aquela escola há seis meses. Não pertencia a nenhum dos grupos, pelo que ninguém me prestou atenção quando me afastei discretamente. Foi antes de se começar a fazer o controlo dos miúdos que entravam e saíam. Antes de haver pais que se voluntariavam para montar guarda depois das aulas. Antes dos Alertas Âmbar. Nesse tempo, só o meu pai parecia obcecado com todas as coisas que podiam acontecer a uma rapariguinha.
Na loja, escolhi a caneca com todo o cuidado. Levei-a até à caixa segurando-a com ambas as mãos. Contei três dólares e noventa e nove em moedas de vinte e cinco cêntimos, com a pressa a atrapalhar-me os dedos.
A empregada, uma mulher de idade, perguntou-me se o meu nome era Ãnnabelle.
Fiquei incapaz de falar por um momento. Quase fugi a correr. Não podia ser Ãnnabelle. Era muito importante que não fosse Ãnnabelle. O meu pai repetira-me isso vezes sem conta.
- É para uma amiga - sussurrei por fim.
A mulher sorriu-me com bondade e embrulhou o meu tesouro em várias camadas de papel crepe.
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Quando saí da loja, escondi a caneca na mochila, ao lado dos livros escolares, e voltei para o recinto da escola. Um minuto depois, a minha mãe apareceu, na nossa nova carrinha em segunda mão, cuja parte de trás estava carregada de produtos de mercearia. Tamborilava distraidamente com os dedos no volante.
Senti uma insuportável vaga de culpa. Tinha a certeza de que o seu olhar penetrava o vinil azul da minha mochila e que ela estava a ver a minha caneca, que sabia exatamente o que eu fizera.
Mas, em vez disso, ela perguntou-me como fora o meu dia. Eu respondi, "Ótimo", e instalei-me no banco da frente, ao lado dela. Ela não abriu a minha mochila, não fez perguntas acerca da caneca. Limitou-se a conduzir até casa.
Escondi a caneca cor-de-rosa atrás de uma pilha de roupa que deixara de me servir, na prateleira de cima do meu armário. Ia buscá-la à noite, quando os meus pais julgavam que estava a dormir. Levava-a comigo para a cama, oculta por baixo dos cobertores, e admirava o seu brilho rosado e opalescente à luz de uma lanterna. Passava as pontas dos dedos sobre os relevos das pinceladas que formavam as flores, as borboletas, o gatinho. Mas, principalmente, acompanhava os traços do nome, uma e outra vez.
Annabelle. O meu nome é Annabelle.
Cerca de seis semanas depois, a minha mãe encontrou-a. Era um sábado. O meu pai estava no trabalho. Creio que eu estava a ver desenhos animados na sala. A minha mãe resolveu fazer arrumações e foi buscar a pilha de roupa, para a trocar na loja de artigos em segunda mão onde comprávamos a maior parte das nossas coisas.
Não gritou. Não berrou. De facto, creio que o que me alertou acabou por ser o silêncio, o silêncio absoluto que contrastava com o habitual ruído branco da minha mãe a andar pelo minúsculo apartamento, dobrando roupa, batendo tachos, abrindo e fechando as portas dos armários.
Acabara de me levantar do farfalhudo tapete dourado quando ela surgiu na ombreira da porta, com o meu tesouro na mão. Tinha um ar aturdido, mas composto.
- Alguém te deu isto? - perguntou-me ela baixinho.
Sem pronunciar palavra, com o coração a galope no peito, abanei a cabeça.
- Então como é que a arranjaste?
Não fui capaz de a olhar nos olhos e contar a minha história. Revolvi os dedos dos pés no tapete.
- Vi-a. Achei... achei-a bonita.
- Roubaste-a? Abanei de novo a cabeça:
- Poupei o dinheiro do leite.
- Oh, Annabelle... - Tapou subitamente a boca com a mão. Para me mostrar que estava chocada, talvez mesmo horrorizada? Ou em reação ao pecado imperdoável de ter dito o meu nome?
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Não tinha a certeza. Mas então ela estendeu-me os braços, eu corri para ela e abracei-lhe a cintura com toda a força, e comecei também a chorar, porque era tão bom ouvir a minha mãe dizer o meu verdadeiro nome. Tinha saudades de o ouvir dos seus lábios.
O meu pai chegou a casa. Apanhou-nos abraçadas como conspiradoras na sala, com a caneca ainda apertada na mão da minha mãe. A sua reação foi imediata e trovejante.
Tirou o objeto de cerâmica cor-de-rosa da mão da minha mãe e agitou-o no ar.
- Que diabo é isto? - bramou.
- Não queria...
- Foi um estranho que ta deu?
- N-n-não...
- Foi ela que ta deu? - O dedo apontado à minha mãe, como se ela fosse ainda pior do que um estranho.
- Não...
- Que diabo estás a fazer? Julgas que isto é um jogo? Julgas que renunciei ao meu cargo no MIT, que vivemos nesta espelunca de apartamento por brincadeira? Em que estavas a pensar?
Não conseguia falar. Limitei-me a olhar para ele, com as faces afogueadas, os olhos arregalados, sabendo que estava encurralada, ansiando desesperadamente por um meio de fuga.
Ele voltou-se para a minha mãe:
- Sabias disto?
- Acabei de descobrir - replicou ela calmamente. Pousou-lhe a mão no braço, como para o acalmar. - Russ...
- Hal, o nome é Hall - Ele sacudiu-lhe a mão com brusquidão. Cristo, és quase tão má como ela! Bem, eu sei como pôr um ponto final nisto.
Foi direito à cozinha, abriu de repelão a gaveta que ficava por baixo do telefone e tirou um martelo.
- Sophia - chamou, acentuando as palavras e olhando-me nos olhos. - Vem cá.
Fez-me sentar à mesa da cozinha. Pousou a caneca à minha frente. Estendeu-me o martelo.
- Fá-lo. Abanei a cabeça.
- Fâ-lo
Abanei outra vez a cabeça.
- Russ... - Era a minha mãe, num tom suplicante.
- Raios, Sophia, vais partir essa caneca ou não sais da mesa. Não me ralo se levar a noite inteira. Vais pegar nesse martelo!
Não levou a noite inteira. Só até às três da manhã. Quando fiz finalmente o que me mandavam, não chorei. Peguei no martelo com ambas as mãos. Estudei o alvo. Depois vibrei o golpe fatal com tanta força que arranquei um pedaço da mesa.
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O problema comigo e com o meu pai não era sermos muito diferentes; já nessa altura, era sermos demasiado parecidos.
Quando se é criança, precisa-se que os pais sejam omnipotentes, figuras de proa poderosas que garantem a nossa segurança. Depois, quando se entra na adolescência, precisa-se que os pais tenham defeitos, porque isso parece a única via para nos podermos construir a nós próprios, para podermos cortar o cordão umbilical. Agora tenho trinta e dois anos e preciso que o meu pai seja louco.
Essa ideia começou com a morte precoce do meu pai. Depois da sua vigilância constante contra eventuais pedófilos, violadores, assassinos em série, parecia extraordinário que não tivesse sido um monstro a apanhá-lo no fim. Em vez disso, fora um motorista de táxi com excesso de trabalho, que falava mal inglês e que nem chegou a ser julgado, depois de ter ameaçado processar o município por má sinalização do desvio imposto pelas obras do túnel, montando com isso um cenário propício ao acidente e, bem entendido, causando ao motorista uma dor debilitante nas costas que o impedia de voltar a trabalhar.
Comecei a pensar se, em toda a sua vida, o meu pai receara as coisas erradas. Daí era só um passo para a ideia de que talvez ele nunca tivesse tido qualquer razão para recear fosse o que fosse.
E se nunca tivesse havido um monstro escondido no armário? Nenhum tarado sexual homicida à espreita para roubar a pequena Annabelle Granger na rua?
Os académicos são notórios pelas suas mentes brilhantes e frágeis. Sobretudo os matemáticos. E se tudo aquilo tivesse existido apenas na cabeça do meu pai?
A verdade é que, olhando retrospetivamente para os nossos dias na estrada, nunca notei nada de invulgar. Nunca senti olhos desconhecidos a observar-me. Nunca vi um carro abrandar para que o condutor conseguisse um segundo olhar. Nunca me senti ameaçada, e pensava nisso, podem crer. Pensava nisso sempre que chegava a casa e deparava com as nossas cinco malas feitas e empilhadas ao pé da porta. Que se teria passado dessa vez? Que pecado teria eu cometido? Nunca obtive resposta.
O meu pai travara uma guerra. Sem quartel, maniacamente, obsessivamente.
A minha mãe e eu tínhamo-nos limitado a ir à boleia.
vou a pensar nisso, enquanto viajo em mais uma carruagem de metro apinhada, atulhada de potenciais perigos, e saio sã e salva no meu destino. Ao subir as escadas para a noite que cai rapidamente. Ao virar à esquerda e rumar mais uma vez ao meu pequeno apartamento em North End.
Os meus passos são decididos e seguros, o queixo está levantado, os ombros, direitos. Mas não estou apenas a telegrafar as minhas aptidões contra potenciais assaltantes. Estou sinceramente feliz por estar a chegar
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a casa. Estou desejosa de ver a minha cadela, Bella, e sei que, depois de ter passado o dia inteiro sozinha, ela está desejosa de me ver a mim.
O mais certo é irmos fazer uma corrida pelas docas, embora já tenha escurecido e Boston seja uma cidade infestada de crime. Correremos muito depressa. Levarei um taser. Mas iremos, porque Bella e eu gostamos de correr e, além disso, que mais se pode fazer?
Estou viva. E sou nova, e não posso impedir-me de pensar no futuro. Quero expandir o meu negócio, um dia, talvez contratar dois ou três assistentes e alugar um espaço de trabalho como deve ser. Mais do que a costura, tenho o sentido das cores e do espaço. Tenho andado a pensar inscrever-me num curso de design de interiores, de construir o meu pequeno império tipo Martha Stewart.
Por vezes penso em conhecer uma pessoa especial. Frequento a pequena igreja da esquina. Fiz alguns conhecidos. De vez em quando, tento namorar. Talvez me apaixone, case. Talvez, um dia, tenha um bebé. Mudar-nos-emos para os subúrbios, plantarei dúzias de rosas e pintarei murais em todas as salas. Nunca permitirei que o meu marido compre malas de viagem; ele achará isso uma excentricidade encantadora.
Terei uma filha. Nos meus sonhos, é sempre uma filha, nunca um filho. Chamar-lhe-ei Leslie Ann e comprar-lhe-ei dúzias de canecas de cerâmica personalizadas.
Penso em tudo isto quando chego ao meu prédio. Olho para a esquerda, depois para a direita, certifico-me que não há desconhecidos emboscados nas sombras, faço deslizar a chave da porta da rua de entre os dedos crispados e abro a velha porta de madeira maciça. Luzes fortes acendem-se na pequena antecâmara, cujo lado esquerdo está
forrado com uma fila de pequenas caixas de correio de latão. Fecho a porta exterior, certificando-me de que fica bem trancada.
Pego no meu correio: contas, publicidade... boas notícias: o cheque de um cliente. Depois espreito pela janela de vidro da porta interior, para verificar se o átrio está vazio. Não se vê ninguém.
Entro no átrio, começo a subir os cinco lanços de escadas estreitas e gemebundas. Já ouço Bella lá em cima. Farejou a minha chegada e está a ganir à porta, muito excitada.
Só há um problema com as minhas fantasias, penso para comigo. Nos meus sonhos, ninguém me chama Tanya. Nos meus sonhos, o homem que amo chama-me Annabelle.
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Era assim: a polícia não ia ajudar-me. Paranóico ou não, o meu pai tinha razão: as forças da lei são um sistema. A polícia existe para ajudar vítimas, apanhar criminosos
e favorecer o progresso na carreira dos agentes importantes. Testemunhas, fontes, não passávamos de carne para canhão, de objetos descartáveis inevitavelmente esmagados
pela gigantesca máquina burocrática. Podia ficar sentada ao lado do telefone o dia inteiro, à espera de uma chamada que nunca viria. Ou podia ir à procura de Dori Petracelli.
A minha secretária estava coberta por uma confusão de sobras de tecidos, desenhos de reposteiros e propostas de clientes. Não era um estado de coisas invulgar para um apartamento que oferecia mais ambiente do que metros quadrados. Agarrei em tudo aquilo e juntei o novo braçado à pilha de dimensões alarmantes que se mantinha num equilíbrio perigosamente precário sobre a mesa de apoio. Agora já conseguia ver o que pretendia: o meu computador portátil. Liguei-o e deitei mãos ao trabalho.
Primeira paragem, o site do Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas. Fui saudada por fotografias de três crianças pequenas cujo desaparecimento tinha sido participado na semana anterior. Um rapaz, duas raparigas. Uma das crianças era de Seattle, outra de Chicago e a terceira de St. Louis. Tudo cidades onde eu vivera.
Às vezes perguntava-me se teria sido isso que destruíra a minha mãe. Por muito que fugíssemos, acabávamos sempre por ter de fugir outra vez. Se se preferir uma abordagem técnica, não há lugares seguros para criar um filho. O crime é universal, há criminosos sexuais por toda a parte. Sei do que falo; consulto as bases de dados.
O Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas dispõe de um motor de busca próprio. Introduzi as palavras sexo feminino, Massachusetts e desaparecida há 25 anos. Premi as setas para iniciar a procura, recostei-me na cadeira e pus-me a roer a unha do polegar.
Bella regressou da pequena kitchenette, tendo acabado de engolir o seu jantar. Pôs-se a olhar para mim com uma expressão de censura. Correr, dizia o seu olhar. Lá para fora. Pega na trela. Divertimento.
Bella era um cão-pastor australiano de raça pura. Tinha sete anos e o seu corpo atlético, de pernas longas, era um misto de branco malhado de
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castanho e preto-azulado. Como muitos cães-pastor australianos, tinha um olho azul e outro castanho. Isso dava-lhe uma aparência inquisitiva, que ela utilizava em proveito próprio.
- Um momento - disse eu.
Ela ganiu e, vendo que não resultava, atirou-se para o chio numa exibição de birra canina. Bella fora-me dada por uma cliente, à laia de pagamento, quatro anos antes. Tinha acabado de destruir o par de sapatos Jimmy Choo preferidos da dona e a mulher fartara-se do mau comportamento da cadela. Para dizer a verdade, os cães-pastor australianos não são bons companheiros de apartamento. Se não lhes dermos com que se ocuparem, arranjam sarilhos.
Mas Bella e eu dávamo-nos bem. Sobretudo porque eu gostava de correr e, embora estivesse a entrar na meia-idade canina, Bella não tinha qualquer dificuldade em percorrer dez quilómetros.
Teria de a levar à rua com rapidez, ou corria o risco de perder uma das minhas almofadas preferidas, ou talvez um rolo de tecido muito apreciado. Bella sabia sempre como marcar a sua posição.
O motor de busca concluiu a sua tarefa, O ecrã do computador encheu-se com uma coluna de rostos luminosos e felizes. Fotografias escolares, grandes planos tirados do álbum da família. As fotografias de crianças desaparecidas mostravam-nas sempre com uma expressão feliz. A ideia era ferir-nos ainda mais.
Resultados da busca: quinze.
Estendi a mão para o rato e fui descendo lentamente pela coluna: Anna, Gisela, Jennifer, Juneeka, Sandy, Katheríne, Katie...
Era-me difícil olhar para as imagens. Apesar das minhas dúvidas acerca do meu pai, sempre me perguntara se podia ter-me transformado numa delas. Se não tivéssemos rugido, se ele não fosse tão obcecado.
Pensei de novo no medalhão. De onde teria vindo? Eu dera-o a Dori... porquê, porquê?
O nome dela não constava da lista. Exalei de alívio. Bella endireitou-se, pressentindo a libertação da tensão, a possibilidade de retomarmos a nossa habitual rotina noturna.
Mas então reparei nas datas. Nenhum daqueles casos era anterior a 1997. Apesar de não haver limites nos parâmetros temporais de procura, a base de dados não devia ter registos tão antigos. Roí novamente a unha do polegar, avaliando as opções.
Podia ligar para a linha direta, mas isso poderia levantar demasiadas questões. Preferia o anonimato das procuras através da Internet. Bem, pelo menos a aparência de anonimato, pois só Deus sabia se a proliferação de spyware significava que o Big Brother ou, pelo menos, uma megamáquina de marketing seguia cada um dos meus movimentos.
Conhecia outro site onde podia tentar. Não ia lá com tanta frequência, pois entristecia-me.
Digitei o endereço no meu motor de busca: www.doenetwork.org. E, ao fim de dois segundos, tinha entrado.
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A Doc Network ocupa-se sobretudo de antigos casos de pessoas desaparecidas e tenta comparar esqueletos encontrados num local com participações de desaparecimento registadas noutras jurisdições. O seu lema era: "Não há limite de prazo para resolver um mistério."
Essa ideia provocou-me um calafrio, ali sentada com a mão crispada no frasco que continha as cinzas da minha mãe, enquanto digitava com a mão livre o parâmetro de busca Massachusetts.
Logo ao primeiro resultado fiquei com a cabeça a andar à roda. Três fotografias do mesmo rapaz, começando com ele aos dez anos, depois adaptadas aos vinte anos e, por fim, aos trinta e cinco. O miúdo desaparecera em 1965 e presumia-se que estava morto. Num minuto estava a brincar no jardim, no seguinte tinha desaparecido. Um pedófilo que estava a cumprir pena de prisão em Connecticut afirmava tê-lo violado e morto, mas não se lembrava onde enterrara o corpo. Portanto, o caso continuava aberto e os pais trabalhavam agora tão febrilmente para encontrar os restos mortais do filho como tinham trabalhado outrora, há quarenta anos, para encontrar a criança.
O que sentiriam os pais ao ver aquelas fotografias com idades que o filho nunca chegara a atingir? Ao serem confrontados com aquele relance do que o filho poderia ter sido, se a mãe não tivesse entrado em casa para atender o telefone, ou se o pai não tivesse deslizado para baixo do carro para mudar o óleo...
Luta, dizia-me sempre o meu pai. Setenta e quatro por cento das crianças raptadas que acabam por ser assassinadas são mortas nas primeiras três horas. Sobrevive a essas três horas. Não dês hipótese ao sacana.
Dei por mim a chorar. Não sabia porquê. Nunca tinha conhecido aquele rapazinho. O mais certo era ele ter morrido há mais de quarenta anos. Mas compreendia o seu terror. Sentia-o sempre que o meu pai começava com um dos seus sermões ou sessões de treino. Lutar? Quando se é uma criança de vinte e cinco quilos contra um adulto de noventa, o que se pode fazer que tenha algum efeito? O meu pai podia ter ilusões, mas eu sempre fui realista.
Se se é uma criança e alguém quer fazer-nos mal, o mais provável é acabarmos mortos.
Passei ao caso seguinte: 1967. Resolvera limitar-me a olhar para as datas; não queria ver as fotografias. Premi o rato mais cinco vezes. Então li:
12 de novembro de 1982.
Estava a olhar para Dori Petracelli. Estava a olhar para a sua fotografia, adaptada até aos trinta anos. Estava a ler o estudo do que acontecera à minha melhor amiga.
Então fui à casa de banho e vomitei até não poder mais.
Passado um bom bocado, uns vinte, quarenta, cinquenta minutos, já não sei, tinha a trela numa mão, o taser na outra e Bella dançava em redor dos meus pés, quase me fazendo tropeçar na sua pressa de chegar à rua.
Prendi a trela à coleira dela e começámos a correr. Corremos, corremos
e corremos.
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Quando regressámos a casa, uma boa hora e meia depois, julguei que jne tinha recomposto. Sentia-me fria, mesmo cínica. Ainda tinha a bagagem da família. Começaria imediatamente a fazer as malas.
Mas então liguei a televisão e vi as notícias.
Bobby chegou a casa pouco depois das nove da noite. Estava em missão. Dispunha de cerca de quarenta minutos para tomar duche, comer, engolir uma Coca-Cola e regressar
a Roxbury. Infelizmente, o estacionamento em South Boston tinha outros planos. Explorou todas as ruas num raio de oito quarteirões em torno do seu prédio de três
andares, antes de perder a paciência e estacionar no passeio. Um polícia de Boston teria grande prazer em passar uma multa a um homem da polícia estadual, portanto, aquilo era uma decisão arriscada.
Esperava-o uma agradável surpresa. Uma das suas inquilinas, Mrs. Higgins, tinha-lhe deixado uma travessa de biscoitos. "Vi as notícias. Conserve as forças", dizia o bilhete que acompanhava o presente.
Bobby não podia discordar, pelo que começou o jantar com um quadradinho com sabor a limão. Seguiram-se mais três biscoitos, enquanto procurava na pilha de correio espalhada pelo chão, separando os envelopes importantes que continham contas e os cheques das rendas, e deixando o resto.
Mais um biscoito de limão para o caminho; já mastigava sem sequer saborear. Meteu pelo corredor comprido e estreito que conduzia ao seu quarto, nas traseiras da casa. Desabotoou a camisa com uma mão, despejou os bolsos das calças com a outra. Depois despiu a camisa, afastou as calças com um pontapé e entrou na pequena casa de banho forrada de azulejos azuis, envergando peúgas bege e cuecas brancas. Abriu o chuveiro no máximo. Uma das boas recordações que tinha dos seus tempos na unidade tática era chegar a casa e tomar um longo duche quente.
Permaneceu minutos sem fim debaixo dos jatos de água a escaldar. A inalar o vapor, a deixá-lo penetrar-lhe nos poros, desejando, como sempre, que a água lavasse todo o horror.
O seu cérebro entrara num ciclo vertiginoso de imagens hiperativas. Aquelas seis rapariguinhas, os rostos mumificados comprimidos contra o plástico transparente dos sacos de lixo. Fotografias antigas, de Catherine aos doze anos, com o rosto pálido encovado pela fome, os olhos com as pupilas gigantescas depois de ter passado um mês sozinha no escuro.
E, bem entendido, a outra imagem que era forçado a ver, que provavelmente nunca deixaria de ver até ao fim da vida: a expressão no rosto do marido de Catherine, Jimmy Gagnon, imediatamente antes de a bala de Bobby lhe ter estilhaçado o crânio.
Dois anos depois, Bobby ainda sonhava com o tiroteio quatro ou cinco noites por semana. Calculava que, um dia, os sonhos se reduziriam a três vezes por semana. Depois a duas. Depois, talvez, se tivesse sorte, conseguisse que o ritmo passasse a três ou quatro vezes por mês.
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Fizera terapia, claro. Ainda se encontrava com o seu antigo tenente, que lhe servia de mentor. Até assistia a uma ou duas reuniões de outros agentes, que tinham estado envolvidos em incidentes críticos. Mas, tanto quanto podia avaliar, nada disso fazia grande diferença. Tirar a vida a um homem modifica-nos, pura e simplesmente.
Continuava a ser preciso levantar-se todas as manhãs e vestir as calças, uma perna de cada vez, como toda a gente.
Alguns dias eram bons, outros eram maus, e depois havia uma enorme quantidade de dias que não eram uma coisa nem outra, que não eram coisa nenhuma. Apenas existência. Apenas fazer o que havia a fazer. Talvez D.D. tivesse razão. Talvez houvesse dois Bobbies Dodge: o que existia antes do tiroteio e o que existia depois. Talvez fosse inevitável, talvez fosse assim mesmo que essas coisas se passavam.
Deixou correr o duche até a água ficar fria. Enquanto se enxugava com a toalha, consultou o relógio. Ainda dispunha de um minuto para jantar. Frango aquecido no micro-ondas.
Enfiou dois peitos de frango pré-cozinhados no micro-ondas, regressou à casa de banho embaciada e atacou o rosto com a lâmina de barbear.
Estava oficialmente cinco minutos atrasado. Vestiu-se à pressa com roupa lavada, abriu uma lata de Coca-Cola, pôs os dois peitos de frango fumegantes num prato de
papel e cometeu o seu primeiro erro grave: sentou-se.
Três minutos depois, estava a dormir a sono solto no sofá, com o frango caído no chão, o prato de papel amarrotado no colo. Dormir quatro horas em cinquenta e seis é o que dá.
Acordou estremunhado, tonto e desorientado, ao fim de um bocado. Estendeu bruscamente as mãos. Procurava a sua espingarda. Santo Deus, precisava da espingarda! Jimmy Gagnon aproximava-se, tentando agarrá-lo com mãos de esqueleto.
Saltou do sofá antes que a imagem se desvanecesse por completo do seu cérebro. Deu por si no seu próprio apartamento, apontando um prato de papel gorduroso ao aparelho de televisão, como se fosse uma arma. O coração batia-lhe violentamente no peito.
Um sonho de ansiedade.
Contou até dez, depois contou de novo por ordem decrescente, até um. Repetiu o ritual três vezes, até a sua pulsação voltar ao normal.
Pousou o prato amarrotado. Apanhou os dois peitos de frango do chão. O seu estômago roncou. Regra dos trinta segundos, disse para consigo, e comeu com as mãos.
Quando conhecera Catherine Gagnon, tinha sido chamado ao local de uma barricada doméstica, na qualidade de franco-atirador. O relatório dizia que um marido ameaçava a mulher e o filho com uma arma. Bobby tomara posição à frente da residência dos Gagnon e observava a situação através da mira da sua arma, quando vira Jimmy, de
pé ao fundo da cama,
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brandindo uma pistola e gritando tanto que se viam os tendões a sobressair como cordas no seu pescoço. Então Catherine surgira à vista, apertando o filho de quatro anos, Nathan, contra o peito. Tapava os ouvidos dele com as mãos e mantinha o pequeno rosto voltado para ela, como se quisesse protegê-lo do pior.
A situação foi de mal a pior. Jimmy tinha arrancado o filho dos braços da mulher e empurrara-o para a outra ponta do quarto, afastando-o do que vinha aí. Depois apontara a arma à cabeça da mulher.
Bobby lera os lábios de Catherine no mundo ampliado da sua mira Leupold.
E agora, Jimmy? Que resta agora?
De súbito, Jimmy sorrira e, nesse sorriso, Bobby vira o que ia acontecer.
O dedo de Jimmy Gagnon cerrara-se no gatilho. E, a cinquenta metros de distância, no quarto escurecido da casa de um vizinho, Bobby Dodge abatera-o.
No rescaldo do tiroteio, não havia dúvidas de que Bobby cometera alguns erros. Antes de tudo, começara a beber. Depois, encontrara-se com Catherine, num museu local. Esse fora provavelmente o mais autodestrutivo dos seus atos. Catherine Gagnon era bonita, era sensual, era a viúva grata do marido violento que Bobby acabara de mandar precocemente para uma sepultura.
Envolvera-se com ela. Não a nível físico, como D.D. e a maioria dos outros julgava. Mas a nível emocional, o que talvez fosse ainda pior. Era por isso que nunca se dera ao trabalho de corrigir as presunções dos outros. Passara das marcas. Afeiçoara-se a Cat e, quando as pessoas que a rodeavam tinham começado a ter mortes horríveis, Bobby receara pela vida dela.
com razão, como se viria a provar.
D.D. continuava a afirmar que Catherine Gagnon era uma das mulheres mais perigosas de Boston. Uma mulher que (embora não dispusessem de provas concretas nesse sentido) provavelmente atraíra o marido a uma armadilha que resultara na sua morte. E, sempre que pensava nela, Bobby continuava a ver uma mãe desesperada a tentar proteger o filho pequeno.
Uma pessoa podia ser ao mesmo tempo nobre e cruel. Altruísta e egocêntrica. Sinceramente afetuosa. E uma assassina empedernida.
D.D. podia dar-se ao luxo de odiar Catherine. Bobby compreendia-a demasiado bem.
Deitou fora o prato de papel, amachucou a lata de Coca-Cola e deitou-a na reciclagem. Estava a pegar nas chaves do carro, preparando-se para ser confrontado com uma multa muito elevada, quando o seu telefone tocou.
Olhou para a identificação do número no visor, depois para o relógio. Eram onze e um quarto. Compreendeu o que se passara mesmo antes de atender.
- Catherine - cumprimentou, com uma voz calma.
- Por que diabo não me contaste? - explodiu ela histericamente. Foi assim que Bobby ficou a saber que os meios de comunicação tinham descoberto a verdade.
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- Muito bem - disse D.D. Warren com vivacidade, distribuindo os últimos relatórios. - Temos cerca de... - consultou o relógio -... sete horas e vinte e sete minutos para controlarmos os estragos. Os chefões do andar de cima concordaram em que às oito em ponto dêmos a nossa primeira conferência de imprensa. Portanto, por amor de Deus, deem-me alguns progressos para comunicar, ou vamos fazer figura de parvos.
Bobby, que estava a tentar esgueirar-se discretamente para a sala de reuniões, só apanhou o fim da intervenção dela. Nesse momento, D.D. levantou os olhos, mesmo a tempo de o ver chegar atrasado. Franziu o sobrolho. Estava com um aspeto ainda mais exausto e desgrenhado do que da última vez que ele a vira. Se ele dormira apenas seis horas nos últimos dois dias e meio, ela não devia ter dormido mais do que três. Também parecia nervosa. Bobby percorreu a sala com os olhos, depois reconheceu o superintendente-adjunto, o mandachuva da Brigada de Homicídios, sentado num canto. Isso explicava o nervosismo.
- É muito amável da sua parte juntar-se a nós, detetive Dodge - comentou D.D. para que toda a sala ouvisse. - Julgava que ia jantar, não gozar seis horas num Spa.
Bobby deu-lhe a melhor desculpa que um polícia podia dar:
- Trouxe biscoitos de limão.
Pousou os restos do tesouro de Mrs. Higgins no meio da mesa. Os outros detetives atiraram-se em força. Comer biscoitos feitos em casa era muito melhor do que arreliar o homem da polícia estadual.
- Portanto, como estava a dizer - prosseguiu D.D. empurrando mãos à direita e à esquerda até conseguir chegar também ela aos biscoitos -, precisamos de novidades. Jerry?
O sargento McGahagin, que chefiava a equipa de três homens encarregada da compilação da lista de raparigas desaparecidas, levantou os olhos. Sacudiu apressadamente o açúcar em pó que se espalhara sobre o seu relatório, com os dedos a tremer tanto, graças às doses industriais de cafeína que consumira nos últimos dois dias, que falhou a folha de papel por três vezes. Acabou por optar por ler o resumo das atividades da equipa sem o levantar da mesa.
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- Temos doze casos por resolver de raparigas com menos de dezoito anos, desaparecidas entre 65 e 83, seis entre 97 e 2005, e, claro, faltam os catorze anos do meio - cuspiu numa única frase sem pausas, pestanejando furiosamente. - Precisava de mais dois pares de mãos para ajudar a estudar as listas, se alguém tiver tempo para isso. Claro que também precisamos do relatório da antropóloga forense para efeito de referências cruzadas. E ainda há que saber se os corpos são todos do Massachusetts, ou se é preciso alargar a busca a toda a área da Nova Inglaterra: Rhode Island, Connecticut, New Hampshire, Vermont, Maine. É muito difícil, sabem, sem um perfil
das vítimas. Nem sequer sei se estamos a seguir a pista certa. É tudo o que tenho a relatar.
D.D. fitou-o:
- Jesus, Jerry, para com o café durante uma hora, sim? Se continuas assim, vais acabar por precisar de uma transfusão de sangue.
- Não posso - replicou ele, contorcendo-se. - Fico com dores de cabeça.
- Ouves alguma coisa apesar dos zumbidos nos ouvidos?
- Como?
- Caramba! - D.D. suspirou, percorreu a mesa com os olhos. Bem, o Jerry tem razão. É difícil saber se a nossa investigação está no bom caminho sem o relatório de
vitimologia. Falei com a Christie Callahan há duas horas. A má notícia é que o mais certo é termos de esperar duas semanas, pelo menos.
Os detetives gemeram em uníssono. D.D. levantou a mão:
- Eu sei, eu sei. Vocês julgam que estão sobrecarregados de trabalho? Ela ainda está mais lixada do que nós. Tem seis restos mumificados que têm de ser devidamente processados e nenhuma unidade especial brilhante e, acrescente-se, encantadora para a ajudar. Claro que também está a fazer as coisas de acordo com as regras. O que significa que os restos tiveram de ser polvilhados para procurar impressões digitais. Depois tiveram de ser enviados para o Hospital do Massachusetts para serem radiografados, e só agora estão a regressar ao laboratório. - Ao que parece, a mumificação húmida é muito peculiar. Ocorre naturalmente nas turfeiras da Europa e houve também alguns casos na Florida. Mas isto foi uma estreia na Nova Inglaterra, o que significa que a Christie está a aprender enquanto trabalha. Calcula que precise de três ou quatro dias para processar cada uma das múmias. com seis múmias no total, façam as contas.
- Ela não pode ir-nos dando os resultados um a um, à medida que processa cada cadáver? - sugeriu o detetive Sinkus. Era o pai do bebé recém-nascido, o que devia explicar o estado das suas roupas.
- Está a pensar nisso. Há um protocolo arqueológico, ou qualquer coisa do género, que diz que os restos devem ser tratados em conjunto. No exame individual podemos não ver o que está implícito no grupo como um todo.
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- O quê? - perguntou o detetive Sinkus.
- vou insistir com ela - disse D.D. Voltou-se para o detetive Rock, que estava a tratar dos relatórios da Crime Stoppers. - Diz-nos a verdade. Alguém confessou?
- Só umas três dúzias de pessoas. A má notícia é que a maioria delas tinha deixado recentemente de tomar a medicação. - Rock pegou num impressionante maço de papéis e começou a distribuí-los. Trabalhava na Polícia de Boston há uma eternidade. Até Bobby ouvira histórias acerca da capacidade lendária do veterano detetive para
passar diretamente do horrendo crime A ao vago indício B e daí ao meliante C. Contudo, nessa noite, o vozeirão entusiástico de Rock tinha uma nota forçada. O seu
cabelo preto, cortado à escovinha, parecia ter adquirido novas madeixas grisalhas, ao mesmo tempo que olheiras profundas escureciam os seus olhos. Tendo em conta
o estado de saúde da sua mãe, em rápida deterioração, devia ser difícil trabalhar numa investigação daquela envergadura. Mas o certo é que Rock dava conta do recado.
- Só é preciso prestar atenção à folha de cima - explicou. - Os registos detalhados são só para quem precisa de matar o tempo.
Aquilo arrancou alguns risos fatigados.
- Estamos com uma média de uma chamada a intervalos de poucos minutos, e isso foi antes de os meios de comunicação terem enlouquecido, esta noite. Essa fuga entristece-me
- acrescentou, olhando para D.D. como se esperasse um comentário.
Ela limitou-se a abanar a cabeça:
- Não sei como aconteceu, Tony. Não tenho tempo nem energia para me ralar com isso. Francamente, admira-me que tenhamos aguentado tanto tempo.
Rock encolheu os ombros num gesto filosófico. Cinquenta e seis horas sem que o caso chegasse ao domínio público constituíam um pequeno milagre.
- Bem, antes da fuga foi bastante fácil eliminar os tarados. Bastava perguntar-lhes se tinham enterrado os restos juntos ou separados. Mal eles se lançavam em descrições elaboradas do local de enterramento, podíamos riscá-los da lista. Portanto, sim, houve muitas chamadas, mas tem sido bastante tranquilo. Não sei se ainda direi o mesmo amanhã.
- Algumas pistas interessantes? - insistiu D.D.
- Duas. Uma chamada de um homem que afirmou ter sido enfermeiro no Hospital Psiquiátrico em meados dos anos setenta. Disse que um dos doentes era filho de uma família muito rica de Boston, a qual não queria que ninguém soubesse que o rapaz lá estava e nunca o foi visitar. Constava que ele tinha feito algo de "inapropriado" à irmã mais nova. Aquilo era a maneira como a família resolvera o assunto. O nome do doente era Christopher Eola. Estamos a investigá-lo, mas não conseguimos encontrar nenhum endereço atual, nem carta de condução em nome dele. Estamos a tentar localizar a família.
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D.D. arqueou as sobrancelhas:
- E melhor do que eu esperava - observou. - Pelo menos dá-nos uma pessoa para exibir diante da imprensa.
- Tendo em conta o local - retorquiu Rock secamente -, julguei que teríamos uma lista bem mais longa de malucos para investigar. Por outro lado, a noite ainda é uma criança.
Respirou fundo, esfregou as faces cobertas por barba de dois dias.
- E, como seria de esperar neste tipo de casos, também recebemos telefonemas de famílias com crianças desaparecidas. Tenho uma lista. Mostrou-a ao sargento McGahagin. - Algumas destas famílias são de fora do estado, portanto suponho que vamos começar com esse alargamento da área de busca de que estavas a falar. E - acrescentou, passando rapidamente os olhos pelos nomes que McGahagin listara - já estou a ver três correspondências. Atkins, Gomez, Petracelli.
A expressão de D.D. não se alterou. Bobby achou interessante que ela ainda não tivesse fornecido quaisquer pormenores acerca da sua conversa com Annabelle Granger, incluindo a referência a Dori Petracelli. Por outro lado, D.D. sempre fora muito reservada.
Ele resolvera aprofundar um pouco a história de Dori, pelo que a inclusão daquele nome na lista de raparigas desaparecidas não o surpreendera. Era a data, 12 de novembro de 1982, que o deixava abismado.
O detetive Rock sentou-se. Foi a vez do detetive Sinkus.
- Então, hum, achei que devia trazer um relatório para distribuir. Mas quando olhei para o que tinha para partilhar, eram cinquenta páginas de nomes e pensei, para o diabo, ninguém aqui tem tempo para ler cinquenta páginas de nomes, portanto, não trouxe nada.
- Graças a Deus! - exclamou alguém.
- Os meus agradecimentos - comentou outro detetive.
O superintendente-adjunto pigarreou no seu canto. Os outros calaram-se imediatamente.
Sinkus encolheu os ombros:
- Olhem, o meu trabalho é compilar uma lista preliminar de sujeitos a entrevistar. Estamos a falar de empreiteiros, vizinhos, antigos trabalhadores do hospital e criminosos conhecidos que vivessem na zona, tudo ao longo de trinta anos. Lista? É a porra da lista telefónica! Não estou a dizer que não podemos trabalhá-la - apressou-se a acrescentar, com um olhar rápido ao superintendente-adjunto. - Só quero dizer que teremos de quadruplicar a força da polícia de Boston para fazermos sequer uma mossa naquela enormidade. Sem informações que reduzam os potenciais suspeitos, como uma cronologia definitiva, não me parece que a tarefa seja exequível. Palavra de honra, precisamos mesmo do relatório de vitimologia.
- Bem, mas não o temos - retorquiu D.D. sem rodeios -, portanto, tens de arranjar outra solução.
- Já sabia que ias dizer isso - murmurou Sinkus com um suspiro. Meteu as mãos nos bolsos. - Muito bem, tive uma ideia.
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- Deita-a cá para fora.
- Tenho uma entrevista amanhã com George Robbards, antigo administrativo da esquadra de Mattapan. Processou todos os relatórios de ocorrências de 72 a 98. Calculo
que se há alguém capaz de conhecer a zona e talvez de se lembrar das atividades de que as pessoas, sobretudo os polícias, falavam, mesmo que não tivessem informações suficientes para fazer um relatório, esse alguém será ele.
D.D. estava muda de espanto.
- Bem, bem, Roger, isso é uma ideia brilhante.
Ele esboçou um sorriso envergonhado, ainda com as mãos nos bolsos.
- Para dizer a verdade, foi a minha mulher. A parte boa de termos um recém-nascido é que agora ela está sempre acordada quando eu chego a casa, portanto, paciência,
pomo-nos a conversar. Ela lembrou-se de eu lhe ter dito que os administrativos são os verdadeiros cérebros de qualquer esquadra da polícia. Nós vamos e vimos. Eles
ficam sempre lá.
Era verdade. Um polícia passava talvez três ou quatro anos na mesma esquadra. Os administrativos, por outro lado, chegavam a trabalhar durante décadas no mesmo sítio.
- Muito bem - disse D.D. num tom decidido. - Agrada-me. E de ideias dessas que precisamos. De facto, até te perdoo a ausência de papéis neste momento, desde que entregues uma transcrição da entrevista de amanhã assim que a terminares. Ouvi falar bem do Robbards. E dado que seis corpos no mesmo local implica um sujeito que operou na área durante anos, sim, gostava de saber o que ele pensa do assunto. Interessante.
Pegou nas suas cópias dos relatórios e ajeitou-as num maço ordenado.
- Muito bem. Então é este o ponto da situação: vamos disparar em todas as direções e esperar do fundo do coração que acertemos em alguma coisa. Sei que é cansativo, confuso e penoso, mas é para isso que nos pagam à grande. Temos... - consultou de novo o relógio - sete horas. Portanto, avancem, descubram algo brilhante e apresentem-se de novo aqui às sete em ponto. O primeiro a dizer-me algo que possamos usar na conferência de imprensa tem autorização para ir para casa dormir.
Fez menção de se afastar da mesa, soerguendo-se da cadeira. Então, no último momento, deteve-se e fitou-os com uma expressão grave.
- Todos vimos aquelas rapariguinhas - declarou num tom brusco.
- O que lhes aconteceu... - Abanou a cabeça, incapaz de continuar. A toda a volta da mesa, os homens desviavam os olhos, pouco à vontade. Os detetives da Brigada de Homicídios viam muitas coisas horríveis, mas os casos que envolviam crianças tocavam-lhes sempre mais de perto.
D.D. pigarreou:
- Quero mandá-las para casa. Passaram trinta anos. E demasiado. E... demasiado triste para todos. Portanto, vamos tratar disto, está bem? Sei que estão todos cansados
e enervados. Mas temos de continuar. Temos de fazer com que isto se concretize. Vamos mandar estas miúdas para casa, para as respetivas famílias. E depois vamos perseguir o filho da mãe que lhes
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fez aquilo até aos confins da terra, e pregá-lo-emos ao chão. Parece-vos um bom plano? Também a mim.
Afastou-se finalmente da mesa, dirigindo-se para a porta a passos largos.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Depois, um a um, os detetives levantaram-se e regressaram ao trabalho.
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Bobby apanhou D.D. no gabinete dela. Estava curvada sobre o ecrã do computador, a estudar rapidamente uma lista de nomes, com um lápis no punho crispado. Percorria
a lista tão depressa que Bobby não tinha a certeza de que estivesse de facto a ler alguma coisa. Talvez só quisesse mostrar-se ocupada, no caso de alguém passar por lá, como ele fizera.
- Que foi? - inquiriu ela.
- Recebi um telefonema. ; D.D. parou de ler, endireitou-se, fitou-o.
- Julgava que não eras meu lacaio. ;
- Julgava que tu eras minha amiga.
- Oh, Bobby, és um cretino! O insulto fê-lo sorrir:
- Só agora é que percebi como tinha saudades tuas. Já posso entrar ou tenho de ir buscar um ramo de rosas?
- Que se lixem as rosas - retorquiu ela. - Continua a apetecer-me uma sanduíche de rosbife decente. - Mas a sua voz perdera a veemência. Acenou para a cadeira vazia à frente da secretária. Bobby interpretou o gesto como um convite e deixou-se cair na cadeira de espaldar alto. D.D. afastou-se do computador. Estava com péssimo aspeto, com olheiras roxas, as unhas roídas até ao sabugo. Quando se visse a si própria na televisão, ia ficar danada.
- A Catherine mandou cumprimentos? - inquiriu com secura.
- Não explicitamente, mas tenho a certeza de que passou toda a nossa conversa a pensar no seu amor pela polícia de Boston.
- Que disse ela?
- Já lá vamos.
D.D. arqueou as sobrancelhas:
- Já lá vamos?
- Primeiro tenho outras notícias a comunicar. Vá lá, D.D. dá-me uma aberta. Ao fim de tantas horas de trabalho, preciso de preliminares.
Os cantos da boca dela curvaram-se num sorriso inesperado. Por um momento, Bobby deu por si a pensar outra vez nos bons velhos tempos, mais concretamente na área que tinha corrido bem... Controlou-se, endireitou-se e pôs-se a folhear um dos seus blocos de notas de espiral.
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- Eu, hum... procurei Russel Granger. Comecei a verificar a história da Annabelle.
O sorriso de D.D. desapareceu. Suspirou e inclinou-se para a frente, descansando os cotovelos nos joelhos. Tinham voltado às coisas práticas.
- vou gostar desse relatório? Mais importante ainda, poderei usá-lo para a conferência de imprensa?
- É possível. Então, Russel Granger apresentou queixa à polícia em agosto de 82. Foi a primeira de três queixas que apresentaria até outubro. Essa primeira queixa foi por invasão de propriedade. Granger ouviu alguém no jardim da sua casa, a meio da noite. Saiu para investigar, e jurava que tinha visto alguém fugir a correr. De manhã encontrou pegadas lamacentas em todo o perímetro da propriedade. Dois agentes fardados foram lá, tomaram nota da ocorrência, mas não puderam fazer grande coisa: não havia qualquer crime, qualquer descrição do sujeito. O relatório foi arquivado. "Chame-nos de novo se voltar a ter problemas, Mr. Granger, blá, blá, blá." A segunda queixa, datada de 8 de setembro, foi por causa de um voyeur. Também apresentada por Mr. Granger, mas em nome da sua vizinha de uma idosa, Geraldine Watts, que jurou ter visto um jovem a "rondar furtivamente" a residência dos Granger e a espreitar por uma das janelas. Foram enviados mais uma vez dois agentes fardados, Stan Jesukawicz e Dan Davis, afetuosamente conhecidos como Stan-e-Dan. Entrevistaram Mrs. Watts, que lhes forneceu uma descrição de um homem branco, com uma altura entre um metro e setenta e cinco e um metro e oitenta e cinco, cabelo escuro, de aspeto "desleixado", vestindo T-shirt cinzenta e calças de ganga. Não chegou a ver-lhe o rosto. Quando pegou no telefone para ligar a Mr. Granger, o sujeito fugiu a correr pela rua abaixo.
- Onde vivia Mrs. Watts?
- Do outro lado da rua, em frente dos Granger. A questão é que a janela que o sujeito não identificado andava a "rondar furtivamente" pertencia a Annabelle, a filha de sete anos dos Granger. Nesse ponto, de acordo com Stan-e-Dan, Mr. Granger começou a mostrar-se muito preocupado. Nos últimos meses tinham aparecido pequenos "presentes" no seu alpendre. Um deles foi um cavalo de plástico, outro, uma bola saltitona amarela, outro, um berlinde azul. Esse tipo de coisas. Mr. Granger e a mulher tinham presumido que uma das outras crianças da rua tinha um fraquinho pela Annabelle, era um admirador secreto.
- Ah, merda! - exclamou D.D. - O medalhão. Embrulhado numa tira de banda desenhada dos Peanuts, não foi o que a Annabelle disse?
- Foi. Stan-e-Dan pegam na deixa e, com o Granger a reboque, começam a passar a vizinhança a pente fino. Há montes de miúdos, mas nenhum deles faz a mais pequena ideia do que Mr. Granger está a falar. Mr. Granger fica muito perturbado. Convence-se que o voyeur é o admirador secreto, o que significa que um homem adulto anda atrás da sua filha. Exige proteção policial imediata, toda a espécie de coisas. Stan-e-Dan acal-
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mam-no. Mais uma vez, não foi cometido qualquer crime, percebes? E talvez o admirador secreto seja um colega de escola da Annabelle. Prometem investigar o assunto.
"Os dois polícias partem e fazem o relatório, que é enviado para um detetive. Mas, mais uma vez, qual é o crime? Stan-e-Dan, diga-se em abono da verdade, mostram-se conscienciosos. Vão à escola e conseguem que a diretora fale com os colegas de turma da Annabelle. Infelizmente, essas "entrevistas" não produzem resultados; se o "admirador secreto" é colega de escola da pequena, tem medo de confessar.
"Essa informação é arquivada. E o caso estiola. Que há a fazer? Existem registos de uns quantos telefonemas de Mr. Granger, a exigir respostas, mas ninguém tem grande coisa para lhe dizer. Mantenha os olhos bem abertos, telefone se houver mais problemas, blá, blá, blá.
"Dia 19 de outubro, onze e cinco da noite. Mr. Granger liga para a central da polícia a pedir auxílio imediato. Há um intruso em sua casa. A central despacha quatro carros para o bairro. Stan-e-Dan ouvem a notícia no rádio e correm para lá, preocupados com a família.
"Suponho que deparam com uma verdadeira turba quando lá chegam. O Granger está no alpendre, em pijama, de taco de beisebol em punho. Quase é alvejado pelos primeiros polícias a chegar, antes de Stan-e-Dan esclarecerem a situação. Dan escreve no seu relatório que Mr. Granger não tem bom aspeto. Desalinhado, tenso. Parece que não anda a dormir muito; desde o último incidente, tem ficado acordado quase todas as noite, "de guarda".
"Também se conclui que Mr. Granger contou uma pequena mentira inocente. Quando o pressionam, confessa que ninguém tinha arrombado a casa. O que acontecera, é que ouvira outra vez barulho lá fora. Mas como achava que a polícia não levaria isso suficientemente a sério, resolvera "ampliar" a história. A maior parte dos agentes não reage muito bem, mas, mais uma vez, Stan-e-Dan sentem uma obrigação. Percorrem o perímetro, em busca de sinais de problemas. Reparam nalgumas alterações na paisagem; Mr. Granger arrancou os arbustos mais próximos de casa, cortou duas árvores. Agora o jardim é bastante aberto, não há muitos sítios onde alguém possa esconder-se.
Ambos pensam que aquilo é um pouco paranóico, até que chegam à janela da Annabelle: há sulcos profundos na parte de baixo da moldura de madeira. Marcas recentes, do tipo que é deixado por um pé de cabra. Alguém estava a tentar entrar por ali.
- Mas a Annabelle está bem?
- Está ótima. Já não dorme no seu quarto. Mr. Granger e a mulher resolveram mudá-la para o quarto deles, depois do episódio do voyeur. Em todos os três incidentes, a miúda nunca ouviu nada. Quanto à mulher, não sei. Os agentes fardados nunca a entrevistaram. Parece que era sempre Mr. Granger quem falava. Mrs. Granger permanecia dentro de casa, com a Annabelle.
D.D. rolou os olhos. Bobby sabia o que ela estava a pensar: trabalho mal feito. Ambos os cônjuges deviam ter sido entrevistados, separadamente, e a criança também. Mas vinte e cinco anos depois, que se podia fazer?
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- Dadas as marcas na moldura da janela - prosseguiu Bobby -, Stan-e-Dan correm o bairro todo, de porta em porta. Quando chegam à casa de Mrs. Watts, a mulher que tinha visto o voyeur, ela mostra-se muito agitada. Ao que parece, não tem andado a dormir bem, porque os ratos fazem demasiado barulho no sótão.
- Os ratos!
- Stan-e-Dan pensam o mesmo. Correm pela escada acima. No sótão descobrem um "ninho": um saco-cama usado, lanterna, abre-latas, garrafas de água e, ouve isto, um balde de plástico de vinte litros vazio, que tem obviamente servido de latrina.
- Por favor, diz-me que temos esse balde de plástico como prova.
- Não temos essa sorte. Mas eles tentaram recolher impressões digitais, pelo que teríamos uma cópia dessas impressões no ficheiro, só que não havia impressões nenhumas.
- Santo Deus! Houve alguma coisa que corresse bem em toda essa investigação?
- Não. Foi merda do princípio ao fim. Agora, claro, Mrs. Watts está histérica; tudo indica que havia alguém a viver no seu sótão. Mas isso não é nada comparado com Russell Granger, que quase exige que a Guarda Nacional seja destacada expressamente para o proteger, a ele e à família. As coisas tornam-se ainda piores quando os detetives começam a examinar o "ninho" e encontram uma pilha de polaroides da Annabelle a caminho da escola, da Annabelle no recreio, da Annabelle a jogar à macaca com a melhor amiga, Dori Petracelli...
D.D. fechou os olhos.
- Está bem, vai direito ao assunto. Bobby encolheu os ombros:
- Não havia nada que a polícia pudesse fazer. Não dispunham de uma descrição do homem e, no que dizia respeito à Annabelle, não havia qualquer crime. Estamos em 82, antes das leis antiperseguição. Vão outra vez à escola da Annabelle, interrogam motoristas de camioneta, contínuos, professores do sexo masculino, quem quer que tenha contacto com a miúda e possa ter criado um "laço" com ela. Passam a casa de Mrs. Watts a pente fino. O exame inicial das provas não proporciona impressões digitais, não proporciona quase nada. Os detetives desgastam-se à procura de um vagabundopedófilo que goste de perseguir rapariguinhas e de viver em sótãos de velhotas. Visitam instituições psiquiátricas, sopas dos pobres, fazem a habitual batida aos tarados. Nesse tempo, tudo isso era rotina e não os leva a lado nenhum.
- Entretanto, Mr. Granger descontrola-se. Acusa a polícia de não se importar. Acusa os vizinhos de albergarem tarados voluntariamente. Acusa o Ministério Público de ser o único responsável pelo futuro assassínio da sua filha de sete anos. Então, um belo dia os polícias vão a casa dos Granger para uma nova entrevista e não está lá ninguém. Uma semana depois, o Ministério Público recebe um telefonema de Mr. Granger, anunciando
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que, dado que o estado do Massachusetts se recusou a proteger a sua filha, ele se mudou para outro sítio. Desliga antes que alguém tenha tempo para lhe fazer qualquer pergunta. A polícia aumenta o número de patrulhas no bairro durante uma ou duas semanas, mas nada mais é visto ou reportado. E o caso morre de morte natural, como costuma acontecer.
- Aguenta um minuto. Onde está o raio da lista? Muito bem, de acordo com o que ficámos a saber hoje, a Dori Petracelli desapareceu a 12 de novembro, poucas semanas depois desses acontecimentos. Isso não devia ter chamado a atenção?
- A Dori não desapareceu da sua casa. Desapareceu quando estava de visita aos avós, em Lawrence. Uma jurisdição diferente, circunstâncias diferentes. Parece que a polícia de Lawrence solicitou uma cópia do relatório do sujeito não identificado que estivera em casa de Geraldine Watts, mas isso não deu em nada. Lembra-te: no processo não havia impressões digitais, não havia uma descrição física detalhada do sujeito. Creio que o pessoal de Lawrence deu uma vista de olhos superficial aos incidentes dos Granger e depois, compreendendo que não havia ali nada de concreto em que pudessem ferrar os dentes, concentraram-se no seu próprio caso.
D.D. recostou-se na cadeira.
- Merda. Estás a pensar que a Annabelle era o verdadeiro alvo e que a Dori foi o prémio de consolação.
- Qualquer coisa desse género.
- Onde é que isso nos deixa?
- com mais vinte e cinco anos de experiência. Ouve. - Bobby encostou-se, cruzou as mãos atrás da cabeça. - Não quero criticar Stan-e-Dan. Li o relatório deles e dedicaram mais tempo a Mr. Granger do que a maioria dos agentes teria feito no seu lugar. Acho que o problema deles foi o facto de não serem caçadores. Subiram àquele sótão e viram um ninho. Mal usaram esse termo, toda a gente passou a ver lá um ninho também e isso, combinado com a descrição do homem como "desleixado", levou todos os investigadores a seguirem numa dada direção. Ê uma das razões pelas quais este caso não parecia ter grande ligação com a Dori Petracelli. Segundo os relatórios, o raptor da Dori conduzia uma carrinha branca. Mas não ocorreu a ninguém que o voyeur que rondava a rua da Annabelle pudesse ter um carro, tivesse recursos para isso.
- Procuravam um sem-abrigo, um doente mental.
- Exatamente. Mas quando olho para o cenário no sótão, não vejo um vagabundo à procura de abrigo. Do ponto de vista de um franco-atirador, aquilo era um esconderijo de caça. Pensa na perspetiva: a uma altura de três andares, diretamente à frente do alvo. O tipo tem um teto em cima da cabeça, um saco-cama para efeitos de conforto, latas para o caso de ter fome e um balde para as funções corporais. É perfeito. Caçar é uma questão de espera. O tipo tinha arranjado o local perfeito para esperar durante muito tempo.
- Premeditado - disse D.D. baixinho.
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- Calculado - especificou Bobby. - Inteligente. Esse tipo, o voyeur, já o tinha feito antes.
- Talvez mais cinco vezes?
- Sim. - Bobby fez um sinal de assentimento. - Talvez. Na minha opinião... a Annabelle Granger tinha sido marcada por um pedófilo sofisticado, que já devia ter raptado pelo menos outra rapariga. E se o pai da Annabelle não se tivesse revelado tão paranóico seria o corpo dela que estaria naquela câmara, e não o da Dori Petracelli. A Annabelle Granger safou-se. A Dori não teve essa sorte.
D.D. esfregou o rosto.
- Temos a certeza de que isso aconteceu em 1982? Não há a mínima hipótese de os investigadores se terem enganado na data?
- Era 1982.
- E tu tens a certeza absoluta de que o Richard Umbrio já estava preso em Walpole nessa altura?
- Sim. Também tenho essa data em vários relatórios. O voyeur não era Umbrio, D.D. Nem sequer é só a questão das datas. Olha para o modus operandi. O Umbrio era um predador oportunista, parar e agarrar, Hei, miudinha, viste o meu cão? Isto é muito mais elaborado, quase ritualizado. Estamos a falar de um tipo de tarado completamente diferente.
- Mas a utilização de uma câmara subterrânea! - explodiu D.D. A semelhança física entre Annabelle Granger e Catherine Gagnon. Não podes dizer-me que é pura coincidência.
- Há outras opções. Cópia, para começar. Em agosto de 82, o julgamento do Umbrio já tinha acabado há muito e os detalhes do rapto tinham sido tornados públicos. Talvez alguém os tenha achado "inspiradores".
- Mas as fotografias das vítimas, sobretudo quando são crianças, não são tornadas públicas - argumentou D.D. - Portanto, como explicar a semelhança física entre a Annabelle e a Catherine?
- As fotografias não são publicadas durante a fase de julgamento, mas a descrição da Catherine deve ter sido divulgada quando ela desapareceu. E essa busca durou quatro semanas.
- Hum - limitou-se a dizer D.D. chupando o lábio inferior enquanto ponderava aquela informação. Bobby desentrelaçou os dedos:
- O Umbrio não era falador. Nunca deu informações à polícia acerca do que tinha feito, nem sequer depois de ter sido descoberto. Portanto, tens de considerar a possibilidade de ele ter tido outras vítimas. Eou de ter tido ajuda.
- Um cúmplice que ficou por identificar?
- Sim. O Umbrio mal tinha vinte anos quando foi condenado, era pouco mais do que um miúdo. As vezes, dois cérebros juvenis enraivecidos...
- Klebold e Harris.
- Acontece. Por fim, há os companheiros de cela e eventuais correspondentes. Os pedófilos parecem ter tendência para comunicar entre si.
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Pensa só na quantidade de "grupos na Internet" e redes de "escravidão sexual infantil" que foram descobertos nos últimos anos. Mais do que quaisquer outros maníacos homicidas, os pedófilos gostam de conversar. Ora o Umbrio foi preso com a reputação de ser brilhante, se não criativo. Talvez alguém o tenha procurado.
- Bem, isto está cada vez melhor. - D.D. franziu o sobrolho. -Julgava que tinhas alguma coisa para a minha conferência de imprensa. Que diabo há aqui que eu possa dizer aos jornalistas?
Bobby ergueu a mão, pedindo calma.
- Há um último ponto a considerar. Não é científico, mas não podemos ignorá-lo: instinto policial. Sentiste isso mal puseste os pés na câmara. Eu também. O caso da Catherine Gagnon está relacionado, de algum modo, com o que aconteceu em Mattapan. Não é nada palpável, mas sei que é verdade e tu também. E é por essa razão que o telefonema da Catherine é tão importante.
D.D. animou-se subitamente. Quase fervilhava de esperança:
- A Catherine vai regressar ao Massachusetts? Vai falar connosco? Vai deixar-nos prendê-la por ter preparado a morte do marido!
- Hum, não propriamente. A sua resposta quanto a um regresso ao Massachusetts é que, como se costuma dizer, não é anatomicamente possível. Vamos nós ter com ela.
- Pois claro, dois detetives num avião para o Arizona. Os chefões vão adorar isso.
- Ahh - disse Bobby, remexendo as sobrancelhas -, mas vão adorar, sim. Quando explicares à imprensa que já fizeste um grande progresso na investigação e que em breve irás entrevistar não uma, mas duas potenciais testemunhas. - Bobby levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta. Era o momento indicado para uma retirada estratégica. Infelizmente, não foi bastante rápido.
- Que queres dizer com isso, duas testemunhas? - inquiriu D.D. nas suas costas. - A Catherine Gagnon é apenas uma.
- Oh, não referi isso? Queria incluir a Granger. Em troca da sua cooperação, a Catherine exige conhecer a Annabelle.
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Bobby teve sorte no complexo de apartamentos de North End: um dos residentes estava a sair quando ele ia a chegar. Era um homem de trinta e poucos anos, que avaliou as calças de caqui, a camisa e o casaco desportivo de tweed azul do detetive e segurou delicadamente a porta para ele passar. Bobby subiu os degraus da frente a correr, agarrou na pesada porta exterior e acenou um agradecimento. Era impossível não gostar dos profissionais liberais urbanos: confiavam automaticamente em quem se vestia como eles. ;
Percorreu as caixas de correio com os olhos, até encontrar o nome que procurava. Correspondia ao apartamento do piso superior e o prédio não ,
tinha elevador. Devia ter adivinhado. Por outro lado, subir a escada estreita ia ser a coisa mais parecida com um exercício que iria fazer naquele trabalho.
Dirigiu-se para os degraus, lembrando-se dos bons velhos tempos em
que pertencia a uma unidade tática de elite, a qual sabia fazer uma entrada :
como deve ser. Rastejavam no meio de fumo, deslizavam de helicópteros,
arrastavam-se de barriga para baixo por pântanos. A única coisa que viam
era o alvo à sua frente. A única coisa que ouviam eram os grunhidos de esforço
do camarada ao lado.
Quando chegou ao terceiro piso, os efeitos da falta de sono começaram
a fazer-se sentir. Abrandou o passo. Começou a arquejar. No quarto piso
teve de limpar o suor da testa. Era mais do que tempo de levar a sua triste
carcaça ao ginásio.
No quinto piso avistou a porta do apartamento, o que lhe poupou
a humilhação de desmaiar. Parou no último degrau para recuperar o folego.
Quando avançou finalmente pelo corredor, ouviu um cão a ladrar com
grande entusiasmo do outro lado da porta, antes ainda de bater. Optou
por uma batidela rápida com os nós dos dedos. O cão atirou-se prontamente à madeira, rosnando e arranhando furiosamente.
Uma voz de mulher, a falar lá dentro:
- Bella, para baixo! Bella, para com isso! Oh, por amor de Deus!
A porta não se abriu por magia. Bobby não esperava que isso acontecesse. Em vez disso, ouviu o raspar da cobertura de metal que protegia um óculo antiquado. A saudação
da mulher foi quase tão calorosa e amigável como a do cão:
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- Ah, merda! - exclamou Annabelle Granger.
- Detetive Bobby Dodge - disse ele educadamente. - Tenho algumas perguntas subsequentes...
- Que raio está a fazer aqui? Não lhe dei o meu endereço!
- Bem, sou detetive.
Aquela resposta não lhe valeu mais do que silêncio. Acabou por erguer o número de telefone que ela lhes dera:
- Pesquisa por número. Inseri o seu número e, consegui o nome e o endereço. A tecnologia é uma coisa maravilhosa, não é?
- Não posso crer que não me tenha falado da câmara - bradou ela do outro lado da porta. - Como pôde estar sentado à minha frente, a espremer-me implacavelmente, e reter esse tipo de detalhes? Sobretudo depois de ter percebido que uma daquelas raparigas podia ser a minha melhor amiga.
- Constato que tem visto as notícias.
- Eu e Boston em peso. Cretino.
Bobby abriu as mãos. Achava difícil negociar com uma porta de madeira maciça, mas fez o melhor que podia:
- Ouça, estamos todos no mesmo comprimento de onda. Queremos saber o que aconteceu à sua amiga e descobrir o sacana que fez aquilo. Tendo isso em conta, acha que posso entrar?
- Não.
- Como queira. - Bobby enfiou a mão no bolso do casaco, pegou no seu minigravador, num bloco de notas de espiral e na caneta. - Então...
- Que julga que está a fazer?
- Estou a fazer-lhe as minhas perguntas.
- No meio da escada? Que é feito da privacidade?
- Que é feito da hospitalidade? - Bobby encolheu os ombros. Você é que estabeleceu as regras; eu estou apenas a cumpri-las.
- Oh, por amor de Deus! - Dois sonoros estalidos metálicos assinalaram o recuo da fechadura dupla de aço. Seguiu-se o raspar de uma corrente de segurança puxada num gesto impetuoso. Um terceiro estalido, mais ressonante, vindo das proximidades do chão. Annabelle Granger levava a segurança doméstica a sério. Bobby tinha curiosidade em ver como uma especialista profissional em cortinados conseguira reconciliar o ambiente da casa com as barras de ferro que, sem dúvida, teria a proteger as janelas.
Annabelle abriu a porta de repelão. Bobby viu um clarão branco e, em seguida, um cão de pernas altas atirou-se aos seus joelhos, ladrando num tom estridente. A dona não fez qualquer esforço para o segurar. Limitou-se a observar o detetive com os olhos tão franzidos que pareciam fendas, como se aquilo fosse o derradeiro teste.
Bobby estendeu a mão. O cão não mordeu. Em vez disso, continuou a correr-lhe em torno das pernas. O detetive tentou segui-lo com os olhos e ficou imediatamente tonto.
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- Cão-pastor?
- Sim.
- Border collie!
- Esses são pretos e brancos.
- Pastor australiano.
Ela fez um aceno de assentimento.
- Tem nome?
- Bella.
- Será que vai parar de ladrar? Um simples encolher de ombros.
- Já está surdo?
- Quase.
- Então já falta pouco.
Bobby entrou no apartamento com alguma dificuldade. Bella empurrava-lhe as pernas por trás, impelindo-o valentemente para a saída. Quando transpôs por fim a ombreira, Annabelle fechou a porta e recomeçou a trancar a fechadura dupla, a corrente e o ferrolho de chão. Bella parou de correr à sua volta e optou por se postar à frente dele, a ladrar. Era uma bonita cadela, concluiu Bobby. com dentes muito compridos e afiados.
A última tranca de aço fixou-se no sítio e, como se alguém tivesse premido um interruptor, Bella calou-se. Soltou uma derradeira rosnadela, depois trotou para a minúscula zona de estar, serpenteando entre pilhas de tecido antes de se deixar cair no seu cesto, que estava parcialmente enterrado. No último momento, fixou um olho nele, como se quisesse dizer que não deixava de estar atenta, depois suspirou, pousou a cabeça nas patas e adormeceu.
- Excelente cadela - murmurou Bobby, impressionado.
- Nem por isso - retorquiu Annabelle -, mas estamos bem uma para a outra. Nenhuma de nós gosta de visitantes inesperados.
- Também sou bastante solitário. - Bobby avançou para o interior do apartamento, fazendo o seu melhor para examinar o local enquanto podia. As primeiras impressões: uma entrada pequena e acanhada, que dava para um quarto pequeno e acanhado. A cozinha era mais ou menos do tamanho do armário do seu quarto, estritamente utilitária, com armários brancos simples e tampos baratos de fórmica. A sala comum era um pouco maior e continha um sumptuoso sofá verde de dois lugares, uma enorme cadeira de leitura e uma mesa pequena que também funcionava como espaço de trabalho. As paredes estavam pintadas de um tom amarelo-dourado forte. Duas enormes janelas de dois metros e meio de altura tinham sido decoradas com estores de orlas recortadas, de um tecido com um padrão de girassóis.
Quanto às outras características da sala, eram obscurecidas pelas pilhas de tecido. Vermelhos, verdes, azuis, dourados, florais, às riscas, aos quadrados, em tons pastel. Seda, algodão, linho, aveludados. Bobby não percebia muito dessas coisas, mas calculava que havia ali todo o tipo de tecido que se pudesse desejar para decorar uma casa.
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Além de cordões e debruns, concluiu, ao passar pela bancada da cozinha e descobrir que estava adornada com fileiras de borlas do outro lado.
- Acolhedor - comentou. Depois apontou para as janelas. - E com ótima luz. Deve ser útil no seu tipo de trabalho.
- Que quer?
- Já que fala nisso, um copo de água era ótimo.
Annabelle comprimiu os lábios, mas foi ao lava-louça e bateu na torneira.
Naquela manhã vestira-se informalmente. Calças de treino pretas de cintura descaída, uma camisola cinzenta de mangas compridas que terminava imediatamente acima da cintura. O cabelo escuro estava apanhado num rabo de cavalo e não tinha qualquer maquilhagem a adornar-lhe o rosto. Mais uma vez, Bobby ficou impressionado com a semelhança entre ela e Catherine, ainda que o contraste entre ambas não pudesse ser maior.
Catherine apresentava-se sempre numa embalagem cuidadosamente embrulhada, trabalhava o seu poder de atração sexual e utilizava-o como uma arma. Annabelle, em contrapartida, era um anúncio ambulante ao estilo chique urbano. Quando lhe meteu o copo de água na mão, Bobby não pensou tanto em sexo como na possibilidade de ela tentar dar-lhe um pontapé no rabo. A jovem cruzou os braços diante do peito e, de repente, ele percebeu.
- Boxe - observou. - Que qieer dizer?
- Você pratica boxe. - Pôs a cabeça de lado. - No ginásio do Tony? Annabelle soltou uma fungadela de desprezo.
- Como se estivesse interessada em fazer exercício com um bando de brutamontes cheios de testosterona. No do Lee. Até porque ele se especializou em kickboxing.
- É boa?
Ela lançou um olhar ao relógio.
- Vamos combinar o seguinte: se não despachar as suas perguntas em quinze minutos, terá oportunidade de descobrir por si próprio.
- E assim tão irascível com todos os polícias ou eu sou especial?
Ela fitou-o com um olhar empedernido. Ele suspirou e resolveu passar ao que ali o levara. Ao que parecia, o profundo amor de Russell Granger pelas forças da lei tinha sido herdado pela filha. Pousou o copo de água e abriu o bloco de notas.
- Ora bem, fiquei a saber algumas coisas acerca do que aconteceu no outono de 82. - Levantou os olhos esperançosamente, na expectativa de ver um lampejo de interesse na expressão dela, uma ligeira suavizaçáo da atitude. Nada. - Parece que um tipo qualquer, um sujeito não identificado, como costumamos dizer em jargão policial, se interessou por si. Começou a deixar pequenos presentes em sua casa. Foi apanhado no jardim depois de escurecer. Foi ao ponto de tentar arrombar a janela do seu quarto.
"A polícia foi chamada pelo seu pai várias vezes. À terceira vez, descobriram que o sujeito arranjara um esconderijo no sótão da vossa vizinha da
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frente, de onde, ao que parecia, a observava. Encontraram pilhas de polaroides, notas com o seu horário quotidiano, esse tipo de coisas. Isto diz-lhe alguma coisa?
- Não. - O tom de Annabelle ainda era beligerante, mas os seus braços estavam caídos ao longo do corpo, a expressão era menos segura. Que fez a polícia?
- Nada. Em 82, assediar uma rapariguinha de sete anos não era crime. Aterrador, sim. Criminoso, não,
- Isso é ridículo!
- Ao que parece, essa era também a opinião do seu pai, porque, poucas semanas depois do último episódio, a sua família desapareceu. E, algumas semanas depois disso - a voz do detetive suavizou-se -, Dori Petracelli foi raptada do jardim de casa dos avós, em Lawrence, para nunca mais voltar a ser vista. Tem a certeza que não sabia?
- Fui ver à Internet - replicou ela bruscamente. - Ontem à noite. Calculei que vocês não iam ajudar-me. Os detetives respondem às suas próprias perguntas, não às dos outros. Portanto, fui à procura.
Bobby esperou. Não demorou muito.
- Viu o retrato do desaparecimento dela, sabe, a fotografia que afixaram por toda a cidade?
Ele abanou a cabeça.
- Venha cá. - Annabelle avançou abruptamente, roçando por ele, e entrou na sala comum. O detetive viu um pequeno computador portátil enterrado sob uma pilha de papéis. Ela varreu os papéis para o chão, abriu a tampa e o computador iluminou-se. Bastaram alguns cliques na Internet para que a fotografia do desaparecimento de Dori Petracelli enchesse o ecrã. Mas Bobby continuava sem perceber e Annabelle teve de lhe mostrar.
- Olhe para o pescoço dela. É o medalhão. Ela está a usar o meu fio. Bobby semicerrou os olhos, inclinou-se para ver melhor. A fotografia
era pouco nítida, a preto e branco, mas, olhando de perto... Suspirou. Se alguma dúvida tivera, aquilo resolvia a questão.
- Segundo a informação da página da Internet - disse Annabelle em voz baixa -, essa fotografia foi tirada uma semana antes de a Dori desaparecer. A foto mais recente, sabe como é. - A sua voz alterou-se, tornou-se mais veemente. - Aposto que ele gostou disso. Aposto que o excitou. Ver os noticiários, a divulgação da fotografia, o medalhão, as súplicas pelo regresso dela em segurança. Os sujeitos não identificados gostam de acompanhar os casos que lhes dizem respeito, não é? Gostam de ver como foram espertos. Sacana.
Virou as costas e deu vários passos agitados pela sala. Bobby endireitou-se mais devagar, mantendo os olhos fixos no rosto dela.
- De que se lembra, Annabelle...
- Não me chame isso! Não se pode usar nomes verdadeiros. Eu uso o nome de Tanya. Chame-me Tanya.
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- Porquê? Passaram vinte e cinco anos. Que tem ainda a temer?
- Como diabo hei de saber? Tinha-me habituado a viver com a ideia de que o meu pai dançava ao ritmo de um tambor paranóico. Você é que me veio dizer que os medos dele eram fundamentados. Que posso fazer com isso? Andava um tarado atrás de mim e eu nem sequer soube disso. Depois parti e ele... ele raptou a minha melhor amiga e...
Interrompeu-se, incapaz de continuar. Tapou a boca com força com a mão, envolvendo a cintura com o outro braço, num gesto protetor. No seu cesto, Bella levantou a cabeça, abanou a cauda e ganiu.
- Desculpa, rapariga - disse Annabelle. - Desculpa.
O detetive deu-lhe um minuto para se recompor. Ela controlou-se. O queixo levantou-se, os ombros endireitaram-se. Bobby ainda não compreendia o pai; aliás, tinha várias perguntas a respeito dele. Mas tudo indicava que Russell Granger educara bem a filha. Vinte e cinco anos depois, aquela rapariga era rija.
De súbito, a campainha do apartamento tocou e ela sobressaltou-se.
- Que raio... - exclamou ela, nervosa. - Não recebo muitas... Atravessou rapidamente a sala, em direção às janelas que davam para a rua e permitiam ver quem tocava. Bobby já tinha a mão dentro do casaco, os dedos apoiados na coronha da arma, contagiado pelo nervosismo dela. Então, tão depressa como começara, o episódio terminou. Annabelle espreitou lá para fora, viu o camião da UPS e sorriu, um pouco embaraçada, ao mesmo tempo que os ombros afrouxavam em sinal de alívio.
- Bella - chamou -, é o teu namorado.
Começou a abrir as trancas da porta, enquanto a cadela arranhava freneticamente a madeira.
- Namorado? - inquiriu Bobby.
- Ben, o motorista da UPS. Ele e Bella têm um namoro pegado. Eu faço encomendas, ele entrega-as e ela recebe biscoitos. Sei que os cães são daltónicos, mas se a Bella fosse capaz de ver todas as cores do arco-íris, a sua cor favorita continuaria a ser o castanho.
Annabelle destrancara finalmente todos os fechos. Abriu a porta e quase foi atropelada pela cadela.
- Volto já - bradou por cima do ombro, depois desapareceu pelas escadas, na esteira de Bella.
A interrupção proporcionou a Bobby um momento para ordenar as ideias. E acrescentar mais algumas notas à sua lista mental. Começava a fazer uma ideia bastante razoável da vida que Annabelle levava. Isolada. com uma forte consciência das questões de segurança. Insular. Fazia as compras por catálogo ou pela Internet. A sua melhor amiga era a sua cadela. A coisa mais próxima de uma relação humana era assinar diariamente os recibos do homem da UPS.
Talvez o pai tivesse feito o seu trabalho um pouco bem de mais.
Bella regressou arquejando com força, com um aspeto satisfeito. Annabelle foi um tudo-nada mais lenta a subir as escadas. Encolheu-se para
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transpor a porta, sobraçando uma caixa mais ou menos do tamanho da sua secretária. Bobby tentou ajudá-la, mas ela recusou com um gesto e pousou a caixa no chão da cozinha.
- Tecido - explicou, dando um pontapé pesaroso na enorme caixa.
- São os ossos do ofício.
- Para um cliente ou "só porque sim"?
- Ambas as coisas - reconheceu ela. - Começa sempre por ser uma encomenda para um cliente, mas, quando dou por mim, já acrescentei dois rolos "só porque sim". Francamente, é uma boa coisa não viver numa casa maior, ou só Deus sabe o que aconteceria.
Bobby fez um sinal de assentimento e ficou a vê-la dirigir-se para o lava-louça, onde se serviu de um copo de água. Parecia novamente controlada. Ir buscar a encomenda dera-lhe uma oportunidade de reorganizar as suas defesas. Era agora
ou nunca, concluiu.
- Verão de 82 - declarou. - Você tem sete anos, a sua melhor amiga é a Dori Petracelli e vive com os pais em Arlington. Que lhe vem à memória?
Ela encolheu os ombros
- Nada. Tudo. Era uma criança. Lembro-me de coisas de criança. Ir nadar à YMCA1. Jogar à macaca no caminho de acesso da minha casa. Não sei. Era verão. Lembro-me sobretudo de me divertir.
- Os presentes?
- Uma bola saltitona. Encontrei-a no alpendre, numa caixinha embrulhada na página de banda desenhada de um jornal. Era amarela e salta- ;; vá muito alto. Adorei-a. ;;
- O seu pai disse alguma coisa? Tirou-lha?
- Não. Perdi-a debaixo do alpendre.
- Outros presentes?
- Um berlinde. Azul. Foi encontrado de modo semelhante e teve dês- : tino semelhante. ;
- Mas o medalhão...
- O medalhão enfureceu o meu pai - concedeu ela. - Lembro-me disso. Mas nunca soube porquê. Achei que o meu pai estava a ser difícil e não protetor.
- Segundo os relatórios, depois do segundo incidente os seus pais puseram-na a dormir no quarto deles. Isso diz-lhe alguma coisa?
Annabelle franziu a testa, sinceramente perplexa.
- Havia um problema qualquer com o meu quarto - respondeu, esfregando a testa. - Era preciso pintá-lo? O meu pai ia arranjar... qualquer , coisa? Já não me lembro.
Só que havia um problema qualquer, que era preciso reparar. De maneira que dormi no chão do quarto deles durante uns tempos. Campismo em família, dizia o meu
pai. Até pintou estrelas no teto. Achei que era muito fixe.
1. A Young MerTs Christian Association é uma organização mundial fundada em Londres
em 1844, cujo objetivo era promover a saúde mental, espiritual e física dos jovens cristãos. Atualmente acolhe pessoas de todos os credos religiosos, classes sociais,
sexos e idades. (N. do E.)
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- Alguma vez se sentiu ameaçada, Annabelle? Que alguém a observava? Ou foi abordada por algum desconhecido? Que lhe oferecesse pastilha elástica ou chocolates? Que a convidasse para dar uma volta no carro dele? Ou talvez o pai de uma das suas amigas da escola a tenha feito sentir desconfortável? Um professor que se chegasse demasiado a si...
- Não - respondeu ela imediatamente, numa voz segura. - E creio que me lembraria disso. Claro que isso foi antes da versão do meu pai de um curso intensivo de segurança, portanto, se alguém me tivesse abordado... Não sei. Talvez tivesse aceitado os chocolates. Talvez tivesse entrado no carro. Oitenta e dois foi um bom ano, sabe. - Massajou vivamente os antebraços, depois acrescentou, numa voz embragada: - Foi o tempo antes de ir tudo por água abaixo.
Bobby ficou a olhar para ela, para ver se dizia mais alguma coisa. Mas ela parecia ter terminado, ter esgotado todas as recordações. O detetive não sabia se acreditava ou não. As crianças eram surpreendentemente perspicazes. Contudo, ela vivera no centro de um enorme drama que envolvera todo o bairro, com agentes da polícia a serem chamados a sua casa três vezes em dois meses, e nunca desconfiara de nada? Seria caso para dar mais uma vez parabéns ao pai, que tanto se esforçara para proteger a filha pequena? Ou um indício de algo pior?
Esperou até que ela levantasse o olhar. A pergunta seguinte era a mais importante. Queria que ela lhe desse toda a atenção.
- Annabelle - perguntou, por fim. - Porque deixaram a Florida?
- Não sei.
- E St. Louis, e Nashville, e Kansas City?
- Não sei, não sei, não sei. - Ela atirou as mãos ao ar, num gesto de frustração. - Julga que nunca perguntei isso? Julga que nunca pensei no assunto? Sempre que nos mudávamos, passava noites sem conta a tentar perceber onde falhara. O que tinha feito de tão mau. Ou que ameaça não tinha visto. Nunca percebi. Nunca percebi. Quando fiz dezasseis anos, a melhor explicação a que tinha chegado era que o meu pai era paranóico. Há pais que vêem demasiado futebol. O meu tinha um fraco por transações em dinheiro e identidades falsas.
- Acha que o seu pai era louco?
- Acha que uma pessoa sã desenraíza a família todos os anos e lhe arranja novas identidades?
Bobby percebia o ponto de vista dela. Mas não sabia bem em que pé isso os deixava.
- Tem a certeza que não há por aí nenhuma fotografia da sua infância? Um álbum, fotografias da sua antiga casa, vizinhos, colegas de escola? Isso ajudaria. :
- Deixámos tudo em casa. Não sei o que aconteceu às coisas depois.; Bobby franziu a testa, teve uma ideia, rabiscou uma nota.
- E parentes? Avós, tias ou tios? Alguém que pudesse ter cópias das fotografias da família e que ficasse muito satisfeito por saber que você tinha regressado?
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Annabelle abanou a cabeça, ainda sem o olhar nos olhos:
- Não havia parentes. Isso era uma das razões pelas quais era tão fácil rnudarmo-nos. O meu pai era órfão, um produto da Milton Hershey School na Pensilvânia. Na
verdade, dava-lhes todo o crédito pelo início da sua vida académica. E quanto à minha mãe, os pais dela morreram pouco depois de eu ter nascido. Um acidente de automóvel ou coisa parecida. A minha mãe não falava muito deles. Creio que ainda tinha saudades.
- Sabe - acrescentou ela abruptamente, levantando a cabeça. - Há uma pessoa que devia ter fotografias. Mrs. Petracelli. A Dori e eu vivíamos no mesmo quarteirão, andávamos na mesma escola, íamos aos mesmos churrascos em casa dos vizinhos. Talvez até tenha fotografias da minha família. Nunca tinha pensado nisso. Ela talvez tenha uma fotografia da minha mãe.
- Isso é muito boa ideia.
A voz dela tornou-se hesitante:
- Já... já lhes disseram?
- A quem?
- Aos Petracelli. Já os notificaram de que encontraram a Dori? É uma notícia horrível, no entanto, da maneira perversa como essas coisas funcionam, imagino que vos fiquem gratos.
- Pois - murmurou Bobby. - Da maneira perversa como essas coisas funcionam... Mas não, ainda não lhes dissemos. Esperaremos até termos provas que confirmem a identificação. Ou, o que é mais provável, acabaremos por os abordar para pedir uma amostra de ADN, para efeitos de comparação. - Fitou-a por um momento, depois tomou uma decisão súbita, pela qual D.D. seria bem capaz de o enforcar mais tarde. - Quer informações reservadas? Os restos estão mumificados. É um facto que os jornalistas ainda não conseguiram descobrir. Nessas condições, vai demorar um bocado até termos mais informações acerca de qualquer dos corpos.
- Quero ver.
- O quê?
- A sepultura. Onde encontraram a Dori. Quero ir lá.
- Oh, não - retorquiu ele sem hesitar. - As cenas de crime são apenas para profissionais. Não fazemos visitas guiadas. Advogados, juizes, a D.D. vêem esse tipo de coisa com muito maus olhos.
Annabelle espetou de novo o queixo num gesto característico:
- Não sou apenas um membro do público. Sou uma potencial testemunha.
- Que, nas suas próprias palavras, nunca viu nada.
- Talvez não me lembre, nada mais. Ir ao local pode desencadear alguma coisa.
- Annabelle, você não quer visitar uma cena de crime. Faça um favor à sua amiga: lembre-se dela como a sua companheira de brincadeiras de sete anos. É o melhor que
pode fazer. - Bobby fechou o bloco, arrumou-o no bolso, depois terminou a sua água e pousou o copo vazio no lava-louça.
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- Há uma coisa - observou de repente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer.
- O quê?
- Bem, não sei ao certo. Quer dizer, a Dori Petracelli desapareceu em
82; toda a gente tem a certeza acerca da data. No entanto, o mais perturbador é que o rapto dela tem grandes semelhanças com um outro caso, de
1980. Um homem chamado Richard Umbrio raptou uma rapariga de doze anos e, ouça isto, manteve-a presa num poço. Provavelmente tê-la-ia matado, se uns caçadores não tivessem tropeçado na abertura do esconderijo e não a tivessem libertado.
- Ela sobreviveu? Ainda é viva? - A voz de Annabelle animou-se. Bobby fez que sim com a cabeça, enterrando as mãos nos bolsos das
calças.
- A Catherine depôs contra o Umbrio, mandou-o para a prisão. É isso que é estranho, compreenda: o Umbrio já estava encarcerado em janeiro de 82 e, contudo...
- Os casos parecem relacionados - concluiu ela.
- Precisamente. - O detetive estudou-a da cabeça aos pés. - Tem a certeza de que não conhece a Catherine?
- Creio que não.
- Para que saiba, ela também acha que não a conhece a si. No entanto...
- Como é ela?
- Oh, mais ou menos da sua altura. Cabelo escuro, olhos escuros. Na realidade, não é muito diferente de si, agora que penso nisso.
Annabelle pestanejou desconfortavelmente ao ouvir aquilo. Bobby concluiu que era agora ou nunca.
- Diga-me cá, que acharia de a conhecer pessoalmente? Cara a cara. Talvez com as duas na mesma sala... Não sei, talvez faça saltar alguma coisa cá para fora.
Soube o momento exato em que ela percebeu que ele estivera a manipulá-la, porque o corpo dela ficou perfeitamente imóvel. O rosto fechou-se, os olhos velaram-se. Ficou à espera de uma explosão de fúria, pragas, talvez mesmo violência física. Em vez disso, ela limitou-se a ficar quieta, inacessível no seu silêncio.
- Não é preciso gostar de um sistema - murmurou ela. - Só é preciso compreendê-lo. Então pode-se sempre sobreviver. - Os olhos castanho-escuros levantaram-se, enfrentaram os dele. - Onde vive a Catherine?
- No Arizona.
- Vamos nós lá ou vem ela cá?
- Por diversas razões, será melhor se lá formos.
- Quando?
- Que tal amanhã?
- Ótimo. Isso dá-nos tempo suficiente.
- Para?
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- Para você me acompanhar à cena do crime. Uma mão lava a outra. Não é o que diz o ditado, detetive?
Tinha-o apanhado com toda a limpeza. Bobby fez um único aceno de assentimento, reconhecendo a derrota. Mesmo assim, a rigidez dos ombros dela, a inclinação obstinada do queixo, não se alterou. Ele compreendeu, demasiado tarde, que os seus truques a tinham magoado. Que, por um instante, tinham estado a comunicar quase como pessoas reais, que talvez ela até tivesse simpatizado com ele.
Pensou que devia dizer alguma coisa, mas não lhe ocorreu nada. Muitas vezes, o trabalho policial obrigava a mentir e não fazia sentido pedir desculpa por algo que voltaria a fazer se fosse preciso.
Dirigiu-se para a porta. Bella levantara-se do cesto. Lambeu-lhe a mão, enquanto Annabelle destrancava a fortaleza. Depois de aberta a porta, voltou-se para o fitar com uma expressão expectante.
- Tem medo? - perguntou ele de súbito, indicando as trancas.
- Homem prevenido vale por dois - murmurou ela.
- Isso não responde à minha pergunta. Ficou calada por um momento.
- Às vezes.
- Vive na cidade. É boa ideia ter trancas. Estudou-o um pouco mais.
- Porque está sempre a perguntar por que motivo a minha família fugiu tantas vezes?
- Acho que você sabe.
- Porque os criminosos não param por magia. Um sujeito não identificado não passa anos a assediar e a raptar seis raparigas, para depois arranjar um novo passatempo de um dia para o outro. Você pensa que o meu pai sabia qualquer coisa. Pensa que ele tinha razões para continuar a fugir.
- É boa ideia ter trancas - repetiu ele.
Annabelle sorriu simplesmente. Desta vez, foi um sorriso estóico e, por qualquer motivo, isso entristeceu-o.
- A que horas? - inquiriu ela.
Bobby consultou o relógio, ponderou o telefonema que teria de fazer a D.D. o ataque de mau génio que teria de suportar.
- Venho buscá-la às duas. Ela anuiu.
Bobby saiu e começou a descer as escadas, enquanto lá em cima as trancas corriam de novo nas fechaduras.
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Nunca tinha andado num carro da polícia. Não sei o que esperava ao certo. Bancos de plástico duro? Fedor a vómitos e urina? Como acontecera na minha experiência com o quartel-general da policia de Boston, a realidade foi uma desilusão. O Crown Vic azul-escuro era semelhante a qualquer outro carro. O interior era igualmente prosaico. Bancos simples, estofados de tecido azul. Tapetes azul-marinho. O painel de instrumentos tinha um rádio emissor e recetor e uns quantos interruptores extra, mas era tudo.
Parecia ter sido limpo há pouco tempo: o chão fora aspirado e perfumado com um ambientador Febreze. Um pequeno ato de consideração por mim? Não sabia se devia dizer "Obrigada" ou não.
Sentei-me no banco do passageiro e pus o cinto de segurança. Estava nervosa, com as mãos a tremer. Tive de tentar três vezes até conseguir encaixar o fecho metálico. O detetive Dodge não procurou ajudar-me nem fez qualquer comentário. Fiquei mais grata por isso do que pela higiene fresca do carro.
Passara o tempo desde a saída dele de minha casa a tentar terminar uma complicada sanefa para um cliente de Back Bay. No entanto, pouco mais fizera do que segurar a seda por baixo da agulha da minha máquina de costura, sem chegar a manobrar o pedal com o pé, com os olhos cravados no ecrã da televisão. Não era difícil encontrar reportagens acerca do caso de Mattapan, pois os principais canais noticiosos não falavam de outra coisa. Infelizmente, poucos tinham algo de novo para dizer.
Possuíam confirmação de que haviam sido encontrados os restos mortais de seis pessoas numa câmara subterrânea localizada nos terrenos do antigo hospital psiquiátrico. Acreditava-se que esses restos pertenciam a raparigas novas e estavam na câmara há bastante tempo. À polícia estudava várias vias de investigação. (Era isso que eu era? Uma via de investigação?) A partir daí, os jornalistas mergulhavam de cabeça no território da pura especulação. Nenhuma referência ao medalhão. Nenhuma referência a Dori. Nenhuma referência a Richard Umbrio.
Acabara por abandonar a costura e ir procurar Umbrio na Internet. Encontrara a história sob o título "Tiroteio Fatal em Back Bay", uma nar-
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rativa de como a sobrevivente de um tiroteio noturno com a polícia, Catherine Gagnon, já passara por uma outra tragédia: em criança, fora sequestrada por um pedófilo chamado Richard Umbrio, até ter sido salva por um grupo de caçadores, pouco antes do Dia de Ação de Graças.
Contudo, Umbrio não passava de uma referência secundária. A história principal: como Jimmy Gagnon, marido de Catherine e filho único de um juiz abastado de Boston, fora fatalmente alvejado por um franco-atirador da polícia, no contexto de uma tensa situação com reféns. O atirador que fizera o disparo fatal: Robert G. Dodge.
Tinha sido apresentada uma queixa-crime contra o agente Bobby Dodge pelo pai da vítima, o juiz Gagnon, que alegava que o agente Dodge conspirara com Catherine Gagnon para assassinar o marido desta.
Ora ali estava uma informação que nem o detetive Dodge, nem a sargento Warren se tinham dado ao trabalho de referir.
Como se isso não fosse suficientemente chocante, encontrei em seguida outro artigo, datado de alguns dias mais tarde: Banho de Sangue em Penthouse... Três pessoas tinham sido mortas e outra criticamente ferida, depois de um recluso, Richard Umbrio, que obtivera recentemente liberdade condicional, ter assaltado um hotel de luxo na Baixa de Boston. Umbrio matara duas pessoas, uma delas com as mãos nuas, antes de ser alvejado mortalmente por Catherine Gagnon e um agente da polícia estadual do Massachusetts que estava presente, chamado Robert G. Dodge.
Cada vez mais interessante.
Não disse nada a esse respeito quando me sentei ao lado do detetive Dodge. Preferi guardar as minhas pérolas de verdade só para mim. Bobby andara a explorar os detalhes do meu passado. Agora eu sabia alguma coisa acerca do dele.
Observei-o dissimuladamente, ali sentado ao meu lado. Conduzia com a mão direita repousando descontraidamente no volante, o cotovelo esquerdo apoiado à porta. Era evidente que a vida de polícia o tornara imune ao trânsito de Boston. Ziguezagueava dentro e fora de estreitas ruas laterais, e por entre carros estacionados em fila tripla, qual piloto da NASCAR numa volta de aquecimento. Àquela velocidade, chegaríamos a Mattapan em menos de quinze minutos.
Não sabia se estaria preparada para o que ia encontrar.
Desviei o rosto e pus-me a olhar pela janela. Se ele se sentia à vontade em silêncio, eu também me sentiria.
Não sabia por que motivo queria tanto ir à cena do crime. Mas queria. Lera a história dos últimos dias de Dori. Vira o meu medalhão, que ela trazia orgulhosamente ao pescoço. Então o meu cérebro fora inundado por demasiadas perguntas, o tipo de perguntas que provavelmente teriam perseguido os pais dela noite após noite nos últimos vinte e cinco anos.
Ela teria gritado por socorro quando fora arrancada do jardim da casa dos avós e metida à força numa carrinha não identificada? Teria lutado com o seu raptor? Teria tentado abrir as portas, apenas para descobrir a verdadeira maldade dos fechos de segurança para crianças?
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O homem teria falado com ela? Ter-lhe-ia feito perguntas acerca do medalhão? Tê-la-ia acusado de o ter roubado à amiga? Ela teria suplicado que ele a levasse para casa? Ter-lhe-ia pedido, quando ele começou, que parasse e raptasse Annabelle Granger em vez dela?
A verdade é que não pensara em Dori Petracelli nos últimos vinte e cinco anos. Era arrasador, horrível, pensar agora que ela morrera no meu lugar.
O carro abrandou. Pestanejei rapidamente, envergonhada por sentir os olhos cheios de lágrimas. Limpei o rosto às costas da mão, o mais depressa que pude.
Ô detetive Dodge estacionou. Não reconheci o local onde estávamos. Vi um quarteirão de antigos prédios de três andares. A maior parte deles precisava de pintura nova e talvez de um pouco de relva verdadeira nos respetivos jardins. O bairro tinha um aspeto degradado, pobre. Não compreendi.
- Ora bem - disse Dodge, sentado ao volante, voltando-se para mim. - Só existem duas entradas para o local. Nós, a polícia, tivemos a inteligência de as selarmos, para preservar a cena do crime. Infelizmente, os meios de comunicação social estão acampados diante de ambas as entradas, desesperados por qualquer comentário ou imagem que possam pôr nas notícias. Calculo que não queira a sua cara nos noticiários.
Aquela simples ideia aterrorizou-me a tal ponto que não consegui sequer falar.
- Pois, era o que eu pensava. Portanto, isto não vai ser muito interessante, mas servirá para o que se pretende. - Gesticulou para o banco de trás, onde reparei numa manta dobrada, mais ou menos do mesmo tom do estofo dos bancos. - Você deita-se e eu tapo-a com a manta. com um pouco de sorte, passaremos tão depressa pelas hordas malvadas que ninguém dará por nada. Quando estivermos dentro da propriedade, você pode sentar-se outra vez. A Força Aérea acedeu a interditar o espaço, pelo que já ninguém pode andar lá a brincar com os helicópteros.
Abriu a porta e apeou-se. Passei para o banco de trás, com gestos automáticos, e deitei-me com os joelhos dobrados, os braços apertados sobre o peito. Ele desdobrou a manta com um som brusco e estendeu-a por cima de mim. Ajeitou-a de um lado e outro, para me tapar os pés e dissimular o alto da cabeça.
- Está bem? - inquiriu o detetive Doge.
Anuí. A porta de trás fechou-se com uma pancada sonora. Ouvi o detetive contornar o carro, instalar-se de novo no lugar do condutor, engatar a primeira.
Já não via nada. Só ouvia o som do asfalto sob os pneus. Só sentia o cheiro nauseabundo daquele misto de escape e ambientador.
Fechei os olhos com força e, naquele instante, percebi. Sabia exatamente como Dori se sentira, atirada para um veículo desconhecido, escondida longe da vista. Compreendi como ela devia ter-se enrolado sobre si
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mesma, fazendo-se cada vez mais pequena, fechando os olhos, desejando que o seu próprio corpo desaparecesse. Sabia que sussurrara o pai-nosso, pois era o que rezávamos ao deitar, quando eu ia dormir a casa dela. E sabia que chamara pela mãe, que cheirava sempre a alfazema quando ia dar-nos um beijo de boa-noite.
Escondida sob a manta, tapei o rosto com as mãos. Chorei sem emitir nenhum som, pois é assim que se aprende a chorar quando se passa a vida a fugir.
O carro abrandou de novo. A janela desceu, ouvi o detetive Dodge indicar o seu nome, mostrar o seu distintivo. Seguiu-se uma vozearia mais distante, de gritos por atenção, perguntas, pedidos de um comentário.
A janela subiu de novo. O carro recomeçou a andar, com o motor numa mudança mais baixa para subir uma colina.
- Está pronta? - perguntou o detetive Dodge.
Encolhida debaixo da manta, limpei mais uma vez as faces.
Por Dori, disse para comigo, por Dori.
Mas estava a pensar sobretudo no meu pai e em como o odiava.
Dodge teve de me ajudar a sair do banco de trás. Afinal, há algumas diferenças entre as portas traseiras dos carros da polícia e as dos carros normais: só abrem por fora. O rosto dele era indecifrável enquanto me ajudava, os olhos velados fixos num ponto atrás do meu ombro direito. Acompanhei o seu olhar e deparei com outro carro, já estacionado por baixo da copa desnudada de um enorme carvalho. A sargento Warren estava de pé ao lado do veículo, com os ombros encolhidos no seu blusão de pele cor de caramelo, a mesma expressão irritada de que me recordava.
- É a oficial responsável - murmurou o detetive Dodge em voz muito baixa, para que apenas eu ouvisse. - Não podia propriamente visitar a cena do crime sem autorização dela. Não se preocupe, ela só está zangada comigo. Você não passa de um alvo fácil.
Ser rotulada de alvo ofendeu-me. Endireitei costas e ombros, modifiquei toda a postura. Dodge acenou em sinal de aprovação e isso levou-me imediatamente a perguntar se não seria essa a sua intenção. Tal ideia deixou-me ainda mais tensa do que o olhar perpetuamente azedo da sargento Warren.
Dodge dirigiu-se para ela e eu segui-o, abraçando o meu próprio corpo para me aquecer. A tarde estava cinzenta e fria. O cair das folhas, sem dúvida a melhor altura do ano para se viver na Nova Inglaterra, atingira o auge há duas semanas. Agora os escarlates brilhantes, os laranja vivos e os amarelos alegres haviam sucumbido a castanhos lamacentos e cinzentos monótonos. O ar cheirava a humidade e bafio. Funguei de novo, captei um ligeiro odor a decomposição.
Tinha pesquisado o Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston na Internet. Sabia que tinha começado como Hospital de Doidos de Boston em
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1839, antes de se transformar em Hospital Estadual de Boston, em 1908. Originalmente, o complexo albergara algumas centenas de doentes e funcionava mais como uma quinta autossuficiente do que como modelo para Voando sobre Um Ninho de Cucos.
Mas, em 1950, a população de doentes tinha ultrapassado os três mil, tendo sido acrescentados ao complexo dois edifícios de segurança máxima e uma enorme cerca de ferro forjado. Já não era um lugar tão tranquilo como dantes. Quando o processo de desinstitucionalização levara finalmente ao encerramento das instalações, em 1980, a comunidade ficara grata.
Esperava sentir um arrepio fantasmagórico quando penetrasse nos terrenos do hospital, talvez pele de galinha a alastrar pelos traços ao pressentir a presença de uma maldade persistente. Diante dos meus olhos erguer-se-ia uma estrutura gótica assustadora, semelhante ao Hospital Psiquiátrico de Denver, abandonado há anos, mas que ainda se eleva a grande altura sobre a 1-95, e avistaria, apenas por um instante, um rosto pálido e atormentado a espreitar por uma janela partida.
Na realidade, do local onde nos encontrávamos não se via nenhum dos dois edifícios restantes. Em vez disso, dei por mim a contemplar um matagal de arbustos emaranhados, coroados por um enorme carvalho secular. Quando a sargento Warren meteu por um caminho estreito por entre os arbustos, fomos dar a uma vasta área de erva de pântano meio seca, que ondulava ao vento, luzindo em tons de dourado e prateado. A vista era encantadora, mais adequada a um passeio na natureza do que a uma cena de crime iminente.
O terreno tornou-se mais firme. Surgiu uma clareira à nossa direita. Vi algo que lembrava uma pilha de lixo. Warren deteve-se abruptamente e gesticulou em direção ao monte de entulho coberto de vegetação.
- O especialista em botânica começou a mexer naquilo - disse ela a Dodge. - Encontrou os restos de uma estante metálica semelhante à que vimos na câmara. Parece que o hospital tinha muitas estantes dessas. Pus um agente a passar as fotografias de arquivo a pente fino.
- Achas que o equipamento veio do próprio hospital? - indagou o detetive Dodge com vivacidade.
- Não sei, mas os sacos de plástico transparentes... consta que eram de utilização comum nas instituições governamentais nos anos setenta.
A sargento Warren recomeçou a andar e o detetive Dodge regulou o passo pelo dela. Eu fechava o cortejo, refletindo na sua troca de palavras.
De repente passámos por outro maciço de árvores, emergimos numa clareira e um toldo azul-vivo surgiu à minha frente.
Pela primeira vez, hesitei. Seria imaginação minha, ou estaria tudo mais silencioso ali? Não se ouvia o chilrear das aves, o roçagar das folhas ou os guinchos dos esquilos. Já nem sequer se sentia o vento fraco. Tudo parecia paralisado, à espera.
A sargento Warren marchou em frente, num passo resoluto. compreendi que ela não queria estar ali. E isso começou a enervar-me. Que tipo de cena de crime assusta os próprios polícias?
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Por baixo do toldo azul havia dois grandes baldes de plástico. Warren levantou as tampas cinzentas, revelando fatos-macaco brancos, feitos de um tecido fino, que parecia papel. Reconheci os fatos de Tyvek que vira em muitas filmagens de cenas reais na Court TV.
- Embora tecnicamente os cientistas já tenham processado a cena do cinema, queremos conservá-la tão limpa quanto possível - disse ela à laia de explicação, estendendo-me um fato e passando depois outro ao detetive Dodge. - Este tipo de situação... nunca se sabe se não aparecerão novos peritos com outras sugestões, portanto, queremos estar preparados para isso.
Envergou rapidamente o seu próprio fato-macaco. Quanto a mim, não conseguia distinguir os braços das pernas e o detetive Dodge teve de me ajudar. Em seguida passaram às proteções para os sapatos e às redes de cabelo. Quando finalmente fiquei pronta, eles já estavam à espera há horas, ou assim parecia, e as minhas faces estavam vermelhas de vergonha.
Warren indicou o caminho até à parte de trás do toldo. Parou à beira de um buraco no chão. Não consegui ver nada lá para dentro: as profundezas da abertura eram escuras como breu.
Ela virou-se para mim, com uma expressão fria e avaliadora nos olhos azuis.
- Compreende que não pode comunicar a ninguém o que vir lá em baixo - declarou secamente. - Não pode falar do assunto com os seus vizinhos, os seus colegas ou a sua cabeleireira. Isto é estritamente confidencial.
- Sim.
- Não pode tirar fotografias, fazer esboços ou diagramas.
- Eu sei.
- Além disso, em virtude desta sua visita, pode ser chamada a depor em tribunal. O seu nome passou a constar do registo da cena do crime, o que significa que pode ser interrogada tanto pela acusação como pela defesa.
- Está bem - respondi, embora não tivesse pensado nisso. Depor em tribunal? Ser interrogada? Resolvi preocupar-me com isso mais tarde.
- E em troca desta visita guiada, aceita acompanhar-nos ao Arizona amanhã. Encontrar-se-á com Catherine Gagnon. Responderá a todas as nossas perguntas dentro do limite das suas possibilidades.
- Sim, concordo - afirmei, num tom mais brusco. Quanto mais tempo ali estávamos, mais impaciente (e nervosa) me sentia.
A sargento Warren puxou de uma lanterna.
- vou à frente - declarou - e acendo as luzes. Quando vir que estão acesas, saberá que é a sua vez de descer.
Lançou-me um último olhar avaliador. Devolvi-o, embora soubesse que os meus olhos não eram tão inflexíveis como os dela. Enganara-me acerca da sargento Warren. Se nos tivéssemos encontrado num ringue de boxe, nunca conseguiria derrubá-la. Talvez fosse mais nova, mais rápida e fisicamente mais forte. Mas ela era dura. Dura até à medula dos ossos,
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dura do tipo de descer voluntariamente a uma vala comum escura como breu.
O meu pai adorá-la-ia.
O seu cocuruto desapareceu no buraco. Um segundo depois, a abertura iluminou-se com uma claridade pálida.
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A primeira coisa em que reparei foi na temperatura. Estava mais quente no subterrâneo do que à superfície. As paredes de terra proporcionavam proteção contra o vento e isolamento contra o frio do fim do outono.
A segunda coisa em que pensei foi que conseguia estar de pé sem dificuldade. De facto, até podia abrir os braços, andar para a frente, para o lado, para trás. Esperava ser obrigada a curvar-me, deparar com uma falta de espaço claustrofóbica. Mas a câmara era positivamente espaçosa, mesmo depois de o detetive Dodge se ter juntado a nós na penumbra.
Os meus olhos ajustaram-se à mudança de luz, distinguindo o xadrez de sombras escuras que alternava com os focos luminosos. Dirigi-me para uma das paredes, apalpei a textura rugosa da terra batida.
- Não compreendo - confessei, por fim. - Não é possível um homem ter cavado um espaço deste tamanho à mão. Para isto é preciso uma retroescavadora, maquinaria pesada. Como pode fazer-se tal coisa sem ninguém dar por nada?
A sargento Warren surpreendeu-me ao tomar a iniciativa.
- Pensamos que começou por fazer parte de outro projeto de construção. Talvez um esgoto de escoamento de águas ou apenas um poço de onde extraíram terra para outro local. Em finais dos anos quarenta, inícios de cinquenta, a instituição andava numa corrida para construir edifícios suficientes para acompanhar o rápido crescimento da população de doentes. Encontram-se alicerces meio feitos, pilhas de entulho, toda a espécie de material pela propriedade.
- Então este poço fez outrora parte de um projeto oficial?
- Talvez. - Ela encolheu os ombros. - Já não resta muita gente desse tempo a quem possamos perguntar. Já lá vão cinquenta anos.
Levantei a mão, senti o teto de madeira, avancei, apalpei as vigas.
- Mas foi ele que fez tudo isto? Que converteu o espaço, por assim dizer?
- É o que pensamos.
- Deve ter-lhe tomado bastante tempo. Ninguém discutiu.
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- E dinheiro - prossegui, pensando em voz alta. - Madeira, pregos, martelo. E esforço. Será possível um dos doentes mentais ser assim tão organizado, ter permissão
para sair e entrar na propriedade dessa maneira?
D.D. encolheu de novo os ombros.
- Tudo o que aqui está podia ser trazido das pilhas de material espalhadas pela propriedade. Até agora já vi de tudo, desde pó de cimento a azulejos e molduras de janelas.
Fiz uma careta ao ouvir aquilo.
- Não há janelas cá em baixo.
- Não, não serviam os propósitos dele.
Reprimi um calafrio, dirigi-me para a parede do fundo.
- Quando julgam que ele começou?
- Não sabemos. Havia cerca de trinta anos de vegetação por cima do contraplacado, o que nos remete para a década de setenta. Por essa altura, o hospital já estava moribundo e a propriedade, mais ou menos ao abandono. Faz algum sentido.
- E ele agiu durante quanto tempo?
- Não sabemos.
- Mas devia conhecer a área - insisti. - Estar internado no hospital ou talvez até trabalhar lá. Quero dizer, para encontrar este espaço, saber onde encontrar o material de que precisava. Para se sentir à vontade para cá vir uma e outra vez.
- Nesta altura do campeonato, tudo é possível. - A voz de D.D. revelava ceticismo. Pressenti que dava mais importância ao facto de a propriedade estar ao abandono, o que significava que qualquer pessoa podia ter andado pelos setenta hectares de terreno sem dificuldade.
Essa ideia quebrou-me um pouco o balanço, mas levantei o queixo e prossegui obstinadamente com o meu papel de detetive amadora.
- Disse que havia material? - incitei.
- Estante de metal, cadeira de metal, balde de plástico.
- Um sítio para dormir?
- Nada que tenhamos encontrado.
- Lanternas, fogão?
- Não, mas há dois ganchos no teto que podem ter servido para pendurar luzes.
- Porque diz isso?
- Porque ele pôs os ganchos à frente das prateleiras de metal onde tinha os corpos.
Cambaleei, estendi o braço para me apoiar à parede de terra fria, depois tirei bruscamente a mão.
- Desculpe.
A expressão de D.D. tornara-se dura, o seu olhar, penetrante.
- Diga-me você. Você é que se armou em testemunha. Que vê aqui?
- Nada.
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-A propriedade, os terrenos... Há algo que lhe seja familiar? - Não. - Falei numa voz sumida. - Nunca cá tinha estado. Penso que... - Estendi de novo a mão para
a parede, apalpando-a com dedos hesitantes. - Penso que não se esquece uma coisa destas. - Não - concordou ela com aspereza -, também penso que não. Avançou para
se postar ao meu lado. Pousou a mão junto da minha, com os dedos abertos, a palma comprimida contra a terra fria, como se quisesse provar que lidava melhor com aquela
sepultura do que eu. Aqui mesmo, no sítio onde estamos, era onde estavam as duas prateleiras de metal. Ele utilizava-as como arrumação. Era onde guardava os corpos.
Um em cada saco de lixo, três em cada prateleira. Duas filas ordenadas. Os meus dedos crisparam-se convulsivamente, as unhas enterraram-se na terra rija. Senti o
solo duro e compacto penetrar debaixo delas. E, nesse instante, juro que o senti. O mal profundamente impregnado, um gelo intenso e agressivo. Retrocedi a toda a
pressa. Os meus pés moviam-se em pequenos círculos rápidos, enquanto o meu olhar esquadrinhava o chão em busca de sinais de... quê? Luta? Sangue? O sítio onde um
monstro violara a minha melhor amiga? Ou lhe arrancara as unhas? Ou lhe cortara os mamilos com uma tenaz antes de lhe cortar a garganta?
Lera demasiados artigos de jornal, passara demasiado tempo a ser preparada pelo meu pai. Para quê ler Boa Noite, Lua à nossa filha, quando podemos ler-lhe Monstros
do Século XX?.
Tinha vontade de vomitar, mas não conseguia fazê-lo. Os meus pensamentos sucediam-se num turbilhão demasiado rápido, demasiado irresistível. Estava a recordar a
amiga da minha infância. Estava a visualizar todas as fotografias de cenas de crime que o meu pai me mostrara.
- Que fazia ele? - dei por mim a perguntar, num tom exigente. Quanto tempo as mantinha vivas? Como é que as matava? Souberam da existência umas das outras? Tiveram
de ficar aqui em baixo, rodeadas por cadáveres na escuridão? - Apaguem as luzes! - A minha voz estava cada vez mais alta, incoerente. - com os diabos, apaguem essas
luzes! Quero saber o que ele lhes fazia! Quero saber como era!
O detetive Dodge pegou-me nas mãos. Comprimiu as palmas uma contra a outra, acalmando os meus movimentos descontrolados, aconchegando-me novamente as mãos ao peito.
Não disse nada, limitou-se a ficar ali, fitando-me com os seus firmes olhos cinzentos até que senti algo quebrar dentro de mim. Os meus ombros descaíram, os braços penderam. A histeria abandonou-me e fiquei frouxa, esgotada, a pensar de novo em Dori e naquele último verão em que nenhuma de nós sabia como a vida nos corria bem.
Os gelados favoritos de Dori eram os de sabor a uva. Os meus eram os de sabor a cerveja suave. Guardávamos os gelados com esses sabores, das embalagens sortidas que as nossas mães compravam, e trocávamo-los todos os sábados.
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Fazíamos corridas na rua, para ver qual de nós saltava mais depressa. Um dia caí e esfolei o queixo. Dori voltou atrás, para ver se eu estava bem e, quando ela se inclinou para mim, levantei-me de um pulo e fui aos saltos até à meta, só para poder dizer que tinha ganho. Ela não me falou durante um dia, mas, apesar disso, recusei-me a pedir desculpa, porque, mesmo então, ganhar era mais importante para mim do que a expressão magoada no seu rosto.
A família dela ia à igreja todos os domingos. Eu queria ir com eles, porque Dori ficava muito bonita no seu vestido branco debruado de azul-claro, mas o meu pai dizia sempre que a igreja era para os ignorantes. Assim, ia visitar Dori aos domingos à tarde e ela contava-me as histórias que ouvira nessa manhã, como a do bebé Moisés, ou a de Noé e a sua arca, ou a do milagroso nascimento de Jesus numa manjedoura. E eu dizia uma pequena oração com ela, embora isso me fizesse sentir culpada. Gostava da expressão no seu rosto quando rezava, do sorriso sereno que se formava nos seus lábios.
Perguntei-me se ela teria rezado ali em baixo. Se teria rezado para viver ou se teria pedido que a misericórdia de Deus a levasse. Quis rezar. Quis cair de joelhos e suplicar a Deus que aliviasse um pouco a terrível pressão que me oprimia o peito, pois tinha a sensação de que um punho penetrara no meu corpo e me apertava o coração, e não sabia como era possível viver com tanta dor. O que só me fazia pensar como teriam os pais dela conseguido aguentar tantos anos.
É a isto que a vida se reduz? Rapariguinhas obrigadas a escolher entre uma vida a fugir das sombras ou uma morte prematura e solitária nas trevas? Que espécie de monstro fazia uma coisa daquelas? Porque não pudera Dori escapar?
Nesse momento, senti-me feliz por os meus pais estarem mortos. Por não terem de saber o que acontecera a Dori, ou o que a decisão do meu pai significara para a melhor amiga da filha.
Então, no momento seguinte, senti-me pouco à vontade. Outra sombra ondulante nos recessos do meu cérebro...
Ele sabia. Não sei como o sabia, mas era assim mesmo. O meu pai soubera o que acontecera a Dori e isso provocou-me um sentimento de mal-estar ainda maior do que as quatro paredes que se fechavam sobre mim.
Não aguentava mais. Levantei as mãos, levei-as à testa.
- Teremos de esperar pelos relatórios da antropóloga forense para termos mais informações acerca das vítimas - dizia a sargento Warren.
Limitei-me a fazer um aceno afirmativo.
- Digamos apenas que estamos à procura de uma pessoa muito metódica, extremamente inteligente e depravada.
Novo aceno breve.
- Claro que qualquer coisa que possa recordar acerca dessa época, sobretudo relativamente ao sujeito não identificado que observava a sua casa, seria muito útil.
- Gostava de subir agora - disse eu.
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Ninguém se opôs. O detetive Dodge foi à frente. Quando chegou ao cimo, ofereceu-me a mão. Eu recusei e subi sozinha. O vento estava mais forte e turbilhonava ruidosamente por entre as folhas moribundas. Voltei o rosto para a brisa cortante. Depois cerrei os punhos, sentindo debaixo das unhas os restos sinistros da sepultura da minha melhor amiga.
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Quando regressámos aos carros, encontrámos um polícia de giro à nossa espera. Chamou a sargento Warren à parte e falou-lhe em voz baixa.
- Quantas vezes o viu? - inquiriu ela bruscamente.
- Três ou quatro.
- Quem diz ele que é?
- Diz que trabalhava aqui. Que sabe qualquer coisa. Mas só quer falar com o oficial responsável.
Warren olhou por cima da cabeça do agente, para o ponto onde o detetive Dodge e eu esperávamos.
- Tens um minuto? - perguntou ela, dirigindo-se claramente a Bobby, não a mim.
Ele lançou-me um olhar. Eu encolhi os ombros.
- Posso esperar no carro.
Ao que parecia, aquilo fora a resposta certa. Warren virou-se de novo para o polícia de giro:
- Traga-o cá. Se ele está assim tão interessado em falar, vamos lá ouvir o que tem para dizer.
Voltei para o Crown Vic. Não me importava. Queria proteger-me do vento, fugir às visões e aos cheiros. Já não estava a pensar em passeios na natureza. Deviam ir buscar os buldózeres e arrasar aquilo tudo.
Afundei-me no banco do passageiro, saindo obedientemente da vista deles. No entanto, mal o detetive Dodge se afastou para se colocar ao lado da sargento Warren, abri uma fresta na janela.
O polícia de giro regressou passados minutos. Acompanhava-o um cavalheiro de uma certa idade, com uma abundante cabeleira branca e um passo surpreendentemente vivo.
- Chamo-me Charles - anunciou numa voz trovejante, apertando a mão a Warren e depois a Dodge. - Charlie Marvin. Trabalhei no hospital nos meus tempos de faculdade. Obrigado por me receberem. É o oficial responsável? - indagou, olhando para o detetive Dodge, que fez um sinal discreto com a cabeça. Charlie acompanhou o movimento e virou-se para a sargento Warren. - Ups! - exclamou na mesma voz trovejante, mas tinha um sorriso tão rasgado que era difícil não simpatizar com ele. - Não
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ligue - prosseguiu, dirigindo-se a Warren. - Não sou sexista, só um velho idiota.
Ela deu uma gargalhada. Nunca a tinha ouvido rir. O seu riso quase fazia com que parecesse humana.
- Prazer em conhecê-lo, Mr. Marvin.
- Charlie, Charlie. "Mr. Marvin" lembra-me o meu pai, que Deus o tenha.
- Em que podemos ser úteis, Charlie?
- Ouvi falar nas sepulturas, nas seis rapariguinhas que encontraram. Tenho de dizer que me chocou imenso. Passei quase uma década aqui, primeiro a trabalhar como auxiliar de enfermagem, depois a oferecer os meus serviços como pastor à noite e aos fins de semana. Quase fui morto meia dúzia de vezes. Mas ainda recordo esses dias como os bons velhos tempos. Incomoda-me pensar que podia haver aqui miúdas a morrer, enquanto eu cá estava. Incomoda-me muito.
Fitou Warren e Dodge com uma expressão expectante, mas nenhum disse nada. Agora já conseguia reconhecer a estratégia deles: também gostavam de utilizar aquela abordagem silenciosa comigo.
- Portanto - prosseguiu Charlie com vivacidade -, talvez eu seja um velho idiota incapaz de se lembrar do que comeu ao pequeno-almoço, mas as minhas recordações dessa época são claras como o sol. Tomei a liberdade de anotar certas coisas. Acerca de doentes e, bem - pigarreou, parecendo nervoso por um momento -, acerca de um certo membro do pessoal. Não sei se vos serão úteis ou não, mas queria fazer alguma coisa.
Dodge meteu a mão no bolso do peito, abriu um bloco de notas. Charlie interpretou aquilo como um gesto de encorajamento e desdobrou animadamente uma folha de papel que apertava na mão. Os seus dedos tremiam ligeiramente, mas a sua voz permaneceu firme.
- Conhecem bem o funcionamento do hospital? - perguntou aos dois detetives.
- Não, senhor - respondeu o detetive Dodge. - Pelo menos, não tão bem como desejaríamos.
- Tínhamos oitocentos doentes quando comecei a trabalhar cá contou Charlie. - Cuidávamos deles a partir dos dezasseis anos, de todas as raças, sexos, classes socioeconómicas. Alguns eram internados pelas famílias, muitos eram trazidos pela polícia. A ala leste do complexo destinava-se aos cuidados crónicos, a ala oeste, onde nos encontramos agora, aos casos agudos. Comecei pela receção. Um ano depois, fui promovido a auxiliar principal e passei para o edifício I, onde trabalhava na unidade 1-4, uma unidade de segurança máxima para homens.
"Era uma boa instituição. Havia falta de pessoal; houve muitas noites em que fiquei sozinho com quarenta doentes. Mas dávamos conta do recado. Nunca usávamos coletes de forças, amarras ou violência física. Se houvesse sarilhos, tínhamos autorização para utilizar técnicas de imobilização de braços e ombros para subjugar o doente até chegar auxílio. Quando isso
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acontecia, o mais provável era outro auxiliar de enfermagem administrar um sedativo.
"Os auxiliares de enfermagem encarregavam-se sobretudo dos cuidados gerais. Mantínhamos os doentes calmos, limpos e saudáveis. Administrávamos a medicação, de acordo com a prescrição dos médicos. Recebi alguma formação em injeções intramusculares. Sabe, espetar uma seringa carregada de amital sódico na coxa de um homem. Às vezes, as coisas complicavam-se a sério: tive de fazer muito exercício com pesos só para sobreviver. Mas a maioria dos homens, mesmo na unidade de segurança máxima, só precisava de ser tratada como gente. Falava-se com eles. Mantinha-se a voz calma e razoável. Procedia-se como se se esperasse que eles fossem calmos e razoáveis. Ficariam admirados se vissem a frequência com que isso resultava. -
- Mas nem sempre - sondou a sargento Warren. Charlie abanou a cabeça:
- Não, nem sempre. - Espetou um dedo. - A primeira vez que quase perdi a vida: Paul Nicholas. Quase cento e quinze quilos de esquizofrenia paranóica. Passava a maior
parte do tempo no isolamento, em quartos especiais que só tinham uma janela com barras e um pesado colchão de couro para dormir. Quartos de borracha, como lhes chamam
agora. Mas uma noite, quando cheguei ao serviço, tinham-no deixado sair. O meu supervisor, Alan Woodward, jurou que o Paulie estava bem.
"Passam as primeiras horas sem se ouvir nada. Chega a meia-noite e eu estou no gabinete do primeiro piso, a estudar um bocado, quando começo a ouvir uma barulheira lá em cima, como se viesse um comboio de mercadorias à desfilada pelo corredor. Tiro o auscultador do descanso, enviando o sinal para pedir ajuda, e corro pelas escadas acima.
"E lá está o Paulie, bem no meio da sala de convívio, à minha espera. Mal me vê, atira-se de um salto. Rolo para o lado e o Paul vai aterrar no sofá, esmagando-o completamente. Quando dou por mim, o Paul está a agarrar nas cadeiras e a atirar-mas à cabeça. Corro para trás de uma mesa de pingue-pongue. Ele dá-me caça e desatamos a correr à volta da mesa, um atrás do outro, como num velho desenho animado de tom e Jerry. Mas o Paulie cansa-se do jogo. Para de correr. Começa a desfazer a mesa de pingue-pongue. com as mãos nuas.
"Julgam que estou a exagerar, mas não estou. O tipo estava cheio de raiva e de testosterona. Começou pela orla de metal da mesa, arrancou-a e depois pôs-se a desfazer o tampo, um pedaço de cada vez. Por essa altura, eu percebo que estou morto; a mesa de pingue-pongue não é assim tão grande e o Paul avança a bom ritmo. Eis senão quando, levanto os olhos e vejo dois colegas de enfermagem a chegar. "Agarrem-no!", grito-lhes. "Precisamos de amital sódico!"
"Só que eles estão pregados ao chão. Especados à porta, de olhos arregalados, a ver o Paulie fazer as sua loucuras e, perdoe-me a expressão, minha senhora, estão todos borrados. "Hei!", grito-lhes eu outra vez. "Por amor de Deus, pá!"
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"Um deles engasga-se. É o bastante para o Paul se virar. Mal o vejo de costas, salto por cima da mesa, agarro-o por trás e prendo-lhe os braços debaixo dos meus.
Ele começa a urrar e tenta sacudir-me. Os meus colegas recuperam finalmente o sangue-frio e ajudam-me a subjugá-lo. Ainda foram precisos catorze grãos de amital
sódico e duas horas para o Paul acalmar. Escusado será dizer que passou bastante tempo no isolamento depois disso. Portanto aí têm um nome, Paul Nicholas!
Dito isto, Charlie ficou a olhar para os dois investigadores, numa atitude de expectativa. O detetive Dodge escrevinhou obedientemente o nome, mas a sargento Warren
estava de sobrolho franzido:
- Disse que esse doente, Paul "Paulie" Nicholas estava normalmente no isolamento?
- Sim, minha senhora.
- E quando saía do isolamento, calculo que estivesse fortemente medicado.
- Oh, sim, minha senhora. com um tipo como ele, não havia outra solução.
- Bem, Charlie, segundo compreendo esse Nicholas constituía uma ameaça para si e para o resto do pessoal. Mas, tendo em conta o regime em que se encontrava, não me parece que o deixassem ir passear pela propriedade.
- Oh, não, o Paul era um doente de segurança máxima. Isso significava encerramento permanente no edifício, vinte e quatro horas por dia. Esses doentes não andavam por aí "à solta".
A sargento Warren anuiu.
- A pessoa que procuramos, Charlie, teria de ter acesso aos terrenos da propriedade. Muito acesso mesmo. Havia doentes com direito a sair ou teremos de nos concentrar no pessoal?
Charlie refletiu um pouco, franziu a testa, reviu a sua lista:
- Bem, não queria começar por aí, mas houve um incidente...
- Sim? - encorajou Warren.
- Mil novecentos e setenta - disse Charlie. - Compreende, havia uma razão para a enfermeira-chefe, Jill Cochran, gostar de nós, estudantes universitários. Éramos fortes, claro, isso ajudava. Mas, além disso... éramos frescos, otimistas. Não nos limitávamos a tomar conta dos doentes, interessávamo-nos sinceramente por eles. Quanto a mim, nessa altura já sabia que queria ser pastor. Um hospital psiquiátrico é um bom sítio para começar, quando se quer chegar às almas perturbadas. Aprendi por experiência própria a diferença que a palavra certa, no momento certo, pode fazer para uma pessoa. Mas tenho de dizer que é um sítio onde ninguém devia ficar muito tempo, nem sequer o pessoal.
"Os tipos mais velhos, os auxiliares de enfermagem "experientes", que foram ficando ao longo de décadas... raios, alguns desses tipos ficavam mais malucos do que os próprios doentes. Acabavam por ser também internados, por se esquecerem do que era a vida fora das paredes do hospital.
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Quando comecei a trabalhar na receção, havia um doente com uma ligadura nojenta na perna. Na primeira noite, perguntei ao auxiliar principal o que era aquilo. Ele não fazia ideia. Nem sequer tinha reparado que o doente tinha uma ligadura na perna. De maneira que eu vou ao quarto do doente e pergunto-lhe se posso ver a sua perna. Mal tiro a ligadura, um jorro de pus dispara pelo quarto. E depois, diante dos meus olhos, começam a sair larvas da ferida.
"Vem-se a concluir que tinha aparecido uma úlcera na perna do homem dois meses antes. O médico ligou a ferida e nunca mais ninguém se ocupou dela. Nem um único auxiliar de enfermagem para amostra. Há dois meses que olhavam para o doente sem o verem de facto.
"Bem, isso era suficientemente mau. Negligência. Mas, por vezes, as coisas tornavam-se um pouco piores.
Charlie interrompeu-se, mostrando-se de novo pouco à vontade. Tanto Warren como Dodge escutavam-no atentamente. Do meu posto de vigia, encolhida no carro de Dodge, via que ambos os investigadores estavam suspensos dos lábios dele. O mesmo se passava comigo.
O pastor reformado respirou fundo:
- Ora, uma noite, recebo um telefonema da enfermeira da residência das mulheres. Keri Stracke. Pergunta-me se fulano de tal está de serviço e eu respondo que sim.
A Keri pergunta-me onde ele está. Bem, dou uma volta pelo edifício I, mas não o vejo. Digo-lhe que ele saiu, talvez tenha ido jantar. Faz-se uma longa pausa. Depois
a Keri diz-me, com uma voz muito esquisita, que tenho de lá ir imediatamente.
"Mas eu sou o único auxiliar presente. Não posso deixar o edifício I. Tento explicar-lhe isso, mas ela repete-me, na mesma vozinha esquisita, que não tenho alternativa.
Tenho de ir imediatamente Que posso fazer? Estou preocupado. vou até lá. Keri vem ter comigo à porta e, sem uma palavra, conduz-me ao andar de cima. Para diante
da porta fechada do quarto de uma doente. Espreito pela janela e lá está o meu colega de enfermagem, na cama da doente. Ela tem dezassete anos, é muito bonita e está catatónica. Nunca na minha vida tive tanta vontade de magoar outro ser humano.
- Que fez? - perguntou o detetive Dodge calmamente.
- Abri a porta. Mal ouviu barulho, o Adam levantou a cabeça. Via-se, pela cara dele, que sabia que estava tudo acabado. Saltou de cima dela, apertou a braguilha e saiu do quarto. Escoltei-o ao edifício I, de onde liguei para o nosso supervisor. O Adam foi despedido logo ali, bem entendido. Não me interessam as histórias que correm acerca de abusos contra os doentes, aquele tipo de comportamento nunca foi tolerado. O Adam estava acabado e sabia disso.
- O apelido desse Adam? - inquiriu Dodge.
- Schrnidt - suspirou Charlie.
- Apresentaram queixa à polícia? - indagou a sargento Warren, num tom mais brusco.
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Charlie abanou a cabeça:
- Não, a administração preferiu abafar a coisa. Warren arqueou as sobrancelhas.
- Sabe o que aconteceu ao Adam?
- Não, mas... - A mesma hesitação. - Vi-o várias outras vezes. Na propriedade. Duas vezes ao longe, mas não tive grandes dúvidas de que era
ele. À terceira, fui atrás dele e perguntei-lhe o que diabo estava ali a fazer. Disse que tinha ido tratar de papelada. Considerando que eram quase dez da noite,
aquilo não fez grande sentido para mim. No dia seguinte, resolvi esclarecer a questão com a Jill Cochran. Ela não sabia nada acerca do assunto. Resolvemos manter as doentes debaixo de olho por uns tempos. Ninguém falou disso, mas estávamos de guarda. Não voltei a ver o Adam, mas a propriedade é muito grande. Dodge franziu o sobrolho:
- Patrulhavam os terrenos, faziam algum esforço para zelar pela segurança da propriedade?
- Trancávamos os portões à noite e tínhamos pessoal nas instalações vinte e quatro horas por dia. Mas... de madrugada, dificilmente se veria um auxiliar de enfermagem a deambular lá por fora. Tínhamos doentes para tratar, permanecíamos nos nossos gabinetes. - Charlie encolheu os ombros. - Era possível alguém entrar e sair sem darmos por nada. Já tinha acontecido antes, sabe.
- Antes? - inquiriu Warren com vivacidade.
- Tivemos um homicídio na propriedade, uma enfermeira, em meados dos anos setenta. Pelo que sei, um dos auxiliares de enfermagem olhou por uma janela do edifício da receção e viu o corpo, logo de manhã. Ingrid, Ingá... Inge. Inge Lovell, creio que era isso. Tinha sido violada e espancada até à morte. Uma tragédia terrível, terrível. Chamou-se a polícia, mas não havia testemunhas. Nenhum dos outros auxiliares tinha visto fosse o que fosse.
Warren fazia que sim com a cabeça. Ao que parecia, a história de Charlie despertara a sua própria memória.
- Nunca foi feita qualquer detenção - observou ela.
- O que constava na altura, é que tinha sido um doente - informou Charlie. - De facto, quase toda a gente pensava que tinha sido o Christopher Eola. Não me admiraria. O Eola foi internado depois dos meus tempos de auxiliar de enfermagem. Mas ainda o vi uma ou duas vezes, quando cá vinha aos domingos. Era um doente assustador, Mr. Eola. O lado frio da loucura.
Dodge folheava o seu bloco.
- Eola, Eola, Eola.
- A linha direta - murmurou Warren. Ambos se endireitaram bruscamente.
- Que pode dizer-nos acerca do Eola? - perguntou Warren a Charlie. Este pôs a cabeça de lado.
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- Quer a história simples ou a versão com a bisbilhotice incluída?
- Gostávamos de ouvir tudo - respondeu Warren.
- Quando veio para junto de nós, o Eola era um jovem. Foi internado pelos pais, assim me contaram. Largaram-no cá e regressaram sem demora à sua mansão, para nunca mais voltarem. Constava que o Eola tinha tido uma relação inapropriada com a irmã mais nova. Os pais apanharam-nos juntos e pronto: Adeus, Christopher.
"O Eola era um rapaz bem-parecido. Cabelo castanho-claro, olhos azuis muito brilhantes. Não era grande. Teria um metro e oitenta de altura, mas era esguio, refinado. Talvez até um tudo-nada efeminado, razão pela qual a maior parte dos auxiliares de enfermagem não o considerou logo como uma ameaça.
"Também era esperto. Muito sociável. Seria de crer que uma pessoa com uma educação privilegiada, como ele, manteria uma certa distância, mas ele gostava de ficar na sala de convívio. Tocava para os outros doentes, instaurou uma hora de leitura. Mas o mais importante é que enrolava cigarros. Sei que hoje isso é malvisto, mas, nessa época, toda a gente fumava. Os médicos, as enfermeiras, os doentes. De facto, uma das melhores maneiras de se garantir a colaboração de um doente era oferecer-lhe um cigarro. Era assim que se faziam as coisas.
"Bem, a maior parte do tabaco era de enrolar e alguns doentes, cujas aptidões motoras estavam limitadas devido à medicação, tinham dificuldade em preparar os seus cigarros. Então o Christopher ajudava-os. Era o que estava a fazer da primeira vez que o vi. Sentado no solário, a enrolar alegremente cigarros para uma longa fila
de doentes. É curioso, mas assim que ele levantou os olhos e me viu, percebi que não gostava dele. Percebi que era má rês. Via-se pelos seus olhos. Tinha olhos de
tubarão.
- Que fez o Eola? - interrompeu Dodge. - Por que motivo era considerado uma ameaça?
- Aprendeu o sistema.
Endireitei-me. Não consegui evitá-lo. Sentada no carro, com o ouvido colado à janela entreaberta, tive uma sensação de déjà-vu, de ouvir o meu pai a falar, de existir um homem fantasmagórico, chamado Christopher Eola, que tomara outrora as mesmas notas que eu. A ideia provocou-me calafrios.
- O sistema? - repetiu Dodge.
- Horas, mudanças de turno, intervalos para jantar. E, mais importante ainda, medicação. Ninguém percebeu até ao assassínio da pobre Inge. Mas quando a administração começou a fazer perguntas, concluiu-se que alguns auxiliares de enfermagem andavam a adormecer em serviço. Só que não era um de vez em quando. Eram todos, durante todo o tempo. Isso despertou suspeitas na enfermeira-chefe. Assim, uma noite, a Jill resolveu fazer uma inspeção de surpresa na receção. Foi dar com o Eola no gabinete, a misturar qualquer coisa na comida que o auxiliar de enfermagem trazia num saco de papel. Ele levantou os olhos, viu-a e, de repente, sorriu.
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"Mal viu aquela expressão, a Jill soube que estava perdida. Fechou a porta, prendendo o Eola no gabinete. Ele tentou argumentar com ela. Disse-lhe que aquilo era um exagero, jurou que podia explicar tudo. Ela não cedeu. Quando menos esperava, o Eola estava a atirar-se contra a porta, rosnando como um animal. Um homem mais corpulento talvez tivesse conseguido sair, mas, como já disse, o Eola era miolos, não músculo. A Jill conseguiu mante-lo lá dentro durante quinze minutos, até aparecer outro auxiliar e arranjarem uma seringa de amital sódico.
"Mais tarde descobriu-se que o Eola tinha andado a roubar cápsulas de cloropromazina aos outros doentes e a misturar o pó na comida dos auxiliares de enfermagem. Além disso, incitava discórdias entre os doentes, criando situações de conflito no piso superior. Quando o auxiliar de enfermagem
acorria para resolver o problema, ele esgueirava-se para o gabinete
i e deitava mãos ao trabalho. Claro que o Christopher nunca confessou nada.
Sempre que lhe faziam perguntas, limitava-se a sorrir.
Warren e Dodge trocaram novo olhar.
- Parece que o Eola teve muitas oportunidades para deambular pela
propriedade.
- Diria que sim.
- Em que ano foi isso?
- O Eola foi internado em 74.
- com que idade?
- Creio que tinha vinte anos na altura.
- E que me aconteceu?
- Acabou por ser apanhado.
- A fazer o quê?
- A organizar uma revolta entre os doentes. Tinha conseguido apoderar-se
do colchão de couro de um quarto do isolamento. Depois recrutou os doentes em estado mais crítico para provocarem distúrbios. Quando o auxiliar de enfermagem
apareceu, os desordeiros atacaram-no com o colchão e deixaram-no inconsciente. Mas o Eola tinha cometido um ligeiro erro de cálculo. Nessa altura, tínhamos lá um
doente chamado Rob George. Antigo campeão de pesos pesados. Tinha passado os dois primeiros
anos no hospital em estado catatónico. Mas três dias antes, tinha ido sozinho até à sala de convívio. O auxiliar de enfermagem de serviço conseguiu metê-lo de
novo na cama sem dificuldade, apenas para ir encontrá-lo sentado uma hora depois. Era evidente que estava a recuperar.
" Bem, na noite da revolta do Eola, toda a unidade andava numa roda-viva. E, ao que parece, isso tirou o nosso pugilista da cama. O Rob apareceu na sala de convívio.
Olhou para o auxiliar de enfermagem caído no chão, inconsciente. Depois avançou para o Christopher, com um grande sorriso estampado na cara. "Boas notícias, pá...",
começou o Eola. Então o George puxou o punho atrás e deixou o Christopher estendido. Um belo gancho com a mão esquerda. Depois voltou para a cama. Um dos outros
doentes foi ao gabinete e tirou o auscultador do telefone do descanso. Sem o Eola, ninguém sabia o que fazer.
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"Os auxiliares de enfermagem vieram e puseram tudo em ordem. Na manhã seguinte, o Rob acordou e perguntou pela mãe. Teve alta seis semanas depois. Dizia que nunca
tinha conseguido lembrar-se dos acontecimentos dessa noite. No entanto, pelo que dizem os médicos, os primeiros movimentos da maioria dos doentes são reflexos, uma questão de memória muscular. Como sentar-se. Ou andar. Ou, suponho eu, um belo gancho com a mão esquerda, quando se é campeão de boxe.
- E que aconteceu ao Christopher?
- Os outros doentes denunciaram-no e, dado o seu historial, a administração tinha justificação para o transferir para Bridgewater, que tratava dos casos de loucura criminosa. Nunca mais tive notícias dele. Mas Bridgewater é assim mesmo. Isto aqui - Charlie apontou para o chão debaixo dos seus pés - era um centro de tratamento. Bridgewater... quando se ia para lá, ninguém esperava voltar a ver-nos.
A sargento Warren arqueou uma sobrancelha.
- Encantador.
Charlie encolheu os ombros.
- Era assim que se faziam as coisas.
- Mas ele pode ter tido alta - sondou Dodge. - Em finais dos anos setenta, as populações de doentes internados não estavam a diminuir por toda a parte? A desinstitucionalização não se ficou pelo encerramento do Hospital Psiquiátrico de Boston, afetou toda a gente.
Charlie acenou em sinal de assentimento:
- É verdade, é verdade. Uma pena, se quer saber a minha opinião. Levantou bruscamente a cabeça. - Sabem o que me fez ficar por cá? A trabalhar durante quatro anos,
como voluntário ao longo de outros seis? Contei-vos a parte assustadora, as histórias que as pessoas querem ouvir acerca de um hospital psiquiátrico. Mas a verdade é que isto era um bom hospital. Tínhamos doentes como o Rob George que, com o tratamento adequado, emergiu de um estado catatónico e teve oportunidade de regressar a casa, para junto dos seus entes queridos. O segundo tipo que quase me matou foi um miúdo de rua chamado Benji. Era um miúdo bem-parecido, de ascendência italiana, mas feroz como poucos. Foi a polícia que o trouxe para cá. Na primeira semana, o Benji ficou num quarto do isolamento, nu em pelo. Pintou a parede e o corpo com as próprias fezes. Não se via senão os olhos dele, muito brancos, a brilhar no escuro.
"Um dia, estava a cuidar dele, quando o tipo me saltou para cima e quase me estrangulou antes de outro auxiliar de enfermagem o tirar dali. Mas sabem que mais? Ele acabou por se revelar um bom miúdo. Regressão, foi o que os médicos lhe chamaram. Um trauma qualquer que o tinha feito regredir até um estado semelhante aos dois anos de idade; não falava, não comia, não ia à casa de banho e não se vestia. Mas quando começámos a tratá-lo como se tivesse dois anos, tudo começou a correr bem. Eu vinha aos domingos, lia-lhe livros infantis, cantava canções disparatadas. com tempo, tratamento e bondade, o Benji cresceu de novo, diante dos nossos
102
olhos. Começou a usar roupa, a ir à casa de banho, a comer com talheres,
í a dizer "por favor" e "obrigado". Passados dois anos, estava tão bem que
um membro da direção o inscreveu na Boston Latin. Frequentava as aulas
durante o dia e dormia no quarto dele, aqui no hospital, todas as noites.
Encontrávamo-lo a estudar na sala de convívio, no meio do caos mais
completo.
"O Benji conseguiu o diploma, arranjou um emprego e foi viver sozinho. Nada disso teria acontecido sem este hospital. - Charlie abanou tristemente a cabeça. - As pessoas acham que é bom sinal quando se encerra um hospital psiquiátrico. Julgarão que tudo aquilo desapareceu? A doença mental limita-se a passar à clandestinidade, a engrossar os albergues para os sem-abrigo e os parques das cidades. Longe da vista, longe do coração dos contribuintes.
É uma vergonha inominável!
Charlie suspirou, abanou novamente a cabeça. Passado um momento, endireitou os ombros e estendeu o seu papel.
- Desenhei um mapa do antigo complexo - explicou à sargento Warren. - com o aspeto que tinha antes de começarem a demolir os edifícios. Não sei se ajuda ou não, mas, se bem percebi, a sepultura é antiga. Se assim for, achei que talvez gostassem de colocar a cena do crime no contexto adequado.
Warren pegou no papel e deu-lhe uma olhadela.
- É perfeito, Charlie, muito útil. Agradeço o tempo que nos dedicou. É um verdadeiro cavalheiro.
Dodge tomou nota dos contactos do homem. A conversa parecia estar a chegar ao fim.
No último momento, quando o polícia acompanhava Charlie ao carro-patrulha, o velhote olhou casualmente na minha direção. Eu tinha-me endireitado para escutar a conversa,
a ponto de ter a cara colada à janela, a orelha inclinada para a fresta aberta.
Mal me viu, Charlie estacou.
- Desculpe, menina - chamou ele. - Não a conheço? O detetive Dodge barrou-lhe imediatamente a passagem.
- É apenas outra pessoa que está a colaborar na investigação - murmurou, encaminhando o pastor reformado para o carro-patrulha. Charlie afastou-se. Eu afundei-me
no banco e fechei rapidamente a janela. Não reconhecia Charlie Marvin. Então o que o levaria a crer que me conhecia?
O carro-patrulha arrancou.
Mas o meu coração continuava a bater com demasiada força no meu peito.
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Fizeram o trajeto de regresso a North End em silêncio. Annabelle olhava pela janela lateral, fazendo deslizar o pingente de cristal do seu fio de um lado para o outro; Bobby olhava pelo para-brisas, tamborilando com os dedos no volante.
O detetive achava que devia dizer alguma coisa. Experimentou mentalmente diversas frases: Não se preocupe. De manhã tudo lhe parecerá melhor. A vida continua.
Pareciam as tretas que os outros lhe diziam depois do tiroteio, pelo que ficou calado. A verdade é que a vida de Annabelle era uma porcaria e Bobby tinha um pressentimento de que ainda ia piorar. Sobretudo depois de estar cara a cara com Catherine Gagnon.
Referira o nome dela a Catherine por mera curiosidade. Annabelle afirmava não a conhecer, que pensava Catherine? Afinal, Catherine mostrara desconhecer a existência de Annabelle tanto como Annabelle desconhecia a de Catherine.
No entanto, ambas tinham sido alvo de predadores com uma preferência por câmaras subterrâneas. Ambas apresentavam semelhanças físicas notáveis. E ambas tinham residido nos arredores de Boston no princípio dos anos oitenta.
Bobby continuava a acreditar, tinha de acreditar, que havia uma ligação.
Ao que parecia, as altas esferas pensavam o mesmo, pois tinham autorizado a expedição ao Arizona. A teoria era que, se conseguissem juntar Catherine e Annabelle na mesma sala, algo viria à tona. O fator de ligação. O denominador comum. A revelação surpreendente que deslindaria o caso, fazendo com que o Departamento da Polícia de Boston fizesse papel de herói e permitindo que todos recomeçassem a dormir à noite.
A princípio, a ideia parecera inquestionavelmente brilhante. Mas agora Bobby não se sentia tão seguro. Tinha demasiadas perguntas às voltas no seu cérebro. Porque continuara a família de Annabelle a fugir, mesmo depois de ter abandonado o Massachusetts? Como se transformara Annabelle num alvo em Arlington, se o assassino se encontrava no Hospital Psiquiátrico de Boston, em Mattapan? E por que motivo um antigo voluntário do asilo de doidos, Charlie Marvin, parecera reconhecer Annabelle, quando
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esta afirmava que nunca pusera os pés nos terrenos do Hospital Psiquiátrico de Boston?
Bobby bufou, esfregou a nuca. Gostava de saber quando começaria
i a chegar a algumas respostas, em vez de continuar simplesmente a ampliar
a lista de perguntas. Também gostava de saber como conseguiria espremer
o equivalente a doze horas de telefonemas nas cerca de duas horas de que
dispunha antes da próxima reunião da unidade especial.
Perguntou-se mais uma vez se deveria dizer uma palavra tranquilizadora
à mulher abatida que ia sentada ao seu lado.
As respostas não surgiam. Continuou a conduzir, com as mãos no
volante.
A noite caíra e o fim do dia despertara a cidade. A estrada 93 estendia-se diante deles como uma longa faixa de luzes de stop vermelhas que serpenteava
rumo a uma ilha de arranha-céus cintilantes. Dizia-se que a paisagem urbana de Boston era particularmente bonita à noite. Bobby passara
a vida toda na cidade e a carreira toda a conduzir em torno dela. Francamente,
não compreendia. Prédios altos eram prédios altos. Àquela hora da noite, o que lhe apetecia era estar em casa.
- Alguma vez perdeu uma pessoa próxima? - indagou Annabelle
abruptamente. - Um familiar, um amigo?
Após o longo silêncio, a pergunta apanhou-o de surpresa, levando-o
a dar uma resposta sincera.
- A minha mãe e o meu irmão. Há muito tempo.
- Oh, sinto muito... Não queria... Isso é triste.
- Não, não, não, ainda estão vivos. Não é o que pensa. A minha mãe foi-se embora quando eu tinha seis ou sete anos. O meu irmão aguentou mais oito e depois seguiu-lhe
o exemplo.
- Partiram, simplesmente?
- O meu pai tinha um problema de alcoolismo.
- Oh!
Bobby encolheu os ombros numa atitude filosófica.
- Nessa época, as opções reduziam-se essencialmente a fugir ou cavar a própria sepultura. Diga-se em abono da minha mãe e do meu irmão que não tinham qualquer desejo de morrer.
- Mas você ficou.
- Era demasiado novo - replicou ele num tom prático. - Não tinha as pernas suficientemente compridas.
Ela pestanejou, com uma expressão perturbada.
- Como está o seu pai agora?
- Está sóbrio há quase dez anos. Tem sido um percurso duro, mas ele mantém-se firme.
- Isso é ótimo.
- Tenho orgulho nele. - Bobby olhou na direção dela pela primeira vez, estabelecendo contacto visual e mantendo-o pela fração de segundo que a condução permitiu. Não sabia ao certo porque estava a dizer aquilo,
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mas parecia-lhe importante desabafar: - Também não sou grande coisa com o álcool. Compreendo a dificuldade da batalha que o meu pai tem de travar.
- Oh! - exclamou ela de novo.
Ele anuiu. Oh! resumia bem a sua vida, nos últimos tempos. Matara um homem, envolvera-se com a viúva da vítima, descobrira que era alcoólico, confrontara um assassino em série e dera cabo da sua carreira na polícia, tudo no curto espaço de dois anos. Oh! era mesmo o único resumo que lhe restava.
- Ainda sente a falta da sua família? - perguntou Annabelle. - Ainda passa o tempo a pensar neles? Para ser sincera, há vinte e cinco anos que não pensava na Dori. Agora pergunto-me se virei algum dia a tirá-la da cabeça.
- Não penso neles como dantes. Às vezes passo semanas inteiras, talvez até um mês ou dois sem pensar neles. Mas depois acontece qualquer coisa, como os Red Sox ganharem o campeonato, por exemplo, e dou por mim a pensar. Que estará o George a fazer? Estará a festejar num bar da Florida, a gritar como um doido pela equipa da casa? Ou será que, quando nos deixou, deixou os Red Sox também? Se calhar agora só torce pelos Marlins. Não sei.
"Então o meu cérebro entra em curto-circuito por uns dias. Dou por mim a olhar para o espelho, a imaginar se o George tem rugas à volta dos olhos como as que estão a aparecer nos meus. Ou talvez seja um vendedor de seguros rechonchudo, com barriga de cerveja e duplo queixo. Não o vejo desde que ele tinha dezoito anos. Nem sequer consigo imaginá-lo como homem. As vezes isso abala-me. Faz-me sentir que está morto.
- Telefona-lhe?
- Já lhe deixei mensagens.
- Ele não retribui as chamadas? - Annabelle mostrava-se cética.
- Até agora, não.
- E a sua mãe?
- A mesma coisa.
- Porquê? Isso não faz sentido. Não é culpa sua se o seu pai era bêbedo. Porque o responsabilizam?
Bobby teve de sorrir.
- Você é boa pessoa. Ela fez uma carranca.
- Não sou, não.
Aquilo fez com que o sorriso dele se tornasse mais rasgado. Mas depois suspirou. Era estranho estar a falar acerca da sua família, ainda que não fosse desagradável. Desde o tiroteio que pensava neles cada vez com mais frequência. E deixava-lhes mais mensagens.
- Há dois anos consultei uma psiquiatra - contou. - Ordens do departamento. Tinha estado envolvido num incidente crítico...
- Matou o Jimmy Gagnon - comentou Annabelle sem rodeios.
- Vejo que andou na Internet.
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- Andava a dormir com a Catherine Gagnon?
- Vejo que andou a falar com a D.D.
- Então, andava metido com ela? - Annabelle mostrava-se sinceramente surpreendida. Ao que parecia, tinha dado um tiro no escuro e ele
: caíra estupidamente na armadilha.
- Nunca beijei sequer a Catherine Gagnon - respondeu com firmeza.
- Mas o processo...
- A queixa foi retirada.
- Mas só depois do tiroteio no hotel...
- Retirada é retirada.
- É evidente que a sargento Warren a detesta - observou Annabelle. f - A D.D. detestá-la-á sempre.
- Anda a dormir com a D.D.?
- Ora - prosseguiu Bobby em voz bem alta -, fiz o meu trabalho e matei um homem armado, que ameaçava a mulher e o filho com uma pistola. E o departamento mandou-me
a uma psiquiatra. Sabe aquele velho
adágio de que a única coisa que os psiquiatras querem é falar da nossa mãe?
É verdade. A mulher não fazia senão perguntas acerca da minha mãe. - Está bem -
retorquiu Annabelle -, falemos da sua mãe. - Exatamente. Uma confidência de cada vez. Foi interessante. Quanto mais tempo passava desde que a minha mãe e o meu
irmão tinham par tido, mais eu interiorizava as coisas como sendo culpa minha, a um certo nível. No entanto, a psiquiatra levantou algumas questões interessantes.
A minha mãe, o meu irmão e eu tínhamos partilhado um período traumá tico das nossas vidas. Sentia-me culpado por eles terem fugido. Talvez eles se sentissem
culpados por me terem deixado ficar.
Annabelle acenou em sinal de concordância, brincou de novo com o colar.
- Faz sentido. Então que há a fazer?
- Deus me dê forças para mudar as coisas que posso mudar, a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar e a sabedoria para conhecer a diferença. A
minha mãe e o meu irmão são duas das coisas que não posso mudar, portanto, tenho de as aceitar. - A saída para North End aproximava-se. Bobby ligou o pisca e manobrou
para mudar de faixa. Annabelle fitou-o de sobrolho franzido.
- E o tiroteio? Como deve lidar com isso?
- Dormir oito horas por dia, fazer uma alimentação saudável, beber muita água e praticar exercício moderado.
- E isso resulta?
- Não sei. Na primeira noite fui a um bar e bebi quase até cair. Digamos que ainda sou um projeto em curso.
Ela sorriu por fim.
- Eu também - confessou em voz baixa. - Eu também.
Não voltou a falar até estacionarem diante do prédio dela. Quando o fez, a sua voz perdera a intensidade. Parecia apenas cansada. Pousou a mão no fecho da porta.
107
- A que horas partimos amanhã? - perguntou.
- Venho buscá-la às dez.
- Está bem.
- Faça as malas para uma noite. Nós tratamos de tudo. Ah, Annabelle, para entrar no avião precisa de um documento de identificação válido, com fotografia.
- Não há problema.
Bobby arqueou as sobrancelhas, mas não insistiu.
- Não vai ser muito mau - asseverou sem pensar. - Não deixe que os artigos dos jornais a enganem. A Catherine é uma mulher como qualquer outra. E vamos apenas falar.
- Pois, suponho que sim. - Annabelle abriu a porta, saiu para o passeio. Contudo, no último momento parou e voltou-se de novo para ele. - No princípio - disse ela baixinho -, quando vi nos jornais que tinha sido dada como morta, senti-me aliviada. Estar morta significava que podia descontrair. Estar morta significava que já não precisava de me preocupar com o assédio de um papão misterioso. Estar morta fez com que me sentisse um pouco zonza.
Fez uma pausa, respirou fundo, depois olhou Bobby nos olhos.
- Mas não é assim, pois não? Você, a sargento Warren e eu não somos os únicos que sabem que não era o meu corpo que estava naquela sepultura. O assassino da Dori também sabe que raptou a minha melhor amiga no meu lugar. Sabe que estou viva.
- Annabelle, passaram vinte e cinco anos...
- Já não sou uma rapariguinha impotente - rematou ela.
- Pois não, não é. Além disso, não sabemos se o assassino ainda está em atividade. A câmara tinha sido abandonada. O que significa que ele pode estar a cumprir pena de prisão por outro crime ou, eis uma ideia, talvez tenha feito um favor ao mundo e caído morto. Ainda não sabemos. Não sabemos.
- Talvez não tenha parado. Talvez se tenha mudado. A minha família nunca deixou de fugir. Talvez isso acontecesse porque ele não renunciava ao assédio.
Bobby não tinha resposta para aquilo. No ponto em que estavam, tudo era possível.
Annabelle fechou a porta. O detetive abriu a janela, para poder vigiar os acontecimentos enquanto ela metia as chaves na fechadura. Talvez também estivesse a ficar um pouco paranóico, pois o seu olhar não parava de esquadrinhar a rua, examinando cada sombra, certificando-se de que nada se movia.
A porta exterior abriu-se. Annabelle virou-se, acenou, penetrou no espaço fortemente iluminado. Bobby ficou a vê-la fechar a porta com firmeza atrás de si, depois concentrar-se na fechadura da porta interior. Quando essa porta também foi aberta e fechada, seguiu-a com os olhos até as costas dela desaparecerem na escada.
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Bobby chegou outra vez atrasado à reunião da unidade especial. Desta vez não trazia biscoitos, mas os outros agentes estavam demasiado ocupados a ouvir o detetive
Sinkus para se importarem com isso. Tal como prometera, Sinkus encontrara-se com George Robbards, o administrador que trabalhara em Mattapan de 72 a 98. Em princípio,
Robbards tinha muito para dizer acerca do seu atual suspeito favorito, Christopher Eola.
- O corpo da enfermeira foi encontrado amordaçado com uma fronha de almofada vinda do aprovisionamento do hospital. O relatório do médico legista indicou que tinha
sido violada antes da morte, que foi provocada por asfixia. No princípio, a investigação concentrou-se num antigo namorado de Lovell, com quem ela rompera havia
pouco tempo, e em dois membros do pessoal do hospital. A teoria era que nenhum doente poderia ter desaparecido durante tanto tempo sem que ninguém desse por nada.
Além disso, o conjunto de suspeitos mais lógicos, no que respeitava aos doentes, seria o dos homens que estavam na segurança máxima e, de acordo com o administrador,
a maioria deles estava demasiado drogada para conseguir safar-se com uma coisa tão sofisticada.
"O namorado não tardou a ser excluído: tinha um álibi para o período em questão. Três homens do pessoal hospitalar foram entrevistados, mas a única coisa de que
falaram foi de Christopher Eola. Parece que sempre que um membro do pessoal era interrogado acerca da população de doentes, acabava por dizer: "Oh, os nossos rapazes
não conseguiriam fazer uma coisa dessas. Bem... exceto o Eola."
"O detetive responsável era o Moss Williams. Entrevistou pessoalmente Mr. Eola quatro vezes. Mais tarde disse ao Robbards que, ao fim de cinco minutos de conversa
com o Eola, já sabia que tinha sido ele. Não sabia como, não sabia se conseguiriam prová-lo, mas dizia que não tinha a menor dúvida de que Eola matara Inge Lovell.
Era capaz de apostar o seu distintivo nisso.
"Infelizmente, isso não servia de nada. Nunca conseguiram provar nada. Ninguém tinha visto nada. O Eola não confessava e não tinham quaisquer provas materiais. O
melhor que o Williams podia fazer era aconselhar o pessoal a mante-lo de rédea bem curta.
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"Pouco tempo depois, o Eola liderou uma espécie de revolta dos doentes no edifício I e foi transferido para Bridgewater. O Williams só veio a saber do assunto quase
um ano depois e ficou furioso com isso. Segundo o Robbards, o Williams achava que podiam ter utilizado a transferência para Bridgewater como moeda de troca. Talvez fazer um acordo com o Eola, pelo menos para que a família Lovell pudesse ter descanso. Mas não teve sorte nenhuma. Ao que parecia, o Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston preferia resolver os seus problemas internamente. E sem conhecimento público.
Sinkus pigarreou e pousou o relatório com um ar expectante. A maioria dos colegas fitava-o de sobrolho franzido.
- Não percebo - disse McGahagin. Dava a impressão de ter renunciado ao café naquele dia; a sua voz perdera a aresta sobrecarregada de cafeína, embora o rosto ainda apresentasse a palidez de alguém que passava demasiado tempo debaixo de luzes fluorescentes. - Pensamos mesmo que foi um dos doentes do hospital que fez isto? Reconheço que examinar os malucos locais faz sentido. Mas, como disseste, os doentes com um historial de violência estavam fechados. E mesmo que um deles conseguisse escapar, como arranjaria maneira de sair da propriedade para raptar não uma, mas seis raparigas? E depois regressar aos terrenos. E preparar uma câmara, e passar tempo lá dentro. Sem que ninguém visse nada.
- Talvez já não estivesse lá internado - replicou Sinkus. - O Robbards tinha outra coisa interessante para contar. No princípio dos anos oitenta, começou a reparar numa tendência perturbadora: animais de estimação desaparecidos. Montes de animais de estimação desaparecidos. Ora, nos subúrbios, quando o Flujfy e o Fido desaparecem, fala-se em populações de coiotes. Mas ninguém acredita que haja predadores de quatro patas num bairro urbano como Mattapan. Nem mesmo numa propriedade de setenta hectares.
- Qual é a tua ideia? - pressionou D.D. Sinkus encolheu os ombros.
- Todos sabemos que certos assassinos começam por atacar animais. E Robbards sempre achou estranho que, no mesmo ano em que o hospital fechou definitivamente as portas, tenha havido uma súbita vaga de aparentes ataques aos animais da zona. Dá que pensar. Para onde foram todos aqueles doentes mentais que eram tratados no Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston quando a instituição foi encerrada? Ficaram curados de repente, como que por magia?
"Estou cada vez mais convencido de que procuramos um antigo doente do Hospital Psiquiátrico de Boston. E, se vamos pensar nos doentes, então o Christopher Eola tem de liderar a lista. Todos dizem que é astuto, engenhoso e que já se safou com o assassínio de Inge Lovell.
- Está bem - disse D.D. abrindo as mãos. - Convenceste-me. Então por onde anda Mr. Eola hoje em dia?
- Não sei. Deixei uma mensagem à superintendente do Hospital de Bridgewater, há uma hora. Estou à espera de notícias.
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D.D. ponderou a questão.
- Visita-a pessoalmente. Não é a primeira vez que ouço o nome do Eola hoje.
A sargento lançou-se então num breve resumo da conversa que ela e Bobby haviam tido com Charlie Marvin. Referiu as reservas do pastor acerca de Eola, bem como do antigo membro do pessoal, Adam Schmidt. Depois, inspirando profundamente, D.D. referiu o aparecimento de Annabelíe G ranger.
A unidade especial passou de um silêncio aturdido para o caos mais completo em menos de dez segundos.
- Hei! Hei, hei, hei! - A voz áspera de McGahagin conseguiu sobrepor-se ao barulho geral. - Estás a dizer-nos que temos uma testemunha?
- Hum, esse termo é capaz de ser um pouco forte. Bobby? - D.D. voltou-se para ele num movimento fluido, com o olhar perfeitamente firme, como se não estivesse a largar-lhe um monte de trampa no colo. Bobby retribuiu com um sorriso retorcido, do tipo "obrigadinho, professor", depois esforçou-se por resumir três dias de atividades dissimuladas em três pontos principais para a apreciação da unidade especial.
Primeiro, Annabelle Granger estava viva e os restos mortais encontrados com o seu medalhão pertenciam provavelmente à sua amiga de infância, Dori Petracelli.
Segundo, aquilo limitava a linha de tempo ao outono de 1982, em que um suspeito não identificado, de raça branca, assediara Annabelle, de sete anos, tendo possivelmente raptado Dori em sua substituição depois da fuga da família Granger para a Florida.
Terceiro, havia o pequeno, mas altamente confuso, perturbador e talvez insignificante detalhe de Annabelle Granger ser a cara chapada de outra rapariguinha, Catherine Gagnon, que fora raptada e mantida numa câmara subterrânea em 1982, dois anos antes do desaparecimento de Dori Petracelli. Contudo, o raptor de Catherine, Richard Umbrio, fora preso no princípio de 1980, o que significava que não podia ter estado implicado no caso de Annabelle.
Bobby calou-se. Os colegas quedaram-se a olhá-lo fixamente, sem dizer palavra.
- Pois - disse ele com brusquidão. - Também é essa a minha opinião.
O detetive Tony Rock foi o primeiro a falar:
- com a breca! - exclamou. Estava com pior aspeto do que na véspera. Seria das muitas horas de trabalho, ou da situação da mãe?
- Eis outra observação astuta.
McGahagin virou-se para D.D. com uma expressão acusadora.
- Faias tenção de nos contar isto? Um ponto para McGahagin.
- Pensei que era importante confirmar primeiro a história da Annabelle - retorquiu D.D. sem vacilar -, dado o seu impacto desconcertan-
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te na nossa investigação. Ela não possuía qualquer documentação que fundamentasse as suas alegações. O detetive Dodge passou as últimas vinte e quatro horas a confirmar a veracidade dos detalhes. Agora estou disposta a acreditar nela. Infelizmente, ainda não sei o que tudo isto significa.
- Podemos aperfeiçoar o perfil do nosso suspeito - declarou Sinkus.
- Andamos decididamente à procura de um predador com uma abordagem metódica e ritualizada. Não se limita a raptar as suas vítimas; começa por as assediar.
- E talvez esteja ligado a Richard Umbrio, de algum modo - disse outro detetive, dando voz aos seus pensamentos. - Não podemos entrevistar o Umbrio?
- Morreu - explicou Bobby, sem aprofundar.
- Não disseste que ele estava preso?
- Em Walpole.
- Então talvez ainda lá tenham os seus objetos pessoais. Incluindo correspondência.
- Vale a pena tentar.
- E quanto à Catherine Gagnon? Há alguma relação entre ela e a Annabelle G ranger?
- Tanto quanto conseguimos determinar, não - respondeu Bobby.
- Mas organizámos um encontro entre as duas, amanhã à tarde. Talvez quando se virem uma à outra em pessoa... - Encolheu os ombros.
Agora alguns membros da unidade especial estavam a estudá-lo com atenção. Os detetives tinham uma memória implacável para detalhes, tais como o envolvimento do agente Dodge num tiroteio de consequências fatais com um homem chamado Jimmy Gagnon, há dois anos. Sem dúvida que aquele apelido não era apenas coincidência.
Mas nada perguntaram e ele nada contou.
- O Charlie Marvin viu a Annabelle nos terrenos do Hospital Psiquiátrico de Boston - dizia D.D. - A cara dela parecia-lhe familiar. Intercetei-o depois de a Annabelle partir e tentei sacar-lhe mais detalhes. Talvez a tivesse visto, ou a alguém parecido com ela, em Mattapan. Mas ele mostrou-se vago. Só julgara reconhecê-la de qualquer
lado, apenas por um momento, uma dessas sensações passageiras. Não sei se havia ali algo de mais significativo ou não. A Annabelle não passava de uma criança quando
o hospital fechou, portanto, qualquer relação entre ela e o local...
- É improvável - rematou Sinkus por ela.
- É o que me parece. A sala ficou em silêncio
- Então em que pé estamos? - incitou McGahagin, tentando concluir a reunião.
- Localizar Christopher Eola - disse o detetive Sinkus.
- Terminar o nosso relatório acerca de raparigas desaparecidas acrescentou D.D. endereçando um olhar significativo a McGahagin.
- E - prosseguiu, num tom mais conciliador, mais ponderado - ver
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bem o período entre 1980 e 1982. Sabemos que o hospital psiquiátrico fechou em 1980. Sabemos, graças ao detetive Sinkus, que começaram a desaparecer animais em Mattapan; é um pormenor interessante. Também sabemos que pelo menos um criminoso, Richard Umbrio, tinha tido a ideia de prender uma rapariguinha num poço subterrâneo. E sabemos que, no outono de 82, um homem assediou uma rapariga em Arlington e que a melhor amiga dessa rapariga desapareceu pouco tempo depois na localidade de Lawrence, a quarenta quilómetros da primeira. Temos razões para crer que todos esses acontecimentos estão relacionados, quanto mais não seja pela sua proximidade temporal, portanto, vamos lá esclarecer isso.
"Sinkus, tu ficas com o Christopher Eola. Quando saiu do Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston, para onde foi, o que fez? Onde está agora? McGahagin, a tua equipa pode concluir a lista completa das raparigas desaparecidas. Quero que se concentrem em todos os nomes do princípio dos anos oitenta, que façam um resumo dos detalhes de cada processo e que comecem a procurar qualquer ligação, e quero mesmo dizer qualquer, entre as desaparecidas. Quantos nomes têm?
- Treze.
- Muito bem, começa a escavar. Vê se consegues relacionar qualquer dessas raparigas desaparecidas a Mattapan, Christopher Eola, Richard Umbrio ou Annabelle Granger. Quero saber se alguma das famílias se lembra de as filhas terem recebido presentes anónimos antes do desaparecimento, de quaisquer incidentes com voyeurs nas redondezas, esse tipo de coisas. Partamos do princípio de que o caso da Annabelle nos dá um modus operandi e vejamos se qualquer dos outros corresponde ao mesmo padrão.
"Quanto à ligação com a Catherine Gagnon, o Bobby e eu vamos ao Arizona amanhã, para nos encontrarmos pessoalmente com ela. O que dá ao Bobby exatamente - consultou o relógio - doze horas para descobrir quaisquer relações relevantes entre Richard, Catherine e Annabelle. Muito bem, meus senhores, é tudo.
D.D. empurrou a cadeira para trás. Os outros seguiram-lhe o exemplo.
Bobby saiu da sala atrás da sargento. Não falou até se encontrarem na privacidade do gabinete dela.
- Bonita emboscada - comentou.
- Safaste-te bem. - D.D. nunca fora mulher para pedir desculpa. Mesmo naquele momento, a sua expressão era principalmente impaciente.
- Que queres?
- Comecei a pensar numa coisa esta noite.
- Ainda bem para ti, Bobby. Estou cansada, estou com fome e era capaz de vender a alma por um duche. Em vez disso, estou a cinco minutos da reunião com o superintendente-adjunto para o convencer de que fizemos progressos significativos na investigação, quando penso sinceramente que hoje ainda estamos mais à toa do que ontem. Não armes em esperto comigo. Estou demasiado cansada.
Bobby mimou com os dedos o mais ínfimo toque de violino do mundo.
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D.D. sentou-se pesadamente e fitou-o com o semblante carrancudo.
- Que queres?
- Segundo a Annabelle Granger, a família fugiu a meio da tarde, levando apenas cinco malas. Então o que aconteceu à casa?
D.D. pestanejou.
- Não sei. Que aconteceu à casa?
- Exatamente. Passei duas horas a ler artigos de jornais, de finais de
82 até ao fim de 83. Pensa nisto: uma casa inteira, completamente mobilada, abandonada de um momento para o outro, num bairro residencial. Seria de crer que alguém desse por isso. Mas não encontrei nada, nem nos jornais, nem nos arquivos da polícia.
- Que estás a pensar?
- Estou a pensar que a casa não foi abandonada. Que alguém, talvez Russell Granger, voltou para atar as pontas soltas.
D.D. endireitou-se na cadeira.
- Para que ninguém desse por nada, teria de tratar de tudo com bastante rapidez - refletiu.
- Sim, numa questão de semanas, diria eu.
- O que significa mais ou menos na mesma altura em que Dori Petracelli desapareceu.
- Bate certo.
- Investigaste armazéns, registos de propriedade?
- Até agora ainda não encontrei nenhum armazém ou registo de propriedade em nome de Russell Granger.
- Então a quem pertencia a casa da Annabelle em Arlington?
- Segundo os registos de propriedade, a Gregory Badington.
- Quem é esse Gregory Badington? Bobby encolheu os ombros.
- Não sei. Está listado como falecido. Estou a tentar encontrar o familiar mais próximo.
D.D. franziu o sobrolho.
- Então a casa não era do Russell. Talvez fosse alugada. Seja como for, tens razão. Móveis, roupas, tralha. Alguém teve de dar destino a tudo isso. - Pegou num lápis e comprimiu-o contra o tampo da secretária para fazer saltar a borracha da extremidade. - Tens o número da Segurança Social de Mr. Granger? Ou da carta de condução?
- Estou justamente a investigar os registos da DGV. Fiz um telefonema para o seu antigo empregador, o MIT.
- Mantém-me informada.
- Só mais uma coisa. Terás de ser tu a tratar disso...
- Que coisa?
- Era muito bom sabermos a ordem das vítimas. Como disseste, tudo indica que estamos a ficar com um período de tempo bem definido. Temos de localizar cada uma das seis raparigas nesse período. Acho que faz uma grande diferença saber se a Dori Petracelli representa o princípio ou o fim.
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D.D. anuiu pensativamente.
- vou telefonar à Christie. Mas não garanto nada. As limitações dela são as limitações dela e a informação que pretendes implica que ela tenha analisado todos os restos mortais.
- Sim, já percebi.
- Vais continuar a trabalhar na pista do Russell Granger?
- vou.
- Precisamos de mais alguma coisa para amanhã?
- Disse à Annabelle que ia buscá-la às dez.
- Ah, um dia com a Catherine Gagnon - murmurou D.D. - Deus me dê forças!
- Vais deixar os socos-ingleses em casa? - inquiriu o detetive secamente.
Ela limitou-se a endereçar-lhe um sorriso retorcido.
- Ora, Bobby, uma rapariga tem de se divertir de vez em quando...
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Bella e eu fomos correr. Descemos Hannover Street, virámos à direita e serpenteámos por uma miríade de ruas laterais até irrompermos na via principal que era Atlantic Avenue. Acelerámos o passo, precipitámo-nos para o Christopher Columbus Park, subimos o curto lanço de escadas, voámos por baixo da longa abóbada de treliça até descermos pelo outro lado, atravessámos a rua e chegámos a Faneuil Hall. Eu estava sem fôlego e Bella tinha a língua de fora.
Mas continuámos a correr. Como se fosse suficientemente rápida para fugir ao passado. Como se fosse suficientemente forte para enfrentar os meus medos. Como se pudesse tirar a sepultura de Dori da cabeça, apenas com força de vontade.
Chegámos a Government Center, depois prosseguimos em bom passo até North End, evitando os táxis temerários, passando pelos cachos de sem-abrigo instalados para passar a noite e regressando finalmente a Hannover Street. Aí, abrandámos por fim a passada, arquejantes, e coxeámos até ao apartamento. Mal entrou, Bella bebeu uma tigela inteira de água, deixou-se cair na cama e fechou os olhos com um suspiro satisfeito.
Quanto a mim, tomei um duche de meia hora, vesti o pijama e estendi-me em cima da cama, de olhos bem abertos. Ia ser uma longa noite.
Sonhei com o meu pai pela primeira vez em vários anos. Não foi um sonho de ansiedade. Nem sequer um sonho de raiva, em que ele aparecesse como uma espécie de gigante omnipotente e eu não passasse de uma figura minúscula a gritar-lhe que me deixasse em paz.
Em vez disso, foi uma cena do meu vigésimo primeiro aniversário. O meu pai tinha-me convidado para jantar no Giacomos. Chegámos às cinco em ponto, porque o popular restaurante só tinha meia dúzia de mesas e não aceitava reservas, pelo que, nas noites de sexta e sábado, a fila de espera dava a volta ao quarteirão.
Mas era uma terça-feira e estava tudo sossegado. O meu pai, sentindo-se expansivo, mandou vir um copo de chianti para cada um. Nenhum de nós bebia muito, pelo que fomos bebericando o nosso vinho sensatamente,
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enquanto mergulhávamos grossas fatias de pão caseiro em azeite aromatizado com pimenta.
Então, do meio do nada, o meu pai disse:
- Sabes, isto faz com que tudo valha a pena. Ver-te tão bonita e adulta.
É tudo o que um pai quer para a filha, querida. Educá-la, mante-la em segurança, ver a adulta
em que sempre soube que ela podia tornar-se. A tua mãe ficaria orgulhosa.
Não respondi. Tinha a garganta demasiado apertada. Bebi mais um gole de vinho. Mergulhei mais um pedacinho de pão no azeite. Ficámos sentados em silêncio e foi quanto bastou.
Dezoito meses depois o meu pai desceu do passeio e atravessou-se no caminho de um táxi que vinha aos ziguezagues. ê seu rosto ficou tão danificado pelo impacto que tive de identificar os seus restos mortais pelo frasquinho de cinzas que ele continuava a usar ao pescoço.
Honrei a sua vontade cremando o seu corpo e misturando as suas cinzas com as da minha mãe no meu pingente. Depois levei a urna ao porto, a meio de uma noite sem lua, e atirei o resto das cinzas ao vento.
Passados tantos anos, a totalidade dos bens terrenos do meu pai continuava a caber em cinco malas de viagem. O seu único objeto pessoal: uma pequena caixa que continha catorze esboços a carvão da minha mãe.
Arrumei o apartamento dele numa tarde. Cancelei os serviços de abastecimento de água e energia, passei os últimos cheques. Quando fechei a porta atrás de mim pela última vez, compreendi por fim. Tinha a minha liberdade. E o preço dessa liberdade era estar sempre sozinha.
Por volta das três da manhã, Bella saltou para a minha cama. Creio que tinha estado a chorar. Lambeu-me o rosto, depois deu três voltas sobre si mesma antes de se deixar cair ao meu lado. Enrosquei-me no seu corpo e dormi o resto da noite com a face apoiada na cabeça dela e os dedos enrolados no seu pelo.
Às seis da manhã, Bella quis o pequeno-almoço e eu precisei de urinar. Ainda tinha as ideias num caos, e olheiras profundas. Devia terminar o projeto que tinha entre mãos, enviar a fatura e fazer as malas para a ida ao Arizona.
Em vez disso, pus-me a pensar no dia que me esperava. O encontro com Catherine Gagnon, que toda a gente dizia que eu não conhecia. Contudo, a polícia estava disposta a voar de Boston até Phoenix para a ver comigo.
Os desconhecidos desconhecidos. A minha vida parecia estar cheia deles.
Então, enquanto lavava os dentes, as peças começaram finalmente a encaixar-se no meu cérebro.
A quatro horas da partida para o Arizona, sabia o que tinha de fazer.
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Mrs. Petracelli abriu a porta. Parecia uma imagem saída diretamente da minha memória. Passados vinte e cinco anos, a sua figura continuava esguia, o seu cabelo escuro apanhado num carrapito conservador na nuca. Vestia calças de lã escuras e uma camisola de caxemira creme. com o rosto cuidadosamente maquilhado e as unhas pintadas de vermelho, era tal e qual como a recordava: a impecável esposa italiana com um orgulho inabalável na sua casa, na sua família e na sua aparência.
No entanto, enquanto aguardava do lado de fora da porta de rede, vi-a puxar um fio solto da bainha da camisola e reparei que os seus dedos estavam a tremer.
- Entra, entra - disse ela num tom enérgico. - Oh, meu Deus, Annabelle, nem podia acreditar quando telefonaste.
É tão bom voltar a ver-te. Tornaste-te uma bela mulher.
És a cara chapada da tua mãe!
Acenou-me que entrasse, mexendo as mãos, com a cabeça a oscilar. Fez-me entrar para uma cozinha de cor creme, onde uma mesa redonda nos esperava com canecas de café fumegante e fatias de bolo. No entanto, eu sentia a alegria forçada por trás das suas palavras, a fragilidade tensa do seu sorriso. Perguntei-me se lhe seria possível olhar para as amigas de infância de Dori sem ver o que perdera.
Nessa manhã tinha procurado o nome de Walter e Lana Petracelli na Internet. Tinham-se mudado de Arlington para um pequeno promontório em Waltham. Custara-me uma pequena fortuna chegar lá de táxi, mas parecia-me que ia valer a pena.
- Obrigada por me receber com tão pouca antecedência - agradeci.
- Nada disso, nada disso. Temos sempre tempo para os velhos amigos. Natas, açúcar? Queres uma fatia de bolo de banana? Fi-lo ontem à noite.
Aceitei as natas, o açúcar e uma fatia de bolo de banana. Estava contente por os Petracelli se terem mudado. O simples facto de estar com Mrs. Petracelli já me provocava uma tremenda sensação de déjà-vu. Se tivesse de a visitar na cozinha da sua antiga casa, não conseguiria aguentar.
- Os teus pais? - inquiriu Mrs. Petracelli com vivacidade, sentando-se à minha frente e pegando no seu café, que bebia simples.
- Faleceram - respondi, acrescentando rapidamente -, há muitos anos. - Como se fizesse diferença.
- Sinto muito, Annabelle - disse Mrs. Petracelli. Acreditei nela.
- Mr. Petracelli?
- Ainda está deitado, para dizer a verdade. Ah, o preço da velhice! Mas saímos bastante. De facto, tenho uma reunião da Fundação às nove horas, portanto, receio que não possamos demorar-nos muito.
- A Fundação?
- A Fundação Dori Petracelli. Financiamos análises de ADN para casos de pessoas desaparecidas, sobretudo casos muito antigos em que a polícia
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pode não dispor de recursos, ou de vontade política, para pagar todas as análises que existem hoje em dia. Não fazes ideia de quantos esqueletos estão simplesmente
guardados em morgues e sítios do género, tendo sido descobertos antes do advento das análises de ADN. São os casos em que as novas tecnologias poderiam ter mais impacto, mas são justamente essas as vítimas mais esquecidas. É um círculo vicioso: as vítimas precisam muitas vezes de um advogado para pressionar a investigação,
mas, sem uma identificação positiva, não há família para falar pela vítima. A Fundação luta para mudar isso.
- É maravilhoso.
- Chorei durante dois anos após o desaparecimento da Dori - disse Mrs. Petracelli num tom prático. - Depois fiquei muito, muito zangada. Bem vistas as coisas, concluí
que a raiva era mais útil.
Pegou na caneca e bebeu um gole de café. Passado um momento, segui-lhe o exemplo.
- Só há muito pouco tempo soube o que tinha acontecido à Dori disse eu em voz baixa. - Que tinha sido raptada, desaparecido. Sinceramente... não fazia ideia.
- Claro que não. Eras uma criança quando isso aconteceu e, sem dúvida, tinhas muito em que pensar, com a necessidade de te adaptares à tua nova vida.
- Sabia que nos tínhamos mudado?
- Bem, querida, quando as camionetas das mudanças chegaram e carregaram o recheio da vossa casa, não houve grandes dúvidas. A Dori ficou destroçada. Serei franca: ficámos muito surpreendidos. Certamente que na nossa qualidade de... bons amigos da tua família, esperaríamos ser avisados. Mas foi um período louco para os teus pais. Compreendo agora, melhor do que nunca, o seu desejo de zelar pela tua segurança.
- Que lhe disseram eles?
Mrs. Petracelli pôs a cabeça de lado, com ar de quem estava a revolver antigas recordações.
- O teu pai veio a nossa casa, uma tarde. Disse que, à luz de tudo o que acontecera, tinha resolvido levar a família para fora por uns dias. Compreendi perfeitamente, claro, e quis saber como estavas. Ele disse que estavas a aguentar bem, mas que achava que seria boa ideia tirar umas férias para que todos pudessem esquecer as preocupações.
"Na primeira semana não pensei muito no assunto. Estava demasiado ocupada a tentar entreter a Dori; a tua ausência tinha-a deixado um bocado amuada. Até que o telefone tocou, uma noite, e era o teu pai, a dizer que não íamos acreditar, mas que tinha recebido uma ótima proposta de emprego e que tinha resolvido aceitá-la. Portanto, não regressariam a casa. Aliás, ele ia encarregar uma empresa de mudanças de embalar tudo e levar as coisas para a vossa nova morada. Pensava que seria melhor assim.
"Ficámos destroçados. O Walter e eu gostávamos muito dos teus pais e, bem entendido, vocês as duas eram muito chegadas. Confesso que
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o meu primeiro pensamento foi como daria a notícia à Dori. Mais tarde fiquei um pouco zangada. Senti... Desejei que os teus pais tivessem regressado apenas mais uma vez, para que vocês duas pudessem despedir-se como deve ser. E não era parva: o teu pai tinha-se mostrado muito vago ao telefone, nem sequer nos tinha dito para que cidade se tinham mudado. Embora respeitasse o facto de ele ter direito à sua privacidade, senti-me ofendida. Afinal de contas, éramos amigos. Bons amigos, julgava eu. Não sei... foi um outono muito estranho.
Fitou-me, com a cabeça de lado, e a sua pergunta seguinte foi surpreendentemente suave.
- Annabelle, lembras-te do que se passava antes de a tua família se mudar? Lembras-te de a polícia ir a tua casa?
- Lembro-me de algumas coisas. Lembro-me de encontrar pequenos presentes no alpendre. Lembro-me de o meu pai ficar furioso com isso.
Mrs. Petracelli anuiu.
- Na altura, não sabia o que pensar. Nem tenho a certeza de ter acreditado inteiramente nas primeiras histórias acerca de um voyeur. Porque havia um homem adulto de espreitar para o quarto de uma rapariguinha? Éramos todos incrivelmente ingénuos nessa época. Só o teu pai parecia compreender o perigo. Claro que, quando soubemos que estivera um desconhecido escondido no sótão de Mrs. Watts, ficámos horrorizados. Esse tipo de coisas não devia acontecer no nosso bairro.
"Mr. Petracelli e eu começámos a pensar em mudar-nos, sobretudo depois da partida da tua família. Era o que estávamos a fazer naquela semana. Mandámos a Dori passar o fim de semana com os avós para podermos ir ver casas. Tínhamos acabado de regressar, depois de falarmos com um agente imobiliário, quando o telefone tocou. Era a minha mãe. A perguntar se sabíamos onde a Dori estava. "Que quer dizer com isso?", perguntei eu. "A Dori está consigo." Fez-se um silêncio interminável. E depois ouvi a minha própria mãe começar a chorar.
Mrs. Petracelli pousou a caneca de café. Dirigiu-me um sorriso doce, apologético, limpou os cantos dos olhos com um certo embaraço.
- Não se torna mais fácil. Dizemos a nós próprios que sim, mas não é verdade. Há dois momentos da minha vida que vão acompanhar-me até à morte: o momento em que a minha filha nasceu e o momento em que recebi um telefonema a dizer-me que ela tinha desaparecido. Por vezes ponho-me a negociar com Deus. Dou-lhe todas as recordações alegres, se ele me tirar as que estão carregadas de dor. Claro que as coisas não funcionam assim. Tenho de viver com ambas, quer queira, quer não. Toma. - A sua voz readquiriu o tom enérgico. - Come mais uma fatia de bolo de banana.
Aceitei outra fatia. Estávamos ambas a seguir uma rotina, a utilizar os rituais da sociedade educada para controlar o horror da nossa conversa.
- Houve algumas pistas? - perguntei. - Acerca da Dori? - Tirei uma noz do bolo com o polegar e o indicador, e pousei-a na mesa, ao lado da minha caneca de café.
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- Um dos vizinhos disse que tinha visto uma carrinha branca na zona. Reparou sobretudo num jovem de cabelo escuro, cortado curto, e T-shirt branca, sentado ao volante. Pensou que podia ser um empreiteiro que tivesse uma obra por lá. Mas nunca ninguém se apresentou. E, ao longo dos anos, nenhuma das pistas deu qualquer resultado.
Forcei-me a encará-la, olhos nos olhos.
- Mrs. Petracelli, o meu pai soube que a Dori tinha desaparecido?
- Eu... Bem, não sei. Eu nunca lhe disse. Não voltei a falar com o teu pai depois daquele último telefonema. O que, pensando bem, parece esquisito. Mas com tudo o que aconteceu naquele mês de novembro, não estávamos propriamente a pensar em ti e na tua família; estávamos demasiado ocupados a tentar salvar a nossa. No entanto, o desaparecimento da Dori foi noticiado. Sobretudo nos primeiros dias, quando acorriam voluntários para ajudar a procurá-la e a polícia fazia buscas dia e noite. Não sei se os teus pais viram a notícia ou não. Porque perguntas?
- Não sei.
- Annabelle?
Não aguentava continuar a olhar para ela. Não tinha ido lá para dizer aquilo. Não queria dizer aquilo. Pretendia apenas fazer um reconhecimento, obter de Mrs. Petracelli informações acerca do desaparecimento de Dori, preparar-me para a batalha que me esperava. Mas ali sentada, naquela cozinha de cor creme e alegre, não fui capaz. Sabia que, ao olhar para mim, ela via a sua filha, a rapariguinha que não chegara a crescer. E sabia que, ao olhar para ela, eu via a minha mãe, a mulher que não chegara a envelhecer. Ambas tínhamos perdido demasiado.
- Dei o medalhão à Dori - explodi. - Foi um dos presentes. Uma das coisas que ele me deixou. O meu pai mandou-me deitá-lo fora, mas eu não fui capaz e dei-o à Dori.
Mrs. Petracelli ficou calada por um momento. Afastou a cadeira, pôs-se em pé e começou a levantar a mesa.
- Annabelle, achas que a minha filha foi morta por causa de um medalhão qualquer?
- Talvez.
Levou a minha caneca, depois a dela. Pousou-as cuidadosamente no lava-louça, como se fossem muito frágeis. Quando voltou para junto de mim, inclinou-se, pôs a mão no meu ombro e envolveu-me num suave aroma a alfazema.
- Tu não mataste a minha filha, Annabelle. Eras a sua melhor amiga. Foste uma fonte de incomensurável alegria para ela. A verdade é que nenhum de nós controla o tempo que temos aqui na Terra. Só podemos controlar a vida que levamos enquanto a temos. A Dori teve uma existência encantadora, graciosa e alegre. Penso nisso todas as manhãs, ao acordar, e penso nisso todas as noites antes de ir para a cama. A minha filha teve sete anos de amor. É um dom que muita gente nunca chega a ter. E tu fizeste parte desse dom, Annabelle. Agradeço-te por isso.
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- Sinto muito - disse eu.
- Chiu...
- É tão corajosa...
- Jogo com as cartas que me foram dadas - respondeu Mrs. Petracelli. - A coragem não tem nada a ver com isso. Annabelle, estou a gostar muito de falar contigo. Não é frequente ter oportunidade de falar com alguém que conhecia a Dori. Era tão nova quando desapareceu, e já passou tanto tempo... Mas está na hora, querida. Tenho de ir para a reunião.
- com certeza, com certeza. - Lentamente, afastei por minha vez a cadeira da mesa e deixei que Mrs. Petracelli me acompanhasse à porta. A meio da sala, levantei os olhos e vi Mr. Petracelli descer as escadas, vestindo calças de algodão escuro, uma camisa de xadrez azul e um colete de malha azul-escuro. Deitou-me um olhar, fez meia-volta e subiu novamente as escadas, com uma caneca de café vazia a balouçar nas pontas dos dedos.
Olhei para Mrs. Petracelli, vi o esforço da mentira que dissera acerca do marido gravado nas rugas do seu rosto. Não disse nada, limitei-me a apertar-lhe a mão.
No entanto, à porta lembrei-me de uma última coisa.
- Mrs. Petracelli, seria possível arranjar-me uma fotografia?
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O Aeroporto Internacional de Phoenix era um mar de gente vestindo bermudas brancas, grandes chapéus de palha e chinelos de praia vermelhos. Serpenteámos por entre famílias inteiras, pessoas em viagem de negócios e grupos de jovens, arrastando a nossa bagagem ao longo de um terminal infindável. As minhas recordações do Arizona assentavam em cores fortes do Sudoeste, bonecas verdes representando dançarinas de kokopelli e vasos de terracota.
Ao que parecia, ninguém dissera isso aos decoradores do aeroporto. Pelo menos aquele terminal estava decorado em lúgubres tons de cinzento. E quando se apanhava a escada rolante para o piso inferior, era ainda mais deprimente. As paredes de betão escuras faziam com que todo aquele enorme espaço parecesse uma masmorra.
Nada daquilo contribuía para melhorar o meu estado de espírito. Foge, dizia para comigo. Foge enquanto ainda vais a tempo.
Tinha acabado de regressar de casa dos Petracelli quando o detetive Dodge apareceu para me vir buscar. Fi-lo esperar lá em baixo enquanto enfiava freneticamente meia dúzia de coisas no meu saco de viagem. Depois participei-lhe que tínhamos de ir deixar Bella no veterinário, no caminho para o aeroporto. Ele não pareceu importar-se. Pegou no meu saco e abriu a porta traseira do carro para a minha excitadíssima cadela.
- Porque não me trata por Bobby? - perguntou ele, enquanto nos dirigíamos para o veterinário. Deixámos Bella, que me lançou um olhar destroçado antes de o assistente do veterinário a levar, e seguimos viagem.
D.D. estava à nossa espera no terminal, com a sua habitual expressão sorumbática.
- Annabelle - cumprimentou secamente.
- D.D. - respondi. Ela nem pestanejou ao ouvir-me tratá-la com aquela familiaridade.
Aparentemente, éramos uma grande família feliz. Até entrarmos no avião. D.D. abriu a sua pasta, tirou de lá uma quantidade de ficheiros e atirou-se ao trabalho. Bobby não foi melhor. Também tinha ficheiros, uma caneta e uma certa propensão para falar entre dentes.
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Li a revista People de uma ponta à outra, depois estudei o catálogo do Sky Mall, em busca de produtos para animais de estimação. Talvez se oferecesse a Bella um bebedouro novo, ela me perdoasse por a ter abandonado.
Acima de tudo, tentei manter-me ocupada.
Nunca tinha andado de avião. O meu pai não era partidário disso. "Demasiado caro", dizia ele. O que queria realmente dizer, era demasiado perigoso. Andar de avião implicava comprar bilhetes e os bilhetes podiam ser localizados. Em vez disso, era partidário de chaços velhos, comprados a dinheiro. Sempre que saíamos de uma cidade, parávamos numa sucata qualquer pelo caminho. Adeus, carro familiar. Olá, novo chaço ferrugento.
Escusado será dizer que alguns desses carros se revelavam mais fiáveis do que outros. O meu pai tornou-se especialista em reparar travões, substituir radiadores e colar janelas, portas e pára-choques com fita adesiva. Agora admiro-me por nunca me ter perguntado como um matemático superinstruído se tornara tão hábil com as mãos. A necessidade aguçará de facto o engenho? Ou talvez eu não quisesse simplesmente saber as muitas coisas que não queria saber.
Por exemplo, se tinha ido uma carrinha de mudanças à nossa antiga casa, por que motivo não voltara eu a ver os móveis da minha infância?
Chegámos finalmente à saída do aeroporto. As portas pesadas, de vidro fumado, abriram-se para nos dar passagem. Saímos para o calor exterior. Um homem com uma farda de motorista aproximou-se imediatamente de nós, exibindo um cartaz branco com o nome de Bobby.
- Que é isto? - quis saber D.D. barrando o caminho ao motorista.
O homem deteve-se.
- Detetive Dodge? Sargento Warren? Se quiserem seguir-me. - Gesticulou para trás de si, onde uma elegante limusine preta estava parada na faixa central.
- Quem organizou isto? - inquiriu D.D. na mesma voz seca.
- Mrs. Catnerine Gagnon, claro. Posso ajudar com as vossas malas?
- Não. De maneira nenhuma. Não é possível. - D.D. voltou-se para Bobby e declarou num tom veemente: - As regras do departamento afirmam expressamente que os agentes não podem aceitar bens ou serviços. Isto é claramente um serviço.
- Eu não sou agente da polícia - observei.
- Você - retorquiu ela sem rodeios - está connosco.
com aquelas palavras, a sargento Warren recomeçou a andar. Bobby acertou o passo pelo dela. Sem saber o que fazer, dirigi um encolher de ombros apologético ao perplexo motorista e fui atrás deles.
Tivemos de esperar vinte minutos por um táxi. Tempo suficiente para que o suor se acumulasse nos meus sovacos e começasse a escorrer-me pelas costas. Tempo suficiente para me lembrar de que a minha família, oriunda da Nova Inglaterra, só conseguira aguentar nove meses em Phoenix, antes de fugir para um clima mais frio.
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Quando nos instalámos no táxi, D.D. indicou ao motorista um endereço de Scottsdale. Comecei a juntar as peças do puzzle. Antiga residente de Back Bay, agora moradora de Scottsdale, com tendência para enviar limusines. Catherine Gagnon era rica.
Precisaria de cortinados novos? Tive de tapar a boca com a mão para abafar uma gargalhada histérica. Não me sentia muito bem. Talvez fosse do calor, ou da companhia, ou da sobrecarga sensorial da minha primeira viagem de avião. Sentia a tensão acumular-se em nós na barriga. Tremores cada vez mais intensos nas mãos.
Toda a gente queria que me encontrasse com aquela mulher, mas ninguém me dizia porquê. Já explicara que nunca tinha ouvido falar em Catherine Gagnon. Contudo, a cidade de Boston estava disposta a pagar três viagens de ida e volta de oito mil quilómetros, bem como uma estadia de uma noite em Phoenix para dois detetives e uma civil. Que saberiam Bobby e D.D. que eu ignorava? E, se era tão esperta como julgava, por que motivo já me sentia como um peão nas mãos do Departamento da Polícia de Boston?
Comprimi a testa contra o vidro quente da janela. Ansiava por um copo de água. Quando levantei de novo os olhos, Bobby observava-me com uma expressão inescrutável. Desviei o rosto.
O táxi virou à esquerda. Transpôs uma série de colinas poeirentas, arroxeadas. Passámos por saguaros altíssimos, arbustos de creosoto prateados, catos com as pontas vermelhas. Quando nos mudámos para lá, a minha mãe e eu tínhamos ficado cheias de curiosidade. Mas nunca nos adaptámos. A paisagem pareceu-nos sempre estranha. Estávamos demasiado habituadas a cumes nevados, densas florestas verdes e penhascos de granito cinzento. Nunca soubemos o que fazer daquela beleza terrível e alienígena.
O táxi passou por um longo muro caiado de branco. Um portão preto, de ferro forjado, surgiu à nossa direita. O táxi abrandou, virou na direção do portão e deparou
com um intercomunicador montado na parte exterior do muro.
- Diga que a sargento D.D. Warren chegou - indicou D.D.
O taxista fez o que lhe mandavam. Os portões elaboradamente trabalhados abriram-se e penetrámos num país das maravilhas verdejante e sombreado. Vi meio hectare de relvado impecavelmente tratado, orlado de árvores de folha larga. Seguimos por um caminho de acesso serpenteante, que terminava num círculo em torno de uma fonte forrada de azulejos, que borbulhava no centro de um tapete de flores. Era o cenário perfeito para a enorme mansão em estilo espanhol que se erguia à nossa frente.
À esquerda: janelas altas, enquadradas por escuras vigas de mogno incrustadas em grossas paredes de adobe. À direita: mais do mesmo, só que aquele lado incluía também um átrio envidraçado e algo que me pareceu uma piscina interior.
- Santa Mãe de Deus! - murmurei e, para minha grande vergonha, senti verdadeira curiosidade em saber se a misteriosa Mrs. Gagnon precisa-
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ria de cortinados. O tamanho e a imponência daquelas janelas! O desafio. O dinheiro...
- Os dólares de Back Bay rendem bem no Arizona - comentou Bobby com ligeireza.
D.D. limitou-se a absorver aquilo tudo com uma expressão contraída no rosto.
Pagou ao taxista, pediu um recibo. Arrastámo-nos pelo longo caminho sinuoso até chegarmos a um par de gigantescas portas de nogueira. Bobby bateu. D.D. e eu encolhemo-nos atrás dele, agarradas às nossas malas como hóspedes intimidadas.
- Quanto acha que custa regar este relvado? - tagarelei. - Aposto que ela gasta mais dinheiro por mês em jardineiros do que eu na minha renda. Voltou a casar?
A porta do lado direito abriu-se. Fomos confrontados por uma matrona hispânica, com o cabelo cor de ferro, corpo baixo e robusto, e péssimo gosto em batas.
- Sargento Warren, detetive Dodge, senorita Nelson? Entrem, por favor. A senora Gagnon aguarda-vos na biblioteca.
Pegou nas nossas malas, perguntou se desejávamos refrescos após a nossa longa viagem. Estávamos todos em piloto automático. Entregámos-lhe os nossos pertences, asseverámos que estávamos bem e seguimo-la através do átrio abobadado para o interior da mansão.
Percorremos um corredor largo, pintado de branco-pérola. As paredes eram decoradas a intervalos regulares com painéis de azulejo mexicano. Vigas escuras, expostas, suportavam um teto que se erguia a três metros e meio de altura. Um soalho de madeira grossa formava o pavimento sob os nossos pés.
Passámos por um átrio, por uma piscina interior, por uma boa coleção de antiguidades. Se o exterior da casa constituía uma afirmação, o interior acrescentava-lhe o ponto de exclamação. Para Catherine Gagnon, o dinheiro não era problema.
Justamente quando eu começava a interrogar-me qual o comprimento que um corredor poderia atingir, a governanta virou à esquerda e deteve-se diante de um novo par de pesadas portas de nogueira. A biblioteca, presumi.
A governanta bateu.
- Pode entrar - disse uma voz abafada.
As portas abriram-se e tive o meu primeiro relance da célebre Catherine Gagnon.
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Catherine estava de pé diante de uma fila de janelas inundadas de sol. A intensidade da luz nas suas costas obscurecia-lhe as feições, revelando apenas uma silhueta esguia com cabelo escuro comprido. Reparei nos seus braços magros, cruzados sobre o estômago. Ossos das ancas salientes, sobressaindo sob uma saia rodada e comprida. Ombros arredondados, moldados por uma blusa traçada sem mangas, cor de chocolate, atada na cintura.
Lancei um olhar rápido a Bobby. Dava a impressão de estar a olhar para toda a parte, exceto para Catherine. Em contrapartida, ela não tirava os olhos dele. Acariciava o antebraço nu, como se já sentisse os dedos esparramados no peito dele. A sala era dominada por uma tensão palpável e ainda ninguém dissera uma única palavra.
- Catherine - disse Bobby por fim, detendo-se a uma boa distância dela. - Obrigada por nos receberes.
- O prometido é devido. - Os olhos dela pousaram brevemente em mim, mas não se demoraram. - Espero que tenham tido um bom voo.
- Não temos razões de queixa. Como está o Nathan?
- Excelente, obrigado. Anda num ótimo colégio particular. Tenho grandes esperanças para ele. - Sorria agora, com uma expressão conhecedora no rosto. Bobby continuava a manter a distância e ela continuava a acariciar o braço. Por fim, virou-se para D.D.
- Sargento Warren. - A sua voz arrefecera uns bons dez graus.
- Há quanto tempo - comentou D.D.
- Mesmo assim, não foi tempo suficiente.
Voltou novamente os olhos para mim, ainda que apenas para exprimir indiferença por D.D. Desta vez observou-me pensativamente, examinando-me da cabeça aos pés e dos pés à cabeça. Aguentei o seu escrutínio, embora tivesse uma consciência aguda do meu top de algodão barato, das minhas calças de ganga puídas, da minha velhíssima
mala a tiracolo. Mesmo assim, tinha dois empregos para pagar a renda. Cabeleireiros, manicures e roupas elegantes eram luxos destinados a mulheres ociosas como ela,
não a uma criatura que trabalha como eu.
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Continuava sem conseguir decifrar-lhe as feições, mas reparei num ligeiro tremor que lhe percorria a espinha. De súbito, compreendi que aquela reunião lhe custava tanto a ela como a mim.
Catherine dirigiu-se bruscamente para a mesa de madeira escura que dominava a sala.
- Vamos a isto? - gesticulou para as cadeiras de pele e depois para um cavalheiro mais velho, de cabelo grisalho, em cuja presença ainda não tinha reparado. - Detetive Dodge, sargento Warren, apresento-vos o meu advogado, Andrew Carson, a quem pedi que se juntasse a nós.
- Sentimentos de culpa? - perguntou D.D. com ligeireza. Catherine sorriu.
- Apenas católica.
Sentou-se. Escolhi uma cadeira do lado oposto da mesa. Algo na maneira como ela sacudiu o cabelo, quase num gesto de desafio, imediatamente antes de se sentar, provocou-me uma sensação de déjà-vu. Então, nesse momento, percebi: de facto, ela era parecida comigo.
Bobby puxou de um gravador, pousou-o no meio da mesa. Catherine olhou interrogativamente para o advogado, mas ele não protestou, portanto, ela também não o fez. D.D. estava também a organizar-se, dispondo pilhas de papéis à sua volta, como uma pequena fortaleza. As únicas pessoas que não estavam a fazer nada eram Catherine e eu. Limitámo-nos a ficar sentadas, convidadas de honra daquela estranha festa.
Bobby ligou o gravador. Anunciou a data, o local e os nomes dos presentes. Fez uma pausa quando chegou ao meu nome, começou a dizer "Annabelle", depois corrigiu-se a tempo para "Tanya Nelson". Fiquei grata pela sua discrição.
Começaram com os preliminares. Catherine Gagnon confirmou que tinha vivido em Boston, no endereço tal. Em 1980, no trajeto da escola para casa, um veículo parara ao seu lado e um homem bradara pela janela: Hei, querida! Podes dar-me uma ajuda? Ando à procura de um cão perdido.
Descreveu o sequestro subsequente, o salvamento e, por fim, o julgamento do seu raptor, Richard Umbrio, em maio de 1981. A sua voz era átona, quase entediada, enquanto percorria rapidamente a cadeia de acontecimentos; via-se que era uma mulher que já contara a sua história muitas vezes.
- E após a conclusão do julgamento, em 81, teve oportunidade de voltar a ver Mr. Umbrio? - inquiriu D.D.
O advogado, Carson, levantou imediatamente a mão.
- Não responda.
- Mr. Carson...
- Mrs. Gagnon aceitou responder a perguntas relacionadas com o seu rapto entre outubro e novembro de 1980 - clarificou o advogado. - Assim sendo, qualquer encontro com Mr. Umbrio posterior a 1980 não é abrangido pelo âmbito desta entrevista.
D.D. mostrou-se muito aborrecida. Catherine limitou-se a sorrir.
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- Quando esteve com M r. Umbrio, entre outubro e novembro de 1980 ?- frisou D.D. acentuando as palavras -, ele falou-lhe alguma vez de outros crimes, raptos ou ataques a outras vítimas?
Catherine abanou a cabeça, depois acrescentou, para o gravador:
- Não.
- Alguma vez visitou o Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston? Carson levantou novamente a mão.
- Mrs. Gagnon, alguma vez visitou o Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston no outono de 1980
- Nunca ouvi sequer falar do Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston, antes ou depois de 1980 - respondeu Catnerine com benevolência.
- E quanto a Mr. Umbrio? - insistiu D.D.
- Se o conhecia, é evidente que não me disse nada, caso contrário eu teria ouvido falar dele, não é?
- E quanto a amigos, confidentes? O Umbrio alguma vez referiu alguém que lhe fosse próximo, ou terá talvez levado um "convidado" ao poço?
- Por favor! O Richard Umbrio era uma versão adolescente do Lurch1. Era demasiado grande, demasiado frio e demasiado esquisito, mesmo aos dezanove anos. Amigos? Não tinha amigos. Porque julga que me conservou viva durante tanto tempo?
Aquelas palavras desencadearam uma série de expressões ligeiramente chocadas. Catherine abriu as mãos com simplicidade, olhando para nós como se fôssemos idiotas.
- O quê? Julgam que eu não tinha percebido que ele ia matar-me? Posso dizer-vos com toda a certeza que tentou fazê-lo dia sim, dia não. Punha os seus grandes dedos suados à volta do meu pescoço e apertava como se estivesse a matar uma galinha. E gostava de me olhar nos olhos enquanto o fazia. Mas depois, no último segundo, largava-me. Bondade? Compaixão? Não me parece. Não vindo do Richard.
"Ainda não estava preparado para a minha morte. Eu era a companheira de brincadeiras ideal. Nunca discutia, fazia sempre o que ele mandava. Como se fosse ter essa sorte na vida real!
Encolheu os ombros. O pragmatismo do seu tom tornava as suas palavras ainda mais cortantes.
- Ele estrangulava-a? - pressionou D.D. - com as mãos nuas? Tem a certeza disso?
- Absoluta.
- Nunca levou uma faca, usou um laço ou brincou com um garrote?
- Não.
- Diz que ele a amarrava. Corda, algemas, outra coisa?
- Corda.
- Um único tipo de corda ou vários tipos diferentes? Nós favoritos?
- Não sei. Corda. Tinha um rolo inteiro. Era grossa, com cerca de Um centímetro de espessura. Branca. Suja. Forte. Cravava estacas no chão
Personagem de A Família Addams. (N. da T.)
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de terra, depois atava-me os membros às estacas. Confesso que na altura não prestei atenção aos nós. - A sua voz permanecia distante.
- Ele levou alguma vez sacos de lixo para o local?
- Sacos de lixo? Que quer dizer com isso? Aqueles sacos grandes e grossos?
- Qualquer tipo de saco de lixo. Catherine abanou a cabeça.
- O Richard preferia os sacos de plástico de supermercado. Usava-os para trazer equipamento eou comida. Podia-se ter orgulho nele, era um campista muito consciencioso, levava tudo o que trazia. Um verdadeiro escuteiro.
- Mrs. Gagnon, sabe por que motivo Mr. Umbrio a raptou?
- Sei.
D.D. vacilou por um instante, como se não esperasse aquela resposta, embora tivesse sido ela a fazer a pergunta.
- Sabe?
- Sei. Trazia uma saia de bombazina com meias pelo joelho. O Richard disse que tinha um fetiche por meninas de colégios católicos. Viu-me e concluiu que eu correspondia às especificações. Não estava lá mais ninguém, portanto... sorte a minha.
D.D. e Bobby trocaram um olhar. Bobby tinha estado a tomar notas furiosamente, enquanto D.D. fazia as perguntas. Calculei que estavam a catalogar os detalhes do ataque a Catherine para os compararem com as vítimas encontradas no Hospital Psiquiátrico de Boston. Mas aquilo incomodara-os. Agora ambos olhavam para Catherine.
- Catherine - perguntou D.D. baixinho -, já conhecia o Richard antes dessa tarde?
- Não.
- Ele teria porventura reparado em si? Referiu tê-la seguido antes, no trajeto da escola para casa, ou tê-la observado no pátio da escola, ou qualquer coisa desse tipo?
- Não.
- Então, foi nessa tarde, quando o carro dele virou para a sua rua. Foi essa a primeira vez que você e o Richard se encontraram?
- Como já disse, sorte a minha.
O sobrolho de D.D. franziu-se ainda mais.
- Depois de ter entrado no carro dele, o que aconteceu?
- A porta estava encravada, trancada, sei lá. Não abria.
- Gritou, lutou?
- Não me lembro.
- Não se lembra?
- Não. Lembro-me de entrar no carro. Lembro-me de ficar... confusa, insegura. Creio que experimentei o fecho da porta e depois... não me lembro. Há anos que a polícia e os psiquiatras me perguntam isso. Mas continuo sem me lembrar. Suponho que gritei. Suponho que lutei. Mas talvez não
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tenha feito nada. Talvez a ausência de memória seja para encobrir a vergonha.
- Os seus lábios curvaram-se ligeiramente, mas aquele sorriso forçado não lhe chegou aos olhos.
- De que se lembra?. - A voz de D.D. estava mais suave. Isso pareceu devolver o aço à postura de Catherine.
- De acordar na escuridão.
- Ele estava lá?
- Pronto para a festa.
- No poço?
- Sim.
- Então ele já tinha preparado o poço, antes de a ver e resolver atacá-la? Bobby e D.D. trocaram outro dos seus olhares.
Foi a vez de Bobby falar.
- Segundo disseste, o Umbrio agarrou-te por impulso, com base na tua roupa. Então como podia ele estar tão preparado?
Catherine fitou-o.
- O poço não era novo. Ele tinha-o encontrado, um dia em que fora explorar os bosques. Transformou-se numa espécie de esconderijo secreto para ele, onde podia guardar as suas revistas pornográficas e livrar-se dos pais. E, claro, manter a sua escrava sexual. - Encolheu outra vez os ombros.
"Mas se eu acho que ele me agarrou por impulso? Não. Ele disse isso, mas eu nunca acreditei. Tinha corda, material para me amordaçar e vendas para os olhos. Que pessoa normal anda com esse tipo de coisas no carro? O Richard era um tarado por dominação. Todas e cada uma das suas malditas revistas pornográficas giravam à volta de títulos como Amarra Essa Cabra ou Espanca-lhe o Rabo. Vocês é que são os peritos, portanto, digam-me de vossa justiça, mas parece-me que a ideia de arranjar uma gatinha para violar andava a crescer-lhe no cérebro há bastante tempo. Era suficientemente corpulento para fazer o que queria. E tinha o local perfeito. A única coisa de que precisava era de uma parceira involuntária. Portanto, uma bela tarde de outubro, foi às compras.
- Às compras? Essa expressão é sua ou dele? - perguntou D.D. bruscamente.
- Tem importância?
- Tem.
Catherine arqueou as sobrancelhas.
- Não me lembro.
- Catherine - interveio Bobby, o que lhe valeu uma carranca irritada de D.D. que tencionava claramente dirigir o espetáculo -, até que ponto achas que o Umbrio era experiente quando te raptou? Foste a número um, a número três, a número doze?
- Isso é pedir uma resposta especulativa - objetou Carson.
- Tenho consciência disso.
Bobby continuava a olhar para Catherine. Ela pousara as mãos na mesa. Pôs-se a fletir e a enrolar os dedos, enquanto ponderava a questão.
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- Queres dizer, sexualmente? Se ele era virgem?
- Sim.
Catherine não respondeu logo.
- Tinha doze anos - disse ela por fim. - Não tinha experiência suficiente para poder avaliar essas coisas. No entanto...
- No entanto - incitou-a Bobby, ao ver que ela se interrompera.
- Do ponto de vista de uma mulher a pensar em retrospetiva? No princípio, ele estava demasiado ansioso. Atingia o clímax antes de chegar a penetrar, depois ficava envergonhado e dava-me uma tareia de todo o tamanho para disfarçar o seu embaraço. Isso aconteceu com frequência nos primeiros dias. Chegava com uma série de planos elaborados acerca do que queria fazer, mas depois ficava tão excitado que ejaculava antes de começar. com o tempo, acalmou. Tornou-se menos ansioso, mas mais imaginativo.
- Os seus lábios contraíram-se. - Aprendeu a ser cruel.
"Portanto, já que perguntam, como uma mulher a pensar em retrospetiva, diria que ele era inexperiente no princípio. Não há dúvida de que as suas fantasias se tornaram mais complexas e exigentes com o tempo, se é que isso significa alguma coisa.
O seu olhar cravou-se subitamente em mim.
- Conheceu-o?
- Quem? - perguntei, um pouco desorientada por sentir todos os olhos postos em mim.
- O Richard. Que achou dele?
- Eu não... Não fui... Não o conheço.
Ela franziu o sobrolho, voltando-se de novo para Bobby.
- Julgava que tinhas dito que ela era uma sobrevivente.
- E é. Sobreviveu ao assédio de um sujeito branco não identificado, no princípio dos anos oitenta. Quem era esse sujeito, isto é, se era o Umbrio, é o que estamos a tentar descobrir.
Catherine fitou-me de novo, com o sobrolho franzido e uma expressão claramente cética.
- E baseiam a vossa suspeita em quê, no facto de acharem que ela é parecida comigo? Francamente, não acho que tenhamos assim tantas semelhanças. - Atirou a sua reluzente
cabeleira preta para trás, conseguindo a proeza de espetar os seios para fora no mesmo movimento. Achei que aquilo clarificava bastante bem o que ela considerava serem as nossas diferenças fundamentais.
- Já a tinha visto? - sondou D.D. dirigindo-se a Catherine, num esforço para nos fazer voltar ao assunto. - A Tanya parece-lhe familiar?
- Claro que não. D.D. fitou-me.
- Também nunca a tinha visto - confirmei. - Mas façam as contas. No outono de 1980, eu tinha cinco anos. Quais são as probabilidades de me lembrar de uma rapariga de doze?
Voltei-me para Catherine.
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- Vivia em Arlington?
- Waltham.
- Ia à igreja?
- Muito pouco - disse ela.
- Visitava amigos ou familiares em Arlington?
- Não que me lembre.
- E quanto aos seus pais, que faziam eles?
- A minha mãe era dona de casa. O meu pai trabalhava como técnico de reparação de eletrodomésticos para a Maytag - explicou ela.
- Então costumava viajar.
- Não se deslocava à cidade. A sua zona eram os subúrbios. E o seu?
- O meu pai era matemático, do MIT - informei.
- Diferente. - Catherine franziu a testa, agora mais especulativa. Basta que se diga que duvido que os nossos caminhos se tenham cruzado em 1980, pelo menos de qualquer modo memorável.
- E quanto a outros parentes? - sugeriu Bobby. - Considerando a, hum, semelhança física.
Catherine encolheu os ombros.
- Tu e a D.D. estão a atribuir demasiada importância a isso. Ambas temos uma aparência italiana, nada mais. Deve haver centenas de outras mulheres em Boston que podem dizer o mesmo.
Toda a gente olhou para mim. Não tinha nada a acrescentar. Francamente, concordava com Catherine. Não achava que fôssemos assim tão parecidas. Para começar, ela era demasiado magra. E eu tinha melhores pernas.
A entrevista estava a terminar. D. D. franzia o rosto numa carranca de perplexidade. Bobby olhava fixamente para o gravador. O que quer que fosse que procuravam, não o tinham encontrado. Modus operandi, pensei. Estavam a tentar comparar Richard Umbrio com o meu perseguidor. Mas, de acordo com Catherine, Umbrio raptara-a num ato oportunista, ao passo que a pessoa que me deixara pequenos presentes...
As vítimas podiam ser parecidas. Mas os crimes eram diferentes.
Vendo que não surgiam mais perguntas, Catherine assentou as mãos na mesa como se se preparasse para empurrar a cadeira.
- Um momento - atalhou Bobby bruscamente.
- Sim?
- Pensa muito bem, Catherine. Até que ponto tens a certeza de que o homem que te raptou foi o Richard Umbrio?
- Perdão?!
- Eras muito nova, foste apanhada numa emboscada, estavas traumatizada e a maior parte do tempo que passaste com ele estiveste presa na escuridão...
- Mrs. Gagnon - começou o advogado nervosamente, mas Catherine não precisava da sua ajuda.
- Vinte e oito dias, Bobby. Durante vinte e oito dias, o Richard foi a única pessoa que ocupou todo o meu mundo. Se comia, era porque ele
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me trazia comida. Se bebia, era porque ele se dignava dar-me água. Sentava-se ao meu lado, deitava-se em cima de mim. Violou-me segurando-me a cabeça nas suas mãos enormes e gritando para que não desviasse o olhar.
"Ainda vejo a cara dele à janela do carro. Ainda o vejo, recortado num halo de luz, sempre que aparecia na abertura da minha prisão e eu sabia que ia finalmente ser alimentada. Lembro-me do aspeto dele à luz da lanterna, a dormir como um bebé, com o meu pulso atado ao dele para que não pudesse fugir.
"Não tenho a mais ínfima dúvida de que foi Richard Umbrio que me raptou há vinte e sete anos. E não tenho a mais ínfima dúvida de que todos os dias fico grata por lhe ter enfiado o cano da arma na boca e lhe ter estoirado os miolos.
Carson, o advogado, arregalou os olhos ao ouvir a última afirmação da sua cliente. Bobby, contudo, limitou-se a fazer um sinal de assentimento. Estendeu a mão para o gravador e desligou-o.
- Está bem, Cat - concordou ele calmamente. - Então diz-nos: se o Richard Umbrio foi preso em 81, quem ficou livre para construir um poço subterrâneo ainda maior nos terrenos de um antigo hospital psiquiátrico? Quem raptou outras seis raparigas e as enfiou debaixo de terra?
- Não sei. E, com toda a franqueza, fico um pouco ofendida por julgarem que sei.
- Temos de ter perguntar, Cat. És tudo o que temos mais próximo de Umbrio, tudo a que podemos chegar.
Aquilo irritou-a. Afastou a cadeira da mesa e pôs-se em pé.
- Creio que esta conversa terminou.
- Estiveste sozinha com ele no corredor - prosseguiu Bobby, implacável. - Ele falou contigo na suíte do hotel. Referiu algum amigo? Um correspondente? Alguém que tenha conhecido na prisão?
- A única coisa que referiu foi a maneira exata como tencionava matar-me!
- E quanto ao Nathan? O Richard raptou-o primeiro, talvez enquanto estiveram sozinhos...
- Não metas o meu filho nisto!
- Seis raparigas mortas, Catherine. Seis raparigas que não conseguiram escapar da escuridão.
- Raios te partam!
- Precisamos de saber. Tens de nos dizer. Se o Richard Umbrio tinha um amigo, um cúmplice, um mentor, temos de saber.
Catherine respirava com dificuldade, os olhos fixos nos de Bobby. Por um momento, não soube o que ela ia fazer. Gritar? Dar uma bofetada na cara do detetive?
Apoiou as mãos na borda da mesa. Inclinou-se para a frente até estar quase com o nariz encostado ao de Bobby.
- O Richard Umbrio não teve nada a ver com a vossa cena do crime. Estava na prisão. E embora fosse um filho da mãe homicida, também era,
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felizmente para o que vos diz respeito, um solitário. Não tinha amigos. Não tinha cúmplices. De uma vez por todas, esta conversa terminou. Quaisquer outras perguntas devem ser dirigidas ao meu advogado. Carson.
O advogado puxou obedientemente dos seus cartões de visita.
Catherine endireitou-se.
- Agora, se nos permitem, a Annabelle, ou Tanya, ou lá como é o nome dela, e eu temos assuntos para tratar.
- Temos? - perguntei estupidamente.
- Espera um minuto... - começou Bobby.
- De maneira nenhuma - ecoou D.D. levantando-se da mesa.
Foi a veemência da sua reaçáo, a possessividade implícita na atitude deles, que me levou a ir atrás de Catherine.
- Não se preocupem, queridos - atirou a nossa anfitriã por cima do ombro, para Bobby e D.D. - Trago-a antes da meia-noite. - Fechou as portas da biblioteca atrás de nós e meteu pelo corredor.
- Aonde vamos? - perguntei, tendo de acelerar o passo para a acompanhar.
- Oh, querida... Claro que vou levar-te às compras.
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O local preferido de Catherine para a terapia a retalho era o Nordstrom. O motorista da limusine deixou-nos à porta e Catherine informou-o alegremente que o chamaria quando precisasse. O homem partiu, para fazer o que quer que os motoristas de limusine fazem enquanto aguardam o chamamento da patroa. Eu segui atrás de Catherine para o interior da loja.
Ela começou por sugerir que comêssemos qualquer coisa. Visto o meu estômago estar a roncar audivelmente, não protestei.
Passava das seis horas e o café do Nordstrom estava a ficar apinhado. Esperei na fila para pedir uma sanduíche de frango grelhado com molho pesto em pão defocaccia. Catherine pediu um chá.
Olhou para a minha enorme sanduíche e para o acompanhamento de batatas doces fritas. Arqueou as sobrancelhas, depois recomeçou a bebericar o seu chá verde. Comi a sanduíche toda, as batatas e depois fui buscar uma fatia de bolo de cenoura, só por despeito.
- Então o que achas do detetive Dodge? - perguntou ela, quando eu ia a meio da fatia de bolo e estava presumivelmente num tal estado de bem-estar induzido pelo açúcar que não notaria o ligeiro toque de desejo que se insinuara na sua voz.
Encolhi os ombros.
- Como polícia ou quê? Ela sorriu.
- Ou quê.
- Se o encontrasse nu na minha cama não o corria de lá.
- Encontraste?
- Não é exatamente essa a natureza da nossa relação. - Embora a imagem de Bobby nu estivesse a revelar-se mais difícil de tirar da cabeça do que eu esperava. - Em contrapartida, ele e a D.D...
- Não há hipótese - afirmou logo Catherine. - Sexo, talvez, mas uma relação? Ela é demasiado ambiciosa. Duvido que se contente com menos do que um procurador do Ministério Público com a cabeça cheia de política, ou talvez um patrão do crime. Ora, isso é que seria interessante!
- Vocês não gostam muito uma da outra.
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Foi a sua vez de encolher os ombros.
- Tenho esse efeito sobre as mulheres. Talvez seja porque durmo com os mandos delas. Por outro lado, se os ditos mandos não dormissem comigo, estariam na cama com as respetivas secretárias e, se vais ser enganada, não será melhor sê-lo por alguém com o meu aspeto, do que por uma loura platinada com sapatos baratos?
- Nunca tinha pensado nas coisas nesses termos.
- Poucas pensam. - Catherine pousou o seu chá. Desenhou um padrão aleatório na mesa com a unha pintada de vermelho. Quando falou de novo, a sua voz era baixa e com um toque de vulnerabilidade.
- Era uma vez, há muito tempo - disse ela tranquilamente -, convidei o Bobby para vir comigo para o Arizona. Ofereci-lhe tudo, o meu corpo, a minha casa, uma encantadora vida de lazer. Ele rejeitou-me. Sabias?
- Isso foi antes ou depois de ele ter morto o teu marido? - perguntei. Ela sorriu, parecendo divertida por eu ter conhecimento daquele detalhe.
- Depois. Tens andado a ouvir a D.D. não tens? Ela está obcecada com a ideia de que eu levei o Bobby a matar o meu marido. Na minha opinião, leu demasiados romances policiais. Já ouviste falar na lâmina de Occam? A explicação mais simples é a melhor?
Abanei a cabeça.
- Bem, pondo a coisa em termos simples, o Jimmy enchia-me de pancada. O Bobby fez a opção correta nessa noite e agora eu vivo feliz para sempre. Não se nota?
A sua voz adquiriu uma nota estridente ao dizer a última palavra. Catherine pareceu dar por isso, pegou na chávena de chá e bebeu mais um gole. Fiquei em silêncio
durante um bocado, a observar a mulher sentada à minha frente, que se apresentava como um anúncio ambulante ao sexo, mas que eu tinha quase a certeza de que não sentia nada há vinte e sete anos.
Seria aquele o destino a que eu própria escapara por pouco, quando o meu pai resolvera fugir? E, se assim fosse, por que motivo não me sentia mais aliviada? Porque sentia sobretudo tristeza. Uma tristeza profunda e dolorosa. O mundo era cruel. Homens adultos caçavam crianças pequenas. As pessoas atraiçoavam aqueles a quem amavam. O que estava feito nunca podia ser desfeito. É assim que as coisas funcionam.
A cabeça de Catherine levantou-se, como se tivesse lido os meus pensamentos. Fitou-me nos olhos.
- Porque estás aqui, Annabelle?
- Não sei.
- O Richard não é o homem que te assediava. Quando tu fizeste sete anos, já ele estava condenado a viver na prisão. Além disso, as fantasias do Richard incluíam
intimidação física e domínio. Não era suficientemente subtil para se dedicar a um assédio prolongado.
- Tinhas doze anos, a culpa não foi tua. Ela sorriu.
- Julgas que não sei isso?
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- E sobreviveste.
Ela riu, uma grande gargalhada rouca que levou vários dos outros clientes a olharem para nós.
- Achas que sobrevivi? Oh, Annabelle, tu és simplesmentepreciosal Vá lá, tendo sido tu alvo de assédio aos sete anos, com certeza que aprendeste alguma coisa.
- Sou especialista em kickboxing - retorqui rigidamente. - O meu pai levava a minha segurança muito a sério; ensinou-me autodefesa, criminologia básica, quando fugir, quando lutar e como saber a diferença. Cresci com mais de uma dúzia de nomes falsos, vivi numa dúzia de cidades. Podes crer que sei como o assunto é sério.
- O teu pai ensinou-te? - A sobrancelha estava outra vez arqueada.
- Sim.
- O académico do MIT?
- O próprio.
- E como é que o teu pai sabia tanta coisa acerca de criminologia e autodefesa?
Encolhi os ombros.
- A necessidade aguça o engenho, não é o que dizem? Catherine observava-me, atónita.
- Espera, espera - atalhou, ao ver que eu estava a ficar novamente irritada. - Não estou a fazer pouco de ti. Quero compreender. Quando tudo isso aconteceu, o teu pai...
- Tirou a família dali. Fizemos as malas, a meio da tarde, metemo-nos no carro e desaparecemos.
- Não!
- Sim.
- com nomes falsos e tudo?
- Exatamente. Não há outra maneira de se estar seguro. É do que me recordo, mas tens de me chamar Tanya.
Ela desvalorizou o meu nome falso com um aceno despreocupado.
- E o teu pai arranjou outro emprego numa universidade da Florida?
- Não podia. Não era possível sem um currículo e as cartas de condução falsas raramente incluem esse tipo de anexos. Trabalhava como motorista de táxi.
- Palavra! E a tua mãe? Encolhi os ombros.
- Uma vez dona de casa, sempre dona de casa, suponho eu.
- Mas não protestou? Não tentou detê-lo? Tanto o teu pai como a tua mãe fizeram isso por ti?
Começava a sentir-me confusa.
- Bem, claro. Que mais podiam fazer?
Catherine recostou-se na cadeira. Pegou no chá. A sua mão começou a tremer, fazendo com que o líquido se derramasse. Pousou outra vez a chávena de porcelana.
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- Os meus pais nunca falaram do que tinha acontecido - contou abruptamente. - Um dia, desapareci. Outro dia, voltei para casa. Nunca falámos do tempo decorrido entre os dois. Era como se aqueles vinte e oito dias tivessem sido um pequeno intervalo no contínuo espaço-tempo, que era preferível esquecer. Ficámos na mesma casa. Voltei para a mesma escola. E os meus pais retomaram a sua antiga vida.
"Nunca lhes perdoei por isso. Nunca lhes perdoei por serem capazes de viver, de funcionar, de respirar, quando eu sofria tanto. Apetecia-me desfazer a casa, tábua
a tábua. Apetecia-me arrancar os meus próprios olhos. Apetecia-me tanto gritar e berrar, mas não conseguia emitir um único som.
"Odiava aquela casa, Annabelle. Odiava os meus pais por não me salvarem. Odiava o quarteirão onde vivia. E odiava todas as crianças da minha escola que tinham chegado sãs e salvas a casa, no dia vinte e dois de outubro, sem terem tentado ajudar um desconhecido a procurar um cão perdido.
"E elas segredavam, sabes. Contavam histórias a meu respeito no recreio, trocavam piscadelas de olho e cotoveladas no balneário. E eu nunca disse uma palavra, porque tudo o que contavam era verdade. Ser uma vítima é um bilhete só de ida, Annabelle. É o que passamos a ser e ninguém nos deixa voltar atrás.
- Isso não é verdade - protestei. - Olha para ti: não és fraca nem impotente. Quando o Umbrio saiu da prisão, não te encolheste num canto. Deste-lhe um tiro, por amor de Deus, e maior foi o teu poder. Estiveste à altura do desafio. Venceste, Catherine.
"Não és como eu. Eu sou só treino e nada de provas. Passei a vida inteira a fugir e nem sequer sei quem é que devo recear. "Não se pode confiar em ninguém", era o lema preferido do meu pai. "Só porque uma pessoa é paranóica, isso não quer dizer que não andem atrás dela." Não sei. Talvez o meu pai tivesse razão. Parece que é sempre o marido atraente e simpático que assassina brutalmente a mulher, o chefe de escuteiros com maneiras suaves que é um assassino em série, o colega de trabalho sossegado que um dia desata aos tiros com uma metralhadora. com os diabos, desconfio até do carteiro!
- Eu também - apressou-se a dizer Catherine. - E dos empregados da água e da eletricidade, do pessoal de manutenção e dos representantes dos serviços de apoio ao cliente. A quantidade de informações que têm ao seu dispor é positivamente assustadora.
- Exatamente.
- Formei uma empresa fantasma - prosseguiu ela num tom prático.
- Pus tudo em nome da empresa e, abracadabra!, deixei de existir no papel. É a única maneira de se estar em segurança. Posso pedir ao Carson que te ajude.
- Obrigada, mas não tenho propriamente esse tipo de bens...
- Disparate. É uma questão de segurança, não de dinheiro. Confia em mim nesse ponto. vou pedir ao Carson que trate de ti. Tens de pensar
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no futuro, Annabelle. O verdadeiro truque para se ter segurança é mantermo-nos um passo à frente.
Anuí, mas aquelas palavras depressa me abateram. Um passo à frente? De quê? O que reservaria o futuro para uma pessoa como eu? Tinha passado vinte e cinco anos a aprender a viver de malas feitas. A mentir. A desconfiar. A não me dedicar a ninguém. Mesmo em Boston, tinha apenas uma relação superficial com os meus colegas de trabalho do Starbucks, e a maior parte dos meus clientes abastados quase não dava mais por mim do que por uma criada qualquer. Frequentava a igreja, mas ficava sempre no fundo. Não queria que me fizessem muitas perguntas, pois não queria mentir a um homem de Deus.
E quanto ao meu negócio, o que aconteceria se começasse a crescer, se tentasse contratar empregados? Os meus documentos de identidade falsos resistiriam ao escrutínio intenso das entidades responsáveis pelo licenciamento de empresas e dos serviços de referência? Passava a vida a dizer a mim própria que era otimista, que controlava as coisas, que tinha um sonho. Que não seria um peão do meu pai! Mas a verdade era que, semana após semana, continuava a arrastar-me na mesma rotina de passar despercebida. O meu negócio não crescia. Não fazia amizades e não namorava a sério.
Nunca me apaixonaria. Nunca teria uma família. Vinte e cinco anos depois de ter começado a fugir, os meus pais estavam mortos, eu estava sozinha e continuava aterrorizada.
Então compreendi Catherine Gagnon. Ela tinha razão. Nunca escapara daquele poço debaixo da terra. Tal como eu nunca deixara de viver como um alvo.
- Tenho de ir à casa de banho - murmurei.
- Também já acabei.
- Por favor. Creio que só me demoro um minuto. Ela encolheu os ombros.
- Empoarei o nariz.
Foi comigo até à casa de banho das senhoras e tomou posição diante de um espelho dourado. Entrei numa das cabines, onde comprimi a testa contra o metal frio da porta e procurei recuperar a compostura, encontrar um ponto de equilíbrio.
Que costumava dizer o meu pai? Era forte. Era rápida e tinha instinto de lutadora.
Que sabia o meu pai? Apesar de todos os seus esquemas, não conseguira evitar um táxi perdido.
Fechei os olhos com força, pensei na minha mãe. Na maneira como me afagava o cabelo. Na expressão do seu rosto, naquela tarde de outono em Arlington, quando me dissera que me amava, que me amaria sempre.
Tirei do bolso a fotografia que Mrs. Petracelli me tinha dado. Fora tirada num churrasco no jardim das traseiras dos Petracelli. Eu estava sentada à mesa de piquenique, ao lado de Dori. Sorríamos para a máquina, cada
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uma com o seu gelado na mão. A minha mãe estava de pé, mais para o lado, a brindar ao fotógrafo com uma margarita, sorrindo-nos com indulgência. O meu pai estava ao fundo, a trabalhar na grelha. Também reparara na câmara, talvez tivesse ouvido Mrs. Petracelli dizer "Olha o passarinho!", e voltara-se para a fotografia com um sorriso radioso.
O cheiro a hambúrgueres fumegantes, a erva cortada de fresco e a espigas de milho assadas. O som dos aparelhos de rega dos vizinhos e de outras crianças a brincar na casa ao lado.
Sentia a nostalgia a invadir-me o peito, as lágrimas a encherem-me os olhos. E compreendi por que motivo nunca avançara. Porque o que eu queria era voltar atrás. Aos últimos dias de verão. Aquelas últimas semanas em que o mundo ainda parecia seguro.
Limpei os olhos. Puxei o autoclismo. Controlei-me, porque não tinha outro remédio.
Fui até ao lavatório e pousei cuidadosamente a fotografia ao meu lado, de modo a que não se molhasse enquanto lavava as mãos. Catherine veio para junto de mim, observou o meu reflexo no espelho. Tinha retocado o batom, escovado os longos cabelos pretos.
Lado a lado, parecíamos de facto irmãs. Só que ela era a glamorosa, destinada a uma vida entre as estrelas, ao passo que eu ia claramente transformar-me na velhota dos gatos, meia doida, que vivia sozinha ao fundo da rua.
O olhar de Catherine pousou na fotografia.
- É a tua família?
Anuí, depois senti, mais do que vi, o seu corpo ficar rígido.
- Pensava que tinhas dito que o teu pai era matemático? - inquiriu ela bruscamente.
- E era.
- Não me mintas, Annabelle. Eu conheci-o. Falei duas vezes com ele. A sério, podias muito bem ter dito que era do FBI.
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Violámos a hora de recolher. Catherine só me deixou no hotel que Bobby e D.D. tinham reservado à meia-noite e vinte e três. Apeei-me da limusine a cambalear, despedi-me da minha nova melhor amiga e encaminhei-me resolutamente para o átrio. Calculei que um deles, Bobby ou D.D. estaria de vigia. Era Bobby.
Mal viu o meu estado de desalinho fez a afirmação óbvia:
- Está bêbeda.
- Foi só um copo de champanhe - protestei. - Para brindar.
- A quê?
- Oh, era preciso lá estar! - Tínhamos brindado a mentiras e aos homens que as dizem, e isso não nos custara apenas um copo de champanhe, mas três. Estava a cair de bêbeda, bêbeda do tipo vou-odiar-me-amanhã-de-manhã. Catherine apenas abrandara o suficiente para me mostrar fotografias do filho e sorrir alegremente. Tinha um filho lindo. Eu também queria um filho, um dia. E uma filha, uma rapariguinha preciosa por cuja segurança zelaria apaixonadamente.
E queria sexo. Ao que parecia, o champanhe excitava-me.
- Gosta de churrascos? - perguntei a Bobby. Depois dei por mim a trautear: - Se gostas de pina colada, ou de ser apanhado à chuva...
Bobby arregalou os olhos.
- Nunca devíamos tê-la deixado sozinha com ela!
Fiz uma pequena dança à volta do átrio. Era difícil conseguir que os meus pés se movessem em articulação com o cérebro. Mas achei que me tinha saído bastante bem. No ringue, sempre fora admirada pelo meu jogo de pés. Talvez me dedicasse às danças de salão. Estavam na berra. Talvez me fizesse bem. Dedicar-me a algo bonito, fluido e sedutor. Em vez de passar o meu tempo em ginásios onde homens transpirados se matavam mutuamente à pancada.
Sim, de manhã voltaria a página. Retomaria o meu nome. Annabelle Granger ia apertar a mão ao primeiro desconhecido que lhe aparecesse à frente. com os diabos, publicaria o meu número da Segurança Social na Internet e incluiria todas as minhas informações bancárias. Qual era a pior coisa que podia acontecer?
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Bobby tinha um belo par de ombros. Não excessivamente musculados; nunca gostei de ver isso num homem. Os seus ombros eram compactos, bem definidos. Envergava uma camisola polo larga e era divertido ver a maneira como os seus peitorais ondulavam por baixo do algodão. Gostava da maneira ágil como ele se mexia. Como uma pantera.
- Você - disse ele - precisa de água e de aspirina.
- Vai cuidar de mim, detetive? - Cheguei-me mais para ele. Ele chegou-se mais para lá.
- Ah, Jesus Cristo! - gemeu ele. Sorri-lhe.
- O hotel tem piscina? Vamos tomar banho nus! Pareceu-me ouvi-lo guinchar.
- vou telefonar à D.D. - declarou, e foi direito ao telefone do átrio.
- Ah, não me estrague a festa! - bradei para as suas costas. - Além disso, vai querer ouvir as notícias que eu trago.
Aquilo fê-lo parar.
- Que notícias?
- Segredos - murmurei. - Grandes, profundos segredos de família. Mas não tive oportunidade de lhe contar. Naquele preciso momento,
as milhares de bolhinhas de champanhe que tinha ingerido penetraram finalmente no meu cérebro e caí redonda no átrio.
D.D. não tinha sentido de humor. Já desconfiava disso, mas agora tinha a certeza. Bobby levou-me, meio ao colo, meio arrastada, para o quarto dela. Nada de aconchegar romanticamente a querida pequena Annabelle. O detetive Dodge largou-me em cima do sofá e a sargento Warren despejou-me um copo de água gelada pela cabeça abaixo.
Endireitei-me bruscamente, a cuspir como doida, depois corri à casa de banho para vomitar.
Quando regressei, com os passos ainda vacilantes, D.D. recebeu-me com um punhado de aspirinas e uma lata de sumo de vegetais V8.
- Não vomite isto - avisou ela. - É do minibar e vai custar uma fortuna ao departamento.
O V8 caro não era melhor do que o normal. Esforcei-me por não vomitar.
- Sente-se. Fale. - D.D. continuava com ar de poucos amigos.
Só então me apercebi de que ela estava completamente vestida, embora já passasse da uma da manhã. O seu computador portátil estava em cima da secretária, ligado, e o telemóvel piscava loucamente, anunciando novas mensagens.
Ao que parecia, D.D. não andava a fazer o seu sono de beleza ultimamente e isso transformava-a numa cabra rabugenta.
Tentei sentar-me, mas as náuseas pioraram, pelo que optei por andar de um lado para o outro.
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Mais tarde viria a ficar muito arrependida de ter bebido o champanhe. Não por causa do enjoo, mas porque me baixou as defesas. Fez-me falar, coisa que a Annabelle sóbria não teria feito.
- O meu pai era um agente infiltrado do FBI - anunciei.
D.D. franziu o sobrolho, pestanejou, franziu novamente o sobrolho.
- De que diabo está para aí a falar?
- O meu pai. Era do FBI. A Catherine conheceu-o. Hei, parem com isso!
- Paramos com quê? - perguntou Bobby.
- Parem de trocar olhares. É muito irritante. Não é tão fixe como parecem julgar.
Aquilo valeu-me dois pares de sobrancelhas arqueadas.
- A Catherine conheceu o seu pai? - inquiriu Bobby com ceticismo.
- Ele foi ao quarto do hospital onde ela estava a convalescer depois de ser resgatada. - Ô meu peito inchou de orgulho. Ou gases. - Foi visitá-la duas vezes!
- O seu pai interrogou Catherine?
- Sim. Estou a dizer-vos, era agente do FBI. E é isso que os agentes do FBI fazem, interrogam vítimas de crimes.
D.D. suspirou, esfregou a testa, voltou a suspirar.
- vou fazer café - declarou abruptamente. - Annabelle, você precisa muito de aclarar as ideias.
- Não estou a mentir! Perguntem à Catherine! Ela dir-vos-á. Ele foi ao quarto dela duas vezes.
- No hospital - especificou Bobby.
Fiz que sim com a cabeça, o que foi má ideia, pois o movimento quase me fez vomitar de novo.
- Disse que era um agente especial do FBI e fez-lhe toda a espécie de perguntas acerca do ataque.
A meio do quarto, D.D. estacou, deu-se conta de que parara e recomeçou a andar.
- Toda a espécie de perguntas? - repetiu. - Que tipo de perguntas?
- Bem, vocês sabem, perguntas do FBI. Quem a tinha raptado, que aspeto tinha, que tipo de carro conduzia. Para onde o perpetrador a tinha levado.
- O perpetrador?
- Sim, o perpetrador. Além das outras coisas todas que vocês perguntaram. Onde, que tipo de equipamento, quanto tempo tinha estado debaixo da terra. O que o Umbrio tinha dito, se havia outras vítimas, como escapara ela, blá, blá, blá.
O café estava quase pronto e o odor rico a cafeína permeava o ar.
- Ele visitou a Catherine duas vezes? - indagou Bobby.
- Foi o que ela disse.
- Mostrou-lhe alguma identificação?
- Não sei.
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- Estava mais alguém com ele? Outro membro da polícia? Talvez um parceiro?
- Ela não referiu a presença de mais ninguém. - Pousei a mão no braço musculado do detetive. - Mas acho que os parceiros são apenas um mito televisivo - acrescentei simpaticamente. - Na vida real, o FBI não faz essas coisas.
- Mas tem agentes infiltrados - comentou ele.
- Oh, sim!
- Que continuam a viver em casa com a família?
Do outro lado do quarto, D.D. fazia freneticamente que não com a mão. Isso, mais do que qualquer outra coisa, foi o que me chamou a atenção. De súbito, percebi o ridículo das minhas palavras. A verdadeira implicação das palavras de Catherine atingiu-me repentinamente e senti um peso no estômago, o chão a fugir-me de baixo dos pés. Só que já não conseguia vomitar. Não conseguia desmaiar. Tinha jogado todas as minhas cartas de negação sob a influência do álcool. Não me restavam mais truques.
- Eles têm agentes infiltrados, não têm? - ouvi a minha própria voz perguntar. - Quero dizer, podiam...
A minha mão continuava no braço de Bobby. Ele pegou-lhe e conduziu-me ao sofá. Sentei-me pesadamente. Não me mexi.
Bobby instalou-se à minha frente, na beira da cama. D.D. trouxe-me uma caneca de café.
- O seu pai alguma vez lhe disse que era agente do FBI? - perguntou Bobby calmamente.
Bebi um gole de café escaldante, abanei a cabeça.
- Alguma vez o ouviu dizer a alguém que era agente do FBI? Nova negativa, novo gole de café amargo.
- Claro que vamos telefonar à delegação de Boston e perguntar disse Bobby com doçura.
- Mas...
- É o FBI, Annabelle, não a CIA. Além disso, nenhum agente do FBI digno desse nome telefonaria para o cento e doze por causa de uma coisa tão estúpida como um voyeur. Primeiro, tratava pessoalmente do assunto. Segundo, se sentisse que havia de facto uma ameaça contra ele ou a sua família, chamava os colegas para lhe darem cobertura. O seu pai foi entrevistado três vezes por agentes da polícia local e nunca referiu que era do FBI. Seria uma informação demasiado importante para que ele não a referisse. Não... não faz sentido nenhum.
- Mas porque diria ele à Catherine que era do FBI? - calei-me. Tinha finalmente visto a resposta lógica, que eles tinham percebido desde o princípio. Porque o meu pai queria informações acerca do rapto de Catherine. Informações pessoais, em primeira mão, informações às quais atribuía suficiente importância para se fazer passar por um agente federal, não apenas uma vez, mas duas.
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Em novembro de 1980, o meu pai já estava obcecado com a violência contra rapariguinhas. Só que, pelo menos em teoria, nessa altura ainda ninguém tinha começado a assediar-me.
Derramei café da caneca, queimando a mão. Agarrei-me a esse pretexto para bater de novo em retirada para a casa de banho, onde pus a água fria a correr e observei o meu reflexo no espelho. Estava lívida. O suor escorria-me pela testa.
Desejei vomitar outra vez, mas não tive essa sorte.
Lavei o rosto com água fria. Uma e outra vez.
Quando regressei ao quarto, compus as feições numa fachada em que nenhum de nós tinha a estupidez de acreditar.
- vou para o meu quarto - anunciei tranquilamente.
- Eu acompanho-a - disse Bobby.
- Gostaria de estar sozinha.
Bobby e D.D. trocaram um olhar inseguro. Pensariam que eu ia desaparecer? Então ocorreu-me: claro que sim. Era o meu modus opemndi, não era? A senhora das múltiplas identidades, a rapariga nascida para fugir.
Mas isso não era eu. Era o meu pai.
Mentirosa, mentirosa!
Sempre que nos mudávamos, a minha mãe e eu cometíamos imensos erros. Utilizávamos os nomes errados, indicávamos as cidades erradas, esquecíamo-nos de pormenores
fundamentais. Mas o meu pai nunca o fazia. Era sempre seguro, controlado. Como era possível que eu nunca me tivesse perguntado como aprendera ele a mentir tão bem?
Como aprendera a viver em fuga? Como aprendera a adaptar-se e reconfigurar-se com tanta facilidade?
O meu pai dizia para não confiar em ninguém. Talvez isso também se aplicasse a ele próprio.
Bobby e D.D. ainda não tinham dito palavra. Não podia esperar mais. Rodei nos calcanhares e dirigi-me para a porta.
Eles não me detiveram, mesmo quando a porta se fechou atrás de mim, deixando-me sozinha no corredor.
Por um instante apenas, pensei nisso.
Fugir. Não é assim tão difícil. Basta pôr um pé à frente do outro e. partir.
Mas não o fiz. Caminhei. Devagar, com muito cuidado, passo a passo, até ao quarto que me tinham atribuído.
Depois estendi-me em cima da minha cama de hotel barato, completamente vestida. Cravei os olhos no teto pintado de branco. E contei as horas até ao nascer do Sol, agarrada ao frasquinho com as cinzas dos meus pais e rezando desesperadamente por força para os dias que aí vinham.
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O despertador de Bobby tocou às cinco da manhã. Aquilo pareceu-lhe uma crueldade, pelo que premiu o botão de repetição do alarme. Isso valeu-lhe dois minutos de sono. Depois o telefone tocou. Era D.D. claro.
- Andas a dormir alguma coisa? - perguntou ele.
- Agora és a porra da minha mãe?
- Estás a ver? E por isso mesmo que precisas de descanso.
- Bobby, temos três horas antes de partirmos para o aeroporto. Põe-me esse coiro aqui.
Não eram propriamente as palavras mais inspiradoras do mundo, na opinião de Bobby. Assim, tomou duche, barbeou-se, fez as malas e serviu-se de uma caneca de café fumegante. Quando chegou ao quarto de D.D. esta parecia estar a trinta segundos de começar a ferver em cachão.
Bobby pensou que ela ia lançar-se noutra tirada. Mas, no último momento, a sargento pareceu tomar consciência dos seus erros e limitou-se a segurar a porta para lhe dar passagem.
Dava a impressão de que o quarto de D.D. fora atingido por um tornado. Havia papéis espalhados, café entornado, comida abandonada a decorar um tabuleiro do serviço de quartos. O que quer que ela tivesse estado a fazer desde a última vez que Bobby a vira, descansar não fizera parte do programa.
- Já falei com o gerente do hotel - começou ela sem mais preâmbulos. - Prometeu avisar-nos imediatamente se a Annabelle tentar deixar o quarto.
Bobby fitou-a.
- Porque, se a Annabelle resolver fugir, vai naturalmente ter a consideração de passar primeiro pela receção...
- Oh, meu Deus...
- D.D. senta-te. Respira fundo. Por amor de Deus, começas a parecer uma personagem dos Looney Tunes. - Abanou a cabeça, exasperado. Ela limitou-se a franzir o sobrolho.
A sargento vestia a mesma roupa da véspera, agora toda amarrotada e a cheirar a suor de um dia. A sua pele estava flácida; o cabelo louro, revolto; os olhos azuis, injetados de sangue.
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- D.D. - tentou ele de novo -, não podes continuar assim. Ao primeiro olhar, o superintendente-adjunto tira-te o comando e manda-te fazer as malas. Gerir o cansaço do pessoal não basta. Também tens de gerir o teu.
- Não fales comigo nesse tom...
- Olha para o espelho, D.D.
- Não permito que armes em condescendente comigo por fazer o meu trabalho...
- Olha para o espelho, D.D.
- Fica sabendo que sou uma daquelas pessoas que não precisam de dormir muito.
Bobby segurou-lhe nos ombros com firmeza e fê-la virar-se para o espelho da parede.
- com o caraças! - exclamou ela. ;
- Exatamente. ;i D.D. levantou a mão, passou os dedos pela cabeleira desgrenhada.
- É da humidade.
- Estamos no Arizona.
- Champô novo?
- D.D. precisas de dormir. Já para não falar de um duche e duas semanas de férias no Taiti. Mas, por agora, experimenta tomar um banho.
Ela franziu o nariz. Por fim, suspirou. Os seus ombros descaíram.
- Há tantas peças do puzzle - desabafou, num tom fatigado. - E nenhuma delas encaixa.
- Eu sei.
- Christopher Eola. Richard Umbrio. O pai da Annabelle. Tenho a cabeça a andar à roda.
Bobby puxou a cadeira da secretária, sentou-se e entrelaçou as mãos na nuca.
- Muito bem, vamos rever a história. Novembro de 1980...
- O Umbrio rapta uma rapariguinha e prende-a numa câmara subterrânea, que encontrou muito convenientemente nos bosques. - D.D. deixou-se cair na borda da cama, inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos.
- Segundo cremos, é o seu primeiro ato e é feito independentemente
- acrescentou Bobby.
- Corresponde ao seu perfil de solitário com aptidões sociais abaixo da média.
- A vítima é escolhida ao acaso, um crime de oportunidade.
- Porque veste roupa do tipo certo - corrigiu D.D.
- Mas também porque está sozinha e cai na armadilha dele. A questão é que não há premeditação. Portanto, essa é uma diferença fundamental entre o Umbrio e o sujeito não identificado que assediava a Annabelle Granger.
- A Catherine afirmou, sem margem para dúvidas, que o Umbrio preferia as mãos nuas. - D.D. hesitou. - Não posso ter a certeza, mas
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pareceu-me que havia qualquer coisa à roda dos pescoços das vítimas, nos sacos de plástico. Uma espécie de laço.
- Ele amarrou-as de uma maneira muito sofisticada - concordou Bobby.
- Então essa é outra diferença.
- Pensamos que sim.
- O Umbrio só raptou uma vítima - afirmou D.D.
- O tipo do hospital psiquiátrico levou seis. Mas talvez tenha sido uma de cada vez, portanto, ainda não temos a certeza acerca desse ponto.
- Pois. - D.D. anuía num gesto lento. Parecia ter recuperado do seu descontrolo anterior, mostrava-se mais calma. - Depois, claro, temos aquela pérola acerca do pai da Annabelle.
- Ah, sim! Temos isso.
- O pai da Annabelle leva-nos de novo para a nossa primeira teoria: que alguém foi inspirado pelo crime do Umbrio e resolveu reproduzi-lo no hospital psiquiátrico. Tínhamos partido do princípio de que esse "aprendiz" tentaria contactar Umbrio na prisão, pessoalmente ou por correio.
Mas fazer-se passar por agente do FBI e interrogar Catherine no hospital ttambém serve.
- Pois serve - concordou Bobby sombriamente.
- Como está a correr a investigação acerca do passado do Russell ranger?
O detetive fez uma careta.
- Ainda não consegui descobrir nenhuma carta de condução, nem número da Segurança Social. Tentei várias bases de dados e várias ortografias. Também experimentei Leslie Ann Granger, a mãe da Annabelle. Mas não consegui absolutamente nada. Coisa nenhuma. Zero.
- Por outras palavras, Russell Granger é um nome falso.
- Sei tanto como tu. Consegui falar com uma diretora de pessoal do IMIT imediatamente antes de partirmos. Segundo ela, não há qualquer registo de nenhum Russell Granger nos arquivos dos Recursos Humanos. Ficou de localizar o antigo diretor do Departamento de Matemática, nos anos oitenta, para verificar. Espero conseguir falar com ele assim que chegarmos a Boston.
- E quanto à vida na estrada? - inquiriu D.D. - Cada vez que
a Annabelle e a família se punham a andar a toda a pressa, devia haver uma razão. Localizaste as cidades, falaste com a polícia local?
Bobby brindou-a com um olhar crítico.
- Claro, chefe, isso é justamente o tipo de chamadas que posso fazer no meu tempo livre. Sabes, entre as três e as quatro da manhã.
- Ouve, se o trabalho está a tornar-se demasiado duro para ti...
- Oh, cala-te, D.D.!
Ela sorriu-lhe. Não havia muita gente que pudesse mandar D.D. calar-
-se, nos últimos tempos. Bobby concluiu que era uma consequência do seu
encanto.
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Mas ela não tardou a retomar a expressão séria.
- Bobby, qual era o nome falso que o pai da Annabelle usava em Boston?
O detetive fitou-a, perplexo.
- Russell Granger. Julgava que era justamente disso que estávamos a falar.
- Não me refiro a 1982, Bobby. Refiro-me à época em que ele e a Annabelle regressaram a Boston. Se ela passou a ser Tanya Nelson, então ele era...
- Mr. Nelson - gracejou Bobby. Folheou o seu bloco de espiral. Aquando do primeiro interrogatório de Annabelle, na sede da polícia, ela fornecera-lhes uma panorâmica geral das cidades, nomes e datas. Encontrou a página que procurava no meio das suas notas, leu-a na diagonal, depois repetiu o processo mais duas vezes. - Não... Não tenho Boston na lista. A Annabelle não falou do regresso.
D.D. arqueou a sobrancelha.
- Uma omissão interessante, não achas?
- Estão aqui muitas cidades e nomes - contrapôs ele, mostrando a folha para ela inspecionar. - Vá lá, acabámos de concluir que nós próprios tínhamos ignorado essa informação.
D.D. continuava a mostrar-se cética.
- Trata do nome usado em Boston, detetive. Investiga-o. Talvez o Russell Granger tenha conseguido passar despercebido no princípio dos anos oitenta, mas quando regressou para a sua segunda estadia...
- Sim, está bem. Algures, nalgum momento, alguém conheceu esse tipo.
- Exatamente. Só mais uma coisa: não digas à Annabelle.
- Não disse.
- Não quero abrir demasiado o jogo. Se o Russell Granger é a chave de tudo isto, o nosso único elo com ele é a Annabelle. O que significa que precisamos da colaboração dela se queremos chegar a algum lado. - D.D. fez uma pausa. - E temos de voltar a falar com a Catherine.
- Queres dizer que eu tenho de voltar a falar com a Catherine - corrigiu Bobby. - Não é nada pessoal, mas, como disseste, temos pouco tempo e tu e ela iam precisar de meio dia só para superarem a vossa agressividade. Temos... - consultou o relógio - cerca de duas horas, o que significa que eu fico com a Catherine e que tu és nomeada ama da Annabelle. - Olhou em redor. - Talvez possas pô-la a trabalhar nas limpezas.
- Muito engraçado.
- Promete-me que vais tomar um duche.
- Ainda mais engraçado.
- Vestir roupa lavada?
Bobby estava a levantar-se da cadeira. D.D. deu-lhe um murro no braço. Doeu como tudo, portanto, ele percebeu que ela se sentia melhor.
- Encontramo-nos no aeroporto - disse Bobby por cima do ombro.
- Mal posso esperar.
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Bobby precisou apenas de dez minutos para pegar na mala, deixar o quarto em ordem e chamar um táxi. O Sol estava a nascer, tingindo o céu de um tom rosado pouco
natural, listado de um roxo fuliginoso. O trânsito não seria problema.
Duvidava que Catherine estivesse a pé àquela hora. O que podia revelar-se uma vantagem, ou talvez não. Perguntou-se se ela ainda teria pesadelos e, nesse caso, se esses sonhos seriam assombrados por Richard Umbrio? Ou pelo marido morto?
Foram precisas duas tentativas antes que uma voz respondesse pelo intercomunicador colocado do lado de fora dos elaborados portões da frente. Os olhos do taxista arregalaram-se ao entrar na propriedade, mas o homem não disse palavra.
- Pode esperar por mim? - perguntou Bobby, mostrando o distintivo. O gesto só serviu para deixar o motorista corcovado, de origem hispânica, ainda mais nervoso.
- Não faz mal, pode deixar o taxímetro a contar - garantiu o detetive. - Assim que esta reunião terminar, tenho de ir a correr para o aeroporto. Vai dar jeito ter um táxi à espera.
O taxista acedeu com relutância e Bobby fez um aceno satisfeito. Queria o táxi bem à vista da casa. Um aviso subtil de que ele estava apenas de passagem.
A governanta abriu a porta. Não manifestou qualquer surpresa ao vê-lo. Limitou-se a dizer que a senora não demorava. E se ele desejava alguma coisa para beber?
Bobby declinou a oferta, atravessou o vestíbulo atrás da governanta. Ela conduziu-o para um pequeno pátio, onde uma mesa com um bonito embutido de mosaico, representando um pavão, estava posta com um serviço de café de prata.
O detetive sentou-se, serviu-se de uma chávena de café e tentou não olhar para o relógio. Quanto tempo iria Catherine fazê-lo esperar? Expectativa ou castigo? com ela, era sempre difícil saber.
A resposta foi um quarto de hora.
Quando Catherine finalmente apareceu, envergava um roupão de cetim azul-escuro, atado na cintura. O tecido longo e sinuoso fluía com os movimentos dela, a cor forte realçava os seus brilhantes cabelos pretos. Um sorriso brincava-lhe nos cantos da boca. Bobby reconheceu instantaneamente o seu aspeto.
A primeira vez que se encontrara com ela depois do tiroteio fora no Museu Isabella Stewart Gardner. Ela esperava-o diante de um quadro de Whistler, Lápis Lazúli, que representava uma mulher nua indolentemente estendida sobre um mar de rico tecido azul. Catherine comentara as linhas sensuais do quadro, a natureza erótica da pose.
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Escolhera o quadro para o confundir nessa altura, tal como escolhera aquele roupão para o confundir agora.
E, embora soubesse que não devia, Bobby sentiu o estômago contrair-se à vista dela.
Catherine aproximou-se e parou diante da mesa. Não se sentou.
- Teve saudades minhas, detetive?
- Ouvi dizer que o café era bom. O sorriso dela acentuou-se.
- Continuas a fazer-te difícil.
- E tu continuas tão astuta como sempre - reconheceu ele. - Como está o Nathan esta manhã?
Uma sombra perpassou pelos olhos dela.
- Passou mal a noite. Não me parece que vá à escola hoje.
- Pesadelos?
- Acontece. Mas agora tem uma boa psicóloga. Além disso, tem o cão. Quem podia imaginar que o cão do próprio Richard podia fazer tanta diferença? Mas o cão acalma-o, muitas vezes melhor do que eu. Creio que está a fazer progressos.
- E tu?
Catherine brindou-o com um olhar brincalhão.
- Já não tenho idade para dizer a um desconhecido como realmente me sinto. - Puxou enfim de uma cadeira e sentou-se com um movimento gracioso. Bobby deitou-lhe o café numa bonita chávena de porcelana. Ela aceitou a chávena sem dizer nada.
Durante alguns minutos, ambos bebericaram café, deixando que o silêncio lhes bastasse.
- Vieste por causa da Annabelle - disse Catherine por fim. - Por eu ter reconhecido o pai dela.
- Foi um choque - confessou Bobby. - Podes contar-me como foi?
- Que há para contar? Estava no hospital. Ele foi ao meu quarto. Fez-me perguntas.
- Indicou-te algum nome?
- Não, só disse que era um agente especial do FBI.
Bobby arqueou as sobrancelhas, mas ela pousou a chávena, com uma expressão muito séria.
- Só me lembro dele porque não parava de discutir comigo. Estava no hospital, muito satisfeita por as pessoas terem ido finalmente embora e não haver ninguém a fazer-me perguntas estúpidas. Como te sentes, Catherine? De que precisas? Queres alguma coisa! Palavra, eu estava a morrer de fome, desidratada e tinha sido violada até à loucura. A única coisa de que precisava era que me deixassem em paz.
"De repente entra um homem, de fato escuro e gravata. Não era grande, mas era bastante bem-parecido. Mostrou rapidamente o distintivo e anunciou: "Agente especial, FBI". Assim mesmo. com autoridade. Lembro-me de ter ficado impressionada. O seu tom era firme, severo. Tal e qual como se espera de um agente do FBI.
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- Que fez ele, Catherine? Ela encolheu os ombros.
- Fez-me perguntas. Perguntas policiais. De que me lembrava acerca do veículo: cor, marca, modelo, matrícula, interior? Descreva por favor o homem que ia a conduzir. Altura, peso, cor de olhos e cabelo, idade, etnia. Que tinha ele dito, que tinha ele feito? Onde me tinha levado, como tínhamos lá chegado, e por aí fora. Depois mostrou-me um esboço.
- Um esboço?
- Sim, um desenho a lápis. A preto e branco. Muito detalhado, como eu imaginava que seria um esboço de um artista da polícia. Fiquei esperançosa, porque ainda ninguém fizera qualquer tentativa para identificar o meu atacante. Mas a cara não era a do Richard.
Bobby pestanejou várias vezes.
- O esboço não era do Richard Umbrio?
- Não, o homem representado era mais pequeno, com uma linha de maxilar mais refinada. Quando disse isso ao Mr. Agente Especial, ele não reagiu muito bem.
- Como?
- Começou a discutir comigo. Talvez não me lembrasse bem, estava escuro, era um subterrâneo. Palavra de honra, o agente começou a irritar-me. Mas então a porta abriu-se, entrou uma enfermeira e ele foi-se embora.
- Mr. Agente Especial foi-se embora sem mais nem menos?
- Sim. Fechou o bloco de notas e saiu de cena.
- A enfermeira disse alguma coisa?
- Que me lembre, não.
Bobby franziu o sobrolho, tentando juntar as peças.
- Mr. Agente Especial forneceu algum nome, informações de contacto, um cartão de visita?
- Não.
- Falaste da visita dele a alguém? À polícia, aos teus pais? Catherine abanou a cabeça.
- Toda a gente me fazia perguntas. Que importância tinha mais um ou menos um?
- Mas ele apareceu outra vez?
- No dia em que tive alta. Dessa vez estava uma enfermeira no quarto, a medir-me a tensão arterial. A porta abriu-se e ele apareceu. Tinha o mesmo aspeto da primeira vez. Fato escuro, camisa branca, gravata escura. Talvez fosse o mesmo fato, agora que penso nisso.
"Mostrou o distintivo à enfermeira e disse que precisava de um minuto a sós comigo. Ela apressou-se a sair. Ele aproximou-se da minha cama e puxou do bloco de notas. Repetiu as perguntas. Falou numa voz mais doce, mas simpatizei menos com ele. Toda a gente me perguntava tudo e ninguém me dizia nada. Depois, bem entendido, ele mostrou-me outra vez o esboço.
- Era o mesmo esboço?
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- Exatamente o mesmo. Só que desta vez foi-o alterando à minha frente. Tornou o cabelo mais espesso, sombreou mais as faces. "E agora?", perguntava. Eu abanava a cabeça e ele modificava outro elemento qualquer.
- Espera um minuto - interrompeu Bobby. - Estás a dizer-me que o esboço original tinha sido feito por ele? Não se tratava de um esboço oficial da polícia?
- Originalmente presumi que era um esboço da polícia, mas vendo o Mr. Agente Especial a trabalhar nele, suponho que não. As suas alterações integravam-se perfeitamente no primeiro desenho. Quem podia imaginar que os agentes do FBI tinham tais talentos? - Catherine encolheu os ombros.
- Então ele foi alterando o desenho à tua frente.
- Sim, mas não adiantou nada. O homem do esboço não era o Richard e não havia correções de penteados que alterassem esse facto. Disse isso mesmo ao Mr. Agente Especial. Ele não ficou nada satisfeito. Insistiu que eu estava enganada. Talvez a pessoa do desenho tivesse engordado, usasse uma peruca.
Catherine arqueou o canto da boca com desdém.
- Palavra de honra, eu tinha doze anos! Que diabo sabia eu de disfarces? O Mr. Agente Especial tinha-me feito uma pergunta, e eu tinha-lhe dado a minha resposta. Assim que ele começou a discutir comigo, irritei-me.
- Então que aconteceu? - sondou Bobby.
- Mandei-o embora.
- E ele foi?
Catherine hesitou, pegou na chávena de café, segurou-a diante dos lábios.
- Por um momento... Por um momento não tive a certeza de que ele fosse. E lembro-me de começar a sentir-me insegura, apenas por um instante. Mas depois o auxiliar de enfermagem apareceu e o Mr. Agente Especial pôs-se a andar. Como se costuma dizer, vai e não voltes. - Catherine soprou o café e bebeu um gole.
- Voltaste a vê-lo?
- Não.
- Falaste das visitas dele a alguém?
- Poucas semanas depois, quando a polícia me mostrou finalmente uma série de fotografias. Identifiquei logo a fotografia do Richard, pus-lhe o dedo em cima e comentei: "Pelo menos prestaram-me atenção." Os polícias não deram sinais de saber do que eu estava a falar. Mas isso não me admirou. Mesmo uma miúda de doze anos é capaz de perceber que os agentes da autoridade não se dão bem uns com os outros.
Bobby soltou um resmungo ao ouvir aquilo.
- E outros representantes do FBI? Foste entrevistada por algum outro agente do FBI?
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- Não.
- E isso não te pareceu estranho?
Novo encolher de ombros.
- Porquê? O que não me faltava eram polícias interessados no meu
caso. Não havia um estupor de homem fardado que não quisesse ouvir todos os detalhes sórdidos. Acham isso interessante? Excita-vos em segredo? Ficam sozinhos no
escritório, a masturbar-se, enquanto lêem as vossas notas das entrevistas com violadas?
Bobby não respondeu. Catherine tinha motivos para aquela raiva. Não havia nada que ele pudesse fazer contra isso, ao fim de tantos anos. Também não havia muito que ela própria pudesse fazer.
Passado um momento, o olhar dela abrandou. Recomeçou a bebericar o seu café.
- Era um impostor? - perguntou abruptamente.
- O pai da Annabelle?
- É por isso que aqui estás? Porque ele mentiu?
- Isso é o que eu gostava de perceber.
- Ele levou-a. Isso devia significar alguma coisa. Quando a sua filha foi ameaçada, ele garantiu a segurança dela. Parece-me mais do que um matemático.
- É possível.
A frase de Bobby não a enganou nem por um segundo.
- Se ele não pertencia de facto ao FBI, então porquê ir ao meu quarto no hospital, porquê fazer-me tantas perguntas? - explodiu ela. - Porquê insistir tanto com
aquele desenho?
- Não sei.
- Não sabes ou não me queres dizer? - O tom dela era amargo. Depois suspirou e ficou simplesmente deprimida.
- Tens uma linda casa - disse Bobby por fim. - O Arizona parece combinar contigo.
- Ah, o dinheiro!
- Fico satisfeito por saber que as coisas vão melhor com o Nathan.
- É o amor da minha vida - declarou ela ferozmente. Bobby acreditou. Sabia melhor do que ninguém até onde ela estava disposta a chegar para proteger o filho. Era
essa a razão pela qual a relação deles nunca deixaria de ser estritamente profissional.
- Obrigado pelo café - disse ele.
- Já vais? - O sorriso dela era nostálgico, mas dava para ver que não tinha ficado surpreendida.
- Tenho o táxi à espera.
Bobby esperava que ela discutisse, fizesse um último protesto. Mas Catherine levantou-se da mesa sem um murmúrio e acompanhou-o à porta da frente. O detetive viu-se tentado a sentir-se insultado, mas isso não seria justo para nenhum deles.
No último momento, na entrada, diante das imponentes portas de nogueira, Catherine tocou-lhe no braço. O toque das pontas dos dedos dela na sua pele nua sobressaltou-o.
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- Vais ajudá-la?
- À Annabelle? - perguntou ele, confuso. - É o meu trabalho.
- Ela é linda - sussurrou Catherine. Bobby não disse nada.
- Estou a falar a sério, Bobby, ela é mesmo linda. Quando sorri, o sorriso chega-lhe aos olhos. Quando fala de tecidos, de tudo, fica entusiasmada. Pergunto-me...
Catherine interrompeu-se. Ambos sabiam no que ela estava a pensar. Perguntava-se o que a sua vida poderia ter sido se não tivesse aparecido um Chevrolet azul ao fundo da rua, se um rapaz novo não lhe tivesse pedido para o ajudar a procurar um cão perdido, se uma rapariguinha de doze anos não se tivesse perdido na interminável escuridão de um poço.
Bobby pegou-lhe na mão, apertou-lhe os dedos nos seus.
- Tu também és linda - declarou com doçura. Beijou-a uma vez, na face. E partiu.
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Annabelle estava no aeroporto. Sentara-se a quatro cadeiras de D.D. e mantinha os olhos fixos na janela, contemplando a atividade nas pistas de aterragem com os
braços em redor dos joelhos. Levantou brevemente o olhar quando Bobby apareceu, depois remeteu-se de novo ao seu intenso estudo de quem quer que não fosse um detetive encarregado da investigação do seu caso. Bobby entendeu isso como uma dica e deixou-a em paz.
D.D. saudou-o com um aceno. Os seus caracóis louros estavam húmidos e mudara de roupa. Bobby concluiu que era bom sinal, enquanto a ouvia falar animadamente ao telemóvel, debitando uma tal torrente de obscenidades que uma mãe que viajava com um filho pequeno se levantou e afastou-se com ar de censura.
O detetive dirigiu-se para o balcão da Starbucks. O seu estômago não aguentava mais café. Pediu três garrafas de água e outros tantos iogurtes, depois voltou para junto das companheiras. D.D. que continuava ao telefone, torceu o nariz ao ver o iogurte (devia estar à espera de um bolo de amêndoa), mas fez-lhe sinal para deixar a comida ao pé dela. Bobby aproximou-se então de Annabelle, que se encolheu ainda mais na sua cadeira.
Estendeu-lhe as suas ofertas. Ela aceitou-as com relutância, pelo que Bobby se sentou ao lado dela, tirando duas colheres de plástico branco do saco.
- Como se sente? Ela fez uma careta.
- Precisa de mais aspirina?
- Preciso de uma cabeça nova.
- Pois, sei como é.
- Oh, cale-se! - retorquiu ela, mas aproximou-se um pouco mais e começou a tirar a tampa de folha de alumínio do iogurte. O pingente que usava sempre ao pescoço balouçou livremente. Bobby observou o frasquinho até que ela levantou os olhos e corou ao reparar na direção do seu olhar. Cerrou os dedos conscientemente em torno do vidro e escondeu-o de novo por baixo da blusa.
- De quem são? - perguntou ele em voz baixa, tendo finalmente percebido que o conteúdo do frasco parecia cinza.
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- Da minha mãe e do meu pai - murmurou ela, claramente pouco interessada em falar do assunto.
Como não podia deixar de ser, isso só o levou a insistir.
- O que fez com o resto das cinzas?
- Espalhei-as. Não adiantava enterrá-los sob nomes falsos. Parecia falta de respeito para com os outros mortos.
- Que nome usava a sua mãe quando morreu, Annabelle? Ela fitou-o, insegura.
- Porquê?
- Porque aposto que, de todos os nomes que ela teve ao longo dos anos, há dois de que você se lembra: o nome de Arlington e o nome do dia em que morreu.
Annabelle anuiu lentamente.
- A minha mãe viveu como Leslie Ann Granger, mas morreu como Stella L. Cárter. Lembro-me desses nomes. Sempre.
- E o seu pai?
- Viveu como Russell Walt Granger. Morreu como Michael W. Nelson.
- Gosto do pingente - disse Bobby na mesma voz baixa.
r ?
mórbido.
- É sentimental. Ela suspirou.
- Hoje é o polícia bom, detetive? Isso deve significar que a D.D. me vai dar cabo da cabeça durante o voo.
Bobby sorriu.
- Sabe que estamos todos na mesma equipa, Annabelle. Todos tentamos descobrir a verdade. Seria de crer que você fosse a principal interessada em saber a verdade.
- Não seja condescendente comigo, Bobby. Para si, isto é um exercício analítico. Para mim, é a minha vida.
- De que tem tanto medo, Annabelle?
- De tudo - replicou ela sem rodeios. Pegou no iogurte, virou o rosto e retomou o seu estudo dos aviões.
- O último nome falso do pai era Michael W. Nelson - disse Bobby a D.D. três minutos depois.
D.D. espreitou na direção de Annabelle, que continuava de rosto voltado para o outro lado, sem prestar atenção à conversa deles.
- Excelente trabalho, detetive.
- Tenho um dom - retorquiu Bobby, e fingiu que não se sentia um verdadeiro verme.
O avião atingiu a altitude de cruzeiro. Do outro lado da coxia, Anna belle reclinou as costas do seu banco e adormeceu. D.D. voltou-se para Bobby, que estava sentado ao seu lado, com os olhos muito brilhantes. ,
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- Encontrámos Christopher Eola - anunciou, entusiasmada. - Ou melhor, confirmámos que anda perdido. Ouve isto: Bridgewater libertou-o em 78.
- Hem?
- Sim, um Einstein qualquer esqueceu-se de apresentar a queixa contra o Eola por ter liderado uma revolta de doentes no Hospital Psiquiátrico de Boston. Portanto,
embora o seu historial clínico contivesse notas acerca dos alegados "incidentes" e a polícia local o tivesse incluído na lista das "pessoas de interesse" num caso
de assassínio de uma jovem, tecnicamente o homem não tinha cadastro. Bridgewater ficou sobrelotado e adivinha a quem ofereceram a liberdade?
- Ahhh, Deus!
- De acordo com a sua ficha de doente, portou-se como um verdadeiro menino de coro em Bridgewater, portanto, não lhes ocorreu verificar o assunto com a instituição de onde viera. Aliás, Bridgewater tem grande orgulho no Eola. Consideram-no uma verdadeira história de sucesso.
Bobby riu-se, apenas porque era isso ou começar a bater nas coisas. Papelada mal arquivada, incompetências burocráticas. O público responsabilizava a polícia pelo aumento da criminalidade. O que as pessoas não sabiam era que deviam atirar-se aos burocratas deste mundo.
- Muito bem - disse ele por fim, controlando-se. - Portanto, em
1978, o Eola regressa ao mundo dos vivos. E depois?
- Desaparece.
- A sério?
- Nunca se apresenta na residência de transição, nunca se candidata à sua pensão, nunca aparece na consulta de acompanhamento. Um dia existe, no seguinte desapareceu.
- Fugiu ou desapareceu no buraco negro dos albergues para os sem-abrigo?
- Sei tanto como tu. Mas penso, dado o seu alegado nível de inteligência, que se integrou na sociedade sob uma identidade falsa. Pensa nisso: era oriundo de uma classe privilegiada. Que miúdo rico se contenta em viver nas ruas? Além disso, mesmo no circuito dos sem-abrigo, as pessoas acabam por ser conhecidas. Frequentam as mesmas sopas dos pobres, dormem nos mesmos albergues, instalam-se na mesma esquina dia após dia. Mais cedo ou mais tarde, aparece alguém como o Charlie Marvin, uma pessoa que trabalha tanto com os doentes mentais como com os sem-abrigo, e acaba por o reconhecer. Já ninguém desaparece verdadeiramente, nem mesmo nas ruas escusas de Boston.
- Sim e não. Constou-me que as autoridades tinham contabilizado seis mil sem-abrigo da cidade. Tendo em conta que mesmo um albergue tão grande como o de Pine Street só serve cerca de setecentos, há muita gente cujas caras nunca são vistas.
- Sim, mas estás a falar de alguém que conseguiu escapar ao radar durante quase trinta anos.
É muito tempo para se permanecer invisível.
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O que também coloca a possibilidade de o Eola ter morrido, - D.D. comprimiu os lábios, refletindo. - Não teremos essa sorte. Os verdadeiros doidos vivem para sempre.
Já reparaste nisso, ou sou só eu?
- Também reparei. - Bobby franziu o sobrolho. - O Sinkus conseguiu localizar a família do Eola?
- Fez-lhes uma visita ontem à tarde. Na sua residência de Back Bay
- acrescentou ela significativamente. - Nem sequer o deixaram passar da porta, tal era o interesse que tinham em receber notícias do seu Christopher, desaparecido há tanto tempo.
- Já reparaste que as famílias mais ricas são sempre as mais lixadas, ou sou só eu?
- Também reparei. Vês, há algumas vantagens nos nossos salários miseráveis: nunca seremos suficientemente ricos para que as nossas famílias fiquem lixadas a esse ponto.
- Exatamente.
- Surpresa das surpresas, os Eola já arranjaram advogado. Não respondem a perguntas acerca do filho sem uma intimação na mão e o advogado presente. Portanto, o Sinkus está a tratar da papelada. Aposto um dólar em como ele terá aquela boa gente, mais o seu dispendioso advogado, nas nossas instalações esta tarde. Ao fim de duas horas de café queimado, devem começar a falar, quanto mais não seja para salvarem as papilas gustativas.
D.D. fez uma pausa.
- Calculo que não saibam onde anda o Christopher. O Sinkus disse que era evidente que não sentiam senão aversão pelo filho. Mas gostava de saber bem mais acerca do incidente que fez com que ele fosse despachado para o Hospital Psiquiátrico de Boston. Seria bom termos um perfil mais consistente acerca de Mr. Eola, comparar o seu modus operandi juvenil com as outras coisas que sabemos.
Acenou para si própria, já a folhear a sua pilha de papéis, com as faces afogueadas, transbordante de energia. Nada como dois suspeitos viáveis para a sargento ficar com a cabeça no ar como uma miúda de escola.
- Então - perguntou ela bruscamente, - como correram as coisas com a Catherine?
Bobby recapitulou os pontos principais da conversa.
- A Catherine afirma ter falado duas vezes com o Russell Granger. Ele apresentou-se como agente especial, FBI, sem indicar nome, e as suas perguntas foram consistentes com as dos outros agentes. Mas o ponto mais interessante foi o seguinte: ele levou-lhe um esboço a lápis do alegado atacante.
- Palavra? - Os olhos de D.D. arregalaram-se.
- Segundo a Catherine, o esboço não correspondia ao Richard Umbrio. O desenho do Granger mostrava um homem muito mais pequeno. Quando ela tentou dizer-lhe isso, ele argumentou. Talvez ela não tivesse visto bem o atacante. Ou talvez, se o homem do esboço estivesse disfarçado, tivesse ganho peso, correspondesse à descrição dela. Esse tipo de coisas.
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D.D. continuava de olhos arregalados.
- Hem?
Bobby suspirou e tentou cruzar os braços atrás da cabeça, conseguindo apenas bater com o cotovelo na janela. Lembrou-se do motivo pelo qual detestava os apertados limites dos assentos dos aviões, apesar de nem sequer ser um homem assim tão grande.
- A Catherine deu a entender que o principal ponto de interesse do Granger era o homem que a tinha atacado - prosseguiu, pensando em vo alta. - Queria uma descrição física, das entoações da voz, de quaisquer sinais característicos. Depois mostrou-lhe o esboço. Ora isso podia ter sido para disfarçar. Amolecê-la fingindo ter um suspeito, quando o que realmente queria era extrair-lhe todos os detalhes concretos de como fora raptada e do que o Umbrio fizera. Se era essa a sua estratégia, deu resultado, porque ela não se apercebeu de nada.
- Ele faz com que ela se concentre num aspeto da entrevista - acrescentou D.D. -, o esboço, quando, de facto, noventa por cento das suas perguntas são acerca do ataque. Uma versão verbal de prestidigitação.
Bobby sorriu.
- O homem merece um certo crédito. Essa estratégia parece algo que nós seríamos capazes de fazer.
- Ótimo, era só o que nos faltava, um filho da mãe de um psicopata inteligente! - D.D. massajou as têmporas. Suspirou. Voltou a massajar as têmporas. - Há alguma hipótese de a Catherine ter inventado tudo isso? Afinal, está a dar imensos detalhes acerca de um agente do FBI que só viu duas vezes na vida, há vinte e sete anos.
- É verdade - reconheceu Bobby. - Mas acho que Mr. Agente Especial produziu uma forte impressão nela. O facto de lhe ter levado um esboço de um suspeito e depois se ter mostrado tão insistente em que o homem do desenho tinha de ser a pessoa que a raptara, mesmo depois de ela lhe ter dito que não. A reação dele foi inesperada e, portanto, memorável. Além disso, porque havia ela de nos enganar?
- Conseguiu que voltasses lá a casa, não conseguiu? Além disso, proporciona-lhe um interesse legítimo na nossa investigação. Passa a ter um pretexto para te telefonar e uma desculpa para me atormentar. Parece-me bem o estilo dela.
Bobby encolheu os ombros. Todas aquelas hipóteses eram boas, só que...
- Acho que ela gosta sinceramente da Annabelle.
- Oh, por favor! A Catherine não tem amigos. Amantes, talvez, mas amigos, não.
- Eu sou amigo dela - objetou o detetive.
As sobrancelhas arqueadas de D.D. mostraram-lhe eloquentemente o que ela pensava disso. Aquele desentendimento era antigo e insolúvel, pelo que Bobby retomou o fio a conversa.
- Acho que ela está a dizer a verdade. A compreensão de que o homem que ela recordava como um arrogante agente do FBI, afinal era o pai
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da Annabelle, pareceu chocá-la e desorientá-la. Ontem à tarde, estava convencida de que não havia qualquer ligação entre o caso dela e o da Annabelle. Esta manhã, por outro lado...
Ambos se calaram, refletindo e voltando a refletir.
Por fim, Bobby quebrou o silêncio.
- Temos duas possibilidades. Uma, o Granger manipulou a Catherine. Conseguiu arranjar as coisas de maneira a ficar a saber os detalhes do rapto sem que ninguém soubesse. Ou, duas, o Granger tinha mesmo um suspeito em mente. Mostrou-lhe um esboço do homem que acreditava ser o violador.
D.D. objetou.
- Supondo que tinha um suspeito em mente, porque não telefonou à polícia a indicar o nome?
- Não faço ideia.
- Além de que isso se passa em 1980, certo? Dois anos antes de a filha do Granger ter alegadamente começado a receber presentes. Então porque estava o Granger tão obcecado com atividades criminosas?
- Um cidadão preocupado?
- Que achou que a melhor maneira de servir a justiça consistia em fazer-se passar por agente do FBI? Por favor! As pessoas honestas não se disfarçam de agentes da polícia.
- Geralmente as pessoas honestas têm registos na DGV e número da Segurança Social - corroborou Bobby.
- O que significa...
- Que o Russell Granger não era muito honesto.
- E podia muito bem andar a investigar atividades criminosas em busca de inspiração para os seus próprios crimes. O Sinkus anda atrás do Eola - prosseguiu D.D. sem rodeios. - Quero que te ocupes do Granger. Desencanta os vizinhos, descobre onde está o antigo diretor do Departamento de Matemática do MIT. Vejamos que tipo de vida o pai da Annabelle levava em Arlington. Depois concentra-te a sério na vida em fuga. Tens cidades, tens datas. Quero saber se a família da Annabelle fugia por causa de algo que o Russell Granger temia ou por causa de algo que o Russell G ranger fazia. Estás a perceber?
Bobby fez um sinal de assentimento.
- Devíamos continuar a trabalhar Walpole - disse ele. - Independentemente das convicções da Catherine, temos de investigar a ficha de recluso do Umbrio quanto a registos de correspondência, visitas, esse tipo de coisas. Verificarmos se ele continuava a ser o falhado antissocial que ela conhecia tão bem.
- Concordo.
- Eu... hum... estou bastante ocupado com o caso Granger...
- Sim, sim, sim, eu ponho outra pessoa qualquer a tratar disso.
- Combinado - disse Bobby.
- Combinado - assentiu D.D.
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Satisfeita, fechou a sua pasta e ajeitou-se melhor no seu banco.
- Boa noite, Bobby - murmurou. Trinta segundos depois, adormecia profundamente.
O detetive olhou para o outro lado da coxia, onde Annabelle ainda dormia, com o banco reclinado e o longo cabelo escuro a ocultar-lhe o rosto. Depois virou-se de novo para D.D. cuja cabeça já caía sobre o ombro dele.
Caso complicado, pensou para consigo, e tentou descansar.
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Encontrámos o bilhete no carro de D.D. no terceiro piso do parque de estacionamento do Aeroporto de Logan, entalado debaixo do limpa-para-brisas do lado direito.
Nenhum de nós dissera uma palavra desde que tínhamos desembarcado do avião. Arrastámo-nos pelo terminal, percorremos a vertiginosa passadeira elevada e o labirinto de passagens cercadas de tapumes de obras que atravessavam o parque de estacionamento central. Lá fora estava frio e chuva. O tempo refletia o nosso estado de espírito. Eu estava ocupada com reflexões acerca do meu pai, perguntas acerca do meu passado e - oh, sim! - a necessidade de ir buscar Bella ao veterinário, tarefa sempre complicada quando se utilizam os transportes públicos. D.D. e Bobby estavam sem dúvida perdidos em elevados pensamentos policiais, como, por exemplo, quem raptara e matara seis raparigas, se já o tinha feito antes e - oh, sim! - como poderiam culpar o meu falecido pai por toda aquela confusão.
Então vimos o bilhete. Papel branco vulgar. Tinta preta grossa. Um rabisco manuscrito.
D.D. avançou imediatamente, de maneira a bloquear-me a vista. Contudo, as duas primeiras linhas já estavam gravadas no meu cérebro.
Devolvam o medalhão ou Outra rapariga morre.
Havia mais texto. Em letras mais pequenas, montes de palavras por baixo da ameaça inicial. Mas não consegui lê-las. Calculava que se tratasse de detalhes. Instruções exatas acerca de como a polícia devia devolver o medalhão. Ou informações exatas acerca de como outra rapariga morreria. Talvez ambas as coisas.
- Merda! - exclamou D.D. - O meu carro. Como sabia ele...?
Percorreu rapidamente o vasto espaço de betão. À procura do mensageiro? Vi que o seu olhar saltava para os cantos e percebi que procurava câmaras de segurança, na esperança de ainda terem sorte. Olhei também em redor, mas não vi nada. Não tinham essa sorte.
Bobby já estava debruçado sobre o capo do carro, escrutinando a folha de papel com cuidado para não tocar em nada.
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- Temos de tratar isto como uma cena de crime - declarou numa voz tensa, articulada.
- Não me digas.
- Quanto tempo estivemos fora? Trinta, trinta e duas horas? É uma janela de entrega muito grande.
- Eu sei - entoou D.D. num tom tão seco como o dele. Lançou-me um olhar por cima do ombro. Estava outra vez com uma
expressão irritável.
- Hei, não podem culpar o meu pai por isto - comentei. Ela fez uma carranca.
- Annabelle, isto é um bom momento para apanhar um táxi.
- Perfeito. Quantos jornalistas encontrarei pelo caminho? Tenho a certeza que adorariam saber isto.
- Não se atreveria...
- Vão devolver o medalhão?
- Um, isto é um assunto da polícia. Dois, isto é um assunto da polícia...
- Quem o escreveu? Assinou com algum nome? Refere-se a mim? Quero ler o bilhete.
- Annabelle, vá apanhar um táxi!
- Não posso!
- Porque não?
- Porque isto é a minha vida!
D.D. comprimiu os lábios. Concentrou-se marcadamente no bilhete, que continuava intacto no para-brisas do seu carro. Não ia permitir-me que o visse. Não ia partilhar. As forças da lei eram um sistema. Um sistema que não se importava com uma pessoa como eu.
O tempo passava. D.D. lia. Bobby estudava o rosto dela, com as suas próprias feições impenetráveis. Estavam num universo só deles. E eu estava de fora, reduzida a olhar.
Até eu tenho os meus limites. Desisti, virei-lhes as costas.
- Espere! - D.D. voltou-se para Bobby: - Vai com ela.
- Hei, não preciso de uma ama!
D.D. não me prestou atenção. Continuou a falar com Bobby.
- Tenho tudo controlado. Fica com ela.
- Temos de falar acerca disto... - disse ele num tom calmo.
- E falaremos.
- Não quero que tomes decisões precipitadas.
- Bobby...
- Estou a falar a sério, D.D. Podes ser sargento, mas eu é que sou veterano de uma equipa tática. - Espetou um dedo no bilhete. - Sei o que é isto. Uma treta. Não vais fazer o que aqui diz.
D. D. gesticulou bruscamente com a cabeça na minha direção.
- Depois - murmurou. - Leva-a a casa. Eu reúno a unidade especial. Discutiremos o assunto.
Bobby franziu o sobrolho, com uma expressão claramente cética.
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- Depois - acedeu por fim, contrariado. Afastou-se do Crown Vic sem marcas identificativas e dirigiu-se para mim. Aproveitei a oportunidade para tentar obter um
relance do resto do bilhete, mas não consegui ver mais do que as mesmas duas linhas. Devolvam o medalhão ou... Outra rapariga morre.
Bobby pegou-me no braço e conduziu-me para a saída. Deixei-me levar, mas só até sairmos do alcance dos ouvidos de D. D.
- Que diz o bilhete? - inquiri.
- Nada. Provavelmente não passa de um golpe publicitário.
- O público não sabe do medalhão. Nunca foi referido nas notícias. Ao que parecia, o excelente detetive ainda não tinha ligado aqueles
pontos. Vacilou. Controlou-se. Prosseguiu heroicamente o seu caminho. Chegámos ao elevador. Ele premiu o botão com mais força do que seria necessário.
- Bobby...
- Entre no elevador, Annabelle.
- Mereço saber. Isto diz-me respeito.
- Não, Annabelle, não diz.
- Tretas...
- Annabelle. - As portas do elevador fecharam-se atrás de nós. O bilhete nem sequer refere o seu nome. O autor quer a D.D.
Levou-me até ao veterinário em silêncio. Bella recebeu-me com um frenesim de júbilo. Rodopiou, saltou, encheu-me o rosto de beijos. Abracei-a mais tempo do que tencionava, enterrando a face no pelo espesso do seu pescoço, grata pelo seu calor, pelo seu corpo irrequieto, pela sua alegria louca.
Então a traidora rodou sobre si mesma e saltou para Bobby com igual entusiasmo. Não há lealdade no mundo.
Só acalmou quando a instalei no carro do detetive. Bella gostava tanto de uma boa viagem de carro como qualquer outro cão. Apressou-se a deslizar para junto da porta do lado do passageiro, para poder decorar a janela com impressões do nariz. Já tinha deixado um rasto de pelos brancos finos sobre o banco recentemente aspirado. Isso fez com que me sentisse melhor.
Quando chegámos ao meu prédio, Bobby estacionou num lugar proibido e contornou o veículo em direção ao lado do passageiro. Fiz questão de abrir a porta sozinha, numa atitude bastante deliberada. Ele limitou-se a desviar a sua atenção para Bella que, como era de prever, saltou do carro como uma bomba e pôs-se aos pulos em torno das pernas dele, sem se ralar com a chuva.
- É sempre um prazer ajudar uma senhora - observou Bobby, acariciando-lhe a cabeça.
Tive vontade de lhe bater. De o encher de murros. De o pontapear e de lhe gritar como se fosse tudo culpa dele. A violência dos meus próprios
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pensamentos assustou-me. Dirigi-me para o prédio, com passos inseguros, e procurei a chave com os dedos a tremer.
Bella subiu as escadas exteriores de um salto. Segui-a num passo mais contido, tentando controlar-me enquanto me dedicava ao ritual de destrancar portas, ver o correio, fechar tudo atrás de mim. Tinha uma sensação de náusea no estômago. Um desejo infantil de parar e chorar. Ou, melhor ainda, de fazer cinco malas.
O meu pai fizera-se passar por agente do FBI e entrevistara uma jovem vítima de rapto dois anos antes de eu ter começado a ser assediada. A minha melhor amiga fora morta no meu lugar. E, vinte e cinco anos depois, alguém exigia a devolução do meu medalhão.
Doía-me a cabeça. Ou talvez fosse o coração.
Bobby passou uma revista rápida ao meu apartamento. Os seus movimentos fluidos deviam ter-me feito sentir melhor, mas, em vez disso, a sua necessidade de garantir a segurança do meu apartamento só contribuiu para aumentar a minha ansiedade, pois dei-me conta de que, noutros tempos, aquilo era exatamente o que o meu pai teria feito.
Quando terminou, dirigiu-me um aceno breve, uma autorização para entrar na minha própria casa, depois tomou posição junto ao balcão da cozinha. Ficou a assistir à minha rotina de chegada a casa, pousar o correio, depositar a mala no meu quarto, encher uma tigela de água para Bella. O visor digital do meu atendedor de chamadas indicava seis mensagens, uma quantidade invulgar para o meu pequeno mundo tranquilo. Afastei-me instintivamente; ouviria as mensagens mais tarde, quando Bobby já não estivesse lá.
- Então - disse ele.
- Então - retorqui.
- Planos para a noite?
- Trabalho.
- A coser?
- No Starbucks.
Ele franziu o sobrolho.
- Esta noite?
- As pessoas gostam de ter o seu café a qualquer hora do dia ou da noite. Porquê? Estou em prisão domiciliária?
- Tendo em conta os acontecimentos recentes, um nível razoável de precaução não seria má ideia - replicou ele calmamente.
Não aguentava mais. Espetei o queixo e fui direito ao cerne da questão.
- Não foi o meu pai. O que quer que julgue, o meu pai não era assim. E o bilhete prova-o. Os mortos não são conhecidos pela sua correspondência pessoal.
- O bilhete não lhe diz respeito, Annabelle. O bilhete é um assunto oficial da polícia, que pode ou não ter algo a ver com este caso.
- Então o meu pai fez-se passar por agente do FBI e visitou a Catherine depois do rapto. Talvez, na sua qualidade de pai, quisesse saber em
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primeira mão que tipo de monstro ataca uma rapariguinha. Talvez, enquanto académico, sentisse que essa era a melhor maneira de fazer a sua pesquisa. Sei que há uma explicação. - As palavras pareciam-me defensivas, as teorias, absurdas, mesmo enquanto me saíam da boca. Mas não consegui conter-me. Depois de uma vida inteira em guerra com o meu pai, a acusá-lo de ser controlador e manipulador, tinha-me transformado subitamente na sua maior defensora. Uma coisa era eu desconfiar do meu pai. Mas raios me partissem se ia permitir que qualquer outra pessoa lhe batesse. Dava a impressão de que Bobby estava a ponderar sinceramente as minhas palavras.
- Muito bem, Annabelle. Dê-me uma razão. Tente uma teoria. Estou disposto a mostrar abertura de espírito. As forquilhas e as tochas podem vir depois.
- Ele nem sequer cá estava quando a Dori desapareceu - declarei com veemência. - Já estávamos na Florida.
- Ou assim o julga - comentou ele.
- Sei que assim era! O meu pai nunca nos deixou depois de nos instalarmos na Florida! - Disse a mentira sem esforço. Pensei para comigo, com um sentimento de amargura, que o meu pai ficaria orgulhoso.
Duas semanas depois de termos chegado à Florida. Eu, acordando a meio da noite. Aos gritos. Querendo o meu pai, suplicando pelo meu pai. A minha mãe a aparecer ao meu lado. Chiu, querida. Chiu. O pai não demora. Só teve de ir resolver umas pontas soltas. Chiu, querida, está tudo bem.
Mentirosa, mentirosa!
A voz calma de Bobby devolveu-me implacavelmente ao presente.
- Annabelle, onde estão os móveis da sua família? A família inteira desapareceu a meio da tarde. Que foi feito das vossas coisas?
- Uma camioneta de mudanças foi lá a casa buscá-las.
- Perdão?
- Falei com Mrs. Petracelli...
- Fez o quê!
- Escondi-me num canto e fechei os olhos - retruquei com brusquidão, sentindo a raiva regressar em força. - O que julgava que eu ia fazer? Esperar que você e D.D. me servissem a minha vida numa bandeja de prata? Por favor! São polícias. Não se importam comigo.
Bobby avançou para mim. O seu rosto já não estava inexpressivo. Os seus olhos tinham adquirido um tom cinzento-escuro, tempestuoso. Pensei que devia estar assustada, mas, em vez disso, fiquei excitada. Apetecia-me lutar, guerrear, dar largas à fúria. Apetecia-me fazer qualquer outra coisa que não sentir-me impotente.
- Que disse a Mrs. Petracelli? - inquiriu ele num tom agressivo.
- O quê, Bobby - parodiei, em voz de falsete -, não confia em mim? Não estamos todos na mesma equipa
- Que diabo disse a Mrs. Petracelli?!
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- Não lhe disse nada, sua besta! Que julgava que eu ia fazer? Aparecer em casa de uma mulher que não via há vinte e cinco anos, marchar por ali dentro e anunciar que a polícia tinha encontrado o corpo da filha desaparecida há muito? Por favor! Não sou assim tão cruel. - Avancei também para ele e espetei-lhe um dedo no peito. Isso fez-me sentir dura. Os olhos dele adquiriram um tom ainda mais escuro, de granito. - Ela disse-me que uma empresa de mudanças tinha lá ido e embalado as nossas coisas. Não há dúvida de que o meu pai tratou disso pelo telefone e mandou guardar tudo num armazém. Talvez imaginasse que a polícia deslindaria o caso, um dia, e então poderíamos voltar para casa e retomar as coisas no ponto onde as tínhamos deixado. O meu pai era um grande defensor do planeamento prévio.
- Annabelle, não há quaisquer transações imobiliárias, nem aluguer de armazéns, nem registos de qualquer espécie em nome de um homem chamado Russell Granger.
Foi a minha vez de ser apanhada de surpresa.
- Mas... mas...
- Mas o quê, Annabelle? Diga-me o que se passava no outono de 82. Dê-me qualquer coisa em que possa acreditar.
Não era capaz. Não sabia... Não compreendia...
Como era possível que não houvesse qualquer registo de Russell Granger? Arlington devia ser a minha verdadeira vida. Em Arlington, em 1982, pelo menos, tinha vivido.
Bobby segurou as minhas mãos nas suas. Foi assim que percebi que tinha começado a tremer, a cambalear. Do seu cesto, Bella soltou um ganido nervoso. Mas eu não conseguia estender a mão para ela, não conseguia falar. Estava a pensar outra vez no meu pai, em sussurros a meio da noite. Em coisas que não queria saber. Em verdades que seriam impossíveis de suportar.
Oh, Deus, o que tinha acontecido no outono de 82? Oh, Dori, que fizemos nós?
- Annabelle - ordenou Bobby com brandura. - Ponha a cabeça entre os joelhos. Respire fundo. Está a hiperventilar.
Fiz o que ele dizia. Dobrei-me pela cintura e fiquei a olhar para o meu chão de madeira, todo riscado, enquanto me esforçava para respirar. Quando me endireitei de novo, os braços de Bobby envolveram-me. Aconcheguei-me no seu abraço com toda a naturalidade. Cheirei o seu aftershave; o aroma a verbena e especiarias fez-me comichão no nariz. Senti os seus braços, quentes e rijos, à volta dos meus ombros. Ouvi as batidas do seu coração, regulares e rítmicas, junto ao meu ouvido. E agarrei-me a ele como uma criança, envergonhada, transtornada e com plena consciência de que tinha de me controlar, mas deixando-me levar pela ânsia desesperada de me refugiar nos seus braços.
Se Russell Granger nunca existira, então quem era Annabelle? E porquê, porquê, ter acreditado que a mudança para a Florida era a primeira vez que o meu pai mentia?
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- Chiu - sussurrava-me Bobby ao ouvido. - Chiu... - Os seus lábios roçaram-me nos cabelos, num beijo leve e irrefletido. Não era o suficiente para mim. Inclinei a cabeça para trás e encontrei-o.
O primeiro contacto foi elétrico. Lábios macios, bigodes ásperos. O cheiro de um homem, a pressão dos lábios dele contra os meus. Sensações que raramente me permitia experimentar. Necessidades que raramente me permitia sentir. Abri a boca, atraindo a língua dele, querendo senti-lo, tocá-lo, tomar-lhe o gosto. Precisava daquilo.
Queria acreditar naquilo. Queria sentir algo que não o medo que pairava ameaçadoramente no fundo da minha consciência.
Se ele me abraçasse, então talvez aquele momento se prolongasse e o resto se desvanecesse, e não teria de ter medo, nem de me sentir só, nem de ouvir as vozes que falavam cada vez mais alto no fundo da minha consciência.
Roger, por favor, não vás. Roger, suplico-te, por favor, não faças isso...
No instante seguinte, Bobby estava a afastar-me e eu própria estava a recuar. Retrocedemos para cantos opostos da minúscula kitchenette, ambos a respirar pesadamente e a evitarmos os olhos um do outro. Bella saltou do seu cesto e veio comprimir-se ansiosamente contra mim. Estendi a mão e concentrei-me em alisar-lhe o pelo do focinho.
Os minutos arrastavam-se. Aproveitei esse tempo para compor as feições, para recuperar a minha compostura. Se Bobby tivesse dado um só passo para mim, teria ido ao seu encontro. Contudo, mal acabássemos, eu afastar-me-ia. Esconder-me-ia por trás da impecável compostura que aperfeiçoara ao longo dos anos.
E, mais uma vez, dei-me conta de que a minha mãe não fora a única baixa da guerra do meu pai. Ele também me roubara qualquer coisa e não sabia como poderia recuperá-la.
- E a minha mãe? - perguntei abruptamente. - Leslie Ann Granger. Talvez, por qualquer razão, estivesse tudo em nome dela.
- Annabelle, procurei no nome do teu pai e da tua mãe. Nada.
- Nós existíamos - insisti frouxamente, afagando o pelo de Bella, sentido o peso tranquilizador da sua cabeça nas minhas mãos. - Brincávamos com os vizinhos, tínhamos vida social, um papel na comunidade. Eu ia à escola, o meu pai tinha um emprego, a minha mãe pertencia à Associação de Pais. Tudo isso foi real. Lembro-me. Arlington não foi um produto da minha imaginação.
- E antes de Arlington?
- Eu... não sei. Não me lembro de haver um antes.
- É algo a perguntar aos vizinhos - disse ele.
- Sim, suponho que sim.
Ele endireitara-se de novo, parecia estar a recuperar o autodomínio.
- Não posso garantir-te onde isto irá dar - declarou abruptamente.
- Seis corpos são seis corpos. Temos a obrigação de fazer todas as pergun tas, de seguir todas as pistas. O caso já tem vida própria.
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- Eu sei.
- Talvez, nos tempos mais próximos, devesses passar despercebida. Tive de sorrir, mas o sorriso saiu de esguelha.
- Bobby, eu vivo com um nome falso. Não tenho amigos, nunca falo aos meus vizinhos e não pertenço a quaisquer organizações sociais. A coisa mais próxima de uma relação duradoura que tenho é o homem da UPS. Francamente, se cair mais fundo na escala social, transformo-me numa ameba.
- Não me agrada que trabalhes à noite - prosseguiu ele, como se eu não tivesse dito nada. Os seus olhos semicerraram-se, passaram de mim para Bella e depois de novo para mim. - Nem que vás correr depois de escurecer.
Abanei a cabeça. O choque começava a dissipar-se, as minhas defesas reerguiam-se.
- Sou uma mulher adulta, Bobby. Não vou continuar a esconder-me.
- Annabelle...
- Compreendo que tens de fazer o teu trabalho, Bobby. Bem podes compreender que também tenho de fazer o meu.
Era evidente que ele não estava satisfeito. Mas há que dizer em seu abono que deixou de discutir. Bella pareceu sentir o aliviar da tensão. Foi até junto de Bobby e comprimiu-lhe desavergonhadamente o focinho contra a palma da mão.
- Tenho de ir - disse Bobby, mas não se mexeu.
- Reunião da unidade especial por causa do bilhete.
Ele recusou-se a engolir o isco, pelo que resolvi seguir-lhe o exemplo e desistir.
- Também tenho de me arranjar para ir para o trabalho - anunciei, esperando que a minha voz não refletisse o profundo cansaço que se apoderara de mim.
- Annabelle...
- Bobby.
- Não posso. Tu e eu. Há questões éticas. Não posso.
- Não estou a pedir-te que o faças. Ele franziu subitamente o sobrolho.
- Eu sei, e isso irrita-me.
Sorri. Desta vez foi um sorriso suave, sincero, um verdadeiro passo em frente para mim. Aproximei-me dele. Pousei-lhe a mão na face. Senti o arranhar da sua barba das cinco da tarde, a linha forte do seu maxilar. Estávamos a uns escassos centímetros um do outro, pelo que sentia o calor do seu corpo, mas nada mais.
Ele parecia uma promessa e, por um momento, permiti-me acreditar que essas coisas eram possíveis. Que ainda tinha um futuro. Que a mulher em que Annabelle Granger
se transformara tinha uma hipótese de felicidade na vida.
- Gostas de churrascos? - perguntei.
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Senti os lábios dele curvarem-se contra a palma da minha mão.
- Já virei uns quantos hambúrgueres no meu tempo.
- Alguma vez sonhaste com cercas brancas, filhos, talvez um cão branco incrivelmente hiperativo?
- Os meus sonhos geralmente incluem uma cave com bons acabamentos, mesa de bilhar e um plasma.
- É justo. - Tirei a mão, suspirando ao perder o contacto, ao sentir a realidade fria que ocupava o espaço entre nós. - Nunca se sabe rematei com ligeireza.
- Nunca se sabe - concordou ele.
Saiu e desceu as escadas. Bella reagiu muito mal, ganindo pateticamente enquanto eu trancava a porta atrás dele. O telefone tocou. Atendi. E uma voz de homem sussurrou:
- Annabelle.
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Bobby foi serpenteando pelo trânsito de Boston, com as luzes a piscar enquanto rumava a sul, em direção a Roxbury. Demorara-se mais do que tencionava no apartamento de Ánnabelle. Fizera mais do que tencionava no apartamento de Ánnabelle. Raios, estivera muito perto de se comportar como um verdadeiro asno no apartamento de Ánnabelle!
Mas agora estava de novo no seu carro, controlado e a reabituar-se à frieza dura da realidade. Era um detetive. Estava a trabalhar num caso importante. E as coisas
iam de mal a pior.
Alguém sabia do medalhão. A acreditar no bilhete, essa pessoa só aceitava encontrar-se com a sargento D.D. Warren, que deveria levar o fio aos terrenos desertos do Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston às três horas e trinta e três minutos dessa madrugada.
Qualquer incumprimento resultaria em retaliações imediatas. Outra rapariguinha morreria.
A reação de Bobby ao bilhete fora instintiva e condicionada por quase uma década de treino na unidade tática: armadilha!
Alguém estava a brincar com eles. Mas isso não significava que as consequências da desobediência não fossem reais.
Entrou em Ruggles Street a conduzir só com uma mão e a manipular o telemóvel com a outra. O MIT telefonara-lhe a dar o contacto de um tal Paul Schuepp, antigo diretor do departamento de Matemática. Recebera outra chamada de uma agência de arrendamento que se ocupara da antiga casa de Ánnabelle, em Oak Street. Mais pessoas com quem falar, mais pistas para seguir. Fez o melhor que podia nos dez minutos de que dispunha até chegar ao quartel-general.
O dia declinava e o teto baixo de nuvens cinzentas fazia com que parecesse mais tarde do que era. As pessoas saíam do trabalho e avançavam penosamente pelos passeios, ocultas por guarda-chuvas ou envoltas em gabardinas escuras. Viver tão perto do quartel-general da polícia fazia com que não prestassem atenção às sirenes e ninguém se deu ao trabalho de levantar sequer os olhos quando ele passou.
Por fim, a monstruosidade de vidro e aço do quartel-general da polícia surgiu à sua frente, numa torrente de luz ofuscante, pronta para outra longa
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noite. Bobby premiu o botão de desligar no seu telemóvel e preparou-se para tratar de assuntos sérios: estacionar em Roxbury não era brincadeira nenhuma. À primeira
passagem, todos os lugares ao longo da rua estavam ocupados. Bobby resolveu não virar ainda para o estacionamento central, e não só por o parque de estacionamento
da polícia ser notório pela enorme quantidade de assaltos. Como a maioria dos detetives, queria estar bem posicionado para uma saída rápida, caso surgisse algum
imprevisto. Isso significava deixar o carro o mais perto possível do edifício.
À terceira foi de vez. Um outro polícia saiu e Bobby precipitou-se para o lugar vago.
Já tinha o cartão de identificação na mão quando trotou para a porta do edifício. Passavam sete minutos das seis. D.D. já devia ter o resto da equipa reunido, a discutir a melhor estratégia para o encontro das três e trinta e três. Deveriam levar o medalhão original? Correr o risco de represálias entregando um substituto?
Tentariam fazer a entrega. Bobby não tinha qualquer dúvida a esse respeito. Era uma oportunidade demasiado boa para tentarem atrair a sua presa a campo aberto. Além
disso, D.D. não possuía sensatez suficiente para ter medo.
Atravessou o sistema de segurança, passou o cartão de identificação no leitor e meteu pela escada, subindo os degraus a dois e dois. Precisava daquele exercício. Permitiu-lhe livrar-se do excesso de adrenalina e da eletricidade que ainda sentia por ter beijado uma mulher que nunca devia ter beijado.
Não vás por aí. Tens uma missão. Concentra-te na tua tarefa.
Acabara de transpor a porta das escadas e estava a ponderar a possibilidade de se lançar em corrida ao longo do comprido corredor até ao departamento de homicídios, num desafio louco contra si próprio, quando a porta à sua frente se abriu e D.D. pôs a cabeça de fora.
Bobby saltou, pouco à vontade.
- A reunião da unidade é aí? - perguntou, confuso, tentando perceber porque teriam mudado de sala.
Mas D.D. abanou a cabeça.
- A reunião da equipa é daqui a meia hora. Os pais do Eola acabaram de chegar. Junta-te à festa. Não digas palavra.
Bobby arqueou as sobrancelhas. Juntou-se à festa. Não disse palavra.
Nunca tinha estado naquela sala de reuniões central. Bem mais agradável do que as despensas glorificadas que serviam a Brigada de Homicídios. Mas o primeiro olhar bastou para lhe explicar a escolha de uma sala melhor. Os Eola não tinham vindo sozinhos; tinham trazido a sua gente e a gente da sua gente, a avaliar pela multidão.
Precisou de cinco minutos para perceber quem era quem. Do outro lado da mesa, à esquerda, estava um cavalheiro com idade compreendida entre os oitenta e os cem anos,
vestindo um fato cinzento-escuro, com uma careca em forma de ferradura, a pele fina como pergaminho e um
aristocrático
174
nariz adunco: o pai de Christopher Eola, Christopher Sénior. À sua direita sentava-se uma mulher frágil, com manchas de velhice na pele, um fato Chanel azul-marinho
e pérolas do tamanho de bolas de golfe. A mie de Christopher Eola, Pauline.
Ao lado dela encontrava-se outro cavalheiro de idade, envergando um dispendioso fato assertoado; este tinha o cabelo mais abundante e uma linha de cintura mais dilatada.
Era o proverbial gato gordo, também conhecido como o advogado de Eola, John J. Barron. À sua esquerda, um sósia um pouco mais novo e mais magro, o futuro sócio principal
da firma de advogados, Robert Anderson. Em seguida vinha a inevitável representante do sexo feminino, com o clássico fato de saia e casaco de corte severo da Brooks
Brothers, o cabelo arrepanhado para trás e óculos angulosos com finos aros
metálicos. Dava esta advogada pelo nome de Helene Niaru. Ao seu lado sentava-se a última
mulher do grupo, uma jovem notavelmente bonita que tomava copiosas notas e nunca foi referida pelo nome: a secretária.
Uma quantidade de gente a cobrar à hora, pensou Bobby, por um filho de quem os Eola afirmavam não ter notícias há décadas.
- Quero que fique registado que não vejo com bons olhos esta reunião - dizia Eola Sénior numa voz que a idade tornara trémula, mas onde ainda vibrava a nota inflexível
de uma pessoa habituada a que as suas ordens fossem imediatamente cumpridas. - Acho prematuro, já para não dizer irresponsável, que seja apontado o dedo ao nosso filho.
- Ninguém está a apontar coisa nenhuma a ninguém - asseverou o detetive Sinkus. Fora ele o responsável pela investigação dos Eola, pelo que era a ele que cabia dirigir a reunião. - Garanto que se trata de um inquérito de rotina. Dada a descoberta que foi feita em Mattapan, estamos naturalmente a tentar obter o máximo de informações possíveis acerca de todos os doentes que residiram no Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston, incluindo o seu filho, mas não se limitando a ele - acrescentou secamente.
Eola Sénior arqueou uma sobrancelha fina e grisalha, ainda desconfiado. A sua corcovada mulher fungou e limpou os olhos. Ao que parecia, o simples facto de pensar no filho deixava-a em lágrimas.
Bobby perguntou-se onde estaria a filha, aquela com quem Christopher tivera alegadamente uma relação "inapropriada". Passados trinta anos, era uma adulta de meia-idade. Não teria uma palavra a dizer em tudo aquilo?
O advogado pigarreou.
- Naturalmente que os nossos clientes tencionam cooperar. Afinal, estamos aqui. Claro que os eventos ocorridos há trinta anos continuam a ser muito delicados para todas as pessoas envolvidas. Espero que tenham isso em consideração.
- Falarei apenas com a minha voz amável - garantiu Sinkus. - Vamos começar?
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Acenos relutantes do sortido de advogados. Sinkus ligou o gravador. Começaram.
- Para a ata, senhor, importa-se de confirmar que Christopher Walker Eola é seu filho, nascido a dezasseis de abril de 1954, portador do seguinte número de Segurança Social. - Sinkus debitou o número. Eola Sénior resmungou um assentimento contrariado.
- E Christopher Walker Eola vivia consigo e a sua esposa na vossa residência de Tremont Street no mês de abril de 1974?
Novo sim resmungado.
- A sua filha, Natalie Jane Eola, também lá residia nessa data?
Ao ouvir a referência à filha, as cabeças encresparam-se e foram trocados olhares nervosos.
- Sim - disse Eola Sénior por fim, cuspindo a palavra. Sinkus tomou uma nota. ,
- Residia lá mais alguém? Familiares, empregados, convidados?
Eola Sénior virou-se para a mulher, que parecia ser a responsável no capítulo do pessoal doméstico. Pauline parou de limpar os olhos o tempo suficiente para desenterrar quatro nomes: a cozinheira, a governanta, a secretária pessoal da própria Pauline e um motorista a tempo inteiro. As suas palavras era sussurradas, difíceis de perceber. O queixo permanecia encolhido contra o peito, como se o seu corpo estivesse a abater sobre si mesmo. Osteoporose adiantada, pensou Bobby. Nem mesmo uma grande fortuna conseguia travar o avanço da idade.
Sinkus aproximou o gravador de Mrs. Eola. Resolvidos os preliminares, passou ao assunto.
- Segundo as informações de que dispomos, em 1974, Mr. Christopher Eola e a sua esposa, Mrs. Pauline Eola, internaram o filho, Christopher Júnior, no Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston.
- Correto - concedeu Eola Sénior.
- A data exata, por favor? - Dezanove de abril de 1974. Sinkus levantou o olhar.
- Três dias após o vigésimo aniversário do Christopher?
- Demos uma pequena festa - interveio Mrs. Eola de súbito. Nada de extravagante. Alguns amigos mais próximos. A cozinheira fez pato com laranja, o prato favorito
do Christopher. Depois tivemos trifle1. O Christopher adorava trifle. - Havia nostalgia na sua voz e Bobby concluiu que ela era o elo mais fraco. Mr. Eola estava
ressentido. com a polícia, a entrevista, a indesejada memória do seu filho. Mas Mrs. Eola estava desolada. Se o que se dizia era verdade, fora forçada a encarcerar
um filho para proteger outro. E, mesmo que alguém estivesse convencido de que o próprio filho era um monstro, isso significaria que não sentia a falta dele ou, pelo
menos, da ideia do que ele podia ter sido?
1 Sobremesa de leite-creme, massa de biscoito, gelatina, frutas e natas batidas, tudo disposto em camadas. (N. da T.)
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Sinkus inclinou-se um tudo-nada na direção de Mrs. Eola, centrando-a com a linha aberta do seu corpo, envolvendo-a no contacto encorajador do seu olhar.
- Parece ter sido uma festa muito agradável, Mrs. Eola.
- Oh, foi, sim! O Christopher tinha regressado há poucos meses das suas viagens. Queríamos fazer algo especial, tanto para assinalar o seu aniversário, como o seu regresso a casa. Convidei os seus amigos da escola, muitos dos nossos associados. Foi uma noite encantadora.
- As viagens dele, Mrs. Eola?
- Oh, sim, ele foi ao estrangeiro, bem entendido. Tirou umas férias quando acabou o liceu, para conhecer o mundo, viver aventuras. Rapazes. Não se pode esperar que assentem logo. Primeiro têm de experimentar algumas coisas. - Esboçou um sorriso frouxo, como se tivesse noção de quão frívolo aquilo parecia agora. Retomou o fio à meada, num tom mais enérgico: - Mas ele voltou por alturas do Natal, para tratar da candidatura ao ensino superior. Interessava-se por teatro, mas achava que não tinha talento suficiente. Pensou em seguir Psicologia.
- Depois de passar mais de um ano em viagem? Não pode ser mais específica, Mrs. Eola? Que países visitou, durante quanto tempo?
Mrs. Eola acenou com a mão, num movimento esvoaçante, de pássaro.
- Oh, esteve na Europa. Nos sítios habituais. França, Londres, Viena, Itália. Estava interessado na Ásia, mas nessa época não nos pareceu seguro. Sabe - inclinou-se para a frente, com ar de quem fazia uma confidência -, por causa da guerra e tudo o mais.
Ah, sim, o conflito do Vietname, ao qual Christopher conseguira convenientemente escapar. Objeção de consciência, o dinheiro do papá, as suas aspirações universitárias? As possibilidades eram infinitas.
- Viajava sozinho? Ou com amigos?
- Oh, às vezes sozinho, por vezes com amigos. - Novo esvoaçar vago da mão.
Sinkus mudou de estratégia.
- Tem algumas notas dessa época? Talvez postais que o Christopher lhe tenha enviado, ou mesmo uma ou duas linhas escritas por si no seu diário...
- Objeção... - começou Barron.
- Não estou a pedir o diário - apressou-se Sinkus a esclarecer. - Só quero uma imagem mais detalhada das aventuras globais do Christopher. Datas, locais, pessoas. Se for possível.
O que significava que essas informações podiam proporcionar uma lista de locais onde Christopher podia ter-se refugiado após a sua saída de Bridgewater, em 1978. Porquê esconder-se num hotelzinho manhoso nos Estados Unidos quando podia fugir para Paris?
Mr. Eola resmungou o seu consentimento. Sinkus passou ao ponto seguinte.
- Portanto, o Christopher concluiu o liceu, viajou um bocado e regressou a casa para se candidatar ao ensino superior...
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- Quais eram as universidades pretendidas? - interveio Bobby. Recebeu um olhar de aviso de Sinkus, mas não lhe ligou. Tinha as suas razões para fazer aquela pergunta.
- Oh, as habituais. - Mrs. Eola mostrava-se outra vez vaga. - Harvard, Yale, Princeton. Queria ficar na costa leste, para não ir para muito longe de casa. Embora, agora que penso nisso, também se tenha candidatado ao MIT. Uma escolha curiosa, essa. O MIT para artes? Bem, com o Christopher, nunca se sabia.
Sinkus retomou as rédeas da entrevista.
- Foi agradável tê-lo de novo em casa?
- Oh, sim - entusiasmou-se a idosa senhora. Eola Sénior fulminou-a com o olhar e ela calou-se.
- Ouça - impacientou-se Eola Sénior -, sei o que está a tentar perguntar. Porque não nos deixamos de rodeios? Internámos o nosso filho. Nós, pessoalmente, metemo-nos no carro e levámos o nosso único rapaz para um hospital psiquiátrico. Que espécie de pais fazem uma coisa dessas?
- Está bem, Mr. Eola. Que espécie de pais fazem uma coisa dessas? Eola Sénior levantou o queixo. Á sua pele parecia estar demasiado esticada sobre o rosto esquelético.
- Este relato não pode sair desta sala. Pela primeira vez, Sinkus vacilou.
- Ora, Mr. Eola...
- Estou a falar a sério. Desligue esse gravador imediatamente, jovem, ou não digo nem mais uma palavra.
Sinkus consultou D.D. com os olhos. Ela anuiu lentamente.
- Desliga-o. Vamos ouvir o que Mr. Eola tem para dizer.
Sinkus estendeu a mão e desligou o gravador. Como se obedecesse a uma deixa, a secretária dos advogados pousou a caneta e cruzou as mãos no colo.
- Têm de compreender - começou Mr. Eola. - Não foi inteiramente culpa dele. Aquela rapariga, a belga. Ela arruinou-o. Se tivéssemos compreendido a situação mais
cedo, se tivéssemos atuado com mais rapidez...
- Que situação, senhor? Em que devia ter atuado? - a voz de Sinkus mantinha-se paciente, respeitosa. Eola ia dar-lhes o que eles queriam. Tudo a seu tempo.
- Uma jovem estrangeira que ajudava nos trabalhos domésticos, em troca de casa e comida. Contratámo-la quando o Christopher tinha nove anos e a Natalie, três. Até essa altura tínhamos tido uma mulher maravilhosa, mas ela partiu para criar a sua própria família. Recorremos à mesma agência, que nos recomendou a Gabrielle. Dada a experiência anterior, não pensámos duas vezes. com certeza que, bem treinada, seria tão boa como qualquer outra.
- "A Gabrielle era mais nova do que esperávamos. Vinte e um anos, acabada de sair da escola. Tinha uma personalidade diferente; mais festiva, mais... risonha. - Fez uma careta. Era evidente que risonha não era um
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elogio. - Por vezes achei-a demasiado informal com as crianças. Mas era enérgica e possuía um sentido de aventura que os pequenos pareciam apreciar. O Christopher, sobretudo, estava fascinado com ela.
"Quando ele fez doze anos, houve um incidente na escola. O Christopher era franzino para a idade, bastante sensível. Alguns dos rapazes começaram a... toma-lo de ponta. Marcaram o Christopher. Começaram a embirrar com ele. Um dia, as coisas foram longe de mais. Trocaram-se ,
murros. O Christopher não saiu vitorioso.
Os lábios de Eola Sénior contorceram-se com repugnância. Bobby não conseguiu perceber se o homem se sentia horrorizado pela ideia da violência ou pelo facto de
o seu filho ter sido incapaz de lidar com essa violência.
Mrs. Eola recomeçara a limpar os olhos.
- Naturalmente - prosseguiu Mr. Eola num tom enérgico -, foram tomadas as medidas adequadas e os ofensores, punidos. Mas o Christopher... Retraiu-se. Tinha dificuldade
em dormir. Uma vez apanhei a Gabrielle a sair do quarto dele de madrugada. Quando a interpelei, disse-me que o tinha ouvido chorar e tinha resolvido ir ver como
ele estava. Confesso que não aprofundei o assunto.
"Foi a governanta quem acabou por falar com a minha mulher. Segundo
ela, a cama da Gabrielle não era utilizada durante longos períodos de
tempo. Em contrapartida, os lençóis do Christopher tinham de ser mudados com bastante frequência. Apareciam muitas vezes manchados. Podem calcular o resto.
Os olhos de Sinkus estavam ligeiramente arregalados, mas ele conseguiu controlar-se.
- Na realidade, senhor, vou precisar que nos diga o resto. Eola Sénior suspirou profundamente.
- Muito bem. A nossa jovem empregada mantinha relações sexuais com o nosso filho de doze anos. Está satisfeito? Ficou tudo suficientemente claro?
Sinkus deixou passar a observação.
- Quando fez essa descoberta, Mr. Eola...
- Oh, despedimo-la. Depois pedimos uma providência cautelar contra ela e fizemos com que fosse deportada. Tudo a conselho do nosso advogado, bem entendido.
- E o Christopher?
- Era uma criança - retorquiu Eola Sénior com impaciência. - Tinha sido seduzido e usado por uma idiota belga qualquer. Ficou destroçado, como é natural. Gritou comigo, enfureceu-se com a mãe, fechou-se no quarto dias a fio. Achava-se um Romeu e culpava-nos de termos banido a sua Julieta. Tinha doze anos, por amor de Deus! Que sabia ele?
- Telefonei ao médico - interveio Mrs. Eola na sua voz sussurrante.
- Ao nosso pediatra. Ele mandou-me levar-lhe o Christopher, para o examinar. Mas não havia nada de errado com ele, em termos físicos. A Gabrielle não o magoara, só o... - Mrs. Eola encolheu ligeiramente os ombros,
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num gesto de impotência. - O nosso médico disse que o tempo seria o melhor remédio. Portanto, levámos o Christopher para casa e esperámos.
- E que fez o Christopher?
- Amuou - respondeu Eola Sénior depreciativamente. - Isolava-se no seu quarto, recusava-se a falar connosco, a jantar connosco. Andou assim durante semanas. Mas depois pareceu voltar ao normal.
- Recomeçou a ir à escola - disse Mrs. Eola. - Sentava-se à mesa connosco, fazia os trabalhos de casa. Dava a impressão de ter amadurecido com a experiência. Começou a usar fatos, era invariavelmente bem-educado. Os nossos amigos diziam que ele parecia ter-se transformado num homenzinho de um dia para o outro. Era verdadeiramente encantador. Trazia-me flores, passava um tempo infinito com a irmãzinha pequena. A Natalie idolatrava-o, sabem. Quando ele se isolou no quarto, creio que foi ela quem mais sofreu com isso. Durante algum tempo, a casa pareceu muito... calma.
- Durante algum tempo - repetiu Sinkus.
Mrs. Eola suspirou e remeteu-se de novo ao silêncio, com a expressão desolada a ensombrar-lhe novamente o rosto. Eola Sénior retomou a narrativa, com uma voz enérgica, desprovida de emoção.
- A nossa governanta começou a queixar-se do estado do quarto do Christopher. Fizesse ela o que fizesse, a cama cheirava sempre muito mal. Passava-se ali alguma coisa, dizia ela. Havia algo de errado com ele. Queria autorização para não continuar a limpar o quarto dele.
"Claro que recusei. Disse-lhe que estava a ser disparatada. Três dias depois, aconteceu estar em casa e ouvi-la gritar. Corri para o quarto do Christopher e deparei com ela de pé ao lado do colchão levantado. Tinha identificado finalmente a origem do cheiro: entre o estrado e o colchão havia meia dúzia de esquilos mortos. O Christopher tinha-os... esfolado. Esventrado. Decapitado.
"Confrontei-o no instante em que chegou da escola. Ele pediu imediatamente desculpa. Explicou que estava apenas a "praticar". Na aula de ciências iam dissecar um sapo no fim do semestre. Ele receava ser demasiado suscetível, talvez desmaiar à vista do sangue. E temia voltar a ser alvo dos brutamontes se revelasse fraqueza à frente dos colegas.
Eola Sénior encolheu os ombros.
- Acreditei nele. A sua lógica, os seus receios, tudo fazia sentido. O meu filho era capaz de se mostrar muito convincente. Foi sozinho buscar as carcaças ao quarto e enterrou-as no jardim. Dei o assunto por encerrado. Só que...
- Só que...?
- Só que a vida em nossa casa nunca mais voltou a ser como devia. A Maria, a governanta, começou a ter pequenos acidentes. Virava-se e, de repente, havia uma vassoura no seu caminho, fazendo-a tropeçar. Uma vez, depois de ter acabado uma garrafa de lixívia, foi abrir outra, despejou-a no
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balde e foi imediatamente envolvida em vapores. Conseguiu escapar mesmo a tempo. Veio a descobrir-se que alguém despejara a lixívia da segunda garrafa e a substituíra por amoníaco. A Maria despediu-se pouco depois. Afirmava que a casa estava assombrada. Mas ouvi-a murmurar entre dentes que o fantasma se chamava Christopher.
- Pensava que o Christopher estava a tentar fazer-lhe mal?
- Pensava que o Christopher estava a tentar matá-la - corrigiu Eola Sénior sem rodeios. - Talvez ele tivesse descoberto que fora ela quem traíra a sua relação com a Gabrielle. Talvez quisesse vingar-se. Não sei. O Christopher era muito educado. Cooperava. Ia às aulas. Tinha boas notas. Fazia tudo o que lhe pedíamos. Mas nem mesmo... - Eola Sénior respirou fundo. - Nem mesmo eu gostava de estar perto do meu próprio filho.
- O que aconteceu em abril de 74? - perguntou Sinkus com doçura.
- O Christopher partiu - respondeu Eola Sénior em voz baixa. E, durante quase dois anos, foi como se uma nuvem negra tivesse desaparecido de nossa casa. A nossa filha parecia menos ansiosa. A cozinheira assobiava na cozinha. Todos caminhávamos com mais leveza. E ninguém dizia nada, porque não havia nada a dizer. Nunca víamos o Christopher fazer nada de mal. Depois do incidente dos esquilos e da partida da Maria, não tinha havido mais nenhum pequeno acidente, nenhum cheiro esquisito, nem nada que fosse remotamente suspeito. Mas a casa era melhor sem a presença do Christopher. Mais feliz.
- E então ele regressou.
Eola Sénior fez uma pausa. A sua voz extinguiu-se. Perdera o tom contido, desprovido de emoção. Uma sombra caíra-lhe sobre o rosto. Escura, zangada, deprimida. Bobby inclinou-se para a frente. Sentiu os músculos do estômago contrair-se, preparando-se para o que aí vinha.
- A Natalie foi a primeira a modificar-se - disse Eola Sénior, num tom distante. - Tornou-se caprichosa, retraída. Passava horas sentada em silêncio, depois explodia por uma ninharia qualquer. Julgámos que eram problemas de adaptação. Tinha catorze anos, uma idade difícil. Além disso, tinha tido a casa só para ela durante mais de um ano, fora como uma filha única. Talvez se ressentisse do regresso do Christopher.
"Mas ele aturava-lhe as birras. Trazia-lhe flores, os doces preferidos dela. Arranjava-lhe alcunhas disparatadas, inventava pequenas canções absurdas. Quanto mais ela o afastava, mais atenção ele lhe dedicava. Levava-a ao cinema, exibia-a aos amigos, oferecia-se para a levar à escola. O Christopher tinha-se transformado num belo jovem durante a sua ausência. Ganhara corpo, segurança. Creio que várias amigas da Natalie tinham um fraquinho por ele, coisa de que ele tirava partido, bem entendido. A Pauline e eu pensávamos que talvez as viagens lhe tivessem feito bem. Estava finalmente a voltar ao normal.
"No dia a seguir à festa de anos do Christopher recebi uma chamada de um cliente de Nova Iorque. Havia um problema e eu tinha de me encontrar com ele. A Pauline resolveu ir comigo. Talvez pudéssemos assistir
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a um espetáculo. Não queríamos que a Natalie faltasse às aulas, mas isso não era problema. O Christopher estava em casa. Portanto, deixámo-lo a cuidar de tudo e partimos.
A pausa repetiu-se. Uma hesitação ínfima, enquanto o Sr. Eola lutava com as suas recordações, se esforçava para encontrar palavras. Quando falou de novo, a sua voz era rouca e baixa, difícil de ouvir.
- A minha reunião de emergência acabou por não ser emergência nenhuma. E a Pauline também não conseguiu bilhetes para o espetáculo que queria ver. De maneira que voltámos para casa. Um dia mais cedo. Nem pensámos em telefonar.
"Passava das oito da noite. A casa estava escura, o pessoal já tinha saído. Encontrámo-los na sala de estar. O Christopher estava sentado na minha poltrona de couro favorita. Nu em pelo. A minha filha... a Natalie... Ele estava a obrigá-la a executar... um ato sexual. Ela soluçava. E ouvi o meu filho dizer, numa voz que não lhe conhecia: "Sua cabra estúpida, é bom que engulas ou espeto-to pelo eu acima."
"Depois levantou os olhos. Viu-nos ali parados. E limitou-se a sorrir. Um sorriso frio, gelado. "Olá pai", disse ele. "Tenho de te agradecer. Ela é muito melhor do que a Gabrielle."
Eola Sénior interrompeu-se de novo. Os seus olhos pousaram num ponto qualquer da mesa de madeira polida, fixaram-se lá. Ao seu lado, a mulher fora-se completamente abaixo; balouçava para a frente e para trás, com os ombros a tremer espasmodicamente.
D.D. foi a primeira a mexer-se. Pegou numa embalagem de lenços e estendeu um a Mrs. Eola, em silêncio. A velha senhora pegou nele, segurou-o nas mãos cruzadas e recomeçou a balouçar.
- Obrigada por terem falado connosco - disse D.D. com brandura.
- Sei que isto é terrível para a vossa família. Só mais algumas perguntas e penso que podemos terminar por hoje.
- O quê? - perguntou Eola Sénior num tom fatigado.
- Pode dar-nos uma descrição da Gabrielle?
O que quer que ele esperasse, aquela pergunta apanhou-o de surpresa. Pestanejou.
- Não... Não tenho pensado propriamente nela... O que quer?
- Os traços básicos bastam. Altura, peso, cor dos olhos. Aspeto geral.
- Bem... tinha cerca de um metro e setenta. Cabelo escuro. Olhos escuros. Esguia, mas não o tipo de magreza que se vê hoje em dia. Era... robusta, cheia de vida. Como a Catherine Zeta-Jones.
D.D. fez um sinal de assentimento, enquanto Bobby fazia a mesma associação mental que ela provavelmente fizera: por outras palavras, a descrição geral de Gabrielle também podia aplicar-se a Annabelle.
Sinkus pigarreou, chamando a atenção geral. Era tempo de rematar a entrevista, mas o detetive parecia perturbado.
- Mr. Eola, Mrs. Eola, se me permitem... depois de apanharem o Christopher, ele foi voluntariamente para o Hospital Psiquiátrico de Boston?
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- Não teve alternativa.
- Como?
- O meu dinheiro é o meu dinheiro, detetive Sinkus. E pode ter a certeza de que depois daquele... incidente, não ia dar um cêntimo ao Christopher. Contudo, ele tinha recursos próprios. Um fundo fiduciário que lhe fora deixado por um dos avós. Nos termos desse fundo, não podia recebê-lo antes de completar vinte e oito anos. E, mesmo nessa altura, necessitaria da cooperação do curador. Que era eu.
Bobby compreendeu ao mesmo tempo que D.D. r -Ameaçou cortar-lhe as vazas. Recusar-lhe a herança.
- Pode ter a certeza que sim - cuspiu Eola Sénior. - Permiti que vivesse, naquela noite. Foi generosidade suficiente.
- Bateste-lhe - sussurrou Mrs. Eola. - Correste para ele. Saltaste para cima dele. Bateste e voltaste a bater. E a Natalie gritava, e tu gritavas, e aquilo não parava. O Christopher deixou-se ficar sentado. com aquele sorriso terrível, a boca cheia de sangue.
Eola Sénior não se deu ao trabalho de pedir desculpa.
- Corri com ele para o quarto, onde ele se trancou. E... tentei pensar no que fazer. Não era capaz de me forçar a matar o meu único filho. Mas, ao mesmo tempo, não podia sujeitar a minha filha ao escrutínio da polícia. Consultei o meu advogado - o olhar fugiu-lhe para Barron -, que propôs uma terceira alternativa. Mas avisou-me que, tendo em conta a idade do Christopher, não seria fácil interná-lo numa instituição psiquiátrica. Seria preciso que ele ficasse voluntariamente, ou teria de conseguir uma ordem do tribunal, o que implicava irmos à polícia.
"O meu filho é esperto. Reconheço-lhe isso. E, como já disse, gosta das coisas boas da vida. Não conseguia imaginá-lo a viver nas ruas; ele também não se imaginava
em tal situação. Portanto, de manha chegámos a um acordo. Ele ficaria no Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston até completar vinte e oito anos. Nessa data, partindo do princípio de que ele cumpria as condições do nosso acordo, eu libertaria a sua herança. Três milhões de dólares não é coisa para se desprezar, e o Christopher tinha consciência disso. Foi para o hospital e nunca mais o vimos.
- Nunca o visitaram? - precisou Sinkus.
- O meu filho está morto para nós.
- Nunca se informaram acerca da evolução do estado dele, nem sequer por telefone?
- O meu filho está morto para nós, detetive.
- Então não sabia que o seu filho arranjou problemas no Hospital Psiquiátrico de Boston. Foi parar a Bridgewater.
- Quando o Hospital Psiquiátrico anunciou que ia encerrar, telefonei para lá. O médico informou-me que o Christopher já tinha sido enviado para Bridgewater. Achei a solução conveniente.
Sinkus franziu o sobrolho.
- E no vigésimo oitavo aniversário do Christopher?
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- Chegou um bilhete ao gabinete do meu advogado. "Um acordo é um acordo", dizia a nota. Libertei os fundos.
- Espere um minuto - atalhou D.D. com vivacidade. - O Christopher fez vinte e oito anos em abril de 1982. Está a dizer-me que recebeu três milhões de dólares nesse dia?
- Na realidade, herdou três milhões e meio. Os fundos tinham sido bem geridos.
- E ele acedeu aos fundos?
- Tem feito levantamentos periódicos ao longo dos anos.
- O quê?!
Eola Sénior virou-se para o advogado.
- John, se fizer favor, " Barron pegou numa pasta de pele, que abriu com um gesto enérgico. - Estas informações são confidenciais, detetives. Acreditamos que as
tratarão como tal.
Distribuiu cópias de um molho de papéis agrafados. Registos financeiros, percebeu Bobby, percorrendo rapidamente as folhas com os olhos. Registos financeiros detalhados do fundo fiduciário de Christopher e a data de cada levantamento que ele fizera.
O olhar de Bobby pousou diretamente em Barron.
- Como é que ele estabelecia contacto? Quando queria dinheiro, o que fazia, pegava no telefone?
- Ridículo - retorquiu Barron num tom cortante. - É um fundo fiduciário, não um multibanco. Exigimos um pedido por escrito, devidamente assinado e reconhecido por
um notário, para guardarmos os registos oficiais. Continue a folhear esses documentos, encontrará uma cópia de cada carta. Verá que o Christopher tinha preferência
por levantamentos de cem mil dólares, duas a três vezes por ano.
- Ele escrevia e vocês passavam-lhe um cheque? - persistiu Bobby, que virava rapidamente as folhas.
- Ele escrevia, nós liquidávamos fundos, reequilibrávamos a carteira de investimentos e depois passávamos-lhe um cheque, sim.
- Então esses cheques nunca foram recolhidos pessoalmente? Têm um endereço de correio? - Era demasiado bom para ser verdade. E era mesmo, como Bobby verificou ao chegar à última página. - Espere aí, passavam um cheque para um banco na Suíça?
Barron encolheu os ombros.
- Como Mrs. Eola referiu, o Christopher passou algum tempo no estrangeiro. É evidente que abriu uma conta enquanto lá esteve.
Bobby arqueou as sobrancelhas. Os jovens de dezanove anos normais não abrem contas em bancos suíços. Nem mesmo os filhos mimados da classe alta de Boston. Parecia-lhe que se tratara de uma medida de prevenção. A atitude de um homem que já presumia que talvez precisasse de esconder os seus bens a curto prazo, talvez para uma vida de fugitivo. Isso levou Bobby a especular o que Christopher teria andado a fazer durante a sua "grande digressão" pela Europa.
184
A reunião estava a chegar ao fim. Eola Sénior passara o braço em torno dos ombros da mulher, que limpava o rímel esborratado. Sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido e ela correspondeu com um sorriso trémulo.
- Como está a sua filha, Mrs. Eola? - perguntou Bobby com brandura. O tom duro da resposta dela surpreendeu-o.
- É lésbica, detetive. Que mais se podia esperar?
Mrs. Eola pôs-se em pé. A fúria revigorara-a. Eola Sénior aproveitou o momento e conduziu-a para a porta. Os advogados e a secretária saíram atrás deles em fila indiana, qual brigada absurdamente dispendiosa, e rumaram aos elevadores.
Sinkus foi o primeiro a quebrar o silêncio que se seguiu.
- Então - perguntou ele a D.D. -, isto quer dizer que posso ir à Suíça?
185

A reunião de emergência da unidade especial atrasou-se, devido ao prolongamento da entrevista com os Eola. No entanto, a maioria dos detetives chegara à hora marcada,
o que significou que quando Bobby, D.D. e Sinkus apareceram, as caixas de piza estavam vazias, os refrigerantes tinham sido consumidos e não restava nem um pedacinho de pão.
Bobby estudou o único sobrevivente da refeição, uma taça de plástico cheia de flocos de malaguetas. Mas pensou melhor.
- Muito bem, muito bem - dizia D.D. energicamente. - Sentem-se aí, prestem atenção. Para variar, temos alguns desenvolvimentos para discutir, portanto vamos a isto.
O detetive Rock bocejou, depois tentou disfarçar espalhando as suas pilhas de papel.
- Ouvi dizer que temos um bilhete - observou. - E a sério ou trata-se de outro tarado?
- Não temos a certeza. Divulgámos o nome da Annabelle Granger no princípio, mas nunca publicámos detalhes acerca do medalhão ou dos outros objetos pessoais. Portanto, ou o nosso autor anónimo tem informações vindas cá de dentro, ou é a sério.
Aquilo despertou-os. Contudo, o anúncio seguinte de D.D. provocou uma vaga de resmungos coletivos.
- Tenho cópias do bilhete para distribuir. Mas não para já. Cada coisa a seu tempo. Primeiro os nossos relatórios diários. Vamos perceber o que sabemos por agora, depois ponderaremos como este pequeno contacto da comunidade - D.D. acenou com a pilha de fotocópias - encaixa no puzzle. Sinkus, começa tu.
Sinkus não se importou. Na sua qualidade de responsável pelo caso Christopher Eola, transbordava de entusiasmo. Recapitulou a entrevista com os pais de Eola, o que tinham ficado a saber acerca das atividades sexuais de Eola e como a sua antiga empregada correspondia á descrição geral de Annabelle Granger, uma das vítimas planeadas. Ainda mais interessante, o facto de Eola ter acesso a vastos recursos financeiros. Entre a conta bancária suíça e o fundo fiduciário de milhões de dólares, era altamente provável que conseguisse manter um bom estilo de vida em fuga, sem dar
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nas vistas, etc. etc. Aliás, quase tudo era possível, pelo que teriam de pensar em grande escala.
Passos seguintes: telefonar para o Departamento de Estado, para obter informações acerca do passaporte de Eola; contactar a Interpol, para saber se esta tinha Eola na mira ou se havia algum caso com um sujeito não identificado que utilizasse um modus operandi similar; finalmente, determinar o devido processo legal para a localização de fundos transferidos de uma conta bancária na Suíça ou, melhor ainda, congelar os bens.
- Classifica o Eola como terrorista - sugeriu McGahagin. Ao ouvir aquele comentário, alguns dos outros riram.
- Não estou a brincar - insistiu o sargento. - O homicídio não significa nada para o governo suíço, nem para qualquer outro, para dizer a verdade. Por outro lado, se fizeres um relatório a dizer que tens razões para crer que o Eola enterrou material radioativo no meio de uma grande área metropolitana, terás os bens dele congelados num instante. Os corpos não são radioativos? Quem nesta sala se lembra de alguma coisa das aulas de ciências?
Todos trocaram olhares inexpressivos. Ao que parecia, nenhum deles costumava ver o Discovery Channel.
- Bem - afirmou McGahagin teimosamente -, eu acho que é verdade. E estou a dizer-vos, dará resultado.
Sinkus encolheu os ombros, tomou uma nota. Não seria a primeira vez que conseguiam passar entre as malhas da rede. Era para isso que as leis eram feitas: para que os empreendedores detetives da Brigada de Homicídios descobrissem uma maneira de as contornar.
Sinkus também estava encarregado de localizar Adam Schmidt, o auxiliar de enfermagem do Hospital Psiquiátrico de Boston que fora despedido por dormir com uma doente. Passou a esse ponto em seguida.
- Localizámos finalmente a Jill Cochran, a antiga enfermeira-chefe informou. - Disseram-me que ela tem a maior parte das fichas da antiga instituição. Está a catalogá-las, a arquivá-las, sei lá o quê. A fazer o que quer que se faz à papelada dos hospitais de doidos. vou encontrar-me com ela amanhã de manhã, para obter informações acerca de Mr. Schmidt.
- A verificação do cadastro do Schmidt? - indagou D.D.
- Não deu nada. Portanto, ou o Adam passou a ser muito bom rapaz depois dos seus tempos no Hospital Psiquiátrico de Boston, ou tornou-se mais esperto e não voltou a deixar-se apanhar. Mas o meu sexto sentido de caçador não me diz nada. Gosto mais do Eola.
D.D. limitou-se a lançar-lhe um olhar. Sinkus levantou as mãos num gesto de defesa.
- Eu sei, eu sei, um bom investigador não deixa nenhuma pedra por virar. Estou a virá-las, estou a virá-las, estou a virá-las.
Ao que parecia, a falta de sono tornava Sinkus mordaz. Sentou-se, dando a vez ao detetive Tony Rock, que apresentou um relatório da atividade mais recente da linha direta da Crime Stoppers.
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- Que posso dizer-vos? - ribombou o detetive da voz grossa. Tinha um áspero exausto, falava num tom exausto e sem dúvida que se sentia tão mal como parecia e soava. - Recebemos uma média de trinta e cinco chamadas por hora, a maioria das quais recai numa de três categorias básicas: um pouco loucas, muito loucas e tão tristes que não há palavras. As categorias um pouco loucas e muito loucas são mais ou menos o que se podia esperar: os alienígenas, os homens de branco, quem quer viver em segurança neste mundo tem de andar com papel de alumínio na cabeça.
"As tão tristes que não há palavras, bem, são tão tristes que não há palavras. Pais. Avós. Irmãos. Todos com familiares desaparecidos. Ontem telefonou-nos uma mulher de setenta e cinco anos. A irmã mais nova está desaparecida desde 1942. A mulher ouviu dizer que os restos mortais eram esqueletos, portanto, pensou que podia ter sorte. Quando lhe disse que não acreditávamos que os restos fossem assim tão antigos, desatou a chorar. Passou sessenta e cinco anos à espera que a irmã mais nova voltasse para casa. Disse-me que não pode parar agora, que fez uma promessa aos pais. Às vezes a vida é uma verdadeira merda.
Rock apertou o nariz entre os dedos, pestanejou, prosseguiu.
- Compilei uma lista de dezassete desaparecidas do sexo feminino entre 1970 e 1990. Algumas são de cá. Outras, de tão longe como a Califórnia. Obtive o máximo de informações possíveis das famílias para efeitos de identificação. Incluindo jóias, roupas, registos dentários, fraturas ósseas eou brinquedos preferidos. Sabem, para o caso de conseguirmos encontrar correspondências com os "objetos pessoais" anexos a cada corpo. vou passar as informações à Christie Callahan. Da minha parte, é tudo.
Sentou-se. Parecia que todo o ar se escoara do seu corpo até se deixar cair na cadeira dobrável de metal. O homem não estava com bom aspeto e todos perderam um momento a olhar para ele, sem saberem quem devia ser o primeiro a dizer alguma coisa.
- Que foi? - vociferou Rock.
- Tens a certeza... - começou D.D.
- Não posso consertar a minha mãe - retorquiu ele com brusquidão. - Bem posso encontrar o cabrão que matou seis miúdas.
Não havia grande coisa que se pudesse acrescentar àquilo, pelo que passaram ao ponto seguinte.
- Muito bem - declarou D.D. energicamente -, temos um suspeito principal com inteligência e recursos financeiros acima da média, um suspeito que ainda vale a pena investigar melhor e que é um antigo colaborador do hospital, e uma lista de dezassete raparigas desaparecidas compilada a partir da linha direta da Crime Stoppers. Além disso, pode haver uma ligação a um rapto ocorrido dois anos antes do desaparecimento de qualquer destas seis raparigas. Quem quer juntar-se ao espetáculo? Jerry?
O sargento McGahagín ocupara-se de fazer a triagem dos casos não resolvidos da polícia de Boston, envolvendo menores do sexo feminino desaparecidas ao longo dos últimos trinta anos. A sua equipa elaborara uma lista
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de vinte e seis casos no Massachusetts. Tinham começado agora a trabalhar a área mais vasta da Nova Inglaterra.
McGahagin estava a estudar a sua cópia do relatório de Tony Rock acerca da Crime Stoppers, identificando cinco nomes comuns às duas listas.
- Do que preciso agora - afirmou o sargento pesadamente -, é de um relatório de vitimologia. Se a Callahan me puder facultar uma descrição física dos restos mortais, talvez seja possível encontrar uma equivalência com um caso não resolvido. Então poderíamos obter uma identificação positiva, o que nos daria uma linha temporal para a vala comum. Abracadabra!
Dito isto, fitou D.D. na expectativa. Ela devolveu-lhe calmamente o olhar.
- Que diabo queres que eu faça, Jerry? Que faça aparecer seis relatórios de vitimologia por magia?
- Vá lá, já passaram quatro dias, D.D.! Como é possível ainda não sabermos nada acerca dos seis restos mortais?
- Chama-se mumificação húmida - atirou-lhe D.D. num tom acalorado. - E nunca ninguém tinha lidado com isso na Nova Inglaterra.
- Então, com o devido respeito pela Christie, chamem alguém que já o tenha feito.
- Ela já chamou.
- O quê? - McGahagin parecia pasmado. Os investigadores passavam a vida a solicitar recursos, peritos, testes forenses. Isso não queria dizer que as autoridades constituídas lhos concedessem. - A Christie vai receber reforços?
- Amanhã, segundo me disseram. Um craque qualquer da Irlanda, que se especializou nesta merda e está muito interessado em ver um exemplar "moderno". O Ministério Público entrou com o dinheiro: ao que parece, o pessoal da linha direta da Crime Stoppers não é o único que está a dar em doido. A cidade em peso está a inundar o gabinete do governador com queixas histéricas de que anda um assassino em série à solta, o qual vai matar-lhes as filhas a seguir. Isso lembra-me que o governador gostaria muito que resolvêssemos o caso, hum... há cinco minutos atrás.
D.D. rolou os olhos. Os restantes detetives conseguiram produzir uns risinhos.
- A sério - prosseguiu D.D. - A Christie está a esforçar-se. Todos estamos. Ela calcula que precisará de mais uma semana. Portanto, podemos sentar-nos a choramingar, ou, pensem nisso, podemos produzir um bom trabalho policial à moda antiga.
Focou novamente a sua atenção em McGahagin.
- Disseste que tinhas uma lista de vinte e seis raparigas desaparecidas no Massachusetts? Vinte e seis parece-me muito.
- Como disse o Tony, é um mundo merdoso.
- Fizeste gráficos? Temos, digamos, picos de atividade à volta de certas datas?
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- A época entre 1979 e 82 não foi nada boa para se ser uma rapariguinha em Boston.
- Foi muito mau?
- Nove casos em quatro anos, todos por resolver.
- Parâmetros etários? ;
- Dos zero aos dezoito. D.D. fitou-o.
- E se reduzirmos os parâmetros para, digamos, idades entre os cinco e os quinze? t.
- O número cai para sete. r
- Nomes?
McGahagin fez as honras. Um dos nomes era o de Dori Petracelli.
- Locais?
- De toda a parte. Southie, Lawrence, Salem, Waltham, Woburn, Marlborough, Peabody. Se partirmos do princípio de que seis dos sete casos são responsabilidade do mesmo sujeito...
- com certeza, partamos do princípio à vontade.
- Estamos a falar de alguém que tinha carro, para começar - disse McGahagin. - Alguém que conhecia bem o estado, que se sentia à vontade para se integrar em vários lugares diferentes. Talvez um trabalhador de uma empresa de serviços públicos, alguém que fazia reparações. Alguém esperto. Organizado. com uma abordagem ritualizada.
- A linha temporal ajusta-se ao Eola - comentou Sinkus. - Libertado em 78, não tem nada melhor para fazer...
- Só que - murmurou D.D. - os incidentes diminuem em 82. O Eola não teria qualquer motivo para parar. Teoricamente, podia continuar com aquilo para sempre. O que, para falar com franqueza, se aplica a qualquer criminoso. Os predadores não se arrependem por magia, ao acordar um belo dia. Algo aconteceu. Deve ter havido interferência de outros eventos, outras influências. O que nos leva... - o seu olhar desviou-se, pousou em Bobby -... a Russell Granger.
Bobby suspirou, inclinou a cadeira para trás. Estivera tão ocupado desde que chegara ao quartel-general que não tivera sequer tempo para ir à casa de banho, quanto mais para preparar notas. Agora tinha todos os olhos fixos nele, os homens da cidade a avaliarem o detetive estadual. Fez o melhor que podia, de memória.
- Segundo os relatórios da polícia, a primeira vez que o Russell Granger apresentou queixa da presença de um voyeur na sua casa de Arlington foi em agosto de 1982. Isso foi o início de uma cadeia de acontecimentos que culminou com a família do Russell a fazer as malas e a desaparecer dois meses depois, ostensivamente para proteger a filha de sete anos, Annabelle. Portanto, à primeira vista, temos uma vítima planeada, a Annabelle Granger, e o seu pobre e ameaçado pai. Só que...
- Só que... - concordou D.D. Bobby espetou um dedo.
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- Primeiro - enumerou com vivacidade -, a Catherine Gagnon, que tinha sido raptada em 1980, reconheceu uma fotografia do Russell Granger. Mas conhecia-o como um agente do FBI que a tinha interrogado duas vezes, no hospital, após o seu resgate. Isso seria em novembro de
1980, quase dois anos antes de o Russell Granger apresentar queixa acerca de um voyeur em Arlington.
Rock estava a cabecear sentado à mesa. Contudo, aquela informação fez com que endireitasse bruscamente a cabeça.
- Hem?
- Foi exatamente o que pensámos. Segundo, durante as suas visitas à Catherine, o Granger apresentou-lhe um retrato-robô. A Catherine disse que o esboço a preto e branco não correspondia ao seu atacante. O Granger tentou insistir que sim e ficou aborrecido quando ela se mostrou firme e repetiu que não. Portanto, esse esboço era uma tentativa da parte do Granger para distrair a Catherine, ou ele teria de facto um suspeito em mente? Tenho a minha opinião. - Indicou D.D. com um gesto de cabeça. - A sargento tem a dela.
"O que nos leva ao terceiro ponto: não há qualquer registo de um Russell Granger. Nem carta de condução, nem número de Segurança Social. Nem no nome dele, nem no da mãe da Annabelle, Leslie Ann Granger. Segundo os registos de propriedade, a casa dos Granger em Oak Street pertenceu a um tal Gregory Badington, de Filadélfia, entre 1975 e 1986. Presumo que os Granger tivessem alugado a casa, mas o Gregory faleceu há três anos e a viúva, que, pelo telefone, me pareceu ter uns cento e cinquenta anos de idade, não fazia a menor ideia do que eu estava a falar. Portanto, demos com um beco sem saída.
"Ontem iniciei uma verificação de rotina dos registos financeiros, que não levou a nada. Iniciei uma procura dos móveis da família Granger, que foram ostensivamente levados para um armazém. Nada. É como se a própria família nunca tivesse existido. Tirando, bem entendido, as queixas que i o Granger apresentou na polícia.
- Achas que o Russell Granger tinha marcado a própria filha? - in quiriu Rock, confuso. - Que inventou tudo?
Bobby encolheu os ombros.
- Eu, não. A sargento Warren, por outro lado...
- Constituiria um disfarce perfeito - afirmou D.D. sem rodeios. Talvez em 82 o Russell pensasse que a polícia podia começar a reparar no súbito aumento de raparigas desaparecidas. Calculou que, se assumisse o papel de vítima, conseguiria evitar ser visto como suspeito. Além de que isso lhe proporcionaria um pretexto perfeito para a sua partida, em outubro. Pensem bem. Sete raparigas desaparecidas entre 1979 e 1982, uma das quais era conhecida do Russell Granger; a melhor amiga da filha dele. No entanto, nem um único detetive para a mostra tentou localizá-lo e interrogá-lo. Porquê? Porque ele já estabelecera a sua posição como pai protetor. É perfeito.
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Sinkus pareceu abatido. Era evidente que o seu suspeito, Eola, lhe agradava como responsável pelos crimes, pelo que a súbita ascensão de Russell Granger como alternativa viável era uma desilusão.
- Um pequeno detalhe - contrapôs Bobby. - O Russell Granger está morto. O que significa que, independentemente do que tenha andado a fazer no princípio dos anos oitenta, não foi ele quem deixou o bilhete no para-brisas da D.D.
- Tens a certeza disso?
- Não estás a sugerir...
- Olhe bem para os factos, detetive - disse D.D. - Até ao momento, não conseguiste provar que o Russell Granger existiu. Portanto, como podes ter a certeza de que está morto?
- Oh, por amor de Deus...
- Estou a falar a sério. Tens uma certidão de óbito? Alguma corroboração? Não, a única coisa que tens é o testemunho da filha do próprio Russell Granger, que afirma que o pai foi morto por um táxi, por acidente. Não há quaisquer documentos ou detalhes corroborativos. E muito conveniente, se queres que te diga.
- Então, além de o Russell Granger ser um assassino em série, a filha está a protegê-lo? Agora, quem está a passar dos factos para a ficção?
- Só estou a dizer que ainda não podemos tirar conclusões. Há duas coisas que quero saber. - D.D. fitou-o com uma expressão empedernida.
- Uma, quando veio o Russell Granger para este estado pela primeira vez? Dois, por que motivo continuou a fugir depois de deixar Arlington? Dá-me essas respostas e depois falaremos.
- Primeiro - disse Bobby secamente -, acabei de receber uma informação do MIT acerca do antigo patrão do Russell. Espero encontrar-me com o Dr. Schuepp amanhã logo de manhã, o que deve ajudar-me a esclarecer os antecedentes do Russell Granger, incluindo a sua chegada ao estado do Massachusetts. Segundo, estou a tentar investigar as datas e as cidades após a partida da família de Arlington, mas tenho andado demasiado ocupado a correr atrás de ti para conseguir fazer qualquer outra coisa.
D.D. esboçou um sorriso soturno.
- A propósito - declarou, mostrando a pilha de fotocópias -, vamos discutir o evento principal da noite.
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Afinal, o telefonema misterioso era de Mr. Petracelli. Não se mostrou Pinais caloroso ao telefone do que em pessoa. Queria encontrar-se comigo. Não queria que
Mrs. Petracelli soubesse. Quanto mais cedo, melhor.
Ouvir o meu verdadeiro nome através da linha telefónica deixou-me verdadeiramente confusa. Não queria que ele fosse ao meu apartamento. O facto de estar a utilizar o número de telefone que eu tinha dado a Mrs. Petracelli já me parecia demasiado invasivo.
Assentámos finalmente num encontro em Faneuil Hall, na extremidade oriental do Quincy Market, às oito da noite. Mr. Petracelli resmungou acerca de ter de vir de carro até à cidade e arranjar um lugar para estacionar, mas aceitou, embora contrariado. Eu tinha os meus próprios problemas - tais como o planeamento estratégico da minha pausa de maneira a coincidir com a hora marcada -, mas parecia-me possível.
Mr. Petracelli desligou. Fiquei sozinha no meu apartamento, a apertar o telefone contra o peito e a tentar acalmar. Esperavam-me no emprego daí a dezassete minutos. Não tinha dado de comer a Bella, nem mudado de roupa, nem desfeito a mala.
Quando voltei finalmente a mexer-me, foi para pousar o telefone e premir o botão do atendedor de chamadas. A primeira fora apenas alguém que desligara sem deixar recado. A segunda, a mesma coisa. A terceira era da minha atual cliente, que pensara melhor e já não queria as sanefas; tinha visto umas cortinas maravilhosas em casa da sua amiga Tiffany e talvez pudéssemos recomeçar tudo do princípio ou, se isso me causasse demasiados problemas, ela poderia telefonar à decoradora de interiores da dita Tiffany. Ciao, ciao!
Escrevinhei uma nota. Depois ouvi mais três chamadas que tinham sido desligadas sem deixar recado.
Seria Mr. Petracelli, relutante em deixar mensagem? Ou outra pessoa qualquer, desesperada por falar comigo? De repente, ao fim de anos e anos de isolamento, tornara-me uma rapariga popular. Isso seria bom ou mau? A ideia enervava-me.
Roí a unha do polegar, olhando pela janela para a tarde plúmbea, escura e chuvosa. Alguém queria o medalhão. Alguém descobrira o carro da
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sargento Warren. Seria então apenas uma questão de tempo até esse alguém me descobrir?
- Bella - chamei de súbito -, gostavas de ir comigo para o trabalho?
Bella gostou mesmo muito da ideia. Girou sobre si mesma meia dúzia de vezes, trotou para a porta e ficou a olhar para mim com um ar de expectativa. A notícia de que eu ainda tinha de mudar de roupa não foi bem recebida, mas deu-lhe uma oportunidade de jantar. Enquanto ela engolia sofregamente a sua ração, vesti umas calças de ganga velhas, uma camisa branca e umas socas Dansko, ideais para uma longa noite em pé. E, bem entendido, agarrei no meu precioso taser, o melhor amigo de qualquer rapariga, e guardei-o no meu enorme saco a tiracolo.
Bella e eu corremos porta fora, parando apenas para me permitir trancar as múltiplas fechaduras atrás de mim. Quando cheguei à rua, hesitei de novo, olhei para a esquerda, depois para a direita. Àquela hora havia muito trânsito, com as pessoas a empreenderem o longo trajeto do trabalho para casa. Na Atlantic Avenue devia haver uma fila cerrada, sobretudo por causa da chuva.
Mas a minha pequena rua lateral estava sossegada. Apenas a luz dos candeeiros se refletia no pavimento preto e escorregadio.
Trabalhar num café não era nada agradável. Passava a maior parte dos meus turnos de oito horas a fazer um esforço para não morder nos meus clientes atestados de cafeína, ou no meu chefe que consumia cafeína a menos. Aquela noite não foi exceção.
Eram oito horas. À minha frente havia uma fila irregular de cinco pessoas que pretendiam isto sem gordura e aquilo com um galão de leite de soja e moca. Fui servindo expressos enquanto me preocupava com Bella, amarrada a coberto da chuva do outro lado das portas de vidro, e com Mr. Petracelli, à espera na outra ponta do Quincy Market, do outro lado de um mar de cerradas fileiras de bancas de comida.
- Preciso de uma pausa - recordei ao meu gerente.
- Temos clientes - cantarolou ele. Oito e quinze.
- Tenho de ir à casa de banho.
- Aprende a aguentar.
Oito e vinte. Uma família de viciados em cafeína entrou pela loja dentro e o meu gerente não deu sinais de compaixão. Estava farta. Arranquei o avental e arremessei-o para cima do balcão.
- vou à casa de banho - anunciei. - Se isso não lhe agrada, compre-me outra bexiga.
Saí de rompante, deixando Cari com quatro clientes de olhos arregalados, entre os quais uma rapariguinha que perguntava em voz alta:
- Ela vai ter um acidente!
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Sacudi rapidamente os restos de café moído da minha camisa, abri as pesadas portas de vidro e fui direito a Bella. Esta pôs-se em pé, com a língua de fora, pronta a partir.
Ficou um pouco chocada quando viu que, em vez de a levar para uma corrida, me limitei a levá-la a passo até à outra extremidade do Quincy Market, onde esperava que Mr. Petracelli ainda estivesse.
Não o vi logo. Esquadrinhei a pequena multidão que se reunira em frente do Ned Devines. Deixara de chover, pelo que os frequentadores do bar tinham reaparecido. Estava justamente a entrar em pânico quando alguém me tocou no ombro. Virei-me bruscamente. Bella começou a ladrar
como louca.
Mr. Petracelli recuou para longe.
- Pronto, pronto, pronto! - exclamou, levantando as mãos e olhando
nervosamente para o meu cão.
Forcei-me a respirar fundo, para acalmar Bella. Toda a gente estava
olhar para nós.
- Desculpe - murmurei. - A Bella não gosta de desconhecidos.
Mr. Petracelli fez um aceno pouco convencido. Os seus olhos não deixavam
Bella, que acalmara finalmente e estava encostada à minha perna.
Ele envergava roupa adequada ao tempo. Uma gabardina creme comprida, guarda-chuva preto na mão, chapéu castanho-escuro a proteger-lhe a cabeça. Lembrava-me uma personagem
de um filme de espiões e perguntei-me se seria assim que ele entendia a nossa conversa, como uma espécie de operação clandestina executada por profissionais.
Naquele momento não me sentia particularmente profissional. Acima de tudo, estava grata pela presença do meu cão.
Fora Mr. Petracelli quem pedira aquele encontro, pelo que esperei que fosse o primeiro a falar.
Ele pigarreou. Uma, duas, três vezes.
- Peço desculpa por, hum, ontem - disse ele. - Eu não... Quando a Lana disse que ias lá a casa... ainda não estava preparado. - Fez uma pausa. Depois, vendo que eu continuava calada, lançou-se apressadamente numa explicação: - A Lana tem a sua Fundação, a sua causa. Para mim não é assim. Não gosto de pensar muito nesses
tempos. É mais fácil fingir que nunca vivemos em Oaíc Street, Arlington. Dori, os vizinhos... é quase como um sonho. Algo muito distante. Talvez, com um pouco de
sorte, não tenha passado de imaginação minha.
- Sinto muito - disse eu frouxamente, até porque não sabia o que dizer. Entretanto, tínhamo-nos afastado da multidão, deslocando-nos para a outra esquina do grande edifício com colunas de granito. Mr. Petracelli continuava a guardar uma certa distância, mantendo Bella debaixo de olho. Isso não me desagradava.
- A Lana disse que tu deste o medalhão à Dori - declarou ele de súbito. - É verdade? Deste-lhe um dos teus... presentes? O tarado que os deixou para ti matou a minha filha? - A sua voz subiu de tom. Avistei algo nas sombras dos seus olhos. Uma luz que não era inteiramente sã.
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- Mr. Petracelli...
- Disse aos detetives de Lawrence que tinha de haver uma ligação. Quer dizer, primeiro um voyeur espreita pela janela do nosso vizinho, depois a nossa filha de sete anos desaparece. Duas cidades diferentes, disseram eles. Dois modus operandi diferentes. Meta-se na sua vida, era o que queriam dizer. Deixe-nos fazer o nosso trabalho, seu louco varrido.
Estava cada vez mais exaltado.
- Tentei telefonar ao teu pai, pensei que, se ele pudesse falar com a polícia, talvez conseguisse convencê-los. Mas não tinha o número dele. Que te parece isso? Cinco anos de amizade. Churrascos, festas de passagem de ano, as nossas filhas a crescerem lado a lado, e um belo dia a tua família põe-se a andar sem sequer se despedir.
"Odiei o teu pai por ter partido. Mas talvez fossem apenas ciúmes. Porque ele partira e salvara a sua filha. Ao passo que eu não fizera nada e perdera a minha.
A sua voz esganiçada falhou, vibrando de amargura indisfarçada. Eu continuava sem saber o que dizer.
- Tenho saudades da Dori - arrisquei por fim.
- Saudades dela? - papagueou ele e o mesmo clarão feio voltou a bruxulear nos seus olhos. - Não tive notícias da tua família durante vinte e cinco anos. É uma maneira
muito engraçada de mostrar saudades, se queres que te diga.
Fez-se novo silêncio. Remexi-me desconfortavelmente de um lado para o outro. Pressentia que ele tinha algo importante para dizer, a verdadeira razão pela qual se
arrastara até ali numa noite escura e chuvosa, mas que ainda não sabia como pô-la em palavras.
- Quero que vás à polícia - disse ele por fim, observando-me por baixo da aba do chapéu. - Se lhes contares a tua história, sobretudo acerca do medalhão, eles ganharão um novo interesse pelo caso. O crime de assassínio nunca prescreve, sabes. E se tiverem pistas novas... - A sua voz vacilou. Endireitou-se e prosseguiu com esforço. - Tenho um problema cardíaco, Annabelle. Quádruplo bypass, shunts, sei lá mais o quê. O meu corpo tem mais plástico do que carne e sangue. Isso vai acabar por dar cabo de mim. O meu pai não passou muito dos cinquenta e cinco anos. O meu irmão também não. Não me importo de morrer. Para falar com franqueza, há dias em que a morte parece um alívio. Mas quando morrer... quero ser enterrado ao lado da minha filha. Quero saber que ela está ao pé de mim. Quero saber que voltou finalmente para casa. Só tinha sete anos. A minha pequenina. Deus, tenho tantas saudades dela!
Começou a chorar, em enormes soluços sacudidos que levavam os transeuntes a parar, estupefactos. Passei-lhe o braço em torno dos ombros. Ele agarrou-se a mim com tanta força que quase me fez cair. Mas aguentei o seu peso, senti as vagas do seu brutal e violento desgosto.
Bella ganiu, mexeu-se nervosamente, bateu-me na perna com a pata. Mas não havia nada a fazer senão esperar.
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Por fim, ele endireitou-se, limpou as faces, apertou o cinto da gabardina, ajeitou a aba do chapéu. Não olhava para mim. Eu não esperava que o fizesse.
- Irei à polícia - prometi, um compromisso fácil de assumir porque já estava cumprido. - Nunca se sabe. A ciência forense está cada vez melhor; talvez até já tenham feito alguma descoberta importante.
- Bem, há aquele poço em Mattapan - murmurou ele. - Seis cor£ pôs. Quem sabe, talvez tenhamos sorte. - O seu rosto contraiu-se num espasmo. - Sorte! Estás a ouvir
o que eu digo? Cristo, isto não é vida. Não fiz comentários. Consultei disfarçadamente o relógio. Saíra há
vinte minutos. O mais certo era já estar despedida. Que mal fariam uns
minutos mais?
- Mr. Petracelli, chegou a ver o voyeur. Ele abanou a cabeça.
- Mas acreditou na existência do homem, não acreditou? Que alguém se instalara no sótão de Mrs. Watts a vigiar-me?
Ele olhou-me com estranheza:
- Bem, não creio que Mrs. Watts e o teu pai inventassem uma coisa dessas. Além disso, a polícia encontrou o acampamento do homem na casa de Mrs. Watts. Isso parece-me suficientemente real.
- Então nunca chegou a vê-lo? com os seus próprios olhos? Ele abanou de novo a cabeça.
- Não, mas dois dias depois da descoberta das coisas no sótão de Mrs. Watts fizemos uma reunião de vizinhos. O teu pai distribuiu uma descrição do voyeur, bem como uma lista dos "presentes" que tu tinhas recebido, e quando esses presentes tinham chegado. Disse-nos que a polícia não podia fazer grande coisa até ocorrer algum ato verdadeiramente criminoso. Estavam de mãos atadas. Claro que ficámos todos furiosos, sobretudo os que tinham filhos. Votámos a favor da criação de um programa de vigilância de bairro. Aliás, foi logo a seguir à nossa primeira reunião que o teu pai anunciou que a vossa família ia tirar umas férias. Nenhum de nós percebeu que nunca mais voltaríamos a ver-vos.
- Ainda tem essas cópias? A descrição do voyeur que o meu pai distribuiu? Quer dizer, sei que passou muito tempo, mas...
Mr. Petracelli sorriu com doçura.
- Annabelle, querida, tenho uma grossa pasta que contém toda a documentação relacionada com o processo. Levei-a comigo a todas as reuniões que tivemos com a polícia desde que a minha pequenina desapareceu, e em todas as reuniões a polícia pô-la educadamente de lado. Mas eu guardei tudo. No fundo do coração, sempre soube que havia uma relação entre o desaparecimento de Dori e o teu. Mas nunca consegui que alguém acreditasse nisso.
- Pode dar-me uma cópia? - Já estava a remexer no meu saco, em busca de um cartão de visita.
- Farei o meu melhor.
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- Mr. Petracelli, o senhor disse que conhecia o meu pai há cinco anos. Quem era novo no bairro, o senhor ou nós?
- A tua família chegou em 77. A Lana e eu tínhamo-nos mudado para lá quando ela estava grávida da Dori. Ouvimos dizer que estava a chegar uma família que tinha uma filha da idade da Dori. A Lana tinha acabado de tirar as bolachas do forno quando a camioneta das mudanças apareceu. Ela foi por ali fora, com as bolachas na mão e a Dori a reboque. Vocês duas tornaram-se inseparáveis nessa mesma tarde. Convidámos os teus pais para o jantar no segundo dia e isso selou a questão.
Sorri-lhe, encorajando as suas reminiscências.
- A sério? Sinceramente, não me lembro. Devia ser muito pequena.
- Tinhas, quê, dezoito meses, dois anos? Ainda tinhas aquele passo vacilante dos bebés. Tu e a Dori corriam atrás uma da outra pela nossa casa fora, a gritar a plenos pulmões. A Lana abanava a cabeça e dizia que era um milagre não tropeçares nos teus próprios pés. - contou Mr. Petracelli sorrindo. Não admirava que se sentisse tão atormentado. Apesar do que dissera antes, recordava-se vividamente do passado, como se fosse uma velha fotografia contemplada com frequência.
- De onde vinha a minha família? Sabe?
- Filadélfia. O teu pai trabalhava na Universidade da Pensilvânia, ou coisa do género. Nunca compreendi bem o trabalho do Russell. Embora, para professor, adorasse cerveja. Além disso, gostava dos Celtics. Isso bastava-me.
- Também nunca compreendi muito bem o trabalho do meu pai murmurei. - Ensinar Matemática sempre me pareceu tremendamente maçador. Lembro-me de fingir que era do FBI.
Mr. Petracelli deu uma gargalhada.
- O Russell? É pouco provável. Nunca conheci um homem tão esquisito com armas de fogo. Nessa reunião acerca do grupo de vigilância de bairro, alguns de nós sugeriram que comprássemos armas para nos protegermos. O teu pai recusou-se a ouvir sequer falar em tal.
"É suficientemente mau que um homem tenha trazido o medo para minha
casa", repetia ele. "Raios me partam se vou permitir que traga também a violência." Não, o teu pai era um académico liberal até à medula dos ossos. Vamos falar no
assunto, dar uma oportunidade à paz, essas tretas todas.
- O senhor comprou uma arma?
- Comprei. Mal sabia eu que a devia ter mandado para Lawrence com a Dori. - O rosto de Mr. Petracelli contorceu-se de novo, dominado pela amargura. A sua respiração tornara-se superficial, tensa. Pensei no seu coração. - A Lana disse que os teus pais tinham morrido - observou ele abruptamente.
- Morreram, sim.
- Quando? Ponderei a pergunta, onde quereria ele chegar com aquilo.
198
- Tem importância?
- Talvez.
- Porquê?
Os seus lábios comprimiram-se.
- Para onde foram, Annabelle? - inquiriu bruscamente, ignorando a minha pergunta. - Quando a tua família foi de férias, até onde foram?
- Até à Florida.
- E o teu pai arranjou emprego lá? Foi por isso que lá ficaram?
- Era motorista de táxi. Não é bem a mesma coisa que ser professor, mas creio que ele achou que a troca valia a pena.
A notícia pareceu surpreender Mr. Petracelli. Por o meu pai estar disposto a renunciar à sua carreira académica, ou por não ter mentido acerca de ter arranjado emprego? Não tinha a certeza. Vi-o pestanejar.
- Desculpa - disse ele passado um momento. - Acho que estou a ficar paranóico com a idade. É natural, considerando que acordo aos gritos quase todas as noites.
Recomeçara a chover. Mr. Petracelli já se preparava para partir. Retive-o, pousando-lhe a mão no braço.
- Porque me perguntou acerca do meu pai, Mr. Petracelli? Porque precisava de saber?
- É só que... depois do desaparecimento da Dori, um vizinho disse que tinha visto um homem a conduzir uma carrinha branca na zona, até deu à polícia uma descrição do homem. A Lana nunca concordou comigo, claro, mas o meu primeiro pensamento?
- Sim?
- Cabelo escuro curto, rosto bronzeado, muito bem-parecido. Vá lá, Annabelle! - As feições de Mr. Petracelli alteraram-se de novo, o brilho astuto surgiu-lhe outra vez no olhar. - Diz-me quem é.
Não percebi logo. Depois, quando as implicações da sua insinuação me atingiram, tentei tirar a mão. Ele agarrou-me os dedos, apertou com força.
- Isso é um absurdo! - protestei com veemência.
- Sim, Annabelle, o homem que levou a minha Dori é igualzinho ao teu querido papá.
Afastou-me com um empurrão. Caí no passeio molhado, os dedos doridos protegidos contra o peito, ao mesmo tempo que Bella se abandonava a um paroxismo de latidos. Segurei-a, tentando acalmá-la, acalmar-me a mim.
Quando levantei os olhos, Mr. Petracelli tinha desaparecido e só a enormidade da sua acusação permanecia no ar escuro e húmido.
199

Cari despediu-me. Aceitei a notícia bastante bem, considerando que precisava do emprego para sustentar certos luxos, como a renda da casa. Mas foi um alívio deixar o espaço ruidoso e caótico do Quincy Market, onde as feias palavras de Mr. Petracelli ainda manchavam a noite. Até Bella se mostrava abatida, caminhando obedientemente ao meu lado. Saímos de Faneuil Hill e atravessámos para o território familiar de Columbus Park.
Aquele parque junto ao porto era pequeno em comparação com outras zonas verdes de Boston. Mas possuía uma fonte que mantinha as crianças molhadas e risonhas no verão, enquanto os adultos se estendiam na relva ou à sombra das longas treliças de madeira. Havia um parque infantil, um jardim com rosas e um pequeno lago onde os sem-abrigo montavam guarda.
Às vezes, antes do início do meu turno no Starbucks, levava Bella até lá, para brincar com os seus vizinhos de North End, um grupo informal de cães. Mantinha-me um pouco à parte dos humanos reunidos a observar os folguedos dos cães.
Mas agora estava demasiado frio e chuvoso para crianças. A hora era demasiado adiantada para encontros de cães ou reuniões comunitárias. Os sem-abrigo dormiam nos bancos. Os clientes dos bares passavam em passo rápido, atentos ao tempo nublado, enquanto trocavam os poisos de Faneuil Hall pelos restaurantes de North End. Para além disso, o parque estava sossegado.
Dei por mim a pensar de novo no bilhete. Devolvam o medalhão, ou outra rapariga morre.
Estaria alguma criança na cama, naquele preciso momento, talvez aconchegada com o seu cão de peluche favorito e o seu cobertor cor-de-rosa? Confiaria nos pais para zelarem pela sua segurança? Acreditaria que nada lhe podia acontecer na sua própria casa?
Ele atravessaria o jardim com o pesado pé de cabra de metal a bater-lhe na coxa. Abrigar-se-ia fora de vista, talvez numa árvore ou arbusto. Depois deslizava ao longo da parede da casa até chegar à janela dela.
Levantava o pé de cabra, começava a trabalhar no caixilho da janela...
Comprimi as mãos contra os olhos, como se isso pudesse expulsar as imagens do meu cérebro. Sentia-me mergulhada em fealdade, sufocada pela violência. Passados vinte e cinco anos, continuava sem poder escapar.
200

Não queria pensar nas palavras de Mr. Petracelli. Não queria pensar na ameaça deixada no para-brisas do carro de D.D. O passado era o passado. Eu era uma mulher adulta. Vivia na cidade há dez anos. Porque havia o papão de reaparecer agora, exigindo o meu velho medalhão, ameaçando fazer novas vítimas? Não fazia sentido.
Mr. Petracelli estava doido. Era um homem amargo e louco, que nunca conseguira superar a trágica perda da filha. Claro que culpava o meu pai. Isso poupava-lhe toda a espécie de sentimentos de culpa paternal.
Quanto às alegações de Bobby e D.D...
Nunca tinham falado com o meu pai. Não o conheciam como eu. A maneira como ele ferrava os dentes num problema, como um pit buli, e se recusava a largar. Era evidente que Catherine possuía informações que ele desejava. Nesse caso, faria sentido que o meu pai se fizesse passar por agente do FBI. Provavelmente, os pais normais não faziam essas coisas, mas provavelmente também não se mudavam para a Florida com as respetivas famílias, só porque a polícia não chamava a Guarda Nacional para procurar um voyeur.
Quanto à breve ausência do meu pai pouco depois de nos termos instalado na Florida... Sem dúvida que havia pontas soltas para resolver. Cancelar as contas bancárias, mandar as nossas coisas para um armazém. Só que, bem entendido, podia ter cancelado as contas antes de partirmos. E, ao que parecia, contratara a empresa de mudanças por telefone...
Não queria ir por aí. O meu pai era obsessivo, paranóico e sistemático.
Mas isso não significava que fosse um assassino.
Só que ele nem sequer era Russell Granger!
As minhas têmporas começaram novamente a latejar, prenúncio de uma dor de cabeça de todo o tamanho que começara há vinte e cinco anos e agora ameaçava prolongar-se eternamente. Não sabia o que fazer. Só queria... Só desejava...
- Olá.
A voz inesperada pregou-me um susto tremendo. Guinchei, rodei sobre mim própria e quase caí. Uma mão forte segurou-me o braço, manteve-me em pé.
Bella ladrava furiosamente. Virei-me, um pouco tarde, para dar de caras com o velhote do Hospital Psiquiátrico de Boston, Charlie Marvin. Bella ladrou mais alto. Longe de se mostrar preocupado, Charlie inclinou-se para ela e estendeu a mão.
- Lindo cão - murmurou, esperando até Bella parar de ladrar o tempo suficiente para lhe farejar a mão. Após uma segunda fungadela hesitante, o animal aproximou-se dele, a abanar a cauda.
Aparentemente, Charlie percebia de cães.
- Oh, bonita menina! Não és uma beleza? Olha-me para essas malhas! Deves ser uma pastora australiana. Mas não há por aqui muitas ovelhas para pastoreares. És capaz de te contentar com táxis? Que te parece? Tens ar de ser uma rapariga muito rápida. Aposto que apanhas muitos táxis.
201
Bella parecia achar a ideia excelente. Comprimiu-se contra ele, olhando para mim em busca de aprovação. O homem conquistara inegável e cornpletamente o meu cão.
Por fim, Charlie endireitou-se, sorrindo lastimosamente quando os seus joelhos estalaram e foi obrigado a agarrar-se ao meu braço para se firmar.
- Desculpe - pediu alegremente. - Baixar-me é uma coisa. Outra completamente diferente é levantar-me.
- Que está a fazer aqui? - perguntei, sem rodeios e sem tão-pouco me desculpar.
Os cantos dos seus olhos azuis franziram-se. Dava a impressão de achar a minha preocupação divertida. Ergueu ambas as mãos num gesto de mea culpa.
- Lembra-se de lhe ter dito que me parecia familiar? Anuí com um aceno relutante.
- Continuei a pensar nisso e lembrei-me de onde a conhecia. Deste parque. Você corria aqui com o seu cão. Geralmente um pouco mais cedo do que hoje, mas já a vi bastantes vezes. Nunca me esqueço de uma cara, sobretudo se for bonita. - Baixou os olhos para Bella, fez-lhe uma festa por baixo do queixo. - Claro que estou a falar de ti, querida - cantarolou.
Não consegui evitá-lo: sorri. Mas apressei-me a controlar-me.
- E que o traz ao parque com tanta frequência?
Charlie gesticulou com a cabeça em direção à esquina de Atlantic Avenue.
- Trabalho com os sem-abrigo. Lá porque não se tem um teto, isso não significa que não se tenha direito à palavra de Deus.
Não encontrei argumento para aquilo.
- Seja como fooor... - disse ele, arrastando as palavras, balouçando nos calcanhares e enterrando as mãos nos bolsos -, confesso que andava à sua procura.
Fiquei calada, mas senti o coração bater mais depressa ao entrar em alerta máximo.
- Não é da polícia - afirmou ele. Não respondi.
- Mas eles levaram-na a uma cena de crime. - Levantou a cabeça, fitando-me com um olhar calmo. - Portanto, calculo que seja uma perita qualquer. Botânica, especialista em ossos. Não sei nada, limito-me a ver a Court TV. Mas sou um bom juiz de carateres e não me parece que você seja mais cientista do que polícia. Então penso... talvez parente. De uma daquelas pobres raparigas. Mas é demasiado nova para ser mãe. Talvez irmã? Pelo menos é essa a minha teoria. Conhece uma das raparigas cujos
corpos foram descobertos e isso é motivo de grande tristeza para mim.
Muito devagar, fiz um sinal de assentimento. Irmã. Era suficientemente próximo.
Charlie sorriu.
202
- Pfu! - Limpou teatralmente a testa em sinal de alívio. - Estou ? mesmo a deitar-me a adivinhar, sabe. Mas a verdade é que são mais as vezes em que acerto do que
aquelas em que me engano. O Senhor deu-me
um dom. Por agora, utilizo-o para fazer o Seu trabalho. Mas assim que
o espetáculo chegar ao fim, acabou-se. vou direitinho para as mesas de poquer. Quando for velho, vou arranjar um Cadillac.
O seu sorriso era demasiado contagioso. Dei por mim a retribuí-lo, enquanto
Bella saltava à nossa volta, claramente perdida de amores pelo seu novo amigo.
- Muito bem - disse eu. - Sou parente. E o senhor, qual é o seu interesse?
Charlie acalmou instantaneamente, abanando a cabeça com tristeza.
- Não consigo dormir. Bem sei que isto pode parecer loucura. Sou um pastor. Se não conheço a maldade de que o homem é capaz, quem a conhecerá? Mas sou idealista.
Sempre que estive perto do verdadeiro mal, reconheci-o. Sentia-o, tocava-o, cheirava-o. O Christopher Eola tresandava a maldade.
"Mas ao longo dos muitos anos que passei no Hospital Psiquiátrico de Boston, nunca suspeitei de nada tão terrível como uma vala comum. Ao andar pelas ruas de
Mattapan, nunca imaginei que estivessem a ser roubadas rapariguinhas das suas casas. Ao percorrer os bosques da propriedade nunca pensei, nem por um segundo, ouvir uma rapariguinha gritar. E per- í corria esses bosques com muita frequência. Tal como muitos dos meus colegas. É um dos santuários naturais mais bonitos
do estado; seria uma estupidez não gozarmos a munificência de Deus. E era isso que sentia ao caminhar por aqueles campos, ao contornar os charcos, ao recolher-me
à floresta: sentia-me sinceramente, genuinamente perto de Deus.
A sua voz falhou. Fitou-me, prendendo-me num olhar azul sombrio.
- Abalou-me de verdade a alma, minha jovem. Se não tinha sido capaz de sentir a presença do mal naqueles terrenos, que espécie de pastor era? Como posso ser
um mensageiro de Deus, se sou tão cego?
Não sabia o que dizer. Nunca um sacerdote recorrera a mim com um problema de fé. Contudo, logo se tornou claro que Charlie Marvin não
pretendia a minha opinião. Já formara a sua.
- Transformou-se numa obsessão - afirmou ele. - Essa sepultura no Hospital Psiquiátrico de Boston, as almas daquelas pobres raparigas. Onde falhei outrora, tenho
o dever de não falhar de novo. Gostaria de me aproximar das famílias, mas estas ainda não foram identificadas. Exceto no seu caso. Portanto, aqui estou.
Franzi o sobrolho, ainda insegura.
- Não compreendo. O que pretende?
- Não estou aqui para exigir, minha querida filha. Estou aqui para que possa falar. De tudo o que lhe apetecer. Ande, vamos sentar-nos. Está frio, está escuro,
vejo que veio para o parque em vez de procurar o conforto da sua cama quente. É evidente que algo lhe pesa.
203
Charlie indicou um banco com um gesto e encaminhou-se para lá. Segui-o com relutância; não era pessoa para conversas, contudo, estranhamente, detestava a ideia de
que aquele encontro chegasse ao fim. Bella estava satisfeita. E senti algo soltar-se dentro de mim na presença daquele homem caloroso e descontraído. Charlie Marvin conhecia o pior da humanidade. Se, apesar disso, conseguia encontrar motivos para sorrir, então eu talvez pudesse fazer o mesmo.
- Muito bem - disse ele com vivacidade quando chegou ao banco e descobriu que eu ainda não fugira. - Comecemos pelo princípio. - Estendeu a mão. - Boa noite, chamo-me Charlie Marvin, sou pastor e tenho muito prazer em conhecê-la.
Entrei na brincadeira.
- Boa noite. Chamo-me Annabelle, faço cortinados por encomenda e também tenho muito prazer em conhecê-lo.
Apertámos as mãos. Notei que Charlie não tivera qualquer reação ao ouvir o meu nome. E porque haveria de ter? Mas senti-me atordoada por ter dito o meu verdadeiro nome em público pela primeira vez em vinte
e cinco anos.
Charlie sentou-se. Segui-lhe o exemplo. Era tarde, o parque estava escuro e deserto, pelo que soltei Bella da sua trela. Ela saltou, enchendo-me de beijos de gratidão, depois largou a correr por baixo da treliça.
- Se não se importa que lhe diga - comentou Charlie -, não tem sotaque de Boston.
- A minha família viveu em vários sítios quando eu era pequena. Mas considero Boston a minha casa. E o senhor?
- Cresci em Wòrcester. Continuo sem conseguir pronunciar os rr. Aquilo fez-me rir.
- Então é cá do sítio. Mulher, filhos, cães?
- Tive uma esposa. Tentámos ter filhos. Mas não estava nos planos de Deus. Depois a minha mulher teve cancro nos ovários. Faleceu... oh, já lá vão uns bons doze anos. Tínhamos uma casinha pequena em Rockport. Vendi-a e regressei à cidade. Poupa-me a necessidade de conduzir de um lado para o outro; é bem possível que já não seja o melhor condutor do mundo. O meu cérebro está ótimo, mas as minhas mãos são um pouco lentas a fazer o que lhes mando.
- E trabalha com os sem-abrigo?
- Sim, minha senhora. Trabalho como voluntário em Pine Street. Ajudo no albergue e na sopa dos pobres. Além disso, acredito firmemente no trabalho de campo. Os sem-abrigo nem sempre se dispõem a vir ter connosco, é preciso irmos ao seu encontro.
Estava verdadeiramente curiosa.
- Então vem a lugares como este e depois? Prega? Compra sopas? Distribui panfletos?
- Sobretudo, escuto.
- A sério?
204
- A sério. - Acenou vigorosamente com a cabeça. - Julga que os sem-abrigo não se sentem sós? Claro que sim. Mesmo os mentalmente desfavorecidos, os esquecidos da economia, têm uma necessidade básica de ligações humanas. Portanto, sento-me com eles. Deixo-os falar acerca das suas vidas. Às vezes não dizemos nada e isso pode ser igualmente agradável.
- Resulta? Já "salvou" alguém?
- Salvei-me a mim próprio, Annabelle. Isso não basta?
- Peço desculpa, queria dizer...
Ele afastou o meu embaraço com um gesto.
- Eu sei o que queria dizer, querida. Estou só a meter-me consigo. Corei. Isso pareceu diverti-lo ainda mais. Mas depois inclinou-se para
a frente e falou um tom sério.
- Não, não posso dizer que tenha transformado a vida de alguém por magia. O que é uma pena, considerando que a idade média dos sem-abrigo é de vinte e cinco anos. - Viu a minha expressão de surpresa e fez um sinal afirmativo. - Sim, dá que pensar, não dá? E quase metade dos sem-abrigo sofre de doenças mentais. Para ser sincero, não são gente para mudar de vida por lhes oferecerem um duche grátis e uma tigela de sopa. Precisam de ajuda, precisam de orientação e, na minha modesta opinião, a maior parte deles beneficiaria com pelo menos uma breve estadia num ambiente terapêutico. Mas nada disso acontecerá nos tempos mais próximos.
- Você é um bom homem, Charlie Marvin. Ele levou a mão ao peito, num gesto brincalhão.
- Acalma-te, coração! Já não tenho idade para ouvir elogios desses de uma carinha bonita. Tenha cuidado, ou o espírito da minha mulher regressa para nos castigar a ambos. Sempre foi um diabrete.
Aquilo fez-me rir, o que pareceu agradar-lhe. Bella veio avaliar os nossos progressos. Vendo que não tínhamos feito nada, deixou-se cair aos meus pés, suspirou profundamente e pousou a cabeça entre as patas. Ficámos os três calados durante um bocado, a olhar para a Lua, a ouvir a água, a sentir a paz do silêncio.
Claro que fui eu a primeira a quebrá-lo.
- Sabe quem o fez? - perguntei. Não havia razão para definir "o". Charlie ponderou a resposta.
- Receio conhecer quem fez esta coisa terrível - disse ele por fim. No sentido de que, quando a polícia deslindar o caso, o nome pertencerá a alguém que conheci no hospital.
- Referiu-se a dois suspeitos prováveis. Um Adam Schmidt. E o : Christopher Eola.
- Então estava a escutar a conversa!
- Sou uma parte interessada - repliquei calmamente. Ele piscou-me o olho.
- Não estou a criticá-la, minha filha. No seu lugar, também teria escutado.
- Dos dois, qual acha que é mais provável?
205
- Sem conhecer quaisquer detalhes do crime?
- Nenhum de nós conhece muitos detalhes do crime - retorqui, em resposta à pergunta implícita nas suas palavras.
- O Christopher Eola - declarou ele prontamente. - Tem de se ser depravado, mas calculista, para raptar e assassinar seis raparigas. O Adam era um patife, não me interprete mal. Mas era demasiado preguiçoso para este tipo de crime. O Christopher, em contrapartida... Apreciaria o desafio.
- Sabe onde ele está?
- Bem... - começou Charlie, mas interrompeu-se.
- Bem? - incitei.
- Tenho pensado mais no assunto depois de falar com o detetive Dodge e a Sargento Warren...
- Sim?
- Bem, quanto mais pensava no Christopher, mais me convencia de que tinha de ser ele. De maneira que telefonei a um amigo meu de Bridgewater. Ele nunca tinha ouvido sequer falar no Eola, o que, só por si, já é muito mau sinal, se é que me entende. Mas foi à procura e é certo que o Eola foi libertado em 1978. O que significa que o Christopher tinha todo o tempo do mundo, mas nenhum de nós teve notícias dele. Isso deixa-me nervoso.
- Não lhe parece que ele tenha arranjado um emprego, se tenha integrado na sociedade e transformado num cidadão exemplar, como que por magia?
Charlie ponderou a minha pergunta.
- Considera o Ted Bundy um cidadão exemplar? Porque, se assim for, então talvez o Christopher tenha hipótese.
- É assim tão mau?
- O homem não tinha moral. Nenhuma empatia para com os seus semelhantes. Para um tipo como ele, o mundo inteiro é apenas um sistema que se destina a ser manipulado. E o que o Christopher Eola mais gostava nessa manipulação era de iludir os outros para se poder entregar às suas fantasias, muito privadas e muito violentas.
Refleti nas palavras de Charlie.
- Nesse caso, como acha que ele conseguiu aguentar quase trinta anos sem atrair a atenção da polícia?
- Não sei.
- Mas deve ter uma ideia.
Charlie acariciou a cabeça de Bella, refletindo.
- O Eola pertencia a uma família rica, portanto, talvez tenha utilizado esses recursos. O dinheiro pode cobrir uma quantidade de rastos.
- É verdade.
- E é esperto, o que ajuda. Mas creio que se apoia sobretudo na sua aparência.
- Descreveu-o aos detetives como sendo efeminado.
- Pois foi, minha senhora. Mas é forte; todo músculos e tendões, aquele homem. Mas tem um aspeto, ou tinha, quando o conheci, muito
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aristocrático. Por qualquer razão, nunca ninguém suspeita de um académico culto.
- Académico? - repeti sem querer.
- Não é que tenha algum diploma universitário, nem nada do género. Mas cultivava essa imagem. Muitas das nossas enfermeiras estavam
sinceramente convencidas
de que ele tinha um doutoramento, até lhes contarmos que nunca frequentara sequer a universidade.
- Que tipo de curso fingia ele ter? Charlie comprimiu os lábios.
- Oh, já lá vai muito tempo. Uma licenciatura em História? Um mestrado em Belas Artes? Talvez fosse Literatura. Não me lembro. Só recordo que ele levou algumas pessoas a crer que dava aulas no MIT. Não sei porquê. Por mim, considerá-lo-ia um homem de Harvard.
Brindou-me com o seu sorriso amistoso, mas eu já não estava a sorrir. Algo me incomodava. Demasiadas coincidências.
- Tem alguma fotografia do Christopher? - perguntei.
- Não, minha senhora.
- Mas devia haver qualquer coisa nos arquivos. Um anuário? Uma fotografia da prisão? Qualquer coisa.
- Não tenho a certeza, para dizer a verdade. Talvez Bridgewater o tenha fotografado.
Anuí lentamente. Batia o pé, numa agitação. Se Eola andava à solta em
78... Exilado pela família, sem ter para onde ir...
Seria possível uma pessoa assim ir parar a Arlington? Talvez instalar-se no sótão de uma velhota? E, dado que tinha dinheiro, se o alvo do seu interesse desaparecesse, sentir-se-ia inclinado a desaparecer também? Talvez a polícia de Boston nunca tivesse tomado conhecimento da existência de Christopher Eola pelo mesmo motivo que não me conhecia a mim. Porque ambos tínhamos desaparecido e passado os vinte e cinco anos seguintes na estrada.
Estava a fazer-se tarde. Perdida nos meus pensamentos, não reparara que Charlie já estava em pé, pronto a partir. Ergui-me à pressa, revolvi a carteira até encontrar um cartão de visita.
- Se tiver mais ideias - disse eu -, ficar-lhe-ia grata por qualquer ajuda que possa dar.
- Oh, não há problema. O prazer é todo meu. - Olhou para o meu cartão, franziu o sobrolho e perguntou: - Tanya?
- É o meu nome do meio. Uso-o para os negócios. Sabe como é, uma rapariga deve ser cautelosa.
Trocámos um último aperto de mão. Charlie rumou a Faneuil Hall, Bella e eu tomámos a direção de North End.
À saída do parque, quando me preparava para atravessar Atlantic Avenue, algo fez com que me virasse para trás. Avistei Charlie, agora debaixo da treliça, a estudar-nos atentamente, a Bella e a mim. Um cavalheiro de idade que pretendia certificar-se de que eu chegava bem a casa. Ou seria outra coisa?
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Viu-me olhar para ele, levantou a mão em sinal de saudação, sorriu docemente e rodou nos calcanhares.
Comecei então a correr com Bella ao lado, à luz dos candeeiros, sempre pelas ruas principais, com o taser na mão e os meus demónios a perseguirem-me uma vez mais.
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Bobby estava a dez metros do chão, empoleirado nos ramos nus de um carvalho enorme. Envergava farda de combate e uma armadura corporal flexível. Um par de óculos de visão noturna repousava-lhe na testa. Segurava nos braços uma carabina Sig Sauer 3000, equipada com uma mira variável Leupold 3-9X de 50 mm e carregada com balas de precisão Remington
168 de calibre 308.
Devia estar a pensar nos bons velhos tempos. Quando era capaz de correr mais depressa do que uma bala e subir a edifícios altos de um salto. Quando era o melhor dos melhores, o pior dos piores. Quando tinha uma missão, uma equipa, um propósito.
Mas o que lhe apetecia era torcer o pescoço de D.D.
O bilhete que fora encontrado no carro dela continha instruções explícitas. Às três e trinta e três da madrugada, o medalhão devia ser entregue nos terrenos do antigo Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston, junto às ruínas do edifício da administração. D.D. devia levá-lo pessoalmente. Devia usá-lo ao pescoço. Devia ir sozinha.
Bobby talvez fosse um detetive novato, mas servira na unidade tática durante sete anos. Percebia de estratégias, sentia-se à vontade em operações especiais.
D.D. lera o bilhete e vira uma oportunidade. Ele vira o bilhete e vira um isco.
Porquê D.D.? Porquê sozinha? Por que motivo, se a ideia era devolver o medalhão, tinha ela de o usar ao pescoço?
Depois havia o próprio local. Setenta hectares de bosque. Dois edifícios em ruínas, um local de construção e uma cena de crime subterrânea. Não havia forças de intervenção de elite suficientes na Nova Inglaterra para garantir a segurança de um terreno daquelas dimensões, sobretudo num espaço de tempo tão curto.
D. D. argumentara que o acesso à propriedade só podia ser feito através de duas estradas, que não seriam difíceis de monitorizar. Bobby sublinhara que, embora só existissem duas entradassaídas legais, havia décadas que os habitantes da zona cavavam por baixo das cercas, abriam buracos nas vedações e faziam o que queriam nos terrenos. O local era como um queijo suíço, com os limites comprometidos e as cercas inúteis.
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Precisavam de unidades táticas. A sua antiga equipa, para começar, que poderia mandar trinta e dois homens para a festa. Até estava disposto a trabalhar com a força de intervenção especial da cidade, desde que prometessem não tocar na sua arma. Números eram números, treino era treino, e, para dizer a verdade, os homens de Boston eram bastante bons, embora o pessoal da polícia estadual não gostasse de dizer tais coisas em voz alta.
Também gostaria de ter helicópteros, cães e câmaras de segurança equipadas para visão noturna colocadas a intervalos estratégicos.
D.D. bem entendido, decidira destacar apenas um homem para o local: ele próprio. Os restantes formariam um perímetro discreto, prontos a cercar o sujeito assim que este aparecesse. Demasiadas presenças podiam espantar a caça. As câmaras de segurança não eram má ideia, mas não tinham tempo para preparar uma coisa tão sofisticada.
Assim, optara pelo básico. Cães treinados para a deteção de bombas tinham percorrido o local três horas antes, enquanto duas dúzias de agentes passavam a pente fino os bosques contíguos. A equipa de apoio técnico fora instalar à pressa sensores que disparavam feixes de infravermelhos de um ponto para outro, formando um perímetro em torno da área marcada para o encontro. Assim que o primeiro desses feixes fosse cortado, o sinal seria enviado para o Comando Central, proporcionando a Bobby e D.D. um aviso da aproximação do sujeito.
D.D. trazia um microfone por baixo do seu colete de Kevlar com revestimento de boro. Usava um recetor auricular e o transmissor estava incorporado no colete. Isso permitia-lhe comunicar tanto com Bobby como com o Comando Central, instalado numa carrinha em frente do cemitério.
D.D. era uma idiota. Teimosa, casmurra, com uma visão limitada, que acreditava sinceramente poder salvar o mundo numa única noite.
Bobby não pensava que fosse uma questão de ambição. Pensava, o que era bem mais assustador, que D.D. era movida pela curiosidade.
Estava convencida de que o sujeito apareceria. E, quando ele aparecesse, tinha a esperança de poder determinar se era Christopher Eola ou o pai há muito perdido de Annabelle. Então manteria o assassino de crianças tão ocupado com a sua estonteante beleza e réplicas espirituosas que ele não pensaria em raptar mais rapariguinhas. Pelo contrário, diria a D.D. tudo o que ela precisava de saber, imediatamente antes de a unidade especial cair sobre ele e o levar algemado.
D.D. era uma idiota. Teimosa, casmurra, com uma visão limitada...
Bobby corrigiu a sua posição. Ajustou a sua mira Leupold. Fez o possível para bloquear o som do vento a passar pelas árvores nuas.
As suas mãos não tremiam. Sentiu-se grato por isso.
Depois do tiroteio, quando ainda via a cabeça de Jimmy Gagnon saltar para trás, com sangue e cérebro a explodirem do crânio, tivera dúvidas de que voltasse algum dia a sentir-se confortável com armas. Tivera dúvidas de que quisesse voltar a sentir-se confortável com armas.
Nunca fora grande apreciador de armas. A primeira vez que disparara uma espingarda fora na academia da polícia. Descobrira então que tinha
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jeito. com um pouco de treino, tornara-se perito. com um pouco de encorajamento, tornara-se franco-atirador. Mas nunca fora uma paixão. A arma não era um prolongamento do seu braço, um apelo da alma. Era uma ferramenta que, por acaso, manuseava com extrema competência.
Três dias depois de alvejar Jimmy Gagnon, fora a uma carreira de tiro e pegara numa pistola. A primeira série de tiros fora terrível. A segunda não fora assim tão má. Disse a si próprio que era um canalizador a reaprender a profissão. Desde que mantivesse essa perspetiva, tudo estava bem.
O vento soprou de novo, arrastando uma chuva fina. Os ramos das árvores agitaram-se à sua volta. Julgou ouvir um outro lamento baixo. Recordou a si próprio que não acreditava em fantasmas, nem mesmo nos terrenos de uma antiga instituição para doentes mentais.
Raios partissem D.D!
O mostrador luminoso do seu relógio indicava três e vinte e um. Faltavam doze minutos. Puxou os óculos de visão noturna para os olhos e procurou a sua obstinada amiga.
D.D. andava de um lado para o outro, diante das ruínas de tijolo do velho edifício. A sua silhueta, habitualmente esguia, parecia volumosa e disforme: os efeitos do colete de Kevlar. Devido ao tempo que estava, usava um blusão impermeável amarelo-vivo sobre a impecável camisa branca. Não trazia chapéu, pois isso reduziria a visibilidade. Nem guarda-chuva, que lhe ocuparia as mãos.
Virou-se, caminhando na direção de Bobby, que distinguiu o velho medalhão de prata a tremeluzir no seu pescoço. E, por um momento, viu a fotografia a preto e branco de Dori Petracelli, na página das pessoas desaparecidas, com aquele mesmo medalhão a brilhar no pescoço.
O sujeito estava a manipulá-los. Não queria saber do medalhão. E, se quisesse raptar outra rapariga, raptaria outra rapariga. Era o que aqueles pervertidos faziam.
Mas talvez D.D. tivesse uma certa razão. com a sua atitude imprudente, comprara-lhes mais uma noite. As instruções do sujeito tinham sido explícitas e pessoais. Era evidente que o homem formara alguma espécie de laço com D.D. Um laço suficientemente forte para querer ver um antigo trofeu de uma das suas vítimas ao pescoço da sargento encarregada da investigação.
Talvez já lá estivesse, empoleirado noutra árvore ou talvez mesmo escondido no edifício de tijolo em ruínas. Talvez estivesse a espreitá-los, de cima, de dentro, a seguir os movimentos de D.D. a admirar as suas pernas longas e fortes, a sua graça atlética natural.
D.D. chegou à esquina do edifício. Rodou nos calcanhares, começou a caminhar no sentido contrário. Três e trinta e um.
Porquê às três e trinta e três? Porquê ser tão preciso? O sujeito gostaria da simetria do número 333? Ou seria apenas outra coisa para os arreliar?
A voz do tenente Trenton, do Comando Central, irrompeu subitamente no ouvido de Bobby.
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Temos atividade. O perímetro foi transposto, em direção a oeste.
O passo regular de D.D. não se alterou, embora ela devesse ter ouvido a notícia.
Bobby esquadrinhou o terreno à sua esquerda. Em busca de sinais de vida.
Um vulto escuro, a explodir subitamente do matagal...
No preciso momento em que a voz do tenente Trenton lhe soava de novo ao ouvido.
Mais movimento. Atividade do lado norte. Leste. Não, sul. Não, espera. Jesus Cristo! Todos os lados foram penetrados. Perímetro completamente penetrado. Bobby, estás a ouvir?
Bobby ouviu. Bobby viu. Bobby agiu.
Empunhar a arma, rodar. Olhar, apontar, puxar o gatilho. Um grunhido, depois um vulto escuro a tombar. Enquanto três outros vultos enfurecidos irrompiam do bosque.
D.D. começou a gritar, depois aconteceu tudo ao mesmo tempo.
Bobby virou-se, tentou apontar, compreendeu que os cães avançavam tão depressa que estavam demasiado perto para os parâmetros com que a sua mira estava calibrada. Praguejou, levantou bruscamente a cabeça e fez as coisas à moda antiga. Uma pressão rápida no gatilho. Um grito fantasmagórico, prolongado, e o segundo cão tombou.
Tiros vindos de baixo. Bobby viu D.D. a sessenta metros dele. Corria para a sua árvore, disparando à toa por cima do ombro. Avançava a bom ritmo.
Mas não ia conseguir.
Bobby estava a respirar com demasiada força, demasiado depressa. Concentra-te. Simultaneamente dentro e fora do momento. Foca a atenção no alvo. Um grande cão preto com malhas bege, que converge para outro cão preto de cinquenta quilos. Juntam forças para perseguirem a sua presa.
Um ramo de árvore a bloquear-lhe a linha de visão. Depois outro. Agora, quando os animais atravessam uma estreita faixa entre os ramos.
Puxou o gatilho. O terceiro cão tombou. O quarto saltou, arremessou-se pelo ar e foi aterrar nas costas de D.D.
Ela caiu. O cão cerrou os maxilares poderosos no seu ombro, reduzindo o blusão amarelo a tiras.
- Agente atingida, agente atingida! - gritou Bobby. - Peço ajuda imediata, já, já, já
Entretanto, debatia-se com os ramos da árvore, tentando saltar de uma altura de dez metros, com a arma a embaraçar-lhe os movimentos, enquanto o cão procurava a
nuca de D.D. e emitia um rosnido horrível, gorgolejante.
Bobby conseguiu libertar-se dos ramos e saltou os últimos cinco metros para o chão. Rebolou, aguentou a dor que lhe subiu pelos tornozelos. A carabina era inútil:
a força do tiro faria com que a bala atravessasse o cão
212 de lado a lado e fosse cravar-se em D.D. Levou a mão atrás das costas, procurando a sua Glock às apalpadelas, enquanto se precipitava por entre as árvores.
D.D. ainda se mexia. Bobby viu-a espernear e debater-se, tentando sacudir o peso que a esmagava, esmurrar frouxamente a cabeça do cão nas suas costas.
O animal lutava com o colete de Kevlar que ela envergava. Tentava rasgá-lo com unhas e dentes. Queria cravar as presas em carne tenra e branca.
Bobby continuou a correr. O rottweiler nunca levantou os olhos. Nem quando Bobby lhe encostou a pistola à orelha. Nem quando puxou o gatilho. Nem quando o enorme corpo caiu e finalmente se fez silêncio no bosque.
Precisaram de dez minutos para arrancar o ombro esquerdo de D.D. das mandíbulas do animal. Viraram-na de lado enquanto trabalhavam, e Bobby falou constantemente com ela. D.D. apertava-lhe a mão com a força de um torno, recusando-se a largá-lo, o que não fazia mal porque ele também não consentiria que ela o largasse.
Sangue. Um bocadinho, na face e no pescoço. Não era tão mau como tinham receado. O colete protegera-lhe as costas das unhas do cão. Quando caíra para a frente, o Kevlar subira-lhe para o pescoço, protegendo-lhe o pescoço dos dentes do animal. Tinha perdido um pouco de pele ao longo do maxilar e algumas madeixas de cabelo na parte de trás da cabeça. Tendo em conta o que podia ter acontecido, D.D. não se queixava.
Os agentes conseguiram finalmente soltar o corpo do rottweiler, que caiu flacidamente no chão ao lado dela.
A sargento firmou-se no braço de Bobby, que a ajudou a pôr-se em pé.
- De onde vieram os cães? - quis ela saber. Entretanto, chegara um técnico de emergência médica, que estava a tentar medir-lhe a tensão. Mas o blusão era demasiado grosso, pelo que D.D. o despiu, contraindo-se com a dor provocada pelo movimento.
- Do bosque - informou Sinkus, sem fôlego. Acabara de se juntar a eles. - Ainda não há sinais de um intruso humano, mas encontrámos quatro jaulas de grades a cerca de duzentos metros daqui, escondidas nos arbustos e equipadas com temporizadores. Mal bateram as três e trinta e três, a corrente elétrica desligou-se e as portas abriram-se, soltando os cães.
Bobby ergueu os olhos para ele.
- E os quatro cães correram exatamente para o mesmo alvo?
- Cada jaula continha, hum, roupa interior - explicou Sinkus.
- Roupa interior? - inquiriu D.D. Levou a mão ao rosto com um gesto hesitante, apalpou o rasgão sangrento na pele.
- Sim. Cuecas. Um par em cada jaula. Estou a deitar-me a adivinhar, mas aposto que as tangas são suas.
- O quê? - D.D. virou-se bruscamente. O técnico de emergência médica ordenou-lhe que ficasse quieta. Ela fulminou-o com um olhar tal que ele recuou.
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Era bom saber que D.D. se sentia melhor, embora isso significasse que os seus dedos estavam agora a esmagar a mão de Bobby.
- Notaste alguma coisa mexida em casa? - indagou Sinkus. - Como se alguém te tivesse revistado as gavetas ou, mais provavelmente, o teu cesto de roupa suja? O sistema funciona melhor se as peças tiverem o teu cheiro.
- Nos últimos quatro dias não estive em casa tempo suficiente para olhar para as minhas gavetas. Nem - acrescentou ela num rosnido, seguido de
um suspiro - para lavar roupa.
- Pronto, aí tens. O tipo serviu-se de uns quantos marcadores odoríferos. Qualquer cão de ataque bem treinado é capaz de tratar do resto.
Era evidente que aquela ideia não agradava a D.D. Voltou-se para observar o corpo do cão que jazia no solo. Grande, preto, com músculos poderosos. Tocou-lhe no flanco. A sua expressão não era tanto de raiva como de desgosto.
- O meu tio tinha uma rottweiler. Chamava-se Meadow. Era a cadela maior e mais querida que se pode imaginar. Deixava-me montar no seu dorso. - A mão de D.D. deslocou-se, encontrou o arame torcido que rodeava o pescoço do animal, o tipo de coleira preferido por traficantes de droga e donos de cães de luta. - Grande besta! - rosnou ela de súbito.
- O cão deve ter sido treinado desde que nasceu. Nunca teve hipótese.
Bobby não aguentava continuar a olhar para ela. Afinal, fora ele quem abatera os quatro cães que a haviam atacado. E embora não conseguisse sentir-se mal por isso, dadas as circunstâncias, também não conseguia sentir-se bem.
- Não compreendo - murmurou D.D. - Obrigar-me a usar o medalhão fazia um certo sentido amalucado. Dava-lhe um prazer fácil. Mas para quê dar-se a tanto trabalho para uma encenação destas? É como atacar por controlo remoto. Só que não me parece que o nosso homem goste de controlos remotos. Parece-me mais do tipo próximo e pessoal.
- E sofisticado - observou Sinkus. - Permite-lhe exibir a sua inteligência. O tipo de coisa que o Eola faria.
D.D. não fez comentários. Bobby também não. Estava a pensar no que ela dissera. O bilhete fora pessoal, deixado no para-brisas do carro dela. A escolha dos trofeus para cada corpo que tinham encontrado também fora pessoal, e o mesmo acontecia com o modus operandi do assédio a Annabelle, deixando presentes. Aqui, a encenação implicara roubar a roupa interior de D.D. - uma coisa que, sem dúvida, dera prazer ao sujeito. Então por que motivo não ficara para assistir ao espetáculo? D.D. tinha razão. O sujeito investira fortemente nos preliminares, depois prescindira do evento principal.
Não batia certo. Não era assim que aquele tarado funcionava.
- Continuem a revistar a propriedade - dizia D.D. - Além de um intruso, mandem os técnicos procurar sinais de equipamento de vídeo ou de escuta. Talvez o nosso sujeito tenha resolvido encenar o espetáculo de
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maneira a gravá-lo e vê-lo na segurança do lar. Queria um pouco de ação, ou um vídeo para partilhar na Internet.
- Continuaremos à procura - garantiu Sinkus.
- Precisamos de helicópteros - prosseguiu D.D. num tom irritado, afastando o técnico de emergência médica com um gesto impaciente. E de cães. Raios, vamos chamar
a Guarda Nacional. É uma porra de quase cem hectares. É uma porra de um maluco. Pode passar dias e dias escondido sem que demos por nada.
Sinkus fazia que sim com a cabeça e tomava notas, preparando-se para estoirar o orçamento anual do departamento numa só noite de busca.
Bobby continuava a não gostar do que via.
Porquê fazer uma coisa tão elaborada? Procuravam um pedófilo, um homem habituado a atacar crianças. Agora, de repente, resolvera visar uma mulher adulta? Uma sargento da polícia, que provavelmente se revelaria esperta, armada e preparada?
Seria possível um pedófilo mudar de gosto com tanta facilidade? Fazer a transição de crianças para figuras autoritárias?
A menos que...
A resposta surgiu-lhe de repente. A menos que os interesses do homem nunca tivessem mudado. A menos que ainda tivesse os olhos postos no mesmo alvo. Um alvo que, desde o seu recente reaparecimento, passara os últimos dois dias rodeado de proteção policial. Até àquela noite, na qual, em virtude daquela operação...
Bobby virou-se bruscamente para os seus colegas detetives.
- Annabelle!
215

Acordei estremunhada, os punhos crispados no lençol, os músculos tensos. Os olhos muito abertos de alarme. Fugir, lutar, gritar. Mas o raciocínio estava lento, aturdido
de sono. Não conseguia preencher as lacunas.
Forcei-me a sentar-me, inspirando em grandes sorvos irregulares. O relógio da mesa de cabeceira indicava duas e trinta e dois. Pesadelo, pensei. Uma noite difícil.
Levantei-me da cama, vestindo umas boxers de homem e um top preto desbotado. Bella levantou a cabeça, ponderando a questão. Já se habituara à minha intranquilidade. Pousou novamente a cabeça; pelo menos uma de nós podia dormir. Fui sozinha até à cozinha, onde abri a torneira com força e me servi de um copo de água. Se isso não me despertasse, nada o faria.
Estava ali de pé, a olhar para a linha de luz fraca do patamar, que penetrava por baixo da minha porta aferrolhada e trancada, quando a campainha tocou ruidosamente. Sobressaltei-me e derramei água por cima da roupa, enquanto Bella irrompia do quarto, atravessava a cozinha com as unhas a arranhar o chão e se punha a ladrar loucamente diante da porta.
Não pensei mais; mexi-me. Atirei o copo de plástico para o lava-louça. Corri ao quarto. Virei a minha almofada, agarrei no taser que guardava debaixo dela. Vá, vá, vá!
Regressei à cozinha. Bella ladrava. O coração batia-me violentamente no peito. Teria ouvido o rangido da porta da rua? Passos na escada?
Agarrei finalmente na coleira de Bella e forcei-a a deitar-se no chão.
- Chiu, chiu, chiu - murmurei. Mas o meu próprio olhar tenso impedia-a de acalmar. Continuou agitada, rosnando, enquanto eu olhava fixamente para a faixa de luz por baixo da porta, esperando as sombras escuras dos passos, o aparecimento do inimigo à vista.
E...
Nada.
Os minutos iam-se sucedendo. A minha respiração abrandou. O meu estado passou de lutar-ou-lutar para a perplexidade pura e simples. Lembrei-me, um pouco tarde,
de ir até ao vão da janela e espreitar para a rua. Não havia qualquer carro desconhecido estacionado lá em baixo. Ninguém se acoitava nas sombras.
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Deixei-me cair no banco da janela, com o taser ainda apertado contra o peito. Sabia que estava a exagerar, mas não podia renunciar à minha vigília. Bella tinha uma atitude mais prática. Bufou e trocou o seu posto pela sua cama na sala. Segundos depois, estava enrolada numa bola e a dormir profundamente, com o nariz apoiado nas patas peludas. Continuei onde estava, qual sentinela em alerta máximo, tentando persuadir-me a acalmar.
Não é invulgar tocar uma campainha a meio da noite, disse para comigo. Não era a primeira vez que isso acontecia. E não seria a última. Um bêbedo que passa, ou mesmo um convidado de outro inquilino, que se engana no botão. Os meus vizinhos eram cuidadosos com a segurança. Nenhum de nós abria a porta da rua a um toque não identificado. O que, se calhar, só servia para multiplicar as probabilidades de a pessoa de fora continuar a premir botões até conseguir o resultado pretendido.
Por outras palavras, havia um milhão e meio de razões lógicas para que uma campainha tocasse a meio da noite. E nenhuma dessas razões me convencia.
Deixei o meu assento junto à janela. Fui novamente até aporta. Encostei a orelha e pus-me à escuta de qualquer som proveniente das escadas.
O problema é que a vida real não tem banda sonora. Nos filmes, sabe-se quando vai acontecer algo de mau, porque o som pesado de fundo nos informa disso. Não há no mundo uma única pessoa que não fique com o coração a bater mais depressa ao ouvir a música de Tubarão e, francamente, isso é reconfortante. Gostamos dos nossos alertas. Dá um sentido de ordem ao mundo. Podem acontecer coisas más, mas só depois de o som de fundo nos avisar com um tã-tãã, tã-tãã, tã-tãã-tã-tãã-tã-tãã.
O mundo real não é assim. Uma rapariga chega a casa, numa tarde de sol, sobe as velhas escadas do costume, ouve o habitual zumbido dos aparelhos de ar condicionado antiquados, apenas para deparar com a mãe morta no sofá.
Um homem sai para dar um passeio pela cidade. Ouve o barulho dos carros, as buzinas, o bulício dos transeuntes que falam aos respetivos telemóveis. Põe o pé fora do passeio uma fração de segundo mais cedo e, eis senão quando, o seu rosto transforma-se numa massa sangrenta, esmagada contra um candeeiro de rua.
Uma rapariguinha vai brincar no jardim dos avós. Os pássaros chilreiam, as folhas de outono estalam sob os seus pés, há um sussurro de brisa. E dá por si aos gritos na parte de trás de uma carrinha.
A vida muda num instante, sem banda sonora para nos guiar.
O que deixa uma pessoa como eu a saltar ao mais pequeno ruído, porque não sei distingui-los.
Gostava de ser como os meus semelhantes urbanos que, quando são acordados a meio da noite pela campainha da sua porta, exclamam um "Vão-se lixar!" sincero antes de se virarem para o outro lado e continuarem a dormir. Isso é que é vida.
Arrastei-me para o quarto, iluminado por três luzes de presença diferentes. Estendi-me na minha cama de solteiro, fazendo dançar os dedos ao longo da largura limitada.
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E permiti-me sonhar, só por um momento: o que poderia acontecer se Bobby Dodge não fosse um detetive e eu não fosse uma vítima? Suspeita? Testemunha? Se fôssemos duas pessoas vulgares, que se encontram numa festa da paróquia. Eu levaria a salada de feijão, ele, o eterno clássico dos homens solteiros: um pacote de flocos de
milho fritos. Podíamos falar de kickboxing, de cães, de cercas brancas. Depois deixá-lo-ia
acompanhar-me a casa. Ele passaria o braço à volta da minha cintura.
E, em vez de ficar rígida de desconfiança, afundar-me-ia contra ele. A sensação de um corpo masculino rijo, o seu peito plano a achatar os meus seios. A comichão do seu bigode um instante antes de me beijar.
Podíamos jantar, ir ao cinema, passar fins de semana inteiros a fazer sexo. No sofá, no quarto, nas bancadas da cozinha. Ele era forte, atlético. Apostava que era muito bom na cama.
Até podíamos vir a ser namorados, como acontecia com as outras pessoas. E eu seria normal e não procuraria o seu nome ou a sua descrição física nas bases de dados de pessoas condenadas por abuso sexual.
Mas eu não era normal. Vivia com demasiados anos de medo gravados na psique. E ele vivia com o peso da morte de um homem suspenso do pescoço. A sua profissão já o levara a mentir-me e manipular-me. O meu passado levara-me a mentir-lhe e manipulá-lo. Ambos achávamos que tínhamos razão.
Perguntei-me pela primeira vez se Bobby dormiria bem à noite. E se chegássemos a juntar-nos, qual de nós seria o primeiro a acordar aos gritos. Esse pensamento devia ter-me feito cair em mim. Em vez disso, fez-me sorrir. Éramos ambos perturbados, ele e eu. Talvez, com tempo, viéssemos a concluir que as nossas perturbações nos tornavam compatíveis.
Suspirei. Virei-me para o outro lado. Ouvi o ruído das patas de Bella a voltar para o quarto, a tomar posição ao lado da minha cama. Acariciei-lhe as orelhas, disse-lhe que gostava muito dela. Isso fez com que ambas nos sentíssemos melhor.
Para minha grande surpresa, descontraí. Os meus olhos fecharam-se. Podia ter começado a sonhar.
Então a campainha tocou de novo. Um toque alto, estridente, assustador. Tocou, tocou e voltou a tocar. Uma violenta investida sonora, que ricocheteava pelo meu minúsculo apartamento.
Levantei-me de um salto, corri para a janela. Os candeeiros de rua bombardeavam o espaço negro e húmido, mas não revelavam nada. Fui para a cozinha, deslizei nas pontas dos pés, com os músculos contraídos, o taser a postos, os olhos colados à faixa de luz por baixo da porta.
Avistei uma sombra reveladora.
Estaquei. Retive a respiração. Fiquei a olhar.
Pus-me de gatas, muito devagar. Espreitei por baixo da porta, esquadrinhando desesperadamente o pequeno troço de patamar. Não eram pés. Não era um homem.
Era outra coisa. Uma coisa pequena, retangular e perfeitamente embrulhada numa folha de banda desenhada de jornal...
218
Pus-me em pé. Depois ataquei a porta, abrindo freneticamente a meia dúzia de fechaduras, com o coração a galopar de terror e as mãos a tremer de raiva. Bella estava
a ladrar quando soltei a corrente. Irrompemos juntas no patamar do quinto piso, onde parei, seminua, brandindo o taser e rugindo a plenos pulmões.
- Onde estás, seu filho da mãe? Vem cá e luta como um homem! Queres apanhar-me?
Saltei por cima do embrulho. Bella precipitou-se pelas escadas abaixo. Arremetemos pelo átrio, cheias de adrenalina e prontas a enfrentar um exército inteiro.
Mas o prédio estava vazio, as escadas desertas, o átrio sem ninguém. Um som de batidas rítmicas levou-me à entrada do prédio, onde fui encontrar a porta exterior aberta e a bater ao vento.
Abri-a de par em par. Fui atingida por uma chuva fria, que me fustigou o rosto. Estava uma noite de tempestade. Mas isso não era nada comparado com o que eu sentia.
Na rua não havia sinais de vida. Fechei a porta exterior, chamei Bella para as escadas.
À porta do meu apartamento, o embrulho continuava à minha espera. Uma caixa achatada, retangular. Na parte de cima, um Snoopy empoleirado no telhado vermelho da sua casota sorria para mim.
De repente, não aguentei mais. Vinte e cinco anos não tinham bastado. O treino que o meu pai me dera não tinha bastado. A ameaça regressara, mas eu continuava sem saber com quem lutar, como atacar, para onde direcionar a minha raiva.
O que me deixava apenas o medo. Medo de cada sombra no meu apartamento escurecido. De cada som daquele prédio velho e fértil em rangidos. De cada pessoa que descesse casualmente a rua.
Apalpei o embrulho. Agarrei na coleira de Bella e arrastei-a para a casa de banho, onde, depois de fechar a porta à chave, me meti na banheira e rezei para que a noite chegasse ao fim.
- Tens a certeza de que não viste nada? - perguntava Bobby. - Um carro, uma pessoa, a ponta de um casaco a desaparecer ao fundo da rua?
Não respondi. Limitei-me a ficar a vê-lo andar de um lado para o outro, a todo o comprimento da minha cozinha.
- E uma voz? Ele falou, fez qualquer barulho ao subir ou descer as escadas?
Continuei calada. Havia horas que Bobby repetia as mesmas perguntas. O pouco que podia dizer-lhe já estava devidamente registado. Agora era apenas uma questão de o deixar dar largas à fúria e tentar assimilar eventos que continuava a recusar-me a aceitar.
Como, por exemplo, o facto de o sujeito branco não identificado ter voltado a encontrar-me, vinte e cinco anos depois.
219
O meu telefone tocara pouco depois das quatro da manhã, uma nova sucessão de sons agudos e estridentes que me tinham gelado o sangue nas veias. Mas a voz que surgiu no meu atendedor de chamadas não era a de um louco provocador. Era Bobby, a exigir que o atendesse.
A sua voz acalmou-me, devolveu-me a força de vontade. Por ele, tinha de sair da banheira, abrir a porta da casa de banho, arrostar as sombras do apartamento. Por ele, fui capaz de pegar no auscultador, encostar o aparelho sem fios ao ouvido, ligar sorumbaticamente as luzes e narrar os acontecimentos da noite.
Não precisei de dizer grande coisa. Dois minutos depois, Bobby tinha desligado e vinha a caminho do meu apartamento.
Chegou com um bando de homens vestindo fatos amarrotados. Três detetives - Sinkus, McGahagin, Rock. Na sua esteira vinha uma multidão de agentes fardados, que depressa deitaram mãos ao trabalho, passando o prédio a pente fino. O pessoal da polícia técnica chegou depois, examinando as portas da frente, o átrio, as escadas.
Os meus vizinhos não ficaram satisfeitos por serem acordados antes do nascer do Sol, mas a curiosidade atraiu-os aos patamares e ai ficaram, a assistir ao espetáculo gratuito.
Bella endoideceu à vista de tantos desconhecidos a invadir-lhe a casa. Acabei por fechá-la no carro de Bobby, caso contrário, o pessoal da polícia técnica nunca mais conseguiria fazer o seu trabalho. Ninguém se mostrava particularmente otimista. Os aguaceiros da noite anterior tinham-se transformado numa neblina matinal cinzenta. A chuva lavava as provas. Até eu sabia isso.
A polícia técnica tinha começado pelo átrio e estava agora nas escadas. Havia pó preto de recolha de impressões digitais a voar por toda a parte. Aproximavam-se progressivamente do centro do furacão, uma caixa retangular de dez por quinze centímetros, muito bem embrulhada em papel de banda desenhada, que repousava à minha porta.
Não a acompanhava qualquer bilhete, qualquer fita. O pacote não precisava de apresentações. Já sabia quem o tinha enviado.
A porta do meu apartamento abriu-se de novo. Desta vez, para dar passagem a D.D. A atividade parou imediatamente, todos os olhos se voltaram para a sargento. D.D. estava pálida, mas movia-se com a sua habitual eficiência carrancuda. Nada mau, para uma mulher que tinha um grande penso de gaze a cobrir-lhe a metade inferior da face.
- Não devias... - começou Bobby.
- Oh, por favor! - D.D. rolou os olhos. - Que diabo vais fazer, algemar-me a uma cama de hospital?
Segundo Bobby, ainda não havia muitas horas que ela quase fora morta à dentada por um cão treinado para atacar. Mas era mesmo dela, não permitir que uma coisinha de nada, como quase ser morta, a fizesse abrandar.
- A que horas chegou o embrulho? - perguntou com vivacidade, mostrando claramente que regressara ao jogo. ,
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- Por volta das três e vinte da manhã - respondeu Bobby. O olhar dela fixou-se em mim.
- Corresponde às suas recordações?
- Sim - repliquei calmamente. - Pelo menos por fora, a caixa lembra-me os presentes que recebi em criança. Ele embrulhava-os sempre na folha de banda desenhada do jornal.
- O que viu?
- Nada. Procurei no prédio, na rua. Quando abri a porta, já ele tinha desaparecido.
D.D. suspirou.
- Não faz mal. Já sofremos danos suficientes por esta noite. O detetive Sinkus aproximou-se.
- Estamos prontos - anunciou. Tinha uma mancha no ombro esquerdo. Parecia vomitado.
Bobby hesitou, olhou para mim.
- Podes ir - sugeriu. - Espera lá em baixo enquanto o abrimos. Lancei-lhe um olhar que dizia o suficiente. Ele encolheu os ombros,
pelo que era evidente que já esperava a minha reação.
Fez sinal ao homem da polícia técnica. Este trouxe a caixa para a cozinha e pousou-a na bancada. Reunimo-nos os quatro à sua volta, colados uns aos outros, e ficámos a ver o técnico trabalhar. Começou por se servir de um utensílio que parecia um bisturi, soltando cuidadosamente todos os pedaços de fita-cola. Depois tratou de desembrulhar o papel com a precisão distante de um artista.
Demorou quatro minutos até a banda desenhada estar desdobrada, revelando a tira completa dos Peanuts - quem não gosta de Snoopy e Charlie Brown? - bem como os restos de outras tiras na página da frente. Dentro do embrulho encontrava-se uma simples caixa branca brilhante. A tampa não estava colada. O técnico levantou-a.
Papel crepe branco. O técnico desdobrou o lado direito, depois o esquerdo, revelando o tesouro.
A primeira coisa que vi foram as cores. Listas cor-de-rosa, claras e escuras. Então o técnico retirou o tecido da caixa, deixando que se desdobrasse como uma chuva cor-de-rosa, e fiquei com um nó na garganta.
Um cobertor. De flanela rosa-escuro, debruada a cetim rosa-claro. Recuei, cambaleando.
Bobby reparou na minha expressão e segurou-me o braço.
- Que se passa?
Tentei abrir a boca. Tentei falar. Mas o choque fora demasiado intenso. Não era o meu, não podia ser, mas era igual ao meu. Sentia-me horrorizada e aterrorizada, mas, ao mesmo tempo, tinha uma vontade imensa de estender a mão e tocar no cobertor, ver se a sensação era igual às minhas recordações, a flanela macia e o cetim
fresco a deslizar entre os meus dedos, um toque tranquilizador contra o meu rosto.
- É um cobertor - anunciou D.D. - Como os de bebé. Etiqueta com preço, recibo? Alguma marca na caixa?
221
Estava a falar com o técnico. Este acabara de desdobrar o cobertor, virava-o de um lado para o outro nas mãos enluvadas. Depois voltou à caixa, pegou no papel crepe, inspecionou-o por dentro e por fora. Abanou a cabeça.
Reencontrei finalmente a minha voz.
- Ele sabe.
- Sabe? - pressionou Bobby.
- O cobertor. Quando vivia em Arlington, tinha um cobertor de bebé. De flanela rosa-escuro, debruada a cetim rosa-claro. Tal e qual como esse. - Isto é o seu cobertor de bebé? - perguntou D.D. chocada.
- Não, não é o meu. O meu era um bocadinho maior e estava muito mais gasto nas pontas. Mas é muito parecido, provavelmente o mais parecido que ele conseguiu arranjar para servir de cópia fiel do original.
Continuava com vontade de tocar no cobertor. De algum modo, isso parecia sacrílego, como aceitar o presente do demónio. Fechei as mãos com força, com os braços caídos ao longo do corpo, enterrei as unhas nas palmas. De repente senti-me nauseada, tive uma vertigem.
Como era possível aquele homem conhecer-me tão bem, quando eu continuava sem saber nada a seu respeito? Oh, Deus, como se pode lutar com um mal que parece tão incrivelmente omnipotente?
- No relatório original da polícia - estava Bobby a dizer -, encontraram um monte de polaroides no sótão da vizinha. Quanto querem apostar que alguns desses instantâneos
são da Annabelle com o seu cobertor favorito?
- Filho da mãe! - suspirei.
- com muito boa memória - acrescentou D.D. num tom soturno. O técnico tirara um saco de papel da sua maleta. No topo, com um
grande marcador preto, escreveu um número e uma breve descrição. Um instante depois, o cobertor transformou-se numa prova. Seguiram-se a caixa e o papel crepe. Por fim, a folha de banda desenhada.
A minha bancada ficou novamente vazia. O homem da polícia técnica saiu com os seus últimos tesouros. Quase se podia fingir que nada acontecera. Quase.
Fui para a sala. Espreitei pela janela, contando uma dúzia de carros, carros-patrulha, veículos de detetives, etc. todos estacionados ao longo do passeio. Lá de cima via o tejadilho do Crown Vic de Bobby. As janelas de trás estavam ligeiramente abertas e consegui distinguir a ponta húmida e preta do nariz de Bella a espreitar cá para fora.
Desejei tê-la ao pé de mim naquele momento. Precisava de alguém para abraçar.
- E jura que não viu ninguém fora do prédio? - D.D. aproximou-se de mim. - Talvez um bocado mais cedo?
Abanei a cabeça.
- E no trabalho? Alguém que tivesse estado na fila, no Starbucks, ou que tenha aparecido depois, quando saiu de Faneuil Hall?
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- Sou cuidadosa - afirmei. Embora tivesse dado cartões de visita tanto a Mr. Petracelli como a Charlie Marvin, esses cartões apenas continham um apartado, não o meu endereço de casa. O número de telefone indicado era o do trabalho e, caso alguém tentasse fazer uma pesquisa de morada a partir do número, iria dar apenas ao mesmo apartado. Pormenor em que devia ter pensado há dias, quando dera o meu número de casa a Bobby, o que equivalera, ao que parecia, a convidar metade da Polícia de Boston a visitar-me.
- Quantas pessoas te conhecem como Annabelle? - Bobby viera postar-se ao lado de D.D.
Era uma pergunta lógica. Mas eu sentia-me cáustica.
- Tu, a sargento Warren, a unidade de detetives...
- Que gracinha!
- Mr. e Mrs. Petracelli. A Catherine Gagnon. Oh, e o Charlie Marvin.
- O quê?!
D.D. não se mostrava satisfeita. Mas, pensando bem, nunca o fazia.
Relatei a minha conversa com Charlie Marvin na noite anterior. A versão resumida. Quando terminei, Bobby suspirou. - Por que diabo disseste o teu verdadeiro nome
ao Charlie? - Passaram vinte e cinco anos - trocei. - Que tenho a temer? - Sabes mais acerca de defesa pessoal básica do que qualquer outra pessoa nesta sala,
Annabelle. De que adianta toda essa instrução, se te vais í armar em estúpida?
Aquilo irritou-me.
- Olha lá, não tens um assassino de crianças para apanhar?
- Olha lá, que raio julgas que estamos a fazer aqui? Annabelle, começaste a usar o teu verdadeiro nome há uma semana, pela primeira vez em vinte e cinco anos. E
hoje encontraste um presente à tua porta. Precisas mesmo que seja eu a ligar os pontos?
- Não, não preciso, meu grande cretino. Quem se escondeu na banheira fui eu, sei muito bem o medo que tenho!
Bati-lhe. Não com força. Nem sequer com alguma carga pessoal. Apenas porque estava cansada, assustada e frustrada, e não tinha um verdadeiro alvo que pudesse atacar. Ele aceitou o soco sem protestar. Limitou-se a fitar-me com aqueles olhos cinzentos e firmes.
Um pouco tarde, dei-me conta de que os outros agentes estavam a observar-nos. E o olhar de D.D. saltava de Bobby para mim. Estava sem dúvida a ligar alguns pontos por conta própria. Afastei-me de repelão, com uma necessidade desesperada de espaço.
Lamentava ter recebido Bobby. Queria que os detetives se fossem embora. Queria que o pessoal da polícia técnica se fosse embora. Queria estar sozinha, para poder ir buscar cinco malas e começar a fazê-las.
A campainha da porta tocou com força. Dei um salto, mordi a língua. D.D. e Bobby já tinham arrancado e corriam pela escada abaixo. No último
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momento, tive vergonha do meu medo. Raios partissem, não ia viver assim!
Avancei para a porta. Um dos detetives, Sínkus, segundo creio, tentou agarrar-me no braço. Sacudi-o com uma palmada. Ele era mais suave e mais lento do que Bobby; não teve hipótese. Atravessei o patamar a correr e arremeti pela escada abaixo. Os meus vizinhos já corriam a refugiar-se na segurança relativa dos seus apartamentos, batendo portas e correndo ferrolhos.
Quando cheguei ao último lanço de escadas, finquei as mãos no corrimão de madeira e voei por cima dele num salto impecável. Aterrei pesadamente e precipitei-me porta fora, apenas para estacar, atónita.
À minha frente estava Ben, o homem da UPS, muito direito, em sentido, com os olhos quase a saltar-lhe das órbitas. Bobby e D.D. já estavam em cima dele.
- Tanya? - guinchou Ben.
E, de um momento para o outro, comecei a rir. Era o riso meio histérico de uma mulher que se vê reduzida a aterrorizar o homem das entregas, que fora levar-lhe a sua última encomenda de tecido.
- Está tudo bem - disse eu tentando falar num tom calmo, mas ouvindo o tremor da minha própria voz.
- Se fizer o favor de me entregar essa caixa - ordenou Bobby. Ben entregou-lhe a caixa.
- Ela tem de assinar o recibo - sussurrou. - Posso... Devo... Santo Deus!
Calou-se. Mais um minuto do olhar furioso de Bobby e o pobre homem ia molhar as calças.
- Smith e Noble - disse Bobby secamente, lendo o endereço do remetente.
- Cortinados - expliquei. - Tecidos com cores encomendadas especialmente, para ser mais precisa. Está tudo bem, palavra de honra. Costumo receber uma encomenda por dia, não é, Ben?
Desta vez adiantei-me, posicionando-me entre Bobby e o homem das entregas.
- Está tudo bem - repeti. - Houve um incidente. No prédio. A polícia veio investigar.
- A Bella? - perguntou Ben. Conhecia-o há quatro anos e percebera que ele não se rala verdadeiramente com as pessoas. É uma espécie de anti-homem das entregas: não se interessa tanto pelos seus clientes, como pelos cães dos ditos clientes.
- A Bella está bem.
Como se obedecesse a uma deixa, Bella ouviu finalmente a minha voz e começou a ladrar, no banco das traseiras do carro de Bobby. Longe de ficar tranquilizado, Ben localizou a origem do som num carro da polícia sem marcas distintivas e ficou outra vez de olhos arregalados.
- Mas é uma boa cadela! - explodiu. :
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Desta vez quase ri mesmo, mas sabia que o som não seria propriamente alegre.
- Tivemos de a tirar do apartamento - tentei explicar. - A Bella está ótima. Pode ir ao pé dela. Ela vai gostar de o ver.
Dava a impressão de que Ben não sabia o que fazer. Bobby continuava agarrado à caixa de tecido, de sobrolho franzido. D.D. parecia simplesmente enojada com a vida.
Era tempo de tomar uma decisão drástica. Peguei no pulso de Ben, segurando-o pelo punho do seu uniforme castanho, e levei-o até ao carro de Bobby. Bella enfiou metade da cabeça na abertura da janela e pôs-se a ladrar alegremente. Isso pareceu resultar. í
Ben revolveu os bolsos em busca de biscoitos e todos retomámos os hábitos da vida tal como a conhecíamos.
Bella conseguiu extorquir-lhe quatro biscoitos. Quando regressámos para a frente do prédio, o momento perdera a sua intensidade de episódio de Ação em Miami e todos resolvemos tentar de novo.
Bobby tinha algumas perguntas para Ben. Qual era o seu itinerário?
Quantas vezes passava no bairro? A que horas? Alguma vez reparara em alguém que andasse a rondar o prédio?
Ben revelou-se um veterano com vinte anos de UPS. Conhecia as ruas
de Boston como as palmas das mãos. Em particular, tinha o hábito de atalhar pela minha rua cerca de meia dúzia de vezes por dia, para evitar os congestionamentos
de Atlantic Avenue. Não reparara em ninguém, mas a verdade é que nunca prestara atenção. Porque o faria?
Fiquei a saber que a vida de um homem da UPS não era fácil. Montes de caixas, horários de entrega complexos, itinerários intrincados planeados de modo a otimizar
a eficiência, apenas para serem virados de pernas para o ar pela chegada de encomendas urgentes no último minuto. Stresse, stresse e mais stresse. E, depois, havia
o Natal. Mas, ao que parecia, o emprego incluía um excelente plano de reforma.
A ideia de andar alguém a rondar o meu prédio, talvez a seguir-nos, a Bella e a mim, deixou Ben muito perturbado. Prestaria atenção, prometeu ele a Bobby. Talvez até pudesse arranjar maneira de passar pela rua mais algumas vezes por dia. Sim, podia fazer isso.
Ben não era nenhuma criança. Calculei que andava pelos cinquenta e poucos anos. Usava o tipo de óculos grossos como fundos de garrafa e um bigode grisalho a condizer com a idade. Contudo, o seu trabalho mantinha-o ativo; tinha uma constituição esguia, estava em boa forma e ainda mal começara a criar um bocadinho de barriga. Era Bobby daí a vinte anos. Sob a aba do seu boné de beisebol castanho da UPS encon- ;
trava-se o rosto de um antigo pugilista: o nariz partido que recebera mais
socos do que devia, uma cicatriz fina ao longo da linha do queixo, reveladora de uma reconstituição do maxilar, que lhe repuxava ligeiramente a parte inferior do rosto para o lado esquerdo.
No fim da conversa, Ben endireitou os ombros, encheu o peito de ar e apertou solenemente a mão de Bobby.
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Portanto, eu tinha todo o Departamento da Polícia de Boston, mais um homem da UPS, a guardar-me. Devia conseguir dormir como um bebé.
Ben partiu. Bobby levou a minha caixa para dentro do prédio. Fui atrás dele, concluindo que estava pura e simplesmente deprimida.
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Quinze minutos depois, apanhei D.D. e Bobby a discutir. Devia estar sentada no meu sofá, a portar-me como uma boa rapariga. Mas estava demasiado elétrica para ficar sentada e não conseguia habituar-me a ver tanta gente a acotovelar-se no meu pequeno espaço. Ninguém parecia importar-se com o que eu estava a fazer, pelo que resolvi descer as escadas e ir ver Mia.
í i Bobby e D.D. estavam lá fora, no passeio. Não se encontrava mais neinhum detetive nas proximidades. Ouvi primeiro o tom de D.D. e a raiva que vibrava na sua voz fez-me parar onde estava.
- Que raio julgas que estás a fazer? - rosnou D.D.
- Não sei do que estás a falar. - Era Bobby, simulando indiferença, mas já na defensiva, pelo que parecia saber exatamente o que D.D. estava a pensar.
Encolhi-me no átrio, encostando a orelha à porta exterior entreaberta.
- Andas metido com ela - acusou D.D.
- com quem?
D.D. deu-lhe um soco no braço. Ouvi o baque.
- Au! Que diabo?! Hoje é dia de bater no Bobby?!
- Não te faças de engraçado. Conhecemo-nos há demasiado tempo. Pausa. Depois, vendo que Bobby continuava calado.
- Jesus! Bobby, que se passa contigo? Primeiro a Catherine, agora a Annabelle. Qual é o teu problema, tens um complexo de Messias? Só consegues apaixonar-te por donzelas em apuros? Es um detetive. Tens obrigação de não cair nisso.
- Não fiz nada de errado. - A voz de Bobby, agora mais firme.
- Vi a maneira como olhaste para ela.
- Oh, por amor de Deus...
- É verdade, não é? Vá lá, se não é verdade, olha-me nos olhos.
O silêncio prolongou-se de novo. Dava para perceber que Bobby não estava a olhar D.D. nos olhos.
- Raios partam! - exclamou D.D.
- Não fiz nada de errado - repetiu ele rigidamente.
- E então? Isso torna-te muito nobre? Bobby... Sabes, eu estava a fazer o possível por ignorar a história da Catherine. Envolveste-te com ela.
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Perdeste o senso comum. Deus sabe que ela tem esse efeito sobre os homens. Mas ver-te fazer a mesma coisa outra vez... Foi por isso que acabámos, Bobby? Porque, para te apaixonares, a mulher tem de ser uma espécie de vítima?
Ooooh, como aquilo me irritou! Aparentemente, também mexeu corn os nervos de Bobby.
- Se queres ser tu a mandar, força, gosto tanto de um desafio como qualquer outro homem, D.D. Só que tu e eu nunca fomos um desafio uni para o outro. Somos duplicados, D.D. Vivemos o nosso trabalho, comemos o nosso trabalho, respiramos o nosso trabalho. E quando andámos um com o outro, levámos o trabalho connosco. com os diabos, conhecemo-nos há dez anos, mas só descobri que tinhas um tio e gostavas de rottweilers há seis horas. O assunto nunca tinha vindo à baila porque nunca deixámos de falar de trabalho. Mesmo quando estávamos na cama, éramos polícias!
- Olha lá, eu sou muito mais do que o trabalho! - atirou-lhe D.D. e, por um momento horrível, julguei que ela ia começar a chorar.
- Ah, Jesus! - disse Bobby num tom fatigado.
- Para com isso! - Outro baque. Calculei que ele tentara tocar-lhe.
- Não te atrevas a ter pena de mim!
- Ouve, D.D. Queres levar isto a peito? Então chama os bois pelos nomes. Nunca encaraste a relação comigo como uma coisa para durar. Eu fui apenas uma curiosidade, um atirador de elite que parecia bastante interessante quando falava da sua arma. Ambos sabemos que tens caça de muito maior porte na mira.
- Isso é um golpe baixo!
- Bem, não estamos propriamente a trocar elogios. Uma pausa longa, difícil.
- Ela vai dar-te problemas, Bobby.
- Sou um rapaz crescido.
- Nunca trabalhaste num caso grande como este. Não podes envolver-te pessoalmente.
- Obrigado pelo voto de confiança. Agora, tens alguma coisa específica para me dizer, de sargento para detetive? Caso contrário, vou voltar lá para dentro.
Ouviu-se um roçagar de roupa, depois uma paragem repentina. Presumi que D.D. lhe agarrara no braço.
- Fui a minha casa, Bobby. Não consegui encontrar o mais pequeno sinal de intrusos. As portas estão fechadas à chave, as janelas, intactas. Mas o Sinkus tinha razão: a roupa interior era minha. Alguém entrou lá, roubou a roupa interior do cesto, e fez tudo isso com muita inteligência.
- O pessoal da polícia técnica...
- Não haverá provas, Bobby. Tal como não conseguiram encontrar nada aqui. Acho que isso nos dá uma ideia bastante clara do pé em que estamos.
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- Ah, bolas! Mal ficarmos despachados daqui, vou lá contigo e dou uma vista de olhos.
D.D. devia ter uma expressão de dúvida, porque ele declarou, com uma certa exasperação na voz:
- Antiga equipa titica, D.D. Sei umas coisas acerca de arrombamentos.
- Ora, vocês rebentam as portas com uma "chave" de metal gigante. O vosso estilo e o do nosso sujeito... são muito diferentes.
- Sim, sim, sim - murmurou Bobby, mas parecia perturbado. É isso que me incomoda. O modus operandi de assédio bate certo, mas... Há vinte e cinco anos, quando o sujeito entrou em atividade, o seu alvo eram rapariguinhas. Annabelle Granger, de sete anos; a melhor amiga desta, Dori Petracelli. Agora, de repente, interessa-se por mulheres adultas? Tu, a Annabelle... Não sou especialista em perfis psicológicos, mas julgava que esse tipo de coisas não acontecia.
- Talvez a nossa idade não seja relevante para ele. A Annabelle é a rapariga que conseguiu escapar. Depois de a ter reencontrado, o sujeito está resolvido a não a deixar fugir de novo. Quanto a mim... sou a investigadora responsável. Quer abalar-me. Mas tenho muito menos importância para ele. Foi por isso que não se importou
de mandar os cães, em vez de tratar pessoalmente do assunto. Ela é a obra da vida dele. Eu sou apenas um passatempo.
- Que ideia tão encorajadora.
- Especialmente para mim. Quem quer ser morto por desfastio? Além disso, Bobby, pensa no Eola. Muita gente acredita que matou uma enfermeira no Hospital Psiquiátrico de Boston. Portanto, se o Eola for o nosso homem, estás a falar de alguém com um historial de ataques a mulheres, independentemente da idade. O Bundy não era assim? Pensamos sempre nele como um assassino de estudantes universitárias, mas algumas das suas vítimas eram muito novas. Esses tipos... quem sabe o que os faz correr?
Bobby não respondeu logo. Por fim, disse:
- Ainda consideras o Russell Granger suspeito?
- E continuarei a considerar, até me provares o contrário.
- Voltou dos mortos? - murmurou Bobby sarcasticamente. D.D. surpreendeu-nos a ambos.
- Falei com o médico legista ontem à noite, Bobby. Dadas as atuais exigências sobre o teu tempo, resolvi fazer-te um favor e investigar as circunstâncias que rodearam a morte do pai da Annabelle. Segundo o processo, a polícia contactou a Annabelle, isto é, Tanya, e ela fez a identificação. Isso foi quanto bastou para o médico legista. Pensa no assunto, Bobby. A cara estava desfeita. O gabinete do médico legista não conferiu impressões digitais nem documentou quaisquer sinais característicos. Não passava de um caso de atropelamento e fuga, e a filha tinha identificado o corpo.
;, O que significa que o cadáver podia ser de qualquer pessoa que tivesse li consigo a carta de condução de Michael W. Nelson. Um desconhecido,
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um vagabundo. Um desgraçado qualquer que ele empurrou para o meio do trânsito...
Aparentemente, as palavras de D.D. tinham deixado Bobby emudecido. O que era bom, porque não me parecia que fosse capaz de ouvir alguma coisa com a torrente de sangue que me ribombava nos ouvidos. D.D. pensava que o meu pai ainda estava vivo? Teorizava que ele podia ter morto outra pessoa para simular a sua própria morte? Acreditava sinceramente que era ele o cérebro criminoso por trás daquela vaga de homicídios?
Era absurdo. O meu pai não era um assassino! Nem de rapariguinhas, nem de Dori Petracelli, nem de homens adultos. Nunca faria uma coisa dessas.
Não me abandonaria.
As minhas pernas cederam. Bati com o ombro na porta, que se abriu. D.D. e Bobby não deram por nada. Estavam demasiado ocupados a analisar o caso, a dilacerar o meu pai, a transformar uma das poucas verdades que eu conhecia numa gigantesca mentira.
Não tínhamos deixado Arlington por o meu pai querer encobrir o seu rasto. Mudámo-nos para minha proteção. Mudámo-nos porque...
Roger, for favor, não vás. Rover, suplico-te, por favor, não faças isso...
- Quem quer que seja - dizia Bobby, num tom claramente cético -, o sujeito não identificado quer atenção. E, apesar de toda a sua "esperteza", não está a fazer qualquer esforço para ser subtil. Deixou um bilhete no teu carro, um presente à porta da Annabelle. Porquê? Se é assim tão brilhante, porque não vos mata a ambas e arruma a questão? Quer o prazer da caçada. Quer a oportunidade de se exibir. E é exatamente assim que vamos apanhá-lo. Ele voltará a estabelecer contacto e, quando o fizer, nós deitamos-lhe a mão.
- Espero que tenhas razão - murmurou D.D. - Porque estou convencida de que um tipo desses tem planos terrivelmente assustadores.
Viraram-se, aproximaram-se dos degraus. Pus-me em pé à pressa, atabalhoadamente, e corri pela escada acima. Os detetives Sinkus e McGahagin olharam-me com curiosidade quando irrompi no apartamento. Fui direita para o meu quarto. Fechei a porta.
Passaram vários segundos. Por fim, ouvi uma batidela hesitante.
Não disse nada. Quem quer que tivesse batido foi-se embora.
Sentei-me na minha cama estreita, agarrada ao frasquinho de cinzas suspenso do meu pescoço, e perguntei-me se até esse frasquinho conteria uma mentira.
No fim, a culpa foi minha. O telefone começou a tocar. Não me apetecia sair do quarto para atender. Portanto, naturalmente, a chamada passou para o atendedor. E, naturalmente, Mr. Petracelli deixou a sua mensagem para metade da Polícia de Boston ouvir.
"Annabelle, encontrei o esboço da reunião do grupo de vigilância de bairro, como pediste. Claro que preferia não enviar estes materiais por correio.
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Suponho que posso voltar a deslocar-me à cidade, se quiseres mesmo que eu vá. À mesma hora, no mesmo local? Dá-me um toque." Debitou um número de telefone. Sentei-me na cama e suspirei. Desta vez, a batidela à minha porta não foi um pedido.
Abri a porta e dei de caras com Bobby, que tinha uma expressão muito sombria no rosto.
- Esboço? Mesma hora? Mesmo local?
- Olá - retorqui alegremente. - Queres ir dar uma volta?
Mr. Petracelli ficou muito aliviado ao saber que não seria obrigado a fazer o tão temido trajeto até à cidade. Bella também achou o passeio uma ótima ideia. O que deixou apenas Bobby e eu, sentados nos bancos da frente, a evitar cuidadosamente os olhos um do outro.
Não havia grande trânsito. Bobby falou com a Central, solicitando uma verificação dos antecedentes do meu antigo vizinho. Achei interessante não ser eu a pessoa
paranóica, para variar. Geralmente era eu quem investigava no Google o nome de toda a gente que conhecia. - Onde está a D.D.? - perguntei por fim.
- Teve de tratar de outros assuntos. - O Eola? - tentei.
Ele lançou-me um olhar de esguelha.
- E de onde conheces tu esse nome, Annabelle?
Optei por uma mentira descarada.
- Da Internet.
Bobby arqueou as sobrancelhas. Era evidente que não se deixara enganar,
mas não ignorou a minha pergunta.
- A D.D. está a gerir uma cena de crime na sua própria casa. O sujeito pode ter deixado um presente à tua porta, mas arrombou a casa da D.D. e roubou-lhe roupa interior.
- É por ela ser loura - comentei. A minha observação valeu-me novo olhar enviesado.
Entrámos no caminho de acesso dos Petracelli.
O pequeno promontório cinzento parecia fundir-se com o céu. Portadas brancas. Um pequeno relvado. A casa ideal para um casal idoso que nunca teria netos.
- Mr. Petracelli foi sempre da opinião de que a Polícia de Lawrence não tinha levado o caso da filha suficientemente a sério - informei quando saímos do carro. Bella ganiu. Disse-lhe para ficar. - Se lhe disseres que estás à procura de uma ligação entre o desaparecimento da Dori e o meu assediador, creio que ele se abrirá.
- Eu falo, tu ouves - declarou Bobby friamente.
Machão, mimei nas costas dele, mas não disse palavra enquanto subíamos o caminho lajeado.
Bobby premiu a campainha. Mrs. Petracelli veio abrir. Suspirou ao ver-nos. Dirigiu-me um olhar que só posso descrever como profundamente apologético.
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- Walter - disse ela calmamente -, os teus convidados estão aqui. Mt. Petracelli desceu as escadas em passo rápido, com muito mais
energia do que aquando da minha anterior visita. Trazia uma pasta de fole debaixo do braço direito e tinha um brilho intenso, quase surreal, nos olhos.
- Entrem, entrem - convidou, num tom jovial. Apertou a mão de Bobby, depois a minha, e olhou em redor como se procurasse o meu perigoso cão. - Fiquei muito entusiasmado quando soube que o senhor cá vinha, detetive. E com tanta rapidez! Tenho as informações todas, absolutamente, está tudo aqui. Oh, espere, olhe para nós, todos aqui de pé na entrada! Que falta de educação da minha parte! Vamos instalar-nos
confortavelmente no escritório. Lana, querida, um café?
Lana suspirou de novo, dirigiu-se para a cozinha. Bobby e eu seguimos atrás de Mr. Petracelli, que saltitava em direção ao escritório. Quando lá chegámos, abancou
na borda de uma poltrona forrada de pele, abriu ansiosamente a pasta e começou a espalhar papéis à sua frente. Em comparação com a sua abordagem melancólica e agoirenta da véspera à noite, estava praticamente a assobiar de alegria enquanto tirava folha após folha pejada de detalhes cruéis acerca do rapto da filha.
- Então é da polícia de Boston? - perguntou ele a Bobby.
- Sou o detetive Robert Dodge da polícia estadual do Massachusetts.
- Excelente! Sempre disse que o estado devia envolver-se no caso. A polícia local não dispõe de recursos suficientes. Localidades mesquinhas têm polícias mesquinhos com mentalidades igualmente mesquinhas. Mr. Petracelli deu finalmente a impressão de ter os papéis organizados a seu gosto. Levantou os olhos, reparou que Bobby e eu ainda estávamos parados à porta. - Sentem-se, sentem-se, ponham-se à vontade. Há anos que mantenho notas detalhadas. Temos muito que conversar.
Sentei-me na borda de um sofá de dois lugares, com um estofo de tecido xadrez verde. Bobby encaixou-se ao meu lado. Mrs. Petracelli apareceu, depositou chávenas de café, natas, açúcar, e saiu outra vez, o mais depressa que pôde. Não a censurava por isso.
- Ora bem, acerca do dia doze de novembro de 1982...
Não havia dúvida de que Mr. Petracelli mantinha escrupulosamente as suas notas. Ao longo dos anos reconstituíra uma linha cronológica elaborada do último dia da vida de Dori. Sabia a hora a que ela acordara. O que comera ao pequeno-almoço. Que roupas escolhera, que brinquedos tinha no jardim. Por volta do meio-dia, a avó dissera-lhe que eram horas de almoçar. Dori quisera um lanche festivo com a sua coleção de ursos de peluche, na mesa de piquenique. A avó não vira mal nenhum nisso, pelo que lhe levara uma travessa com sanduíches de geleia e manteiga de amendoim, em pão sem crosta, e uma maçã cortada às fatias. Da última vez que a vira, Dori estava a distribuir a comida pelos seus convidados de peluche. A avó fora para dentro, arrumar a cozinha, e demorara-se a falar ao telefone com
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uma vizinha. Quando voltara ao jardim, passados vinte minutos, os ursos continuavam sentados à mesa, cada um com o seu pedacinho de sanduíche de maçã à frente
do nariz. Mas, de Dori, nem sinal.
Mr. Petracelli sabia quando fora feita a primeira chamada para o 112. Sabia o nome do agente a chegar ao local, as perguntas que haviam sido feitas, como haviam
sido respondidas. Tinha notas acerca dos grupos de busca que se tinham formado, listas dos voluntários que tinham aparecido, alguns dos quais assinalara com asteriscos por nunca terem fornecido uma explicação satisfatória acerca do que estavam a fazer entre as 12:15 e as
12:35 dessa tarde. Sabia quem eram os tratadores de cães que tinham oferecido os seus serviços. Os mergulhadores que tinham batido os lagos em redor. Tinha vários dias de atividade policial e local destilados em elaborados gráficos cronológicos e abrangentes listas de nomes.
Depois tinha as informações acerca do meu pai.
Não consegui perceber, apenas pela expressão do seu rosto, o que Bobby pensava da apresentação de Mr. Petracelli. A voz deste subia e descia, passando por vários graus de intensidade. Por vezes chegava a cuspir palavras, ao discutir exaustivamente falhas evidentes naquilo que parecia ter sido uma busca meticulosa de uma rapariga desaparecida. As feições de Bobby permaneciam impassíveis. Mr. Petracelli falava. De tempos a tempos, Bobby tomava notas, mas a maior parte do tempo limitava-se a ouvir, sem que o seu rosto traísse fosse o que fosse.
Por mim, queria ver o esboço. Queria contemplar o rosto do homem que acreditava ter-me marcado, condenado a minha família a uma vida de fuga e depois matado a minha melhor amiga.
A realidade foi uma desilusão.
Esperava um homem de aspeto mais raivoso. Um esboço a preto e branco com olhos escuros e manhosos, uma lágrima tatuada no alto da face direita. Em vez disso, o desenho habilmente executado, quase com certeza um trabalho do meu pai, parecia pedante. O sujeito era jovem; andaria pelos vinte e poucos anos, pelos meus cálculos. Cabelo escuro curto. Olhos escuros. Linha do queixo pequena, quase refinada. Sem nada de rufião. De facto, a figura lembrava-me um miúdo que trabalhava na pizaria do bairro.
Estudei o desenho durante muito tempo, esperando que falasse comigo, que me revelasse os seus segredos. Mas os traços continuaram a não passar de um esboço tosco de um homem jovem que, com toda a franqueza, podia ser qualquer um de dezenas de milhares de homens de vinte anos e cabelos escuros que passavam por Boston.
Não compreendia. O meu pai fugira daquilo?
Bobby perguntou a Mr. Petracelli se tinha faxe. De facto, ambos víamos perfeitamente um aparelho de faxe na secretária que estava atrás do dono da casa. Bobby explicou que talvez fosse mais rápido se enviasse imediatamente as notas por faxe para a Central, para que os outros detetives pudessem começar a trabalhá-las. Mr. Petracelli ficou contentíssimo por alguém ter finalmente levado a sua pasta a sério.
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Vi Bobby marcar o número de faxe. Incluiu um código de zona, o que não era necessário se estivesse a ligar para Boston. E a única folha de papel que inseriu no aparelho foi o esboço.
Passou os restantes papéis pelo faxe, de modo a ficar com uma cópia, e guardou os duplicados. Mr. Petracelli baloiçava para trás e para a frente na borda da sua cadeira, com as faces de um vermelho pouco natural, um sorriso radioso nos lábios. A excitação do momento tinha-lhe obviamente feito subir a tensão arterial. Quanto tempo faltaria para ter novo ataque cardíaco? Conseguiria alcançar o objetivo de viver o suficiente para ver a recuperação do corpo da filha?
Bebemos os nossos cafés, por uma questão de boa educação. Mr. Petracelli parecia relutante em ver-nos partir, apertando-nos várias vezes as mãos.
Quando conseguimos finalmente meter-nos no carro, Mr. Petracelli estava no alpendre, a acenar, a acenar, a acenar.
Vi-o pela última vez enquanto descíamos a rua. Transformou-se num velhote pequeno e corcovado, com o rosto demasiado vermelho, o sorriso demasiado rasgado, ainda a acenar resolutamente ao detetive da polícia que, segundo acreditava do fundo do coração, traria finalmente a sua filha para casa.
- Enviaste o esboço para a Catherine Gagnon - afirmei mal entrámos na autoestrada. - Porquê?
- O teu pai mostrou um esboço à Catherine, quando foi vê-la ao hospital - disse ele abruptamente.
- Mostrou?
- Quero ver se é o mesmo.
- Mas isso não é possível! A Catherine esteve no hospital em 1980 e aquele esboço só foi feito dois anos depois.
- Como é que sabes?
- Porque o homem do assédio só começou a deixar-me presentes em agosto de 1982. E não podia haver um esboço do homem do assédio antes de ele aparecer.
- Só há um problema com essa teoria.
- Há?
- Segundo os relatórios da polícia, nunca ninguém viu a cara do "homem do assédio". Nem o teu pai, nem a tua mãe, nem Mrs. Watts, nem qualquer dos teus vizinhos. Portanto, em teoria, o homem do assédio não pode ter servido de base para aquele esboço.
Bem, aquilo era um problema. Pensei no assunto, dizendo a mim própria que devia haver uma explicação lógica, ao mesmo tempo que me apercebia de que estava a usar aquela frase com muita frequência nos últimos tempos. O meu pai devia saber qualquer coisa em 1980, concluí. Qualquer coisa suficientemente séria para o levar a fazer-se passar por um agente do FBI e visitar Catherine de esboço em punho. Mas o que seria?
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Esquadrinhei a memória. Em 1980, tinha apenas cinco anos. Vivia em Arlington e...
Não consegui lembrar-me de nada. Nem sequer de um presente embrulhado em folhas de banda desenhada. Tinha a certeza de que isso só começara dois anos depois, tinha eu sete anos.
O silêncio foi quebrado pelo gorjeio do telemóvel que Bobby trazia preso à cintura. Pegou nele, trocou algumas palavras tensas, lançou-me um olhar de esguelha. Fechou o aparelho, pareceu prestes a dizer qualquer coisa, depois o telefone tocou de novo.
Dessa vez, a sua voz foi diferente. Polida, profissional. A voz de um detetive a falar com um desconhecido. Dava a impressão de estar a tentar marcar uma reunião, mas as coisas não estavam a correr-lhe de feição.
- Quando parte para a conferência? Serei franco, senhor; preciso de falar consigo o mais depressa possível. Tem a ver com um dos seus antigos professores. Russell Granger...
Até eu ouvi o súbito guincho na outra ponta da linha. E, logo a seguir, Bobby estava a fazer que sim com a cabeça.
- Pode confirmar-me a sua morada? Lexington. Acontece que estou mesmo ao virar da esquina.
Olhou para mim. Correspondi com um encolher de ombros, grata por não ter de dar mais explicações. Era evidente que Bobby estava a tentar marcar uma entrevista com
o antigo chefe do meu pai, e não menos evidente que essa entrevista tinha de se realizar imediatamente.
Não me importava. Claro que por nada deste mundo eu ficaria à espera no carro.
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- Está na hora de levares a Bella a passear - anunciou Bobby, enquanto percorriam uma sinuosa rua lateral a norte da estátua do Minuteman, no centro de Lexington. Paul Schuepp indicara o seu número de porta como sendo o 58. Bobby identificou o 26, depois o 32, confirmando que ia na direção certa. - Parece um bom sitio para esticar as pernas.
Annabelle reagiu mais ou menos tão bem como ele esperava.
- Ha-ha-ha. Muito engraçado.
- Estou a falar a sério. Isto é um assunto oficial da polícia.
- Então está na hora de me nomeares ajudante, porque eu vou contigo. Porta número 58... Ali, a casa branca estilo colonial, com a fachada de
tijolo vermelho.
- Sabes, isto já não é propriamente o oeste selvagem.
- Não tens lido as notícias acerca de tiroteios na cidade? Olha que até parecia o velho oeste.
Bobby virou para o caminho de acesso da casa. Tinha de tomar uma decisão. Gastar dez minutos, dos trinta que Schuepp aceitara dispensar-lhe, a discutir com Annabelle, ou deixá-la ir com ele e ouvir outro sermão acerca de métodos policiais corretos da boca de D. D. Ainda estava irritado em consequência da última conversa que tivera com ela e isso acabou por não redundar em benefício da sargento.
Abriu a porta e não disse nada quando Annabelle lhe seguiu o exemplo.
- O detetive Sinkus localizou Charlie Marvin - disse à jovem enquanto se dirigiam para a porta da frente. - Passou a noite no albergue de Pine Street, da meia-noite às oito da manhã. Nove sem-abrigo e três membros do pessoal responderam por ele. Portanto, quem quer que tenha ido ao seu prédio deixar o presente, não era ele.
Annabelle soltou um resmungo. Sem dúvida que Charlie Marvin constituía um bom suspeito aos seus olhos. Por um lado, era uma espécie de cruzamento urbano entre um sacerdote e o Pai Natal. Por outro, não era o pai dela.
Bobby gostaria de dizer que também não acreditava que o pai dela tivesse regressado dos mortos. Mas sentia-se mais confuso a cada hora que passava. Mr. Petracelli fora uma lição pungente acerca do poder da obsessão.
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Mandaria outro agente investigar o paradeiro do pai de Dori na noite anterior, embora, com toda a sinceridade, lhe parecesse que entregar presentes embrulhados
em tiras de banda desenhada era um pouco subtil para um homem que estava obviamente doido varrido.
O esboço era a chave de tudo, concluiu o detetive. Quem teria Russell Granger conhecido e por que motivo se sentira ameaçado quase dois anos antes de apresentar
a primeira queixa à polícia?
Ao fim de cinco minutos de conversa com Walter Petracelli, tornara-se evidente para Bobby que o antigo vizinho de Annabelle não possuía a chave para essas respostas. Talvez tivesse mais sorte com o antigo chefe de Russell, a quem telefonara às sete da manhã, à porta do prédio de Annabelle. Parecia que nos últimos tempos não fazia senão trabalhar com o telemóvel. Contudo, as exigências sobre o seu tempo tinham levado D.D. a agir nas suas costas. A contactar o médico legista, numa tentativa pouco velada de fundamentar a sua própria teoria acerca do caso... só de pensar nisso Bobby ficava outra vez furioso.
Procurou o batente de bronze, estrategicamente localizado no meio de uma gigantesca coroa de bagas vermelhas. Depois de bater três vezes e fazer cair meia dúzia de bagas, a porta abriu-se.
A primeira impressão de Bobby acerca de Paul Schuepp: uns cinco centímetros mais alto do que Yoda e dois anos mais novo do que o mundo. O minúsculo e encarquilhado antigo diretor do Departamento de Matemática do MIT tinha cabelo grisalho ralo, o couro cabeludo com manchas de velhice e olhos azuis remelosos, que o observavam sob um par de grossas sobrancelhas brancas. O rosto de Schuepp afundava-se com os anos, revelando pálpebras orladas de vermelho, bochechas trémulas e grandes pregas de pele flácida em torno do pescoço.
O matemático estendeu uma mão nodosa e segurou o braço de Bobby com uma firmeza inesperada.
- Entre, entre. Muito prazer em vê-lo, detetive. E esta é...? Parou subitamente, arregalando os olhos descaídos.
- com a breca! Se não és a cara chapada da tua mãe! Annabelle, não é? Já crescida. Raios me partam. Entrem, entrem, por favor. Ora bem, isto é uma honra. vou buscar café para nós. com os diabos, deve ser meio-dia em qualquer lado; vou é buscar whisky
Começou a andar em passinhos miúdos e rápidos, atravessando o vestíbulo abobadado em direção à sala de estar formal. Aí, uma nova passagem em arco dava para a sala de jantar, onde uma viragem à direita o levou à cozinha. Bobby e Annabelíe seguiram-no através do labirinto da casa. O detetive observou os pesados móveis com padrões florais, os delicados naperons de croché, os ramos de folhas de eucalipto que adornavam a parte de cima das cortinas cor de malva que caíam até ao chão. Esperava que existisse algures uma Mrs. Schuepp, pois a vida seria demasiado assustadora se aquela decoração fosse obra de Mr. Schuepp.
A cozinha era de estilo rústico, com armários de carvalho e uma gigantesca mesa oval de nogueira. Uma tábua giratória, colocada no centro da
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mesa, continha um açucareiro, um saleiro e uma pequena coleção de medicamentos. Schuepp atrapalhou-se com a máquina de café, depois foi à despensa de onde, após muito tilintar de vidro, regressou com uma garrafa de Chivas Regai.
- O mais certo é o café estar uma porcaria - anunciou ele. - A patroa faleceu no ano passado. Ela sim, sabia fazer café como deve ser. Pessoalmente - acrescentou, pousando o Chivas em cima da mesa -, recomendo o whisky.
Annabelle observava-o de olhos muito abertos. Schuepp exibiu três copos. Quando os dois recém-chegados recusaram a bebida, encolheu os ombros, serviu-se de dois dedos de whisky e emborcou-o de um trago. O seu couro cabeludo manchou-se de vermelho-vivo. Engasgou-se, começou a tossir, e Bobby teve uma visão assustadora do seu entrevistado a cair subitamente morto. Mas o velho professor recuperou, batendo no peito encovado.
- Não sou grande bebedor - explicou. - Mas, dadas as circunstâncias, estava a precisar de um empurrãozinho.
- Sabe o que nos trouxe cá? - inquiriu Annabelle com brandura.
- Deixa-me perguntar-te uma coisa, minha jovem. Quando morreu o teu estimado pai?
- Há quase dez anos.
- Aguentou esse tempo todo? Ainda bem para ele. Onde?
- Tínhamos voltado para Boston.
- A sério? Hum, interessante. E, se me permites a pergunta, como?
- Atropelado por um táxi, ao atravessar a rua.
Schuepp arqueou uma sobrancelha branca e hirsuta, acenando para si mesmo.
- E a tua mãe? Annabelle hesitou.
- Há dezoito anos. Em Kansas City.
- Como?
- overdose. Álcool misturado com analgésicos. Ela, hum, começou a ter problemas com a bebida. Encontrei-a ao regressar da escola.
Bobby atirou-lhe um olhar rápido. Annabeile já prestara informações mais detalhadas a Schuepp do que jamais lhe dera a ele.
- Danos colaterais - observou o velho matemático num tom prático. - Faz um certo sentido. Vamos? - Indicou a mesa com um gesto. O café está pronto, embora eu insista que fariam melhor em experimentar o whisky.
Voltou à cozinha, pôs a cafeteira, chávenas e uma caneca com natas num tabuleiro. Bobby tirou-lho das mãos sem pedir licença, sobretudo porque não conseguia imaginar um homem de quarenta e cinco quilos a levantar um tabuleiro de cinco quilos. Schuepp correspondeu com um sorriso de apreço.
Instalaram-se à mesa. Bobby tinha a cabeça às voltas, Annabelle estava mais pálida a cada segundo que passava. ,
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- O senhor conhecia o meu pai - afirmou ela.
- Tive a honra de ser diretor do Departamento de Matemática durante quase vinte anos. O teu pai trabalhou lá cinco desses anos. Muito pouco tempo, mas bastou para deixar a sua marca. Interessava-se por matemática aplicada, sabes, não por matemática pura. Tinha uma relação excelente com os estudantes e uma mente brilhante para estratégia. Costumava dizer-lhe que devia deixar o ensino e ir trabalhar para o Ministério da Defesa.
- Era chefe dele? - clarificou Bobby, para cumprir as formalidades.
- Contratei-o com base na calorosa recomendação do meu bom amigo Dr. Gregory Badington, da Universidade da Pensilvânia. Era a única solução, dadas as circunstâncias.
- Espere um minuto. - Bobby conhecia aquele nome. - Gregory Badington de Filadélfia?
- Sim, senhor. O Greg dirigiu o programa de matemática da Universidade da Pensilvânia de 72 a 89, segundo creio. Faleceu há poucos anos. Aneurisma. Quem me dera ter essa sorte. - Schuepp acenou vigorosamente, sem ponta de sarcasmo.
- Então Gregory Badington era o antigo chefe do Russell Granger disse Bobby devagar. - Recomendou-o para o seu programa e, simultaneamente, permitiu que Russell se mudasse com a família para a casa do próprio Gregory em Arlington. Ora, porque havia o Dr. Badington de fazer isso?
- O Greg formou-se em Harvard - informou Schuepp. - Nunca perdeu o amor por Boston. Quando se tornou evidente que a família do Russell tinha de deixar Filadélfia, o Gregory teve todo o gosto em dar uma ajuda. - O velho professor virou-se para Annabelle. Apertou-lhe a mão entre os seus dedos de velho. - O que é que o teu pai te contou, querida?
- Nada. Não queria que eu me preocupasse e depois já era demasiado tarde.
- Até terem descoberto a sepultura em Mattapan - concluiu Schuepp por ela. - Vi a notícia, até ponderei a possibilidade de telefonar à polícia, quando vi o teu nome.
Tinha quase a certeza de que os restos mortais recuperados não podiam ser teus. Calculei que fosse aquela outra rapariguinha da tua rua.
- Dori Petracelli.
- Isso mesmo. Desapareceu poucas semanas depois da vossa partida. Isso quase matou o teu pai. Apesar de todo o seu planeamento, o Russell nunca esperou uma coisa daquelas. Que fardo terrível para se suportar! Depois disso, compreendo por que razão nunca te contou nada. Que pai quer que a filha descubra que ele salvou a vida dela à custa do sacrifício da sua melhor amiga? Escolhas terríveis, terríveis, em dias igualmente terríveis.
- Mr. Schuepp... - começou Annabelle.
- Mr. Schuepp - interrompeu Bobby, pegando atabalhoadamente na caneta, com pressa em pôr tudo aquilo por escrito.
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O encarquilhado velhote sorriu.
- Quer-me parecer que afinal não vou poder ir à minha conferência
- observou. Pegou na garrafa de whisky, verteu nova dose no seu copo e emborcou-o.
E começou a contar a sua história desde o princípio.
- O teu pai, Roger Grayson como se chamava nessa altura, perdeu os pais aos doze anos. Não era uma coisa de que ele gostasse de falar. Não soube os pormenores da boca dele, mas sim pelo Greg, que apanhou os mexericos que corriam no departamento. Foi um caso de violência doméstica. O Russell, isto é, o Roger, penso...
- Russell, chame-lhe Russell - disse Annabelle. - É assim que penso nele. - Os seus lábios contraíram-se, parecia estar a experimentar as palavras: Roger Grayson. Roger, por favor, não vás... Franziu o sobrolho, fez uma careta e disse mais enfaticamente "Russell".
- Seja. Russell. Pois bem, a mãe do Russell tentou deixar o pai dele. O pai não reagiu bem à notícia e uma noite apareceu em casa com uma arma na mão. Matou-a com um tiro e depois suicidou-se do mesmo modo. O Russell estava em casa nessa noite. O irmão mais novo também.
- Irmão? - exclamou Annabelle, atónita.
A caneta de Bobby imobilizou-se sobre o bloco de notas.
- Dois rapazes Grayson? - Visualizou mentalmente o esboço, a semelhança com a descrição que tinham do pai de Annabelle e, de repente, tudo começou a fazer sentido.
Schuepp anuiu.
- Irmão. Tens um tio, minha querida, embora tenha a certeza de que nunca ouviste falar nele.
- Não, não ouvi.
- Era o que o teu pai queria. Por boas razões. Depois do tiroteio, o Russell e o irmão, Tommy, tiveram a sorte de serem admitidos na Milton Hershey School para crianças desfavorecidas. Ambos os rapazes já davam sinais muito promissores em termos académicos e o programa de alunos internos da Hershey era excelente para eles. Rigor académico num encantador ambiente pastoril.
"O teu pai saiu-se excecionalmente bem. O Tommy, sete anos mais novo do que ele, não. Houve sintomas de problemas mentais desde o princípio. Raiva, incapacidade de controlo de impulsos. Perturbação de hiperatividade e défice de atenção. Transtorno de apego reativo. Tenho interesse nesse campo, pois trabalho no desenvolvimento de um modelo padrão como auxiliar de avaliação em crianças. Mas isso não interessa nada.
Schuepp desvalorizou aquele desvio na sua própria conversa com um aceno da mão e prosseguiu, num tom mais enérgico:
- O teu pai concluiu o secundário bastante cedo e foi aceite na Universidade da Pensilvânia. Era um estudante incrivelmente dotado e o Gre-
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gory afeiçoou-se a ele. Sob a orientação do Greg, o Russell matriculou-se
: no mestrado e começou a pensar seriamente em obter um doutoramento
em Matemática. Pelo caminho, apaixonou-se por uma bonita estudante de
enfermagem e, a meio da preparação para o doutoramento, casou com ela.
"Entretanto, chegou a hora de o Tommy deixar a Hershey. Não tendo mais família a quem recorrer, foi ter com o teu pai. E, sem saber que outra coisa fazer, o teu pai acolheu-o. Não era uma situação ideal para um ho mem recém-casado, que se esforçava por conciliar uma esposa jovem e estudos exigentes, mas é o que as famílias fazem.
"O Tommy arranjou emprego a lavar pratos num restaurante da zona.
Trabalhava como segurança à noite e metia-se em problemas durante
o dia. Foi preso três vezes, por pequenos delitos que incluíam perturbação
da ordem pública, drogas, álcool, e o teu pai pagou-lhe sempre a fiança.
A acreditar no Tommy, a culpa era sempre dos outros. Tinha sempre sido
o outro a começar.
"Por fim, uma noite a tua mãe resolveu ter uma conversa com o marido. Disse-lhe que estava assustada. Tinha apanhado duas vezes o Tommy a espreitar para o quarto onde ela estava a mudar de roupa. E tinha a certeza de que ele entrara na casa de banho uma vez, enquanto ela estava no duche. Quando o chamou, ele entrou em pânico e fugiu.
"Foi o bastante para o teu pai. Tinha construído a sua vida sem ajuda; o Tommy podia fazer o mesmo. De maneira que correu com o irmão mais novo. Mesmo a tempo, ao que parece, porque poucas semanas depois a tua mãe descobriu que estava grávida.
"Infelizmente, o Tommy nunca foi de facto embora. Aparecia sem avisar, a qualquer hora. Às vezes, o Russell estava em casa. A maior parte delas, não estava. A tua mãe, Leslie... Lucy, como se chamava na altura...
Bobby escrevinhou rapidamente o nome, enquanto via os lábios de Annabelle formarem o nome da mãe. Lucy. Lucy Grayson. O que representaria para ela ouvir o verdadeiro nome da mãe pela primeira vez, ao fim í de tantos anos? Mas Schuepp continuava a falar, não lhe deixando tempo para especulações.
-... ficou tão preocupada que deixou de acender as luzes e punha a televisão tão baixo que parecia que não estava ninguém em casa - dizia o velho professor. - Mas o Tommy insistia em aparecer, geralmente dez minutos depois de ela regressar a casa no fim de um turno no hospital. A Leslie, a tua mãe, convenceu-se de que ele andava a segui-la.
"O Russell confrontou o irmão, disse-lhe que aquele disparate tinha de acabar. O Tommy já não era bem-vindo à vida deles. Se voltasse a aparecer, o Russell chamaria a polícia.
"Pouco tempo depois, começaram a aparecer animais mortos e mutilados à porta do prédio deles. Gatos esfolados. Esquilos decapitados. O Russell estava convencido de que era obra do Tommy. Consultou a polícia. Esta não podia fazer grande coisa sem provas. O Russell instalou um sistema de segurança doméstico, pôs correntes de segurança nas portas, até
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montou uma lâmpada potente com sensor de movimento por cima da porta. A Leslie aceitou deixar de ir e vir sozinha do trabalho. O Russell passou a acompanhá-la sempre, tanto no trajeto de ida, como no de volta.
"O Gregory lembrava-se de ter encontrado o Russell sentado no seu gabinete, uma noite, a olhar para o vazio. Quando o Greg bateu delicadamente à porta, o Russell disse-lhe: "Ele vai matá-la. O meu pai assassinou a minha mãe. O Tommy vai destruir a minha mulher."
"O Gregory ficou sem saber o que dizer. A vida continuou e, uns meses depois, a Leslie deu à luz. O Tommy desaparecera algures; o Russell não sabia onde e não se importava. Adorou ser pai. Ficou completamente doido por todos os aspetos da paternidade. Ele e a tua mãe tiveram finalmente a lua de mel que nunca tinham tido. Até que...
- O Tommy regressou - concluiu Annabelle calmamente.
- Tu tinhas dezoito meses - disse Schuepp. - Mais tarde, o Russell veio a saber que o único motivo pelo qual o Tommy tinha desaparecido é que estivera preso por agressão. Mal foi libertado, reatou as coisas no ponto onde as deixara. Só que deixou de se interessar pela Leslie. Queria-te a ti.
"Da primeira vez, confrontou o Russell e a Leslie na rua. Vinham do parque, tu estavas no teu carrinho. Era dia claro. Mal viu o Russell e a Leslie, o Tommy atravessou a rua e barrou-lhes a passagem. "Como estão, é bom ver-vos, esta é a minha nova sobrinha? Oh, é finda." E, antes que o Russell tivesse tempo para se mexer, tirou-te do carrinho, a arrulhar e a aconchegar-te nos braços. O Russell tentou puxar-te para o seu colo. O Tommy esquivou-se. Tinha um brilho estranho nos olhos, dizia o Russell, que ficou aterrorizado. Não sabia se ele ia beijar-te ou atirar-te para baixo de um carro.
"Naturalmente, o Russell tratou de se mostrar simpático. A Leslie também. Por fim, conseguiram recuperar-te, puseram-te outra vez no carrinho e recomeçaram a andar. Mas estavam ambos tremendamente abalados.
"No dia seguinte, o Russell mudou as fechaduras e pagou do seu bolso um novo sistema de segurança para o prédio inteiro. Voltou à polícia, que verificou os antecedentes do Tommy e descobriu que tinha cadastro. Contudo, continuava sem poder fazer nada. Afinal, não é crime fazer uma visita à sobrinha. Notaram a preocupação do Russell, registaram-na.
"O Russell saiu da esquadra mais assustado do que quando lá entrara. Acabou por falar com o Greg acerca da possibilidade de pedir uma licença sem vencimento. Não queria deixar a Leslie sozinha com o bebé, nem por uma hora. O Greg convenceu-o a não o fazer. O Russell tinha acabado de obter o seu doutoramento. Pedir uma licença naquela fase seria desastroso para a sua carreira. Além disso, a tua mãe já não trabalhava, portanto, alguém tinha de ganhar a vida.
Assim, o Russell resolveu continuar a trabalhar e a Leslie arranjou as coisas para que os seus pais fossem visitar-vos. com certeza que isso vos proporcionaria segurança.
- Oh, não! - sussurrou Annabelle. A sua mão erguera-se, tapava-lhe a boca. Bobby seguiu a sua linha de raciocínio. Os avós, que, segundo
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lhe disseram, tinham morrido num acidente de automóvel. De algum modo, Bobby tinha a sensação de que a verdade seria bem mais devastadora do que uma tragédia rodoviária. Schuepp anuiu tristemente.
- Oh, sim. Os pais da tua mãe vieram. Levaram-te a passear. Nunca mais regressaram. Um polícia de giro encontrou-os sentados num banco do parque, lado a lado. Ambos baleados no coração, por uma pistola de pequeno calibre. Tu andavas por ali sozinha, agarrada a um ursinho de peluche novo em folha. Preso ao pescoço do urso havia um cartão com as palavras: "com amor, do tio Tommy."
"A polícia prendeu o Tommy imediatamente e interrogou-o, mas ele negou qualquer envolvimento. Segundo ele, tinha passado pelo parque, dera-te o urso e conversara brevemente com os teus avós. Estavam todos de perfeita saúde quando os deixara. A polícia fez uma busca no apartamento dele, mas não encontrou nada. Sem a pistola, sem qualquer testemunha ou outras provas, não havia nada que pudessem fazer. Sugeriram ao teu pai que pedisse uma providência cautelar contra o irmão. O Russell respondeu que a mãe dele tentara isso.
"Nessa mesma tarde, foi ao gabinete do Greg e anunciou que tinha tomado uma decisão. Ia desaparecer com a família. Era a única maneira de ficarem em segurança.
"Mais uma vez, o Greg tentou ser a voz da razão. Que sabiam o Russell e a Leslie acerca de uma vida na clandestinidade? Como arranjariam identidades falsas, novas cartas de condução, empregos? Não era tão fácil como nos filmes.
"Mas o Russell mostrou-se inabalável. Quando olhava para o irmão, via o pai. Já tinha perdido o suficiente devido à raiva obsessiva de um homem. Não ia perder mais nada. E quanto mais ele falava, mais o Greg se deixava convencer. Acabou por ser o Greg a ter a ideia de se mudarem para a casa dele em Arlington. A escritura estava em nome dele, a água e a luz, também. Seria seguramente difícil o Tommy descobri-los na sua nova casa, no Massachusetts.
"O Gregory deu-me uma apitadela, a explicar a situação. Acontecia que tínhamos uma vaga no departamento, portanto acertámos os detalhes. Ô Russell e a tua mãe mudar-se-iam para Arlington, eu ofereceria ao teu pai um emprego no MIT. Como é natural, tinha de o registar com o seu verdadeiro nome, Roger Grayson, na lista de pagamentos do departamento. Mas combinei as coisas com as pessoas certas e, para todos os efeitos práticos, o teu pai passou a ser Russell Granger, casado com Leslie Ann Granger, pais de uma filha adorável, Annabelle Granger. Só os cheques do ordenado e outros registos financeiros diziam o contrário.
"Julgávamos que tínhamos sido muito espertos, mas não fôramos espertos o suficiente.
- O Tommy encontrou-os - disse Bobby sem rodeios. Annabelle já não dizia nada. Estava sentada, em estado de choque, demasiado aturdida para falar.
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- Era a opinião do Russell. Justamente quando eles se mudaram para Arlington, saiu a notícia do rapto de uma rapariga que parecia tua irmã mais velha, Annabelle.
O Russell ficou instantaneamente nervoso. Receava que o Tommy estivesse na zona, à procura da Annabelle.
- O caso da Catherine - confirmou Bobby. - Foi outro tipo, o Rjchard Umbrio. Mas a grande semelhança física entre a Catherine e a Annabelle era motivo para o Russell ficar assustado, pensar o pior. - Lançou um olhar a Annabelle. - E mesmo para levar o teu pai a fazer-se passar por agente do FBI, para poder chegar à Catherine no hospital e interrogá-la.
- O Tommy é o homem representado no esboço - murmurou Annabelle. - O meu pai desenhou um retrato do Tommy para ver como a Catherine reagia.
- Provavelmente.
A jovem conseguiu esboçar um sorriso retorcido.
- Bem te disse que havia uma explicação lógica. - Mas o seu rosto continuou pálido, retraído.
- Umbrio, Umbrio - murmurou Schuepp. - É isso. A polícia acabou por deter um brutamontes e acusou-o do crime. Já me lembro. Apesar disso, o Russell recusou-se a baixar a guarda. Foi aprender karaté, lia obsessivamente tudo o que havia para ler acerca de assédio. Não faço ideia de como seria estar no lugar dele: primeiro perder os pais numa idade tão jovem, depois sentir que essa situação trágica estava a repetir-se.
"Sei que se sentia muito culpado por o que a tua mãe estava a passar. Sei que, nas poucas vezes em que os vi juntos, em eventos sociais, o teu pai mostrava-se hiperatento, incansavelmente animado. Se conseguisse sorrir o bastante, falar bastante alto, então tudo correria bem.
"A tua mãe adorava-te, Annabelle - disse Schuepp tranquilamente.
- Quando chegou a altura, ela nunca hesitou.
"Em finais de outubro, o Russell veio ao meu gabinete. O Tommy tinha voltado. Deixava presentes para a Annabelle à porta de vossa casa, perseguia-a. O Russell dizia que a culpa era toda sua. Não fora suficientemente minucioso. Contas bancárias, registos fiscais, tudo isso deixava rasto. Era apenas uma questão de tempo.
"Dessa vez, o Russell tinha comprado novas identidades para a família, tomara medidas para trocar o vosso antigo carro por um novo. Tudo o resto seria deixado para trás. Rápidos e ligeiros, disse-me ele. Era essa a chave. Nem sequer quis dizer-me para onde vocês iam.
"Quando ele partiu, lembro-me de ficar a pensar se conseguirias safar-te. Ou se uma noite ouviria simplesmente a história nas notícias. Durante duas semanas, tudo pareceu estar bem. Depois aquela rapariguinha, a tua amiga, desapareceu. Assim que ouvi o nome da rua onde ela morava, soube quem era o culpado. O teu pai dizia que o Tommy nunca tinha sabido lidar bem com o desapontamento.
- O meu pai soube? Acerca da Dori? - apressou-se a perguntar Annabelle. - Falou consigo?
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- Telefonou-me três dias depois - respondeu Schuepp. - Disse que tinha ouvido a reportagem no noticiário nacional. Não sabia o que fazer. Por um lado, tinha a certeza de que fora o Tommy. Por outro, se regressasse para se dirigir à polícia...
- O Tommy conseguiria encontrá-lo outra vez - concluiu Bobby.
- E o senhor? Contactou a polícia?
- Deixei uma mensagem anónima na linha direta. O suficiente para que a minha consciência sentisse que tinha feito alguma coisa. No entanto...
- Não o suficiente para ajudar a Dori Petracelli. - Bobby fitou-o. Estava na posse de uma informação vital. Se se tivesse apresentado...
- A polícia iria atrás do Russell e da Leslie - declarou Schuepp num tom prático. - Arrastá-los-ia de novo para o Massachusetts, expô-los-ia ao
Tommy. O mais certo
era a pequena dos Petracelli já estar morta. Concentrei-me na vida que ainda podia ser salva; a tua, Annabelle.
Bobby abriu a boca. Mas, antes que tivesse tempo para argumentar, Annabelle antecipou-se:
- Explique isso a Mr. e Mrs. Petracelli. Também eram pais. Mereciam melhor do que ver a sua filha posta de lado só para que os vizinhos pudessem continuar com as suas vidas. - Virou o rosto, amargurada.
Schuepp serviu nova dose de whisky, empurrou o copo para ela.
Mas Annabelle recusou-se a pegar na bebida. Em vez disso, dominou-se, compôs o rosto naquela expressão resoluta que Bobby tão bem conhecia.
- Só mais uma pergunta, Mr. Schuepp. Pode dizer-me o meu verdadeiro nome?
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O meu nome é Amy Marie Grayson. Amy Marie Grayson.
Estava sentada no banco do passageiro do Crown Vic de Bobby, agarrada as cinzas dos meus pais, enquanto repetia o meu verdadeiro nome uma e outra vez, para ver se rolaria naturalmente da minha boca. Já estávamos novamente na Estrada 2, a caminho de qualquer lado. Pouco me importava.
Amy Marie Grayson. Ainda tinha um sabor pouco natural, estranho, nos meus lábios.
Em toda a minha vida, sempre me considerara duas pessoas: Annabelle Granger e Atual Nome Falso - o nome que acontecesse estar a usar de momento. Agora, segundo Mr. Schuepp, era de facto três pessoas: Amy Grayson, Annabelle Granger e... bem, e os outros todos.
Essa ideia confundia-me. Descansei a cabeça contra o vidro frio da janela e, por um instante, vi outra vez o meu pai, sentado à minha frente no Giacomos, a festejar o meu vigésimo primeiro aniversário, parecendo satisfeito.
O meu pai vencera. Nunca tinha compreendido, porque ele nunca me deixara participar na guerra que travava. Mas, aquela noite, o meu aniversário deve ter-lhe parecido uma vitória. Perdera a mãe. Perdera a mulher. Mas a filha... A mim, pelo menos, ele tinha conseguido manter em segurança, embora isso lhe tivesse custado tanta coisa pelo caminho.
E agora sentia-me maravilhada, cheia de uma humildade que me trouxe as lágrimas aos olhos, por ele considerar a minha vida uma vitória. Renunciara à sua carreira por mim. Renunciara aos seus vizinhos, à sua casa, ao seu próprio sentido de identidade. Em última análise, renunciara à sua mulher.
Vejo o meu pai distante. Vejo-o implacável, duro, agressivo. Mas não me lembro de o ter jamais visto ser amargo ou mesquinho. Tinha sempre a sua causa, a sua razão, mesmo se a sua paranóia dava comigo em doida.
E agora que sabia toda a história, a única coisa que queria era recuar no tempo para lhe pedir desculpa, para lhe dar um abraço de gratidão, para lhe dizer que finalmente compreendia. Por outro lado, a delicadeza nunca fora o que o meu pai queria para mim. Discutíamos, constantemente, incessantemente, em parte porque o meu pai sempre gostara de uma boa batalha. Criara uma lutadora. E gostava de testar as minhas aptidões.
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Amy Marie Grayson. Amy Marie.
E, por um breve instante, quase consegui ouvir. A voz da minha mãe, arrulhando docemente. "O meu anjinho... bom dia, Amy, mami, mimi."
Estava a chorar. Não queria. Mas a enormidade daquilo tudo atingiu-me de repente. O sacrifício da minha mãe. A perda do meu pai. E dei por mim a soluçar, violentamente, brutalmente, apenas com uma vaga consciência da mão de Bobby no meu ombro. Depois o carro abrandou, parou mesmo. O meu cinto de segurança soltou-se. Bobby puxou-me para o seu colo, um movimento desajeitado devido à dura intrusão do volante. Mas não me importei. Enterrei o rosto no seu ombro. Agarrei-me a ele como uma criancinha. E solucei porque os meus pais tinham dado tudo para salvar a minha vida, e eu ficara furiosa com eles por isso.
- Ch-ch-ch - fazia ele, uma e outra vez.
- A Dori está morta por minha causa.
- Ch-ch-ch-ch-ch.
- E a minha mãe e o meu pai. E cinco outras raparigas. E para quê? Que tenho eu de tão especial? Nem sequer consigo conservar um emprego e o meu único amigo é um cão.
Como se me tivesse percebido, Bella ganiu ansiosamente no banco de trás. Tinha-me esquecido dela. A cadela saltou por cima das costas do banco, passando para a frente. Sentia-a puxar-me a perna com a pata. Bobby não a afastou. Limitou-se a murmurar mais palavras reconfortantes. Sentia a força dos seus braços à minha volta. A faixa rija dos seus músculos.
Fiquei um pouco louca. Que ele pudesse parecer tão real, tão forte, quando eu tinha a impressão de que tudo na minha vida se desintegrava, se desfazia em pedacinhos que se dispersavam como confetes. E dei graças por estarmos num carro parado na berma de uma estrada movimentada, porque, se estivéssemos no meu apartamento, eu tê-lo-ia despido. Ter-lhe-ia tirado cada peça de roupa, a pouco e pouco, só para poder tocar na sua pele, correr-lhe a língua sobre os músculos do estômago, provar o sabor a sal das minhas lágrimas no seu peito, porque precisava muito de fugir aos meus próprios pensamentos, de sentir apenas a intensidade de um momento de frenesim, de me sentir viva.
Amy Marie Grayson. Amy. Marie. Grayson.
Oh, Dori, tenho tanta pena! Oh, Dori!
Bobby beijou-me. Puxou-me o queixo para cima, cobriu os meus lábios com os seus. E foi tão meigo, tão generoso, que me fez chorar outra vez, até que peguei na mão dele e a comprimi contra o meu peito, com força, porque não queria sentir-me como se fosse feita de vidro e não queria que ele me visse como alguém capaz de quebrar.
Amy Marie Grayson. Cujo tio destruíra a sua família inteira.
E a encontrara de novo na véspera à noite.
Afastei-me, batendo com o cotovelo no volante. Bella ganiu outra vez. Deslizei do colo de Bobby, voltei para o meu lugar e apertei Bella contra
mim.
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Bobby não tentou reter-me. Não disse uma palavra. Ouvi-o respirar pesadamente.
Limpei as faces. Bella ajudou, com algumas lambidelas entusiásticas.
- Devia voltar ao trabalho - declarei bruscamente. Bobby fitou-me com uma expressão de estranheza.
- A fazer o quê?
- Tenho um projeto para entregar. Back Bay. A minha cliente vai estranhar.
Bobby ficou a olhar para mim.
- Annabelle... Amy? Annabelle.
- Annabelle. Eu... estou habituada... Annabelle.
- Annabelle, tens de arranjar outro apartamento.
- Porquê? Sobrancelhas arqueadas.
- Bem, para começar, porque há um doido que sabe onde vives.
- O doido em questão não é propriamente um jovem. E eu não sou uma presa fácil.
- Não estás a pensar como deve ser...
- Não és o meu pai!
- Eh, calma! Apesar do meu, hum, evidente interesse pessoal... deu um puxão nas calças, que exibiam um volume agradável -... não deixo de ser um detetive estadual. Recebemos formação específica acerca destas coisas. Por exemplo, quando um perseguidor obcecado se fixa num alvo, não acontece nada de bom. Esse Tommy, ou seja qual for o nome que usa hoje em dia, descobriu claramente que tu estás viva e de boa saúde no North End. Dedicou as últimas vinte e quatro horas a assaltar a casa de uma agente da polícia, a organizar uma emboscada com quatro cães de ataque e a deixar uma prova do seu afeto à tua porta. Por outras palavras, não parece ser uma pessoa com quem queiras meter-te. Dá-nos um ou dois dias. Fica num hotel, passa despercebida. Há uma diferença entre jogar pelo seguro e fugir espavorida.
- Um hotel não me deixará levar a Bella - insisti teimosamente, apertando os braços com mais força em redor do meu cão.
- Oh, por amor de Deus... Há estabelecimentos que aceitam cães. Deixa-me fazer uns telefonemas.
- Preciso de trabalhar, sabes? Não consigo pagar as contas só com charme.
- Então leva a tua máquina de costura.
- Também preciso de tecido, do meu computador, de debruns, de desenhos...
- Eu ajudo-te a carregar as coisas.
Fiz-lhe uma carranca, sem qualquer razão, e encostei a cabeça ao pelo de Bella. - Quero que isto acabe - confessei. O olhar dele suavizou-se por fim.
- Eu sei.
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- Não quero ser a Amy - murmurei. - Ser a Annabelle já é suficientemente difícil.
Bobby levou-me a casa. Saí do carro mesmo a tempo de ouvir uma buzinadela. Voltei-me. Bella ladrava furiosamente.
Uma enorme camioneta da UPS subia pesadamente a rua. Ben, o meu idoso cavaleiro andante, na sua fiel montada castanha. Abrandou, olhou ansiosamente para mim e para Bella. Fiz-lhe sinal de que tudo estava bem, ele correspondeu com um aceno solene e seguiu o seu caminho.
- Vês? - disse eu a Bobby. - Até posso ficar no meu apartamento. com um serviço de entregas de um dia para o outro do meu lado, quem precisa da polícia estadual?
Mas Bobby não achou graça.
Foi connosco até lá acima. Alguém, o pessoal da polícia técnica, um detetive, não sabia quem, fizera um esforço para repor as coisas nos seus lugares. O meu apartamento tinha um aspeto remexido, mas não estava mal.
- Dá-me uma hora - disse Bobby. - Duas, no máximo. Tenho de fazer uns inquéritos, pôr umas coisas em ordem...
- Tens de encontrar o Tommy - repliquei. - E de dizer à D.D. que deixe de suspeitar do meu pobre pai morto.
Ele semicerrou os olhos, mas não insistiu. - Dou-te um toque quando vier a caminho.
- Sim, meu capitão!
- Faz as malas para uma semana, por uma questão de precaução. Posso sempre vir buscar alguma coisa de que te tenhas esquecido,
- Palavra? Como o meu soutien de renda preta favorito? Uma sensual tanga cor-de-rosa, altamente necessária?
Os seus olhos tornaram-se perigosamente quentes.
- Querida, teria muito gosto em revolver a tua gaveta da roupa interior. Mas não te esqueças que pode ser um agente fardado a responder à chamada.
- Oh! - Encolhi os ombros. - Então é melhor ser eu a emalar as minhas cuecas.
- Leva o que for preciso, Annabelle. Podemos encher o carro todo, se quiseres.
- Não será necessário. Sou especialista em viajar com pouca coisa.
A minha fanfarronice não o enganou nem por um momento. Aproximou-se, agarrou-me antes que eu pudesse protestar, e beijou-me com força.
- Duas horas - repetiu. - No máximo. E saiu.
Bella ficou à porta, a chorar como um bebé. Eu perguntei-me apenas como era possível uma mulher adulta sentir-se tão vulnerável na sua própria casa.
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Mal regressou ao carro, Bobby pegou no telemóvel. Tinha nomes, agora queria informações. Começou por D.D. mas foi parar ao voice mail. O mesmo aconteceu com Sinkus.
Após uma breve batalha interior, Bobby tomou uma decisão. O Departamento da Polícia de Boston atingira o limite da sua capacidade e ele precisava de informações
imediatas. Bem, raios, afinal trabalhava para a polícia estadual, não era? Cobrou um favor a um dos seus antigos amigos e pôs a bola a rolar.
Precisava de saber tudo o que havia para saber acerca de: A) Tommy Grayson; B) Roger Grayson; C) Lucille Grayson; e D), E) e F), quase apenas por descargo de consciência, Gregory Badington, Paul Schuepp e Walter Petracelli. Isso devia pôr as engrenagens a girar por um tempo.
Se a história de Schuepp estava correta, a pessoa que assediava Annabelle era, muito provavelmente, o tio, Tommy Grayson. E fazia todo o sentido que a pessoa que assediava Annabelle fosse a mesma que matara Dori Petracelli e enterrara os seus restos mortais em Mattapan.
O que significava que Tommy Grayson se mudara da Pensilvânia para o Massachusetts.
E depois?
Tommy sabia que a família de Annabelle tinha fugido. Se os seguira de Filadélfia até Arlington, fazia sentido que tivesse continuado a segui-los. Ao contrário de Christopher Eola, Tommy não era rico. Portanto, se se empenhara em seguir a família de Annabelle, fora confrontado com algumas questões logísticas básicas. Como ganhar dinheiro para renda e transportes. Como arranjar um novo emprego numa nova cidade, a intervalos de poucos anos. Provavelmente isso significara alguma forma de trabalho subalterno. Schuepp dissera que Tommy tinha trabalhado como segurança em Filadélfia. Era um tipo de emprego fácil de arranjar sem preparação prévia. Tinham de enviar uma fotografia de Tommy às polícias das várias cidades, com a recomendação de que a distribuíssem nos bares da zona. Talvez conseguissem reconstituir os movimentos dele, elaborar uma cronologia das suas viagens.
Mas como conseguira Tommy encontrar a família de Annabelle, cada vez que esta fugia? A acreditar em Schuepp, o pai dela era inteligente. Tinha aprendido depressa com os seus próprios erros. Contudo, regra geral, a família mudava-se a intervalos de dezoito meses a dois anos.
Medidas pró-ativas da parte do pai de Annabelle? À primeira notícia sobre uma criança desaparecida, assustava-se e punha a família a fazer as malas? Ou Tommy seria assim tão brilhante?
Bobby queria mais informações acerca de Tommy. E também do pai de Annabelle.
Claro que os melhores lugares de estacionamento da polícia de Boston estavam ocupados. Bobby contornou o quarteirão quatro vezes. Por fim, teve sorte e alguém saiu. Estacionou, ainda profundamente perdido nos seus próprios pensamentos, trancou o Crown Vic e entrou no edifício.
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A primeira coisa em que reparou, quando transpôs as portas de vidro que davam para o departamento de homicídios, foi no silêncio. A rececionista, Gretchen, tinha os olhos fixos no ecrã do seu computador, com uma expressão vazia. Dois outros agentes estavam sentados à secretária, a tratar de papelada, com um ar abatido.
Bobby tamborilou no balcão à frente de Gretchen. Ela levantou os olhos.
- Que aconteceu? - perguntou ele baixinho.
- A mãe do Tony Rock - respondeu a rececionista num sussurro.
- Ah, bolas!
- Ele telefonou há coisa de meia hora. Não parecia nada bem. A sargento Warren tem estado a tentar ligar-lhe desde então, mas ele não atende o telefone.
- Oh, não!
- Provavelmente só precisa de um pouco de tempo.
- com certeza. Isso é horrível. Quando tiveres informações acerca do serviço fúnebre...
- Aviso toda a gente - prometeu Gretchen.
Bobby dirigiu-lhe um aceno de agradecimento e foi direito ao gabinete de D.D. Ela estava ao telefone, mas levantou um dedo ao vê-lo. O detetive encostou-se à ombreira da porta, ouvindo um lado da conversa que consistia sobretudo em "Sim, hummm, está certo". Devia estar a falar com as chefias.
Descansou o ombro contra a moldura de madeira. De repente, sentiu-se exausto. A espera no bosque, D.D. pregada ao chão, atacada por um rottweiler gigantesco. Concluir que ela estava bem, telefonar a Annabelle apenas para ouvir a sua voz assustada na outra ponta da linha. Nova correria louca pela cidade, sem saber o que iria encontrar, receando chegar demasiado tarde.
Seria assim que o pai de Annabelle se sentia outrora? Como se a vida estivesse a fugir completamente do seu controlo? Como se visse o comboio a aproximar-se, mas não conseguisse sair da linha?
Cristo, precisava de uma boa noite de sono.
D. D. desligou finalmente o telefone.
- Desculpa - disse ela secamente. - A mãe do Rock...
- Já sei.
- Claro que ele passará alguns dias fora.
- Claro.
- O que quer dizer...
- O trabalho faz bem à saúde. Forma o caráter.
- Então? - disse ela.
- Então, o verdadeiro nome do Russell Granger é Roger Grayson. Ele, a mulher, Lucille Grayson, e a filha recém-nascida, Amy Grayson, foram assediados pelo irmão perturbado do Roger, Tommy Grayson. Viviam em Filadélfia. O Roger estava convencido que o Tommy tinha chegado ao
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ponto de matar os pais da Lucy, uma tarde em que tinham levado a a Amy ao parque. Pouco depois, o Roger arranjou maneira de se mudar com a família para Arlington e viver sob o nome de Granger. Infelizmente, não sabia como obter documentos de identidade falsos, pelo que todos os registos financeiros continuaram a ostentar
as suas identidades originais. Segundo o Paul Schuepp, o antigo diretor de Matemática do MIT, em 1982 o Roger convenceu-se que o Tommy os tinha encontrado. Foi então que organizou a segunda fuga da família, mas desta vez fazendo as coisas como deve ser.
- Santo Deus! - exclamou D.D.
- Pedi a um amigo que investigasse os nomes do Roger, da Lucille, do Tommy e mais dois ou três. O Tommy tem cadastro criminal, portanto, deve estar no sistema. A grande questão é: quando o Tommy descobriu que a família da Annabelle lhe tinha escapado entre os dedos, deixou-se ficar no Massachusetts ou fez-se à estrada? Ah, e por onde anda ele agora?
D.D. massajou as têmporas.
- O nosso principal suspeito é o Tommy Grayson?
- É. Lamento desapontar-te, mas acho que o pai da Annabelle está morto.
- Mas a história de se fazer passar por agente do FBI...
- O Russell fez a mesma associação de ideias que nós: que a Catherine era notavelmente parecida com a Annabelle. Receou que o ataque contra a Catherine tivesse sido obra do Tommy. Dado o seu desejo de continuar incógnito, não podia ir à polícia, pelo que tratou pessoalmente do assunto.
- Mas não foi o Tommy quem atacou a Catherine.
- Pois não. A semelhança entre a Catherine e a Annabelle é mera coincidência. No entanto, a metodologia do Umbrio deve ter inspirado o Tommy a utilizar uma câmara subterrânea, dois anos depois. Portanto, há uma relação, ainda que distante, entre os dois casos.
- E o Christopher Eola?
- Muito provavelmente é um assassino, mas não é o nosso assassino.
- O Charlie Marvin?
- Um pastor reformado genuíno, que trabalha no albergue de Pine Street. Tem testemunhas que dizem que esteve lá ontem à noite.
- O Adam Schmidt?
- Não faço ideia. Tens de perguntar ao Sinkus.
- Ele anda à tua procura - informou D.D. - Passou a tarde com a Jill Cochran do Hospital Psiquiátrico de Boston. Vocês dois têm de pôr a escrita em dia.
Bobby fitou-a.
- Só isso? Consigo desvendar a verdadeira identidade do pai da Annabelle, resolvo o caso com toda a limpeza, e tu cais-me em cima por ainda não ter feito um relatório para os meus colegas?
- Não te caí em cima - retorquiu ela com impaciência. - Mas estou a pensar que, apesar de todo o teu brilhantismo, ainda há um buraco evidente.
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-Que é?
- Onde diabo está o Tommy Grayson agora, para além de andar a rondar o apartamento de Annabelle e a espalhar cães de ataque pelos bosques?
- Bem, para a próxima trago-te o suspeito numa bandeja de prata. - Quer-me parecer - prosseguiu D.D. como se não o tivesse ouvido -, que, se o resto da família Grayson adotou novas identidades, é bem possível que o Tommy tenha feito o mesmo. E a nossa melhor hipótese de desvendarmos essa identidade e de apanharmos o filho da mãe, quanto mais depressa, melhor, é trabalhar a outra peça do puzzle que já conhecemos.
- A outra peça do puzzlél
- O Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston.
- Oh! - exclamou Bobby estupidamente. Mas logo se fez luz no seu espírito. - Certo. Sim. Está bem. Voltámos à nossa teoria original: o assassino deve ter tido alguma relação com o Hospital Psiquiátrico de Boston, para se sentir à vontade para enterrar seis corpos na propriedade. O que significa que, se o assassino é o Tommy Grayson...
- Que, segundo disseste, tem algumas perturbações...
- É doido varrido.
- Então o Tommy Grayson deve ter ficha no Hospital Psiquiátrico. - E - concluiu Bobby, percebendo o resto sozinho - o Sinkus tem
essas informações.
- Ainda conseguiremos fazer de ti um detetive - comentou D.D. secamente. - Mais alguma coisa que eu precise de saber?
- vou tratar de arranjar um hotel para a Annabelle. D.D. arqueou as sobrancelhas.
- E estou a pensar que, embora talvez ainda não tenha falado com ela a esse respeito, enquanto estiver bem aconchegada no dito hotel, podíamos pôr um isco em casa dela.
D.D. comprimiu os lábios.
- Dispendioso.
Bobby encolheu os ombros.
- Problema teu. Mas não me parece que a situação se arraste por muito tempo. Dado o nível de atividade nas últimas vinte e quatro horas, quer-me parecer que a paciência do Tommy está a esgotar-se.
- Falarei com o superintendente-adjunto - disse D.D.
- Combinado.
Bobby preparou-se para sair. D.D. reteve-o uma última vez.
- Bobby - disse ela em voz baixa. - Nada mal.
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Aos doze anos, contraí uma infeção viral extremamente agressiva. Lembro-me de me queixar que me sentia quente e enjoada. Quando voltei a dar por mim, estava a acordar
no hospital. Tinham passado seis dias. A avaliar pelo seu aspeto, a minha mãe não pregara olho em todos eles.
Sentia-me fraca e zonza, demasiado exausta para levantar sequer a mão, demasiado confusa para perceber o labirinto de fios e tubos intravenosos que partiam do meu corpo. A minha mãe estava sentada numa cadeira ao lado da minha cama. Mas, mal abri os olhos, voou de lá.
- Oh, graças a Deus!
- Mamã? - Não lhe chamava mamã há anos.
- Estou aqui, meu amor. Está tudo bem. Estou contigo.
Lembro-me de fechar de novo os olhos. Do toque fresco dos seus dedos a afastar o cabelo do meu rosto transpirado. Dormitei, agarrada à outra mão da minha mãe. E, nesse instante, senti-me segura e senti-me a salvo, porque a minha mãe estava ao meu lado e, quando se tem doze anos, acredita-se que os pais podem salvar-nos seja do que for.
Duas semanas depois, o meu pai anunciou que íamos partir. Até eu já estava à espera disso. Tinha passado uma semana inteira no hospital, fora picada e examinada por grandes especialistas médicos. Quem procura o anonimato não pode permitir-se esse tipo de atenção.
Fiz a minha própria mala. Não era difícil. Uns quantos pares de calças de ganga, blusas, meias, roupa interior, o meu único vestido bom. Tinha o cobertor, tinha o Boomer. Ó resto já tinha aprendido a deixar ficar.
O meu pai saíra para tratar de vários assuntos: fechar as contas com o senhorio, atestar o carro, despedir-se de mais um emprego. Deixava sempre a minha mãe encarregada de fazer as malas. Ao que parecia, condensar toda a vida de dois adultos em cinco malas era trabalho de mulher.
Já a vira executar aquela tarefa inúmeras vezes. Geralmente, ia trauteando distraidamente enquanto se mexia em piloto automático. Abrir gaveta, dobrar, emalar. Abrir outra gaveta, dobrar, emalar. Abrir armário, dobrar, emalar. Pronto.
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Nesse dia, fui encontrá-la sentada na beira da cama de casal que atravancava o seu acanhado quarto, a olhar para as mãos. Gatinhei por cima da cama e encostei-me
a ela, ombro a ombro.
A minha mãe gostava de Cleveland. As duas mulheres de idade que viviam ao fundo do corredor tinham-na tomado sob a sua proteção. Convidavam-na para um jogo de cartas e um copo de whisky às sextas à noite. O nosso apartamento era pequeno, mas mais agradável do que o de St. Louis. Não havia baratas. Não havia o guincho agudo da travagem dos comboios suburbanos na estação que ficava a um quarteirão do nosso prédio.
A minha mãe arranjara um emprego a tempo parcial na caixa do minimercado local. Ia a pé para o trabalho todas as manhãs, depois de me deixar na camioneta da escola. À tarde dávamos grandes passeios pelas ruas sossegadas, orladas de árvores, e parávamos num lago próximo para dar de comer aos patos.
Tínhamos aguentado dezoito meses, sobrevivendo mesmo ao inverno gélido. A minha mãe afirmava que a neve cinzenta e lamacenta não a incomodava nada, apenas lhe recordava a sua vida na Nova Inglaterra.
Creio que a minha mãe podia ter sobrevivido em Cleveland.
- Lamento - sussurrei-lhe. Estávamos as duas sentadas na cama, lado a lado.
- Chiu.
- Talvez, se ambas disséssemos que não...
- Chiu.
- Mãe...
- Sabes o que costumo fazer em dias assim? - perguntou-me ela. Abanei a cabeça.
- Penso no futuro.
- Em Chicago? - indaguei, confusa, pois o meu pai dissera que era para lá que íamos.
- Não, minha palerma. No futuro daqui a dez anos. Daqui a quinze, vinte, quarenta anos. Imagino a tua formatura. Imagino o teu casamento. Sonho com netinhos no colo.
Fiz uma careta.
- Ugh! Nem pensar nisso - declarei.
- Claro que sim.
- Não, nunca. Não quero casar.
Foi a vez de ela sorrir, fazer-me uma festa no cabelo, fazer de conta que não tínhamos ambas visto os seus dedos trémulos.
- Isso é o que dizem todas as rapariguinhas de doze anos.
- Não, estou a falar a sério. Nada de marido, nada de filhos. As crianças obrigam-nos a mudar de casa demasiadas vezes.
- Oh, querida! - disse ela baixinho e envolveu-me num abraço muito apertado.
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Penso na minha mãe enquanto saio do apartamento, com Bella atrás de mim. Tenho o taser na mão. Sinto-me melodramática, a descer furtivamente as escadas do meu próprio prédio, em plena luz do dia. Bobby tinha razão. O meu apartamento já não era seguro. Como se dizia no mundo dos agentes secretos e das vidas duplas, o meu disfarce estava comprometido. Portanto, bem podia seguir o conselho de Bobby e refugiar-me num hotel por uns tempos.
Era o que o meu pai teria feito.
Mas partir implicava emalar coisas. Emalar significava que eram precisas malas. E as minhas malas estavam na arrecadação; cada inquilino tinha uma arrecadação individual, na cave do edifício.
Já tinha ido buscar objetos à arrecadação inúmeras vezes. Disse a mim própria que hoje não seria diferente.
Uma tábua rangeu debaixo do meu pé. Estaquei instantaneamente. Estava no patamar do terceiro piso, mesmo à frente da porta do 3C. Fiquei a olhar para ela, com o coração aos saltos, à espera do que iria acontecer. Mas depressa recuperei o autodomínio, ralhei comigo própria.
Conhecia os inquilinos do 3C. Um casal jovem, profissionais liberais. Tinham um gato cinzento malhado, chamado Ashton, que gostava de bufar a Bella por baixo da porta. Tirando o mau feitio de Ashton, todos tínhamos conseguido coexistir ao longo dos últimos três anos. Não havia qualquer razão lógica para começar de repente a ter medo deles.
Mas a questão era mais: porque não havia de ter medo do apartamento
3C? Sem um foco tangível para a minha ansiedade, era fácil olhar para qualquer sombra escura e ver o potencial contorno do malvado tio Tommy.
Desci ao segundo piso, depois ao primeiro. No átrio veio a parte difícil. Tinha as mãos a tremer. Tive de fazer um esforço para não me descontrolar.
Remexi no meu chaveiro até encontrar finalmente a chave certa e inseri-a na fechadura. A porta lateral, antiga e pesada, abriu-se com um gemido, revelando um mergulho no abismo negro das entranhas seculares do prédio. Apalpei por cima da ombreira, até encontrar a corrente que acendia a lâmpada nua das escadas.
Ali o cheiro era diferente. Frio e bafiento, como pedras cobertas de musgo ou terra húmida. Como o cheiro da sepultura de Dori.
Bella correu pelos estreitos degraus de madeira sem hesitar. Pelo menos uma de nós era corajosa.
Ao fundo da escada, as estruturas de contraplacado cru que formavam as arrecadações estavam aparafusadas à parede oposta. Visto ser a inquilina do quinto piso, a minha arrecadação era a última. Estava fechada com um cadeado metálico posto por mim. Precisei de duas tentativas para o abrir. Entretanto, Bella investigava o perímetro da cave, lançando os latidos alegres de um cão que descobre tesouros escondidos.
Peguei nas malas dos meus pais. Cinco, verde-escuras, feitas de um tecido industrial qualquer que fora fortemente remendado com fita-cola ao
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longo dos anos. As rodinhas da maior chiaram de modo alarmante quando a puxei pelo chão fora.
E, nesse instante, vi uma enorme sucessão de instantâneos extraídos do tempo. O meu pai, naquela última tarde em Arlington. A minha mãe, a desfazer alegremente as malas no nosso primeiro apartamento, embriagada pelo luminoso sol da Florida. A emalar tudo em Tampa. A chegada a Baton Rouge. A breve passagem por Nova Orleães.
Tínhamos conseguido. Lutando, construindo, corrigindo, batalhando, sofrendo. Perdendo, odiando, vencendo, chorando. Tínhamos sido caóticos e tumultuosos, amargos e resolutos. Mas tínhamos conseguido. E nunca, até àquele momento, tinha tido tantas saudades dos meus pais. Até os meus dedos se fecharem sobre o fio com as suas cinzas e eu jurar que os sentia ao meu lado, naquela cave fria e húmida.
E apercebi-me, naquele instante, que teria feito a mesma coisa se estivesse no lugar deles. Teria movido céu e terra para salvar o meu filho. Renunciaria ao meu trabalho, à minha identidade, à minha comunidade, até à minha vida. Valeria a pena, também para mim. Era isso que significava ser pai.
Amo-vos, amo-vos, amo-vos, tentei dizer-lhes. Tinha de acreditar que eles me ouviam. Quanto mais não fosse porque, sem esse bocadinho de fé, não seria melhor do que Mr. Petracelli e afundar-me-ia num mar de amargura e remorso.
Para o alto e avante, costumava dizer o meu pai. Este será o melhor lugar de sempre!
- Para o alto e avante - sussurrei. - Está bem, paizinho, vamos a isto.
Organizei as malas, fechei o cadeado da arrecadação, e assobiei a Bella. Dada a quantidade de malas, teria de fazer dois trajetos. Comecei pela mala maior, prendi-lhe outra em cima e pus uma das mais pequenas ao ombro.
Avancei lentamente pelo corredor estreito entre as arrecadações. Olhei para cima.
E vi a silhueta de Charlie Marvin recortada no cimo das escadas, a olhar para baixo e a localizar-me na penumbra.
Bobby dirigia-se para o cubículo de Sinkus quando o seu telemóvel tocou. Viu o número no visor e atendeu.
- Recebeste o faxe?
- Olá para ti também - retorquiu Catherine.
- Desculpa. Os acontecimentos precipitaram-se.
- Como pude constatar pelo faxe. Bem, então, para responder à tua pergunta, o desenho pode ser do mesmo homem.
- Pode ser?
- Bobby, passaram vinte e sete anos.
- Reconheceste a fotografia do pai da Annabelle sem dificuldade contrapôs ele.
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- O pai da Annabelle interagiu comigo. - Catherine parecia irritada.
- Discutiu e pressionou-me até me fazer zangar. Isso causou uma impressão sobre mim. O esboço, por outro lado... Do que me lembro melhor é do meu primeiro pensamento: o homem do desenho não era o homem que me tinha atacado.
Bobby suspirou. Precisava de algo mais definitivo.
- Mas é possível este esboço ser o mesmo que te mostraram no hospital?
- É possível - concordou ela. Fez uma pausa. - Quem é?
- O tio da Annabelle, Tommy Grayson. Descobrimos que começou a assediar a Annabelle quando ela tinha cerca de dezoito meses. A família dela fugiu de Filadélfia para Arlington, num esforço para se afastar dele. Ele encontrou-os.
- Esse Tommy conhecia o Richard?
- Tanto quanto sabemos, não. Mas deve ter tido a ideia de utilizar uma câmara subterrânea depois de ter visto o teu caso nas notícias.
- Tenho muito gosto em ser útil - murmurou Catherine secamente. Porque a conhecia melhor do que a maioria, Bobby parou.
- A culpa não é tua. Catherine não disse nada.
- Além disso - prosseguiu ele com vivacidade -, agora que sabemos o nome do Tommy, o caso está quase terminado. Apanhamo-lo, prendemo-lo e pronto.
- Virás ao Arizona para festejar?
- Catherine...
- Eu sei, Bobby. Vais levar a Annabelle a jantar fora para festejar. Foi a vez de ele ficar calado.
- Gosto dela, Bobby. A sério. Faz-me sentir bem, saber que ela será feliz.
- Um dia tu também serás feliz.
- Não, Bobby, eu não. Mas talvez seja menos revoltada. Boa sorte com o caso, Bobby.
- Obrigado.
- E quando terminar, tu a Annabelle estão à vontade para virem cá visitar-me.
Bobby sabia que nunca aceitaria aquela oferta de Catherine, mas agradeceu-lhe antes de desligar.
Um ponto arrumado, uns doze por arrumar. Encaminhou-se para o cubículo de Sinkus.
Sinkus ficou aborrecido, qual rapaz que foi ao estádio, virou a cara no último minuto e perdeu a jogada da vitória. Cheirava a leite azedo.
- Quer dizer que esse professor sempre soube a história toda?
- Suponho que sim.
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- Oh, pá, passei três horas com a Jill Cochran. A única coisa que fiquei a saber foi que as antigas enfermeiras-chefe de alas psiquiátricas são mais duras do que uma freira católica. Bobby franziu o sobrolho.
- O quê, ela bateu-te nos nós dos dedos com um ponteiro?
- Não, pregou-me um sermão virulento acerca da injustiça de pensarmos sempre o pior acerca dos doentes mentais. Os doidos são gente, têm direitos. A maioria deles é inofensiva e incompreendida. "Ouça bem o que lhe digo", disse-me ela, "encontre o responsável por isto e garanto-lhe que não será um dos nossos doentes. Não, será um destacado e exemplar membro da comunidade. Uma pessoa que frequenta a igreja, estraga os filhos com mimos e trabalha das nove às cinco. São sempre os normais que cometem os atos verdadeiramente vis contra Deus." A mulher tinha um monte de opiniões acerca do assunto.
- Então onde estão as fichas? - inquiriu Bobby, tentando não se mostrar impaciente.
- Estás a olhar para elas. - Sinkus gesticulou para quatro caixas de cartão empilhadas contra a parede. - Não é tão mau como eu temia. Lembra-te de que o hospital foi encerrado antes da informatização. Julgava que íamos confrontar-nos com centenas de caixas. Mas quando a instituição fechou, Mrs. Cochran sabia que não podiam agarrar-se a pilhas e pilhas de papel com o historial dos doentes. Portanto, condensou os processos de maneira a ficarem com dimensões razoáveis. Assim, quando alguém precisa de informações acerca de um antigo doente, ela sabe por onde começar. Além disso, fiquei com a impressão de que está a pensar em utilizar os seus anos no hospital para escrever um livro. Do tipo "toda a verdade", mas com coração.
Bobby encolheu os ombros. Porque não?
Abriu a primeira caixa. Jill Cochran era uma mulher organizada. Tinha dividido as informações por década, depois por edifício, cada década contendo as fichas de vários edifícios. O detetive tentou lembrar-se do que Charlie Marvin lhes dissera acerca da organização do hospital. A segurança máxima ficava no edifício ou coisa parecida.
Procurou a década de setenta e tirou a pasta referente ao edifício. As informações acerca de cada doente tinham sido resumidas a uma página.
Apesar disso, a pasta ainda tinha um peso considerável nas suas mãos.
Encontrou primeiro o nome de Christopher Eola e leu rapidamente as notas de Cochran. Data de entrada, breve história familiar, uma coleção de termos clínicos que nada significava para Bobby, depois aquilo que parecia ser a opinião da própria enfermeira-chefe: "Extremam, perigoso, extremam, dissimulado, mais forte do que parece."
Bobby pôs um autocolante amarelo no cimo da página, para referência futura. Estava persuadido de que a cena de crime em Mattapan era obra do tio de Annabelle. Tendo chegado a essa conclusão, estava igualmente persuadido de que algures, nalgum momento, Christopher Eola cometera os
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seus próprios "atos vis contra Deus". Independentemente da resolução do caso de Mattapan, tinha a impressão de que a unidade especial concordaria em continuar a procurar Mr. Eola.
Passou os olhos pelas fichas dos outros doentes, à espera que algo lhe saltasse à vista. Um post-it fluorescente a proclamar: Sou o doido. Uma nota de um médico: Este doente é o mais capaz de raptar e torturar seis raparigas.
Muitas das fichas eram acompanhadas por notas que documentavam um historial de violência, bem como ampla atividade criminal. Contudo, em pelo menos metade dos doentes não havia qualquer indicação dos antecedentes. "Internado pela polícia", "Encontrado na rua", eram frases muito comuns. Era evidente que os sem-abrigo estavam em crise em Boston muito antes de a crise dos sem-abrigo ter sido notícia de primeira página nos anos oitenta.
Bobby chegou ao fim da pilha de fichas e compreendeu que o que lera se transformara numa longa mancha indistinta e deprimente. Parou, recuou, tentou de novo.
- De que estás à procura? - inquiriu Sinkus.
- Não sei.
- Isso complica a tarefa.
- Que estás a fazer?
Sinkus exibiu uma pasta igualmente volumosa.
- Pessoal.
- Ah! Alguém interessante?
- Só o Adam Schmidt, o auxiliar de enfermagem tarado.
- Chatice. Já o localizaste?
- Estou a trabalhar nisso. E quanto à idade?
- O quê?
- A idade. Estás à procura de um doente que possa ser o Tommy Grayson, não é? Disseste que era sete anos mais novo do que o Russell Granger. Tinha andado dentro e fora da prisão eou hospitais desde os seus, quê, dezasseis anos?
- Tanto quanto o Russell sabia.
- Portanto, se esteve internado no Hospital Psiquiátrico de Boston, era um jovem. Talvez menos de vinte anos.
Bobby ponderou aquela lógica.
- Sim, boa sugestão.
Começou a separar as folhas dos doentes, reduzindo o monte a catorze homens, entre os quais Eola e um outro caso acerca do qual Charlie Marvin lhes falara, o miúdo de rua chamado Benji, que tinha frequentado a escola enquanto vivia na moribunda instituição mental.
E agora?
Consultou o relógio, gemeu. Já tinha passado uma hora e meia. Era tempo de descobrir um hotel que aceitasse cães e ir ter com Annabelle.
Pegou nas catorze fichas.
- Importas-te que tire fotocópias disto?
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- À vontade. Hei, não disseste que o Charlie Marvin tinha trabalhado no Hospital Psiquiátrico?
- Era auxiliar de enfermagem - confirmou Bobby. - Nos tempos de faculdade. Depois ia lá como voluntário, prestar serviços pastorais, até o hospital fechar.
- Tens a certeza?
- Foi o que ele disse. Porquê? Sinkus levantou finalmente os olhos.
- Bobby, tenho décadas de folhas de pagamentos à minha frente. Dos anos cinquenta até ao encerramento. Estou a dizer-te, nenhum Charlie Marvin recebeu jamais um cêntimo que fosse.
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- Quer ajuda? - bradou Charlie lá de cima.
- Oh, hum, não é preciso. vou subir. - Bella já saltava pelas escadas acima. Enquanto eu achava o súbito aparecimento de Charlie inquietante, ela estava satisfeitíssima por ver o seu novo melhor amigo.
Saltou, pulou, lambeu. Arrastei as três malas pelos degraus, raciocinando a toda a pressa. Tanto quanto sabia, o Charlie não tinha o meu endereço. Onde, em nome de Deus, estava o meu taserí
Então lembrei-me: tinha-o pousado. Na prateleira. Dentro da arrecadação, enquanto tirava as malas. A arrecadação fechada a cadeado. Quase fix meia-volta, quase desci novamente as escadas. Quase.
- Parece que tiveram uma manhã e tanto - comentou Charlie alegremente, quando Bella e eu emergimos à luz acinzentada do átrio do prédio. Vi que um dos meus vizinhos tinha aberto as duas portas da frente. Estava a descarregar produtos do supermercado, sem dúvida. Daria um excelente cabeçalho para o Boston Herald: "Jovem Mulher Brutalmente Apunhalada enquanto Vizinho Arruma Frigorífico."
Tinha de acalmar. Estava outra vez a assustar-me sem razão. Bobby dissera que Charlie tinha passado a noite anterior no albergue de Pine Street. O que significava que não podia ter sido ele a entregar o meu último presente. Agora que estávamos ao mesmo nível, dei-me conta de que Charlie não era muito alto, nem muito corpulento, nem, dada a sua idade avançada, ameaçador. De facto, quando pousei desajeitadamente as malas, para ficar com as mãos livres para executar manobras defensivas, Charlie ajoelhou-se para coçar a minha cadela debaixo do queixo.
- Um agente telefonou para o abrigo, a perguntar por mim - disse ele num tom prático.
- A sério? Lamento muito.
- Deu-me vontade de rir - prosseguiu Charlie. - Ser "pessoa de interesse" na minha idade. Seja como for, um dos tipos que gere o albergue tem acesso aos comunicados da central da polícia. Claro que, depois disso, fomos ouvir. A central referiu este endereço e, metediço como sou, resolvi passar por cá para ver como estava. Não consigo deixar de pensar que parte disto é culpa minha.
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- Culpa sua?
- Estou a ser seguido - explicou Charlie sem rodeios. - Tenho quase a certeza disso. Começou no dia em que falei com a sargento Warren e o detetive Dodge em Mattapan. No princípio não tinha a certeza. Só tinha uma espécie de sensação esquisita entre as omoplatas. Creio que talvez estivesse a ser seguido naquela noite em que me cruzei consigo no parque. E creio que a pessoa que anda a seguir-me sabe qualquer coisa acerca da vala comum. E talvez também algo acerca de si.
- Porquê algo acerca de mim?
- Porque você é a chave para aquela sepultura, não é, Annabelle? Não sei como, não sei porquê, mas tudo isto que está a passar-se tem a ver consigo.
O meu vizinho escolheu aquele momento para entrar a correr, com quatro sacos de plástico do supermercado nas mãos. Dirigiu-nos um aceno breve e rumou à escada principal. Afinal, que havia de extraordinário num grupo composto por uma mulher jovem, um homem de idade e uma cadela em êxtase?
Os olhos de Charlie seguiram os movimentos do homem, embora os seus dedos não deixassem de acariciar as orelhas de Bella.
- Você sabe qualquer coisa acerca de Mattapan - disse eu a Charlie. Era uma afirmação, não uma pergunta.
Muito devagar, ele fez que sim com a cabeça.
- Uma coisa que não contou à polícia. Novo aceno afirmativo, lento e pensativo.
- Porque está aqui, Mr. Marvin? Porque anda a seguir-me?
- Quero saber - replicou ele tranquilamente. - Quero saber tudo. Não só acerca dele, mas acerca de si, Annabelle.
- Conte-me - exigi de súbito, um erro estúpido. Charlie Marvin sorriu.
- Está bem. Mas visto que agora somos amigos, tem de me convidar para o seu apartamento.
- E se disser que não?
- Dirá que sim, Annabelle. Tem de o fazer, se quiser saber a verdade. Tinha-me apanhado e ambos o sabíamos. A curiosidade matou o gato,
disse para comigo. Mas a verdade era um engodo demasiado potente. Devagar, mas inexoravelmente, acenei em sinal de concordância.
Fi-lo subir a escada à minha frente. Assim parecia um pouco menos estúpido. Mante-lo na minha linha de visão. Tinha de levar as malas, expliquei. Se ele fosse atrás de mim, era muito provável que lhe acertasse com uma delas sem querer. Não fazia ideia de como eu era desajeitada, acrescentei.
Charlie aceitou a minha explicação com o seu habitual sorriso alegre. De total compreensão. Sem nada de desafiador.
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A longa subida dos cinco andares, arrastando malas, ainda por cima, deu-me tempo mais do que suficiente para me insultar a mim própria. Porque me tinha esquecido do taserí E como era possível ter arranjado uma cadela que era tão má juíza de carateres?
Porque tinha a certeza de que Charlie Marvin constituía uma ameaça. Só não sabia ao certo como.
No capítulo das boas notícias, tinha a boa forma física e a juventude do meu lado. Quando chegámos ao patamar do quinto piso, Mr. Marvin tinha a respiração arquejante e a mão a comprimir o flanco.
Recuou para me dar passagem. Abri o primeiro fecho da minha porta. Depois o segundo. Depois o terceiro.
- Rapariga cautelosa - comentou ele.
- Nunca se sabe.
A porta abriu-se. Mais uma vez, deixei-o passar primeiro. Depois pus a mala gigantesca atravessada na ombreira, para segurar a porta aberta.
- Num prédio destes - observou ele -, parece que todas as nossas palavras ecoam na escada.
- Oh, ecoam mesmo - garanti. - E os gritos também. E sabemos que pelo menos um dos meus vizinhos está em casa.
Ele sorriu, agora com tristeza.
- Assustei-a assim tanto?
- Porque não me diz o que quer dizer, Mr. Marvin?
- A verdadeira ameaça não sou eu - disse ele calmamente. Pareceu-me que isso o deixava um pouco pesaroso, mesmo triste.
- Mr. Marvin...
- É ele - concluiu Charlie e apontou para trás de mim.
Bobby caminhava. Muito depressa. D.D. falava. Muito zangada.
- Não verificaste os antecedentes do Charlie Marvin?
- Informámo-nos acerca dele. Ainda esta manhã o Sinkus verificou os seus movimentos. Faz trabalho voluntário no albergue de Pine Street. Tinha álibi para a noite passada.
- Pois, claro. E como sabes que o Charlie Marvin que faz voluntariado no albergue de Pine Street é o nosso Charlie Marvin?
- O quê?
- Tens de ir pessoalmente. Tens de mostrar fotografias. São os erros estúpidos de principiante!
- Não fui eu que telefonei - protestou Bobby de novo, depois desistiu. D.D. estava demasiado irritada para lhe dar ouvidos. Precisava de alguém para implicar e ele era o sortudo mais à mão. Era para aprender.
Tinham emitido um alerta para um homem com os sinais de Charlie Marvin. Visto que tinham de começar pelo que sabiam, os agentes convergiam para o albergue de Pine Street, Columbus Park, Faneuil Hill e os terrenos do antigo Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston, tudo locais que
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se sabia serem frequentados por Charlie Marvin. com um pouco de sorte, apanhá-lo-iam a qualquer momento. Antes que ele tivesse tempo de desconfiar de alguma coisa.
- Continua a não fazer sentido - resmungou Bobby, enquanto atravessavam o átrio em passo rápido. - O Marvin não pode ser o tio tommy. É demasiado velho.
- Para o meu carro - disse D.D. empurrando as pesadas portas de vidro.
- Onde está?
Ela disse-lhe, Bobby abanou a cabeça.
- O meu está mais perto. Além disso, tu conduzes como uma menina.
- Só se a menina for a Danica Patrick - retrucou D.D. entre dentes, mas seguiu-o rapidamente em direção ao Crown Vic. Depois, quando entraram, declarou: - O Charlie Marvin mentiu. Isso é quanto basta para mim.
- Não encaixa - insistiu Bobby, pondo o motor a trabalhar. O tio Tommy deve andar pelos cinquenta anos. O Charlie Marvin tem ar de já ter passado essa barreira há pelo menos uma década.
- Talvez só pareça velho. Uma vida de crime é o que dá.
Bobby não respondeu. Saiu do estacionamento, ligou as luzes e rumou a toda a pressa para o albergue de Pine Street.
Virei-me bruscamente para a minha porta aberta. Não vi nada. Rodopiei de novo, com as mãos estendidas, os pés afastados para melhorar o equilíbrio, pronta para o contra-ataque.
Charlie Marvin continuava no mesmo sítio, com a mesma expressão beatífica no rosto. Julguei começar a compreender: Mr. Marvin ouvia vozes quando não havia lá mais ninguém. Diga-se em seu abono que Bella também parecia ter compreendido. Estava sentada entre nós na minúscula cozinha, a ganir nervosamente.
- É melhor tarde do que nunca - disse-lhe eu. Mas os cães são totalmente impermeáveis ao sarcasmo.
- Você é muito bonita - disse Charlie.
- Oh, obrigada, olhe que eu coro!
- Mas demasiado velha para o meu gosto.
- E assim se estraga um belo momento.
- Mas é você a chave. É você aquela que ele realmente quer.
Fiquei outra vez sem ar, a boca seca como cortiça. Devia fazer alguma coisa. Pegar no telefone. Gritar por socorro. Correr para as escadas. Mas não me mexi. Não queria mexer-me. Que Deus me ajude, queria mesmo ouvir o que Charlie Marvin tinha para dizer.
- Você sabia - sussurrei.
- Encontrei-a. Uma noite, há uns anos. Quando anunciaram que iam arrasar completamente os edifícios, fui lá para uma visita de despedida.
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Um último adieu a um sítio onde tinha jurado nunca mais voltar. Mas então ouvi um roçagar no bosque. Fiquei curioso. Era capaz de jurar por Deus que estava ali alguém e, de repente, fuf, tinha desaparecido. Quase bastava para fazer com que se acreditasse em fantasmas. Claro que não sou assim tão supersticioso.
"Foram precisas mais quatro noites a explorar o terreno para avistar a luz no chão. Esperei debaixo das árvores. Até que vi o homem subir da terra, apagar a lanterna e desaparecer na mata. Fui buscar uma lanterna. Regressei pouco antes da madrugada. Encontrei a abertura, desci à câmara. Nunca teria imaginado. Fiquei sem fôlego. Era a obra de um mestre. Sempre soube que não podia durar.
- Quem foi, Charlie? Quem saiu do chão? Quem matou aquelas raparigas?
Ele abanou a cabeça.
- Seis raparigas. Sempre seis. Nem mais, nem menos. Ia lá muitas vezes, à espera que algo mudasse. Mas, ano após ano... Duas filas. Três corpos por fila. Ó público perfeito. E nunca mais vi o homem, embora Deus saiba que tentei. Tinha tantas perguntas para lhe fazer!
- Matou-as? O que foi descoberto na propriedade era obra sua? Ele continuou como se eu não tivesse falado.
- Depois, claro, vi a história da descoberta da sepultura nas notícias. Mais uma vítima do crescimento urbano. Mas então ocorreu-me: aquilo forçá-lo-ia a sair do esconderijo, faria com que quisesse ver a sua obra uma última vez. Então recomecei a andar por lá, na esperança de o ver. Mas só a vi a si. E você é uma mentirosa.
Pela primeira vez a sua voz baixou, tornou-se ameaçadora. Recuei instintivamente.
- Quem é você? - perguntei. - Porque pastor é que não é.
- Antigo doente, coapreciador de valas comuns. E você?
- Estou morta - respondi sem rodeios. - Sou o fantasma que assombra a propriedade. Estou à espera que aquele monstro volte para poder matá-lo.
Os olhos azuis de Charlie semicerraram-se.
- Annabelle. Annabelle Granger. O seu nome estava no jornal. Na notícia do poço. Está mesmo morta.
Então, uma fiação de segundo depois, o seu rosto abriu-se num sorriso.
- Sabes, estava interessado naquela sargento loura tua amiga - disse ele num tom matreiro. Vi o piscar da lâmina na sua mão. - Mas pensando bem, Annabelle, querida, tu serves perfeitamente.
Bobby fez uma rápida descrição de Charlie Marvin ao jovem latino que os recebeu no albergue de Pine Street. Juan Lopez confirmou que o Charlie Marvin da polícia era o mesmo do abrigo. Aliás, trabalhava lá como voluntário há dez anos. Um ponto para os bons da fita.
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Mas Mr. Marvin não se encontrava no albergue de momento. Saíra há cerca de uma hora. Não, Lopez não sabia onde fora. Afinal, Mr. Marvin era voluntário. Não lhes dava conta dos seus movimentos. Contudo, sabia-se que Mr. Marvin tinha o costume de trabalhar nas ruas, de visitar os sem-abrigo. Talvez a polícia quisesse tentar nalguns dos parques.
Bobby garantiu-lhe que já iam agentes a caminho dos parques. Marvin era procurado para interrogatório imediato.
Lopez pareceu duvidoso.
- O nosso Charlie Marvin? Cabelo branco hirsuto, olhos azuis muito vivos, sempre com um grande sorriso estampado na cara? Charlie Marvin? Que fez ele, homem? Roubou os ricos para dar aos pobres?
- Trata-se de um assunto oficial da polícia. Relativo a uma investigação de assassínio.
- Não pode ser!
- Pode, sim.
- Bem, um ponto para a Associação dos Reformados.
- Telefone-nos se o vir, Mr. Lopez.
- Está bem. Mas agora que penso nisso, no vosso lugar ia até Mattapan. Dava uma vista de olhos aos terrenos daquele velho hospital psiquiátrico. Sabe, aquele onde têm andado a escavar? O Charlie tem andado por lá dia e noite desde que... Hei, vocês não pensam que...
- Obrigado, Mr. Lopez. Entraremos em contacto consigo.
Bobby e D.D. partiram em direção a Mattapan, enquanto Bobby pegava no telemóvel e ligava para Annabelle.
Antecipei-me ao primeiro golpe temerário de Charlie com uma esquiva lateral automática, enquanto o meu cérebro tentava perceber várias coisas ao mesmo tempo. Charlie Marvin era um antigo doente do Hospital Psiquiátrico de Boston. Charlie Marvin descobrira a câmara. Longe de ficar horrorizado, Charlie Marvin ficara cheio de admiração.
Ao que parecia, Mr. Marvin tinha alguma violência no seu passado. Não havia dúvida de que sabia mexer-se com uma navalha de ponta e mola na mão.
Após o primeiro golpe falhado, trocámos de posição na minha minúscula kitchenette. Antes que me congratulasse demasiado, apercebi-me de que o movimento de Charlie resultara em cheio: agora estava posicionado entre mim e a minha porta aberta.
Ele viu o meu olhar saltar do seu ombro para a minha melhor esperança de fuga e dirigiu-me um sorriso rasgado.
- Nada mau para um velhote - comentou. - Confesso que já lá vão uns bons anos, mas acho que ainda me resta alguma magia.
Bella recuou para junto das minhas pernas. Tinha os pelos eriçados, os olhos cravados em Charlie, um rosnido profundo na garganta
Ladra, desejava eu dizer à minha hiperativa cadela. Esta é uma boa altura para fazer barulho Ela, claro, continuava a rosnar. Coisa pela qual não
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podia realmente censurá-la, porque, passados três minutos do meu primeiro confronto com o mal, também eu continuava incapaz de produzir um único grito.
Às vezes o medo paralisa as cordas vocais, dizia o meu pai. Não há dúvida que tinha feito os trabalhos de casa.
Charlie avançou, eu recuei e fui bater na bancada da cozinha. A kitchenette proporcionava muito pouco espaço para manobrar, mas por essa altura já tinha percebido que não podia permitir que Charlie me empurrasse mais para o interior do apartamento. A porta aberta, o patamar à vista, eram a minha melhor esperança de fuga.
Firmei-me, preparei-me para resistir. Ele era velho, uma navalha de ponta e mola não era tão ameaçadora como uma arma de fogo. As minhas hipóteses não eram más.
Charlie fintou para baixo e para a direita.
Preparei-me para atirar um pontapé em arco.
Bella saltou no último momento.
E ouvi a minha cadela, palerma e heróica, ganir quando a lâmina de Charlie se enterrou no seu peito.
A campainha do telefone.
A campainha do telefone.
A campainha do telefone.
A chamada foi para o atendedor. Bobby ouviu a voz enérgica de Annabelle anunciar: Não estamos em casa de momento. Deixe o seu nome e número a seguir ao sinal.
- Annabelle - chamou ele num tom de desespero. - Annabelle, atende. Temos de falar. Obtivemos novas informações acerca do Charlie Marvin. Estou atrasado, pelo menos atende o telefone!
Nada. Annabelle ter-se-ia cansado de esperar por ele, teria partido sozinha? Tudo era possível com aquela mulher. Talvez fosse por isso que estava tão assustado. Que se lixasse. Pisou o travão.
- Que diabo... - exclamou D.D.
- Ele seguiu-a.
- Quem?
- O Marvin. Encontrou-a no parque, ontem à noite. Aposto vinte contra um em como o Charlie Marvin sabe onde a Annabelle vive.
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Bella tombou, o telefone tocou e ouvi a minha própria voz, como se tivesse sido arrancada da garganta.
- Filho da puta!
Ataquei, juntando os dedos e apontando ao ponto macio na base da garganta. Charlie rodou, agarrou-me no antebraço, golpeou com a navalha. Caí e perdemo-nos num emaranhado de membros. Na parte desprendida do meu cérebro, que preferia observar em vez de agir, pensei que não era para aquele tipo de luta que me tinha preparado. Não havia trabalho de pés sofisticado, esquivas graciosas a golpes bem pensados. Em vez disso, bufávamos e arquejávamos, esmurrando-nos um ao outro freneticamente enquanto íamos rebolando pelo chão.
Provei o sal do suor que me escorria pelo rosto, senti pontadas agudas nas mãos e nos braços. Charlie continuava a golpear como louco. Eu continuava a socar-lhe o rosto, trabalhando com a mão direita para o atingir nos olhos, ao mesmo tempo que me defendia com a esquerda.
Eu era mais rápida. Ele estava mais bem armado. Eu estava a sangrar. Ele estava sem fôlego. Ele golpeou à esquerda, rasgando-me a face. Eu cravei-lhe a base da mão no esterno e ele caiu para trás, tossindo violentamente.
Apoiei as mãos no chão. Pus-me de pé, cambaleando. Dei um passo em direção à porta.
Não podia. Não podia deixar Bella. Ele matá-la-ia com toda a certeza.
Charlie já estava em pé. Avançou para mim, aos ziguezagues. Refugiei-me de novo ao pé dos armários da cozinha. Ele continuou a avançar. Estendi a mão para trás, apalpando a borda do armário de madeira com os dedos.
Ele chegou ao meu alcance. Apontei-lhe um pontapé ao queixo. Charlie baixou-se e consegui finalmente demonstrar alguma técnica, alterando o sentido do movimento, apanhando-o de cima para baixo no alto da cabeça e fazendo com que se dobrasse em dois. Não o atingi com tanta força como desejava, mas foi o suficiente para obter o efeito pretendido.
Abri o armário, comecei a remexer nas pilhas desordenadas de tachos e panelas.
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Charlie estava a endireitar-se.
Vã lá, vá lá.
Encontrei-a. A borda da minha frigideira de ferro. A arma perfeita.
Charlie avançou de novo para mim e preparei-me para fazer algo de que nunca me julgara capaz: matar um ser humano.
De súbito, ao longe, o som mais doce que jamais ouvira. Passos, a correr pela escada. Charlie estacou. Acalmei.
Bobby, pensei, Bobby a chegar para me socorrer.
Uma farda castanha da UPS irrompeu pela porta do meu apartamento.
- Ben! - arquejei.
Ao mesmo tempo que Charlie inquiria:
- Benji?
E Ben respondia, numa voz chocada:
- Christopher?
Bobby estava preso no trânsito. Claro que estava preso no trânsito. Porque aquilo era Boston, onde a condução era um desporto sangrento e lá porque o outro veículo tinha uma sirene e o nosso não, isso não era razão para não nos comportarmos como umas bestas.
Marcou novamente o número de Annabelle. Foi parar ao atendedor, desligou. Deu um murro no volante.
- Mau génio, mau génio - disse D.D. numa voz arrastada.
- Passa-se alguma coisa.
- Porque a namoradinha não está à espera ansiosamente junto do telefone?
Bobby atirou-lhe um olhar irritado.
- A sério. Ela sabia que eu ia buscá-la para a levar para um hotel. Não sairia sem dizer nada.
D.D. encolheu os ombros.
- Tem uma cadela. Talvez tenha precisado de a levar à rua, ou tenha ido dar uma corrida.
- Ou, talvez - retorquiu Bobby sem rodeios -, o Charlie Marvin lá tenha chegado antes de nós.
O seu telemóvel tocou. Abriu-o sem se dar ao trabalho de olhar para o visor. Mas não era Annabelle, era o seu amigo, o detetive Jason Murphy da polícia estadual do Massachusetts.
- Investiguei o Roger Grayson, como tu pediste - disparou logo Jason. - Encontrei um registo de aluguer de uma unidade de armazenamento, num armazém mesmo ao pé da Estrada 2, a norte de Arlington. Grayson pagava o aluguer adiantado, de cinco em cinco anos. O último pré-pagamento esgotou-se há alguns anos, pelo que o proprietário invocou o direito de retenção. De facto, se lá quisermos ir buscar a tralha toda, isso redunda em benefício do proprietário, que gostaria de pôr o espaço novamente em circulação.
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- Excelente.
- O cadastro criminal era negligenciável. Nada mais do que uma contraordenação rodoviária, e mesmo isso foi há vinte e cinco anos. O Grayson deve ser um autêntico menino de coro.
- Uma contraordenação rodoviária?
- Excesso de velocidade. Dia quinze de novembro de 1982. Foi apanhado a cento e vinte numa zona com limite de noventa.
Dia 15 de novembro de 1982. Três dias depois de Dori Petracelli ter desaparecido para nunca mais ser vista.
- Que mais? - perguntou Bobby ao detetive estadual.
- Que mais? Comecei há uma hora, Bobby...
- E quanto ao Walter Petracelli?
- Até agora, nada.
- Dizes-me?
- Vivo para servir. Não é por nada, Bobby, mas não deixes que o facto de estares a trabalhar para a cidade te suba à cabeça.
Jason desligou. Bobby pôs o telemóvel no bolso do peito. Fez soar outra vez a sirene. Nada aconteceu. O trânsito estava demasiado compacto para que qualquer carro pudesse abrir uma passagem.
Consultou de novo o relógio. Estavam em Atlantic Avenue. A dois quilómetros e meio, talvez três, do apartamento de Annabelle.
- vou parar - anunciou Bobby.
- O quê?
- Esquece o carro, D.D. Somos fortes, somos rápidos. Vamos correr.
- Ben, Ben, graças a Deus que está aqui! Ele apunhalou a Bella. É doido. Tem de nos ajudar. Bella, pobre Bella, estou aqui, rapariga, está tudo bem, vai correr tudo bem.
Tinha abandonado a frigideira de ferro em favor da minha cadela, puxando-a para o meu colo. Sentia o calor do seu sangue, que jorrava sobre o bonito pelo branco.
Ela gania. Tentava lamber-me as mãos, lamber o próprio golpe.
- Ben! - gritei novamente.
Mas Ben não se mexia. Estava parado à minha porta, a olhar fixamente para Charlie Marvin.
- Foste tu? Oh, céus, águas mansas correm fundo, não há dúvida! exclamou Charlie.
- Ela é minha - disse Ben resolutamente. - Não podes tê-la. É minha.
- Chame a polícia - solucei. - Ligue para o 112, peça o detetive Bobby Dodge, peça técnicos de emergência médica. Não sei quem costumam mandar para os cães, mas uma ambulância deve servir. Ben? Está a ouvir-me? Ben?
Ben olhou finalmente para mim. Entrou no meu pequeno apartamento. Fechou a porta e começou a trancar as fechaduras, uma a uma.
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- Está tudo bem - disse-me ele num tom solene. - O tio Tommy já cá está, Amy, e vai tratar de tudo.
Charlie começou a rir. O som depressa se transformou num matraquear asmático. O golpe que lhe vibrara no esterno devia ter deslocado qualquer coisa. Agora que os zumbidos nos meus ouvidos começavam a extinguir-se, também sentia as minhas próprias dores e feridas. As costelas magoadas, os tornozelos retalhados, a face rasgada.
Pelo menos tinha dado tanto quando levara. O olho direito de Charlie estava inchado a ponto de não se abrir. E, ao afastar-se apressadamente de Ben, favorecia o lado esquerdo, arquejando como se tivesse dores.
O meu cérebro não estava a funcionar corretamente. Não queria saber de Charlie. Não compreendia Ben. Só queria tirar Bella dali. Só queria salvar a minha cadela.
Concentrar-me nessa ideia era uma boa coisa, porque a conversa que decorria à minha volta era demasiado terrível para se acreditar.
- Como é que as mataste? - quis saber Charlie. - Uma de cada vez? Aos pares? Como as atraías? Por mim, sempre me contentei com prostitutas. Nunca ninguém dá pela falta delas.
- Magoaste-a? - Ben continuava a olhar fixamente para Charlie.
- Tenho andado à tua procura, Benji. Desde que descobri a câmara. Julgava que eu era esperto.
A trabalhar com os sem-abrigo, para que ninguém questionasse o motivo
por que me encontrava na esquina tal na noite tal. Porque conhecia tantas prostitutas que desapareciam. Mas depois... Mal podia crer no engenho patente naquela câmara,
na grandeza da tua realização. Se ao menos me tivesse lembrado disso primeiro! Oh, as coisas que podia ter feito!
- Ela está a sangrar.
- Por quanto tempo as mantinhas vivas? Dias, semanas, meses? Quantas possibilidades! O meu disfarce proporcionava-me uma oportunidade perfeita para saborear o prazer da caçada. Mas depois... A falta de tempo, a necessidade de me despachar, depressa, depressa, depressa, sempre me incomodou. Despende-se tanta energia a atraí-las, a prendê-las e depois, justamente quando se começa a gozar as coisas, tem de se ser prático. Alguém pode ouvir barulho, alguém pode ficar curioso. Tem de se pôr fim ao romance e fazer o que é preciso. Não é nada bom atrair as atenções, nem mesmo pelas mais especiais.
- Diz-me a verdade - quis saber Charlie. - Não foste minimamente inspirado pelo meu trabalho? A enfermeira em 75. Foi puro impulso. Eu estava lá fora, nos campos. Ela estava lá fora, nos campos. Uma coisa levou a outra. Foi o maior acontecimento de sempre no Hospital Psiquiátrico de Boston. Bem, até a tua câmara ser descoberta. Benji? Benji, estás a ouvir-me?
Ben inclinou-se para Charlie. A expressão do seu rosto pôs-me os cabelos em pé. Enterrei os dedos no pelo de Bella. Pedi-lhe em pensamento que não emitisse qualquer som.
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Apoiei uma mão no chão e comecei a arrastar-me silenciosamente em direção à porta, levando Bella comigo.
- Magoaste a minha Amy - disse Ben. - Agora tenho de te magoar a ti.
No último momento, Charlie pareceu compreender que não tinha um aliado. No último momento, ergueu a navalha, tomando consciência do perigo em que se encontrava.
Ben apanhou o pulso de Charlie com uma mão musculosa. Ouvi o barulho dos ossos esmagados.
Cheguei à porta, levantei freneticamente as mãos, debatendo-me com as fechaduras. Porquê, mas porquê tinha eu tantas fechaduras?
Não podia olhar, mas também não podia fazer nada para bloquear o som.
Ouvi quando o meu tio arrancou a navalha da mão esmagada de Charlie Marvin. E depois, com um golpe certeiro, cravou a lâmina a fundo no olho de Charlie Marvin. Um grito. Um ruído húmido, de rolha a saltar. Um gemido longo e profundo, como ar a sair de um pneu.
Depois, silêncio.
- Oh, Amy! - disse Ben.
Não consegui conter-me. Encostada com Bella à porta trancada, desatei a chorar.
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- Tu és tudo o que eu sempre quis, Amy - dizia Ben. - As outras raparigas... não significaram nada para mim. Foram equívocos. Reconheci os meus erros há muitos anos. E esperei por ti. Até que, um dia, a minha paciência foi recompensada.
Estendeu uma mão ensanguentada e afagou-me a face. Tentei encolher-me, recuar; não tinha para onde ir.
- Destranque a porta, Ben, por favor. - Tentei falar com firmeza, mas a minha voz saiu trémula. - A Bella está ferida. Precisa de cuidados médicos imediatos. Por favor, Ben.
Ele fitou-me, soltou um profundo suspiro.
- Sabes que não posso fazer isso, Amy.
- Não falarei de si a ninguém. Direi que o Charlie me atacou. Era doido. Fui eu que o apunhalei. Olhe para os golpes que tenho no corpo. Acreditarão em mim.
- Já não é a mesma coisa. No princípio, quando te encontrei de novo, estava bem. Percebi imediatamente que mais ninguém sabia quem tu eras. Eras especial, estavas intacta. Pertencias-me.
- Não mudarei de casa. Ficarei aqui mesmo. Pode voltar a ser tudo como era. Encomendarei tecidos e virá entregá-los todos os dias.
- Mas não é a mesma coisa. Agora tu sabes. A polícia sabe. Não é a mesma coisa.
Fechei os olhos, lutando para me controlar. Bella ganiu de novo. Aquele som deu-me forças.
- Não compreendo. Passou vinte e cinco anos sem mim. Levou aquelas raparigas. É evidente que não significo nada para si.
- Oh, não - respondeu ele imediatamente, muito sério. - Não parei por querer. Não foi nada assim. - Ben tirou o boné castanho. E, pela primeira vez, vi o sulco que corria ao longo da parte superior da cabeça dele, uma cicatriz tortuosa onde não nascia cabelo. - Isto é que me deteve. Se não fosse isto, ter-te-ia seguido eternamente. Há vinte e cinco anos, Amy, terias sido minha.
- Oh, Deus - gemi, porque naquele momento ouvi o que nunca tinha ouvido. Ben podia não ser parecido com o meu pai, mas, ao ouvir
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a sua voz, uma voz intensa e séria a tentar fazer valer o seu importante ponto de vista... parecia tal e qual o meu pai. O mesmo tom, o mesmo ritmo, a mesma voz.
Teria reparado naquilo antes, feito essa associação a nível subconsciente? E teria sido por isso que lhe abrira as portas, que o transformara no meu único elo de ligação com o mundo exterior, porque o sangue falava mais alto e uma parte de mim rejubilara por reencontrar a família?
- A única coisa que sempre quis foi alguém que não me abandonasse
- dizia ele agora, a voz séria do meu pai a sair de um horrível crânio sulcado por uma cicatriz. - Alguém que tivesse de ficar. Primeiro pensei que era a tua mãe, mas ela interpretou-me mal. Depois fui preso. - O seu tom esmoreceu, depois retomou a energia. - Mas quando saí, vi-te e compreendi.
"A maneira como sorriste para mim, Amy. A maneira como prendeste o meu dedo no teu pequeno punho rechonchudo. Eras a minha família. Eras a pessoa que sempre me amaria, que nunca partiria. E fiquei tão feliz! Até ao dia em que lá cheguei e tu tinhas ido embora. Toda a tua família. Desaparecida.
- A Bella está ferida - supliquei. - Por favor.
- Foi uma altura horrível. Sabia, claro, que nunca me terias abandonado de livre vontade. Era evidente que o teu pai te obrigara a fazê-lo. Ben pegou-me na mão, afagou-me o pulso com os dedos manchados de sangue. - De maneira que comecei a fazer perguntas. Uma família inteira não pode desaparecer assim. Toda a gente deixa um rasto qualquer. Mas ninguém sabia dizer-me nada. Então ocorreu-me. O meu irmão precisaria de um emprego para sustentar a família. Quem poderia ajudá-lo a arranjar emprego? O seu antigo patrão, bem entendido. Portanto, fui à casa do Dr. Badington. Encontrei a mulher dele.
- O quê?
- Fui lá à tarde. Naturalmente que Mrs. Badington começou por se recusar a falar, mas quando acabei de tratar da gata dela, tinha-me dito muita coisa. Acerca do novo cargo do teu pai no MIT. Uma casa em Arlington. O melhor de tudo é que nunca falou da minha visita a ninguém. Afinal, as coisas que lhe fiz não eram do tipo de que se pode falar num salão de gente fina. Além disso, garanti-lhe que, se alguma vez abrisse a boca, eu voltaria e faria exatamente as mesmas coisas ao marido dela.
- Oh, meu Deus...
- Parti para o Massachusetts. Tencionava ver-te nessa mesma noite. Mas era tarde, perdi-me e aconteceu a coisa mais louca. Fui assaltado no carro. Sítio errado à hora errada, quatro manos matulões que me deram uma tareia de morte. Depois tiraram-me a roupa e... E depois foi só escuridão. Durante muito tempo.
"A pouco e pouco, fui recuperando. Reaprendi a comer, a vestir-me, a lavar os dentes. Falei com médicos muito simpáticos, que me disseram que a minha vida tinha
começado mal, mas que agora tinha uma segunda oportunidade. Podia ser o que quisesse, disseram eles. Podia reinventar-me.
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"E, durante algum tempo, tentei. Parecia uma ideia agradável. Podia ser o Benji, cujo pai era operacional da CIA e não apenas um cretino bêbedo que um dia matara a mulher antes de rebentar os próprios miolos. Gostava de ser o Benji. Gostava mesmo.
"Mas estava tão só, Amy. Deves compreender como é. Não ter família. Não ter ninguém que nos chame pelo nosso verdadeiro nome. Ninguém que conheça o nosso eu todo, o nosso verdadeiro eu, e não apenas a fachada que todos temos de apresentar em público. Não é vida.
- Pare! - sussurrei, tentando libertar novamente a mão. - Pare, pare! - Mas ele não se calava. Não parava de falar, a voz do meu pai, os meus próprios pensamentos, a rastejarem como serpentes para o meu cérebro.
- Encontrei o poço um dia em que tinha ido passear pela propriedade. Interessou-me o suficiente para o transformar na minha pequena casa longe de casa. Estava bastante bem, nessa altura. Ainda vivia na instituição, mas frequentava uma escola próxima. O poço transformou-se numa câmara, a câmara, na minha sala de estudo, e então, um dia...
"Vi-a. A regressar da escola. Vi-a e percebi, pela expressão dela, que também me tinha visto. Gostava de mim, queria estar comigo. Era aquela que nunca partiria.
- Chiu - tentei eu. - Chiu, chiu, chiu. É doido. Odeio-o. Os meus pais odiavam-no. Quem me dera que tivesse morrido.
- No último momento ela mudou de opinião. Resistiu-me. Gritou. Portanto, tive de... Acabou tudo muito depressa e depois fiquei triste. Não queria que as coisas fossem assim. Tens de acreditar em mim, Amy. Mas depois ocorreu-me: podia ficar com ela. Sabia exatamente onde. E então ela nunca me deixaria.
- Você é doentel - Puxei a mão uma última vez, consegui finalmente libertá-la. Ele não pareceu preocupado.
- Tentei outra vez - declarou ele sem rodeios. - E outra, e outra, e outra. As relações tinham sempre um começo tão promissor, mas depressa azedavam. Até que, um dia, compreendi. Não queria nenhuma daquelas raparigas estúpidas e inúteis. Queria-te a ti, E então lembrei-me do que Mrs. Badington tinha dito. E voltei a encontrar-te.
"Minha Amy, minha muito preciosa Amy! Estivemos tão perto, dessa vez. Levei as coisas com mais calma, começando por pequenos presentes para ganhar a tua confiança. O sorriso no teu rosto ao abrires cada caixa, ao descobrires cada tesouro! Era tal e qual como eu tinha imaginado. Era tal e qual como eu queria que fosse. Ias ser minha.
Parou de falar, suspirou, fez uma pausa. Quase chorei de alívio.
Mas ele ainda não tinha terminado. Como podia, se ambos sabíamos que o pior ainda estava para vir?
- O Roger viu-me. Julguei que estava a ser esperto mas, oh, os irmãos mais velhos! Arranjam sempre maneira de saber o que os mais novos andam a tramar. E ele sabia. Claro que sabia. Percebi que tinha de avançar
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depressa. Só que, de repente, a polícia encontrou o meu esconderijo no sótão. E, em vez de te arrebatar, tive de fugir às autoridades. Quando consegui reorganizar-me,
estava tudo acabado. A casa estava lá, mas não vivia lá ninguém.
"O Roger - prosseguiu sem rodeios - sempre tinha sido um filho da mãe inteligente. Como é natural, fi-lo pagar.
A mão de Ben ergueu-se. Começou a esfregar a cicatriz quase sem dar por isso. Um hábito nervoso com um efeito tranquilizador? Ou a recordação de algo que ainda doía?
- Raptou a Dori - murmurei.
- Teve de ser - disse ele encolhendo os ombros. - Precisava de alguém. Não queria estar sozinho. E ela tinha roubado o teu medalhão. Não podia permitir isso.
- Ela não roubou o medalhão, seu sacana. Fui eu que lho dei. Ela era minha amiga e eu partilhava coisas com ela, porque é assim que se faz entre amigos. Você é terrível, é horrível e nunca estarei consigo. O seu toque mete-me nojo!
- Oh, Amy! - suspirou de novo. - Não é preciso teres ciúmes. A Dori não era quem eu realmente queria. Era apenas um meio para atingir um fim. Levei-a e o Roger voltou para mim.
Pestanejei com força, em estado de choque.
- Voltou a ver o meu pai? Em Arlington?
- O Roger veio a casa. Eu sabia que ele viria. Uma vez, há muito, muito tempo, o Roger tinha-me amor. Escondia-se comigo no armário e pegava-me na mão enquanto os nossos pais berravam. "Está tudo bem", dizia-me ele. "Não permitirei que te aconteça nada. Cuidarei para que estejas seguro." Então, uma noite, o nosso pai entrou na cozinha, encontrou a nossa mãe e deu-lhe três tiros no peito. Pum, pum, pum. Virou-se, viu-me. Levantou a arma. Percebi que ele ia disparar. Mas o Roger deteve-o. O Roger disse-lhe para baixar a arma. O Roger disse-lhe que, se realmente queria matar alguém, então o mínimo que podia fazer era matar-se a si próprio.
"E foi exatamente isso o que o nosso pai fez. O imbecil encostou o cano da pistola à têmpora e puxou o gatilho. Adeus papá, olá colégio interno.
"Só que, no colégio interno, o Roger desapareceu. Tinha as suas aulas, os seus amigos, a sua vida. Deixou-me. Sem mais.
"De maneira que esperei na casa de Arlington. Porque sabia, como sempre soubera. O Roger voltaria. Seríamos outra vez só os dois, ele e eu. com uma arma.
- Tentou matar o meu pai!
Ben fitou-me. Abanou tristemente a cabeça, tocou na cicatriz.
- Oh, não, Amy. O teu pai, o meu querido irmão, é que tentou matar-me.
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A reta final. Bobby e D.D. subiram a Hannover Street em passo de corrida, esquivando-se aos transeuntes, não prestando atenção às buzinadelas dos táxis. Escurecia, a rua ia-se enchendo à medida que os restaurantes abriam as portas para a noite. Bobby e D.D. serpentearam entre adolescentes que tagarelavam ao telemóveis, mães que empurravam carrinhos de bebé, residentes que passeavam cães.
D.D. progredia num ritmo fácil. Bobby começava a fraquejar. Não havia dúvida: assim que aquele caso estivesse resolvido, recomeçaria a frequentar o ginásio.
Annabelle continuava sem dizer nada.
Bobby recorreu ao pânico crescente para acelerar o passo.
E começou a correr.
Não acreditei. O meu pai com uma arma? Até Mr. Petracelli dizia que o meu pai não suportava armas de fogo. Sabendo o que acontecera com os pais dele, compreendia perfeitamente porquê.
Mas, ao que parecia, o rapto de Dori fora a gota de água, mesmo para o meu liberal pai. De algum modo, conseguira arranjar uma arma. Depois apanhara o avião da noite para Boston, para procurar o irmão.
Roger, por favor, não vás. Rover, suplico-te, por favor, não faças isso...
Segundo TommyBen, os dois irmãos tinham-se enfrentado nas sombras escuras da minha antiga casa. Tommy empunhando o pé de cabra de que se servira para arrombar a porta. O meu pai brandindo uma pistola pequena.
- Não o levei a sério - disse-me Ben. - O Roger não seria capaz de me fazer mal. Tinha-me salvado. Amava-me. Dizia que cuidaria sempre de mim. Mas então...
"Estava com um ar tão cansado, ali à minha frente. Perguntou-me se tinha levado aquela rapariga. Perguntou se tinha levado outras. Que podia eu fazer? Disse-lhe a verdade. Que tinha raptado seis raparigas. Que as tinha encerrado em plástico e que as mantinha como a minha pequena família. E que isso ainda não chegava. Queria-te a ti, Amy. Precisava de ti. Não descansaria até seres minha.
""Sempre acreditei", disse o Roger em voz baixa, "que a natureza não tinha verdadeira importância. A formação podia sempre superá-la, quer fossem os pais a formar
um filho ou mesmo uma pessoa como eu, a aprender a formar-se a si própria. com tempo suficiente, atenção, garra, todos podíamos ser o que quiséssemos. Estava enganado.
O ADN tem importância. A genética vive. O nosso pai vive, dentro de ti."
"Respondi ao meu irmão que aquilo era fascinante, tendo em conta que era ele quem empunhava a arma. Ele aceitou o que eu tinha dito. Chegou mesmo a fazer que sim
com a cabeça, como se a ideia fizesse sentido para ele.
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"É verdade", disse ele, "porque nunca acreditaria que fosse capaz de fazer uma coisa destas sozinho."
"E depois alvejou-me. Assim mesmo. Levantou a arma. Meteu-me uma bala na cabeça. - Os dedos de Ben roçaram pela cicatriz.
"O choque é uma coisa engraçada. Ouvi o som. Tive uma sensação de queimadura na testa. Mas continuei de pé durante muito tempo. Pelo menos penso que sim. Fiquei
de pé, a olhar para o meu irmão.
""Amo-te", disse eu. E depois caí.
"Ele aproximou-se de mim.
""Promete que nunca me deixarás", disse eu.
"E o Roger saiu porta fora.
"Não sei quanto tempo ali estive. Desmaiei, perdi a consciência, não sei. Mas quando voltei a mim, descobri que conseguia mexer-me. De maneira que fui andando até um tipo me fazer parar e dizer: "Sabes, pá, acho que és capaz de precisar de um médico."
"Chamou uma ambulância. Seis horas depois, os cirurgiões tiraram uma bala de calibre vinte e dois que tinha feito ricochete na parte da frente do meu cérebro. Isso aconteceu há quase vinte e cinco anos e, desde então, que não sinto grande coisa. Nem felicidade. Nem tristeza. Nem desespero, nem raiva. Nem sequer me sinto só.
"Isto, querida Amy, não é vida.
A história de Tommy parecia estar a chegar ao fim. Eu continuava paralisada pelo choque. Por o meu pai ter alvejado o irmão. Por Tommy ter conseguido sobreviver. Por as vidas de dois irmãos poderem ser apanhadas num tal ciclo de violência.
- Não sente nada? - perguntei a medo. - Nada de nada? Tommy abanou a cabeça.
- Não voltou a assediar rapariguinhas?
- Não consigo apaixonar-me.
- Então não precisa de mim.
- Claro que preciso. És da família. Precisamos sempre da família.
- Ben...
- Tommy. Quero ouvir-te dizer o meu nome. Já lá vão tantos anos. Vá lá, Amy. Pelo teu tio. Deixa-me ouvi-lo dos teus lábios.
Talvez devesse ter-lhe feito a vontade. Mas quando ele me pediu para dizer o seu nome, não fui capaz. Estava encurralada no meu próprio apartamento, a sangrar, exausta, abraçada ao meu cão moribundo. O único poder que me restava era o de negar o nome ao meu tio.
Abanei a cabeça. E o meu querido tio Tommy, o homem que não tinha emoções, inclinou-se e esbofeteou-me. Fiquei com o lábio aberto, senti o sabor do sangue. Aspirei-o e cuspi-lho em cima.
- Odeio-o, odeio-o, odeio-o! - gritei.
O seu punho abateu-se sobre a minha cabeça e o meu crânio ressaltou na porta com um baque.
- Di-lo! - rugiu ele.
- Vai-te foder!
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Ele recuou o braço, mas, desta vez, eu estava preparada.
- Hei, Ben! - gritei. - Agarra!
E arremessei Bella contra ele, rezando como nunca rezara para que até um maníaco homicida tivesse o instinto de agarrar.
Bobby foi o primeiro a ouvir o grito. Estava a meio quarteirão do apartamento de Annabelle, vinte metros à frente de D.D. Ainda tentava convencer-se de que havia
uma explicação lógica para que Annabelle não atendesse o telefone, que com certeza estava tudo bem.
Então ouviu o grito. E acelerou ainda mais o passo.
A porta do prédio abriu-se de repelão. Um homem novo precipitou-se para a rua.
- Polícia, polícia, alguém chame a polícia. Acho que o homem da UPS está a tentar matá-la!
Bobby galgou as escadas e D.D. puxou do telemóvel e pediu reforços.
Ben cambaleou sob o peso de Bella e, nesse momento, consegui finalmente gritar, um berro estridente de pura frustração. Odiava-me a mim própria por ter sacrificado a minha melhor amiga. Odiava Ben por me ter forçado a fazê-lo.
Atirei-me contra a porta, trabalhando freneticamente as fechaduras.
Abri as duas primeiras, quando Ben largou Bella e me agarrou pelas costas da camisa. Rodei e dei-lhe uma cotovelada de lado na cabeça, fazendo saltar os seus óculos.
da camisa.
Ben recuou. Encontrei a corrente de segurança.
- Vala, vala, vala!
Os meus dedos tremiam com demasiada intensidade, não queriam colaborar. Estava a soluçar histericamente, a perder o controlo.
Então ouvi. Passos a correr pela escada. Uma voz familiar muito bem-vinda.
- Annabelle!
- Bobby! - gritei. Depois Ben agarrou-me por trás.
Caí violentamente, batendo com o nariz na madeira da porta. Vieram-me lágrimas aos olhos, um novo grito de raiva irrompeu-me da garganta. A porta abanou. Era Bobby
a arremessar-se contra ela. Mas a porta resistiu, claro que resistiu. Porque eu tinha-a escolhido pela sua resistência e depois reforçara-a com meia dúzia de fechaduras.
Construíra uma fortaleza para garantir a minha segurança, e agora essa fortaleza ia matar-me.
- Annabelle, Annabelle, Annabelle! - Bobby rugia de frustração no patamar.
Depois a voz áspera de Tommy, mesmo ao meu ouvido.
- A culpa é tua, Amy, obrigaste-me a fazer isto. Não me deixaste alternativa.
Muito ao longe, ouvi o meu pai. Os seus intermináveis sermões, a sua pregação constante. 280
Por vezes, quando se está assustado, é difícil emitir sons. Parte coisas. Bate com os punhos na parede, derruba móveis. Faz barulho, querida, luta. Luta sempre.
Tommy a agarrar-me nos ombros. Tommy a fazer-me rodar. Tommy a brandir a navalha sanguinolenta de Charlie no punho triunfante.
- Nunca me deixarás.
- vou disparar - gritou Bobby. - Afasta-te da porta. Um, dois... Pregada ao chão, arranquei o pingente do pescoço. Tommy ergueu
a navalha. Abri a pequena tampa de metal do meu pingente de cristal.
E arremessei as cinzas dos meus pais à cara de Tommy.
Tommy recuou, esfregando freneticamente os olhos.
No preciso momento em que Bobby fez fogo.
Vi o corpo de Tommy estremecer, uma, duas, três, quatro vezes. Depois Bobby escancarou a minha porta estilhaçada com um pontapé.
Em vez de tombar, Tommy virou-se na direção do som, carregando como uma besta ferida.
Pus-me em pé de um salto. Bobby esquivou-se para a esquerda. tommy precipitou-se pela porta rebentada, chocou com o corrimão do patamar do quinto piso e esbracejou selvaticamente para se equilibrar.
Pensei que era capaz de se safar.
Portanto, dei-lhe um empurrão baixo e forte por trás.
Então, filha do meu pai, fiquei a ver o meu tio cair para a morte.
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A verdade libertar-vos-á. Outro velho ditado. Não que o tenha ouvido dos lábios do meu pai. Considerando o que agora sei acerca do seu passado, creio que compreendo.
Passaram seis meses desde essa tarde sangrenta no meu apartamento. Seis meses de interrogatórios da polícia, de recuperação de material armazenado, de resultados de ADN e, sim, até de uma conferência de imprensa. Tenho uma agente. Ela acredita que pode conseguir-me milhões de dólares de um grande estúdio de Hollywood. E, bem entendido, haverá um contrato para um livro.
Não consigo imaginar-me a falar com Larry King. Ou a lucrar com a tragédia da minha família. Por outro lado, uma rapariga tem de comer e, hoje em dia, não tenho muitos clientes a bater-me à porta para encomendar cortinados. Ainda não decidi.
De momento estou no duche, a depilar as pernas. Estou nervosa. Um pouco excitada. Agora, mais do que nunca, penso que tenho muito para aprender acerca de mim própria.
Eis as verdades como as vejo até aqui:
Primeiro, a minha cadela é forte. Bella não morreu no chão da minha cozinha. Não, a minha incrivelmente corajosa companheira canina aguentou-se melhor do que eu enquanto Bobby nos enfiava no banco de trás de um carro-patrulha e nos despachava de urgência para um veterinário. Charlie retalhara a espádua de Bella até ao osso. Danificara alguns tendões. Fizera-a perder muito sangue. Mas, ao fim de dois mil dólares dos melhores cuidados médicos que se podiam arranjar, Bella voltou para casa. Agora tem preferência por dormir na minha cama. E eu tenho preferência por lhe dar abraços gigantescos. Ainda é cedo para corridas. Mas vamos recuperando a força com umas caminhadas muito enérgicas.
Segundo, as feridas saram. Passei vinte e quatro horas no hospital, sobretudo porque me recusei a deixar Bella até o veterinário me obrigar a ir embora, e por essa altura também já tinha perdido bastante sangue. Levei doze pontos na face. Vinte nas pernas. Trinta e um no braço direito. Creio que os meus dias de modelo fotográfico acabaram. Mas gosto das minhas
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cicatrizes. Às vezes, a meio da noite, percorro as linhas finas e pregueadas com a ponta dos dedos. Ferimentos de guerra. O meu pai ficaria orgulhoso.
Terceiro, algumas perguntas nunca terão resposta. Na unidade de armazenamento do meu pai encontrei o precioso sofá da minha mãe; o meu álbum de bebé, incluindo a minha certidão de nascimento original; diversas recordações de família; e, por fim, um bilhete do meu pai. Estava datado de uma semana após o nosso regresso a Boston, quando a sua ansiedade devia ter atingido o auge. Não fornecia qualquer explicação. Em vez disso, no dia 18 de junho de 1993, o meu pai escrevera: Aconteça o que acontecer, quero que saibas que sempre te amei e fiz o meu melhor.
Teria previsto que morreria em Boston? Acreditaria que o regresso ao cenário de tanta tragédia selaria o seu destino? Não faço ideia. Suspeito que ele sabia que o irmão ainda estava vivo. Não duvido que o meu pai tenha procurado nos jornais notícias acerca de um corpo desconhecido encontrado numa casa abandonada em Arlington. Quando o tempo foi passando sem que tal história aparecesse, percebeu que os seus esforços não tinham sido tão conclusivos como desejara. Mas, então, porque não voltara a tentar? Porque regressara à Florida, para junto de mim e da minha mãe?
Não sei. Nunca saberei. Talvez matar não seja tão fácil como parece. O meu pai tentara uma vez e isso era o bastante para ele. Portanto, daí em diante fugimos. Sempre que uma criança desaparecia, sempre que era publicado um alerta âmbar nos jornais locais, acabava-se. O meu pai comprava novas identidades, a minha mãe tratava das malas e a família fazia-se à estrada.
Ironicamente, a polícia acredita que o tio Tommy nunca nos seguiu. A bala não o matara, mas as lesões cerebrais que provocara tinham reduzido a maior parte dos seus impulsos psicóticos. Arranjara um emprego na UPS. Tornara-se um cidadão exemplar, ainda que um pouco antissocial. Prosseguira com a sua vida.
Só o meu pai ficara preso ao passado, sempre em fuga, sempre à procura de um sentimento de segurança que não sabia como encontrar.
Quarto, algumas verdades não se destinam a ser ditas. Por exemplo, depois de muito investigar, a polícia concluiu oficialmente que a morte de BenTommy fora acidental. Num confronto armado com as autoridades, o suspeito fora baleado quatro vezes através de uma porta trancada, por um agente identificado. O agente tivera então oportunidade de arrombar a porta e, nesse momento, o suspeito ferido saíra a correr do apartamento, numa desesperada tentativa de fuga. Desorientado pela dor, precipitara-se acidentalmente contra o corrimão do quinto piso, desequilibrara-se e morrera em consequência da queda.
Escusado será dizer que Bobby e eu não falamos acerca desse incidente. O mesmo acontece com D.D. que estava no átrio do rés do chão e, portanto, segundo o relatório oficial, não estava em posição de ver o que acontecera antes do gigantesco trambolhão.
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Contudo, há poucas semanas deu-me uma T-shirt que diz: "Os Acidentes Acontecem."
Quinto, até os psicopatas têm espírito comunitário. Charlie Marvin era, afinal, Christopher Eola, antigo doente do Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston. A polícia de Boston está agora convencida de que ele matou pelo menos uma dúzia de prostitutas, enquanto se fazia passar por um campeão altruísta dos sem-abrigo. Seguindo o manual de Ted Bundy Bundy trabalhara como voluntário numa linha de apoio para prevenção do suicídio -, Charlie utilizara inteligentemente a sua posição para cair nas boas graças das potenciais vítimas, ao mesmo tempo que desviava as atenções da polícia.
Contudo, no últimos tempos tornara-se ousado, tendo escolhido como alvo a responsável pela investigação, D.D. Warren. Um perito em caligrafia confirmou que o bilhete
deixado no carro de D.D. fora provavelmente escrito por Charlie. Os quatro cies abatidos a tiro na noite do encontro no Hospital Psiquiátrico de Boston possuíam
chips de identificação, que permitiram localizar a sua origem em dois traficantes de droga/treinadores de cães, que confirmaram terem vendido os seus "animais de
estimação" a um simpático senhor de idade.
A melhor suposição é que Charlie se insinuou na investigação para tentar identificar e contactar o autor original da vala comum. No entanto, algures pelo caminho entusiasmou-se com D.D. e entregou-se a alguns jogos mentais de sua própria autoria. A polícia descobriu materiais próprios para a construção de bombas no seu apartamento em Boston. Ao que parecia, Charlie andava a planear novos delitos quando Tommy o apunhalou na minha cozinha.
Os pais de Eola recusaram-se a reclamar o seu corpo. Segundo as últimas notícias, os seus restos mortais tinham sido despachados para uma sepultura anónima.
Sexto, encerrar um capítulo não é tão fácil como se julga. Enterrámos Dori esta manhã. Por "nós" refiro-me a: os seus pais, eu e duzentas outras pessoas de boa vontade, a maioria das quais não conhecera Dori em vida, mas tinham sido tocadas pelas circunstâncias da sua morte. Vi polícias reformados de Lawrence a chorar, vizinhos que a tinham procurado em vão nos bosques, há vinte e cinco anos. A unidade especial do Departamento da Polícia de Boston assistiu à cerimónia, de pé ao fundo da igreja. No fim, Mr. e Mrs. Petracelli apertaram a mão a todos eles. Quando chegou ao pé de D.D. Mrs. Petracelli apertou-a num enorme abraço, após o que ambas se desfizeram em lágrimas.
Mrs. Petracelli pedira-me para dizer algumas palavras. Não o elogio fúnebre; isso foi tarefa que o padre desempenhou muito bem, creio eu. Mas desejava que falasse da Dori que tinha conhecido, pois nenhum dos presentes tivera oportunidade de conhecer essa criança. Pareceu-me boa ideia. Pensei que o faria. Mas quando chegou a altura, não fui capaz de falar. As emoções que sentia eram demasiado fortes para que pudesse partilhá-las.
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Creio que devia aceitar a tal proposta para o filme. Porque gostaria de doar o dinheiro à fundação de Mrs. Petracelli. Gostaria que outras Doris fossem devolvidas aos pais. Gostaria que outros amigos de infância tivessem oportunidade de dizer: "Adoro-te, tenho muita pena, adeus."
A verdade libertar-vos-á.
Não, a verdade limita-se a dizer o que foi. Explica os pesadelos que tenho três ou quatro vezes por semana. Explica a pilha de contas médicas e do veterinário que ainda estou a pagar. Diz-me por que motivo um homem da UPS que eu julgava conhecer apenas de passagem indicou uma tal Amy Grayson como única beneficiária do seu testamento. Explica por que motivo esse mesmo homem da UPS passou os primeiros quinze anos de serviço a trocar constantemente de rota; ao que parece, correu todo o estado do Massachusetts em busca de uma família que, segundo acreditava, não podia ter-se mudado para muito longe. Até que um dia, por acidente, a sua persistência
foi recompensada e encontrou-me.
A verdade diz-me que os meus pais me amaram verdadeiramente e lembra-me que o amor, só por si, não basta.
Do que uma rapariga precisa é de um sentido de identidade.
Estou limpa dos pés à cabeça. Pernas e axilas depiladas. Uma gota de óleo aromatizado com canela nos pulsos. Devia pôr um vestido. Mas isso não tem nada a ver comigo.
Acabo por optar por umas calças pretas de cintura descaída e uma blusa espetacular, com lantejoulas douradas, que comprei por bom preço na Filenes Basement.
Saltos altos, sem dúvida.
Bella começa a ganir. Reconhece os sinais da minha partida iminente. Já não gosta de ficar sozinha no apartamento. Para dizer a verdade, eu também não. Ainda vejo
o corpo sem vida de Charlie Marvin estendido na minha cozinha. Tenho a certeza de que Bella ainda sente o cheiro do sangue que ensopou o chão.
Na próxima semana, decido. vou procurar casa. Ao fim de trinta e dois anos, é tempo de o passado ser o passado.
A campainha toca.
Merda. Tenho as palmas das mãos suadas. Estou uma pilha de nervos.
Encaminho-me vivamente para a minha porta novinha em folha, com cuidado para não tropeçar nos saltos altos. Começo a abrir as fechaduras
- três, um pouco melhor do que cinco -, rezando para não ter os dentes sujos de batom.
Abro a porta e não fico desiludida. Ele veste calças caqui, uma camisa azul-clara que realça os seus olhos cinzentos e completa o conjunto com um casaco desportivo
azul-marinho. Ainda tem o cabelo húmido do duche. Sinto o cheiro do seu aftershave.
Ontem, às duas da tarde, com os últimos restos mortais identificados e sem ninguém vivo para acusar, a Polícia de Boston concluiu a investigação da cena do crime
de Mattapan e dissolveu a unidade especial.
Ontem, às duas horas e um minuto, fechámos o nosso acordo.
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Agora ele estende-me um ramo de flores e, bem entendido, uma guloseima para cães. Escusado será dizer que Bella não ficará de fora.
- Olá - diz ele, com um sorriso a franzir-lhe os cantos dos olhos. Bobby Dodge, muito prazer em conhecê-la. Já lhe disse que tenho um fraquinho por churrascos, cercas
brancas e cães brancos ruidosos?
Aceito as flores, entrego o osso a Bella. Fiel ao guião, estendo a mão. Ele, claro, beija-me os dedos, e uma série de arrepios sobe-me pela espinha acima.
- Muito prazer em conhecê-lo, Bobby Dodge. - Respiro fundo. O meu nome é Annabelle.
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NOTA DA AUTORA E AGRADECIMENTOS
Como sempre, estou em dívida para com muitas pessoas que me ajudaram a tornar este livro possível. Do Departamento da Polícia de Boston: delegado Daniel Coleman; diretora de Comunicações Nicole St. Peter; detetive Juan Torres; detetive Wayne Rock; tenente Michael Galvin; e, finalmente, o meu querido vizinho e colega da organização "Kiwanis International", Robert "Chuck" Kyle, reformado do Departamento da Polícia de Boston, que ajudou a pôr a engrenagem em movimento (e tem mais histórias do
que qualquer autor poderia jamais esperar honrar num único romance). Todos eles disponibilizaram pacientemente o seu tempo e a sua experiência; naturalmente, explorei-os a todos e usei de grande liberdade poética.
A minha humilde gratidão para com Marv Milbury, antigo auxiliar de enfermagem do Hospital Psiquiátrico Estadual de Boston. Marv é um homem excecionalmente gentil, cujas histórias são capazes de pôr os cabelos em pé a qualquer um. Durante o nosso almoço, até a empregada desistiu de trabalhar e ficou a ouvi-lo falar. Também aqui, mais histórias do que um só livro pode conter, mas fiz o meu melhor. Para os leitores verdadeiramente interessados na história das instituições psiquiátricas, é verdade que tive de forjar a cronologia das operações, mas tentei manter o espírito da experiência da instituição psiquiátrica.
Obrigada também à antropóloga forense Ann Marie Mires, que dispôs generosamente do seu tempo para me ajudar a compreender o protocolo correto para a exumação de
uma sepultura com trinta anos. Que fique registado que as informações acerca da mumificação húmida foram extraídas da Internet, podem ser incorretas e não devem
ser utilizadas contra Ann Marie. É para isso que servem os autores de ficção.
A Betsy Eliot, querida amiga e colega de escrita, que veio mais uma vez em meu socorro. Não há muita gente que continue a atender os nossos telefonemas depois de
lhe termos pedido para organizarem um tiroteio em Boston. Betsy não só deu uma ajuda sem preço com o primeiro livro de
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Bobby, Sozinhos, mas, quando lhe telefonei de novo e lhe disse que precisava de dar uma volta por um hospital psiquiátrico abandonado, levou-me lá alegremente. Ao
crepúsculo. No trânsito da hora de ponta. Adoro-te, Bets.
À D.D. Warren da vida real, vizinha, querida amiga e boa companheira, que nunca me questionou por utilizar o seu nome naquilo que ambas presumíamos ser uma personagem
secundária em Sozinhos. Mas claro que D.D. deu nas vistas e acabou em dois romances. A verdadeira D.D. é tão bonita como a sua homónima ficcional e, felizmente para
todos nós, igualmente dedicada ao serviço da sua comunidade. Também é abençoada com um marido bem-parecido, divertido e brilhante, John Bruni, que foi tenente em
Sozinhos mas teve de ficar fora deste. És um bom companheiro, John, e um poeta maravilhoso.
Ao meu irmão Rob, que gentilmente disponibilizou os seus colegas de trabalho para fornecer população e pessoal para o Hospital Psiquiátrico de Boston retratado no
meu romance. Como vêem, não sou o único membro da família com uma mente tortuosa.
Às minhas boas amigas e excecionais costureiras Cathy Caruso e Marie Kurmin, que me deram algumas noções básicas acerca de decoração de janelas. Acabei por não utilizar
tanto como gostaria; a culpa é minha, não vossa. Juro que para a próxima farei melhor.
E à afortunada Joan Barker, vencedora do passatempo "Kill a Friend, Maim a Buddy" em wvvfw.LisaGardner.com. Joan nomeou a sua grande amiga Inge Lovell para ser o
feliz cadáver no meu último romance. É o que faz a amizade. Espero que ambas gostem e, para os restantes, em setembro, a procura de imortalidade literária começará de novo...
Por fim, no capítulo de cuidar de autores: a Anthony, por todas as razões que ele tão bem conhece; a Grace, que já está a trabalhar no seu primeiro romance (tem
um fraquinho por tinta cor-de-rosa forte); a Donna Kenison e Susan Presby, que me deixaram dormir no magnífico Hotel Mt. Washington para poder cumprir o prazo e
preservar a sanidade mental; e às nossas queridas vizinhas Pam e Glenda, pelas segundas-feiras femininas, pelas bolachas de queijo e pelo salmão. São as pequenas coisas que fazem de um bairro um lar.

 

 

                                                                  Lisa Gardner

 

 

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