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SALVAS EM HONRA / Patrick O brian
SALVAS EM HONRA / Patrick O brian

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O controle do mar da China está em jogo, e os serviços secretos britânicos e franceses se vêem imersos em uma luta desesperada. O espião e cirurgião Stephen Maturin e o capitão Jack Aubrey afrontam uma complicada aventura na qual a diplomacia e a espionagem encontram as mais insuspeitas vinculações com a biologia e a cartografia.
Este é o décimo terceiro romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos.
Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real inglesa, como forma habitual de expressão da terminologia náutica.

1 jarda = 0, 9144 metros.
1 pé = 0, 3048 metros - 1 m = 3, 28084 pés.
1 cabo =120 braças = 185, 19 metros.
1 polegada = 2, 54 centímetros - 1 cm = 0, 3937 polegada.
1 libra = 0, 45359 quilogramas - 1 kg = 2, 20462 libra.
1 quintal = 112 libras = 50, 802 kg.
1 pinta = 0,47 litros.
1 celemine= 4,6 litros.

 

 

 


 

 

 


CAPÍTULO 1

Apesar da pressa, muitas esposas e noivas foram ver a fragata zarpar. Os membros da tripulação que não se ocupavam de fazê-la avançar pela intrincada rota, navegando de bolina com o vento frio do sudeste, contemplaram seus lenços brancos se agitando no ar na margem do mar até que ficaram ocultos por Black Point, e se perderam de vista.

Os homens casados que estavam no castelo de popa da Surprise se afastaram da borda dando um suspiro e guardaram suas lunetas. Todos amavam muito suas esposas e todos (Jack Aubrey, o capitão Tom Pullings, um voluntário que ocupava o posto de imediato; Stephen Maturin, o cirurgião; e Nathaniel Martin, o ajudante deste) lamentavam enormemente ter que partir, ainda que devido ao atraso de algumas questões oficiais e outras razões tinham passado em suas casas um período mais comprido que o habitual e alguns se acharam com a sua importância diminuída pela chegada de um bebê, e outros sofreram por causa dos familiares de sua esposa, de ocasionais discrepâncias, de chaminés, goteiras, preços, diversos impostos, a sociedade ou da insubordinação. Agora, ao girarem, olharam para o sudoeste e contemplaram o céu azul-claro por onde passavam em fileira nuvens brancas e redondas na direção conveniente, e também o mar azul-escuro, com o qual formava a nítida linha do horizonte, atrás da qual havia infinitas possibilidades, ainda que partiam tarde e em um momento pouco propício.

Seria exagerado afirmar que consideravam a viagem uma válvula de escape ou férias, mas depois de sua aflição estava a idéia de que regressavam para um mundo mas simples, um mundo onde o teto ou o que servia de teto não tinha que ser necessariamente impermeável, onde as chaminés e os impostos destinados ao socorro dos pobres significavam muito pouco, onde a hierarquia, estabelecida independentemente do valor moral ou intelectual, acabava com as diferenças de opinião ou pelo menos impedia que as opiniões se expressassem sem reservas, onde não havia visitas pela manhã nem os serventes podiam anunciar que deixavam o emprego. Nesse mundo faltavam a maioria das comodidades, não estava isento de perigos e era bastante complexo, ainda que poderia se dizer que sua complexidade abarcava uma variedade de aspectos infinitamente menor, mas, sobretudo, era um mundo ao qual estavam acostumados. Jack Aubrey tinha passado mais tempo no mar que em terra, se formara no mar, e as emoções mais fortes de sua vida as sentira no mar. Sem dúvida, o encontro com o amor e um desagradável choque com a justiça em terra lhe haviam deixado uma indelével impressão, porém, apesar desses sentimentos serem profundos, não podiam se comparar em número nem em intensidade com os que havia experimentado como marinheiro. Além de ter encarado terríveis perigos própios de sua profissão como tormentas e naufrágios, participara de um maior número de grandes batalhas entre esquadras ou entre dois barcos que a maioria dos oficiais de seu tempo. Abordara muitíos barcos inimigos e nessas ocasiões sentira com maior intensidade que estava vivo. Em geral, não era um homem agressivo senão alegre, otimista, amável, bondoso e severo só com quem não era bom marinheiro; contudo, quando estava no convés de um barco francês com o sabre na mão, experimentava uma feroz alegria e se sentia mais cheio de vida que nunca. Ademais, recordava claramente todos os detalhes do combate e os golpes que dava e recebia.

Nisso se diferenciava muito de seu amigo Maturin, a quem desagradava a violência e não achava prazer em nenhuma batalha. Quando devia lutar o fazia com eficiência mas com frieza, dominando constantemente sua apreensão, e lhe desgostavam tanto o combate como sua recordação.

Martin, o ajudante do cirurgião, tampouco tinha alma de guerreiro. Talvez isso se devesse a ser um clérigo (ainda que não tinha benefício eclesiástico e, nessa ocasião, tampouco exercia seu ministério, pois havia renunciado a ele para fazer aquela viagem, uma longa viagem, talvez uma circunavegação, como ajudante de Maturin), mas também, indubtavelmente, por que não podia sentir raiva, a raiva que se experimenta nas batalhas, até que o atacavam com dureza, e mesmo então não sentia muita, senão a indignação imprescindível para se defender. Na realidade, na fragata havia tão diversas atitudes ante as batalhas e tantos tipos de valentia como de homens, mas entre Davis o Lerdo, que sentia uma fúria subumana e mortífera, até Bonden, que simplesmente experimentava um grande prazer, ninguém a bordo podia qualificar-se de covarde. Salvo muito poucas excessões, todos eram marinheiros profissionais e combativos. Alguns procediam de barcos corsários que operavam em alto mar, outros de barcos que se dedicavam ao contrabando nas costas e outros de barcos de guerra, mas todos eram marinheiros escolhidos (pois Jack Aubrey, por suas peculiares circunstâncias, pôde escolher entre um grande número deles) e já haviam passado juntos tanto tempo e por tantas tormentas e tantas duras batalhas que agora formavam uma comunidade bem unida que sentia um grande apreço e um grande orgulho por sua fragata.

Apesar disso, era uma comunidade estranha em uma embarcação tão parecida a um barco de guerra, pois não havia nela infantes da marinha, nem oficiais uniformizados nem guardas-marinhas. Ademais, os marinheiros caminhavam tranqüilamente, inclusive com as mãos nos bolsos; ouviam-se risos no castelo apesar de estarem zarpando; e o suboficial que estava governando a fragata, enxugando uma lágrima que ressaltava por sua bochecha e movendo a cabeça de um lado para outro, não teve receios em falar diretamente a Jack:

- Não voltarei a vê-la nunca mais, senhor. É a jovem mais bonita de Shelmerston.

- Indubtavelmente, é uma bonita jovem, Heaven - disse Jack. - É a senhora Heaven, se não me equivoco.

- Bem, senhor, é, por assim dizer, minha esposa; ainda que alguns a comparariam com um porco-espinho ou um general, o senhor me entende.

- Os porcos-espinhos têm muito valor, Heaven. Salomão tinha mil, e Salomão sabia como eram importantes. Creio que voltará a vê-la.

A própia Surprise também era estranha. Parecia-se muito a um barco do rei, ainda que na realidade era um barco corsário, quer dizer, um navio de guerra com licença para perseguir ao inimigo. Mas não era um barco corsário comum, pois o Governo pagava os gastos da viagem ao Atlântico sul para atacar as embarcações que comerciavam peles, os baleeiros e os navios de guerra franceses e norte-americanos que encontrarem.

Isto a colocava em uma posição quase igual à dos navios alugados por sua majestade, pois, além disso, seus tripulantes não podiam ser recrutados a força. Mas o verdadeiro propósito da Administração era que o doutor Maturin avaliasse as possibilidades de criar estados independentes no Chile e no Peru (ou de contribuir para que se formassem) para debilitar o Império espanhol. Como nesse momento a Espanha era aliada da Inglaterra, não se podia dar a conhecer o objetivo, nem os pagamentos nem nada que tivesse relação com o assunto, porque isso poderia ser embaraçoso.

Os tripulantes da Surprise não estavam preocupados com nada disso. Sabiam que gozavam de uma privilegiada isenção e que haviam logrado permanecer no rol, o seleto rol de um dos barcos corsários com mais êxito que sulcavam os mares, cujo uma de suas presas permitiu inclusive aos marinheiros mais humildes brincarem de fazer ricochetear sobre o mar com moedas de ouro se desejassem. Tanto alguns destes como vários de seus companheiros de tripulação decidiram fazê-lo durante o período em que as provisões eram repostas antes de iniciar a viagem para a América do Sul, um período inesperadamente comprido, e agora eram pobres outra vez; contudo, eram pobres felizes, porque o que havia ocorrido antes poderia voltar a ocorrer (era quase certo que voltasse a ocorrer). O capitão Aubrey poderia regressar de uma curta expedição com muitas presas, e ainda com mais motivo de uma ao Atlântico sul, e o porto de Shelmerston poderia encher-se pela segunda vez.

Mas muitos mais, especialmente os que haviam obtido uma parte do butim duas vezes ou duas vezes e meia maior que o restante da tripulação, seguiram os conselhos de seu capitão. Aubrey lhes deu muito bons conselhos sobre finanças: poupança, cautela, pequenos benefícios (o limite máximo que aprovava eram os cinco porcento que a Armada dava), vigilância perpétua e economia. Todos no mundinho marítimo sabiam que Jack Aubrey merecia o apelido que lhe haviam posto no mar, o Afortunado, e que tinha feito pelo menos três fortunas antes do último grande golpe; mas que também fora muito desafortunado em terra. Às vezes havia feito coisas extravagantes, como ter um estábulo de cavalos de corrida ou dar alguns passos de baile em Brooks; outras fora crédulo, pois confiara nas profecias de alguns projetistas e, em geral, fracassara nos negócios. Por tudo isso, estava claro, para qualquer observador objetivo, que ninguém era menos indicado para dar conselhos; contudo, sua maneira de governar um barco, seu comportamento quando entabulava um combate e a lista de suas vitórias e suas presas pesavam mais que sua escassa habilidade para administrar o dinheiro. Ademais, suas palavras bem-intencionadas e sempre adequadas às necessidades e à capacidade de compreensão de quem o escutava tinham tanta influência como as de Tom Cribb em política exterior. Alguns dos tripulantes da Surprise casados e com filhos se retiraram da profissão, mas nenhum, salvo um ajudante de veleiro que estava casado com a única filha e herdeira do dono de uma companhia de transportes, foi para muito longe, e agora havia um total de sete novas pousadas e tabernas, com o escudo de armas de Aubrey (três cabeças de ovelha em relevo sobre um fundo azul) em seus rótulos, muito perto da costa e, também havia que admiti-lo, muito perto de seus irmãos, tios, primos, sobrinhos e inclusive, que Deus os perdoe, netos. Mas os marinheiros prudentes e afetuosos eram só uma pequena proporção da tripulação e a soma desta com a de pobres não podia se comparar com a que tinha a outra característica estranha da Surprise: a presença de numerosos marinheiros que não se achavam obrigados a reconhecer nenhuma autoridade nem tinham embarcado por causa da pobreza ou pela falta de emprego. Esses homens faziam a viagem por algo mais, algo mais importante e menos definido que os benefícios. Entre tão diversas personalidades, esse "algo mais" tinha que ser necessariamente pouco definido, ainda que, obviamente, em parte estava relacionado com viajar para o estrangeiro, ver novos países, penetrar em território inimigo para fazer diabruras e conseguir ouro e prata, navegar em um barco em harmonia, ir longe em tempo de guerra, quando havia muita probabilidade de que lhes recrutassem à força para a Armada e tivessem que servir sob as ordens de oficiais de humor muito diferente (o que molestava aos marinheiros de Shelmerston não eram as lutas nem as travessias difíceis nem a escassez de provisões, mas a disciplina amiúde desnecessariamente dura, o assédio, as surras e o avassalamento). Ainda que todos gostassem do saque e que uma bolsa com dobrões faria qualquer um rir, o desejo veemente de consegui-la não era sua principal motivação.

Naturalmente, no caso de alguns homens esse "algo mais" era evidente. Para Jack Aubrey não lhe importava nem um pouco o dinheiro. Seu único desejo era que o reabilitassem e o voltassem a incluir na lista de capitães de navio da Armada, se possível com a mesma antiguidade. Tudo isto haviam lhe prometido oficiosamente depois da captura da Diane e de maneira oficial quando foi eleito membro do Parlamento; melhor dito, quando seu primo lhe entregou o pequeno condado de Milford. Mas finalmente, depois de muito tempo, Aubrey abandonou seu otimismo, e deixou de confiar nas promessas. No curto tempo que esteve em contato com a Câmara dos Comuns e seus membros, chegou a conhecer a fragilidade da Administração e de seus atos. Não duvidava em absoluto da palavra do primeiro lorde, mas sabia que se o Conselho de Ministros mudasse, o sucessor de Melville não era obrigado a cumprir o que este lhe prometera verbalmente e de um modo pessoal. Também sabia (algo recente ainda que não imprevisto) que não gozava do favor do regente. Isto se devia em parte a que o irmão do regente que era membro da Armada, o duque de Clarence, era um dos mais ardentes defensores de Jack e um dos principais críticos do regente (os dois irmãos quase não se falavam); ademais, alguns dos almirantes liberais mais importantes achavam que Aubrey devia ser reabilitado. Para completar, Jack fez uma de suas raras incursões nos encontros literários: no curso de uma recepção, em um lugar onde havia bastante gente, ouviu que a amante do regente, lady Hertford, insultou Diana Maturin, uma prima de sua esposa casada com seu melhor amigo, e disse com raiva:

- Cada ovelha com sua parelha. Deus as cria e elas se juntam. Já o disse Dryden ao falar das amantes de outro grande homem... Disse... Disse... Já o tenho. Disse: são falsas, tontas, velhas, mal-educadas e malvadas. - Sim, ninguém ganha de Dryden. Falsas, tontas, velhas, mal-educadas e malvadas. Não há pior falta de educação que ser descortês em uma festa ou em uma recepção.

Um antigo companheiro de tripulação, Mowett, foi que lhe falara do encontro, e seu atual companheiro, Maturin, informou-lhe que essas palavras haviam chegado aos ouvidos do regente. Stephen se informou por sir Joseph Blaine, o chefe do Serviço secreto da Armada, que, ademais, confessou:

- Se pudéssemos saber quem estava na sala de backgammon naquele momento, talvez poderíamos pôr um nome ao verme da maçã.

Havia um verme na maçã. Algum tempo atrás, dois espiões a serviço da França muito bem situados, Ledward (do Ministério da Fazenda) e Wray (do Almirantado) tramaram um plano para acusar Jack Aubrey de um delito. Devido a Wray conhecer muito bem os movimentos dos oficiais da marinha e Ledward os dos delinqüentes, o plano se desenrolou tão bem que um jurado de Guildhall declarou Jack culpado de fraude na Bolsa e o condenou a pagar uma multa, a que o pusessem na picota e, certamente, a que o eliminassem do Boletim Oficial da Armada. A acusação era falsa, e se demostrou graças a um espião inimigo que estava descontente e delatou Ledward e seu amigo dando irrefutáveis provas de sua traição; contudo, não haviam prendido a nenhum dos dois e se sabia que estavam em Paris. Blaine estava seguro de que algum amigo muito influente os protegia, provavelmente um funcionário com um cargo permanente. Esse homem (ou talvez um pequeno grupo), cuja identidade não tinham podido descobrir nem Blaine nem seus colegas apesar de todos seus esforços, ainda atuava e ainda podia ser muito perigoso. Como Wray havia urdido o plano, em parte porque odiava Aubrey, era quase certo que a influência de seu protetor oculto estava por trás do atraso e do desânimo com que se haviam acolhido as propostas favoráveis a Aubrey, obviamente inocente, até que foi eleito membro do Parlamento.

- O verme ainda está aqui - havia dito Blaine. - É muito provável que esteja em seu cargo por ser muito distinto e que tenha uma relação não muito ortodoxa com Wray. Se por meio de um cuidadoso interrogatório averiguassemos que um homem distinto com gostos ambíguos, algo que não pode se esconder dos serventes por mais cuidado que se tenha, estava na sala de backgammon na sexta-feira, poderíamos identificá-lo por fim.

- De fato - concordou Stephen -, se admitimos que o único dos presentes que queria levar mexericos era o verme em questão.

- É verdade - replicou Blaine -, mas pelo menos isso poderia nos indicar algo. De toda forma, peço que aconselhe ao seu amigo discrição. Diga-lhe que ainda que o primeiro lorde é um homem honorável, talvez não possa cumprir suas promessas porque a situação atual é muito complicada e é possível que o excluam do Almirantado. Também diga-lhe que não se confie muito e que se faça ao mar tão logo como possa, pois, além das razões óbvias, há forças ocultas que podem prejudicá-lo.

 

Jack Aubrey tinha um mau conceito da capacidade de seu amigo para as matemáticas e a astronomia, e ainda pior de sua capacidade para a náutica. Ademais, a forma com que jogava bilhar, tênis, frontão e, sobretudo, críquete, seria digno de desprezo se não inspirasse lástima. Mas em medicina, línguas estrangeiras e política, Maturin podia se comparar a todas as sibilas juntas mais a bruxa de Edmonton, a velha Moore, mamãe Shipton e todas as deidades marítimas. Stephen terminou de contar tudo, dizendo: "Acham que seria conveniente que se fizesse ao mar muito rápido. Isso não só faria com que os implicados neste caso se afrontassem com um fato consumado como também, e perdoe-me que lhe diga, meu amigo, evitaria que se comprometesse ainda mais em um momento de descuido ou por causa de alguma provocação". Jack o olhou fixamente e perguntou:

- Acha que deveria zarpar imediatamente?

- Sim - respondeu Stephen.

Jack assentiu com a cabeça, virou-se para Ashgrove Cottage e com um vozeirão que, sem dúvida, podia ser ouvido além das duzentas jardas que o separavam dela, gritou:

- Ei, os de casa! Ei, Killick!

Mas não era necessário que gritasse tanto, porque Killick estava detrás da cerca, de onde os escutava às escondidas, e depois de uma pausa prudente saiu dali. Stephen não entendia como um homem tão alto e lerdo podia ter se escondido detrás de uma cerca tão baixa e de tão pouca espessura sem que o descobrissem. O campo de pinos recém preparado parecia o lugar ideal para falar de assuntos confidenciais, o melhor além da inóspita e distante colina. Stephen o escolheu de propósito, mas apesar de ter experiência nessas coisas não era infalível, e uma vez mais Killick lhe havia burlado. Consolou-se pensando que o servente escutava sem nenhum propósito (o mesmo que o avaro ama o dinheiro por si mesmo, não como meio de intercâmbio) e que seu desejo de proteger os interesses de Jack estava fora de dúvida.

- Killick - disse Aubrey -, prepare o baú para amanhã ao amanhecer e diga a Bonden que venha.

- Preparar o baú para amanhã ao amanhecer e dizer a Bonden que venha para o boliche - repetiu Killick sem mudar nem um pouco sua pétrea expressão.

Mas depois de afastar-se um pouco parou, regressou de quatro para a cerca e os observou por entre os galhos. Como no remoto povoado onde Preserved Killick havia nascido não tinha campos de pinos, mas sim um boliche, esse era o termo que usava com a obstinação que o caracterizava.

Stephen pensava que Killick tinha razão em usar esse termo quando caminhava com Jack de um lado para outro como se estivessem em um castelo de popa com grama, pois, na realidade, aquele terreno se parecia tanto com um campo de boliche como o roseiral de Jack Aubrey a algo plantado por um cristão para seu deleite. Ainda que em um barco de guerra havia marinheiros com habilidade para muitas coisas (por exemplo, os seguidores de Set da Surprise, com ajuda do armeiro e do carpinteiro, haviam construído um novo centro de reuniões de estilo babilônico com uma corrente de elos dourados em forma de S em cada uma das paredes de mármore), neste caso, pelo que se via, a jardinagem não era uma delas e, sem dúvida, a sega tampouco. No campo se viam espaços em forma de meia lua onde a lâmina da foice havia chegado até a terra, outros que tinham pouco grama e a borda amarelada e outros sem grama, e, ao que parece, quando os toupeiras da localidade viram esses espaços se animaram a fazer seus montículos ao redor deles.

Estas reflexões se desenrolavam na superfície de sua mente, mas no profundo dela se agitava uma mistura de surpresa e consternação que não podia se expressar com palavras; surpresa porque, apesar de acreditar conhecer muito bem Jack Aubrey, subestimara a enorme importância que dava a todos os detalhes desta viagem, e consternação porque não pretendia que tomasse suas palavras ao pé da letra. Para Stephen não lhe convinha que Jack preparasse seu baú para "amanhã ao amanhecer" porque ainda tinha que resolver muitos assuntos antes de fazer-se ao mar, mais dos que podia solucionar nos cinco ou seis dias de que pensava dispor; contudo, pela forma com que havia falado, especialmente pelo que dissera antes da advertência, não lhe parecia possível voltar atrás de maneira razoável. Ademais, sua capacidade de inventar era agora muito reduzida e lhe falhava a memória (se tivesse lembrado de que já tinham carregado na fragata todas as provisões para a longa viagem, não teria falado em tom sentencioso). Tanto psicológica como emocionalmente se sentia muito mau. Estava descontente com seu banqueiro e com as universidades para as quais queria doar dinheiro para fundar cátedras de anatomia comparada, e tinha fome. Ademais, estava chateado com sua esposa, que, com sua voz cristalina, havia lhe dito: "Escute-me, bem, Maturin: se nosso filho tiver uma expressão de mau humor e tédio como a que trouxe da cidade, terá que trocá-lo por outro com uma mais alegre".

Em teoria podia dizer: "A fragata não zarpará até que eu esteja pronto", porque, ainda que parecesse absurdo, ele era o dono; contudo, não pensava fazê-lo, pois pela relação que existia entre Aubrey e ele, da teoria à prática havia um grande trecho. Devido a sua ansiedade e ao atordoamento que lhe causava seu mau humor, não lhe ocorreu nada quando Bonden chegou correndo, alugaram os carros do Goat's e do George's e enviaram mensageiros para Shelmerston, Londres e Plymouth; contudo, ainda que tivesse falado como os anjos, agora era tarde demais para retratar-se do dito sem perder a dignidade.

- Oh, Stephen! - exclamou Jack aguçando o ouvido para escutar o relógio da torre situada no pátio do estábulo, um imenso estábulo cheio de cavalos árabes de propriedade de Diana. - Temos que ir nos trocar, servirão o almoço dentro de meia hora.

- Por Deus! - queixou-se Stephen com um inusual tom mal-humorado. - Por acaso nossas vidas têm que se reger pelas badaladas tanto em terra como no mar?

- Querido Stephen - disse Jack, olhando-o com afeto, mas um pouco surpreso -, estamos no reino da liberdade, sabia? Se preferir ir ao caramanchão com um bolo de porco frio e uma garrafa de vinho, não se reprima, mas eu não vou incomodar Sophie, que quer pôr um bonito vestido já que é nosso aniversário de casamento, ou à sua mãe. Além disso, Edward Smith virá.

Stephen tampouco quis molestar a Diana. Ultimamente ambos havinam tido mais brigas que o habitual, incluída uma furiosa discussão sobre Barham Down. A propriedade era muito grande e solitária para que vivesse ali uma mulher sozinha e o capim não era apropiado para a criação de cavalos (ela vira brotar o dos pastos e sabia que era muito fino), além de que o terreno duro e acidentado poderia destroçar seus delicados cascos. Ela preferia ficar com Sophie e aproveitar as colinas que Jack não utilizava para nada, cuja grama só era superada pela de Curragh, no condado de Kildare. Stephen lhe desaconselhou que montasse a cavalo enquanto estivesse grávida e ela exclamou:

- Por Deus, Stephen, como você é exagerado! Qualquer um pensaria que me considera uma apreciada bezerra. Vai converter esta criança em uma terrível chateação.

Stephen lamentava muito as discussões, sobretudo desde que se converteram em azedas e acaloradas disputas, justo desde que se celebrou realmente seu matrimônio, o matrimônio pela Igreja. Durante os anos anteriores de convivência haviam tido brigas, naturalmente, mas não fortes, e nunca chegaram a levantar a voz um para o outro, nem haviam se insultado nem haviam quebrado móveis ou pratos. Mas o matrimônio coincidira com a decisão de Stephen de abandonar o velho costume de tomar ópio, e apesar de ser médico, até esse momento não percebera o efeito calmante que tinha, de como relaxava seu corpo e sua mente, e de como o transformara em um marido inadequado para uma mulher como Diana. Sua mudança de comportamento, uma drástica mudança (pois, quando não estava sob o efeito do láudano tinha um temperamento ardente), havia beneficiado e tornado mais profunda sua relação. Isso era, com toda probabilidade, a causa de discutirem tão acaloradamente, cada um deles tratando de manter sua ameaçada independência, e era, com toda certeza, a causa de que existisse a criança. Quando Stephen ouviu as primeiras batidas do coração do feto, o seu deu um salto e sentiu uma alegria que nunca antes tinha experimentado e uma espécie de adoração por Diana.

Quando Jack e ele estavam a meio caminho da casa, por associação de idéias disse:

- Jack, com a pressa quase me esqueço de dizer que no paquete que veio de Lisboa chegaram duas cartas de Sam e outras duas que fazem referência a ele. Envia-lhe em ambas afetuosas e respeitosas saldações. Acho que suas coisas vão muito bem.

Jack ficou vermelho de satisfação e respondeu:

- Fico muito alegre em saber. É um menino muito bom.

Sam Panda era filho natural de Jack. Era tão alto como ele e ainda mais robusto, e apesar de ser negro como o ébano, parecia muito com ele, pois tinha seus traços, seu porte e, assim como ele, mesmo sendo corpulento gesticulava com elegância. Foi criado por missionários britânicos na África do Sul e agora tinha um dos graus das ordens menores. Era sumamente inteligente, e, levando em conta sua idade, tinha uma brilhante carreira pela frente, mas só uma absolvição lhe permitiria ordenar-se sacerdote, pois sem ela nenhum bastardo podia passar do grau de exorcista. Stephen sentiu simpatia por ele desde que o conheceu nas Antilhas e usou em seu favor a influência que tinha em Roma e em outros lugares.

- Sem dúvida - concordou Stephen em um tom que já não parecia mal-humorado. - Acho que só o que necessita agora é a permissão do patriarca, que espero conseguir quando façamos escala em Lisboa.

- O patriarca? - perguntou Jack, rindo. - É verdade que há um patriarca em Lisboa? Um patriarca vivo?

- É claro que há um patriarca. Como achas que a Igreja portuguesa pode funcionar sem um patriarca? Inclusive nas seitas mais novas acham que os bispos e os arcebispos são necessários. Qualquer criança sabe que há e sempre haverá patriarcas em Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém, nas Antilhas, Veneza e, como disse, Lisboa.

- Você me surpreende, Stephen. Sempre acreditei que os patriarcas eram esses homens muito velhos com barba até os joelhos e túnica comprida que viveram na antiguidade, como Abraão, Matusalém, Anquises e outros. Mas ainda há patriarcas por aí, ah, ah, ah!

Riu tão alegremente e com tanta vontade que não era possível que Stephen mantivesse a expressão de enfado.

- Desculpe-me, Stephen. Não sou mais que um marinheiro ignorante, sabe? Não é minha intenção faltar-lhe com o respeito. Patriarcas! Oh, meu Deus!

Então chegaram ao caminho de cascalho.

- Alegra-me muito o que me falou de Sam - continuou Jack com uma expressão mais séria e não tão alto. - Ele merece progredir depois de ter estudado tanto latim e grego e provavelmente também teologia, ainda que não seja um rato de biblioteca. Deve pesar umas 240 libras e é forte como um boi. Ele me escreve cartas muito amáveis e discretas, quero dizer, diplomáticas, bem, já me entende. Qualquer um pode lê-las. Porém, Stephen - acrescentou, baixando ainda mais a voz quando subiam a escada -, não faz falta que mencione isto, a menos que creia oportuno, claro.

Sophie gostava de Sam, e ainda que a relação do garoto com seu esposo era óbvia, ela não lhe fisera sensuras, pois verdadeiramente não tinha motivos para se sentir ofendida porque o havia gerado muito antes de conhecê-la. Ademais, Sophie não costumava se indignar. Jack lhe estava profundamente agradecido por isso e se sentia culpado quando pensava em Sam, mas não estava obcecado com essa idéia e agora tinha que se ocupar de um problema completamente diferente.

Quando entrou no salão com o cabelo recém empoado e uma elegante casaca de cor escarlata, já não restava rastro de culpabilidade em sua expressão nem em seu tom de voz. Olhou o relógio, viu que ainda faltavam cinco minutos para que os convidados chegassem e anunciou:

- Senhoras, sinto comunicar-lhes que o tempo que vamos permanecer em terra se reduziu. Embarcaremos amanhã e zarparemos ao meio-dia, com a mudança da maré.

Elas protestaram imediatamente com gritos discordantes. Disseram que não deviam patir, que esperavam que ficassem mais seis dias, que não era possível que sua roupa íntima ficasse preparada... Sophie lhe perguntou se havia esquecido que esperavam o almirante para jantar na quinta-feira e que no dia 4 era o aniversário das meninas. Até a senhora Williams, a quem a pobreza e a idade tinham convertido em uma pessoa digna de lástima, vacilante, temerosa de ofender ou de não parecer compreensiva, cortês e obsequiosa com Jack e Diana (e, por tudo isso, quase irreconhecível para quem a havia conhecido quando falava com segurança em si mesma e malevolência), mesmo ela, recobrando um pouco de seu antigo ardor, disse que o senhor Aubrey não podia partir tão depressa.

Stephen chegou ao salão e ficou de pé na porta, e imediatamente Diana se aproximou dele. Ao contrário de Sophie, não estava bem arrumada, em parte porque estava incomodada com seu esposo e em parte porque dizia que as mulheres com o ventre grande não podiam ser elegantes. Pegou Stephen pelo colete e perguntou:

- Stephen, é verdade que vai de viajar amanhã?

- Se Deus quiser - respondeu Stephen, olhando-a com receio.

Ela saiu do salão e todos ouviram como subia os degraus de dois em dois, como uma criança.

- Oh, Sophie, que esplêndido vestido! - exclamou Stephen.

- É a primeira vez que o ponho - disse ela com um tímido sorriso e as lágrimas assomando de seus olhos. - É do veludo de Lyon que você amavelmente...

Chegaram os convidados: Edward Smith, um companheiro de tripulação de Jack em três missões e agora capitão do Tremendous, um navio de setenta e quatro canhões, e sua bonita esposa. Falaram muito, como os velhos amigos costumam fazer, e no meio da conversa Diana entrou em sigilo, vestida com um traje de seda azul, a cor que melhor ressalta a beleza de uma mulher morena e de olhos azuis, que a cobria da cabeça aos pés. Também usava pendurando no peito um imenso diamante de um colorido azul mais intenso. queria entrar sem chamar a atenção, mas a conversa cessou e a senhora Smith, uma simples dama provinciana que estava falando há um tempo sobre gelatina, olhou boquiaberta para o pingente azul, que nunca havia visto.

O silêncio foi conveniente para Killick, que desempenhava a função de mordomo em terra e se refinara e, ainda que sabia que não podia indicar a sala de jantar com o polegar ao mesmo tempo que dizia "o almoço já está servido" como fazia nos barcos, não estava seguro de qual era a forma correta de dizê-lo. Entrou detrás de Diana e, em tom vacilante e em voz tão baixa que não poderia ser ouvida se houvesse um pouco de ruído, anunciou:

- A janta está na mesa, senhor. Por aqui, senhoras, por favor.

Foi uma boa janta ao estilo inglês, uma janta de dois pratos que incluíam cinco alimentos diferentes, mas não os que Sophie teria mandado preparar se soubesse que essa era a última janta de Jack em casa em muito tempo, ainda que pelo menos tenha mandado pegar o melhor vinho do porto que tinham na adega. E quando as mulheres deixaram os homens sozinhos, eles começaram a bebê-lo.

- Quando os homens fazem um bom vinho do porto e os melhores tipos de clarete e vinho de Borgonha, atuam com sensatez - disse Stephen, olhando a vela através da taça. - Em quase todas as outras atividades não se vê mais que estupidez e caos. Não acha que no mundo domina o caos, senhor?

- Sim, sem dúvida - respondeu o capitão Smith. - Há caos em toda parte menos em um barco de guerra bem governado.

- Há caos em toda parte. Nada poderia ser mais simples que dirigir um banco. Alguém recebe dinheiro, propõe o ganho, e quando empresta dinheiro, propõe o custo; e a diferença entre as duas somas é o balanço da conta do cliente. Porém, posso fazer que meu banco me diga meu balanço, responda minhas cartas e siga minhas instruções imediatamente? Não. Quando vou falar de um assunto me afundo no caos. A pessoa a quem quero ver está pescando salmões no Tweed, perto de sua cidade natal; os papéis se extraviaram ou não estão à mão; ali ninguém sabe falar português nem entende a maneira de negociar dos portugueses; recomendam que marque um encontro para dentro de quinze dias. Não digo que sejam desonestos, ainda que não goste da taxa de quatro peniques para gastos inexplicáveis, mas sim que são incompetentes e não sabem para onde navegam. Diga-me, senhor, conhece a algum banqueiro que realmente entenda seu negócio? Algum Fugger moderno?

- Oh, Stephen, por favor! - exclamou Jack, que temia que seu convidado se ofendesse.

Edward Smith e seu irmão Henry, filhos de um pastor evangélico a quem admiravam muito, eram chamados de Luzes Azuis na Armada (porque rezavam no barco todos os dias e duas vezes nos domingos), e ainda que sua combatividade atenuava um pouco a conotação religiosa dessas palavras, todos sabiam que lhes molestava ouvir grosserias e blasfêmias. Os dois irmãos, chamados de Luzes Azuis ou não, foram muito amáveis com ele depois da recente desgraça, apesar do risco de prejudicarem sua carreira naval.

- Refiro-me aos Fugger, senhor Aubrey - continuou Stephen, olhando-lhe com indiferença. - Os Fugger, repito, eram uma distinta família de banqueiros alemães nos tempos de Carlos V, o tipo de pessoas que entendiam seu negócio.

- Oh, eu não sabia! Talvez tenha entendido mal a pronúncia. Desculpe-me. De todo modo, o capitão Smith é irmão do cavalheiro de que lhe falei, o que vai abrir um banco perto daqui; quer dizer, outra agência, pois tem muitas por todo o condado e, naturalmente, uma na cidade. Também conhece ao seu outro irmão, Henry, que está ao comando do Revenge e se casou com a filha do almirante Piggot. São uma família de marinheiros. O pobre Tom também seria um marinheiro se não fosse por sua coxeadura, mas estou seguro de que seu banco será estupendo. Vou transferir uma considerável parte de meus fundos para o banco de Tom Smith porque ficará bastante perto. E quanto ao seu banco, Stephen, não gostei de ver o jovem Robin perder quinze mil guinéus em uma sessão em Brook's.

- Não vou elogiar o banco de minha própia família - interveio o capitão Edward Smith -, mas pelo menos posso assegurar que Tom não permite o caos, ou o evita até onde é possível nos assuntos terrenos. As cartas que chegam se respondem no mesmo dia, o gasto de quatro peniques não passa desapercebido e as notas de Tom são trocadas em todo o país, inclusive na Escócia, tão facilmente como os do banco da Inglaterra.

- Também joga muito bem o críquete, apesar da perna - explicou Jack. - Quando rebate, um homem corre por ele, e é capaz de rebater curvas diabólicas. Eu o conheço desde que era menino.

- Desculpe-me, senhor, por não lhe ter reconhecido antes - disse Stephen. - Tive o prazer de ver o seu irmão com freqüência a bordo do Revenge, e se não estivesse tão aturdido, teria notado imediatamente a semelhança.

A semelhança era, certamente, extraordinária, e quando passaram para a sala, Stephen refletiu sobre o grau da semelhança familiar. Neste caso, os dois irmãos eram do tipo de oficiais da marinha que Stephen mais gostava. Os dois eram bonitos, tinham a cara curtida pelos elementos e uma expressão sempre amável, nunca temerosa, nem orgulhosa nem sombria, como a de alguns oficiais. Seus traços eram muito similares e, também, Edward movia a cabeça exatamente como Henry e tinha o mesmo riso franco.

A senhora Williams se voltou para ele buscando ajuda.

- Provavelmente o senhor, senhor, que conhece ao senhor Aubrey há tanto tempo, poderá fazê-lo compreender que não fica bem ir embora tão depressa, porque o aniversário das meninas está perto e o Parlamento reiniciará as sessões dentro de pouco.

- Bem, senhora - respondeu com o mesmo riso e o mesmo movimento de cabeça -, ainda que me encantaria poder servi-la, temo que isso é algo que não está em minhas mãos.

Tampouco nas dos demais. Quando Jack Aubrey falava no tom de voz que usava na Armada, Diana e Stephen sabiam perfeitamente que podia ir embora e partiria depressa. Especialmente Stephen o tinha visto fazê-lo com freqüência. Quando se podia obter alguma vantagem no mar por não perder nem um minuto, quando tinha que escapar, perseguir ao inimigo ou entabular uma batalha, os barcos sob o comando de Jack Aubrey podiam recolher âncoras e zarpar de repente sem fazer sinais aos botes para que regressassem e, portanto, largando em terra marinheiros de licença, provisões e mesmo o sagrado café; e, naturalmente, deixando sem cumprir as obrigações sociais. Stephen sabia que nada poderia mudar as coisas, sabia já fazia tempo. Essa era a razão pela qual se encontrava agora no castelo de popa da Surprise, olhando distraidamente para o mar, vítima de sua própia enfática persuasão.

Outros cinco ou seis dias lhes tivessem facilitado muito as coisas. Apesar disso, Jack estava muito mais seguro no mar, pois a abertura do Parlamento estava próxima e era possível que cometesse outro erro ou que a influência negativa que tinham sobre ele seguisse atuando, tanto por provocação através de um terceiro como por pura invenção. Depois de tudo, Stephen se alegrava de estar no mar. Seus assuntos ainda não estavam resolvidos, mas Jack havia acordado com o contador que zarparia de Plymouth e subiria na fragata em frente a Eddystone, e Standish traria muitas coisas, incluindo cartas, e o capitão do cúter que o transportasse também levaria cartas. Ademais, iam fazer escala em Lisboa. Apesar de todas essas desvantagens (que afetavam ainda mais seu ânimo, exacerbado pela falta de seu bálsamo habitual ainda que fosse uma insignificância), tinha começado a grande viagem que ele e Martin, como naturalistas, tanto ansiavam fazer, uma viagem muito mais importante para Maturin do ponto de vista da espionagem. Nas colônias da América do Sul havia grupos partidários dos franceses e da escravidão, e Stephen se opunha aos franceses, quer dizer, à política imperialista de Bonaparte, assim como à escravidão, que odiava com toda sua alma; tanto como odiava outras formas de tirania, como, por exemplo, a dos castelhanos na Catalunha.

Outros companheiros de tripulação de Jack Aubrey, sobretudo os que tinham viajado com ele desde que se pôs ao comando de seus primeiros barcos, também estavam acostumados a zarpar de repente. Não lhes desconcertou que a fragata zarpasse de Shelmerston com um monte de cabos pendurando, potes de tinta abertos no castelo de popa, uma parte da faixa negra de um costado apagada e a outra cheia de breu e fuligem, nem que a roupa dos oficiais ainda a estivessem lavando em terra; mas isso lhes afetava fisicamente, pois deviam transformar em ordem aquela confusão imprópria de bons marinheiros sem perder um momento. Agora tinham o cabo Penlee pela popa, todos os oficiais estavam no convés e quase todos os tripulantes se encontravam ali também, muito ocupados. Mas não estavam incomodados nem surpreendidos, pois os marinheiros veteranos, homens muito bem informados, sabiam que Jack Aubrey quase nunca se fazia ao mar tão depressa a menos que tivesse certa informação secreta ("Quem a daria, companheiro? Quem?", perguntava para os outros o mais velho e o melhor informado de todos dando palmadinhas no nariz) sobre um barco inimigo ou uma magnífica presa que poderiam capturar em poucas centenas de milhas ao redor. Por esse motivo, todos faziam suas tarefas com mais zelo e rapidez do que a simples devoção implicava.

Tom Pullings era um homem que merecia o grau de capitão de navio por suas ações, mas só era um capitão de corveta da Armada, que, como muitos com esse grau, não tinha um barco sob seu comando. Agora viajava outra vez como voluntário e se encontrava no castelo de popa com o capitão. Davidge estava no castelo com o carpinteiro e um grande grupo de fortes marinheiros colocando os numerosos botes da fragata; West e o contramestre se achavam no castelo aparentemente brincando com um monte de cabos, enquanto outros eperimentados marinheiros estavam situados acima deles ou ao seu redor, inclusive fora da borda, e cada um estava concentrado em fazer seu trabalho.

Todos estes oficiais estiveram a bordo da Surprise na última e sumamente afortunada viagem, que era só uma viagem de prova em águas territoriais para se preparar para a longa travessia que empreendiam, e que resultou um êxito. Davidge e West estavam ali principalmente por lealdade a Aubrey, mas também porque queriam ter melhor sorte (os dois tinham grandes dívidas para pagar com o dinheiro do butim) e porque na Armada todos sabiam que Aubrey seria reabilitado cedo ou tarde, e ambos confiavam em que eles também voltariam a ser incluídos no Boletim Oficial da Armada. A principal motivação de Pullings era sua devoção por Jack, ainda que também o mau gênio que tinha a senhora Pullings (incrível para quem a conhecera vários anos atrás, quando era uma tímida jovem de povoado e antes de ter seus quatro robustos filhos), que lhe perguntava cada vez com mais freqüência por que não tinha um barco quando tontos como Willis e Caley os haviam conseguido enviando cartas para o Almirantado, ainda que não bem escritas nem com boa ortografia, para insistir em sua petição.

Um sentimento muito parecido havia atraído e mantido a bordo a muitos seguidores de Jack Aubrey, quer dizer, seus seguidores em sua carreira naval, como seu timoneiro, os tripulantes de sua falua e seu despenseiro. Ademais, tinha muitos outros: um considerável número de marinheiros que haviam navegado com ele durante esta guerra e em parte da anterior, como o velho Plaice e seus primos e um tipo chamado Davies o Lerdo, um homem temível, lerdo, mal-humorado, violento e bêbado, que lhe acompanhara em uma viagem depois da outra apesar do que ele dissesse ou fizesse. Outra motivação desses homens era estar em um barco de guerra governado como um da Armada, pois para eles essa era sua forma de vida natural, tão natural como usar calças largas e cômodas malhas de lã. Usar casacas em terra para assombrar seus amigos e parentes era agradável, e também era falar e gritar pelas ruas de Gosport ou passear fazendo bobagens de Wapping à Torre de Londres, porém, aparte dessa diversão, a terra lhes servia principalmente para conseguir provisões que levar para o mar, não era um lugar onde realmente pudessem viver. Ademais, estavam acostumados a navegar e gostavam de fazer o que conheciam; levar uma vida normal, sem mudanças de nenhum tipo, sem que nada interferisse na sucessão de carne de porco salgada nos domingos e quintas-feiras, carne de vaca salgada nas terças-feiras e sábados e queijo e pescado, com todas as variedades que o mar oferecia, nos outros dias.

Esse apego à fragata e ao seu capitão e à ordenada vida marinheira não era igual em todos os tripulantes. Alguns marinheiros chegados recentemente, durante a viagem que a Surprise realizou pelo Báltico, veneravam sobretudo as riquezas. Eram marinheiros de primeira (do contrário não estariam a bordo), mas ainda não formavam parte da tripulação. Os autênticos tripulantes da Surprise, os homens que haviam navegado nela desde tempos imemoriais, e os marinheiros de Shelmerston, que haviam lutado nas duas últimas batalhas, olhavam para esses homens de Orkney com receio, e Jack ainda não tinha encontrado o modo de solucionar essa situação.

Quando Jack olhou o catavento notou que a intensidade do vento havia diminuído bastante, e pelo aspecto do céu parecia que continuaria diminuindo pelo menos até o pôr do sol. O castelo e os corrimãos já estavam desimpedidos, assim que depois de refletir durante uma comprida pausa, disse:

- Capitão Pullings, acho que por fim podemos envergar a verga velacho.

Como haviam zarpado repentinamente e antes do esperado, os marinheiros dos dois turnos de guarda estavam mesclados e faziam tarefas muito diferentes das que costumavam realizar e a maioria dos homens de Orkney se achavam no castelo ao redor de seu líder, Macaulay. Pullings deu as ordens em voz alta e clara; o contramestre chamou a todos conforme o método empregado no mar; e imediatamente os marinheiros que estavam no castelo, encabeçados por Macaulay, pegaram as betas.

Houve um breve silêncio e depois, puxando do cabo com toda sua força, começou a cantar: "Heisa, heisa...". E seus companheiros cantaram em uníssono:

 

Heisa, heisa,

vorsa, vorsa,

vou, vou.

Um só puxão.

Mais força.

Sangue jovem.

Ah, ah ah!

 

O tom e o ritmo de seu canto eram desconhecidos por Jack, e a última frase, que cantaram em voz de falsete quando os moitões se chocaram, encheu-lhe de assombro.

Olhou para a popa, onde geralmente Stephen ficava inclinado sobre o coroamento olhando a esteira, mas Stephen não estava.

- Suponho que o doutor tenha descido - aventurou. - Ele teria gostado disto. Poderíamos repetir a manobra e pedir-lhe que venha para o convés.

- duvido que venha logo - respondeu Pullings em voz baixa -, pois tem diante de si tantos papéis como se fosse pagar os gastos de um navio de primeira classe e acaba de soltar um bramido para senhor Martin.

No que se referia à devoção, Nathaniel Martin a sentia por Maturin, não por Aubrey, e lhe doeu que Stephen lhe falasse com irritação, uma irritação que raras vezes vira nele, mas que parecia aumentar cada vez mais. Sem dúvida, nesta ocasião tinha uma desculpa, pois por causa de um solavanco Martin fora cambaleando de uma cadeira para outra, misturando quatro montes de papéis cuidadosamente separados e derramando na cabine uma poção que cobria o piso como um tapete branco.

O fato de que estivessem ali devia-se ao governo britânico não ser o único que desejava mudar a situação nas colônias espanholas e na portuguesa na América do Sul, já que os franceses pensavam fazer o mesmo. Muito antes de que as autoridades de Londres tentassem estabelecer contato com os rebeldes do Chile, Peru e outros lugares, os franceses tinham desenrolado seus planos, mais ambiciosos (e mais amplamente conhecidos), até o ponto de estar prontos para executá-los. Tinham equipado uma nova fragata para escoltar mercantes aliados e, sobretudo, baleeiros pelo Atlântico sul e ao mesmo tempo levar espiões que desembarcariam na costa do Chile com armas e dinheiro. Essa fragata, a Diane, foi a que Jack sacara do porto de Saint Martin justo antes que zarpasse, e nela se encontraram todas as instruções e os relatórios dos espiões franceses, a avaliação da situação local por todos os enlaces, assim como os nomes dos simpatizantes dos franceses e dos homens cuja lealdade havia sido ou podia ser comprada. Tudo isso estava cifrado conforme quatro códigos distintos, e Martin havia mesclado os quatro grupos além de outros papéis situados debaixo que estavam relacionados com os assuntos privados de Maturin: as cátedras universitárias, os aluguéis anuais, os pagamentos e outras coisas. Agora tinha que classificar de novo os documentos franceses e depois decifrá-los, estudá-los, aprendê-los de memória e talvez também cifrar os pontos mais fáceis de esquecer, com outro código, para tê-los como referência no futuro. Geralmente, grande parte de seu trabalho era realizado pelo departamento de sir Joseph, mas, neste caso, ele e Stephen acordaram que somente eles se ocupariam desses papéis.

Martin foi para a coberta inferior, onde sob a luz de uma lanterna terminou de anotar em um livro os medicamentos da fragata e etiquetou as caixas e os frascos que continha o estojo de remédios, um novo estojo de remédios de grande tamanho com duas fechaduras.

Depois revisou os instrumentos cirúrgicos: serras, retratores, tenáculos, mordaças e amarras forradas de pele. Revisou grandes quantidades de outros artigos, como bolsas de sopa desidratada, envasadas em caixas de madeira com trinta e seis unidades cada uma, suco de lima e de limão, gesso de Paris para curar membros quebrados ao estilo oriental (o método predileto do doutor Maturin) e pacotes de tripa fina, cada um marcado com uma grande flecha. Quando estava observando a última (que os ratos já haviam atacado), Stephen se reuniu com ele.

- Acho que está tudo em ordem - disse Martin -, mas não pude encontrar mais que um frasco de um quarto de galão de láudano em vez dos numerosos garrafões de cinco galões que costumávamos ter.

- Só há esse frasco de um quarto de galão - explicou Stephen. - Decidi não usá-lo mais, salvo em caso de emergência.

- Era sua panacéia - observou Martin, mas imediatamente passou a pensar nos homens que estavam consertando sua casa, na possibilidade de que estivessem reparando o teto agora, coisa que duvidava, e em que mandaria uma nota para o senhor Huge com o capitão do cúter de Plymouth.

- Não sou menos susceptível de falhar que Paracelso, que usou antimônio durante muitos anos - sentenciou Stephen. - Acho que causa sérios inconvenientes ter tanto láudano a mão.

- Sim, sim, certamente - respondeu Martin, levando a mão à testa. - Desculpe-me.

Com efeito, causava sérios inconvenientes. Padeen, o servente irlandês de Stephen, que era também seu ajudante e ficava com freqüência na enfermaria e entre os medicamentos, era viciado em láudano, a tintura de ópio. Stephen o havia descoberto tarde e fez o que pôde, mas não o suficiente, e agora estava incapacitado para o trabalho. Padeen abandonou a fragata quando fez escala em Leith, e como não pôde conseguir ópio pelos meios apropiados (era analfabeto, quase não compreendia o inglês e o único que conhecia da substância era o nome de tintura), conseguiu-o pela força, metendo-se em uma farmácia de noite e provando preparados até que o encontrou.

Isso ocorreu em Edimburgo e Stephen não soube de nada até o final, mas o advogado defensor escocês, apesar de seu talento, não pôde ocultar o fato de que aquele era um grave delito e que o corpulento e selvagem papista era o culpado. Padeen foi sentenciado a morte, e Jack Aubrey teve que usar toda sua influência como representante de Milford para que comutassem a pena de morte na forca pela deportação. Padeen foi enviado com outras centenas de homens em um comboio para Botany Bay, mas pelo menos levava uma recomendação do doutor Maturin para o cirurgião do barco e para o chefe médico da colônia e, também, uma de sir Joseph Banks para o governador de Nova Gales do Sul.

- Desculpe-me - Martin voltou a dizer. - Como pude pensar...?

Um grito no convés, o distante estrépito de passos rápidos, a perceptível rotação da coberta e a paulatina desaparecimento dos numerosos ruídos de um barco em movimento o salvaram daquele momento vergonhoso.

- O barco parou - aventurou.

- Foi posto em pairo - Stephen o corrigiu-. Vamos para cima, mas antes fechemos o estojo de remédios e apaguemos a luz.

Subiram com agilidade pelas escuras e conhecidas escadas (pelo menos nisto atuavam como marinheiros) e quando saíram, a brilhante luz do sol lhes fez pestanejar. A uma milha para noroeste ficava o cabo Eddystone. Diante dele havia quatro navios de linha navegando de bolina com destino ao estreito de Sound, e atrás a terra estava envolvida em uma espessa névoa.

- Não fica maravilhado, doutor? - perguntou Davidge, o oficial de guarda.

- Certamente! - respondeu Stephen, olhando para o farol, que tinha um halo de gaivotas e a base rodeada de espuma. - É uma das mais bonitas torres imagináveis.

- Não, não - disse Davidge. - Os conveses, os objetos de latão, as vergas, tudo está pronto para a inspeção de um almirante.

- Nunca vi nada mais limpo e ordenado - sentenciou Stephen, olhando ainda o farol.

Nesse momento viu um cúter que obviamente avançava em direção à fragata e fazia e recebia sinais dela.

- Graças a Deus que tenho minhas cartas preparadas! - gritou, e desceu correndo para sua cabine.

Quando logrou encontrá-las e subiu com elas, os gritos haviam substituído os sinais. Então ouviu que diziam ao capitão do cúter que o abordasse com a fragata pelo lado de bombordo para que passassem os pacotes primeiro.

- Você lhe disse que vou realizar uma série de observações para Humboldt, né? - perguntou Jack, interrompendo sua conversa com o capitão. - Uma série de observações por todo o Pacífico. Em uma dessas caixas há uma bússola que se usa verticalmente, e também um delicadíssimo higrômetro que ele inventou, o melhor compasso para medir o azimute que já tive, um cronômetro de Genebra e alguns termômetros graduados por Ramsden. O capitão diz que qualquer um pode trazê-las em um bolso, mas eu só me fio se usam um moitão. Bem, aqui está o correio.

O cúter se abordou com a fragata e o senhor Standish, o novo contador, sorriu para seus amigos.

- Agora sente-se aí, senhor, e fique tranqüilo enquanto sobem os pacotes a bordo - recomendou-lhe o capitão, aproximando-lhe de um rolo de cabos.

A saca de correio chegou primeiro, e Jack, mexendo seu escasso conteúdo, anunciou:

- Um monte de cartas para você, doutor, e um pacote tão pesado como um dos pudins de passas das meninas. Alegra-me dizer-lhe que tem os portes pagos.

A saca foi seguida por numerosas caixas pequenas, o violino do senhor Standish e um objeto que parecia uma luneta, mas que era uma carta marítima enrolada onde Humboldt tinha marcado a temperatura máxima e mínima de uma vasta extensão de mar. Tudo foi colocado sucessivamente em uma rede enganchada a um moitão que pendurava de um penol e os marinheiros a subiram e a desceram devagar ao ritmo dos tradicionais gritos dos tripulantes que haviam sido membros da Armada real, o mais parecido a um cântico (sem contar o som da bolina).

O piloto desprendeu a rede e agitou o braço no ar. O capitão se voltou para Standish e disse:

- Agora, senhor, por favor.

Então o guiou até o costado, ajudou-o a subir para a borda e a manter o equilíbrio agarrando-se a um amantilho.

- Salte para a escada deles quando o cúter subir com as ondas - indicou. - Salte antes de que voltem a descer.

Com um croque aproximou o cúter da fragata tanto como era possível no agitado mar e justo abaixo da escada.

Como a Surprise tinha um carregamento de provisões para uma longa viagem, estava bastante afundada na água, porém, apesar disso, uma parte do costado de uns doze pés ficava acima do nível do mar. Ainda que largos, os degraus eram muito finos, e Stephen e Martin, que estavam junto a um pontal, inclinaram-se para fora justo acima dele para dar-lhe conselhos. Standish era o único tripulante da fragata que sabia menos do mar que eles (nunca havia deixado a terra) e não lhes molestava compartir seus conhecimentos.

- Pense que devido à inclinação dos costados para dentro, ou seja, o recolhimento de costados, como nós o chamamos, a escada não é vertical, como parece. Ademais, quando a fragata se balança de modo que se separa mais do senhor, quer dizer, quando pode-se ver as placas de cobre, o ângulo é mais conveniente.

- O importante é não vacilar - animou-lhe Martin. - Tem que saltar com decisão no momento adequado e o impulso lhe fará subir imediatamente. O impulso, o que importa é o impulso.

As duas embarcações seguiram abordadas e balançando no mesmo lugar durante um tempo.

- Salte, salte! - gritou Martin a terceira vez que o cúter subiu com as ondas.

- Espere! - exclamou Stephen, subindo a mão. - Esta subida não é adequada!

Standish se relaxou outra vez e respirou profundamente.

- Vamos, senhor! - disse o capitão com impaciência quando o cúter subiu outra vez.

Standish mediu a distância com a vista e deu um salto que parecia um movimento convulsivo, mas fez um cálculo exagerado do tamanho da faixa de água e se chocou com força contra o costado, não alcançou os degraus e caiu ao mar. O capitão virou imediatamente para evitar que fosse esmagado entre o cúter e a fragata. Standish saiu para a superfície cuspindo água e o capitão tentou pegá-lo com o croque, mas em vez de pegá-lo pelo colarinho, abriu-lhe o couro cabeludo. Standish voltou a afundar, e o cúter, que já não estava unido à Surprise, virou a proa na direção do vento.

- Não sei nadar! - gritou o capitão.

Jack levantou a vista de seu higrômetro, seu cronômetro e suas outras coisas tão apreciadas e compreendeu imediatamente a situação. Então tirou a casaca, saltou por cima do costado para a água. Quando o contador voltou a sair para a superfície, já sem respiração, ele o agarrou e arrastou umas quatro braças, até onde a água era muito escura. Enquanto isso, houve tempo para arrumar cabos e jogar um com um laço para que quando Jack, que era sumamente hábil, tirasse a cabeça de Standish da água, os marinheiros pudessem levá-lo para bordo e ele subir tranqüilamente a escada.

Encontrou Standish sentado na base de uma caronada e ofegando enquanto os doutores examinavam sua ferida.

- Não é nada - Stephen lhes tranqüilizou-. Só uma ferida superficial. O senhor Martin a costurará em um instante.

- Eu lhe sou muito agradecido, senhor - disse o contador, de quem saía bastante sangue da ferida, e se pôs de pé.

- Meu querido amigo, peço que não pense nisso - disse Jack, apertando sua mão ensangüentada.

Então inclinou-se sobre a borda e, olhando para o capitão, que virava contra o vento, gritou:

- Tudo bem!

Desceu correndo para a cabine, onde Killick, furioso, esperava com uma toalha, uma camisa e algumas calças secas.

- E aqui tem as cuecas de lã, senhor - disse. - Voltou a fazê-lo. Bem, sempre o faz, mas desta vez morrerá se não puser as cuecas de lã. Quem já se viu meter-se desnudo nas águas de Eddystone? São piores que as do pólo norte, muito piores.

Standish foi descido para receber os pontos sob uma luz adequada. Os marinheiros da proa, que estavam tirando seu sangue da coberta, do costado e da caronada, não tinham muito boa opinião do contador.

- Que início! - exclamou Davies o Lerdo, que, como muitos outros tripulantes da Surprise, havia sido resgatado por Jack Aubrey, mas se incomodava de compartilhar essa distinção. - Nada poderia trazer pior sorte.

- Arruinou as estupendas calças do capitão com seu horrível sangue - observou um marinheiro do castelo -, porque ele nunca as tira.

- E agora está enjoado - comentou o velho Plaice.

- O senhor Martin o está atendendo lá embaixo.

Standish tinha perdido seu gesto exageradamente amável e agradecido e agora tinha naúseas. Jack regressou ao castelo de popa e disse para Stephen:

- Deixe-me mostrar meu esplêndido higrômetro. Aqui, dos lados do estojo, estão as facas de reserva, como pode ver. É extraordinário e muito sensível, muito mais que os que têm osso de baleia. Quer soprar em cima? É uma sorte que o pobre Standish não o trouxesse no bolso, pois isso poderia ter molhado seu interior.

Riu com vontade, mostrou a Stephen o cronômetro e depois o conduziu até o coroamento, onde aproveitou para lhe contar:

- Queria que estivesse aqui faz um momento. Os marinheiros de Orkney cantaram de forma surpreendente. Nunca os tinha ouvido, pois estava atendendo à carga da fragata e à colocação das placas de cobre e dos gavietes enquanto eles trabalhavam no porão. Acho que antes de voltar a ganhar velocidade cantarão outra vez e eu gostaria que me dissesse o que pensa de seu ritmo.

A Surprise ainda estava em pairo, ainda que o cúter não era mais que uma mancha além de Eddystone e os navios de linha tinham mudado de rumo para se dirigir para o estreito de Sound. Muitos lançavam um olhar inquisitivo para o capitão, que nesse momento avançou para a proa e disse:

- Senhor Davidge, não gosto de como está colocada a verga velacho. Por favor, ordene que a ajustem um pouco mais. Depois rumaremos para sudoeste quarta ao sul e ganharemos velocidade desdobrando a joanete. Eu gostaria que Macaulay e seus companheiros fizessem as manobras. - Após uma pausa, acrescentou: - com ajuda da guarda de popa.

Ouviram-se os habituais gritos, apitos e rápidos passos e, após um tempo, a estranha canção:

 

Heisa, heisa,

vorsa, vorsa,

vou, vou.

Um só puxão.

Mais força.

Sangue jovem.

Ah, ah ah!

 

- É provável que a tenham aprendido nas ilhas Hébridas - aventurou Stephen. - Não é muito diferente dos cantos marinheiros dessa zona nem dos que já ouvi no oeste da Irlanda, em Belmullet, onde vivem os falaropos.

Jack assentiu com a cabeça. Notou que os estranhos gritos mudaram e que os marinheiros se esmeraram tanto que os moitões não se chocaram. Pensou em falar mais tarde com Stephen e perguntar-lhe se opinava que essa era uma deformação do gaélico ou do norueguês, ainda que, em qualquer caso, considerava que tinha uma estranha beleza. Agora tinham que desdobrar a joanete de proa.

Mais ordens, mais apitos, mais passos rápidos. Os marinheiros subiram pela exárcia correndo. Ouviu-se o grito: "Largar, largar!", e a joanete se estendeu com estrondo. Alguns marinheiros pegaram as escotas e os de Orkney pegaram as adriças. A vela foi se inchando e esticando à medida que se movia a verga e entretanto os homens cantavam:

 

Com vento em popa, com vento em popa,

mande Deus, mande Deus,

bom tempo, bom tempo,

e um monte de presas,

e um monte de presas.

 

Em geral os marinheiros da Surprise não gostavam dos cânticos, mas este lhes agradou muito, sobretudo por seu sentimentalismo. A fragata avançava cada vez mais rápido rumo ao sudoeste quarta ao leste e todos os que estavam no castelo de popa repetiram:

E um monte de presas, e um monte de presas.


CAPÍTULO 2

A Surprise encontrou bom tempo quando deixou para trás o turbulento canal da Mancha e entrou nas solitárias águas que Jack considerava ótimas para que limpassem as cobertas e arrumassem tudo como em um barco de guerra da Armada, antes de mudar de bordo para o sul rumo a Portugal. Não temia que recrutassem forçosamente os tripulantes porque a Surprise era um barco corsário e tampouco que o capitão de algum barco do rei de alta patente tivesse gestos de descortesia com ele. Em primeiro lugar, estava protegido pelo Almirantado, e em segundo, os poucos oficiais da frota do Mediterrâneo que poderiam tratar a Surprise como um barco corsário normal (obrigando Aubrey a pô-la em pairo, subir a bordo de seu navio para mostrar-lhes suas credenciais e justificar sua presença ali, responder perguntas e coisas assim) sabiam que ao ter se convertido em membro do Parlamento era provável que o reabilitassem. Apesar de tudo, Jack preferia evitar os convites dos capitães, mesmo os melhor intencionados (além de seus amigos íntimos) e ser recebido como um simples civil; e, também, o contato com os tenentes ou oficiais de derrota que estavam ao comando de pequenos barcos de classe baixa, com quem podia tratar, é claro, lhe pareciam chatos e irritantes.

Em consequência, a fragata navegava por uma vasta zona pouco frequentada onde nessa época do ano só se encontravam baleias, outras criaturas marinhas e alcatrazes pequenos. O centro ficava a considerável distância para o sul do cabo Clear, na Irlanda, e lá, se os dias fossem tão tranqüilos como esperava, os tripulantes da Surprise continuariam recuperando a fragata e terminariam de pintar a faixa negra. O tempo era ideal. Soprava um vento fraco do sudoeste e ainda restavam algumas compridas ondas que vinham do sul, mas quase não havia ondas na superfície do mar. Uma manhã, em um desses dias em que não havia horizonte, em que o céu e o mar se uniam imperceptivelmente em uma indefinida faixa de cor que terminava em azul pálido no zênite, muitos marinheiros pensaram que poderiam pescar antes de começar a pintar a faixa negra, pois aquele momento lhes parecia oportuno para pegar bacalhaus pequenos.

Mas antes deviam desjejuar. Soaram as oito badaladas, ouviram-se os gritos do contramestre, passos rápidos por todas as partes e o choque das bandejas de madeira, e Stephen compreendeu que iam tomar o café da manhã. Ele tomaria o seu logo, quando Jack cheirasse o café, a torrada e o bacon. Aubrey havia ficado acordado até a guarda de meia, estudando as observações de Humboldt e tratando de encontrar a melhor maneira de anotar as suas; por isso agora, como tantas vezes, dormia apesar do ruído que sucedeu às oito badaladas, e nada, salvo uma mudança de vento, o grito de "Barco à vista!" ou o odor do café da manhã poderia despertar-lhe.

Se Jack viajasse sozinho na cabine do capitão da Surprise, disporia de três áreas: a grande cabine no final da popa, que era uma espaçosa habitação com uma ampla janela de lado a lado por onde entrava luz em abundância, e uma habitação quase tão grande que ficava na frente e tinha uma divisão no centro que formava a pequena câmara a bombordo e o dormitório a estibordo. Contudo, como não estava só, compartilhava a grande cabine com Stephen, que também tinha para ele sozinho a pequena câmara. Como Maturin era o cirurgião da fragata, também dispunha de uma cabine mais abaixo, um cubículo mal ventilado que, como os dos outros oficiais, dava para a câmara dos oficiais e que usava ocasionalmente, quando Jack roncava de uma maneira insuportável do outro lado do fino tapume. Mas agora, apesar do terrível ruído, estava sentado ali com seus documentos enquanto mastigava folhas de coca.

Tinha despertado não fazia muito de um sonho erótico vívido e estranho. Os sonhos desse tipo eram muito freqüentes ultimamente, quando quase não sentia os efeitos do láudano que ainda perduravam, e a veemência de seu desejo lhe transtornava. "Estou me convertendo em um sátiro. Que seria de mim sem as folhas de coca? O que?", pensou.

Pegou as cartas que o capitão do cúter lhe entregara e voltou a lê-las. O banqueiro deplorava dizer ao doutor Maturin que pelo momento não havia rastro dos bônus que mencionava em sua carta do último dia 7 e lhe rogava que confirmasse por escrito as instruções que tinha dado ao senhor McBean, uma formalidade necessária para realizar a gestão. Ademais, lamentava não ter podido enviar à senhora Maturin a quantidade de guinéus que ele ordenara, pois o valor que se pagava pelo ouro subira para seis xelins por libra e era preciso que autorizasse por escrito o incremento da soma para realizar a transação. Também pedia que fizesse o favor de mandar novas instruções, reiterava que era seu mais humilde servo, etc..

- Sacanas! - exclamou Stephen, usando uma palavra que frequentemente ouvia a bordo, mas que raras vezes empregava.

Um pouco surpreso consigo mesmo pegou o pesado pacote que acompanhava as cartas. Reconheceu a letra quando leu o endereço, porém, o nome do remetente estava escrito na parte inferior: Ashley Pratt. Era um cirurgião e membro da Royal Society e fazia algum tempo tentava agradar-lhe, mas não lhe era simpático. Apesar de sir Joseph Banks ter uma grande opinião sobre Pratt e que amiúde o convidava para sua casa, o julgamento de sir Joseph sobre as plantas ou os insetos tinha mais valor que seu julgamento sobre os homens, pois às vezes sua bondade o levava a se relacionar com pessoas que seus amigos não aprovavam e sua obstinação o fazia manter essa relação. Stephen conhecia um tipo obsequioso e agressivo chamado Bligh, por desgraça um oficial da marinha, que governara Nova Gales do Sul e cujo mandato causara o descrédito de todos os participantes nele, mas Banks ainda o apoiava. Estimava sir Joseph e pensava que era um excelente presidente da Royal Society, mas não achava que emitir julgamentos fosse sua melhor qualidade. Na realidade, desagradava-se de quase tudo o que ouvira daquele governo da colônia que todos chamavam "a do filho de Banks". Ainda que Pratt fosse um cirurgião famoso e sem dúvida eperimentado, nunca lhe confiaria um aneurisma da artéria poplítea depois de ver o que fizera a um paciente em Barts. Mas tivera a amabilidade de enviar-lhe este presente, um ímã ou conjunto de ímãs desenhado para sacar das feridas lascas de metal das balas de canhão, especialmente das feridas nos olhos. Pratt falara do artefato em sua última reunião.

"Poderia funcionar, sobretudo se for possível dirigir a força e averiguar a trajetória de entrada - refletiu, e consultou seu relógio. - Se Jack não se levantar dentro de sete minutos, pedirei café e o desjejum para mim sozinho. Talvez um ou dois ovos passados em água. De momento deixarei o artefato de Pratt no estojo de remédios."

Ao abandonar o odor de remédio da coberta inferior, notou o do fumegante café (que despertara ao capitão) e observou uma agitação na coberta. Quando chegou à porta da câmara dos oficiais viu Standish, facilmente reconhecível pela bandagem na cabeça, com uma xícara de chá na mão.

- Doutor! - exclamou. - Tinham razão! O capitão veio ao lugar adequado. Venha ver. Poderá vê-la do castelo de popa.

Subiram duas escadas e chegaram ao castelo de popa. Standish ainda estava com a xícara de chá sem derramar. Ali, na dourada manhã, todos os oficiais estavam junto ao costado, por assim dizer, de sotavento, pois quase não soprava o vento. West, por ser o oficial de guarda, estava vestido formalmente, mas os demais vestiam camisa e calça. Todos, assim como os marinheiros que estavam no corrimão e no castelo, olhavam fixamente para o nordeste, e sobre eles caiam gotas de orvalho das vergas e dos aparelhos.

Martin afastou a luneta de seu único olho, ofereceu-a a Stephen e, sorrindo, disse:

- Justo debaixo de onde o horizonte deveria estar. Poderá vê-la muito bem quando a névoa se levante. Mas não lhe dei os bons dias. Que grosseiro sou! Acho que a avareza converte um homem em uma besta. Desculpe-me, Maturin.

- Acredita realmente que é uma presa de lei?

- Não o sei - respondeu Martin, rindo alegremente -, mas todos os outros, quer dizer, os marinheiros experientes, parecem certos disso. E a parte do lastro que não é prata é ouro duplamente refinado em barras.

- Ei, do tope! - gritou Jack, e sua voz afogou todas as conversações ao seu redor. - O que me diz dela agora?

No tope do mastro estava Auden, um marinheiro de Shelmerston de meia idade, que depois de um momento respondeu:

- Não é um dos nossos barcos. Aposto o que for, senhor, que é um barco francês. Tem vergas extraordinariamente grossas e os botes voltam para se reunir com ele tão rápido como podem, o que demostra que não têm a consciência tranqüila. Ah, a consciência nos faz covardes a todos!

Standish olhava assombrado para o tope.

- Auden é o que poderia se chamar de pregador entre os seguidores de Set - observou Stephen e seguiu observando a distante embarcação.

O mar estava tão tranqüilo que algumas partes pareciam de vidro e até o menor movimento do ar formava ondas, assim que era muito fácil manter uma luneta imóvel. Agora que o sol estava mais forte (tanto que as camisas incomodavam), o ar estava tão límpido que se podia ver brilhar os remos dos botes que se aproximavam com rapidez do barco e uma revoada de peixes prateados que passava pelo costado.

- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou Jack, virando-se para eles. - Viram o pacote?

Falou com absoluta normalidade, sem intenção de assombrar aos pobres e desafortunados marinheiros de água doce, mas eles o haviam desconcertado tantas vezes com seus comentários literários que experimentou certa satisfação ao ver a expressão atônita desses três rostos.

Sentiu-se menos satisfeito quando Standish, o primeiro a se recuperar, respondeu:

- Oh, sim, senhor! Estava pensando como recolhê-lo.

Pullings franziu o cenho e West e Davidge olharam para outra parte pensando que esse não era o tom em que um contador recém chegado devia responder ao capitão. Ademais, acreditavam que o fato do capitão tê-lo tirado do mar não lhe dava o direito de falar-lhe com tanta familiaridade.

- Pacote é outro termo que usamos para denominar um paquete, uma embarcação que leva uma vela triangular ou quadrangular detrás da maior. - Olhou para Stephen e continuou: - Auden, que entende destas coisas melhor que ninguém, assegura que não é um barco corsário nem um contrabandista do oeste do país, por isso acho que devemos nos aproximar um pouco mais. É possível que o vento aumente de intensidade com o sol. Pobrezinhos! Encontraram um banco de bacalhau a meia milha da popa e estavam pescando-os aos montes quando nos viram.

- Não podem ser inocentes pescadores?

- Com vergas como essas e tudo preparado para alcançar grande velocidade? Com cinco canhões em cada costado e o convés cheio de homens? Não. Acho que é um barco corsário francês e provavelmente recém saído do estaleiro. Capitão Pullings, temos remos, né?

- Sim, senhor - respondeu Pullings -, eu mesmo os consegui na doca. Eram da velha Diomède e estavam lá por casualidade.

- Muito bem. Excelente. Acho que não vale a pena remar ainda, a menos que o barco o faça. Confio em que o vento soprará do sudoeste a tempo - acrescentou, tocando uma barra de madeira. - Mas ordene que os preparem e abram as portalós. Entretanto, senhor West, aproveitaremos o pouco vento que sopre. Doutor, o que acha se tomarmos o café da manhã?

Era raro que uma embarcação tão grande e pesada como a Surprise usasse remos, tão raro que as pequenas portalós para os remos estavam incrustadas e cobertas por capas de tinta dadas por várias gerações e tiveram que ser abertas pelo carpinteiro com um maço e uma cunha. Como o vento não soprou em quase toda a manhã, sacaram os remos quando soaram as quatro badaladas (o almoço ocorreria em dois turnos), e a fragata começou a avançar pela lisa superfície como uma enorme e débil criatura marinha de longas patas. O paquete fez o mesmo.

- Como o senhor é muito alto, pode pôr-se junto ao toneleiro, senhor? - pediu Pullings a Standish; e ao ver seu olhar inquisitivo acrescentou: - Há um velho provérbio na Armada que diz: "Os cavalheiros remam com os marinheiros". Dentro de pouco verá ao capitão e ao doutor começar seu turno.

- Claro que sim! - respondeu Standish. - Com muito prazer. Alegro-me de ter um remo nas mãos outra vez.

Os cavalheiros remaram com os marinheiros, e ainda que no primeiro quarto de milha houve confusão (pois por causa de um monstruoso caranguejo, meia dúzia de homens caíram no colo de seus companheiros), logo lograram mover-se com ritmo. E quando a fragata pegou impulso, os compridos e pesados remos a fizeram avançar com a água sussurrando nos costados. Não faltavam o zelo, os conselhos ("Estire os braços, senhor, e mantenha os olhos fixos na fragata") nem os risos. Aquele era um bom exemplo de como uma excelente tripulação trabalhava, e quando fizeram a medição com a barquilha viram que a Surprise navegava a dois nós e meio.

Por desgraça, o paquete avançava a três nós ou mais. Era muito mais leve e seus homens estavam muito mais acostumados a remar. Ademais, por estarem mais perto da superfície podiam usar os remos de forma mais eficiente. Ao final do primeiro turno de remo, Jack olhou o barco com a luneta e notou que lhes avantajava, algo que todos os que estavam a bordo puderam perceber após uma hora, pois naquela vasta extensão de mar e céu tão bem iluminado a vista alcançava até uma milha. Os risos cessaram, mas não a determinação, e os homens que remavam, inclinados para frente e com expressão grave, seguiram afundando os remos na água hora depois de hora, e seus companheiros lhes substituíam tão pontualmente à primeira badalada que as remadas quase nunca cessavam.

O sol já havia passado o zênite quando o paquete, já muito longe, fundiu-se com o horizonte e seu casco quase se perdeu de vista. Havia silêncio a bordo, além dos gemidos que davam os homens ao remar, antes de que o esperado vento começasse a soprar do sul-sudoeste. Primeiro o vento inchou as velas superiores e depois formou ondas na superfície da água a grande distância da proa. Quando a fragata já podia mover-se por si mesma e as joanetes se incharam, Jack ordenou:

- Parem de mover os remos!

Então, com grande satisfação, ele e todos os tripulantes escutaram o rumor do vento na exárcia e o das ondas formadas pela proa quando passavam pelos costados.

Primeiro se incharam as gáveas e depois as maiores, e quando os marinheiros ajustaram bem as vergas, Jack mandou guardar os remos. Muitos homens permaneceram inclinados para frente, acariciando os braços e as pernas ou esfregando a região lombar, mas um momento depois subiram com agilidade e rapidez para o alto da exárcia para largar a nuvem de velame que a fragata costumava usar aberta. O vento tinha aumentado de intensidade e mudara de direção cinco graus para oeste; agora chegava pela alheta, pelo que se podia desdobrar uma impressionante quantidade de velas: as sobrejoanetes, as monterillas, as alas de barlavento superiores e inferiores, a cevadeira, a sobrecevadeira e numerosas velas de estai. Standish subiu para tomar ar fresco depois de almoçar sopa de cordeiro quente e encontrar-se pela primeira vez com um dos maiores gorgulhos, os chamados barqueiros. Ao ver aquele bonito conjunto por entre cujas curvas e convexidades se via brilhar o sol, dando-lhe uma infinita variedade de tons brancos, alguns brilhantes e outros delicadamente sombreados, Standish se voltou para Pullings e deu um grito de admiração:

- Meu Deus! Isto é mais belo que uma obra gótica!

- Acho que tem razão, senhor - concordou Pullings -, mas duvido que o mantenhamos assim por muito tempo. Notou como a fragata começou a cabecear e a se balançar?

Era verdade. Tinha um movimento cadenciado e quase tão enérgico como o que lhe era característico, e raras vezes estivera tão afundada na água.

- Estão chegando grandes ondas do sudoeste e provavelmente trarão consigo uma tormenta.

- Vamos apresar o paquete? - perguntou Standish, olhando para frente, para lá do impenetrável velame. - Devemos estar navegando a uma grande velocidade.

- Quase nove nós - confirmou Pullings. - O vento nos empurrou e adiantamos uma milha mais ou menos, mas como a fragata está carregada com provisões para mais de doze meses, não pode navegar tão rápido como poderia. Com um vento como este, já a vi alcançar doze nós, e a essa velocidade há meia hora estariamos abordados com o paquete. Agora o barco tem o vento em popa e está se afastando mais. É muito rápido para um paquete, e tem umas vergas que raras vezes já vi. Se o senhor o observasse do extremo da proa com esta luneta, poderia vê-lo perfeitamente e, se se fixasse bem, notaria que seus homens desdobraram inclusive uma arrastraculo{1}.

- Obrigado - disse Standish sem prestar-lhe muita atenção, com os olhos fixos na borda, que subiu e subiu, parou um instante e começou sua inevitável e vertiginosa descida.

- Mas lhe advirto que se houver uma tormenta como a que o capitão prognostica - continuou Pullings -, e estou seguro de que tem razão, seremos nós quem teremos vantagem porque a fragata é mais alta e as grandes ondas não a afetarão como ao paquete. Vomite para fora da borda, senhor, por favor.

Quando Standish terminou de vomitar, Pullings lhe disse que não havia nada como um bom vômito e que era melhor que o ruibarbo e a pílula azul. Acrescentou que logo se acostumaria ao movimento e chamou a dois marinheiros muito sorridentes para que o levassem abaixo. Standish quase não podia se manter em pé, estava com a cara amarela-verdosa e os lábios pálidos.

Não voltou a aparecer esse dia, e ninguém propenso a enjoar-se o teria feito, pois a tormenta os alcançou antes do que esperavam. Stephen, apesar de estar concentrado examinando seus papéis, notou que a Surprise se movia mais violentamente do que nunca e que o ruído que fazia era muito mais forte e insistente. Fechou uma pasta e lhe envolveu com uma cinta negra, a cinta original francesa, delgada e não muito boa se comparada com a de Dublim, com a qual um homem podia enforcar-se. Recostou-se na cadeira e nesse momento Jack Aubrey apareceu na porta em silêncio.

- Gostaria de ver a presa?

- Gostaria mais do que nada no mundo - respondeu Stephen, levantando-se. - Jesus, Maria e José, que dor tenho nas costas!

- Estou seguro de que ver a presa lhe acalmará.

Agora o convés e o mundo em geral tinham um aspecto muito diferente. A grande quantidade de velame havia se reduzido às maiores, as gáveas rizadas e a cevadeira. O própio convés estava inclinado vinte graus e a proa formava ondas com uma grande faixa de espuma que se moviam para sotavento. Algumas nuvens isoladas passavam com rapidez pelo brilhante céu azul, e ao longe, ao sul, haviam se formado negros nimbos, mas o ar ainda era límpido e tinha muita luz, uma luz rosácea porque o maravilhoso sol já estava muito baixo.

- Agarre-se à linha de vida - recomendou Jack, conduzindo-o para a proa.

Quando Stephen começou a avançar pelo corrimão de barlavento, muitos marinheiros o seguraram pelo cotovelo para que pudesse agarrar-se bem e lhe advertiram que tivesse cuidado, muito cuidado, e atrás de sua amabilidade se notava sua ferocidade.

Pullings os estava esperando na proa.

- Não mudou o rumo nem sequer cinco graus desde que o vimos - informou. - Provavelmente se dirige para a enseada de Cork, um pouco mais ao sul.

Jack assentiu com a cabeça e por cima do ombro ordenou:

- Subam-na!

A cevadeira se enrugou e girou, e Stephen viu com assombro a presa bem adiante, quase a um tiro de canhão, muito mais perto do que esperava. Era uma embarcação baixa e de cor negra, que parecia mais intensa porque contrastava com sua esteira branca e brilhante sob a luz do sol. Ademais, parecia mais baixa do que era devido à largura das vergas, onde suas velas cinzas se mantinham esticadas como um tambor enquanto navegava velozmente. Jack lhe deu a luneta, e ele passou a observar os tripulantes do paquete, que agrupados no coroamento olhavam fixamente a Surprise sem se moverem, ainda que amiúde a espuma lhes salpicava a cara. Enquanto isso, escutava os comentários dos marinheiros sobre a colocação de contraestais duplos ou triplos, o veloz que era o barco para ser um paquete, ainda que estivesse muito bem governado, as dificuldades da Surprise porque a exárcia não se podia ajustar como era desejável, muito pelo contrário, e o notável afundamento da proa. A luneta era excepcional e o ar era tão diáfano que pôde ver uma gaivota que voava perto do costado do paquete e cujas asas também eram rosáceas. Dirigiu a luneta para os dois canhões que assomavam pelas portalós do paquete, provavelmente canhões de nove libras, e nesse momento sua mente lhe deu um toque de atenção e voltou a dirigir a luneta para o terceiro homem desde a esquerda, enfocou-o e já não teve nenhuma dúvida de que era Robert Gough.

Gough também fora membro dos Irlandeses Unidos e ambos estavam de acordo em que os irlandeses deviam governar a Irlanda e os católicos deviam ser emancipados, mas discordavam em todo o resto desde o princípio. Gough era um dos líderes da facção que era a favor da intervenção francesa, e Maturin, ao contrário, era contra ela, pois se opunha à violência e a importar ou ajudar de qualquer maneira ao novo tipo de tirania que surgira na França, uma horrível seqüela que tinha deixado a revolução que ele e muitos de seus amigos haviam acolhido com tanta alegria. Quando o levante de 1798 foi sufocado com repugnante crueldade e com ajuda de enxames de informantes (tanto nativos como estrangeiros e mestiços), as vidas de ambos correram perigo, mas desde então seus caminhos tomaram rumos divergentes. Gough, com os sobreviventes da corrente de pensamento que seguia, comprometeram-se ainda mais com a França; enquanto que Maturin, depois de recuperar-se do terrível impacto, que coincidiu com a perda de sua noiva, limitou-se a observar o desenvolvimento de uma perigosa ditadura que substituía as generosas idéias de 1789 ao tempo que se beneficiava delas. Vira como tratavam a Igreja católica na França, aos seus seguidores italianos nas regiões invadidas pelos franceses e aos catalãos em sua amada Catalunha. Também vira como, muito antes de que acabasse a revolução, implantara-se esse sistema de opressão e saque em uma série de estados policiais e pensava que tinha que se anular esses estados antes de tudo. E tudo o que vira depois, desde a submissão de incontáveis estados pela força bruta e o encarceramento do Papa até a má vontade em todo o mundo, confirmou seu prognóstico e reafirmou sua convicção de que tinha que destruir essa tirania, uma tirania muito mais elaborada e agressiva que as que havia conhecido. A liberdade da Irlanda ou da Catalunha dependiam dessa destruição. A derrota do imperialismo francês era uma condição necessária para todo o resto.

Mas ali, do outro lado da faixa de água, estava Gough, ansiando outro desembarque de franceses, e Stephen estava completamente seguro de que ia realizar alguma missão na Irlanda. Pensou que se aprisionassem o paquete, Gough morreria na forca e a tirania se debilitaria, mas então sentiu ainda mais forte o velho ódio que sentia pelos informantes e a repugnância por tudo o que tivesse a ver com eles e o resultado de sua traição: a tortura, os açoites, o breu derretido sobre a cabeça e, certamente, a forca. Não podia suportar a idéia de estar relacionado, ainda que fosse minimamente, com essa loíase de pessoas; não podia suportar a idéia de estar relacionado com a prisão de Gough.

Nesse momento ouviu que Pullings dizia:

- Mandei sacar os canhões de proa, senhor, em caso de que queira fazer disparos de prova antes de que escureça.

- Bom, Tom - aprovou Aubrey, semicerrando os olhos para calcular a distância e acariciando o canhão de estibordo, um bonito canhão de bronze de nove libras. - Pensei nisso, naturalmente, e com sorte poderíamos derrubar um ou dois paus e matar alguns de seus tripulantes, ainda que a distância seja muito grande e o movimento da fragata se parece mais com um cavalinho de gangorra que ao de um cristão. Mas detesto disparar nas presas, sobretudo nas pequenas; pois além de que se perder muito tempo em repará-las e rebocá-las, é possível que tenha que mandá-las para a Inglaterra com um grupo de tripulantes ao qual depois teremos que esperar. Preferiria situar a fragata em frente ao costado para ameaçar em disparar uma descarga se o capitão se negar a se render, coisa que só um lunático faria porque nossa artilharia é cinco vezes superior à sua. Então, sem fazer uma carnificina nem reparações nem alvoroço, nós a levaríamos até o porto mais próximo e depois rumaríamos para Lisboa, aonde provavelmente chegaremos muito tarde por esta perseguição.

- Acho que não há muitas possibilidades de que nos escape esta noite, pois a lua quase chegadou ao plenilúnio e temos vantagem, assim que não podemos pedir mais. Contudo, penso que se não logramos que diminua a velocidade de alguma forma, a este passo passará muito tempo antes de que possamos mostrar-lhes nossa bateria de perto, e é possível que hajamos percorrido todo o mar da Irlanda; e a verdade é que navegar contra o vento do sudoeste em frente a Galloway é muito difícil.

Falaram de muitas possibilidades e depois Jack parou e perguntou:

- Onde está o doutor?

- Acho que se foi para a popa faz alguns minutos - respondeu Pullings. - Quanto escureceu!

De fato, Maturin fora para a popa e descera para a coberta inferior. Sentado em uma banqueta de três pernas ao lado do estojo de remédios, olhava a chama da lanterna que havia trazido consigo. Tinha mais possibilidades de ficar sozinho e em silêncio ali que em qualquer outra parte da Surprise, pois ainda que a fragata tivesse sua própia voz e nesse lugar o bramido do mar se convertesse em um terrível estrondo, ao serem ruídos contínuos e monótonos, com o tempo podiam ser ignorados e esquecidos, ao contrário dos mecânicos gritos e ordens, os passos e os golpes que teriam interrompido o fio de seu pensamento se permanecesse na pequena câmara da popa.

Há tempos considerava que Gough já não era importante e que, em vista do desastroso resultado das tentativas de desembarque dos franceses, era improvável que o lograssem, fossem quais fossem as promessas de que Gough era portador. O fracasso não debilitaria a maquinaria de Bonaparte de maneira perceptível, e ainda que isso para Stephen fosse indubitável, não afetava sua determinação de evitar intervir na prisão de Gough. E fazia muito tempo tratava de encontrar a forma de resolver a situação.

Mas até o momento lhe ocorreram poucas coisas. Dava voltas e mais voltas nisso, mas seu esforço era inútil. Um grande homem disse que "um pensamento é como um relâmpago entre duas noites escuras", e as noites de Stephen estavam a ponto de se fundirem em uma de ininterrupta escuridão, sem um só raio de luz. As folhas de coca que mastigava tinham a propriedade de tirar a fome e o cansaço, produzir euforia e aguçar a inteligência e o engenho, e a verdade era que não tinha fome nem cansaço, mas com relação ao resto, o efeito era o mesmo que se estivesse mastigando feno.

Naturalmente, tinha o ímã de Pratt. A agulha da bússola de um barco podia desviar-se do norte em presença de um ímã e, em consequência, o timoneiro se equivocaria e o barco se desviará de seu rumo. Porém, quanto poderia desviar-se e a que distância mínima o ímã devia ficar? Não sabia nenhuma das duas coisas. Tampouco sabia qual era a posição da fragata, só que estava no mar da Irlanda, e não podia julgar se a fragata e seus amigos correriam o perigo de naufragar em uma costa rochosa.

Guardou o instrumento no bolso e se dirigiu ao castelo de popa, mas se deteve um momento na pequena câmara para pegar a lanterna. Ainda que a luz que entrava pela clarabóia era um aviso, surpreendeu-lhe ver a noite iluminada pela brilhante luz da lua. As cores eram levemente diferentes, mas parecia que era de dia e não teve nenhuma dificuldade em reconhecer o suboficial que governava a fragata, o velho Neal, nem aos quatro homens que estavam ao leme, Davies e Sims, antigos tripulantes da Surprise, e Fisher e Harvey, de Shelmerston. Mas não tratou de chegar à bitácula para observar a variação da agulha da bússola ao aproximar-lhe o ímã porque West, o oficial de guarda, aproximou-se imediatamente e lhe perguntou se não se havia deitado ainda, e, também, porque era óbvio que a fragata navegava sem que os timoneiros se orientassem pela bússola. O vento chegara a ser tempestuoso, e na última mudança da guarda os tripulantes da Surprise tinham colocado outros rizes nas gáveas e na traquete e aferraram a cevadeira. A presa estava justo na frente, e os timoneiros se guiavam por ela, de modo que o gurupés apontava para sua comprida esteira iluminada pela lua, e ambas embarcações avançavam pelo mar a grande velocidade.

- Parece que a distância ainda é mais ou menos a mesma - observou Stephen.

- Eu gostaria achá-lo - disse West. - Tinhamos adiantado um cabo quando soaram as duas badaladas, mas agora o paquete voltou a se adiantar mais que isso. Contudo, dentro de uma hora mais ou menos a maré estará contra o vento e provocará ondas de proa que dificultarão seu avanço.

- O capitão foi dormir? - perguntou Stephen, pondo-se as mãos ao redor da boca para que pudessem ouvir sua voz, agora rouca e débil, apesar dos rugidos do vento e do mar.

- Não. Está na cabine marcando a carta marítima. Agora mesmo calculamos muito bem nossa posição orientando-nos por Vega e Arturo.

Indubtavelmente, uma das formas mais simples de saber pelo menos uma parte do que ignorava era entrar na cabine e ver a posição da fragata marcada na carta marítima com a precisão de um navegante especialista. Mas isso não seria digno, ia em contra-ataque de sua moralidade, do conjunto de regras que, conforme ele, diferenciavam a odiosa tarefa de espiar da legítima obtenção de informação.

- Como? - perguntou, porque a último coisa que West havia dito ou gritado, só ouvira algo referente ao fogo.

- Dizia que devem estar queimando urze ou tojo em Anglesey - repetiu West, assinalando um distante resplendor laranja pelo través de estibordo.

Stephen consentiu com a cabeça, ficou pensativo por alguns momentos e depois desceu a escada do castelinho com a intenção de ir até a proa pelo castelo. A maioria dos homens da guarda de estibordo tinham se refugiado sob a escada do castelo de popa, e Barret Bonden abandonou o grupo para guiá-lo até passar pelos canhões atados com retrancas duplas, os botes amarrados às bases com cabos duplos, a cozinha, e a escada junto à ampla escotilha próxima ao aparelho, um lugar tão seco, seguro e cômodo como permitia o inclemente tempo. Ali na proa, entre o traquete e as bitas{2} em que estavam enroladas as escotas da gávea, tinha mais tranqüilidade, e os dois falaram durante um tempo do avanço do paquete, que agora a viam claramente diante deles, navegando velozmente a uma milha de distância e lançando água longe dos costados. Bonden sabia que o doutor estava incômodado, e supôs que o motivo talvez fosse a presa, o fato de que a fragata não navegasse adequadamente ou qualquer outra coisa que podia fazer que um homem do interior achasse que o capitão carecia de brio. Contou-lhe que no início de um longa viagem nenhum capitão se arriscava a perder mastros ou outros paus nem cabos a menos que perseguisse um navio de guerra inimigo, um barco de outro país ou um barco corsário muito importante; acrescentou que no início de uma comprida viagem uma embarcação ficava muito afundada e era lenta pelo peso das provisões, e não se podia fazer avançar tão rápido como quando ia mais leve de regresso ao seu país, só com provisões para alguns dias; e lembrou ao doutor que quando perseguiram ao Spartan na viagem de regresso de Barbados, a fragata tinha usado desdobradas as sobrejoanetes com vento muito forte e que não só usavam as sobrejoanetes como também as alas superiores e inferiores, mas explicou que se eles as abrissem agora, a fragata se despediçaria e todos os que não tivessem asas teriam que voltar nadando para seu país.

Bonden observou com tristeza que tomara o caminho equivocado, que não era isso que irritava o doutor, assim que depois de advertir-lhe que tivesse cuidado ao regressar para a popa e recordar-lhe que uma mão era para ele e outra para a fragata, deixou-lhe entregue à meditação, se podia chamar-se assim a angustiada repetição dos mesmos pensamentos uma e outra vez. Enquanto isso, a fragata e a presa avançavam constantemente pelas turbulentas águas iluminadas pela lua, sem avançar perceptivelmente em um mundo onde não havia nenhum objeto fixo.

Mas tinha aparecido um novo elemento: Jack Aubrey não considerava muito importante a captura do paquete. Podia sugerir-lhe que virasse rumo ao sul para comparecer ao encontro que tinham em Lisboa? Não, não podia. Jack Aubrey sabia exatamente até onde podia ou era necessário pôr em perigo a fragata para capturar a presa, e no que se referia à sua profissão, dava no mesmo oferecer-lhe um suborno ou um conselho.

- Ah, Stephen, está aqui! - exclamou Jack, saindo de repente de detrás das bitas e de uma pequena antepara de lona feita por Bonden situada entre os dois. - Está tão molhado como um arenque em conserva. A maré vai mudar e haverá uma marejada tão forte que lhe molhará mais ainda, se isso é possível. Meu Deus, agora mesmo poderiam lhe espremer como a um esfregão! Por que não pôs um traje impermeável? Diana lhe comprou um. Venha tomar uma xícara de caldo e uma torrada com queijo. Eu lhe ajudarei a se agarrar às bitas. Espere até que a fragata se eleve.

Um quarto de hora mais tarde Maturin disse que ia o digerir o caldo e a torrada com queijo na coberta inferior, onde tinha várias coisas urgentes a fazer.

- Vou me deitar até o final da guarda - anunciou jack. - Aconselho que faça o mesmo, porque parece extenuado.

- A verdade é que estou acabado. Talvez administre alguma poção para mim mesmo.

Pensou que tinha muitos motivos para estar acabado quando se sentou na banqueta ao lado do estojo de remédios. Suas vagas palavras referentes ao caso hipotético de que outros capitães, em determinadas circunstâncias, abandonassem a perseguição de uma presa tinham sido inúteis, e se Jack teve a mais leve suspeita de qual era sua intenção, pior que inúteis. Seu plano de desviar a fragata de seu rumo era como um fantasma que parecia real até que se examinava bem. Neste caso, só seria praticável se estivesse nublado e escuro, quando era a bússola que guiava, e se se tinha discrição. Ainda que era indubitável que a posição atual da fragata era apropiada, pois podia mudar de bordo para oeste sem correr nenhum perigo, isso não tinha importância. Estava rendido e inquieto. A maré tinha mudado e tinha se formado uma forte marejada, embora não tão forte como se esperava (já que o vento estava amainando), mas o bastante para que fosse impossível permanecer na coberta inferior, assim que foi para a coberta superior e começou a passear entre a porta da cabine e o primeiro canhão do lado de barlavento. Todos os grupos de guarda o viram caminhar de um lado para o outro, e em cada um os marinheiros fizeram comentários. Alguns dos mais simples comentaram que nunca viram o doutor tão preocupado com uma presa, enquanto que alguns de seus companheiros mais astutos observaram que não era possível que um cavalheiro com um bastão com a empunhadura de ouro e carruagem própia se preocupasse com um pequeno barco corsário de dez canhões; supunham que o que ele tinha era dor de dente e tentava melhorar caminhando, ainda que isso não daria resultado (nunca o dava), e que ao final administraria a si mesmo uma poção calmante ou o senhor Martin lhe tiraria o dente.

Quando soaram as cinco badaladas na guarda de meia, a situação quase não havia mudado, mas Stephen regressou por fim para a coberta inferior, abriu o estojo de remédios e pegou sua garrafa de láudano.

- Não - disse, bebendo a pequena dose muito devagar. - A única solução possível que encontrei não serve. Terei que esperar os acontecimentos e agir em consequência, mas para agir bem tenho que dormir um pouco e vencer esta descomedida angústia.

Subiu a escada pela última vez, entrou na pequena câmara e tirou a roupa molhada. Killick, que não tinha motivo para estar acordado a essa hora, abriu a porta em silêncio e lhe deu uma toalha e uma camisa de dormir. Depois pegou o monte de roupa, lançou um olhar de censura ao doutor e mudou o que ia dizer para "Boa noite, doutor".

Stephen tirou o rosário de seu estojo, pois para ele passar as contas estava tão perto da superstição como obter informação de espionagem. Ainda que durante muitos anos pensara que rezar sozinho e fazer pedidos para ele mesmo era uma impertinência e que as outras formas de oração mais impessoais e parecidas com as orações jaculatórias tinham outro valor, nesse momento sentia a necessidade de manifestar seu fervor explicitamente. Contudo, por causa do calor que a camisa de dormir seca dava ao seu corpo empapado e trêmulo, a agradável sensação que lhe produziu o balanço da maca quando logrou meter-se nela e o notável efeito da poção, foi tomado pelo sono antes do sétimo ave-maria.

Foi despertado por um canhonaço e pelas ordens que davam aos gritos justo acima de sua cabeça. Sentou-se, olhou ao seu redor e começou a recordar. Uma luz débil e cinzenta entrava pelo escotilhão, e teve a impressão de que estavam jogando jorros de água contra o vidro com uma mangueira. O mar havia se acalmado. Ouviu outro canhonaço justo na proa.

Desceu da maca, cambaleou, pôs a camisa limpa e os calções que estavam sobre o escaninho. Dirigia-se apressadamente para a escada do castelinho quando Killick gritou:

- Oh, não! Oh, não, senhor! Não sem isto.

E lhe deu uma comprida, pesada e fedorenta capa e um capuz, ambas amarradas com presilhas brancas.

- Muito obrigado, Killick - disse Stephen quando terminou de se abotoar. - Onde está o capitão?

- No castelo, em meio da catástrofe, berrando como o diabo.

Ao chegar ao pé da escada, Stephen olhou para cima e imediatamente sua cara se molhou com a fria chuva, que era tão forte que quase não lhe deixava respirar. Com a cabeça inclinada e a chuva golpeando seu capuz e seus ombros, avançou até o mastro mezena e o leme. A coberta estava cheia de homens muito atarefados, que aparentemente estavam soltando escotas.

A maioria eram irreconhecíveis porque usavam capas de chuva, mas parecia que não estavam alarmados nem faziam preparativos de combate. Uma figura alta que estava à sua esquerda se inclinou para ele. Era Davies o Lerdo.

- Ah, é o senhor, senhor! - exclamou. - Eu lhe levarei para a proa.

Quando caminhavam a apalpadelas pelo corrimão de bombordo, quase sem poder ver o convés pela chuva torrencial, as nuvens se deslocaram para o nordeste. Então, sobre a fragata e as águas situadas ao sul e ao oeste dela só seguiu caindo uma pequena chuva. Ali estava Jack, usando impermeável, e também Pullings, o contramestre e alguns marinheiros que jorravam água em meio do que parecia uma inextricável confusão de cabos, velas e paus, entre os quais Stephen achou reconhecer o mastaréu de proa por seu extremo, de um alegre colorido verde maçã.

- Bom dia, doutor - cumprimentou Jack. - Alegro-me de ver que trouxe o bom tempo. Capitão Pullings, o senhor e o senhor Bulkeley têm tudo preparado, né?

- Sim, senhor - respondeu Pullings. - Quando o senhor Bentley tiver preparado o tamborete de reserva, restarão muito poucas coisas a fazer.

- Pelo menos não terá que limpar o convés hoje - disse Jack, olhando para a popa, onde a água ainda saía a grandes jorros pelos embornais. - Doutor, quer que tomemos café com o pão que sobrou de ontem torrado?

Depois, na cabine, contou-lhe:

- Stephen, sinto ter que lhe dizer que dei um fora e o paquete escapou. Ontem à noite Pullings queria disparar-lhe a considerável distância com o fim de que diminuisse a velocidade, mas disse que não e esta manhã me arrependi. A chuva fez que o mar se acalmasse, o vento deixou de nos alcançar e o paquete começou a se afastar com grande rapidez. Então pensei "Agora ou nunca" e decidi navegar a toda vela até que a situação voltasse a ser favorável. Nós nos aproximamos bastante e fizemos vários disparos, e um deles caiu tão perto que lançou água no convés, mas um brandal se rompeu e o mastaréu de proa caiu sobre a borda. O paquete fugiu rápido como um raio e, devido ao mau tempo, não será possível encontrá-lo outra vez. Espero que não esteja decepcionado.

- Não, de nenhum modo - respondeu Stephen, tomando café para esconder sua enorme satisfação e sua gratidão.

- Mas lhe advirto que é provável que ele seja capturado por um de nossos barcos - continuou Jack. - O capitão desviou o rumo para o leste quando viu que nos aproximávamos muito e agora está metido em um braço de mar do qual não poderá sair com este vento, que possivelmente durará várias semanas.

- Não nos ocorrerá o mesmo conosco?

- Oh, não! Temos muito mais espaço para manobrar. Quando as velas de proa estiverem desdobradas, dobraremos para o sudeste para poder bordejar Mull pelo barlavento, depois navegaremos rumo norte até dobrar o cabo Malin, depois avançaremos um bom trecho em direção ao alto mar e então faremos rumo a Lisboa. Entre, Tom. Sente-se e tome um pouco de café, ainda que esteja frio.

- obrigado, senhor. Já fizemos o trabalho mais urgente e quando quiser poderemos abrir a bujarrona e a vela de estai de proa.

- Muito bem, muito bem. Quanto antes melhor.

Acabou seu café e os dois subiram rapidamente para o convés.

Um momento depois, enquanto Stephen terminava seu café, ouviu Jack ordenar com seu vozeirão:

- Atenção todos os marinheiros! Todos a mudar de bordo!


CAPÍTULO 3

- Bonden - disse Jack Aubrey -, diga ao doutor que se estiver desocupado venha ver algo no convés.

O doutor estava desocupado, e quando o violoncelo com que praticava emitiu a última nota grave, subiu rapidamente a escada do castelinho com uma expressão ansiosa.

- Ali, justo pelo través - Jack lhe indicou, apontando para o sul com a cabeça. - Poderá ver claramente como as ondas rompem quando a fragata subir no balanço.

- Ah, é! - exclamou Stephen, observando como o cabo Malin desaparecia e reaparecia sob a fina chuva, e depois, pensando que se esperava mais dele, acrescentou: - agradeço por me mostrar isto.

- É a última oportunidade que tem de ver sua terra natal aos dezesseis graus de latitude e Deus sabe quantos de longitude, porque avançaremos para o alto mar quando for possível. Gostaria de vê-la pela luneta?

- Sim, por favor - respondeu Stephen.

Amava sua terra natal, ainda que aquela parte parecia muito mais escura, úmida e menos acolhedora. Contudo, não tinha desejo de que o espetáculo se prolongasse, porque sabia por experiência que os habitantes de uma parte dessa província eram insidiosos, hipócritas, fofoqueiros, alvoroçadores, desprezíveis, ruins, malvados, inconstantes e inóspitos, e quando achou prudente baixou a luneta, devolveu-a e regressou para praticar com o violoncelo. Estava preparando outro quarteto de Mozart e não queria ficar mal na presença do contador, que tocava muito melhor.

Quando Jack ficou sozinho continuou seu passeio habitual de um lado para outro do castelo de popa. Depois de tantos anos devia de ter percorrido centenas e centenas de milhas por ali, e a cavilha próxima ao coroamento onde dava a volta brilhava como prata e estava exageradamente fina. Alegrava-se por ter visto o cabo Malin com tanta nitidez, pois isso significava que as ilhas Inishtrahull e Galvans estavam muito longe pela popa, umas ilhas onde navegantes melhores que ele haviam encalhado, sobretudo com mau tempo, quando não se podiam ver o sol do dia nem as estrelas da noite. Depois de avançar uma milha para ver se tinha melhor sorte, deu ordens para que a fragata virasse para o oeste tanto como o vento do sudoeste permitisse, e comprovou com satisfação que necessitava mudar de bordo apenas cinco graus para que com aquele vento pudesse alcançar sete nós só com as gáveas e as maiores abertas, mesmo quando as ondas chocavam-se a intervalos regulares contra a proa por bombordo, desviando-a ligeiramente do rumo e lançando água e espuma por cima do castelo e até o pau maior.

Isto e o sabor de sal nos lábios o faziam se sentir muito satisfeito, ainda que, por outro lado, sabia que a maioria dos tripulantes estavam desalentados, decepcionados e mal-humorados e pensava que provavelmente os mais decepcionados pensariam que a viagem era desafortunada ou que havia um Jonas a bordo; seria perigoso que convencessem ao restante dos marinheiros, todos eles fatalistas. Isso era ainda mais perigoso em um barco onde não havia infantes da marinha nem se regiam pelo código naval nem se podia recorrer à Armada, um barco onde a autoridade do capitão só dependia de sua importância, sua importância medida por seu êxito passado e presente. Não sabia tudo isto por ter ouvido em alguma conversa nem pelos informes que lhe haviam dado os marinheiros que eram seus informantes, como Bonden e Killick, que ocupavam a mesma posição que um mestre armeiro ou um cabo em um barco de guerra (não de fofoqueiros, a quem detestava), mas por ter passado a maior parte de sua vida em barcos, e parte dela como um simples marinheiro. Julgava o estado de ânimo dos tripulantes intuitivamente, pelas amostras que davam de cumprir seu dever sem entusiasmo, a falta de comentários grosseiros mas humorísticos, as ocasionais respostas mal-humoradas de uns companheiros para outros e a falta de brio; porém, apesar de seu julgamento ser intuitivo, era sumamente certeiro.

Então pensou: "Há poucas esperanças de encontrar algo como consolo nestas águas, a menos que topemos com um barco norte-americano; mas navegaremos o restante do mês tranqüilamente por alto mar, dando bordejadas em cada mudança de guarda até que encontremos o vento do oeste do trópico. Haverá muitas coisas para mantê-los ocupados, ainda que não muito, e dentro de pouco voltaremos a ver o sol".

No meio do Atlântico, enquanto davam uma bordejada depois da outra, repetindo dia depois de dia a mesma rotina, desde que faziam a limpeza da coberta até que apagavam as lanternas, com a invariável sucessão de badaladas e as previsíveis refeições, sem ver no horizonte mais que o céu e o mar, que eram cada vez mais bonitos, o hábito da vida marinheira exerceu seu poder. A alegria voltou a alcançar o nível que tinha antes e, como sempre, cada noite depois de passar revista, todos voltaram a fazer com entusiasmo as emocionantes práticas de tiro com os canhões, que realizavam com uma carga realmente letal, lançando as balas a um alvo flutuante.

Enquanto a Surprise navegava rumo ao oeste, Jack gastou mais em barris de pólvora do que teria obtido como butim capturando o paquete. Justificava-se para si mesmo (porque ninguém mais, nem mesmo Stephen, questionava o gasto) dando como razões que a fragata devia manter sua capacidade de disparar com grande rapidez e precisão, que os marinheiros estavam um pouco sem treinamento e que os homens de Orkney (alguns dos quais tinham chegado a bordo com bestas) não conheciam em profundidade a combinação de prática e disciplina. Como sabia muito bem, o estrépito, as línguas de fogo que penetravam na nuvem de fumaça, o chiado dos canhões ao retroceder, a competição entre os diferentes grupos de guarda e o assombro que produzia ver como uma balsa ou um barril de carne vazio situados a duzentas jardas estouravam, lançando fragmentos e tábuas a grande altura entre a espuma, eram fatores que contribuíam para que os homens recuperassem o brio e para que a Surprise voltasse a ser uma fragata em harmonia, a única máquina de guerra eficiente, o único barco que era um prazer governar.

Somente em casos excepcionais isso ocorria espontaneamente, como quando dava a casualidade de que em um barco que era estanque e navegava bem de bolina havia um grupo de bons marinheiros, suboficiais eficientes (o contramestre era amiúde uma figura importante no que se referia à harmonia), um grupo de oficiais eperimentados e respeitáveis e um capitão severo mas não déspota. Caso contrário tinha que fomentá-lo. Os marinheiros rechaçavam os homens desprezíveis à sua maneira, expulsando-os de sua mesa no refeitório e fazendo-lhes a vida impossível; ainda que houvesse alguns, alguns de caráter muito forte e outros de certa educação, que podiam causar sérios problemas se além de cometer torpezas estivessem descontentes. Na Surprise foram degradados oito homens de Shelmerston que estiveram ao comando de um barco e muitos outros que foram ajudantes de oficial de derrota e sabiam muito de navegação.

O mesmo era válido, ainda que de forma diferente, para os oficiais. Se um dos membros dessa pequena comunidade não encaixava bem nela, isso poderia afetar muito ao funcionamento de todo o barco, e os pequenos erros que não teriam importância em uma viagem para o estreito de Gibraltar poderiam alcançar proporções preocupantes em uma longa missão como, por exemplo, fazer o bloqueio de Toulon durante dois anos ou passar três anos na base naval da África. A propósito disso, Jack se perguntava se fizera bem contratando a Standish apesar de sua falta de experiência só porque tocava muito bem o violino e porque Martin, que o conhecia de Oxford, recomendara-o.

Exceto porque Standish possuía aquela boa qualidade, raras vezes Jack se equivocara mais com relação a um homem. A modéstia e a timidez que Standish exibira ao chegar a bordo desempregado e sem dinheiro haviam se desvanecido, e a segurança de que teria um pagamento mensal e um posto fixo provocavam uma loquacidade e um tom didático desagradáveis. E, naturalmente, era incompetente, como Jack explicou em uma carta para Sophie:

 

Supunha que qualquer pessoa com um pouco de senso comum poderia ser um contador aceitável, mas estava equivocado. Ele tentou ao princípio, mas como enjoa cada vez que desdobramos as joanetes e não sabe somar nem multiplicar de maneira que obtenha o mesmo resultado duas vezes, logo se desanimou e agora larga tudo nas mãos de seu assistente e do despenseiro. Não lhe faltam qualidades. É honesto (o que não se pode dizer de todos os contadores) e teve o cavalheirismo de não dizer a ninguém que sabia nadar bem quando o saquei do mar. Ademais, escuta a Stephen e a Martin atentamente, inclusive com interesse, quando lhe explicam as manobras da fragata ou a diferença entre a fiada e a emborno, ainda que além de escutar estas conferências (você adoraria ouvi-las), quando está bem fala, fala e fala, e sempre de si mesmo. Tom, West e Davidge, que só têm a educação que adquiriram nos barcos e não são muito interessados na leitura, esquivam-se dele porque tem curso universitário, e Martin é muito caridoso, mas esta situação não pode durar porque, além de incompetente, é estúpido.

 

Jack fez uma pausa e lembrou de um incidente ocorrido durante a janta mais recente com os oficiais. Nesse dia ouviu que alguém, em meio de uma comprida anedota de Standish, disse:

- Não sabia que o senhor tivesse sido mestre.

- Oh! Foi durante um curto tempo, quando tinha pouco dinheiro. Esse é o recurso que temos os universitários quando passamos dificuldades temporais. Um sempre pode encontrar refúgio em uma escola se tem um título universitário.

- Bonito trabalho o de ensinar os jovens a pensar - observou Stephen.

- Oh, não! - exclamou Standish. - Minha tarefa era ainda mais importante: ensinar-lhes a trabalhar com um manual de prosódia. Outro homem lhes ensinava esgrima, arco e flecha, pistola e coisas parecidas.

Jack voltou a pegar a caneta:

 

Mas é a música o que mais me incomoda. Martin não toca muito bem, e Standish o fica corrigindo constantemente. Ele lhe diz como tem que colocar os dedos e o arco, segurar o instrumento, marcar o tempo e executar as frases musicais. Também deu alguns conselhos para Stephen e acho que quando aumente seu atrevimento também me oferecerá sua amável ajuda. Equivoquei-me ao supor que podia ser o segundo violinista com semelhante pessoa, e terei que encontrar uma boa desculpa para não sê-lo. A música que toca é celestial (não posso entender como um homem assim pode entregar-se a ela e tocar tão bem), mas não tenho vontade de que chegue a reunião desta noite. Talvez não tenhamos nenhuma porque o mar está um pouco agitado.

 

Jack se deteve, releu a última página e negou com a cabeça. Para Sophie lhe desagradavam e causavam mal-estar as críticas, e quando era menina ouvira muitas. Como, ademais, as críticas em uma carta pareciam piores que ditas pessoalmente, Jack pegou a folha, amassou-a e jogou na papeleira, pelo que se converteria em uma mina de informação para Killick e os membros da tripulação que compartiam seus segredos. Enquanto o fazia ouviu que Pullings gritava: "Preparados para aferrar a joanete de proa!". E depois seguiram os gritos do contramestre.

Essa noite não houve mais música que alguns fragmentos bem conhecidos por Aubrey e Maturin (ambos igualmente medíocres), que passaram aproximadamente uma hora dedicados a sua atividade favorita: fazer variações sobre um tema que um escolhia e o outro seguia. Nessas variações às vezes superavam a mediocridade devido à compenetração que havia entre os dois, pelo menos nesse campo. Standish se desculpou (disse que lamentava que uma indisposição o impedisse de ter a honra de...) e Martin, em seu duplo papel de ajudante de cirurgião e antigo amigo do pobre contador, ficou com ele segurando uma bacia.

Não houve música quando encontraram o vento do oeste do trópico, que rolara para o norte e era muito forte; tão forte que a Surprise navegava a nove e mesmo dez nós com o vento pela alheta e as gáveas rizadas e, também, balançava e cabeceava com uma violência tal que ia em descrédito seu. O esplêndido vento continuou soprando dia depois de dia e só diminuiu de intensidade quando se aproximavam das ilhas Berlengas. Nessa tarde, Martin levou Standish para o convés para ver na escura linha do horizonte as pontiagudas montanhas rochosas rodeadas pelas turbulentas águas do oceano sob um céu ameaçador. O contador, cuja roupa estava folgada, segurou-se à borda e olhou com ansiedade os primeiros pedaços de terra que via desde que passara pelo cabo Malin.

- Espero que esteja melhor, senhor Standish - disse Jack Aubrey. - Ainda que a velocidade esteja reduzida, avistaremos Lisboa ao amanhecer; e, se tivermos sorte, com a maré poderemos almoçar na praça Black Horse. Nada reanima mais a um homem do que uma boa refeição.

- Mas antes disso seria melhor que o senhor Standish se comesse um par de ovos passados em água e pão assim que seu estômago os tolere - recomendou Stephen. - Depois pode entregar-se a um sono reparador. Quanto aos ovos, ouvi duas galinhas da câmara dos oficiais anunciarem que tinham posto esta manhã.

Avistaram Lisboa pouco antes da alvorada numa manhã brilhante em que soprava de terra uma cálida e cheirosa brisa. Ao mesmo tempo se cruzaram com o Briseis, um navio de setenta e quatro canhões que navegava pelo alto mar com uma nuvem de velas desdobradas para aproveitar ao máximo o forte vento que soprava ali. Obviamente, tinha saído de Lisboa e ia de regresso para a Inglaterra. Jack mandou arriar as gáveas como devia fazê-lo se estivesse ao comando de um barco do rei, e o capitão do Briseis, um homem afável chamado Lampson, devolveu o cumprimento e ao mesmo tempo fez um sinal no qual só se podia entender a palavra "feliz".

Mas não tiveram sorte com a maré. Para quem sentia saudade de terra era uma delícia aspirar a brisa cálida e cheirosa, mas a brisa impediu que a Surprise atravessasse o banco de areia do estuário do Tajo, assim que teve que ancorar a bastante distância e em águas pouco profundas muito antes que o prático do porto consentisse em levá-la para o interior.

Com aquela calmaria comparável à de um lago, Standish, que comera os dois ovos na noite anterior e passara uma noite tranqüila, dedicou seu tempo a comer três pintas de sopa desidratada, com aveia para dar-lhe espessura, e uma grande quantidade de presunto. Com isto se recuperou por completo, e mesmo que ainda estivesse fraco, subiu ofegando até o cesto da gávea do maior, onde Stephen e Martin iam lhe explicar as manobras que se faziam para zarpar.

Abaixo deles, no castelo de popa, o prático do porto terminou de contar como o capitão do Weymouth, confiando no conhecimento que tinha do rio, chocara-se com um banco muito próximo, a uns 40° pela amura de estibordo, a menos de uma milha de distância, e sentenciou:

- E tudo isso para não pagar ao prático do porto.

- É lamentável, sem dúvida - respondeu Jack. - Os tripulantes se salvaram?

- Uns poucos - respondeu o prático. - Mas esses poucos estavam muito feridos. Bem, senhor, quando queira dar a ordem, começaremos.

- Todos a recolher âncoras! - gritou Jack, alçando a voz até o volume apropriado para uma ordem, ainda que já fazia dez minutos todos estavam preparados e raivosos porque desejavam que o prático se calasse de uma vez.

Imediatamente o contramestre começou a dar as ordens.

- Olhe - disse Stephen -, o carpinteiro e seus ajudantes estão colocando as barras no cabrestante. Elas são postas para girá-lo.

- Agora põem o virador no cabrestante. O condestável está atando os cabos. Como se chamam, Maturin?

- Não sejamos pedantes, por Deus! O importante é que o virador está amarrado, é como uma serpente em que se tragou sua calda.

- Não posso vê-lo - disse Standish, inclinando-se sobre a borda. - Onde está esse virador?

- É o cabo que os marinheiros estão enrolando nos molinetes no castelo, justo debaixo de nós. Forma um laço que une o cabrestante a outros dois molinetes verticais que estão junto ao escovém.

- Não entendo. Vejo o cabrestante, mas não tem nenhum cabo ao redor.

- O que o senhor vê é a parte superior do cabrestante - respondeu Stephen com satisfação. - O virador está enrolado ao redor da parte inferior, que fica debaixo do castelo de popa. Mas tanto a parte superior como a inferior têm barras e dão voltas. Olhe, estão desatando os estopores do convés para soltar a amarra de estibordo, quer dizer, da direita. Agora estão desenrolando a amarra das bitas. Que força e quanta destreza!

- Agora estão aproximando o virador da amarra e o estão amarrando com badernas.

- Onde? Onde? Não posso vê-lo.

- Certamente que não! Estão debaixo do castelo, na proa, junto ao escovém, que é por onde a amarra entra na fragata.

- Mas dentro de pouco notará como a amarra vem para a popa guiada pelo virador.

John Foley, o violinista de Shelmerston, subiu de um salto ao tope do cabrestante, e quando soaram as primeiras notas, os marinheiros que tinham agarradas as barras começaram a mover-se para frente. Depois das primeiras voltas, quando apareceu a resistência, três homens com voz grave e um com voz de tenor cantaram:

 

Puxem e o cabrestante girará,

puxem com vontade, marinheiros,

devagar e um passo de cada vez,

a âncora há que recolher,

a âncora há que recolher...

 

Depois os outros, em voz muito alta, continuaram:

 

Puxem, puxem, puxem, puxem.

 

E repetiram por cinco vezes antes que os outros três começassem outra vez:

 

Puxem, puxem, puxem abaixo,

puxem com vontade, marinheiros,

devagar e um passo de cada vez,

a âncora sai do fundo, a âncora sai do fundo...

 

- Aí está a amarra - anunciou Martin em voz muito mais alta depois dos primeiros versos.

- Ah, é! - exclamou Standish, e depois de observar um momento como subia a amarra, que parecia uma serpente molhada, continuou: - mas não vai para o cabrestante.

- Naturalmente que não! - exclamou Stephen, empregando um tom muito agudo para que lhe ouvisse apesar do coro. - É muito grossa para enrolar-se no cabrestante. Ademais, está cheia de lodo do Tajo.

- Os marinheiros soltam as badernas e a amarra entra pela escotilha até a coberta inferior, onde é enrolada e posta em um paiol - explicou Martin. - Depois regressam correndo com as badernas para atar o pedaço de amarra recém saído ao virador à medida que vai girando.

- Que ativos são! - observou entusiasmado Stephen. - Fixe-se com que rapidez respondem ao pedido do capitão Pullings de que ajustem o virador, quer dizer, que puxem o extremo do cabo...

- E como correm com as badernas! Davies derrubou Plaice.

- Que fazem todos esses homens com a outra amarra? - perguntou Standish.

- Eles a estão sacando - respondeu Martin imediatamente.

- Tem que compreender que a fragata está ancorada com duas âncoras bastante separadas, e quando se move para uma porque se puxa a amarra há que sacar a amarra da outra - continuou Stephen. - Isto é feito pelo grupo encarregado das amarras. Mas quase já terminaram sua tarefa, pois, se não me equivoco, a amarra está quase vertical. Digo que a amarra está quase vertical.

Mas antes que pudesse explicar esta frase melhor que Martin e com bastante precisão, ouviu-se no castelo uma voz que ordenou:

- Puxar e recolher âncora!

Depois Jack, com toda sua força, gritou:

- Puxem todos juntos!

Os marinheiros se apressaram a pegar as barras e o violinista começou a tocar em um ritmo muito rápido. Então, gritando "Puxem, puxem!", desprenderam a âncora do fundo e a subiram até a proa. As manobras seguintes, entre as quais estavam engatar o anel da âncora ao aparelho, subi-la até o pescante e amarrá-la e, também, mudar o virador para a outra amarra (ainda que girando-o ao contrário) e muitas outras, eram muito rápidas e muito difíceis de explicar antes que Jack desse a ordem:

- Acima a âncora!

A música começou de novo, mas desta vez soavam as doces notas do pífano e os marinheiros cantaram:

 

Puxaremos e a tiraremos de baixo,

para ir até Criana.

Onde cantam os galos.

E todos iremos ao outro lado da montanha.

 

A fragata avançava devagar pelas águas enquanto a maré mudava muito rápido, e um momento depois West, que estava no castelo, gritou:

- Acima e abaixo, senhor!

- Quer dizer que estamos justamente em cima da âncora - aclarou Stephen. - Agora verá algo.

- Largar as gáveas! - ordenou Jack em tom coloquial.

Imediatamente os amantilhos se escureceram com a presença dos marinheiros que subiam apressadamente pela exárcia. Não deu mais ordens. Os tripulantes da Surprise se colocaram em seus postos, soltaram as gáveas, caçaram as escotas e, com perfeita coordenação, puxaram das braças para orientá-las, como se houvessem trabalhado juntos durante uma longa missão. A fragata se pôs em movimento, fazendo desprender-se a âncora do fundo, e começou a avançar pelo estuário do Tajo.

- Se conseguir levá-la até um dos ancoradouros do centro a tempo para almoçar na praça Black Horse, receberá cinco guinéus extras - disse Jack quando entregou o comando da fragata ao prático.

- Às três? - perguntou o prático, olhando para o céu e depois para o lado. - Acho que sim.

- Antes, se for possível - respondeu Jack.

Jack era antiquado em muitos aspectos, como Nelson, seu herói. Ainda usava o cabelo comprido e arrumado em uma trança dobrada, não curto, ao estilo de Brutus, como se usava modernamente; punha o chapéu com os dois bicos para os lados em vez de pô-los para frente e para trás; e gostava de almoçar às duas, na hora em que tradicionalmente comiam os capitães (ainda que esse costume naval estava se perdendo por influência dos costumes de terra, onde era freqüente almoçar às cinco, às seis ou mesmo às sete), exceto alguns capitães, que quando tinham convidados, comiam às três. Ainda que Jack havia se acostumado a resistir com bastante bom humor até as duas e meia, seu estômago era mais conservador que seu pensamento.

Os marinheiros comeram (duas libras de carne de vaca salgada, uma libra de pão e uma pinta de grogue) assim que a fragata terminou de passar pela pior parte do banco de areia; os oficiais comeram à uma (cordeiro assado que para Jack cheirava muito bem), e quando avistaram Belén pela amura de bombordo, todos eles, rosados e satisfeitos, subiram ao convés para ver a torre de Lisboa e a cidade, que parecia uma mancha branca a certa distância detrás da torre.

Jack desceu para a cabine para ver se um copo de vinho de Madeira e umas bolachas podiam acalmar a fome de lobo que tinha. Ali encontrou Stephen consultando um almanaque e fazendo cálculos em um papel.

- Acho que tenta averiguar quando encontraremos os ventos alísios - disse. - Quer tomar um copo de vinho de Madeira e umas bolachas comigo? Desjejuamos muito cedo.

- Com muito prazer. Mas os ventos alísios deixo-os para você. O que estou buscando é o santo do dia em que há mais probabilidade de que nasça minha filha. Como não se pode predizer o dia nem ao menos a semana em que isto ocorrerá, terei que fazer oferendas durante um amplo período, mas no dia que haja mais probabilidade formarei grandes nuvens de incenso e muitos montes de pura cera de abelhas. Ao consultar o almanaque vi que o dia de santa Eudoxia, o que os coptas da Etiópia dedicam à estranha celebração do nascimento de Poncio Pilatos, é no qual teriam enforcado Padeen se não fosse por sua grande bondade. Quando voltarmos a terra mandarei rezar uma missa por sua salvação.

- Não foi por minha grande bondade, garanto. Quando fui ver-lhes tinham uma expressão grave porque pensavam que eu queria um benefício eclesiástico ou um posto em um tribunal para um amigo, mas quando lhes disse que só desejava salvar a vida de um homem, riram surpresos, disseram-me que durante os últimos dias o tempo estava muito bom e me deram o documento imediatamente. Porém, diga-me, por que está tão seguro de que Diana vai dar a luz a uma menina?

- Imagina que desse a luz outra coisa?

Jack podia imaginar, mas ouvira Stephen falar tantas vezes da alegria que sentiria no futuro na companhia de sua hipotética filha que se limitou a mudar de tema:

- O prático me disse que não há barcos de guerra no rio; e me alegro, porque sempre podem passar coisas raras. Também me disse que a agência de correios está fechada hoje, o que me parece horrível. Que acha que poderíamos pedir para almoçar?

- Sopa verde fria, peixe espada na chapa, porco assado, pinha e com o café esses doces feitos de maçapão cujo nome não recordo.

- Stephen, quer se ocupar do oficial encarregado do assunto da quarentena?

- Meti dinheiro para propina nesta bolsa e tenho que me lembrar de passá-la para a elegante roupa que Killick está me preparando. E isso me recorda que tenho que encontrar um servente para substituir Padeen. Killick morrerá se tiver que seguir cuidando de nós dois.

- Acho que qualquer recém chegado morrerá ainda mais rápido pelo efeito que lhe causaria sua antipatia. Acostumou-se tanto de cuidar de você desde que o pobre Padeen se foi, que acredita que é de sua propriedade. Ficará ofendido se vier qualquer outra pessoa. Só o que suportaria era que tivesse um criado de pé detrás de sua cadeira na hora das refeições, pois, ainda que tivesse a melhor intenção do mundo, não pode ficar detrás dos dois ao mesmo tempo e isso o faz se distrair. Porém, por que vai pôr uma roupa elegante? Só vamos almoçar na taberna de João.

- Porque devo ir ao palácio do patriarca e pedir audiência com ele. Além disso, quando regressar vou ver o sócio dos donos de meu banco.

A refeição na taberna de João foi muito boa, pois, apesar do vinho do porto ser pouco consistente e áspero, ao gosto português, o café era o melhor do mundo. O doutor Maturin foi recebido pelo patriarca mais amavelmente do que esperava, e agora caminhava para o lugar que os marinheiros ingleses chamavam de Roly Poly Square, onde ficava o banco dos sócios de seu banqueiro em Lisboa. Nesse momento se sentiu bem, pois o sol brilhava sobre o largo rio e os inumeráveis mastros que haviam nele. Estava alegre também por causa de Sam; contudo, tinha a impressão de que o observavam. Então pensou: "A esses criminosos, a esses espiões e raposas que duram o suficiente para ter filhos, cresce um olho na parte de trás da cabeça". Quando terminou de tratar da carta de crédito e de outros assuntos, não lhe surpreendeu que na porta se aproximasse um homem com aspecto de pessoa decente, vestido com uma casaca marrom, que tirou o chapéu e perguntou:

- É o doutor Maturin, né?

Stephen também tirou o chapéu e disse:

- Sim, senhor, meu nome é Maturin.

Não mostrou nenhuma intenção de parar, e o homem, andando depressa do seu lado, contou em tom ansioso:

- Desculpe-me pela falta de cerimônia, senhor. Venho da parte de sir Joseph Blaine, que acaba de chegar à quinta de Montserrate, perto de Cintra, e lhe roga que vá ver-lhe. Tenho um coche aqui perto.

- Cumprimente de minha parte a sir Joseph, por favor - respondeu Stephen -, mas diga-lhe que lamentavelmente não posso visitá-lo porque não estou livre, e que confio em que terei o prazer de vê-lo na Royal Society ou na Sociedade de Entomólogos quando regressar a Londres. Bom dia, senhor.

Disse isto em tom muito seguro e olhando-o fixamente com seus olhos claros, e o mensageiro não insistiu senão que ficou ali desconcertado.

- Maldito sem-vergonha! - exclamou Stephen enquanto cruzava a praça e começava a andar pela rua Ouro. - Aproximar-se de mim sem credenciais, supondo que eu correria para as montanhas e pediria a Taillander que me cortasse o pescoço.

Taillander era o principal agente secreto francês em Lisboa e seus métodos eram, em geral, muito pouco profissionais.

- Olá, Stephen! - gritou Jack do outro lado da rua. - Alegro-me de te encontrar, companheiro. Venha e ajude-me a escolher tafetá para Sophie. Quero um que seja tão fino que possa passar por um anel. Creio que você entende de tafetá, Stephen.

- Duvido que haja um homem em toda Ballinasloe que entenda mais disso - respondeu Stephen. - E se hover tafetá azul, também comprarei uma certa quantidade para Diana.

Regressaram ao cais com seus pacotes, e como Jack não tinha ido até a costa com sua falua porque não sabia quanto iam demorar, pensava chamr um bote. Mas nesse momento um grupo de marinheiros da Surprise que estavam de licença reunidos, conforme o combinado, ao olhar ao seu redor e até a praça, viram a ambos e gritaram:

- Não esbanje dinheiro em um bote, senhor! Venha conosco!

Jack acedeu de bom grado em ir com eles, algo de acordo com o traço democrático dos barcos corsários, ainda que se alegrou de que não houvesse ali nenhum oficial de marinha em sua falua oficial que pudesse vê-lo. Os marinheiros de Shelmerston, depois de tomarem a liberdade de convidá-lo, permaneceram em silêncio durante toda a viagem, como se fossem antigos tripulantes de um barco de guerra.

Era evidente que Jack tinha razão com respeito a Killick acreditar que Stephen era de sua propriedade. Quando chegou, levou-lhe até a pequena câmara e o fez tirar a sua elegante casaca de fino pano inglês protestando com seu tom áspero.

- Olhe estas manchas de gordura. São tão profundas que se pode arar nelas. E olhe seus melhores calções de cetim. Meu Deus! Não lhe disse que pedisse dois guardanapos e que não se importasse se o olhassem com curiosidade? Agora o pobre Killick terá que esfregar e esfregar e escovar e escovar por toda a noite, e mesmo assim nunca voltarão a ficar igual.

- Esta é uma caixa de maçapães para você, Killick - respondeu Stephen.

- Agradeço muito que tenha se lembrado de mim, senhor - surpreendeu-se Killick, que gostava de maçapão. - Obrigado, senhor. Quando tenha posto esta roupa velha mas limpa e seca, poderá receber o senhor Martin, que quer falar com o senhor.

Pela primeira vez Stephen e Martin não tinham que falar confidencialmente de algo sério no tope de um mastro nem no mais isolado canto do porão, pois ambos dominavam o latim e se entendiam muito bem nesse idioma apesar do sotaque inglês de Martin.

Martin anunciou:

- Standish me pediu que perguntasse a você, que conhece melhor ao capitão Aubrey, se acha que aceitaria sua demissão como contador. Falou que você lhe disse que o enjôo não tem cura...

- É verdade.

- ... e que apesar de gostar muito do mar, queria que o capitão o exonerasse de suas obrigações porque não quer sofrer o mesmo outra vez.

- Não me admira. A prostração a que chegou não a vira nunca. Mas me surpreende que tenha tomado essa decisão tão repentinamente. Seguiu a explicação do recolhimento de âncoras com grande interesse, mesmo que soubesse perfeitamente o que sofrera e que era provável que o experimentasse outra vez.

- Sim, também me surpreendeu. Mas ele sempre foi uma pessoa estranha e inconstante.

- Pelo que entendi, ele renunciou, de repente, a um benefício eclesiástico da Igreja anglicana, para assombro de seus amigos.

- Mas isso não foi igual. Para ter um benefício eclesiástico era obrigado a firmar a aceitação dos trinta e nove preceitos, mas o trinta e um diz que a missa, e me desculpe, é um conjunto de blasfêmias e uma farsa, e quando o leu disse que não podia firmar esse documento. Então pegou o chapéu, fez uma inclinação de cabeça para os presentes e se foi. Naquela época estava muito enamorado de uma jovem católica, mas não sei se isso influiu no que fez ou não. Nunca falamos disso, porque não éramos amigos íntimos.

Stephen não fez nenhum comentário, mas depois de um momento perguntou:

- Se o capitão Aubrey o deixar livre, o que vai fazer? Se não me equivoco, não tem dinheiro.

- Quer ir de um lado para outro, como fez Goldsmith. Quer organizar debates nas universidades e tocar violino.

- Bem, que Deus o ajude. Não acho que Jack se oponha a que deixe a fragata, ainda que toque o violino maravilhosamente.

Olharam-se e Martin se lamentou:

- Pobre homem! Acho que buscou a antipatia de muitos a bordo. Não era assim em Oxford. Acredito que as causas foram a solidão depois de terminar a universidade e a horrível experiência como diretor de escola.

- Em algumas pessoas isso tem o efeito de um veneno e as incapacita para integrar-se no grupo social dos adultos.

- Assim se sentiu. Temia não ser uma companhia agradável para ninguém e comprou um livro de piadas. Disse: "Minha maior ambição é alvoroçar a todos os comensais". Mas acho que a verdadeira causa é o enjôo, ainda que seja possível que o comentário engenhoso de algum oficial tenha precipitado sua decisão.

- Seja como for, é uma pessoa digna, pois demostra que sente tanto respeito pelo capitão Aubrey que não quer partir sem sua permissão.

- Oh, sim, sempre foi muito digno! - exclamou Martin, e depois de uma pausa, perguntou: - Sabe a que horas abre a agência de correios amanhã? Passamos tanto tempo no mar da Irlanda que provavelmente o barco com o correio chegou antes de nós. Tenho muita vontade de ter notícias de minha casa.

- Abre às oito. Estarei lá quando as badaladas marquem a hora.

- Eu também.

E lá estiveram, mas não lhes serviu de muito. Não havia nada para Martin e só duas cartas para o doutor Maturin. Jack recebeu duas de Hampshire, e, como sempre, Stephen e Jack as leram antes do café da manhã e contaram as notícias da família um para o outro. Apenas Stephen abriu o selo da primeira, exclamou com um entusiasmo estranho nele:

- Oh, Jack, esta mulher é tão obstinada como uma alegoria das margens do Nilo!

Jack não era muito perspicaz, mas desta vez compreendeu imediatamente que Stephen falava de sua esposa e perguntou:

- Ela conseguiu Barham Down?

- Não só conseguiu, como também o comprou - respondeu, e depois, em tom mais baixo, acrescentou: - Que besta!

- Sophie sempre disse que ela gostava muito do lugar.

Stephen seguiu lendo e depois explicou:

- Mas pensa em viver com Sophie até que regressemos. Só vai enviar a Hitchcook com alguns cavalos.

- Tanto melhor, Stephen. Ela lhe contou que a caldeira da cozinha de Ashgrove explodiu na terça-feira?

- Está me dizendo neste momento. Meu amigo, acho que viver em um monastério tem suas vantagens.

A carta seguinte não lhe reconciliou com seus semelhantes. Estava escrita no antipático e curioso tom que se usava nos negócios e que os donos de seu banco empregavam à perfeição. Quem a firmava assegurava que era seu mais humilde servidor, mas ignorava as perguntas feitas ou dava respostas irrelevantes e, com relação às questões urgentes, dizia que seguiria as instruções "ao seu devido tempo". O mais parecido com uma desculpa pela perda de um certificado era que lamentava muito que o documento tivesse se extraviado ao chegar às suas mãos, se "realmente" chegara, e que isso houvesse causado inconvenientes. Em geral, suas palavras refletiam agresividade, seus conselhos sobre assuntos financeiros eram rodeados de demasiadas reservas para serem valiosos e sua linguagem era afetada e impertinente.

- Quanto daria por um Fugger, por um Fugger instruído! - exclamou.

- Duas cartas para o doutor, senhor, com sua licença - disse Killick ao entrar com um sorriso brincalhão que contrastava com sua habitual expressão de desgosto. - Esta a trouxe um grupo de lagostas pelo costado de estibordo e a entregaram boca abaixo. Esta outra a trouxe uma embarcação de Lisboa com um toldo cor violeta e foi entregue como Deus manda.

Killick tinha examinado o selo de ambas cuidadosamente e reconhecera o da primeira, as armas da casa real inglesa impressas em lacre negro, mas não o da segunda, impresso em lacre de cor violeta. Os dois selos eram importantes, e, naturalmente, tinha interesse em conhecer o conteúdo das cartas. Permaneceu a uma adequada distância dali e ouviu a Stephen dizer:

- Parabéns, Jack! Sam recebeu a nomeação. Seu própio bispo o vai ordenar sacerdote no dia 23.

Para Jack a palavra "nomeação" tinha várias conotações. Na Armada tinha dois significados: um era receber ordem de realizar uma missão (alegria) e outro ser nomeado capitão de navio (uma enorme alegria). Por outro lado, entre os valores do mundo em que se criara era habitual desconfiar dos papistas (não se sabia com certeza a quem eram leais, suas práticas eram estrangeiras e a Conspiração da Pólvora e os jesuítas lhes deram má fama), e ainda que não lhe custava aceitar que Sam fosse um monge em funções ou ajudante de um monge, era distinto aceitar que fosse um sacerdote papista. Mas sentia muito afeto por Sam e sua promoção o alegrava...

- Estou pasmo! - exclamou, e suas palavras eram o reflexo de todos esses sentimentos. - O que foi, West?

- Desculpe, senhor - respondeu West -, mas se aproxima o comandante do porto.

Quando Jack se foi, Stephen abriu a segunda carta. Era da embaixada e nela solicitavam que se apresentasse ali assim que fosse possível.

- Aqui tem uma casaca que é quase a melhor - Killick lhe interrompeu-. Consegui um resultado bastante bom na outra, mas ainda não está seca. Esta é apropiada para ir a uma igreja escura e velha. Agora mesmo vão descer o bote pelo costado.

Assim era, a julgar pelos rítmicos gritos, as blasfêmias e os impactos. Quando Stephen, vestido impecavelmente com a roupa escovada, com sua peruca recém cacheada e um lenço limpo, subiu ao convés, já ocupavam seus postos os tripulantes católicos da Surprise (os irlandeses, os polacos e os ingleses da zona norte da Inglaterra), que iam assistir a missa por Padeen. Todos vestiam a roupa de descer a terra (chapéu de palha de aba larga pintado de branco, casaca azul-claro com botões dourados, gravata-borboleta negra, calças brancas e sapatos), mas sem fitas costuradas nas costuras nem faixas coloridas de adorno; quer dizer, vestiam com sobriedade. Maturin fez uma inclinação de cabeça para o comandante do porto, pediu permissão a Aubrey para ir embora e desceu pelo costado quase sem pensar nos degraus e nos cabos, pois seu pensamento estava muito longe. Os marinheiros remaram até a costa e quando dois deles se encarregaram do bote, os outros avançaram até a igreja beneditina desordenadamente, olhando com assombro para os portugueses pois se vestiam de forma estranha. Lá, depois de passarem pela pia de água bendita, sentiram-se como em sua terra, pois ouviram as palavras e o canto gregoriano que tão bem conheciam, sentiram o familiar odor de incenso e reconheceram os movimentos solenes.

Quando a missa terminou, acenderam velas por Padeen e saíram daquele mundo familiar, um lugar fresco e pouco iluminado, para o mundo banhado pelo brilhante sol de Lisboa, uma cidade recém construída e ainda desconhecida para muitos.

- Que passem um bom dia, companheiros de tripulação - Stephen lhes desejou-. Estou seguro de que não esquecerão o caminho até o bote, que está justo ao pé da colina.

Dirigiu-se para a embaixada e sua mente foi ocupando-se cada vez mais de coisas terrenas.

O porteiro olhou com desprezo sua casaca (apesar de ser quase a melhor, à luz do sol se notava que estava gasta e manchada de ferro), mas Stephen lhe entregou seu cartão de visita e imediatamente o primeiro secretário apareceu.

- Sinto muito que sua excelência não se encontre aqui esta manhã - disse, levando o doutor Maturin para seu escritório. - Sente-se, por favor. Devo dizer que pode aceitar o convite de Montserrate com toda confiança e que lhe proporcionarei uma escolta se desejar; além de um carro, claro.

- Agradeceria que me proporcionasse um carro, mas se pudesse conseguir-me um cavalo veloz acho que seria melhor, pois chegaria mais rápido e seria menos notável.

- Certamente!

- E, por favor, eu gostaria que fizesse chegar uma mensagem à fragata.

 

- Meu querido Maturin - dizia sir Joseph da escada da Quinta -, acho que infelizmente o senhor fez uma péssima viagem a cavalo.

Stephen desmontou e um moço levou o cavalo. Então sir Joseph continuou:

- Espero que me perdoe. Estava tão cansado e tão aturdido que mandei Carrick com as mãos vazias. Ainda tenho no bolso a carta que lhe escrevi. Vou mostrá-la. Venha, entre, proteja-se do sol e beba um pouco de limonada ou cerveja das índias Orientais, ou tisana, ou o que queira. Prefere chá?

- Eu gostaria que nos sentássemos na grama à sombra de uma árvore, junto a algum arroio se lhe parece bem. Não tenho sede.

- Que boa idéia! - exclamou sir Joseph, e enquanto caminhavam acrescentou: - Maturin, por que usa o chapéu dessa forma tão curiosa? Se eu caminhasse sob o sol sem chapéu ou com uma peruca, ainda que fosse pequena, cairia morto.

- Dentro há um inseto que queria lhe mostrar quando nos sentarmos. Este é o lugar perfeito, com folhas verdes acima da cabeça, um delicado odor de capim e o burburinho de um arroio. - Abriu o chapéu que tinha dobrado, tirou um lenço do interior e o estendeu no solo. A criatura, intacta, permaneceu ali balançando-se suavemente sobre suas longas patas. Era um inseto muito grande, verdoso e com antenas imensas que não guardavam proporção com seu pequeno corpo e contrastavam com a expressão estúpida de sua cara.

- Meu Deus! - exclamou Blaine. - Não é uma louva-a-deus e, sem embargo...

- É um exemplar de Saga pedo.

- Certamente, certamente! Eu o vi em desenhos, mas nunca conservado em álcool nem dissecado, nem muito menos vivo e movendo-se para mim. É um animal assombroso! Olhe as terríveis espinhos das pernas. Tem dois pares. Onde o encontrou?

- De um lado do caminho, nos arredores de Cintra. É fêmea, e perdoe meu pedantismo. Nesta zona só se encontram fêmeas. Elas se reproduzem por partenogênese, o que provavelmente reduz as tensões da vida familiar.

- Sim. Lemro do estudo de Olivier. Mas como é tão rara, o senhor não tem a intenção de deixá-la ir, né?

O inseto caminhava com segurança e estava a ponto de sair do lenço e passar para a grama.

- Sim. Não há quem não creia na superstição, e para mim me parece que deixá-la ir terá uma influência favorável em nossa reunião. Suponho que foi algo importante o que lhe trouxe a Portugal.

Blaine seguiu o inseto com a vista até que desapareceu entre a grama, depois lhe deu as costas e disse:

- Não. Vive Deus! Faz pouco o céu caiu sobre nossas cabeças; bem, abriu-se e caiu sobre nossas cabeças. O embaixador espanhol chamou o Ministério de Assuntos Exteriores e perguntou se era verdade que tinhamos aprovisionado a Surprise e a haviamos enviado para convencer os rebeldes ou potenciais rebeldes independentistas em suas colônias da América do Sul. Responderam que não, que a Surprise era simplesmente um barco corsário, um de tantos, e que seu propósito era capturar barcos franceses e baleeiros e navios de nacionalidade norte-americana com destino a China. Também lhe disseram que essa informação era absurda, que provavelmente tinham confundido a Surprise com uma expedição que os franceses iam fazer e que fracassou porque capturamos a Diane, onde os agentes secretos iam viajar. Acrescentaram que poderiam provar a existência dessa expedição, caso fosse necessário demostrar a falsidade de tão horríveis acusações, mostrando os documentos apreendidos na fragata francesa. O espanhol não estava totalmente convencido, ainda que, sem dúvida, estava assombrado; e disse que lhe encantaria ver qualquer prova, sobretudo as que culpassem aqueles que haviam tratado com os franceses, nossos inimigos comuns. Surpreendeu-se que não lhe tivéssemos comunicado antes o conteúdo desses documentos, mas isso puderam justificar facilmente alegando como causa a enorme lentidão com que se tramitam os assuntos oficiais.

Blaine tirou os sapatos e as meias, deslizou para frente para a grama e meteu os pés no arroio.

- Que alívio! - exclamou. - Maturin, fiz uma terrível viagem desde A Corunha. Vim dormindo na carruagem e dando tombos por caminhos espantosos. Oito ou dez mulas, quase não eram suficientes às vezes. O calor, a poeira, as horríveis pousadas... As rodas caíram, os eixos romperam... Havia bandidos e grupos de franceses desesperados com seus mal pagos mercenários, e nosso própio exército nos desviava do caminho e nos indicava atalhos, passagens entre montanhas e becos. Em uma ocasião, os franceses avançaram com tal fúria que quase nos cortaram a passagem. Além disso, leite de cabra com o café, leite de cabra com o chá... Mas ainda pior eram a constante pressa, o constante cansaço, o constante calor e as moscas! Peço desculpas outra vez por Carrick e também se meu informe da situação não seguiu uma apropiada seqüência ou não foi muito ordenado nem detalhado. É necessário ter uma mente clara para poder comunicar algo tão complexo; não a de um homem que viajou por entre rochas e desertos piores que os da Etiópia.

- Suponho que o senhor teve uma boa razão para não pegar o paquete ou um dos iates do Almirantado.

- Duas excelentes razões. A primeira é que não havia garantias de que o paquete não se detivesse por causa do vento, ainda que finalmente chegou a Lisboa muito antes do que eu; e, também, que uma vez que me encontrasse em solo espanhol poderia estar seguro de que chegaria a Portugal em um tempo razoável se perseverasse e sobrevivesse. A segunda é que preferia esta viagem à viagem pelo mar, apesar de que foi como passar por um purgatório. Enjôo muito e, por outro lado, acredito que não teria percebido alguns detalhes essenciais da situação. Permaneceu sentado, agitando os pés na água e pondo em ordem os acontecimentos em sua mente, e imediatamente prosseguiu:

- Suponho que terá dado conta de que os espanhóis só puderam obter essa comprometedora informação através de um dos poucos homens que conheciam nossa missão, provavelmente de quem protegeu Wray e Ledward e lhes deixou sair do país. Warren e eu suspeitamos que enviariam a informação e por isso eu insisti em que o senhor viesse a Lisboa.

- Eu imaginei que esse era o motivo. Por outro lado, compreendi desde o início que esta viagem para a América do Sul também era uma tentativa de contrariar a influência bonapartista lá, e tive a certeza disso pela referência que o senhor fez à Diane. Em minha opinião, este conflito com os franceses é de vital importância.

- Naturalmente que era assim e assim será. E espero que possa sê-lo na mesma região. Mas pelo momento temos que demostrar a falsidade dessa informação e desacreditar a fonte. A Surprise deve continuar sua viagem e seu capitão deve demostrar que é um barco corsário e evitar todo contato com os que apoiam a independência.

Houve uma pausa, e Stephen observou que Blaine o olhava inquisitivamente com a cabeça inclinada para um lado. Mas Blaine permaneceu em silêncio enquanto a brisa balançava as folhas das árvores durante um tempo. Depois continuou:

- Ainda que Aubrey e o senhor não trabalharão ao máximo nesse hemisfério, espero que o façam em outro, se o senhor está de acordo com meu plano. Os franceses se informaram, provavelmente através da mesma fonte, o protetor de Ledward, que, na prática, somos muito fracos em Java e nas Índias Orientais, pelo que mandaram um enviado para negociar com sultão de Pulo Prabang, um dos estados malaios do mar da China onde abundam os piratas. Vai propor-lhe que se alie a eles e que construa e arme navios grandes o bastante para capturar os barcos britânicos que comerciam com Cantão com o fim de aniquilar a Companhia das Índias. Os domínios do sultão estão muito próximos da rota dos barcos que comerciam com as Índias e têm um porto esplêndido, bosques de teca e tudo o que se possa desejar. Ademais, entre seus povoadores há intrépidos marinheiros que até agora se dedicaram à pirataria de pequena escala e a construir embarcações locais, como juncos chinêses e faluchos árabes. Os franceses mandaram carpinteiros de barcos, ferramentas, materiais diversos, armas e dinheiro. O enviado é Jean Duplessis, um homem sem importância, mas quem manejará realmente todo o caso será Ledward, que passou boa parte de sua juventude em Penang e, conforme dizem, fala malaio como um nativo. Também sei que trabalhou lá para a Companhia das Índias em um posto importante e que é um extraordinário negociador. Os franceses também enviaram a Wray, mais para desfazer-se dele que pelo benefício que possa proporcionar-lhes. As autoridades de Paris o trataram com profundo desprezo quando deixaram de considerá-lo útil, enquanto que Ledward conservou uma boa posição.

Blaine se interrompeu para ordenar de novo suas idéias e depois, movendo a cabeça de um lado para o outro, perguntou:

- Importa-se que regressemos para a casa? Acho que se tomasse um bom chá negro de Londres minhas idéias se aclarariam.

- Em absoluto. Só queria ficar fora para soltar o inseto - disse Stephen. - E contemplarei com alegria como bebe chá se me fizer o favor de me dar uma taça de vinho branco. Em um lugar recomendado por Beckford, estou seguro de que pode encontrar-se algo bom.

- Leu ao Vahek?

- Tentei, por recomendação de alguns homens cujos gostos respeito.

Sir Joseph bebeu chá e Stephen bebeu vinho em uma galeria imensamente comprida e fresca que ficava no lado norte da casa e tinha uma fileira de janelas que davam para os jardins cobertos de grama. Dali podia se ver três arroios, um serpenteando entre a grama, outro entre os bosques e outro por uma colina situada do outro lado de um formosíssimo bosque. A parede da galeria mostrava numerosos quadros grandes, a maioria dos quais eram alegorias pintadas recentemente. Naquele imenso espaço, os dois homens, sentados em poltronas inglesas e com uma pequena mesa entre eles, pareciam diminutos e podiam falar sem medo de que os ouvissem.

- Naturalmente, planejamos uma contra-missão, e encarregamos ela a uma pessoa excelente. Chama-se Edward Fox. Era um de meus convidados no almoço celebrado no clube da Royal Society, e depois disso o senhor assistiu à leitura de seu estudo sobre a difusão do budismo pelo Oriente e as subseqüentes relações com o bramanismo e o islamismo.

- Sem dúvida é um homem de excepcional inteligência.

- Sim, realmente excepcional. Apesar disso, nunca souberam apreciar seu valor real. Sempre se ocupou dos casos temporariamente, substituindo outros, e lhe hão trasladado de uma seção da administração para outra. Talvez o problema seja seu comportamento, porque é totalmente ortodoxo; demostra sua amargura pela falta de reconhecimento. Mas não há dúvida de que tem uma grande habilidade para estas coisas e de que é a pessoa apropiada para esta missão. A propósito, é amigo de Raffles, o governador de Java, outro homem interessante.

- Foi o que me disseram. Não conheço ao cavalheiro, mas li algumas de suas cartas para Banks. Ambos pensam em fundar uma sociedade zoológica.

- Fox também esteve em Penang por um tempo, e por ele me informei de tudo isso sobre Ledward.

Seguiu um longo silêncio. A galeria estava tão tranqüila que o canto de uma pomba podia ser ouvido desde uma grande distância.

- Porém, certamente - continuou Blaine, servindo o chá que restava na chaleira -, temos que levar o nosso enviado para lá antes dos franceses convencerem o sutão esse homem e firmem um tratado. É possível consegui-lo, se nos apressarmos como eles; pois, apesar de que já terem partido, Fox e outros membros da administração me asseguraram que, com potentados como o sultão, estas coisas nunca se resolvem até que não se discuta durante um ou dois meses e, por outro lado, os franceses têm que dar um grande rodeio porque nós controlamos o canal da Sonda. É possível consegui-lo; quero dizer, é possível frustrar sua tentativa e minar suas forças e vou explicar como eu acho que podemos lográ-lo. Já disse que é sumamente importante demostrar a falsidade dessa informação sobre a América do Sul, né?

Disse isso no tom mais enfático possível.

- Muito bem. De acordo com meu plano, o imediato da Surprise e a tripulação continuarão fazendo as atividades que podem se realizar abertamente e seguirá mantendo-se em segredo que foi contratada pelas autoridades. Enquanto isso o senhor e Aubrey levarão o enviado a Pulo Prabang na Diane, que foi comprada pela Armada. Queríamos esperar que Aubrey conseguisse uma vitória para poder anunciá-la publicamente junto com sua reabilitação, pois assim as autoridades salvariam a cara, mas decidimos que a melhor forma de servir aos interesses do país é reabilitá-lo agora, proclamá-lo e dar-lhe o comando dessa fragata. Que outra prova pode ser mais convincente que o fato dos senhores não irem ao Peru?

Stephen assentiu com a cabeça. Blaine acrescentou:

- Mas isso não é tudo. Suponhamos que a Surprise esteja no meio do Pacífico nas hábeis mãos do capitão Pullings, cujo nome por fim recordei, e que lá, depois de fazer o que todos acreditam que vai fazer, comparece a um encontro em um lugar secreto. Suponhamos também que os senhores, depois de resolverem a situação em Pulo Prabang, vão na Diane reunir-se com a Surprise nesse lugar e retomam a viagem para a América do Sul para estabelecer discretamente pelo menos alguns dos contatos que tinhamos planejado. Que acha disso, Maturin?

Stephen o olhou durante um momento sem que seu rosto refletisse nenhum sentimento e disse:

- É um plano muito elaborado e sou a favor dele, mas não posso responder por Aubrey.

- Certamente que não! Contudo, devemos ter uma resposta dentro de dois dias no máximo. Evidentemente, não conheço Aubrey tão bem como o senhor muito pelo contrário, mas estou quase certo do que responderá.


CAPÍTULO 4

Jack Aubrey respondeu que sim, como Stephen sabia que faria, ainda que depois de passar onze horas interrogando a si mesmo com ansiedade e com o coração encolhido. E quando a Surprise se afastava navegando pelo Tajo, com os tripulantes desanimados, decepcionados e, em alguns casos, aflitos, olhou-a com tristeza e com sentimento de culpa. Alguns tripulantes se chatearam no início e muitos disseram que sabiam que aquela viagem era desafortunada, contudo, nenhum deles aceitou a oferta de Jack de pagar o que lhes correspondia e pagar-lhes a viagem de regresso ao seu país. Mas lhes consolou saber que o capitão zarparia na Diane, a embarcação que eles mesmos haviam capturado, e que as duas fragatas iam se reunir em algum momento, do que tinham a certeza porque suas garrafas de vinho, sua roupa de inverno e numerosas caixas de madeira com os livros do doutor ficaram a bordo.

A partida foi dura não só para os marinheiros como também para os oficiais. Pullings venerava Jack e os outros oficiais lhe tinham muito respeito, e ainda que todos atribuíam menos importância à sua sorte que os marinheiros, não eram indiferentes a ela. Ademais, sabiam muito bem que era muito mais fácil dominar uma tripulação violenta e feroz quando se tinha a bordo uma figura legendária por sua coragem, seu êxito e sua boa sorte. Mas Stephen disse a Pullings que era quase certo que lhe dariam o comando de um barco se voltasse ao seu país com a Surprise intacta, e tanto West como Davidge sabiam que nesse caso eles teriam mais possibilidades de serem readmitidos na Armada. Como Aubrey tinha que viajar por terra, e tão depressa como pudesse, até onde estava seu novo barco, não pôde levar mais companhia que seu despenseiro e seu timoneiro, e ver a expressão aflita e resignada dos que deixava para trás foi uma das mais duras experiências que teve nessa operação. Estava claro para ele (e para todos os relacionados com o caso) que empreendia uma operação naval em que não tinha nem um momento a perder, o que foi conveniente porque a rápida viagem através de Portugal e do noroeste da Espanha desviou sua atenção da fragata abandonada e sua tripulação. Foi uma viagem difícil em uma época de ocupação estrangeira e destruição, em que a onda da guerra havia se recolhido, mas era provável que em qualquer momento voltasse a avançar com força arrasadora; contudo, nada, nem a viagem, nem o sentimento de culpa, nem o enorme incômodo, podia perturbar sua alegria. Se seguisse vivo depois de passadas duas semanas, seu nome sairia no Boletim Oficial da Armada e voltaria a ter o comando de um de seus barcos. Então as bonitas promessas se converteriam em algo mais consistente, em realidades, e o que pensava se transformaria em um fato. Mas não devia mencionar esse fato nem pensar na satisfação que lhe traria, nem ao menos se permitir cantarolar interiormente.

Viajaram em diversas carruagens de aluguel, às vezes puxadas por um inapropiado número de animais, mas tanto se eram muitos como se eram poucos, todos corriam sempre tão rápido como lhes podiam induzir a fazê-lo. Na realidade, viajaram assim sir Joseph, Standish (a quem Jack se oferecera a levar depois de ouvir suas explicações), a bagagem e os papéis que Stephen necessitava, junto com Killick e Bonden, que se sentavam com o cocheiro ou no assento traseiro (não eram muito bons ginetes) menos quando estiveram sob a cegante chuva de Galiza, pois sir Joseph lhes pediu que entrassem. Jack e Stephen, em troca, foram cavalgando em um dos numerosos cavalos roubados dos distintos exércitos ou que escaparam deles, e ambos eram acompanhados por um moço e um cavalo de reserva. Mas todos avançavam até que anoitecia e encontravam um lugar onde jantar e dormir.

Foi uma viagem dura, avançando sem pausas, e passaram junto de muitas maravilhas sem parar nem mesmo em Porto para tomar um copo de vinho. Por todo o norte havia muito barro, barro até o eixo da carruagem, e em uma ocasião um grupo de bandidos tentou deter a carruagem, mas foram dispersados por atiradores profissionais com carabinas e pistolas. Contudo, Blaine não achou tão duro como a viagem de ida. Agora estava acompanhado de um guia que conhecia perfeitamente a língua, os costumes, os caminhos e a maioria dos povoados e, além disso, tinha muitos contatos, pelo que todos puderam ficar em duas quintas, um monastério e nas melhores pousadas do país. Também fazia parte de um extraordinário grupo armado que incluía fortes marinheiros capazes de afrontar a maioria das situações, como, por exemplo, ter que sacar uma roda emperrada no barro com um aparelho preso a uma grossa árvore, de maneira que a corda se mantivesse seca e que todos pudessem puxá-la. Verdadeiramente, a viagem lhe pareceu quase agradável, sobretudo pelas noites. Na viagem de ida, sir Joseph utilizava dinheiro público, e ainda que não fosse pouco, tinha consciência do que gastava; em troca, Stephen, quando superava o desejo de não se desprender das moedas, soltava inclusive as de ouro a torto e a direita, como Jack quando estava em terra, e Jack nunca fora tão generoso como agora. Depois de viajar como reis durante o dia, juntavam ao anoitecer o lanche com a janta e os convertiam em um banquete digno de monarcas, depois do que Standish interpretava algo ao violino.

Sir Joseph gostava de música e realmente apreciava como Standish tocava. Stephen esperava lograr melhor a situação do desafortunado homem encontrando-lhe algum posto na Administração, mas não foi assim. Uma noite que se encontravam em Santiago, Standish tocava uma brilhante peça de Corelli de memória (sem variar nem sequer uma semifusa), e Jack, que bebera muito vinho branco do vinhedo da dona da quinta, um vinho leve e traiçoeiro, teve que ir na ponta dos pés até a porta. Quando a abriu, ainda que o fez com precaução, um corpulento oficial com o uniforme de guarda da Infantaria caiu ao solo e, muito perturbado, desculpou-se profusamente por ter tratado de escutar e depois disse que amava a boa música, certificou-se de que a peça era de Corelli e felicitou ao músico efusivamente. Quando a música terminou, todos o convidaram para ficar e beber vinho do porto com eles. Seu nome era Lumney e estava encarregado do armazém do regimento em Santiago (todos tinham notado que haviam numerosos guardas machucados perambulando pelas ruas cheias de barro) e, como ocorria amiúde, descobriram que tinham muitos amigos comuns. Quando os outros foram dormir, Stephen compartilhou com ele o último café e contou o que sucedera a Standish e qual era sua situação.

- O senhor acha que ele gostaria de ser meu secretário? - perguntou o coronel Lumley. - Seu trabalho não seria muito duro, pois meus escreventes se ocupam de quase toda a papelada. Daria qualquer coisa para ter por perto um violinista como ele.

- É muito provável - respondeu Stephen.

Poderia ter acrescentado: "Na realidade, acredito que o pobre homem aceitaria qualquer trabalho que lhe permitisse viver contanto que não tenha que voltar a estar a bordo de um barco, sobretudo no golfo de Vizcaya". Mas achava que isso influiria em quem oferecia um trabalho, ainda que fosse tão benevolente como, pela expressão bonachona que mostrava agora, parecia ser o coronel Lumney. Em vez disso, Stephen disse:

- É tão provável que vale a pena fazer-lhe a oferta.

O coronel fez a oferta e Standish a aceitou. O grupo reiniciou a marcha depois do amanhecer, tão cedo como pôde lograr que os moços se levantassem do colchão de palha. Standish, de pé junto à porta do estábulo, despediu-se deles agitando a mão debaixo de um chuvisco até que se perderam de vista. Sua alegria e seu alívio influíram nos outros, incluídos Bonden e Killick, que durante quase toda a manhã, da parte traseira da carruagem, imitaram a buzina dos carros e fizeram gestos para os camponeses e soldados que passavam junto deles. Mas o vento do sul-sudoeste aumentou de intensidade, rolou para sudoeste e trouxe consigo a forte chuva, que temperou seu entusiasmo. Pouco depois sir Joseph lhes pediu de novo que entrassem no carro, e permaneceram sentados ali tranqüilos e em silêncio até que as ofegantes mulas levaram o coche pelas ruas da Corunha até o porto.

Jack e Stephen estavam esperando-lhes ali, no cais onde estava o cúter Nimble, no qual sir Joseph e seu grupo regressariam para a Inglaterra.

- Isto não poderia ser melhor - disse Jack quando abriu a porta da carruagem contra o vento. - Tenho quase certeza de que aumentará de intensidade, e ainda que não seja assim, é possível que avistemos a ilha d'Ouessant na quinta-feira pela tarde.

Na cinzenta penumbra, Blaine observou por entre a chuva o cais empapado e brilhante, as mulas também empapadas e brilhantes que baixavam a cabeça jorrando água, a irregular superfície do porto e, mais além, o mar salpicado de montanhas de espuma, onde a maré começava a baixar movendo-se em direção contrária às enormes ondas do Atlântico. Sem dizer nada se agarrou no braço de Jack e com os olhos semicerrados avançou pela prancha até o cúter.

Stephen pagou ao cocheiro, ao carabineiro que lhe acompanhava e aos moços, a quem disse que podiam ficar com os cavalos, e depois avançou também para a prancha. Fazia tempo que um grupo de marinheiros, depois de fazer uma amarra, haviam levado a bagagem para bordo, e assim que Stephen chegou, desamarraram o cúter na popa e na proa. Então a bujarrona se inchou e o cúter se dirigiu para o alto mar.

O Nimble, um barco de duzentas toneladas e catorze canhões, era um dos cúteres maiores da Armada Real. Para quem estava acostumado a navegar em dogres, galeotas e pequenos barcos com velas áuricas lhes parecia um hipopótamo, sobretudo quando tinha desdobradas as joanetes e as sobrejoanetes em seu único mastro, mas para o restante do mundo, especialmente para as pessoas acostumadas aos barcos de categoria, parecia feito para anãos. Mesmo Maturin, que era um homem baixo, tinha que abaixar a cabeça na cabine. Contudo, como sucedia com freqüência na Armada Real, estava sob o comando de um dos membros mais altos. Quando o capitão comprovou que o cúter já havia se afastado bastante de terra, foi vê-los. Usava uma casaca de tenente, tinha a cara rosada e, sorridente e ansioso ao mesmo tempo, cumprimentou-lhes:

- Bem-vindos outra vez, cavalheiros. Gostariam de tomar um tira-gosto antes do jantar? Por exemplo, um sanduíche e um copo de vinho de Sillery.

- Gostaríamos - responderam os convidados, que compreenderam que os sanduíches já estavam preparados e o vinho metido em uma rede e pendurado para fora da borda para que se esfriasse.

- Onde está sir Joseph? - perguntou o capitão do Nimble.

- Foi se deitar quando chegou porque diz que é melhor prevenir do que remediar - respondeu Jack.

- Espero que isso lhe sirva. O timoneiro de lorde Nelson me disse que depois de passar certo tempo em terra o almirante tinha terríveis enjôos durante os primeiros dias no mar. Stubbs - gritou, projetando a voz pelo escotilhão -, apresse-se com os sanduíches e o vinho!

 

- O vinho espumoso está muito bom - disse Jack, olhando para a luz através da taça -, mas para sabor, aroma e qualidade, dê-me um bom vinho de Sillery. Este vinho é excelente, senhor. Agora que me lembro, não ouvi bem seu nome.

- Michael Fitton, senhor - respondeu o jovem com um olhar de esperançada.

- O filho de John Fitton? - inquiriu Jack.

- Sim, senhor. Ele me falava muito do senhor e, ademais, quando era menino lhe vi uma vez em minha casa.

- Fomos companheiros de tripulação em três missões - explicou Jack, apertando-lhe a mão. - No Isis, no Resolution e, certamente, no Colossus.

Então baixou a vista, pois foi na coberta inferior do Colossus, a menos de três pés de distância dele, onde John Fitton morreu durante a batalha de Saint Vincent.

Nesse momento sir Joseph, cujo gabinete dava para a cabine, chamou o seu servente com voz afogada e, quando o ir e vir apressado terminou, Stephen olhou ao seu redor e disse:

- Assim que isto é um cúter. Por favor, diga-me por que o chamam assim?

Em outro tempo Jack teria dito que Stephen vira montes, centenas de cúteres sempre que navegava pelas águas britânicas e com freqüência em outros lugares e que, além disso, haviam lhe explicado qual era a exárcia que usavam para que não os confundisse com as corvetas; contudo, agora se limitou a dizer:

- Porque cortam a água, sabe? - E olhando para Fitton sorridente acrescentou: - Se bem governados são os barcos mais rápidos da Armada.

- Gostaria de ver o convés quando estiver chovendo um pouco menos? - perguntou Fitton. - Por ser um cúter, é elegante e extraordinariamente grande, pois tem quase setenta pés de comprimento. Ainda que qualquer um poderia dizer que a proa deveria ser mais espaçosa, o castelo é muito mais largo do que pode se imaginar: falta-lhe muito pouco para chegar a vinte e quatro pés. Sim, senhor, vinte e quatro pés, eu asseguro.

Depois do jantar, Jack e o capitão do Nimble começaram uma conversa sobre o uso da exárcia nos cúteres, a de velas de cuchillo{3} e a de velas quadradas, para conseguir que navegassem melhor de bolina ou ao largo, e ainda que de vez em quando se recordavam que Stephen estava ali e tratavam de que entendesse o tema, ele foi dormir muito logo. Estava cansado e tinha motivos para ficar, mas antes de dormir ficou refletindo um pouco sobre os diários, melhor dito, sobre o costume de usar um diário. Agora o Nimble cabeceava tão violentamente que Killick entrou e deu sete voltas em sua maca para evitar que caísse ou que fosse jogado e se chocasse contra os vaus, mas mesmo sem este inconveniente teria sido impossível escrever alguma de suas anotações habituais, que eram criptográficas, devido a que guardar com zelo sua intimidade, e prudentes devido a sua relação com a espionagem. Pensou: "Hoje só escreveria sobre o tempo, o heléboro negro que encontrei quando paramos para recuperar um tirante do arreio, e a gratidão que com correção e cavalheirismo expressaram os homens a quem presenteamos os cavalos, alguns homens que carecem por completo de educação. Quando conheci Jack deveria ter sido muito mais prolixo. Ou não? Estava muito deprimido naquela época, depois do óbvio e inevitável fracasso do levante, de ver a infame conduta de tanta gente e, certamente, da perda de Mona, por não falar dos intoleráveis males da França nem da perda do otimismo e das esperanças da juventude. Meu Deus, quanto um homem pode mudar! Recordo que disse a Dillon, que descanse em paz, que já não devia lealdade a nenhum país nem a nenhum grupo de homens mas somente aos meus amigos mais íntimos. Acrescentei que o doutor Johnson tinha razão ao afirmar que as formas de governo não tinham importância para o indivíduo e que eu não moveria um dedo para chegar ao próximo milênio nem para conseguir a independência. Contudo, agora estou aqui, navegando velozmente por este mar embravecido para tentar ajudar, ainda que seja um pouco, ambas as coisas, se a derrota de Bonaparte pode relacionar-se com o primeiro e a emancipação dos católicos e a dissolução da união com a segunda. Quando chegar ao Grapes lerei o diário daquele ano para saber o que escrevi".

No café da manhã Michael Fitton anunciou:

- Doutor, se a chuva cessar, hoje verá o Nimble em todo seu esplendor. Está navegando quase com o vento em popa, com a gávea desdobrada e a vela maior ao largo com um riz, e a última medição com a barquilha foi de onze nós e quase uma braça.

- Sim - disse Jack. - E verá os méritos de um gurupés extensível. Quando o cúter cabeceia como agora - a mesa se inclinou vinte e cinco graus e todos, instintivamente, seguraram as torradas -, o gurupés não fende as águas nem reduz a velocidade em absoluto.

- Como se pode lograr isso, pelo amor de Deus?

- Como em um cúter o gurupés não tem inclinação, é horizontal, pode ser recolhido no convés - explicou Fitton amavelmente, e lhe prometeu que já o veria.

Mas se equivocaram. A chuva seguiu chegando em densas rajadas do sudoeste e caindo sobre as cinzentos águas manchadas de branco aqui e ali. Ainda que na escura tarde de quinta-feira Jack o arrastou para o convés para que visse a ilha de Ouessant, uma borrada faixa rodeada de branco situada pela amura de bombordo, não pôde convencê-lo a ir até a proa para ver o gurupés nem de que subisse alguns amantilhos para ver os distantes navios da esquadra que fazia o bloqueio de Brest. No dia seguinte, quando o Nimble avançava com rapidez pelo Canal, tiveram que abrir as velas maior e traquete de cuchillo e a bujarrona, porque o vento rolou muito para a direção da proa, e, portanto, tiraram o gurupés, que continuou fora até o final do viagem, uma extraordinária viagem que lhes permitiu chegar a Portsmouth no final da tarde da sexta-feira, um dia de maio mais quente que o normal no qual de vez em quando chovia.

Sir Joseph, cujo método de ficar deitado sem se mover e comer grandes quantidades de pão duro havia funcionado até muito depois das primeiras e horríveis horas, partiu para Londres após tomar chá com bolo no Crown, mas antes disse a Jack:

- Suponho que, assim que eu faça o relatório, mandarão por telegrama as ordens para o senhor ao comandante. E estou seguro de que lhes verei no início da próxima semana, oficial ou extra-oficialmente.

Ambos o acompanharam ao carro e quando regressavam Stephen expressou seus temores:

- Estive pensando muito, meu amigo. Diana deve estar em uma situação delicada agora e se aparecermos de repente poderíamos lhe dar um susto tremendo.

- Oh! - exclamou Jack, que estivera a ponto de mandar buscar os cavalos. - Acho que sim. Escreva uma nota diplomática dizendo que possivelmente estará nos arredores logo e mandaremos Bonden e Killick em um coche para levá-la.

- Ver Bonden e Killick descendo de um coche também causaria alarme, pois as notícias que se mandam tão depressa e tão ostentosamente costumam ser más. Mandar a um garoto em uma mula é muito mais apropriado.

O garoto partiu na mula com uma nota:

 

Minha querida, não se alarme nem se preocupe se nos vê dentro de pouco. Ambos estamos perfeitamente bem e lhes mandamos todo nosso carinho.

 

E quando os homens estavam a ponto de ir ver a Diane de uma distância discreta, chegou o comandante do porto, um homem alegre que insistiu em que tomassem com ele uma garrafa de vinho.

- Hoje completo setenta e quatro anos. Não podem se negar.

No corredor havia um nutrido grupo de oficiais aos quais também convidou. Jack conhecia muito bem a alguns, entre eles a três capitães de navio, que, como muitos outros, tratavam de compensar a solidão que sentiam no mar com sua loquacidade em terra. Também se encontrava ali o médico da esquadra com um dos médicos do hospital Haslar, e ambos falavam muito. A conversa era fluida, as garrafas iam e vinham e o tempo passou e passou. Muito depois o dono do hotel se aproximou de Stephen e ficou de pé junto dele.

- Doutor Maturin, senhor... - disse no momento em que Stephen interrompeu sua explicação do método de recompor ossos quebrados de Basrah -, Aí fora há uma carruagem com várias damas que perguntam pelo senhor.

- Jesus, Maria e José! - murmurou Stephen, e se apressou a sair da sala.

Diana, que estava sentada no lado da janela mais próxima, assomou a cabeça e exclamou:

- Oh, Maturin, querido! É um monstro! Como pode aterrorizar assim a inocentes mulheres?

Do interior do carro, por detrás dela, ouviu-se a aguda voz de Sophie:

- Jack não está aí? Disse que Jack estaria aí!

Diana abriu a portinhola e fez gesto de saltar, mas Stephen a pegou pelos cotovelos e a desceu.

- Minha querida, tem um considerável volume - disse, beijando-a tenramente. - Sophie, quer vir ver Jack, ao almirante Martin e a muitos outros marinheiros? Estão bebendo vinho do porto na sala Delfim.

- Oh, Stephen, por favor traga-o e vamos todos para casa juntos imediatamente! Não quero perder nem um minuto de estar na companhia dele e na sua, querido Stephen.

- Sem dúvida, tem razão. Dispomos de pouco tempo, pois me parece que devemos estar na cidade na terça-feira.

Na realidade, no domingo pela tarde chegou uma mensagem do comandante do porto em que pedia ao capitão Aubrey que fosse ver ao primeiro lorde na rua Arlington às cinco e meia do dia seguinte. Não obstante, mesmo que o regresso tivesse se retardado, dificilmente poderiam ter dito algo mais, porque todos falaram sem parar desde o momento em que a carruagem iniciou a viagem do Crown para Ashgrove Cottage.

- Para Arlington Street - sussurrou Jack com voz rouca ao ler a mensagem. - Essa é sua casa. Alegro-me muito, porque se tivesse pedido que me apresentasse no Almirantado me encontraria em um dilema: ir vestido de uniforme e parecer presunçoso ou ir vestido de civil e cometer uma incorreção. De todo modo, levarei o uniforme também, caso o necessite. Querida, acha que se há manchado ou estragado durante os últimos anos?

- Nem um nem outro, querido. Somente as dragonas estão um pouco oxidadas. Desde ontem pela manhã, Killick, minha mãe e as meninas pegaram o melhor de todos e estiveram sacudindo-o e escovando-o a seco com escovas suaves. Mas temo que lhe ficará muito grande, porque hás emagrecido uma barbaridade, querido.

Tanto se tinha emagrecido como se não, Jack Aubrey ainda fez que o carro se inclinasse bastante quando subiu nele depois de beijar a toda sua família exceto a George, já que este usava calções há algum tempo.

O coche pegou o caminho principal para Londres em Cosham e avançou velozmente sob o céu azul, por onde cruzavam nuvens brancas a uma velocidade ainda maior.

- Os cavalos são excelentes - observou Jack. - E faz um dia extraordinariamente bonito. Então assobiou e depois cantou inteira a canção De Ouessant, a Scilly há trinta e cinco léguas.

Como não havia chovido no sábado nem no domingo, as cercas que flanqueavam o caminho estavam cobertas de poeira, mas detrás delas os verdes campos de trigo e cevada, os pastos e os bosques grandes e pequenos com folhas novas tinham um colorido verde tão intenso sob o brilhante céu que isso teria bastado para animar a qualquer homem, sobretudo a um que esperava que a viagem tivesse tão bom fim. A maioria das aves migratórias tinham chegado para passar o verão e algumas ainda cruzavam pela zona norte; os campos estavam cheios de pássaros. Quando trocaram os cavalos em um povoado situado além de Peterfield, Stephen ouviu a três cucos cantarem ao mesmo tempo e moveu a cabeça de um lado para o outro recordando a profundo dor que seu canto lhe causara em outro tempo. Quase imediatamente viu um pica-pau, um pássaro que ouvira mais amiúde do que vira, e o mostrou para Jack com o habitual resultado.

- Ali há um pica-pau.

- Onde?

- No pequeno olmo, à direita de... Ele se foi! - No período seguinte se ocuparam com os pica-paus, a melhora da conduta das filhas de Jack sob a tutela da senhorita O'Mara e os albatrozes que se encontravam em altas latitudes e mesmo em moderadas latitudes sul; contudo, depois de falar disso, Jack guardava silêncio com mais freqüência cada vez. Pensava que tinha muito em jogo e que o momento decisivo estava próximo, mais próximo a cada minuto que passava, e estava muito perturbado.

"Eu me sentirei melhor depois de comer", pensou quando a carruagem deixou para trás o Strand, entrou no distrito de Savoy e se deteve na porta do Grapes, a hospedaria onde habitualmente paravam.

A senhora Broad lhes deu uma calorosa boas-vindas. Killick, que chegara em um carro na noite anterior, havia lhe avisado e ela os serviu um jantar que teria saciado a qualquer homem razoável; contudo, nesse momento Jack não era um homem razoável e pensava na possibilidade de que lhe impusessem condições inaceitáveis e de que fracassasse, pelo que comia mecanicamente, sem desfrutar da refeição.

- Acho que o capitão marou um encontro com um cavalheiro em Hyde Park, porque não tocou no pudim - disse a senhora Broad para Lucy, pensando no duelo de Canning em Gastlereagh e em outros duelos menos importantes que as pessoas recordavam bem.

- Oh, tia Broad, isso é terrível! - exclamou Lucy. - A verdade é que nunca vi um homem tão triste.

 

Mas não estava tão triste quando bateu na porta da rua Arlington no momento em que o relógio de Saint James deu as cinco e meia, pois já terminava o tempo de espera e se punha em ação, estava por fim no convés do barco inimigo.

Entregou seu cartão de visita ao servente e disse:

- Tenho um encontro com sua senhoria.

- Oh, sim, senhor! - exclamou o homem, e o conduziu para uma pequena habitação que dava para o corredor. - Por aqui, por favor.

- Capitão Aubrey! - exclamou lorde Melville, saindo detrás de sua mesa e estendendo-lhe a mão. - Permita-me ser o primeiro em felicitar-lhe. Decidimos este horrível assunto por fim. Levamos muito mais tempo do que o desejado, mas já está solucionado. Sente-se e leia isto, por favor. É o rascunho da Gazette que está na imprensa agora.

Jack olhou a folha com expressão grave. As linhas escritas em letra redonda diziam: "15 de maio. O capitão John Aubrey, da Armada Real, foi incluído de novo na lista de capitães com a categoria e a antiguidade anteriores e foi nomeado capitão da Diane, fragata de trinta e dois canhões".

- Agradeço enormemente a sua amabilidade, milorde - disse Jack.

- E aqui tem a nomeação de capitão da Diane - continuou Melville. - As ordens estarão prontas dentro de um dia ou dois, porém, é claro, o senhor já conhece o principal do caso por sir Joseph. Estou muito contente, estamos muito contentes de que o senhor possa se encarregar desta missão e de que o doutor Maturin o acompanhe, pois ninguém está melhor preparado do que o senhor em todos os aspectos. Seria estupendo que lograsse trazer a esses malvados, a Ledward e Wray, mas o senhor Fox, que é nosso enviado e tem grande experiência em assuntos orientais, disse que não é possível fazê-lo sem prejudicar nossas futuras relações com o sultanato. Lamento muito ter que dizer que o mesmo pode se aplicar a sua fragata, a... - abriu uma pasta que tinha na mesa - a Cornélie. Mas espero que pelo menos com esta missão consiga desapontá-los, deixá-los confusos e desacreditados para sempre. Também seria estupendo que pudesse escolher muitos dos oficiais e dos guardas-marinhas, porém, como o senhor sabe, o tempo urge, e se não puder encontrar pelo menos o final da monção do sudoeste, é possível que o senhor Fox chegue quando os franceses já tenham firmado algum tratado. Se tiver amigos ou seguidores com quem pode pôr-se em contato imediatamente, perfeito; mas tem que falar deste assunto com o almirante Satterley. Marquei um encontro em seu nome para amanhã às nove no Almirantado; espero que seja conveniente para o senhor.

- Certamente, milorde - respondeu Jack.

Recuperara-se no comprido intervalo em que Melville falou com loquacidade e sentia que seu coração se enchia de uma grande emoção (alegria era um termo muito pobre), mas então se deu conta de que estava amassando a nomeação, pois a tinha agarrado com muita força. Imediatamente a alisou discretamente e meteu no bolso.

- Quanto aos marinheiros, estou seguro de que o almirante Martin fará todo o possível pelo senhor, tanto por ser quem tem a autoridade nisto como por gostar muito do senhor e da senhora Aubrey, ainda que o senhor sabe que deve afrontar muitas dificuldades. Por último, com respeito ao senhor Fox, pensara em promover uma recepção, mas sir Joseph acha que seria melhor algo menos formal, que o senhor e Maturin o convidassem para almoçar em um salão privado do Black's.

Jack consentiu com a cabeça.

- E falando disso - prosseguiu Melville, olhando o relógio -, espero que venha almoçar cordeiro conosco esta tarde. Heneage virá e ficará decepcionado se não o vir.

Jack aceitou com prazer e Melville continuou:

- Bem, acho que isso é tudo o que tenho a dizer como primeiro lorde. Os almirantes se ocuparão dos aspectos estritamente relacionados com a Armada. Agora, falando como um mortal comum, meu primo William Dundas vai apresentar na sexta-feira um projeto de lei privado para que lhe permita ganhar terreno no mar, e é provável que assistam tão poucos membros que não haja quórum. Se o senhor assistisse e aprovasse seu projeto, ainda que isso supusesse perder quase duas milhas quadradas de mar, nós o agradeceríamos muito.

 

Ninguém, com excessão de um homem muito mais lerdo que Maturin, teria que perguntar a Jack qual era o resultado da entrevista quando desceu correndo a escada com os papéis na mão.

- Ele falou com tanta elegância como era possível - contou Jack. - Não vacilou nem se lamentou pelo equívoco nem falou da maldita moralidade. Limitou-se a apertar-me a mão e a dizer-me: "Capitão Aubrey, permita-me ser o primeiro em felicitar-lhe". Depois me mostrou estes papéis.

Depois de rir de novo do que se publicaria na Gazette e de que o pobre Oldham, o capitão de navio que estava em seu lugar na lista de antiguidade, ia ficar pálido no dia seguinte, contou a Stephen detalhadamente a conversa e o almoço.

- Pareceu-me bastante boa, dadas as circunstâncias, mas acho que senti tanto alívio que teria comido um hipopótamo. E Heneage Dundas demostrou-me seu sincero afeto. Certamente, mandou-lhe muitas saldações e virá aqui amanhã porque, se tiver um momento livre, quer ver-te enquanto esteja na cidade. Quanto ele se alegrou com tudo! E quanto se alegrará Sophie! Eu lhe mandarei uma carta urgente.

Vacilou um momento e continuou:

- Mas teria preferido que Melville não tivesse me pedido um voto nesse momento.

- Suponho que isso é uma deformação profissional. A política e a delicadeza raras vezes andam juntas - comentou Stephen, olhando a nomeação outra vez. - Porém, quer que lhe diga uma coisa, meu amigo? Esta data é um bom augúrio. Em um 15 de maio, num sábado, se não estou enganado, porém, em qualquer caso, quarenta dias antes do Dilúvio, a neta de Noé, Ceasoir, chegou à Irlanda com cinqüenta virgens e três homens. Acredito que desembarcaram em Dun-na-Mbarc, no condado de Cork. Ela foi a primeira pessoa que pisou uma praia irlandesa e a enterraram em Carn Ceasra, em Connaught. Sentei-me muitas vezes junto à sua tumba para ver as lebres correrem.

- Você me assombra, Stephen. Estou surpreso. Assim que os irlandeses são, na realidade, judeus.

- Não, de nenhuma maneira. O pai de Ceasoir era grego. Ademais, todos se afogaram no Dilúvio. E Partholan só chegou lá cerca de trezentos anos depois.

Jack ficou pensando nisso durante um tempo e de vez em quando olhava para Stephen. Depois disse:

- Mas eu estou falando todo o tempo de meus própios assuntos e não lhe perguntei se passou um bom dia. Parece que não foi muito agradável.

- Ele melhorou, obrigado, pois suas notícias melhorariam qualquer coisa. Mas confesso que estava irritado e inclusive cheguei a perder os estribeiras. Fui ao banco e me encontrei com que esses porcos não seguiram quase nenhuma das instruções que lhes deixei e lhes mandei de Lisboa. Além disso, algumas anualidades não foram pagas devido a insignificantes erros nas formalidades de minha ordem inicial. E quando pedi que enviassem uma considerável soma em moedas de ouro para Portsmouth quando subíssemos a bordo, disseram que as moedas de ouro eram difíceis de conseguir, e que se não quisesse as notas fariam tudo o que pudessem por mim, mas que teriam que cobrar-me uma comissão. Eu lhes disse que, em primeiro lugar, havia depositado em seu banco uma soma muito maior que essa em moedas de ouro e que não ia pagar para receber dinheiro metálico que era meu. Finalmente logrei que entendessem minhas razões, mas não sem usar várias expressões muito violentas e em particular alguns termos que os marinheiros empregam, como "idiota" ou "canalha".

- Estou seguro de que as usou muito bem. Eu não teria sido tão moderado. Stephen, por que não muda para o banco de Smith, o irmão do Smith com quem jantamos antes de partirmos? De minha parte, eu nunca deixarei o de Hoare porque ali cedo ou tarde fazem o que lhes peço e me trataram muito bem quando não tinha dinheiro. Apesar disso, tenho uma conta no de Smith porque é conveniente para mim e sobretudo para Sophie. Eu em seu lugar retiraria todo o dinheiro do banco desses tolos e o depositaria no de Smith.

- Farei isso, Jack. Quando as moedas de ouro estejam a bordo da Diane, escreverei uma carta para que cumpram cabalmente com todos os requisitos legais. Pedirei a um advogado que a redija. Entre!

Era Lucy, encarregada de averiguar o que os cavalheiros desejavam para jantar, pois a senhora Broad pensava preparar uma torta de veado e outra de maçã. Stephen estava de acordo, mas Jack disse:

- Por Deus, Lucy! Hoje não poderia comer nada mais que um pedaço de torta de maçã e um pouco de queijo. Por favor, se Killick estiver lá embaixo, diga-lhe que suba.

Um momento depois apareceu Killick com os olhos fora das órbitas.

- Killick, poderia ir até Rowley's para comprar um par de dragonas novas?, e coloque-as na primeira hora de amanhã. Ademais, arrume um coche que espere na porta às oito e meia porque tenho um encontro no Almirantado. Aqui está o dinheiro.

- Assim que tudo vai bem, senhor - disse, e sua habitual expressão mal-humorada se transformou em triunfal e lhe estendeu a mão. - Perdoe o atrevimento, senhor. Eu lhe felicito, felicito-lhe de todo coração. Sabia que isto aconteceria, sabia desde o início. Ah, ah, ah! Eu falei para todos: as coisas vão sair bem, companheiros. Ah, ah, ah! Isto mostrará a esses sacanas.

- Falando de comida - disse Stephen -, virá ao Black's para jantar com sir Joseph, o senhor Fox e comigo, amanhã às cinco e meia? Bem, traduzindo para seu dialeto, seria às quatro e meia.

- Irei com prazer se tiver terminado no Almirantado a essa hora.

- Isto não é um convite, Aubrey. Ainda é um membro e tem que pagar sua parte.

- Eu sei. O comitê teve a amabilidade de comunicar-me por escrito. Apesar disso, jurara não voltar a pisar nesse lugar até que me reabilitassem e precisamente amanhã sai a Gazette, ah, ah! Pagarei a minha parte com muito prazer.

Para terminar no Almirantado antes da hora do jantar, primeiro Jack Aubrey tinha que chegar lá, e até o momento encontrara-se com dificuldades que pareciam insuperáveis. Pouco depois de meia-noite trouxeram Killick ao Grapes em uma prancha, muito mais bêbado do que se considerava normal entre os marinheiros e sem poder falar nem se mover. Caíra no barro, tinham lhe arrancado um punhado de seu cabelo cinzento e ralo, roubaram-lhe o dinheiro, fora deixado meio desnudo, não tinha dragonas novas e as que levara de amostra haviam desaparecido.

Rowley não vivia em cima de sua loja e, por isso, não era possível despertá-lo por mais golpes que dessem em sua porta; e a loja concorrente ficava muito além de Longacre, em uma parte diametralmente oposta de onde ficava Whitehall. Apesar de tudo, graças ao seu ânimo e ao esforço do cavalo que puxava o coche, Jack pôde chegar a tempo e vestido corretamente, ainda que acalorado, ao seu encontro no Almirantado. Ali, na íntima sala de espera, teve tempo para refrescar-se e sentir a satisfação de usar um uniforme de novo. Sophie tinha razão: os calções brancos e a casaca azul lhe ficavam largas na parte onde antes tinha a barriga, mas a casaca ainda ficava muito bem no pescoço e nos ombros e se ajustava a eles graciosamente. Ali havia poucos oficiais a mais, e esses poucos usavam apenas uma dragona, quer dizer, eram tenentes, e não se atreviam a responder mais que "Bom dia, senhor" quando ele lhes dizia "Bom dia, cavalheiros", assim que em pouco tempo se pôs a ler o Times. Abriu em uma página ao acaso e apareceu ante sua vista a coluna publicada na Gazette, que, em sua opinião, não devia olhar muito amiúde.

- Capitão Aubrey, por favor - disse o velho assistente.

Um momento mais tarde o almirante Satterley, depois de cumprimentar cordialmente e felicitar a Jack, contou-lhe qual era a situação da Diane.

- Ela a havia sido dada a Bushel para ir às Antilhas e tinha previsto zarpar no próximo mês. Agora lhe ofereceram o serviço de guardas-costas de Norfolk, um posto que lhe cai muito bem, sobretudo porque sua esposa tem imóveis ali. Isso é vantajoso para nós, que dispomos de pouco tempo, porque ele não pode levar quase nenhum de seus seguidores. Já tinha reunidos a todos os oficiais e a alguns excelentes suboficiais, mas entre os guardas-marinhas faltam bons ajudantes de oficial de derrota. Acredito que já carregou bastantes provisões e a última vez que tive notícias dele lhe faltavam sessenta ou setenta marinheiros para completar a tripulação. Aqui tem uma lista de seus oficiais. Se quiser fazer alguma mudança, ajudarei todo o possível no pouco tempo que temos, ainda que, se eu estivesse em seu lugar, não faria nenhuma mudança substancial. Como não estiveram muito tempo sob as ordens de Bushel, não se incomodarão que o substituam, e também sabem muito bem quem capturou a Diane e quem, portanto, tem direito de ficar ao comando dela. Enquanto o senhor olha a lista assinarei estas cartas.

A lista tinha muita informação: a idade de cada oficial, os serviços prestados e a antiguidade. Em geral eram jovens. O tenente mais velho e de mais antiguidade, James Fielding, tinha trinta e três anos. Estivera navegando durante vinte e um anos, dez deles realizando a mesma missão, mas passara a maior parte do tempo em barcos de linha que faziam bloqueios e entrara muito pouco em combate. Perdeu inclusive a oportunidade de tomar parte na batalha de Trafalgar porque seu barco, o Canopus foi enviado para se abastecer de água e provisões em Gibraltar e Tetuán. O segundo tenente, Bampfylde Elliott, indubtavelmente tinha muita influência, pois lhe deram esse cargo muito antes da idade regulamentar; contudo, quase não tinha experiência como oficial porque lhe feriram em uma batalha entre o Sylph e o Fleche e teve que ficar em terra até que recebeu seu posto atual. O terceiro tenente era o jovem Dixon, a quem conhecia. Depois vinham Graham, o cirurgião; Blyth, o contador, e Warren, o oficial de derrota, todos os quais haviam prestado serviço em navios respeitáveis. O mesmo ocorria com o condestável, o carpinteiro e o contramestre.

- Bem, senhor - disse Jack -, só tenho duas observações a fazer. A primeira é que o terceiro tenente é filho de um oficial com quem estive em desacordo em Menorca. Não tenho nada contra o jovem, mas ele conhece essas discrepâncias e se pôs do lado de seu pai. Isso é normal, sem dúvida, mas talvez afete a harmonia na fragata.

- Dixon? Ah, recordo que seu sobrenome era Harte até que herdou Bewley! - exclamou o almirante com um olhar difícil de interpretar, que podia ser malicioso, brincalhão ou desaprovatório; mas que demonstrava que sabia que Aubrey era um dos homens que converteram a Harte em um cornudo em Porto Mahón.

- Exatamente, senhor.

- Tem algum outro oficial para sugerir?

- Perdi alguns contatos, senhor. Poderia falar com o pessoal de seu departamento para ver se está disponível algum dos guardas-marinhas que estavam sob minhas ordens?

- Muito bem, mas essa pessoa terá que se encontrar perto, como pode supor. Qual é o outro comentário?

- É sobre o cirurgião, senhor. Estou seguro de que é muito competente, mas sempre naveguei em companhia de meu amigo íntimo o doutor Maturin.

- Sim, isso o primeiro lorde me disse. Contudo, a nomeação ou a exoneração do senhor Graham depende do Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos, e ainda que poderíamos ter-lhes induzido a que lhe oferecessem outro barco, pensamos que o doutor Maturin poderia viajar como se tivesse a intenção de ocupar um posto em Batavia, por exemplo, ou na qualidade de médico do enviado e de seu séquito ou, já que dizem que o pagamento é irrelevante para ele, como convidado.

 

Foi conveniente que Jack Aubrey chegasse ao Black's muito antes de seu encontro com Stephen e sir Joseph, pois estavam na temporada mais ativa em Londres e o local estava cheio de cavalheiros provincianos. Tom, o porteiro, desembaraçou-se de um grupo deles que faziam as habituais perguntas e saiu de sua guarita para apertar a mão de Jack.

- Alegro-me muito de ver-lhe outra vez, senhor - cumprimentou-lhe. - O clube não era o mesmo.

Um surpreendente número de membros, alguns dos quais quase não conhecia, foram lhe felicitar por sua reabilitação. Vários afirmaram que sempre souberam que isso sucederia; outros disseram que "bem fica o que bem acaba". Sentiu uma profunda gratidão por eles por suas amostras de amizade e apoio, e ainda que soubesse muito bem que aos ganhadores lhes aplaudiam mais quando a vitória era notória, comoveu-se muito mais do que esperava.

Sir Joseph e Stephen subiram a escada juntos e o primeiro disse:

- Permita-me felicitar-lhe por sua aparição na Gazette. Não lhe terá subido a presunção à cabeça, né?

- O senhor é muito amável, sir Joseph. Não, a presunção nunca me sobe para a cabeça, e aprecio muito a amabilidade de quem respeito.

Subiram para o andar superior, sentaram-se junto a uma janela na Sala Larga e passaram a beber xerez e a olhar a abarrotada rua.

- Acabo de voltar de Westminster, e tinha tanta gente na rua que demorei quase meia hora - Jack se queixou.

- Havia algo interessante no Parlamento?

- Oh, não! Somente um punhado de projetos de lei privados. Tinha muito pouca gente. Só fui para ver Dacres tomar posse de sua cadeira. Eram tão poucas pessoas que quase não bastavam para que houvesse quórum, e o pobre homem também estava raivoso porque tinha que regressar para Plymouth no coche postal esta noite. Apesar disso, três membros me perguntaram se aceitaria seus filhos ou sobrinhos como guardas-marinhas. Quando voltar lá amanhã estou seguro de que ocorrerá o mesmo. É surpreendente que as pessoas estejam tão desejosas de desfazer-se de seus filhos, ainda que, pensando bem, não é tão surpreendente.

- O que o senhor respondeu?

- Respondi que me encantaria, desde que os garotos tivessem treze ou catorze anos, tivessem estudado matemática na escola durante pelo menos um ano e soubessem algo do mar que lhes fosse útil. Não acredito que um barco que um tem sob seu comando pela primeira vez, com uma tripulação da qual não sabe nada, e sem mestre, seja um bom lugar para os garotos. É mais conveniente um barco de linha, onde pelo menos podem servir de lastro.

- Seu convidado chegou, sir Joseph - anunciou um servente.

Poucos minutos depois, Blaine subiu a escada com o senhor Fox, um homem alto e magro impecavelmente vestido ao estilo moderno: com o cabelo curto e sem empoar, casaca negra, colete, gravata branca, calções e sapatos com fivelas simples. Era bem parecido e prumado e tinha cerca de quarenta anos. Prestou grande atenção às apresentações que sir Joseph fez e a boa impressão que causou melhorou quando se sentaram para jantar no salão privado menor, uma encantadora habitação octogonal com o teto em forma de cúpula. Disse sentir-se muito honrado de conhecer ao capitão Aubrey e confessou que a captura do Cacafuego na última guerra lhe produzira uma extraordinária alegria só superada pelo apresamento da Diane. Também se alegrava de conhecer ao doutor Maturin, de quem sir Joseph lhe falara tanto.

- As ilhas situadas ao sul do mar da China devem oferecer a um naturalista uma enorme quantidade de plantas e animais não descritos. Já esteve ali alguma vez, senhor?

- Infelizmente nunca tive a sorte de chegar além da costa leste de Sumatra, senhor, mas espero que desta vez minha sorte melhore.

- Eu também espero. Nessa zona tenho um amigo que é um eminente naturalista e me assegurou que nem ao menos se conhecem bem os mamíferos maiores e que, como os holandeses não tinham interesse na ciência nem na natureza senão no comércio, quase não chegaram a conhecer o interior de Sumatra e Java. Meu amigo tem coleções maravilhosas e passa todo o tempo que seus deveres oficiais lhe permitem aumentando-as. Provavelmente já ouviu falar dele. É Stamford Raffles, o vice-governador de Java.

- Não tive o prazer de conhecer a esse cavalheiro mas vi suas cartas, pois sir Joseph me mostrou várias. Em algumas tinha plantas secas de diversas espécies e admiráveis descrições delas; em outras, as mais acertadas sugestões para a criação de um museu de história natural com exemplares vivos, um Kew da fauna.

- Acredito que simpatizará com ele. Tem um grande talento e uma extraordinária energia. Eu o conheci há anos em Penang quando era membro do conselho legislativo e ele ocupava um posto na Companhia das Índias. Trabalhava dia e noite e nostempos livres colecionava desde tigres até musaranhos. Também é um destacado lingüista. Ajudou-me muito quando estudava a expansão do budismo, sobretudo a chegada a Java da escola budista mahayana.

- O doutor Maturin e eu estávamos presentes em Somerset House quando o senhor leu seu estudo - disse sir Joseph.

Tanto Stephen como Jack, que o havia lido em Proceedings, aproveitaram a oportunidade para felicitar ao senhor Fox. Seguiram conversando animadamente e Fox falou de diversos assuntos navais e políticos conforme eram considerados em terra, demostrando sua inteligência e sua ampla informação. Depois falaram da desafortunada viagem que a Surprise fizera vários anos antes, a viagem em que levaram o senhor Stanhope para ver a outro sultão malaio e que esteve a ponto de permitir a Stephen visitar o paraíso dos naturalistas, além do estreito da Sonda.

- Sim, lembro bem dessa missão - disse o senhor Fox. - Foi uma das idéias menos brilhantes de Whitehall. Teria sido muito melhor que a deixassem para nós. Raffles teria se ocupado do assunto em seu própio terreno e o pobre senhor Stanhope se pouparia de uma fatigosa viagem e não teria contraído uma doença mortal. Foi absurdo enviar a um homem de sua idade. Bem, não sei se estou equivocado, mas acho que um representante do rei, com poderes outorgados pela própia Coroa, tem direito de ser recebido com treze salvas.

- Exatamente, senhor - corroborou Jack. - Os enviados são recebidos com treze salvas.

- Então, para que um homem tenha direito a ser recebido com treze salvas deve pertencer a uma família distinta ou ter talento - disse, e olhou ao seu redor sorrindo.

- Era um companheiro muito agradável - interveio Stephen. - Estudamos malaio juntos quando ainda se sentia bastante bem e recordo que se encantava com os verbos porque não variavam para expressar modo, tempo, número nem pessoa.

- Esses são os verbos que me agradam - sentenciou Jack.

- Progrediram muito? - inquiriu Fox.

- Não - respondeu Stephen. - Nosso livro era bastante ruim e era escrito por um alemão que achava que era francês. Quando o secretário oriental do senhor Stanhope reuniu-se conosco na Índia, nos ajudou muito e logrei adquirir alguns conhecimentos básicos, mas a viagem foi muito curta. Desta vez quero obter melhor resultado e espero encontrar um servente malaio em algum barco dos que faz o comércio com as Índias Orientais.

- Oh! - exclamou Fox. - Nisso posso ajudar, se desejar. Meu servente Alí tem um primo, Ahmed, que está desocupado ou logo vai ficar. É um jovem inteligente e bem preparado que serviu a um comerciante retirado, o senhor Waller, que morreu faz pouco. Eu mesmo o teria contratado, mas não tinha lugar para ele em meu séquito. Se o senhor quiser, direi a Alí que o chame imediatamente. Estou seguro de que a senhora Waller dará boas referências sobre ele.

- Isso seria estupendo. Agradeço-lhe muito, senhor.

- A propósito de séquitos - interveio de novo Jack -, ainda que talvez não seja oportuno falar de questões práticas agora, gostaria que, antes de ir para Portsmouth, o senhor Fox me dissesse o número de pessoas que o formam e o que comerão. Assim os carpinteiros e os ebanistas poderão pôr-se a trabalhar imediatamente, pois não há nem um momento a perder.

- mas se sir Joseph e o doutor Maturin não se importarem, poderíamos falar do assunto agora mesmo - propôs Fox -, então, como disse muito bem, não há nem um minuto a perder. Já naveguei em barcos que tratavam de encontrar a monção do nordeste porque haviam perdido a do sudoeste, e me pareceu algo deprimente. E em nosso caso isso nos impediria de ter êxito.

Enquanto eles se punham de acordo, Stephen e Blaine, que estavam próximos, trocaram opiniões sobre o vinho que tomavam com o cordeiro, um delicioso Saint Julien, e sobre outros vinhos da região de Médoc, seus preços tão variados e o absurdo que era falar desse tema na maioria dos casos.

- Então - disse Fox para concluir -, ainda que partirei somente com um secretário e um par de serventes, quando fizermos escala em Batavia, Raffles me conseguirá dois ou três acompanhantes de boa presença que serão como figuras ornamentais, mas que, junto com seus serventes, contrariarão a ação da delegação francesa. Obviamente, necessitarei de espaço para eles.

- Pulo Prabang - disse Stephen depois de uma pausa. - O nome me traz a recordação de duas coisas desde que o ouvi pela primeira vez, e agora ambas afloram à superfície do que jocosamente chamo minha memória. A primeira é que o senhor, em sua conferência, explicou que esse era um dos poucos lugares do território malaio onde restavam reminiscências de budismo.

- Sim - confirmou Fox sorrindo. - É um lugar interessante de muitos pontos de vista, e tenho muito desejo de visitá-lo. Naturalmente, o sultão é maometano, como a maioria dos malaios, e, também como a maioria, é pouco exigente. Como geralmente ocorre nessa zona, ele e seu povo conservam muitas outras crenças, superstições ou como queira chamá-las. Nem ele nem ninguém molestaria a quem vai ao santuário budista em Kumai. Acreditam que isso seria uma loucura e um sacrilégio e que, o que é ainda pior, traria má sorte para sempre. Um homem me falou de um templo em que acreditou distinguir certa influência da escola budista hinayana, o que o converteria em algo único. A ilha também é interessante do ponto de vista geológico, pois outrora houve ali erupções vulcânicas das quais restaram duas notáveis crateras, uma junto ao mar, onde o sultão tem o porto, e a outra na região montanhosa. A segunda é atualmente um lago, e junto dele se encontram o templo e o santuário. Meu informante diz que os poucos monges de lá vieram do Ceilão, mas como nossa conversa foi em francês, uma língua que nenhum dos dois fala bem, é possível que me haja confundido e que seja seu rito o que procede do Ceilão. Por outro lado, estou seguro de que Raffles me disse que lá se podiam ver orangotangos e rinocerontes, e me parece que também elefantes.

- Que alegria! - exclamou Stephen. - E isso me recorda a segunda coisa. Foi para Pulo Prabang que Van Buren se retirou quando nós tomamos Java, né?

- Van Buren? Não lembro desse nome.

- Cornelius Van Buren. Alguns o colocam no mesmo nível de Cuvier; outros em um nível superior. Em qualquer caso, não há ninguém que saiba mais sobre o baço.

- O especialista em anatomia? Certamente, certamente! Desculpe-me, mas estava distraído. Não sei o que terá sido dele, mas provavelmente Raffles poderá nos dizer.

Do especialista em anatomia saltaram para aqueles que suprem quem estuda anatomia. Blaine teve a amabilidade de descrever os principais: profanadores de tumbas, ajudantes de carrascos e barqueiros do Tâmisa.

- Também há outros que matam por asfixia. São homens que levam para os albergues jovens e caipiras ingênuos a quem os punguistas roubaram e quando eles dormem lhes põem em cima um colchão e dois ou três deles se deitam por cima.

Dos homens maus em geral passaram a falar dos traidores, e depois, repentinamente, de Ledward. Tanto Jack como Stephen se assombraram do profundo ódio que Fox sentia por ele, que parecia ainda mais profundo porque a conversa anterior fora muito superficial, quase trivial. Fox se emocionou tanto que blasfemou (algo que era estranho nele e causava grande irritação) e empalideceu. Não comeu nada mais até o momento em que retiraram a toalha de mesa e puseram na mesa as nozes e ovinho do porto e em que, devido à entrada e saída de serventes, teve que mudar de tema.

Apesar disso, recuperou-se bastante rápido, e todos ficaram ali sentados durante um longo tempo bebendo vinho. Trouxeram-lhes duas garrafas a mais e o jantar terminou alegremente. Fox declinou um convite para assistir a um concerto de música antiga (lamentava não poder distinguir uma nota de outra), agradeceu-lhes cortesmente por ter-lhe proporcionado o prazer, o imenso prazer de estar em sua companhia e pelo excelente jantar, despediu-se e partiu.

Enquanto Jack falava com um amigo no saguão do teatro. Stephen disse a Blaine:

- Há outro assunto do qual queria tratar, mas não o fiz. Acho que deveria ter falado dele muito antes. Espero não me equivocar ao supor que entre o enviado e eu não há diferença hierárquica.

- Oh, não! Nenhuma em absoluto. Está muito claro que apesar de que Fox lhe pedirá conselhos, não está obrigado a segui-los, e, por outra parte, você tampouco tem por que seguir suas recomendações. Só existe entre vocês um nexo consultivo. Ele vai a Pulo Prabang para firmar um tratado com o sultão e você vai para observar os franceses. Porém, certamente você terá que comunicar-lhe qualquer informação que receba e que possa ajudá-lo em seu trabalho.

 

- Muito bom dia, Stephen - cumprimentou-lhe Jack, levantando a vista da carta. - Dormiu bem?

- Admiravelmente bem, obrigado. Meu Deus, como me agrada o odor de café, de bacon e de pão torrado!

- Recorda daquele horrível guarda-marinha que se chamava Richardson?

- Não.

- Em a Boadicea o chamavam Dick o Manchado. Tinha mais espinhas do que costumam ter inclusive os jovens da Armada. Voltamos a vê-lo em Bridgetown e já não as tinha. Era o primeiro oficial do navio insígnia do almirante Pellow.

- Ah, é! Lembro que era um bom matemático. O que lhe ocorreu?

- Como está em terra, mandei perguntar-lhe se quer ser o terceiro a bordo da Diane, e aqui está sua carta, cheia de satisfação e gratidão. Estou muito contente. E recorda-se do senhor Muffin?

- O que era capitão do Lushington, um barco que faz o comércio com as Índias, quando tivemos uma escaramuça com Linois na viagem de regresso de Sumatra?

- Muito bem, Stephen. Já viajou para Cantão sabe Deus quantas vezes e conhece perfeitamente o sul do mar da China, e eu, em troca, não. Eu lhe escrevi pedindo conselho e me convidou para ir a Greenwich - disse, agitando no ar outra carta. - Ele se retirou do mar, mas gosta de ver os barcos passarem pelo rio.

A senhora Broad entrou para dar bom dia e trazer mais bacon e um prato de salsichas de Leadenhall, três das quais Stephen devorou imediatamente.

- Ninguém diria que comi bem e jantei estupendamente ontem - comentou sem que se entendessem bem suas palavras enquanto mastigava a terceira.

- O vinho do porto do clube é o melhor que já tomei em anos - exclamou Jack. - Fox o aguentou muito bem, porque não cambaleou nem uma só vez quando descia a escada, o que não pode se dizer de Worsley e Hammond, nem de outros membros. Qual foi a sua impressão?

- A primeira impressão foi boa, e, sem dúvida, é um homem inteligente e instruído; contudo, essa impressão não durou tanto como desejaria. Faz muitos elogios quando fala, como se quisesse que simpatizássemos com ele, e fala muito, como a maioria dos advogados. Mas se um não conhece bem a um homem é difícil saber a que atribuir seu nervosismo, e provavelmente estava nervoso porque se encontrava diante de três pessoas. Sir Joseph, que o conhece melhor, opina que tem grande talento e simpatiza com ele. E foi agradável ouvir-lhe falar com tanto entusiasmo de seu amigo de Batavia, Raffles.

Nesse momento tocou a campainha para pedir mais café e, quando servia uma xícara para Jack, prosseguiu:

- Poucos homens gostam de serem pisoteados, mas me parece que alguns vão longe demais em seu afã de evitá-lo e tentam ocupar uma posição superior desde o princípio ou pelo menos tão logo como se terminam as primeiras frases corteses. O doutor Johnson disse que cada reunião ou conversa era uma competição na qual o homem mais inteligente era o vencedor; contudo, acho que se equivocou, pois isso só se aplicaria às discussões, que amiúde são contraproducentes, não ao que eu chamo conversa, a um amigavel e tranqüilo intercâmbio de opiniões, notícias, reflexões e informação sem afã de superioridade. Percebi que sir Joseph, com acerto, guardou silêncio durante intervalos, compridos intervalos, e, obviamente, era quem inspirava mais respeito dos três.

Jack consentiu com a cabeça e seguiu desjejuando. Começou a comer torradas com geléia e quando deixou vazia a vasilha mais próxima disse:

- Anos atrás eu pensaria que é um grande homem e um excelente companheiro, mas agora tenho minhas reservas. Ainda que provavelmente seja um grande homem, não o julgarei até que o conheça melhor. Não nos ouviu planejar como se alojará na Diane? Acha o mesmo que o senhor Stanhope da importância de um enviado, o representante direto do rei. Comeremos separados, exceto nos casos em que nos convidemos, e as anteparas extras converterão os preparativos de combate em uma tarefa mais longa e complicada. A propósito, você não me disse se prefere viajar como médico do enviado e seu séquito ou como meu convidado.

- Como seu convidado, por favor! Será muito mais simples. Eles sempre podem solicitar meus serviços se necessitarem.

- Sem dúvida, tem razão - disse Jack. - Stephen, vou a Buckmaster's dentro de cinco minutos porque meu uniforme não me serve. Quer vir comigo? Poderia comprar uma casaca decente.

- Lamentavelmente, estou comprometido, meu amigo. Esta manhã tenho que fazer uma delicada e interessante operação com meu amigo Aston no Guy's, e pela tarde você estará no Parlamento. Mas poderíamos nos reunir pela noite para ir à ópera se sir Joseph nos der seu camarote. Estão encenando A clemência de Tito.

- Adoraria ir - exclamou Jack. - E talvez amanhã possamos ir a Greenwich de bote.

 

A operação de Stephen terminou bem, ainda que durante o tempo, nada desprezível, que durou o paciente não deixava de gritar: "Oh, meu Deus! Oh, Jesus! Não mais, por Deus! Não posso suportar!".

Às vezes suas palavras eram interrompidas por alaridos, pois tinha os dentes tão frágeis e o nariz em tão mau estado que não podiam pôr-lhe uma mordaça. Tudo isso produziu em Stephen um grande cansaço, assim que em vez de visitar sir Joseph Banks em Spring Grove, como tinha previsto, sentou-se em uma cômoda poltrona junto à janela de seu quarto no Grapes e procurou primeiro o ensaio de Van Buren sobre o baço dos primatas (os primatas não racionais) no Journal des Savans e comprovou que, de fato, estava escrito em Pulo Prabang. Depois rebuscou entre os diários que conservara (havia perdido alguns, outros tinham se afundado ou estavam em pedaços) e achou o do ano em que conhecera Jack Aubrey.

Como fazia muito tempo que não usava esse código, no princípio foi difícil de entendê-lo, mas logo pôde lê-lo bastante rápido.

- Sim - disse -, nessa época tão distante estava aturdido. Só o que sentia era tristeza, e muito profundamente. Somente a música me unia à vida.

Voltou a ler, agora mais rápido, e se reencontrou com seu antigo eu, nem tanto pelas anotações mas pelas vividas recordações que lhe traziam.

- Indubtavelmente, sou muito diferente do homem que disse a Dillon estas palavras, mas o que experimentei foi a recuperação de um duro golpe, o regresso a um antigo estado, não uma evolução. Em troca, a mudança de Jack é mais profunda, pois nem sequer um adivinho poderia reconhecer o atual capitão Aubrey no Jack de então, voluntarioso, despreocupado, indisciplinado, impaciente e um pouco licencioso. Ou por acaso exagero?

Passou as páginas e recordou seus primeiros contatos com o serviço secreto naval. Lembrou de John Somerville, um homem da quarta geração de uma família de comerciantes de Barcelona, um membro da Germandat, a associação catalhã que lutava contra a opressão espanhola, melhor dizendo, castelhã de seu país. Os catalhanos odiavam os exércitos franceses, que queimaram Montserrat e destruiram cidades, povoados e inclusive imóveis isolados nas montanhas e haviam cometido assassinatos e estupros. Em 1797 a Germandat enfrentou com dureza os castelhanos porque tinham rompido sua aliança com os ingleses e haviam se aliado aos franceses. Quando ele viu o êxito das campanhas de Bonaparte compreendeu que a única coisa que poderia salvar a Europa seria a vitória dos ingleses, uma vitória que teria que ser conseguida no mar e que era a condição necessária para a autonomia catalã e a independência da Irlanda. No diário falava da relação que havia estabelecido com Somerville depois de passar os primeiros dias na Sophie e também da que teve com o chefe inglês de Somerville, um dos melhores agentes de Blaine até sua horrível morte na França. Falava de tudo isso muito detalhadamente, e alguns dos fragmentos lhe fizeram tremer apesar de saber que ninguém tinha descoberto o código. Que grandes riscos correra antes de compreender a verdadeira natureza da espionagem!

Lucy o fez voltar de repente para o presente quando chamou à porta e, com um tom que não indicava satisfação nem aprovação, disse que abaixo havia um negro com uma carta para o doutor Maturin.

- É um marinheiro? - perguntou, pois estava tão aturdido que pensou que seria algum dos tripulantes negros da Surprise, que se encontravam a milhares de milhas de distância.

- Não, senhor - respondeu Lucy. - Parece um indígena. E tem os dentes negros - acrescentou, inclinando-se para frente e baixando a voz.

- Por favor, acompanhe-o até aqui.

Era Ahmed, o conhecido de Fox. De fato, tinha os dentes negros porque mastigava betel, mas sua cara era marrom-amarelado. Parou na porta com a carta segura com as duas mãos e fez uma inclinação de cabeça. Vestia-se ao estilo europeu e poderia ter passado desapercebido em muitas partes da cidade, especialmente em Pool ou Wapping, ainda que não no distrito de Savoy. Na realidade, o condado não fazia parte de Londres nem de Westminster, senão do ducado de Lancaster, e culturalmente era um território encerrado em si mesmo, onde desconheciam aos indígenas e inclusive aos habitantes do condado de Surrey.

- Entre, Ahmed - convidou-lhe Stephen.

A carta era na realidade uma amável nota de Fox onde manifestava o muito que havia desfrutado do jantar e adjuntava a carta de recomendação que a senhora Waller tinha entregado a Ahmed. Além de dar bons informes, a senhora dizia que o inverno da Inglaterra era muito frio e úmido para ele, pelo que provavelmente se encontraria melhor no calor de seu país de origem, e que se via obrigada a reduzir o número de serventes.

- Fantástico!, muito bom - exclamou Stephen contente. - Fala muito ou pouco inglês, Ahmed? Alí lhe explicou algo da situação?

Ahmed respondeu que falava pouco mas entendia mais do que falava, e que Alí lhe explicara tudo. E quando Stephen lhe perguntou quando poderia deixar sua casa voltou a fazer uma inclinação de cabeça e respondeu:

- Amanhã, tuan.

- Muito bem - respondeu Stephen. - O soldo é de quinze libras por ano. Se lhe convier, trga suas coisas antes do meio-dia. Podeos carregar sozinho o seu baú?

- Oh, sim, sim, tuan! Alí foi amável e me emprestou uma carroça.

Ahmed começou a retroceder lentamente para a porta com um sorriso tão radiante como seus dentes escuros permitiam e fazendo inclinações de cabeça, e assim continuou até que desceu os primeiros degraus.

Stephen pensou: "Agora terei que acalmar Killick e a senhora Broad. É provável que ele fique com um humor pior do que de costume e que ela pense que haverá sacrifícios humanos e heresias a toda hora. Será uma tarefa difícil".

 

De fato, foi difícil no início.

- Já suportei ursos e texugos... - queixou-se a senhora Broad com os braços cruzados por cima de um vestido de seda negra formal.

- Era um urso muito pequeno - disse Stephen. - E isso foi há muito tempo.

- ... e texugos, vários texugos grandes no alpendre - continuou a senhora Broad. - Mas esses dentes negros fazem gelar o sangue nas veias de uma pessoa.

Apesar de tudo, como ele era o doutor Maturin e a senhora Maturin tinha se acostumado a ver pessoas com dentes negros na Índia, foram concedidos a Ahmed vários dias de prova. Antes que terminassem esses dias, no Grapes tudo tinha voltado à normalidade. Ahmed, que era dócil e amável e sempre estava limpo e sóbrio, ia e vinha sem provocar comentários negativos; Killick, ao contrário, como sempre que ficava em terra, causava bastantes incômodos porque vociferava constantemente e se embebedava amiúde. No final da permanência de ambos em Londres, quando chegou o coche em que levariam a bagagem para a diligência de Portsmouth, Lucy e a senhora Broad deram a mão ao senhor Killick e ao senhor Ahmed, a quem desejaram uma boa viagem e disseram que se encantariam em voltar a vê-lo.

Jack e Stephen partiram em uma carruagem antes, e quando já estavam fora da cidade e os cavalos iam a trote, disse Jack:

- Gostaria que Tom Pullings estivesse conosco, pois ele gosta de viajar em carruagens puxadas por quatro cavalos.

- Onde acha que estará agora? - perguntou Stephen.

- Se achou os ventos alísios no norte da linha do Equador, deve estar perto do cabo São Roque. Espero que assim seja, pois não gostaria que a Surprise passasse muito tempo na zona de calmaria vomitando estopa e com os mastros girando.

Rebuscou entre os papéis que estavam no lugar ao seu lado e continuou:

- Aqui estão minhas ordens, ordens diretas do Almirantado. Alegro-me de que seja assim porque isso significa que no improvável caso de que consigamos um butim não teremos que dar um terço a nenhum maldito almirante. E aqui está o que Muffin amavelmente me mandou esta manhã. São resumos dos diários de navegação de suas viagens pelo sul do mar da China durante mais de vinte e cinco anos, e incluem mapas e dados sobre os tufões, as correntes, as declinações da bússola e as monções. São muito valiosos e seriam ainda mais se os barcos que comerciam com as Índias não seguissem, no possível, uma rota fixa de Cantão ao estreito de Sonda, ainda que não podem fazer outra coisa nessas águas, pois, pelo que sabemos, em nenhum lugar há mais de cem braças de profundidade e, em geral, há menos de cinqüenta. Essas águas são muito pouco profundas, não foram exploradas e estão rodeadas de vulcões e, por isso, têm muitos bancos de areia. Navegar por ali não é como em alto mar, e como ele me disse com franqueza em Greenwich, amiúde preferia pôr-se ao pairo ou mesmo ancorar durante a noite porque é o mais fácil em águas tão pouco profundas.

- É uma excelente medida de precaução. Não sei por que todos não a adotam.

- Bem, Stephen, alguns têm pressa; por exemplo, os capitães de barcos de guerra. Não serve de nada ir vender pano no mercado e achar-se com... - fez uma pausa e franziu o cenho. - Não está na arca.

- Não é assim. Não há arca.

- Ao diabo com as citações literárias! Não serve de nada apressar-se tanto, como fizemos nestes últimos dias, e navegar a toda vela por meio mundo para depois, ao dobrar o cabo Java, passar a noite de um lugar para outro com o mastro mezena balançando. Oh, Stephen, estou cansado de correr por Londres de um lado para o outro!

Nesse momento bocejou, depois fez alguns comentários ininteligíveis sobre o tempo e a maré, e depois adormeceu no canto como fazia habitualmente, como se apaga uma vela.

Mas estava completamente acordado muito antes que a carruagem chegasse a Ashgrove. Contemplou com satisfação suas plantas, com folhagem mais espessa que da última vez que as vira, e os arbustos que flanqueavam o caminho. Sentiu ainda mais satisfação ao ver que sua família o esperava em frente da casa porque o estalido da nova grade se ouvia a grande distância e que as crianças o cumprimentavam com a mão. Mas quando desceu da carruagem observou que Sophie, apesar de ter-lhe dado as boas-vindas, tinha um sorriso forçado e uma expressão ansiosa e preocupada. A senhora Williams tinha uma expressão grave, mas as crianças não pareciam afetadas por nada. E Diana começou a contar algo sobre um cavalo para Stephen.

- Aconteceu algo horrível - disse Sophie quando ficaram um momento sozinhos. - Seu irmão, bem, meu irmão, porque é seu e lhe quero muito...

Quando Sophie estava emocionada falava muito rápido, com as palavras empilhadas.

- Quero dizer que nosso amado Philip escapou do colégio e diz que se fará ao mar contigo.

- Isso é tudo? - inquiriu Jack, sentindo alívio. - Onde ele está?

- No patamar da escada. Não se atreveu a descer.

Jack abriu a porta e gritou:

- Olá, Philip! Desça, homem.

Quando Philip desceu, disse:

- Alegro-me em ver-te, irmão.

- Parabéns, senhor - foram as primeiras palavras de Philip, com voz trêmula.

- É muito amável, Philip - respondeu Jack, fazendo um gesto com a mão. - Lamento ter que lhe decepcionar, mas isto não é possível, compreende? Não posso levar o meu própio irmão como guarda-marinha em um barco novo e com tripulantes que não conheço nem me conhecem. Tanto os guardas-marinhas como todos os outros diriam imediatamente que é meu favorito. Isto não é possível, garanto que não é possível. Mas não leve isso a sério. No ano que vem, se se aplicar nas matemáticas, prometo que o capitão Dundas lhe levará com ele no Orion, um barco de linha. Não leve isso a sério.

Virou de costas porque era quase certo que Philip se poria a chorar e Sophie lhe pôs a par das novidades:

- O comissionado lhe deixou uma mensagem. Pede que o visite o quanto antes.

- Eu lhe escreverei uma nota imediatamente. E escreverei outra convidando para almoçar amanhã o pobre Bushel, o capitão da Diane, se não lhe incomodar, querida.

- Não me incomoda em absoluto, meu amor.

- Então, por favor, diga a Bonden que se vista como um cristão e se prepare para ir com Dray assim que eu escreva as notas.

Jack sabia muito bem que o comissionado teria que falar com o mestre carpinteiro de barcos para explicar-lhe as ordens da Junta Naval e começar os trabalhos urgentes antes que as ordens fossem reconhecidas formalmente. Por outro lado, já estavam avisados os ebanistas que, em segredo, iam fazer compartimentos para guardar o tesouro, um tesouro que junto com as ofertas menos tangíveis do enviado contrariaria o que os franceses oferecessem. Pelo menos isso era o que o Ministério esperava.

Como não conhecia o capitão Bushel, o convite tinha necessariamente que ser formal, mas pôs nele toda a amabilidade que pôde com a esperança de que isso fizesse menos dolorosa sua substituição.

Contudo, aparentemente não produziu o efeito desejado. Bonden trouxe uma nota do capitão Bushel em que dizia que, lamentavelmente, um compromisso prévio o impedia de aceitar o convite do capitão Aubrey. Também tomava a liberdade de sugerir que o capitão Aubrey subisse a bordo no dia seguinte às três e meia, pois, como provavelmente compreenderia, já que ele havia contratado todos os oficiais, preferia deixar a fragata antes que seu sucessor tomasse posse do cargo. A nota chegou quando o capitão Aubrey estava concentrado em um jogo de cartas entre os constantes gritos das crianças. Philip, que tinha recobrado o ânimo, seguia as amáveis indicações de sua sobrinha Caroline no jogo e seus olhos brilhavam quando anunciava quais eram seus trunfos. Nesse momento Jack só se informou de que era uma recusa e imediatamente seguiu com seu plano para vencer George, que não sabia muito das leis da probabilidade; contudo, mais tarde pensou que provavelmente Bushel era um homem desprezível, já que se ofendera porque o substituíam. Era possível que tivesse um compromisso prévio, mas a absoluta falta de fórmulas de cortesia ou de frases de agradecimento pelo convite era uma grosseria; a sugestão de uma hora, uma incorreção, e o fato de não lhe oferecer um bote para levá-lo até a fragata, uma grave omissão. Era perfeitamente adequado que Jack escolhesse a data e a hora, pois tinha vários anos a mais de antiguidade que Bushel, porém, ainda que nunca fora substituído, sabia que a substituição era geralmente um processo desagradável, e talvez neste caso fosse tanto que justificava seu profundo ressentimento.

- De toda forma, seguirei as indicações desse mesquinho - disse, e depois, baixando a voz, como se falasse para sim, continuou: - A verdade é que eu faria qualquer coisa que não fosse matar Sophie e as crianças contanto que voltasse para meu lugar.

Ainda que sua nomeação fora publicado na Gazette e seu nome tinha aparecido outra vez na lista de capitães, esse era um ato simbólico e quase sacramental para os oficiais de marinha, um ato que era como a entrega de um anel que representava seu matrimônio com a Armada outra vez.

Os quatro partiram na carruagem de Diana, com Killick e Bonden sentados no assento da parte posterior (aquela vista teria provocado o assombro de qualquer londrino, mas era comum nas cercanias de Portsmouth, Chatham e Plymouth), já que depois que Jack falasse com o comissionado e tomasse posse da Diane iam almoçar no Crown e mostrar para elas a fragata.

O comissionado e o mestre carpinteiro de barcos adoravam fazer coisas em segredo e imediatamente se mostraram dispostos a cooperar. Ambos asseguraram que dissimulariam o trabalho dos ebanistas com as obras de transformação necessárias para o alojamento do enviado e seu séquito. Quando Jack disse que ia subir a bordo da Diane, o comissionado lhe ofereceu a sua falua para levá-lo até ela.

A fragata estava ancorada em um lugar conveniente por sua cercania, já que se encontrava antes da ilha Whale, e era óbvio que o capitão Bushel ainda estava tirando seus pertences porque ao seu redor iam e vinham muitos botes.

- Dê a volta ao redor dela, por favor - pediu Jack com cortesia ao timoneiro, porque ainda era muito cedo.

Olhou-a com muita atenção, protegendo os olhos dos brilhantes raios do sol com a mão. Pareceu-lhe mais bonita do que se recordava e ao vê-la tão bem pintada e arrumada pensou que o imediato tinha que ser forçosamente bom. Tinha a popa um pouco mais afundada, mas além disso não encontrava nenhuma falha. Depois de dar duas voltas, voltou a olhar seu relógio.

- Para bombordo - ordenou para evitar a estranha e incômoda situação em que o timoneiro seria obrigado a pronunciar o nome de Diane quando o atual capitão se encontrava ainda a bordo.

Subiu pelo costado com guarda-mancebos, mas sem cerimônia. Cumprimentou os oficiais e todos responderam tirando o chapéu ao mesmo tempo, o que produziu muitos reflexos dourados simultaneamente.

- Capitão Bushel? - perguntou enquanto avançava estendendo-lhe a mão. - Boa tarde, senhor. Meu nome é Jack Aubrey.

Bushel apertou-lhe a mão com desânimo, sorrindo forçadamente e olhando-lhe com ódio.

- Boa tarde, senhor. Permita-me apresentar-lhe meus oficiais.

Revezaram-se para dar um passo a frente. Primeiro o imediato, Fielding, depois o segundo, Elliott.

- O terceiro oficial, o senhor Dixon, foi substituído por uma pessoa que o senhor escolheu, conforme acredito - disse Bushel.

Depois vieram o solitário oficial de Infantaria da marinha, Welby; o oficial de derrota, um homem bonito e de boa presença; Graham, o cirurgião, e Blyth, o contador. Todos o olharam atentamente e ele fez o mesmo quando lhes apertou a mão. Bushel não lhe apresentou ao pequeno grupo de guardas-marinhas.

Quando terminou, Bushel gritou:

- Minha falua!

Já estava engatada ao pescante central de estibordo e os grumetes, com luvas brancas, esperavam junto aos pontais que ficavam dos lados do portaló. Um momento depois começou a cerimônia de despedida e entre os rítmicos estampidos e estalidos produzidos pelos infantes da marinha ao apresentarem armas, todos os oficiais o acompanharam até o costado e o contramestre e seus ajudantes começaram a dar ordens. Em alguns barcos os tripulantes aclamavam para o capitão que partia, mas os da Diane se limitaram a olhar-lhe fixamente, alguns mascando tabaco, outros com a boca aberta e todos indiferentes.

Quando a falua se achava a uma distância apropiada, Jack tirou sua nomeação do bolso interno da casaca, entregou-a ao imediato e disse:

- Senhor Fielding, tenha a amabilidade de reunir todos os marinheiros na popa e ler isto.

Ordens voltaram a ser ouvidas e os tripulantes correram em tropel pelos corrimãos e o castelo até a popa e ficaram ali esperando em silêncio.

Jack retrocedeu quase até o coroamento e observou o conhecido castelo de popa, que vira pela última vez coberto de sangue, incluindo o seu. Com voz potente Fielding ordenou:

- Tirem os chapéus.

E quando todos estavam descobertos, leu:

 

Dos comissionados que representam o primeiro lorde almirante da Grande Bretanha e Irlanda, etc., e todas as possessões de sua majestade, etc., pela presente John Aubrey, nomeado capitão da Diane, fragata de sua majestade. Em virtude do poder e da autoridade que nos conferiram o nomeamos capitão da Diane, fragata de sua majestade, e exigimos que suba a bordo dela e desempenhe o cargo de capitão como é devido, ditando ordens aos oficiais e os tripulantes da dita fragata, que serão seus subordinados, e exigindo que se comportem corretamente em seus respectivos postos e lhe guardem o respeito e a obediência que o senhor, seu capitão, merece. Mesmo assim, o senhor deve respeitar e seguir tanto as instruções gerais impressas como as ordens e indicações que receba de vez em quando de nós ou de qualquer outro oficial de categoria superior ao serviço de sua majestade. Se o senhor ou algum deles descumprissem isto, responderiam por sua conta e risco. E para que assim seja, damos esta nomeação. Outorgada por nós, com o selo do Almirantado estampado, em quinze de maio do quinquagésimo terceiro ano do reinado de sua majestade.


CAPÍTULO 5

- Amém - disse o capitão Aubrey com voz potente, da qual fizeram eco outras duzentas e nove igualmente potentes.

Levantou-se da pontrona que estava envolvida por uma bandeira da união, pôs seu livro de orações sobre o pequeno baú com armas, coberto por estamenha assim como as caronadas, e ficou um momento de pé com a cabeça baixa, movendo-se mecanicamente com o forte balanço.

À sua direita estavam o enviado e seu secretário, e do outro lado deles se encontravam os quarenta infantes da marinha perfeitamente alinhados, com suas casacas escarlatas e suas calças e bandoleiras brancas. À sua esquerda estavam os oficiais da marinha, com o uniforme azul e dourado, e do lado os seis guardas-marinhas, quatro deles muito altos. No castelo de popa e nos corrimãos, achavam-se os marinheiros, todos barbeados, com camisa limpa e com suas melhores casacas azuis com botões dourados ou tricôs brancos adornados com fitas nas costuras. Os infantes da marinha tinham permanecido sentados em bancos; os oficiais, em cadeiras que haviam trazido da câmara dos oficiais ou na base das caronadas; os marinheiros, em banquetas, vasilhas de madeira ou baldes colocados de boca para baixo; mas agora estavam de pé e em silêncio, e ao seu redor tudo estava silencioso também. Não chegava nenhum som do céu nem produziam nenhum as grandes ondas que vinham do oeste. Somente se ouvia o bater das flácidas velas por causa do balanço, os rangidos que faziam ao esticar-se os amantilhos, as vigotas e as retrancas duplas dos canhões, os ruídos da fragata ao avançar, o estranho canto dos pingüins e as vozes dos pagãos, maometanos, judeus e católicos, que não assistiam à cerimônia da Igreja anglicana e tinham ficado na proa.

Jack levantou a cabeça, deixando para trás a indefinida região sagrada onde estivera e sentindo de novo a angústia que experimentava desde que viu pela primeira vez nessa manhã a ilha Inacessível, pois estava situada no lugar equivocado, muito mais perto do que deveria estar, e a sotavento. Durante três dias e três noites o mau tempo e as nuvens baixas impediram de fazer medições exatas, e tanto ele como o oficial de derrota tiveram que fazer uma estimativa. Nesse domingo, em que o tempo era um pouco melhor, encontravam-se a vinte e cinco milhas a sudeste da ilha Tristão da Cunha, e Jack queria fazer escala no norte para repor provisões e água e, se fosse possível, capturar um ou dois barcos norte-americanos que a usavam como base para perseguir barcos aliados no Atlântico sul. A princípio não se sentia especialmente irritado, pois ainda que tenha ficado em sua maca até tarde (porque havia jogado whist com Fox durante muito tempo) e de que Elliott, desobedecendo suas ordens, tinha lhe comunicado com muito atraso que a avistara, o vento do oeste soprava com força suficiente para que a fragata passasse a uma prudente distância da ilha Inacessível e chegasse à ponta noroeste de Tristão da Cunha, onde os botes poderiam atracar. Ainda que, de acordo com o que observara no céu, achava que o vento aumentaria de intensidade antes da tarde, ordenara que preparassem tudo para o serviço religioso no castelo de popa em vez de no convés, onde ficariam mais cômodos, com o fim de conhecer a situação em todo momento.

Mas quando estavam cantando Old Hundreth o vento se acalmou. Todos os marinheiros notaram que nas orações posteriores a voz do capitão tomou um tom mais grave que em ocasiões similares, o tom apropriado para ler o Código Naval, pois não só o vento se acalmara como também as grandes ondas que, ajudadas pela corrente do oeste, aproximavam a fragata para o escuro escarpado mais rápido que o desejável.

Quando saiu de suas meditações, voltou-se para o segundo oficial (o primeiro estava em sua maca com uma perna quebada) e disse:

- Muito bem, senhor Elliott. Continue, por favor.

Nesse momento olhou para as flácidas velas e depois se aproximou do lado de estibordo. De imediato o quadro se fez em pedaços: os infantes da marinha se agruparam na proa ou abaixo e desabotoaram o colarinho e a bandoleira branqueada com argila, a maioria dos marinheiros da guarda de bombordo ocuparam seus postos, mas os mais jovens, especialmente os homens de terra adentro, desceram para relaxar antes de almoçar, e os mais velhos, os eperimentados marinheiros, ficaram no convés olhando a ilha Inacessível com tanta atenção como seu capitão.

- Bem, senhor - disse Fox junto dele -, fizemos quase tudo o que se pode fazer em uma viagem pelo mar. Pegamos tubarões, muitos e diversos; comemos peixes voadores; vimos um delfim morrer estoicamente; suportamos um calor asfixiante na zona das calmarias; cruzamos a linha do Equador; e agora, acredito, estamos vendo uma ilha deserta. Ainda que seja um lugar cinzento e aparentemente úmido e inóspito, alegro-me de ver terra firme outra vez. Começava a duvidar de sua existência.

Estava de pé junto ao capitão na parte sagrada do castelo de popa e falou em tom coloquial, pois nesse momento não era necessária a formalidade das questões eclesiásticas, já que estavam retirando o que haviam colocado para o serviço religioso. Agora o castelo de popa não desempenhava nenhuma de suas duas possíveis funções.

- De fato, é uma ilha deserta, senhor - confirmou Jack -, e é provável que permaneça assim. Chama-se Inacessível e, pelo que eu sei, ninguém conseguiu desembarcar nela.

- A costa é igual em torno de toda a ilha? - perguntou Fox, olhando-a por cima das águas cinzas. - Esse escarpado deve ter mil pés de altura.

- É pior nos outros três lados - respondeu Jack. - Não há nenhum lugar onde desembarcar. Só se vêem algumas rochas planas e ilhotas onde as focas se deitam e os pingüins se alojam.

- A verdade é que há muitos - disse Fox.

Enquanto falava, três pingüins saíram da água justo frente ao pescante central e depois voltaram a mergulhar.

- Assim que não vamos desembarcar em uma ilha deserta - continuou - ; portanto, Inacessível não é nosso destino.

- Não - confirmou de novo Jack. - Recorda que ontem a noite falei de Tristão da Cunha? Pois bem, olhe para frente, ao oeste, ou seja, à esquerda do escarpado; poderá ver seu pico nevado entre as nuvens a pouco mais de vinte milhas de distância. Vê-se claramente quando a fragata sobe com o balanço. E lá ao sul fica Nightingale.

- Vejo as duas - disse Fox, depois de olhar atentamente durante um tempo. - Porém, sabe de uma coisa? Acho que vou pôr uma casaca porque o ar é um pouco frio. Se o vento soprasse, seria horrível.

- Bem, estamos no início do inverno - respondeu Jack com um sorriso.

Observou que Fox descia a escada do castelinho quase sem cambalear, apesar do violento balanço da fragata. Isso era uma prova evidente de que não só tinha compleição atlética e uma grande habilidade para manter o equilíbrio, como também de que estava navegando aproximadamente desde os noventa graus de latitude sem parar um momento e não vira terra desde que a fragata saíra do Canal, já que passara em frente a Finisterre, Tenerife e o cabo de São Roque com mau tempo ou de noite. Quando Fox desapareceu, Jack se sentiu angustiado.

Essa viagem lhe produzira angústia mesmo antes de começar, pois teve dificuldades para encontrar tripulantes, apesar da boa vontade do almirante Martin, e a Diane teve que zarpar com vinte e seis marinheiros a menos que o estipulado. Depois passou várias semanas horríveis em que a fragata teve que permanecer em Plymouth por falta de vento. Depois, quando o tempo permitiu passar pelo cabo Wembury, partiu para o mar para buscar o vento, mas teve que fazê-lo com tanta rapidez que deixou para trás o cirurgião e quatro valiosos marinheiros porque não compareceram à fragata durante os vinte minutos depois que a bandeira de saída foi içada, como era regulamentar.

Quando por fim perderam de vista a ponta Lizard, com um vento soprando pela alheta de estibordo com intensidade suficiente para ter desdobradas as joanetes, mas com os planos do viagem desfeitos, Jack decidiu avançar para o sul muito perto do Brasil. Esperava que a corrente e os ventos alísios do sudeste lhe permitissem passar a considerável distância do cabo de Boa Esperança e chegar muito rápido na zona dos quarenta graus de latitude, onde encontraria o forte vento fixo do oeste. Já fazia tempo pensara nessa possibilidade e, também, havia lido detalhadamente os diários de navegação de Muffin e suas observações e tinha estudado suas cartas marítimas. Agora a falta de marinheiros não lhe parecia tão importante. Por outro lado, se a viagem fosse moderadamente bem, as provisões da Diane durariam muito e, quanto ao problema da água, o veleiro, o contramestre, o carpinteiro e ele tinham criado um sistema para recolher água da chuva composto de lonas, mangueiras e canais, um sistema muito fácil de colocar com o qual pensavam aproveitar a água das copiosas e freqüentes chuvas que caiam na zona das calmarias. Nessa zona as coisas foram estupendas. A Diane passou por ali em pouco mais de uma semana, pois encontrou os ventos alísios muito ao norte da linha do Equador, e avançou para a zona dos quarenta graus de latitude navegando aprazivelmente, sem que fosse necessário tocar uma braça nem uma escota ao longo de centenas e centenas de milhas.

Não tinha encontrado o vento ainda, ainda que a fragata chegou muito perto dele nos trinta e sete graus sul. Enquanto olhava o escarpado que agora se estendia de ambos os lados, pensou que nunca alcançaria o vento a menos que tomasse medidas imediatamente. Ali não se podia ancorar, pois havia cem braças de profundidade em frente da costa, e as ondas empurravam a fragata para a ilha de lado a uma velocidade de um nó e meio ou mais.

Não queria estragar o domingo dos tripulantes, que estavam vestidos com sua melhor roupa e não tinham dormido a noite inteira há muitos dias, pois amiúde foi necessário chamar uma e outra vez a todos os marinheiros ao mesmo tempo. A menos que suas orações fossem escutadas, teria que ordenar baixar os botes para rebocar a fragata, o que seria um grande esforço com essas enormes ondas.

- Com sua permissão, senhor - disse Elliott, atravessando o castelo de popa e tirando o chapéu. - Thomas Adam, o encarregado das âncoras da guarda de estibordo, esteve aqui em um baleeiro durante a paz e diz que, em um dia que o vento estava calmo, o barco que o acompanhava foi empurrado para a costa por ondas como estas e ficou destruído. Também diz que perto da costa leste a corrente é muito mais forte.

- Diga ao senhor Adam que venha - ordenou Jack.

Adam, um marinheiro de meia idade muito sério e confiável, foi à popa rapidamente. Repetiu a história e acrescentou que o outro baleeiro perdeu o mastaréu maior pela borda quando seus homens tratavam de baixar um bote, e que antes de começar a rebocar o barco já havia se metido entre as algas. Acrescentou que ele e seus amigos observaram tudo desde a costa sul, sem poder ajudar de nenhuma maneira, e que ninguém havia se salvado.

- Bem, Adam - disse Jack, movendo a cabeça de um lado para o outro -, se não soprar o vento antes das sete badaladas, nós também teremos que descer os botes, mas espero que tenhamos melhor sorte.

Então olhou para o céu, ainda promissor, e tocou um poste de madeira.

- Senhor - interveio Elliott em voz baixa e ostensivelmente alterada -, sinto muito. Devia ter lhe informado antes que o carpinteiro notou que um dos botes tinha uma prancha do lado e duas do fundo apodrecidas, ainda que estavam revestidas de placas de cobre, e as está tirando.

Jack olhou para os botes, que estavam seguros aos botalós. Como o bote estava metido dentro da lancha, não se notava muito que os homens estavam trabalhando, mas Jack percebeu imediatamente.

- Nesse caso, senhor Elliott - ordenou Jack -, desceremos já os botes de que dispomos pelo costado. E gostaria de falar com o carpinteiro.

Stephen estivera sentado em uma esteira, entre o mastro traquete e as bitas onde se amarravam as escotas do velacho, durante todo esse tempo, desde o final da revista, ao qual havia assistido na qualidade de cirurgião suplente. Dali observou a extraordinária quantidade de criaturas que habitavam na zona: as aves típicas de Port Egmont, os inevitáveis alcatrazes, muitas andorinhas do mar, vários petréis de bico serrado, outros chamados de pombas do Cabo e outros de quatro tipos diferentes e, também, muitos pingüins, alguns dos quais não podia identificar. Infelizmente, ainda não vira nenhum grande albatroz, mas sentia um grande prazer ao ver as focas e os peixes. A água era excepcionalmente clara, e cada vez que a fragata ficava no seio formado pelas enormes ondas que sem remédio se erguiam do seu lado, podia ver os habitantes das profundezas como se estivesse junto deles, como se convivesse com eles. Estava ali sentado como em transe, de costas para a ilha, pois agora o sol estava acima do trópico de Câncer e a luz vinha do norte. Em uma ocasião Ahmed foi até a proa para levar-lhe bolachas e perguntou se gostaria de uma jarrinha de café, mas essa foi a única interrupção. Quase não ouviu o salmo, mas notou os odores típicos dos domingos que provinham da cozinha, o de carne de porco e o de pudim de passas. Quase não percebeu os apitos e os gritos do contramestre dando ordens com veemência, e os passos acelerados. Mas os apitos, os gritos e os passos apressados eram normais na vida naval e, além disso, agora centrava toda sua atenção na coisa mais surpreendente, inesperada e emocionante que jamais vira. Quando seguia com a vista a um pingüim que nadava rapidamente em direção oeste para a cristalina montanha de água, seus olhos tropeçaram com uma enorme figura que nadava para o leste e, ainda que imediatamente distinguiu o que era, estava muito assombrado para poder gritar: "Baleia!". Era uma baleia azul, uma jovem baleia fêmea com alguns perceves presos ao seu corpo, e junto dela nadava um filhote. Ambos nadavam sem parar, ainda que o filhote era mais rápido que sua mãe, e suas caldas subiam e desciam. Em um dado momento se situaram ao nível de sua vista e depois por cima. Então a fragata se elevou, a proa subiu na crista de uma onda e os dois desapareceram. Viu na distância outras baleias jogando jorros de água, que apesar de estarem muito longe faziam parte do mesmo bando.

Cheio de alegria, foi até a popa abrindo passagem entre os marinheiros, que tensavam cabos e falavam a gritos, e cambaleando tanto com o balanço que esteve a ponto de cair no castelo por duas vezes. Sua expressão mudou quando viu Jack e ouviu o que lhe disse confidencialmente:

- Stephen, queria que me fizesse um grande favor: mantenha os civis abaixo para que não atrapalhem.

Stephen assentiu com a cabeça e se dirigiu para a escada do castelinho. Nesse momento Fox e seu secretário subiam, e ambos se puseram de um lado para deixá-lo descer.

- Desculpem-me, mas me tiraram daqui - informou Stephen. - Parece que os marinheiros vão fazer algumas manobras que requerem o convés desimpedido.

- Então será melhor que fiquemos abaixo. Gostaria de jogar xadrez? - propôs Fox.

Stephen respondeu que lhe encantaria. Não jogava nem bem nem mal e não gostava de perder, Fox, em troca, jogava bem e gostava de ganhar, mas assim poderia lograr que o enviado ficasse tranqüilo em sua cabine.

- É curioso que apesar da marejada as ondas quase não rompam na margem - observou Fox, olhando para fora pelo escotilhão enquanto pegava o tabuleiro e as fichas. - Teríamos que vê-las daqui. A ilha está muito mais perto, apesar da calmaria. A manobra tem a ver com isso? Devemos confessar nossos pecados e fazer testamento?

- Acho que não. Acredito que está relacionada com o desembarque em Tristão da Cunha. O capitão Aubrey assegura que o vento soprará ao meio-dia e empurrará a fragata até o noroeste da ilha. Tenho muita vontade de chegar, entre outras coisas porque espero agradar e assombrar a sir Joseph com alguns insetos desconhecidos no mundo civilizado. Com relação às ondas na margem, melhor dizendo, à sua ausência, disseram-me que é devido a uma ampla zona cheia das gigantescas algas dos mares do sul. Cook contava que em frente a Kerguelen havia algumas com talos de mais de trezentos e cinqüenta pés de comprimento; contudo, nunca tive a sorte de vê-los com mais de duzentos e quarenta.

A partida começou. Stephen, que jogava com as negras, seguiu seu plano habitual de colocar-se em uma segura posição defensiva no meio do tabuleiro. Edwards, que obviamente era um jovem inteligente e competente, mas muito reservado, murmurou algo sobre "um copo de negus na câmara dos oficiais" e saiu silenciosamente da cabine.

Stephen tinha a esperança de que Fox, ao atacar sua barricada, deixasse um espaço por onde um cavalo pudesse passar e ameaçar com a destruição. De fato, depois de umas quinze jogadas, pareceu que ia deixar esse espaço se protegesse a casa quatro do bispo do rei. Então avançou um peão.

- Muito boa jogada - Fox se surpreendeu.

Stephen compreendeu com vergonha que era péssima. Sabia que se Fox rocasse pelo lado da rainha e atacasse com as duas torres, as negras não teriam defesa. Também sabia que levaria algum tempo antes de fazer essas jogadas porque queria sopesar todas as possíveis respostas e para poder desfrutar de sua posição.

Mas Fox as atrasou até que a fragata se balançou três vezes mais que o conveniente. O tabuleiro sobreviveu a dois solavancos quando a fragata entrou na zona das gigantescas algas, mas no terceiro caiu da mesa e as peças se espalharam pela cabine. Quando Stephen o ajudava a recolhê-las, comentou:

- Vejo que está limpando seu Manton outra vez.

- Sim - afirmou Fox. - A chave é tão delicada que não gosto de deixar essa tarefa para ninguém. Tão logo o mar esteja mais razoável, temos que retomar nossa competição.

Fox tinha dois rifles, duas escopetas de caça e algumas pistolas, e era muito bom atirador, muito melhor que Stephen. Se bem Stephen tinha poucas esperanças de melhorar no xadrez, podia superar Fox atirando com a pistola e pensava que, com a prática, melhoraria também com o rifle. Até então só havia usado armas esportivas e mosquetes.

- Acha que já terminaram no convés? - inquiriu Fox. - Parece que se ouvem menos passos.

- Duvido - respondeu Stephen. - O capitão Aubrey teria mandado um guarda-marinha para nos avisar.

 

Ouviam-se menos passos e não se ouviam gritos nem nenhum outro som que não fosse o da reparação da bote e a voz do carpinteiro, que com a cara pálida e suada dizia:

- Sempre disse que recubrir os botes com placas de cobre era uma bobagem. No final as malditas tábuas que estão debaixo delas apodrecem.

Todos os outros estavam atentos aos botes que rebocavam a fragata: a pinaça de dez remos, o cúter de dez remos, o bote de quatro remos e o esquife do doutor. Neles os tripulantes que remavam se elevavam acima da bancada ao mover os remos, que giravam até o limite, e os que não estavam remando com fúria desviavam o olhar dos botes para observar o escarpado da ilha Inacessível e o costado da fragata com o fim de comparar seu avanço com seu movimento lateral. A tarefa de rebocar começou muito bem, mas agora que a fragata estava entre as algas e a corrente para terra era mais forte, era evidente que os botes não a estavam movendo para frente mais rápido do que as ondas a empurravam para a costa. Ainda tinha que percorrer um quarto de milha para superar o final do escarpado e chegar à zona de águas profundas, do outro lado da ilha, mas a essa velocidade seria impossível que chegasse até lá sem chocar. As âncoras estavam preparadas, pendurando dos pescantes, mas a medição com a barquilha não dava esperanças de encontrar um lugar para ancorar. Muitos marinheiros estavam alinhados no costado com paus na mão para afastar a fragata do escarpado quando estivesse muito perto, mas isso quase não atrasaria o choque por mais de um minuto. Mais perto, cada vez mais perto com cada movimento das enormes ondas.

Jack olhou para o alto do precipício.

- Atenção ao leme! - gritou para o timoneiro com extraordinária força, ainda que o pobre homem estivesse a poucos pés dele.

Notou que o vento, que antes movia a grama na borda superior do escarpado, soprava agora por toda a parede. O vento moveu a joanete e depois se afastou; aproximou-se de novo e quase chegou a inchar as três joanetes e as gáveas; voltou a aproximar-se e tanto essas velas como as maiores se incharam. A fragata ganhou velocidade ostensivelmente e os tripulantes começaram a dar vivas.

- Silêncio de proa a popa! - gritou Jack. - Todos para as braças! - Voltou-se para o timoneiro e ordenou: - Vire todo o leme!

O carpinteiro chegou correndo do castelo gritando:

- Já pode flutuar, senhor!

- obrigado, senhor Hadley - disse Jack. - Senhor Elliott, desça o bote pelo costado. Tripulantes do bote, subam a bordo rápido, rápido!

De fato, subiram muito rápido. Ainda que remaram até quase romper a costas, não puderam chegar junto dos outros botes antes que a fragata se afastasse da perigosa costa com um rápido movimento, tão rápido que a guindaleza que os unia deixou de ficar tensa.

- Senhor Elliott, faça rumo ao nordeste - ordenou Jack quando a ilha ficou para trás e no convés ouvia-se os marinheiros rindo e felicitando-se uns aos outros enquanto trabalhavam em uma atmosfera de alegria. - E pode chamar os marinheiros para almoçar tão logo como os botes estejam a bordo. Senhor Benett - disse a um guarda-marinha -, por favor, cumprimente ao doutor Maturin de minha parte e diga-lhe que eu gostaria de mostrar-lhe o norte da ilha Inacessível, se estiver desocupado.

 

Jack Aubrey se sentou no que restava da grande cabine para ele e se pôs a observar a esteira da fragata, que se estendia para o noroeste, e muitas outras coisas. Ainda que a cabine estivesse dividida por um anteparo colocado de proa a popa para alojar ao enviado, ainda era um lugar amplo para alguém criado no mar, um lugar com espaço suficiente para meditar sobre muitos assuntos e que, ademais, proporcionava a tranqüilidade e a intimidade necessária para fazê-lo. O silêncio era relativo, pois os marinheiros estavam recolocando os estais, os amantilhos e os brandais depois de terem se esticado perigosamente frente a Tristão da Cunha, e ninguém, muito menos Jack Aubrey, podia esperar que se colocassem os cabos da exárcia sem gritos e, como se fosse pouco, Crown, o contramestre, tinha uma voz adequada para um barco de linha, um barco de linha de primeira classe. Além disso, Stephen e Fox ainda estavam disparando nas garrafas que tinham jogado pela borda e que agora estavam a certa distância da popa. Ao mesmo tempo, Fielding, que fora autorizado a subir ao convés porque o mar estava tranqüilo, caminhava por ele fazendo um estranho ruído com as muletas e o gesso da perna e gritando de vez em quando para os homens situados no alto da exárcia que já podiam tirar das vergas a pasta negra que as cobria. Mas se coisas desse tipo pertubassem a Jack, teria se tornado louco há muito tempo. A realidade era que passavam por seus ouvidos como o Atlântico sul passava por baixo das portalós da Diane, deslizando quase imperceptivelmente. Nesse momento pensou que era uma pena não poder contar a Sophie que escapara da catástrofe sem lhe falar ao mesmo tempo do perigo que tinha corrido. Encontrava essa dificuldade a amiúde quando lhe escrevia uma carta serial, uma carta que continuava a cada dia e que terminava quando podia enviá-la se, por casualidade, encontrava-se com algum barco que se dirigisse para a Inglaterra. Ainda que às vezes isso não era possível e a lia em casa acrescentando comentários. Contudo, nunca vira o perigo tão de perto. Ainda sentia o horror que experimentou enquanto a fragata percorria o último cabo, quando o pesadelo da destruição ainda estava sobre ela, e teria gostado de compartir com Sophie a imensa fortuna de estar vivo. Escreveu-lhe uma versão descafeinada dos fatos que agora desaprovava até que chegava à frase: "Estou muito satisfeito dos tripulantes porque se comportaram exageradamente bem", e as de elogio da fragata: "Naturalmente, não é a Surprise; mas é uma pequena embarcação de excelentes características e responde bem, e sempre a amarei pela forma como pegou aquele vento em frente à ilha Inacessível".

Não era a Surprise. Amiúde Jack havia agarrado o leme e tinha navegado com todas as possíveis combinações de velas, e apesar da fragata ser estanque, navegar bem de bolina, responder docilmente ao leme, virar e parar rápido e ter grande estabilidade quando ficava ao pairo com a vela maior rizada e a vela de estai da mezena desdobrada; apesar disso carecia das qualidades que faziam uma embarcação ser extraordinária: a facilidade para responder às manobras e para trocar de velocidade navegando de bolina. Para dizer a verdade, tampouco tinha os defeitos da Surprise, a tendência de mudar de bordo contra o vento se a carga do porão não estivesse distribuída da maneira que mais lhe convinha e a propensão para mover-se erraticamente se o leme não fosse levado pelos mais hábeis marinheiros. A Diane era uma fragata bem desenhada e bem construída (ainda que pudesse prever como se comportaria se o vento fosse realmente forte), mas não tinha dúvida de qual era o barco que verdadeiramente amava.

Isso o levou à segunda parte de sua meditação. Depois de desejar com todo seu ser voltar a fazer parte da Armada Real, seu nome estava de novo na lista de capitães. No respaldo da cadeira situada junto ao escotilhão, estava a familiar casaca com dragonas adornadas com a coroa e as âncoras que usaria para jantar com o enviado. Apesar disso, sentia saudade da Surprise, não da Surprise que era propriedade de sua majestade mas do barco corsário, no qual podia ir aonde queria e fazer a guerra ao inimigo quando estimasse conveniente, uma guerra particular e efetiva, com tripulantes escolhidos, alguns deles velhos amigos e todos excelentes navegantes. Em semelhante situação, com homens como aqueles e com um imediato como Tom Pullings, havia se encontrado mais a vontade que em qualquer barco do rei. Ainda que as relações ali não pudessem ser comparadas às de uma democracia, que Deus os livrasse disso, reinava uma atmosfera que fazia parecer cruéis a formalidade, a circunspecção e a severidade que tinha na Armada, onde os marinheiros ficavam muito mais afastados de quem tinham o comando e com freqüência eram insultados pelos oficiais de baixa categoria, e onde os infantes da marinha tinham como principal função abortar qualquer motim ou reprimi-lo à força.

Os tripulantes da Diane não eram maltratados assim, pois Jack tivera sorte com os oficiais. Já os conhecia bem, e, como podia permitir-se, seguia o velho costume naval, quase em desuso, de convidar para desjejuar o oficial e o guarda-marinha da guarda da alvorada e para almoçar os da guarda da manhã e frequentemente também o primeiro oficial. Ademais, em geral aceitava o convite dos oficiais para almoçar com eles nos domingos. Era verdade que não seguia o costume invariavelmente e que quando o fazia seus convidados ou anfitriões tinham um comportamento fora do comum, porém, mesmo assim, por ter esse tipo de contato com eles e falar-lhes quando estavam de serviço, havia chegado a conhecer suas qualidades mais óbvias e também seus defeitos, entre os quais não se encontrava o despotismo. Fielding e Dick Richardson eram excelentes navegantes e, ainda que ambos fossem capazes de fazer trabalhar duro aos mais preguiçosos quando a ocasião requeria, nenhum dos dois era cruel. Tampouco Elliott era, ainda que tivesse outros defeitos. Warren, o oficial de derrota, tinha autoridade natural e impunha estrita disciplina sem ter que levantar a voz para que o obedecessem. Crown, o contramestre, por assim dizer, ladrava mas não mordia.

Em comparação com a maioria dos capitães, também tinha sorte com os tripulantes. Pelo menos a metade deles tinham sido trasladados de outros barcos antes que ele chegasse, e o almirante Martin lhe havia mandado vários grupos recrutados a força que eram muito bons; contudo, zarpara muito rápido para que a notícia de sua nomeação atraísse a muitos voluntários. A quarta parte dos tripulantes chegaram obrigados pelas brigadas recrutadoras ou por outros motivos, e enquanto alguns se criaram no mar, outros nunca o tinham visto. Apesar disso, na Diane havia uma proporção de marinheiros eperimentados maior que na maioria dos barcos em suas mesmas circunstâncias, e entre os novatos havia muitos poucos que pudessem ser considerados casos perdidos.

Naturalmente, os homens recrutados a força sentiam saudade da liberdade, e durante o período que tiveram que permanecer em Plymouth foi difícil (e em duas ocasiões impossível) evitar que os mais decididos e desesperados desertassem. Inclusive quando a fragata já se encontrava em alto mar e não podiam fazer mais nada, seguiram mostrando raiva e ressentimento. Os homens do interior e os que tinham estado sob o comando de capitães menos estritos que Aubrey, incomodavam-se muito com sua insistência e a do primeiro oficial em que tinham que enrolar perfeitamente a maca e atá-la e colocá-la na antepara em menos de cinco minutos quando o contramestre desse a ordem. E essa insistência era reforçada pelos ajudantes do contramestre, que, empunhando afiadas navalhas para cortar as cordas das redes, gritavam:

- Para baixo, para baixo! Para se levantar e lavar!

Ao chegar ao trópico de Câncer, quase todos, depois de um processo gradual, podiam fazê-lo bastante bem; e ao chegar ao trópico de Capricórnio lhes parecia natural que um homem descesse de um salto de seu leito, se vestisse em um instante, enrolasse a maca e passasse um cabo ao seu redor sete vezes, separando-o uniformemente, e depois subisse correndo uma ou duas abarrotadas escadas para ir ao lugar que lhe correspondia. Ao chegar ali, além disso, todas as brigadas que manejavam os canhões e as caronadas já eram tão eficientes que a fragata podia disparar três precisas descargas em cinco minutos e meio. Isto não se podia comparar com a rapidez e a precisão com que a Surprise disparava, é claro, mas era um feito considerável para uma embarcação que iniciava uma missão. Por outro lado, ver ou ouvir a cada tarde, depois de passar revista, a luz das mechas, as detonações, as labaredas, o estrondo dos alvos destroçados e a fumaça que caracterizavam o fogo real, que fizera possível obter esse resultado, era na opinião de Jack uma das principais razões pelas quais a tripulação havia se adaptado tão bem. A pólvora e as balas que acrescentou à pequena quantidade que o Almirantado lhe designara lhe custou seu bom dinheiro, mas pensava que tinha sido bem gasto, pois a Diane poderia se defender bem em qualquer combate que não fosse desigual e, ademais, as caras e perigosas práticas de tiro haviam unido primeiro às brigadas de artilheiros e depois a toda a tripulação. Aos marinheiros se encantavam com o ruído estrondoso, a sensação de ter poder e de fazer algo extravagante (diziam que disparar duas descargas custava ao capitão a pagamento de um ano de um marinheiro). Também gostavam de destruir alvos e tratavam com mimo os canhões de dezoito libras, aquelas pequenas massas de ferro de duas toneladas que podiam lhes mutilar, eles os poliam o quanto podiam e pintavam seus nomes em cima das portalós. Um se chamava O cisne de Avon, mas eram mais freqüentes os nomes como Cospe fogo, Tom Cribb ou Ave de caça. Não tinha dúvida de que a invariável rotina e os perigos que encontrariam no mar teriam convertido a tripulação da Diane em um conjunto harmonioso com o tempo, mas as violentas práticas de artilharia tinham acelerado esse processo, o que era conveniente, pois, nessas águas, inesperadamente poderiam encontrar algum barco inimigo contra o qual teriam que fazer disparos de longo alcance. Aqueles homens formavam um estupendo grupo e se comportaram muito bem diante de Tristão da Cunha; contudo, entre eles ainda havia alguns que escapariam se pudessem, e essa era outra das razões pelas quais Jack se alegrava de seguir uma rota muito mais ao sul do Cabo.

Em sua querida Surprise não havia marinheiros recrutados à força, naturalmente, e nenhum deles pensava em desertar. Na realidade, o único castigo severo que tinha imposto era o de deixar-lhes em terra por má conduta. Ademais, não havia nenhum guarda-marinha, e isso era o que tinha mais importância para ele nesse momento. Na Diane havia seis, dois dos quais, Seymour e Bennett, eram ajudantes de oficial de derrota. Entre os que ficavam aos cuidados do condestável não tinha nenhum que fosse de pouca idade, nenhum que não houvesse mudado a voz, mas Jack, que era um capitão consciencioso com respeito aos guardas-marinhas, sentia-se responsável por eles e delegava poucas obrigações para Warren, o oficial de derrota. Como não havia nem um pastor nem um mestre a bordo, Harper e Reade, os mais jovens, necessitavam de sua ajuda para aprender os rudimentos de trigonometria esférica e náutica e mesmo para escrever corretamente palavras difíceis ou resolver simples questões de aritmética. Seymour e Bennett, por estarem no final do período de formação e preparados para obter ou tentar obter o grau de tenente no final desse ano ou no início do seguinte, estavam ansiosos e desejosos de que lhes explicasse as coisas mais importantes relacionadas com a profissão.

Eles eram os que iam ficar de guarda quando dessem as quatro badaladas. Quando soou a segunda, Jack os ouviu chamr à porta. Estavam limpos, penteados, corretamente vestidos e cada um levava seu diário de navegação e o rascunho do diário que teriam que entregar. Ademais, havia os certificados de serviço e de boa conduta, expedidos pelo capitão, que teriam que apresentar no exame.

- Sentem-se e deixem-me ver os diários - ordenou Jack.

- Os diários, senhor? - perguntaram.

Até agora Jack só se interessara pelos diários de navegação, que, entre outras coisas, continham a medição da latitude ao meio-dia, o da longitude com relação à lua e numerosas observações relacionadas com a astronomia.

- Certamente! Terão que mostrá-los à Junta Naval, sabiam?

Eles os mostraram e Jack leu o que Bennett dizia de Tristão da Cunha:

 

Tristão da Cunha fica situada nos 57° 6'S e os 12° 17'O. É a maior de um grupo de ilhas rochosas. A montanha que há no centro tem mais de 7.000 pés de altura e se parece muito com um vulcão. Quando faz bom tempo, o que é raro, pode-se ver o seu pico nevado a trinta léguas de distância. As ilhas foram descobertas por Tristão da Cunha em 1506 e nas águas que as rodeiam habitam baleias, albatrozes, pombas do Cabo, alcatrazes e ágeis pingüins, cuja forma de nadar ou, por assim dizer, voar debaixo d’água, faz recordar o remigium alarum de Virgilio. Contudo, o navegante que se aproxima pelo oeste deve ter muito cuidado de não fazê-lo em calmaria, já que a corrente que vai para o leste e o embate das ondas...

 

O diário de Seymour, que tinha um desenho da ilha Inacessível e um barco com os penóis roçando o escarpado, começava:

 

Tristão da Cunha fica situada nos 57° 6'S e os 12° 17'O. É a maior de um grupo de ilhas rochosas. A montanha que há no centro tem mais de 7.000 pés de altura e se parece muito com um vulcão.

 

O ágil pingüim também lhe recordava Virgilio, e quando Jack chegou ao remigium alarum exclamou:

- Ei, um momento! Isto não vale. O senhor copiou de Bennett.

Ambos negaram muito tranqüilamente, pois, ainda que ele tivesse uma expressão mal-humorada, estavam convencidos de que não era sua intenção castigar-lhes severamente. Afirmaram que o tinham escrito juntos, que pegaram os dados do Mariner's Companion e que um amigo se encarregara do estilo. Acrescentaram que eles mesmos calcularam a posição, que a medição da longitude era muito exata porque tinham usado o método que ele lhes ensinou e que em seus diários de navegação poderia ver outras quase tão exatas como essa.

- Onde está o estilo? - perguntou Jack, tentando que não se desviassem do tema.

- Bem, senhor - respondeu Seymour -, dizemos "o ágil pingüim", por exemplo, e o "remigium alarum". E mais adiante, "o alvorada de dedos rosados".

- Não há dúvida que é muito elegante, mas como diabos esperam que os capitães que vão lhes examinar engulam dois ágeis pingüins, um depois do outro? Isso não é natural. Eles lhes esmagarão com mil tijolos e lhes reprovarão de imediato por zombarem deles.

- Bem, senhor - começou titubeante Seymour, o mais ingênuo dos dois -, nossos nomes começam por letras tão separadas no alfabeto que não nos chamarão no mesmo dia. Ademais, todos dizem que os capitães nunca têm tanto tempo para ler os diários quanto mais para recordá-los.

- Compreendo - respondeu Jack.

O argumento era muito lógico. O que verdadeiramente importava nesses casos era que os guardas-marinhas soubessem responder às perguntas de náutica de viva voz e a posição de sua família, seus contatos e suas influências na Armada.

- De toda forma, os capitães não devem ser tratados desrespeitosamente. O correto é que quando passarem os diários a limpo façam algumas mudanças em cada um, troquem esse estilo e escrevam em prosa simples.

Então lhes falou das luas de Júpiter, que, em caso de fazer escala nas ilhas Saint Paul ou Amsterdã, poderiam ser observadas e tomar como referência para medir a longitude com mais precisão. Quando terminou de falar das luas, olhou o relógio e disse:

- Só disponho de um momento para falar com Clerke. Por favor, digam-lhe que venha.

Clerke tardou menos de um minuto em chegar. Estava com uma expressão assustada, e com razão, pois o capitão Aubrey lhe lançou um olhar reprovatório. Jack não convidou Clerke, um jovem de pernas compridas e voz incerta, para sentar-se, aliás que imediatamente lhe disse:

- Clerke, mandei lhe chamar para dizer que não quero que ofenda aos marinheiros. Qualquer tipo de baixo nível pode usar uma linguagem ofensiva, mas é muito desagradável ouvir a um jovem como o senhor usá-la ao dirigir-se a um marinheiro que poderia ser seu pai e que não pode replicar. Não, não tente se justificar culpando ao homem que ofendeu. Vá e feche a porta quando sair.

Quase imediatamente a porta voltou a abrir-se e apareceu nela Stephen, limpo, penteado e corretamente vestido, e Killick o fez entrar sem prestar atenção a sua pontualidade nem ao seu aspecto.

- Killick me disse que hoje é o almoço com o enviado - anunciou. - E Fielding assegura o mesmo.

- Estou surpreso - exclamou Jack, pondo a jaqueta. - Achei que era amanhã. Killick, está tudo preparado?

Falou com ansiedade, pois tivera que deixar seu cozinheiro, Adi, na Surprise, e seu substituto, Wilson, ficava muito nervoso quando tinha que fazer um trabalho delicado.

- Tudo preparado, senhor - respondeu Killick. - Não se preocupe. Eu mesmo temperei o focinho de porco e um marinheiro da guarda de popa pescou uma grande sépia que está fresco como uma rosa e será o primeiro prato.

Fielding chegou coxeando, mas tinha bom aspecto e parecia contente. Foi seguido imediatamente por Reade, o mais jovem, o menos útil e o mais bonito dos guardas-marinhas, que agora estava pálido e tenso pela fome (geralmente comia ao meio-dia). Então todos se sentaram e ficaram bebendo vinho de Madeira até que Fox e seu secretário chegaram. Como Killick não gostava de Fox, esperou só quatro minutos para anunciar:

- A refeição está servida, senhor, com sua permissão.

A cabine refeitório de Jack agora era ao mesmo tempo seu dormitório e em ocasiões o de Stephen também, mas Jack, com o engenho própio dos marinheiros, havia colocado na entrecoberta os baús e as macas, que o infante de marinha que sempre ficava de sentinela na porta tinha aprendido a cobrir em caso de que salpicasse água.

À mesa podiam sentar-se com comodidade seis pessoas, ou mais se se apertavam um pouco. Estava colocada perpendicularmente aos costados e nela brilhavam os objetos de prata, que eram o orgulho e a alegria de Killick. Mas o engenho própio dos marinheiros não havia servido de muito para ocultar os dois canhões de dezoito libras que ficavam na cabine, ainda que pelo menos foram empurrados o máximo possível para os cantos, atados e cobertos com bandeiras.

Foi uma dessas bandeiras, ou para ser mais exato, uma comprida flâmula, que Stephen fez cair quando ocupou seu lugar à direita do enviado, e isso levou Killick ao desastre. Depois de servir o focinho de porco temperado, com todo êxito, apareceu com a monstruosa sépia em uma bandeja de prata que sustentava muito alto. Então disse para Ahmed e para Alí, que estavam detrás das cadeiras de seus respectivos amos:

- Deixem passagem, companheiros.

Depois avançou para pôr a bandeja em frente de Jack, mas pisou na ponta da flâmula com o pé direito e a parte interna com o esquerdo e caiu, empapando o capitão de manteiga derretida (o primeiro dos dois molhos de Wilson) e lançando ao piso a sépia.

- Isto foi um lapsus calami - disse Stephen quando reiniciaram a refeição.

Era um comentário acertado, se se entendia a relação, porém, como muitos de seus bons comentários, não provocou nenhuma resposta imediata. Ainda que a casaca, o colete e os calções de Aubrey ficaram perdidos, e Edwards tivesse muitos salpicos, a manteiga derretida não havia chegado até Fox, e como o desastre lhe dera certa superioridade moral e podia trivializar, disse:

- Não lhe entendo, senhor.

- É um simples jogo de palavras - explicou Stephen. - A sépia, que é parente do Migo, ou seja, da lula, tem uma concha interna de consistência parecida com o corno e em forma de pena, e como o senhor recordará - continuou, voltando-se para a pessoa que estava do outro lado, o guarda-marinha -, a um deslize da pena é chamado de lapsus calami.

- Queria ter entendido logo - disse Reade -, porque teria rido muito.

O almoço se reanimou com uma excelente perna de cordeiro e chegou ao seu ponto culminante com dois albatrozes guisados com um saboroso molho de Wilson e acompanhados por um nobre borgonha. Depois de beber o vinho do porto, regressaram para a grande cabine para tomar o café e, quando se sentaram, Fox olhou para Stephen e explicou:

- Finalmente encontrei os textos malaios de que lhe falei. Estão escritos em caracteres arábicos e, naturalmente, as vogais curtas não estão marcadas, mas Ahmed conhece as histórias, e se ele as lê para o senhor, por favor, não deixe de anotar a duração das vogais. Eu os mandarei quando terminemos a partida.

Um pouco mais tarde, Fielding se despediu e saiu levando consigo Reade, ainda que não cedo o bastante, que estava sob efeito do segundo copo de vinho que Edwards lhe serviu imprudentemente quando a garrafa era passada de uns para os outros; tinha a cara vermelha como uma cereja e estava cada vez mais loquaz. A mesa para o jogo de whist já estava preparada e Jack, Stephen, Fox e Edwards começaram sua habitual partida, os dois primeiros jogando em dupla contra os outros dois.

Mesmo que fizessem apostas pequenas, porque Edwards era pobre, jogavam o whist com rigor, seriedade e determinação; contudo, também jogavam com amabilidade, sem mau humor nem discussões sobre as jogadas. Isto se devia principalmente a que Edwards, que era o melhor jogador dos quatro, não se submetia à vontade de Fox nem Fox tentava dominá-lo, e porque Jack e Stephen geralmente ganhavam mais mãos do que perdiam, assim que os outros não podiam dizer-lhes o que deviam ter feito. Mas desta vez não ganharam a mão, e quando o jogo dependia de quem ganhasse a seguinte, entrou Fielding com uma expressão grave e perguntou:

- Posso falar um momento com o doutor, senhor?

Macmillan, o jovem ajudante de Graham, necessitava de sua ajuda na enfermaria. Stephen foi lá imediatamente. Macmillan, como era lógico, havia substituído Graham, ainda que admitisse que os três meses que passara no mar não lhe capacitavam para semelhante cargo. Ainda que Stephen conhecesse bastante bem aos marinheiros, surpreendeu-se ao ver como estavam contentes. Os motivos eram vários. Por uma parte, Killick e Bonden lhes disseram que ele era um autêntico médico e não um simples cirurgião, que o haviam mandado buscar para que atendesse ao duque de Clarence e que lorde Keith lhe oferecera o posto de chefe médico da esquadra; por outra, não lhes fazia pagar pelos remédios para as doenças venéreas (em sua opinião, a medida era absurda e tirava dos homens o desejo de buscar ajuda em uma fase da doença em que poderiam ser curados mais facilmente); e por outra, impressionava-lhes que se oferecesse voluntariamente a prestar seus serviços e que atendesse aos pacientes e à enfermaria com profissionalismo. Era verdade que herdara a cabine do cirurgião anterior, que era conveniente para guardar seus espécimes e passar a noite quando o capitão roncava muito alto, mas isso não mudava as coisas e eles estavam muito agradecidos por tudo.

Depois chegou à cabine uma mensagem em que o doutor Maturin dizia que lamentava muito não poder regressar, pois tinha que operar, e que se o senhor Edwards desejasse presenciar uma amputação devia ir imediatamente, preferivelmente com uma casaca velha.

Edwards se desculpou e saiu apressadamente. Jack e o enviado ficaram ali falando de forma desconexa sobre amigos comuns, a Royal Society, a artilharia, a probabilidade de encontrem mau tempo mais adiante e de que as provisões particulares acabassem antes de chegar a Batavia. Ao final da guarda do primeiro quartilho (a revista foi adiada devido ao banquete do capitão) se separaram.

A relação entre Fox e Aubrey era curiosa. Em um espaço tão reduzido, com um castelo de popa que media sessenta e oito pés de comprimento por trinta e dois de largura e era o único lugar onde se podia fazer exercício, sua relação não podia seguir sendo formal sem parecer absurda (e acabar sendo desagradável), mas não chegou a ser cordial senão que se manteve perto do nível que alcançou ao cabo da primeira quinzena, o que se tinha com um conhecido e era presidida pela cortesia e a amabilidade.

Não chegou a ser cordial quando chegaram aos 37° S, apesar da confusão diária que provocava o preparativo de combate depois da revista, das práticas de tiro, que interessavam muito ao enviado, e das ocasiões, aproximadamente uma vez por semana, em que comiam juntos e jogavam backgammon ou xadrez. Tampouco tinha possibilidades de chegar a sê-lo quando a Diane alcançou os 42° 15'S e os 8° 35'O depois de navegar uma semana com ventos surpreendentemente fracos que permitiam levar desdobradas as joanetes e mesmo as sobrejoanetes.

O dia começou muito claro, mas quando Stephen chegou ao convés depois de ter feito a ronda na enfermaria, notou que Jack, Fielding, o oficial de derrota e Dick Richardson escrutinavam o céu.

- Ah, está aí, doutor! - exclamou Jack -, Como está o paciente?

Stephen tinha vários pacientes, dois enfermos de sífilis e com gomas que estavam perto do fim e alguns com problemas pulmonares graves, mas sabia que para os marinheiros só contavam as amputações, assim que respondeu:

- Está melhorando muito, obrigado. Está mais tranqüilo e se sente melhor do que esperava.

- Alegro-me muito, porque acredito que dentro de pouco todos os marinheiros terão que descer. Olhe aquela nuvem que está ao oeste do sol.

- Vejo um borrado halo prismático.

- Este vento é de tormenta. Vento de tormenta pela manhã espanta bom tempo.

- Parece que não lhe desagrada.

- Estou encantado. Quanto mais cedo encontremos o vento do oeste, mais contente estarei. É estranho que haja tardado tanto tempo em aparecer, mas provavelmente soprará com grande intensidade porque estamos muito ao sul. Ah, senhor Crown! - exclamou, voltando-se para o contramestre. - Teremos que interromper nosso trabalho.

O grupo se separou e Fielding perguntou se podia ir ver Raikes, o homem a quem Stephen amputou a perna.

- Sinto muita simpatia por ele - explicou enquanto caminhava pela coberta inferior.

- Não me admira - disse Stephen -, porque o senhor esteve quase no mesmo pote, se me permite a expressão.

De fato, a ferida era a mesma: a fratura da tíbia e do perônio por causa do retrocesso de um canhão. Fielding a sofrera quando estava ensinando a uma brigada inexperta como manejar o canhão e o chefe acendera o rabicho cedo demais; Raikes, em troca, a havia sofrido porque a retranca dianteira se partira e o canhão virara. Mas Raikes tinha uma fratura complicada e, depois de vários dias esperançosos, apareceu a gangrena que se estendeu com tanta rapidez que sua perna teve que ser cortada para salvar-lhe a vida, enquanto que Fielding agora se achava muito bem.

Conforme o que Jack combinara fazia tempo com o contramestre e o veleiro, estavam preparando guindalezas finas para estender nos topes, brandais, contraestais e grande quantidade de lona especial para tormentas. Por outro lado, o senhor Blyth, o contador, e seu despenseiro tinham preparadas as capas com capuz no paiol.

Stephen acordara fazia tempo com o capitão a construção de outra enfermaria na plataforma posterior da coberta inferior. A habitação ocuparia parte da banheira e parte do paiol das provisões do capitão e teria menos probabilidades de inundar-se quando navegassem pelas águas que esperavam encontrar nas altas latitudes. Estaria pior ventilada e não seria apropiada para a zona compreendida entre os trópicos, mas ao sul do paralelo 40 uma mangueira de ventilação faria chegar abaixo tanto ar como qualquer paciente asmático desejaria. Ele, Macmillan e o outro ajudante, William Low, deram-lhe os últimos toques essa manhã e depois começaram a trasladar os pacientes com a ajuda de seus companheiros, que os desciam nas macas com cuidado.

Depois comeu na câmara dos oficiais, como fazia com freqüência, mas não como convidado mas por direito. Sentia simpatia por quase todos os oficiais. Dick Richardson, o Manchado, era um velho amigo; Fielding, um companheiro muito agradável, e os demais, quando venceram certo receio que lhes inspirava o convidado do capitão, notaram que se acoplava muito bem ao grupo. Como casualmente era o único deles que tinha chegado tão longe ao sul, pois os outros haviam prestado seus serviços nas índias, no Báltico, no Mediterrâneo e inclusive na base naval da África, mas nunca além do Cabo, passava boa parte da refeição descrevendo as majestosas águas dos 50° de latitude, que formavam ondas com uma separação de um quarto ou meia milha entre suas altas cristas.

- De que altura são?

- Não posso dizer a medida em braças nem em pés, mas eram muito altas, o bastante para ocultar um barco de linha, e entre elas havia calmaria. Quando o vento soprava mais forte do habitual, se formavam ondas nas cristas e as ondas desciam umas vezes como brancas cataratas e outras saltando por todos os lados e atravessando às que seguiam. Acho que foi então quando o barco correu o risco de receber um golpe do mar pela popa e mudar de bordo para barlavento.

- Meu Deus! - exclamou o contador. - Essa situação debe ter sido espantosa, doutor.

- Sim, foi - confirmou Stephen, mas corremos um perigo maior, o de nos chocarmos com uma montanha de gelo. Há muitas e enormes nessas águas, maiores do que alguém é capaz de imaginar, e a parte que se vê é sumamente alta, enquanto que a que não se vê se estende muito por todos os lados e é tão perigosa como um arrecife. Ademais, são invisíveis na escuridão e, ainda que não fossem, não se pode mudar de bordo como se deseja porque o vento é extraordinariamente forte.

- Porém, senhor - disse Welby, o infante da marinha -, provavelmente elas não existem na rota dos barcos.

- Ao contrário - replicou Stephen. - Passamos entre montes delas, algumas em parte tinham um excelente colorido água-marinha. E as ondas chocavam contra elas por todos os lados e formavam grandes elevações. O barco chocou-se contra uma que, conforme os cálculos, tinha meia milha de diâmetro, e esteve a ponto de se despedaçar e afundar e perdeu o leme. Era o Leopard, um barco de cinqüenta canhões.

 

Naquela tarde chamaram Stephen duas vezes ao convés, uma para ver uma manada de orcas e outra para admirar a assombrosa mudança do mar, que passara de um colorido azul-verdoso opaco para água-marinha que recordara-se ao falar do iceberg em que o Leopard se chocou. O resto do tempo passou na cabine falando malaio com Ahmed ou escutando como ele lia o texto de Fox. Ahmed era um jovem amável, bondoso e alegre e, além disso, um excelente servente, mas era muito respeitoso para ser um bom professor, pois nunca corrigia os erros de Stephen, sempre estava de acordo com a sua acentuação das palavras e tinha dificuldade para entender qualquer coisa que lhe dissesse. Afortunadamente, Stephen tinha facilidade com as línguas e muito bom ouvido, pelo que, depois das primeiras semanas, deixou de pedir a Ahmed que fosse mais exigente, e agora ambos conversavam com bastante fluidez.

Essa tarde não haveria a revista, algo inusual, e depois de atender seus pacientes na guarda do segundo quartilho, Stephen pensou que poderia dar um passeio pelo castelo de popa e talvez falar com Warren, o oficial de derrota, um homem interessante e muito bem informado; contudo, quando levantou o pé da coberta inferior e o pôs na escada, foi iluminado um relâmpago tão intenso que o reflexo passou sucessivamente pelas escotilhas das diferentes cobertas e ao chegar à enfermaria fez empalidecer a chama das lanternas. Imediatamente o seguiram longos e fortíssimos trovões que pareciam sair do cesto da gávea do maior. Buscou no tato a câmara dos oficiais e ao chegar à antepara pôde ouvir o ruído da chuva, que começou a cair com extraordinária violência.

- Vamos vê-la, senhor - propôs alegremente Reade, que avançava a grandes passos mas se deteve ao ver o doutor. - Nunca vi nada como isto em todos os anos que passei navegando. E tampouco o oficial de derrota. Venha, buscarei uma capa com capuz para o senhor.

A maior parte do que Reade disse foi afogada pelos trovões, mas conduziu Stephen pela escada até a meia coberta, conseguiu-lhe uma capa com capuz e logo o levou até acima, onde havia tal escuridão que não se podiam ver os costados e só se observava o resplendor alaranjado das luzes da bitácula. Mas um momento depois os relâmpagos iluminaram todo o horizonte em torno da fragata e por toda parte puderam ver claramente as velas, os aparelhos e os homens e suas expressões, apesar da chuva. Stephen sentiu que Reade lhe falava da mangueira e ouviu que lhe dizia algo com expressão comprazida, mas os ensurdecedores trovões afogaram suas palavras.

Jack, que estava com Fielding junto ao costado de barlavento, chamou Stephen. Ainda que se encontrasse perto, sua potente voz não se ouvia com claridade, ainda que Stephen conseguiu ouvir "é melhor que a noite de Guy Fawkes" e viu seu sorriso, entrecortado pelos intermitentes lampejos de tal modo que parecia ampliar-se por espasmos.

Durante um tempo indeterminado permaneceram ali observando os espetaculares relâmpagos e ouvindo o ruído estrondoso, e depois Jack disse:

- Você tem água até o tornozelo e está de sapatilhas. Eu te acompanharei abaixo.

- Meu Deus! - exclamou Stephen sentando-se na cabine com as meias jorrando. - Uma batalha de toda a esquadra deve ser como isto.

- Isto é igual, mas sem fumaça - respondeu Jack. - Escute, vou ficar entrando e saindo até pela manhã, porque é possível que a tormenta dure, e te despertarei com a luz, assim que é melhor que durma lá embaixo. Ahmed, assegure-se de que a maca do doutor está arejada e de que tem os pés secos antes de deitar-se.

A noite de Guy Fawkes foi, por assim dizer, a entrada para uma região completamente diferente. Pela manhã a Diane avançava para o este-sudeste a grande velocidade, a doze nós, entre agitadas águas cheias de espuma. A água era muito fria e as ondas moderadamente altas. O vento era cortante e soprava do noroeste de tal forma que fazia a fragata inclinar vinte e cinco graus.

Grande quantidade de jorros de água e espuma chegavam a bordo, mas não o suficiente para apagar os fornos da cozinha ou o apetite do oficial e do guarda-marinha de guarda, Elliott e Greene, que desjejuaram com o capitão. Eles não eram os oficiais favoritos de Jack, mas haviam trabalhado duramente desde as quatro da madrugada, quando substituíram seus companheiros, e, também, ali não podia haver favoritismo. Talvez Jack não fosse tão brilhante como quando estava com Richardson e Reade, mas lhes acolheu com papas de aveia, ovos de suas doze apreciadas galinhas, bacon um pouco rançoso e torradas de pão irlandês feito com água carbonatada (uma magnífica inovação de Stephen), geléia de Ashgrove e abundante café em uma sucessão de cafeteiras. Stephen observava os três, que estavam exaustos por terem estado de guarda, e uma vez mais pensou que o declive dessa forma de entretenimento não se devia tanto à injusta aplicação de um imposto sobre a renda como à chateação e ao esforço do anfitrião. Conforme a tradição da Marinha, Elliott não podia iniciar nenhuma conversa, e ainda que fosse bem educado e fazia grandes esforços para responder, não tinha mais habilidade para conversar que a que tinha para ser marinheiro, e Greene interrompia a contínua ingestão de alimentos só para dizer "Sim" ou "Não".

- Confio em que se deitará agora, meu amigo - disse Stephen quando os outros se foram. - Parece exausto.

- Certamente que sim! - exclamou Jack. - Mas antes tenho que fazer algumas medições para Humboldt. Não deixei de fazê-las nem um dia e seria uma lástima começar agora. Talvez depois desça para dizer-te a temperatura e mais tarde poderemos medir a salinidade da água. Killick!, poderia chamar o meu escrevente?

Elijah Butcher estava esperando a chamada e entrou abrigado até as orelhas, com um pequeno tinteiro feito de um corno metido no olhal, o caderno sob o braço, o higrômetro e um monte de termômetros com seus estojos no bolso. E em seus brilhantes olhos negros e sua cara vermelha se notavam seus ardentes desejos de começar a tarefa.

- Bom dia, senhor Butcher - cumprimentou-lhe Jack, levantando-se. - Vamos começar.

Jack não desceu para falar com Stephen senão que enviou Butcher para dizer-lhe que tinha que permanecer no convés, qual era a medição com o higrômetro e qual era a temperatura na superfície e a dez e a cinqüenta braças de profundidade.

Stephen esperava por isso, pois sabia muito bem que Jack gostava mais dessa forma de navegar do que todas as outras, ainda que desconhecesse de que maneira as tarefas do capitão o absorveriam.

Jack não fizera muitas manobras na fragata anteriormente. Enquanto navegava com os ventos alísios, que eram favoráveis e agradáveis mas tinham pouca intensidade mesmo quando sopravam formando um ângulo de 30° com a alheta (o lugar mais apropriado para a fragata), quase não pudera alcançar os dez nós mesmo com as asas das sobrejoanetes desdobradas, e agora Jack desejava avançar para o leste tão rápido como pudesse fazê-la navegar. Sabia exatamente com que velas abertas sua querida Surprise alcançaria os quinze nós nessas latitudes sem forçá-la muito, mas desconhecia o que era conveniente para a Diane. Com ventos dessa intensidade cada barco respondia de uma maneira diferente às manobras: alguns afundavam tanto a proa que as verdes águas saltavam para a coberta e chegavam até a popa, enquanto que outros afundavam a popa de maneira que chegava ao convés ainda mais água, empurrada pelo vento de popa. E com a mesma combinação de velas desdobradas alguns navegavam lentamente, outros quase voavam, outros tinham tendência a mudar de bordo para barlavento e outros tendiam a mudar de bordo de um modo errático até que viravam para barlavento.

A Diane avançou para o sul com ventos cada vez mais fortes e entre ondas cada vez maiores até chegar aos 45° e virou para o leste, e só então Jack chegou a conhecer sua verdadeira natureza e suas qualidades quando a forçava até o limite. Isto requereu muitas trocas de velas, observação de todos os detalhes e constante vigilância das escotas e as braças, mas quando Jack pôde desdobrar o conjunto de velas adequado (que, naturalmente, variava conforme o forte vento do oeste rolasse para o sul ou para o norte, ainda que as variações se faziam em torno de um só conjunto principal), começaram a suceder-se esplêndidos dias em que a fragata percorria trezentas milhas ou mais de um meio-dia ao do dia seguinte, e ele raras vezes abandonava a coberta e só ia para a cabine para comer ou dormir sentado na cadeira de braços.

Nesse período o progresso era extraordinário e os graus de latitude passavam em rápida sucessão; contudo, todos menos os marinheiros mais diligentes sentiam somente um prazer espiritual, pois essa era a época do inverno no hemisfério sul e o céu estava cinzento, havia pouca luz durante o dia, o vento era cortante e arrastava consigo a chuva ou a água e neve mesclado com a espuma do mar. Já não se ouviam os gritos dos faxineiros, pois não havia pó produzido pelo movimento dos cabos, e os gelados homens da guarda de popa podiam descansar tranqüilamente debaixo dos botalós.

Nos momentos em que a chuva e os jorros de água do mar não eram muito fortes, Stephen subia de vez em quando para observar os albatrozes que acompanhavam a fragata e que às vezes permaneciam junto a ela por vários dias. A maior parte deles eram comuns, Diomedea exulans conforme a classificação de Linneo, criaturas enormes que tinham doze pés ou mais de envergadura e eram as aves marítimas que mais lhe agradava. Também tinha umas aves brancas como a neve com a ponta das asas negras e outras às quais os marinheiros davam o nome genérico de fárdelas, cujas espécies não podia identificar com certeza.

- Ninguém prestou muita atenção aos albatrozes - comentou Stephen para Fox, que subira para consultar-lhe porque sentia dor, melhor dizendo, mal-estar no abdomem, e tinha dificuldade para defecar e passava más noites.

- Nem ao sistema digestivo - replicou Fox. - O homem é um ser pensante, mas também é um ser que absorve e excreta, e se estas duas funções estão alteradas, a primeira também fica e a humanidade deixa de sê-lo.

- Estes comprimidos recordarão ao seu reto qual é seu dever, se Deus quiser - tentou acalmá-lo Stephen. - E siga a dieta que lhe ordenei. Mas terá que admitir que é um absurdo que hajam estudado a insignificante rouxinol e seus parentes, até o extremo de ter-lhes medido o bico e contar-lhes as plumas das asas, enquanto que se descuidaram do albatroz, as melhores voadoras de todas as grandes aves do mundo.

- Não são os mesmas comprimidos de antes? - inquiriu Fox.

- Não - respondeu Stephen sem remorso, porque dessa vez à argila branca pulverizada havia acrescentado cochinilha, um pó rosado inócuo.

Fox lhe consultara muito ultimamente e por diversos transtornos, mas Stephen compreendeu muito cedo que seu problema era a solidão. Indubtavelmente, era um homem muito instruído (o conhecimento que tinha da história passada e presente dos rajás e dos sultães malaios, suas intrincadas linhas sucessórias, suas relações, seus feudos e suas alianças bastavam para demostrá-lo, sem contar com o profundo conhecimento que tinha do budismo e das atuais leis de Maomé), mas era dominante, e como vencera seu tímido e indeciso secretário em todos os terrenos exceto no whist, o jovem já não era um agradável companheiro para ele.

Ainda que Fox desejasse conhecer aos demais e mesmo tratar com confiança aos outros, era exageradamente reservado e não queria que chegassem a conhecê-lo. Ademais, em sua forma de agir se observava certa condescendência, como se pensasse que era superior por sua inteligência, seus conhecimentos ou sua posição, e isso impedia que Jack e Stephen se agradassem com sua companhia.

Stephen tinha a impressão de que Fox pensava que a missão era muito importante, provavelmente com razão, e que se a levasse a cabo com êxito, se regressasse com um tratado, isso ia satisfazer por completo a sua ambição e seu amor própio; contudo, também achava que ele presumia que ocupar o cargo de enviado mais do que podia esperar-se de um homem de talento como o seu. Nunca convidava os oficiais, ainda que tenham sido apresentados, e se lhes fazia uma pergunta sobre a fragata ou a artilharia no castelo de popa, escutava a explicação sorrindo e assentindo com a cabeça como se quisesse dizer que não sabia dessas coisas mas que isso não diminuía sua importância, que só eram questões técnicas e um honnête homme não tinha por que sabê-las.

De todo modo, nem Jack nem Stephen tinham tempo para reuniões sociais. Jack estava concentrado em governar a fragata. Stephen se dedicava às tarefas de conservação, classificação e descrição de numerosas espécimes procedentes de Tristão, fruto da intensa atividade levada a cabo em um tempo exageradamente limitado na parte sul dessa ilha desconhecida pelos cientistas e habitada por numerosas plantas e animais não descritos: muitas criptógamas, várias plantas que davam flores (infelizmente essa não era a estação adequada para encontrá-las), grande quantidade de coleópteros e outros insetos, algumas arranhas e pelo menos duas aves de características peculiares, o tentilhão e o tordo; ademais, além de estudar malaio, tinha que ocupar-se da enfermaria, que estava cheia porque um barco se convertia em um lugar perigoso quando navegava para o leste pela zona dos 40° de latitude em qualquer estação. Mas isto ocorria sobretudo no inverno, pois os marinheiros tinham que agarrar cabos gelados com as mãos entorpecidas e na coberta chocavam-se contra os canhões, as bitas e ocasionalmente inclusive o campanário, devido aos movimentos do mar embravecido. Todos os dias chegavam casos de articulações deslocadas, músculos pungentes, costelas e pernas quebadas, queimaduras produzidas pelo atrito dos cabos ou as que sofriam o cozinheiro e seus ajudantes quando eram lançados contra os fornos da cozinha e, naturalmente, frieiras. E quase nenhuma guarda terminava sem que a maioria dos marinheiros estivessem coxeando.

Mas nem sempre havia mau tempo. Uma manhã, depois de passar um dia e uma noite açoitados por uma tormenta tão forte que só podiam navegar com a gávea maior e a vela de estai de proa rizadas, Stephen, que tinha adormecido pouco até a mudança da guarda das quatro, fez a ronda da tarde depois de desjejuar sozinho na câmara dos oficiais. Quando mostrava ao jovem Macmillan a forma mais rápida de pôr uma faixa em um paciente com hérnia, Seymour chegou e anunciou que o capitão apresentava seus respeitos ao doutor Maturin e lhe pedia que subisse ao convés se estivesse livre.

- Necessita uma casaca grossa, senhor - acrescentou. - Faz muito frio lá em cima.

Era verdade. Apesar disso, o assombro que lhe produziram o brilhante azul do mar, a luz do sol e as reluzentes velas o fez esquecer-se da sensação de frio.

- Ah, está aí, doutor! - exclamou Jack, que usava um antigo chapéu de Monmouth e uma grossa casaca. - Bom dia. Olha que manhã mais bonita. Harding, desça correndo para a cabine e diga a Ahmed que te dê um cachecol para o doutor pôr ao redor da cabeça, pois do contrário perderá as orelhas.

- Céu santo, que formosura! - exclamou Stephen, olhando ao seu redor.

- Verdade? - perguntou Jack. - O vento rolou durante a guarda da alvorada e pudemos içar mais velas. Como vê, estão desdobradas a gávea maior, a traquete e a cevadeira, e espero que o vento amaine um pouco e possa desdobrar as sobrejoanetes.

Continuaram as explicações, ampliadas com importantes detalhes sobre a forma de retirar o velacho, mas Stephen tinha sua atenção posta em formar um todo com os elementos daquele magnífico espetáculo. O céu estava limpo e tinha um colorido azul tão escuro como nunca antes vira; o mar tinha um azul mais claro e tão brilhante que enchia de reflexos azuis o ar, as sombras e as velas, e quando a fragata subia com as ondas, estendia-se imensamente e podiam ser vistas grandes cristas em fileiras, cada uma separada da precedente três estádios e movendo-se majestosamente para o leste. Quando as ondas se aproximavam da popa da Diane, suas cristas, brancas como o mármore, retrocediam e se elevavam à altura da cruzeta ameaçando destruir a fragata, e então a popa subia e subia, o convés se inclinava para frente, a força do vento aumentava e a crista passava devagar pelo o costado. Alguns momentos depois a fragata caía no seio formado entre as ondas, a visibilidade ao seu redor se reduzia e as velas ficavam flácidas. A tudo isto havia que acrescentar o sol, que não se via fazia tempo e agora tampouco porque o ocultava a gávea maior, mas enchia tudo de uma luz quase tangível e iluminava as asas do albatroz que voava tão perto do costado do castelo de popa que quase se podia tocar.

- Aí está nosso velho amigo - disse Stephen quando a ave virou descrevendo um ângulo de noventa graus, de modo que pôde ver-se uma abertura entre as plumas da asa direita.

- Sim. Nos faz companhia desde a alvorada. Oh, Stephen, que magnífico amanhecer!

- Indubtavelmente. E o espetáculo é digno de um amanhecer assim. Há nada menos que seis albatrozes e um petrel gigante. Não acha que deveríamos chamar o senhor Fox e seu secretário?

- Já mandei buscar-lhes e estiveram na coberta um pouco, porém, lamentavelmente, uma mudança de intensidade no vento provocou jorros de água no convés e eles se empaparam e desceram para trocar de roupa. duvido que voltemos a vê-los.

Stephen observou que no castelo de popa todos sorriam discretamente (exceto por um grumete que estava com um balde com estopa e pó de serra para que o timoneiro esfregasse as mãos, que soltou uma gargalhada que parecia um relincho e saiu correndo), e uma vez mais pensou que o enviado não tinha logrado que os tripulantes da Diane o tratassem com benevolência apesar de suas óbvias virtudes. Fox nunca se queixara quando se fazia preparativos de combate antes de passar em revista, ainda que Jack Aubrey fosse um dos poucos capitães que insistia em que se deixassem livres de obstáculos todos os conveses e, portanto, sua própia cabine e a de Fox desapareciam e seu conteúdo se trasladava para o porão. Por outra parte, interessara-se pelas práticas de artilharia e aplaudiu com entusiasmo os disparos certeiros. Mas o escasso interesse dos homens do mar pelos de terra adentro, algo que era uma tradição, assim como sua desconsideração e seu desprezo por eles, mantinham-se intactos ou possivelmente se aguçaram.

Fazia frio, mas ele passara mais frio ao sul do cabo de Hornos. Agora o sol estava acima da gávea e proporcionava um perceptível calor ao mesmo tempo que seu brilho transformava o azul do céu e do oceano em um milagre perpetuamente renovado. Stephen observou como os albatrozes voavam sem esforço junto aos lados da fragata, ou cruzavam a esteira e ocasionalmente pegavam algo da superfície ou atravessavam diagonalmente a crista da onda que se aproximava e depois avançavam outro quarto de milha e voltavam para começar de novo. Permaneceu ali extasiado uma guarda depois da outra, umas vezes golpeando-se os braços e outras falando com o oficial de derrota, até que os movimentos e o amontoamento dos guardas-marinhas lhe indicaram que o sol estava a ponto de cruzar o meridiano e que os que tinham nas mãos quadrantes ou sextantes iam medir sua altura.

A cerimônia seguiu seu invariável curso: Warren, o oficial de derrota, informou ao oficial de guarda, Richardson, que era meio-dia e que se encontravam nos 46° 39'S. Richardson se afastou do costado, foi até a popa, tirou o chapéu e com o cabelo flutuando ao vento disse:

- É meio-dia e nos encontramos a 46° 39'S, com sua permissão, senhor.

- São as doze, senhor Richardson - resumiu Jack.

- São as doze, senhor Seymour - repetiu Richardson para o guarda-marinha de guarda.

- Toque oito badaladas - ordenou Seymour ao suboficial.

Então o suboficial virou-se para o sentinela que estava na porta da cabine e, alçando a voz para que lhe ouvisse apesar do uivo do vento, ordenou:

- Vire o relógio de areia e toque o sino.

O infante da marinha virou o relógio de areia de meia hora, que havia olhado dissimuladamente de vez em quando para persuadir os grãos de que caíssem mais rápido e, assim, lograr reduzir o tempo de guarda. Então avançou correndo até o campanário, ajudado pelo vento, e tocou quatro badaladas duplas. Ao soar a última, Richardson olhou para Crown, o contramestre, e disse:

- Chame os marinheiros para almoçar.

Nesse momento, de um silêncio tão profundo como permitiam o uivo do vento na exárcia, o onipresente bramido do mar e as manobras da fragata, surgiu um som comparável em volume ao rugido dos leões na Torre de Londres quando iam dar-lhes de comer, um conjunto de gritos de alegria, ruído de passos apressados em direção ao refeitório, choques de bandejas, vasilhas e jarras contra as mesas reclináveis e alaridos de ajudantes de cozinheiro que esperavam a sua vez em frente ao fogão.

Para Jack era muito familiar aquela confusão que servia de aperitivo, sobretudo porque nos primeiros anos de sua carreira naval, quando era um guarda-marinha e tinha mais fome, havia comido a essa hora. O estômago lhe deu um sinal e sua boca se encheu de água, mas tudo isso que experimentava foi interrompido por um grito do serviola, que se encontrava no tope de um mastro e, por razões humanitárias, estava metido em um tonel forrado de palha.

- Convés...! - O restante de suas palavras não foram ouvidas até que a fragata caiu no seio formado pelas ondas: - Montanha de gelo pela amura de estibordo!

Jack pegou emprestado a luneta de Richardson, e quando a fragata começou a se elevar a dirigiu para o sudeste. No momento em que a Diane subiu ao máximo, pôde ver a montanha de gelo, que estava mais perto e era maior do que esperava. Era uma massa verdosa brilhando ao sol, que se elevava entre as ondas até uma assombrosa altura e tinha dois picos na parte ocidental.

Observou-a durante um tempo, mudou o rumo para afastar-se de tal modo que a fragata por ela a uma milha de distância. Depois deu a luneta a Stephen, que depois de tê-la observado enquanto três ondas elevaram a fragata sucessivamente, devolveu-a com desânimo.

- Devo ir - disse. - Prometi a Macmillan que me reuniria com ele ao meio-dia e já é tarde. Temos que fazer um trabalho muito delicado.

- Estou seguro de que se sairá bem - Jack o animou-. Espero que venha almoçar comigo, mesmo que chegue tarde.

 

Nesse dia o único convidado na cabine era Richardson, e Jack não tinha receios em falar-lhe da fragata e dos assuntos relacionados com ela.

- Acredito que devemos afastar-nos daqui depois de examinar a ilha de gelo - explicou-lhe-. Talvez me equivoque, mas me parece que não se formou há muito tempo. Acho que veio de detrás de Kerguelen, que não fica muito longe, e que a seguem muitas outras. Estamos muito perto da costa norte. Já ouviu sobre os pedaços de gelo que vagam a deriva, né?

- Esse tap, tap, tap?

- Sim. Aí os tens outra vez.

- Ouvi o ruído pela manhã e supus que o faziam o toneleiro ou o carpinteiro, ou ambos; contudo, depois pensei que não estariam trabalhando à hora de almoçar a menos que a fragata estivesse afundando, que Deus não o queira.

- Não. É gelo à deriva. Afortunadamente, colocamos uma defesa na proa e os pedaços não são muito grandes, porém, de todo modo, não farão nenhum bem para as placas de cobre.

- Kerguelen é a ilha que alguns chamam de Desolação, não é, senhor? - perguntou Richardson.

- É sim. Mas não é a Desolação que conhecemos, que é menor e fica situada mais ao sudeste. Ademais, há outra aproximadamente nos 58° S, por bombordo, justo depois de passar o estreito de Magalhães. Acho que, em um momento ou outro, a muitos lugares lhes puseram o nome de Desolação, uma palavra muito relacionada com a vida dos marinheiros. Mas a ilha Desolação que conhecemos não estava tão mal. Gotaria que o senhor estivesse no Leopard, Dick. Nos divertimos muito colocando um novo leme e pudemos fazer medições muito precisas; por exemplo, o melhor triplo cálculo da longitude pelas luas de Júpiter que possa imaginar, cada um coincidente com o anterior e com a distância lunar de Achernar.

- E lhe teria encantado ver os elefantes marinhos, os leões marinhos, os pingüins, as pombas antárticas, os cormorãos-de-cristas, os petréis e, sobretudo, os magníficos albatrozes em seus ninhos. Eram... - Stephen foi interrompido pela troca de pratos e a chegada do pudim, e perdeu o fio.

- Acho que este é o último pudim de sebo que comeremos antes de chegarmos a Batavia - disse Jack em tom grave. - Diz Killick que os ratos se tornaram muito atrevidos com o intenso frio. Assim que desfrutemo-lo enquanto possamos ou se cobrirá de tanto mofo como um de cem anos. - Guardou silêncio para comer o primeiro pedaço de pudim e depois continuou: - O que não gosto destas ilhas de gelo é que, além de provocar o afundamento dos barcos, aparecem antes da calmaria. Quando o pobre Leopard se despedaçou, estava rodeado de névoa e o vento quase não soprava com força suficiente para desdobrar as joanetes.

 

Depois de comerem regressaram ao castelo de popa. O iceberg estava agora muito mais perto, e como o sol tinha se deslocado para o oeste a luz se refletia em muitas partes de sua superfície, e não só podiam apreciar seu intenso colorido verde como também uma faixa de cor água-marinha, a cor que Stephen recordava do desafortunado acidente do Leopard. Era uma coisa exageradamente bela e mais fácil de observar agora, mas havia que observá-la a certa distância. A imensa massa era instável. Quando se achava com a fragata no mesmo seio formado pelas ondas, a uma milha de distância pelo través, quem a observava via como um dos picos, tão alto como uma catedral com cúpulas, inclinou-se e caiu aos pedaços, grandes pedaços que desceram pela ladeira e se juntaram com grandes blocos de gelo e ilhas de gelo menores que estavam perto, fazendo saltar jorros de água e espuma.

Stephen não estava no sagrado castelo de popa mas no corrimão, onde um pontal lhe servia para apoiar a luneta. Como todos os que tinham sido seus pacientes pensavam que em terreno neutro tinham direito a dirigir-se a ele, não lhe surpreendeu ouvir que muito perto dele alguém com voz potente e sotaque da região oeste da Inglaterra dizia:

- Ah, está aqui senhor! Na alheta poderá ver a ave que chamamos de quacre.

Stephen olhou para lá e viu um albatroz de cor marrom que se peneirava no ar e parecia fatigado. Era da espécie Diomedea fuliginosa.

- Nós o chamamos de quacre porque se veste com modéstia.

- É um bom nome, Grimble - comentou Stephen. - E como chama ao outro? - perguntou, assinalando com a cabeça um petrel gigante que estava um pouco mais distante.

- Alguns o chamam de quebra-ossos e outros, o companheiro do albatroz, mas a maioria o chama de ganso de mamãe Cary, ou seja, ganso, não galinha. Uma dúzia de pintinhos seus cabem em um bolso. - Fez uma pausa e depois, em voz mais baixa, acrescentou: - Se me permite o atrevimento, gostaria de perguntar como vai o Arthur.

Arthur Grimble era um dos pacientes sifilíticos com gomas. Stephen e Macmillan o haviam operado para diminuir a pressão no cérebro.

- Nos próximos dias saberemos - respondeu Stephen. - Não sente dor, por agora, e é possível que se recupere, mas diga a seus amigos que não devem ter muitas esperanças, pois fizemos isso como último recurso. Mas se for deste mundo, irá tranqüilo.

A poucos pés de distância, o capitão Aubrey disse ao oficial de derrota:

- Acho que não é possível.

Estivera observando os blocos de gelo compostos de água pura que flutuavam a pouca distância da ilha mãe, às vezes a meia milha.

- Não nestas águas - disse Warren. - Mas se a fragata se pusesse ao pairo por um momento, creio que o vento amainaria. O tamanho das ondas ao redor da ilha diminuiu em um terço desde antes do almoço.

Jack consentiu com a cabeça e olhou para as ondas que se aproximavam. O vento já não destroçava suas altas cristas fazendo saltar jorros de água para frente.

- Senhor Bennett, suba correndo ao tope com uma luneta e diga-me o que vê - ordenou Jack. - Depois vá abaixo para dar-me o relatório. Doutor, quer tomar café comigo?

Quando tomavam a segunda xícara, Bennett bateu na porta.

- Perdoe-me por estar despenteado, senhor - desculpou-se. - Ainda que tenha atado o chapéu com um pedaço de merlín, de merlín branco, se foi voando. Comecei a observação justo pela popa e segui a tudo ao redor. Não vi nada até que cheguei aos 10° pela amura de estibordo, onde, a umas quatro léguas de distância, havia uma montanha de gelo quase do tamanho desta. Depois vi três menores mais ao sul. Pela espuma que vi detrás, supus que havia ali outras ilhas pequenas, mas não pude ter certeza, e quando olhei pelo outro lado para o sul, entre o través e a alheta, vi quatro a três léguas de distância, eqüidistantes umas das outras.

- Obrigado, Bennett - disse Jack. - Beba uma xícara de café, ela lhe cairá bem.

Quando Bennett se foi, Jack prosseguiu:

- Infelizmente, isto não pode continuar. Esperava que seguíssemos esta estupenda corrida por vários dias mais, mas isto não pode continuar. Apesar de ainda nos encontrarmos muito a oeste, temos que afastar-nos daqui. Eu gostaria de nunca ter mencionado a calmaria, pois o vento está amainando desde que o fiz.

- Talvez seu subconsciente já havia percebido os sinais mas se negava a reconhecê-los. Quantas vezes hei dito: "Faz seis meses que não tenho resfriado", e no dia seguinte me despertei com o nariz jorrando e sem poder articular uma palavra!

- Indubtavelmente, não serve para dar ânimo nem alegria, Stephen. Se alguma vez já houve alguém capaz de silenciar a Job, esse é você. Como o café já terminou, subirei para o convés e mudarei o rumo. Pelo menos poderemos tirar um rizes ou dois.

Poucos minutos depois Stephen ouviu apitos, passos apressados e os gritos: "Amarrar, amarrar!". Logo a fragata inclinou como se tivesse o vento a 10° pela alheta e virou a proa para o nordeste. Os poucos objetos móveis da cabine saíram expelidos e foram parar do lado de estibordo. Stephen agarrou-se aos braços da cadeira e disse:

- Poderá dizer o que queira, mas estou convencido de que a fragata navega mais rápido do que nunca. O mar dá bramidos ao passar pelos costados.

No dia seguinte a inclinação era menor, ainda que a Diane tinha desdobrado grande quantidade de velame (além disso, as sobrejoanetes estavam preparadas com a esperança de que se pudesse abrir mais) e seguiu diminuindo emborno a emborno. E no dia que sepultaram ao jovem Grimble, a fragata quase não inclinava.

Mesmo assim, pelo bem da coleção que conseguira em Tristão da Cunha, Stephen seguia dormindo abaixo. Na quinta-feira seguinte à aparição da montanha de gelo foi à câmara dos oficiais para desjejuar.

- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou, sentando-se em seu posto. - Senhor Elliott, importaria-se de me passar a cafeteira? - Depois olhou a mesa de um lado para o outro, chamou-lhe a atenção o mastro mezena, que dificilmente podia ter deixado de fazê-lo, e acrescentou: - Vejo que haverá algo esplêndido outra vez.

Na Diane, como na maioria das fragatas, o mastro mezena ficava apoiado na coberta inferior, no centro da câmara dos oficiais, e a mesa era construída ao seu redor; contudo, na Diane alguma delicada mão francesa havia forrado o pau de latão desde a mesa até os vaus e tinha coberto o latão com folha de ouro, algo que Stephen nunca vira antes. Geralmente, essa maravilha estava oculta por uma espécie de mangueira que a protegia de quem limpava a câmara dos oficiais, um velho estúpido, obstinado e surdo, que sempre polia os metais com uma escova de arame, e só podia vê-la brilhar aos domingos ou quando havia algum festim.

- Sim - disse o contador. - Matamos o último porco anteontem e convidamos o capitão para almoçar.

Stephen esteve a ponto de dizer que o capitão teria que assistir a um funeral nesse dia, mas não disse nada porque lembrou qual era a atitude dos marinheiros ante a morte (os homens que recebiam feridas mortais nas batalhas eram jogados pela borda). Em lugar disso, comentou que a fragata parecia deslizar suavemente.

- Já não dá os solavancos que suportara durante muitos dias, e, se não me equivoco, está pouco inclinada. A verdade é que coloco minha xícara na mesa quase sem ansiedade.

- Não mais de um par de embornos - explicou Fielding. - Estamos fora da zona dos 40° de latitude, sabe?

Os oficiais, naturalmente, tinham razão. Jack Aubrey estivera presente em demasiadas cerimônias desse tipo para que sepultar a um marinheiro a quem quase não conhecia o afetasse; contudo, como sempre sucedia, comovera-se com as palavras da cerimônia ("Minha alma voltou a ti, Senhor, antes da guarda da alvorada, sim antes da guarda da alvorada..."), a atenção com que os tripulantes as seguiram e as mostras de dor dos amigos do defunto. Quando com tom grave recitou: "... nosso querido irmão partiu e nós encomendamos seu corpo às profundezas", os companheiros de Arthur Grimble deslizaram pelo costado seu corpo metido em uma maca com as bordas costuradas juntas e quatro balas de canhão colocadas sob os pés.

Jack não estava muito afetado e comeu com prazer o porco assado com os oficiais, porém, não obstante, a cerimônia influiu em seu ânimo o suficiente para que tivesse que fazer um esforço para manter o ambiente agradável que caracterizava esses almoços. Quando a refeição terminou, fizeram-se os habituais brindes e se disseram as palavras apropiadas de agradecimento, caminhou pelo lado de barlavento do castelo de popa as três milhas que geralmente percorria quando o tempo o permitia, ou seja, foi de uma ponta a outra girando duzentas e quarenta vezes.

O tempo era bastante bom porque a fragata passara de repente para outro mundo, um mundo onde o mar estava em calmaria e os ventos eram instáveis. A passagem foi desafortunada, pois apenas a Diane tinha alcançado os 39° quando o escasso vento que soprava do oeste rolou para o nordeste e fez mudar de bordo a proa, o que se interpretou como um mau augúrio. Ademais, Jack tinha muitas dúvidas sobre a ilha Amsterdã, pois em todas as cartas marinhas aparecia nos 37° 47'S, mas de uma para outra carta a longitude variava mais de um grau. Por desgraça, seus dois cronômetros tinham escolhido esse momento para discordar, e como o céu estava coberto (não podia fazer uma medição lunar desde que tinham se encontrado com o iceberg), agora tinha que mudar de bordo guiando-se por meio das longitudes registradas e a média do tempo que marcavam os cronômetros. Essa medida não era satisfatória nem podia acalmar sua ansiedade, e o vento piorou as coisas porque obrigou a Diane a navegar de bolina. A fragata navegava bem de quadra, mas quando navegava de bolina tinha tendência a mudar de bordo para barlavento e era tão lenta que não chegava a alcançar mais de seis nós e meio.

- Não posso me permitir passar desta latitude - explicou a Stephen nessa noite. - Pelo menos me consola que o pico da ilha se vê há vinte e cinco léguas de distância, ainda que a ilha não seja importante.

- Lamento que não seja importante para você - disse Stephen com tristeza.

- Quero dizer, do ponto de vista da água. Não escasseia, e ainda que não caíssem os habituais aguaceiros depois do trópico de Capricórnio, isso só nos obrigaria a racionar água durante uma ou duas semanas se os ventos alísios do sudeste soprassem com a metade de sua habitual intensidade. Mas se encontramos a ilha, com muito prazer te deixarei na costa e poderá passar ali uma ou duas horas enquanto os botes fazem várias viagens. Disseste que há muita água, né?

- Exatamente. Perón, o náufrago, deleitou-se com ela. Admitiu que era um pouco difícil de encontrar, mas não acho que essa dificuldade desanime aos marinheiros. Jack, não sei expressar com palavras o valor que tem para um naturalista uma ilha remota, uma ilha vulcânica deserta, fértil e coberta por exuberante vegetação; uma ilha onde não há espantosos ratos, nem cachorros, nem gatos, nem cabras, nem porcos, esses animais que os estúpidos levaram ao Edén para destruí-lo, uma ilha intacta, pois apesar de Perón ter passado algum tempo nela, raras vezes abandonou a margem.

- Gostaria que não tivesse tanta bruma, mas manterei no tope o serviola de melhor vista e pela noite ordenarei diminuir o velame. Estou quase seguro de que a avistaremos na terça-feira ou na quarta-feira.

Avistaram-na na sexta-feira. Ao amanhecer estavam a cinco milhas do inconfundível pico, concluindo assim com êxito uma espetacular travessia por alto mar ao longo de cinco mil milhas, apesar das inexatidões das cartas marítimas e dos cronômetros. Porém, infelizmente, encontravam-se a sotavento porque, na escuridão, uma corrente em direção leste e o forte vento do oeste haviam empurrado a fragata além da ilha, ainda que usava as gáveas rizadas e o serviola que vigiava era o de vista mais aguda.

- Nunca chegaremos a ela, senhor - informou o oficial de derrota. - Está justamente no lugar de onde sopra o vento, e com esta corrente poderíamos ficar manobrando o dia todo sem conseguir nos aproximar. Juraria que está situada pelo menos um grau mais a oeste inclusive na carta marítima da Companhia.

- Comprovou outra vez a quantidade de água, senhor Warren? - perguntou Jack, inclinando-se sobre o coroamento e olhando para o distante cone, que se via claramente em meio do vento que amainava.

- Sim, senhor. Ainda que não chova depois de passarmos o trópico, acredito que teremos o suficiente sem racioná-la muito, e quem nunca viu um dilúvio depois de passar o trópico?

- Não sei como vou dizer ao doutor - lamentou-se Jack. - Ele tinha muita vontade de visitá-la.

- De fato - confirmou o oficial de derrota. - Pobre cavalheiro! Mas o tempo manda. Talvez todos estes albatrozes e pardelas lhe sirvam de consolo. Nunca vi tantos juntos. Ademais, aí há um falaropo e um petrel fétido.

 

- Stephen - disse Jack -, sinto muito em dizer que não pude chegar na ilha. Ela está situada pela popa, justo a barlavento, e não podemos retroceder com este vento e esta corrente. E se puséssemos a fragata ao pairo para esperar que o vento mude, perderíamos muitos dias, e não podemos nos permitir isso porque temos que encontrar os ventos alísios do sudeste tão logo como seja possível se queremos chegar a Pulo Prabang com o último sopro do monção.

- Não se preocupe, meu amigo - tranqüilizou-lhe Stephen. - Iremos na Surprise quando tenhamos tempo livre, quando Bonaparte morrer. Entretanto, observarei as aves que o oficial de derrota viu. Nunca imaginaria que veria um petrel fétido tão longe do Cabo.

Os marinheiros desdobraram as sobrejoanetes da Diane pela primeira vez desde que chegaram a esse hemisfério, e a fragata avançou para o nordeste com as alas superiores e inferiores estendidas; contudo, durante todo o dia pôde ver-se o pico da ilha Amsterdã com uma pequena nuvem indicando seu cume.

No dia seguinte havia desaparecido e a meia manhã desapareceram também as aves marinhas. Quando Jack fez as medições para Humboldt, notou uma mudança tão pouco usual da temperatura na superfície e a dez braças, que comprovou a leitura duas vezes antes de chamar Butcher.

Aquele era um novo mundo e, agora que se encontravam totalmente metidos nele, os velhos padrões deixavam de servir de guia; a rotina da fragata, interrompida pelor rápido e perigoso avanço para o leste nos 60° de longitude, voltou a converter-se na forma de vida natural, com sua invariável dieta, a limpeza das cobertas antes de que se fizesse completamente de dia, a chamada dos marinheiros para que presenciassem os castigos nas quartas-feiras (reprimendas ou suspensão da ração de grogue, em nenhum caso até esse momento), o ritual lavado e estendido da roupa nas segundas-feiras e sextas-feiras, o passar revista todos os dias da semana seguido de certa quantidade de disparos reais, a formação por divisões nos domingos seguida umas vezes pela leitura do Código Naval, quando a inspeção tardava mais do habitual, e mais frequentemente pelo serviço religioso. Era uma vida bastante fácil para quem estava acostumado a ela, mas era exageradamente lenta. Agora a fragata não navegava tão velozmente que corressem o risco de que algo se desprendesse, e tampouco o mar formava uma faixa de espuma ao passar por seus costados nem a enchia de um som grave parecido ao do órgão, que se ouvia claramente junto ao uivo da exárcia tensa como um harpa. Já não avançava mais de quinze nós nem o grumete que fazia a medição com a barquilha sentia que o carretel quase lhe escapava das mãos. Ademais, desaparecera entre os homens a camaradagem própia dos tempos de guerra porque já não compartiam emoções nem perigos. Agora tinha que reparar ou substituir tudo o que se quebrara ou estirara demais, tinha que pintar e limpar e, sobretudo, fazer avançar a fragata para o nordeste com ventos fracos e variáveis e amiúde desfavoráveis, o que requeria prestar atenção constantemente nas bujarronas e nas velas de estai. Mesmo quando encontraram os ventos alísios do sudeste, parecia que não mereciam usar esse nome por sua intensidade nem por sua constância.

Um dia depois do outro, a Diane navegou pelo vasto oceano, que era como um imenso disco perpetuamente renovado. Quando se aproximava do trópico de Capricórnio a quatro nós, o capitão Aubrey terminou o serviço religioso com as palavras "O mundo é infinito, amém", que bem podiam se referir à viagem, pois só viam mar, mar e mais mar, um mar que carecia de início e fim, como o globo terráqueo.

Contudo, essa monotonia aparentemente eterna deixava tempo para fazer coisas que se haviam adiado ou passado por alto. Jack e Stephen voltaram a tocar música, às vezes até a guarda de meia. Stephen melhorou no uso do malaio e chegou a sonhar nessa língua. Jack, como era seu dever, ocupou-se de novo de aumentar os conhecimentos que os guardas-marinhas tinham da náutica, os aspectos mais importantes da astronomia e da matemática e, naturalmente, o governo de um barco. Tanto ele como eles tinham bastante êxito nestas coisas, mas menos em outras áreas, como cultura geral, leitura e escrita.

Quando Jack falava ao jovem Fleming de seu diário, observou:

- Está muito bem escrito, mas acho que seu pai não gostará muito do estilo.

O senhor Fleming era um eminente naturalista e membro da Royal Society, famoso pela elegância de sua prosa.

- Por exemplo, não me parece correto isso de "eu e meus companheiros soltamos o aparelho-real". Mas vamos deixá-lo... o que sabe da última guerra com América do Norte?

- Não muito, senhor, além de que os franceses e os espanhóis entraram nela e receberam seu merecido.

- É verdade. Sabe como começou?

- Sim, senhor. Foi pelo chá, porque eles não queriam pagar impostos. Gritaram: "Não há reprodução sem copulação", e jogaram o chá no porto de Boston.

Jack franziu o cenho, refletiu alguns momentos e disse:

- Bem, a verdade é que naquele período fizeram pouco ou nada no mar.

Daqui passou a falar da necessidade de levar em conta a inclinação e a refração quando se faziam medições lunares, uma matéria que conhecia muito bem. E nessa noite, quando afinava o violino, perguntou:

- Stephen, qual foi o grito que os norte-americanos deram em 1775?

- "Não há contribuição sem representação."

- Não disseram nada sobre a copulação?

- Absolutamente nada. Naquela época a maioria dos norte-americanos era a favor da copulação.

- Então não é possível que o grito tenha sido: "Não há reprodução sem copulação"?

- Meu amigo, essa é a ordem dos antigos naturalistas; é tão velha como Aristóteles, e completamente errônea. A hidra e os demais membros de sua espécie se multiplicam sem nenhum tipo de contato sexual. Leeuenhoek o demostrou faz muito tempo, mas os mais obstinados ainda repetem isso como papagaios.

- Bem, ao diabo com a contribuição. Atacamos o andante?

Fox também retomou sua forma de vida anterior. Uma epidemia no gado que lhe restava pôs fim aos freqüentes banquetes, pois não podia aceitar convites que não podia devolver; contudo, ainda continuavam as partidas de whist e, desde que o tempo havia melhorado, subia duas vezes por dia ao castelo de popa, onde pela manhã caminhava de um lado para o outro com seu silencioso companheiro e pela tarde amiúde fazia práticas de tiro com Stephen (agora um digno rival), sobretudo quando o mar estava em calmaria e as garrafas podiam ser vistas a grande distância. Ademais, voltou a fazer freqüentes consultas por questões de saúde.

Na terça-feira seguinte à passagem da fragata pelo trópico de Capricórnio (sem que caísse uma gota de chuva, apesar do que havia dito o oficial de derrota e de que ao longe, para o oeste, viam-se nuvens púrpuras das quais caía uma chuva torrencial), mandou uma nota formal ao doutor Maturin em que perguntava se não se importava que voltasse a incomodar-lhe essa tarde. Há tempos Stephen convencera-se de que, para manter uma boa relação com ele e cooperar um com o outro de maneira efetiva em Pulo Prabang, deviam falar o menos possível em particular, e estava seguro de que as queixas de Fox não eram mais que o resultado da falta de trabalho intelectual e a necessidade de manter conversações a certo nível, provavelmente porque em terra era muito sociável, ou pelo menos gregário; contudo, quando estava sentado ao sol na base da última caronada e com um livro no colo, pensou que não seria correto negar-se a dar conselhos como profissional.

Tanto Jack Aubrey como Fox faziam exercícios antes de almoçar: Jack no lado de barlavento do castelo de popa e Fox, que aprendera desde o início da viagem quais eram os costumes sagrados da Armada, no outro lado, acompanhado de Edwards. De onde estava sentado, Stephen podia ver tanto a um como o outro. Uma vez mais voltou a refletir sobre a integridade, uma virtude que ele apreciava muito nas pessoas ainda que às vezes tinha dúvidas sobre a sua própia. Nesta ocasião pensou que talvez não fosse uma virtude mas um estado, o estado de ser você mesmo, e que Jack era um bom exemplo. Sabia que tinha humildade e que, durante os anos que Stephen lhe tratara, nunca fingira.

Fox, em troca, parecia estar em um eterno palco representando um personagem distinto, imponente e excepcionalmente inteligente. Sem dúvida, possuía, pelo menos em certo grau, essas qualidades e era rara a ocasião em que não fazia alarde delas, já que queria que todos as reconhecessem. Sua atuação não podia qualificar-se de grosseira nem de ridícula. Stephen pensava que a atuação chegava a ser quase totalmente inconsciente, mas a continuidade em um longa viagem a fazia um pouco chata e as reações de Fox a uma real ou imaginária falta de respeito a fazia mais chata ainda. Fox não procurava a popularidade, ainda que podia ser uma agradável companhia quando queria, e lhe gostava agradar. O que desejava era ter superioridade e ser tratado com o respeito devido por tal superioridade, mas tentava consegui-la com uma torpeza surpreendente em um homem de sua inteligência. Para muitas pessoas, sobretudo para os marinheiros da Diane, não lhes impressionava.

Na fragata não havia nenhum trompetista, mas tinha um infante da marinha que tocava muito bem o tambor. Quando soaram as quatro badaladas ele tocou Heart of Oak para anunciar o almoço dos oficiais, e todos os que estavam livres desceram correndo e deixaram Jack quase sozinho. Jack não tinha convidados nesse dia e seguiu caminhando de um lado para o outro, refletindo com as mãos atrás das costas. Quando soaram as cinco badaladas (Jack comia mais cedo que a maioria dos capitães), saiu de seu sonho e ao ver Stephen propôs:

- Descemos? A última ovelha, que se chamava Agnes, está nos esperando.

- Também era a última do conjunto de animais - disse Killick quando levou os ossos pelados e Ahmed trocou os pratos. -

- Amanhã começaremos a consumir as provisões da fragata, carne de cavalo salgada e molhada através da borda, porque temos que racionar a água doce. Não se pode usar água salgada para encher os recipientes onde se molha a carne nem o tonel que fica no convés, e tampouco para lavar. Tenho que dizer isso aos marinheiros e também, como consolação, direi que esta noite poderão bailar.

Quando ficaram sozinhos tomando o café, Stephen, depois de uma longa pausa durante a qual ficou pensativo, perguntou:

- Recorda-se que uma vez eu disse que para Clonfert a verdade era o que ele conseguia fazer os outros acreditarem?

Lorde Clonfert era um oficial que servia em uma esquadra onde Jack ocupava o cargo de comodoro e que levou a cabo a operação Mauricio, uma operação que teve péssimas consequências para ele. Era um homem com pouca confiança em si mesmo e uma grande imaginação. Jack passou algum tempo tentando se recordar e respondeu:

- Sim, acho que sim.

- Expressei-me mal. O que queria dizer era que, se ele podia induzir aos outros a acreditar no que dizia, então isso se transformava até certo ponto em uma verdade, que era um reflexo da crença dos outros de que era verdade. E o tempo e a repetição poderiam reforçar esta verdade até convertê-la em uma convicção, em algo indistinguível ou quase não distinguível da autêntica verdade.

Desta vez ao senhor Fox lhe ocorria realmente algo. Stephen não sabia o que, mas não gostava de seus sintomas nem do aspecto de seu ventre. Como Fox estava pletórico de vida, decidiu fazer-lhe uma sangria e purgar-lhe.

- Terá que tomar um remédio, fazer dieta uma semana e permanecer em sua cabine durante esse tempo - sentenciou. - Afortunadamente, o jardim, quer dizer, o sanitário fica perto - acrescentou. - Depois desse tempo voltarei a examinar-lhe e espero que já hajam desaparecido os maus humores e que o palpável inchaço do fígado haja baixado. Enquanto isso, tirarei várias onças de sangue. Por favor, permita que Alí sustente a tigela.

Alí sustentou a tigela e o sangue fluiu até que o conteúdo chegou a quinze onças, e Stephen se surpreendeu ao ver que a superfície estava salpicada das lágrimas que o jovem havia vertido em silêncio.

Durante os primeiros dias, Fox sentiu um grande mal-estar e às vezes uma forte dor devido ao considerável efeito do ruibarbo, a hiera piara e o calomel, mas os suportava sem dificuldade. Stephen, em suas breves visitas, assombrou-se ao encontrar um Fox simples que só vira quando praticava tiro-ao-alvo no coroamento, quando se concentrava ao apontar sua arma extraordinariamente bem feito e em ver onde caiam as balas. Ademais, não falava com irritação a quem lhe atendia, como costumavam fazer os enfermos, especialmente os que sofriam do fígado. Mas Stephen notara muito antes que tratava amavelmente a Alí, Yusuf e Ahmed. Naturalmente, no caso de Alí isso se devia a que entre eles tinha uma relação especial, mas parecia que a razão principal era que era malaio. Em primeiro lugar, a língua malaia requeria uma clara diferenciação entre as diversas classes sociais, pois tinha muitas frases feitas que as pessoas de umas hierarquias deviam usar com as das outras, e sobretudo era preciso recordar bem as que se usavam com as mais altas. Stephen pensava: "além disso, é possível que se sinta mais cômodo em território malaio, pois afinal de contas é sua terra natal".

Edwards, o secretário, estava quase sempre livre enquanto Fox estava enfermo, e foi muito agradável ver sua transformação. Chegou a conhecer muito melhor os oficiais, pois amiúde comia ou jantava com eles, que o consideravam uma valiosa adição ao seu grupo, e quando Stephen ia visitar o enviado podia ouvir-lhe rir no castelo de popa. Mas a liberdade não podia durar. Ao final da semana, Stephen examinou Fox e diagnosticou que estava bem e que poderia caminhar meia hora pelo convés, mas que ainda tinha que fazer dieta, mesmo que moderada.

- Não coma vaca nem cordeiro - recomendou.

- Nem vaca nem cordeiro? Santo Céu! Não é provável que me dê vontade de comer nenhuma das duas. Não comeria mais que mingau se Alí não tivesse conservado algumas aves, ainda que velhas, e não sei o que farei quando acabarem.

- A carne de vaca salgada que existe na fragata não está ruim - opinou Stephen.

- Não é uma comida muito apropiada pelos humanos.

- Duzentos companheiros de tripulação nossos vivem dela.

- Os agricultores têm as tripas de ferro - brincou Fox. - Não me admiraria que a preferissem ao caviar.

Comentários como esse sempre irritavam Stephen (um revolucionário, em sua juventude), sobretudo quando faziam referência aos marinheiros, cujas qualidades conhecia melhor que a maioria dos homens. Ia dar-lhe uma resposta cortante, mas pensou melhor e manteve a boca fechada. Fox continuou:

- Pergunto-me se esta viagem vai terminar. Sabe onde estamos?

- Não, mas não me surpreenderia que nos encontremos a umas cem milhas de terra, pois nos últimos dias vi cada vez mais albatrozes, e na terça-feira o serviola avistou dois barcos dos que fazem o comércio com as Índias navegando do oeste para o leste. Ademais, disseram-me que podemos alcançar o final da monção, ainda que agora seja fraca.

- Que satisfação! Porém, sabe de uma coisa, Maturin? Depois de passar todas estas horas deitado aqui cheguei à conclusão de que ficar sozinho, afastado da sociedade e de todas as atividades, em perpétuo confinamento e fazendo um viagem perpétua não é tão desagradável. Se tivesse boa comida disponível, não estou seguro de que desejasse que a viagem terminasse. Tem suas vantagens suspender a atividade. - Fez uma pausa, fixando a vista no anteparo, e depois prosseguiu: - Não sei se conhece o autor destes versos que acabo de traduzir:

 

Quando os sinos tocam no campanário,

em meio da escura noite,

sinto na língua o sabor azedo

de tudo o que fiz.

 

Pelo tom de voz de Fox, Stephen achou que se aproximava uma confidência, uma confidência não induzida por uma grande amizade ou estima mas pela solidão e o desejo de falar; pelo conteúdo dos versos, que se relacionava com um tema escabroso, decidiu que não queria ouvi-la. Por outro lado, quando Fox voltasse à sociedade e a atividade, lamentaria ter falado e que ele conhecesse sua vida íntima, e isso faria com que fosse muito mais difícil trabalhar juntos. A colaboração e a indiferença poderiam armonizar; a colaboração e o ressentimento dificilmente.

- Não conheço o autor. Recorda o original?

- Não.

- Não pode ser um clássico, pois os pagãos, pelo que já li, não odiavam si mesmos nem se sentiam culpados por suas atividades sexuais. Isso fica reservado para os cristãos, que têm um peculiar conceito do pecado. Como "de tudo o que fiz" se refere, obviamente, a algo mal feito, suponho que era algo de índole sexual, porque um ladrão nem sempre está roubando, nem um assassino sempre está assassinando, mas a sexualidade está com um sempre, dia e noite. Mas é curioso que aqueles que se detestam logrem amiúde conservar sua própia estima quando se encontram diante dos outros, frequentemente mediante a humilhação geral. Acham que têm muito pouco valor, mas que seus semelhantes têm ainda menos.

Esse era um meio efetivo de evitar que lhe fizessem indesejadas confidências, mas acrescentou as últimas palavras com outra intenção, motivado por suas própias reflexões, e a efetividade foi maior. Notou com pena que havia ferido a Fox, que, com um sorriso forçada, afirmou:

- Estou totalmente de acordo.

Depois, da forma mais apropiada, agradeceu ao doutor Maturin pela amabilidade de atender-lhe, elogiou sua destreza para curar uma moléstia tão desagradável e se lamentou de ter-lhe importunado.

Enquanto se dirigia à escada do castelinho pelo meio do convés, Stephen se disse: "Qual é a vantagem disto? Teria sido muito melhor aparentar estupidez ou incompreensão". Estava a ponto de subir a escada quando um guarda-marinha que descia correndo deu um salto para esquivar-lhe, não pôde pôr o pé onde devia e caiu.

- Está bem, senhor Reade? - perguntou enquanto levantava o jovem.

- Muito bem, senhor, obrigado. Desculpe-me por vir correndo, mas o capitão me mandou dizer-lhe que avistamos o cabo Java. O cabo Java, senhor! Não é maravilhoso?


CAPÍTULO 6

Era verdade: apenas Fox passou dois dias rodeado pela cultura, o clima, a forma de vida, as línguas, os alimentos, os rostos e os gestos orientais e se converteu em outro homem, em uma pessoa mais amável.

Os marinheiros voltaram a encher em Anjer todos os tonéis de água vazios, exceto meia dúzia que restavam em um paiol, e carregaram a fragata com víveres, gado, madeira, aguardente de palma, tabaco e água doce para lavar por fim sua roupa, que estava dura e áspera pela água do mar. Enquanto isso, Fox acompanhou a Jack e a Stephen a Buitenzorg, o palácio do governador Stamford Raffles, e os apresentou.

Fox estava orgulhoso de Raffles e com razão, pois era um homem de uma excelente educação e muito amável; a opinião que Jack e Stephen tinham de Fox mudou quando viram que o governador lhe tinha em grande estima. Raffles os convidou imediatamente para que ficassem e ainda que se lamentou de que tivessem que participar de um almoço com numerosas pessoas, prometeu que jantariam em particular. Ademais, disse que talvez o doutor Maturin gostasse de ver seu jardim e suas coleções.

- Porque, se não me equivoco, senhor, o senhor é o cavalheiro a quem devemos a descoberta do Testudo aubreii. Porém, agora que o penso, talvez seja o capitão Aubrey o padrinho desse glorioso réptil. Quanta satisfação ter duas pessoas tão famosas sob nosso teto ao mesmo tempo! Olivia, querida...

Mas antes que a senhora Raffles pudesse dar-se conta de que era afortunada, o governador recebeu mensagens oficiais urgentes que requeriam sua atenção antes da refeição e os convidados foram conduzidos para seus quartos.

O almoço foi realmente um acontecimento importante. Os convidados se sentaram exatamente por ordem de precedência, pois os javaneses e os malaios davam ainda mais importância à hierarquia que os europeus. O sultão de Suakarta se situou à direita do governador e junto dele os dois generais de divisão, e depois Jack, que era o oficial de marinha de mais antiguidade. Muito além se sentou Stephen, entre o capitão de um barco recém chegado que fazia o comércio com as Índias e um funcionário. Fox se colocou no outro extremo, à direita da senhora Raffles. Os homens que se sentaram junto a Stephen estavam falando animadamente enquanto se aproximavam da mesa, e quando se sentaram, o funcionário, que estava a sua direita, disse:

- Eu dizia aqui para meu primo que não deve se preocupar com as notícias que chegaram de Londres. Essas coisas sempre se exageram pela distância, não acha, senhor?

- Certamente, é difícil conhecer a verdade, tanto de perto como de longe - assentiu Stephen -, porém, de que o cavalheiro não deve se preocupar? Chegaram notícias de que Londres queimou outra vez ou que foi declarada uma epidemia de peste? - Sem dúvida, ele teria notado essas coisas antes de zarpar e teria trazido as notícias.

- Bem, senhor - respondeu o marinheiro -, aqui todos falam das grandes perdas na Bolsa, de que os títulos estão pelos pisos e de que os bancos vão quebrar, especialmente os rurais. Tudo começou quando saí de Blackwall.

- Doutor - interveio o funcionário -, é possível que lhe pareça estranho que conhecêssemos as notícias antes que chegasse o barco que comercia com as Índias, mas isso costuma ocorrer, porque às vezes a Companhia envia mensageiros por terra que atravessam a grande velocidade o deserto da Arábia e Pércia. A última notícia chegou faz menos de três meses, porém, como sucede sempre, deformada pelos rumores. Os que lançam os rumores gostam aumentá-los para os que lhes prestam atenção, e quando a Bolsa baixa um pouco dizem que desceu até o fundo. Mas desfrutam ainda mais falando da quebra dos bancos. Ao longo de minha vida já vi derrubarem grandes bancos como Coutts, Drummond, Hoares; quer dizer, todos os mais importantes. Creia-me, Humphrey, nada disso é verdade. Eu lhe falo como assessor financeiro do governador.

Enquanto tomavam café no longo, sombreado e fresco salão, Jack se aproximou de Stephen e, em voz muito baixa, disse:

- Oh, Stephen, quanto me alegro de que não seguisses meu conselho relação ao dinheiro! Acabo de ouvir duas coisas muito desagradáveis. Uma é sobre a Cidade e a banca: pelo visto, muitos bancos suspenderam os pagamentos e alguns, os rurais, quebraram. Foi feita uma referência em particular ao nome de Smith. A outra coisa é que os franceses já chegaram a Pulo Prabang. Chegaram antes de nós apesar de todos nossos esforços!

Quando Stephen ia responder, o homem que tinha se sentado a sua esquerda se aproximou para despedir-se. Ao ver Jack, disse que o conhecia porque estando a bordo de um barco que fazia o comércio com as Índias, em companhia da Surprise, já então sob seu comando, havia entabulado um combate com uma corveta e um navio de linha franceses e os havia obrigado a render-se. Quando terminou de narrar a batalha, o salão já estava quase vazio e o governador chamou ao doutor Maturin.

- É estranho que alguém não olhe minhas coleções como uma atração de feira - disse.

- Banks desfrutaria muito vendo isto - assegurou Stephen, detendo-se diante de um assombroso grupo de orquídeas que cresciam nas árvores, nas fendas dos muros, em vasos e na própia terra. - Sabe muito mais de botânica que eu. Mostrou-me seus desenhos da baunilha...

- Aqui está a planta. Um amigo me mandou uma raiz do México e espero que a planta se aclimate. Agora é um insignificante talo verde em um vaso pingente.

Partiu um pedaço de uma bainha e a ofereceu a Stephen, que assentiu com a cabeça, cheirou-a e prosseguiu:

- ... com grande admiração e ao mesmo tempo com certa tristeza, porque pôde ver muito poucas coisas quando esteve aqui no Endeavour.

- Deve de ter se sentido muito triste. Porém, ainda que tivesse podido viajar pela zona, teria que chegar muito longe para chegar a conhecer a flora. Naqueles tempos não havia nada que merecesse o nome de jardim botânico, pois os holandeses viam a ilha com olhos de comerciantes, não de naturalistas.

- A verdade é que lembro de muito poucos holandeses naturalistas além de Van Buren, que era na realidade um estudioso da fauna.

- Verdade. E ele sozinho é como toda uma constelação. Lamento muito que já não se encontre entre nós. Éramos muito bons amigos. Mas provavelmente o conhecerá em Pulo Prabang, pois, conforme ouvi dizer, vai acompanhar Edward Fox ali.

- Tenho muita vontade de que isso ocorra. Mas acredito que estava errado ao pensar que abandonou Java porque os britânicos a conquistaram.

- Completamente equivocado, e me alegro de poder dizê-lo. Somos muito bons amigos. Detesta Bonaparte tanto como nós, assim como muitos dos funcionários holandeses com os quais trabalhamos agora. Sua mudança foi combinada muito antes de que chegássemos, principalmente para o bem da senhora Van Buren, que é malaia, mas também pelo do orangotango e os gibões menores, que ficarão melhor ali que aqui, por não falar das galinhas e das nectarinas. Por desgraça, nunca hei estado em Pulo Prabang, mas acredito que tem todas as vantagens de Borneo sem o inconveniente dos caçadores.

Quando terminaram de ver o viveiro onde Raffles havia reunido as aves do paraíso, o que não fora uma tarefa fácil, e Stephen manifestou seu apoio incondicional ao seu projeto de fundar uma sociedade de estudos zoológicos e botânicos em Londres, Raffles disse:

- Acho que um homem de sua reputação não necessita de uma carta de apresentação para ir ver Van Buren, mas se a quiser, me seria muito fácil dá-la.

- O senhor é muito amável, porém, pensando bem, talvez deveria ir a sua casa e apresentar-me eu mesmo. Se chegassem a saber que me fui apresentado pelo governador de Java, não seria crível o papel que represento, o de um naturalista que faz uma viagem não oficial com seu amigo Aubrey. Por outra parte, suponho que o senhor saiba de que forma estou relacionado com a missão do senhor Fox.

- Sim, senhor.

- Também, eu lhe agradeceria que me recomendasse algum comerciante notável deste lugar que emita letras de câmbio e tenha algum sócio em Pulo Prabang.

- Não se importaria que fosse chinês? - perguntou Raffles, depois de meditar um momento. - São eles que se ocupam de quase toda a atividade bancária, do desconto de letras e deste tipo de assuntos nesta região.

- Não, em absoluto. Precisamente pensava em um farsi ou um chinês porque sempre ouvi dizer que são muito honestos.

- Os melhores podem fazer empalidecer a John Company. Em Batavia temos a Shao Yen, um homem que me deve favores e tem negócios desde Penang até as ilhas Molucas. Averiguarei se tem algum sócio em Pulo Prabang.

- Possivelmente terei que entregar consideráveis somas, e é mais conveniente sacar o dinheiro dos bancos locais que levá-lo de um lado para o outro. Mas a razão principal é que quando chegar a Pulo Prabang quero parecer um homem importante, não um aventureiro com dinheiro. Se for ver Shao Yen recomendado pelo senhor, ele me tratará com respeito e fará com que seu sócio me trate com o mesmo respeito. Ademais, os comerciantes e banqueiros inteligentes costumam proporcionar valiosas informações, mas não lhes seria possível dá-la sobre um estranho a menos que tivesse um importante respaldo; e apesar de que eu poderia entregar grande quantidade de ouro e letras de crédito, não teriam tanto valor como uma recomendação sua.

- O senhor me bajula, mas devo admitir que não se equivoca. Eu lhe pedirei que venha amanhã pela manhã. Em que mais posso ajudar?

- Seus homens poderiam dar-me uma lista dos membros da missão francesa?

- Acho que não, além dos Duplessis e do infame casal, que já conhece. Sua fragata chegou faz poucos dias e já a levaram do porto de Prabang porque os marinheiros armavam muito alvoroço na costa. O sultão não receberá Duplessis em audiência até a mudança da lua porque está caçando com seu primo em Kawang para tentar conseguir um rinoceronte de dois cornos.

- Tanto melhor. Seria possível que me desse um breve relatório sobre o sultão e seus principais conselheiros?

- Certamente! Quanto ao sultão, Fox sabe tudo sobre dele, seus antepassados javaneses, suas esposas, suas sogras, suas concubinas e suas qualidades; contudo, é possível que em meu departamento saibam algo de novo sobre os membros de seu governo. Como gritam estes simpáticos gibões! Ouviu a campainha?

- Acho que sim.

- Então deveríamos entrar para jantar. Minha esposa pensou em começar com um prato que provavelmente lhe parecerá gracioso, sopa de ninho de pássaro, e diz que há que comê-la quente. Mas antes de irmos, veja o grande gibão que está à esquerda da casuarina, ainda que haja pouca luz. Olá, Frederick!

O gibão respondeu com um melodioso "Hu, hu, hu!" e o governador entrou apressadamente.

- Por favor, capitão Aubrey, falem-nos de sua viagem - disse enquanto sustentava a colher de sopa a meio caminho da boca.

- Bem, senhor, foi uma viagem sem incidentes até que chegamos diante de uma das ilhas do arquipélago Tristão da Cunha, mas depois esteve a ponto de converter-se em uma viagem muito mais acidentada que o previsto. Quando estávamos frente a Inacessível, pois esse é o nome da ilha, formou-se uma forte corrente do oeste, o vento se acalmou e a fragata começou a balançar de uma maneira ruim. Ainda que tivéssemos colocado contraestais e trocado os amantilhos... mas me parece que estou usando muitos termos náuticos, senhor.

- Não, de nenhuma maneira, de nenhuma maneira! Acho que eu estive no mar primeiro que o senhor, capitão.

- Ah, sim, senhor? Desculpe-me. Eu não sabia.

- Sim. Nasci diante da Jamaica, a bordo do barco de meu pai, um barco que fazia o comércio com as Antilhas. Ah, ah, ah!

Passaram o restante da noite falando de longas viagens e das viagens dali para a Índia e para lugares mais distantes, alguns extraordinariamente rápidos e outros extraordinariamente lentos. Por último Jack contou como seu amigo Duval havia levado as notícias referentes à batalha do Nilo para Bombaim atravessando o deserto e o rio Eufrates.

 

Shao Yen era um homem alto e vestia uma túnica cinza. Parecia mais um austero monge que um comerciante, mas compreendeu a situação de imediato. Falaram em inglês porque ele mantivera uma estreita relação com os representantes da Companhia em Cantão quando era jovem e vivera em Macau, durante as duas recentes ocasiões em que os britânicos a ocuparam, e em Penang. Raffles os deixou sozinhos depois de fazer alguns comentários amáveis, e quando terminaram as frases de cortesia apropiadas, Stephen disse:

- Quando eu vá a Pulo Prabang possivelmente necessite comprar a boa vontade de alguns homens influentes, e com este propósito trouxe uma considerável quantidade de moedas de ouro. Mas me parece que a melhor forma de agir seria depositá-la em seu banco, sujeito às comissões e encargos normais, e obter uma carta de crédito para sacá-la do banco de seu sócio em Pulo Prabang.

- Sem dúvida - consentiu Shao Yen. - Porém, quando fala de uma considerável soma, sabe aproximadamente qual é o valor?

- É composta por diferentes tipos de moeda e pesa três quintais no total.

- Então permita-me dizer-lhe que nenhum de meus dois sócios, porque tenho dois, poderia encontrar na ilha nem ao menos a décima parte dessa soma, é uma ilha muito pobre. Porém, em minha opinião, se a décima parte for utilizada com tato, poderia comprar toda a boa vontade que seja possível encontrar.

- Nesse caso é provável que haja alguns competidores.

- Sim - disse Shao Yen baixando os olhos e, depois de permanecer assim um momento, acrescentou: - Poderia ser uma boa solução que lhe desse uma carta de crédito pela quantia que acho que meu sócio pode conseguir e notas para diversas somas. As notas que meu banco emite são válidas de Penang até Macau.

- Essa seria uma estupenda solução. Obrigado. E peço que comunique ao seu sócio meu desejo de que toda a operação de custo elevado seja estritamente confidencial. Umas vezes convém que a simples troca de moeda seja pública e outras não, e lamentaria que pensassem que podem tirar milhares de libras de mim.

Shao Yen consentiu com a cabeça e explicou:

- Tenho dois sócios, os dois discretos e originários de Shantung; contudo, a loja de Lin Liang é menor e, por isso, chama menos atenção, assim que será melhor dirigir a ele a carta de crédito.

Depois de tomar chá e comer pastas de várias bandejas com Shao Yen, Stephen procurou Jack Aubrey, mas descobriu com tristeza que partira para Anjer para trazer a Diane até Batavia para não perder nem um momento.

Stephen pensou: "Isto o fará se esquecer desse estúpido rumor, pobrezinho".

Estava satisfeito pelo que lhe comunicara o especialista em finanças e passou a primeira parte do dia observando o pavão real javanês de Raffles, que era muito mais bonito que o da Índia, um amistoso bingturon, o enorme herbolário e os jardins, onde se reuniu com ele a senhora Raffles, que vestia um avental e luvas de couro. Foi uma agradável manhã.

O almoço foi menos agradável. Antes de começar, Fox lhe apresentou a três altos funcionários que iam se juntar à missão e que pareciam quase caricaturas do protótipo de funcionário: eram altos, gordos, de cara vermelha, de voz potente e arrogantes. Além disso, sua conversa era mais chata que o imaginável. Quando tudo acabou, Fox disse:

- Sinto muito tê-lo feito passar por isto, mas eles são necessários neste momento. Temos que oferecer um espetáculo pelo menos igual ao dos franceses, que estão acompanhados de outros três cavalheiros além dos dois traidores, que não estão acreditados oficialmente, e os serventes. Estes homens que o governador me proporcionou costumam participar em missões deste tipo. Podem permanecer de pé durante horas com seu uniforme com galões dourados sem se cansar nem ir ao banheiro; sabem fingir que estão escutando os discursos, e nos banquetes são capazes de comer qualquer coisa, incluída carne humana. Mas reconheço que ficar em sua companhia é uma dura prova.

- Vous l'avez voulu, George Dandin.

- Sim. Poderei suportá-la durante a viagem e as negociações e poderia suportá-la muito mais tempo contanto que tenhamos êxito nesta missão. Uma das razões - acrescentou, rindo - é que o governador me disse que se regressasse com um tratado e era ele quem escrevia o despacho, poderia obter o título de cavalheiro ou mesmo o de barão.

Nesse momento Stephen não pôde apreciar se Fox falava sério, mas sua dúvida se dissipou quando, depois de uma pausa em que refletia, continuou:

- A minha mãe gostaria tanto disso!

A Diane chegou a Batavia com o vento em popa e a maré alta da tarde. Jack enviou uma mensagem oficial informando que esperava zarpar no dia seguinte às onze da manhã. Seymour levou a mensagem e, também, uma nota para Stephen na qual Jack pedia que instasse os outros a se apressarem, que servisse de exemplo e que convidasse o governador para visitar a fragata.

- E também, senhor, ele lamenta que o senhor não estivesse a bordo quando passamos frente à ilha Thwart-the-Way, pois estávamos rodeados das andorinhas com que se faz a sopa de ninho de pássaro.

- Encantar-me-ia - disse Raffles ao ouvir a sugestão. - Não há embarcação mais bonita que um barco de guerra.

- Nem, por desgraça, nada que funcione tão rigorosamente atrelada ao tempo e às badaladas. Alegro-me muito de que venha, pois sua presença contribuirá para que os outros sejam pontuais.

Os outros, gostando ou não, tiveram que ser pontuais, pois Raffles fazia tudo com a precisão de um cronômetro muito bem graduado. Às nove e quareta e cinco um grupo de botes encabeçado pela falua do governador foi em procissão até a Diane. A fragata tinha um aspecto mais bonito do que podia se esperar que tivesse uma embarcação onde estavam carregando madeira, água e provisões com grande rapidez, já que o capitão e o imediato sabiam muito bem o efeito obtido com as vergas colocadas exatamente perpendiculares aos paus, com ajuda de moitões e braças, as velas aferradas em camiseta e com os numerosos objetos desagradáveis escondidos sob as macas esticadas como um tambor, sem uma só ruga. De todo modo, a nuvem de fumaça provocada pelas treze salvas podia ocultar grande quantidade de imperfeições e a cerimônia de recepção lograria que qualquer um desviasse sua atenção das que se viam por entre as clareiras. Todos tinham ensaiado a cerimônia três vezes desde a alvorada e a executavam perfeitamente. O croque da falua se engatou à fragata; os grumetes desceram rapidamente com guarda-mancebos forrados de feltro para lograr que a subida fosse fácil inclusive para um estúpido; o contramestre e seus ajudantes deram várias ordens. E no momento que o governador e o enviado subiram a bordo, onde o capitão Aubrey e todos os oficiais lhes deram as boas-vindas, os quarenta infantes da marinha da Diane, com casacas vermelhas como lagostas e até o último botão impecável, apresentaram armas com um estalido simultâneo.

O dia era quente e limpo, e como a grande cabine estava dividida, Jack mandou estender um toldo sobre a parte posterior do castelo de popa para receber nele seus convidados. Ali todos se sentaram e comeram sorvetes ou beberam vinho de Madeira enquanto falavam ou contemplavam o amplo porto, onde havia numerosos barcos europeus, juncos chinêses, paraús malaios e incontáveis botes e canoas que iam de um lado para o outro. Enquanto isso, subiam a bordo pelo lado de bombordo a bagagem e os serventes adicionais dos membros da missão. Às dez e quinze Raffles perguntou se podiam mostrar-lhe a fragata, e a percorreu com Jack e Fielding fazendo inteligentes comentários. Quando regressou ao castelo de popa, chamou seus acompanhantes, despediu-se dos membros da missão, agradeceu efusivamente a Jack suas atenções e desceu até sua falua rodeado outra vez das habituais honras e do rugido dos canhões.

Jack, com expressão muito satisfeita, seguiu a falua com a vista, e assim que ela chegou a uma distância prudente voltou-se para Richardson, o oficial de guarda, e anunciou:

- Vamos zarpar.

Quando o contramestre gritou "Todos a desamarrar!", a fragata tomou vida. Estava amarrada no cais que se tinha sido construído há tempos para os barcos de guerra holandeses, e os marinheiros tardaram pouco tempo em soltar as amarras e desdobrar as gáveas para que pegassem o moderado vento do oeste. Avançou com cautela por entre os mercantes, às vezes muito lentamente, e quando soaram as seis badaladas na guarda da manhã saiu do porto.

- Este é o tipo de visitante que eu gosto - disse Jack, reunindo-se com Stephen na cabine. - Um homem que sabe quando chegar e quando partir. Há muito poucos assim. Beberemos uma garrafa de Latour a sua saúde - disse atirando sua imensa casaca com galões dourados em cima do respaldo de uma cadeira.

Quando a Diane inclinou pelo impulso das joanetes, a casaca escorregou, mas apareceu Killick como se tivesse saído de uma ratoeira, agarrou-a e a levou murmurando:

- ... jogá-la como se fosse um farrapo... do melhor pano de Gloucester... escová-la uma e outra vez... trabalha, trabalha e trabalha.

- Parece cansado, meu amigo - observou Stephen.

- A verdade é que estou cansado - respondeu Jack, sorrindo. - Carregar madeira e água a toda velocidade é uma tarefa esgotadora, especialmente quando os marinheiros estão tão desejosos de ter permissão para descer a terra e se divertir depois de passar tantos meses no mar. Perdemos dez, porque não tivemos tempo de buscar em todos os bordéis nem detrás de todos os armazens; contudo, isso nos permitirá mover as macas para frente para fazer lugar para os novos serventes, para essa absurda quantidade de serventes. Acho que agora poderemos navegar sem tanta ansiedade, pois, por um lado, estamos na rota dos mercantes que vão a Cantão e a seguiremos até que estejamos um pouco ao sul da linha do Equador e viremos para leste, e por outro, ainda que as águas sejam perigosas, tenho as detalhadas cartas marítimas de Muffit e suas instruções. Já sabe que Muffit fez esta viagem mais vezes que qualquer outro capitão da Companhia das Índias e, em minha opinião, como hidrógrafo é melhor que Horsburgh e até mesmo que Dalrymple.

Mas Jack Aubrey fez esta suposição sem contar com os convidados. As três necessárias aquisições que iam dar mais peso ou, pelo menos, mais volume à missão, chamavam-se Johnstone, Crabbe e Loder, e eram um juiz e dois membros do conselho que haviam chegado a sua posição atual por ter sobrevivido a todos seus competidores. Quando a Diane passou pelo labiríntico arquipélago Thousand Islands, cruzou o famoso banco de areia Tulang com uma margem de só três braças e começou a aproximar-se do estreito Banka, Johnstone e Stephen se encontraram no meio do convés, caminhado em direções opostas. Stephen nunca simpatizara com nenhum juiz dos que conhecera, pois tanto os que conhecia pessoalmente como os que vira nos tribunais lhe pareciam charlatões, arrogantes e indignos da imensa autoridade que tinham, e Johnstone era, por desgraça, um excelente exemplo. Depois de fazer alguns comentários insípidos, disse:

- Também gosto muito de música e desfruto mais que ninguém ouvindo uma melodia, mas sempre digo que tudo é bom com moderação, não acha? Além disso, sou uma dessas estranhas pessoas que não se sentem a vontade a menos que tenham dormido bem pela noite. Estou seguro de que o capitão não sabe que as paredes da cabine deixam passar o ruído, e confio em que o senhor terá a amabilidade de dar a entender diplomaticamente.

- Com respeito à afirmação de que tudo é bom com moderação, senhor juiz, permita-me dizer-lhe que é contrária à opinião de todos os homens de bem desde tempos imemoriais - replicou Stephen. - Pense nos banquetes descritos por Paralipomenón, Homero e Virgilio, e em que não foram precisamente tontos quem os fizeram e os comeram. Quanto ao resto, está claro que o senhor não sabe que sou um convidado do capitão Aubrey, pois caso contrário nunca teria suposto que eu poderia dar-lhe a entender como deve se comportar.

- Então eu mesmo o direi - disse Johnstone, vermelho de raiva, antes de dar meia volta.

Não o disse durante o almoço, ainda que fosse óbvio que estava se preparando para fazê-lo e seus amigos não deixavam de olhar-lhe, mas Jack se informou nessa mesma tarde, quando a fragata atravessava o estreito entre Banka e Sumatra, que em alguns pontos media menos de dez milhas de largura. O vento era instável, pois soprava alternativamente de uma margem e da outra, e ainda que os bosques de ambos os lados, separados por uma faixa de céu azul, constituíam um bonito espetáculo para os passageiros (Stephen, que se achava na cesto da gávea do maior, parecia ter visto pela luneta um rinoceronte de Sumatra), a passagem pelo estreito foi difícil e esgotador para os marinheiros devido às incessantes mudanças de bordo e os contínuos gritos do sondador desde o pescante, que às vezes anunciava menos de cinco braças de profundidade, e a constante possibilidade de que se encontrassem com bancos de areia que não estivessem nas cartas marítimas. Em um determinado momento Jack desceu correndo para comprovar uma advertência que lera nos papéis de Muffit, e enquanto o fazia ouviu que na última cabine Killick falava a Bonden desses "malditos sacanas" e da forma com que se queixavam da música. Não prestou muita atenção porque estava muito preocupado com as rochas e se limitou a dizer:

- Já basta!

Mas isso se gravou no profundo de sua mente e voltou a aflorar depois de fazer a revista, justo quando recompuseram as cabines outra vez, e trouxeram o estojo com seu violino da coberta inferior.

- Killick, veja se sua excelência está livre e pode receber visitas.

Sua excelência estava livre e Jack foi diretamente ao ponto.

- Meu estimado senhor Fox, sinto muito - disse. - Não tinha idéia de que fazíamos tanto ruído.

- Quê? - perguntou Fox, olhando-lhe assombrado. - Ah, o senhor se refere à música! Peço que não se preocupe. É verdade que não tenho bom ouvido e que não posso apreciar a música, mas posso suportar perfeitamente a situação com tampões de cera, pois só o que ouço através deles é um ligeiro zumbido que me parece mais agradável que um soporífero.

- Não tenho palavras para expressar o alívio que sinto. Mas seus companheiros...

- Espero que não tenham protestado, afinal de contas o senhor teve a amabilidade de dar-lhes alojamento e comida. Não sabem o que é apropriado e nunca viajaram em um barco de guerra antes, só em mercantes da Companhia, onde, naturalmente, são considerados homens importantes. Tento que se comportem bem mas parece que não compreendem. Um deles mandou chamar o doutor Maturin esta manhã... A fragata parou?

- Sim. Ancoramos para passar a noite. Não me atreveria a cruzar o estreito na escuridão nem mesmo que levasse a bordo a César e toda sua fortuna ou a algum de seus representantes.

Jack Aubrey raras vezes devolvia um cumprimento, mas a resposta de Fox realmente lhe agradou porque foi muito amável e sincera, e ainda mais porque foi inesperada. De fato, não se atreveria a cruzar o estreito em nenhum tipo de circunstâncias. O avanço era lento e angustiante e às dificuldades se somavam as variações das fortes correntes. Os "malditos sacanas" mantiveram uma atitude indiferente ante tudo isso, como se tivessem viajando em um coche por um caminho bem traçado. Nenhum deles falou com Jack diretamente do assunto, mas fizeram a vida de Fielding impossível. Queixaram-se de que Fleming impedisse que Loder falasse com o suboficial que governava a fragata; disseram que se incomodavam muito que descessem sua bagagem todas as tardes para o porão e que a última vez os marinheiros não tinham colocado no lugar correto o estojo de lápis de Crabbe e um valioso ventilador, pelo que havia tardado pelo menos meia hora em achá-los; e protestaram de que cada noite que a fragata passava ancorada no estreito Jack mandava os tripulantes subirem ao castelo para bailar e cantar, o que fazia com o propósito de que se distraíssem depois de um dia esgotador. Mas as queixas mais freqüentes estavam relacionadas com seus serventes, que eram obrigados a esperar seu turno na cozinha e eram objeto de vulgares zombarias acompanhadas às vezes de gestos e frases obscenas.

Na realidade, Jack não ficava ao alcance deles, porque passava muito tempo no cesto da gávea do traquete com uma luneta e uma bússola para medir o azimute e em companhia do oficial de derrota e de um guarda-marinha que lhes segurava os papéis. Dali puderam ver e se esquivar de numerosos perigos, e viram um peculiar daquela região quando a fragata atravessava o banco de areia do final do estreito, onde a saída da parte sul do mar da China podia se converter em algo perigoso se não encontrassem a passagem. De uma ilha situada a barlavento chamda Kungit por Horsburgh e Fungit por Muffit, se aproximaram dois grandes paraús malaios com batangas que navegavam com rapidez com o vento pelo través. Logo viram que em seus alongados cascos havia muitos homens, um número de homens surpreendente.

Sua intenção era óbvia. A pirataria era um meio de vida naquela região. Ainda que raras vezes as embarcações do tamanho da Diane fossem atacadas, em algumas ocasiões isso aconteceu, e às vezes com êxito.

- Senhor Richardson - disse Jack.

- Senhor?

- Prepare-se para sacar os canhões o mais rápido possível quando dê a ordem. Os marinheiros devem se manter ocultos.

Os paraús se separaram e se aproximaram da fragata cautelosamente e apagando as velas, um pela alheta de bombordo e outro pela de estibordo. A tensão aumentou. Os artilheiros das brigadas permaneciam imóveis e agachados como gatos junto aos canhões. Mas nada ocorreu. Os paraús vacilaram, orçaram e se afastaram, pois seus capitães decidiram que aquele era um verdadeiro barco de guerra, não um mercante disfarçado. Por toda a coberta inferior se ouviram suspiros de alívio e os marinheiros largaram de um lado as alavancas.

Por alguma razão isto fez calar os protestas dos "malditos sacanas" durante os dias que seguiram. Era melhor assim, pois estavam em uma situação grave (e talvez eles tivessem percebido que suas queixas podiam obter uma resposta seca), já que justo abaixo da linha do Equador a Diane teria que deixar a rota dos mercantes e navegar por águas pouco profundas que não estavam descritas em nenhuma carta marítima e pelas quais só passavam paraús e juncos, que tinham muito pequeno calado, enquanto que o da fragata, devido às provisões, era de quinze pés e nove polegadas na popa.

Apesar disso, Jack se alegrou de desfazer-se deles no final do viagem, uma viagem que terminou realmente bem. Depois de passar uma noite navegando ao longo do mesmo paralelo com as gáveas aferradas, enquanto se faziam constantes medições com a barquilha, ao amanhecer viram perfeitamente o lugar de destino, uma inconfundível ilha vulcânica situada a sotavento, e uma suave brisa começou a aproximar a fragata dela.

Contudo, Jack deixou as gáveas desdobradas. Queria prevenir os malaios de sua chegada muito antes de que tivesse lugar, dar muito tempo para os tripulantes da fragata e os membros da missão se prepararem e tomar o café da manhã tranqüilamente. Este último fez em companhia de Stephen, Fielding e o jovem Harper, e quando terminou regressou ao abarrotado castelo de popa, onde Fox, seus acompanhantes e todos os oficiais contemplavam Pulo Prabang, agora que se estava muito mais perto. Olhavam-na em silêncio e o único som que se ouvia na fragata, além do burburinho do vento na exárcia, era a ladainha do sondador:

- Mede doze. Mede doze. Mede doze e meio.

A vista era realmente impressionante. A ilha, que se estendia de um lado a outro do campo de visão, era coberta quase completamente por bosques de cor verde-escuro e o vulcão central, em forma de cone truncado, elevava-se muito acima das árvores. No interior havia outros picos, mais baixos e provavelmente muito mais velhos, mas não tão nítidos, e só podiam ser distinguidos olhando-se com muita atenção; contudo, as crateras a que se aproximavam, a que havia no céu e a ficava ao nível do mar, não podiam ser confundidas nem deixar de ser vistas. A segunda formava um círculo quase perfeito de uma milha de diâmetro e suas paredes se elevavam sobre a superfície até uma altura entre dez e vinte pés. Na borda via-se uma ou outra palmeira, mas a circunferência só tinha uma abertura, aquela para a qual a fragata se dirigia. E na parte mais próxima da costa, junto ao delta do rio sobre o qual se assentava a cidade, tinha um colorido escuro devido à terra e ao lodo que tinham se acumulado ali lentamente durante longo tempo.

Em um dos braços da imensa parede que rodeava o porto havia uma velha fortaleza que possivelmente era portuguesa e, sem dúvida, estava deserta. Jack dirigiu a luneta para ela e notou que tinha grama nas frestas vazias; depois a dirigiu para o outro lado e viu que a certa distância das casas havia uma construção parecida com um castelo dominando a entrada do porto, que estava cheio de embarcações de vários tipos. Lembrou-lhe de Shelmerston, ainda que a areia fosse negra, os mastros dos barcos fossem tripés de bambu e as velas fossem feitas de esteira; talvez o que tinham em comum eram as embarcações com aspecto pirático.

- Marca dez.

As águas tinham cada vez menos profundidade, e pelas pequenas ondas que rompiam na parede exterior parecia que a maré estava subindo. Jack observou o resto do porto e viu que havia certa atividade nos barcos pesqueiros e que estavam querenando um paraú. Olhou para a cidade e viu uma mesquita, depois outra, depois casas amontoadas na margem do rio e um enorme edifício sem forma definida que devia de ser o palácio do sultão.

- Marca nove, nove e meio. Marca nove.

Ao redor da cidade havia um complexo de casas rodeadas por amplos jardins. Além se viam muitos campos verdes, alguns de cor verde brilhante, que indubtavelmente estavam cheios de arroz. E detrás do terreno plano, todo cultivado, existiam bosques.

Dirigiu a luneta para a entrada do porto, de cem jardas de largura, e assentiu com a cabeça. Então olhou os botes, já preparados para descer, depois a âncora, que já estava no pescante, depois para o senhor White e os canhões, e finalmente se voltou para o oficial de derrota e disse:

- Para o centro do canal, senhor Warren, e detenha a fragata quando chegarmos a oito braças ou a um cabo de distância da costa, o que ocorra primeiro.

As duas coisas ocorreram quase ao mesmo tempo. A fragata parou e os marinheiros jogaram a âncora, içaram a bandeira e começaram a fazer as salvas.

Em geral, em um porto desconhecido de uma ilha desconhecida, Jack enviava alguém à costa para se assegurar de que responderiam as salvas uma por uma, já que na Armada Real se dava muita importância às saldações; contudo, Fox lhe assegurara que o sultão e seus súditos tinham muito bons modos e nunca ficariam mal por uma fórmula de cortesia. Apesar de tudo, sentiu um grande alívio ao ouvir a rápida resposta, com um número correto de salvas a intervalos apropiados, e ao notar que os canhões com que as faziam eram apenas um pouco maiores que os canhões giratórios, pois em caso de desacordo seria muito desagradável ficar ao alcance de uma bateria de canhões de dezoito libras.

Quando fizeram a última salva, zarpou do cais uma canoa que tinha na pontiaguda proa uma cabeça de tigre e no centro um balancim e uma cabine. Vinte remadores a tripulavam e era evidente que transportava uma pessoa importante.

- Senhor Fielding, que desçam os grumetes com guarda-mancebos - ordenou Jack. - Mas acho que não são necessários os infantes da marinha nem dar apitadas no costado - acrescentou olhando para Fox, que assentiu com a cabeça.

A canoa se abordou com a fragata e então a pessoa importante, um homem moreno e magro com um turbante manchado de cor ocre e uma adaga metida no sarongue, subiu a bordo como um marinheiro, cumprimentou os que estavam no castelo de popa com uma profunda inclinação de cabeça e levou sua mão à testa e depois ao coração. Enquanto isso, com ajuda dos moitões, os tripulantes da canoa passaram várias cestas de frutas para os marinheiros que estavam no corrimão. Fox avançou um passo, deu as boas-vindas ao homem em malaio, agradeceu-lhe os presentes e apresentou-lhe a Jack dizendo:

- Este é Wan Da, um enviado do vizir. Deveríamos tomar café com ele na cabine.

Passaram muito tempo tomando café. De vez em quando, através de Killick ou de Alí, enviaram-se mensagens dali: uma foi para que os marinheiros descessem o bote, outra para que os cavalheiros do séquito se preparassem para descer a terra e outra para que o ajudante do encarregado da bodega subisse sua bagagem para o convés. Ahmed, Yusuf e os tripulantes da Diane que sabiam algumas palavras em malaio conversavam com os tripulantes da canoa através dos portalós do castelo. Em uma ocasião Killick subiu rapidamente para o convés, agarrou as cestas olhando com receio ao seu redor e voltou a desaparecer. As esperanças dos tripulantes se desvaneceram e a animada conversa cessou, mas quando soaram as seis badaladas o senhor Welby recebeu a ordem de mandar descer pelo lado de bombordo o grande cúter, que se encheu com bagagem, serventes, cinco infantes da marinha e um cabo. Depois de outros quinze minutos saíram Wan Da, o senhor Fox e o capitão. Wan Da desceu para a canoa, que se afastou um pouco, e o cúter se aproximou para que subissem nele o enviado e seu séquito. Quando as três embarcações começaram a navegar rumo à costa, começaram a ouvir de novo as treze salvas com que recebiam ao enviado. Quando o triplo eco da última se apagou, Jack se voltou para Stephen e disse:

- Bem, finalmente o deixamos. Houve momentos em que achei que nunca conseguiríamos.

Stephen, que podia ver perfeitamente que Fox chegara a Pulo Prabang e estava a ponto de desembarcar, franziu o cenho e perguntou:

- Restou café? Estou sentindo seu perfume já faz um longo tempo e não me deram nem um trago.

- Parece que nos esperavam - disse Jack enquanto lhe conduzia para a cabine. - O vizir pôs à disposição da missão uma casa de moderado tamanho no complexo onde vive. Fica na margem leste do rio e os franceses têm outra na outra margem. O sultão regressará coma mudança da lua e receberá em audiência as duas missões juntas.

- Quando a lua mudará? - perguntou Stephen.

Jack o olhou, pensando que era difícil acreditar que um homem não pudesse chegar a conhecer coisas fundamentais como essa apesar de ter muitas provas do contrário, mas que naquele caso talvez fosse assim, e em tom amável disse:

- Dentro de cinco dias, meu amigo.

 

Como Shao Yen dissera a Stephen, a casa de Lin Liang era discreta e comparativamente pequena. Dava para uma ruela empoeirada na qual havia numerosas lojas descuidadas e que iam da rua que beirava o rio no lado leste até o limite da cidade, perto do complexo onde Fox se encontrava. A loja, situada em frente, estava abarrotada de mercadorias, objetos de porcelana azul e branca, enormes vasos para guardar arroz, rolos de algodão azul, barris, séries de lulas dessecadas e de outras criaturas de colorido obscuro não identificáveis que pendiam dos vaus; contudo, tinha um aspecto pobre e descuidado. Uma mulher malaia estava comprando uma grama e meia de betel, de cal e de curcuma, e no fundo se encontravam Edwards e Macmillan, acompanhados por Yusuf, o servente mais jovem de Fox, e ambos pegavam tranqüilamente entre os dedos ginseng e barbatanas de tubarão. Quando a mulher se foi, insistiram em que o doutor Maturin tomasse a sua vez porque eles não tinham pressa. Ainda que Stephen notara que isso devia-se a algo mais que à boa cortesia, não acedeu e permaneceu na porta observando o escasso tráfego enquanto com ajuda de Yusuf trocavam dinheiro e sussurravam seus pedidos. Yusuf era muito menos discreto e traduziu em voz muito alta e clara:

- Dois dos que duram pouco tempo e cinco dos que duram toda a noite.

Quando partiram, Stephen também trocou um guinéu e pediu para ver Lin Liang. O jovem chamou outro garoto para que cuidasse da loja, fez Stephen passar detrás dos dois balcões e depois atravessar um armazém, um pátio flanqueado por outras duas lojas e finalmente o levou até um jardim rodeado por um tapume onde havia um poste de luz de pedra e um salgueiro. Em um canto havia uma casinha com uma porta redonda como uma lua cheia e junto dela estava Lin Liang, que fez repetidas inclinações de cabeça e depois avançou para encontrar-se com Stephen na metade de caminho. Fez com que entrasse na casinha e indicou para que sentasse em uma ampla e formosíssima poltrona pintada com laquê de Soochow, obviamente trazida para a ocasião. Pediu chá, vinho do porto e pastas, e os trouxe um andrajoso eunuco que tinha só um olho. Quando Stephen se tomou aproximadamente um quarto de pinta de chá (disse que agradecia muito a atenção, mas que por desgraça seu fígado não tolerava o vinho do porto), Lin Liang se desculpou por não ter podido reunir a quantidade de dinheiro equivalente ao valor da nota do estimado Shao Yen nem mesmo com a ajuda de seu colega da outra margem do rio, o respeitável Wu Han. Acrescentou que em uma semana poderia conseguir a soma porque Wu Han ia receber uma importante dívida e que por enquanto preparara a quantidade que podia pôr a disposição do doutor Maturin, de modo que a oitava parte eram pagodes e as três quartas partes eram moedas de prata holandesas e chinesas, já que naquela região eram mais comuns moedas de prata que de ouro. Disse tudo isto movendo as contas de um ábaco de um lado para o outro com extraordinária rapidez para representar o equivalente das diversas quantidades depositadas no banco de Shao Yen em cequíes, ducados, guinéus, mises de ouro e johannes. Os números passavam voando pelos ouvidos de Stephen, que, contudo, olhava-o atentamente, e quando finalizaram os cálculos disse:

- Muito bem. Possivelmente dentro de pouco faça algumas transferências que é preciso que se mantenham em segredo. Pelo que entendi Wu Han é seu sócio nesta operação, porém, ele compreende a importância disto?

Lin Liang assentiu com a cabeça. Explicou que Wu Han tinha que ser necessariamente seu sócio porque a transação era muito importante para qualquer um deles fazer separadamente, e que cada um ficaria com a metade dos ganhos. Ademais, assegurou que era a discrição em pessoa e calado como o lendário Mo.

- Não é o banqueiro da missão francesa?

- Apenas trabalhou com eles. Ele lhe deram um pouco de dinheiro para que o trocasse por florins de Java para fazerem as compras cotidianas, porém, na realidade, só há uma conexão entre o empregado de Wu Han, que é de Pondicherry, e um homem da missão que também procede da Índia francesa.

- Então, por favor, diga a Wu Han e a seu empregado de Pondicherry que eu gostaria de obter toda a informação que tenham sobre os franceses, como nomes e coisas parecidas, e que estou disposto a pagar por isso. Porém, Lin Liang, o senhor sabe tão bem como eu que em assuntos deste tipo a discrição é fundamental.

Lin Liang estava totalmente convencido disso e muitos de seus própios assuntos eram confidenciais. Disse que talvez no futuro o doutor Maturin gostasse de entrar pela porta que tinha o nome Discrição, uma porta situada detrás da choça onde ele e sua família passavam sua miserável vida. Cruzaram outro pátio rodeado por uma galeria onde pendiam orquídeas de alguns vaus e havia jovens esbeltas com os pés vendados que se afastaram com passos curtos e rápidos; depois o conduziu através de outro, rodeado por um alto tapume com um saliente acabamento onde havia um olho mágico do qual se via uma pequena porta de ferro. Do outro lado havia uma vereda que beirava um canal abandonado.

Stephen o seguiu. Tinha tempo de sobra para chegar ao encontro com Van Buren e observou com suma atenção as orquídeas das árvores que flanqueavam o canal e as que cresciam na terra entre eles. Tanto a vegetação como as flores eram muito variadas, e pegou exemplares das plantas que não vira no jardim de Raffles nem em seu herbário e de alguns insetos para sir Joseph, insetos tão distintos dos que conhecia que nem ao menos podia adscrevê-los a uma família. Quando chegou na porta da casa de Van Buren ia muito carregado, mas nessa casa aquilo era muito habitual. Mevrow Van Buren pegou as flores e seu esposo trouxe vasos para guardar os insetos.

- Quer que façamos a dissecação da víscera agora? - perguntou. - Reservei o baço especialmente para o senhor.

- Ficaria encantado - respondeu Stephen. - É muito amável.

Atravessaram lentamente a casa (Van Buren tinha um pé defeituoso) e foram para uma sala, onde estava dissecando uma anta. Casualmente, a porta do jardim estava aberta, e quando passaram junto dela Van Buren explicou:

- Se entrar por aqui quando me faça a honra de visitar-me, pouparíamos tempo, sobretudo de noite, quando todas as portas da casa estão fechadas com chave e o guarda acredita que todos os visitantes são ladrões. E temos que poupar tempo porque neste clima os espécimes não se conservam. Precisamente as antas se decompõem com a mesma rapidez que a cavala, ainda que ninguém o suporia.

Suas palavras eram tão certas que ambos trabalharam com rapidez, quase sem pausa e em silêncio. Ainda que em algumas ocasiões se comunicaram movendo os espelhos que refletiam a luz nas cavidades do corpo, na maioria delas o fizeram por meio de inclinações de cabeça e sorrisos; contudo, Van Buren assinalou uma das patas dianteiras do anta, peculiares do ponto de vista anatômico, e disse:

- Cuvier.

Quando terminaram de examinar o baço de todos os ângulos e de pegar as amostras e seções que Van Buren necessitava para seu livro, sentaram-se fora para respirar ar puro. Van Buren falou com erudição não só daquele baço mas dos outros que vira, de como eram formados e do errôneo conceito de force hypermécanique.

- Já fez a dissecação de um orangotango alguma vez? - inquiriu Stephen.

- Somente a de um - respondeu Van Buren. - Seu baço está na estante onde se encontram os humanos, dos quais tenho só uma pequena coleção. É muito difícil conseguir um cadáver realmente bom neste país. Os únicos são procedentes dos ocasionais casos de adultério.

- Mas o comportamento imoral, quer dizer, a ilícita satisfação do desejo sexual, ainda que se repita em multidão de ocasiões, quase não afeta o baço de um homem, não é verdade?

- Em Pulo Prabang sim, meu amigo. Na pessoa que não é capaz de se conter, põem em sua cabeça uma bolsa cheia de pimenta, prendem suas mãos e a entregam a seus familiares, que formam um cerco ao seu redor e golpeiam com paus a bolsa para que a pimenta se espalhe. Em pouco tempo isso provoca a morte e posso conseguir o cadáver, mas as prolongadas convulsões que a precedem deformam o baço de maneira surpreendente e, como consequência, os sucos que produz mudam tanto que não servem para fazer uma comparação, não servem de apoio à minha teoria.

- O baço de um símio é muito diferente do nosso? - perguntou Stephen depois de uma pausa.

- Muito pouco. O efeito renal por cima da parte posterior... mas lhe mostrarei os dois para que o comprove por si mesmo.

- Eu gostaria de ver um orangotango - disse Stephen.

- Infelizmente, há muito poucos aqui e isso me decepcionou - comentou Van Buren. - Eles comem seus apreciados duriães e por isso os matam.

- Ainda que pareça absurdo, nunca vi um durião.

- A árvore onde meus morcegos ficam é um durião. Eu lhe mostrarei.

Caminharam até um canto do jardim onde havia uma árvore muito alta rodeada por uma cerca de bambu.

- Aí estão meus morcegos - anunciou Van Buren, assinalando grupos de criaturas de cor escura, quase negro, e de cerca de um pé de comprimento que pendiam de cabeça para baixo envolvidas em suas asas. - Quando o sol chega às árvores mais distantes começam a dar grasnidos e depois se vão para os jardins do sultão, e se o guarda não estiver atento se comem as frutas das árvores.

- Eles não comem seus duriães?

- Oh, não! Tratarei de encontrar um.

Van Buren saltou por cima da cerca, pegou um longo tridente, levantou a vista para a árvore e vasculhou entre as folhas. Os morcegos, muito incomodados, moveram-se dando grunhidos e um ou dois voaram em círculo, estendendo suas asas de cinco pés de envergadura, e voltaram a pousar mais acima.

- Algumas pessoas comem os morcegos - disse Van Buren, e depois gritou: - Cuidado!

O durião caiu produzindo um estrépito. Tinha o tamanho e a forma de um coco mas era coberto por grandes espinhos.

- A casca é muito grossa para que os morcegos o comam - explicou enquanto o cortava - e, além disso, tem espinhos, horríveis espinhos. Já atendi vários pacientes com importantes lacerações por lhe terem caído um durião na cabeça. Mas o orangotango o abre apesar da grossa casca e dos espinhos. Alegra-me dizer que este está muito maduro. Por favor, pegue um pedaço.

Stephen se deu conta de que o odor apodrecido não provinha da dissecação mas da fruta e teve que fazer um esforço para vencer sua resistência.

- Oh! - exclamou um momento depois. - É extraordinariamente boa! Que grande contradição entre o experimentado pelo sentido do olfato e pelo do paladar! Até agora supunha que ambos eram inseparáveis aliados. Aplaudo o bom juízo do orangotango.

- É um animal encantador, pelo que já houvi falar. É dócil, reflexivo, não se parece em nada com o babuíno nem com o mandril, nem memo ao pongo nem tem a malícia dos incansáveis e petulantes macacos. Mas como disse, aqui quase não há. Para ver um autêntico orangotango malaio tem que ir a Kumai.

- Adoraria ir. O senhor já esteve lá, né?

- Não, nunca. Não posso escalar com esta perna e no final do caminho por onde se pode ir a cavalo há alguns degraus escavados na parte externa da parede rochosa da cratera. Chamam-lhes de "Os mil degraus", mas acredito que há muitos mais.

- Minha situação é quase tão desvantajosa como a sua. Tenho que permanecer neste lugar até o final das negociações, que espero tenham um final feliz. Hoje soube da existência de uma conexão que poderia ser útil.

Desde o início de sua relação amistosa, melhor dizendo, de sua verdadeira amizade com Van Buren, Stephen sabia que ele se opunha ao projeto dos franceses tanto porque odiava a Bonaparte pelo que fizera na Holanda como porque pensava que podia arruinar Pulo Prabang, pelo qual sentia um grande carinho. Tinham muitos amigos comuns, sobretudo eminentes anatomistas, e um conhecia e apreciava a obra do outro. Pela primeira vez em sua carreira como espião, Stephen deixou de simular e contou para Van Buren sua conversa com Lin Liang e quais eram suas esperanças. Depois disso, sentados à sombra, em um banco situado no exterior da sala de dissecações, Van Buren começou de novo a lhe dar uma detalhada informação sobre os membros do governo do sultão, como suas virtudes, seus defeitos, seus gostos e a forma de chegar a eles.

- Estou infinitamente agradecido, estimado colega - disse Stephen por fim. - A lua já saiu e posso ver o caminho de regresso para a cidade, onde irei caminhar entre os bordéis e os estabelecimentos onde bailam.

- Poderia ver-lhe mais tarde? Geralmente começo a trabalhar de novo quando a noite esfria, em torno das duas. Se não acabarmos algumas das operações mais importantes antes que saia o sol, é possível que não possam distinguir-se. Mas antes que se vá, permita-me dizer algo que me ocorreu. O meio irmão de Latif, nosso servente, serve na casa em que a missão francesa foi alojada e é possível que possa obter informação sobre esse homem de Pondicherry.

 

Durante aqueles dias Stephen quase não viu Fox e Jack Aubrey. Permaneceu em terra e costumava passar a noite em seu lugar favorito de uma pequena colônia javanesa, um estabelecimento onde tinha excelentes bailarinas e uma famosa orquestra javanesa, uma gamelan. Ainda que o ritmo e as pausas de sua música lhe fossem desconhecidos, gostava de ouvi-la durante a noite, enquanto ficava deitado junto a sua companheira adormecida, uma jovem perfumada tão acostumada às peculiaridades de seus clientes (algumas delas verdadeiramente raras) que sua passividade não lhe importava nem lhe molestava.

No salão principal, onde as bailarinas atuavam, encontrava às vezes companheiros de tripulação, que se assombravam de sua presença ali ou se envergonhavam de ver-lhe. O senhor Blyth, um homem mais velho que ele e muito amável, chamou-lhe à parte e disse:

- Eu lhe advirto, doutor, que este lugar não é muito melhor que um bordel e que amiúde há prostitutas aqui.

Também havia jogo e as partidas, que às vezes duravam até a alvorada, eram jogadas com paixão e com apostas muito altas. A maioria dos que iam ali eram homens ricos, mas Stephen raras vezes se encontrou com algum francês e não viu Ledward nem Wray, que se tinham reunido com o sultão onde ele estava caçando porque o rajá de Kawang era um conhecido de Ledward. Uma vez jogou com quatro espanhóis que eram carpinteiros de barcos e serviam na Armada francesa. Todos tinham recebido o pagamento do mês da fragata, que estava ancorada em uma enseada remota para evitar que seus tripulantes sofressem danos, e Stephen lhes tirou o dinheiro (sempre fora afortunado jogando cartas) e grande quantidade de informação, mas os deixou ganhar e recuperá-lo quando se informou de que não gostavam de ficar entre os franceses. Ademais, fez com que acreditassem que era um espanhol na Armada inglesa, o que para eles pareceu natural, pois a Espanha e a Inglaterra eram aliados. Eles tinham sido recrutados a força em 1807, quando as coisas tinham outro aspecto, e desde então não tinham podido ir embora.

O restante do tempo Stephen passava caminhando pelo campo da maneira que se esperava que fizesse um naturalista convidado pelo capitão. Algumas vezes ia com Richardson, outras com Macmillan e ocasionalmente com Jack; contudo, com mais freqüência ia sozinho, porque seus amigos não gostavam das sanguessugas do bosque, que se lhes colavam aos montes nas partes mais emaranhadas, e os tormentosos mosquitos e moscas nos campos irrigados. As caminhadas foram muito proveitosas, apesar desses inconvenientes e da presença de um tipo de abelha muito agressiva que faziam colméia no campo, de maneira que pendessem de um grosso galho, e que atacavam qualquer intruso que vissem pela frente e o perseguiam ao longo de um quarto de milha ou até o arbusto frondoso mais próximo, onde às vezes havia ferozes formigas vermelhas e em uma ocasião viram uma serpente píton enrolada ao redor de seus ovos. Logo encontrou por casualidade uma vereda por onde os lenhadores haviam arrastado troncos puxados por vários búfalos, e nessa clareira do bosque podia ver bem os pássaros que havia nas árvores, sobretudo os cálaos, algum ou outro trágulo e não era raro encontrar gibões. Foi nesse lugar amplo onde Jack o encontrou numa tarde depois de manter uma interessante conversa com o empregado de Wu Han que era de Pondicherry.

- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack. - Disseram-me que talvez estivesse aqui, mas se soubesse que teria que subir boa parte da montanha, teria pego um pônei. Meu Deus, que calor! Não sei de onde tira tanta energia depois de suas atividades noturnas.

Como o restante de seus companheiros de tripulação, Jack ouvira que o doutor levava uma vida dissoluta e estava bebendo, fumando e jogando até altas horas da noite; contudo, só ele sabia que Stephen podia receber um sacramento sem necessidade de confissão.

- A verdade é que estive muito atarefado ontem à noite - explicou Stephen, pensando na anta, que agora era simplesmente um esqueleto. - Mas você também poderia subir a montanha sem ofegar se não comesse tanto. Estava muito melhor fisicamente quando era um pobre desgraçado. Quanto pesa agora?

- Isso não importa.

- Pelo menos vinte libras a mais, ou talvez trinta. Que Deus nos ampare! Os tipos obesos e de constituição sanguínea sempre estão a um passo da apoplexia, especialmente neste clima. Não poderia pular o jantar? Mas matou a janta que sarou Avicena.

- A razão pela qual subi com esforço esta infernal montanha foi para anunciar que Fox convocou uma reunião conosco esta tarde. O sultão volta amanhã à noite, só uma semana depois do acordado, e nos receberá em audiência no dia seguinte.

Enquanto desciam explicou a Stephen o estado da fragata e que já estavam usando as provisões que carregaram em Anjers, especialmente a grande quantidade de cabos de cânhamo de Manila, e contou com detalhe, talvez muito minuciosamente, como reorganizara a bodega para que pudesse afundar a popa um pouco mais.

- Só uma emborno ou dois, compreende? Nada chamativo ou estrondoso. Isso me produziu grande satisfação. Mas houve algo mais que não me produziu tanta - acrescentou, negando com a cabeça e com uma expressão melancólica. - Depois de consultar a Fox, reuni todos os marinheiros na popa e lhes contei que estávamos aqui para conseguir um tratado entre o rei e o sultão e que os franceses se encontravam aqui pelo mesmo motivo. Acrescentei que os franceses tinham descido para terra em tropel e ofenderam aos habitantes porque se embebedaram, brigaram e quiseram beijar jovens honestas e tocar seus peitos desnudos, pelo que sua fragata foi levada para a enseada Malária. Então lhes adverti que só daria permissão para descer a terra aos tripulantes da Diane sob a promessa de que teriam um bom comportamento e que, mesmo assim, só desceria um pequeno número deles ao mesmo tempo e com muito pouco dinheiro adiantado do pagamento. Acrescentei que o motivo era o bem de seu país, só o bem de seu país, e ainda que pensava terminar com "Deus salve ao rei" ou pedindo que dessem três vivas ao rei, quando acabei não me pareceu muito apropriado. São todos uns teimosos e estão mal-humorados, eu lhe asseguro. Só vejo olhares depreciativos e caretas de desgosto. Inclusive Killick e Bonden se limitam a dizer-me "Sim, senhor" ou "Não, senhor" e nunca sorriem. Sei que não sou um bom orador e que os tripulantes da Surprise me teriam compreendido sem necessidade de oratória porque me conhecem, mas não estes marinheiros. Todos gostariam de estar em terra deitados com uma jovem e não se importam muito com o bem de seu país.

- A verdade é que esse instinto é muito poderoso, talvez o mais forte de todos... Sei que se opõe a que haja mulheres a bordo, mas neste caso, sob a condição de que os jovens Reade e Harper e talvez Fleming desçam para terra, não me parece provável que isso estrague gravemente a moral.

- Poderia cuidar disso?

- Não, mas não tenh dúvida de que Fox poderá. Venderia sua alma por este tratado e inclusive tentaria satisfazer as necessidades de um orfanato inteiro.

- Eu lhe perguntarei.

 

- Boa tarde, cavalheiros - cumprimentou Fox. - Obrigado por terem tido a amabilidade de vir. Gostariam de tomar cerveja das Índias Orientais? Esteve em uma cesta pendurada no interior do poço e está quase fria - acrescentou, servindo-a, e depois continuou: - Como os senhores sabem, o sultão nos receberá em audiência depois de amanhã, e possivelmente me peça que fale aos membros de seu governo imediatamente depois das formalidades, assim que lhes agradeceria que me fizessem qualquer observação que desse mais solidez a nossos argumentos. Já conhecem as posições. Os franceses oferecem um subsídio, canhões, munição e carpinteiros peritos em barcos; nós oferecemos um subsídio, espero que maior que o dos franceses, proteção e algumas concessões comerciais, que verdadeiramente não têm muita importância. Por outra parte, existe implicitamente a ameaça do que poderíamos fazer quando termine a guerra. O problema é que a captura de um dos barcos que comerciam com as Índias seria muito prejudicial para nós e lhes produziria benefícios muito antes que qualquer subsídio que possamos lhes oferecer. Ademais, nesta zona o resultado da guerra não parece tão claro como gostaria.

- Bem, senhor - disse Jack -, com relação ao tema dos barcos, o único do qual estou capacitado a falar, o senhor poderia assinalar que apesar dos malaios serem excelentes construtores de paraús e outras embarcações pequenas... Precisamente lhes encomendei uma pinaça... Apesar disso, não sabem construir o que nós chamamos de um barco de guerra, um barco capaz de suportar o peso de uma fileira de canhões e o impacto que produzem ao disparar. Por outro lado, ainda que os carpinteiros de barcos franceses conheçam seu ofício, estão acostumados a trabalhar com carvalho e olmo e não sabem fazê-lo com os tipos de madeira das Índias Orientais. Também poderia dizer que ainda que um paraú possa ser construído em uma semana mais ou menos, um barco de exárcia de cruz é algo muito diferente. Em primeiro lugar, necessita-se de um estaleiro, uma carreira ou um cais apropiados; em segundo lugar, tomando como exemplo um navio de setenta e quatro canhões, só para o casco são necessários troncos secos, repito, secos, de duas mil árvores de umas duas toneladas cada um, e sua construção requer o trabalho de quarenta e sete carpinteiros de barcos durante doze meses. Para construir uma fragata como a nossa em um ano fazem falta vinte e sete eperimentados carpinteiros. Além disso, quando por fim o barco esteja construído, terá que ensinar os marinheiros a manejar uma exárcia que desconhecem e também os canhões, para que causem mais estrago ao inimigo que a si mesmos, o que não é uma tarefa fácil. Acho que esse plano foi feito por um grupo de homens do interior em um escritório, pensando que daria bons resultados imediatamente.

- Essas cifras são muito importantes - disse Fox, enquanto as anotava. - Muitíssimo obrigado. Mas talvez em Paris também tenham pensado que isso seria uma potencial ameaça que nos obrigaria a reduzir nossas forças em outros lugares. Uma potencial ameaça às vezes tem efeitos que superam... mas não tenho que ensinar-lhe nada sobre estratégia nem táticas - acrescentou, sorrindo. - Doutor, pode contribuir com algo?

- Não tenho muitas coisas definidas que dizer agora e não quero incomodar-lhe com conjeturas - respondeu Stephen. - Mas lhe direi que pelo menos alguns dos carpinteiros de barcos são espanhóis recrutados à força e é provável que fujam para as Filipinas quando tenham a menor oportunidade; pelo menos alguns dos canhões que os franceses oferecem estão deteriorados; e pelo menos uma parte da pólvora sofreu danos durante a viagem pela umidade e a negligência do condestável, que esqueceu de girar os barris a intervalos apropiados. Essa é toda a informação que tenho, mas se me permite fazer uma observação, acrescentarei que para contrariar a vantagem que Ledward tem, como já conhece o sultão porque esteve caçando com ele e talvez tenha ganhado seu favor, poderia ser útil convidar a sua excelência para visitar a fragata para que veja disparar os grandes canhões. As estrondosas descargas e a ostensível destruição dos alvos flutuantes o fariam mudar de opinião e compreender o que somos capazes de fazer.

- Sim, certamente. Proporei isso ao vizir imediatamente. É uma boa idéia de todo ponto de vista.

Serviu mais cerveja, que já estava morna e sem espuma, e depois prosseguiu:

- Agora, a menos que lhes ocorra algo mais, permitam-me falar sobre a roupa para a audiência. Em ocasiões como esta vestir com magnificência é o mais importante, e por isso a metade dos alfaiates chinêses de Prabang estão fazendo trajes para nossos servidores. Os oficiais estarão perfeitamente bem com seu uniforme de gala, e meu séquito e eu temos a roupa adequada; os infantes da marinha, naturalmente, não poderiam ter melhor aspecto. Estive pensando, capitão, que talvez os barqueiros de sua falua, adequadamente vestidos, deveriam acompanhá-lo junto com os oficiais e os guardas-marinhas. E o senhor, meu estimado Maturin? Com uma casaca negra, ainda que fosse muito boa, não poderia alcançar aqui nosso objetivo.

- Se se requer magnificência e se dá importância ao tecido e ao trabalho dos artesãos, irei com meu traje de doutor em medicina: uma túnica com capuz de cor escarlata.

 

E foi com a túnica escarlata ou, pelo menos, vermelho da China que Stephen entrou com Jack pela porta do lado leste do palácio. Caminharam com rapidez porque a chuva tropical ameaçava cair com fúria e o enviado só possuía um chapéu de plumas. Todos os membros da missão atravessaram tão rápido como a dignidade lhes permitia o espaço aberto que havia diante do fosso e o muro interno, um muro de quarenta pés de altura e doze de espessura que fora construído pelos antepassados javaneses do sultão. Fizeram uma impressionante entrada encabeçados pelo enviado, que ia em um cavalo com arreios de cor carmesim adornados com prata e era conduzido por moços com sarongues e turbantes de tecido dourado. Os tripulantes da Diane usavam chapéus novos, chapéus de palha de aba larga pintados de branco e com fitas, casacas azuis com botões dourados, calças de dril brancas como a neve, sapatos negros com bonitos laços e úteis sabres no lado. Depois atravessaram outro pátio enquanto os homens do sultão tocavam trompetes e tambores, e quando começaram a cair as primeiras grossas gotas, entraram no palácio. O enviado adjunto, Loder, não era notável como companheiro mas era um excelente chefe de protocolo, e entre ele e o secretário do vizir haviam estabelecido a colocação dos membros da missão com sumo esmero, respeitando estritamente a precedência. Cada homem se situou no lugar indicado ao longo da parede oriental da grande sala de audiêcias e Fox e seus colaboradores mais próximos se colocaram a várias jardas do trono vazio. Depois de permanecer ali um curto tempo, escutando a chuva, ouviram o toque dos trompetes e dos tambores com que eram recebidos os franceses. Primeiro entrou Duplessis, correndo e escorregando, e lhe seguiu seu séquito, composto por quatro homens de uniforme, Ledward e Wray, que usavam casacas azuis com uma estrela e uma cinta de uma ordem. Logo entraram os oficiais de marinha franceses e um monte de servidores, todos eles mais ou menos molhados. Durante alguns momentos os franceses se preocuparam em voltar a formar uma linha reta, já que tinham se desorganizado ao correr, e de revisar sua roupa, suas plumas e seus papéis molhados; contudo, assim que se situaram no lugar adequado, Duplessis, que estava no lado oposto do trono, olhou para o outro lado do espaço vazio e fez para Fox algo que poderia considerar-se uma inclinação de cabeça e que foi respondido exatamente com o mesmo grau de cordialidade. Ao mesmo tempo Wray observou a túnica escarlata de Stephen e reconheceu com horror primeiro sua cara e depois a de Jack Aubrey. Aspirou profundamente e se agarrou ao braço de Ledward, que olhou na mesma direção e se endireitou mas sem transluzir nenhuma emoção. A aparição do sultão no fundo da sala fez que a atenção de todos se desviasse, não sem que antes Stephen notasse que Fox estava pálido e tinha um olhar de ódio como poucas vezes vira.

O sultão começou a avançar entre seus serventes com leques, flanqueado por seus dois principais feudatários e seguido pelo vizir e outros membros do governo. Era um homem bem aparentado, alto para um malaio, de uns quarenta e cinco anos e tinha um grande rubi no turbante. Caminhava lentamente, olhando para um lado e outro com gesto solene. Os franceses tiveram a estranha idéia de aplaudir, como se estivessem no teatro, mas ele não mostrou assombro nem desgosto, e quando se dispunha a sentar-se no trono cumprimentou com a cabeça com a mesma cortesia aos de um lado e aos do outro. Seus servidores se agruparam atrás do trono e o vizir, um homem baixo e magro, deu um passo a frente e anunciou em tom respeitoso a chegada de dois enviados, o primeiro do imperador da França e o segundo do rei da Inglaterra, e solicitou permissão para que dessem as mensagens de seus senhores. Então o sultão disse:

- Em nome de Alá, o piedoso, o compassivo, permita ao que chegou primeiro falar primeiro.

Duplessis, com Ledward detrás, ocupou seu posto diante do trono e, depois de uma inclinação de cabeça, começou a ler seus papéis molhados. Não leu bem, porque a tinta borrara e tinha os óculos embaçados pelo vapor de água e, também, porque estava sufocado pelo calor e o uniforme molhado. Cada parágrafo era traduzido por Ledward. A tradução era fluida mas muito livre, e a disse em um tom grave que contrastava com os elogios e a expressão de boa vontade e o desejo do império francês de formar uma aliança ainda mais estreita com seus primos de Pulo Prabang.

O vizir combinara com os dois enviados em separado que as audiêcias não tardariam mais que um quarto de hora, já que o sultão ia oferecer um banquete imediatamente depois em vez de reunir-se com os membros do governo. Duplessis e Ledward, para assombro de seus companheiros, não falaram durante tanto tempo. Fox começou mal, teve que repetir duas vezes os epítetos do sultão, "flor da cortesia, fruto do consolo, rosa do deleite", porque se confundiu, mas depois se recuperou com uma brilhante e admirável evocação da ilustre ascendência do sultão e apenas empregou dez minutos. Quando terminou lhe fez uma inclinação de cabeça e se retirou; os membros do governo se olharam furtivamente com assombro, pois estavam acostumados a discursos mais extensos. Mas o sultão se deu conta de que tinha boa sorte e, após um momento de silêncio, sorriu e disse:

- Em nome de Alá, o piedoso, o compassivo, sejam bem-vindos, cavalheiros. Por favor, expressem meu agradecimento a seus governantes, a quem o céu proteja, por seus magníficos presentes, que para sempre formarão parte de nosso tesouro e nossos corações. E agora pode começar o banquete.

Nesse momento foi evidente o valor da insensibilidade. Fox ainda estava tão perturbado por aquele encontro, apesar de o esperar a tanto tempo, que sua habilidade para o trato social diminuiu muito; em troca, Johnson, Grabe e Loder falaram constantemente e muito alto, e com freqüência riram a gargalhadas, pelo que na cabeceira da mesa onde estavam os ingleses houve em todo momento bastante ruído. Essa mesa estava situada longitudinalmente no salão de banquetes, e para compensar aos ingleses pela posição que ocuparam durante a audiência, puseram-lhes à direita do sultão, cuja mesa estava colocada transversalmente em uma ponta do salão. Stephen estava bastante longe e, como era o único que podia manter uma conversa em malaio, colocaram-no entre um velho mal-humorado e taciturno cuja função nunca chegou a descobrir e Wan Da, o homem que lhes recebera ao chegar ali e que era uma agradável companhia. Como era um apaixonado caçador, conhecia bem os bosques, a selva e as altas montanhas.

- Eu lhe vi outro dia em Ketang - disse, rindo. - Tratava de escapar das abelhas como se fosse um cervo. Que saltos! Aquele canto onde fica a rocha avermelhada é perigoso. Eu também tive que sair correndo cinco minutos depois e perdi o rastro do babirussa, um enorme babirussa.

- Sem dúvida, é uma lástima, mas espero que lhe console um pouco pensar que a carne de porco é proibida para os muçulmanos.

- E o vinho também - acrescentou Wan Da, sorrindo. - Mas há dias em que o piedoso e o compassivo é mais piedoso e compassivo que outros. Na realidade os matamos porque perfuram os campos durante a noite e usamos suas presas.

O vinho era autêntico, um vinho tinto com corpo e agradável ao paladar. Stephen não pôde adivinhar sua origem, ainda que pensou que provavelmente era de Macau, e apesar de o terem servido em taças de prata, não de cristal, estava quase seguro de que alguns malaios, além de Wan Da, estavam-no bebendo. Sem dúvida, o sultão estava, pois Abdul, o copeiro, um jovem esbelto, não tentava ocultar o líquido escuro que servia.

Os franceses também o estavam bebendo. Enquanto Wan Da lhe contava como perseguira um urso apicultor, Stephen observava os rostos de quem estava sentado em frente. Os oficiais da marinha eram comparáveis aos oficiais ingleses e o capitão tinha uma expressão parecida à de Linois, a de um homem hábil, eficiente, decidido e alegre. Duplessis não devia estar habituado a lugares de clima tórrido nem a nenhum lugar fora de seu país, e seus conselheiros não eram muito diferentes aos de Fox. Wray piorara muito desde a última vez que Stephen o vira; tinha a cara flácida e quase irreconhecível e ainda se notava nela o desassossego que lhe produziu identificá-lo. Era improvável que permanecesse sentado durante toda a refeição porque tinha a cara de uma cor verdosa que se intensificava com cada trago de vinho. Ledward, em troca, recuperara a segurança e parecia um terrível adversário, um homem de inusuais poderes. Stephen observou como esvaziava sua taça e a elevava à altura do ombro para que a enchessem de novo, e notou que enquanto o fazia olhava significativamente para o soberano mudando a expressão quase de maneira imperceptível. Imediatamente olhou para a esquerda e pôde ver que Abdul lhe respondia com um sorriso.

Durante um tempo Stephen resistiu a acreditar que a impressão que tinha não era equivocada, porém, ainda que Ledward fosse discreto, Abdul, que estava detrás do sultão, não era, e logo a impressão se converteu em uma certeza. As possíveis consequências disto acudiram a sua mente e perdeu o fio do relato de Wan Da, a quem ao final ouviu dizer:

- Assim que tia Udin matou o urso e o urso matou a tia Udin, ah, ah, ah!

 

- Jack, já pensou alguma vez em Ganímedes? - perguntou quando avançavam pela borda da cratera por um ponto do qual podiam gritar para os que estavam na fragata.

- Sim - respondeu Jack. - Passei toda a noite em vela com ele e também passaria esta se não fosse porque amanhã é a visita do sultão. Quando aparece destaca-se por seu bonito colorido dourado. É meu favorito. Mas eu ficarei com ele quase toda a noite quando o sultão se vá.

- Ah, sim? - perguntou Stephen, observando o rosto de seu amigo, satisfeito por ter comido bem e mais vermelho que o habitual por causa do vinho do sultão. - Meu amigo, é possível que estejamos falando da mesma coisa?

- Espero que sim - respondeu Jack, sorrindo. - Júpiter está em oposição, sabe? Ninguém pode ter deixado de notar seu esplendor.

- Não. É realmente digno de se ver. E suponho que Ganímedes está relacionado com ele.

- Certamente! É o mais bonito de seus satélites. Como você é estranho, Stephen!

- Acho um nome muito apropriado. Mas me referia a outro Ganímedes, ao copeiro do sultão. Não o percebeu?

- Bem, sim, percebi e disse a mim mesmo: "Vá, isso é uma jovem!". Mas logo recordei que não podia ter mulheres em um banquete como esse e voltei a ocupar-me da excelente perna de veado, que certamente não era maior que a de uma lebre mas tinha um sabor extraordinário. Por que o chama de Ganímedes?

- Ganímedes era o copeiro de Júpiter e acho que hoje muitos fariam objeções a sua relação e sua amizade. Mas usei o nome descuidadamente, como ocorre amiúde, e não é minha intenção criticar ao sultão.


CAPÍTULO 7

- Lamento apresentar-me a esta hora - desculpou-se Stephen -, mas necessito urgentemente saber como se dizem em malaio mercúrio sublimado, nitrito de estrôncio e antimônio.

- O primeiro e o último se dizem pedok e datang - respondeu Van Buren -, mas o estrôncio ainda não se conhece nesta zona. Tem algum valor terapêutico?

- Nenhum, que eu saiba. Pensava usá-lo para fogos de artifício, porque produziria um bonito colorido vermelho.

- Com relação a isso, há nada menos que três pirotécnicos chinêses do outro lado do rio e dispõem de tudo. Dizem que Lao Tung é o melhor. Gostaria de ir com o senhor, porém, como lhe disse em minha nota, tenho que partir ao meio-dia e antes tenho que acabar com esta criatura.

- Naturalmente. Procurarei Lao Tung. Muito obrigado. O sultão é nosso convidado esta tarde com motivo do aniversário da princesa Sophia, e me ocorreu que se a Armada Real fizer uma salva colorida em honra dela não só lhe proporcionaria prazer, como enfatizaria a lealdade da missão, que contrasta com a traição de Ledward. Ademais, isso ressaltaria a diferença entre alguns homens que atraiçoaram primeiro o seu rei e depois a sua república e que agora apoiam um vil usurpador, e outros homens que sempre respeitaram o princípio do poder hereditário, o que provavelmente agradará a quem governa por mandato divino. Fox está de acordo. A propósito de sua alteza, tenho razão para supor que é um pederasta?

- Oh, é! Eu não lhe disse? Talvez não pensei em algo tão óbvio. Esse tipo de coisa é tão usual aqui como era em Atenas. O seu favorito atual é Abdul. Raras vezes vi um homem tão cismado.

- É um jovem bonito, indubtavelmente. Porém, deixando isso de lado, esta noite tive uma entrevista muito satisfatória com o empregado de Pondicherry.

- O empregado de Duplessis que é de Pondicherry?

- Exatamente. Chama-se Lesueur. O jovem empregado de Wu Han, a quem lhe deve muito, trouxe-o ao escurecer e imediatamente chegamos a um acordo. Tem um negócio de importação e exportação em Pondicherry, onde sua família ainda vive, e em troca de uma recomendação para a Companhia, nossa proteção no futuro e certa quantidade de dinheiro, comprometeu-se a dar-me toda a informação que possa. Esta manhã me enviou isto: o rascunho do diário oficial de Duplessis, que ele põe por escrito.

Van Buren deixou de um lado o bisturi, secou as mãos e pegou o feixe de papéis. Começou a ler atentamente e depois de ler um par de páginas disse:

- Vejo que pensa que nos relacionamos por razões puramente científicas.

- Sim. Fox queria vir falar com o senhor do templo budista de Kumai, mas lhe disse que a visita de um enviado poderia comprometer-lhe. Aubrey também está desejoso de que o apresente... Isso me recorda que tenho um encontro com ele às nove e vinte - acrescentou, olhando seu relógio. - Jesus, Maria e José, são nove e quarenta e cinco! Fica furioso como um leão se tem que esperar simplesmente por meia hora. Desejo a ambos muito boa viagem. Vão com Deus. Mostrarei os papéis em outra ocasião. Oh, meu Deus, meu Deus!

Jack, o contador, o ajudante do contador, Killick e Bonden, por recomendação de Stephen, foram à loja de Lin Liang para encomendar os víveres para a recepção dessa tarde na Diane, que serviria o própio Lin Lang. Depois de esperar Stephen por onze minutos no cais, dirigiram-se para a loja de Lin Liang, e escoltados por uma nuvem de meninos, dirigiram-se para a feira. Cumprimentaram Stephen com respeito e, com os lábios franzidos, lançaram significativos olhares para seus relógios ou para a clepsidra chinesa que estava junto às serpentes dessecadas de uso medicinal. Lin Liang, contudo, deu-lhe a boa-vinda mais calorosa que pôde e depois, quando terminaram de encomendar os víveres, mandou seu ajudante para que lhes indicasse por onde se ia à casa do pirotécnico.

Só foram Jack e Stephen, pois o senhor Blyth e os outros regressaram para a fragata. Atravessaram a ponte e seguiram o guia por uma rua perpendicular ao rio que de um lado tinha lojas e uma vala onde havia muitos porcos negros pequenos, e do outro, o complexo onde se alojava o enviado francês. A umas cem jardas diante deles, viram Wray e Ledward andando de braços dados. Quando Wray os viu se soltou, cruzou a rua, saltou a vala e irrompeu em uma loja de roupa. Ledward seguiu andando com a cara tensa. Stephen olhou para Jack, que só estava um pouco sério mas não demonstrava ter percebido nada. Ledward se desviou ligeiramente de seu rumo, aproximou-se do muro e então eles passaram.

Puseram o pedok, o datang e outras substâncias que com segurança produziriam um vermelho e um azul brilhantes em pequenas bolsas de algodão fechadas com um cordão colorido, pesaram-nas e puseram etiquetas coloridas. Enquanto desciam para a costa falaram muito pouco, mas quando caminhavam pela borda da cratera, onde sentiram uma agradável sensação de frescor depois de terem suportado o calor úmido e fedorento de Pulo Prabang, Stephen perguntou:

- O que sente por aqueles dois?

- Somente repugnância.

- Não daria um chute em Ledward, por exemplo?

- Não. E você?

Stephen se deteve e respondeu:

- Se daria um chute? Não... pensando bem, não.

Depois de andar silenciosamente alguns minutos pela lava branda e fragmentada, Stephen, no momento em que passavam junto à grossa árvore sob a qual se reunira com Lesueur, o empregado de Pondicherry, disse:

- Se tivesse por perto alguma pedra branca, eu a usaria para assinalar este dia porque, a minha maneira, consegui fazer uma jogada que poderá ser muito útil.

- Alegro-me muito - disse Jack, e encheu os potentes pulmões de ar, formou um megafone com a mão e gritou: - Ei, da Diane! - enquanto observava como o bote zarpava, acrescentou: - Ainda que não haja pedras brancas, aliás todas são negras como seu chapéu, pelo menos poderemos abrir uma caixa de vinho de Hermitage. Creio que o calor não o estragará.

Stephen, com o coração e o estômago inflamado pelo vinho de Hermitage, passou a última parte da tarde com o senhor White, o condestável, na bodega de proa e no paiol em que se enchiam os cartuchos, onde estava fresco por estarem abaixo da linha d’água. Estiveram rodando os barriletes de um lado para o outro e medindo e pesando seu letal conteúdo.

- Garanto, condestável, que isto não prejudicará seus canhões - repetiu. - O capitão usou a mesma mistura anteriormente em sucessivas descargas; eu vi com meus própios olhos. Provinha do armazém de um pirotécnico morto e lhe asseguro que não prejudicou os seus canhões. Além disso, só a usaremos para as salvas. Dispararemos nos alvos com a melhor pólvora para disparar a grande distância, a de grãos grandes e vermelhos.

- Não estou seguro - disse de novo o senhor White, tirando dissimuladamente um pouco de antimônio da balança. - Se os compostos químicos, quer dizer, os compostos químicos chineses, não estraguarem os canhões, o que os estragará? E um canhão estragado por compostos químicos, especialmente se são chineses, tem probabilidades de explodir.

mas ele e seus ajudantes eram as únicas pessoas que estavam preocupadas na fragata. A maioria dos tripulantes da Diane, chateados de ficar na fragata ancorada, esperavam ansiosos a visita do sultão. Naturalmente, tinham limpado a fragata de cima abaixo e agora, depois de preparar quatro estupendos alvos de certa altura cobertos com tanta estamenha como o carpinteiro podia usar, raspavam cuidadosamente as balas de canhão para que as irregularidades da superfície não as fizessem se desviar da trajetória. Por toda a fragata ouvia-se um suave martelo interrompido às vezes pelo estalido do rifle de Fox, que disparava em um tronco de árvore situado a dois cabos de distância e o acertava com tanta freqüência que Alí, olhando pela luneta, informava que via voar lascas atrás de quase cada disparo. Fox tinha sua outra arma a mão, que esperava usar quando Maturin aparecesse.

Todos estavam preparados muito antes da hora, mas todos estavam seguros de que o sultão, um estrangeiro, chegaria tarde, e se sentaram para desfrutar da indefinida espera com a prazerosa sensação de estar vestidos com sua melhor roupa e sem fazer nada, e gozando da brisa que soprava no ancoradouro. Portanto se encheram de assombro ao ver que um paraú de casco duplo zarpou do porto quarenta minutos antes da hora combinada e começou a avançar acompanhado do som das conchas e dos trompetes, algo que teria parecido presunçoso em qualquer embarcação que não fosse a de um príncipe governante.

Fox, que era quase a única pessoa que não estava vestido de gala, desceu correndo para pôr seu uniforme, e Jack, voltando-se para o primeiro oficial, comentou:

- Se algum maldito pilantra quisesse que a corte nos surpreendesse com as calças baixas, não poderia ter-lhes aconselhado melhor.

 

Fielding olhou ansiosamente para proa e para a popa, mas tudo parecia estar em ordem. O toldo estava estendido, as betas estavam amarradas à flamenga, os objetos de bronze brilhavam como em um iate do rei, todos os marinheiros barbearam-se e usavam camisas limpas, as vergas estavam colocadas exatamente perpendiculares aos paus.

- Toco a madeira, senhor - disse -, mas penso que provavelmente esse maldito pilantra sofrerá uma decepção porque, em minha opinião, poderemos receber os convidados sem nos envergonharmos; contudo, vou descer para recordar ao doutor que ponha a casaca e a peruca.

O primeiro dos convidados que chegou foi o própio sultão, que, como quase todos os malaios, subia a bordo como um marinheiro. Ele foi seguido pelo vizir, muitos dos membros do governo e o copeiro. Deram-lhes a boas-vindas com rugidos de canhões, apitos e uma breve cerimônia naval cheia de esplendor.

Em ocasiões como essa, Fox e seus colaboradores se desenvolviam muito bem. Indicaram aos convidados que se sentassem sob o toldo e para que se refrescassem lhes serviram bebidas às quais se acrescentavam criteriosamente genebra ou conhaque, conforme as instruções dadas de antemão, e ajudaram Jack e Fielding a mostrar-lhes a fragata. Jack se impressionou com o grande interesse que o sultão demonstrava por tudo o que via e sua facilidade para entender os princípios da arquitetura naval de grande escala, que notou quando o vocabulário que Fox empregava se esgotou ao falar dos sobretrancaniles, dos vaus das baterias e dos dois tipos de bitas, e o sultão compreendeu imediatamente a explicação que Jack escrevera com giz na coberta e explicou com gestos. Mas foram as peças de artilharia, tanto os canhões de dezoito libras como as caronadas, essas armas de boca larga de curto alcance realmente devastadoras, que fascinaram o sultão e seus acompanhantes. Até mesmo nos olhos do velho e bonachão vizir apareceu o brilho própio de um predador.

- Talvez sua alteza gostasse de vê-los em ação - sugeriu Jack.

Sua alteza se mostrou encantado e todo o grupo regressou ao castelo de popa. A recepção tinha ido bem até esse momento e Jack estava bastante seguro de que continuaria ainda melhor quando a fragata ganhasse velocidade. O único que não se mostrava satisfeito era Abdul. Apesar do enviado, que estava a par da situação, ter lhe dado um presente extraordinariamente bonito, Abdul mantinha um gesto austero desde o início, e quando serviam as bebidas arrebatara uma garrafa das mãos de Killick com tal brusquidão que em outras circunstâncias lhe teria custado um forte golpe. Agora que percebera que não era muito simpático aos tripulantes da Diane, tinha uma atitude tão arrogante e desdenhosa que mesmo os mais velhos sodomitas, como o cozinheiro e o encarregado dos sinais, moviam a cabeça de um lado para o outro. O própio sultão teve que impedir que continuasse puxando o rabicho de um dos canhões do castelo de popa, e enquanto rebocavam os alvos e deslizavam e atavam as amarras, fez coisas disparatadas e ofensivas e mostrou abertamente seu desprezo por Alí, Ahmed e os outros serventes malaios. Fox havia deixado seus dois rifles em cima do cabrestante quando desceu correndo, e nesse momento Abdul pegou o de Purdey. Disse que tinha muita vontade de dispará-lo, que estava acostumado a usar armas e acrescentou com voz infantil que era o melhor atirador de Pulo Prabang depois do sultão. Fox, para agradá-lo, carregou o rifle e mostrou como tinha que apoiá-lo e apontar; contudo, Abdul não o escutou nem, consequentemente, aproximou-se bastante da culatra, pelo que a arma, no retrocesso, golpeou sua face e ombro. Começou a chorar de dor e de raiva (Ahmed tinha rido a gargalhadas) e o sultão, absurdamente penalizado, tratou de consolar-lhe; mas nada pôde lográ-lo até que Fox, aceitando as sugestões não muito sutis de sua alteza, presenteou-lhe com uma de suas armas. O enviado pôs a melhor cara que pôde porque o tratado era muito valioso para ele, mas seu gesto complacente não convencia a ninguém e os outros sentiram um grande alívio quando ao ouvir-se o grito "Todos a zarpar!" a fragata se encheu de atividade e todos deixaram de prestar atenção à desagradável cena.

A brisa noturna de Prabang podia ser prevista com bastante exatidão e agora se comportava como eles esperavam, pois soprava seguindo uma linha de oeste para leste, da parte da abertura da cratera mais próxima para o mar pela cidade. Os marinheiros tinham rebocado os alvos até as posições correspondentes, ao norte e ao sul dessa linha e a quatrocentas jardas dela, dois a estibordo e dois a bombordo. Largaram as gáveas, as caçaram e puxaram as braças para subir as vergas em meio do vento estável que chegava pela alheta. A fragata ganhou velocidade muito rápido e Jack disse ao suboficial que a governava:

- Por favor, mantenha-a a cinco nós, senhor Warren.

Só iam disparar os onze canhões anteriores das principais baterias de ambos os lados, mas Fielding reunira ali todos os homens de talento da fragata, e ele e Richardson, seguidos pelos quatro guardas-marinhas mais responsáveis, iam supervisionar os disparos. Na realidade não havia muito o que supervisionar, pois o chefe e o subchefe das brigadas de cada canhão conheciam perfeitamente seu ofício. Bonden, encarregado do canhão de proa de estibordo, estivera apontando canhões de vinte e quatro e dezoito libras desde a batalha de Saint Vincent, e os escolhidos membros das brigadas já disparavam com uma rapidez e uma precisão muito superiores à média. Como a Diane era nova e forte e era bem construída, podia suportar o impacto de uma descarga simultânea, que era algo muito espetacular; contudo, todos os artilheiros que iam participar na ação sabiam que era um caso de tudo ou nada, um caso em que não se podia corrigir nenhum erro, e, também, que eram olhados atentamente por pessoas muito observadoras. A maioria deles tirara a camisa (suas melhores camisas, com rendas nas costuras), e as haviam colocado cuidadosamente dobrada no centro da fragata ou nos freios da bomba de baldes, e também a maioria deles estava nervosa. Como os novos interruptores de chispa podiam falhar, Jack preferia usar mechas de combustão lenta para este tipo de exercício, e agora a fumaça se amontoava na coberta e trazia a todos inumeráveis lembranças.

A fragata estava quase paralela ao primeiro alvo e a água formava ondulações em seus costados.

- Está em posição - murmurou Bonden.

- Fogo! - gritou Fielding.

Toda a bateria disparou, produzindo um longo e estrondoso ruído, e saíram dela onze labaredas com pedaços de madeira cuja negrura contrastava com seu brilho. Antes que a nuvem de fumaça ocultasse o mar, quem estava no castelo de popa pode ver os pedaços do alvo saltarem pelos ares entre a espuma, como em uma erupção, alguns penachos de água mais além e como uma bala quicava várias vezes no mar antes de cair na rochosa margem. O sultão golpeou a palma de sua mão esquerda com a direita fechada, um gesto europeu ou talvez universal, ao mesmo tempo que em seu rosto refletia uma profunda satisfação; e então, com um inusual brilho de alegria nos olhos, gritou algo para o vizir. Os artilheiros guardaram os canhões, limparam-nos, voltaram a carregá-los e a atacar a carga e, satisfeitos, retiraram-nos de novo ruidosamente.

A Diane se aproximou do segundo alvo em meio de um silêncio sepulcral. Os artilheiros olhavam para as portas com grande atenção e faziam mínimas mudanças na orientação e na elevação dos canhões. O sultão e seus homens haviam se alinhado junto à borda e permaneciam muito atentos.

- Está em posição - murmurou Bonden. E de novo Fielding olhou por cima do cilindro do canhão e gritou:

- Fogo!

Dessa vez, aparentemente, todos acertaram o alvo e o sultão soltou uma gargalhada.

- Todos a mudar de bordo! - ordenou Jack.

Então a fragata virou em um espaço de um tamanho pouco maior que seu comprimento. Os artilheiros se orientaram um momento, ajustaram as calças e cuspiram nas mãos; agora estavam em plena forma, e inclinados outra vez sobre os canhões destruiram as duas balsas que restavam com precisos disparos. A Diane voltou ao lugar onde estava atracada, junto aos dois paraús, doze minutos depois de ter partido dali.

Jack e o imediato se olharam com alívio. Realizaram uma perigosa ação, mas sabiam que todos na fragata tinham feito um bom papel, mesmo se avaliados conforme os mais elevados padrões da profissão.

- Senhor - disse Fox junto dele -, garanto que este foi um espetáculo impressionante. O sultão quer que saiba que nunca viu nada igual.

Jack e o sultão fizeram uma inclinação de cabeça e sorriram. Jack, olhando para o pôr do sol, respondeu:

- Por favor, diga a sua alteza que espero lhe mostrar algo talvez melhor, pelo menos para expressar lealdade, dentro de alguns minutos. Quando soar a primeira badalada na guarda do primeiro quartilho, faremos salvas em honra à princesa Sophia pelo seu aniversário.

Quando soou a primeira badalada, a penumbra tropical havia se convertido em escuridão tropical. O senhor White, vestido com seu melhor uniforme e com uma vareta ao vermelho vivo na mão, avançou com passo majestoso para o primeiro canhão do castelo de popa, seguido por um ajudante que levava um braseiro. Quando os oficiais e os infantes da marinha estavam em posição de sentido e os marinheiros em uma ligeiramente parecida, meteu a vareta no ouvido do canhão, do qual imediatamente saiu uma grande língua de fogo cor carmesim acompanhada de um forte estampido.

- Oh! - exclamou o sultão, sem poder se conter.

O senhor White avançou até o outro canhão repetindo:

- Se não fosse um artilheiro não estaria aqui.

Então saiu do canhão uma labareda de cor safira e todos os membros da corte exclamaram um prolongado: "Ah!".

A intervalos regulares, entre as palavras rituais do condestável, sucederam-se outras labaredas, entre as quais uma branco brilhante como a cânfora, outra verde como pátina sobre o bronze, outra rosada, outra de um extraordinário violeta produzido pelo auripigmento, e finalmente, com um ensurdecedor estalido, saiu uma enorme e cegante da última caronada que estava carregada com uma grande quantidade da mistura de pedok, datang e colofônio.

 

Stephen viu na janela de Van Buren a luz que indicava que era bem-vindo e, depois de saltar por cima de uma serpente píton que cruzava a parte externa do caminho da entrada, entrou pela porta do jardim.

- Alegro-me de voltar a ver-lhe! - exclamaram ambos quase simultaneamente.

Van Buren contou sobre sua viagem, que fora segura mas lenta, chata e estéril se considerada do ponto de vista das ciências naturais, e quando terminou de explicar o tratamento receitado ao paciente, Stephen disse:

- A propósito! Havia uma serpente píton no caminho da entrada.

- Suponho que seria uma Reticulatus.

- Foi o que me pareceu. Não pude examinar-lhe as escamas porque não havia luz nem tinha tempo, mas isso foi o que me pareceu.

- Sim. Eu a vejo de vez em quando. Dizem que as serpentes píton têm mau humor, mas essa nunca o demostrou; contudo, não seria prudente sentar-se sob sua árvore. Agora diga-me, como estão as coisas?

- As negociações oficiais começaram bem, mas estão se tornando difíceis porque é necessário reformular o assunto um interminável número de vezes.

- Naturalmente, eles retardarão as coisas por bastante tempo. Nesta zona tomar uma decisão rápida supõe-se desprestigiar-se. Pus os ossos de Cuvier entre as pequenas formigas vermelhas para que os limpassem, e levando em conta o tamanho da anta, essa será uma tarefa muito longa para elas, mas estou seguro de que estarão totalmente brancos antes que os leve para ele na França.

- Eu gostaria de ficar, pois apenas comecei a colecionar coleópteros e ainda não vi um orangotango nem mesmo de longe; contudo, o que me angustia é que apesar de ter ganhado o favor do vizir e da maioria dos membros do governo, e especialmente o da sultana Hafsa graças aos seus valiosos conselhos e à ajuda do amável Wan Da, cada vez que Fox faz algum progresso notável, o sultão veta o acordado e o vizir tem que recusar tudo, às vezes com pretextos que são difíceis de acreditar. Tanto Fox como eu estamos convencidos de que a causa disto é Abdul. O sultão tem um caráter forte e dominante e atemoriza os membros de seu governo, porém, como o senhor mesmo disse há algum tempo, nunca se viu um homem tão cismado. Esse vergonhoso fato ficou patente na bem-sucedida recepção que demos na fragata.

- Porém, que interesse pode ter Abdul nesse caso?

- Conhece Ledward, o negociador da missão francesa?

- Eu o vi duas ou três de vezes. Tem um porte elegante, porém, sem dúvida, é desprezível.

- Além de ser um negociador extraordinariamente bom, persuasivo e capaz de fazer Fox perder as estribeiras diante do gabinete e de expressar-se melhor que ele, é também amante de Abdul.

- Oh! - exclamou Van Buren. - Esse jovem está brincando com fogo. Hafsa é uma mulher decidida e o odeia, e, por outro lado, sua família é muito poderosa. Além disso, o sultão é muito ciumento.

- Acredito que Ledward fez Abdul acreditar que se os franceses forem pressionados ao máximo - continuou Stephen -, darão ao sultão sua fragata além dos canhões, o subsídio e os carpinteiros de barcos que ofereceram no início. Não lhes resta nada mais. Seu dinheiro acabou, pois, por um lado, não tinham grande quantidade desde o início, e por outro, Ledward perdeu muito jogando. Tanto ele como Wray, seu companheiro, são jogadores incorrigíveis e muito maus. Quer saber o que me induz a pensar isso?

- Eu gostaria muito de saber, mas primeiro tomemos café.

- Lembra-se como fiquei contente ao obter o rascunho do diário de Duplessis? - perguntou Stephen depois de largar de um lado a xícara e secar os lábios. - Foi a coisa mais estúpida que já fiz em minha vida; melhor dizendo, quase a mais estúpida. Após uma semana comecei a pensar que tinha sido fácil demais e muito bom para ser verdade. Acho que antes que o senhor partisse eu lhe disse que pensava em pôr-me de acordo com o meio irmão de seu jardineiro para que me trouxesse os papéis que jogavam na casa de Duplessis, não é verdade?

- É verdade.

- Levou certo tempo em cumprir o acordado, e quando encontramos uma forma de entrega discreta haviam se acumulado tantos papéis que recebi um enorme monte. Eu os alisei, consegui ordená-los cronologicamente e entre eles encontrei alguns do diário oficial. Já tinha dúvidas sobre o caso e, mesmo que não me surpreendeu de todo descobrir que não eram iguais aos supostos rascunhos com a mesma data, confesso que me incomodou muito. Ledward é o encarregado da espionagem na missão francesa, e eu o imaginei rindo com Wray de minha simplicidade.

- Sem dúvida, é algo decepcionante.

- Tão decepcionante que durante algum tempo não confiei em mim mesmo para fazer nada. Afortunadamente, Wu Han, a quem falei de minha decepção, sentiu-se... não diria que responsável, mas sim relacionado em parte ou comprometido, e como também pensa em se mudar para Java porque lá encontrará um terreno mais propício para seu talento e quer que Shao Yen e Raffles o vejam com bons olhos, interrogou seu empregado. Comprovou sua boa vontade, pagou-lhe em meu nome o que Lesueur lhe devia e disse que o convidasse essa tarde. Quando Lesueur chegou, o que prova que não sou o único bobo em Pulo Prabang, exigiram que pagasse sua dívida, e como não pôde entregar nenhum dinheiro, foi aprisionado como devedor por vários robustos ajudantes que Wu Han dispõe para trabalhos desse tipo, que o levaram diante de mim pela noite. Não tem imunidade. O sultão deu um salvo-conduto aos membros da missão e lhes prometeu proteção no momento em que esta se formou em Paris, mas Lesueur e outros empregados de pouca importância foram contratados nas Índias Orientais. Eu lhe disse que se comportara como um insensato e não só se arruinara, pois seria açoitado e encarcerado até que pagasse sua dívida, como também causara um grave dano à sua família e ao seu negócio, que dependia dos britânicos. Chorou, disse que sentia muito e que fora obrigado pelo senhor Ledward, que o surpreendeu roubando papéis em um dos primeiros dias. Eu lhe disse que a única possibilidade que tinha de se salvar era não dizer absolutamente nada e fazer o que tinha prometido e ao mesmo tempo enviar os falsos rascunhos. Acrescentei que conhecia uma pessoa da missão que me diria se atuava indevidamente, como fizera nesta ocasião. Até agora não disse nada e tenho a vantagem de informar-me do que fazem e o que querem que creia que fazem ou vão fazer. E uma das coisas que eles, melhor dizendo, que Ledward quer que eu acredite é que estão dispostos a entregar sua fragata contanto que consegam o tratado.

- Como acha que lhe beneficiaria se o senhor acreditasse?

- Não estou seguro. Talvez espere que os homens de nossa missão difundam o rumor e dessa maneira o rumor chegue aos ouvidos do sultão por diferentes vias e seja mais verossímil; talvez quer levar Fox ao desespero para que parta sem conseguir o tratado. Não sei. O certo é que isso é o que Ledward planejou e conseguiu convencer Abdul.

A porta se abriu e entrou Mevrow Van Buren. Quase não tinha mais de cinco pés de estatura, mas era magra, elegante, inteligente e, sobretudo, alegre, uma qualidade que Stephen valorizava muito (a maioria dos malaios eram taciturnos e muitas das mulheres casadas eram tristes), e por isso simpatizava com ela. Ambos se cumprimentaram com a cabeça, sorriram e ela disse ao seu esposo:

- Querido, a janta está servida.

- A janta? - perguntou Van Buren com assombro.

- Sim, querido, a janta. Nós a tomamos a cada noite a esta hora, sabia? Vamos porque já está esfriando.

- Ah, tinha esquecido! - exclamou Van Buren quando se sentaram. - Quando regressei encontrei várias coisas que tinham chegado pelo correio, mas não tinha nada interessante nelas. Nos Proceedings não há mais que estudos matemáticos e no Journal esse charlatão do Klopff fala do princípio vital. Mas me penalizou muito informar-me de que na Cidade há muita agitação e que todos estão retirando seu dinheiro dos bancos. Espero que o senhor não tenha sido afetado.

- Oh, não, não tenho dinheiro! - exclamou Stephen, mas depois retificou: - Quer dizer, hei passado muitos anos sozinho e na mais horrível pobreza, e minha vida poderia ter sido curta, mas sobrebivi. Por isso, a pobreza e a solidão se converteram em algo habitual para mim, em algo natural, e sempre penso que estou sem dinheiro. Não obstante, a situação mudou, porque tive a sorte de receber uma herança, que, devo acrescentar, está aos cuidados do banco de um homem íntegro; e, ademais, não estou sozinho, porque tenho uma esposa e quando regresse espero ter também uma filha.

Os Van Buren se alegraram muito e brindaram pela senhora Maturin e a menina, e quando terminaram Mevrow Van Buren disse:

- Isto me recorda outra alegre notícia que tinha muita vontade de lhe comunicar: a sultana Hafsa está grávida de dois meses e o sultão vai peregrinar a Biliong para assegurar-se de que seja um menino, e prometeu que cobrirá de ouro a cúpula da mesquita se tiver um herdeiro.

- Quanto tempo durará a peregrinação?

- Contando o tempo da viajem e o das apropiadas abluções, oito ou nove dias, pois é necessário que a metade do gabinete vá com ele. Só ficarão o vizir e alguns deles com o fim de manter a paz e julgar alguns casos - disse Van Buren. - Temo que as negociações se interromperão pelo menos por uma semana.

- Irei a Kumai - anunciou Stephen com o rosto radiante.

 

Enquanto regressava ao bordel onde se alojava, pensou que o correto era pedir a Fox que lhe acompanhasse na expedição, e quando entrou no piso térreo, o mais elegante, já pensara numa mensagem cortês mas não muito insistente, e no momento em que ia subir para o piso superior, o mais tranqüilo, onde poderia escrevê-la, viu Reade e Harper sentados com um grupo de mulheres de meia idade. Tinham suas curtas pernas sobre uma cadeira e sustentavam em uma mão um charuto e na outra um copo, provavelmente de aguardente de palma. O rosto de Reade, bonito e limpo como o de um bebê, estava de cor escarlata e o de Harper cinzento-verdoso. Assombrou-se ao vê-los e depois lembrou-se que eles haviam sido mandado a terra para que seus princípios morais não se vissem afetados pela presença de mulheres na fragata. Avançou até a escada sem que eles o vissem porque estavam olhando uma dança sensual no meio da habitação. Depois de escrever a nota desceu e se dirigiu à mesa aonde estavam. Quando eles finalmente o viram se puseram de pé. Harper ruborizou e o pequeno Reade ficou pálido como um cadáver e desmaiou. Stephen o pegou enquanto caía para frente e perguntou:

- Senhor Harper, o senhor se encontra bem, né? Então entregue em mão esta nota a sua excelência o mais cedo possível. - Voltou-se para o dono do bordel e disse: - Halim Shah, por favor, faça com que levem imediatamente o outro guarda-marinha para a residência do senhor Fox.

A resposta à nota chegou com o sol da manhã e a recebeu com agrado. Fox disse que ficava desolei, desolei, mas que o sultão o convidara para acompanhar-lhe a Biliong como compensação por Ledward ter estado com ele durante sua visita a Kawang, e pensava que devia aceitar pelo bem do tratado. Acrescentou que iria muito penalizado, que nunca um peregrinação fora menos oportuna e que se Maturin tivesse a amabilidade de ir desjejuar com ele pelo menos poderia fazer um brilhante resumo do que tinha que ver e medir no templo de Kumai. Finalmente disse que Aubrey também ia desjejuar com ele e que talvez essa seria uma a razão mais para convencer-lhe.

- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack ao entrar. - Muito bom dia. Faz dias que não nos vemos. Vou açoitar esses pobres selvagens e voltarei já. Aqui está sua excelência.

- Apesar dos incômodos que cause a viagem a Biliong - disse Stephen quando ele e Fox se sentaram para comer um prato de kedgeree -, deve admitir que este convite é um logro diplomático. Acho que não vai nenhum dos membros da missão francesa.

- Nenhum. E isso me consola.

Durante um tempo falaram da viagem, que apesar de ser muito diferente da importante peregrinação à Meca, comporta muitos dos ritos e requer também austeridade e abstinência. Seria apropiada a presença de concubinas ou de Abdul?

- Oh, não! - respondeu Fox. - Quando se fazem votos deste tipo a castidade é imprescindível. Abdul não irá.

- O problema de açoitar aos jovens é que algo pode marcar-lhes para toda a vida - interveio Jack -, o que é desagradável, ou não incomodar-lhes em absoluto, o que é ridículo. Aparentemente os ajudantes do contramestre não têm nenhum problema para bater porque golpeiam com o açoite como se estivessem tentando recolher um celemine de legumes e depois o afastam tranqüilamente. Tampouco o tinha o velho Pagam, meu mestre. Costumávamos chamá-lo de Plagoso Orbilio. Mas lhe direi uma coisa, excelência, o senhor é, sem dúvida, um excelente diplomata, mas uma babá comum.

- Nunca imaginei que essas coisas passassem por sua cabeça - disse Fox em tom mal-humorado. - Mulheres da vida! Mulheres lascivas! Eu lhes asseguro que nunca pensava nelas quando tinha sua idade.

Então Jack e Stephen baixaram a vista para seus pratos. Depois de um tempo Fox pediu a Aubrey que o desculpasse porque o encontro que tinha no palácio já estava próximo e antes de ir tinha que falar com o doutor Maturin do templo que ele ia ver, especialmente dos detalhes que devia observar e, se fosse possível, desenhar e medir.

Ambos se despediram de Fox, desejaram-lhe boa viagem e seguiram tomando café.

- Gostaria ir contigo, mas não posso deixar a fragata. Apesar disso, como Van Buren diz que há um caminho que chega até a cratera com bastante largura para ir a cavalo, talvez possa ir até lá cavalgando. Depois Seymour ou Macmillan ou ambos poderiam voltar quando queira com um pônei para que regresse.

 

O sinuoso caminho para o interior corria paralelo ao rio Prabang e passava pelo centro de um terreno de aluvião. De cada lado do rio havia gente arando com búfalos suas terras meio inundadas ou semeando arroz. As aves voavam em grandes revoadas e na água tinha grande quantidade de patos de vários tipos e as cegonhas caminhavam tranqüilamente pelos campos de arroz.

- Acho que essa era uma narceja - disse Jack, pondo a mão na carabina. - E aí há outra!

Stephen estava concentrado em uma discussão sobre as palmeiras que haviam na borda do caminho e nos pântanos com dois dayks sunitas que faziam parte da escolta que o sultão designara à missão britânica. Ambos iam armados com lanças, com suas armas tradicionais, zarabatanas e punhais malaios, e eram considerados oponentes muito valentes e perigosos. Eram caçadores, naturalmente, e sabiam muito das palmeiras e da maioria dos animais que encontravam. Um deles, Sadong, era um excelente atirador e, como era muito amável, usando sua arma silenciosa e precisa derrubou várias das aves mais raras para dá-las a Stephen, sobretudo quando deixaram para trás os campos cultivados e começaram a subida através do bosque por veredas feitas pelos chineses que derrubavam as árvores usadas pelos ebanistas, como sândalos, canforeiras e outras árvores menores. Muito antes do meio-dia se sentaram sob uma frondosa canforeira. Quando Stephen esfolou as aves, os dyaks as puseram em uma vareta e as assaram girando-as sobre uma chama para comê-las de aperitivo. Depois comeram um pavão real assado frio, fizeram café e, quando chegou o caloroso meio-dia, reiniciaram a marcha silenciosamente pela sombreada vereda. Nada se movia e mesmo as sanguessugas estavam sonolentas, mas os dyaks encontraram as pegadas de dois ursos e um exemplar da estranha espécie de javali daquela zona e indicaram a árvore oca onde era evidente que os javalis haviam encontrado mel, uma árvore sobre a qual cresciam trinta e seis tipos de orquídeas, algumas delas a grande altura. Das menos espetaculares se dizia que eram boas para curar a esterilidade feminina.

Seguiram subindo. O vulcão as vezes podia ser visto, dos lugares com menos árvores, porque os torvelinhos haviam sido derrubadas por raios ou porque havia muitos crestones, e cada vez parecia mais alto e mais próximo. Nas ladeiras e barrancos se via o rastro de um antigo caminho que aparentemente era largo, bem desenhado e com diques, mas agora, onde ainda existia, era uma vereda. Conforme os dyaks, no final havia um grupo de duriães cujos frutos eram famosos por seu tamanho, seu sabor e porque amadureciam muito cedo, e também um templo pagão, que ficava justo antes dos Mil Degraus.

- Perdi umas quinze libras - disse Jack, conduzindo seu pônei pelo caminho.

- Você pode se permitir - replicou Stephen.

Seguiram subindo e subindo. A conversa foi decaindo e finalmente cessou. Jack estava empapado de suor.

De repente a vereda deixou de ser inclinada. Na faixa de terreno plano situado junto a ela ficava o bosque de duriães, e além se achava a alta parede da cratera e os legendários degraus, que formavam uma senda serpenteante como os da Grande Muralha.

Atravessaram lentamente o terreno plano sob as árvores, bastante separadas entre si, e ao pé da parede rochosa, que agora ocultava a metade do céu, acharam o templo pagão do qual os dyaks falavam. Estava quase em ruínas e meio coberto por cipós e outras plantas trepadoras, como o fícus, e um nutrido grupo de samambaias; contudo, ainda conservava parte de uma torre. As fileiras de figuras talhadas no exterior não podiam ver-se com nitidez porque a passagem do tempo as escurecera e, sobretudo, devido ao zelo dos muçulmanos convertidos, que eram iconoclastas e, até a altura que puderam chegar com escadas, haviam lhes arrancado o nariz, a cabeça, os peitos, as mãos, os braços e as pernas. Contudo, ainda restava uma parte suficiente para demostrar que fora um templo hindu, e quando Stephen tentava se recordar do nome da figura com seis braços, ou o que restava dos seis braços, ouviu um dyak gritar:

- Ohhh, mias, mias!

E depois ouviu o outro dizer:

- Dispara, tuan, dispara!

Deu meia volta e viu Jack desprendendo a carabina da sela de montar e os dyaks com as zarabatanas dirigidas para um durião alto e frondoso. Olhou naquela direção e viu no alto uma grande figura de cor avermelhada.

- Não dispare, Jack! - exclamou.

Nesse momento Sadong lançou seu dardo e a parte superior da árvore se moveu violentamente, os galhos se agitaram e muitas folhas caíram. Caiu da árvore um pesado durião que ia acertar justo as cabeças dos dyaks, mas eles se puseram a salvo rindo e o orangotango fugiu em direção oposta, saltando de galho em galho e de árvore em árvore a uma surpreendente velocidade. Stephen pôde vê-lo duas vezes em duas clareiras onde batia o sol e depois o perdeu de vista. Era avermelhado e muito largo de ombros e tinha os braços exageradamente compridos.

Os dyaks se aproximaram da árvore e mostraram para Stephen as sobras de frutas e os excrementos dos orangotangos.

- Também havia uma fêmea - disse Sadong enquanto assinalava. - Vou ver se deixaram algo.

Subiu na árvore e gritou:

- Deixaram muito pouco esses malditos! - e tirou quatro dos duriães mais maduros.

Comeram os duriães, e depois Stephen pegou sua trouxa, que estava detrás da sela de montar, jogou-a nas costas e disse:

- Deve regressar imediatamente, meu amigo, ou será pego pela noite no bosque.

- Meu Deus, que subida! - exclamou Jack olhando para os degraus, que chegavam alto, muito alto, e pareciam não terminar nunca. - Achei ter visto alguém perto do final, mas parece que dobrou para o outro lado, ou talvez tenha me equivocado.

- Adeus, Jack. Que Deus o bendiga. Adeus, estimados dyaks.

 

Cem degraus gastos por cem gerações de peregrinos. Duzentos degraus: o bosque já parecia um imenso lençol verde estendido, sob o qual havia um orangotango macho adulto.

- Teria dado cinco libras para ter tido tempo de vê-lo bem - disse, e então lembrou-se da riqueza que possuía na atualidade. - Não, muito mais, muitíssimo mais.

Duzentos e cinqüenta degraus: em um nicho da parede rochosa viu a imagem de um Deus totalmente desfigurado. Trezentos degraus: a curva que formavam até agora, que era para a esquerda, tornou-se irregular e depois seguiu para a direita, deixando visível um distante campo por onde passava um comprido rio prateado e caminhava outro viajante.

Viu a um viajante ao longe que parecia usar um cobertor marrom velho e roto e estar muito cansado, pois avançava pesadamente, e amiúde, quando os degraus estavam situados quase verticalmente, caminhava de quatro ou descansava. Trezentos e cinqüenta degraus: Stephen tratou de recordar as palavras do Papa sobre o monumento e o número de degraus. Fossem quantos fossem, quatrocentos tinham conseguido escapar da eficiência dos muçulmanos, e ali, onde a curva, graças a uma capa de lava, mudava de direção e formava um ângulo de cento e quarenta graus, viu um obscuro santuário que a violência não modificara, um lugar quase destruído pelo vento e pela chuva que ainda transmitia serenidade e sensação de isolamento.

O outro viajante estava descansando junto ao santuário, e quando a distância entre ambos era menor que duzentas jardas de distância, Stephen notou com incredulidade e emoção que era um mias, quer dizer, um orangotango. Sua incredulidade desapareceu quando pegou sua luneta de bolso, mas sua emoção foi temperada pelo medo de que o animal, que ainda não notara sua presença, fugisse ao vê-lo. Aquele não era um lugar em que um grande símio acostumado a andar pelas árvores poderia desaparecer de repente, porque o terreno fora formado pela lava e havia somente um ou dois raquíticos arbustos, porém, apesar disso, tratou de manter a distância entre eles. Não sabia nada sobre a visão, a audição e o olfato do símio e não voltaria a ter uma oportunidade assim nem em mil anos.

Seguiram subindo e subindo, sempre a um cabo de distância mas muito lentamente, pois o símio tinha os pés inchados e estava desanimado. Quando Stephen já havia subido seiscentos degraus, parecia que suas panturrilhas e coxas iam arrebentar. Seguiram subindo até que por fim o cume ficou a pouca distância, mas antes de chegar a ela a curva mudava de direção outra vez. Stephen dobrou e de repente se topou com o orangotango, que se havia sentado em um degrau para descansar. Não sabia o que fazer e se sentiu como um intruso.

- Deus lhe bendiga, orangotango - disse em irlandês, que, em meio de sua confusão, pareceu mais apropriado.

O orangotango virou a cabeça e o olhou com uma expressão triste e cansada, mas sem hostilidade. Um falcão passou voando baixo. Ambos o seguiram com a vista até que desapareceu e depois o orangotango se levantou e continuou avançando. Stephen o seguiu e observou como caminhava e como se moviam seus músculos. Notou que o glúteo máximo era muito pequeno, que o músculo gêmeo tinha uma disposição e uma maneira de se contrair estranhas. Também notou que era extraordinariamente largo de ombros e que tinha os braços muito longos e fortes, pelo que se via claramente que era um animal preparado para andar pelas árvores.

Chegaram, por fim ao cume, na borda da cratera, e Stephen, antes de passar ao interior e começar a descer, voltou a olhar o orangotango com uma expressão que lhe pareceu alegre e inclusive amável. Permaneceu ali alguns momentos para que a dor das pernas passasse e para contemplar aquele espetáculo: uma concavidade sumamente extensa, de milhas e milhas de diâmetro, e com um lago no meio. Descia-se para ela por uma ladeira pouco inclinada coberta quase por um bosque onde, de trecho em trecho, havia grupos de bambus e amplas clareiras onde crescia capim, especialmente perto do lago. À esquerda via-se o templo Kumai e do seu lado uma edificação da qual saía uma coluna de fumaça. De onde Stephen se encontrava só via uma vereda para descer quase imperceptível. Não eram necessários degraus em uma ladeira moderada. O orangotango já tinha chegado até as árvores mais baixas e passava de uma para outra dando grandes saltos quase sem tocar a terra e logo deixou de tocá-la. Stephen viu como avançava para o monastério, onde alguém tocava um gongo, até que sua pelagem avermelhada desapareceu entre as folhas.

Stephen chegou ao monastério quando anoitecia. Boa parte do templo estava em ruínas, mas ainda estavam intactas a austera fachada e o amplo saguão que se encontrava justo detrás, onde se ouvia um suave cântico. Ao longo da fachada havia algo parecido a um pórtico ou um nártex, e ali, junto a um braseiro, estava sentado um monge com uma gasta túnica cor de açafrão.

Quando Stephen deixou as árvores para trás e chegou ao terreno coberto de grama que havia em frente ao templo, o monge se adiantou para dar-lhe a boas-vindas.

- Deseja tomar uma xícara de chá? - perguntou depois do cumprimento.

Geralmente Stephen não sentia prazer com essa insípida beberagem, mas os Mil Degraus tinham feito diminuir seu orgulho e aceitou com muito gosto. Quando ambos caminharam até a escada do nártex e Stephen, com muita dor, começou a subir, viu que o mias estava sentado do outro lado do braseiro, mas não sobre um tamborete, como o monge, senão sobre uma espécie de cesto feito de vime. Era evidente que haviam lavado seus pés em uma bacia com água morna e na toalha havia manchas de sangue. O monge perguntou:

- Muong, que maneiras são essas?

Então o orangotango se levantou o suficiente para fazer uma inclinação de cabeça. Stephen devolveu a saldação e disse:

- Muong e eu subimos juntos os Mil Degraus.

- Realmente desceu até onde ficam os duriães? - perguntou o monge, movendo a cabeça de um lado para o outro. - Achava que estava colhendo amoras em metade da montanha. Não me admira que a pobre esteja com os pés destroçados. Para ela também cairá bem uma xícara de chá.

O orangotango fêmea olhava ambos ansiosamente enquanto conversavam, mas ao ouvir a palavra "chá" seu rosto se iluminou e pegou uma tijela de baixo de seu cesto.

Enquanto o monge, que se chamava Ananda, fazia o chá e enquanto os três o tomavam, Stephen não deixou de escrutinar o rosto de Muong. Seus olhares eram difíceis de interpretar, mas logo pôde distinguir os olhares de afeto que com freqüência lançava ao monge.

Os cânticos do interior do templo cessaram. O gongo soou três vezes.

- Agora vão meditar - explicou Ananda.

A noite chegou imediatamente. No bosque próximo se ouviram vários gibões gritarem em coro: "Jú, jú, jú!".

Dois deles atravessaram o terreno coberto de grama situado diante do nártex, um com as mãos detrás do pescoço e outro com os braços para o alto. O monge aproximou uma lanterna e imediatamente puderam ver um trágulo e seu filhote. Muong estava com os olhos fechados e sua respiração era cadenciada.

- Sinto que tenha ido tão longe - disse Ananda. - É demais para um animal de sua idade.

- Talvez goste muito dos duriães.

- Sim, mas há muitos aqui e alguns já estão maduros. Ela desce para ver um orangotango macho, mas está muito velha e ele zomba dela. Depois regressa triste, cansada, com os pés destroçados e a pelagem emaranhada.

- Não há orangotangos aqui? - perguntou Stephen.

- Oh, sim, muitos, muitos! Mas não lhe interessam. O único que a atrai é aquele animal lá de baixo. É amável com os primos que estão aqui e eles a visitam, mas não considera nenhum como possível par.

Falaram dela durante algum tempo. Aparentemente, Andana a encontrara quando noviço, ao chegar ao monastério, há mais anos do que recordava, pois ali em cima se perdia a conta dos anos. Muong estava em idade de ser amamentada, mas sua mãe tinha morrido e Andana a criou com leite de ovelha. Ela não podia falar, mas ele estava seguro de que entendia pelo menos duzentas palavras e podia seguir o fio de uma conversa simples. Era muito afetuosa e tranqüila, e, se não estivesse tão cansada, Stephen teria comprovado que tinha boas maneiras, pois, por exemplo, sempre limpava sua boca depois de beber e comia com colher. Quando a lua saiu, Ananda trouxe para Stephen uma tijela com arroz integral frio com duriães verdes salteados para dar-lhe sabor. Depois lhe perguntou onde queria dormir. Disse que, há muito tempo, o quarto que havia acima era chamado "a câmara do peregrino", mas que agora lá havia morcegos que poderiam causar incômodos, e acrescentou que, por outro lado, dormir ali em baixo era expor-se ao contato com os porcos-espinhos e as serpentes, às quais se encantavam em sentir o calor humano.

- Se Muong não lhe incomoda, creio que a mim tampouco - disse Stephen, que vira como espalhava palha cuidadosamente em um canto até formar um quadrado perfeito. Stephen sabia que na vasta cratera onde se encontrava Kumai nenhum homem matava a nenhuma criatura nem a matara desde o começo da era budista, e quando passou um tempo na Índia soube por experiência que existia tal imunidade, pois os abutres pousavam nos tetos ou se brigavam nas concorridas ruas e os macacos entravam pelas janelas. Contudo, surpreendeu-se com o que viu ali. Antes de adormecer, a metade da arca de Noé e a metade da fauna de Pulo Prabang passaram pelo seu lado sob a luz da lua ou se sentaram na extensa faixa de grama para se coçar. Durante a noite lhe despertou um enorme animal de bafo quente que ofegava em sua cara, mas a lua já havia se ocultado e não pôde identificá-lo. Depois, com as primeiras luzes, quando levantou a cabeça viu que um orangotango saía devagar do nártex, onde provavelmente visitara Muong, e que na faixa de grama coberta de orvalho havia inumeráveis pegadas em todas direções.

Então se sentou e comprovou que Muong já tinha ido e que as palhas do leito estavam colocadas em perfeita ordem atrás de uma fileira de pedras. Notou as pernas rígidas e as esfregou com a mão enquanto ouvia os cânticos no interior e observava a luz do sol descer pela ladeira. O céu todo já tinha um colorido azul-pálido e os gibões estavam gritando há mais de meia hora. A luz chegou a uma bonita árvore que, em sua opinião, era um ocozol, e os cânticos pareciam ter terminando. Ergueu-se para buscar em sua trouxa os presentes que Lin Liang (que pertencia a um ramo chinês do budismo) recomendou como mais apropiados: um pacote de chá em forma de salsicha envolvido em seda e outro de benjoim envolvido em couro. Lavou a cara com as gotas de orvalho que restavam, arrumou sua trouxa tão bem como Muong arrumou suas coisas e se sentou na escada do nártex para comer uma bolacha de barco.

Os cânticos cessaram, soou o gongo e a porta se abriu. Um feixe de luz solar lhe permitiu ver a grande estátua de pedra situada no fundo do templo, uma figura bem proporcionada com o rosto sereno e uma mão levantada com a palma para fora. Os cinco monges que integravam o coro saíram precedidos pelo abade, um homem alto e magro. Stephe os cumprimentou com uma inclinação de cabeça e eles lhe devolveram o cumprimento do mesmo modo. Depois apareceu Ananda com chá e várias tijelas.

Todos se sentaram no solo e Stephen lhes ofereceu o pacote envolvido em seda dizendo:

- Um insignificante presente para uma antiga casa. - Ofereceu depois o pacote envolvido em couro e disse: - Para uma antiga casa um insignificante presente.

O abade lhes deu palmadinhas com satisfação, agradeceu os presentes e se pôs a beber o chá a tragos. Stephen lhes explicou que era médico e cirurgião naval, que tinha chegado a essa zona devido à guerra entre a Inglaterra e a França e que, além da medicina, interessava-se muito por todos os seres vivos e seus costumes. Acrescentou que tinha um amigo muito interessado na primeira expansão do budismo e nos primeiros templos que ainda restavam, e que esperava que lhe permitissem ver Kumai, medi-lo e desenhá-lo o melhor que pudesse, além de passear pelo campo por vários dias para observar seus habitantes.

- Pode ver nosso templo e desenhá-lo, naturalmente - disse o abade -, mas com relação aos animais, saiba que aqui não se podem matar. Comemos arroz, frutas e coisas assim. Não acabamos com nenhuma vida.

- Não tenho intenção de matar nenhum; só quero observar. Não vou armado.

Enquanto o abade pensava nisso, outro monge, que estivera observando Stephen através de seus óculos, disse:

- Então o senhor é inglês.

- Não, senhor - respondeu Stephen. - Sou irlandês. Mas no momento a Irlanda está sob o domínio da Inglaterra e, por isso, em guerra com a França.

- Inglaterra e Irlanda são pequenas ilhas no extremo da zona ocidental do mundo - explicou outro monge. - Estão tão juntas que quase não se podem distinguir. É possível que os pássaros que voam a grande altura pernoitem em uma em vez de na outra. Mas a Inglaterra é a maior.

- É verdade que estão muito juntas e que nem sempre é fácil distingui-las de uma grande distância, porém, senhor, isso também ocorre com o bem e o mal.

- Às vezes o bem e o mal estão tão juntos que entre eles não cabe nem um fio de cabelo. Com relação aos animais, jovem, como promete não lhes causar nenhum dano, pode caminhar entre eles. Muong lhe mostrará os mias, que são amigos seus, e o senhor verá grande quantidade de porcos e também de gibões e de seus parentes. Ademais, verá muitas variedades de plantas medicinais. Porém, como todos os peregrinos, estará entorpecido depois de subir os Mil Degraus, assim que Ananda lhe levará aos nossos banhos quentes. Hoje poderá medir e desenhar o templo e amanhã se sentirá descansado e leve.

Havia poucos carnívoros em Pulo Prabang (nenhum tigre) e ainda menos em Kumai. Havia algumas serpentes píton, que, naturalmente, tinham que viver, mas não era raro que passassem três meses sem comer. Por outro lado, nem elas nem os gatos nem os ursos apicultores inspiravam medo aos pacíficos animais, esse medo perpétuo e semiconsciente que fazia difícil observá-los em muitos outros lugares. Porém, sobretudo, os animais não eram perseguidos pelo homem há mil anos e davam tanta importância à presença de humanos como à de gado. Stephen viu com estupefação que podia caminhar por entre uma manada de trágulos como se fosse um deles, mesmo abrindo passagem a cotoveladas quando necessário. Ofereceu ao filhote de trágulo uma rama verde e o animal a pegou sem vacilar um momento. As aves, que eram menos numerosas, eram mais desconfiadas, provavelmente porque conheciam o mundo exterior (muito poucos dos outros animais logravam descer a parede da cratera, rochosa e escarpada, que, também, só tinha uma abertura, a situada junto aos Mil Degraus), contudo, às vezes pousavam em cima dele. Parecia estar sonhando acordado e que deixara de ser humano ou que era invisível, e se sentia tão leve e descansado como se tivesse passado horas nas três tinas escavadas na rocha e cheias de água levemente sulfurosa que brotava de três pontos da rocha a diferentes temperaturas.

Os animais que lhe prestavam menos atenção eram os herbívoros, mas os porcos, de dois tipos distintos, eram curiosos, às vezes demais, e brincalhões. Os primatas, especialmente duas espécies de macacos e os orangotangos, eram os que se mostravam mais interessados. Os orangotangos eram tranqüilos e às vezes pareciam estar em letargia. Não eram sociáveis nem gregários (Muong não lhe mostrou mais de cinco em grupo: duas irmãs e suas crias), mas amiúde desciam dos ninhos onde passavam a maior parte do tempo e se sentavam junto dele e Muong, escrutinando seu rosto inclinados para frente e com os lábios franzidos como se fossem a assobiar. Às vezes lhe tocavam levemente a roupa, o escasso cabelo ou os braços pálidos e quase desnudos (ainda que tivessem as mãos escamosas estavam quentes). Uma vez, um enorme macho desceu com um cipó tão grosso como uma amarra de âncora e se sentou junto deles sob uma árvore. Era velho e, ainda que tivesse as faces flácidas e a papada como os mias de avançada idade, carecia do mau humor tão freqüente nos velhos. Acariciou o ombro de Stephen antes de voltar a pegar o cipó e depois se balançou com a agilidade de um gavieiro apesar de seu grande peso. Stephen não conseguiu descobrir a base da comunicação de Muong com seus amigos, ainda que tenha feito um grande esforço. Parecia que os sons audíveis para o homem (um vocabulário formado por um pequeno grupo de grunhidos) tinham pouco que ver, e supôs que se baseava na expressão dos olhos e nas pequenas mudanças dos traços faciais. Fosse o que fosse, ela sabia sempre onde estavam e como convidá-los a descer das árvores ou a sair dos bosques de bambu desde uma grande distância.

Entre eles Stephen observava com maior atenção para as duas irmãs, que tinham a pelagem vermelho-brilhante, e sua cria, que estava bastante crescida e era brincalhona e muito ativa. Passavam muito mais tempo em terra e ele permanecia horas junto deles com a esperança de se recordar de tudo o que observava. Muong não aprovava essas freqüentes visitas e com o tempo Stephen compreendeu que os filhotes pareciam chateados e as jovens mães insignificantes e mesmo vulgares.

Na realidade, o único motivo de desacordo entre eles foi sua insistência em ir ver o grupo no último dia de sua permanência. Muong sabia perfeitamente bem o que ele queria e ele, por sua expressão, sabia que não estava satisfeita; e apesar disso, quando Ananda e ele lhe pediram que os levasse para vê-los, ela os conduziu até o outro extremo do lago, às vezes apoiando-se nos nós dos dedos enquanto caminhavam pelo terreno inclinado e coberto de grama, e às vezes apoiando-se no braço de Stephen.

A família estava entre um grupo de árvores que quase chegavam até a água e foi lá onde Muong o deixou, obviamente com a intenção de regressar para sua casa sozinha.

Os gêmeos, um pouco mais ágeis e ativos que seu primo, tentavam impedir que subisse em uma grande pedra cinza que estava na margem da água. Com assombrosa energia os pequenos símios se atacavam, repeliam-se e caiam na lama ou na água e voltavam a começar. Ainda que dessem alguns gritos, permaneceram silenciosos durante mais ou menos meia hora. Depois um deles, por ser excessivamente diligente, mordeu a orelha do outro e eles caíram no lago gritando. As mães acudiram imediatamente e houve golpes, mechas de pêlo avermelhado arrancados e o que pareciam juramentos e sensuras. O jogo terminou e todo o grupo avançou trabalhosamente pela grama e regressou às árvores.

De seu discreto posto de observação, Stephen os viu desaparecer e depois se voltou para olhar a pedra com o fim de calcular a velocidade média com que um orangotango podia subir sem pressa uma ladeira moderada; contudo, quando dirigiu a vista para lá viu algo que lhe cortou a respiração, quase fez parar seu coração e o fez esquecer o cálculo. O que até então lhe parecera outra pedra cinzenta, era na realidade um rinoceronte.

Era um Rhinoceros unicornis macho, a julgar por seu único corno e por seu tamanho, uns dezesseis ou dezessete palmos, ainda que era difícil de precisar por suas patas relativamente curtas e a enorme massa que tinha sob as ancas. Havia três aves pousadas em suas costas.

Stephen pegou a luneta sem se mover de sua posição (de repente sentiu a ilógica necessidade de agir com cautela) e o dirigiu para o rinoceronte o melhor que suas mãos trêmulas permitiram. Assim pôde vê-lo realmente perto, já que o animal não se encontrava a mais de cem jardas de distância, tão perto que fechou os olhos ao vê-lo. Parecia que o rinoceronte estivera banhando na lama, pois o barro que cobria seu lombo estava secando, e que depois de ter saído do lamaçal da margem fora dormir ali, de cara para a ladeira coberta pela grama e muito perto do lago. A gritaria dos orangotangos no final do jogo o despertara e agora se dispunha a dormir outra vez.

Mas esta suposição era errônea. O rinoceronte estava pensando. Pouco depois abriu os olhos de novo, inalou e exalou com uma enorme força, levantou a cabeça, farejou o ar a torto e a direita, aguçou as orelhas e começou a se mover e a subir a ladeira com movimentos surpreendentemente ágeis para um animal tão pesado. Enquanto o observava, Stephen compreendeu por que tinha a fama de ser muito forte e feroz, de tirar as entranhas dos elefantes e de destruir coisas durante intermináveis horas quando estava cego de raiva e mesmo lançar touros muito longe como se fossem bolas. Ganhou velocidade e quando corria e pegava impulso suas curtas patas desprendiam lampejos. Stephen olhou ao longe e viu outro rinoceronte no alto da ladeira, a um quarto de milha de distância. Também era macho e avançava com o mesmo passo seguro e rápido. Na metade da distância ambos se encontraram, giraram um pouco e se chocaram ombro com ombro com estrondo e formando uma nuvem de poeira, mas nenhum cambaleou. Depois os dois completaram o giro de modo que ficaram um junto ao outro e avançaram cada vez mais rápido, em linha reta e para ele. A terra parecia tremer. Stephen se levantou de um salto. Então os dois passaram por seu lado fazendo um ruído estrondoso e continuaram correndo em direção ao lago. Quando se encontravam a uma jarda da margem giraram juntos com tanta rapidez como os javalis e voltaram a subir a ladeira ombro a ombro, com os cascos desprendendo lampejos até que chegaram ao cume e desapareceram.


CAPÍTULO 8

A subida dos Mil Degraus fora fatigosa, mas as expectativas a haviam feito alegre; a descida foi muito mais cansativa, em parte porque no momento em que Stephen passou pela borda da cratera começou a cair uma chuva tão copiosa que não podia ver a mais de cinqüenta jardas adiante, e tão intensa que as gotas o molharam até a cintura. Ademais, a chuva ocultava os degraus gastos e desiguais, o que lhe produzia ansiedade e tensão e o obrigava a descer com sumo cuidado. Mas a tensão se confundia com a imensa alegria de ter obtido algo que superava suas expectativas, algo muito parecido à visão beatífica.

Mas tinha um brilho íntimo, sob a empapada capa de palha que os monges lhe deram, e ainda perdurava quando desceu com dificuldade os últimos degraus e chegou ao terreno coberto de grama onde se achavam os duriães. A chuva cessou tão repentinamente como começara e o bosque se encheu do rumor da água gotejando.

Olhou ansioso ao seu redor, mas não viu ninguém. Então apalpou seu peito, o único lugar de seu corpo que estava bastante seco, para encontrar o relógio que usava ali pendurado em uma corda. Quando inclinou a cabeça para ouvir a débil campainha percebeu que chegara uma hora e meia atrasado. Viu os lombos dos cavalos brilhando junto à torre hindu e perto deles uma pirâmide formada por grandes folhas de palmeiras, que estavam invertidas para que a água corresse para fora, e lá dentro Seymour com dois malaios fumando tabaco.

- Oh, senhor! - exclamou Seymour com uma expressão grave, levantando-se ao vê-lo aparecer. - Peço que me desculpe. Pensei que era um orangotango.

- Pareço um orangotango, senhor Seymour? - inquiriu Stephen.

- Para dizer verdade, senhor, acho que sim.

- Talvez seja por minha capa de palha - disse Stephen, olhando-se o braço. - Mas é uma roupa que repele a água de forma extraordinária. Espero não tê-lo feito esperar.

- Oh, não, senhor! - respondeu Seymour. - Acho que chegou exatamente na hora, ou quase. Nós chegamos cedo, como nos recomendou o capitão.

- Como está o senhor Aubrey?

- Quando o vi pela última vez, senhor, estava em plena forma. Outro dia subiu correndo para a cruzeta. Imagine, senhor! Na sua idade! Agora está com o oficial de derrota explorando a costa. Gostaria de comer algo, senhor? Eu trouxe uma galinha que o senhor Elliott matou com um tiro.

- Adoraria comer galinha - aceitou Stephen. - Só desjejuei um punhado de arroz ao amanhecer.

Cumprimentou aos empapados malaios, que eram muito diferentes dos dyaks, pois em seus rostos se refletia uma mistura de tristeza e mau humor. Ambos lhe responderam cortesmente com uma inclinação de cabeça, mas não disseram nada porque não havia tempo a perder: a água começava a se acumular no bosque e na planície e era preciso se apressar para poder regressar.

- De toda forma vou comer a galinha - disse Stephen, sentando-se. - Por que o senhor Elliott a matou? É uma ave muito maior que o galo silvestre.

- É verdade, senhor, mas ele pensou que era um galo silvestre. Pensou que todas estas aves eram galos silvestres - acrescentou, assinalando os ossos pelados que estavam no solo. - Esteve disparando-lhes até que a dona da casa saiu e lhe atirou um balde de água que molhou tanto a ele como ao rifle. Houve uma confusão tremenda e ele teve que pagar, senhor, mas essa confusão não foi nada comparada com a do dia seguinte: as pessoas corriam por todas as partes gritando e disparando ao ar com seus mosquetes, como em uma revolução...

- Vamos, tuan - disse o malaio mais velho, mais molhado e com pior humor. - Os cavalos já estão selados. Devemos ir.

Seymour havia mantido a galinha em uma bolsa de lona alcatroada durante horas para que não se molhasse com a chuva tropical, e tinha um sabor tão parecido com um remédio que Stephen a largou sem tristeza e saiu para o terreno empapado coberto de grama.

- Eu lhe ajudarei a montar - ofereceu-se Seymour.

Quando Stephen subiu para a sela impulsionado por ele, compreendeu que lhe considerava um homem velho. De repente tiveram sentido muitos outros atos corteses: havia lhe guiado por uma concorrida rua em Batavia, tirara suas botas em Buitenzorg, e em voz baixa recomendara a Clerke algo que lhe pareceu desconcertante e agora já não encerrava nenhum mistério, que devia "cuidar dos mais velhos". Perguntava-se se o mal aspecto de uma peruca muito velha, gasta pelo tempo e descolorada pelo sol, contribuía para fazê-lo parecer se não decrépito pelo menos entrado em anos.

- Fale-me da revolução - pediu Stephen.

Mas antes que Seymour pudesse responder passaram do bosque de duriães para caminho de regresso, e os cavalos avançaram por ele em fila indiana dando escorregões no que agora era um lamaçal.

Antes que a chuva voltasse a começar, Stephen conseguiu tirar de Seymour a pouca informação que este podia dar. Seymour não conhecia nenhum fato concreto mas sabia que havia uma atmosfera de crise. A gente falava de um levante com armas, de que o vizir fora levado para a prisão acorrentado e que o sultão estava fazendo a viagem de regresso. Quando fizeram uma parada, Seymour disse que os franceses tinham levado ao porto sua fragata e a estavam querenando. Depois, subindo a voz para que pudesse ser ouvido apesar do ruído da forte chuva, acrescentou que tinham escolhido um péssimo momento para fazê-lo porque não eram outra coisa que marinheiros de água doce.

Também era um mau momento para viajar. As horas de viagem seguintes, ainda que não foram muitas, pareceram infinitas. As sanguessugas terrestres nunca estiveram tão ativas nem tão enérgicas, e quando o grupo chegou à planície inundada, por onde os cavalos tinham que avançar com o barro até os joelhos, as sanguessugas aquáticas atuaram muito pior. Quando paravam e era possível conversar, Stephen tentava averiguar o que passava perguntando aos malaios, mas lhe disseram muito poucas coisas, talvez porque não sabiam nada ou porque tinham medo. Porém, indubtavelmente, responsabilizavam-lhe pelo mau tempo, e logo se deu conta de que era inútil insistir.

Teve que esperar chegar na cidade, para encontrar mais informação. Em Prabang só havia caído um aguaceiro, e apesar do rio ter subido e de suas águas, agora barrentas, estavam cobertas de troncos e galhos, as ruas quase não estavam úmidas. A essa hora da noite o normal era que as ruas estivessem cheias de gente, mas não havia ninguém. Inclusive o bordel javanês onde Maturin se alojava estava fechado e escuro. Só o que se via era um resplendor alaranjado por cima do teto do palácio e o único que se ouvia, além do rumor do rio, era um ruído confuso atrás de seus muros.

Levaram os pobres cavalos, que estavam esgotados, para o estábulo e pagaram e recompensaram aos malaios. Stephen, que sabia que os jovens, por mais amáveis e solícitos que fossem, tinham menos resistência que os velhos, levou Seymour para a fragata e disse a Macmillan que lhe tirasse todas as sanguessugas antes de deixá-lo deitar-se (o garoto estava dormindo em pé). Depois foi a casa de Van Buren.

- Quanto me alegro de que seja uma ave noturna! - exclamou, deixando-se cair pesadamente em uma poltrona. - Em qualquer outro lugar me sentiria mal. Ademais, o bordel onde me alojo está fechado.

- Tem que tirar essa roupa - recomendou Van Buren, olhando-o detalhadamente. - E, quando tenha tirado todos os parasitas, deve se esfregar com uma toalha e pôr uma bata. Depois, com uma fritada e um bom café se sentirá humano de novo.

- Estimado colega, o senhor não poderia ter feito um prognóstico melhor - disse Stephen depois de beber a sexta xícara. - Mas acho que estou interrompendo seu trabalho.

- Não, em absoluto. Só estou ordenando as peles que o senhor amavelmente me mandou. Muitíssimo obrigado. Há uma Nectarinea que nunca vira e o que parece uma subespécie de Graculus. Diga-me, como foi a viagem?

- Kumai é o lugar mais parecido com o paraíso que posso encontrar nesta vida ou na seguinte. Não tenho palavras para expressar com estou agradecido à sorte por ter-me permitido vê-lo. Convivi com orangotangos que inclusive me pegaram a mão. Vi ao tarsio{4}, que é de um valor incalculável... Bem, permita-me que deixe isto para outro momento. Primeiro, por favor, conte-me o que está acontecendo.

- Antes disso - disse Van Buren, sustentando a mão aberta no alto -, diga-me se trouxe o tarsio para fazer-lhe a dissecação.

Stephen negou com a cabeça, pensando no pequeno e inocente animal noturno que tinha se sentado do outro lado da lâmparina de Ananda e lhe olhara fixamente com seus grandes olhos.

- Prometi não matar a nenhum animal. Além disso, um homem necessitaria ter um coração de ferro para matar um tarsio.

- Com relação aos primatas, tenho um coração de ferro - sentenciou Van Buren. - E o tarsio é o mais raro de todos. Mas voltando ao tema - continuou, olhando para Stephen com a cabeça inclinada -, realmente quer que lhe conte o que passa?

- Certamente!

- Bem - disse, olhando-lhe ainda inquisitivamente. - Hafsa e sua família seguiram o conselho de alguém alheio ao palácio, que bem poderia ter sido seu conselho, e na terceira tentativa, seus servidores surpreenderam Abdul na cama com Ledward e Wray. Os europeus alegaram que tinham um salvo-conduto do sultão e o vizir os deixou ir, mas aprisionou Abdul e enviou mensageiros para avisar ao sultão. Alguns dos amigos de Abdul formaram uma revolta, mas os homens do vizir e os membros restantes da guarda dyak a sufocaram imediatamente e agora estão buscando aos que fugiram. Por isso todas as casas estão fechadas.

- Compreendo. Compreendo.

Depois de uma longa pausa perguntou:

- Como acha que terminará?

- Não sei. Talvez Abdul salve a pele por sua cara bonita ou talvez não. Não sei. A propósito disso, devia ter lhe dito antes que o empregado de Pondicherry...

- Lesueur?

- Sim, Lesueur. Foi assassinado. Por favor, diga ao senhor Fox que tenha muito cuidado. Provavelmente chegará pela manhã, muito antes do sultão e seu séquito. Deveria ir para a fragata, e o senhor também. Há assassinos aos montes em Prabang e não são raros os envenenamentos.

- Deveria ir também.

- Eu lhe darei um par de pistolas e enviarei Latif. Farei com que o vigilante o acompanhe.

O bote zarpou e imediatamente regressou ao porto. Stephen, que se movia torpemente pelo cansaço, foi subido pelo costado. Richardson o ajudou a meter-se na maca, e antes que caísse em um estado parecido ao coma ouviu uma voz dizer:

- O bordel está fechado e o doutor veio deitar-se aqui.

Depois ouviu alegres risos.

As oito badaladas da guarda da alvorada atravessaram o sono de Stephen, tão espesso como a névoa, e então levantou a cabeça convencido de que devia fazer algo urgente ainda que não ssoubesse o que. Alguns momentos mais tarde todas as coisas se encaixaram e chamou Ahmed. Depois de tomar uma primeira xícara de café disse:

- Ahmed, tenho que me barbear e vestir a casaca negra boa.

Quando soou uma badalada na guarda da manhã, subiu ao castelo de popa limpo e vestido decentemente. Olhou para o céu, que estava limpo.

- Bom dia, estimado Fielding. Poderia dispor de um bote para descer a terra e de dois infantes da marinha como escolta? Vou ver o senhor Fox e há distúrbios na cidade.

Fox chegara há uma hora e percebia-se estar muito excitado apesar de seus esforços para dissimulá-lo. Ainda tenha cumprimentado com amabilidade e mesmo familiaridade, parecia distante.

- Um de meus informantes foi assassinado - anunciou Stephen. - Além disso, como provavelmente saberá, Ledward e Wray ainda estão livres. Não só é possível que uma pessoa seja assassinada abertamente como também possa ser envenenada secretamente. Uma fonte confiável me disse que o senhor devia ter muito cuidado.

- Obrigado pela advertência. De fato, sabia que estavam livres. Ao chegar em casa recebi uma nota de Wray na qual se oferecia para testemunhar contra Ledward em troca de proteção e do traslado para qualquer país ou ilha. Aqui está.

- Deve pensar que o senhor sente ódio por Ledward - opinou Stephen depois de ler a nota.

Fox sorriu e disse:

- Espero, espero que morra como Abdul. Só o que temo é o grande senso de honra do sultão. Como lhes deu um salvo-conduto e é tão sério em assuntos como este, nem mesmo o vizir se atreveu a prendê-los; ainda que, como poderiam ser aprisionados secretamente se o sultão mudasse de opinião, não voltaram a ser vistos no complexo onde os franceses se alojam. Tanto se os prenderem como se não, acho que podemos dizer que o tratado está no papo, se me permite uma expressão coloquial.

- Não estou tão certo - replicou Stephen. - Conforme minha melhor fonte, é muito provável que Abdul, com sua cara bonita e seus olhos de gazela, faça a balança inclinar.

- Pode chegar tão longe? - perguntou Fox desconcertado, escrutinando o rosto de Stephen. - Pode fazê-lo realmente? Tenho que ir. - Tocou uma campainha e ordenou que um guarda viesse. - Tenho um encontro com o vizir - continuou. - O sultão regressará no final da tarde e o gabinete se reunirá esta noite para tomar uma decisão. A sacada do quarto do... do lugar onde você se aloja, dá para o pátio do palácio, e eu gostaria fazer-lhe uma visita esta tarde para que me falasse de sua viagem a Kumai. Bem, suponho que iria.

 

- Peço-lhe desculpas por me apresentar desta maneira -desculpou-se o enviado, que usava uma casaca do uniforme de oficial da Infantaria da marinha e óculos escuras -, mas pensei que...

- Tomou uma medida muito inteligente, senhor - disse Stephen. - Nada pode ocultar melhor a um homem que um casaca vermelha. Por favor, entre e sente-se na sacada. Nos serviram um humilde lanche. As lesmas do mar são a especialidade da casa e também o é, por desgraça, o medíocre vinho de Macau, mas podemos pedir chá ou café. Dentro de pouco, justo depois do pôr do sol, poderá ver sair uma estrela grande e brilhante junto à mesquita de Ornar. Jack Aubrey me disse que era Júpiter, e se estivesse aqui com sua luneta lhe mostraria suas quatro luas.

- Desculpem - interrompeu a companheira de quarto de Stephen, abrindo a porta e olhando para Fox com muita curiosidade. - Esqueci as calcinhas.

- Antes de vir, como todos, li algo sobre os atos de malaios furiosos, mas não esperava ver tão cedo a dois deles realizados - começou Stephen quando se sentaram na sacada que dava para a rua mais movimentada, para a planície que ficava diante da mesquita de Rasul e para o muro do pátio do palácio, que estava do outro lado desta. - Um ocorreu nesta mesma rua faz apenas uma hora. Um homem avançava dando golpes a torto e a direita, em meio de um espantoso clamor, deixando um rastro de sangue e fazendo a multidão em sua frente fugir até que um dyak o derrubou e o matou com uma lança. Depois a multidão se agrupou em torno do cadáver falando, rindo e cravando-lhe seus punhais malaios, e voltou a se dispersar quando outro louco furioso desceu gritando para a pista que fica desse lado e se dispersou outra vez. Pouco depois o homem correu para a direita até perder-se de vista, ferindo a dois homens em sua passagem, mas não sei o que lhe aconteceu. Cinco minutos depois as pessoas já estavam na rua caminhando, falando, comprando, vendendo e abanando-se como se nada tivesse ocorrido.

- As pessoas deste país às vezes é cruel e sangrenta - disse Fox -, ou talvez "indiferente" seja o termo mais adequado.

Comeram em silêncio, servindo-se do conjunto de pratos enquanto as sombras se alongavam. Fox rebuscava em uma tijela de ninharias e de repente levantou a cabeça e ficou imóvel.

- O sultão deve estar chegando - sentenciou.

Um som de tambores e trompetes foi aumentando de volume e de repente, quando a procissão dobrou a esquina e entrou pela porta do pátio do palácio, aumentou muito mais. Lá dentro soaram mais trompetes e se ouviram gritos que o terral dispersava de tal modo que pareciam muito próximos.

- Antes que a luz se extinga queria lhe mostrar os desenhos que fiz em Kumai - disse Stephen. - São muito toscos e se estragaram com a chuva, especialmente os das folhas exteriores, mas por eles poderá fazer-se uma idéia do que vi.

- Sim, por favor! - exclamou Fox, mudando por completo sua atitude. - Tenho muita vontade de ver o que trouxe.

- Este é o esboço da grande estátua que se destaca no templo. É de rocha vulcânica granulosa de cor cinza-claro. Não dá idéia de sua majestosa serenidade. Parece muito maior que doze pés, sua altura real, quando alguém fica em pé diante dela. Tampouco se aprecia que tem em a mão direita erguida com a palma para fora.

- Oh, posso ver muito bem a mão! É um excelente desenho, Maturin. Eu lhe estou muito agradecido. Este é Buda em atitude abbaya mudra, e sua mensagem é "Não temas, tudo está bem". Que maravilha! Pelo que eu sei, ninguém viu nenhum outro nesta região.

- Aqui estão as plantas em escala. Isto é o que eu chamo de nártex, onde dormi. Este é o peculiar trabalho do friso que há onde o teto se junta com a parte principal do edifício. As marcas indicam onde os vaus se apoiam, está parcialmente borrado. É óbvio que o trabalho é anterior ao teto.

- Oh, é! - exclamou Fox, observando com grande atenção as páginas. - De fato, é muito anterior, talvez inclusive anterior a todos os que já vi em território malaio. Meu Deus, que descoberta!

Enquanto houve luz do dia suficiente, fez com que Stephen lhe falasse deles uma e outra vez, e por fim disse:

- Seria uma lástima ter que pedir uma lamparina. Tenho os plantas e os desenhos muito claros em minha mente e poderia seguir-lhe passo por passo se o senhor tivesse a amabilidade de descrever-me tudo o que viu.

- Isso duraria até o ano que vem, mas tentarei dar-lhe uma visão geral. Quer que comece pelas Nectarineas, que ocupam o lugar dos beija-flores aqui? Se interessa pelas Nectarineas?

- Só um pouco.

- E os orangotangos?

- Para dizer verdade, Maturin, há tantos orangotangos entre meus conhecidos que não daria um passo para ver outro.

- Bem, bem. Talvez deveria começar pelo templo hindu e limitar-me a falar das coisas sagradas e o que as rodeia.

E foi isso o que fez. Quando o relato chegou ao ponto em que subia lentamente os Mil Degraus, o sol se ocultou atrás do mar a oeste; e quando falava da impressão que o templo lhe causara ao vê-lo pela primeira vez, de sua imensidade e da disposição de suas partes, Júpiter apareceu.

Stephen chegou ao nártex e depois ao momento em que abriram a porta do templo e à luz do sol pôde contemplar a estátua do interior. Então Fox disse:

- Estou completamente de acordo que os templos budistas mais sóbrios transmitem melhor a idéia de santidade, isolamento e espiritualidade que os monastérios cristãos, com excessão dos mais austeros.

Fox estava fazendo um longo parêntese em que falava de suas viagens pela fronteira do Tibete e pelo Ceilão quando se ouviram no palácio os sons discordantes de tambores e címbalos, depois uma descarga de mosquetes e depois o som dos trompetes acompanhado pelo comprido rugido de um corno. Então os tambores soaram com mais regularidade e montes de grandes lanternas iluminaram o pátio. Imediatamente pôde ver-se o resplendor alaranjado de uma fogueira, uma fogueira cujas chamas se elevavam tanto que às vezes se viam por cima do muro, e a fumaça subia diretamente para a sacada onde eles estavam sentados. Voltou-se a ouvir o rouco som do corno e o resplendor se tornou vermelho quando jogaram alguns pós na fogueira.

- Alguém vai receber o que merece - disse Fox. - Espero que seja Ledward. Espero que neste momento estejam atando o saco ao redor de seu pescoço.

Ouviram-se gritos no palácio, e também risos. As coloridas chamas subiram ainda mais, as luzes e os gritos aumentaram de intensidade (pareciam os gritos de uma multidão histérica). Não souberam precisar o tempo que isso durou. Uma ou duas vezes Stephen viu grandes morcegos passarem entre ele e o resplendor, e Fox permaneceu todo o tempo agarrado à grade, imóvel e quase sem respirar.

Com o tempo o ruído da multidão perdeu intensidade e as chamas diminuiram tanto que deixaram de ser vistas por cima do muro. O toque dos tambores cessou; as lanternas foram retiradas e detrás do muro só restou um resplendor vermelho.

- O que será que aconteceu? - perguntou Fox. - O que será que aconteceu? O que será que aconteceu exatamente? Não tenho contatos no palácio e não posso visitar o sultão até que termine de fazer o jejum para ter um herdeiro. Agir baseando-me em rumores ou em um relato inexato seria desastroso, e, contudo, devo agir. Pode me ajudar, Maturin?

- Conheço uma pessoa que terá detalhes do ocorrido dentro de uma hora - disse Stephen tranqüilamente. - Eu lhe visitarei amanhã pela manhã.

- Não poderia ir agora?

- Não, senhor.

 

Stephen não teve necessidade de visitar Van Buren, pois se encontrou com ele no mercado onde vendiam búfalos. Durante um tempo falaram das estranhas relações destes animais com o bantín e o bisão-indiano, dois animais de enorme tamanho que provavelmente foram os que ofegaram em cima de Stephen em Kumai durante a noite, e depois Stephen perguntou:

- Meu colega está preocupado em saber o que se passou ontem à noite. Abdul se salvou devido à sua cara bonita e aos seus olhos de gazela?

- Quando Hafsa terminou já não tinha a cara bonita nem os olhos de gazela. Puseram uma bolsa em sua cabeça e o fizeram dar voltas e voltas ao redor do fogo enquanto o golpeavam até que a pimenta e os golpes lhe causaram a morte.

- E Ledward e Wray?

- Não os tocaram. Alguns pensaram seriam aprisionados tanto se tinham imunidade como se não, mas acho que o sultão está enjoado de tudo isto e somente os proibiu de entrar no palácio. O corpo de Abdul foi entregue à sua família em vez de ser jogado na rua.

 

Desde menino Jack Aubrey achava que um dos maiores prazeres no mundo era navegar em uma embarcação pequena e bem construída que navegasse bem de bolina. Ademais, para ele a melhor forma de navegar era levando a escota em uma mão e a manivela do leme estremecendo-se sob o joelho e sentindo a imediata resposta da embarcação a cada movimento dela, das ondas e do vento. Naturalmente, achava mais prazeroso navegar quando soprava vento de moderada intensidade e tinha fluxo de ondas, mas também sentia certo deleite ao deslizar por águas tranqüilas, tentando sacar ainda que fosse um pequeno impulso do escasso vento: esses eram seus grandes prazeres. Mas desde que deixara o camarote dos guardas-marinhas navegara assim muito poucas vezes e quase nunca por puro prazer. Por outro lado, ainda que desde que era capitão de navio ia de um lado para o outro em sua magnífica falua, quase não o fizera meia dúzia de vezes, entre outras coisas porque um capitão, mesmo com um primeiro oficial tão consciencioso como Fielding, passava a vida muito ocupado, ou pelo menos Jack Aubrey a passava assim.

Tinha carinho pela Diane, uma embarcação forte e manejável, ainda que chata, mas estava desfrutando de umas curtas férias fora dela. A exploração da costa de Pulo Prabang com o senhor Warren, um eperimentado hidrógrafo, era um autêntico prazer, mas o encanto daqueles dias estava em navegar de formas tão variadas como era possível desejar, nadar, pescar e atracar em uma solitária praia ao entardecer para comer pescado na brasa e dormir em tendas ou redes penduradas em duas palmeiras. Navegaram para o leste seguindo a curva da ilha, que era quase redonda, até chegar ao norte. Passaram por diversos povoados, incluindo Ambelan, a cujo pequeno porto a fragata francesa Cornélie e seus atrevidos tripulantes haviam se retirado. Agora ambos faziam a viagem de regresso e comprovavam os valores que haviam obtido ao medir a situação de lugares e a profundidade das águas e, também, continuavam o programa de Humboldt, que consistia em medir a temperatura em pontos onde as águas tinham diferentes profundidades, salinidade, pressão atmosférica e outras características. Mas nenhuma dessas tarefas era árdua, e agora Jack dirigia o cúter da Diane pelo estreito que separava o cabo situado à direita e uma pequena ilha. O cúter navegava quase completamente contra o forte vento do oeste-sudeste e, como tinha pouco abatimento por ser muito bem construído, Jack pensou que podia passar pelo estreito navegando pela mesma faixa.

Bonden, que apesar de ser o timoneiro do capitão não tivera o leme na mão desde que o cúter zarpou de Prabang, estava seguro de que podia passar. Warren, o oficial de derrota, que não sabia nadar, pensava que talvez pudesse, mas desejava que não o tentasse. Yusuf, a quem haviam levado na viagem porque conhecia a língua do lugar e sabia diferenciar o mal do bem, pelo menos com respeito a peixes e frutas, estava convencido de que não podia; mas, como era muçulmano, resignou-se porque pensava que o que estava escrito estava escrito e que não se podia lutar contra o destino. Ademais, era de uma ilha malaia e se sentia tão bem no mar como fora dele. Poderia ter tido uma quinta opinião, a de Bampfylde Elliott; Jack tinha intenção de levá-lo na viagem porque, apesar de que não era nem nunca seria um bom marinheiro, simpatizava com ele. Como capitão da Diane tivera que repreender o segundo oficial mais amiúde do que era habitual ou agradável e esperava que aquelas férias servissem para que sua relação voltasse a ser boa. Elliott não estava mal-humorado nem ressentido, senão que se sentia culpado e fora de lugar e sofria porque na Diane o tinham em pouca estima. Mas no dia antes de zarpar, quando Fielding ordenou que pintassem de negro outra vez as vergas da fragata, um marinheiro que trabalhava no alto da exárcia deixou cair um balde. Poderia ter caído sem causar estrago, já que havia muito poucos homens no convés e havia muitas probabilidades de que o único estrago que causasse fosse uma mancha negra que os marinheiros da guarda de popa tivessem que limpar esfregando, mas chocou-se contra o ombro ferido de Elliott, que além de inepto tinha má sorte.

O cabo, a ilha e o estreito estavam cada vez mais perto. Jack, inclinando-se e olhando para frente, notou que as colinas faziam o vento se desviar de tal modo que empurraria o cúter para o centro do estreito e que a descda da maré estavam formando pequenas ondas cruzadas. Imediatamente começou a calcular a velocidade, a inércia e a distância para determinar o rumo mais adequado e obteve a resposta em menos de um segundo, a umas cem jardas da ilha rochosa. Alguns momentos depois virou e o cúter ganhou velocidade. Então Jack, aproveitando o impulso, fez ele atravessar o estreito navegando de bolina e contornar o cabo até chegar à parte mais distante do mar. Poupar-se cinco minutos não era realmente um triunfo importante, mas era agradável saber que não perdera a habilidade de outrora, ainda que em parte fez a manobra para alardear.

Nessa parte de Pulo Prabang a costa tinha muitas saliências e a baía onde o cúter entrava agora, estreita e profunda como um fiorde, era separada de outra igual pelo cabo Bughis. Jack deu a esta baía o nome de Bughis do leste e à outra Bughis do oeste e os anotou em sua carta marinha, ainda que os tripulantes da Diane chamassem a esta última de baía dos Franceses, pois na margem leste se encontrava Ambelan, em cujo porto estava a Cornélie. O caminho que entroncava numerosos povoados pesqueiros e pequenas cidades com Pulo Prabang seguia no possível o contorno da costa e passava pelo fundo de ambas baías. Jack tinha a intenção de desembarcar na primeira baía, caminhar ao longo da costa até o caminho e tomá-lo para ir ao lado oeste do seguinte, de onde poderia observar a Cornélie, que se encontrava do outro lado. Apesar de ter nadado muito, necessitava caminhar e também queria ver como os franceses estavam. Sabia que estavam querenando a fragata, o que era perigoso em um litoral onde havia mudanças de maré tão consideráveis, e queria ver o progresso do trabalho, pelo menos do ponto de vista profissional. Na viagem de ida o cúter passara pela boca da baía Bughis do oeste, mas Jack não entrara apesar do vento ser favorável. Não queria cometer nenhuma indiscrição que pudesse prejudicar os assuntos dos quais tratariam Fox e o sultão, mas lhe parecia que seu comportamento não podia considerar-se incorreto se observava a Cornélie do outro lado da baía, sobretudo porque os oficiais franceses amiúde observavam a Diane com suas lunetas desde Prabang. Pensava que depois de observar a fragata e determinar a situação de diversos pontos seguiria andando e passaria para o outro lado do promontório seguinte até chegar à distante praia onde, se a sorte lhe acompanhasse, encontraria o cúter atracado e a fumaça saindo da fogueira acesa para passar a noite.

Enquanto a palavra "jantar" ressoava na mente de Jack, Yusuf e Bonden pescaram um bonito peixe prateado com olhos e barbatanas de cor carmim que pesava dois ou três libras.

- Padang pescado, tuan! - gritou Yusuf. - É um pescado bom, muito bom!

- Tanto melhor! - exclamou Jack, soltando a escota e aproximando o cúter lentamente da margem. Desceu imediatamente com os sapatos e uma pequena bolsa pendurados do pescoço e empurrou o cúter para o mar dizendo: - Então, até esta noite na baía dos Papagaios - e se sentou na cálida areia para secar os pés.

Warren lhe respondeu alegremente, mas Bonden, apesar de estar de novo em seu posto na bancada de popa, moveu a cabeça de um lado para o outro. Ademais, tinha uma expressão entristecida porque teria gostado que o capitão se tivesse levado pelo menos um sabre e um par de pistolas ou um mosquete, e também um par de marinheiros bem armados.

Ali a areia era branca-rosácea, muito diferente da areia negra de rocha vulcânica que havia em Prabang, e muito firme. Jack secou os pés, pôs os sapatos e começou a andar com passo rápido e os olhos semicerrados por causa do resplendor. Pouco depois chegou ao fundo da baía e ao caminho, que ficava por cima da marca mais alta que o mar havia deixado. Cinco minutos depois de pegar o caminho já avançava sob a agradável sombra das palmeiras que o flanqueavam quase até chegar ao povoado. Nelas não havia nenhuma pessoa nem nenhum outro animal que não fossem um ou outro pássaro e miríades de insetos. Quase não podia ver os insetos e nunca podia identificá-los, mas faziam um ruído constante que se propagava por todas as partes, e depois de alguns minutos o notava só nas raras ocasiões em que cessava repentinamente. Esse tipo de palmeira não era muito bonita, era grossa, baixa e de cor verde-mate e, também, estava coberta de poeira, e pouco a pouco Jack se sentiu angustiado por estar sozinho e rodeado delas. Sentiu um grande alívio quando finalmente saiu da sombra e atravessou os campos de arroz dos arredores do povoado que ficavam no fundo da baía Bughis do oeste. Havia pessoas trabalhando neles e alguns levantaram a vista ao vê-lo passar, ainda que com pouco interesse e mínimo assombro. Quase o mesmo ocorreu no povoado, onde se via poucas pessas a essa hora do dia, mas lá o motivo de sua indiferença era evidente, pois na comprida baía que agora tinha ante dele, em cujo lado leste se encontrava Ambelan, havia ancorados dois juncos chineses e o porto estava abarrotado. Obviamente essas pessoas estavam acostumadas a ver estrangeiros.

Do outro lado do povoado, o caminho subia até a crista do comprido cabo rochoso que formava o outro braço da baía. Quando Jack, muito suado, alcançou o cume da colina, dobrou para a direita para chegar a um lugar que estivesse justo em frente do pequeno porto. Viu uma vereda que serpenteava entre as rochas e os arbustos desmochados pelo vento e imediatamente compreendeu por que: ao longo da margem havia montes de grandes rochas a certa distância da praia e nelas estavam sentados muitos pescadores com longas varas de bambu. Os homens lançavam o anzol além das ondas formadas pela maré, que agora começava a subir, e a cada grupo de rochas chegava uma vereda.

Depois de andar aproximadamente uma milha, tomou uma dessas veredas e desceu a colina. Avançou para o lugar onde se notava claramente a divisão entre a zona onde o vento soprava com a força e freqüência suficientes para que as árvores e os arbustos tivessem sempre pouca altura e a zona que ficava ao abrigo do cabo, onde todas as plantas cresciam tanto como costumavam, tanto o junco da índia como as pandanáceas como diversas árvores, e havia por toda a costa coqueiros com mil graciosas formas. A meio caminho parou e viu uma plataforma com um manancial que brotava da rochosa ladeira, um nutrido grupo de samambaias e uma assombrosa quantidade de orquídeas que cresciam sobre as rochas, a grossa capa de musgo, as árvores e os arbustos, orquídeas de todos os tamanhos, formas e cores.

- Meu Deus, quem dera Stephen estivesse aqui! - exclamou, sentando-se em uma pequena elevação conveniente, e tirou da bolsa uma pequena luneta e uma bússola para medir o azimute.

Voltou a dizer isto um pouco mais tarde, quando uma enorme ave branca e negra que tinha um peixe agarrado com as patas cruzou majestosa seu campo visual. A luneta era de bolso e não muito potente, mas como o brilhante sol batia de cheio na margem oposta e o ar era extraordinariamente claro, podia ver muito bem a Cornélie. De fato, fora encalhada em um banco de areia situado ao norte do povoado e se viam brilhar ao sol suas placas de cobre. Tinha o costado de bombordo apoiado sobre várias árvores sumamente altas, e uma massa de flores de cor carmim cobriam de cima abaixo uma delas ou talvez a enredadeira que o rodeava. "Se minhas rosas fossem assim", pensou em um parêntese em que lembrou seus amados arbustos de Ashgrove Cottage cobertos de mofo e pulgões.

Mas ocorria algo raro. Ocorria algo ruim. Ali estavam todas as coisas da fragata arrumadas em forma de pacotes quadrados cobertos com uma lona alcatroada; ali estava seus canhões, colocados de um modo inteligente para poder responder a qualquer ataque por terra ou por mar; ali estavam as tendas dos tripulantes; porém, onde estavam os tripulantes?

Havia alguns trabalhando sobre as placas de cobre e alguns pucos estavam colocando uma plataforma junto à parte da amura de estibordo da qual haviam tirado as placas; contudo, não se via a atividade febril que costumava haver em ocasiões como essa, em que todos os marinheiros trabalhavam sem parar entre apitos e açoites. Alguns deles inclusive jogavam bocha sob alguns coqueiros e montes de companheiros os observavam. Outros pareciam estar dormindo na sombra.

Enquanto Jack refletia sobre isso, ouviu os estalidos das pedras na vereda de cima e depois viu um homem com uma vara de pescar descer e passar junto a ele. O homem lhe disse algo em malaio e Jack respondeu com uma interjeição que expressava alegria e que pareceu satisfazer a esse pescador e ao que o seguiu pouco depois. Mas o terceiro homem que passou se deteve e olhou para trás, e Jack notou, apesar de que era moreno como os habitantes da ilha, que era europeu e, sem dúvida, francês.

- O senhor é o capitão Aubrey, senhor? - perguntou sorrindo.

- Sim, senhor - respondeu Jack.

- O senhor não se lembra de mim, senhor, mas meu nome é Dumesnil e tive a honra de conhecer-lhe a bordo do Desaix. Meu tio, Guillaume Christy-Pallière, estava ao comando dele.

- Pierrot! - exclamou Jack, e sua expressão passou do receio à satisfação ao reconhecer o atarracado guarda-marinha no tenente de pernas compridas. - Como está seu amado tio?

Seu amado tio, em um navio de linha, tinha capturado Jack no Mediterrâneo quando estava pela primeira vez ao comando de uma embarcação, a pequena corveta com aparelho de bergantim, a Sophie, em 1801. Tratou seu prisioneiro muito amavelmente e ficaram amigos, uma amizade que logo se fortaleceu porque alguns primos de Christy-Pallière eram ingleses e ele falava muito bem sua língua. Seu sobrinho Pierre a falava ainda melhor porque estivera em uma escola em Bath durante a paz. Trocaram notícias de seus companheiros de tripulação anteriores. O tio Guillaume agora era um almirante (algo que Jack sabia muito bem), mas estava encerrado em um escritório em Paris. E era evidente que Christy-Pallière tinha seguido a vida profissional de Jack tão de perto como Jack a sua. Dumesnil falou sem rancor da dor e admiração que os dois sentiram ao saberem que Jack capturara a Diane e acrescentou:

- Naturalmente, eu o vi quando o sultão deu audiência e um par de vezes quando fui observar a pobre Diane desde Prabang, mas sem dúvida teria sido inapropiado fazer-lhe algum sinal. Esperava que o senhor nos devolvesse o cumprimento e viesse observar a pobre Cornélie. Sei que alguns de seus homens o hão feito deste mesmo lugar.

- É indubitável que daqui pode ser vista muito bem - disse Jack, e fez uma eloqüente pausa.

- Bem, senhor... - começou de novo Dumesnil um pouco envergonhado. - Não sei se alguma vez já querenou um barco onde não havia um cais.

- Nunca, quer dizer, nunca nenhum maior que uma corveta. Podem ocorrer coisas horríveis. Os mastros, as balizas...

- Sim, senhor. E ocorreram coisas horríveis. Não é minha intenção criticar o meu capitão ou meus companheiros de tripulação... São desígnios divinos. O que posso dizer é que a fragata não poderá estar flutuando antes da próxima mudança de estação, que muito provavelmente não o estará até a mudança da estação seguinte a essa e que é possível que não o esteja até o ano que vem. Digo isto com a esperança de que não tente capturá-la, pois nos mataríamos uns aos outros sem uma boa razão. Nem dois barcos de linha ancorados na baía puxando ela até que suas amarras e seus cabrestantes se rompessem poderiam tirá-la desse maldito banco.

Dumesnil não deu mais detalhes sobre as "coisas horríveis", ainda que Jack suspeitava que pelo menos um mastro teria torcido e teriam soltado algumas balizas, mas continuou falando de outros problemas: a crescente hostilidade dos habitantes de Ambelan, a deserção da maioria dos carpinteiros de barcos espanhóis e muitos marinheiros, que fugiram em dois barcos filipinos, e a extrema escassez de provisões da fragata. Contou que há semanas o capitão, os oficiais e todos os tripulantes viviam das velhas provisões da fragata porque tinham malgastado o dinheiro e o contador quase não podia comprar o arroz mais barato. Nunca lhes deram muito crédito e agora não lhes davam nenhum. Os comerciantes chineses não descontavam os documentos de crédito de Paris nem sequer ficando com noventa por cento do valor.

- Afortunadamente - continuou, rindo -, sempre podemos encontrar estes peixes, os padang. Passam de dois em dois ou de três em três justo por detrás de onde rompem as ondas quando a maré sobe, e picam se se usa como isca uma pena ou um pedaço de torresmo de bacon enrolado, como o robalo em nosso país. Olhe como os pescam!

Era verdade. Pôde ver reflexos prateados em quatro ou cinco lugares ao longo das rochas e notou que a maré estava subindo.

- Pierrot, meu amigo, deve descer imediatamente ou desperdiçará a maré - Jack lhe advertiu, levantando-se -, e não pode ocorrer nada pior a um marinheiro. Eu lhe mandarei um presente com um dos malaios de nossa escolta, mas não esqueça de assinar a nota adjunta para que eu saiba que o recebeu. Há muitos ladrões nestas ilhas, sabe?

- Oh, senhor! É muito amável, mas não posso aceitar nada de um oficial que é teoricamente um inimigo. Ademais, não falei de nossa penúria com a intenção de...

- Quelle connerie!, como diria seu tio. Eu não aceitei nada dele, né? Só cinqüenta guinéus e uma série de refeições que foram as melhores de minha vida. O mesmo ocorreu com os norte-americanos quando nos aprisionaram. Bainbridge, o capitão da Constitution, encheu-me de dólares. Não seja tonto, Pierrot. Avise-me se souber de algum lugar discreto onde possamos nos encontrar, e se não, faz-me saber de ti quando se firme a paz. Seu tio conhece meu endereço. Que Deus te bendiga.

 

- Há, Stephen, está aqui! - exclamou Jack. - Alegro-me de ver que ainda está vivo depois de subir os sagrados degraus. Abandonou o bordel? Comprovou que lá todas as mulheres têm sífilis ou se converteu em evangelista? Ah, ah, ah! Sentou-se ofegando e secando-se os olhos. Stephen esperou que terminasse de rir, algo de não pouca importância, pois a jocosidade de Jack Aubrey se nutria do que provocava seu riso.

- Como você é escandaloso! - queixou-se por fim.

- Perdoe-me, Stephen, mas era muito cômica a idéia de que era um metodista que dava um sermão para as mulheres e distribuia panfletos... Oh...!

- Controle-se, senhor! Que vergonha!

- Sim, se posso. Killick! Killick!

- Já vou! - gritou Killick a certa distância, e depois, quando a porta da cabine se abriu, desculpou-se: - Isto é o melhor que pude fazer, senhor. Em vez de água de cevada com limão é água de arroz com toranja, que é muito parecido com o limão.

- Deus te bendiga, Killick. Remar durante as últimas três horas em calmaria me deu muita sede.

Bebeu um duas pintas e imediatamente começou a suar e disse:

- Ontem pela tarde me encontrei com alguém muito agradável. Recorda-se quando Christy-Pallière nos capturou em 1801?

- Não vou esquecê-lo facilmente.

- E se recorda de seu sobrinho, um garoto atarracado e de cara redonda chamado Pierrot?

- Não.

- Não, porque estive todo o tempo com o cirurgião, um tipo pálido e resmungão ainda que, sem dúvida, um homem muito instruído. Bem, pois o jovem Pierrot estava lá há muitos anos e voltei a vê-lo ontem. Agora é um guarda-marinha alto e magro, mas em essência continua o mesmo. Sabe falar inglês assombrosamente bem. Falamos muito pouco e me disse que não tentasse capturar a fragata porque não era provável que flutuasse até a mudança de estação depois da próxima. Eles a estão querenando, sabia?, e o que ocorreu às balizas e aos mastros... Contudo, ocorreu-me que poderia esperá-la em alto mar, frente ao cabo, já que a mudança de estação depois da próximo coincide com o segundo encontro com a Surprise, e, como sabe, o primeiro já passou. Mas não acredito que Fox tenha terminado as negociações até então, a menos que ele e o sultão desdobrassem mais velame. Bem, é só uma possibilidade.

- Quanto às negociações, meu amigo, acho que está... Como lhe diria? Acredito que está equivocado. Ocorreram fatos surpreendentes desde que você foi navegar. Quer que dar uma volta em meu pequeno bote? Eu remo, porque está esgotado.

Depois, apoiado nos remos, perguntou:

- Recorda-se de Ganímedes, quer dizer, Abdul, o copeiro do sultão?

- O odioso sodomita a quem desejava sacar a chutes de meu castelo de popa?

- O própio. Era o favorito do sultão, para não usar um termo mais vulgar, mas lhe foi infiel com Ledward. Surpreenderam-nos cometendo sodomia e o sultão castigou Abdul com a morte, mas não a Ledward nem a Wray, a quem prometera proteção. Só os proibiu de entrar no palácio, apresentar-se ante o gabinete e participar nas negociações. Isso deixa Duplessis fora de combate, pois não sabe falar malaio e os membros do governo não admitirão um intérprete plebeu porque são muito rígidos com relação à classe social. É muito provável que a missão francesa tenha fracassado, mas isso não o saberemos imediatamente, pois ainda devem passar dois ou três dias antes que Fox possa visitar o sultão. É claro, Ledward está arruinado, o mesmo que Wray, mas a aversão de Fox não diminuiu, aliás pelo contrário. Decepcionou-se por Ledward não ter a mesma morte horrenda que Abdul. Entre eles existe um ódio implacável... É mais, acho que Ledward perdeu o juízo. Até agora o assassinato podia ser considerado como um ato perfeitamente razoável em negociações deste tipo e nesta parte do mundo, e em dado momento era a única possibilidade de êxito de Ledward; contudo, na situação atual não teria efeito nenhum, e apesar disso, fez duas tentativas.

- É um caso feio, Stephen.

- Muito feio, meu amigo, mas a menos que Duplessis possa encontrar um novo negociador e um novo incentivo ou conseguir outro adiamento, e essas são realmente as possibilidades, as negociações não durarão muito mais e você poderá comparecer ao encontro com a Surprise.

Começou a mover os remos com sua característica torpeza para regressar para a Diane e depois de refletir um pouco disse: - mas me alegra saber o que me contou sobre o estado atual da fragata francesa.

- Não se moverá até dentro de muitos dias - afirmou Jack. - Não me surpreenderia que as orquídeas crescessem no pallete que cobre o mastro maior onde são colocadas as vergas. Ah, Stephen, isso me recorda uma coisa! É possível que seja um quebra-ossos uma ave que vi com um peixe agarrado? Tinha o tamanho de uma águia e o peixe era muito grande.

- É possível. Acho que essas aves são universais. Outras também são. Surpreendeu-me ver uma coruja comum em Kumai. Era uma autêntica coruja comum. Não me surpreenderia mais de ver um pisco-de-peito-ruivo.

Quando já estavam quase junto ao costado da fragata, Jack disse:

- Espero que durma a bordo esta noite e que me fale de Kumai. Poderíamos tocar música depois. Faz séculos que não tocamos uma nota.

- Esta noite? Temo que não porque tenho um compromisso. Mas amanhã, se Deus quiser...

 

- Boa noite, estimado colega - cumprimentou Stephen, abrindo a porta. - Espero não ter interrompido seu trabalho.

- Em absoluto - respondeu Van Buren. - Estas são só umas notas para uma conferência que darei na Academia de Petersburgo sobre o tema de que habitualmente me ocupo.

- Eu lhe trouxe um cadáver. Os guarda-costas de Wu Han o têm em um carroça no caminho. Posso dizer-lhes que o tragam? E há outro mais corpulento, caso queira outro exemplar.

- Oh, sim, certamente! Que amável, que atencioso, estimado Maturin! Desocuparei a mesa comprida.

Os guarda-costas de Wu Han eram muito fortes e hábeis e faziam movimentos precisos, assim que puseram o pacote coberto por um lençol branco sem que se desfizesse uma só dobra.

- Por favor, esperem junto ao carro alguns momentos - Stephen lhes indicou.

Saíram da habitação juntando as mãos diante do corpo e baixando a vista. Van Buren retirou o lençol e disse:

- É um europeu.

- Sim - confirmou Stephen, passando o dedo pela borda de um bisturi. - É um inglês renegado. Eu o conheci em Londres. Chama-se Wray.

- Por fim um baço inglês! Um baço inglês, o mais famoso de todos! E de todos os cadáveres que já tive prazer de abrir, este é o mais recente. Eu lhe estou muito agradecido, colega. Pelo que vejo, foi esta ferida de bala que causou sua morte. Que curioso!

- Exatamente. O mesmo ocorreu ao seu companheiro, o que é mais robusto, a quem o senhor viu uma ou duas vezes. A ferida é igualmente recente. Talvez os dois estivessem brigando. Quer que ordene que o tragam?

Van Buren olhou Stephen nos olhos e perguntou:

- Contou com o vizir para isto, Maturin?

- Certamente que sim! Disse que o assunto não concernia ao palácio real porque lhe havia retirado a proteção explícita e publicamente e o comunicara a Duplessis, e que nós podíamos fazer o que quiséssemos. Acrescentou que estava seguro de que seríamos discretos e que não deixaríamos despojos reconhecíveis.

- Então estou plenamente satisfeito. Que alívio! Certamente, mande trazer o outro. Entretanto podemos começar pela cabeça.

 

Trabalharam sem cessar, muito concentrados e com objetividade. Raras vezes eram necessárias as palavras, pois ambos sabiam muito bem o que estavam fazendo: quais eram os órgãos importantes, os que seriam úteis para posteriores comparações, e quais podiam ser descartados. Stephen havia presenciado muitas dissecações e realizara centenas delas, já que a anatomia comparada era uma das coisas que mais lhe interessava, mas nunca vira ninguém fazer os processos mais delicados com tanta habilidade e delicadeza nem eliminar a matéria supérflua com tanta destreza e rapidez e com tão pouco esforço. E com esse exemplo trabalhou mais rápido e melhor que nunca.

Ainda que quase não tinha noção do tempo, quando por fim a longa mesa ficou vazia e Van Buren colocou dois brilhantes frascos na estante onde tinha os baços conservados em álcool, quando certo número de órgãos (agora impessoais como os de um matadouro) já estavam metidos em água com sal para usar-se no futuro e quando os despojos, totalmente irreconhecíveis, já estavam metidos em baús de madeira forrados de zinco, surpreendeu-se ao perceber que ainda era de noite.

Ambos tiraram seus longos aventais, lavaram os instrumentos, lavaram as mãos e foram para fora se sentar à luz da arqueada lua.

- Que brisa tão agradável! - exclamou Stephen. - Realmente fazia muito calor aí dentro.

- Fazia muito calor, sem dúvida, mas esta dissecação há sido a mais gratificante de todas as que já fiz em minha vida - disse Van Buren, deixando-se cair em um banco com um gemido. - Tenho as costas e as mãos rígidas e amanhã não atenderei meus pacientes, assim que terão que ir a um bazar para comprar-se salamandras dessecadas. Porém, meu Deus, isto valeu a pena! Sabe uma coisa? Foi difícil para mim evitar sentir uma grande amargura quando não pude conseguir o cadáver do empregado de Pondicherry, pois como era indiano por parte de mãe, seus compatriotas daqui, uma vintena mais ou menos, pensaram que para mostrar-lhe respeito deviam incinerar seu cadáver. Quando vi a fumaça pensei que tinha perdido a última oportunidade de conseguir um baço pelo menos parcialmente europeu. Meu Deus, que pouco sabe um!

Durante um tempo permaneceram sentados em silêncio, escutando o grito dos lagartos no muro que ficava a suas costas, e depois Van Buren continuou:

- Fale-me dos rinocerontes que viu. Não suspeitava que ficavam ali? Não vira as veredas feitas por eles nem suas pegadas nem seus excrementos?

- Não, ainda que todas essas coisas estavam lá e as notei quando regressei ao monastério depois de ver os animais. Não as vira porque estava perturbado, assombrado de ter podido aproximar-me de uma babirussa e coçar-lhe o lombo e de ter caminhado agarrado na mão de um orangotango. Porém, em primeiro lugar, não queria mencionar os rinocerontes diante dos monges devido à suposta propriedade afrodisíaca de seu corno; não queria levantar suspeitas. Por isso não pensava neles. Ademais, não sabia que viviam nas montanhas.

- O sultão atribui a gravidez de Hafsa unicamente a ele ter usado o corno - disse Van Buren. - Mas provavelmente estava muito preocupado quando correram para o senhor montanha abaixo. Acho que pesam três toneladas.

- Estou seguro. A terra tremia e eu com ela. Tinha uma vaga idéia de como saltavam os saltadores cretenses sobre os touros, mas antes de que averiguasse quais eram o pé e a mão que usavam em Cnossos, passaram pelo meu lado, graças a Deus. Essas criaturas não tinham malícia, nem nenhum outro dos seres vivos que vi em Kumai, com excessão, talvez, de algumas tupaias que brigavam entre si.

Falaram de forma desconexa das tupaias; do fato dos monges não falarem perfeitamente o malaio (o que havia aumentado a segurança de Stephen e a fluidez ao falar); da origem biológica da felicidade, que muitos, por motivos plausíveis, localizavam no baço, provavelmente no curioso conjunto de diminutos grânulos situados entre a depressão e a parte mais próxima ao estômago, os baços que funcionavam mal eram os que tinham dado a esse órgão sua má fama, talvez na Inglaterra se achavam mais baços que funcionavam mal que em qualquer outra parte e as causas podiam ser o clima e a dieta; da distribuição das corujas comuns. Depois fizeram uma pausa e Van Buren, após de bocejar, em um fingido tom tranqüilo com que não teria enganado nem a uma criança, disse:

- Teremos que ferver os ossos de Cuvier.

Stephen sabia que devia mostrar-se assombrado e, apesar do cansaço quase insuportável, perguntou:

- Como? Que diz?

- Pensei que isto lhe assombraria - respondeu Van Buren. - Teremos que fervê-los porque as formigas não terão tempo de terminar de limpá-los. Neste momento alguém está escrevendo o tratado com letras douradas em papel de cor carmim. Tem quatro páginas inteiras. Pouco depois do amanhecer o comunicarão ao senhor Fox para que vá firmá-lo na primeira hora da tarde.

 

- É possível que um homem não possa dormir nem um momento nesta maldita e malfeita carraca? - gritou o doutor Maturin quando uma mão sacudiu sua maca e o tirou o lençol da cabeça.

Ahmed não se atrevera a insistir, mas Bonden era feito de um material mais duro e as sacudidas continuaram acompanhadas das palavras:

- São ordens do capitão, por favor, senhor. Levante-se e arrume-se, sua senhoria. São ordens do capitão, por favor, senhor.

Essas mesmas palavras se mesclaram com seu sonho de que havia começado a ficar consciente. Chegou um momento em que não pôde suportar mais e então a raiva afugentou o sono e sentou-se. Bonden o ajudou a descer da maca com muita amabilidade e, olhando para a porta, gritou:

- Apresse-se, Killick!

Ahmed apareceu com uma bata e entre os dois o levaram para a cabine-refeitório, onde Killick servira o café da manhã. Havia uma carta apoiada contra a cafeteira e Bonden a deu dizendo:

- Deve lê-la agora mesmo, senhor, por favor. Ahmed, vá.

Maturin era bastante sensato quando estava totalmente acordado, mas agora não o era o suficiente para evitar olhar com ansiedade o reverso do envelope enquanto tomava a tragos a primeira xícara de café.

- O senhor Edwards a trouxe, senhor - informou-lhe Bonden.

Killick apareceu na porta e disse:

- Que está na bodega com o capitão e Astillas neste momento, sua senhoria.

Justo acima deles se ouviu o estrondoso grito:

- Barqueiros, vocês me ouvem? Barbeiem-se e ponham uma camisa limpa antes das seis badaladas!

E imediatamente o seguiram várias ordens e um agudo apito que anunciava que iam descer a falua, a embarcação com o fundo forrado de cobre, a embarcação de honra.

Stephen rompeu o lacre.

 

Estimado Maturin:

Eu o felicito! Nós ganhamos! O vizir acaba de mandar-me uma mensagem informando-me de que já está pronto o tratado, exatamente nos termos que havíamos acordado, e que devo ir firmá-lo à uma em ponto, que conforme o astrólogo do palácio é uma hora propícia. É uma hora propícia para nós! Serei acompanhado por apenas uma escolta e um pequeno séquito, devido às circunstâncias, mas confio em que o senhor formará parte dele e também em que me fará a honra de almoçar comigo depois. Com muita pressa,

Seu mais humilde servidor.

 

- Duvido muito que agora seja humilde - murmurou Stephen e depois, levantando a vista, disse: - Bom dia, cavalheiros. Pelo que vejo, os dois estão muito sujos. Jé desjejuou, Jack? Quer que lhe sirva uma xícara de café, senhor Evans?

- Gostaria de desjejuar outra vez - respondeu Jack. - Estivemos caminhando de um lado para o outro do porão.

- Estivemos pegando o dinheiro que debe ser entregue ao sultão conforme o tratado - interveio Edwards, radiante de alegria. - Provavelmente já sabe da notícia, senhor.

- O senhor mesmo teve a amabilidade de dar-me - disse Stephen, assinalando a carta com a cabeça.

- Ah, é! - exclamou Edwards, rindo alegremente. - Tenho tão pouca memória como uma toupeira ou um morcego.

Quando soaram as cinco badaladas Jack se pôs de pé e disse:

- Vamos, senhor Edwards. O senhor e o doutor têm que se lavar de cima abaixo e pôr seus melhores trajes de aniversário. Killick! Killick! Você e Ahmed ajudarão ao doutor a se preparar para ir ao palácio. Ele tem que pôr a túnica vermelha.

Portanto, o doutor Maturin subiu ao castelo de popa vestido com a túnica vermelha. Apareceu com uma peruca recém cacheada e empoada, bem barbeado e com um aspecto impecável. Além de todas essas coisas (e a mais feroz governanta de um colégio de párvulos não tinha comparação com Preserved Killick), ver a alegria que havia na fragata levantou-lhe o ânimo. Todos ao seu redor estavam contentes e riam enquanto desciam um a um os pequenos e pesados cofres que continham o tesouro até a falua, que estava sob o pescante central de bombordo. Havia tanta alegria como se a Diane tivesse capturado uma presa muito valiosa. Os barqueiros já estavam comendo debaixo do toldo do castelo, afastando o mais possível a comida de sua elegante roupa.

Justo antes que soassem as oito badaladas na guarda de manhã desceram o último cofre. Os infantes da marinha escolhidos como guardas e seu oficial já estavam em seus postos, o mesmo que Richardson, Elliott, Maturin e o jovem Seymour. Então apareceu Jack, de uniforme e com o sabre de empunhadura de ouro, que olhou da proa e para a popa e depois desceu pelo costado, mas sem cerimônia.

Reuniram-se com os membros do séquito de Fox, que tinham ido ao cais com um par de carroças puxadas por bois para transportar o tesouro. E receberam ao enviado, que apareceu montado em um cavalo javanês do vizir.

- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou, desmontando e entregando as rédeas ao moço; e depois, em voz baixa, acrescentou: - Desculpem o atraso. Já vejo que hão formado filas. Se tudo sair como espero e confio, teriam algum motivo contra zarparmos imediatamente? A notícia deve chegar o quanto antes ao governo e à Índia, certamente. Poderia pedir ao vizir que transportasse nossa bagagem naquele mesmo paraú.

Enquanto uma parte da mente de Jack reconhecia que lhe embargava uma grande emoção, uma espécie de bebedeira, outra calculava a quantidade de água, madeira e provisões que tinha a Diane.

- É factível - respondeu. - talvez nos falte um pouco de combustível para a cozinha, mas poderemos aproveitar a maré da tarde.

- É o que esperava que diria, Aubrey - disse Fox, apertando-lhe a mão. - Estou-lhe tão agradecido! Eu comeria com gosto um bolo-marinheiro contanto que ganhasse um dia - acrescentou, soltando uma sonora gargalhada. Voltou a montar no cavalo e se pôs à frente da procissão.

No palácio a cerimônia foi bastante silenciosa. O sultão já estava no trono quando os membros da missão entraram na sala de audiêcias, e ainda que lhes cumprimentou com amáveis sorrisos, tinha a cara desencaixada. Durante a longa leitura do tratado manteve uma expressão muito triste e se retirou depois de dois discursos e da assinatura e selagem das duas cópias. Então a atmosfera perdeu boa parte de sua gravidade. O vizir estava muito animado. Havia firmado uma aliança valiosa, potencialmente valiosa; enchera as arcas do tesouro; desfizera-se de um favorito sumamente problemático, e ganahra o favor da sultana. Por isso não era surpreendente que os presentes que fez a todos em nome do sultão fossem um reflexo de sua satisfação. Fox recebeu um punhal malaio muito antigo com a empunhadura de coral e um Buda de jade pelo menos duas vezes mais antigo; Jack, um rubi em forma de estrela dentro de uma caixa laqueada, provavelmente fruto da remota ação de algum pirata; Stephen, um presente que lhe deixou desconcertado um momento, um baú da honorável Companhia das Índias Orientais cheio de ópio. Com relação à bagagem e aos serventes, o velho cavalheiro disse que estava encantado de poder ajudar e que Wan Du se ocuparia disso imediatamente. Depois da afetuosa despedida do enviado e seu séquito, soaram em sua honra os tambores e os trompetes em todos os pátios que cruzaram ao sair e depois todos foram almoçar na casa de Fox entre uma alegre e amável multidão.

A refeição consistiu quase exclusivamente em pratos de pescado, de pescados de muitos tipos e todos muito bons, arroz e cerveja engarrafada morna. Mas pela atenção que Fox e seu séquito lhe prestaram teria dado no mesmo que fosse carne de vaca fervida ou pudim de pão e manteiga. Os malditos estúpidos e seu chefe estavam animados e cheios de regozijo, mas ao contrário dele, eram nesse momento barulhentos e loquazes. Haviam permanecido silenciosos no palácio graças ao seu longo treinamento, mas agora davam rédea solta aos seus impulsos. Esse era um tipo de vitória que eles entendiam perfeitamente e a celebravam de sua maneira, com uma torrente de palavras, palavras que pronunciavam mais alto a medida que a refeição transcorria. Aquela foi um almoço alvoroçado e estranho inclusive em seus aspectos materiais. Alguns serventes levavam coisas para empacotá-las; outros serviam a comida com roupa de trabalho; outros abandonavam de repente a habitação como se fossem ajudantes de aguazis.

Ao entrar na sala de jantar Fox havia dito: "deixemo-nos de cerimônias, cavalheiros". E todos se sentaram onde quiseram: os funcionários entorno de Fox, em uma cabeceira da mesa; os marinheiros na outra cabeceira, com Jack e Stephen justo no extremo. Quer dizer, Fox tinha quatro de seus homens de cada lado e Welby estava um pouco afastado. Sem cerimônia. Os civis tiraram as casacas e afrouxaram as gravatas e os calções. Falaram abertamente dos fatos ocorridos nos últimos dias e Loder falou da sutil campanha que tinham levado a cabo, da forma com que haviam dado a informação a Hafsa e do êxito depois de vários fracassos. Depois falaram mais livremente, trocando opiniões sobre a sodomia. Enquanto aumentava o barulho, tanto Jack como Stephen observavam Fox, que se limitava a olhar seus companheiros de cada lado com uma expressão comprazida e condescendente. Mas nesse momento Johnstone gritou:

- Todos os franceses também são sodomitas.

E então Fox, em um tom autoritário que até então não empregara, o atalhou:

- Já basta, juiz.

Como haviam jogado a discrição pela janela, Stephen pensou que devia partir. Era penoso comprovar que não se respeitavam as normas fundamentais que regulavam a informação secreta nem as relacionadas com o senso comum, e mais penoso ainda ouvir os detalhes daquele golpe dos serviços secretos, como poderia definir-se aquela ação. Estava decidido a se despedir adequadamente dos Van Buren e de seus amigos chineses, tanto se a fragata zarpasse esse dia como se não, e pensava que o tratado deixara de ser um assunto urgente, estava resolvido. Enquanto esperava ouvir as gargalhadas que cobririam sua retirada, escutou a conversa dos funcionários. Sua presunção alcançara um nível tão alto que se perguntava como um homem como Fox, de indiscutível inteligência, poderia suportá-la; contudo, o enviado sorria e só de vez em quando movia levemente a cabeça de um lado para o outro. Chegou a esperada piada (se na Inglaterra se matasse os adúlteros com pimenta, esta se acabaria, e alguém poderia fazer uma fortuna especulando no mercado), que foi seguida pelas esperadas gargalhadas e Stephen fez uma inclinação de cabeça para Jack e escapuliu. Passou junto a Loder, que estava urinando no vestíbulo, deu sua túnica vermelha a um dos infantes da marinha que estava de guarda e partiu.

"Estou contente, muito contente de que Jack saiba quem atraiçoou a essas pobres bestas e como o fez", pensou. Seguiu caminhando com rapidez, passou junto a uma manada de búfalos e então se disse: "Quanta mediocridade a tão alto nível! Um juiz, membros do poder legislativo... na França preparam melhor estas coisas". Mas a honestidade o fez deter-se e acrescentar: "mas as preparariam ainda melhor em uma Irlanda independente".

Jack se viu obrigado a ficar, ainda que não gostasse muito da companhia nem do matiz que notou na voz de Fox quando a projetou para o extremo da mesa e lhe disse:

- Diga-me, Aubrey, quando muda a maré esta tarde? Queria que levássemos este documento ao nosso país sem perder tempo para nada, e muito menos por bobagens.

A alusão ao tema era ofensiva; o tom o era ainda mais. Richardson e Elliott se puseram muito nervosos porque sabiam que Aubrey não era o homem mais paciente do mundo.

Por fim o banquete estava chegando ao seu fim, entre numerosos comentários sobre a precária situação econômica dos franceses.

- Agora que o penso - interveio Crabbe -, como Duplessis não há teve que entregar o dinheiro que estipulava o tratado, pode usá-lo para pagar a viagem de regresso ao seu país.

- Se não tem nenhum comentário mais inteligente a fazer, poderia ter ficado calado, Crabbe - replicou-lhe Fox. - Regressar ao seu país com um fracasso é pior que morrer de fome aqui.

- Sua excelência tem razão - disse Johnstone. - Muito pior.

- Sinto muito, senhor - desculpou-se Crabbe, e bebeu cerveja para tentar ocultar a cara atrás dela.

Um excelente bolo de frutas servido em três bandejas de estanho polido fez esquecer esse momento. Por último chegaram as garrafas, que assinalavam o final. Brindaram ao rei, recuperando em parte a seriedade, e depois Fox, tomando das mãos de Ahmed o tratado, envolvido em um pedaço de seda, disse:

- Brindo pelo fruto de nosso esforço conjunto. Brindo pelo que firmei em nome de sua majestade.

- Hurra! É assim que se fala! - gritaram os membros do séquito, e suas vozes se confundiram com as dos marinheiros, que se uniram a eles com bastante entusiasmo.

- Eu brindo é pela ordem de Bath, a honorável ordem de Bath - vociferou Loder, levantando-se e olhando com desconfiança para Fox.

- Hurra! É assim que se fala! Ânimo! - gritaram os outros, e beberam enquanto Fox sorria e baixava a vista para mostrar sua modéstia.

Deram três hurras três vezes para expressar sua conformidade com a nomeação de cavalheiro e depois brindaram pela de barão e de governador e, também, pela inclusão na lista de Civis e uma designação de cinco mil libras por ano.

Jack olhou para Elliott, notou que ficara pálido porque estava bêbado e depois sua vista cruzou com a de Richardson. Então se levantou e disse:

- Peço que nos desculpe, excelência. Temos que preparar a partida. O senhor Richardson o acompanhará à falua dentro de quarenta e cinco minutos. Senhor Welby, a nova pinaça virá recolher o senhor e seus homens dentro de meia hora.

Pegou o desconcertado Elliott pelo braço e o tirou dali. Seymour, que estava no cais, informou-lhe que o grande paraú e várias embarcações menores já haviam zarpado cheias de serventes. Jack lhe disse o que devia esperar, sugeriu que Bonden cobrisse com uma lona as almofadas da bancada de popa e caminhou com Elliott ao redor da cratera e deu um grito de onde costumava comunicar-se com a fragata.

- Senhor Fielding - disse, olhando para o abarrotado castelo. - Estão a bordo todos os serventes da missão?

- Todos a bordo, senhor, e o último bote com a bagagem zarpará dentro de um minuto mais ou menos.

- Alegro-me em saber! Por favor, mande imediatamente a nova pinaça para recolher os infantes da marinha. Acho que podemos desamarrar a fragata e deixá-la ancorada com uma só âncora. Basta uma âncora nestas águas tão tranqüilas e com tão pouco vento. O enviado e seus homens sairão de terra dentro de meia hora. Naturalmente, terá que recebê-lo com salvas e como é costume nos barcos de guerra. Por favor, comunique-me quando zarpem. Espero sair do porto quando a maré começar a baixar. Confio em que o doutor não esteja buscando centopéia por aí - murmurou antes de ir para baixo.

Tirou a casaca e deitou na maca. Killick o observou por uma fenda da porta e moveu a cabeça de um lado para o outro compadecendo-lhe. Os tripulantes estavam desamarrando a Diane e o capitão escutou uma conhecida série de sons, como o clique das lingüetas do cabrestante, os gritos "Cuidado com o virador!", "Subir e mudar de bordo!" e outros, mas sua mente estava em outra parte. Para a maioria dos homens, e provavelmente para todos os que conhecia, a vitória os deixava benévolos, afáveis, loquazes e generosos; contudo, Fox adotara uma atitude arrogante e hostil. Ademais, revelara uma mesquinhez que não surpreendeu a ninguém. Não houve nem haveria um banquete para os guardas-marinhas nem para os suboficiais nem para os marinheiros. Tampouco teria bebidas nem um discurso para comunicar-lhes a boa notícia e reconhecer sua participação na bem-sucedida missão. Na realidade, a vitória não era admirável. Quase não merecia ser celebrada com badaladas nas igrejas e fogueiras nas ruas. Lamentava ter tomado cerveja e ainda mais vinho do porto, mas ficou adormecido alguns minutos e quando Reade lhe comunicou que o senhor Fielding lhe apresentava seus respeitos e lhe informou que a falua zarpara, já totalmente limpa.

- Obrigado, senhor Reade - disse. - Subirei para o convés dentro de dez minutos mais ou menos.

Permitiu-se ficar um tempo nesse agradável estado de completo relaxamento e depois se levantou, meteu a cara na água, arrumou a gravata-borboleta e o cabelo e pôs a casaca. Imediatamente Killick apareceu e a escovou. Depois lhe arrumou a trança dobrada e a gravata-borboleta e estendeu as dragonas de modo que ficassem equilibradas.

No convés notou que o vento soprava como desejava, de um lado para o outro do ancoradouro, e só o que teria que fazer seria mudar a orientação da sobremezena, mudar de bordo bastante para estibordo para que o velame se inchasse e recolher a âncora.

Também notou que tudo estava exatamente como devia: as vergas perpendiculares aos paus com ajuda dos moitões e as braças, os grumetes com luvas brancas, os guarda-mancebos em seu lugar, todos os infantes da marinha presentes, com parte de seu uniforme lavado com pedra de calcário e corretamente colocados, o senhor Creown e seus ajudantes com os apitos prateados a postos, o senhor White sustentando a vareta, cujo resplendor se via sob a longa sombra noturna que projetava o costado de estibordo.

Calculou a distância que se encontrava a falua, que se movia tão erraticamente como um bote cheio de londrinos da parte leste de Londres rumo a Greenwich. Mais perto, mais perto.

- Muito bem, senhor White - disse.

O primeiro canhão disparou e depois lhe seguiram outros treze. O croque da falua se enganchou na fragata; o enviado subiu a bordo seguido pelos membros de seu séquito, que pareciam velhos e bêbados e estavam sujos, fedorentos, bagunçados, desgrenhados, tinham os botões das casacas metidos nas casas erradas e usavam a braguilha meio desabotoada. Foram recebidos com fria formalidade e todos, sóbrios de repente, apalparam suas roupas. Fox os olhou muito desgostoso e eles se olharam uns para os outros e imediatamente desceram apressadamente.

- Onde está o doutor? - perguntou Jack.

- Subiu a bordo com os infantes da marinha - respondeu Fielding. - Carregava uma coisa peluda. Acho que está na sala dos oficiais.

- Meu Deus, que alívio! - murmurou Jack e depois, com voz forte, a voz apropiada para as questões oficiais, ordenou: - Vamos zarpar.

Enquanto falava a fortaleza começou a disparar as salvas de despedida. A Diane respondeu, e os canhões ainda seguiam disparando um depois do outro e a fumaça se dispersava por sotavento quando saiu do canal e chegou ao alto mar.

- Senhor Warren, o rumo será este-nordeste - informou Jack. - E confio em que assim chegaremos ao lugar do encontro com a Surprise.


CAPÍTULO 9

A Diane apenas havia avançado dois graus de longitude quando a velha rotina da vida marinheira foi outra vez estabelecida, tão firmemente como se nunca se tivesse interrompido. Era verdade que os percorrera devagar, sem exceder quase nunca os quatro nós e sem percorrer mais de cem milhas por dia; contudo, isso não se devia ao capitão não tentar ir mais rápido nem a que tivesse tempo de sobra para chegar ao encontro. Tinha desdobrado grande quantidade de velame, incluídas as alas superiores e inferiores, as sobrejoanetes e inclusive as monterillas{5}, e diversas velas de estai. Pois o vento era suave e sua direção formava um ângulo de quinze graus com o través, mas era tão fraco que quase não lhe permitia alcançar a velocidade necessária para manobrar.

Jack Aubrey, depois de ter feito tudo o que podia, caminhava de uma ponta a outra do costado de barlavento do castelo de popa, como acostumava fazer antes de almoçar. estava muito tranqüilo quanto a esse assunto, mas não quanto a todos os outros. Como passara a maior parte de sua vida navegando, estava convencido de que queixar-se do tempo só servia para um perder o apetite, o que era lamentável em um dia como esse, porque ele e Stephen, sozinhos por fim, iam almoçar um excelente pescado que compraram dos homens de um paraú essa manhã.

- O que queria que eu visse? - perguntou ao terminar de subir a escada do castelinho com a precaução de sempre, ainda que a fragata quase não se movia sob seus pés.

- Não pode vê-lo daqui - respondeu Jack -, mas venha comigo até o corrimão de barlavento e te mostrarei uma coisa que talvez nunca tenha visto.

Caminharam para a proa e alguns marinheiros que estavam no castelo os cumprimentaram com a cabeça e esboçaram um sorriso significativo, pois pensaram que o doutor ia ficar paralizado de assombro.

- Ali está - disse Jack assinalando para cima. - Detrás da verga da gávea, justo em cima da cruzeta. Já a havia visto antes?

- Aquela coisa parecida com uma toalha de mesa com uma ponta muito estirada? - perguntou Stephen, que às vezes podia ser decepcionante.

- É a vela de estai de penico - disse Jack, que não esperava muito mais. - Agora poderá dizer a seus netos que viu uma.

Regressaram ao castelo de popa e Jack reiniciou seu passeio com Stephen, reduzindo o comprimento de seus passos para seguir os dele.

- Pelo que entendi compareceremos ao encontro com Tom Pullings em frente às Falsas Nantunas e depois deixaremos Fox em Java para que tome um dos barcos que fazem o comércio com as Índias - comentou Stephen. - Porém, assim não damos um rodeio tão grande como se fôssemos de Dublim a Cork passando por Athlone?

- Sim. Ontem sua excelência também teve a amabilidade de indicar-me e talvez lhe haja mostrado o mesmo mapa. Responderei o mesmo que a ele: de acordo com a direção dos ventos fixos nesta estação do ano, é mais rápido ir a Batavia passando pelas Falsas Nantunas que pelo estreito de Banka. Além disso - acrescentou, baixando a voz -, temos que comparecer ao nosso encontro, o que é muito importante para mim, ainda que não para ele.

- Bem, estou de acordo. Suponho que haverá um porto acessível nas Falsas Nantunas. A propósito disso, por que as chamam de falsas? Seus habitantes não costumam ser de confiança?

- Oh, não, não há nenhum porto! Neste caso não é mais que um termo marinheiro ou, como você diria, uma hipérbole. Essas ilhas são rochosas e desabitadas, como as Selvagens. Combinamos navegar uma semana na latitude em que se encontram ou um pouco ao sul. Apesar da longitude ainda não ter sido determinada com certeza, já sabe que podemos calcular a latitude com bastante precisão, assim que navegaremos nela com um serviola com uma luneta no tope de cada mastro e um farol em cada cesto da gávea. Quanto ao nome "Falsas"...

O sino da fragata o fez parar no meio da conversa, e os dois desceram rapidamente com a boca cheia d’água.

- ... quanto ao nome "Falsas" - continuou Jack depois de uma comprida e atarefada pausa -, os holandeses o deram quando conquistaram esta zona. O oficial de derrota de um barco que se dirigia para as verdadeiras Nantunas fez uma estima equivocada e ao vê-las numa brumosa manhã gritou: "Fiz um cálculo perfeito! Sou tão bom como o queijo!". Certamente, falava do queijo holandês, ah, ah, ah! Mas quando a névoa se dissipou e comprovou que eram simplesmente um monte de estéreis ilhas rochosas, escreveu o nome "Falsas Nantunas" em sua carta marítima. O sul do mar da China está cheio de lugares assim, cuja posição não foi determinada com precisão e que podem confundir-se uns com outros. Ademais, muitas partes que estão fora da rota dos barcos que fazem o comércio com as Índias não se encontram representadas em nenhuma carta marítima. Só o que conhecemos delas são algumas ilhas, arrecifes e bancos de areia por referências dos tripulantes de alguns paraús e juncos, que determinaram com muito pouca precisão a situação dos lugares de que falam.

- Creio que tens razão, mas para um homem do interior isso parece raro. Estas águas são muito concorridas e neste momento posso ver... - disse, olhando pelo janelão de popa com os olhos semicerrados devido ao resplendor - seis, não, sete barcos: dois juncos, um grande paraú e quatro pequenas embarcações com balancins que movem os remos rapidamente. Mas não sei se são pescadores ou piratas de pouca importância.

- Acredito que são o que requeira a ocasião. No sul do mar da China, o habitual é apresar tudo o que um possa vencer e evitar ou negociar com tudo o que não possa.

- Acho que nós fazíamos o mesmo até muito pouco tempo. Já li curiosas histórias sobre Maelsechlin O Sábio. Porém, como estas águas são muito concorridas, como dizia, e entre os que navegam por elas estão os chineses, que pertencem a uma comunidade muito civilizada e culta, e os malaios, que são também versados nas letras, como sabemos muito bem, por que avançamos com tanta vacilação?

- Porque os juncos nunca têm um calado superior a alguns poucos pés - respondeu Jack -, já que seu fundo é plano, e os paraús ainda menos, enquanto que um barco de linha de setenta e quatro canhões tem vinte e dois ou vinte e três. Nossa fragata, mesmo com este leve carregamento, tem quase catorze, e se levasse provisões e tudo o mais, teria muito mais. Não estou contente se não há pelo menos uma profundidade de quatro braças na parte da quilha mesmo em tempo sereno. Um banco de areia que não se note em um junco e, por isso, não se marque, pode destroçar o fundo da fragata em um instante. Essas são as palavras que usarei em outra parte, depois de almoçar, para explicar por que navegamos assim por águas não representadas em cartas marítimas - acrescentou com uma significativa olhada como costumava fazer nessa parte da cabine dividida, que era como uma caixa de ressonância.

Stephen assentiu com a cabeça, pôs o esqueleto totalmente limpo no prato que estava no centro, serviu-se de outra perca de Java, observou o desordenado conjunto de ossos de Jack e comentou:

- Acho que um tem que ser papista para almoçar pescado. Por favor, explique-me como se faz um encontro secreto no mar com alguém que está no outro lado do mundo.

- Não pode ser preciso, devido à distância, mas é assombroso com que freqüência saem bem as coisas. O usual é acordar três ou quatro zonas onde navegar de um lado para o outro que, sempre que seja possível, estejam cerca de uma ilha onde se possa deixar alguma mensagem em caso de que a data do encontro tenha passado. E se as circunstâncias o exigem, fazemos um encontro final onde um dos dois barcos possa ficar ancorado até uma data determinada. O nosso é na enseada de Sydney.

- Então, se não a encontramos desta vez temos outra oportunidade?

- Stephen, não vou te enganar: temos outra oportunidade. Na realidade, temos outras três oportunidades, uma semana antes e uma depois da próxima lua cheia e, certamente, a de Nova Gales do Sul.

- Que alegria! Anseio voltar a ver a Surprise e a todos nossos amigos; anseio falar com Martin de meu querido orangotango, do tarsio, o mais raro dos primatas, dos enormes insetos e dos desconhecidos gêneros de orquídeas. O que lhe ocorre, meu amigo? Tem que dar açoites?

- Não. Tenho que resolver um desagradável assunto de pouca importância.

Então entraram Killick e Ahmed, o primeiro com um rocambole e o segundo com um recipiente com caramelo.

- Killick, corra do outro lado, apresente meus respeitos a sua excelência e veja se terá uns minutos livres dentro de meia hora, pode ser?

Na Diane nunca sentiram muitas simpatias por Fox, ainda que até chegar a Batavia causara poucos incômodos; em troca, Edwards, seu secretário, era muito estimado tanto pelos oficiais como pelos marinheiros. Mas as poucas simpatias se converteram em total repulsão pelo comportamento do enviado em Prabang, que ignorara os tripulantes da embarcação que lhe havia levado até lá, mostrara-se indiferente ante sua alegria pela assinatura do tratado, tratara mal aos marinheiros que o levaram de um lado para o outro e aos infantes da marinha que o escoltaram ("esse canalha se dá tanta importância que tinham que apresentar armas cada vez que assomava o nariz pela porta e não lhes deu nem meia garrafa para que bebessem à saúde do rei nem ao menos no final, quando ele e seus amigos estavam bêbados como um gambá"). Naturalmente, os membros de seu séquito e os serventes destes foram impopulares desde o início, mas como eram simples passageiros e, portanto, homens do interior, não podia se esperar nada deles. A atual antipatia por Fox não tinha nada a ver com sua classe, senão que estava em outro plano, em um plano pessoal, e era tão evidente que um homem muito menos sensível que Fox a teria percebido.

- Poderá dizer o que queira - disse Jack -, mas comi rocambole do outro lado do círculo polar ártico, quase do outro lado do Antártico e agora abaixo da linha do Equador, e opino que não se compara a nada.

- Exceto com o cachorro manchado talvez.

- Ah, tem razão, Stephen!

Tomaram café e, com pouco tempo, Jack disse:

- Espero estar de volta dentro de cinco minutos.

Não regressou aos cinco minutos e Stephen permaneceu sentado diante da cafeteira (o café conservava muito tempo o calor nesse clima), pensando. Sabia que um dos membros da missão subira ao castelo de popa na escuridão e quando tentou se aproximar de Warren, o oficial de guarda, no momento em que a fragata estava virando para bombordo, Reade lhe interceptou a passagem, mas jogou o garoto para um lado com um tapa e disse a Warren que devia desdobrar mais velame porque, sem dúvida, isso era o que o capitão desejava fazer para servir melhor ao rei, e que navegar tão lentamente lhes fazia perder um tempo precioso. Contudo, tinha a esperança de que Jack falasse disso com Fox quando o enviado já não estivesse muito excitado, talvez uma vã esperança, porque um assunto assim tinha que ser resolvido imediatamente para evitar que se repetisse (essa falta era muito grave aos olhos dos marinheiros) e porque não havia sinais de que o entusiasmo de Fox fosse diminuir.

enquanto escutava as palavras ininteligíveis, ainda que em tom indiscutivelmente irado, do outro lado do fino anteparo, pensava em muito coisas e voltou a cair na contemplação, em um estado intermediário entre o sono e a vigília, como era habitual depois do almoço. Em um dado momento se deu conta de que estava recordando um restaurante próximo de Four Courts e tinha uma imagem clara e detalhada do lugar. Estava sentado ao fundo e viu um homem abrir a porta, olhar de um lado para o outro a abarrotada sala (era uma época de muita atividade) e, depois de vacilar um momento, entrar com ostentosa indiferença, com o chapéu posto e as mãos nos bolsos, e sentar-se perto dele. O único notável nele era que parecia estar a vontade, e quando se deu conta de que chamava a atenção tentou chamá-la mais ainda, recostou-se na poltrona e estendeu as pernas. Mas logo ficou evidente que também era um tipo mal-humorado, pois quando o garçon lhe trouxe o menu, perguntou por muitos pratos: se haviam degolado bem o cordeiro, se as chirívias não tinham o centro lenhoso, se a carne de rês era de vaca ou de boi. Ao final pediu colcannon, lombinho e meia pinta de xerez. Nesse momento percebeu de que o olhavam com desagrado e comeu com deliberada rudeza, arqueado e com os cotovelos sobre a mesa, em atitude desafiante e hostil.

Quando seu pensamento regressou ao presente, Stephen se disse: "Se esta é uma analogia que meu eu interior me proporcionou, não posso felicitá-lo porque deixou de fora o fator fundamental do triunfo e da emoção. O único aspecto válido é a suspeita do homem de que não é popular e seu esforço para conseguir que o odeiem".

Stephen nunca considerara a Fox simpático nem totalmente confiável, mas até a assinatura do tratado tinham se dado bastante bem. Trabalharam bem juntos durante o período de negociações, no qual Stephen ajudou ao enviado a superar uma e outra vez a Duplessis e conseguiu o apoio da maioria do gabinete, sem o qual, como Fox sabia muito bem, a execução de Abdul não teria tido o efeito diplomático. Ademais, Fox agradeceu muito a Stephen por sua ajuda no caso relacionado com Ledward e Wray. Mesmo assim a cerimônia da assinatura do tratado e o fim da viagem haviam provocado em Fox uma embriaguez de entusiasmo, e desde então tratava Stephen realmente mal.

Não só o havia desatendido quando fora seu convidado naquela vergonhosa refeição, como lhe fizera muitos desaires em ocasiões menos importantes e insistira em que conseguira o êxito sozinho, sem nenhuma ajuda. Se no momento em que Fox cometia mais indiscrições naquela interminável refeição, não havia revelado a verdadeira função de Stephen, não era falta de generosidade supor que a causa era seu desejo de arrogar-se todos os méritos. Que pensaria Raffles disso? Que pensaria Raffles do Fox atual? Que teria que dizer-lhe Blaine?

A situação era muito estranha. Fox era um homem de grande talento, que havia desprezado aos "malditos sacanas" e se desculpara por eles, mas agora desfrutava com sua companhia e sua adulação nada delicada. Se sabia que o posto de governador de Bencoolen não tardaria em ficar vacante, e todos eles diziam que Fox devia ser escolhido para ocupá-lo. Isso agradava a Fox, mas o que na realidade ansiava era ser nomeado cavalheiro. Estava convencido, ou quase convencido, de que lhe agradeceriam por este tratado, e nada podia superar seu desejo de regressar à Inglaterra tão cedo como fosse possível para consegui-lo. Inclusive pensara na possibilidade de fazer a viagem por terra, uma viagem sumamente árdua.

Stephen pensou: "Aí há alguma falha, alguma perturbação radical estava sempre presente? Deveria tê-la detectado? Qual é o prognóstico?".

Moveu a cabeça de um lado para o outro e, em voz alta, disse:

- Eu gostaria de poder consultar ao doutor Willis.

- Quem é o senhor Willis? - perguntou Jack, abrindo a porta.

- Era um homem de grande experiência no tratamento de transtornos mentais. Atendeu ao rei quando contraiu a primeira doença. Foi muito amável comigo quando era jovem, e se estivesse vivo lhe importunaria com minhas perguntas. Posso fazer algumas a você ou seria inapropiado, inoportuno e pouco discreto?

Pela expressão de Jack parecia que a visita não fora agradável, mas não acreditava que Fox, nem mesmo agora com sua fama e exaltação, tivesse força moral para causar uma profunda preocupação em Jack Aubrey, assim que não lhe surpreendeu que respondesse:

- Foi uma visita tão desagradável como imaginava, mas acho que pelo menos resolvi o assunto. O ocorrido não se repetirá.

- Depois, em um tom entristecido, disse: - Bem, não sei por que, mas isto começou a formar-se desde que zarpamos de Pulo Prabang, ainda que esperava passar os poucos dias que restam sem nenhum enfrentamento. É tão desagradável que haja conflitos a bordo! Gostaria de eliminá-los. Talvez poderia chamá-lo de "fruto do consolo" ou "rosa do deleite", mas não "flor da cortesia"... É um miserável. Ademais, não posso tocar com tranqüilidade rodeado de ódio... Não interpretamos nenhuma música desde que zarpamos. Mesmo com este vento, aproximadamente amanhã ao meio-dia deveríamos chegar à zona onde navegaremos de um lado para o outro, e passaremos assim uma semana se Tom ainda não chegou ou não deixou nenhuma mensagem. Depois investiremos dois dias para chegar a Batavia e talvez ali nos estejam esperando notícias de casa. Meu Deus, como gostaria de saber como estão as coisas!

- E a mim! - exclamou Stephen. - Mas não é provável que tenha notícias de Diana e de nossa filha ainda. Às vezes, quando penso nessa pequena criatura me ponho a chorar.

- Depois de alguns meses ouvindo prantos e gritos e trocando fraldas se curará disso. Há que ser uma mulher para sobrelevar aos bebês.

- Isso eu já sabia há muito tempo - exclamou Stephen.

- Muito bem, doutor Jocoso. Porém, além disso, existe o inquietante rumor de que muitos bancos quebraram e eu gostaria que tivesse sido desmentido.

Mais tarde, quando flutuava nas águas do sul do mar da China junto ao esquife de Stephen, com cabelo estendido como um tapete de algas amarelas, disse:

- Eu os convidarei para almoçar depois de amanhã, em agradecimento pelo esplêndido banquete. Não quero parecer mesquinho e sei muito bem o que corresponde a quem ocupa seu posto.

- Jack, peço que meça seus passos. Fox é advogado e extraordinariamente vingativo; e se chegar à Inglaterra carregado de um profundo rancor, ele lhe fará estrago, apesar de sua posição. É provável que durante um curto tempo seja escutado pelos que estão no poder.

- Não vou me comprometer - disse Jack. - Conheço muitos capitães de navio, que também eram excelentes marinheiros, a quem negaram um barco por ter perdido as estribeiras ante uma provocação.

O vento se acalmara, como costumava fazer uma hora antes do pôr do sol, e a fragata ficou imóvel; contudo, o sol não estava longe da borda do mar e o vento voltaria a soprar quando se ocultasse. Jack saiu da superfície e subiu para a pequena embarcação passando seu corpo de duzentas e quarenta libras por cima da borda e dizendo:

- Afaste-se.

- Acho que uma vez me disseste que lhe ensinaram grego quando era menino - disse Stephen enquanto remava devagar em direção à fragata.

- Sem dúvida, ensinaram-me - respondeu Jack, rindo. - Ou tentaram ensinar-me, e com muitos golpes, mas não posso dizer que o aprendi. Não passei do zê.

- Bem, eu tampouco sei muito grego, mas cheguei a epsilo e aprendi a palavra hybris, que alguns escritores empregam com a significação de excessivo orgulho por ser poderoso ou ter conseguido algo e exultação pelo triunfo.

- Nada mais abominável.

- Nem, em certo modo, mais sacrílego, que é talvez o termo mais próximo. Provavelmente Herodes tinha hybris antes que os vermes o comessem.

- Minha velha ama-de-leite... Afaste-te da popa! O outro remo, rápido!

A velha ama-de-leite de Jack tinha um remédio excelente para os vermes, melhor dizendo, contra os vermes, mas se perdeu entre o lamentável choque, o resgate de Maturin do fundo do esquife e a recuperação dos remos. Quando Jack subiu por fim a bordo, foi recebido no corrimão por Killick, acompanhado de Richardson, Elliott, os guardas-marinhas e dois suboficiais, e envolvido em uma grande toalha. Todos os tripulantes sabiam perfeitamente bem em que direção soprava o vento e, ainda que não lhes importava em que estado se encontrava seu capitão, não queriam que Fox e esses "malditos sacanas" o vissem completamente nu.

Depois de passar revista aquela tarde, pela primeira vez depois da visita do sultão os canhões da Diane dispararam de verdade, e a tripulação logrou lançar três descargas em um tempo honroso, quatro minutos e vinte e três segundos. Quando os anteparos foram colocados de novo, Jack disse ao seu despenseiro:

- Killick, vou convidar a sua excelência para almoçar aqui, mas não amanhã, porque quero estar muito preparado, mas depois de amanhã. Seremos cinco cavalheiros, o senhor Fielding, o doutor e eu. É conveniente que pendure cedo o xerez e o clarete fora da borda, a bastante profundidade. Ademais, quero usar tudo o que é de prata e que esteja reluzente. E gostaria de falar com o cozinheiro e com Jemmy Ducks.

Conforme a lógica dos marinheiros, tanto pelo cuidado que requeriam como pelo logro de seu bem-estar, as tartarugas deviam ser incluídas no mesmo grupo que as aves. Jemmy Ducks dizia que nunca vira nenhuma mais ágil nem mais astuta que a mais velha das duas que tinha ao seu cargo e que a outra era muito tímida. Dos pequenos gansos de Java, havia quatro excelentes, ainda tenros, e pensava que quatro eram suficientes para oito distintos cavalheiros. O cozinheiro do capitão, um negro jamaicano de uma só perna, disse com um radiante sorriso que se tinha algo que sabia preparar tão bem que era digno do própio rei Jorge, isso era o ganso, e que para ele cozinhar tartarugas era algo natural porque estava acostumado a comê-las.

- Isso é muito conveniente - disse Jack. - Lamentaria ter que adiar o assunto. - Depois de escrever e enviar o convite, acrescentou: - Como não podemos tocar música, o que acha de jogarmos as centenas?

- Eu gostaria muito.

Em parte gostava, pois sempre depenava Jack Aubrey nesse jogo, assi como aos outros. Ainda que agora o dinheiro não era importante para ele, tinha satisfação em ganhar de Jack a vaza com uma quinta, superar sua terceira real com a terceira maior; contudo, em parte lhe molestava esbanjar sua boa sorte em coisas triviais. Se bem que o jogo requeria habilidade, o êxito dependia da sorte, e se um homem só tinha uma certa quantidade em toda sua vida, era uma pena desperdiçar ainda que fosse uma pitada.

- Que é uma pitada? - perguntou Jack, a quem Stephen lhe havia dito isso.

- É um termo médico, muito parecido aos empregados na marinha, que significa uma quantidade que se pode pegar entre o polegar e os dois primeiros dedos. Usa-se para ervas secas e outras coisas como, por exemplo, o chá dos jesuítas.

- Sempre ouvi que o chá dos jesuítas é pior que sua influência - disse Jack, sorrindo de modo que seus olhos azuis pareciam duas ranhuras em sua cara vermelha de alegria. - Entre - disse em resposta a dois golpes na porta.

Era Edwards e estava muito entristecido.

- Boa noite, cavalheiros - cumprimentou, e depois se dirigiu a Jack. - Sua excelência lhe apresenta seus respeitos, senhor, e pergunta se é possível diminuir o ruído do castelo porque causa interrupções em seu trabalho.

- Ah, é? - perguntou Jack. - Eu lamento.

A guarda do segundo quartilho havia acabado e os marinheiros estavam cantando e bailando. Não necessitavam que ninguém os animasse nem teriam deixado de cantar nem de bailar se não tivessem tido o acompanhamento do pífano, mas lhes parecia que o pífano dava legalidade àquilo e que não seriam interrompidos sem uma boa razão.

- Essa deve de ser a tromba marítima de Simmons - disse, escutando seu som característico, que não podia passar desapercebido, um som forte, agudo e brilhante que marcava o final de um compasso da dança e foi seguido por outros dois e confusos gritos de alegria. - Já viu alguma vez uma tromba marítima, senhor Edwards?

- Nunca, senhor.

- É um instrumento muito raro, uma espécie de prisma formado por três delgadas tábuas de uma braça de comprimento mais ou menos e uma corda sobre uma curiosa ponte. Toca-se com um arco, ainda que pelo som ninguém imaginaria. Se quer ver uma, vá para a proa com o guarda-marinha. Um ajudante do carpinteiro a construiu faz alguns dias.

Soou a campainha e depois disse a Seymour:

- Apresente meus respeitos ao senhor Fielding e diga-lhe que o ruído das diversões do castelo tem que se reduzir pela metade.

- Teria jurado que trazia a resposta à minha nota - disse, voltando para o desastroso jogo.

Na realidade, a resposta não chegou até muito avançada a seguinte guarda da manhã, quando Jack desceu do tope de um mastro deslizando de forma controlada pelo brandal do mastaréu maior. Fazia várias horas que a Diane chegara à zona pela qual navegaria de um lado para o outro e em cada mastro havia um serviola, e ainda que juntos podiam vigiar uma extensão de mar de setecentas milhas quadradas, até esse momento não tinham visto nada mais que um paraú e um tronco de palma a deriva. A cúpula celeste, de um colorido cobalto que ia escurecendo quase imperceptivelmente na parte mais próxima à nítida linha do horizonte, e o grande disco que formava o oceano, de cor azul-escuro, eram duas formas perfeitas, ideais, e entre elas se encontrava a fragata, diminuta, real e prosaica.

- Senhor, com sua permissão, tem uma nota em sua cabine - anunciou Fleming.

- Obrigado, senhor Fleming - disse Jack. - Por favor, traga-a junto com meu sextante.

enquanto chegavam, observou a tabela onde estavam os dados da navegação. Avançavam a quatro ou cinco nós mesmo com aquele vento bastante forte.

- Tem muito pouco abatimento, senhor Warren - comentou.

- Quase nenhum, senhor - disse o oficial de derrota. - Prestei muita atenção cada vez que fizeram medições com a barquilha.

Chegaram a nota e o sextante. Jack meteu o papel no bolso, aproximou-se do costado de estibordo e mediu a distância angular do sol em relação ao horizonte. Tinha muito claras na mente as correções que devia fazer na leitura pelo pouco tempo que faltava para o meio-dia, e depois de fazê-las assentiu com a cabeça porque a Diane, indubtavelmente, estava no paralelo adequado.

Na cabine encontrou Stephen transcrevendo uma peça musical sob a luz intensa que entrava pelo janelão de proa.

- Estamos no paralelo adequado - disse, e abriu a nota. - Que seja o que Deus queira! - exclamou surpreendido, e deu a nota para Stephen.

 

O senhor Fox apresenta seus respeitos ao capitão Aubrey, cujo convite para almoçar na quarta-feira recebeu, mas nem ele nem seu séquito podem aceitar, devido ao trabalho urgente.

 

- Não imaginava que um homem de sua educação pudesse ser tão grosseiro. Diga-me, meu amigo, foi muito severo com ele?

- Em absoluto. A única vez que lhe falei com certa dureza foi quando me perguntou se eu sabia que estava falando com o representante direto do rei. Eu lhe respondi que ele representava ao rei em terra e eu no mar, e que ante Deus eu era o único capitão a bordo. - Fez uma pausa e depois gritou: - Killick! Killick!

- Que quer agora... - perguntou com indignação enquanto a argila branca caía de seu jérsei e suas luvas a cada movimento, e, depois de fazer uma longa pausa, como era necessário, acrescentou: - senhor?

- Killick estava limpando a prataria - disse Stephen.

- Só limpei a metade das coisas e necessito vigiar em todo momento meus ajudantes porque são desajeitados e podem riscá-las.

Killick gostava de limpar a prataria, e para esta refeição havia pego um faqueiro que raras vezes se usava e que tinha muitas manchas ainda que ficasse envolvida em veludo verde.

- Chame o senhor Fielding - ordenou Jack, e depois falou ao imediato: - Senhor Fielding, sente-se, por favor. Tenho um estranho pedido para fazer ao senhor e aos outros oficiais. A situação é esta: convidei o enviado e seus colegas para almoçar comigo amanhã e cometi a bobagem de pensar que iam aceitar, e agora Killick está rodeado de uma nuvem de argila branca e meu cozinheiro está trabalhando sem parar para preparar dois ou três pratos e Deus sabe quantos mais para acompanhá-los, mas esta manhã me dei conta de que tinha cantado vitória antes de hora. O trabalho urgente impede o senhor Fox e seu séquito de almoçar comigo amanhã, assim que gostaria, com sua permissão, de apoderar-me da câmara dos oficiais para dar-me um banquete junto com meus amigos. É um estranho convite, mas...

Ainda que fosse raro, o banquete foi muito divertido e resultou todo em êxito. Na mesa da câmara dos oficiais brilhavam uma grande sopeira dourada que estava em uma ponta, o dourado mastro de mezena situado no centro e a outra sopeira dourada na outra ponta, e entre eles havia uma maré prateada onde os objetos estavam tão perto uns dos outros que quase não havia espaço para o pão. O sol não lhes batia diretamente, mas a difusa luz produzia um extraordinário efeito, e os marinheiros que foram lá com vários pretextos pensaram que isso aumentava a importância de sua fragata.

O esplendor tinha a curiosa consequência de eliminar a rigidez e a solenidade com que atuava o capitão, geralmente e talvez por ser necessário, quando visitava os oficiais. Desde o início estava claro que esse banquete não ia ser um dos muitos a que Jack Aubrey havia assistido desde que tomou o comando de um barco pela primeira vez, nos que só se ouvia: "Sim, senhor. Não, senhor", e às vezes conseguia com muito esforço que aquele ato oficial fosse menos chato. Bastou uma única garrafa de vinho para que reinasse uma animada conversa na mesa, ainda que realmente contribuiu para isso a espontaneidade que teve ao longo da refeição. Ninguém disse nada particularmente notável, mas todos os oficiais estavam satisfeitos pela companhia, a comida e a glória alcançada.

Outro fator era o grupo de serventes. Detrás da cadeira de cada oficial tinha um, quer fosse um infante da marinha ou um grumete, e ainda que todos fossem limpos e atentos, não tinham treinamento suficiente. Inclusive os infantes da marinha, que eram bastante sérios, participavam em certo modo nos festins, e ainda mais nesta ocasião especial, que lhes agradava mais que aos convidados. Todos sorriam, assentiam com a cabeça ou faziam sinais (não fingiam não escutar o que diziam na mesa) e tanto essas coisas como seus rostos alegres contribuíam também para a alegria geral, e em certo momento foram decisivos. Welby, o oficial de Infantaria da marinha, tinha quase tão pouca graça para contar anedotas ou piadas como o capitão Aubrey, mas recordava uma que quase com toda probabilidade poderia contar sem se equivocar. Era real, era decente e a tinha contado tantas vezes que não supunha um perigo. Agora, depois de servir-se de ganso pela segunda vez e de tomar o sexto copo de vinho, abordou o assunto com delicadeza. Quando a conversa cessou um momento, seu olhar cruzou com o de Jack e, sorrindo, disse:

- Senhor, lembrei de algo muito curioso de quando desempenhava provisoriamente a função de oficial encarregado do recrutamento em 1808. Apresentou-se ali um jovem corpulento e de boas maneiras, mas esfarrapado. O escrevente e eu estávamos sentados na mesa e o sargento detrás. Eu disse ao jovem "Acho que nos poderia servir. De onde vem?". Ele respondeu: "cadeira". Então disse: "Já sei que quer sentar, mas de onde vem?". E o sargento, em voz bastante alta, disse: "O capitão pergunta que de onde vem". Ele, alçando a voz, repetiu: "cadeira". Quando o sargento ia mostrar-lhe qual era seu dever, o escrevente me sussurrou: "Senhor, acho que se refere a cadeira, um município de Valença".

Ao ouvir isso, o servente de Macmillan, um grumete mais acostumado a estar no camarote de guardas-marinhas que na câmara dos oficiais, não pôde reprimir o riso, um horrível conjunto de agudos sons vocais própios de adolescentes, e provocou a de outros dois garotos. Não podiam olhar-se uns para os outros sem começar a rir outra vez e lhes obrigaram a se retirar e se perderam o restante da história de Welby uma ficção adicional que se lhe acabava de ocorrer na qual o nome do recruta era Watt.

- Bebamos juntos um copo de vinho, senhor Welby - propôs Jack quando por fim o riso cessou. - Que houve, senhor Harper?

- O senhor Richardson lhe apresenta seus respeitos, senhor, e diz que há terra à vista ao norte-nordeste a umas cinco léguas.

 

A notícia "terra a vista" se difundiu por toda a fragata, e depois do almoço os membros da missão subiram ao convés para escrutinar o horizonte pela amura de bombordo. Ali os que não queriam subir os mastros poderiam ver logo as Falsas Nantunas, que já se divisavam dos cestos das gáveas. Stephen se encontrou na escada do castelinho com Loder, o menos censurável dos "malditos sacanas".

- Parece que se divertiram muito na câmara dos oficiais.

- Passamos um momento muito agradável - confirmou Stephen. - A companhia era boa, havia muita alegria e a comida foi a melhor que recordo ter comido no mar. Que tartaruga! Que gansos de Java!

- Ah! - exclamou Loder.

Assim expressava que lamentava ter perdido a tartaruga e os gansos, que o rechaço de Fox em nome de seus colegas lhe parecia um abuso de autoridade e que não tinha nada a ver com aquela tremenda grosseria. Essa era uma considerável carga para um simples "Ah!", mas lhe era fácil suportá-la. Stephen tinha notado que o séquito perdera o entusiasmo e recuperara a sobriedade habitual, mas o grau de excitação de Fox seguia sendo muito alto e incômodo.

- Doutor, poderia consultar-lhe quando tenha um momento livre? - perguntou Loder em tom discreto. - Não me gosta falar com esse jovem que trabalha para a fragata.

- Naturalmente. Venha ao ambulatório amanhã ao meio-dia - disse Stephen antes de ir em busca de Macmillan.

Fizeram a ronda juntos (aparecera as habituais doenças contraídas nos portos) e depois, por falta de um ajudante inteligente e confiável, prepararam os comprimidos e as poções e trituraram o mercúrio e o misturaram com gordura de porco para fazer o ungüento azul. Stephen perguntou quando terminaram:

- Macmillan, tem entre seus livros Mental Derangement de Willis ou algum de qualquer outra autoridade na matéria?

- Não, senhor. Sinto dizer-lhe que não. O único que tenho sobre isso é um ensaio de Cullen. Quer que o traga?

- Se é tão amável...

Stephen regressou para a cabine com o livro, passando pelo castelo de popa, e viu Fox no lado de bombordo olhando atentamente as Falsas Nantunas. Se pôs a ler:

 

Todos os tipos de loucura que são hereditários ou aparecem cedo na juventude, em qualquer grau, estão fora do alcance da medicina. E também o estão a maioria dos casos de mania que hão durado mais de um ano, qualquer que seja a causa.

 

Assentiu com a cabeça, passou a página e continuou:

 

Outro dado importante é que a alegria excessiva transtorna a mente tanto como a ansiedade e a tristeza. Isso pôde ser notado no famoso Ano do sul do Pacífico, quando muitos fizeram imensas fortunas rapidamente e as perderam com a mesma rapidez, pois foram mais os que perderam o juízo pela inesperada afluência da riqueza que pela perda de toda sua fortuna.

 

- Isto tem certa relação com o caso, mas o que realmente quero encontrar é um caso de aparição súbita da folie de grandeur.

Leu as medidas recomendadas: dieta de baixa caloria, ainda que não muito baixa, aplicação de ventosas, sangrias, naturalmente, purgantes salinos, vomitivos, vinagre canforado, camisa de força, formação de bolhas na cabeça, água com minério de ferro, banhos frios... Então fechou o livro.

E pouco depois, ainda cheio de sopa de tartaruga, ganso e numerosos pratos de acompanhamento, também fechou os olhos.

 

A Diane ficou a noite toda navegando de um lado para o outro ao sul das Falsas Nantunas, e pela manhã muito cedo a alta e borrada figura do capitão Aubrey apareceu junto à maca de Stephen.

- Está acordado? - perguntou com voz suave.

- Não - respondeu Stephen.

- Vamos descer para terra na pinaça e pensei que gostaria de vir. É possível que haja lá uma colônia inteira de alcatrazes ainda não descritos.

- Sim, é possível. É muito amável. Irei me reunir contigo dentro de um minuto.

E foi sem se lavar, sem se barbear, metendo a camisa de dormir por dentro dos calções e caminhado na ponta dos pés pelo convés em penumbra, que os marinheiros estavam secando depois de tê-lo limpado muito bem com os esfregões. Os marinheiros o ajudaram a descer para a pinaça.

- Oh, tem mastros! - exclamou ao se sentar na bancada de popa. - Não havia notado isso antes.

Os rostos dos tripulantes ficaram inexpressivos e todos olharam para o vazio.

- Os tiramos quando a subimos a bordo, sabia? - Jack explicou. - Isso permite colocar uns botes dentro dos outros. - Depois se voltou para o timoneiro e perguntou: - Como está, Bonden?

- Muito bem e muito estável, senhor, e responde com rapidez. Até agora me parece que é muito boa para ter sido feita por caipiras, algo muito raro.

Era bonita (tinha forma de caravela e era feita de teca com um acabamento que a fazia parecer tão suave como a pele de um delfim), mas Stephen tinha a vista fixa nas ilhas que estavam a diante, uma massa de pontiagudas e escuras rochas indubtavelmente desabitadas, mas não totalmente estéreis, como pensava. Viam-se coqueiros com diversos ângulos de inclinação aqui e ali e uma vegetação cinzenta entre os penhascos. Era possível que ao meio-dia parecessem um horrível monte de escória dos vulcões, mas agora, com a claridade do dia, que cada vez era mais intensa, tinham um bonito aspecto. A espuma branca das moderadas ondas na margem contrastava com sua cor negra e o conjunto estava rodeado de uma luz suave e indescritível. Ademais, naquela excepcional massa rochosa banhada pelo sol e as chuvas tropicais, era provável que tivesse uma flora e uma fauna excepcionais.

- Ajude-me com a sonda - disse Jack.

Seguiram sondando enquanto beiravam a costa das ilhas. Quando chegaram a uma pequena baía deixaram cair uma âncora pequena e se aproximaram remando até a zona mais baixa da margem, que tinha uma parte branca, em que as correntes depositaram areia de coral, e uma parte negra pela resistente rocha que dera origem à ilha. Dois marinheiros desceram com uma prancha e Jack e Stephen desceram para terra seguidos por Seymour, Beade, Bonden e um jovem marinheiro chamado Fazackerley. Levavam uma bússola, vários instrumentos, uma garrafa e um pote de tinta, e enquanto subiam pela úmida areia até a marca que a maré deixara, o sol se elevava a suas costas. Voltaram-se para olhar para trás: o mar estava transparente, o céu, limpo, e o sol, que primeiro tinha cor laranja e a forma de um arco entre a fina névoa e depois a forma de um disco partido pela metade ao qual tinha que se olhar com os olhos semicerrados, era por fim uma esfera de brilho cegante que estava completamente separada do horizonte e projetava suas alongadas sombras sobre a praia.

Jack calculou a posição e olhou para o interior da ilha durante um tempo e depois, assinalando um penhasco com a cabeça, disse:

- Não está marcada com tinta, mas me parece que é a rocha mais visível de todas, não está de acordo, doutor?

- Sem dúvida, destaca-se entre as outras, porém, por que deveria estar marcada com tinta?

- Combinamos que o primeiro que chegasse deixaria uma mensagem vinte e duas jardas ao norte de uma rocha muito visível com uma marca feita com tinta branca.

- Por que vinte e duas jardas, pelo amor de Deus?

- Porque essa é a distância entre as duas metas no críquete.

 

Deixaram uma mensagem em uma garrafa, fizeram a marca e regressaram à fragata com um conjunto de plantas e insetos que teria sido muito maior se o capitão não dissesse:

- Vamos ou desperdiçararemos a mudança da maré. Não há nem um momento a perder.

Os marinheiros subiram pelo costado todas essas coisas, e Stephen foi desjejuar com algumas das que estavam em frascos de comprimidos.

- Valeria a pena levantar-se antes do amanhecer só pelo tremendo apetite que isso desperta - disse -, mas se ao apetite se acrescentam anelídeos anômalos e algumas destas plantas... Quando haja terminado de comer o kedgeree, eu lhe mostrarei os crustáceos isópodos que achei debaixo de um galho caído. Tenho quase certeza de que são parentes da cochinilha de umidade, mas têm curiosos traços pela adaptação a este clima. Quanto gostaria que Martin os visse!

- Espero que logo possa vê-los. Estamos no paralelo adequado e se seguirmos navegando por ele de um lado para o outro poderemos encontrar-nos com eles a qualquer momento. Hoje navegaremos para o leste, provavelmente pondo-nos ao pairo durante a noite, amanhã navegaremos para o oeste, e assim sucessivamente durante uma semana inteira.

 

- Soube que esteve navegando na nova pinaça - disse Loder, que chegou pontual ao encontro no ambulatório, mas não parecia desejoso de falar dos sintomas que tinha. - Como está?

- Acho que muito bem. O senhor gosta de navegar, senhor?

- Sempre gostei. Tínhamos um iate na Inglaterra e aqui tenho uma iole, uma embarcação feita por caipiras, como a sua, mas com as pranchas exteriores superpostas e seguras com pregos de cobre. Ano passado dei a volta a Java a bordo dela em companhia de dois marinheiros. Tem só meio convés.

- Por favor, tire a roupa e deite-se neste sofá ou escaninho acolchoado - indicou Stephen.

E pouco depois, quando lavava as mãos, disse:

- Acredito que sua suposição era acertada, senhor Loder, mas detectamos a doença numa fase inicial. Com estes comprimidos e este ungüento provavelmente a controlaremos em pouco tempo, mas deve seguir o tratamento com rigorosa regularidade. A infecção de Prabang é provocada por um germe muito virulento. Venha amanhã à mesma hora para ver como está. Certamente, deve seguir uma estrita dieta: nem vinho, nem álcool nem muita carne.

- Certamente! Muitas obrigado, doutor. Eu lhe estou sumamente agradecido.

Loder se vestiu e enquanto guardava os medicamentos no bolso continuou:

- Sumamente agradecido por estes, pela atenção que me dispensou e por não me dar um sermão. Sei muito bem que o velho descarado gosta de dar ao menino ousado, mas não gosta que lhe dêem. - Fez uma pausa e, torpemente, perguntou: - A propósito! Poderia dizer-me quando vamos regressar à Batavia? Gostaria de ver como estão meus alfaces ingleses. Além disso, como é natural, Fox tem muita pressa para chegar.

- Pelo que eu sei, vamos seguir navegando de um lado para o outro durante um tempo porque o capitão espera encontrar outro barco, e depois iremos a Java ou talvez a Nova Gales do Sul. Mas é possível que esteja equivocado. Se o senhor Fox perguntar ao capitão Aubrey, que é quem dá as ordens, as instruções e a adequada informação, ele o dirá com mais exatidão.

Mas Fox não perguntou a Aubrey. Ambos se cumprimentavam tirando o chapéu quando se viam e, às vezes, quando estavam fazendo exercícios no castelo de popa (o capitão no lado sagrado, a barlavento, e o enviado e seu séquito no outro), diziam "Bom dia, senhor", mas não passavam disso. A pouca comunicação que havia entre eles se estabelecia obliquamente e quase de maneira furtiva através das conversações de Loder com Maturin e de Edwards com os oficiais, cuja amizade não havia mudado.

A fragata navegou para o leste com o vento estável pelo bombordo, justo de través, e ainda com bom tempo. Havia uma atmosfera de alegria e muitas esperanças, porém, ainda que esse dia as esperanças não se cumpriram, ninguém estava realmente decepcionado quando virou em redondo pouco depois do pôr do sol, as velas foram amuradas para estibordo, e começou a avançar devagar para o oeste com as gáveas rizadas e rodeada do resplendor dos faróis.

Avançaria para o oeste até a noite da quinta-feira e voltaria a mudar de bordo. Enquanto isso, os serviolas esquadrinhariam desde os topes toda a parte do horizonte que abarcavam com a vista. Podiam ver uma extensão de mar de quinze milhas em cada direção até a curva da terra, que deixava o resto fora do alcance de sua vista, porém, mesmo na parte oculta, quem tivesse a vista aguda poderia ver a ponta das joanetes de um barco que se achasse a uma distância de quinze milhas além da curva.

Ao meio-dia os oficiais que estavam no convés mediram a altitude do sol e uma vez mais comprovaram que o rumo era o adequado. Stephen, que estava muito mais abaixo, terminou de atender ao seu paciente, preparou-lhe o remédio enquanto ele falava sem parar (Loder era loquaz quando ficava nervoso) e depois disse:

- Em resposta à primeira pergunta lhe direi que sim, que seu informante tem toda razão. O capitão Aubrey é um membro do Parlamento por Milport, um distrito pertencente a sua família, é um homem rico, com propriedades em Hampshire e Somerset, e se dá muito bem com os ministros. Em resposta à segunda ou ao que se deduz da segunda, direi que não. Não vou agir como intermediário.

Disse estas últimas palavras bastante alto para que pudessem ser ouvidas apesar do ruído que faziam os marinheiros que estavam a ponto de almoçar. Era assombroso como somente duzentos homens puderam encher toda a fragata de ruído, que cessou quando lhes serviram a carne de porco salgada das quintas-feiras. Quando Stephen subiu ao convés para pedir que pusessem outra mangueira de ventilação na enfermaria, o silêncio permitia ouvir o rumor da água ao passar pelos costados da fragata, o rangido da exárcia, o familiar ruído dos moitões e o contínuo sussurro do vento entre milhares de finos e gordos cabos com diversas tensões.

Jack e Fielding olhavam para baixo, para a nova pinaça, onde os marinheiros estavam inclinando o mastro traquete quatro polegadas para frente. Depois de ficar conversando animadamente alguns minutos, Jack se voltou e para ver Stephen, exclamou:

- Ah, está aí, doutor! Gostaria subir ao cesto da gávea e voltar a ver as Falsas Nantunas?

- Poucas coisas me causariam mais prazer - respondeu Stephen, mas mentia. Nunca vencera o medo de altura nem deixara de desconfiar das oscilantes escadas feitas de cabos, que eram inseguras, pouco adequadas para seu objetivo e mais apropiadas para os símios que para os seres racionais. Mas enquanto subia pensou que a distinção entre ambos não era acertada porque Muong era um símio e, ainda que às vezes atuasse com pouca inteligência e fosse teimoso, era um ser racional.

- Olhe - indicou Jack, dando-lhe a luneta. - Pode-se ver a faixa de tinta branca onde esse garoto derramou o pote, mas não vejo a bandeira que deveria estar ali em resposta a ela. Ainda não passaram por aqui.

Disse o mesmo na sexta-feira. O dia transcorreu igual, o rumo que seguiram era igual, e ainda todos a bordo tivessem muitas esperanças, pois não pensavam que estavam truncadas senão que sua realização se retardava. E de novo Stephen, antes de começar a descer torpemente e cheio de horror, fez um comentário sobre a ausência de grandes barcos e pequenas embarcações na zona. No oceano não havia nada, nem sequer aves marinhas.

- Talvez não fosse lógico pensar que encontraria pelicanos filipinos, mas o caso é que isto é um arquipélago.

Stephen, que depois de almoçar geralmente ia ao coroamento para olhar a esteira ou para a proa, observou durante esses dias sinais de que agora os membros do séquito do enviado eram, se não desafetos, seguidores menos entusiastas, respeitosos e aduladores que ao princípio. Mas Fox não parecia perceber e sua própia exaltação não diminuira. Falava com voz muito alta e aguda, em tom seguro, seus olhos tinham um extraordinário brilho e andava com passo ligeiro. No sábado se encontrou com Stephen enquanto caminhava pela entrecoberta e exclamou:

- Ah, Maturin! Como está? Faz muito que quase não temos ocasião de nos cumprimentar. Quer jogar gamão comigo?

Fox jogou sem prestar nenhuma atenção, e depois de ter perdido desnecessariamente a segunda partida (tinha assegurada a vitória com uma ficha em uma banda e outra na parte do tabuleiro de Stephen), disse:

- Como poderá imaginar, estou desejoso de que todos na Inglaterra se informem de nosso triunfo o quanto antes porque...

Enfatizara o nosso, mas como Stephen o olhava com indiferença e sua expressão denotava que estava bem informado, não foi capaz de dar nenhuma das importantes razões políticas e estratégicas que dera a Loder. Depois de fazer uma pausa para tossir e sacudir o nariz, continuou:

- Naturalmente, gostaria muito de saber se o capitão Aubrey pensa, quer dizer, se tem a intenção de seguir o rumo que anunciou antes ou se esse barco mais ou menos mítico de que ouvi falar adquiriu de repente grande importância.

- Estou seguro de que ele lhe diria se lhe perguntasse.

- Talvez, mas não quero me arriscar a que me faça um desaire. Outro dia me tratou com rudeza e falou largamente dos poderes do capitão de um barco de guerra, de que seu dever é dar conta de suas ações só aos seus superiores na hierarquia da Armada e de sua total autonomia no mar, comparável à de um monarca absoluto. Falou em um tom autoritário e depreciativo que me surpreendeu extraordinariamente. Mas essa não foi a primeira mostra de sua aversão, uma aversão incompreensível, gratuita e imotivada.

- Não acredito que exista. Não há dúvida de que momentaneamente sentiu muita raiva, que se expressou com violência, pelo incidente noites atrás, pois isso é algo sumamente ofensivo para um oficial da marinha, mas não lhe tem aversão. Oh, não, não, de nenhuma maneira!

- Então, por que não ordenou que a fragata estivesse adornada com bandeiras por todas as partes nem que os marinheiros estivessem de pé nas vergas dando vivas quando eu embarcasse com o tratado? Não levei em conta outros desaires, mas acho que semelhante insulto só pode ser fruto de uma profunda aversão.

- Não, não, estimado senhor - Stephen tentou tranqüilizá-lo, sorrindo. - Permita-me aclarar este mal-entendido. Ordena-se aos homens colocarem-se assim em um barco que é visitado por um membro da família real, às vezes quando dois barcos que costumam navegar juntos se reúnem ou se separam, e sobretudo como homenagem a um oficial que conseguiu uma importante vitória. Com meus própios olhos vi como era homenageado assim o capitão Broke, da Shannon. Mas essa vitória tem que ter sido conseguida em uma batalha, estimado senhor, não na mesa de negociações. A vitória tem que ser militar, não diplomática.

Fox vacilou alguns momentos, mas depois voltou a pôr uma expressão que denotava total segurança. Depois assentiu com a cabeça e disse:

- Certamente que o senhor tem que apoiar o seu amigo. E seus motivos são óbvios. Não há nada mais que falar.

Então se pôs de pé e fez uma inclinação de cabeça.

 

A profunda irritação de Stephen durou todo o tempo que tardou em subir ao cesto da gávea do maior e o fez se esquecer do medo e de tomar as usuais precauções.

- Que tipo mais estranho és, Stephen! - exclamou Jack. - Quando quer pode subir ao o alto da exárcia como... - Ia dizer "um ser humano", mas o trocou justo antes de que saísse de sua boca e terminou dizendo: - um marinheiro de primeira.

A uma légua ao norte, nas águas onde parecia ter tão poucos perigos como barcos, aves, cetáceos, répteis e troncos à deriva, as águas que pareciam as do segundo dia da Criação, estavam as Falsas Nantunas rodeadas de pontos brancos e a larga faixa de tinta podia ser vista pela luneta tão bem como se notava a ausência da bandeira.

- Isto não é distinto de vigiar o cabo Sicié enquanto se faz o bloqueio de Toulon - disse Jack, guardando a luneta. - O maldito cabo parecia sempre igual. Costumávamos nos aproximar... Mas certamente que se recorda perfeitamente bem. Estava lá. Que deseja, senhor Fielding?

- Desculpe-me, senhor, mas esqueci de perguntar se amanhã haverá cerimônia religiosa. Os homens do coro queriam saber que cânticos têm que preparar.

- Bem, com relação a isso - disse, olhando com rancor para as Falsas Nantunas -, acho que será melhor ler o Código Naval antes de fazer as salvas. Estou seguro de que não terá esquecido de que amanhã é o dia da Coroação.

- Oh, não, senhor! Agora mesmo acabo de falar com o senhor White. Quer que excluamos a tabuinha?

- Eu sei todos os artigos de memória, porém, mesmo assim, seria melhor ter a tabuinha na frente. É melhor prevenir que remediar.

Diante desse objeto de madeira envernizado dobrável e com duas lâminas, um objeto parecido a uma tabela de navegação que tinha gravadas em letras grandes todo o texto do Código Naval, o capitão Aubrey se colocou no domingo pouco depois que soassem as seis badaladas da guarda da manhã. Já havia inspecionado a fragata e os tripulantes, lavados, barbeados e com a camisa limpa estavam diante dele muito atentos e formando pequenos grupos em vez de filas. Os membros da missão, os oficiais e os guardas-marinhas davam ao conjunto um aspecto mais formal, e os infantes da marinha, com suas casacas vermelhas e agrupados em forma de uma figura geométrica, um toque de perfeição.

O Código Naval não tinha a terrível força de algumas partes do Antigo Testamento, mas o capitão Aubrey tinha uma voz grave e potente, e quando falava dos delitos navais tomava um tom cominatório que agradava aos marinheiros quase tanto como as palavras de Jeremias ou o grande anátema. Para Stephen, que assistia à cerimônia mas não a celebrada conforme o rito anglicano, achou que Jack dava certa ênfase no artigo XXIII ("Se uma pessoa que está na esquadra briga com qualquer outra que também esteja na esquadra, ou lhe fala em tom de censura, ou diz coisas provocadoras, ou faz gestos que possam provocar brigas ou distúrbios, e se demostra que é culpado disso, receberá o castigo que o delito mereça e que será decidido por um conselho de guerra") e no XXVI ("Os barcos do rei devem ser governados com cuidado, de modo que não encalhe nem se parta em dois nem se choque contra rochas ou bancos de areia nem seja exposto aos perigos por obstinação, negligência ou qualquer outra falta, e quem seja declarado culpado disso será castigado com a morte..."). Não pôs ênfase no famoso artigo XXIX, que dizia que qualquer um que fosse declarado culpado de cometer sodomia com um homem ou uma besta também seria castigado com a morte, mas o fizeram por ele muitos dos marinheiros que levaram Fox de um lado para o outro daquele candente ancoradouro sem que nunca lhes desse bom dia nem obrigado, fizeram-no tossindo, lançando olhares para Fox e inclusive com um discreto "Ah, ah!" muito longe, perto da proa.

Jack fechou a tabuinha e com a mesma voz grave gritou:

- Todos os marinheiros da frente para o lado de estibordo! Adiante, senhor White!

Fox e os membros de seu séquito ficaram sentados e puseram uma expressão desconcertada, mas quando começou a ouvir-se o estrépito das salvas em honra à Coroa, que se sucederam com magnífica precisão e formaram uma nuvem de fumaça que se movia para bombordo, o gesto do enviado se suavizou. Depois do último disparo se pôs de pé, fez uma inclinação de cabeça para a direita e uma para a esquerda e disse a Fielding:

- Obrigado por tão bonito cumprimento, senhor.

- Peço que me perdoe, senhor, mas o agradecimento não se justifica - respondeu Fielding. - As salvas não foram dedicadas a nenhuma pessoa. Todos os barcos da Armada Real fazem salvas em honra à Coroa no dia da Coroação. Alguém riu e Fox, com uma expressão furiosa, dirigiu-se rapidamente para a escada do castelinho.

O riso saíra do castelo ou do corrimão, mas no castelo de popa ninguém dera importância ao penoso incidente. Enquanto a Diane voltava a sua rotina, Jack caminhava de uma ponta a outra do castelo de popa abanando-se com seu melhor chapéu com fitas douradas.

- Tom terá que fazer o mesmo em algum lugar destas águas - disse Jack para Stephen. - Espero que nos tenha ouvido. Isto faria com que viesse navegando a toda vela.

Quando chegaram à grade Jack olhou para a proa e viu a um grumete que estava sentado junto às bitas do traquete levantar-se e fazer uma graciosa inclinação de cabeça para a direita e outra para a esquerda.

- Senhor Fielding, esse grumete, Lowry está fazendo travessuras no castelo. Ordene-lhe que suba ao tope de um mastro tão rápido como goste para que aprenda a ter bons modos.

Todos os marinheiros que participaram em uma batalha compartiam a opinião do capitão sobre os canhonaços. Nada teria logrado que outro barco cruzasse a linha do horizonte com maior rapidez que um distante canhonaço, inclusive um tão distante que parecesse a agitação de andorinhas em uma chaminé. Os serviolas vigiavam com mais zelo ainda, com tanto zelo que pouco antes que chegassem os convidados de Jack para almoçar, chegou uma mensagem. Era de Jevons, o serviola do tope do pau maior, um homem confiável. Dizia que avistara um barco ou algo muito parecido a sotavento, muito longe, a vinte e cinco graus pela amura de estibordo, e que às vezes desaparecia atrás do horizonte e logo reaparecia. Os serviolas do traquete e da mezena não confirmaram, mas ambos estavam bastante mais abaixo.

- Acho que este é o momento apropriado para dar uma espiada - disse Jack. - Stephen, tenha a amabilidade de atender a Blyth e Dick Richardson um momento se chegam antes que eu desça.

Atirou a casaca em cima de uma cadeira, pegou a luneta, avançou até a porta e quando a abriu encontrou-se frente a frente com seus convidados.

- Desculpem-me, cavalheiros, mas tardarei dois ou três minutos - disse. - Vou subir no alto da exárcia para ver esse barco.

- Posso ir com o senhor, senhor? - inquiriu Richardson.

- Certamente! - exclamou Jack.

Quando chegaram ao convés, Jack disse aos gritos ao serviola que saísse de lá e descesse um pouco; e enquanto Richardson se despojava da casaca e do colete, subiu de um salto para os amantilhos. Imediatamente ascendeu até a cesto da gávea, aonde o serviola acabara de chegar.

- Oh, meu Deus! Espero que tenha razão, senhor!

- Eu também o espero, Jevons - replicou Jack.

Agarrou-se aos amantilhos de barlavento do mastaréu e Richardson aos de sotavento, e pouco depois ambos chegaram ao tope, o posto do serviola, respirando mais rápido por causa do calor, e ficaram de pé sobre a cruzeta. Jack passou um braço em torno do mastaréu e observou uma parte do horizonte ao oeste.

- Onde está, Jevons? - gritou.

- Entre os dez e os vinte e cinco graus pela amura, sua senhoria - respondeu jevons com angústia. - Aparecia e desaparecia.

Jack voltou a olhar com grande atenção, mas só via o mar, o mar e nada mais que o mar.

- Diga-me o que vês, Dick - perguntou, dando-lhe a luneta.

- Nada, senhor, nada, lamentavelmente - respondeu Richardson por fim com desânimo.

A Diane era um dos poucos barcos que tinha mastaréus de sobrejoanetes, assim que era possível desdobrar autênticas sobrejoanetes e mesmo monterillas acima delas. Esses mastaréus ficavam sobre os mastaréus de joanetes e estavam assegurados por pranchas na parte superior, um par de amantilhos e, naturalmente, os estais. Mas o mastaréu de sobrejoanete maior não tinha mais de seis polegadas na parte mais grossa, enquanto que o mastaréu de joanete maior não tinha muitas mais, assim que os correspondentes amantilhos e estais eram muito finos, e o capitão pesava pelo menos duzentas e trinta e cinco libras.

- Oh, senhor! - exclamou Richardson ao vê-lo se agarrar com sua forte mão os amantilhos do mastaréu de joanete. - Eu posso subir em um momento. Por favor, dê-me a luneta.

- Bobagem! - exclamou Jack.

- Senhor, com todo meu respeito, só peso cento e vinte e cinco libras.

- Bah! - replicou Jack, já acima da cruzeta. - fique quieto. Se segue saltando como um maldito babuíno vai torcer o mastaréu.

- Oh, senhor! - repetiu Richardson, e depois juntou as mãos como se fosse rezar e viu a volumosa figura de Jack subir pela rede de finos cabos.

Preocupava-se com o efeito que produziria aquele grande peso em um mastaréu tão fino quando a fragata tinha um balanço de quinze graus e um cabeceio de quase cinco, e pôs a mão sobre o tamborete do mastaréu de joanete para ver se notava algum sinal de que ia mover-se ou soltar-se. Jack, firmemente seguro ali acima, com um braço metido entre os amantilhos do mastaréu de sobrejoanete, gritou:

- Por Deus, já os vejo! Já os vejo, mas são simples paraús! São três paraús navegando rumo sul!

Desceram para a coberta pelas brandais e parecia que a gravidade lhes dava asas.

- Sinto muito ter-lhe feito esperar, senhor Blyth - disse Jack ao contador. - E Sinto muito não trazer-lhe boas notícias. Os barcos eram simples paraús.

- Por ver uns simples paraús arruinou as calças de dril dos dias de festa e deixou que os malditos ovos escalfados em vinho tinto pareçam metralha com urina de cavalo - queixou-se Killick a seu ajudante subindo tanto sua escandalosa voz que pôde ser ouvido perfeitamente na cabine.

- Pelo que pude ver, navegavam de bolina, assim que possivelmente nossos rumos convergirão.

Convergiram e com assombrosa rapidez. Quando comiam o pudim chegou uma mensagem informando de que já podiam ver os cascos do convés, e quando os comensais subiram ao convés para tomar café ao ar livre debaixo do toldo, os três paraús estavam ao alcance dos canhões. Eram embarcações muito grandes e graças às batangas eram muito estáveis e podiam navegar muito rápido de bolina. Estavam abarrotadas de homens.

- Há poucas dúvidas sobre sua profissão - disse o senhor Blyth. - Só lhes falta Perna de Pau.

- Talvez sua presença explique por que estas águas estejam desertas - disse Stephen. - Talvez hajam arrasado com tudo no oceano.

- Como uma pica em um bordel - sentenciou Richardson.

Jack pôde ver pela luneta o seu chefe, um homenzinho magro com um turbante verde que estava sentado no alto da exárcia e olhava a Diane fazendo sombra sobre os olhos com a mão. Observou que negava com a cabeça e um minuto depois viu as proas orçarem e deslizarem com treze ou catorze nós com o moderado vento.

A revista, os artigos do Código Naval, o pudim de passas e os paraús tinham marcado esse domingo, mas ia ocorrer outro fato que o converteria em um dia especial. A medida que o sol, que agora parecia uma grande bola avermelhada, aproximava-se do mar, a lua cheia se elevava sobre o horizonte pelo leste. Esse fenômeno não era raro, pelo o contrário, mas desta vez, devido à pureza do céu, ao alto grau de umidade e, sem dúvida, um monte de fatores menos óbvios que raras vezes coincidiam, alcançou a perfeição estética. Todos os tripulantes, incluídos os grumetes, e os "malditos sacanas", que eram loquazes e insensíveis, contemplavam-no em silêncio. Todos os tripulantes, o capitão da Diane e a maioria dos oficiais acreditavam que era um presságio, ainda que não se puseram de acordo sobre o que anunciava até o dia seguinte, quando a fragata, navegando rumo oeste, passou pela frente das Falsas Nantunas a um quarto de milha de distância. Ali não havia nenhuma bandeira, nenhuma, mas no penhasco mais visível, justo sobre a faixa de tinta branca, estava pousado um cormorão negro com as asas abertas e baixas.

Stephen assegurou que a presença de um cormorão era perfeitamente natural porque abundavam no sul de Ásia e acrescentou que os chineses os domesticavam há séculos, mas inutilmente. Todos sabiam que a partir desse momento já não havia esperanças de um encontro naquele lugar e, ainda que os serviolas seguiram vigiando com zelo essa noite e todo o dia seguinte, ninguém se assombrou de que ao navegar pela última vez para o leste a busca fosse tão inútil como a primeira.

Jack continuou navegando pelo paralelo escolhido durante o período estabelecido só para tranqüilizar sua consciência e depois, cheio de tristeza, deu a ordem de mudar de bordo para sudoeste para seguir a rota que o oficial de derrota e ele decidiram que era a melhor para ir a Java, depois de passar a tarde consultando todas as cartas marítimas disponíveis e as notas e as observações de Dalrymple e de Muffit. Estava cheio de tristeza e também de irritação, melhor dizendo, estava muito desgostoso. Antes que o sol se pusesse, seu escrevente e ele, como era usual, fizeram a medição da temperatura e da salinidade da água e outras coisas para Humboldt. Havia levado para a cabine todos os tubos, potes e instrumentos e os tinha posto junto ao livro aberto, mas antes de anotar as cifras, foi ao jardim, quer dizer, ao sanitário. Enquanto estava ali sentado ouviu um estrépito e depois um ruído confuso, e ao sair soube que Stephen se tinha caído da cadeira ao tentar alcançar uma arranha que havia na clarabóia e não só derramara água do mar sobre suas anotações, como também tinha quebrado vários instrumentos, praticamente todos os de vidro: higrômetros, sete diferentes tipos de termômetros, o aparelho de Crompton que media a gravidade... Também, tinha destroçado um barômetro pingente e derrubara um cabide de sabres. E tudo ocorreu estando o mar bastante tranqüilo.

Quando a cabine voltou a ficar em ordem já estava quase escuro. Depois de passar revista, Jack subiu ao cesto da gávea do maior para ver a lua sair, mas pela primeira vez havia nuvens que ocultavam o céu ao leste, nuvens que trariam chuva pela noite, e então, cansado e decepcionado, sentou-se sobre as alas dobradas. Fizera um grande esforço para subir no alto da exárcia e notara seu peso; e no domingo, em troca, chegara mais alto e não o tinha percebido.

Então se disse: "Será a idade? Valha-me Deus! Que idéia!".

Durante um tempo permaneceu recostado na lona observando as estrelas que estavam justo acima da ponta do mastro maior, que girava entre elas. Também escutava o constante rumor da fragata ao navegar, ainda que sem prestar muita atenção, e as ocasionais ordens e a chamada aos homens de guarda. Richardson se encarregava dessa guarda; Warren estaria encarregado da de meia e Elliott da de alvorada. Percebeu que havia ficado adormecido quando foi despertado pelas duas badaladas.

- Isto não é bom - disse, estirando-se e olhando para o céu.

A lua estava agora muito acima e meio oculta e desfigurada por uma nuvem baixa. O vento tinha quase a mesma intensidade, mas era provável que trouxesse aguaceiros e mau tempo.

Ao chegar na cabine soube que Stephen tinha ido para a coberta inferior, assim que pediu torradas com queijo e um grande copo de grogue com muito suco de limão. Depois escreveu uma nota para o senhor Fox na qual lhe apresentava seus respeitos e dizia que tinha a honra de informar a sua excelência que a fragata navegava com rumo a Java e que, se o vento e o tempo o permitissem, chegaria a Batavia na sexta-feira. Também dizia que era conveniente que os serventes dos membros da missão começassem a fazer a bagagem no dia seguinte, pois não estava previsto que a Diane permanecesse muito tempo no porto. Mandou-a pelo guarda-marinha de guarda e se deitou imediatamente.

Sua maca se movia com o suave balanço e o lento cabeceio da fragata. Os outros objetos pingentes se moviam também, e seu rítmico movimento era pouco visível à luz da pequeno lanterna que tinha do seu lado. Notou que o sono estava chegando e ao virar-se de lado para dar-lhe as boas-vindas viu brilhar a dragona de sua melhor casaca. Lembrou quanto sentira sua falta durante o período que passara fora da lista de capitães da Armada. Naquele tempo sonhara uma vez que a via e despertara sentindo uma tristeza indescritível. Mas agora realmente estava ali, era algo tangível e sólido. Sentiu que o coração lhe pulava no peito e ficou adormecido com um sorriso nos lábios. Despertou-se com o distante grito "Hás ouvido a notícia?", a frase humorística com que às quatro da madrugada os marinheiros de guarda indicavam aos que estavam abaixo que deviam subir para o convés para substituir-lhes. Depois ouviu as vozes de Warren e Elliott, muito mais próximas.

- Aqui as tem - disse Warren, e acrescentou quais eram o rumo e as ordens. Elliott fez a repetição formal.

Também ouviu o rumor da fragata, que lhe indicava que o vento era fixo. Tudo era normal. De repente pensou que, sem dúvida, Stephen tinha amigos doutores em Batavia e seria possível repor todos os instrumentos ou conseguir que os fabricassem hábeis artesãos, de modo que a cadeia de precisas medições que fizera ao redor de meio mundo só ficaria interrompida durante um ou dois dias ou, no máximo, três.

Pouco antes que tocassem as duas badaladas, chamaram aos marinheiros aleijados, e quando elas soaram começou o ritual da limpeza do convés à pálida luz da lua, apesar de que os aguaceiros que haviam caído na guarda de meia já a haviam limpado. O ruído da pedra arenito que se ouvia por toda a fragata não despertou a Jack Aubrey, mas a primeira sacudida que deu quando a quilha roçou as rochas com um chiado, fez com que saisse da maca e despertasse totalmente. Quando se levantou, a Diane chocou-se com violência e ele caiu ao solo. Apesar disso, chegou ao convés antes que o mensageiro chegasse à escada do castelinho.

- Todos para as braças! - gritou tão alto que sua voz pôde ser ouvida apesar do estrépito da fragata ao deslizar sobre o arrecife.

- Todos a puxar as braças! Tire uma mão, tire uma mão! Rápido, aí, na proa!

A Diane perdia velocidade e pouco depois subiu pela última vez com as ondas e ficou imóvel sobre uma rocha invisível.

Os homens que estavam abaixo subiram para o convés em tropel em meio da penumbra e quase todos os oficiais já estavam ali. Jack mandou um ajudante do carpinteiro para sondar a sentina.

- Senhor Fielding, desça o esquife do doutor pelo lado - ordenou.

- Dois pés, senhor - informou o própio carpinteiro. - E aumenta moderadamente.

- Obrigado, senhor Hadley - disse Jack.

A notícia se espalhou por toda a coberta: somente dois pés e aumentava moderadamente.

Tomaram-se mais várias medidas urgentes e depois ouviu-se a Richardson dizer desde o esquife:

- Três braças sob a popa, senhor; duas e meia sob a coxia; duas sob a roda. A um cabo de distância pela frente não se chega ao fundo com este cabo.

- Carreguem todas as velas! - gritou Jack. - Preparem-se para jogar a âncora!

A penumbra estava mudando. O sol iluminou as nuvens baixas que estavam ao leste e depois apareceu acima do horizonte. Soaram quatro badaladas. Jack foi até a proa para ver como jogavam a âncora (uma precaução para o caso de que se desatasse uma forte tormenta, mas agora se tomava principalmente por tranqüilidade geral, pois nem todos os que estavam a bordo eram heróis), e quando regressou já era de dia. O mar estava bastante agitado, mas começava a se acalmar e o céu augurava bom tempo. A uma milha ao norte se encontrava uma ilha não muito grande, de cerca de duas milhas de diâmetro, coberta de vegetação.

- Como está a sentina, senhor Fielding? - perguntou.

- Dois pés e sete polegadas, senhor, e agora deve estar aumentando. O senhor Edward queria falar com o senhor, se for possível.

Jack refletiu alguns momentos enquanto olhava para fora da borda. A fragata parecia morta, como se estivesse sobre rochas secas. Não fizera nenhum movimento livre nem muito menos dera uma sacudida desde a última horrível subida com as ondas. Além disso, estava muito pouco submersa. Em um aparte, Jack disse ao suboficial encarregado dos instrumentos de navegação e aos dois timoneiros:

- Podem deixar o leme.

Depois seguiu meditando enquanto as bombas começaram a chiar e a lançar jorros de água. A água que estava junto ao costado lhe confirmou o que havia intuído: a fragata tinha encalhado no último momento da maré-cheia ao princípio da estação. E a maré estava baixando rapidamente. Ao voltar-se viu Killick, que em silêncio sustentava uma grossa casaca, e Stephen e Edwards detrás.

- Obrigado, Killick - disse, pondo-a. - Bom dia, doutor. Bom dia, senhor Edwards.

- Bom dia - devolveu-lhe o cumprimento Edwards. - Sua excelência lhe apresenta seus respeitos e quer saber se ele ou algum membro da missão pode ajudar-lhe.

- É muito amável, mas no momento o único que pode fazer é evitar que essa gente incomode - disse, assinalando com a cabeça a um grupo de serventes agrupados no castelo. - Porém, Sem dúvida quererá saber qual é a posição da fragata. Por favor, fique conosco, doutor, porque isto também lhe interessa. A fragata chocou-se com um arrecife desconhecido, que não aparece nas cartas marítimas, e agora está encalhada. Não sei que danos sofreu, mas por agora não corre perigo. Há muitas probabilidades de fazê-la flutuar e afastar-se do arrecife na próxima maré-cheia aliviando o peso. E é possível que logremos pô-la em tão boas condições para navegar que nos leve até Batavia, onde poderemos querená-la. De toda forma, vamos descer os botes, e seria conveniente que o senhor Fox e seu séquito, com uma guarda apropiada, descessem para terra com a maior quantidade de bagagem possível e nos deixassem fazer nosso trabalho.


CAPÍTULO 10

Fizeram seu trabalho, seu árduo e complexo trabalho, que requeria força e amiúde muita habilidade, de dia e de noite. E sua intensidade chegou na maré-cheia a um extremo que Jack nunca vira em seus longos anos de experiência.

Passaram todo o dia aliviando o peso da fragata. Carregavam continuamente provisões nos botes e os levavam para a costa; desciam pelo lado os mastaréus e formavam balsas com eles; jogavam pela borda a água dos tonéis, apesar de ainda não terem encontrado água na ilha (a ilha só era habitada por macacos de calda preénsil), jogando-a fora a toneladas com as bombas, junto com a água do mar que entrava quase tão rápido como a tiravam. enquanto trabalhavam viram que o arrecife ficou descoberto de ambos os lados na baixa-mar, que foi surpreendentemente rápida, e ao seu redor se formou espuma, ainda que não muita porque o mar não estava muito agitado e o vento era moderado. A medida que a maré baixava, a fragata devia suportar uma parte maior de seu própio peso e as balizas rangiam. Desde os botes podia se ver claramente, e como sobressaía tanto do água que as chapas de cobre do casco ficavam à vista, pôde-se apreciar que estava apoiada na ponta de três rochas recobertas de algas de cor verde-escuro, duas abaixo das alhetas e uma sob a quilha, perto de onde se encontrava o campanário. Situou-se ali, em posição quase vertical, quando as ondas a elevaram pela última vez, e não pôde passar roçando o restante do arrecife e voltar para águas profundas.

Como estava em posição quase vertical e tão firme entre águas de pouca profundidade, Jack fez colocar vários pontais por precaução, ordenou que todos os marinheiros comessem a bordo, revezando-se os dois grupos de guarda, e que lhes dessem maiores rações para que recobrassem as energias perdidas nos duros trabalhos passados, pois as necessitariam. Naturalmente, o bombear era constante, e enquanto os marinheiros moviam continuamente as alavancas, o carpinteiro e seus ajudantes, quase sempre acompanhados pelo capitão, iam de um lado para o outro da abarrotada bodega e da coberta inferior para reparar os danos nas partes às quais podiam aceder e calcular a importância dos de outros lugares, iluminados por lanternas e com todas as escotilhas abertas para que chegasse abaixo a maior quantidade de luz solar possível. Entretanto o contramestre e seus ajudantes, junto com os mais experientes marinheiros que trabalhavam no castelo e na coberta inferior, desenrolavam pouco a pouco a amarra menos usada da Diane, uma amarra quase nova de dezessete polegadas de grossura, para amarrá-la à melhor âncora; uma tarefa nada fácil, pois a amarra pesava três toneladas e meia e estava em um espaço reduzido. Tentavam amarrá-la pelo extremo que nunca se havia usado, que sempre permanecera detrás das bitas, porque se atribuía boa sorte ao extremo não usado, e também, maior força.

Cuidadosamente desceram para o bote a âncora, reforçada com a âncora pequena, e quando chegou a ansiada maré-cheia os tripulantes remaram até um lugar em cujo fundo agarraria melhor, conforme disseram Fielding e o oficial de derrota, que sondaram durante longo tempo no esquife, pois o fundo do restante da zona estava salpicado de rochas.

Durante todo esse período os outros botes navegaram de um lado para o outro trasladando grande quantidade de provisões para aliviar o peso da fragata o mais rápido possível. E boa parte do tempo Stephen e Macmillan permaneceram sentados não no posto que ocupavam nas batalhas, muito abaixo, onde agora atrapalhariam, mas na cabine. Naqueles momentos todos tinham tanta pressa e faziam tantos esforços que ambos já tinham atendido a muitos com machucados, entorses e deslocamentos e inclusive a um com uma terrível hérnia, um homem que se lesionara por trabalhar com excesso de zelo. Estavam atendendo a Blyth, que fora derrubado no meio do cúter pequeno por um galinheiro jogado do castelo e se ferira no couro cabeludo que sangrava profusamente. Costuraram a ferida, detiveram a hemorragia e lhe perguntaram como iam as coisas na fragata.

- Tenho esperanças, muitas esperanças de que esteja flutuando dentro de meia hora - disse. - A maré-cheia está muito próxima, a entrada de água não é muito maior apesar de estar muito baixa e o capitão acredita que pode desencalhá-la. Em caso de que a entrada de água aumente muito quando se encontre em águas profundas, a levará para a praia para querená-la. Sem dúvida, poderá aguentar até chegar à ilha, e lá há um bom porto. Geralmente o vento sopra de terra e a fragata terá que avançar com as maiores aferradas ao mesmo tempo que os botes a rebocam, mas me parece que não teremos que chegar a isso porque o capitão acha que poderá flutuar. As balizas inferiores sofreram danos, mas o capitão acredita que flutuará, ainda que as bombas tenham que seguir funcionando e haja que cobrir uma parte dos fundos com uma vela alcochoada até que cheguemos a Batavia. Mas primeiro temos que desencalhá-la. Escutem!

Ouviu-se um forte grito:

- Todos os botes! Tragam a bordo todos os botes!

Os tripulantes dos botes subiram imediatamente pelos costados, pois também tinham observado com suma atenção como subia a maré. A água alcançara grande altura, não tanta como esperavam, mas pelo menos a suficiente para ocultar as chapas de cobre do casco. A fragata estava ali como uma embarcação cristã, e se o mar estivesse um pouco agitado, quase certo estaria subindo e dando sacudidas. Todos os marinheiros sabiam que essa era a melhor oportunidade, pois a maré alta tinha alcançado um nível ligeiramente inferior ao da anterior e o peso da fragata tinha diminuído Deus sabia quantas toneladas.

- Coloquem as barras do cabrestante! - gritou Jack. - Senhor Crown, por favor, acrescente as extensões - acrescentou e, depois de uma pausa, em que colocaram as extensões nos extremos das barras com o fim de que houvesse espaço para que as agarrassem mais marinheiros, disse: - Adiante, senhor Fielding.

houve mais ordens mas não se ouviram passos rápidos, pois todos os marinheiros já estavam ali, senão pisadas fortes que foram afogadas pelas claras e agudas notas do pífano. As fortes pisadas se sucederam com rapidez nas duas primeiras voltas, mas depois com lentidão, com muito mais lentidão.

- Acho que devemos subir para o convés - disse Stephen. - Poderíamos encontrar um lugar nas barras. Temos que ir para o castelo, se não nos esmagarão e nos destroçarão.

Deram um rodeio para evitar a parte inferior do cabrestante, que estava rodeado de multidão de marinheiros quase imóveis empurrando fortemente as barras, adiantando meio passo e arrancando um só clique da lingüeta ao custo de cada enorme esforço. Subiram ao castelo de popa e se aproximaram da parte superior do cabrestante, também rodeada de uma multidão quase imóvel. Ouvia-se o forte som do pífano, e o homenzinho que o tocava estava em cima do tope do cabrestante, que brilhava ao sol. Os marinheiros, muito sérios porque estavam concentrados em empurrar, estavam pálidos e ofegantes pelo esforço.

- Empurrem todos juntos, empurrem e se moverá! - gritava Jack com uma voz quase irreconhecível no meio do grupo.

Na proa podia ver-se a amarra jorrando água desde o escovém de estibordo, estirada de tal maneira que parecia reduzida à metade de sua largura ou menos, rígida, formando quase uma linha reta da proa para o mar.

- Todos juntos! - gritou outra vez. - Todos juntos!

Stephen e Macmillan encontraram um lugar livre em uma das extensões (já não havia nenhum nas barras) e empurraram com todas suas forças. Todos seguiram empurrando e empurrando, mas não houve nenhum progresso.

- Oh, senhor, a amarra não suportará! - exclamou o carpinteiro, que chegou à popa correndo.

- Parem de empurrar! - ordenou Jack depois de um momento, e se ergueu.

Ainda que alguns dos outros fizeram o mesmo depois, estavam tão abstraídos que tardaram um pouco em endireitar-se.

- Prenda o virador - ordenou, e deixou de fazer pressão.

Aproximou-se do lado caminhando pesadamente, avançou pelo corrimão até o castelo, chegou à proa e pôs toda sua atenção na maré, na fragata e no arrecife.

- Só se pode fazer uma coisa - sentenciou. - Digam ao senhor White que venha. Senhor White, sinto muito, mas temos que jogar os canhões pela borda.

O condestável, que estava pálido pelo trabalho, empalideceu ainda mais.

- Sim, é claro, senhor - disse, e chamou seus ajudantes e aos chefes das brigadas de artilheiros.

Esse era o mais duro golpe de todos, era uma autocastração. Não havia nenhum homem que não pensasse assim quando seus amados canhões caiam das portalós na água produzindo um horrível chape depois do outro. Isso era como subverter a ordem natural.

- Os canhões longos também, senhor?

Esses canhões eram propriedade de Jack e os considerava como velhos amigos. Eram de bronze, de doze libras e muito precisos.

- Também os canhões longos, senhor White. Só conservaremos as caronadas.

Depois do último chape, duplamente forte, que produziu uma tristeza da qual se sentiu culpado, disse:

- Senhor Fielding, vamos repartir grogue.

Suas palavras foram acolhidas por confusos gritos de alegria, e Jemmy Bungs desceu correndo ao paiol do rum e regressou com um recipiente cheio não de rum, que havia acabado, más de aguardente de palma, que era muito mais forte. O misturou exatamente com três partes iguais de água do tonel que estava no convés e depois com a quantidade adequada de limão e açúcar e o serviu; entregou a Jack a primeira pinta e as outras a cada um dos homens que estavam a bordo.

Jack achava que, apesar do que dissessem contra esse costume, havia momentos em que não podia ser considerado mal, e esse era um deles. Bebeu sua ração devagar enquanto olhava para as quietas águas e sentiu seu efeito quase imediatamente.

- Bem, companheiros de tripulação - disse por fim -, vamos ver se podemos mover a fragata desta vez.

Pareceu-lhe sentir certo movimento sob seus pés quando jogaram os canhões, como se a fragata estivesse a ponto de flutuar, e pensava que se o mar houvesse tido algum movimento, a teria levantado do leito em que se encontrava, assim que voltou a ocupar seu lugar na barra do cabrestante muito esperançoso. Fez um sinal com a cabeça para o homem que tocava o pífano e todos os marinheiros giraram avançando ao ritmo de Skillygalee - skillygaloo acompanhada pelos invariáveis gritos: "Ponham badernas! Atenção ao virador! Dobrar para fora!". Seguiram avançando ritmicamente e por fim voltaram a sentir a tensão, que era cada vez mais forte. A amarra subiu, estirando-se cada vez mais e com os elos estremecendo-se.

- Empurrem todos juntos! - gritou Jack, apoiando-se sobre a barra com todo seu peso e firmando os pés na coberta.

- Empurrem todos juntos! - repetiu alguém na coberta inferior, onde outro grupo de mais de cinqüenta homens também trabalhava com toda sua força.

- Empurrem! Empurrem!

Todos sentiram a fragata mover-se debaixo de seus pés e empurraram as barras com mais força ainda. Então notaram que a tensão cedia e nas duas cobertas todos caíram amontoados.

- Enrolem a amarra - ordenou Jack. - Será suficiente que permanessa um homem em cada barra.

Então foi até a proa coxeando, pois alguém lhe pisara e o machucara, e observou como a amarra entrava na fragata. Havia se soltado apesar de estar amarrada pelo extremo não usado.

- Este é um final triste - disse ao contramestre, que esboçou um sorriso amargo.

Durante toda a noite continuaram aliviando o peso da fragata, e quando a maré, lentamente, terminou de baixar, todos viram os canhões ao em torno, na água pouco profunda, refletindo a luz da lua. Desjejuaram cedo e depois jogaram uma âncora pequena amarrada a duas caronadas depois de avançar por uma rota que era quase uma continuação da quilha da fragata. Depois esperaram chegar a maré-cheia, que começava pouco depois da alvorada.

O sol saiu às seis e iluminou a limpa e ordenada coberta. Os marinheiros não a haviam esfregado com pedra arenito, mas a limparam muito bem com esfregões e a secaram, sobretudo a parte que ficava debaixo das barras do cabrestante. Agora todos olhavam a subida da maré. A água ascendia pelas chapas de cobre, com ondas que aumentavam e diminuíam até que o sol se situou a um palmo do horizonte, quando terminou a maré-cheia, e uma ampla faixa do conjunto de chapas de cobre permaneceu acima do nível do mar.

Todos se perguntaram se isso era tudo, se essa era realmente a maré-cheia. De acordo com os cronômetros da fragata o era e o fora há certo tempo. Certamente que, como todos os marinheiros sabiam, depois da maré viva em cada maré-cheia a água subia menos que na anterior, até chegar à maré morta, mas uma diferença tão grande como essa não parecia normal.

Contudo, teriam que pôr a fragata flutuando com a água a essa altura, assim que agarraram as barras e empurraram até jorrar suor e as gotas cairem na coberta, mas era óbvio que tudo era inútil. Jack não tardou em ordenar:

- Parem! - E projetando sua voz rouca para abaixo, gritou: - Senhor Richardson, parem de empurrar! - Afastou-se do cabrestante e involuntariamente sussurrou para Stephen: - Não é bom arrancar as entranhas da fragata nem a nossa. Esperaremos até a próxima maré viva. Que acha de desjejuarmos? Pelo cheiro, acho que esse bom homem tem o café preparado. Daria a alma por uma xícara.

Quando já estava com um pé na escada voltou-se e disse:

- Senhor Fielding, quando os oficiais tenham desjejuado e o senhor possa reunir bastantes marinheiros para puxar a amarra da âncora, acho que deveriam ir no bote para recolhê-la. Não gosto que a amarra fique roçando nas rochas do fundo até a próxima maré viva. E talvez depois de um recesso possam levar outra parte da bagagem do enviado para terra.

No primeiro bote que levou coisas para a ilha, regressou o secretário, Edwards, que disse que o senhor Fox apresentava seus respeitos ao capitão Aubrey e lhe pedia que descesse a terra porque queria falar com ele com urgência.

- Por favor, ponha minha resposta na forma apropiada - disse Jack, sorrindo para o pobre jovem. - Estou muito aturdido para ir esta manhã. Por favor, diga-lhe algo assim como que me encantaria e que o farei na primeira oportunidade que tenha. E apresente-lhe meus respeitos, naturalmente.

Quando Edwards se foi, dirigiu-se a Stephen:

- Irei depois de dar um cochilo. Por Deus, que momento para agir com cerimônia! Inclusive poderia ter vindo no bote.

Parecia que Fox sabia um pouco disso quando no cais deu as boas-vindas a Aubrey, que estava exausto e tinha mau aspecto apesar do cochilo.

- Obrigado por ter a amabilidade de vir depois de um dia e uma noite fatigosos. Não lhe teria incomodado se não me achasse que era urgente consultar-lhe sobre os interesses do rei. Quer que demos um passeio pela praia?

Afastaram-se dos montes de despachos, documentos atados com fitas, malas, pacotes e provisões, entre as quais estavam sentados muitos homens desconsolados, e avançaram devagar para o distante extremo da baía, onde a praia de areia fazia uma curva e dava passagem para as rochas que adentravam no mar.

- Corrija-me se me equivoco, senhor - começou Fox depois de dar alguns passos -, porém, pelo que ouvi, apesar de seus heróicos esforços, a fragata segue ainda no arrecife e deve permanecer ali até a próxima maré viva.

- Exatamente.

- E, mesmo com ela, não se tem garantia de que possa desencalhar ou, em caso de que o faça, de que possa navegar até Batavia sem necessidade de longos reparos.

- Não se tem certeza de quase nada, no mar.

- Contudo, há um fato indiscutível: não poderá desencalhar até a próxima maré viva. Não quero que leve isto como uma crítica nem muito menos como uma tentativa de culpar-lhe disso, mas lhe advirto, capitão Aubrey, que este atraso pode prejudicar muito seriamente os interesses de sua majestade e que, portanto, tenho o dever de pedir-lhe que me faça chegar a Batavia em uma das embarcações maiores. Perder mais tempo teria consequências incalculáveis na estratégia geral da Inglaterra, pois, como sabe, o equilíbrio é tão delicado que a perda de um só barco poderia provocar uma mudança radical, e resultados ainda mais graves e mais óbvios nas ações da Companhia das Índias, cujos diretores têm que saber o quanto antes se devem arriscar seus mercantes na viagem para a China nesta estação. Todas as ações incidirão enormemente na prosperidade do país e em sua capacidade de mudar o rumo da guerra.

Depois de uma pausa na qual Jack meditou sobre isso, continuou:

- Vamos, são somente dois dias de navegação com o vento fixo nesta época do ano. E o governador mandará de imediato barcos e artesãos para o caso da Diane necessitar reparos complicados.

- Daqui para Batavia há quase duzentas milhas e estas águas são perigosas - explicou Jack. - Por outro lado, não conheço bem o sul do mar da China nem sei interpretar o presságio do céu e todos meus instrumentos estão quebrados. É preciso considerar o tempo e, além disso, os malaios, os dyaks e os chineses.

- Conheço estas águas há trinta e cinco anos e Loder, que já navegou ao redor de Java em uma embarcação como a pinaça, também as conhece há tanto tempo quanto eu. Tanto ele como nossos serventes malaios profetizem bom tempo. E se formos bem armados, estaremos a salvo. Eu repito: é uma questão de obrigação moral.

Seguiram andando em silêncio e quando chegaram ao final da praia Jack se sentou nas rochas pensativo.

- Muito bem - disse por fim. - Eu lhe emprestarei a pinaça com uma caronada na proa, dois de marinheiros para manejá-la, um oficial para que a governe e um timoneiro. Também lhe darei mosquetes para todos seus homens.

- Obrigado Aubrey, obrigado! - exclamou Fox, apertando-lhe a mão. - Eu lhe estou muito agradecido... mas não esperava menos do senhor, senhor.

- Mandarei a pinaça às onze em ponto com o aparelho e os homens. As provisões, a água e as munições já estão na praia. Desejo-lhe que tenha uma viagem boa e rápida. Apresente meus respeitos ao senhor Raffles, por favor.

Ao voltar para a fragata disse a Fielding:

- O enviado partirá para Batavia na pinaça armada com uma caronada, uma dúzia de mosquetes e as munições necessárias. Já tem todas as provisões que precisa. Necessito de três marinheiros voluntários, um preparado para o posto de timoneiro, e um oficial para que leve o grupo até lá.

- Fox não pode esperar mudança da lua - explicou a Stephen. - Partirá para Batavia com o tratado. Concordei em lhe emprestar a pinaça.

- Acha que um homem sensato faria essa viagem? - perguntou Stephen em voz baixa e grave. - Não é essa uma loucura, uma aventura perigosa?

- Uma loucura? Oh, não! Batavia está só a umas duzentas milhas daqui. Bligh percorreu quase quatro mil em um barco menor que nossa pinaça e com muito menos provisões.

- Sua pinaça - corrigiu Stephen, pois a pinaça era propriedade de Jack.

- Bem, sim. Mas espero vê-la de novo, sabe?

- Ele será acompanhado por marinheiros competentes? - perguntou Stephen, tentando acalmar seu desassossego. - Não dará ordens estranhas e inadequadas?

- É possível que dê ordens inadequadas - disse Jack, com um tímido sorriso -, mas ninguém lhe dará ouvidos. Um de nossos oficiais terá o comando.

O oficial em questão era Elliott, que estava de guarda quando a Diane encalhou. Elliott sabia muito bem que se tivesse lembrado das ordens e tivesse rizado as gáveas quando o vento aumentou, a fragata teria tido uma velocidade de quatro nós em vez de oito no momento do choque. De todo modo o choque seria muito violento, mas provavelmente não teria sido desastroso. Jack o sabia e quando concordou co seu pedido de tomar o comando da pinaça examinou com ele as cartas marítimas e as observações, e depois revisou seus instrumentos e lhe emprestou um compasso melhor que o seu para medir o azimute.

Pouco antes das onze Elliott abandonou a fragata para tomar o comando de uma embarcação pela primeira vez e chegou ao cais na hora combinada. Houve um dos intoleráveis atrasos típicos dos homens do interior: esqueceram pacotes, foram pegá-los, pegaram uns em lugar de outros, discutiram, gritaram, deram contra-ordens e mudaram a organização. Jack, que tinha a intenção de permanecer na convés até que a pinaça chegasse ao alto mar, desceu para a cabine porque não tinha deitado a noite toda e dormiu por vinte minutos.

Quando voltou ao mundo real subiu ao castelo de popa e ficou ali muito erguido e imóvel. Tirou o chapéu para cumprimentar Fox, que também estava muito erguido e que também se descobriu quando a pinaça, a um quarto de milha de distância, zarpou e fez rumo ao sul-sudoeste.

- Bem, senhor Fielding - disse depois de observar durante um tempo o convés e a distante costa. - Nos deixaram com um aspecto lamentável: a coberta está desordenada e a praia parece um acampamento de malandros depois da passagem da polícia. É o senhor Edward aquele que vejo alí com os calções negros?

- Sim, senhor. Ele me disse que tinha que ficar para trás com uma cópia do tratado em caso de acidente.

- Ah, é? Bem, depois de almoçar mande os marinheiros para ordenar um pouco as coisas por aqui e depois que desçam para terra e arrumem essa massa de objetos antes de continuar aliviando o peso da fragata. Não podemos seguir vivendo com uma espécie de casa de empenho abandonada ao lado. Ademais, quero que o ebanista e seus ajudantes ponham a cabine como estava e acho que deveríamos começar a buscar água.

Um autêntico período de sono antes do almoço, e, sobretudo, o própio almoço, fizeram maravilhas ao capitão Aubrey.

- Uma vez comi cordeiro em uma hospedaria chamada de O Barco Encalhado - contava a seus convidados -, mas nunca pensei que chegaria a comer assim na realidade. Garanto que essa idéia me parecia absurda. Senhor Edward, bebamos a sua saúde. Capitão Welby, sei que não devo falar de questões de trabalho na mesa, porém, por favor, recorde-me uma palavra que tenho na ponta da língua há meia hora e tem relação com o que devo consultar-lhe quando desçamos para terra. É a palavra culta que faz referência a montar barracas de campanha e outras coisas.

- Castrametação, senhor - disse Welby, com um sorriso triunfal, pois era raro que um militar conseguisse um triunfo a bordo de um barco de guerra. - Inclue mais coisas das que se supõe.

Indubtavelmente incluía mais coisas das que Jack supunha.

- Para começar, senhor - continuou Welby -, sempre é conveniente fazer o acampamento em um terreno alto e, se for possível, ter bastante água dentro dos limites. E seria raro que com essa ladeira coberta de grama não pudéssemos matar dois pássaros de um tiro. O que quero dizer, senhor, é que na parte superior direita poderiam alojar-se todos nossos homens e na esquerda fazer um poço, que não será muito profundo porque, sem dúvida, muito tempo atrás passava pelo meio uma corrente de água. Essa localização não ficará protegida contra a artilharia, mas não poderíamos pedir um melhor para repelir a um ataque surpresa. Se fizermos um quadrado e o rodearmos por um parapeito de altura moderada e uma paliçada, entre três de seus lados e o bosque poderia se deixar certa distância e se dominaria o cais desde o quarto. E se colocarmos uma caronada em cada canto, ainda que não se façam túneis nem um revelim, formaríamos um bom posto.

Jack decidiu inspecionar a larga ladeira, uma faixa de terra quase triangular entre o denso bosque e uma pequena elevação do terreno onde os animais da Diane (gansos, galinhas, porcos, ovelhas e cabras) pastariam em grupos sobre uma grama de extraordinário aroma.

- Baker - ordenou -, leve-os a um lugar afastado.

- Não posso, senhor - replicou Baker. - Não seguem a ninguém mais que a Jemmy Ducks e ao jovem Pollard. E os porcos mordem se empurrados.

A velha história se repetia. Mesmo os animais adquiridos mais recentemente, por influência dos velhos, eram muito teimosos para serem coagidos, e todos se deixavam guiar somente por quem gostavam. Estavam só a um passo de se transformar em vacas sagradas, que não se podem matar nem comer.

- Então, chame Jemmy Ducks e Pollard - ordenou Jack.

Tomou nota mentalmente de que tinha que dizer a Fielding que pusesse Pollard para fazer outro trabalho. Com as aves de quintal era mais fácil uma relação distante, mas era preciso mudar com mais freqüência o guarda do gado.

- Acho que é apropiada - disse quando terminou de ver toda a ladeira -, mas não pensava na defesa senão na ordem, assim que me parece que não nos fazem falta um parapeito nem uma paliçada e muito menos túneis ou um revelim. Mas necessitamos de um poço e um espaço quadrado onde montar barracas e armazenar as provisões de modo que o contador, o contramestre e o condestável possam pegar facilmente o que necessitem. Assim que se tiver a amabilidade de fazer um poço e traçar as linhas de acordo com a arte de ordenar acampamentos militares, falarei com o veleiro para que prepare as tendas.

- Talvez convenha fazer uma pequena vala para drenagem com a terra amontoada na borda, senhor, caso chova.

- Como goste, capitão Welby - aceitou Jack, afastando-se -, mas nada muito complicado.

- O sargento e eu a mediremos - disse Welby -, e começaremos a cavar quando nos tragam as picaretas e as pás da fragata, senhor.

Ao chegar ao cais, Jack se informou de que Stephen fora visto pela última vez abrindo passagem entre o espesso bosque com um sabre afiado pelo armeiro e um par de utensílios para cortar tendões. Assim que, em companhia de Bonden e Seymour, partiu no esquife para explorar a maior parte da ilha que pudesse antes do anoitecer. Richardson, que era um excelente companheiro para fazer uma exploração, ocupava- se da busca das âncoras perdidas, e Jack não pôde levá-lo com ele.

Menos mau que o esquife era ligeiro, pois tiveram que remar durante toda a viagem porque o vento amainou pouco depois que Fox e seus companheiros desapareceram atrás do horizonte. Ainda que uma corrente extraordinariamente forte os arrastou por toda a costa sul, tiveram que remar ao longo de toda a costa norte desde o extremo oeste, e, como disse Bonden, se o movimento da maré tivesse coincidido com o da corrente, não poderiam ter avançado contra ela. A ilha era mais ou menos retangular e parecia um livro com as quinas gastas sobre o mar e levemente inclinadas. A costa sul era muito baixa; a norte era formada por um escarpado que em alguns lugares alcançava uns duzentos pés e tinha algumas entradas muito profundas com pequenas praias.

Quando passavam por ali ouviram um agudo grito desde o escarpado; olharam para cima e viram ao doutor Maturin agitando um lenço no ar. O doutor gritou algo quando percebeu que o tinham visto, porém, apesar do ar estar imóvel e o mar em calmaria, só puderam ouvir a palavra "sopa".

Jack ficou pensando nisso enquanto media ângulos e anotava as medições da profundidade, mas não logrou entender nada até depois do crepúsculo, quando chegaram à fragata. O janelão de popa estava totalmente iluminado e Stephen permanecia na cabine restaurada com o violoncelo entre as pernas. Sorriu ao mesmo tempo que fez uma inclinação de cabeça, seguiu tocando uma frase musical de sua obra O dia de Santa Cecilia até o final e depois perguntou:

- Já viu nosso acampamento com ruas?

- Somente desde o mar, e parecia uma mancha branca. Ainda não está terminado, né?

- Terminado ao gosto de Welby, não, mas já há uma grande parte construída e outra ainda maior exatamente marcada até a última polegada e o último grau. Raras vezes já visto a um homem que desfrute mais do que faz do que Welby, ainda que acredito que esta tarde desfrutei mais que ele durante o passeio pelo bosque. Encontrei a andorinha dos ninhos comestíveis, a Hirundo esculenta, a andorinha com a qual se faz a sopa de ninho de pássaro. Há muitas colônias com vários milhares delas nessa parte do escarpado de onde lhe vi. Nas profundas entradas há numerosos ninhos seguidos. São aves pequenas, de menos de três polegadas de comprimento, e de cor cinza, mas são autênticas andorinhas e mais velozes que as nossas. O ninho é quase branco. Espero que venha vê-las comigo amanhã.

- Naturalmente, se Deus quiser. Achou difícil atravessar o bosque?

- Bastante, por causa dos cipós. Mas há muitos javalis, e se um se agacha pode seguir sem dificuldade seu caminho. Também há outras veredas, ainda que com muito mato alta, provavelmente porque de vez em quando vem gente aqui. E os animais distam muito de ser mansos.

Jack pegou seu violino e o afinou enquanto Stephen lhe contava brevemente como eram a flora e a fauna da ilha.

- E o mesmo ocorre com os macacos de calda preénsil - disse Stephen por fim, e juntos começaram a tocar O dia de Santa Cecilia ao mesmo tempo.

Depois disso e da visita de Fielding, que foi informar ao capitão, comeram as costumeiras torradas com queijo. Depois seguiram tocando e o eco da música chegava a todos os cantos da fragata meio vazia, que ressoava de uma maneira muito peculiar.

Jack se deitou tarde e dormiu profundamente, ainda que sua maca se movia tão pouco como se tivesse estado pendurada na Torre de Londres; contudo, acordou nervoso. Certamente que qualquer homem ao comando de um barco do rei encalhado em um arrecife que tivesse que esperar vários dias para desencalhá-lo despertaria nervoso, mesmo quando os especialistas lhe dissessem que o bom tempo continuaria e tivesse a certeza de que poderia desencalhar porque nessa quinta-feira a maré subiria à mesma altura que quando encalhou e no domingo muito mais porque seria maré viva. Mas esse nervosismo era de outro tipo, era muito parecido à superstição e ao medo instintivo.

Lavar-se, barbear-se e desjejuar o tranqüilizou um pouco; e um esperançoso percurso pela bodega com o carpinteiro (graças aos reparos que fizera o senhor Hadley as bombas só tinham que funcionar quinze minutos em cada guarda) acabou de sossegar-lhe, e depois de visitar o acampamento de Welby quase voltava a ser ele mesmo. O acampamento, com a barreira de terra perfeita (Welby havia interpretado livremente a palavra "vala"), a barraca para as provisões no centro, as ordenadas ruas e o poço, que já tinha três pés e meio de água, era digno de se ver; e também o eram os satisfeitos infantes da marinha, que sabiam que tinham assombrado aos marinheiros e pela primeira vez tiveram a oportunidade de demostrar que eram peritos em seu trabalho.

Quando a maré baixou, Jack foi com uma pequena brigada para marcar os canhões com balizas. Esses homens eram os poucos nadadores da fragata e três ou quatro eram também muito bons mergulhadores. Enquanto mergulhava com eles notou algo estranho na água. Estava muito quente para ser refrescante e bastante suja. Marcaram com balizas os canhões sem dificuldade, mas Jack voltou a ficar nervoso. Durante o almoço disse a Stephen que esperava que a fragata saísse do arrecife na quinta-feira sem arrastar-se pela parte restante e quase com segurança sairia no domingo, porque tanto o sol como a lua nova fariam a maré subir ao máximo, pelo menos meia braça mais, formando a maré viva; contudo, deixou o vinho e a sobremesa para ir ao convés para escrutinar o céu e o mar.

Não lhe agradaram. A maré estava muito baixa e a superfície do mar de uma forma estranha, dando puxões. O céu estava parcialmente coberto de nuvens baixas. Não havia vento e as rochas tinham um odor muito desagradável debaixo desse asfixiante calor. Pelo lado da fragata passou lentamente um grande peixe de cor clara, uma espécie de tubarão que nunca vira. Observou o mar e viu que antes do mudança de maré se formava uma estranha agitação, uma marejada muito forte e repentina. Seu nervosismo aumentou, e depois de meia hora voltou-se para o oficial de derrota e ordenou:

- Senhor Warren, faça o sinal para chamar todos os oficiais e os botes, por favor. E diga aos marinheiros que se preparem para jogar a âncora pequena como antes, mas com duas correntes.

Fora do acampamento, em uma faixa de terra coberta de capim, pôde se ver como um grupo de homens abandonava uma partida de críquete e os jogadores corriam para o cais. E as ondas já lançavam grandes jorros de espuma sobre a costa.

- Senhor Warren - disse de novo -, já lhe perguntei se tinha um barômetro, né?

- Sim, senhor, e lhe respondi que o dera ao doutor Graham em Plymouth para que o ajustasse. Naturalmente, ainda está lá.

Jack assentiu com a cabeça e começou a passear de um lado para o outro olhando para o leste a cada vez que girava, pois não só as ondas vinham dali, como no horizonte e na parte do céu que estava dez graus acima dele apareceu um resplendor pardo avermelhado que raras vezes vira.

- Senhor Fielding, o doutor está em terra? - inquiriu tão logo como o imediato subiu a bordo.

- Sim, senhor. Acredita que o senhor vai dar um passeio com ele pelo bosque e que talvez subam ao alto do escarpado. Tem um rolo de um cabo forte e leve e o acompanha Sorley, um escalador de uma ilha escocesa.

- Eu temo que hoje não poderei. Ordene a todos os marinheiros que voltem a aliviar o peso da fragata levando as caronadas, as armas leves, as munições e tudo o que o contador, o carpinteiro, o condestável, o armeiro, o veleiro e o contramestre considerem mais importante. Depois devem levar suas bolsas e baús e todas as posses dos oficiais. E diga ao doutor que venha a bordo para recolher suas coisas e o estojo de remédios.

O doutor Maturin chegou no primeiro bote que regressou. Fazia apenas meia hora que a maré começara a subir, mas as ondas já eram muito altas e a longos intervalos chocavam-se solenemente contra as rochas que fechavam a baía pelo oeste. Na cabine encontrou Jack e seu escrevente recolhendo a documentação da fragata, os registros e os livros de sinais, os enormes livros que às vezes continham os mais importantes segredos dos barcos de guerra.

- Senhor Butcher, pelo amor de Deus, não esqueçamos as medições de Humboldt. Estão nesse armário. Empacote-as junto com minhas observações hidrográficas.

- Vou pegá-las imediatamente, senhor - disse Butcher, que tinha padecido centenas de horas fazendo cuidadosas medições e apreciava o valor que realmente tinham.

- Meu amigo, o que há? - perguntou Stephen quando o escrevente se foi cambaleando com os papéis apertados contra o peito.

- Não estou certo - respondeu Jack -, mas talvez ocorra o mesmo que no dia de Santa Cecilia:

 

Quando a espantosa última hora

devore este decadente espetáculo,

o trompete soará muito alto,

os mortos viverão e os vivos morrerão

e a música o céu enfurecerá.

 

Depois de um breve silêncio, disse:

- Olhe para o leste.

Ambos olharam pelo janelão de popa e viram que debaixo do resplendor pardo avermelhado o céu ficara de cor púrpura.

- Recordo ter visto o céu assim somente uma vez - continuou Jack depois de ficar pensativo durante uma comprida pausa -, quando estávamos no Pacífico Sul e nos dirigíamos para as ilhas Marquesas. Você quase não o viu porque caíu no castelo quando o barco deu um solavanco e bateu a cabeça num canhão. Houve uma tremenda tempestade, a tempestade que fez a Norfolk naufragar. Tampouco me gosta esta repentina marejada. Por isso estou tirando tudo o que posso da fragata e peço que leve para terra tudo o que tenha de valor, todos os xaropes, os comprimidos e as serras. Caso esteja errado, não importa muito. Só poderão me dizer que pareço uma velha.

Estava muito claro que nenhum dos tripulantes da fragata ia dizer que o capitão parecia uma velha, já que todos eram de sua mesma opinião. E de seu total convencimento se contagiaram os oficiais, os homens do interior e os infantes da marinha, que chegaram na primeira viagem; ao princípio se sentiram incomodados por ter que interromper a partida de críquete, mas agora estavam silenciosos e olhavam ansiosamente para o leste. Os botes iam de um lado para o outro a grande velocidade, mas por mais rápido que remassem, em cada viagem viam que as ondas chegavam a um lugar mais alto na praia porque eram mais fortes a medida que aumentava a maré. E o que era ainda pior, como a proa da fragata estava orientada em contrária à direção das ondas, não tinha proteção, e cada vez era mais perigoso que os botes se abordassem com ela, assim que tinham que descer ou mesmo jogar os baús e as provisões desde as bordas de proa.

Foi nesse momento quando Jack fez o imediato comparecer a sua cabine e disse:

- Senhor Fielding, todos os oficiais devem estar preparados para levar a sua brigada para terra quando dê a ordem, caso isto evolua como eu temo. Não se dará a ordem "Abandonem o barco" nem terá gritos nem agitação. Todos descerão para terra na devida ordem.

Durante quase uma hora mais as ondas seguiram aumentando sem que soprasse o vento, enquanto o eco do solene impacto chegava das rochas. Ao final dessa hora a fragata começou a deslizar sobre seu leito. Jack já havia dado a ordem e a fragata já estava quase vazia. Só restavam a bordo quatro dos homens que fariam a última viagem em um bote: o capitão, seu despenseiro, o sentinela que vigiava o paiol do rum e um marinheiro que não estava muito bem da cabeça. A cor púrpura se estendera por mais da metade do céu e o resplendor pardo avermelhado por quase toda a parte restante e chegava até alguns pontos do horizonte. Da escuridão que envolvia a popa chegavam trovões e o reflexo dos raios que caiam do céu ao leste. Então uma branca rajada de vento passou roçando o mar com um uivo. Um minuto antes o ar estava quieto e agora o vento soprava com tal força que fez saltar a espuma para o ar e cortou a respiração e nublou a vista dos homens. O bote, cheio até os topes com o último carregamento, estava engatado ao pescante de proa, simplesmente enganchado, e Fielding gritou com todas suas forças:

- Venha, senhor! Vingue, por Deus!

Jack se encontrava na escada do castelo de popa com os outros.

- Vão para a proa - ordenou antes de descer para a cabine para revistá-la.

Comprovou que não havia ninguém e depois de dar uma última espiada, correu para a proa da fragata e saltou no bote quando as ondas subiam até a altura da borda. No momento em que Bonden e o primeiro remador desprenderam o croque, o bote deu um solavanco, pôs a proa em direção contrária ao terrível vento e começou a balançar e a cabecear violentamente. Ao longe Jack viu como o cúter grande recebia um golpe do mar, virava e depois dava várias voltas entre as letais ondas. Antes que o bote estivesse na metade de caminho da costa, o vento trouxe a chuva, uma negra massa de cálida chuva que caiu com violência. Sentiam os ensurdecedores trovões justo acima de suas cabeças e estavam rodeados de relâmpagos.

- Todos para trás! - gritou Bonden em meio do espantoso ruído. - Retroceder, por Deus, retroceder!

O pesada bote subiu e subiu, avançou velozmente para a praia e parou em uma parte alta entre a densa espuma. Todos os tripulantes estavam alinhados ali, e os que puderam pegá-la por algum lugar a arrastaram para cima pela areia e depois, dando puxões, a levaram além da marca da maré, que já não podia ser vista.

Jack tinha notado amiúde, e notava agora outra vez, que em casos de emergência os homens pareciam esquecer o medo, a dor e a fadiga. Havia tanto ruído e perigo e a ordem natural estava subvertida de tal modo que esse era um caso de emergência comparável ao combate penol a penol entabulado por toda a frota. Enquanto subiam em fila pela escorregadia ladeira sob uma chuva incrível, levando a carga nas custas, as árvores que delimitavam o bosque se puseram de cor verde-azulado e os relâmpagos voltaram a sair deles em direção ao céu com um som sibilante. Inclinou-se para o suboficial e lhe gritou ao ouvido:

- Cuide de Charlie!

O marinheiro meio louco estava chorando e esfregando os olhos com os nós dos dedos; parecia que ia perder a razão por completo.

- Sim, senhor - disse o suboficial, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. - Eu o trocarei quando estivermos abrigados.

Quando chegaram em cima, o embate do vento diminuiu porque estavam ao abrigo das árvores, das agitadas árvores. Através da pouca luz que havia (ainda era de dia) viram que as barracas se mantinham de pé. Uma espessa mistura de água e barro transbordava as valas feitas por Welby e atravessava o terreno coberto de grama situado abaixo da saída, mas o acampamento não se inundara, e quando Jack chegou a sua tenda o solo ainda estava bastante firme.

Mas não notou isso nem que estava resguardado da chuva, já que Fielding lhe informou que dezessete tripulantes do cúter haviam desaparecido e seis estavam muito feridos. Ademais, um marinheiro fora atingido por um raio e tiveram que dizer a Edward que a pinaça não tinha nenhuma esperança de se salvar. Até depois de um indefinido período de tempo, quando estava sentado com Stephen ouvindo o forte tamborilo da chuva, que se convertera em algo habitual para ele, e só chamavam sua atenção os trovões e relâmpagos mais impressionantes, não notou que a terra sob seus pés estava seca, nem que seu baú e suas outras posses se achavam colocados sobre cavaletes, nem que seus cronômetros, guardados em seus estojos, estavam metidos em uma bolsa.

Agora que não tinham o estímulo de uma batalha e não havia nada o que fazer, ambos estavam constrangidos pelos acontecimentos, o excesso de trabalho e o fato de escutar continuamente aquele tremendo ruído que convertia toda tentativa de comunicação em um esforço que eram incapazes de fazer. Permaneceram ali sentados tranqüilamente, assentindo com a cabeça quando se ouvia algum trovão terrível ou um impacto no bosque próximo, mas depois desse ruído Jack se esforçava para escutar os horríveis baques da fragata contra o arrecife.

Não conseguia. O ruído geral era muito forte para poder ouvir mesmo um bombardeio a essa distância. De vez em quando fechava os olhos, baixava a cabeça e dormia. Uma vez despertou em torno das três da madrugada e notou um novo ruído entre o estrépito que envolvia tudo, um ruído parecido ao de um torrente. E quando fazia um tempo que o estava escutando, no momento em que os relâmpagos inundaram a tenda de uma luz quase contínua, tão viva e duradoura que às vezes permitia ver Stephen passando as contas do rosário, apareceu outro espantoso ruído, mas não era contínuo senão que durou quatro ou cinco minutos.

- Que foi isso? - gritou.

- Um desprendimento de terra, meu amigo.

Voltaram a sentir sono e um profundo cansaço, mas durante um bom tempo dessa noite ruidosa e iluminada pelos relâmpagos Stephen não dormiu realmente. Ainda que em ocasiões seu pensamento vagava de tal maneira que sonhava acordado, amiúde pensava no tratado de Prabang. A cópia de Edwards se encontrava agora no estojo de remédios do doutor Maturin, que era forrado de metal, porque esse era o lugar mais seco e seguro no acampamento. A carta adjunta era em grande medida como Stephen esperava, ainda que era mais comprida, de tom mais veemente, muito menos elegante e refletia uma aversão pelo jovem Edwards que o surpreendeu. Como não revelava nem ao menos por alusão a função que ele desempenhava, pois o enviado não mencionara nenhuma informação, a carta se entregaria como estava, ainda que às vezes tinha a tentação de fazê-la parecer absurda para o bem de Edwards, acrescentando dois ou três nomes mais à lista de quem tinha conspirado para diminuir sua importância, fazer ainda mais difícil sua tarefa e tirar-lhe o mérito que tinha pelo que conseguira. Mas naquele contexto não era possível fazer uma coisa assim, e ainda que o fosse não era necessário, porque, como comprovou depois de uma breve reflexão a lista era tão longa que não podia alcançar seu objetivo, era o produto de uma mente transtornada.

O tufão terminou pouco depois do amanhecer, a chuva se deslocou para o oeste e deixou atrás de si o céu tão limpo que quando Jack despertou achou que aquela luz era um prolongado relâmpago. Havia muito menos vento, mas o volume do ruído era muito maior, em parte porque as violentas ondas já não estavam temperadas pela copiosa chuva e em parte porque a terra desprendida detinha a água da torrente que saía do bosque e descia pelo que antes era o terreno triangular e a fazia cair em uma série de pequenas cascatas. O disforme de árvores, capim e terra havia desviado em parte a torrente do acampamento, que só perdera o canto sudeste, mas o deslocara para a parte da ladeira coberta de grama que ficava acima do cais. Essa parte da ladeira desaparecera e o cais estava completamente coberto de terra. O bote fora arrastado para o mar e destroçado, mas o cúter pequeno e vários paus ainda permaneciam ali, entre a confusão de árvores e arbustos arrancados pela raiz que havia de ambos os lados da desembocadura da torrente.

Jack saiu devagar da tenda, pois Stephen adormecera em uma das voltas que dava. Olhou para o céu claro e depois além das brancas águas, para o arrecife. A fragata não estava, naturalmente, mas percorreu com a vista a costa da ilha até o extremo ocidental com a esperança de que a âncora a houvesse detido ali se tivesse chegado às águas profundas sem muitos danos. Era uma esperança vã, quase não acariciada.

Alguns homens caminhavam de um lado para o outro do campo, falando em voz baixa ou em silêncio. Jack achou que estavam impressionados mas contentes por estarem vivos. Fielding e Warren estavam entre eles e olhavam para o oeste com uma luneta de bolso.

- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou-lhes. - Que vêem?

- Bom dia, senhor - respondeu Fielding, alisando seu cabelo com a mão. - Acreditamos que houve um terrível naufrágio.

Então deu a luneta a Jack, que depois de olhar por ela um momento disse:

- Vamos ver.

Desceram pela destruída ladeira, fumegante pelo sol, e depois atravessaram a confusão de árvores caídas que flanqueavam a torrente e entesourava o cúter e os paus. Avançaram por uma praia de areia firme onde o nível do mar era baixo e havia muitos cocos, provavelmente de Bornéu, e muitos macacos afogados, indubtavelmente da ilha. Vários homens uniram-se ao grupo: Richardson, o contramestre, o carpinteiro, todos os guardas-marinhas e muitos marinheiros. O capitão caminhava na frente com o imediato, que sussurrou:

- Senhor, sinto ter que dizer-lhe que a tenda que se desprendeu na quina sudeste era onde estava armazenada a pólvora.

- Ah, foi? Meu Deus! E não restou nada?

- Não comprovei ainda, senhor. É possível que se hajam posto à parte alguns barris porque continham pólvora estragada, mas não serão muitos.

- Confiemos em que haja alguns.

Seguiram andando sem falar durante um tempo. O dia era luminoso e as grandes ondas chocavam-se a sua esquerda, formando amplas capas de espuma que subiam muito rápido para a praia, ainda que não tão alto como durante a noite, pois a marca da água estava no interior do bosque e as algas pendiam das árvores da margem.

- Acho que tinha razão sobre o naufrágio - disse Jack por fim, e ambos caminharam com mais rapidez enquanto suas alongadas sombras se projetavam sobre a praia diante deles. - Sim, sim - continuou enquanto observava o costado de um barco que lhe era familiar, o costado de estibordo da fragata da proa até a metade do castelo.

Aproximadamente a quarta parte da fragata se encontrava ali, na areia, e ainda que os barraganetes{6} estavam enterrados, o restante estava fora, sofrera muito poucos danos e ainda conservava a pintura.

- Deve ter se partido por onde as varengas se unem à quilha - disse depois de refletir durante um longo tempo.

Quando os outros chegaram ficaram olhando o pedaço da fragata silenciosos, em sinal de respeito. Por fim o carpinteiro comentou:

- Essas varengas não eram boas, senhor, e tampouco as balizas e os outros.

- Acho que tem razão, senhor Hadley - disse Jack. - Mas como vê, há muita madeira boa, sem dúvida suficiente para construir uma escuna de tamanho moderado.

- Oh, sim, senhor! - exclamou Hadley. - Há madeira de sobra.

- Então, companheiros de tripulação, construamos uma tão rápido como possamos! - propôs Jack, sorrindo para seus homens.

 

 

 


{1} Arrastraculo: Mar. Vela pequena aberta embaixo da espicha.
{2} Bita: Mar. poste do barco usado para amarrá-lo ao cais.
{3} Vela de cuchillo: é a que envergada em nervuras ou perchas colocadas no plano longitudinal do navio.
{4} Menor primata do mundo mede entre 6 cm e 9 cm de altura.
{5} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{6} Barraganete - mar. Última peça alta da roda-de-proa.

 

 

                                                   Patrick O brian         

 

 

 

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