Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SANGRA A NOITE / Vickie Taylor
SANGRA A NOITE / Vickie Taylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

SANGUE, HONRA E AMOR: MOTIVOS PELOS QUAIS SE ARRISCAR A MORRER.

As gárgulas são uma raça de seres imortais mutantes que contemplaram o suceder da humanidade durante séculos. Agora lutam por algo diferente; lutam por amor.

Mara Kincaid sabe o que é viver no caos. Durante seis anos se dedicou a proteger às mulheres e observou o lado escuro da humanidade, embora também pôde comprovar sua bondade. Desconhecendo sua fatalidade, quando procura o rastro de uma importante cliente acaba transformando-se em vítima do mesmo destino funesto que esta tinha alcançado.

O ardiloso e direito Connor Rihyad é um furacão com o qual não é recomendável cruzar, nem sequer para as outras gárgulas que, junto a ele, observaram o progresso das pessoas durante séculos. Mas quando Mara se encontra com Connor, sente algo por este guardião enigmático que abre uma brecha entre ele e seu fôlego imortal: um desejo voraz que brama por ser desatado.

Enquanto a traição e a violência a ameaçam, Mara deve decidir se, de verdade, encontrou o homem de seus sonhos ou à encarnação de seus pesadelos...

 

 

 

 

                                             Capitulo 1

Connor Rihyad velava o corpo de Nathan Cross. O sangue quente impregnava suas mãos e o frio ódio invadia seu coração. Vamos, as nuvens cinza se aglutinavam no céu negro-mate de Minnesota. Abaixo, a superfície sedosa do rio White, sua face ondulava lentamente. Sobre a antiga ponte de armação justo no meio, o fôlego de Connor se congelou no ar e teve a sensação de que, cada vez que respirava, cuspia cristais de gelo.

   De meninos, ele e Nathan tinham sido amigos. À medida que foram passando os anos, Connor invejava cada vez mais a posição desse homem como futuro líder de seu povo e acabou desprezando-o por seus ideais, pelo controvertido conflito interno que Nathan tinha provocado em sua congregação. Mas nunca pensou que seria necessário matá-lo. Nunca tinha imaginado que dois membros da mesma espécie tivessem que matar um ao outro.

Tinha errado.

   Sacudindo pensamentos de arrependimento, fechou os punhos, ainda salpicados pelo sangue pegajoso de seu irmão, e elevou sua face ao vento. O aroma de cobre que impregnava o ambiente tinha revolto à besta que levava dentro dele, mas a brisa amarga reteve o monstro até uma saída posterior.

Todos diziam que fazia bastante calor para ser inverno em Minnesota. Quase não tinha nevado durante o dia e a capa de gelo do rio era fina como o papel. Mas Connor tremia ao ver essa água gelada. Se fazia calor para ser inverno, não queria passar uma temporada fria nesse lugar.

   Para muitos, o inferno é um lugar abominável, mas o maior castigo para Connor era passar toda a eternidade em uma região ártica gelada onde nada vivesse, nada crescesse.

Um lugar parecido a essa paragem rural que estava divisando.

   Passeou seu olhar por toda a superfície do rio, a borda, os campos nevados e o casarão apenas visível da montanha. O telhado de metal do enorme celeiro brilhava tenuemente ao absorver uma pequena rajada de luz lunar. Dois silos de cereal se erguiam como sentinelas em meio da noite.

   Ali vivia gente sem consciência, sem moral. Mas eram muito poderosos. Sacudiram a teia de aranha da obrigação que tinha constrangido a suas gente (a sua congregação) durante milênios. Tinham conseguido controlar seu próprio destino.

   Nunca mais seriam serventes da frágil raça humana; seriam os amos e ele estava a ponto de transformar-se em um deles: o assassinato de Nathan Cross era o preço que devia pagar por sua admissão. Uma grande amostra de lealdade.

   O vento arrepiou o cabelo. Mechas negras desabavam em cima de suas bochechas, tampando os olhos. Moveu os lábios, mas de sua boca não saiu o mínimo som.

   Não fazia falta dizer nada. Ouvia as vozes em sua cabeça. Milhares de vozes acumuladas ao longo de milênios se elevavam para unir-se à sua em um cântico ritual.

 

                 E Unri almasama

                 E Unri almasama

 

   Connor sentiu um calafrio penetrante; tinha as extremidades tensas e os ossos estavam a ponto de explodir. Seus músculos rígidos cederam e caiu de joelhos ao lado de Nathan.

   Estava a ponto de contemplar a desgraça e a beleza, o despertar da besta interna. Seus olhos se encheram de lágrimas e se entregou à dor. Já era mais um dos Gargouillen. Uma gárgula. A dor já não importava; tão só a missão. O objetivo.

 

               Calli, Calli, Callio

 

   As palavras retumbavam em sua cabeça como um bloco de tambores. O sangue se condensava com cada pulsar. O ritmo decrescente fez baixar os braços pouco a pouco. Os ossos se foram afastando, concedendo espaço à ascensão, e se partiram. Úmero, rádio e cúbito se dividiram, rodando para os ombros como os raios de uma roda ao girar rapidamente, e sua pele se foi escurecendo. A mandíbula e a face já sobressaíam e a testa foi se dobrando para trás.

 

               Somata altwunia paximi

 

   Transformação completada. Descansou um momento e se levantou, não como homem, mas sim como uma criação mágica feita a imagem da criatura mais velha da terra. Um pterodátilo; uma besta pré-histórica com asas de morcego mas muito maior, bico serrilhado e garras afiadas capazes de rasgar a espinha dorsal de qualquer humano.

Levantou a cabeça e voltou a admirar o casarão a distância, desta vez com olhos enormes de besta. Só seu fôlego meio asfixiado quebrava o silêncio da noite.

Já divisava sua missão. Seu objetivo.

   Estendeu as asas, bateu as asas uma vez e mergulhou na noite proferindo um grito animal. Era seu grito de predador. Sua provocação. O ruído ensurdecedor ricocheteou no ar e provocou uma onda expansiva muito superior à capacidade auditiva do ser humano.

   Só Os Gargouillen podiam ouvir o grito. Só Os Gargouillen podiam responder.

   Mal transcorreram uns segundos e já os ouvia: corujas sacudindo o musgo congelado e o crepitar da grama frágil e quebradiça enquanto um réptil deslizava pela neve.

   Os hóspedes se organizaram formando um semicírculo no extremo da ponte, alguns mantinham sua forma humana e outros eram amálgamas de bestas de todo tipo: modernas e pré-históricas, reais e míticas. Todas observando com receio.

   Connor se transformou em humano. Com os punhos fechados e o torso rígido, olhou de frente a todos os homens ou animais que diante ele se desdobravam.

   — Fiz o que me pediu — Anunciou — Te trouxe o homem que matou a um dos seus. Agora toca a ti cumprir sua parte da promessa.

   Devlin, um homem fornido de cara redonda e corpo ainda mais redondo, um dos maiores e desavergonhados filhos de puta que Connor tinha conhecido, deu um passo à frente. Foi a primeira gárgula com a qual Connor contatou quando se aproximou da congregação de Minnesota para pedir sua aceitação e, assim que o conheceu, sentiu uma vontade tremenda de abortar a missão.

   — É ele? — Perguntou Devlin, olhando o corpo que Connor sustentava com o pé.

   Connor empurrou o torso de Nathan com o pé, deu meia volta e o pôs de barriga para baixo. O sangue de sua camisa tinha passado de ser espesso para transformar-se em uma massa negra e gelatinosa.

   — Este é o que assassinou seu irmão. — Respondeu Connor — O castrem e fatiem sua garganta.

Devlin enrugou as sobrancelhas.

— Como sei que não me engana?

— Te mostro a lembrança se quiser. Eu estava ali.

Connor não podia comunicar essa recordação com palavras nem com telepatia direta. Nem ele nem nenhum dos de sua congregação, mas podia limpar os pensamentos, uma habilidade muito útil para a luta. Podia, também, transmitir imagens e, inclusive, lembranças. Mostraria a Devlin a morte de seu irmão se precisasse, embora suprimiria a cena em que ele mesmo (e não Nathan) matava o segundo homem que atacou a escola. Se não realizava esse corte de sequencia, a operação seria um fracasso.

   Seguia sem entender por que as duas gárgulas tinham entrado no St. Michael's, a escola onde Os Gargouillen de Chicago educavam seus filhos. A única explicação era raptar esses meninos. Connor tinha se dedicado de corpo e alma em investigar os movimentos desses dois intrusos. Quem eram? O que queriam fazer com os meninos?

   Tinha aprendido algo que ultrapassava a importância de todo o ordinário. As gárgulas nascem com duas insígnias forjadas na mente e na alma e impostas pela magia antiga que as criou: a proteção da humanidade e a propagação da espécie.

   Nunca, em suas dez encarnações, tinha conhecido a uma gárgula que renegasse seus princípios. Inclusive Nathan, que tinha jurado não engendrar nenhum filho na vida (abdicando, assim, de seus direitos de reencarnar), tinha cedido finalmente e se uniu a uma mulher. Era o ciclo natural.

   Não era, entretanto, normal que uma gárgula permanecesse com a mulher depois do nascimento do menino, como Nathan. Quando nascia um menino, a gárgula ficava com ele e abandonava à mulher. As filhas também eram rejeitadas.

   A magia das gárgulas não era herdada pelas mulheres; as filhas não tinham nada que fazer e, quando nascia um menino, a mãe não entendia a origem dessas garras ou o nascimento desses chifres desde o berço.

Eles os Gargouillen eram e tinham que ser uma comunidade masculina. Ao menos, essa tinha sido a essência da congregação até que Nathan Cross difundiu suas novas ideias sobre a aceitação de mulheres.

   Inclusive essa ideia era mais razoável do que deixar os humanos desprotegidos. Estavam se alimentando, além disso, da grande raça que uma vez juraram proteger.

   Sentindo a bílis subir por sua garganta, Connor arrancou de sua mente uma imagem da luta entre Nathan e o irmão de Devlin, mas notou como a gárgula rechonchuda rejeitava essa entrada visual.

   Devlin cuspiu com raiva. Seus braços foram se alargando e a pele se estirava para revelar um matagal de pelagem marrom; os dentes e as unhas cresciam enquanto ia adquirindo aparência de urso, a mesma forma sob a qual se ocultou seu irmão quanto atacou a escola. O homem-urso deu um passo à frente e lançou um grunhido.

   — Talvez mais tarde. Antes, eu gostaria de rasgá-lo com meus próprios dentes.

   — A esta coisa asquerosa? Terá arcadas com sua carne putrefata.

   Connor esboçou um sorriso malicioso e empurrou o corpo cuidadosamente com o pé para deixá-lo cair da ponte. O rio engoliu Nathan com um rangido gelado e um mergulho persistente e sereno, um destino desfavorável para uma vida que tinha criado tanta controvérsia e divisão em sua própria congregação.

   Devlin lançou um gemido ao ar. Connor caminhou lentamente para ele.

   — Fiz o que me pediu. — Repetiu — Aceita agora o Conselho da congregação de Minnesota dos Gargouillen minha petição de entrada?

   — Conselho? Nós não temos essa estupidez! E, já que interrompeu o meu jantar, o melhor é que devore você.

Connor sentiu uma náusea no estômago. Faz anos, tinha ouvido muitas histórias sobre os Gargouillen; tinham explicado que se convertiam em bestas fora do campo de batalha; que viviam, caçavam e comiam para deleitar-se com o sangue. Até esse momento, pensava que eram contos de medo inventados para atemorizar os menores.

   Em seguida começaram a crepitar ossos e ligamentos e sentiu o Despertar de sua própria besta, mostrando unicamente parte de seu rosto humano para poder falar. Vinte centímetros de afiadas garras se estenderam diante ele.

— Tenta. — Respondeu com voz desafiante.

   Um homem magro com cabelo loiro cinza e bigode, de bom porte e ar elegante (Jackson! Connor o reconheceu) que parecia ser o líder informal, avançou um passo na frente de Devlin dando um tapinha nas costas e pressionando seu ombro fofo.

   — Calma, Dev. Este representa sangue fresco para a congregação.

O homem de cabelo loiro cinza continuou avançando.

   — Sabe onde esconderam os meninos de Chicago desde que a escola foi queimada?

— Não tive muito tempo de falar com ninguém.

Devlin franziu o cenho.

— Não acredito.

— A confiança se ganha pouco a pouco. — Jackson olhou para a profundidade do buraco negro que interrompia a água gelada — E de momento, deu um primeiro passo para que comecemos a confiar nele.

— Continuo sem gostar dele. — Resmungou Devlin.

— Você não tem que gostar. — A voz de Jackson se voltou mais áspera — Nos limitamos a acatar ordens.

Connor reprimiu uma reação adversa diante desse último comentário. “Ordens”. Ou seja, que o bando dos desertores não tinha conselho, mas sim existia uma estrutura de controle acima de Jackson. Sentia uma profunda curiosidade por saber quem era o líder e onde se hospedava (e, é obvio, queria conhecer seu catalogo inteiro de ordens). O que estariam tramando? Por que tinham tentado levar os meninos?

   Jackson elevou os braços, tentando abranger a paisagem invernal.

   — Bem-vindo a tundra, Connor. — Baixou os braços — Aqui encontrará refúgio.

   Uma rajada de indecisão (bom, de medo) manteve-o imóvel por um instante. A isca era bastante atrativa: toda uma vida dedicada a gente mesmo sem ter que servir a uma raça de humanos ingratos que nem sequer sabiam que existia.

Era, também, muito perigoso.

   Tomou ar e tentou desfazer a tensão dos ombros. Fez uma promessa e a tinha selado com o sangue de suas mãos.

   Também era consciente de que Devlin e seus amigos não o deixariam escapar. Tinha atravessado a soleira, já não havia como voltar atrás, assim caminhou para frente até o final da ponte. Depois de jogar uma olhada às águas negras e geladas que engoliam o corpo de Nathan Cross, próximo Líder da congregação de Chicago. O Gargouillen, moveu energicamente as pernas para reativar a circulação, esfregou as mãos e caminhou para o casarão junto a sua nova irmandade.

Essa noite estava preparado.

 

   Mara Kincaid trabalhava silenciosa e com o olhar baixo, mas não lhe escapava nenhum movimento enquanto ia recolhendo os pratos sujos da mesa do salão. Uma mesa repleta de homens. Estavam bebendo mais da conta; para celebrar a chegada desse menino novo de cabelo meio ondulado e cicatriz nas bochechas cujos olhos não transmitiam uma mistura de álcool e hedonismo, como era de esperar.

   Era diferente. Era mais humano por sua maneira de murmurar um “obrigado” quando servia o jantar e por esforçar-se por mastigar com a boca fechada.

   Mara sentia certa curiosidade por saber de onde vinha e por que tinha acabado em um lugar como esse, mas não deu mais importância. Sua procedência era o de menos. Para ela, era outro monstro nessa casa do terror.

   As gargalhadas dessa banda de valentões ressoavam bem alto; desfrutavam de piadas sujas, esparramavam a cerveja ao brindar torpemente, mas para ela tudo era indiferente. Como mínimo, tinha podido estirar as pernas depois de levar seis dias presa em uma jaula. Podia desfrutar de uns minutos de recreio para inspecionar os quartos, saídas e acessos do casarão; podia maquinar um plano embora tivesse que seguir suportando o toque incessante em seu traseiro e no meio das pernas quando servia a esses parasitas como se fosse sua criada.

   Ao menos só se encarregava do trabalho da cozinha. Tinha a sensação de que as mulheres obrigadas a “trabalhar” acima tinham sido forçadas a realizar atos muito mais degradantes que recolher pilhas de pratos com costelas roídas.

   Apesar da baforada de ar quente que saía da lareira de pedra, lhe gelou o sangue.

Tinha chegado a noite esperada.

   Saiu da cozinha para recolher outro turno de pratos; secou as mãos no avental e deslizou o olhar para a janela. Pelo que tinha visto, o casarão era enorme e as oito ou dez dependências que o rodeavam eram ainda maiores. Chegou à conclusão de que, em uma época anterior, teria estado habitado por presos, enviados ali por um sistema penitenciário que teria preferido fazer trabalhar que encerrá-los em celas asfixiantes onde só iam aprender novas formas de delinquir. Ou isso ou o casarão tinha albergado a alguma comunidade.

   Mas ali não havia cultivo nem gado. Isso era um campo de escravos e ela era uma mais.

Tinha que escapar. Essa noite. Não podia esperar mais.

   Acabou de maquinar o plano em sua mente enquanto recolhia a última pilha de pratos: tinha que percorrer a ala oeste do casarão para chegar à granja, da canaleta até o curral, e atravessar a parte traseira do galinheiro. Ela e as demais cobririam a cerca de arame de farpa com mantas para subir sem se machucar. Quando chegassem à ladeira, poderiam ir para o rio sem ser vistas. Oxalá.

   — Ouça, você. — Um homem calvo que a observava há muitos dias e cujo nome não recordava por vontade própria a agarrou por um braço. A brutalidade do movimento a fez se sobressaltar e a pilha de pratos caiu e quebrou no chão. O purê de batatas foi parar nas suas coxas.

— Mas o que faz? — Gritou, olhando a calça.

   As outras duas mulheres que estavam limpando no salão correram para refugiar-se na cozinha, fugindo como um gato da água.

   Mara se ajoelhou em seguida para recolher os pedacinhos. O coração palpitava com força.

   O homem calvo esfregou com ferocidade a mancha das calças e lhe deu uma bofetada, fazendo-a rodar pelo chão. Tinha todo o rosto salpicado de grumos de batata, que caíam lentamente enquanto Mara esperava a seguinte bofetada certeira. O mais mínimo movimento pioraria as coisas. As pequenas amostras de desobediência se castigavam muito duramente nesse lugar e, se tentava se esquivar do murro, teria que se preparar para o pior.

   Percebeu muito claramente a mão desse homem levantando-se no ar, mas o bofetão nunca chegou. Em seu lugar, ouviu-se um impacto muito estranho de mãos. Instintivamente, olhou para cima, embora nesses casos o melhor era sempre baixar o olhar.

O jovem novo o tinha pego pelo pulso. Seus olhares masculinos se desafiavam mutuamente. Mara segurou a respiração, esperando a explosão de uma briga para aproveitá-la e sumir. Não seria a primeira que teria contemplado nesse lugar.

— E assim tratam às mulheres? — Perguntou o jovem novo. Tinha a mandíbula tensa.

— Sim — Resmungou o calvo.

   Mara estava encolhida no chão com as mãos nos tornozelos.

   O jovem novo exibia uma expressão sombria. A cicatriz que invadia a metade do rosto se avermelhou. Agachou-se para olhar a Mara; contemplou as curvas de seu corpo, examinando sua pele e advertindo o tremor de seus braços antes de voltar-se de novo para o calvo.

— É sua?

— É de todos. — Arrotou e riu entre dentes — Aqui compartilhamos tudo. Por quê? Quer ela para você?

— Sim, acredito que sim. Mas eu não gosto das marcadas. — Lentamente, foi afastando os dedos de sua pele e impôs uma distância — E não quero compartilhar.

   Depois de um incômodo silêncio, o calvo soltou uma risadinha tola que deu passo a umas quantas gargalhadas. Agarrou o ombro do jovem novo e lhe deu um murro amistoso que esteve a ponto de derrubá-lo.

— Você e eu vamos nos dar bem...

As gargalhadas começaram a estender-se entre todos, que tinham levantado de seus assentos para assistir a esse momento de nervosismo, e voltaram a sentar-se enquanto a tensão se diluía tão rapidamente como se criou.

   Mara foi reunindo as partes de cerâmica no avental e se precipitou para a cozinha depois de olhar de soslaio ao jovem novo, cujo olhar era frio, mas tão penetrante como quando enfrentou ao calvo. Notou seus olhos cravados em suas costas quando entrou na cozinha.

Transcorridas umas horas, já se encontrava no porão.

Aproveitando o silêncio aparente, escondeu-se debaixo da manta que lhe tinham proporcionado e tirou o garfo que tinha roubado no dia anterior: seu primeiro dia na cozinha. Tinha dobrado todos os dentes exceto o do meio e o tinha ido afiando pouco a pouco até obter a forma desejada.

   Seus captores eram incrivelmente ingênuos. Nem sequer iam vigiar às mulheres quando estas acabavam suas tarefas e corriam para a prisão do porão. O plano de fuga tinha sido terrivelmente fácil de desenhar. Nem passava pela cabeça que um rebanho de mulheres os pudesse desafiar.

   Levou a mão ao rosto para comprovar que estava roxo.

   Esses idiotas estavam a ponto de receber uma boa lição de fúria feminina.

   Aguentou a respiração e, comprovando de novo o silêncio reinante, cravou o garfo na fechadura da jaula de metal. Em seguida ouviu o ruído do ferrolho ao ceder.

   Demorou dois minutos em sair. Possivelmente menos. Se tivesse imaginado sua volta ao povoado, teria demorado menos ainda.

   Quando venceu a rigidez do ferrolho, seus olhos se encheram de lágrimas de alívio. Fungou. Apalpando as dobradiças de ressonância aguda e caprichosa, foi se movendo por todo o espaço, repleto de jaulas alinhadas como a sua.

   Essa noite tudo estava preparado. Era muito estranho que não subiram a alguma garota para acabar uma noite de bebedeira, mas já tinham o suficiente se arrastando pelo chão dado seu tremendo estado de embriaguez.

   Por sorte, estavam todos adormecidos. Primeiro as tiraria todas e depois sairia ela. Mas não demorou para descobrir o que tinha acontecido a Ângela.

 

                                           Capítulo 2

— Calma, calma, vêem comigo — Mara estendeu a mão.

   Theresa, a mais jovem das seis mulheres cativas, estava encolhida em um canto da jaula. O cabelo negro tampava a pálida face.

— Não.

— Venha, Theresa — Mara tentava animá-la e estirou ainda mais o braço para agarrá-la — Vamos sair daqui. Todas.

   Os olhos de Theresa eram redondos como duas bolas de gudes. Por fim, decidiu-se e estendeu a mão tremula. Mara a agarrou e a puxou para cima. Explicou-lhe rapidamente o plano. Theresa era a última. As demais tinham colocado uma pilha de caixas debaixo da claraboia. Quatro delas já tinham saltado pela janela e estavam se arrastando pelo campo para não criar sombras cujo reflexo pudesse perceber-se da casa.

   Mara deu uma cotovelada em Theresa para que subisse à pilha de caixas.

   — Venha, se reúna com as demais. — Apertou-lhe a mão afetuosamente antes de deixá-la ir.

   Theresa subiu, cambaleando, para a claraboia e se voltou para olhá-la na escuridão.

— E você? Não vem?

— Já vou. Não me esperem.

Theresa resistia a ir.

— Não. Vêem você também. — O pânico alterava o timbre de sua voz.

— Shhh. Não se preocupe por mim. Eu vou já. Vá! — Fez um dramalhão com as mãos — Vá, saia.

   O porão parecia muito mais frio na solidão. Mara ficou quieta; esfregou os braços para sacudir o frio inquietante; agarrou o corrimão e, com a chave improvisada em uma mão, abriu caminho pelas escadas.

   Cada passo era uma agonia. Ouviriam o rangido das pranchas? Escutariam seus passos? Não obstante, o silêncio e a quietude a acompanharam em seu caminho ascendente pela escada e por fim chegou ao último degrau e abriu a porta com a chave.

   O relógio do forno da cozinha marcava as duas e meia da manhã e iluminava o suficiente para permitir ver o salão. Além da enorme mesa, o espaço se apresentava como um grande buraco negro. Se pudesse caminhar sem ser ouvida, poderia aproveitar para passar rapidamente diante do oco da escada, chegar à zona das habitações e entrar no escritório, a qual se acessava por um quarto diametralmente oposta aos aposentos dos homens.

Tinha visto o Jackson sair duas vezes desse escritório. Nessas ocasiões, só tinha dado tempo de vislumbrar um escritório, um telefone e um mata-borrão. Havia, também, um computador em cima de um móvel baixo justo atrás do escritório e numerosas folhas de papel espalhada.

   Mara tinha perguntado às demais se sabiam algo de Ângela. Absolutamente nada. Ou sua amiga nunca tinha estado ali ou Mara estava arriscando sua vida em vão. Também era provável que tivesse sido transferida (Deus! poderiam-na ter assassinado) Antes que a nova fornada de mulheres chegasse. O único canto onde tinha que ter alguma pista sobre seu paradeiro era esse escritório.

Em silêncio, se benzeu, um gesto que não fazia desde pequena, e avançou muito lentamente da cozinha, dando as costas ao salão. Ao passar diante do oco da escada, sentia seus batimentos do coração tão fortes que pensava que despertariam a todos. Mas o casarão permanecia em silêncio, no momento. Com sorte, tudo continuaria assim.

 

Connor não parava de perambular por seu quarto; tinham atribuído o segundo andar. Estava seguro de que era uma decisão intencionada. Não havia janelas nem portas que dessem ao exterior e compartilhava a parede com membros da congregação.

   Seguiam sem confiar nele, por muito que tivesse entregue o corpo de Nathan. Não era isto o que se esperava.

   Mas não era sua desconfiança o que o inquietava. As mulheres. A julgar pelo que tinha visto, os membros da congregação de Minnesota não só estavam sequestrando os meninos gárgula.

   Poderia assistir, impassível, a esse exercício insano de sequestradores de mulheres? Poderia seguir presenciando esses maus tratos? Estava consentindo! Estava aceitando, embora procurava adoçar o trato.

   E, enquanto isso, violavam-nas e as submetiam a todo tipo de humilhações.

   Estava decidido. Ele ia dizer (como mínimo, já o pensava).

   Deixou-se cair da borda da cama e esfregou a face com as mãos.

   Informação. Necessitava informação. Quem era esse Líder a quem tratavam com tal deferência esse punhado de mentecaptos até o ponto de não atrever-se a nomeá-lo nem em sussurros? Onde vivia?

   Connor suspeitava que os doze homens que viviam nesse casarão não eram todos da mesma congregação. Tinha que haver algo mais.

Quantas mulheres havia no porão? Tinha visto alguns guardiões conduzir às mulheres para baixo depois de cumprir suas tarefas noturnas e imaginava a essa mulher ruiva de pouco peito com o cabelo quase raspado encadeada nesse buraco. Seus dentes se apertaram de raiva.

   Essa mulher tinha guelra. Era um exemplo de sobrevivência, mas ele tinha notado um grande ódio dentro dela ao apreciar a rigidez de seu queixo e o fogo em seus olhos âmbar. Não queria chamar a atenção, mas não perdia nenhum movimento.

Não podia seguir discretamente e escutando.

Talvez soubesse mais que seus novos irmãos.

   Saiu decidido do quarto. Faria algumas perguntas e estava seguro de que ela não sentiria o mais mínimo interesse por sua vida. Intuía que essa mulher queria evitar qualquer contato com os homens.

   Também deixaria que o traísse para ir um passo na frente de seus captores. Era um risco que estava disposto a correr. Sentia uma necessidade imperiosa de conhecer as normas desse novo entorno. Além disso, assim poderia tirá-la do asqueroso porão. Ao menos por uma noite. Depois, já veria.

Connor cruzou o corredor e bateu na porta de frente.

   — O que acontece? — Um Jackson descalço e semidespido abriu lentamente a porta e franziu o cenho. Tinha o torso descoberto e os jeans desabotoados.

   — A ruiva que quebrou os pratos. — Disse Connor sem mais preâmbulos.

   — O que acontece com ela? — Jackson acariciou o bigode com o dedo indicador e o dedo polegar.

— Quero-a.

 

A porta do escritório se abriu tão facilmente como todas as demais. “Já poderiam investir um pouco de dinheiro em ferrolhos bons”, pensou Mara. Deixou-a meio aberta para não fazer ruído ao fechá-la e guardou a chave no punho da camisa. Entrou e pôs mãos à obra.

   A luz da lua se refletia na neve do exterior e iluminava o mata-borrão. Examinou-o a consciência e não viu nada estranho exceto alguns esboços de castelos e espadas. Caminhou por trás do escritório, ligou o computador e removeu os papéis enquanto esperava que carregassem os dados. Pareciam faturas de água e luz.

   Ao revisar outra pilha de papéis, sentiu uma espetada no estômago. Havia uma lista de nomes, cada um com sua cidade e sua data de encontro. Eram nomes de mulheres. Dúzias de nomes.

   De repente, sentiu que faltava ar nos pulmões. Aproximou-se dos papéis para lê-los melhor aproveitando a tênue luz da lua e procurou a Ângela na lista. Estava tão concentrada em sua busca que não ouviu os passos que provinham do patamar da escada. Já era muito tarde.

   Com o pulso acelerado, quis apagar a luz do monitor, mas, justo quando tinha o dedo no botão, ouviu-se o tom agudo e impertinente de alerta: “recebeu uma nova mensagem de correio eletrônico”.

   O rosto da Mara empalideceu como se acabasse de sair de uma câmara frigorífica.

— Que porra acontece aí?

   Ao ouvir uma voz masculina aproximando-se, precipitou-se para a porta, equipada com a lista de nomes.

   Quando tentava atravessar a porta, acendeu-se uma luz cegadora e se desenharam as silhuetas de dois homens antes que um deles a agarrasse.

— Que porra está fazendo? — Grunhiu Jackson.

   Mara tentava se revolver, mas os braços desse homem eram como dois blocos de aço. Arrebatou-lhe os papéis e os deixou cair no chão. Ela aproveitou um momento de desorientação para dar uma cotovelada na boca do estômago e começar a dar chutes.

— Au! Au! Merda!

   Coxeando pela dor e saltando de um pé só, afastou seu fôlego dela e teve que deixá-la escapar, mas voltou a agarrá-la pelo pescoço da camisa quando estava a ponto de ir e a atirou contra o chão. Ele levantou o punho para dar um bom golpe.

   O outro homem (o jovem novo) apareceu de um nada e se interpôs entre eles. Agarrou o Jackson por trás, agarrando fortemente com o braço e segurando o queixo com o punho. Mara voltou a liberar-se. Ficou de pé, mas não fugiu: apoiou-se contra a parede, imóvel como um animal assustado em uma corrida pela sobrevivência.

Jackson mudou completamente de rosto.

— Mas o que faz?

   Os olhos azuis do jovem novo adquiriram um tom cinzento.

— Eu disse que eu não gosto das marcadas.

   — Está louco ou o que? — Jackson se endireitou e se estirou a camisa — Esta porca quase me rompe o pé.

   Mara soube que Jackson estava se contendo. Um ponto para ela. Seria, entretanto, o único ponto que ia ganhar, posto que a acabariam assassinando. Ou algo pior.

   Com este último pensamento, desvaneceu-se o atordoamento que a tinha mantido imóvel e os joelhos começaram a falhar. Não chegava ar aos pulmões.

   O jovem novo se aproximou dela sem tocá-la. Estava ficando tonta, mas isso não a liberaria de receber uma surra por muito fraca que estivesse.

Cravou os olhos nela e a fez esquecer-se dessa ideia.

— Eu gosto de sua energia — Disse Connor.

   Suas palavras pareciam sinceras. Mara tentou decifrar algo através de seus olhos azuis, mas eram como espelhos: tão só refletiam a palidez de seu rosto, seu medo e sua raiva acumulada.

Jackson suspirou profundamente, murmurou algo entre dentes e se decidiu a falar.

—Tome cuidado. Está brincando com fogo.

   Saiu coxeando, caminhou a tropicões para a cozinha e se fixou no oco da escada que dava ao porão. Sacudiu a cabeça e disse:

— Escaparam. Leve-a para seu quarto e desafie-a ali. Vou avisar os vigilantes para que as busquem.

   Assim que Jackson desapareceu de cena, o jovem novo se aproximou de Mara. Ela estremeceu e se encolheu, arrependendo-se de exteriorizar seu medo. Com um olhar próximo à compaixão, afastou-se um pouco dela e fez um gesto para que o seguisse.

   Mara tentava mostrar-se serena enquanto o seguia em direção às escadas e atravessavam juntos o estreito corredor do casarão. Procurava um lugar pelo que escapar. Mas não havia saída. Era impossível fugir.

Pediu ajuda a Deus.

— É aqui — Disse Connor, enquanto assinalava seu quarto. Girou o pomo e empurrou a porta brandamente.

   O desesperava tanta inquietação e mistério. Quando foi agarrá-la, se esquivou, mas a voltou a agarrá-la e a atraiu para ele, imobilizando seus braços de tal modo que foi impossível se rebelar. Meteu-a no quarto e fechou a porta atrás de si.

— Calma.

Ela se revolvia com raiva.

— ... Calma. Aaaau!

   Mara cravou os dentes na clavícula. Connor a separou de um empurrão, profundamente dolorido. O sangue caía pela camiseta e manchava as mãos.

— A mãe que...

— Se afaste de mim. — Mara recuou bruscamente até se chocar contra a parede.

— Homem, para estar perto...

   De pequeno, recolheu um gato selvagem do campo para ter como animal de estimação. Tinha o mesmo olhar feroz. O animal o mordeu e rasgou a carne do braço; tiveram que submetê-lo a vários tratamentos contra a raiva.

Não queria repetir essa experiência.

   Mara se deslocava contra a parede lentamente. Por fim, se protegeu na esquina mais afastada. Não afastava seus olhos dele.

   Connor não fez a mais mínima tentativa de retê-la ou segui-la.

— Como se chama?

   As janelas do nariz abriam como se percebesse o perigo da pergunta mas não acabasse de entender a dupla intenção de suas palavras. Connor se recostou contra a porta e se cruzou de braços.

   — Bom, te chamo de mulher, então? Mas no sentido de “mulher, me traga outra jarra” ou “mulher, vêem aqui e se agache”?

   Connor pensou que, assim, derrubaria essa barreira que estava impondo, mas só conseguiu pô-la mais tensa.

   Melhor para ela. Estava claro que Connor não tinha mentido: gostava de sua energia. Não queria que a perdesse.

Tampouco queria que acabasse com ele.

   Connor deu a volta e abriu a gaveta onde guardava a pouca bagagem que levou a Minnesota (um pouco de roupa, um livro e uma garrafa de uísque escocês). Encheu meio copo e o deixou em cima da mesinha de noite. Afastou-se um pouco.

— Tome — Disse — Eu não bebo.

   Olhou primeiro ao copo e depois a ele. Voltou a olhar ao copo e olhou outra vez a ele.

— E por que guarda uma garrafa de bebida na gaveta?

Isso incentivou sua curiosidade. Já começava a se abrir.

   — Para casos de emergência. — Sorriu — E vai muito bem. Porque agora, por exemplo, tem cara de necessitá-lo.

— Pois eu não bebo.

   Isso era rotundamente falso e ele sabia por sua maneira de olhar o copo.

— Como queira.

   Connor estirou o pescoço da camisa e se colocou diante do espelho da mesa de escritório para examinar a ferida. Através do reflexo, viu que ela o estava olhando.

— Por certo, meu nome é Connor.

   Não houve resposta. Não importava. Já tinha ouvido seu nome de boca de outros. Mas teria preferido que ela houvesse dito.

Bom, tentaria-o de outro ângulo.

— O que é o que mais deseja no mundo?

— Matar a todos pelo malditos que são e sair daqui. — Suas palavras saíram atropeladas.

— E... Se te ajudar? A sair daqui, claro... Só teria que colaborar comigo em algumas coisas.

   Ficou tensa. Com tanta tensão acumulada, estava a ponto de saltar ou de sair correndo.

— Preferiria estar morta.

— Não é esse tipo de “cooperação”.

   Que narizes! Agarrou o copo de uísque e o bebeu de um gole. Invadiu uma tosse repentina e disse, com voz afogada:

— Só quero recolher um pouco de informação.

— Que tipo de informação?

Connor franziu o cenho.

       — Só me diga o que viu aqui. Tudo o que ouviu.

   Ele a observava e notava sua maneira de refletir, de pensar, relaxando um pouco os ombros que, até esse momento, estavam elevados quase até as orelhas.

Quando não estava assustada, era bastante atraente. Preferia vê-la relaxada, não à defensiva. Seu cabelo fino e avermelhado era natural e seu corte de menino (tinha o cabelo mais curto que ele) dava-lhe um toque muito especial. Tinha umas pernas magras e longas e parecia uma mulher muito íntegra. Forte de corpo e alma.

— Quem é você? — Perguntou Mara. Seus olhos âmbar clamavam precaução.

A sagacidade era outra de suas virtudes.

Ele avançou meio passo.

— Um jovem que conhece as regras de jogo deste lugar.

— Pensa que isto é um jogo?

Encolheu os ombros.

— Expressei-me mau. Estou tentando saber como funcionam as coisas neste lugar.

— Você e seus amigos são má gente e nós somos inocentes.

   Sua besta interna queria sair e matar. Essas mulheres estavam padecendo e ele tinha nascido para proteger a gente como ela.

Era um hábito difícil de deixar.

Esclareceu voz e esquivou seu olhar.

— Quantos homens há aqui? Só os de ontem à noite ou há mais?

— Não sei.

— Quem é o líder, além do Jackson? Quem é o chefe?

— Não sei.

— Ouviu falar de Chicago? Dos meninos?

— Meninos? — Sua cara empalideceu — Não... Não sei.

— Maldição! É que não sabe nada?

Mara se retraiu, acovardada.

— Só sei que estão caçando a mulheres como cães...

Connor sentiu uma espetada no estômago.

   —... E que teria escapado esta noite se não tivesse sido por você, que se intrometeu. — Acrescentou.

— Teriam tornado a agarrá-la como às demais.

— Teríamos conseguido escapar.

— Nem em sonhos.

Mara deu as costas.

   Connor afastou bruscamente o cabelo da cara. Deus, como podia ganhar sua confiança sem falar mais da conta nem revelar mais informação da que ela podia saber?

   Esses homens eram muito piores do que ela pensava. Eram Gargouillen. Se adquiriam forma de besta e desatavam seu instinto animal, podiam-nas perseguir e desossar como cães sabujos. Ouviram uns passos apressados e impetuosos na escada; isso só podia significar que tinham encurralado às fugitivas.

— Connor, está aí?

— Sim.

   Do corredor se ouviu um assobio de descrédito. Quando terminou com o vaio, Jackson voltou a falar:

   — Ouça, noto muito silêncio. O que acontece? É muito mulher para você?

   O pomo tremia como se tivesse vida própria. De repente, Connor reparou em seu engano e atravessou correndo a habitação, tirando o pulôver sem deter um instante.

   Mara pôs os olhos como pratos. Colocou os braços como barreira para defender-se, mas ele foi mais rápido. Mais forte. Agarrou com força a manga da blusa, arrancou todos os botões e a conduziu à cama, aterrissando em cima dela em questão de segundos.

   Seus irmãos faziam o que queriam quando queriam, sem importar que estivesse mau ou que estivessem semeando sofrimento. Não esperavam menos dele.

   Entre grunhido e grunhido, desabotoou a calça e desceu o zíper enquanto a segurava com firmeza.

   Seu corpo fino e magro se sacudia debaixo dele. Tinha as pupilas dilatadas. Tentou levantar o joelho para impactá-lo entre suas pernas, mas o esforço foi inútil. Ele impedia todos seus movimentos.

— Sai de cima! — Gritou ela.

— Fique quieta! — Respondeu com um sussurro aceso.

   Ela se retorcia e tentava golpear o peito com a cabeça.

       — Não penso ser outra de suas escravas sexuais. Antes, me mato. E mato você!

— Como disse?

— Já me ouviu. Mato você!

   Não podia dizer que entendia suas vontades de matar (sobre tudo, se Jackson estava escutando atrás da porta). Queria saber a que se referia com isso de “escrava sexual”, mas ela também necessitava respostas.

   Ao pensar na terrível ousadia de seus novos irmãos, Connor descobriu por que raptavam às mulheres.

Esse pensamento produziu náuseas.

   — Parece que tem probleminhas, irmão. — A vibração de sua risada se transpassou à porta — Te ajudo com esta mulher?

Connor tampou a boca dela com as mãos.

   — Uff, não — Fez um esforço com o ombro e investiu a cama contra a parede. Outra vez. E outra — Não, não. A coisa vai bem.

   A coisa teria ido melhor se sua reação corporal não tivesse sido tão espontânea, se não tivesse descoberto que gostava dessa fricção, que eram como duas peças perfeitamente encaixadas.

   — Uuuy — Disse uma voz — Me parece que tem para momento...

   As gargalhadas explodiram do outro lado da porta, mas os homens não faziam gesto de ir.

   Lentamente, aproximou-se de sua orelha e destampou a boca. As pequenas baforadas de fôlego quente lhe roçavam a pele.  

   — Grita — Sussurrou com a respiração entrecortada, voltando a investir a cabeceira contra a parede.

Apertou sua coxa para contê-la enquanto segurava suas pernas. Tinha o peito esmagado; podia notar o batimento de seu coração como o bote de uma bola embora externamente não se notasse que estava respirando.

Arremeteu de novo contra a cabeceira.

— Vamos, Grita!

 

                                         Capítulo 3

— Nathan!

   Rachel Vandermere Cross saltou da cadeira para receber seu marido no escritório improvisado da Associação de Jovens Cristãos. A congregação de Chicago dos Gargouillen tinha tido que escolher essa convocação depois de que seu colégio e também lar, St. Michael's, foi atacado dois meses atrás. O edifício sofreu um incêndio devastador e, como tinham pretendido sequestrar os meninos, Nathan e Teryn decidiram resguardá-los para garantir sua segurança.

   Atravessou o escritório dando três pernadas e se lançou nos braços de Nathan, abraçando-o como um náufrago abraça um salva-vidas.

— Ah, que vontade tinha de que voltasse. Está inteiro.

Nathan beijou a cabeça e a olhou de cima abaixo.

       — Já falamos duas vezes por telefone desde ontem. Sabia que estou bem.

       — Bom, tinha que comprová-lo. — Recuou uns passos para olhá-lo — Dois braços, duas pernas e esses olhos verdes. Vejo que não te falta nada.

Voltou a abraçá-lo.

   Teryn Carnegie, Líder da congregação de Chicago, apareceu atrás de Rachel e tirou os óculos de aros metálicos.

— Então Connor já está dentro.

   Nathan confirmou o que já sabiam com um simples movimento de cabeça.

   O plano que tinha urdido o marido de Rachel para infiltrar Connor no grupo que os tinha atacado não era nenhuma loucura. Tampouco Rachel estava louca, embora tivesse discordado que Nathan fingisse sua própria morte deixando-se cair em um rio gelado para lhe dar mais credibilidade. Não tinha ocorrido nada melhor. Não havia outra alternativa.

   Depois de infinidade de semanas seguindo a pista das duas gárgulas que tinham tentado levar seus meninos, de torturar-se durante todo o processo e de espiar à congregação de Minnesota quando por fim a localizaram, Connor decidiu aproximar-se do grupo desertor renegando proceder de Chicago. Manifestou seu descontente para o líder de sua congregação (argumento que não se afastava tanto da realidade, pois ele e Nathan se chocavam em muitos pontos). Disse que tinha rompido a relação com seu grupo e que queria unir-se a eles.

   Ao princípio, rejeitaram-no. Quando Connor insistiu, quiseram fazer uma prova. Um deles disse que abririam as portas a sua congregação se levava o corpo do assassino de seu irmão, um dos assaltantes de St. Michael's.

O corpo de Nathan.

   Fingiram, então, o assassinato de Nathan. Evan Cain, médico e gárgula, extraiu sangue de Nathan para espalhá-lo por seu corpo e obter, assim, um maior efeito (as gárgulas cheiravam o sangue: teriam detectado no momento qualquer artifício).

   Connor lançou o corpo de Nathan no rio e este, uma vez submerso, mudou em gárgula e ficou protegido por sua morfologia rochosa enquanto outros dois irmãos treinados em atividades aquáticas esperavam debaixo da superfície com material de submarino.

Era um plano arriscado, mas tinha funcionado.

Teryn tinha observado a cena da ponte graças à Segunda Visão, uma visão auto-hipnótica que permitia às gárgulas ver muito além de seu entorno físico. De fato, Teryn tinha compartilhado a visão com Rachel (um pequeno truque que tinham ido aperfeiçoando durante os últimos anos).

   Como fêmea, Rachel não tinha direito a possuir nenhuma virtude das gárgulas. Mas, como descendente da primeira geração de Os Antigos, primeiros habitantes de Rouen, seu sangue de gárgula era muito mais puro que a de qualquer outra mulher em muitas gerações. Podia ouvir a chamada e sua mente operava uma frequência similar a de qualquer homem de sua irmandade. Podia remover os pensamentos dos Gargouillen; sentir suas intenções. Podia compartilhar imagens, como tinha feito com Teryn.

   Tinha visto, apesar da distância, como Nathan saía do rio e se abrigava com umas mantas que tinham preparado seus irmãos para evitar uma hipotermia. Não obstante, era todo um alívio vê-lo em pessoa.

   Nathan atirou a jaqueta negra de pele sobre a cadeira e se sentou.

— Inteirou-se de algo desde que entrou?

Teryn se sentou na mesa e se voltou a pôr os óculos.

— Não pude. Está muito perto deles.

   O “túnel” da Segunda Visão, tal e como o haviam descrito a ela, era um circuito de duas vias. Se qualquer gárgula se achava em um extremo e emprestava muita atenção, podia notar sua presença e reconhecer a origem do circuito.

   Teryn não podia permitir que isso acontecesse. Pela própria segurança dos meninos, a nova localização das gárgulas de Chicago devia ser um segredo e tinham que impor, portanto, restrições de comunicação.

Dois membros da congregação observavam constantemente os minesotanos. Connor passava mensagens a seus irmãos utilizando métodos muito simples como sinais manuais, sempre e quando pudesse sair ao campo para fazê-los. Além disso, tinham desenhado uma zona de recolhimento especial para a comunicação escrita, contando com que Connor pudesse deslocar-se até esse ponto.

   Rachel ficava muito nervosa pensando em todos estes estratagemas. Com a esperança de aplacar um pouco seu nervosismo, serviu três xícaras de chá caseiro (hoje era hortelã) do onipresente bule que colocava sempre atrás do escritório de Teryn e foi passando.

— E agora o que fazemos?

   Nathan deu um gole à xícara e voltou a deixá-la na bandeja. Por um instante, Rachel se deixou embriagar pela pura contradição: como um homem tão forte e potente, com esse instinto animal, podia ser um amante tão virtuoso e segurar essa xícara com um porte e delicadeza dignos de um bom cortesão.

— Observar e esperar — Respondeu.

— E se começar a ter problemas?

   — Christian e Mikkel estão perto. E Noble e Rashid também. Se efetua a Chamada, acudirão.

Rachel deixou o chá em uma esquina da mesa.

— São cinco contra doze.

   — Não podemos fazer outra coisa. — Teryn suspirou —. Não podemos enviar aos vigilantes dos meninos.

   — E já fazemos o bastante. Possivelmente muito. — Nathan olhava a xícara, circunspeto. Ele e Connor compartilhavam um passado comum cheio de rancores, mas na última etapa de suas vidas tinham conseguido chegar a uma espécie de trégua; ao menos, enquanto se repetissem esses incêndios e ataques contra a congregação. Apesar de tudo, franziu o sobrecenho — E sabia o risco que corria quando aceitou a missão.

 

Mara abriu a boca para gritar, mas não pôde pronunciar som algum: nem som, nem palavras, nem demandas nem súplicas. Tudo isso a ultrapassava. Seu corpo estava em Minnesota, mas sua mente seguia em Los Angeles. No sul. Mau lugar.

 

   Outro assistente social novo. Parecia que jogassem há um cada semana. Tampouco tinham a culpa. A maioria desses meninos bons e educados não tinha pisado nunca nessa parte da cidade e saíam assustados.

   Já não chegava à entrevista das quatro. Esteve a ponto de passar da entrevista, mas já tinha três delitos em seu histórico e tinham surpreendido voltando a roubar um reprodutor do CD. Tinha dezessete anos, assim, se decidiam encerrá-la, já não a levariam a um reformatório.

   Dispôs-se a abrir a porta e olhou o relógio da parede. As cinco e cinquenta e oito. Não fechavam até as seis, mas o lugar estava vazio.

   Merda. Se não tinha um pouco de sorte, ele teria ido e informaria que ela não tinha podido chegar ao encontro, depois de ter feito a comprida viagem de ônibus do vale até ali.

   Suas sapatilhas esportivas chiaram ao entrar no edifício e pisar no piso de poliéster. Havia uma luz ao final do corredor.

Talvez tinha sorte e não se foi ainda.

   Havia uma placa com uma assinatura escrita à mão que punha Steven Thurleson e na mesa estava sentado um homem calvo e bojudo com a testa suarenta, que não parava de fazer ganchos de ferro em uma caderneta.

Mastigou um par de vezes o chiclete.

— Senhor Thurleson?

   O homem levantou a cabeça como se suas palavras tivessem sido um chicote.

   —... Sou Mara Kincaid. Venho à entrevista das quatro. — Disse com um tom vacilante.

— Chega tarde.

— Sinto muito — Encolheu os ombros — Não pude pegar nenhum meio de transporte.

   Deixou a caneta na mesa e olhou para cima. Ela pressentia que ia dizer que esquecesse, que era muito tarde, que ele partia. Mas, no percurso de seu olhar do escritório até seu rosto, os olhos ficaram cravados em seu seio.

   A surpreendeu um pouco. Nunca tinha tido muito, mas tampouco importava.

       — Bom, ficarei um momento mais — Disse, lançando um suspiro ao ar como se estivesse fazendo um favor — Vêem, entra, entra.

Ficou petrificada por sua maneira de olhar o seio e não se moveu.

   — Vamos, entra... — Voltou a dizer, levantando-se e assinalando a cadeira frente à mesa — Fecha a porta depois de entrar.

E isso fez ela.

Então, ele a rodeou e trancou a porta.

 

   Mara começava a notar como a cabeça dançava sozinha e se movia sem controle. Demorou uns segundos em dar-se conta de que alguém a estava sacudindo. E, com essa tremenda facilidade, Los Angeles deixou de existir. Ali ficou tudo o que ela tinha deixado. Ou isso pensava.

   Estava em Minnesota, em um velho casarão. Sua blusa feita farrapos e o peso contundente de um homem em cima dela. O aroma de seu corpo e sua ereção produziam intensos soluços. Suas mãos retinham seu corpo.

   Fervia-lhe o sangue. A raiva acumulada produziu a suficiente força para empurrá-lo e levantar-se de um salto, fazendo voar a chave que escondia no punho da blusa e cravando-lhe no braço.

   Connor teve um momento de trégua para expressar sua surpresa antes de retorcer-se de dor ao notar a espetada do garfo no braço. Tampouco era uma arma perigosa (a não ser que a cravasse no olho ou no pescoço), mas estava afiada e ela a empunhava com toda a força.

— Aaau! — Gritou.

   Em um primeiro momento de estupor, ela teria jurado que a cara dele estava se transformando. Os olhos brilhavam. Então arremeteu com o braço bom e apartou a arma com contundência.

   — Ei! Que merda passa aí? — Perguntou Jackson do corredor — Cheirei sangue. O que estão fazendo?

   Seu rosto passou da dor à raiva; soltou-a de repente e lhe deu uma bofetada. Examinou a ferida do braço com a mão esquerda e espalhou o sangue na comissura de seus lábios justo quando Jackson abriu a porta e entrou como uma exalação.

   Connor e Mara se voltaram em uníssono para olhar o intruso. Os dois respiravam com dificuldade. Connor mantinha a mão levantada e apertava o braço contra o quadril para que Jackson não visse a ferida.

   Mara saboreava seu sangue e o rastro quente da bofetada de Connor aguilhoava a cara visivelmente vermelha.

   Connor passou o dedo ensanguentado pela cara e, com o olhar cravado em Jackson, levantou o dedo agressor e o chupou. Com um tom sutil que diluía a tensão de seus músculos duros e que tocou comprovar, disse:

— Saia daqui. Nos deixe em paz.

   Depois de um comprido minuto, a porta se fechou silenciosamente e o ruído de uns passos enérgicos brocando o corredor retumbou no quarto. Connor a liberou.

   Como um camundongo que foge da armadilha, Mara se levantou, arrastando a colcha de fio de lã, correu ao outro extremo do quarto e a envolveu nos ombros.

Connor se levantou e fechou as calças.

— Está bem?

Mara estava começando a digerir tudo o que tinha acontecido.

E o que não tinha acontecido.

   Observava o movimento de seus músculos ao contrair-se enquanto colocava o pulôver e ficou fascinada por sua força. Pela tensão que imprimia.

   Connor começou a aproximar-se pouco a pouco, tentando manter a maior distancia possível nesse diminuto quarto, como se entendesse perfeitamente sua necessidade de espaço. Como se ele também necessitasse um espaço próprio.

Pela primeira vez, observou-o atentamente. Era alto, mas tampouco era um gigante. Um metro e oitenta. Compleição forte. Ombros robustos e bíceps largos que estiravam a cada passo o pulôver verde de caçador. Os músculos fortes de suas coxas cresciam debaixo desses jeans azuis a cada movimento e, entretanto, não caminhava como um predador nem passeava como um perfeito vencedor acostumado a jogar com vantagem.

   Atravessava o quarto com um passo firme, como se levasse o peso do mundo em suas próprias costas.

Ou em sua mente.

   O terror que a apanhava minutos antes também cedeu. De fato, ruborizou-se, mas não estava disposta a trocar de postura; sentia-se segura e protegida com a colcha de fio de lã.

— E como é que...? — Perguntou com voz fica.

— Eu não violo às mulheres. — Arremeteu ele.

— Ah, mas quer que seus amigos pensem que sim, não?

   Mara pensou que certamente era incapaz de fazê-lo. Possivelmente estava incapacitado, necessitava ajuda médica e não queria que outros se inteirassem.

   Esse pensamento provocou um sorriso súbito; não porque fosse insensível aos problemas de impotência, mas sim porque estava roçando a histeria, sobre tudo depois de imaginar a sua amiga Ângela queixando e protestando sobre a injustiça de não poder desfrutar de um homem como esse.

   O coração deu um tombo e o sorriso se desvaneceu. Ângela não estava ali; Mara não sabia o que tinha acontecido ou o que tinha levado a meter-se em problemas.

   Connor deu a volta bruscamente. Seus olhos azuis estavam tintos de uma agonia tão intensa que cortou a respiração justo quando ia exalar um suspiro.

   — Sinto ter te assustado — Disse. Sua voz suave se tornou tenebrosa outra vez e ela sabia que seu fôlego apaixonado já não era o resultado de uma pantomima — Não tive tempo de te explicar nada.

   Mara encolheu os ombros, tentando calcular seus movimentos como se estivesse de pé em um pequeno barco açoitada pela maré.

   — Bom, tampouco foi sua culpa. Além disso, só me arrancou alguns botões e, bom, tem-me feito me lembrar de coisas desagradáveis.

— Deus — Sacudiu a cabeça — Alguém te ...?

— Não — Respondeu rapidamente — Faz muito tempo e, além disso, tampouco foi exatamente assim. — Começava-se a sentir mais segura, mais confiante. Queria que ele soubesse perfeitamente o que ela era capaz de fazer no caso de que ele não sofresse impotência — O matei antes que fizesse algo.

— OH, Meu Deus.

— Que curioso; isso é precisamente o que disse quando cravei o abridor de cartas na cabeça.

— Fez bem. Esse bode o merecia. Isso e muito mais.

— Pois isso não é o que disse o juiz. Eu era uma garota de família humilde com antecedentes penais e ele, um estudante universitário. Sua família sabia o que fazia. Condenaram-me a doze anos e cumpri sete; depois, fiquei em liberdade condicional.

— Meu Deus — Repetiu enquanto murmurava umas palavras e se dirigia à mesa para servir-se outro gole.

— Sim, já vejo que é para casos de emergência.

— Isto é horrendo, homem. — Respondeu, e bebeu o copo de repente, sem tossir. Aprendia rapidamente.

   Tentando esboçar um sorriso pelo resto insegura e vacilante, foi desprendendo pouco a pouco da colcha e a devolveu a seu lugar sem dar a volta para ele. Ainda não confiava.

Connor se endireitou e a agarrou pelas mãos.

— Ouça...

Ela não sabia o que ele queria dizer.

— Não é minha escrava, de acordo?

   Mara tinha um grande peso instalado em seu peito. Seus olhos brilhantes a olharam de cima abaixo.

— Seus amigos sabem algo de seu probleminha? — Perguntou em voz baixa, consciente de quão finas eram as paredes.

— Que probleminha?

— Esse rastro de decência que o acompanha a todas as partes.

— Não — Soltou-lhe as mãos e começou a sentir um formigamento nos pulsos.

   Mara se dispôs a fazer a cama, não porque se sentisse obrigada, mas sim porque assim tinha as mãos ocupadas.

— Quem são esses caras? Uma seita religiosa de gente pirada?

   Connor colocou debaixo do colchão a parte de lençol que se desprendeu e alisou perfeitamente a esquina da colcha.

— Algo assim.

   Mara acabou de fazer a cama e se endireitou. Estavam cara a cara e nenhum dos dois sabia o que fazer a seguir.

— Bom, e quem é você?

— Um cara que busca a verdade.

— E que verdade é essa?

— O que procurava no escritório de Jackson?

   Sentou-se na borda da cama e tocou a franja da Colcha.

— O que tinha escrito nos papéis?

   Não sabia as intenções que perseguiam seus amigos ou a estava submetendo a algum tipo de prova?

   Levantou a face e se encontrou com seus olhos inquisitivos, embora ela o seguia olhando com uma dureza imperturbável.

   — Havia uma lista com um montão de nomes. Mulheres sequestradas como eu. Acredito que as estão vendendo ou algo assim. Comércio de escravas — Apertou os lábios — Escravas sexuais.

   Essa mudança estranha que ela tinha percebido quando cravou o garfo voltou a ressurgir. Seus olhos transmitiam uma luz mais intensa. Sua mandíbula rangeu e as veias do pescoço incharam. Mara começou a recuar e não foi consciente até chocar-se contra o pé da cama.

   Connor levantou bruscamente o braço. Mara agachou a cabeça a modo de reflexo, mas o copo saiu disparado em direção contrária e explodiu contra a parede. Connor saiu rapidamente do quarto sem mediar palavra.

Connor se apressou para a sala de jantar. Pensava que todos estariam dormindo depois do folguedo da noite, mas se equivocava. Devlin estava cortando uma maçã sentado em uma cadeira.

   — Já acabou, Rihyad? — Levantou a vista para as escadas — Vou para lá, ver se eu também posso fazer algo.

   Connor o agarrou pelo pescoço e o levantou apesar de seu enorme tamanho.

— A toque e você morre.

   De repente, o homem bojudo pôs a faca no pescoço sem pestanejar.

— Quer briga? Porque eu não tenho nenhum problema.

   Connor olhou com fúria a faca que esse homem pretendia lhe cravar.

   —... Não, vamos brigar sem nada, como dois homens. Ou tenho que dizer como homem e um bebê?

   O gorila incauto parecia um pouco inseguro. Connor o olhou de cima abaixo, deu a volta e partiu. Em certo sentido, esperava sentir a faca em suas costas de um momento a outro, mas fechou a porta atrás de si sem que corresse o sangue.

Ao sair, o ar gelado o esbofeteou na cara.

   Muito melhor. Só esperava que o frio pudesse sossegar um pouco o monstro. Quando Mara disse que os minesotanos estavam sequestrando às mulheres para transformá-las em escravas sexuais, pensou que ia despertar ali mesmo. Já ouvia os cantos e o fogo começava a queimar e a arrebentar suas veias. Proteger. Proteger.

Matar.

Tinha usado toda sua vontade para vencer o monstro.

   Connor meditava agarrado o corrimão do abrigo. Escravas sexuais, Deus! Se as gárgulas de Minnesota estavam utilizando às mulheres como escravas sexuais, só podia ser para cumprir um objetivo: engendrar filhos. Os filhos garantiriam a reencarnação de seus pais.

Os filhos cresceriam e seriam como eles.

   Mas não tinham um filho e muito menos depois de todas as mulheres que estavam sequestrando, como disse Mara.

   Deus do céu e da terra, acabava de entender por que a congregação de Minnesota tentava sequestrar os meninos de Chicago. Ao ser jovens, eram manipuláveis e, em questão de poucos anos, poderiam transformar-se em soldados. Se estes soldados também engendravam filhos, em poucos anos conseguiriam formar um exército. Um exército de gárgulas.

   Um exército de gárgulas sem moral e sem escrúpulos poderia governar o mundo.

   Tinha que conseguir mais informação sobre eles. Aonde levavam às mulheres para que dessem a luz? Quantos eram em total? Onde criavam os filhos?

Tinha que comunicar-se com Teryn e Nathan.

   E, enquanto isso, o que estavam fazendo com essas seis mulheres? Mara estava a salvo no momento, mas não podia protegê-la constantemente. Ou seja que tipos de tortura estariam padecendo as outras cinco mulheres...

Como ia consentir que essas mulheres fossem vítima de humilhação e o martírio e que, ainda por cima, servissem como mães de um império maligno? Como ia aceitar tudo isso enquanto se refugiava em seu papel de espião, por muito que tivesse que cuidar de sua congregação?

Como pôde aceitar esse juramento?

   E, se acabava escolhendo a essa gente, como poderia viver com sua consciência?

 

                                 Capítulo 4

Connor estava sentado no chão do quarto com as costas contra a parede e um livro aberto contra o peito, ligeiramente inclinado para frente. Gostava de ler. As palavras o serenavam, sobre tudo a palavra do professor. A imaginação e o ritmo das cenas ocupavam sua mente e deste modo não se angustiava com outros feitos.

   Não obstante, a imagem que absorvia sua mente nesses momentos era muito mais real. Levava observando Mara do amanhecer e estava extasiado pelo gentil movimento de seus seios ao subir e descer, pelo suave gesto de seus dedos ao agarrar o travesseiro e pela revoada ocasional de suas pestanas em um rosto pálido e doce.

   Para ser a mulher mais forte que tinha conhecido (tão forte para matar um homem) parecia incrivelmente delicada e vulnerável enquanto dormia.

   Fazia muitíssimo tempo que Connor não estava com uma mulher. Aos dezesseis anos, deixou grávida uma garota. Sentia-se empurrado pela urgência de engendrar um menino, de contribuir com um herdeiro, de cumprir com seu trabalho de propagação da espécie tal e como exigia a magia que o tinha criado e de ser recompensado com a renovação da alma. Devia ter a certeza de que a reencarnação procuraria outro corpo, uma vida nova que começaria quando esta acabasse.

   A garota não queria ser mãe solteira e abortou sem dizer nada até que não havia volta atrás possível.

   Havia mais mulheres em seu percurso vital, mas as mulheres modernas exerciam muito mais controle sobre seus corpos que as garotas do milênio anterior, justo quando se criou a magia escura que lhe deu vida. Tinha vivido com uma mulher durante seis meses e não entendia por que não tinham filhos (já que copulavam como coelhos) até que ela confessou que tomava a pílula. Outras mulheres se negavam a praticar sexo sem camisinha.

   Ao final, retrocedeu em seu empenho de convencê-las. Também podia dever-se a que as decisões de Nathan, que tinha traído seus próprios ideais, estavam influindo mais do que acreditava. Esse tipo de propaganda era contagioso até um ponto desconhecido.

   Que asco do cara. Nathan Cross. Estava disposto a arruinar a sua própria gente, embora provavelmente não ficasse ninguém depois de que os de Minnesota arrasassem com sua congregação.

   Fez um gesto de aborrecimento e se levantou com o livro na mão, marcando com o dedo a página que lia enquanto acariciava a tampa de pele que o cobria.

   Mara levantou as sobrancelhas. Seus olhos ambarinos brilhavam com força.

Despertou e o examinou. Continuando, perguntou:

— Aconteceu algo?

— Não — Esclareceu voz — Só estava lendo.

Mara esquadrinhou o livro forrado de couro.

— Você gosta da poesia?

— Estou lendo Wordsworth.

— A quem?

— Não conhece o William Wordsworth? O prelúdio? Ode à imortalidade?

Sentou-se na cama e colocou o travesseiro nas costas.

— Se acalmou um pouco, hein? O mais próximo à poesia que vi são as letras de rap e os grafites.

   Estirou-se para agarrar o livro. Ele o aproximou. Examinou-o e tocou as páginas.

— É bom?

— Deixo você decidir. Já me dirá isso.

   Seu sorriso se desvaneceu e deixou o livro em cima da mesinha de noite.

— Não me deixam levar isso a porão e é muito grande para escondê-lo.

   Connor voltou a agarrar o livro e o aproximou com soma cautela. Ficou de cócoras para estar ao mesmo nível que ela e tocou o cabelo despenteado que caía sobre as têmporas.

— Não vai voltar para porão.

   Ela não queria albergar a mais mínima esperança. Seria muito doloroso encontrar-se confiando em uma mentira assim.

— Sério?

— A partir de agora, esta é seu novo quarto. — Levantou-se, tentando ignorar a espetada nervosa que se instalou em seu estômago — Fique aqui até que tenha que descer para o café da manhã. Eu vou correr um pouco. Voltarei para a comida.

— Correr?

   Connor tirou uma camiseta e umas calças esportivas da gaveta.

— Sim, correr. Não conhece ninguém que corra?

Enrugou o nariz.

— Nesta época do ano? Com este frio?

— Pois é a melhor maneira de se aquecer.

   Procurou um canto apropriado para trocar de roupa. Ao não encontrá-lo, deu meia volta, tirou os jeans e colocou as calças de esporte. Quando estava pondo a camiseta, voltou-se para ela.

— Me faça um favor. Vá olhando o relógio da cozinha e, quando forem as oito, faça muito ruído. Quebre outra pilha de pratos, algo que chame a atenção das pessoas.

Mara franziu o cenho.

— Por quê?

   “Porque necessito que se distraiam para contatar com meus”. Queria pronunciar essas palavras, mas se conteve. Era muito cedo para confiar nela embora, se fosse honesto consigo mesmo, reconheceria que queria fazê-lo. Mas não devia confiar nela.

   A confiança é mais que coincidir pelas circunstâncias. A confiança é um compromisso sério.

Connor encolheu os ombros fingindo despreocupação.

— Quero ir dar uma volta por aqui para investigar um pouco e estou farto de que estes caras me vigiem a três por quatro.

Mara fez uma pausa e assentiu.

Antes de ir, advertiu-a:

— Ah, e recorda: tenho-a aterrorizada. — Levantou a vista para olhá-la melhor e por um segundo parou o coração ao observar um rosto tão sereno, tranquilo e pouco aterrorizado. A besta interna abriu um olho de alerta. A besta era consciente de tudo — Faça bem seu papel — Disse, finalmente, aproveitando sua semi-liberdade.

Quando já estava no vestíbulo, Devlin o agarrou pelo pescoço.

       — Aonde acha que vai?

Connor deu a volta e tentou se separar com um tapa seu braço roliço.

       — Correr um pouco. Parece-te bem? — Seu tom evidenciava que importava muito pouco sua opinião.

       — Hummm — Soltou-o — Congele os ovos se quiser. Não me importa o que faça.

   Connor deu a volta outra vez. Deteve-se um instante e enrolou no pescoço a toalha que tinha roubado do lavabo.

— Mas não se afaste do alambrado. Se descobrir, oferecerei-me voluntário para te agarrar e te arrastar pelos cabelos até aqui.

— Muito bem. Terei-o em conta.

— Puto louco — Resmungou Devlin enquanto Connor fechava a porta atrás de si — Que asco de idiota.

   Connor revisou o abrigo e deu uma volta pelo terreno, assegurando-se de que não havia ninguém fora. Não viu ninguém, mas isso não significava que não o estivessem observando das janelas.

   A neve rangia e obedecia a seus passos enquanto se ia afastando com cuidado do casarão. Estavam intumescendo os pés e já não notava os dedos. Quando já tinha percorrido três quartas partes do terreno, deixou de sentir o nariz, as bochechas e os braços, mas seu peito ardia de calor. Correr não era o seu e preferia um dia espaçoso para fazer exercício.

   Às oito em ponto, aproximou-se dando pequenos saltos para um arvoredo, apoiou as mãos contra um tronco, estirou-se para frente e começou a levantar os joelhos para trás. Trocou de postura e dobrou as costas para baixo para tocar os pés. Enquanto se dobrava, sacudiu o braço direito e estirou os dedos até tocar o pulso para ir apalpando e retirando pouco a pouco a nota que tinha escrito e que era, em realidade, uma parte de capa de seu livro. Era uma pena destroçar uma obra literária dessa maneira, mas uma situação desesperada necessitava soluções desesperadas.

   Tentando dissimular, guardou na mão essa mensagem para Teryn e Nathan. Foi baixando lentamente a mão para os pés, um pouco mais abaixo e enterrou pouco a pouco a nota na neve aproveitando o esconderijo que lhe oferecia a raiz de uma árvore.

   Levantou-se e olhou ao redor do terreno, observando se havia alguém à espreita e fingindo que não estava olhando nada; reatou o passo da maneira mais natural que pôde e desejou com todas suas forças chegar ao casarão antes de ficar congelado.

Confiava em que Mikkel (ou fosse quem fosse o vigilante de volta enviado para comunicar-se com ele no ponto que tinham marcado), tivesse visto guardar a nota embora ele não os visse. Não obstante, seu irmão não seria capaz de recuperar a nota antes do anoitecer.

Esperava que ninguém a visse primeiro.

 

Mara se dispôs a fingir um susto o bastante intenso para derramar o café das xícaras que serviria no café da manhã. Estremeceria se alguém a tocava, embora não fosse intencionadamente. No momento, seguiu com a cabeça encurvada e o olhar baixo.

   Mas notava quando a olhavam. Notava os olhos de Connor: a raiva fluindo nele como as águas selvagens de uma represa que estavam a ponto de transbordar-se cada vez que a olhava. Sabia perfeitamente por que.

Tocou o novo arroxeado debaixo do olho. Era recente, não doía muito. Nem a dor permanente nem a gravidade importavam muito a Connor. Seus olhos azuis como o céu irradiavam brilhos de luz.

   Como podia ela intuir tão bem como era se outros homens ignoravam seu temperamento? E o conhecia de apenas um dia.

— Ei! Ei! Traz a manteiga. — Pediu Devlin.

   Mara reagiu imediatamente e correu para a cozinha. Estava abrindo um pacote de manteiga e colocando-o em um pratinho quando umas mãos a agarraram por trás. Levou um susto enorme e o sobressalto nada teve que ver com uma simulação.

   Com a respiração afogada, deu a volta e sentiu certa sensação de alívio.

— Connor!

   Obrigou-a a caminhar para trás até que se chocou contra a bancada; levantou-lhe o queixo e inclinou a face para vê-la bem com a luz do dia.

— Quem te fez isto? — Grunhiu.

   Tentou se incorporar e levou a mão à arroxeado por puro reflexo.

— É igual, não importa.

— Claro que importa. Quem?

   Apertou os lábios e sacudiu a cabeça. Desconhecia os motivos, mas estava comprovando que ele se transformasse em seu protetor. Não é que queria rejeitar sua ajuda, mas há batalhas que deve ganhar por si mesma. Em algum momento da vida, Devlin acabaria pagando por bater nas mulheres. Até esse momento, Mara não queria criar mais receios entre esses dois homens. Devlin não só era um homem feio e bojudo; era miserável como um rato e estava segura de que não custaria nenhum esforço matar Connor pelo simples feito de que não lhe caía bem.

   Mara não sabia o que fazia Connor ali. Não tinha demonstrado suas verdadeiras intenções, embora estava claro que, com ele, as coisas eram bem diferentes.

   Era muito precavida e cética para confiar nele cegamente, embora nesses momentos ele era um bom pilar ao que se podia agarrar para sobreviver a essa tragédia. E inclusive podia ajudá-la a encontrar Ângela.

Necessitava-o vivo.

   Levantou a cabeça pela primeira vez em toda a manhã. Connor permanecia pego a ela. Seus olhos azuis transmitiam frieza, mas seu corpo estava tórrido.

— Pode fazer essas comprovações pessoais?

Connor assentiu.

— Então, saiu tudo bem, não?

— Sim, já o vejo. Estou seguro de que você pagou por isso. Teria que ter exigido que...

— Esquece, Connor. Tudo bem.

Voltou a pegá-la pelo queixo e levantou a cabeça. Já não olhava a bochecha, estava olhando os olhos. Mara assumiu seu olhar com a mesma intensidade, embora era como olhar ao sol. Tinha um olhar cegador.

   Então, advertiu a presença de uma mão na porta rangente e, atrás deles, ouviram-se uns passos torpes e pesados.

— Mulher, onde está a manteiga que te pedi?

   Connor espiou a cena rapidamente por cima de seu ombro. O pânico se instalou na garganta da Mara e, antes que pudesse gritar ou falar, Connor a cobriu com as costas. Enquanto Devlin ia entrando na cozinha, Connor tampou a boca e a fez agachar-se com ele. Deixaram de ouvir passos.

   — Que filho de puta. É que não pode deixá-la só um momento para que trabalhe e faça o café da manhã, Rihyad!

   Mara não sabia se Connor quereria responder. De momento, estava falando com ela com calor de seus sussurros e com pequenos mordiscos.

Isso sim que foi uma revelação.

   Com a mão esquerda lhe acariciava o pescoço, subia até o queixo e abria brandamente a boca. Com a mão direita, apreciava a curva de suas costas e a empurrava sutilmente para atraí-la para ele, para o batimento de seu coração.

Connor se equilibrou diretamente sobre sua boca, afundando até onde pôde para separar seguidamente sua boca em um movimento incitador e estimulante e provando sua língua para esquivá-la e brincar com ela.

   Apesar da tentativa de violação que sofreu aos dezessete anos e de passar a maioria de sua etapa pós-adolescente em uma prisão de mulheres, Mara não era virgem. Tinha estado com meninos. Mas jamais tinham feito amor dessa maneira.

   Tampouco tinha respondido nunca dessa maneira. Com essa gratidão; com essa complacência.

Surpreendeu-se ao notar a provocação que impunha sua língua e começou a brincar com a língua de Connor. Suas línguas jogavam espreita e à perseguição. Quando a apanhou, se apropriou, mordiscou-a e a chupou e simulou o ato de amor, estupefata com a ereção que o mesmo ato estava produzindo.

   Já não precisava que Connor a agarrasse: seus corpos se achavam intuitivamente unidos.

— Me dê a manteiga de uma vez! — Devlin arrebatou o pratinho da mão. Fez bem, porque acabaria atirando-o em qualquer momento.

— Vão a um quarto! — Exclamou enquanto saía bravo da cozinha dando uma portada.

   Com calma e suavidade, Connor se separou de sua boca e levantou um pouco a cabeça. Seu fôlego se desbocava em rajadas cálidas que ondulavam sobre sua testa.

   — Já se foi.

   Só podia assentir. Sabia que não era um beijo verdadeiro, que era uma cobertura para evitar que Devlin perguntasse do que tinham estado falando tanto juntos ou para assegurar-se de que esse panaca não a curvasse mais com a manteiga. Era o cenário perfeito para a farsa que Connor estava preparando.

Ela sabia, mas não por isso era menos decepcionante.

   De maneira meio consciente, passou a mão pelo cabelo e se retraiu para impor um pouco de distancia entre os dois corpos.

— Será melhor que volte para trabalho.

   Não fez nenhum movimento para detê-la. Entretanto, quando deu a volta antes de ir, observou como seus olhos azuis tinham trocado a cor anil. As veias das mãos inchavam e desinchavam e tinha a respiração agitada como se tivesse corrido uma maratona.

   Verdadeiro ou não, o que não se podia negar era o vínculo especial que se criou entre eles dois.

  

                                       Capítulo 5

— Quer o que?!

   Nathan estava recuperando do choque de saber que a congregação de Minnesota tinha tentado sequestrar às gárgulas jovens de Chicago para utilizá-las como soldados em uma guerra contra a humanidade e que tinham retidas seis mulheres para engendrar a mais meninos. Sua mente não pôde processar a segunda parte da nota de Connor. Não tinha nenhum sentido.

Agarrava-se fortemente ao telefone para ouvir bem ao Mikkel.

— Zumaque. Veneno de zumaque ou carvalho venenoso. O que encontremos primeiro.

   Sim. Tinha ouvido bem. Escreveu os nomes e passou a mensagem o Teryn.

— E como vamos encontrar? Nesta época do ano é muito difícil.

— Pergunte ao Teryn. É nosso herborista particular.

— O zumaque não é uma erva.

   Ao ler a nota, Teryn enrugou a testa e suas sobrancelhas negras desenharam um v de preocupação que contrastava com seu cabelo grisalho. Rachel apareceu a seu ombro para ler o que Nathan tinha escrito e sua expressão adquiriu o mesmo tom sério.

       — Bom — Disse Nathan a Mikkel — Chamaremos quando tivermos pensado um pouco.

Nathan desligou o telefone e exalou um suspiro.

Teryn sacudiu a cabeça.

— Mas para que quererá essas plantas?

Nathan estirou os braços em cima da mesa.

— Quem sabe.

— Mas se arriscou a escrever uma nota é porque é importante. — Disse Rachel — Sabem onde podemos encontrar essas plantas nesta época do ano?

   Teryn acariciava as folhas da hortelã que acabavam de transplantar e colocar no escritório.

   — A única opção é viajar ao sul, mas temos que percorrer milhares de quilômetros. Podemos ir a um herbário; aí poderemos encontrar as plantas nativas daqui e há muitos lugares que desprezam as más ervas.

   Rachel se aproximou do computador colocado atrás do escritório de Teryn e começou a teclar com rapidez.

   Nathan desfrutava vendo-a colaborar, embora não gostasse que tivessem que trabalhar tanto. Preferiria ter mais tempo para estar com ela.

   Tampouco é que não tivessem oportunidades de desfrutar de um do outro...

   Esforçou-se por tirar de sua mente a lembrança do que tinham feito na cama essa manhã e se concentrou no objetivo a seguir enquanto a impressora ficava em marcha.

— Estou imprimindo fotos da Internet. — Disse Rachel — Vamos reparti-las a quanta mais gente melhor.

— Isso vai levar tempo.

   Ele reconhecia esse brilho em seu olhar. Envolveu-se em uma missão e ia continuar até o final. Recolheu as fotos uma a uma e as sacudiu diante de Nathan para secá-las.

— Vamos lá.

 

Depois de ter saído a correr por três dias consecutivos (o primeiro dia enterrou a nota e os outros dois esperava a resposta). Connor se achava no vestíbulo do casario com a roupa esportiva empapada de suor. Se continuasse com essa rotina de exercício, acabaria se acostumando ao frio (isso se não morresse antes).

   Olhou a seu redor. Três de seus irmãos, incluído Devlin, estavam vendo um jogo de futebol. Dois vadiavam a cada lado do sofá e gente roncava a pleno pulmão. Jackson estava sentado em uma cadeira estofada, absorto em seus próprios pensamentos. Ou isso ou estava em coma. A Connor custava diferenciar esses dois estados.

   — Bom, vamos fazer algo hoje? — Perguntou, dirigindo-se a Jackson — Pensou em algo ou temos que estar todo o dia sentados, como porcos?

   Assim, Connor nunca conseguiria surrupiar informação para contra-atacar seu império do mal. Devlin arrotou sem afastar o olhar do futebol.

— Pensava que já estava bastante entretido com seu chute diário na fulana.

   Connor ardia em desejos de dizer o que queria chutar ele, mas tinha medo de que Devlin quisesse demonstrar sua virilidade com qualquer das garotas e mordeu a língua. Com um pouco de sorte, dentro de pouco já não ficaria nada desses homens. Até esse momento, devia manter a boca fechada.

— Se acalme, Dev. — Disse Jackson.

   Devlin fez um gesto com os dedos a seu superior e voltou a fixar-se no jogo de futebol.

   Jackson fingiu que não tinha visto o gesto. Também dava no mesmo. Dentre todos os homens que se reuniam nesse lugar, Jackson parecia ser o mais equilibrado.

   Ao observar esse gesto, Connor perguntou a si mesmo por que tinha ido juntar-se com essa banda de idiotas.

— O que, aborreceu-se?

— Não, só quero trabalhar pela congregação. — Evitou dizer que só poderia descobrir exatamente o que estavam tramando e quem era seu líder se misturasse em suas atividades.

   — Muito bem, então. — Jackson se levantou, aproximou-se do televisor e o desligou. Os três homens se queixaram e sopraram ao ato — Necessito três treinadores. Benson, Hard Case e Devlin — Assinalou com a cabeça a Connor — Já conhecem as instruções. Obtenham mais sangue, e não tirem o olho de cima dele.

 

Mara estava estirada na cama lendo com os joelhos levantados quando ouviu o ruído da chave girar no ferrolho. Levava três dias presa no quarto e só descia para as comidas e jantares.

   Tampouco se queixava. Era muito melhor que a cela do porão.

   A porta chiou pouco a pouco. Mara sentiu uma descarga de excitação ao ver que era Connor e que estava sorrindo.

— Tem uma cara radiante. — Disse ela.

— Sim, uma corrida sempre me anima.

— Mentiroso. Sempre volta com o bigode tremendo! — Respondeu ela, deixando para outro momento o jogo de confianças. Tinha seus segredos e ele também. Ainda não confiavam um do outro.

Connor tirou a toalha do pescoço e recolheu a roupa.

— Gostou do livro?

Ela leu uma estrofe:

Nada mais belo tem a Terra que nos mostrar; torpe seria a alma se não o contemplasse, visão tão emotiva de funda magnificência; a cidade leva posta, como uma vestimenta, a beleza dos dias silenciosos, nus...

E ele prosseguiu:

... Erguem-se navios, torre, domos, templos, teatros abertos aos campos e também aos céus, tudo brilha e resplandece no ar impoluto.

— Nossa. Sim que você gosta de Wordsworth! E estou de acordo. — Disse ela, ainda encantada com esses versos por muitas vezes que os lesse — Sua poesia é preciosa.

   Seus olhares se cruzaram e ambos sentiram uma espécie de calafrio, essa sensação familiar que compartilhamos com alguém muito conhecido, e que empurrou a querer beijar. Mas de verdade.

O momento chegou a seu fim e ela afastou o olhar.

— Vou tomar uma ducha; tenho que me trocar. Quero que esteja todo o dia presa no quarto.

Como se fosse o mais normal, respondeu.

— Aonde vai?

Vacilou por um momento.

— Ao trabalho.

   Passou pela cabeça pedir mais explicações, mas resolveu para si mesma, que isso não levaria a nenhuma parte.

   Diante os sinais evidentes de sua inquietação, Connor levantou a cabeça para assegurar-se de que a porta estava fechada e ninguém os observava. Falou quase em sussurros:

— Necessito que faça uma coisa hoje.

— Mais diversão? — Respondeu com uma risadinha interna.

— Não — Tirou uma bolsa de plástico debaixo da jaqueta.

— Quer que fume maconha?

Connor reprimiu uma gargalhada.

— Não é maconha. É zumaque. Quero que o dê às mulheres de baixo para que o esfreguem nos braços e no pescoço. Com um pouco já basta. Em seguida coçará muitíssimo a pele.

— E por que quer que irrite a pele delas?

   — Não é que queira que irrite a pele delas. Quero que saia umas erupções. E também tem que dizer que tussam bastante durante o dia, sobre tudo na hora do jantar. E tampouco estaria mal que pusesse algo na face para que pareça que têm febre. Diga que atuem bem.

Pouco a pouco foi entendendo tudo.

— Ah, quer que façam um pouco de teatro...

Connor franziu o cenho.

   — Pobres garotas... Vivendo no porão como ratos. Aí podem pegar de tudo: erupções, febre... E inclusive pode ser contagioso. Muito contagioso.

   Um tímido sorriso começou a se desenhar em seu rosto, seu primeiro sorriso verdadeiro em... Toda sua vida.

   —... E nesse caso, os homens não quererão aproximar-se delas nem, certamente, levá-las a seus quartos.

— Me acredite, se algum deles vê uma erupção assim, não quererá aproximar sua cauda nem a um milímetro. Acha que as garotas serão capazes de fazê-lo?

— Estou convencida. — Examinou as folhas através da bolsa — De onde tirou isto?

   Seu silêncio falava por si mesmo. Além disso, enquanto cortava batatas para fazer um guisado o tinha visto através da janela da cozinha duas manhãs seguidas mexendo com o pé na neve.

— Tenho meus próprios recursos.

— Bom, então nos vemos esta noite.

   Connor se dirigiu para a porta com sua roupa e se deteve um momento antes de ir.

— Ah, uma coisa mais: não te ocorra te esfregar esta erva pelo corpo.

— Por que não? — Tentou transmitir um tom de ofensa, mas foi impossível.

— Para eu poder aproximar minha cauda sem problema.

Mara esteve a ponto de voltar a rir.

   Quando ele entrou no banheiro com um sorriso no rosto, Mara ficou sem fôlego e voltou a notar esse calafrio: a mesma sensação que percorreu seu corpo ao ler Wordsworth.

Mas dessa vez durou muito mais.

 

   Essas mulheres mereciam ganhar um Oscar.

   Connor se passou todo o dia arrebentando caixas e assaltando armazéns de todo tipo para conseguir desde peças de carro até caixas de cerveja. Essas gárgulas não mudavam de forma para cometer os crimes: colocavam uma mascara de esquiar como qualquer ladrão.

   O pior era que Connor não tinha descoberto absolutamente nada sobre a estrutura de comando do clã de Minnesota; nem sequer sabia onde estava sua sede principal ou quantos eram em total. Tinham respondido com evasivas a todas suas perguntas.

   Depois desse dia perdido, pôde desfrutar, ao menos, da brilhante atuação das garotas.

   Rondavam em torno da mesa servindo os homens com aspecto gasto e com atitude cansada e decaída. Connor tinha podido contemplar tudo. Tossiam, arranhavam-se e massageavam as têmporas como se doesse a cabeça. Entretanto, as sempre vigilantes gárgulas de Minnesota não disseram nada, mas o momento crucial tinha que chegar.

   Jackson segurava o garfo enquanto comia o prato de batatas.

— Não cheira a queimado?

   Hard Case entreabriu com a cabeça rapada a porta da cozinha e esteve a ponto de cuspir a cerveja.

— Há fumaça!

Doze cadeiras se afastaram de repente da mesa. Na cozinha, Theresa, a garota mais jovem, estava esparramada no chão de ladrilho. Tinha os olhos fechados e a cara vermelha, e o leite que estava esquentando para preparar a sobremesa se derramava por ambos os lados da chaleira, criando uma fumaça e um assobio potente.

   Connor abriu caminho entre o grupo e se ajoelhou diante da garota. Tocou-lhe a testa.

— Está ardendo.

   As outras mulheres estavam acovardadas e amontoadas em um canto.

— O que está acontecendo? — Perguntou um homem fraco, de nome Benson.

   Mas como podiam ser tão toscos? Não se davam conta do que acontecia? Connor necessitava que pusessem um pouco de sua parte.

— Não estou seguro. — Tomou o pulso, fez um estalo de dedos diante dos olhos e observou a pupila, perfeitamente sã — Mas tem muito mau aspecto. Teremos que levá-la...

— O que?

   Connor estava nervoso pelo que pudesse pensar Jackson, pois este não era tão tolo como outros. Mas, se este mordia, todos outros acreditariam no teatro sem problemas.

   Riscou uma linha paralela com o dedo em cima de seu antebraço e assinalou o estado inchado e irritado de sua pele.

— Olhem.

— Nossa. Vamos levá-la para baixo e seguimos com o jantar. — Propôs Hard Case, dando um passo à frente. Dispôs-se a agarrar a Theresa nos braços.

— Eu se fosse você não o faria. — Advertiu Connor.

— E por que não, porra?

— Não temos nem ideia do que tem. E se for contagioso?

— Contagioso?

O grupo inteiro recuou em uníssono.

— Só é uma erupção. — Particularizou Benson, sem atrever-se a se aproximar tampouco.

   Esse momento era muito importante. O êxito ou o fracasso pendiam de um fio.

   Jaina, que estava no casarão a tempo suficiente para que tivessem saído umas espetaculares raízes negras em seu cabelo loiro tingido, separou-se do grupo de mulheres. Tossiu e mostrou o braço.

— Também tenho.

— Eu também. — Acrescentou outra voz tímida.

— Eu também.

— A mim também.

   A todas menos Mara e a outra garota (uma estratégia sutil para que não fosse muito evidente).

Jaina tinha a face desencaixada.

— É grave? Corremos risco de... morte?

— Não dramatizemos... — Disse Connor, embora isso era precisamente o que queria fazer.

Jackson se aproximou de Theresa.

— O melhor é que um médico a veja.

O coração de Connor se paralisou.

— E o que pensa em dizer? Que as mulheres que temos presas no porão pegaram erupções?

— É verdade, não é uma boa ideia. — Jackson não estava especialmente lúcido. Connor não esperou essa resposta de ninguém do grupo — Mas é que tem muito má cara.

Levantou a vista para olhar a seu novo chefe.

— Temos que subi-la e colocá-la em uma cama.

— Ah, não, não — Benson expressavam sua profunda oposição — Nem de brincadeira vamos subi-la a nenhum dos quartos.

Connor renegou em voz alta e sorriu internamente.

— Pois bem. Deixamos elas lá embaixo, mas não poderão fazer nenhuma tarefa da cozinha.

— Eu não a levo.

— Eu tampouco.

— Que a levem as demais.

   Ao final, essa foi a melhor solução. Connor manifestou o pequeno protesto de rigor, mas não queria dar razões para que pensassem que ele também se infectou. Quão último precisava era que o isolassem; assim jamais encontraria o que queria saber para sair desse lugar.

   Quatro delas levantaram Theresa do chão e começaram a descer pelas escadas, deixando a Mara só na cozinha com todos os homens.

— Ela também. — Indicou Devlin.

Connor sentiu como arrepiavam os cabelos da nunca.

— Nada disso.

— Você disse antes. O que seja que pegaram...

— Mara não esteve no porão com elas. Está sã.

— E como nós podemos saber?

   Agarrou a Mara pelo braço e a afastou dos homens. Ela reagiu tampando a face com gesto assustado, tal e como tinha que fazer, e deixou a cabeça encurvada. Connor levantou as mangas da camisa e inclinou a cabeça para mostrar o pescoço.

— E o que! Isso não quer dizer nada! Não sabemos se está infectada ou não!

Connor exalou um suspiro de exasperação.

— Tire a blusa — Ordenou.

   Ela o olhou com pânico real. Mas deviam acabar com isso e ele a necessitava a seu lado. Mara tampouco podia contar com ninguém mais.

   Além disso, se deu conta de que gostava de contar com ela. Por culpa desse sentimento, esteve a ponto de enviá-la ao porão com as demais.

— Faça-o — Resmungou entre dentes.

   Pouco a pouco foi desabotoando a blusa e se desprendeu dela. O sutiã branco ficava tão bem como a cor negra cetim de renda. Apesar de sua tentativa de impor certa distância física e emocional entre ele e Mara, nesses dias sentia uma atração cada vez mais intensa para ela.

Esforçou-se por recordar que ela era um elo a mais na cadeia dos fatos. Nem aliada nem amiga. Entretanto, ela era uma mulher e ele era um dos Gargouillen, cuja missão na vida era procriar. Era inevitável sentir desejo por ela.

Seu fôlego se tornou mais quente ao contemplá-la.

— Dê a volta. — Disse.

   Mara deu uma meia volta. Notava perfeitamente o rubor percorrendo seu corpo e surpreendeu a si mesmo tentando consolá-la internamente. Sem pensar duas vezes, interrompeu a conexão mental que estava a ponto de produzir antes que tomasse uma forma concreta.

— Tire as calças. — Demandou Devlin. Connor suspeitava que este não se importava suas erupções. Queria ver suas pernas.

   Connor hesitou por um instante, indeciso diante de qual postura devia adotar e olhou o homem bojudo diretamente nos olhos.

— Se está infectada, eu mesmo me encarregarei de levá-la para baixo. Mas o que acha? Que quero pegar alguma enfermidade?

   Depois de umas quantas manobras e atuações mais, Connor saiu com a sua. Agarrou a Mara pela mão e a subiu pelas escadas enquanto punha os cinco sentidos em escutar Jackson, que explicava a Devlin que essa noite ia sair.

   Já no quarto, Mara fechou a porta e chocou a mão com Connor.

— Conseguimos!

— Agora estarão um bom tempo sem incomodar às garotas.

— Continuam estando presas, mas ao menos estão a salvo.

— O que deu a Theresa para que tenha a cara tão vermelha?

— Toalhas quentes.

Connor soltou uma gargalhada.

— Perfeito.

— Viu a cara do Benson? Pensava que seu pênis ia cair em pedaços.

— Sim, os homens protegem muito essa parte.

Arrependeu-se do comentário do mesmo momento em que saiu de sua boca. Não queria encaminhar a conversa para esses roteiros e já custava bastante concentrar-se na missão para começar a falar de seu pênis.

— Obrigado — Disse Mara. Seus olhos âmbar brilhavam.

Connor sentia como o sangue corria livre por seu corpo. Estava contente. Atraiu-a para ele agarrando-a pelos cotovelos.

— Fez tudo muito bem. Esteve fantástica.

— A ideia era sua. — Levantou a cabeça e se inclinou um pouco mais para frente.

— Bom, nos poderíamos nos agradecer mutuamente. — Respirou por um instante até que seus lábios estiveram ao alcance de sua boca.

Acabaram-se os jogos. Isso já não era uma posse de macho. Era... Lento, quente e úmido. Às vezes profundo e às vezes provocador, era uma degustação prazenteira do manjar mais delicioso e teria gostado de seguir provando-a, mas fez um esforço de contenção.

   A besta interna estava inquieta. Achava-se em um estado constante de agitação; afastado de sua casa, de seus irmãos e da vida que tinha construído em Chicago. Compartilhar o quarto com Mara era como oferecer um bife de porco a um cão faminto.

Se não fosse prudente, a besta acabaria se libertando.

   Com cuidado, foi se separando dela e deixou seu queixo descansar em cima de sua cabeça.

— O que é na realidade? — Perguntou ela, resguardada em seu ombro.

   Seu coração se convulsionou. Não podia saber nada dele, nem das gárgulas.

— A que se refere? — Respondeu.

— É do FBI? Não sei, é da polícia judicial, da secreta? — Aprisionou um pouco o bíceps — Ah, seguro que é da secreta e está aqui infiltrado. Deus! Não será da CIA?

   Sentia-se leve como uma pluma.

— Ah, acha que sou policial?

— Está claro que não é um deles. Não é como eles. É uma toupeira, não? Eu quero te ajudar. Necessita um respaldo aqui.

Os músculos das costas se intumesceram.

— Não, não, nada de ajuda. Isto não tem nada a ver com você.

— Que não tem nada a ver comigo! Esses desgraçados me mantêm sequestrada e me diz que não tem nada a ver comigo!

— Não necessito sua ajuda.

   Era uma mulher, pelo amor de Deus. Uma mulher. Não podia entremeter-se nos assuntos dos Gargouillen.

   Olhou-o por cima do ombro e tingiu suas palavras de desconfiança.

— Pensa que não posso arrumar isso sozinha.

— Eu não disse isso.

— Para que fique claro: sou muito mais forte do que acha. — Respondeu enquanto cravava o dedo indicador no peito dele — Engoli tudo isto e muito mais. Já te disse que...

—... Que matou um homem, já sei — Agarrou-a pela cintura para evitar que continuasse pressionando o dedo contra seu peito (tinha medo de que chegasse às costelas) e baixou o tom de voz — Como acabou aqui, Mara?

   De repente, seus ombros se afundaram e seu peito se desinchou.

— Eu... compareci a uma oferta de emprego que saiu publicada em um jornal de Duluth. O anúncio dizia que era um trabalho idôneo para mulheres solteiras com disponibilidade para viajar. Para ver mundo. Bem pago. Não era necessária experiência; tão só um sorriso agradável e dom com as pessoas. Era muito bom para ser verdade.

— Como se demonstrou, não?

— Para se candidatar à oferta, tinha que responder muitas perguntas sobre sua família e assuntos pessoais como propriedades, nível econômico... Acredito que se asseguravam de que não tivéssemos a ninguém que nos procurassem. Quando me contrataram, colocaram todos meus pertences em uma caixa e a guardaram em um armazém. Disseram-me que não necessitaria um apartamento porque estaria sempre alojada em hotéis cinco estrelas durante as viagens de trabalho. O cúmulo é que me ofereceram uma bebida para brindar pela incorporação ao novo trabalho e fiquei completamente adormecida. Despertei aqui. No porão.

   Mara franziu o cenho e evitou seu olhar. Ele tinha a sensação de que não tinha querido explicar tudo (era muito inteligente para cair nesse artifício), mas não quis pressioná-la.

Finalmente, voltou a olhar. Tinha as pestanas úmidas.

— Aos dezessete anos, jurei que nunca mais me fariam mal. Ainda não me rendi. Não penso me render diante os néscios, nem diante do podre sistema legal que se supõe que deve proteger os meninos. Eu era uma menina. Não penso me inclinar diante dos tiranos dementes que pensam que as mulheres são objetos com os que se pode traficar para seu próprio prazer. Não penso me render tampouco diante de você.

Baixou o olhar antes de continuar.

— Pude cair na armadilha desses caras, Connor, mas ainda não perdi a esperança. Estou viva e tenho que lutar, como sempre tenho feito.

   Pela primeira vez em suas dez reencarnações, a certeza de que a raça humana tinha mudado o açoitou com total clarividência. As espécies eram mais fortes e se protegiam melhor. Sobretudo o sexo feminino.

Como repercutia tudo isso nele e nos seus?

   Eram uma espécie caduca. Acabariam como relíquia em qualquer museu ou simplesmente, desprezados e esquecidos como as carruagens de cavalos, as máquinas de vapor e as fitas de toca-fitas.

   Talvez Nathan tivesse razão e tinha chegado o momento de que sua gente mudasse. Ou talvez Os Gargouillen de Minnesota estavam certos e já não valia a pena continuar protegendo os ingratos seres humanos; possivelmente a decisão de pegar as rédeas do mundo não era tão delirante.

   Este pensamento o aturdiu. Possivelmente o mundo já não estava feito para seres conservadores como ele, mas, de momento, devia cumprir uma missão. Se falhasse ou intrometia a Mara muito nesse assunto, sentiria-se condenado por toda vida.

Afastou-a um pouco mais bruscamente do que pretendia.

— Bom, vamos dormir. — Disse, embora estava seguro de que não descansaria essa noite.

 

Dois dias depois, Mara esfregava a cabeça muito prazenteiramente contra o travesseiro. Não sabia o que a tinha despertado (ainda faltavam horas para o amanhecer), mas se sentia contente pela simples sensação de estirar-se na cama rodeada de calma e segurança. Não tinha motivos para estar tão feliz... Mas se sentia liberada e leve, muito mais que antes.

   Tinham transcorrido sete dias. Desde que Connor tinha chegado, tinham estabelecido uma rotina que se aproximava da normalidade. Ocupava os dias em algo. Como tinham posto às mulheres em quarentena, ela mesma se encarregava de levar a comida, além de trabalhar na cozinha. Quando tinha um momento livre, subia ao quarto (o quarto de Connor) para ler Wordsworth.

Normalmente, depois do café da manhã Connor a deixava com Hard Case ou o calvo e Benson. Voltava muito cansado e irritado na hora do jantar e, quando perguntava aonde tinha ido, ele recorria a desculpas como que a “ordenhar vacas” e trocava de tema. Mara tinha a suspeita de que o impediam de aprofundar na investigação; de que não estava se infiltrando de uma maneira o bastante convincente para que confiassem nele e por isso não o deixavam participar das operações importantes.

   Tudo isso levava a não poder contemplar a resolução do caso que trazia entre mãos. E tampouco via saída para a situação nem tinha achado o mais mínimo indício para encontrar a Ângela.

   Os olhos de Mara foram se adaptando pouco a pouco à escuridão; visualizando as sombras opacas: o escritório, a mesinha de noite com o livro de Wordsworth aberto, o espaço do chão no que Connor dormia sempre, que agora estava vazio.

   Compreendeu que o ruído da porta ao fechar a tinha despertado. Ao menos sabia o motivo de sua insônia. Desprendeu-se dos lençóis e saltou da cama com a enorme camiseta-pijama que usava para abrir a porta e olhar no corredor.

Nem rastro dele.

   Pensou que o melhor que poderia fazer era fechar a porta e voltar para a cama. Seus assuntos de trabalho eram privados; já tinha deixado claro que não queria que se intrometesse em suas questões.

Embora isso era precisamente o que queria fazer.

   A indecisão a paralisou por um momento. Se ergueu e se vestiu na escuridão. Se Connor estava solicitando informação sobre esses homens, ela devia conhecer essa informação para encontrar Ângela. Era sua melhor chance para encontrar a sua amiga.

   Ou... Estava desesperada por aproximar-se de Connor. Estava a sua inteira mercê e era normal sentir-se intrigada pelo que ele fazia.

   Além disso, não podia depender totalmente dele. Não podia deixar sua vida e a vida da Ângela nas mãos de um homem que nem sequer havia dito quem era ou que fazia ali.

   Saiu meditabunda do quarto e fechou a porta com cuidado.

 

                           Capítulo 6

A melhor dependência do edifício da Associação de Jovens Cristãos, que servia de refugio às gárgulas de Chicago enquanto reconstruíam St. Michael's era a galeria com piscina. A piscina levava muito tempo vazia. Através do cristal, podia-se perceber o brilho das estrelas e, se as janelas estavam abertas, era como estar à intempérie. Teryn, além disso, podia formular os rituais sem ter que preocupar-se com o congelamento, como acontecia quando organizava as cerimônias nas torres do St. Michael's. A galeria acristalada permitia ter contato com a natureza e Teryn podia incorporar os elementos que necessitava com toda a comodidade. Era um espaço tão privado que ninguém o interrompia; sobre tudo a essas horas da noite.

   Se tivesse tido tempo de caçar um novo bando de pombas, teria sido perfeito. Era o lugar ideal.

   Teryn se quadrou e sorriu ao ver Rachel e Nathan caminhando para a piscina. Na última encarnação de Nathan, o corpo que albergava a alma deste tinha engendrado Teryn. Nathan era seu paytreán[1]. Compartilhavam uma ligação muito especial. Ao tê-lo de volta à congregação coincidindo com essa temporada de crise, depois da longa separação que se produziu entre ele e Nathan devido a suas ideias contraditórias, acalmou-se a tensa situação que estava enchendo a paciência de Teryn.

   Também estava Rachel, uma mulher excepcional. Além de ser forte de espírito e de corpo, era filha da primeira geração dos Antigos, as vinte e oito gárgulas originárias de Rouen. A magia antiga impregnava suas vísceras mesmo sendo mulher. Tinha a mente destreinada, mas tinha feito um progresso tremendo ao exercitar seus dotes naturais, uma virtude que já não possuía nenhuma filha nascida das últimas gerações.

   Teryn se interessava pelas novas habilidades de gárgula que aprendia a cada dia. Podia chegar muito longe e já tinha melhorado muito na formulação de ritos pagãos (virtude que a maioria de sua gente tinha esquecido desde fazia muito tempo).

   Embelezados com togas brancas e cinturões de corda negros, os três se ajoelharam nos pequenos tapetes que Teryn tinha disposto seguindo os eixos de um triângulo em torno do centro ritual que já estava preparando. Sentaram-se de joelhos, agacharam a cabeça e a deixaram descansar em cima do travesseiro. A luz das velas resplandecia em torno do centro do triângulo.

   — As visões mostram quem está por trás da escuridão que nos assola? —Introduziu Nathan.

   Fazia um milhar de anos, um sacerdote chamado Romanus disse aos homens de Rouen que acabaria com o reino do terror que o dragão Gargouille tinha imposto sobre seu povo se prometiam deixar de lado suas raízes pagãs e se converter ao cristianismo. Desesperados por livrar-se da morte e destruição que Gargouille estava causando no povoado, concordaram a submeter-se a esta mudança de fé.

Mas Romanus os enganou. Em vez de matar o dragão por si mesmo, utilizou a magia de seus habitantes, sua magia pagã, para atrair às almas das bestas dos bosques, dos mares e dos céus e as implantar em seus corpos. Proclamou que esse novo exército protegeria os seres humanos desde esse mesmo dia até o fim da terra e que procriariam e povoariam todos os limites do mundo.

   Apesar da traição de Romanus, o povo de Rouen aceitou a promessa e cedeu sua magia pagã.

Até novo aviso.

   Nathan e Teryn tinham procurado as escrituras antigas de seu povo para aprender as práticas rituais do passado. Estudaram e investigaram durante anos e as deidades lhes proporcionaram numerosas virtudes e poderes, incluindo a visão a longa distância. Mas as visões eram simbólicas, não literais, e não eram fáceis de interpretar.

   Teryn levava um tempo percebendo a expansão de algum tipo de mal proveniente do leste. Esta força maligna se dispersou de maneira alarmante, invadindo o norte e o sul até que rodeou à congregação de Chicago pelos três pontos cardeais. Não obstante, não tinha sido capaz de detectar o que ou quem estava por trás desse diabo ou de sua personificação.

— Só vejo que cresce cada dia mais. — Disse Teryn a seu paytreán — Mas sim pude observar uma pequena greta em sua fonte de poder. Espero que Connor se ocupe disso e realize progressos.

— Sim, esperemos que continue com seu trabalho.

— Estou seguro. Mas, além de não ser fácil, o final de sua viagem é incerta. Já o comprovei muitas vezes. Mas bom, tampouco estamos aqui hoje para isso. — Sorriu a Rachel — Hoje vamos receber um novo membro em nosso círculo. Ela completou sua iniciação, estudou os textos e progrediu bastante aplicando as virtudes dos Antigos, de tal modo que já pode começar a produzir suas próprias visões.

Rachel inclinou a cabeça.

— Obrigado por ser um instrutor tão bom e sábio.

— Comecemos. — Teryn desembrulhou o tecido colocado ao lado das jarras de água e vinho e pegou os objetos que se achavam dentro: cálice, cuia, pluma e sal. Colocou cada objeto no círculo do triângulo.

   Continuando, invocou os quatro pontos: o Norte, espírito da terra; o Sul, espírito do fogo; o Leste e o Oeste.

   A brisa penetrou pelas janelas. O chão de cimento começou a emitir ondas como um ente vivo e os cristais retumbavam de energia. A magia se disseminou por toda a galeria e abordou Teryn, Rachel e Nathan. Corredor crepitava ao redor deles como se o ar estivesse carregado de eletricidade.

   Teryn deixou que a simbologia e a intensidade se filtrassem em seu corpo e se voltou para Rachel.

— A quem deseja ver?

— A meu irmão.

   Os pais de Rachel foram assassinados quando era uma menina. Separaram-na de seu irmão e ambos foram adotados por pais diferentes. Estava procurando-o após e nesse ponto de sua vida Teryn e Nathan se comprometeram a ajudar em sua busca. Seu irmão também levava o sangue dos Antigos. Se o encontravam, se transformaria em um aliado muito poderoso para lutar contra o mal que ameaçava a sua gente.

   Teryn verteu o vinho no cálice e a água na cuia de pedra e tirou o último símbolo: uma pedaço de lápis lázuli negro. Era a pedra original do cenário ritual e, por sorte, tinha podido recuperá-la das ruínas de St. Michael's.

Inundou a pedra na cuia de água.

— OH, Deus e Deusa, nos emprestem seus olhos para poder ver o que procuramos.

   Então tirou a adaga cerimoniosa da capa pendurada em sua cintura, levantou a mão de Rachel e cravou a adaga na ponta do dedo, abrindo uma pequena ferida. Conduziu sua mão a cuia e apertou o dedo para deixar cair uma gota de sangue na água.

— O sangue procura o sangue. Nos permita encontrar o que um dia perdemos.

— Nos permita encontrar o que um dia perdemos. — Repetiram Rachel e Nathan. Uniram as mãos para fortalecer o círculo.

   Em seguida começaram a formar ondas na água e esta começou a ferver energicamente. O deus e a deusa foram generosos aquela noite, pois parecia que a visão ia ser muito nítida.

  

Mara desceu em silêncio as escadas que conduziam ao salão. Começava a duvidar de seu estado mental, mas queria seguir adiante. Não estava disposta a sentar-se no quarto de Connor enquanto este cumpria com seu papel de herói e muito menos quando sua vida e a de Ângela corriam perigo. Ele a necessitava, Por Deus! Por muito que custasse admiti-lo.

   E ela o necessitava, embora, é obvio, não o admitiria se ele não reconhecia primeiro.

   Ao chegar ao patamar, tentou dirigir-se para o corredor que levava o escritório, mas sentiu um súbito sobressalto ao notar uma mão em sua cintura. Outra mão tampou a boca e suas costas ficaram aprisionada contra a rigidez de um quente corpo masculino.

— Shhh — Sussurrou Connor ao ouvido.

   Ela assentiu e Connor retirou a mão da boca dela e a fez voltar-se para olhá-lo.

— Quer me matar de susto? — Exclamou.

— O que faz aqui embaixo?

— Estava te procurando. E você? O que faz aqui embaixo?

— Vá para cima.

— Não — Olhou por trás dele para a porta do escritório de Jackson e o garfo que Connor sustentava na mão.

   Por muitas explicações que queria dar, dois mais dois sempre são quatro.

Mara se reclinou contra a parede e inclinou o quadril.

— Queria revistar o escritório, não? Venha, eu espero fora enquanto procura e assim te cubro as costas.

— Minhas costas estão bem. — Proferiu.

— Bom, pois estarei por aqui. — Começou a caminhar para a porta fechada — Venha, vá, entra.

   Mara se deteve no meio do corredor, cruzou os braços e esperou sua resposta. Connor passava as mãos pelo cabelo a modo de rastelo como se o quisesse arrancar.

— A não ser que não saiba abrir a porta com o garfo... — Suspirou com certa ironia — ... Em cujo caso posso ajudar.

Produziu-se um silêncio comprido e inexpressivo.

— Quer que te ajude ou não?

— Quero que volte para cima.

   Mara cambaleou um pouco; colocou-se em uma postura estranha e arrebatou o garfo das mãos dele. Estalou a língua com desaprovação.

— Homens, por favor.

   Ajoelhou-se diante da porta e o ferrolho cedeu em questão de segundos.

— Faz tudo por não pedir ajuda... — Mara se afastou para deixá-lo passar e este entrou na sala sem olhá-la — Vou ver se produzem movimentos na escada.

   Connor lançou um grunhido, mas Mara não pôde discernir se era de aprovação ou não.

— Não se esforce. — Esclareceu — Se foram todos menos Dwyer, que está dormindo a Mona.

— Foram-se? Aonde?

— Não sei. Por aí. A cumprir com alguma missão. — Pelo tom amargo de suas palavras, Mara pôde deduzir que não o tinham deixado colaborar nessa missão.

   Mara se alegrava de que não se foi. Não sabia o que tramavam esses lerdos, mas não seria nada bom. Assim ela e Connor tinham via livre para bisbilhotar tudo o que quisessem.

— Bom, pois vamos a isso.

   Connor assinalou para os arquivos que se achavam dispostos a cada lado do escritório.

— Você pega a pilha da direita e eu a da esquerda.

Mara mordeu o lábio, pensativa.

— Se encontrar o nome de Ângela Curiosa em qualquer papel, me avise.

— Quem é Ângela?

— Uma amiga. — Respondeu em voz baixa, aturdida ao recordar a dor que sentia pela perda de sua amiga.

— Sequestraram-na como a você?

Mara começou a sentir uma grande tensão nos ombros.

— Não sei, talvez respondeu à mesma oferta de emprego que eu.

Connor a escrutinou com o olhar.

— Ou talvez ela respondeu primeiro, se inteirou do que tinha acontecido e entrou em uma espécie de missão de resgate kamikaze. — Connor franziu o cenho ao ler a verdade na expressão de seu rosto — Minha Mãe, essa é a tolice mais grand...

— Desde quando ajudar a uma amiga é uma tolice, hein? — Arremeteu ela lançando um olhar implacável.

— Desde que o encerram no porão de uma casa cheia de lunáticos! — Arranhou o couro cabeludo com a mão.

— Muito bem. Agora me diga o que faz você aqui, Connor. E não me venha com essa de que você gosta de jogar às cartas com o esquadrão dos imbecis. Não sou tão tola.

   Ele a olhava em silêncio. Suas cordas vocais queriam vibrar, mas não deu a mais mínima explicação.

Seus olhos se encheram de lágrimas. Queria falar sobre a Ângela; queria explicar como gostava dos anagramas; como ria sempre. A coragem e a valentia que tinham salvado sua vida depois de que seu marido queria anulá-la por completo. O arrojo e raciocínio que demonstrou ao fugir dele e começar uma vida nova.

   Mas se negava a falar primeiro. Se Connor queria saber seus segredos, teria que explicar, também, os seus. Tinha demonstrado toda sua confiança e lealdade e ele seguia desconfiando dela. Tudo isso só conseguia abrir mais a ferida causada depois do desaparecimento de Ângela e sua total desvinculação do escritório de proteção de mulheres que tinha aberto.

   Secou rapidamente os olhos e voltou a fechar a couraça. Começou a abrir arquivos e ficou a trabalhar. Connor tirou uma pequena caneta-lanterna do bolso e também ficou a trabalhar sem olhá-la.

   Vinte minutos mais tarde, Mara teve que reconhecer seu total fracasso. Os lerdos não eram muito bons ordenando informação. Connor só tinha conseguido anotar algumas direções postais de Duluth extraídas de certificados de envio naval da companhia de comércio de miudezas FedEx, mas não tinha encontrado nenhuma referência sobre a Ângela. A lista de nomes e datas que Mara tinha recolhido a outra noite (e que mal tinha tido tempo de olhar) tinha desaparecido misteriosamente.

— Não olhamos a informação do computador — Recordou Mara — Talvez podemos encontrar algo em seus e-mails.

   Connor ligou o computador, mas este exigia uma chave secreta para entrar, proteção que tinham instalado depois da última incursão de Mara no escritório.

   Enquanto Connor desligava o computador e ordenava todos os papéis, Mara olhava pela janela e se esfregava o pescoço. Tinha o olhar perdido na imensidão da noite.  

   O que seria o próximo? Se o esquadrão dos imbecis não confiava nele e não explicava o que estavam tramando e, além disso, não encontravam nenhuma prova concludente sobre a Ângela, quando poria fim a aquele calvário? Como poderia escapar dali?

   As mulheres não podiam estar presas no porão fingindo uma enfermidade para sempre. O tempo corria em seu contrário e a cada segundo, as oportunidades de encontrar a Ângela diminuíam.

   Mara suspirou e afastou o olhar da janela. Surpreendeu um movimento proveniente de fora; era algo que estava perto do caminho. Eram várias coisas. Formas escuras que se moviam rapidamente em direção à casa.

— Connor...

— Um momento, já acabo.

   Queria agarrar seu braço e fazê-lo olhar pela janela. Chamá-lo. Mas não podia se mover; não podia falar. Seu fôlego se enclausurou em seu peito. Inclusive o coração parecia imóvel.

   As formas negras se aproximavam mais e mais; já eram reconhecíveis. De repente, à cabeça da procissão apareceu um urso pardo coberto de neve; outros quatro a cada lado e um rebanho de criaturas variadas: um boi, um lagarto enorme com crista espinhosa que caminhava atrás do primeiro e um gato enorme (podia ser uma pantera) com patas em vez de unhas. Havia animais que nem sequer reconhecia.

Por cima deles, um pássaro com cabeça e asas de águia calva desceu ao chão ao lado de um abutre disforme e de um morcego de tamanho humano com cauda bifurcada e chifre de rinoceronte.

   Foram caminhando até parar diante da casa e em um abrir e fechar de olhos se transformaram em humanos.

Connor se colocou ao lado de Mara, observou o que ela estava olhando e a tentou arrastá-la para fora da sala, não sem se dar conta de que Jackson, Benson, Hard Case e Devlin caiam na neve e se desconjuntavam de risada dando murros amigavelmente.

   Mara era consciente de que tinha que mover-se. Por alguma razão, os homens (essas criaturas) não podiam vê-la ali, mas não se lembrava do por que. Tinha as pernas como manteiga e a mente encharcada.

   Connor a tirou do escritório e fechou a porta. Ela não tinha saído de seu estupor. Não era capaz de falar. De maneira automática, deu a volta para a escada; entretanto, ele a reteve.

— Não há tempo.

   Agarrou sua mão e a levou para a cozinha justo quando a porta da entrada se abria de par em par e ressoava com um golpe. Devlin entrou o primeiro e franziu o sobrecenho:

— O que estão fazendo aqui?

— Tínhamos fome. — Respondeu Connor como se fosse a situação mais normal do mundo.

— Tinham fome? A esta hora da noite? — Jackson deu um passo à frente e se situou diante de Devlin. Olhou por casualidade a porta do escritório.

   Connor percorreu todo o corpo de Mara com o olhar, prolongada e contundentemente.

— Pois sim, nos deu fome enquanto estavam fora. Não querem comer nada? Mara vai fritar uns ovos.

Hard Case ficou pensativo antes de dizer:

— Pois eu não digo que não a uns bons ovos fritos.

   Benson também aprovou a proposta assim como todos outros, que começaram a subir as escadas, exceto Jackson, que agarrou as chaves e murmurou algo sobre uma reunião em Duluth. Connor levou uma cadeira mais ao salão e começou a conversar com seus amigões.

Dez minutos depois, Mara se encontrava na cozinha rompendo cascas e fritando ovos. Não estava concentrada na tarefa, mas, de algum jeito, sentia certa serenidade. Queria seguir lutando. O pensamento nebuloso que a mantinha aturdida se foi limpando pouco a pouco e deixou passo a uma sensação de perplexidade.

   Os monstros vagavam à espreita pelos céus de Minnesota e ela se dedicava a fritar ovos.

 

                                             Capítulo 7

Nathan conduzia Rachel para o quarto que compartilhavam quando os primeiros raios do amanhecer penetravam pelos cristais da Associação de Jovens Cristãos. Nathan apertou a mão dela afetuosamente e caminharam juntos com as mãos entrelaçadas.

— Sinto muito que não tenha visto tudo o que queria, mas tem que ser mais paciente. As deidades necessitam tempo para pensar e decidir.

   Rachel se separou de sua mão e apoiou a cabeça no ombro de Nathan.

— Tinha muitas esperanças depositadas nesta noite, mas isto... isto não esperava. Não sei o que fazer.

— Com o tempo o verá muito mais claro. As visões apresentam a informação através de metáforas.

— De quebra-cabeças, mas bem.

   Connor se deteve um momento diante da porta de seu quarto e examinou o rosto.

— O que esperava? Um endereço e um número de telefone?

— Pois não sei. Esperava algo mais além de nuvens turvas, chamas de vela e ventos impetuosos. Sentia-me... Estranha — Pensou que era uma sensação parecida com achar-se em meio de um ciclone — E o que significa tudo isto?

Nathan abriu a porta e a conduziu para dentro do quarto; abraçou-a e aplacou seu estremecimento com a pressão de seu corpo.

— Pensa no conflito interior que deve ter sentido Levi quando crescia e se dava conta de que era diferente de outros e não sabia por que. Isso sempre engendra raiva em um homem que repercute em algum tipo de violência.

— Meu Deus, não quero nem imaginar pelo que deve ter passado.

— Mas a pergunta é: como o tem feito? Em que tipo de pessoa se converteu?

Levantou a cabeça para olhar a seu marido.

— O que quer dizer?

— Só digo que já não é o doce bebê que viu pela última vez, que já cresceu e que carrega em suas costas um passado muito duro. Terá que ser precavida e se proteger se por acaso não é a mesma pessoa que espera encontrar.

— É meu irmão. Isso basta.

   Mas a semente da dúvida já levava muito tempo semeada. Nathan e Teryn estavam preocupados com Levi, pois sua alma tinha crescido sem o apoio e a guia dos de sua espécie.

   Rachel também estava preocupada com Levi e pela visão dessa noite. Enquanto observava a crispação e o estrondo de nuvens, tinha a sensação de que havia algo mais, além da mãe natureza e das sensações de Levi, que estava causando esse tumulto.

   Rachel tinha notado outra presença atrás da neblina cinza, como se estivessem movendo essa bruma para tampar deliberadamente a visão.

Fosse o que fosse, tinha-a estado observando.

   Nesses momentos, enquanto Nathan a levava a cama, afrouxava o cinturão, tirava a roupa e idolatrava cada centímetro de sua pele, ela notava essa presença observando em silêncio.

  

   A manhã se revelou fria e clara enquanto Connor seguia a Mara para o quarto que compartilhavam. Não tinha acabado de fechar a porta quando Mara se deixou cair em seus braços.

   Estava preparado. Agarrou-a brandamente pelo pulso; atraiu-a para ele e a abraçou, esperando que emergissem a fúria e o medo reprimidos aproveitando esse momento de solidão. Os sentimentos afloraram.

— Mas o que era isso? E como... Como o têm feito?

— Se acalme. Tranquila.

— Eram Jackson, Devlin e Hard Case.

— O que são? Aliens? Seres mutantes?

— Por favor, se acalme.

— Meu Deus, são como um aborto de experimento científico, como... Partes e partes de diferentes espécies juntos. É como se o doutor Frankenstein tivesse começado a se afeiçoar pelos documentários de animais.

— Se tranquilize. — Acalmou-a com suaves palavras. A mente humana não possui a habilidade de enviar imagens, emoções ou propósitos como as gárgulas, mas sim pode as receber. Pode perceber influências.

   Quando um ser humano surpreendia a uma gárgula com aparência de besta, Eles, os Gargouillen aproveitavam sua vulnerabilidade para substituir as imagens de sua mente por outras menos violentas. As lembranças não se podiam suspender por completo, mas sim se podiam modificar. Os seres humanos duvidavam do que tinham visto e canalizavam essa visão para um pesadelo ou a atribuíam ao estresse, o medo, a adrenalina ou inclusive as drogas ou o álcool.

   Depois de tudo, quem é capaz de admitir que viu a uma águia com corpo de cavalo? Ou um morcego gigante mudando em homem?

Um espírito tão indomável como o de Mara não se deixava confundir tão facilmente. Tinha uma vontade férrea e um pensamento muito sólido que não se alteravam quando se marcava um objetivo, mas Connor tampouco podia deixá-la pensar que tinha visto uns monstros. A missão se achava em ponto morto.

— Como fizeram? — Perguntou. Tinha o olhar exagerado mas seguia exercendo controle sobre si mesma. A perplexidade tinha desaparecido e a realidade a estava sacudindo; não tinha muito tempo — Como... Como puderam trocar assim?

Connor a conduziu até a cama.

— Venha. Sente-se.

— Você também os viu, não é? Sei que os viu.

   Sentou-a na borda da cama; apoiou as mãos em cima de seus joelhos; tirou a garrafa de uísque da gaveta e serviu um copo. Ia fazê-la beber tanto se queria como se não.

   Não custou muito convencê-la. Agarrou o copo com as mãos tremulas e bebeu de um gole. Um calafrio sacudiu os ombros enquanto voltava a colocar o copo na mesinha de noite, mas já se sentia mais calma.

Muito melhor. Quanto mais relaxada se sentisse, mais fácil seria tudo.

   Arrastou a cadeira do escritório até a cama. Sentou-se e agarrou suas mãos para ajudá-la a se acalmar.

— O que viu?

— Monstros. Monstros que se convertiam em homens.

   As imagens eram muito nítidas em sua mente e as recordava de maneira muito viva, com todo luxo de detalhes. Não seriam fáceis de distorcer.

— Começa pelo princípio. — Acariciou-lhe o pulso. O pulso era forte — Estava no escritório de Jackson. Me diga o que viu.

Enquanto ia descrevendo a cena que tinha visto através da janela, ele construiu a mesma imagem e a introduziu em sua mente. As lembranças reais e os distorcidos foram se sobrepondo enquanto ela falava e acabaram emergindo como duas sequencias paralelas e idênticas que Connor se encarregou de embasar.

— Via-se a lua muito clara; tanto, que iluminava a neve. Pude ver toda a extensão do terreno até o caminho plano. Estava pensando no bonito que se via de noite quando...

— Quando o que?

   Esse momento era crucial. Era o momento em que as duas sequencias começavam a se diferenciar e tinha que ir manipulando-as para as enlaçar, para criar sua própria sequencia.

   Connor enviava as imagens mentais e reconfortava com palavras tranquilizadoras; contribuía com serenidade.

   As pálpebras começaram a ceder. Pouco a pouco, foi se recostando na cama e se estirou a seu lado. Não se separava de sua mão e, com a outra, acariciava-lhe a orelha e riscava um percurso de carícias até a mandíbula.  

   Por ser uma mulher tão forte, sua estrutura óssea era incrivelmente fina. Delicada. Antes a julgava atraente. Nesse momento, seus sentidos se viam comovidos por uma onda de feminilidade e se sentia totalmente aturdido pela suavidade de sua pele, o doce aroma que desprendia de seu corpo e o intenso desejo de beijá-la, de comprovar se seu sabor tão doce como cheirava.

Não era o momento. Nem o lugar.

   Connor se incorporou de repente, impondo uma barreira entre ele e a tentação.

   Mara levantou um pouco a cabeça, como se procurasse o contato que tinha acompanhado até o momento, e a deixou cair no travesseiro.

— Vi que algo se movia ao longe do caminho. Ao princípio só eram sombras. Estavam muito longe para distingui-los. Acredito que eram animais.

— Cervo. Havia um grupo de cervos pequenos atravessando o campo. — Connor introduziu a imagem: silhuetas de caudas brancas ricocheteando contra a neve.

Mara enrugou a frente.

— Ao princípio pensava que eram cervos, mas um deles se levantou sobre suas patas traseiras.

— Seria um macho com vontade de festejar.

Mara o negou em terminante, sem deixar de franzir o cenho.

— Não. Era muito maior.

   Calma. Tinha introduzido diretamente a imagem na mente. Tranquilidade.

— Pois era uma peça única de cervo. Por sorte para ele, não é caçadora...

— Não — Sacudiu a cabeça com um gesto implacável — Pode ser que...

   Connor se introduziu com mais insistência em sua consciência para colocar a lembrança falsa. Tinha em suas mãos toda sua vida e sua inocência. Sentiu a ternura de sua infância, perdida drasticamente de jovem, a forte couraça que se construiu ao crescer na rua. A tenacidade de sobreviver a um encarceramento injusto. Seu orgulho, que às vezes roçava a arrogância. Sua força. Sua paixão por contribuir com algo ao mundo. Seu ímpeto por controlar seu próprio destino, por não voltar a converter-se em vítima nunca mais.

   E aí estava ele, manipulando sua vontade. A vergonha e o arrependimento se misturavam em sua garganta, mas o que podia fazer?

   Quão único podia fazer era aplainar um pouco as coisas. Não feri-la. Deus, ele não queria machucá-la.

   Connor levou as mãos à face e esfregou o pescoço. Estava acariciando-a, seduzindo-a para que abrisse sua mente e o deixasse entrar.

Mara aproximou a mão dele a sua face e se esfregou contra ela.

   Connor introduziu um pequeno fragmento da imagem de uns cervos atravessando o caminho e enterrou em sua mente a sequencia inteira.

Mara abriu os olhos de repente e lançou um gemido no ar.

Connor acariciou sua face, baixou a cabeça e sussurrou no ouvido dela. Cobriu sua boca com seus lábios; provou-a, mediu-a e se arrependeu, substituindo-os por sua bochecha.

— Shhh. Só uma manada de cervos...

Mara arqueou um pouco as costas, querendo se incorporar e procurando contato. Sua mão chegou a seu pescoço; empurrou-o e o atraiu para ela. Suas bocas se fundiram.

Mergulhar-se na mente de outra pessoa sempre exigia um pouco de intimidade, mas Connor se sentia como se estivesse afundando nela completamente.

   O sangue corria rapidamente debaixo de seu ventre. A magia antiga arrebentava dentro de suas veias. A vontade de procriar, de propagar a espécie o açoitava sem trégua.

   Connor se deslocou para a borda da cama e foi arrastando a mão pelo volume e a suavidade de seus seios até sua cintura. Subiu em cima dela e a beijou com urgência e avidez. Passou o braço pelas costas para agarrá-la melhor.

   O sentido de autocontrole saía disparado de sua boca em forma de fôlego, que se agitava como uma bandeira indevidamente sacudida pelo vento. Não estava seguro de poder parar. Não tinha nada claro que fosse acabar a missão. Estava muito envolvido, muito atraído, muito seduzido por uma mulher que era capaz de arriscar sua vida por uma amiga. Nunca tinha encontrado uma mulher tão forte, tão leal e tão valente como Mara Kincaid! Nunca. E nunca se repetiria outra ocasião com uma mulher assim. Tampouco merecia tê-la, pela maneira em que a estava tratando.

   Obedecendo a um último esforço de integridade, separou-se dela repente e ficou de pé. Deu-lhe as costas, passou a mão pelo cabelo e tentou acalmar seu fôlego afogado e insistente (e outras partes insistentes de seu corpo).

   Quando por fim recuperou a compostura, deu a volta. Mara se incorporou, apoiou-se contra o travesseiro e se sentou na cama com os joelhos dobrados para cima. Seus lábios tinham esse brilho de um beijo recente. Tocou os lábios brandamente.

— O que foi isso?

— Chama-se beijo. E, se seguirmos assim, em um par de minutos poderia ter se convertido em um repertório muito mais variado.

— Estou me referindo aos cervos.

   Merda. “Foge, Rihyad”. Connor se excitou tanto que não tinha sido capaz de terminar o trabalho.

Possivelmente é que, em realidade, não queria acabá-lo.

— Bom, já te disse que era de noite. As sombras muitas vezes nos pregam peças...

— Está tentando me convencer de que não vi o que vi e quer me confundir.

— Mara...

Mara massageou as têmporas.

— É como se tivesse se metido em minha mente e me estivesse repetindo todo o momento que vi cervos. O que é isso? — Sua voz adquiriu certo tom de medo — Uma técnica de hipnose?

   Connor desejava com todas suas forças que ficasse com essa ideia.

— Nossa própria mente é muito manipuladora e a vê...

— Calado! — Levantou-se de um salto e se aproximou dele lentamente — Mentiu, Connor. Disse-me que não violava às mulheres.

— Só foi um beijo.

— Fisicamente! — Estava mordendo a unha do dedo polegar enquanto caminhava, aumentando a velocidade de cada passo — Mas mentalmente estava aí, em minha cabeça. penetrou em meus sentimentos, violou minhas lembranças. Colocou-se dentro de mim, embora não tenha sido fisicamente.

Connor se encolheu diante a verdade dessas palavras e esperava que ela não se desse conta.

     — Acha que sou médium?

     — Médium? Não, é um cara estranho com telepatia...

Deteve-se e o olhou com os olhos bem abertos. A cor âmbar estava salpicado por fibras douradas. Mara impôs um silêncio tão lapidário que não a ouvia respirar.

   Connor esperou um momento, espectador diante o que pudesse acontecer.

— Telepatia... — Repetiu com um tom de voz muito mais baixo — Meu Deus, Connor. É um deles?

Connor ficou imóvel diante da pergunta.

   Escapar não era a melhor opção. Isso o colocava diante de duas alternativas: podia lançar-se com ela à cama e acabar o que tinha começado ou explicar a verdade. Destruir os princípios pelos que se regeu durante dez vidas seguidas. Revelar segredos que mudariam a ordem do mundo, a não ser que o mundo já tivesse mudado. Sua gente estava mudando; ele era o único dinossauro ancorado nas velhas maneiras e acabaria extinguindo-se no mundo moderno.

   Possivelmente Nathan Cross tinha razão. Impunha-se uma nova ordem no mundo. Connor se achava diante da escolha de trocar para melhor, como os membros de sua congregação ou trocar para pior, como o grupo de Minnesota.

Visto dessa maneira, em realidade não existia nenhuma escolha.

— Não — Respondeu por fim — Não sou como eles. Eu não sequestro a mulheres nem a meninos. Eu não violo nem roubo nem mato por prazer.

   Connor teve que fazer uma pausa para controlar o avanço da bílis por sua garganta e o calafrio de medo pelo que estava a ponto de dizer.

— Mas sou da mesma espécie. Eu sou um protetor e provenho de uma raça antiga chamada Gargouillen. — Endireitou-se, pôs as costas reta, levantou o queixo e a olhou diretamente nos olhos — Sou uma gárgula.

 

                                             Capítulo 8

   Suas pernas tremiam. Mara notava um formigamento na cabeça.

   Foi se agarrando pela parede para não cair. Nunca tinha desmaiado na vida e era uma tolice fazê-lo a essas alturas.

— Uma... Uma gárgula — Respondeu, amaldiçoando o tom nervoso de sua voz. Deteve-se um momento para tentar reunir suficiente coragem e o olhou. Não tinha presas, nem asas nem patas. Isso, ao menos, era de agradecer — Como esses seres de pedra pendurados nas fachadas de edifícios que aguentam as inclemências do tempo?

— Antigamente, os homens nos veneravam e esculpiam nossas imagens nas catedrais sagradas.

Faltou acrescentar que essa etapa já tinha passado. Mara deduziu que não se incomodou em dizê-lo, pois ela jamais tinha ouvido ninguém falar sobre gárgulas (vivas) e muito menos idolatradas.

— Gárgulas. — Se isso era um sonho, estava a ponto de despertar.

   Quando voltou a abrir os olhos e se deu conta de que não estava na fantástica cama com travesseiro de ferro forjado de seu fantástico apartamento, retirou a mão pouco a pouco da parede. Ao menos as pernas já não tremiam.

— Por favor, posso voltar para porão? — Disse.

Connor sorriu sem vontade. Era um sorriso triste.

— Queria que te dissesse a verdade e agora não quer ouvi-la?

— Tenho medo de que venham os homens de roupão branco para te levar daqui e me confundam com você e me levem também.

— Não estou mal da cabeça.

— Vê-o de seu ponto de vista.

   De onde se encontrava Mara, ele parecia um dominador.

— Você é a primeira que reconheceu que viu a monstros convertidos em homens.

— Sim, os monstros se converteram em homens.

Embora ele o matizou.

— Muito bem, acredito que o melhor é que reconheçamos que os dois estamos um pouco pirados. Vamos deixar assim.

Estava expondo uma maneira de fugir do tema? Ela suspirou. Tinha a esperança de ser capaz de esquecê-lo, mas em seguida se deu conta de que não poderia viver se autoenganando. Estaria toda a vida pensando no que aconteceu; o que tinha visto.

— Já que se limita a agarrar o caminho fácil e a tentar me convencer de que vi cervos através da janela, terei que descobrir a verdade por mim mesma.

   Como diz o refrão: “Mantenha perto a seus amigos, mas mais perto a seus inimigos”.

   Connor sentou na cadeira e assinalou a cama. Mara se sentou cuidadosamente na borda, no conto mais afastado dele.

— Faz mil anos... — Começou —... O que hoje se conhece como a Europa era uma terra pagã. Mas o cristianismo se estendeu por todo o continente como uma praga. As comunidades que levavam séculos adorando o Deus e à Deusa da terra, o mar, o ar e o fogo se viram forçadas a converter-se ao cristianismo, embora muitos seguiam se agarrando a seus costumes.

— E as gárgulas obedeceram? — Perguntou Mara.

Connor levantou a típica sobrancelha de professor importunado diante uma pergunta impertinente e continuou.

—... No povoado de Rouen, que hoje forma parte da França, o dragão Gargouille...

— Dragões e gárgulas!? — Mara não sabia se ria ou chorava. Não sabia se queria seguir escutando. Em realidade, estava fascinada.

Os olhos de Connor adquiriram um tom cinza.

— Vai escutar ou não?

Mara se reclinou na cama e se apoiou nos cotovelos.

Connor continuou com voz de narrador de contos.

— Gargouille esteve a ponto de destruir o povoado. Afundou navios da frota, queimou colheitas e roubou meninos dos berços. Os habitantes dali começaram a pegar seus pertences e a partir a novos lugares. Um dia antes do êxodo, apareceu Romanus.

— Era mau ou era bom?

— Era um sacerdote. Prometeu matar o Gargouille se as pessoas do povoado se convertessem ao cristianismo assim que tivesse matado ao dragão.

— Bom menino.

— Mas Romanus traiu o povo.

Uuuf, aí se complicava a coisa.

— Fez chamar os vinte e oito jovens mais saudáveis do povoado para que fossem à parte alta da montanha por cima da cova do dragão. Não se deram conta até que foi muito tarde quando, de repente, viram-se presos no círculo ritual que ele tinha formulado. Romanus os enganou. Utilizou sua magia pagã para os submeter a um feitiço.

Fez chamar as aves, os peixes e os animais do bosque; vivos ou extintos, reais ou míticos. Roubou-lhes a alma e afastou seus esqueletos do círculo ritual. Então, misturou essas almas com as almas dos homens.

   Mara sentiu um calafrio ao recordar o amálgama de águia e cavalo que tinha visto.

— No transcurso do rito se misturaram partes de corpos diferentes, não? —Interveio Mara.

— Não diga isso. — Arremeteu Connor. Mas ele também sentiu certo repulso — Despertou às bestas no corpo dos homens com um canto ritual e impôs duas regras: proteger os humanos inocentes e procriar para que o mundo inteiro chegasse a conhecer o poder dos Gargouillen. Então, provocou uma fúria e um frenesi tremendos a essas criaturas e começaram a correr atrás do Gargouille.

— Ou seja, que ao final os homens mataram o dragão, não Romanus.

Connor assentiu.

— Abriram-no com o bico, destroçaram-no com os dentes e garras e queimaram seu esqueleto. Mas ainda deviam cumprir com a promessa de Romanus. Abandonaram suas tradições pagãs e construíram uma igreja cristã, onde as mulheres do povoado penduravam pequenas esculturas deles em sua honra.

A espécie foi prosperando. Aprendemos a controlar à besta interna e a despertá-la quando era necessário, mas, à medida que foram passando os anos, o mundo mudou. Os Gargouillen foram ignorados pelos líderes de ambas as religiões e os governos de cada época também se esqueceram deles. Caíram no esquecimento.

— E suponho que, mesmo assim, sobreviveram.

— Sim, e seguiram levando a cabo suas missões. Durante um milhar de anos, protegemos os humanos embora nos tenham abandonado.

   Mara não podia chegar a conceber a ironia e a tristeza do acontecido. Ainda não sabia como assumi-lo.

— Ou seja que você é um desses... Imortais.

Connor estirou as costas e soltou um comprido suspiro.

— Não de tudo. Morremos como todos outros. Mas, se tivermos completado nossa missão e propagamos a espécie, reencarnamos.

   De repente, Mara se viu afetada por um ponto de lucidez. Custou reagir, mas se deu conta de que o que queria era agarrar o livro de poesia. Estirou-se e o resgatou da mesinha de noite.

Passou várias páginas e começou a ler:

O nascimento não é mais que um sonho e um esquecimento:

A alma que se eleva conosco, nossa estrela vital,

Teve em outras partes seu poente,

E veio de muito longe:

Não cheia de esquecimento,

Nem em completa nudez,

Mas sim das nuvens de glória de onde vamos,

De Deus que é nosso lar.

Mara levantou a cabeça para olhar para Connor e pôde comprovar que ele estava sorrindo.

— Como descobriu?

— As verdades como essa só provêm da experiência pessoal.

— Não — Mara fechou o livro rapidamente e o deixou na mesinha como se queimasse os medos — Wordsworth era... Uma gárgula?

— Não vivemos em cavernas, Mara. Vamos ao colégio e trabalhamos como todos outros.

— E protegem às pessoas.

— Sempre que podemos. Tampouco temos outra alternativa, na verdade. A magia o transforma em um desejo compulsivo.

Mara franziu o cenho.

— Mas os homens ou gárgulas daqui fazem mal às pessoas. Pode-se saber por quê?

       — Pois não estou seguro. Alguns de minha congregação pensam que o feitiço de Romanus está se enfraquecendo depois de um milhar de anos. Outros pensam que estas gárgulas enlouqueceram. Ao reencarnar e reiniciar vidas constantemente, a mente se vê afetada de algum jeito.

— Como sabe disto?

Vacilou por um momento e decidiu falar com toda sinceridade.

— Acredito que há seres maus em essência. E entre as gárgulas também.

   Isso parecia compreensível; certamente, era totalmente aplicável aos seres humanos. Por que não podia passar o mesmo às gárgulas?

   Produziu-se um comprido silêncio que reteve Mara e Connor. Mara não sabia o que acrescentar.

— No que pensa? — Perguntou finalmente Connor.

— No que vou pensar? É que nem sequer acredito ainda; é loucura. — Era uma história de loucos que não teria podido ocorrer a ninguém. Era uma história tão estranha que tinha que ser certa.

— Não acredita?

— Eu não disse isso.

Connor se levantou.

— Quer que demonstre isso?

   Mara começou a recuar na cama até se chocar com a cabeceira.

— Não!

— Se quisesse te fazer mal, já o teria feito faz muito tempo.

   A ternura de sua voz aplacou um pouco seu pânico, mas a tristeza de seus olhos aumentou seus medos. Quase.

— Sinto muito. — Disse Mara.

Connor brincava com o abajur do escritório.

— Calma, está tudo bem. Depois de um milhar de anos, já estou acostumado a esse tipo de reações.

Se ajeitou na cama e estirou as pernas.

— Pode se converter no que queira?

— Não. Uma gárgula só pode converter-se em um tipo de besta uma vez que se instaura sua alma e este tipo de besta o persegue em todas as vidas.

— E o que é você? Me refiro a quando troca.

— Uma criatura voadora pré-histórica. Pareço-me com um pterodátilo.

— Um dinossauro?

Connor encolheu os ombros.

— Impressionante, não?

— Quero vê-lo. — Espetou ela, a ponto de não acreditar em suas próprias palavras.

   Connor deixou de brincar com o abajur do escritório e deixou as mãos mortas. Seus olhos azuis brilhavam de intensidade.

— Está segura?

— Vamos, antes que me arrependa.

   Não precisou voltar a repetir. Connor fechou os olhos; flexionou os dedos e relaxou os ombros. Abriu a boca para dizer algo, mas ela não estava segura de ter ouvido bem. Era algo como:

 

             E Unri almasama

             E Unri almasama

 

Jackson Firth fez uma reverência ao grande Líder e esperou que concedesse permissão para falar. Suas mãos suavam; estava cheirando seu próprio medo. Dizia-se que o Amo Supremo estava de mau humor essa manhã e Jackson tinha fama de irritá-lo.

     — Aceitou um novo soldado na legião. — Disse o Líder.

Jackson elevou a mão e resistiu à tentação de secá-las na roupa. O Amo Supremo estava sentado em uma cadeira estofada no alto de um púlpito que recordava aos tronos reais.

O espaço estava esquentado, e o ar, carregado de fumaça de incenso.

— Sim, sua Santidade. — Respondeu Jackson — Vem da congregação de Chicago.

— Chi-ca-go... — Repetiu pronunciando as três sílabas com voz nasal e quexumbrosa. Um cão lobo estava recostado à direita de sua Santidade e o Líder o acariciava como de costume com uns dedos longos e retorcidos. Um falcão em um carvalho de mais de dois metros com taça de latão se achava a sua esquerda.

— Deixaram-no por ser contrário a proteção dos ingratos humanos, sua Santidade.

— Chi-ca-go é uma fonte de grandes preocupações para mim, Firth.

— E para mim, meu senhor. Falhamos no sequestro de dois jovens recrutas e não pudemos localizá-los.

   — Não tema. Encontrarei-os por você. Dentro de pouco, poderemos acabar com eles, mas de momento preciso saber mais sobre esse tal Rihyad. Confia nele?

Jackson respirou profundamente.

— Eu não confio em ninguém, sua Santidade. — O Líder sorriu e Jackson suplicou internamente que não desse ordens a seus serventes para que castigassem aos desobedientes. Queria sair com os joelhos intactos.

— Continuem vigiando-o. Quando te avisar, traga-me ele e vamos fazer com que demonstre rapidamente sua lealdade.

   Levantou sua mão alhada e salpicada para que Jackson se fosse e aceitou a ordem de retirada com um suspiro de alívio e um pequeno agradecimento.

   Sua Santidade podia ser a gárgula mais poderosa, mas, para Jackson, seguia sendo um velho rançoso e demente.

  

Mara deu um profundo suspiro antes de abrir os olhos. Tinha que vê-lo. Tinha que saber o que era Connor. Se o via, já poderia etiquetá-lo como um monstro mais em uma casa cheia de monstros; poderia deixar de dizer obrigado por tê-la salvado e poderia deixar de preocupar-se com o que ele pensasse ou sentisse. Deixaria de preocupar-se com ele.

   Mara mordeu o lábio e abriu lentamente os olhos. Afogou um grito de terror.

   Ali onde se encontrava momentos antes Connor, um pássaro de duzentos quilos ou mais (melhor dizendo, uma criatura voadora) desdobrava suas asas o que permitia o espaço estreito do quarto. Movia o pescoço, comprido e fino, para diferentes direções e a olhava com olhos negros e ímpios.

   Mara se levantou e deu um passo à frente para contemplar à criatura; continuando, outro, preparada para dar um salto e recuar diante o mais mínimo movimento. Começou a rodear, tentando encontrar algo; qualquer essência remotamente humana; qualquer lembrança longínqua de Connor.

   Ao não encontrar nada, alargou um pouco a mão até tocar a pele rugosa e curtida da base do pescoço. Um coração que pulsava duas vezes mais rápido do normal jazia debaixo do peito ossudo.

— Ouve-me? — Perguntou ela — Pode me entender?

   Baixou e subiu a cabeça e fez um ruído de cacarejo com o bico.

   O medo de Mara estava tingindo de curiosidade. Deslizou seus dedos pela articulação da asa e acariciou os pequenos ossos da ponta.

— Como se sente quando pode voar?

   Nesse mesmo instante, o quarto começou a trocar. As paredes caíram e o céu azul se revelou cheio de nuvens oscilantes.

Mara se deu conta de que Connor tinha introduzido essa imagem em sua mente da mesma maneira que a tinha feito ver cervos através da janela. A diferença é que não a estava forçando. A imagem se enquadrou suavemente e se dispôs diante dela para contemplá-la ou ignorá-la com total liberdade.

   Mara decidiu contemplá-la. Senti-la. O vento roçando a face; o sol acariciando as costas; a incrível sensação de liberdade ao planar por cima de um banho termal imaginário além da vulgaridade do mundo.

   A imagem desapareceu logo que chegou e Mara voltou para o quarto exíguo em que antes estava.

   Nesse momento, aproximou-se sem medo de Connor, esquadrinhando cada detalhe, cada canto de seu corpo. Tocou o bico sedoso; a crista ossuda que emergia do centro de sua testa e convergia para um ponto muito concreto.

   Sua mente se viu assediada por um montão de perguntas que não se atrevia a formular. O que sentia ao trocar de humano a besta? Era doloroso? Quanto podia voar? Até que altura podia chegar e que velocidade alcançava? Tinha nascido com a capacidade de metamorfosear-se ou a tinha desenvolvido mais tarde?

   No momento, tinha que se conformar com a parte física; com a visão dessas garras terríveis que arranhavam o chão de madeira; dessas veias inchando-se debaixo da pele rugosa e curtida e dessa cauda aguda.

   Suas mãos se apressavam a percorrer todo seu corpo, apalpando, medindo, manuseando e, justo quando a cauda começou a menear-se com ímpeto, afastou a mão de uma chicotada. Em um suspiro, Connor se transformou em humano.

— Para — Disse. Tinha as pupilas dilatadas e as janelas do nariz infladas. Estava tão enfurecido que, por um momento, Mara pensou que ia bater nela.

Mara retirou lentamente o braço e o separou de seu alcance.

— O que acontece?

— Você só vê a besta, mas o homem está dentro e ouve tudo. Tem sentimentos.

“Sentimentos”. Já o entendia. Havia-o tocado de maneira... Mas não estava zangado.

Estava excitado.

   O rubor subiu até seu pescoço e se encarnou em suas bochechas vermelhas.

— Graças à asquerosa maldição de Romanus, é muito difícil manter a forma humana do órgão sexual. Quando a besta sente a chamada... — Sacudiu a cabeça — Um instinto primitivo de vários trilhões de antiguidade é difícil de desenterrar.

— Sinto muito.

— Tudo bem.

   Connor inclinou a cabeça como se estivesse preocupado por algo, tal e como intuiu Mara. E não se equivocava.

— Agora está convencida ou não?

— Do que?

— De que te disse a verdade.

   Dragões e magia pagã. No frenesi da exploração de seu corpo, quase se esquece do acontecido; mas a história voltou para sua memória.

Mara assentiu.

— E... O que vamos fazer a partir de agora?

— Não sei.

   Qualquer outra mulher teria saído correndo do quarto. Ela sabia perfeitamente. Mas uma espécie de fascinação mórbida (ou de desejo escuro) reteve-a. Sempre foi primeira em atrever-se a sucumbir à atração mais arriscada; em enfrentar aos que a infravalorizavam e em aceitar o trabalho mais duro. Só para demonstrar a si mesma que podia fazê-lo.

   Sempre tinha se guiado por uma necessidade impulsiva de melhorar a si mesma e Connor Rihyad era a provocação mais difícil a qual se enfrentava. A pergunta era: de verdade se sentia com forças para enfrentar a essa provocação?

   — Necessito um pouco mais de tempo — Respondeu Mara — Ainda não assumi tudo.

   Pensava que sentiria repugnância, medo ou inclusive ódio ao vê-lo transformado. Pensava que sairia correndo do quarto.

   Mas, apesar de dar a volta e de fugir do quarto sem olhar atrás, não sentia repulsão para ele.

Foi precisamente porque não sentia repulsão por ele.

 

                                       Capítulo 9

Connor acabava de beber de um gole a terceira cerveja quando ouviu a Mara subir pelas escadas do porão depois de ter servido o jantar às mulheres. Do sofá, atirou a lata vazia ao lixo metálico da parede do canto e esta ressoou aparatosamente.

   — Ei! — Benson retirou de repente as pernas estiradas em cima da mesa e se incorporou — Quase bate na televisão!

Connor levantou o dedo do meio.

— Isto é para você.

— Pode-se saber o que acontece com você, cara? — Benson trocou uma cadeira do outro extremo da sala de jantar.

   Custou para dar-se conta, mas ao final seus irmãos da caridade perceberam seu mau humor. A cada minuto, sentia-se pior.

   Mara não tinha lhe dirigido a palavra desde que se separou dele essa manhã e tinha passado a maior parte do dia no porão “cuidando” das mulheres doentes.

Mas Connor sabia que se estava escondendo dele.

   Não sabia o que estava passando pela cabeça dela e tampouco sabia como se sentia.

   No que estaria pensando? Como pôde despertar à besta diante dela?

Nathan Cross se equivocou ao dizer que as mulheres podiam aceitar. Pensava isso porque Rachel estava a seu lado, mas ela era diferente. Ela era de sua espécie (até o ponto que permitia seu sexo). Seu pai tinha sido uma gárgula; um dos Antigos. Só havia outra garota que sabia algo sobre gárgulas, mas era muito jovem quando esteve em contato com elas. Tratava-se de casos únicos. Exceções.

   Nenhuma mulher normal poderia aceitá-los jamais. Nenhuma poderia aceitá-lo. Nem sequer Mara Kincaid, com o sofrimento e os abusos que tinha padecido no passado. Tinha sido idiota por pensar que sim. Idiota e ingênuo.

   E agora estava pagando por isso. Havia-se sentido pisoteado quando ela saiu correndo; seu peito se encheu de amargura.

   Esse desgraçado do Nathan Cross...

   Connor teria que ter manipulado as lembranças de Mara. Nunca teria que tê-la deixado escapar com a mente cheia de monstros.

Isso era um engano e devia emendá-lo. Essa mesma noite.

   Reclamou a gritos outra cerveja. Mara a levou e se retirou sem dizer uma palavra.

Devlin reagiu com uma gargalhada.

— Hoje não está muito contente com sua amiguinha. Ao melhor não deu toda a atenção que necessita; em, Connor?

   Hard Case levantou a cabeça da revista Soldados de fortuna.

— Por que vai ser diferente do resto? Nós também estamos a duas velas ultimamente.

Benson suspirou.

— Eu nem sequer lavei a cabeça em toda a semana.

— Tampouco dissimule. Não é o mais limpo do mundo. — Irrompeu Connor.

— É que não posso! Só temos a uma que se encarrega de tudo porque as demais são imprestáveis.

Devlin assentiu.

— Eu disse que as soltasse. Nos traga uma nova turma.

Connor se manteve em silêncio. O dia ia de mal em pior.

Sabia que as mulheres não podiam estar isoladas para sempre, mas esperava que a farsa durasse uns quantos dias mais; o suficiente para obter a informação que queria e terminar com a tortura.

Precisava limpar-se e pensou que Devlin poderia ajudar:

— Se não estivesse todo o dia com o traseiro gordo pego à cadeira, não se preocuparia tanto por um rebanho de mulheres infecciosas.

Devlin se zangou.

— Eu tampouco vi que levantasse o traseiro hoje para fazer algo precisamente, preparado.

— Pois faria coisas se não tivesse que pedir permissão cada vez que me arranho o nariz. Cara, estou farto de que estejamos encerrados como um rebanho de bichas. Quando vamos sair a atar uma gorda!?

Devlin levantou seu corpo bojudo da cadeira estofada e atravessou a sala de jantar a passo de animal.

— Está-me chamando de bicha?

   Connor se levantou. Ambos ficaram frente a frente. Justo o que necessitava: provocar uma briga; fazer sentir um pouco frustrado o velho Devlin.

— Ah, não é?

   Devlin levantou o punho justo quando se abria a porta principal. Connor se voltou para ver quem era e Devlin deu um murro que o fez cair no chão com um estrondo majestoso.

— Mas o que está acontecendo aqui? — Jackson agarrou Connor pelas axilas e o levantou do chão.

Hard Case riu entre dentes.

— Íamos começar com uma briga brutal até que veio estragar tudo.

— Uma briga? Por quê?

   Hard Case retomou sua atenção na revista e passou uma página.

— Ah, por nada, porque Rihyad precisa brigar com alguém e Devlin necessita a uma mulher.

   Jackson se afastou da sala de jantar, irado, sem deixar de sacudir a cabeça, dizendo:

— O problema de Devlin com as mulheres não é tão grave. Mas o de Connor... Esta noite o arrumaremos. Temos trabalho para mais tarde.

Deteve-se diante da porta do escritório e deu a volta para olhar da distância aos homens da sala de jantar.

— Se preparem. Saímos em uma hora.

Quinze minutos mais tarde, Mara entrou com cautela no quarto de Connor e fechou a porta atrás dela. Ele estava de pé ao lado do armário e a olhava com olhos entrecerrados. Havia posto jeans e suéter negros. Uma cor que refletia seu estado de ânimo.

— Temos que falar. — Disse ela.

— Pensava que já o tínhamos deixado tudo claro.

— É sobre as mulheres. Ouvi o que disse Devlin esta tarde.

Connor calçou as botas negras.

— Nada, dizia-o porquê estava furioso. Estarão a salvo uns quantos dias mais.

   Suas palavras não soaram muito convincentes. Mara sabia que ele não estava muito seguro do que havia dito.

— Olhe, estão muito nervosas. Sentem-se aliviadas porque os homens já não as incomodam, mas querem saber o que vai acontecer.

   Cada vez que descia ao porão, bombardeavam-na com perguntas e ela, por desgraça, não tinha respostas.

— Têm que ter paciência e continuar esperando.

— Se já tiveram muita paciência! Temos que pensar em algo...

— Sim... — Connor suspirou e esfregou a face com as mãos — Já sei.

   Ela sabia como se sentia: esgotado, frustrado, angustiado. Os mesmos sentimentos que a apanhavam dia a dia. Por fim, Mara chegou a uma conclusão:

— Temos que tirá-las daqui.

— Quem dera pudesse, Mara. Mas não sou mago; não posso fazê-las desaparecer.

— Mas tem amigos; a toda uma congregação que está de seu lado. E sei que se comunica com eles; se não, nunca teria podido conseguir o zumaque venenoso. Eles podem nos ajudar.

   — Não podem assaltar a casa. As consequências seriam sangrentas e daria no meio de todas.

— Pois então me ajude a tirá-las daí.

— Nunca o conseguiríamos. Já viu o que aconteceu a última vez: não demoraram nem dez minutos para capturá-las e as encerrar outra vez.

— Podemos preparar a escapada para um dia no que a maior parte de vocês estejam fora, como esta noite e, então, poderíamos drogar os vigilantes. Você só teria que deixar a porta aberta.

— Jackson sempre a revisa antes de ir.

— Pois desencaixamos a porta antes que vão.

— Tem-no tudo bem pensado, não? — Suas palavras não transparecia admiração por sua grande criatividade.

   Mara respirou profundamente e tentou relaxar antes de dizer:

— Não só o faço pelas demais, Connor. Já chegou o momento de que vá embora daqui.

   Connor se deixou cair na borda da cama com cara contrariada e sentida, como se não soubesse o que dizer.

Ela tampouco encontrava palavras para explicar como se sentia. Tinha tentado tudo. Tinha perguntado às demais se sabiam algo de Ângela; tinha escutado às escondidas os homens para desentranhar qualquer pista por insignificante que fosse; tinha rebuscado no escritório de Jackson sem resultado algum. Ainda não dava a luta por perdida, mas tinha que empregar outra tática. Aí já não tinha nada que fazer; já tinha rebuscado por todos os cantos.

   E se encontrava rodeada de homens que podiam converter-se em monstros a vontade.  

   Durante esse dia, não tinha deixado de pensar na cena que tinha vivido com o Connor. Não entendia por que não tinha reagido com histeria ao vê-lo convertido em besta. O fato de ter aceito o inconcebível de uma maneira tão leviana a assustava muito mais que a visão de garras, asas e olhos selvagens.

   Precisava recuperar a ordem e a estabilidade em sua vida; precisava controlar seu destino. Connor representava o insólito e o desconhecido para ela. Estar com ele era como atirar-se a um precipício com os olhos enfaixados e não estava disposta a dar o salto.

— E se te digo que não te deixo escapar, sabendo que sabe muitas coisas? —Perguntou ele.

   Mara fez um gesto de dor como se houvesse tocado uma brasa.

— Já sabia que era igual Jackson e outros criminosos...

O gesto de dor contagiou a ele.

— A quem quer que avise, Connor? À polícia? Acha que vai vir a brigada de resgate para me buscar ou uma equipe de arqueólogos como os que intervêm nos descobrimentos de novos dinossauros?

— Vejo sua vontade de fugir da imagem.

Para falar a verdade, preferia abandoná-la em sua mente. Não obstante, tudo o que tinha presenciado nos últimos dias ficaria em sua mente para sempre. Cada vez que visse um homem na rua, perguntaria se era, de verdade, um ser humano.

Sempre procuraria a esse dinossauro no céu.

— Não quero fugir da verdade. — Respondeu.

— Tem razão. — Ficou em pé e caminhou para ela dando grandes pernadas como um gato em busca de sua presa. Deteve-se a escassos centímetros de seu rosto e a assediou — Quer fugir de mim.

   Antes que pudesse replicar e dizer que não fugia de nada (de fato, não tinha cedido nem um ápice), Connor apertou seus lábios contra sua boca. Em vista de seu estado de ânimo contrariado, Mara pensava que o beijo seria brusco e incisivo, mas foi um beijo deliciosamente terno. Terrivelmente erótico.

   Esfregou sua bochecha contra a barba de dois dias e saboreou as comissuras de sua boca enquanto a língua ia lambendo a abertura dos lábios. Connor deslizou as mãos das costelas até o seio; foi apalpando suas curvas e empurrou o quadril contra a proeminência crescente de sua braguilha.

Só quando escutou seu primeiro gemido e sentiu o esfregar impetuoso de seu corpo penetrou mais em sua boca, procurando sua língua com êxito. Mara sentia como ardiam os pulmões e teve que interromper o abraço para tomar ar.

— O que te parece esta verdade? — Perguntou enquanto beijava as bochechas. Suas mãos riscaram um percurso até seu seio, justo onde o dedo polegar encontrou uns mamilos convertidos em pérolas — Vai escapar também disto?

   Sem esperar resposta, Connor escorreu sua mão pelo meio das pernas e apalpou seu montículo, acariciando essa carnosidade tão sensível.

— E agora? Quer escapar, agora?

— Bode — Sussurrou enquanto deslizava por seu queixo e mordiscava o pescoço.

— Está segura de que quer ir?

   Espasmos de prazer agitavam todo seu corpo enquanto Connor pressionava seus dedos em um movimento rítmico ondulante.

—... Não prefere ficar e experimentar o que se sente ao fazer amor com um monstro?

   A pergunta caiu sobre ela como uma jarra de água fria. Quando o chamou bode, disse com toda a seriedade. Não estava ali para seduzir a ninguém; não procurava sentir paixão.

Só queria aplicar o castigo.

   Ela deu uns quantos toques no peito e deu um empurrão.

— Sim, estou de acordo contigo — Replicou — Acredito que vou descer, ver se o Hard Case gostaria de se deitar um pouco comigo. E parir um montão de lagartos.

   Ao observar sua reação, Mara pôde comprovar que tinha ultrapassado seu limite.

Ouviram-se uns passados pesados no chão do corredor.

— Ei, Rihyad. Venha, vamos queimar o povo.

Connor afastou seu olhar dela e avançou para a porta.

— Muito tarde. — Respondeu enquanto girava o pomo da porta — Deixa-o para amanhã de noite.

   Quando abandonou o quarto, Mara se afundou na cama.

Tão mal tinha ido?

Em que momento sua necessidade de escapar sumiu?

   Certamente, justo quando o acusou de ser como outros. Certamente, o assunto saiu de suas mãos quando disse que preferia deitar-se com Hard Case.

   Algumas vezes, seu caráter a tinha conduzido a situações conflitivas e longe de domá-lo, nos últimos anos tinha desenvolvido a habilidade de dizer o mais inapropriado no momento mais inapropriado.

E já não sabia em que ponto se achava com Connor.

   Tampouco havia dito exatamente que não ia ajudar.

Mas não havia dito que a ajudaria.

   Ao menos estava segura de que não lhe faria mal. Ao menos, não a trairia diante o Jackson. Tinha certo ego masculino, mas não era como outros. Connor sentia uma necessidade crescente de estar com ela e, quando não saciava essa necessidade, desencadeava-se uma tempestade de emoções nele que repercutia em ira e desgosto. Mara tinha a sensação de que, se algum dia faziam amor e ele desatava toda essa força e paixão e a projetava para ela, seria algo inesquecível. Não sabia se sobreviveriam ao encontro.

Por sorte, não estava disposta a provocar a situação.

   Com a ajuda de Connor ou sem ela, ia sair desse lugar. Muito em breve.

Ficou de barriga para baixo e se agarrou ao travesseiro, moldando-a a seu gosto.

Estava claro que se iria.

Só tinha que descobrir a maneira.  

    

                             Capítulo 10

Escondido atrás dos vidros pintados do Toyota esportivo de Jackson, Connor sustentava uma xícara de café e entreabria os olhos para ver o armazém. Os caminhões procedentes do mole se alinhavam a ambos os lados da rua; alguns estavam vazios, outros levavam trailer carregado de arranjos e todos anunciavam uma grande quantidade de produtos e serviços.

— Onde estamos? — Perguntou Connor.

— É um centro de distribuição. — Jackson bebeu o café de um gole, esmagou o copo de plástico e o introduziu em uma bolsa de plástico disposta no chão do carro — Os caminhões de semirreboques entram e saem durante toda a noite. O nosso chegará a qualquer momento.

— O nosso? — Não gostava de nada inteirar-se de que o resto do grupo tinha organizado o plano horas antes e que ele se inteirava nesse momento. Connor intuiu que tinham explicado os passos a seguir a última hora para assegurar-se de que não os trairia. Esse era outro sinal evidente de que não confiavam nele. Mas, como mínimo, fizeram-no participar. A presença de Jackson revelava, além disso, que não se tratava de outra corrida absurda.

Jackson sorriu.

— O caminhão que nos interessa é de uma empresa chamada Street Smart.

— O que transporta?

— Pistolas.

   Connor sentiu uma espetada no estômago. A ideia de uma turma de gárgulas desertoras se revelava perigosa; a ideia de uma turma de gárgulas carregadas com pistolas rondando pelas ruas era uma catástrofe mundial.

   De repente, a força, o orgulho e a beleza da Mara penetraram em sua mente.

   Maldição. Teria que ter tirado ela do casarão muito antes. A todas. Ao princípio, tinha-a mantido ali pelo bem da missão. Entretanto, durante esses últimos dias um ataque de egoísmo puro e desatado o tinha cegado diante da verdade de que se sentia irremediavelmente atraído por ela.

   Quão único esperava era que esse egoísmo não custasse sua vida.

   No dia seguinte tinha a intenção de contatar com Mikkel para dizer que tirasse as mulheres pela força. Connor ficaria sem reforços e a missão teria resultado um fracasso, pois sua congregação seguiria estando na mira, atacada por um inimigo que mal conheciam.

   Mas isso já não importava. Não estava disposto a sacrificar a seis mulheres inocentes pela segurança de sua congregação; sua gente não aceitaria.

   Connor lançou um suspiro ao ar. Deixou descansar a cabeça no respaldo do carro e fechou os olhos.

   Pistolas. Que horror. Sua gente não estava preparada para lutar a esse nível. A congregação de Chicago era incapaz de empunhar até uma pistola de água. Teryn não o permitiria.

— Ei, shhh — Jackson deu uma cotovelada — Não durma, que vai começar a festa.

— Estou acordado — Abriu os olhos — Só estava pensando.

— No que?

— Pensava em uma época em que as gárgulas não precisavam usar pistolas.

   Era certo que Jackson estava se agarrando ao volante com mais força ou era fruto de sua imaginação?

— Já sei que é asqueroso — Disse Jackson — Mas já não se pode chegar a um acordo amigável com o inimigo. Temos que mudar para nos adaptar ao meio.

Estava recordando o Nathan se deixava levar por certa dose de perversão.

— E que mais vai me dizer? Que estamos mudando a ordem do mundo? —Connor estirou as pernas ao máximo — É originário desta congregação ou se acrescentou livremente mais tarde?

— Não há ninguém que seja originário daqui. Recrutaram-nos.

— Quem?

— O Líder Supremo.

— E onde está? — Connor se esforçava por transmitir um tom de simples curiosidade e acreditava que o estava fazendo bem, mas Jackson não acabava de responder, assim que o tentou de outro ângulo. Nesses instantes, qualquer informação era valiosa — Bom, e por que se filiou?

— Porque em minha vida anterior morri baleado por um homem quando o resgatei das rodas de um trator. Provoquei semelhante pânico que me matou antes que pudesse explicar e, muito menos, mudar sua lembrança.

   Connor inflou o peito de ar. Já tinha ouvido muitas histórias parecidas. Gárgulas boas, homens bons, assassinadas pela gente a quem protegiam.

   Jackson acariciava o bigode com os dedos a modo de gesto pensativo.

— E, na vida anterior, salvei uma mulher a quem estavam espancando e me cravou uma faca no coração por quebrar o braço de seu marido, que era quem a estava agredindo. — Sacudiu a cabeça — Estou farto de morrer por gente que renega de minha ajuda. Pela primeira vez, quero fazer algo por mim mesmo. Não te parece? — Sim, estou de acordo. — Disse Connor, em tom cometido. Quem dera não estivesse de acordo com ele. Se começava a mostrar empatia para ele, seria mais difícil odiá-lo.

Jackson desprendeu o radiofone de seu console principal.

— Qual é a situação? Cambio.

— Situação negativa, cambio.

   Antes que Jackson pudesse responder, a voz de Benson se revelou entusiasmada e espectador.

— Situação ótima nestes momentos. Repito: situação ótima.

   Jackson colocou a máscara de esquiar e deu a volta para que o buraco dos olhos e a boca ficassem por trás.

— Começa o espetáculo.

   Connor o seguiu e abriu a porta do carro. Sentia náuseas. Nas outras ocasiões, as consequências de seus atos tinham sido mínimas. Não havia gente ao redor. Esse lugar gotejava atividade. Os caminhões de semirreboques entravam e saíam, os carrinhos de mão elevadores apitavam, os trabalhadores falavam com gritos. Estava claro que, se havia transporte de armas, os guardas de segurança deviam estar perto.

Connor tinha uma impressão muito negativa a respeito.

   Connor e Jackson cruzaram a rua resguardados pelas sombras da multidão e chegaram a uma fileira de arbustos baldios que se estendia em frente do armazém. Devlin, Dwyer, Hard Case, Benson e tantos outros se uniram também.

— Se lembrem de que devemos nos pegar aos cantos. Há um montão de câmaras de segurança; temos que manter à besta a raia. — Jackson esfregou as mãos enluvadas e desenhou um retângulo na neve. Marcou pontos nos cantos frontais e no centro da parte traseira — Há vigilantes armados aqui, aqui e aqui. Devlin, Hard Case e Dwyer, encarregam de retê-los. Seus companheiros servem de reforço. Peguem as pistolas e levem ao centro. Tudo bem se fazem um pouco de ruído. Vão passando as pistolas. Que todo mundo esteja atento e alerta. Todos outros, assim que vejam que há segurança de movimentos, movem-se e entram no caminhão. Não poderemos levar tudo, assim têm que selecionar o melhor: primeiro as automáticas e, depois, as semi automáticas. Não se entretenham com os revólveres. Entendido?

Jackson passeou o olhar por seu círculo de homens para assegurar-se de que todos o tinham entendido e começou a chamá-los.

— Rihyad, você vem comigo.

   Connor colocou a mascara de esqui e seguiu ao Jackson para a ala sudeste do edifício; seguia Dwyer e um menino chamado Pielsen. Jackson pulsou o walkie e falou com parcimônia e autoridade ao mesmo tempo.

— Em seu posto... Três, dois, um... Preparados.

Como um bando de serpentes dispersadas pela erva, começaram a deslizar entre as caixas amontoadas junto a caixas de papelão e caixas de envio envoltas em plástico retrátil. Dwyer e Pielsen se detiveram na última pilha de material. Dwyer comunicou a Connor e a Jackson que esperassem a que ele e Pielsen dobrassem a esquina de uma vez para deter ao vigilante.

Para encontrar-se com a cadeira vazia do vigilante.

   Pielsen lançou um olhar de preocupação a Jackson, que fez um gesto de alerta e atenção para que procurasse o vigilante pelo armazém. As duas gárgulas fizeram um gesto de afirmação e se dispersaram pela parede para não ser vistas.

   Do outro lado do armazém, começaram para ouvir-se disparos; os tiros ricocheteavam no teto.

Abriu-se uma porta atrás de Jackson. Connor se lembrou de que alguém tinha feito uma marca no plano indicando o lavabo de homens de maneira apenas perceptível. Um guarda de segurança saiu correndo, vociferando e procurando sua pistola enquanto corria com a calça desabotoada.

O guarda correu para Jackson, mas este e seu companheiro atiraram uma caixa de madeira, que rachou no chão; todos começaram a arrastar-se em busca da pistola.

   Connor se precipitou para eles justo quando o guarda agarrou uma tabua de madeira do chão e a estampou contra o ombro de Jackson.

   Jackson se retorceu de dor e o guarda se agachou, preparado com a pistola.

   Connor se jogou sobre ele antes que disparasse, mas saiu despedido um tiro inesperado e a pistola caiu no chão de cimento. Connor tentava apalpar o chão para encontrá-la, mas não podia procurá-la e reter o guarda ao mesmo tempo. Optou pela pistola. O guarda saiu atordoado e foi correndo pelo corredor para uma saída.

Jackson tocou a ferida do ombro e assinalou para ele.

— Pegue-o!

   Connor correu na mesma direção do guarda e pôde segui-lo perfeitamente graças ao rastro do som de campainha que ia deixando. O guarda iludido tinha ativado o alarme de incêndios. Muito esperto de sua parte. Seguro que estava tão cansado como destreinado. E aonde tinha ido?!

   Connor dobrou uma esquina do corredor bem a tempo para ver o movimento de uma porta fechando-se ao pé de uma escada. Apressou-se para ela, abriu-a bruscamente e subiu os degraus de dois em dois para subir ao telhado do armazém.

   Acima reinava a calma. Também fazia um frio horroroso. Seu fôlego vibrava no ar como nuvens de tempestade. Os cascalhos repicavam no telhado a cada passo que dava com suas botas em busca de sua presa.

Jackson tinha ordenado que se mantivessem em sua forma humana e Connor não queria correr o risco de ser observado pelas câmaras de segurança, nem sequer lá encima, embora isso não significava que não pudesse pôr em prática alguns sistemas internos para agudizar a busca; ativar o despertar da besta justo o suficiente para aperfeiçoar seu sentido do olfato e inspirar o ar.

Ali estava, a sua esquerda. O aroma do medo.

   Agarrou a escada de metal para subir a uma das máquinas de ar condicionado e falou com sua presa.

— Não se mova.

   Tirou a pistola e apontou. O guarda levantou as mãos e as colocou atrás da cabeça.

Já tinha a seu prisioneiro. Mas o que podia fazer com ele?

   Não podia deixá-lo escapar. Seus irmãos sabiam que tinha seguido a pista.

   Tampouco podia matar um homem inocente. Tinha pinta de rondar os sessenta anos e seguro que tinha netos.

   Connor foi se agachando pouco a pouco. Tinha que fazer algo. E rápido. Só ficava uma opção e era a menos agradável.

   Aproximou-se do guarda até que pôde ver as gotas de suor escorregando pela frente face à fria estação.

— Baixa as mãos. Agora!

   O homem concordou. Connor descarregou a pistola; atirou todas as balas menos uma e deu a volta à pistola para apontá-la para sua direção. Agarrou a mão dele e a pôs em torno da pistola.

— Dispare em mim. — Ordenou.

— O que?

— Dispare; deixa a pistola e vá correndo. Sobe a um carro, não tente escapar a pé. Não explique a ninguém o que aconteceu esta noite. Nem à imprensa nem a seus chefes. — Esquadrinhou a chapa de seu uniforme — Charles P. Quincy. Não o explique a ninguém ou irei atrás de você. De você e sua família. Dispare!

   Apontou a pistola para sua coxa e rezou porque não rompesse nenhum osso nem perfurasse a artéria femoral; apertou a mão para empurrar a disparar.

Os guardas, aposentados ou não, sabem obedecer perfeitamente.

Charles P. Quincy apertou o gatilho e disparou.

 

                                     Capítulo 11

Mara não suportava estar na cama sem poder olhar a hora. Tinham requisitado o relógio quando a levaram ao casarão. Encerrada em uma pequena habitação sem janelas, nem sequer podia guiar-se pela altura do sol.

   Já era de dia? Parecia que Connor e outros estavam fora toda a noite e parte da manhã. Tinha um mau pressentimento. Tentou fazer caso omisso a esses presságios e se concentrou na leitura de uma passagem de William Wordsworth:

Ia solitário como uma nuvem que flutua sobre vales e colinas quando de repente vi uma multidão de dourados narcisistas: estendiam-se junto ao lago, à sombra das árvores, em dança com a brisa da tarde.

   A enorme contradição do espírito de uma gárgula poeta a apaixonava. Como era possível que um homem com essa aparência tão terrível pudesse escrever versos tão belos?

   De repente, um calafrio percorreu toda a pele para ouvir o ruído da porta principal. Jackson e os seus penetraram no patamar com seu típico repertório de pragas e assobios. Os passos retumbavam com um ruído seco combinado com palavras de cólera, como se estivessem transportando algo muito pesado.

A chave se meteu no ferrolho e o pomo começou a girar. Mara se levantou de um salto da cama e se sentiu aliviada ao saber que Connor voltava, apesar da tensão produzida entre eles antes.

Mas não foi Connor quem abriu a porta.

   Jackson penetrou no quarto. Atrás dele, apareceram Hard Case e Dwyer arrastando Connor, que se agarrava a eles pelos ombros. A cabeça rodava a seu livre-arbítrio e as pernas afrouxavam. Mara pôde ver um buraco rasgado na calça de sua perna esquerda e um rio carmesim que corria até seu joelho, virtualmente invisível pela cor do tecido jeans.

— Deite-o na cama. — Ordenou Jackson. Mara se afastou rapidamente para deixá-los passar. Os dois homens o deixaram cair na cama com pouca sutileza. Connor choramingou e moveu a cabeça, sem mostrar sintomas evidentes de consciência.

Jackson olhou a Dwyer e assinalou à porta.

— Tragam água e toalhas.

   Quando saíram do quarto, Jackson se voltou para ela, inexpressivo.

— Um tiro na perna. A queima roupa. Perdeu muito sangue, mas já está controlado.

— Teríamos que levá-lo a hospital.

— O médico dará parte de ferida de bala. Não podemos nos arriscar a que nos investigue a polícia. — Olhou para o corpo de Connor e voltou a olhá-la — Você é sua melhor enfermeira.  

   O pânico a paralisou por momentos. Em seus seis anos de proteção e cuidado de mulheres, tinha curado muitas feridas e arranhões de vítimas de maus tratos e sabia que estas não queriam enfrentar às perguntas inevitáveis de médicos e assistentes sociais, mas nunca se encontrou com algo tão sério como uma ferida de bala.

   Por desgraça, tinha a impressão de que Jackson se importavam muito pouco seus conhecimentos médicos.

— Necessito um antisséptico. — Disse Mara — E faixa e antibiótico.

— Bom, tentarei consegui-los amanhã. — Assinalou para as toalhas e a bacia de água que Dwyer levava — Isto é quão único temos de momento.

Jackson deu a volta e abandonou o quarto.

   Devlin rondava pelo quarto fazendo um gesto de desprezo.

— Se morrer, avisa. Não vá deixar que comece a feder.

   Mara notava como seu sangue fluía muito rapidamente e começou a ouvir um zumbido na cabeça. Queria amassar a esse bode, mas se deteve. Por muito que brigasse com o Devlin, Connor não se encontraria melhor.

”Que Deus me ajude”, pensou enquanto Devlin abandonava o quarto dando uma portada. Não sabia o que fazer para ajudar Connor, além de não separar-se dele.

 

Rachel Cross sonhou com umas nuvens negras e enfurecidas assaltando o céu; com uns trovões que ressoavam como canhões e com um vento selvagem cujas rajadas formavam ondas de prata. As ondas revolviam o estômago e o convulsionavam cada vez mais com cada investida.

   As deidades tinham sido generosas na cerimônia dessa noite com Nathan e Teryn. Tinham mostrado o mar e já sabia que encontraria Levi perto desse lugar, embora desconhecia a costa em que se achava.

Nathan voltou a pedir paciência, embora sentia uma grande ânsia por encontrar a seu irmão e reunir-se com sua família. De fato, em seus sonhos o seguia procurando. Sempre tentava encontrar uma pista que reduzisse o âmbito de busca.

Abriu sua mente e se deixou mergulhar pela tempestade. O vento queimava os olhos e as gotas das ondas refrescavam o corpo. Esquadrinhou desesperadamente o horizonte para procurar uma parte de terra, um traço reconhecível, mas o clima subtraía visibilidade. Só via chuva, água e nuvens.

   Mas o desenho das nuvens trocava em um dos lados. Em lugar de amontoar-se e crescer, começaram-se a criar círculos em torno de um único ponto; uma espécie de vértice. A íris de outro mundo.

   Rachel tinha um frio exagerado. Notou uma presença do outro lado da íris. O mal. Sim, atraiu sua atenção. Não podia afastar a vista. Lutava por se separar. Lançou um grito de lamento.

   Finalmente, recuperou a liberdade quando três estrondos ensurdecedores quebrantaram a íris que a olhava. O vértice se apagou; a visão desapareceu. Rachel despertou, ofegante, e recuperou a compostura. Nathan estava a seu lado.

   Três estrondos fracos ressoaram de novo na sala. Rachel se deu conta de que estavam batendo na porta.

— Nathan, vêem rápido — Anunciou a voz de Teryn.

   Nathan acendeu o abajur da mesinha de noite, colocou os jeans do dia anterior e caminhou descalço para a porta. Rachel levantou o lençol para tampar-se até as axilas.

— Recebi um aviso de Mikkel — Disse Teryn sem dar trégua a falar — Dispararam em Connor.

Nathan encurvou as costas e notou seus músculos rígidos.

— Mataram-no?

— Acreditam que não. Viram que o levavam a casarão.

Nathan foi pegar a camisa e os sapatos.

— Vou agora mesmo.

   Inclusive antes que Nathan abrisse o armário para pegar uma mochila, Rachel já sabia que este não ia ao escritório de Teryn.

Seu marido se dispunha a sair para Minnesota.

 

Mara deixou as toalhas a um lado da cama e levou a chaleira de água até a mesinha de noite. Sentou-se ao lado de Connor, que não mostrava nenhum indício de reconhecer sua presença.

   Tocou sua testa. Estava frio e suarento. Mau sinal. Seu pulso, em troca, era forte e vigoroso e respirava com normalidade. Se tudo ia bem, manteria-se assim.

   Mara ficou a trabalhar com mãos tremulas. Levantou o suéter; deslocou seu corpo para um lado e, depois, para o outro, até que encontrou a melhor postura para trabalhar sobre sua ferida. Seu peito úmido era muito suave; tinha muito pouco cabelo e Mara descobriu uma nova cicatriz em seu abdômen muito maior que a de sua bochecha. Essa cicatriz revelava um traçado de pontos torpe e áspero; estava claro que não tinha sido costurado por um médico. Mara se perguntava que tipo de ferida se poderia ter feito para ter semelhante cicatriz. Certamente, esse não era seu primeiro contato com a morte.

   As calças resistiam. Começou a arrastá-las pouco a pouco até descobrir umas cuecas cinza compridas que deixavam pouco espaço para a imaginação, embora nesses momentos tampouco estava especialmente preocupada com suas genitálias. Na metade da coxa esquerda se apreciava um buraco e a carne ao descoberto revelava uma parte de osso do tamanho de uma moeda de dez centímetros.

   Mas isso não era o pior. Jackson havia dito que era um tiro a queima roupa e isso queria dizer que devia ter um buraco de saída pela parte traseira da perna. Ao ter se criado na terra dos gângsteres, sabia perfeitamente que uma bala faz muito mais dano ao sair que ao entrar.

   Estava segura de que o buraco de trás seria muito maior. Ao redor da ferida penduravam pequenas partes de pele. Mara tentava estudar o alcance da mesma, avaliar os danos sem pensar no sofrimento pelo que Connor estava atravessando.

Tentava sem êxito. O estômago estava se revolvendo e teve que parar um momento para inspirar ar profundamente para controlar as náuseas antes de enrolar a perna com a toalha. Limpou as duas feridas com água para eliminar restos de bala e esfregou o contorno dos buracos com uma toalha.

   Quando por fim teve terminado, deu a volta e foi procurar a colcha para tampá-lo. De repente, levou uma surpresa inesperada. Tinha os olhos abertos e a estava olhando.

— Sinto muito — Sussurrou.

— Por que tem que sentir?

— Por não ter te tirado daqui quando podia.

   Mara o tampou bem com a colcha. Tinha os lábios rígidos e apertados.

— Já haverá outra ocasião.

   Connor não quis discutir, mas não estava de acordo. Engoliu seco e molhou os lábios com gesto de dor.

— Quer água?

— Obrigado — Disse, depois de beber de um gole de água.

— Como está agora? — Certamente, era uma pergunta tola, mas não sabia o que dizer.

— De momento bem, mas acredito que vou demorar muito em me recuperar.

— Infeccionou.

Connor assentiu.

— Jackson disse que tentaria achar um antibiótico.

Ele franziu o cenho.

— Não acredite muito nisso.

— Pode contatar seus amigos sem ter que sair para correr?

Connor entreabriu os olhos. Ela encolheu os ombros.

— Vi algumas vezes você rondar a árvore. Teria que ter tirado o veneno de zumaque de algum lugar.

— Não — Respondeu bruscamente — Não posso fazer nada; isso despertaria as suspeitas de Jackson e dos outros. Mas não se preocupe: meus amigos estão alerta. Com certeza já sabem o que aconteceu. Virão te resgatar a próxima vez que fique aqui com um par de vigilantes. Depois do desastre desta noite, Jackson e outros estarão um tempo sem sair, mas terão que voltar para a aventura e, justo nesse momento, os meus virão para te resgatar.

— Talvez demore menos em curar a ferida.

— Quem dera.

   A mente de Mara se rebelava diante do pensamento. Sua reação devia ter sido muito chamativa, porque Connor em seguida começou a sacudir a cabeça.

— Já assumi que aconteceria este tipo de coisas quando aceitei a missão. Minha congregação não pode assaltar diretamente a casa. Só podemos ter de guarda a uns quantos homens de Chicago; não podemos deixar de proteger as crianças.

Mara pestanejou várias vezes, desconcertada.

— A que crianças?

   Mara nunca tinha pensado que as gárgulas pudessem ter filhos. Gostaria de saber se Connor tinha um filho e, em tal caso, estava segura de que o menino teria crescido rodeado de amor e proteção.

   Connor tentou trocar de postura. Sua cara expressava dor e Mara colocou um travesseiro debaixo do joelho para que tivesse a perna em alto.

   — Faz dois meses, dois homens daqui foram a Chicago, a minha congregação. Colocaram fogo em nosso lar e tentaram raptar dois dos meninos no meio da confusão. Nathan e eu conseguimos detê-los, mas estiveram a ponto de me matar.

— Por isso tem essa cicatriz no estômago?

Respirou profundamente e assentiu.

— Foi o irmão de Devlin.

— Por que queriam as crianças?

— Para educá-los a sua imagem e semelhança. E isso é o que querem fazer com você, parece-me.

— Como? Não o entendo.

   Connor fez uma queda de pálpebras. Estava tiritando, mas tinha forças para falar:

— Tenho a intuição de que não estão vendendo às mulheres como escravas. Acredito que as sequestram para deixá-las grávidas e aumentar o número de membros. Anseiam o poder, e para isso têm que crescer em número.

Mara ficou perplexa.

Connor lançou uma pequena e débil risada irônica.

— Os princípios de nossa civilização, lembra-se? Propagar a espécie. Estes estão encarregando de estender seu mau.

   Connor continuou falando como se estivesse aproveitando a força que ainda ficava.

— Eu queria descobrir onde prenderam às mulheres que capturaram antes de você e onde guardavam os meninos, mas já é muito tarde para isso. Meus irmãos virão te resgatar assim que possam. Falarão com os vigilantes e a tirarão daqui. Tem que dizer às mulheres que se preparem. Vamos fazer tudo muito rápido.

   Mara não podia reter tudo o que havia dito, mas sim que memorizou um par de pontos chave.

— Mas então terá se sacrificado por nada e sua congregação continuará em perigo. Continuaremos sem saber onde estão as outras mulheres, e os meninos.

“Ângela”.

   Já era bastante doloroso pensar que estavam vendendo às mulheres como escravas, mas saber que as estavam utilizando para estender a semente do mal e multiplicar seu poder era, simplesmente, abominável. Era incapaz de contemplar a possibilidade de que Connor perdesse a vida por realizar essas atividades deploráveis.

— Bom, ainda temos tempo, então — Disse ela. Sua voz estava cheia de uma implacável determinação — Vou encontrar antibióticos custe o que custar e juntos vamos achar a maneira de poder dizer a seus companheiros que está bem e que a missão continua.

— Mas as mulheres...

— Podem esperar um pouco mais — Mara falaria com elas e estava segura de que o entenderiam. Eram muito fortes e apoiavam as umas às outras.

Connor fechou os olhos.

   Mara agarrou a mão e a apertou afetuosamente; desejava que ainda pudesse ouvir.

— Juntos conseguiremos. Podemos derrotá-los.

— Isso espero. — Suas palavras se escorreram de sua boca enquanto se abandonava ao sono.

— Estou segura.

— Essa é minha garota. — Dedicou um sorriso débil e sua respiração rítmica caiu em um terreno intermediário entre o sono e a inconsciência.

Nem sequer Mara soube.

 

                             Capítulo 12

Pela manhã, o estado de Connor tinha piorado, tal e como ele havia predito. Tinha o rosto avermelhado pela febre e em seus olhos se refletia a intensa dor.

   Mara desceu para fazer o café da manhã das mulheres e dos animais e retornou rapidamente acima para dar um pouco de suco de laranja e uma aspirina de uma caixa que tinha encontrado no forro de um dos armários da cozinha. Segundo as indicações da caixa, as pastilhas estavam vencidas a um ano, mas era quão único tinha para ele. Jackson tinha assistido a uma reunião importante em Duluth e não ia voltar antes da meia-noite.

   Mara só desejava que cumprisse sua promessa de trazer remédios para o Connor, embora não confiava. Já tinha um plano pensado no caso de que não retornasse com o medicamento.

   Retirou os lençóis das camas e as levou a cesta da roupa suja. Continuando, encheu uma vasilha de água com um produto limpador e anunciou que ia limpar os banheiros. Obteve uns quantos murmúrios e sons guturais como resposta (exatamente como tinha planejado). Enquanto trabalhasse na casa e atendesse às diferentes tarefas, não iam se fixar nos detalhes.

No extremo da sala do segundo andar havia outro lavabo. Deixou o material de limpeza perto da sala; molhou e esfregou alguns ladrilhos e abriu o grifo. Continuando, agarrou o cesto da roupa suja e começou a atar os lençóis. Só havia três ou quatro metros da janela até o chão. Seria fácil subir?

   Calculou que em total demoraria quinze minutos em descer, enterrar a nota que tinha escrito na árvore e voltar a subir sempre e quando os homens respeitassem seus costumes de descanso matutino e não subissem ao segundo andar.

   Tudo foi segundo o previsto, até que teve que percorrer os três metros de campo entre o abrigo e a árvore ao que tinha que chegar. A sete metros de seu objetivo, a porta do casarão se abriu bruscamente. Devlin e Hard Case saíram com estrépito, brigando e destrambelhando um ao outro. Dwyer os seguia de perto, animando-os, quando de repente viu a Mara.

— Ei! Que porra está fazendo aqui fora?

   Devlin e Hard Case detiveram sua briga e começaram a correr atrás dela. Depois de contemplar a árvore durante um bom momento, Mara esperou a que chegassem a seu encontro sem opor resistência.

   No salão, os homens a rodeavam como tubarões famintos.

— Acha que pode fugir de nós?

— Necessitava um pouco de ar. Tenho ficado presa nesta casa um montão de semanas.

Devlin fez um gesto de desprezo.

— Sim, claro. Como Rihyad esteve te tratando como uma princesinha, acha que pode fazer o que te dê a vontade. Mas, sabe o que? Seu namorado não está agora aqui para te ajudar.

— Engana-se.

   Mara levantou a cabeça lentamente. Connor estava ali, de cueca, ao pé das escadas, agarrando-se ao corrimão como se fosse seu único meio de suporte (a realidade é que era assim).

Devlin torceu os lábios e soprou.

— Minha mãe... Se olhe. Pensava que já tinha morrido há horas.

— Sinto te decepcionar. — Sentenciou de maneira sutil — Vamos, Mara.

Devlin a agarrou pelo pulso e a reteve.

— Ainda não acabei com ela.

— Quer-me provocar? Solte-a.

— E o que vai fazer se não a solto? Vai me bater?

— Pois sim. Não me importaria.

— Se nem sequer pode caminhar três passos...

Benson subiu o tom da provocação.

— Aposto dez dólares que se vem aqui. Devlin chutará seu traseiro assim que chegue, mas eu digo que conseguirá chegar.

— Pois sim. Não me faltam vontade. — Disse Hard Case.

   Mara tinha os dedos intumescidos pela pressão que exercia Devlin ao agarrar o pulso. Tentou soltar-se, mas ele o impediu.

   Lunáticos. Eram todos uma turma de lunáticos, incluído Connor. Se Jackson não chegava para impor um pouco de paz, acabariam matando os uns aos outros.

— Pois eu melhoro a aposta — Disse Connor — Jogo quinhentos dólares a que dou uma surra assim que tenha a perna curada. Digamos que... Em duas semanas?

— Menos lobos — Dwyer tirou uma caderneta e uma caneta de uma das gavetas do salão — Venha, senhores, façam suas apostas.

— Está de brincadeira — Protestou Devlin.

Connor levantou a cabeça com gesto desafiante.

— O que acontece? Tem medo do que vá fazer quando me recuperar?

   Devlin deu um chute à mesinha do salão e fez voar pelos ares um monte de revistas de caça justo quando empurrava Mara para frente.

— Uma semana. Dou-te de prazo uma semana; isso se não morrer antes. Não tem muito boa pinta.

Connor deu um sorriso malicioso.

— Procuro me conservar bem.

   Connor cambaleava pelas escadas e Mara correu a ajudá-lo. Quando ninguém os viu, Connor se apoiou em seu ombro.

— Está bem? — Perguntou Connor. Os dentes batendo.

— Sim — A única desvantagem era que não tinha podido enviar a mensagem a seus amigos. Mas, ao presenciar sua palidez e sua respiração dificultosa, isso era o último que importava.

— E você? — perguntou ela.

— Merda... Pois não.

Connor caiu pouco antes de chegar à cama.

 

Jackson se mantinha imóvel enquanto os espasmos de dor queimavam os olhos e sentia que as pernas começavam a afrouxar. O grande Líder tinha ordenado a seus súditos que flagelassem suas costas. Se mostrava qualquer sinal de dor, obteria como resposta outra chicotada.

— É a segunda vez que me decepciona, Jackson. Primeiro, em Chi-ca-go quando não me trouxe os meninos da congregação e agora em Minnesota, onde não pode nem cometer um pequeno roubo. E onde estão as mulheres que recolheu o mês passado? Por que ninguém as levou ao hospital? Teve muita margem de tempo para fecundá-las.

— Estão doentes, sua Santidade.

— Doentes? São uns tolos. Vou comprovar pessoalmente se estão doentes. Traz uma da próxima vez que venha.

— Sim, sua Santidade. Já não o decepcionarei mais. Se deseja me pedir qualquer outra coisa... — As desculpas não eram bem recebidas no domínio do Líder, pois se considerava um sinal de fraqueza. Só as promessas de lealdade inspiravam nele certo sentimento de magnanimidade.

— Já te chamarei para te encarregar outro trabalho. Mas advirto isso: se voltar a falhar, sua incompetência não ficará impune.

— Não o trairei, sua Santidade.

   Por sorte, o Líder grisalho ordenou ao pessoal castigador que retomasse suas tarefas.

— E este Rihyad, mostrou alguma sinal de deslealdade?

— Pois não, sua Santidade. Além disso, vigiei-o atentamente até que entrou no edifício.

— Teria que ter vigiado mais. Tem alguma possibilidade de sobreviver?

— Não sei, sua Santidade. Queria levar alguns antibióticos...

   O homem enigmático ficou contemplativo durante uns momentos, como se estivesse vendo algo que a Jackson escapava e voltou a prestar atenção com um tom muito mais cometido.

— Sua intervenção não será necessária.

Velho demente. Como podia adiantar-se a dizer isso?

   O Líder franziu o cenho como se tivesse escutado os pensamentos de Jackson.

— Traga-me ele aqui assim que se cure. Pode se retirar.

 

Connor quis se incorporar na cama com grandes esforços e seus pequenos ofegos de dor despertaram Mara, que tinha ficado adormecida em uma cadeira disposta ao lado.

   Mara se levantou de repente da cadeira e se sentou na borda da cama, tentando deitá-lo outra vez.

— O que aconteceu? Está bem?

Suas pupilas dilatadas se foram reduzindo até adquirir um tamanho normal.

— Pensei que tinha entrado alguém.

— Não, só estou eu.

— Não — Respondeu Connor, enquanto repassava o quarto com o olhar como se pudesse ver além das paredes — Esta aí fora.

Mara apalpou a frente. Voltava a ter febre.

— Está delirando?

   Connor tinha tido um sonho intermitente durante toda a tarde, mas, nos momentos de vigília, tinha demonstrado lucidez. Até esse momento.

— Não, é um poder das gárgulas: a Segunda Visão. É como uma espécie de túnel que construímos para ver coisas longínquas. O único inconveniente é que é um túnel de duas direções. Se alguém me olha, percebo-o e posso riscar o percurso do túnel até a origem. E notei que alguém estava me olhando, mas interrompeu o trajeto antes que eu pudesse vê-lo.

Mara enrugava um canto da colcha.

— Quem era? Um de seus amigos que queria saber se estava bem?

Connor sacudiu a cabeça.

— O teria reconhecido. Era alguém que não conheço. Alguém muito poderoso.

— E isso o que quer dizer?

— Não sei, mas nada bom.

   Connor afundou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos. Uma sombra azul aparecia em suas pálpebras e tinha as bochechas afundadas.

— Iria bem tomar um suco enquanto está acordado — Mara apertou afetuosamente o ombro e se dispôs a descer as escadas para preparar o suco. Tinha comido muito pouco durante o dia e precisava recuperar forças.

Benson se achava sozinho no salão esparramado no sofá. O escritório de Jackson estava aberto e a luz leve do monitor penetrava na sala. Os outros estavam dispersados pelo casarão ocupados em tarefas relativamente úteis.

   Ao ver o espaço livre, Mara decidiu ir ver as mulheres. Abriu o ferrolho da porta do porão e fechou a porta cuidadosamente, descendo as escadas com soma cautela.

Quando chegou ao porão, Theresa se alegrou muito ao vê-la.

— Olá, Mara! — Sussurrou — Há alguém na cozinha?

— Não, por quê? E por que está tão contente?

Jaina se agarrou aos barrotes da jaula e sorriu.

— Preparamos uma surpresa.

   Mara franziu o cenho. Não se sentia com ânimos de receber mais surpresas e qualquer novidade ativava em seguida seu alarme interno.

— O que?

   As cinco mulheres olharam de uma vez para uma pequena estadia do armazém que fazia as vezes de despensa. Ali apareceu o homem mais irresistível que Mara tinha visto em sua vida. Tinha o cabelo negro, mais curto que Connor e muito bem penteado. A mandíbula era forte, e levava a cara bem barbeada inclusive a essas horas da noite. Esse homem a olhava intensamente.

— Não tenha medo — Disse — Sou amigo do Connor. Meu nome é Nathan. Suas amigas me falaram que você.

   Mara estendeu a mão e ele a agitou com certo descontrole.

— Como pode entrar?

— Pois entrou da mesma maneira que nós saímos a semana passada — Disse Jaina, exibindo certa acuidade mental — Pela janela.

   A mesma janela que Dwyer tinha fechado quando se produziu a tentativa de fuga?

   Mara olhou a seu redor para comprovar se tinham quebrado os vidros da janela.

  

Theresa soltou uma risadinha.

— E sabia que quase não saímos vivas quando ele estava subindo?

   Mara necessitava uns minutos para pensar. Como tinham podido irromper em sua prisão?

— Arriscou-se muito para entrar. Por que o fez?

   Connor havia dito que seus amigos não acudiriam até que não houvesse poucos reforços no casarão.

— Tentou contatar conosco hoje.

— Sim — O típico truque do lençol pendurando para acessar a uma casa.

Nathan ficou meditabundo.

— É Connor? Ele te enviou? Como se encontra?

— Sim — Franziu o cenho — Quero dizer, não. Ou seja, que sim. Tentei contatar com você pelo bem de Connor; ele não me enviou. Fui por mim mesma. E não, não se encontra bem.

— É muito grave a ferida?

— Dispararam-lhe na perna. A ferida de bala não é muito grande, mas se infeccionou. Necessita de antibióticos.

— Em uma hora conseguirei o medicamento. Vou a uma farmácia de guarda.

— Mas como poderá me entregar isso, não posso me aproximar da árvore.

— Nem o tente. Já passei bastante mal te vendo pendurada da janela: hoje me deu um susto tremendo. Deixarei o medicamento no batente da janela da cozinha antes da meia-noite. Vigia que não haja ninguém perto amanhã pela manhã e agarra-o. Se quiser algo mais, deixa a janela da cozinha meio fechada e nos voltaremos a encontrar aqui de noite. Se não for urgente e a vida de Connor não correr perigo, fecha a janela de tudo e assaltaremos a casa. Temos que fechar esta operação.

— Pensava que Connor era um mais; que podiam prescindir dele.

Mara tinha um nó na garganta.

Nathan entreabriu os olhos.

— Ele disse isso?

— Sim.

Nathan sorriu com gesto inexpressivo.

— Ele já sabe que em um assalto há sempre vítimas e não quer que haja perda de vidas. Sobretudo agora que necessitamos a todos nossos homens.

   Mara se lembrou de que deviam proteger as crianças e se indignou um pouco com a mentira de Connor.

— Que conste que nenhum membro de nossa congregação é dispensável. Protegemos a todos até o final e isso também inclui a você. Se nos necessitar, viremos.

   Ele a agarrou pelas mãos e transmitiu toda sua força. Não era uma força física, era algo mais. Era um poder contagioso que vibrava em sua pele.

Ela levantou a vista e baixou o tom de voz.

— Por acaso leva um tempo observando Connor? Através da... Segunda Visão?

Nathan parecia um pouco confuso.

— Connor te falou da Segunda Visão?

Ela encolheu os ombros.

— Me disse que alguém o estava observando antes. Alguém muito poderoso. Pensei que poderia ser você.

— Não — Soltou suas mãos — Tenho que ir. Já te entretive o bastante. Mas não o esqueça: não está sozinha. Nem você nem Connor.

   Nathan abandonou o porão e Mara seguia paralisada, sem sair de seu assombro.

  

                                   Capítulo 13

À manhã seguinte, Mara pegou o antibiótico, mas o estado de Connor tinha piorado até tal ponto que esta duvidava da efetividade do medicamento. Tinha a febre muito alta; o pulso, rápido e fraco e respirava ansiosamente, como se não chegasse suficiente ar aos pulmões. Murmurava frases incoerentes e se revolvia contra os lençóis e o travesseiro.

Ao meio dia, Mara tinha a intenção de fechar a janela, mas, conhecendo as consequências dessa decisão (Connor não desejava que seus irmãos pagassem esse preço), decidiu esperar um pouco mais a que os antibióticos surtissem efeito.

Não se separava nem um momento de seu lado, falando ao ouvido e refrescando a testa com panos úmidos. Ao princípio, dizia frases curtas. Dizia que lutasse; que não se rendesse. Mas, finalmente, acabou falando. Falando sobre sua vida, sobre sua infância; confessando segredos que não tinha contado a ninguém.

   O nervosismo e a falta de sono dos últimos dias começavam a fazer efeito em seu corpo. Tinha os ombros afundados e os olhos entrecerrados. Representava um esforço considerável se assear com uma toalha úmida.

Ao final, quão único podia fazer era sentar-se a seu lado e escutar sua respiração. Sua mente começou a relaxar e outras sensações penetraram em seu cérebro. Imaginava cores, quadros, paisagens que nem sequer reconhecia; gente a que não tinha visto nunca.

   Contemplava estas visões como se estivesse vendo um filme sem som; sem seguir a trama, mas fascinada pela fotografia e a ambientação.

   Era incapaz de discernir o tempo que tinha passado, mas essas imagens mentais a cativaram até o amanhecer. Sentia as emoções da pessoa que as estava experimentando.

Connor.

   Como consequência de seu delírio, estava enviando imagens da mesma maneira em que tentou alterar suas lembranças introduzindo a sequencia do cervo em sua mente. Mas Mara sabia que essas imagens não eram artificiais.

Eram imagens que representavam sua vida.

Suas vidas.

   Montados em um pônei, percorriam juntos um páramo escocês. Ele quebrou um braço caindo de uma macieira. Derramou lágrimas de alegria pelo nascimento de um filho e lágrimas de desespero pela perda de um irmão. Mas, por cima de tudo, tinha um sentimento muito enraizado em sua vida: a lealdade para sua gente e para seus amigos.

   Os anos separavam uma cena de outra. Décadas. Séculos. O mundo moderno entrou em seu apogeu e começaram a aflorar suas inseguranças; sua nostalgia fazia as tradições antigas. O velho mundo.

   De repente, ela entrou na ação e o filme se reduziu, ao mesmo tempo em que as imagens se faziam maiores. Mara voltou a sentir essa melancolia, mas não para o velho mundo.

Era uma melancolia para ela.

   Mara sentiu o medo de Connor a não ser aceito por sua natureza; seu total convencimento de que o rejeitaria e a pequena dose de esperança que mantinha viva sua intenção de aproximar-se dela.

As imagens se reduziram cada vez mais e refletiam os dias no casarão. Finalmente, apareceu a última imagem: a sequencia desse mesmo dia.

As visões começaram a modificar-se em sua mente; os contornos eram muito mais suaves; a luz, mais tênue. A ambientação pertencia a um lugar que ela era incapaz de reconhecer, uma casa de campo que olhava ao mar; ao mediterrâneo.

Ela estava apoiada no corrimão do balcão. Levava uma camisola que ondeava ao ar enquanto observava os pequenos navios e cheirava a brisa marinha.

Era uma cena tão serena e relaxada que entrou em uma letargia inevitável. Notava como escorria a toalha da mão até cair pesadamente ao chão.

Quão último recordava era ouvir os passos de alguém que se aproximava do balcão. Ele a abraçou e a deixou apoiar-se em seu peito.

Era Connor.

Seu corpo estava quente e rígido; ela sentia sua excitação.

— Venha, carinho. Vêem para cama comigo. — Connor acariciava o pescoço e Mara apoiou a cabeça em seu ombro.

Ele sorriu e deslizou sua mão sobre seus quadris nus.

— Levamos todo o dia na cama.

Ele levantou uma sobrancelha.

— E onde está o problema?

— Não, não é nenhum problema.

   Atraiu-a para ele e pousou seus lábios em cima dos seus; percorreu com sua língua a comissura de seus lábios e ela apanhou sua língua com a boca.

   Connor abraçava seu corpo nu até que seus mamilos se endureceram e ela se entregou ao beijo.

— Estou ansiosa — Disse com voz cavernosa. Dedicou-lhe um sorriso perverso, deslizou sua mão sábia por seus quadris e a levantou do piso.

Duas dúzias de velas iluminavam o quarto. O aroma de baunilha e a sexo impregnava o ar. As cobertas estavam revoltas e retorcidas; os travesseiros no chão.

— Nossa que desordem montamos... — Disse ela.

Ele respondeu empurrando-a para a cama.

— Vamos aproveitar a desordem.

   Connor se sentou no chão com as costas apoiada na cama e as pernas abertas. Sentou-a, abraçou-a, colocou-a de costas a ele e começou a acariciar seus seios. Seus dedos incidiam nos mamilos excitados.

— Eu adoro como fica. — Murmurou. Sua respiração quente transmitia uma onda de sensações prazenteiras.

— É que você me deixa assim. — Respondeu. Sua voz era profunda e maliciosa.

   Enquanto ele brincava com seu seio, dava mordidas na pele do pescoço até o ombro; mordidas de prazer. As mãos, os lábios e os dentes se rendiam diante ela com uma ternura tão deliciosa que Mara esteve a ponto de chorar pela beleza da cena.

   Ao ter crescido virtualmente só no sul de Los Angeles (sua mãe alcoólica não a pôde atender) Mara sabia o que era a pobreza, a violência e a maldade. Durante muitos anos, tinha tido a sensação de que vivia empurrada por um instinto de sobrevivência e, por fim, deu-se conta de que devia seguir vivendo para aprender a descobrir os sentimentos de paz, alegria e satisfação.

   Jamais teria pensado que acharia esses sentimentos ao lado de Connor, um homem que vivia com uma besta interna de hábitos primitivos, de selvageria instintiva.

   Jamais teria pensado que poderia chegar a desfrutar da poesia, ou a entregar-se sem medo, recebendo tanto dele.

   Quando o conheceu, não o entendeu, sentiu medo dele; mas isso já tinha passado. Nesses momentos, era seu amante, seu companheiro, seu amor.

— Dobra os joelhos, carinho. — Ajudou-a a estirar e a abrir as pernas de tudo. As pernas de Connor abraçavam as suas. Seu sexo se esticava, antecipando-se ao que chegaria depois.

   Connor acariciava o peito à altura do diafragma com a mão direita, para tranquiliza-la. A mão esquerda bisbilhotava entre suas pernas até chegar ao clitóris e a toda a zona sensível que encarnava o maior prazer.

   Mara lançou um gemido e inclinou a cabeça contra seu peito. As chamas das velas crepitavam e se rebelavam. Os dedos de Connor investiam dentro e fora, para diante e para trás.

— Mais... Connor... Mais.

Em uma entrada triunfal, introduziu os dois dedos. Suas costas se arquearam para acoplar-se a seu ritmo e sua ereção já roçava contra o final de suas costas.

   Essa fricção interminável, dentro e fora, aumentou seu calor até limites extraordinários. Ela o agarrava pelos pulsos e o segurava com mais força a cada penetração.

— Mais! Mais! Connor!

   Connor acrescentou outro dedo e começou a mover-se mais rápido ainda. A palma de sua mão esfregava o púbis com cada investida. O dedo polegar e mindinho acariciavam de uma vez os lábios, apertando e apertando até fazê-la explodir.

— Ahh, vou... — Apertou as pernas e as segurou com toda a força, cravando as unhas e sentindo seus músculos tensos — Vou gozar...

   De repente, deteve as investidas e afundou os dedos mais ainda sem deixá-los sair, sem deixar de acariciar os lábios nem de pressionar a pérola excessivamente sensível de sua vulva.

   Mara saltava de prazer em sua cadeira e esteve a ponto de cair ao chão. Por um instante, não soube que fazia ali, mas em seguida se deu conta do que tinha acontecido. Tinha estado vendo imagens das vidas passadas de Connor enquanto este as transmitia inconscientemente. Ficou adormecida. O encontro com Connor no Mediterrâneo tinha sido um sonho, mas ainda sentia os espasmos de prazer em seu corpo.  

Aproximou-se da cama e o olhou. Estava dormindo de lado e agarrava o travesseiro com uma mão enquanto franzia o cenho, aturdido por seus sonhos.

A febre tinha baixado, por fim. Menos mal. Os antibióticos começavam a fazer efeito e a respiração entrava nos parâmetros do normal. Não era seu caso.

   Mara deslocou sua vista, quase involuntariamente, para a parte central do lençol, mas era impossível ver se estava excitado.

Nem sequer podia levantar-se com esse estado físico.

Só tinha sido um sonho...

Mas... Só tinha sido um sonho de Mara?

 

Jackson irrompeu no casarão, lançou o casaco no sofá e atirou as luvas na mesa.

— Onde está a mulher?! — Exclamou.

   Hard Case apagou o Nintendo e Dwyer levantou os olhos da revista erótica que estava olhando.

— Algum problema, chefe? — Perguntou Benson com ar despreocupado enquanto começava uma partida de solitário na mesa.

— Onde está essa mulher?

   Mara não podia fingir que não o tinha escutado. Saiu da cozinha.

— Está me chamando?

— Sim, você. Como está Rihyad?

Mara secou as mãos no avental.

— Continua... Doente.

   Jackson franziu o cenho. Atravessou a sala de jantar a grandes pernadas e a levou a cozinha, deixando um caminho de neve a seu passo.

— Tem possibilidades de sobreviver?

— Não estou segura, mas acredito que sim.

   Jackson murmurou algo parecido a “mais vale...” e a agarrou pelo cotovelo.

— Me traga agora mesmo às mulheres.

Mara sentiu um tremor súbito no corpo.

— Não é bom subir. Podem contagiar...

Afundou-lhe o dedo no esterno.

— Eu disse que as traga aqui. Agora.

   Os homens seguiam ao Jackson e bisbilhotavam enquanto este abria a porta do porão. Mara sentiu uma espetada no estômago. O pulso acelerou.

O que poderiam chegar a fazer se as viam sãs e salvas?

   Mara tentou inventar uma desculpa desesperada, mas, ao não encontrar nenhuma, conduziu-as para cima. As cinco mulheres se dispuseram em fila indiana como se estivessem condenadas a fuzilamento.

   Jackson caminhava ao redor delas, as inspecionando, as acossando com o olhar selvagem.

— Doentes, não? — Ironizou — Sim, já vejo. É muito contagioso. Têm-me feito ficar como um idiota diante de...

   Reprimiu o comentário. Sua pele começou a avermelhar. Olhou a seus homens.

— Beeem. — Disse Benson, sem mostrar nenhum entusiasmo — Se acabou a abstinência...

— Ainda podem ser contagiosas — Respondeu Mara.

   Jackson respondeu dando uma bofetada. Continuando, Jackson deu um murro em cheio na cadeira.

— Subam e as fecundem hoje mesmo. Já me ouviram.

Os homens se olhavam atônitos.

— Claro, chefe. Em seguida — Dwyer se esclareceu garganta

— Têm pinta de estar sãs, não, meninos?

— Sim, sim — Respondeu Benson.

Hard Case arranhou a cabeça calva.

— Devlin, gosta muito da jovenzinha, não? Por que não sobe ela esta noite? Assim, se vir que não te aconteceu nada pela manhã, eu subo alguma.

Devlin pôs cara de desprezo.

   — Não me dá vontade de ser a cobaia! Sobe você hoje a uma e amanhã me conta como se encontra.

— Não estão doentes! — Exclamou Jackson.

— Então qual agarrará você, chefe? — Perguntou Benson.

   Jackson franziu o cenho, mostrou os dentes e lançou um gemido ao ar. Ao final, foi sem levar nenhuma mulher.

   Mara decidiu que, quando saísse dali, cultivaria jardins imensos de zumaque. Poderia fazer, inclusive, ramos. Adorava o zumaque venenoso.

— As leve para baixo. — Ordenou a Mara. Antes de ir, deu as chaves a Hard Case para que as voltasse a encerrar — Depois, sobe ao andar de cima e cuide para que Rihyad não morra.

   Mara reagiu com um leve sorriso e se deu conta de que era a primeira ordem de Jackson que obedecia gostosamente.

Connor não se encontrava tão mal dede os últimos carnavais em Nova Orleans. Tinha a língua muito inchada; doía-lhe a cabeça, tinha dores no estômago e os ossos debilitados.

   Ao cheirar a podre, abriu um olho. Mara se achava diante dele com uma vasilha na mão. Removeu o líquido cinza e encaroçado com uma colher e o aproximou da cara dele.

— Mmmm, farinha de aveia.

   Connor agarrou imediatamente a bacia de vomitar. Mara lançou um suspiro ao ar e deixou a vasilha na mesinha de noite.

   Os dois últimos dias tinham transcorrido muito lentamente para ele. A febre, a dor... A sopa de farinha de aveia que Mara o forçava a beber cada vez que despertava.

   As náuseas concederam uma trégua. Connor não sabia onde colocar a bacia e Mara a agarrou e a tirou do quarto. De volta, levou um copo de água para que fizesse gargarejos e um pano limpo para que se lavasse a cara.

Ela o contemplava enquanto ele se limpava.

— Já tem melhor aspecto.

— Tenho uma dor de cabeça terrível.

— E a perna? Dói?

— Também. Muito.

Mara afastou a colcha e examinou a ferida.

— Quando te assente o estômago, darei-te uma aspirina.

   Connor fez um gesto de negação, afastou a colcha de tudo e girou o corpo não sem padecer uma dor terrível.

— O que preciso são umas calças. Tenho que voltar para trabalho, já se acabou a pausa.

— É muito cedo. Se nem sequer pode caminhar para o banheiro sozinho!

   Levantou-se e se arrastou para o armário com sua cueca. Mara estalou a língua e se aproximou do armário para ajudar a tirar a roupa. Agarrou-a dos ombros e a olhou fixamente.

— Quanto antes possa me levantar e caminhar, antes recuperarei a força. Fica pouco tempo, Mara.

— Já sei. Eu... Estou esgotada.

—... Porque esteve cuidando de mim vinte e quatro horas ao dia.

   Sabia que tinha estado cuidando dele constantemente, mas não tinha uma percepção exata da quantidade de horas que tinha estado com ele. Se não tivesse estado tão doente durante todos esses dias, teria desfrutado da tranquilidade do quarto com ela. Mas ela tinha compartilhado sua enfermidade, sem mover-se do quarto além do estritamente necessário e mantendo-se em vigília constante.

Connor poderia pensar que ela seguia sem aceitar, mas Mara não tinha agido assim antes que disparassem. Não, nessa ocasião era diferente. A maneira melancólica de olhá-lo quando pensava que desfalecia e as carícias que dedicava o fizeram pensar que ela já não o julgava como um monstro mas sim como a um homem.

— Bom, e aonde vamos agora? — Perguntou ela.

Connor dedicou uma piscada e um sorriso.

— Vamos para baixo.

 

                                 Capítulo 14

Nathan olhou o relógio, sacudiu a neve do casaco de caxemira e entrou como uma exalação na Associação de Jovens Cristãos. Não podia chegar tarde a uma reunião do conselho principal dos Gargouillen.

   Por desgraça, as companhias aéreas não sabiam disso. O aeroporto internacional de O'Hare estava paralisado e tinha havido muitos atrasos.

   Os velhos amigos o olharam enquanto Nathan abria a porta lentamente para entrar. Rachel estava no outro extremo da sala. Ao menos, não tinha por que preocupar-se em procurar uma cadeira, pois, como comanda a tradição, os membros do conselho e da congregação devem estar de pé em todas as reuniões. Desta maneira, os assuntos se tratavam com mais eficácia.

   Antes do ataque a St. Michael's, as reuniões do conselho eram muito formais e estavam infestadas de formalismos e normas. Os membros do conselho deviam levar uniformes muito vistosos e se colocavam diante de um suporte de livro para dar seus discursos. As normativas de ordem estavam muita estabelecidas.

   Esse dia, entretanto, a reunião parecia um encontro entre populares. Todo mundo levava a roupa que tinha salvado do fogo e participava de igual maneira, derrubando suas opiniões e ideias se a situação o requeria.

   Nathan só desejava que não voltassem para as tradições antigas. Aproximou-se de Rachel e não pôde reprimir dar uma mordidinha na orelha enquanto sussurrava:

— O que acontece aqui?

Ela deu uma cotovelada discreta e sorriu.

— Os mais velhos querem aplicar medidas para a segurança dos meninos, querem contribuir para reconstruir St. Michael's e concordaram que o pequeno Mark Zane possa criar a sua tartaruga em seu quarto. Venha, agora é seu turno.

   Como se tivessem chegado as palavras de Rachel, Teryn olhou para o semicírculo dos maiores e levantou a vista para Nathan.

— Nathan acaba de voltar de Minnesota. Que notícias traz?

Nathan deu um passo à frente para aproximar-se dos mais velhos.

— Parece que Connor se estabilizou um pouco. Já passaram três dias e a mulher que trabalha com ele não nos tem feito nenhum sinal para que o tiremos daí.

— Deus, outra mulher. — Replicou uma voz. Sem dúvida, era um dos conservadores. Nesses dias, a congregação se achava dividida. Muitas vezes, Nathan se perguntava se estava lutando contra um inimigo comum.

— Que estranho! Rihyad não manteria nunca relações com uma mulher além do necessário!

   Um coro de murmúrios e risadas começou a estender-se pela sala, mas Nathan estava seguro de que Rachel não estava rindo. Sua posição como primeira mulher admitida em uma congregação de gárgulas seguia provocando um intenso debate.

— Acalmem-se todo mundo! — Ordenou Teryn.

Impôs-se o silêncio.

— E o que nos fala da congregação de Minnesota? — Perguntou o Líder.

Nathan arrumou os punhos da camisa.

— De momento, só localizamos umas jaulas, mas seguro que têm mais repartidas por outro lugar. Do desastroso assalto a um caminhão carregado com pistolas, estiveram bastante tranquilos.

A voz de Teryn adquiriu um tom muito sério.

— Roubaram pistolas?

— Mikkel os viu levando um par de caixas ao casarão. Não levaram tudo o que queriam mas podemos dizer que estão armados.

   Nesse momento, já ninguém se sentia com ânimos de fazer nenhum comentário jocoso. Todos os homens (e a mulher) ali reunidos em seguida entenderam a gravidade do assunto.

   Os mais velhos formularam algumas perguntas mais, Nathan tentou oferecer toda a informação e assegurou que Mikkel, Christian, Noble e Rashid não separavam suas vistas dos minesotanos, de tal modo que saberiam de qualquer novo acontecimento assim que se produzisse.

   A reunião acabou e Nathan rodeou a sua mulher com os braços a modo de saudação. Uma saudação que prosseguiu com um comprido beijo.

— Hummm, senti sua falta. — Disse ela ao recuperar a respiração.

— Só estive fora três dias.

— Pois para mim foram como uma semana.

   Nathan a abraçou meigamente e a soltou ao ver que Teryn se aproximava deles. Estreitou-lhe a mão e deu uns golpes nas costas a seu saytreán, ao filho de sua alma.

— Que tal por lá? — Perguntou Teryn.

— Bom, muito frio.

— Como Chicago, verdade?

A expressão de Nathan se tornou séria.

— Seja qual seja o líder dessa congregação, está se separando de seus súditos a marchas forçadas e está adquirindo muito poder. Não sei se algum dia chegaremos ao mesmo nível que o cabeça. Se mantemos afastado do casarão, poderemos localizar todas as jaulas que têm repartidas antes que venha um deles a nos atacar.

— Temos que tentá-lo.

Nathan assentiu.

— Além disso, a mulher disse algo muito interessante. Disse que Connor tinha contado que tinha sentido a alguém o observando, a uma entidade muito poderosa.

— Que estranho. — Disse Rachel — Ultimamente tenho a mesma sensação.

   Nathan se voltou automaticamente para sua mulher, de uma maneira tão brusca que rangeram os ossos da coluna.

— O que? Quando? Por que não me disse isso?

— Durante as visões e também... Ultimamente. Sobre tudo em meus sonhos, quando volto a reviver as visões.

   Teryn arqueou as sobrancelhas e trocou o mesmo olhar com Nathan.

— As visões se repetem em seus sonhos?

— Depois de ter interrompido o círculo ritual? — Acrescentou Nathan.

Rachel assentiu.

— O que significa isso? Eu pensava que era pela obsessão de encontrar meu irmão. E a sensação de que alguém está me observando... Pensei que eram minha imaginação. Mas, agora que sei que a Connor acontece o mesmo, já não sei o que pensar.

   Nathan esfregou a nuca com certo nervosismo. O comprido trajeto e as poucas horas de sono estavam acabando com ele.

— E teve essa sensação quando eu estava perto?

Rachel assentiu.

Nathan olhou para Teryn.

— Não pode ser a Segunda Visão. A mente de Rachel não está preparada para essa habilidade e eu teria me dado conta se tivesse.

— Então, é possível que alguém esteja me espiando? E a Connor?

— Talvez se deve a nossos rituais de busca; através das visões rituais que criamos para encontrar Levi.

Nathan notou como revolvia o estômago.

— Há alguém mais praticando a religião antiga?

— É possível que alguém a tenha aprendido.

Nathan franziu o cenho.

— A pergunta é: quem?

— Pois não sei, mas talvez podemos descobri-lo. — Teryn pegou o braço de Rachel e a levou para a porta. Nathan os seguia — Vamos, Rachel. Me explique essa sensação. O que sentiu, exatamente? O que viu?

 

A noite seguinte, depois de seu primeiro jantar e seu primeiro café, Connor tentou subir as escadas para o quarto. Quando por fim conseguiu chegar acima, sentiu-se como se tivesse escalado o Everest. Mara se achava atrás dele, preparada para ajudá-lo se por acaso caía, mas Connor conseguiu subir sem sua ajuda.

   Estava exausto e se meteu na cama. Mara se sentou a seu lado, mas em seguida se levantou para ir a mesa e começou a folhear o livro de poemas. Voltou-se a levantar e se dirigiu ao armário para ordenar a roupa.

— Por que não se senta? — Disse Connor — Me canso só de vê-la.

— Perdão — Sentou-se na cama e cruzou os braços.

   Connor olhou para o outro lado da cama e deu uns golpezinhos no colchão. Mara fez um gesto de negação.

— Acontece algo, Mara? Vejo-a muito nervosa estes dias.

— Não. Sim. Quero dizer... — Mordeu o lábio, sinal inequívoco de que algo acontecia — Alguma vez esteve no Mediterrâneo?

— Sim. Muitas. Por quê?

— Não, por nada. Por curiosidade.

Connor colocou o travesseiro na cabeceira e se sentou.

— Mas por que o diz? Agora estou curioso.

— Não, o que passa é que... Sinto-me culpada por algo, embora eu não tenha a culpa de nada.

— Ah, quer me confessar algo? — Piscou um olho — Vem dizer ao tio Connor o que te passa. Eu adorarei ouvir seus pensamentos sujos.

Mara fez um gesto de brincadeira.

— Quando estava doente começou a projetar lembranças, como quando tentava introduzir a lembrança do cervo. A única diferença é que essas lembranças eram reais.

— Ah, já o entendo. E que lembranças projetava? Espero que não tenha saído à luz a cena do dia em que tentei tingir o cabelo de azul e quis pôr um piercing no nariz.

Mara sorriu.

— Não, nada disso, eram lembranças de suas vidas passadas. Das dez vidas. Mas eram cenas íntimas...

Connor soltou uma gargalhada e levantou as sobrancelhas.

— E você gostou do que viu?

Mara levantou a mão e lhe deu um tapa.

— Não, não refletiam este tipo de intimidade. Eram de sua vida pessoal. Sinto-me um pouco bisbilhoteira...

   Mara voltou a morder o lábio e ele esperou pacientemente que confessasse o que a estava angustiando.

— E então, há uma cena em que estamos você e eu.

— No Mediterrâneo.

Mara assentiu.

— Bom, mas como sei que nunca estivemos ali juntos, suponho que não eram lembranças, e sim um sonho. — Olhou-o fixamente — Alguma vez sonhou algo assim?

— Sinto de verdade. Estes dias foram muito estranhos para mim. Por que não me explica isso? Seria melhor se me explicasse direito.

   Mara se ruborizou e ele em seguida começou a entender tudo.

— E o que estávamos fazendo os dois no Mediterrâneo? — Perguntou ele.

O rubor invadiu o pescoço de Mara.

— Bem o que fazem todas as pessoas em uma casa com vista para o mar.

— Eu não sou uma pessoa.

— Nesse sonho era.

— Já vejo. — Agasalhou-se um pouco com a colcha para se aquecer. — E estive bem?

Os olhos brilhavam como nunca antes.

— Esteve espetacular.

— Ah, pois muito melhor. — Torceu um pouco os lábios, a modo de gesto travesso — Tenho uma reputação a manter.

Mara respirou profundamente.

— E não sei o que me acontece com isto; estou me obcecando.

— Venha, vem aqui. — Ordenou com carinho — Por favor...

   Mara trocou de postura e se sentou de joelhos enquanto passava a mão pelo cabelo avermelhado.

— Eu acredito que o que precisa é fazer realidade esse sonho.

— Connor...

— Me escute. Levamos muito tempo tonteando e dando voltas ao tema. Parece-me que é o momento de deixar as coisas claras.

— E te parece que vamos arrumar algo dormindo juntos?

— Reconhece que sempre ficará com a dúvida de saber como é.

Ela franziu o cenho.

— Me diga algo. — Requereu, passeando o olhar pela comissura de seus lábios.

— E se conseguirmos o efeito contrário? E se nos obcecamos um com o outro?

Ele riu entre dentes.

— Pois teremos que seguir juntos irremediavelmente.

   Muito lentamente, pousou o olhar nela. Alargou um pouco a mão e desabotoou o primeiro botão da blusa; depois o seguinte, e assim sucessivamente. Enquanto durava este processo, surpreendeu-a com um beijo e dedicou compridos olhares a seus lábios, a seus olhos e a seu nariz.

   Quando a blusa pendurava totalmente desabotoada, Connor se ocupou do colchete dianteiro do sutiã e a liberou de toda essa roupa.

— É preciosa — Riscou um percurso por toda a zona do esterno com o dedo indicador — Preciosa.

   Entrelaçaram as mãos e a atraiu para ele. Ela se entregou a ele enquanto se liberava dos sapatos, as meias três quartos e as calças. Abraçou-o e agarrou suas mãos.

— Está seguro de que quer fazê-lo? — Perguntou ela.

   Connor conduziu sua mão para o vulto que aparecia em suas calças.

— Totalmente.

 

                                   Capítulo 15

Mara lançou um gemido ao notar que a boca quente e úmida de Connor se aproximava de seu seio e suspirou de novo quando este se deteve antes de voltar a ocupar-se de seu mamilo erguido. Mara empurrou a cabeça para trás instintivamente e procurou seu calor e seu contato enquanto agarrava seu cabelo ondulado; um sinal intrínseco de puro desejo.

   Na paisagem do Mediterrâneo Connor tinha sido imensamente terno e considerado, mas, certamente, um pouco frio. O Connor real era igual de terno e cortês, mas era tórrido como um vulcão.

   Com o Connor real, o suor e a luxúria estavam servidos. O intenso desejo os levava a tocar-se, a provar-se, a explorar-se; a satisfazer um ao outro.

   O sexo não é uma coreografia de movimentos. Sua cena de sexo foi uma selvagem sincronia de braços e pernas; de pele mordiscada e carícias certeiras em zonas sensíveis.

   Sua cena de sexo foi um caos no que convergiam todos os sentidos.

   Mara afundou a cabeça em seu peito e riscou um percurso por seu pescoço com a ponta da língua. Ele respondeu mergulhando em seu corpo e beijando suas panturrilhas. Só o fôlego quente se interpunha entre sua boca e sua pele.

Sua cena de sexo foi um gozo insaciável.

Ela o conduziu até o travesseiro sem deixar de acariciar seus lábios. Connor a beijou e lambeu sua boca enquanto engatinhava para a cabeceira da cama.

   Quando voltaram a se encontrar de frente um para o outro, ela passeou seus nódulos por sua cintura e seu ventre, que ainda estava resguardada por uns boxers.

— Comentei alguma vez o que chego a gostar destes boxers?

— Não.

— Mas só há uma coisa mais excitante que ver estes boxers... — Intrometeu seus dedos por debaixo de sua roupa elástica e a arrastou — Tirar isso.

   As veias de seu pescoço se dilataram no mesmo momento em que sua ereção saltou e ficou livre na mão de Mara, desatando a uma nova besta que tinha jazido enterrada nele.

— Eu gosto muito. — Disse enquanto afogava os suspiros crescentes que invadiam cada vez que o tocava — Eu gosto muito...

   Mara sempre tinha deixado que os homens levassem a iniciativa. Mas, ao lado de Connor, sentia-se plena e poderosa. Sentia-se muito segura de si mesma e isso se devia, em parte, a que já tinha podido vislumbrar a pior parte dele: seu Despertar. Mara tinha já poucos medos aos que enfrentar.

Colocaram-se de lado, olhando um ao outro e abraçou com as pernas enquanto esfregava seu ventre contra sua ereção. Seus fulgurantes olhos ardiam em desejo. Connor choramingou, concentrou todas suas forças e se agarrou a ela. Deu meia volta e a tombou em cima dele.

— Vai ter que fazer todo o trabalho. — Disse.

Mara pousou suas mãos ao redor de seu rosto e baixou a cabeça para procurar um beijo de sua boca enquanto se endireitava em cima dele. Suas línguas brincavam e lutavam; eram a sala de espera erótica da união dos corpos. Ela o olhava com olhos de prazer. Ficou reta e arqueou as costas, baixando pouco a pouco os quadris até senti-lo dentro. A sensação de plenitude a embriagou totalmente enquanto seu pênis ia entrando pouco a pouco em sua cova úmida, que se estreitava para abraçá-lo. Mara deixou de sentir. Em seu mundo só estavam ela e Connor. Não havia luz, nem som, nem tato.

   Connor a agarrava pelos quadris para fazer seguir o ritmo e levantava o traseiro para que ela pudesse completar a investida. Mara começou a intensificar o ritmo de seus movimentos e se agachou um pouco mais para receber melhor sua penetração e incrementar a fricção. Ele juntou as pernas para ajudar a apertar mais forte.

   Todos os acontecimentos do mundo se bifurcavam para um único fim: o contato físico. A pressão aumentava por momentos e acabou explodindo em espasmos de prazer que paralisaram todo seu corpo até quase perder a consciência; espasmos que a deixaram fraca, saciada e extasiada.

   Mara se deixou cair em cima de seu peito e começou a escutar a orquestra triunfal de seus batimentos do coração.

— Tudo bem? — Perguntou.

— Nem ponto de comparação com a cena do Mediterrâneo. Cada vez eu gosto mais de Minnesota.

Riram juntos até que alguém bateu na porta.

— Ei! Rihyad!

   O pomo da porta começou a girar e apareceu a cabeça de Jackson. Mara se deitou rapidamente e Connor estirou a colcha.

— Não sabe que tem que esperar a que dêem permissão para entrar?

   — Sinto muito — Não o sentia. De fato, o muito bode parecia desfrutar com a cena — Só vim para ver se Connor se encontrava melhor, porque queria propor fazer uma excursão amanhã. Suponho que já não precise perguntar.  

   Jackson seguiu falando de costas enquanto se dirigia à porta.

— Às oito da manhã lá em baixo. Vamos todos a Duluth.

 

Comparada com o casarão no que Connor tinha passado esses nove dias, a mansão de Duluth da congregação dos Gargouillen de Minnesota se assemelhava ao Buckingham Palace. Os vigilantes armados custodiavam a porta automática da entrada ao recinto, a qual se acessava seguindo um caminho cuidadosamente asfaltado e limpo. Havia câmaras de segurança e duas esculturas gigantes de gárgulas penduravam das paredes. Uns trinta abetos altos e largos se alinhavam em torno do imóvel e o sol de meio-dia cintilava sobre os pedaços de gelo que penduravam dos ramos. Diante da rotunda que olhava ao recinto, apreciava-se a existência de uma fonte de mármore, em cima da qual se elevava a escultura de uma mulher nua, cujo olhar inexpressivo viajava timidamente para seus pés, enquanto cruzava de braços.

   O complexo residencial se parecia muito mais a um castelo medieval que a uma mansão do século XXI. A mansão estava construída com pedras de formas e tons variados e suas janelas altas e arqueadas se dividiam em múltiplas vidraças que deixavam transluzir os raios de sol do dia e um parapeito rodeava toda a extensão do telhado, revelando a presença de diferentes ameias.

   A estrutura retangular da mansão devia medir uns quatrocentos metros quadrados e tinha quatro andares de alto. Justo no centro, uma agulha arquitetônica se elevava uns seis metros, formando uma espécie de atalaia e a cada lado do edifício se achavam três naves laterais com janelas altas e estreitas muito angulosas que se abriam para frente e para trás e tinham forma do V.

Quão único faltava nesse lugar era o fosso.

   Jackson parou seu carro esportivo diante da entrada do recinto e Connor observou do assento do copiloto como se aproximava a caminhonete branca que levava a Mara e a todas as mulheres e outro SUV que levava a outros homens.

   Connor começou a se pôr tenso assim que viu uma fila de vigilantes musculosos postados nas portas de carvalho da mansão e a outros tantos dispostos diante dos veículos. Todos tinham o cabelo negro e vestiam com um suéter negro e calças negras folgadas. Levavam sapatos leves, apesar do intenso frio, e se apresentavam inanimáveis, com um gesto hierático e olhar inescrutável.

   “Todo músculo”, pensou Connor. Boa roupa e bom porte, mas só músculo ao fim e ao cabo.

Connor levantou o olhar para o Jackson.

— Onde estamos?

   Jackson acariciou o bigode com o dedo polegar e indicador e respondeu com suma tranquilidade:

— No inferno.

   Connor desceu do carro seguindo Jackson e viu outro homem sair da mansão. Era um tipo mais velho e não tão musculoso como outros. Vestia um traje cinza que se adaptava perfeitamente a seu corpo e se combinava com o tom de seu cabelo e de seus olhos. Levava uma camisa branca e uma gravata perfeitamente atada que davam um ar conservador, embora também tinha um pequeno rabo de cavalo atado com uma fita de pele evidenciando os últimos restos de um passado rebelde do que ainda não queria desprender-se.

— Bem-vindos, senhores. Sou Thaddeus Cole. Se necessitarem algo durante a estadia, estou a sua inteira disposição. As habitações estarão prontas em um momento. Por favor — O mordomo assinalou para a casa com seus compridos e elegantes dedos de pianista — Por aqui...

Jackson e outros começaram a encaminhar-se para a porta. Os cinco soldados romperam filas para que entrassem as mulheres empilhadas nas caminhonetes que, nesse instante, já se achavam em grupo caminhando para a parte esquerda da mansão. Mara dedicou um olhar de consternação a Connor.

Connor parou em seco.

— Aonde as levam?

   Thaddeus se voltou para ele e o examinou com uma curiosidade manifesta.

— Ao quarto das mulheres, é obvio.

   Jackson lançou uma advertência a Thaddeus pousando a mão em cima do braço de Connor, mas a preocupação parecia injustificada. Um princípio de sorriso se intuiu nos lábios de Thaddeus e se fixou em quão olhadas compartilhavam Connor e Mara.

— Não se preocupe. Aqui tratamos bem às mulheres e em seguida voltará a vê-la.

   Os sentimentos de Connor começaram a cambalear-se, sacudidos por seus desejos pessoais e as exigências da missão. Se deixasse Mara desprotegida e a lançava às garras do inimigo, estaria transgredindo seu instinto natural. Mas o êxito da missão e a sobrevivência dos membros de sua congregação dependiam totalmente de sua habilidade de entrar nessa mansão, recolher toda a informação possível e transmiti-las a sua gente. Se rebelar contra as autoridades da congregação inimiga a essas alturas da missão, estaria arriscando tudo aquilo que tinha conseguida graças a Mara.

   Lançou-lhe um último olhar penetrante de luta e fortaleza a Mara e começou a relaxar os ombros. Connor sacudiu a mão de Jackson e caminhou junto aos outros para a porta.

   Thaddeus sorriu a Connor enquanto este atravessava a soleira da mansão e franziu o cenho para dirigir-se à mansidão variada que se abria passo atrás dele.

— Os quartos estão no terceiro andar — Disse enquanto torcia os lábios como se tivesse comido algo desagradável.

— O jantar estará pronto em uma hora. Recordem que terão que se vestir formalmente para jantar com sua Santidade.

   Connor subia as escadas para o quarto e as palavras de Jackson retumbavam em sua cabeça. Achava-se no mesmo inferno e se ia vestir para jantar com o diabo.

 

                                     Capítulo 16

Mara estava se preparando mentalmente para as novas desgraças que as esperavam nos calabouços dessa fortaleza de pedra desenhada para impor outra terrível virada em sua vida durante essas últimas semanas. A sua mente acudiam imagens de tortura, guilhotinas, grilhões e ratos moribundos que se arrastavam entre seus pés enquanto seu coração e sua boca se secavam.

   As demais mulheres imaginavam cenas igual de horrendas. Jaina estava tensa e rígida como nunca antes e Theresa tinha o olhar assustado.

   Não obstante, para sua surpresa, os homens as guiaram por uma escada estreita que levava a uma estadia superior da ala leste da mansão em vez das obrigar a descer para o porão. O espaço que começaram a vislumbrar assim que acabaram de subir as escadas não era uma sala de torturas, mas bem se parecia com um andar de maternidade, em sua versão cálida e acolhedora.

   As paredes estavam pintadas com tons quentes e não eram muito gritantes. Havia plantas naturais em cada esquina e em lugar do típico corredor frio, comprido e estreito, as paredes do saguão estavam decoradas com material sintético e acolchoado. A sala principal era octogonal e conduzia a diferentes salas também octogonais com chão de carpete. Todas estavam equipadas com cadeiras, sofás e uma televisão.

   Tratava-se de uma autêntica sala de maternidade. As mulheres se repartiam as diferentes estadias em função de seu grau de gravidez e se dedicavam a ler revistas ou a ver a televisão. A Mara pareceu muito estranho que nem sequer levantassem a vista quando apareceram as novas; como se não quisessem vê-las; como se não quisessem saber nada delas.

   Ao redor da sala concêntrica confluíam diferentes estadias de consulta e salas nas que se davam os primeiros cuidados dos recém-nascidos, enquanto que jovens equipados com batas amarelas rondavam e atendiam os diferentes serviços.

   Mara diminuiu o passo tentando olhar o interior de cada sala, mas só vislumbrou a um par de jovens vestidos com roupa de sala de cirurgia trabalhando ao redor de uma mesa pequena. Ao passar pela terceira sala apareceu, de repente, um jovens com um vulto nas mãos. Um calafrio percorreu todo seu corpo, ao ver que o vulto se movia e, esquadrinhando uns pequenos punhos que se sobressaíam da mantinha azul, pôde ver um rosto redondo e pequeno que rompia a chorar transtornando, assim, a calma reinante na sala.

   Mara sentiu um estremecimento poderoso. Connor havia dito que estavam construindo seu próprio exército e não havia tornado a pensar nisso até esse momento. Nesse instante, um açoite de realidade a levou diante de um bebê de apenas três quilos cuja fúria inicial se derrubaria mais tarde aos serviços de um único fim.

   Seria um soldado imerso em uma guerra contra a humanidade.

   Um dos vigilantes fez um gesto a Mara para que seguisse adiante e se uniu com passos torpes ao grupo de mulheres. A indignação acelerava seu pulso e pressionava seu peito até tal ponto que quase não podia respirar.

Quem lhes dava direito a fazer isso? Quem?

Sua determinação de pôr fim a esse reino do terror invadia seu ânimo a cada segundo. Tampouco entendia por que Connor não tinha lutado por manter-se a seu lado e tinha medo de pensar que a missão se estava impondo a seus sentimentos para ela.

   Mas Connor tinha razão: a missão e a causa de tudo era muito maior que qualquer deles dois; se prestava toda a atenção, não poderia reunir toda a informação que necessitava para remover os alicerces do sistema. Ele não se esqueceu dela; voltaria a abraçá-la ao final e, enquanto isso, Mara estava disposta a seguir procurando a Ângela.

Venceriam a esses seres. Derrotariam-nos.

   Estava tão ocupada com esses pensamentos de luta que nem sequer viu a esquálida mulher que olhava através da janela de seu novo quarto.

— Olá.

   Mara deu um salto preparada para atacar e olhou à mulher, que media metro e médio e tinha uma barriga tão cheia como impressionante. Devia estar a ponto de dar a luz. Mas por que tinham prenhe a essa pobre mulher?

— É nova, não? — Disse enquanto se aproximava dela — Eu sou Colleen.

Mara não podia acreditar que pudesse sustentar-se em pé.

— Eu... Eu sou Mara. Mara Kincaid.

   Colleen deslocou o olhar para o ventre de Mara e esta se sentiu incômoda por um instante.

— Nossa, sim que trazem aqui logo. Ainda não se nota nada. De quantas semanas está?

Mara se levou inconscientemente a mão ao ventre.

— Ah, não. Eu não...

   Mara não queria levantar suspeitas nem pensar mais da conta. Se agia como uma mais poderia reunir mais informação.

—... Em realidade, ainda não estou segura.

— Amanhã o médico dirá isso.

— O médico?

— Sim, sempre fazem uma revisão inicial e assim olham a pressão, o açúcar... —Colleen encolheu os ombros e abriu o armário roupeiro para deixar lugar — Aqui tem espaço suficiente e também te deixo esta gaveta do armário. Eu já não me posso agachar muito.

— Obrigado.

   Uma revisão médica. E o que diria o médico quando descobrisse que não estava grávida? Ao menos isso acreditava ela.

   De repente, levou a mão ao estômago. E secou a boca.

Não. Não podia ser. Nem sequer o tinha pensado.

   Ela e Connor tinham estado juntos uma só vez. As possibilidades eram escassas.

   Mas no momento tinha sido raptada por um rebanho de humanos que se convertiam em monstros.

   Sentiu-se um pouco mais aliviada e respirou profundamente para recuperar a calma. Até esse momento, não tinha considerado a possibilidade de ficar grávida de Connor nem se expôs todas as consequências que conduziria essa gravidez. Negava-se a ter um filho fruto de uma gárgula por muito que crescesse em um entorno idílio.

   Todos esses pensamentos se acumulavam em sua cabeça com tal força que teve que sentar-se para não perder o equilíbrio.

— Está bem? — Perguntou Colleen.

   Mara assentiu. Devia mostrar-se forte. Grávida ou não, sentia o dever de preocupar-se com outras questões mais importantes, como salvar sua vida, solicitar informação e sair desse inferno.

   Sua mente se limpou e olhou a Colleen procurando certa empatia.

— Calma. Suponho que é porque estou no primeiro trimestre. Em seguida começarei a me encontrar bem.

Deus!

   Embora Mara se sentia como se seu cérebro tivesse saltado em mil pedaços, conseguiu tranquilizar-se e focalizar toda sua atenção em Colleen. Queria saber o que é o que ela sabia.

Já haveria tempo de pensar em outras coisas.

   Mara abriu sua pequena mochila e tirou as duas blusas. Olhou de frente a Colleen, que se tinha sentado ao bordo da cama. Sem ocultar seu nervosismo em nenhum momento, Mara começou a perguntar sobre as tarefas que se realizavam ali cada dia.

— Bom, e além da revisão médica, o que é o que fazem? Quantas mulheres há aqui? A que se dedicam cada dia?

 

O jantar rompeu todos os esquemas.

   Connor levou a boca o último e delicioso aspargo verde sem dar-se conta de como se derretia em sua boca. A comida era muito melhor que a de um restaurante de quatro estrelas. A decoração da mesa era muito elegante e a baixela estava composta por peças de cerâmica, cristal e ouro. O vinho fluía livremente, e todo aquilo era uma autêntica perda de tempo.

   Connor olhou para a cadeira presidencial vazia que se achava ao outro lado da longa mesa.

O diabo não aparecia.

   Connor começava a necessitar com urgência um rosto, um nome... Devia levar novas a sua congregação e pensava que essa mesma noite descobriria suas incógnitas.

Mas jamais teria imaginado que fosse tão difícil.

   Devlin tentava afrouxar o pescoço da camisa, pois apertava tanto (ou tinha tanto pescoço) que a pele sobressaía formando pequenas dobras desagradáveis.

— Posso me ausentar um momento?

Tinha cara de colegial carrancudo.

   Thaddeus, que se achava ao lado da mesa de servir rodeado de silêncio, lançou-lhe um olhar gélido.

— Em breve vamos servir o café.

   Perfeito. Vinte minutos mais de agonia silenciosa interrompida pelo tic-tac insistente das agulhas do relógio suíço de parede. É que estava categoricamente proibido falar enquanto se comia?

Connor desafiou o servente e se decidiu a falar.

— E bom, senhor.. .Thaddeus. Sempre servem esta comida ou se trata de uma ocasião especial?

   Ninguém dedicou nenhum olhar assassino, pois não tinha cometido um pecado mortal. No momento.

   Thaddeus fez um gesto com a cabeça ao garçom, que levava a bandeja do café, e esperou a que enchesse todas as taças antes de falar.

— Ao Grande Sábio gosta que seus hóspedes se sintam cômodos em sua casa.

   “Cômodos”. Não podia acreditar. Ninguém se sente cômodo vestido de pinguim, sentado em torno de uma mesa presidida por um trono vazio e imponente. Connor estava seguro de que o faziam de propósito.

   Connor sorriu timidamente e limpou com o guardanapo de náilon.

— É uma lástima que não esteja conosco. Amanhã poderia vê-lo? Eu gostaria de agradecer pelo jantar.

— Já transmitirei seu agradecimento. — Thaddeus separou os lábios de maneira misteriosa; Connor pôde comprovar que não era uma figura de cera.

   Mas tampouco se permitiu o excesso de cercar uma conversa com o Connor.

   Os doze homens beberam o café de um gole e, depois de um licor reconfortante, por fim foram liberados para se levantar da mesa.

   Connor se aproximou de Jackson no corredor dos quartos e pousou a mão em cima do ombro.

— Não entendo nada. O que é tudo isso?

— Você se cale e faz o que digam; não tente bancar o esperto pensando mais da conta.

— Se me disserem que tenho que fazer algo, poderei opinar sobre isso, não?

— Logo descobriremos.

— Como assim “descobriremos”? Você tampouco sabe o que está acontecendo aqui?

   Jackson abriu a porta de seu quarto e entrou. Connor o seguia de perto.

— Não de todo. — Disse Jackson, depois de fechar a porta.

— Ou seja, que seu próprio Líder não te explica absolutamente nada.

Jackson pendurou a jaqueta e afrouxou a gravata.

— Isto não é Chicago, Rihyad.

Connor lançou um bufo.

— Sim, por sorte. Mas seguro que sabe por que estamos aqui.

   Durante uns segundos, a expressão tensa de Jackson se suavizou, seus ombros relaxaram e Connor esteve seguro de que ia falar. Não obstante, antes de pronunciar-se, seu rosto voltou a tomar um ar muito sério e disse, enquanto entreabria os olhos:

— Em seguida veremos nossas ordens cumpridas. Agora saia daqui. Vá dormir.

   Ao não ter outra opção, Connor abandonou o quarto. Caminhou para seu quarto a grandes pernadas, com os punhos baixos, contendo-se para não dar um murro à parede.

   Estava farto. Odiava tudo isso. Odiava às pessoas; o jogo que faziam. Odiava sentir-se tão sozinho.

   Mara. Como teria passado sua primeira noite nesse castelo de loucos? Estava muito preocupado por ela e por desgraça... Desejava-a com todas suas forças. Precisava notar o poder de sua fúria, unir-se a ela para reconstruir a energia diminuída, recuperar forças graças a sua presença.  

   O sangue quente que fluía por suas veias começava a espessar e a esfriar e paralisava os sentidos.

   Não podia arriscar-se a ir a seu encontro. Não podia arriscar sua vida; mas sim podia introduzir-se em sua mente.

E se Os Gargouillen percebiam sua Segunda Visão?

 

Esperava que desfrutassem da função.

Mara estava deitada de barriga para cima olhando o teto enquanto o livro de poesia (o único artigo pessoal que tinha conseguido introduzir na mochila antes de sair do casarão) jazia aberto em seu peito. Tinha pensado em ler um pouco para tranquilizar-se, mas nem sequer os poemas de Wordsworth instigavam seu ânimo depois do que tinha explicado Colleen.

   Mara perguntou por Ângela e Colleen respondeu que era provável que houvesse uma garota com esse nome ali. As mulheres que se achavam nos três quartos dispostos ao redor da sala de estar não podiam ter comunicação entre elas. Quando trabalhavam, não podiam falar. Mara soube que seria muito difícil encontrar a sua amiga, se é que em realidade estava ali.

   Colleen explicou as rotinas que seguiam e Mara não saía de seu assombro.

— As que temos que dar a luz dentro de pouco não trabalhamos, mas temos uma tarefa concreta cada manhã — Explicou — Quando disserem o que tem que fazer, evita o trabalho de babá.

— Por quê? — Perguntou Mara com ar inocente. A simples vista, cuidar dos bebês parecia muito mais atraente que limpar privadas.

   Colleen tinha o olhar perdido. Começou a esfregar o ventre como se ouvisse a voz de seu bebê.

— Não a deixam pegar os bebês. Tem que se limitar a se aproximar do berço e lhes dar a mamadeira com a beberagem que eles preparam.

— Ai, Deus, e por quê?

— Dizem que, se os pegamos, os enfraquecemos. Estes bebês têm que preparar-se para ser fortes.

— Mas são bebês.

Colleen começou a soluçar.

   Mara estava consternada; doía muito pensar na possibilidade de que um bebê fosse privado da ternura e amor necessários para seu crescimento.

— As noites são o pior. — Disse Colleen com um pingo de voz — Embora não trabalhe na área de bebês, ouço-os respirar e choramingar. Choram durante toda a noite e ninguém os tranquiliza. Ninguém balança o berço.

   Mara afastou o livro e apagou o abajur da mesinha de noite. Já não podia ler. Esteve chorando sozinha na escuridão muito depois de que Colleen se tranquilizasse e dormisse.

E se não conseguia alguma vez sair dali? E se estava grávida e seu filho fosse criado dessa maneira?

Deus, não. Os bebês não têm a culpa de nada.

   Mara sentia um peso insuportável. Estirou-se de lado na cama e se agarrou fortemente ao travesseiro para ouvir seu próprio pulso.

   Mas, de repente, começou a escutar dois pulsar que retumbavam ao mesmo tempo. Notava a presença sensorial de Connor dentro dela, mergulhando em sua mente.

   Por fim, relaxou-se, fechou os olhos e abriu a porta sensorial. Ele estava ali (ao menos o estava sentindo). Acariciou-lhe a face, beijou as pálpebras e secou as lágrimas como se tratasse de feridas sangrentas.

   Mara soube que Connor estava usando a Segunda Visão. Estava manipulando sua mente para introduzir pensamentos e sentimentos que não eram reais.

Em outras circunstâncias, teria desprezado a falsidade e o artifício de uma relação imaginária, mas essa noite já nada se importava. Necessitava-o. Necessitava seu calor; sua companhia; sua fortaleza.

Seu amor.

   Connor Rihyad era um homem contraditório. Era bravura e fortaleza; sofisticação moderna e instinto primitivo. Lealdade e traição.

   Mas projetava um único sentimento para ela. Amava-a. Ela o notava.

   Ele nunca o reconheceria e inclusive seguiria cedendo às tradições de sua gente.

Mas a amava. Ela o notava.

   Mara notava a presença em sua mente e desatou todos seus pensamentos enquanto recebia os que ia enviando. As sensações se converteram em imagens.

   Connor a abraçava meigamente. Tinham os torsos nus. Ele abriu um pouco suas pernas com o joelho e deixou que sua imponente ereção passeasse por sua coxa. Mas, em vez de penetrá-la, riscou um percurso de beijos por todo seu corpo, do pescoço até o seio, o umbigo e o ângulo carnudo de sua carne úmida.

   Quando Mara se deu conta do que estava a ponto de fazer, fechou as pernas rapidamente e quis proferir uma queixa, mas essas imagens pertenciam a Connor, eram seus sonhos. Ela não podia exercer nenhum controle. Era uma luta em vão.

   Connor queria que ela se rendesse. As imagens e intenções se construíam e se dissolviam na mente de Mara como formas nebulosas atormentadas. Connor pegou dois lenços vermelhos de seda e a atou brandamente as barras da cama. Retomou a atenção nessa zona quente de seu corpo.

   Connor estirou suas pernas, afastou sutilmente as dobras de sua pele e deslizou sua língua dentro dela. Ela se agarrava as barras com força para não levitar de puro prazer. A boca de Connor trabalhava ao mesmo ritmo que seu corpo.

   Numerosas sensações confluíam desde seu primeiro encontro. Muitos medos apareciam ao novo horizonte.

   Mas a Mara já não importava nada disso. Era uma noite para entregar-se ao desejo.

   Connor a chupava, saboreava e lambia com tal intensidade que os ofegos sossegaram. Enquanto ele esfregava seu rosto contra suas coxas internas, ela arqueava as costas, esticava os músculos e notava um formigamento celestial. De repente, seus movimentos de quadril urgiram uma necessidade superior. Necessitava que ele a possuísse de tudo. O desejo de Connor não conhecia limites. Ela notava seu ardor dentro de seu corpo, revolvendo seus sentidos e revolucionando ainda mais os batimentos de seu coração. Os braços e as pernas tremiam; começavam a afrouxar. Seu ventre recebia vitorioso as sacudidas e, depois da grande investida, Connor a fez explodir em mil pedaços de prazer.

   Os espasmos começaram no epicentro de seu corpo. Esse único ponto representava o mundo inteiro. Sua mente começou a abrir-se e todos os problemas e medos penetraram pelas fendas, que se tornavam maiores com cada novo espasmo de êxtase.

   Justo quando as convulsões de prazer começavam a abandonar pouco a pouco seu corpo e os brilhos de luz noturnos se aplacavam por momentos, Mara se deu conta de que ele seguia aí, abraçando-a, estreitando seu corpo para protegê-la de tudo. E estava cantarolando ao ouvido.

Essa noite não ouviu o pranto de nenhum bebê.

 

                              Capítulo 17

Mara apareceu com a cabeça pela porta de seu exíguo quarto. Colleen tinha ido dar um passeio e Mara em seguida entendeu por que o chão estava encapetado: desta maneira, as mulheres podiam caminhar sem fazer-se mal nas articulações. As gárgulas queriam que a gravidez se desenvolvesse com as melhores garantias de saúde e que gerassem contentes e tranquilas a suas criaturas.

   Mas, a partir do parto, tudo mudava. Mara não quis pensar no que acontecia depois de dar a luz.

   Ignorou por um momento esse pensamento para poder analisá-lo mais tarde e voltou a jogar uma olhada à sala de estar. O vigilante apostado no patamar das escadas lia o jornal, como cada manhã. A sala de cuidados infantis estava vazia.

Era sua única oportunidade.

   Não tinham atribuído nenhuma tarefa para essa manhã devido a sua visita médica que, por sorte, tinha sido muito breve. O médico extraiu um pouco de sangue, tomou o pulso, perguntou se tomava drogas e cumprimentou as enfermidades de seus antecedentes familiares, além de envergonhá-la com perguntas sobre sua atividade sexual e sobre a data de sua última menstruação.

Mara tomou a determinação de fingir que se achava no primeiro trimestre de gravidez, embora ainda duvidava da conveniência de ter tomado essa decisão. Nesse lugar se engendravam filhos; não queria que a vissem como a um objeto inútil. Oxalá chegasse alguém cordato para resolver a situação.

   Como esse era seu único dia livre, decidiu sair a investigar um pouco. Queria entrar na sala de cuidados infantis para ligar o computador e procurar o nome de Ângela no histórico de pacientes. Sentia curiosidade, também, por descobrir quantas mulheres e bebês desgraçados tinham passado por este lugar, embora estava segura que seria uma cifra terrível. Era uma desgraça em si mesmo, embora ocorresse só a uma pessoa em todo mundo.

   Aguentou a respiração e esperou ao lado da porta de seu quarto; encaminhou-se pelo corredor; entrou na sala de cuidados infantis e se deteve um instante em frente da mesa do computador. Ao não ouvir nada, suspirou lentamente de alívio.

   Começou a engatinhar até a mesa do computador e deslizou brandamente a bandeja do teclado, tentando esconder-se em algum canto no que pudesse escrever e ver o monitor ao mesmo tempo sem ser descoberta pelo vigilante.

   O computador estava ligado e o sistema não pedia nenhuma chave secreta. Estava segura de que nessas instalações não existia o segredo profissional; o software era bastante acessível, mas Mara sabia que a operação ia ser um pouco arriscada, pois devia teclar muito lentamente para não fazer nenhum ruído.

   O coração deu um tombo quando chegou à letra c: Campbell, Centerman, Cooper, Cordoz... A porta de acesso às escadas se fechou de repente e começou para ouvir um murmúrio de vozes provenientes do corredor e passos fatigantes que retumbavam no chão encapetado.

Mordeu o lábio, desligou o monitor e empurrou a bandeja do teclado com uma força desproporcionada. Ao não ter escapatória, encolheu-se ao lado da mesa: seu único desejo era que o vigilante passasse sem dar-se conta de sua presença.  

   Arregalou os olhos como pratos quando os pés pararam diante da porta e começaram a perambular pela sala. Levantou a vista e viu um par de botas negras, uns jeans negros e um cinturão pequeno de prata esterlina. Um torso fornido vestido de negro; ombros largos...

Connor!

   Mara esteve a ponto de beijar o chão. Connor estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se.

— Sshh, calma.

Mara levantou a cabeça lentamente.

— O que está fazendo aqui? E o guarda?

— Vim buscar e disse ao vigilante que descansasse um momento enquanto eu estava aqui, embora se supõe que eu não devo entrar. O que está fazendo?

— Estava procurando a Ângela na base de dados. Encontrei seu nome, mas não tive tempo de ler...

— Está louca! E se a pegam?

— Já não me importa nada desde que não está comigo. Tenho que tentá-lo.

Connor passou a mão pelo cabelo e olhou para o corredor.

— Venha, ande depressa e busca a informação que necessita. Eu estou fora vigiando.

   Mara se sentiu aliviada porque podia teclar mais rapidamente e, como já conhecia o programa, encontrou a informação necessária em questão de minutos. Ângela estava ali; dezesseis semanas de gravidez e a quatro quartos dela.

Connor a arrastou para seu quarto e deu um comprido beijo antes que ela pudesse se pronunciar. Agarrava-a fortemente pelos ombros; seus lábios eram quentes e aveludados. Eram delicadeza e devoção. Eram confrontação e ternura.

   Connor levantou a cabeça. Suas pupilas eram gudes negros rodeados por uma auréola azul.

— O que te aconteceu esta noite?

O rubor subiu a suas bochechas ao recordar a cena.

— Sabe perfeitamente; você é o culpado de tudo.

— Me refiro a antes disso.

Mara sacudiu a cabeça e o olhou com gesto confuso.

— Nada, não me passava nada.

— Pensava que alguém tinha te feito mal, porque estava passando muito mal.

   Mara lhe acariciou as bochechas, compreendendo seus sentimentos.

— Estava passando mal e você me tranquilizou.

— Não entendo.

   Ela tampouco entendia. Como ia entender algo, encerrada nesse lugar?

   — É este lugar... E tudo o que estão fazendo às mulheres. Dói-me muito presenciar estas coisas.

— Vamos liberá-las.

— Mas vão necessitar ajuda depois que as liberemos.

— Você poderá ajudá-las.

   Mara tinha que confiar outra vez em seu trabalho, voltar a que se dedicava: protegia às mulheres que passavam por uma má época. Assim tinha conhecido a Ângela seis anos antes. Mas seus caminhos se separaram totalmente.

   Mara se separou dele porque a tentação de deixar-se levar pelo desejo era muito grande.

— E você? Tem descoberto algo?

Connor franziu o cenho.

— Quão único tenho descoberto é que o Líder não se digna a aparecer nos jantares fastuosos. Não esteve no último jantar e hoje tampouco o vi no café da manhã.

— E tampouco sabe por que nos trouxeram aqui?

— Parece-me que forma parte do procedimento habitual que seguem com as mulheres. Repartem-nas em jaulas, trazem-nas aqui quando já estão grávidas e voltam a recolher a outra nova fornada. Mas não tenho nem ideia do que pensam fazer com o Jackson ou conosco.

   Mara notava sua crescente preocupação, pois Connor não era o típico homem passivo que se sentava para ver acontecer os acontecimentos. Ela tampouco era assim.

— Não aguento ficar aqui nem um minuto mais. Não posso ver isto.

Connor a voltou a abraçar e a beijou na testa.

— Dentro de pouco vão se produzir mudanças. Dentro de muito pouco.

— E o que você vai fazer?

Connor sorriu.

— Se o Líder não aparecer, terei que ir visitá-lo. E você?

— Segundo a programação, Ângela trabalha quase sempre na lavanderia. Vou tentar que me enviem lá amanhã.

Sua expressão tomou certo ar circunspeto.

— Tome cuidado. Se começar a dizer que te conhece, vai ter que dar muitas explicações. Aqui tem que passar despercebida.

Mara afundou o dedo em seu peito.

— Não vejo melhor maneira de passar despercebida que lavando todo o dia sua roupa interior.

Connor se sentiu muito mais animado ao comprovar que Mara estava bem, muito melhor do que esperava dadas as circunstâncias. Connor não tinha podido dormir ao notar seu sofrimento. Pensava que Mara se afundou totalmente, mas, de novo, sua intenção havia tornado a falhar. Não só estava íntegra e repleta de forças, mas sim, além disso, estava progredindo em sua missão, embora ele se achava totalmente estagnado com respeito a seus objetivos. Mas Connor estava disposto a solucioná-lo antes de meia-noite.

 

   Connor viu Jackson levantando pesos no ginásio e se deteve seu lado para observá-lo.

   Tal e como esperava, Jackson não pôde aguentar mais o silêncio:

— O que aconteceu? — Jackson torceu os lábios enquanto trocava o peso à outra mão.

— Isso é o que eu digo! Que porra está acontecendo aqui? — Exclamou Connor.

— Estou tentando me pôr em forma.

— Saímos do casarão e devemos parar neste castelo do Frankenstein para não fazer nada em todo o dia e não é capaz de me explicar o que está acontecendo!

— Você não gosta de desfrutar de uns dias de paz e tranquilidade?

— Não.

   Jackson afastou os pesos, secou a cara com a toalha e agarrou umas alças para realizar um exercício de bíceps do banco. Connor trocou de posição para segui-lo.

— Estamos esperando e esperar sábio. — Disse Jackson, apertando os dedos contra as alças.

— Alguns levamos muito tempo esperando.

   Uma faísca de humor apareceu nos olhos de Jackson. Inflou o peito, deixou as alças e se estirou de barriga para cima para fazer uns movimentos de barras em banco horizontal. Enquanto subia e baixava a barra, ofegava ritmicamente.

Connor se aproximou da barra.

— Por que diz que esperar é sábio?

— Porque temos que esperar para conseguir nosso próximo objetivo.

— E qual é?

Não houve resposta.

   Connor agarrou a barra e a apertou contra sua garganta. Jackson tentava levantá-la, mas o peso o impedia.

— Continua sem confiar em mim. — Disse Connor.

— E se continuar assim, muito menos. — As gotas de suor corriam por sua testa.

Connor levantou a barra, por fim.

— Eu tampouco sei qual é a missão. Isso só sabe o Líder.

   Connor levantou a barra ar e a colocou no varal metálico.

— Então posso solicitar uma entrevista com ele?

Jackson se sentou e se voltou a secar o suor da testa.

— Impossível. Quando o Grande Amo quiser falar com você, ele dirá.

— Está seguro de que este Líder existe? Não conheci a ninguém que o tenha visto nunca.

— Claro que existe. Mas ele nunca se juntaria com gente como você.

   Jackson se levantou, agachou-se para agarrar uma garrafa de água do chão e deu meia volta enquanto dizia:

— Aqui nada é o que parece.

Que diabos queria dizer com isso?

 

O Grande Líder de Minnesota (do mundo!) achava-se sentado no centro de seu círculo ritual. Seu cão fiel Wulf não se separava de seu lado e a seu redor estavam disposto tudo o equipamento necessários: uma rosa murcha, um cálice de vinho amargo, uma jarra de pedra com água pútrida, uma vela a raias brancas e negras e pequenas figuras do Deus e a Deusa recostadas de barriga para baixo.

   Levantou os braços, abriu as mãos e uma brisa revoou sua toga negra.

   — OH, Deus da escuridão, amo da noite, eu te invoco. Afasta o véu da terra e da mente; me mostre à mulher que se acha nessa busca.

   O Líder arrancou uma mecha de cabelos de Wulf. Este uivou e choramingou dolorosamente, mas voltou a sentar e apoiou a cabeça em cima das patas dianteiras enquanto seu amo deixava cair o cabelo no cálice de vinho.

   O líquido vermelho se movia lentamente em forma de espiral, espessando-se e voltando-se mais escuro até que adquiriu a cor e a consistência do sangue.

   O Líder molhou o dedo indicador no cálice e se desenhou raias vermelhas na testa, nas bochechas, no queixo e nos pulsos. Repetiu o mesmo ritual com o Wulf e levantou a vasilha para beber a sopa infecta.

   Os sedimentos do vinho começaram a mover-se em forma de espiral. O Líder olhou a combinação de ouro e carmesim e notou como começava a nublar a vista, dando passo à aparição da visão mental.

Ali estava ela. Aquela mulher que procurava seu irmão.

   Estava estirada na cama abraçada a seu marido. Era preciosa.

   O Líder passou do plano físico para concentrar-se em sua mente. Essa mulher tinha muitas noções sobre magia antiga e conseguia alargar suas visões durante o sonho, muito depois de que terminasse o círculo ritual, embora tinha recebido muito pouca ajuda de Nathan.

   Transcorridos uns minutos, o mar e o vento o açoitaram e um relâmpago irrompeu na atmosfera enquanto ressoavam os trovões por cima de sua cabeça.

   Cada vez que contemplava a visão, esta se voltava um pouco mais nítida. O Grande Amo começou a ouvir o resmungo de um barco empurrado por um punhado de homens que lutavam contra as investidas do mar.

   Mas, de momento, queria afastar essa visão. A mente dessa mulher não estava muito treinada, mas era muito sagaz. Ela tinha notado sua presença na última vez; por isso, não queria fazer-se notar. Deixou intacta a visão do bufo do vento e a climatologia selvagem e recuou uns passos, observando as estrelas que apareciam através da galeria cristalizada, a linha do horizonte e o espaço no que ela estava acostumado a sentar ao lado de dois homens: seu marido e o adoentado Líder de Chicago.

Suas viagens mentais ainda eram recentes. O Líder conseguiu identificá-los e recuar à habitação que tinha ocupado suas tardes e ao escritório em que tinha tomado o chá com esse par de homens aquela tarde.

   Só quando detectou exatamente a localização dessa mulher, começou a compartilhar sua visão do mar. Observava como o barco cambaleava fracamente entre as águas negras e acelerava seu percurso como um golfinho ágil e obediente. A parte da coberta começou a afundar-se e sua face se afundou na água do oceano, como também tinha acontecido a ele. O Líder provou o sal que ela também estava provando e ouviu os lamentos e queixa dos marinheiros.

   Sentia como ela lutava por resistir, por sair da coberta para ter uma melhor amplitude de vista. A visão dessa mulher vibrava no ar com a mesma ferocidade que a tempestade e conseguiu ampliar a fila de visão. Ele sentia uma intensa dor muscular e um grande peso em seus pulmões, mas ela conseguiu sair viva.

   Escassos centímetros separavam sua consciência do barco açoitado pelas ondas. Os centímetros se converteram em metros, e os metros em quilômetros. Pôde contemplar perfeitamente a seguinte sacudida do barco e, com letras brancas pintadas no casco negro, pôde ler: A Baleia Branca.

Ele sorriu.

   Perfeito. Já tinha outra pista sobre o irmão que ela tinha perdido; o filho de Damián Paré, um dos Antigos, os primeiros habitantes de Rouen que se converteram em gárgulas fazia já tantos séculos (e vidas).

Esboçou um sorriso, apagou a vela e a imagem se desvaneceu.

Fantástico.

O momento se aproximava.

 

                                     Capítulo 18

Muitas horas depois de que Rachel tivesse quebrado o círculo ritual, despertou o som de uma gargalhada perversa e depravada. Sacudiu a cabeça para trás, topou-se contra algo duro e se deu conta de que era o peito de Nathan. Sentou-se na cama e começou a tremer. Ainda podia sentir a umidade marinha na roupa e a cobertura do barco cambaleando sob seus pés, provocando umas náuseas terríveis.

Nathan se incorporou e a estirou do braço.

— Está bem?

— Tive outro sonho.

— O mesmo? — Esfregou as mãos contra as costas para que entrasse em calor.

Rachel assentiu.

— Mas como é possível que as visões continuem depois de romper o círculo ritual? Como é que sigo vendo cenas?

— Não sei. — Nathan a tentava acalmar — É um pouco estranho. As visões têm que terminar quando se rompe o círculo ritual. Teryn está estudando os textos antigos que se salvaram do incêndio para procurar respostas.

Voltou-se para seu marido e o olhou fixamente, voltando a recordar o sonho.

— Mas vi mais coisas. Ouvi homens gritando para que não naufragasse a barco e, ao final, as ondas o derrubaram.

— Ou seja, que estavam apanhados em uma boa tempestade.

— Parece-me que isso não ocorreu ainda. Ainda não pude discernir se é passado, presente ou futuro o que vi.

— Suponho que é presente, porque a visão foi repetindo todos estes dias.

   As sensações de aroma e gosto de seu sonho se misturaram com outros sentidos. A voz começou a tremer ao recordar a cena.

— Pude ver o nome da barco, Nathan. — Agarrou-o por braço — A Baleia Branca. Podemos seguir essa pista. Podemos encontrar Levi.

   Nathan não vacilou nem um momento. Levantou-se de um salto da cama e foi procurar as calças.

— Vou procurar na Internet para ver se saiu algo.

   Mas ela o reteve antes de ir e sua alegria inicial se converteu em um medo desatado.

— Ele também o viu, Nathan: essa entidade que está me observando. Esteve ali e conhece o nome do barco em que viajava meu irmão.

Desgraçado filho de puta!

 

   Connor se retorcia na cadeira na hora da comida. Tinha as veias do pescoço inchadas e se afogava com a gravata que tinha emprestado de Thaddeus. Dobrou a elegante colher de prata que cedeu gentilmente diante de seus dedos.

   Olhou para a majestosa cadeira de carvalho que presidia a mesa. Essa majestosa cadeira de carvalho do Líder.

   A esse bastardo adorava jogar com seus convidados; vestia a todos com pompa para manter a espera enquanto Thaddeus se dedicada a lançar suas recriminações constantes.

Desgraçado filho de puta!

Tentou provar a sopa doce de batatas, mas sua irritação tinha bloqueado o sentido do gosto. Precisava vê-lo. Necessitava um nome. Uma cara para colocar no centro de seu alvo. Quando o tivesse conseguido, pegaria Mara e se mandariam dali.

   Estava começando a duvidar de que o Líder vivesse nesse lugar. Possivelmente esse homem era um paranoico que se dedicava a enganar a sua própria gente e a manter em segredo sua localização. Tampouco era uma ideia tão descabelada; ao fim e ao cabo, essa gente se dedicava a matar e a roubar.

   Tentou levar a boca uma colherada de roupa, mas apartou o prato e não se atreveu nem a olhá-lo.

   Quantas vezes tinha tentado? Quanto tempo levava procurando o homem que brincava de esconde-esconde? A esse Grande Líder que todo mundo venerava.

A resposta chegou antes do esperado.

   Essa mesma noite ou a noite seguinte no máximo, abandonaria o lugar. Precisava conseguir informação para transmitir a sua gente. Essa congregação contava com um exército de soldados aos que deviam fazer frente; uma casa inteira de mulheres e meninos aos que resgatar.

   Se não podia evitar o tremendo estrondo que sofreria a congregação de Minnesota, sim que podia, ao menos, desenvolver uma estratégia defensiva. Podia descobrir o momento adequado para perseguir e apanhar a esse homem culpado de tanta desgraça.

   A porta do quarto dos serventes se abriu e Mara saiu com uma jarra de água em uma mão e uma bandeja de café na outra. Pôs-se um vestido negro andrajoso coberto por um avental branco, um traje ideal para servir ao esquivo Líder.

   Connor esperava que não se acostumasse a realizar esse serviço.

Mara tinha um aspecto cansado e ia movendo-se pouco a pouco em torno da mesa, preenchendo os copos e taças tranquilamente, mas suas costas estavam retas e rígidas. Mantinha a cabeça bem alta.

Ajudaria ela a encontrar essa mulher, a Ângela.

   Mara chegou ao extremo da mesa onde Connor se achava e se aproximou para servir um copo de água com a mão esquerda. Enquanto servia a água, escorregou a cafeteira que sustentava na mão direita e derramou o café em cima da jaqueta emprestada. Connor fez um movimento brusco para derrubar a cadeira e Mara se apressou a tirar a jaqueta antes que o café quente queimasse a pele, mas as gotas salpicaram o pescoço e as mãos antes que se pudesse tirar o objeto. Não obstante, Connor evitou males maiores. Um golpe de engenho.

   — Ai, sinto muito! — Deixou a cafeteira meio em cima da mesa, agarrou um guardanapo e a esfregou contra a mancha do ombro. Jackson tentava absorver o líquido da mesa com seu próprio guardanapo antes que caísse nas calças.

Thaddeus observou toda a cena sem alterar-se.

— Sinto muito, de verdade. — Repetiu Mara. Seu tom de voz era tão aflito que Connor ficou confuso por uns momentos — Se queimou?

— Não, calma. Estou bem — Disse com voz cortante, duvidando de se estava utilizando o tom correto — Não me queimou.

O que estava tramando?

— OH, sua jaqueta! Que lástima! — Recolheu a jaqueta de lã empapada em café — Terá que tirar essa mancha em seguida. Me deixe levar isso a lavanderia; ao melhor a podemos salvar.

   Ah, essa era a chave de seu ardil. Tinha orquestrado essa cena para que Mara pudesse ir à lavanderia, que era onde trabalhava Ângela?

Connor lançou um olhar de advertência que nada tinha a ver com a mancha. Mara estava participando de um jogo muito arriscado com essa gente e se não tomava cuidado acabaria se queimando.

— Bom, como queira.

Connor roçou sua mão enquanto dava a volta para ir.

— Leva a jaqueta a meu quarto esta noite.

   Os homens repartidos em torno da mesa começaram a dar cotoveladas e a rir as gargalhadas.

   Uma luz estranha (surpresa ou impaciência?) advertiu-se nos olhos de Mara enquanto esta lambia sutilmente os lábios. Trocaram olhares de cumplicidade e em seguida abandonou o salão, jaqueta em mão, sem olhar pra trás.

   Connor voltou a sentar e olhou fixamente os homens que seguiam rindo entre dentes. Não demorou para aparecer um novo servente que levou um guardanapo limpo e retirou os guardanapos empapados.

   Connor recuperou o apetite e sorveu outra colherada de sopa. As expectativas do dia (e da noite) começavam a melhorar.

   Se conseguisse afastá-la das outras mulheres e coincidir com ela em um único espaço íntimo, poderiam planejar uma escapada triunfal e Mara se decidiria por fim a fugir. Ele se arrependia de não ter podido conhecer o líder, de não ter podido contemplar a cara do diabo, mas ao menos tinha respondido algumas perguntas.

   Connor tinha aprendido muito durante essa época instável. Tinha aprendido o suficiente para poder organizar um plano de ataque e defender os seus.

   Tinha conseguido reunir forças e controlar a situação. Conhecia todas as rotinas e horários do edifício. Sabia onde e quando iniciava o turno de cada sentinela. Tinha as armas preparadas.

E tinha a Mara.

   Nem sequer o amargurado Thaddeus, que tinha observado a cena com um interesse inusitado, desafiou sua autoridade nem opôs o mais mínimo ao feito de que Mara fosse a seu quarto.

  

   Mara apareceu na porta da lavanderia com a jaqueta manchada de Connor e o vigilante se limitou a lançar um olhar abjeto. A mudança de temperatura foi como uma bofetada na cara. Nesse lugar fazia um calor insuportável e o ar estava carregado de vapor. O aroma de sabão e a detergente industrial enjoava a qualquer um.

De repente, alegrou-se de não ter que trabalhar nesse lugar.

   Os nervos aprisionavam a boca do estômago. Tinha chegado o momento. Toda sua luta, toda sua implacável determinação dependiam desse único momento. Encontrar a sua amiga.

   Avançava muito lentamente. O espaço era enorme. Atravessou uma primeira estadia que parecia reservada para a roupa de cama. Lençóis, colchas, travesseiros e edredons se amontoavam em uma parede. As máquinas industriais de lavar roupa, com seus enormes olhos de boi, trabalhavam e fumegavam sem descanso.

   Uma mulher baixa de cabelo negro tirou a roupa de uma das máquinas de lavar roupa e a colocou em um carro para levá-la a uma secadora. Seu cabelo negro e sua compleição enxuta recordavam a Ângela, mas não era ela.

   Mara avançou por volta de uma segunda estadia reservada para os objetos de roupa mista. Três mulheres separavam os objetos brancos e negros em uma mesa e a olharam com uma curiosidade manifesta. Nenhuma delas era Ângela.

   O coração pulsava cada vez com mais força. Seguiu caminhando por volta da terceira estadia. À medida que se ia aproximando, começou a observar à equipe especializada em objetos delicados (lavado em seco e engomado de trajes), mas a metade da sala estava vazia e só pôde ver um vigilante que aguardava na porta desta sala, já que do outro extremo se acessava à parte principal da mansão.

   E se Mara se equivocasse? E se Ângela nunca tinha estado ali? E se existia outra Ângela Cordoza? E se havia um engano na base de dados do computador e Ângela tinha morrido ou a tinham mudado?

   E se sua amiga já não necessitava nenhuma ajuda e tudo o que estava fazendo era em vão?

   Em seguida deixou as inseguranças a um lado e soube que tudo o que tinha feito merecia a pena. Já não se tratava só de Ângela; mas todas essas mulheres necessitavam ajuda e os bebês também.

   Tanto se encontrava a Ângela como se não, Mara resgataria a todas.

Ou morreria na tentativa.

   Mara se aproximou dessas três mulheres que a olhavam fixamente enquanto dobravam a roupa e se deteve para poder contemplar a sala em toda sua extensão.

   Ali mesmo, entre as nuvens de vapor, achava-se sua amiga. Lágrimas de alegria começaram a brotar de seus olhos e a angústia não demorou para abrir caminho. Notava uma carga insuportável no peito.

   A face de Ângela já não era tão redonda como Mara recordava e seu ventre volumoso mostrava uma gravidez evidente. Seus olhos já não transmitiam esse brilho de antes; o sorriso eterno de Ângela já era uma lembrança do passado. Mas estava sã e salva. Isso era o único importante.

   A urgência (a necessidade) de correr para ela e de lançar-se a seus braços produziu um tremor nos pés, mas conseguiu conter-se. Ângela se surpreenderia e poderia reagir com certa rejeição, pois era perigoso evidenciar esses sentimentos diante do vigilante. Além disso, seguia imperando a norma do silêncio no trabalho.

   No momento, já era suficiente contemplando a essa mulher a que tanto tinha procurado. Era uma visão tão doce como incrível.

Conheceram-se cinco anos atrás, quando o escritório de proteção de mulheres de Mara tinha aberto a escassos meses e tratava de lutar sozinha com toda a papelada e as gestões às que devia fazer frente para ajudar às mulheres.

Ângela tinha sido golpeada por seu marido e foi ao escritório de Mara. Em seguida se deu conta de que podia colaborar com ela. O trabalho permitiria reafirmar-se e acabar com as lamentações, mas Ângela não era uma alma em pena: era a bondade personificada.

   Finalmente, Ângela deixou o escritório e começou uma nova vida sem seu marido. Mara desenvolveu uma rotina para suprir os serviços de proteção, mas ambas construíram uma amizade muito sólida e duradoura.

   Uns meses atrás, a empresa de seguros fechou o escritório em que Ângela trabalhava, em Minneapolis. Ângela tinha explicado que queria mudar-se e começar uma nova vida em uma região mais quente e Mara tinha animado a fazê-lo, pois entendia que viria bem uma mudança de ares. Mara e Ângela sabiam que a vida é como uma planta fértil que precisa trocar de terra para se regenerar.

   Quando Ângela desapareceu, Mara se sentiu culpada. Depois de uma rápida investigação, a polícia em seguida concluiu que Ângela se ausentou por vontade própria, mas Mara sabia que não era certo. Era impossível que Ângela fugisse sem preocupar-se com ninguém.

   Mara sentia uma desconfiança crescente para o sistema. Quando não podia aplacar suas preocupações, encarregava-se ela mesma dos assuntos; por isso se lançou à busca da Ângela, seguiu todos seus passos e percorreu toda a extensão das Cidades Gêmeas. Chegou, inclusive, a inscrever-se a uma oferta de emprego marcada em um jornal que tinha encontrado na casa da Ângela.

E ali estava.

   Tinha sido um caminho comprido e difícil, mas voltavam a estar juntas.

   Mara olhava Ângela com ardor e desejava com todas suas forças que esta levantasse a cabeça. Queria fazer uma surpresa. Queria fazê-la saber que já não estava sozinha.

   Não podia falar com ela, mas sim podia enviar um olhar quente e tranquilizadora.

   Mara seguia esperando que Ângela a olhasse quando, de repente, apareceu Connor e deu um toque no ombro.

— É ela? — Perguntou entre sussurros.

Mara assentiu.

   Lentamente, agarrou-a pela mão, compreendendo o alcance de sua emoção transbordada, e atravessou com ela a lavanderia para sair ao corredor.

Connor estava apoiado na parede que ficava justo o cartaz da lavanderia. Aproximou-se de Mara e a agarrou do queixo para examinar o rosto. As lágrimas de alegria alagavam seus olhos e as bochechas rosadas substituíram a palidez de seu rosto. Seu sorriso levantava o ânimo.

— Tinha muito bom aspecto. — Disse Connor.

Mara assentiu.

— Fez o correto ao não se aproximar dela.

— O vigilante... E o que faz você aqui, Connor? Não se supõe que eu ia a seu quarto esta noite?

— Vim para te dizer que pegue tudo o que necessite. Vamos daqui. — Não se pôde resistir a beijá-la e a mordiscar a orelha — E não aguentava mais ficar sem vê-la.

Ela se afastou um pouco dele.

— E como vamos sair daqui?

   Connor olhou a seu redor para assegurar-se de que ninguém escutava e bateu os braços.

   A cor saudável que tinha aparecido nas bochechas da Mara desapareceu de repente.

— Parece-me que se esquece de um pequeno detalhe: eu não tenho asas.

— Eu te levo.

— Como vai me levar?

— Posso-te levar perfeitamente.

Mara tinha uma atitude reticente.

— E o que acontece com a Ângela?

— Voltaremos para por ela e a por todas as demais. E voltaremos respaldados por toda a congregação de Chicago.

Mordeu os lábios com nervosismo.

— Mas isto vai se transformar em uma luta encarniçada. Não podemos consentir que as mulheres e as crianças estejam em meio de tanta violência.

— Não posso preparar uma escapada de duas dúzias de mulheres e uma infinidade de crianças sem correr o risco de ser descoberto. — Connor apertou afetuosamente o ombro — Já sei que isso também é arriscado, mas, se estivesse em seu lugar e dessem a escolher entre viver assim e correr esse risco, o que escolheria?

— Você já sabe.

— Pois espero que elas pensem o mesmo. Se o fizermos assim, garantiremos a segurança de todas.

As lágrimas em seus olhos já não eram de alegria.

— Acredito que eu deveria ficar. Para ajudá-las.

O coração deu um tombo.

— Não. Você vem com...

   Mara se endireitou e censurou seu comentário ao ouvir uns passos que se aproximavam. Era Jackson, que se dirigia apressadamente para eles enquanto sacudia a cabeça. Lançou um olhar selvagem ao cartaz da porta e a seguir olhou a Mara.

— Sabia que os encontraria aqui.

— Sim, é muito preparado. O que quer?

Jackson levantou as mãos a modo de gesto defensivo.

— Quer se pôr na borda comigo? Ao melhor não quer saber as boas notícias...

— Que notícias?

— Ao final se fez realidade seu desejo. O Líder quer vê-lo.

 

                               Capítulo 19

Connor seguia Jackson pelas escadas e sentia o ardor de um predador faminto que está a ponto de devorar a sua presa. Por fim podia pôr uma cara e um nome a esse Líder. E já saberia onde encontrá-lo quando queria retornar e acabar com ele depois de todo o sofrimento que estava gerando.

   A energia e a raiva confluíam em seu corpo até tal ponto que não podia parar de mover-se quando chegou ao escritório do Líder. O secretário pessoal deste, Thaddeus, estava sentado em uma pequena mesa situada em frente da enorme porta de carvalho e o cão maltrapilho fazia companhia.

   Connor fechou os punhos, inflou o peito e tentou manter-se alerta enquanto esperava, reprimindo, ao mesmo tempo, seus desejos de saltar no pescoço dele.

   Por fim, Thaddeus levantou no ar o único fólio que ocupava seu escritório e o olhou atentamente. Pulsou um botão do telefone e apareceram dois valentões presunçosos, mas tremendamente fortes. Colocaram-se atrás de Connor e Jackson; uma maneira de bloquear a entrada.

   O entusiasmo inicial de Connor foi desaparecendo e deu passo à preocupação e a cautela.

Thaddeus assinalou duas cadeiras colocadas frente a sua mesa.

— Sentem-se.

— Viemos ver o Líder — Não seu servo. Isso ficava claro.

— Sinto muito — Disse Thaddeus com somada tranquilidade — Mas... De momento, está ocupado com outro assunto. Pediu-me que transmitisse suas desculpas e que lhes dê as instruções.

Connor proferiu uma queixa soberana.

— Continuamos com o joguinho?

   Thaddeus levantou a cabeça e ensaiou um gesto sincero, como se não entendesse sua reação. O muito filho de puta.

— Que joguinho? O Líder está muito ocupado e se responsabiliza de muitas questões. Não pode entreter-se com coisas mínimas. Estou seguro de que saberão entendê-lo.

   Sua mensagem era bastante evidente. Connor era uma “coisa mínima”; um tipo muito vulgar para merecer sua atenção.

   Mas um dia se arrependeria de não ter feito conta. E esse dia não demoraria para chegar.

Jackson se sentou. Connor preferiu seguir de pé.

— Me disseram que o Grande Amo nos vai encomendar uma missão. — Disse Jackson.

— Ah, sim... — Thaddeus se reclinou na cadeira, pegou uma caneta e começou a escrever em uma caderneta, alargando a incerteza e aproveitando seu momento de poder — De fato, é a segunda tentativa; já falhou uma vez.

— Outro assalto a um carregamento de armas?

— Não, trata-se de uma mercadoria muito mais cara e valiosa... — Lançou um olhar presunçoso a Connor e se assegurou de não afastar seus olhos dele para poder contemplar sua angústia quando soltasse a bomba informativa.

— Vamos pelos meninos de Chicago outra vez — Disse, finalmente — E desta vez os apanharemos.

Jackson se movia inquieto na cadeira.

— Pensava que estavam resguardados.

Thaddeus acrescentou, sem deixar de olhá-lo:

— Os encontramos.

   Uma enorme corrente de ódio e aversão se acumulava no interior de Connor, mas conseguiu manter intacta sua expressão. Ainda não podia permitir o luxo de reagir. Nesse lugar, não.

   Connor manteve o mesmo tom inexpressivo de voz ao anunciar:

— Não são tão vulneráveis como da última vez. Seguro que estão mais alerta... Como vamos fazê-lo?

— Pois aplicando a força, se precisar. Jackson, você estará no comando e controlará o trabalho de todos os homens que vivem com você. Em uma hora, vão vir mais homens provenientes de outras casas e você tem que se encarregar de organizar uma reunião com todos para riscar uma tática de ataque.

   —Um ataque em grande escala? Tinha passado pela sua cabeça quantas vidas ficariam pelo caminho?

Era perfeitamente consciente.

   Também sabia que um exército de quatro casas (mais de quarenta gárgulas) esmagaria à pequena congregação de Chicago. Já não havia saída.

—... As consequências são secundárias — Matizou cruelmente Thaddeus — Matem todos os adultos se precisar. De fato, é o melhor que podem fazer. Só me importam essas crianças.

— Quererá dizer que importam ao Líder.

   Thaddeus se limitou a inclinar ligeiramente a cabeça diante da correção de Connor.

— Claro.

Thaddeus trocou de postura e entrelaçou as mãos.

— Bom, então ficou claro, não, Rihyad? Eric e Paul irão com vocês. — Assinalou os dois gorilas da porta —... E não se separarão nem um minuto de seu lado até a volta. Se é que volta. Se te ocorre avisar a sua antiga congregação ou propor qualquer passo afastado do plano, te matarão.

— Pensava que já tinha demonstrado minha lealdade com acréscimo, Thaddeus. O que é isto? Outra prova?

— Bom, não. Considera-o um exame final. — Sorriu — Ah, outra coisa. No hipotético caso de que te ocorresse escapar do Eric e Paul... Pense nisso duas vezes.

   Olhou os homens e deu permissão. Abriram a porta do vestíbulo e deixaram passar um terceiro homem que levava a Mara arrastada pelo braço.

   Thaddeus sorriu abertamente ao observar o gesto aflito de Connor.

— Sua amiguinha e o bebê que leva no ventre ficam comigo enquanto se encarregam da missão. — Os olhos brilhavam como se tivesse febre. O muito depravado desfrutava com o sofrimento — Se te ocorre me trair, morrerão no ato.

   Connor nunca havia sentido uma sensação de ódio tão intensa. Roia-o e consumia por dentro; pensava que esse ódio acabaria com ele, mas antes devia destruir Thaddeus.

   Se Mara estava grávida de um menino, Connor poderia iniciar outra vida, reencarnar se o matassem. Se não fosse um menino, sua alma se perderia para sempre nas trevas. Tampouco era uma má opção, tendo em conta que estava a ponto de ver como sua congregação vinha abaixo e como assassinavam Mara.

— E agora que já nos entendemos... — Thaddeus se reclinou na cadeira; suas pupilas recuperaram uma dimensão normal e o tom de sua voz foi menos ameaçador, quase amigável — Me diga uma coisa, Connor. É verdade que os de Chicago aceitaram a uma mulher na congregação?

   Connor sentia um desejo irreprimível de lhe cuspir na cara, mas não podia negar-se a cooperar se a vida de Mara estava em risco. Tampouco tinha forças nem para cuspir. As sentenças de Thaddeus estavam diminuindo sua capacidade física.

— O Líder dessa congregação satisfaz os caprichos de alguns liberais; não todo mundo está de acordo com ele.

— E você? Está de acordo?

Connor não sabia o que responder e optou pela sinceridade.

— Não.

— Por isso foi embora?

— Sim, em parte.

Thaddeus tampou a caneta.

— Então se poderia dizer que uniu-se a Mara com o único objetivo de procriar? Quando nascer o menino, apropriará-se dele e a abandonará?

   Connor já começava a entender muitas coisas. Essa nova peça do quebra-cabeças tinha há ver com Mara, para que iriam levar a força uma mulher a sala, se não era para torturá-la um pouco?

   Também era possível que Thaddeus estivesse aplicando uma estratégia para conseguir que Mara traísse Connor e se posicionasse contra ele para passar a informação a este servo.

O jogo estava ficando muito perigoso.

O certo era que Connor não sabia o que faria com Mara quando tudo acabasse, caso seguissem vivos. Não tinha querido saber.

Possivelmente era porque não queria deixá-la.

Seguia mostrando certas reticências em relação à entrada de mulheres na congregação. Era um conservador.

Mas também queria ser realista. Sabia que afastar-se de Mara seria quão pior poderia fazer, se é que algum dia reuniria coragem suficiente para fazê-lo. Não sabia como ajudar a sua gente. Os acontecimentos o estavam transbordando, estavam desprestigiando sua natureza de gárgula.

De repente, topou-se com o olhar selvagem de Thaddeus e evitou olhar nos olhos de Mara, que queria conhecer qual era a verdade que se escondia trás de suas palavras.

— Se tivesse querido trocar minha maneira de viver durante todo esse período de dez vidas, teria ficado em Chicago.

   Com essa resposta, Thaddeus pediu que se retirassem para ir preparar a reunião e os guardas levaram Mara a Deus sabe onde.

   Em qualquer outra circunstância, Connor teria se alegrado muito de voltar para Chicago, mas esses dias se achava em meio de um pesadelo que não tinha fim.

   Os primeiros raios de sol banhavam o antigo refúgio da Associação de Jovens Cristãos que albergava à congregação de Chicago dos Gargouillen. O refúgio estava composto por cinco edifícios separados, duas salas de aula, uma sala de jantar, um ginásio e diferentes escritórios distribuídos ao azar à medida que foram surgindo novas necessidades em um período de duas décadas. O edifício estava localizado em meio de um distrito cheio de obras, edificações e complexos industriais. As ruas estavam virtualmente vazias a essas horas da manhã.

   Os flocos de neve começaram a cair e a revoar no ar, sacudidos pelo tremendo vento que agitava, também, os sentimentos de Connor.

Podia avisar a sua gente de algum jeito?

   Sim, embora Eric e Paul, que aguardavam sentados no carro esportivo estacionado na esquina da Associação de Jovens Cristãos, matariam-no. Mas isso já não o preocupava.

O que mais temia era que Thaddeus matasse Mara.

Tinha que escolher entre ela e sua gente. O que podia fazer?

   Podia salvar a vida de todos os que se encontravam na associação, mas perderia Mara.

   As necessidades de muitos se chocavam contra as necessidades de uma pessoa.

   Por outra parte, Mara era humana e todos os da associação eram gárgulas. Exceto Rachel, que era humana. Em parte.

Sua aspiração era proteger a vida humana, embora a sua perigasse. Mas era correto deixar que perecesse uma congregação inteira por salvar a vida de uma só pessoa? De uma mulher? Era uma escolha terrível. Enquanto ele estava comodamente sentado no carro, uma multidão de minesotanos rodeavam o edifício e se preparavam para entrar. Apresentavam-se com corpo de homem; assim podiam levar as pistolas com maior facilidade.

   Eric e Paul falavam pelos walkies para ir coordenando o ataque (o massacre) e Connor também se viu forçado a levar um. Não podiam passar imagens do açougue mediante a Segunda Visão se as gárgulas que se achavam no interior do edifício se negavam às projetar, mas tampouco queriam que Connor perdesse o espetáculo.

A contagem começou: três, dois, um. Incursão.

   Connor escutou os passos apressados e a respiração agitada de quem tinha gozado de paz minutos antes. A cada minuto, sua própria respiração se tornava mais afogada. Doía-lhe o coração.

Avisava-los ou não avisá-los? Salvá-los ou matá-los?

Apertou os olhos com força e tentou fazer ouvidos surdos, mas cada som, cada soluço se multiplicava por mil no interior de seu ouvido; era a terra mesma a que emitia esses rugidos.

   Ruídos de vidro quebrando e esparramado; lamentos de homens. O carro começou a tremer como se um aviso de terremoto ameaçasse o chão. De repente, acalmou-se.

A voz de Jackson soava desesperada:

— Equipe um! Que porra aconteceu? Equipe um? Equipe um! Respondam!

Não houve resposta.

— Equipe dois. Onde estão?

— No corredor desta asa, ao lado do salão principal.

— O que aconteceu? Onde está a equipe um?

— Houve uma explosão. Estamos examinando a zona, mas a equipe um... Desapareceu.

— Equipe dois, fora daí. Vão diretamente aos quartos das crianças.

   Nesse mesmo instante, Connor pôde ver e ouvir a explosão. Uma nuvem imensa de pó e vidro saiu despedida da janela e os escombros começaram a voar pelos ares, alcançando a zona em que estava estacionado de carro.

— Supervisor, fala a equipe cinco. Não sabemos o que aconteceu; dispomo-nos a sair.

— Não. Negativo. Dirijam-se ao quarto das crianças. Completem a missão. Repito, completem a missão!

Eric lançou um grunhido.

— Que porra está acontecendo aí?

Paul sacudiu a cabeça.

— Não sei. Parece a “terceira guerra mundial”.

— Que asco! Eu não queria ficar aqui, de babá.

Os dois olharam de uma vez ao Connor.

Uma terceira explosão sacudiu o carro.

— Perigo! Perigo! — Gritou uma voz — A casa está cheia de armadilhas!

— Socorro! — Aclamou uma segunda voz — Não podemos sair! As paredes estão caindo! Não podemos sair daqui!

   As vozes se cruzavam, interrompiam-se, misturaram-se com o caos reinante.

   Eric e Paul se olharam com as mãos em cima da maçaneta da porta.

— Vamos — Disse Eric.

— Vou com você — Respondeu Paul.

Eric lançou um olhar assassino a Connor.

— Você vem conosco. Se tenta fazer o mais mínimo gesto, o mataremos sem prévio aviso.

Com a cabeça encurvada, atravessaram a rua e correram para o interior do edifício. Era impossível ver; tampouco se podia respirar. Connor estirou o pescoço do suéter e tampou a boca com ele.

— Por aqui. — Paulo assinalou as escadas que conduziam aos quarto das crianças. Justo no patamar, chocaram-se com Jackson. Ele e alguns membros de sua equipe rondavam ali por perto.

— Os quartos das crianças estão vazios. — Disse Jackson — Tinham tudo bem estudado. A equipe três está apanhada no segundo andar.

— Vamos resgatá-los. — Eric se encaminhou para a porta das escadas, tossindo sem parar — Os tiramos daí e saímos correndo.

— Vão. — Respondeu Jackson. Abriram caminho pelas escadas e Connor ficou na retaguarda.

Jackson estava atrás dele.

De repente, desapareceu.

   Connor se deteve em meio da escada. Tinha uma sensação estranha.

   Olhou para cima. Eric e Paul tinham subido toda a escada e, ansiosos por resgatar a seus companheiros, não tinham revisado a porta, que tinha outra granada escondida.

   O estrondo da explosão esteve a ponto de deixá-lo surdo e, quando menos o esperava, uma língua de fogo começou a descer pela escada. Connor começou a correr enquanto a madeira, metal e vidros que se achavam a seu passo crepitavam e explodiam. Uma peça de algo duro bateu no ombro e uma parte de degrau saltou e ricocheteou no quadril. Quando por fim chegou ao final da escada, pensava que ficou sem respiração.

   Deteve-se um momento, tentando pacificar os ruídos de sirenes em sua mente. Quando teve recuperado a respiração, incorporou-se e secou o sangue da face. No alto da escada, a porta calcinada cedeu e caiu sobre dois corpos inertes.

   Olhou a seu redor. Jackson tinha escapado. Já não tinha que preocupar-se com Eric ou Paul, assim começou a procurar Jackson.

   Transcorridos uns minutos, identificou-o. Uma sombra negra coberta de pó dobrou o canto do salão e se dirigiu para os escritórios.

   Que estranho. Não tinham encontrado nem um menino. E aonde ia Jackson?

   Escondeu-se, escapou e percorreu os cantos semi destruídos do edifício como se achasse em um labirinto e soubesse aonde ir. Por fim, deteve-se e se apoiou contra a parede.

   Connor entreabriu os olhos, tentando discernir os traços dessa figura que se escondia entre a fumaça, até que se deu conta de que era Jackson e estava falando pelo celular.

Era o mais estranho que tinha acontecido.

   Jackson desligou o celular e seguiu caminhando enquanto apalpava as paredes. Seus passos eram cada vez mais lentos, mais leves... Connor soube então que ficou às portas de conseguir seu objetivo.

   Não custou muito deduzir aonde ia, pois esse corredor só conduzia a um único lugar: ao escritório do Teryn.

Jackson levantou a perna e deu um chute na porta.

  

                                     Capítulo 20

Mara olhava para Thaddeus como um camundongo a ponto de ver-se apanhado pelas garras de um gato. Ele, sentado no escritório, trabalhava sem parar e a ignorava, embora Mara sabia que era perfeitamente consciente de sua presença. Não tinha se separado de seu lado desde o amanhecer.

   Não sabia onde estava Connor; não sabia se tinha começado já o assalto. O que podia fazer ele? Doía muito ficar em seu lugar; sentir em sua pele que iam matar a todos seus amigos, a sua família.

   Estava segura de que Connor encontraria a maneira de deter o extermínio e desejava com todas suas forças que salvasse a sua gente e não os deixasse morrer por ela.

Thaddeus se levantou de seu escritório, estirou-se e começou a caminhar ao redor dela. Mara conteve a vontade de sair correndo. Não havia escapatória, já se encarregavam disso os dois guardas apostados na porta do vestíbulo.

— Bom... — Disse, baixando a vista para ela —... A estas horas, já teriam começado. O que acha que terá feito?

   Estava segura de que Connor tinha alertado os seus; isso é o que devia fazer. Assim, sua congregação poderia ir à mansão e levar a suas mulheres e a seus bebês e acabar com essa dinâmica diabólica de sequestro e escravidão.

   Não se importava a possibilidade de morrer se tudo isso podia chegar a cumprir.

Mara levantou a cabeça.

— Fará exatamente o que pediu. Suas suspeitas sobre ele são infundadas.

— Ah, sim? — Arranhou o queixo — Ou seja, que está defendendo seu captor? O que te violou? O que te fecundou para levar seu bebê e te abandonar?

Por que insistia tanto com sua gravidez? Era impossível que soubesse, era muito cedo para sabê-lo. Nem sequer ela sabia!

— Sou uma lutadora nata. — Respondeu — Se chego a resistir a ele, teria acabado me matando ou encerrando em uma jaula. Ao levar a este bebê comigo, ele me protege de algum jeito.

— E depois, o que?

Mara notou uma espetada no estômago.

— Ainda têm que passar nove meses; é impossível saber algo com certeza.

Foi agachando lentamente enquanto lhe tocava as coxas.

— E se te digo que eu poderia te proteger? Nove meses e toda a vida.

— Pois pensaria que quer algo.

Thaddeus soltou uma gargalhada.

— É obvio. Me explique coisas de Rihyad. É tão leal como diz ser?

   Mara fechou os punhos e arranhou a palma da mão para não levantar-se da cadeira e pôr-se a correr. Estava-a pressionando para que o delatasse, para que vendesse sua alma.

— É leal consigo mesmo. — Respondeu. Não estava disposta a ceder à chantagem, mas tampouco podia superproteger Connor. Se o desenhava como a uma gárgula muito nobre, também estaria distorcendo sua imagem e afastando-se da verdade.

Thaddeus sorriu.

— Você vale muito, Mara Kincaid. Agora vejo por que te escolheu. — Seus dedos começaram a subir até a virilha. O dedo polegar se arrastava lentamente e desenhava círculos em sua pele — Não sei por que prefere a ele. Eu posso te oferecer muito mais. Tão bom é?

Fez cair as pálpebras supostamente sedutora.

   Mara tentou engolir saliva. Tinha os músculos tensos, incômodos por seu tato.

— Não é que ele seja bom. É que você é muito mau.

   Suas mãos se detiveram na perna. Os olhos enormes e dementes revelavam uma íris cinza turva como um redemoinho de nuvens.

Ficou de pé e caminhou para o outro extremo da sala.

— Pois é uma pena, porque vou matá-lo assim que retorne, tanto se me traiu como se não. Não confio nele e eu não gosto de duvidar dos membros de minha congregação.

— Sua congregação?

   Thaddeus a olhou enquanto inchavam as janelas do nariz e voltou a retomar um gesto inexpressivo. Aproximou a orelha à porta do escritório do Líder; supõe-se que havia muito trabalho nesta sala.

— A congregação do Grande Amo, claro. A congregação a que eu pertenço em qualidade de humilde servo de sua Santidade.

A Mara estranhou que tivesse abandonado tão rapidamente a postura de “amo do universo” para passar a definir a si mesmo como “humilde servo”. Decidiu puxar um pouco mais da corda; ver se podia descobrir o que estava ocultando.

— Homem, deve ser um pouco pesado estar todo o dia falando em nome de outra pessoa. — Disse Mara — De verdade é só seu porta-voz ou também se encarrega dos serviços noturnos?

Thaddeus deu duas pernadas e atravessou a sala com os punhos em alto.

Mara se agachou rapidamente; plantou-se de pé diante de suas costas e se afastou com agilidade. Deu uma olhada rápida à porta do vestíbulo, mas em seguida se deu conta de que jamais poderia derrotar a esses dois vigilantes. Não deixavam outra alternativa.

O escritório do Líder.

   Afinal ia ter o desgosto de conhecer esse ser repugnante e friável que tanto se escondia de todos! Era o último que queria fazer antes de morrer.

   Respirou profundamente, olhou para a porta, abriu-a de repente e se introduziu no domínio do Líder venerado.

   Um domínio vazio; à exceção de um cão grande e vago estirado perto de uma tribuna em que se erguia o trono mais colorido que Mara já tinha visto. O cão se levantou, sacudiu a cauda e caminhou gracioso para Thaddeus, que acariciava sua cabeça.

A verdade fustigou a Mara.

— Não é seu servo. É você! É você o que se faz chamar de Líder...

 

Jackson caiu ao abrir a porta do escritório de Teryn e Connor correu para alcançá-lo. Teryn se levantou de um salto. Rachel, que se achava frente à estante de livros, deu um salto tremendo. Nathan, que estava olhando pela janela, deu a volta para contemplar tranquilamente o choque.

— Bom dia, estávamos esperando.

Connor foi agarrá-lo e a recolhê-lo do chão e esteve a ponto de pisá-lo pela inércia da corrida. Olhou para Nathan.

   — Vo... — Disse Jackson, movendo os olhos nervosamente enquanto olhava para Nathan, absolutamente incrédulo —...Não está morto.

Seu olhar viajou timidamente até Connor.

— Você... nos enganou.

— Não — Respondeu — Vocês são os que enganaram toda a nossa espécie. Carregam nossa essência.

   Jackson olhou o relógio de pé. Tinha o olhar agônico e começava a nublar a vista. Já não discernia o tempo nem o espaço.

   Connor começou a ver o túnel da Segunda Visão, correu para a parede, desprendeu uma espada larga e cravou em seu peito.

   Jackson apalpou o peito e caiu de joelhos no chão, sem deixar de olhar Connor. O sangue corria entre os dedos.

— Vejo-te na seguinte vida. — Disse, antes de cair totalmente no chão. Os olhos olhavam ao chão, abertos e inexpressivos.

   Connor deixou cair a espada, que se desprendeu de suas mãos tremulas. Deus! Nunca tinha matado um de sua espécie; ao menos, nunca de verdade.

— Estava a ponto de usar a Segunda Visão — Explicou a uma audiência estupefata — Estava a ponto de contatar com seu líder.

   Teryn começou a caminhar, nervoso, em torno do escritório, e derrubou seu corpo.

— Não tinha outra alternativa. Queriam nos matar a todos.

   Connor pestanejou várias vezes e tentou esclarecer o desconcerto gerado em sua mente.

— As crianças! Estão bem? Estão seguros?

Nathan tentou tranquiliza-lo.

— Sim, estão bem. Os tiramos daqui.

— Como sabe que estão bem? — O atordoamento se foi e a verdade foi escapando de sua boca pouco a pouco — Os mudou de lugar justo depois de que eu fui, não? Não confiou em mim em todo este tempo.

— Sabíamos que seriam capazes de fazer tudo para te surrupiar informação se descobriam seu disfarce.

Connor apertava os punhos fortemente.

— Eu não os trouxe aqui.

— Sabemos. — Disse Teryn.

— E então?

— É minha culpa. — Rachel se pronunciou pela primeira vez — Eu os conduzi até aqui sem querer.

   Nathan se aproximou de sua mulher e ficou a seu lado. Agarrou-a pela cintura e a estreitou contra ele.

— Não sabemos como, mas estamos seguros de que alguém a observou. Ela não se deu conta até a bem pouco. Assim que nos explicou isso, sabíamos que viriam.

— E fizeram esta armadilha — Connor franziu o cenho — Mas se alguém estava observando Rachel através da Segunda Visão, você também teria que ter percebido, Nathan.

— Não era a Segunda Visão. Fosse o que fosse, o certo é que outro poder a esteve observando.

— E o que percebeu através dele o trouxe até este lugar. Mas se ele viu através dos olhos de Rachel, não teria que ter sabido que as crianças já não estavam aqui?

Teryn e Nathan cruzaram os olhos.

— Por isso pensamos que, nessa ocasião, não estavam atrás das crianças. —Disse Teryn.

   Nathan abraçou a sua mulher; esfregava suas costas docemente, mas seu olhar era feroz.

— Procuravam a minha mulher.

   — Mas por quê? — Em seguida soube a resposta — É filha de um dos Antigos. A magia reside nela.

   O olhar férreo de Nathan revelava uns olhos mais negros que nunca.

— Ela teria podido produzir uma boa prole de soldados poderosos.

   Connor sacudia a cabeça diante das atrocidades que Thaddeus e seu malvado chefe estavam dispostos a cometer para chegar a ser os seres mais poderosos da terra.

— Enviaram seus próprios homens para morrer. A verdadeira missão era levar a Rachel e Jackson era o encarregado desse rapto.

Teryn suspirou.

— Isso parece. Mas esta vai ser a última vez que tentem fazer mal a minha congregação. Agora que retornou, deve nos dizer tudo o que sabe para que possamos desenhar uma estratégia defensiva própria.

   Connor começou a contar tudo o que sabia e não se esqueceu de mencionar a mansão de Duluth.

— Vamos organizar uma reunião o mais rápido possível e concretizaremos nossos planos. — As sirenes começaram a soar a distância, cada vez mais intensas — Bom, agora temos que sair quanto antes daqui para que não nos cravem com perguntas.

   Rachel, Nathan e Teryn esquivaram o corpo e caminharam para a porta.

— Vão vocês. — Disse Connor — Eu tenho que me reunir com meus irmãos.

Teryn enrugou o cenho.

— Já nos deu o que pedimos. Esta de volta a ser seu lar.

Connor fez um gesto de negação.

— Eles têm a Mara. E matarão se não voltar.

   Era muito provável que esse desgraçado a tivesse matado, mas Connor tinha que retornar para comprová-lo. Tinha que voltar para Duluth.

— Vai ter que se defender só até que cheguemos — Advertiu Nathan — Os Líderes de Detroit, Saint Louis e Denver vão enviar seus homens, mas demorarão um dia.

   Connor assentiu friamente e saudou com a cabeça antes de ir.

— Entendo.

   Os desertores se revoltariam contra ele, mas os venceria. Só esperava ter a sorte necessária.

Por seu bem e pelo bem de Mara.

 

Connor atravessou voando o céu de Duluth por cima da mansão dos Gargouillen proferindo um grito selvagem. Um casal de vigilantes que vigiava a entrada da mansão empunhou os rifles e começou a disparar no ar. A criatura respondeu com outro rugido e anunciou sua ameaça com inclinações bruscas e viradas bruscas.

   O telhado lateral da mansão proporcionava refúgio. Achava-se suspenso justo debaixo da ameia para rodeá-los e jogar-se sobre eles ou atacar por trás.

   Os insensatos que se achavam debaixo dele podiam ter pistolas, mas ele se transformou totalmente: tinha o poder da besta.

   O ímpeto do dever vigorizava suas asas, as fazia mais fortes, mais resistentes. Sua maquinaria intrínseca era eficaz como a de um trem de alta velocidade. Seu coração pulsava cada vez mais forte e o sangue selvagem de suas veias o fazia bater as asas com uma potência ilimitada.

   Decidiu que a melhor maneira de atacar era de cima. Pararia, com o corpo reto, inclinaria as patas e as asas para diminuir a resistência ao vento e se equilibraria sobre todos eles, destroçando o pescoço antes que pudessem apontar com a pistola.

   Enquanto isso, observou a cena do telhado e não viu nenhum outro guarda. Os dois vigilantes estavam em posição defensiva, costas contra costas, procurando o inimigo, mas não havia rastro dele.

   Começou a pegar velocidade e se abateu sobre suas vítimas. O forte vento esbofeteava, estirando as asas, a pele e os ombros, tentando despedaçar seu corpo naturalmente feroz que se abatia sobre sua presa como um disparo certeiro. Mas se deteve a tempo, olhando fixamente a seus objetivos. Estendeu as garras lentamente.

— Para! — A voz de Thaddeus o sobressaltou e o sacudiu bruscamente. Abateu com o ombro a um dos vigilantes, que caiu imediatamente. Os dois deixaram as armas no chão e Connor voltou a subir, torcendo o pescoço para contemplar a mansão.

   Thaddeus se refugiava no pequeno terraço do quarto andar. Tinha agarrada a Mara a modo de escudo e a estava afogando com o braço. Se notava o mais mínimo movimento, a asfixiaria.

   Connor bateu suas enormes asas no ar e lançou um rugido de advertência. Se Thaddeus a machucasse, era homem morto. Acabaria com ele ali mesmo.

   Os guardas voltaram a pegar os rifles e começaram a engatinhar sem deixar de olhar ao céu.

— Não atirem! — Ordenou Thaddeus, justo antes de levantar a vista para Connor — Deixem que aterrisse e me tragam ele.

   Connor fez algo muito melhor. Desceu em picado para o pequeno terraço, estendeu suas garras para agarrar-se ao corrimão, mudou em corpo humano e saltou no terraço com um movimento ágil.

— Por que dá ordens? Quer se enfrentar comigo?... Aqui estou.

   Thaddeus inclinou a cabeça para trás, mas não se acovardou nem um segundo. Começou a perambular diante dele sem soltar a Mara, obrigando a seguir para a porta.

— Vamos para dentro.

   Connor atravessou a porta de cristal do terraço e entrou em uma sala que podia ser perfeitamente o escritório do Líder. O único móvel visível era uma cadeira bem alta com braços largos e assento acolchoado que se divisava em cima de uma tribuna. Um puto trono.

   Thaddeus voltou a apertar o braço contra o pescoço de Mara.

— Pensava que não teria coragem de vir até aqui, Rihyad.

— Pois se enganou. — Olhou atentamente esse trono vazio — Onde está o Senhor da Desgraça?

— Ele é o Senhor da desgraça — Espetou Mara — Ele é o Líder.

— O Líder... — Connor sentiu arcadas ao contemplar o sorriso aberto de Thaddeus — Teria que ter previsto...

— Não se obceque com isto. Há muitos que levam aqui anos e nem imaginam. A margem de manobra é muito maior quando a pessoa pensa que sou um simples subordinado.

— Eu acredito que a isto não se chama margem de manobra e sim espionagem.

Thaddeus arqueou uma sobrancelha.

— Chama-o como queira. Um homem de minha posição necessita toda a determinação do mundo para dirigir bem às tropas e para impedir qualquer insubordinação.

— Para perpetrar um golpe militar? — Connor por fim compreendeu tudo o que podia ter ocorrido.

Thaddeus inclinou a cabeça.

— O problema é que... Não confio em ninguém, só em mim mesmo, assim, graças a minha genialidade, pude criar o personagem de Thaddeus.

— Parece-me que precisa ir abrindo os olhos. Jackson sabia, não? Uma vez me disse que as coisas não são o que parecem.

— Sim, Jackson e outros líderes sabiam. Por certo, o que aconteceu a nosso querido Jackson? Tenho a sensação de que não vai voltar com o resto dos soldados.

   Connor tinha voltado para Duluth aplicando seus próprios recursos naturais, mas os soldados que tinham sobrevivido não contavam com essa vantagem e tiveram que pegar meios de transporte convencionais, por isso não retornariam à mansão até depois de quatro ou cinco horas. As asas eram incrivelmente úteis.

— Suas tropas se viram envoltas em uma emboscada que você se encarregou de organizar. — Disse Connor — Foi perfeitamente consciente de tudo, não? Não se importa em nada suas vidas. Para você, foi puro entretenimento; uma forma de diversão para desviar a atenção para a verdadeira missão. A missão de Jackson.

Thaddeus entreabriu os olhos. Connor caminhou lentamente para ele.

— Se queria à Mulher Relíquia, podia ter pedido a alguém que trabalhasse para você e que entregasse isso.

— Quem? Você?

Connor assentiu, aproximando-se um pouco mais a Mara.

— Jackson falhou na missão. Eu não teria sido tão descuidado.

— Está morto?

— Sim. — Connor parou diante de Thaddeus e Mara. Podia sentir seu medo em suas enormes pupilas negras, mas nesses momentos não a podia consolar. A vida ou a morte dependiam do que acontecesse pouco depois.

— Eu o matei. — Admitiu.

   Thaddeus voltou a apertar o braço contra a garganta de Mara. Ela levantava a mão para tentar soltar-se, mas era impossível.

— Já disse o que aconteceria se avisasse ou se interferia de qualquer modo. Agora os dois vão morrer.

— Ele o traiu.

   As palavras de Thaddeus ficaram sem sentido. Mara se agarrava contra seu braço e tentava se soltar com todas as forças, mas era incapaz.

— Matei-o porquê o capturaram. Submeteram-no a todo tipo de ameaças e ele suplicou por sua vida. Teria explicado tudo se eu não tivesse intervindo. E assim, consegui que saibam só o necessário.

— O que contou?

— Explicou coisas deste lugar; que seus homens tentaram raptar suas crianças e queimar sua igreja; que estão criando um exército...

Thaddeus lançou um bufo.

— Inferno! Não se pode confiar nos fracos...

— Estão preparando um ataque. Dentro de muito pouco.

— Pois que venham. Eu vou despedaçar a todos. — Thaddeus empurrou a Mara bruscamente.

   Connor a recolheu antes que caísse no chão e esta levou as mãos ao pescoço. Agarrou-a nos braços. A porta do terraço continuava aberta. Poderia tê-lo feito ali mesmo: poderia ter trocado de corpo e tê-la levado voando antes que Thaddeus ou os guardas se interpor em seu caminho.

Mas era muito tarde. Já não podia escapar.

   Thaddeus não sabia que os de Chicago tinham formado alianças. Pensava que o ataque estaria perpetrado por parte da congregação inicial. A envergadura do grupo era suficiente para debilitar a suas defesas.

E tinha outro pensamento em curso.

Mara tinha razão: ia ser um banho de sangue.

   Não podia consentir que as mulheres e as crianças se achassem em meio dessa cruel guerra. Não podia se desentender e abandonar seus irmãos e os que se uniram a sua congregação arriscando sua vida, intervindo em um massacre jamais presenciada por olhos humanos.

   Se ficasse, podia recolher às mulheres (incluído Mara) e os bebês e resguardá-los do perigo. Podia ajudar seus irmãos enfraquecendo as defesas da mansão.

   Em seguida soube que os homens que apreciam a vida não fogem.

— Morto Jackson, eu sou o melhor sucessor. — Com supremo cuidado, Connor afastou Mara.

   Ela ficou estupefata ao ver como Connor se ajoelhava, baixava a cabeça e tentava pronunciar com acerto as palavras — Grande Amo... Se erro na missão, não merecerei viver. Vivo só para servi-lo.

Mas ia servi-lo em um prato bem frio.

  

                                Capítulo 21

Mara teve que correr para igualar os passos de Connor enquanto este abria caminho pelo comprido corredor que conduzia a seu quarto. Thaddeus tinha dado quinze minutos para tomar banho e o esperava no vestíbulo junto a outros líderes para organizar a estratégia defensiva. No ritmo que ia, iam sobrar treze minutos e meio.

   Mas Connor caminhava a grandes pernadas empurrado por uma necessidade superior. Tinha deixado uma onda expansiva de raiva a seu passo e a rigidez e tensão de seus ombros recordavam a um vulcão a ponto de explodir.

   Mara tinha muitas perguntas que fazer sobre o que tinha acontecido em Chicago; sobre o que tinha acontecido no escritório de Thaddeus. Mas, nesses momentos Connor não tinha vontade de falar. Tinha vontade de matar.

Mara tinha medo de que seus objetivos tivessem mudado.

Mas que tolice era isso de “vivo para servi-lo”?

   Mara confiava nele. Sabia que não se voltaria contra sua própria gente, nem contra ela.

Sabia.

   E, apesar de tudo... Connor tinha sido incrivelmente convincente.

Chegaram ao quarto e Connor abriu a porta tão bruscamente que ricocheteou na parede e deu uma chute para fechá-la. Voltou-se para ela e a prendeu contra a parede. A prendeu como a uma mariposa de coleção cuidadosamente trespassada, pressionando seu busto masculino contra seu peito, enquanto a agarrava pelos braços e abraçava as coxas com as pernas. Sua ereção começava a pressionar sua pélvis.

— Connor!

   Sua boca quente sossegou sua queixa. Os lábios de Connor se apressavam rápido e impacientemente pela superfície de sua pele. Sua língua a invadia. Não concedia trégua; não a deixava falar nem respirar. Só queria projetar para ela tudo o que sentia.

   A respiração úmida de Connor esquentava suas bochechas. Sua barba incipiente arranhava o queixo. Suas mãos moldavam e tocavam seus seios através da camiseta e o sutiã até que a excitação endureceu por completo seus mamilos.

— Deus, Mara — Sussurrava à orelha dela, provando-a, lambendo-a, saboreando-a.

   Precisam tocar-se, precisavam beijar-se como nunca antes. Mara sentia uma pressão sanguínea inusitada, concentrada entre suas pernas, e uma ansiedade aguda no peito.

   As mãos de Connor voltaram a abranger sua face, seguraram seu rosto para concentrar-se no beijo. Seus dedos tremiam enquanto acariciavam as bochechas e ela tentou cobri-las para tranquiliza-lo, encantada pela potência de seu desejo, pela entrega sexual selvagem e irrenunciável.

   Mara arqueou as costas, levantou a pélvis e a esfregou contra ele, enquanto suas mãos foram descendendo lentamente até esse traseiro varonil.

   Connor inflou o peito e a separou dele. Uma brisa de ar fresco chegou depois da interrupção de semelhante esfregação e provocou um estremecimento em todo o seu corpo.

   Ela queria lançar-se a seus braços, mas sabia que não era isso o que tocava. Esse momento já tinha passado. A força sexual que o havia possuído abandonou seu corpo. Ao menos temporalmente.

Connor passou a mão pelo cabelo.

— Deus, Mara. Tinha muito medo de que te matasse antes que eu voltasse.

— Não tinha que ter tornado. Já tinha conseguido a informação que necessitava. Era livre.

— Jamais teria te deixado aqui, com ele.

— E agora te matará assim que descubra a verdade. Quanto tempo pensa alongar esse cilindro estranho de servidão que inventou?

   Seus olhos se encheram de lágrimas ao dar-se conta do enorme engano que Connor tinha cometido. Tinha voltado por ela. O muito idiota.

Ele abrangeu sua face com suas grandes mãos imprimindo toda a ternura possível.

— Me escute bem, aqui vai ter lugar uma batalha.

— Como tantas outras...

       — Não, uma batalha de grandes proporções. Se não fizermos algo, vai morrer muita gente. Necessito que me ajude.

Mara se sorveu o nariz.

— Como?

       — Necessito que reúna todas as mulheres. Necessito que faça provisão de todo o necessário: comida, água, lençóis, remédios, fraldas, mamadeiras e velas. Temos que tirar daqui todo mundo e os afastar do perigo antes que comece a batalha.

— Mas onde?

— Ao porão, onde se guardam os barris de vinho.

— Ao porão... — De repente sentiu uma espetada no estômago. A sua mente afloraram lembranças daqueles dias encerrada na escuridão do casarão e os oito anos de encarceramento perdidos antes disso — Não.

— Me escute. É um lugar muito seguro. Quando tudo acabe irei te buscar.

— Não! Eu quero ir contigo!

Agarrou-a pelos braços e a começou a sacudir.

— Sei! Mas voltarei por você, prometo isso!

— E o que vai fazer com Thaddeus?

— Vou explicar que é a melhor solução. Ele é o primeiro que quer que seus futuros soldados nasçam sãos!

   Afastou-se um pouco dela até que Mara pôde entender a mensagem em seus penetrantes olhos azuis.

— E o que você vai fazer enquanto estejamos no porão?

— Vou ajudar Thaddeus a organizar seu plano de defesa e assim conhecerei a situação dos vigilantes e as armas que vão utilizar. — Sorriu e acariciou a cabeça — E depois matarei a esse porco.

 

Colleen escutava Mara enquanto ela a ajudava a caminhar pelo corredor até a sala principal, onde estavam se reunindo todas as mulheres para descer ao porão. As mulheres encarregadas dos trabalhos de limpeza e da cozinha já tinham descido acompanhadas pelos vigilantes e, nesse momento, estavam recolhendo a todas as que não tinham tarefas programadas para esse dia.

— Está bem? — Perguntou Mara, agarrando-a pela cintura, quase imperceptível pela enorme barriga de grávida.

Colleen levou as mãos à costas dolorida.

— Sim, tranquila. Menos mal que existe a epidural...

— Pois diga ao bebê que espere, de acordo? Já temos suficientes problemas para atender um parto.

Colleen a olhou pela extremidade do olho.

— Mas o que está acontecendo?

Mara não sabia o que responder. Não queria dar falsas esperanças de liberação. Ainda ficava um comprido caminho que percorrer. Mas o que não podia ocorrer não é que as mulheres começassem a se por nervosas e que os vigilantes se dessem conta de que estavam esperando a que as resgatassem. Em seguida achariam a fonte desta informação e isso conduziria consequências terríveis para todos, incluído Connor.

   Ao final, decidiu por uma verdade pela metade (ou um quarto de verdade).

— Vem uma tempestade.

“Uma tempestade de fogo”, pensou. Uma tempestade cujo epicentro eram todas elas e Connor.

— Pois deve ser uma tempestade das gordas, se estão preparando tudo isto...

— Das gordas...

Um soluço estremecedor viajou do quarto de frente. Era tão intenso que Mara deu a volta, assustada.

— É Caren — Disse Colleen. O tom desse lamento fazia pensar que Caren estava sofrendo muito.

   Mara se aproximou da porta e a abriu lentamente. No interior do quarto, uma mulher de cabelo loiro muito sujo se revolvia ansiosa entre os lençóis de uma cama de hospital. Uma barriga incipiente de grávida enchia a camisola. Tinha os tornozelos e os pulsos atados à cama com fortes correias de pele.

Mara ficou sem respiração.

— Meu Deus! Mas o que estão fazendo?

Os olhos de Colleen se umedeceram diante a visão.

— Quer suicidar-se e matar seu filho, assim que esta todo o dia atada.

   A mulher inclinou a cabeça e olhou para a porta. O sofrimento de seus olhos era parecido ao de um animal apanhado em uma jaula durante meses, desejando a morte como única liberação.

Mara se afastou um pouco de Colleen e começou a rondar perto dela.

— Pode caminhar até a sala sozinha?

— Sim. O que pensa fazer?

— Temos que descer a todo mundo pelas escadas.

Colleen olhou para Caren e, com olhos tristes, disse:

— Vai necessitar ajuda.

— Calma, posso sozinha. Vá para lá.

   Colleen não parecia muito convencida, mas começou a caminhar pesadamente pelo corredor.

   Mara pegou um copo de água, pôs um canudo e o aproximou da boca dela, mas a mulher não queria beber. Molhou um pano e refrescou a testa, dando pequenas massagens sem dizer nada, até que os olhos de Caren se fixaram em um único ponto e deixou de exercer pressão com as mãos.

— Muito bem. Encontra-se melhor?

— Por favor...

— Muito melhor assim. Vou tirar as correias. Primeiro as pernas, certo? —Começou a desatar os tornozelos. Tinha a pele irritada.

   Mara mordeu o lábio para reprimir seu ataque de ira e se ocupou dos pulsos. Com suma delicadeza, tirou a primeira correia. Caren suspirou. Mara se afastou um pouco. Caren tocou a face, o cabelo, a camisola suja.

   Lutando por controlar a respiração, Mara voltou a aproximar da cama. Começou a falar com tranquilidade enquanto ficava em ação.

— Vamos tirá-la daqui. Vá se limpar e desça as escadas para se reunir com as demais. Levaremos comida; poderá se acalmar e nos falar do que quiser. Já verá... Será como uma festa de pijamas.

   Desatou a última correia e Caren se levantou lentamente da cama. Tinha um olhar felino. Levantou as mãos e, com umas unhas afiadas como garras, começou a mover-se a sacudidas arranhando tudo o que encontrava a seu caminho, incluindo Mara.

Mara foi se proteger contra a parede.

Caren agarrou a jarra de água e a atirou. Gritou, chorou e se arrastou pelo chão. Começou a dar chutes contra a cama e saiu apressadamente do quarto. Foi parar nos braços dos vigilantes e, sem medir palavra, arranhou-os e rasgou a cara, deixando um traço de sangue em suas bochechas. Tentou chutar um terceiro, mas este a reteve e a agarrou pelos braços enquanto o casal de vigilantes fazia uma chave no chão e a imobilizava como se tivesse sofrido um ataque epilético.

   — Não a machuquem! — Exclamou Mara — Não a machuquem, Por Deus!

   Um médico da equipe chegou com uma manta térmica e deu uma injeção. Em questão de segundos, os gritos se silenciaram e as sacudidas pararam por completo.

   Os vigilantes a levantaram do chão e a levaram a sala onde as demais estavam esperando.

   Mara se deixou cair lentamente da parede até o chão. As pernas já não aguentavam.

Deus. Por favor. Tinha que libertar essas mulheres.

 

Connor estava muito preocupado com as armas. Todos os guardas de Thaddeus levavam pistola e não sabia como desarmá-los. Tampouco tinha ocorrido nenhuma maneira de esconder, inutilizar ou fazer desaparecer o contrabando de armas antes que se iniciasse a batalha.

   Tinha que confiar nos seus. Lutariam como gárgulas, não como humanos. Atacariam de noite, isso era seguro; a meia-noite ou durante a madrugada. Não utilizariam armas; serviriam-se de suas presas, garras e chifres. A ferocidade do Despertar da besta era muito mais poderosa que um contrabando de armas. Os néscios soldados de Thaddeus não tinham nada que fazer diante a imponência e aspecto abominável do animal.

Connor estava disposto a dar tudo por sua gente.

Protegido pela escuridão, abriu com cuidado o armário da luz e, iluminando com uma caneta-lanterna, manipulou a caixa de fusíveis. Começou a ouvir uns passos longínquos. Estava a ponto de terminar. Três para baixo e dois iguais. Não era técnico eletricista, mas, com um toque rápido e certeiro no interruptor da cozinha o sistema de segurança da mansão se inativaria. Os sensores de movimento, luzes automáticas, alarmes... Toda essa estrutura tecnológica ficaria totalmente inutilizada, permitindo que seus irmãos pudessem penetrar na mansão sem ser detectados automaticamente. O interruptor do saguão desativaria as luzes interiores. Sem luz, de pouco serviriam as pistolas e acabariam entregando-se a um combate torpe e desesperado.

   Cortou o último cabo de cobre com os dentes, retorceu-o e uniu com outro cabo e o voltou a introduzir no fusível.

   O mais importante era que as mulheres e as crianças achassem refúgio no porão para que ele pudesse concentrar todas suas forças em ajudar a seus irmãos. Só assim começaria sua própria caçada.

Thaddeus cairia diante dele.

 

                                         Capítulo 22

Mara começava a desfalecer; rodava o estomago e as pernas fraquejavam depois de subir e descer tantas escadas para mudar às mulheres e bebês. Os vigilantes estavam acompanhando o grupo de lavanderia para recolher toalhas e artigos de asseio e descer ao porão.

   Mara se deteve no vestíbulo, justo onde não a podiam ver as demais. Levou a mão ao estômago para tentar aplacar seu nervosismo, mas foi impossível; já escutava o grito da porta das escadas.

   Tinha chegado o momento. Por fim. Estava a ponto de falar com ela; de abraçá-la; de chorar com ela.

   Acostumadas a obedecer normas, as mulheres saíam a tropicões de seus quartos e esperavam no patamar das escadas. Mara se desviou para o quarto de Ângela enquanto os vigilantes controlavam a esses grupos. Entrou e se reclinou contra a porta, mordendo o lábio, olhando a sua amiga e tentando reter essa visão em sua mente.

— Sim, sim, já vou — Disse Angie, agarrando um pente e uma escova de dente da gaveta superior do armário — Pego isto e já saio...

   Angie deu meia volta, viu Mara e caíram no chão o equipamento. Tentou recuperar a compostura, atônita e boquiaberta.

— Olá, Angie. — Disse Mara com absoluta normalidade.

— Não! Não pode ser! — Tampou a boca — Ai, Meu Deus! Não posso acreditar nisso!

   Mara estendeu os braços. As lágrimas brotavam de seus olhos e percorriam livremente seu rosto.

— Não vai dar um abraço?

   Ângela correu a seu encontro e se lançou a seus braços; a ponto estiveram de cair no chão.

— Deus! O que está fazendo aqui? Minha mãe, não posso acreditar nisso.

Mara sorriu abertamente sem reprimir o pranto.

— Me alegro muitíssimo de vê-la.

   Ângela levou as mãos à cintura, com gesto sério e olhos acostumados ao pranto.

— Sequestraram a você também? Te machucaram?

— Estou bem, de verdade — Seu olhar viajou até sua barriga — Mas você...

   Ângela fez um gesto com a mão para sossegar suas preocupações.

— Você não se preocupe por mim. Não é a primeira vez que dou a luz.

   Ângela ficou grávida quando era uma adolescente. Sua família a obrigou a entregar o menino em adoção; um tropeço mais em seu percurso vital. Mas esses reveses a tinham feito mais forte.

— Sou uma lutadora incansável. — Continuou — Chegou um momento em que aguento e sigo adiante aconteça o que acontecer.

   Mara secou as lágrimas. Por Deus, quanta vontade tinha de escutar e contemplar a fortaleza de sua amiga! Ângela havia se descrito à perfeição: era uma lutadora incansável e, se Mara não se separava de seu lado, também conseguiria sair adiante.

   Ângela cravou o olhar na porta. Um ar de profunda preocupação tingia seu rosto.

— Estão nos movendo muita depressa, Mara. Me explique o que está acontecendo. O que está fazendo aqui.

   Mara começou explicando a grave negligência policial que teve que aguentar quando a buscava. Contou-lhe que acabou se inscrevendo à mesma oferta de emprego para seguir sua pista, tudo para seguir com a mesma incerteza.

— Está mal da cabeça...

Mara encolheu os ombros.

— Intuía que havia algo estranho por trás dessa oferta de emprego e pensei que seria a única forma de te encontrar.

A expressão da Ângela se tornou sombria.

— Algum te pegou? Porque por aqui se usa muito isso... Só nos querem para que tenhamos filhos. É horroroso.

   Mara respirou profundamente. Não sabia o que dizer a sua amiga; não sabia como explicar a história de Connor. Confiava cegamente em Ângela, mas, nesses momentos, não servia de nada explicar e tampouco era muito conveniente dar detalhes sobre a metamorfose selvagem.

   Foi um pouco complicado, mas a final encontrou uma maneira de dizer a verdade sem falar mais da conta. Mara levou a mão ao ventre.

— Eu estou... Não sei o que fazer.

— Bom... — Ângela esfregou o ombro carinhosamente e a voltou a abraçá-la —... Calma, tudo se pode solucionar. Além disso, é muito bonito criar vida e trazer um filho ao mundo. O menino não tem culpa de nada. Venha, vamos antes que venham os vigilantes.

   Recolheu o equipamento do chão, pegou Mara pelo braço e caminharam juntas para a porta.

— Temos que encontrar a maneira de sair daqui o antes possível. Temos que levar a essas crianças a outro lugar para que cresçam em um bom lugar; entre boas pessoas.

Mara assentiu, mas seguia sem saber como poderiam conseguir. De todos os modos, no orfanato se assustariam bastante ao ver esses chifres e garras incipientes do mesmo berço.

“Cada coisa a seu tempo”, pensou. Cada coisa a seu tempo.

— Vamos tirá-los daqui. — Disse enquanto caminhavam para a sala. Queria explicar absolutamente tudo (exceto alguns detalhes sobre Connor) assim que começassem a descer as escadas para o porão, momento idôneo porque ninguém as escutaria. Necessitava Ângela a seu lado. Necessitava a uma confidente.

Necessitava a sua amiga.

— Vamos tirá-los daqui. — Repetiu.

 

Connor terminou sua ronda de inspeção por todos os cantos de vigilância justo antes de meia-noite; deteve-se em cada porta, em cada janela estratégica e em cada esquina do telhado. Tinha uma sensação estranha; era ele quem dava indicações aos guardas quando sabia que em poucas horas iam morrer.

   Não podia perder a vida; ele era uma gárgula e sua espécie lutava por sobreviver. A população de gárgulas minguava cada ano, mas as atrocidades e abusos que essas gárgulas estavam cometendo contra tantas mulheres e crianças justificavam seu desaparecimento. Era justo acabar com eles.

   Embora não por isso o procedimento a seguir tinha por que ser fácil.

   A certeza do que estava por chegar revolvia a consciência. Retornou a seu quarto para tentar sacudir o sentimento de culpa tomando uma boa ducha quente.

   O silêncio sepulcral e a escuridão invadiam o quarto, era o normal. Mas havia algo... Um pequeno sussurro; um tímido bufo...

... Certa essência no ar.

   Muito lentamente, fechou a porta atrás de si. Sem acender a luz, tirou a jaqueta e guardou um casaco no armário. Pouco a pouco, foi se desprendendo das botas, do cinto e do suéter enquanto se dirigia para o banheiro para ir ligando o grifo.

Uma sombra negra passou por diante dele e o apanhou quando estava a ponto de chegar ao banheiro, rodeando sua cintura com os braços. Estava nua; o toque de sua cálida pele contra as costas de Connor esquentou o sangue em seguida. Roçou-se mais contra ela e levantou o braço para beijar os dedos.

— Como conseguiu sair do porão? — Perguntou.

Ela beijava incansavelmente entre as omoplatas.

— Eu disse que o novo líder me obrigava a esquentar sua cama antes de penetrar na zona de batalha.

— Pois disse a verdade. — Deu meia volta, rodeou-a com os braços e a atraiu mais para ele. Connor em seguida notou que ela acabava de tomar banho, pois cheirava seu delicioso aroma de mulher misturado com o suave aroma do xampu, e imediatamente sentiu a imperiosa necessidade de molhá-la de cima abaixo.

De dar banho nela.

   Tirou as calças, abriu o biombo da ducha e a levou para dentro. A água salpicava suas cabeças enquanto se entregavam a um beijo lento e apaixonado.

— Aconteceu algo novo? — Perguntou a Connor enquanto este lambia a orelha.

— Nada. Tudo está preparado. Agora toca esperar.

— Quanto tempo?

— Até que venham.

   Connor tentava distraí-la e seduzi-la e seguia empenhado em seus beijos e carícias, mas ela se afastou.

— O que vai acontecer às outras mulheres, Connor? Por muito que consigam sair daqui...

— Tiraremos elas.

   Mara acariciou lentamente o peito; notava o forte batimento de seu coração.

— Mas o que vai ser delas depois? A maioria estão grávidas. Irã direto à polícia.

   Connor molhou a mão com o xampu e o estendeu pelo cabelo, riscando pequenos e suaves círculos; não porque o deixasse sujo, mas sim porque adorava massageá-la.

— Minha gente se encarregará dos que saírem... Mortos. — Era muito doloroso dizê-lo — Ninguém achará culpados em Chicago. Acabaremos com os minesotanos e seus corpos não despertarão nenhum indício.

Mara levantou a vista para exigir uma explicação.

— A besta que emerge de nosso corpo é pura magia, não DNA. Quando morremos, nosso corpo se comporta como um corpo humano. Embora haja autópsia, não encontrarão nada estranho. Se as mulheres denunciarem que foram sequestradas e violadas, estou seguro de que a polícia fechará o caso como uma forma de escravidão branca...

— E os bebês?

Encolheu os ombros.

— As meninas não terão problemas. As mães as levarão com elas ou as darão em adoção se a lembrança for muito dolorosa. Se houver alguma tiver um menino...

Connor suspirou e afundou o dedo no couro cabeludo.

— O que? O que acontecerá?

— Fazemos todo o possível por evitar um sofrimento excessivo, Mara. Fazemos acreditar que o menino padeceu um acidente ou que está doente. Passam-no mal igualmente, mas acabam aceitando a perda.

Connor notou uma tensão inusitada em seu corpo.

—... Esses meninos não podem crescer em uma sociedade normal. — Esclareceu — Já sabe. Cuidamos e nos preocupamos com eles. Acabamos querendo muito a eles e ninguém abusa deles nem os transforma em criminosos.

— Vivem toda a vida sequestrados. Que diferença há entre o que fazem Thaddeus e seus amigos?

Connor se sentiu contagiado pela tensão.

— Está-me comparando com eles?

— Homem, a diferença é muito sutil.

   Connor abriu o biombo de um golpe, saiu da ducha deixando um caminho de água e agarrou a toalha enquanto seguia escutando o ruído da água e seus passos sigilosos e molhados contra o mármore. Os dedos sutis de Mara começaram a roçar seu ombro.

— Eu não estou dizendo que seja como eles, Connor. Mas perder um filho é horrível por muito que entreguem um bonito certificado de falecimento.

— Não escolhemos o que somos. Nunca nos deram essa possibilidade.

— Mas sim que podem escolher como viver. — Arrebatou a toalha e secou as costas. A irritação de Connor diante essas acusações foi desaparecendo e voltou a sensação de bem-estar e o calor corporal — E se estiver grávida? Levará a meu bebê e me deixará para trás?

— Está grávida? — Voltou-se bruscamente.

— Não sei. Não sei ainda, mas prefiro estar preparada.

Connor lhe deu as costas de novo.

— Com você é diferente. Já nos conhecemos.

— Não me respondeu à pergunta.

   E não obteve resposta. Pobre Connor! Tinha vivido dez vidas com as mesmas crenças. Era muito difícil trocar tão rapidamente.

Voltou-se para ela e pegou da toalha até atirá-la ao chão. Estavam um frente ao outro; corpo com corpo; quentes, úmidos, respirando ansiosamente. O cabelo de Mara apontava com garbo para cima. O cabelo de Connor serpenteava por sua orelha e seu pescoço. Seu peito se erguia, mamilos erguidos, para procurar seu toque, sua boca.

   Mara separou os lábios vermelhos como se sentisse suas intenções emergentes.

— Posso ver que você gosta desta resposta — Disse, justo antes de beijá-la. O beijo, comprido e suave, deu passo às carícias. Tocou os seios, apertou-os, levantou-os e os balançou, tocando os mamilos tensos para excitá-los mais ainda.

—... Ou esta outra — Connor foi lambendo seu pescoço até chegar aos seios. Deslizou a língua por sua auréola e começou a chupar o mamilo, conseguindo que escapasse um pequeno ofego.

—... Ou esta outra — Deixou cair a mão em cima de seu torso e a levou até os quadris, terminando nessa doce fenda entre suas pernas. A umidade impregnava seus dedos e Connor a incrementou mais ainda, massageando lentamente e deslizando dentro.

   Sentiu sua profunda entrega. Mara se fundiu com seus braços; entregou-se a ele; moveu-se com ele, o olhando com fúria. Com perdição.

Oferecendo tudo.

   Desejava ter um filho. Não só para assegurar a reencarnação se fosse um menino, e sim para ter algo que a unisse a ele.

Para que ele se sentisse, também, unido a ela.

   Quando tudo acabasse e ela retomasse sua vida normal, longe da escravidão e os monstros, teriam um filho em comum.

Uma figura viva de sua relação.

   Levantou-a e pousou seu corpo espasmódico em cima do lavabo. Mara inclinou a cabeça para vê-lo no espelho e para ver como ele a olhava a ela e como ela o olhava. Esse reflexo o excitou tanto que incrementou desaforadamente a potência e o batimento do coração de sua ereção; momento no qual se endireitou e revolveu procurá-la, para levantá-la, ansiando quase com dor uma liberação. Segurou-lhe os quadris, agarrou-a por traseiro e se deslizou dentro dela em um único e suave movimento.

Seu abraço interior era quente e aveludado e terrivelmente escuro. Molhado e delicioso. Connor a penetrava com enorme facilidade e lutava por sair e voltar a entrar com mais força, enquanto ela o constrangia entre sua pele.

   Cravou seus olhos nela. O espelho refletia um enfrentamento de intenções. Concentrados, separados; movendo-se ao uníssono, lutando pela independência.

   A besta rugia em seu interior; acordada e faminta. Alimentava-a com cada investida. Oferecia seus tesouros, ajudando a empurrar, fazendo chegar tão longe para não voltar a encontrar o caminho.

   Os ofegos eram cada vez mais intensos. Mara fechou os olhos; não deixava de sacudir a cabeça, de empurrar com ele. Um tremor intenso e prazenteiro subiu pelas pernas, começou a percorrer seu ventre e desembocou em seus ombros e em seus braços.

   Deixou-se cair, gritando, cravando as unhas e rendendo-se às sacudidas enquanto ele a abrangia, ainda duro, ainda dentro e beijava sua nuca.

   Com olhos resplandecentes, separou-o dela, resfolegando, sentou-o no chão e o estrelou contra a parede para colocar-se de joelhos e engoli-lo.

Línguas de fogo o envolviam enquanto ela deslizava a sua e o provava. A respiração queimava os pulmões. Os batimentos do coração enfureciam o fogo.

   Os dedos atravessavam, tremendo, seu cabelo curto e o agarravam para prestar contas de prazer, ensinando o ritmo que gostava. Os quadris de Mara se moviam com seu corpo oscilante até que o levou a cúpula e seu corpo e mente explodiram como um bólido de luz branca e de calor fosforescente.

   Desmoronou-se na mesma parede e esperou uns instantes até recuperar a visão e notar as pernas. Levantou-a do chão e a levou a cama para começar outra vez.

 

                                       Capítulo 23

Rachel afastou bruscamente os lençóis emaranhados, saltou da cama e colocou o roupão. Ainda faltavam duas horas para que amanhecesse e Nathan já se levantou e estava se vestindo diante do armário. Rachel beijou o ombro nu; ainda sentia seu aroma viril, levava-o com ela.

— Já vai? — Perguntou

— São dez horas de viagem, no mínimo. Temos que estar ali antes da noite.

Atraiu-a para ele e a abraçou.

— Não suporto fazer isto. — Disse, sem poder acrescentar nada mais.

   Rachel respirou fundo para agarrar forças e endireitou as costas.

— Quero te dizer algo antes que vá. Queria esperar outro momento mais apropriado, mas tem que sabê-lo.

Nathan tirou um casaco de pele do armário.

— Vamos ser pais.

   Ficou paralisado, deixou cair o casaco no chão e sumiu em um forte abraço com ela.

— Rachel, que alegria... — Estreitou-a contra ele apaixonadamente; projetando uma felicidade verdadeira.

— É muito boa notícia para você, não? Necessitava um filho.

   E ela precisava saber se contaria com alguma proteção em caso de que...   Não, negava-se por completo a pensar isso. Nathan não a deixaria.

— Não quero ir, isto me supera...

Afastou-se um pouco dele.

— Eu tampouco quero que vá. Mas é muito importante fazer isto.

   Conforme tinham explicado Nathan e Teryn, era a primeira vez que acontecia algo assim. Nunca tinham enfrentado as gárgulas. Ninguém sabia o que ia acontecer, mas estava claro que as consequências seriam más. Sangrentas.

Nathan escondeu um cacho atrás da orelha.

— Quando voltar, celebraremos.

   Ela sorriu com valentia; ao menos isso queria fazer, embora se sentisse desolada.

— Claro.

— Amo-te — Tocou o ventre — E a você também.

Rachel inclinou a cabeça.

— Diz que também te ama.

   Como não tinha nada mais que dizer e outros já estavam esperando, recolheu o casaco e partiu.

   Rachel se sentou na cadeira de balanço e se imaginou dando de mamar a seu bebê. Esperava que o pai ficasse junto a ela.

   Pensou em voltar a deitar-se, mas tinha medo dos sonhos e daquele estranho que os observava da distância, assim, enquanto se balançava, esperou.

Ia ser um comprido dia e uma noite interminável.

 

— Parece que vai fazer frio hoje. — Mara colocou um cachecol e deu uma xícara de café a Connor.

   Connor olhava a mansão do parapeito do telhado. Agarrou a xícara com as duas mãos e deu um gole.

Ao redor das duas da tarde, tinha começado a nevar. Enquanto o sol se aproximava do horizonte, o vento soprava para cima, violentando a queda dos flocos delicados e convertendo-os em projéteis que explodiam contra os olhos e queimavam as bochechas. A temperatura tinha caído dez graus e um banco de nuvens estancadas bloquearia a luz fraca do sol.

Connor esboçou um sorriso e deu outro gole ao café.

— Fará muito mais frio quando o sol se pôr.

   Mara deu uma olhada a seu redor para assegurar-se de que estavam sozinhos.

— Será de noite?

Connor assentiu.

— Depois da meia-noite ou umas horas antes que saia o sol. Espero que seja depois de meia-noite porque assim terão uma margem muita ampla de tempo antes que saia o sol e os descubra.

— Ainda não posso acreditar nisso. Aqui vai se liberar uma batalha, como no Senhor dos Anéis.

— Mmmm... — Riu com ar presunçoso — Tolkien era um escritor excepcional, mas não era uma gárgula, se te servir de algo. Como estão as mulheres?

— Estão nervosas, mas o levam bem. E você?

— Estou desejando que tudo acabe.

Mara pisoteou uma pequena montanha de neve.

— Connor, se não voltarmos a nos ver, queria te dizer que...

— Vamos conseguir. Vamos sair daqui. Juntos. — Disse, com tom áspero.

— Já sei, mas no caso de... Porque vale a pena que te diga que...

Connor a agarrou do queixo.

   Seus olhos âmbar brilhavam; ele era a única imagem de suas retinas.

— Eu também te amo.

Mara mordeu o lábio inferior e o lambeu, expressando seu desejo de que a beijasse. Esteve a ponto de render-se, mas um movimento misterioso nas árvores de frente o pôs em alerta.

   Um cervo saiu de trás da fileira de abetos. Era enorme como um alce macho; tinha uma gargalhada espetacular e olhos vivos e inteligentes que Connor reconheceu em seguida. Estes olhos pertenciam a Noble Grant, um de seus irmãos e parceiro de pôquer uma vez por semana.

Bebeu o café de um gole e deu a xícara a Mara.

— Corre, vá para baixo. Tranquilizar a todo mundo.

   Mara espionou o céu, o muro da mansão e o jardim frontal. Mas o cervo se foi, desvanecendo-se entre a vegetação para se preparar.

— Amo-te. — Disse Mara.

Connor esboçou um último sorriso.

— Vejo-a ao amanhecer; se puder, antes.

Thaddeus estava sentado no chão criando o círculo ritual com os totens dispostos diante dele: uma rosa murcha, um camundongo morto, vinho amargo e água pútrida. Mas o Deus e a Deusa só concediam visões nubladas essa noite. Tão só vislumbrava uma parede cinza impenetrável.

   Maldita mulher mestiça. Estava seguro de que ela e seu amiguinho mago tinham encontrado uma maneira de bloquear a visão. Ou isso, ou não sabiam invocar a magia antiga, embora este último era bastante improvável.

   Tinha a esperança de criar a contemplação divina necessária para saber o que estavam tramando os de Chicago. Sabia que o ataque começaria logo. Mas quantos viriam? Viriam preparados? Estariam armados ou despertariam à besta e lutariam à maneira tradicional e obsoleta das gárgulas?

Apesar de levar umas quantas horas imerso no círculo ritual, não tinha tido nenhuma visão, assim decidiu invocar as deidades de seu próprio corpo para pedir uma vez mais.

   Por fim, a visão imprecisa começou a se limpar. Viu o Lago Superior em seu esplendor invernal; as ondas se chocavam na borda e formavam castelos de gelo majestosos em cima das rochas. Viu os faróis que faziam guarda na entrada do canal de Duluth e viu os campos e montanhas rochosas que rodeavam sua mansão.

Mas havia algo que se movia entre as árvores.

Tinha pisadas na neve.

Muitas pegadas.

Dúzias de olhos brilhavam entre os ramos da vegetação.

Thaddeus foi às nuvens. Apertou os punhos até fazer sangre.

Não era justo. Eram muitos.

Muitos.

 

                               Capítulo 24

Os primeiros alaridos da morte saíram despedidos das paredes da mansão e retumbaram na paisagem gelada uma hora depois do pôr do sol. Os vigilantes postados no telhado elevaram os rifles imediatamente e abriram fogo entre a escuridão.

   Connor percorreu todos os pontos, dando indicações a todos os homens.

— Não abra fogo, está disparando a seus companheiros! — E dando outras instruções a seus irmãos disse — Abra fogo! Não disparem até que vejam o inimigo!

Mas tinha medo que fosse muito tarde.

   O bater de umas asas enormes ressoou no ar. Connor e os vigilantes levantaram a cabeça, mas só havia nuvens, névoa e brumas. A névoa tinha um aspecto terrivelmente estranho essa noite. Parecia humana.

   Connor começou a pensar que a mãe natureza estava de seu lado (ou que Teryn tinha intervindo). Tinha a suspeita de que seu líder levava um tempo mexendo com a magia antiga. Em um tempo anterior, se Connor reunisse as provas necessárias para demonstrar que Teryn tinha quebrado seu juramento de abandonar a religião antiga, teria castigado sua indiscrição e o despojando do poder. Mas, nesse momento, sentia-se muito agradecido ao pensar na quantidade de vidas que salvaria essa névoa e não importava como se originou. Se Teryn era responsável, estava disposto a pedir ao Líder que subisse a temperatura em outra ocasião para ir jogar golfe.

   Um segundo depois, as lembranças sobre um dia ensolarado se desvaneceram assim que se ouviram os gritos do guarda que se achava no canto do telhado. Uma silhueta negra lhe arrebatou a pistola e o levantou do chão agarrando-o pelo pescoço.

   Enquanto os vigilantes corriam a pedir ajuda e Connor revolvia interiormente pensando no risco que estava correndo Nathan, a águia grifo voou escassos metros e deixou cair o prisioneiro a uma altura de quatro andares, lançando-o diretamente à morte. O animal se escondeu entre as nuvens e desapareceu antes que o tentassem alcançar com um tiro.

— Retirada! — Gritou um dos guardas jovens — Retirada! Vamos para dentro!

Connor arrebatou a pistola e agarrou por pescoço.

— Ao chão — Ordenou. E levantou a pistola para apontar a todos — Vou disparar ao covarde que se atreva a fugir!

   O melhor que podiam fazer seus homens era correr e dispersar-se fora da mansão. Se achavam fora, podiam atacar e desaparecer, voltar a atacar desde outro ponto e desaparecer de novo. No interior da mansão, entretanto, eram alvos fáceis.

   Connor corria, apressava-se, movia-se constantemente dando ordens. A base de gritos, foi conseguindo que os homens retornassem a seus postos, exceto um, que despertou à besta e se transformou em lagarto, caminhando pelo parapeito e descendo pela fachada.

“Deixe que se vá, é um covarde. Uns menos contra o que lutar”, pensou Connor.

   A batalha começou a adquirir uma aparência cruel. Os disparos ressoavam dos postos de vigilância centrais até o chão e as rajadas das balas iluminavam a noite fria como foguetes selvagens.

   Connor estava preocupado pelas mulheres. Não sabia se estavam bem; se davam conta do que estava ocorrendo. Era uma cruzada por suas vidas e sua liberdade. Todos deviam gozar de liberdade: gárgulas e humanos. Liberdade para cuidar de seus próprios filhos sem temer os sequestros.

   A noite anterior, Mara tinha transtornado o pensamento dele. Connor estava ali arriscando sua vida porque tinham tentado raptar os filhos de sua congregação, St. Michael's. Todos os de sua espécie se comportaram assim com as mulheres durante séculos: separavam-nas de seus filhos sem remorso e as abandonavam.

   Um grito de alarme ressoou a suas costas. Agachou-se instintivamente e um falcão gigante passou por cima dele arranhando os ombros com suas terríveis garras antes de apanhar um guarda andrajoso e desaparecer com ele no céu negro, deixando atrás de si o eco de seus alaridos.

   O risco era iminente. Não podia confiar no fato de que eram seus irmãos de Chicago os únicos estavam lutando essa noite. As congregações de Denver, St. Louis e Detroit não o conheciam. Sabia que Nathan havia dito que havia um espião camuflado na mansão, mas era muito provável que as outras gárgulas não reconhecessem em plena noite e no fragor da batalha.

   Esses mestres estavam fazendo incursões progressivas na mansão. Havia uma grande agitação no bosque e os poucos vigilantes que ficavam no recinto tinham fugido ou estavam mortos.

   Era o momento de descer do telhado e dar o toque mestre: a ruptura final do controle e da coordenação da congregação de Minnesota. Sem líder, os soldados se sentiriam menos organizados e acabariam rendendo-se.

Era o momento de encontrar Thaddeus.

 

No porão, as mulheres se agrupavam em pequenos círculos. Algumas falavam, outras dormiam ou embalavam seus bebês. Os bebês estavam cansados e incômodos e não paravam de chorar. Os vigilantes estavam tão irritados com o pranto que, finalmente, saltaram as normas e as deixaram balançá-los e abraçá-los para conseguir que dormissem.

   Mara ia passando de grupo em grupo, vigiando a todas. Agachou-se para ver Colleen, que estava deitada de barriga para cima em cima de um lençol com os joelhos dobrados e as mãos atrás da nuca a modo de travesseiro. Mara foi procurar outro lençol e a colocou na nuca.

— Está bem?

   Colleen sorriu, mas tinha aspecto cansado. E esse brilho na testa, era suor?

— Estou bem. O que acontece é que não encontro a postura.

— Vêem. Toma um pouco de água.

Colleen bebeu o copo ansiosamente e o devolveu.

— O que está acontecendo?

O som dos disparos era longínquo, mas inconfundível.

— Pois não estou segura — Não estava segura de quem ia ganhando. Não sabia quem continuava vivo ou morto. E era uma agonia desconhecer o estado de Connor; não saber se iam abandonar o lugar pela manhã ou se os aliados iam perder e ela ia continuar sofrendo.

Mara apertou a mão afetuosamente.

— Descanse.

   A certa distância, Caren se achava reclinada contra a parede. Os vigilantes tinham prendido os pulsos com algemas de plástico. Tinha o olhar perdido. Não tinha trocado de postura em horas. Mara não sabia discernir se pestanejava ou não. Aproximou-se da mulher e serviu água em um copo de plástico.

— Caren, carinho. Tem que beber um pouco de água.

   Aproximou o copo aos lábios e o inclinou, mas a água se derramou.

— Por favor, Caren. Tem que beber um pouco de água. Por seu bebê.

Então espiou uma fibra de vida em seus olhos.

— Meu bebê — Murmurou — Vão tirá-lo. Prefiro matá-lo do que permitir que o tirem de mim.

— Não diga isso. Vamos sair daqui. Tem que confiar.

— Ninguém vai sair daqui. Deste caixão.

Mara se aproximou lentamente a seu ouvido.

— Ouve esses ruídos? É a gente que nos está ajudando; que nos vai tirar daqui. Quão único tem que fazer é esperar um pouco mais e beber um pouco de água.

   Caren inclinou a cabeça e tentou se incorporar a um ritmo intermitente, como se seus músculos não estivessem acostumados a mover-se.

— Nos vão tirar daqui?

— Sim; dentro de pouco.

   Caren alargou o braço para agarrar o copo e Mara estalou a língua ao ver as feridas de seus pulsos. Chamou o guarda.

— Tire isto!

Sacudiu a cabeça.

— A essa puta louca? Não. Nem de brincadeira.

— Vai pegar uma infecção. Há muita umidade aqui.

O vigilante deu as costas com o ânimo de ir-se.

— Se passar para o seu sangue, contagiará ao bebê.

   As palavras detiveram seu passo. Tomavam muito a sério as condições de saúde de seu pequeno exército do mal.

— Muito bem — Disse, depois de olhar seus pulsos sangrando. — Espera um momento. Vou ver se encontro uma malha mais suave para atá-la.

   Tirou uma navalha do bolso e cortou as correias de plástico justo no momento em que se foi a luz.

Um coro de murmúrios invadiu o porão.

   Mara fez o gesto de aproximar-se de Caren, mas esta tinha desaparecido.

        

Rachel estava sentada no chão, com as pernas cruzadas diante de Teryn. Suas mãos descansavam sobre os joelhos, tinha os olhos fechados e um ritmo de respiração lento e profundo, mas não tinha entrado no estádio do sonho.

— Vê algo? — Perguntou Rachel.

— Não — Sua postura era rígida e estática; só se moviam seus lábios — Tenho que me concentrar muito para sustentar este padrão climatológico e proteger os nossos. Não me veio a visão.

— Perdoa por te distrair.

Seus lábios se torceram lentamente para exibir um sorriso.

— Tranquilo, não me distrai. Se quiser, tente você.

— Arrastar a visão? Não posso. Necessito seu intermédio ou a de Nathan.

— Cada dia melhor. Tornou a notar a presença do intruso?

— Não. Fiz o que me aconselhou e representei uma imagem de mim mesma em um quarto sem janelas. Ele não podia ver mais à frente.

— Muito bem. Agora representa essa imagem e arrasta a visão. Encontrará o Nathan e verá que está bem. Assim ficará mais tranquila.

   Fez o que Teryn aconselhou, seguindo os passos do ritual segundo a ordem estabelecida, invocando os quatro elementos e fazendo sua petição. Agitou o cálice de ouro com o vinho tinto, e entre a superfície ondulante do líquido, as imagens começaram a aparecer.

   Profundamente angustiada, atraiu essas imagens para ela.

 

                                 Capítulo 25

Mara escutou um grito estranho na escuridão do porão. Era o vigilante que tinha cortado as correias de Caren. Continuando, notou como um corpo caía em cima de seus pés.

Tentou mover-se e apalpar a seu redor.

— Caren? Caren! — Pouco a pouco suas pupilas foram adaptando-se à escuridão e suas mãos toparam com um braço muito mais musculoso que o de Caren e se deslocaram para seu peito. Seus dedos se impregnaram de algo pegajoso e quente. Demorou uns instantes em reconhecer que era sangue. A fina navalha se sobressaía desse torso masculino.

O segundo vigilante vociferou.

— Ei! O que está acontecendo aqui? Billy?

Mara recuou imediatamente e se afastou do corpo.

— Caren? — Mara a chamava em sussurros para não alarmar ainda mais o guarda.

   De repente, começou a ouvir uns passos violentos e soube que tinha que fazer algo.

— Billy? Onde está?

Ângela se posicionou ao lado de Mara.

— O que aconteceu? Não entendo nada.

— Não encontro Caren — Murmurou — Acredito que matou o vigilante.

   Ângela se ajoelhou ao lado do corpo inerte que jazia no chão.

— Minha mãe...

— Bom. E agora, o que.

   Ângela ficou de pé e fez um gesto para o guarda que caminhava para elas.

— Não podemos deixar que encontre o corpo. Entretenha-o.

Ângela desapareceu.

   — Mas o que diz, Ângela. Por favor. Como vou entret...

   O segundo vigilante estava perigosamente perto. Mara correu para ele e agarrou pela manga, empurrando-o para trás.

   — Por ali! Parece-me que seu companheiro teve um ataque de nervos ou algo assim.

   O vigilante se ajoelhou diante de Billy. Ângela se precipitou para ele e bateu uma garrafa de vinho contra a cabeça. Foi um golpe de mestre. Caiu ao lado de seu companheiro.

   Ao ouvir os ruídos e a comoção, as mulheres começaram a se agitar.

— O que aconteceu?

— Aconteceu algo aos guardas?

— Mas o que está acontecendo aí fora?

Um bebê começou a chorar.

Ângela se fez cargo da situação.

— Se acalmem. Tranquilas. Não acontece nada...

— Algo está acontecendo

— Estamos ouvindo disparos!

— E por que se foi a luz?

   Ângela ficou reta e tentou impor seu metro e meio de altura. Levou os dedos à boca e lançou um assobio ensurdecedor.

— Eu disse que se acalmem!

   O cruzamento veloz de perguntas se converteu em uma carriola de murmúrios.   Mara começou a apalpar o chão até que encontrou o corpo de um dos guardas. Enrugou o nariz, rebuscou em seu cinturão, tirou uma pequena lanterna e a apontou para a Ângela.

— Bom, isto é outra coisa. — Disse Angie — Os guardas sofreram um acidente.

— Que acidente? — Perguntou uma voz.

   Ângela apoiou as mãos em seus largos quadris e as olhou com ar queixoso.

— Sinto muito. — Disse com um tom submisso.

— Escutem. O que está acontecendo aí fora é algo que não esperam. Veio gente boa nos ajudar. Nos tirar daqui.

Produziu-se um contágio de respirações agitadas e de gritos sufocados. Uma figura alta e esbelta deu um passo à frente.

— E por que não estamos fora, os ajudando? — Perguntou Caren enquanto Mara apontava com a pequena lanterna. Era a primeira vez que a via tão íntegra. Tinha as costas bem retas e os ombros rígidos e projetava a voz com força e segurança.

Ângela levantou a vista para ela.

— Boa pergunta...

Mara começou a ter um mau pressentimento.

— Temos que nos ocupar dos bebês e quase todas estão grávidas.

— Estamos grávidas, mas não impedidas. — Replicou Ângela.

— A metade de vocês necessitaram de ajuda para descer as escadas...

— Muito bem — Respondeu Caren — Pois essa metade ficará vigiando as crianças. A outra metade de nós vamos lutar.

Mara sentia um impulso tremendo por sair do porão e passar à ação. Não gostava de ficar sentada esperando que outra pessoa a resgatasse. Preferia enfrentar sozinha aos reveses da vida.

Mas, com uma tropa de mulheres grávidas? E se viam algum homem em seu estádio animal? Como ia explicar?

   Pois... Da mesma maneira que o tinham explicado a ela. Demonstração pura e dura.

   Essas mulheres tinham sido sequestradas; tinham abusado delas; tinham-nas mantido cativas. Mereciam participar de sua própria liberação. Além disso, seguro que Connor e seus companheiros as necessitavam.

— Muito bem — Disse Mara — A lutar todas as que possamos.

   Um clamor generalizado surgiu espontaneamente. Mara, Ângela, Caren, as quatro mulheres do casarão e uma mulher alta e esbelta chamada Beth saíram correndo e abriram caminho entre as escadas, armadas com tijolos, alavancas e pedaços de vidro: todas as armas que encontraram a seu alcance.

Em plena escuridão e enfrentamento descarnado, Connor se agachou e empurrou a porta de emergência que dava acesso ao patamar das escadas. Deteve-se um momento a escutar. O oco da escada gotejava tranquilidade, mas isso não dava nenhuma garantia. A essas alturas da batalha, podiam emergir inimigos de qualquer ponto e matá-lo antes que pudesse reagir.

   Depois de uns segundos de rigor, começou a descer pouco a pouco os degraus. Cada passo era um golpe de canhão; cada ofego, o açoite do vento contra os ramos de uma árvore.

   Movia-se lenta e sigilosamente, calculando cada passo. Aborrecia lutar no interior da mansão, pois seu corpo alado, longe de agilizar seus movimentos, representava um inconveniente. Ao chegar no final das escadas, ficou de lado e se postou contra a parede para que não o alcançasse a luz de nenhuma lanterna, nem sequer o tênue reflexo da lua.  

   De repente, escutou vozes procedentes do vestíbulo da sala principal. Dois guardas se lamentavam diante do escritório de Thaddeus.

— Já sei que este homem nos pediu que não abandonássemos, mas pensa: isto já é um conflito bélico. Vamos tirar o traseiro daqui.

— Está me dizendo que nos rendamos? Sabe o que é capaz de fazer se nos pega?

— Olhe, já não me importa. Não pode ser pior do que nos estão fazendo as outras gárgulas. Vi um homem partido pela metade; rasgou-o uma espécie de gato enorme.

— Parte então. Eu vou ver o que acontece por aqui.

— Vai ficar aqui?

   Connor teve suficiente. Não podia esperar toda a noite a que essas duas doninhas se decidissem. Retomou o passo e voltou a unir-se às sombras, aproximando-se desse casal e ignorando sua posse de armas. Devia fingir tranquilidade.

— Ei, vocês dois. O que estão fazendo aí? Estamos nos retirando e nos reunindo no vestíbulo principal do primeiro andar.

   Sabia que gostariam dessa opção. Uma retirada era uma palavra sutil para esse par de covardes.

   Entretanto, lançaram uma réplica em honra a seu comando. Trocaram olhares de confusão.

— Mas é que Thaddeus... Ordenou-nos ficar aqui a fazer guarda.

— E eu ordeno que desçam as escadas. Se movam. Já! Vou ver o Thaddeus.

   Fazendo um gesto de alívio excepcional, os dois guardas se esfumaram pelas escadas.

Connor segurou a respiração por um momento e abriu cuidadosamente a porta. O escritório estava vazio. O pequeno escritório de Thaddeus tinha sido varrido e a cadeira estava derrubada no chão. Connor acabou de examinar o escritório e caminhou para a porta que levava ao santuário.

Continuaria encerrado em seu escritório? Ou era uma artimanha dos guardas para convencer o intruso de que Thaddeus (ou fosse qual fosse seu nome) continuava ali? Tinha fugido, abandonando os homens a sua sorte?

   Connor deu a volta e vigiou suas costas procurando qualquer armadilha, mas a sala permanecia em silêncio. Chegou à porta de carvalho maciço que levava a sala de Sua Santidade, a sala onde se achava o trono.

   Antes de roçar o pomo, as enormes portas se abriram diante dele. Thaddeus estava sentado na enorme cadeira, com uma bengala apoiado no braço e um cão maltrapilho recostado no chão.

— Bem-vindo, Connor — Disse. Connor sabia perfeitamente que não desejava a bem-vinda — Estava te esperando.

   Instintivamente, Connor se deu conta de que o mal acabava de começar. Talvez tenha hesitado muito.

   De algum jeito, Thaddeus soube que tinha sido traído.

   O canto ritual ressoava a uma velocidade vertiginosa em sua cabeça:

E Unri almasama

E Unri almasama

Calli, Calli, Callio

Somara altwunia paximi

   Em menos de um suspiro, a besta despertou. Connor desdobrou as asas, mostrou as garras e agachou a cabeça para arremeter contra o Líder, mas seu peito recebeu um golpe monumental que, com a força de um aríete, lançou-o ao chão. As costelas sofreram o maior impacto; o sangue encharcava seus pulmões.  

   Do chão, convertido já em humano, Connor se esforçava por recuperar o fôlego.

Thaddeus o olhava de sua altura.

— Poderia ter formado parte do movimento mais poderoso da terra: a liberação dos Gargouillen. Mas escolheu me trair.

— Os Gargouillen... — Respondeu, tossindo sangue — Já são livres. É você quem os escraviza, transformado-os em soldados.

— Eu lhes dou poder.

— Você dá soberba e vaidade. Envenena-os por dentro. Destruiu tudo o que representam os Gargouillen.

— Eu sou o Grande Amo, o único que levará a nossa gente a uma nova era!

— Quão único faz é estender uma praga de miséria. Esta noite vai ser exterminado.

A face de Thaddeus se avermelhou de fúria.

Connor lutava com todas suas forças por levantar-se, mas as articulações pesavam. Seu torturador mostrou com o dedo e Connor sentiu outra enorme sacudida na garganta.

Como o fazia?

— Não pode me derrotar.

— Aaah... Não pode... — Não teve fôlego para mais palavras.

   A boca de Thaddeus se retorcia para mostrar um sorriso perverso.

— Reconhece-me agora, Connor Rihyad, descendente da quarta geração da alma de Pierre Moriet de Rouen?

   O olhar de Connor viajou lentamente para cima. Só podia mover os olhos.

— Quem é você?

   Uma baforada de vento entrou violentamente na sala, embora a porta do balcão estava fechada. A eletricidade estática impregnava a sala e arrepiava os pequenos cabelos do pescoço e o braço de Connor.

A fita de pele que recolhia o pequeno cabelo de Thaddeus escorregou e caiu no chão. Seu fino cabelo se tornou seco e rígido e suas pontas açoitavam a cara e se revolviam por cima de sua cabeça.

   Sua pele envelheceu em segundos. Os ombros se afundaram e os compridos e elegantes dedos se enrolaram. Removeu-se na cadeira para tentar procurar a fita como se fosse sua única salvação.

   Tentou levantar-se, com uns joelhos cambaleantes que estavam a ponto de ranger; elevou a cabeça, assinalou ao ar e levantou as mãos projetando seus dedos retorcidos. Uma intensa luz azul nasceu de suas palmas e iluminou a sala com uma incandescência cegadora.

As paredes começaram a tremer e o chão se sacudia.

— Sou Romanus — Disse, entregando-se a um grito implacável que se impunha o vento — Eu sou seu criador!

 

                                   Capítulo 26

Mara conduziu a seu grupo anárquico de mulheres lutadoras pelo interior da mansão. Não sabiam qual era sua missão, mas estavam dispostas a fazer o que estivesse em suas mãos. Ela levava a navalha sangrenta do guarda e as demais empunhavam armas caseiras que se encontraram pelo porão.

Que alguém tivesse piedade delas!

O andar principal estava limpa. Fora se ouvia o ruído do combate, mas elas preferiam estar dentro porque conheciam melhor o entorno. Cada certo tempo, um grito quebrava o silêncio. Pentearam toda a zona do salão e da cozinha e ali Caren e Ângela trocaram as alavancas por facas de açougueiro.

— E agora, o que? — Perguntou Ângela.

   Mara não tinha nem ideia do que fazer. Só queria encontrar Connor; necessitava-o vivo e inteiro.

Devia estar perto do Líder.

— Vamos para cima — Disse.

   Desceram pelas escadas que estava acostumado a utilizar o serviço, pensando que assim estariam mais protegidas, mas não acharam mais que restos de violência. No chão se distinguia perfeitamente um enorme atoleiro de sangue. Saltaram-no sem maior problema, concentradas em seu objetivo.

Objetivo ao que ainda não tinham feito frente.

   Ao chegar ao terceiro andar, começaram a soar disparos, passos apressados, golpes e alaridos de animal.

Uauau...

Mara se deteve um instante.

— Acredito que o melhor é ir pelo outro lado...

Caren lhe deu um empurrão.

— Ei, viemos aqui para algo.

— Para que nos matem?

— Para ajudar!

   Todas as demais começaram a seguir Caren. Mara ia à retaguarda. Tinha a terrível suspeita de que lutar contra um exército de gárgulas não era tão simples como essas mulheres pensavam.

   Quando estavam alcançando o patamar do quarto andar, os sons do combate se incrementaram e se fizeram realidade os piores pesadelos de Mara. A porta da escada estava aberta. No corredor, uma impressionante criatura, metade leão metade águia, levantava seu corpo contra uma hiena selvagem com chifres.

   As mulheres recuaram bruscamente com um grito sufocado. Jaina atirou sua faca ao chão e se resguardou nos braços de Mara.

 

A visão era enérgica e poderosa, como um rio caudaloso e emergente. Esteve a ponto de cair no chão. Rachel via gárgulas de todo tipo em uma cruel batalha. Via pisadas de sangue, corpos na neve, meninos chorando.

   Havia imagens que se misturavam com cenas de seu próprio passado. O assassinato de seus pais, o incêndio de sua casa, o ataque a St. Michael's. Mas Rachel conseguiu afastar essas lembranças e concentrar-se no que estava acontecendo em Minnesota.

Procurava Nathan.

   Suas mentes se conheciam tão bem que foi fácil localizá-lo. Mas, enquanto isso caos e destruição, as emoções passavam do ímpeto vitorioso ao medo à morte e ela não podia focalizar a visão.

   Respirou profundamente para acalmar-se e seguir um método sistemático. O porão. O telhado. Os andares, um a um.

   Quando sua visão se concentrava no quarto andar, começou a notar um formigamento na pele, e, continuando, uma estranha sensação de calor. O ar estava carregado de ozônio e a mudança de pressão tampou os ouvidos.

Rachel franziu o cenho.

— Teryn?

— Sim, Rachel.

— Já o estou sentindo.

— O que é isso?

   Teryn enrugava a testa procurando uma concentração máxima.

   — Não sei. É muito grande. É muito poderoso. —U ma gota de suor descendeu de sua testa — É maligno.

   O chão começou a vibrar. Um brilho azul estremecedor empanou a sala. As paredes se balançaram como se fossem de borracha. O espaço não era conhecido. Era a mansão de Minnesota, literalmente destruída, a ponto de explodir.

Com toda as pessoas dentro.

   “Nathan!” Gritou em sua mente. “Saia daí! Saia daí!”

   Tentava, com todas as suas forças, impedir que a casa explodisse, utilizando sua magia e seu poder protetor e lutando contra a força destrutiva que estava tentando derrotá-la.

   — Teryn. Há muita gente dentro. Temos que salvar a casa. — Ofegou ansiosa.

Sentiu a força tenaz de seu mentor concentrada nesse objetivo, deixando de lado a imposição do padrão meteorológico. Teryn a agarrou pelos braços e uniu sua mente à sua. Eram uma única psique. Uma única força enfrentando à ferocidade do vento. Enfrentando à morte.

   Os músculos tremiam, rangiam. Tinha o roupão pego à pele e o suor seguia molhando-a.

— Reserva a visão. Reserva a visão.

   Mas a energia da casa seguiu crescendo até ameaçar destruí-los.

 

Mara sustentava uma Jaina inconsciente em seus braços. As demais mulheres seguiam no patamar intermédio da escada, estupefatas, olhando para cima.

   As mulheres não eram as únicas surpreendidas. Esse aborto de leão se voltou para o grupo anárquico de mulheres, abriu o bico e emitiu um som de estranheza.

   A hiena se aproveitou de sua desorientação e se equilibrou em cima de sua pata, cravando as presas até que o sangue começou a impregnar seu focinho. A águia lançou um berro de dor exacerbado e cravou o bico nas costas e no pescoço. A hiena recuou e a águia-leão a levantou do chão com a força de uma de suas patas traseiras (uma pata com unhas letais), rasgou-lhe o torso e a lançou contra a parede, onde deixou um caminho de sangue antes de cair no chão e de converter-se em homem. Mara o reconheceu em seguida: era da congregação de Minnesota.

   Essa espécie de leão as examinava com curiosidade. Seus olhos negros transmitiam inteligência e selvageria.

   — Você — Mara conhecia a natureza desses homens, mas não deixava de se surpreender a transformação. Como tomariam as demais mulheres? Se estivessem bem da cabeça...— É de Chicago? É um dos amigos de Connor?

Em um abrir e fechar de olhos, um homem com roupa rasgada e bochechas acesas de raiva emergiu do mesmo ponto no que se posicionou a águia.

— Conhece-me, Mara.

Mara recuperou o fôlego.

— Nathan Cross.

Ele assentiu.

   Jaina despertou de repente e se revolveu nos braços de Mara. Ajudou-a a ficar de pé.

— O que... O que aconteceu? — Balbuciou Jaina.

— Calma — Disse Mara — É um dos nossos, não é mau.

A voz estridente de Theresa não ocultava seu pânico.

— Você... Eu me lembro de você... Você veio ao casarão.

   Beth, que não conhecia Nathan, agarrava a faca com força.

— Se for dos bons, não quero pensar como serão os maus...

   Jaina deu as costas como se sua visão provocasse um espanto irreprimível, embora sua forma já fosse humana.

— O que é você?

   Nathan e Mara trocaram olhares de cumplicidade. Ele sabia que ela sabia tudo; tinha-o intuído por sua reação. Ou por sua falta de reação. Nathan estava pedindo ajuda.

— É um amigo — Respondeu ela, com plena convicção — E veio aqui para nos libertar.

   Caren deu um passo à frente como se quisesse impor entre o Nathan e elas.

— Mas se é um monstro!

— Não — Sentenciou Mara — A criatura a que acaba de matar sim é um monstro. Vocês a conheciam; é um dos que as prendeu e as manteve cativas aqui. Nathan e os seu são... Gente peculiar, mas não são monstros.

Abriu-se outro roda de pessoas de murmúrios.

— Está segura de que é do bando dos bons? — Arremeteu Beth.

— Estou...

   Sem prévio aviso, outra criatura saiu de um nada e saltou de repente no patamar das escadas. Era um roedor gigante. Correu para Nathan, cravou as enormes patas frontais no ombro e arranhou a cara. Nathan se agachou e sacudiu o rato gigante, mas perdeu o equilíbrio e começou a rodar pelas escadas. O rato correu atrás dele.

— Nathan! — Mara lançou a navalha ao ar.

   Nathan teve o tempo justo de dar a última volta e empunhar a navalha no mesmo momento em que a criatura se equilibrava sobre ele. O rato ficou rígido e Nathan tirou esse corpo de cima e olhou ombro sangrando. Baixou estrepitosamente as escadas até tropeçar com as mulheres. Mara se sentiu satisfeita ao ver que não recuavam diante de sua presença.

Suas mulheres eram umas lutadoras.

— Obrigado — Disse Nathan, lhe devolvendo a navalha — E agora vamos daqui.

   Todas assentiram ansiosamente, mas Mara estava inquieta. Tudo fazia indicar que a briga de cima tinha se mudado a outra ala da mansão. Uma enigmática luz azul provinha do corredor e começou a alcançar todo andar. O chão começou a tremer como se estivesse passando um trem e as paredes se abalaram e pulsavam como se estivessem vivas.

   Levava muitos dias presenciando feitos extraordinários, mas isso superava tudo.

Ângela apalpou o ombro sangrento de Nathan.

— Venha, vamos — Disse, olhando a Mara.

— Vão vocês — Respondeu, totalmente convencida. Com toda segurança, se algo estranho estava acontecendo, Connor se encontraria na medula — Eu me uno a vocês depois.

— Não vamos deixá-la aqui — Replicou Ângela.

— Tenho que fazer uma coisa... — Não afastava nem um momento a vista do corredor azul.

   Nathan se fixou no olhar de Mara e olhou para a luz. Ângela tentava dissuadi-la.

— Eu te ajudo...

— Não — Respondeu Mara — Tira as demais daqui.

— Elas já se valem por si mesmas.

— Necessitam sua ajuda. — Replicou, antes de lançar um olhar de advertência para que soubesse que o necessitava além da escapada. Necessitava que ele explicasse o que tinham visto. A questão era que o aceitassem ou que se esquecessem disso e, para isso, Nathan podia servir-se de sua capacidade de alterar as lembranças.

Nathan vacilou por um momento e assentiu com veemência.

— É um homem muito afortunado. — Disse.

— Muito valente — Respondeu ela.

   Mara voltou a olhar por volta do quarto andar e tomou ar. Ali estava Connor: podia senti-lo.

E ali devia estar ela também.

   Connor estava encolhido no chão, lutando por recuperar a consciência, por compreender o que Thaddeus (Romanus) havia dito:

— Sou seu criador e tenho mil anos como você.

— Mas como...? — Connor vomitava sangue — Como pode ser...?

   A casa continuava rangendo e sacudindo-se, as paredes se balançavam; o cão começou a uivar e tampou o nariz com a pata.

— Quando eu invoquei às bestas e misturei suas almas com as de seus antepassados, eu também estava no círculo ritual.

Connor entreabriu os olhos.

— Caiu em seu próprio feitiço.

— Converti-me em lobo.

Connor sacudiu a cabeça.

— Não te recordo. Não está nas lembranças que me passaram desse dia. Buscamos você depois que Gargouille fosse assassinado, mas tinha ido. — Teve que fazer uma pausa para recuperar o fôlego — Você... Tinha ido.

Romanus golpeou a bengala contra o chão e saíram faíscas.

— Seu dragão foi assassinado.

— Tinha medo de enfrentar o que tinha convertido.

— Cumpri minha promessa!

— Pelo preço de nossas almas!

   Romanus deu meia volta para comprovar se havia alguém. Franziu o cenho e, por um instante, o movimento cessou. Levantou as mãos e voltaram as sacudidas. A pressão era tremenda e ameaçava arrebentar o peito de Connor.

— Já não faz falta que se preocupe mais por sua alma, Rihyad. Esta noite vai morrer pelo bem de todos.

   Connor em seguida pensou que a coisa mudaria se Mara estava grávida de um menino dele, mas não verbalizou esse pensamento. Quase não podia falar.

— Se for necessário para acabar com esta operação, então terá valido a pena. — Disse Connor.

— Pode destruir toda esta paragem, mas jamais me destruirá. Voltarei a renascer com uma linha de descendência renovada. Muito mais forte. Muito mais poderoso.

   Connor estremeceu. Já sabia que linha de descendência queria, um menino ou menina nascido da primeira geração dos Antigos.

— Em Rachel não tocará.

— Ela não me faz falta. Vou conseguir seu irmão. — Esboçou um sorriso — Levi.

— Não.

   Connor lutava com todas suas forças para levantar a mão; para pronunciar as palavras do Despertar e encarnar à besta: a última vez antes de morrer.  

   Não podia deixar que Romanus ganhasse. Não podia deixar que se apropriasse de Levi. Podia chegar a fazer algo catastrófico se levava um filho dos Antigos para sua causa maligna. Além disso, esse jovem já tinha poderes por si mesmo.

   Romanus levantou as mãos e a sacudida voltou a incrementar-se. Connor sentia uma dor intensa no ouvido causado pela pressão. Essa estrutura, por mais sólida que fosse, não podia resistir uma pressão tão exacerbada.

   Mas algo ou alguém começou a lutar contra ele; a oferecer resistência. As gotas de suor desciam pelas têmporas. Suas mãos perdiam força e os músculos de seus braços se enfraqueciam enquanto tentava levantá-los.

— O que acontece, Grande Amo? Está cansado? — Connor tentava reunir a suficiente força no braço para levantá-lo.

   Uma silhueta penetrou na sala. Connor pôde girar a cabeça o suficiente para vê-la e o coração deu um tombo.

— Mara!

   Antes que Connor pudesse avisá-la, Mara foi lançada ao chão, mas isso supôs um grande esforço para Romanus.

Os lábios tremiam enquanto mostrava os dentes.

— Muito melhor. Assim poderão morrer os dois.

Connor replicou com um gesto dolorido:

— Se esta casa vier abaixo, você morrerá também.

— Estúpido e ingênuo. — Romanus soltou uma sonora gargalhada.

— Connor? — Mara se aproximou dele. Não! Levava uma navalha.

   Romanus estava se batendo em duelo com a força invisível que o desafiava. A casa se sacudia como se estivesse a ponto de cair. Continuando, parou. As mãos levantadas foram violentamente reduzidas.

   Quanto mais se esforçava por destruir a casa, mais controle perdia sobre Connor, que começou a arrastar-se pelo chão sem que Romanus se desse conta.

   Moveu os lábios para começar a cantar em sussurros. Tinha os olhos meio fechados e a pele pálida.

   Mara foi movendo pouco a pouco a navalha, mas não sentiu a fortaleza suficiente para usá-la. A passou pelo chão a Connor.

Connor abriu a navalha, conseguiu ficar de joelhos e fez uma tentativa desesperada por receber a magia. Romanus percebeu em segundos. Abriu os olhos, sustentou uma mão no ar e, de entre uma nuvem cinza nauseabunda e uma luz de fogo...

   Desapareceu. A mansão retumbou e ficou em silêncio. Toda a pressão se foi embora o dano estrutural já parecia. O pó caía do teto. O chão de madeira estava repleto de pedaços arrancados; de vidros quebrados.

   Desaparecidas as amaras invisíveis, Connor retornou correndo até a Mara, tampando o peito com uma das mãos e agarrando-a pelo ombro com a outra.

— Vamos, temos que sair daqui!

   A casa ia desmoronando enquanto corriam. O cão lastimoso de Romanus choramingava diante de seus tornozelos; os degraus saltavam a pedaços, as colunas vinham abaixo e uma brecha enorme começou a abrir-se no chão.

   Conseguiram chegar à entrada, saíram correndo pela porta principal sem olhar para trás e aterrissaram na neve agarrados pelas mãos enquanto o cão dançava a seu redor e lambia a cara com sua língua áspera.

 

                                 Capítulo 27

Connor estava reclinado na janela do quarto de Jackson Firth localizada no colégio maior da congregação de Chicago. Jackson se deteve diante dele e o olhou fixamente.

   O homem tinha muito bom aspecto em que pese ter estado a ponto de morrer. Connor estava seguro de que o tinha matado horas antes quando se encontravam no escritório de Teryn, mas, quando Nathan chegou e tomou o pulso, ainda mostrava uns constantes sinais vitais fracos. Evan Cain, médico e membro da congregação de Chicago, tinha costurado e havia devolvido a vida. Por pouco.

   Ainda não sabiam o que iam fazer com Jackson depois de ter salvo sua vida, mas Connor se alegrava de que não tivesse morrido. Não queria carregar a culpa de ter matado um de sua própria espécie (embora nesse momento parecesse absolutamente necessário) e a nova situação o instigava o ânimo e tirava um grande peso de cima.

   O Conselho decidiu reter e vigiar Jackson enquanto decidiam o que fazer com ele. Confiavam em que proporcionasse a informação necessária para chegar a Romanus, embora isso, de momento, não tinha ocorrido. Connor duvidava se esse homem se movia por sentimentos de lealdade ou se, simplesmente, não sabia nada.

   Observou a Mara caminhando pela calçada em direção à parada de táxis. Não sabia o que fazer.

Por que tinha ido de um dia para outro?

— Vai deixar que se vá, assim, sem mais? — Perguntou Jackson.

Connor meteu as mãos nos bolsos.

— É sua decisão.

— Eu não estava perguntando se era sua decisão ou não.

Connor deu a volta.

— E o que quer que faça? Raptá-la?

   Era uma atitude mesquinha; sabia, mas não podia fazer outra coisa. Sumiu-se em um intenso suspiro.

— Aqui não há lugar para as mulheres. Não funcionaria.

— Ah.

— O que quer dizer com isso?

— Nada... — Jackson lhe deu as costas e encolheu os ombros — Tem razão; não tem nenhum sentido lutar contra milhões de anos de tradição.

Connor escrutinou com o olhar.

—... A tradição das gárgulas, a isso me refiro. Mara é humana; é impossível que o entenda. — Jackson o olhou de soslaio — Você também é, em parte, humano...

   Connor começava a ficar tenso. Jackson falava do coração ou queria o confundir de propósito? É que pensava que era fácil para ele sentar-se e ver como Mara partia? Pensava, acaso, que não a queria? Que não queria outra vida?

E por que se preocupava tanto com o que pensasse Jackson?

Saiu dando inclinações bruscas da habitação.

— Vamos, Wulf... — Chamou o enorme cão que não se separava de seu lado desde que Romanus tinha abandonado o animal na mansão destruída.

   Connor fez um enorme esforço mental e se dispôs a subir a seu quarto e entrar na leitura, mas, de repente, sentiu uma força inusitada nos pés que o obrigou a descer as escadas e a correr para a porta principal.

Connor segurou à porta do táxi justo antes que Mara a fechasse. Mas o que queria? Já tinham se despedido a noite anterior na Casa da Esperança, o escritório de proteção de mulheres que ela e Ângela tinham aberto em Chicago umas oito semanas antes.

   Estavam começando a conseguir uma quantidade importante de clientes: as mulheres do estado de Duluth. As vinte mulheres que se reuniam ali cada dia tinham sofrido numerosos traumas e necessitavam paz e assessoramento. Sete delas tinham visto uma gárgula com corpo de besta e quatorze estavam grávidas, seis delas de meninos. Colleen tinha tido um menino de quatro quilos no porão da casa.

Mara levava em seu ventre a uma das nove meninas.

 

   A ultrassonografia do dia anterior tinha despertado emoções encontradas nela. Por uma parte, sentia-se aliviada ao saber que não teria que criar um menino que mudasse de corpo e tivesse que viver milhares de anos.

Sentia-se tranquila ao saber que não a arrebatariam.

   Dar a luz a uma menina oferecia um leque mais amplo de possibilidades. Não tinha por que sentir-se obrigada a estar com a congregação de Chicago dos Gargouillen e poderia fazer o que quisesse; começar uma nova vida e cuidar de si mesma e de sua preciosa filha.

   O problema era que não sabia aonde ir. No dia anterior, justo depois de voltar do ginecologista, tinha cedido a Ângela a propriedade do escritório de proteção e essa manhã se dirigia para a estação de ônibus.

Sem destino aparente.

Possivelmente a um lugar quente...

Connor havia dito, com olhar aflito:

“Não vá...”.

Pois sim, queria ir. Porque na noite passada não pediu que ficasse quando disse que iam ter uma menina. Mara esqueceu desse tema antes de ficar a chorar. Por causa da gravidez, estava mais sensível que nunca.

— Você disse algo ao juiz de instrução de Duluth?

Connor assentiu.

— Os restos encontrados não coincidem com a identidade de Thaddeus, nem com a de Romanus.

Mara ficou pensativa com a mão em cima da maçaneta.

— Ou seja, que segue vagando por aí. Pobre Rachel; ela pensava que o encontraria seguindo a pista do nome do barco.

— Nathan a ajudou a procurar em todos os registros, mas não há nenhum barco que se chame A Baleia Branca.

   Mara padecia por uma mulher que tinha chegado a querer como uma irmã desde sua estadia em Chicago. Unia-as algo incrivelmente especial: as duas amavam a uma gárgula.

— Se Romanus tiver dito a verdade, procurará o irmão dela. — Disse Connor.

— Você acha que mentiu?

— Não.

   Tratava-se, então, de uma corrida de Teryn, Rachel e Nathan contra Romanus. E a alma de Levi suspensa no ar.

— Rezarei por eles. Bom, por todos. — Corrigiu a si mesma.

   A congregação de Chicago enfrentava a um duro momento. Tinham resgatado doze bebês e meninos de Duluth e estavam muito contentes por tê-los, mas seu cuidado supunha outra carga para sua já maltratada situação econômica depois da destruição de St. Michael's, além de ter perdido quatro homens em Duluth.

Agachou-se torpe e pesadamente para entrar no carro. Não sabia o que dizer; tampouco sabia o que queria Connor. Tinha a sensação de que não sabia nem ele mesmo.

— Dê um abraço a todos por mim. — Acrescentou, sem mais demora.

   Connor se agarrava fortemente à porta. Tinha os nódulos brancos.

   Mara concedeu um momento para pensar, para dizer algo. Deu alguns endereços ao taxista e se acomodou no assento sem olhar para trás enquanto o carro arrancava.

 

Uma noite agradável de sexta-feira, Connor se encontrava em uma rua da cidade de Fort Lauderdale olhando para a pequena janela do terceiro andar do bloco de apartamentos que dava à rua Esplanade.

   Se não fizesse algo rápido, acabaria chamando a atenção da polícia por rondar por essa rua.

   Que o tentassem. Ele não estava fazendo nada errado, só queria ver a Mara; captar o mais mínimo reflexo ou movimento dela ali debaixo; ver como tinha crescido seu bebê em seu ventre, como tinha ido amoldando o corpo à gravidez. Em poucas semanas daria a luz e ele ia ser pai.

   Era totalmente inexperiente. Não tinha criado a nenhuma menina em oitocentos anos de vida, nem tinha tido a nenhuma mulher a que proteger e amar. Jamais tinha iniciado nenhuma relação amorosa.

Não sabia se poderia fazê-lo.

Mas sim que sabia que queria fazê-lo.

   Arrependia-se de não ter trocado sua essência; de não ter visto a tempo que sua ordem de lealdade tinha mudado; de ter descuidado sua parte humana.

   Mara passou por diante da janela. Tinha corpo de moringa. A barriga pendurava já muito baixa e grande. Connor sorriu. Seria uma menina muito travessa e forte, estava seguro.

   Durante quatro meses seguidos, forçou-se a viver ignorando a sua filha ou a sua mulher, a não pensar em como seria sua filha quando nascesse. Seria ruiva como sua mãe ou teria o cabelo negro como ele? Olhos azuis ou âmbar?

Seria uma pessoa absolutamente única e irrepetível?

   Não sabia se Mara pensava nele; se lembrava dos dias e noites que tinham passados juntos; se levantava notando sua ausência...

Ele a olhava enquanto ela se deslocava e se movia por seu pequeno apartamento. De repente, veio-lhe a lembrança da primeira vez que fizeram amor, quando caiu ferido, e reviveu a maneira em que se fundiram seus corpos; a maneira em que se uniram em seus corações.

   Com supremo cuidado, foi introduzindo na mente essas lembranças. Através do reflexo da janela, viu como ela parava em seco. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos: estava sentindo essas lembranças. Então, Mara deu meia volta e caminhou para a janela. Entreabriu os olhos através do vidro, mas Connor estava resguardado no interior de seu carro. Mara apertou a mão contra o vidro e ele apertou a mão contra o volante do veículo. Apesar da distância que os separava, era como se ele estivesse com ela, tocando-a, amando-a.

   Connor acariciou Wulf e deu uma bolacha para premiar sua companhia durante a viagem.

— O que te parece, companheiro? É agora ou nunca, não é?

   Wulf o olhava com olhos enternecedores enquanto mordia a bolacha.

— É um bom conselheiro.

   Lutando contra sua covardia interior de deixá-lo para mais tarde, saiu do carro e fechou a porta bruscamente.

   Mara esperava na porta de seu apartamento quando ele subiu o último degrau. Abriu-lhe a porta e ele entrou sem dizer uma palavra.

— Sabia que estava aqui. — Disse bruscamente.

Mara fingiu estar ocupada colocando fruta em uma cesta.

— Pois sim, faz uma hora mais ou menos. As lembranças eram muito intensas para ser normais.

Connor dedicou um olhar afligido.

— Sinto muito.

— Não, tranquilo. Não se preocupe. — Correu a fazer coisas pela cozinha para impor um pouco de distância entre eles. Ao menos, essa era a sensação que tinha Connor — Quer tomar algo?

— Bom — O que ia dizer.

   Mara apareceu com uma garrafa de uísque, copo e gelos e serviu dois dedos de bebida.

— Toma. — Disse — Eu não posso beber.

— E por que guarda uma garrafa de uísque na cozinha?

— É só para casos de emergência — Disse com um sorriso —... E me parece que vai te sentar muito bem, porque tem cara de necessitar um gole. Por que veio, Connor?

   Tomou o copo em honra os velhos tempos. Quando teve recuperado a voz, disse:

— Porque cometi um engano. Um engano tremendo...

   Mara inclinou a cabeça, esperando ansiosamente sua explicação.

—... Levo toda a vida sendo leal a minha gente, Os Gargouillen. Acatei as normas e princípios de minha congregação, continuei com o trabalho que fundaram os antepassados e estava muito orgulhoso e contente. Muito orgulhoso do que eu era.

— E fazer tudo isso é um engano?

— Não. Mas não tive em conta uma coisa: sou gárgula, mas em parte, sou também humano. Homem e monstro. Carne e pedra.

Connor respirou profundamente antes de continuar.

— Ao seguir tão cegamente as normas de minha estirpe, renunciei à outra parte, a meu lado humano.

   Connor se sentou sobre o joelho em cima do sofá e a agarrou da mão.

— Não quero negar essa parte de mim mesmo, Mara. Quando pensei que ia morrer naquela casa com Romanus, o único que me vinha à cabeça era uma tremenda vontade de viver, de passar uma vida inteira contigo...

Mara fechou a mão e a levou a peito.

—... Mas não estava seguro de que me quisesse. Não estava seguro de que aceitasse o que sou.

— E agora? — Mara aguentava a respiração.

— Agora decidi perguntar isso. — Tirou uma caixinha de veludo do bolso — Quer se casar comigo, Mara? Não precisa responder agora. — Acrescentou rapidamente — Quero dizer, que posso passar aqui um tempo... Ou ficar para sempre, o que você prefira.

Extremamente nervoso, passou-se a mão pelo cabelo.

— Pense nisso, esperarei o tempo precise, mas me dê uma oportunidade para que te demonstre que isto pode funcionar. Só te peço isto.

— Mas não estava me pedindo casamento?

— Bom... Sim... Claro — Fazia algo errado?

Mara sorriu.

— Pois então se cale e me deixe responder.

   Os segundos de espera antes que dissesse que sim e se lançasse em seus braços foram tão compridos como todas as suas vidas.

Mas nunca tinha vivido um momento tão feliz como esse.

 

[1] O pai de sua alma.

   

                                                                                Vickie Taylor 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"