Biblio "SEBO"
SAMIRA E SAMIR
A RAPARIGA
- Está morto?
- Não te preocupes. Está tão vivo como tu e eu.
- Tens a certeza?
- Por amor de Deus. Porque haveria de estar morto?
- Se não está morto, porque não diz nada?
Daria tenta responder, mas não consegue, range os dentes, curva-se.
O comandante não sente as dores da sua mulher, espera uma resposta.
Daria não quer que as pessoas nas outras tendas a oiçam, sufoca os gritos na garganta. O sabor a sangue que sente na boca assusta-a. A sua cara fica pálida.
- Responde - insiste o comandante.
- Deixa-me em paz! - sibila Daria como uma cobra. Mal acaba de dizer estas palavras, arrepende-se, porque sente que o comandante, sentado atrás dela, se assusta, como uma criança. O comandante estremece, encolhe-se, agarra os joelhos com os braços, baixa o olhar e cala-se.
Daria não gosta de perder a paciência e de se zangar com o marido. Vira-se para ele e sorri, apesar das dores que sente.
- Tens que ter paciência. Deus é grande, ele resolverá tudo. - Daria fala baixinho. Porque aquilo que diz é importante. Porque mais ninguém a deve ouvir. Apenas o comandante.
O comandante ergue o olhar, volta a baixá-lo. Engole em seco. Solta os braços, faz desenhos com o dedo no chão de terra batida. Desenhos invisíveis.
- O meu filho vai chamar-se Samir - afirma, com um sorriso. Um sorriso triste e ao mesmo tempo agradecido, que apenas Daria conhece. E antes dela, a falecida mãe do comandante conhecia. Não é o sorriso de um homem, é o sorriso de um rapazinho. O comandante trouxe-o da sua infância, dos tempos que recorda como antigamente, até hoje, para a sua vida como homem.
O antigamente há muito que está perdido. “O comandante é um guerreiro, é nosso protector, é invencível”, comentam as pessoas, baixam o olhar, olham em redor, e quando o comandante não está por perto, acrescentam: “Só há uma dor que ele não suporta. A dor provocada pela raiva da sua mulher, quando se zanga com ele.”
Daria sabe que é verdade. Sabe que sem o seu amor, de que o comandante tanto precisa, ele morreria. E é isso que Daria teme. Teme a morte do marido e a sensação de culpa. Daria dá-lhe tudo de que ele precisa para ser forte, para ser um homem honesto e devoto, um comandante inteligente e justo, para poder liderar os seus homens, proteger o seu povo e ser um pai bondoso. Daria dá-lhe aquilo de que ele precisa, para ele poder protegê-la.
- Samir é um nome bonito - responde, curva-se e volta a endireitar-se. As suas costas são como um deserto e os seus músculos dunas que o vento transporta de um lugar para o outro.
O comandante escuta todas as palavras de Daria. Aquelas que ela diz e as que não diz.
Daria está de cócoras, não vê nada, apenas as chamas e o tacho com água a ferver. As chamas conversam com ela, murmuram e praguejam. Daria responde. As bolhas de água são atrevidas e corajosas, saltam do tacho. Daria apanha algumas no ar. Outras saltam para as chamas.
- Bolhas estúpidas - murmura, falando consigo própria e com a água no tacho. - Bolhas estúpidas que saltam para as chamas para morrerem. Estúpidas como os homens, como os guerreiros, como o meu próprio marido, o comandante, que vai para a guerra só para matar, e para um dia ser morto.
No início, o comandante julgara que Daria o enganava.
Quando, após vários dias na guerra, regressara e ouvira vozes no interior da tenda, pensara que durante a sua ausência a sua mulher recebera alguém. Saltara do cavalo, aproximara-se sorrateiramente da tenda, sacara o punhal e entrara de rompante. Qual o seu espanto ao descobrir que a sua mulher estava sozinha. “Não sabia que falas a linguagem da água”, dissera, sentando-se ao lado de Daria e olhando alternadamente para ela e para a água.
Por mais que se esforçasse, o comandante nunca conseguiu compreender as palavras que Daria balbucia. No início, considerara a hipótese de devolvê-la ao pai, pois julgara que era louca. Afinal, nenhuma pessoa normal fala com a água. Depois, chegara à conclusão de que mais valia a sua mulher falar com a água do que com outros homens.
Devagar, muito devagar, como antigamente quando era rapaz e aproximara pela primeira vez a mão das chamas quentes do fogo, como se a sua mão fosse uma cobra que se acerca sorrateiramente, o comandante estende a mão na direcção das costas de Daria. Porém, antes de lhe tocar, ela volta a levantar a voz e fala com a água e as bolhas. O comandante retira a mão, como uma cobra que recua, assustada. Daria geme e suspira, range os dentes com tanta força que o comandante consegue ouvi-los a estalar. Curva-se, agarra-se à sua grande barriga, põe as mãos entre as pernas, sente a cabeça do filho, as suas mãos escorregam.
O comandante pega no pão fresco e quente ao seu lado, parte um pedaço, morde-o e mastiga. Não tem fome, mas precisa de se acalmar. A sua mulher, emprenhada, retirara o pão do forno antes de se ter colocado de cócoras para tirar o filho do corpo. “O pão pode queimar-se, a farinha é cara”, afirmara, agachando-se. “O meu filho já não quer estar na minha barriga, está a querer sair do meu corpo.” Esgravatara o chão e afastara a terra, para formar uma pequena cova e ter assim espaço por baixo do corpo.
- Tu és como a minha mãe - afirma o comandante, enquanto mastiga o pão.
- Eu sou como a mãe do comandante - repete Daria.
- Não há dia que passe sem que tires alguma coisa de algum lugar. As mulheres estão sempre a tirar todo o tipo de coisas de algum lugar. Hoje começaste por tirar os peixes da água, depois o espinho da minha mão, a seguir o pão do forno e, daqui a pouco, tirarás o meu filho do teu corpo. - O comandante vê as costas da mulher e diz algo, que nunca antes lhe dissera: - A única coisa que nunca poderás tirar de dentro de mim é o desejo que tenho por ti.
- A minha mãe disse-me que os homens só respeitam as suas mulheres enquanto elas tiram rapazes do corpo - afirma Daria, enquanto limpa o suor da testa.
- É verdade. Mas também é verdade que te desejei muito antes de te ter ido buscar ao teu pai. Mesmo antes de me terem falado de ti, antes de ter mergulhado a cara no teu cabelo preto e de ter sentido o teu cheiro. - O comandante passa os dedos pelas costas de Daria. - O meu desejo por ti nasceu e cresceu dentro de mim, desde que ouvi o teu nome pela primeira vez. Daria, o mar, o rio.
Tudo começara no dia em que o pai lhe dera a responsabilidade pela liderança de doze dos seus homens. “A partir de hoje és comandante”, afirmara, abraçando o filho e enviando-o para a batalha. O jovem comandante, em conjunto com os seus homens, perseguira o inimigo. Uma vez disparavam uns, outra vez os outros. Por vezes dominavam uns, por vezes os outros. Tiveram medo, dúvidas, perderam a coragem, mataram. O jovem comandante atirara o seu patu sobre as cabeças dos inimigos, sacara do punhal e cortara-lhes a garganta, com um golpe rápido.
“A partir de hoje és um verdadeiro comandante”, afirmara o pai no fim dessa batalha. Abraçara-o e dera-lhe permissão para ir buscar a rapariga prometida. “Um homem só é um verdadeiro homem quando tem uma mulher. Uma mulher que primeiro lhe dá um e depois vários filhos.” Entregara-lhe um maço de notas, tecidos brilhantes, um cavalo, uma arma e tantas outras prendas para o pai da noiva e a noiva, que as pessoas tinham sussurrado: “Ela valerá tudo isso?”
“Monta o teu cavalo e vai buscar a rapariga. O nome dela é Daria.”
Daria. O corpo do rapaz estremecera, como se tivesse sido atingido por uma bala.
A viagem até às terras altas, onde vive a noiva, estende-se por quatro dias e quatro noites. O jovem comandante, os seus homens e o pai vestem as suas melhores roupas. Quando chegam ao destino reúnem-se, cada um com a sua arma, com o pai de Daria, os seus homens e as suas armas, num relvado, perto da tenda na qual Daria aguarda. Falam da guerra, do inimigo, dos amigos, dos aliados, falam dos vizinhos, disto e daquilo, só não falam de Daria, do seu preço e do casamento. As mulheres entram na tenda para contemplar a rapariga.
As horas passam. Os homens conversam, as mulheres conversam, saem da tenda e comentam: “Daria é bela, mais bela que qualquer outro ser. É como uma flor. Fresca como a primeira neve nos picos das montanhas do Indocuche. Ela é um anjo. O seu nome não mente, é como a nascente efervescente de um riacho, que nasce nas rochas do pico das montanhas. Dará rapazes saudáveis ao nosso comandante.” O jovem comandante tem água na boca. O seu coração desdobra-se em cem corações. Cem corações que ameaçam rasgar-lhe o peito.
O pai do jovem comandante há muito que decidira este assunto. Sabia que Daria era a rapariga certa para o seu filho. O jovem comandante está cansado de aguardar, quer ver a noiva, tocá-la, possuí-la, tornar a rapariga uma mulher.
- Não convém pedir a mão da noiva logo após a primeira visita e as primeiras conversas - explica o pai. - Não se deve mostrar pressa neste tipo de negócios, para não fazer subir o preço da noiva. A família da noiva não deve pensar que o pai do noivo tem urgência em casar o filho. Podem julgar que o noivo apenas tem aquela rapariga à escolha.
- Eu não tenho outra escolha - responde o jovem comandante.
- A família da rapariga pode pensar que tens algum problema. Pode pensar que te falta alguma coisa.
- Não me falta nada.
Os homens riem-se às gargalhadas, dão palmadas nas coxas.
- Não me falta mesmo nada - repete o jovem comandante.
- Por enquanto não passaste nenhuma noite com uma mulher. Depois veremos se te falta alguma coisa! - exclamam os homens e riem-se cada vez mais.
Porém, quando reparam que o pai não se ri, calam-se.
Ao anoitecer, as mulheres e a mãe do jovem comandante regressam à tenda onde se encontram Daria e a mãe. O pai, o filho e os seus homens juntam-se com o pai de Daria e pedem-lhe para entregar a filha ao jovem comandante. Os homens conversam, negoceiam o preço da noiva, fazem perguntas, dão respostas, falam. O jovem comandante aguarda e espera, espera e aguarda. Quer a sua Daria. Agora. Sente-se doente, tem febre, o sangue palpita-lhe na cabeça. Todas as histórias que já ouviu deixam de ter início, deixam de ter fim. Os homens vêem a cara do jovem comandante, acotovelam-se e riem-se. Um deles aproxima-se e fala baixinho, tapando a boca com a mão, para que apenas o seu novo líder o possa ouvir:
- Está quase. Falta pouco para veres a tua bela noiva!
Pequenas pérolas de suor formam-se na testa do jovem comandante e descem pelas suas costas. Deseja a mulher do mar, quer tocá-la. Daria, que é como a água fresca, como o murmúrio dos riachos que nascem nas rochas do pico da montanha e que se transformam em rios selvagens nos vales. Rios que arrastam tudo e todos. Daria, o rio no qual irá mergulhar, afundar-se, desaparecer.
- Filho! - exclama o pai. - O que se passa contigo? Mexe-te, a noiva está à tua espera.
As mulheres tocam os tambores, batem palmas, trauteiam melodias, cantam. Os homens erguem-se, amparam o líder, acompanham-no até à tenda da noiva, empurram-no lá para dentro, esperam do lado de fora.
O jovem comandante senta-se ao lado da noiva. O lenço que tapa a cabeça de Daria escorrega, destapando a sua face. O comandante ousa o proibido, olha-a nos olhos. Sentado de frente para os dois, o mula recita versículos do Alcorão, canta, baloiça o corpo para a frente e para trás, levanta mil e uma questões, faz isto, faz aquilo. O pobre comandante não ouve as palavras do mula, nem vê os seus gestos. Apenas sabe que daqui a poucos instantes irá possuir aquele ser escondido por baixo do lenço.
Quando finalmente se encontra sozinho com Daria, afasta-lhe o lenço da cabeça, olha-a nos olhos, vê o seu sorriso, fala com ela. Agora que tudo é permitido, o comandante diz algo, que não pretendia dizer.
- Tenho medo de ti, tenho medo de me afogar. Vou-me afogar em ti, morrer, e tu ficarás sozinha.
Daria ri-se, ergue o olhar, olha de frente nos olhos do comandante.
- Se morreres afogado dentro de mim, não estarei sozinha.
O comandante permanece silencioso. As palavras de Daria soam como os murmúrios de um riacho.
- Se te afogares dentro de mim, não estarei sozinha, porque tu e eu seremos um só.
O comandante toca levemente na mão de Daria, como se os seus dedos fossem as patas de uma borboleta. Uma borboleta que pousa na mão de Daria, bate as asas e volta a desaparecer.
O Verão vem e vai. O Inverno vem e vai.
O comandante tinha razão. Afunda-se, afoga-se na sua Daria. Por vezes afunda-se para sempre. Outras vezes volta a emergir.
O comandante faz algo que é proibido, permanece dentro da tenda, aguarda que Daria tire o filho do corpo. Se as pessoas soubessem disto, desprezá-los-iam, a ele e a ela. Falariam nas suas costas, diriam que Daria não é boa mulher por ter permitido que o marido ficasse na tenda. Daria sabe que é culpada.
O corpo do comandante vibra, a sua cabeça está pesada, o seu coração bate com força e a sua pele aquece. Imagens e histórias cruzam a sua mente, brincam com o seu juízo, ameaçam roubar-lhe a lucidez. Apetece-lhe parar de mastigar o pão, aproximar-se de Daria, abraçá-la por trás, segurá-la com força, encostá-la ao seu peito, sentir as suas costas.
- Quando é que ele finalmente chega? - pergunta. Daria quer responder, quer dizer ao seu marido para não se preocupar, quer dizer-lhe que ele é um homem, que tem de ser forte, que Deus é grande, que tratará de tudo. As palavras estão preparadas na sua cabeça. Daria fecha os olhos para não as perder, perde-as. O céu e a terra invertem-se. Finalmente, os seus dedos sentem o pequeno rosto húmido do filho que transportou na barriga durante meio Verão, todo o Inverno e o início da Primavera. Devagar, como se despertasse de um sono profundo, nasce vida no corpo da jovem mulher.
- O que vais fazer se não for rapaz?
- Todos os filhos primogénitos na minha família são rapazes - responde o comandante - e endireita-se. - Só terá o direito de viver se for rapaz.
Daria geme.
- Dá-me um pedaço de madeira.
O comandante levanta-se com um salto.
- Um pedaço de madeira? Para quê?
- Por amor de Deus, não perguntes! - exclama Daria. - Preciso de morder alguma coisa.
O comandante, que em condições normais é capaz de acertar ao longe no meio da testa do inimigo, não consegue ter um único pensamento claro. Tudo o que ela pede é um pedaço de madeira. O comandante cambaleia pela tenda e põe as mãos na cabeça, na esperança de que Daria não repare na sua impotência.
Daria vê tudo. A sua impotência, o seu desamparo, a sua fraqueza.
- Anda cá - articula, puxando o comandante para o chão. Pega-lhe na mão e pousa-a na sua barriga. - Empurra - pede.
A respiração de Daria acalma-se, o seu corpo descontrai-se. O comandante beija as pérolas de suor na nuca de Daria, lambe os lábios. Daria curva-se uma última vez, põe as mãos por baixo da barriga, respira com força, solta um último grito libertador e sufocado e puxa pela criança. Nos seus braços segura um ser enrugado, coberto de viscosidade e sangue. A criança encolhe as pernas e encosta os joelhos à barriga de pele transparente, agita os braços, põe as pequenas mãos na boca, treme. Daria pega na foice, submerge-a na água a ferver.
- Be-isme-Allah - diz baixinho, cortando o cordão umbilical e dando um nó com um fio que arrancou do tecido do seu vestido. Depois limpa o sangue da pele do recém-nascido e enrola-o no pano branco do pão. - Reparaste? - pergunta. - É uma rapariga.
O comandante permanece em silêncio.
O seu filho é uma rapariga.
A DECISÃO
A placenta cai do corpo de Daria com um estampido. O comandante ergue-se, calça as botas bordadas às cores, põe a arma ao ombro e sai da tenda. Lá fora, olha para as estrelas e limpa as lágrimas da face, agradecendo a Deus por Daria não as ver.
Dois pássaros pairam no céu. O comandante aguça o olhar, empunha a arma, engatilha-a, aponta. Dentro da tenda, Daria ouve o estalido seco da arma. Murmura baixo, tão baixinho que apenas a água e o recém-nascido a ouvem:
- Ele queria um rapaz e agora tem lágrimas nos olhos. Mas não te preocupes - continua, mais para si própria do que para a filha. - Ele não vai disparar.
O comandante persegue os pássaros através da mira, até deixar de os ver, até desaparecerem atrás do pico da montanha. Mais tarde dirá à criança: “Os pássaros devem a vida ao teu nascimento.” Nunca lhe contará que não teria chorado, se tivesses nascido rapaz.
Monta o garanhão e afasta-se a galope, em direcção às montanhas, às suas montanhas. Lá, onde se sente mais próximo do céu e do seu Deus. Impulsiona o garanhão, até este fungar, até a sua crina comprida flutuar ao vento como uma bandeira e enterrar os cascos no solo, sem que nenhuma das quatro pernas toque no chão. Tudo à sua volta se desvanece, as tendas dos nómadas, os animais, as crianças, os arbustos, as rochas, o riacho. O mundo transforma-se numa mistura de cores, do barulho dos cascos, do fungar do garanhão e da respiração do comandante, que passa a voar pelas saudações dos homens e dos rapazes.
- Saiam, komandan. Zende bashi. Koja miri? Boa noite, comandante. Viva. Para onde vai?
O comandante não responde, não quer que as pessoas vejam as suas lágrimas. Inclina-se sobre o pescoço do garanhão e agarra-se à crina. O comandante e o garanhão, colados um ao outro, formam um só. Meio animal, meio homem.
Apenas abranda quando alcança o fim da planície, o sopé da montanha mais alta. Onde as terras altas começam e acabam.
As pessoas lá em baixo na aldeia, no vale, aquelas que sabem mais sobre Deus e o mundo que os habitantes das montanhas, afirmam que as montanhas que circundam e protegem as terras altas têm sete mil metros de altura. E a planície quatro mil. O comandante não sabe quanto são sete mil ou quatro mil metros, apenas sabe que são as montanhas mais altas que já escalou e as mais lindas que já viu. As pessoas do vale e do Sul do país apelidam o comandante e a sua gente de “povo das montanhas”, consideram-no um povo estúpido. O comandante tem consciência de que não sabe muito acerca do mundo, que pouco viu. Mas sabe que este pedaço de terra, a sua terra, foi criada por Deus. As pessoas do vale dizem que o comandante e a sua estirpe são perigosos, que pertencem ao povo dos Hazara. “São ignorantes, selvagens, não têm leis nem conhecimentos, nem amigos, nem inimigos”, afirmam.
- Sabemos lutar - defende-se o comandante. - Saber lutar também é uma forma de conhecimento. Se fôssemos estúpidos, o inimigo já teria chegado às terras altas, já nos teria assaltado, saqueado, violado as nossas mulheres e filhas e ferido a honra dos nossos homens. O nosso saber basta-nos. É esse saber que faz de mim o soberano das terras altas.
Tudo o que o comandante sabe foi-lhe transmitido pelo seu pai e a este pelo pai do seu pai, e poderá apenas ser transmitido ao seu primeiro filho, que tem de ser rapaz. É um saber encerrado no rochedo do comandante e dos seus antepassados.
No sopé da montanha mais alta encontra-se o rochedo, uma placa de rocha assente numa base de pedra. É aqui que o comandante se senta, se deita, dormita ao sol ou dorme à noite, quando anda nas montanhas. É o seu rochedo. Aquele que ninguém jamais poderá pisar.
“Este é o rochedo de Deus”, explicara-lhe o pai, quando ele ainda era rapaz. “É um rochedo sagrado, uma dádiva do nosso Senhor para homens como tu e eu. Homens que nasceram primogénitos. Filhos primogénitos de filhos primogénitos. Como tu e como eu, como o meu pai e os pais dos nossos pais.” O pai falara baixinho. Porque aquilo que estava a dizer era importante. “Todos nós recebemos a nossa força, o nosso poder, o nosso saber deste rochedo. É a ele que devemos a nossa invencibilidade e o facto de tu e eu e os pais dos nossos pais serem soberanos destas terras. Desde sempre que o meu pai me trouxe para cá. Depois, quando tombou na guerra e se tornou mártir, shahid, quando me deixou sozinho neste mundo tão cruel e tão pouco cruel, o rochedo ficou para mim. E agora, meu filho, agora este rochedo será teu. Tu também vais trazer para cá o teu primeiro filho, um rapaz que Deus te dará, e vais transmitir-lhe o teu saber sobre a vida e o mundo. Tu e o teu filho vão honrar o nosso nome e reinar sobre as terras altas e este povo. O rochedo é o portão para este mundo e para todos os outros. Os que existem e os que não existem. Daqui de cima os teus olhos conseguem ver tudo aquilo que devem ver e aquilo que querem ver.”
“Não é verdade”, contestara o rapaz. “Não consigo ver as pessoas nas tendas, nem as do vale e do resto do mundo.”
“Calma”, respondera o pai. “Vais vê-las. Fecha os olhos, confia no rochedo e entrega-te à sua força divina. Ele faz com que vejas tudo aquilo que desejas ver e também aquilo que não desejas ver.” O pai ajoelhara-se perante o filho, agarrara-o pelos braços, olhara-o nos olhos e dissera: “Tu já vês isso tudo, mas não sabes.”
Vários anos passaram desde esse dia. Sempre que o jovem comandante regressara ao rochedo, fechara os olhos, mas tudo o que vira eram as pedras e as rochas à sua volta, o céu azul, os pássaros e as montanhas e os vales infinitos.
Há quem diga que desde que o comandante visita o rochedo se tornou um santo, que encerra a força desse rochedo sagrado dentro de si. “Matou inúmeros homens, libertando-os da existência maligna e muitos dos seus próprios guerreiros tiveram uma morte heróica e tornaram-se shabid”, comentam. “Os espíritos desses mortos aproximam-se dele no rochedo, falam com ele e contam-lhe aquilo que sabem e vêem. É essa a razão de toda a força e do poder do comandante.”
Daria não está de acordo.
O comandante não é nem um santo, nem os mortos comunicam com ele.
O próprio comandante não se importa que se diga nem uma coisa nem outra.
- Quanto mais se fala de um homem, mais importante ele é - afirma.
As pessoas admiram a coragem e a valentia do jovem comandante que, tal como o seu pai e o pai do seu pai, os protege da guerra, a eles a às suas famílias. Ninguém sabe exactamente quantos russos, talibas e outros inimigos da pátria matou, mas todos sabem que foram muitos. Muitos mesmo. As mulheres e os homens reúnem-se à volta das fogueiras nas suas tendas e comentam: “É graças ao comandante que não temos fome, que vivemos com paz e sossego, apesar de todo o resto do país estar em guerra.”
O comandante olha para o infinito, sabe que tudo é como sempre foi. Que nada é como sempre foi. As pessoas falarão dele. “O primeiro filho do comandante não é um rapaz, é rapariga”, comentarão. “O comandante não é um homem, não é um verdadeiro homem.”
O comandante nunca perguntara ao pai o que aconteceria se outra pessoa pisasse o rochedo, para além dele e do filho. Mas não precisa de perguntar para saber que aconteceria uma desgraça, uma grande desgraça. Até hoje, nunca infringira as regras do rochedo, mas a grande desgraça acontecera. O primeiro filho, que a sua mulher tirara do corpo, era uma rapariga.
Daria sabe que a sua obrigação perante o comandante é a de tirar um rapaz do corpo. Está sentada em frente ao fogo e observa as bolhas que saltam do tacho para as chamas.
- Ele vai desprezar-me - murmura. - Perdi todo o meu valor.
Se ela tivesse tirado um rapaz do corpo, o comandante teria orgulho nela e no filho e todos poderiam constatar que o comandante é um verdadeiro homem. Não teria ido até ao rochedo, teria ficado com a mulher e o filho na tenda, ter-lhe-ia agradecido, tê-la-ia honrado e respeitado e oferecido presentes para festejar o nascimento do filho.
Daria não sabe o que o comandante pretende fazer. Conhece homens que rejeitaram as suas filhas ou até as mataram ou que procuraram outra mulher e a engravidaram, na esperança de que tirasse um rapaz do corpo. Na esperança de que as pessoas não segredassem que este ou aquele não é suficientemente homem para gerar um rapaz. Um homem só é um verdadeiro homem quando gera um rapaz. Daria conhece mulheres cujos maridos lhes bateram por não lhes terem dado rapazes e que as expulsaram de casa. Conhece mulheres sem dentes na boca, porque os maridos as esmurraram, por elas só tirarem raparigas do corpo. “Porque uma mulher que não dá um rapaz ao marido não é mulher”, tinham-lhe explicado as mulheres mais velhas. “O marido deixa de precisar dela como mulher.” Daria não compreendera. “Uma mulher que não é mulher pode utilizar a boca para satisfazer os desejos do marido”, explicaram as mulheres e olharam à volta, falando baixinho. “Os dentes incomodam, quando o homem quer satisfazer os seus desejos na boca da mulher.”
Daria engole lágrimas, apanha uma bolha que salta do tacho, salva-a da morte nas chamas.
- Senhor Deus - murmura —, protege-me a mim e à minha filha.
Olha para o feltro pesado e escuro do tecto da tenda, depois para os borregos recém-nascidos, acocorados num canto, vê a terra ao lado da cova e a placenta que já deveria ter levado lá para fora, com as moscas que se juntaram e se alimentam dela. Repara na foice com a qual cortou o cordão umbilical, no chão, apanha-a e pendura-a na viga de madeira que suporta o tecto da tenda. Inclina-se sobre a filha, deitada na pequena rede, e olha para ela.
- Em vez de teres nascido rapariga, mais valia teres nascido morta.
A criança enruga a testa, como se estivesse a pensar no significado das palavras da mulher inclinada sobre ela. Como se soubesse que as palavras da mãe não querem dizer nada de bom.
Daria passa a mão pela cabeça da filha e olha para ela, sem sorrir, sem qualquer tipo de emoção, sem amor.
- Agora que nasceste rapariga, só Deus sabe o que o teu pai vai fazer connosco.
Pega na filha e retira a foice da viga, em silêncio. A criança fecha os olhos, volta a abri-los, estende o braço e toca na face da mãe com os dedos. É um toque leve, como se uma borboleta pousasse na face de Daria, batesse as asas e voltasse a voar. Um toque leve, mas pesado, que retira qualquer razão de ser ao medo e às dúvidas de Daria, aos seus pensamentos e a tudo e a todos. Um toque que transforma o coração de Daria em manteiga e o derrete. Devagar, para não assustar a criança.
Daria repara na foice que segura na mão, não compreende por que razão a segura, deita-a para o chão. A foice cai no buraco onde se encontra a placenta e afugenta as moscas.
Uma brisa suave invade a tenda, envolve Daria e dá-lhe asas. Daria abandona o seu corpo, voa para longe, mergulha no primeiro dos sete lagos atrás das montanhas, sobe, voa alto. O ontem e o amanhã não importam. A vida está bem, assim como está.
- Agora que te tenho a ti - diz para a criança —, que importa aquilo que as pessoas dizem? O que importa o rochedo? O teu pai que vá até ao rochedo as vezes que quiser. Não te preocupes. - Daria fala com uma voz suave, com uma voz que apenas a filha conhece. Pousa as palavras nas asas que o vento lhe deu e envia-as para o rochedo, onde se encontra o comandante.
O comandante sabe que até hoje foi sempre o filho primogénito a ocupar o lugar do pai. Sempre foi assim. E agora? Quando ele próprio já não puder vir até ao rochedo, quem virá depois dele? A sua filha? Uma rapariga? Uma mulher?
Cobre a face com as mãos.
- Eu devia rebentar contigo! - exclama, olhando para o rochedo, porque não há mais ninguém por perto com quem possa falar. Encolhe os ombros. - A minha Daria fala com a água, eu falo com o rochedo - constata. Encosta a cara à pedra, dormita, sonha. Primeiro com Daria, depois com outras mulheres. Mulheres que não pertencem a nenhum homem, que não conhece, que não existem. Mulheres que não existem no mundo real, que apenas existem na sua cabeça. Uma sensação de medo apodera-se do comandante e, de repente, abre os olhos. O medo provoca-lhe tonturas, move-se como uma cobra. Uma cobra ágil e rápida, com um corpo escorregadio, que avança silenciosamente pela areia do deserto, entre as pedras e as rochas. A cobra do medo penetra-lhe no sangue, entra nas suas veias e nos seus músculos.
- Talvez sejam estes sonhos a razão pela qual o Senhor não me deu um filho, mas sim uma filha - murmura. - É pecado pensar noutras mulheres, por isso eu é que tenho a culpa de o meu filho ter nascido rapariga.
Sempre soubera que chegaria o dia em que o seu Deus o castigaria por imaginar estas mulheres. Tivera medo desse dia, mas tentara esquecer esse medo e conseguira. Vários Invernos e Verões tinham passado sem que Deus o castigasse e por isso julgara que fora perdoado. Afinal, fizera tantas boas acções. Não descansara, lutara pelo profeta, pelo Alcorão, pelo verdadeiro Islão. Libertara o seu povo, cortara a garganta ao inimigo.
O comandante pensa, cisma e questiona. Mas não obtém resposta. Pega na sua arma, salta do rochedo, monta o cavalo e parte a galope. Incentiva o garanhão com os calcanhares até o animal deitar espuma branca do focinho e o seu pêlo ficar quente e húmido.
Muito antes de Daria ouvir os cascos do garanhão, sussurra ao ouvido da filha:
- O teu pai está a chegar. Ele não te vai fazer mal, não te vai rejeitar, mas ainda não sabe disso.
O comandante entra na tenda.
- Dá-me a criança - diz, num tom de ordem.
- O que vais fazer com ela?
- A criança é minha, posso fazer com ela o que bem entender.
- Pois podes - responde Daria e entrega a filha ao comandante.
Quando o pai pega na criança com as suas grandes mãos e se prepara para sair da tenda, sem saber bem o motivo por que pegou nela e o que lhe vai fazer, os olhos escuros da pequena brilham como o rochedo do comandante. A criança boceja e abre as pequenas mãos que têm uma pele tão transparente que o comandante consegue ver os seus ossos frágeis. Pega no polegar do pai e segura-o. Os seus olhos fecham-se, a respiração acalma-se, e ela adormece profundamente.
- Samira - diz o comandante baixinho para não acordar a filha. - Será esse o teu nome. Samira.
Daria põe lenha sobre as brasas e atiça as chamas.
- Samira significa coração, riqueza interior - afirma.
- Samira também significa segredo - responde o comandante. - Vamos dar-lhe o nome de Samira, mas tratamo-la por Samir. - Baixa o olhar, desviando-o de Daria. - Para que as pessoas pensem que me deste um rapaz.
Daria fita o comandante.
- Para que as pessoas pensem que te dei um rapaz - repete e cala-se.
Durante o resto da noite e todo o dia seguinte, Daria não fala. O comandante não larga a filha e só se separa dela quando chega a hora de mamar. Ao fim do dia seguinte, Daria finalmente volta a falar, com uma voz calma e suave.
- Samir é um nome bonito - comenta e solta uma pequena gargalhada. Depois olha para o comandante. - Dá-me o meu filho-rapariga, tenho saudades dele.
O comandante obedece, pousa a filha nos braços da mãe e prepara-se para sair da tenda.
- Não vás - pede Daria. - Também tenho saudades tuas. Deita-te connosco, vamos dormir.
O AMULETO
- É ele! - exclamam as pessoas, quando o comandante passa a cavalo, com o filho-rapariga. - É o comandante e o seu filho Samir!
Quatro Verões e quatro Invernos passaram desde o nascimento de Samira. Com o tempo, algo que o comandante não compreende aconteceu, algo que não desejava. O pequeno Samir, apesar de não ser, na verdade, um rapaz, conquistou o seu coração e tornou-se parte integrante da sua vida. É tão importante para ele que já não consegue imaginar a vida sem o seu Samir.
- Porque não procuras outra mulher, uma mulher que te possa dar um rapaz? - pergunta Daria.
- Talvez ainda o faça - responde o comandante. Daria e o comandante sabem que a lei do rochedo e dos seus antepassados manda que o primeiro filho seja um rapaz. Sabem que o comandante tem que encontrar uma solução para se livrar do seu Samir.
- O que devo fazer? - pergunta. Daria não lhe responde.
- Deixemos tudo como está - propõe o comandante —, e veremos o que acontece.
Assim vão passando os Verões e os Invernos e Samira é, e continua a ser, a única filha que têm.
O comandante sabe que poderá fazer o que quiser com Samir, mas nunca conseguirá transformá-lo num rapaz, num autêntico rapaz. Sabe que pode enganar as pessoas e mentir-lhes, mas não pode fazer o mesmo com o Senhor Deus e o rochedo. Sabe que o seu pai e os pais dos seus pais geraram rapazes primogénitos e que o seu primeiro filho apenas teria o direito de viver se tivesse nascido rapaz. O comandante sabe tudo isso, mas não sabe como resolver a situação.
Os Verões e os Invernos vêm e vão, sem que o comandante tome uma decisão. Deixa as coisas como estão, na esperança de que Deus o oriente.
No Inverno, quando o frio e a neve invadem as montanhas do Indocuche, guia o seu povo para o calor do Sul. Quando a neve desaparece, trá-lo de volta às terras altas. Sempre que não está a lutar na guerra para proteger o seu povo e as suas terras, sempre que não passa a noite no rochedo para ganhar forças e sabedoria, quando não está lá em baixo na aldeia para vender uma ovelha ou peles ou trocá-las por sal ou farinha, o comandante passa o seu tempo com Samir. Cavalga com ele pelas planícies, leva-o para as montanhas, à caça ou a jogar boskashi.
- Olha para mim e vê como eu faço - diz ao filho-rapariga, quando se aproximam do riacho. - Observa bem! - O comandante entra na água. Vai para o meio do riacho e permanece imóvel, olhando fixamente a água, à espera que apareça um peixe. Mal avista um, dá-lhe uma pancada, projectando-o para fora da água. O peixe cai na margem, estrebucha e dança, até o comandante pegar nele pela cauda e bater-lhe com a cabeça numa pedra. Depois deita-o ao lado dos outros, numa fila.
- Mas eu quero vê-los dançar! - exclama Samira. Grita, guincha e atira os peixes, um depois do outro, para dentro da água. - Voltem a viver! - grita.
O comandante agarra em Samir e leva-o até à margem.
- Observa-me - diz.
Samira esperneia, dá pontapés no pai, bate-lhe, cospe nele. O comandante agarra o filho-rapariga pelos ombros.
- Precisamos dos peixes para comê-los - explica. - Os homens matam animais para eles próprios não morrerem. É a vontade de Deus.
- Não me importo com aquilo que Deus quer! - grita Samira. Atira pedras contra o pai, bate-lhe com um pau, lança-se para o chão, arranca relva, atira-a para o ar e a relva cai por cima dela. Agarra-se à areia, atira a areia ao ar, a areia volta a cair em cima dela. Provoca tanto alarido que as pessoas se aproximam para verificar o que se passa.
De repente, aparece Daria. Passa pela criança enfurecida e pelo comandante perplexo, sem olhar nem para um, nem para outro. Entra no riacho, recolhe os peixes mortos que flutuam à superfície, junta-os na saia, trá-los para a margem e dispõe-os numa fila, bem alinhados, um ao lado do outro. Depois olha para o comandante e para a filha e sorri.
- Que peixes tão bonitos - afirma.
- Mas já não dançam! - grita Samira e chora baixinho, um choro que derrete o coração.
- Não devem dançar - explica Daria, baixa-se e abre os braços para acolher a criança.
Samira abraça a mãe, encosta-se a ela e limpa as lágrimas dos olhos.
- Porque não? - pergunta.
- Porque queremos comer os peixes.
Samira acena com a cabeça.
- Eu sei. - Aponta para o pai. - Ele disse-me.
- Então também sabes porque é que eles não podem dançar e têm que morrer.
- Não, não sei.
- Tu também gostavas de apanhar peixes?
Samira acena com a cabeça.
- Quero apanhá-los, mas não quero que estejam mortos - declara.
- Eles têm que morrer - explica Daria com uma voz paciente e cheia de razão. Da razão de uma mãe. - Como queres que os ponha no espeto e na chama, se ainda estiverem vivos e estrebucharem e dançarem?
Samira encolhe os ombros.
- Man tshe midanam.
- Khob, aí está - afirma Daria. - Temos que matá-los, senão não podemos assá-los e comê-los.
- Khob - repete a criança, com a mesma entoação de voz que a mãe. - Khob. Larga-me, tenho de apanhar peixes e matá-los para serem assados e podermos comê-los.
- Bass e khalass. - Daria larga a criança e regressa à tenda.
O comandante observa a cena, sem saber como Daria consegue que a criança a compreenda. Segue-a até ao interior da tenda.
- A criança ouve-te, a mim não - comenta.
Daria retira o pão do forno. Depois olha para o comandante.
- Ela prefere seguir-te a ti que a mim. Olha para ela, a tentar apanhar peixes. Ela quer ser como tu, grande, forte e invencível.
O comandante cala-se. Não diz nada. Sai da tenda, monta o garanhão e regressa ao riacho.
Samira está dentro de água. Não vê nada à sua volta. Concentrada, como que enfeitiçada, olha fixamente para a água. Faz um esforço para não ser arrastada pela corrente. Segura-se a um ramo com uma mão, enquanto mantém a outra pronta para apanhar qualquer peixe que se aproxime. Os peixes reú-nem-se à sua volta, peixes grandes e pequenos. Acercam-se de Samira, como se quisessem mordiscar-lhe o seu pé. Mal Samira levanta a mão para apanhá-los ou para bater-lhes e expulsá-los da água, os peixes desaparecem. Samira e os peixes brincam. Os peixes divertem-se com a criança, pois sabem que o jogo não é perigoso.
Samira e os peixes estão tão concentrados neste jogo que não reparam no enorme pássaro que os sobrevoa aos círculos, lá em cima, no céu azul, aproximando-se lentamente. No momento em que Samira volta a dar uma chapada sem sucesso na água, em que mais um peixe lhe escapa, o enorme pássaro guincha, encosta as asas ao corpo e desce a pique. Apanha um peixe e volta a desaparecer.
Samira bate na água, furiosa, apanha uma pedra do leito do riacho e atira-a em direcção ao pássaro. Segue-o com o olhar e pragueja, enquanto atrás dela os cascos pesados do enorme garanhão do pai atravessam a água. Samira não tem medo do pássaro, nem se assusta com o barulho dos cascos, nem com a água que o enorme cavalo agita, molhando-a. Vira-se para o garanhão, abre os braços e o pai apanha-a. O comandante pega nela, como se estivesse a jogar boskashi, como se ela fosse a ovelha a conquistar durante o jogo. Senta-a na sela, segura-a com os seus braços fortes, incentiva o cavalo com os calcanhares e atravessa o riacho em direcção ao grande relvado, onde se encontra a sua tenda e a dos outros kutshi. Samira gosta de ver a água a espadanar, de sentir o vento nos cabelos e de ter que fechar os olhos para não deitarem lágrimas. Adora cavalgar com o pai à velocidade do vento, pela planície, e ouvir as suas gargalhadas.
- Acelera, acelera, faz com que o cavalo voe, eu quero voar! - exclama, radiante.
- Está quase a anoitecer - afirma o comandante, e decide regressar a casa. Quando chegam, salta do cavalo e apanha o filho-rapariga, que se atira para os seus braços. Mal o comandante pousa a criança no chão, Samira corre em direcção às galinhas que Daria já preparara para a noite, cobrindo-as com cestos. Samira levanta um dos cestos, libertando uma galinha, ri-se, bate palmas. Ao ver isto, Daria pega Samira pelo braço para a levar para dentro da tenda.
- Deixa-o. - O comandante pega no outro braço de Samir. - Vai, vai buscar a galinha! - diz à criança.
Daria larga a filha.
Samira faz aquilo que o pai manda, persegue a galinha de braços abertos, tenta apanhá-la. A galinha cacareja, corre, bate as asas, eriça-se e tenta picar Samira.
- O meu filho é tão bom como os outros rapazes - diz o comandante para si próprio. - Em muitos aspectos até é bem melhor - acrescenta, e, nesse instante, Samira tropeça e cai. Sem hesitar, volta a levantar-se, ignorando o joelho em sangue, e continua a perseguir a galinha.
- Por amor de Deus, diz-lhe para parar - pede Daria. - Qual é a tua ideia?
- Deixa-o - responde o comandante, sem olhar para a mulher.
Daria deixa a criança continuar.
Samira atira-se para cima da galinha, apanha-a e corre de um lado para o outro com o animal nos braços. A galinha cacareja como se estivesse à beira da morte. Não é a primeira vez que Samira persegue uma galinha, a apanha e depois tem medo e não sabe o que fazer com ela. A galinha pica-lhe a mão, o braço e a barriga.
O comandante ri-se.
- Um verdadeiro rapaz, que quer dominar o jogo do boskashi, tem de começar a treinar cedo! - exclama.
- Eu sei - responde Daria. - Um verdadeiro rapaz tem de começar a treinar cedo. Um verdadeiro rapaz.
O comandante não responde.
Daria tira o lenço da cabeça e sacode-o, como se quisesse expulsar os pensamentos negativos que se juntaram na sua mente.
- Desde quando é que apanhar galinhas é o treino certo para o jogo do boskashi? - pergunta.
O comandante não responde.
Samira corre em direcção à mãe e atira a galinha para os seus braços.
- A dor não conta! - exclama, repetindo as palavras que o pai lhe ensinou, sem as compreender. - Estou a treinar para ser um bom jogador de boskashi. Sou invencível! - grita, sem saber o que é o boskashi, nem que ninguém é invencível. Endireita o seu pequeno corpo e enche o peito. - Sou um verdadeiro rapaz - declara, sem fazer a mínima ideia daquilo que está a dizer.
Daria entra na tenda. Uma bolha salta do tacho, Daria apanha-a, salva-a da morte no fogo.
- Bolha estúpida - murmura. - Tenho medo. Tenho medo do dia em que vai ser impossível negar que a minha filha é uma rapariga. As pessoas vão dizer que o meu marido é um mentiroso. Vai perder a honra e o respeito e a minha filha e eu perderemos a sua protecção. Vai abandonar-nos, expulsar-nos, fará o que bem entender.
Durante a noite, Daria tem pesadelos horríveis. Sonha que as pessoas arrancam a roupa do corpo da filha. Que os homens cospem nela, atiram pedras contra ela, lhe batem, se apoderam dela com violência, a penetram e derramam o seu sangue. Para reconquistar a honra masculina ferida. Pois uma mulher não pode ser forte como um homem, não pode erguer-se e viver a vida de um homem. No dia seguinte, Daria menciona os pesadelos que assombram as suas noites ao comandante.
- A decisão já foi tomada - diz o comandante.
- Está na hora de tomar uma nova decisão. O que pretendes fazer no dia em que as pessoas descobrirem esta mentira?
- Não me chames mentiroso! - exclama o comandante, e lança o curto chicote boskashi pelos ares. Ergue a mão, mas não bate em Daria, monta o seu cavalo e vai até ao rochedo. Quando regressa à noite, entra na tenda e abana Daria até ela acordar.
- A culpa é tua, tiraste uma criança do corpo que não é um verdadeiro rapaz. Tu é que tens a culpa de eu não ter um verdadeiro filho, um filho que possa levar até ao rochedo. Se eu deixar de ser o soberano destas terras altas, a culpa será tua.
Daria não responde.
- Se achas que está na hora de tomar uma nova decisão, então diz-me que decisão é essa!
Daria não consegue ver os olhos do comandante na escuridão, mas sabe que o seu olhar está repleto de ódio. Afasta os cobertores, sai da tenda e senta-se na escuridão. O comandante segue-a, senta-se ao seu lado e fita-a longamente.
- Tenho medo - afirma.
- O teu medo tem uma razão de ser - responde Daria. O comandante encolhe os ombros.
- Eu não te perguntei se o meu medo tem razão de ser ou não. Quero que me digas o que devo fazer.
- Como queres que eu saiba? - pergunta Daria. - Eu só sei que em breve tens de levar o teu filho até ao rochedo, senão, as pessoas vão começar a fazer perguntas. O teu nome e a tua honra estão em risco.
O comandante bate com o punho no chão.
- Raios, tu não compreendes! - exclama. - Ela não é um verdadeiro rapaz. Se ela pisar o rochedo, acontece uma desgraça.
- Tens razão - responde Daria. - Eu não compreendo. Como é possível que uma pedra, um rochedo morto, tenha tanto poder em ti?
- Silêncio! - exclama o comandante com uma voz furiosa. - Não fales de coisas das quais não sabes nada.
Daria obedece, permanece silenciosa.
Na madrugada do dia seguinte, Daria escapa-se sorrateiramente da tenda e vai falar com Bibi-Jan, a velha parteira, a sábia, a santa.
- A paz esteja consigo. - Daria faz uma vénia e beija a mão enrugada da velha.
Bibi-Jan já vive há tantos Verões e Invernos neste mundo de Deus que ninguém sabe quantos são, nem ela própria. As pessoas acreditam e confiam nela, seguem os seus conselhos, pedem-lhe ajuda para tirar as crianças dos corpos das mulheres. Procuram-na quando estão doentes, trazem-lhe as crianças e os animais quando estão à beira da morte. Bibi-Jan está presente quando as pessoas casam e quando morrem. Antes de irem para a guerra, os homens falam com ela, para que lhes toque, os benza, os console e lhes dê coragem. Coragem para matar. Coragem para serem mortos.
- O que queres? - pergunta Bibi-Jan.
Daria não consegue falar. Baixa o olhar, não sabe como pedir ajuda a Bibi-Jan, sem lhe desvendar o seu segredo, mas Bibi-Jan adianta-se.
- Eu sei. Eu sei que estás aqui por causa da criança.
Daria estremece, assusta-se. Ouviu exactamente o que ela disse. Bibi-Jan não disse “por causa do teu filho”. Disse “por causa da criança”.
- Estás preocupada com a criança, porque o teu marido ainda não a levou até ao rochedo.
- Como sabe disso? - pergunta Daria, temendo que Bibi-Jan conheça o segredo de Samira e Samir.
- Porque o comandante não é o primeiro homem da sua família que não leva a criança até ao rochedo.
- Não sabia.
- Há muita coisa que não sabes.
- O rochedo é sagrado - afirma Daria.
Bibi-Jan cospe para o chão.
- Os homens da tua família acreditam nisso e querem que os outros também acreditem. O comandante julga que deve todo o seu poder e a sua força ao rochedo. A verdade é que ele é ignorante e que o rochedo não dá apenas felicidade e sorte a ele e à sua família.
Daria permanece em silêncio e escuta.
- Não és a primeira mulher a sofrer por causa desse rochedo. Esse pedaço de pedra morto já foi uma maldição para muitas mulheres e crianças da família do comandante. - Bibi-Jan vasculha num saco, retira qualquer coisa lá de dentro e cospe para a mão. Profere algumas palavras estranhas, que Daria não compreende, e depois olha para ela. - Até hoje nenhuma mulher teve a coragem de fazer fosse o que fosse contra o rochedo dos homens.
Daria engole em seco, não sabe o que dizer. Fica calada e pensa, pensa e fica calada.
- Estou disposta a fazer alguma coisa. Diga-me o que devo fazer.
- Sabia que irias ter coragem.
- Não tenho coragem - responde Daria. - Tenho medo. Mas não vejo outra hipótese de proteger a minha vida e a da criança.
- Estás a tomar a decisão certa. Pega neste amuleto, põe o ta-vis à volta do pescoço. Vai dar-te forças e indicar-te o caminho para quebrares o feitiço do rochedo. Quando tiveres vencido o rochedo, põe o amuleto à volta do pescoço do teu Samir e explica-lhe que o protegerá e destruirá tudo e todos que o tentarem prejudicar.
Daria segura o amuleto na mão, com força.
- Fica a saber - acrescenta Bibi-Jan - que este ta-vis só tem força e valor se acreditares nele. Deus vai guiar-te no teu caminho.
- Eu sei. Deus vai e vem quando quer. Faz aquilo que quer, e aquilo que quer acontece.
Depois desta conversa, Daria dirige-se ao riacho em vez de regressar de imediato à tenda. Senta-se na margem, baloiça os pés na água fria, brinca com as pedras no leito, pensa e olha repetidamente para o amuleto. O amuleto é do tamanho do seu polegar, tem uma forma alongada e quatro buraquinhos. De um lado é branco, como as flores no relvado, do outro baço, como um osso. “Passa um fio pelos quatro buracos”, dissera-lhe Bibi-Jan. “Sê uma guerreira. Nada de mal acontecerá, nem a ti, nem à criança.”
Daria, a guerreira, a vencedora. Daria, a culpada. Daria e Samira, que é Samir. Daria e o seu ta-vis branco com quatro buraquinhos. Um buraco para Deus, um para ela própria, um para a criança que tirou do corpo e outro para as crianças que não tirou do corpo. Daria arranca um fio do vestido, passa-o pelos quatro pequenos buracos e ata o amuleto à volta do pescoço. De repente assusta-se, quando sente a presença do comandante atrás dela.
- O que fazes aqui?
- Estou sentada - responde Daria, espantada com a coragem na sua voz.
O próprio comandante fica tão espantado com a nova voz de Daria que não pergunta nem diz mais nada. Senta-se ao seu lado e deita pedras para a água.
“Bibi-Jan disse para eu ser uma guerreira”, pensa Daria.
- Quem sabe, talvez haja outros pais que educam as suas filhas como rapazes por esse mundo fora.
- O que queres dizer com isso? - pergunta o comandante.
- É bem possível que algum dos homens contra os quais lutaste tenha sido uma mulher.
A respiração do comandante acelera-se. O sangue palpita-lhe no corpo, agita-se quando imagina que o inimigo poderia ter seios.
- Consigo cheirar o teu desejo - acrescenta Daria. - Mas, diz-me, o teu sangue não se torna amargo, não ferve, não te provoca dor e mal-estar quando pensas na vergonha e no vexame que seria?
- Que vergonha? - pergunta o comandante.
- Tu, o grande guerreiro e lutador, podes ter lutado contra uma mulher, talvez tenhas derrotado uma mulher.
- Silêncio - diz o comandante.
Daria cala-se, toca no seu ta-vis, não se cala.
- Que vitória é essa? - pergunta. - A vitória contra uma mulher não é a vitória de um herói. É a vitória de um cobarde. A luta contra uma mulher é uma luta sem decência nem honra.
O comandante ergue a mão, não pára no ar, bate-lhe. Daria não baixa o olhar, fita-o de frente.
- Tu é que tens a culpa de te ter batido.
- Deus é testemunha - responde Daria. - Se esta criança não fosse tua, desafiarias o pai, farias justiça. Porias um fim a esta ofensa, a ao desrespeito e vexame que é para o mundo dos homens.
O comandante puxa pelo seu chicote boskashi e Daria dá um salto.
- Ela nunca vai ser como tu! - exclama. - E não ouses bater-me mais uma única vez.
- És a minha mulher - responde o comandante. - Posso fazer contigo aquilo que bem entender.
- Então, faz - desafia Daria. - Eu direi a toda a gente que o teu filho é uma rapariga.
Daria tira a faca do cinto do comandante e atira-a para o chão diante dos seus pés.
- Mata-me! - exclama. - Vá, mata-me! Não te vai adiantar de nada.
O comandante permanece em silêncio.
- Um morto a mais ou a menos. Que diferença faz? - pergunta Daria. - Nenhuma.
A SEDUÇÃO
Num dia ameno de Primavera, Daria decide avançar. As flores perfumam o ar, os pássaros cantam e sente-se uma leve brisa. Daria aproxima-se do comandante. Está descalça, soltou o seu cabelo preto como veludo e fez uma tatuagem decorativa na testa. A sua boca leva o comandante a pensar num pêssego fresco. Perfumada com água de rosas, veste a sua saia mais colorida e rodada e traz fitas bordadas com conchas e pérolas, moedas e ossos à volta do pescoço e da barriga.
Deus e o ta-vis indicaram o caminho a Daria. Se conseguir que o comandante a leve até ao rochedo e que infrinja a lei, ele acabará também por levar o seu Samir até lá. Daria apresenta-se maquilhada, penteada, a dar voltas e a mover-se com as jóias e os adornos a tilintarem perante o pobre comandante, atrapalhado.
Ao fim desta espécie de dança, Daria abre os olhos como se fossem duas borboletas negras, prestes a levantarem voo. Sorri, pousa a mão no peito do comandante e fita-o com os seus olhos amendoados, pintados de preto, até o comandante pousar a mão nela também.
- Como estás sempre a dizer que queres ter um filho... - sussurra Daria.
O comandante tenta engolir, mas não se lembra como. O seu peito arde quando a mão de Daria lhe toca e o seu corpo está quente, a escaldar. Permanece imóvel, sente um ardor desconhecido e agradável no peito, sem saber se está acordado ou a dormir, vivo ou morto.
A outra mão do comandante está pendurada, como se não fizesse parte do seu corpo. Daria pega nessa mão e entrega-lhe as rédeas do cavalo.
- Vamos.
Só agora o comandante repara que o garanhão se encontra atrás de Daria.
- Pega nas rédeas - diz Daria. - Vamos dar uma volta.
O comandante quer perguntar: “Para onde?”, mas não encontra as palavras. Obedece, monta o cavalo, estende a mão a Daria e ajuda-a a sentar-se na sela, à sua frente. A postura do comandante assemelha-se à de um saco de batatas. Não puxa pelas rédeas, nem incentiva o cavalo com as botas. Em vez de perguntar para onde vão, permanece imóvel e sente as costas e as ancas de Daria encostadas ao seu corpo.
Daria endireita-se, incentiva o cavalo com os pés descalços, move o corpo para a frente e para trás, pressiona as coxas contra o corpo do marido, entre as pernas, onde o seu desejo não pára de crescer. O pobre comandante não sabe nem por que razão se encontra no cavalo, nem para onde vai. Só quando avista o rochedo a brilhar ao longe, reencontra as palavras.
- Para onde vamos? - pergunta.
- Vamos até ao teu rochedo.
- Porquê?
- Porque é lá que vamos fazer o teu filho - explica Daria e incentiva o cavalo uma última vez com os pés. Depois encosta a cabeça ao peito do comandante e cala-se.
O comandante sabe que deveria salientar que não cabe a uma mulher dizer ao marido o que deve fazer. Que qualquer pessoa, para além dele, está proibida de se aproximar do rochedo, quanto mais de pisá-lo, e que um rapaz agora já não lhe serve de nada, pois teria que ter sido o primeiro filho. Mas neste dia, diferente de todos os outros, o comandante não diz nada. Quando chegam, desce do cavalo, apanha Daria, abraça-a, segura-a. É um abraço diferente. Sem saber porque o faz, beija o pescoço de Daria, os seus ombros e, por fim, faz aquilo que é proibido. Pega nela, levanta-a e pousa-a no seu rochedo. Daria imaginara vezes sem fim qual seria a sensação de se encontrar no rochedo. Desejara secretamente sentar-se no rochedo e descobrir os segredos do marido. Agora chegara o momento de fazê-lo. Finalmente, Daria senta-se na placa negra de pedra, aquecida pelo Sol. Sente uma brisa, que não é fria nem quente, acariciar-lhe a face. O Sol lança os seus raios de luz sobre Daria, o ar é suave e macio. Mas, apesar disso, Daria treme. A sua respiração é irregular e a sua pele está fria. Pequenos pingos de suor formam-se-lhe na testa, outros escorrem pelas costas, pelo peito e pela barriga abaixo. A sua nuca está húmida. Daria fecha os olhos, apoia-se no rochedo, para não cair, tenta respirar normalmente e acalmar-se. Abre os olhos, volta a fechá-los, sente a cabeça andar às voltas. Sabe que cometeu um pecado, que manipulou o comandante ao incitá-lo a levá-la até ao rochedo. É culpada e sabe que será castigada por isso. Fê-lo pela filha, mas agora, que se encontra no rochedo, apercebe-se de que foi estúpida ao julgar que seria ela a guerreira que acaba com o feitiço do rochedo. Daria sente medo, quer atirar-se para os braços do comandante, regressar à segurança da tenda, ao fogo, às bolhas de água. Mas, por mais que queira, não pode. Permanece imóvel. O rochedo transformou-a em pedra, sente-se igual ao rochedo morto e imóvel do comandante.
Devagar, muito devagar, sem que ela própria dê por isso, o seu corpo fica fraco, inclina-se para a frente, até o seu peito tocar na pedra. Sente o calor do Sol nas costas, vê um anjo que se aproxima a voar, que pousa no rochedo, lhe estende a mão e toca no seu amuleto. O anjo bate as asas quatro vezes e voa para dentro dela.
- Deus enviou um anjo - diz. - Ele está dentro de mim.
O comandante permanece silencioso, deita-se de costas, puxa Daria para perto de si, abraça-a, fecha os olhos e respira o seu perfume.
- Estás a infringir a lei sagrada do rochedo - murmura Daria.
O comandante não responde.
- Não tens medo do castigo?
O comandante não responde.
- Eu só peço a Deus que não me culpes a mim por teres infringido a lei - diz Daria, sabendo que é culpada.
Afasta-se do comandante, vira-lhe as costas e toca no amuleto que traz à volta do pescoço.
- Protege-me - pede baixinho ao amuleto. O anjo dentro do seu corpo bate as asas. O comandante abraça-a, puxa-a para perto de si e respira o perfume do seu cabelo. Puxa a saia de Daria para cima, abre a shalvar e ama-a, como nunca antes a amara e nunca mais a amará.
- Deus é grande - afirma depois, na escuridão. - Ele resolverá tudo.
- É verdade. Ele vai indicar-te um caminho para transmitires à criança o saber que os teus antepassados te deixaram neste rochedo.
Os dias transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. Daria conseguiu quebrar o feitiço do rochedo e decide atar o amuleto à volta do pescoço da criança.
- Isto vai proteger-te e destruir tudo e todos que tentarem prejudicar-te.
No dia seguinte, quando Daria está a amassar o pão, decide abordar o assunto com o comandante. Arranca pedaços da massa e forma bolinhas, sem olhar para ele.
- Está na hora de o levares até ao rochedo.
- Por amor de deus. Ninguém, além de mim e do meu filho, poderá jamais pisar aquele rochedo! - exclama o comandante, com uma voz de desprezo. Apanha uma pedra do chão e atira-a contra nada e ninguém.
- Já infringiste a lei sagrada do rochedo uma vez, no dia em que me levaste para lá. Podes fazê-lo uma segunda vez, quando lá levares o Samir - propõe Daria, sabendo que Deus e o ta-vis levarão o comandante a fazê-lo.
- A culpa não foi minha. Tu é que me levaste lá.
- Foi a vontade de Deus, ele enviou um anjo - afirma Daria.
- A culpa não é de Deus.
O TIRO
Daria saiu da tenda a correr, com a criança ao colo. Não sabe por que razão ouviu um tiro, nem como isso é possível, mas tem a certeza de que o ouviu.
É o som da guerra. Todos os dias são disparados tiros, voam foguetões, explodem bombas neste país. Pobre Daria, porque te preocupas tanto com este tiro? Não te lembras de que é assim, que os homens se matam uns aos outros?
Matam mães, pais, filhas e filhos. Tantos, que não há lágrimas suficientes para derramar. Incendeiam casas, palhotas e tendas. Tantas, que ninguém quer saber quantas são. Casas com e sem pessoas, com crianças, mulheres e homens.
Os homens violam mil e uma mulheres. Arrastam-nas, cortam-lhes a barriga e o pescoço. Pilham, roubam, sacam. Pernas são arrancadas, mãos cortadas e braços despedaçados. As mãos destes homens ficam cobertas de sangue.
Daria vê a guerra, apesar de se passar longe dela, vê-a nos seus sonhos, vê sangue. Antes de o comandante ter partido uma vez mais para a guerra, Daria falara-lhe nos seus sonhos. “Alguém juntava todo o sangue nos meus tachos e tigelas, até escorrer pela tenda, tingindo o chão, o riacho e toda a água do nosso país de vermelho. Deus cobre o nosso país de sangue. Há tantos Verões e Invernos que já perdi a conta.”
“Vinte e cinco”, dissera o comandante.
“Vinte e cinco a mais”, afirmara Daria.
O sangue da guerra manchou o coração de Daria. Ouve os gritos da guerra na cabeça e sente o sabor da guerra na língua.
- Porque é que ouvi este tiro? - pergunta à criança, já que não há mais ninguém por perto.
O tiro foi disparado por um inimigo, que agiu calmamente. Respirou fundo, apontou, disparou. O tiro voou. Todos os tiros atingem alguma coisa. Uma perna, um braço, uma cabeça, um coração. Este tiro também atingiu algo. Algo do comandante. O seu testículo. O sangue escorreu, o sangue do comandante.
- Tiveste sorte - dizem os homens quando pousam o comandante no chão em frente à tenda. São os homens do comandante, que o acompanham na guerra, na linha da frente.
Porque lutam? Já nem sabem.
- Tiveste sorte, ele está vivo.
- Tenho sorte - repete Daria.
A roupa do comandante está coberta de sangue, tem os olhos fechados. O seu corpo, imóvel, parece não ter vida.
Bibi-Jan acompanha Daria enquanto esta trata do moribundo. Daria molha um pano na água a ferver, acrescenta-lhe ervas e pousa-as na ferida. No testículo, que o comandante já não tem. Deita pingos de água na sua boca, lava-o, esfrega óleo no seu corpo, normalmente tão saudável e forte. Fala com ele, sabendo que a ouve.
- O teu filho está lá fora com os cavalos, está a brincar com eles. Deita-se na relva ao lado deles, trepa pelos seus corpos, dormita ao Sol. - Daria sabe que, se o comandante estivesse acordado, diria que isso é impossível, que os cavalos não se deitam, nem deixam que as crianças gatinhem sobre eles.
Continua a falar, na certeza de que o comandante a ouve.
- Quando acordares, vais levar o teu filho até ao rochedo e desvendar-lhe os teus segredos. - Daria sabe que, agora que o comandante perdeu a sua masculinidade, fá-lo-á.
O comandante dorme. Dia e noite. Muitos dias e muitas noites. Dorme profundamente, como nunca antes dormira.
- Ele vai acordar - explica Daria à filha, para consolá-la. Samira gatinha sobre o corpo do pai, brinca com a sua barba, deita-se no seu peito, adormece em cima dele e volta a acordar, fala com ele. Tagarela o dia inteiro, conta as histórias dos cavalos, como se deita com eles nas pradarias.
- Tenho muita coragem, enfiei a mão na boca do garanhão - afirma e depois pede à mãe: - Acorda-o! Não quero que ele durma.
- Ele vai acordar - responde Daria.
- Ele transformou-se em carne, está morto!
- Não, não está morto.
Daria tem razão.
O comandante acorda, abre os olhos.
- Os cavalos não se deitam no chão - afirma. - Nem deixam que as crianças gatinhem em cima deles.
O comandante vê a filha, vê a mulher, vira a cara e chora. Lágrimas que não engole. Para que Daria e a filha as vejam. O comandante sabe o que aconteceu.
- Vou levar o Samir até ao rochedo - afirma.
Daria limpa-lhe as lágrimas da cara.
- Eu sei.
A DESCOBERTA
Um pequeno amuleto com quatro buraquinhos, Samira e Samir, Daria com o peso da culpa e o comandante com nada no lugar do seu testículo e da sua masculinidade passam juntos o Verão nas terras altas do Indocuche.
O saco com o trigo está quase vazio. O sal e o açúcar acabaram. A caixinha com o chá está meia e o lenço no qual o comandante guarda o dinheiro já não contém moedas. Há dias em que a barriga de Samira fica vazia.
Ninguém sabe porquê, mas a guerra acabou. Os talibãs continuam a lutar no Norte do país, acabaram de conquistar mais uma cidade. O soberano cruel enganou o povo, voltou a mudar de facção e juntou-se aos talibãs, que arrancaram mais de sete mil pessoas das suas cabanas e as mataram.
Yakolang está a arder.
Os talibãs assaltam as casas, incendeiam-nas, queimam as pessoas vivas. O sangue dessas pessoas mancha as mãos dos talibãs, do soberano cruel e dos seus homens. E as mãos dos homens que lhes pagam.
Mancha-as para sempre.
Desta vez a culpa não é de Daria.
- Porque é que são sempre homens? - pergunta Daria.
O comandante encolhe os ombros.
Pouco tempo depois o soberano cruel volta a mudar de facção, pondo-se do lado dos homens que inicialmente eram seus aliados, depois se tornaram seus inimigos, e agora voltam a ser seus amigos.
Mata mais de sete mil talibãs.
O sangue deles também mancha as suas mãos e as mãos daqueles que lhes pagam para matar.
Para sempre.
Ninguém sabe porquê.
Apenas há uma coisa que todos sabem. Que são sempre homens.
Os que pagam e os que matam.
Os mortos são crianças, mulheres, velhos, aleijados, professores, agricultores. Mancos de uma perna. Manetas de um braço. Pessoas com razão. Pessoas sem razão.
O soberano cruel foge.
“Talvez esteja morto”, dizem algumas pessoas.
“Quem nos dera que estivesse morto!”, exclamam outras.
“Quem nos dera que estivessem todos mortos, todos os assassinos!”
Samira não tem nada a ver com mortos, com homens que matam, nem com guerras e batalhas. Apenas sabe que este Verão o pai não foi para a guerra. Que ficou com ela. Com o seu filho-rapariga.
- Samir, vamos! - O comandante fala baixinho, porque aquilo que tem para dizer é importante. Porque apenas o seu Samir deve ouvi-lo.
Todas as manhãs, antes de o Sol nascer e deitar a sua luz e o calor sobre as montanhas, o comandante sussurra palavras ao ouvido da criança para acordá-la. Palavras sussurradas são palavras secretas, importantes. Palavras sussurradas por um pai.
Todas as manhãs, a situação repete-se. O pai e a filha vão lá para fora, para aquilo que sobra da escuridão e do frio da noite, e acordam o Sol. O comandante pega o filho-rapariga ao colo, enrola-se a si e a ele num patu e aperta-o contra o peito.
- Fecha os olhos - pede Samira. - Não te preocupes, eu chamei o Sol, ele vai aparecer. - O coração do comandante transforma-se em manteiga e derrete.
Daria permanece dentro da tenda, vislumbra a sua filha e o comandante lá fora e acende o lume. A filha e o pai chamam o Sol, enquanto ela chama o fogo.
Daria tem sorte.
As outras mulheres kutshi não têm um forno na tenda, nem têm um marido que as trate bem, como o comandante.
Daria tem sorte, porque consegue falar com a água no tacho e apanhar as bolhas.
Quando o comandante construíra o forno para Daria, ela observara-o. Cavara um buraco e calcara a terra. “Para que fiques mais confortável”, dissera.
“Para que o pão que cozo para ti fique mais saboroso”, respondera Daria.
A primeira chama ardera com força e aquecera a tenda. O comandante dissera: “Esta chama parece o Sol. Pelos vistos apanhaste o Sol no teu forno!”
“Apanhar o Sol é contigo e com o teu Samir”, respondera Daria.
O pai e a criança esperam em frente à tenda, de olhos fechados, que o Sol nasça.
- Está a chegar! - exclama Samira.
Cada novo dia a criança fica fascinada e cativada pelo jogo do Sol, a luz e o calor. A sua respiração acelera e o seu coração bate com mais força.
- Consegues sentir? - pergunta o comandante.
- Sim - sussurra a criança.
- O que sentes?
- O início do Sol.
Devagar e gradualmente o Sol deita uma luz suave sobre as montanhas, anunciando a sua chegada. Pinta o céu escuro de vermelho e amarelo.
- Consigo ouvi-lo - diz a criança.
- O que ouves?
- Oiço os estalos do Sol. E a sua respiração.
- O que tu ouves é a madeira a acordar. São os rochedos, a montanha, as pedras que absorvem o calor do Sol, as ervas que lentamente se endireitam, as flores que se abrem. Ouves as pessoas nas outras tendas a começarem o dia, os cavalos, as ovelhas, as cabras e os camelos a mexerem-se.
Samira olha para o pai, escuta as suas palavras como se de um conto d'As Mil e Uma Noites se tratasse. Mais tarde, Samira contará esta história, palavra por palavra, às outras crianças, reunidas perto do riacho. Fará as mesmas perguntas e dará as mesmas respostas. Falará como o pai, com os mesmos intervalos entre as palavras, olhando para os olhos das crianças, tal como o pai olha para os dela. Erguerá as mãos e voltará a baixá-las, gesticulará, como o pai. Tal como ele, inclinará a cabeça para o lado, quando pensar antes de falar.
As crianças adoram e odeiam ouvir Samira. Ninguém sabe contar histórias como ela. As personagens das suas histórias têm vida, respiram, choram e riem. Quando Samira descreve o acordar da madeira, ela própria se transforma em madeira.
- A madeira fala - afirma.
- É mentira! - gritam as crianças. - A madeira não dorme, não fala e não é verdade que sejamos capazes de ouvir as ervas a endireitarem-se.
- Vocês são burros - responde Samira. - Não sabem nada, não compreendem nada e não têm um rochedo para o qual o vosso pai vos leve.
Samira ergue-se, cospe para o chão, limpa a boca com as costas da mão e vai-se embora, deixando os rapazes e as raparigas.
- Não gosto das outras crianças - queixa-se Samira ao pai e dá chapadas no ar.
- Deixa-as - responde o pai. - Para que precisas delas?
- Man tshe midanam - responde Samira, e encolhe os ombros.
- Não precisas delas. Tu não precisas de ninguém.
Samira não responde.
- Tens-me a mim - continua o comandante. - E hoje vou apresentar-te um novo amigo.
- Quem é o meu velho amigo? - pergunta Samira. O comandante ri-se.
- Muito bem. Então este será o teu primeiro amigo. O cavalo castanho vai ter um potro.
Samira dá um salto de alegria e corre para a tenda, onde se atira para os braços da mãe.
- Adivinha que dia é hoje - grita.
- Não sei - Daria continua a pisoar a pele de ovelha com leite.
- Tens de perguntar por que razão hoje é um dia especial!
- Por que razão hoje é um dia especial? - pergunta Daria, parando de pisoar a pele e abraçando a filha.
- O meu pequeno cavalo vai nascer. - Samira pára para pensar e depois pergunta: - Quando é que ele chega?
- Não sei.
- Não sabes porquê?
- Só Deus sabe de nascimentos e mortes.
- Isso não é verdade. O meu pai também sabe.
- O teu pai sabe tudo - confirma Daria olhando para a água a ferver no tacho. - O comandante sabe tudo.
- Quando chega o meu cavalo? - pergunta Samira ao pai, lá fora.
- Ainda falta algum tempo. Talvez hoje, talvez amanhã. Samira corre de novo para a tenda.
- Talvez hoje, talvez amanhã! - exclama Samira enquanto repete os gestos do pai.
- Muito bem - responde Daria. - Então já sabes quando terás o teu cavalo.
- Sahihst. - Samira acena com a cabeça.
Daria mexe o arroz que deitou na água a ferver. Mexe sem parar, para que não se cole ao fundo do tacho. Samira está pensativa.
- Quando é, talvez hoje, talvez amanhã? - Enruga a testa, sem compreender se afinal sabe ou não sabe quando chegará o potro. - Vamos ter de esperar - conclui.
- Que criança tão inteligente - afirma a mãe, sorrindo e abrindo os braços. - Anda cá. Dá um beijo à tua mãe e fá-la feliz.
Samira atira-se para os braços da mãe. Adora quando a mãe lhe pede para a tornar feliz.
Porém, antes de Daria poder dar-lhe um beijo, Samira exclama:
- Vou até ao riacho! - Dá um salto e, enquanto sai a correr da tenda, explica: - Tenho de contar às outras crianças que temos de ter paciência e esperar que o meu cavalo chegue.
Uma bolha salta da água a ferver, atira-se para as chamas e morre.
- Temos de ter paciência! - grita Samira ao aproximar-se das crianças, que estão de cócoras à beira do riacho e não lhe prestam atenção.
- O que estão a fazer? - pergunta.
- Estamos a mijar - responde um dos rapazes. Samira baixa a sua shalvar, coloca-se ao lado das outras crianças e faz o mesmo. Um dos rapazes acaba primeiro e levanta-se com um salto.
- Ganhei! Sou o vencedor! - grita.
Samira olha para ele e prepara-se para praguejar e brigar, porque não fizeram nenhuma aposta. Abre a boca, mas as palavras não saem. Cala-se. Cala-se por ter descoberto algo que nunca antes vira. Algo pendurado entre as pernas dos rapazes, com uma forma alongada e um pingo na ponta. O rapaz puxa-o como se o quisesse arrancar, mas não o arranca, volta a largá-lo e coça as nádegas. Enquanto se coça, Samira tem tempo para olhar um pouco melhor para aquela coisa desconhecida. Está pendurada entre as pernas do rapaz e parece um dedo.
- Para que precisas disso? - pergunta Samira, sem ter a certeza de que quer ouvir a resposta. E com a certeza de que não vai gostar da resposta.
- De quê? - pergunta o rapaz.
- Disso - repete Samira e aponta para o dedo entre as pernas do rapaz. Acaba de urinar e puxa rapidamente as calças para cima para que o rapaz não veja que ela não tem nenhum dedo pendurado por baixo da barriga.
- Tu não tens um? - pergunta o rapaz. - Qualquer verdadeiro rapaz tem um.
Samira não sabe o que responder. Encolhe os ombros.
- Diwaneh - responde, chamando-lhe maluco, e regressa para a tenda.
Daria sempre soube que chegaria o dia em que a filha descobriria que é diferente dos outros rapazes. Sabia que nesse dia a criança iria fazer muitas perguntas. Pensou vezes sem fim no que deveria responder ao seu filho-rapariga, quando esse dia chegasse, sem nunca encontrar uma resposta. “Vou encontrar uma resposta quando esse dia chegar”, dizia a si própria, “para que o pai lhe explique”, pensava.
A filha entra na tenda e olha para ela, com os olhos cheios de lágrimas e a cabeça encolhida entre os pequenos ombros. Daria sabe que é culpada de tudo. O coração da mãe transforma-se em manteiga, derrete.
Samira fica pálida. A sua face torna-se branca como a neve que cobre as montanhas no Inverno. Engole as lágrimas, valente, como uma criança mais velha, como um rapaz. Não tem muito para dizer. Apenas pergunta:
- Eu não sou um verdadeiro rapaz?
Os olhos de Daria têm uma expressão de medo.
A criança fita a mãe, cheia de expectativa, de esperança. Esperança de que a mãe diga: “Está tudo bem.”
Daria procura uma resposta, procura palavras, palavras que não surgem, por mais que procure.
A pequena Samira não se mexe, parece cada vez mais pequena.
Daria quer pegar nela, abraçá-la. Mas os braços e as pernas não lhe obedecem. O seu corpo está hirto, sente-se impotente. Como se não fosse uma adulta nem uma mãe segura e forte que tem uma resposta para tudo e que protege a filha.
Samira vê tudo, procura uma resposta, precisa da mãe, de protecção. Uma lágrima cai-lhe dos olhos, escorre pela face, tomba no chão de terra e desaparece. Samira inspira todo o ar que encontra à sua volta para dentro do seu pequeno corpo, engasga-se, chora, tosse, quer sufocar e desaparecer. Como a lágrima.
“A minha mãe era uma pedra”, pensará um dia.
Samira verga-se, a sua boca sabe a sangue e começa a chorar. As lágrimas são boas, dão força. Força suficiente para uma pequena, grande pergunta.
- Eu não sou um verdadeiro rapaz?
Daria diz várias palavras pequenas, que ninguém ouve. Nem ela própria, nem a filha. Só uma palavra lhe escapa da boca. Uma única pequena palavra.
- Claro.
Um pequeno, mínimo “claro”. Mais não diz. Samira treme, não nota que o seu corpo está frio, apenas sabe que as suas mil e uma perguntas não têm resposta.
Daria e Samira permanecem imóveis. Daria não acende o lume, não faz a massa para o pão, não prepara as almofadas e os cobertores para a noite, nem baixa o feltro para fechar a tenda. Samira não se mexe, apenas treme, vibra, como se o Inverno tivesse invadido a tenda. Os seus olhos negros imploram, colados à mãe de pedra.
Daria sabe que é a sensação de culpa que a transforma numa pedra. A culpa negra e pesada. Tanta culpa que nem repara que o comandante se encontra atrás do seu filho-rapariga.
- Anda, rapaz - diz o pai, com uma voz assustada. Está à entrada da tenda. O frio dentro da tenda é como uma parede. O seu filho-rapariga encontra-se a uma distância de quatro passos, mas a parede de frio transparente impede o pai de avançar.
- Anda, rapaz - repete. - O teu cavalo chegou.
As palavras paternas tocam nas costas da criança. Devagar, tão devagar que ela própria não nota, penetram no seu coração, vêem a dor, o medo e a tristeza. Devoram-nos. As palavras paternas são como um animal, um animal esfomeado que devora tudo o que encontra no coração da criança.
Samira repara que o pai diz “rapaz”.
Devagar, tão devagar que ela própria não nota, as lágrimas nos olhos de Samira secam. Os seus olhos escuros parecem lavados. Limpa as lágrimas da cara e engole aquelas que ainda tinha nos olhos. Samira não sabe o que aconteceu. Não sabe por que razão não se conseguia mexer. Nem por que razão agora já consegue. Devagar, tão devagar que ela própria não nota, move os dedos, a mão, o braço, limpa as lágrimas dos olhos, puxa a shalvar para cima, sem saber'quando e porque escorregara. Abre a boca para dizer algo, encontra as palavras na cabeça e quer dizê-las. Quer dizer: “Eu sou um verdadeiro rapaz. Eu ouvi o meu pai a dizê-lo. Ele disse "rapaz".”
Samira mexe a língua, abre e fecha a boca. Mas as palavras não saem. Samira não ouve as palavras que diz. Permanece silenciosa. Muda.
Muda. Muda.
A MENTIRA
Samira, a muda, entala relva entre os polegares e as palmas das mãos, sopra, entoa melodias.
- A criança não é feliz - comenta Daria.
- Deixa-o - responde o comandante, enquanto põe a sela no cavalo. - Anda, rapaz! - chama.
Samira sorri.
“Rapaz, que bonita palavra”, pensa.
- Kommandan koja mirp. Comandante, para onde vais? - perguntam as pessoas.
- Miram sareh kouh. Para a montanha - responde o comandante. - Vou com o meu filho até ao rochedo.
O pai e o filho montam os seus cavalos e deixam as tendas, os outros kutshi, os animais e todo o resto para trás. Incentivam os cavalos, assobiam por entre os dentes, estalam a língua e cavalgam tão rápido que voam. Samira sabe, vê que está a voar. Os cascos dos cavalos não tocam no chão e Samira sente o vento no cabelo, por baixo da camisa, a fazer-lhe cócegas na pele.
O comandante inclina-se para o lado, pega nas rédeas do cavalo de Samira, empurra o garanhão, agarra no filho-rapariga, levanta-o, senta-o à sua frente na sela, segurando-o com os seus braços fortes. Samira fecha os olhos, encosta-se para trás, abre os braços e sabe que é verdade e que é mentira. Uma mentira bonita. Voar, voa-se lá em cima no céu. Com asas. Os anjos voam. Samira não voa. Voa, sim. Até ao fim, até chegarem ao rochedo.
Samira imita o pai, não pousa o pé no estribo para descer do cavalo. Passa a perna por cima da cabeça do animal e salta para os braços do pai. Ele apanha-a e pousa-a no rochedo.
“O nosso rochedo”, pensa Samira. “É nosso e não é. E nosso porque durante todos os Verões e Invernos que passaram, o meu pai, o pai dele e os pais dos nossos pais vieram para cá. Por isso ele nos pertence.”
Mas o comandante também explicara a Samira que todos os donos deste rochedo eram filhos primogénitos. Verdadeiros homens. Pais e filhos verdadeiros, com masculinidade entre as pernas. Samira não tem masculinidade pendurada por baixo da barriga. O seu pai não tem um filho. Mas Samira também sabe que é mais homem que alguns dos homens com masculinidade entre as pernas. Fecha os olhos. Quando será o momento em que um rapaz se transforma num homem?
O comandante sobe para o rochedo e senta-se ao lado de Samira. Passa a mão pela cabeça da criança e repara que está absorta no seu próprio mundo.
- Tenho medo que te percas. - O comandante engole as lágrimas para que a criança não as veja.
“Um verdadeiro homem não chora”, pensa Samira.
O pai ajoelha-se em frente do filho-rapariga e agarra-o pelos braços.
“Como posso saber quando agarra em mim com amor e quando não?”, pensa Samira.
- Onde estás? - pergunta o comandante.
Samira olha para o pai e sorri. É o sorriso lindo de uma criança. “Estou nas tuas mãos”, pensa.
O comandante agarra-a com mais força e abana-a.
- Onde estás? Não te vás embora. Não me deixes sozinho.
Samira vê montanhas, vales e lugares nos quais nunca esteve, vê pessoas que não conhece. “Estou aqui e não estou. Que diferença faz onde estou?” Samira toca na face do pai e nos seus longos caracóis negros. “Estou no meio do nada”, pensa.
Samira, a muda, permanece silenciosa. Calada, porque o tempo de uma vida não chega para as inúmeras palavras que teria para dizer, se falasse. Não fala porque não sabe onde começam e acabam as suas palavras. E porque o pai põe toda a culpa na mãe. A culpa de tudo e de todos. Samira não fala, porque a culpa não é da mãe. Porque a culpa é dela própria. A culpa da mãe, do pai, do mundo, de Deus.
Culpa de quê?
Culpa de tudo, de nada, do que quer que seja.
“Porque será que Deus põe todas estas perguntas na minha cabeça?”, pensa. “Cada uma das perguntas tem mil e uma respostas. Que diferença faz, se eu der uma resposta? Uma única resposta, entre mil e uma.”
A mãe só lhe respondera com um pequeno grande “claro”.
“A criança não fala devido à injustiça que estamos a cometer com ela”, diz Daria.
As pessoas comentam: “Deus roubou a língua ao filho do comandante, para pô-lo à prova. Deus quer saber se ele será homem suficiente para se tornar um bom comandante, como o pai, apesar de não falar.”
Samira não fala porque não vê razão para dizer palavras falsas, quando conhece a verdade. A verdade não é a verdade e a mentira não é a mentira. De que adianta ela, Samira, falar, quando as pessoas pensam que é Samir quem está a falar? Quando nem sequer ela própria sabe se é Samira ou Samir?
As pessoas perguntam-lhe: “Samir, rapaz, como estás?”
Samira sorri e acena com a cabeça, mesmo quando não está bem.
É isso que as pessoas gostam, por isso acena. “Ele está bem”, concluem.
- O que sentes? - pergunta o pai. Samira sorri.
- Aquilo que sentes é bom? - insiste o pai. Baixinho. Não por se tratar de palavras importantes, mas porque a tristeza na sua garganta não lhe permite falar alto.
Samira sorri, acena com a cabeça.
- Tudo o que eu quero, é que sejas feliz - afirma o pai. “Feliz”, pensa Samira. “É uma palavra bonita.”
- Eu sei como te fazer feliz - diz o pai. - Salta do rochedo e abre os braços. - Salta! - exclama.
Samira avança para a borda do rochedo, fecha os olhos, abre os braços. Consegue ouvir o ar a passar por ela, a rodeá-la e aprecia o momento. Deixa-se cair para a frente, devagar, para os braços do pai. “Felicidade é uma palavra importante”, pensa, sabendo que chegará o dia em que crescerá e o pai já não terá forças para apanhá-la.
O pai pega na criança, ajuda-a a montar o cavalo, monta o seu próprio cavalo e incentiva-o a andar. Desce com cuidado pelas pedras até ao relvado, assobiando por entre os dentes. Depois, avança a galope, trava o cavalo e vira-se para observar o filho-rapariga que ficou para trás. Samira faz estalar a língua, não incentiva o cavalo com os calcanhares, apenas lhe passa a mão pelo pescoço e desce o declive com as pedras. Mais devagar e com menos segurança que o pai. O cavalo escorrega, tropeça.
- Não tenhas medo! - exclama o pai.
Samira sabe que chegará o dia em que conseguirá lidar com o cavalo como o pai, de forma suave, mas segura, cheia de força e coragem.
O comandante assobia por entre os dentes e parte a galope pela planície, em direcção a Bande Amir, os sete lagos sagrados.
- Empurra o cavalo. Mostra-lhe quem é que manda! - exclama. - Mostra-lhe qual de vocês é o mais forte!
Samira inclina-se para a frente, agarra-se à crina do cavalo, coça-o entre as orelhas e sussurra o seu nome, Azad. Tudo o que diz é: “.Azad.-”
O cavalo ouve o seu nome, atira a cabeça para trás e começa a correr. Samira larga as rédeas para que Azad possa esticar o pescoço.
“Nenhum dos rapazes monta como o meu Samir”, pensa o comandante. “Suave e tempestuoso. Ágil e cheio de força. Ele e o animal, como um só. Meio animal, meio homem.”
Samira repara no orgulho do pai. “Isto é felicidade”, pensa. O seu coração bate ao ritmo dos cascos que Azad enterra no chão. O pêlo do cavalo fica quente e húmido, os seus músculos aquecem, tornam-se elásticos. “Isto é força”, pensa Samira. “Força e poder. Eu e o meu Azad estamos a preparar-nos para o jogo dos jogos, o boskashi. Estamos a preparar-nos para a vida.” Samira esquece-se da mudez. Esquece-se das suas mil e uma perguntas sem resposta. Esquece-se de que não é nem um verdadeiro rapaz, nem uma rapariga, esquece o pai, esquece a mãe que se encontra na tenda, esquece a culpa. A culpa de tudo e de todos.
Samira torna-se leve. Dissolve-se em nada, em tudo.
- Filho, anda cá rapaz! - chama o pai. Samira não o ouve.
O comandante puxa as rédeas do cavalo com força, o animal empina-se e relincha. Vira o cavalo bruscamente para trás e dá-lhe uma chicotada no pescoço, furioso. Aproxima-se a alta velocidade de Samira, cavalga ao seu lado, pega nas rédeas do cavalo de Samira e trava os dois animais até estarem quase parados.
- Samir, rapaz, olha para mim. Onde estás?
“Isto é uma pergunta importante”, pensa Samira, passa a mão pela crina de Azad e encosta a cabeça ao seu pescoço.
- Filho - diz o pai baixinho. Porque aquilo que tem para dizer é importante. - Tu metes-me medo.
Samira abana a cabeça.
O pai passa a mão pela testa húmida do filho-rapariga.
- Vamos jogar boskashi - exclama e, tal como o seu pai fizera com ele, leva o filho-rapariga até ao rochedo, para lhe explicar o jogo.
- Os homens jogam este jogo para pôr à prova a sua coragem e para se tornarem fortes. Boskashi é o jogo com o qual os guerreiros se preparam para enfrentar o inimigo.
Samira aguça o olhar.
“Que batalha? Que inimigo? É a vontade de Deus que os outros sejam os maus e nós os bons?”
- Neste jogo lutas pelo cadáver de um borrego ou de uma ovelha - explica o pai. - A tua vitória será festejada e serás bem pago. Um bom jogador é um homem com muita honra e poder.
Samira endireita-se.
- Presta-se honra ao homem que consegue apanhar o animal morto que se encontra no círculo helal, que cavalgar à volta do poste com o pedaço de pano e devolver o animal ao círculo helal.
“Honra é coragem”, pensa Samira. “Honra é leviandade. Honra é ambas as coisas e muito mais, é tudo, é nada. Um grande e barulhento nada.”
- Sabes o que é a honra? - pergunta o comandante.
Samira acena com a cabeça.
- Honra é quando um homem atinge a sua meta. Quando é respeitado e considerado pelos outros homens - explica o comandante.
“O meu pai é considerado”, pensa Samira, “porque cavalga com um cadáver até a um poste com um pedaço de pano e leva o animal morto para o círculo helal.”
- Honra é quando um homem é forte e valente. Como eu - continua o comandante, cerra os punhos, mostra os músculos dos braços e aproxima-os de Samira, até ela os tocar e acenar com a cabeça.
“Como é que Deus faz os músculos do meu pai? Com carne, ossos, pele? Com qualquer coisa que eu não conheço?”, pensa Samira, acrescentando esta pergunta a todas as outras perguntas que tem na cabeça. “Porque é que alguns homens têm força nos braços e outros não? Porque existem algumas mulheres mais fortes que certos homens?” Tantas perguntas.
- Vai chegar o dia em que ficarás tão forte como eu - explica o comandante.
“Porque é que a força dele não chega para retirar a culpa da minha mãe?”, pensa Samira. “E porque é que a minha mãe carrega a culpa toda em vez de entregá-la a ele, que é tão forte?”
- Quando um homem domina este jogo, também domina o inimigo - continua o comandante.
Os olhos de Samira parecem pedras brilhantes. “O meu pai domina o jogo e o inimigo”, pensa, sem perceber porque não dominará também a vida e questionando-se como sabe que ele não domina a vida.
O comandante desenha um pequeno círculo na areia.
- Este é o círculo helal. No início do jogo é aqui que se encontra o animal morto. Na noite anterior, o animal fica submerso no rio, para lavar o sangue e para que o pêlo absorva água e se torne mais pesado.
O comandante pára de falar, pois repara que Samir não está com ele.
- Tu és como a água no tacho da tua mãe - afirma. - Estás quieto e imóvel, mas, apesar disso, vibras e ferves. Eu poderia parar de falar, calar-me e tu não reparavas. Poderia ir-me embora e tu não davas por nada. És como um pássaro no céu.
O comandante só conhece uma maneira de tirar o pássaro do céu, que é pegar na arma, apontar para o pássaro e disparar. Com um tiro abafado, conseguiria trazê-lo para o chão.
Agarra o filho-rapariga pelos ombros e abana-o. Dividido entre o amor e a saudade, a raiva e a repulsa.
Samira fecha os olhos.
O comandante larga a criança.
- Quando o jogo começar, não olhes nem para a esquerda, nem para a direita. Não dês atenção àquilo que os outros homens fazem. Cavalga. Os homens gritam e tentam arrancar-te o animal. Os cavalos relincham e fungam, empinam-se. Abrem os olhos e a boca, como monstros.
Samira fecha os olhos. Não vê os monstros, vê anjos que a carregam, sente o vento. Samira está em cima das nuvens, perto do Sol, da Lua e das estrelas. Não tem receio, pois os anjos acompanham-na.
- Nessa altura, inclina-te completamente para baixo - continua o comandante —, para que possas agarrar bem o animal. Pega-o pela perna, puxa-o para a sela e entala-o por baixo das coxas, para teres as mãos livres para segurar as rédeas e poder usar o chicote.
Samira abre os braços, agarra as mãos dos anjos, sobe com eles até ao lugar onde não há mais nada, onde fica o fim. O fim de tudo e de nada. O fim e o princípio. Onde se encontra Deus. Onde não há mãe com culpa, nem pai sem masculinidade, nem mesmo Deus.
O comandante baixa a voz, aguça o olhar, como se estivesse a desvendar um segredo.
- Tens de sair o mais rapidamente possível da multidão de homens e cavalos.
Samira endireita-se. Há homens montados a cavalo por todo o lado, chicotes e monstros.
O comandante dá uma chicotada no ar.
- Toca as esporas e usa o chicote, confia nele, ele saberá para onde ir. Tens que lhe mostrar o poste antes do jogo e dar voltas e voltas no mesmo lugar, para o cavalo conhecer o caminho de cor.
Samira chega ao poste com o pedaço de pano, segura por um anjo em cada mão, e voa de volta para o círculo helal. Não atira o animal para o chão, como todos os outros homens fazem. Pousa-o, cheia de consideração e respeito.
Se Samira, a muda, falasse, diria: “Honra é quando não tenho necessidade de cravar a faca no pescoço do animal e matá-lo, só para poder jogar.” Samira tinha metade do tamanho que tem agora quando o comandante a levara para a matança do borrego. O pai segurara a sua mão com força, com muita força, para que não se pudesse afastar. Samira sentira a faca a penetrar no pêlo, na pele, na carne e na garganta do borrego.
Samira fizera-o sem saber porquê. Fizera-o porque o pai assim o quisera.
A seguir, o comandante sentara a pequena Samira no cavalo e puxara-os. Com cuidado, sem cuidado. Primeiro o borrego caíra do cavalo, depois Samira caíra. O pai pegara nela e voltara a sentá-la no cavalo. Vezes sem fim. O Sol já se pusera, a Lua e as estrelas brilhavam no céu quando o comandante finalmente sentara o pequeno filho-rapariga no seu próprio cavalo e cavalgara através da noite.
Daria esperara-os em frente à tenda, preocupada e com saudades, e, quando finalmente os avistara, abrira os braços.
- Ele está a dormir - dissera o comandante. Daria pegara no filho-rapariga.
- Koshtish. Mataste-o - afirmara.
- Ele está a dormir - repetira o comandante.
- Um dia ainda voltas com a criança morta.
O comandante quis zangar-se, quis chamar a atenção de Daria, dizer-lhe que uma mulher não fala assim com o marido. Em vez disso, ouviu a sua boca dizer palavras, as quais não sabia que se encontravam na sua cabeça:
- Não vai ser a criança, vou ser eu a aparecer morto.
Muitos Verões e Invernos passaram desde que o comandante disse estas palavras. Mulheres, homens e crianças foram entregues mortos às suas mães, mulheres, irmãs, pais, irmãos e filhos. O comandante, no entanto, está tão vivo como naquela noite em que disse que iria aparecer morto. Daria estremece quando se lembra dessas palavras.
- Não deverias ter dito isso - explica. - Quando uma imagem que temos na cabeça é transformada em palavras, que são pousadas na língua e libertadas através da boca, essa imagem torna-se verdade. Isso não é bom. Há muita coisa que não é boa. Como tantas outras coisas na minha vida que não são boas.
Os dias em que Samira era entregue à mãe a dormir, e esta a pegava nos braços, há muito que acabaram. Samira deixou de ser uma criança pequena. Está maior e mais forte que a mãe, mais esperta que o pai e mais forte que os outros rapazes. Samira é maior e mais corajosa que os rapazes que estão no mundo de Deus há tantos Verões e Invernos como ela. Cavalga mais rápido que muitos deles e que alguns homens. Samira é metade homem, metade mulher, com uma beleza que deslumbra homens e mulheres. As pessoas chamam-lhe Samir, “o belo mudo”.
As mulheres comentam:
- O Samir não precisa de chicote, nem de força, para dominar os cavalos.
Os homens dizem:
- Os cavalos obedecem-lhe, como se ele fosse um deles, como se fosse o seu líder.
Samira toca uma melodia com a relva entalada entre os dedos. O cavalo fala com Samira, a muda. Esgravata o chão, empina-se, aproxima-se dela até Samira sentir a sua respiração e tocar nas suas narinas moles, agarrando a sua cabeça e acariciando-lhe o focinho. Samira anda ao lado do cavalo, encosta a cara à cabeça do animal. O cavalo olha para ela, mordisca os seus dedos.
- Quem me dera ser aquele cavalo - sussurram as raparigas, baixinho para que os seus pais, irmãos, mães e irmãs não as oiçam. Riem-se baixinho e comentam: - O rapaz brinca com o cavalo como se fosse a sua amante. - Observam como o rapaz fecha os olhos, com a respiração calma. O mundo à sua volta desaparece, apenas o rapaz e o cavalo existem.
As jovens esquecem-se de fechar a boca, os pais vêem o desejo das suas filhas sibilar como cobras e dão-lhes uma palmada na cabeça.
- Aquele rapaz é um diabo - comentam os homens, baixinho, para que o comandante não os oiça.
Daria vê e ouve tudo isto e muito mais.
Os rapazes põem a mão no ombro de Samira. Samira vê o olhar da mãe e do pai e torce o corpo, para que se afastem.
As raparigas estão proibidas de serem tocadas pelos rapazes. Trata-se de uma questão de honra. Samir, o rapaz, teria permissão para ser tocado. Samira, a muda, olha para o chão e morde os lábios.
Daria sabe que chegará o dia em que os rapazes se transformarão em homens e não tirarão as mãos do ombro da filha.
As pessoas comentam que Deus tirou a fala ao rapaz para que não pudesse desvendar o seu segredo.
- Quanto mais se fala de um homem, mais importante ele é - diz o comandante.
- O teu filho não é um homem - responde Daria.
- Mas irá tornar-se um homem. - O comandante olha para o filho-rapariga, sentado na relva a tocar uma melodia.
Samira não consegue ouvir as palavras da mãe e do pai, mas vê as suas expressões e sabe que são palavras feias.
- Vês o que fizeste - diz o comandante. - Ele está triste.
Daria permanece silenciosa.
Samira sabe que o pai deposita a culpa toda na mãe. Culpa-a pela sua melodia e culpa-a por tudo o que está para vir.
Daria afasta-se do comandante, entra na tenda onde se encontram o seu fogo e a sua água.
O comandante não vê as suas lágrimas, mas sabe que elas existem. Existem sempre. Desde o dia em que a filha a confrontou com as perguntas para as quais Daria não tinha resposta. As lágrimas estão na garganta de Daria, sempre prontas a sair.
- Filho, pára com isso! - exclama o comandante. Não gosta que Samir toque a melodia que solta as lágrimas da garganta de Daria.
Samira pára. Pára de tocar.
Azad pára de pastar, aproxima-se dela, ajoelha-se, deita-se no chão e pousa a cabeça no seu colo.
- Pára com isso! - ordena o comandante. - Um cavalo é um cavalo. Serve para transportar o dono e lutar no jogo.
Samira não vê a raiva do pai, nem ouve as suas palavras. O comandante lança o chicote pelos ares.
- O que se passa contigo? - pergunta. - Agora também és surdo?
Daria sai da tenda.
- Deixa-o.
- Deixa-me - responde o comandante. Daria deixa-o, cala-se.
Samira afasta Azad do colo, ergue-se ao mesmo tempo que ele, monta-o sem sela, estala a língua e vai-se embora.
O comandante lança o chicote pelos ares, assobia para o seu cavalo se aproximar, esquecendo-se de que o amarrara. O cavalo tenta arrancar a corda, abre os olhos, assustado. Rapidamente, o comandante solta-o, monta-o e segue o filho-rapariga. Daria volta para dentro da tenda, senta-se ao lado do fogo e do tacho com a água a ferver, olha para fora, vê a filha e o comandante, não apanha a bolha que salta da água.
O comandante alcança o filho-rapariga, cavalga ao seu lado, pega nele, senta-o à sua frente no garanhão e segura-o com força. Com muita força para que não caia e para que não salte.
- Vamos até ao rochedo - diz e agarra Samira com tanta força que esta mal consegue respirar.
Samira agarra-se à crina do cavalo do pai, encosta a cara ao pêlo do animal, acaricia-o e vê Azad ao seu lado. Azad parou de galopar, abrandou. Quanto mais Samira acaricia o cavalo do pai, mais os dois cavalos abrandam. O comandante dá uma chicotada na garupa do garanhão e puxa as rédeas com força. O cavalo não obedece, abranda, empina-se e depois pára quieto. Samira passa a perna por cima da cabeça do animal e salta para o chão. O comandante puxa pelas rédeas, mas o animal não avança e o comandante acaba por também saltar do cavalo.
Samira coloca-se em frente a Azad, que apoia a cabeça no seu ombro enquanto ela o agarra com o braço. O cavalo do pai põe o focinho na mão de Samira e mordisca os seus dedos.
- Os animais compreendem-te - grita o comandante, sem saber de onde vem a sua raiva. Uma raiva maior e mais forte que aquela que sente pelo inimigo. Uma raiva que o assusta.
Os cavalos esgravatam a terra com os cascos, recuam um passo. Samira permanece imóvel como uma árvore.
- Pára com isso! - exclama o comandante. Não é um pedido, é uma ordem.
“Parar com quê? Parar de ser uma árvore? De ser Samira? Ou Samir? De ser um verdadeiro rapaz? Ou de viver? De quê?”
- Pára com isso - repete o pai.
Samira, a muda, baixa o olhar.
- Cavalos são cavalos - explica o comandante.
Samira, a muda, aguça o olhar, mais nada.
O comandante lança o chicote pelos ares.
- Pára com isso. - A sua voz é tão estridente e feia que sente o sabor a sangue na boca.
O comandante levanta o braço para dar uma chicotada no cavalo. Samira acompanha os seus movimentos com o olhar. Lentamente, o comandante ergue o braço, alto, cada vez mais alto, até ao céu, para que Deus veja o chicote. Quando vai libertar a sua raiva e dar a chicotada, o cavalo abre muito os olhos, empina-se, relincha e foge.
O braço do comandante permanece no ar.
“Deus está a segurar a mão dele”, pensa Samira.
A SUSPEITA
Samira afia a faca já muito afiada para que a morte chegue mais rápido. Dá um último trago de água ao animal, que afinal também é uma criatura de Deus, agarra-o pelas patas e retira-o de entre as suas pernas. O animal cai ao chão, Samira pressiona os joelhos contra a sua barriga, encosta a faca ao seu pescoço, murmura: be-isme-Allah, e corta a garganta da ovelha com um golpe rápido. O animal esperneia e agoniza. O sangue jorra do seu pescoço e escorre pelas mãos de Samira, para o chão em frente aos seus pés. O animal estremece, abre muito os olhos, vê o assassino.
“É este o percurso da vida”, pensa Samira, a muda. “Viver é matar, viver é ser morto.”
- Deus abençoe este sangue - diz o comandante.
Samira apanha a primeira parte do sangue numa tigela e oferece-a ao círculo helal. Entorna o resto do sangue frente à sua tenda para que todos saibam que é a tenda de um guerreiro. Passa com o seu cavalo e o cavalo do pai por cima do sangue. Quatro vezes. Para que Deus lhe perdoe. Pelo sangue que derramou e que é tão vermelho como o seu próprio sangue.
- Pára com isso - diz o comandante. - Já chega de respeito.
Samira pára.
- Anda, os outros rapazes já estão à espera.
No campo de jogo, o comandante observa Samir.
- O meu filho é invencível - murmura para si próprio.
Samira inclina-se sobre o pescoço do cavalo. Não puxa pelas rédeas, não o incentiva com os calcanhares, nem usa o chicote. Parece galopar numa linha recta. Na verdade, inclina-se para um lado e para o outro, afasta os outros rapazes, como se de uma dança se tratasse e não de uma batalha a vencer.
- Olhem para ele! - exclama o comandante. - O meu filho é ágil como um peixe dentro de água e leve como um pássaro no ar.
Os outros homens acenam com a cabeça. Apenas Olfat, o carrancudo, vira a cara para que o comandante não o oiça e diz:
- O dia chegará em que esse rapaz terá de enfrentar o verdadeiro jogo, em que cem ou mais cavaleiros lutarão contra ele pelo cadáver. Nesse dia perderá.
Os outros homens permanecem calados, têm medo, não querem que Samir perca. Querem que ele seja o novo líder, quando o comandante deixar de o ser, pois, se isso não acontecer, Olfat tomará o seu lugar. Olfat e os seus quatro filhos. Olfat, o mentiroso, sem honra. Olfat, o ladrão.
Os homens querem acreditar na força e na invencibilidade do filho do comandante. Querem que Samir ocupe o lugar do pai e proteja as suas famílias e as suas posses. E que os proteja do inimigo, de Olfat e dos seus quatro filhos.
- Olhem para ele! - exclamam. - Ainda é rapaz, longe de ser um homem, mas vejam como o seu corpo já é forte, a sua alma plena de confiança e o seu coração cheio de bondade.
Olfat cospe para o chão um escarro esverdeado.
- Olhem para ele - repete com um riso irónico. - Vejam como lida com o cavalo. É suave e mole. O rapaz não é um verdadeiro homem, e nunca o será.
Os homens viram-lhe as costas, não querem ver o escarro de Olfat, nem cheirar o seu mau hálito.
- O Samir é justo e decente - dizem baixinho, para que Olfat não os oiça, e alto para que o comandante os oiça.
Olfat aproxima-se mais deles para que sejam obrigados a ouvi-lo.
- Nem o próprio comandante é um verdadeiro homem. Apenas gerou um único filho e depois perdeu a sua masculinidade.
Samira não ouve estas palavras, mas sabe destas conversas. Sabe que as palavras de Olfat são feias. Tão feias como o escarro esverdeado que cospe para o chão e que deixa no relvado como um sapo feio com a pele rasgada, à beira da morte.
Samira, a muda, gosta de ser muda pois não sabe o que responder, nem às palavras feias, nem às bonitas. Se fosse por ela, nunca viria a ser nada. Nem um bom líder, nem um mau líder, nem um bom guerreiro, nem um mau guerreiro. Neste momento acha que já tem suficientes responsabilidades e não compreende porque é que as pessoas não estão satisfeitas com o esforço que faz para se comportar e ser como todos querem.
Samira lança um olhar a Olfat e depois acelera. O pai repara nesta atitude, os outros homens e Olfat também. O comandante mostra-se satisfeito e os homens também. Apenas o horrível Olfat parece não gostar.
Daria encontra-se na tenda, frente ao fogo. Não apanha a bolha que salta do tacho, deixa-a saltar para as chamas e morrer. Apesar de não ver a cara do horrível Olfat, nem o seu escarro esverdeado, sabe como ele é. Não ouve as conversas dos homens, mas sabe delas e sabe que não são boas para a filha.
- O meu Samir é um vencedor - comenta o comandante durante o jogo.
Daria ouve as palavras do comandante, ouve os cascos dos cavalos e a respiração da filha. Tem vontade de ir falar com a filha, de lhe dizer: “Pára com isso, ainda te matas.” Mas não vai. Em vez disso, fica a observar as bolhas, deixa a filha lutar. Deixa as bolhas saltar, o seu comandante ter esperanças, os homens falar e Olfat cuspir. Daria deixa tudo isso. E acumula mais culpa.
- Quem ganhou? - pergunta quando Samira e o comandante regressam à tenda.
Samira sorri.
O comandante permanece calado, finge que não ouviu a pergunta da mulher.
- Então foi a minha filha que ganhou - conclui Daria. A vitória da filha traz felicidade à vida da mãe.
Samira sorri e abraça a mãe numa atitude de perdão. Perdão pela culpa que o pai deposita nela. Samira adora o jogo
do perdão. Adora ser criança. Repara no olhar do pai, inseguro, e cheio de ciúmes.
- Deixa-a em paz - diz Daria.
O comandante não ouve as palavras da mulher. Não as quer ouvir.
- Tu estás todo o dia com ela - continua Daria. - Arrastas a nossa filha para todo o lado, cavalgas montanha acima e abaixo com ela. Ela comporta-se como um homem o dia inteiro. Dispara, caça e mata. Pratica o jogo dos homens. Deixa-a. Deixa-a ser rapariga durante uns breves instantes.
O comandante não a ouve.
Daria senta-se em frente ao fogo, deixa as bolhas saltar e morrer.
- Olha para mim, rapaz - diz o comandante. Não pede, manda.
Samira obedece.
- Vai deitar-te. Iremos até ao rochedo antes do amanhecer.
Samira obedece e pega nos cobertores para prepará-los para a noite.
- Não faças isso - diz o comandante. Não pede, manda. Samira pára.
- Preparar as camas é tarefa de mulher.
Daria ergue-se com dificuldade. Apoia a mão no joelho, suspira e limpa a testa com as costas da mão. Carrega um peso nos ombros que é tão pesado como as rochas nas montanhas.
Samira não se lembra de quando é que a mãe se transformou, quando envelheceu e perdeu todas as forças. Apetece-lhe ajudá-la a regressar ao seu lugar em frente ao fogo, quer ter a mãe de antigamente de volta. Quer deitar-se nos seus braços e desaparecer no mundo do sono. Colocar-se em frente ao pai e dizer-lhe para deixar a mãe em paz. Mas não o faz. Permanece imóvel, ali no mesmo lugar de antigamente, quando tinha metade do tamanho. Sem saber quando foi o dia em que tudo se perdeu.
Nessa noite, quando o comandante molha o pão quente, que Daria tirou do forno, no iogurte fresco que Daria esteve a preparar durante todo o dia com o leite de cabra, quando vai pôr esse pão na boca, quando Daria acabou de espalhar os cobertores e almofadas para a filha no chão, no momento em que Daria deita um olhar cansado ao comandante, é nesse momento que Samira pega na arma e sai da tenda com um passo decidido, nem rápido, nem lento. Chama o cavalo com um assobio, monta-o e desaparece na escuridão da noite.
O comandante comete o pecado de deitar o pão para as chamas, para as chamas de Daria. Ergue-se e prepara-se para sair da tenda e perseguir Samir, quando sente a mão da mulher no braço.
- Vês?! - exclama. - Vês o que fizeste com o meu filho?
Daria quer falar-lhe da dor que sente, mas vê a tristeza no olhar do comandante. A tristeza e a saudade.
- Porque é que o passado é sempre melhor que o presente? - pergunta.
O comandante não compreende.
Daria não sabe de onde vêm as palavras na sua cabeça, '
não sabe por que razão a sua língua as diz. São palavras que antigamente dizia. Palavras há muito esquecidas.
- Sinto a tua falta. O comandante fica calado, engole lágrimas.
- Estou aqui, não me vês? - pergunta, admirado por já não ter raiva na voz.
- Claro - responde Daria. Mais nada. Apenas um pequeno e insignificante “claro”.
“Eu é que preparo a minha cama”, pensa Samira, espalha o cobertor no rochedo, arma a espingarda e pousa-a ao seu lado. Depois olha para o céu e fala com Deus e com as estrelas.
- A miúda já não é nenhuma criança - afirma Daria.
- Eu sei.
Daria faz algo que há muito não fazia. Tira o vestido e fica meio nua.
O comandante toca na pele de Daria e deixa os seus dedos brincar com ela. Daria permanece silenciosa, a sua mão desce pelo pescoço do comandante, pelo seu peito, desce até ao lugar onde o tiro o atingiu. Onde agora já não há nada. Apenas cicatrizes, crostas e feridas.
O comandante estremece.
- Já não sentes desejo por mim - murmura.
- Sinto. Tu é que não o vês.
- A culpa não é minha - afirma o comandante. Daria sabe de quem é a culpa. É da vergonha, do ódio.
O comandante odeia o homem que disparou contra ele e os seus homens, que o trouxeram de volta até à tenda, em vez de o deixarem morrer. Odeia Bibi-Jan por ter oferecido o amuleto a Daria e odeia a sua mulher por ser culpada. Odeia as pessoas que não o consideram um verdadeiro homem. E odeia Samir por não ser um verdadeiro rapaz. O comandante odeia tudo e todos, odeia-se a si próprio e tudo o que aconteceu e o que não aconteceu. Tornou-se um só como o vazio que se encontra no lugar da sua masculinidade.
- Perdi o homem dentro de mim - afirma.
Daria não quer que ele diga estas palavras.
- As coisas tornam-se realidade quando as dizemos. Perdemos a nossa filha.
- Eu não perdi o meu filho - responde o comandante.
- Ela não nos pertence - explica Daria.
- Ele é o meu filho - insiste o comandante.
Muito antes de o Sol nascer sobre as montanhas, o comandante monta o garanhão e cavalga através da escuridão até ao rochedo, onde se encontra Samira.
Esta sorri quando ouve os cascos e o fungar do cavalo do pai.
O comandante desce do cavalo, pára por baixo do rochedo, olha para a escuridão da noite e, de repente, já não sabe porque veio até aqui. Estica os braços, salta e tenta agarrar-se à borda do rochedo, mas escorrega. Volta a saltar, apenas conseguindo tocar com a ponta do dedo na borda do rochedo. Sabe que o filho já compreendeu que hoje é o dia em que o pequeno Samir terá de se tornar um homem, porque o pai há muito deixou de o ser. O comandante não está triste, nem sente dor. Sente-se leve. Chama o garanhão com um assobio, monta-o, põe-se em pé e sobe para o rochedo, como antigamente, quando era rapaz.
- Acorda, filho, o teu pai chegou - sussurra. Samira finge que está a dormir, finge que não compreendeu que o comandante já não é invencível. Vira-se e sorri.
- Continuas com o mesmo sorriso de antigamente. Como no dia em que te segurei nos braços, tu pegaste no meu polegar com a tua pequena mão, sorriste, inclinaste a cabeça e adormeceste. Quando terá sido esse dia? Há doze, talvez só onze Verões e Invernos que foram e vieram?
Samira toca num dos caracóis do pai e encolhe os ombros.
- Tens razão. Que diferença faz? Nenhuma. Nenhuma mesmo.
O comandante fita Samir, vê a jovem mulher dentro dele, vê o homem dentro da sua filha. Sabe que nunca será nem uma coisa, nem outra.
- Sentes? - pergunta. - Deus afastou o véu que tinha posto entre ti e mim.
Samira, a muda, ri-se e põe a mão em frente dos olhos, como se os seus dedos fossem um véu. O comandante cala-se.
- Perdoa-me - pede, após um longo silêncio. Samira, a muda, sorri.
O comandante entrega uma trouxa ao filho-rapariga.
- No dia em que abrires esta trouxa, vais tomar uma decisão.
Samira, a muda, sorri.
- Tenho que partir para a guerra.
Samira acena com a cabeça.
- A guerra é um lugar do qual talvez não volte.
Samira acena com a cabeça, finge que dispara e que leva um tiro.
- Isso não te assusta?
Samira abana a cabeça.
- Posso ser morto.
Samira abana a cabeça e toca nos músculos do pai.
- Vamos chamar o Sol, como fazíamos antigamente - propõe o comandante e abre os braços. Apetece-lhe pegar na criança, fechar os olhos e perguntar-lhe: “O que sentes?”, como antigamente.
Samira não se atira para os braços do pai, não se aproxima para que a abrace. Salta do rochedo e desaparece na escuridão.
Quando o Sol deita os primeiros raios, tingindo o céu de azul e desenhando o contorno da montanha no horizonte, o comandante vê o seu Samir subir rápida e agilmente como uma cabra até ao pico da montanha.
Lá em cima, no ponto mais alto, Samira pára. Permanece quieta, imóvel, direita, de costas viradas para o pai, a olhar para o Sol. O Sol trepa pela montanha, acorda as ervas, as silvas e os arbustos. O mundo acorda, aquece, a luz do Sol ofusca, fere os olhos. Samira vira-se, abre os braços e as pernas e lança uma sombra comprida. Pérolas de suor formam-se na testa do comandante, o sangue palpita-lhe nas veias, a sua respiração torna-se pesada, a sua língua incha, o comandante quer engolir, mas não consegue. O garanhão e o cavalo esgravatam a terra, levantam e baixam as cabeças e as suas crinas esvoaçam. A sombra cresce, torna-se comprida, alonga-se pelo rochedo. O Sol parece uma grande bola brilhante. Samira está no meio do círculo de luz, no meio do Sol.
- O meu filho transformou-se num anjo - sussurra o comandante, sentado na sombra do filho-rapariga, de olhos posto no pico da montanha. - Perdoa-me - murmura.
O Sol sobe, Samira, de braços abertos, parece carregar a luz do Sol.
- Quebraste a luz do Sol e depois carregaste-o nos teus braços - comenta o pai quando Samir volta a subir para o rochedo, sem dificuldade. O pai encosta a cabeça ao ombro do filho-rapariga, transforma-se numa criança.
- Quando é que isto aconteceu? - pergunta. - Não sabia que já não precisas de montar o cavalo para subir para o rochedo.
Samira, a muda, encolhe os ombros.
- Quando é que a criança dentro de ti desapareceu?
Samira salta do rochedo e não monta o seu próprio cavalo, mas sim o garanhão do pai. Olha para cima, para o rochedo, faz uma vénia perante o pai, o comandante invencível, e parte.
O comandante segue-a com o olhar até se tornar um pequeno ponto à distância.
De repente, Samira dá a volta ao cavalo e regressa a alta velocidade até ao rochedo. O garanhão empina-se e mexe as patas da frente no ar, como se quisesse saltar para o rochedo.
- Antes de partir para a guerra vou participar no jogo do boskashi - afirma o comandante. - Será o meu último jogo. Quando voltar, vai ser a tua vez de jogar.
Samira, a muda, sorri, sabendo que não participará no verdadeiro jogo enquanto o comandante o fizer.
- Estou cansado. Vamos deitar-nos de costas e esperar pelos pássaros - propõe o pai.
Samira, a muda, obedece. O pai e o filho-rapariga deitam-se no rochedo e olham para o céu azul e, tal como o pai propusera, esperam pelos pássaros. Escutam apenas o vento e as suas próprias respirações.
Samira é a primeira a descobrir o pássaro. Lá em cima, tão alto como Samira nunca vira nenhum, avista um enorme pássaro prateado que não bate as asas. Estende o braço e persegue-o com o dedo.
- Aquilo não é um pássaro, é um avião - explica o pai.
Samira, a muda, enruga a testa.
- Pobre rapaz - afirma o comandante. - Vê só o que fiz contigo. Nem sequer sabes o que é um avião. Mas sabes o que são carros, não sabes?
Samira acena com a cabeça. No alto das montanhas não existem carros, mas no Inverno, quando migram para o Sul do país, Samira por vezes vê carros. Carros são caixas com rodas grossas e pretas. São feitos de ferro e mais rápidos e velozes que os cavalos. Transportam as pessoas com as suas tendas e tudo aquilo que possuem de um lado para o outro. Samira gosta de carros.
- Vês - diz o pai. - E aquilo, lá em cima, é uma espécie de carro, só que é maior, tem asas e voa.
Samira não sabia nada disso. Não fazia ideia de que existiam carros com asas, que voam.
- Não há muitos homens capazes de fazer voar um avião - explica o comandante. - Esses homens chamam-se pilotos.
“Piloto”, pensa Samira. “Que nome tão bonito.”
O MILAGRE
Há muito tempo que o comandante já não sabe que guerra é esta. Contra quem luta, por quem mata e por quem está disposto a morrer. Desde pequeno que anda nestas guerras. O seu pai tornara-se mujahed quando fora para as montanhas para matar os Russos. Ele ficara com a mãe para a proteger, a ela e às irmãs e irmãos. Durante dez longos anos, os soldados russos roubaram raparigas e mulheres afegãs, violaram-nas e mataram-nas.
Quando os Russos abandonaram o seu país, o jovem filho do comandante agradecera a Deus e tirara a arma do ombro julgando que tinham levado a guerra com eles. O seu pai ensinara-lhe: “Paz é quando montamos as nossas tendas, ordenhamos as ovelhas e jogamos boskashi.”
Mas quando finalmente o filho do comandante começava a obter respostas sérias às suas perguntas, o pai dissera: “Temos de voltar para a guerra.” O jovem acompanhara o pai na luta contra os outros afegãos. Nessa batalha, o pai fora morto com um tiro. Quando o jovem comandante enterrara o pai perguntara: “Por quem matamos os nossos irmãos?”, e os outros homens tinham-lhe respondido que lutavam contra os talibãs.
“Vou parar de lutar”, afirmara o jovem comandante. “Vou parar de matar os meus irmãos.” Os homens tinham-lhe respondido: “Nós lutamos contra estrangeiros, contra talebs estrangeiros.” O comandante retorquira: “Eu não mato muçulmanos”, mas Deus enviara a seca e a fome, destruindo a colheita nos campos e os homens decidiram: “Temos de lutar para sobreviver.”
E agora? Agora continua a lutar. Pouco importa contra quem. O importante é lutar. Não pela liberdade da pátria ou pelo Islão. Apenas por dinheiro. Por pouco dinheiro. Dinheiro que nem sequer basta para comprar a fidelidade dos seus homens.
- Desta vez é uma guerra boa - explica o comandante e passa a mão pela cabeça rapada do seu Samir.
- Não sabia que uma guerra pode ser boa - afirma Daria.
- Os homens comentam que esta guerra é paga pelos estrangeiros.
- Julgava que não queremos estrangeiros na nossa pátria.
- Eles querem libertar o nosso país - explica o comandante.
- Libertar de quê?
O comandante encolhe os ombros. Daria permanece silenciosa.
Samira levanta-se com um salto, pega na arma e no cinto com os quatro cartuchos e coloca-se em frente ao comandante.
- Não, não podes ir comigo - diz o pai.
Se pudesse falar, Samira diria: “Eu quero matar, para que possas viver.” Mas Samira, a muda, permanece muda.
Ainda é noite e as estrelas brilham no céu quando se ouvem cascos de cavalos e vozes fora da tenda. São os homens do comandante. Raouf, o inteligente, Habib, o bondoso, e Olfat, o feio, com os seus quatro filhos. Homens fiéis e infiéis. Homens que querem que o comandante os lidere e homens que querem liderar.
O comandante saúda cada um deles com um sorriso e um abraço, incluindo Olfat e os seus quatro filhos.
- Estamos prontos - afirma Habib, o bondoso.
- Bebam um chá - propõe o comandante.
- Komandan, o que pensa? Acha que seremos bem pagos? - pergunta o filho mais velho de Olfat.
O comandante apercebe-se imediatamente de que a pergunta é uma armadilha.
Faz-se silêncio entre os homens. Os filhos não devem falar na presença de homens mais velhos e mais importantes. Quanto mais fazerem perguntas ao comandante.
- Komandan - repete o filho de Olfat. - Enquanto nosso líder, é responsável por nós. Seremos bem pagos?
O comandante aguça o olhar.
- Batsbe! - responde, mais nada. Apenas diz “rapaz” e a palavra soa como um tiro. Um tiro certeiro.
O filho de Olfat estremece e baixa o olhar.
- Olha para mim. - O comandante inclina-se para a frente, fala num tom de ordem e o rapaz ergue o olhar. - Foste pago pelo dia de hoje?
O filho de Olfat baixa o olhar e permanece silencioso.
- Responde.
Samira consegue ouvir os corações dos homens a bater. Ouve o seu próprio coração, o do filho de Olfat, o da sua mãe e de todos os outros.
O comandante espera pela resposta.
- Bale - responde o rapaz, baixinho. O comandante acena com a cabeça. Samira ouve os corações a bater.
O comandante bebe um gole do chá, olha nos olhos de cada um dos homens à sua volta, um depois do outro, e declara:
- Não sei se as pessoas dizem a verdade ou se apenas falam para se tornarem importantes. Não conheço os estrangeiros, nem sei por que razão vieram para a nossa pátria, nem quanto dinheiro trazem.
Segura o seu copo vazio no ar e aguarda que Daria o encha de chá.
- Tudo o que sei é que vou guiar-vos como sempre vos guiei.
Os homens permanecem silenciosos.
- Deus é a minha testemunha. Pela vida do meu filho, vou assumir a responsabilidade por vocês, como sempre a assumi.
Habib, o bondoso, acena com a cabeça e levanta-se.
- O comandante fala bem.
Este permanece silencioso e passa a mão pela barba. Olfat, o feio, aguça o olhar.
- O comandante fala bem - repete. - Mas já que assume a responsabilidade por nós, diga-nos o que vamos fazer quando os estrangeiros chegarem às terras altas? Escondemos as nossas mulheres e filhas, os nossos pertences e os animais?
O comandante responde num tom em que nunca antes se dirigira aos seus homens. Levanta a voz e as suas palavras estão cheias de raiva, fazendo calar tudo e todos.
- Os estrangeiros não virão para cá - declara, sem saber porque tem tanta certeza daquilo que diz.
Samira ouve os corações a bater.
- Eles não virão, porque nós iremos ao encontro deles. Bass e khalass.
Habib, o bondoso, é o primeiro a acenar com a cabeça. Depois segue-se Raouf, o inteligente, e os outros homens. Até Olfat, o feio, e os seus quatro filhos anuem.
- Por quem vamos lutar? - pergunta um dos homens.
- Lutamos por quem e contra quem quer que seja - responde o comandante.
- Quando vamos lutar? - pergunta outro homem.
- Quando o Sol nascer. Rezaremos e partiremos para a guerra.
Ao amanhecer o comandante afasta os cobertores, pega na arma, ata a trouxa com o pão que Daria tirou do forno ao cavalo e parte. Em direcção ao vale, à aldeia, à guerra. A sua postura não é aprumada, nem exprime a esperança de que mais uma vez vai derrotar o inimigo. Quem quer que seja o inimigo.
Tudo é como sempre foi, quando o comandante parte para a guerra. Mas tudo é diferente. O comandante sente a falta do seu Samir, das terras altas nas montanhas do Indocuche e do rochedo. Sente falta do comandante que era há vários Verões e Invernos. Da força que tinha nessa altura, da força que perdeu.
Samira e Daria permanecem na tenda. Daria prepara a massa para o pão, forma pequenas bolas e espalma-as, atirando-as contra a parede do forno. Do forno que o comandante construiu para ela.
- Verás que o tempo tem asas e voa - diz. - Quando te deres conta de que ele partiu, estará de regresso.
Samira senta-se em frente à mãe, agarra os joelhos com os braços e deita a cabeça nos joelhos. Daria tira o pão do calor, arranca um pedaço e entrega-o ao filho-rapariga. Samira adora o pão fresco, quente e mole. Antigamente, quando tinha metade do tamanho que tem hoje, quando ainda não era muda, sorria quando a mãe lhe dava o pão. Encostava o pão ao peito e dizia: “O teu pão aquece o meu coração.” Agora Samira é muda e o seu coração está frio.
A mãe tinha razão. Os dias e as noites têm asas, transformam-se em pássaros e voam. A Lua torna-se estreita. Numa das várias noites em que Samira vai sozinha para o rochedo e fica sentada na escuridão da noite, ouve os cascos de cavalos, os cascos do garanhão do pai. Salta do rochedo, monta o cavalo e cavalga em direcção aos homens, que se aproximam a alta velocidade. Sem falarem.
O comandante não pára quando passa pelo filho. Não o cumprimenta, não o abraça, nem lhe conta as histórias da guerra. Samira incentiva o cavalo a andar. Sabia que desta vez tudo iria ser diferente. Não compreende o que se passa, não engole as lágrimas, deixa-as correr, empurra o cavalo, passa pelo pai e pelos seus homens em direcção à tenda da mãe.
Daria encontra-se em frente à tenda, na escuridão.
A filha não espera que o cavalo pare, salta para o chão. Passa a correr pela mãe, para dentro da tenda. O tacho encontra-se no seu lugar, mas a água que contém não murmura nem pragueja. Está silenciosa, fria. Não há bolhas a saltar para as chamas e a morrer.
O coração de Samira fica frio. Frio como o fogo, frio como a água. Samira tropeça, cai, rasteja para um canto da tenda e refugia-se entre os cobertores e as almofadas. Encolhe-se, fecha os olhos e não quer ver, nem ouvir nada. Apenas ouve a batida fria do seu próprio coração.
Daria entra na tenda com uma cara pálida.
A filha percebe que o pai também não a cumprimentou, nem a abraçou ou lhe contou as histórias da guerra.
Daria dirige-se à filha.
- Anda, vamos lá para fora.
Samira não se mexe, fica enrolada entre os cobertores.
A mãe ajoelha-se em frente a Samira, vê a sua cara bonita e os seus traços suaves que se tornaram duros por estar o dia todo ao ar livre, a cavalgar, a subir a montanhas e a disparar. Por lutar com os outros rapazes, rachar lenha, por se ter tornado um rapaz. Os seus belos olhos escuros cintilam, o seu pequeno nariz tornou-se largo e duro. Os seus belos lábios estão gretados e secos, porque os morde e porque anda sempre com o chicote do jogo do boskashi ou as rédeas do cavalo entalados entre os dentes.
Samira vê o olhar da mãe e percebe que Deus afastou o véu que tinha colocado entre elas.
Daria agarra a criança pelas mãos, puxa-a para cima e leva-a consigo para fora da tenda. Samira não compreende porque é que os homens ainda não desceram dos cavalos. Afasta-se da mãe e vai à procura do pai. Quer ver a sua cara e compreender porque não lhe dirigiu a palavra. O garanhão do pai reconhece-a e chama Samira com um relinchar baixinho. Samira estende a mão e toca no pano pendurado sobre o cavalo. Toca no sangue, apalpa o corpo por baixo do pano e apercebe-se de que é o pai. O seu pai, o comandante, o invencível.
Abre a boca, quer gritar, mas não consegue emitir nenhum som. Solta um grito surdo. Um longo grito surdo. Apanha ar e volta a abrir a boca. Mas, mais uma vez, não consegue gritar. Sente o sabor a sangue na garganta. Samira, a muda, grita. Cai para o chão, fica deitada no chão e rasteja até à mãe, como um animal ferido. Aproxima-se da mãe e agarra-se à sua saia. Puxa a mãe para baixo, para perto de si, olha-a fixamente nos olhos, cheios de tristeza, abre a boca e diz:
- Derramaram sangue.
- É um milagre! - exclama um dos homens. - Samir, o mudo, voltou a falar.
- O teu pai tornou-se um shahid - afirma Daria. Mais nada. Não pergunta por que razão a criança voltou a falar. Porque é que não falou durante os últimos Verões e Invernos. Não exclama que aconteceu um milagre.
Os homens pousam o cadáver do comandante no chão em frente à tenda, no lugar onde já o tinham pousado outrora.
Daria grita, atira-se para cima do morto e puxa os seus próprios cabelos até arrancá-los. Pega no pano que o cobre, puxa-o, arranca-o e agarra-se à sua roupa. Arranha a cara até sangrar e um pingo de sangue cair na cara do comandante, onde permanece e se mistura com o seu sangue, tornando-se um só.
Samira quer fazer o mesmo, atirar-se para cima do comandante, chorar, lamentar-se e arranhar a cara até sangrar. Mas não o faz. Fica em pé, imóvel. Observa a mãe, e o pai morto. Como se estivesse a assistir a uma peça dos músicos no bazar do vale, que vêm da cidade para contar as histórias escritas na carta do rei, a shah-nameh, aos habitantes das montanhas.
Daria atira-se para o chão, bate com a cabeça contra uma pedra e o sangue da sua testa tinge a pedra de vermelho.
- Onde está Deus? - pergunta Samira e passa a mão pela cabeça da mãe.
A mãe fita-a com uma expressão de loucura no olhar. Balbucia palavras que Samira não compreende, afasta o filho-rapariga com um empurrão. Meio sem querer, meio de propósito. Com um gesto brusco. O coração de Samira fica frio.
Os homens carregam o comandante crivado de balas para dentro da tenda. O seu sangue pinga no chão. Sangue de comandante, sangue de vítima.
Bibi-Jan aparece, lava a cara desfeita do comandante e põe um lenço branco à volta da sua cabeça. Ata o queixo para que a boca não se abra, acaricia a cabeça do comandante como antigamente, quando ele era rapaz.
Olfat, o feio, é o primeiro a retomar a palavra.
- Precisamos de um novo comandante - afirma.
Os homens choram.
- Está na hora de o Samir se tornar um homem - respondem. - Um verdadeiro homem. Será o nosso novo líder. Samir, o filho do honrado comandante.
- Ele ainda é uma criança - replica Olfat, o feio.
Quanto mais pessoas se aproximam para ver o morto invencível, mais Samira se afasta do cadáver do pai, e da mãe, que não pára de arranhar a cara. Desaparece na escuridão da noite para ir buscar a trouxa que o pai lhe entregara no rochedo. Vai até ao riacho com a intenção de a abrir, mas chega à conclusão de que este não é o dia certo. Tira o gorro, os sapatos e a shalvar-kamiz e deita-se na água fria. Fecha os olhos e faz aquilo que não fez nos últimos Verões e Invernos. Fala. Depois de todo este tempo sem falar com ninguém, Samira conversa com a água.
- Lava-me - murmura. - Lava os meus pecados, leva-os contigo. Leva as perguntas sem resposta, leva a dor e a rapariga dentro de mim. Leva-os. Leva aquilo que quiseres. Dá-me espaço. Espaço para a minha vida sem pai, espaço para poder ser um verdadeiro rapaz.
Samira olha para os seus pequenos seios e sabe que a água não os levará, que crescerão e que terá de escondê-los. Deitada na água, sabe que deveria chorar e, sem saber porquê, em vez disso, ri-se. Permanece dentro da água fria até o seu corpo doer, até deixar de senti-lo, até não saber nada, nem querer saber nada, até todas as perguntas desaparecerem e já não haver respostas.
No momento em que o mula se prepara para perguntar por que razão o filho do comandante não veio ao enterro do pai, uma sombra desenha-se sobre o pano que cobre o morto. O mula aguça o olhar e vê os contornos de um rapaz que ainda não é homem. Samira encontra-se no meio do Sol, uma grande bola brilhante, e parece um anjo. Ou o diabo.
- Saiam - é tudo o que diz. Apenas um pequeno grande saiam.
- É um milagre - comentam as mulheres e os homens. - Samir, o mudo, fala.
- Senta-te ao meu lado - diz o mula. - Vamos rezar.
Samira olha à sua volta e vê a mãe, sentada atrás dos homens, entre as mulheres. Cobriu a cabeça com um lenço preto e baloiça o corpo de um lado para o outro. Consegue ver a dor da mãe, uma dor tão grande que quase a mata. Aproxima-se dela e agarra-a pelos braços, com força. Os braços da mãe estão magros.
- A culpa não é tua - diz Samira, e conduz a mãe para perto dos homens, onde se encontra o mula e o cadáver do pai.
- O que faz esta mulher entre nós? - perguntam os homens.
Samira senta a mãe ao lado do mula e senta-se ao seu lado. O mula afasta-se ligeiramente e prepara-se para reclamar, mas vê os olhos escuros do filho do comandante e fica calado.
Os homens comentam em voz baixa, para que Olfat, o feio, não os oiça:
- Ele vai tomar o lugar do pai e será o nosso líder.
O mula baloiça o corpo para a frente e para trás, coloca uma mão sobre o ouvido e prepara-se para começar a rezar. Mas nesse instante, antes de o primeiro som fedorento sair da sua garganta, ouve-se uma voz. Uma voz que soa como o cântico das huris de Deus, dos anjos que enviou para cantarem a vida e a morte do comandante. É a voz de Samira.
O coração de Daria transforma-se num botão de flor, abre-se e ilumina-se.
Nessa noite, depois de as mulheres e os seus filhos, os homens e as suas armas voltarem para as tendas, Daria e Samira permanecem em frente ao monte de terra sob o qual foi enterrado o comandante. Samira põe lenha no fogo, sem olhar para o monte de terra, sem querer vê-lo. Olha apenas para a mãe e para o fogo que se reflecte na sua face como uma dança de luz.
Daria mexe os lábios e murmura palavras incompreensíveis.
- O amuleto vai proteger a criança - murmura. - E destruirá tudo e todos que tentarem prejudicá-la.
- Eu vou proteger-te - afirma Samira.
- Minha filha corajosa - responde a mãe. Diz “filha”. Não diz “criança”. Diz “minha filha corajosa”.
Sem pensar, Samira aproxima-se da mãe, deita a cabeça no seu colo e fecha os olhos. Soluça, não engole as lágrimas. Chora. Chora e cada uma das suas lágrimas transforma-se numa flor vermelha.
Ao fim dos quatro dias e quatro noites que mãe e filha passam ao lado da sepultura, a mãe pergunta:
- Porque é que não falaste durante todo este tempo?
- Man tshe midanam, não sei - responde Samira, encolhendo os ombros. - Deus quis que assim fosse - acrescenta, e deita a cabeça no colo da mãe.
- A tua cabeça no meu colo é como antigamente, quando eras uma criança.
- O antigamente já não existe - responde Samira. - É esse o percurso da vida. Viver é matar. Viver é ser morto.
- Quem te ensinou isso? - pergunta a mãe.
Samira vê as ovelhas que matou, uma a seguir à outra. Vê os seus pescoços cortados, vermelhos como bocas sorridentes. Cheira o sangue das vítimas.
- Man tshe midanam - responde, fecha os olhos e ouve uma voz. A voz do ouvinte invisível.
“És inteligente”, diz a voz. “Mais inteligente que a tua pobre mãe e que o teu pai, que agora está morto.”
- Man tshe midanam - repete Samira. Daria passa a mão pela cabeça da filha.
- Dorme.
- Quem és tu? - pergunta Samira.
“Tu conheces-me”, responde a voz. “Sou o ouvinte invisível. Quem te disse que viver é matar e ser morto?”
- Eu vi! - exclama Samira, e enterra as mãos na saia da mãe.
- Eu sei - responde Daria. - Os teus pobres olhos viram muita coisa. Pára de lutar. Dorme.
- O ouvinte invisível está comigo.
- Diz-lhe para se ir embora. Diz-lhe que queres dormir, que te deixe em paz.
- A minha mãe diz para eu te mandar embora - repete Samira.
- Antes eras muda, agora falas enquanto dormes.
- Ele vai dizer-me tudo - murmura Samira.
- Diz-lhe que não queres saber nada.
O ouvinte invisível senta-se no monte de terra, por baixo do qual está enterrado o comandante morto, colhe uma flor vermelha como o sangue e atira-a para a cara de Samira.
Samira estremece e agarra-se com força à saia da mãe.
“Olha bem”, diz o ouvinte invisível. “Olha bem e diz-me o que vês.”
- Vejo o meu pai e vejo a minha mãe. Vejo a luta que travaram.
- A minha filha recebeu um hóspede. - Daria fala com o fogo, pois não há mais ninguém com quem possa falar.
“Quem é esse hóspede?”, perguntam as chamas.
- Ele quer que ela veja - responde Daria. “Pobre Daria, enlouqueceste”, diz o fogo. Daria encolhe os ombros.
- Perdi a minha filha. Perdi o anjo que tinha dentro de mim.
O fogo estala, as chamas ralham e sibilam.
- Chiu, não façam barulho, a criança está a dormir - pede Daria.
O ouvinte invisível afastou-se do monte de terra e encontra-se agora no fogo.
“Viste?”, pergunta a Samira. Samira acena com a cabeça.
- Eu vi a culpa. “A culpa de quem?”
- A culpa da minha mãe. O pecado e a culpa do meu pai. O pecado e a culpa de Deus.
O ouvinte invisível senta-se no peito de Samira.
- Minha pobre filha - murmura Daria.
O ouvinte invisível coloca o dedo na boca de Samira.
“Diz-lhe que não és pobre.”
Uma lágrima salta dos olhos de Daria e cai na face da filha que dorme. Samira acorda, abre os olhos, limpa a lágrima da mãe da cara.
- Não sabia que sou capaz de chorar enquanto durmo.
O ouvinte invisível coloca-se atrás de Daria e pousa a cara no seu ombro.
Samira vê a mãe e, ao lado, a face do ouvinte invisível. Estica o dedo para lhe tocar. Mas o ouvinte desaparece, volta a aparecer, pousa a cara no colo da mãe, bem perto. Samira consegue sentir a sua respiração e ouve o seu coração.
O ouvinte invisível fala baixinho, porque aquilo que tem para dizer é importante.
“Diz à tua mãe que chegou a hora de ela te entregar o amuleto, pois destrói tudo e todos que tentarem prejudicar-te.”
Ao fim de quatro dias e quatro noites, Daria e Samira regressam à tenda. Daria acende a chama, enche o tacho de água e coloca-o no lume. Samira recolhe os cavalos, monta o garanhão do pai e cavalga pela planície, até voar.
- É ele - comentam as pessoas. - O filho do comandante e os seus cavalos.
As pessoas cumprem as regras. Durante quarenta dias e noites de luto deixam a viúva em paz. Não lhe dizem que aquele que a sustentava morreu, nem lhe perguntam o que pretende fazer. Não lhe explicam que nenhum deles consegue sustentar a sua própria família, quanto mais a ela e ao filho. Nem lhe dizem que precisa de um novo marido.
Só ao fim de quarenta dias e noites começam a aparecer. As mães dos filhos solteiros, as mulheres e irmãs dos outros homens.
- Tens de te casar - dizem. - Precisas de alguém que te alimente e te proteja.
- Não preciso de protecção - responde Daria. - Tenho o meu filho.
- O teu filho é uma criança. Deus não gosta de ver uma mulher sozinha, sem a protecção de um homem. É uma situação perigosa. Vai haver homens estranhos atrás de ti e isso pode provocar uma guerra.
Os anciãos, os riesch-sefid, e os restantes homens decidem reunir-se. As mulheres estão proibidas de participar. A mulher do comandante morto é obrigada a manter-se a uma devida distância.
- Basta que o filho participe na nossa sura - justificam-se os homens. - Ele ainda não é homem, mas agora que já fala, queremos ouvi-lo.
Olfat, o feio, propõe que Daria e o filho fiquem ao seu cuidado.
- O meu filho tomará o poder - propõe. - E a minha família assumirá a responsabilidade pelos cavalos e os restantes pertences do comandante.
O homem com a barba mais branca diz que é ele quem está há mais tempo sozinho e que Deus gostaria de vê-lo com Daria. Outro homem responde-lhe perguntando como sabe ele do que Deus gosta e do que não gosta.
Muitos homens dizem muitas palavras.
Samira permanece silenciosa.
Os homens pedem-lhe para falar.
- A tua mãe disse que a protegerias. E agora não dizes nada?
Samira não responde nem sim, nem não, apenas afirma:
- Estive a ouvir tudo o que disseram. Vou tomar uma decisão, que depois vos participarei.
Os homens permanecem silenciosos. Nenhum deles esperava uma resposta tão sábia. Olfat, o feio, pergunta:
- Quando nos participarás a tua decisão?
- Quando chegar a altura certa.
A voz de Samira é firme e segura, repleta de coragem e de confiança.
- Quando chegará a altura certa? - pergunta Olfat, o feio, e cospe para o chão.
Samira não lhe responde. Ergue-se, faz uma vénia e pede permissão para se retirar. Sem esperar que lhe seja concedida, afasta-se.
- Tens muita coragem - afirma a mãe e encosta a cabeça cansada ao ombro da filha. - O que é que tu tencionas fazer quando eles voltarem?
Daria não fala em “nós”, diz “tu”, um “tu” grande e pesado.
- Aquilo que devo. Farei aquilo que devo.
Mais uma noite de Lua cheia. Mais uma noite igual a todas as outras, desde que o comandante morreu. Daria, deitada por baixo dos cobertores, dorme, geme e chora no sono. Samira encontra-se perto da entrada da tenda, no lugar em que o pai costumava dormir.
- Deus é grande, ele vai ajudar-nos - murmura. - Estou aqui contigo. Dorme, eu protejo-te.
Fica sentada naquele lugar para proteger a mãe, até deixar de saber se está acordada ou a dormir, sentada ou deitada.
Quando a Lua se esconde atrás de uma nuvem, sente-se uma leve brisa, Daria volta a gemer e os cavalos esgravatam o chão com os cascos e relincham baixinho. Quatro sombras desconhecidas aproximam-se da tenda. O garanhão do comandante levanta e baixa a cabeça, fazendo esvoaçar a crina.
Duas das sombras cortam as cordas dos cavalos, as outras duas penetram na escuridão da tenda. Ouvem o gemer de Daria e atiram-se para cima dela. Um dos dois segura-a e tapa-lhe a boca com a mão, o outro arranca-lhe a roupa do corpo, beija-a, lambe-lhe o pescoço, apalpa-lhe os seios, lambe a sua barriga e satisfaz o seu desejo nojento. O outro observa, baba-se, limpa a saliva da boca, abre a shalvar e esfrega o seu pénis. Depois, as sombras trocam de lugar. Chegou a vez do segundo. Este entala o seu corpo pesado entre as pernas de Daria. No momento em que se prepara para penetrar Daria pela segunda vez, Samira acorda e apercebe-se da presença de estranhos na tenda. Vê-os à volta da mãe e nota que não deram pela sua presença. Apalpa o chão à sua volta e agarra uma foice, a foice com a qual a sua mãe lhe cortou o cordão umbilical. Com um salto agarra-se às costas do estranho e, gritando, coloca-lhe a foice à volta do pescoço.
O homem empina-se, tenta sacudir o peso das costas, mas Samira segura-se à foice para não cair. Pendurada na foice, sente como corta a pele, a carne e a garganta do estranho.
Apenas Deus sabe que não foi de propósito e que bastou um instante que durou menos que quatro curtos be-isme-Allah para Samira cortar o pescoço do estranho e matá-lo.
Samira cheira o sangue.
Daria vira o seu corpo desonrado para o lado, encontra uma arma e dispara. Acerta no segundo homem, que cai para o chão.
As sombras dos dois homens que soltaram os cavalos precipitam-se para o interior da tenda. Os seus olhos levam algum tempo a habituar-se à escuridão, ouvem alguém a agonizar e a respiração acelerada de Daria e de Samira. Preparam-se para se atirar sobre elas quando a luz do candeeiro a petróleo os ilumina. Os homens das outras tendas entram e apontam-lhes as suas armas. Ninguém fala. Nenhum dos homens se move. O mundo dentro da tenda pára, fica imóvel como a morte. Apenas o sangue corre.
O homem que Samira matou sem querer está deitado no chão. A foice na sua garganta forma uma abertura vermelha, como uma boca sorridente. O sangue jorra da garganta do violador, deitado no chão de shalvar puxada para baixo. Todos podem ver a sua masculinidade frouxa, pendurada sem vida no seu corpo. A sua masculinidade perdeu a força. Os irmãos dos mortos erguem os braços.
- Este rapaz e a mulher mataram os nossos irmãos! - exclamam.
- Vocês são ladrões - responde Samira. - Estavam a tentar roubar os nossos cavalos.
- O meu pai é o comandante Sabour - afirma um dos irmãos. - Ele vai vingar-se de vocês. De ti e da tua mãe, da vossa gente e da vossa tribo.
- Vamos vingar-nos - ameaça o irmão. - Que Deus me oiça quando digo que vão pagar por isto.
- Somos nós que vamos vingar-nos - afirma Samira. - Os homens das nossas terras altas irão até às vossas planícies para se vingarem por terem desrespeitado a nossa tribo.
- Cala-te, rapaz - ordena Olfat, o feio. - Não te cabe a ti decidir o que fazer neste caso. Isso é uma decisão dos adultos e dos mais velhos.
Os homens das outras tendas baixam o olhar, ajeitam os lenços nos ombros e permanecem em silêncio.
Samira cala-se.
Olfat, o feio, age como se já tivesse assumido o comando do povo das terras altas. Cospe para o chão e exclama:
- Amarrem esses gatunos e levem os mortos daqui. Vamos reunir-nos, temos que falar.
Desta vez ninguém pede a Samir para estar presente. Reúnem-se sem ele e sem Daria para falar daquilo que se passou. Depois da reunião enviam o filho mais velho de Olfat para participar a decisão a Samira e à mãe.
- A sura tomou uma decisão - anuncia o rapaz e lambe os lábios.
Daria, desprotegida e desonrada, baixa o olhar e sabe que perdeu. Tudo. Há pessoas que nunca perdem na vida. Nada. Outras perdem sempre. Tudo.
O filho de Olfat não se mostra preocupado com a honra perdida de Daria e continua:
- Vocês serão entregues, juntamente com os dois mortos e os dois filhos vivos, ao pai deles, ao comandante Sabour. A culpa é vossa. Se a tua mãe tivesse casado comigo, eu poderia tê-la protegido e nada disto teria acontecido. Se não vos entregarmos, o comandante Sabour vai voltar para se vingar pela morte dos seus filhos. Khalass e tamam. E tudo.
- O meu pai nunca teria entregue nenhum de vocês ao inimigo! - grita Samira. - Tu, os teus irmãos e o teu pai são uns cobardes!
O filho de Olfat levanta a mão e bate na cara de Samira. Bate-lhe com tanta força que Samira cai no chão. Ergue-se com a cara a sangrar e prepara-se para se atirar para cima do filho de Olfat, quando este saca da sua arma e a aponta para Samira.
- Anda, anda, apetece-me matar-te.
Daria puxa a filha para perto de si e limpa-lhe o sangue da face.
- A culpa é minha. Levem-me a mim. Façam o que quiserem comigo, mas poupem a criança.
Samira olha para a mãe.
- Não digas nada - pede.
Daria cala-se.
“Vocês pertencem-lhes”, dissera o filho do comandante, que se nomeara ele próprio comandante. Daria sabe o que isso quer dizer.
Samira também sabe o que isso quer dizer. Obrigarão a mãe a casar com um deles.
- Vão descobrir que és rapariga - afirma Daria. - E vão obrigar-te a casar com um deles. Talvez também nos vendam.
- Talvez nos matem.
- Temos que fugir.
- Sim - responde Samira.
Samira sabe que terá de ser Samir se fugirem.
Daria junta todas as coisas que o cavalo consegue carregar. Samira rasga o vestido da mãe em pedaços. O vestido que os irmãos arrancaram do corpo da mãe. Enrola os farrapos à volta dos cascos dos cavalos para que ninguém os oiça. Sabe que apenas podem levar os cavalos e que terão de deixar as ovelhas e as cabras, as galinhas e os alimentos armazenados. Terá de abandonar a tenda que a protegeu durante todos os Verões e Invernos desde que a sua mãe a tirou do corpo. Samira pega nas munições e na arma do pai, na sua própria arma, na foice e no machado e amarra-os ao cavalo.
Acaricia as narinas moles dos cavalos, reúne-os e encosta o corpo contra o garanhão do pai. Acarinha os cavalos para que não tenham medo e não façam barulho.
- Tenho medo - sussurra a mãe.
Samira não responde.
A PROVA
- Como é que ele é?
- Quem? - pergunta Daria.
- O meu avô - responde Samira.
- É o meu pai e o teu avô.
- É um bom pai e um bom avô?
Daria ri-se.
- O que é um bom avô e um bom pai?
Samira encolhe os ombros e não responde: “O meu pai foi um bom pai.” Pega numa pedra e atira-a, sem acertar em nada.
- Nem sequer sei se ainda está vivo e se habita nas terras altas - explica Daria.
Cada vez que sobem uma montanha, que atravessam um vale ou avistam uma grande árvore, Samira pergunta:
- Reconheces isto, sabes onde estamos? Reconheces este rochedo? E esta montanha?
- Não - responde Daria.
Quando a noite cai, Samira acende uma fogueira, espalha os cobertores e vai buscar água, quando ela existe por perto. Põe o tacho com água ao lume, retira as coisas das costas dos cavalos e desembrulha o soro de leite seco e o pão. Depois de comerem, volta a embrulhar os alimentos, coloca um cobertor à volta dos ombros da mãe e olha para o céu, questionando-se se jamais chegarão a algum lugar.
Daria senta-se perto do fogo, fita as chamas e permanece em silêncio, sem apanhar as bolhas que saltam do tacho. Só depois de Samira adormecer é que começa a balbuciar. Palavras que Samira não compreende.
“Pobre Daria, com quem falas? Daria, Daria. Tem cuidado, estás a ficar louca”, murmura o fogo.
- Quando é que isto aconteceu, quando é que enlouqueci? - pergunta Daria.
O fogo não responde.
- Eu sei quando foi. Foi no dia em que aqueles homens nojentos penetraram o meu corpo.
“Estás a mentir. Enlouqueceste muito antes disso. Enlouqueceste porque assumiste toda a culpa sozinha.”
- Deixa-me! - exclama Daria e abana a mão no ar, como se estivesse a afugentar uma mosca da cara. - Cala-te, ainda acordas a criança com as tuas conversas.
“Pobre Daria”, repetem as chamas.
Só de manhã, quando o Sol aparece no pico das montanhas e a filha acorda, só então é que o fogo pára de falar com Daria, deixando-a em paz, calando a loucura dentro da sua cabeça.
- Porque não dormiste? - pergunta-lhe a filha.
- Estive a proteger-nos.
- Temos de encontrar uma aldeia. Não temos farinha, nem pão - declara Samira.
Daria retira um saco de pano, bordado com pérolas, pedras e pequenos ossos de entre as suas roupas.
- Eu tenho dinheiro.
- Não é muito - responde Samira.
Samira e Daria não param de andar. Andam até terem as solas gastas, os seus pés ficarem em ferida, os ossos doerem e as suas almas estarem cansadas. Numa das aldeias, Samira compra um par de botas de senhora para a mãe e um par de botas de homem para ela própria.
- Devias ter trazido as botas do teu pai.
- Eu trouxe-as, mas ainda me estão grandes.
- A minha filha tem os pés pequenos - diz Daria para o fogo nessa noite.
“A tua filha é a única protecção que tens”, respondem as chamas.
Daria ri-se. Um riso curto. Um riso louco.
- Bela protecção - responde. - Os seus pés são pequenos de mais para as grandes botas do pai e a sua força não basta para este mundo.
Daria não fala baixinho. Não fala suficientemente baixo para que a filha não a oiça.
- Mas eu protejo-te - sussurra Samira.
- Bela protecção - sibila Daria. - Dois homens penetraram o meu corpo. Não, minha filha, tu não consegues proteger-me. Não és um rapaz. Não és um verdadeiro rapaz. Não consegues substituir o teu pai.
Samira não diz: “Mas eu protegi-te.” Não diz: “Aquele homem matava-te, se eu não lhe tivesse cortado o pescoço.” Nem diz: “Sou culpada, pequei, sujei as mãos de sangue, sou assassina e fi-lo por ti, para que pudesses viver.” Samira não diz que gostaria de voltar a ficar muda.
Daria fita a criança, fica lúcida e arrepende-se das suas palavras. Arrepende-se tarde de mais. As suas palavras são como pedras pesadas e quentes que acertam no coração da criança e ali permanecem para sempre.
Os dias transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. Desaparecem para sempre. As palavras de pedra da mãe ficam. Samira deixou de deitar a cabeça no colo da mãe.
Daria arrepende-se tarde de mais. Carrega o peso da culpa. Para sempre.
- Tapa a cabeça com o lenço - diz Samira quando se aproximam de uma aldeia. Fala como o pai, num tom de ordem.
A mãe obedece.
Durante esta caminhada para o Sul do país, Samira passara por várias aldeias, mas nunca antes visitara uma tão grande como esta. Tantas pessoas, tanto barulho, carros, fumo e olhos que a fitam. Uma mistura de cheiros paira no ar, comerciantes e vendedores apregoam a sua mercadoria e afugentam as crianças e as moscas. Burros, bois, cavalos e pessoas cruzam-se e atropelam-se.
Samira quer perguntar à mãe qual o sentido de tantas pessoas viverem umas em cima das outras. Mas não pergunta. Necessita de toda a sua força para carregar as pedras no coração.
Conduz a sua pequena caravana para um beco calmo, a partir do qual consegue ver o bazar de uma ponta à outra. Daria segue o filho-rapariga em silêncio, não vê nada de tudo isto. Apenas vê a dor nos olhos da criança. Uma dor da qual sabe que é culpada. Ao fim de um longo silêncio pede:
- Perdoa-me.
- Fica aqui - responde Samira, num tom de ordem semelhante ao do pai. Põe a sua arma e a do seu pai ao ombro.
- Para que precisas das armas?
- Para as vender e comprar uma arma melhor, para te proteger melhor.
- Não vendas a arma do teu pai. Ele deixou-a para ti, seu filho.
- É verdade - responde Samira com uma voz igual à do pai. - Deixou-a para o filho, que não sou eu.
Samira afasta a mão da mãe e começa a andar. Como o pai. Com um passo seguro.
O homem que vende armas russas está sentado em frente à sua pequena loja com os braços pousados nos joelhos e mordisca um pedaço de madeira. Samira passa por ele com as duas armas ao ombro e atravessa a rua, sabendo que o homem reparou nela. Compra um pão, enfia-o dentro do colete, volta e cumprimenta o homem, de passagem, fingindo que mal deu por ele. Senta-se ao sol, fingindo que se sentou ali ao lado dele por acaso, retira o pão do colete, arranca um pedaço e enfia-o na boca.
O homem responde ao seu cumprimento, fingindo-se indiferente, sem mostrar que ficou curioso.
Só agora Samira repara na fome que tem. O pão seco cola-se na sua boca ao pensar que a mãe não tem pão.
- Nan bokhor, come pão. - Samira arranca um pedaço de pão e oferece-o ao vendedor de armas.
“Oferece um pedaço de pão a um homem e ele nunca será teu inimigo”, ensinara-lhe o comandante.
- Tasha-kori - pergunta o homem. - De onde vens?
- Das montanhas.
- O que fazes aqui?
- Estou de passagem.
- Para onde vais?
- Visitar o meu avô.
- Estás sozinho?
- Não, o meu pai e os seus homens estão à entrada da aldeia.
- A mulher que veio contigo é a tua mãe?
- É - responde Samira. - Estamos a levá-la para perto do pai. Ela tem saudades do pai.
O vendedor de armas aguça o olhar.
- Estão ali em frente? A entrada da aldeia?
- Sim - responde Samira, olhando para a direcção da qual vieram. - Estão ali em frente.
Di-lo casualmente, fingindo que não sente que o homem adivinha a mentira, considerando o rapaz e a mãe presa fácil.
- Quem é o teu pai?
- Ele é comandante.
- Quantos homens tem sob o seu comando?
- Man tshe midanam - responde Samira, e encolhe os ombros, olhando para a rua. - Talvez tantos como estas pessoas.
- Tantos? - O vendedor de armas levanta as sobrancelhas. - São muitos.
"Quando o inimigo vê o teu medo, sente-se forte", ensinara-lhe o pai. "Tens de transmitir-lhe uma sensação de segurança. Se sentir medo, torna-se perigoso. Dá-lhe a sensação de que não tens medo e de que ele também não precisa de ter medo. Deixa-o sentir a tua força, mas não lhe metas medo."
- Mas hoje o meu pai não trouxe todos os seus homens.
O vendedor de armas acena com a cabeça.
- Ainda bem. Afinal não vão para a guerra.
- A tua aldeia é um lugar seguro? - pergunta Samira.
- É. Aqui ninguém tem medo de nada. Só do inimigo.
- Enquanto o meu pai aqui estiver, não precisam de se preocupar - afirma Samira, e tira as armas do ombro, pousando-as ao seu lado.
- Bebachshid, tens um pouco de água?
O homem aponta para a loja.
- Lá dentro, podes ir buscar.
Samira deixa as armas para trás, como que por acaso, como se não temesse que alguém as roubasse. Entra na loja e olha para trás, atenta, sempre com o olhar colado às armas. Volta a sair da loja, sem ter bebido água.
- Tens aí umas belas armas à venda na tua loja. Se contar ao meu pai, talvez ele compre uma das tuas armas russas para mim.
- Mas se já tens duas armas, para que queres uma terceira?
Samira ri-se, enquanto coloca as armas ao ombro.
- Todos nós temos duas armas. Eu sou o único que ainda não tem uma Kalachnikov. O meu pai disse que agora, que sou um verdadeiro mujahed, compraria uma para mim, quando passássemos pela próxima aldeia.
- Porque não compras uma agora já?
- Não trouxe dinheiro. O meu pai tem o dinheiro.
- Pena. Um bom negócio não se adia. Como posso ter a certeza de que voltarás?
- Só Deus a tem.
- Podes, pelo menos, dar uma olhadela na Kalachnikov.
- Não tenho dinheiro - repete Samira.
- Tens outra coisa qualquer de valor? O que trazes nos teus cavalos? Lápis-lazúli, pedras preciosas, ópio?
- Não, não tenho nada. Só as minhas duas armas.
- São umas belas armas. Sobretudo a grande, com a madrepérola.
- Pois é. é muito bonita e muito preciosa. Foi o meu avô quem ma ofereceu.
- Bebinam. Deixa-me vê-la. Queres vendê-la?
- Para que queres esta arma? É bonita, mas não dispara bem. Leva tempo a carregar.
- Posso vendê-la aos estrangeiros. Eles gostam de armas antigas, mesmo que já não funcionem.
- A que estrangeiros?
- Aos americanos.
Samira não pergunta: "Quem são os americanos?" Não questiona: "Porque querem comprar esta arma velha?"
- Por que razão deverei vender-te a arma a ti? Prefiro vendê-la eu próprio aos estrangeiros.
O vendedor de armas passa a mão pela madeira e a madrepérola e analisa a arma com cuidado.
- Até parece que lá em cima, nas tuas montanhas, alguma vez encontras algum desses americanos.
- Bedeh, dá cá - responde Samira. - Tenho de me ir embora, o meu pai e a minha mãe estão à minha espera.
Deixa o resto do pão para trás, como se não tivesse fome e como se a sua mãe não tivesse fome.
- Be amane khoda, Deus te proteja - diz à despedida, e regressa para perto da mãe. Pega nos cavalos e abandonam a aldeia pelo mesmo caminho pelo qual chegaram. Quando passam pela loja de armas, Samira põe a mão no peito e inclina a cabeça para cumprimentar o vendedor.
- Be amane khoda.
Quando já está a afastar-se da loja, o vendedor chama:
- Batshel
Samira não pára, continua a andar e diz:
- Bogu. Fala. O que queres?
- Vamos fazer uma troca!
Finalmente, Samira larga os cavalos e aproxima-se.
- Que troca?
- Uma bela e nova Kalachnikov contra a tua arma velha e sem valor.
- Não, obrigado. - Samira ajusta a tira da arma ao ombro e prepara-se para voltar a afastar-se.
- Espera! Porque não?
- Porque foi o meu avô quem ma ofereceu e quando eu próprio um dia for comandante e líder precisarei dela. Além disso, vale muito mais que a tua Kalachnikov. Uma arma dessas compra-se em qualquer loja, em várias aldeias.
- Um bom negócio não se adia.
- Para mim isto não é um bom negócio.
- O que é um bom negócio para ti?
- Quero uma arma e cinco caixas de munições. Decide-te, o meu pai está à espera - afirma Samira e quase se convence de que o pai e os seus homens realmente a esperam à entrada da aldeia. Endireita-se, cospe para o chão, volta a ajustar as tiras das armas e sente-se grande e invencível. Ao fim de toda esta conversa e de acabarem por fazer a troca, o vendedor está convencido de que foi ele quem teve a ideia de trocar uma Kalachnikov pela arma. Uma Kalachnikov e cinco caixas de munições.
À despedida, o vendedor de armas pergunta:
- O teu pai e os seus homens também têm armas antigas como esta?
- Têm.
- Diz-lhes para falarem comigo, eu pago-lhes um bom preço por elas.
- Não tens pena? - pergunta a mãe mais tarde. - Era a arma do teu pai.
- O meu pai morreu. Eu estou viva. E quero continuar viva. Preciso de uma arma verdadeira para nos proteger.
- As tuas palavras são duras.
Samira não responde, encolhe os ombros e continua a andar, com passos grandes e rápidos.
Daria não está habituada a andar com um lenço na cabeça e de cara tapada através de becos estreitos. Tropeça, desvia-se dos homens e tem dificuldade em acompanhar a criança. Quando finalmente saem da aldeia, senta-se numa pedra, afasta o lenço e limpa o suor da testa.
- Tenho medo.
- Eu tenho uma boa arma - responde Samira. - Vou proteger-te.
- Não tenho medo de morrer. Tenho medo de te perder. Samira não responde, assobia por entre os dentes e continua em frente com a mãe e os cavalos.
- Quem são vocês? - pergunta um homem que se cruza com elas e que também lidera uma pequena caravana.
- Eu sou Samir, filho do famoso comandante.
- Filho de que comandante? O nosso país está cheio de comandantes.
- O comandante da planície das terras altas do Indocuche.
- Que planície? Em que parte do Indocuche?
- Nas terras altas perto dos sete lagos, do Bande Amir.
- Qual das várias planícies que existem perto dos sete lagos?
Samira cala-se, estala a língua e continua em frente, puxando os cavalos atrás de si.
- Para onde vão? - pergunta o homem.
- Vamos visitar o meu avô.
- Quem é o teu avô?
Samira não quer expor-se ao homem. Pára o garanhão do pai e a sua pequena caravana, endireita-se e fala com uma voz que julga cheia de sabedoria.
- O meu avô? É um de vários avôs no nosso país.
- Como é que se chama?
- Diz que se chama Mahfous - sussurra Daria, baixinho para que o homem não oiça a sua voz de mulher.
- O meu avô chama-se Mahfous - responde Samira, alto, para que o estranho oiça a sua voz de rapaz.
- Mahfous? Mahfous, o barbeiro?
Daria esquece-se de falar baixo.
- Sim! - exclama. - Mahfous, o barbeiro. É o meu pai.
- Então, estão quase a chegar. Terão de atravessar aquela cordilheira entre os dois picos e chegarão a uma pequena aldeia, onde basta perguntarem. Toda a gente conhece o velho Mahfous que mora nas montanhas por cima da aldeia.
O homem tem razão. Ao fim de quatro dias e quatro noites, Samira e Daria avistam a pequena aldeia. Rodeada de campos, nos quais crescem flores de todas as cores com o bonito nome de kokna, papoila. Um riacho atravessa a aldeia. As pessoas cumprimentam Samira e a mãe de forma simpática. Oferecem-lhes chá, pão e convidam-nas a pernoitar nas suas casas. Dizem-lhes para terem cuidado, para não se afastarem do caminho, pois, para além dos campos cultivados, a terra está cheia de minas.
Daria reconhece tudo: o caminho que sobe pela aldeia, os rochedos, as curvas e sinuosidades, os picos das montanhas, a planície, a vista para o vale e para as tendas. Até reconhece alguns dos kutshi e pergunta-lhes se são este ou aquele.
- Sou, sou. Khosh amadi - respondem, e dão as boas-vindas a Daria e ao filho.
- Onde está o meu pai?
- Na tenda dele.
- Mahfous, Mahfous! - gritam as crianças, antecipando-se em direcção à tenda.
Quando o avô sai da tenda, Samira salta do cavalo, faz uma vénia e beija-lhe a mão.
Mahfous é um homem velho e frágil. Perdeu um braço ao desactivar uma mina, mas, em vez de se lamentar, agradece a Alá por estar vivo.
Samira simpatiza com o avô que, apesar de ter os olhos pequenos devido à idade, a fita com um olhar vivaço. Com o único braço que tem, abraça Samira com tanta força como se tivesse quatro.
- Onde estão os teus outros filhos? - pergunta a Daria.
- Só tenho este.
- Ainda bem que é um rapaz. Um rapaz forte.
- Onde está o teu pai?
- Shahid shod.
- Mais uma vítima dessa maldita guerra.
Samira fica admirada. Não sabia que a guerra era maldita. Sempre julgara que a guerra era uma coisa boa, por ter feito do seu pai um comandante. Achava que a guerra era importante por ter transformado o seu pai primeiro num homem invencível e depois num honrado shahid.
- Onde estão os meus irmãos? - pergunta Daria.
O avô ergue o braço, põe a mão na cabeça e chora.
- A maldita guerra também os levou.
- Agora voltaste a ter um filho. Um neto.
- Que Deus o proteja.
- Eu sei proteger-me a mim próprio - responde Samira. - Vou proteger-nos a todos. Tenho uma arma. Quero ser um rnujahed.
- Não queres, não - contesta o avô.
- O que aconteceu ao teu braço?
- A maldita guerra levou-mo. Uma mina despedaçou-o. O nosso país está cheio de minas, tens de ter cuidado, senão, uma dessas minas ainda dá cabo de ti.
O avô passa a mão pela cabeça rapada de Samira.
- O que aconteceu ao teu cabelo?
Samira encolhe os ombros.
- Mas o que é isto? Quem rapou a cabeça do rapaz? Samira olha para a mãe, que mexe os lábios e vê as palavras que ela balbucia.
- Fui eu. A culpa é minha.
Mais não diz. Assume ainda mais culpa. Não diz: "O meu filho não é nenhum rapaz, não é um verdadeiro rapaz." Nem diz: "Deixem a Samira ser Samira."
- Ele não é nenhum taleb - afirma o avô. - O Samir é um rapaz das montanhas, um kutshi. E um rapaz das montanhas usa o cabelo comprido, mostra o esplendor da sua cabeleira, para que todos o possam ver.
Samira gosta das palavras do avô. Gosta da maneira como se refere a ela, gosta que a trate como um rapaz das montanhas e lhe chame kutshi.
- Eu sou um kutshi - afirma.
- Um verdadeiro rapaz kutshi - acrescenta o avô e apalpa os músculos do neto.
- És forte?
- Sou sim - responde Samira e mostra os músculos.
- Ainda bem - responde o avô. - Então mostra-nos para que servem esses músculos e tira as vossas coisas dos cavalos. Podes levá-las para a tenda.
- Gosto de ti - afirma Samira.
- Também gosto de ti - responde o avô e ri-se. Passaram muitos dias e noites, muitos Verões e Invernos,
desde que Samira reencontrou o seu riso. Um riso de quem se esqueceu do pai morto e dos violadores. Um riso de quem se esqueceu de que matou um homem e mesmo assim não foi capaz de proteger a mãe. De quem se esqueceu das pedras que carregava no coração. Um riso livre, azad. Um riso que não se importa se é Samira ou Samir que está a rir-se.
A PARTIDA
- Anda, rapaz, vamos montar a cavalo! - exclama o avô.
- Para onde vamos?
- Para a aldeia.
- Porquê?
- Vamos trocar peles, comprar gordura, chá e açúcar e vamos levar-te para a escola.
- O que é a escola?
- A escola é um lugar onde os rapazes aprendem muitas coisas novas.
- Eu não preciso da escola.
- Não te cabe a ti decidir isso. Se não fores para a escola, o que será de ti quando cresceres?
- Quero ser como o meu pai. Grande e forte, importante e invencível.
- Falas bem! - O avô sorri e passa a mão pela cabeça do neto, que agora já tem algum cabelo.
- Podemos falar disso mais tarde - diz. - Para já vamos até à aldeia tratar das outras coisas. Está bem?
- Está bem - responde Samira. Para ela, tudo o que o avô diz está bem.
Samira e o avô divertem-se durante todo o percurso até à aldeia. Samira desce do cavalo e saltita e dança com o avô, como nunca antes fizera com ninguém. Sente-se liberta de medo e de preocupações, como nunca antes se sentira na sua pequena grande vida. Até deixou a arma russa na tenda, como o avô lhe propusera.
- O que foi? Sentes falta da tua arma?
- Não. - Samira sorri.
- Vês? Eu sabia.
- Tu sabes sempre tudo.
- Gostas desta tua nova terra?
- Isto é quase mais bonito que as minhas terras altas - responde Samira, admirada com as suas próprias palavras.
- Por que razão é quase mais bonito?
- Man tshe midanam. - Samira encolhe os ombros.
Desde que saíram da aldeia, não se cruzaram com ninguém e, mesmo agora, não há ninguém por perto, mas, apesar disso, Samira fala baixinho. Porque aquilo que tem para dizer é importante. Respira fundo, põe as mãos à volta da boca e aproxima-se da orelha do avô.
- Vou contar-te um segredo.
O avô endireita-se e sorri.
- Mas um segredo só é um segredo enquanto não o contamos. Temos de ter muito cuidado com os segredos.
Samira acena com a cabeça.
- Pensa bem, se queres contar o teu segredo.
- É um segredo horrível - responde Samira, sem vontade de pensar, sem vontade de esperar. Incapaz de esperar. O segredo irrompe do seu interior.
- Matei um homem.
O avô pára de sorrir, não se mexe, olha para o neto, para Samira. Samira também não se mexe, sente o gosto amargo das palavras que se libertaram da sua boca.
O avô inclina-se sobre o neto.
- Quem mata uma pessoa, mata um pouco de si próprio - declara. - Vamos pedir a Deus que não voltes a ser obrigado a fazer uma coisa dessas.
Samira pára de respirar.
O avô senta-se numa pedra, abraça o neto com o único braço que tem e não diz nada. Samira agarra-se a ele e chora. Chora, chora.
- Anda, ainda temos um longo caminho a percorrer. - O avô apoia o braço na perna e ergue-se.
Lá em baixo, na aldeia, todos conhecem o avô. As pessoas importantes e as menos importantes, os ricos com roupas boas e muito tecido e os pobres vestidos com farrapos. Isso agrada a Samira. O seu pai era diferente, apenas cumprimentava as pessoas importantes e ricas.
- Conheces toda a gente, és um homem importante - afirma Samira.
- Toda a gente é importante.
Samira acena com a cabeça. Sem saber muito bem porque acena.
- O meu pai dizia que há pessoas que são importantes e outras não.
- Todas as pessoas foram criadas por Deus. Isso basta para que cada um de nós seja importante. Independentemente de sermos comandantes ou pedintes, mulheres ou homens.
- Então, eu também sou importante.
- Pois és! - O avô ri-se. - E sabes o que mais é importante?
Samira agarra a mão do avô, sorri e saltita.
- Diz-me!
- Comer - responde o avô. - É importante que as pessoas comam. Anda. Vamos ali ao Hadji Mussa, comer um delicioso dal, até as nossas barrigas explodirem.
- Viva, Hadji Mussa - cumprimenta o avô. - Este é o meu neto. O pai dele morreu na maldita guerra, Deus o abençoe. A partir de agora, o Samir vive comigo. E imagina tu que o meu neto nunca comeu dal na vida!
- Khosh amadi, bem-vindo, neto de Mahfous! - O senhor com um ar simpático despeja uma grande concha de dal perfumado e quente numa tigela e pousa-a em frente a Samira. - Come, rapaz, e aproveita, pois não encontrarás dal melhor que este, nem nas montanhas do Indocuche, nem em nenhum outro lugar do mundo.
Samira devora o arroz com dal como se não tivesse comido nada durante quatro dias. Antes de a tigela ficar vazia, o senhor volta a enchê-la.
- Come, come, para ficares grande e forte e te tornares um verdadeiro homem e guerreiro.
Samira fita Hadji Mussa, olha para o avô e sorri.
- O meu pai queria que eu fosse um comandante e lutasse na guerra, mas agora está morto. Vivo com o meu avô, e ele não quer que eu mate homens.
O vendedor de dal pára de sorrir.
- Tens razão. As minhas palavras foram estúpidas. Porque haverás de ser um guerreiro e matar e ser morto? Já houve suficientes guerreiros que vieram e foram, que nasceram e morreram. Estamos fartos da guerra.
O vendedor de dal respira fundo, absorve todo o ar à sua volta e expira-o em conjunto com os mortos e a guerra que se encontram na sua alma, rindo-se.
- Talvez um dia, quando fores crescido, queiras ter a mesma profissão que eu e ser vendedor de dal? O que achas?
É a primeira vez que alguém pergunta a Samira o que ela quer ser quando crescer. Não sabe o que responder, pensa e pensa, procurando uma resposta. Acaba por encolher os ombros.
- Man tshe midanam, não sei. - É a verdade, Samira não sabe o que quer ser. Enquanto continua a devorar o dal com arroz e é obrigada a pensar numa profissão, enquanto olha alternadamente para o avô e para o vendedor de dal, enquanto Samira pensa e pensa e repara no pouco que pensou antes do dia em que conheceu o avô, um grande pássaro prateado cruza silenciosamente o céu sobre a aldeia.
O vendedor de dal estende o braço e aponta para o céu.
- Lá estão eles de novo. Os estrangeiros que vieram para libertar o nosso país.
Samira, com a boca cheia de dal, olha para o céu, avista o pássaro prateado e, de repente, sabe qual a sua resposta.
- Piloto.
- Piloto? - pergunta o vendedor de dal.
- Piloto? - repete o avô.
- Bale - responde Samira. - Piloto.
- Queres ser piloto? É uma profissão pouco comum - afirma o vendedor de dal. - Pelo menos para alguém que vive aqui, no meio das montanhas do Indocuche.
- O que é que isso tem de estranho? - pergunta o avô.
- Bem. Eu sou apenas um insignificante vendedor de dal, vivo algures no meio das montanhas e não sei nada daquilo que se passa neste mundo, quanto mais de aviões, pilotos e voar. Mas sei o suficiente para poder afirmar que uma pessoa que queira ser piloto e voar num avião, que queira ter uma profissão tão importante, tem de conhecer estrangeiros, viajar muito e aprender muita coisa.
O avô bebe um gole de chá e pousa o pequeno copo com força na mesa.
- Por que razão o meu neto não haveria de ser capaz de tudo isso? Olha para ele, é uma criança inteligente. Se for necessário, conhece os estrangeiros. E aprende muito e faz várias viagens. Qual é o problema? Achas que o meu neto não é capaz? Mal acabarmos o dal e o chá, vamos começar. O meu neto vai começar uma viagem longa e difícil, mas muito bonita.
- Tshi migp. Mahfous, de que estás a falar? O que pretendes fazer com o teu pobre neto? Ele ainda agora chegou e já o queres mandar embora?
Samira pára de mastigar. O dal, seco, cola-se ao céu da boca.
O avô ri-se.
- Não, não o vou mandar embora! Estou muito contente por estar aqui comigo e eu já não estar sozinho. Vou levá-lo para a escola.
- O quê? Para onde? - pergunta o vendedor de dal. - Para a escola?
- Bale. Para a escola.
Samira abre a boca, prepara-se para dizer: "Não preciso da escola, quero ser um mujahed", quando se lembra de que acabou de decidir que não quer ser um mujahed e fica calada.
- A formação é o portão para o mundo - afirma o avô. "Qual será a distância até esse portão?", pensa Samira.
"E como será esse mundo? Lá também haverá guerras?"
Quando finalmente se despedem e começam a viagem até ao portão do mundo, Samira já não tem a certeza se a decisão de acreditar em tudo o que o avô diz e de fazer tudo o que propõe foi certa.
- Este é o meu neto. - O avô põe a mão na cabeça de Samira, que se escondeu atrás dele, e empurra-a para a frente. - Cumprimenta o senhor professor, Samir.
- Saiam. - O professor cumprimenta Samira, sorri e estende-lhe a mão.
Samira simpatiza com o senhor professor. Não é nem muito alto, nem muito baixo, veste roupa limpa, um lenço à volta do pescoço e usa dois pequenos vidros redondos unidos por um fio em frente aos olhos, chamados einak, óculos. O professor sorri.
- Bem-vindo, khosh amadi. Sabes ler e escrever?
- Ler e escrever? Não - responde Samira. - O que é isso? Sei montar a cavalo e jogar boskashi.
O professor, simpático, ri-se.
- Que bem! Montar a cavalo é importante.
- O que é ler e escrever? - pergunta Samira.
- Ler e escrever? Ler e escrever é o portão para o mundo. É o início de tudo.
- Sei montar o grande garanhão do meu pai.
O senhor professor ri-se.
- E que cavalo monta o teu pai, se tu montas o garanhão dele?
- O meu pai morreu - responde Samira e sorri.
- Que pena.
- Não faz mal. Perdi o meu pai, mas encontrei o meu avô. Ele perdeu um braço, foi uma mina que o desfez.
O senhor professor passa a mão pela cabeça de Samira.
- Perdeu um braço, mas ganhou-te a ti.
- O meu avô diz que tu vais mostrar-me o mundo.
- O mundo - repete o professor e sorri. - O mundo é um lugar muito grande, cheio de milagres e surpresas.
- Mostra-mo!
- Sim, mostro. - O professor ri-se e estende a mão a Samira.
Esta hesita, mas decide dar a mão ao professor. Segue-o e deixa o avô para trás. Chegam a um pátio vazio, sem relva nem flores, com apenas uma árvore.
- Esta é a nossa sala de aulas - explica o professor e entra com Samira numa pequena cabana. Há um kelim velho no chão, rodeado por esteiras e almofadas. Samira vê vários objectos cuidadosamente amontoados, mas não sabe o que são.
A sala está repleta de objectos e quase que não há lugar para se mexer ou se sentar.
- O que é isto? - pergunta Samira. O professor sorri.
- Isto, meu filho, são os meus livros. Contêm saber e palavras. - O professor abre um dos livros. - Vês, isto são palavras escritas.
Samira sente-se desiludida.
- Isto é que é o mundo?
- Quem quiser ver o mundo tem de ter paciência. Neste mundo entra-se com pequenos passos. Palavra por palavra, livro por livro.
Samira olha para o professor, sem compreender.
- Olha - diz o professor e escreve. - S-a-m-i-r. É o teu nome.
- Isto é o meu nome? Que bonito. Sabes escrever tudo?
- Tudo.
- Escreve azad. Liberdade. É o nome do meu cavalo. É uma palavra bonita.
O professor escreve: A-z-a-d.
- Existem muitas pessoas como tu?
O professor ri-se.
- Sim, muitas. E tu podes tornar-te uma delas. Basta quereres, teres paciência e treinares muito. E quando souberes ler e escrever, poderás anotar todas as imagens e palavras que tens na cabeça e os outros poderão lê-las.
Samira estremece.
- Não, não quero que ninguém veja as imagens na minha cabeça.
- Então, não as escrevas - responde o professor. - És tu que decides. Tu és azad.
Nem Samira nem o professor reparam que o avô está à porta, a observá-los.
- Que bonito - diz.
- O que é bonito? - pergunta Samira.
- Vocês são bonitos - responde o avô e aponta com o seu único braço para o neto e o professor, sentados no chão, à luz do candeeiro a petróleo, rodeados de livros e papéis com imagens e letras.
- Aprendi palavras com o senhor professor - conta Samira ao avô, no caminho de regresso a casa. Fala e fala, sem parar. - O professor falou-me de um grande poeta do Irão. O Irão é um país. Todos os países têm fronteiras. Falamos a mesma língua. O senhor professor falou do nosso profeta. O profeta não escreveu o Alcorão ele próprio, porque era como eu. Não tinha formação. Houve pessoas que escreveram as palavras dele. Mas nessa altura o profeta já morrera há cinquenta anos. Deus não gosta de mulheres. Por isso apenas nomeou homens profetas. Não queremos nenhum rei na nossa pátria. As pessoas têm de aprender a ler e a escrever para decidir sobre as suas vidas.
Samira fala e fala e abraça o avô.
- Obrigado. - Mais não diz. Apenas um pequeno grande "obrigado".
- Então sempre queres ir para a escola? - pergunta o avô.
- Não - responde Samira com uma voz clara, cheia de felicidade e alegria.
- Mas... - O avô pára o cavalo. - Mas eu julgava que tinhas gostado da escola.
- Como posso saber se gosto da escola?
- Acabaste de dizê-lo.
- Não - responde Samira. - Não quero ir para a escola. Prefiro estar com o senhor professor. Gosto de lá estar, gosto dos livros dele e das palavras.
O avô ri-se.
- Mas isso é que é a escola! - Estala a língua e continua a cavalgar.
- Não sabia - responde Samira. - Não sabia que os livros e as palavras são a escola. Se assim for - afirma e, tal como o avô, estala a língua e continua a cavalgar -, vou para a escola!
- É uma decisão inteligente.
- Vou já amanhã. Amanhã voltamos para a aldeia e visitamos o senhor professor e os seus livros e as palavras.
- Não, filho - responde o avô. - Nós não vamos. Tu vais. Juntamente com o filho do nosso comandante Rashid.
- Não! - exclama Samira.
- Porque não?
- Não conheço o filho do comandante Rashid.
- Então vais conhecê-lo.
- Não preciso de conhecê-lo.
- Porque não?
- Porque o meu pai disse que eu não preciso dos outros.
- Todos nós precisamos dos outros.
- Eu sou diferente dos outros rapazes.
- Isso é verdade. Cada um de nós é diferente dos outros.
- Mas eu sou completamente diferente de todos os outros.
- Isso não faz mal. Vais conhecer o Bashir e irás com ele até à aldeia. Bass e khalass.
O ACIDENTE
- Anda, são horas de ires para a escola. Vou levar-te até à tenda do comandante Rashid. Assim vais com o filho dele para a aldeia e tu não tens de ir sozinho.
- Bashir é um nome estranho.
- Não é, não. É um nome bonito. Bashir significa: aquele que traz a boa nova, o transmissor, o mensageiro.
- Qual é a boa nova que ele traz?
- Pergunta-lhe!
Por mais que o avô se esforce, não consegue que o neto seja simpático com Bashir. Quando Samira vê o rapaz, pergunta:
- Porque é que usas essa camisa que te está grande?
Bashir não sabe defender-se, limita-se a olhar para Samira
e a encolher os ombros.
- Man tshe midanam - responde.
Samira arma-se em grande e fala como o avô.
- Apenas deves responder "não sei" quando pensaste bem na pergunta e realmente não sabes a resposta.
Bashir olha para o pai, depois para o avô e para o rapaz que, pelos vistos, veio para o irritar. Volta a encolher os ombros e desaparece na tenda.
- Mas o que é isso? - pergunta o avô. - Não se trata assim um amigo!
O comandante Rashid passa a mão pela barba, quer pousar o braço nos ombros de Samira, mas ela não deixa.
- O teu neto, ao menos, é um verdadeiro rapaz. Olha para o meu filho. É um magricelas e anda por aí de ombros encolhidos. Se continuar assim, nunca será um verdadeiro homem.
De repente, Samira sente pena de Bashir. Monta o garanhão do pai, assobia por entre os dentes e chama:
- Anda, Bashir, temos de ir para a escola.
- És capaz de ensinar o meu filho a assobiar assim? - pergunta o comandante Rashid.
- Sou.
- Este garanhão é teu?
- É do meu falecido pai.
- Se um dia o quiseres vender, fala comigo. Estou disposto a pagar bem por ele.
- Nunca o vou vender.
Bashir sai a correr da tenda e põe um colete sobre a camisa mais pequena que acabou de vestir. Dá uma volta a correr à tenda, volta a entrar na tenda, sai e enfia um caderno no bolso do colete. Samira não acredita naquilo que vê. Bashir não monta um cavalo, mas sim uma mula. Uma pequena mula desgrenhada, com pernas curtas.
- O que é isso? - pergunta Samira e irrita-se consigo própria, pois percebe que esta pergunta dará ao comandante a hipótese de voltar a criticar o filho.
- O meu filho tem medo de cavalos - explica o comandante e aproxima-se do garanhão de Samira. O cavalo recua e relincha baixinho. - Quem sabe, talvez lhe possas ensinar a ser um verdadeiro rapaz.
Samira não gosta de Bashir. Desde o primeiro instante que não gostou dele. Foi fácil ser má para ele e Samira gostou de se sentir importante. Mas agora arrepende-se. Não gosta de ver o pai de Bashir tratá-lo mal. Ele não merece. A caminho da aldeia avança devagar e pára várias vezes para que Bashir não fique para trás. Este segura as rédeas da mula com uma mão e com a outra agarra o livro que lê.
- Não se lê enquanto se monta a cavalo. Bashir encolhe os ombros e continua a ler.
- O teu pai é sempre assim, mau contigo?
Bashir levanta o olhar durante poucos segundos.
- Não precisas de conversar comigo - diz e volta a olhar para o livro. Pouco depois ergue brevemente a cabeça e acrescenta: - Nem precisas de fingir que gostas de mim.
Samira vira-se para trás.
- Não estou a fingir nada. Não gosto mesmo de ti.
- Então, está tudo esclarecido entre nós - afirma Bashir, e continua a ler.
Como todas as manhãs, o senhor professor espera os rapazes à porta da escola e cumprimenta-os. Quando Samira e Bashir chegam, sorri.
- Khob, vejo que finalmente se tornaram amigos.
Samira salta do garanhão. Bashir não salta, desce devagar
da mula. Aproxima-se, cabisbaixo e arrastando os pés, do professor. Dá-lhe a mão e depois senta-se por baixo da árvore, encolhe a cabeça e continua a ler o livro.
- Ainda não acabaste de ler? - pergunta Samira.
- Não.
- Porque não?
- Nunca vou acabar de ler - responde Bashir sem olhar para Samira.
- Mas então porque é que estás aqui? Julgava que só os rapazes que não sabem ler andam na escola.
Bashir não levanta o olhar para responder.
- Ainda és mais burro do que eu julgava.
O professor chama dois dos rapazes, Madjid e Abdol-Sa-bour, para perto de si.
- Samir, a partir de hoje deixas de ter aulas individuais, vais assistir às aulas com os outros rapazes.
- Não preciso dos outros rapazes para nada.
- Porque não?
- Porque o meu pai disse.
- O teu pai está morto. Deus o abençoe.
Madjid e Àbdol-Sabour fitam o aluno novo durante uns instantes, depois viram-se e vão-se embora.
Samira não vai para a sala de aulas onde se encontram os outros rapazes. Entra no quarto no qual aprendeu a ler e a escrever sozinha, senta-se no chão, pega num livro e folheia-o.
- Samir! - chama o professor. - Eu disse-te que a partir de hoje vais assistir às aulas com os outros rapazes.
Samira olha para o livro aberto que segura nas mãos e concentra-se nos riscos e curvas que contém.
O professor arrasta-a para perto dos outros rapazes, senta-a no chão e entrega-lhe uma folha branca.
- Khalil - diz para o rapaz sentado ao lado de Samira. - Por favor, mostra ao Samir como se escreve o nome dele.
- O meu nome? - pergunta Samira. - Sabes escrever o meu nome?
- Sei. - Khalil humedece um lápis com a língua, inclina-se sobre a folha e vai lendo cada uma das letras que escreve. - S-a-m-i-r.
Samira também quer tentar. No início, segura o lápis como se de um punhal se tratasse, e carrega com tanta força que o papel se rasga. Contrai-se de tal forma que os seus dedos, a sua mão, o braço e até as costas lhe doem. O seu corpo fica quente e húmido, como se tivesse atravessado duas vezes a planície a cavalo.
O professor pega no ponteiro, coloca-se em frente dos alunos e lê as palavras no quadro. Os rapazes repetem:
- Mãe, pai, pátria, liberdade, azad.
Enquanto Samira estuda e escreve, arranha o papel e rasga-o em pedaços, repete palavras e transpira, não deixa de observar os outros alunos e fica admirada com a quantidade de rapazes que perderam braços, pernas e mãos devido às minas.
- Gosto dos rapazes - diz ao professor. Pensa durante alguns instantes e pergunta: - Porque é que aqui não há raparigas?
- Ê uma longa história. As pessoas acham que as raparigas não precisam de saber ler e escrever. Julgam que as raparigas não são tão espertas como os rapazes. E como as raparigas mais tarde se vão transformar em mulheres, as pessoas acham que não faz sentido irem para a escola, porque mais tarde não vão precisar do saber para nada.
Samira fita o professor com um olhar vivo e atento.
- Essas pessoas dizem a verdade?
O professor enruga a testa.
- Porque te lembraste de perguntar pelas raparigas?
Samira encolhe os ombros.
- A tua pergunta tem algo a ver com aquilo que o teu pai te disse?
Samira encolhe os ombros.
- Meu pobre rapaz - comenta o professor. - Num país como o nosso, as perguntas sobre as raparigas e as mulheres simplesmente não têm resposta.
Samira encolhe os ombros, incapaz de olhar o professor nos olhos.
Quando chega a hora de Samira e Bashir regressarem à montanha, Bashir desapareceu. Os rapazes procuram-no, chamam-no, incluindo aquele que perdeu a perna devido a uma mina. Ninguém o encontra.
O senhor professor chama:
- Tens de voltar para a montanha, rapaz! O teu pai espera-te!
Bashir sai do esconderijo. Tem lágrimas nos olhos, soluça e enterra a cara no casaco do professor.
- O Samir sabe tudo. Todos gostam dele.
O professor abraça o rapaz.
- Ninguém sabe tudo.
- O meu pai quer que eu seja como ele. Quer que o Samir seja filho dele. A mim não me quer. - Bashir limpa as lágrimas da cara e olha para o chão.
O professor agarra-o pelos ombros e olha-o nos olhos.
- O teu pai disse isso?
Bashir encolhe os ombros.
- Volta para a montanha onde está o teu pai. Não fiques triste. Prometo-te que o teu pai não quer outro filho. O Samir é bom rapaz, mas tu és o filho do teu pai. És da sua carne e osso. Estás confuso, prometo-te que tudo vai ficar bem.
Bashir acalma-se, monta a mula e olha para Samira, sentada com uma postura recta no garanhão, feliz e contente.
- Bem - conclui Samira em tom de despedida. - Então, amanhã eu volto.
- Ainda bem! - exclama o professor. - Cá te esperarei. A ti e ao teu amigo Bashir.
Samira inspira profundamente, endireita-se e quer responder:
"Ele não é meu amigo", mas vê o olhar bondoso do professor, olha para o pobre Bashir e apenas diz:
- Voltaremos.
- Ainda bem - repete o professor.
- Não gosto dele - comenta Samira mais tarde com a mãe e o avô.
- Porque não gostas dele? - pergunta o avô.
- Porque ele não é um verdadeiro rapaz.
Os dias ganham asas, transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. Durante a semana, Samira desce para o vale, vai para a escola, aprende aquilo que tem que aprender, escreve, lê, faz contas e escuta atentamente o professor, espantada com o tamanho do mundo, que não adivinhava. Sempre que julga já ter compreendido tudo, apercebe-se de que, afinal, ainda há mais coisas que não conhece, não compreende ou não sabe.
- Gosto mais desta aldeia que da outra - afirma.
- Porquê? - pergunta-lhe a mãe, admirada com o pouco que resta de Samira neste seu filho-rapariga.
- Porque é maior - responde Samira, enquanto come um pedaço de pão com iogurte.
- Porque é que uma aldeia grande é melhor que uma aldeia pequena? - Daria apercebe-se de que ainda resta muito da criança em Samir, apesar de estar quase tão alto como ela.
- Man tshe midanam.
- Não digas isso - interfere o avô. - Apenas deves responder "não sei" a uma pergunta quando pensaste bem nela e realmente não sabes a resposta.
- Prefiro esta aldeia - explica Samira -, porque aqui ninguém me conhece. Porque sou novo.
O avô levanta as sobrancelhas e prepara-se para dizer algo, mas Samira antecipa-se.
- Man tshe midanam - diz e sorri, atrevida e cheia de coragem.
O avô sorri, pega numa pedra e finge que a lança contra ela. Samira ri-se, guincha, levanta-se com um salto e atira-se para cima do avô.
- Man tshe midanam! - repete. - Estive a pensar. Não existe resposta para essa pergunta na minha cabeça.
Os dias vêm e vão, Samira e Bashir cavalgam juntos para o vale, até à aldeia. Vão para a escola, almoçam juntos, frequentam as mesmas aulas, mas não conseguem gostar um do outro.
- Ele não sabe montar a cavalo - explica Samira. - Não sabe jogar boskashi. É muito magro e não sabe mexer em armas. Não sabe isto, não sabe aquilo. Não sabe nada.
- Ele sabe ler - afirma o professor.
- O Samir é tão rude - queixa-se Bashir. - Não tem coração. É burro. Só sabe andar por aí com os estúpidos dos cavalos. Tudo o que sabe é montar, disparar, caçar e trepar pelas montanhas.
- Pede-lhe para te ensinar - propõe o professor. - Vais ver que é muito divertido.
Todas as manhãs e todas as tardes, a cena repete-se. Samira vai à frente com o garanhão e Bashir segue-a na mula, sem ver nada nem ninguém, a não ser o seu livro.
- Lê para mim. - Samira não pede, fala num tom de ordem.
- Não consigo ler enquanto estou sentado na mula - explica Bashir. - O livro mexe-se demais.
- O quê? Então porque finges que estás a ler?
- Para não ter de te ver.
Samira pára o garanhão e espera que Bashir se aproxime.
- És um mentiroso.
- Não sou nada - replica Bashir e levanta o braço para bater com o livro em Samira.
O garanhão assusta-se, ergue a cabeça, empina-se, volta a pousar as pernas, escorrega e tropeça. O caminho é estreito e íngreme, o cavalo dá um grande passo para o lado e escorrega. Samira não consegue segurar-se a ele, cai, tomba, rebola. Escorrega pelo declive, dá uma cambalhota, fica presa num arbusto seco, rasga o braço e o pescoço, que começam a sangrar. Continua a rebolar, bate com a cabeça numa pedra, parece um saco de batatas que saltita montanha abaixo. Algumas pedras soltam-se e saltam. Samira sente o sabor do sangue na boca, tem dores na barriga, nos braços, nas pernas e em todo o corpo. Por fim, fica deitada. Imóvel. Uma última pedra, do tamanho de um pão, rebola montanha abaixo e cai-lhe na barriga.
O garanhão é o primeiro a chegar perto de Samira. Toca-lhe com as narinas moles no corpo, mordisca-lhe a orelha e relincha baixinho. Bashir e a mula precisam de mais tempo para descer o caminho estreito e sinuoso.
Bashir grita e chora, como se ele próprio estivesse ferido e tivesse dores. Desmonta e os seus joelhos tremem tanto que quase cai. Ajoelha-se ao lado de Samira, agarra-a e abana-a.
- Samir, Samir! Não queria que nada disto acontecesse! Não te quis empurrar! Acorda!
Mas por mais que Bashir grite e chore, Samira não se move. Deitada com a pedra na barriga, tem a boca aberta e os olhos fechados e o sangue escorre-lhe de uma ferida enorme por cima do olho. É um corte húmido e vermelho, aberto como uma boca sorridente.
- Não te quis matar! - exclama Bashir e pousa a mão na pedra em cima da barriga de Samira. Sente que a pedra se move levemente para cima e para baixo, com o ritmo da respiração de Samira.
- Deixa-o viver - sussurra Bashir. - Meu Deus, senhor deste mundo e de tudo o resto, deixa-o viver e eu prometo ser bom, prometo ser simpático com ele, servi-lo e fazer tudo o que ele me pede.
Bashir levanta a pedra, com cuidado, como se fosse uma parte do corpo de Samira e pousa-a de lado. Inclina-se sobre Samira, encosta o ouvido à sua boca, escuta a sua respiração, cheira o perfume da sua pele e a sua orelha toca nos lábios de Samira. Bashir passa a mão pela cabeça de Samira, cujo cabelo já cresceu, e sente uma lágrima cair-lhe dos olhos, para os lábios de Samira. Bashir não sabe porque faz aquilo que faz. Está lúcido, tão lúcido como nunca antes. Inclina-se sobre Samir, aproxima-se da sua cara, da sua boca e beija-o.
Durante todo este tempo, Bashir segurara o seu livro na mão, com força. Agora, depois do beijo, não sabe o que fazer, apercebendo-se de que não tem força suficiente para pôr o amigo no cavalo. Por isso decide pousar a mão no peito de Samir e abrir o livro.
- Pediste-me para eu ler, por isso vou ler.
Bashir lê, até Samira começar a tossir, abrir os olhos e pousar a mão na mão de Bashir.
- Beijaste-me.
Bashir assusta-se, pára de ler.
- Estava a ler.
- Mas antes beijaste-me - afirma Samira, fecha os olhos e respira com dificuldade. - Tenho medo.
- A culpa é minha.
- Segura-me - pede Samira. Agarra o ombro de Bashir com força e com a sua ajuda consegue montar a mula.
Inclina-se para a frente, mal consegue respirar, fecha os olhos. Apenas volta a abri-los quando ouve vozes, quando pousam o seu corpo no chão, quando sente mãos que apalpam as suas feridas e o seu corpo dorido e lhe põem pingos de água na boca.
Samira reconhece a voz do professor. Quer sorrir, mas não consegue. Abre os olhos, as pessoas à sua volta parecem manchas coloridas e difusas. Correm de um lado para o outro, mexendo as mãos no ar e pousando a cabeça no seu peito para escutar a respiração. Samira vê a árvore por baixo da qual está deitada e repara no ouvinte invisível, sentado num dos ramos a olhar para ela, com um sorriso.
"Ele beijou-te", afirma o ouvinte invisível.
- Eu sei.
"Foi bom?"
- Foi.
- O Samir está a falar! - exclama o professor. - É bom sinal.
- Vou morrer? - pergunta Samira.
"Queres morrer?"
Samira encolhe os ombros.
O talhante, que se inclinou sobre Samira para lhe apalpar a barriga, pressioná-la e verificar o interior do corpo, assusta-se.
- O rapaz está com dores. Tem ferimentos internos, não podemos mexê-lo.
O talhante tem experiência neste tipo de situações. Durante as várias guerras nas quais participou, tratou de muitos feridos e mortos, salvou uns, perdeu outros.
- Quero viver - murmura Samira. A sua cabeça cai para o lado e fica pálida.
- Não vais morrer - diz o professor. - O mula está cá, trouxe remédios. O talhante também veio para coser as tuas feridas e curar-te. Não vais morrer, rapaz. Não vás, fica connosco.
O talhante põe uma mão em cima da outra, coloca-as sobre o peito de Samira, pressiona, solta.
- Foram os Americanos que me ensinaram isto. Quando nos ajudaram na luta contra os Russos. Este método permite salvar a vida a qualquer pessoa, por mais morta que ela esteja.
O talhante esforça-se e transpira. Pressiona o peito de Samira e volta a soltá-lo, várias vezes, até a cara de Samira ganhar cor. Depois limpa o suor da cara com um pano cheio do sangue de uma vaca que acabou de matar.
- Ora aí está o vosso aluno! - exclama.
O talhante sente-se, por um lado, como o médico americano que lhe ensinou a salvar vidas, por outro, como o guerreiro no qual deseja que um dia Samir se transforme.
- Devolvi-lhe a vida - diz. - Veremos se valeu a pena e se ele será um grande guerreiro.
- Este rapaz já é um guerreiro - afirma o professor. - Não pára de lutar. Toda a vida lutou.
- Onde está o Bashir? - pergunta Samira.
"Julgava que não gostasses dele", responde o ouvinte invisível.
- Onde é que ele está?
- Estou aqui. - Bashir limpa as lágrimas dos olhos. Samira não vê Bashir, não ouve a sua voz, nem abre os
olhos. Não ouve, nem vê nada, nem ninguém. Nem o ouvinte invisível, sentado no ramo da árvore.
O Sol põe-se, os outros rapazes e o talhante vão-se embora. As estrelas aparecem e iluminam Samira, claras e frias, chamando-a.
- Ele vai ficar bom. - O professor passa a mão pela cabeça de Bashir. - O Samir é um rapaz valente. Não morre assim tão rápido.
- Mas todo o seu sangue está a escorrer pela cabeça - diz Bashir. Baixinho porque não quer que aquilo que diz seja verdade.
O Sol nasce, ilumina e aquece a aldeia, acorda os seus habitantes, incluindo Samira, que abre um olho. Apenas um. O outro está inchado, coberto de crostas e sangue. Samira olha para o lado, vê Bashir, fala baixinho, para que mais ninguém a oiça.
- Bashir, abre os olhos. Lê-me o teu livro.
Bashir estende o braço para o lado, encontra o seu livro, abre-o e lê. Baixinho, para que apenas Samira o oiça. De repente, pára de ler.
- Vou oferecer-te uma coisa para fazer desaparecer as tuas dores. - Bashir põe a mão por baixo do cobertor e retira uma pequena flauta de madeira.
Samira aproxima a flauta da boca, sopra, produz um som, fecha os olhos.
- Continua a ler - pede e adormece. Dorme até o avô chegar.
- Porque é que a minha mãe não veio? - pergunta ao avô, quando o vê.
- Meu filho, o que julgas? Isto está cheio de homens estranhos.
- Quero vê-la.
- Vou dizer-lhe que estás bem.
- Não estou bem. Preciso da minha mãe. Tenho de lhe dizer uma coisa importante.
- Podes dizer-me a mim.
Samira imagina que a mãe está a sofrer, pois não sabe se os homens descobriram a rapariga que há dentro dela. Engole lágrimas, estende o braço e pousa a mão no único braço do avô.
- Diz à minha mãe que o seu filho está vivo, diz-lhe que o seu filho irá protegê-la. Diz à minha mãe que o seu filho encontrou um amigo.
- Vou dizer-lhe - responde o avô e estende a mão a Bashir.
- Anda, Bashir, vamos voltar para a montanha, o teu pai espera-te.
- Eu fico. Diz ao meu pai que eu fico aqui em baixo na aldeia, enquanto o Samir tiver que ficar. - O pequeno Bashir fala com uma voz forte. Com uma voz nova, cheia de coragem.
Samira gosta da nova voz de Bashir, gosta das visitas do avô. Gosta quando os outros rapazes aparecem e se reúnem à sua volta por baixo da árvore. Gosta de ouvi-los a rir, de se rir ela própria, gosta dos pequenos presentes que lhe dão. Samira gosta de gostar de Bashir e dos outros rapazes.
- Porque são tão bons para mim? - pergunta.
- Porque é que não haveríamos de ser? - responde Madjid. - Tu és um dos nossos.
- Como sabes isso?
- Foi o meu pai quem me disse. Ele explicou-me que devemos ajudar os outros, pois amanhã poderemos ser nós próprios a precisar de ajuda e nessa altura os outros ajudarão.
Samira sorri e não diz: "O meu pai disse que eu não preciso dos outros rapazes."
O céu está coberto de mil estrelas e não há Lua que ofusque o seu brilho.
- As estrelas são as luzes de Deus e dos mortos - murmura Samira.
- Eu não tenho mortos - responde Bashir. - Se eu pudesse, dava-te mais um presente. - Bashir fala baixinho, para que ninguém o oiça, nem mesmo Deus, apenas Samira. - Pediria a Deus que troque o meu pai pelo teu. Assim o meu pai estaria morto e o teu ainda estaria vivo.
- Não quero nada disso.
- Mas eu não gosto que estejas triste.
- Não estou - responde Samira, admirada, pois ainda não reparara que a sua vida tem estado livre de tristezas, que esta nova vida, sem o seu pai, lhe agrada. Aponta para o céu. - Ali, aquela é a estrela que Deus faz brilhar pelo meu pai.
- Qual? - pergunta Bashir, seguindo o dedo de Samira com o olhar.
- Aquela ali, aquela brilhante ali em frente. Ou talvez aquela grande lá atrás. Que diferença faz? - pergunta e logo de seguida dá a resposta. - Nenhuma. Não faz diferença nenhuma. Porque não é verdade. Não há nenhuma estrela que brilhe pelo meu pai.
- Talvez não haja mesmo uma estrela a brilhar pelo teu pai. Mas era bom que pudesses acreditar que há, porque assim sentias o teu pai mais perto de ti.
Samira não responde: "Ainda bem que ele não está perto de mim."
- És um sonhador - afirma.
- Qual é o mal de sonhar?
- Sonhar é coisa de rapariga, não de homens e rapazes. Pelo menos não de verdadeiros rapazes.
Bashir vira-se para o lado, fita o amigo e passa o dedo pela ferida por cima do seu olho.
- O teu coração é duro. Tão duro como a crosta que se formou na tua ferida.
Samira não responde. Aprecia o toque, sem se mexer.
- És o meu melhor amigo - afirma Bashir e, depois de pensar, acrescenta: - És o meu único amigo.
- Quero ser teu amigo enquanto precisares de mim - responde Samira. - Estarei sempre cá para ti.
- Conta-me os teus segredos - pede Bashir.
- Temos de ter cuidado com os segredos.
- Não os vou contar a ninguém.
- Agora não tenho nenhum segredo - mente Samira.
- Mas quando tiver um, conto-te.
Os dias e as noites por baixo da árvore vão passando e vão-se transformando em passado. São noites durante as quais Samira e Bashir conversam muito, seguram as mãos um do outro, olham-se nos olhos, dormem um ao lado do outro. São noites durante as quais o professor se senta ao lado dos rapazes e abre o seu livro. Lê histórias de amantes, de heróis, princesas e reis, cisnes e bruxas. São noites durante as quais as páginas dos livros flutuam silenciosamente ao vento, transportando as fábulas pelo mundo fora.
- No início vocês eram inimigos - afirma o professor.
- Agora são como Leili e Majnun.
- Quem são Leili e Majnun?
- São amantes. Uma rapariga e um rapaz.
Bashir tapa a boca com a mão para esconder o riso. Samira fica calada. O professor vira-se para ela, fecha os olhos, vê a sua Leili. A sua Leili perdida.
"Viver é ganhar, viver é perder", diz o ouvinte invisível. Baixinho, para que ninguém o oiça.
A PROSTITUTA
- O meu peito está a crescer - murmura Samira.
Samira sente sharm, vergonha, baixa o olhar, para a mãe enlouquecida e reza a Deus para que tenha momentos de lucidez e lhe possa dar uma resposta.
Daria fita o filho-rapariga. De repente, o seu olhar torna-se claro e lúcido.
- O que pretendes fazer? - pergunta à filha.
- Se eu soubesse, não te perguntava.
- A decisão é fácil, olha para ti. Vai lá para fora e olha a vida que tu e os outros homens levam. E depois olha para mim, para a minha vida e para a das outras mulheres
- Porque é que Deus não me fez rapaz?
- Minha pobre filha. Porque te massacras com perguntas para as quais não existe resposta? Por que razão Deus enviou as guerras e levou o teu pai? Porque me tirou a razão a mim e o braço ao teu avô? Há algum motivo para fazer com que as crianças percam braços, pernas, bocas e o futuro? Deus não responde a essas perguntas.
Daria olha para as chamas, deixa as bolhas saltar para as apanhar.
- Deus criou-te como és. O resto cabe-te a ti. Já não és nenhuma criança. Cabe-te a ti transformares-te na pessoa que queres ser. Cada qual tem de fazer aquilo que considere melhor para si próprio. Se quiseres viver a tua vida como Samira, segue por um caminho. Se quiseres viver como Samir, segue por outro.
Depois destas palavras, Daria cala-se e vira-se para a água a ferver e apanha uma bolha. Retira-se para dentro de si própria, onde não há perguntas, nem respostas, nem razão.
Samira faz algo que há muito não fazia: aproxima-se da mãe, beija-lhe a testa e passa-lhe a mão pelo cabelo. Daria fita Samira, sorri e volta a olhar para as chamas. Canta baixinho, apanha as bolhas que saltam do tacho e salva-as ou não as apanha e deixa-as morrer.
Samira monta o garanhão, agarra sem força as rédeas enfeitadas com pedras coloridas e cavalga. Cavalga lentamente, sem rumo, sem pressa.
Ouve cânticos alegres, trautear e tambores, ao longe. É a festa de casamento do hadji. O hadji escolheu uma mulher, uma nova mulher, Firouza. Firouza está neste mundo há tantos Verões e Invernos como Samira. Firouza tem sorte, porque é uma rapariga, uma verdadeira rapariga, com seios que estão a crescer. Firouza tem sorte, porque encontrou um marido. O hadji levá-la-á para a sua tenda e mandará a segunda mulher, juntamente com os filhos, para a tenda da primeira mulher e dos filhos. O hadji passará as noites com Firouza, que tem sorte, pois é a nova preferida do hadji.
Samira conhece o suficiente da vida das mulheres para saber que chegará o dia em que Firouza também deixará de ser a preferida do hadji. Tal como houve o dia em que a primeira mulher e, depois, a segunda mulher do hadji deixaram de ser as suas preferidas. Mas hoje, Firouza está com sorte.
- Hadji! - exclamam os homens, riem-se e passam a mão pela barba. - Hadji, és um malandro.
Deus criou o hadji tal como ele é. O resto cabe-lhe a ele. Cabe-lhe a ele transformar-se no homem que quer ser. E o hadji quer ser um malandro, quer ter mulheres jovens e belas que o rejuvenescem e satisfazem o seu desejo.
Cada qual tem de fazer aquilo que acha melhor para si próprio.
A primeira mulher do hadji fora escolhida pelo seu pai.
Depois de ter tirado tantas crianças vivas e mortas do corpo que se tornou gorda e feia, o hadji escolhera uma nova mulher, jovem, muito jovem.
As pessoas comentavam: "O hadji tem um bom coração. Escolheu uma pequena órfã para ser sua mulher, vai oferecer-lhe um lar, protecção e segurança." O hadji não dissera aos homens que não era uma questão de bondade. Que a sua segunda mulher, a pequena órfã, fora uma prostituta. Não contara que escolhera a rapariga prostituta porque ela lhe dava a volta à cabeça. O hadji não contara nada disso aos homens.
Tudo isso a rapariga prostituta contara a Samira.
Tornara Samira sua confidente, enquanto o hadji estava sentado no tapete em frente à tenda da sua noiva. Enquanto os outros homens imaginavam, cheios de inveja, a alegria que o hadji iria ter ao estar sozinho com a sua terceira jovem noiva nessa noite. Enquanto a noiva não compreendia o significado das palavras da mãe, que dizia: "O teu marido vai fazer de ti uma mulher." Enquanto as outras mulheres trauteavam e cantavam para celebrar a sorte de Firouza. Enquanto isto e muito mais acontecia, a segunda mulher do hadji, a prostituta, conta a sua história a Samira.
- Não tenho outra escolha - começa. - Tenho de confiar em alguém. Quem sabe, um dia ainda me torno demasiado cara e maçadora para o hadji e ele quer ver-se livre de mim. Nessa altura, quero que haja pelo menos uma pessoa neste mundo horrível que conheça a minha história e que defenda os direitos dos meus filhos frente ao hadji.
- O hadji quer matar-te? - pergunta Samira.
- Quem sabe.
- Porque estás a contar-me tudo isso?
- Porque vejo que tu próprio escondes um grande segredo. Quem tem um segredo sabe guardar os dos outros.
- Mas eu não vou contar-te o meu segredo.
A rapariga ri-se e pousa a mão no braço de Samira.
- Não quero conhecê-lo. Os meus segredos já me bastam.
Samira vê nos olhos da rapariga que não está a mentir. Samira sabe que aquilo que está a fazer é proibido. Não é permitido a uma mulher, quanto mais a uma mulher casada, falar com um estranho, sobretudo se esse estranho é solteiro e ela lhe desvenda um segredo.
"A decisão é fácil", dissera-lhe a mãe. "Olha para a vida que tu e os outros homens levam. E depois olha para a minha vida e para a das outras mulheres."
- Fala - diz Samira. - O teu segredo vai ficar bem guardado comigo. Vou pô-lo no mesmo lugar em que guardo o meu.
- Então, ouve bem - começa a rapariga. - Tudo aconteceu num dia igual aos outros. O hadji está a lutar numa guerra, umas vezes é o inimigo que dispara, outras vezes é ele e os seus homens. Ora avançam uns, ora os outros. Ao fim dos disparos e do avançar e recuar, os homens regressam aos seus acampamentos, que não ficam longe uns dos outros, acendem uma fogueira, comem, bebem e quem precisa de se aliviar ou de fazer outra coisa qualquer sobe a montanha e desaparece entre as rochas.
"O hadji procura um lugar escondido, faz aquilo que tem a fazer e depois prepara-se para regressar, aliviado, para perto dos seus homens. Nesse instante, ouve outro homem bem perto, que, pelos vistos, está a fazer o mesmo que ele. Aproxima-se sorrateiramente, descobre o homem e encosta-lhe a arma à cabeça. Aguarda enquanto ele se veste, subindo a shalvar e descendo a kamiz.
"Queres saber como a história continua? - pergunta a rapariga.
- Bogu - responde Samira, acenando com a cabeça.
- Então tens de te aproximar, para eu poder falar baixinho.
Samira obedece.
A rapariga continua.
- O hadji descobre que o outro homem é um inimigo, mas que também é um hadji. Ambos não gostam da guerra e, na verdade, não gostam de matar, quanto mais quando o inimigo também é um hadji. Ao fim de alguma conversa, o hadji inimigo faz uma oferta ao meu hadji. "Õfereço-te um presente se me deixares viver."
- Como sabes isso tudo? - pergunta Samira.
- Sei porque o meu hadji me contou.
A rapariga pega no filho, que está a mamar num dos seus seios, e encosta-o ao outro.
Samira sabe que não deve olhar, por ser metade homem. Sabe que pode olhar, pois é mulher e também tem seios.
- Queres que continue? - pergunta a rapariga.
- Tu é que sabes.
A rapariga continua.
- O hadji inimigo fala-lhe de uma rapariga, descreve-a com as mais belas cores, imagens e perfumes, uma rapariga tenra e fresca como um botão de flor coberto de orvalho. Suspira enquanto fala, passa a língua pelos lábios e, quando finalmente termina, diz: "Se me deixares viver, ofereço-te esta rapariga." O hadji acede, deixa-se conduzir até à cabana onde vive a rapariga e descobre que o hadji inimigo dissera a verdade. A rapariga é a coisa mais doce que os seus olhos jamais viram.
Samira engole em seco.
- Tu és a rapariga que o hadji inimigo ofereceu ao hadji.
- Pois sou.
- Continua - pede Samira, sem saber se a história será verdadeira.
- O hadji inimigo gostava de ter ficado comigo. Mas vivia na mesma aldeia que eu e todos sabiam que eu era prostituta.
Samira não pergunta o que é uma prostituta. A rapariga vê nos seus olhos que não sabe.
- Uma prostituta é uma mulher que vende o corpo aos homens. As raparigas e mulheres que estão sozinhas e não têm nada, que não têm marido ou protector, são obrigadas a vender o corpo para não morrerem de fome.
Samira não pergunta o que significa vender o corpo.
- O pobre hadji da minha aldeia não tem culpa de não me ter feito sua mulher, pois desse modo teria perdido o seu bom nome e o respeito das pessoas - explica a rapariga, com uma respiração tão pesada que o seu seio escorrega da boca do bebé e ela tem de voltar a dar-lho. - O meu hadji, quando me viu, prometeu logo que trataria de mim, mas eu vi nos seus olhos que estava a mentir. A intenção dele não era receber-me e proteger-me, era apenas satisfazer o seu desejo. Foi necessária alguma habilidade para o levar a prometer que ia proteger-me.
Samira não consegue imaginar como um homem sucumbe à habilidade de uma mulher.
A rapariga ri-se.
- Conheço bem os homens, sei o que vos agrada. Falei ao hadji com uma voz cheia de doçura e calor que entrou pelos seus ouvidos e lhe fez cócegas e carícias. Pousei o som doce das minhas palavras no seu coração e deturpei os seus pensamentos. Coloquei-me à sua frente, pus os braços atrás do corpo e empinei os seios. Disse-lhe para me seguir até à minha tenda. Dei-lhe tudo aquilo que o pobre desejou, tudo com que sempre sonhou.
Samira engole em seco e fica calada. A rapariga baixa os olhos, depois ergue-os, e o seu olhar, repleto de desejo, confunde Samira.
- Consigo sempre reconhecer esse desejo nos homens - diz a rapariga. - É o mesmo desejo, o mesmo fogo que arde dentro de ti.
Samira não aguenta fitar a rapariga, baixa os olhos.
- Deitei o hadji no meu cobertor, inclinei-me sobre ele de modo a que visse o meu peito, que era jovem e rijo, e sentei-me ao seu colo até ele gemer e suspirar - continua a rapariga, fecha os olhos, inclina a cabeça para trás e volta a abrir os olhos. - Só depois perguntei ao hadji se iria levar-me com ele, tratar de mim e proteger-me.
Samira engole em seco; não entende por que razão a sua respiração está acelerada.
- Exigi ao hadji que jurasse proteger-me. Fora de si, ele respondeu: "Vou tratar de ti e proteger-te. Tu pertences-me." Só depois de ele ter jurado pela vida dos filhos é que eu satisfiz o seu desejo.
A rapariga encosta-se para trás, pousa a criança de lado, afasta as coxas e não puxa a saia para baixo nem tapa os seios. Esfrega as pontas dos seios com os dedos, lambe os dedos e volta a esfregar as pontas dos seios com os dedos húmidos.
- Faço isto para não doerem, depois de dar de mamar.
Samira apenas sabe que a rapariga deveria esperar até ela sair da tenda antes de esfregar as pontas dos seios e lamber os dedos, independentemente da razão pela qual o faz.
A rapariga vê a confusão nos olhos de Samira e continua a esfregar as pontas dos seios.
- E se agora, que o hadji tem uma nova mulher, ele me rejeitar, ou a sua primeira mulher me expulsar e eu não tiver ninguém para me proteger, tratas de mim?
Samira não sabe o que dizer, para onde olhar, o que fazer. Não compreende por que razão o sangue corre mais rápido no seu corpo, a sua respiração está ofegante e as imagens, pensamentos e palavras se baralham na sua cabeça. Samira não sabe, não sabe, não sabe, abre a boca.
- Eu não sou nenhum... - é tudo o que diz. Levanta-se com um salto e sai da tenda a correr. Apetece-lhe montar o cavalo e desaparecer. Não importa para onde. Mas nesse preciso instante uma mão agarra as rédeas do seu cavalo. Samira percebe de imediato que se trata do hadji.
- Oh, Samir, rapaz! - exclama o hadji. - Assim não dá, não podes desaparecer sem mais nem menos. Anda, não sabes que hoje é o dia do meu casamento? Anda, rapaz, és meu convidado. Abati a cabra mais gorda que tinha.
Samira sorri, dá leves pancadas com o pé na barriga do cavalo, que fica irrequieto e levanta a cabeça afastando-se das mãos do estranho, pronto para partir. Nesse instante, aparece o comandante Rashid, seguido de Bashir, e todos juntos barram o caminho a Samira.
- Estás a tentar escapar? - pergunta o comandante Rashid.
- Não. - Samira sorri e desce do cavalo.
O hadji coloca o braço à volta dos ombros de Samira e encaminha-a para o tapete no relvado, onde se encontram os outros homens a fumar narguilé e a comer fruta e pistácios, enquanto conversam, riem e cantam.
Samira vê e ouve tudo como se estivesse longe, lá em cima, no pico da montanha. A única coisa que vê clara e nitidamente na sua cabeça são os seios nus da prostituta. O único pensamento que tem lugar na sua cabeça é a dúvida de como é possível que tenha gostado daquilo que viu. Ela própria é metade mulher e tem seios que estão a crescer, apertados, e que a incomodam.
"A decisão é fácil", dissera a mãe. "Olha para a vida que tu e os outros homens levam. E depois olha para a minha vida e para a das outras mulheres." Samira tencionava ganhar alguma clareza de ideias e agora está mais baralhada que nunca.
- Tragam incenso! - exclama o hadji.
"O incenso é saudável", costuma dizer a mãe de Samira. "Protege de males e doenças, afugenta moscas, piolhos e pulgas e o mau-olhado, a inveja e a maldade." Samira inspira o fumo. Permanece com ele no corpo durante o máximo de tempo possível, para afugentar as imagens que preferia não ter visto.
As pequenas nuvens de fumo rodeiam Samira, pousam na sua face, no seu cabelo, enfiam-se por baixo da sua roupa e tocam-lhe na pele. Durante vários dias irá sentir este cheiro no nariz e na roupa. Sempre que o cheiro se soltar da sua roupa e lhe entrar pelo nariz, verá apenas uma coisa. Os seios nus da prostituta, as suas coxas afastadas e a sua língua a lamber os lábios.
- Viva o hadji - diz um dos homens, sem ânimo. Ê o pai de Firouza, a rapariga que esta noite será a terceira mulher do hadji. - Quatro vivas ao hadji - acrescenta, sem sorrir.
- Ele não tem razão para sorrir - afirma Bashir. Baixinho, para que ninguém o oiça, além de Samira. - O pai da Firouza tinha dívidas para com o hadji. Dívidas que não podia pagar. Então o hadji disse que lhe perdoava as dívidas se lhe entregasse a filha.
Samira fita Bashir, não diz nada e apenas espera que não tenha que ouvir outra história que a confunda ainda mais.
"Que mais me podes dar?" perguntou o hadji, sabendo que o pobre homem já tinha vendido tudo o que possuía.
- Como sabes isso? - pergunta Samira.
- Eu estava lá - explica Bashir, baixa o olhar e fala ainda mais baixinho. - Estava na tenda com a segunda mulher do hadji e ouvi tudo.
- Estavas com a órfã que ele trouxe das montanhas? O que estavas lá a fazer? Estavas sozinho com ela?
- Não, claro que não! Matavam-me se descobrissem! Estava com a minha irmã, Gol-Sar. - Bashir baixa ainda mais a voz. - O pai da Firouza pediu e rogou por um adiamento, mas o hadji não teve piedade e disse que se ele não pagasse ficava-lhe com a filha. "As minhas outras duas mulheres já não estão frescas", disse. "Vai fazer-me bem ter uma mulher fres-quinha."
- Ele disse "fresquinha"?
- Sim, eu ouvi com os meus próprios ouvidos. - O pai da Firouza beijou os pés do hadji, implorou e disse: "A minha filha ainda é uma criança!", mas o hadji não quis ouvi-lo e repetiu que ou pagava o que lhe devia ou lhe entregava a filha.
Samira fita Bashir.
- Não estás a mentir?
- Não, pela saúde da minha irmã, estou a dizer a verdade.
- Pobre Firouza - murmura Samira baixinho. - O que disse a segunda mulher do hadji acerca disso?
Bashir gosta de falar com Samir sobre coisas importantes que mais ninguém pode ouvir. Adora que os outros rapazes e homens vejam que ele e Samir são mesmo bons amigos. Olha à sua volta e continua a falar baixinho, escondendo a boca atrás da mão.
- A segunda mulher afirmou que há muito que o hadji não é um verdadeiro homem. Disse que ele não consegue satisfazer nenhuma mulher e que nunca a satisfez a ela. E disse também que ia vingar-se dele ou até encontrar alguém que o matasse, se ele ousasse não a alimentar, a ela e aos seus filhos.
- Quer encontrar alguém que mate o hadji? - Samira sente tonturas.
Quanto mais escurece e quanto mais estrelas aparecem no céu, mais barulho fazem os homens. Tocam com mais força os tambores, batem palmas e cantam desenfreadamente. Comem, bebem e dançam, até o hadji se erguer e se dirigir, a rir e a babar-se, até à tenda da sua jovem noiva, da qual todas as outras mulheres saem.
Samira aproveita o movimento para se encolher e desaparecer. Cavalga, sente o vento no cabelo, assobia por entre os dentes e incita o garanhão. O garanhão acelera, funga e o seu pêlo fica quente e húmido, enquanto voa pelas planícies com Samira.
A escuridão da noite é agradável e tranquilizadora, suave e bondosa. Não há cores berrantes, objectos cortantes, vozes e perguntas. Nem histórias de velhos que escolhem uma segunda ou terceira mulher, nem seios de uma antiga prostituta, nem nenhuma Firouza que não sabe o que quer dizer ser transformada em mulher. Samira voa, paira através da noite, pede ao amuleto que a ajude, entrega todas as imagens e palavras, pensamentos e medos ao vento para que ele os leve e os deposite algures no pico de uma montanha longínqua.
No fim da planície, no seu início, no lugar onde o caminho para o vale começa e acaba, Samira sobe a montanha e senta-se num rochedo, negro e liso como o rochedo do seu pai. Espreguiça-se e acalma-se. A sua respiração abranda e torna-se regular e o seu coração bate ao mesmo ritmo que a estrela que cintila no céu por cima dela, como se tivesse aparecido apenas para lhe agradar. Samira fecha os olhos e deixa-se envolver pela leve brisa no ar. Sente anjos a aproximarem-se, a levantarem-na, a erguerem-na até ao céu, até ela pairar, voar sozinha. Passa pelas estrelas, pela Lua, pelo Sol, até ao lugar onde Deus não existe, onde nada existe, onde tudo existe.
- Samir, estás a dormir?
Samira leva alguns instantes a compreender em que mundo está, de onde vem a voz e a quem pertence. Depois reconhece a irmã de Bashir. Gol-Sar aproxima-se do rochedo e olha para cima, para Samira. O seu lenço e a saia rodada flutuam na brisa que há poucos instantes envolvia Samira.
- O que fazes aqui? - pergunta Samira, e salta do rochedo. - Aconteceu alguma coisa?
- Não, não aconteceu nada - responde Gol-Sar baixinho, quase a sussurrar, com o olhar colado ao chão.
Samira fita Gol-Sar de frente, finge que não ouviu os sussurros.
- Hoje vi-te - continua Gol-Sar.
Samira questiona-se por que razão Gol-Sar afirma que a viu, afinal costumam ver-se várias vezes ao dia, quando Gol-Sar põe a mão no braço de Samira e olha para ela, fita-a nos olhos. Ambas as coisas, pousar a mão no braço e olhar de frente nos olhos, não seriam graves, se não se passassem a meio da noite e se os dois não estivessem sozinhos, longe de tudo e de todos. Se Samira não fosse Samir, mas sim Samira e se Samira não gostasse de sentir a mão de Gol-Sar no seu braço. Gosta daquilo que sente, é uma sensação quente e agradável. De repente, compreende o que está a acontecer e encolhe o braço.
- O que estás aqui a fazer?
- Venho muitas vezes para cá.
- A meio da noite? Assim, sozinha?
Gol-Sar sorri, retira o lenço da cabeça, estende-o no chão, senta-se nele e ergue o olhar para Samira.
- É bom estar sozinha e não ter ninguém a dar-nos ordens. Este é o único momento e o único lugar em que posso ser livre. - Gol-Sar inclina-se para trás, deita-se no lenço, abre os braços e olha para o céu.
Samira não sabe por que razão faz aquilo que faz, mas fá-lo. Estende a mão a Gol-Sar.
- Anda, sobe.
Gol-Sar agarra a mão, como se tivesse estado à espera destas palavras, e sobe para o rochedo.
Samira estende o seu patu na pedra, deita-se de costas e agarra na mão de Gol-Sar, que está em pé, puxando-a para perto de si. Assim permanecem deitados, lado a lado, o rapaz-rapariga e a rapariga, olhando em silêncio para o céu, com as mil e uma estrelas.
Uma cobra macia e quente aparece na barriga de Samira, faz-lhe cócegas e toca com o nariz no seu coração. Levemente, sem causar dor. O coração de Samira acorda, vê Gol-Sar. Samira não sabe o que lhe está a acontecer, não quer saber, fecha os olhos, pede à cobra da felicidade para ficar. Gol-Sar não se mexe, fita Samira.
- Samir, gostas de mim?
Samira pede à cobra da felicidade para não partir.
Gol-Sar não se mexe, respira calma e profundamente. Não toca em Samira, mas, apesar disso, é como se tivesse posto o braço à volta de Samira e pousado a cabeça no seu peito.
- Gosto de ti - responde Samira e pede à cobra da felicidade para não partir. - Gosto do teu irmão, gosto dos rapazes da aldeia, daqueles que têm uma só perna ou um só braço, daqueles que têm um grande buraco no lugar da boca. Sim, gosto de ti.
- Também gostas da segunda mulher do hadji?
A cobra da felicidade desaparece e deixa um vazio frio na barriga de Samira.
- Eu vi-te - afirma Gol-Sar.
- O que viste?
- Vi que estiveste na tenda dela.
Samira reflecte durante alguns instantes e decide mentir.
- O hadji pediu-me para levar lenha à sua mulher. Foi isso que eu fiz.
- Mais nada?
- Mais nada. - Samira aproxima-se de Gol-Sar, passa o dedo pela sua testa, pega num dos seus caracóis e enrola-o no dedo. Sorri e brinca com o caracol.
- Ainda bem - afirma Gol-Sar e também sorri. Samira larga a madeixa de Gol-Sar e deita-se de costas.
- Se o teu pai ou o teu irmão nos vissem aqui, matavam-nos.
- Então que nos matem!
- Mas talvez não, talvez não nos matassem. Se soubessem que as coisas não são como parecem, se soubessem a verdade, toda a verdade, só me matavam a mim.
- Se te matarem a ti, quero que me matem a mim também.
Samira apoia a cabeça na mão, olha para Gol-Sar e pensa. Reflecte longamente.
- Tu não compreendes.
- Por ser rapariga? - pergunta Gol-Sar. - Isso não é justo. Tu não sabes, mas as raparigas compreendem muito mais do que vocês, os homens, julgam.
- Eu sei - responde Samira, inclina-se para a frente e com os lábios quase toca nos lábios de Gol-Sar. Quase. Samira fita Gol-Sar longamente.
- O teu cabelo cheira a água de rosas.
- Oiço o bater do teu coração - responde Gol-Sar.
- Os teus olhos são tão bonitos como os de uma jovem corça.
- Que nos matem, deixa-os, estou disposta a morrer. - Gol-Sar repete os gestos de Samira, pega num dos seus caracóis e enrola-o no dedo, acaricia-o e brinca com ele.
"O que pensas que estás a fazer?" pergunta o ouvinte invisível, senta-se na anca de Samira e fita-a com os olhos muito abertos.
Samira pára de cheirar o perfume de água de rosas do cabelo de Gol-Sar, deixa de vê-la e de ouvir o seu coração.
- O que fazes durante o dia? - pergunta Samira, afugentando o ouvinte invisível e a cobra da felicidade, e tentando escapar à tentação da suavidade e dos sussurros de Gol-Sar e às carícias da brisa.
- O quê? - Gol-Sar acorda do seu sonho proibido, dos seus desejos negados.
- Quando acordas de manhã, o que é que fazes?
- É uma pergunta que nunca ninguém me fez. - Gol-Sar reflecte durante alguns instantes. - Nada, não faço nada.
- Não fazes nada? Isso não existe. Toda a gente faz qualquer coisa quando acorda de manhã.
- Acendo o lume.
- E depois?
- Nada. - Gol-Sar ri-se.
- Vá lá. Acordas e depois?
- Depois vou até ao rio buscar água.
- E depois?
- Ponho a água ao lume, acordo os meus irmãos e irmãs, lavo-os e dou-lhes chá, quando há. Preparo a massa para o pão, cozo-o, vou até ao rio lavar a roupa, varro o chão e levo as cabras a pastar.
- É uma vida boa.
- Não é, não! É uma vida cheia de nada.
- Mas aquilo que fazes não é nada.
- É. Quem me dera ser rapaz. Vocês têm sorte. Andam por aí o dia todo. Podem fazer aquilo que quiserem. Que inveja eu tenho de ti e do meu irmão! Vocês vão à caça, vão até à aldeia, andam na escola, jogam boskashi, disparam as armas. Um dia vão para a guerra, defender a nossa pátria. Vocês negoceiam com outros homens, trocam e compram mercadoria. A vida dos rapazes é importante, bela e emocionante. A nossa é um castigo.
- Talvez seja verdade aquilo que dizes.
- É mesmo verdade. Nós não temos responsabilidades, não fazemos nada. Durante toda a vida. E depois aparece um homem qualquer, casa connosco, temos filhos e voltamos a não fazer nada e a não ter responsabilidades.
- Não é fácil assumir responsabilidades. Não é fácil ganhar o pão para a família.
- Achas que é fácil ver que o meu irmão pode fazer tudo? E eu nada? Olha para mim.
Samira olha para Gol-Sar, quer tocá-la, acariciá-la, não sabe porquê, quer fazê-lo, mas não o faz.
- Eu não sou humana? - pergunta Gol-Sar. - O sangue que corre nas minhas veias não é o mesmo que o do meu irmão? Qual é a diferença?
- És bonita. - Samira olha para os olhos escuros de Gol-Sar, repletos de raiva, como se ardessem.
- É só isso que somos, bonitas. Nada mais. Até aparecer um homem e casar connosco. Depois nem sequer bonitas somos.
- Que palavras são essas? Quem meteu todos esses pensamentos feios e pesados na tua bonita cabeça?
Gol-Sar hesita.
- Foi o meu irmão.
- O Bashir ensina-te essas coisas? Onde é que ele as aprende?
- Nos livros.
- Não sabia que esse tipo de ideias se encontravam nos livros. Julgava que nos livros só havia histórias de heróis, reis e príncipes.
- Vou contar-te um segredo. - Gol-Sar ri-se. Samira não sabe se lhe apetece ouvir outro segredo.
- Eu sei ler. O Bashir ensinou-me a ler, às escondidas. Ensina-me tudo o que aprende.
- Tu sabes ler? Eu julgava que as raparigas... - Samira interrompe a frase. - Acho muito bem. Todas as raparigas deviam aprender a ler e a escrever.
- Então gostas de mim, apesar disso?
Samira deita-se de costas e sorri.
- Gosto de ti. Até gosto mais de ti do que tu imaginas.
Samira, o rapaz-rapariga, ri-se.
Gol-Sar, a rapariga, ri-se também.
- Se nos encontram aqui, matam-nos - afirma.
- Deixa-os. Enquanto vivemos, vivemos e, quando deixarmos de viver, morremos. O que vais fazer amanhã?
- Aquilo que faço todos os dias. Não vou fazer nada. A única diferença será que vou visitar a coitada da Firouza.
- Porque é que a Firouza é coitada?
- Porque ainda é uma criança. Faltam dois Verões para ser balegh.
Samira quer perguntar o que significa balegh, mas não pergunta.
- A minha mãe diz que ela vai ter dores. Por isso é coitada - explica Gol-Sar. - Pode ser que neste instante, agora que tu e eu estamos aqui deitados a falar e a olhar para o céu, livres, ela esteja a ser transformada numa mulher. Por um homem que cheira mal e não tem dentes. Que tem quatro ou cinco vezes a sua idade e que é mais velho que o pai dela. Por isso é que a pobre Firouza é coitada. E coitada porque é uma rapariga.
- Pobre Firouza.
- Amanhã vou visitá-la para retirar a decoração da sua tenda e devolvê-la à primeira mulher do hadji.
- Que decoração?
- A decoração do casamento - explica Gol-Sar. - Os fios de lã vermelhos, amarelos e verdes pendurados à entrada da tenda para protegê-la do mau-olhado e dos espíritos maus. Os bordados coloridos, as jóias e os tapetes, os lenços cintilantes e as tigelas de barro nas quais queimámos o incenso. Vou buscar tudo isso, porque apenas lhe foi emprestado pelo hadji.
- Mas os homens dizem que ela tem sorte, porque tem uma tenda só para ela.
- Isso é o que os homens dizem. Queres saber a verdade?
Samira não sabe se quer ouvir a verdade.
- O hadji só a recebe na sua própria tenda por uma única razão. Para poder realizar os seus desejos e poder tirar partido da pobre criança sem ser incomodado.
Samira fica calada, sem saber por que razão a sua respiração está ofegante.
- Quando a mãe de Firouza lhe pintou as mãos e os pés de vermelho com hena e explicou que era para que o sangue da noiva não aquecesse, a mãe chorou. A pobre Firouza não entendeu, mas chorou com a mãe - conta Gol-Sar e limpa as lágrimas dos olhos.
Samira não pergunta por que razão o sangue da noiva não deve aquecer, vê as lágrimas de Gol-Sar e engole as suas próprias lágrimas, sem saber de onde vêm.
- Pobre Firouza - afirma.
- Agora ficaste triste por causa de mim. Não era essa a minha intenção.
- Não faz mal.
- Vês. A vida dos rapazes é bela e emocionante, tem um significado e muita importância. A vida das raparigas é um castigo.
- Talvez seja verdade.
A ESCADA
Bashir está deitado no rochedo ao lado do amigo, olha para o céu coberto de estrelas e escuta a melodia que Samira toca na flauta. É uma melodia pesada e triste.
- Até mesmo as melodias que tocas são sempre tristes - afirma. - Porquê? Qual o peso que carregas dentro de ti?
Samira suspira.
- Não é nada e é tudo.
- Estás a dever-me um segredo.
- Ainda não chegou a hora de to contar. Até lá, o meu segredo fica nas montanhas do Indocuche, por baixo de uma pedra, onde o coloquei.
Bashir toca na ferida por cima do olho de Samira.
- Vou encontrar a tua pedra. Vou percorrer o Indocuche de cima a baixo e olhar para cada uma das pedras no meu caminho, até encontrá-la. Quando a vir, saberei que é a pedra por baixo da qual o meu amigo guardou o seu segredo. Vou cumprimentá-la e beijá-la, mas não vou espreitar aquilo que está por baixo. Vou voltar para cá, sentar-me à tua frente e esperar. Esperar até tu próprio me contares qual é o teu segredo.
- Tenho muita sorte - afirma Samira. - Tenho muita sorte por ter um amigo como tu.
- Sempre tiveste sorte. Toda a tua vida sempre foi preenchida de sorte. E a tua maior sorte é teres tido um pai como o teu.
Samira ignora as palavras do amigo e continua a tocar flauta.
- Tiveste um pai que te respeitou - continua Bashir. - A tua força, a tua coragem, deves-lhe tudo isso. A ele e ao respeito que tinha por ti.
- Enganas-te. O meu pai não me respeitava. Ele não respeitava ninguém, nem sequer ele próprio - responde Samira sem olhar para Bashir. Continua a tocar flauta, mas, de repente, pára e acrescenta: - Ele não se sentia um verdadeiro homem porque só teve um único filho.
- Porque é que não procurou outra mulher? - pergunta Bashir. - Podia ter tido muito mais filhos.
Samira ri-se. O seu riso é amargurado.
- Pobre Bashir. O mundo não é tão simples como julgas. O problema não era da minha mãe, era do meu pai.
Bashir não compreende.
- O meu pai foi ferido no testículo durante a guerra. O inimigo disparou contra o seu testículo e a sua masculinidade.
- O teu pai era um homem sem testículo e sem masculinidade? Então ele é que teve a culpa de não ter tido mais filhos? Eu julgava que, quando um homem não tem suficientes filhos e filhas, a culpa é sempre da mulher.
Por um lado, Samira tem vontade de rir, por outro, apetece-lhe chorar.
- Há mais homens como o meu pai, homens sem testículo, sem masculinidade.
Bashir não acredita em Samira.
- Estás a tentar dizer que há homens sem...
- Sem pénis, que não são verdadeiros homens. - Samira acaba a frase que o amigo não teve coragem de completar.
Bashir sorri.
- Em contrapartida, o único filho que o teu pai teve é bem mais forte e corajoso que a maioria dos rapazes e homens que conheço. Quem me dera que Deus me tivesse feito como tu; seria o homem mais feliz do mundo.
Samira ri-se. O seu riso é amargurado.
- Não sabes o que dizes. Nenhum homem quer ser como eu.
- Alguém como tu não pode saber como se sente uma pessoa no meu lugar - afirma Bashir. - Olha para mim. Não posso proteger ninguém. Não sei lutar. O meu pai diz que sou um fraco, um magricelas, que pareço um frango. Acha que teria sido melhor se a minha mãe me tivesse tirado do corpo como rapariga.
- O teu pai, o meu pai. Devíamos esquecer os nossos pais. - A voz de Samira é dura como a cicatriz que cobre a ferida por cima do seu olho.
- A única coisa que o meu pai gosta em mim é seres meu amigo.
Samira toca flauta, pára de tocar.
- Deves pensar que Deus, ou o meu pai, ou quem quer que seja que me criou, fez com que eu fosse assim como sou. Achas que é a vontade e a obra de Deus eu ser um verdadeiro rapaz? Pois não é. Eu sou aquele que sou, ou deixo de ser, porque assim o quero.
Bashir prepara-se para dizer algo, mas não tem coragem de contradizer o amigo enfurecido.
- O facto de uma pessoa ter força, saber montar, jogar boskashi ou disparar e acertar não é obra de Deus - continua Samira.
- Não te preocupes, já me conformei com isto. Há homens que são como tu e outros que são como eu. Os homens não são todos iguais.
- Isso é verdade. Há homens que são diferentes. Tão diferentes, que tu nem imaginas.
- Temos de nos conformar com isso. Há coisas que são como são e não se pode mudá-las.
- Quem é que disse isso? Onde é que leste isso?
Bashir ri-se.
- Há poucos Verões, não sabias ler nem escrever e agora perguntas-me onde é que se pode ler aquilo que digo?
- Sim - responde Samira. - Quem é que diz que temos de aceitar as coisas como elas são? É possível mudar as coisas. Até a minha mãe, que enlouqueceu, sabe isso. É possível aprender a lutar.
- Eu não quero lutar, não quero nenhuma guerra. Quero uma vida com paz.
- Meu pobre amigo. A vida é uma luta. E lutar é viver. Tudo aquilo que eu sei e sou, apenas o sei e sou porque lutei por isso. Lembras-te no início, quando eu segurava o meu lápis como seguro um punhal? Desde então não desisti, lutei, treinei, até aprender a escrever. Quando vi o senhor professor pela primeira vez, nem sequer sabia que isso existia.
- Que o quê existia?
- Que a leitura e a escrita existiam.
- Não acredito. Estás a mentir para me fazer um favor.
- Pois - afirma Samira. - Alguém como tu não pode saber como se sente uma pessoa no meu lugar. Para mim, cada palavra que escrevo ou leio continua a ser uma luta. No teu caso, quando lês, os pássaros param de cantar, porque ao ouvirem a tua voz têm vergonha. Quando escreves, a tua mão dança. Salta e paira sobre o papel como um pássaro que salta de ramo em ramo, aparentemente sem esforço.
- Falas tão bem. As tuas palavras são como uma pétala suave que pousa no meu coração.
- Pára com isso. Estás a envergonhar-me. - Samira fecha os olhos e sente o corpo a vibrar, sem compreender porquê. É uma sensação semelhante à que teve naquele dia em que saltou do rochedo do pai, ágil e leve. Corre através da escuridão até ao cume da montanha, coloca-se em frente ao Sol e abre os braços. Quebra a luz do Sol, lança uma sombra sobre o vale, sobre o rochedo e sobre o pai, até o Sol subir e ela o carregar nas mãos.
- Onde estás? - pergunta Bashir, sabendo que o amigo se encontra no mundo dos sonhos.
- Primeiro pousei a pétala no teu coração, depois subi para o cume da montanha e venci o Sol.
Bashir ri-se e deita-se de costas.
- Falas como um poeta. Conta-me a história da rapariga e da vitela.
- Já a conheces! - responde Samira e ri-se.
- Eu conheço-a, mas quero que ma contes de novo.
- Então, ouve bem - começa Samira. - Um rei com o belo nome de Bahrame Gour era um excelente caçador. Um belo dia decide ir à caça, acompanhado pelos seus homens, servos e escravos, pelo seu vizir e por uma rapariga com um belo semblante e um corpo de gazela. A rapariga tem o cabelo comprido e brilhante como seda, uns olhos escuros que brilham como duas pedras preciosas e a sua pele é suave como um pêssego. Os seus movimentos são graciosos e a sua voz tão doce que cala o canto dos pássaros. As melodias que entoa com o seu instrumento preenchem os corações de alegria e dão felicidade à vida das pessoas.
"Admiro a tua voz e a tua arte de tocar esse instrumento", afirma o rei. "Diz-me, bela rapariga, tu também admiras a minha força e a minha coragem?" A rapariga não responde e o seu silêncio fere o coração do rei como uma seta. "O que terá o teu rei e senhor de fazer para merecer a tua admiração pela sua coragem e força?" pergunta o rei, deprimido. Nesse instante aparece um veado e a rapariga diz: "Se tiveres força suficiente para cravares a pata desse animal à sua cabeça com a tua seta, merecerás a minha admiração."
"O rei acerta com um berlinde na orelha do animal. Quando este tenta retirá-lo da orelha com a pata, o rei atira uma seta e crava-lhe a pata à cabeça. "Agora já mereço a tua admiração pela minha força e coragem?"
"O teu acto não merece admiração", responde a rapariga. "Quando uma pessoa treina vezes sem fim a mesma coisa, é certo que resultará. O teu êxito não é consequência da força e da coragem, mas do treino e da experiência que tens."
"A destreza da rapariga enfurece o rei de tal forma que manda o vizir levá-la e matá-la. A rapariga convence o vizir a deixá-la viver e a levá-la para longe do rei, para o seu palácio. Lá, encontra uma vitela recém-nascida, pega nela e carrega-a aos ombros pelos sessenta degraus do palácio acima. Todos os dias volta a subir com a vitela às costas. Mesmo quando a vitela cresce e se transforma numa vaca, a rapariga carrega-a e assim, de dia para dia, vai-se tornando mais forte e mais bela. Certo dia, a rapariga pede ao vizir para convidar o rei para almoçar. Entrega-lhe os seus brincos e as suas jóias e pede-lhe para comprar carne, fruta e nozes. O vizir compra as coisas e decide assumir os custos da refeição. Espalha os seus tapetes mais preciosos no topo dos sessenta degraus, prepara uma refeição deliciosa e convida o rei para o seu palácio.
"O rei aceita e, quando chega, sobe os sessenta degraus. "Vizir, realmente tens aqui um belo palácio, mas, quando fores velho, como subirás estes degraus?", pergunta quando chega ao fim das escadas.
“Meu rei, só Deus sabe se nessa altura ainda conseguirei subir estes degraus. Mas permita-me que lhe mostre uma coisa."
"A rapariga, vestida com as suas melhores roupas e com a face escondida por baixo de um lenço, pega na vaca, põe-a aos ombros e sobe os degraus. Quando chega ao fim das escadas afirma: "Como viste, meu rei, carreguei a vaca por estes sessenta degraus acima com a minha própria força. Agora diz-me, meu rei e senhor, haverá homem com força suficiente para voltar a levá-la lá para baixo?"
“Isso não é uma questão de força", responde o rei. "Tu carregas esta vaca pelos degraus acima desde que ela é pequena. Por isso, ainda hoje és capaz de a carregar. É uma questão de experiência e de treino."
“Mas quando tu cravaste a pata do animal à sua cabeça, disseste que era resultado da tua força e da tua coragem." A jovem mulher retira o lenço da cabeça e mostra a face ao rei.
"O rei reconhece-a e fica contente por saber que está viva.
“Se este palácio se transformou na tua prisão, então peço-te perdão", afirma. Depois recompensa o vizir tornando-o rico, leva a jovem mulher consigo e casa com ela.
- E foram felizes? - pergunta Bashir.
- Foram.
Bashir levanta-se.
- Khob. Então vou treinar, dar um pequeno passo todos os dias, até ser o filho que o meu pai quer que eu seja.
- Não! - contesta Samira e bate com a mão aberta no rochedo, assustando Bashir, a mula e o garanhão.
- Porque não? Julgava que era isso que esperavas de mim.
- Não - repete Samira. É um "não" grande e pesado. Um "não" que interrompe o silêncio da noite, que paira nas montanhas e que afasta a pétala que repousava no coração de Bashir. - Não importa aquilo que eu quero de ti. Não importa aquilo que o teu pai quer de ti. O que importa é aquilo que tu próprio queres.
- Quero ser teu amigo. Mais nada. - Bashir inclina-se sobre Samira, olha-a nos olhos, hesita, beija-a na face.
Samira não se mexe, vê a cara do amigo sobre a sua, sem saber o que fazer ou dizer. Sente a respiração de Bashir e ouve o coração dele que bate tão rápido como o seu.
Quando Samira se prepara para se afastar do amigo, para se endireitar e descer do rochedo, Bashir agarra-lhe a cara e beija-a uma segunda vez. Desta vez no meio da boca. Depois endireita-se e vira-se de costas para Samira.
- Pronto, agora sabes o que eu quero.
Samira pensa e reflecte, reflecte e pensa e decide agir como se Bashir não a tivesse beijado. Nem da primeira, nem da segunda vez.
- O que é que me perguntaste, quando acabei de contar a história? - indaga.
Bashir encolhe os ombros estreitos.
- Perguntaste se o rei e a rapariga foram felizes.
- E tu respondeste que sim.
- Por que razão perguntaste isso e não outra coisa?
Bashir encolhe os ombros estreitos.
- Porque é uma grande pergunta - responde Samira. - Uma pergunta importante. A pergunta de todas as perguntas. Porque é isso que importa na vida das pessoas. A felicidade.
- Como é que sabes isso?
- Eu sei, porque vi a minha mãe enlouquecer e vi o meu pai perder a honra, por não terem ouvido os seus corações e terem sempre feito aquilo que a religião, a tradição, o muJá e sei lá mais quem esperavam deles.
Bashir não engole as lágrimas, permite que o amigo as veja.
- Eu sei isso de experiência própria - acrescenta Samira. - Enquanto somos vivos, temos força para fazer da nossa vida aquilo que queremos.
Bashir encolhe os ombros.
Samira pousa a mão no ombro de Bashir e reúne toda a sua coragem para dizer:
- Acreditas que uma rapariga pode ter tanta força como um rapaz? Que consegue andar como um rapaz? Ir para a escola, para o bazar, negociar, regatear, cuspir para o chão, lutar, beber chá com os homens, caçar, jogar boskashi. Achas que é capaz de tudo isso e muito mais? De ser como um rapaz, como um verdadeiro rapaz, apesar de ser rapariga?
- O quê? O que é que estás a tentar dizer? - A voz de Bashir é alta e estridente. - Estás a tentar dizer que sou uma rapariga? - Salta do rochedo e desaparece na escuridão.
A ENCOMENDA
- Deus o tenha, o teu pai era um homem inteligente - afirma Daria.
- Não, não era - responde Samira.
- O comandante teve uma vida cheia de alegria.
- Não, não teve.
- Não fales assim de um morto. Ele era o teu pai.
- Não tenho culpa disso.
- Estás a ser abusada.
- Posso ser assim, porque sou rapaz. A culpa é vossa. - Samira recosta-se, bebe o chá incolor sem açúcar, que sabe mais a água que a chá e olha para a mãe enlouquecida. - É engraçado que sejas justamente tu a falar de comportamentos correctos.
- Não sejas ingrata.
- Tenho razão para agradecer? - Samira pousa o copo de chá e levanta-se. Pega no patu e prepara-se para sair da tenda. À saída da tenda vira-se para trás, olha para a mãe, prepara-se para dizer algo, mas não diz e desaparece.
- Minha pobre filha - murmura Daria baixinho.
- O que se passa contigo? - pergunta Bashir a Samira.
- O que queres que se passe? Nada. - Samira salta do cavalo, apanha uma pedra e atira-a. Assim, simplesmente, sem acertar em nada, nem em ninguém. - Não se passa nada. A minha mãe enlouqueceu, o meu pai morreu e o meu avô perdeu o braço. Não temos animais, nem dinheiro, nem trigo, nem peles. O chá que bebemos parece água e o Inverno não tarda a chegar. O que queres que se passe? Não se passa nada.
Bashir não sabe o que dizer.
- Anda! - Samira puxa o amigo pela manga - Vamos montar a cavalo.
- Deixa-me, não quero.
Samira sabe que Bashir segui-la-á. Sempre que Samira lhe diz para fazer alguma coisa, ele faz. "Bashir, ainda não tens força suficiente, tens de aprender a montar melhor, não entalas bem a vitela morta por baixo das coxas, permites que ta roubem com demasiada facilidade, tens que treinar mais. Precisas de mais força nos braços e nas pernas. Bashir, vamos subir a montanha a correr, vamos fazer uma corrida, vamos fazer isto, vamos fazer aquilo." O que quer que Samira diga, Bashir fá-lo. Porque quer ser como Samir.
- Anda, vamos! - exclama Samira. - Pára de fazer fita, como uma rapariga!
Bashir faz algo que nunca fez. Cerra os dentes, cerra os punhos e atira-se para cima de Samira, atira-a para o chão e bate-lhe. Desprevenida, Samira leva algumas pancadas antes de perceber o que se passa. Empurra-o pelos ombros, mas Bashir continua em cima dela, esmurram-se mutuamente. Rebolam no chão, e acabam deitados um ao lado do outro, exaustos, com a respiração ofegante. Olham para o céu e riem-se, até serem cobertos por uma sombra.
É o comandante Rashid, com um sorriso satisfeito.
- Ora então, afinal o meu filho não é nenhuma florzinha de estufa!
Estende uma mão a Samira e a outra a Bashir e ajuda-os a levantarem-se.
- Obrigado - diz para Samira. - Transformaste o meu filho num verdadeiro rapaz. Fico em dívida para contigo. Diz-me um desejo teu e eu satisfaço-o.
Samira ainda mal consegue respirar, surpreendida com o comportamento de Bashir, mas não precisa de muito tempo para decidir.
- Preciso de trabalho. Um trabalho a sério, para ganhar dinheiro.
- Trabalho? - O comandante solta uma gargalhada. - Que tipo de trabalho poderia eu oferecer-te?
- Sei lidar com cavalos quase tão bem como o meu pai sabia.
- E o que é que me adianta saberes lidar com cavalos?
- Posso treiná-los e prepará-los para o jogo. Eu vi-te a jogar, sei quais são os teus pontos fracos. Posso ajudar-te.
- Tu? - O comandante pára de rir. - Tem cuidado com aquilo que dizes. Estás a fazer-te de importante. Esqueces-te de quem eu sou?
- Não.
- Quem és tu para achares que eu, o comandante destas terras altas, posso aprender qualquer coisa contigo, um rapaz?
Bashir observa a cena, olha alternadamente para o amigo e para o pai. Limpa o suor e o sangue da cara com a kamiz, e ainda não consegue acreditar naquilo que aconteceu. Ele, Bashir, o fraquinho, andou à pancada. E não foi com um rapaz qualquer. Andou à pancada com o rapaz mais forte e valente que conhece, com Samir, o corajoso, que todos os outros rapazes temem e respeitam.
- Porque ele sabe - responde Bashir, sem perceber onde arranjou coragem para contradizer o pai.
O comandante lança um olhar furioso ao filho e a Samira, cospe para o chão, vira-se e vai-se embora.
- Vou para a aldeia. - Samira monta o cavalo.
- O que vais fazer?
- Procurar trabalho.
- Eu vou contigo! - exclama Bashir, e desaparece atrás da tenda. Volta a aparecer montado, não na sua mula, mas num cavalo. Durante todo o percurso até ao vale, Samira acompanha-o de perto, atenta para que Bashir e o cavalo não escorreguem pela montanha. Samira não pára de dar ordens e conselhos a Bashir: "Costas direitas, pernas contra o corpo do cavalo, não segures as rédeas tão alto, solta-as um pouco mais, não tenhas medo, não escorregues da sela, o teu cavalo sabe por onde ir, faz isto, faz aquilo."
No início do percurso, Bashir parece um saco de cebolas. Tem uma postura inclinada e instável. Baloiça e escorrega e ameaça cair do cavalo a qualquer momento. Por fim, monta de costas direitas, com os pés bem assentes nos estribos e as pernas encostadas ao cavalo. Quando entram na aldeia, Bashir sorri e o cavalo avança de cabeça erguida.
Samira e Bashir percorrem a rua principal, onde fica o bazar, de cima para baixo, e olham para cada loja e cada tenda. Cumprimentam os homens, entre os quais o simpático vendedor de dal, o talhante e o homem nojento da loja de legumes. Descem dos cavalos, sacodem a poeira da roupa e olham um para o outro, sem saber o que fazer.
- Tenho fome - afirma Samira.
- Pensei que quisesses procurar trabalho.
- Mas não sei como.
- Então porque viemos para cá?
Samira esgravata a areia por baixo dos pés, fita Bashir e encolhe os ombros.
- Tenho de fazer qualquer coisa. Não posso esperar até termos gasto todo o dinheiro e os mantimentos e morrermos. Anda, vamos visitar o vendedor de dal e comer dal com arroz até as nossas barrigas rebentarem.
- O que se passa, rapaz? - pergunta o vendedor de dal. - Estás com um ar preocupado.
- E estou mesmo preocupado. - Samira enfia um pedaço de pão com dal na boca. - Tenho de ir para a guerra.
Bashir, que está sentado ao lado de Samira no banco de madeira, não consegue acreditar naquilo que ouve.
- Não me tinhas dito isso, mentiste-me.
- Não, não menti. Lembrei-me agora. É a única solução.
- A única solução para quê? - pergunta o vendedor.
- A única solução para ganhar dinheiro e a minha família sobreviver este Inverno.
- Filho, a guerra é perigosa - avisa o homem da loja de legumes, que se juntou a eles. Arrebata a kamiz e o patu e senta-se com dificuldade no banco, ao lado de Samira. Pede uma tigela de dal, sem sequer olhar para o vendedor.
Este enruga a testa, enquanto observa o homem da loja de legumes.
- Hoje estás com muita fome. Ainda agora comeste três tigelas de dal com arroz!
- As vezes a fome é grande, às vezes é pequena - responde o homem da loja de legumes e lambe os lábios, sem nunca desviar o olhar de Samira e de Bashir. - A guerra é perigosa - repete.
- Preciso de dinheiro - explica Samira, enquanto se afasta um pouco do nojento homem da loja de legumes.
- Há outras maneiras de ganhares dinheiro.
- Quais são?
O homem da loja de legumes olha para os dois rapazes e lambe os dedos cobertos de dal.
- Vem ter comigo, eu conheço uma maneira. - Atira um maço de notas para o balcão. - Tira aquilo que for preciso para pagar o meu dal, o resto é para o rapaz.
- Fiífio - sussurra o vendedor de dal depois de o homem da loja de legumes se ter afastado. Fala baixinho, para que ninguém, além de Samira, o oiça. - Não vás na conversa. Ouve o que te digo. Mantém-te longe dele.
Samira sente uma pequena cobra na barriga, sem saber bem que cobra é. Observa o homem da loja de legumes enquanto este se afasta e enfia as notas no bolso do colete.
- Não tenho outra hipótese.
Quando Samira e Bashir se aproximam da loja de legumes, conseguem ver de longe o proprietário deitado numa saca de cebolas. Apesar do calor, está coberto com um patu, tem os olhos fechados e a sua respiração é ofegante.
Bashir pega Samira pelo braço e puxa-a para o outro lado da rua, onde se escondem entre as carroças e as gaiolas com galinhas. Conseguem observar o homem da loja de legumes, com a mão por baixo do patu, a mexê-la para baixo e para cima, para cima e para baixo.
- O que é que ele está a fazer? - pergunta Samira baixinho, por achar melhor ninguém mais a ouvir.
Bashir fica admirado.
- Pára de fingir. Todos os homens e rapazes fazem aquilo.
- Fazem o quê?
- Oh, idiota! - exclama Bashir. - Ele está a esfregar o pénis.
- O quê?
- Está a esfregar o pénis - repete Bashir, cobrindo a boca com a mão.
Samira não consegue acreditar naquilo que ouve. Aguça o olhar, observa o homem nojento, enquanto este mexe a mão por baixo do patu cada vez mais rápido.
- Porque é que ele esfrega o...? - Samira não diz a palavra.
- Porque é uma sensação boa. - Bashir está cada vez mais admirado. - Tu não fazes isso?
Samira não sabe o que responder. Como pode ela saber o que é esfregar o pénis e se é bom?
- Sim, faço. Só que eu... ah, deixa-me. - Samira vira-se, para não ter de olhar para o homem nojento, mas acaba por vê-lo e cala-se.
Ao fim de todo aquele esfregar e mexer, o homem da loja de legumes endireita-se, sorri, apesar de não haver ninguém por perto a quem pudesse sorrir, passa a mão pela barba e bebe o seu chá.
- Sabes onde fica a loja do talhante hadji Soltan? - pergunta, quando Samira e Bashir finalmente se aproximam.
Samira não fala, tem os olhos muito abertos e acena com a cabeça.
- Diz ao hadji Soltan que vais da minha parte. Diz-lhe que o excelentíssimo senhor da loja de legumes manda perguntar se a mercadoria já chegou. E diz-lhe também que a encomenda dele está cá, que pode vir trazer uma encomenda e levar a outra. Percebeste?
- Bale. - Samira acena com a cabeça.
- Então, o que foi? Porque é que ainda estás aqui? - O homem nojento põe a mão nas costas de Samira e empurra-a.
Samira e Bashir preparam-se para partir, mas o homem agarra Bashir pelo braço.
- Tu não, rapaz. Tu ficas comigo. - Coloca a mão na saca de batatas ao seu lado. - Senta-te.
- Não - responde Bashir. - Eu vou com ele.
- Quanto é que me vais pagar por isto? - pergunta Samira.
- Deves julgar que és esperto. Já te dei dinheiro, não te lembras? Foi muito dinheiro. Ainda vais ter de fazer algumas coisas para mim, antes de te dar mais.
- E porque não trouxeste logo a minha mercadoria? - pergunta o talhante, quando Samira lhe transmite o recado.
- O senhor da loja de legumes deve ter medo que eu roube a mercadoria e fuja - responde Samira, depois de reflectir durante alguns instantes.
- E ele tem razão para isso?
- Não.
- Eu acredito em ti. Afinal salvei-te a vida e estás em dívida para comigo. Aqui está a mercadoria para entregares ao homem da loja de legumes. Pede-lhe para ele te entregar a minha mercadoria e traz-ma. Percebeste?
- Não estava à espera que ele confiasse em ti - comenta o homem da loja de legumes, quando Samira lhe entrega a encomenda. Esconde-a num canto da loja, entre a verdura e as beringelas e entrega outro pacote a Samira.
- Leva isto ao talhante.
- Que mais tenho de fazer para merecer o dinheiro que me deste? - pergunta Samira, depois de regressar do talho.
- Calma. Anda cá, senta-te ao meu lado. Já te digo o que mais tens de fazer para mim. Mas primeiro tenho de te conhecer melhor. A ti e ao teu pequeno amigo. Preciso de saber se posso confiar em vocês. Que belo ta-vis que tens aí ao pescoço - acrescenta e aproxima a mão do amuleto.
Samira recua.
O homem da loja de legumes faz várias perguntas, tentando alternadamente tocar em Samira e em Bashir. Mas os rapazes recuam sempre. Ao fim de vários avanços e recuos, o vendedor desiste.
- Khob, logo à noite, vem para cá e eu digo-te o que podes fazer para mim.
- Hoje à noite? - pergunta Bashir. - Que trabalho é esse que só se pode fazer à noite?
- Um trabalho importante e secreto. Ninguém pode saber que o teu amigo o faz para mim. É um trabalho que lhe vai render muito dinheiro. Dinheiro com o qual poderá comprar gordura, trigo, chá e tudo o que a família dele precisa para viver.
- Cá estarei - confirma Samira.
- Como é que vais fazer? - pergunta Bashir ao amigo no caminho de regresso.
- Man tshe midanam.
- Eu vou contigo.
- És um verdadeiro amigo. - Samira vê a expressão de medo nos olhos de Bashir. - Também tenho medo - afirma.
- Coragem é fazer algo, apesar do medo que se sente - prossegue Bashir.
Nessa noite, quando as estrelas já brilham, Samira e Bashir escapam das suas tendas e cavalgam até à aldeia.
- Então - comenta o homem da loja de legumes -, sempre vieste acompanhado.
- Fazemos tudo juntos - responde Bashir. - O Samir é meu amigo. Não o deixo sozinho.
- Não façam barulho. Entrem e bebam um chá. Vamos sentar-nos, devem estar cansados.
- Não estamos cansados. - Samira tira a arma do ombro, senta-se e pousa-a no colo.
- Sabes usar essa arma? - pergunta o vendedor.
- Albatah - responde Bashir. - Ele é o melhor atirador que conheço. Consegue acertar no meio da testa de um bode a uma grande distância.
- Que trabalho é esse que eu devo fazer? - pergunta Samira.
- Quero que leves a mercadoria que hoje foste buscar ao talhante até à próxima aldeia, onde vive o meu irmão, e que lha entregues.
- Porque é que tenho de fazer isso na escuridão da noite?
- É para a tua própria segurança. Durante a noite não há batalhas e consegues mover-te mais facilmente. Além disso, ninguém deve ver de onde vem a mercadoria e para onde vai.
- Como vou reconhecer o teu irmão?
- Ele é o proprietário da loja de tecidos.
Quando Samira e Bashir se preparam para partir, o vendedor nojento põe o braço no ombro de Bashir.
- Deixa-o ir sozinho. Para quê pôr a tua vida em perigo? Fica aqui, bebe um chá comigo e amanhã, quando ele voltar, regressam juntos para a montanha.
- Não, eu vou com ele. - O "não" de Bashir é firme e não dá hipótese de protesto.
Samira arma a sua Kalachnikov, pronta para disparar a qualquer momento.
A cada passo que os cavalos dão, o medo de Samira e de Bashir aumenta. Bashir treme. Samira não fala.
- Quero ir contigo no teu cavalo - pede Bashir.
Samira fita-o, abana a cabeça e continua a olhar de frente para a escuridão. O silêncio é completo, até o vento parou. Apenas se ouvem os cascos e a respiração dos cavalos, mais nada.
A aldeia desconhecida é maior que a deles. A rua principal é mais larga, as casas de adobe são maiores e há muito mais lojas e tendas. Samira e Bashir até descobrem um carro. Quando batem à porta da loja do vendedor de tecidos, este demora algum tempo a abrir, pois devia estar a dormir. Olha para os rapazes, coça as nádegas e boceja.
- É o meu irmão quem vos manda?
- Sahihst - responde Samira.
O vendedor de tecidos, cansado, conduz os rapazes para o interior da loja, pega na mercadoria e esconde-a por baixo de um fardo de tecido. Manda trazer chá e diz-lhes para beberem e depois dormirem.
Quando Samira volta a abrir os olhos, o Sol há muito que nasceu. A parte da frente da loja de tecidos está aberta. Homens, rapazes e até algumas mulheres, cobertas de cima a baixo com um véu, vão passando, param e olham para os tecidos. No interior da loja, onde a luz do Sol não chega, o vendedor de tecidos, preguiçoso, está sentado com mais quatro homens na penumbra, no chão. Bebe chá, conversa, faz gestos grandes e pequenos, escuta e abana a cabeça.
Samira reconhece que são homens importantes pela quantidade de tecido que cobre os seus ombros e as suas cabeças. Não consegue ouvir o que dizem, mas pelo tamanho dos seus gestos e pelos seus olhares percebe que estão a falar de algo importante. Levanta-se, espreguiça-se com cuidado, para que os seus gestos não pareçam grandes e importantes de mais, e depois aproxima-se dos homens, olhando por cima dos seus ombros.
- Quem é este rapaz? - pergunta um dos homens.
- Não há problema - responde o vendedor de tecidos. - É o mensageiro.
- Maghboul asst, ele é bonito.
- Vieram dois deles. Onde está o teu pequeno amigo?
Samira não fala, apenas acena com a cabeça em direcção ao canto, no qual Bashir dorme.
- Anda, rapaz, senta-te aqui ao nosso lado. - Um dos homens pega na mão de Samira e puxa-a para perto de si. Samira sente-se desconfortável, sentada entre dois estranhos. Encolhe os ombros, agarra as pernas e agacha-se.
Um dos homens ri-se, tira o boné brilhante da cabeça de Samira e passa a mão pelo seu longo e grosso cabelo negro.
- Maghboul asst.
Samira afasta a cabeça, tenta levantar-se, não consegue, fica sentada.
O vendedor de tecidos retira de um canto o pacote que o irmão lhe enviou e pousa-o no meio do chão.
- A mercadoria também é maghboul. - Abre o nó do patu. - Bebin, olhem!
O pacote contém quatro pedaços de uma massa preta e pegajosa, enrolada em folhas. Apesar de Samira não querer falar, apesar de querer escapar e de não fazer parte deste grupo de homens, abre a boca e pergunta:
- O que é isso?
- Rapaz - explica o homem sentado ao seu lado, bate-lhe na coxa e fica com a mão na coxa de Samira. - Isto é ópio. Do melhor e mais fino que existe.
Samira não pergunta o que é ópio.
- Tiveste sorte por não te terem apanhado. Poderias estar morto - afirma um dos homens.
Os homens riem-se, conversam, batem na coxa de Samira e abraçam-na.
- Tiveste sorte por não te terem apanhado - repete outro homem e dá-lhe um beijo fedorento na cara.
- Vamos para o bazar, mostrar aos rapazes onde se passa a vida a sério - propõe um dos homens. Pegam em Samira e Bashir e vão para a rua principal, movimentada, cheia de pessoas e poeira. Homens e burros carregam mercadorias pesadas. Alguns homens cozinham nas suas carroças, para outros homens. Ao contrário daquilo que acontece na aldeia de Samira e Bashir, aqui as mulheres também andam na rua. Carros, animais e carroças tilintam e apitam. Há rapazes sentados à beira da rua. Nas casas de chá e nas entradas das lojas os homens fumam narguilé.
O vendedor de tecidos e os seus quatro amigos param em frente a uma porta de madeira maciça. Pagam e empurram Samira e Bashir para dentro de uma pequena sala. Há tanto barulho e maus cheiros que se torna difícil engolir. Samira tapa a boca com a mão, para que a comida que tem no estômago não saia. Descobre dois homens, com tantos músculos como nunca antes vira, meio nus, que lutam um contra o outro. Samira não compreende por que razão lutam e porque o fazem dentro de uma casa e não ao ar livre. Não compreende porque é que o vendedor de tecidos e os seus quatro amigos vieram para ali e porque trouxeram Samira e Bashir. Apenas sabe que tudo anda à roda na sua cabeça.
Durante toda a manhã, Samira e Bashir são empurrados de um lado para o outro, bebem chá e outra bebida que parece água, mas que arde na garganta como veneno. Observam um homem que luta contra um urso velho e cansado, e ganha. Num salão de chá vêem uma televisão, pela primeira vez na vida. Comem dal com arroz, fumam narguilé e observam músicos e cantores num espectáculo barulhento e colorido. Os artistas são homens vestidos de mulheres, com as caras pintadas como noivas. Os halkon comportam-se como mulheres, dançam, movem os corpos, inclinam a cabeça, põem o dedo na boca, deitam olhares cheios de desejo aos homens, olhares que provocam desejo nos homens.
- Gostas? - pergunta um dos homens a Samira e abraça-a.
Samira afasta-o.
- Não gosto de homens que fingem que são mulheres. E não gosto de homens que abraçam outros homens.
Ao fim de um tempo a observar homens vestidos de mulheres e de vários apalpões, os homens decidem sair.
- Vamos para a mesquita.
Nem Samira, nem Bashir jamais estiveram numa verdadeira mesquita. Quando lá chegam, os homens colocam-se uns ao lado dos outros, de frente para a grande casa com a cúpula azul. De olhos postos na bola de fogo vermelha no céu, abrem as mãos, com as palmas da mão a apontar para o céu, prontos para receberem a bênção de Deus.
- Be-esme-allah - dizem com grande fervor, organizados em filas. Ajoelham-se, fazem uma vénia e voltam a erguer-se, todos ao mesmo tempo. As suas vozes transformam-se numa só. Enquanto os rapazes e homens na primeira fila se inclinam bem para a frente e tocam com a testa no chão, o vendedor de tecidos e os seus quatro amigos olham fixamente para as nádegas desses rapazes e homens, fazendo sinais e lambendo os lábios.
Após a oração, o vendedor de tecidos e os seus quatro amigos beijam-se e abraçam-se e regressam a casa do vendedor.
Dois dos homens agarram Samira e Bashir pela mão e puxam-nos.
- Está na hora de descansar - dizem, e não largam os rapazes, apesar de estes tentarem soltar-se.
Samira tem sorte, consegue soltar-se, corre até Bashir e puxa-o até ele também conseguir fugir. Os homens tentam agarrá-los, riem-se, coçam as nádegas, arrotam e acabam por desistir da perseguição.
Samira e Bashir correm tão rápido quanto podem, saltam para os cavalos, estalam a língua e partem a alta velocidade. A saída da aldeia vários homens com armas mandam-nos parar.
- O inimigo está por toda a parte, à espera de rapazes como vocês. Se partirem agora, não sobrevivem - explicam e mandam os rapazes regressar à aldeia.
Samira e Bashir acabam por encontrar um alojamento barato onde, para além deles, outros viajantes descansam e dormem.
No início, Samira não consegue dormir. Segura a sua arma na mão e escuta o ressonar e cada peido, o esfregar por baixo dos lençóis e os gemidos, até finalmente adormecer. O seu sono é leve. De repente abre os olhos e através da escuridão vê que o homem que estava deitado ao lado de Bashir se aproximou dele, pôs o braço à sua volta e está a beijar a sua nuca. Devagar, muito devagar, começa a esfregar o pénis de Bashir. Tapa-lhe a boca e põe a perna à sua volta, de modo a que Bashir não consiga mexer-se. Move o corpo para cima e para baixo e geme cada vez mais alto.
Bashir, deitado ao lado de Samira, olha-a nos olhos, sabendo que o amigo o vai libertar.
Samira saca do punhal que traz agarrado à bota e segura-o frente aos olhos fechados do homem. Pressiona-o com cuidado contra a sua cara. O homem é apanhado desprevenido, recua a cabeça e abre os olhos, assustado. Bashir puxa a sua shal-var-kamiz para cima, os dois levantam-se e passam por cima dos outros homens, correm até à porta, descem os degraus e desaparecem na escuridão.
Passam o resto da noite na rua, por baixo de uma carroça, a tremerem de frio e de medo. Quando o Sol nasce e as pessoas começam a encher as ruas e os becos desta aldeia sinistra, Samira levanta-se com um salto, monta o cavalo e quer imediatamente regressar a casa.
- Para quê tanta pressa? - pergunta Bashir com uma voz calma, como se nada tivesse acontecido. - Que mais pode acontecer? Ontem vi uma loja de livros, vamos até lá. Sem saber porquê, Samira segue o amigo. O proprietário da livraria hesita quando vê os dois rapazes nómadas entrarem na sua loja, mas não é capaz de expulsá-los. - Desde que a guerra começou já não se escreve, nem se imprimem livros - explica. - Cada vez menos pessoas sabem ler e há pouca gente com dinheiro para comprar livros, considerados um bem supérfluo. Pão, gordura, chá e farinha são mais importantes.
Bashir toca nos livros como se fossem objectos de vidro frágeis. Agarra as folhas com dois dedos, sempre com cuidado para não abrir demasiado o livro. Prefere inclinar a cabeça e torcer o corpo para poder espreitar entre duas páginas a dobrar a lombada do livro.
Samira gosta dos livros grandes, com menos palavras e mais imagens. Há duas imagens que lhe chamam especial atenção. A primeira representa um jovem cheio de força que segura um arco empolgado. Na segunda imagem, a flecha voa pelos ares e o jovem está deitado no chão, morto.
Samira lê o título.
- Arash, o Archeiro.
- O Arash, na verdade, era um velho, mas, como o poeta preferia homens novos, desenhou-o assim, jovem.
Samira e Bashir olham um para o outro.
- Nós também conhecemos homens que gostam de jovens.
- O Arash é um pahlewan, um herói guerreiro. Vive num país que está em guerra há vários anos. Um dia, o rei chama Arash e diz-lhe: "Decretei paz com o rei dos nossos inimigos. O nosso povo está cansado. Cansado das guerras, cansado de matar e de ser morto. O rei dos nossos inimigos e eu decidimos fazer as pazes." Arash pergunta: "Quem é o vencedor? E onde será a fronteira entre a terra deles e a nossa terra?"
"O rei fita Arash e responde: "Isso, meu amigo, está nas tuas mãos. És o archeiro melhor e mais forte que temos. Decidi que subirás à montanha e lançarás a tua flecha. O lugar em que a flecha aterrar será a fronteira entre a nossa terra e a deles."
“Que assim seja", responde Arash, e sobe para a montanha mais alta. Todos os homens, os mais valentes e os menos valentes o seguem. Arash desnuda o tronco, vira-se para os homens e fala uma última vez com eles: "O meu corpo está livre de dor e doença, a minha alma é pura e não carrega culpa. Juntarei todas as minhas forças para atirar esta flecha tão longe como nunca atirei nenhuma. O lugar em que aterrar será a fronteira da nossa terra. Estou velho. Quando disparar a flecha, juntamente com ela perderei a vida. Ofereço a minha vida à nossa terra." Ditas estas palavras, Arash empolga o arco, dispara e, enquanto a flecha ainda voa, cai para o chão, sem vida.
- Onde aterra a flecha? - pergunta Bashir.
- Na raiz de uma árvore, longe, muito longe da beira-rio - responde o livreiro, amável.
Samira reflecte, sem saber se a história lhe agrada ou não.
- E essa árvore ainda está viva?
O livreiro ri-se, ri-se tanto que os seus olhos deitam lágrimas. Ri-se sem parar, até Samira e Bashir também se rirem.
A SEPARAÇÃO
- Esta tenda já não serve - afirma o avô.
- Desfaz-se só de olharmos para ela! - Samira ri-se.
- Então pára de olhar para ela! - exclama Bashir. Samira fecha os olhos para não ter de olhar para a tenda.
Avança de olhos fechados, de braços esticados e aos apalpões. Abalroa Bashir, abraça-o e aperta-o durante alguns longos instantes, sem saber porquê.
Gol-Sar repara nesse gesto e zanga-se.
- Estúpidos, isto não é para rir.
Samira adora as tendas de feltro. Quando o Inverno chega e os kutshi desmontam as tendas e migram para o Sul para escaparem à neve e ao frio, é como se se despedissem de um velho amigo que fica para trás.
Já houve quatro tendas que foram e vieram na vida curta, na vida comprida de Samira. Assistira à fabricação das tendas, enquanto eram pisadas e calcadas. Juntamente com as outras crianças, a pequena Samira espalhara os pêlos dos animais no chão arenoso, rebolara na lã e observara as mulheres e os homens enquanto espalmavam a camada branca. Samira sente o cheiro dos pêlos que lhe fazem cócegas na pele, sente a sua superfície macia por baixo dos pés. Os pêlos macios formam uma camada grossa. Samira fecha os olhos e ouve os risos de antigamente. Um riso independente de Samir e de Samira. O riso de uma criança. Samira vê a mãe, como ela era antigamente. Uma mãe lúcida, sentada junto das outras mulheres num pequeno muro de adobe, sobre o qual mais tarde será estendido o feltro. A mãe canta, ergue a filha para os ares, cose tecidos coloridos na borda do feltro. Samira quer ficar. No meio dos risos de antigamente. Não quer abrir os olhos nunca mais. Quer ficar, não quer perder o antigamente.
- Porque é que o antigamente passa? "Man tshe midanam."
Samir ouve o bater das pedras, com as quais as mulheres empurram os pinos de madeira para dentro da terra. Atam cordas e estendem o feltro.
- Onde estão todas as mulheres daqueles tempos? "Man tshe midanam."
- Samira, pobre Samira. Com quem falas?
- Volta.
Samira não abre os olhos. Prefere ficar deitada por baixo da tenda de antigamente. As paredes da tenda estão abertas, deixando entrar a luz e o calor do Sol, o vento, os cordeiros, os outros nómadas e os violadores. Primeiro entram na tenda, depois no corpo da mãe. "Acredita no teu amuleto", diz a mãe. "Ele protege-te e destrói tudo e todos que tentarem prejudicar-te." E todas as noites o pai acrescenta: "Calma, não te preocupes. Entrega as tuas preocupações e dores ao vento. Pousa aquilo que te pesa nas suas asas e o vento leva tudo lá para fora e liberta-te."
Samira abre os olhos, regressa. Volta para Samir e para a tenda em farrapos.
- O meu pai mentiu - afirma.
- Vá, despacha-te! - exclama Daria, enquanto limpa a poeira do feltro. - Antes, o meu filho era mudo, agora não pára de falar. - Daria afugenta uma mosca da cara, uma mosca que não existe. - Fala e fala, sem perceber os disparates que diz. - Daria sibila estas palavras, como uma cobra.
As suas palavras transformam-se em pedras. Pedras atiradas contra o coração de Samira. Pedras pequenas e pedras grandes, Jeves e pesadas. Umas vão parar mesmo ao centro do coração de Samira, fazem-no sangrar, outras chocam contra as palavras de pedra que a mãe já deixou no coração da filha. Algumas fazem ricochete e caem para o chão. A criança apanha-as e atira-as contra nada e ninguém.
Samira obedece, recolhe as peças de feltro esfarrapadas, espalha-as no relvado e bate-lhes com um pau para retirar a poeira. Enquanto o faz, grita. Grita, furiosa, enraivecida. Como se não fosse o feltro a quem estivesse a bater, mas sim os omens que roubaram a honra e a lucidez à mãe. Como se o feltro fosse a culpa que pesa sobre a mãe. Como se fosse o seu próprio pai, que foi estúpido, partiu para a guerra e permitiu que o matassem.
- Calma, rapaz, pára com isso, pára! - grita o avô.
Samira não pára, bate, sova, grita.
- A culpa é minha! - exclama a mãe, arrepela-se, arraia a cara e fita o filho-rapariga com um olhar enlouquecido, Bashir aproxima-se do amigo, atira-o para o chão, senta-se no peito e segura-lhe os pulsos enquanto o olha nos olhos, cheios de lágrimas.
- Samir, meu amigo - é tudo o que Bashir diz. Samira pára de lutar, descontrai as pernas e os braços.
- Já passou - afirma baixinho para que ninguém a oiça, :além do seu amigo Bashir.
- Anda, vamos até ao rio.
- Vamos até ao rio - repete Samira. Cheia de saudades da calma, da paz, de antigamente.
- Estás forte.
- Pois estou - responde Bashir. - Passo a passo fui ficando mais forte, tal como tu me ensinaste.
- Estás bonito.
Bashir sorri.
- Não sei o que fazer - murmura Samira. - Não temos dinheiro, nem farinha, nem chá. Não temos burros, nem tenda, não temos nada. Tudo o que nos resta são os quatro cavalos, a minha arma, algumas galinhas e pouco mais.
Bashir não responde: "Deus é grande, ele vai resolver }."
- Podemos ir para o Sul, encontrar trabalho, ganhar dinheiro e depois fazer uma tenda nova para vocês - afirma.
- Bashir, meu pequeno amigo, meu sonhador. O Inverno chegou lá acima, às montanhas. As pessoas estão a desmontar as tendas, vão para o Sul. Todos vão, menos nós.
- O quê? - Bashir não compreende. - Vocês não vão migrar?
Samira abana a cabeça.
- Quem migra precisa de peles, de dinheiro, de burros, de mulas e de uma tenda. Nós não temos nada disso.
- Mas nós não podemos separar-nos! - exclama Bashir.
- Todos os Invernos que vieram e foram, migrámos juntos para o Sul. Este Inverno será igual. Não vamos deixar ninguém para trás.
Samira baixa o olhar.
- Meu pobre amigo, volta ao mundo da realidade. Este Inverno vamos ficar para trás. A culpa não é vossa, vocês vão ser obrigados a deixar-nos. Nestes últimos anos de seca todos nós perdemos animais, os nossos rebanhos morreram, ninguém tem dinheiro para sustentar o outro durante um Inverno inteiro.
- Vou falar com o meu pai. Ele vai ajudar-vos.
- Pára de sonhar. Nem sequer o teu pai nos pode ajudar.
- Samira olha para o céu, vê um grande pássaro prateado, que não é nenhum pássaro, que é um avião. - Se não fossem a minha mãe e o meu avô, se eu estivesse sozinho, ia convosco, procurava os estrangeiros e ficava com eles. Tornava-me um piloto e desaparecia a voar.
- Desaparecias para onde?
- Para qualquer sítio.
- Sem mim?
- És um sonhador. - Samira abraça o amigo. Levanta-se e volta para perto do avô, da mãe enlouquecida e dos farrapos de feltro que já não são uma tenda, deixando o amigo para trás.
O avô está sentado no pequeno muro de adobe, como se o feltro ainda estivesse estendido. Fita as trouxas e os seus pertences, trauteia uma melodia, fala consigo próprio, passa a sua única mão pelo joelho que também foi ferido por uma mina, sem notar que o neto se aproxima.
Samira dá a volta ao pequeno muro de adobe, como se o feltro ainda estivesse estendido, atravessa a antiga entrada da tenda e senta-se no chão, em frente ao avô, onde sempre se sentou.
- Até a tua casa perdeste.
O avô estremece, regressa ao mundo real.
- Perdi tudo. Primeiro a minha mãe, depois o meu pai, os meus filhos e o meu braço. Mas, em contrapartida, encontrei-te a ti. A vida é assim. - O avô quer continuar a falar, mas sente as lágrimas nos olhos.
Samira sorri e acaba o discurso pelo avô.
- A vida é assim. Viver é perder, viver é ganhar.
- Pois é - responde o avô e acena com a cabeça. Samira deita-se de costas, cerra os olhos, abre os braços, ergue-se até ao céu azul e voa até ao enorme pássaro prateado.
"O que estás a fazer?", pergunta o ouvinte invisível.
Samira não lhe presta atenção.
"Pára de fingir que não me ouves, já não és nenhuma criança."
- Eu sei.
"Perdeste a tua infância."
Samira não lhe presta atenção, fecha os olhos, mexe a boca, diz palavras das quais não sabe que as diz.
O Verão e o Inverno vêm e vão, transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam.
"Perdida, perdida."
Samira não lhe presta atenção.
- Algumas pessoas não perdem nunca na vida, nada. Outras perdem sempre, tudo.
- O que perdeste? - pergunta o avô.
Samira abre os olhos e sorri.
- Ganhei-te a ti.
O avô bate com o seu único braço na perna, limpa as lágrimas dos olhos.
- Eu sei. Na tua curta vida já perdeste mais que alguns de nós, mais velhos. O meu coração sangra ao saber que, numa terra linda como a nossa, uma vida jovem e preciosa como a tua é desperdiçada. Todos os dias, a toda a hora, vidas jovens e preciosas são desperdiçadas.
- A minha vida não está a ser desperdiçada.
- Olha à tua volta. Isto é tudo o que as guerras e a fome nos deixaram. Que vida é esta? Que futuro se pode construir com uma vida como esta?
- Qualquer futuro. - Samira olha para o céu. - Qualquer futuro que eu queira.
- Tens razão. Não devemos lamentar-nos. Temos de agradecer a Deus por tudo aquilo que não nos tirou. Tu andas na escola e és aplicado, és esperto e lutador.
Samira acena com a cabeça e olha para o céu. Não diz: "O meu coração está cheio de pedras, cheio de medo. Medo de que as pessoas descubram que Samir é Samira. Que Samira é uma mentirosa."
- Tenho medo - diz.
- Eu sei. - O avô olha para o céu. - Hoje caiu a primeira neve.
- Vamos sair daqui.
- Agora, já.
- Agora, já.
- Sem te despedires do teu amigo Bashir?
- Sem me despedir do Bashir, nem de mais ninguém. Já é noite quando Samira, a mãe e o avô chegam ao vale e decidem não entrar na aldeia.
- Para não assustarmos as pessoas - explica o avô.
- Mas as pessoas conhecem-te a ti e a mim - responde Samira.
- Iremos para a aldeia durante o dia, como pessoas normais e não como ladrões que se refugiam na escuridão.
Samira encosta as longas varas da tenda a um muro perto da aldeia, estende os pedaços de feltro, constrói um telhado e fecha uma das aberturas laterais com as trouxas e outras coisas. Do outro lado da abertura triangular empilha os cestos com as galinhas e os seus restantes pertences e amarra os quatro cavalos. Coloca o resto do feltro por baixo do tecto inclinado, no chão. O espaço é pequeno, mas suficiente para se sentarem, acenderem um fogo, comerem e dormirem.
Samira senta-se no chão e acaricia as narinas suaves e quentes do garanhão do pai, que enfiou o nariz por baixo do tecto de feltro.
- Temos um tecto para nos cobrir - afirma, enquanto olha para as chamas. - Temos quatro bons cavalos e acabámos de comer uma refeição. - Samira sorri, fita o avô e depois a mãe. - Posso ter um avô que perdeu um braço e uma mãe que por vezes perde a lucidez, mas não estou sozinha e agradeço a Deus por isso. - Samira diz estas palavras e ri-se. Ri-se até os seus olhos se encherem de lágrimas.
- És um bom rapaz - afirma a mãe enlouquecida e passa a mão pelo cabelo preto do filho-rapariga, um cabelo grosso e comprido como o de um verdadeiro jovem kutshi.
Na manhã seguinte, Samira é a primeira a acordar. Sai da tenda e respira o ar da manhã, que não é muito mais frio que o ar dentro da tenda. A sua respiração e a dos cavalos transformam-se em pequenas nuvens que pairam no ar. O silêncio é absoluto, apenas se ouvem os cavalos a fungar. Samira calça as botas, enrola-se no seu patu, senta-se numa grande pedra e olha para a montanha.
"Partiste sem te despedir", sussurra o ouvinte invisível.
- É verdade - responde Samira baixinho. "Porquê?"
- Porque fazes tantas perguntas? "Ninguém te obriga a responder." Samira decide ignorar o ouvinte invisível.
"Eu sei por que razão partiste sem te despedir."
- Pára de me chatear.
"Não sou eu quem te chateia. Olha para mim. Eu nem sequer existo. Como te posso chatear?"
Samira toca flauta.
"Partiste sem te despedir porque não querias vender os teus cavalos ao comandante."
- Vai-te embora, desaparece! - Samira continua a tocar flauta. Baixinho, para não acordar a mãe e o avô.
"Agora o teu amigo desapareceu. E a irmã dele também."
- Todos desapareceram. "Vejo que sentes falta deles."
- Sinto, sinto falta de ambos. Tenho saudades da Gol-Sar e do Bashir.
"Vejo que te dói."
- Dói.
"Tu beijaste-a.;
- Não beijei, não.
"Eu estava lá. Eu vi. Quase que a beijaste."
- O que tens a ver com isso? - Samira vira as costas ao ouvinte invisível.
"Eh, rapaz-rapariga, olha para mim! Foi a Samira que quase a beijou ou foi o Samir?"
- Cala-te, desaparece.
"Que diferença faz se eu me calo ou desapareço?"
- Nenhuma, não faz diferença nenhuma.
"Preferes a irmã ou o irmão?"
Samira finge que não ouviu a pergunta e continua a tocar flauta.
"A tua música está cheia de dor."
Samira volta a virar-se para a montanha, apanha algumas pedras e atira-as contra os pés e a cabeça do ouvinte invisível.
Este não se importa com as pedras.
"Eu espero", diz. "Deves-me uma resposta. Ainda não me disseste qual dos dois preferes. O irmão ou a irmã?" O ouvinte invisível encosta-se para trás e olha para Samira. "Na verdade", começa, enquanto apanha as pedras que Samira lhe atira contra a cabeça e as deita para trás de si. "Na verdade, não tenho nada a ver com isso, mas não deverias gostar nem do irmão, nem da irmã. Porque és Samir, um jovem que não se pode aproximar da Gol-Sar. E ambos sabemos que também és Samira, uma jovem, por isso não te podes aproximar do irmão.
- Pára com isso, não quero ouvir nada disso. Desaparece de uma vez por todas!
"Muita neve vai cair", continua o ouvinte invisível. "E vai fazer muito frio. O teu abrigo nem sequer é uma tenda e só te resta pouca comida. Vais passar o Inverno por baixo deste tecto de feltro? Sabes que é impossível, que vocês vão morrer se não encontrares outra solução."
- Não, nenhum de nós vai morrer.
"Como vais impedir que isso aconteça?"
Samira toca flauta.
"Eh, rapaz-rapariga, responde à minha pergunta. O que vais fazer?"
- Aquilo que devo, vou fazer aquilo que devo. - Samira enrola-se mais no seu patu, vira as costas ao ouvinte invisível e desce pelo caminho íngreme até à aldeia.
- Procuro um lugar onde possa passar o Inverno - explica ao professor. - E preciso de um emprego.
- Por amor de Deus, onde é que julgas que estamos? Isto é o fim do mundo. As montanhas já estão cobertas de neve e falta pouco para o Inverno chegar à aldeia.
Samira olha para o professor e observa-o enquanto ele anda de um lado para o outro, pensativo, e ajeita os óculos no nariz.
- Está bem, vou falar com umas pessoas - afirma. - Encontraremos uma solução. - O professor pousa a mão no ombro de Samira. - Não te preocupes.
Quinze dias vêm e vão, enquanto o professor fala com várias pessoas na aldeia. Quinze dias durante os quais Samira tenta não se preocupar, durante os quais a temperatura não pára de descer, a neve se aproxima e cada vez mais água cai do céu. Chove. Chove tanto que Samira já não consegue secar o feltro. A água vem de cima, dos lados, de baixo, de todas as direcções. Samira arrasta pedras grandes e pequenas e amontoa-as à volta da tenda. Mas a água encontra o seu caminho, passa por entre as pedras, transformando-se em pequenas cobras que rastejam pelo chão no qual Samira, a mãe e o avô se sentam, comem e dormem. Os cobertores molham-se, as trouxas e a lenha também. A fogueira cheira mal, deita fumo e ameaça apagar-se. Ao fim de quinze dias, as cobras de água param, deixam de rastejar por baixo dos cobertores, das trouxas e da fogueira. Congelam, transformam-se em cobras de gelo. O ar tem outro cheiro. Lá fora, a chuva parou de cair. Tudo está silencioso, como a morte. A cobertura de feltro já não pinga, a água transformou-se em estalactites de gelo que parecem punhais. Já não há correntes de ar na tenda. O frio deixou de ser gelado, já não dói e a respiração dos cavalos e o ressonar do avô são agora abafados.
Samira afasta os cobertores húmidos, que estão duros e rijos, levanta-se, calça as botas molhadas, enrola-se no seu patu húmido e sai. O mundo perdeu-se, desapareceu por baixo de uma manta branca. Tudo está coberto de neve. Samira não consegue ver a montanha, nem o caminho que sobe para as terras altas de onde vieram, nem o percurso íngreme que conduz à aldeia, nem os muros e os telhados da aldeia. Nada. Tudo está coberto de neve. Há neve para onde quer que Samira olhe. Tudo está limpo. Os cavalos sacodem a neve das cabeças e das costas, fungam, relincham baixinho. Samira olha para o céu, fecha os olhos, apanha os flocos grossos com a língua, olha à sua volta e gosta daquilo que vê. Tudo está branco e silencioso. Silencioso e branco.
Solta os cavalos, monta o garanhão, faz estalar a língua e puxa os cavalos atrás de si. Cavalga devagar e com cuidado, para não incomodar a brancura e não assustar o silêncio.
"A época da neve é a época da paz", explicara-lhe o comandante. "Quando a neve chega, a guerra vai-se embora."
Samira fecha os olhos para conseguir imaginar o pai a cavalgar ao seu lado.
- Porque é que a guerra se vai embora?
"A guerra tem medo da neve", sussurra o pai.
- Eu também tenho medo. - Samira vira-se para o pai, mas não o vê. Desce o caminho íngreme até à aldeia, onde as pessoas ainda dormem. Atravessa as ruas vazias, passando pelas casas de adobe, pela escola e pelo lugar onde, no Verão, o vendedor de dal monta a sua loja com os bancos de madeira. Samira cavalga através da neve alta até aos campos, até às árvores, onde afasta a neve e recolhe ramos. Regressa à tenda e pousa-os, em silêncio, para não acordar a mãe e o avô.
Daria acorda, vê o filho-rapariga e volta a fechar os olhos. Não se mexe, para que Samira não note que está acordada. A filha amontoa os ramos dentro da tenda para apoiar o feltro molhado e pesado. Pega na arma e volta a sair. Agarra em três cavalos, deixa o garanhão para trás e cavalga até à aldeia.
"O que vais fazer?" pergunta-lhe o ouvinte invisível.
- Aquilo que devo, vou fazer aquilo que devo.
- Estás completamente encharcado! - exclama o vendedor de dal quando a vê. - Descalça as botas, aproxima-te da lareira e bebe um chá.
- Se eu não encontrar ajuda, em breve morremos os três - explica Samira.
- Pobre rapaz. Eu próprio não tenho nada. E a verdade é que os outros habitantes da aldeia não estão melhor. Não teriam ficado na aldeia, se tivessem dinheiro para migrar para o Sul.
- Mas alguém tem de me ajudar.
- Só existe uma pessoa que pode ajudar-te - diz o vendedor de dal, baixinho, apesar de não haver ninguém por perto que o pudesse ouvir. - O homem nojento da loja de legumes. É a única pessoa com dinheiro, mas que ficou por cá, porque tem inimigos em todo o lado. Tem dinheiro suficiente para comprar tudo o que quiser e tem tudo o que uma pessoa precisa para sobreviver ao pior dos Invernos aqui na aldeia.
- Eu sei o que ele faz - afirma Samira. - Sei por que razão ele é rico.
- Eu sei que tu sabes. Mas aconselho-te a não falares disso, rapaz. Ouviste? Não digas nada a ninguém. Mantém-te afastado, ele é perigoso.
Samira não tem outra escolha, vai falar com o vendedor de legumes.
O ESTÁBULO
- O que queres? - pergunta o homem dos legumes.
- Quero propor-te um negócio.
O vendedor de legumes coça a barriga e ri-se.
- Queres propor-me um negócio? Desaparece, malandro. Está frio, quero voltar para perto do meu forno.
- Também tenho frio - responde Samira e sorri.
O homem olha para Samira e depois para a rua, para verificar se está alguém por perto, mas não vê ninguém.
- Está bem, anda. Vem aquecer-te e falar-me desse teu negócio.
Samira amarra os cavalos e segue-o. À entrada do quarto, descalça as botas molhadas. Senta-se no chão, ao lado do forno, tira a arma do ombro e pousa-a no colo, agarrando-a com as duas mãos, sem nunca a largar. O vendedor de legumes senta-se nas almofadas ao lado de Samira.
- A tua roupa está encharcada, rapaz. Toma, bebe um chá - diz e bebe, ele próprio, o resto de chá do seu copo. Depois olha para Samira. - Estás com má cara.
- Mas estou bem. - Samira olha para o forno para não ter de encarar o nojento vendedor de legumes.
- No Verão, quando levaste a mercadoria ao meu irmão, eras mais bonito. Tens fome?
- Não - mente Samira.
Ao fim de mais algumas mentiras, o nojento vendedor de legumes inclina-se para a frente, aproxima-se dela e aguça o olhar. Fala com uma voz fedorenta.
- Como quer que seja, rapaz, no Verão teria dado muito dinheiro por ti, mas agora já não me agradas. Olha para ti, estás magro como um espeto, já não vales nada.
Samira não demonstra o susto e o medo que sente.
- Não estamos a falar de mim - diz, espantada com a calma e o à-vontade da sua voz. - De que te adianta um rapaz magro como um espeto?
- Então, de quem estamos a falar? - O vendedor de legumes coça a barriga e levanta as sobrancelhas. De repente, ocorre-lhe um pensamento. - Estamos a falar do teu pequeno amigo? Melhor ainda. - Lambe os lábios, encosta-se para trás, pousa a mão entre as pernas e mexe na braguilha. - Até o preferi a ele que a ti, rapaz. Esse negócio interessa-me, dá-me um preço.
Samira não pensa muito, avança com a sua ideia.
- Quero um lugar que seja suficientemente grande para eu, a minha mãe e o meu avô vivermos, e alimentos e lenha para sobrevivermos ao Inverno.
O nojento vendedor de legumes sorri e mexe na braguilha.
- Ele vale tudo isso?
Samira olha de frente para o vendedor.
- Não estamos a falar de mim, nem do meu amigo, estamos a falar dos meus cavalos.
O nojento vendedor larga a braguilha durante alguns segundos.
- Como te atreves? Vais pagar por isso!
Samira não sabe onde arranja a coragem para lhe responder.
- Quero vender-te os meus cavalos. Afinal um homem como tu, que comercializa a sua mercadoria por todo o país, precisa de cavalos bons e rápidos.
O nojento vendedor aguça o olhar.
- Deves julgar-te muito esperto. Achas que me deixo enganar por um rapazinho como tu? Vá, fala, diz a verdade.
- Queres saber a verdade? Eu digo-ta. A verdade é que não gosto de ti. Nem quero vender os meus cavalos. A verdade é que vou morrer, se não me ajudares e se não ficares com os meus cavalos. Mas também é verdade que os meus cavalos valem muito mais que um lugar para eu ficar com a minha mãe e o meu avô. Pertenceram ao meu falecido pai, o famoso comandante das terras altas do Indocuche. São os melhores cavalos de boskashi de todo o Indocuche. Essa é a verdade. No Verão vais poder vendê-los por muito dinheiro. - Samira toca no amuleto. - Tens o poder de decidir.
O vendedor permanece silencioso, passa a mão pela barba e fita Samira, enquanto reflecte e pensa, pensa e reflecte.
Samira olha para ele e vê que sente compaixão. Uma compaixão que rapidamente volta a desaparecer.
O 'estábulo que põe à disposição de Samira para o Inverno é seco, mas os muros de adobe deixam passar muito frio. Samira vê imediatamente que a lenha, o trigo, o chá e os outros mantimentos que o vendedor de legumes lhe dá em troca de três cavalos não serão suficientes para todo o Inverno. Samira pede, roga, pragueja, mas o nojento vendedor não tem dó, é nojento.
- Ou estás de acordo, ou não há negócio.
Samira está de acordo.
- Fizeste aquilo que tinhas que fazer - afirmam a mãe enlouquecida e o avô com um só braço.
Durante toda a tarde, Samira e o avô carregam as trouxas, os cestos com as galinhas à beira da morte, os farrapos de feltro molhado, as quatro estacas de madeira e o candeeiro a petróleo através da neve até ao estábulo. Quando finalmente terminam, já a noite caiu. Samira e o avô estão molhados, a água pinga-lhes do corpo.
- Deus é grande - afirma Daria. - Se tratou de nós até agora, também tratará de nós daqui em diante.
- Sim, Deus tratou de nós - responde Samira e olha para o seu corpo. - Estou magro como um espeto. - Samira ri-se. Ri-se para não chorar. - Como um espeto encharcado.
Daria não mostra o medo que sente. Não quer ver o corpo magro da filha, apenas vê que Samira perdeu o amuleto, mas decide não dizer nada.
O avô acende o candeeiro e reduz a chama para não gastar demasiado petróleo.
- Quem sabe se ele sequer existe - afirma.
- Quem sabe se quem existe? - pergunta Samira.
- Se Deus existe.
Daria remexe as suas coisas, procura algo, mas não revela o que procura.
Samira senta-se ao lado do pequeno fogo que a mãe acendeu, estende os pés molhados, treme. A mãe coloca um cobertor à volta dos ombros do filho-rapariga. Mas o cobertor está húmido e não aquece. O avô põe mais lenha no lume, mas o fogo é demasiado pequeno, não cresce, não aquece. O garanhão funga, relincha baixinho e a sua respiração forma uma pequena nuvem que paira no ar. A mãe pousa a mão na testa quente da filha, enquanto o avô coloca uma pedra no fogo, que depois retira e enfia por baixo do cobertor húmido do neto. Daria deita-se ao lado do filho-rapariga, bem perto, para aquecer o corpo frio da criança, mas o seu corpo está tão frio que não consegue aquecer o da filha.
- O meu filho está a morrer! - exclama a mãe. - A culpa é minha, ele perdeu o ta-vis. O meu pobre filho sacrificou-se e eu deixei-o.
- O teu filho é rijo - responde o avô. - Se ele sobreviver a esta noite estará salvo. - Pousa o seu único braço na testa do neto. - Ele está a arder. A arder e a congelar ao mesmo tempo.
Daria enche um tacho com neve, derrete-a e ferve a água. Põe algumas folhas de chá na água, levanta a cabeça do filho-rapariga moribundo e deita pingos de chá quente na sua boca. Durante alguns momentos de lucidez, revê imagens de antigamente. Vê o filho-rapariga sentado na relva, o cavalo a seus pés, com a cabeça pousada no seu colo. De repente levanta-se e solta o garanhão.
- Deita-te, aquece o meu filho - diz ao cavalo.
- Deixa-o - interfere o avô. - Estás louca. Os cavalos nunca se deitam no chão.
Mas Daria insiste e o garanhão obedece, deita-se no chão. Perto, muito perto do corpo gelado de Samira. Daria esfrega os pés frios da filha, pede a Deus que encontre o amuleto, deita mais lenha no fogo e fala com a criança.
- Tens que viver - murmura. - Quem me vai proteger se morreres?
O avô fita as chamas em silêncio, chora. Chora durante toda a noite. Quando o dia nasce, limpa as lágrimas dos olhos, enrola-se no seu patu e desaparece. Volta a aparecer com o professor, que traz um cobertor seco, um casaco quente, um pão, uma jarra de leite, um livro e uma garrafa com óleo verde. O professor abre a garrafa.
- Dispam-lhe a camisa, vamos esfregar-lhe este óleo nas costas e no peito.
Daria não despe a camisa do filho-rapariga. Põe um pouco de óleo na mão, enfia-a por baixo da camisa de Samira e esfrega-lhe o peito e as costas. Cobre-a com o cobertor seco, despeja o leite num tacho que põe ao lume e depois deita-o às pingas na boca da filha. Daria vê imagens de tempos passados, quando dava o peito cheio de leite à filha e a pequena Samira mamava de olhos fechados.
Samira permanece imóvel, de olhos fechados. Apenas as imagens na sua cabeça estão repletas de vida. São imagens de antigamente. Imagens do vento a brincar com o seu cabelo, quando monta a cavalo com o pai, que a segura com muita força. Segura-a, acelera, até voarem. Vê a mãe que lhe amarra o amuleto à volta do pescoço. E vê Bashir. Várias imagens de Bashir e da sua irmã Gol-Sar. As imagens têm vida.
- Isto é como naquela altura, em que ele estava deitado por baixo da árvore na escola - afirma o professor. - Sentei-me ao seu lado e todas as noites li para ele. O rapaz estava a dormir, mas percebeu que eu estava a ler para ele. As histórias salvaram-no. Leiam-lhe histórias - propõe.
- Ele está sem vida no corpo - afirma o avô. - Que sentido faz lermos para ele?
Daria, que está lúcida, sabe que o professor tem razão, pois a sua filha ouve, mesmo sem vida no corpo. As palavras vivas do livro devolverão a vida ao corpo de Samira.
- Nem eu, nem o meu pobre pai sabemos ler - explica ao professor.
- Então os rapazes terão de esperar um pouco pelas aulas - responde o professor, abre o livro e lê. Lê, até perceber na face do aluno que o está a ouvir. Samira enruga a testa, sorri, move os lábios.
Daria beija a testa da filha, volta a esfregar o peito com o óleo, esfrega os seus pés e os braços e repara que o punho da criança continua cerrado.
O professor lê a história da rapariga e da vitela.
- É uma bela história - comenta Daria.
- Pois é - confirma o professor. - Deus cria o homem e dá-lhe vida. Depois cada qual faz da sua vida aquilo que quer.
Vários dias passam e aos poucos a respiração de Samira deixa de soar como pedras e cascalho a escorregarem por uma encosta abaixo. Os cobertores, as trouxas e as roupas secam lentamente, o estábulo absorve o calor do fogo e do cavalo e deixa de estar tão frio que a respiração de Samira forma uma nuvem que paira no ar. Samira senta-se, olha à sua volta, sorri e apoia as costas, que lhe doem, na parede. Pede à mãe que lhe dê um fio do seu vestido, abre o punho, passa o fio pelo ta-vis e amarra-o ao pescoço.
- Julgava que o tinhas perdido.
- Nunca o vou perder. Ficará comigo enquanto eu precisar dele.
Vários dias e noites passam até Samira engordar um pouco e poder regressar às aulas. A maior parte dos rapazes migrou com a família para o calor do Sul. Só poucos ficaram. No Verão, Samira não gosta de se sentar no chão do pequeno quarto abafado, ao lado dos outros rapazes. Mas agora, que há poucos rapazes nas aulas, lá fora está frio e todos os dias neva, agora que o pequeno fogão aquece o quarto, Samira gosta de lá ir e de aprender aquilo que há para aprender.
- Até agora, "aulas" era uma palavra de Verão - afirma Samira e sorri. - Desde este Inverno que também é uma palavra de Inverno.
Samira lê, escreve, repete palavras e frases, faz mil e uma perguntas. Ouve histórias de pessoas que são livres e podem dizer aquilo que querem.
- Há lugares - explica o professor - em que as mulheres valem tanto como os homens, onde não é vergonha o primeiro filho de um homem não ser um rapaz. Há lugares onde os homens são castigados quando batem às crianças e às mulheres.
- O que é a felicidade? - pergunta Samira. - O que é o ódio? A satisfação? E o amor? Onde está Deus? E o diabo? O que é um piloto?
Samira gosta do Inverno.
Sempre que pode, cavalga pela neve alta.
- O cavalo tem de se mexer, para não enfraquecer, senão, pode adoecer e morrer. Vem comigo - propõe à mãe. - A ti também não te faz bem estares enfiada dia e noite neste estábulo. Tenho medo que voltes a perder a lucidez.
- As pessoas vão falar mal de mim. Que mulher é essa que anda nas ruas como se não tivesse casa? Dirão que não sou uma boa mulher.
Samira encolhe os ombros.
- Mas é verdade que não tens casa. O que nos interessa aquilo que as pessoas dizem?
- Este estábulo é a minha casa, enquanto para as pessoas não passa de um estábulo. E a opinião delas é importante para nós - explica Daria. - Tu andas na escola com os filhos dessas pessoas. Comemos o pão dessas pessoas e elas não gostam de ver que a tua mãe não é uma mulher honrada.
- Não há ninguém na rua. Ninguém te vai ver.
- Há sempre alguém na rua. Deixa-me, é melhor assim. - Daria fala baixinho e abre muito os olhos. - Aqueles homens apareceram e atiraram-se para cima de mim. - Olha fixamente para o filho-rapariga, com um olhar louco e não pára de acenar com a cabeça. - Eu sou mulher, a minha honra tem de ser protegida.
Samira deixa a mãe.
- Então, vem tu comigo - propõe ao avô.
O avô passa o dia todo sentado ou deitado ao lado do fogo, a dormitar, a encolher e esticar as pernas e a virar-se de um lado para o outro.
- Olha para mim. Queres matar-me? - responde o avô e ri-se. Ri-se para aliviar as preocupações do neto. Um riso que rapidamente se perde. - Estou velho e doente e não tenho forças. Lá fora está muito frio e a minha roupa, que já era fina, está quase rota. Se eu sair, morro.
- Não vais morrer. Eu protejo-te.
- Todos nós temos que morrer.
Alguns dias depois, Samira aparece com uma trouxa de roupa no estábulo. Roupa que andou a pedir às pessoas da aldeia, para o avô.
- As pessoas são boas - afirma Daria. - São boas enquanto não lhes damos motivo para deixarem de ser boas. Ainda bem que decidi não sair do estábulo, assim não dou motivo às pessoas para pensarem mal de nós. Para pensarem que a mãe de Samir não é uma boa mulher.
- Talvez tenhas razão - responde Samira, enquanto olha para a manga vazia da camisola que o avô acabou de vestir. - Vou cortar essa manga.
- Não, deixa. Se cortarmos a manga, terás frio no braço quando um dia vestires esta camisola.
- Arranjei estas coisas para ti. Não vou usá-las.
- Anda cá, meu filho. - O avô abraça o neto. - Olha para ti. Terias feito bem em trazer roupa para ti também. A tua shalvar é tão curta que os teus tornozelos ficam destapados e as mangas da tua kamiz estão tão gastas que consigo ver os teus cotovelos.
Samira e o avô permanecem assim, agarrados, durante algum tempo, em silêncio, antes de o avô retomar a palavra.
- Tu és maior e mais forte que eu. E tens um braço e uma mão a mais. És um verdadeiro homem.
Samira aprecia o abraço do avô com um só braço, que mais parece um abraço com quatro braços.
- Não deixes que nada nem ninguém te impeça de avançar na vida. Anda sempre de peito erguido. Nunca julgues que uma tarefa, um caminho ou uma decisão são grandes de mais para ti. Independentemente da distância do teu caminho, se acreditares que é o caminho certo, então percorre-o.
Samira estranha tantas palavras importantes do avô de uma só vez.
- E agora, meu filho, agora que tenho roupas novas, vamos visitar o vendedor de dal e comer tanto dal e tanto arroz como cabe nas nossas barrigas esfomeadas.
- Não temos dinheiro.
- Ele oferece-nos.
O vendedor de dal recebe-os com alegria. Os três sentam-se no chão, ao lado do fogão, que emana um calor agradável, bebem chá que sabe mesmo a chá e falam de tudo e de nada. Riem-se e contam histórias de tempos passados.
- Até agora dal era uma palavra de Verão - afirma Samira. - Agora também é uma palavra de Inverno.
O avô ri-se.
- Repara como o meu neto é inteligente. Ele não vai ficar nesta pequena aldeia, como tu e eu, até envelhecer. Vai partir para o mundo e percorrer o seu caminho e nada nem ninguém o vai impedir.
O vendedor de dal olha para o velho amigo com um só braço, quer sorrir, mas não consegue.
- Quem sabe - continua o avô -, um dia, quando estiveres a preparar o teu dal e a olhar para o céu, vês um pássaro prateado a sobrevoar a aldeia. Quem sabe se não será o meu neto a pilotar o pássaro por cima da nossa aldeia e da tua loja.
- Nessa altura, vou apontar para o céu e dizer: vejam, aquele é o Samir, o neto do meu querido amigo Mahfous, o barbeiro, a quem tanto devo. O homem com quem estive na guerra.
O avô fita o vendedor de dal.
- És um verdadeiro amigo e muito sincero. E eu tenho um desejo. Peço-te que sejas igualmente amigo do meu neto. Da mesma forma que nunca me negaste a tua ajuda, espero que não a negues a ele.
O avô ri-se.
- E não te esqueças - acrescenta -, quando aparecer o pássaro prateado, olha para o céu!
Samira, o avô e o vendedor de dal riem-se e conversam. A certa altura, o avô põe o braço à volta de Samira e agarra-a, segurando-a perto do seu coração. Perto, muito perto. Pára de rir e torna-se pesado. O seu braço escorrega e a sua cabeça cai no colo de Samira. Como a cabeça de uma criança. Como Samira quando deitara a cabeça no colo da mãe. Naquele dia em que o pai fora enterrado. Samira ri-se, passa a mão pelo cabelo branco do avô e repara que o vendedor de dal parou de rir. O avô não se mexe. Nunca mais. Naquele dia, fora o pai de Samira que morrera, agora era o pai de Daria.
- Ele sabia que ia morrer - afirma Daria mais tarde. - Sabia que este era o seu último dia. Foi para a aldeia para não morrer aqui no estábulo connosco. Levou-te até ao vendedor de dal para lembrar o seu amigo da responsabilidade que tem. Foi morrer perto do vendedor de dal, para que este o lavasse depois de morto, falasse com o mula e tratasse do enterro.
- Ele foi para lá para comer tanto dal e arroz quanto conseguia - responde Samira. - Foi para lá para se rir.
Daria fita o filho-rapariga e passa a mão pela cicatriz por cima do seu olho.
- Tens uma crosta à volta do coração.
Samira sorri. Um sorriso que se transforma em choro.
Os dias e as noites vêm e vão. Todas as manhãs Samira acorda, vê o lugar onde o avô dormia ao seu lado vazio, não ouve a sua respiração, ainda sente o seu braço no ombro, mas não ouve o seu coração. As imagens e as memórias andam à volta na sua cabeça, misturam-se e transformam-se numa massa pegajosa e fedorenta.
Numa dessas manhãs, Samira acorda e sente a cobra da dor na barriga, depois a do medo e da tristeza e, por fim, uma quarta cobra, uma cobra desconhecida. As cobras não lhe deixam espaço para pensar, nem para respirar. Samira falta às aulas, fica deitada, dorme, acorda, curva-se devido às dores e assusta-se quando julga ouvir a voz do avô, do pai, de Bashir e de Gol-Sar. Escuta, imóvel, o silêncio, mas só o garanhão e a mãe estão no estábulo, junto à fogueira. O avô não, e Bashir também não.
Samira arrasta-se, cheia de dores e com as quatro cobras no corpo, até à porta do estábulo. Lá fora, o silêncio é absoluto e a escuridão profunda. Samira senta-se na neve e olha para o céu. O frio ajuda a atenuar a dor e acalma as quatro cobras no seu corpo. Encosta a cabeça ao muro de adobe e deixa o frio entrar no corpo, até aos ossos. Finalmente, as dores diminuem, as quatro cobras param de rastejar, o corpo de Samira fica hirto e molhado e decide voltar para o estábulo. Quando se levanta, repara na neve vermelha no lugar onde estivera sentada. Vermelha como sangue. Neve ensanguentada. É o sangue de Samira. Samira compreende que a quarta cobra, a cobra desconhecida, é a cobra do sangue.
- Mais uma tragédia - afirma Daria, quando Samira lhe conta o que aconteceu. - O amuleto não te protegeu. Este sangue faz de ti uma mulher. Quando o teu pai morreu, a tua voz apareceu, agora que o teu avô morreu, aparece o sangue.
- Porque é que eu tenho de sangrar para me transformar numa mulher? E porque é que tenho de ser uma mulher? O que tem que acontecer para me transformar num verdadeiro homem? Porque é essa a vontade de Deus? Porque não posso simplesmente ser a pessoa que quero ser? - Sentada em frente à mãe, Samira faz mil e uma perguntas. Daria fala e fala. Dá mil e uma respostas. Samira não obtém resposta. Nem uma.
Samira beija a testa da mãe, calça as botas, pega na arma e sai do estábulo. Monta o cavalo e abandona a aldeia. A neve está alta e Samira leva algum tempo a chegar ao rio, que está coberto de gelo. Senta-se à beira-rio e olha para a face clara e fria da Lua. Sabe que a mãe tem razão quando afirma que mostrar a sua verdadeira face significaria a morte. Nessa noite, Samira fica sentada na neve, toca flauta e só regressa à aldeia quando os primeiros raios de Sol aparecem por cima da montanha.
Quando chega ao estábulo, procura a trouxa que o pai lhe entregara.
Daria observara-a no dia em que enterraram o pai. Samira fora até ao rio e ficara por lá durante algum tempo. Daria seguira-a e vira como a filha, nua, se deitara no rio e falara com a água. Quando regressara, trazia uma trouxa por baixo do braço. Daria soube que chegaria o dia em que Samira iria dizer-lhe o que essa trouxa contém.
Samira dera-lhe quatro nós. Um por ela própria, um pela mãe, um pelo comandante e um pelos filhos que a mãe não tirara do corpo. Em todos os Verões e Invernos que vieram e foram, nem Samira, nem a mãe ou o avô abriram estes nós.
Samira puxa e arranca os nós, mas não consegue abri-los. Por fim, enfia a foice no tecido, rasga, corta, arranca, até a trouxa se abrir.
- O meu pai disse que chegará o dia em que saberei o que fazer com estas coisas, em que saberei de quais delas preciso. Disse que seria o dia em que tomarei uma decisão. Esse dia chegou.
- Eu sei - responde Daria.
Samira retira as roupas da trouxa. Calça as botas do pai, enfia o punhal no cinto e o chicote na bota e entrega o vestido florido à mãe.
- Não preciso deste vestido - diz. - Quero que tu o uses.
Samira, com as botas do pai, e Daria, com o vestido da filha, sentam-se em frente ao lume e observam como as chamas devoram os farrapos do antigo vestido de Daria.
- Deixa-o queimar - diz Samira.
- O teu pai continua vivo nesse tecido - afirma Daria. - O seu toque, o seu cheiro e a sua respiração permanecem nele.
- Deixa-o queimar.
- Limpei o sangue dele com esse vestido. O peso da tua cabeça e da dele permanecem nesse vestido. Nele carreguei o pão que levava até ao teu pai nos campos. O amor do teu pai vivia entranhado nesse tecido. Com ele limpei as lágrimas do teu pai e as tuas. E as vossas feridas também. Deitaste-te nas pregas do meu vestido, quando estavas doente.
- Está a arder - afirma Samira. - E com ele estão a arder todos os pecados. Deixa-o queimar.
- Eu era uma rapariga pequena quando teci esse tecido vermelho com as minhas próprias mãos - explica Daria. - inda consigo ouvir o barulho do tear nos meus ouvidos. Cada vez que pegava no pequeno pedaço de madeira com os fios polidos, rezava a Deus para que me desse um homem bondoso, que me respeitasse e considerasse.
- E ele deu-te um homem assim?
- O tecido levou um Verão inteiro a ficar pronto.
- O teu marido respeitava-te?
- Lavei o tecido no rio. O tecido perdeu sangue, tingiu a água de vermelho. As raparigas taparam a boca com a mão, riram-se baixinho e cantaram. "Em breve a nossa bela Daria com os olhos amendoados será mulher. O seu sangue vai percorrer o rio até chegar ao homem que seguirá o seu trilho e encontrará Daria e o seu tecido de casamento colorido e se casará com ela."
- Deixa-o queimar - repete Samira.
- Fiz um vestido com esse tecido, bordei-o com espelhos e pérolas. Os cacos de espelho serviam para me proteger do mau-olhado.
- O meu pai protegeu-te?
- Enquanto cosia os espelhos ao tecido, via o meu reflexo. Mil e uma faces. Via a minha esperança e o meu futuro. Com cada pérola que cosi ao meu vestido, pensava num desejo e pedia a Deus que me ouvisse.
- Deus ouviu os teus desejos?
- Usei este vestido quando o teu pai casou comigo, quando me fez sua mulher, quando me fez mãe e quando me fez viúva.
- Deixa-o queimar.
- Tudo está a arder. Todo o bem e todo o mal.
- Deixa-o.
- O meu novo vestido é colorido. No meu novo vestido não há nada do comandante. Nem as suas lágrimas, nem a sua dor, nem as suas palavras, nem o seu amor. Nem os meus desejos, nem as minhas orações.
- Nem a culpa que ele depositou em ti - acrescenta Samira. - Deixa-o queimar, oferece-o às chamas.
- Vou deixá-lo queimar - responde Daria. - O vestido, tudo o resto e muito mais.
O NOIVADO
Desde que o Inverno acabou e que Samira e a mãe regressaram às terras altas nas montanhas, Samira todos os dias vai até ao rochedo e aguarda que o seu amigo Bashir e a irmã Gol-Sar regressem.
Samira está satisfeita por ela e a mãe terem sobrevivido ao Inverno. Está triste porque o avô morreu. Está satisfeita porque ele se riu antes de morrer. Está triste por a mãe ter passado todo o Inverno fechada no estábulo e ter enlouquecido ainda mais. Está satisfeita por ter ido às aulas e ter aprendido muita coisa nova e importante. Por outro lado, ficou a saber que há tanta coisa que nunca poderá saber, porque o resto do mundo e o saber e a riqueza estão longe da sua aldeia, das montanhas e das terras altas do Indocuche. O seu coração fica apertado quando se lembra de que teve de entregar Azad e os outros dois cavalos para sobreviverem ao Inverno, mas está satisfeita porque pôde ficar com o garanhão do pai. Está triste porque o sangue, que a transforma em mulher, chegou. Está satisfeita por ter chegado e ela ter tomado a decisão de finalmente calçar as botas do pai e de ser um homem. Assim, o Inverno passou e Samira está satisfeita e triste.
Desde que regressaram às terras altas que Samira criou o hábito de caçar, de matar animais e de derramar o seu sangue, de início, ela e a mãe comem a maior parte da carne e levam o resto para a aldeia, para a oferecer. Oferecem-na ao senhor professor, ao vendedor de dal, às famílias dos rapazes da escola até ao nojento vendedor de legumes. Depois, o talhante propõe um negócio a Samira e ela vende-lhe a carne e ganha dinheiro suficiente para comprar o necessário para viver com a mãe. Samira compra gordura, chá, trigo e até uma tenda. A tenda não é grande, nem é nova, mas serve para ela e para a mãe.
Numa noite, Samira está sentada no rochedo a tocar flauta, a olhar para o caminho e a pensar que talvez os outros kutshi nunca mais voltem, que talvez a maldita guerra os tenha destruído ou a seca tenha matado primeiro os animais e depois a eles, quando ouve as vozes de homens e o ladrar de cães. Distingue o fungar dos cavalos, o barulho dos cascos e vê a poeira que levantam e os pássaros no céu que os acompanham e anunciam o seu regresso. Finalmente voltaram!
Samira salta do rochedo, monta o garanhão e cavalga em direcção aos nómadas. De longe consegue reconhecer a família do comandante Rashid, entre a qual distingue o tecido amarelo e a saia rodada e colorida de Gol-Sar. Está mais alta e esbelta e move-se de uma maneira que Samira desconhece. Já não corre como no Inverno passado, agora baloiça as ancas e move os braços com gestos calmos, não como uma rapariga, mas como uma mulher, uma verdadeira mulher. Samira percebe que, tal como ela, Gol-Sar também deve ter sangrado o sangue de mulher. Consegue ver que o comandante perdeu metade das suas ovelhas, cabras, camelos, burros e mulas, para além da sua postura hirta e orgulhosa. Só há uma coisa que não vê. O seu amigo Bashir.
- O país inteiro está seco - explica Gol-Sar. - Olha para os nossos animais, estão magros e enfraquecidos. Perdemos muitos deles. Precisamos de dinheiro. Os estrangeiros pagam bem, se lutarmos por eles. O Bashir ficou lá, a lutar por eles.
Samira não quer acreditar naquilo que ouve, quer cavalgar para o Sul, procurar o amigo e trazê-lo de volta para as terras altas, para perto de si.
- O Bashir está a lutar? Em que guerra? O que é que o Bashir tem a ver com a guerra entre os estrangeiros e os tali-bãs? Essa guerra não é do Bashir. Ele fala a língua dos estrangeiros? Que estrangeiros são esses? De onde vêm? Porque lutam
contra os talibãs? O Bashir e eu não precisamos do dinheiro dos estrangeiros, podemos ganhar o suficiente aqui. Podemos vender o ópio do nojento homem dos legumes ou caçar e vender a carne e as peles. Também podemos apanhar peixes e vendê-los na aldeia!
Gol-Sar não sorri, o seu olhar não tem vida, quando responde:
- Como quer que seja, vês que o teu amigo não está cá.
Samira ajuda o comandante Rashid a montar as tendas e a tratar dos cavalos. Vai à caça e oferece-lhe a carne, vai até ao rio e regressa com peixes para o comandante. Os dias vêm e vão, mas a saudade no coração de Samira não desaparece. Sente falta do amigo, da sua voz, de se deitar com ele no rochedo, de caminhar pelas montanhas e de estar com ele à beira-río.
- Deus é grande - afirma o comandante Rashid. - Substituirás o meu filho, até ele regressar.
- Vou para o Sul - responde Samira - Vou trazer o Bashir de volta. Aqui há trabalho e dinheiro suficiente, aqui há de tudo.
- Mas não chega para todas as pessoas que tenho de alimentar. Não sejas tolo, rapaz. Mesmo que conseguisses chegar até ao Sul, nunca o encontrarias. O Sul é muito grande e está cheio de estrangeiros que matam todos aqueles que não conhecem. Têm armas grandes e pesadas com as quais conseguem acertar no inimigo a uma distância que vai daqui até lá abaixo, ao vale. Têm aviões que disparam foguetões e bombas.
- O Bashir vai voltar - diz Gol-Sar e olha Samira nos olhos. Pousa a mão no braço de Samira, repara no olhar do pai, volta a tirá-la rapidamente e baixa o olhar. - Ele vai voltar - repete. - Eu sei que ele vai voltar. Tens de ter paciência.
- Vá, rapariga. - O comandante olha para a filha e põe as mãos na cintura. - Vai até ao rio buscar água e prepara-nos um chá. Tenho um assunto para falar com o Samir.
Gol-Sar obedece, pega na caldeira e vai até ao rio. Molha os pés e brinca com a água e com as pedras no leito, enquanto sorri e cantarola, satisfeita. Sabe qual o assunto que o pai vai abordar com Samir. Durante todo o longo Inverno, Gol-Sar falou com o irmão sobre esse assunto. Falou-lhe dos seus sentimentos, contou-lhe tudo. Rogou que falasse com o pai. Durante todo o Inverno, Bashir escutou a irmã, zangou-se com ela, disse-lhe para ser uma rapariga decente e ter paciência e consolou-a. Porém, pela cara da irmã, percebeu que era tarde de mais, que Gol-Sar estava apaixonada. Pelo seu amigo. Por Samir.
- Tornaste-te um bom amigo do meu filho - começa o comandante Rashid. - Ele aprendeu muito contigo. Graças a ti, tornou-se primeiro um rapaz e depois um verdadeiro homem. O meu filho respeita-te e considera-te. Não estou a exagerar se disser que te ama mais do que se ama um amigo. O Bashir ama-te como um irmão. A amizade entre homens é sagrada. Nada e ninguém pode substituí-la. Um amigo é a maior protecção que um homem pode ter. É um irmão por escolha.
Samira brinca com os arreios do garanhão, fita o comandante, desvia o olhar, olha para longe, olha o comandante nos olhos, ouve as suas palavras, compreende-as, não as compreende.
- Quem tem um bom amigo não precisa de mais ninguém - responde.
O comandante passa a mão pela barba e ri-se.
- Enganas-te. Pois por mais próximo que seja um amigo, todos os homens precisam de uma mulher que lhes dê filhos. - O pai de Bashir volta a rir-se. - Alguns até precisam de mais que uma mulher.
Samira não sabe para onde olhar. Avista Gol-Sar que regressa do rio e segura a caldeira em frente à barriga, brinca com a saia, sorri, desaparece na tenda, volta a aparecer e coloca a caldeira nas chamas. Não se aproxima de Samira e do pai, fica perto do fogo, olha para Samira e para o comandante e não pára de sorrir.
O comandante vê o olhar de Samira.
- O tempo é um diabo - afirma. - Vem e vai tão depressa que temos de nos apressar para perceber o que se passa à nossa volta. - O comandante sorri. - Quando cá chegaste eras assim tão pequeno. - O comandante faz um gesto para mostrar o tamanho de Samira.
Samira não compreende qual a finalidade de toda esta conversa.
- O Bashir e a minha filha também não eram muito maiores - continua o comandante. - Vocês passaram muito tempo juntos. Ninguém me podia criticar por isso. Mas agora já não és nenhuma criança, nem a Gol-Sar o é. Não fica bem uma jovem mulher e um jovem homem estarem sozinhos. Deus nos proteja disso. As pessoas poderão pensar que não sou um homem honrado.
Samira olha para Gol-Sar e depois para o comandante.
- Isso quer dizer que devo parar de vê-la?
- Não, não te preocupes.
- Eu não me preocupo. Se quiseres, daqui em diante mantenho-me afastado da tua filha. A tua honra e a honra dela são a minha honra também.
O comandante sorri.
- Tu és como se fosses da minha carne e osso, mereces toda a minha confiança.
Samira não compreende por que razão o comandante Ras-hid diz tantas palavras importantes.
- Sei que não tens riqueza - continua o comandante. - Mas também sei que és um rapaz trabalhador, honrado e sincero. És lutador e consegues alcançar aquilo que queres.
Samira tem vontade de se levantar e de fugir.
- Sei que estás sozinho neste mundo e que não tens ninguém que fale por ti. - O comandante ergue-se, volta a passar a mão pela barba e sorri. - Dou-te permissão para casares com a minha filha.
- Para quê? - Samira sente o sangue a subir-lhe à cabeça.
O comandante não se ri.
- Primeiro ficarão noivos, até encontrares um trabalho e poderes comprar uma tenda para ti e para a tua noiva. Ganharás uma parte do dinheiro comigo, a preparar os meus cavalos para o jogo.
Samira não pára de acenar com a cabeça, sem saber porque o faz.
- Vou casar - anuncia à mãe.
- Vais o quê? - exclama Daria. - Enlouqueceste!
- O comandante Rashid disse-o claramente. Ele quer que eu case com a Gol-Sar. - Samira olha para a mãe e ri-se. Primeiro é um riso baixinho, depois torna-se gradualmente mais alto, até se transformar num riso louco e depois num choro.
- Talvez devêssemos fugir - propõe Samira.
- Talvez.
- Talvez eu devesse simplesmente casar.
- Talvez.
- Talvez eu devesse ir até ao rochedo e pedir a Deus que me dê uma resposta.
- Pede ao teu amuleto para te ajudar.
Samira pega no pão quente que a mãe acabou de tirar do forno, monta o garanhão e parte a galope. O cavalo funga, a sua crina esvoaça ao vento como uma bandeira e enterra os cascos no chão, sem que nenhuma das quatro pernas toque no solo. As tendas dos outros nómadas, os animais, as crianças, arbustos, rochas, o riacho, tudo se desvanece. O mundo transforma-se numa mistura de cores e do barulho dos cascos, do fungar do garanhão e da respiração de Samira, que passa a voar pelos homens e rapazes.
- Saiam. Samir. Zende bashi. Koja mirP. Bom dia, Samir. Viva. Para onde vais?
Samira não responde, não quer que as pessoas vejam o medo na sua cara. Inclina-se sobre o pescoço do garanhão e agarra-se à crina. Samira e o cavalo, colados um ao outro, formam um só. Meio animal, meio homem.
Samira passa o resto do dia e metade da noite deitada no rochedo, a pensar, à procura de uma resposta sem saber o que fazer. Quando ouve passos na escuridão, sabe imediatamente de quem são.
- O que fazes aqui?
- Vim visitar-te - responde Gol-Sar.
- O teu pai mata-nos.
- Somos noivos.
- Mas ainda não somos casados. Não posso ver-te sem mahram, nem estar sozinho contigo. É proibido, percebes?
- Não queres ser meu noivo?
Samira encolhe os ombros.
- Eu não sou como tu pensas.
- Eu sei como tu és.
Samira olha Gol-Sar nos olhos.
- Ninguém sabe quem eu realmente sou.
Gol-Sar, que se encontra por baixo do rochedo, estende a mão.
- Ajuda-me. A mim não me importa quem tu realmente és. Eu vejo-te da maneira que te vejo. - Baixa o olhar e acrescenta: - E gosto de ti assim.
- Tu não sabes o que dizes.
- Só porque sou rapariga, não quer dizer que não sei o que digo. Eu sei que não encontro um homem melhor que tu. - Olha para Samira, depois desvia o olhar, envergonhada. - Além disso, és mais bonito que todos os homens que eu conheço.
- Vais ter uma desilusão. Por favor, vai falar com o teu pai e diz-lhe que não me queres. - Samira agarra Gol-Sar pelos ombros. - Se não falares com ele, vamos todos ser infelizes. Tu, eu, o teu irmão, o teu pai, a tua mãe e toda a gente.
- Ouve bem o que te digo e não respondas. Achas que, se eu disser ao meu pai que não te quero, ele vai estar de acordo e rompemos o noivado?
- Achas que não? - pergunta Samira e responde ela própria. - Não, nunca.
Assim continuam a falar, afastam-se, aproximam-se, até estarem as duas tão cansadas que adormecem. Sem darem por isso, vão-se aproximando durante o sono. Gol-Sar não nota que pousa a cabeça no peito de Samira, nem Samira repara que coloca o braço à volta de Gol-Sar e a puxa para perto de si. Gol-Sar deita a perna sobre a barriga de Samira. O homem-rapariga pousa a mão na coxa da mulher-rapariga. O homem-rapariga e a mulher-rapariga agarram-se, agarram-se com força.
Samira sonha com anjos, que a transportam pelos ares, sobre as montanhas e a água. Sonha com lugares e países que não conhece. Com um pássaro gigante com uma cabeça de cavalo que a agarra entre as asas e a transporta até aos céus, passando pelas estrelas e pelo Sol, até ao lugar onde Deus não existe. Onde tudo começa e tudo acaba. Onde nada existe.
Gol-Sar sonha com uma bela tenda inundada pelo perfume de água de rosas. Sonha com uma tenda decorada com tigelas com água límpida, almofadas coloridas e jóias penduradas na parede. Sonha com o marido a rir-se, sentado ao seu lado a ler o mesmo livro que ela. Um marido com o qual vai até à aldeia e que a deixa andar de cara destapada, mesmo lá em baixo, no vale.
Ao fim destes sonhos, o homem-rapariga e a mulher-rapariga largam-se e viram-se para o lado, de costas um para o outro e assim dormem o resto da noite.
Só quando o Sol deita os seus primeiros raios de luz e calor sobre o pico da montanha, Samira abre os olhos, vira-se e acorda Gol-Sar. Esta salta do rochedo, sem olhar para Samira, desce a montanha a correr, monta o burro e apressa-se a regressar à tenda do pai.
Samira apenas ergue a cabeça, observa Gol-Sar enquanto esta se afasta, espreguiça-se, volta a deitar-se e a adormecer.
Gol-Sar consegue ver o fumo da fogueira da sua tenda à distância. Aproxima-se às escondidas, enfia a mão por baixo da parede da tenda e apanha o jarro de barro. Vai até ao rio, molha a cara com água e regressa à tenda. A sua irmã mais nova, que está a brincar em frente à tenda, estende os braços quando a vê. Gol-Sar sorri, pousa o jarro com água, seca a cara com o tecido do vestido e pega na irmã, beijando-a e levantando-a no ar.
- Estou à tua espera! - exclama a mãe. - Preciso de água.
Gol-Sar sorri, entra na tenda com o jarro na mão e ao olhar para a mãe percebe que esta não deu pela sua ausência durante a noite.
Os dias vêm e vão, tornam-se cada vez mais quentes. Samira sente falta de Bashir. Gol-Sar visita Samira no rochedo. Samira vai às aulas. Gol-Sar passa horas sentada entre os rochedos ou perto do rio, a ler e a escrever, sempre a estudar. Gol-Sar visita Firouza, a pequena mulher-rapariga, que lhe conta que está triste por ainda não ter conseguido dar um filho ao hadji. Gol-Sar explica-lhe que primeiro terá de sangrar o sangue de mulher, antes de poder engravidar. Samira passa pela tenda da rapariga prostituta, desce do cavalo e aperta a sela, apesar de não ser necessário apertá-la. A rapariga tem um recém-nascido agarrado ao peito e o bebé do Verão passado está deitado no seu colo. Está magra e tem uma ferida por cima do olho, no mesmo lugar onde Samira tem a ferida. Quando vê Samira não sorri, apenas olha para ela, sem a ver. Samira cavalga até às montanhas, mata um bode e leva-o à mãe. Arrancam o pêlo ao animal, secam-no ao sol, cortam a carne em pedaços e Samira vende grande parte aos outros kutshi. Daria coze o resto da carne e leva uma parte à rapariga prostituta, dá-lhe de comer, pega no recém-nascido e lava-o.
Samira vende as peles na aldeia, compra uma melancia para a mãe e passa pela loja do vendedor de dal, onde come tanto dal com arroz quanto cabe na sua barriga. Ao pagar, o vendedor de dal aponta para o céu.
Antes de regressar às terras altas, o talhante encomenda um bode inteiro a Samira e paga-lhe adiantado. Samira compra um tecido para a mãe, outro para a rapariga prostituta, um pente e uma garrafa de água de rosas para Gol-Sar e couro e pérolas para os arreios do seu garanhão.
Todas as sextas-feiras é dia do jogo do boskashi e Samira vai buscar os cavalos do comandante Rashid. Cavalga pela planície até os músculos dos cavalos ficarem quentes e moles. Limpa-os e leva-os para o campo de jogo, onde o comandante Rashid a espera. Os homens comentam que, desde que Samir prepara os cavalos do comandante, este se tornou melhor jogador. As mulheres dizem que a filha do comandante tem sorte por ter arranjado um marido tão bom e habilidoso.
As pessoas falam tanto sobre a sua Samira, que Daria verifica vezes sem fim se ela anda com o amuleto ao pescoço e cose mais espelhos no boné e no colete do filho-rapariga, para afugentar o mau-olhado.
Depois do jogo, Samira e o comandante Rashid cavalgam até à tenda do comandante e sentam-se no tapete colorido que a sua mulher teceu em conjunto com as filhas. Gol-Sar e as irmãs servem carne e arroz aos homens. As crianças das tendas circundantes juntam-se a eles, comem com eles, olham para Samira e cochicham.
- Ele é capaz de acertar num bode, enquanto monta a cavalo - comentam. - Trepa as rochas como as cabras. Samir, mostra-nos como és forte!
Samira pega com uma mão num rapaz e com a outra numa rapariga e começa a girar à volta de si própria, sem os soltar. Estende os braços e dá voltas até a rapariga e o rapaz voarem e gritarem. Depois torna a sentá-los nos seus lugares. As duas crianças riem-se às gargalhadas porque vêem tudo a andar à roda, o relvado e as montanhas, as pessoas e as tendas.
- Samir, Samir! - exclamam. - És o homem mais forte do Indocuche.
- Não é uma questão de força - responde Samira, com um sorriso.
- O que é então? - perguntam as crianças.
- É uma questão de treino.
Samira já lhes contou várias vezes a história e as crianças já a conhecem de cor, mas apesar disso voltam a pedir:
- Conta-nos a história da rapariga e da vitela!
Sentam-se à volta de Samira, agarram-se às suas costas, deitam a cabeça no seu colo e perguntam qual é a moral da história.
Samira não responde, apenas encolhe os ombros.
As crianças riem-se e falam todas ao mesmo tempo.
- A moral é que, quando alguém quer fazer uma coisa, tem de treinar muito e conseguirá fazê-la! - exclamam.
Os dias e as noites transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. Samira cavalga até às montanhas, escala o pico, coloca-se de braços e pernas abertas frente ao Sol a nascer. Assim permanece, no centro da bola vermelha de fogo e deita uma sombra, à espera que o Sol suba e que possa carregar a bola de fogo. Daria tira peixes do rio e leite das cabras, tira o pão do forno, os espinhos do dedo de Samira e tece fios no seu vestido colorido. Fios para darem sorte. Gol-Sar tece uma fita colorida com quatrocentos fios para o casamento. O comandante Rashid monta os seus cavalos, inclina-se para baixo para apanhar a vitela, entala-a por baixo das coxas, dá a volta à bandeira e repõe o cadáver no círculo helal. Samira ensinou-lhe a não deitá-lo, a pousá-lo, com respeito e consideração. Porque o sangue do animal foi derramado, sangue tão vermelho como aquele que corre nas suas próprias veias. Samira está sentada no rochedo, passa mais um fio pelo seu amuleto, toca flauta e olha para o Sol que deita os últimos raios de luz e calor, antes de desaparecer atrás da montanha. O ouvinte invisível está sentado ao seu lado, olha para ela, mas não a avisa da sua presença, deixa-a em paz. A cobra da felicidade aproxima-se de Samira, não entra na sua barriga, enrola-se ao seu lado e dorme. Gol-Sar aparece e faz coisas proibidas. Tira o lenço da cabeça, solta as tranças do cabelo, sobe para o rochedo, deita-se ao lado do seu Samir e aproxima o seu corpo. Samira sente o corpo conhecido no sono e puxa-o para perto de si. Abraça Gol-Sar e mergulha a cara no seu cabelo com perfume a água de rosas. Samira sorri no sono. Antes de os primeiros raios de Sol e calor aparecerem sobre as montanhas, Gol-Sar acorda, salta do rochedo, monta o burro e regressa à sua tenda, para perto da mãe que, mais uma vez, não se apercebeu da ausência da filha.
Depois de noites como esta, Samira não consegue olhar a mãe nos olhos, nem o comandante Rashid. Quando acorda, olha para o céu e as estrelas claras, vê a face de Gol-Sar com a sua pele suave, os olhos amendoados e o cabelo escuro como a noite, que brilha como seda. Samira vê Gol-Sar e, ao lado, vê Bashir. O seu querido amigo Bashir, cuja ausência a faz sentir como se lhe tivessem arrancado uma parte do coração. Assim permanece deitada, vê as duas caras e não sabe quem é que as está a ver. Será Samira? Ou será Samir?
A REVELAÇÃO
- Minha filha bonita e inteligente, minha rapariga corajosa, minha querida Samira - diz Daria.
Samira sorri. Passaram vários anos desde que a mãe a tratou por "filha" pela última vez. Tantos anos, que Samira já nem sabe quantos foram. Passou tanto tempo, que Samira tem a sensação de que a mãe não está a falar com ela, mas com outra pessoa. Com uma estranha. Com uma pessoa que ela deixou de ser.
- A Samira já não existe - afirma e sorri, enquanto enrola um pedaço de pano à volta do peito para esconder os seios.
- És uma mulher bonita. Uma mulher que vive a vida dos homens melhor que qualquer homem. - Daria sorri e olha para o horizonte como se visse todos os outros homens, ao longe. - Melhor que o teu próprio pai.
Samira sorri e veste a sua kamiz branca, enquanto Daria observa o filho-rapariga.
- Se eu não te tivesse tirado do meu corpo como Samir, não terias conhecido o lado duro da vida. Aprendeste a lutar, a viver a vida como ela é. Aprendeste a ver o lado bom das coisas.
Samira penteia o cabelo negro e espesso e veste o colete bordado às cores sobre a kamiz branca.
- No nosso país, os homens também não são livres - comenta. - Se fossem livres, não teriam de tirar a liberdade às mulheres. Quem é livre não tem necessidade de negar a liberdade a ninguém.
- Que palavras tão sábias. - Daria apanha uma bolha, impedindo-a de cair no fogo e de morrer.
Samira enrola um lenço comprido à volta da cintura para que ninguém veja como é fina.
Daria observa a filha, de postura erguida e orgulhosa, iluminada pelos primeiros raios de Sol. É alta, tem umas costas direitas, uns ombros largos e a cabeça erguida.
- Minha filha inteligente - diz. - A tua força e a tua razão tornam-te bela.
Samira enfia o punhal no lenço à volta da cintura, coloca o pequeno chicote na bota e põe o boné cintilante na cabeça. Toca no amuleto que usa ao pescoço, olha para a mãe e aproxima-se dela com um passo seguro. Inclina-se sobre a mãe, passa a mão pelo seu cabelo branco e beija-lhe a testa. Daria fecha os olhos e aprecia a força e o carinho da filha.
- Reza por mim - pede Samira.
- É ele! - exclamam os homens. - Aquele é o Samir! Em breve vai ser o melhor jogador de boskashi de todo o Indocuche.
- Ele é o melhor cavaleiro do Indocuche! - exclamam os rapazes, aos saltos.
As raparigas e as mulheres riem-se entre elas.
- É o homem mais bonito do Indocuche! - comentam. - Deus o acompanhe e o proteja do mal. Deus lhe dê uma vida longa para que possamos ter esta bela visão durante muito mais tempo.
Samira cavalga até à tenda do comandante Rashid, salta do cavalo antes de este parar e faz uma vénia pequena perante o comandante.
Os dois montam os seus cavalos e dirigem-se para o campo de jogo, como pai e filho, como rei e príncipe. Samira quer continuar a cavalgar assim, até ao fim. Até ao fim da vida e do Indocuche, até ao fim de tudo e de todos.
Quando chegam ao descampado, os outros homens param, calam-se e batem palmas.
Os músicos afinam os instrumentos, há rapazes a venderem água, outros vendem o pão que as mães e as irmãs tiraram dos fornos. Há raparigas pequenas a correrem de um lado para o outro. São tão pequenas que não precisam de se esconder dos olhares de estranhos. Há mulheres mais velhas, sentadas, à espera que o jogo comece. São tão velhas que não precisam de se esconder dos olhares de estranhos.
- Samir - diz o comandante. - Vou iniciar o jogo com o garanhão branco. Prepara-o.
Samira agarra o chicote com os dentes, enrola as rédeas à volta do pulso, assobia e começa a cavalgar. O cavalo acelera, enterrando os cascos no chão. A mistura de sons dos cascos com o fungar e o tilintar dos arreios parece música.
Quando a vêem, o coração dos homens comove-se. Sabem que nunca serão capazes de cavalgar como este rapaz.
Samira cavalga como se estivesse a participar no jogo, como se os outros homens a cavalo a perseguissem. Não sabe porque faz aquilo que faz, quando avista um jogador com a vitela entalada por baixo das coxas e que se prepara para dar a volta à bandeira. Solta alguns gritos curtos, empurra o garanhão até alcançar o homem com a vitela, inclina-se para o lado, puxa as rédeas do cavalo do seu adversário e este assusta-se. O homem não é suficientemente rápido, Samira arranca-lhe a vitela, dá a volta à bandeira, regressa a alta velocidade ao círculo helal, puxa as rédeas e o garanhão empina-se. Samira inclina-se para baixo, pousa o cadáver e faz uma vénia perante o animal morto e o círculo.
Ouve-se um tiro, o jogo pode começar.
Samira assusta-se, acorda do sonho e apressa-se a levar o garanhão ao comandante.
- Perdoa-me - pede e faz uma vénia. - Estava fora de mim, não sei porque o fiz.
- Foi uma boa prova da tua força e do jeito que tens - afirma o comandante. - Mas tens de ter paciência, ainda não estás pochte para o jogo.
Samira não responde, ajuda o comandante Rashid a montar o cavalo e depois senta-se à beira do campo de jogo. De repente, sente um braço no ombro e ouve uma voz a sussurrar-lhe ao ouvido. O braço é parecido com o braço do avô.
- Não concordo com o comandante. Acho que estás preparado, estás mais que pochte para o jogo. - A voz é do vendedor de dal, que se senta ao lado dela.
Samira fica radiante com a visita do amigo, ri-se e abraça o velho.
- O que fazes aqui em cima, nas terras altas?
- Julguei que podia ver-te jogar.
- E viste - responde Samira com um sorriso.
- É verdade, eu vi-te. No dia em que partir para o além, vou chamar o teu avô e contar-lhe que és melhor que qualquer um destes homens.
Samira ri-se.
- Já agora, se encontrares o meu pai, diz-lhe o mesmo.
- E quando é que te vejo a voar num pássaro prateado?
- Man tshe midanam. Só Deus é que sabe. Ele vai dizer-me quando chegar a altura certa para isso e para tudo o resto.
- Olha para mim, rapaz. Olha bem para mim. Os meus dias estão contados.
Samira pára de sorrir. Sabe que é verdade, consegue vê-lo. Põe o braço à volta do ombro do vendedor de dal.
- Ainda vives mais tempo que nós todos. Espera para veres! - consola-o.
O vendedor de dal abana a cabeça, ri-se às gargalhadas, limpa as lágrimas dos olhos e encosta a cabeça ao ombro de Samira.
Ao fim da tarde, depois de terem dado vários abraços, de terem assistido ao jogo, de terem ouvido a música e as palmas, ao fim disto tudo e de muito mais, o vendedor de dal afirma que há muito tempo não passava um dia tão divertido.
À despedida, Samira e o vendedor de dal abraçam-se longamente, Samira acompanha o velho até ao caminho que conduz ao vale, não consegue separar-se dele, acompanha-o durante um pequeno pedaço de caminho, acompanha-o durante um longo pedaço de caminho, acompanha-o até ao vale, leva-o até casa. Já é noite e as estrelas e a Lua brilham no céu quando Samira regressa à montanha, sabendo que nunca mais voltará a ver o vendedor de dal.
"O Senhor Deus chamou-o", comenta o ouvinte invisível.
Samira sabe que é verdade, vai até ao rochedo, deita-se de costas e olha para o céu. Sente o peso da cobra da tristeza no peito. De repente ouve passos desconhecidos e assusta-se. Engatilha a arma e olha para a escuridão, mas não vê ninguém. O silêncio é total.
"Porque não choras?", pergunta o ouvinte invisível.
Samira ignora-o, continua a olhar para a escuridão, sem ver nem ouvir nada. Não diz nada, não pensa nada, transforma-se em nada. Num grande nada vazio, com uma cobra no peito.
Fecha os olhos, sente a luz das estrelas e uma leve brisa na testa que lhe acaricia suavemente a pele, como se de um dedo se tratasse. Um dedo suave e forte que afasta as imagens negras e ocas da sua cabeça. Samira sente os anjos que a pegam pelas mãos e a elevam, deixando tudo para trás, transportando-a para um lugar onde tudo e nada começa e acaba. Samira abre os braços, deixa-se cair para a frente, cai, atira-se para os braços do pai. Levanta uma pedra e coloca o seu segredo por baixo. Depois volta para o rochedo, prepara-se para se deitar de costas, mas pára porque sente que não está sozinha. Sente alguém atrás dela. Permanece imóvel, coloca a mão no punhal e puxa-o, devagar. Quando se apercebe de uma mão a pousar na sua, volta a empurrar o punhal para dentro. É a mão grande e forte de um homem. É uma mão da qual não tem medo. Como antigamente, uma mão igual à do pai. Samira sente o corpo atrás de si. É o corpo de um homem, um corpo do qual não tem medo. Sente a respiração do homem, uma respiração sem medo. Como na altura em que montava o garanhão com o pai e encostava o seu pequeno corpo ao corpo do pai. Samira fecha os olhos, como antigamente, encosta-se, sente-se leve. Samira flutua, paira. Paira, até notar que não está a dormir. Até notar que há um verdadeiro corpo atrás de si. Sem hesitar, saca o punhal, rebola para o lado e olha para o homem à sua frente.
É um homem que Samira nunca antes vira. Tem os ombros largos e os braços fortes. O seu cabelo longo é escuro e forte e brilha ao luar como seda. A sua expressão é de tristeza, de alegria, de saudade.
- Onde estiveste? - pergunta Samira.
- Percorri o Indocuche de cima a baixo. Olhei para todas as pedras no meu caminho, à procura do segredo do meu amigo.
- Encontraste aquilo que procuravas?
- Voltei para ouvir da tua boca qual o segredo que procuro.
Ajoelhados frente a frente, os dois olham-se nos olhos, em silêncio.
Um silêncio que diz mais que mil palavras.
Devagar, muito devagar, Samira pousa o punhal no rochedo, estende a mão e toca na cara do homem, que coloca o braço à volta de Samira e a abraça. É um abraço muito além de um simples cumprimento. Samira toca na cara do homem, olha-o nos olhos e beija-o na testa. O homem olha-a nos olhos e beija-a na boca. Ela deixa.
Samira conta ao homem que está noiva. Que a sua noiva se chama Gol-Sar. O homem sabe. Samira conta-lhe que vai casar. O homem sabe. O homem conta que viu a guerra, que matou inimigos, que não passou um dia sem que pensasse no seu amigo. No seu amigo Samir. Samira sabe. O homem diz que só voltou por uma única razão. Samira sabe qual é. Voltou para ver o amigo. Samira fala-lhe das saudades que teve. De uma só pessoa. Do seu amigo. De Bashir. Bashir sabe.
"Parecem um casal apaixonado", diz o ouvinte invisível.
Samira ignora-o, deita-se no rochedo ao lado de Bashir e olha para o céu.
- Finalmente, as estrelas voltaram a brilhar - afirma. Bashir apoia a cabeça na mão, olha para Samira, passa-lhe a mão pelo cabelo, quer beijar-lhe a testa, beija-lhe a boca. Samira deixa-o, primeiro uma vez, depois muitas vezes mais.
- Transformaste-te num homem - nota Samira. - Num verdadeiro homem.
- E tu és um homem bonito - responde Bashir. - Mais bonito do que eu me lembrava. És o homem mais bonito que já vi.
Samira reflecte, pensa, quer dizer algo, pára de reflectir, não pensa, não diz nada, deixa as coisas acontecer. Bashir dobra o joelho, pousa a perna na barriga dela, pressiona o seu desejo viril contra a barriga de Samira. Como numa das noites anteriores, quando Gol-Sar encolhera o joelho e pousara a perna na barriga de Samira. O sangue sobe-lhe à cabeça e palpita no seu corpo. Samira não sabe qual o desejo que é maior. O que sente por Gol-Sar ou por Bashir. Gosta tanto de uma sensação como da outra, gosta das duas. Samira deixa as coisas acontecerem.
Bashir aprecia o desejo do amigo.
Samira deixa as coisas acontecerem, sem perceber bem o que se passa, por que razão abre as pernas e porque Bashir faz aquilo que faz. Samira não sabe que está a ser transformada de rapariga em mulher, só sabe que é bom.
Sente o corpo como nunca antes o sentira, mergulha no abraço de Bashir, afoga-se no seu toque, no seu desejo. Bashir não vê nada, nem ouve nada, mergulha num mundo desconhecido. Desaparece, perde a lucidez.
"Pensas que agora o Bashir descobriu o teu segredo", diz o ouvinte invisível. "Pobre Samira, enganas-te. Ele sabe tão pouco como antes."
Samira ignora-o, crava os dedos nas costas de Bashir, torna-se um só com ele, eleva-se. Para o lugar onde se encontram o início e o fim. De tudo e de nada.
Samira e Bashir abraçam-se, em silêncio, permanecem imóveis. Até o Sol deitar os primeiros raios de luz e de calor sobre as montanhas do Indocuche. Samira vê aquilo que durante a noite já sentira com os dedos. A guerra transformou o amigo num homem. Num verdadeiro homem.
Bashir vê aquilo que já reconhecera na escuridão da noite. O seu amigo Samir é mais belo que nas imagens que trazia na memória.
Antigamente, Samira era a mais alta, agora é Bashir. As suas costas estão mais largas e mais fortes e os braços mais musculosos. Tem uns caracóis pretos e uma pequena barba por baixo do queixo. Os seus olhos são escuros, repletos de força e energia e, ao mesmo tempo, de raiva e tristeza.
- Os meus olhos viram a guerra e assistiram à morte - afirma. - Consegui suportar tudo isso porque via a tua face à minha frente.
Samira tapa os olhos do amigo com a mão.
- Os teus olhos são como os do meu pai, cheios de dor. É a dor daqueles que mataram outros homens e que viram a morte de perto. Anda, vamos!
Samira salta do rochedo. Tal como antigamente, vai à frente e Bashir segue-a. Ela lidera e ele não questiona. Samira avança, sobe e desce colinas, até chegarem a um pequeno relvado escondido, com uma rocha de onde jorra água, que corre para uma bacia.
- Lava-te - diz Samira. - A água cura e limpa as imagens da tua cabeça.
Bashir obedece, despe a roupa e entra na água. Samira senta-se à beira da bacia, apenas descalça as botas e põe os pés na água.
- Anda! - exclama Bashir.
Samira obedece, despe o colete e, sem tirar a kamiz e a shalvar, entra na água.
- Depois de tudo o que aconteceu, ainda tens sharm, tens vergonha? - pergunta Bashir. - Anda, despe a roupa. - Bashir atira-se para cima do amigo e tenta arrancar-lhe a roupa. Samira defende-se, ri-se, enquanto ele puxa pelos laços até abri-los, até ver os seios de Samira. Bashir solta um pequeno grito, tapa a boca com a mão, recua, cai. Samira pára de rir, vê a expressão de horror de Bashir e o medo nos seus olhos. Sai da água, pega na sua roupa, desaparece atrás de um rochedo e regressa vestida, em silêncio.
- Tu és uma mulher.
- Bale.
- Não sabia.
- Mas há pouco, no rochedo, quando tu... - Samira não continua.
Bashir não quer que ela continue.
- Eu sei. Mas não sabia que... - Bashir também não continua.
Samira não quer que seja ele a dizê-lo, quer ser ela própria.
- Julgavas que amavas um homem. E agora que sabes que sou uma mulher, já não me
amas.
Bashir não responde. É como se fosse a primeira vez que vê Samira. Nada mudou nestes últimos instantes. Tudo mudou. Bashir já não sabe nada. Não compreende nada. O seu mundo desmorona, desfaz-se em mil e um pedaços.
- Agora já sabes qual é o meu segredo - diz Samira, e cala-se.
O Sol desaparece por trás das montanhas e a Lua e as estrelas já brilham no céu, quando Bashir afirma:
- Não te preocupes. Eu trato de tudo. Vou contar a verdade ao meu pai e à Gol-Sar. Vamos arranjar roupa de mulher para ti, podes deixar crescer o cabelo e fazer tranças. A partir de agora cabe-me a mim proteger-te.
- Não, não vamos dizer nada a ninguém.
- Porque não? Vou casar contigo, viveremos como marido e mulher e todos ficarão felizes e contentes.
- Endoideceste! Ninguém ficará feliz e contente e nós também não.
- Eu ficarei feliz e contente, se fores minha mulher.
- Bashir, meu querido amigo - começa Samira, mas Bashir interrompe-a.
- Não me trates assim. Não sou teu amigo. Serei teu marido e tu serás minha mulher.
- Não vou ser tua mulher. Não posso ser.
- Porque não? Porque é que não podes ser minha mulher?
- Porque eu sou um homem. Porque tu e eu somos amigos.
- Não és nenhum homem. Eu vi. Com os meus próprios olhos. Eu vi os teus... - Bashir não quer dizer a palavra, mas acaba por dizê-la. - Eu vi os teus seios.
Samira reflecte e pensa, pensa e reflecte. Levanta-se, anda de um lado para o outro, senta-se numa pedra, senta-se no relvado, deita pedras para a água, saca o punhal e esgravata o chão, encontra um pedaço de madeira, corta-a, cria uma forma pontiaguda, esculpe uma seta.
- Pára com isso - pede Bashir.
- Parar com quê? - Samira atira a seta de modo a que fique cravada no chão.
- Com isso. Com o atirar, o esculpir. E pára de estar sentada na pedra como um homem, de andar de um lado para o outro como um homem. De ser Samir. Tens de te comportar como uma mulher. Como Samira.
Samira ri-se e senta-se numa pedra, de pernas abertas, como um homem.
- Vês? Eu sou assim. Não sou nenhuma mulher, sou um homem. E não sou a tua mulher, sou teu amigo. Fomos à caça juntos, escalámos montanhas e pescámos. Andámos à luta e juntos fomos às aulas. Éramos dois rapazes, dois verdadeiros rapazes. Como é que vai ser a vida, se eu for tua mulher?
- Será a vida de um casal, uma vida de verdade. - Bashir arranca a seta do chão e atira-a para a água. A seta transforma-se num barquinho, dança na água e é arrastada pela corrente.
- Está bem - acede Samira. - Conta tudo ao teu pai, diz-lhe. Sabes muito bem que primeiro ele vai matar-me a mim, depois à minha mãe, à tua irmã e a ti. Mas diz-lhe.
- Ele não vai matar ninguém.
- Achas que ele não me vai matar a mim? Eu ousei entrar no mundo dos homens, ando a fingir que sou um deles. Vou para o bazar, como eles, negoceio, regateio e cuspo para o chão como eles. - Samira cospe para o chão, como está habituada a fazer.
Bashir vira a cara, enojado. Olha para Samira, de cima para baixo e depois desaparece na escuridão.
Samira levanta-se, anda de um lado para o outro, senta-se à beira do riacho e brinca com os pés na água. Depois volta a enrolar o tecido à volta dos seios, veste-se e regressa à sua tenda.
Daria, sentada em frente ao fogo, está a retirar o pão do forno quando a filha chega.
- Chegaste mesmo a horas, o pão está pronto. Anda, minha filha, senta-te e bebe um chá, vai fazer-te bem.
Samira senta-se e não sabe por onde começar. Não quer que a mãe fique preocupada, mas sabe que tem de lhe contar o que se passou, pois, se Bashir realmente fizer aquilo que disse, o comandante não tardará em aparecer para matá-la a ela e à mãe.
Por fim, conta tudo, transforma-se na criança de antigamente, enquanto brinca com o tecido colorido do vestido da mãe. Daria está temporariamente lúcida. Vê a confusão nos olhos do filho-rapariga e faz algo que há muito tempo não fazia. Abraça Samira e beija-lhe a testa. Samira também faz algo que há muito tempo não fazia. Deita a cabeça no colo da mãe e chora.
- Então que nos matem! - exclama Daria e ri-se. - Que diferença faz estarmos vivas ou mortas?
Nessa noite, Daria não consegue dormir. Samira fica em frente à tenda a tocar flauta. De repente, Bashir aparece, montado a cavalo.
- Disseste-lhes? - pergunta Samira. - Vieste aqui para me matar?
Bashir olha para ela.
- Não consegui. Tu fazes comigo o que quiseres. Decidi não dizer nada a ninguém. Mas diz-me tu o que devo fazer. Diz-me como vai ser a minha vida. Sempre tiveste uma resposta para tudo. Por isso te peço, mais uma vez, para me dizeres o que vai acontecer. - Bashir fita Samira, esgravata a terra com uma faca e aguarda uma resposta.
- Eu nunca te disse para ires para a guerra. E, apesar disso, foste.
- Foi a vontade do meu pai. Não tínhamos dinheiro. Eu não sei. Eu já não sei nada. Samir. Samira. Já nem sei como te devo tratar. Já nem sei quem é a pessoa que amo. Quem é a pessoa que todos estes anos carreguei no meu coração? Com quem estou a falar?
- Foste para a guerra porque quiseste ganhar dinheiro. Querias transformar-te num homem e voltar para mim como um verdadeiro homem.
Bashir permanece silencioso.
- Deixemos as coisas como estão - propõe Samira. - Veremos o que acontece.
Samira e Bashir fazem aquilo que Samira propôs, deixam tudo como está, à espera do que acontece.
Samira continua a ser Samir, Samir e Gol-Sar continuam noivos e Samir e Bashir continuam amigos. Bashir trata-a por Samir e ela continua a caçar e a vender peixe, carne e peles. Bashir não gosta de ir à caça, mas acompanha Samira quando ela vai até à aldeia, ao rio ou para onde quer que seja. Bashir acompanha-a para onde quer que ela vá.
Agora que o irmão regressou e que passa a maior parte do tempo com o seu noivo, Gol-Sar não ousa procurar Samira durante a noite no rochedo. Mas como não é burra e o seu desejo por Samir é grande, inventa sempre uma maneira para se encontrar com Samira às escondidas.
Assim, Samira tem dois segredos, um que partilha com Gol-Sar e outro com Bashir.
Os dias transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam.
- Bashir - interpelam os homens. - Diz-se que os estrangeiros têm mulheres soldados. Conheceste alguma delas? Era bela? Olhou-te nos olhos? Porque não a convidaste? Devias ter casado com uma delas, teria sido melhor para ti do que casares com uma das nossas raparigas.
Ninguém fala de raparigas com Samir, afinal está noivo de Gol-Sar, irmã de Bashir e filha do comandante. Nunca ousariam ferir a honra de Gol-Sar, do seu irmão, do pai ou do noivo. Só de vez em quando alguém comenta:
- Olha que a tua noiva vai perder a paciência! Quando é que finalmente casas com ela?
Apesar de já não serem rapazes, Samira e Bashir continuam a ir de cavalo todas as manhãs para as aulas no vale. Discutem temas, fazem perguntas, dão respostas, questionam pensamentos antigos e aprendem novos.
Certo dia o professor faz uma sugestão a Samira:
- Porque não dás aulas às crianças da montanha? - Não diz "aos rapazes", diz "às crianças". Samira decide seguir a sugestão e reúne as raparigas e os rapazes à sua volta e faz aquilo que o professor fez com ela vários anos. Primeiro ensina às crianças a escreverem o nome. Depois cada uma delas aprende a escrever a sua palavra preferida. Com as letras do nome e da palavra preferida aprendem uma nova palavra. Todas as manhãs Samira senta-se perto do riacho, por baixo da árvore, e toca flauta, à espera que as crianças apareçam. Quando os rapazes e as raparigas já sabem escrever dez e mais palavras, Samira compra cadernos e lápis na aldeia para lhes oferecer.
Alguns pais e irmãos hesitam antes de mandarem as filhas às aulas. Querem ver com os seus próprios olhos o que se passa entre Samir e as crianças à beira-rio. Vão até ao riacho, sentam-se, escutam, vêem que nada de grave acontece e ficam satisfeitos. Alguns dos pais e irmãos acabam por assistir às aulas e aprendem a escrever o seu nome e a palavra preferida.
- Vem comigo - propõe Samira à mãe. -- Quero que venhas assistir às minhas aulas. Quero que voltes a ficar lúcida. Para que possas tratar de Gol-Sar, caso um dia eu já não esteja cá para ela.
Daria obedece. Acompanha a filha. A partir daí, sempre que Samira anuncia que vai até ao riacho ensinar as crianças, Daria cobre a cabeça com um lenço e acompanha-a. Senta-se ao lado das crianças e aprende tudo aquilo que a filha tem para ensinar.
Entretanto, as aulas no vale têm tanta afluência que o professor não consegue dar as aulas sozinho.
- Finalmente! - O professor ri-se e ajusta os óculos no nariz. - Depois de todos estes anos, as pessoas acabaram por compreender que lutar e matar não leva a lado nenhum. Ainda bem. Esperemos que compreendam que o saber não se aprende tão rápido como matar.
O professor sabe que muitos dos pais dariam permissão às filhas para frequentarem as aulas, se fosse uma mulher a ensiná-las. Samira fala-lhe em Gol-Sar, que aprendeu a ler e a escrever às escondidas e que, entretanto, até já é capaz de ler livros.
- Diz-lhe para vir falar comigo - pede o professor.
- O pai dela vai matá-la.
- Então trá-la contigo depois de te casares com ela, quando fores tu a mandar nela.
- Está bem. - Samira baixa o olhar para não ter de fixar os olhos do professor.
As coisas correm bem, toda a gente está satisfeita e feliz. Até ao dia em que o professor aborda Samira.
- Já não és nenhuma criança. Transformaste-te num homem forte e inteligente. Está na hora de tomares uma decisão. Chegou o momento de viveres o teu sonho e de pensares no teu futuro.
- O futuro não tardará a chegar - afirma Samira.
- O futuro há muito que já chegou. Aqui nas montanhas, nesta pequena aldeia, no meio do nada, não tens futuro. Vai-te embora, rapaz. Ouve o que te digo. Vai-te embora.
- Para onde devo ir?
- Para um lugar onde possas aprender uma profissão, onde possas realizar os teus sonhos.
- Onde é que isso fica?
- Se eu soubesse, não estaria aqui.
- Como queres que eu encontre esse lugar, se tu não o encontraste?
-- Tu és diferente de mim.
Samira sorri.
- És mais forte que eu, és... - O professor interrompe a frase, procura palavras, não as encontra, acaba por encontrá-las e continua. - És o tipo de pessoa de que o mundo precisa. És... - Mais uma vez o professor procura as palavras, encontra-as. - Reúnes a coragem de um homem e a bondade de uma mulher.
Samira pára de sorrir e baixa o olhar. Desenha traços na areia com o dedo e volta a apagá-los. Pensa e chega à conclusão de que não é boa ideia contar a verdade sobre Samira e Samir ao senhor professor. Por outro lado, sabe que a única pessoa em todo o Indocuche na qual pode confiar, a única pessoa que a pode ajudar, é o professor.
- Eu não sou o Samir que tu julgas que sou - começa. O professor sorri.
- Essa é outra das tuas virtudes, que eu aprecio. És humilde.
- Não sou humilde. Apenas aprendi a jogar o jogo.
O senhor professor sorri, olha para o aluno e pára de sorrir.
- A que jogo te referes?
- Ao jogo da vida.
- Repara nas tuas palavras, na abrangência delas! Seria um desperdício ficares por aqui.
Samira baixa o olhar e engole lágrimas.
- Não fales assim de mim. Eu carrego culpa nos meus ombros.
- Vamos falar disso noutro dia. Pensa naquilo que te disse.
Samira pensa. Pensa muito nas palavras do professor. Mesmo sem querer, pensa nelas. As palavras do professor descobriram uma porta, algures no interior de Samira, e abriram-na. Por mais que Samira tente fechá-la, por mais que empurre e pressione essa porta, não consegue voltar a fechá-la. Na verdade, Samira nem sequer sabia que essa porta existia. Desde que a descobriu, tudo o resto perdeu a importância. Cavalgar já não é voar, as terras altas deixaram de ser o lugar mais bonito que Samira consegue imaginar e a felicidade proporcionada por Bashir e Gol-Sar deixou de ser a única coisa que Samira deseja.
"És uma ingrata", afirma o ouvinte invisível. "As coisas não estão bem assim? Tens comida suficiente para te alimentares, tens trabalho, as pessoas gostam de ti, estás viva."
Samira passa horas a fio no rochedo, sem Bashir, sem Gol-Sar. Quer estar sozinha. Não lhe apetece falar com ninguém. Precisa de pensar.
Só de vez em quando vai falar com o professor, senta-se ao lado dele por baixo da árvore, escuta as suas palavras e fala com ele.
- Não tenho nenhum sonho que gostasse de realizar.
- Tens muitos sonhos - contesta o professor. - Eu sei que tens, consigo vê-los. Estão lá no fundo, tu é que ainda não os descobriste.
O PLANO
- O que vais fazer quando fores minha mulher?
- Tudo o que eu quero é tornar-te um homem feliz e satisfeito - responde Gol-Sar com um sorriso que Samira é obrigada a retribuir. Mas rapidamente pára de sorrir e tenta manter a clareza de ideias.
- Diz-me, o que vais fazer se eu um dia já não estiver cá?
Gol-Sar abre muito os olhos e pergunta ao noivo para onde pretende ir. Pergunta-lhe se a vai abandonar, se encontrou outra mulher. Samira abraça a pequena Gol-Sar e garante-lhe que não vai para lado nenhum, garante-lhe que Deus a acompanha e que ninguém sabe o que vai acontecer no dia seguinte.
- Vou fazer aquilo que me pedires - responde Gol-Sar com lágrimas nos olhos.
Samira agarra-a pelos ombros, abana-a, dividida entre o desespero e a raiva.
- Está bem, então vou dizer-te o que quero que faças. Quero que ensines as raparigas e as mulheres a ler e a escrever. É isso que eu quero de ti.
- E o que queres que faça por ti? Quero tornar-te feliz!
Samira bate com a mão no rochedo, olha para o horizonte e depois volta a fitar Gol-Sar.
- É isso que eu quero que faças por mim, é exactamente isso. Se ensinares as raparigas e as mulheres, serei feliz.
Gol-Sar pára de sorrir, baixa o olhar e acena com a cabeça.
- Se é esse o teu desejo, então é isso que vou fazer.
- E também quero que vás até à aldeia ensinar as raparigas e as mulheres de lá.
Samira decide falar com o comandante Rashid sobre o assunto. Este ri-se, pois acha supérfluo as mulheres e as raparigas aprenderem a ler e a escrever. Não vê utilidade, pois as raparigas devem seguir os seus maridos e educar os filhos. Só quando Samira explica que já houve suficientes guerras e mortos, quando começa a falar do futuro do país, só nessa altura é que o comandante pára de se rir. Só quando Samira diz que os rapazes apenas podem transformar-se em verdadeiros homens se as mães forem inteligentes, é que o comandante começa a ouvi-la com mais atenção. Quando diz que Gol-Sar não vai dar aulas sozinha, para que as pessoas não falem mal, o comandante acena com a cabeça. Quando Samira explica que seria bom os seus netos aprenderem a ler e a escrever, o comandante promete pensar no assunto. Quando diz que quer que Gol-Sar comece a dar aulas imediatamente, que não quer esperar enquanto o comandante pensa no assunto, o comandante Rashid responde:
- Então vais casar com ela este Verão.
Samira já estava à espera desta resposta.
- Assim será - afirma e estende a mão ao comandante. - Pela vida dos teus filhos e dos teus netos, jura que nunca proibirás Gol-Sar de ensinar as raparigas e as mulheres. Jura pela vida de Bashir que cumprirás a tua promessa, mesmo que eu já não esteja cá.
O comandante passa a mão pela barba.
- Quanto tempo demora uma pessoa a aprender a ler e a escrever?
- Muito tempo. Uma vida inteira.
- Isso quer dizer que será necessário o tempo de uma vida para a minha filha aprender a ler e a escrever. Até lá o céu e a terra podem trocar de lugar, talvez eu já nem esteja
vivo.
- As vezes também pode ser mais rápido. Há pessoas que aprendem a ler e a escrever bem mais rápido.
- Vamos ver o que se pode fazer.
- Juraste pela vida do Bashir, dos teus outros filhos e dos teus netos. - O olhar de Samira perfura os olhos do comandante, a sua cabeça e a sua barriga.
O comandante pressiona os lábios um contra o outro, permanece em silêncio e, finalmente, acena com a cabeça.
Nesse dia, Samira vai com Gol-Sar e a mãe visitar cada uma das famílias kutshi, para falarem com as mulheres e as raparigas nas tendas. Daria e Gol-Sar explicam às mulheres que, se forem até ao riacho, poderão aprender a ler e a escrever. Há mulheres que estão imediatamente de acordo. Outras perguntam o que recebem em troca. Algumas dizem que os seus maridos não as deixarão ir, outras afirmam que têm demasiado trabalho a educar os filhos, cozer o pão, fazer os tapetes e tratar das outras tarefas. No dia seguinte, Daria e Gol-Sar vão para o lugar combinado, à beira-rio. Primeiro aparecem apenas duas mulheres, depois mais duas, de seguida algumas raparigas e, por fim, até a antiga prostituta com os seus filhos se junta a elas. Explica que não sabe se o hadji está de acordo com a sua vinda.
- Ou deixa, ou não deixa - afirma. - E se não deixar e se se zangar, então que se zangue. Para já estou aqui e depois veremos o que acontece.
- A vida transformou-te numa lutadora - reconhece Samira. - Estás cheia de coragem!
Nos dias que se seguem, Samira decide fazer um peditório para a escola. Vai falar com o professor, fala com os homens da aldeia, percorre todas as casas, fala com o talhante e com o mula, os risch-sefid e até com o homem da loja de legumes. Recebe dinheiro de todos eles. Os homens não podem ou não querem dar muito, mas a dádiva compromete-os. Com o dinheiro que recolhe e com a ajuda de alguns homens mais novos e outros mais velhos, Samira constrói quatro paredes de adobe ao lado da sala de aulas dos rapazes. Quando as paredes atingem a altura dos seus joelhos, Samira reúne todos os homens da aldeia, os importantes e os menos importantes, e pede ao comandante Rashid para também comparecer.
- Estes homens vieram para agradecer ao nosso honrado comandante - explica, quando todos se reuniram.
- Porque é que me agradecem? - pergunta o comandante, espantado.
- Agradecem porque permites que a tua filha venha até à aldeia, dar aulas às filhas deles. - São estas as palavras de Samira, às quais se segue um longo silêncio. Um silêncio tão profundo que todos conseguem ouvir a respiração do comandante.
É nesse instante, quando nem Samira, nem nenhum dos homens ou mesmo o comandante sabem o que dizer ou fazer, que alguém interrompe o silêncio.
- Viva o comandante, a sua generosidade e o amor que demonstra pelo seu povo e pela sua terra!
É o rapaz sem perna que diz estas palavras. O rapaz que já não é nenhum rapaz, que agora é homem. Ao fim destas palavras, o jovem bate palmas e os outros homens imitam-no. O comandante tem um ar desconfiado e Samira não sabe se vai ficar furioso. Mas, depois, os rapazes e os homens aproximam-se dele, estendem-lhe a mão, dão-lhe palmadas no ombro e dizem palavras de reconhecimento.
O comandante olha para a pequena multidão.
- Antes que estes muros se transformem em verdadeiras paredes para receber as raparigas que serão ensinadas pela minha filha, é necessário muito trabalho. Temos que nos apressar. - O comandante enfia a mão no colete e retira algumas notas, que entrega a Samira.
São necessários vários dias e várias noites para que o comandante cumpra a sua palavra e deixe a filha ir à aldeia. E só vários dias e várias noites depois é que Gol-Sar e Daria têm coragem de ir à aldeia. Mais uma vez passam vários dias e várias noites antes de os pais e irmãos mais velhos, os tios e os mulas permitirem a algumas raparigas frequentarem as aulas de Gol-Sar e de Daria.
Mas o dia chega. O dia em que algumas raparigas tímidas, com as cabeças escondidas por baixo de lenços, vêm às aulas. Acompanhadas pelo irmão ou pelo pai, agarram-se a eles ou a outra rapariga e entram na pequena sala. Sentam-se no chão e no início não tiram os lenços da cabeça, nem falam. Ficam sentadas, com o olhar colado ao chão. Não compreendem nada daquilo que Gol-Sar lhes diz, dominadas pelo medo e pela insegurança. Não percebem por que razão aquilo que até ontem era proibido, agora, de repente, é permitido. Porque de repente podem ir para a rua, quando até ontem eram obrigadas a esconder-se atrás das portas, nas suas casas?
Primeiro apenas Gol-Sar e Daria falam. Falam baixinho, porque não estão habituadas a falar com estranhos. Porque não estão habituadas a falar sem que alguém lhes diga para falarem. Depois, aos poucos, as raparigas também começam a falar. Põem o braço no ar, primeiro falam baixinho, depois mais alto, riem-se, cantam e por fim até levantam questões. No início, as raparigas ficam umas com as outras, depois acabam por também brincar e falar com os rapazes.
- Está na hora de cumprires a tua parte da promessa - alerta o comandante Rashid.
Samira acede e promete que casará com Gol-Sar depois de a Lua ficar estreita e de novo redonda.
Bashir está confuso. Não compreende a finalidade do projecto de construção da sala de aulas, nem porque Gol-Sar é enviada para a aldeia e Samira assume o casamento. Não percebe o que uma coisa tem a ver com a outra, nem como Samira pretende resolver o problema do casamento. Pois o casamento implica o dever matrimonial do homem de transformar a noiva numa mulher, de a satisfazer e de lhe pôr filhos na barriga.
- Calma - diz Samira. - Confia em mim. Quando chegar a hora, eu conto-te tudo.
Bashir olha para a Lua.
- Não te resta muito tempo.
- Eu sei.
Os dias transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. O comandante, a mãe de Gol-Sar e a própria Gol-Sar tratam dos preparativos do casamento. Gol-Sar borda pérolas e pedras brilhantes no vestido de noiva. Cose espelhos ao vestido, para afugentar o mau-olhado e protegê-la do mal. A mãe prepara uma mistura de hena para que o sangue da noiva não aqueça. Os homens matam uma cabra, os rapazes espalham tapetes no relvado e as mulheres enfeitam a tenda da noiva.
- Sempre encontrei uma solução para tudo - afirma Samira. - Desta vez também vai ser assim.
- Vais casar com a minha irmã. Isso não é solução - responde Bashir. - Ela vai descobrir que não és homem.
- Não vai, não. Primeiro pensei que a melhor solução seria fugir. Mas assim magoaria a Gol-Sar, as pessoas falariam mal dela e o teu pai iria vingar-se na minha mãe. Por isso, o casamento é a única solução.
- E como vais impedir que a Gol-Sar perceba que não és nenhum homem?
- Serei o seu marido apenas por uma noite.
- E depois? O que vais fazer depois dessa noite?
- Vou morrer.
- Estás maluco! Não vou deixar que isso aconteça. Que tipo de consolo é esse para a pobre Gol-Sar? O marido suicidou-se? As pessoas vão dizer que a Gol-Sar não soube fazer o marido feliz e que foi por isso que ele se matou. Vão culpar a Gol-Sar.
- Não vou suicidar-me - explica Samira. - Vou para as montanhas, piso uma mina e morro. Serei um shahid da guerra. E a honra da minha morte de mártir será atribuída à minha mulher.
Bashir não sabe se deve rir ou chorar, se deve bater no amigo ou fugir, ficar calado ou fazer o que quer que seja. Abraça Samira. Não como um amigo ou um rapaz. Abraça-a como um verdadeiro homem que abraça uma verdadeira mulher. Despe-lhe a roupa e ama-a como um verdadeiro homem ama uma verdadeira mulher. Desta vez é diferente, ambos sabem o que fazem. Não acontece por acaso, acontece porque ambos o querem. Samira e Bashir amam-se como nunca mais voltarão a amar-se.
Bashir é o primeiro a quebrar o longo silêncio que se segue. Passa a mão pelo cabelo de Samira.
- Se ela não sangrar continuará virgem e é como se não tivesse casado - explica.
- Eu sei. Confia em mim.
Bashir fala com uma voz que Samira não conhece.
- Sempre te amei e continuo a amar-te. Apesar de não saber quem é que amo, se é Samir ou Samira. Mas uma coisa te garanto, enquanto homem: a Gol-Sar é a minha irmã e se lhe fizeres mal, se ferires a honra dela ou a do meu pai, feres a minha também e eu mato-te. Terei de matar-te, sabes isso. Uma cobra fria aparece na barriga de Samira. Devora o calor no seu interior, devora o interior de Samira. Devora a própria Samira, que começara a ganhar corpo dentro de Samir.
A SOLUÇÃO
A mãe de Gol-Sar espalhou tanta hena nas mãos, nos pés, na nuca e nas costas da filha, que as outras mulheres se riem e dizem que a pobre rapariga vai ter o sangue tão frio que não vai tirar proveito do seu belo marido na primeira noite.
Quando Samira e Gol-Sar finalmente se encontram a sós na noite de núpcias, Samira abraça a mulher, beija-a e olha-a nos olhos.
- Ouve bem aquilo que vou dizer-te.
Gol-Sar, emocionada, escuta as palavras do marido. Do seu Samir. Do homem mais belo, forte e corajoso do Indo-cuche.
- O que quer que aconteça - explica Samira -, quero que saibas que te amo, te respeito e considero. Escolhi-te para seres minha mulher porque quis, porque sei que és diferente de todas as outras raparigas. Escolhi-te porque sei que tens sonhos, que queres fazer algo mais na vida que apenas ser a mulher do teu marido e tirar filhos do corpo.
Gol-Sar abre a boca, quer dizer algo, mas Samira tapa-lhe os lábios com a mão, num gesto carinhoso. Gol-Sar escuta.
- Quero que continues a dar aulas às raparigas - pede Samira. - Quero que sejas uma boa professora, que vás até à aldeia, que sejas mais que apenas uma mulher. Quero que sejas uma pessoa.
Gol-Sar permanece silenciosa e, sem saber porquê, sente que o discurso de Samir não lhe agrada.
- E nunca te esqueças - conclui Samira -, onde quer que eu esteja, o que quer que eu faça ou deixe de fazer, morto ou vivo, tu serás sempre parte de mim. Para todo o sempre e eternamente.
- Não fales assim. Estás a meter-me medo.
- Não tenhas medo. Não tenhas medo de nada, nem de ninguém, nem mesmo da morte, da tua ou da minha. Não tenhas medo da vida. Só existe uma coisa da qual deves ter medo: de não viveres a tua vida.
Gol-Sar não compreende as palavras de Samira, brinca com o tecido do seu vestido. Tem vontade de se encostar ao ombro forte do marido, que tanto deseja.
Samira tira o amuleto do pescoço e ata-o à volta do pescoço de Gol-Sar.
- É um presente para ti. A mim ajudou-me e protegeu-me, agora vai ajudar-te a ti ao destruir tudo e todos que tentarem prejudicar-te.
Gol-Sar toca no amuleto e quer beijar Samira, mas esta recua, levanta-se e começa a andar de um lado para o outro, pensativa.
- Anda cá - pede Gol-Sar. - Não tenhas medo. Não sou uma ignorante, como as outras raparigas. Eu sei o que acontece na noite de núpcias.
Samira despe o colete, tira o boné cintilante da cabeça e descalça as botas do pai.
- Anda cá - repete Gol-Sar. - Vem, faz de mim a tua mulher, para que o nosso casamento seja consumado.
Samira fita Gol-Sar e mal consegue respirar. Diminui a luz do candeeiro a petróleo e deita-se ao seu lado. Devagar, muito devagar, tocam-se, acariciam-se e beijam-se.
- Tenho medo - afirma Gol-Sar.
- Eu também.
- As mulheres dizem que dói - Gol-Sar engole em seco. - Vamos esperar um pouco.
- Não tenhas medo. Não te vou magoar. Nunca. - Samira tem vergonha, quer morrer, pede perdão, engole lágrimas, não consegue esconder as lágrimas, chora, soluça baixinho.
Gol-Sar não vê as lágrimas de Samira, inclina a cabeça para trás, geme, empina o corpo, fecha os olhos. Ri-se baixinho, cheia de alegria.
- Não está a doer, é bom - murmura.
Samira sente um nó na garganta, um nó grande e pesado que a impede de respirar, enquanto Gol-Sar se ri. Sente uma cobra na barriga. Primeiro é apenas a cobra da dor, depois a do medo, a da tristeza e, por fim, a quarta cobra, a cobra do sangue.
Gol-Sar sangra, deixa de ser rapariga, transforma-se em mulher.
O sabor a veneno espalha-se na boca de Samira, enquanto Gol-Sar aprecia a vontade de viver e o sabor de ser mulher. Gol-Sar sente as cobras da alegria e do desejo, cobras boas, e ri-se, enquanto Samira chora. Baixinho, para que Gol-Sar não dê por isso. Para que as quatro cobras de Samira não assustem as cobras de Gol-Sar. Para que Gol-Sar possa manter a imagem e não perca a honra. E para que ela própria não acumule ainda mais culpa. Depois Gol-Sar adormece, enquanto Samira reza, pede perdão. Gol-Sar sonha. Samira vê a sua culpa.
Antes de o Sol aparecer sobre as montanhas com os seus primeiros raios de luz e calor, Samira pega no pequeno pano que já não é branco, que agora está manchado com o sangue de mulher e coloca-o ao lado de Gol-Sar, que ainda dorme. Para que Gol-Sar possa provar que era virgem e que agora é uma mulher. O pano é a prova da virilidade de Samira.
Beija Gol-Sar na testa, passa a mão pelo seu cabelo e calça as botas do pai. Vai até à tenda da mãe, acorda-a, abraça-a e beija-a, antes de lhe contar o seu plano.
Daria está lúcida e fita o filho-rapariga.
- Minha filha inteligente. Sabia que ias encontrar uma solução.
- Mãe, trata a Gol-Sar como se fosse a filha que nunca tiveste - pede Samira com uma voz calma e destemida. - Constrói a tua própria vida. Eu sei que és capaz. Descobre o mundo e mostra-o a Gol-Sar. Ajuda-a a compreender que não precisa de um homem para ser mulher, uma verdadeira mulher. Sê lúcida, caminha com ela.
Daria passa a mão pelo cabelo da filha e entrega-lhe uma trouxa.
- Está na hora de seres Samira. Vive a tua vida. Vive-a como viveste enquanto Samir, mas como Samira.
- Obrigada pelas tuas palavras - Samira olha para a mãe e engole as lágrimas.
Daria abraça a filha, aperta-a contra o coração e não quer voltar a largá-la. Nunca mais.
Quando Samira regressa à tenda de noivado, Bashir já está à sua espera. Passam pelas tendas dos outros kutshi, sem fazer barulho, roubam o maior bode do hadji e levam-no até às montanhas, onde o amarram. Depois voltam para as suas tendas.
Nessa manhã, a agitação do hadji é grande quando descobre que o seu maior bode desapareceu.
Os homens saem das tendas e aproximam-se a correr, para saber o que se passa. Alguns ajudam a procurar o bode, outros regressam às suas tendas.
- Vamos encontrá-lo! - exclamam Samira e Bashir, montam os seus cavalos e desaparecem.
Samira cavalga devagar, não voa, arrasta-se. Traz a trouxa que a mãe lhe entregou, mas que foi preparada por ela própria. Olha para as tendas, vê os outros kutshi, o relvado, o riacho, os animais e as flores. Olha para as montanhas, para o seu rochedo, vê tudo isso e muito mais, sabendo que é a última vez que os vê. Samira e Bashir desmontam dos cavalos, trepam pela montanha, soltam o bode do hadji e puxam-no pela corda. O bode tem um aspecto estranho. Samira tosquiou a barriga e as costas do pobre animal. O bode parece estar nu, a sua pele assemelha-se à pele nua de uma pessoa. Apenas a sua cabeça e a cauda têm pelo.
- Tenho pena do bode - diz Samira.
- O velho hadji merece isto - responde Bashir e quer rir-se, mas não consegue.
Samira despe o colete com as pérolas e os espelhos e a sua shalvar-kamiz, descalça as botas do pai e beija-as. Depois tira o boné da cabeça e veste as roupas que trazia na trouxa. Enrola as suas próprias roupas à volta do bode e aperta-as com um nó.
A explosão não é muito grande, nem muito ruidosa, mas é possível ouvi-la lá em baixo, nas tendas. O comandante Rashid, Daria, Gol-Sar e todos os outros kutshi ouvem-na. Olham para a montanha, de onde veio o barulho e vêem uma nuvem de fumo e poeira.
O comandante Rashid, o hadji e alguns homens montam os seus cavalos e partem. As mulheres e as raparigas correm de um lado para o outro, gritam, choram. Os seus olhares estão repletos de medo, colocam a mão no coração, enquanto outras pegam nas suas crianças ao colo. As crianças gritam e choram. As raparigas tapam a boca com a mão e correm em direcção à explosão. Gol-Sar olha para a mãe, vai à tenda buscar o pano com o sangue e entrega-lho.
Os homens alcançam o sopé da montanha e o comandante avista imediatamente o filho. Salta do cavalo e agradece a Deus por o filho estar vivo. Bashir carrega algo nos braços, uma mistura de roupas, restos de botas, carne, pele, espelhos e pérolas que protegem do mau-olhado e da desgraça. Sangue, lama, terra, a cabeça desfeita do bode, tudo está colado. O sangue pinga. Farrapos caem ao chão. O comandante corre ao encontro do filho, vê a sua expressão de tristeza, de medo e de dor. Tira o patu dos ombros, deita-o no chão, retira o emaranhado de carne, sangue, lama e farrapos dos braços do filho e deita-o no patu. Os homens dobram o patu com os restos e colocam-no nas costas de um dos cavalos. O hadji lamenta a morte do seu bode no momento em que Samir o encontrou e pisou uma mina juntamente com o animal.
O comandante observa o filho, agarra-o pelos braços e puxa-o para si. Encosta-o ao seu coração e chora. Bashir treme, chora, abraça o pai, segura-o com força, com muita força. Não o quer largar. Nunca mais.
O comandante sabe que nunca antes abraçara o filho. O filho sabe que o pai nunca mais voltará a fazê-lo. Bashir permanece em silêncio. O seu silêncio é o início de tudo. O início e o fim. O início do pai e do filho. O fim.
Daria chora, grita, arrepela-se, atira-se para o chão e arranha a cara até sangrar. Sangue de verdade. Chora, chora pelo comandante que morreu, pelo filho que nunca tirou do corpo e pela filha que nunca teve. Chora pelo pai que morreu e pela mãe, pela qual nunca chorara. Chora pelo pequeno grande "claro" que disse à filha e que significou tudo, que não significou nada. Chora por Samir e por Samira, pela lucidez que perdeu, pela vida que não viveu.
Gol-Sar está pálida, os seus lábios tremem. Sentada ao lado do patu que os homens depositaram em frente à sua tenda, olha fixamente para o embrulho e pensa em abri-lo. O comandante agarra a filha e abraça-a. Gol-Sar deixa-o, não recusa o abraço, mas continua a olhar fixamente para o patu, sem se mexer, sem chorar. Não chora pelo homem que apenas foi seu marido durante uma noite.
Bashir senta-se ao lado de Gol-Sar, olha para a irmã, abraça-a e sussurra-lhe ao ouvido:
- Ele está vivo.
Gol-Sar olha para o irmão e sorri. Um sorriso muito pequeno e que rapidamente desaparece. Um sorriso que se transforma em choro, num choro baixinho.
- Eu sei - responde. - Ele está vivo. Aqui no meu coração. E eu no dele. Foi o que ele me disse. Ele previu que isto iria acontecer.
Antes de o Sol com a sua luz e o seu calor desaparecer atrás das montanhas, os homens fazem uma cova e enterram o patu com os restos do corpo de Samir. Depois do enterro, Gol-Sar, Bashir, o comandante, Daria e alguns outros kutshi permanecem perto do monte de terra, rezam e choram. Quando os kutshi se vão embora e as estrelas aparecem, quando apenas Daria, o comandante, Bashir, Gol-Sar e a mãe de Gol-Sar se encontram juntos à volta da campa, Gol-Sar pede à mãe que lhe entregue o pequeno pano branco com as manchas de sangue. A mãe hesita em entregar-lho, tem vergonha, não quer que o irmão e o pai o vejam, afinal são homens.
- Dá-lhe o pano - diz o pai, e a mãe obedece. Gol-Sar enche o pano branco de terra. A terra sob a qual está enterrado o seu marido. Despeja-a, volta a encher o pano e a despejar a terra. Quatro vezes. Depois enche o pano de terra e coloca-o na cabeça.
- Ela enlouqueceu! - exclama a mãe e tenta retirar-lhe o pano. Bashir agarra a mão da mãe.
- Deixa-a.
A mãe deixa-a e vai-se embora. O comandante Rashid e Bashir também vão. Daria e Gol-Sar ficam. Como antigamente. Só que desta vez não é Samira, mas Gol-Sar que deita a cabeça no colo de Daria.
A CAPITULAÇÃO
Os dias e as noites vêm e vão, transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. Daria e Gol-Sar vão todos os dias até à aldeia, dão aulas às raparigas, ensinam-lhes a ler e a escrever.
- O teu filho disse para eu viver - Gol-Sar olha para Daria e sorri. - Ele disse para eu apenas ter medo de não viver a minha vida. - Depois olha para o horizonte, como se avistasse Samir ao longe. - Estou a viver o melhor que posso.
- Pois estás. - Daria passa a mão pelo cabelo de Gol-Sar.
Os dias e as noites vêm e vão, transformam-se em pássaros, reúnem-se e voam. Bashir dissera ao pai que iria procurar trabalho no Paquistão, no Irão ou onde quer que seja. Há muito que partira. Mas não fora para o Paquistão, nem para o Irão, nem para nenhum outro país. Fora para as montanhas, ao encontro de Samira.
Samira abre a trouxa que a mãe lhe entregou e que contém um vestido colorido, como um campo de flores, com mil e uma pérolas e espelhos. Contém também um lenço amarelo para lhe tapar o cabelo, os ombros e o peito. Samira fica algum tempo a olhar para as roupas, toca nelas, brinca com elas. Segura o lenço amarelo no ar, que flutua e dança ao vento, como uma bandeira. Coloca o vestido frente ao corpo e tenta ver como lhe fica. Depois destas brincadeiras com o lenço e com o vestido, Samira embrulha as suas roupas de Samir na trouxa e veste a roupa de mulher. Penteia o cabelo e apanha-o, coloca o lenço na cabeça, senta-se, pega na arma e aguarda que Bashir chegue. Quando este finalmente se aproxima, Samira não se mexe, não fala, apenas se limita a olhar para ele.
- Eles acreditaram, julgam que estás morta. Choraram, mas vão ultrapassar a tristeza.
- Khoda-ra shokr, graças a Deus - responde Samira.
- O que vamos fazer?
- Vamos montar os cavalos e ver para onde os caminhos nos levam.
Quando chegam a uma aldeia onde ninguém os conhece, Bashir quer falar com um mula e pedir-lhe que faça de Samira sua mulher. Mas Samira não se sente preparada para ser a mulher de um homem que ainda há pouco era seu amigo. Não sabe como será uma vida sem apanhar peixes, sem caçar, sem ir à escola ou ao bazar, sem tudo isso e sem tudo o resto. Bashir pede-lhe para não tirar as roupas de mulher, quer que tentem viver esta vida nova, quer ver como as coisas correm.
Samira e Bashir tentam.
Na aldeia seguinte, Bashir, o homem, e Samira, a mulher, percorrem a rua principal a cavalo, devagar, sem levantar poeira. Passam pelos homens, sentados à porta das lojas e das casas de chá e não compreendem porque os fitam, admirados e assustados, até um rapaz apontar para Samira.
- E ela, a mulher com a arma ao ombro! - exclama. Samira tira a arma do ombro e os dois continuam a cavalgar.
Na aldeia seguinte, descobrem um vendedor de dal. Agem em conformidade com os costumes. Bashir vai, sozinho, comprar duas tigelas de dal e depois volta para Samira, que o espera num beco, como uma mulher decente, que se mantém escondida dos olhares de estranhos, sentada, de cara tapada, no chão, à espera do seu Bashir. Samira e Bashir comem dal e bebem chá. Tudo está bem. Samira é uma mulher e Bashir um homem.
Na aldeia seguinte, Bashir quer procurar um mula para fazer de Samira sua mulher. Samira acede e vão falar com o mula. Este diz os be-isme-Allah e outras orações e fá-los homem e mulher perante Deus.
A caminho da aldeia seguinte, avistam um bode. Fazem aquilo que sempre fizeram quando vêem um bode. Assobiam por entre os dentes, empurram os cavalos, aproximam-se do animal dos dois lados e disparam. Bashir é o primeiro a acertar no bode. O animal ferido foge para o outro lado, em direcção a Samira. Esta salta do cavalo e atira-se para cima do animal, pressiona-o contra o chão, saca do punhal e corta-lhe a garganta com um golpe rápido, para pôr fim à sua luta desesperada contra a morte. Fazem aquilo que sempre fizeram. Samira oferece o sangue do animal à terra por baixo dos seus pés, para que a bênção de Deus a acompanhe nos seus caminhos. Depois arrancam a pele do animal e cortam a carne em pedaços, como o talhante lhes ensinou. Enrolam a pele e, juntamente com a carne, levam-na até à próxima aldeia para as venderem enquanto ainda estão frescas.
O talhante coça a barba e fita Bashir e depois Samira, que se colocou atrás do marido, como convém à mulher.
- É a tua mulher? - pergunta.
Bashir não se vira para trás, nem olha para Samira. Fita o talhante.
- Bale - responde, sem sorrir.
- Ela tem sangue no vestido. As pessoas dizem que foi ela quem cortou a garganta ao bode.
Bashir não sabe o que responder. Limita-se a fitar o talhante.
- As pessoas dizem que ela monta como um homem. Que saltou do cavalo, se atirou para cima do bode, o pressionou contra o chão e lhe cortou a garganta.
Bashir abre a boca, volta a fechá-la, não sabe o que dizer. De repente, Samira aproxima-se e coloca as mãos nas ancas.
- Eu tenho uma arma e sei disparar. Sou capaz de cortar a garganta a um bode e, se for preciso, a si ou a um dos outros homens, que julgam saber tudo e ter de comentar tudo.
O talhante não quer discussões, quanto mais com uma mulher que tem uma arma e um punhal e que, pelos vistos, sabe bem como usá-los. Prefere prescindir do negócio da carne.
- As guerras, a seca e os estrangeiros fizeram muitos estragos no nosso país - afirma. - Assistimos a muita coisa estranha nestes últimos anos. Mas uma mulher assim? Não, nunca, e Deus é testemunha disso. Nunca vi nada assim, nem eu, nem nenhum dos homens desta aldeia. E se formos sinceros, e nós somos sinceros, não queremos ver nada assim. Pelo menos na nossa aldeia.
Samira fica furiosa, com vontade de atacar o talhante. Bashir, por seu lado, sente vergonha, agarra Samira pelo braço e arrasta-a para longe do talhante, da loja e da aldeia.
- Podíamos ter feito um bom negócio! - exclama.
- A culpa não é minha. Aquele estupor ofendeu-me!
- Não ofendeu nada. Apenas contou o que as pessoas viram e o que comentam, por acharem estranho uma mulher comportar-se como um homem.
A aldeia seguinte fica longe. Com o calor, a carne deixa de estar fresca e Samira e Bashir acabam por oferecê-la às pessoas com as quais se cruzam no caminho. Continuam o percurso e tudo corre bem, até atravessarem de novo umas terras altas. Samira ouve, ao longe, vozes masculinas, assobios e o barulho dos cascos de mais de cem cavalos. São os sons do jogo. Do jogo dos jogos. Samira agarra com força as rédeas do garanhão, que parece ouvir o mesmo que ela e quer começar a correr. O cavalo levanta e baixa a cabeça e a sua crina dança. Samira não sabe como tudo acontece. Não tem intenção de assobiar por entre os dentes, nem de empurrar o cavalo. Mas fá-lo, o cavalo desata a correr, atravessa o rio, a água esguicha e Samira atravessa a planície. O garanhão funga e enterra os cascos no chão. Deus envia as suas huris, que carregam o garanhão nas asas. O vento preenche o lenço amarelo de Samira, insufla-o, Samira avança a galope, corre, voa, solta pequenos gritos e assobia por entre os dentes. Passa pelos homens, a alta velocidade, e aproxima-se do grupo de jogadores. O garanhão empina-se, os outros cavalos assustam-se. Avança para o centro do grupo, baixa a cabeça, ergue-a, abre muito os olhos e a boca, parece um monstro. Os homens não acreditam naquilo que vêem. Primeiro julgam que a mulher perdeu o controlo do cavalo ou que enlouqueceu. Samira guia o garanhão para o lugar onde os homens se apinham à volta da vitela morta. Retira o pé do estribo, segura-se à crina do cavalo, e tenta pegar na vitela, agarrando-se ao seu pêlo. Levanta ligeiramente o cadáver, mas o animal escorrega e cai no chão. Um dos homens grita, entala o chicote entre os dentes, inclina-se para pegar na vitela, mas não consegue, porque o garanhão de Samira se coloca por cima do animal morto. Samira nota que os homens compreenderam que ela não perdeu o controlo sobre o animal, nem enlouqueceu. Volta a inclinar-se de lado, enquanto o garanhão coloca a cabeça sobre o corpo feminino de Samira, num gesto protector. Samira enterra a mão no pêlo, puxa a vitela para cima, o cavalo dá quatro passos para a frente, ergue a cabeça, relincha, dá mais quatro passos e desata a correr. Apenas quando se afasta da confusão é que os homens reparam que a vitela já não se encontra no círculo helal. Samira ergue-se, entala a vitela entre as coxas e as costas do garanhão. A sua saia rodada emaranha-se e tapa a vitela. Enquanto cavalga pela planície, o lenço amarelo solta-se e voa pelos ares. Samira endireita-se, enrola as rédeas na perna da vitela e cavalga o mais rápido possível até à bandeira. Quando se vira para trás, vê os homens atrás dela, mais perto do que julgava. Solta ainda mais as rédeas, debruça-se mais sobre o cavalo e deixa o resto por conta do garanhão. Apenas um dos homens consegue apanhá-la e cavalga ao seu lado. Olha com uns olhos cheios de raiva e ódio para os olhos de mulher de Samira. Já só faltam quatro vezes o comprimento de um cavalo até à bandeira. O garanhão enterra os cascos no chão, estica o pescoço e corre, como se a sua vida estivesse em jogo. Samira guia-o à volta da bandeira e regressa ao círculo helal. Cavalga como se os outros jogadores já não estivessem em campo. Passa por eles a correr, derruba-os, não se desvia deles, aproxima-se deles de frente. Os cavalos afastam-se, empinam-se, atiram os cavaleiros para o chão. Samira alcança o círculo helal. Não atira a vitela para o chão, pousa-a. Avista o árbitro e faz uma vénia perante a vitela e depois perante o árbitro. Em seguida, empurra o cavalo, afasta-se do campo de jogo a alta velocidade, cavalga pela planície, até às montanhas. Guia o garanhão para os rochedos, até ter a certeza de não estarem a ser seguidos. O cavalo funga, levanta e baixa a cabeça. O seu pêlo está húmido e quente e Samira ri-se. Ri-se até chorar. Samira venceu. Jogou o jogo a sério, venceu mais de cem homens e sabe que a partir de agora não há nada que não consiga alcançar. Samira sabe que abriu a porta no seu interior.
- Viste? - pergunta a Bashir quando o encontra. Salta do cavalo, ri-se, beija Bashir, dá saltinhos como a pequena Samira o fazia, atira-se para os braços de Bashir, como se atirava para os braços do comandante.
Bashir pega Samira pela gola, puxa e arranca a sua roupa, grita com ela, bate-lhe na cara e lança-a para o chão. Atira-se para cima dela, senta-se no seu peito, aperta a sua garganta e fita-a com um olhar cheio de raiva. Cheio de raiva e de ódio.
- Enlouqueceste! Tu és louca, como a tua mãe!
Samira não se defende. Permanece deitada e limita-se a olhar para Bashir até este a largar, se erguer e lhe virar as costas. Samira levanta-se, sacode a poeira do vestido e repara num rasgão no tecido. Coloca-se de frente para Bashir, abre a boca com a intenção de dizer algo, mas não sabe qual das várias palavras quer dizer, deve dizer. Acaba por não dizer nada e faz o mesmo que Bashir. Agarra-o pela gola, olha para ele, não lhe bate, beija-o. Samira beija Bashir na boca. É um beijo como nunca deu a ninguém. Samira nem sabia que um beijo assim existia. Na verdade, Samira nem sabe muito bem se aquilo que dá com a boca é um beijo. Muitos anos terão de passar para que Samira compreenda que aquilo que nesse dia aconteceu entre ela e Bashir realmente foi um beijo. Um verdadeiro beijo. Entre uma verdadeira mulher e um verdadeiro homem.
- Quem é que fez isso? - pergunta Bashir. - O Samir ou a Samira?
Samira encolhe os ombros e sorri.
- Man tshe midanam - responde e monta o garanhão. Assobia por entre os dentes, desce a encosta, empurra o cavalo pelo desfiladeiro abaixo.
Nos dias que se seguem, Samira faz um grande esforço para não se comportar como um homem. Quer parar de ser homem, quer ser mulher. Uma verdadeira mulher. Não fala em locais públicos, deixa de carregar a arma ao ombro, não salta do cavalo, nem monta o garanhão sozinha; espera que Bashir a ajude a montá-lo e a descer. O que quer que faça ou deixe de fazer, olha sempre para Bashir e tenta reconhecer no seu olhar se está a agir como um homem ou, finalmente, como uma mulher.
- O teu andar é de homem, falas e moves-te como um homem e a tua voz é de homem - afirma Bashir.
- É a mulher dentro de mim que te repugna, ou o homem? - pergunta Samira.
Bashir não responde, retira-lhe as rédeas das mãos e conduz o seu garanhão. Bashir cavalga à frente e Samira atrás, baixando a cabeça quando se cruzam com alguém ou passam por uma aldeia. Samira tenta ser uma verdadeira mulher. À noite recolhe lenha, acende o lume, estende os cobertores, desembrulha o pão e o queijo e põe a caldeira no fogo. Depois coloca as folhas de chá na água a ferver, enche um copo e entrega-o a Bashir.
Bashir não olha para Samira quando lhe pergunta se, por dentro, ela é realmente uma mulher. Samira não compreende.
- Quero saber se dentro do teu corpo, na tua barriga, és uma verdadeira mulher, se és capaz de tirar o meu filho da tua barriga e de lhe dar o leite do teu peito. - Bashir não olha para Samira.
Na manhã seguinte, quando Bashir acorda, o fogo está apagado, as cinzas estão frias. Samira continua de costas para ele, sentada no mesmo lugar que na noite anterior. Tudo continua igual. Nada é igual. Samira já não tem as roupas de mulher, vestiu a sua roupa de homem. Quando Bashir acorda, não se vira, nem olha para ele.
- Somos amigos - diz. - Andámos juntos nas montanhas e caçámos juntos, íamos à aldeia e andámos juntos nas aulas. - Samira ri-se. É um riso curto, que rapidamente se perde. - Juntos vimos o nojento vendedor de legumes a esfregar o seu pénis, transportámos ópio de uma aldeia para outra, libertei-te das mãos do homem, que te ia...
- Eu sei. - Bashir não quer que Samira continue.
- Fomos juntos à caça. Apanhámos peixes e cavalgámos nas planícies. Não podemos fazer nada disso, se deixarmos de ser amigos, se eu for a tua mulher e tu o meu marido.
Bashir sabe que Samira tem razão, senta-se ao seu lado e põe o braço à volta dela. Fita os seus olhos escuros e tristes e não tem muito a dizer.
- Perdemos o nosso antigamente. - É tudo o que diz.
Os seus corações transformam-se em manteiga. Derretem. Devagar. Ficam líquidos e espalham-se. Pelas montanhas, pelos vales, por todos os lugares e por todas as pessoas. Samira não engole as lágrimas. Bashir também não.
- O que vais fazer?
Samira ri-se. Chora e ri. Como antigamente. Quando Bashir partiu para o Sul e ela ficou na aldeia. Bashir faz sempre a mesma pergunta ao amigo: "O que vais fazer?"
Bashir sorri. Sabe o que o amigo vai responder.
- Farei aquilo que devo.
- Queres ser piloto - afirma Bashir e olha para o céu.
- Bashir, meu pobre Bashir. És um sonhador.
- Promete-me uma coisa - pede Bashir. - Se fores piloto, sobrevoa a nossa planície e pensa em nós.
- Primeiro vou sobrevoar os sete lagos sagrados, depois as terras altas, onde o meu pai e eu nascemos, e a seguir as terras altas onde tu vives e onde se encontra o nosso rochedo, e vou chamar por ti.
- Não tens medo?
- Tenho. - É o mesmo "tenho" de antigamente. Pequeno. Sem significado, repleto de significado. - Lembro-me de estar no rochedo com o meu pai, de olhar para ele e de dizer "não vejo nada". Agora sinto a mesma coisa. Tenho um sonho. Mas não consigo vê-lo.
Samira fez mil e uma perguntas, mas não obteve nenhuma resposta. Samira foi muda.
Agora quer fazer o que está certo.
Monta o garanhão do pai, deixa o Indocuche e Bashir para trás, não engole as lágrimas, chora. Chora, até o seu choro se transformar em riso. Um riso que não se perde, um riso que a acompanhará durante muito tempo. É o riso de uma mulher, de uma verdadeira mulher.
É o riso de Samira.
Siba Shakib
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