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Uma floresta assombrada. Um castelo amaldiçoado. Uma jovem que foge do seu passado e um homem que é mais do que parece ser. Uma história de amor, traição e redenção...
Whistling Tor é um lugar de segredos, uma colina arborizada e misteriosa que alberga a fortaleza deteriorada de um chefe tribal cujo nome se pronuncia no distrito em tons de repulsa e de amargura. Há uma maldição que paira sobre a família de Anluan e o seu povo; os bosques escondem uma força perigosa que pronuncia desgraças a cada sussurro. E, no entanto, a fortaleza abandonada é um porto seguro para Caitrin, a jovem escriba inquieta que foge dos seus próprios fantasmas. Apesar do temperamento de Anluan e dos misteriosos segredos guardados nos corredores escuros, este lugar há muito temido providencia o refúgio de que ela tanto precisa. À medida que o tempo passa, Caitrin aprende que há mais por detrás do jovem desfeito e dos estranhos membros do seu lar do que ela pensava. Poderá ser apenas através do amor e da determinação dela que a maldição será desfeita e Anluan e a sua gente libertados...
CAPÍTULO UM
Num lugar onde dois caminhos se encontravam, o carroceiro fez parar repentinamente o seu cavalo.
- É aqui que desces - indicou ele.
O ocaso caía e a bruma descia sobre uma paisagem curiosamente desprovida de referências. A excepção de pequenos tufos de relva, tudo o que via por perto era um antigo
marco de pedra cuja inscrição se encontrava tapada por uma crescente camada de musgo. Todas as partes de meu corpo doíam de cansaço.
- Isto não é uma povoação! - protestei. - Isto é... é nenhures!
- Fica tão a ocidente quanto o teu dinheiro permite - ripostou o homem friamente. - Não foi o que acordámos? É tarde. Não fico nestas bandas depois de anoitecer.
Fiquei sentada, sem acção. Ele não podia abandonar-me naquele lugar esquecido, pois não?
- Podias vir comigo. - O tom de voz do homem modificara-se. - Tenho um tecto, uma ceia, uma cama confortável. Para uma coisinha bonita como tu existem sempre outras
formas de pagamento.
Colocou uma mão pesada no meu ombro que me fez encolher, com o coração a martelar-me no peito. Desci desajeitadamente da carroça e peguei no meu saco e na minha
caixa de escrita que estavam na parte de trás antes que o homem retomasse o seu caminho e me deixasse sem nada.
- Tens a certeza de que não mudarás de ideias? - perguntou ele, olhando-me de alto a baixo como se eu fosse um pedaço de carne de vaca.
- Absoluta - respondi, abalada, chocada pelo facto de ter estado demasiado centrada nas minhas preocupações para notar aquele olhar mais cedo, quando ainda havia
outros passageiros na carroça. - Que lugar é este? Existe alguma povoação por perto?
- Se é que se lhe pode chamar isso. - Inclinou a cabeça na direcção do marco de pedra. - Não sei se conseguirás encontrar abrigo.
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Têm o hábito de se fecharem por trás de portas aferrolhadas por estes lados, e com razão. Não estou a falar de homens de armas normandos nas estradas, compreendes,
mas... de outra coisa. Farias bem melhor se viesses comigo para casa. Tomaria conta de ti.
Atirei a minha trouxa por cima do ombro. Tinha na ponta da língua a resposta que ele merecia: Não estou assim tão desesperada, mas não tive coragem de a proferir.
Para além disso, com apenas quatro moedas de cobre e a possibilidade real de estar a ser perseguida, poderia em breve ter de começar a aceitar ofertas deste género
ou a passar fome.
Detive-me a analisar a pedra desgastada pelo clima, mantendo um olho atento no carroceiro. Não me atacaria, pois não? Naquele lugar, gritaria sem ser ouvida. A inscrição
da pedra dizia Whistling Tor. Um nome estranho. Enquanto eu passava os dedos pelas letras cobertas de musgo, o homem partiu sem dizer mais nada. O tamborilar dos
cascos e o chiar das rodas diminuíram até desaparecerem. Inspirei profundamente e ordenei a mim própria que fosse forte. Se havia um marco de pedra, teria de existir
uma povoação e abrigo.
Comecei a caminhar ao longo do caminho brumoso, em direcção a Whistling Tor. Esperara chegar depressa à povoação, mas o caminho prolongava-se e, ao fim de algum
tempo, começou a subir. Enquanto subia, podia ver através da bruma que estava a embrenhar-me num bosque cada vez mais denso, os troncos dos carvalhos e das faias
apareciam, aqui e além, por cima de um manto asfixiante de arbustos e de silvas. O meu xaile prendia-se repetidamente na vegetação. Puxava-o com a mão livre, enquanto
a outra segurava com força a caixa de escrita. Tropecei. Havia pedras estranhas ao longo do trilho, pálidas e de extremidades afiadas, que pareciam ter sido ali
colocadas de propósito, para fazerem cair o viajante menos atento.
A última luz do dia desvanecia-se. Ali, debaixo das árvores, as sombras e a bruma faziam com que a única velocidade segura fosse um arrastar cauteloso. Se ao menos
eu não estivesse tão cansada. Levantara-me com a primeira luz do dia depois de ter passado uma noite desconfortável sob o abrigo rudimentar de uma parede de pedra.
Caminhara toda a manhã. Nessa altura, o carroceiro parecera-me uma dádiva dos céus.
Passos atrás de mim. E agora? Devia esconder-me ao abrigo das árvores até que a pessoa tivesse passado? Não. Fizera uma promessa a mim própria quando fugira de Market
Cross e tinha de a cumprir. Ser corajosa. Parei e voltei-me.
Um homem alto emergiu da bruma, de ombros largos e angulosos e passo seguro. Tive apenas tempo de me aperceber da sua indumentária
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impressionante - uma capa tingida de um carmesim-brilhante e uma corrente em torno do pescoço que parecia ser feita de ouro verdadeiro - quando um segundo homem
apareceu por trás dele. Uma onda de alívio varreu-me. O segundo homem era mais baixo e mais ligeiro que o outro e estava vestido com o hábito castanho e as sandálias
de um monge. Pararam a quatro passos de distância de mim, aparentando estar levemente surpreendidos. O crepúsculo que se adensava e a bruma que se elevava emprestavam
às suas faces uma palidez fantasmagórica e o monge era tão magro que as suas feições pareciam quase esqueléticas, embora o seu sorriso fosse caloroso.
- Ora, ora - observou ele. - A bruma conjurou uma encantadora senhora de um conto antigo, meu amigo. Temos de nos comportar como deve ser ou receio que ela nos lance
um feitiço.
O homem da capa vermelha fez uma vénia elegante.
- O meu amigo tem tendência para fazer comentários jocosos - disse ele. Não sorriu. O seu rosto era sombrio, de lábios finos e olhos encovados, mas a sua atitude
era cortês. - Encontramos poucos viajantes neste trilho. Diriges-te para a povoação?
- Para Whistling Tor? Sim. Esperava encontrar um abrigo onde passar esta noite.
Eles trocaram um olhar de relance.
- É fácil perdermo-nos quando a bruma desce - comentou o monge. - A povoação fica de caminho, mais ou menos. Se o permitires, acompanhamos-te para nos certificarmos
de que chegas lá em segurança.
- Obrigada. O meu nome é Caitrin, filha de Berach.
- Rioghan - apresentou-se o homem alto da capa vermelha. - O meu companheiro é Eichri. Deixa-me levar-te essa caixa.
- Não! - Ninguém iria deitar as mãos aos meus materiais de escrita. - Não, obrigada - acrescentei, apercebendo-me de que fora demasiado brusca. - Eu cá me arranjo.
Continuámos a andar.
- Vivem nesta localidade? - perguntei aos dois homens.
- Aqui por perto - respondeu Rioghan. - Mas não na povoação. Quando lá chegares, pede para falar com Tomas. É o estalajadeiro.
Anuí, perguntando-me se quatro moedas de cobre chegariam para pagar uma cama para passar a noite. Esperei que eles me perguntassem porque é que uma jovem mulher
se encontrava a viajar àquela hora tardia, mas nenhum deles voltou a dizer o que quer que fosse, embora ambos me olhassem de relance, de tempos a tempos, enquanto
caminhávamos. Senti que a minha presença era uma curiosidade para eles, algo que
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ultrapassava o óbvio enigma da minha aparência. Quando fugira de Market Cross tinha o aspecto daquilo que era, a filha de um artífice hábil, uma rapariga de boas
famílias, arranjada e respeitável. Naquele momento estava exausta e desgrenhada, a minha roupa amarrotada e cheia de lama. As minhas botas não tinham aguentado a
longa caminhada. A forma como parti deixara-me mal preparada para a viagem. Da minha pequena reserva de moedas, todas excepto quatro moedas de cobre foram gastas
só para me levar para aquele lugar. Surgiu-me uma nova ideia.
- Irmão Eichri?
- Sim, Caitrin, filha de Berach?
- Imagino que pertenças a um mosteiro ou algo semelhante, algo perto daqui. Existe também algum lugar cristão de estudo e de retiro para mulheres?
O monge sorriu. Tinha dentes como miniaturas de pedras tumulares; faziam com que as suas feições parecessem ainda mais magras.
- Só a vários dias de viagem daqui, Caitrin. Desejas ingressar numa vida de oração?
Corei.
- Não tenho as qualidades necessárias para isso. Já não tenho a fé que um dia tive. Pensei que um lugar assim pudesse oferecer refúgio... Esquece.
Fora um erro fazer aquela pergunta. Quanto menos as pessoas soubessem da minha situação de aflição melhor. Fora estúpida por lhes ter dado o meu nome verdadeiro,
por muito amigáveis que fossem.
- Precisas de dinheiro, Caitrin? - A pergunta de Rioghan foi directa.
- Não. - O carroceiro deixara-me alerta. As boas maneiras de Rioghan não significavam necessariamente que ele fosse digno de confiança. - Sou uma artífice - acrescentei.
- Ganho o meu próprio sustento.
- Ah - foi tudo o que ele disse, o que me agradou. Não fez perguntas incómodas, não se riu da ideia de uma mulher poder sobreviver sozinha sem ter de recorrer à
venda do próprio corpo. Pela primeira vez em vários dias, senti-me quase à vontade.
Continuámos a caminhar em silêncio. Não pude evitar olhar para a capa carmesim de Rioghan. O tecido era sedoso e sumptuoso, muito provavelmente importado de uma
terra distante por um preço elevado. Mas a peça de vestuário estava muito gasta, quase até ao fio aqui e além. Não teria Rioghan alguém que lhe remendasse a roupa?
Uma pessoa que usava um artigo tão extravagante, já para não falar do cordão de ouro que trazia ao pescoço, teria certamente serviçais às suas ordens.
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Ele reparou que eu estava a olhar.
- Um sinal de autoridade - comentou, e havia a nota de uma tristeza terrível no seu tom de voz. - Fui em tempos conselheiro-mor de um rei.
Era difícil encontrar uma resposta adequada sem fazer perguntas indiscretas. Porquê em tempos e não agora? Rioghan não parecia velho, apenas triste e adoentado,
a sua palidez acentuando essa impressão. Connacht era governada por reis dos Uí Conchubhair; há muitos anos que Ruaridh era o Rei Supremo. Haveria chefes tribais
a governar cada região por estes lados. Ao longo da minha viagem para ocidente, vira muitas paliçadas de paus afiados a circundarem as aldeias. Vira gente a cavar
valas e a erguer barreiras defensivas em torno das fortalezas de paus e lama dos chefes locais. Se havia um momento em que um rei pudesse precisar de um conselheiro-mor
era aquele, com os invasores normandos de olho naquela última parcela de terra intocada. Teria Rioghan perdido o favor do seu líder? Teria sido suplantado por um
homem mais capaz?
- Desculpa-me por estar a olhar - disse, ao enveredar por um dos trilhos que desciam o monte. Por baixo de nós, as formas esquivas que apareciam por entre a bruma
sugeriam que estávamos finalmente perto da povoação de Whistling Tor. - Esse tom de vermelho é tão bonito. Estava apenas a perguntar-me como teria sido feita a tinta.
- Ah - respondeu Rioghan. - És uma tecedeira? Uma fiadeira?
- Nem uma nem outra. Mas interesso-me por cores. É aquela a aldeia?
Os dois homens pararam, ladeando-me, e eu estaquei, olhando em frente. Uma barreira formidável circundava a modesta povoação, um aglomerado de estacas afiadas, barras
de ferro, velhos portões e uma parafernália de peças letais. A bruma envolvia a barreira, revelando um arado partido aqui, além uma grande pedra denteada que devia
ter requerido os esforços de oito ou dez homens para a colocar no lugar. Enquanto fortificação contra os normandos, a barreira provavelmente não duraria muito, mas
era uma poderosa dissuasora de viajantes. O lugar estava iluminado por archotes colocados em postes altos.
- Parece que a gente de Whistling Tor não gosta de visitantes - comentei sem emoção. - Mas uma vez que estou convosco, não deve haver problema. - Dentro da muralha
podia ver homens a moverem-se de um lado para o outro, mas a bruma tornava os pormenores obscuros. Continuei a descer o monte até à barreira, com os meus dois companheiros
atrás de mim.
Estava a cerca de doze passos da muralha quando algo foi atirado por cima dela na minha direcção. Baixei-me, protegendo a cabeça. Uma
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pedra de tamanho considerável embateu no chão, não muito longe, seguida de outras mais pequenas. Alguém gritou de dentro da barreira:
- Nem mais um passo! Ide-vos, filhos do diabo!
Abençoada Brígida, o que era aquilo? A tremer, espreitei por entre as mãos que me protegiam. Quatro ou cinco homens estavam do outro lado da fortificação, os seus
rostos cor de cinza, as suas armas a postos: uma forquilha, uma foice, uma barra de ferro, uma maça com espigões.
- Fora daqui, escumalha! - gritou um.
- Regressai aonde pertenceis, ao poço do Inferno! - acrescentou outro.
A bruma ter-me-ia transformado num monstro? Foge, Caitrin, foge! Não, tinha de ser corajosa. Pigarreei.
- Sou apenas... - A voz faltou-me. Uma escriba itinerante era a verdade, mas ninguém acreditaria. - Uma viajante. Vou a caminho da casa de familiares. O meu nome
é Caitrin, filha de Berach. - Maldição, fizera-o de novo, usara o meu nome verdadeiro. Controla-te, Caitrin. - Preciso de abrigo para esta noite. Não vos desejo
qualquer mal. - Olhei por cima do ombro, perguntando-me porque é que Rioghan e o irmão Ei-chri não teriam falado por mim, mas não estava lá ninguém. Enquanto os
habitantes de Whistling Tor atiravam pedras e insultos, os meus dois companheiros tinham partido silenciosamente.
Estava só. Não tinha ninguém para quem me voltar senão para mim própria. Isso não era novidade; também estivera sozinha em Market Cross numa casa repleta de gente.
Devia fugir? Para onde? Fala, Caitrin. Aquilo não podia ser o que parecia, certamente. Era um mal-entendido, apenas isso.
- É verdade! - acrescentei. - Por favor, deixem-me entrar. - Lembrei-me de algo. - Poderia falar com Tomas?
Os homens da aldeia estavam junto uns dos outros, olhando-me. Pareciam ao mesmo tempo combativos e aterrorizados. Não fazia qualquer sentido. O que pensavam que
eu era, um bando de salteadores composto por uma única mulher? Estremeci, aconchegando o xaile em torno do meu corpo, enquanto eles confabulavam entre dentes.
- Para onde disseste que ias? - perguntou o homem da maça sem me olhar nos olhos.
- Não disse - respondi. - Mas os parentes da minha mãe vivem nesta zona. - Não era bem uma mentira: a família da minha mãe vivera realmente na zona mais ocidental
de Connacht, mas já não restava ninguém, pelo menos que eu soubesse.
- Chama Tomas - pediu alguém. Uma trégua, portanto; não foram atirados mais projécteis, mas havia muita conversa em vozes baixas e agitadas
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do outro lado da barreira, enquanto do meu lado eu continuava à espera à medida que a última luz se extinguia. Perguntei-me quanto tempo mais as minhas pernas me
aguentariam de pé.
- O que és? - Uma nova voz. Um outro homem juntara-se ao primeiro grupo, um homem mais velho, com uma atitude mais aberta. - Gente comum não vem para Whistling Tor.
Especialmente depois de anoitecer.
- És o Tomas? - perguntei. - O meu nome é Caitrin. Passei o dia inteiro na estrada. Preciso apenas de um lugar onde dormir. Posso pagar.
- Se não pretendes fazer qualquer mal, prova-o - gritou alguém.
- Como?
Perguntei-me se seria sujeita a revistas ou a outras indignidades depois de atravessar a barreira. Jovens bem-nascidas habitualmente não viajam. Seria óbvio para
todos que eu estava metida em qualquer sarilho. Depois daquele dia, era fácil para mim acreditar que os homens interpretassem isso como um convite.
- Diz uma prece cristã - proferiu o homem da maça, com a voz ainda carregada de inquietação.
Olhei fixamente para ele. Do que quer que fosse que aqueles aldeões tinham medo, parecia não ser dos normandos, uma vez que estes eram, maioritariamente, um povo
cristão.
- Deus do céu - disse eu -, orientai-me e apoiai-me na minha jornada, conduzindo-me em segurança a um lugar de abrigo. Abençoado São Patrício, protegei-me. Mãe Maria,
intercedei por mim. Ámén.
Fez-se uma pausa, depois, o homem da maça baixou a arma e o homem mais velho disse:
- Deixem-na passar, rapazes. Duald, certifica-te de que a barreira é devidamente fechada a seguir. Com esta bruma, todo o cuidado é pouco. Vá lá, deixem-na passar.
- Se tens a certeza que devemos, Tomas.
Vários barrotes, troncos e peças de metal foram removidos e eu fui admitida no terreno seguro do interior.
- Por aqui - indicou Tomas, enquanto eu murmurava um agradecimento.
Caminhou a meu lado enquanto atravessávamos a aldeia. As casas estavam repletas de medidas protectoras, do tipo usado por gente supersticiosa: triângulos de pregos
de ferro, taças com pedras brancas colocadas debaixo de escadarias e outros talismãs concebidos para afastar o mal. Portas e portadas estavam firmemente fechadas.
Muitas estavam trancadas com ferrolhos de ferro. Com a luz bruxuleante dos archotes
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e a bruma crescente, o lugar tinha um certo ar de pesadelo. No centro da povoação estava um edifício maior, solidamente construído com lama e troncos, cujo telhado
era de colmo escurecido pela chuva.
- Estalagem de Whistling Tor - informou o meu companheiro. - Eu sou o estalajadeiro; o meu nome é Tomas. Podemos oferecer-te uma cama para passar a noite.
As lágrimas arderam-me nos olhos. Começava a pensar que entrara num mundo diferente, onde tudo era ao contrário.
- Obrigada - respondi.
A estalagem estava trancada. Uma mulher de aspecto cauteloso abriu a porta depois de Tomas a chamar e fui conduzida a uma cozinha onde um fogo acolhedor ardia na
lareira. Depois de entrarmos, a mulher fechou o pesado ferrolho na porta da frente.
- A minha mulher, Orna - apresentou Tomas. - Toma. - Estava a encher-me uma caneca de cerveja. - Orna, a sopa ainda está quente? Esta rapariga tem aspecto de quem
precisa de uma refeição.
O meu coração parou. Obriguei-me a falar.
- Tenho apenas quatro moedas de cobre. Penso que isso não seja suficiente para pagar uma sopa e uma cama. Posso passar sem a comida. Preciso apenas de me aquecer.
Ambos voltaram olhares perscrutadores na minha direcção. Vi que as perguntas não estavam longe de surgir, perguntas às quais eu não queria responder.
- Não faz mal, rapariga - sossegou Orna, colocando uma panela ao lume. - Para onde vais? Não recebemos muitos visitantes aqui.
- Vou... - Hesitei, apanhada desprevenida sem uma resposta satisfatória. Não lhes podia dizer a verdade: que deixara a minha casa sem outro plano que o de ir para
tão longe de Cillian quanto possível. Mas não me sentiria bem se mentisse. - Tenho parentes por estas bandas - disse. - Um pouco mais adiante.
- É provável que não consigas outro transporte durante muito tempo - informou o estalajadeiro.
- Whistling Tor fica assim tão longe das estradas principais? - perguntei.
- Não tão longe que os carroceiros não possam trazer cá alguém com rapidez - respondeu Orna, mexendo a panela. Um cheiro apetitoso elevou-se no ar, que me fez crescer
água na boca. - Mas não o fazem. Costumam passar à volta. Ninguém se aproxima daqui. Este lugar está amaldiçoado.
- Amaldiçoado?
Este lugar parecia cada vez mais estranho.
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- Isso mesmo - continuou Tomas. - Quem colocar o pé de fora daquela barreira durante a noite estará a colocar-se em perigo mortal por causa do que existe lá em cima
no monte. Mesmo durante o dia, as pessoas não usam o caminho por que vieste se puderem evitá-lo.
- O nome é invulgar. Whistling Tor. O monte a que te referes é a colina rochosa, suponho. Mas porquê sibilante?
Tomas encheu duas canecas com cerveja, uma para si e outra para a sua mulher, e sentou-se num banco corrido.
- Suponho que em tempos foi um monte árido, do tipo a que chamamos uma colina rochosa, mas isso terá sido há muito tempo. A floresta já cresceu por cima dele, e
está cheia de presenças. Coisas que nos desviam do caminho, que nos engolem e que depois cospem os pedaços.
- A que te referes? - perguntei, sem estar certa de querer saber a resposta.
- Manifestações - respondeu Tomas, com gravidade. - Estão em toda a parte; não há como nos vermos livres delas. Foram invocadas há muito tempo; há quase cem anos
que assombram este lugar.
- Ninguém sabe dizer ao certo o que são - acrescentou Orna. - Só sabemos que o monte está cheio delas. De todos os tipos, desde as mais pequeninas que nos segredam
ao ouvido até aos enormes monstros salivantes. Toma, come. - Colocou uma tigela de sopa fumegante na minha frente, com um naco de pão duro ao lado. Com ou sem monstros,
comecei a comer com entusiasmo enquanto a minha anfitriã continuava. - Whistling Tor é um nome justo. O vento produz um som misterioso quando passa pelas árvores
do monte. Mas Whispering Tor2 seria mais indicado. Se se for muito lá para cima, ouvem-se vozes a murmurar, e aquilo que dizem não é agradável.
Era difícil saber que perguntas fazer.
- Como é que elas foram ali parar, essas... presenças?
- Foram invocadas no tempo da minha bisavó e estão aqui desde então, elas e a maldição que veio com elas. Paira sobre nós como uma sombra há quase quatro gerações.
- Isso quer dizer que a barreira que circunda a povoação e os guardas não estão ali para vos proteger contra os ataques dos normandos?
- Dizem que esses malditos camisas-de-ferro não se aventurarão tanto para ocidente. - Tomas engoliu um grande golo de cerveja, observando-me enquanto eu comia.
Notas de rodapé:
Whistling Tor significa colina sibilante.
Whispering Tor significa colina sussurrante.
Fim das notas de rodapé.
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- Já eu não tenho tanta certeza. Ouvi dizer que alguns dos chefes tribais estão a chamar os seus homens para a guerra e um ou dois já mandaram vir combatentes das
ilhas, enormes bestas, os gallóglaigh, com pesados machados. Se os normandos vierem para Whistling Tor, estamos acabados. Não há ninguém que nos proteja; nem chefe,
nem combatentes, nem riquezas com que possamos pagar qualquer ajuda.
- E o Rei Supremo? Não têm um chefe tribal próprio? Não pode ele proteger-vos?
- Oh! - Havia uma ponta de profundo desprezo na voz de Tomas. - Ruaridh Uí Conchubhair não está interessado em gente como nós. Quanto a um chefe tribal, o que temos
desgraça o título. E pior do que inútil. Deixa-se estar trancado na sua grande fortaleza, no cimo do Tor - abanou a mão na direcção do trilho do bosque que eu tomara
para chegar à povoação -, rodeado das suas criaturas malévolas. Manda o seu homem cá abaixo para obter provisões, paga umas míseras moedas de cobre de vez em quando
para que lhe façam algum trabalho, mas agir? Fazer um esforço para defender o seu povo? Não me parece. Cobra os seus tributos com cereais e gado, não retribui com
absolutamente nada. Desde que me lembro que ele não sai do monte e isso é dizer muito.
- Aquele homem está dobrado e torcido como um fio torto num tear - acrescentou Orna. - A maldição atingiu-o com toda a força. Mas talvez não devêssemos estar a falar
disto. Não quero causar-te pesadelos.
Contive-me e não lhes disse que a minha própria história me dava assunto para noite após noite de sonhos maus. Os seus contos fantasiosos eram uma distracção bem-vinda
dos problemas que teria de encarar de manhã. Afinal, podia pagar apenas uma noite de alojamento na segurança daquela estalagem.
- Conheci dois homens no caminho para cá - disse. - Um deles era um monge. Foram eles que me orientaram para a povoação, mas partiram depressa quando os vossos amigos
lá de fora começaram a atirar pedras.
O efeito deste discurso foi assustador. Tanto Tomas como Orna fizeram o sinal de afastar o mal, olhando um para o outro.
- Disseste que um deles era monge? - Tomas parecia estar perturbado. - Um fulano magro, com dentes grandes?
- Isso mesmo. O nome dele era Eichri, irmão Eichri. Pareceu-me amigável. Ambos pareceram.
- Comparsas de Anluan, ambos - informou Tomas. - Se foi isso que Duald e os outros viram, não admira que tivessem atirado coisas.
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- Anluan?
A conversa estava a revelar-se trabalhosa.
- O nosso chefe tribal. Dito chefe tribal. Não consigo pensar numa só coisa boa para dizer acerca do homem, um parasita aleijado e miserável.
- Mais sopa?
O marido de Orna calou-se quando ela fez esta pergunta, mas a raiva das suas palavras vibrou pelo ar quente da cozinha.
- Se vieste para cá pelo bosque - continuou ele ao fim de algum tempo -, ainda bem que não conheceste o cão.
- Eu gosto de cães - disse com cautela. Fez-se uma pausa significativa.
- Não se trata de um cão, mas de um... Cão - esclareceu Orna.
- De um cão muito grande?
- Grande. Pode dizer-se que sim. A criatura consegue engolir um carneiro adulto de uma só vez. De manhã, apenas restam algumas farripas de lã.
Agora estavam mesmo a tentar assustar-me. Se todo o viajante que se aventurasse dentro da povoação fosse agraciado com semelhantes histórias, não era de admirar
que o lugar tivesse tão poucos visitantes.
- Há uma cama feita no quarto das traseiras - indicou Orna, vendo que eu acabara de comer a sopa. - Não tem nada de sofisticado, más é quente.
- Obrigada - agradeci, sentindo-me desconfortável. Não estava habituada a ver-me completamente sem recursos, não estava habituada a não ter abrigo para além da madrugada
de amanhã. Não estava habituada a estar completamente sozinha. - Agradeço a vossa bondade.
- Estás a passar por tempos difíceis, não é? - perguntou Tomas. Talvez ele tivesse boas intenções. Depois do carroceiro, preferi não arriscar.
- É apenas um contratempo - respondi, ouvindo a minha própria falta de convicção. - Gostaria de ir dormir agora. Preciso de aferrolhar aporta. Especialmente com
aquelas coisas à solta por aí, aquelas que referiram.
Não acreditava, nem por um momento, em minúsculos seres que nos sussurravam ao ouvido ou em cães monstruosos. Mas já aprendera o que era o monstro humano e precisava
de uma porta aferrolhada para conseguir adormecer.
- Aqueles que são frios e que se arrastam são os piores - comentou Orna. - Cantam para nós, embalam-nos com a suas vozes, e quando damos por nós estamos a vaguear
por um trilho em direcção
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a nenhures. O meu próprio tio caiu nas garras deles. Não nos podemos proteger contra eles. Se nos quiserem, apanham-nos.
Comecei a perguntar a mim própria se todo este episódio não passaria de um sonho louco trazido pela exaustão e pelo sofrimento.
- Se Whistling Tor é tão atormentada por estas criaturas - objectei -, parece-me estranho que a aldeia ainda exista. Se compreendi bem, estas... manifestações...
assombram esta região há quase quatro gerações. Seria de esperar que as pessoas tivessem reunido as suas coisas e partido há muito.
- Deixar Whistling Tor? - O tom de voz do estalajadeiro estava repleto de assombro. Era óbvio que ele nunca considerara tal possibilidade e que achava a ideia inimaginável.
- Não poderíamos fazer isso. Whistling Tor é o nosso lugar. É o nosso lar.
- Os alojamentos nocturnos são por aqui - indicou Orna com brusquidão, como se aquele tópico fosse demasiado doloroso para ser discutido. - Coloca o ferrolho atravessado
na porta e não a abras antes de amanhecer.
Não sonhei com presenças que se arrastam ou com cães que devoram carneiros inteiros, mas com Market Cross e com Ita. A minha parente tentava controlar-me até durante
o sono, a sua língua era um chicote que me flagelava pelas minhas imperfeições. Não és nada, relembrava-me a sua voz no sonho. O teu pai não devia ter-te enchido
a cabeça com ideias loucas e aspirações impossíveis. As mulheres não se sustentam desempenhando ofícios masculinos. Berach devia ter-te feito aprender as tarefas
de uma dona de casa em vez de te transformar numa pequena cópia de si próprio, como se fosses um rapaz. Alegra-te por teres parentes responsáveis que tomem conta
de ti, Caitrin. Não tens mostrado qualquer capacidade de tomar conta de ti própria desde que o teu pai morreu. Alegra-te por Cillian te querer dar o seu nome...
No sonho, eu não tinha voz. Não podia gritar em protesto, não podia dizer que a ideia de me casar com Cillian enchia o meu coração de terror. Não podia dizer-lhe
que voltar as costas à minha adorada arte significava trair o meu pai. Mas também, no longo pesadelo acordado que se desenrolou depois da morte do meu pai, não tinha
falado uma única vez. A minha voz fora silenciada pela dor e por uma recusa apática em aceitar que tudo o que amava me fora arrancado repentinamente das mãos. Mesmo
naquele momento, ainda não acreditava que numa única estação a brilhante promessa que fora a minha vida se transformara em cinzas.
Ita e eu estávamos numa minúscula cela com trancas de ferro na porta. Fazia muito frio; eu estava vestida apenas com uma combinação
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de tecido caseiro grosseiro. Ita rapava-me a cabeça com uma faca grande. Acabaram-se-te as escolhas, Caitrin, sua rapariga desobediente. Terás de ingressar no priorado.
Lá terás muito tempo para pensar no resultado da tua loucura. O hábito cinzento de uma freira estava estendido em cima da enxerga. Pensando bem, disse a voz de Ita
no sonho, vamos fazer as coisas assim. O chão da cela abriu-se debaixo dos meus pés. Caí, meio despida, e uma floresta de mãos macilentas estendeu-se para me rasgar
a carne com longas unhas enquanto eu passava. Um uivo encheu o ar, um som execrável e desesperante. Bocas a escorrer saliva circundaram-me, enterrando os seus dentes
pontiagudos nos meus braços, nas minhas pernas, nas partes mais tenras do meu corpo, até eu sentir uma corrente de sangue quente por cima de mim. Não és nada! Nada!
Um riso trocista e estridente. Continuei a cair, para baixo, para baixo, sabendo que quando aterrasse me partiria em pedaços... Dorme, sussurrou alguém. Um longo
sono...
Acordei com o coração a martelar-me no peito, a pele húmida com o suor do terror. Onde estava? Encontrava-me mergulhada numa escuridão total e a tremer de frio.
Uma corrente de ar gelada entrava no quarto que se assemelhava a uma cela onde eu estava deitada. Uma cela... o priorado, oh Deus, não fora um sonho, era verdade...
Não, estava na estalagem de Whistling Tor e atirara os cobertores para o chão enquanto dormia. A minha trouxa e a minha caixa de escrita estavam a meu lado, a prova
de que assumira, por fim, o controlo da minha vida e fugira de Market Cross. Lágrimas inundaram-me os olhos quando me inclinei para apanhar os cobertores. Estava
tudo bem. Estava a salvo. O pesadelo passara.
Fora pior do que o habitual, talvez graças às histórias de Tomas e de sua esposa, e não tinha qualquer desejo de me deitar e de fechar os olhos outra vez. Para além
disso, estava com demasiado frio para conseguir dormir. Um frio pegajoso entrava-me nos ossos. Embrulhei-me nos cobertores e dediquei-me a pensar na situação em
que me colocara. Não tinha quaisquer recursos para além do meu ofício e do meu senso comum, e mésmo esse me abandonara ultimamente. Tinha de pensar no dia de amanhã.
Em como conseguir um transporte quando raramente alguém visitava Whistling Tor. Em como pagar esse transporte sem haveres. E, acima de tudo, a questão que me punha
o estômago às voltas de tanto medo e a cabeça fervilhante à procura de soluções: como manter-me um passo à frente da perseguição. A minha cabeça começou a andar
às voltas. O meu pai, pálido e quieto, estendido no chão da sua sala de trabalho. A voz de Ita, sempre a voz dela, emitindo decretos, dando ordens, fazendo as coisas
acontecerem, cedo, demasiado cedo, enquanto o choque e a dor me deixavam incapaz de me defender. E, assim que a minha irmã partiu, as bofetadas.
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Ita era a mestra das bofetadas e dos beliscões. E Cillian... Cillian marcara-me. As nódoas negras na minha pele - azuis, pretas, amarelas, uma manta de retalhos
feita com raiva - desapareceriam. Havia outras mágoas, mais profundas, que seriam mais difíceis de esquecer. Conseguiste, Caitrin, relembrei a mim própria, Levantaste-te
e saíste.
A aurora chegou por fim, mas não destranquei a minha porta até ouvir pessoas a movimentarem-se do lado de fora. Apesar de ter desvalorizado as histórias de terror
da hora da ceia, o meu sonho fez com que ficasse relutante em aventurar-me a sair até as pessoas da terra considerarem que era seguro sair lá para fora. Mesmo quando
eu estava a retirar a barra de ferro, Tomas veio bater-me à porta.
- O fogo já está aceso - informou o estalajadeiro. - Sai quando estiveres pronta. Tenho aqui pequeno-almoço para ti.
- Não posso pagar mais.
- Não te cobro mais por isso, rapariga. Precisas de meter alguma coisa no estômago.
Tive vontade de chorar. Há tanto tempo que não estava entre pessoas bondosas. Pouco depois disso, estava sentada a uma mesa perto da janela da estalagem, olhando
para fora enquanto comia um prato de pão duro e salsichas.
A bruma estava a dissipar-se. Conseguia ver as casas da povoação e, atrás delas, parte da fortificação improvisada. Para além disso, o chão elevava-se em direcção
a um monte arborizado. No topo, secções de uma muralha alta de pedra podiam ser vislumbradas acima da copa de carvalhos e ulmeiros. Torres erguiam-se. O edifício
parecia enorme, grandioso. Era sem dúvida a fortaleza que Tomas mencionara, a que albergava o chefe tribal de Whistling Tor, o aleijado inepto. Pedra: isso era invulgar.
Os normandos é que construíam em pedra. Os nossos próprios chefes tribais construíam as suas fortalezas com lama e troncos. Aquele lugar estava bem construído. Situado
onde estava, estrategicamente colocado acima do terreno circundante, daria uma excelente base para um chefe local, e perguntei a mim própria se os líderes normandos
saberiam da sua existência. Para obterem um tal prémio, talvez se aventurassem para ocidente.
As encostas abaixo da muralha estavam cobertas de vegetação. Os pássaros voavam, para dentro e para fora. O conto sobre as criaturas perigosas do bosque pintara
a fortaleza antiga como algo de lúgubre e de proibido na minha mente, mas a vegetação verde suavizou essa impressão. Fosse como fosse, parecia ser um lugar à parte,
solitário; mesmo sem os relatos da noite anterior, senti uma certa tristeza em torno daquele lugar.
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Do outro lado da janela, Tomas, de avental em torno da cintura, falava com um homem que eu não vira na noite anterior, um indivíduo enorme, de queixo quadrado, com
facas no cinto e um pesado machado às costas. Trazia vestida uma protecção para o peito, de couro, usada mas bem cuidada, por cima de um traje prático de lã; era
a indumentária de um guerreiro. O cabelo dele era mais cinzento do que loiro e pendia-Lhe até aos ombros em caracóis espessos. Enquanto ele e Tomas iniciavam uma
discussão qualquer, Orna saiu com uma trouxa nas mãos que praticamente deixou cair aos pés do desconhecido. Não olhou para ele nem proferiu uma palavra que fosse,
apressando-se a voltar para casa. A conversa dos homens chegou até mim através da janela aberta.
- E alguém que ajude com o gado, pelo menos? - perguntou o visitante. - O rapaz que me enviaram não durou dois dias.
- Eles têm medo, Magnus. Não podes esperar que as pessoas permaneçam naquela casa de aberrações, já para não falar do que existe à volta do bosque. E o teu mestre
não paga propriamente uma fortuna pelo seu trabalho.
- Sabes bem que o máximo que um rapaz ou uma rapariga pode esperar por aquele tipo de trabalho é uma cama e duas refeições por dia, e talvez algo para levar para
casa nos dias de festa. Nós precisamos de ajuda. É perfeitamente seguro. A gente de Anluan não ataca o seu próprio povo.
- Não posso ajudar-te - disse Tomas sem emoção. - Poderás dizer a Lorde Anluan que as pessoas comuns estão fartas de ser atormentadas por aquelas criaturas do bosque
dele e que ainda estão mais cansadas do facto de ele não fazer nada para remediar isso ou qualquer dos infortúnios que assolam esta região desde que o seu infeliz
antepassado abriu as portas do inferno em Whistling Tor.
- Vá lá, Tomas. Sabes como as coisas estão. Pergunta pelas redondezas por mim, está bem? Não consigo dar conta do recado sem um rapaz que me dê uma ajuda, e bem
que precisamos de uma rapariga para ajudar na lida da casa também. E há mais uma coisa. Anluan precisa de alguém para um trabalho especial, durante o Verão. Alguém
que saiba ler e escrever em latim. Escrever correctamente, claro. Rapidamente e com precisão, foi o que ele disse.
O meu coração começou a bater descompassadamente. Tomas fungou em sinal de descrença.
- Não seria necessário um clérigo para fazer isso? - perguntou. - Não conseguirão que nenhum deles se aproxime de Whistling Tor, como as coisas estão. Estás a perder
o teu tempo. Está bem, eu pergunto. Mas sabes qual será a resposta.
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Enquanto eu pegava nos meus pertences, o visitante atirou a trouxa por cima do ombro e dirigiu-se para a barreira fortificada. Quando Tomas voltou a entrar com um
molho de lenha para a lareira, Magnus desaparecera de vista.
- O homem que estava lá fora - disse eu. - Magnus, não era? Disse que precisavam de um escriba lá em cima na fortaleza?
Rezei para que esta fosse a dádiva que parecia ser: uma oportunidade única de obter um esconderijo e um local de trabalho.
- Foi o que ele disse. - Tomas pousou o molho de lenha e olhou para mim, de mãos nas ancas. - Alguém que saiba ler latim. Mas não consigo imaginar porque é que me
perguntou a mim. Já é suficientemente difícil encontrar-lhe um simples pastor, quanto mais um erudito. Parece ser um grande emprego, seja lá o que for; poderá durar
o Verão inteiro. Vou dizer-te a verdade, Caitrin. Não existe uma única alma nesta região que aceitasse passar uma estação naquele lugar, nem por toda a prata de
Connacht. Não que isso interesse, uma vez que nenhum de nós sabe ler, seja latim, irlandês ou outra coisa qualquer.
- E quem é esse Magnus? Um servo? Trabalha para o chefe tribal, Anluan, não é esse o nome dele?
- Suponho que se pode dizer que Magnus é um camareiro. Está lá desde o tempo de Irial. Contratado como guerreiro; continuou por lá quando Irial morreu. Magnus é
um estrangeiro, um dos gallóglaigh. Já não luta muito nos dias que correm. É mais um agricultor e um pau para toda a obra. Não percebo porque é que lá permanece.
- Isso quer dizer que existem pessoas comuns a viver no monte e não apenas estas... presenças?
Teria de correr para apanhar Magnus antes que ele desaparecesse no trilho que subia até ao bosque. O olhar de Tomas aguçou-se.
- Magnus é o mais comum que há lá em cima - respondeu.
- Tenho de ir atrás dele - declarei. - Posso fazer aquele trabalho. Sei ler e escrever. Sou uma escriba com formação e preciso de trabalho. A barreira ainda estará
aberta?
- Sabes ler? - A incredulidade de Tomas não era assim tão surpreendente; as pessoas tendiam a responder assim quando sabiam das minhas competências. - Uma jovem
como tu? Isso é a coisa mais estranha que algum dia ouvi.
- Aquilo que me contaste na noite passada é muito mais estranho - ripostei. - Tomas, tenho de correr senão não o conseguirei apanhar.
- Calma, calma, espera um pouco. - Tomas parecia estar genuinamente alarmado. - A história que ouviste na noite passada pode ter sido
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difícil de engolir, mas era a verdade nua e crua. Precisarias de passar apenas alguns dias aqui para o descobrires por ti própria. Vou admitir que talvez sejas uma
erudita - porque mentirias acerca de tal coisa? - mas, como eu disse a Magnus, nenhum escriba no seu juízo perfeito tocaria naquele trabalho. Não pensei que fosses
insensata, rapariga.
- Tenho de te dizer uma coisa - respondi eu, decidida a arriscar uma parte da verdade. - Estou a ser perseguida e não quero ser encontrada. Não fiz nada de mal,
mas há alguém que anda atrás de mim e eu tenho de fugir. E preciso muito de um trabalho remunerado. Podes pedir aos homens que me deixem passar, por favor?
Ele não gostou, nem os homens que estavam de guarda junto à vedação naquela manhã, um grupo diferente do da noite anterior. Mas a barreira ainda estava aberta. Estavam
a começar a recolocar as barras de ferro quando eu lá cheguei.
- Ficarias segura connosco, aqui na aldeia - protestou Tomas. - Já te disse, ninguém vem até cá.
Imaginei Cillian e os amigos dele, indivíduos grandes e fortes, de imaginação limitada. Cillian viria atrás de mim, sabia-o com toda a certeza. Nem que fosse apenas
por orgulho, ele viria.
- Arriscarei ficar na fortaleza - respondi, não me deixando pensar demasiado. - Mas obrigada. Foste muito gentil.
- Boa sorte para ti, então - disse Tomas. - Não saias do trilho. Sobe directamente o monte. O meu conselho é: põe os dedos nos ouvidos e corre. Se conseguires alcançar
Magnus, talvez consigas chegar inteira lá acima.
Não parecia muito confiante.
Enquanto me afastava, ouvi um homem propor uma aposta: dez moedas de cobre em como eu não chegava à fortaleza. Ninguém parecia querer aceitar o desafio.
Não havia qualquer sinal de Magnus. Subi o trilho a coberto das árvores. A bruma dissipara-se. O Sol brilhava, mas o ar estava gelado. Passei pelo local onde eu
e os meus dois companheiros tomáramos o trilho descendente na noite passada e continuei a subir. As minhas pernas começaram a doer-me, pois o caminho que serpenteava
em torno do monte era íngreme.
O caminho estreitou-se. Outros trilhos conduziam para a esquerda e para a direita. Junto a um vi uma pilha de pedras. Junto a outro, um molho de folhas laminares
atadas, como se se tratasse de um sinal secreto. Não tomei qualquer desses trilhos, mantendo-me naquilo que eu julgava ser o caminho principal, embora houvesse uma
semelhança
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entre eles que parecia ter sido feita para confundir. Espreitando para cima do monte por entre as árvores, tentei convencer-me de que conseguia vislumbrar a muralha
da fortaleza. Não podia estar muito longe.
Algo roçou a minha face direita. Dei-lhe uma palmada, não desejando chegar ao meu destino coberta de picadas de insectos. Outro, do lado esquerdo; dei uma nova palmada,
magoando-me, mas não apanhei nada. Um momento depois, ouvi um sibilar ao ouvido e saltei de medo, vol-tando-me. Não havia nada, apenas a quietude do bosque, um silêncio
tão profundo que nem os pássaros erguiam as suas vozes. Fosse o que fosse, era mais do que uma melga irritante. O som fez-se ouvir de novo, um sussurro sem palavras.
Os meus cabelos da nuca arrepiaram-se de inquietação. Acelerei o passo, caminhando em frente. Fosse o que fosse, permaneceu comigo, um restolhar, um estremecer,
a sensação de qualquer coisa fria e fluida em torno dos meus ombros.
- Estás a imaginar coisas - murmurei para mim própria. E depois não havia como enganar-me, pois surgiram palavras, suaves de encontro ao meu ouvido, íntimas, lisonjeiras:
Por aqui... Vai por este trilho pequeno e retorcido...
Não se via nada, ouvia-se apenas a voz. Algo me fez olhar para a direita onde um trilho mais pequeno atapetado de fetos oferecia uma alternativa tentadora para uma
parte mais profunda do bosque. De ambos os lados, os troncos das faias emitiam o brilho verde do musgo iluminado pela luz do Sol filtrada. Tremendo, voltei-lhe as
costas e dirigi-me para o sentido oposto.
Não, por aqui!Foi uma voz diferente, mais baixa, mais sussurrada, um tom gentil e persuasivo. Por aqui... Segue-me...
Por aqui, por aquiii... Nesse momento já era um coro, um clamor que me rodeava completamente; a floresta estava repleta de vozes.
- Parem com isso! - gritei, sentindo-me alarmada e um pouco tola. - Deixem-me em paz!
Algo puxou o meu braço direito, quase fazendo cair a minha caixa de escrita. Dedos ossudos enterraram-se na minha carne, lembrando-me vivamente o sonho hediondo
da noite anterior. Libertei-me com um safanão.
Algo agarrou o meu braço esquerdo, colocando depois a sua mão na minha cintura, os dedos arrastando-se. Corri com o saco a baloiçar nas costas, os pés a escorregarem
na manta morta da floresta, a pele arrepiada de nojo. Escorreguei em poças e tropecei em pedras, chicoteada por silvas e ferindo-me de encontro a ramos. Só pensava
em fugir. Todo o meu corpo vibrava com o bater do meu coração.
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Choquei com o tronco de um vidoeiro e deixei-me estar, ofegante. As vozes silenciaram-se. De todos os lados havia um manto cerrado de arbustos, fetos e trepadeiras,
e as árvores erguiam-se como um exército à espera. Não via o trilho em parte alguma.
Deveria ser uma escolha simples, mesmo assim. Descer o monte de forma constante e chegar à aldeia, onde a humilde admissão de que Cometera um erro me daria acesso
ao interior. Ou continuar a subir o monte e tentar chegar à fortaleza. Olhei novamente em redor. Curiosa-mente, parecia já não haver uma óbvia subida ou descida
da encosta do monte. Cada vez que pestanejava ou voltava a cabeça, os objectos pareciam mudar de lugar. Uma brecha entre as árvores desaparecia tão depressa como
aparecera. Uma zona rochosa e sem vegetação através da mata poderia fixar um caminho transformou-se, diante dos meus olhos, Alta, massa impenetrável de arbustos
espinhosos. Poderia andar e andar por aquele lugar e nunca chegar a qualquer destino.
- Não escutaste, sussurrou uma voz baixinho. Não prestaste atenção. Não Ppares aqui. - Estás perdida?
Sobressaltei-me violentamente, voltando-me para encarar a voz áspera e ribombante. Entre dois carvalhos enormes estava um homem extraordinário. Mal tive tempo de
assimilar a sua constituição maciça, as faces vermelhas como maçãs maduras e a barba musgosa cinzento-esverdeada. Olhei de relance para as suas vestes estranhas:
uma túnica grosseira e calções de peles, uma coroa de folhas e galhos em cima do cabelo de colmo selvagem, grinaldas de vegetação entrançadas em torno do pescoço.
Enquanto ele dava um passo na minha direcção, vi o que se encontrava por trás dele. Se o homem era invulgar, o cão era monstruoso. No momento em que lhe pus os olhos
em cima, acreditei na história toda, nos carneiros, nas farripas de lã, em tudo. Era um animal de constituição poderosa, de pêlo malhado e curto, com o focinho do
formato que os homens preferem num cão de combate, com o tipo de mandíbulas que agarram com rapidez e não podem ser abertas contra a vontade do animal. As orelhas
eram pequenas, os olhos malvados, a postura era de ataque iminente. Era quatro vezes maior do que qualquer cão que eu alguma vez vira.
- Ele não morde - disse o homem, descontraidamente. - Para que lado vais?
Engoli em seco. Não era uma grande escolha: colocar o meu destino nas mãos destes dois ou ficar onde estava e deixar que as vozes misteriosas e assustadoras me levassem
numa longa caminhada para parte nenhuma.
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- Estou a tentar chegar lá acima à fortaleza - respondi, lutando para conseguir manter a minha voz regular. Havia uma maior probabilidade do cão me atacar se soubesse
que eu tinha medo.
- Estás muito longe do trilho. Toma. - O homem estranho estendeu uma mão nodosa, agarrou na minha e ajudou-me a passar por cima de um tronco caído. - Não é uma caminhada
muito longa se se souber como fazê-la. O trilho está abandonado. As pessoas não vêm para aqui. Segue-me.
Caminhei atrás dele enquanto o cão caminhava atrás de mim, rosnando profundamente. Sem olhar para ele directamente, soube que os seus pequenos olhos estavam intencionalmente
fixos em mim.
- Caluda, Fianchu! - ordenou o homem, e o rosnar diminuiu de intensidade, mas ainda lá estava, como uma ameaça subterrânea. - Ele não tem muito jeito para estranhos
- explicou o meu companheiro. - Se tiveres uma boa alma, ele acabará por gostar de ti. Porque não falas com ele? - Ele fez uma pausa e eu parei, sem estar preparada
para me virar caso o cão lançasse a sua considerável corpulência para cima de mim. - Vá lá, tenta - acrescentou o homem, não sem simpatia.
Dadas as circunstâncias, não podia recusar.
- Chama-se Fianchu, não é? - perguntei.
- Ele é Fianchu e eu sou Olcan.
- O meu nome é Caitrin - apresentei-me. - Vim falar com o vosso chefe tribal a propósito de um trabalho de escriba. - Voltei-me muito devagar em direcção ao cão.
Estava a dois passos de distância e assumira uma posição sentada. - Lindo cão, Fianchu - murmurei, sem sinceridade.
- É isso mesmo. - Havia um sorriso na voz de Olcan. - Continua, estás a ver, ele gosta.
A cauda de Fianchu, que mais parecia um cepo, estava a bater ritmadamente contra o chão da floresta. A sua boca estava aberta no que parecia ser um sorriso, revelando
um conjunto de dentes de aspecto eficiente. Encorajada, continuei.
- Que lindo cão, sentado tão educadamente. Lindo Fianchu. Estendi a mão com cautela.
- Cuidado! - avisou Olcan. - Ele às vezes morde.
Esperando não estar prestes a perder uma mão, estendi os dedos para que Fianchu os pudesse cheirar. Olhei para ele sem ser directamente nos olhos.
- Que lindo cão. Simpático e gentil.
O cão cheirou-me a mão e depois deitou para fora a sua enorme língua para a lamber.
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- Parece que ele gosta de ti - disse Olcan, sorrindo abertamente. Fianchu deitara-se, colocando a sua enorme cabeça junto ao meu pé.
Cocei-o atrás de uma das orelhas e ele babou-se.
- Para ser sincero - continuou o meu companheiro -, não tinha a certeza se ele se tornaria teu amigo ou se te daria uma dentada. Pareces ter jeito.
- Ainda bem - admiti eu, com a voz um pouco trémula. - Vives na fortaleza, Olcan? Trabalhas para o chefe tribal?
Olcan deitou-me um olhar confuso.
- Não sou servo de ninguém - declarou. - Mas faço parte da gente de Anluan.
Em breve regressámos ao trilho que serpenteava para cima de forma íngreme, por entre pequenos bosques de sabugueiros e salgueiros. Whistling Tor era muito maior
do que parecia quando vista da povoação. Por fim, por cima de nós e por entre as árvores, vislumbrava-se a imponência maciça da muralha da fortaleza.
- O portão fica naquele sentido - indicou Olcan, parando. - Não voltes a descer o monte.
- Obrigada - agradeci. - Estou-te muito grata. Onde é que...
Mas antes que pudesse pedir indicações mais precisas, ele girou sobre os calcanhares e voltou a descer o monte, com Fianchu caminhando calmamente atrás dele. Estava
novamente sozinha.
CAPÍTULO DOIS
Contornei a muralha, dizendo a mim própria para respirar devagar. Aquelas vozes, aquelas mãos rastejantes... Fora demasiado célere a relegar as histórias de Tomas
e Orna para o campo da fantasia. E depois ficara tão alarmada com o aparecimento de Fianchu que nem pensara em perguntar a Olcan que presenças misteriosas eram aquelas.
Já compreendia porque as pessoas nunca iam lá acima. Se Olcan não tivesse aparecido naquele preciso momento para me salvar, ter-me-ia perdido de tal maneira que
nunca teria conseguido sair da floresta. Esperava conseguir o trabalho de escriba para não ter de voltar a descer o monte nesse dia. Parei para arranjar o cabelo
e compor a minha roupa. Ensaiei o que diria a Lorde Anluan ou a quem quer que encontrasse quando chegasse finalmente à porta de entrada. O meu nome é Caitrin, filha
de Berach. O meu pai ensinou-me o ofício de escriba. Ele era famoso na nossa vila pela sua caligrafia e fazia trabalhos para todos os chefes tribais locais. Sei
ler e escrever em latim e em irlandês e estou preparada para permanecer aqui o Verão inteiro. Estou certa de que consigo fazer o trabalho. Talvez não dissesse aquela
última frase - implicava uma confiança que não sentia. Ita dissera-me com frequência que as mulheres nunca conseguiriam desempenhar ofícios como a escrita tão bem
como os homens e que eu me estava a iludir se imaginava que era diferente. Sabia que ela exprimia a visão da sociedade quando o dizia. Todos os trabalhos que realizara
haviam sido sempre apresentados como feitos pelo meu pai. O pai sentira-se incomodado com a necessidade de tais subterfúgios se queríamos ser pagos com justiça.
As pessoas geralmente acreditavam que eu apenas misturava tintas, preparava penas, arrumava e limpava a sala de trabalho.
Lorde Anluan seria provavelmente igual a todos os outros para quem tínhamos trabalhado. Poderia até ter dificuldade em acreditar que alguém para além dos monges
poderia saber ler e escrever, uma vez que os escribas seculares como o meu pai eram de uma casta rara. Quanto a convencer este chefe tribal a empregar uma jovem
para fazer este trabalho,
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talvez não fosse assim tão difícil, pensei, dada a dificuldade que Magnus parecia ter em encontrar ajudantes que permanecessem na fortaleza.
Mais adiante na muralha havia uma abertura arqueada com o que restava de umas trancas de ferro de cada lado. Se é que houve em tempos um portão para bloquear esta
entrada, há muito que se desfizera. Outrora, a fortaleza devia ter providenciado um refúgio impenetrável, um retiro seguro para os habitantes das quintas e das povoações
locais em tempos de guerra. Os blocos de pedra que a formavam eram maciços. Por mais que tentasse, não conseguia imaginar como teriam sido colocados nos seus lugares.
Estava tudo húmido. As pedras estavam cobertas de musgo rastejante, pequenos fetos colonizavam cada fenda e cada greta e as silvas de espinhos compridos aglomeravam-se
numa camada espessa em torno da base da muralha, como uma barreira exterior proibitiva. Olhei para cima, para as torres, e fui acometida por tonturas. Com ou sem
bom tempo, os seus pináculos estavam envoltos numa mortalha de bruma.
Janelas que mais pareciam fendas estreitas cravejavam estas torres, concebidas para o disparo de flechas defensivas. Havia algumas aberturas maiores mais abaixo
e, da entrada do portão onde eu estava, vislumbrei alguém a mexer-se lá dentro, talvez uma mulher. Magnus é a pessoa mais comum que há lá em cima, dissera Tomas.
Avancei cautelosamente pela abertura. O espaço circundado pela muralha era imenso, bem maior do que parecera do exterior, e existiam edifícios de vários tipos de
encontro ao baluarte, alguns com um piso, outros com dois, com escadarias exteriores de pedra. Num dos pontos, estas escadarias subiam até um passadiço, um local
para onde se poderiam destacar guerreiros em tempos de cerco. Não que essa estratégia ainda pudesse ser eficaz, quando qualquer um podia entrar sem sequer pedir
licença. As altas torres redondas encontravam-se situadas nos cantos da muralha e tinham as suas próprias entradas.
Esperava que a fortaleza de um chefe tribal tivesse um pátio no seu interior, um local onde os guerreiros a cavalo e as carroças puxadas por eles pudessem ser acomodados
e onde toda a azáfama de uma casa nobre se desenrolasse. Mas não existia nada que se parecesse com isso ali. Em vez disso, o espaço estava todo ocupado por árvores
de vários tipos - vi uma ameixeira, uma aveleira, um chorão - e debaixo delas existem arbustos e ervas pululantes de insectos e de pássaros. Avancei por um caminho
de laje, com a saia a roçar a espessa folhagem das plantas de bordadura, e vi que por debaixo desta vegetação luxuriante e indisciplinada, existiam vestígios de
antigos jardins, arbustos de alfazema e
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rosmaninho, estacas para feijões agora inclinadas em ângulos ébrios, pedaços de terreno onde fora colocada palha para proteger um tipo qualquer de vegetal. Num lago
repleto de limos, dois patos nadavam em círculos irregulares.
A porta principal poderia estar em qualquer lugar. Estava tudo coberto de trepadeiras e de musgo e sempre que eu olhava na direcção do maior dos edifícios, aquele
que me parecia ser o ponto de entrada mais provável, este parecia estar num local ligeiramente diferente. Usa o senso comum, ordenei severamente a mim própria enquanto
reparava na posição do Sol em relação às torres pelas quais acabara de passar. As torres e as muralhas não se mexiam. Aquele local podia ser estranho, mas não tão
estranho quanto isso. Passei por um arbusto de espinheiro-bravo sobre o qual fora colocada uma camisa a secar. A peça de vestuário estava encharcada da chuva da
noite anterior. Ainda não via a porta da frente.
Um espantalho erguia-se por entre as plantas mal cuidadas junto ao caminho, com um corvo pousado em cada um dos ombros. Era uma coisa estranha, vestida com uma volumosa
capa preta e com um chapéu debruado a seda. Aproximei-me e o Sol rompeu a bruma acima de mim, fazendo brilhar um colar à volta do seu pescoço. Que Deus nos valesse,
se aquelas eram jóias verdadeiras, o espantalho usava o resgate de um rei.
O espantalho levantou uma mão de dedos longos para cobrir a sua boca com educação e depois tossiu. Senti o sangue fugir-me do rosto. Dei um passo para trás e o que
quer que aquilo fosse deu um passo em frente, para fora do jardim, ajustando a capa à sua volta num gesto imperioso. Os corvos levantaram voo de susto. Eu permaneci
presa no mesmo lugar, incapaz de falar. A coisa fixou os seus olhos escuros e perscrutadores em mim e sorriu sem mostrar os dentes. A sua pele tinha um tom esverdeado,
como se tivesse sido deixado muito tempo à mercê da chuva.
- Desculpa - balbuciei estupidamente. - Não queria perturbar-te. Procuro o chefe tribal, Lorde Anluan. Ou Magnus.
O ser levantou a sua mão, apontando para um muro que parecia circundar um outro jardim. Através de uma arcada adornada por uma trepadeira de flores brancas vinha
o aroma de ervas conhecidas: manjericão, tomilho e absinto. O muro de dentro estava coberto de madressilvas.
- Ali dentro? Obrigada. - Fugi dali, desviando o olhar. Precisas deste emprego, Caitrin. Precisas deste esconderijo. Prometeste que serias corajosa.
O jardim murado estava quase tão mal cuidado e indomado como a zona exterior, mas pude perceber que em tempos fora encantador. Havia
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um vidoeiro no centro; em torno dele havia vestígios de um caminho circular debruado a pedras e canteiros de ervas medicinais divididos por loureiros. Os loureiros
estavam desalinhados e as ervas precisavam de ser podadas, mas era claro que este pequeno jardim fora cuidado mais recentemente do que a natureza selvagem que crescia
para lá dos seus muros. Um antigo bebedouro de pedra para pássaros tinha a sua dose de visitantes; alguém o limpara e enchera há pouco tempo. Havia um banco de madeira
debaixo da árvore e em cima dele estava um livro aberto, voltado para baixo. Parei imediatamente. Mas não havia ninguém à vista; parecia que o leitor se cansara
de estudar e que abandonara aquele santuário.
Coloquei a minha trouxa e a minha caixa de escrita em cima do banco e caminhei lentamente em torno do caminho circular, apreciando a forma metódica como fora organizado
o jardim. O seu desalinho não me incomodava; era apenas quando praticava o meu ofício que a minha mente requeria ordem total. Aquele refúgio fora plantado por um
ervanário competente. Havia um pouco de tudo, para as mais variadas utilizações, fossem culinárias ou medicinais. Beladona para a febre, azeda para o fígado. Erva-das-escaldadelas,
erva-ulmeira, erva-férrea. E mais adiante...
Sangue-do-coração. Num canto discreto, meio escondida debaixo das folhas prateadas de uma enorme consolda, crescia a mais rara das ervas, Nunca antes a vira ao vivo,
mas conhecia-a de um tratado ilustrado sobre tintas e tinturas.
Aproximei-me, agachando-me para examinar as folhas - cresciam nos característicos grupos de cinco, com um serrilhado perfeito ao longo de cada extremidade delicada
- e o caule com o seu invulgar padrão sarapintado. Ainda não tinha botões; aquela raridade florescia apenas no Outono e apenas por um breve período de tempo. Eram
as flores que faziam com que a erva fosse caríssima, pois as suas pétalas esmagadas, misturadas com as proporções certas de vinagre e de cinzas de carvalho, produziam
uma tinta de cor rica, um púrpura profundo e esplêndido, preferida pelos reis e pelos príncipes para os decretos mais importantes e amada pelos bispos nas ilustrações
de letras maiúsculas em missais e breviários. A capacidade de produzir uma dose de tinta de sangue-do-coração poderia fazer a fortuna de um homem. Passei os dedos
pela folhagem, com gentileza.
- Não mexas nisso! - rugiu uma voz profunda vinda de trás de mim. Levantei-me imediatamente, com o coração aos saltos do susto.
Um homem estava no caminho, a menos de três braços de distância, olhando-me de olhos muito abertos. Aparecera do nada e tinha um aspecto não apenas zangado mas,
de alguma forma... errado.
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- Eu não estava a... Estava apenas a... - De repente, vi-me de volta a Market Cross, com as mãos cruéis de Cillian a agarrar-me os ombros enquanto me abanava e as
suas palavras ofensivas a soarem-me aos ouvidos. - Eu... Eu... - Controla-te, Caitrin. Diz alguma coisa. Fiquei estática, a sentir o estômago às voltas.
O estranho erguia-se acima de mim, com o punho cerrado de fúria e os olhos a faiscarem.
- O que fazes aqui? Este lugar é proibido! Lutei para encontrar as palavras que ensaiara.
- Sou uma... Vim para... - Controla-te, Caitrin. Não vais voltar para aquele lugar escuro. - Sou uma... uma...
Tentei enterrar as minhas memórias, obrigando-me a olhar para cima na direcção do homem. A sua aparência era desconcertante, pois embora as suas feições estivessem
acima da beleza comum, estavam ao mesmo tempo distorcidas, como se cada lado do seu rosto não fosse o par do outro. Reparei no cabelo ruivo, tão maltratado e tão
selvagem como os jardins, e na pele clara, rubra de raiva. Os olhos dele eram de um intenso azul-escuro e tão hostis como a sua voz.
- És uma quê? - grunhiu ele. - Uma ladra? Por que outro motivo estarias aqui? Nunca ninguém vem para aqui!
- Não estava a tentar roubar a planta sangue-do-coração - consegui dizer. - Vim por causa do trabalho. Ler. Escrever. Latim. - Parei de repente, recuando. Sentia
a sua fúria vibrar pelo ar do pacífico jardim.
Ele ficou ali durante um momento, olhando fixamente para mim como se eu fosse a excentricidade e tudo o resto fosse absolutamente normal. E depois atirou-se na minha
direcção, com um braço esticado para me agarrar. Uma onda de medo gelado passou de novo por cima de mim.
- Não tem importância - guinchei. - Devo ter-me enganado...
Recuei ainda mais e depois fugi em direcção à arcada. Maldição! Maldito fosse aquele lugar, malditos fossem Ita e o filho e, acima de tudo, maldita fosse eu por
me ter atrevido a pensar que podia encontrar um refúgio e me ter enganado. E agora teria de voltar a atravessar aquela maldita floresta outra vez.
- Espera. - O tom de voz do homem mudara. - Sabes ler em latim?
Parei de costas para ele, com o estômago às voltas. Não conseguia recuperar o fôlego. Os meus lábios recusavam-se a formar a palavra simples, sim, mas consegui anuir
com a cabeça.
- Magnus! - rugiu o homem por trás de mim, fazendo o meu coração saltar de susto.
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Inspirei ligeiramente e voltei-me a tempo de o ver retirar-se em direcção a uma porta que havia do outro lado do jardim, uma entrada directa no maior dos edifícios
que se encontravam encostados à muralha da fortaleza. Apesar da sua altura e da sua constituição forte, o andar do homem era marcadamente irregular e a estranha
curvatura dos seus ombros bastante pronunciada. Dobrado e torcido como um fio torto num tear. Se aquele era Anluan, nenhum de nós causara no outro uma primeira boa
impressão.
Como ele me disse para esperar, esperei, mas não dentro do recinto proibido. Peguei nos meus pertences e esperei do outro lado da arcada, atenta a mais alguma excentricidade.
Foi nesse lugar que Magnus me encontrou pouco depois. Retirara a indumentária de guerra mas ainda tinha um aspecto formidável, com os seus caracóis, os ombros largos
e os braços musculados. Era um dos gallóglaigh, dissera Tomas. Eram guerreiros mercenários, ilhéus descendentes dos Noruegueses e dos Dalriadanos. Perguntei-me como
é que este teria ido parar a Whistling Tor.
- Uma escriba - proferiu o homem grande, fixando os seus olhos cinzentos e astutos no meu rosto, o qual estaria sem dúvida invulgarmente pálido. - Como soubeste
do trabalho que precisamos que se faça?
- Peço desculpa se perturbei alguém - desculpei-me. - O meu nome é Caitrin, filha de Berach. Fiquei hospedada a noite passada na estalagem da aldeia. Não pude evitar
ouvir a tua conversa com Tomas.
O olhar dele tornou-se mais penetrante enquanto eu falava.
- Disseram-me que estavas a tentar roubar uma planta preciosa do nosso jardim - acusou ele. - Esse não é o acto de alguém que procura trabalho.
- Eu disse àquele homem que não estava a roubar! Se te referes à planta sangue-do-coração, a melhor altura para a roubar seria no Outono, quando está em flor. O
seu valor está todo nas flores. Para a tinta, sabes.
Fez-se um momento de silêncio e depois as feições de Magnus franziram-se num sorriso. Tinha aspecto de ser um homem que não sorria muito.
- Está bem, talvez sejas uma escriba - concluiu ele. - Mas isso não explica como chegaste até aqui.
- Caminhei. Na verdade, perdi-me, mas um homem ajudou-me. Um homem com um cão. Olcan e Fianchu.
Os olhos de Magnus arregalaram-se. - Como podes ver, cheguei em segurança - acrescentei.
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- Hum. Não tens medo de cães, então. Bem, mandaram-me levar-te para dentro e imagino que ele queira ver uma amostra da tua escrita. Por aqui.
- Não tenho a certeza de querer ficar. Era ele o homem que estava no jardim, não era? Lorde Anluan? Assustou-me. Estava tão zangado.
- Pareces estar com frio - observou Magnus. - O meu nome é Magnus. Faço de tudo um pouco por aqui. Camareiro, guarda, agricultor, cozinheiro, limpezas... Já que
chegaste até aqui, mais vale entrares e beberes alguma coisa. Não deixes que Anluan te perturbe. Ele não está habituado a estar com pessoas, é só isso. Estamos um
pouco enferrujados.
Inspirei profundamente. A atitude dele era reconfortante: directa, mas gentil. Parecia ser um homem sincero.
- Está bem - aceitei. - Se tens a certeza de que é seguro. Há por aqui pessoas muito peculiares. Não que as aparências tenham importância, mas...
- Eu levo-te isso - ofereceu-se Magnus, apontando para o meu saco. Entreguei-lho e continuámos pelo caminho. - Se estiveres a pensar em ficar para fazer o trabalho,
precisarás de aprender a não deixar que as aparências te perturbem - acrescentou o meu companheiro. - Aqui somos todos peculiares.
- As pessoas da povoação disseram que tu eras a pessoa mais comum que vivia aqui no monte.
Magnus deu uma pequena gargalhada seca.
- Comum, e o que é isso? - perguntou ele com tristeza. - Sendo assim, poderás não ficar tempo suficiente para nos conheceres a todos. Depois de veres o trabalho
que ele quer feito, provavelmente mudarás de ideias. De qualquer forma, poderás não estar à altura das exigências dele.
- Fui ensinada pelo melhor.
- Nesse caso não tens nada com que te preocupares, não é verdade? - Nesse momento pareceu estar divertido. - Mas há algo de que precisas de te lembrar.
- Ah, sim? - Já estava à espera do tipo de instruções que se davam às pessoas nos contos obscuros; Whistling Tor parecia ser o tipo de lugar onde estas existiam.
Não toques na terceira pequena chave a contar da esquerda. Não entres no quarto que fica no alto da torre. - E o que é?
- Não vás ao jardim de Irial - respondeu Magnus. - Ninguém lá entra sem um convite de Anluan. Quebraste essa regra. Perturbaste-o. Ele já teve pessoas suficientes
que fugiram de nojo por olharem para ele e não precisava de te acrescentar a esse número.
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- Não fiquei enojada, apenas amedrontada. Surgiu do nada e gritou comigo. Já vira Olcan e o cão, e um espantalho que andava de um lado para o outro e que me mostrou
o caminho. E também ouvi as vozes. E senti as mãos. Rodearam-me na floresta, tentando fazer-me sair do trilho.
- Se te assustas assim com tanta facilidade - observou Magnus -, não ficas aqui mais de um dia ou dois. Talvez seja mais simpático partires sem lhe dares demasiadas
esperanças. Não quero que comeces o trabalho e que depois o abandones por não saberes lidar com as circunstâncias. Estou surpreso por teres conseguido arranjar coragem
para vir até aqui.
- Eu sei lidar com as circunstâncias - respondi, sentindo-me ofendida com a crítica. - Não sabia que estava a invadir território proibido. Vim até aqui para te encontrar
e para te perguntar acerca do trabalho. As pessoas da aldeia tinham muito para contar acerca deste lugar, mas eu releguei a maior parte do que eles disseram para
o campo do exagero. Mas depois de me ter encontrado com Fianchu e de ter ouvido as vozes, percebo que talvez estivesse enganada.
- Ah. Tomas certamente encheu a tua cabeça com histórias sobre o desfiguramento de Anluan e sobre a sua ineptidão como líder?
- Mais ou menos. - Agora estava envergonhada. Os meus pais ensinaram-me a não avaliar as pessoas pela sua aparência. - Insinuaram que a condição dele se devia a
uma maldição de família.
- Faz os teus próprios juízos, foi sempre essa a minha filosofia. - A boca de Magnus desenhava uma linha fina. - Talvez seja por isso que eu ainda aqui estou e mais
ninguém está.
Quando olhara para as feições estranhamente desequilibradas de Anluan, teria o meu próprio rosto mostrado a aversão que ele conhecia demasiado bem? O que teria ele
pensado a meu respeito?
- Ouvi dizer que o trabalho de escriba demoraria o Verão todo a realizar - comentei. - Sei que tens alguma dificuldade em conseguir que as pessoas permaneçam aqui.
Estou disponível para trabalhar até ao Outono se é isso que é requerido. Desde que me assegures de que estarei em segurança aqui, não abandonarei o meu posto. Ficarei
até completar a tarefa.
- Hum, hum. - Magnus indicou-me que subisse alguns degraus e que entrasse no que era evidentemente a sala de estar. Segui-o por um corredor escuro e depois por uma
série de divisões de aparência austera. Não havia tapetes de juncos no chão e os quartos quase não dispunham de mobiliário. As paredes de pedra tinham um aspecto
húmido. Vi um espelho
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alto de bronze enfiado a um canto, com a superfície parcialmente coberta por um pano. Viam-se imagens mexerem-se nele, coisas que não existiam certamente naquele
quarto quase vazio. Hesitei, com o olhar atraído para ele, e a minha pele arrepiada de desconforto.
- Vamos para a cozinha - indicou Magnus. - Deves querer aquecer-te.
A cozinha ficava no final de outro corredor, por trás de uma pesada porta de carvalho. Um fogo decrépito ardia na lareira. Em cima de uma mesa bem limpa estava a
trouxa de provisões que Magnus trouxera da aldeia, com o seu conteúdo ainda por desembrulhar. O meu companheiro pendurou uma chaleira num suporte de ferro por cima
da lareira e adicionou mais lenha ao fogo. Fiquei a observá-lo, com a cabeça cheia de perguntas embaraçosas.
Magnus esquadrinhou uma prateleira, desencantou uma pequena caixa, encheu uma colher com o seu conteúdo e depois deitou-o numa caneca de barro. Enquanto ele trabalhava,
eu olhei em redor, reparando que também esta divisão tinha um espelho, uma peça de três lados de um material escuro que não consegui identificar. Parecia um espelho
vulgar, o seu reflexo mostrava uma parte da parede e do tecto, mas a luz era estranha, como se a imagem contida no metal mostrasse a divisão numa altura diferente
do dia ou numa estação diferente. Era difícil não olhar para ele.
- Esta é uma mistura restauradora - declarou Magnus, mexendo. - Deverá recompor-te. Tens aspecto de quem precisa. - Quando a chaleira começou a deitar vapor, ele
encheu a caneca e colocou-a em cima da mesa ao meu lado. - Podes beber à vontade - acrescentou ele. - A propósito, se calhar é melhor evitares olhar para os espelhos
durante algum tempo. Poderão deixar-te confusa. Em breve, habituar-te-ás a eles. Se permaneceres connosco, claro.
- Compreendo. - Era perturbador perceber o quanto a superfície polida atraía o olhar, como se tivesse segredos emocionantes para revelar. Mudei de assunto. - És
tu que cuidas do jardim de ervas? - perguntei. - Chama-se jardim de Irial, não é? Reparei que está bem tratado em comparação com... - A minha voz desvaneceu-se quando
percebi o insulto sugerido pelas minhas palavras.
- O jardim é o domínio dele - replicou Magnus. - Mas faço tudo o resto.
Ele olhou em torno da cozinha, tentando vê-la como eu a via. Estava limpa, mas desprovida de mobiliário, com as prateleiras quase vazias, as panelas, os pratos e
as canecas bem alinhados. A cozinha da minha irmã, em Market Cross, fora um local de calor e luz, cheiros deliciosos e grande azáfama. Isso fora antes de o pai falecer,
antes de Maraid me
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abandonar nas mãos de Ita e Cillian. Entrar naquela cozinha fora como ser abraçada de encontro ao coração materno. Esta divisão era fria, apesar do lume. Não tinha
coração.
- Não tinha intenção de criticar - desculpei-me desajeitadamente.
- A culpa não é tua, pois não? Pelo menos, agora que estás aqui, posso retirar a procura de um escriba da minha lista de tarefas. Isso se ele quiser ficar contigo.
É melhor eu ir falar com ele.
Fiquei sentada, sozinha, de frente para o fogo, enquanto ele foi procurar o seu senhor. Provei a infusão de ervas, que era amarga mas não desagradável. Imaginei
Maraid naquele lugar, colocando uma jarra de flores silvestres numa prateleira, pendurando uma tapeçaria brilhante numa parede nua, cantando enquanto picava cebolas
e alhos-porros para fazer uma tarte. Mas Maraid nunca se encontraria na minha actual situação. Era demasiado pragmática. Tudo o que ela fizera fora apaixonar-se
por um músico itinerante e acabar na pobreza. E tal e qual a mãe, ouvi Ita dizer. Uma vadia nascida e criada, não consegue evitá-lo. E tu serás igual, ouve o que
te digo. O vosso tipo de beleza atrai o género errado de homem, o género que só tem uma coisa na cabeça.
Já ingerira metade da minha bebida quando o meu olhar passou pelo espelho mais uma vez e vi nele reflectido a forma de uma mulher, parada muito quieta junto à entrada
da porta, atrás de mim. Não sei como, mas ela chegara sem emitir um som. Levantei-me de um salto, entornando o conteúdo da minha caneca.
- Peço desculpa - exclamei, procurando algo com que limpar. - Assustaste-me. - Quando ela não respondeu, acrescentei: - O meu nome é Caitrin, filha de Berach. Estou
aqui por causa do trabalho de escriba.
Ela observou-me em silêncio enquanto eu encontrava um pano e limpava o tampo da mesa. Debaixo do escrutínio dela, endireitei-me, voltando-me para a encarar. Não
era uma serva. A sua atitude era nobre e o seu vestuário, embora simples ao ponto de ser severo, estava impecavelmente cortado e costurado na melhor das lãs. O vestido
interior era de um cinza cor de pomba e o exterior era de um tom ligeiramente mais escuro; o cabelo dela estava escondido por um fino véu. Por debaixo das pregas
delicadas do véu, a expressão dela era fria e avaliadora. Seria a esposa de Anluan? Era bastante jovem, talvez não muito mais velha do que eu. Que idade teria o
chefe tribal? Entre o cabelo desalinhado, o olhar carrancudo e a estranheza das suas feições, tudo o que podia dizer era que provavelmente não teria mais de trinta.
A mulher juntou as mãos, olhando para mim com uns lustrosos olhos cinzentos. As suas feições eram delicadas e pequenas. Tinha uma postura muito direita. A irmã de
Anluan, talvez? Poderia ser filha de Magnus?
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- Estou apenas à espera que Magnus regresse - disse eu, forçando-me a sorrir. - Ele disse que eu podia sentar-me aqui.
A mulher não sorriu.
- Lamento - replicou ela com rispidez. - Não vamos precisar dos teus serviços.
Depois de um momento de silêncio e estupefacção, protestei:
- Magnus disse que eu poderia ficar com o trabalho se fosse capaz de o fazer. Devia ao menos ser-me dada uma prova...
Ela deu um passo para trás, como que para me deixar passar quando saísse.
- Não vamos precisar dos teus serviços. Foi um engano.
Olhei fixamente para ela. A promessa de trabalho, de pagamento, de segurança em relação a Cillian, a esperança de um refúgio durante um Verão inteiro, tudo isso
desfeito por causa de um engano?
- Mas Magnus foi à povoação à procura de alguém que soubesse ler e escrever em latim - defendi-me eu, sentindo o meu rosto corar. - Eu sei fazê-lo. Devia ter uma
oportunidade de mostrar o que sou capaz de fazer, minha senhora. - Ainda pensei em contar-lhe a verdade e entregar-me à sua mercê. De algum modo percebi que isso
não me levaria longe. - Mesmo que tenha havido um engano, estou certa de que poderei ser útil noutras funções. - Afinal, Magnus dissera que precisavam de um rapaz
para a quinta e de uma mulher para cuidar da casa. Se pudesse estar em segurança, estava preparada para esfregar o chão durante o Verão, mesmo que fosse esta mulher
fria a ditar-me as ordens.
- Por favor, minha senhora - pedi. O seu intenso escrutínio de olhos arregalados enervava-me. - Pelo menos deixa-me falar com Magnus outra vez.
- Não há qualquer necessidade de falares com ninguém - respondeu ela. Passado um momento, acrescentou: - Estás desiludida. Tens de compreender que é melhor que não
fiques aqui.
As lágrimas ardiam-me nos olhos. Estava a reunir os meus pertences quando Magnus entrou pela porta das traseiras e colocou uma pena, um pote de tinta e uma tira
de pergaminho em cima da mesa.
- Escreve qualquer coisa - ordenou ele. - Imediatamente, disse ele, para provar que sabes escrever depressa e com precisão. Se for suficientemente bom, ele está
disposto a pôr-te à prova durante alguns dias.
Olhei para a mulher. Os lábios dela apertaram-se um contra o outro; uma pequena ruga aparecera entre as suas sobrancelhas.
- Foi-me dito que não necessitavam dos meus serviços - ripostei eu em voz baixa.
- Não faz mal, Muirne - declarou Magnus. - Anluan quer ver o trabalho dela.
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Inspirei, trémula.
- Disse se for suficientemente bom. Suficientemente bom para quê? - perguntei, colocando a minha caixa de escrita em cima da mesa e desapertando os atilhos. - Como
poderei saber o tipo de prova a dar sem saber o tipo de tarefa de que precisam? Em latim ou em irlandês? Que tipo de caligrafia? De que tamanho? - Retirei uma pena
de ganso média e um pote de tinta preta que eu própria preparara. - Se não te importas, usarei os meus próprios utensílios.
Magnus esperou, de braços cruzados, enquanto eu pegava na faca especial do meu pai e aparava a pena.
- O que é que ele quer que eu escreva? - perguntei, olhando-o.
- Ele não disse. Mostra apenas aquilo que és capaz de fazer.
- Mas como poderei...
- É melhor começares, senão terei de lhe dizer que és lenta.
- Lenta de pensamento ou lenta no desempenho do meu ofício? Não sou uma nem outra. Mas isto é como costurar um casaco para um homem que nunca se viu, sem se saber
se é para ir à pesca ou para se passear pela praça para impressionar os outros.
A tarefa tornava-se ainda mais difícil devido à observadora silenciosa que estava à entrada da porta.
- Queres o trabalho ou não? - perguntou Magnus, sem rodeios. Não podia dizer-lhes o quão desesperadamente o queria, com chefe tribal de mau feitio, mulher nobre
desaprovadora, espantalho animado e tudo. Anluan assustara-me, era certo, mas nada poderia ser tão aterrorizante como o que eu deixara para trás. Uma amostra: o
que esperaria ele? Deveria eu fornecer-lhe uma citação em latim? Escrever uma carta? No final, a pena mexeu-se quase por vontade própria e escrevi o seguinte: Sei
ler e escrever fluentemente em latim e em irlandês. Lamento se vos perturbei. Gostaria de vos ajudar, se me deixardes. Caitrin.
A minha escrita era simples e delicada; tinha talento para a manter direita, mesmo quando não havia tempo para marcar linhas orientadoras. No cimo da minha amostra,
acrescentei o nome Anluan e decorei a letra maiúscula com uma pequena grinalda de madressilvas em torno da qual pairavam algumas abelhas. Desenhara o C de Caitrin
com a forma de um cão esbelto, a dormir enrolado, com a cauda por cima das pernas. Deitei por cima alguma areia fina do saco que tinha junto dos meus materiais,
e a peça estava mais ou menos pronta.
- Fui suficientemente rápida? - perguntei, enquanto entregava o pergaminho a Magnus, apanhando-lhe nos lábios um sorriso fugidio. - Mantém-no plano, pois ainda não
está completamente seco. Se
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ele é assim tão exigente, imagino que tinta esborratada me excluiria da sua lista de candidatos.
Ele levou o meu trabalho e eu esperei novamente, desconfortável debaixo do olhar da mulher que permanecia na entrada. Não me lembrava de nada apropriado para dizer,
por isso permaneci em silêncio e, durante algum tempo, ela também. Depois entrou na cozinha, mexeu nalgumas canecas que estavam numa prateleira e disse, de costas
voltadas para mim:
- Não ficarás durante muito tempo. Ninguém fica. Acabarás por desiludi-lo.
O tom dela era estranho, contido. Magnus dissera algo do género: que seria melhor partir imediatamente do que aumentar as esperanças de Anluan para depois o abandonar
mais tarde. Não queria ter Muirne ou Magnus como inimigos. Se conseguisse o trabalho, ficaríamos a viver na mesma casa durante o Verão.
- Se ele quiser os meus serviços, ficarei - respondi, mas à medida que o tempo passava perguntei-me se não seria melhor que Anluan mandasse para trás a mensagem
de que eu não estava à altura do trabalho. Magnus escoltar-me-ia na descida do monte, se eu lho pedisse. Tomas dissera que a aldeia me daria guarida. E qual seria
a probabilidade real de Cillian viajar tanto para ocidente na tentativa de me encontrar?
Tentei pesar Whistling Tor com todas as suas peculiaridades, incluindo a maldição que Tomas e Orna referiram, contra a situação da qual eu fugira. As pessoas de
Market Cross consideraram que fora uma sorte que Ita e Cillian cuidassem de mim durante o período de sofrimento que se seguiu à morte do meu pai. Ita gostava de
se certificar de que as pessoas compreendiam. Alguém fora lá a casa à minha procura, talvez mais do que uma pessoa. Não estivera em mim nessa altura e não me lembrava
com clareza. Mas lembrava-me da voz de Ita, cortante e confiante. Não podes vê-la. Ela não pode ver ninguém. Sabes bem que Caitrin sempre foi muito perturbada. A
morte do pai fê-la perder o juízo. Não está em condições de tomar decisões por si própria, nem é provável que venha a estar em breve. Cuidarei dela e sustentá-la-ei,
claro; o meu filho e eu ficaremos nesta casa para garantir que Caitrin é bem cuidada. E poderei marcar quaisquer papéis legais em nome dela. Pobre Caitrin! Era uma
menina tão prendada. Se as pessoas não me vissem, também não veriam as nódoas negras. Se as pessoas não me ouvissem, pouco interessaria se eu dizia ou não disparates.
De qualquer modo, eu não teria tido coragem de falar. Porque o pior não eram os punhos de Cillian ou a língua cruel de Ita. Era eu. Era a forma como ambos me haviam
transformado numa criança fraca e indefesa, cheia de aversão por mim própria e timidez. Seria um erro pensar que estaria em segurança na aldeia com
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Tomas e Orna. Cillian perseguir-me-ia. Ita estava determinada a que nos casássemos. É melhor para ti, Caitrin, dissera ela, e eu estivera demasiado triste e demasiado
confusa para pedir uma explicação adequada. Não se tratava de bens materiais. O pai não deixara quase nada para Maraid e para mim.
- Uma escriba - comentou Muirne, voltando-se para fixar os seus olhos enormes no meu rosto. - Como aprendeste a ser uma escriba?
- Foi o meu pai que me ensinou. - Não tinha qualquer intenção de lhe fazer confidências, não antes de saber se iria ficar ou partir. - Ele era um mestre neste ofício,
muito procurado na região de Market Cross.
- Existem muitos papéis. Empoeirados. Sujos. É um trabalho difícil. Não é trabalho para uma senhora.
O meu sorriso era provavelmente mais um esgar.
- Nesta área específica, sou uma trabalhadora afincada. Espero ter oportunidade de te provar isso.
As suas delicadas sobrancelhas elevaram-se e um sorriso curvou-lhe os lábios. Um momento depois, partira tão silenciosamente quanto chegara.
- Vem comigo. Vou mostrar-te onde podes colocar as tuas coisas - disse Magnus, da outra entrada.
Levantei-me de um salto.
- Isso quer dizer que consegui o trabalho?
- Um período à experiência. Fiquei de te mostrar o que precisa de ser feito - poderás mudar de ideias depois de ver - e poderás trabalhar durante alguns dias. Ele
avaliará o teu progresso e decidirá se estás à altura de completar o trabalho até ao final do Verão. Há um quarto no andar de cima no qual poderás dormir.
Apressei-me a segui-lo, com as perguntas a atropelarem-se umas às outras na minha mente.
- E no que é que irei trabalhar exactamente? - perguntei.
- Registos. História de família. Todos eles foram eruditos à sua maneira, desde o bisavô de Anluan até ele próprio. Ele tem toda a espécie de documentos ali dentro,
alguns dos quais não estão nas melhores condições. É preciso seleccioná-los, organizá-los. Está tudo uma confusão, aviso-te já. O suficiente para desencorajar o
mais ordeiro dos escribas, na minha opinião. Mas o que é que eu entendo disso?
Enquanto falava, o camareiro conduziu-me por um corredor e por um lance de escadas íngreme e gasto até ao andar de cima, onde várias divisões se abriam a partir
de uma longa galeria. Os cantos e as fendas de pedra tinham como inquilinas enormes aranhas. Havia folhas, sopradas
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pelo vento através das aberturas da galeria que davam para o jardim, reunidas em montes húmidos nos cantos. Pairava no ar um odor de abandono, o cheiro da podridão.
- Por aqui - indicou Magnus, incitando-me a atravessar uma porta.
A divisão estava vazia, era fria e pouco acolhedora, tal como os quartos do andar de baixo que eu vira. Estava mobilada com uma estreita enxerga e uma arca para
arrumações. Pensei que há muito que não dormia lá ninguém.
- Já te trago alguns cobertores - disse o meu companheiro. - Fica frio aqui durante a noite. Há uma bomba do lado de fora da porta da cozinha; usamo-la para nos
lavarmos. E precisarás de uma vela.
- Esta porta tem ferrolho?
- Este pode não ser o mais comum dos lares - respondeu Magnus -, mas aqui estarás em segurança. Anluan protege os seus.
No que se referia a esta questão, não cederia.
- Não se pode esperar que Anluan patrulhe esta galeria para a frente e para trás durante a noite toda para se certificar de que ninguém nos perturba - disse eu.
- Não - concordou Magnus. - Quem faz esse serviço é Rioghan.
- Rioghan! - Fiquei surpreendida por ouvir um nome que reconhecia. - Conheci-o ontem. Pelo menos penso tratar-se do mesmo homem. Uma pessoa de aspecto triste com
uma capa vermelha. Não sabia que ele vivia aqui na fortaleza.
- É um dos que vive aqui em casa - respondeu Magnus. - Apresentar-te-ei a todos à hora da ceia, altura em que geralmente nos reunimos. Existem mais, que vivem na
floresta, mas esses não verás tantas vezes.
- Estavas a falar a sério, quando disseste que Rioghan andava para a frente e para trás nesta galeria a noite toda? Não estou certa de ficar muito satisfeita com
isso, mesmo que seja por uma questão de segurança.
- Rioghan não dorme. Fica de vigia. Poderá não estar na galeria - prefere ficar no jardim -, mas estará atento a qualquer coisa invulgar. É como te disse, Whistling
Tor oferece segurança aos seus.
- Mas eu ainda não faço parte dos seus.
- Se Anluan te quer cá, então fazes parte, Caitrin.
- Continuo a querer um ferrolho na minha porta.
- Vou pôr isso na minha lista de afazeres.
- Hoje, por favor, Magnus. Eu compreendo que estejas muito ocupado, mas isto é um... um requisito para mim. Algo sem o qual não posso
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passar. Talvez eu te possa pagar o favor de alguma forma. - Assim que proferi estas palavras, lembrei-me do que dissera o carroceiro: Há outras formas de pagamento.
- Por exemplo, poderei cortar vegetais ou varrer o chão - acrescentei.
- Terei isso em mente. Bem, põe-te à vontade. Existe uma latrina lá fora, depois da cozinha. Quando estiveres preparada, desce para eu te mostrar a biblioteca. Deves
querer começar o teu trabalho.
Algum tempo depois, vestida com o outro vestido que trouxera - de um prático verde-escuro - e com o meu cabelo escovado e entrançado de novo, estava ao lado de Magnus,
à entrada da biblioteca, sem saber o que dizer.
Sempre valorizara a ordem. O exercício competente da caligrafia depende em grande medida da arrumação, da exactidão e da uniformidade. Na nossa sala de trabalho
em Market Cross, as ferramentas eram meticulosamente preservadas e os materiais armazenados com especial cuidado em termos de segurança e eficiência. Fora um lugar
de disciplina e de controlo.
A biblioteca de Anluan era o lugar mais caótico que eu tivera a má fortuna de encontrar em toda a minha vida. Era uma divisão de tamanho considerável. As várias
mesas grandes teriam dado úteis superfícies de trabalho se não estivessem cobertas de pilhas de documentos, rolos e folhas de pergaminho. Este material frágil estava
espalhado por toda a parte de forma aparentemente aleatória. Em torno das paredes estavam vários baús e mesas mais pequenas, as suas superfícies tão carregadas como
as das suas homónimas maiores. Suspeitei que cada receptáculo revelaria, quando aberto, uma amálgama de materiais.
Entrei, sem dizer uma única palavra. Havia janelas envidraçadas em toda a zona ocidental da divisão. Durante a tarde, a luz seria excelente para escrever.
- As coisas de que precisas estão naquele baú de carvalho - informou Magnus, apontando para o extremo oposto do aposento. - Penas, pós para fazer tinta, e por aí
em diante. Ele disse que mesmo que tenhas trazido os teus próprios materiais que eles acabarão por se gastar rapidamente. Existe uma boa quantidade de pergaminho,
suficiente para concluir o trabalho, segundo ele. Se precisares de mais materiais podemos obtê-los, mas para ser sincero, prefiro não me dar a esse trabalho.
Olhei para a desordem à minha volta, esforçando-me por encará-la não como uma barreira mas como um desafio.
- O que esperam que eu faça aqui? Irá Lorde Anluan explicar-me isso pessoalmente? - Uma família de eruditos, dissera Magnus. Eu pensei
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nas minuciosas instruções que o pai e eu recebíamos relativamente aos trabalhos que nos eram encomendados, na atenção que alguns dos nossos clientes prestavam aos
pormenores da sua execução. - Onde estão os materiais que tenho de transcrever?
E quando Magnus se limitou a olhar para mim e depois a voltar o olhar para abarcar todo o aposento, longos rolos, grossos livros atados, minúsculos fragmentos, resmas
soltas de folhas de pergaminho, senti um riso histérico formar-se na minha garganta.
- Tudo isto? - engasguei-me. - Num único Verão? O que é que este homem pensa que eu sou, uma milagreira?
Magnus levantou uma tira de velino pelo canto e soprou-a, fazendo com que as partículas de pó dançassem à luz vinda da janela.
- Foste ensinada pelo melhor, não foi o que disseste?
- E fui. Mas isto... isto é uma loucura. Como saberei por onde começar?
- Não tens de escrever tudo. Ele só quer as partes que estão em latim, uma vez que nunca lhe ensinaram essa língua. São os registos de Nechtan, os mais antigos.
Existem alguns em irlandês, e ele já os leu, mas Anluan pensa que alguns dos documentos em latim também são do bisavô dele. Ele precisa que os encontres e que os
escrevas em irlandês para que ele os possa ler. Estão misturados com todo o tipo de coisas. - Magnus olhou para uma fila de pequenos livros amarrados que foram colocados
numa prateleira sozinhos e a sua expressão suavizou-se. - Desenhos, receitas para curas e por aí fora. Notas, pensamentos. Cada um dos chefes tribais de Whistling
Tor fez os seus próprios registos. Mas a biblioteca nunca foi organizada. Os materiais mais antigos estão a desfazer-se. Se fosse eu a fazer o trabalho - não que
eu seja um homem de leituras - talvez achasse útil fazer uma lista do que existe à medida que os ia vendo, para saber onde encontrá-los mais tarde. Faz sentido,
não faz?
- Perfeito sentido, Magnus. Obrigada pela tua sugestão. - Peguei num dos pequenos livros amarrados que estava na prateleira e abri-o em cima de uma mesa, revelando
uma bela ilustração de uma espécie de erva medicinal. Ao lado dela, numa caligrafia fina, estavam instruções sobre como preparar uma tintura destinada ao tratamento
de verrugas e de carbúnculos. - Gostaria que alguém tivesse feito isso antes. Quero dizer, uma lista. Disseste que Lorde Anluan e a sua família eram eruditos.
Talvez tivesse parecido demasiado crítica.
- Ele começou a fazê-la. - O tom de Magnus era desagradável. - Ou pelo menos tentou.
- Tentou. - Se o que Tomas e Orna me tinham dito era verdade, este chefe tribal devia ter imenso tempo de sobra. Eles tinham insinuado
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que ele não desempenhava qualquer das funções que seriam esperadas de um chefe tribal local, tais como sair a cavalo para ver se a sua gente estava bem, supervisionar
os seus campos e povoações, organizar defesas contra um possível ataque. - Esta é uma grande tarefa, Magnus. Parece que terei de organizar todo o conteúdo da biblioteca
antes de poder começar a tradução. Existe alguém aqui que me possa ajudar?
- Queres que lhe diga que não consegues executar o trabalho?
- Não! - Percebi que segurava o livro das plantas de encontro ao peito e pousei-o. - Não, por favor, não faças isso. Farei o meu melhor.
O olhar de Magnus era perscrutador.
- É da lei que foges, com a tua necessidade de uma porta aferrolhada e o teu desejo de aceitar um trabalho que mais ninguém quereria?
Ele era demasiado perspicaz.
- Se não me fizeres perguntas embaraçosas, eu também não as farei - respondi eu.
- É justo.
- Mas tenho de fazer apenas uma. Porque é que Lorde Anluan não vem falar comigo pessoalmente sobre o trabalho?
- Anluan não recebe pessoas de fora.
Esta declaração directa soou como um comentário final. Como poderia fazer um bom trabalho sem falar com o homem que o queria feito? Não haveria mais perguntas embaraçosas.
Isso queria dizer que não poderia continuar esta conversa.
Magnus aproximara-se da janela e olhava lá para fora. A biblioteca tinha vista para o jardim de ervas no qual eu encontrara anteriormente o solitário chefe tribal
de Whistling Tor. Daquele sítio não conseguia ver o pé de sangue-do-coração, apenas a profusão de madressilvas e o crescimento caótico de ervas mais comuns.
- Não deves julgá-lo - proferiu o camareiro em voz baixa. - Ele tem as suas razões. És a nossa primeira visitante desde há muito tempo, e a primeira a vir de livre
vontade. E és uma mulher. Foi um choque.
- Para mim também - ripostei, decidida a não salientar que quando se espalha aos quatro ventos que se anda à procura de um escriba, não se deve admirar quando um
lhe aparece à porta, por assim dizer. Começava a aprender que as regras daquela casa tinham poucas semelhanças com as do mundo exterior. Dirigi-me a uma pequena
mesa junto à janela que se destacava por ser o único lugar arrumado do aposento. A superfície de carvalho fora limpa e em cima dela estava um pote feito de uma invulgar
pedra verde com um padrão em espiral, contendo várias penas mal cortadas e uma faca. Talvez fosse Muirne a responsável por esta pequena ilha de ordem. Ao lado do
pote estavam duas folhas de
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bom pergaminho, cobertas de escrita. Peguei numa delas. - De quem é esta caligrafia? - perguntei.
- É de Anluan - respondeu Magnus. - Mais ninguém aqui sabe escrever.
Bastou-me uma olhadela para perceber porque é que Anluan não fizera mais do que uma tentativa de iniciar aquela tarefa atemorizante. Era verdade, ele sabia escrever,
e se me dedicasse a isso poderia decifrar o que ele escrevera. Mas era a pior caligrafia que vira na minha vida, tão indisciplinada que as letras pareciam estar
a querer rastejar da página para fora.
- Não faças essa cara - comentou Magnus. - És uma escriba e ele é alguém que perdeu o uso da mão direita. - Não havia qualquer crítica na sua voz, apenas tristeza.
- Peço desculpa... - A minha voz desvaneceu-se assim que comecei a ler.
O Outono começa trazendo um frio cortante. Estou nas fases finais de preparação. Com cada nova aurora, a minha mente e o meu corpo são cada vesç mais subjugados
por isto. Conhecimento para além do terreno; uma descoberta que ultrapassa qualquer outra feita por homens mortais neste mundo. E se for verdade? E se eu puder abrir
este portal para o desconhecido? Para onde poderei viajar? Que acontecimentos maravilhosos poderei testemunhar? E quando regressar, que alterações trarei? MandeiAislinn
apanhar acónito.
- Deixo-te com o teu trabalho. Tenho coisas para fazer.
Olhei para cima, mantendo um dedo a marcar o local da página enquanto anuía a Magnus. Ele disse algo sobre a ceia, mas as suas palavras morreram quando fui apanhada
pela narrativa que tinha diante de mim.
Outro dia. Outro passo. A medida que o momento da experiência se aproxima, os meus ajudantes abandonam-me, demasiado cegos para partilharem a minha visão até ao
fim, demasiado fracos para suportarem o peso das minhas aspirações. Deixaram que as histórias supersticiosas da populaça local os influenciassem. O meu camareiro
deixou-me esta manhã. Não poderei continuar a servir-te, foram as suas palavras medíocres. Não interessa. Não preciso de lacaios. Fá-lo-ei sozinho, e quando estiver
feito terei uma multidão de seguidores, uma comitiva de servos, um exército digno de um rei. Serei eu a liderá-los, e aqueles que duvidaram de mim, aqueles que não
tiveram estômago para ficar até ao fim, sufocarão na sua própria cobardia. Abrirei este portal e andarei.
Chegara ao final da segunda página. Um conto obscuro e fascinante; queria mais. Mas não havia mais, não ali pelo menos. Não podia ser um registo da própria experiência
de Anluan, certamente. Ele não me parecera
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o tipo de homem que escrevesse assim, de uma forma arcaica e grandiosa, nem conseguia imaginá-lo a comandar um exército de qualquer tipo. Devia ser uma transcrição
parcial de um documento mais antigo. Para descobrir o resto da história, teria de localizar a fonte usada por Anluan.
No parapeito da janela ao lado da mesa onde o chefe tribal tinha estado a trabalhar encontrava-se um pequeno baú. Tinha uma camada de pó significativamente menor
que os outros e parecia o lugar óbvio para começar a procurar. Estendi a mão para ver se ele se abria, mas depois retirei-a. O baú tinha uma aura poderosa, ao mesmo
tempo atraente e repelente. Fez a minha pele arrepiar-se de inquietação e o meu coração acelerar-se de antecipação.
A voz da razão disse-me que não havia qualquer necessidade de o abrir naquele momento. Havia pequenas montanhas de outros documentos para organizar, já para não
falar do chão para varrer, do pó que cobria todas as superfícies para limpar, da sala para arejar, de estabelecer um sistema de armazenamento para saber onde encontrar
as coisas. Desocupei um espaço numa das mesas grandes, usando o método pouco sofisticado de arrastar as coisas para fora do caminho, e retirei para fora a tábua
de cera desdobrável que usava para tirar notas. Fora muito usada ao longo dos anos. Fora nela que aprendera as letras, com a minha pequena mão a manusear o estilete,
desajeitadamente no início e mais tarde com maior controlo, formando assim os alicerces do meu ofício. A tábua tinha o formato de um livro e uma capa de madeira
com dobradiças. Uma tira de couro mantinha-a fechada quando não estava a ser usada e o estilete tinha a sua própria divisão. As superfícies de cera, assim protegidas,
mantinham-se limpas e funcionais. Usá-la-ia para manter registos diários do meu trabalho e para anotar quais os documentos existentes e onde se encontravam. O pergaminho
e o velino eram demasiado dispendiosos para serem desperdiçados em escritos tão efémeros. Abri a tábua, olhei em torno da biblioteca e suspirei. Sentia o baú chamar
por mim. Lê, sussurrava ele. Lê e chora.
Não seria capaz de me focar em qualquer outro trabalho enquanto não lidasse com a situação. Fui até à janela e abri o baú. Não saíram de lá quaisquer demónios. Lá
dentro estava uma variedade de artigos, impecavelmente arrumados. A maior parte do conteúdo era composta por folhas de pergaminho enroladas em molhos e atadas com
fio prestes a desintegrar-se. Os molhos haviam sido salpicados com ervas há muito tempo. Estas já se tinham desfeito em pó, mas um odor leve e doce permanecia nas
páginas que começavam a desfazer-se nas pontas. Estendi a mão para agarrar num dos molhos e depois parei, atingida pela
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sensação de que alguém me observava. A minha pele arrepiou-se, endireitei-me e olhei em redor. A porta que dava acesso ao jardim estava aberta, mas se alguém estivera
ali, desaparecera num abrir e fechar de olhos. O leve odor a ervas permanecia, salva e rosmaninho. Olhei pela janela, mas não vi ninguém. Controla-te, Caitrin. Este
lugar já é suficientemente estranho sem lhe juntares as tuas próprias fantasias. Inclinei-me novamente para a minha tarefa, levantando cada um dos molhos de documentos
à vez e colocando-os, lado a lado, em cima da mesa. No fundo da caixa estava algo embrulhado num tecido negro. Hesitei, depois peguei-lhe e coloquei-o à minha frente,
desdobrando o invólucro com mãos pouco firmes.
Talvez eu devesse ter adivinhado que seria um espelho. Este era de obsidiana e havia algo acerca dele que me deixava pouco à vontade. A enigmática superfície negra
mostrava poucos reflexos. Já lera acerca de um espelho assim algures, tinha a certeza. Um espelho negro, usado para adivinhar. O artefacto estava envolvido numa
moldura de prata repleta de criaturas sobrenaturais, cada uma delas do tamanho de uma das articulações do meu dedo mindinho, os seus olhos representados por minúsculas
pedras vermelhas ou verdes. Pestanejei e olhei de novo. Não estivera aquele gnomo na base do espelho da última vez que eu olhara? E aquele ser que era parte fantasma,
parte lagarto? Estivera enroscado sobre si próprio e naquele momento estava a olhar directamente para mim...
Abanei a cabeça para a libertar de tais fantasias. Começaria por organizar aquelas folhas soltas, começando pelas que estavam em pior estado de conservação. Se Anluan
tivesse algum bom senso, era por aí que teria começado a sua própria tentativa um pouco limitada de fazer o trabalho, por isso talvez encontrasse a parte seguinte
daquela narrativa intrigante algures entre as folhas deterioradas. Com que então ele perdera o uso da mão direita. Ponderei isto, perguntando-me, se tentasse usar
a minha mão esquerda, se a minha caligrafia seria ainda mais desgovernada do que a dele. Ouvira dizer que uma pessoa poderia aprender a usar a outra mão com a mesma
eficiência, com o tempo. Talvez Anluan ainda não tivesse tido tempo. Ou talvez lhe tivesse faltado a vontade. Desistira de tentar falar comigo com uma grande rapidez.
Todos os documentos do pequeno baú pareciam estar escritos na mesma caligrafia, ousada e regular. O estilo de escrita era antigo e a mestria era a de um erudito.
As páginas estavam tão quebradiças que pareciam estar em perigo de se desfazerem antes de eu terminar a tarefa, e a tinta também estava muito desvanecida. Restava
pouca vida àqueles registos.
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Folheei as páginas. Uma ou duas estavam em latim, mas a maioria estava em irlandês e dava conta de nada mais iníquo do que um relato da vida diária da casa e da
quinta:
... um bom ano de novos cordeiros, a maioria das ovelhas pariu um par deles, algumas três... tempo ameno, menos perdas do que no ano passado...
... disputa com opadreAidan, que considera a minha área de estudo perigosa. Nada de novo nisso.
Fergus conseguiu um óptimo preço pelas nossas vitelas no mercado deste ano.
Tenho um filho. Dizem-me que ele é saudável, embora pareça ter o rosto rubro e seja pequeno. Estou surpreendido, não com o seu espírito lutador, mas que a minha
mulher se tenha mostrado finalmente útil para alguma coisa.
Aquela frase abalou-me. Começara a gostar do escritor, um homem comum a fazer um registo das perdas e dos ganhos na sua quinta - ovelhas, vacas, onde teriam sido
guardadas? - e a debater assuntos com o sacerdote local. Mas depois daquele comentário indiferente, descobri que não poderia gostar nada dele. A minha área de estudo.
Era provável que o escritor fosse um dos chefes tribais invulgarmente eruditos de Whistling Tor.
Chamar-se-á Conan, como o meu pai.
Comecei o segundo molho de papéis. Para estes, o escriba utilizara o latim e um estilo diferente de escrita a condizer, uma caligrafia redonda e quase oficial em
vez da caligrafia comum dos seus escritos irlandeses. Ou talvez fosse um escritor diferente. As páginas pareciam ter a mesma idade, a tinta encontrava-se igualmente
esbatida.
Outono do décimo terceiro ano do reinado de Glassan, filho de Eochaid, como Rei Supremo. Aproximamo-nos do tempo conhecido como Ruis, em nomenclatura cristã, dia
de Todos os Santos. Um tempo de transição, quando caminhamos para a escuridão. Um tempo em que o fim é o começo e o começo é o fim.
Não estava apenas escrito em latim, o estilo de expressão também era mais formal. Alisei a página com cuidado. O pergaminho fora raspado e reutilizado pelo menos
uma vez, talvez várias; parecia que nem sempre existira uma quantidade abundante de materiais disponíveis em Whistling Tor. Tentei adivinhar a idade do documento.
Glassan, filho de Eochaid. Uma centena de anos, mais ou menos? Não dissera Tomas, ou Orna, algo acerca de cem anos de má sorte? Não conseguia encontrar o nome do
escritor em parte nenhuma nas páginas, mas talvez, se continuasse a ler, o encontrasse.
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O espelho negro tremeluziu. Voltei-me para olhar por cima do ombro à espera de ver Muirne com a sua roupa impecável e a sua expressão desaprovadora. Mas não estava
lá ninguém, estava sozinha na biblioteca. Voltei-me de novo e os meus olhos vislumbraram algo vermelho, não no espelho, mas no jardim. Teria sido Anluan a presença
que eu pressentira antes, parado junto à porta, a observar-me sem dizer uma palavra? Nesse momento estava sentado no banco. Tinha o cotovelo esquerdo pousado no
joelho, o braço direito no colo, os ombros curvados, a cabeça baixa. Rosto branco, cabelo ruivo: neve e fogo, como algo saído de um conto antigo. O livro no qual
eu reparara antes estava no banco a seu lado, de capa fechada. Em torno dos pés de Anluan e dentro do bebedouro, os pequenos visitantes do jardim saltitavam e chapinhavam
tirando o maior partido de um dia que se estava a tornar bonito e soalheiro. Ele parecia não reparar neles. Quanto a mim, era-me difícil tirar os olhos dele. Havia
uma beleza estranha no seu isolamento e na sua tristeza, como a de um príncipe esquecido e enfeitiçado por uma feiticeira malévola ou um viajante perdido num mundo
longe de casa.
Tinha de deixar de ser tão fantasiosa. Estava ali há menos de um dia e já estava a inventar histórias descabidas acerca das pessoas da casa. Aquele não era nenhum
príncipe encantado, apenas um chefe tribal com mau feitio e sem maneiras. Se me estivera a espiar, estava no seu direito já que era ele que pagava os meus serviços,
suponho; afinal, eu estava ali à experiência. Voltei a minha atenção de novo para os documentos. As palavras na página perderam a nitidez e eu esfreguei os olhos,
aborrecida com a minha falta de concentração.
Tenho-me dedicado assiduamente ao grande trabalho de preparação. Mantenho aporta aferrolhada. Isso não impede o ignorante de procurar a minha atenção com batidas
importunas. A criança esteve doente - uma maleita menor, uma tosse, uma febre baixa. Foi inapropriado chamar-me; assuntos domésticos triviais são da responsabilidade
de outros. É por este preciso motivo que o nosso principal lugar de experimentação fica situado abaixo do nível do chão da casa, guardado por ferrolhos e chaves,
e por encantamentos e protecções para manter afastados os saqueadores de uma espécie menos terrena. As mentes das pessoas comuns não conseguem compreender a natureza
do nosso trabalho...
Algo se moveu na superfície do espelho de obsidiana. Olhei de relance, depressa, assustada e em choque, olhei fixamente, com profundidade, com o cabelo arrepiado
na nuca. Não podia ser... mas lá estava ele. Dentro da pedra escura estava a imagem de um homem num aposento subterrâneo, um lugar longo e sombrio repleto de prateleiras
nas quais se encontravam cadinhos, frascos, potes com pós e misturas, livros... tantos
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livros num só local, as suas capas manchadas e gastas como se tivessem sido usados frequentemente durante muito tempo. Anluan... Não, este homem era muito mais velho.
A luz bruxuleante das velas colocadas em torno do aposento, as suas feições pareciam as de um santo esculpido, os olhos profundos e penetrantes, a boca de lábios
finos, disciplinada, os ossos do rosto e do maxilar a sobressaírem por baixo da pele pálida. Com umas mãos de dedos compridos, ele dispunha instrumentos numa bancada
que tinha diante de si, facas com lâminas de formatos estranhos, pinças, parafusos, outras coisas cujas funções eu podia apenas imaginar. Este. Seleccionou um instrumento
brilhante que parecia a miniatura de uma foice. Obterei a resposta que quero da velha bruxa com isto.
Um calafrio percorreu-me. Fechei os olhos, abri-os novamente em sinal de descrença, com o meu olhar alternando entre as linhas de escrita negra e a superfície luminosa
do espelho negro. O que era aquilo? Conseguia ver a sala de trabalho do documento como se estivesse de frente para o escritor. Via o seu rosto ascético enquanto
ele ponderava o dilema que o assaltava. E conhecia os seus pensamentos, conhecia-os e sentia a ponta de uma escuridão terrível tocar-me a mente. Como podia ser?
Estava ali, na biblioteca, em plena luz do dia, e no entanto estava naquele lugar subterrâneo, as minhas mãos sentindo o toque do metal frio enquanto o homem pegava
na sua lâmina; a minha mente conhecia o seu propósito malévolo. O espelho... o espelho retinha a memória de um tempo passado, e, assim que os meus olhos pousaram
nele novamente, senti a presença do homem como se ele e eu fôssemos um. Não havia como deixar de olhar.
A velha mulher está estendida em cima da mesa, sombriamente silenciosa. Ele estivera confiante de que teria sucesso antes de Aislinn regressar com as ervas, mas
a bruxa está a resistir para além de todas as expectativas. Ela sabe, claro. De todas as mulheres da região que lidam com magia branca, esta tem a reputação de ser
a mais experiente, aquela que sabe sem dúvida o que o livro de magia negra quer dizer com potentes pós de invocação. Mas esta anciã enrugada, com a sua pele de pergaminho
e os seus dedos tortos, não revelará o segredo com facilidade. Talvez seja tão velha que já não receia a morte, ou talvez esteja a usar as artes que conhece para
adormecer a dor. Já aguentou técnicas que fariam homens adultos sujarem-se.
Ele já fizera interrogatórios semelhantes a este antes, embora não com muita frequência. Seguem uma sequência lógica. Se uma pessoa aguenta até ao ponto em que se
arrisca a perdê-la sem resultados, é mais
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eficaz voltar a sua atenção para outra pessoa, alguém com quem o seu sujeito tenha laços - o marido ou a mulher, um filho, um pai ou mãe idosos. Existe uma destas
fendas frágeis na armadura mais forte. Mas esta velha mulher não tem família. Há anos que vive sozinha nos bosques.
Ele suspira. As suas mãos estão nojentas. Será necessário esfregá-las vigorosamente para retirar o sangue debaixo das unhas. A respiração da bruxa é um guincho,
outro elemento irritante. Não olha para ela; uma tal desordem ofende o seu olhar. E agora Aislinn está de regresso, ouve-a do outro lado da porta.
- Já terminaste, meu senhor? - perguntou a rapariga, educadamente, entrando e trancando a porta. Continua tão meticulosa como sempre; ensinou-a bem.
- Não consegui nada. - Não havia necessidade de fingir com Aislinn. Ela sabia tudo a seu respeito, tanto quanto uma simples rapariga de aldeia pode saber acerca
de uma mente como a dele, uma mente que paira acima daquelas das pessoas comuns, como uma águia acima das criaturas rastejantes da terra. Os pensamentos dele almejam
o elevado, o impossível, aquilo de que são feitos os sonhos e as visões. - Não quero matar a bruxa antes de ela me dar a resposta. Não percebo porque é que a guarda,
já está próxima da morte, para quê levar uma informação tão valiosa para a campa?
- Tenho aqui uma coisa que pode ajudar - oferece Aislinn, inesperadamente, num tom de voz melífluo. - Regressei à cabana dela depois de ter apanhado as ervas de
que precisava. E encontrei isto. - Levantou uma trouxa e a mulher amarrada à mesa deixa escapar um som sibilante, rolando os seus olhos avermelhados na direcção
daquilo que a rapariga traz nas mãos.
- Ah! - O ar sai-lhe com uma nota de triunfo. Tira o pequeno cão a Aislinn e leva-o até ao tampo da mesa, para perto da mulher, para que ela o possa ver. Uma sensação
de calor percorre-lhe o corpo, a antecipação do sucesso. - Aislinn, podes sair se quiseres.
- Ficarei a ver, Lorde Nechtan.
A criatura que ele tem nas mãos é bastante pequena. Ainda não está amedrontada - reconhece a sua dona e tenta aproximar-se o suficiente para lhe lamber o rosto.
- Penso que talvez estejamos preparadas para falar - disse o chefe tribal de Whistling Tor. E quando a mulher replica com apenas um gemido de horror, ele puxa pela
sua faca de lâmina fina, pesando-a causalmente na sua mão livre. - Sou um artista a fazer isto. Observa-me e aprende.
Depois de terminar, ele deita fora os detritos enquanto Aislinn limpa. A bruxa já estava pronta para cuspir os nomes dos ingredientes quando
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ele começou a trabalhar na sua criatura. Aislinn escreveu-os no seu pequeno livro, precisando as medidas, um de cada vez. Houve apenas tempo suficiente para obter
o último. Agora ele e a rapariga são os únicos seres vivos existentes no aposento subterrâneo, à excepção das coisas que rastejam nos cantos e percorrem as paredes.
Não existem muitas dessas: Aislinn mantém tudo impecavelmente limpo.
Ele observa-a agora enquanto ela esfrega a mesa. A diferença que um ou dois anos podem fazer. Aislinn era apenas uma criança quando ele reparou nela pela primeira
vez; não esperava que uma serva mostrasse um interesse tão intenso pelos mapas e cartas espalhados pelo aposento cujo chão ela estava a varrer. Não esperava que
a filha órfã de aldeões humildes aprendesse tão depressa, sedenta de conseguir dominar a leitura, a escrita e os números, e de depois passar para campos mais esotéricos
de estudo. A sua protegida tem sido esperta, desejosa de agradar e muito mais paciente do que ele, o que a torna uma assistente de valor inestimável. O tempo passou,
e Aislinn já não é uma criança. O cabelo dela é uma cascata de ouro líquido, as suas nádegas atrevidas movem-se para a frente e para trás enquanto ela balança a
escova. De repente, quere-a, sentindo o desejo pulsar no seu sangue. Não há dúvida de que ela seria tão rápida a aprender as artes da alcova como o fora a aprender
feitiçaria e que prazer ele teria a ensiná-la.
Mas não. Não pode permiti-lo a si próprio, existem outras prioridades. Tem de obedecer à letra à informação que obteve no Mosteiro de São Criodan: o conhecimento
vital que fora tão surpreendentemente dispendioso de adquirir. Deixe-me mostrar-lhe o estado lastimável do nosso telhado, Lorde Nechtan; será dispendioso repará-lo.
Quem teria acreditado que o irmão Gearalt esperaria até obter um tão generoso donativo para os fundos monásticos antes de abrir as portas para aquela colecção secreta
existente na biblioteca da fundação? Oh, e que colecção obscura era, repleta de surpresas intrigantes. O bom irmão não o deixou levar o livro consigo. Foi-lhe dado
apenas tempo suficiente para encontrar e ler a fórmula de palavras. Era o suficiente. Sabia o que queria.
- Com que brevidade consegues fazer a mistura? - pergunta a Aislinn.
- Pode levar alguns dias, Lorde Nechtan. - A rapariga afasta o cabelo da testa. Ele imagina as madeixas pálidas a percorrerem o seu corpo nu; pensa nela debaixo
dele, cedendo. - O visco tem de ser apanhado de determinada maneira. E alguns dos ingredientes precisam de ser moídos três vezes. - Passado um momento, ela acrescenta.
- Posso ficar e trabalhar até tarde. Posso dormir ali no canto.
Existia uma pequena enxerga que ambos já tinham usado de tempos a tempos quando uma experiência precisava de ser vigiada; descansavam
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à vez. Agora que ela era mais velha, isso já não parecia sensato. Mas o tempo é fulcral, porque o dia de Todos os Santos se aproxima. As peças têm de estar todas
prontas para encaixar nos seus lugares, senão haverá mais um ano de espera. Mais um ano em que Maenach lhe rouba o gado como se tivesse o direito de o fazer. Outro
ano a ser ostracizado porque ninguém compreende o significado do seu trabalho. Um ano de deslizes e de ofensas, de injustiças e de desconsiderações. É impensável.
- Tão perto - devaneia ele. - Menos de uma lua e depois um tal poder... Poder como nenhum deles pode algum dia sonhar, Aislinn, a capacidade de dominar não apenas
o miserável Maenach e o resto dos meus vizinhos chefes tribais, mas todo o distrito, toda a Connacht, toda a Erin se eu quiser. Contra o meu exército, ninguém poderá
vencer. Será uma força digna de um grande herói mitológico, como o próprio Cú Chulainn. Mal posso acreditar que está ao meu alcance... Não podemos perder um momento
que seja. Temos de ser precisos em todos os pormenores.
Regressam ao trabalho. Aislinn mistura pós, mói bagas secas, mede líquidos com uma atenção meticulosa. Ele debruça-se sobre os seus apontamentos, embora há muito
que saiba o encantamento de cor. Sabe-o até aos ossos, como uma coisa viva e potente. É o seu futuro. É a sua ascensão e a queda dos seus inimigos. É, pura e simplesmente,
poder.
A luz no aposento subterrâneo diminuiu. A imagem vacilou e desvaneceu-se e, com um estremecimento, eu voltei para mim própria. Na biblioteca, o sol jorrava pela
janela, iluminando o pergaminho que tinha na minha frente. Era reflectido pela superfície do espelho de obsidiana, em cuja moldura as pequenas criaturas se acotovelavam
ou se dobravam em posições de tristeza ou de medo, cabeças debaixo das asas, mãos sobre os olhos, braços em torno uns dos outros, como se o que fora visto fosse
demasiado lastimoso para contemplar.
Oh, Deus. Oh, Deus... Lágrimas transbordaram dos meus olhos. Pensamentos hediondos e imagens obscenas enchiam-me a cabeça. Senti-me imunda, suja, desprezível. A
bílis subiu-me à garganta, amarga e urgente. Fora! Fora deste sítio maldito! Cambaleei através do aposento, magoando a anca no canto pontiagudo de uma das mesas,
e caminhei aos tropeções para o jardim, onde me afundei nos joelhos e expeli o conteúdo do meu estômago por baixo de um arbusto de alfazema. O meu estômago contraiu-se
uma e outra vez. Entre os espasmos, lutei para conseguir respirar. Uma mão no meu ombro. Sobressaltei-me violentamente, com Nechtan à espreita na minha mente, e
a mão foi retirada.
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- O que se passa? Estás doente? - A voz de um homem. Esquecera-me de que Anluan estava no jardim. - Eu chamo Magnus - ouvi-o dizer.
- Não! - Entre os paroxismos do meu estômago e as visões negras da minha mente, tinha consciência suficiente para saber que não queria que o demasiado ocupado camareiro
fosse chamado das suas tarefas para cuidar de mim. - Peço desculpa. Eu sei que não devia estar no vosso jardim. Ficarei bem num instante... - Como se para fazer
de mim uma mentirosa, um novo ataque de tosse e de vómitos tomou conta de mim. O meu nariz e os meus olhos escorriam água.
Anluan acocorou-se a meu lado e, bastante desajeitadamente, estendeu-me o seu lenço.
- Muirne! - gritou ele.
Olhei para cima, limpando a minha cara sem grande resultado, e vi que ela estava para lá do banco, à sombra do vidoeiro. Não a vira quando olhara lá para fora a
primeira vez.
- Vai buscar água - disse Anluan. Era uma ordem e Muirne obedeceu em silêncio, saindo pela arcada.
Com o tempo, os espasmos pararam. Limpei o nariz e os olhos outra vez e levantei-me, trémula. Anluan também se levantou. Não tentou tocar-me de novo.
- Peço desculpa - consegui dizer. - Já posso ir-me embora. Sei que não gostas que ninguém venha para este jardim... - Olhei por cima do ombro para a porta da biblioteca.
Não havia qualquer possibilidade de eu regressar lá para dentro com aquela coisa destapada em cima da mesa. Dei um ou dois passos ao longo do caminho, pensando poder
fugir para a parte principal do jardim para recuperar em privado. Tudo se redemoinhou e se turvou à minha volta. - Preciso de me sentar - disse.
- Senta-te no banco, aqui. - E depois mais um silêncio embaraçoso. - Não sei como ajudar-te. Comeste algo que te fez mal?
Olhei para ele directamente nesse momento. Parecia a pergunta errada.
- O espelho - respondi, abanando a cabeça na vã esperança de que as imagens fugissem. - Aquele espelho que estava dentro do pequeno baú, com os documentos nos quais
estiveste a trabalhar... Como pudeste fazer-me isto? Como pudeste deixá-lo ali, sabendo o poder que ele tinha? Puxou-me para dentro; fez-me sentir... - Essa fora
a pior parte, a sensação de que eu era realmente aquele homem malévolo e de que estava a pensar aqueles pensamentos e a fazer aquelas coisas porque queria. Ali no
jardim os pássaros cantavam, as plantas cresciam e o Sol brilhava. Mas uma sombra tocara uma parte interior de mim e percebi que seria difícil de banir. - Fez-me
sentir suja - concluí, num sussurro.
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- Qual espelho? - perguntou Anluan. - Quando eu me limitei a olhar para ele, ele acrescentou: - A casa está cheia desses artefactos. Magnus deveria ter-te avisado
para não olhares para eles. - Sentara-se na outra extremidade do banco, o mais longe de mim de que foi capaz, e não me olhava nos olhos mas para o jardim, para nada
em particular. Não havia nem simpatia nem arrependimento na sua expressão. - Foste contratada para ler os documentos - admoestou - e não para mexericar no que não
te diz respeito.
A raiva dele provocou um novo nó no meu estômago. Sê corajosa, Caitrin. Defende-te.
- O espelho estava guardado juntamente com os documentos - respondi, perturbada. - Não estava a mexericar, estava a ser meticulosa. Como poderia estar preparada
para o que aconteceu?
Ele não respondeu. Esforcei-me por respirar calmamente, perguntando a mim própria quanto tempo levaria Muirne a trazer-me a água. Depois Anluan disse, com frieza:
- Preciso de um escriba com força de espírito. Talvez não sejas a escolha mais acertada para Whistling Tor.
Uma pequena centelha de raiva acendeu-se em mim.
- Tenho muita força de espírito para ler, escrever e traduzir, meu senhor. Magnus avisou-me acerca dos espelhos. Mas... talvez ele não soubesse da existência deste.
Foi... - Estremeci e pus as mãos sobre o rosto, mas as imagens nauseantes ainda desfilavam diante dos meus olhos. - Mostrou-me o que estava nos documentos como se
eu estivesse lá. Pôs os pensamentos de outra pessoa dentro da minha cabeça, como se ele e eu fôssemos um só... Lorde Anluan, não estou preparada para voltar à biblioteca
enquanto aquele espelho estiver em cima da mesa. Seria pouco razoável esperar isso de mim. O que eu vi foi... nojento. Foi malévolo.
Após um momento de silêncio, o chefe tribal de Whistling Tor disse:
- O que me estás a dizer? Que apesar das tuas competências, afinal não queres fazer este trabalho? Ah! - Fora um rosnar, amargo e doloroso. - Não me surpreende.
Estás a fugir como todos os outros fizeram. Ninguém permanece aqui.
- Magnus permanece - salientei. Falar com Anluan era um pouco como tentar argumentar com uma criança zangada. - E eu não vou fugir. Não disse que me ia embora.
- Se não entrares na biblioteca, não podes completar a tarefa. - Silêncio. Olhou em direcção à arcada, mexendo-se desconfortavelmente no banco. - Preciso do trabalho
feito. Não há mais ninguém que o faça. Diz-me o que viste nesse espelho. O que pode ser tão horrível que transforme uma escriba capaz - se é isso que és - numa desgraça
que vomita e treme.
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Engoli a resposta que me veio aos lábios.
- Não desejo pensar nisso e muito menos falar disso. Meu senhor - acrescentei devagar, não desejando provocar ainda mais a sua raiva -, podes tratar da retirada
do espelho antes de eu voltar ao trabalho?
- Ah! Então, regressarás à minha biblioteca?
Uma imagem do futuro apareceu na minha mente. Se dissesse que não, estaria de volta à estrada, sem meios, sem amigos e com a perseguição a aproximar-se de dia para
dia. Estaria em fuga o tempo que Cillian demorasse a encontrar-me e a arrastar-me de volta a Market Cross.
- Poderia pensar nisso, dadas as condições certas - respondi.
- Diz-me o que viste nesse espelho - pediu Anluan, e fixou os seus invulgares olhos azuis em mim com alguma intensidade. Devolvi-lhe o olhar, pensando que se não
fosse aquela característica desequilibrada do seu rosto, seria um homem bem-parecido, de feições fortes e pele clara, do tipo que cora com facilidade. A boca dele
era bem moldada, embora fosse mais dada à solenidade do que a sorrisos. Mas tudo estava torcido, como se o gelo o tivesse afectado apenas de um lado, deixando uma
criatura que era dois em um, forte e fraco, sol e sombra. Estava a olhar fixamente para ele. Lembrando-me do que Magnus dissera, desviei o olhar.
- É verdade que não sabias que o espelho estava no baú? - perguntei-lhe. - Magnus disse-me que a transcrição que estava em cima da mesa pequena era vossa. Os documentos
em que estiveste a trabalhar encontravam-se dentro dessa mesma caixa.
- Estás a acusar-me de mentir? - O seu tom era glacial. - Responde à minha pergunta. O que é que o espelho te mostrou?
Forcei-me a contar-lhe a história de sangue, de morte e de ambição presunçosa. Anluan ouviu em silêncio o meu relato e quando terminei disse calmamente:
- Tens de continuar o teu trabalho. Arrumarei o espelho antes de amanhã.
- Obrigada - agradeci, mas precisava de mais do que isso. - O que podes dizer-me acerca de Nechtan? Magnus explicou-me que os documentos dele são os que queres que
eu traduza. Seria mais fácil encontrá-los se soubesse um pouco da sua história. Magnus disse-me que és a única pessoa que aqui mora que sabe ler, meu senhor. Caso
contrário, não te incomodaria com as minhas perguntas.
- Nechtan era meu bisavô. Os escritos mais antigos são dele. Encontrarás também alguns escritos pelo meu avô, Conan, e depois existem os livros de anotações do meu
pai.
- Qual era o nome do teu pai, meu senhor?
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- Irial. - O tom dele desencorajou outras perguntas. - Irei tratar do espelho agora. Deves tirar o dia para te recompores. Começa de novo amanhã e ouve os avisos
de Magnus no futuro. Dedica-te ao trabalho que foste contratada para fazer e não interfiras com aquilo que não te diz respeito. Não podes esperar compreender tudo
o que se passa aqui em Whistling Tor e não há necessidade de o fazeres. É um lugar diferente dos outros lugares. Ou assim me dizem. Preciso que fiques. Preciso do
trabalho feito.
Levantou-se e coxeou até à biblioteca, deixando-me sozinha no jardim murado. O jardim de Irial, como Magnus lhe chamara. Os livros de anotações do meu pai. Era provável
que Irial tivesse escrito aqueles meticulosos apontamentos botânicos que eu vira anteriormente e que executara os minúsculos e excelentes desenhos que os acompanhavam.
Olhei de relance para o pequeno livro que Anluan deixara no assento, perguntando-me se ele teria estado a ler o trabalho do seu pai. Estava revestido em fino couro
de vitela, marcado com um padrão de folhas, mas quando levantei a capa para espreitar para dentro, a letra que vi atravessada no pergaminho creme não era a fina
e longa caligrafia dos livros de anotações do jardineiro, mas a irregular e laboriosa caligrafia de Anluan. Alguém pigarreou. Fechei o livro apressadamente para
não ser apanhada a bisbilhotar. Muirne estava a cerca de quatro passos de distância de mim, com uma caneca na mão. Tinha a capacidade perturbadora de se mover quase
sem emitir um ruído.
- Obrigada - agradeci, levantando-me para aceitar a caneca de água. Os dedos dela estavam frios. - Já me sinto muito melhor.
- Viste algo que te assustou. - Era uma afirmação, não uma pergunta. - Um espelho? - Quando eu anuí, ela disse: - Aqui existem muitas histórias. Muitas memórias.
Este não é um lugar fácil.
- Começo a perceber isso - confessei, feliz por ela ter tirado tempo para falar comigo, mesmo que a sua atitude fosse um pouco estranha. - Suponho que é melhor eu
ir andando. Este é o jardim privado de Lorde Anluan. Alguém me chama quando for hora da ceia? - Beberiquei um golo e depois pousei o copo em cima do banco.
- Suponho que sim - respondeu Muirne.
- Obrigada. - Deveria acrescentar minha senhora? Não fazia a menor ideia qual era o lugar dela nesta casa invulgar, apenas que se não fizesse um esforço em relação
a ela, o Verão iria parecer muito longo. Pensara que ela talvez fosse a mulher de Anluan, mas ele tratara-a como se ela fosse uma serva. Sorri para ela e depois
saí do jardim pela arcada, com a minha mente cheia de perguntas por responder.
CAPÍTULO TRÊS
Não consegui arranjar coragem para andar a explorar, apesar de Anluan me ter dado o resto do dia de folga. Retirei-me para o meu quarto pouco acolhedor e sentei-me
na enxerga, a pensar. Mesmo com o espelho retirado, mal podia suportar a ideia de voltar a passar o limiar da biblioteca. O trabalho envolveria, por certo, investigar
mais profundamente a vida desagradável de Nechtán. O pequeno baú poderia conter a parte seguinte do seu diário, onde a experiência na qual ele estava a trabalhar
poderia ser explicada por completo, nos seus pormenores mais repelentes.
A ideia enojava-me. E fascinava-me. Para meu grande horror, percebi que queria continuar a ler. Teriam Nechtán e a sua assistente aberto o dito portal e invocado
um temível exército? Seria isso possível? Se usasse o espelho de novo, será que este abriria a mesma janela para os pensamentos negros daquele homem? O que veria
neles?
Estremeci, recordando. Por nauseante que a cena da visão tivesse sido, igualmente chocante era o facto de Nechtán ter evidentemente ensinado à sua assistente não
apenas competências de feitiçaria mas também os seus códigos morais distorcidos. Fora ela que trouxera o cãozinho; essa fora uma ideia dela. Escolhera ainda ficar
no aposento a ver enquanto Nechtán demonstrava a sua perícia na tortura. Na imagem do espelho, ela fora uma presença na sombra, uma figura debruçada a esfregar uma
mesa, uma cascata de cabelo dourado. Nunca lhe vira bem o rosto. Mas a sua voz revelara a sua aprovação, a sua admiração, a sua vontade servil de ajudar. Se fora
Nechtán que a fizera ficar assim, o bisavô de Anluan fora realmente um homem perverso.
Quando começou a ficar escuro, aventurei-me a sair para ir buscar água à bomba, transportei-a até ao meu quarto num balde e lavei a cara e as mãos. Escovei e entrancei
o cabelo, prendendo as tranças no alto da
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cabeça. Sem um vestido lavado que pudesse vestir - o que usara na viagem precisava de ser esfregado e arejado - o melhor que pude fazer foi dar uma escovadela ao
vestido verde. Se ia ficar ali, precisaria de mais roupas para vestir durante o Verão. Tinha uma camisa de noite e uma muda de roupa interior. À parte disso, a minha
trouxa continha apenas um lenço bordado que pertencera à minha mãe e uma boneca que Maraid me fizera depois de a minha mãe morrer. Róise tinha apenas a altura de
uma mão. As suas feições eram trabalhadas com linha fina e tinha cabelo escuro e sedoso, da mesma cor do meu. A sua saia castanho-avelã fora feita com uma saia da
minha mãe e a sua túnica de linho creme com uma das camisas do meu pai. A fita azul de Maraid, a minha preferida, formava a sua faixa. Não podia olhar para Róise
sem pensar na minha família. A boneca fazia-me sentir triste e alegre ao mesmo tempo. Nos tempos de trevas, apertara-a contra o peito a noite inteira. Encharcara
o seu rosto bordado com as minhas lágrimas de impotência e de desgosto. Pousei Róise na almofada. Parecia um pouco deslocada naquele quarto vazio e escuro. Tinha
de pedir um candeeiro a Magnus ou, pelo menos, uma vela; aquelas escadas deviam ser traiçoeiras à noite. Quanto à questão do vestuário, a primeira mostra de tempo
húmido deixar-me-ia em dificuldades. Não antecipara passar tanto tempo num lugar onde não haveria oportunidade de costurar ou de pedir emprestadas roupas adequadas.
Era mais uma prova de como planeara mal a minha fuga de Market Cross. Talvez o pragmático Magnus tivesse uma resposta. Talvez me dissesse para perguntar a Muirne.
A mulher de um chefe tribal - se era isso que ela era - geralmente dava a sua roupa usada aos pobres e merecedores, mas mesmo que Muirne me colocasse nessa categoria,
não havia qualquer maneira de fazer com que as vestimentas dela me servissem. Ela era de constituição franzina, enquanto eu era uma versão mais pequena da figura
da minha irmã, com peito e traseiro generosos e cintura estreita. Ita comentara uma vez que era o corpo de uma rameira.
Devidamente arranjada, dirigi-me para a cozinha onde a mesa fora liberta da parafernália culinária e estava posta com sete tigelas, sete colheres e sete cálices.
Magnus mexia uma panela que estava no lume.
- Posso fazer alguma coisa para ajudar? - perguntei.
Antes de ele poder responder, uma figura familiar com uma capa vermelha e um cordão de oiro fez uma entrada própria da realeza no aposento.
- Rioghan! - exclamei, descobrindo que ficara satisfeita por encontrar uma cara familiar, ainda que de há pouco tempo.
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- Bem-vinda a Whistling Tor, Caitrin - cumprimentou Rioghan, e inclinou-se para fazer a sua bem ensaiada vénia. - Que maravilha. Vemos poucos visitantes por aqui
e ainda menos mulheres bonitas.
Senti-me ruborescer.
- Estás a embaraçar a rapariga, Rioghan - admoestou Magnus, pousando a panela na mesa. - Ela não é uma das tuas damas namoradeiras da corte.
- Estava apenas a dizer a verdade - ripostou Rioghan. - Por favor, senta-te, Caitrin. Há uma lamentável falta de cerimónia nos nossos repastos aqui. Contudo, a nossa
hospitalidade é genuína.
- Obrigada - agradeci, e sentei-me. O conselheiro do rei ocupou o lugar à minha frente.
O homem da floresta, Olcan, chegou depois, com Fianchu a segui-lo de perto. O enorme cão dirigiu-se directamente para um canto perto da lareira, onde estava um osso
carnudo ao lado de uma pilha de sacas velhas. Fianchu deitou-se em cima das sacas e começou a morder com vontade.
- Ah, Caitrin - cumprimentou o homem da floresta. - Então encontraste a casa. Ficas?
- Durante um período de experiência. Deram-me um trabalho para fazer na biblioteca.
- Óptimo - observou Olcan, sentando-se a meu lado. - Espero que fiques durante algum tempo. Fianchu gosta de ti. Não é, rapaz?
Concentrado no seu osso, Fianchu não respondeu.
- Isso cheira bem, Magnus - disse eu.
- A refeição será humilde, ai de mim - lamentou-se Rioghan, num tom melancólico. - Os tempos mudaram em Whistling Tor. Esta foi em tempos uma bela casa, Caitrin.
A ceia era servida no salão. A cerveja fluía copiosamente. O chão cobria-se de tapetes de juncos de aromas doces. Bardos entretinham os convivas com a harpa e a
flauta. Depois da refeição, dançávamos.
Suspirou.
Magnus começara a distribuir o conteúdo da panela, servindo cada um de nós à vez. Pareceu-me estranho estarmos a começar sem Lorde Anluan ou Muirne, para quem, pelas
minhas contas, tinham sido postos lugares à mesa. Mas não era eu, a recém-chegada, quem devia dizer algo sobre isso. Quando ouvi passos no corredor, pensei que fossem
eles a chegar, mas foi o irmão Eichri quem entrou, parecendo ainda mais magro e pálido do que antes. Havia uma transparência na pele dele que me permitia ver com
clareza os ossos que estavam por baixo. A sua elevada tonsura frontal fazia a cabeça dele parecer uma caveira. No dia anterior,
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ele usara uma capa por cima do hábito. Naquele momento, sem essa peça de vestuário, reparei que em vez do crucifixo de um monge ele trazia ao pescoço um colar peculiar.
Havia estranhos objectos pendurados nele, coisas que eu não estava certa de querer identificar. Lembravam-me a cena desagradável que vira no espelho de obsidiana.
Brígida nos acudisse, o homem era esquelético. Os ossos dele pareceram chocalhar quando se instalou do meu outro lado.
- Caitrin, filha de Berach - cumprimentou ele com um sorriso caloroso. - Que prazer. Os aldeões assustaram-te, foi isso?
- Não, eles deixaram-me entrar - respondi eu, percebendo que demonstrara de facto alguma coragem no passado dia e meio. - Passei lá a noite e vim para cima esta
manhã.
- Ela está a trabalhar aqui - informou Magnus. - Faz trabalho de escriba para Anluan. Está à experiência. Lembrem-se de usar boas maneiras, vocês dois.
- Estou feliz por voltar a ver-te, irmão Eichri - devolvi. A presença de um homem santo naquele lugar de sombras e sussurros era reconfortante.
Do outro lado da mesa, as sobrancelhas de Rioghan elevaram-se acima das pestanas.
- Irmão? - ecoou ele. - Há muito que ele abdicou de qualquer direito a esse título. É bem mais provável que Eichri seja considerado um pecador, um malfeitor, um
transgressor, um apóstata, um criminoso...
Parou, talvez reparando na minha expressão.
- Pensei que fossem amigos - proferi eu, chocada com o desabafo.
- E são - respondeu Magnus, colocando um prato com pão na mesa. - Eles andam sempre nisto. Não deixes que isso te incomode. - Sentou-se ao lado de Rioghan. - Ouvi
dizer que tiveste um pequeno problema com um espelho.
- Tive. - A recordação fez-me estremecer. - O que ele me mostrou foi tão horrível que fugi para o jardim de ervas e até vomitei. Felizmente, Lorde Anluan estava
lá e pude explicar-lhe o que aconteceu. Ele disse que guardaria o espelho antes de eu voltar ao trabalho outra vez.
Percebi que todos os olhos estavam voltados para mim com variados graus de assombro neles espelhados.
- Disse algo errado? - perguntei.
- Apenas surpreendente - respondeu Magnus. - Vá lá, come, está a arrefecer.
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Olhei para os outros. Magnus mergulhara a colher na sua tigela, prestes a começar. Olcan estava a servir-se de pão. Eichri e Rioghan estavam a olhar um para o outro,
um de cada lado da mesa.
- Lorde Anluan e Lady Muirne comem à parte? - perguntei. Eichri surpreendeu-me com um acesso de riso.
Magnus replicou:
- Habitualmente, eles comem connosco. Somos poucos e não fazemos cerimónias. Mas Anluan sente-se pouco à vontade ao pé de pessoas vindas de fora. Poderá não comparecer
esta noite.
- Comparece - afirmou Rioghan com insistência. - Aposto uma moeda de ouro contra o que puderes apostar, irmão.
- Não comparece - retorquiu Eichri. - Aposto o osso do dedo de uma mártir virgem, conselheiro.
- Um quê? - balbuciei.
- Oh, ele deve ter um, sim - retorquiu Rioghan. - Tem-nos de todos os tipos.
E quando olhei de novo, vi que os objectos suspensos do cordão que o monge trazia ao pescoço incluíam uma série de delicados ossos. Talvez fossem humanos e talvez
não fossem. Era uma das muitas perguntas que eu sabia que não faria.
- A propósito - concluiu Magnus, mergulhando um pedaço de pão na sua tigela -, Muirne não é a senhora da casa, embora se comporte como se fosse.
Este comentário era-me dirigido.
Não deu qualquer outra explicação e pareceu-me desadequado pedi-la. Talvez Muirne fosse uma parente de posses limitadas, do tipo que frequentemente encontram abrigo
na casa de um nobre. Isso explicaria em muito a atitude dela.
Uma ligeira perturbação do ar; olhei para cima para ver a familiar figura vestida de cinzento à entrada da porta, com os seus enormes olhos pousados em mim. Senti-me
como se a tivesse invocado com os meus pensamentos. Ela entrou no aposento, dirigindo-se para as prateleiras e pegando num tabuleiro.
- Ele não se junta a nós, então? - perguntou Magnus.
- Comerá no quarto dele esta noite. - Ela trouxe o tabuleiro para a mesa. - Está cansado. Desanimado. - Numa sequência de movimentos que eram tão ajustados e sem
esforço que percebi que faziam parte de uma rotina repetida com frequência, ela pegou na tigela de Anluan e segurou-a enquanto Magnus a enchia. Juntou uma colher
e uma faca ao tabuleiro. Magnus cortou um naco de pão; Muirne colocou-o com delicadeza ao lado da tigela. Olhou na minha direcção uma ou duas
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vezes e pude ver na sua expressão que eu era a causa da ausência de Lorde Anluan. Muirne levou o tabuleiro para o banco, pegou num jarro e encheu o copo de sua senhoria.
- Paga, conselheiro - exigiu Eichri, esfregando as suas mãos ossudas com regozijo. - Deixa-me lá ver a cor do teu ouro.
Rioghan suspirou, enfiou a mão nas pregas fundas da sua capa vermelha e fez rodopiar uma moeda brilhante por cima da mesa enquanto a atirava até aos dedos magros.
- Tem a mesma cor que tinha ontem - respondeu ele com um tom de voz resignado. - Irmão.
- Espero que Lorde Anluan se sinta bem em breve - obriguei-me a dizer enquanto Muirne se dirigia para a porta, concentrada na sua missão. Abandonou o aposento sem
dizer uma palavra. Talvez não me tivesse ouvido.
- Alguém quer cerveja? - perguntou Magnus, levantando-se para ir buscar o jarro. Olhou para mim. - Não te apoquentes com Muirne - disse. - Nenhum de nós está acostumado
a receber visitas. Ela preocupa-se com Anluan e não gosta de o ver perturbado. É uma alma bem-intencionada.
Eu tinha fome, o que não era surpreendente depois do que acontecera anteriormente. Magnus e Olcan comiam bem, como pessoas que estiveram um dia inteiro a fazer trabalho
físico, mas Rioghan e Eichri apenas debicavam as pequenas doses que lhes haviam sido dadas. Esperava que Muirne regressasse e comesse connosco, uma vez que não levara
alimentos para si própria, mas a refeição progrediu e ela não veio.
- És um óptimo cozinheiro, Magnus - elogiei. A ceia era algo entre uma sopa e um guisado, com muitos vegetais e pouca carne, mas temperada com uma interessante mistura
de ervas. - É uma refeição deliciosa.
- Aprecia-a enquanto há - respondeu ele. - Tivemos provisões frescas hoje. De agora em diante é sempre a piorar até à próxima vez que vá visitar Tomas.
- Mas devem produzir uma quantidade de coisas aqui em cima - aventurei-me a comentar, pensando nas actividades agrícolas sobre as quais lera anteriormente.
- Faço o que posso. Olcan ajuda-me. - Magnus mergulhou o seu pedaço de pão na tigela. - Temos galinhas, duas vacas, alguns outros animais, e os vegetais, claro.
Mesmo assim, não podemos fazer milagres. Também cozinhas?
- Nem por isso. Era a minha irmã quem fazia essas tarefas.
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- A tua irmã, hem? - Rioghan encostou-se para trás na sua cadeira, examinando-me. - Ela foi feita no mesmo molde que tu, toda curvas e caracóis?
Não consegui emitir a resposta desembaraçada que era exigida. Em vez disso, ouvi Ita falar dentro da minha cabeça, a voz dela um sussurro trocista: Vês o modo como
os homens olham para ti? Foste feita para ser uma rameira, Caitrin. Fica grata por Cillian querer casar contigo. Sem ele irias por mau caminho.
- Estás a perturbar a jovem senhora, conselheiro. A voz cavernosa de Eichri era dura.
- Maraid é bastante parecida comigo, mas maior - respondi. Tinha de encontrar um novo rumo para a conversa. - Há quanto tempo é que vives em Whistling Tor, irmão
Eichri?
Riram-se, o monge, o conselheiro, Olcan e Magnus, todos juntos.
- Parece que desde sempre - respondeu Rioghan num tom severo. - Estamos fartos do homem.
- Há demasiado tempo - retorquiu Eichri. - E, no entanto, não há tempo suficiente.
Não havia nada que eu pudesse dizer em resposta àquilo, uma vez que não fazia ideia do que ele queria dizer, apenas que me parecia muito triste.
- Eu... Magnus, disse-me algo antes que sugeria... Não quero intrometer-me, mas não existe mais ninguém a viver aqui, para além de vós, isto é? E uma casa tão grande.
Como conseguem passar sem camareiros, ajudantes para a quinta, pessoas que lavem a roupa, esfreguem o chão, cuidem do gado?
Magnus partiu um pedaço de pão com as suas grandes mãos capazes.
- Somos apenas nós - disse ele, olhando em volta da mesa. - Nós e os que estão lá fora na floresta.
- Isso torna-te uma surpresa encantadora, Caitrin - acrescentou Rioghan. - A nossa teia empoeirada apanhou uma esplêndida borboleta.
- Quanto a como o conseguimos, um homem faz aquilo que tem de fazer - concluiu Magnus. - Trabalhamos muito.
Inspirei profundamente.
- Magnus - aventurei-me -, referiste os que vivem lá fora na floresta. Quem são eles? - Sentindo a pressão dos olhos de quatro homens em cima de mim, acrescentei:
- É só que, quando subi o monte, quando Olcan e Fianchu me encontraram, ouvi estranhas vozes, vozes que me fizeram perder o rumo. E estou certa de ter sentido...
mãos. Lá em baixo na aldeia, as pessoas falaram de uma maldição, acerca de seres medonhos
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que existem no monte. Se vou ficar aqui, ficaria mais contente se soubesse exactamente o que estes seres são. - Ou talvez não, pensei, assim que acabei de falar.
Se a visão de Nechtan no espelho de obsidiana fosse um indicador do que poderia esperar em Whistling Tor, talvez fosse preferível viver na ignorância.
Os quatro homens olharam uns para os outros. Cada um deles parecia estar à espera que um dos outros respondesse.
- Naquele espelho que vi antes - continuei, tentando não o ver de novo -, um homem chamado Nechtan, um antepassado de Anluan, falava de um... exército. Preparava
uma experiência, esperando que o resultado o tornasse poderoso. Pelos meus cálculos, aconteceu há cerca de uma centena de anos. A gente da aldeia disse que todo
este lugar tem estado sob uma maldição desde há cem anos. Pensei... bem, suponho que isso não me diz respeito, mas tenho de ler os documentos da família, por isso...
a maldição data do tempo de Nechtan? Tem algo a ver com as vozes sussurrantes e as mãos rastejantes? Esses outros que referiram são os que vivem na floresta? - Não
acreditava que estava a fazer aquelas perguntas. A velha Caitrin, a calma e serena, não teria hesitado, teria procurado qualquer informação de que precisasse para
fazer um bom trabalho. Levantei o queixo. Poderia voltar a ser essa mulher, se tentasse.
Olcan tinha o cotovelo apoiado na mesa e a sua cabeça musgosa repousada numa mão.
- É uma longa história, Caitrin - respondeu. - Só precisas de saber que o Tor é antigo. É mais antigo do que a memória de um homem comum, mais antigo do que a mais
antiga história que jamais foi contada à volta da fogueira à hora da ceia. Uma centena de anos é apenas uma piscadela de olho para este lugar. Existem muitas memórias
nestas paredes, existe muito poder nestas pedras. Sim, existe gente lá fora nos bosques que não é bem o homem de armas comum ou a habitual criada de cozinha. Alguns
verás, outros ouvirás, e alguns poderão passar por ti sem que repares neles. Não deves ter medo.
- Gente - consegui dizer. Estava com a pele arrepiada no corpo todo. - Que género de... gente?
- De todos os géneros, Caitrin - respondeu Magnus, calmamente. - Nada com que te devas preocupar. Estás aqui no Tor como convidada de Anluan. Enquanto aqui estiveres,
Anluan proteger-te-á. Nada nem ninguém te poderá tocar.
Não foi uma noite repousante. A roupa de cama que me fora dada não era suficiente para afastar o frio e quando conseguia adormecer
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Nechtan confundia-se com Cillian nos meus sonhos, fazendo-me acordar em sobressalto, com o coração a bater fortemente e o corpo ensopado em suor. Quando já não aguentava
mais, levantei-me, fiz deslizar o ferrolho recém-instalado na minha porta e saí para a galeria que ladeava os quartos do andar de cima. Ali fiquei com os meus pés
descalços no tapete de restos de folhas e galhos e olhei para fora para o agradável caos do jardim, as árvores e os arbustos iluminados pela Lua velada de nuvens,
formando tons incertos de azul e de cinza. Perto do lago, uma figura de capa vermelha andava para a frente e para trás, para a frente e para trás. Então, era verdade:
havia uma sentinela nocturna de serviço. Fiquei a observá-lo durante algum tempo e, num dado momento, ele olhou para cima e levantou uma mão pálida num gesto de
saudação. O frio obrigou-me a regressar à cama, onde fiquei às voltas até ser manhã.
Assim que clareou, desci até à cozinha onde Magnus já tinha o lume aceso e água a aquecer.
- Não nos reunimos para o pequeno-almoço - informou o camareiro. - Se queres água para te lavares, terás de esperar. Agora não tenho tempo para a tirar com a bomba.
- Eu própria o farei - respondi, esperando que isto não fosse contra qualquer regra.
Olhou-me de soslaio. Não foi hostil.
- Assim é que é. A bomba está do lado de fora da porta das traseiras, no pátio. Leva esse balde que aí está, que é mais leve de carregar do que o outro. Vou deixar
uma panela de papas de aveia junto ao lume. Serve-te à vontade quando estiveres preparada. Não sei quando queres começar a trabalhar.
- Cedo - respondi. - Há muito que fazer.
Cometi o erro de enrolar as mangas antes de sair da cozinha e apercebi-me imediatamente do olhar do homem grande. Voltei-me, mas não antes de ele ver as nódoas negras
que eu tinha nos braços.
- Quem te fez isso? - perguntou Magnus, com um tom na sua voz que teria feito um homem adulto tremer. - Quem te fez essas marcas, Caitrin?
- Não tem importância - murmurei, puxando as mangas para baixo. Dirigi-me para a porta de acesso ao pátio, mas ele chegou lá antes de mim, bloqueando a passagem
com a sua figura sólida.
- Tem, sim. Sabíamos que andavas fugida. Parece óbvio, não? Por que outro motivo é que alguém quereria ficar aqui durante o Verão se não para fugir de algo? Rioghan
disse-me que tens nódoas negras no corpo todo.
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- Rioghan? - Como é que ele podia saber das marcas que Cillian fizera no meu corpo, das que existiam nos meus braços e das muitas mais que se escondiam por baixo
do meu vestido?
- A noite passada, no jardim - respondeu Magnus, e eu lembrei-me que estivera de pé na galeria aberta, vestida com a minha camisa de noite, enquanto o conselheiro
patrulhava o jardim lá em baixo. Rioghan poderia ter conseguido ver uma boa extensão do meu braço, do meu ombro, e da parte de cima do meu peito. - Quem te magoou?
- Não interessa quem foi - respondi eu. - As nódoas negras desaparecerão. Desaparecerão em breve.
- É claro que interessa. Alguém te bateu, não uma vez mas repetidamente, isso é mais do que óbvio.
- Não tem importância - murmurei. - A sério.
Magnus colocou as suas grandes mãos nos meus ombros. Apesar da gentileza do seu toque, não pude evitar encolher-me. Ele falou calmamente, deixando as mãos onde estavam.
- Para nós, tem importância, Caitrin. Talvez não tenhas tido ninguém que te defendesse, talvez tenhas estado por tua conta. Mas agora estás em Whistling Tor. Fazes
parte da gente de Anluan. Se um homem pensasse em colocar as suas mãos violentas em cima de ti agora descobriria rapidamente que já não estás sozinha.
Os meus olhos encheram-se repentinamente de lágrimas. Não consegui encontrar palavras. Quando ele me libertou e recuou, anuí simplesmente com a cabeça, peguei novamente
no balde e saí.
Quando terminei as minhas abluções e regressei à cozinha, Magnus partira. Comi as minhas papas de aveia e depois dirigi-me para a biblioteca.
Junto ao limiar, hesitei, olhando de soslaio para a mesa onde antes estivera a trabalhar. As páginas contendo o relato de Nechtan continuavam espalhadas em cima
da mesa. Numa das extremidades do espaço de trabalho estava uma pilha considerável de outras folhas soltas e o pote de pedra fora colocado em cima delas para que
as correntes de ar não as pudessem espalhar. Não havia sinal do espelho.
Inspirei profundamente e entrei. O baú no qual encontrara os escritos de Nechtan estava no chão, com a tampa fechada. No centro da mesa estava uma tira de pergaminho
na qual estavam escritas duas linhas numa caligrafia inconfundível.
Espelho no baú. Todos os papéis estão aqui.
Enchi-me de gratidão por aquele escrito conciso e elegante, embora tivesse ficado mais contente se ele tivesse tirado o espelho da biblioteca. Eu conhecia a sua
capacidade de atracção, mesmo de dentro de um baú. Paciência.
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Fizera um plano para o dia de trabalho e começaria a executá-lo. Organizar os papéis do baú nessa manhã, ler tudo o que estivesse escrito em latim. Começar a limpar
a biblioteca da parte da tarde.
À medida que a manhã passava, percebi que havia um aspecto deste tipo de erudição que eu não previra: o tédio. A história da crueldade de Nechtan fora desagradável,
mas dramática. Teria captado a minha atenção mesmo sem a visão que a acompanhou. O que tinha diante de mim naquele dia era absolutamente mundano e prosaico. Um inverno
particularmente difícil, com perdas de gado. Uma boa colheita de peras. Uma cavalgada sem incidentes para visitar um chefe tribal chamado Farannán. Sarilhos não
especificados a insurgirem-se a sudeste. Nada acerca da família de Nechtan, da mulher que ele desconsiderara de forma tão cruel, do filho recém-nascido. Nenhuma
referência à experiência ou à sua demanda pelo poder. Quem teria pensado que a figura cruel e enigmática da visão poderia ser tão... vulgar?
Ia adormecendo enquanto lia. Olhei pela janela, perguntando-me se Anluan estaria de novo no jardim, mas não havia sinal dele. Começara a cair uma chuva ligeira;
as folhas verde-acinzentadas da camomila e do absinto inclinavam-se sob a sua gentil persistência. Voltei o meu olhar novamente para a página onde Nechtan descrevia
uma disputa acerca do acesso a uma certa área de pastagem. As minhas pálpebras descaíram.
Acordei com uma dor no pescoço e com a sensação desconfortável de ter estado a dormir com a cabeça em cima dos braços durante muito tempo - a luz dentro da biblioteca
mudara e o meu corpo doía com cãibras. Endireitei-me e percebi que já não estava só. Anluan estava parado na porta que dava para o jardim, observando-me. Debaixo
do escrutínio daqueles olhos penetrantes, vacilei. Não foi um bom começo.
- Dormes profundamente - observou ele.
- Peço desculpa. Estive acordada a maior parte da noite. Estava frio. E... - Não, não lhe contaria a minha fuga de Market Cross ou a exaustão que era mais que física.
Não falaria dos pesadelos. - Obrigada por o teres guardado, Lorde Anluan - acrescentei. - Refiro-me ao espelho.
- Hum. - Ele ainda tinha os olhos fixos em mim. O seu olhar tornara-se atento, intrigado, como se estivesse a tentar perceber exactamente que tipo de criatura era
eu. - Não me trates por lorde, apenas por Anluan. Não usamos títulos nesta casa. É melhor regressares ao teu trabalho.
- Sim, eu... Posso fazer-te uma pergunta, Lorde... Quero dizer, Anluan? - Quereria mesmo este chefe tribal que eu o tratasse pelo seu nome próprio?
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- Uma pergunta. Que pergunta? - O tom dele era pouco encorajador.
- Contaram-me... os outros contaram-me, durante a ceia de ontem à noite, acerca de certas... presenças, nos bosques. Avisaram-me contra a mesma coisa lá em baixo
na povoação e pensei que as pessoas estivessem a exagerar, como por vezes se faz, para tornar a história mais interessante. Mas parece que é verdade.
Anluan olhava para mim e tudo o que consegui perceber pelas suas feições irregulares foi um profundo desejo de estar noutro lugar. Depois de uma longa pausa, ele
disse:
- Gostas de conversar.
- Não sei o que queres dizer - ripostei, abalada.
- Tens facilidade em conversar.
- Nem sempre. - Cillian costumava esperar até que Ita saísse para ir a qualquer lado. Só me batia quando estávamos sozinhos. Estava habituada a estar tão amedrontada
que nem sequer me conseguia mexer, muito menos falar. Desprezara-me a mim própria por permanecer muda e queda enquanto ele me magoava, mas a pequena voz dentro de
mim, a que gritava Não!, fora abafada pelo bater aterrorizado do meu coração. Depois de ter contado a Ita da primeira vez e de ela não ter acreditado em mim, depois
de ter percebido que ela não via as nódoas negras, nunca mais tentei contar. - Mas... seria útil se pudesses responder a algumas das minhas questões, uma vez que
és a única pessoa que aqui está que sabe ler e escrever. Se esperas que eu faça sentido destes registos... - A minha voz desvaneceu-se, a expressão dele estava a
ficar mais distante com cada palavra que eu proferia.
- A tarefa é bastante simples - redarguiu Anluan, sem se mexer da sua posição junto à porta. - Organizar, ler, traduzir. O teu trabalho não tem qualquer relação
com estas histórias e boatos. Qual é a tua pergunta?
- É... eu... disseste histórias e boatos. - A tensão deu-me a volta ao estômago, uma sensação familiar. - Não é verdade o que os outros disseram acerca dos estranhos
seres da floresta?
A boca assimétrica apertou-se numa linha fina. Zangara-o. Senti-me encolher, embora ele não se tivesse mexido.
- O que é que isso importa? - disparou Anluan. - Consegues fazer este trabalho sozinha ou não?
Obriguei-me a respirar. Não é Cillian. Fica calma. Fala.
- Eu... eu... - A minha voz soava aguda e débil. Pigarreei e tentei de novo. - Consigo fazê-lo sozinha, sim, embora não até ao final do Verão. Se me pudesses ajudar...
se... - Juntei as mãos uma na outra; ele
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pensaria que eu era atrasada se isto era o melhor que conseguia fazer. - Ajudaria se eu soubesse quais são os escritos de Nechtan - consegui dizer. - Reparei que
ele utiliza duas caligrafias diferentes, uma para o irlandês e outra para o latim, ou assim me pareceu.
Anluan envolveu o seu braço direito fraco com o braço bom, por baixo da capa que ele parecia usar até dentro de casa.
- Os documentos do baú, aqueles que coloquei em cima da mesa para ti, são todos de Nechtan - esclareceu ele, num tom de voz mais calmo. - Sim, ele usava dois estilos
diferentes. Conan tinha uma caligrafia irlandesa parecida com a do pai, mas dar-te-ás conta de que a sua escrita era menos regular. A escrita de Irial era informal
e muito mais fina. Ele preferia uma pena estreita. - Depois, com um aceno de cabeça apressado, o chefe tribal de Whistling Tor saiu outra vez pela porta, para o
jardim, deixando-me a sós com o meu trabalho.
Analisando a estranha conversa, considerei que era uma pequena vitória o facto de ele me ter dado uma resposta útil à minha segunda pergunta. Nechtan, Conan, Irial.
Havia três tipos de registos a encontrar, quatro caligrafias distintas, e apenas um conjunto de documentos para ser traduzido. Poderia apressar consideravelmente
o trabalho se organizasse primeiro as folhas soltas, arrumando-as de uma forma ordeira e fazendo um catálogo das mesmas enquanto avançava. Não era assim tão difícil.
Lancei-me ao trabalho mais uma vez, folheando os registos e tentando colocá-los por ordem cronológica. Foi apenas quando ouvi Fianchu ladrar algures lá fora que
percebi que há algum tempo que olhava para a mesma folha, enquanto a minha mente vagueava sobre Whistling Tor e sobre o seu chefe tribal extremamente estranho, um
homem que não era apenas um dos mais antipáticos que eu já conhecera, mas que ainda parecia incapaz de manter uma conversa normal. O que o atormentaria? O rosto
disforme, o braço e a perna magoados que o impediriam de realizar as actividades físicas esperadas de um homem na sua posição: caçar, montar, lutar. Teria também
alguma limitação mental que distorcesse a sua percepção e o tornasse propenso a repentinos acessos de cólera? Lembrei-me de um jovem chamado Seamus Sorridente, em
Market Cross. Rezava a história que a parteira deixara cair Seamus de cabeça pouco depois de ele nascer; fosse qual fosse a causa, ele tornara-se diferente das outras
pessoas, lento na aprendizagem, muito infantil, mas de temperamento amável. Anluan era o contrário de amável. E era um erudito. Por outro lado, algumas das suas
elocuções eram quase infantis, estranhamente directas, como se visse o mundo através de uns olhos mais simples do que a maioria. Havia certamente algo de estranho
nele, algo que não batia certo.
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Levantei-me, desentorpeci os membros e vagueei pela biblioteca. Precisava de lidar com isto de uma forma diferente, caso contrário não faria qualquer progresso.
Cerrando os dentes, varri o conteúdo de uma das mesas maiores para uma pilha num canto. Comecei a ver os documentos um a um, pegando em cada pequeno livro, rolo
ou folha de pergaminho, limpando-lhe o pó com a dobra da minha saia, lendo algumas linhas e depois colocando o artigo no grupo a que pertencia. A mesa de trabalho
depressa se organizou em três pilhas de registos - os de Nechtan, na sua maioria folhas soltas de pergaminho deteriorado, manchado de castanho devido à idade e a
desintegrar-se nas zonas dobradas, os do seu filho, Conan, um monte muito mais pequeno, e um conjunto de documentos cujos autores não consegui identificar. Muitos
destes estavam escritos em latim; vislumbrei as palavras diabolus e mysteria e estremeci. Algures, ali, poderia estar a chave para as actividades invulgares de Nechtan,
aquelas que o sacerdote local desaprovara. Algures, poderia ter escrito mais sobre a experiência, o exército que tencionava invocar, o imenso poder que ele poderia
então ser capaz de usar contra os outros chefes tribais. E algures poderia haver um elo com a maldição da família e aqueles seres misteriosos sobre os quais Anluan
não queria falar. Na verdade, era uma tolice não falar disso. Afinal, ali estava eu com os registos da sua família. Se existiam segredos obscuros na história de
Whistling Tor não seria aquela biblioteca o local mais provável para os encontrar? Não fiz uma pilha para Irial. Os livros de anotações do pai de Anluan já estavam
devidamente reunidos na sua própria prateleira, num canto da biblioteca. Quando abri as capas de um ou dois, vi que o amante de plantas e da sua ciência escrevera
o ano e a estação na parte da frente de cada folha. Os livros de Irial não estavam empoeirados. Alguém limpara as capas de couro e dispusera os volumes na vertical,
com uma pedra em cada ponta para os segurar no seu lugar. Por cima dos livros impecavelmente organizados, um molho de folhas e flores secas numa jarra e um candeeiro
por acender partilhavam a sua própria prateleira, e no chão de laje que estava em frente havia um tapete tecido, as suas cores escurecidas pela idade e pelo uso
num uniforme cinzento-arroxeado. O espaço parecia quase um santuário.
Os livros de Irial eram obras de arte. Os seus desenhos botânicos encontravam-se extremamente detalhados e traçados com precisão e encanto. Usara uma pena de corvo
afiada até a extremidade parecer um ponto. Era óbvio que amava o que fazia, por muito invulgar que tal passatempo fosse para alguém da sua posição. Fez-me pensar
que tipo de líder teria sido o pai de Anluan. Talvez também ele tivesse fracassado na
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execução dos deveres que as pessoas de Whistling Tor esperavam do seu chefe tribal. Tomas e Orna tinham sido peremptórios quanto à incapacidade de Anluan nessa matéria.
Talvez o pai dele passasse horas no jardim e na biblioteca, dedicando-se a uma actividade que obviamente o apaixonava, e negligenciasse o seu território e a sua
gente. Talvez nunca tivesse ensinado Anluan a ser um chefe.
Algo prendeu o meu olhar e voltei o pequeno livro que tinha na mão de lado. Irial escrevera os seus apontamentos botânicos em irlandês, o que fazia sentido - aquela
língua tornaria o seu trabalho acessível a um leque mais vasto de leitores. Mas na margem, numa caligrafia tão pequena e fina que à primeira vista parecia uma decoração,
e não escrita, estava uma anotação em latim. O mais potente remédio conhecido do homem não a poderá trazer de volta. Este é o centésimo vigésimo dia de lágrimas.
Um arrepio percorreu-me a espinha. O que era aquilo? Outro segredo, algo de tão privado que o autor escolhera escrevê-lo desta forma estranha e quase críptica? Quem
era a pessoa cuja perda Irial chorou durante tanto tempo?
Levei os livros de anotações para a mesa de trabalho, onde a luz era melhor. Por volta do meio-dia, Magnus trouxe-me comida e bebida num tabuleiro, o que me fez
sentir culpada por lhe estar a dar mais trabalho. Fui lá fora à latrina e regressei imediatamente à biblioteca. Havia imensas notas à margem, aparentemente espalhadas
ao acaso pelos livros de anotações botânicos, todas elas em latim e escritas numa caligrafia tão minúscula que punha à prova os olhos mais argutos.
É o quadragésimo sétimo dia de lágrimas. Ver o rosto dela no dele magoa-me.
Desejo um fim. Doces murmúrios. Não devo prestar-lhes atenção. O quingentésimo terceiro dia de lágrimas. Mãe Sagrada, durante quanto tempo chorara o homem?
As notas não seguiam a mesma sequência cronológica que os pequenos livros. Imaginei Irial a regressar aos seus antigos registos, dia a dia, no tempo da sua dor,
anotando cada observação numa página escolhida ao acaso. A última entrada que encontrei foi a quinhentos e três. Procurei a primeira e, por fim, descobri isto: O
décimo quinto dia. O meu coração chora sangue. Porquê? Porque é que os deixei?
E depois isto: Ela partiu. Emerpartiu. Ao lado, numa tinta diferente, um número dois rabiscado. No dia em que a perdera talvez estivesse incapaz de escrever.
Regressei ao meu quarto quando achei que estaria quase na hora da ceia. Agora ambos os meus vestidos estavam impróprios para usar, o castanho ainda manchado da minha
viagem e o verde empoeirado depois do meu longo dia de trabalho. Escovei a saia o melhor que pude
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e lavei a cara e as mãos. Ainda devia notar-se que fora levada às lágrimas pelas anotações de Irial, pois no momento em que apareci na cozinha, Magnus pousou a sua
concha, indicou-me uma cadeira e colocou uma caneca cheia de cerveja à minha frente.
- O que se passa? - As suas feições largas exibiam um franzir de sobrancelhas de genuína preocupação. Quando não respondi de imediato, ele acrescentou: - Vá lá,
desabafa. - A sua atitude era da maior gentileza.
- Ficarei bem. Li algo que me fez ficar triste. Algo que me lembrou a minha casa. - Eu sabia o que era perder alguém. Eu sabia o que era sentir uma dor atordoadora
que parecia não ter fim. - Magnus, o que é que me podes contar acerca do pai de Anluan?
- Irial? - Ele voltou-se novamente para o lume para mexer a sua panela, mas não antes de eu ver a mudança operada nas suas feições fortes. Aqui estava outro com
uma tristeza permanente. - O que queres saber?
Com grande surpresa, percebi que me sentia segura na companhia de Magnus. Por outro lado, tudo o que contasse a Magnus, Anluan saberia antes de amanhecer. Não queria
partilhar o que lera naquele dia com o senhor de Whistling Tor.
- A mulher dele chamava-se Emer?
- Chamava, sim. Quem te contou isso? Não ele, certamente. Ele nunca fala dela, e raramente fala do pai.
- Vi uma referência acerca dela nos documentos. Quando é que ela morreu, Magnus? Que idade tinha Anluan?
- Este teu trabalho vai abrir velhas feridas.
- Suponho que sim, e Anluan já me disse, mais ou menos, que tenho de ler e de escrever e de não pensar naquilo que estou a fazer. Mas não estou a ver como poderei
transcrever a história familiar sem saber como é que ela se encaixa.
- Eu avisei-o que o processo poderia ser doloroso - comentou Magnus. - O garoto tinha sete anos quando a mãe faleceu; nove quando o pai a seguiu. Irial fez o melhor
que pôde durante tanto tempo quanto pôde. Depois disso, o menino só me tinha a mim. Irial contratara-me como guerreiro, não para criar o filho dele.
Fiquei em silêncio. Nove, e ambos os pais mortos - nem conseguia imaginar. Pelo menos Maraid e eu tivéramos o nosso pai até sermos jovens mulheres, embora a sua
perda não fosse menos esmagadora por isso.
- Irial era um homem bom - disse Magnus. - Um bom amigo, um pai extremoso. Seja o que for que encontraste, é melhor não o referires a Anluan. Ele já está...
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Sons vindos do corredor indicaram a chegada do resto das pessoas da casa e a nossa conversa terminou abruptamente. Fianchu entrou pelo aposento, caminhou para mim
e lambeu-me a cara, quase me atirando ao chão, e depois foi para o seu lugar habitual, junto ao lume. Olcan, Eichri e Rioghan entraram depois do cão, saudaram-nos
e sentaram-se nos seus lugares. Esperámos um pouco, mas Anluan não apareceu. Magnus começou a cortar uma parte de alho-porro e queijo para acompanhar a sopa e lá
estava Muirne à entrada da porta. Estava vestida com os mesmos vestidos interior e exterior cinza, ou talvez fossem outros, com cores e cortes idênticos, pois estavam
imaculadamente limpos e pareciam ter sido acabados de engomar. O seu véu branco parecia acabado de lavar. O olhar dela passou por cima de nós, nada revelando.
- Ele não vem cear connosco esta noite? - perguntou Magnus.
- Está cansado. Dói-lhe a perna. - Observei-a enquanto executava a mesma rotina da noite anterior, segurando o tabuleiro enquanto Magnus servia a refeição de Anluan,
enchendo a caneca, verificando se as coisas estavam colocadas de determinada maneira. Saiu sem dizer mais nada.
Os meus quatro companheiros eram bons convivas. Magnus manteve-me bem abastecida de comida e de cerveja. Olcan contou-me as explorações que Fianchu fizera durante
o dia. Eichri e Rioghan trocaram galhardetes e remexeram a comida de um lado para o outro nos pratos, mas não os vi comer nada. A medida que a refeição se aproximava
do fim, arranjei coragem para fazer uma nova pergunta a Magnus.
- Vim para cá com apenas um pequeno saco, como provavelmente viste. Precisarei de pelo menos mais uma muda de roupa para passar aqui o Verão e não tenho com que
comprar roupa, mesmo que tenham alguma lá em baixo na povoação. Haverá aqui alguma roupa velha? Algo que eu possa alterar, talvez, só para remediar?
- Não sei. - Magnus pareceu duvidar. - Nós usamos tudo até estar a cair aos pedaços e depois usamo-los como panos de limpeza e assim. Sabes costurar?
- A minha costura é certamente melhor do que os meus cozinhados. Pensas que Muirne será capaz de encontrar algo para mim?
- Podes perguntar-lhe - respondeu Magnus. - Ela deve saber onde essas coisas estão, se é que as temos.
- Penso que ela não aprova a minha estada aqui - disse eu, esperando não estar a ser pouco cortês. - Poderá ser um pouco embaraçoso.
Fez-se uma pequena pausa e depois Magnus disse:
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- Ela é devotada a Anluan, Caitrin. Ela olha por ele, cuida dele, faz-lhe companhia mesmo quando ele apenas está capaz de olhar para as próprias botas. Ele pode
ser tão tristonho como um dia molhado de Inverno. É preciso uma pessoa invulgar para tolerar um homem assim. Ela desaprova tudo o que o perturba. Não leves isso
a peito.
- Ela não se oporá a encontrar-te um vestido ou dois - interveio Rioghan. - Deve haver coisas velhas guardadas em algum lugar. Se alguém souber onde, esse alguém
é Muirne. Ela conhece todos os cantos de Whistling Tor.
Algum tempo depois disso, deitada na cama, acordada, pensei no triste Irial, na sua Emer perdida e naquele menino que ficou órfão com nove anos de idade. Antes de
saber ler e escrever como deve ser. Antes de ter uma ideia de como ser um chefe tribal. A maior parte do que Anluan sabia devia ter aprendido por si próprio, a menos
que Magnus lhe tivesse encontrado um tutor. Se o encontrara, o homem não ficara tempo suficiente para ensinar latim ao seu aluno.
Perguntei-me em que canto da fortaleza Anluan e Muirne teriam os seus aposentos privados e como teriam passado o seu serão. Pensei nos seres que existiam na floresta,
aqueles acerca dos quais ninguém parecia preparado para falar. Considerei a experiência de Nechtan. Que exército seria aquele que ele tentara invocar? Com a minha
mente cheia de questões, adormeci ao som do piar melancólico de uma coruja, algures lá fora na floresta do monte.
CAPÍTULO QUATRO
Passei alguns dias a tentar pôr ordem na biblioteca. Impus uma restrição a mim própria: ler apenas o suficiente de cada documento para determinar a que tipo de registo
pertencia, colocando-o de parte para mais tarde. Era demasiado fácil deixar-me envolver pelo que lia e perder a noção do tempo. O espelho permaneceu no seu baú,
fora da vista, enquanto eu limpava o pó, organizava e fazia apontamentos. Sentia a sua presença assim que passava o limiar da porta todas as manhãs.
Todos os dias, à hora da ceia, estava imunda e exausta. Sentava-me silenciosa enquanto os homens conversavam entre si. Reparei que já não faziam qualquer referência
à maldição, à história da família ou às presenças misteriosas que habitavam a floresta. Magnus certificava-se de que eu comia adequadamente. Olcan trazia-me oferendas
- uma pedra de padrões curiosos, uma mão-cheia de bagas acabadas de colher. As conversas entre Rioghan e Eichri continuaram em tom beligerante, mas tornava-se claro
para mim que o conselheiro e o sacerdote eram velhos e bons amigos. Para mim eram de uma afabilidade e de uma cortesia infalíveis. Quanto a Fianchu, aceitara a minha
presença como um membro da casa. Quando eu aparecia, ele levantava-se do seu canto para me cumprimentar, voltando depois a sua atenção para o seu osso.
Todas as noites, Muirne ia buscar e levava a ceia de Anluan. Os seus aposentos ficavam na torre sul; vira o candeeiro aceso nessa parte da fortaleza a altas horas
da noite. Perguntei-me se ele pretenderia evitar a mesa da ceia todo o Verão, até a incómoda forasteira partir. Estava um tanto ou quanto desconfortável por ser
a causa de uma tal ruptura nas rotinas da casa. Por outro lado, começava a sentir-me em casa, apesar da estranheza do lugar. Havia por fim momentos durante o dia
em que me esquecia da existência de Cillian; havia momentos durante a noite em que acordava, não ensopada no suor de terror do habitual pesadelo, mas num estado
de calma surpreendente - a percepção de que fugira, de que já não me encontrava naquele lugar escuro e de que finalmente estava segura.
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De tempos a tempos, quando estava sentada na biblioteca a trabalhar, tinha a sensação de estar a ser observada. No início, quando isto acontecia, levantava os olhos
rapidamente, certa de que a silenciosa Muirne estaria à entrada da porta com os seus grandes olhos fixos em mim ou de que o inconstante chefe tribal de Whistling
Tor teria vindo ver se eu estava novamente a dormir em vez de estar a trabalhar. Mas nunca via ninguém, e passado algum tempo quase me habituei à sensação desconcertante
de que não estava só. Desconcertante: se é que se podia qualificar aquele lugar, era isso que era. O espantalho estava, com frequência, algures no pátio, com pássaros
pousados nos ombros e no chapéu. Agraciava-me geralmente com uma pequena vénia quando eu passava por ele, à qual eu respondia com um sorriso ou uma saudação nervosa.
Quando consegui arranjar coragem para perguntar a Olcan que ser era aquele, o homem da floresta respondeu:
- Algo antigo e inofensivo. Na verdade, é um pouco como eu. A minha roupa ficava mais suja a cada dia que passava, até que não pude aguentar mais. Levantei-me muito
cedo, planeando encontrar Muirne antes de começar o meu trabalho. Magnus já saíra para iniciar as suas tarefas diárias. Comi as minhas papas de aveia sentada à mesa
da cozinha, sozinha, tentando não olhar para o espelho triangular que naquela manhã parecia reflectir o aposento ao anoitecer, todo envolto em sombras púrpura, cinza
e azul-escuras. Quem quer que tivesse fabricado aqueles artefactos deveria ter qualidades excepcionais. Perguntei a mim própria se seria possível que um homem comum
ensinasse a si próprio uma arte tão misteriosa ou se tal conhecimento teria de ser comprado. Talvez fossem criações do próprio Nechtan.
Quando me voltei para sair, Muirne estava à entrada da porta, observando-me, como se soubesse que eu queria falar com ela.
- Bom dia, Muirne - disse eu, obrigando-me a sorrir enquanto me levantava. - Tenho um pedido a fazer-te. Estava a pensar se haveria algumas roupas velhas que pudessem
dispensar aqui em casa, algo que pudesse alterar para me servir - um ou dois vestidos, uma combinação talvez. Não esperava passar o Verão num só local e não trouxe
muitas coisas comigo.
Ela olhou-me de alto a baixo e, por um momento, os olhos dela eram os de Ita, avaliando o meu corpo como inaceitável, o género de figura que estava destinado a chamar
a atenção pelos motivos errados.
- Tenho a noção de que a tua roupa velha não me serviria. Mas pensei que talvez...
- Com certeza, Caitrin. Vem comigo. - Voltou-se e começou a andar num passo acelerado, fazendo-me quase correr atrás dela. Segui-a
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pelas divisões abandonadas. Como o próprio monte, aquela casa era muito maior do que parecia ser do exterior. Havia tantas curvas e contracurvas que eu me perdi
completamente. Muirne conduziu-me através de uma enorme entrada em arco até um aposento de grandes dimensões onde a luz natural jorrava de aberturas no telhado para
se ir derramar sobre as lajes. A chuva também por aí entrara e o lugar cheirava a mofo. Havia uma quietude fantasmagórica naquele lugar; o som ténue dos meus passos
parecia uma intrusão.
- Por aqui - indicou Muirne, e atravessou imediatamente o aposento, dirigindo-se para a porta que existia no outro extremo. O chão tinha várias pilhas de detritos:
pedaços de madeira parcialmente queimados, rolos de tecido antigo e manchado, vidros partidos. E ao longo das paredes estavam... espelhos. Muitos, muitos espelhos,
alguns cobertos com panos, outros totalmente à vista. Eram de várias formas e tamanhos, o maior era mais alto do que um homem e o mais pequeno era do tamanho da
mão de uma senhora. As suas superfícies reluzentes chama-vam-me, senti o seu poder de atracção.
- Muirne...? - sussurrei, petrificada no lugar onde me detivera.
- Sim? - Quando não lhe respondi, ela parou e voltou-se. - Vem. É por aqui.
- Os espelhos - consegui articular. - Não quero...
As delicadas sobrancelhas de Muirne arquearam-se, os seus olhos cintilantes estavam incrédulos.
- Os espelhos não te podem fazer mal - garantiu ela. - Não olhes para eles.
Engoli com esforço e continuei a andar, tentando não olhar para nenhum dos lados. Mas os espelhos tornavam tal intuito difícil. As suas vozes vinham de ambos os
lados, Olha para aqui! Olha para aqui!, e, por muito que tentasse, não conseguia ignorar os seus apelos. Com a pele arrepiada e o coração a bater como um tambor,
olhei para a direita, para a superfície de um artefacto alto e estreito, com uma moldura de metal escuro. Uma figura olhava-me de volta: era eu, mas não era eu,
pois apesar de usar as minhas roupas e de ter as minhas feições e o formato do meu corpo, tinha cabelos brancos e era velha, a sua pele estava engelhada do tempo,
a sua boca não tinha os lábios cheios e vermelhos como os meus mas mirrados e cansados, a carne do seu rosto caía sobre os ossos e pude ver nela o toque da morte.
Ela sorriu-me, revelando gengivas mirradas às quais alguns dentes enegrecidos ainda se agarravam precariamente.
Com o coração a bater descompassadamente, continuei a andar. A esquerda, estava um espelho redondo, fabricado de forma artística, em
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cima de um curioso tripé com pequenos pés de ferro. A superfície era de um metal altamente polido, talvez bronze; nele, fumo e fogo, e de dentro dele provinham rugidos
e estalidos, como se eu estivesse a olhar, não para um reflexo, mas através de uma janela, para uma cena de terror e destruição. E por entre as chamas a voz de uma
mulher a gritar: Acudam-me! Acudam-me! As palavras transformaram-se num grito hediondo e arrepiante e eu soube que o fogo a engolira. Corri atrás de Muirne, vislumbrando
uma mão suplicante aqui, um par de olhos angustiados ali, uma cena de neve a cair sobre pinheiros além, um remoinho de monstros rodopiantes e emaranhados mais adiante.
Parei junto à porta para me recompor, encostando-me à ombreira, com os olhos cerrados e o peito elevando-se descontroladamente. Disse a mim própria que não voltaria
a ficar nauseada, não dentro de casa, e não na companhia de Muirne. Lutei para controlar a minha respiração.
- Peço desculpa - disse Muirne, retirando um lenço do bolso e colocando-o na minha mão. - Não me apercebi de que estavas assim tão perturbada. - Ela esperou pacientemente
enquanto eu limpava os olhos, assoava o nariz e tentava recompor-me. - Preferes deixar a questão da roupa para mais tarde?
- Não - engoli, abrindo os olhos e endireitando os ombros. - Continuemos. Muirne, aquele é o salão? Houve ali algum fogo em dada altura?
- Sim. - Não acrescentou mais nada.
Continuámos por um labirinto de passagens e depois subimos uma longa escadaria espiral de degraus estreitos. Sem nunca sairmos de dentro de casa, chegáramos a uma
das torres. As escadas estavam tão gastas no meio como as que conduziam ao meu quarto. Havia patamares, alguns conduzindo a quartos, mas Muirne não parava tempo
suficiente para eu poder fazer mais do que espreitar rapidamente para o seu interior. Pensei que talvez aquela fosse a torre norte, mas quando consegui olhar através
de uma janela não vi nem uma nesga do mar, apenas uma floresta escura, intocada pela luz do Sol nascente. Outra mostrava uma bruma baixa por cima de campos despidos,
o que não se ajustava a nenhum dos lados da fortaleza, tanto quanto sabia. Quanto mais alto subíamos, mais o meu estômago dava voltas com a inquietação.
Chegámos ao patamar mais alto. Havia uma porta baixa.
- É aqui dentro - informou Muirne.
O pequeno aposento tinha duas arcas de arrumação e uma colónia de aranhas, mas mais nada para além de uma escadaria íngreme a um canto, que conduzia a um alçapão
que havia por cima. Estava aberto; vislumbrei um céu pálido.
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- Queres subir lá acima? - perguntou Muirne. - Há uma vista abrangente lá de cima: a colina, a povoação, a região circundante.
Não!, gritou a pequena voz dentro de mim. Depois dos espelhos, queria apenas arranjar algumas roupas e sair dali. Mas Muirne estava a fazer um raro esforço para
ser gentil. Eu devia fazer o mesmo.
- Está bem - respondi. - Desde que seja seguro. Sobe tu primeiro. Ao chegar ao topo da torre, fiquei um tanto aliviada por constatar que esta se encontrava circundada
por uma muralha de pedra que me dava pela cintura. Perguntei a mim própria se a vista seria tão estranha e variável como as que observara das janelas, mas olhei
para a encosta do monte e, voltando-me, vi fumo que lentamente se elevava dos lumes acesos de manhã pelos habitantes da povoação no sopé, e ovelhas a pastarem nos
terrenos planos a norte da elevação coberta de árvores. A distância, via-se uma mancha azul-acinzentada que devia ser o mar. Não estava muito longe dali. A nordeste,
ao longo da costa, pude ver outra povoação com uma paliçada defensiva em torno dela.
- Que lugar é aquele, minha senhora? - perguntei.
- Fica para além das fronteiras do território de Anluan. - Não proferido mas claro pelo seu tom de voz estava o pensamento: Por isso, não é importante.
Olhei para mais perto de casa. O jardim ainda dormia. Por baixo das torres, o sol ainda não chegara à região selvagem de arbustos e silvas, o lago negro e as margens
sombrias da floresta. Vi um vislumbre de Olcan saindo por uma pequena arcada na muralha da fortaleza com uma foice ao ombro. Fianchu saltitava à sua frente.
- Onde fica a quinta? - perguntei. - Magnus falou em vacas e noutros animais.
- Abaixo da muralha. - Era parca com as palavras.
Tentei encetar conversa com ela. O Verão seria muito mais fácil se nos déssemos bem.
- Surpreendo-me com o facto de eles conseguirem manter tudo isto a funcionar com tão pouco contacto com o exterior.
As feições dela endureceram. Talvez tivesse encarado o meu comentário como uma crítica ao seu adorado Anluan.
- Não precisas de te preocupar com isso - disse ela. Passado um momento, pareceu arrepender-se. Colocando uma mão no meu cotovelo, orientou-me para uma posição de
onde eu podia vislumbrar uma área desprovida de florestação, para além da abertura que Olcan usara.
- Se tens interesse por vacas e pelos homens que cuidam delas - informou Muirne -, podes ir até à quinta por ali. Não fica muito longe.
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- Pela floresta? - perguntei. - E quanto às presenças que todos referem, as que os aldeões consideram tão perigosas? Eu sei que são reais, eu própria as ouvi, quando
subia o monte. Senti o seu toque.
- O caminho para a quinta é seguro, só tens de te lembrar de escolher o trilho da esquerda na bifurcação. Mas os aldeões têm razão. Existem muitos perigos nestes
bosques. Para ser franca, Caitrin, estou surpreendida por teres permanecido connosco durante tanto tempo.
Ainda segurava o meu cotovelo e isso deixou-me desconfortável.
- Tanto tempo? - ecoei. - Só cá estou há alguns dias.
- Para Whistling Tor, isso é muito tempo. - Largou o meu cotovelo, mas quando fiz tenção de me voltar, a mão dela apertou-me o ombro. Emiti um uivo involuntário,
em parte devido à dor, em parte devido ao medo; era exactamente aquele sítio que Cillian preferia para me agarrar quando me sacudia. Fui acometida pela louca e repentina
convicção de que ela estava prestes a empurrar-me por cima do parapeito da muralha.
- Oh, magoei-te? - O aperto de Muirne afrouxou. - Ou pensaste que podias cair? É uma grande altura, não é? É melhor afastares-te da borda.
Voltei-me e tornei a respirar. O que é que me dera? Ela pensaria que eu tinha os nervos em farrapos.
- Podíamos descer para ver a roupa agora?
- Com certeza, Caitrin.
As duas arcas no aposento da torre estavam cheias de roupa de mulher: vestidos, túnicas, lenços para a cabeça, combinações. Muirne agachou-se para retirar as peças
uma a uma e espalhou-as no chão à sua volta. A sua expressão suave, as suas mãos cuidadosas.
Ajoelhei-me para examinar aquelas riquezas inesperadas, com a atenção fixa numa trouxa com a tonalidade das violetas dos bosques. Desdobrado, era um vestido de lã
macia que talvez me assentasse bastante bem. Havia uma túnica exterior comprida num tom mais claro que parecia combinar com o vestido. Sabia que o conjunto ficaria
bem na minha pele rosada e com o meu cabelo escuro. Algures na minha cabeça, ouvi Ita dizer: É uma pena saíres à tua mãe. Essa boca, esse tom de pele e essa forma
de corpo irão certamente meter-te em sarilhos. Com um suspiro, pousei o traje.
- Esta roupa é encantadora - elogiei. - Mas parece demasiado boa para eu usar. - Algumas daquelas peças eram muito antigas, o tecido estava muito gasto aqui e além.
Como os documentos da biblioteca, aqueles trajes não tinham muito mais tempo de vida.
- Este é adequado. - Muirne exibiu um vestido severo num entediante tom cinzento-escuro, o tipo de peça que uma governanta usaria.
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- Esconderia certamente a sujidade - observei. - Mas até a costureira mais criativa não conseguiria fazer com que essa peça me servisse, - Pude ver de imediato que
o vestido fora feito para alguém alto e esguio. - Será que posso usar algumas das outras peças? Estão quase a desfazer-se em trapos, mas existem algumas peças suficientemente
boas para fazer um ou dois vestidos capazes. Alguém teria de me emprestar uma agulha e uma linha.
Muirne não respondeu. Tentei de novo:
- Preciso de pedir permissão a Lorde Anluan antes de levar o que quer que seja?
- Não - respondeu ela, parecendo fria de repente. - Basta a minha permissão.
- Com certeza, peço desculpa, minha senhora. Sou nova aqui em casa e ainda não compreendi bem como é que as coisas se fazem.
- Leva o que precisares, ninguém quer estas velharias - respondeu Muirne, abruptamente.
- O... obrigada - balbuciei.
- Não há necessidade de me agradeceres - ripostou ela, levantando-se e dirigindo-se para a porta. - Sabes que não gosto que estejas aqui. Deixei isso muito claro
no dia em que chegaste. Mas acho que devemos tirar o melhor partido da situação.
Olhei para ela. Não percebi de onde viera aquela repentina hostilidade e por momentos pensei que ouvira mal.
- Não sei porque desaprovas - disse com cuidado. - Anluan tem um trabalho que precisa de ser feito e eu sou qualificada para o fazer. Não desejo mal a ninguém. Ele
quer-me cá.
- Ele não devia ter-te contratado - ripostou Muirne. - A tua presença cansa-o e perturba-o. Este trabalho dos documentos é um empreendimento pouco sensato. Ele errou
no seu julgamento.
Pareceu-me importante responder a este ponto em particular, mesmo que ela me arrancasse a cabeça.
- Muirne - disse eu com cuidado, levantando-me para poder olhá-la de frente -, tenho a noção de que existem aspectos desta casa e de Tor que ainda não compreendo
na totalidade. Mas uma coisa é clara. Anluan é um homem adulto. É natural que tome as suas próprias decisões. Tem o direito de contratar uma escriba para traduzir
os seus documentos se assim o desejar. É o chefe tribal de Whistling Tor, não uma criança indefesa.
Algo brilhou nos seus bonitos olhos.
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- Como poderias entender? - comentou ela. - Este lugar não é como o mundo exterior, Caitrin. Se tiveres alguma réstia de sabedoria, lembra-te de que alguns segredos
não devem ser revelados. Algumas histórias não devem ser contadas. Agora tenho de ir, precisam de mim para outra tarefa. Poderás encontrar sozinha o caminho de volta.
- E antes que eu pudesse dizer mais uma palavra, saiu do quarto.
Em vez de obedecer aos meus instintos e fugir escadas abaixo, decidi esperar até ter a certeza de que ela se fora embora. Os seus avisos misteriosos tinham-me enervado;
precisava de tempo. Era óbvio que ela se convencera de que a minha presença naquela casa era má para Anluan. Era verdade que ele parecia frequentemente fatigado
e desalentado. E nunca parecia fazer muito. A maioria dos dias passava o tempo no jardim de Irial, onde eu o podia ver da janela da biblioteca. Por vezes, escrevia
no seu pequeno livro, mas o habitual era sentar-se no banco, a olhar para o vazio. Tomas e Orna sugeriram que raramente saía do Tor, se é que saía. Um tal isolamento
devia fazer-lhe mal. Não admirava que a sua atitude fosse tão estranha. Jurei a mim própria que ficaria, com ou sem avisos medonhos. Talvez, quando chegasse o final
do Verão, tivesse terminado o trabalho e ficado amiga de Muirne. Era a única mulher da casa. Devia sentir-se sozinha. Talvez se tivesse simplesmente esquecido de
como falar com outra mulher.
Uma vez que ela já não me observava, dediquei-me a examinar com mais cuidado os trajes. Não só poderiam vestir-me durante o Verão, mas ainda providenciar-me algumas
pistas no que se referia à história de Whistling Tor. A biblioteca continha os registos de tinta e pergaminho feitos pelos homens. Mas essa era apenas metade da
história. As mulheres falavam com as suas filhas e com as suas netas através da tecelagem de memórias. Mesmo que não restassem quaisquer mulheres, poder-se-ia aprender
algo através do que elas haviam deixado para trás: um jardim plantado de determinada maneira, um objecto precioso guardado por mãos cuidadosas, uma pedra tumular
para um animal de estimação amado. E roupa. Não sabia quem possuíra aqueles vestidos, aquela delicada roupa interior, mas talvez tivessem algo para me contar.
Pareceu-me que aqueles trajes haviam vestido três mulheres diferentes. As peças mais recentes incluíam o vestido violeta, de que eu tanto gostei, e um castanho-avermelhado
do mesmo tamanho e estilo. Havia um toucado que condizia com o violeta, bordado com flores de cores brilhantes. Aquela mulher adorara cores.
Os vestidos mais antigos estavam esfarrapados e a desfazerem-se. Os seus tecidos eram escuros e simples, mas foram em tempos de boa qualidade - e isso ajudara a
preservá-los, pensava. A mulher que os vestira
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fora alta e magra, alguém sem tempo ou inclinação para a frivolidade. Havia um terceiro conjunto de roupas, em melhor estado do que as peças mais escuras mas mais
antigo do que as peças coloridas. Aqueles foram feitos para uma pessoa pequena e franzina. Pensei em tudo o que sabia acerca da família de Whistling Tor. Talvez
este aposento da torre contivesse peças de vestuário das três mulheres dos chefes tribais que precederam Anluan. Nechtan, o feiticeiro - a mulher dele era a alta
e séria. O filho, Conan, cujo nascimento fora assinalado nos registos de Nechtan - a sua mulher fora a mulher pequena. E as peças de cores brilhantes, aquelas que
planeara levar para vestir, pertenceram à bem-amada de Irial, Emer, a mãe de Anluan.
A porta rangeu e depois fechou-se com estrondo, sobressaltando-me. Não sentira qualquer corrente de ar. O meu coração disparou. Levantei-me e caminhei até lá para
puxar o manípulo. Mas este recusou-se a mexer.
- Muirne, ainda aí estás? - perguntei.
Não houve resposta. Talvez estivesse tão abaixo na escadaria que não me ouvisse.
- Muirne! Não consigo abrir a porta!
Silêncio. Ela já não estava ali, senti-o. Não podia entrar em pânico. A porta não se podia ter trancado a si própria. Devia estar apenas presa pela força da corrente
de ar que a fechara. Tentei de novo, puxando com toda a minha força, mas a porta não se mexeu um centímetro. Talvez a madeira estivesse inchada da humidade - aquele
parecia realmente um lugar estranho para armazenar roupa, com aquele alçapão que dava para o exterior. O alçapão! Graças a Deus por isso. Poderia subir até ao telhado
e depois gritar até conseguir atrair a atenção de alguém. Por muito embaraçoso que isso fosse, era melhor do que esperar que Muirne percebesse que não regressara
da nossa exploração - isso poderia levar o dia inteiro.
Subi os degraus, mantendo uma mão na parede de pedra para me equilibrar, depois coloquei a minha outra mão de encontro ao quadrado de madeira que Muirne fechara
sobre a abertura quando descêramos. Não havia qualquer ferrolho ou trinco para a manter fixa, mas por muito que tentasse não conseguia movê-la. Precisava de um pau
ou de qualquer outro apetrecho para me ajudar; os meus braços estavam esgotados pelos esforços empreendidos junto da porta e doíam-me as costas. Olhei em redor à
procura de um velho espeto ou de um pedaço de lenha, qualquer coisa que servisse, mas não havia nada no pequeno aposento excepto as duas arcas e a roupa espalhada
por toda a parte. E um espelho. Porque não reparara nele antes? Estava pendurado na parede junto aos degraus,
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minúsculo, de formato estranho, numa moldura de madeira gasta pelo tempo. A superfície brilhava ligeiramente à luz vinda da estreita janela. Fizesse o que fizesse,
não poderia olhar para ele.
Respira devagar, Caitrin. Analisei a situação. Eventualmente, alguém daria pela minha ausência. Eventualmente, alguém perguntaria a Muirne se me vira. Teria apenas
de esperar. Este pensamento encorajador não fez nada para arrefecer as minhas faces coradas ou abrandar o meu coração galopante. Havia algo de errado ali. Alguém
me queria mal. Lembrei-me da história de uma mulher indesejada que fora emparedada num aposento de uma torre tal como aquele para morrer à fome, enquanto o seu marido
se divertia com uma noiva mais jovem e mais fecunda. Não havia nada que eu pudesse fazer. Nada. Não havia como me ajudar a mim própria. Conhecia bem essa sensação,
ensombrara todos os momentos que passara em Market Cross, depois da vinda de Ita e de Cillian. És impotente. Inútil. Não vales nada. Não és ninguém. Desci os degraus
e dirigi-me para a janela.
- Não estou em Market Cross - murmurei. - Estou aqui. Eu consigo ser corajosa. Consigo.
A janela tinha vista para uma parte do telhado; ninguém me veria lá de baixo. Tentei novamente a porta. Usara Muirne uma chave para nos abrir a porta? Não era possível,
certamente, que tivesse feito isto de propósito.
Parecia não ter outra opção senão esperar. Dobrei o vestido violeta e o castanho-avermelhado, colocando-os num xaile aberto. Juntei-lhes algumas combinações e mudas
de roupa interior e depois atei a trouxa. Dobrei e arrumei com cuidado os outros trajes nas arcas. Magnus e Ol-can estariam provavelmente na quinta e as minhas actividades
seriam a última coisa em que pensariam. Anluan não se dera ao trabalho de comparecer à ceia uma única vez desde que eu chegara; qual seria a probabilidade de ele
se certificar se eu estava a trabalhar naquele dia? Quanto a Eichri e Rioghan, não fazia ideia de onde ou como passavam os seus dias. Rioghan talvez dormisse, afinal,
aquelas noites passadas a patrulhar o jardim deviam deixar sequelas. Mantive os olhos afastados do espelho.
O tempo passou numa lenta sequência de sons insignificantes, rangidos nas paredes, restolhos nos cantos como se provocados pelo movimento de pequenas criaturas furtivas
nos seus afazeres diários. Não tínhamos trazido nenhuma vela ou candeeiro connosco e o aposento era escuro. A mancha de luz vinda do exterior moveu-se vagarosamente
pelo chão. Na minha mente, Muirne falava com Anluan. A tua escriba já partiu, dizia ela. Não conseguiu obrigar-se a ficar. Pegou nas coisas dela e partiu monte abaixo
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à primeira luz da aurora. Vi Anluan olhar para os documentos espalhados pela sua biblioteca negligenciada.
Maldito lugar! Mesmo quando estava sentada sozinha, algo devastava os meus pensamentos. Estava sempre a ver as imagens dos espelhos do salão: eu como uma velha sábia,
da mesma idade da pobre alma que Nechtan torturara até à morte; uma mulher encurralada num fogo terrível, a gritar por uma ajuda que não vinha. Pior que tudo, ouvia
uma voz vinda do espelho que estava pendurado na parede, aquele para o qual me esforçava tanto para não olhar. Não falava em voz alta, mas secretamente, na minha
mente. O tom era o de uma mulher, cortante e prático. Usa-me, Caitrin. Foste tu que te colocaste nesta situação ridícula. Usa-me efoge. Se continuares a olhar para
o chão, poderás ficar aí para sempre.
- Não vou olhar para nenhum espelho - proferi em voz alta. Não havia qualquer dúvida de que aquela coisa estaria a fervilhar de imagens de assassínio e caos.
Volta a cabeça, Caitrin.
Forcei-me a não o fazer, mas devo ter-me mexido um pouco. Algo captou a luz vinda da janela, algo brilhante pendurado de um prego na parede, mesmo acima do espelho.
Uma chave.
Isso, congratulou-me a voz do espelho. E agora vai e não contes histórias ou estas poderão voltar para te assombrar.
Agarrei na chave sem olhar para a superfície do espelho. As minhas mãos tremiam enquanto a inseria na fechadura. A porta abriu-se suavemente.
- Obrigada - murmurei, pegando na trouxa e saindo. O patamar estava vazio. Tranquei a porta e guardei a chave na bolsa que trazia ao cinto.
Não voltaria a entrar naquele salão, jamais. Em vez de regressar pelo caminho que Muirne usara, procurei uma porta na base da torre e en-contrei-a, destrancada.
Porque não escolhera ela este trajecto mais simples? Corri pelo pátio - o espantalho levantou uma mão em saudação e eu acenei-lhe com a cabeça enquanto passava -
de volta à entrada principal. Uma vez dentro de casa, descobri que mesmo este caminho mais curto tinha as suas dificuldades. As portas pareciam estar em locais inesperados,
os degraus subiam onde antes desciam, as janelas filtravam a luz para patamares antes escuros. Era como no dia em que subira o monte, quando tudo à minha volta parecia
mudar aleatoriamente. Quando cheguei à biblioteca, por um processo de tentativa e erro, já era pelo menos meio da manhã.
Parei junto à entrada. Anluan estava sentado a uma das mesas maiores, a escrever no seu pequeno livro. Não me vira. A sua mão esquerda
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enrolava-se em torno da pena, segurando-a num aperto exacerbado; devia sentir dores nos dedos e ao longo de todo o antebraço. Examinei o ângulo da página, o dobrar
da pena, e perguntei a mim própria quão difícil seria corrigir os maus hábitos de muitos anos. Esquecera-se de esconder a sua mão direita; usava-a para manter a
página no lugar enquanto escrevia. Embora os seus dedos não se mexessem, não pareciam ter qualquer tipo de deformidade. Havia uma certa graça na curva da sua mão.
Havia beleza na concentração expressa no seu rosto, uma intensidade e um propósito que o faziam parecer diferente, mais jovem. Está aqui outro homem, pensei. Um
que as pessoas raramente vêem.
Devo ter-me mexido ou feito qualquer pequeno som porque ele olhou para cima e viu-me antes que eu me pudesse retirar. Com um gesto hábil, passou uma dobra da capa
por cima da mão direita e depois fechou o livro.
- Estás atrasada - constatou.
- Peço desculpa. Muirne levou-me a ver umas roupas antigas. Depois a porta fechou-se sozinha. Levei algum tempo para conseguir abri-la de novo.
Não disse nada, olhando-me simplesmente com seriedade.
- Posso fazer-te uma pergunta?
Aquelas oportunidades eram raras, por isso mais valia aproveitar esta.
- Fazes demasiadas perguntas.
Senti-me como se estivesse a estender a mão a Fianchu sem saber se ele se tornaria meu amigo ou se me morderia. Continuei.
- Passei pelo salão há pouco. Vi algumas coisas nos espelhos, não consegui evitá-los. E havia um espelho no aposento da torre. Pareceu... pareceu falar comigo, disse-me
como abrir a porta. Foi Nechtan quem fez aqueles espelhos? Como é que ele aprendeu a fazer tais coisas?
O suspiro de Anluan foi bastante eloquente.
- Estou cansado desta situação. Porque não fazes o teu trabalho e ficas calada?
- Teria ele um dom hereditário de qualquer espécie ou estudou a arte de... - Descobri que não consegui exprimir o pretendido.
- Continua - instigou Anluan. - Pensas que o meu bisavô era um feiticeiro? Um necromante? Um dom hereditário, disseste. Talvez encontres provas dos seus talentos
negros em mim. Não há dúvida de que as pessoas do sopé do monte têm uma teoria acerca das práticas secretas que poderão ter distorcido o meu corpo e a minha mente.
Olhei para ele, exasperada. As sobrancelhas dele estavam franzidas numa expressão furiosa, os seus olhos faiscavam, o seu tom de voz estava cheio de amargura. Enraivecia-se
com tanta facilidade. Assumia o pior com tanta facilidade.
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- Os aldeões tinham muito para dizer, sim - informei-o. - Mas eu prefiro fazer os meus próprios juízos. E ainda não estou há tempo suficiente em Whistling Tor para
os ter formado.
O seu olhar cor de safira manteve-se fixo em mim enquanto o silêncio se arrastava. Por fim, disse:
- Magnus contou-me que foste maltratada antes de vires para aqui. Espancada. Quem te faria algo assim?
Aquela pergunta era, em si, uma bofetada.
- Pertence ao passado - murmurei. - Não quero falar sobre o assunto.
- Ah - ripostou Anluan. - Com que então podes fazer-me perguntas mas eu não te posso perguntar nada.
- Não disseste que o meu trabalho era apenas organizar, ler, traduzir? - disparei. Não havia qualquer necessidade de ele me perguntar acerca da minha situação, absolutamente
nenhuma. - Tudo o que precisas de saber a meu respeito é que tenho bons olhos e uma caligrafia regular.
- Pouco importa o que eu disse. Perguntaste-me acerca de feitiçaria. Sugeriste um talento hereditário. Tiraste conclusões precipitadas, tal como as pessoas supersticiosas
da aldeia, e assumiste que eu possuo os mesmos interesses e qualidades do meu bisavô. - Anluan levantara-se, tinha o maxilar contraído, a mão esquerda cerrada. Senti
o aperto de Cillian nos meus ombros e involuntariamente dei um passo atrás. - Julgas com tanta facilidade como as outras pessoas. Elas fazem a sua avaliação num
momento e permanece para a vida inteira.
- Fizeste o mesmo comigo - ripostei. - Pareces ter chegado a uma série de conclusões a meu respeito e sobre aquilo que penso. Mas não sabes nada a meu respeito.
- Então, conta-me - desafiou Anluan.
Uma armadilha: deixara-me apanhar numa armadilha. Fui para a janela e olhei lá para fora. Chovia, as gotas deslizavam pela superfície de vidro como lágrimas lentas.
Passado pouco tempo, respondi:
- Sou uma escriba. Tenho dezoito anos de idade. Não há mais nada para contar.
A minha voz estava menos regular do que desejaria.
- Enganei-me a teu respeito - declarou Anluan, suavemente. - Por vezes, falar é a coisa mais difícil do mundo para ti.
Dirigi-me para a mesa onde estivera a trabalhar no dia anterior, abri a minha caixa de escrita, retirei para fora a faca do meu pai e comecei a preparar uma pena.
Os utensílios do meu ofício trouxeram memórias vivas do meu lar, o pai e eu sentados lado a lado, concentrados no trabalho, e algures noutra parte da casa Maraid
atarefada com a vassoura ou
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o espanador ou a cortar legumes para a refeição do fim do dia, que ela insistia que todos devíamos tomar juntos, por muito urgente que fosse uma encomenda. A hora
da ceia é a hora de estar com a família, dizia a minha irmã. Nada é mais importante do que isso.
Anluan escrutinava-me; não lhe passou despercebida a minha mudança de humor.
- O que foi? - exigiu saber.
- Não é nada. - Empurrei as minhas memórias para um canto trancado da minha mente. - É melhor eu continuar o meu trabalho.
- Respondeste a uma das minhas perguntas, por isso responderei à tua - declarou Anluan, com seriedade. - Se Nechtan estudava as artes negras? Acredito que sim. Não
estou a revelar qualquer segredo quando te digo isto, penso que irás encontrar referências a esse facto quando leres as suas anotações escritas em latim. Terá a
família um talento hereditário para a feitiçaria? Espero que não. Nunca testei essa teoria e não pretendo fazê-lo. Se a tua imaginação te pintou um quadro de aposentos
de tortura escondidos nesta casa, deves pô-lo de parte.
- A minha imaginação? Não fui eu que inventei aquela cena de tortura, vi-a num dos teus espelhos. Nunca os usaste, meu... Anluan?
Um estremecimento percorreu-o.
- Não os usei, nem pretendo usá-los. Como parente daquele homem, nunca correria tal risco.
- Compreendo. - Aquela informação era realmente obscura. Ele temia que se usasse os artefactos de Nechtan poderia transformar-se em alguém igual ao seu bisavô. -
Já pensaste em destruir os espelhos? Vi algo de muito perturbador no salão. Não entendo porque é que alguém quereria guardar objectos tão malignos.
- Disse que te respondia a uma pergunta, não a uma dúzia. - Voltara a colocar as suas defesas; a conversa terminara. - Regressa ao teu trabalho. Não te perturbarei
mais.
No preciso momento em que ele falou, Muirne apareceu junto à porta de acesso ao jardim, ficando à sua espera. Não vi uma única gota de chuva na roupa dela, apesar
de lá fora a folhagem pingar água. Quando Anluan chegou à porta, ela enfiou a mão no braço dele e saíram juntos, ele inclinando a cabeça enquanto ela lhe dizia algo,
talvez: Estás cansado. Ela perturbou-te. Um momento depois, desapareceram.
Permiti-me ler durante o resto do dia. Havia uma sequência de registos escritos em irlandês pelo avô de Anluan, Conan, que me chamaram a atenção anteriormente e
depressa me deixaram completamente absorta. O estilo de Conan era menos fluente do que o do seu pai e a sua escrita era menos regular; talvez tivesse sido um homem
de acção, mais do que um erudito. O seu relato era empolgante:
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Continuam aperseguir-me e não se deixam governar. A batalha contra agente de Silverlake deu-se há dez dias. Primeiro a hoste seguiu-me, obedecendo às minhas ordens.
Mas no momento de maior proximidade com o inimigo, o meu controlo sobre eles falhou. O feitiço de dominação foi quebrado e eles guerrearam selvaticamente, indiferentes
a quem atacavam. Estropiaram e esfaquearam o inimigo, os meus guardas pessoais e uns aos outros indiscriminadamente. Não havia alternativa senão abandonar o campo
de batalha. Quando finalmente consegui levar a hoste para dentro das fronteiras do monte, perdera todos os meus guardas e as aldeias de ambos os lados da estrada
estavam completamente devastadas. As pessoas amaldiçoaram-me enquanto morriam. Esta noite voltarei a estudar os livros de magia negra. Temo que não haja uma forma
de domar estas criaturas. Se o miserável do meu pai, que Deus apodreça os seus ossos nojentos, não conseguia domá-los, porque conseguiria eu?
Estas criaturas. Estaria a referir-se ao exército com o qual Nechtan esperara dominar os seus inimigos? A hoste. Parecia maligna, destrutiva, aterrorizante. Não
há forma de domar estas criaturas.
Olhei pela janela e depois novamente para o pergaminho que tinha diante de mim. A floresta estava perto, circundava a fortaleza de Whistling Tor. Ninguém podia subir
ou descer o monte sem passar debaixo daquelas árvores. Poderia uma espécie de horda estar ainda a viver na floresta, algo capaz de infligir morte e destruição aleatórias?
Talvez Conan estivesse bêbado ou fosse louco, dado a visões extraordinárias. Esperava que sim.
Lembrei-me que Nechtan fizera referência a um livro escondido na colecção secreta de um mosteiro, contendo uma fórmula de palavras particular de que ele precisava
para realizar a sua experiência. Um livro de magia, um livro de magia negra. Se existiam realmente feitiços capazes de invocarem forças misteriosas e assustadoras
como as que Conan referira, teria de se supor que também haveria feitiços de reversão que as banissem. Talvez existisse um livro de magia negra em latim, ali na
biblioteca, algures; seria isso que Anluan esperava que eu encontrasse? Parecia pouco provável. Se a família possuíra um livro com tal encantamento, certamente,
tê-lo-ia devolvido directamente à proveniência assim que Nechtan descobrira que não conseguia controlar o exército que conjurara.
Os documentos constituíam crónicas da luta contínua de Conan contra o seu legado.
Muitos dias de chuva. Dizem que o rio inundará em breve. Uma batalha perdida a persuadir os aldeões para subirem ao monte onde ficarão em segurança. Enviei Enda
novamente lá abaixo, uma vez que ele ao menos pode fazer a viagem sem um séquito indesejado. As pessoas aferrolharam as suas portas contra ele. Haverá afogamentos.
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Um séquito indesejado - a hoste, outra vez? Seguiriam Conan para onde quer que ele fosse? Lendo mais, encontrei referências a uma grande inundação e também à mulher
de Conan:
Três crianças da povoação foram arrastadas pelas águas que subiram. Uoch chorou e censurou-me por não ter feito mais. Pedi-lhe que ficasse contente por o nosso filho
estar ali na fortaleza e a salvo e que não me admoestasse pelo fardo que o meu miserável pai nos impusera a todos. O que espera ela: que solte a hoste para que semeie
a devastação onde queira, como ele o fez? Pedi a esta gente que viesse para minha casa, pedi-lhes que viessem e eles não quiseram. Se as suas crianças se afogam,
que assumam eles as culpas.
Os livros não revelam quaisquer respostas. Se o meu pai alguma vez teve o que preciso, escondeu-o de mim. Uma tal acção não me surpreende. O homem estava cheio de
ódio.
Notícias do sudeste: uma nova incursão. Não sei como conseguirei obrigar-me a liderar a hoste novamente. Mas é tudo o que tenho. Irial ainda émuito jovem. E se eu
for morto?
Noite após noite, um sussurro no meu ouvido. Tenta-me ao desespero, oferece a recompensa do alívio. Não lhe prestarei atenção. O meu filho precisa do pai. Sim, mesmo
de um pai como eu. Para mim já não há esperança. Mas posso ter esperança por ele.
Havia tanta tristeza nestes registos. Quanto mais lia, mais pensava no actual chefe tribal, um homem cujo humor tinha pouca amplitude - num extremo, a dor, no outro,
a fúria. No entanto, o seu pai fora o autor ordeiro e pacífico daquelas anotações botânicas, o criador do encantador jardim no qual eu vira Anluan sentado como se
tivesse sido encantado e transformado naquela sombra esquecida de um homem. Gostaria de poder ensinar-te a sorrir, pensei. Mas receio que seja impossível.
Trabalhei até ficar demasiado escuro para ler. Não queria colocar um candeeiro na biblioteca; era demasiado perigoso com todos aqueles documentos lá. Antes de sair,
enfiei um dos livros de anotações de Irial na minha bolsa. Lê-lo-ia mais tarde, no meu quarto, à luz da vela.
Fui a última a chegar para a ceia, e logo na noite em que Anluan decidira aparecer. Sentava-se à cabeceira da mesa e Muirne à sua frente, embora raramente estivesse
sentada na sua cadeira - tornou-se óbvio que, na presença dela, ninguém serviria sua senhoria. Ela servia-lhe o prato, enchia e voltava a encher o seu copo, cortava
o seu pão e a sua carne. Observei-os, fascinada, perguntando a mim própria quanto tempo levaria ele a perder a paciência e a dizer-lhe que parasse de se inquietar.
De facto, ela até poderia ser invisível dada a atenção que ele lhe prestava.
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Se a memória da nossa viagem à torre não estivesse tão fresca, quase poderia ter sentido pena dela. O chefe tribal de Whistling Tor não mudara de roupa para a ceia.
O seu cabelo ruivo estava desalinhado, o seu queixo estava áspero devido a uma barba de dois dias e trazia a mesma roupa que usara quando estivera na biblioteca
anteriormente. A sua camisa tinha um punho esfarrapado e precisava de ser lavada. O traje de Muirne estava impecável, como sempre.
- Como está a progredir o trabalho, Caitrin? - perguntou Magnus com um sorriso. - Pareces um pouco cansada.
- Estou muito bem - repliquei, antes que Anluan agarrasse a oportunidade de sugerir que eu não estava à altura da tarefa. Um sentido de honestidade obrigou-me a
acrescentar: - Tive um pequeno problema esta manhã; uma das portas emperrou e isso fez-me começar a trabalhar mais tarde.
Muirne falou, surpreendendo-me.
- Ouvi falar disso, Caitrin. Peço desculpa por ter-te deixado lá sozinha. Se soubesse que isso poderia acontecer...
- Não tem importância - respondi. Era claro que ela não me fechara lá dentro. Era aquele lugar, com os seus segredos e as suas excentricidades. Era capaz de fazer
uma pessoa sã ter pensamentos loucos. - Acabei por conseguir abrir a porta, encontrei uma chave.
A atenção de Anluan voltou-se imediatamente para mim.
- Uma chave? Pensei que disseste que a porta emperrara. Onde é que isto se passou?
Pensa depressa, Caitrin. Dizer toda a verdade deixaria Muirne ficar malvista perante o homem que ela adora; no mínimo, fá-la-ia parecer pouco atenciosa.
- Na torre norte - respondi. - Esqueci-me onde é que Muirne pusera a chave quando se foi embora e entrei em pânico. - Um olhar de assombro passou brevemente pelas
feições habitualmente impassíveis de Muirne. - Não foi nada - continuei. - Depois disso passei o dia a ler, mas amanhã terei de fazer mais algumas limpezas. Limpar
o pó às prateleiras não foi o suficiente, precisam de uma boa esfrega.
- Não te desgastes - recomendou Magnus, escrutinando o meu rosto. - Olcan ou eu podemos ajudar com essa parte do trabalho. É uma pena que eu já não consiga convencer
serventes a ficarem aqui em cima. Não devias estar a incomodar-te com esfregas e limpezas de pó.
Ele olhou para Anluan, mas o chefe tribal estava a olhar para o seu prato e não pareceu ter ouvido.
- Não poderia pedir-te que me ajudasses, Magnus - disse-lhe. - Tens mais que fazer do que qualquer um de nós. Não sou avessa ao trabalho
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físico, sou uma artífice, não uma jovem senhora mimada. Mas é lamentável que as pessoas não venham para cá trabalhar. Eu poderia acabar o trabalho de escriba muito
mais depressa se tivesse um assistente, alguém que conseguisse ler um pouco. - Uma vez que Anluan não me estava a interromper como parecia ter tendência a fazer,
fiz uma pergunta que surgira na minha mente anteriormente, quando me apercebi do quão lento o trabalho iria ser se o fizesse sozinha. - Já chegámos ao fim do meu
período de experiência? Ficarei mais descansada assim que souber que os meus serviços serão mantidos durante o Verão. - Dirigi a questão a meio caminho entre Magnus
e Anluan.
- É pouco importante - respondeu Anluan, levantando a cabeça para olhar para mim. - Há um padrão instalado aqui em Whistling Tor, nunca muda. Permaneceste cá um
pouco mais do que alguns de nós esperávamos, mas não ficarás. Estamos todos presos numa rede de consequências, condenados a caminhos que fogem ao nosso controlo.
É assim que as coisas são.
- Estás a dizer que não podemos fugir à nossa sorte, seja ela qual for? Acreditas realmente nisso?
Talvez não há muito tempo tivesse concordado com ele. Mas fugira à armadilha que se fechara à minha volta em Market Cross. Se tivéssemos força de vontade, poderia
ser feito.
- Não posso falar por ti - disse Anluan. Desistira de fingir que estava a comer; a sua faca e a sua colher estavam pousadas na mesa. - É verdade para todos os outros
que estamos aqui sentados esta noite e para todos os que vivem em Whistling Tor.
Lembrei-me de algo.
- Incluindo a aldeia, se aquilo que Tomas e a sua mulher me contaram for verdade - contei. - Pela forma como falaram de Whistling Tor, parecia que o amavam e o odiavam
ao mesmo tempo. Ficaram chocados quando eu lhes perguntei porque não faziam as malas e partiam para outro local.
- Só conhecem isto - declarou Magnus. - O mau conhecido, o que é familiar, é sempre preferível ao bom por conhecer.
- Era isso que eu pensava em tempos - admiti. - Agora não tenho assim tanta certeza.
O olhar de Anluan estava fixo em mim, sentia-o mesmo quando a minha cabeça estava voltada para outro lado.
- Dizes que ficarás - disse ele. - Não ficarás. Isso iria contra o padrão instalado.
Este comentário foi acolhido com silêncio. Porque é que nenhum deles o contradizia? Os padrões podiam ser quebrados, os caminhos podiam
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ser alterados. Apenas era preciso coragem. Eu tinha de o enfrentar. Não podia aceitar o que ele dissera.
- Rioghan - chamei. - Desejo fazer uma aposta. Se eu perder, pagar-te-ei no final do Verão. Emprestas-me uma moeda de prata?
O conselheiro do rei sorriu.
- Com certeza, encantadora senhora. - Uma moeda brilhante voou por cima da mesa na minha direcção e eu apanhei-a, pesando-a na palma da minha mão. - A tua aposta
não é comigo, presumo?
- É com o teu chefe tribal. Ele diz que eu não ficarei. Eu aposto que ficarei até terminar o trabalho de escriba. Sua senhoria pode apostar o que lhe aprouver.
Seguiu-se um silêncio delicado. Pouco me importava se ofendera Anluan. Já era altura de alguém o desafiar.
- Não tenho nada para oferecer - declarou ele, sem preâmbulos.
- Queres que te empreste... - começou Eichri, mas eu interrompi-o.
- Não estou minimamente interessada em adquirir ossos de dedos ou outros artigos desse tipo - declarei. - Contentar-me-ia com uma maçã do jardim; deverão estar a
amadurecer quando o trabalho terminar. Ou talvez Anluan me pudesse escrever algo.
Outro silêncio; desta vez parecia que todos eles estavam a reter a respiração. O rosto de Anluan escureceu. Os seus lábios comprimiram-se. A sua mão esquerda, que
repousava em cima da mesa, transformou-se num punho.
- Estás a zombar de mim? - perguntou, e, num instante, o meu repentino ímpeto de bravura terminou. No tom dele estavam todas as vezes que Cillian me agredira e todas
as vezes que Ita me atirara insultos à cara. Transformei-me na rapariga que se havia agachado a um canto do seu quarto a chorar, incapaz de se mexer. Tinha uma boa
resposta para lhe dar, mas esta recusava-se a sair.
- Explica-te! - exigiu Anluan.
A tremer, acobardada, desprezando-me a mim própria, levantei-me e dirigi-me para a porta, com um murmúrio apologético nos lábios.
- Pára! - Era uma ordem e eu obedeci. Estava mesmo junto à cadeira dele. Mantive o olhar no chão de pedra. Contei as batidas do meu coração. - Se foges de uma simples
pergunta, porque havíamos de acreditar que não fugirás de Whistling Tor à primeira dificuldade? - O tom de Anluan era como uma vergastada.
- Eu não fugi - sussurrei, encontrando uma última réstia de coragem escondida no fundo de mim. - Sabes bem disso. Estavas lá no dia em que eu olhei para o espelho
de Nechtan.
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Outro silêncio, desta vez de uma outra espécie. Magnus pigarreou. Eu fiquei onde estava, preparada para mais uma saraivada de palavras enraivecidas.
- Se queres que eu aposte, apostarei as flores de sangue-do-coração - declarou Anluan, a sua voz mais calma. - Se aguentares até ao fim do Verão, estarás cá para
a ver florescer. Estarás cá para colher as flores e fazer a tinta. Quando terminares este trabalho, poderás levá-la contigo para casa.
Olcan assobiou.
- Isso é que é uma aposta - comentou.
Tinha a cabeça a andar à roda. Se eu conseguisse descobrir como produzir nem que fosse apenas um frasco de boa tinta, não teria de me preocupar com dinheiro durante
muitos anos. Anluan não devia ter a menor ideia de como aquela tinta era valiosa.
- Não posso aceitar - disse eu, trémula. - Valeria uma quantia fabulosa. Não seria correcto da minha parte aceitar.
- É o que ofereço - ripostou Anluan. - O argumento do valor é irrelevante. Não ficarás.
- Está certo, eu aceito - retorqui. - Provarei que estás errado. Ele encolheu os ombros. Era um gesto estranho, que enfatizava os seus ombros irregulares.
- Tinta de sangue-do-coração, hem? - riu Eichri. - Bela cor, fica muito bem no velino. Sabes fazê-la, Caitrin?
- Saberei quando a planta florescer - respondi. - Com uma biblioteca inteira cheia de documentos, deve haver instruções em algum lugar.
Nessa noite voltei a ter o pesadelo, aquele em que Ita me atirava para um poço de demónios atormentadores. Acordei ensopada em suor e a tremer ao mesmo tempo. Para
lá da porta do meu quarto, a Lua brilhava sobre o jardim. Sabendo que não voltaria adormecer, retirei a minha camisa de noite húmida, vesti uma combinação e embrulhei-me
no meu xaile. Saí para a galeria com vista para o pátio, perguntando-me quanto tempo demoraria a conseguir ouvir uma voz zangada sem que me transformasse de uma
mulher corajosa e expedita numa criança impotente e sem esperança. Talvez a Caitrin corajosa não passasse de uma fantasia. Talvez a rapariga servil e choramingas
que não fora capaz de fazer frente aos seus abusadores fosse a verdadeira Caitrin. Se assim fosse, os meus pais deviam estar a olhar-me lá de cima com vergonha.
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No pátio, Rioghan andava para a frente e para trás, o vermelho da sua capa esbatido sob a Lua. No silêncio, ouvi trechos do seu discurso:
- Entra antes pelo lado oeste, dividindo a força em três grupos... Não, engendra um engodo, apanha o inimigo de surpresa vindo dos flancos e depois ataca com catapultas...
Teria tombado mesmo assim...
Andou mais para diante ao longo do jardim e a sua voz perdeu-se durante um pouco. Depois, rodou sobre os calcanhares, desassossegado como um animal enjaulado e voltou
para trás. - Deveríamos ter verificado os sinais... Porque é que eu lhe disse que resultaria?
Os meus próprios problemas empalideciam face a tal angústia. Parecia que ele estava a reviver, uma e outra vez, as circunstâncias de qualquer terrível erro que o
assombrava. Talvez passasse todas as noites nesta dolorosa procura por respostas. Perguntei-me se ir lá abaixo falar com ele o ajudaria de alguma forma. Pelo menos,
seria uma distracção. Estava prestes a fazê-lo quando tive a sensação de que alguém me observava. Olhei em redor, apertando o xaile em torno do meu corpo, ciente
de que debaixo tinha pouca roupa vestida. Não havia ninguém na galeria, ninguém nas escadas. Enquanto a Lua banhava o jardim num brilho misterioso, debaixo das árvores
reinava a escuridão das sombras. Imaginei pessoas lá, vestidas de preto, quase as conseguia ver. Não sejas tola, Caitrin. A violenta hoste dos registos de Conan
não estaria ali em cima, do lado de dentro das muralhas do pátio. Talvez existissem criaturas de alguma espécie lá fora na floresta, para além da fortaleza, mas
não podiam ser aqueles de que ele falara. Isso passara-se havia anos e anos - ainda o pai de Anluan era apenas uma criança. Além disso, uma hoste de guerreiros que
mutilava e esfaqueava não podia estar a viver lá fora sem que eu a tivesse visto ou ouvido.
Uma coisa sabia com certeza: eu não era a única alma triste e perturbada daquele lugar. Talvez nunca me viesse a libertar completamente das sombras do meu próprio
passado, mas isso não queria dizer que ficasse impávida perante a miséria alheia. Encontrei a minha capa e desci para falar com Rioghan. Ele ainda murmurava de si
para si.
- Se eu tivesse colocado archeiros na colina a norte... Ou talvez se tivesse agido mais cedo, colocado um guarda permanente na ponte, isso talvez tivesse adiado
a matança... Mesmo assim, ele teria tombado.
Estava mesmo a seu lado e ele ainda não notara a minha presença. Os seus punhos estavam cerrados, os seus olhos cheios de sombras.
- Rioghan - proferi suavemente.
Ele sobressaltou-se. Estivera muito longe dali.
- Caitrin! Estás a pé tarde.
- Não consigo dormir.
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- Um estado que me é familiar, ai de mim, mas não tanto para uma jovem como tu. Tens pesadelos?
- Às vezes. Os problemas e os terrores parecem mais fortes no escuro, quando estou sozinha. Depois, quando adormeço, os acontecimentos maus do passado invadem-me.
Mas é pior para ti. Parece acontecer-te mesmo quando estás acordado.
- É verdade, Caitrin. Não posso tornar-me amargo. Esta é a sorte que me coube. As minhas próprias acções, ou a minha incapacidade de agir, valeram-me esta sorte.
- Rioghan sentou-se num banco húmido de orvalho e indicou-me que me sentasse ao seu lado. Assim fiz, sentindo o frio enquanto este passava pela capa, pelo xaile
e pela combinação, afundando-se nos meus ossos.
- Seja o que for que fizeste ou que pensas que fizeste - disse eu -, pertence ao passado. Todos cometemos erros. Às vezes podemos compensá-los mais tarde. Ou podemos
aceitar os nossos erros e andar para a frente.
Rioghan soltou um enorme suspiro, abrindo as suas mãos num gesto de impotência.
- O meu acto não pode ser compensado - declarou, de forma peremptória. - O meu senhor partiu. Está morto há muito, a espada cheia de verdete por cima dos seus queridos
ossos. Segurei-o nos braços enquanto o seu sangue se esvaía; uso esta capa em memória disso. Não posso trazê-lo de volta. Não posso expiar o meu pecado, ainda que
me sinta compelido a tentar. A minha mente não me deixa descansar. Deve haver algo que eu pudesse ter feito, alguma decisão que eu pudesse ter tomado, algo que eu
pudesse ter modificado para arrebatar a vitória a partir de uma amarga derrota. Eu era o conselheiro em quem ele mais confiava. Como pude ter-me enganado tanto?
- O que aconteceu? Quem era o teu senhor?
- Ah, Caitrin. Uma pedra preciosa, um homem que resplandecia como uma estrela brilhante no firmamento. O nome dele era Breacán e era rei de Connacht do Norte. Há
muito tempo, compreendes. Há muito, muito tempo. Esta região fazia parte do território de Breacán. O reinado era seu pela força das armas, mas ele era um bom homem.
Reinava com justiça e compaixão. Muitas foram as investidas que planeei para ele, as estratégias que engendrei para ele, todas elas executadas com uma grandeza de
alma magnífica e o discernimento perfeito que faziam parte do seu ser. Como equipa, éramos imbatíveis. Até àquele dia.
- Ele tombou no campo de batalha?
Sabia pouco sobre a história daquela região. Não conseguia perceber quantos anos haviam passado desde os eventos aos quais ele se referia.
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A idade de Rioghan era difícil de adivinhar; podia ser algo entre trinta e cinco e cinquenta anos, talvez. A tez curiosa da sua pele e as rugas de sofrimento da
sua expressão faziam-no parecer-se com Anluan. Talvez todos os membros da casa estivessem ligados entre si pelo sofrimento.
- Deixa-me mostrar-te.
Rioghan sentou-se no chão e, ao luar, montou um campo de batalha em miniatura com paus, pedras e pequenos montes de terra. Apesar do tardio da hora e do facto de
estar com frio e molhada, depressa fiquei fascinada. Vi as forças de Breacán avançarem ao longo de um vale largo, tendo os seus informadores mais avançados dito
que o inimigo estaria acampado perto do extremo oposto e mal preparado para a sua chegada. Ao mesmo tempo vi que o inimigo tinha vigias secretos colocados no topo
dos montes flanqueantes e que comunicavam através de um sistema de mensagens que envolvia o reflectir da luz do Sol em discos de prata, algo que os homens de Breacán
não detectaram até se encontrarem encurralados entre dois grupos de atacantes chamados por este método dos esconderijos em que se encontravam em ambos os extremos
do vale.
- Foi um massacre, Caitrin - explicou Rioghan. - E fui eu que os conduzi até lá. Foi o meu conselho que disse ao meu senhor, É seguro; temos os números necessários.
Quando outros aconselharam o lançar de um augúrio para determinar a sabedoria da investida ou recomendaram desistir da manobra até termos obtido informações mais
claras por parte de certos prisioneiros, eu insisti que continuássemos. Tinha tanta certeza de que o meu plano daria resultado. Fui enganado. Um homem em quem confiava
mentira-me. Disso só soube depois de o meu senhor ter sido derrubado diante dos meus olhos, bem como os seus homens fiéis, homens que eram meus amigos, chacinados
a seu lado. O inimigo poupou este miserável conselheiro. Queria deixar um para contar a triste história. Coloquei o meu senhor na sua sela e levei-o para casa. Eu
estava vivo enquanto muitos homens melhores do que eu pereceram devido à minha ineptidão. Desejei com todas as forças do meu ser que também eu tivesse sido morto
naquele campo de sacrifício sangrento. Mas ainda não chegara a minha hora.
- É uma história triste - comentei. - Mas não foste o único responsável. Se alguém te deu informações erradas, a culpa é parcialmente dele. E as pessoas não tinham
de te ouvir, não tinham de fazer o que lhes disseste se não concordavam contigo. Cada qual é responsável pelos seus próprios actos. - Vi-me a mim própria, agachada,
indefesa e calada ante os golpes de Cillian. - Mas por vezes podemos perder-nos de nós próprios. Seja por medo, tristeza ou culpa, tornamo-nos menos do que devíamos
ser. Pode ser difícil encontrar a coragem necessária para continuar.
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- Não te apoquentes - disse Rioghan, colocando-se de pé e estendendo uma mão para me ajudar a levantar. - Não devia ter-te perturbado com isto, Caitrin. A minha
história deixou-te triste. Ou serão as tuas próprias dores que te deitam abaixo? Aqui, estás em segurança. Anluan olha por todos nós.
- A tua história fez-me pensar, foi só isso. Pensamentos desconfortáveis. Tenho querido tanto ser corajosa, e nem sempre o consigo.
- Querida senhora - murmurou Rioghan. - Ninguém em Whis-tling Tor te deseja mal, tens de acreditar nisso. A tua presença é como uma brisa fresca e doce que sopra
por este lugar velho e cansado.
Aquela declaração fez-me sorrir.
- Rioghan?
- Sim, Caitrin?
- Agora tens um novo senhor. Breacán pereceu. Bem sei que Anluan não é nem um rei nem um guerreiro. Talvez tenha algumas desvantagens. Algumas falhas. Mas é digno
da tua lealdade.
- E tem-na - declarou Rioghan. - Não duvides disso.
Enquanto regressava ao meu quarto, percebi que era verdade. O círculo restrito dos seguidores de Anluan escolhera partilhar a solitária existência do seu perturbado
senhor. Magnus fora um guerreiro. Podia ter partido quando Irial faleceu. Em vez disso, ficou para ajudar o filho do seu amigo a tornar-se um homem. Ao longo do
caminho, talvez a lealdade se tivesse transformado em amor. Fosse o que fosse, suportara tempos difíceis. Lembrei-me das linhas que lera no caderno de Irial, depois
da ceia, à luz da candeia.
Um toque, é tudo o que peço. Um toque, um abraço. Aproxima-te de mim, bem-amada. Onde estás? Nonagésimo primeiro dia.
Ducentésimo sexagésimo dia. Inverno. No jardim, os galhos do vidoeiro brilham com o gelo. O meu coração não verá a Primavera.
Não começara a trabalhar há muito quando Anluan entrou na biblioteca na manhã seguinte, dirigindo-se para a janela e olhando para o jardim.
- Magnus disse que devia pedir-te desculpas - disse abruptamente. Fiquei demasiado surpreendida para responder.
- Ele diz que te julguei mal. Se o fiz, peço desculpa. O tom dele era cortante. Inspirei profundamente.
- Ficaste tão zangado - expliquei. - Assustaste-me, e quando me assusto tenho dificuldade em falar como deve ser. Não pretendi insultar-te
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a noite passada quando te falei em escrita. - Escolhi as minhas palavras com cuidado. - Sou uma escriba. Trabalhei arduamente ao longo dos anos para aprender o meu
ofício. Considero que uma página escrita é uma das melhores coisas que uma pessoa pode fazer. E nunca faria pouco de um homem pelo facto da sua escrita ser irregular.
Para além disso, essa questão pode ser remediada.
- Huh! - Anluan girou sobre os calcanhares e atravessou a biblioteca. - Pensas que um monte de trapos velhos se pode transformar num manto de seda? Uma maçã com
bicho num fruto brilhante e perfeito? Impossível. Porque pensas que recorri aos teus serviços?
Inspirei uma e outra vez.
- Como pedido de desculpas, esse ficou um pouco aquém - repliquei, forçando-me a desafiá-lo. - Duvido que Magnus ficasse bem impressionado. Se não gostas da forma
como escreves, aprende a fazê-lo melhor. Poderia ensinar-te. Seria necessário concentração, calma e prática regular. Penso que talvez o consideres difícil, mas,
depois de dominares a técnica, acabarias por o fazer naturalmente.
Um longo silêncio; ele estava junto à parede mais afastada e eu não conseguia ler a sua expressão. Não havia dúvida de que estava iminente uma explosão qualquer.
O meu corpo estava tão tenso como a corda de um arco, a aguardá-la.
- Estás a julgar-me de novo - afirmou ele calmamente.
- Não com tanta severidade como te julgas a ti próprio. Com... - Aventurara-me em águas bem mais fundas do que pretendera. Naquele momento, avançar poderia ser mais
seguro do que recuar. - Com coragem e esperança, podemos conquistar os nossos medos e fazer o que antes acreditávamos ser impossível. Eu sei que é verdade.
- Coragem. Esperança. - A voz dele tremia e não totalmente de raiva. - Para ti é fácil proferir tais palavras, com o teu passado de família, conforto, acolhimento
e rectidão. Não compreendes nada.
Ele fora longe demais.
- Não estás a ser justo! - disparei, levantando-me de um salto. - Nem sabes o quanto tenho desejado essas coisas, uma família e... e segurança e... Se ainda as tivesse,
em nome de Deus, porque estaria aqui? - Voltei-lhe as costas, dobrando os braços sobre mim própria, desejando não ter proferido aquelas palavras. Desejei que ele
se fosse embora.
Ao fim de algum tempo, ele disse:
- Isso quer dizer que estás na minha casa, não porque desejas ajudar, mas porque o que deixaste para trás é pior do que o caos que encontraste aqui.
- Não vim para cá apenas pelo pagamento e para ter um lugar onde ficar. Eu adoro o meu ofício mais do que tudo o resto no mundo,
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é tudo o que tenho. E quero ajudar-te. Escrevi isso na amostra e estava a dizer a verdade.
Ele não disse nada. Quando arrisquei olhá-lo, estava apenas ali parado, a olhar para mim. Pareceu-me que a palavra errada o faria fugir.
- Se tivesses tempo, poderia ensinar-te a escrever com menos irregularidades, de uma forma que não te magoaria a mão ou o braço. Poderias praticar um pouco todos
os dias. - E quando ele não respondeu, acrescentei: - Se trabalhasses comigo aqui na biblioteca, poderia pedir o teu conselho sobre os documentos. Ajudar-me-ias
muito se pudesses estar aqui para responder a uma ou outra questão.
- Penso que não. - Anluan dirigiu-se para a porta. - Creio que não seria uma grande ajuda para ti. Canso-me com facilidade. Não posso... - Um pensamento meio falado,
mas o seu olhar voltado para baixo completou a frase. A perna direita aleijada e a mão direita inútil tornariam muitas das tarefas mais simples difíceis ou impossíveis
de executar, como pegar numa pilha de livros, por exemplo. E era verdade que se cansava. Eu própria já o testemunhara. Talvez ele tivesse uma doença que fosse para
além das suas limitações físicas. Não era algo que lhe pudesse perguntar.
- Quanto à minha escrita - acrescentou -, temo que não haja qualquer tutor que a possa corrigir.
Tal era a expressão do seu rosto, saudosa e desolada, que engoli a negação que me assomou aos lábios. Ele não falava de aprender a escrever mas de algo bem maior.
Quem quer que aceitasse Anluan como aluno teria de primeiro ensiná-lo a ter esperança.
- Bem - disse para as suas costas enquanto ele partia -, podias deixar-me tentar.
Magnus e eu tornámo-nos amigos. Consciente do pesado fardo que ele carregava, criei o hábito de me levantar cedo para o ajudar na cozinha antes de iniciar o meu
trabalho na biblioteca. Ele não me deixava preparar as papas de aveia ou misturar a comida para as galinhas, mas remendar era outro assunto; era uma das suas tarefas
mais detestadas. Gradualmente, consegui remendar uma pilha de trajes negligenciados. As alterações necessárias às roupas que eu própria usaria foram feitas com a
maior rapidez possível depois da perturbadora visita à torre norte. Com os vestidos castanho-avermelhado e violeta, bem como os dois que eu já tinha, estava bem
fornecida para o resto do Verão, mesmo quando o clima transformasse a secagem da roupa num desafio. Uma ou duas vezes, ajudei Magnus a lavar peças de vestuário -
as minhas, as dele
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e as de Anluan - e a pendurá-las por cima dos arbustos no pátio. Pergun-tei-me quando e onde Muirne lavaria as suas roupas. Tinha uma série de trajes cinzentos e
nunca os vira senão impecavelmente limpos e engomados. Se não estivéssemos em Whistling Tor, teria pensado que ela gozava dos serviços de uma lavadeira experiente.
Via-a muito pouco, bem como a Anluan. Por vezes, estavam no jardim de Irial, sentados debaixo da árvore, ele escrevendo no seu pequeno livro, ela pairando por perto.
Via com frequência um candeeiro aceso nos alojamentos de Anluan, já noite tardia, quando todos estavam deitados. Mas, para além da acolhedora cozinha de Magnus,
o resto da casa parecia vazia, com eco, esquecida. Quando nos juntávamos para a ceia, sem o nosso chefe tribal ou a sua sombra constante, a conversa girava em torno
do trabalho do dia: vegetais para plantar, animais para cuidar, uma ponte para consertar. E, no meu caso, os documentos. Havia sempre os documentos.
Continuei a dormir mal, assombrada pelos velhos pesadelos. Acordava em sobressalto, com o coração a martelar-me no peito, certa de ter visto uma figura escura à
entrada da porta. Ouvia o ranger de passos na galeria que ficava do outro lado do meu quarto, ou o suave roçagar de uma peça de vestuário. Por vezes sentia uma agitação
no ar, uma presença que pressentia por perto, mas nunca via ninguém, à excepção de Rioggan com os seus passos constantes lá em baixo no pátio. Bem, avisaram-me que
Whistling Tor era um lugar estranho. Devia dar-me por feliz por isto ser o pior que me acontecia.
Estava a remendar os punhos de uma camisa uma manhã quando Magnus disse:
- Já está na altura de eu voltar a descer o monte para ir buscar provisões. Talvez vá amanhã. Precisas de alguma coisa?
- De fio de linho, se conseguires arranjá-lo. É só isso. Não preciso de materiais de escrita.
A tradução dos apontamentos de Nechtan escritos em latim estava a progredir lentamente graças à minha tendência para me perder numa ou noutra história enquanto lia.
- Poderias vir comigo se quisesses.
A oferta foi feita com alguma deferência.
Olhei para cima, mas ele estava a mexer as papas de aveia que estavam ao lume, de costas voltadas para mim.
- Penso que Anluan desaprovaria - afirmei. - Ele espera que eu trabalhe todos os dias, por certo.
- Ainda que assim seja - proferiu Magnus, voltando-se para colocar a panela em cima da mesa. O vapor elevou-se do conteúdo, bem como
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um óptimo cheiro. - Não faria mal algum lembrares-lhe que és dona de ti própria. Pelo menos, é essa a minha opinião. Ele ainda não acredita que serás fiel à tua
palavra e que permanecerás aqui. Se desceres à povoação comigo, passares lá o dia com as pessoas e depois regressares de tua livre vontade, poderás mostrar-lhe que
tens a força necessária para executar o trabalho mesmo quando a oportunidade de fugires te é oferecida de bandeja. E há outra coisa. Seria bom para as pessoas locais
verem com os seus próprios olhos que uma jovem mulher pode permanecer aqui em cima cerca de um mês e emergir, não apenas completamente incólume, mas mais calma e
mais feliz do que estava quando subiu o Tor.
- Nunca me senti como uma prisioneira aqui, Magnus. Eu sei que sou livre de partir. Mas acontece que ficar me convém, não apenas porque há trabalho para fazer, mas...
- Na verdade, a probabilidade de Cillian me encontrar em Whistling Tor era agora reduzida. O meu rasto já devia ter esfriado.
- Livre para partir. Espero que isso não queira dizer que pensarias em descer, sozinha, o monte. Aqui em cima estás em segurança, Anluan garante-o. Mas se deambulares
pela floresta sem o conhecimento dele, poderias meter-te em sarilhos. - Passou-me uma tigela de papas de aveia.
- Se é assim tão perigoso, como consegues ir e vir da aldeia sem sofrer qualquer mal?
Magnus sorriu.
- Até agora ainda não tive qualquer problema e faço-o desde que Anluan era pequeno. Deve ter algo a ver com o meu aspecto. E se estiveres comigo, estarás em segurança.
Pensa nisso. Suponho que não te importarias de conversar com algumas mulheres. Muirne não é uma rapariga muito sociável.
- Magnus.
- Hum?
- Porque é que ninguém me diz o que eles são, estes seres que vivem na floresta? Cada vez que peço explicações, recebo uma resposta vaga acerca de seres ou de criaturas,
de que são de vários tipos, e depois alguém muda de assunto. Mas nos documentos eles são descritos como sendo um exército temível, uma força que ninguém consegue
controlar, algo que foi tão poderoso e destrutivo que todos na região se devem ter apercebido da sua existência.
Ele olhou para mim, os olhos cinzentos firmes.
- Existem duas maneiras de saberes a resposta a essa pergunta, Cai-trin. Poderá estar algures naqueles documentos em que estás a trabalhar. Ou ele poderá decidir
que está preparado para te contar.
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- Ah. - Pensei nisto enquanto ele comia as suas papas de aveia. - Poderias responder-me a uma pergunta?
- Isso depende da pergunta.
- Anluan é o único que sabe o que eles são?
- Não, rapariga. Todos sabemos.
- Isso quer dizer que ele vos ordenou que não falassem disso, que não me contassem.
- Preciso de te explicar uma coisa, Caitrin. Poderás sentir-te tentada a achar que Anluan não é bem como um homem adulto. Não tem tido muito contacto com o mundo
exterior e isso torna-o... estranho, acutilante, não muito ajustado a pessoas como tu, a pessoas que não pertencem ao monte. Tem as razões dele, fortes razões, para
ser como é. Tenho tentado ajudá-lo. Nem sempre fiz um bom trabalho. Ele pode parecer-se um pouco com uma criança pequena, de vez em quando, zanga-se com facilidade,
está sempre pronto a encarar um simples comentário como uma ofensa. Mas não penses que há outra pessoa que mande aqui. Anluan é o líder desta casa. É ele que faz
as regras e nós cumprimo-las.
Passado pouco tempo, eu disse:
- Estou a ver. Muito bem, irei contigo amanhã. Digo-lhe eu ou dizes-lhe tu?
Magnus sorriu.
- Digo-lhe eu. Mas esperarei pela hora da ceia. E agora tenho de ir.
Levantou-se, e eu pensei que talvez não fosse assim tão surpreendente que o que quer que existisse lá fora na floresta o deixasse em paz, pois, mesmo com as suas
velhas roupas de trabalho, ele era um guerreiro dos pés à cabeça.
Uma bruma familiar envolveu as árvores e agarrou-se aos arbustos enquanto Magnus e eu descíamos até à povoação. Era cedo; ficara surpreendida por ver Anluan debaixo
da arcada, uma figura sóbria, de capa vestida, observando-nos enquanto partíamos.
- Estaremos de volta antes do meio-dia - dissera-lhe Magnus, mas Anluan não respondeu. Imaginei que ele desaprovasse a minha ida; não viera tomar a refeição da noite
anterior connosco, mas sabia que Magnus lhe contara o plano.
Caminhei perto do meu companheiro, temendo as vozes sussurrantes, as mãos rastejantes, ou pior. Passado um bocado, Magnus comentou:
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- Não costumam sair quando sou eu, como te disse. Mal fazem barulho. Para além disso, agora fazes parte da gente de Anluan; isso protege-te.
- Isso é muito... inescrutável - comentei, alargando o meu passo para o acompanhar.
- Não te levaria comigo se não fosse seguro.
A lógica simples daquele argumento era reconfortante. Relaxei um pouco.
- Nunca te casaste, Magnus? - perguntei-lhe.
- Nunca conheci a mulher certa. Não há muitas por onde escolher por aqui.
Isto foi dito de bom humor, mas pareceu-me um tremendo desperdício. Teria dado um bom marido e não apenas por ser tão hábil com as tarefas domésticas.
- Lamento - disse eu, com sinceridade.
- A culpa não é tua, pois não? Fiz a minha escolha e viverei com ela. Ele precisava de mim. Ainda precisa, penso.
- São-lhe todos muito leais.
- Ele é um óptimo rapaz. Se ficasses connosco tempo suficiente, verias isso.
- Magnus?
- Hum?
- Anluan nasceu com aquela deficiência, com a perna e o braço fracos e os ombros tortos?
Magnus continuou a andar como se eu não tivesse falado e interroguei-me se esta seria mais uma pergunta que nunca teria resposta. Depois ele disse:
- Ele nasceu tão direito como qualquer outra criança. Adoeceu. Foi depois de Emer e Irial terem partido. Uma paralisia. Quase o perdemos. Tentei arranjar ajuda,
mas ninguém quis vir.
Ninguém vem para aqui. Tentei imaginar como isso teria sido: o menino entre a vida e a morte, tendo apenas os mal preparados habitantes da fortaleza para cuidarem
dele.
- Mas por certo... - comecei, mas depois interrompi-me. Se aprendera alguma coisa até então era que aquele lugar tinha as suas próprias regras e talvez tivesse sido
sempre assim.
- Ele tem família - informou Magnus. - Mas as coisas são complicadas. Talvez um dia ele confie em ti o suficiente para te contar. Esteve muito doente. Nós ajudámo-lo
a ultrapassar a doença. Foram tempos difíceis. Recuperou o poder da fala, mas foi um processo lento. Ficou com esta fraqueza. É difícil para um rapaz de treze anos
perceber que
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nunca será um homem de corpo capaz. Esse fardo ainda o sobrecarrega, como sem dúvida terás notado. Fiz o meu melhor.
- Eu sei, Magnus. - Passado um momento, perguntei: - Que família?
- No tempo em que Anluan esteve doente, o irmão de Emer era o chefe tribal de Whiteshore, o território vizinho que fica a sudeste daqui. Se subisses à torre norte
vê-lo-ias. O fulano nunca aprovara o casamento de Emer com Irial. Cortara todo e qualquer contacto entre os dois territórios. Nós enviámos um moço da povoação com
uma mensagem, quando Anluan pairava entre a vida e a morte. Não o deixaram passar os portões. - Ele olhou para mim, com as suas fortes feições determinadas. - Pergunta
às pessoas da aldeia porque é que estas coisas acontecem e eles dir-te-ão que Whistling Tor está amaldiçoado. Não estão longe da verdade. O medo manteve as pessoas
afastadas nessa altura e mantém-nas afastadas agora. O irmão de Emer faleceu, o filho dele, Brión, é agora o chefe tribal de Whiteshore. Um homem melhor do que o
pai, pelo que ouvi dizer. Mas essa brecha nunca foi transposta. O medo mantém Anluan prisioneiro.
- E tu com ele - comentei, suavemente.
- Não podia deixar o rapaz sozinho, podia?
Continuámos a caminhar. Ponderei o medo que mantinha o Tor uma ilha isolada do mundo exterior. Era, sem dúvida, baseado na presença de uma suposta hoste sobrenatural
na floresta, uma hoste que em tempos fora real, a menos que os registos de Nechtan e de Conan não passassem de devaneios de loucos. E, contudo, ali estávamos nós,
sem um único monstro à vista. A floresta estava pacífica sob o sol da manhã, os pássaros trocavam chamamentos eloquentes nas copas das árvores. Era certamente um
lugar melancólico. Mas não havia quaisquer...
- Magnus? - A minha voz tornara-se baixa e trémula.
- Hum?
- Está ali um homem debaixo das árvores, com uma capa escura. - Enquanto eu apontava, a figura que eu vira transformou-se numa sombra.
- Mantém os olhos no caminho - instruiu Magnus. - Não há motivo para te preocupares.
Algo fez barulho e eu voltei-me de repente para o outro lado. Desta vez era uma mulher, meio escondida por entre os fetos, de olhos observadores, rosto pálido, com
o capuz a envolvê-lo. Enquanto eu olhava, ela desapareceu. Um fantasma, talvez conjurado pela minha imaginação temerosa a partir da luz que caía sobre as pedras
ou da dança das folhas ao vento.
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- Toma o meu braço, Caitrin. - A voz de Magnus era tão firme como uma rocha. - Olha em frente. Lembra-te do que te disse. Agora fazes parte da gente de Anluan e
estás a salvo comigo.
E vinte passos mais adiante, já não havia nada para ver. Sabia que não devia fazer perguntas. Perfizemos o resto da distância até à povoação em silêncio e a barricada
eriçada foi aberta para nos deixar entrar.
A minha chegada à povoação foi recebida com expressões de assombro. Era óbvio que ninguém esperara que eu sobrevivesse à minha caminhada monte acima e muito menos
que regressasse aparentemente incólume. Ao que parecia, Tomas arriscara e aceitara a aposta de Duald de que eu chegaria ao cimo do monte viva e naquele momento recebia
o que lhe era devido.
- Tive as minhas dúvidas - confessou ele, a mim e a Magnus enquanto esperávamos no exterior da estalagem que empacotassem as provisões de que precisávamos. - Não
o nego. Mas pareceste-me tão determinada a lá chegar que eu pensei, se alguém consegue fazê-lo é ela.
- Obrigada pela tua fé em mim - respondi. - Posso entrar para falar com Orna durante algum tempo? Não estamos com pressa de regressar.
A avaliar pelo que vira da última visita de Magnus, era provável que nos dessem as nossas provisões e nos acompanhassem rapidamente até à barreira. Uma vez ali,
descobri que afinal queria conversar com outra mulher, mesmo que esta incluísse avisos medonhos acerca de guerreiros misteriosos e cães gigantes.
- Porque não? - respondeu Tomas, olhando de lado para Magnus. Senti que não era comum o meu companheiro ser convidado a entrar; não me esquecera do quanto Orna parecera
receosa na presença dele da última vez, como se Magnus trouxesse a mácula do Tor com ele, para dentro da povoação.
- Demora o tempo que quiseres, Caitrin - disse Magnus. - Estarei aqui fora se precisares de mim.
Dentro da estalagem, Orna esfregava o chão, enquanto uma mulher de cabelos ruivos trabalhava energicamente com uma escova de cabo comprido, limpando teias de aranha.
Ambas pararam de trabalhar para olhar para mim quando entrei.
- Por todos os santos e criaturas rastejantes! - exclamou Orna, sentando-se para trás sobre os calcanhares. - Regressaste.
- É verdade, e na esperança de que tenhas algum tempo para te sentares e conversares um pouco. Talvez beber uma caneca de cerveja? Magnus tem com que pagar.
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- Com certeza. - Talvez ciente de que eu devia ter, pelo menos, uma história interessante para contar, Orna levantou-se e foi buscar o jarro da cerveja, apresentando-me
a sua amiga, Sionnach, enquanto colocava três canecas em cima da mesa acabada de esfregar. - E agora diz-nos - pediu ela. - O que pensas de Lorde Anluan? Como são
as coisas lá em cima?
Fiquei a saber, enquanto lhes contava o pouco que supunha ser aceitável para Anluan revelar, que muito poucas pessoas da aldeia o haviam visto em carne e osso. Havia
alguns jovens que trabalharam um ou dois dias no topo do Tor, antes de fugirem de medo, explicou Orna, e algumas pessoas mais idosas que se lembravam de ter visto
Anluan quando era criança, mas Orna, Tomas e Sionnach nunca lhe tinham posto a vista em cima, nem nenhum dos seus amigos.
- Isso significa que ele nunca vem cá abaixo - constatei. - De todo.
- De todo. Vemos Magnus. Por vezes encontramos o fulano do cão, sejam ambos malditos. Mas não a ele. Não ao chefe tribal que devia ser um líder e proteger-nos a
todos. Maldito seja, a aberração desgraçada e torpe. Mas já deves ter visto por ti própria o que ele é. - O tom de voz de Orna era interrogativo; tanto ela como
Sionnach esperavam ansiosamente por ouvir a minha história.
- Anluan é um homem comum - respondi, percebendo assim que o fiz que aquela era uma descrição inadequada. - Tem uma ligeira deficiência física, mas isso não faz
dele um monstro. É um pouco... bem, tem tendência para perder a paciência com alguma facilidade. Mas não é nenhuma aberração. Penso que ele tem o que é preciso para
ser um bom chefe tribal, mas... existem algumas dificuldades. Não o vejo muitas vezes. Trabalho sozinha a maior parte do tempo. - Senti uma repentina sensação de
deslealdade; seria errado falar demasiado, expor mais das feridas que assolavam Anluan e os seus leais seguidores. Algures na minha mente existia uma grande questão,
a questão do porquê. Não pensei encontrá-la ali, onde a conversa de maldições e de monstros estava tão generalizada. - Tenho feito algum do trabalho de costura para
as pessoas da casa - continuei alegremente. - Por acaso têm linha de linho ou algumas boas agulhas que me possam dispensar?
Ficaram muito felizes por me poderem fazer um favor. Orna foi buscar a sua caixa de costura e Sionnach correu para a casa ao lado para ir buscar a dela. Encetou-se
uma animada conversa sobre métodos de fazer bainhas, durante a qual eu consegui inserir algumas perguntas cuidadosas sobre a vinda recente de visitantes à povoação
e se alguém teria perguntado por uma jovem mulher que viajava sozinha. A resposta não
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foi inesperada: que ninguém vinha a Whistling Tor. Devia ser um exagero. Algumas provisões teriam de ser trazidas de fora e alguns bens deveriam sair, acompanhados
de pessoas que os transportassem. Mas não havia qualquer motivo para Orna mentir acerca daquele assunto. Ela e Tomas sabiam que eu não queria ser encontrada e como
estalajadeiros estariam mais atentos a quaisquer idas e vindas no distrito.
- Mas tem havido alguns boatos - acrescentou ela, sombriamente. - Dizem que os normandos se aproximam. Um grupo deles foi avistado no território de Silverlake. Diz-se
que eles poderão vir para esta região. Dá-nos um calafrio nos ossos, não é? Quem nos defenderia se eles viessem?
Provavelmente devido à minha presença, Magnus acabou por ser convidado a entrar dentro da estalagem, onde ele, Tomas e mais dois homens, se sentaram com as mulheres
a beber cerveja e a comer bolos de aveia. Reparei no quão competente Magnus era na extracção de informação sem chegar a pedi-la. Quando finalmente nos levantámos
para partir, ele descobrira o nome do lorde normando cujos guerreiros haviam sido vistos em Silverlake - Stephen de Courcy -, que o grupo era formado por doze homens
e que o informador de Tomas fora um monge do Mosteiro de São Criodan onde os normandos pararam para rezar e pedir indicações. Ainda não fora feita qualquer visita
formal a Fergal, o chefe tribal de Silverlake; ainda não.
Quando saíamos da estalagem, Orna pegou-me na manga e deteve-me enquanto os homens prosseguiam.
- Tens a certeza de que queres voltar lá para cima, Caitrin? - murmurou ela. - E aquelas... coisas?
Vi o medo espelhado nos olhos dela e o assombro perante a minha escolha de regressar ao Tor de livre e espontânea vontade perante tais abominações.
- Vi pouca coisa - contei-lhe. - Talvez não seja assim tão mau como pensas. Quando subi o monte ouvi algumas vozes, é verdade. E esta manhã estava sempre a imaginar
que via pessoas na floresta. Mas não vi qualquer prova da existência de uma... hoste. Nada de verdadeiramente assustador.
- São assustadores, são. Eu diria para perguntares à minha avó, mas ela já faleceu. Não são apenas histórias doidas, aqueles relatos de pessoas desmembradas e de
aldeias inteiras devastadas. São verdade. Lá porque ainda não os viste, não os torna menos reais. Não sei como consegues encarar este assunto com tanta calma.
Pensei nos registos de Conan, na tentativa desastrosa de usar a hoste no campo de batalha, o seu desespero em relação ao futuro do seu povo e da sua família.
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- Não estou a duvidar de ti, Orna. Mas disseram-me que Anluan me protegerá.
Orna abanou a cabeça, apertando os lábios.
- Anluan, não é? E como é que sua senhoria o fará, com o seu braço fraco e a sua perna torta? Só há uma forma de um homem assim te proteger, Caitrin, e é pela feitiçaria.
Todos sabem o que Nechtan era. Este é seu parente, é um homem em que não se deve confiar. Tem cuidado, é tudo o que te digo. Se quisesses ficar aqui connosco, havíamos
de arranjar um lugar para ti. Não tens de regressar lá para cima.
- Vens, Caitrin? - Magnus esperava-me à porta, com uma saca de provisões apoiada num dos seus ombros musculados.
- Vou já. - Voltei-me de novo para Orna. - Obrigada. Tens sido muito gentil. Estou certa de que ficarei bem. Espero que esta ameaça normanda não seja nada. Talvez
te veja da próxima vez que Magnus vier cà abaixo.
- Teríamos muito gosto. - As suas feições feias transformaram-se com um sorriso. - Não é verdade, Sionnach? Não é bom para ti, passares todo o tempo lá em cima,
sem outras mulheres, numa casa cheia de sabe-se lá o quê. Vem mesmo.
Senti-me revigorada pela mudança de cenário, embora as notícias sobre os normandos fossem preocupantes. Depois de uma caminhada Tor acima sem incidentes, entrámos
no pátio e encontrámos Anluan novamente debaixo da arcada, como se não tivesse saído dali a manhã toda. Não nos cumprimentou, acenando apenas com a cabeça quando
nos viu.
- Preciso de falar contigo - disse-lhe Magnus. - Trago notícias.
Partiram em direcção à cozinha e eu encaminhei-me para a biblioteca onde passei a tarde inteira a folhear registos inconsequentes sobre a quinta. Não conseguia tirar
as palavras de Orna da minha mente. Só há uma forma de um homem assim te proteger, Caitrin, e é pela feitiçaria. Não queria que Anluan fosse um feiticeiro. Queria
que ele fosse um chefe tribal, queria vê-lo transformar-se na pessoa que por vezes vislumbrava por baixo do exterior proibitivo, um homem sensível aos humores alheios,
um homem capaz de fazer saltos de lógica, um homem que... Bem, eu não tinha nada a ver com isso, não fora contratada para lidar com a desordem do espírito do chefe
tribal, apenas com a desordem da sua biblioteca. Aberração desgraçada e torpe. Se algum dia viesse a transformar-se no que devia, seria graças a um esforço descomunal.
Teria de lutar contra anos de preconceitos e mal-entendidos. Mais difícil ainda, pensava eu, teria de aprender a acreditar em si próprio.
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- Alguém quer mais pudim de maçã? - Magnus mergulhou a concha dentro da panela. - Vou precisar de alguma ajuda depois desta chuva passar. É melhor manterem as forças.
- Nessa noite estávamos todos reunidos para a ceia. A chuva começara a cair ao princípio da tarde e ainda caía de forma constante lá fora.
- Eu posso ajudar-te se quiseres - ofereci eu. Anluan voltou o seu olhar para mim.
- Não és paga para cortar lenha e guardar vacas.
- Obrigada pela oferta, Caitrin - respondeu Magnus, com um sorriso. - Anluan talvez não se tenha dado conta que nos tens ajudado com isto e aquilo desde há algum
tempo a esta parte. Se isso for a causa de mais uma reprimenda, a culpa é minha por ter aceitado ajuda quando esta me foi gentilmente oferecida. Quanto ao trabalho
da quinta, Olcan ajudar-me-á.
- A tua família tem propriedades, Caitrin? - A pergunta de Anluan era aparentemente inofensiva, mas eu sabia que ele não a fizera casualmente.
- Uma pequena propriedade, sim. Uma vaca doméstica, gansos e galinhas, um terreno para vegetais.
- E o nome do teu pai é Berach - afirmou Muirne.
- Era. O meu pai faleceu no Outono passado. Um breve silêncio.
- Tens uma irmã, se bem me lembro. - Daquela vez foi Rioghan quem falou. - Uma versão mais generosamente constituída de ti, segundo me lembro de teres dito. E também
tens irmãos? Suponho que não ou já teriam investido por aqui acima para te levarem para casa.
Este jogo de adivinhas era como ser picada de todos os lados com furadores afiados. Era a primeira vez que me perguntavam pela minha situação familiar de forma directa.
- Não tenho irmãos. Somos apenas eu e a minha irmã.
- E onde é que ela está, Caitrin? - perguntou Muirne.
- Casou e partiu. Casou com um músico itinerante. Casou, partiu e debcou-me. Deixou-me entregue a Cillian. Anluan levantou-se abruptamente; nós, os restantes, após
um momento de estupefacção, fizemos o mesmo.
- Foi uma óptima refeição, Magnus - elogiou ele, ajeitando a capa à sua volta, embora o aposento estivesse quente. - Lamento não lhe poder fazer justiça. Recolher-me-ei
agora. Quanto a Caitrin, ela não devia desperdiçar o seu tempo com trabalhos domésticos. Tem funções mais importantes.
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Abri a boca para protestar, mas Magnus falou antes de mim.
- Reparaste que as tuas camisas estão bem remendadas ultimamente? - perguntou, calmamente. - Foi obra de Caitrin.
A tez clara de Anluan ficou tão vermelha como a de um menino que é apanhado a espreitar com curiosidade o banho das irmãs. Sem dizer uma palavra, voltou as costas
e saiu da sala. Fiel ao padrão, Muirne seguiu-o.
Nós, os restantes, descontraímo-nos. Magnus trouxe mais um jarro de cerveja, Olcan partilhou o que sobrava do pão entre os cinco. Eichri assobiou baixinho uma melodia.
Não me pareceu uma melodia religiosa.
- A tua história intriga-me, Caitrin - admitiu Rioghan. - Vieste para Whistling Tor sozinha. Não tens recursos, caso contrário não terias de pedir emprestada a moeda
para a aposta. Segundo dizes, o teu pai era um mestre escriba. Não duvidamos disso, uma vez que foi ele quem te ensinou, e ouvimos Anluan louvar as tuas competências,
o que, para ele, é dizer muito.
Se Anluan o dissera, certamente não fora na minha presença. Apesar da forma como a conversa se voltara rapidamente para o tópico que eu não queria ver discutido,
senti uma onda de prazer ante o reconhecimento dele.
- O meu pai era muito apreciado - confirmei. - Não quero falar dele. É demasiado cedo.
- Eu sei disso, Caitrin. Há apenas uma questão que me ocupa a mente e é esta: se o teu pai era aquilo que dizes que ele era, como é que a morte dele te deixou sem
um tostão?
- Rioghan! - O tom de Magnus era enganadoramente calmo. - Já chega.
- Cerveja, Caitrin? - Olcan encheu de novo a minha caneca. - E que tal uma história, uma alegre para uma noite chuvosa? Clurichaunsx, guerreiros, princesas encantadas
sob a forma de pássaros, quais preferes?
- Compreendo que há coisas de que não podem falar - introduzi eu, arriscando -, mas poderiam falar-me de Irial? - Olhei de relance para Magnus, perguntando-me se
este assunto seria tão perturbador para ele como Market Cross era para mim. - Tenho estado a ler os livros de anotações dele - continuei - e penso que ele deve ter
sido uma pessoa encantadora, gentil, sábia e... triste. Viviam todos aqui quando Irial foi chefe tribal? Como é que ele conheceu Emer?
Nota de rodapé:
Figuras da mitologia e do folclore da Irlanda, semelhantes a duendes.
Fim da nota de rodapé.
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- Estávamos aqui - respondeu Eichri calmamente. - O pai de Emer era Iobhar, o chefe tribal de Whiteshore.
- Irial deve ter estado de melhores relações com os seus vizinhos do que aparentemente Nechtan ou Conan estiveram.
- Esforçou-se muito para isso, Caitrin. - Magnus pousou a sua caneca de cerveja. Os seus olhos cinzentos estavam sombrios. Assim que ele falou, os outros três inclinaram-se
para trás, como se reconhecessem que esta era uma história dele e devia ser ele a contá-la. - Ele contratou-me numa tentativa de garantir as defesas dos seus territórios,
não apenas o Tor mas as quintas circundantes e as povoações pertencentes aos seus domínios. Nechtan perdera o controlo. Perdera animais e territórios juntamente
com a confiança dos outros chefes tribais. Conan não fora capaz de recuperar as perdas do pai. Quando Conan morreu e as responsabilidades passaram para o filho,
Irial estava determinado a remediar a situação, apesar do risco. Os recursos eram escassos, não pôde contratar um grupo de gallóglaigh, apenas um guerreiro para
o ajudar. No princípio tinha dois rapazes comigo, mas eles partiram, não conseguiram lidar com as excentricidades de Whistling Tor. Naqueles primeiros anos, Irial
investiu tudo o que tinha a tentar reconstruir as alianças que haviam sido quebradas no tempo de Nechtan. Foi difícil. Conan cometera alguns erros graves. As pessoas
não confiavam em Irial, receavam Whistling Tor e as suas histórias obscuras. Eu fiz visitas em nome dele, falei com as pessoas, expliquei o que ele pretendia. Iobhar
de Whiteshore era o melhor dos chefes tribais locais. Estava preparado para ouvir, apesar dos entraves à confiança. Conseguimos organizar uma reunião de conselho,
apenas uma, em Whistling Tor, e Emer veio com o pai.
- Era uma rapariga encantadora - acrescentou Rioghan com um suspiro. - És parecida com ela, Caitrin, especialmente quando usas esse vestido violeta. O cabelo de
Emer não era escuro como o teu, mas de um ruivo flamejante. Era uma doce senhora. Irial amou-a assim que a viu e ela apaixonou-se por ele com a mesma rapidez.
- As pessoas ficaram surpreendidas quando Iobhar concordou com a união - continuou Magnus. - Ele sabia que não veria a filha com muita frequência depois de ela se
casar com o chefe tribal de Whistling Tor. Ela voltou a casa algumas vezes nos primeiros anos. Levou An-luan a visitar os avós quando ele era bebé. Eu escoltei-os;
era mais seguro se Irial permanecesse aqui. Emer gostava de ver a família dela, mas passava o tempo a contar os dias para regressar a Whistling Tor. Irial tinha
muita sorte em tê-la. Não haveria muitas mulheres preparadas para viver num tal lugar, por muito que amassem um homem. Emer transformou
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a vida dele. Tiveram uns quantos anos bons, tiveram Anluan. E depois ela morreu. Não falaremos disso. - Magnus voltou-se, mas não antes de eu lhe ver o brilho das
lágrimas nos olhos.
- Peço desculpa - desculpei-me, levantando-me para colocar um braço em torno dos ombros dele. - Não foi justo da minha parte pedir que me contassem essa história.
Muitas pessoas não teriam tido a coragem de continuar aqui. Fizeste o que estava certo, Magnus. - Olhei para os outros. - Anluan tem sorte em ter-vos.
- Vá lá, Caitrin - pediu Olcan, limpando as suas faces rosadas com uma mão -, ainda nos pões para aqui todos a chorar como bebés. Magnus, e que tal um pouco de cerveja
quente com açúcar e especiarias? Chega de histórias tristes esta noite.
Magnus não disse nada, mas levantou-se, colocou um atiçador de ferro nas brasas e depois começou a reunir uma variedade de ervas e especiarias em cima da mesa.
- Tens trabalhado muito, Caitrin - comentou Eichri, mudando de assunto. - Como está o teu abastecimento de materiais?
- Está bem. Manterei um registo preciso daquilo que usar. Sei que tenho de o fazer durar o resto do Verão.
- Quanto a isso - informou Eichri -, pode-se arranjar mais, se precisares. Se quiseres velino, pergaminho, tintas, utensílios, fala comigo.
- É melhor que tenhas cuidado contigo - disse Rioghan para o monge. - Fica mal a um homem do clero entregar-se ao furto. O teu nome, já está suficientemente manchado,
irmão.
- Quem falou em roubar, conselheiro? Posso levar um pouco emprestado aqui, um pouco ali, apenas o que pode ser facilmente dispensado. O Mosteiro de São Criodan não
sentirá a falta de nada. Aqueles monges só sabem pensar no tempo que falta para se levantarem e aliviarem as costas doridas.
- Os monges não encaram o exercício da caligrafia como um acto de adoração? - perguntei, pouco segura da seriedade daquela conversa.
- Não sendo um escriba, não saberia dizer-te. - O sorriso de Eichri que lhe deixava à mostra os dentes era pleno de maldade.
Lembrei-me de algo.
- O Mosteiro de São Criodan. Foi nesse lugar que foi mostrada a Nechtan uma biblioteca secreta. Uma colecção de... - Não, afinal não queria falar daquele assunto.
- Não falemos de Nechtan - pediu Olcan. - Magnus, isso cheira a Primavera e a Verão de uma assentada. E que tal uma ou duas canções enquanto esperamos que fique
pronta? Sempre gostei daquela da senhora e do sapo.
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Acordei tarde na manhã seguinte, ainda cansada. O resto do serão passara-se à laia de convívio, connosco os quatro a darmos conselhos a Magnus acerca da preparação
da cerveja quente e depois partilhando canções e histórias até a bebida acabar.
Dirigi-me, a bocejar, para a biblioteca, mas a minha cabeça pareceu-me demasiado débil para o trabalho de escriba. Depois das revelações da noite anterior, senti-me
atraída para os livros de anotações de Irial. Havia neles um encanto que acalmava o coração. Se não fosse o contraponto melancólico constituído pelas notas à margem
em latim, com a sua história de perda, os livros teriam constituído um caminho perfeito para a paz de espírito.
Irial rotulara cada desenho com vários nomes, incluindo os usados pelos ervanários locais, tais como beijo-de-fada, orelha-de-rato e príncipe-do-monte. Por baixo
destes, fez observações acerca da forma, da cor e da textura da folha, do caule, da flor, das sementes, da raiz, e listara as utilizações medicinais e mágicas das
plantas. Algumas podiam ser mergulhadas em água para fazer cataplasmas curativos ou infusões regeneradoras. Outras podiam ser queimadas numa braseira para restaurar
a calma ou trazer bons sonhos. Sentei-me na pequena mesa junto à janela, onde a luz era melhor, e li as páginas adequadamente daquela vez. Aqui e além, viam-se notas
à margem, em irlandês em vez de latim. Estas não formavam uma litania do seu sofrimento pela perda de Emer, mas tratavam de assuntos práticos. Usei isto obtendo
um efeito benéfico. E junto a outro desenho. Olcan disse-me que a sua gente combinava esta erva com louro para induzir um estado de transe. Perguntei-me quando é
que a próxima página me revelaria a fórmula para a tinta de sangue-do-coração.
Ao fim de algum tempo, a minha cabeça começou a latejar. Talvez um pouco de ar fresco me ajudasse; daria um passeio. Atravessei novamente a casa para ir buscar um
xaile ao meu quarto e depois saí para a parte principal da propriedade. Passei por Muirne quando esta entrava.
- Muirne, sabes onde se encontra Anluan hoje?
- Está a descansar, Caitrin. Não havia sinais de ninguém naquela manhã, até o espantalho estava ausente. Talvez os meus companheiros da noite anterior tivessem sido
afligidos pela mesma dor de cabeça que interrompera o meu trabalho.
O Sol despontara, emitindo uma luz matizada através das árvores. Chovera novamente e o ar estava fresco. Caminhei ao longo de um dos caminhos de vegetação desgovernada,
pensando na quietude daquele
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momento. Na verdade, aquela era uma quietude pouco natural. Onde estariam todos? Magnus não deixaria que uma dor de cabeça afectasse o seu trabalho diário. De repente,
senti-me desassossegada, com a pele arrepiada e as palmas das mãos pegajosas.
O som de um passo furtivo. O meu coração deu um salto. Antes que eu me pudesse voltar, alguém me agarrou por trás.
CAPÍTULO CINCO
Lutei. Não sabia que podia lutar com tanta força, arranhando, mordendo, pontapeando como uma criatura selvagem apanhada numa armadilha. Cillian, era Cillian, reconheci
a voz dele, a voz do meu pior pesadelo.
- Amordaça-a! - ordenou ele bruscamente a alguém.
Eu debati-me, mas não havia como libertar-me dos braços fortes que me agarravam, das mãos cruéis que me feriam.
Consegui gritar uma vez antes de me colocarem um pano por cima da boca e de o atarem com tanta força que senti o reflexo do vómito surgir. Cillian tinha quatro outros
homens com ele, todos eles homens que eu conhecia de Market Cross, grandes, com facas, maças e varas de madeira. Ele segurou-me enquanto um dos seus comparsas me
atava as mãos atrás das costas e outro me prendia os tornozelos. Continuei a debater-me até que Cillian me golpeou por cima da orelha, fazendo-me ranger os dentes.
O meu corpo ficou hirto de terror.
- Pára de lutar, sua estúpida - sibilou Cillian. - Já nos deste trabalho suficiente.
Atirou o meu corpo por cima do ombro, a minha cabeça a pender para baixo atrás dele, e caminhou em direcção à falha da muralha. Com o coração a martelar-me no peito,
as mãos húmidas de suor frio, implorei mentalmente que alguém viesse, fosse quem fosse. Acudi-me! Não posso regressar, não posso, não posso... Vi a imagem vacilante
de umas botas a andarem e das pedras do caminho. Por favor, oh, por favor...
- Como se atrevem! Libertem-na imediatamente ou sujeitar-se-ão às consequências! - Era um rugido de comando: a voz de Anluan.
Cillian parou. A sua volta, os seus homens fizeram o mesmo. Voltou-se. De cabeça para baixo, vi o chefe tribal de Whistling Tor debaixo da arcada do jardim de Irial.
O rosto de Anluan estava cor de cinza, os seus olhos incandescentes de fúria. Não havia mais ninguém à vista, confrontava-os
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sozinho. Uma onda de calor percorreu-me, e com ela um novo acesso de medo.
- Eu disse, libertem-na!
Cillian pôs-me no chão, mas manteve uma mão punitiva no meu braço. Os meus olhos encontraram os de Anluan enquanto ele coxeava na nossa direcção, com a cabeça erguida,
o olhar feroz, a capa a esvoaçar à sua volta.
Eles riram-se, primeiro Cillian, e depois os outros.
- Planeias lutar contra nós todos de uma vez, aleijado? - O tom do meu captor era zombeteiro. - Daquilo que ouvi dizer lá em baixo, tens tanta força como um pedaço
de fio molhado. Amaldiçoado, disseram eles. Bastou olhar para ti uma vez para perceber de que maldição se trata, aberração. Vem daí, então, e luta comigo! Vejamos
que tipo de homem és! - Ouviu-se um rugido de antecipação dos seus comparsas.
Anluan parara a dez passos de nós. Naquele momento, deu um passo em frente. O tom da sua voz era firme.
- Este é o vosso último aviso. Desatem as amarras de Caitrin e libertem-na imediatamente ou pagarão o preço da vossa ousadia.
Mais gargalhadas.
- Ele tem atitude, lá isso tem - zombou Cillian -, mas falta-lhe virilidade. Estás muito enganado, meu senhor. Caitrin é minha parente. Não duvido que ela te tenha
contado uma história qualquer louca, mas a verdade é que ela sofreu uma perda e isso lhe afectou o juízo. A tonta da rapariga fugiu de casa. Estou aqui para a levar
de volta para casa, onde será bem tratada.
Tentou pegar-me novamente e, por um momento, a atenção dele deixou de se focar em Anluan. Mas não a minha. O chefe tribal de Whistling Tor não avançou mais. De repente,
os seus olhos azuis ficaram distantes. Levantou a mão esquerda e estalou os dedos.
- O quêeee...! - gritou um dos homens, enquanto outro praguejava violentamente.
Olcan apareceu do nada e estava de frente para nós, uma figura compacta de pernas curtas. O seu rosto já não era cordial, exibindo um esgar medonho e no punho um
enorme machado brilhante. Uma trela feita de corda enrolava-se em torno do outro punho. A trela estava esticada - Fianchu puxava-a em direcção aos intrusos, com
os dentes à mostra, a língua salivante, os pequenos olhos cheios de um desejo assassino. Cillian voltou-se, levando-me com ele; todos procuraram as suas armas até
que os homens deram de caras com o que estava atrás. Um cavalo alto erguia-se, todo ele ossos por baixo de uma pele translúcida. Os
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seus olhos eram de um vermelho incandescente. O seu cavaleiro vestia o hábito e a capa de um monge. Na sombra do capuz, o rosto dele era esquelético, os olhos tinham
um brilho misterioso e assustador.
- Não tenhas medo, Caitrin - pediu Eichri, e depois mostrou os dentes num sorriso fantasmagórico. O cavalo fez o mesmo, emitindo um som que era mais um ranger de
ossos do que um relinchar, e empi-nou-se. O grupo de Cillian dispersou-se, gritando.
- Libertem-na. - A voz de Anluan estava mais calma, mas cortou a desordem violenta como uma faca corta manteiga, e desta vez Cillian obedeceu, gesticulando a um
dos outros que desatasse a corda que me apertava os tornozelos. O cavalo espectral andava à nossa volta, o seu trote era um chocalhar de ossos, e vi que Eichri trazia
na mão uma longa e pálida espada.
- Oh, Deus! Oh, Deus! - gritou alguém, enquanto por trás do cavaleiro uma massa rodopiante fluiu de debaixo das árvores do pátio, nem bruma, nem fumo, mas algo repleto
de bocas abertas e mãos prontas a agarrar, algo com cem vozes estridentes e lamentosas e cem pés rastejantes a tamborilar.
Os homens de Cillian golpearam-na violentamente com as suas armas, mas a massa de formas indefinidas continuou a avançar até estar prestes a engolir-nos a todos.
O som desconcertante invadiu a minha cabeça, embotando-me a razão. Com o coração a bater de uma forma que parecia querer sair-me do peito, mantive os meus olhos
nos de Anluan. Se ele não tinha medo, disse a mim própria, eu também não teria. Eu pertencia à casa dele e ele dissera-me que eu estaria a salvo.
Com um safanão de despedida, dei comigo estendida no chão enquanto Cillian e os seus homens fugiam pela falha na muralha da fortaleza e monte abaixo, perseguidos
por Eichri a galope e pela hoste amorfa que o seguia de perto. De trela solta, Fianchu partiu atrás deles, latindo. Olcan marchava na retaguarda. Enquanto Anluan
se apressava para junto de mim, com um coxear mais pronunciado do que era habitual, Magnus apareceu do lado da quinta, caminhando na nossa direcção.
Anluan ajoelhara-se para me ajudar a sentar, o seu toque era gentil.
- Estás a salvo, Caitrin - murmurou ele. - A hoste não te fará mal, eles obedecem às minhas ordens. Não há nada a temer.
Conseguiu desapertar a mordaça com a sua mão boa, enquanto Magnus me desamarrava os pulsos. No fundo do monte, começara a cacofonia de gritos, latidos e choques
metálicos. Os dois homens ajudaram-me a levantar. A minha respiração fazia-se por espasmos, as lágrimas que reprimira, para que Cillian não me visse derrotada, corriam
agora livremente.
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- Para dentro - indicou Magnus. - Podemos confiar nos outros para acompanharem os nossos hóspedes indesejados. Será que ouvi aquele fulano dizer que era teu parente,
Caitrin?
- Agora não - pediu Anluan. Depois de me ter ajudado a levantar, ele afastara-se, como se tivesse medo de me tocar. - Vai devagar, Caitrin. Sofreste um tremendo
choque. Magnus, vai andando e prepara uma bebida restauradora para Caitrin, por favor. Nós seguiremos em breve.
Estava a chorar tanto que nem sequer conseguia verbalizar um agradecimento. Fora por pouco. E se Anluan não tivesse saído? Poderia estar naquele momento a caminho
de Market Cross. Como conseguira Cillian encontrar-me, em nome de Deus? Poderiam os aldeões ter-me traído quando no dia anterior haviam demonstrado tanta simpatia?
E como é que Cillian conseguira chegar ao cimo do monte? Agora que parecia ter terminado, comecei a tremer. Enquanto nos dirigíamos para a entrada principal, Anluan
aproximou-se de mim, levantando o braço como se pretendesse colocá-lo por cima dos meus ombros. Desviei-me, lutando para me controlar, e ele não chegou a completar
o gesto.
- Nem sequer vi Cillian chegar - solucei. - Fui estúpida por ter saído lá para fora sozinha, estúpida!
- A culpa não foi tua - disse Anluan, num tom de voz calmo, enquanto entrávamos em casa. - Lamento ter demorado tanto tempo a alcançar-vos. Ouvi-te gritar e corri.
Mas não consegui correr suficientemente depressa.
- Chegaste a tempo, é isso que interessa. - Parei para limpar o rosto na manga. - Anluan, aquelas coisas... e Eichri... Não percebo o que se passa. - Uma coisa era
certa: Eichri não era um monge vulgar, nem sequer um homem vulgar. - Como fizeste aquilo? Aquela... invocação? Vieram tão rapidamente. Olcan apareceu do nada.
- É algo que sou capaz de fazer. - Parecia relutante em contar-me mais.
- Aquela é que era a... a hoste? A hoste de Nechtan?
Nem me lembrara de ter medo deles. A minha mente e o meu corpo foram possuídos pelo velho medo, o medo que me fizera fugir de Market Cross para procurar ali um lugar
seguro. Aquele terror ainda tremia dentro de mim: o conhecimento de que se fosse levada de regresso a casa me perderia de mim própria para sempre.
- É a mesma força que viste mencionada nos documentos - confirmou Anluan. - O exército de Nechtan, tal como ele é. Por vezes governável, outras vezes ingovernável.
A pedra não constitui uma barreira para eles. Pensei que seria melhor se não soubesses...
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Enquanto entrávamos na cozinha, ele cambaleou e, depois de me ajudar a sentar num banco corrido, deixou-se cair a meu lado e afundou a cabeça nas mãos.
- O que se passa, Anluan? - O colapso repentino assustara-me.
- Ele ficará bem dentro em breve - respondeu Magnus, enfiando colheradas de pós dentro de um jarro. - É uma reacção natural: o exercício do poder consegue ser extenuante.
- Eu sei responder por mim, Magnus. - A voz de Anluan não era mais do que um sussurro. - Caitrin, há muito que te devo uma explicação, bem sei.
- Não estás bem - comentei.
- Não é nada. Não posso responder-te a tudo pois existem algumas perguntas que não têm resposta. As entidades que acabaste de ver, não sabemos bem o que elas são,
apenas que são instáveis e difíceis de controlar. Existe uma passagem nos registos de Conan, que talvez já tenhas lido, na qual o meu avô tentou conduzi-las para
o campo de batalha.
- Ele perdeu o controlo - murmurei. - E elas semearam o caos.
- Existem muitas descrições desse tipo nos documentos. Estes seres estão no monte desde o tempo de Nechtan. Acredita-se que ele os tenha invocado através de um acto
de magia negra. Não são monstros, apesar da impressão que deram há pouco. Isso foi um mero truque, uma ilusão que pode ser usada para gerar medo no adversário.
Não clarificou quem criou aquela ilusão, se ele próprio, se a hoste, e eu não perguntei. Se me aproximasse demasiado do seu papel assombroso, a corrente de palavras
secaria quase de certeza.
- A hoste encontra-se ligada ao chefe tribal de Whistling Tor, seja ele quem for - explicou Anluan. - Posso exercer algum controlo sobre os seus actos. Faz-se através
do... do pensamento, da concentração... Não através de feitiçaria, é uma habilidade. Quando o faço, fico fraco. Como podes ver.
- Não tentes falar - murmurei. - Não precisas de me dizer tudo isto agora.
- Di-lo-ei. - Levantou o tom da sua voz. Senti o esforço considerável que ele fazia para se manter sentado direito no banco. - Caitrin, já viste que eu consigo comandar
estas forças. Posso chamá-las em meu auxílio. Mas esta... relação... não termina com a utilização ocasional da hoste de Nechtan para socorrer uma amiga em apuros
ou para manter afastadas visitas indesejadas. Sabes que no passado a hoste correu desgovernada e causou danos indizíveis. Existe uma entidade malévola entre eles,
algo que tem a capacidade de os comandar se os deixar sem supervisão.
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Não sabemos qual a sua natureza - a minha teoria é a de que a experiência de Nechtan correu mal, de alguma forma, e que em vez do poderoso e obediente exército que
ele desejava, ele obteve uma força que era mais um fardo do que um trunfo. Tenho a necessidade constante de manter a ordem no monte. Nunca me posso dar ao luxo de
abdicar do controlo completamente. Já deves ter observado que me canso com facilidade. É algo de que tenho vergonha. Quando me vejo através dos teus olhos, vejo
um homem fraco, um homem preguiçoso, um homem que passa a maior parte do seu dia inactivo. Há uma razão para isso, para além da minha condição física. Todos os momentos
de todos os dias, parte da minha mente tem de estar focada na hoste de Nechtan. Se perdesse o controlo sobre eles em qualquer momento, as suas mentes seriam influenciadas
pelo mal que vive entre eles. Poderiam deixar o Tor e semear o caos nos campos e nas aldeias para além dele. Se eu deixasse que isso acontecesse, esta região estaria
condenada.
Enquanto Anluan estivera a contar aquela história extraordinária, Magnus misturara calmamente os seus pós, juntando-lhes água quente da chaleira que estava ao lume,
deitara a infusão em duas canecas e colo-cara-as em cima da mesa. Naquele momento, fora buscar um jarro de cerveja.
Tentei não mostrar o quanto estava horrorizada.
- Porque não me contaste isto antes? E Eichri? Ele estava... ele é...
- Ele é um deles - informou Magnus. - E Rioghan também. Aqueles que vivem dentro de casa, do círculo interno, são diferentes dos restantes. São nossos amigos e aliados.
Estavam na floresta com os outros no princípio, mas com o tempo apegaram-se ao lar do chefe tribal. A resistência deles ao mal é forte. Na vontade e na intenção,
na lealdade, não são assim tão diferentes de servos humanos. Não há necessidade de teres medo deles.
- O Olcan também é? E Muirne?
Vivera entre eles sem perceber que eles eram... o quê, exactamente? Fantasmas? Demónios? Pensei na palidez invulgar de Rioghan, na aparência extremamente magra de
Eichri e no talento de Muirne para se deslocar sem produzir um som e percebi que fora cega. Não admirava que os aldeões me tivessem atirado pedras - não fora a jovem
viajante que os assustara, mas os seus companheiros desconcertantes.
- Olcan, não - explicou Magnus. - Ele é algo diferente. Tão velho quanto o próprio monte. Este era um lugar estranho mesmo antes de Nechtan ter feito o que quer
que seja.
- É... é difícil de acreditar - disse eu, tremendo. Pensei nas refeições que Magnus servia a Rioghan, Eichri e Muirne, uma porção pouco
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maior do que a que caberia numa boca cheia, e mesmo esse pouco nunca era comido. Fora aquele fingimento feito por minha causa, para impedir que eu descobrisse a
verdade acerca do estranho lar de Anluan? Ou teria sido representado todas as noites, durante anos e anos? - É difícil de aceitar. - Olhei para Anluan. - Não sei
o que dizer.
Fez-se silêncio enquanto Magnus empurrava as canecas na nossa direcção e fixava Anluan com um olhar especial.
- Bebe-o - indicou ele. - E tu também, Caitrin. Primeiro a beberagem e depois a cerveja. E também precisas de comer.
- Porque não me contaste antes? - perguntei.
Anluan pegou na caneca dele e esvaziou-a, depois inclinou a cabeça na direcção da porta. Para minha surpresa, Magnus saiu e fechou a porta, deixando-nos sozinhos
à mesa.
- Se te tivesse contado, ter-te-ias ido embora - respondeu Anluan, simplesmente. - Proibi os outros de te dizerem pela mesma razão.
Fiquei ali sentada, sem dizer nada.
- Termina a tua bebida, Caitrin - ordenou ele. - E responde-me a uma pergunta. Foi aquele o homem que te deixou o corpo marcado, antes de vires para cá?
- Sim. Ele é meu parente, essa parte do que ele disse é verdade. Mas as suas promessas de que cuidaria de mim eram mentiras. Eles nunca o fizeram, ele e a mãe dele,
apenas.... - As lágrimas estavam mais próximas do que eu me apercebera; parei abruptamente, cega.
Ficámos em silêncio durante um pouco e eu obriguei-me a tomar a beberagem de ervas. Era forte e sabia a hortelã-pimenta.
- Surpreendeste-me - admitiu Anluan calmamente. - Pensei que voltasses as costas e fugisses, assim que te libertássemos. Claro está que, com o teu parente abusador
a descer o monte, não desejarias segui-lo. Pensar neste Cillian faz o teu rosto empalidecer, as tuas lágrimas derra-marem-se, as tuas mãos tremerem.
Pousei a caneca e juntei as mãos com força.
- E no entanto, quando me perguntas acerca da hoste - continuou ele num tom de assombro -, voltas a ser a mesma pessoa capaz. Como é que esse fulano e os seus apoiantes
podem ser mais assustadores para ti do que a força que viste manifestar-se do nada?
- Sabia que me manterias a salvo - respondi simplesmente. Uma onda de vermelho tingiu-lhe as faces pálidas. Fixou o olhar no tampo da mesa.
- Eu sei que deve parecer estranho eu ter tanto medo dele, de Cillian, quero dizer. - As minhas mãos torciam-se no tecido da minha saia. Obriguei-me a juntá-las
no colo e inspirei profunda e irregularmente.
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Nunca o contara a ninguém, nunca pensei que o viesse a fazer. - Não se trata apenas dele, mas de tudo. Só de pensar naquela época, antes de vir para aqui, transformo-me
numa... numa pessoa diferente. Numa pessoa que detesto ser, numa pessoa que me envergonho de ser. Essa outra Caitrin é impotente. Está sempre com medo. Não tem palavras.
- No momento em que ouvira a voz de Cillian, transformara-me nessa pessoa, agachada a um canto, dobrada sobre si própria, de olhos fechados com força, pressionando
Róise de encontro ao coração, desejando que o mundo desaparecesse. Rezando com todas as fibras do seu ser voltar ao passado, antes de o pai morrer, antes de eles
aparecerem. - Quando nos conhecemos no jardim e ficaste furioso comigo, por um instante, senti-me assim outra vez. E depois hoje, quando ouvi Cillian falar, eu...
- Nem sei o que dizer. - Anluan falou com algum embaraço, como se pensasse que as suas palavras me podiam ofender. - O teu parente tinha razão quando me chamou aleijado.
Não posso montar a cavalo, não posso correr, não posso conduzir um exército para o campo de batalha. Pelo menos não um exército feito de guerreiros terrenos como
Magnus. Mas posso comandar esta força. Em Whistling Tor, a hoste é obediente à minha vontade. Enquanto aqui estiveres, poderei manter-te a salvo. Espero que fiques,
Caitrin, agora que sabes a verdade. Queremos-te cá. Precisamos de ti.
Senti um nó na garganta.
- Eu disse que permaneceria até ao final do Verão - anunciei-lhe. - Não se passou nada que pudesse fazer-me mudar de ideias. Pretendo ganhar a nossa aposta.
- Aposta? Ah, a tinta de sangue-do-coração. Nesse caso tenho de te permitir o acesso ao jardim de Irial para que possas observar o seu crescimento. Falaste em confiança.
É esta a minha prova de confiança. Podes deambular por lá livremente. Penso que não nos perturbaremos um ao outro.
Nesse momento, a porta abriu-se e lá estava Muirne. Parou abruptamente quando nos viu sentados à mesa, lado a lado, e depois avançou, com os olhos postos em Anluan,
com o cenho vincado de preocupação.
- Não estás bem. - Estava ao lado dele, debruçando-se sobre ele, avaliando o seu estado sem lhe tocar. - Precisas de descanso. - Os seus olhos límpidos voltaram-se
para mim. - Talvez seja melhor saíres, Caitrin.
Levantei-me, apesar de não me apetecer. Ele tinha realmente um ar exausto, com a pele de um branco ceroso e os olhos rodeados de sombras.
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- Não - contradisse Anluan. - Fica, Caitrin. - E estendeu a mão para tocar no meu braço, impedindo-me de partir. No momento antes de ele retirar os dedos, senti-me
como se ele tivesse tocado no meu coração. - De momento, não preciso de ti, Muirne.
Ela abriu a boca como que para contra-argumentar o que ele dissera, mas depois fechou-a.
- Muito bem - disse ela, e dirigiu-se para a porta interior.
- E fecha a porta quando saíres - ordenou Anluan sem a olhar.
Da entrada, ela olhou para ele, a sua expressão era de censura magoada. Não lhe valeu de nada. O olhar de Anluan estava pousado em mim e eu vi nos olhos dele que
o que quer que se passara mudara a nossa relação para sempre. Muirne pegou nas suas saias e abandonou o aposento sem dizer outra palavra.
- Talvez ela tenha razão - concedi eu, trémula. - Tens um aspecto muito cansado.
- Estou bem. - A voz dele não estava mais regular do que a minha. - É melhor beberes o resto dessa beberagem. Magnus não ficará muito contente se descobrir que bebeste
apenas metade. - Enquanto eu obedecia, ele acrescentou: - Podes praticar a coragem um pouco de cada vez.
- O que queres dizer?
- Escolhe um medo pequeno, mostra a ti própria que consegues enfrentá-lo. E depois um maior.
- Não é assim tão simples. - Não podia lutar contra Cillian, ele tinha o dobro do meu tamanho. Não podia lutar contra Ita. Não podia lutar contra a morte.
- Não. Não penso que seja. Para ninguém.
- Também o farás? - Senti-me estranha por estar a falar com ele daquela maneira, como se fossemos amigos; era estranho mas, de alguma forma, certo.
Ele hesitou.
- Não sei. Uma madeixa de cabelo caíra-lhe sobre a testa; ele usou a mão boa para a empurrar para trás num gesto impaciente. Os olhos azuis tornaram-se contemplativos,
como se pudesse ver diante deles uma longa lista de desafios impossíveis: Pára de tapar a tua mão direita. Aprende a controlar o teu mau génio. Vai à povoação e
conhece a tua gente. Sê um líder.
- Devíamos comer alguma coisa - disse eu, tentando um tom mais despreocupado. - Não sei se já comeste, mas eu ainda não tomei o pequeno-almoço.
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Magnus deixara um pão acabado de cozer a arrefecer. Fui buscar um prato, um pote de mel e uma faca afiada. Anluan deitou a cerveja nas canecas, sentou-se e olhou
para mim.
- O pão cheira bem - comentei.
Percebi no rosto de Anluan que ele reconhecia um desafio quando este lhe era feito. Semicerrando os olhos, pegou na faca com a mão esquerda.
Nunca pensara como seria frustrante e humilhante tentar executar uma tarefa quando se tem pouca força nos dedos de uma mão. Ele lutou para manter o pão seguro enquanto
cortava. Uma onda de mortificação subiu-lhe às faces. Tive de cerrar as minhas mãos uma na outra sobre o meu colo, tanta era a vontade que tinha de o ajudar. Quando
ele terminou, pegou no meu quinhão com a lâmina da faca e entregou-mo como se este fosse um troféu de guerra. Aceitei-o sem fazer alarido e ocupei-me a barrá-lo
com mel. A cozinha estava cheia de uma profunda calma.
Deslizei o pote de mel pela mesa, no sentido no meu companheiro. Dei uma dentada no meu pão.
- Obrigada - agradeci-lhe, e sorri. Anluan baixou o olhar.
- Fracassaria perante o primeiro verdadeiro desafio, Caitrin. Ouviste bem como eles me ridicularizaram lá fora no pátio. Sem ajuda, não poderia ter-te socorrido.
O que os aldeões disseram a meu respeito é verdade. Como homem, sou um inútil.
- Saíste sozinho para enfrentar aqueles homens, sem armas. Não vi o menor vestígio de medo nos teus olhos.
- Não temi pela minha segurança. Mas temi por ti. Caitrin, o que o mundo exterior pensa de mim é verdade. Sem a hoste, não tenho qualquer poder. Sou um aleijado,
um fraco e uma aberração. - Ele não o disse com autocomiseração, mas como a constatação de um facto.
- Devias seguir o teu próprio conselho - disse eu, tentando soar calma e prática. - Treina a coragem em pequenos passos. Acabaste de dar um. O próximo poderá ser
fazeres algo para melhorares a tua escrita.
- Oh, não - retorquiu Anluan. - A seguir és tu. Mas não agora. Apreciemos a nossa refeição em paz.
De repente, perdi a fome. Se eu conseguia pensar numa lista de desafios para Anluan, podia certamente imaginar uma para mim: Faz amizade com Muirne. Fala do teu
pai. Usa novamente o espelho de obsidiana. Olhei para o outro lado da mesa para os olhos de Anluan e ele olhou-me de volta. O estranho sorrisinho apareceu-lhe nos
lábios e o azul dos seus olhos era como o céu num dia de Verão quente.
- Está bem - anuí eu. - Se tu consegues, eu também consigo.
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Enquanto terminávamos o nosso pequeno-almoço tardio, ouviu-se um arranhar na porta que dava para o pátio. Quando Anluan a abriu, Fianchu entrou de rompante com um
ar muito satisfeito consigo próprio. Dirigiu-se para mim e ali ficou de língua de fora enquanto eu o afagava por baixo do queixo. No degrau estava Olcan, com o seu
machado por cima do ombro.
- Está feito - informou. - Não te importunarão novamente, Caitrin. - Depois, olhando para a minha expressão, acrescentou: - Oh, não matámos ninguém. Uma marca aqui,
um arranhão ali, não foi mais do que isso. Lamento que tenhas apanhado um susto.
- Obrigado, Olcan - agradeceu Anluan. - Confesso que senti um forte desejo de matar há bem pouco tempo. Se aquele homem voltar a cruzar o meu caminho, talvez dê
ordens diferentes. Onde está Eichri?
- A sossegar aquele desconcertante alazão dele, penso eu. Caitrin, ainda estás com um ar abatido. Devias ir lá para cima para o teu quarto e descansar.
- Penso que não seria capaz de descansar. - A perspectiva de ficar a sós com os meus pensamentos não era nada atraente, mas não estava capaz de trabalhar.
- Há algo que devo mostrar-te, Caitrin - interveio Anluan, levan-tando-se. - Consegues fazer uma caminhada?
Não esperara dar por mim a fazer o caminho que descia o monte pela floresta novamente. A ideia de que refazia os passos de Cillian fez-me gelar até à medula. Ele
e os amigos dele não deviam estar muito longe dali. Se me vissem em campo aberto, não fariam outra tentativa de me apanhar, apesar do que acontecera anteriormente?
Falar disto seria admitir que tinha muito pouca coragem. Seria duvidar da capacidade de Anluan para me proteger.
Apertando o xaile de encontro a mim, mantive o ritmo do meu companheiro mais alto. Anluan tentava minimizar o seu coxeio, podia ver o seu esforço em cada passo que
dava. Tentei concentrar-me no calor do sol e na beleza das árvores vestidas numa miríade de tons de verde. Controlei os meus pensamentos desordenados concentrando-me
em como fazer uma tinta do tom exacto das folhas de faia assim que despontam.
- Aquele caminho vai dar às grutas - indicou Anluan, apontando para um trilho repleto de silvas que mal se podia discernir. - Algumas delas estendem-se profundamente
no subsolo. Segundo reza a lenda,
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ite de Olcan viveu lá em tempos. Se lhe perguntares, ele dar-te-á resposta que não é nem sim nem não. Já não existem outros como ele por aqui, apenas a gente que
viste antes. Não se mostrarão a menos que o escolham fazer.
- Ou a menos que os invoques.
- O que aconteceu esta manhã foi invulgar. Quando te vi cativa, tornou-se necessário invocá-los. - Hesitou. - Não penses que alguma vez me agradou exercer tal poder.
O facto de eu não compreender completamente a natureza do meu controlo sobre eles é já perigo suficiente. No entanto, tenho de os controlar, Caitrin. Todos os dias,
imponho-lhes a minha vontade, como te disse, para que não caiam sob a influência da malevolência que existe entre eles. Como chefe tribal de Whistling Tor não tenho
alternativa.
Continuámos a andar. Por cima de nós, a luz do Sol filtrava-se por entre os ramos do salgueiro e do sabugueiro, um riacho gorgolejava algures por perto. A canção
trinada do pintassilgo inundou o ar.
- Não quero importunar-te com demasiadas perguntas - comecei. - Mas há uma que me parece importante. Quando falaste disto antes, levaste-me a pensar que não podias
sair da fronteira da fortaleza ou das tuas terras senão a hoste escaparia ao teu controlo. Quando o teu avô tentou levá-la para o campo de batalha, o resultado foi
catastrófico. Uma vez disseste que estavas preso. Isso é verdade? É por essa razão que não podes... - Silenciei-me.
Anluan continuou a andar.
- A razão por que não posso ser um líder? A razão por que devo deixar que o meu território e a minha gente sejam presas das inundações, dos fogos e dos invasores?
Vem, estamos quase no sopé do monte: a margem entre um lugar seguro e um lugar perigoso. Vou mostrar-ta.
- Mas... - Podia ver a povoação do outro lado do campo aberto que se estendia à nossa frente, a vista emoldurada por um par de carvalhos de sentinela. O fumo erguia-se
do fogo das lareiras, os homens estavam de guarda por trás das fortificações.
- Acreditas que o teu Cillian ainda possa aqui estar? - A voz de Anluan estava calma.
- É o local mais óbvio para onde fugir. Deve lá ter estado esta manhã. Eles devem tê-lo deixado entrar e devem ter-lhe dito que eu estava aqui em cima. Caso contrário,
como é que ele saberia onde encontrar-me? - Parara no caminho. Os meus pés recusavam-se a levar-me adiante. - Peço desculpa - desculpei-me enquanto o pânico crescia
dentro de mim, ameaçando embotar-me a razão. A minha pele estava pegajosa, a minha garganta apertada. - Penso que não conseguirei continuar. Eu, isto é, Anluan,
eu não consigo fazê-lo.
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- Vem, Caitrin. Um passo de cada vez, como acordámos.
Ele estendeu a mão. Eu segurei-a e fui conduzida pelo caminho abaixo, em direcção à orla da floresta. Se nos colocássemos na abertura estaríamos à vista de quem
quer que passasse entre a floresta e a povoação. Eu agarrei-me à mão dele, com o estômago às voltas.
- Poderás ter razão em relação aos teus atacantes - continuou Anluan. - Talvez tenham ido falar com o estalajadeiro. Talvez ele lhes tenha contado que estiveste
lá e que depois subiste o monte em direcção à fortaleza. Mas parece-me claro que Tomas não lhes deu o aviso que dá a todos os outros viajantes: que esta floresta
é perigosa, que poucos dos que tentam chegar sozinhos a minha casa conseguem fazê-lo incólumes. Parece-me que os aldeões não querem, tal como eu não quero, ver-te
magoada. Aos olhos deles, estavam a direccionar Cillian e a sua quadrilha para a hoste. - Parou repentinamente entre os carvalhos. - Não posso ultrapassar este ponto
em que nos encontramos. Imagina uma linha a circundar o monte a este nível. O chefe tribal de Whistling Tor não deve ultrapassar essa linha. Cada um dos meus antepassados,
de Nechtan em diante, tentou fazê-lo, e de cada vez o resultado foi desastroso. Não admira que a nossa própria gente nos injurie. Quando o meu pai... quando ele...
- Havia um tom na voz dele que me enregelou o coração. A mão dele apertara-se em torno da minha; magoava-me. - Não se pode fazer - disse, peremptoriamente.
- É esta a maldição. - Inspirei. - Não poderes partir, estares para todo o sempre ligado a estes seres. Abdicar de toda a vida em prol deles. Isso é... - Não consegui
encontrar uma palavra que o descrevesse. Terrível, cruel, trágico: nenhuma me pareceu suficientemente forte.
- Desafortunado?
- É com certeza desafortunado - confirmei -, se não houver remédio.
- Remédio? - A palavra disparou para fora da sua boca, zombeteira, furiosa. Largou-me a mão como se esta o pudesse queimar. - Que remédio poderia existir para este
mal?
Não disse nada. Esperei que depois do que se passara que ele me poupasse a estas súbitas explosões de raiva. Esperara demasiado.
- A esperança é perigosa, Caitrin - explicou ele passado um pouco, com a voz mais calma. - Deixar que a esperança entre no coração é expormo-nos a uma amarga desilusão.
O comentário chocou-me, obrigando-me a responder:
- Não acreditas nisso - retorqui. - Não podes acreditar nisso.
- A maldição condena os chefes tribais de Whistling Tor a vidas de sofrimento. Se houvesse uma forma de escapar, não te parece que o meu
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pai, ou o pai dele, ou o próprio Nechtan a teriam encontrado? Se pudéssemos gerir a nossa casa como os outros chefes tribais gerem as deles, enviando emissários,
recebendo visitas, empregando camareiros e feitores para nos ajudarem a cumprir as nossas responsabilidades, a situação poderia ser diferente. Mas já viste como
é. Ninguém cá fica. Desde o tempo de Nechtan que o medo e o ódio têm mantido as pessoas afastadas. Não preciso que me tragas falsas esperanças, Caitrin, apenas que
escrevas com uma caligrafia bonita e que traduzas com precisão. Não podes compreender o que aqui se passa. Ninguém vindo do exterior pode compreender.
Ele estava errado, é claro. Sabia exactamente o que era sentir-me sem esperança e sozinha. Sabia o que era o sofrimento e a perda. Mas Anluan não estava capaz de
ouvir, nem eu estava preparada para expor o meu coração a um homem cujo temperamento podia passar tão abruptamente de caloroso a tempestuoso.
- Se acreditas que a tua situação não tem remédio - disse eu calmamente -, para quê dares-te ao trabalho de traduzir o latim? Para quê incomodares-te, a ti ou a
mim, com a leitura dos documentos?
Ele não respondeu, limitando-se a ficar onde estava, a olhar para a povoação como se esta fosse a terra distante e inalcançável de uma lenda.
- Poderá existir uma descrição daquilo que Nechtan fez - continuei. - Poderá haver uma chave para o desfazer. Tens a vida pela frente, Anluan. Não deves passá-la
como um escravo da má acção do teu antepassado.
- Vem - respondeu ele, como se eu não tivesse falado. - Deves estar cansada. Devemos voltar para casa.
Caminhámos um pouco em silêncio, à excepção do canto dos pássaros nas árvores à nossa volta e do ruído suave dos nossos passos no trilho da floresta. A cerca de
meio caminho do topo, parei para recuperar o fôlego.
- Está tudo tão calmo - constatei. - Tão pacífico. Se não tivesse visto a hoste com os meus próprios olhos, teria achado difícil acreditar que havia algo vivo nesta
floresta, para além dos pássaros e de um ou outro esquilo.
- Eles estão aqui.
Tive uma ideia, talvez uma ideia muito tola.
- És capaz de... de os fazer sair para eu falar com eles? Eles socorreram-me. Devia agradecer-lhes.
Os olhos de Anluan estreitaram-se.
- Agradecer-lhes? - ecoou. - Seria o primeiro agradecimento de sempre, imagino eu. Maldições e imprecações têm sido mais comuns ao
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longo dos anos. Para além disso, eles fizeram o que eu lhes mandei. Sem o meu controlo, a hoste poderia ter-te atacado a ti.
Era provável que ele tivesse razão, mas uma parte teimosa de mim recusou-se a aceitá-lo. Se todos os habitantes de Whistling Tor, do seu chefe tribal para baixo,
continuassem a agir de acordo com os medos e as restrições acumuladas ao longo de cem anos, então as previsões danosas de Anluan tornar-se-iam verdade e ele seria
o último da sua linhagem. Ficaria, na verdade, preso, e os membros do seu lar com ele. Se houvesse forma de o evitar, devíamos fazer o nosso melhor para a descobrir.
- Gostaria de tentar, se estiveres de acordo - insisti. - Podes fazê-los aparecer de novo?
Anluan lançou-me um olhar estranho, um misto de incredulidade e de admiração. Elevou a mão esquerda e estalou os dedos.
Desta vez não fluíram para a frente como uma força parecida com a bruma, mas apareceram um a um, colocando-se debaixo das árvores, como se tivessem lá estado desde
sempre e eu que não os soubesse ver. Quando Anluan os trouxera em meu auxílio, berraram, gemeram, ferindo os ouvidos. Agora estavam profundamente silenciosos. Não
eram criaturas de lendas antigas, não eram diabos ou demónios. Contudo, a minha pele arrepiou-se enquanto olhava para eles: aqui uma mulher carregando uma criança
ferida, ali um homem idoso com um saco muito pesado ao ombro, as costas dobradas e os membros trémulos; por baixo de um carvalho, um homem mais novo cujos dedos
agarravam fervorosamente um amuleto que trazia preso ao pescoço. Havia guerreiros e padres, meninas pequenas e mulheres idosas. Quanto mais olhava para eles, voltando-me
para todos os lados, mais apareciam, até que a floresta se encheu deles. Fantasmas? Espíritos? Eichri e Rioghan conseguiam levantar canecas e pratos, abrir portas,
ajudar em casa e na quinta. Tocara em ambos, e em Muirne, e encontrara formas sólidas, ainda que invulgarmente frias. Esta hoste estava algures entre a carne e o
espírito, pensei. Não eram espectros, não eram pessoas vivas, mas... algo entre uma coisa e outra. Fosse o que fosse que tivesse dado mau resultado quando Nechtan
realizara o seu ritual de invocação, aquela multidão era o resultado.
A minha mente mostrou-me Rioghan a andar no jardim, para a frente e para trás, interminavelmente, enquanto procurava uma forma de expiar o seu terrível erro. Olhei
para os rostos esquecidos, para os olhos atingidos, para os corpos feridos e senti uma profunda inquietação apo-derar-se de mim. Senti os seus sofrimentos, os seus
fardos, os seus anos
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de espera por um fim que nunca vinha. Se eram fantasmas, ou algo semelhante, eram fantasmas inquietos, ainda a caminho de um lugar de paz.
O silêncio foi interrompido por um restolhar, por um movimento ligeiro e desassossegado. A hoste esperava. Pigarreei, sem saber se tinha medo ou não, sentindo apenas
a profunda estranheza de toda a situação. Olhei para Anluan. Ele olhava para mim atentamente, tal como os outros.
- Estás a salvo comigo - assegurou-me, e depois elevou a voz para falar à multidão. - Esta é Caitrin, filha de Berach. Veio para Whistling Tor como minha escriba.
Tem algo para vos dizer.
Um velho homem de armas pousou a sua maça e encostou-se a ela. A mulher com a criança ferida sentou-se no chão, aconchegando a criança nos seus braços. Um jovem
guerreiro com uma mancha vermelha na camisa encostou-se de encontro a um salgueiro, observando-me com olhos irrequietos.
Confiei na intuição para deixar que as palavras se formassem a si próprias:
- Ajudaram-me há pouco quando estava em apuros - disse eu à hoste ali reunida. - Fizeram uma coisa boa. Suponho que cada um de vocês tem uma história e penso que
algumas delas devem ser tristes e terríveis. Estou aqui em Whistling Tor para ajudar Lorde Anluan a saber mais sobre o passado da família dele e sobre o que aconteceu
aqui no monte desde que... - algo me impediu de dizer o nome de Nechtan - ...desde que vieram para cá. Espero que se possa encontrar uma forma de vos ajudar. Espero
que antes do final do Verão seja possível retribuir a boa acção que fizeram por mim hoje.
Nenhum deles falou, mas ouviu-se um suspiro, suave e sofrido, e eles dispersaram. Não caminharam para longe, nem desapareceram subitamente de vista, mas desvaneceram-se
gradualmente até que as suas formas deixaram de se discernir de encontro aos troncos escuros das árvores ou ao verde da folhagem.
- Falas-lhes de esperança? - Anluan estava simultaneamente abismado e descontente, e o meu coração esmoreceu.
- Há sempre esperança - respondi. - Há sempre uma razão para continuar. - Uma vez, quando bateram à porta e Ita fora atender, deixara uma faca de trinchar em cima
da mesa. Eu podia tê-lo feito. Podia ter cravado a lâmina no meu peito. A minha mão ansiara por pegar na arma. Para acabar com a dor... para me libertar... Mas não
o fizera. Mesmo naquele tempo de escuridão inabalável, algures dentro de mim, a memória do amor e da bondade permaneceu viva. - Há esperança para todos.
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- Será que a presença destes seres no monte não te convenceu de que, para alguns, a vida não tem esperança e que o lugar para lá da morte é ainda mais escuro?
- Acreditas que eles são espíritos de mortos desassossegados?
- Fala com Eichri ou com Rioghan. Eles são parecidos com estes, mas as suas formas são mais substanciais do que se podia imaginar que fantasmas ou espíritos pudessem
ser. Não comem, não dormem. Podem tocar, podem rir-se, podem planear, debater e trocar insultos - pelo menos os que vivem lá em casa podem e suponho que isso seja
verdade para os restantes também. Podem sentir sofrimento, culpa, arrependimento. Parece que todos eles foram um dia homens e mulheres comuns que viveram nesta zona.
- Isso é... surpreendente. E triste. Uma centena de anos à espera na floresta por... porquê? Não há forma de os libertar?
- Vem, regressemos - pediu Anluan. - Não te deixes atordoar de tal forma pela pena que te convenças que esta gente é inofensiva. Podem atacar, como já viste, podem
matar, ferir, destruir. Alguns deles foram boas pessoas, talvez, quando estavam vivas no mundo. Mas estão sujeitas a influências mais malévolas do que possas imaginar.
É necessária toda a minha força, toda a minha vontade, para as combater. A situação não tem remédio, Caitrin. Nem a tua esperança persistente pode chegar tão longe.
Depois de termos subido em silêncio durante um bocado, eu disse:
- Rioghan e Eichri são boas pessoas. Cómicas, gentis, espertas. Não consigo imaginá-los a cometer actos malignos. E Muirne... apesar de eu e ela não sermos amigas,
já vi como ela olha por ti, cuida de ti.
- Fizeram a escolha de fazer parte do meu lar, talvez devido a qualquer força de vontade especial. Rioghan e Eichri agarram-se à vida com tudo o que têm. Muirne
tem uma longa história de cuidar dos chefes tribais de Whistling Tor; é uma alma gentil, ainda que desconfiada de estranhos. Não deves cometer o erro de pensar que
os restantes são iguais.
Emergimos da floresta mesmo abaixo da muralha da fortaleza. Anluan deixou-se cair em cima de uma pedra, lutando para recuperar o fôlego.
- Não devia ter-te pedido para o fazeres de novo passado tão pouco tempo - desculpei-me, agachando-me perto dele. - Refiro-me a chamá-los. É demasiado para ti.
- Detesto isto - murmurou Anluan. - Esta fraqueza, esta... Porque é que não consigo...
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Dei por mim quase a comportar-me como vira Muirne fazer em circunstâncias semelhantes, andando à volta dele, oferecendo apoio e simpatia Obriguei-me a afastar-me
e, em vez disso, sentei-me de pernas cruzadas no chão, perto dele. E enquanto esperava, pensei nas palavras que acabara de dirigir à hoste e se estas implicavam
uma promessa que eu não tinha capacidade de cumprir.
CAPÍTULO SEIS
Senti-me muito estranha quando tive de encarar as pessoas da casa reunidas à mesa da ceia, sabendo que três delas estavam, se não exactamente mortas, decididamente
menos vivas do que Anluan, Olcan ou eu. Todos os olhos se voltaram para mim quando entrei, a última a chegar depois de ter adormecido no meu quarto e acordando já
quase sem tempo para pentear o cabelo antes de descer. As feições bem proporcionadas de Muirne nada traíam. Anluan parecia extenuado, mas conseguiu dirigir-me um
aceno de cabeça. Olcan sorriu, amável como sempre, e Fianchu levantou-se para me dar o habitual cumprimento babado. Os rostos pálidos de Eichri e Rioghan exibiam
expressões cautelosas; era óbvio que eles não sabiam como eu reagiria às assustadoras revelações do dia.
- Já recuperaste, Caitrin? - perguntou Magnus, que trinchava uma perna de carneiro. - Foi uma experiência e tanto. Espero que tenhas descansado.
- Adormeci. Peço desculpa pelo atraso. - Sentei-me no meu lugar, ao lado de Eichri, sem delongas.
- Anluan contou-nos que assumiste uma espécie de compromisso com a hoste hoje - disse Rioghan. - Gostaria de lá ter estado para ouvir.
- Não prometi nada - corrigi. - Não estou em situação de o fazer. Mas Whistling Tor é um lugar tão triste. Eu sei o que é estar triste. Se puder ajudar alguém aqui,
acredito que devo esforçar-me ao máximo para o conseguir. Se conseguíssemos desvendar toda a história de Nechtan, poderíamos descobrir que a situação não é tão desesperada
como parece. - Olhei para Anluan. - É possível que os documentos em latim contenham uma... solução. Algo que pudesse acabar com o sofrimento da gente da floresta.
- Olhei para as minhas mãos, subitamente embaraçada. - E o vosso, suponho. Dito desta maneira, parece uma ideia arrogante.
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- Não estás a pensar em encontrar um feitiço de reversão, pois não? - Percebi no tom de Muirne a improbabilidade do empreendimento. - Um tal feitiço não deve existir,
Caitrin, caso contrário teria sido usado há muito tempo.
Senti as minhas faces corarem de mortificação. Era precisamente nessa ideia que eu baseara a minha tola oferta de ajuda à hoste.
- Não é arrogante - interveio Magnus. - Mas é ambiciosa. Se querem saber a minha opinião, a chegada de Caitrin entre nós marcou uma grande mudança, e talvez uma
mudança de que todos precisamos. E por falar disso, Caitrin, Anluan pediu-me que fosse lá abaixo à povoação outra vez amanhã de manhã. Certificar-me-ei de que os
teus amigos desagradáveis já saíram do distrito e ao mesmo tempo perguntarei como é que souberam onde encontrar-te. Não levamos a bem pessoas que traem os amigos.
Mas também não tiramos conclusões precipitadas. Falarei com Tomas e com Orna para descobrir o que se tem passado.
- Obrigada, Magnus - agradeci. - Ficaria mais descansada se soubesse que Cillian partiu. Quanto à hoste e a um feitiço de reversão, sei que é uma hipótese improvável.
Mas aquilo de que precisamos poderá estar nos documentos. Talvez esteja escondido de alguma forma. Codificado. - Estava ansiosa por lhes perguntar o que eram, como
se sentiam, de onde vinham. Sentada à mesa, à luz do candeeiro, com Magnus a servir calmamente a ceia como se tudo fosse igual ao que fora, descobri que não conseguia
proferir as palavras. Em vez disso, perguntei: - Acreditam que Nechtan tenha usado qualquer espécie de magia negra quando invocou a hoste?
- É o que as pessoas dizem. - Eichri mexeu-se no seu lugar; ou-viu-se uma chiadeira, de osso sobre osso. - Mas até se encontrar um registo que descreva exactamente
o que ele fez, ninguém poderá ter a certeza. O Mosteiro de São Criodan está cheio de histórias acerca dele, mas os monges que o conheceram pessoalmente já faleceram
há muito, claro. Ele foi generoso para a fundação, pagou a construção de um novo edifício para a biblioteca e o scriptorium. Um verdadeiro erudito.
Lembrei-me da visão do espelho de obsidiana, completa e com todos os pormenores, e pousei a minha faca, descobrindo que afinal não tinha fome.
- Ele pagou para obter informações - informei. - Um livro secreto, guardado a sete chaves. Continha algo de que ele precisava, talvez um feitiço, embora pareça pouco
provável que uma fundação monástica possua livros de magia negra. Ele não trouxe o livro para aqui, mas obteve a informação que queria - deve ter feito uma cópia
rápida ou memorizado o que leu. Estaria, quase de certeza, em latim. Mesmo que não esteja entre os documentos, pode existir pelo menos uma descrição do... procedimento.
Não sei bem como dizer isto, mas... parece que vocês foram invocados, tal como os que estão na floresta. De que é que se lembram?
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- Estávamos noutro lugar, e depois estávamos aqui - respondeu Eichri. - Da minha vida terrena tenho memórias vívidas. O momento da minha morte... Esse não se esquece.
Mas o período de tempo entre isso e o meu regresso está confuso na minha memória. Lembro-me de ter ficado um tanto surpreendido por não me encontrar a arder nas
chamas do fogo do inferno ou condenado a qualquer outra punição aterrorizante. Isso ainda me espera, talvez. É possível que a experiência mal executada de Nechtan
nos tenha comprado a todos algum tempo para nos emendarmos. Para alcançarmos um fim melhor quando for altura de partir novamente.
- Poderá nunca chegar o tempo de partir - interveio Rioghan, com gravidade. - Muirne tem razão, Caitrin. Se Nechtan tivesse possuído um feitiço de reversão, uma
fórmula de palavras que banisse a hoste desgovernada - não uso o termo desgovernada para mim ou para Muirne, compreendes, mas apenas para o meu amigo clérigo e para
aquela ralé da floresta -, tê-la-ia certamente utilizado assim que percebeu que não conseguira o que pretendera. Estamos aqui no monte há tanto tempo quanto o dobro
da vida natural de um homem. Poderemos ficar aqui para sempre, fazendo uma boa acção diária, sem receber qualquer benefício disso.
- Isso significa que estiveste numa espécie de reino intermédio, algo entre este e o próximo? - perguntei. - Num lugar de espera?
- Na antecâmara do Inferno - observou Olcan secamente.
- Ou do Paraíso - concluí. - Se é possível invocar pessoas de volta, como Nechtan parece ter feito, então Eichri poderá ter razão. Talvez esta segunda estada no
mundo dos vivos ofereça a oportunidade de ganhar a passagem, não para o sofrimento perpétuo, mas para o eterno descanso.
- Para mim não pode haver uma tal moratória - murmurou Rioghan. - Nem para ele, penso. - Olhou para Eichri. - O crime dele foi demasiado terrível para que seja possível
dar-lhe uma segunda oportunidade. Para além disso, em todos os anos que tem pairado por aqui, ainda não lhe encontrei o menor sinal de contrição. Não existe esperança
para ti, irmão.
- Esperança de quê? - Os lábios de Eichri retesaram-se num sorriso triste. - De um lugar no Paraíso? Nunca esperei tal, nem quando era um homem vivo, conselheiro.
Pelo menos tive a honestidade de reconhecer que era irremediavelmente mau. E daí a minha surpresa quando, depois de cair ao chão com uma dor tal no peito que soube
que não voltaria a levantar-me, não dei comigo a assar nas chamas do
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Diabo, mas... bem, como eu disse antes, não estamos certos quanto a essa parte. Fosse o que fosse que veio depois, não foi memorável.
- É uma ideia interessante - comentou Magnus. - Para as pessoas que não são nem suficientemente pecadoras para irem directamente para a perdição, nem suficientemente
santas para ascender para o lado de Deus, existe um futuro de absoluto tédio. Uma alma poderia trabalhar com um afinco extraordinário para escapar a tal destino.
Não sendo um homem de Deus, não vos sei dizer se é plausível. O que é que terias de fazer, Eichri, para seres absolvido dos teus pecados?
Um estremecimento violento varreu o monge-fantasma. Depois, Anluan disse:
- Não sei se é possível um homem ser absolvido de um pecado pelo facto de o expiar de alguma forma. Qual é a tua opinião, Caitrin? És uma mulher de fé religiosa?
- Em tempos fui - contei-lhe. - Quando o meu pai faleceu, sofri uma dura desilusão. O que se passou desse dia em diante quase destruiu a minha fé em Deus. Mas acredito
que todos nós temos uma bondade interior, uma pequena chama que se mantém viva durante as mais duras provas. Por isso, talvez a minha fé não tenha desaparecido completamente.
Quanto às boas acções e à sua capacidade de anular as más, sobre isso, nada sei. - Pensei na língua mordaz de Ita e nas mãos cruéis de Cillian. Relembrei o acto
de tortura desumano de Nechtan, que ele crera absolutamente justificado. - Talvez existam alguns males que nunca possam ser apagados - proferi. - Quanto à fé religiosa,
a sua falta não nos deve impedir de fazer boas acções pois estas valem por si próprias.
Anluan pousara a faca, quase sem ter tocado na refeição.
- Se um homem tirar a sua própria vida - disse ele -, isso, certamente, nunca poderá ser absolvido. É o maior de todos os pecados, não te parece? Uma tal pessoa
deveria ir directamente para o fogo do Inferno, se é que se acredita num tal fenómeno. Ou para o esquecimento. Ou para renascer outra vez como a mais reles das criaturas,
uma lesma ou uma mosca dos pântanos, talvez.
Os outros ficaram invulgarmente quietos. Esperavam a minha resposta com um grau de interesse que era, subitamente, intenso. Não gostei da expressão do rosto de Anluan.
A sua disposição mudara abruptamente. Parecia tão tenso que dispararia se lhe desse uma resposta que ele não gostasse.
- As lesmas e as moscas dos pântanos têm o seu lugar na grande teia da existência - comentei. - Como deverei responder, Anluan? Como uma cristã devota ou como alguém
cuja fé está, na melhor das possibilidades, abalada?
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- Responde com honestidade.
- Muito bem. - Todos os meus companheiros de ceia olhavam para mim. - Não vejo que o suicídio seja um acto malvado, apenas terrivelmente triste. Existe apenas uma
morte, mas essa é como uma pedra atirada a um lago - as suas ondas chegam longe. Um tal acto deixa certamente um fardo de sofrimento, culpa, vergonha e confusão
em toda a família. Uma morte natural, tal como a que o meu pai sofreu, já é suficientemente difícil de tolerar. A decisão de terminar a própria vida deve ser ainda
mais devastadora para os que ficam para trás. Nem imagino o grau de desesperança que alguém deve sentir ao contemplar um tal acto. Mesmo nos momentos mais negros,
mesmo quando Deus se manteve silencioso, eu nunca... havia sempre algo na minha vida, algo que nem vos consigo definir, que me impediu de dar esse passo. A ideia
de um desespero tão absoluto gela-me. Espero que esta resposta seja suficientemente honesta para ti.
- Com a vossa licença. - Anluan levantou-se e saiu quase antes de eu ter tempo de pestanejar. A sua sombra fiel levantou-se da mesa e apressou-se a segui-lo.
Devia ter o meu desânimo espelhado na cara. Magnus deitou cerveja numa caneca e colocou-a à minha frente, enquanto Eichri embrulhou os seus dedos ossudos em torno
dos meus.
- Eu como a ceia de Muirne - disse Olcan. - Passa-a, sim, Rioghan?
- Se ele não queria uma resposta honesta, não a devia ter pedido - proferi, furiosa comigo própria por ter perturbado Anluan, de novo, depois de ele se ter aberto
tanto comigo.
O silêncio que se seguiu foi como o primeiro gelo da estação, quebradiço e perigoso.
- Anluan não te dirá isto - contou Rioghan -, mas Irial morreu pela sua própria mão. Usou veneno, nunca descobrimos exactamente de que tipo. Deve ter sido fácil
para ele fazê-lo, uma vez que tinha tantos conhecimentos sobre as plantas e os seus usos. Foi há dezasseis anos e está tão presente nas nossas mentes como no dia
em que aconteceu. Ainda estava vivo quando o encontrámos no jardim. Estava... - Ele estremeceu. - Estava muito mal. Jamais me esquecerei da sua pele, toda ela azul-acinzentada,
como uma enorme equimose. Os olhos dele estavam nublados. Fosse o que fosse que tomou, afectou-lhe os pulmões. Era-lhe cada vez mais difícil respirar. Pareceu-me
que havia algo que nos queria dizer, mas a voz dele sumiu-se.
Não sabia o que dizer. Devia ter adivinhado que era a explicação para o facto de Irial ter sobrevivido apenas dois anos à sua amada Emer.
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- Mas há mais - interveio Olcan. - Há muito tempo, num dia escuro, encontrei Conan na floresta com uma facada muito eficiente no coração e a sua faca de caça ainda
na mão. Ele pode não ter sido o tipo de homem por quem as pessoas sentem afecto, mas pelo menos ele esperou até o filho ser um homem. Nós que somos próximos de Anluan,
não apreciamos muito este padrão.
Dezasseis anos. Isso queria dizer que Anluan tinha apenas vinte e cinco anos de idade.
- Lamento - disse eu. - Esta deve ser uma situação perturbadora para todos vós.
- Tu agora és uma de nós - afirmou Magnus calmamente. - É bom que o saibas. Não gostamos de o ver perturbado, isso é verdade. Mas foi ele que falou do assunto, e
pediu-te que fosses franca com ele. Não é um fracasso, Caitrin, mas sim dois passos em frente. Ele está a esforçar-se muito. Mas terás de avançar com cuidado. Ele
tem muitas cicatrizes.
- Imagino que Irial não conseguiu continuar a viver sem Emer. Mas parece-me algo horrível de se fazer com o filho ainda tão pequeno, apenas uma criança.
Ficara perturbada, ao ler os seus registos de sofrimento, pelo facto de Irial quase não referir o filho. Essa era outra das razões pelas quais não deveria chamar
a atenção de Anluan para as notas à margem.
Magnus suspirou.
- Quando ela morreu, o mundo de Irial desabou. Nunca recuperou da sua morte. Durante dois anos, procurou agarrar-se à vida, mas O mundo tornou-se cada vez mais escuro
para ele. Não que eu esperasse que ele agisse como agiu. Pensei que ele tivesse a força necessária para suportar a dor, em atenção a Anluan. Daria muito para poder
fazer o tempo voltar atrás. Gostaria de conversar com Irial, de lhe dizer todas as coisas que deveria ter encontrado tempo para lhe dizer quando ele ainda aqui estava.
- Devo procurar Anluan - disse, levantando-me. - Devo desculpar-me.
- Eu não o faria. - Os olhos cinzentos de Magnus estavam sombrios. - Fala com ele amanhã, durante o dia. É melhor deixá-lo só esta noite.
- Ele não está só - salientei. - Tem Muirne. Talvez houvesse algo no meu tom de voz que revelasse o que eu pensava sobre o assunto: que a presença de Muirne o faria
ficar ainda mais, e não menos, desalentado. Com a história de Irial fresca na minha
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mente, e a de Conan, os humores negros de Anluan começaram a assumir um significado perturbador. Arrependi-me amargamente de o ter perturbado.
- Não gostas muito de Muirne, pois não? - perguntou Olcan com um sorriso.
- Ela não gosta que eu esteja aqui - respondi. - Isso faz com que seja difícil sermos amigas. Percebo um pouco melhor, agora que Anluan me falou mais sobre a hoste.
Muirne é-lhe dedicada, isso é óbvio. Ela pensa que a minha presença o exaurirá e enfraquecerá, e talvez haja alguma verdade nisso. Suponho que ela tema que, se ele
ficar demasiado cansado, não consiga controlar a hoste.
- Aceita o meu conselho - pediu Magnus. - Dá tempo a Anluan para pensar no assunto. Ele respeita o teu discernimento, Caitrin. Mas estas conversas abertas acerca
do passado são uma novidade para ele. Ele nunca se atreveu a ter esperança num futuro diferente.
- Mas contratou-me.
- É verdade - concordou Eichri -, embora isso possa ter sido mais um acto de desesperança do que um acto de coragem. Ele tem uma enorme consideração por ti, Caitrin.
Não duvides disso, apesar da forma como te responde. Mas para ele tu és uma criatura exótica, uma curiosidade de uma terra distante. Desafia-lo mais do que possas
imaginar.
Olhei para cada membro deste círculo íntimo. O amor deles pelo seu chefe tribal brilhava nas suas palavras e nos seus rostos.
- Muito bem - anuí. - Não o incomodarei esta noite.
Não tinha dúvidas de que haveria uma luz acesa nos aposentos de Anluan, visível como de costume através do emaranhado da folhagem do pátio. Perguntei-me se ele escreveria
no seu pequeno livro, à luz do candeeiro, ou se se limitaria a olhar fixamente para a chama. Talvez, como Nechtan, se dedicasse a áreas de estudo que não podiam
ser estudados às claras. Não existiam quaisquer livros de magia negra na biblioteca. Isso não queria dizer que não existissem noutra parte da casa. Estivera a levar
os livros de anotações de Irial para o meu quarto, todas as noites um diferente. Anluan podia ter uma colecção, completa e privada, nos seus aposentos. Não poderia
esta colecção incluir os livros de magia de Nechtan?
Pedi licença, acendi a minha vela com um pavio da lareira e subi para o meu quarto, desejando que a minha mente não tivesse percorrido aquele último trilho. Anluan
dissera que não usara feitiçaria para comandar a hoste, apenas uma habilidade. Eu acreditara nele. Mas ele obrigara os outros a ocultarem-me a verdade para que eu
permanecesse em Whis-tling Tor. Isso ficava a um passo da mentira. Talvez tivesse mentido
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acerca da feitiçaria. Vira o quão horrorizada eu ficara com a visão do espelho. Se ele fosse um praticante das mesmas artes negras que Nechtan, não o admitiria abertamente.
A porta do meu quarto estava aberta, uma criança de vestido branco estava sentada no chão de pernas cruzadas, no escuro, com a minha pequena boneca Róise no colo.
O cabelo da menina também era branco, flutuando como uma pálida nuvem em torno da sua cabeça e dos seus ombros. Entoava uma canção de embalar sem palavras. Os cabelos
da minha nuca eriçaram-se. Um olhar em redor do quarto revelou-me que ela revistara todos os meus pertences. Roupa pendia fora da arca, o meu pente estava no chão
e as roupas da cama tinham sido desarranjadas com mais violência do que aquela criatura parecia ser capaz. Dei dois passos em frente. A criança levantou a cabeça,
fixando em mim os seus olhos sombrios.
- Está ferida - sussurrou. - Bebé está ferida. - A sua mão magra mexeu-se para afagar ternamente os fios de seda que formavam o cabelo de Róise. Mesmo à luz bruxuleante
da minha vela, pude ver que a boneca estava em muito mau estado. Algum do seu cabelo fora arrancado e a sua saia estava em farrapos. Com o estômago às voltas de
inquietação, olhei em redor à procura de facas, furadores ou outros instrumentos perigosos. - Ooo-roo, bebé, vais ficar boa depressa - cantou a criança, embalando
a boneca nos braços.
Um ruído atrás de mim, na entrada aberta. Voltei-me.
Estava lá o jovem guerreiro da camisa ensanguentada, o que vira na floresta. Os braços dele estavam cruzados sobre o peito. Um tremor febril assolava-lhe o corpo.
Fosse o que fosse que o fazia tremer assim, raiva, medo, uma doença, possuía-o inteiramente. Santa Brígida me salvasse, o que é que eu fizera?
- Diz-me a verdade. - A voz dele era seca e parecia arranhar-lhe a garganta, como se há muito tivesse perdido o hábito de a usar. Pigarreou e tentou de novo. - Podes
dar-nos aquilo de que precisamos? Ou será que nos disseste mentiras e nos deste falsas esperanças? Há muito que esperamos.
Quase gritei por Magnus. O jovem tinha uma espada e um punhal no seu cinto. Parecia desesperado. Parecia preparado para um acto violento. Mas eu não gritei. Fora
eu que dera início àquela situação e teria de ser suficientemente corajosa para lidar com as consequências.
- Não estava a mentir - afirmei, fazendo o que podia para suster o seu olhar nervoso e errático. - Farei o meu melhor para te ajudar. Diz-me, de que precisas?
- De dormir. - Disse-o com um suspiro. - De descanso. É o que almejamos. É o que desejamos. Diz ao senhor de Whistling Tor para nos libertar.
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- Ele fá-lo-ia se soubesse como - retorqui. - Ajudá-lo-ei a procurar uma maneira de o conseguir. Mas... tenho de ser franca contigo. Sou apenas uma... não sou...
não tenho qualquer posição de autoridade aqui em Whistling Tor. Não posso jurar-te que existe um remédio a descobrir. Só posso prometer-te que farei o melhor que
puder por ti.
O jovem inclinou a cabeça. Com um som semelhante ao abanar das folhas, desvaneceu-se diante dos meus olhos. Voltei a minha atenção para a criança e para o meu quarto
em desalinho. Como não me lembrei de nada apropriado para dizer a uma menina-fantasma - não lhe podia dizer que já devia estar deitada àquela hora -, pus-me a arrumar
metodicamente os meus pertences. Primeiro os cobertores; peguei neles e comecei a dobrá-los. Um momento depois, a criança pousou Róise gentilmente e segurou duas
das extremidades para me ajudar, os seus olhos tristes fixos no meu rosto. Movemo-nos de encontro uma à outra, como se de uma dança se tratasse, eu juntei as extremidades
superiores, a menina pegou nas inferiores e repetimos os nossos passos. Pousei o cobertor dobrado aos pés da cama e peguei no segundo.
- Obrigada - agradeci. - És uma boa ajudante.
- Bebé está ferida. - O tom dela era de luto. Olhou para Róise, que estava sentada no chão com as costas encostadas à arca e com os seus olhos bordados fixos em
nós.
- É apenas uma boneca - disse, cautelosamente. - Eu remendo-a. Mas estou triste por alguém a ter estragado. Foi a minha irmã quem a fez. Róise lembra-me coisas boas.
- Era difícil saber o que dizer mais. A menina parecia ser inofensiva. Mas estivera no meu quarto e o facto de me estar a ajudar naquele momento não compensava o
que fizera aos meus pertences. - Por favor, pega no pente e coloca-o em cima daquela arca.
Não arrumou o pente e, em vez disso, trouxe-mo, voltando-se depois de costas na expectativa de que eu lhe ajeitasse o cabelo pálido e ralo. Pousei o segundo cobertor
e comecei a pentear com cuidado.
- Onde esta a minha mamã? - perguntou a criança de repente. O meu coração apertou-se.
- Não sei, querida.
O cabelo dela esvoaçava tanto quanto lanugem de cardo; a luz da vela parecia brilhar através dele.
Fez-se um longo silêncio enquanto eu a penteava gentilmente e depois ela disse:
- Eu quero a minha mamã. Quero ir para casa.
As lágrimas vieram-me aos olhos. Ajoelhei-me e abracei-a. Ela era tão fria quanto gelo, sobrenaturalmente fria, e embora fosse substancial,
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o seu toque era completamente diferente do de uma criança vulgar - tinha uma forma muito menos sólida que a de Rioghan ou de Eichri. Suprimi um arrepio de horror.
Não havia nada que eu pudesse dizer para a ajudar, não havia nenhuma promessa que uma criança pequena pudesse entender. Não podia mandá-la para casa. Ela não tinha
casa. Não podia encontrar a mãe dela. Não podia oferecer-lhe um lugar onde ficar, uma cama onde dormir. Era uma criança espírito, o lugar dela não era a meu lado.
- O teu cabelo está lindo agora - disse eu. - O meu nome é Caitrin. E o teu?
A voz dela era como o som da brisa a passar pela relva.
- Não me lembro.
Lá em baixo no jardim, Fianchu explodiu numa fanfarra de latidos, expulsando alguma criatura nocturna. Nos meus braços, a criança desapareceu. Num momento estava
lá, no seguinte estava abraçada a absolutamente nada.
- Caitrin? - chamou Olcan do lado de fora.
Com a pele arrepiada, saí para a galeria. Ele e o cão subiam as escadas.
- Pensei em deixar o Fianchu contigo esta noite - ofereceu Olcan. - Deves estar nervosa depois do que se passou hoje com o teu desagradável parente e os seus companheiros.
Não precisas de o ter dentro do teu quarto, embora essa seja sem dúvida a sua preferência. Podes deixá-lo aqui fora depois de colocares o ferrolho na porta e ele
dormirá à entrada.
- Obrigada. - A presença de Fianchu seria mais que bem-vinda. - Tive visitas há pouco. Da hoste. Fianchu também é capaz de os manter afastados?
- Estarás a salvo, Caitrin. És amiga de Anluan. Eles não te farão mal.
Pensei nisto enquanto estava deitada na cama, um pouco depois disso, com a porta fechada e trancada e Fianchu do lado de dentro, confortavelmente deitado em cima
de um dos dois cobertores, pois não tivera coragem de o deixar do lado de fora. Se os cães fossem capazes de sorrir, ele teria exibido um grande sorriso nas suas
feições abrutalhadas. Todos pareciam estar certos de que Anluan seria capaz de me proteger, que a sua mestria sobre a hoste significava que as desconcertantes presenças
de Whistling Tor não fariam mal aos membros do seu lar ou ao próprio chefe tribal a menos que ele atravessasse a linha invisível que me mostrara. Matutei naquele
assunto. O jovem da camisa ensanguentada fora quase hostil quando me acusara de mentir. Havia raiva na voz dele quando me
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pediu que dissesse a Anluan que libertasse a hoste. Anluan era descendente de Nechtan e fora Nechtan que invocara aquela gente e que, assumi, a condenara à sua estranha
existência no monte. Estaríamos realmente a salvo? Ou bastaria apenas uma palavra errada ou um erro trivial de discernimento para os transformar na horda destrutiva
e caótica do registo de Conan, uma força capaz de destruir amigos e inimigos, sem distinção? Quando confrontaram Cillian nessa manhã, aparentaram ser raivosos, medonhos,
malévolos.
O meu pensamento virou-se para Anluan. Lembrei-me da sua coragem enquanto saía para enfrentar os meus atacantes, completamente só. Naquele momento, estava só outra
vez, provavelmente nos seus aposentos, a lamentar o triste fim do seu pai. Só, à excepção de Muirne. Mesmo que fosse uma mulher viva, como acreditara até essa manhã,
não seria a mulher certa para ele.
- Ele precisa de alguém que seja tão perfeita para ele como Emer foi para Irial - comentei com o enorme cão. - Alguém que seja gentil com ele, mas não em demasia.
Alguém que não se importe de viver neste lugar estranho. Alguém com paciência para o ajudar a aprender.
Fianchu não comentou, levantando apenas a cabeça, suspirando, e es-tendendo-se luxuosamente em cima do cobertor.
- Alguém que o respeite - acrescentei. - Alguém que o veja como forte e não como fraco. Alguém que precise tanto dele quanto ele precisa dela.
O cão adormeceu. Apaguei a minha vela e puxei o cobertor até ao queixo.
- E não, não me refiro a mim - murmurei. - Não sou tão tola quanto isso. Embora fizesse certamente um melhor trabalho do que ela.
Apesar da presença protectora de Fianchu, dormi mal. Levantei-me de madrugada, com fragmentos emaranhados dos meus pesadelos a pairar à minha volta. Quando abri
a porta para deixar sair o cão deu-se um movimento repentino na galeria, uma mancha, como se uma presença fantasmagórica tivesse estado de vigia do outro lado da
porta.
A bruma amortalhava o jardim, rastejando para cada canto. No meio das suas formas em constante mutação, vi-os: as feridas, as sofridas, as furiosas, as desesperadas
pessoas do monte. Os seus olhos estavam fixos em mim. Não fizeram ameaças, nem súplicas, nem qualquer ruído enquanto passavam, mas ouvi as suas palavras não proferidas
no meu coração: Encontre-a. Encontra uma forma.
- Encontrarei - murmurei, mais para mim do que para a hoste. - Se conseguir, encontrarei. - Mas enquanto percorria o meu caminho
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através do labirinto de aposentos e passagens em direcção à cozinha, lembrei a mim própria, desconfortavelmente, que estava ali em Whistling Tor porque fugira dos
meus próprios problemas. Desde há cem anos que a hoste estava no monte. Exercera uma influência maligna nas vidas de quatro chefes tribais, das suas famílias e das
gentes da região. Anluan contratara-me para traduzir o latim para ele, não para fazer aquilo que mais ninguém fora capaz de fazer em todo aquele tempo. Magnus estava
na cozinha, a acender o lume.
- Partirei em breve para a povoação - informou. - Tens a certeza de que estás bem, Caitrin? Ainda não estás com bom aspecto. Não é todos os dias que se descobre
que se vive lado a lado com... Bem, nunca soube muito bem o que chamar-lhes. Deve ter sido, no mínimo, desconcertante.
- Dormi mal. Não é novidade. Sim, foi um dia estranho. Não foi a hoste quem mais me perturbou, mas sim a forma como Cillian me conseguiu encontrar, agora que começava
a sentir-me segura. Quando Tomas e Orna me acolheram, disse-lhes que estava fugir e que esperava ser seguida. Mas é difícil acreditar que eles lhe tenham dito onde
eu estava. - Mesmo naquele aposento sossegado, com aquele homem gentil como única companhia, as palavras não me saíram com facilidade. - Foi muito mau, em casa,
antes de vir para aqui - obriguei-me a dizer. - Foi preciso muito tempo para ganhar a coragem necessária para fugir. Estava com tanto medo que ele me arrastasse
de volta que mal tive capacidade para ter medo da hoste.
O lume estava agora atiçado. Magnus colocou a chaleira no gancho.
- Se aquele homem é uma amostra dos teus parentes, estás melhor sem eles, na minha opinião - comentou ele. - Qual o grau de parentesco que ele tem contigo, Caitrin?
É teu primo? Como é que ele conseguiu sair ileso dos actos de violência?
- A mãe dele é uma prima distante do meu pai. Antes de o pai morrer, mal os conhecia. E depois... bem, vieram para tomar conta de mim, pelo menos foi isso que disseram,
e... Não quero falar sobre isso, Magnus.
Magnus tinha o sobrolho franzido.
- A situação parece-me, no mínimo, irregular, Caitrin. Porque não falas com Rioghan? Ele sabe tudo sobre a lei. Explica-lhe a situação e pede a opinião dele. A mim
parece-me que há algo nessa história que não bate certo.
Jamais regressaria a Market Cross. Jamais. Por isso não fazia qualquer diferença o conselho que Rioghan tivesse para me dar, não agiria em conformidade.
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- Falarei com ele um dia - disse. - Hoje, não. Depois das interrupções de ontem, preciso de passar o dia todo na biblioteca.
Aquela hora da manhã, a luz era pouco adequada à escrita. Ocupei o meu tempo a preparar uma pena de ganso de ponta larga e uma folha nova de pergaminho. A medida
que o Sol subia no céu e o aposento se tornava mais claro, coloquei estes artigos de lado - não eram para minha utilização. Retirei a minha própria pena e a tinta
e iniciei a tarefa de copiar a minha última lista de documentos da tábua de cera para o pergaminho. Já enchera a tábua cinco vezes, transcrevendo depois cada uma
das listas assim que a superfície de cera ficava coberta, apagando-a depois e começando de novo. Era uma tarefa entediante, que ninguém agradeceria. Tudo o que queria
fazer era mergulhar freneticamente nos documentos escritos em latim, na demanda por feitiços e encantamentos. O senso comum prevaleceu. Tinha de elaborar o catálogo
enquanto progredia, senão, assim que deixasse Whisding Tor, a biblioteca voltaria ao seu velho caos. Escrevi rapidamente, usando uma caligrafia comum. Não havia
qualquer necessidade de executar este trabalho com requinte; tinha apenas de ser legível.
De tempos a tempos, dava-me conta de um sussurro de pés a tocarem o chão de laje, de um movimento sombrio visto pelo canto do olho, mas quando olhava para cima não
havia ninguém à vista. Sabia que estavam lá, à espreita.
- Estou a trabalhar o mais depressa que posso - balbuciei plenamente consciente de que o verdadeiro trabalho ainda estava pela frente. Se a verdade acerca da feitiçaria
de Nechtan estava naquela biblioteca, estaria nos documentos escritos em latim. Olhei de relance para o baú que continha o espelho de obsidiana. De dentro do pequeno
baú, sentia o poder maligno do artefacto. Usa-me. Se queres as respostas, usa-me. Completei a lista com a pena e a tinta, perguntando-me se veria An-luan ao longo
do dia. O dia anterior parecera-me um ponto de viragem e desejava não o ter perturbado durante a ceia. Recordei os seus dedos de encontro ao meu braço, quando pensara
em deixá-lo a sós com Muirne na cozinha, e a forma como o meu corpo respondera a esse toque, como a corda de uma harpa perante o toque de um bardo.
Usei o cabo de madeira do meu estilete para apagar as marcas da tábua de cera, esfregando com força de modo a derreter a cera ligeiramente, alisando depois a superfície.
Quando terminei, pousei o estilete e a tábua ao lado da pena que preparara anteriormente. A biblioteca
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pareceu-me muito vazia. Desejei ter pedido Fianchu emprestado durante o dia e não só durante a noite. A companhia do cão grande teria sido bem-vinda.
Caminhei até à janela e espreitei para fora. O jardim de Irial estava deserto, à excepção do habitual bando de passarinhos no bebedouro de pedra. Um passeio pelo
trilho poria os meus pensamentos em ordem, depois regressaria ao trabalho.
O dia aquecera e o jardim estava cheio de cores suaves: verde-acinzentado, violeta-claro, rosa-forte, o mais pálido dos cremes. Pareceu-me que o homem que criara
aquele santuário com tanto cuidado deixara algo de si próprio nos seus cantos sossegados. Enquanto caminhava, senti a tranquilidade entrar-me nos ossos. E no entanto,
o próprio Irial deixara-se vencer pelo desespero. Havia algo que não batia certo.
- Porque o fizeste? - murmurei. - Não viste o que ainda tinhas? - O teu jovem filho, o teu mais leal amigo, o teu adorado lar, o teu jardim, onde as plantas continuam
a crescer e a florescer, ainda que Emer tivesse partido. Podia um homem amar tanto uma mulher que, sem ela, tudo o mais que existia no mundo deixasse de ter significado?
Era demasiado extremista. Fora muito cruel deixar Anluan sozinho para lidar com tudo, o Tor, a hoste, a maldição...
Como se o tivesse chamado com os meus pensamentos, o chefe tribal de Whistling Tor entrou pela arcada do jardim e parou quando me viu debaixo do vidoeiro. Acabara
de se barbear e o seu cabelo fora penteado, talvez lavado. A luz apanhou o seu tom ruivo, uma chama escura por entre as sombras esbatidas do jardim. Mudara de roupa,
também; a camisa que trazia vestida era uma que eu remendara recentemente, usando uma linha que não condizia com o tecido.
- Falavas com alguém. - Anluan olhou em torno do jardim vazio.
- Apenas comigo. Não que não tenha aparecido gente, quer a noite passada quer esta manhã. Refiro-me a gente da floresta.
Anluan coxeou na minha direcção, parando junto ao pé de sangue-do-coração.
- Já cresceu mais um pouco - observou ele, olhando para baixo. - Caitrin, se desejas que eles te deixem em paz, é só dizeres-me.
- Não, não faz mal. Assumi um compromisso com eles e é justo que estejam de olho em mim para ver se o cumpro da melhor maneira. Não me parecem particularmente monstruosos.
Apareceu uma menina ontem à noite, não mais de cinco anos de idade... Podes ficar na biblioteca um pouco esta manhã? Preciso da tua ajuda para uma coisa.
- Estou ao teu dispor. Depois da minha partida abrupta na noite passada, é o mínimo que posso fazer.
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- És o chefe tribal - lembrei. - Podes fazer o que te aprouver. E o que aconteceu na noite passada foi em parte culpa minha. Falei sem pensar e peço desculpa. Estou
contente por teres vindo esta manhã. Entramos?
Houve um certo embaraço quando ele viu os materiais de escrita dispostos em cima de uma das mesas vagas. Vi a familiar contracção do maxilar, uma certa dureza no
olhar. Falei antes de ele o poder fazer.
- Só precisas de experimentar algo para mim. É apenas uma forma ligeiramente diferente de segurares na pena. Não é pedir muito.
Mas era; e estava escrito na cara dele.
- Não há qualquer necessidade de eu escrever, mal ou bem - comentou ele, com uma ponta de agressividade na voz. - A escriba és tu; estás em Whistling Tor para fazer
aquilo que eu não sou capaz.
- Talvez eu consiga fazer o que é necessário até ao final do Verão, e talvez não - disse eu calmamente. - Mas depois de eu partir, continuarás a estudar, como é
óbvio que o fazes há anos. Continuarás a precisar de fazer anotações, de transcrever, de preparar os teus próprios documentos. Pensa nisto como sendo uma experiência,
tanto por mim como por ti. Por favor, senta-te. Seria mais fácil se despisses a capa.
Ele despiu a capa com dificuldade, remexendo no fecho com apenas uma mão. Não o ajudei.
- Já vi escribas esquerdinos - contei-lhe, enquanto ele se sentava à mesa de trabalho. - Todos eles pegam na pena da mesma maneira que tu pegas, com a mão curvada.
Há algum tempo que desejo experimentar algo. Não precisas de alterar a tua actual caligrafia, mas vamos segurar no estilete de forma diferente, assim.
- Mas... - Anluan começou a protestar, mas depois silenciou-se quando eu me coloquei atrás dele, debruçando-me por cima do seu ombro esquerdo para guiar o seu braço
e a sua mão para a posição correcta. Ensinar uma pessoa a escrever é uma tarefa muito particular; não pode ser feita sem um elevado grau de proximidade física. Isto
é especialmente verdade quando o tutor é uma pessoa pequena como eu e o aluno é uma pessoa alta e bem constituída. A posição necessária para controlar o movimento
do braço e da mão de Anluan trouxe a minha face para perto da dele e pressionou o meu corpo contra as costas dele. A sensação que me avassalou, quente e temerária,
não estava de todo adequada à situação de professora e aluno. Senti o sangue afluir-me ao rosto e fiquei contente pelo facto de a atenção de Anluan se encontrar
focada na tábua e no estilete.
- Parece errado, eu sei - disse-lhe. - Mas é mais confortável, não é? Agora estás a segurar no estilete tal como eu o faria com a minha mão direita.
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- Não consigo escrever assim. Como poderei formar as letras?
- Ah. É aqui que entra um simples truque. Vamos voltar a tábua de lado. - Movi a tábua de cera de modo que o canto superior esquerdo passasse a ser o canto inferior
esquerdo, mais próximo da mão da escrita. - Espero que proves que a minha teoria está certa, Anluan. Quero que tentes escrever do fundo da página para o topo, em
vez da esquerda para a direita. Será necessária concentração. Escreve as letras o, t tg enquanto eu guio a tua mão, e depois deixar-te-ei experimentar à vontade
enquanto eu faço algum do meu próprio trabalho.
Anluan agarrou com força no estilete, como se este o pudesse atacar.
- Com gentileza. - Suavizei os dedos tensos. - Mais solto. Imagina que estás a tocar em algo de suave, no pêlo de um gato, no xaile de um bebé. Isso mesmo. Forma
as letras exactamente como costumas fazer. Vês, a tua mão está fora do caminho e não haverá qualquer borrão quando passares para a pena e para a tinta. Óptimo! Experimenta
escrever uma palavra completa.
- O que devo escrever? - O maxilar dele estava firmemente contraído. As suas faces estavam tingidas de rosa.
- O que te aprouver. - Endireitei-me e dei um passo atrás. O meu coração batia descompassado. Fora uma sensação demasiado agradável. - Continua a praticar. Mais
tarde poderás experimentar esta técnica em pergaminho.
- Isso seria um desperdício de materiais dispendiosos.
Olhou para a folha que preparara para ele, para a pena nova e para o boião de tinta.
- Não me digas que nunca aprendeste a raspar o teu pergaminho para o reutilizar?
- Eu sei como fazê-lo, mas...
- Dei-te uma tinta diluída.
- Mesmo assim...
- Por favor - pedi.
Pelo canto do olho, vi a sua boca assimétrica curvar-se num sorriso.
- Muito bem - rendeu-se. - Aceito o teu desafio. - Aplicou-se no seu trabalho, mas o sorriso permaneceu, suavizando as suas feições.
O tempo passou. Traduzi um documento no qual Nechtan não fez outra coisa senão queixar-se do seu vizinho, Maenach, e outro em que listou metodicamente a quantidade
de ovelhas, vitelas e leitões nascidos na sua quinta nessa Primavera. Depois vi o nome Aislinn.
Um dia difiál. O dia de Todos os Santos aproxima-se e o tempo é curto. Os nossos preparativos estão quase terminados. Aislinn entrou com o avental cheio de visco,
que cortou da forma ritual requerida. Mal acabáramos de iniciar a fase seguinte quando um bater insistente na porta interrompeu os nossos trabalhos.
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O espelho negro chamava-me. Olhei para Anluan; pousara o estdlete e experimentava com a tinta e o pergaminho, usando a nova pena para escrever de baixo para cima,
ao longo das linhas que eu marcara para ele. O cabelo dele caía para a frente, as madeixas de um ruivo profundo acentuando a palidez do seu rosto. Os olhos azuis
fixavam atentamente o seu trabalho e usava o braço direito fraco para segurar o pergaminho no lugar. O ângulo da pena era bom, não era perfeito, mas era bom. Vi
propósito e esperança em todo o seu ser e, por um instante, fez-me suster a respiração. O que fizera eu? Como me atrevera a acordar algo de tão frágil naquele lugar
de tristeza avassaladora?
Voltei o documento de Nechtan para baixo sem ler mais. Empurrei-o para a parte mais distante da minha mesa de trabalho, longe do meu alcance, e depois peguei na
folha de pergaminho antiga que se seguia.
Eles mataram o gado que garantia o sustento de Whistling Tor. Ceifaram vidas na povoação e atearam fogos. Porque se recusam a obedecer-me para além da fronteira
do Tor? Deviam obedecer à minha vontade. Revejo o procedimento interminavelmente na minha mente, mas não lhe encontro qualquer falha. Não houve erro nos preparativos,
não houve omissão, não houve desvio da fórmula das palavras. Tudo foi executado conforme requerido. Mas está errado. Liberto, este não é um exército poderoso mas
uma ralé desordenada. Se puder comandar a sua obediência apenas enquanto estiver no Tor, serei colocado à margem do resto do mundo.
E, mais abaixo, na mesma página, o que se segue:
As pessoas dizem que estou amaldiçoado. Provarei que estão erradas. Aprenderei a domar este monstro.
- Mas não aprendeste - murmurei, colocando a folha em cima da outra. - Não foste capaz.
- O que disseste? - Anluan pousou a pena e flectiu os dedos da mão com que escrevia.
- Nada. Posso ver o teu trabalho?
- Claro. És a professora.
Não o insultei com elogios exagerados, embora o meu coração tenha rejubilado ao ver como ele assimilara bem a lição. Quanto ao facto de ele ter escolhido praticar
a escrita usando o meu nome - estava escrito na página três vezes, cada uma das versões ligeiramente mais regular que a anterior -, trouxe um calor ao meu coração
bastante desproporcionado em relação à causa.
- Sentes que assim é mais fácil? - perguntei. - É muito mais agradável à vista.
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- É melhor, sim, e a minha mão dói menos. Havia algo no seu tom de voz que fez com que eu olhasse para ele com mais atenção, vendo o que perdera há um momento: as
manchas debaixo dos olhos, a palidez, os ombros descaídos.
- Bom trabalho - aprovei, mantendo o tom desembaraçado. - Por agora chega. O ideal seria escreveres uma página por dia com este método, até começares a usá-lo sem
pensar.
- Tenho de ir - disse Anluan abruptamente, levantando-se. - Como enviei Magnus ao sopé do monte esta manhã, preciso de ajudar Olcan com alguns dos trabalhos da quinta.
- Hesitou no limiar da porta, com a capa por cima do braço. - Pareces surpreendida, Caitrin. Aleijado como sou, não sou totalmente incapaz. - Antes que pudesse pensar
numa resposta, ele desapareceu. Continuei a trabalhar até que a fome me levou à cozinha, onde preparei uma refeição de pão e queijo e a comi sentada à mesa. Recordei-me
de um cão vadio que Maraid recebera em casa uma vez, um animal acuado, retardado e desconfiado, cujo passado não fora, obviamente, feliz. A minha irmã tornou-se
amiga dele, usando comida, afecto e palavras gentis. Passado um pouco, o cão começou a segui-la de um lado para o outro, servilmente; era óbvio que a adorava. Mas
nunca chegou a ficar à vontade. Encolhia-se com o som de uma colher a cair no chão ou com um espirro repentino. Começava a ladrar ansiosamente sempre que estranhos
batiam à porta. Após alguns meses, a criatura morreu quando corria atrás de uma carroça que passava; nunca chegámos a saber quanto tempo demoraria a aprender a confiar.
Quando demasiado mal é feito, talvez essa lição seja impossível de aprender. Recordando, vi algo de Anluan e de mim própria naquela triste criatura.
Terminada a minha simples refeição, levei o copo, o prato e a faca lá para fora para a bomba para os lavar. Enquanto me debruçava sobre o balde, com o pano na mão,
uma voz familiar falou atrás de mim.
- Caitrin?
Endireitei-me, voltando-me para olhar para Muirne. Tinha o vestido violeta de Emer nas mãos, a saia arrastando-se no chão lamacento junto à bomba. Vi de imediato
que estava feito em farrapos.
- A criança - disse ela. - Imagino que tenhas tentado ser amiga dela. Não te deixes enganar por aquilo que vês. A pequenina parece angélica por fora. Por dentro,
é pura malevolência. Não há dúvida que ela deve ter prendido o teu coração como prendeu o de Emer e o de Líoch antes dela. Imagino que tenha falado da mãe ou de
ter frio. Foste gentil para com ela e vê como ela te recompensou. Temo que este vestido sirva apenas para rasgar e fazer panos da louça.
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- Não! - Quase lhe arranquei o traje das mãos. - Peço desculpa - acrescentei, forçando a minha voz a manter-se calma, embora o meu coração batesse acelerado. - Talvez
possa salvá-lo. - A criança tão pequena e frágil, tão inocente... Mas já estragara Róise. - Onde encontraste isto, Muirne? - Estava certa de ter deixado a porta
fechada.
- Na galeria, amontoado. Portas e paredes não impedem a entrada da hoste, Caitrin. - Aproximou-se, colocando uma mão no meu ombro. - Posso dar-te um conselho?
- Com certeza. - O toque dela deixou-me desconfortável.
- Estás a entrar de cabeça numa situação que em breve não serás capaz de controlar. A cada dia que passa, torna-se mais arriscada. Não consigo compreender-te, Caitrin.
Vês a hoste descer o monte em alvoroço, logo a seguir falas com eles como se fossem teus amigos. Vês Anluan perto de um colapso, devido aos esforços empreendidos
para teu bem, por causa de um homem que veio aqui à tua procura e, em vez de lhe permitires o descanso de que ele tanto precisa, pedes-lhe explicações e depois exiges
que ele invoque a hoste novamente. És uma artífice dotada, uma pessoa de alguma inteligência, presumo. E no entanto colocas-te em risco. Colocas Anluan em risco.
Estes são os actos de uma tola. Perdoa-me se sou demasiado directa contigo. Alguém tem de o ser. Não gostas dele nem um pouco?
Inspirei algumas vezes, tentando não apertar o vestido de Emer demasiado contra o peito. Não lhe mentiria. Mas também não lhe podia dizer o que começava a perceber
ser verdade: que gostava mais dele do que alguma vez pretendera. Quanto à hoste, só tentara compreender, só tentara ajudar aqueles que pensava estarem em apuros.
Só tentara olhar para eles como verdadeiros homens e mulheres. Com os farrapos do vestido violeta nas minhas mãos e a memória da palidez cerosa e dos olhos exaustos
de Anluan na minha mente, senti um arrepio bem dentro de mim.
- É claro que gosto - respondi. - Não quero magoar ninguém.
- Aqui, nada é o que parece - explicou Muirne calmamente. - Peço-te, como mulher e como igual, que deixes Anluan em paz. Talvez penses que o podes mudar, que podes
moldá-lo numa forma mais aceitável para ti. Os homens não mudam. Não são capazes.
Lutei para encontrar uma resposta adequada.
- Isso é verdade para alguns, tenho a certeza. Para Cillian, por exemplo, mas não para todos. Muirne, não estou a tentar mudar Anluan, eu apenas... - Era impossível.
Tudo o que eu dissesse seria interpretado por ela como uma crítica. - Penso que ele podia fazer mais - continuei.
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- Ser mais. Ele está tão desgastado com tudo isto - fiz um gesto vaco com o braço - que não consegue ver o caminho em frente. Mas ele é perfeitamente capaz de ser
um bom chefe tribal, não lhe falta inteligência e o facto de nunca se ter distinguido na caça, a montar a cavalo ou como espadachim não significa que não possa ser
um líder. É corajoso. É perspicaz. Poderia fazer milagres se ao menos acreditasse em si próprio.
- Não estamos a falar de um homem vulgar, Caitrin. Não podes aplicar as regras do mundo exterior a Anluan. Ele é o chefe tribal de Whistling Tor.
- Mas também é um homem vulgar - senti-me na obrigação de salientar. - Para ser um chefe tribal, primeiro tem de ser um homem. O que ele precisa é de um propósito.
- Que tolice! - disparou Muirne, perdendo alguma da sua calma habitual. - Estás a colocá-lo em risco e não vês! Devias ter deixado este lugar quando tiveste oportunidade
de o fazer.
Não percebi de imediato.
- Que oportunidade? Estás-me a dizer que devia ter descido o monte esta manhã com Magnus?
Ela não respondeu, esperando simplesmente que eu usasse a minha inteligência para perceber o significado das suas palavras. Quando percebi, senti frio.
- Estás a dizer-me que devia ter deixado que Cillian me levasse daqui, amarrada e com uma mordaça na boca? Tu, uma mulher, pensas que eu devia ter aceitado aquela
situação?
- Pelo menos aquele homem quer-te - disse ela calmamente. Uma fúria fria tomou conta de mim.
- Não acredito que possas aprovar o que Cillian me fez ontem. Enoja-me que penses assim. Percebo o teu argumento acerca de Anluan e lamento tê-lo cansado. Terei
mais cuidado no futuro. Mas não vou deixar Whistling Tor, Muirne, não enquanto não acabar o trabalho para o qual fui contratada. Não acredito que a minha presença
seja perigosa para quem quer que seja.
- O trabalho de escriba é uma coisa. - Ela também estava zangada, mas apenas os seus olhos o revelavam. - Tenho alguma admiração por uma mulher que é capaz de o
fazer com competência suficiente para ganhar o seu próprio sustento. Mas pretendes fazer muito mais do que a mera transcrição de alguns documentos.
Não tinha resposta para isto porque ela tinha razão. Eu assumira um compromisso com a hoste. Prometera procurar um feitiço de reversão. E quanto a Anluan, com o
seu estranho sorrisinho, como uma repentina
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explosão de luz num lugar de sombras? Essa parte não poderia terminar simplesmente no final do Verão.
- Agitaste a hoste - declarou Muirne, cruzando os braços. - A hoste é perigosa. Inevitavelmente, acabará por se voltar contra ti.
- Como podes dizer isso quando também fazes parte da hoste? - perguntei, não querendo saber se pisara ou não o risco. - Quanto àquela menina... - Os meus dedos acariciaram
o tecido danificado do vestido violeta. - É demasiado pequena para ser completamente responsável pelas suas acções.
Os olhos de Muirne eram frios.
- Estás enganada - afirmou. - Estás a expor-nos a todos ao perigo. Faz o teu trabalho se tem de ser, escreve as tuas cópias. Mas Anluan não deve ter nada a ver com
os documentos. Diz-lhe que não queres a ajuda dele. - Rodou sobre os calcanhares e partiu antes de eu poder dizer mais alguma coisa.
A minha mente andava às voltas. Por um momento, não me consegui lembrar por que razão estava no pátio. Pensei em Anluan, tão descontraído, tão contente depois do
seu sucesso com a pena. Recordei a sensação do corpo dele contra o meu enquanto guiava a sua mão, a curiosa sensação de perda quando me afastei, deixando espaço
entre nós. Não era a primeira vez que tocar-lhe enviava uma onda de calor pelo meu corpo. Muirne estava correcta em avisar-me. Estava a permitir-me sentir demasiado.
Estava a deixar que a simpatia natural se transformasse noutra coisa, algo com poder para causar verdadeiro mal.
Com um suspiro, terminei de enxaguar a loiça e depois despejei a água de lavar junto aos degraus da cozinha. Muirne dissera que Anluan não devia ter nada a ver com
os documentos. Porque é que isso seria perigoso? Não me lembrava de nenhuma razão excepto aquela que eu própria já considerara: que Anluan se sentisse inspirado
a tentar o mesmo tipo de trabalho que o seu bisavô tentara e que produzira um efeito tão desastroso. Ele poderia acreditar que a única forma de banir a hoste seria
através da feitiçaria. Ao trilhar esse caminho, arriscava-se a transformar-se em alguém como Nechtan. Muirne, que o amava, estava a tomar as medidas sensatas para
evitar aquilo que sabia ser catastrófico.
De novo na cozinha, limpei a loiça e guardei-a. Dei comigo a limpar o tampo da mesa pela terceira vez. Peguei no vestido de Emer e subi para o meu quarto, esperando
o pior. A porta estava aberta mas não parecia haver nada fora do lugar excepto Róise. Guardara-a na arca de manhã, mas naquele momento estava em cima da cama, encostada
à minha almofada com a sua saia rasgada espalhada à volta dela. A criança
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arrancara mais cabelo de seda do que eu me apercebera: um dos lados da cabeça da boneca estava quase completamente careca.
Inspirei profundamente algumas vezes. Havia trabalho para fazer; os documentos de Nechtan esperavam-me na biblioteca. Mas o encontro com Muirne deixara-me agitada
e a ideia de que alguém estivera naquele quarto, a mexer nos meus pertences enquanto eu estava com Anluan na biblioteca, deixou-me inquieta. Antes de regressar ao
trabalho, precisava de reparar as memórias danificadas da minha família.
Peguei nos meus materiais de costura e enrolei Róise no vestido de Emer. Saí do quarto e quase esbarrei com o jovem da camisa ensanguentada. Arfei com o choque;
ele deu um passo atrás, como se tivesse ficado igualmente perturbado.
- Oh, desculpa... - Tentei encontrar as palavras certas.
- Não pretendo fazer-te mal... Desejo apenas...
Talvez fosse a sua hesitação a colocar uma ideia estranha na minha cabeça.
- Preciso da tua ajuda - pedi. - Preciso de alguém que guarde o meu quarto durante algum tempo. Não quero que ninguém entre lá antes do meu regresso. Podias fazer-me
esse favor? - Uma tolice, talvez; Muirne teria pensado que sim certamente. Mas eu não vira uma hoste de presenças malévolas, preparada a virar-se a mim à mínima
desculpa. Eu vira pessoas à deriva, sem um propósito. Vira homens, mulheres e crianças juntos e, no entanto, sozinhos. Não tinham nada para fazer, nenhum sítio para
onde ir. Não eram queridos. Não eram precisos. Não tinham ninguém que lhes tocasse, que os amasse, que os sossegasse. Tinham-se perdido de si próprios.
- Quanto me pagas? - A voz dele era como o ruído de canas secas num campo de Outono.
- Pagarei com o meu trabalho. Enquanto ficares de vigia, estarei à procura do que referi anteriormente, da chave para vos libertar. Mas tenho outro trabalho para
fazer antes disso. Algo foi quebrado, algo de precioso.
O jovem suspirou, estendendo uma mão cujos dedos eram pouco mais do que osso. Tocou no tecido do vestido em farrapos.
- Era dela... Sobressaltada, perguntei:
- Conheceste-a? Emer?
- Não me lembro - respondeu ele, mas a memória estava presa naqueles olhos assombrados. Mudaram quando eu disse o nome dela. Podia jurar que vi lágrimas brilharem
nos seus olhos.
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- Ficas de vigia? Regressarei antes do crepúsculo.
Ele inclinou a cabeça, um sinal cortês de assentimento, e assumiu a sua posição diante da porta do quarto. As suas costas estavam direitas, os seus ombros quadrados,
os seus pés afastados. A sua expressão era tão dura e o seu porte tão formidável, que ninguém se atreveria a desafiá-lo.
- Obrigada - agradeci. - Como te chamas?
Fez-se uma longa pausa, como se tivesse de procurar profundamente para encontrar a memória.
- Cathaír, senhora.
- É um óptimo nome para um guerreiro. Adeus por agora, Cathaír.
Sentei-me no jardim de Irial, debaixo do vidoeiro, e cosi uma nova saia para a boneca, usando restos do vestido de Emer. Tentei pesar a esperança contra o risco,
o propósito contra o perigo. Se era demasiado perigoso para Anluan ser exposto aos registos de Nechtan - e Muirne argumentara bem aquele ponto - teria de chegar
à verdade sozinha. Teria de ser feito antes do final do Verão. Ninguém dissera o que aconteceria se não conseguisse terminar o trabalho até então. Talvez Anluan
me deixasse ficar. Mas não podia assumir que sim. Isso queria dizer que teria de usar todos os meios ao meu dispor na procura de um feitiço de reversão. E existia
um meio muito poderoso, fechado num baú perto da minha mesa de trabalho, preparado para revelar mais histórias negras. Seria eu suficientemente corajosa para colocar
mais dos escritos de Nechtan em cima da mesa e olhar para dentro do espelho de obsidiana novamente? Sozinha, sem Anluan? Dera a minha palavra à hoste. Talvez já
estivesse comprometida com esta tarefa.
Não havia forma de consertar o cabelo de Róise, não sem um abastecimento de linha de seda. Fiz-lhe um pequeno toucado, usando o mesmo tecido violeta, e cosi-o à
sua cabeça, ocultando os estragos. Murmurei para a boneca enquanto a remendava, contando-lhe histórias reconfortantes da minha casa e da minha família: a cozinha
acolhedora, a sala de trabalho organizada, a minha irmã a cantar enquanto preparava a ceia. Quando chegou a vez do meu pai, a voz faltou-me. Havia uma memória que
ficaria comigo para sempre, fosse para onde fosse. Descer as escadas aos tropeções, meio a dormir, pretendendo começar a trabalhar cedo na encomenda importante que
aceitáramos. Abrir a porta da sala de trabalho. Descobrir que o pai se levantara ainda mais cedo do que eu. Que já começara a trabalhar, que completara duas linhas
antes de morrer. O banco alto estava tombado. O pai estava estendido no chão,
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Ide costas, com os braços esticados e os olhos fixos. A pena caíra para lá do seu alcance, as pingas de tinta faziam um padrão delicado nas tábuas. Os dedos dele,
os dedos longos e graciosos de um artífice, estavam abertos descontraídos, como os de uma criança adormecida. Já partira. - Era um bom sítio, Róise - sussurrei,
dando um último ponto delicado no toucado e mordendo a linha. - Até esse dia, era o melhor lugar do mundo. Depois tudo mudou. Ita e Cillian chegaram e, quase tão
depressa quanto o enterro do pai, Maraid partiu com Shea. Espero que ela esteja bem. Espero que estejam felizes. - Este pensamento surpreendeu-me. Naquela altura,
o desgosto arrebatara-me de tal forma que mal me dera conta que a minha irmã partira. Mais tarde, quando começara a arranjar uma saída ao desespero, sentira amargura
e ira em relação a ela. Naquele momento, olhando para Róise remendada e recordando o dia do meu sétimo aniversário, quando Maraid me presenteara com a sua criação
e me dissera que, uma vez que a nossa mãe já não estava neste mundo, Róise olharia por mim no seu lugar, percebi que o meu ressentimento se desvanecia por fim. Talvez
Maraid não tivesse tido outra opção. Talvez tivesse fugido pelo mesmo motivo que eu: para se salvar a si própria.
O vestido violeta não tinha qualquer arranjo. Não havia um pedaço da saia suficientemente grande para fazer nada, excepto vestuário para Róise. Talvez fosse uma
tolice sentimental querer salvá-lo. Não conhecera a mãe de Anluan e há muito que ela partira. Mas as pessoas amaram-na. Enrolei o vestido. Mais tarde, encontraria
uma forma de o usar. O sol estava quente. O jardim estava calmo. De bom grado teria permanecido lá o resto da tarde, sem fazer nada de especial. Mas a porta da biblioteca
estava aberta e o meu trabalho aguardava-me lá dentro. Pratica a coragem um pouco de cada vez - sugerira Anluan. Isto não era um pouco; era quase avassalador. Mas
tinha de o fazer. Se queria ter oportunidade de cumprir a promessa que fizera à hoste, teria de entrar na biblioteca e voltar aquelas páginas. Tinha de abrir o baú
e tirar para fora o espelho de obsidiana. Teria de olhar para a escuridão.
CAPÍTULO SETE
Mal tínhamos acabado de iniciar a fase seguinte quando um bater insistente na porta interrompeu os nossos trabalhos.
Há um bater insistente na porta. Nechtan fica furioso e obriga-se a inspirar lentamente várias vezes. Os preparativos têm de estar perfeitos; não se pode dar ao
luxo de perder o controlo. Caminha para a entrada, faz deslizar o ferrolho e abre a porta com brusquidão.
- O que é? - rosna, olhando para as feições macilentas do seu camareiro provisório, um homem de cujo nome ele não se lembra.
- Meu senhor, lamento imenso interrompê-lo, mas...
- Desembucha! O que é tão importante que te faz quebrar as ordens para não ser perturbado?
- Lorde Maenach está aqui, meu senhor. Não com uma companhia de assalto, veio com um grupo de conselheiros e de parentes. Há um padre com eles e a esposa de Lorde
Maenach. Querem falar sobre um acordo, um tratado. Lady Mella disse que devia interromper-te, uma vez que isto é...
- Vai-te - diz Nechtan. - Fizeste o que te disseram. - Fecha a porta na cara do seu servo.
Aislinn está a fazer uma grinalda. Um candeeiro arde na prateleira por cima do banco onde ela trabalha, a chama luminosa transforma a suave massa do seu cabelo num
cintilante véu de oiro. Ele deseja passar os dedos pelo cabelo dela, juntar os seus fios de seda, puxá-los e fazê-la gritar. Observando o movimento delicado e meticuloso
das mãos dela enquanto tece a mais mágica das ervas numa grinalda de folhagem de Inverno, olhando para as curvas aprazíveis do seu corpo jovem por debaixo das roupas
simples de trabalho, ele quer mais do que isso. Mas arruinar o seu grande trabalho por causa de um prazer tão efémero seria o acto de um homem vulgar, de um homem
fraco.
Volta as costas a Aislinn. No seu lado da sala de trabalho, os livros de magia estão pousados em cima da mesa, cada um deles aberto numa
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página familiar. O primeiro: Para conjurar espíritos. O segundo: para chamar os servos de um reino obscuro. O terceiro: Demónios, duendes, espectros e visitantes:
um vislumbre da sua verdadeira natureza. Nechtan suspira.
- Meu senhor, não precisas de os ler de novo. - Parece que Aislinn tem olhos na nuca. - Irás usar o outro feitiço, o que conseguiste obter no mosteiro. Os autores
desses livros não sabiam. Apostaria que nenhum deles testou as suas próprias teorias. Dizem-se peritos, mas os seus escritos são os de homens que não têm a coragem
de transformar os seus sonhos em realidade.
Nechtan sorri sem se voltar. Aislinn é-lhe dedicada; está a devolver-lhe os seus próprios argumentos.
- É bem verdade - diz-lhe. - Mas pode ter-nos escapado algum pormenor. Tem de ser perfeito, Aislinn.
- E será. - A voz dela treme de emoção. Por um momento, isto perturba-o. Suspeita que mesmo que lhe tivesse contado tudo, em vez de apenas a informação de que ela
precisa, ela continuaria preparada para ceder aos seus desejos. Faria tudo por ele. No entanto, a sua pequena assistente não é nenhum animal estúpido, seguindo o
seu dono por instinto cego. Aislinn é rápida, apta, uma erudita à sua maneira limitada. Esperta, mas não demasiado esperta, reflecte Nechtan, voltando-se para observá-la
de novo enquanto ela tece um fio branco pela grinalda prendendo depois as pontas com um nó complexo e especial. O objecto ritual assemelha-se a uma coroa nupcial.
- Noite de Todos os Santos. - A voz de Aislinn treme quando ela pendura a grinalda num suporte, ao lado dos outros artigos que irão usar. - Mal posso acreditar.
Meu senhor, nunca poderei agradecer-te o Suficiente por me deixares tomar parte desta grande obra.
Outra pancada na porta.
- Por todos os poderes - rugiu Nechtan -, o que fiz para merecer isto? A minha casa está repleta de idiotas!
- Queres que eu atenda, meu senhor?
- Não, Aislinn. - Ele abre a porta. Desta vez é a sua mulher que está lá especada, como um espantalho magricela, envergando o seu cinzento desenxabido, com as mãos
juntas de forma ansiosa, o cabelo puxado para trás, o maxilar contraído pelos nervos. Os anos não foram simpáticos para Mella. Nunca foi uma beldade, nem mesmo quando
ele se casara com ela, e em breve, muito em breve, seria uma velha feia. Ter gerado o seu filho fora a única coisa boa que ela fizera por ele e por Whistling Tor.
O dote fora útil, claro, mas há muito que desaparecera.
- Maenach está aqui - diz ela sem preâmbulos. - Quer fazer um tratado de paz, Nechtan. Está preparado para conversar contigo, apesar de tudo. Tens de vir falar com
ele.
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- Tenho? - A palavra fica suspensa entre eles enquanto Nechtan começa a fechar lentamente a porta. Vê o olhar nos olhos da sua mulher, o medo e depois a resolução
repentina. Está surpreendido, não pensava que a criatura seca ainda tivesse faísca.
Mella estende o pé, impedindo o movimento da porta. Olha para além dele, os seus olhos ficam invernosos quando passam por Aislinn.
- Não feches a porta, Nechtan. Trata-se do nosso futuro, do teu, do meu e do nosso filho.
- Não tenho qualquer interesse em tratados - diz-lhe, não que valha a pena; ele sabe pela experiência de muitos anos que os padrões da sua mente estão para além
da compreensão da sua mulher. - São irrelevantes. Mais cedo do que imaginas, tudo será diferente. Maenach será menos do que uma partícula de pó debaixo da minha
bota. Esmagá-lo-ei.
- Nechtan, ouve-me, por favor. Imploro-te. - O rosto de Mella está vincado de ansiedade. Ele vê as rugas que ela terá quando for uma mulher idosa, se viver até lá.
- Esta é uma oportunidade de acabar com as lutas, de fazer as pazes, de resolver esta situação de uma vez por todas. Nunca compreendi o que fazes aqui em baixo,
nem desejo compreender, mas nem a galdéria da tua aldeã nem a tua dita experiência valem o sacrifício de toda a tua vida. O futuro de Whistling Tor, o futuro da
tua família e do teu povo, está por um fio. Vem, meu senhor, e senta-te à mesa do conselho. És o chefe tribal. Sê o homem que deves ser.
Ele levanta a mão e atinge a sua mulher na face, com força suficiente para a fazer retroceder. Fecha a porta, faz deslizar o ferrolho.
- O que tenho eu de fazer - murmurou ele - para manter o mundo do lado de fora?
Atordoada e com a visão nublada, durante um momento não fiz mais do que manter-me sentada quieta à mesa de trabalho, enquanto as imagens do espelho de obsidiana
se desvaneciam até desaparecerem e os pensamentos de Nechtan abandonavam, um a um, a minha mente. Lá fora, no jardim, um pintassilgo cantava. O Sol deslocava-se
para ocidente, enviando um feixe de luz pela janela da biblioteca. Quando me consegui mexer outra vez, embrulhei o espelho negro no seu pano e guardei-o no baú.
Havia uma outra folha dos escritos de Nechtan em cima da mesa, uma outra parte desta história para ser visitada, pertencente a um tempo posterior à experiência:
o tempo da hoste desgovernada. Não olharia para ela agora.
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Quando me senti suficientemente forte, fui lá para fora. Deixei-me estar ao sol e proferi as palavras de uma oração, uma oração simples de infância, pedindo aos
anjos que olhassem por mim. Aquela visão fora menos obscura que a primeira. Não era tanto o que via que me perturbava, era a forma como o espelho me atraía para
a mente de Nechtan. Quantas vezes é que Cillian me batera da mesma forma que Nechtan atingira Mella? E no entanto, ao vê-lo, os meus pensamentos não foram os dela,
mas os dele, repletos de violência e de fúria. A sua raiva ainda estava marcada a ferro e fogo na minha mente. Enojava-me. Seria assim, dali em diante, se continuasse
a usar o espelho? Ficaria eu com um pouco da malevolência de Nechtan de cada vez, transfor-mando-me numa pessoa que não quer saber de compaixão, perdão, bondade
e que apenas vive para o poder? Percebia exactamente a que é que Muirne se referira. Se fazer isto me fazia sentir tão mal, o que faria a Anluan, com o sangue do
próprio Nechtan a correr-lhe nas veias? O chefe tribal de Whistling Tor era, de certa forma, um inocente. Poderia ser capaz de invocar uma hoste de espectros para
afugentar intrusos, mas esta maldade insidiosa poderia consumi-lo por dentro. Não devia ser exposto a ela.
- Caitrin? - Era Magnus, debaixo da arcada. Trazia uma trouxa ao ombro; parecia que acabava de chegar da povoação, embora estivéssemos a meio da tarde. As suas feições
fortes exibiam um aspecto invulgarmente preocupado. - Surgiu um problema. Onde está Anluan?
- Foi para a quinta há algum tempo. O que se passa? - Pensei em Cillian e senti-me gelar.
- Há um grupo de normandos armados no terreno aberto entre O sopé do monte e a povoação exigindo que Anluan desça e fale com eles. Por aquilo que percebi, têm ordens
para lhe entregar uma mensagem, apenas a ele ou ao seu conselheiro-mor. Não disseram a Tomas do que se tratava e não estavam interessados em ouvir nada do que eu
tivesse para dizer. Ouviram o suficiente sobre este lugar para os impedir de subirem o monte e entregar este decreto ou seja lá o que for. Vê se encontras os outros,
sim, Caitrin? Irei buscar Anluan.
Reunimo-nos na cozinha. A tarde passava; não havia muito tempo para tomar uma decisão. Anluan estava da cor da cal, as suas feições marcadas de ansiedade. Ninguém
se sentou. Magnus explicou tudo: passara algum tempo a falar com Tomas acerca da situação de Cillian - dir-me-ia depois, mas ficaria satisfeita com a explicação
- e estava prestes a regressar a casa quando os normandos cavalgaram até à barreira da aldeia e exigiram entrar. Vinham da parte de Stephen de Courcy.
- O fulano que eles usavam como intérprete não parecia perceber grande coisa de irlandês - explicou Magnus. - Levou imenso tempo a
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transmitir o que eles queriam. Perguntaram acerca da barreira e Tomas explicou-lhes exactamente para que servia. Depois disso, perderam a vontade de encontrar um
caminho para subir o Tor. Agora estão no sopé do monte à espera. Tomas também lá está, com dois rapazes da povoação. Fiquei surpreendido; sabem bem o medo mortal
que eles têm de todas as pessoas daqui de cima. Tomas estava desejoso de afastar os camisas-de-ferro das mulheres e das crianças. Quando Duald e Seamus o viram liderar
o caminho, sentiram-se envergonhados e fizeram o mesmo. Mas, atenção, estão os três a tremer que nem varas verdes lá em baixo. Quanto mais depressa lidarmos com
isto, melhor.
- Lidar com isto? - O tom de Anluan era tão quebradiço como gelo. - Como podemos lidar com isto? Sabes bem que não posso colocar o pé fora da margem de segurança.
Se não te entregaram a mensagem a ti, Magnus, então não a podemos receber.
- O que pensam que a mensagem trata? - perguntei, sem saber se devia tomar parte na discussão, mas detestando a expressão no rosto de Anluan e a forma como ele cruzou
os braços como a escudar-se a si próprio do resto do mundo.
- Deve ser algo importante. - Rioghan tinha as palmas das mãos juntas, as pontas dos dedos a tocarem os lábios; quase podia ver a sua mente em funcionamento. - Caso
contrário, estariam dispostos a passar a mensagem a Magnus e a pedirem-lhe que a entregasse. Seja o que for, não a podes ignorar, Anluan.
- O que esperam que faça? - respondeu Anluan, furioso. - Que envie a hoste para a arrancar às mãos do mensageiro? Não posso ultrapassar a fronteira!
- É claro que não precisas de ir - assegurou Muirne, que estava perto dele, com as mãos recatadamente entrelaçadas e com uma atitude misteriosamente calma. - Não
há necessidade de fazer o que quer que seja. Estes normandos não quererão permanecer junto ao Tor depois do pôr do Sol. Quando a noite cair, partirão.
Olhei fixamente para ela, incapaz de acreditar que ela estivesse a falar a sério. A sua avaliação da situação era a de uma criança.
- Gostaria que fosse assim tão simples - declarou Eichri. - Mas desta vez, o conselheiro tem razão. Os lordes normandos não enviam guerreiros armados para visitar
chefes tribais apenas para partilharem um jarro de cerveja e falarem sobre o tempo. Não insistem na entrega de mensagens nas mãos desses chefes tribais se tudo o
que querem é permissão para cavalgar daqui para ali ou comprar uma ou duas vacas.
- Se uma tal mensagem não for entregue porque o destinatário se recusou a recebê-la - continuou Rioghan, voltando os seus olhos negros
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na direcção de Anluan com um olhar avaliador -, e se essa mensagem contiver um qualquer tipo de aviso, o remetente poderá assumir que lhe foi dada permissão para
proceder com o que pretende. Uma jogada para usurpar a propriedade de outro homem, por exemplo. Ou um ataque.
- Pensam que não iria lá abaixo se pudesse? - explodiu Anluan. - O que pensam que sou, um idiota ou um cobarde? Se a situação fosse diferente... se eu fosse... -
Ouvi a angústia na voz dele e o meu coração sangrou por ele. - Um passo para lá daquela linha, apenas um passo, e toda a hoste poderá descer sobre a povoação e destruí-la.
- Tens a certeza? - aventurei-me a perguntar. - Poderão ter mudado desde o tempo de Nechtan. Por aquilo que vi, existem alguns entre eles que só querem ter um objectivo.
- Não interessa se tenho ou não a certeza! - Voltou-se para mim, a sua voz ríspida. - O risco é demasiado elevado, e não o farei! Não te metas nisto, Caitrin!
Senti-me como se ele me tivesse dado uma bofetada.
- Ela está a tentar ajudar-te - disse Magnus calmamente. - Estamos todos a tentar ajudar-te. E o tempo é curto. Estou de acordo com Rioghan: este problema não desaparecerá
por si. Tem de haver uma estratégia que possamos usar.
- Uma estratégia! Não há qualquer estratégia!
Mas havia. Eu vira-a, e penso que alguns dos outros também a viram, mas não estavam preparados para a propor dada a raiva e o desespero de Anluan. Um desafio; tinha
de ser corajosa.
- Não precisas de passar a fronteira, Anluan - propus. - Não disseram os normandos que estavam preparados para entregar a mensagem ao teu conselheiro-mor?
- Que diferença é que isso faz? - retorquiu Anluan, olhando ameaçadoramente para mim. - Isto não é uma corte com todo o seu aparato: conselheiros e lacaios para
todo o serviço. É uma amostra sombria, arruinada e abandonada do séquito de um chefe tribal. E eu sou uma amostra miserável de um chefe tribal.
- Quanto aos lacaios, não sei - disse, trémula -, mas tens aqui um conselheiro-mor. - Acenei com a cabeça na direcção de Rioghan. - Ele pode ir. Quando conheci Rioghan
e Eichri estávamos todos para lá do sopé do Tor. Se ele pôde ir até lá uma vez, poderá fazê-lo de novo.
Todos os olhos se voltaram para mim. Fez-se silêncio.
- Só há um problema, Caitrin - interrompeu Eichri. - Recordasse dos projécteis que as pessoas atiraram no dia em que chegaste? Eu sei que tu pensaste que nós éramos
homens vulgares. Mas estavas um pouco distraída nessa altura. Nenhum guerreiro normando vai olhar para este meu amigo e ver outra coisa senão... senão alguém muito
estranho.
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- Pode vestir uma capa com capuz. Pode falar com eles educadamente, dizendo o menos possível. Quando ele chegar lá a baixo, a luz estará a desaparecer.
Os lábios de Rioghan curvaram-se num dos seus raros sorrisos. Não disse nada.
- Se isso ajudar - acrescentei -, poderei ir com ele. Não tenho um aspecto estranho, tanto quanto sei. E, embora não fale francês, poderei falar em latim.
- Excelente ideia - aplaudiu Magnus. - Eu irei contigo para te proteger.
Vi a amarga negação nos olhos de Anluan e encolhi-me. Ele abriu a boca para proferir o que seria, sem dúvida, mais uma explosão furiosa.
- É claro que a decisão não nos cabe a nós - declarei eu, olhando-o nos olhos. - É tua. Só o faremos se achares bem.
Magnus emitiu um pequeno som, suprimindo-o instantaneamente. No silêncio que se seguiu, Fianchu dirigiu-se à lareira, descobriu que ninguém lhe deixara lá um osso
e voltou para junto de Olcan, esperançado.
- Não podem levar Caitrin para longe da minha vista - ordenou Anluan, os lábios tensos. Pestanejei, surpreendida.
- Nesse caso, terás de vir até à fronteira e esperar onde nos possas ver - disse Magnus calmamente. Lembrei-me de que ele era um guerreiro, habituado a tomar decisões
e a obedecer a ordens.
- Esperarei junto às árvores sentinelas - declarou Anluan. - É melhor fazermos isto já. Olcan, quero-te a ti e a Fianchu aqui em cima de prevenção.
- Sim, meu senhor - respondeu Olcan, e ninguém o corrigiu.
Eram cinco, esperando em linha, sentados nos seus cavalos. Imaginei que não quisessem desmontar por estarem tão perto da orla da floresta. Os trajes de cota de malha
eram impressionantes: para além das camisas compridas que os cobriam até aos joelhos, três dos cinco usavam peças separadas a envolver os antebraços e as pernas,
e um dos homens usava uma espécie de capuz que lhe protegia o pescoço por baixo do elmo de metal. Estavam bem armados: vi punhais, espadas, um machado e duas lanças.
Um dos homens usava uma longa veste com uma capa por cima; também ele trazia uma espada à cintura, mas não usava cota de malha. Um saco de cabedal junto à sua sela
sugeria que era ele o portador da mensagem. O quinto homem, que estava ao lado dele, vestia calções simples e uma túnica por baixo de uma capa com capuz.
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A pouca distância estavam Tomas, Duald e um terceiro homem da povoação, quase em cima uns dos outros. Ficaram muito felizes por nos ver até porem os olhos em cima
de Rioghan. Pensei que Duald estava prestes a molhar-se de puro terror.
Aproximámo-nos, Magnus e eu, um de cada lado de Rioghan. O nosso plano, tal como estava, fora pensado enquanto descíamos o monte a pé.
A quatro passadas dos normandos, parámos. Rioghan falou antes que mais alguém o fizesse.
- Eu sou Rioghan de Corraun, conselheiro-mor de Lorde Anluan - anunciou num tom vibrante. - O que vos traz ao interior das suas fronteiras? Cavalgar pela terra de
outro homem, armados e sem pedir permissão prévia, quebra a lei da intrusão. Fazê-lo nesta região, perto do crepúsculo, está para lá da insensatez.
O mensageiro consultou em voz baixa o fulano de traje simples que estava ao lado dele e este depois tentou dizer algo em irlandês. Depreendi ser uma pergunta acerca
da minha presença entre eles.
- Sou a escriba de Lorde Anluan - respondi eu, lembrando-me de que Magnus estava ao meu lado, de que Anluan me observava um pouco mais acima, no monte, e de que
esta fora uma ideia minha. Comecei a falar em latim. - Se preferirem, poderemos ter esta conversa em latim.
Estavam a olhar demoradamente para Rioghan, talvez reparando na palidez invulgar da pele dele, nos seus olhos encovados, nas feições magras, e avaliando-as à luz
do que Tomas contara acerca do chefe tribal de Whistling Tor e do seu séquito. Os olhares deles deslocaram-se de Rioghan para mim. Uma escriba. Uma mulher.
- O conselheiro de Lorde Anluan pede-vos que digam ao que vêm - declarei em latim. - Ele diz que a vossa presença aqui, armados e sem serem convidados, quebra a
lei irlandesa.
- A lei irlandesa, puffff! - O mensageiro fez um gesto de desprezo.
- Somos portadores de uma mensagem de Lorde Stephen de Courcy. Pensei que o vosso homem compreendera isso. - Olhou para Magnus e depois desviou rapidamente o olhar.
- Que mensagem? - perguntei.
- Uma mensagem destinada apenas aos olhos de Lorde Anluan. Deve ser-lhe entregue com o selo de Lorde Stephen intacto. Esperava poder falar com o chefe tribal de
Whistling Tor em pessoa.
Traduzi isto para Rioghan e Magnus.
- Diz-lhe que Lorde Anluan não está ao serviço de qualquer maldito estrangeiro que por acaso apareça à sua porta - grunhiu Magnus.
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- Um chefe tribal irlandês não pode ser convocado como se assobia por um cão. Diz-lhe que dê a mensagem a Rioghan antes que eu perca a cabeça e faça alguma loucura.
- Caitrin, diz-lhe que aceitamos a carta - disse Rioghan. - Poderás referir que qualquer conselheiro irlandês digno desse nome jamais sonharia em abrir uma mensagem
selada destinada ao seu senhor. Depois diz-lhes que é melhor que saiam deste distrito antes de anoitecer ou poderão encontrar algo que os faça sujar os seus brilhantes
trajes.
- Por favor, entrega a tua mensagem ao conselheiro de Lorde Anluan - proferi em latim. - Ele entregá-la-á a sua senhoria com o selo intacto. Este outro homem que
aqui está connosco é o chefe de guerra de Lorde Anluan. Certamente ouviram histórias acerca de Whistling Tor. O chefe de guerra de Lorde Anluan sugere que partam
antes de o Sol se pôr.
- Ouvimos dizer que o chefe tribal de Whistling Tor tem poucos servos. - O mensageiro normando olhou para Magnus. - O seu chefe de guerra é um bárbaro estúpido.
- O olhar do homem ignorou-me, - A sua escriba e intérprete, uma rapariga.
Nenhum dos meus companheiros entendeu o latim, mas o tom de desdém na voz do normando era inconfundível.
- Porco arrogante! - rosnou Magnus, apertando os punhos. - Mal contentes em cavalgar pelas nossas terras, com as vossas malditas exigências, ainda nos insultam!
O intérprete normando abriu a boca.
- Se traduzires o que acabaste de ouvir, ver-te-ás em grandes apuros - ameacei.
Rioghan avançou para eles. Quando se aproximou dos normandos, os cavalos deles tremeram e empinaram os seus cascos de inquietação. O mensageiro desapertara o seu
saco de cabedal. Retirou o rolo de pergaminho. Rioghan estendeu uma mão pálida para lhe pegar, puxou para trás o seu capuz e olhou directamente para o rosto do normando.
Os olhos do mensageiro abriram-se muito. A cor esvaiu-se-lhe da pele. Vi um dos guardas fazer o sinal-da-cruz.
- Tu! - chamou o mensageiro, olhando para Tomas e para os seus dois companheiros, que estavam tão pálidos quanto os visitantes. Falava em latim, tendo os meus esforços
de tradução sido evidentemente mais eficazes do que os do seu homem. - Certifica-te de que os homens de Lorde Stephen sejam imediatamente admitidos nesta povoação
da próxima vez. Não haverá barreira. Compreendeste?
Transmiti-lhes a mensagem em irlandês. Tomas murmurou algo quase inaudível, mas acenou com a cabeça para os visitantes. Um vulgar
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estalajadeiro apeado não desafia soldados normandos armados e montados a cavalo.
A uma ordem ríspida em francês, a companhia de Lorde Stephen deu a volta aos seus cavalos e afastou-se. Ainda não era crepúsculo, e ainda bem, pois não trouxéramos
uma candeia.
- Vamos para casa - murmurou Duald. - Em breve ficará escuro.
- Espera - pediu Tomas, e dirigiu-se a mim. Estava a esforçar-se por não olhar para Rioghan, o qual voltou a colocar o capuz na cabeça, com cortesia, e esperou a
uma certa distância. - Caitrin - continuou o estalajadeiro -, acerca daquele fulano que veio aqui à tua procura, ouvi dizer que te causou problemas. Fico feliz por
ver que estás bem. Se eu soubesse o que ia acontecer, teria mentido, teria corrido com ele. Discutimos o assunto, Orna e eu. O homem era cheio de conversa fiada,
dizendo que estivera em todas as estalagens desde a sua terra até aqui, que falara com todos os carroceiros, que seguira as pistas mais insignificantes - há muito
que andava na estrada, deve ser determinado, o miserável. Pareceu-me uma melhor solução mandá-lo subir, sabendo o que acontece a pessoas que tentam subir o Tor.
Sinto-me mal com o que aconteceu, rapariga. Nunca pretendi que te magoassem. - O olhar dele persistia em fixar-se em Rioghan. - É engraçado como as coisas acontecem.
Nunca pensei estar aqui com...
- Está tudo bem, Tomas - assegurei-lhe. - Eu compreendo. - Com um sobressalto percebi que descera o monte e que caminhara para aquele campo aberto sem sequer pensar
em Cillian. A minha mente estivera ocupada com a crise que assolava Anluan. - Agora é melhor que regressem para dentro da barreira e nós temos de entregar esta mensagem.
Obrigado por terem saído. Obrigada por terem esperado aqui até descermos o monte. - Olhei para Rioghan e Magnus, perguntando-me se poderia assumir a responsabilidade
de falar por Anluan. - Se Lorde Anluan aqui estivesse, agradecer-vos-ia a vossa coragem e o vosso apoio. Imagino que isto não tenha sido fácil para vós.
- Se aquela coisa trouxer más notícias - advertiu Tomas -, dizei-nos, sim? - Ele voltou-se e os três homens dirigiram-se para a segurança da povoação.
Caminhámos de volta ao Tor com o crepúsculo a tingir a floresta numa paisagem púrpura, violeta e cinzento-sombrio. Rioghan entregou o rolo a Anluan quando chegámos
ao local onde o nosso chefe tribal aguardara a coberto das árvores. O documento era como um peso
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sobre as nossas cabeças, mantendo-nos em silêncio. Senti a necessidade de saber o seu conteúdo, no entanto fiquei contente pelo facto de a pouca luz significar que
teríamos de esperar até chegarmos a casa, pois por certo não seriam boas notícias. Pensei que fosse provável que Anluan quisesse ler a mensagem a sós.
Enquanto entrávamos no pátio, lembrei-me de Cathaír, que deixara de guarda à porta do meu quarto todo aquele tempo. Desculpei-me apressadamente e subi à galeria.
O jovem guerreiro ainda estava no seu posto, as suas feições duras. Os seus olhos, como sempre, movimentavam-se numa inquietação sem descanso. A uma curta distância
estava sentada a menina com o seu vestido pálido, de pernas cruzadas, no chão da galeria, fazendo uma pilha de folhas mortas.
- Obrigada, Cathaír - agradeci. - Lamento que o meu recado tenha demorado tanto tempo. Esteve aqui alguém enquanto eu me ausentei?
- Ninguém passará enquanto eu estiver de guarda, senhora.
- Podes regressar amanhã, de manhã?
- Se tiveres necessidade, cá estarei.
- Estou-te grata. Podes partir até então.
Com uma solene inclinação da cabeça, não se desvaneceu daquela vez, mas marchou pela galeria e pelas escadas abaixo como um homem de carne e osso faria. Observei-o
atravessar o jardim em direcção às árvores. Mesmo antes de entrar na sua sombra, voltou-se para olhar para cima, para mim, erguendo a mão num adeus hesitante. Retribuí
o gesto, meio aceno, meia continência, e depois ele desapareceu.
A criança viera colocar-se a meu lado. No momento em que abri a porta, ela deslizou para dentro. De pé, no centro do quarto, ela disse.
- Bebé desapareceu.
Tive de pensar por um momento antes de me lembrar do vestido estragado, de Muirne, dos meus remendos.
- Roise está lá em baixo, na cozinha - informei. - Tive de a remendar, estava ferida.
A menina ficou muito quieta, com as mãos presas atrás das costas e os olhos no chão. Não disse nada.
- Não quero vê-la ferida outra vez - disse eu, calmamente. - Quando as minhas coisas são estragadas, fico triste. É por isso que eu tinha um guarda à minha porta.
- A criança não me pareceu capaz de fazer os estragos. Parecia feita de galhos e teias de aranha. - Não me importo que mexam em Róise com muito cuidado, desde que
primeiro peçam autorização.
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Por um momento, limitou-se a ficar ali, depois deixou-se cair até ao chão, ao lado da cama, pousou a cabeça nos braços cruzados e começou a chorar. Não era o chorar
forte de uma criança que raspara um joelho ou perdera uma batalha com o irmão ou a irmã, mas um choramingar triste. Sem me deixar pensar demasiado, peguei-lhe ao
colo e depois sentei-me na cama com a forma gélida nos meus braços. Os soluços dela aumentaram, fazendo-a tremer.
- A culpa não é tua - murmurei, acariciando o cabelo branco e ralo e perguntando-me se estaria a ser tremendamente tola. No interior ela é malévola. Não conseguia
acreditar nisso. - E ela agora está melhor. Fiz-lhe um toucado bonito. De uma cor encantadora, como as violetas. Em memória de uma bela senhora que em tempos aqui
viveu.
Passado um pouco, o choro extinguiu-se. A criança encostou-se a mim, gelando-me os ossos. Mas como todas as pessoas do monte, ela não podia apreciar a paz do sono.
Qual seria a história dela? Como é que ela, sendo tão pequena, podia ter morrido com culpas na alma? Oh, Nechtan, pensei, que tipo de guerreiro é este?
- Posso ficar aqui contigo? - perguntou a pequena voz, apertando-me o coração.
- Irei lá abaixo daqui a pouco - respondi-lhe. Era quase noite cerrada; precisava de ir buscar uma vela.
- A tua cama é macia - afirmou ela. Era uma afirmação que encerrava uma pergunta. Imaginei partilhar a minha enxerga com aquele corpinho gelado. Pensei em ficar
acordada, perguntando-me quando é que ela se levantaria e começaria a destruir os meus pertences.
- Caitrin?
Sobressaltei-me, olhando para cima. Anluan estava à entrada da porta, com uma vela na mão, o rolo sem selo enfiado de forma estranha debaixo do braço. A luz transformou
as suas feições numa máscara bruxuleante, irreal.
- Preciso que me traduzas isto - pediu. - Prefiro fazê-lo em privado.
Devia ter adivinhado que a mensagem estaria escrita em latim.
- Com certeza. - Levantei-me, largando a criança, que se enroscou e colocou a cabeça na minha almofada. Hesitei. Anluan parecia estar sozinho e era claro que ele
pretendia que a traduzisse de imediato. Talvez ele não fosse suficientemente mundano para perceber que uma jovem mulher não convidava um homem a entrar no seu quarto.
- Preciso de saber o que diz - insistiu ele.
- Com certeza. - Aproximei-me da entrada. - Se segurares na vela com firmeza, talvez eu consiga ver o suficiente.
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Firmeza. É difícil ser-se firme quando se ouvem más notícias. Ficámos ali de pé, perto um do outro, não bem dentro do quarto, não bem fora dele, com a menina-fantasma
a observar-nos da cama. As correntes de ar da galeria fizeram tremer a chama da vela; Anluan elevou o seu braço fraco, de forma estranha, para a proteger.
A mensagem estava escrita numa caligrafia ousada e decorativa numa única folha de pergaminho. Não era muito longa.
- Queres uma tradução palavra por palavra? - perguntei-lhe, sentindo a minha voz ceder.
- Diz-me apenas o que está escrito.
- É mais um decreto do que um pedido - disse eu, calmamente, desejando de todo o coração não ser a pessoa que tivesse de lho dizer, pois bastou-me uma vista de olhos
para ficar com uma ideia do conteúdo. - Lorde Stephen pretende instalar-se nas tuas terras, tomando para ele a fortaleza do Tor. Ele declara que todos os territórios
circundantes, até às fronteiras de Whiteshore e de Silverlake, serão territórios normandos, governados por ele. Diz-se com a autoridade para o fazer por ser cavaleiro
do rei inglês. - Embora não nos estivéssemos a tocar, senti o corpo de Anluan tornar-se tenso. Ouvi a sua respiração alterar-se. - Depois diz que vai ser generoso
e dar-te uma escolha. Pode tomar as tuas propriedades a qualquer momento. Contudo, dá-te a oportunidade de discutir o assunto com ele para chegarem a um mútuo acordo,
o qual pouparia às tuas terras e ao teu povo os rigores de um conflito armado, com os seus inevitáveis danos e perdas. Ele acredita que verás a sabedoria de comparecer
a uma reunião com este propósito. O seu conselheiro-mor, com a devida escolta, regressará aqui na véspera da próxima Lua cheia para esta reunião. - Na próxima Lua
cheia. Pelas minhas contas, seria daí a vinte e um dias. - Esta é a assinatura dele: Stephen de Courcy. - A mensagem era um insulto. Sua senhoria nem sequer pretendia
comparecer à reunião pessoalmente. Mútuo acordo? Qual o chefe tribal que, no seu juízo perfeito, concordaria com tal coisa?
- O que pretendes fazer? - perguntei, com um nó na garganta.
A vela estremeceu na mão de Anluan; cera escorreu para cima do pergaminho.
- Fazer? - ecoou amargamente. - Fazer? Suponho que farei exactamente o que o meu povo espera de mim, Caitrin: absolutamente nada.
- Mas... - comecei, chocada.
- Não digas nada! - Era um rosnar furioso e eu dei um passo para trás, com o coração a martelar-me no peito. - Não me digas que posso fazer um milagre se tiver esperança!
Viste aqueles homens no sopé do
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monte - viste as armas, as armaduras, os bons cavalos, a disciplina que os manteve à espera enquanto o crepúsculo se aproximava e Tomas os agraciava com histórias
de demónios e de espectros. Stephen de Courcy terá cem, duzentos soldados destes ao seu dispor, talvez mais. Eu não tenho nenhum. Poderia dar-me vinte e um dias
ou dez vezes esse tempo: não faria qualquer diferença. Este é o fim de Whistling Tor. Respira fundo, Caitrin.
- Se assim o decidires, então suponho que o será - obriguei-me a dizer.
- Oh, então isto é culpa minha? É minha culpa que este maldito lorde estrangeiro decida vir até cá e tomar a minha terra como dele? Esperas que arranje soluções
do ar, suponho? - Fez-se um silêncio carregado enquanto ele olhava para mim de olhos muito abertos, o candelabro preso nos dedos esbranquiçados do seu punho fechado.
O meu coração batia descompassadamente no peito. Quando uma pequena mão gelada se enfiou na minha, sobressaltei-me.
Anluan olhou para baixo, para a criança-fantasma que se encostava contra a minha saia com a cabeça de lanugem de cardo contra o meu corpo. Os olhos dele elevaram-se
para examinar o meu rosto.
- Estás com medo de mim - declarou, com os olhos azuis muito abertos. - Caitrin, nunca te magoaria. Deves saber que assim é.
Engoli em seco. Havia muito que eu queria dizer, mas as palavras não saíam.
O chefe tribal de Whistling Tor olhou para baixo, para as suas botas.
- Peço desculpa - murmurou. - Não sou... Não consigo... Recuperei a minha voz.
- As pessoas não te culparão pelo que se passou com Lorde Stephen - afirmei. - E eu também não te culpo. Mas serás julgado com base no que fizeres a seguir. O mensageiro
normando disse que esta era uma casa de poucos servos, como se isso fosse algo do qual zombar. Tens sorte nos servos que tens, Anluan. Amam-te e confiam em ti. Talvez
o próximo passo seja pedir o seu conselho.
- Fazes com que tudo pareça tão fácil. - Na voz dele ouvi a criança que perdera os pais demasiado cedo, o menino que assumira um fardo impossível com nove anos de
idade.
Dei um passo na sua direcção e coloquei uma mão no seu braço. Não me enxotou, embora o tivesse sentido sobressaltar-se com o meu toque.
- Por favor, não desistas - pedi. - Por favor, deixa-nos ajudar-te.
- Contas-te entre os meus leais servos, Caitrin? - Não olhou para mim.
- Se me aceitares - sussurrei.
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- Não vejo a necessidade de discutirmos esta situação - argumentou Anluan pouco depois. Os membros da casa estavam sentados, como habitualmente, em torno da mesa
da ceia, mas ninguém estava a comer a refeição que Magnus preparara apressadamente. - Mesmo que não estivesses sobrecarregado com a hoste, passou-se demasiado tempo
desde que um chefe tribal de Whistling Tor teve a confiança da sua região e da sua gente. Seriam necessários anos para reconquistar essa confiança. Eu disponho apenas
de vinte e um dias. É possível que as pessoas das minhas povoações prefiram o governo normando ao actual.
- Tretas - disparou Rioghan. - Não reparaste em Tomas e nos amigos dele lá em baixo, a tremerem dentro das botas quando me viram e no entanto a aguentarem-se firmes?
Aquelas pessoas podem não ter uma boa opinião a teu respeito, Anluan, mas sabem que és do mesmo tipo que eles. Nenhum homem de Connacht quer que um grupo de estrangeiros
de cotas de malha venha mandar nele.
- É bem verdade - acrescentou Magnus, antes de Anluan poder expor um argumento contraditório. - Por cada passo que deres para encurtar a distância que vos separa,
o mais provável é veres outro a ser dado na tua direcção. É essa a minha opinião. Mas tens razão em relação a uma coisa. O tempo é curto.
- Demasiado curto - insistiu Anluan.
- Quanto a isso - interveio Eichri -, é óbvio que os normandos esperam que compareças a esta reunião em pessoa. É uma pena que Stephen de Courcy não retribua a cortesia.
Poderíamos aproveitar a oportunidade para nos livrarmos do miserável antes de a situação chegar ao estado de guerra. Interpreto as palavras da mensagem com o significado
de que se não compareceres quando o conselheiro dele chegar, Lorde Stephen assumirá isso como uma capitulação. Acredito haver um aspecto desta situação que devemos
clarificar e eu ofereço a minha assistência.
- Que aspecto? - O tom de Anluan não era encorajador.
- Qual o papel do nosso próprio Rei Supremo nesta questão? Como pode um tal acto de agressão ser sancionado no território de Uí Conchubhair? Talvez Ruaridh não saiba
nada deste assunto. Talvez, se soubesse, providenciasse apoio. Devíamos pelo menos perguntar.
No silêncio que se seguiu, considerei o tempo que poderia levar a enviar uma mensagem à corte do Rei Supremo e trazer de volta uma resposta, e qual o membro do nosso
pequeno séquito que poderia ser dispensado para realizar esta tarefa.
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- Ficarias espantado com o que se pode descobrir no Mosteiro de São Criodan - continuou Eichri. - O actual abade, abençoado seja o seu coração curioso, tem um dedo
em muitas partes. Posso viajar até lá e voltar muito mais depressa do que Magnus. Dá-me a tua permissão para partir e descobrirei se uma abordagem a Ruaridh Uí Conchubhair
poderá dar fruto.
- O Rei Supremo vir em auxílio do chefe tribal de Whistling Tor? - O tom de Anluan era incrédulo. - Estarias a perder o teu tempo.
- Não há necessidade de ir. - Era o primeiro contributo de Muirne para a discussão; sentara-se composta no seu lugar, a sua expressão calma. - Eichri não precisa
de ir ao Mosteiro de São Criodan e Anluan não precisa de falar com os normandos. Whistling Tor está à margem. Há muito tempo que assim é.
- E quando Stephen de Courcy e o seu exército bem treinado subirem o monte? - perguntou Magnus.
- Encontrarão a hoste - respondeu Muirne. Era óbvio que, para ela, esta era a única resposta de que precisávamos.
Um silêncio pesado.
- Não é assim tão simples, pois não? - contribuiu Olcan.
- Ela tem razão em relação a isso. - Estava relutante em apoiar os argumentos simplistas de Muirne, mas vira a forma como a hoste expulsara Cillian do Tor. Sabia
o terror que ela exercia sobre as mentes das pessoas locais, um pavor que permanecia mesmo naqueles que nunca tinham visto a força espectral em primeira mão. - Poderia
um encontro com a hoste dissuadir Lorde Stephen da ideia de se querer instalar nesta região?
- Não podemos ter a certeza disso - respondeu Rioghan. - E porque não podemos estar certos, o risco de o tentar seria demasiado elevado. - Olhou para Anluan. - Qualquer
comparência da hoste daria a Lorde Stephen uma justificação para se instalar na região pela força. Poderia proclamar estar a livrar as pessoas da região de um perigo
que as ameaça há gerações.
- É prematuro falar de tais possibilidades. - O tom de Anluan não permitia argumentos. - Só podemos planear até à altura desta reunião ou conselho. Presumo que pretendam
realizá-la lá em baixo na povoação. Não posso ir lá abaixo. Isso colocaria em perigo as pessoas daqui e do resto do distrito. E não permitirei que os emissários
de Courcy venham cá acima.
- Anluan - disse eu -, não podes permitir que Lorde Stephen entre e leve tudo.
- Se tens uma solução, Caitrin, deves expô-la - desafiou Muirne.
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Inspirei profundamente, para me acalmar.
- Magnus - perguntei -, quanto tempo passou desde que a hoste saiu do monte? Quanto tempo passou desde que cruzaram aquela linha fronteiriça? - Os registos de Nechtan
e de Conan estavam presentes na minha mente: o alvoroço destrutivo, a dilaceração e o estropiamento, a carnificina e a morte. - Já se passaram alguns anos, não é?
Dez anos? Vinte? Cinquenta?
- Não discutiremos mais este assunto - interrompeu Anluan, com brusquidão. De repente o seu rosto ficou cor de cinza, o seu maxilar estava cerrado.
No silêncio que se seguiu, Magnus olhou para baixo para o seu prato. Eichri e Rioghan fingiram comer. Olcan levantou-se para ir ver o cão. Sentia os olhos de Muirne
pousados em mim.
- Mas, Anluan... - comecei.
- É irrelevante! - disparou Anluan. - Não se pode permitir que a hoste deixe o monte. Sob qualquer circunstância. Isso significa que eu não posso deixar o monte.
Não me ouviste, Caitrin? Eu disse que não discutiríamos mais este assunto!
Passado um momento, eu disse:
- Pensas que se não falares de um problema ele acabará por desaparecer?
- Eu poderia salvar o Tor e os seus habitantes à custa da povoação e de todos os que lá moram. - A voz dele era gelada, os seus dedos apertavam-se em torno de um
cálice do qual não bebia. Lutei para ver nele o homem cuja coragem e a gentileza tanto me tocaram depois do ataque de Cillian. Ele tem medo, pensei de repente. Quer
travar esta luta, mas pensa que nos desiludirá a todos. Acredita que irá destruir tudo o que ama.
- Qual seria a tua escolha, Caitrin? - continuou ele. - Preservarias a fortaleza e o seu miserável chefe tribal, já para não falar dos membros leais à sua casa,
à custa de umas centenas de homens, mulheres e crianças, umas quantas quintas, umas quantas cabanas? Poderíamos salvar a região do domínio normando. Se soltar a
hoste para lá dos confins do Tor, esta porá em fuga e aos gritos Lorde Stephen e os seus homens. Ou ele poderá marchar sobre nós com mais homens do que o desconcertante
exército de Whistling Tor pode combater. Seja como for, não restariam muitas pessoas vivas depois de tudo terminado. Qual seria a tua escolha?
Levantei-me.
- A escolha não é minha - proferi, obrigando-me a respirar devagar. - Desculpem-me, mas vou deitar-me. - Encostei um pavio ao lume e acendi uma vela. Peguei na trouxa
que deixara no banco essa tarde:
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os restos do vestido de Emer com Róise embrulhada neles. - A mim parece-me que o que aqui se precisa é de liderança.
Anluan levantou-se. Vi-o juntar as mãos com força para as acalmar, a mão esquerda por cima da direita. Reinava o silêncio. Até o som do mastigar de Fianchu se extinguiu.
Enquanto caminhei para a porta, o chefe tribal de Whistling Tor falou para as minhas costas.
- Esperas demasiado de mim - proferiu, e não ouvi raiva na sua voz, apenas uma tristeza amarga. - Eu não sou um líder.
És sim, pensei enquanto caminhava pelos aposentos vazios e pelas passagens enganadoras da fortaleza, desviando o meu olhar de um espelho a um canto, de outro na
parede, de um terceiro apoiado de esguelha em cima de um banco partido. Podes ser, se acreditares em ti.
Abri a porta do meu quarto e encontrei a criança-fantasma à minha espera no interior. Os olhos dela dirigiram-se imediatamente para a trouxa que eu trazia nas mãos.
- Já está bem? - perguntou ela.
- Eu mostro-te. - Desdobrei o vestido estragado, retirei a boneca remendada e coloquei-a em cima da cama. - Vou fazer uma cama para ti aqui no chão. Penso que ficarás
suficientemente quente. - Atarefei-me a estender uma capa e um cobertor e a enrolar um vestido para fazer de almofada. Quando me voltei para olhar para a criança,
as suas pequenas feições estavam cheias de um tal anseio que os meus olhos se encheram de lágrimas. Estava ajoelhada junto à minha cama, olhando para o rosto bordado
de Róise. Um dedo magro afagava a orla da nova saia que eu fizera para a boneca.
- Podes pegar-lhe ao colo, se quiseres.
Ela pegou em Róise com ternura; embalou-a com tanta gentileza como qualquer mãe faria a um bebé precioso. Sussurrou-lhe uma canção de embalar:
- Oo-roo, meu bebé...
- Teríamos ficado mais quentes na cozinha - comentei, falando mais para sossegar os meus pensamentos irrequietos. A amargura de Anluan deixara-me ansiosa. A sua
disposição mudava do dia para a noite sem aviso. Era uma grande desvantagem para um chefe tribal ter a sua capacidade de agir à mercê de um temperamento tão volátil.
E se Muirne tivesse razão e ele não conseguisse mudar? - Pelo menos lá em baixo há um fogo.
Os olhos da criança reviraram-se, sobressaltando-me, o pequeno corpo ficou rígido.
- Não! Fogo, não!
- Está tudo bem, chiu, pequenina. - Dirigi-me para ela, agachando-me para a abraçar. - Não há nenhum fogo aqui. E o que há na cozinha
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éum fogo seguro, na lareira. Vê a cama bonita que fiz para ti. Gostarias de deitar Róise?
Ela aconchegou-se debaixo do fraco calor proporcionado pelo cobertor, com a boneca apertada de encontro ao peito.
- Canta-me uma canção - pediu ela. Era a última coisa que me apetecia fazer.
- Está bem. Fecha os olhos. - Sentei-me no chão ao lado dela, apertando o xaile à minha volta e perguntando-me se os outros teriam continuado a discussão sem mim.
Fiz uma tentativa para cantar a canção da senhora e do sapo, omitindo as partes indelicadas. A menina deixou-se ficar deitada, quieta, com as longas pestanas pálidas
a acariciarem a sua pele tom de pérola. Como estava fria! Era como se o Inverno a tivesse tocado por dentro.
Chegara ao último refrão quando vi uma luz bruxuleante lá fora na galeria e ouvi passos aproximarem-se. Magnus apareceu à entrada da porta.
- Vim só ver se estava tudo bem. - Os olhos dele abriram-se muito. - Vejo que tens companhia.
- Estou bem, obrigada, Magnus. Peço desculpa por ter abandonado a discussão.
A luz fraca, não conseguia ver a expressão dele com clareza.
- Não faz mal. Olcan pediu-me que te dissesse que já manda o Fianchu para cima. Ouvi dizer que tiveste outro tipo de guarda à tua porta hoje.
- Quem te contou? - Tanto quanto sabia, ninguém estivera ali enquanto Cathaír estivera de serviço.
- As notícias viajam depressa. Todos eles sabiam disso: Eichri, Rioghan, Muirne.
- Magnus, lamento ter perturbado Anluan outra vez. Gostaria tanto que ele... - A minha voz morreu. Anluan tinha motivos para estar zangado comigo. Queria que as
coisas fossem diferentes. Queria que ele fosse o homem que eu vira no pátio a enfrentar Cillian. Ali, na quietude do quarto, percebi o quanto isso era irrealista.
O que ele enfrentava naquele momento não era um bando de rufias. Era um senhor normando, com todo o poder e a autoridade que isso implicava. Era a força formidável
dos homens de armas que um tal senhor provavelmente teria ao seu dispor. O que queria eu: que Anluan perecesse, levando as pessoas da floresta e da povoação com
ele, só para me provar que sabia ser um homem? - Ele disse-nos para não discutirmos o assunto - comentei, com profunda tristeza. - Mas eu não consigo pensar noutra
coisa.
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Magnus cruzou os braços musculados. Não avançara para além da entrada.
- Já passámos por muito aqui, sabes. Tempos terríveis, tempos de dor. Nunca pensei dizer isto, Caitrin, mas talvez este seja mesmo o fim. Whistling Tor não tem guerreiros,
não tem recursos, nem sequer tem a confiança da sua gente para o apoiar. Ele sabe o que deve fazer, mas os riscos são elevados. Se sair do monte, ainda que apenas
o tempo suficiente para caminhar até à povoação e participar no conselho, coloca tudo o que ama em perigo. Supondo que ele o faz e que desafia Lorde Stephen. Ficará
comprometido com um conflito armado. Onde está o exército dele? - Agitou uma mão no sentido da floresta. - Só os tem a eles, e sabemos bem o que aconteceu quando
os antepassados dele os tentaram levar para o campo de batalha.
- Tem de haver uma outra forma de olhar para esta situação - insisti. - Recuso-me a acreditar que não haja uma solução. - Mas, não me acusara Anluan de ter uma esperança
persistente, uma esperança que via possibilidades onde estas não existiam? - Magnus, se Eichri e Rioghan podem sair do monte sem que tal traga consequências medonhas,
não significa isso que os outros poderiam fazer o mesmo, dadas as condições certas? Eichri acabou de se oferecer para ir ao Mosteiro de São Criodan que fica distante
de Whistling Tor.
- Eichri e Rioghan são diferentes.
- Mas nem sempre foram diferentes. Se eles puderam mudar, porque é que os restantes não podem?
Magnus parecia estupefacto.
- Com tempo suficiente e a vontade de o fazer, estou preparado para admitir que pudesse ser possível. Mas nós temos menos de uma lua.
Olhei para baixo, para a criança na sua cama improvisada. Pensei na expressão do olhar de Cathaír enquanto marchava de regresso à floresta, com a cabeça erguida.
- Anluan só precisa que eles permaneçam no Tor enquanto vai à reunião na povoação - insisti.
- E o que gostarias que ele fizesse quando chegasse a esta reunião? Ameaçasse os normandos com uma força de vinte aldeões com forquilhas nas mãos?
- Parece disparatado, eu sei. Mas talvez, se ele desse esse primeiro passo, as pessoas lá em baixo tivessem uma melhor opinião a seu respeito. Além de que Lorde
Stephen e os seus homens armados não virão para combater na Lua cheia. Não teria Anluan tempo para angariar apoio no distrito?
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Antes que Magnus pudesse comentar, Fianchu entrou alegremente no quarto e dirigiu-se imediatamente para a criança. Deu umas quantas voltas, conseguindo não a pisar,
e depois deitou-se gentilmente ao lado dela. A sua frialdade desconcertante não pareceu perturbá-lo, mas, assim como ela não era uma menina vulgar, ele não era um
cão vulgar.
- Vou deixar-vos em paz - despediu-se Magnus. Parecia que a nossa conversa chegara ao fim.
- Boa noite, Magnus.
- Boa noite, rapariga. Talvez de manhã possamos olhar para isto com outros olhos.
Uma chuva fina e persistente caiu sobre as torres e os jardins de Whistling Tor, fazendo poças nos cantos, deslizando pelas paredes de pedra, fazendo-me tremer enquanto
caminhava entre a cozinha e a biblioteca. A planta sangue-do-coração gerara três rebentos de flores, os carvalhos estavam vestidos de verde-claro. Eu contava os
dias enquanto passavam: vinte dias até os normandos virem; dezanove, quinze... Não apenas se aproximava esse momento, como também o primeiro dia de Outono. Só fora
contratada até então.
O turbilhão da minha mente era insuportável. Tentei mantê-lo afastado com o trabalho, mergulhando na minha tarefa com uma energia febril. Anluan passava a maior
parte do seu tempo fechado nos seus aposentos. Via-o ocasionalmente, imerso em qualquer conversa sombria com Magnus ou Rioghan, mas mal me dispensava um olhar. Não
vinha para a biblioteca, não se sentava debaixo do vidoeiro no jardim de Irial. Muirne levava-lhe as refeições num tabuleiro.
A noite, quando os meus pensamentos perturbados me mantinham acordada, saía para a galeria e olhava para o outro lado do pátio. Na escuridão das noites sem Lua,
Rioghan andava para trás e para a frente, no seu ritual nocturno. Do outro lado do lago e para além da pereira, via o brilho do candeeiro de Anluan. E sussurrava-lhe.
- Porque não falas comigo? Pensei que fôssemos amigos. Tinha saudades dele. Tinha saudades dos pequenos olhares que ele me dirigia, tinha saudades das suas conversas
estranhas, tinha saudades do seu sorriso assimétrico. Até os seus acessos de mau génio seriam melhores do que a sua ausência, do que aquele silêncio. Este estendeu-se
ao resto dos membros da casa, pelo que depreendi que Anluan lhes ordenara que não discutissem comigo a crise que se avizinhava. Queria ajudá-lo, queria falar com
ele, queria ser um ouvido atento. Mas nas raras ocasiões em que me cruzava com ele no pátio ou passava por ele num corredor,
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ele mostrava um semblante tão lúgubre e distante que não conseguia dirigir-lhe a palavra.
Precisava de mais tempo. Os documentos poderiam vir a revelar uma forma de banir a hoste para sempre e de libertar Anluan da maldição. Se não existisse hoste, ele
poderia criar laços com os chefes tribais vizinhos. Se não houvesse hoste, ele poderia transformar-se no líder que nascera para ser. E nessa altura, talvez tivesse
uma oportunidade de fazer frente aos normandos. Se ao menos eu conseguisse encontrar um feitiço de reversão. Tinha apenas quinze dias para o fazer.
Dia após dia, estava na biblioteca assim que havia luz suficiente para ler e ficava lá até quase à hora da ceia. Aos serões, trabalhava no meu quarto, fazendo uma
versão em irlandês das notas à margem de Irial em páginas de velino que cortara e cosera para fazer um minúsculo livro. Debruçara-me sobre tudo o que a biblioteca
tinha na caligrafia de Irial, mas os seus registos permaneciam incompletos. Se se passaram efectivamente dois anos entre a morte de Emer e a morte do seu marido,
deviam faltar alguns dos escritos de Irial. Ou teria ele deixado de fazer aqueles registos uma ou duas estações antes da sua morte? Talvez tivesse ficado demasiado
triste para ser capaz de fazer deslizar a pena sobre a página. A última anotação dele dizia:
Quingentésimo nonagésimo quarto dia. As folhas do vidoeiro caem, caem em espiral. As puras notas da cotovia ecoam no céu interminável. Existirá um sono sem sonhos?
Ao lê-lo, não pensei no desesperado Irial, mas no filho dele, e analisei a natureza do amor. Olhara em tempos para Anluan no jardim e vira um príncipe encantado
preso numa teia escura de feitiçaria. Mas aquele não era um príncipe de uma história antiga. Anluan era um homem de carne e osso, com as virtudes e as falhas de
um homem. As feridas de que Magnus me falara, as mágoas que o passado lhe deixara, faziam parte dele tanto como a perna coxa e os ombros assimétricos. Faziam dele
o homem que ele era.
Imaginei o calor do corpo dele pressionado contra o meu, o seu rosto perto do meu enquanto eu me inclinava por cima dele para guiar a pena. Pensei no quanto me magoava
ser posta de parte; mais do que devia, tendo em conta que era apenas uma escriba contratada até ao final do Verão. Eu sabia que, acontecesse o que acontecesse, deixar
aquele lugar me partiria o coração.
A minha tradução dos documentos de Nechtan cobria agora uma pilha considerável de folhas de pergaminho. Guardava-as entre duas tábuas de madeira de carvalho polida
que Olcan fizera para mim, com uma tira de couro a mantê-las unidas. Entre os longos dias de trabalho
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e a minha ansiedade constante, fiquei mais magra. Os meus vestidos pendiam, soltos, do meu corpo. Nas raras ocasiões em que me olhava ao espelho - geralmente por
descuido - e este me devolvia um reflexo verdadeiro, não via a pessoa redonda e rosada que Eichri chamara a encantadora senhora de uma história, mas uma criatura
pálida com manchas escuras debaixo dos olhos, o sobrolho franzido, o cabelo puxado para trás de forma prática por um lenço. Recordei a cruel avaliação que Nechtan
fizera da sua mulher: Em breve, muito em breve, será uma velha feia. Perguntei-me o que teria acontecido à pobre e bem-intencionada Mella depois da grande experiência
do seu marido ter corrido tão desastrosamente mal.
Não esperara sentir-me sozinha, mas sentia. A maior parte dos dias, a menina-fantasma fazia-me companhia, sentando-se no chão, no canto onde os livros de Irial estavam
guardados, fazendo jogos misteriosos com Róise. Cathaír assumira a responsabilidade de guardar a entrada do meu quarto durante as horas do dia e Fianchu ficava de
guarda durante a noite.
Aos serões, as pessoas da casa ainda se reuniam, sem o seu líder e a sua sombra. Mas a hora da ceia não era o que em tempos fora. Estávamos todos desalentados e
perturbados. Olcan e Magnus trocavam uma ou duas palavras acerca do trabalho que planeavam fazer no dia seguinte. Rioghan sentava-se em silêncio, sem o seu habitual
parceiro, pois An-luan dera finalmente permissão a Eichri para visitar o Mosteiro de São Criodan. O meu apetite desapareceu. Comia apenas porque sabia que tinha
de o fazer.
Doze dias para a Lua cheia. Entrei na biblioteca e encontrei um boião de tinta entornado e uma poça de tinta preta por cima das páginas que completara e deixara
na minha mesa de trabalho na noite anterior. A transcrição estava estragada. Enquanto limpava a tinta entornada, tentei convencer-me de que se tratava de um acidente,
mas não consegui. Quem poderia ter estado ali? Quem entraria ali à noite? Com uma sensação arrepiante de terror, reconheci que se tratava de um aviso. Mas da parte
de quem e porquê? Estaria a aproximar-me do cerne da minha busca? Se Nechtan fora realmente poderoso, teria colocado um feitiço nos seus documentos para os proteger
de olhos curiosos. Se conseguira fazer aqueles espelhos cruéis, conseguiria certamente fazer isso. Pensei no que viria a seguir. Seria pior do que a destruição do
fruto de um dia árduo de trabalho, estava certa.
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A criança-fantasma olhava para mim, com Róise apertada nas suas mãos. Os seus grandes olhos estavam receosos, como se tivesse lido os meus pensamentos.
- Está tudo bem - disse-lhe. - É apenas alguma tinta entornada. Mas talvez seja melhor subires e passares o dia de hoje com Cathaír. Estou certa de que se sente
sozinho, todo o dia sem Companhia.
Dez dias para a Lua cheia. Eichri regressou com um carregamento de velino excelente e com a infeliz notícia de que uma das filhas de Lorde Stephen estava noiva de
um parente de Ruatidh Uí Conchubhair. Não valia a pena insistir no assunto. Aquela notícia significava que o Rei Supremo não interviria a favor de Anluan.
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Quebrei a minha regra auto-imposta de não usar candeeiros na biblioteca e trabalhei durante a hora da ceia. Li até as minhas pálpebras se começarem a fechar e os
padrões da caligrafia forte de Nechtan se esbaterem e desfocarem na página que tinha diante de mim. De tempos em tempos, sentia presenças nas sombras para lá do
círculo quente da luz do candeeiro, formas que se moviam e flutuavam: a hoste desassossegava. O meu progresso era lento. Talvez estivessem a ficar zangados. Por
fim, desisti e fui para a cama. Caí num sono exausto e sem sonhos, do qual só acordei de madrugada. Chovia lá fora. Fianchu já ali não estava e a porta estava ligeiramente
aberta. A cama de cobertores que ele partilhava com a menina-fantasma estava no chão, amarrotada. Não havia sinal da menina.
Senti-o antes de o ver: havia algo de errado, algo que não estava ali, para além destas ausências. Uma sombra que se movia. Algo por cima da minha cabeça, baloiçava,
para a frente e para trás. Olhei para cima.
Roise pairava no ar, a sua forma inerte suspensa pelo pescoço. O meu coração deu um salto. Pensara... por um momento pensara... mas as pessoas não podiam morrer
duas vezes, mesmo que as suas formas fantasmagóricas fossem mais substanciais do que seria de esperar. Mas um fantasma pode sofrer. Aprendera isso com o recontar
angustiado de Rioghan do seu passado, com os olhos irrequietos de Cathaír e com a forma como a menina se agarrava àquele tesouro que em tempos fora meu e que agora
era dela. Queria que a boneca fosse tirada dali antes que ela a visse. Naquele instante, imediatamente; aquela visão fazia-me tremer. Olhei para a porta aberta.
Talvez já a tivesse visto. Estava demasiado alta para eu lhe chegar. Quem o fizera? Quem é que podia ter tal descaramento enquanto eu dormia a apenas três passos
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de distância? Quem poderia passar por Fianchu? Apenas alguém da hoste. Mas porquê? Eles queriam que eu fosse bem-sucedida, queriam que eu encontrasse uma forma de
os mandar de volta. Estes eram actos de maldade vã, sem qualquer propósito.
Encontrei a criança na galeria, encolhida a um canto, a chorar. Não havia mais ninguém à vista, nem ali em cima, nem lá em baixo no pátio. Dirigi-me para a menina
e agachei-me ao lado dela.
- Estás bem? Não te encontrava. Onde está Fianchu?
Ela estava enroscada sobre si mesma, com o corpo a tremer com os soluços, o seu cabelo pálido estava húmido devido à chuva que entrava através das aberturas por
cima do pátio.
- Pequenina? Onde está o cão? O que aconteceu no quarto?
- Bebé - murmurou com um soluço e deixou que a colocasse no meu joelho. - O bebé desapareceu.
Talvez ela ainda não tivesse visto. Levantei-me, segurando-a ao colo.
- Rioghan? - chamei suavemente. - Estás aí em baixo? Preciso de ajuda.
Naquele momento, Fianchu subiu as escadas desajeitadamente até à galeria, com o rabo a abanar e com uma expressão que não era minimamente contrita. Não o podia culpar.
Ele devia ter aproveitado a oportunidade de sair para se aliviar quando quem quer que tenha sido deixou a porta aberta. Alguém em quem ele confiava? Um membro da
casa? Nem queria pensar nisso.
- Caitrin. - Rioghan estava ali; mal precisara de elevar a voz para o chamar. - O que se passa? Estás tão branca como um lençol.
- Há algo no meu quarto que eu gostaria de ver... ajustado, antes de voltarmos para lá - pedi eu, olhando para a criança que tinha nos braços. - Quando acordei descobri
que tive uma visita. Podias resolver o assunto, por favor, Rioghan?
Ele entrou no quarto sem dizer palavra e eu esperei, embalando a menina e murmurando-lhe palavras ao ouvido. Passado pouco tempo, Rioghan voltou a sair. Estava a
enrolar o arame num rolo.
- Já podes levá-la para dentro - assegurou ele. - Terás de fazer alguns remendos, Caitrin. O objecto em questão foi quase rasgado em dois.
- Obrigada. - Por qualquer motivo, eu própria estava quase a chorar.
- Tens de contar a Anluan - pediu Rioghan.
- De nada valeria. - Não consegui evitar que a minha voz tremesse. - Ele nem sequer fala comigo nos dias que correm.
- Há uma razão para isso, Caitrin. A tua presença aqui fá-lo hesitar. Fá-lo sopesar os assuntos de maneira um pouco diferente.
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Deixei a menina ao cuidado de Cathaír novamente. Pareciam dar-se bem, ele olhando por ela com uma tolerância gentil e ela contente com a companhia dele, embora soubesse
que preferia a minha. Achei que ela ficaria mais segura com ele do que comigo. Não me restavam dúvidas de que o que acontecera não fora feito para perturbar a criança,
mas para me servir de aviso. Não te metas mais ou magoarei aqueles que te são queridos.
Não havia nada fora do lugar na biblioteca naquela manhã, embora tivesse sustido a respiração quando lá entrei, à espera de encontrar outra surpresa desagradável.
Tudo estava tranquilo; para lá da janela, a chuva pingava das árvores para o jardim de Irial.
Com um suspiro, instalei-me para realizar a tarefa entediante de reescrever a transcrição que a tinta entornada estragara. Enquanto trabalhava, pensei na história
de Nechtan, que ia ganhando sentido à medida que ia conhecendo mais fragmentos. Nos anos que precederam o nascimento do seu único filho, tornara-se cada vez mais
obcecado com o seu vizinho Maenach, o chefe tribal de Silverlake. Começara com um comentário casual que se dizia que Maenach teria feito acerca de Nechtan e cresceu
gradualmente até atingir uma inimizade desproporcionada. Lendo nas entrelinhas, deduzi que a má vontade era muito mais acentuada da parte de Nechtan, pois a cena
que vira no espelho, na qual ele batera na sua mulher de forma tão cruel, não fora a única vez que Maenach tentara fazer as pazes. Houvera mensagens, tentativas
de conselhos, abordagens feitas ao Rei Supremo para que intercedesse. Cada uma delas fora interpretada pelo chefe tribal de Whistling Tor como parte de uma conspiração
contra ele. Só via inimigos à sua volta, mesmo na sua própria casa.
A relação com o seu outro vizinho, Farannán de Whiteshore - pelos meus cálculos, avô de Emer -, não fora tão conflituosa quanto a com Maenach, pelo menos nos primeiros
tempos. Depois, quando a hoste estava no monte, era óbvio que ocorrera um evento catastrófico. Nechtan não desperdiçara muitas palavras a descrevê-lo; senti que
até ele considerava os pormenores demasiado desagradáveis para os descrever com minúcia.
No seu frenesi caíram sobre o padre de Farannán. Rasgaram o homem membro a membro diante dos meus olhos. Outros pereceram de forma semelhante ou pior. Vi uma mulher
ser reduzida apouco mais do que osso lascado. Um clamor de vozes vindo de todos os lados: Chama-os! Em nome de Deus, controla os teus servos malvados! Não consegui
fazer a hoste obedecer. Tudo o que pude fazer foi cavalgar para casa. Onde eu vou, eles vão atrás. Nas nossas costas ficou um ossário.
Deixei-me estar sentada a olhar para a parede depois de ler esta passagem, uma das poucas que Nechtan escrevera depois de ter invocado a hoste.
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Perguntei a mim própria porque é que, mesmo diante de tais leituras, ainda acreditava que devia haver uma forma de Anluan atravessar aquela linha invisível no sopé
do monte sem lançar tamanha devastação sobre o distrito. Depois deixei a biblioteca e fui à procura de Eichri. Naquele dia, o espantalho de rosto verde estava no
jardim com chuva de Verão a pingar-lhe do capuz escuro da sua capa. Aproximei-dele.
- Procuro o irmão Eichri. Ele apontou em direcção à torre leste e depois fez o formato de cruz com as suas mãos magras. - Obrigada pela ajuda.
A chuva estava cada vez mais forte; o lago transbordara das suas margens para se estender sobre a relva luxuriante. Os patos amontoavam-se debaixo de um arbusto.
Corri em direcção à torre, levantando minha saia numa vã tentativa de manter a bainha enxuta. As minhas botas estavam encharcadas. Chapinhei até à porta da torre,
que estava aberta, e parei assim que ouvi cantar, suave, rico e profundo como o dobrar de um sino pesado ou os cânticos das criaturas das profundezas do mar, foi
assim que o som chegoou aos meus ouvidos; as vozes de homens em perfeito uníssono, transado um fluxo e refluxo melódico. As palavras eram latinas. Entoavam cânticos.
Fiquei ali um pouco, imobilizada pela surpresa que aquela beleza calma me causou. Quando a canção terminou, eu entrei. Não esperara encontrar uma capela em Whistling
Tor. Mas ali estava ela: uma câmara de pedra nua com uma estreita janela de vidro; o seu altar, uma laje sem adornos a suportar uma cruz rústica de madeira de carvalho.
Uma luz gentil tocava os rostos dos cinco irmãos que ali estavam ajoelhados, naquele momento, silenciosos, com as mãos unidas em oração. Aquelas mãos - tão magras,
tão transparentes, apontadas para o céu - contavam a sua própria história. Aqueles santos irmãos pertenciam, não à comunidade de São Criodan ou a qualquer outra
fundação monástica, mas à hoste.
O sexto monge não estava numa pose de penitência. Eichri estava ao fundo da capela, de braços cruzados. Não era um participante, mas um observador. Estava acostumada
às expressões do seu rosto ossudo: cínicas, divertidas, inquisidoras, maliciosas. No momento antes de me ver, vi algo novo no rosto dele. Era uma expressão que já
vira por vezes nas feições descoradas da criança-fantasma: o anseio por um lar que já não existia.
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- Eichri - sussurrei, aproximando-me. - Posso falar contigo?
- Chiu! - sibilou um dos monges que rezava, sem voltar a cabeça. Eichri pegou no meu braço e dirigimo-nos à saída, parando junto aporta.
- Chove muito - observou ele.
- Chiu!
- Oh, céus. - Eichri levantou as sobrancelhas. - Corremos até à cozinha?
- Preciso de falar contigo a sós. - Tive uma ideia. - Escoltas-me ao aposento onde as roupas velhas estão guardadas, no topo da torre norte? Poderá lá haver um par
de botas, algo que me mantenha os pés secos.
- Com prazer, cara senhora.
Corremos pela chuva e depois prosseguimos o nosso caminho pela escada em espiral até ao aposento da torre. A chave estava na bolsa que eu trazia presa ao cinto;
a porta não abria. Descalcei as minhas botas encharcadas e usei-as para a forçar.
- Aqueles monges - disse eu. - Foram uma surpresa para mim.
- Porque ainda rezam? Porque mantiveram a sua fé?
Lutei para encontrar uma forma aceitável de dizer o que pensava.
- Na história de Whistling Tor, a hoste é identificada como sendo malévola. Demoníaca. Os demónios não cantam salmos.
Ele encolheu os ombros.
- É este outro dos assuntos proibidos por Anluan? Eichri, não aguento mais isto! Como podemos ajudá-lo se ele nem sequer quer discutir o problema? Eu gosto dele,
eu gosto de todos vocês! Não posso ficar de braços cruzados à espera que tudo se perca!
Eichri instalara-se no chão, com as costas encostadas à parede e as pernas estendidas. Cruzou os pés calçados com sandálias. Não havia nenhuma faísca de vermelho
ameaçador no seu olhar naquele momento, nenhum sorriso medonho nas suas feições magras.
- Tens algum plano? - perguntou. Finalmente, alguém estava preparado para ouvir.
- Não bem. É uma ideia, só isso. Poderias ajudar-me se respondesses a uma ou duas perguntas.
- Responderei, se puder, Caitrin. Estou preso à vontade de Anluan, tal como o resto da hoste. Se abordares um tópico sobre o qual ele me tenha proibido de falar,
não poderei responder, mesmo que tenha vontade de o fazer. Não deves esquecer-te de que não sou um homem vulgar. Aprendi a fazer de conta, tal como Rioghan e Muirne.
Representamos o papel de vivos tão bem que por vezes nos enganamos a nós próprios
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E acreditamos que ainda fazemos parte dos vivos. É um jogo perigoso. A nossa natureza limita a nossa capacidade de acção.
- E no entanto és capaz de viajar para além do Tor sem...
- Sem correr desenfreado? É verdade. Temos trabalhado essa habilidade ao longo dos anos, Rioghan e eu. Não tem sido fácil. Pensei no que ele me dissera enquanto
retirava umas chinelas bordadas da arca maior e as colocava de lado.
- Sempre gostei dessas chinelas - comentou Eichri. - Pertenciam a Emer.
- Desadequadas para a chuva. Além disso, da última vez que usei as roupas de Emer, alguém entrou no meu quarto e as esfarrapou. Talvez deva deixar as coisas dela
onde estão.
Seguiu-se um silêncio estranho. Olhei para o monge. Estava de sobrolho franzido.
- Esfarrapou? Quando foi isso?
- Há algum tempo. Já aconteceram outras coisas mais recentemente. Avisos. Pelo menos é o que parecem ser.
- Devias ter falado com Anluan sobre isso, Caitrin.
- Foi o que Riogan me disse. Mas agora tenho um guarda. Um da hoste.
Não havia botas no baú maior. Abri o mais pequeno e comecei a procurar.
- Cattair?
- Eu confio em Cathaír. Como confio em ti, Eichri. Isso lembra-me a minha questão. Quando vi a hoste pela primeira vez, a sair da floresta para aterrorizar Cillian,
tu lideravas os outros. Se não soubesse anteriormente que eras um amigo, teria enlouquecido de medo. Em vida, eras um monge guerreiro?
Ele sorriu abertamente.
- Cresci numa quinta. Com dois anos de idade já sabia montar. Os outros pormenores são apenas para fazer vista. O efeito geral aterroriza realmente o inimigo.
- Isso quer dizer que não terias realmente trespassado ninguém? Não terias feito o teu cavalo empinar-se e atingir alguém com os cascos?
- Trespassar um homem? - Ele parecia profundamente chocado. - Claro que não. Não posso falar pelo cavalo. Encontrei-o a veranear na floresta há alguns anos atrás
e gostámos um do outro. O que ele faz é um assunto dele.
- A hoste seguiu-te. Conduziste-os para a batalha.
- Anluan por vezes pede-nos, a mim e a Rioghan, para agirmos como líderes. Só no monte, claro.
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- Já alguma vez tentaram para lá da fronteira?
- Ah... - O monge levantou as mãos, com as palmas para cima e abanou a cabeça exibindo um pequeno sorriso.
- Se essa é uma questão proibida, que tal esta: tu e Rioghan poderiam manter a hoste controlada enquanto Anluan vai lá abaixo à povoação para falar com os emissários
de Lorde Stephen? Ele só precisaria de sair do monte por um breve período de tempo. Magnus poderia ir com ele. Olcan e Fianchu poderiam ficar aqui para vos ajudar.
Eichri nada disse.
- Não existirão outros entre a hoste que também poderiam ajudar? Cathaír, por exemplo, e alguns dos outros guerreiros, os mais velhos? - E quando ele continuou a
não comentar, eu acrescentei: - Se aqueles monges podem cantar o nome de Deus, não podem ser as criaturas demoníacas que as pessoas dizem que eles são. A menina
que dorme no meu quarto é uma criança inocente. Cathaír encontra-se perturbado por memórias obscuras, mas ainda sente orgulho num dia de trabalho. Poderia ser feito,
Eichri. Poderíamos ao menos sugeri-lo a Anluan. Se ele nos escutasse.
- Não achas que essa ideia possa já ter ocorrido a Anluan, Caitrin? - O tom de Eichri era gentil.
- Não sei o que pensar! - respondi, de uma forma um tanto ou quanto selvagem.
- Aposto que neste momento ele está a amaldiçoar o dia em que te deixou subir o monte.
O comentário abalou-me.
- Porquê?
- Oh, vá lá, não fiques perturbada. Eu queria dizer que ele está a amaldiçoar o dia em que vieste para cá porque não o deixas desistir. Encheste a sua mente de possibilidades
e ele está com pavor de não as conseguir realizar.
Revolvi a segunda arca em silêncio, pensando em Anluan, algures na fortaleza, a meditar sobre a mudança indesejada que eu trouxera à sua vida. A minha tolice estava
à vista. Assumira mais do que tinha capacidade para cumprir. Perdera a noção do que era possível. Intrometera-me no que me ultrapassava e só trouxera problemas.
- O facto é que - afirmou Eichri -, se não tivesses vindo, Stephen de Courcy teria continuado a querer Whistling Tor. Os seus emissários teriam continuado a vir
na Lua cheia e nós continuaríamos a não estar preparados para eles.
- Consegues ler mentes?
- Consigo ler rostos, gestos, olhares. O que sugeres é, pelo menos, possível. Mas valerá o risco se tudo o que se conseguir for uma declaração
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desafiadora do chefe tribal de Whistling Tor de que não entregará a sua terra sem lutar? Não faz qualquer sentido se Anluan não conseguir apoiar essa declaração
com a defesa armada do seu território. Ele não vai usar a hoste para travar uma guerra. E não penso que ele planeie dar-te a oportunidade de apresentar quaisquer
ideias, mesmo que sejam boas. Não te quer envolvida nesta situação.
- Estou a traduzir os documentos de Nechtan - frisei. - Já estou envolvida.
- Caitrin, o assunto é mais complicado do que pensas. Eu posso não ser malévolo. Rioghan, o teu guarda, a tua menina e a maioria das pessoas que estão lá fora no
monte poderão não ser mais demoníacas do que qualquer homem ou mulher da povoação. Mas há uma força entre nós que tem más intenções, algo que pode fazer mudar a
maré se Anluan não estiver cá para o impedir. Não posso dizer-te a sua natureza, uma vez que não sei qual é, nenhum de nós sabe. O facto é que, se a hoste fugir
ao controlo do chefe tribal, ninguém será poupado. Ninguém. É esta influência maligna que testa a força de Anluan, dia após dia, é ela que o desgasta e que o enfraquece.
Já senti o seu poder puxar por mim. É forte. Temo-a muito. Oh, encontraste um par de botas. Retirei-as da arca. Eram de bom cabedal e pareciam suficientemente resistentes
para lidar com a humidade e suficientemente confortáveis para usar dentro de casa enquanto trabalhava. Não me lembrava de as ter visto aquando da minha última visita
ao aposento. Enquanto me sentava na arca fechada para as experimentar, os meus olhos viram o pequeno espelho pendurado na parede.
- Tenho outra pergunta para ti - arrisquei -, uma vez que cá estás desde o tempo de Nechtan. Foi ele que fez todos os espelhos que se encontram aqui em casa? São
todos malignos?
- Não te sei dizer. Pode um objecto assim ser bom ou mau? Não será mais uma questão de quem o usa e como?
As palavras de Eichri ficaram suspensas no silêncio que nos separava. Pareciam importantes, como se houvesse uma verdade que lhes fosse inerente e estivesse muito
para além do seu significado imediato.
- Existe um espelho na biblioteca que está tão cheio da feitiçaria de Nechtan que só posso pensar nele como sendo maligno - disse devagar. - Os que estavam no salão
assustaram-me. Vi-me como uma mulher idosa e... vi outras coisas também, coisas más. Mas aquele que está ali na parede parece ser diferente. Já me deu um conselho
útil. Ficaria muito surpreendida se tivesse sido Nechtan a fazê-lo.
Eichri levantou-se e aproximou-se para o ver melhor.
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- A moldura é de madeira de carvalho antiga - constatou ele. - Não vejo muito no reflexo, apenas céu azul. Um conselho, disseste. O objecto falou contigo?
- Não em voz alta, mas eu ouvi-o. Este aposento guarda as memórias das mulheres que viveram em Whistling Tor, mulheres cujas vidas tiveram mais do que a sua quota-parte
de má fortuna. Talvez o pequeno espelho pertencesse a uma delas.
- É capaz de ser muito, muito antigo. Porque não o levas lá para baixo e o mostras a Olcan? Ele está cá há mais tempo do que qualquer um de nós.
Considerei a ideia enquanto me levantava e caminhava um pouco com as botas. Serviam-me na perfeição; talvez também elas tivessem pertencido a Emer. Parei em frente
do pequeno espelho e olhei directamente para ele.
Retira-me com cuidado. E leva mais algumas coisas, já que aqui estás. Não tens um vestido que precisa de ser remendado? Escolhe com cuidado. Lembra-te de todas elas.
- Ouviste? - Apesar do que acontecera da última vez, não esperara que o artefacto voltasse a falar.
- O quê? - perguntou Eichri.
- A voz. O espelho.
- Talvez fale apenas com mulheres. Ah, vais levá-lo. Precisas de ajuda?
Pareceu-me apropriado ser eu própria a levar o espelho, mas dei a Eichri uma pilha de outros artigos para levar para baixo. Lembra-te de todas elas. Tanto quanto
sabia, tinham existido apenas três: Mella, Líoch e Emer. Havia uma faixa de lã cinzenta escura que parecia condizer com os vestidos antigos de Mella e passei-a a
Eichri. Peguei numa saia que fora certamente de Líoch - era demasiado pequena para mim - pensando que podia combinar o tecido com o do vestido estragado de Emer
para fazer um traje capaz. Dobrei-a e passei-a ao meu companheiro.
- É tudo - concluí, fechando as duas arcas e pegando novamente no espelho.
- Magia feminina? - perguntou Eichri com um sorriso.
- Não tenho uma ponta de magia em mim, Eichri.
- Não conheces o teu próprio poder - riu-se ele. - Provocaste algumas mudanças por aqui, Caitrin, mudanças que nunca pensámos ver neste lugar antigo e solitário.
- A que te referes?
- Ouvi dizer que trouxeste uma pequena boneca para Whistling Tor, um tesouro que contém o amor da tua família. E desde que a remendaste, contém também o da família
de Anluan.
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- Pareces estar muito bem informado. - Estava certa de que não era a isso que ele se referia quando falara de mudanças.
- Como já disse antes, as notícias espalham-se depressa.
- Seja o que for, magia ou instinto, sinto que está certo. Falaste de poderes perigosos dentro da hoste, de uma força mal intencionada. Usarei tudo o que puder para
a contrariar. Houve mulheres que sofreram, aqui em Whistling Tor, por causa dos actos malévolos de Nechtan. É altura de alguém se lembrar da força delas. Se isso
é magia feminina, há muito tempo que precisava de ser posta em prática.
- Se não estivesse tão carregado, aplaudir-te-ia, Caitrin. Esperemos que consigas fazer um milagre.
- Poderias pedir àqueles irmãos que fizessem uma ou duas preces para ajudar - pedi, enquanto abandonava o aposento da torre. - É de um milagre que Anluan precisa.
CAPÍTULO OITO
Sete dias para a Lua cheia. Sentia-me tentada a marchar até aos aposentos de Anluan na torre sul, bater à porta com força e insistir que ele saísse para falar comigo.
É claro que não fiz nada que se parecesse. As suas dificuldades eram muito superiores às que a minha experiência me dera a conhecer e não iria ajudá-lo se perdesse
o meu autocontrole.
O espelho com a moldura de madeira de carvalho estava pendurado na parede do meu quarto. A criança adorava-o, examinando o seu reflexo com um vivo interesse, fazendo
caretas a si própria e até soltando um riso hesitante perante uma imagem à qual não estava acostumada. Para ela, este espelho parecia funcionar de uma forma comum.
Quanto à voz do espelho, não a ouvira de novo, mas sentia o artefacto como um companheiro e estava satisfeita por o ter trazido para o meu quarto. Parecia-me que
as sombras solitárias das mulheres que partiram já não estavam prisioneiras na torre, mas que partilhavam o meu próprio espaço, como se fôssemos irmãs.
Encontrei Muirne na cozinha quando voltava da latrina.
- Ouvi dizer que tiraste um espelho do aposento da torre, Caitrin.
- É verdade - admiti, mantendo o meu tom educado. Valeria a pena tentar conquistar o seu apoio? Ela era mais próxima de Anluan do que qualquer outra pessoa, embora
me parecesse que, nos tempos mais recentes, ele também a deixava de fora; nas raras ocasiões em que a vira, deambulava sozinha pelos jardins. - Espero que não tenhas
qualquer objecção.
- Não és livre de te servir daquilo que queres. Isso aproxima-se perigosamente do roubo.
A expressão do olhar dela preocupou-me. Dada a crise corrente, este assunto parecia trivial.
- As minhas botas estavam encharcadas - respondi. - Precisava de outro par. Foi isso que me levou à torre. Afinal, disseste-me que ninguém queria aquelas coisas
velhas.
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- Não te limitaste a trazer as botas. - Olhou-me de alto a baixo.
Vestira-me de coragem naquele dia, com a nova saia que fizera combinando o vestido esfarrapado de Emer com o traje rosa de Líoch. Não era uma peça de vestuário que
pudesse ter vestido nas ruas de Market Cross, mas sentia que trazia as outras mulheres comigo e isso parecia-me certo.
- Deves lembrar-te de como o vestido violeta estava estragado, Muirne. Penso que dei um bom uso a tecidos que caso contrário teriam acabado por se degradar na torre.
Quanto ao espelho, uma mulher precisa de um no seu quarto.
- Estes não são espelhos comuns, são... - Fez um gesto vago, como se não houvesse palavras adequadas para descrever as criações de Nechtan.
- Eu sei disso, mas este parece ser benigno. É útil, de manhã, quando me estou a vestir.
- Qual a importância da tua aparência? - Ela elevou as sobrancelhas.
- Pareces ter um certo orgulho na tua. - O meu olhar passeou pelo seu vestido impecavelmente engomado e pelo véu dobrado na perfeição.
- Sim, mas... - Encolheu delicadamente os ombros. Sim, mas tu és apenas uma escriba.
- O que eu trouxe emprestado foi tirado com respeito - expliquei-lhe. - Aquelas coisas que estão na torre são memórias das mulheres de Whistling Tor. Não quero que
essas mulheres sejam esquecidas. Ela pareceu frustrada.
- Não és uma das mulheres de Whistling Tor, Caitrin. Irás para casa no final do Verão.
- No final do Verão poderemos todos ter partido - contra-argumentei. - Muirne, os normandos virão dentro de alguns dias para falar com Anluan. Sei que lhe és muito
próxima. Poderias perguntar-lhe se ele está preparado para ouvir uma ideia minha?
- Uma ideia. Que ideia?
- Uma ideia de como ele poderia lidar com esta... visita. Uma forma de ele poder ir em segurança.
- Pensas dizer a Lorde Anluan como deve comportar-se? Engoli a minha primeira resposta.
- É claro que não. É ele o chefe tribal, tem de ser ele a tomar a decisão. É uma sugestão, apenas isso. Uma boa sugestão, que ele deve escutar. Poderias pedir-lhe,
por favor? Esta ameaça é real, Muirne. Não vai desaparecer.
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Ela pareceu encolher-se dentro de si própria, estreitando os olhos, apertando os lábios. Talvez ela compreendesse e tivesse tanto medo que negasse a verdade, até
mesmo a ela própria.
- Estás enganada - declarou ela. - Se empurrares Anluan para esta situação, vais trazer desastres para ele e para todos nós em Whistling Tor.
- Muirne, eu sei um pouco acerca dos normandos, tendo vivido no mundo exterior antes de vir para aqui. Mais para leste, eles já governam vastos pedaços de território.
Construíram fortalezas e trouxeram o povo deles para as habitar. E têm uma forma diferente de lutar, uma forma que os nossos chefes consideram difícil de combater.
Eles virão para Whisding Tor e, se Anluan não descer para falar com eles, regressarão com um exército. E nessa altura, sim, ele perderá tudo. Não queres que isso
aconteça, certamente.
Ela olhou-me directamente nos olhos e eu soube que cometera um erro, pois a expressão que vi neles foi a mesma que gelara as suas feições a primeira vez que a vira,
quando ela tentou dispensar-me antes mesmo de ser contratada.
- Não estás interessada nestes normandos, Caitrin. Só te interessas pelas tuas próprias necessidades. Graças às tuas interferências, Anluan está exausto, perturbado,
dividido pela dúvida. Provocaste danos indizíveis por mera ignorância. Não deves exigir-lhe mais. Foi sensato da sua parte colocar-te à parte, para que não possa
ser tentado pela tua voz, pelos teus argumentos idiotas, pelas tuas... Caitrin, há muito que vivo aqui. Conheço Anluan. Conheço Whistling Tor. O chefe tribal não
deve abandonar o monte. Essa é a simples verdade. Quanto às tuas sugestões, ele fica bem melhor sem elas, acredita. Já carrega fardos suficientes. - Voltou-se para
partir.
- Muirne, espera!
- Sim, Caitrin?
- Eu quero o que é melhor para ele - disse calmamente. - Todos queremos o que é melhor para ele. Não creio que esteja a ser egoísta.
Ela sorriu; os seus olhos permaneceram frios.
- Não quero perturbar o teu trabalho - proferiu, e foi-se embora. O meu trabalho. Era melhor que ela não soubesse o motivo pelo qual eu vestira aquele traje de muitas
cores, feito de magia feminina. Era melhor que ela não soubesse o trabalho que me esperava na biblioteca naquela manhã. Precisava de respostas e o tempo urgia. Naquele
dia, usaria o espelho de obsidiana.
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O meu coração batia acelerado. Um suor pegajoso fez a minha mão deslizar no trinco enquanto fechava a porta interior da biblioteca. Que documento usar? Queria mesmo
ver a hoste à solta, o caos sangrento do ataque aos membros da casa de Farannán, as pessoas a serem dilaceradas e devoradas? Se experimentasse isso, aprenderia sem
dúvida, de uma vez por todas, que não havia forma de domar a hoste. Se houvesse um registo da sua própria experiência, teria sido a minha escolha, mas até então
não descobrira qualquer registo da mesma, apenas registos do tempo que conduziu à fatal noite de Todos os Santos, a antecipação ansiosa, os preparativos tensos e
depois as observações insensíveis de Nechtan, anotadas mais tarde, perante os resultados do seu fracasso.
Caminhei até ao outro lado e fechei a porta, a que se abria para o jardim de Irial. Fiquei um pouco junto à janela, olhando para fora e tentando acalmar a minha
respiração. Queria ficar exactamente onde estava, olhando para o lugar encantador que Irial fizera no centro do seu mundo escuro. Mas não havia tempo.
De volta à mesa de trabalho, baixei-me para abrir o baú. Só havia um artigo dentro dele: a trouxa que era o espelho de Nechtan embrulhado num pano. Retirei-o. Não
parecia um peso morto, mas vivo, vibrante, perigoso. Pousei-o na mesa, ao meu lado, ainda coberto. Os meus dedos recusavam-se a escolher um documento. Fechei os
olhos, peguei numa folha e voltei-a para cima na minha frente. Afastei o pano que escondia o espelho negro. À luz da janela, as criaturas esculpidas na sua orla
pestanejaram e espreguiçaram-se, despertando para outra revelação.
Algo o desperta do seu devaneio. Não um som, não um movimento. Está sozinho na sala de trabalho, apenas com os miseráveis livros de magia como companhia. Contudo,
fica hirto; de repente, está alerta, não para um perigo, mas... o quê? Para algo que está errado; passa-se algo que ele deve impedir. Ele partiu, segreda uma voz
ao seu ouvido. Ela levou-o.
Atravessa o aposento escuro até à porta, puxa o manipulo em vão, lembra-se do ferrolho, abre-o com brusquidão, sobe os degraus, três de cada vez. Atravessa o corredor,
sai pela porta da torre, atravessa o jardim imerso na tristeza de uma tarde de Outono, tropeçando nas folhas caídas, gritando pelos seus servos enquanto avança.
Desce o monte, sussurra a voz. Desce o caminho. Ainda os poderás deter.
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Ele é rápido, está em forma e é forte, apesar de todos os anos passados curvado sobre os livros. Isso ajuda-o agora. De um local privilegiado vê Mella a meio caminho
da descida. Ela move-se devagar; leva o menino pela mão e a sua criada caminha à frente com uma trouxa debaixo do braço. Conan vai ficando para trás, andando devagar
e parando frequentemente.
- Despacha-te, Conan! Depressa! - A voz de Mella treme de medo. - Vem, eu levo-te ao colo.
Enquanto ela pára para pegar no menino, Nechtan faz um pequeno som com a garganta. Mella volta-se, olha para cima. O rosto dela torna-se pálido, os olhos abrem-se
muito.
- Nem mais um passo - diz Nechtan. - Solta a mão do meu filho. Fá-lo, mulher.
Enquanto se apressa em direcção a ela, descendo o caminho serpenteante, ele estala os dedos e na sua mente invoca o que precisa. A floresta sombria escurece ainda
mais. Formas rodopiantes manifestam-se debaixo das árvores.
Mella corre, com a criança nos braços. A criada está quase fora de vista, mais adiante no caminho.
- Alto! - ruge Nechtan, e Conan começa a emitir um choro débil. Porque é que a mãe do menino não lhe ensinou autodisciplina? É o futuro chefe tribal de Whistling
Tor. - Eu disse alto!
Mella tropeça; ela e Conan rolam no caminho molhado. O choro transforma-se em gritos. Apenas em algumas longas passadas, Nechtan está ao lado deles. Estende a mão,
agarra o filho por um braço, puxa-o para cima.
- Fica calado! - ordena, e quando Conan parece não compreender, dá um abanão à criança. Conan aperta o maxilar, os gritos transformam-se em queixumes suprimidos.
O rapaz tem alguma envergadura, afinal.
Mella põe-se de joelhos. Agarra o filho pela cintura, segurando-o desesperadamente.
- Liberta-o, Nechtan!
O aperto que Nechtan exerce no ombro da criança intensifica-se. Olha para a sua mulher com desprezo. Agora, também ela chora, os olhos vermelhos e feios de encontro
à pele pálida de medo.
- Para onde ias? - inquere ele.
- Para longe. Para longe deste lugar amaldiçoado! Nechtan, liberta Conan!
Ela parece inconsciente das coisas que se juntam à sua volta, dos seres sombrios e sussurrantes que povoam a floresta de ambos os lados do caminho.
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- Responde-me, Mella. Ias deixar-me? Pretendias desistir da tua responsabilidade de senhora de Whistling Tor sem sequer olhares para trás?
Os lábios dela apertam-se.
- Vou levar o meu filho para casa da minha mãe, no norte. Que uma tal visita te pareça impossível é um indicador do quanto está errado aqui.
- Uma viagem de dez dias. Com apenas uma criada. A pé.
Mella fica em silêncio.
- Não se trata de uma visita - afirma Nechtan. - Vais deixar-me. Não tens intenção de regressar. Confessa! Não me mintas!
A mulher dele levanta o queixo, insensatamente desafiadora:
- Nenhuma mulher no seu juízo perfeito regressaria a este lugar hediondo ou para um tal marido. Deus sabe que fiz o melhor possível para ficar do teu lado, para
manter as coisas a funcionar enquanto tu soltavas um mal que não fazias ideia de como controlar, enquanto deixaste o teu povo e as tuas terras caírem na ruína e
transformaste os teus vizinhos, um a um, em inimigos. Não deixarei que o futuro do meu filho seja igualmente maldito.
- Tens razão em relação a uma coisa - diz-lhe ele, fazendo um esforço considerável para manter o seu tom de voz calmo. - Já excedeste a tua utilidade aqui em Whistling
Tor. Vai, se é esse o teu desejo. Não preciso de mulher. - Já se passaram anos desde que se deitou com ela e existem poucos servos para ela gerir. Ficará feliz por
deixar de ver a sua figura seca dentro de casa. Pode ir para casa da mãe e acabar com tudo. Não lhe lançará a hoste. Deve-lhe algo; ela deu-lhe o filho. - Quanto
a Conan - acrescenta ele, querendo ter a certeza de que ela compreendia -, ele ficará muito bem sem ti. É altura de eu me encarregar da sua educação.
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- Não! - profere Mella. É óbvio que ela esperava que ele tentasse impedi-la, mas não previra aquela situação. - Não o deixarei aqui contigo! Não estás em condições
de criar uma criança. Deixa-o! - Os braços dela estão fechados em torno do menino; tenta libertá-lo do aperto de Nechtan.
- Tira as mãos de cima do meu filho, estás a magoá-lo. Ele é o futuro chefe tribal de Whistling Tor. Não vai a parte alguma. - Nechtan arranca-lhe a criança, pega-lhe,
instala-a na sua anca e retrocede um passo. - Como pretendias viajar para tão longe com o rapaz? Onde pernoitarias? Quem te acolheria?
Segue-se um momento de silêncio e depois Mella diz:
- Hoje iremos apenas até Silverlake.
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Ele não deve ter ouvido correctamente.
- O que disseste? Não acreditas que Maenach - Maenach - te acolha.
Mella levanta-se.
- Eu sei que sim. Não sou eu quem é injuriada e desprezada por todos os nossos vizinhos, Nechtan. Maenach e Téide ofereceram-me refúgio, a mim e ao meu filho, sempre
que precisássemos. Vamos partir agora. Dá-me Conan.
Ele percebe tudo num lampejo. A mulher dele participou em tudo, na ultrajante conspiração para o derrubar, transformar a sua vida em cinzas e os seus sonhos nos
piores pesadelos. De alguma forma, ela conseguiu trocar mensagens com o amaldiçoado Maenach ou com aquela sonsa da mulher dele. O vizinho dele, insatisfeito com
o facto de ter caluniado o nome de Nechtan em toda a Connacht, pretende roubar-lhe o seu único filho.
A fúria cresce no seu coração, uma maré vermelha que o engole. O braço dele aperta-se em torno de Conan. Ele retrocede, elevando a sua mão livre.
- Conan! - A voz de Mella torna-se selvagem, como o chamamento áspero de um corvo.
- Mamã! - A criança começa a debater-se. - Eu quero a Mamã! Nechtan apenas vê escuridão, desafio, traição. Faz um gesto e, na sua mente, dá uma ordem: Agora. A hoste
avança.
Há que dar-lhe crédito, Mella enfrenta-os com coragem, afastando-se de Nechtan para que o filho não seja apanhado na sua punição. Ela sustém o olhar do menino e
os seus lábios formam algo, talvez, Eu amo-te. Sê forte. A hoste avança, dilacerando, rasgando, mordendo, consumindo.
Nechtan usa a mão livre para escudar os olhos do menino, enquanto o leva ao colo para o cimo do monte.
- Um dia serás o chefe tribal de Whistling Tor - murmura para o filho. - Acredita em mim, irás suportar situações bem piores do que esta. Aprenderás como é sentires-te
sozinho. Completamente sozinho.
Um pequeno gemido vindo da porta do jardim. Sobressaltei-me, afastando o meu olhar do espelho, onde as imagens hediondas já começavam a desaparecer gradualmente.
Anluan estava junto à entrada, muito quieto.
- Estás a usar o espelho. - O tom de voz dele estava ferido, incrédulo. - Estás a usá-lo sem mim.
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Inspirei profundamente e depois obriguei-me a afastar-me. Podia sentir o quão perigoso aquele abraço era, o quão maravilhoso e perigoso. Apesar da minha aflição,
sentia o seu toque vibrar em todo o meu corpo.
- Tive saudades tuas - admiti. - Precisei de falar contigo. Quero ajudar-te.
- Tenho estado muito ocupado. - Também ele se afastara, chegando-se para a outra extremidade do banco corrido, mas as nossas mãos ainda estavam dadas. Evitava olhar-me
nos olhos. - Não tenho sido boa companhia. Não queria que fosses envolvida nesta situação, Caitrin. Vieste para cá para fazer um trabalho e tem-lo feito bem. Não
queria que te envolvesses nesta situação dos normandos.
- Já estou envolvida - respondi, puxando do meu lenço e limpando os olhos. - É tudo a mesma coisa, a hoste, os documentos, os membros da casa de Whistling Tor, a
ameaça normanda. Posso ter sido contratada apenas para este Verão, mas fiz amigos aqui, Anluan. Preocupo-me com o que se passa. E... bem, suponho que já tenhas adivinhado
que tenho usado o espelho na esperança de que ele possa indicar-me um feitiço de reversão.
- Tens usado? Já o usaste mais de uma vez desde o primeiro dia?
- Apenas uma outra vez, e não ajudou muito. Já vi quase todos os documentos e ainda não consegui encontrar nada acerca da experiência em si. Continuarei à procura,
claro. Prometi à hoste, e... Anluan, diz-me o que planeias fazer? Podemos falar sobre o assunto?
Ele soltou a minha mão e levantou-se, caminhando para junto da janela, de costas voltadas para mim.
- Um homem não admite que tem medo. Eu tenho medo, medo pelos membros da minha casa, pelo meu povo, por todos os que vivem no monte e nos territórios circundantes.
Medo por ti, Caitrin. Pronto, já o disse. Desde o dia em que escreveste que querias ajudar-me, vi-te tentar fazer isso mesmo. Vi-te trabalhar arduamente, vi-te procurar
o que há de bom em todos nós, independentemente das nossas falhas e fraquezas. Até em mim. Se te falo do meu medo é porque sei que não pensarás mal de mim por isso.
- Inspirou profundamente. - Devo-te um pedido de desculpas. Não devia ter-te excluído. Mas... Foste magoada antes de vires para cá. Esperei que o Verão te desse
tempo para sarar, para te transformares naquela pessoa que disseste ter perdido. - Voltou-se; o que vi no rosto dele derreteu-me o coração. - Não posso permitir
que sejas magoada de novo - disse Anluan. - Não posso ser responsável por isso. Pensei que se lidasse sozinho com esta crise, talvez... Mas estava enganado, soube-o
assim que abri aquela porta e te vi com o espelho de Nechtan. A expressão do teu rosto encheu-me de sentimentos
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de... de sentimentos que não sei nomear. Por isso, sim, falarei contigo. Mas antes quero mostrar-te algo. - Estendeu uma mão. - Vens comigo?
- Com certeza. Onde?
- Não é longe.
Conduziu-nos para fora, através do jardim de Irial e pelo pátio até à torre sul. As minhas pernas tremiam, a visão do espelho ainda agarrada a mim. Senti a presença
da hoste, à espreita, à espera. Apertei a mão de Anluan com força e tentei fingir que as presenças fantasmagóricas do monte não estavam à nossa volta. Se Rioghan
tomara parte naquele acto de chacina, se Eichri se voltara contra uma mulher que não queria outra coisa para Whistling Tor do que o regresso à paz e à rectidão,
que esperança podia eu ter de que toda a hoste pudesse mudar a sua natureza?
- Nunca devia ter vindo para aqui - murmurei quando chegávamos aos degraus que davam acesso à porta da torre.
Nesse preciso momento, Anluan disse:
- Nunca devia ter-te deixado ficar.
Parámos de andar. As nossas mãos ainda estavam presas uma à outra.
- Falei sem pensar - corrigi eu.
- Este lugar não é para ti.
Mas tu estás aqui, e eu quero estar contigo.
- Eu e o meu passado não somos boa companhia para ninguém - lamentou Anluan, como se tivesse lido a minha mente.
- Não partilho a tua opinião - disse-lhe, trémula. - És meu amigo, Anluan. Só tenho admiração pela tua força e pela forma como tens enfrentado as tuas dificuldades.
Sabes bem que não te mentiria. O teu passado está repleto de sofrimento, sim, mas talvez seja altura de mudar isso. - Ele próprio dissera algo sobre mudanças; que
muito pode mudar em cem anos. Talvez o que eu vira no espelho não negasse a minha teoria acerca da natureza da hoste, mas a reforçasse.
- Não gostei de te ver usar o espelho, Caitrin. Promete-me que não voltas a fazê-lo sozinha.
- Eu prometo. - Não pedi nenhuma promessa em troca, embora o quisesse muito. Depois daquilo, do deleite das suas palavras ternas, da pura felicidade do seu toque,
seria insuportável se ele me excluísse de novo.
- Por aqui - indicou Anluan, e conduziu-me para o interior da torre sul.
Hesitei no limiar, percebendo que a porta exterior dava acesso directo ao quarto onde ele dormia. No mundo de Market Cross, era impensável que uma jovem mulher e
um homem que não fosse seu parente estivessem
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a sós num aposento privado. Havia uma cama encostada à parede traseira, as cobertas impecavelmente dobradas, uma mesa e um banco corrido de um dos lados. O chão
era de laje, sem qualquer tapete, e estava bem varrido. Uma janela alta e estreita rasgava a parede espessa para deixar entrar a luz, e uns degraus em espiral subiam
para se perderem algures em cima. Imaginei que a cela de um monge devesse parecer-se com aquele quarto, embora a variedade de trajes atirados aleatoriamente por
cima de uma arca fechada não tivesse merecido a aprovação de um abade. Uma pilha de livros atados repousava instavelmente num dos cantos da mesa. Os livros eram
velhos, as capas estavam manchadas do uso, os atilhos gastos até ao fio. Já os vira antes.
- Por favor, senta-te. - Anluan libertou-me a mão e indicou-me o banco corrido, depois, voltou atrás para fechar a porta.
- Os livros de magia negra de Nechtan - sussurrei, sentando-me diante deles. - Tinha-los aqui contigo. - Havia um boião de tinta em cima da mesa e um pote com penas.
O seu pequeno livro estava ao lado dos materiais de escrita, com as capas fechadas. Uma vela agora apagada vertera uma cascata complexa de cera por cima do seu suporte
de ferro. O quarto estava frio. - Porque não mos mostraste antes?
- Sei que procuras um feitiço de reversão. - Anluan estava de pé, diante de mim, com os braços cruzados. Havia uma dureza, uma determinação na sua pose. - Sei que
acreditas que posso banir a hoste se tal feitiço for encontrado. Quanto a estes livros, há algum tempo que estou ciente da sua existência. Este problema preocupa-me
desde muito antes de ter tomado a decisão de contratar um escriba. Não os trouxe para a luz do dia até tu vires para Whistling Tor e eu perceber que pretendias realmente
ficar. Plantaste a semente da esperança; sabes que eu tinha medo da esperança, de a aceitar e depois descobrir que não passava de uma mentira. Tinha grandes dúvidas
sobre se devia ou não investigar estes livros. - Pela primeira vez, ele hesitou. - Temo que abrir a minha mente para a feitiçaria de Nechtan possa acordar uma parte
de mim que é melhor deixar adormecida. Lê-los parece ser tão perigoso como olhar para o espelho de obsidiana. Só de tocar nestas páginas, ouço uma voz na minha mente,
uma voz que acredito ser a dele. E se o meu espírito for subjugado à sua vontade?
- Tens força suficiente para suportar isso, Anluan. - Tremia enquanto falava; sentira a mesma presença maligna quando olhara para o espelho de obsidiana.
- Talvez. Na verdade, duvidei desde sempre que o feitiço de reversão se encontrasse aí. Nechtan tivera os livros de magia negra à mão. Se
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um tal feitiço existisse, não o teria usado? Conan sabia latim. Nechtan poderia ter-se abstido de o fazer, por acreditar que ainda poderia obter o controlo total
da hoste e empregá-la como uma ferramenta contra os seus inimigos, mas Conan teria certamente banido a hoste se possuísse os meios. Não era igual ao pai.
- Disseste que os trouxeste para a luz do dia... mas não compreendo porque levaste tanto tempo para mos mostrar. Poderia ter trabalhado neles durante todo este tempo.
Poderia já ter descoberto algo, algo que nos ajudasse. - Engoli em seco, lutando por manter a calma. - Quero dizer, que te ajudasse a ti e a todos os que vivem em
Whistling Tor. Eu sei que sou apenas... Quero dizer... - Era impossível continuar. No silêncio que se seguiu, levantei o livro do topo da pilha e coloquei-o em cima
da secretária, à minha frente. Uma carantonha maligna fora trabalhada no cabedal escuro da capa. Mantive o livro fechado.
Anluan olhava para o chão. Aparecera um rubor nas suas faces descoradas.
- Não sei como dizer isto - murmurou. - Tenho receio de te ofender.
- Por favor, diz.
- A razão que me fez trazer esses livros de magia negra para fora foi a mesma que me tornou relutante em partilhá-los. A tua vinda mudou tudo, Caitrin. Abriu a minha
mente para possibilidades com que nunca sonhara. Por isso fui buscar os livros. Sabia que tu os podias traduzir, mas... Caitrin, a ideia de qualquer acto meu poder
causar-te sofrimento é... é insuportável. Tu és... és como um coração pulsante. Um candeeiro aceso. Nunca conheci ninguém como tu antes.
As palavras caíram no meu coração como as gotas de um bálsamo curativo. Todo o meu corpo aqueceu. Apesar de tudo, senti-me encher de felicidade.
- Nem eu, ninguém como tu - sussurrei, juntando as mãos com força para evitar fazer algo insensato, como saltar do banco e abraçá-lo. A sua figura alta estava tensa,
as feições lúgubres; ainda não dissera tudo.
- Não podia expor-te a esses livros. São danosos. Nechtan deixou uma herança negra aos seus descendentes. A chave para acabar com toda esta situação poderá estar
no uso de feitiçaria. Não posso pedir-te que o faças. O espelho de obsidiana perturba-te; eu vi a expressão do teu rosto hoje.
- Mas...
- Eu sei algumas palavras em latim. O meu pai começara a ensinar-me. Esperei que os meus parcos conhecimentos desta língua pudessem
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ser suficientes para reconhecer o feitiço se ele estivesse entre essas capas. Tenho estado a trabalhar nos livros de magia desde que Magnus trouxe as más notícias
acerca de Stephen de Courcy. Trabalhei longas horas, tal como tu; a tua vela tem estado acesa pela noite dentro. Tenho-te visto ficar cada vez mais magra e pálida,
Caitrin, e isso perturba-me profundamente.
Silêncio.
- Mas não encontraste um feitiço de reversão - acabei por comentar. - E eu tão pouco. E só faltam alguns dias. Deixa-me levar estes livros emprestados, Anluan. Poderei
trabalhar neles na biblioteca.
- Estás com um aspecto exausto. Pergunto-me se deverias estar aqui de todo, com esta nova ameaça. Se acabares magoada, nunca me perdoarei.
O meu coração parou por um momento.
- Eu quero ficar - insisti eu. A compulsão para me aproximar dele e lhe tocar era mais poderosa a cada sopro. Rodeei o meu próprio corpo com os braços. - Por favor,
deixa-me trabalhar nestes livros. Tenho um compromisso para com a hoste. Talvez tenha sido disparatado da minha parte. Talvez me tenha excedido. Mas quero fazer
o melhor que puder.
- Não percebo porque queres ficar. Não tenho nada para te oferecer, Caitrin. Nada a não ser sombras e segredos.
- Isso não é verdade, Anluan. - A minha voz não estava muito firme. - Deste-me um lar, amizade e um trabalho que eu adoro fazer. Deste-me... - Fizeste-me olhar para
fora de mim própria. Ensinaste-me que posso ser forte. Deste-me... - Deste-me mais do que pensas - conclui. - Deixa-me ajudar. Por favor.
Ele inspirou profundamente e depois expirou, dirigindo-se à extremidade da cama e sentando-se.
- Compreendes, imagino, onde está o meu dilema - confessou ele. - Não tenho quaisquer competências enquanto líder de guerreiros. Não tenho qualquer experiência de
conselhos ou de estratégias. Se eu desafiar os normandos, arrisco não apenas a tua segurança, mas também a de Magnus, o mais antigo e leal dos amigos, e a de Olcan,
que devia estar à margem destas questões. Arrisco todos os que vivem neste monte. Sim, incluo aqui a hoste; percebi, no dia em que lhes agradeceste, que eles são
parte do meu povo, tanto quanto as pessoas das povoações. Posso não lhes ter afecto, mas sou responsável pelo seu bem-estar. Uma espada de dois gumes, uma vez que
eles constituem o maior risco, mas, a longo prazo, podem ser também a solução caso haja guerra. Para avançar, será preciso ter muita fé. Será necessária a virtude
que me
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ensinaste, Caitrin. - Dirigiu-me o seu sorriso assimétrico, fazendo-me doer o coração. - A virtude da esperança persistente; esperança contra todas as contrariedades.
Magnus acredita que está na altura de tomar uma posição. Rioghan concorda que devemos agir. Na opinião deles, devemos fazê-lo ou perecer. E, no entanto... Caitrin,
não há como confiar na hoste. Não se pode esquecer tantos anos de violência, tantos actos de barbárie cometidos aqui no monte. A pesada sombra de Nechtan ainda paira
sobre este lugar.
- Eu tenho uma teoria - revelei. - Eichri e eu estivemos a falar sobre os espelhos desta casa e sobre o que cada um deles era capaz de fazer. Ele disse que talvez
aqueles artefactos não sejam bons ou maus de direito próprio, mas que funcionem de acordo com o carácter da pessoa que os usa. Não poderá esta mesma teoria ser aplicada
à hoste?
Todos os registos nos dizem que Nechtan era um homem com muitas falhas, um homem sem a noção de certo ou errado, obcecado pela necessidade de poder, cruel para a
sua família, que tinha delírios de que todos estavam contra ele. Segundo entendo, a hoste está ligada ao chefe tribal de Whistling Tor, seja ele quem for em dada
altura. Os seus membros são obedientes à vontade dele, pelo menos enquanto ele permanece no monte.
- Isso é verdade, Caitrin.
- Na visão que observei hoje, Nechtan ia deixar a mulher dele partir. Estava saturado de Mella, já não a queria em Whistling Tor. Eu sei-o porque o espelho de obsidiana
não mostra apenas a visão, mas atrai-me para os pensamentos de Nechtan. - A lembrança desses pensamentos estava inculcada nos meus ossos, como o gelo mais profundo
de Inverno. - Mas Mella cometeu um erro. Contou ao marido que Maenach estava preparado para a acolher, levou-o a inferir que fizera um plano de fuga com o maior
inimigo dele, o homem que ele culpava por todas as suas penas. Senti-o mudar, Anluan. Foi assolado por um surto de raiva incontrolável e depois deu a ordem à hoste,
veiculada num momento em que toda a razão fora varrida da sua mente. Matem-na, disse-lhes. E, por isso, Mella morreu.
- Gostaria que não o tivesses visto.
- Espero não voltar a ter de testemunhar tal visão. Mas aprendi algo. Se Nechtan não tivesse, de repente, perdido o controlo, se Mella não tivesse mencionado Maenach,
teria abandonado o monte, ido para casa da sua família e vivido o resto da sua vida em paz. Não foi a maldade inata da hoste que causou a sua morte cruel. Tudo o
que eles fizeram foi obedecer à ordem de Nechtan. Tiveram de o fazer; estavam presos à sua vontade.
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- Conan foi criado por Nechtan a partir de tenra idade. Como chefe tribal, cometeu erros gravosos, certamente. Como Nechtan, tentou fazer uso da hoste na guerra.
Negligenciou as suas terras e o seu povo, como o seu pai fizera. Mas não era uma cópia de Nechtan. E quanto à sua mulher e filho? Sabemos, através dos registos de
Conan, que Líoch estava preocupada com o bem-estar da comunidade no tempo das cheias, sabemos que o marido dela fez algumas tentativas para ajudar as pessoas embora
o medo que elas tinham da hoste tivesse tornado esses esforços infrutíferos. Não posso acreditar que Irial tenha crescido sem amor e sem cuidados; ele próprio era
um homem muito afectuoso. Anluan, quando é que a tua avó morreu? - Rezei para que ele não me dissesse que também Líoch fora chacinada pela hoste. A minha teoria
já era suficientemente frágil; isso destruiria o seu ultimo resquício de credibilidade.
A luz fraca do quarto, os olhos de Anluan não pareciam ser azuis, mas de um cinzento de pedra.
- Caiu de uma das torres - disse ele. - Foi um acidente. Tanto ela como Conan viveram até o meu pai ser um homem feito. Morreram com uma estação de diferença um
do outro.
Pareceu-me errado estar a desenterrar memórias tão tristes, mas não tinha alternativa.
- Isso quer dizer que se mantiveram firmes, Conan e Líoch, apesar das suas dificuldades. Mantiveram-se fortes, enquanto Irial crescia. Gostavam dele. E um do outro,
eu diria, uma vez que Líoch não tentou fugir da forma que a pobre Mella fez. Conan talvez tivesse mudado um pouco naqueles últimos anos. Depois de perceber que a
hoste não poderia ser conduzida para o campo de batalha sem terríveis consequências, deixou de tentar usá-la dessa forma. Talvez a hoste tivesse sossegado, como
resultado disso.
- Há uma falha nessa teoria, Caitrin. - Anluan tinha o sobrolho franzido.
- Por favor - pedi -, deixa-me terminar antes de a julgares. Sabemos que Irial, enquanto chefe tribal, seguiu um trilho completamente diferente. Não tinha qualquer
intenção de usar a hoste como um exército. Ele era um erudito pacífico que amava a sua mulher e o seu filho. Os servos da sua casa adoravam-no. Irial era um bom
homem, dos pés à cabeça. Se a minha teoria estiver correcta, essa bondade interior do teu pai garantiu que, no seu tempo, a hoste não tenha sentido qualquer desejo
de matar, de estropiar, de praticar más acções.
- Gostaria de poder acreditar nisso, mas não posso.
- Não lutou o teu pai contra a maldição da família? Magnus disse-me que ele fez um conselho em Whistling Tor. Deixou a tua mãe levar-te
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para Whiteshore para visitar a família dela. Enviou Magnus para falar com os outros chefes tribais. Tentou fazer as pazes. Eu sei como ele morreu, Anluan, e lamento
profundamente, não apenas por ser tão triste para ti, mas também porque ele me pareceu ser um homem encantador. É essa a questão. Irial era bom. No tempo dele, a
hoste reflectiu a sua natureza interior. Assim como reflecte a tua. Queres paz; eles não sentem qualquer desejo de se envolverem em conflitos. Sentes-te sobrecarregado
com a tua situação; eles sentem-se desesperados por ainda não terem sido libertados da deles. Se conseguires ter esperança, também eles verão a possibilidade de
um futuro melhor.
Fez-se um silêncio profundo. Após muito tempo, Anluan disse:
- Podem os mortos ter um futuro?
- Podem ter esperança. O que eles querem é descanso. Um sono sem sonhos.
- Não está no meu poder fazer-lhes uma oferta tão preciosa. Nem sequer a posso dar a mim próprio.
Pensei nisto, recordando os pesadelos que me afligiram durante tanto tempo: as visões das mãos que me queriam agarrar e das garras que me arranhavam, as imagens
da cela escura e do monstro com o rosto de Cillian.
- Anluan, eu sei que há um certo poder entre a hoste que é tudo menos bom. Mas acredito que os restantes são iguais a qualquer outro grupo de pessoas, boas, más,
um meio-termo, com as suas próprias aspiracões, os seus próprios sofrimentos, as suas próprias esperanças e medos. A maioria deles quer apenas voltar para o lugar
de onde veio. O feitiço de Nechtan prende-os a ti enquanto chefe tribal. Eles sabem que apenas tu lhes podes dar o que eles querem. E até isso acontecer, eles seguem-te.
Isso significa que controlas as suas acções, supervisionando-os. Isso também significa que eles pensam e agem da forma que tu pensas e ages. És um bom homem, como
o teu pai. Sob a tua liderança, também eles podem ser bons.
- E se eu precisar de lutar, eles lutarão por mim. - Estava a olhar para mim; sobrancelhas levantadas, olhos decididos. - Sabes, não sabes, que, quando eu recusar
os termos de Stephen de Courcy, terei de levar isto até ao fim, mesmo que isso signifique liderar um exército decrépito para o campo de batalha contra uma força
de homens de armas normandos vestidos de ferro?
A cena que ele descrevera materializou-se instantaneamente na minha mente: Anluan a tombar, as suas vestes cobertas de sangue, Magnus a lutar uma última batalha
sobre o corpo do seu chefe tribal morto. Estremeci ante aquele pensamento. Se se tornasse realidade, seria em parte por minha culpa.
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- Não percebo nada de lutas. Não sei qual deve ser o próximo passo. Pensei apenas que a minha teoria poderia ser útil.
- Gostaria de acreditar que é verdadeira - confessou Anluan. - Pois assim seria possível levar adiante o meu plano com algum grau de confiança. Poderia descer à
povoação e deixar a hoste sob a supervisão de Rioghan e de Eichri, seguro de que eles não me seguiriam e que não provocariam o caos para lá do monte. Existem muitos
guerreiros entre eles. Um trabalho, um trabalho com sentido, poderia dar algum propósito aos seus longos anos de espera.
- Mas?
- Existem partes desta história que desconheces, Caitrin, partes das quais não falo, eventos passados que os membros da minha casa não discutem. Não é verdade que
a hoste foi pacífica e benigna durante a chefia de Irial. A última vez que o meu pai deixou o monte, encontrou a minha mãe morta quando regressou.
Não consegui encontrar nada para dizer. Estivera indicado no livro de anotações de Irial, mas eu não entendera. Porque os deixei? Uma onda de amarga desilusão percorreu-me.
Não tinha dúvidas de que os meus sentimentos estavam estampados no meu rosto.
- Não ficou claro se a morte dela foi obra de uma força maligna ou um infeliz acidente - explicou Anluan. - Não falarei mais do assunto. Se te perguntas porque tenho
demorado tanto tempo a tomar a minha decisão, se ficaste surpreendida porque não consegui falar contigo sobre este assunto mais cedo, esta foi a razão mais forte.
Poderia avançar com audácia, lançar um desafio a Stephen de Courcy, usar a hoste como meu exército pessoal. Se o velho padrão se repetisse, poderia tornar-me no
instrumento de destruição do que me é mais querido. E aí seria uma repetição de Nechtan.
Passado um pouco, eu disse:
- Mas irás fazê-lo na mesma. Disseste que tomaste a tua decisão. Anluan pôs-se de pé. Vi-o reunir coragem. Vi o seu olhar aguçar-se, as suas costas endireitarem-se,
a sua boca tornar-se mais resoluta.
- A primeira parte, pelo menos. Sei pouco de estratégia, de diplomacia, de conduta de guerra. O meu pai morreu antes de poder ensinar-me a ser um líder. Se não fosse
Magnus, ainda seria mais ignorante. Mas parece-me que tenho de realizar um conselho antes de os normandos virem: o meu próprio conselho. Ouvi-te dirigires-te à hoste
e vi como eles te escutaram. Aprendi, nesse dia, que se lhes falarmos com respeito, eles responderão como homens e mulheres vivos. Há demasiado tempo que o adio
pensando que poderia encontrar um feitiço de reversão; isso teria mudado tudo.
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- Um conselho - proferi. Ele ia mesmo fazê-lo.
- As pessoas da povoação também deverão ser convidadas, por impensável que pareça. Se estivermos todos de acordo, então terei de pensar em arriscar deixar o monte
para falar com os emissários de Stephen de Courcy. Não posso pensar muito para além disso. Ainda não aperfeiçoei a arte de ser corajoso em grandes passos. Isto ainda
me assusta, Caitrin. Tenho de aprender a não o mostrar. Penso que faz parte de ser um chefe tribal. - A sua boca torceu-se. Por baixo do novo Anluan, o que tinha
olhos brilhantes e o queixo determinado, o rapaz inseguro ainda existia.
- Eu tenho fé, Anluan - afirmei eu calmamente. - Fé de que tudo correrá bem. Fé em ti.
Ele estendeu uma mão na minha direcção, não me olhando nos olhos. Levantei-me e enfiei a minha mão na dele.
- Espero que tenhas razão, Caitrin - admitiu ele. - Porque, a partir deste momento, devo colocar de lado todas as minhas dúvidas. Um líder não pode mostrar os seus
receios. Quanto a este conselho, tenho Rioghan. Iremos falar com ele. - Por um momento, apenas um momento, ele colocou o braço em torno dos meus ombros. - Obrigado
- agradeceu e tocou desajeitadamente com os lábios na minha testa. Foi o rapaz quem me deu o beijo, mas foi o homem cujo corpo roçou o meu, acelerando o bater do
meu coração e fazendo o sangue afluir ao meu rosto. - Sem ti, não teria coragem.
Encontrámos Rioghan no pátio; não foi necessário chamá-lo. Ele compreendeu rapidamente a situação. Quase antes de eu terminar de lhe explicar a minha teoria, ele
e Anluan começaram a fazer planos.
- Quando? - perguntou Rioghan. - Temos apenas alguns dias antes de esta delegação de Lorde Stephen vir à povoação. Amanhã seria um bom dia para ti, meu senhor?
Anluan deixou a formalidade passar sem a comentar.
- Não estou à espera que venha alguém da povoação - admitiu ele-, por mais cuidadosos que sejamos a expressar o convite. Temos de lhes oferecer essa oportunidade,
mas não podemos dar-lhes muito tempo. Quanto à hoste, eles não se sentirão bem com um conselho realizado durante o dia. Devemos reunir esta noite, depois da ceia.
Consegues ter tudo pronto nessa altura?
Se Rioghan pensou que não tinha muito tempo para se preparar adequadamente, a dúvida foi apenas momentânea.
- Sim, meu senhor, se Magnus puder ser dispensado para levar uma mensagem lá abaixo esta manhã. Eles poderão ter medo de nós,
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mas aposto que temem ainda mais os normandos. Quanto aos adereços necessários, podes deixá-los comigo.
- Adereços? - perguntei, pensando que talvez devesse regressar à biblioteca para trabalhar, deixando estes assuntos nas mãos dos homens. A mudança operada em Anluan
era assustadora; vi-a reflectida no seu conselheiro. Talvez a minha teoria estivesse certa, afinal. Talvez a esperança fosse o que era preciso para dar a volta ao
problema.
- Umas coisas aqui e outras ali - respondeu Rioghan. Estava quase a sorrir; os olhos dele brilhavam. - Eu trato de tudo. Alguém precisa de dizer à hoste. Não terei
tempo para isso e Eichri também não. Usá-lo-ei como assistente.
- Uma vez que se trata de um exercício de confiança - sugeri -, e se fosse o meu guarda, Cathaír? Até agora, tem-se mostrado sempre disposto a ajudar. Eu poderia
pedir-lhe que contasse isto a todas as pessoas do Tor. Se concordares, Anluan.
Anluan franziu o sobrolho.
- Sei pouco acerca desse Cathaír. E quem guardaria o teu quarto na ausência dele?
- Eu conheço o jovem. - Uma memória de um passado desgostoso ecoou no tom de voz de Rioghan. - Ele é digno de confiança, meu senhor. É um guerreiro que podia ter
sido um líder, um bom líder, se a sua vida não tivesse sido brutalmente encurtada.
Anluan e eu olhámos para ele. Nenhum de nós pediu outras explicações.
- Muito bem - anuiu Anluan. - Caitrin, por favor pede a Cathaír para nos ajudar. Talvez ele te encontre outro guarda. Por todos os santos, este empreendimento requer
acto após acto de fé cega. Não podemos ter toda a hoste presente no nosso conselho. Poderia transformar-se rapidamente num caos. O que precisamos é de representantes.
- Uma ideia salutar, meu senhor. - Quase podia ver Rioghan fazer uma lista na sua cabeça, riscando elementos um a um. - Oito ou dez seria um bom número. Deverão
saber que estarão a apresentar as opiniões dos outros. Precisam de os consultar antes do serão. O facto desagradável é que, se este assunto resultar numa guerra,
a hoste é o único exército que Whistling Tor tem.
- É melhor começarmos a trabalhar - proferiu Anluan.
- Com certeza. - O tom de Rioghan era firme, controlado. - Apenas mais uma questão, meu senhor. Onde devemos realizar o conselho? No salão? Na biblioteca?
- Ao ar livre. - Tive a impressão que Anluan já tomara estas decisões, talvez há algum tempo. - A hoste não se sentirá confortável
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dentro de quatro paredes. Reuniremos no pátio. Deixarei os preparativos práticos a teu cargo, Rioghan. Duvido que sobrecarreguem um homem da tua experiência.
Cathaír respondeu ao desafio, escutando atentamente enquanto eu lhe explicava o que estava planeado, embora não conseguisse sossegar o movimento irrequieto dos seus
olhos. Caminhou em passadas largas no sentido da floresta e pouco tempo depois um guerreiro robusto de cabeça rapada apareceu na galeria, do lado de fora do meu
quarto, para anunciar que assumiria as funções de guarda de Cathaír enquanto o jovem falava com a gente da floresta.
- Não sou lá grande pensador - admitiu o guerreiro, colocando as pernas afastadas e apoiando-se na sua lança. - O rapaz pode falar por mim e eu farei este serviço
por ele. Ninguém passará enquanto Gearróg estiver de guarda, minha senhora.
- Obrigada, Gearróg. Mas eu não sou uma senhora, sou uma artífice. Por favor, trata-me por Caitrin.
- Para nós, és uma senhora. - A voz do grande guerreiro parecia um pouco estranha, mas o seu tom era caloroso. - O jovem diz que talvez Lorde Anluan vá finalmente
assumir o controlo. É verdade? Os olhos dele tinham a mesma esperança desesperada que vira nos de Cathaír quando veio falar comigo a primeira vez. Era importante
não lhe mentir.
- Anluan irá fazer o seu melhor. Isto é difícil para ele. Ele não consegue ver-se livre das sombras do passado com facilidade.
- E quanto a nós? Dizem que talvez haja algo que se possa descobrir para nos libertar. Para nos deixar dormir por fim. Algo que silencie aquela voz, a que põe maus
pensamentos nas nossas cabeças. Eu daria tudo para fazer isso acontecer, minha senhora.
- Voz? Que voz?
- Nós não falamos dela. - Os olhos de Gearróg moveram-se an-ansiosamente de um lado para o outro, como se aquela entidade pudesse surgir do nada para o castigar
caso ele dissesse mais. - Vira-nos do avesso e de cabeça para baixo. Quando ela fala, não sabemos o que fazemos. Nunca se sabe quando ela virá. - E depois, passado
um momento: - Não deve ser verdade o que eles dizem. É lógico. Estarmos aqui é o nosso castigo. Se houvesse uma forma de o evitar, alguém o teria feito antes.
- Poderá existir um feitiço de reversão - disse eu, com cautela. - Estou à procura dele nos livros antigos. Se houver um feitiço assim, Anluan
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poderá usá-lo para vos libertar a todos. Mas não posso fazer promessas a esse respeito, apenas que me esforçarei ao máximo para o encontrar antes do final do Verão.
- Antes do final do Verão? Porquê nessa altura?
- Fui contratada para trabalhar cá durante o Verão. Presumo que quando o Verão terminar, terei de... partir. - Ir para casa não soava bem. Cada vez mais sentia que
aquele lugar estranho, de que ninguém no seu juízo perfeito se aproximaria, era a minha verdadeira casa e Market Cross um lugar distante, oriundo de um pesadelo.
- Partir? Partirias, sem mais nem menos?
O tom do guerreiro, chocado e triste, reflectia os meus próprios sentimentos acerca do assunto.
- Não sei dizer. Depende do que Anluan fizer, dos normandos, de todo o género de coisas. - Fosse o que fosse que acontecesse, eu queria ficar. Mesmo que houvesse
uma guerra, mesmo que alguma coisa corresse mal e o caos descesse sobre Whistling Tor. Queria estar ali com os meus amigos. Queria ficar ao lado de Anluan enquanto
ele enfrentava o seu desafio. - Espero não ter de partir - admiti. - Mas não digas a ninguém que eu o disse.
Gearróg sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes partidos, e fez um gesto como se estivesse a selar os lábios.
- É melhor ires procurar sua senhoria, minha senhora. Ele irá precisar de ti. Oh, e olharei pela menina pequena. Cathaír disse que isso fazia parte deste trabalho.
Ela estará a salvo comigo.
Eu nem sequer reparara na menina-fantasma, agachada a um canto da galeria, a embalar Róise nos seus braços.
- Tenho jeito para os pequeninos - afirmou Gearróg. - Tive uma prole minha em tempos, segundo me lembro. Partiram. Partiram há muito. Não me lembro bem dos nomes
deles.
- Espero que um dia voltes a vê-los. - Pestanejei para afastar umas lágrimas repentinas.
O sorriso dele ficou triste.
- Eu, ir para onde eles foram? Isso não vai acontecer, minha senhora. O melhor que posso esperar é uma longa noite sem sonhos. Isso agora não interessa. Vai lá,
então. Eu guardarei as tuas coisas.
Anluan explicou o plano ao resto dos membros da sua casa, com a minha ajuda e a de Rioghan. As feições largas de Magnus transformaram-se, primeiro, num expressão
de surpresa, e depois numa de alívio por o seu chefe tribal ter finalmente decidido agir. Olcan escutou com
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atenção. Muirne chegou tarde. Não falou até a discussão ter terminado e depois disse calmamente:
- É uma insanidade. Devem saber o que irá acontecer. Serão todos insensatos, para darem crédito às teorias disparatadas da Caitrin? O chefe tribal de Whistling Tor
não abandona o monte. Não pode fazê-lo.
- É melhor não estares presente na reunião, se mantiveres essa opinião - respondeu Rioghan. - Anluan fará uma declaração forte das suas intenções. Como membros da
sua casa, temos de ser vistos como seus apoiantes. Se não és capaz de o ser, é melhor que os que estiverem presentes não ouçam o que tens para dizer.
Ela voltou o seu olhar mais gélido na direcção dele.
- E és tu que pensas excluir-me? - perguntou ela. - Tu, o homem cujo conselho sábio enviou o seu líder e todos os seus guerreiros para uma chacina sangrenta? Estarás
tão entusiasmado com este plano ridículo que já te esqueceste do teu amado Breacán?
Rioghan vacilou visivelmente. Eichri levantou-se, colocando um braço esquelético em torno do seu amigo.
- Esse foi um golpe baixo - disse o monge. - Não discutamos entre nós ou nunca estaremos prontos a tempo. Não vamos para a guerra esta noite, apenas para um conselho.
Anluan estava sentado à cabeceira da mesa. Levantou-se, com os Olhos postos em Muirne, que estava sentada no seu lugar habitual, de frente para ele.
- Se pertences à minha casa, se me és fiel, então fazes parte do plano. Fazemo-lo juntos. E apoiamo-nos uns aos outros. Somos poucos e preciosos. Temos de funcionar
como um.
Como resposta, Muirne levantou-se e saiu do aposento. Era a primeira vez que eu a via tratar Anluan com outra atitude que não de adoração servil e achei a mudança
desconcertante. Os homens, contudo, pareceram prestar pouca atenção ao sucedido. Magnus estava a interrogar Anluan acerca do que devia dizer a Tomas e aos outros
aldeões durante a breve visita que iria fazer-lhes. Eichri esforçava-se por desviar a mente de Rioghan das palavras impensáveis que Muirne lhe atirara, oferecendo
uma equipa de monges para preparar tudo para o conselho. Eu tentei não considerar a possibilidade de que Muirne talvez tivesse razão, de que nos dirigíamos para
uma catástrofe.
Anluan dissera que o conselho devia realizar-se depois da ceia. Com a partida de Magnus para o sopé do monte, não haveria ceia a menos
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que mais alguém tentasse cozinhar. Anluan e Rioghan caminhavam juntos lá fora, decidindo exactamente o que deveria ser dito durante a reunião daquela noite. Olcan
fora para a quinta para tratar dos animais. Eu cozinhei um repasto simples, usando vegetais e ervas para fazer uma espécie de tarte com uma base de pão duro.
Eichri veio até à cozinha à procura de uma toalha para cobrir a madeira nua da mesa do conselho.
- Rioghan diz-me que esta situação requer um certo grau de cerimónia. Eu não saberia dizer. Já se passou muito tempo desde que se realizou qualquer conselho em Whistling
Tor. Mais anos do que qualquer um de nós se lembra.
- Não foi há tanto tempo quanto isso, certamente. - Levantei a tampa do prato da tarte para admirar a minha criação. Cheirava surpreendentemente bem. - Houve o conselho
no qual Irial conheceu Emer. Há vinte e sete, trinta anos: há um bom bocado, mas acessível à tua memória e à de todos os que faziam parte da casa de Irial. Eichri,
não te vás embora, preciso de te perguntar uma coisa.
O monge hesitou no limiar da porta, a sua expressão repentinamente cautelosa.
- Acreditas que é verdade, a teoria de que falámos anteriormente? - Queria perguntar-lhe se ele se lembrava do tempo de derramamento de sangue, do tempo de Nechtan
e das coisas terríveis que a hoste fizera. Queria saber se ele sentira uma mudança nele próprio com a chegada de cada novo chefe tribal. Mas como poderia perguntar-lhe
algo de tão ultrajante e pessoal?
- Talvez. - Estava patente na sua voz que aquela não era a pergunta que ele esperara.
- Eichri, há um guerreiro mais velho, Gearróg, a guardar o meu quarto hoje. Ele falou de uma voz. Uma voz que sussurra aos ouvidos da hoste a toda a hora, dizendo
maldades, atormentando-a. Podes dizer-me de que se trata esta voz? Trata-se da mesma força que é tão temida por Anluan, a entidade das trevas que existe no seio
da hoste?
Vi o rosto de Eichri fechar-se.
- Não sei nada disso - declarou.
- A sério? - Era óbvio que ele me estava a mentir.
- Esse indivíduo devia manter a boca fechada.
- Mais segredos - concluí.
- Não são segredos. Apenas coisas das quais é melhor não falar. Tenho de ir. - Eichri forçou um sorriso. - Cheira bem. Irás roubar o trabalho a Magnus não tarda
nada.
- Ninguém jamais o poderia fazer - afirmei enquanto o meu companheiro saía. Magnus era o verdadeiro coração de Whistling Tor.
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Era ele que mantinha as pontas unidas. E se houvesse uma batalha e ele fosse morto? Não, não pensaria nisso. Peguei numa cebola, descasquei-a e comecei a cortá-la
com mais força do que era necessário.
- Que cheiro apetitoso. - Olcan estava à porta, com Fianchu atrás dele. - Não vou entrar, estou todo sujo de terra. Trouxe alguns legumes verdes para a ceia. - Estendeu
um molho de folhas verdes escuras e brilhantes. - Está tudo bem? Pensei que estivesses de mão dada com Anluan, aconselhando-o para esta noite, e não aqui a escravizares-te
junto ao lume.
- Olcan, posso fazer-te uma pergunta?
Ele esperou, de braços cruzados e olhos brilhantes atentos. Fianchu entrara, as suas patas deixando um padrão lamacento no chão, e estava ocupado a lamber as migalhas
de pão que existiam debaixo da mesa.
- Estavas aqui no tempo de Nechtan, não estavas? Mesmo antes?
Um aceno de cabeça cauteloso.
É Como com Eichri, saiu uma pergunta que não era a que eu pretendera fazer.
- Como morreu ele? Nechtan?
- Calmamente, na cama dele. Ainda viveu alguns anos depois de a mulher morrer. É engraçado como as coisas acontecem.
- Olcan, eu sei que não fazes parte da hoste, mas de algo bem mais antigo. Existem outros como tu, Olcan, no Tor?
Um estranho sorriso, triste, conformado, orgulhoso.
- Sou o último da minha espécie por estas bandas, Caitrin. Ouvi falar de outros, lá para sul, mas pode ser apenas um rumor.
- Isso deve ser triste para ti. Não te sentes tentado a viajar até lá para os procurares? - Não lhe perguntei se alguma vez tivera mulher e filhos, uma família,
ou se quisera uma. Havia tantas histórias naquele lugar, e a maioria delas era pesarosa.
- Gostarias de remediar todos os nossos males, não é, rapariga? Estou contente aqui no Tor; é o meu lugar, e já o é há mais tempo do que podes imaginar. A hoste,
o feitiço de Nechtan, todo esse assunto triste, é apenas um alto na estrada para mim. Mesmo assim, gostaria de ver o rapaz feliz. Gostaria de o ver fazer algo bom
de tudo isto.
- O rapaz, referes-te a Anluan?
- Ele tem muito contra o que lutar. Precisa do apoio de todos nós, para o ajudarmos a levar a situação até ao fim.
- Planeio apoiá-lo, Olcan. Deixa-me perguntar-te... - Mas não havia como perguntar-lhe sobre a voz que Gearróg mencionara ou sobre a estranha atitude de Muirne para
com a crise actual ou sobre uma
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quantidade de outras coisas que me ocupam a mente, porque Anluan estava junto à porta interior, encostado à ombreira, com um aspecto demasiado cansado para sequer
se sentar à mesa quanto mais falar num conselho formal daí a algumas horas.
- Caitrin?
- Eu vou andando - murmurou Olcan, estalando os dedos. Fianchu arrebanhou uma última côdea e saiu pela porta atrás do dono.
Anluan e eu olhámos um para o outro, de extremos opostos da cozinha. Não lhe fales do aspecto cansado que ele tem. E não lhe digas que só olhares para ele traz de
volta a sensação de estar aninhada nos seus braços, a encantadora sensação de segurança, a deliciosa sensação latejante...
- Já acabaste de falar com Rioghan? - perguntei, tão calmamente quanto fui capaz, pegando num dos potes de ervas de Magnus que estava na prateleira e colocando um
par de canecas em cima da mesa.
- Terminei por agora, sim. - Ele aproximou-se e sentou-se no banco corrido, depois colocou o cotovelo em cima da mesa e descansou a testa em cima da mão. - Ele acredita
que eu sou capaz de o fazer. Mas a esperança é uma virtude tão ténue. Senti-la e depois ser-nos negado o que mais desejamos... É melhor, certamente, não ter esperança
de todo do que abrir o coração para uma esperança impossível.
Eu parara a meio de deitar a mistura de ervas dentro das canecas. Pousei a colher. Não voltaria atrás naquele momento, não mudaria de ideias depois de mostrar tanta
força, pois não?
- Não, Anluan - disse eu, com o coração a bater descompassado. - O que disseste está errado. Deves deixar a esperança entrar e depois, em vez de esperar que as coisas
boas aconteçam, deves trabalhar tanto quanto possível para as alcançares. O objectivo pelo qual alguém tem esperança pode ser o que for: escrever uma linha com uma
caligrafia perfeita ou cozinhar uma tarte ou... ou criar bem uma criança, contra todas as dificuldades. Ou defender o que está certo.
Ele levantara a cabeça. Aquela luz, os olhos dele tinham o tom do lápis-lazúli, o tom de uma tinta que rivalizava com a do sangue-do-coração pela sua raridade. Não
conseguia ler a expressão do seu rosto. Só sabia que, dali em diante, não poderia olhar para ele sem desejar tocar-lhe. Perguntei-me se ele conseguiria vê-lo no
meu rosto.
- Pensei em fazer a beberagem restauradora preferida de Magnus - declarei, sentindo as minhas faces corarem. - Parece-me um momento apropriado para a beber.
Anluan observava-me enquanto eu acabava de preparar a bebida.
- Criar bem uma criança - remoeu ele, passado um pouco. - Referes-te a Magnus?
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- Estava a pensar nele, sim. Ele criou-te bem, apesar das dificuldades extremas. Pelo menos, assim me parece. E os meus pais também nos criaram bem, a mim e à Maraid,
primeiro juntos e depois o pai sozinho. Tive mais sorte do que tu. Não o perdi até já ser adulta. - Senti um aperto na garganta, relutante em deixar as palavras
sair. Ouvi o tremor familiar da minha voz, mas desta vez estava determinada a dizê-lo. - Ele teve um colapso, na sala de trabalho, uma manhã. Quando fui para baixo
para o ajudar, ele estava estendido no chão, morto. Nem sequer ficou doente. Depois disso, eu... Eu perdi-me de mim própria durante algum tempo.
- Vem, senta-te a meu lado.
Foi fácil, naquele momento, sentar-me no banco corrido ao lado dele. Tornou-se natural sentar-me suficientemente perto de modo que, de tempos a tempos, não bem por
acidente, a coxa dele roçasse a minha. Deixámo-nos estar, sentados assim, durante um pouco, vendo o vapor elevar-se de ambas as canecas e escutando os sons vindos
do exterior: Eichri a discutir amigavelmente com um dos seus irmãos, Rioghan a dar ordens, Fianchu a ladrar.
- Acerca da esperança - continuou Anluan. - Não vale a pena ter esperança no que nunca poderá ser.
- Isso é verdade. Mas, às vezes, continuamos a ter esperança. Eu sei o que é ter esperança no impossível, Anluan. Depois de meu pai morrer, rezava para que o tempo
voltasse para trás. Rezava para acordar e descobrir que tudo não passava de um sonho mau. Desejei que ele estivesse vivo outra vez e que os outros não estivessem
lá.
- Os outros?
- Cilian e a sua mãe. Vieram para se encarregar de tudo quando meu pai morreu. Ita, a mãe de Cillian, disse a todos que eu perdera o juízo. Talvez fosse verdade.
Era um sofrimento um pouco louco que tomava Conta de mim. Queria que o mundo inteiro desaparecesse. Se pudesse ter rastejado para o interior de uma concha e ficado
lá escondida para o resto da minha vida, tê-lo-ia feito.
Anluan inclinou-se para colocar os dedos em cima do meu pulso, por um momento. Era a mais ténue das carícias, e no entanto a minha pulsação acelerou com o seu toque.
- Mas és a pessoa mais corajosa que eu já conheci, Caitrin - afirmou ele.
- Nessa altura não era corajosa. Tive de me obrigar a enfrentar os meus medos. O passo mais difícil foi o primeiro: decidir fugir de Market Cross. O mais assustador
não foi a morte do meu pai, não foi Cillian, e Ita, mas a...
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- Conta-me - pediu Anluan. Inspirei profundamente.
- Fui eu, a forma como me anulei quando tudo aconteceu, a forma como me perdi de mim própria... Como se estivesse a cair num poço fundo. - Sonhara com isso, vezes
e vezes sem conta: o buraco aberto, as mãos que me agarravam, o longo, longo caminho para baixo... - Comecei a acreditar no que eles diziam a meu respeito, que era
inútil, incorrigível, louca... Até acreditei que quando Cillian me batia era porque eu merecia... Se as pessoas o disserem durante tempo suficiente, começamos a
sentir que é verdade.
- Estás a tremer - observou Anluan.
- Eu estou bem.
- Diz-me, o que foi que te fez decidir fugir de casa? O que é que te deu coragem para dar esse passo depois de tanto tempo?
- Levantei-me uma manhã, olhei pela janela e ouvi uma cotovia a cantar. Peguei na pequena boneca que a minha irmã fizera para mim, olhei para os tesouros que guardara
da minha mãe e do meu pai e encontrei uma centelha de coragem. Sabia que os meus pais me viam lá de cima. Não queria que eles tivessem vergonha de mim. - Limpei
as lágrimas. - Eles ensinaram-nos a lutar por aquilo que queríamos, a mim e a Maraid. Esquecera-me disso durante algum tempo.
- Onde estava a tua irmã enquanto tu estavas perdida nesse desgosto, Caitrin? - O tom de Anluan era neutro.
- Partira. Partira com o seu bem-amado, Shea. Ele é um músico itinerante.
- Deixou-te sozinha.
- Não julgues Maraid - disparei, embora ele estivesse apenas a ecoar os meus próprios sentimentos acerca do assunto. - Ela ama Shea. E ofereceu-se para me levar
com ela, mas eles não tinham dinheiro; já iria ser suficientemente difícil para eles sem terem de se preocupar também com o meu sustento. Para além disso, Ita disse
que cuidaria de mim, que se asseguraria de que eu era vista por um médico, e por aí em diante.
Anluan dispensou-me um olhar zombeteiro, mas não disse nada.
- Penso que não serás capaz de entender - acrescentei, miseravelmente. - Não estava em mim. Era uma... casca, uma concha. Algo rodeado de sombras e de medos. O pai
e eu... Ele ensinou-me o meu ofício. Trabalhávamos lado a lado, todos os dias. E depois, sem qualquer aviso, ele partira. Partira para sempre. Era como se o centro
do meu mundo tivesse ruído. Quando Ita e Cillian chegaram, não tive força para lhes fazer frente. Ita tinha razão, de um certo modo. Durante algum tempo, eu estive
louca.
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- Para onde foram a tua irmã e o músico dela?
- Para norte. Não me consigo lembrar do nome do lugar. A banda dele viaja muito. Tocam nos salões dos nobres e também actuam em bailes e casamentos nas aldeias.
Não havia lugar para mim nesse tipo de vida. - Céus, estava a chorar de novo. - Peço desculpa. Não tinha intenção de te sobrecarregar com este assunto agora. Queria
ajudar-te a preparares-te para o conselho e não falar das minhas dificuldades.
- Ah - exclamou Anluan, levantando a mão como que para me limpar as lágrimas. Afastou os dedos antes de estes tocarem no meu rosto. - Mas ajudaste. Demonstraste,
mais uma vez, como ser corajosa em pequenos passos. Esqueceste-te de como te desafiei a falar sobre este assunto antes e na altura não o conseguiste? Por isso, deste
um passo, e esta noite eu também darei um. Tenho um favor para te pedir, Caitrin.
- Que favor?
- Quero que fiques comigo até chegar a hora. Temo que, se não estiveres aqui, eu possa cair no velho modo de pensar. Estou acostumado, entende. É quase como se uma
voz interior me dissesse, uma e outra vez, que não vale a pena tentar, que os padrões do passado devem repetir-se inevitavelmente, que como não sou um... um verdadeiro
homem, não posso fazer o que é necessário.
- Mas és um verdadeiro homem, Anluan.
- Um verdadeiro homem pode ser um guerreiro. Pode montar a cavalo e liderar as suas tropas. Pode brandir uma espada ou uma lança em defesa dos seus. Pode convocar
outros para o apoiarem, pode cuidar dos que estão sob a sua responsabilidade. Um verdadeiro homem tem a sua própria casa, uma vocação, uma família... Pode...
O que trouxera aquele repentino decrescer de auto-confiança? Era como se a própria voz do desespero tivesse estado a sussurrar-lhe ao ouvido.
- O meu pai não era um guerreiro, Anluan. Era um verdadeiro homem, que amava a sua família e que se dedicava a um ofício. O marido de Maraid, Shea, mal sabe distinguir
as extremidades de uma espada. A minha irmã ama-o, confia nele para cuidar dela. Também ele é um verdadeiro homem, um homem com uma vocação. Não há qualquer habilidade
particular que faça de alguém um homem, mas sim o que existe no interior - disse-lhe. - Tu és uma boa pessoa. É o chefe tribal de Whistling Tor e vais mudar tudo
para melhor. Se falares do coração esta noite, estas pessoas seguir-te-ão até à morte. Sei que sim.
- Até à morte - ecoou Anluan, colocando a sua mão por cima da minha. - Parece que é exactamente para aí que as levarei. Temo por aqueles que me são queridos, Caitrin.
Temo por todo o meu povo.
CAPÍTULO NOVE
Esperámos no pátio até que a luz esmoreceu para um crepúsculo de Verão e a Lua saiu detrás de um véu de nuvens, transformando as folhas em prata e derramando o seu
brilho na água parada do lago. Os archotes estavam acesos. A mesa estava preparada, com uma rica toalha azul por cima, velas a arder num par de antigos candelabros
de ferro com o formato de salmões em pleno salto. Rioghan desenterrara-os algures, juntamente com o bordão que estava ao lado deles, feito de madeira escura e com
bandas de bronze incrustadas.
- É para manter a ordem - explicou ele. - Se a situação se descontrolar, baterei com ele na mesa uma ou duas vezes.
Durante algum tempo, pareceu que não viria mais ninguém para além de nós: Anluan, pálido como o luar, com Rioghan ao seu lado, Ei-chri postado a alguns passos à
sua esquerda, com o monge que estivera a ajudá-lo anteriormente, Olcan e Fianchu à direita. Anluan pedira-me que me colocasse a seu lado, mas eu recusara, pois não
me parecera de todo adequado. Em vez disso, estava de pé nos degraus, por trás dele, com Magnus, e Muirne saiu para se juntar a nós. Cumprimentei-a, tentando esconder
a minha surpresa. Ela não respondeu.
O tempo passou. Cathaír apareceu de debaixo das árvores, tomando um lugar na extremidade do círculo, meio escondido pelas sombras. Parecia incapaz de estar quieto,
mudando constantemente o peso de uma perna para a outra, cruzando e descruzando os braços, olhando para trás por cima do ombro. Desejei ter-me lembrado de lhe oferecer
uma camisa lavada para vestir em lugar da sua peça de vestuário manchada de sangue, mas talvez usar aquele resquício de uma batalha há muito travada fosse parte
da maldição, talvez representasse os seus assuntos inacabados no mundo dos vivos.
- Dois - comentou Rioghan, olhando de Cathaír para o monge-fantasma que estava ao lado de Eichri. - Bem, mas ainda é cedo.
- Eles não virão. - A voz de Muirne era um murmúrio mas, na quietude do pátio, ouviu-se perfeitamente. Deu-me vontade de lhe bater.
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- É claro que virão - contradisse eu. - Estou disposta a apostar. Alguém quer apostar contra mim?
- Não sejas tola, Caitrin. - A voz de Muirne denotava irritação, mas fiz os homens da casa sorrir.
- Nenhum de nós está preparado para apostar contra ti - ripostou Eichri. - É claro que eles virão. Sabem bem o que está em causa.
- Dêem-lhes tempo - pediu Magnus. - Trata-se de uma novidade para todos nós. - Regressara da povoação mesmo antes da ceia. Nenhum dos aldeões estava preparado para
o acompanhar monte acima, mas Tomas e os outros expressaram um grande interesse nos resultados do nosso conselho. Queriam que Magnus regressasse na manhã seguinte
com novidades. Tomas sugerira enviar uma mensagem a Brión, o chefe tribal de Whiteshore, para o manter informado do que se passava. Outro lembrou-se de um esconderijo
de velhas armas, camuflado algures junto ao rio. A ideia de que talvez houvesse uma possibilidade real de montar uma defesa contra os normandos fizera faiscar algo
de novo nos habitantes amedrontados da povoação. Magnus aconselhara cautela; deve-se esperar pela decisão de Anluan, dissera-lhes. Mandaram-no de regresso ao topo
do monte com três pães acabados de cozer e um pote de mel, mas nenhum de nós fora capaz de comer. Aquela dádiva, juntamente com a minha tarte, jazia ainda intocada
em cima da mesa da cozinha.
O tempo esfriou. A Lua subiu no céu. Os mochos piaram; criaturas restolharam nos arbustos.
- Não vale a pena continuar à espera - afirmou Muirne.
- - Esperaremos até eles estarem preparados. - A voz de Anluan estava calma e confiante. Parecia ter conquistado as suas anteriores dúvidas. - Toda a noite, se for
preciso.
Muirne não disse mais nada. No silêncio que se seguiu, consegui ouvir Eichri a assobiar.
Rioghan pigarreou. Muirne ficou tensa a meu lado.
- Cá vamos nós - murmurou Magnus.
Fora dito a Cathaír que especificasse o número: não mais de dez representantes da hoste, excluindo os que viviam na casa. Eles manifestaram-se um a um, por debaixo
das árvores, e depois dirigiram-se para o círculo para ocuparem os seus lugares. Gearróg não viria; ficara de guarda à porta do meu quarto, contente por deixar Cathaír
falar por ele. Mas havia outros guerreiros ali: um homem alto com um pique, um homem velho e barbudo trazendo um arco e uma aljava, um homem com uma só perna, coxeando
apoiado a uma muleta e com um conjunto assustador de facas presas ao cinto - o elmo e a couraça de couro maltratado que usava e a cicatriz que lhe atravessava o
rosto
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marcavam-no como veterano de combate. Com Cathaír, eram quatro, com o monge, cinco.
- Sejam bem-vindos - cumprimentou Anluan calmamente. Nenhum deles falou, mas reconheceram o cumprimento com um aceno de cabeça ou um punho erguido em sinal de respeito.
Depois veio uma mulher envolvida num manto com capuz, o cabelo grisalho apanhado em longas tranças. Na testa tinha a tatuagem de uma Lua em quarto crescente. Uma
mulher sábia, adivinhei, talvez uma sacerdotisa de uma fé mais antiga. Ela hesitou, mesmo junto ao círculo de archotes. Atrás dela estava uma mulher mais jovem com
ornamentos reluzentes em torno do pescoço e com o cabelo artisticamente penteado, o tipo de mulher para a qual os olhos dos homens são imediatamente atraídos, embora
esta parecesse sumida, como se o brilho que lhe pertencera em vida se tivesse desgastado ao longo dos anos passados no Tor, deixando uma pálida cópia da pessoa que
fora anteriormente. Uma terceira pessoa estava ao lado delas, uma mulher de meia-idade, envergando as vestes tecidas em casa típicas de uma trabalhadora dona de
casa da aldeia. Nenhuma delas parecia preparada para entrar dentro do círculo.
- Elas têm medo, senhora. - Foi Cathaír quem falou. Anluan voltou-se para mim.
- Caitrin, poderias dar-lhes as boas-vindas? - Como se eu fosse a senhora da casa. Como se fosse mulher dele.
Não olhei para Muirne, mas a voz dela estava na minha cabeça: Não és uma das mulheres de Whistling Tor.
- Venham para o interior do círculo, por favor - chamei, sorrindo para as três. - Lorde Anluan dá as boas-vindas a todas.
Avançaram em silêncio, permanecendo juntas, um pouco à parte dos guerreiros. Eram oito.
Por um momento, nada se mexeu além das chamas dos archotes, transformados em estandartes de fogo pela brisa da noite.
- Há mais alguém? - acabou por perguntar Rioghan, olhando para Cathaír.
Como que em resposta, outra figura avançou a partir das árvores, uma ao pé da qual até Magnus parecia um anão. Os braços dele eram musculados, o seu peito formidável.
A pele estava marcada por muitas cicatrizes, não feridas de combate, avaliei, mas queimaduras. Era o tipo de homem cujas feições são bonitas apenas para a própria
mãe. A sua presença física, contudo, certamente preveniria que alguém lho dissesse.
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- Donn, o ferreiro, meu senhor. - O gigante fez a mais leve das vénias e Anluan retribuiu-lhe a cortesia com gravidade. - Em representação dos homens trabalhadores
do Tor.
- Bem-vindo, Donn. Poderemos vir a ter necessidade da tua mestria.
- É provável que sim, meu senhor. - O ferreiro tomou o seu lugar ao lado de Eichri e do outro monge, e agora eram nove.
- O nosso número está completo, meu senhor - informou Cathaír. Rioghan franziu-lhe o sobrolho.
- Apenas nove?
Como um, os representantes da hoste voltaram os seus olhos para um lugar particular no círculo, um lugar que parecia ter sido deixado vazio de propósito, os guerreiros
de um lado, as mulheres, o ferreiro e os Clérigos do outro.
- Somos dez, meu senhor - disse a mulher de cabelos grisalhos. - Deixamos este lugar para um que amamos e respeitamos, um que, Como nós, morreu com desconforto no
coração. Não podemos vê-lo liem ouvi-lo, mas sentimos a sua presença. Ele não faz parte da hoste e protege o Tor.
A minha pele arrepiou-se. Ouvi Muirne sibilar baixinho ao meu lado, Como se isto a assustasse e nada mais fosse capaz de o fazer. Magnus murmurou algo em surdina.
- Muito bem. - Anluan deixou que o seu olhar percorresse o círculo, abarcando todos os presentes. - São todos bem-vindos, os que se vêem e os que não se vêem. Cada
um de vocês faz parte da nossa comunidade de Whistling Tor. Sabem porque vos convoquei. Um perigo confronta-nos. Preciso da vossa ajuda.
Anluan explicou novamente a situação. Enquanto ouvia, olhei para a audiência e, passado pouco tempo, percebi que a hoste não limitara a sua representação a dez elementos,
afinal. Dez estavam dentro do círculo de luzes, nove visíveis, um misteriosamente invisível mas, ao luar, para além daquele círculo, estavam reunidos muitos mais.
Anluan estava rodeado de almas perturbadas.
Não se deteve muito tempo a explicar a minha teoria acerca da hoste e isso foi sensato - não era altura de recordar às pessoas do monte os seus actos passados. Contou-lhes
que planeava visitar a povoação na Lua cheia. Delineou o que diria aos emissários de Lorde Stephen. Pediu um compromisso à gente espectral, de que permaneceriam
dentro das fronteiras do monte enquanto ele estivesse ausente, de que obedeceriam às ordens dos que ele deixasse na chefia, de que não provocariam
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qualquer dano até ao seu regresso. Cada um deles teria uma tarefa, uma responsabilidade a cumprir durante aquele tempo, que não seria longo, menos de uma manhã.
Quanto ao que aconteceria depois disso, dependeria da resposta de Lorde Stephen. Mas muito provavelmente Anluan teria de lhes pedir que fizessem mais, muito mais.
A questão dele era, podia confiar neles? Ele olhou para mim.
- Caitrin já falou convosco antes, já a conhecem - afirmou ele. - Na verdade, sem a sua influência é improvável que algum dia tentássemos fazer isto. Ela julga-vos
dignos de confiança. Ela garante-me que podem fazer o que vos peço. Caitrin, queres juntar a tua voz à minha? - Ele voltou-se, estendendo uma mão na minha direcção.
Desci as escadas para me colocar a seu lado, de frente para a hoste, com o coração a bater descompassadamente.
- Cumprimento-vos a todos com respeito e amizade - comecei, consciente dos olhos que me observavam de debaixo das árvores, tantos olhos. - Não estou a tentar minimizar
as vossas dificuldades quando vos digo que sei o que é ter medo, ter tanto medo que nem conseguimos mexer o dedo mindinho. Penso que é isso que aqui acontece por
vezes. E penso que as pessoas às vezes fazem coisas que não querem fazer porque sozinhas não são capazes de se opor a... o que quer que seja que as obriga a cometer
actos malvados. Mas já não estamos sós. Estamos aqui juntos, todos nós fazemos parte do povo de Lorde Anluan, do povo do Tor, e existe força suficiente dentro de
nós para fazermos o que é correcto e tomarmos as decisões acertadas. Esta noite, tudo o que Lorde Anluan vos pede é o compromisso de permanecerem no monte enquanto
ele visita a povoação na véspera da Lua cheia e de não fazerem qualquer mal enquanto ele estiver para lá da fronteira. Não parece grande pedido, mas é claro que
é - se conseguirem, terão feito algo que parece que a hoste nunca foi capaz de fazer. Terão assumido o controlo do vosso próprio destino. Terão dado o primeiro passo
na resolução de todas as dificuldades que rodeiam Whistling Tor e o seu chefe tribal. Eu sei que são capazes. É só o que tenho a dizer. - Retrocedi e um clamor de
vozes irrompeu em redor de todo o círculo.
Uma pancada aguda; Rioghan tivera oportunidade de experimentar o seu bordão.
- Um de cada vez! - ordenou ele, e a algazarra extinguiu-se. - Dêem um passo em frente e falem à vez. Todos serão ouvidos. - Passado um momento, ele acrescentou:
- Sejam breves.
Cathaír deu dois passos em frente, com a cabeça erguida. Colocou o braço atravessado no peito, com o punho fechado de encontro ao ombro.
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- Manter-me-ei firme, meu senhor - declarou ele, e o seu maxilar indicava firmeza, embora o vermelho dos archotes se reflectisse de forma estranha nos seus olhos.
- Os meus companheiros guerreiros permanecerão comigo. Somos duas vezes cinquenta em número, alguns completamente armados, outros parcialmente. Embora alguns possam
ter ferimentos que comprometam a sua capacidade de lutar, todos podem dar o seu contributo.
- Óptimo, Cathaír - retorquiu Anluan. - Louvo-te pela tua iniciativa. Os teus homens têm perguntas para me fazer?
Rioghan pareceu preparar-se para interromper, mas Anluan murmurou:
- Deixa-o falar, Rioghan. - E Rioghan manteve-se em silêncio.
- Todos têm a mesma pergunta nos lábios, meu senhor - ripostou Cathaír. - Refere-se ao pagamento pelos serviços prestados. Sabes O que queremos, todos nós. Mas ela
poderá não ser capaz de o encontrar. Ela disse que partirá no final do Verão. Poderá levar mais tempo a encontrar. Poderá nem sequer estar aqui. Eu disse-lhes para
deixarem isso de lado, meu senhor. Eu disse-lhes que devemos fazer o que tem de ser feito e esquecer o que podemos ganhar com isso. Disse que valia a pena fazer
só pelo facto de acreditares em nós. Mas os que estão além querem uma resposta. Há muito que esperam que isto acabe.
Vi Anluan inspirar profundamente e em seguida expirar. Falou calmamente.
- Não vos farei uma falsa promessa. Não sei se encontraremos a forma de vos libertar do vosso longo cativeiro aqui no Tor. Continuaremos a dar o nosso melhor.
A mulher sábia deu um passo em frente, os longos cabelos grisalhos brilhavam como prata à luz dos archotes.
- E se o vosso melhor for menos do que o necessário, meu senhor? - perguntou ela.
- Nesse caso, ter-me-ei mostrado indigno de ser o vosso chefe tribal. Ainda não sei exactamente o que é necessário, apenas que me dedicarei completamente à defesa
de Whistling Tor e do meu povo e a fazer O que está certo.
- Defender é apenas uma das etapas - afirmou o guerreiro de uma perna. - Vais precisar de uma estratégia de ataque. Vais precisar de barreiras, armadilhas, diversões.
Temos de planear o futuro.
- Estão a afastar-se da questão - disse o homem alto com o pique. - Existem três passos: desafio, luta, recompensa. Estamos a falar da recompensa. Faremos o trabalho,
se formos mandados de volta para o local de onde viemos. É simples. Se a sua senhoria não nos puder enviar de volta, não faremos o trabalho. Ainda mais simples.
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Rioghan pigarreou.
- Se tudo correr de acordo com o planeado na Lua cheia - continuou Anluan -, faremos outro conselho, maior, com representantes de outros territórios. Se for necessária
uma resistência armada, devemos envolver a população local e talvez os chefes tribais vizinhos. Existem muitos desafios, desafios para além de tudo o que sonhámos.
Caitrin e eu continuaremos à procura dos meios para vos ajudar, prometo-vos. Ela acredita que tem de haver uma forma. Eu... Eu acredito na esperança dela. Mas que
isto fique bem claro: se não conseguirmos fazer frente àqueles invasores, é o fim de todos nós. Sem nós para vos ajudarmos, jamais se libertarão da maldição. Sem
vocês para nos ajudarem, não podemos salvar Whistling Tor.
- De qualquer modo, organizem estratégias de ataque e de defesa - disse Rioghan para os guerreiros. - Levaremos todas as vossas ideias em consideração, mas essas
poderão esperar pelo conselho de guerra. Do que Lorde Anluan precisa agora é da vossa palavra de que se submeterão ao controlo dos líderes por ele designados na
Lua cheia. Ele quer um compromisso da parte dos dez representantes em nome de toda a hoste.
- Estás a oferecer-te como líder de guerra? - perguntou o velho guerreiro barbudo, fazendo uma careta a Rioghan. - Depois do que fizeste da última vez que tiveste
oportunidade de o ser?
- Tento na língua! - Eichri dera três passos para dentro do círculo; os archotes bruxuleantes fizeram os seus olhos brilharem vermelhos e eu lembrei-me da sua terrível
aparição no dia em que Cillian quase me levara de Whistling Tor. - Lorde Anluan acabou de nos pedir que trabalhássemos em conjunto, imbecil, e não para levantarmos
suspeitas e desconfianças entre as nossas próprias fileiras. Ele precisa de uma resposta simples: sim ou não. O resto pode esperar.
O velho guerreiro fez-lhe uma careta, mas não havia nele verdadeira malícia.
- Mais alguém quer ser ouvido? - Rioghan lutava para recuperar a calma; ouvi o esforço na sua voz.
- Eu quero dar uma palavrinha. - Magnus desceu para se colocar num dos extremos da mesa. Posicionou-se de forma a não estar directamente de frente para Anluan ou
para a hoste. Pensei que ele estivesse a tentar demarcar que não era nem líder nem seguidor, mas o seu próprio dono. Se olhava para algum lado, era para a brecha
no círculo, o espaço ocupado pelo décimo invisível. - Primeiro, devo dizer-vos a todos que estive lá em baixo na povoação hoje e sondei as opiniões dos seus habitantes.
Estão desconfiados, o que não é de admirar; tiveram boas razões para isso ao longo dos anos. Não acreditam em nenhuma das
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pessoas do Tor, humanas, espectrais ou outras. - Um aceno na direcção de Olcan e Fianchu depois da última expressão. - Mas compreendem que há um novo perigo que
se aproxima e que precisamos de quebrar Velhos hábitos para podermos ter alguma possibilidade de o enfrentar. É essencial que consigamos realizar com sucesso a etapa
que se segue. Se algo de desagradável acontecer enquanto Lorde Anluan estiver fora do monte, se as pessoas lá de baixo tiverem alguma causa para alarme, teremos
perdido qualquer oportunidade de conquistar a sua confiança. E precisamos dessa confiança. - Magnus endireitou os ombros, olhando para fora, para as pessoas reunidas
debaixo das árvores, para além da luz dos archotes. - Sou um lutador - declarou. - Há muito que não uso essas minhas capacidades, mas acreditem-me, ainda as tenho.
Não sou um estratega aqui como Rioghan, mas sei liderar homens. Sei mantê-los em combate quando o sangue, a carnificina e a miséria parecem capazes de quebrar os
melhores e mais corajosos. Provavelmente, iremos estar juntos dentro em pouco. Quando o fizermos, fá-lo-emos como deve ser. Vocês têm guerreiros capazes entre vós,
líderes também, sem dúvida, e trabalharemos todos juntos. Mas não antes da altura certa e apenas se Lorde Anluan nos pedir que o façamos. Ele é o nosso chefe tribal.
É ele quem dá as ordens. E Rioghan é o seu conselheiro. Quem quiser comentar a sua capacidade para desempenhar este cargo pode falar comigo quando acabarmos aqui.
Seguiu-se um breve silêncio carregado. - É só isto. - Magnus voltou-se e inclinou a cabeça para Anluan. - Obrigado, meu senhor. - Voltou a subir para se colocar
a meu lado.
- Se outros quiserem expressar a sua opinião, agora é o momento de o fazer - convidou Anluan. Ninguém respondeu. - Muito bem, continuou ele. - Pedirei uma declaração
formal do vosso apoio. Se estiverem preparados para a providenciar, falarei de novo convosco antes da Lua cheia com mais pormenores sobre o plano. Acredito que o
controlo que exerço sobre certos elementos que se encontram entre vocês irá decrescer quando eu deixar os limites do monte. É isso que tem acontecido a cada um dos
chefes tribais, desde o tempo do meu bisavô. Se eu for à povoação para participar nesta reunião, preciso de estar seguro que obedecerão aos que eu deixar na liderança.
Aos dez que representam os restantes, peço-vos que levantem a mão em sinal de concordância.
A mão de Cathaír ergueu-se imediatamente, de punho fechado. Um momento depois, seguiram-se as mãos de cada um dos guerreiros que estavam a seu lado. Donn, o ferreiro,
levantou o seu braço musculado bem alto. As mulheres e o monge pareciam hesitantes.
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- Se precisam de tempo para consultar aqueles por quem falam, esperaremos agora enquanto o fazem - acrescentou Anluan. - O seu tom perdera um pouco da autoconfiança;
eu sabia que ele estava exausto. - Temos de chegar a uma decisão esta noite.
O monge ergueu a mão. Teria sido necessário um homem corajoso para não o fazer, com Eichri ao seu lado, a mostrar aqueles dentes.
- A vontade da hoste é apoiar-te, meu senhor - proferiu a mulher sábia. - Mas há um desassossego. As memórias agitam-se, memórias que alguns esperavam ter visto
desaparecer para sempre.
- A maior parte dessas memórias desapareceram em fiapos e farrapos - interveio a mulher vestida com as vestes feitas em casa. - A maior parte de nós não se lembra
de muito das suas vidas anteriores, nem do tempo que referiste, meu senhor, em que os teus antecessores foram chefes tribais. Mas existem memórias que não desaparecem.
As melhores e as piores, essas agarram-se mesmo às mentes de pessoas como nós, pessoas entre dois mundos, nem uma coisa nem outra. Actos obscuros, actos terríveis
que muito daríamos para apagar das nossas memórias. Os nossos próprios actos. Se... - Ela hesitou e silenciou-se, incapaz de dar voz à próxima parte do seu pensamento.
A terceira mulher levantou uma mão para ajustar o seu colar reluzente.
- Lorde Anluan - disse ela -, não pode haver certeza na nossa promessa, por muito forte que seja a nossa vontade de te ajudar. Existe uma escuridão que paira por
cima de cada um de nós, desde a criança inocente ao guerreiro marcado pelas cicatrizes de guerra, uma força que interfere com as nossas mentes e nos leva a praticar
o mal. Sem a tua orientação, poderemos ser incapazes de lhe resistir.
Anluan olhou para baixo, para as mãos entrelaçadas sobre a mesa diante de si.
- Foi o meu antepassado que começou tudo isto - respondeu ele. - Eu sou da carne e do sangue desse homem. Tenho carregado o peso do seu acto malvado todos os dias
da minha vida, e todas as noites me tira o sono. Aconteceu o mesmo com o meu pai e com o pai dele. Debaixo desse fardo, é demasiado fácil ceder ao desespero. A história
da minha família deixa isso bem claro. - Ele inspirou, estremecendo, e olhou para cima, enfrentando o círculo de rostos abatidos e olhos sombrios. - Chega. Este
Verão aprendi que a esperança é a arma mais poderosa. Compreendo a natureza da vossa preocupação. Nem a vossa promessa nem a minha podem ser feitas sem reservas.
O nosso acordo deve ser o seguinte: que cada um de nós faça o melhor que pode para ser fiel à sua palavra. Ficarei satisfeito com esse compromisso. E vocês?
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Um restolhar em torno do círculo, não palavras mas movimentos inquietos, como se um tremor passasse pelas formas insubstanciais da hoste.
- Nós também - afirmou a mulher, e ela e as suas companheiras ergueram as mãos. Adiante, na escuridão, uma floresta de braços pálidos ergueu-se em uníssono.
- Agradeço-vos - proferiu Anluan. A sua voz era um fio, mas era, ainda assim, a voz de um chefe tribal. Olhei para Magnus e ele sorriu; soube que ambos sentíamos
o mesmo orgulho.
- E quanto ao décimo que está entre vocês? - perguntou Rioghan. - Aquele cuja voz não podemos ouvir? Está essa entidade de acordo com o resto da hoste?
Todos os olhos se voltaram para o espaço vazio do círculo.
- Sim, meu senhor - respondeu a mulher sábia. - Se existe uma certeza esta noite, é essa.
- Muito bem - concluiu Rioghan. - O nosso conselho terminou, podem retirar-se. Podem estar certos de que serão novamente convocados, pois há planos a fazer para
a Lua cheia e provavelmente muito trabalho depois disso. Por agora, desejamos-vos uma boa noite.
- Mais uma vez, obrigado - agradeceu Anluan. - A confiança pode ser uma lição difícil; a esperança ainda o é mais. Estamos todos a aprender.
Quando a hoste dispersou e os archotes se extinguiram, retirámo-nos para o calor do lume da cozinha. Ninguém tinha muito para dizer. Magnus deitou cerveja nos copos;
eu dividi um dos pães que ele trouxera e servi a tarte fria. Anluan parecia terrivelmente cansado. Cortei-lhe apenas uma pequena fatia: o apetite dele era reduzido
mesmo nas melhores alturas. Para minha surpresa, ele comeu-a toda.
- Não está nada mal para uma mulher que pensa que não sabe cozinhar - observou Magnus, inclinando-se para tirar uma segunda fatia. - Queres outro emprego, Caitrin?
Consegui esboçar um sorriso.
- Já tenho trabalho que chegue - disse-lhe. No dia seguinte, voltaria a perguntar a Anluan se podia levar aqueles livros de magia negra para a biblioteca. Tinha
de ver o seu conteúdo, mesmo que fosse apenas para provar que não continham o feitiço de reversão. - Mas fico contente por teres gostado da tarte.
- Faz uma grande diferença, não ter de fazer tudo sozinho. - Magnus passou o pão ao longo da mesa. - Uma pequena ajuda pode
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fazer uma grande diferença. - Olhou para Anluan. - Parece que temos um grande trabalho em mãos. Em primeiro lugar, é melhor delinearmos estratégias para a tua reunião,
quem vai para onde, quem faz o quê, enquanto nós os dois estivermos fora do monte. Se temos de encontrar tarefas para todos eles, é melhor começarmos já a pensar
nisso.
- É tarde - observou Anluan. - Não tenho forças para mais esta noite. De manhã falaremos disso. Quero agradecer-vos. A todos vocês. Não é necessário continuarem
ao meu lado. Para mim é um mistério a razão por que o fazem. Mas Magnus tem razão. Cada acto de apoio, cada gesto de amizade, torna mais fácil dar o passo seguinte,
enfrentar mais uma aurora. Estou cansado. Desejo-vos uma boa noite.
Quando ele se levantou, todos nós fizemos o mesmo. Anluan pareceu ficar confuso, mas a sombra de um sorriso tocou-lhe os lábios enquanto saía. Um momento depois,
também Muirne desapareceu.
- Ela continua a não gostar do que estamos a fazer - observei. - O que é que a faz ter tanta certeza de que as coisas correrão mal?
- Ela está preocupada com ele - explicou Magnus. - Não que nós também não estejamos, mas Muirne tem mais razões do que a maioria para ficar perturbada. Ela passou
muito tempo com Irial durante aqueles anos negros que se seguiram à morte de Emer. Perdê-lo partiu-lhe o coração. Penso que ela teme perder Anluan se isto conduzir
a uma guerra.
- Qual é a história dela? Ela nunca me falou acerca da vida dela... antes.
- Nem a mim, Caitrin. Muirne não fala muito com ninguém, excepto com ele.
- Rioghan? Eichri? O que sabem acerca dela?
Eichri passou um dedo pela borda do seu cálice, franzindo o sobrolho.
- Estamos habituados a que ela esteja sempre por aqui, mas mantém-se à parte. Mas contou-me a história dela uma vez. Nada de muito interessante. Nasceu e foi criada
numa das povoações, estava noiva de um moleiro, morreu de uma febre de Inverno antes de se casar. Uma história triste. Não sei o que aconteceu ao homem.
- E tu, Olcan? - perguntei. Ele estava a acabar de comer a última fatia de tarte, um bocado para ele, outro para Fianchu, que esperava atrás dele, com os olhos pequenos
a observarem cada pedaço que saía do prato para a boca. - Estás cá há mais tempo do que qualquer outra pessoa.
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- Nunca pensei muito nela, para dizer a verdade. Cuida de Anluan, certifica-se de que ele não passa muito tempo sozinho. Isso deve ser uma coisa boa. E, como Magnus
disse, fez o mesmo pelo pai dele.
Senti uma sensação arrepiante, um desconforto repentino e inexplicável.
- E por Conan também? - perguntei.
- Ela estava por aqui nessa altura, segundo me lembro. Já se passou muito tempo, Caitrin.
- Uma coisa é certa - afirmou Magnus. - Ela não gosta muito de ti.
Rioghan suspirou.
- Ninguém pode criticar a rapariga por isso. Ela quer o que não pode ter: outra vida, uma vida verdadeira. E nisso não é muito diferente de mim ou de Eichri. É hostil
para contigo, Caitrin, porque és aquilo que ela nunca poderá ser: uma mulher de verdade. Ela teme-te, com as tuas faces rosadas, os teus lábios rubros, a tua cascata
de cabelo escuro e a tua... Bem, entendes o que quero dizer. Anluan nunca olhará para ela como olha para ti.
Aquelas palavras ficaram suspensas no silêncio. Não sabia o que dizer naquele aposento cheio de homens.
- Não deixes que isso te perturbe - pediu Magnus. - Muirne tem as suas pequenas manias, mas no fundo é uma boa alma.
- Hum - proferi, nem concordando nem discordando. Perturbava-me o facto de Muirne se manter hostil em relação ao que Anluan tentava fazer, mas senti alguma pena
dela. Morrer justamente quando estava para se casar era particularmente triste.
- Vou para a cama - despedi-me. - O pobre do Gearróg já está de guarda há muitas horas. Posso ficar com Fianchu outra vez esta noite, Olcan?
O cão levantou-se assim que eu disse o seu nome, preparando-se para me acompanhar.
- Com certeza. Dorme bem, Caitrin.
Embora Anluan me tivesse parecido morto de cansaço, o candeeiro do seu quarto esteve aceso grande parte da noite. Fiquei de pé na galeria, sob o luar, olhando para
o outro lado do jardim, para aquele brilho fraco, desejando poder quebrar todas as regras. Ele não devia ficar sozinho naquele quarto despido, apenas com os livros
de magia negra de Nechtan por companhia. Suspirei, aconchegando o meu xaile em torno dos ombros. Parecia tão simples a ideia de descer as escadas, atravessar o jardim
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a correr, bater à porta, dizer-lhe que me sentia sozinha, com frio, preocupada. Sugerindo... o quê, exactamente? Se uma jovem mulher se comportasse daquela forma,
um homem dar-lhe-ia apenas uma interpretação. É claro que não entraria no quarto dele, à noite, sozinha. A ideia em si era ultrajante.
O meu corpo parecia estranho naquela noite, diferente. Não era assim tão ingénua que não soubesse o que isso significava, embora tais sentimentos fossem novos para
mim. Quando Anluan me abraçara nesse dia, soubera que uma profunda mudança se operara em mim desde que viera para Whistling Tor. Não era apenas o alívio de encontrar
um porto seguro, o orgulho de fazer um trabalho bem feito, o prazer da boa companhia, o deleite do respeito e da amizade. Aprendera o que era querer mais do que
apenas a doce carícia da mão na face ou dos lábios na palma, mais do que um beijo, mais do que um abraço. Começava a descobrir que não era apenas a mente que compreendia
o amor, mas também o corpo.
- Luxúria, sussurrou uma voz ao meu ouvido, fazendo-me parar onde estava. Pura luxúria animal. Dantes não a conseguias sentir. Depois de olhares para o espelho de
obsidiana, depois de partilhares as memórias daquele homem, o desejo dele dominou-te como uma torrente quente, estremecendo, palpitando e latejando por esse corpo
luxuriante. Conheces a mente de Nechtan, sentes as necessidades dele. Não admira que o teu rosto core quando Anluan te toca. Não admira que olhes para ele como se
ele fosse um alazão e tu uma égua com o cio. Não te iludas ao pensar que se trata de amor, Caitrin. Não queres Anluan, mas apenas saciar essa luxúria, e ele é o
único jovem que existe por perto. Esse teu corpo esfaimado está cheio da paixão e da crueldade de Nechtan.
- Bebé tem frio.
Sobressaltei-me. Ficara hipnotizada por aquela voz, uma voz que devia ter surgido da minha mente, pois na galeria estava apenas eu, a criança-fantasma, que naquele
momento estava junto de mim com a boneca nos braços, e Fianchu, que esperava pacientemente junto à porta do quarto que eu regressasse para ele poder instalar-se
a guardar a entrada. Se alguém estivera ao meu lado, a escarnecer de mim enquanto eu olhava para o candeeiro solitário de Anluan, não via essa pessoa em parte alguma.
- Ela está com frio porque tu saíste da cama - disse eu, pegando na mão fria da menina e conduzindo-a de volta para o meu quarto. - Vamos aconchegar-te, sim?
Fiquei muito tempo acordada na minha pequena cama, com uma vela acesa e bruxuleante ao meu lado, enquanto a menina se mantinha deitada, com os olhos obedientemente
fechados e com o grande cão aninhado
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às suas costas. Fianchu nunca a conseguia aquecer, mas talvez o corpo dele lhe lembrasse a sensação boa que isso fora em tempos. Quanto a mim, eu respirava cada
fôlego com Anluan; na minha imaginação, ajustava as curvas do meu corpo ao seu corpo forte e liso. Imaginei as mãos dele na minha carne, os dedos dele emaranhados
no meu cabelo. Toquei as irregularidades das suas feições com ternura, explorando aquela paisagem surpreendente com fascínio e deleite. Senti os nossos dois corações
comprimidos, um contra o outro, dois tambores que marcavam o compasso da mesma melodia assombrosa. O meu corpo estava cheio de desejos sem resposta.
Apaguei a vela antes de o céu começar a clarear. No escuro, com meu corpo fremente de necessidade, recordei o desejo de Nechtan pela sua jovem assistente, a forma
cruel como dispensara a sua mulher, o orgulho e o medo obsessivo que provocaram tudo.
- Não é verdade - sussurrei, como se o dono daquela voz sem corpo me pudesse ouvir. - Não sou como ele. O que sinto não é um desejo egoísta, é muito diferente disso,
é...
Fianchu mexeu-se. Levantar-se-ia à primeira luz da alvorada, querendo que o soltasse para ir até ao jardim. A voz da menina-fantasma chegou na semiobscuridade.
- Estás triste, Catty?
Dissera-lhe o meu nome, mas esta era a primeira vez que ela tentava pronunciá-lo.
- Não, não estou triste. - Era difícil dizer o que sentia. Havia uma grande agitação dentro de mim, no entanto, apenas uma imagem antes de fechar os olhos, a de
Anluan.
Os três dias passaram-se como num sonho. Li uma página deteriorada após outra de feitiços e encantamentos improváveis, enquanto, para além das portas da biblioteca,
Anluan e os outros faziam os preparativos para a Lua cheia. Li até as costas me doerem, até os olhos arderem, até o meu pescoço parecer um pau de lenha seca. Não
vi Anluan na biblioteca, mas vi-o diversas vezes, quando saía para desentorpecer os membros, observava-o em conversas sombrias com Magnus e Rioghan. Uma ou duas
vezes, pareceu-me que as suas conversas se silenciavam quando eu me aproximava, como se o que eles estivessem a discutir tivesse de ser escondido dos meus ouvidos,
e isso surpreendeu-me. Mas a necessidade de terminar de ler os livros de magia era uma forte motivação e não incomodei os homens com perguntas. Aprendi a lançar
um feitiço a uma rival, que faria o cabelo dela cair da noite para o dia, deixando-a tão careca como uma cebola. Descobri
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A forma de transformar uma peça de roupa vulgar numa que queimaria e atormentaria alguém que tivesse a infelicidade de a vestir. Li sobre três formas diferentes
de descobrir se uma pessoa estava a mentir e cinco teorias sobre como transformar metais básicos em oiro. Li laboriosamente uma dissertação acerca da distinção entre
leprechauns e clurichauns. Havia guias para ver o futuro em vasilhas. Havia instruções para se fazer fogo sem fumo e fumo sem fogo. Havia encantamentos para ajudar
a transferir qualidades especiais para espelhos de bronze, prata ou obsidiana - esses não os li completamente, pois gelava-me estar tão perto do coração do poder
de Nechtan. Permaneci na minha secretária até estar prestes a chorar de exaustão, mas não encontrei qualquer feitiço para a libertação de espíritos inquietos.
No segundo dia, esperei por Eichri no pátio enquanto caía o ocaso. Desde o conselho, muito mudara em Whistling Tor. Guerreiros da hoste vigiavam dos passadiços acima
da fortaleza, à vista de todos. Archotes ardiam nos suportes de ferro; via a ponta de uma lança aqui, a lâmina de um machado a brilhar à luz incerta ali. No pátio,
grupos de espectros reuniam-se, murmurando entre si. Uma antecipação ansiosa enchia o ar, o cheiro a mudança.
- Caitrin - cumprimentou Eichri, parando quando lhe coloquei uma mão na manga. - Estás com um aspecto cansado.
- Tenho passado muito tempo de volta dos livros. Tenho uma pergunta para te fazer, Eichri.
- Fá-la, então. Nos dias que correm, é só perguntas. É pena não existirem mais respostas.
- Fiquei com a ideia de que podes entrar e sair do Mosteiro de São Criodan sem ninguém se aperceber.
O monge anuiu.
- Precisas de mais materiais?
- Não preciso que roubes por mim. Não é bem isso. Consegues entrar em qualquer parte daquele edifício, mesmo que exista uma tranca na porta? Estou a pensar numa
parte secreta da biblioteca, o lugar onde parece que Nechtan obteve o encantamento de invocação da hoste.
- Talvez.
- Se o feitiço de reversão se encontrar escrito em qualquer parte, poderá ser lá, juntamente com o feitiço original. Pensei que talvez pudesses...
Nota de rodapé:
Figuras da mitologia e do folclore da Irlanda, semelhantes a duendes.
Fim da nota de rodapé.
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- Esgueirar-me lá para dentro, encontrá-lo, memorizá-lo e regressar sem dar nas vistas? Se fosse assim tão simples, Caitrin. Estás a esquecer-te de um pormenor crítico.
Não sei ler. Mesmo que levasse comigo uma pinça afiada com a qual dissecar uma página de um livro e escondê-la debaixo do meu hábito, como saberia que página escolher?
Senti-me um pouco mais que tola.
- Algum dos teus irmãos de Whistling Tor sabe ler?
- Nunca perguntei. Perguntarei se quiseres. Na verdade, não interessa, eles não podem sair do monte.
- Poderia ser seguro se tu também fosses? Aqueles monges parecem tão pacíficos. - Mas o próprio Eichri estivera entre a multidão que correra ao chamado de Nechtan
no dia em que Mella morrera.
- Nenhum de nós é seguro. - Brincou com o seu colar peculiar, movendo os pequenos ossos ao longo do fio que os segurava. - O maior medo de todos nós, incluindo dos
piedosos irmãos, é que nos seja permitido sair do monte e que pratiquemos um acto imperdoável. Ouviste o que aquela mulher disse na noite do conselho. As memórias
esmorecem com o tempo e isso torna possível suportar cada dia que passa. Mas algumas memórias permanecem, algumas não se conseguem apagar completamente. Todos nós
temos a nossa quota-parte dessas memórias e não estamos com vontade de adquirir mais. Queria perguntar-lhe qual era o pecado dele, qual o acto que o confinara a
fazer parte da hoste, mas não consegui proferir as palavras. Era como pedir a um homem que se açoitasse para meu entretenimento. Se Eichri decidisse contar-me a
sua história um dia, como Rioghan contara dele, ouvi-lo-ia sem o julgar. - Sou um pecador sem contrição - comentou Eichri, com os seus olhos astutos fixos em mim.
- O que fiz, fi-lo para ganho próprio. Não posso dizer com sinceridade que me tenha arrependido. Se não me arrependo, não posso expiar os meus pecados, supondo que
é por esse motivo que me encontro de novo neste mundo. Se não houver expiação, que escolha tenho senão regressar àquele lugar vazio no qual estava antes de Nechtan
realizar a sua maldita experiência? Não consigo encarar isso, Caitrin. Quero ficar aqui, quero continuar a viver a vida que tenho em Whistling Tor. Convir-me-ia
muito que nunca encontrasses um feitiço de reversão.
- Um pecador sem contrição? - ecoei. - Mas pareces-me ser tão boa pessoa.
- Ah, mas tu vês bondade em todos.
Após um momento, eu disse:
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- Mas há bondade em todos.
- Mesmo naquele fulano que te amordaçou, te atou e se preparava para te levar às costas monte abaixo?
Fiz uma careta.
- Poderá passar-se muito tempo até que eu seja capaz de ver a bondade que há em Cillian - disse-lhe. - Se existe, está bem escondida.
A véspera da Lua cheia chegou e com ela uma manhã fria. No alto da muralha, homens de armas da hoste moviam-se por entre fiapos de bruma, as suas figuras escuras
aparecendo e desaparecendo, enquanto se mantinham de vigia. Se isto era o Verão, Whistling Tor devia ser um lugar amargo quando o Inverno afundasse as suas mandíbulas
na terra. Caminhei até à bomba, embrulhada no meu xaile e na minha capa, e em vez de levar um balde para cima como era hábito, contentei-me com uma breve borrifadela
de água no rosto e nas mãos antes de me dirigir para o calor do lume da cozinha. Fianchu dirigiu-se para o jardim para tratar das suas próprias necessidades.
Ouvi o som de vozes quando me aproximava da porta da cozinha. Não era a única que me levantara cedo.
- Se ele ficar mais descansado, ficarei aqui em cima com ela. - A voz de Olcan. - Eu e Fianchu.
- Fazes falta lá em baixo junto à fronteira. - Era Rioghan desta vez. Hesitei ao fundo dos degraus. - Se algo correr mal, tens de estar posicionado para chamar Anluan
e Magnus de volta.
- Talvez sim - proferiu Olcan -, mas se Anluan pensa que Gearróg não é capaz de fazer o trabalho sozinho, vai insistir para que um de nós fique. Se não for eu, terá
de ser Magnus. E se Magnus ficar, Anluan terá de ir lá abaixo sozinho. Isso não me parece bem.
Subi os degraus e atravessei a entrada.
- Se estão a falar sobre quem deverá olhar por mim esta manhã - disse -, não vejo necessidade disso. Farei o que faço habitualmente, sentar-me-ei na biblioteca a
trabalhar. A porta interior poderá ficar aferrolhada e Gearróg poderá guardar a outra.
- Anluan diz que Gearróg não é suficiente - explicou Magnus. - Cathaír foi encarregado de controlar os guardas que estão lá em cima na muralha. Já fizemos várias
outras sugestões, mas Anluan não gosta de nenhuma delas. É um assunto complicado.
Olhei de um para outro. Magnus trazia vestida a armadura de batalha que vestira no dia em que o vi pela primeira vez na povoação, uma
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couraça de couro gasto, roupa acolchoada por baixo dela e tiras de couro afiveladas em torno dos antebraços. Os seus caracóis cinzentos caíam-lhe por cima dos ombros
largos. Tinha aspecto de guerreiro, da cabeça aos pés. Trazia o sobrolho franzido e as feições de Olcan reflectiam-no. Rioghan tamborilava na mesa com os seus longos
dedos. O tempo urgia.
- Estarei perfeitamente segura com Gearróg - assegurei. - Mas se Anluan tem dúvidas, porque não deixa Eichri comigo?
- Precisamos de Eichri lá fora no monte, tal como eu - respondeu Rioghan. - Todos têm uma tarefa a cumprir esta manhã.
- Bem - comentou Magnus, transportando a panela de papas de aveia da lareira para cima da mesa -, aconteça o que acontecer, penso que continuamos a ter de comer.
Seria mais simples se viesses para a povoação connosco, Caitrin. Penso que é isso que ele quer.
- Isso não estaria certo. Aqueles homens são conselheiros, não mensageiros vulgares. Se não souberem falar irlandês, trarão com eles um intérprete capaz. - A ideia
de acompanhar Anluan na sua missão parecia completamente errada. Fosse o que fosse que eu desejava ser para ele, era apenas uma ajudante contratada, uma pessoa comum.
- Falarei com ele - concluí.
- Agora é uma boa altura. - Magnus inclinou a cabeça no sentido da porta aberta. Olhando lá para fora, vi o chefe tribal de Whistling Tor de pé junto à bomba, olhando
para cima, para os guardas parcialmente invisíveis no passadiço elevado. O cabelo dele, impecavelmente puxado para trás e preso com um cordão, dava uma nota colorida
à bruma cinzenta da manhã. Usava a sua longa capa por cima de um traje sóbrio que condizia com a muralha de pedra que se erguia atrás dele.
Saí. Enquanto me aproximava, ele voltou-se para mim e eu vi a expressão do rosto dele, de maxilar contraído, lúgubre, apreensiva.
- Ficarei bem. - Inclinei-me para pegar na mão dele, despreocupada com quem estivesse a observar, e a boca dele suavizou-se um pouco. - Todos nós temos fé em ti.
Devias ter fé em nós.
- Fé - ecoou ele. - É uma virtude fugidia. Não acredito que estou prestes a fazer isto.
- Não recuarias agora, pois não, mesmo no final?
- Não, Caitrin. Coloquei as coisas em movimento e agora preciso de ser o líder de que estas pessoas precisam. Não se trata do final, claro, a reunião de hoje é o
começo de algo tão grandioso que nem consigo pensar nisso. Caitrin, já te falei dos riscos, não apenas de poder perder o controlo da hoste depois de passar a fronteira,
mas... Sabes o que aconteceu no passado. Estou preocupado contigo. Há aqui muitos elementos que não podemos prever.
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- Ficarei bem na biblioteca. Terei Gearróg comigo. - Após um momento acrescentei: - E Muirne, se ela estiver preparada para se sentar comigo.
- Não deves ficar na biblioteca. - O tom dele era peremptório. - Mantém-te ao ar livre, mas perto de casa. O local mais seguro para ti é o jardim de Irial. Pedirei
a Olcan que deixe Fianchu contigo. Ainda assim, esta questão perturba-me.
Talvez estivesse a pensar no que acontecera à sua mãe. Mas a situação não era de todo a mesma. Além disso, ele próprio dissera que a morte de Emer podia ter sido
acidental.
- Estou certa de que ficarei em segurança - assegurei-lhe. - Quando partes?
Ele olhou novamente para o passadiço; as formas em movimento dos guardas oscilaram, como num sonho, por entre as mortalhas de bruma.
- Temos homens de vigia que nos alertarão quando a comitiva normanda se aproximar - explicou ele. - Isto se se conseguir ver alguma coisa através desta bruma. Magnus
diz que teremos tempo de chegar lá abaixo à povoação antes deles, se eles usarem a estrada de Whiteshore.
Magnus escolheu aquele momento para aparecer à porta da cozinha.
- Pequeno-almoço - indicou ele. - Não podes ser um herói com o estômago vazio.
- Não tenho muito de herói - murmurou Anluan. - Mas talvez possa aprender. Entramos, Caitrin? - Ele estendeu-me o braço. O gesto era formal, mas enquanto deslizava
o meu braço pelo dele, tive a sensação curiosa de que cada um de nós era incompleto sem o outro. Separados, estaríamos sempre em falta, juntos, estávamos inteiros.
Como não lhe podia dizer isto, pedi:
- Volta para casa são e salvo. - A minha voz soou tão baixinho que poderia estar a falar comigo mesma.
O Sol elevou-se no céu e a bruma dissipou-se. Ao chamamento das sentinelas do topo da muralha, Anluan e Magnus partiram em direcção ao sopé do monte. Com Fianchu
atrás de mim, fui para o jardim de Irial, enquanto Eichri, Rioghan e Olcan se encaminharam para os respectivos postos. Fora tudo planeado até ao último pormenor.
Instalei-me no banco com um cesto de roupa para remendar, pois precisava de uma ocupação para as mãos. O meu estômago andava às voltas. Não ficaria calma enquanto
não visse Anluan regressar e atravessar aquela arcada com o seu sorriso assimétrico, dizendo-me que tudo correra conforme planeado.
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Muirne não estivera presente ao pequeno-almoço, mas juntou-se a mim no jardim, pouco depois de os homens partirem. Não se ofereceu para me ajudar com os remendos,
sentando-se simplesmente no outro extremo do banco corrido observando-me, de feições graves, e mãos cruzadas sobre o colo. Gearróg estava posicionado à entrada da
arcada, com uma lança na mão. Nenhum deles estava muito conversador naquelle dia.
O tempo passou. Uma leve brisa fez restolhar as folhas do vidoeiro. Remendei o joelho de um par de calças de Magnus e fiz a bainha de uma túnica cinzenta de Anluan.
Com os olhos postos na roupa, vi antes o seu rosto abatido, os seus olhos perturbados, uma madeixa do seu cabelo escapar ao aperto do cordão para cair sobre a testa
pálida, gelo e fogo. Imaginei-o a endireitar-se o mais que podia e a encarar os emissários de lorde Stephen; na minha mente, ouvi a sua voz profunda falar com uma
autoridade tal que todos tinham de o ouvir. Ele era capaz. Claro que era.
A túnica estava pronta. Dobrei-a e voltei a colocá-la no cesto. Levantei-me para desentorpecer as pernas, olhando para o céu, tentando avaliar quanto tempo passara.
Andei ao longo do caminho, parando para examinar a planta do sangue-do-coração. Os botões desenvolviam-se, as pétalas firmemente fechadas mal davam a entender a
cor brilhante que viriam a ter. Na próxima Lua, as flores estariam prontas para serem colhidas. Havia um pequeno edifício encostado à parede do jardim, uma estrutura
baixa de pedra que eu presumi ter ferramentas, incluindo talvez um equipamento para a destilação e a decocção; um ervanário como Irial devia ter tal parafernália.
Nunca vira o lugar aberto; a porta estava aferro-E lhada. Talvez ninguém o tivesse usado desde aquele tempo. Imaginei-me, por um instante, lá dentro, fazendo um
lote perfeito de tinta do sangue-do-coração. Depois, voltei a andar pelo caminho, pensando em Como parecia distante o dia em que Anluan aceitara a minha aposta.
- Pareces agitada, Caitrin. - A voz de Muirne estava tão calma como a represa de um moinho. - Estás com dúvidas acerca deste plano?
- É claro que não! - disparei, deixando que os meus nervos levassem a melhor. - O plano faz perfeito sentido. Todos concordaram com ele. - Excepto tu. Sentei-me
e repesquei novamente o cesto para remendar mais um pouco, algo que evitasse envolver-me numa discussão com Muirne, que nada adiantaria e que me deixaria ainda mais
perturbada. - Peço desculpa - obriguei-me a dizer. - Estou um pouco ansiosa. - Parecia ter perturbado o próprio Fianchu. Estivera deitado aos meus pés, mas naquele
momento a cabeça dele estava levantada, com as orelhas espetadas, e um rosnar profundo saía-lhe da garganta. - Acalma-te, Fianchu, deita-te, bonito cão.
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O cão ignorou-me, levantando-se desajeitadamente e pondo-se em posição de alerta, os rosnados de aviso transformando-se em latidos de desafio. Alertado pelo som,
Gearróg aproximou-se de nós pelo caminho.
- O que se passa... aaaghh! - As palavras perderam-se num grunhido de dor, enquanto caía de joelhos, a lança tombando nas pedras do caminho com um ruído metálico.
Dobrou-se em dois, cobrindo a cabeça com as mãos. O peito dele elevava-se; um poderoso tremor apoderou-se do seu corpo.
Levantei-me de um salto, esquecendo os remendos.
- Gearróg, o que se passa? - Ele estava com dores horríveis, dobrado e a gemer. Fianchu começou a ganir, como se também ele estivesse em agonia. Um momento depois,
estava agachada junto a Gearróg, tentando que ele se ajoelhasse, o grande cão fugiu pela arcada e partiu para a floresta. - Ajuda-me, Muirne! - O corpo do meu guarda
estava dominado por espasmos; lutava para conseguir respirar. - Vai buscar alguém, depressa! Precisamos de ajuda!
Não obtive resposta. Olhei freneticamente na direcção do banco, mas não estava lá ninguém. Muirne parecia ter saído do jardim durante a confusão.
- Gearróg, vou buscar ajuda. Tenta levantar a cabeça, assim... Gearróg balançou o braço de repente, atingindo-me no peito. Caí desajeitadamente para trás, para cima
da laje, magoando a anca e o cotovelo.
- Pára, faz com que pare! - gritou ele. - Mantém-te longe! Não! Não! - O braço balançou mais uma vez. Baixei a cabeça para o evitar. Os olhos dele estavam desvairados.
O que quer que ele estava a ver, não era eu certamente.
Com o coração a martelar-me no peito, ergui-me sobre um joelho. Devia tentar ajudá-lo ou fugir o mais depressa possível? Ele deu uma pancada violenta no ar e depois
levantou as mãos acima das orelhas. As feições dele estavam distorcidas num esgar de agonia.
- Fá-lo parar! - gritava.
Algures lá fora na floresta, Fianchu ladrava. Eu agachei-me para lá do alcance de Gearróg.
- Gearróg, é a Caitrin. - Mal reconheci a minha própria voz, de tanto que tremia. - Caitrin, lembras-te? Estou a tentar ajudar-te. Aguenta-te um pouco mais. Vou
buscar alguém...
Começaram a ouvir-se gritos vindos do alto, do passadiço, não avisos de perigos que se avizinhavam, mas gemidos de dor. Olhei para cima. Os homens cambaleavam, caíam,
agarrando-se ao que podiam para evitar
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a longa queda até ao pátio. As armas tombavam ruidosamente no chão à medida que as mãos perdiam a capacidade de as segurar. Dois homens apertavam a garganta um do
outro, os dedos comprimidos, as pernas firmes, os olhos esbugalhados. Outro apoderou-se de uma faca caída e correu desenfreadamente pelo estreito passadiço, aos
berros.
- Muirne! - gritei. - Muirne, onde estás? Preciso de ajuda!
Um guerreiro subiu para o parapeito, abrindo os braços como se estivesse prestes a atirar-se em voo, e lá estava Cathaír, agarrando a perna do homem, gritando:
- Não, seu idiota! Aguenta-te! Aguentem-se, todos! - Um dos monges estava acobardado a um canto, tentando defender-se de um homem grande com um machado. Santo Deus,
o que era aquilo?
Um frio repentino ao meu lado. A menina-fantasma estava lá, com Róise numa mão, a outra aconchegada na minha.
- Catty - sussurrou -, dói-me a cabeça. - E depois, pungente e distinto, o cheiro a fumo atingiu-me as narinas. Voltei-me de repente, Com a mão da criança ainda
na minha, Gearróg dobrado sobre si próprio no caminho à minha frente, e vi fumo a sair lentamente por baixo da porta da biblioteca, como uma insidiosa manta cinzenta.
A biblioteca estava a arder. Os manuscritos. Os livros. Os livros de magia negra; as páginas antigas incendiar-se-iam como um archote. Uma explosão de luz, uma onda
de calor e a história de Whistling Tor perder-se-ia. E com ela perder-se-ia qualquer oportunidade de encontrar o feitiço de reversão.
- Não! - berrou Gearróg, rebolando, pontapeando com as botas e esbracejando. - Fá-lo parar! Deixa-me em paz! Um suor frio inundou-me a pele. Por trás da porta da
biblioteca, pensei ouvir os estalidos das chamas famintas. Fiquei paralisada enquanto a criança agarrava a minha saia e começava um lamento pungente:
- Fogo, não! Fogo, não!
Gearróg pusera-se de joelhos e procurava a lança que rolara para fora do seu alcance, às apalpadelas. O seu braço agitava-se tão violentamente que naquele momento
havia poucas possibilidades de conseguir apanhar a arma. O fumo adensou-se à nossa volta. O pânico cego estava apenas a um fôlego de distância.
- Preciso que me ajudes - pedi, agachando-me ao lado da criança-fantasma. - Leva Róise lá para cima, para o meu quarto, já. Corre o mais depressa que puderes. Podes
enfiar-te dentro da minha cama se quiseres. Fica lá até eu te ir buscar, demore o tempo que demorar.
Ela obedeceu, silenciosa, correndo para atravessar o jardim de Irial, passando pelo fumo e saindo pela arcada. Voltei-me para encontrar
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Gearróg de pé, com a lança na mão, a quatro passos de distância, encarando-me. Os olhos dele estavam desesperados. Matar-me-ia sem hesitar se pensasse que isso silenciaria
a voz que falava dentro da sua cabeça. Por trás dele, a biblioteca ardia.
- Gearróg - proferi eu, trémula -, és um homem bom. És um guerreiro. Anluan precisa de ti. Ele precisa que fiques de guarda até ele regressar ao topo do monte. Não
falta muito.
O guerreiro passava o peso de um pé para o outro, os dedos apertando e aliviando o cabo da lança. Os olhos dele mexiam-se de mim para o passadiço, onde os homens
ainda lutavam, gritavam e caíam.
- Anluan não me quer ver magoada - disse eu. - Sou amiga dele. Sou tua amiga. Gearróg, a biblioteca está a arder. Por favor, deixa-me passar para poder salvar os
livros. - Avancei devagar; ele manteve-se imóvel, bloqueando-me a passagem. Deus me ajudasse, se não entrasse lá rapidamente, estaria tudo perdido. - Gearróg, deixa-me
passar! Por favor!
Gearróg atirou-se para um dos lados, atingindo a sua têmpora com um punho fechado.
- Pára com os teus miseráveis desvarios - titubeou. Desta vez não estava a falar comigo. - Cala os teus murmúrios venenosos! Deixa-me fazer o meu trabalho!
Lá em cima no passadiço alguém começou a cantar. Era uma canção dissonante, desesperada, arrancada de uma memória antiga, o tipo de canção que um homem procura quando
não há mais nada a impedir a sua mente de se atirar para o abismo da loucura, Levantem-se e lutem, homens do monte... Uma voz velha e esganiçada, um pouco desafinada,
mas suficientemente elevada para cortar o caos de gritos e berros, de altercações e pragas:
Levantem-se e lutem, homens do monte
Intrépidos e corajosos, unidos pela vontade
Empunhem as espadas com orgulho, ergam as cabeças...
Gearróg olhava para cima, para o passadiço, enquanto novas vozes se juntavam ao coro, primeiro uma, depois outra, e depois mais e mais, num refrão incerto.
- Irmãos, juntos - murmurou ele -, vivemos e morremos...
Passei por ele a correr, ao longo do caminho, subi as escadas, parando por um momento para retirar o meu lenço da bolsa do cinto e pressioná-lo contra o nariz e
a boca, antes de abrir a porta da biblioteca. Na minha cabeça, formava-se uma desesperada lista de prioridades: os livros de anotações de Irial, os quais estavam
mais perto da porta e poderiam ainda não estar danificados. Os livros de magia negra, deixados numa pilha
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ao lado da minha mesa de trabalho. Os documentos de Nechtan e as transcrições que já completara. A caixa com o espelho de obsidiana... O lugar estava repleto de
fumo denso. Não conseguia ver para além do comprimento de um braço. Engasgando-me, tossindo, apalpei o cantinho até às prateleiras onde os livros de Irial estavam
guardados, preparada para agarrar numa braçada deles e correr para o jardim. Não teria qualquer possibilidade de apagar o fogo. Quando conseguisse trazer um balde
de água que fosse, poderia estar tudo perdido, e Gearróg não estava em condições de ajudar. O meu braço varreu a prateleira, mas os registos de Irial não estavam
lá - alguém os mudara de lugar. Ou estaria eu no sítio errado? O fumo fazia-me arder os olhos, o nariz pingar, rastejando para dentro da garganta. Com a respiração
áspera gritei:
- Muirne! Alguém! Acudam!
Não havia livros no chão por baixo da prateleira, não havia ali nada de Irial. O fumo envolveu-me como um xaile apertado; já não via a porta aberta. Cambaleei, cega,
em direcção ao lugar onde empilhara os livros de magia negra. A minha cabeça estava estranha. Conseguia ver padrões no fumo, rostos com bocas abertas, mãos com unhas
dilacerantes...
- Muirne - sussurrei ou talvez apenas falasse na minha mente. - Alguém que venha...
Caí de joelhos e avancei. Todos os instintos me diziam para não respirar, mas tinha de o fazer e, a cada fôlego, o meu peito doía-me mais. Continua a avançar, Caitrin.
Os livros de magia negra... Não podia deixar que o feitiço de reversão fosse reduzido a cinzas... Tu consegues, Caitrin. Por aqui... por aqui...
Alcancei a pilha de livros e caí junto dela, com os olhos a arder e o peito a arfar. Vagamente, registei surpresa por não ver chamas na biblioteca, apenas uma nuvem
densa e asfixiante de fumo. As minhas mãos apertaram-se em torno de um livro; parecia só ter força para levar um. E agora era só sair, sair para o jardim e para
o ar puro... Para que lado? Voltei a cabeça, mas o lugar estava coberto por uma manta sufocante. Onde estava a porta? A minha cabeça vacilava, o fumo rodopiava à
minha volta. Não conseguia respirar. Vais morrer, Caitrin. Vais morrer por causa de um livro cheio de poções de amor ridículas e encantamentos improváveis de como
transformar palha em ouro.
Larguei o livro de magia negra e comecei a gatinhar, tentando apalpar o caminho até à saída. A perna de uma mesa. Uma arca - o baú com o miserável espelho de Nechtan.
A minha cabeça bateu em algo duro: o banco corrido. Uma cadeira. Uma mesa mais pequena. Já não faltava muito.
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A porta fechou-se com um estrondo. O ar pareceu agitar-se à minha volta. O fumo adensou-se. Percorri o resto da distância rastejando, prestes a vomitar, sentindo
o veneno entrar-me nos pulmões. Esgatanhei parede acima, agarrando a barra de ferro que mantinha a porta fechada. Dei-lhe um puxão. Porque é que não se mexia? Porque
é que as minhas mãos estavam tão fracas? A minha volta, tudo pareceu escurecer, como se o dia já tivesse acabado. Os meus dedos não conseguiram manter-se agarrados
à tranca. Acudam, tentei dizer. Alguém me acuda. Mas só a escuridão respondeu.
CAPÍTULO DEZ
À deriva. Aturdida. Sons que iam e vinham, atingindo-me a cabeça. Vozes abafadas. Metal a arrastar. Tentava nadar para cima... Um peso que me mantinha em baixo.
- Não te mexas, Caitrin. Estás a salvo. Deixa-te estar quieta. A voz dele. Lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Cada fôlego, uma pequena montanha a escalar, um novo
teste de coragem. - Estás a salvo, Caitrin. Não tentes mexer-te.
Não conseguia falar. Havia algo que tinha de dizer, mas apenas saiu um crocito.
- Livros... A mão dele contra a minha face, quente, forte.
- Como se os livros importassem - proferiu ele.
- Diz...
- Os livros estão a salvo. Não tentes falar. Se conseguires, bebe um golo de água. Toma.
Um copo nos meus lábios. Beber, engolir. Fogo. Dor. Algo errado comigo.
- Deita-te, Caitrin. Eu estou aqui e Magnus também. Agora descansa. - ...pega...
Os dedos dele enlaçaram-se em torno dos meus. Voltei a cabeça Contra a almofada e caí novamente na escuridão.
Nadei novamente para cima, não tão devagar desta vez. Os olhos abriram-se. Traves, pedras, teias de aranha. Um homem com uma capa azul a cavalgar para uma batalha;
um cão a correr atrás das patas do cavalo. Uma pequena corrente de ar agitou o painel bordado. O pó dançava à luz da candeia. O meu próprio quarto, a uma hora tardia
do dia. Ninguém segurava a minha mão, mas estava alguém no quarto comigo.
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Voltei a cabeça. Magnus estava sentado num banco, a alguns passos de distância, com uma grande espada em cima dos joelhos. Tinha um pano na mão e polia a lâmina.
Um brilho vermelho de sangue no metal brilhante. Sinais de guerra.
- Magnus. - A minha voz parecia a de uma velha. - Dás-me um pouco de água? - Ainda me doía a respirar, mas talvez menos do que anteriormente.
Senti a mão dele, leve nas minhas costas, segurando-me enquanto ajeitava as almofadas. O copo estava de novo nos meus lábios. Bebi bastante, apreciando a frescura.
A minha garganta parecia ter sido raspada até ficar em carne viva.
- Vai doer durante algum tempo. - O tom de voz do homenzarrão era casual. - O fumo faz isso. Tiveste sorte, Caitrin. Parece que te trancaste dentro da biblioteca.
Gearróg derrubou a porta. Estávamos a chegar quando o vimos trazer-te para fora ao colo. - Era claro para mim que Magnus não acreditava naquela explicação simplista
do que acontecera.
- Anluan? - Porque é que ele não estava ali comigo? Imaginara aquelas palavras suaves, aquele toque meigo?
- Preocupaste muita gente com o teu estado de saúde e a ele mais do que a ninguém. Mandei-o descansar. Não foi de boa vontade.
- Magnus, o que é que... - Parecia um grande esforço perguntar, havia tanto que queria saber.
- Tudo a seu tempo. - O seu olhar era calmamente avaliador, o olhar de alguém que já cuidara mais do que da sua quota-parte de pessoas doentes e feridas. - Bebe
mais dessa água, primeiro, e depois vamos buscar-te uma tigela de caldo. - Dirigiu-se para a porta, meteu a cabeça de fora e disse: - Caitrin acordou. Manda alguém
lá abaixo à cozinha para buscar comida, sim, rapaz? Ela agora só pode comer caldos. Há uma panela junto ao lume.
- Quem está aí fora? - perguntei. Na minha cabeça havia uma imagem dos homens da hoste em cima, no passadiço, atacando ao acaso, como se o mundo inteiro fosse seu
inimigo. Vi Gearróg a torcer-se, com os olhos cheios de demónios. O meu braço estava dorido. Quando enrolei para cima a manga do vestido, ficou à mostra uma equimose
de um tom púrpura-profundo.
- A primeira coisa que ele vai perguntar é quem te fez isso. - Magnus puxou o banco para perto da minha cama e sentou-se. Colocara cuidadosamente a espada em cima
da arca.
- Foi um acidente. Magnus, estão todos a salvo? Os homens da hoste, quero dizer? Houve uma... Eles pareciam estar...
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A boca dele formou um sorriso lúgubre.
- Já nos contaram o que aconteceu; não há razão para duvidar da história. A salvo? Se é que alguém pode morrer pela segunda vez, mas não penso que isso seja possível.
Quanto ao fogo, foi uma coisa estranha, muito estranha. Alguns dos teus documentos ficaram um pouco danificados devido ao fumo, mas não há nada queimado. Pareceu
tudo... conjurado; como se não fosse verdade.
- O fumo era muito verdadeiro - assegurei, sentindo a minha pele arrepiar-se de inquietação. - O que estás a sugerir, Magnus? Que foi tudo apenas... - Não conseguia
dizê-lo. Foi pensado com o único propósito de acabar comigo. Recordei Róise a balançar, a balançar pendurada no arame.
- Não estou a sugerir nada - ripostou ele, mas evitava olhar-me nos olhos. - Caitrin, Anluan ficou muito chocado com esta situação. Ficámos ambos, para dizer a verdade.
Quando Olcan nos chamou da barreira, nós saímos e vimos o fumo, foi como... Trouxe memórias indesejadas. Nunca corri tão depressa.
Observei o meu companheiro com mais atenção, reparando no que não vira antes: a palidez das feições fortes, o franzir das sobrancelhas cinzentas e hirsutas, a postura
dos ombros, não tão direita como era costume.
- Foi Fianchu quem deu o alarme?
- Ele correu para o local onde Olcan estava de guarda e foi-nos chamar. Corremos monte acima. Anluan não conseguia acompanhar-me. Obrigou-me a vir à frente. Deus,
Caitrin, esperei encontrar o mesmo que da outra vez, exactamente o mesmo, a casa meio consumida pelas chamas e tu estendida entre as brasas.
- O que me estás a dizer? - A minha voz era um sussurro.
- Emer morreu num incêndio. As circunstâncias foram semelhantes a estas. Talvez tenhas pensado que Anluan era fraco ou cobarde pela sua relutância em deixar o monte,
especialmente quando havia tanta necessidade. Podes ter-te perguntado porque é que não o encorajei a fazê-lo mais cedo.
- Nunca pensei que ele fosse fraco, Magnus. Contas-me a história toda?
Ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, como se o aposento fosse demasiado pequeno para conter o que ele estava a sentir.
- Aconteceu no tempo em que o irmão de Emer era chefe tribal. Como te disse anteriormente, ele não tinha muito boa opinião de Irial, não conseguia perdoar à irmã
o facto de se ter casado com um descendente de Nechtan. Irial reconhecia a necessidade de forjar novas alianças,
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uma vez que Whiteshore já não era o aliado que uma vez fora. Discutimo-lo durante muito tempo e quando ele recebeu um convite inesperado para participar num conselho
em Silverlake, a sudeste, decidiu arris-car-se a ir. Eu fui com ele, uma vez que ele tinha de ter um guarda pessoal. Emer estava à espera de outro filho; não queria
fazer uma longa viagem. Ela insistiu que ficaria segura aqui, com Olcan e Fianchu e o pequeno número de outras pessoas que trabalhavam em Whistling Tor naqueles
dias. Era uma espécie de teste. Se a visita corresse bem, Irial planeava fazer o seu próprio conselho com um grupo muito maior de chefes tribais locais. Tinha esperança
de que Whistling Tor pudesse voltar a ter o estatuto que tivera antes do tempo de Nechtan. Era um plano ambicioso. Arriscado, claro, mas a hoste estivera sossegada
durante o tempo de Irial e, como tu, também ele estava preparado para confiar nela. Emer estava tão orgulhosa dele, Caitrin. Esse orgulho brilhava nos seus olhos
quando se despediu de nós.
- O conselho correu bem. Irial falou com convicção; as pessoas ouviram-no. Cavalgámos para casa com os corações cheios de esperança. O que encontrámos foi o salão
enegrecido e queimado, Emer morta, o jovem Anluan reduzido a uma pequena sombra com os olhos cheios de morte e terror. Não nos disse exactamente o que vira e nenhum
dos outros o testemunhara; as pessoas estavam noutros lugares, atarefadas, só percebendo que havia um fogo e que ela estava aprisionada no meio dele quando já era
tarde demais para a salvar. Anluan não ficou magoado, não fisicamente, mas... já não era o mesmo. Houve algo que se partiu bem dentro dele.
A mulher no espelho a gritar... Oh, Deus... Não admirava que Anluan tivesse lutado durante tanto tempo contra a decisão de se arriscar a sair do monte. Não admira
que ele tivesse aquela expressão no rosto nesta manhã.
- Quando hoje vimos o fumo, ambos esperávamos o mesmo - explicou Magnus. - A corrida para o cimo do monte foi... Nunca o vi tão zangado com ele próprio, maldizendo
a sua perna coxa, maldizendo a fraca avaliação que fizera da situação, maldizendo a hoste... Tínhamos a certeza que te encontraríamos morta. Quanto a mim, estava
a imaginar como seria vê-lo como o pai quando pegou no que restava de Emer... Sentado no chão, a embalar o seu pobre corpo queimado de encontro ao dele, com as cinzas
a flutuarem em torno deles como neve negra... Já vi muito, Caitrin, e já ouvi muito. A guerra é a minha vocação e um guerreiro tem a sua quota-parte de sangue e
sofrimento. Mas nunca ouvi um homem emitir os sons que Irial emitiu naquele dia. Levei Anluan, cuidei dele nos meus próprios aposentos. Olcan cuidou da quinta. Os
outros
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ajudaram com o que tinha de ser feito. Muirne era a única pessoa que Irial ouvia. Não lhe restara nada para dar ao filho. Foi consumido pela dor e pela culpa. Uma
perda assim pode tornar uma pessoa egoísta. Não o ie entendas mal, eu amava-o como a um irmão. Mas Anluan tinha a sua própria dor para suportar, e eu também.
- Nunca descobriram quem foi responsável pelo fogo? Ele abanou a cabeça.
- Não houve testemunhas, excepto talvez Anluan, e ele não queria falar, ou não conseguia. Não encontrei quaisquer pistas. Mas Irial estava convencido de que a hoste
era responsável, que ao deixar o Tor ele trouxera aquele destino a Emer. A mim, pareceu-me que o fogo podia ter começado com uma corrente de ar e uma vela. Depois
de hoje, não tenho tanta certeza.
- Porque é que a hoste, ou qualquer outra pessoa, poderia querer magoar-me? Não sou ninguém.
- És alguém para nós - disse Magnus calmamente. - Caitrin, já falei durante muito tempo. Tu não estás bem, devias estar a descansar.
Uma pancada leve na porta aberta. Lá estava Cathaír a segurar um tabuleiro carregado. Ao seu lado, com o cabelo transformado num ninho pálido pela luz do Sol que
incidia por trás, estava a criança-fantasma, segurando cuidadosamente um pequeno jarro.
- Entrem - pediu Magnus, mas Cathaír não passou da entrada da porta. A criança entrou no quarto, colocando o jarro em cima da arca. Dirigiu-se para os pés da cama
e ficou lá, com os olhos baixos e os dedos a fazer pequenas pregas no cobertor. Havia algo na postura dela e na de Cathaír que me perturbou muito.
- Quanto tempo estive inconsciente? - perguntei, enquanto Magnus pegava no tabuleiro. No momento em que ele lhe pegou, o jovem guerreiro recuou e desapareceu pela
galeria.
- Algum tempo. Não te preocupes com tudo isto agora, Caitrin. Come e descansa. Manter-te-emos em segurança.
Beberiquei o caldo em pequenos golos cautelosos. A minha garganta parecia tão áspera como couro seco. Doía-me a respirar, mas o líquido morno era calmante.
- Onde estão todos? - perguntei. - Rioghan e Eichri? Olcan e Fianchu? - Percebi que me esquecera da pergunta mais importante. - Os normandos! O que aconteceu lá
em baixo na povoação?
- É engraçado como as coisas acontecem por vezes. Correu bem. A hoste manteve-se dentro das fronteiras do monte. Anluan fez o discurso dele, os normandos ouviram,
disseram o que tinham a dizer, ele
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enfrentou-os. Estavam precisamente a entrar na parte seguinte, sobre como seria insensato deixarmos que a situação chegasse a um conflito armado porque eles fariam
picado de carne de todos nós, quando ouvimos Olcan berrar do outro lado da barreira e os homens que eles deixaram de guarda a berrarem-lhe de volta. Depois saímos
e vimos o fumo.
- Anluan desafiou os emissários de Lorde Stephen? Recusou-se a ceder às suas exigências?
Magnus voltou um olhar decidido para mim. Perguntei-me como não reparara antes que os olhos dele eram parecidos com os do meu pai.
- O que esperavas? - perguntou, simplesmente.
- Então vai haver guerra.
- Quando ele pensou que te perdera, pareceu-me que desistiria da luta. Estava enganado. Ele não recuará agora, Caitrin, não depois de ter falado à hoste, não depois
de ter feito o discurso de desafio aos conselheiros normandos. Se a guerra chegar a Whistling Tor, lutaremos e tombaremos sob o estandarte de um verdadeiro líder.
A tarde passou. Persuadi a criança-fantasma a empoleirar-se na extremidade da minha cama, embrulhada no meu xaile. Magnus elevou as sobrancelhas, mas não fez qualquer
comentário. Perguntei-me porque não partira ele para cuidar das suas habituais tarefas, mas não o questionei. A sua presença forte e calma fazia-me sentir segura
e queria que ele ficasse.
Olcan veio visitar-me, com Fianchu ao seu lado e, aparentemente, em óptimo estado. O homem da floresta olhou durante algum tempo para o espelho que estava pendurado
na minha parede, aquele que eu trouxera da torre, mas não fez qualquer comentário, limitando-se a acenar com a cabeça em sinal de aprovação, como se a sua presença
no meu quarto fosse exactamente o que ele esperara.
A certa altura ouvi Rioghan a chamar do jardim e Cathaír veio novamente à porta.
- Querem-me lá em baixo. - O jovem guerreiro tinha os olhos voltados para baixo, a cabeça desviada, como se não quisesse que eu reparasse nele. - Peço permissão
para abandonar o meu posto.
- Vai - indicou Magnus. - Vão pedir-te que faças o relato do que se passou, com certeza, juntamente com os outros. Diz a verdade, é tudo o que precisas de fazer.
- Cathaír - acrescentei eu -, estás bem? Como está Gearróg? - A imagem do meu guarda a contorcer-se de dor, com as mãos pressionadas contra os ouvidos, estava inculcada
na minha mente. Era quase
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inconsistente com a história de ter derrubado uma porta trancada para me salvar, pouco depois.
Cathaír olhou fixamente para a parede.
- Não somos dignos do teu interesse, senhora. Nem da tua confiança. Fracassámos. Um momento de silêncio.
- Porque uma voz te atormentou, te provocou uma dor intolerável e fez os homens enlouquecer? - perguntei-lhe calmamente. - Eu vi-te fazer o teu melhor para os controlar
lá em cima, Cathaír. Eu vi Gearróg lutar contra ela. Pelo que Magnus me disse, não houve qualquer prejuízo duradouro. Pensei ouvir cantar, como se estivessem a fazer
um esforço para resistir juntos contra uma força muito superior.
- Isso foi o mais velho, Broc. Foi ele que nos puxou de volta. Mas tém-se o facto de que, quando o frenesi nos atingiu, os homens quebraram as fileiras, perderam
a disciplina. O frenesi. Nechtan usara a mesma palavra para descrever a hoste a semear o caos no seu ataque sangrento ao povo de Farannán. Fosse o que fosse, há
muito que existia.
- Ficaram no monte e ninguém se magoou - insisti. - Conseguiram fazer o que acordaram no conselho.
- Tu magoaste-te. - Continuava a não olhar para mim. - Não te conseguimos ajudar, não conseguíamos ver ou ouvir bem. Não podemos dissipar o frenesi. Se um homem
perde a coragem numa batalha, se não se mantém no seu posto, não pode culpar a ninguém senão a si próprio. Magnus pigarreou.
- Vai e explica-te perante Rioghan, rapaz. Ele é um conselheiro de muita experiência e será justo. Lorde Anluan estava zangado. Poderá ter dito coisas de que se
venha a arrepender mais tarde. Ele acabará por perceber com o tempo que correu um risco calculado, bem como todos nós, incluindo Caitrin. Se as coisas não correram
exactamente como ele esperava, pelo menos parte da responsabilidade é dele. Agora, vai. Quanto ao futuro, o nosso chefe tribal acabou de nos comprometer com uma
guerra e, se não queremos repetir os erros de hoje, teremos de dedicar toda a nossa força e coragem a descobrir como fazê-lo.
- Minha senhora - murmurou Cathaír, girando nos calcanhares e saindo.
- Anluan estava zangado? O que foi que ele lhes disse exactamente?
- Sabes como ele é por vezes - explicou Magnus. - Atirou-se a eles por não te terem ajudado, disse-lhes que eram inúteis e indisciplinados, e muito mais do mesmo.
Eles limitaram-se a ouvir. Já antes os
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ouvi falar deste frenesi. A voz como alguns deles lhe chamam. Ou lhes dá uma dor de cabeça incapacitante ou lhes enche a mente de más memórias do passado. Ou ambas
as coisas ao mesmo tempo. Seria muito difícil ficarmos no nosso posto e mantermo-nos alerta se uma coisa assim semeasse o caos nas nossas cabeças.
- De onde pensas que vem esta voz? - Comecei a lembrar-me de trechos dos documentos. Doces murmúrios; não devo ouvi-los. A voz, sim mas não parecia ser o mesmo fenómeno.
Noite após noite, um sussurro no meu ouvido. Tenta-me ao desespero. - Deve ser muito poderosa se consegue incapacitar toda a hoste de uma vez. - Perguntei-me, não
pela primeira vez, se Nechtan poderia ter deixado para trás um encantamento que continuasse o seu trabalho sujo muito depois da sua morte. - Rioghan e Eichri também
foram afectados por ela?
- Só tiveram dores de cabeça. Muirne ficou mais afectada. Uma dor que lhe tirou toda a razão, foi assim que ela a descreveu.
Muirne sofrera a mesma dor que Gearróg? Não era isso que a minha memória me dizia. Mas ela estava atrás de mim quando ele caiu e depois desaparecera. Devia dar-lhe,
pelo menos, o benefício da dúvida.
- Gostaria de falar com Muirne, Magnus. Pensas que ela poderia vir aqui acima?
- Ela parecia um pouco abalada. Deixa isso para mais tarde, é o meu conselho. Não devias estar a fazer nada senão descansar, Caitrin. Deita-te outra vez. - Ele olhou
para a menina-fantasma, aninhada debaixo do xaile, com pouco mais à mostra do que feixes de cabelo branco e olhos amedrontados. - E ela terá visto como o fogo começou?
- Mandei-a embora. A voz deixou Gearróg um pouco enlouquecido. Receei por ela; é tão pequena.
Magnus cruzou os braços e lançou-me um olhar astuto.
- Isso quer dizer que Gearróg te bateu - concluiu ele.
- Não me bateu a mim. Ele tentou atingir algo que ele pensava que ali estava. Teve uma espécie de convulsão, de ataque. Eu estava no caminho.
- Hum, hum.
- É verdade, Magnus. Eu vi como todos os homens se estavam a comportar, incluindo Gearróg. A voz é poderosa. - Deitei-me sobre as almofadas e pensei no que aprendera.
Nechtan estava certo de que a experiência fora bem-sucedida. Fora tão cuidadoso com os preparativos. Mas, fosse como fosse, a grande experiência correra mal. Eu
vira o resultado, a hoste desgovernada, as batalhas, as carnificinas, o sangue e o ódio que derivaram da obsessão de um homem. Eu vira os acidentes, os erros,
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"o fogo, as cheias e a crueldade indiferente. - Magnus - disse -, esta voz, a que semeia a desordem na hoste, poderá ter sido a causa de tudo que tem corrido mal
desde que Nechtan os invocou. Quem quer que tenha sido, esperou que Nechtan ou Conan estivessem no campo, no meio da batalha, e depois falou com a hoste, fazendo-os
entrar naquilo a que chamam frenesi. Gearróg disse que os põe de cabeça para baixo, os vira do avesso, de tal maneira que não sabem o que fazem. O frenesi poderia
fazer alguém atear um fogo. Poderia... - Poderia deixar alguém tão desesperado que se matasse a si própria. Não diria aquilo. Mas parecia-me que a voz que provocava
o frenesi também conseguia falar com os vivos. Na verdade, talvez já a tivesse ouvido, a dizer-me que fora corrompida pelos desejos carnais de Nechtan. Não era apenas
cruel, era inteligente. - É essa a maldição da família? - perguntei-lhe. - A voz sempre presente, interferindo com as tentativas que as pessoas fazem para emendar
as coisas? Anluan também a ouve?
- Tens de lhe perguntar a ele. Não fala comigo, nem com Olcan. será a maldição? Não te sei dizer. Ninguém sabe quem lançou a maldição sobre Whistling Tor ou de que
se trata exactamente. Como eu vejo coisas, nem tudo é mau. As pessoas sempre disseram que era coisa que ia durar cem anos, que Whistling Tor estava condenado a cem
anos de má sorte ou fracasso, ou a doenças nas ovelhas, ou outras interpretações que as pessoas queiram dar. A mim parece-me que os cem anos devem estar quase a
acabar. É uma razão poderosa para Anluan levar até o fim o desafio que lançou a Lorde Stephen. Se levarmos a sério as lições.
Pensei nisto um pouco.
- Quer dizer que isto poderá ter um fim, mesmo sem o feitiço de reversão?
- Talvez. Pela forma como Anluan estava a falar há pouco, ele vê as coisas de forma um pouco diferente desde que tu quase morreste. Duvido que ele queira que continues
a ler aqueles livros de feitiços. O que aconteceu esta manhã deixou-o muito abalado.
- Eu devia falar com ele - disse eu. - Tenho de me levantar de Qualquer maneira, preciso de ir à latrina. Para além disso, não devias perder o teu tempo a olhar
por mim.
- Terás dificuldade em convencê-lo de que é seguro deixar-te sozinha.
- Talvez se ele me vir a andar por aí... - Deslizei as minhas pernas fora da cama, alisei a saia e levantei-me. O aposento girou; os joelhos cederam. Magnus agarrou-me
antes de eu cair.
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- Ou então - comentou Magnus -, se te vir assim, poderá mandar-te de volta para a cama durante uns dias e ficar ele próprio de guarda. Eu levo-te.
Lá em baixo no pátio, os guerreiros do Tor estavam reunidos na sua estranha variedade a escutar Rioghan enquanto ele andava para baixo e para cima diante deles.
- ...técnicas para lidar com este tipo de situação. Pode ser algo muito simples, como contar mentalmente, repetir uma rima, concentrar-se num padrão, qualquer coisa
que bloqueie a distracção.
- Distracção? É isso que lhe chamas? - Era o mais alto dos guerreiros, o que geralmente trazia um pique.
- É assim que devem pensar, mesmo que vos doa tanto que pareça que a vossa cabeça vai explodir. - O tom de Rioghan era comedido; se eu fosse um dos homens, tê-lo-ia
achado reconfortante. - Era isso que Broc já sabia e vocês não. Têm de lhe agradecer por vos ter tirado desta trapalhada, a ele e ao facto de ele ter visto mais
batalhas do que aqui Donn viu pregos de ferro.
Uma onda de risos apreciativos. Depois Cathaír viu Magnus a caminhar em direcção à porta principal comigo ao colo. Cabeças voltaram-se para nós e um silêncio repentino
caiu sobre o pátio. Rioghan acenou com a cabeça, de forma respeitosa, na minha direcção, e depois retomou o seu discurso.
- Já viram o que pode acontecer se perderem a concentração. Tiveram sorte por não ter acontecido pior. Da próxima vez, não estaremos apenas a controlar as defesas
e a mantermo-nos fora de sarilhos, estaremos a travar uma batalha. Se o frenesi se apoderar de vocês quando estiverem prestes a trespassar um normando com a vossa
lança, vão-se atirar para o chão contorcidos com dores? Atacarão o camarada que estiver ao vosso lado? Não. E eu digo-vos porque não. Porque todos os dias, entre
agora e a altura em que marcharemos lá para baixo para defender Whistling Tor, trabalharão tanto que não terão tempo para ouvir mais nada a não ser as ordens dos
vossos líderes. Se não gostaram do que Lorde Anluan vos disse antes, certifiquem-se de que não lhe darão razão para o dizer de novo.
- Magnus - murmurei enquanto ele me levava para dentro e para longe de vista -, não vi Gearróg.
- Ele pode ter salvo a tua vida, mas não estava com bom aspecto quando chegámos aqui acima. Deve estar por aí algures, a pensar, julgo eu. Tal como Anluan.
- Pensei que tivesses dito que Anluan estava a descansar.
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- Eu disse que o mandei descansar. Ambos sabemos o quão é improvável é que ele tenha seguido o meu conselho.
Depois de ter usado a latrina e de me ter lavado, senti-me suficientemente forte para andar por mim, embora ainda não conseguisse respirar sem esforço. Magnus queria
levar-me de volta para o meu quarto, mas convenci-o de que uma das suas beberagens de ervas me faria bem. Sentei-me à mesa da cozinha para a beber, enquanto ele
cortava vegetais para fazer uma sopa. Trabalhou mantendo-me debaixo de olho, como se esperasse que eu tivesse um colapso no momento em que ele desviasse o olhar.
Perguntei-me se teria morrido se Gearróg não tivesse arrombado a porta da biblioteca e quem teria levado a notícia à minha irmã. Senti uma grande necessidade de
voltar a ver Maraid, para lhe dizer que a perdoava por me ter abandonado. Começava a perceber que as pessoas fazem escolhas extremas, para o bem e para o mal, e
que por vezes existem boas razões para isso. Queria ter a certeza de que ela e Shea estavam felizes. Não estava de todo certa de que a vida de um músico itinerante
se adequaria a Maraid, uma mulher para quem a lareira de casa era preciosa.
- Tens irmãos e irmãs, Magnus? O homenzarrão parou, com a faca na mão.
- Dois irmãos. Há muitos anos que não os vejo, nem sequer sei se ainda estão vivos. Eram ambos pescadores, lá nas ilhas. O mar é um senhor duro, não discrimina.
- Nunca pensaste em voltar para casa, nem que fosse só por algum tempo?
O sorriso dele era de resignação e não de amargura.
- Não posso, Caitrin. Deixei essa vida para trás quando me juntei aos gallóglaigh. Disse à minha mãe que não contasse com o meu regresso, Não queria que ela passasse
os seus dias à espera de me ver e a ficar constantemente desiludida. Anluan precisa de mim.
- Deves ter tido orgulho dele esta manhã.
- Tive. - Recomeçou a cortar as cebolas.
- E vai precisar de ti ainda mais, agora que comprometeu Whistling Tor a enfrentar um ataque normando. Precisará de todos nós.
- Quanto a isso - interveio Magnus -, poderemos ter algumas escolhas difíceis pela frente.
- O que queres dizer?
- Fala com Anluan, rapariga. Ele vai levar isto até ao fim, mas não está contente com o que isso significa. Penso que ele te irá procurar mais tarde, para te explicar
tudo.
- Irei falar com ele agora. - Levantei-me, equilibrando-me com uma mão na mesa. - Onde pensas que ele está?
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- Não vais sozinha a lado nenhum - declarou Magnus.
Uma figura delgada apareceu junto à porta exterior: Muirne, com marcas tão roxas como nódoas negras debaixo dos olhos. Não mentira quando falara de uma dor de cabeça
incapacitante.
- Já recuperaste, Caitrin.
- Sinto-me um pouco melhor, obrigada. E a tua dor de cabeça? Um sorriso invernoso.
- Passará.
- Saíste do jardim com uma grande rapidez.
- Não poderias compreender. A dor é tal que não se age com sensatez. Não pude ajudar-te.
Magnus estava concentrado nos seus cozinhados, deixando a conversa embaraçosa para nós as duas.
- Muirne, sabes onde está Anluan?
Ela deu um passo em frente e voltou-se para ajustar umas canecas de modo que ficassem perfeitamente alinhadas.
- Sim - respondeu.
- Preciso de falar com ele. Poderias ir lá comigo? - Olhei para Magnus, esperando que ele me mandasse de volta para a cama.
- Onde é que ele está, Muirne? - perguntou o homenzarrão.
- Por ali. - Muirne agitou vagamente a mão no sentido da porta interior. - Por perto.
- Suponho que não fará mal, desde que a Caitrin não vá sozinha - indicou Magnus. - É provável que ele discuta comigo por te ter deixado sair da cama tão cedo, Caitrin.
Muirne, olha bem por ela. - Ele estava a retirar o presunto do gancho onde eu o pendurara.
- Com certeza. - As sobrancelhas de Muirne elevaram-se, como se fosse ridículo sugerir que ela seria outra coisa senão a mais cuidadosa das companheiras. Ela pegou-me
no braço - o toque dela gelou-me - e saímos pela porta interior para o labirinto de aposentos e corredores que se seguia.
Talvez tivesse sido tola. Uma vez, na torre, imaginei que ela queria empurrar-me lá de cima, para o esquecimento. Suspeitei que ela me fechara na torre. Até me perguntara
se fora ela a responsável pela destruição dos meus pertences, embora fosse difícil imaginar uma criatura tão controlada a esfarrapar um vestido e a arrancar o cabelo
de uma boneca. Quanto ao seu misterioso desaparecimento naquele dia, mesmo antes de eu me dar conta do fogo, ela tinha uma explicação perfeitamente plausível. Eu
vira como o frenesi afectava a hoste, fazendo com que os homens no passadiço se voltassem uns contra os outros, fazendo com que o disciplinado Gearróg ficasse subitamente
insano. Devia estar grata
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Muirne. Se ela não se tivesse retirado do jardim de Irial, talvez tivesse sido levada a atacar-me.
- Algo te diverte, Caitrin?
- Não exactamente. Este dia tem sido difícil. Pensei que a biblioteca se perderia.
- Isso seria, de facto, mau, uma vez que acreditas que a hoste pode ser dispensada se encontrares a página certa. Se os registos se perdessem, não terias qualquer
motivo para permanecer cá.
Passado um momento, eu disse:
- Felizmente, parece que nada se queimou. O fumo provocou alguns danos, mas foi só isso. Não foi um verdadeiro fogo. Foi outra coisa.
- Estamos em Whistling Tor. Não é como o mundo exterior. - Ela parou em frente de um comprido espelho de bronze, pregado à parede de pedra. O verdete começava a
arrastar-se por cima da sua superfície, como gangrena a alastrar-se.
- Em muitos aspectos, isso é verdade - retorqui. - Mas Whistling Tor existe inserido no mundo exterior, não pode manter-se para sempre isolado, sendo fiel apenas
às suas próprias regras. Sem as viagens de Magnus até à povoação e a prontidão daquela gente para lhe fornecer mantimentos, este lugar não poderia continuar a sobreviver.
E agora os normandos estão prestes a vir e Anluan vai lutar pelas suas terras. Ele entrou nesse mundo exterior, Muirne, e fez a promessa de que enfrentaria a ameaça
com coragem, ele e a hoste, juntos. Os tempos estão a mudar.
Muirne tinha a mão espalmada na parede, ao lado do painel de bronze. Havia um pequeno franzido entre as suas delicadas sobrancelhas pálidas.
- Nunca compreendeste verdadeiramente, pois não? - perguntou, e o espelho afastou-se da parede para revelar um espaço sombrio no Ulterior e umas escadas descendentes.
- Anluan está lá em baixo. Vem sem fazeres barulho.
Os meus cabelos da nuca arrepiaram-se de inquietação. Havia algo de profundamente perturbador naquela entrada escondida, uma ameaça, - algo de errado. Hesitei, com
as campainhas de alerta a tinir alto na minha cabeça.
- Estás com medo? - perguntou Muirne com suavidade, com a mão na minha manga. - É perfeitamente seguro. Vem, eu mostro-te.
Algo nos seus olhos me fez descer as escadas atrás dela. Ao fundo, uma pesada porta de ferro estava aberta. Parámos. A luz de um candeeiro brilhava no interior.
O aposento encontrava-se bastante abaixo do nível do chão, não devia haver janelas aqui.
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Parei um momento para perguntar que lugar era aquele, mas os dedos frios de Muirne pousaram subitamente sobre os meus lábios, fazendo-me ficar em silêncio e imóvel.
Os olhos dela deslocaram-se de mim para a fresta da porta e, quando segui o seu olhar, vi Anluan no interior do aposento. Estava sentado num banco corrido, quieto,
de costas para nós. Estava a olhar fixamente para um espelho. Perguntei-me porque é que não vira logo os nossos reflexos e não se voltara. Depois vislumbrei um remoinho
de movimento e de cor na superfície que estava diante dele e percebi tratar-se de outro dos artefactos de Nechtan, mostrando algo muito diferente do que estava na
sua frente. Não devia estar ali a observá-lo. Devia retirar-me ou fazer um barulho que o alertasse para a minha presença. Mas não consegui. As imagens que prendiam
Anluan estavam plenamente visíveis e agarraram-me como pareciam tê-lo agarrado a ele. Ao meu lado, Muirne estava tão silenciosa como uma sombra.
Tratava-se de um espelho de vidro, com uma superfície reflectora por trás dele, um objecto que só se encontrava nas casas mais abastadas. As imagens que nele se
viam estavam tão claras como se fossem vistas através de uma janela num dia de sol. Via-se Anluan montado num cavalo negro, a cavalgar depressa pelo caminho da floresta
salpicada de cores. Sentava-se direito, os ombros largos, a cabeça erguida e o cabelo cor de fogo caindo em ondas atrás dele. Uma espada pendia do cinto e havia
um arco pendurado no ombro. Dois cães esguios corriam junto às patas do cavalo. Atrás dele, os homens de armas cavalgavam, dois a dois, um deles transportando um
estandarte: um Sol dourado num campo do tom do céu de Verão.
A imagem ondulou e mudou. Vi o mesmo grupo de homens, desmontados e à vontade numa clareira da floresta, com os cavalos a pastar por perto. Enquanto alguns dos homens
preparavam uma fogueira e outros descansavam debaixo das árvores, a maioria formava um círculo e observava um combate de luta livre - Anluan e outro jovem, meio
despidos, embrenhados num combate aceso, força contra força. Vi de imediato que o Anluan da visão tinha dois braços fortes, duas pernas fortes, uma postura direita
e regular, um equilíbrio perfeito. Era, em todos os aspectos, um óptimo exemplo de virilidade saudável. Por um momento, pareceu olhar directamente para o aposento
subterrâneo e vi que as suas feições eram regulares, sem qualquer vestígio da estranha distorção que afligia o verdadeiro Anluan. Era um rosto tão equilibrado que
lhe faltava carácter.
Isto estava errado. Eu não devia estar a espiar o homem de quem mais gostava no mundo. Fiz tenção de me virar e Muirne colocou
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sua mão em cima do meu ombro. Sobressaltei-me; esquecera-me de que ela estava ali. Havia uma mensagem poderosa e silenciosa no seu toque: Ainda não, Caitrin.
E aí, ah, aí apareceu a terceira visão. Carne pálida num gracioso sobe-e-desce, cabelo escuro e encaracolado por cima de um corpo feito de curvas e suavidade, madeixas
de uma cor viva espalhando-se por cima de ombros masculinos. Mãos que afagavam, acariciavam, primeiro ternas e depois mais urgentes à medida que o desejo aumentava.
Uma confusão de membros, uma cascata de vestes despojadas. Lábios que se tocavam, e que se afastavam, que se tocavam de novo, que se prendiam, que saboreavam; línguas
que se exploravam. Um corpo que se elevava; outro que mergulhava fundo. Senti o meu rosto incendiar-se de calor. Era eu quem estava naquela visão, eu, nua e exposta,
abrindo-me para ele, puxando-o para mim, dando-lhe tudo o que tinha num abandono jubiloso. O homem bem feito que comigo se emaranhava e caía num abraço íntimo era
nluan; não o Anluan que eu conhecia e amava, o homem de sol e sombras, o meu amigo, o meu companheiro, aquele cujas excentricidades e perturbações lhe haviam moldado
o corpo e o carácter, mas o Anluan perfeito, o primeiro entre os guerreiros, aquele que conseguia fazer tudo o que um verdadeiro chefe tribal devia fazer: montar,
lutar, liderar. Fazer amor com uma mulher. O verdadeiro Anluan inspirou profunda e exasperadamente e depois deu um murro violento com o punho esquerdo. O espelho
desfez-se em Mil pedaços. Havia sangue na sua mão; ele olhou-a como se mal soubesse do que se tratava. No momento antes de me voltar e fugir, olhei em redor do aposento
e percebi que me era familiar. Prateleiras alinhadas nas paredes, em cima delas uma parafernália poeirenta - livros, rolos, frascos, cadinhos, estranhos instrumentos
cujo uso só se podia adivinhar; uma engenhosa chaminé para ventilar o fumo, uma fila de suportes para pendurar roupas, uma mesa suficientemente grande para suportar
uma pessoa deitada; uma pequena cama a um canto. Já o vira antes. Era a sala de trabalho de Nechtan.
Corri. Não parei até estar quase junto à porta da cozinha e mesmo assim parei porque sabia que desmaiaria se não tentasse serenar a minha respiração ofegante. O
corredor girava à minha volta. Forcei-me a respirar devagar, encostando-me à parede para me apoiar.
- O espelho do podia-ter-sido. - Muirne seguira-me de perto e agora estava de frente para mim, de mãos atrás das costas e de rosto calmo. Falou em surdina. - Um
dos espelhos mais cruéis de Nechtan. Anluan viu-se a si próprio como teria sido se a paralisia não o tivesse
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atingido: um homem direito e alto, um homem bem-parecido, o tipo de homem que os outros seguem. O tipo de homem que pode deixar a sua marca nesse mundo exterior
que tu consideras tão importante. É claro que Anluan nunca poderá ser esse homem. Antes de vires para cá, ele aceitara isso.
Tive de me impedir de a agarrar pelos ombros e de lhe dar um forte abanão.
- Porque me mostraste aquilo? Ele ficaria mortificado se soubesse que estávamos a ver! Só quero ajudá-lo, Muirne. Eu gosto dele. Pensei que também gostasses.
- Oh, Caitrin. Não importa o quanto eu possa gostar dele, não posso mudar as coisas e tu também não. Anluan nunca será aquele esplêndido homem do espelho. Ele terá
sempre os ombros tortos e uma perna que se arrasta. A sua mão direita não pode segurar numa pena e muito menos numa espada. A paralisia desgraçou-o. Ele não tem
nada para oferecer a uma mulher como tu. Percebes o que te digo? Uma mulher de verdade quer ter filhos. Quer ser... satisfeita. Se queres um homem de verdade, Caitrin,
não o procures aqui.
A sua crueldade implacável fora tão brutal como um golpe. Consegui encontrar palavras para lhe responder, talvez não muito sensatas, mas vindas do coração.
- Pensei que o amasses - disse-lhe calmamente. - Vejo que estava enganada. Tenho pena de ti, Muirne. Pareces não compreender o que é o amor. - Virei-lhe as costas
e afastei-me.
Não quis perturbar Magnus ainda mais, mas quando entrei na cozinha, com a minha mente ainda abalada com o que se passara, ele olhou para mim, pegou-me ao colo e
levou-me de volta para o meu quarto, murmurando que nunca devia ter saído da sua vista.
- Não estiveste ausente durante muito tempo - observou ele depois de eu estar deitada debaixo das cobertas. - Falaste com Anluan?
- Não, não consegui encontrá-lo. Magnus, não precisas de ficar aqui comigo. Ficarei bem. Só quero dormir um pouco. - Duas mentiras. Estava longe de estar bem e não
conseguiria dormir. Mas precisava de ficar sozinha para poder compreender o que se passara. Como poderia sequer voltar a olhar para Anluan? O meu conhecimento recém-adquirido
devia estar pintado no meu rosto. Como poderia falar com ele? O mais simples bom dia devia sair tremido de emoções contidas. A visão ainda ardia intensamente em
mim e o resultado amargo alojara-se profundamente no meu coração.
Magnus lançou-me um olhar penetrante, mas decidiu que não devia fazer mais perguntas.
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- Não podes ser deixada a sós, rapariga. Poderá não ser muito apropriado, que os homens da casa cuidem de ti aqui em cima, mas Muirne é a única mulher do nosso círculo
íntimo e não penso que ela se distinguisse nessa tarefa. Chamarei Rioghan. Preciso de acabar o que comecei na cozinha.
Um assobio estridente da entrada trouxe Rioghan, que pareceu ficar muito contente por se sentar comigo uma vez que terminara de falar com o seu exército improvável.
Disse-me que dispensara os homens da hoste para que discutissem os assuntos entre eles. Voltariam no dia seguinte com um plano preliminar para lidar com o frenesi
quando ele voltasse. Parecia tudo muito prático; demasiado simplista, talvez, mas não o disse. Afinal, era ele o estratega e naquele momento eu era uma pessoa confusa,
miserável e cansada.
- Uma vez que aqui estou - Rioghan puxou um banco para perto da cama e instalou-se, com a capa a formar um tapete carmesim à sua volta -, podíamos falar um pouco
melhor sobre a tua situação familiar, Caitrin, com aqueles parentes distantes que acreditam ter direito a controlar os teus assuntos. Sinto que essa questão precisa
de ser clarificada. Porque estaria ele a falar daquilo naquele momento, do nada? Ita eCillian pareciam estar muito longe e não valia a pena voltar a pensar neles.
O meu coração estava ocupado com Anluan.
- Posso não ter muito para te dizer - declarei, conseguindo esboçar um sorriso.
- Só precisas de me ouvir - afirmou Rioghan. - E talvez de responder a uma ou duas pequenas perguntas.
- Está bem.
A menina-fantasma estava à porta, olhando para fora. Perguntei-me se esperava por Gearróg, que fora tão gentil com ela. Onde estaria ele?
- Ouve, Caitrin - começou Rioghan. - Se percebi bem, tu e a tua irmã são as únicas filhas do teu pai, não é verdade?
- Sim.
- A casa onde viviam não estava relacionada de nenhuma forma com o emprego do teu pai? Pertencia-lhe a ele?
- Pertencia. Ele nunca se ligou a um só patrono, embora houvesse muitos que teriam gostado dos seus serviços exclusivos. Trabalhávamos de forma independente. Era
assim que o pai preferia. Dava-nos mais controlo.
- E o desagradável Cillian e a mãe dele não são parentes chegados? Qual é a relação que tens com eles, exactamente?
Era mais do que uma ou duas pequenas questões.
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- Ita é uma prima afastada do meu pai. Mas ela disse que Cillian porque era o único parente masculino, tinha o controlo da propriedade do meu pai. Não havia muito.
Apenas a casa. E as ferramentas e os materiais da sala de trabalho. Ela vendeu a maior parte deles.
Rioghan voltou os seus olhos escuros para mim. Juntou as longas mãos e colocou os cotovelos em cima dos joelhos.
- Essa Ita mentiu-te, Caitrin - declarou ele.
- Acerca dos pertences do pai. Como sabes?
- No que se refere aos pertences, não posso ter a certeza, mas penso que é provável que um artífice competente como o teu pai tivesse muitos mais recursos do que
sugeres, a menos que bebesse muito, que gostasse de jogos de azar ou que tivesse qualquer outro vício no qual esbanjasse os seus ganhos.
Se tivesse energia, teria rido daquele comentário.
- Não tinha qualquer vício. O pai era um homem trabalhador com uma vida limpa. Mesmo que quisesse fazer essas coisas, nunca teve tempo.
Rioghan acenou com a cabeça.
- Foi o que eu pensei. Não falarias dele com tanto amor e respeito se ele fosse outra coisa. Agora deixa-me contar-te um ou dois factos. Existe uma lei que gere
as heranças, e ainda vale em todos os territórios de Erin que não estejam sob o jugo dos normandos. Se um homem não tiver filhos, as filhas dele herdam, no mínimo,
a sua propriedade enquanto forem vivas. A casa do teu pai, as terras dele e tudo o que existe no seu interior, é teu e da tua irmã, em partes iguais. Um primo distante
não tem qualquer direito sobre a tua casa de família, Caitrin, nem sobre as ferramentas do ofício do teu pai, nem sobre os animais, nem sobre a mobília, nem sobre
qualquer outra coisa que o teu pai possuísse. O facto de Cillian ser homem não faz qualquer diferença.
Isso queria dizer que Ita me mentira descaradamente. Esta poderia ter sido, em tempos, uma descoberta atordoadora, pois a notícia dava-me a maravilhosa dádiva da
independência e o direito de continuar a viver na casa onde em tempos fôramos a mais feliz das famílias. Talvez, com o tempo, me pudesse ter estabelecido como escriba
de direito próprio, capaz de me sustentar condignamente. Uma parte da minha mente sabia que eram óptimas notícias, mas aquela vida parecia-me tão distante naquele
momento. Tentei imaginar-me a regressar a Market Cross para apresentar os factos a Ita. Tentei imaginá-la e a Cillian a serem expulsos da casa de que se tinham apropriado
sob falsas pretensões. Mas tudo o que conseguia ver era o punho de Anluan a desferir um golpe e pedaços de vidro a voar pelo ar naquele aposento subterrâneo. Tudo
o que
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conseguia ouvir era a voz precisa e mesquinha de Muirne a dizer: Se queres um homem de verdade, Caitrin, não o procures aqui.
- Caitrin?
Olhei para Rioghan. Ele merecia uma melhor resposta da minha parte.
- Peço desculpa - disse. - Estou com dificuldade em concentrar-me, ainda me sinto muito fraca. É uma pena que eu não tenha sabido disto antes. Mas agora não interessa,
uma vez que não pretendo regressar a Market Cross.
Ele não respondeu de imediato e senti algo de estranho no silêncio dele. Depois disse:
- Estou a cansar-te, devo deixar-te descansar. Pensa no que eu te disse, pelo menos. Quando um tal mal foi feito, parece-me que deveria procurar-se fazer justiça.
E a tua irmã, que também foi privada dos direitos dela, presumo, inconsciente disso? Não confrontarias estes malfeitores para bem dela, se não para teu próprio bem?
De repente, senti-me tão cansada que não conseguia levantar a cabeça da almofada. Uma lágrima rolou-me pela face e não tive força para a limpar.
- Talvez um dia - murmurei, mas sabia que jamais voltaria para lá. Nem por Maraid. Nem por nada.
Fechei os olhos e fingi estar a dormir. A luz do dia esbateu-se; Eichri veio e substituiu Rioghan. Magnus veio à porta com um tabuleiro com a minha ceia e deixou-o
no quarto, onde arrefeceu. Eichri partiu e foi substituído por Olcan. Fianchu instalou-se no chão. Por debaixo das pálpebras descidas, vi a criança-fantasma arrastar-se
para se enroscar junto ao enorme cão. Lá fora, era noite.
A dada altura, ouvi uma conversa, em vozes baixas, lá fora na galeria: Olcan e Magnus a discutirem se Fianchu providenciaria uma segurança adequada durante a noite.
Foram assolados por um ataque de decoro tardio, segundo parecia. Ainda estavam a tentar decidir qual deles passaria a noite do lado de fora da porta do meu quarto
quando uma voz mais profunda falou.
- Eu ficarei aqui. Ambos precisam de dormir.
Anluan. O meu coração deu um salto arrebatador e parou, batendo depois penosamente. Ele voltara por fim. O turbilhão de sentimentos surgiu em mim de novo.
- E tu? - Ouvi Magnus protestar, não como um camareiro para o chefe tribal, mas como um pai para o seu filho. - Precisas bem mais de descanso do que qualquer um
de nós. Além disso, isto não é tarefa parati.
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- Sem discussões, Magnus. Caitrin está acordada? Já ceou?
- Ela está a dormir desde antes de eu trazer o tabuleiro. Está perturbada, penso eu, para além de magoada. Anluan, isto não é... - Magnus hesitou.
- Não é apropriado? Não é correcto de acordo com as regras do mundo que está lá fora e no qual nós não vivemos? - Detestava quando Anluan usava aquele tom de voz
severo e antagonista. Era muito errado ele dirigir-se ao leal Magnus daquela forma.
- Poderá parecer inapropriado a Caitrin, rapaz - disse Magnus calmamente. - Ela não foi criada em Whistling Tor.
- Magnus - ordenou Anluan -, podes retirar-te.
Com os meus olhos fechados, ouvi dois pares de passos retirarem-se, as grandes passadas de Magnus e o passo ritmado de Olcan, depois apenas silêncio, para além do
subtil assobiar da respiração de Fianchu. A porta fechou-se. Anluan andou um pouco pelo quarto, não sabia dizer o que ele estava a fazer. Eventualmente, aproximou
o banco da cabeceira da cama e sentou-se. No silêncio que se seguiu eu contei as batidas do meu coração e perguntei-me em que é que ele estaria a pensar. Depois
do que pareceu ser muito tempo, ele pegou na minha mão, levou-a aos lábios e depois pousou-a de novo. Ouvi-o expelir um longo sopro, semelhante a um suspiro.
Abri os meus olhos e olhei para cima para os dele. Azuis como um lago de Verão; poderia afogar-me naquela cor. Havia algo de diferente no rosto dele, como se os
acontecimentos daquele dia lhe tivessem tirado um peso de cima. Parecia um homem novo. Fora forte no conselho. Naquele momento parecia... formidável. Antes, faláramos
facilmente, como amigos íntimos. Naquele momento, o espaço entre nós era largo e fundo e nele estava a visão estilhaçada do que não podia ser. Não consegui pensar
em nada para dizer.
- Estás acordada. - A voz dele cedeu naquela simples frase. Pigarreou e tentou de novo. - Água. Deixa-me ir buscar-te um pouco de água, Caitrin.
Enquanto ele foi encher um copo com água, eu inclinei-me para apanhar o meu xaile, mas percebi que a criança-fantasma estava embrulhada nele. O quarto estava cheio
de pequenas correntes de ar.
- Estás com frio. - Estava ao lado da cama, segurando o copo. - Devias estar num quarto com uma lareira e não aqui em cima. - Ele deu-me o copo, depois despiu a
capa e colocou-a em redor dos meus ombros. O braço dele não se demorou.
- Obrigada, Anluan. Deves estar cansado. Magnus disse que correu tudo bem esta manhã com os emissários normandos. - As minhas palavras
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soaram estranhas, artificiais, como se estivesse a ter uma conversa social com alguém que mal conhecia.
- É o que me dizem. - Afastou-se para se colocar, desajeitadamente, junto à parede. Tinha aspecto de alguém que queria estar noutro lugar qualquer. - Caitrin, tenho
algo para te dizer. Preciso de o dizer antes de... - Olhou para Fianchu adormecido e para o pequeno espírito enroscado ao lado do cão. - Preciso de o dizer agora.
Naquele momento, fiquei mesmo com frio; gelada até aos ossos.
- Continua, então - encorajei.
- Esta manhã proferi palavras de desafio lá em baixo na povoação. Jurei liderar o meu povo contra quem quer que tentasse tirar-nos as nossas terras e a nossa independência.
Comprometi-me, e à minha casa, e muito provavelmente, isso significa um conflito armado. Fiz o que me desafiaste a fazer, Caitrin. Comportei-me como um chefe tribal.
- Eu sei a coragem que foi precisa para o fazeres - afirmei, mas minha voz parecia pequena entre as sombras do quarto. A imagem na minha mente, a mão dele a estilhaçar
o espelho, as visões cruéis do homem que ele nunca poderia ser, não encaixavam com este estranho de maxilar contraído. A sua voz denunciava um âmago de ferro. -
Eu sempre soube que eras capaz de o fazer, Anluan. Eles seguir-te-ão, estou certa disso, não apenas a hoste, mas o povo de todos os teus territórios. Ficaremos ao
teu lado, aconteça o que acontecer... - Parei de repente. Ele voltara-se para olhar para mim, e o que vi nos seus olhos fez com que fosse impossível continuar. -
O que é? - murmurei. - O que se passa? O que tens para me dizer?
- Caitrin, não podes ficar aqui. Quero que partas. Não devia ter ouvido bem.
- O que foi que disseste? - sussurrei.
- O trabalho que tinhas para fazer em Whistling Tor terminou. Não podes permanecer cá.
- Mas... - Nas minhas visões do futuro, algumas menos realistas do que outras, nunca considerara a possibilidade de ter de partir antes de o Verão acabar.
- Querias que eu fosse um líder. Um líder toma decisões e esta já está tomada. Não vale a pena discuti-la. Lamento o incómodo, mas terás de partir o mais depressa
possível. Levarei um ou dois dias a tratar dos preparativos.
Era um sonho mau, não podia estar a acontecer. Não fazia qualquer sentido.
- E os livros de magia negra? E o feitiço de reversão? - Mesmo enquanto falava, percebi que há algum tempo que ele preparava isto.
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Magnus dissera Poderemos ter algumas escolhas difíceis pela frente. Rioghan fizera questão de me explicar os meus direitos legais e de me falar em voltar para casa.
Eles sabiam, ambos. Talvez até Muirne soubesse. - Ainda não terminei o trabalho para o qual me contrataste! - Eu amo-te; por favor, não me mandes embora.
- Não discutiremos mais o assunto, Caitrin. A procura de um feitiço de reversão foi suplantada pela possibilidade de uma guerra. Os livros de magia negra têm de
ser postos de parte até a situação de Stephen de Courcy se resolver, de uma forma ou de outra. Já não há qualquer trabalho para ti em Whistling Tor. Não há qualquer
razão para aqui estares.
- Mas, Anluan, mesmo que não haja qualquer trabalho, mesmo que...
- Não. - A palavra cortou as minhas esperanças com uma severidade brutal. - Contratei-te para fazeres um trabalho, Caitrin, e o trabalho está feito, tanto quanto
possível. Não há aqui mais nada para ti.
- Mas... Eu pensei... Eu esperei... - Com as imagens do espelho estilhaçado na minha mente, lutei para encontrar uma resposta. - Anluan, porquê...
- Não insistas, Caitrin. - O tom de voz dele estava a aquecer.
Eu permaneci sentada, imóvel. Esta não era uma tentativa bem-intencionada de me livrar do perigo até o conflito terminar. Não regressaria em tempo de paz. Ele estava
a banir-me para sempre.
- Serás paga pelo Verão inteiro, claro - proferiu ele, quase como um pensamento tardio. - Precisarás de meios para viajar para casa.
- Casa - disse eu, sem ênfase. - Casa. - Cillian a bater-me a cabeça contra a ombreira da porta, fazendo-me ranger os dentes, Ita a beliscar a carne delicada do
meu seio, deixando a sua própria marca enquanto me sibilava vis insultos. Eu própria encolhida, a tremer, silenciosa. A Caitrin indefesa, cobarde e sem voz. Inspirei
profundamente e senti a raiva incendiar-se dentro de mim, uma pequena chama impetuosa. - Casa? - proferi, levantando-me. - Como te atreves a mandar-me de volta para
Market Cross, sabendo que Cillian está lá? Como te atreves a dar-me a tua confiança e a tua amizade, a deixar-me ajudar-te, a dizer-me... - Lembrando-me das palavras
ternas e dos toques meigos, quase perdi aquele fogo. Nunca conheci ninguém como tu, dissera ele. Nessa altura os olhos dele estavam suaves. Suaves com o que eu pensara
insensatamente serem os mesmos sentimentos que latejavam no meu corpo enquanto ele me abraçava. Tudo o que agora via naqueles olhos era uma determinação fria.
A chama cresceu, impetuosa e indignada, e com ela veio uma torrente de palavras, palavras que, antes dessa noite, nunca acreditara poder dizer-lhe.
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- Como te atreves! Como te atreves a oferecer-me um pagamento, como se tudo o que eu precisasse fosse de um saco de moedas de prata para levar daqui e uma palmadinha
na cabeça por um trabalho bem feito! Como te atreves a assumir esse tom de voz arrogante comigo, quando te tornaste meu amigo! É desta forma que tratas os teus amigos,
mandando-os de volta para um lugar onde serão espancados, abusados e aterrorizados? Que tipo de homem faz uma coisa dessas?
Os olhos dele escureceram. A boca dele apertou-se. Deu um passo na minha direcção, fechando a mão esquerda num punho. Obriguei-me a ficar onde estava, segurando-lhe
o olhar. Não retrocederei. Não me encolheria. Nunca mais voltarei a ser a Caitrin cobarde.
- Há mais de Nechtan em ti do que eu pensava - retorqui.
Foi como se lhe tivesse dado uma bofetada. O sangue esvaiu-se-lhe do rosto, deixando-o tão pálido como o Inverno. Uma única madeixa de cabelo flamejante pendia-lhe
sobre a sobrancelha; empurrou-a para trás com alguma violência, depois girou nos calcanhares e caminhou apressadamente para a porta onde parou com uma mão contra
a ombreira, como que para se amparar.
- Pensas isso de mim. - Falou de costas voltadas para mim, com um tom de voz incrédulo. - Pensas que te mandaria de volta para Market Cross, para os braços daquele...
daquele idiota vil. Uma vez que a tua opinião a meu respeito é assim tão baixa, ficarás aliviada por saber que é Magnus quem está a tratar dos preparativos: uma
escolta para Whiteshore, para começar, e depois uma carruagem segura para o lugar onde a tua irmã e o marido dela estão. És demasiado leviana com os teus desafios,
Caitrin. Pedes muito de mim. No entanto, tens medo de enfrentar o teu próprio grande desafio, aquele que te fez correr monte acima para Whistling Tor e para dentro
do meu jardim.
Abri a minha boca para responder, mas Anluan saíra para a noite.
Não fechou a porta atrás de si; onde a galeria se abria para o exterior, pude ver um pedaço escuro de céu, entretecido de estrelas brilhantes. Fianchu levantara
a cabeça enquanto discutíamos; naquele momento, emitiu um pequeno resmungo e voltou a deitar-se. Ao lado dele, a criança-fantasma estava deitada, com os olhos bem
abertos, olhando fixamente para a escuridão.
CAPÍTULO ONZE
Depois da cuidadosa vigília que me fora feita desde o incêndio, o plano em que vira um amigo após outro subir para se sentar comigo, Anluan deixara-me sozinha, à
excepção da criança e do cão. Escarnecera completamente das suas próprias regras. Estava a sós para dormir, a sós para sonhar com Cillian e com demónios. E depois
teria de esperar um dia, dois dias, um tempo infindável para que os ditos preparativos fossem providenciados. Transformara-me em bagagem a ser despachada.
Teria sido fácil ceder à dor. Poderia embrulhar-me no cobertor, uivar a minha angústia, sonhar com o que poderia ter sido. Poderia agarrar-me a cada momento que
ainda me restava em Whistling Tor, poderia ficar até ao amargo final para poder absorver cada vislumbre do homem que eu amava. Esse caminho conduzia à loucura. Não
voltaria a percorrer esse trilho.
Não esperaria pelos preparativos de ninguém. Anluan queria que eu partisse. Partiria, então. Não havia qualquer guarda de serviço. A casa estava sossegada. Arrumaria
os meus pertences e partiria monte abaixo. Pelo menos dessa maneira não teria de dizer adeus a todos os meus amigos e assistir ao despedaçar do que restava do meu
coração.
Não chorei. Enquanto Fianchu continuava a dormir e a criança-fantasma se mantinha sobrenaturalmente quieta, observando-me por entre pálpebras semiabertas, retirei
a capa de Anluan dos ombros e pendurei-a direita num suporte. Troquei de roupa, enfiando o vestido que vestira no dia em que chegara a Whistling Tor. Dobrei a saia
feita das peças de vestuário de Líoch e de Emer e coloquei-a aos pés da cama. Enrolei o cinto cinzento de Mella e coloquei-o em cima da saia. Teria de ficar com
as botas. Não sabia o quanto teria de andar. Guardei a minha outra combinação, a minha camisa de noite, o meu outro vestido, os meus pequenos artigos pessoais. Fora
tomada por uma calma fria. Algures por baixo de
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uma criatura selvagem enraivecia-se, uma banshee que gritava e arrancava os cabelos, mas não a libertaria até ter partido dali. Não encontrei o lenço bordado da
minha mãe, embora soubesse que ele estivera na arca de madeira de carvalho com uma espiga de alfazema seca entre as suas dobras. Procurei-o por baixo da minha almofada,
debaixo da cama, por entre as roupas de cama, em cima da prateleira, mas não O vi em parte alguma. Olhei de relance para a criança-fantasma, perguntando-me se ela
escondera o bonito artigo algures, mas os seus olhos semi-cerrados não me disseram nada para além de que sabia que eu a ia deixar. Aninhei Róise na parte lateral
do meu saco. O vestido castanho-avermelhado de Emer juntou-se à pilha que estava em cima da cama.
A minha caixa da escrita estava ao lado do tabuleiro de comida intocada. Anluan devia tê-la trazido da biblioteca. Já planeara a minha partida. Antes das visões
do espelho ou depois? Não pensaria nisso. Levantei minha caixa para apertar o atilho de forma mais segura. Estava invulgarmente pesada. Retirei a atadura e abri
a tampa.
Um pequeno saco de pele de cordeiro repousava por cima dos meus materiais cuidadosamente arrumados. Quando lhe peguei ouvi um som metálico, um tilintar que fez Fianchu
espetar as orelhas. Levei o saco para perto do candeeiro, desapertei o atilho e espreitei para o interior. Moedas de prata. Os honorários pelo meu trabalho de escriba
durante o Verão. O suficiente para levar-me para o outro lado do país e me sustentar enquanto procurava Maraid. O suficiente para assegurar que não dormiria ao abrigo
de fardos de palha ou debaixo de pontes, o suficiente para que os homens deixassem de me considerar uma presa fácil enquanto viajaria. Naquele momento, por fim,
as lágrimas arderam-me nos olhos: lágrimas de humilhação. Queria espalhar a prata de Anluan pelo chão. Queria pisá-la. Mas o senso comum disse-me que teria de a
levar. A estação turbulenta que passara em Whistling Tor não apagara a memória da minha fuga de Market Cross. Nunca mais queria voltar a ser aquela mulher amedrontada
e indefesa.
O saco estava pronto. A caixa estava bem apertada. A prata estava escondida na minha bolsa. Sentei-me na cama a escutar os sons nocturnos que vinham de fora: uma
coruja a piar, outra a responder, um sussurro de folhas e talvez uma voz balbuciante no pátio enquanto Rioghan fazia as suas rondas nocturnas, não a rever os pormenores
da sua velha traição, mas a planear o que viria, engendrando maneiras de transformar a hoste numa força de combate governável. Como poderia fugir sem ser vista se
ele estava ali? Como poderia sair sem que Fianchu soasse o alarme?
Nota de rodapé:
Figura da mitologia e do folclore da Irlanda, semelhante a uma bruxa.
Fim da nota de rodapé.
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As dúvidas empurravam-se na minha mente e com elas veio a dor. Era como um coração pulsante... um candeeiro aceso... Porque é que o seu miserável espelho do podia-ter-sido
nos mostrara juntos, como se esse fosse um dos seus sonhos mais queridos, se ele já decidira mandar-me embora?
- Não te esqueças de mim.
Sobressaltei-me. O espelho; o pequeno e estranho espelho que eu trouxera da torre norte. Ouvia a sua voz como se tivesse falado em voz alta, embora Fianchu não se
mexesse. Dirigi-me para a parede, espreitando para a superfície baça, mas tudo o que vi foi o meu reflexo sombrio: uma mulher de olhos vermelhos e pele pálida, o
cabelo escuro despenteado, as sobrancelhas castanhas franzidas.
- Leva-me. Vais precisar de mim.
Retirei o espelho do gancho, pousei-o e abri novamente o saco. Só havia espaço para o fazer deslizar lá para dentro. Entretanto vi que havia outro artigo do qual
me esquecera: o pequeno livro que fizera, com as traduções das tristes notas à margem de Irial, escritas numa delicada caligrafia. Estava na prateleira ao lado do
candeeiro. Não podia levá-lo. Pertencia a Whistling Tor, fazia parte do miserável registo da família de Anluan e da maldição que sobre eles pairava. Pousei o pequeno
livro de anotações ao lado do candeeiro, com as capas fechadas.
Quanto tempo devia esperar? Teria de estar longe antes que Magnus, Olcan ou o próprio Anluan se apercebesse que eu partira e viessem atrás de mim para me impor os
seus preparativos. Se tinha de partir, fá-lo-ia sozinha. Mas não deveria partir demasiado cedo ou poderia encontrar complicações no escuro antes de atingir a fronteira
invisível que marcava o final do Tor. Teria de esperar até que a luz que precede a aurora tornasse possível partir sem uma candeia. Qualquer luz artificial seria
rapidamente vista por Rioghan ou por uma das sentinelas da muralha. De repente, esperar pareceu-me a coisa mais difícil do mundo.
Na minha mente, escrevi uma carta a Anluan, do género da amostra que fizera para ele no primeiro dia que passara em Whistling Tor. Amo-te. Estou orgulhosa do que
estás afazer. Mas magoaste-me. Não compreendo. Era uma carta honesta. Ou poderia escrever, Em menos de uma Lua será altura de colher as flores do sangue-do-coração.
Mas não estarei aqui. Adeus, Anluan. Ambos perdemos a aposta.
Não estava à espera de conseguir fugir sem alguns desafios. O primeiro foi a criança-fantasma, que nunca dormia. Estivera deitada, quieta, observando os meus preparativos,
mas quando eu finalmente vi que
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A claridade era suficientemente boa e me dirigi para a porta, com o saco ao ombro e a minha caixa da escrita debaixo do braço, ela apareceu de repente ao meu lado,
agarrando a minha saia, com os olhos sombrios postos em mim.
- Eu vou contigo.
Fianchu acordou com o pequeno ruído, levantando a cabeça.
- Chiu - sussurrei. - Tens de ficar aqui, não podes vir comigo.
- Eu vou! - Mais alto daquela vez. O cão, ainda lento do sono, começou a levantar-se.
Pousei a caixa, tirei o saco do ombro, meti a mão lá dentro. Retirei Roise.
- Tenho de partir durante algum tempo - murmurei, agachando-me ao pé da menina. - Preciso que fiques aqui e olhes por ela. Podes fazer isso por mim? - Era um engano
cruel, mas não encontrei outra forma. A criança-fantasma pegou a boneca nos braços, embalando-a. Não disse mais nada, mas a pergunta estava escrita no seu rosto:
Quando voltas?
- Poderei estar fora durante muito tempo - respondi. - Sei que cuidarás bem de Róise. Ela precisa de alguém que a ame, tal como to... nós. Adeus, pequenina. Fianchu
já estava levantado, de orelhas espetadas, postura alerta. Muito possivelmente sabia o suficiente para sair a correr e acordar o seu dono assim que eu saísse pela
porta.
- Fianchu - disse eu, certificando-me de que ele me ouvia com atenção. - Guarda-a. - Apontei para a menina-fantasma. - Fica aqui e guarda-a!
Fianchu sentou-se. Os olhos que ele fixou em mim eram sabedores. Mas era um cão e a sua tarefa era obedecer.
- Lindo cão. Fica aqui até o Sol nascer. E tu também - pedi à menina. - Ele olhará por ti.
Esgueirei-me pela porta, ao longo da galeria, desci as escadas. Tons de cinzento habitavam o jardim; olhos observavam-me de debaixo das árvores. Do outro lado do
pátio, o candeeiro ainda ardia nos aposentos de Anluan. A mulher louca que existia dentro de mim agitou-se.
- vai ter com ele, conta para ele, agora, agora - mas eu sufoquei os seus apelos. Caminhei ao longo do caminho, saí pela falha na muralha da fortaleza para a floresta.
Não veio ninguém atrás de mim. Imaginei a criança-fantasma no quarto, com a boneca pressionada contra o seu peito magro. Imaginei que via os seus olhos em sofrimento
por causa de outra traição, de outro abandono.
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Os meus pensamentos mostraram-me Anluan, sozinho nos seus aposentos, olhando para a parede de olhos vazios ou sentado na cama com a cabeça apoiada nas mãos e os
dedos longos enfiados nas suas madeixas flamejantes. Pensamentos tolos. Era mais provável que ele estivesse a pensar em como fazer um exército a partir de espectros
desorientados, aldeões sem treino militar e vizinhos relutantes. Talvez, depois de ter lidado comigo, me tivesse tirado da cabeça.
O meu pé embateu numa pedra. As minhas mãos apertaram-se em torno da caixa da escrita. Cambaleei durante um momento e depois recuperei o equilíbrio. Ainda não estava
claro, a floresta estava cheia de sombras movediças. Enquanto descia o caminho, senti um puxão no braço: Errado, tudo errado... Pobre rapariga tola, no que estavas
apensar? E do outro lado: Miserável Caitrin, rapariga sofrida.... Quem te quer? Para onde podes ir? Onde poderás ficar a salvo agora?
Malditas e miseráveis criaturas, fossem o que fossem. Partiria, sim. E encontraria um lugar para onde ir. Não pertencia a Whistling Tor. Nunca deveria ter-me permitido
vê-lo como o meu lar. Era uma tola. Era uma maldita e tola mulher.
Oh, sim, uma tola maldita... Não podes ficar aqui. Não podes ir para casa. Ele está lá, o que te transforma numa criança indefesa. Pobre e solitária Caitrin. Sem
ter para onde ir, sem ninguém que te ame...
Enxotei a presença invisível que estava junto à minha orelha direita. A outra falou do lado esquerdo.
Vem por aqui, por este pequeno trilho espiral...
Vem connosco! Segue-nos... Ficarás em segurança para sempre...
Mãos invisíveis agarravam-me a saia e a capa. Agarraram o meu saco, puxando-o para trás, quase me derrubando. Abri a boca para proferir um protesto e depois fechei-a
de novo. Se fizesse barulho, alertaria Rioghan ou um dos outros para a minha partida solitária. Com a caixa enfiada debaixo do braço, consegui fazer o sinal-da-cruz.
- Kyrie eleison; Christe eleison - murmurei.
Deu-se um afrouxamento momentâneo do aperto desconcertante, que depois voltou a fazer-se sentir. Lá se ia a eficácia de uma oração cristã. Reprimi uma vontade poderosa
de gritar.
Um violento empurrão. Caí. A caixa da escrita caiu ruidosamente no trilho. Algo puxava o meu saco de novo, tentando arrancá-lo das minhas costas.
- Parem com isso - sussurrei, lutando para respirar. - Deixem-me em paz...
- Deixem-na em paz!
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Era a voz de Gearróg e foram as mãos de Gearróg que me ajudaram a sentar, apanhando depois a caixa e colocando-a ao meu lado e a salvo. Durante algum tempo, só tentei
respirar. Os sussurros insidiosos pararam. Senti que estávamos a sós. Gearróg agachou-se ao meu lado, as suas feições simples estavam enrugadas de preocupação. De
tempos a tempos, ele estendia a mão para me dar uma estranha palmadinha no ombro, mas parecia relutante em fazer mais do que isso.
- Obrigada - acabei por dizer, arfante. - Salvaste-me outra vez. Jearróg, vou partir. Vens até ao sopé do monte comigo? Preciso que me mantenhas em segurança.
- Não.
Havia muito naquela pequena palavra: Eu magoei-te. Não tens medo de mim? Fracassei na minha tarefa e Anluan ficou zangado. Traí a vossa confiança.
- Por favor.
Ele ajudou-me a levantar, as suas enormes mãos meigas. Dei-lhe o saco para que o levasse, peguei na caixa da escrita. Descemos o caminho lado a lado.
- Porque partes, minha senhora? - perguntou Gearróg ao fim de algum tempo. Falou num murmúrio e o seu tom era desconfiado.
- Ele disse que eu tinha de partir. Anluan. - Apesar do esforço, minha voz tremeu. - Ele não me quer. - Magoava-me proferir a crua verdade em voz alta.
Gearróg continuou a andar, num passo regular, calado, ao meu lado.
Percorremos alguma distância antes de ele voltar a falar.
- Não deve ser bem assim.
- Mas é. Foi ele quem mo disse, há pouco.
Um silêncio ainda maior, repleto de coisas não ditas.
- Ele está a mandar-te embora para te manter a salvo.
- Não. Bem, provavelmente, em parte. Mas ele quis dizer para sempre.
- Então é menos homem do que todos nós pensávamos. - O tom de Gearróg era brusco. - Só um tolo abdica do seu único tesouro.
Lágrimas arderam-me nos olhos. Não podia deixá-lo continuar a falar assim. Tinha de ser forte.
- Para onde foste, Gearróg? - perguntei. - Rioghan convocou uma a reunião. Todos os homens da hoste estavam lá, ou assim me pareceu. Mas Cathaír disse que não te
conseguiu encontrar.
Usou o seu silêncio como um escudo. Continuámos a caminhar.
- Não podes lutar contra o frenesi sozinho - disse eu, ao fim de algum tempo. - Mas talvez todos juntos encontrem a força necessária
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para se manterem firmes contra ele. Rioghan tem algumas ideias acerca disso; ele é inteligente no que se refere a estas coisas. Penso que Cathaír e os outros terão
as suas próprias técnicas para o dominarem. Gearróg, quero que voltes lá para cima e os encares. Ouvi dizer que Anluan te disse palavras duras. Espero que compreendas
porque é que ele estava zangado contigo, mesmo depois de teres salvo a minha vida.
- Eu fiz uma coisa má.
- Magoaste-me por acidente. Eu estava no caminho. Não eras tu que te debatias, mas algo que te estava a usar. Promete-me que regressas e que te juntas aos outros,
Gearróg. Anluan precisa de ti. Tens uma força especial dentro de ti. Provaste-o quando me salvaste, mesmo quando o frenesi te assolava. Acabaste de o provar outra
vez, mandando aquelas criaturas embora. Nem sei como o fizeste.
- Não foram para muito longe. - As palavras eram indiferentes, mas o calor regressava à voz dele. - Minha senhora, és aquela de quem Lorde Anluan precisa mais. E
nós? Mudaste tudo. O que acontecerá se partires? Como podes não regressar?
Os meus olhos estavam marejados de lágrimas. Baixei a cabeça; não queria que ele visse o quanto estava magoada.
- Eu disse algo terrível a Anluan. Algo tão cruel e tão mau que me envergonho só de pensar. Algo tão horrível que ele jamais me quererá de volta. E ele... - Não
havia como descrever como me sentira quando pensara, por um instante, que Anluan me pudesse bater. Naquele momento, lembrei-me de que, quando uma raiva súbita o
acometia, ele fechava a mão esquerda num punho. Vira-o usá-lo para partir o espelho. Nunca o vira bater em ninguém.
- Gearróg, a menina irá precisar de amigos depois de eu partir - proferi. - Ela confia em ti.
Estávamos junto à fronteira. Ainda faltava algum tempo até à aurora, mas conseguia ver as linhas sombrias da povoação através da luz ilusória, um amontoado de formas
escuras, o contorno da muralha improvisada, os pontos bruxuleantes dos archotes colocados em torno do perímetro. Tomas e outros mantinham-nos acesos toda a noite,
com medo da hoste...
- Promete - insisti, enquanto o céu clareava com o nascer do Sol que se aproximava. Um pássaro emitiu um chamamento, uma chamada aguda de duas notas: Venham daí!
Venham daí!
Gearróg manteve-se em silêncio.
- Tenho de partir agora - disse-lhe. - Não quero ver ninguém lá de cima; não seria capaz de aguentar. Prometes-me, Gearróg?
- Diz que voltas. Mais tarde, quando tudo isto tiver terminado. Diz que voltas.
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- Não posso. Não se ele disser que não. - Tinha de partir, antes que o Sol nascesse e eles dessem pela minha falta. Tinha de ir antes que perdesse a vontade de o
fazer.
- Dizes-me para subir e enfrentar os outros. Mas vais fugir. Levantei o queixo e endireitei os ombros.
- Tenho de partir e encontrar a minha irmã. Tenho de enfrentar os desafios da minha vida, pessoas que me fizeram mal. E depois disso...
- Regressarás a Whistling Tor?
Uma esperança pura tremia na voz de Gearróg. Brilhava nos seus olhos e transformava as suas feições, proibindo uma recusa.
- Se Anluan me quiser de verdade, se precisar de mim, nada no mundo me impedirá de vir - declarei, e quando as palavras abandonaram os meus lábios, ouvi um grande
suspiro, não vindo do meu companheiro, mas de uma dúzia, de cinquenta, de cem vozes fantasmagóricas vindas da floresta. A hoste estava à espreita. As pessoas do
Tor sabiam que eu não estaria na biblioteca nessa manhã, a procurar respostas para ajudá-las. Sabiam que eu não estaria a ler os livros de magia negra, numa busca
para acabar com o seu sofrimento. Desiludira-os. Quebrara a promessa que lhes fizera. No entanto, senti que eles compreendiam. As palavras que eu acabara de proferi
eram suficientes naquele momento.
- Sê forte, Gearróg. Olha por ele em meu nome. - Olhei para debaixo das árvores, incapaz de ver os outros, mas reconhecendo a sua presença. - Sejam fortes. Ajudem-no.
- Adeus, minha senhora. Tens a minha promessa. - Gearróg colocou o punho contra o coração. Parara mesmo junto à fronteira do monte, entre as árvores sentinelas.
- Adeus, Gearróg. - Voltei as costas e, à medida que o céu clareava, fui-me embora caminhando sem hesitar pelo monte abaixo.
Como se para zombar de mim, no dia em que saí de Whistling Tor o tempo ficou bonito, com um céu soalheiro e uma brisa suave. Foi o suficiente para perguntar a mim
própria se teria entrado num mundo diferente, no qual o Verão fizera o seu percurso natural durante todo o tempo que ficara na fortaleza de Anluan, enquanto a bruma,
a chuva e o frio penetrante continuavam firmemente agarrados ao Tor.
Mantive a decisão que fizera quando reunira os meus pertences para partir de que não cederia à desesperança que me assolara depois da morte do meu pai. Se aprendera
algo durante o estranho Verão que passara em Whistling Tor, era que não podia voltar a ser a alma perdida do
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Inverno anterior. Pouco importava que o homem que amava me tivesse mandado embora para sempre. Pouco importava que tivesse sido obrigada a quebrar a promessa mais
solene que algum dia fizera e que tivesse abandonado os meus amigos no seu momento de maior necessidade. Se Anluan não me queria, então não me queria. Era tão simples
quanto isso. Cerraria os meus dentes, invocaria toda a minha coragem e faria o que tinha de ser feito.
Não me dirigi para Whiteshore. Nem sequer me dirigi para a povoação no sopé de Whistling Tor. Caminhei no sentido inverso, no sentido da encruzilhada onde fora largada
sem cerimónia num dia de bruma e sombras. Não valia a pena esperar que aparecesse uma carroça. Dirigi os meus pés para a frente, fazendo listas de cores na minha
cabeça para manter os pensamentos afastados de Anluan.
Era tão cedo que não vi ninguém. Os pássaros cantavam na floresta junto ao trilho das carroças e algures por baixo dos sabugueiros ouvi as vozes dos sapos. Tudo
parecia limpo, aberto à luz, repleto de promessas. Estava errado. Uma parte de mim queria protestar que um dia assim tão bonito emoldurasse a catástrofe que as pessoas
de Whistling Tor enfrentavam. Outra parte de mim sussurrou, Nunca pertenceste aqui, Caitrin. Esquece estas pessoas. Esquece Anluan. Se ele te amasse, nunca teria
feito isto.
Durante metade da manhã, caminhei sem ver vivalma. Fiquei com sede e parei para beber de um regato que ficava um pouco afastado do trilho. Fiquei com fome. A minha
partida precipitada deixara-me mal preparada para viajar para longe sem ajuda. Memórias da minha fuga para oeste regressaram. Reprimi-as, obrigando-me a continuar.
Os meus pés doíam-me; afinal, as botas de Emer não me serviam assim tão bem. O dia aqueceu. Tirei o xaile e enfiei-o dentro do saco.
Um ruído trovejante acompanhado por uma chiadeira e o bater de cascos fez-me esconder debaixo dos arbustos, cautelosa em relação a carroceiros que viajassem sozinhos.
Um par de cavalos baixos e robustos apareceu, puxando uma carroça em bom estado, repleta de trouxas. Um homem e uma mulher sentavam-se no banco corrido, ela trazia
uma criança sentada nos joelhos.
Saí e agitei uma mão. Um pouco depois, estava empoleirada em cima de uma saca de grão na parte de trás, a caminho do leste. Imaginei os declives cobertos de bruma
do Tor atrás de mim, diminuindo devagar até não se distinguirem da vulgar paisagem de campos cultivados e floresta. Enquanto a carroça avançava cada vez mais para
leste, não olhei para trás uma única vez.
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Ter posses fazia uma grande diferença. Passei duas noites na estalagem de uma aldeia, com um quarto só para mim e uma fechadura na porta. Pedi indicações e tratei
de arranjar meio de transporte. Li uma carta para um comerciante local em troca de um lugar numa carruagem que se dirigia para Stony Ford, uma povoação que ficava
a cerca de três dias de viagem a norte de Market Cross. O pai e eu executáramos encomendas para o chefe tribal de lá e eu tinha quase a certeza de que Shea e os
seus colegas músicos seriam conhecidos naquela casa. Os outros passageiros desta carroça enorme e um tanto grandiosa devem ter-me achado severa e pouco comunicativa.
Não podiam saber o remoinho de pensamentos que me enchiam a mente a todos os momentos do dia, aqueles que lutava para banir e aqueles nos quais me tentava concentrar,
nomeadamente como encontrar Maraid e Shea sem me aproximar demasiado de Market Cross. Se Stony Ford não me providenciàsse quaisquer pistas, teria de tentar outros
lugares que Shea mencionara quando contara a sua vida de viandante, mas esses eram poucos e distanciados uns dos outros. Pensei recordar-me de uma vila chamada ideaway
ou Holdaway, onde a banda tocava regularmente para entreter as pessoas num grande mercado semanal. Ganhavam uma magra quantia, dissera Shea de bom humor, mas se
ficassem para o baile da noite, geralmente atiravam-lhes mais umas moedas.
Se isso falhasse, poderia procurar a família de Shea. Isso significaria ter de fazer uma viagem muito maior uma vez que eles viviam algures no nordeste, perto dos
territórios de governo normando. Esquecera-me do nome do pai dele, mas sabia que fora um mestre a fazer harpas antes de suas mãos terem sido assoladas por tremores,
e tais artífices eram aptos em qualquer parte do país. Tinha boas possibilidades de o encontrar, eventualmente. Eventualmente. Quanto tempo demoraria? Enquanto a
carroça avançava firmemente e os outros passageiros falavam acerca do tempo ou sobre quanto mais demoraria a chegarmos à próxima paragem, eu imaginei Anluan, Magnus,
Rioghan e os restantes em plena batalha contra o exército de Lorde Stephen. Imaginei a voz espectral a encher os ouvidos da hoste de veneno e a enviá-los para um
estado de desordem uivante e torturante. Pensei em Anluan abatido, ferido, a morrer, enquanto eu viajava de aldeia em aldeia, a perguntar por uma banda de músicos
que poderia ou não ter passado por lá anteriormente. Vi as palavras em latim, do feitiço de reversão, escritas de forma impecável numa folha de pergaminho, inúteis,
sem mim para as traduzir. Frequentemente, ficava próxima das lágrimas e era necessário recordar a mim própria que se Anluan me amasse verdadeiramente, não me teria
mandado embora para sempre. Resultava durante algum tempo, até a
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minha mente começar a dizer-me que talvez Anluan me tivesse banido por pensar que não havia qualquer possibilidade de derrotar Stephen de Courcy e que ele, Magnus
e Olcan iriam morrer, deixando a hoste sem líder e à deriva. Depois de me ter ocorrido esta ideia perfeitamente lógica, não me consegui livrar dela. Fez-me gelar
por completo. Estava sentada no assento acolchoado da carroça com o xaile apertado em meu redor e com o olhar fixo em frente, nada vendo excepto o rosto pálido de
Anluan, o seu cabelo de cor viva, as suas encantadoras feições distorcidas. Uma e outra vez, pensei nas palavras imperdoáveis que lhe dissera e a sua expressão quando
as ouvira.
A viagem para Stony Ford demorou vários dias. Parámos uma noite numa hospedaria que era um pouco melhor do que as outras. Dois dos meus companheiros de viagem, Brendan,
um médico, e a sua mulher, Fidelma, foram especialmente gentis durante o caminho. Sentámo-nos para cear e descobrimos que as outras pessoas que se sentavam à mesa
da estalagem estavam numa animada discussão acerca dos normandos.
- Dizem que foi assinado um tratado - informou um homem idoso que segurava uma caneca de cerveja entre os dedos nodosos.
- Se é que se pode chamar isso - comentou um outro homem, de expressão lúgubre. - Dar de mão beijada quase todas as terras do leste e muitas para além dessas a este
rei Henrique. Possam os Uí Conchubhair ficar cobertos de pústulas, todos eles, do Rei Supremo para baixo. Aquele homem entregou a nossa herança a um grupo de estrangeiros
de camisas-de-ferro, tão prontos para queimar uma aldeia irlandesa até às cinzas como estão para ouvir a sua própria gente.
- É melhor teres tento na língua - observou um terceiro homem, em voz baixa.
- A guerra ainda não acabou. - Isto foi dito pelo ancião que se sentava a um canto e que parecera estar a dormir.
- Ruaridh Uí Conchubhair não é o único líder que temos, embora se veja dessa forma - comentou um homem musculado que estava sentado no outro extremo da mesa. - Continuaremos
a lutar até que o último de nós esteja caído com o sangue a ensopar o seio da terra. Uí Conchubhair ficou fraco com a idade, se querem saber a minha opinião. Foi
um líder, em tempos, um homem quase digno de ser chamado Rei Supremo. Agora está longe disso.
- Nenhum rei dura para sempre. - Brendan falou calmamente. - Quanto a Henrique de Inglaterra, eu tenho conhecimento deste acordo, e tendes razão, os seus termos
dizem que o Rei Supremo mantém a sua soberania aqui em Connacht e noutros locais onde os normandos ainda
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Não deixaram a sua marca. Mas o facto é que Henrique não consegue manter as rédeas dos seus próprios lordes; estes estão habituados a tomar o que querem, pela força
se necessário, a nós e uns aos outros. Continuarão a acotovelar-se por vantagens territoriais, com ou sem tratado.
- Já provaram que não respeitam as fronteiras - acrescentou Fidelma.
Pigarreei, arrependendo-me amargamente de não ter manifestado interesse por tais assuntos quando vivia em Market Cross. Sempre acreditei que Connacht, pelo menos,
estava a salvo da invasão. Era o que todos diziam. Tão para oeste, com muita da terra demasiado estéril para cultivar, não parecia ser o tipo de lugar que os ingleses
quisessem. O tratado do rei Henrique parecia ser fiel a essa teoria.
- Algum de vós ouviu falar num lorde inglês chamado Stephen de Courcy? - perguntei. - Ele... Ouvi dizer que ele ameaçou tirar as propriedades de um chefe tribal
irlandês, a alguma distância a oeste daqui. Disseram-me que existe um laço de parentesco por casamento entre a família de Lorde Stephen e a do Rei Supremo. Isso
significa que Ruaridh Conchubhair não irá ajudar este chefe tribal.
Todos os olhos se voltaram para mim.
- Nunca ouvi falar do fulano que mencionaste - disse o homem Idoso. - Mas acontece. Há um lugar para norte, não me lembro do nome, onde eles fizeram uma investida
e derrubaram os homens de armas e o chefe tribal; foi uma chacina. Depois espetaram as cabeças deles em piques, ao estilo dos homens do norte, como um aviso para
outros líderes, para que não defendam os que lhes pertence por direito. Queimaram povoações, mataram mulheres e crianças como se fossem menos que humanas. É isso
que eles pensam, claro. Que não somos melhores do que bestas lerdas dos campos. Enojam-me.
- Acreditas que uma coisa assim poderia acontecer na costa de Connacht? - Senti o peso do chumbo na minha barriga. - É zombar do título de Ruaridh. Um Rei Supremo
deve proteger os seus, certamente.
- Ruaridh sempre fez o que era melhor para ele - comentou alguém, baixando a voz e olhando em redor da sala. - É por isso que tem durado tanto. Os filhos dele são
homens melhores.
Seguiu-se um curto silêncio durante o qual ninguém olhou nos olhos de ninguém. Depois, Brendan disse:
- Acredito já ter ouvido o nome de Stephen de Courcy. Não me lembro com o que estava relacionado. É um homem ainda jovem, penso eu, e ambicioso. O meu irmão deve
saber mais. Ele está muito bem informado acerca destes assuntos; o trabalho dele exige-o. Porque perguntas, Caitrin?
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- O meu pai sempre disse que o extremo oeste resistiria ao avanço dos normandos. Mas parece que este tratado é um engano, se o nosso próprio Rei Supremo pode afastar-se
e deixar que alguém como Stephen de Courcy se aproprie do território de um dos seus chefes tribais. Está muito errado não termos nem protectores, nem líderes nossos
que nos possam defender.
Um silêncio mais pesado desta vez.
- Tens parentes no extremo oeste, Caitrin? - perguntou Fidelma, com a preocupação estampada nas suas feições gentis. - Talvez no território deste chefe tribal ameaçado?
- Apenas amigos. - Não disse mais. Se começasse a discutir a situação de Anluan em pormenor perderia o autocontrolo que me esforçara tanto por conseguir.
- Dá tempo ao tempo - disse o homem que referira os filhos do Rei Supremo. - Connacht sobreviverá, na minha opinião. Haverá novos líderes, homens com maior força
de carácter e corações mais arrojados. Homens pelos quais eu próprio pegaria em armas, se me chamassem.
- Tu? - perguntou alguém com uma risadinha. - Essa tua perna nem sequer consegue caminhar a direito atrás de um arado, muito menos avançar para a batalha contra
uma fila de camisas-de-ferro a cavalo. Mas talvez desejes uma morte rápida e sangrenta.
- Suponho que um homem com uma perna aleijada ainda possa usar um arco - ripostei, com um pouco mais de ênfase do que pretendera. - Ou atirar pedras. Ou desempenhar
uma centena de outras tarefas essenciais. - Olhei nos olhos do presumível guerreiro. - Louvo a tua coragem - proferi.
Naquele momento estavam todos a olhar para mim, não como se acreditassem no meu discurso bizarro, mas como se estivessem interessados no motivo porque o fizera,
como se quisessem ouvir a minha história. Mas não conseguia contá-la. Peguei na minha cerveja e engoli um grande golo, com os olhos baixos e as faces a arder.
- Bem, Caitrin - ofereceu Fidelma -, se queres mais informações sobre este Stephen de Courcy, não poderias arranjar melhor do que o irmão de Brendan, Donal. Quando
chegarmos a Stony Ford, porque não ficas connosco algumas noites? Poderás falar com ele e gozar de uma boa hospitalidade ao mesmo tempo. A menos que tenhas de partir
de imediato, claro.
- Não é Donal que se vai casar? - Ouvira-os falar disso, de como o irmão de Brendan, um solteirão assumido com quase quarenta anos de idade, enchera todos de assombro
com a decisão de casar com uma viúva com três filhas pequenas. - Seria inoportuna, certamente.
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- De todo. O lugar estará cheio de convidados; mais um não fará qualquer diferença. E Donal exerce a sua prática legal numa parte separada da casa. Pensa nisso,
pelo menos.
Então Donal era um homem da lei. Esta não era apenas uma oportuniddade para descansar e recuperar antes de voltar a partir para procurar Maraid. Era uma oportunidade
para começar a tratar dos nossos assuntos, o próximo passo para enfrentar o meu mais difícil desafio. A minha barriga deu voltas só de pensar nisso. Não sabia se
teria coragem suficiente. Falar com este homem da lei colocar-me-ia no caminho que me levaria a confrontar Ita e Cillian. Mais cedo ou mais tarde, essa estrada levar-me-ia
de regresso a Market Cross.
Quando chegámos à vila de Stony Ford, eu já percebera que seria sensato aceitar o convite de Fidelma, pelo menos durante tanto tempo quanto o que levasse a ter uma
ideia de onde Maraid e Shea pudessem estar. A bolsa com as moedas de prata tinha fundo e ainda poderia ter de dar muito mais. Uma oferta de hospitalidade numa casa
segura, entre as pessoas, não podia ser recusada. O irmão de Brendan provou não ser de todo o tipo de homem austero e rígido que eu esperara, mas baixo e alegre,
com cabelo ralo cor de rato e olhos brilhantes. Deliciava-se a arreliar Brendan por tudo e por nada - os laços de amor que existiam entre eles eram óbvios. Eles
faziam-me lembrar Rioghan e Eichri, cujos sarcasmos me perturbaram tanto até perceber que eram ditos num espírito de amizade. A viúva e as suas filhas já estavam
a viver na casa de Donal, que era feita de lama e colmo e se estendia pela propriedade, com um jardim bém cuidado e um estábulo para três cavalos. Mas a Maeve de
quem se falava docemente não partilhava o quarto de Donal durante a noite, dormiia no quarto das filhas. Não que se devesse a qualquer falta de entusiasmo pela cama
matrimonial, pensei eu, reparando na forma como Donal se inclinava para lhe tocar no braço roliço enquanto ela lhe servia as papas de aveia do pequeno-almoço, no
seu corar rápido quando ele lhe prendia o olhar ao passar, na doçura nas suas vozes enquanto falavam um com o outro. Seriam casados no quinto dia após a nossa chegada,
portanto, ou estavam à espera da noite de núpcias, ou a presença de tantas pessoas dentro de casa tornara a discrição necessária até então. Duas das irmãs de Maeve
estavam lá, com os seus maridos e um total de sete crianças, bem como vários outros parentes. A mãe de Maeve, que vivia por perto, ia até lá todos os dias para levar
tartes ou pudins para complementar os cozinhados da filha. Era uma casa atarefada e feliz.
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Dei comigo a partilhar um quarto com duas das sobrinhas, dois anos mais novas do que eu. Ao vê-las dar os retoques finais nos vestidos, pentearem-se uma à outra
ou correrem lá para baixo para voltarem a ser crianças outra vez durante um tempo, senti-me centenária.
Os clientes de Donal continuavam a aparecer. Ele e Brendan escolheram profissões nas quais o descanso não existia, salientou Fidelma com secura. Apesar da corrente
regular de pessoas que iam falar com o homem da lei todas as manhãs, ele encontrou tempo para me receber no segundo dia. O seu escritório era um paraíso de sossego,
depois de todo aquele movimento e barulho. Estava sentado a uma grande secretária, em cima da qual estavam dois livros atados, uma folha de pergaminho e um boião
de tinta. Havia uma única pena pousada ao lado destes, com um pequeno prato de areia para a secagem. As paredes do aposento estavam forradas por filas de prateleiras
sobre as quais repousavam numerosos documentos, dispostos de forma tão arrumada que eu tinha a certeza de que o homem da lei saberia onde encontrar qualquer artigo.
Havia uma secretária mais pequena a um canto, que naquele dia estava desocupada. No parapeito da janela, uma jarra de barro continha flores silvestres colhidas de
fresco, roxas, rosas e azuis - um toque da viúva.
- Entra, Caitrin. Por favor, senta-te. Estou um pouco atrasado. Dei uma licença ao meu assistente até depois do casamento e dou comigo menos capaz de me manter em
dia do que esperava. Tantas distracções... - Donal sorriu repentinamente; fazia-o parecer um leprechaun. - Distracções bem-vindas, claro. Não tarda nada, recuperarei
o ritmo. O que posso fazer por ti, Caitrin? Fidelma disse-me que se tratava da lei de propriedade, não a minha área de especialidade, devo confessar. E, claro está,
que sob a lei normanda, que se estende a todos os territórios onde os barões de Henrique se estabeleceram, o nosso sistema legal já não tem qualquer peso. Menciona
a lei brehon e as suas longas tradições, e um lorde ou um clérigo normando olharão para baixo para ti como se fosses uma selvagem ignorante. Tais são os tempos em
que vivemos. - Ele olhava para mim atentamente, os seus olhos astutos. - Não imagino que seja isto que queres ouvir.
- Pensara realmente que Connacht estava a salvo. Parece que não está. O que aconteceria, então, se um chefe tribal irlandês lutasse pela sua terra e conseguisse
afastar os normandos? - Hesitei. - Foi dito a este chefe tribal que, se a questão chegar a um conflito armado, o Rei Supremo não o apoiará. Existe uma aliança por
casamento entre os Uí Conchubhair e o lorde normando que quer a terra. Qual a lei que se aplica a uma tal situação, a normanda ou a brehon?
Nota de rodapé:
Lei irlandesa.
Fim da nota de rodapé.
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O olhar de Donal aguçara-se.
- Trata-se de um caso específico, presumo.
- Sim. Estou a contá-lo em confidência.
- Istá subentendido. Nada sai deste aposento sem o consentimento do cliente. São muitas as respostas informadas que te posso dar, Caitrin, pesando tratados, acordos
verbais, precedentes. Mas a mais honesta é a de que, numa tal situação, o controlo da terra vai para o homem com o exército melhor treinado, as armas mais afiadas
e a vontade mais forte. Nunca pensei fazer uma tal declaração; fui ensinado a confiar na boa lei irlandesa para obter justiça. Há centenas de anos que nos serve
bem. Mas aí tens. Lamento não te poder responder de forma diferente, mas fui honesto.
- Compreendo. - No meu coração, já sabia a resposta, tal como Anluan e Magnus sabiam. Tudo se resumia a um factor: a hoste. A ironia atordoante. A única arma que
Anluan tinha que podia, talvez, permitir-lhe manter as suas terras e voltar a situação a favor do seu povo era o exército amaldiçoado invocado pelo seu antepassado
malévolo, o miserável que fizera de Anluan um pária isolado e sem poder.
- Obrigada.
- Posso perguntar-te se este indivíduo, o chefe tribal cujas terras estão a ser ameaçadas, tem com que fazer frente à ameaça? - O tom de Donal era retraído.
- A situação é... invulgar. Tão invulgar que as pessoas não acreditariam em mim se eu a contasse. Donal, existe outro assunto acerca do qual preciso de te consultar.
- Brendan realmente referiu que estavas à procura da tua irmã. Hposso certamente ajudar-te nisso, se assim o desejares. Seria uma simples questão de enviar mensagens
com indagações. Isso poupar-te-ia muito tempo.
- A tua ajuda seria muito bem-vinda, Donal. Mas encontrar Maraid não é o único desafio. Encontrá-la poderá conduzir a outra coisa, a algo perigoso e muito sério.
Penso que discutir este assunto tomaria bastante do teu tempo e não tenho recursos suficientes para pagar os teus honorários. Olhei de relance para a secretária
vazia que estava ao canto. - Ocorreu-me que talvez pudesse pagar de outro modo. Como te expliquei, sou ótima escriba e trouxe comigo as ferramentas do meu ofício.
Poderia copiar, organizar, tomar notas, escrever cartas e por aí fora. - Ele sorriu abertamente.
- Excelente! E uma vez que falamos disso, devo dizer-te que creio ter conhecido o teu pai há alguns anos. Berach, não era esse o seu nome? Um bom homem, que fazia
um excelente trabalho. Ouvi falar da sua morte. Muito triste.
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- Era um bom homem, sim.
- Tenho de te fazer uma pergunta, Caitrin. Se a tua casa de família fica em Market Cross, porque não enviar primeiro para lá as indagações sobre a tua irmã? Fidelma
explicou-me que Maraid está casada com um músico e que não tem uma residência fixa. Mesmo assim... - Ele elevou as sobrancelhas.
- Posso falar-te da nossa situação em relação à casa? - Sê corajosa, Caitrin. - É complicada.
Donal encostou-se para trás na sua cadeira e cruzou os braços. Os olhos dele mantiveram-se alerta.
- Começa pelo início, Caitrin - pediu ele. - Não deixes nada de fora. Temos muito tempo, especialmente se estiveres preparada para tratar de algumas das minhas cartas
mais tarde. Suponho que saibas ler em latim?
- Sei. - De repente, quando menos esperava, senti as lágrimas aguilhoarem-me os olhos. Se eu tivesse encontrado aquele homem atencioso e cortês antes... Se me tivesse
lembrado de pedir a ajuda de um homem da lei quando Ita e Cillian começaram a tomar o controlo... Mas não. A minha fuga para oeste levara-me a Anluan e aos membros
da casa de Whistling Tor. Mesmo que tivesse sido banida daquele lugar para sempre, não podia desejar não ter conhecido o homem que amava, nem as pessoas que se tornaram
os meus queridos amigos. Aquele Verão salvara-me, libertara-me, amadurecera-me. E, no final, partira-me o coração. - Poderei escrever cartas, transcrever documentos,
ler e traduzir. Tudo o que precisares que faça.
- Excelente. Estarias preparada para ficar até o meu assistente regressar? Ele regressará um dia ou dois depois do casamento. Penso poder localizar a tua irmã nesse
espaço de tempo, através dos meus contactos. Deve ser mais eficaz do que andares a viajar de um lado para o outro à procura dela. E agora ouçamos então a tua história.
Hesitei, perguntando-me como começar.
- Gostas de hidromel, Caitrin? - Donal retirara um frasco e dois copos de uma prateleira. - Este é particularmente bom; é Maeve quem o faz, um dos seus muitos talentos.
Ela está a pensar em ter abelhas aqui no jardim, segundo me disse. Bebe alguns golos antes de começares o teu relato. E não tenhas medo de me chocar. Neste tipo
de trabalho ouve-se de tudo. Isso mesmo, minha querida. Leva o tempo que precisares.
Donal era um ouvinte exímio; não havia dúvida de que adquirira aquela competência após anos e anos a ouvir histórias de pessoas com problemas. De tempos a tempos,
ele interrompia-me, com delicadeza,
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para pedir uma explicação. Aqui e além, esperava num silêncio confortável enquanto eu me recompunha. Uma ou duas vezes, a expressão dele revelou alguma emoção: choque,
pena, surpresa. A certa altura, tomou notas na sua folha de pergaminho, numa caligrafia rápida e precisa. - E foi assim que, finalmente, eu fugi de casa. Dirigi-me
para oeste, pensando que talvez encontrasse alguém que pudesse ter conhecido a minha mãe quando ela era jovem, mas querendo sobretudo ser... ser outra pessoa, algures
onde Cillian não me pudesse encontrar. Encontrei um lugar onde ficar e um trabalho para fazer. Não consigo falar sobre isso. Mas Cillian encontrou-me. Tentou raptar-me.
Foi... corrido de lá. Não voltou. Penso que, se eu regressasse a Market Cross, ele e Ita tentariam convencer as pessoas de que estou louca, tal como fizeram depois
da morte do meu pai. São bons nisso. Até eu acreditei. - Donal voltara a encher o meu copo. De fora vinham os sons das crianças a brincar no jardim, gritos de emoção,
um cão a ladrar, a voz calma de Maeve a restaurar a ordem. Eu permaneci sentada, calada, deixando que o doce sabor do mel me acalmasse, enquanto o homem da lei estudava
as suas notas, de sobrancelhas ligeiramente franzidas. Já não se parecia minimamente com um leprechaun. Os seus olhos, perspicazes e atentos, eram os de um homem
que daria o mais formidável dos adversários.
- Muito bem, Caitrin - disse ele, parecendo quase abstraído. -Sem precisar de estudar esta situação em maior pormenor, posso dizer-te que parece que a lei foi violada,
não só em relação à vossa herança, mas em relação a várias outras questões. Precisarei de algum tempo para pensar na melhor forma de agir.
- Tenho medo de regressar a Market Cross e de os enfrentar. Não Sei se serei capaz de o fazer. Eles... Eles têm uma tal capacidade para me mudar, para me fazer perder
a coragem.
- Não precisas de pensar nisso agora, minha querida. Mas tenho uma pergunta.
- Sim?
- Porque não te dirigiste directamente ao homem da lei de Market Cross depois de teres conseguido arranjar vontade para sair de casa?
- Não estava a pensar com clareza. Não estava em mim. Tudo o que consegui fazer foi fugir. Para além disso, o homem da lei de Market Cross teria pensado que eu perdera
o juízo, como todos os outros pensaram. Eu andara a comportar-me como uma louca; era razoável, suponho.
A boca de Donal formou uma linha lúgubre.
- Razoável? Dificilmente. Nenhum homem da lei que valesse esse título faria um tal julgamento baseando-se unicamente nos conselhos de
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uma mulher que ganharia com a tua incapacidade, Caitrin. Ele deveria pelo menos, procurar uma opinião independente sobre a tua capacidade em compreender a situação
e tomar decisões em relação à propriedade do teu pai. Para além disso, presumo que ninguém tenha sugerido que a tua irmã também perdera o juízo. Porque não a mandaram
chamar? Mentiram-te, burlaram-te e ludibriaram-te de forma implacável, já para não referir as indignidades pessoais que este Cillian infligiu contra ti, ao que parece
com a cumplicidade da mãe. Ambos têm de ser chamados à justiça.
Senti uma parte interior de mim encolher-se. A sensação era-me familiar e lutei contra ela.
- Primeiro, quero encontrar a minha irmã - proferi. - Não quero que Cillian e Ita saibam onde estou. Sei que terei de regressar para os confrontar, eventualmente,
Donal. Mas não estou certa de estar preparada para isso.
- Mas queres que seja feita justiça. - Não havia qualquer recriminação no que ele disse; era apenas a constatação de um facto.
- Eu sei que é isso que deve acontecer, sim. - Já o ouvira da parte de Rioghan, de Magnus, e do próprio Anluan. - Mas tenho medo.
Donal pousou a sua pena.
- Estás num lugar seguro aqui, Caitrin. Não precisas de olhar para além disso neste momento. A situação é complexa, tenho de pensar melhor antes de decidirmos como
proceder. Gostaria que me desses permissão para escrever para um amigo meu chamado Colum, um homem de leis de posição elevada, que preside sobre o distrito de Market
Cross. Na maior das confidências, claro. - Quando me preparei para protestar, ele acrescentou: - Não interessa o que aconteceu durante o tempo que passaste à mercê
desses teus parentes, a lei tratar-te-á com justiça. Apesar de não ser o mais caloroso dos homens, Colum é absolutamente rigoroso na prossecução da justiça. Isso
deve tranquilizar-te. Ninguém te irá sugerir que confrontes, sozinha, esses miseráveis. Também me ocorre que temos um médico aqui em casa. Brendan está bem qualificado
para fazer um relatório sobre o teu estado de espírito, Caitrin, e para emitir uma opinião escrita de que és perfeitamente competente para tomares as tuas próprias
decisões.
Santa Brígida. Nem sequer pensara nisso. Estava tudo a andar tão depressa.
- Tenho a tua permissão para escrever a carta? Ou talvez devas escrevê-la para mim. Dessa forma podemos ter a certeza de que concordamos com o texto antes de o assunto
sair destas quatro paredes. Concordas?
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- Vejo que é o que deve ser feito. Gostaria de um pouco de tempo para pensar antes de dizer que sim, Donal. Se tiveres trabalho para mim, o farei em primeiro lugar.
Ajudar-me-á a clarear a mente. - Desejava sentir o equilíbrio da pena na minha mão, as linhas ordeiras da escrita fluírem pela página, o silêncio tranquilo que envolvia
o exercício do meu ofício. As crianças poderiam ainda estar a rir e a gritar do outro lado daquela janela mas, quando começasse a escrever, não as ouviria.
- Claro. Agirei imediatamente no que se refere ao outro assunto, tentando encontrar Maraid. Quanto mais depressa a mensagem partir daqui, mais depressa te reunirás
com a tua irmã. Idealmente, deveríamos avisá-la da situação relativa à herança antes de agirmos.
- Vou buscar os meus materiais de escrita, isto é, se quiseres que eu comece já a trabalhar.
Donal fez uma careta.
- Há trabalho suficiente à espera. Dar-te-ei algumas cópias para começar e depois deixar-te-ei durante algum tempo. Prometi a Maeve que experimentaria as minhas
roupas de casamento. Imagino que parecerei um pequeno pássaro rotundo que ganha penas coloridas na estação de acasalamento, mas se isso a deixa feliz...Algum tempo
depois instalei-me na secretária do assistente com uma pequena pilha de documentos que Donal me dera para copiar. Era um trabalho fácil, e ainda bem, pois a minha
conversa com o homem da lei dera-me demasiado em que pensar. Abri a minha caixa da escrita. Donal tinha um abastecimento de penas, mas eu preferia usar a minha e
apará-la com a faca especial do pai. Isso, pelo menos, trouxera em segurança de Whistling Tor. Perguntei-me o que estaria a criança-fantasma a fazer e se Róise lhe
servira de consolo. Esperei que Gearróg fosse gentil e olhasse por ela. Talvez já se tivesse esquecido de mim.
Ainda não tinha olhado para dentro da caixa desde o dia em que deixara Whistling Tor, altura em que descobrira o saco das moedas de prata de Anluan e o retirara
para o guardar num lugar seguro. Naquele momento, metendo a mão no interior para encontrar o rolo almofadado das minhas penas, os meus dedos encontraram outra coisa
que não pertencia ali, algo plano e liso. Retirei as penas; retirei os boiões de tinta um a um. Ali, ao lado deles, arrumado com aprumo, estava um caderno de apontamentos
cuja capa de pele de vitela trabalhada me era familiar. Senti um aperto no meu coração. O livro de Anluan. As minhas mãos tremiam quando o retirei e coloquei em
cima da secretária. A minha respiração
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era irregular quando o abri e vi a sua caligrafia desordenada a vaguear pela primeira página. É uma tarefa ingrata, sem sentido. Adormece-me a mente e cansa-me o
corpo. Muirne tem razão; é uma estrada que não conduz a parte alguma. E no entanto continuo com estes miseráveis documentos. O que mais existe para além de um desespero
absoluto?
Voltei uma página e depois outra. Mais palavras de desalento, escrevinhadas numa caligrafia que era quase ilegível. Como poderia suportar lê-lo? Porque mo dera ele?
Voltei mais páginas e cheguei a uma folha que se destacava, pois a maior parte dela estava em branco. Só que, mesmo no centro, estavam escritas, na mesma caligrafia
baralhada, as seguintes palavras: Tão luminosa, tão perfeita, tão viva. Não pertences a este lugar de sombras. O que queres de mim?
E quando reconheci, sem sombra de dúvida, que Anluan registara ali a minha chegada a Whistling Tor, coloquei a cabeça em cima da secretária e chorei.
CAPÍTULO DOZE
Todas as manhãs acordava enquanto as duas raparigas que partilhavam o quarto comigo continuavam enroladas nos seus cobertores, profundamente adormecidas. Há muito
que me levantava cedo e aproveitava aquele momento, na acalmia que antecedia o bulício das pessoas da casa, para ler o registo de Anluan sobre o Verão que eu passara
em Wistling Tor, o Verão que mudara a minha vida e a dele. Uma página por dia; não me deixava ler mais depressa. Saboreava cada entrada surpreeendente, sentindo
com ele cada momento de dúvida, cada pequena centelha de esperança. Quanto mais tempo levasse a atingir o final, melhor. Enquanto ainda houvesse páginas por ler,
poderia fazer de conta que o elo existente entre nós se mantinha intacto. Não estava certa de querer ler a última página, a qual devia falar da sua decisão de me
excluir de seu futuro, a escolha que fazia cada vez menos sentido, quanto mais lia.
Antes de as raparigas se mexerem, fechava suavemente as capas e voltava a colocar o pequeno livro na bolsa que trazia ao cinto. Levava-o para toda a parte. Pensava
nele constantemente. Sinto uma mudança algures dentro de mim, escrevera ele. Não sei dizer se me é bem-vinda ou se a temo. Muirne chama-me tolo; ela diz que nada
pode mudar em Whistling Tor, nem mesmo o seu desgraçado chefe tribal. Mas já me mudaste. O meu coração bate mais depressa. O meu sangue corre mais veloz. A luz ilumina
tudo quando estás perto de mim, ofuscante, aterrorizante. É como se me tivesses acordado depois de cem anos de sono.
Com a voz de Anluan a bater-me no coração, sentava-me à secretária, acalmando-me com o exercício do meu ofício. Nenhuma das tarefas que Donal me dava eram de qualquer
forma cansativas. Estava satisfeita por poder agradá-lo e contente por não ter de passar o dia a manter conversas animadas com as senhoras da casa, por muito agradáveis
que todas elas fossem. Sozinha ou na companhia silenciosa de Donal, podia
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manter a memória de Anluan perto de mim. Podia contemplar a página de uma manhã e sonhar com a da manhã seguinte.
Concordara que Donal podia enviar a sua carta para o homem da lei de Market Cross, colocando a questão do legado do meu pai e, em particular, a ocupação da casa
de família. No final, a missiva que ele me ditou era um pouco mais detalhada do que eu esperara, expondo certos assuntos sensíveis, incluindo as agressões de Cillian
contra mim e as histórias falsas que a mãe dele fizera circular.
- Confio plenamente em Colum, Caitrin - afirmara Donal. - Ele ensinou-me muito daquilo que sei. Será discreto nas suas averiguações. Quero-o totalmente informado
sobre a gravidade da situação, especialmente se se verificar que o homem da lei local foi descuidado no desempenho das suas funções. Alguém devia ter-se oferecido
para te ajudar ou, pelo menos, ter garantido que estavas a ser bem cuidada.
Por isso, deixei-o enviá-la e, ao mesmo tempo, ele despachou mensageiros para procurarem Maraid e Shea, gente que visitaria as praças dos mercados e os casarões,
o tipo de lugares onde músicos poderiam tocar. Donal estava confiante de que Maraid seria encontrada antes de o seu assistente estar de volta. E se demorasse um
pouco mais, disse ele, eu permaneceria com eles, claro. Ele queria discutir a situação com todos nós, Maraid, Shea e eu, e ajudar-nos a tomar quaisquer decisões
que fossem necessárias. Quando protestei que não deveria permanecer depois do casamento, ambos Donal e Maeve insistiram que eu não atrapalharia de todo. Na verdade,
afirmou Donal, parecia que ele tinha trabalho suficiente para manter dois assistentes ocupados. Se quisesse continuar a ajudá-lo, ele pagar-me-ia pelos meus esforços.
O Sol nasceu no dia do casamento de Donal e Maeve. O céu estava de um azul tranquilo, sem uma única nuvem à vista. Depois de um pequeno-almoço substancial e barulhento,
todos se vestiram com os seus melhores trajes e se dirigiram a pé para a igreja, onde uma cerimónia simples mas comovente se realizou. Temi que a minha presença
manchasse o dia de felicidade do meu anfitrião, mas fui tomada pela alegria da ocasião e quase me esqueci dos meus próprios problemas até regressarmos a casa de
Donal e encontrarmos um mensageiro à espera.
- É melhor falarmos a sós, amo Donal. - Por baixo do seu chapéu de abas largas, o rosto do homem estava muito sério. Uma onda de inquietação percorreu-me o corpo.
- É sobre a minha irmã? Maraid?
Instalou-se uma pausa embaraçosa enquanto as pessoas que falavam e riam entravam pela porta, atrás de nós.
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- Vamos para o escritório - indicou Donal, olhando para a sua mulher. - Desculpa-me, minha querida.
- Vai lá - encorajou Maeve, com um sorriso. Sem dúvida que ela estava preparada para casar com um homem da lei. - Se houver novidades, Caitrin precisa de as ouvir
de imediato.
Depois, já com Donal, o mensageiro e eu no escritório, o homem continuava relutante em falar.
- Vá lá, diz de uma vez - pediu Donal. - Podes falar em frente de Caitrin, é ela quem procura informação sobre este caso específico.
O homem pigarreou.
- Tenho novidades, sim, mas não são as melhores. Talvez a jovem senhora deva sentar-se. Senti o sangue esvair-se do rosto.
- Diz-me! - A minha voz tremia. - O que aconteceu? A minha irmã está bem? - Pois embora pensasse que poderíamos não encontrar maraid e Shea imediatamente, nunca
pensei que algo pudesse ter-lhes aconntecido.
O mensageiro olhou de relance para Donal e este acenou o seu consentimento.
- Estavam a passar algum tempo numa casa em Five Birches, que fica a alguma distância para norte, quando uma enfermidade atingiu os membros da casa - informou o
homem. - Muitas pessoas ficaram doentes e algumas morreram, incluindo o próprio filho do chefe tribal. ...bem, o músico, Shea, foi um dos desafortunados. Num dia
estava com vómitos e diarreia e no dia seguinte partira.
- Partira? - A minha mente não estava a conseguir entender. - Partira para onde? - Depois, ao ver os dois homens a olhar para mim com rostos sombrios: - Queres dizer...
Queres dizer que Shea morreu?
- Senta-te, Caitrin. - Donal aproximou-se de mim e pegou-me no braço. - Vem, senta-te aqui. - Voltou-se novamente para o mensageiro. - São realmente más notícias.
Há quanto tempo é que isso aconteceu?
- Há algum tempo, segundo me foi dito. A viúva, Maraid, voltou para casa da família em Market Cross, ela e a criança. Não havia ninguém que pudesse alojá-las lá
em cima em Five Birches. Aquela casa perdeu muitos dos seus e, durante uns tempos, andaram todos de cabeça perdida.
Eu sabia que se tentasse pôr-me de pé as minhas pernas não me suportariam. Senti a minha cabeça a andar à roda; o estômago às voltas. Sê forte, Caitrin.
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- A criança? - perguntei, com voz rouca. - Que criança? - Talvez o mensageiro se tivesse enganado e esta triste história não fosse a de Maraid mas a de outra pessoa.
- Não sabias? A jovem Maraid teve um bebé, não tinha mais de dois meses quando o marido morreu. A tua irmã teve sorte, nem ela nem o bebé apanharam a enfermidade
e tinham para onde ir.
Sorte. O marido dela estava morto antes dos vinte e cinco anos, o filho dela não tinha pai e eu, a sua única irmã, estava longe, no oeste, onde ela não me podia
contactar. E agora Maraid estava em Market Cross, naquela casa, com o seu bebé. Estavam ambos à mercê de Ita e de Cillian.
- Caitrin. - Donal agachou-se a meu lado, vestido com as suas roupas de casamento e estendeu-me um copo de hidromel. - Respira fundo. Aqui estás entre amigos e nós
ajudar-te-emos. - Dispensou o mensageiro, pedindo-lhe que esperasse lá fora, depois regressou e fechou calmamente a porta do escritório. - São, de facto, notícias
tristes - proferiu. - Um terrível choque para ti. Chora à vontade, minha querida.
Mas eu não conseguia chorar. Era um luxo ao qual não me podia dar, uma perda de tempo precioso. Cada momento que eu passava naquele lugar hospitaleiro, era um momento
de sofrimento, de medo e de solidão esmagadora para Maraid e para o seu filho. Vi-a na casa de Market Cross, abatida pelo desgosto, e vi-me a mim própria como ficara
depois da morte do pai, uma concha vazia, completamente só no mundo.
- Tenho de ir para lá - declarei, pondo-me de pé. O aposento rodopiou; inspirei profundamente e endireitei as costas. - Agora. Hoje. A Maraid está lá com eles. Tenho
de ir ter com ela. - Tenho de dizer em favor de Donal, que ele não me lembrou que era o dia do seu casamento, não me disse que estava a ser ridícula. Em vez disso,
chamou Fidelma e Brendan. Fidelma colocou-se a meu lado, com o braço por cima dos meus ombros. Os homens sentaram-se de frente para nós. Seguiu-se uma discussão
e foi elaborado um plano. Partiria de Stony Ford na manhã do dia seguinte, acompanhada por Brendan e Fidelma, bem como pelo enorme jovem que cuidava dos cavalos
de Donal e que executava as tarefas mais pesadas na propriedade. Aengus era o campeão de luta livre do distrito.
- Ficarei muito mais descansado se tiveres alguém musculado para te apoiar, Caitrin - confessou Donal. - Aengus pode conduzir a carroça e ajudar a procurar alojamento
pelo caminho. Certifica-te de que ele está contigo quando confrontares os teus parentes. Deverás falar com Colum assim que chegares a Market Cross e antes de fazeres
qualquer tentativa de ires para a tua casa de família. Ele já deve ter recebido e lido
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A minha carta, mas é claro que não sabe que vais a caminho. Não podemos ter a certeza do tipo de recepção que os teus parentes te darão.
- Estou assustada por Maraid. Cillian pode estar a ser cruel com ela. E o bebé, tudo pode acontecer...
- Que prefiras partir de imediato, sim, eu compreendo - concluiu Donal. - Mas precisas do resto do dia de hoje para te preparares, Caitrin. Brendan poderá escrever
o relatório sobre o teu estado de saúde levá-lo com ele, para apresentar caso alguém faça perguntas acerca da tua capacidade para tomares as tuas próprias decisões.
Precisamos de nos sentar os dois e discutir a lei das heranças. Terás de ser capaz de expressar o teu argumento com clareza. Estes parentes poderão tentar convencer-te
de que estava no seu direito tomarem a casa do teu pai.
- Mas...
- Não se parte para o campo de batalha sem preparar as armas, Acredita em mim, não usar este tempo seria um erro grave. Maraid tem conseguido passar sem ti até agora;
mais um dia fará pouca diferença.
Eu sabia que o bom senso estava do lado dele, embora a minha mente e o meu corpo tivessem sido tomados pela necessidade de agir.
Maraid não podia ser magoada como eu fora. Não podia deixar que isso acontecesse.
- É melhor aparecermos lá fora - aconselhou Fidelma -, nem que seja apenas para sossegar Maeve.
Voltei abruptamente para o aqui e o agora. O dia do casamento, Maeve, a casa cheia de convidados.
- Donal, não posso esperar que faças isto hoje. E como pedir a idelma e a Brendan que partam tão cedo? Pobre Maeve. Estraguei teu casamento.
- De todo - assegurou Donal. - Maeve sabe como as coisas poderão ser de agora em diante. É a minha grande fortuna ela ter-me aceitado apesar disso. Quanto a estes
dois, se eles não quisessem ir contigo, não fálo-iam, acredita.
- Seja como for - acrescentou Fidelma -, devemos sair e juntar-nos às festividades, ainda que por pouco tempo. E tu, Donal, poderias tranquilizar a tua mulher de
que apenas precisarás de uma hora ou assim antes da ceia para explicar estas questões legais a Caitrin. Maeve vai querer que estejas presente durante a ceia e para
as danças que se seguirão. Não deves desapontá-la.
O homem da lei fez o seu sorriso de kprechaun.
- És um paradigma de pragmatismo e tacto, Fidelma. Compreendo perfeitamente porque é que o meu irmão se casou contigo. E não desapontarei Maeve de todo, penso. -
Ficou novamente sério. - Caitrin,
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recebeste uma má notícia e tens muito em que pensar. Imagino que queiras um pouco de paz e sossego.
- Tudo a seu tempo - interveio Fidelma. - Primeiro tens de comer e beber alguma coisa, penso eu, e poderias também dar uma palavrinha a Maeve, Caitrin. Ela pode
compreender o que significa ser a mulher de um homem da lei, mas até a paciência de um santo tem limites.
Andámos três dias na estrada. Duas das noites passámo-las em casas de pessoas conhecidas de Donal. Aengus depressa mostrou o que valia, abrindo-nos caminho com os
seus modos calmos mas persistentes. O que estes não conseguiam, conseguia-o a sua estatura intimidante. Fidelma e Brendan fizeram-me companhia sem me fazerem muitas
perguntas. Não conseguia dormir. A medida que os quilómetros passavam, pensava na casa de Market Cross, e o muito tempo de escuridão que ali vivera parecia pesar
mais do que os anos felizes que o antecederam. Devia ser corajosa. Tinha um protector. Tinha amigos. Tinha um médico que garantiria a minha sanidade e um advogado
a quem poderia pedir ajuda. Mas Cillian magoara-me, e a sua sombra atormentava-me. Quando pensei em Ita, lembrei-me de chorar diante dela, implorando-lhe, e ouvindo-a
dizer, O meu filho não te puniria se tu não o merecesses, rapariga ingrata. A noite, quando o cansaço tomava finalmente conta de mim, os meus sonhos enchiam-se de
poços escuros e de garras dilacerantes. Acordava exausta, perguntando-me se não seria, afinal, a mesma mulher assustada que fugira de Market Cross há uma estação.
Continuava a racionar a leitura do livro de Anluan a uma página por manhã. No dia em que esperava chegar a Market Cross, li estas linhas:
Pode uma pena lascada escrever uma bela caligrafia? Pode um machado mal afiado cortar lenha para o lume? Pode um aleijado agradar a uma senhora?
Chocou-me tanto que quebrei a minha regra auto-imposta e voltei a página. Ali, tão familiar que conseguia lembrar-me de cada palavra da conversa que Anluan e eu
partilháramos essa manhã, estava um pedaço cortado da folha na qual ele tentara o novo método de escrita. Caitrin, escrevera. Caitrin. Caitrin. As lágrimas arderam-me
nos olhos. Queria voltar outra página, depois outra e devorar o livro inteiro, pois parecia um banquete depois da fome. Mas não o fiz. Era demasiado precioso para
ser desperdiçado daquela forma; saborearia um pedaço de cada vez.
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Um aleijado. Nunca pensara nele daquela forma, excepto talvez no primeiro dia, quando ele coxeara pelo jardim e me assustara. Podia jurar que ninguém da sua casa
via a deficiência.
- Agradar-me-ias - murmurei, lembrando-me do espelho do podia-ter-sido, do elevar do meu corpo, do impelir do dele, do poder e da rima do momento. - Eu sei que sim.
Mas talvez fosse insensato pensar nisso. Muirne quase me dissera que Anluan era incapaz de realizar o acto de amor. Como ela o sabia, nem podia imaginar, mas começara
a ficar convencida de que aquela era a razão principal para ele me ter mandado embora tão abruptamente. Não podia duvidar dos sentimentos dele por mim, não depois
de ter começado a ler aquele livro, cheio de ternura, paixão e confusão.
Com um suspiro, guardei o livro e comecei a vestir-me. Aengus dissera que se partíssemos logo a seguir ao pequeno-almoço chegaríamos a Market Cross durante a tarde,
se tudo corresse bem. Enquanto despia a minha camisa de noite e vestia a combinação, as meias e o vestido, tentei imaginar o que aconteceria quando entrasse pela
porta da casa da minha infância. Não gostei de nenhuma das variantes que a minha mente me mostrou. Não terei medo deles, não terei, disse a mim própria, mas não
deixava de sentir o estômago às voltas. O pânico, puro e simples, não andava longe, o tipo de medo que me fazia fugir para dentro de mim própria. Que tolice. Tens
de ajudar Maraid. E não tens de o fazer sozinha. Mas talvez tivesse de o fazer sozinha ou nunca conquistaria o terror que espreitava dentro de mim, ameaçando debilitar-me
quando mais precisava ser forte.
Não havia qualquer espelho no quarto onde estava hospedada. Enfiei a mão dentro do meu saco e retirei o pequeno espelho que trouxera de Whistling Tor, colocando-o
numa prateleira. Coloquei uns ganchos ao meu lado e depois penteei o cabelo numa longa trança. Quando me preparava para a prender no alto da cabeça, olhei de relance
para o espelho. O meu coração deu um salto. Lá estava ele, de pé no seu quarto, vestido com o traje de um guerreiro, com uma couraça ao peito, protecções nos braços
e nos pulsos. Estava a olhar para baixo para algo que segurava na mão de dedos longos, algo pequeno e brilhante - um fragmento, um pedaço de vidro?
- Anluan - sussurrei, mas ele não me ouvia. Enquanto eu olhava fixamente, não me atrevendo a mexer para não fazer a imagem desaparecer, ele virou o artigo para um
lado e para o outro, como se mudar o ângulo pudesse fazer alguma diferença, e vi que era um pedaço de espelho partido. Reflectia a luz do candeeiro, brilhando como
uma estrela, depois, quando ele o voltava preto como a noite. O espelho do podia-ter-sido;
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o espelho partido. Será que imaginei a sua boca torcida verbalizar o nome Caitrin enquanto lutava por conseguir que o vidro estilhaçado lhe mostrasse mais uma vez
a imagem que o despedaçava?
- Estou aqui - suspirei. - Estou aqui, meu bem-amado, meu querido...
Endireitou-se; olhou para cima e em redor, quase como se tivesse pressentido o meu chamamento. Mas o chamamento que ele ouvira fora outro. Vi-o deslizar o pedaço
de vidro por baixo da almofada da sua cama e depois dirigir-se para a porta. Parou para passar uma mão pelas faces. Endireitou os ombros e levantou o queixo. Inspirou
profundamente e libertou o ar lentamente. Depois abriu a porta, e lá estava Magnus, vestido de forma semelhante, com uma espada ao seu lado. Anluan saiu, a porta
fechou-se e a cena perdeu-se. Um momento depois, apareceu no espelho o quarto que fora meu. Parecia estar como eu o deixara: arrumado, despido, vazio. O lugar era
habitado por tons de cinzento, sombra sobre sombra. A porta estava ligeiramente aberta. A única luz visível era a proveniente das aberturas da galeria que ficava
para lá da porta. Parecia ser crepúsculo ou um dia tempestuoso.
Uma sombra prendeu-me o olhar: uma figura aprumada sentada de pernas cruzadas, no centro do chão, com a pequena boneca, Róise, nas mãos. Não era a criança-fantasma.
Era Muirne. Os olhos dela olhavam fixamente em frente, a expressão dela estava perfeitamente calma. As mãos dela mexiam-se, apesar disso, arrancando, rasgando, despedaçando
cada fiapo de cabelo que restava do escalpe de linho da boneca. Havia uma tal força naquelas mãos, uma tal violência que enviou um tremor de puro horror pelos meus
ossos. O pequeno lenço de cabeça que eu fizera anteriormente para cobrir os danos estava no chão ao lado da saia estendida de Muirne, desfeito em pedaços. O rosto
de Muirne não revelava nada mas, depois de ver o livro de anotações de Anluan, pensei poder adivinhar o que lhe passava pela mente. Ela partiu, por fim, partiu para
sempre, para muito, muito longe, e mesmo assim consome os teus pensamentos. Veio para aqui, deixaste-a entrar, e ela mudou-te. Ela mudou tudo.
- Caitrin? Estás preparada para tomar o pequeno-almoço?
A imagem desapareceu. O espelho mostrou apenas o meu rosto, de olhos muito abertos do choque e faces listradas de lágrimas. Estava tão branca como Róise: da palidez
do linho.
- Não me demoro - disse para Fidelma, através da porta fechada. Embrulhei o espelho na minha camisa de noite e enfiei-o dentro do meu saco. A minha trança desmanchara-se;
entrancei de novo o cabelo, pensando no olhar distante de Muirne e nas suas mãos furiosas e destrutivas.
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aquela imagem não fazia qualquer sentido. Eu já partira de Whistling Tor. O que é que ela esperava conseguir com a destruição dos meus pertences? Seria aquela mulher
simplesmente desvairada? Anluan... Vira-o atormentado pelo arrependimento e pela incerteza, tal como eu. Vira-o limpar as lágrimas das faces e sair pela porta para
enfrentar o que o esperava - mais um dia como líder, mais um dia de preparação para uma batalha impossível. Encontrara a coragem escondida bem no fundo de si próprio.
Ele tinha sido cruel para mim naquela última noite, sobrecarregando-me com a minha cobardia em relação a Cillian. Mas eu fora ainda mais cruel, o que lhe dissera
era indefensável. Apesar disso, ele mantivera-se corajoso. Naquele dia, reconheci que Anluan tivera razão ao desafiar-me. Não poderia vencer o meu monstro particular
se não entrasse naquela casa de Market Cross e confrontasse Ita e Cillian sozinha.
O dia estava soalheiro e luminoso, mas nem tudo naquela parte de Connacht era assim tão belo. Vimos uma companhia de homens de armas normandos a cavalgar para norte,
com o sol a brilhar nas cotas de malha e a reflectir-se nas armas. Traziam longos escudos e usavam elmos de metal com protecções para o nariz. Pareciam formidáveis.
Aengus parou a carroça à beira da estrada e ficámos ali sentados, em silêncio, enquanto eles passavam.
Mais tarde, vimos uma casa e um celeiro recentemente queimados. Um fio de fumo ainda se elevava dos restos chamuscados daquele lugar. Algo baloiçava de uma árvore,
como uma boneca partida. Um cão ladrava histericamente, correndo para a frente e para trás na sua corda, desafiando um inimigo que há muito partira. Os homens fizeram-nos
esperar na carroça enquanto foram ver se ainda havia alguém que pudesse ser ajudado. Vi Aengus soltar o cão; ele fugiu. Os homens regressaram, e, em silêncio, seguimos
caminho.
Teria sido útil ter um conselheiro, alguém como Rioghan, que me fizesse um plano e me ajudasse a executá-lo. Como não tinha, fiz o meu próprio plano, que expliquei
aos meus companheiros enquanto nos aproximávamos da povoação. Confrontar os meus inimigos, completamente sozinha, seria insensato. Colocaria em risco, não apenas
a minha segurança, mas também a de Maraid e a do filho dela - Santa Brígida, nem sequer perguntara se era um menino ou uma menina. Isso não faria. Por isso, expliquei
como se desenrolaria o plano e o papel que cada um desempenharia. Fiquei surpreendida quando os três concordaram sem levantar qualquer objecção. Rioghan teria ficado
orgulhoso de mim.
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O meu coração batia rapidamente e a minha pele estava pegajosa de suor, mas havia um propósito em mim agora, uma vontade de ser bem-sucedida que crescia a cada momento.
A minha força aumentava a cada estalido das rodas das carroças, a cada passo que me aproximava do meu destino.
Chegámos a Market Cross a meio da tarde. Deixámos Fidelma à porta de casa do homem da lei, uma casa grande protegida por uma vedação alta, não antes de mandarmos
Aengus à frente, para ter a certeza de que Colum estava em casa. Depois Aengus conduziu a carroça até chegarmos à praça da vila. Parou a carroça ao lado da extensão
de relva pisada que hospedava o mercado semanal que dava o nome à vila. No extremo oposto da praça podia ver-se a minha casa de infância: uma morada confortável
de modestos tijolos de lama cujo telhado de colmo se encontrava decorado com mochos feitos de palha. Desci, obrigando-me a respirar devagar. Endireitei os ombros,
tal como vira Anluan fazer, e depois andei pela relva até à porta da entrada. Aengus veio atrás de mim, enquanto Brendan ficou com a carroça e os cavalos. Naquele
momento, já uma ou duas pessoas que passavam haviam reparado na nossa chegada, e houve alguns comentários e alguns gestos. Podia bem imaginar o que eles diziam:
Oh, lá está a pobre Caitrin, de regresso a casa! Sabes, afilha de Berach, aquela que perdeu o juízo e fugiu de casa.
Com a cabeça erguida, subi em direcção à porta e bati com força. Anluan, disse silenciosamente, fazendo do nome dele um talismã contra a fragilidade. Bati outra
vez.
- Ita, abre a porta! - chamei. Continuou a não haver resposta. Estavam em casa. A chaminé da cozinha deitava fumo e ouvia alguém lá atrás no pátio, a usar um ancinho
ou uma vassoura. Juntou-se o choro de um bebé pequeno, atiçando a minha coragem. Era a minha casa, afinal. Dei um empurrão à porta, mas ela não se mexeu. Olhei para
Aengus.
Ele encostou o ombro à madeira e empurrou. A porta abriu-se com um estrondo. Seguindo as instruções que eu lhe dera, Aengus assumiu o seu posto junto à parede, do
lado de fora da porta, de onde não podia ser visto do interior. Entrei.
O barulho trouxera Ita à porta da cozinha, onde estava de mãos nas ancas, avaliando-me, uma figura alta e magra, com o cabelo puxado para trás debaixo de um lenço.
Uma curiosa sequência de expressões passou-lhe pelo rosto. Fosse quem fosse que ela pensasse que podia estar a fazer uma entrada violenta dentro de casa, não era
eu certamente.
Nota de rodapé:
Market significa mercado.
Fim da nota de rodapé.
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- Caitrin! - Esboçou um sorriso. Era tão convincente como um rriso pintado numa gárgula carrancuda. - Estás a salvo!
Quase lhe pedi que me explicasse, quase lhe dei a oportunidade de me dizer como era afortunada por não ter sido chacinada, ou pior, pelo feiticeiro malvado em cujo
covil eu tropeçara por insensatez. Cillian teria contado a sua versão dos acontecimentos, estava certa. Mas não, não pediria nada a Ita. Tinha várias coisas para
dizer e não deixaria que ela me impedisse, não desta vez, nem nunca mais.
- Onde está a minha irmã? - Ouvi o tom férreo da minha voz. Dentro da casa, algures, o bebé ainda chorava.
Ita aproximou-se para pegar no meu braço, para me encaminhar para a cozinha que fora em tempos o orgulho e a alegria de Maraid, o coração caloroso da nossa casa.
Obrigando-me a não lhe dar um repelão, deixei que ela me sentasse à mesa. O aposento já não era luminoso nem acolhedor. Os trabalhos de tecelagem de Maraid, as flores
que ela costumava pôr aqui e além em jarras, as tranças de cebolas e os molhos de ervas secas estavam ausentes. No entanto, Maraid estava ali e há já algum tempo
que estava. Com um frio nos ossos, esperei que Ita me respondesse à pergunta.
- Maraid está a descansar. Tem estado bastante doente. A bebé é enfermiça. Está sempre a chorar, a chorar. É o suficiente para acabar com a paciência de quem quer
que seja. Mas acolhemo-las, à tua irmã e à criança, uma vez que Maraid não tinha para onde ir. E agora tu estás aqui, Caitrin.
- Que fardo que isso deve ser para ti - disse eu, de forma lúgubre, tentando manter a calma. - Uma viúva de luto, um bebé chorão e agora uma louca também. É realmente
demasiado para aguentares. Penso que é melhor que tu e Cillian regressem a vossa casa.
Os olhos dela voltaram-se para mim e depois desviaram-se rapidamente outra vez. Vi-a inspirar profundamente e recompor-se.
- Esta casa agora é nossa, Caitrin, sabes disso, passou para Cillian aquando da morte do vosso pai. Quanto ao fardo, as obrigações trazidas pelo parentesco podem
ser onerosas, é verdade, mas aceitamo-las. É o nosso dever. - Retirou um jarro da prateleira e depois ficou com ele na mão, como se se tivesse esquecido do que estava
a fazer. - Tenho de chamar Cillian - disse ela.
- Se assim o desejas. Quando o chamares, por favor, chama também Maraid.
- Já te disse que ela está a descansar. Se vieste para casa para ficar, Caitrin, e assumo que sim, terás muito tempo para a ver. - Ita pousou o jarro. - Também deves
estar cansada depois de uma viagem tão longa.
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Cillian disse que estavas muito para oeste, quase na costa. - O olhar dela aguçou-se repentinamente. - Estás grávida desse aleijado com que vivias? É por isso que
voltaste para cá? Há limites para a nossa generosidade, Caitrin. O que Berach deixou só dá até certo ponto.
- Chama a minha irmã - exigi. - E chama Cillian. Tenho algo para vos dizer que não pode esperar.
Cillian estivera lá fora no pátio. Quando a mãe o chamou, ele veio até à entrada onde se encostou, olhando-me fixamente. Por um momento, o velho pânico agarrou-me.
Senti as mãos dele em cima de mim, a minha pele doeu-me da memória de nódoa negra em cima de nódoa negra. O cheiro dele estava-me nas narinas, trazendo de volta
aquele tempo negro.
- O aleijado pôs-te na rua, foi? - perguntou ele, sorrindo.
E depois, na entrada em frente, a que dava para os quartos de dormir, apareceu uma figura desgastada, com as roupas desarranjadas, a pele às manchas, os olhos vermelhos.
Era uma sombra de si própria, com as suas generosas curvas reduzidas a nada. Levantou uma mão para afastar os cabelos da testa e o pulso dela só tinha ossos.
- Caitrin - sussurrou ela. - És mesmo tu?
Um momento depois, estávamos nos braços uma da outra, esquecidas de Cillian e de Ita.
- Maraid! Tive tantas saudades tuas! Lamento, oh, lamento imenso o que aconteceu a Shea!
Maraid disse algo, mas o rosto dela estava pressionado contra ao meu ombro e não a compreendi. Tremia e soluçava. Estava tão frágil que parecia que se ia partir
ao meio. A minha encantadora irmã, roliça, rosada e cheia de vida, fora reduzida àquilo. Não se devia apenas ao desgosto, disso tinha a certeza, pois Maraid sempre
fora forte, resistente, uma sobrevivente. Enquanto a ajudava a sentar-se à mesa - ela parecia demasiado fraca ou demasiado distraída para fazer até isso sem ajuda
- uma força fria penetrou-me o coração. Voltei-me para encarar as duas pessoas que eu mais temia no mundo, as duas pessoas que quase me tinham destruído.
- Escutem com atenção - proferi. - Consultei um homem da lei no que se refere à nossa situação legal, a minha e a de Maraid. Como únicas filhas do pai, Maraid e
eu passámos a ser proprietárias conjuntas, desde a sua morte, desta casa e de todos os seus bens terrenos, durante as nossas vidas. Não tens qualquer direito a coisa
alguma, Cillian, nem a tua mãe. - E quando Ita tentou interromper-me: - Espera! Nem tentes dizer-me que sou louca, que isso não te irá ajudar. Tenho um documento
de um médico que atesta que estou no meu juízo perfeito. Na ausência
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De filhos, as filhas herdam a propriedade do pai enquanto viverem. Isto está legislado segundo a lei brehon e suspeito que ambos soubessem disso desde sempre. Por
que outro motivo quererias casar com uma mulher que desprezas claramente, Cillian, a menos que tenhas percebido que não tinhas qualquer direito legal à propriedade
do pai? Esperavas provavelmente obter o controlo sobre ela através dos teus filhos, aqueles que imaginaste que eu te daria. Talvez esperasses que eu morresse convenientemente
nova ou que a minha mente se mantivesse tão confusa que tu e a tua mãe teriam de tomar todas as decisões por mim. Durante um pouco, os dois limitaram-se a olhar-me
fixamente. Depois Cillian olhou para a sua mãe, elevando as sobrancelhas.
- Não é verdade, pois não? - perguntou ele. - Não pode ser.
- É claro que não. - Ita cruzara os braços e firmara o maxilar de uma maneira que me era muito familiar. - Delírios, é o que é, trazidos pelas aventuras que Caitrin
tem tido junto de Deus sabe que tipo de gente sem reputação. Caitrin, precisas de descanso, precisas de paz e sossego, minha querida. Vou mandar alguém preparar
o teu quarto...
Vi nos olhos dela a compreensão de que o mundo confortável que ela criara para si própria e para o filho estava prestes a ruir e a determinação de me impedir antes
que eu o fizesse acontecer. Ela já me subjugara uma vez, tudo o que precisava de fazer era mentir.
- Oh, céus, o que é que faremos com estas raparigas? - A voz de Ita de repente ficara melosa; aproximou-se de nós, colocando uma mão no meu ombro e outra no de Maraid.
- Larga Maraid, Caitrin. Estás a perturbá-la. Vem, minha querida, vamos lá levar-te para o teu quarto...
- Tira as mãos de cima de mim, Ita. - A minha voz estava fria e calma, não sabia que tinha tal poder dentro de mim. - Ainda não acabei. - Olhei para Cillian, que
estava a enrolar as mangas. Talvez planeasse fazer-me sair à força se não obedecesse aos desejos da sua mãe e me retirasse. - Podes desafiar-me com a lei, estás
no teu direito. Ficam a saber que Maraid e eu pretendemos prosseguir com o devido processo legal para nos assegurarmos de que nos são garantidos os nossos direitos.
- De que é que estás a falar, rapariga tola? - O tom de Ita tornou-se cortante. - Processos legais, direitos... Não estás no teu juízo perfeito desde que o teu pai
morreu. Na verdade, mesmo antes disso, sempre te achei um tanto... cabeça no ar. Quanto aos tempos mais recentes, as histórias que Cillian trouxe para casa do Oeste
tornaram bastante claro que nunca mais serias capaz de viver uma vida normal.
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- Umas ruínas velhas cheias de aberrações e de monstros - refilou Cillian. - Nunca vi nada igual. Ninguém poderia ficar muito tempo num lugar assim sem ficar louco.
Ainda tens menos juízo que a tua irmã Caitrin. Pelo menos ela percebeu que era sensato voltar para casa.
Eu vi Maraid encolher-se.
- Como te atreves! - Tive vontade de lhe bater pela sua falta de consideração e crueldade. Pus o meu braço em torno dos ombros da minha irmã. - Maraid regressou
porque perdeu o seu amado marido. Regressou porque ela e o filho não tinham outro lugar para onde ir. E agora que aqui estou, vamos transformar esta casa num lar
outra vez, em vez da imitação grotesca em que se tornou desde que vocês se mudaram para cá e tomaram o que não vos pertencia por direito. Agora ouçam-me e ouçam-me
bem. Vão sair desta casa antes do crepúsculo. Nenhum de vocês voltará a aparecer diante de mim ou da minha irmã.
Um soluço dilacerante vindo de Maraid; o meu coração ficou doente de a ouvir.
- Onde está o bebé, Maraid? - perguntei calmamente mantendo a minha mão no seu ombro. - Está a salvo?
A minha irmã anuiu.
- Está no quarto com Fianait. - Fianait fora um membro indispensável da nossa casa quando o pai era vivo. Era uma rapariga robusta e de boa índole, que fizera de
tudo desde matar e depenar galinhas a polir talheres de prata. Ita despedira-a. Se Fianait regressara, isso significava que Maraid não estivera totalmente sem amigos.
- Caitrin, é mesmo verdade? - perguntou a minha irmã. - Nem consigo acreditar...
- Nem deves. - Ita lutava por manter a calma. - Como eu disse, é um chorrilho de disparates. Desde quando é que Caitrin é perita em assuntos legais? Cillian, penso
que Caitrin poderá ser um perigo para si própria. É melhor que a ajudes a ir para o quarto dela...
Cillian moveu-se na minha direcção, de braços estendidos. As memórias surgiram em mim; um pânico repentino manteve-me imóvel, como um coelho debaixo do olhar fixo
da raposa.
Maraid levantou-se.
- Não te atrevas a tocar na minha irmã - proferiu ela, e ainda que a sua voz estivesse fraca, a coragem ardia-lhe nos olhos. Enquanto ela enfiava o braço dela no
meu, eu lembrei-me de que tinha um plano, e de que tinha amigos, e de que não era a mesma mulher que fugira daquela casa há uma estação.
- Não vim sozinha - disse calmamente. - Referi um médico. Ele está à espera lá fora. Quanto à situação legal, penso que se darão conta que tenho o apoio do administrador
do distrito. O nome dele é Colum,
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E podem esperar uma visita dele em breve. Quero-te de coisas arrumadas e pronta para partir dentro de uma hora, Ita, e Cillian contigo. Se alguém tocar em mim, em
Maraid ou na criança, ou em Fianait, isso será acrescentado às queixas que já terão de enfrentar. Pensem bem antes de recorrer à violência física. Colum já sabe
o que Cillian me fez, aqui e em Whistling Tor.
- Que ultraje! - Ita empalidecera. - É uma... uma conspiração! Como te atreves a fazer circular mentiras imundas sobre o meu filho, como te atreves a envenenar a
cabeça das pessoas... Não penses que podes sair incólume disto, Caitrin. Temos testemunhas, pessoas de confiança que nos apoiarão...
Cillian não compreendera tão bem quanto a sua mãe.
- Não podes expulsar-nos de casa! - gritou. - Vivemos aqui! É nossa por direito! - Tentou agarrar-me novamente.
- Aengus! - chamei. - Já podes entrar! O campeão de luta livre de Stony Ford era rápido para um homem tão grande. Apareceu, todo ele sorrisos doces e músculos proeminentes,
e atrás dele entrou Brendan vestido com o seu traje de médico, com cara de quem também não se importava de lutar a soco. Cillian deu um passo para trás. Deixou as
mãos cair ao lado do corpo.
- Expulso-o da casa? - perguntou Aengus. Senti um profundo desejo de dizer que sim, mas isso seria rebaixar-me ao nível de Cillian.
- Ainda não - pedi. - Os meus parentes precisam de algum tempo para arrumarem os seus pertences e arranjarem transporte para a povoação onde moram. Pouco tempo,
não muito. Quero que as arrumações sejam supervisionadas; só poderão levar os seus pertences pessoais. Ainda não sabemos tudo o que o pai nos deixou, mas se existir
prata ou qualquer outra coisa de valor dentro de casa, não podemos permitir que estas pessoas as levem.
- Isto é ridículo! - cuspiu Ita. - Não podes proibir-me de levar as minhas próprias coisas...
Uma pancada discreta na porta.
- Deve ser o homem da lei, Colum - informei. - Penso que ele poderá trazer alguns beleguins com ele. Não há dúvida de que quererá dar-vos uma palavrinha antes de
partirem. Não tenho a certeza de quando será a audiência, mas estou certa de que Colum quererá que todos os pertences do pai permaneçam ao meu cuidado e ao de Maraid
até que o devido processo legal decorra. Brendan, poderias abrir-lhe a porta, por favor?
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- Sinto-me tão desesperada, Caitrin - confessou a minha irmã. - Tenho tentado ser corajosa, para bem de Etain, mas às vezes... - Suspirou, como se os seus pensamentos
fossem demasiado tristes para poderem ser verbalizados.
- Conta-me, Maraid.
Estávamos ambas sentadas à mesa da cozinha. Era de noite. Um candeeiro a óleo estava pendurado num gancho; para além do círculo de luz quente, o aposento parecia
repleto de sombras. Maraid fizera um esforço à hora da ceia, aparecendo com o cabelo penteado e a cara lavada, mas não estava em si.
O homem da lei, Colum, e os seus beleguins acompanharam Ita e Cillian para fora da propriedade, depois de duras palavras. Os meus parentes seriam sujeitos à força
da lei. Colum estivera a trabalhar a nosso favor desde que recebera a carta de Donal e tinha novidades para mim: havia realmente fundos disponíveis para nós, prata
cuidadosamente posta de lado com o propósito de nos sustentar depois da morte do nosso pai. Eu não teria de nos sustentar, pelo menos não de imediato. Teríamos tempo
para colocar a nossa casa em ordem, tempo para lidarmos com as nossas perdas.
Oferecera a hospitalidade da casa a Brendan, Fidelma e Aengus. Depois de um alegre convívio, Fianait ajudou-me a preparar as camas enquanto Fidelma cozinhou a ceia.
Naquele momento, os nossos hóspedes estavam todos na cama; fora um dia longo. Vira a expressão no rosto de Fidelma enquanto observava a minha irmã empurrar a comida
de um lado para o outro no prato, comendo quase nada. Vira Brendan a examinar minuciosamente a pequena Etain. Mesmo à minha avaliação não qualificada, a minha sobrinha
parecia magricela e pálida.
- Não te posso contar - confessou Maraid. - Irias desprezar-me, Caitrin.
- Não o farei - garanti-lhe. - Sou tua irmã e estou aqui para te ajudar. Ita e Cillian já se foram embora. Temos a casa; temos recursos, Maraid. Temos o nosso auto-respeito.
Essas coisas não trarão Shea de volta, eu sei. Mas... - Obriguei-me a parar. Eu sabia bem como era sentir aquela falta de esperança, aquele vazio. - Precisas de
contar a alguém - insisti. - Por favor, Maraid.
- Etain - sussurrou ela. - Por vezes nem sequer gosto muito dela, Caitrin. Por vezes desejo que ela não estivesse cá. Está sempre a chorar, como se me odiasse. Não
sou boa mãe. Nunca devia ter tido uma criança.
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Silenciosamente, amaldiçoei Ita, pois a influência dela estava escrita em tudo o que a minha irmã dissera.
- É só isso? - perguntei. Maraid voltou uns olhos vazios para mim.
- Não é o suficiente?
- Não estou chocada. - Mas estava, apenas um pouco. Etain era tão pequena e inocente, tão frágil.
- Maraid, devias deixar Brendan examinar-te amanhã de manhã. Tens aspecto de quem está doente, não apenas triste e cansada, mas... Para ser honesta, pareces quase
morta de fome. E embora eu não saiba muito acerca destas coisas, as pessoas dizem que quando se está a amamentar se deve comer mais do que é habitual, não menos.
Etain não te odeia. Uma bebé pequena não é capaz de odiar. Provavelmente tem apenas fome.
- Ita disse que eu devia deixar de tentar amamentá-la. Ela disse que O leite de cabra seria melhor. Mas eu quero amamentá-la, Caitrin. Sempre pensei que seria uma
boa mãe. Não quero ser um fracasso.
- Então, está bem. - A minha tentativa de fazer conversa animada, deixou um pouco a desejar. Maraid chorava e eu também. - Façamos agora um pacto de irmãs. - Dirigi-me
para a despensa, onde enchi uma pequena tigela com os restos da ceia, um pouco de pudim de ervilhas, um pedaço de queijo macio, uma mão-cheia de ameixas secas.
- O que estás a fazer, Caitrin? Coloquei a tigela na frente dela e depois enchi duas canecas de cerveja.
- O acordo é este. Tu comes e, enquanto tu comes como deve ser e não a brincar com a comida no prato, eu conto-te uma história. Amanhã, o mesmo, mas também contarei
um pouco da história cada vez que amamentares Etain. - Fianait levara a bebé para o sono da noite. Contrataria os serviços de Fianait na manhã seguinte.
- Uma história? Que história? - Maraid olhou para a refeição sem entusiasmo.
- Uma história empolgante acerca de uma rapariga que foge de casa e vai para... Terás de começar a comer para descobrires para onde.
- Está bem. - Ela pegou numa única ameixa seca; não falei até ela a colocar na boca e começar a mastigar. Um sorriso fugidio passou-lhe pelo rosto. - Não costumavas
ser assim tão mandona, Caitrin. O que te aconteceu?
- A rapariga - disse eu, segurando a minha caneca de cerveja entre as mãos - estivera muito assustada, tão assustada que perdera de vista o que era real e o que
não era. Tão assustada que as pessoas pensaram que ela perdera o juízo. Sentia-se completamente sozinha no mundo,
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pensava que fora abandonada por todos os que amava. Depois um dia, do nada, encontrou coragem para fugir. Correu, andou, apanhou boleias, dormiu debaixo de sebes
e ao abrigo de fardos de palha, até ao dia em que um carroceiro a deixou no meio de nenhures e partiu sem mais uma palavra.
Atenta à história, a minha irmã parara de comer. Eu esperei, com os olhos postos na tigela.
- Mandona - acusou Maraid, levantando-se para ir buscar uma colher para ela. - E depois o que aconteceu?
Eu contei-lhe como a rapariga conheceu dois desconhecidos amigáveis que desapareceram quando ela mais precisava deles, como ela teve de rezar para entrar na aldeia
fortificada, como ela correu monte acima no encalço de um homem chamado Magnus e foi ajudada por uma pessoa que se parecia com um gnomo e por um cão gigante.
- E depois - continuei, enquanto a minha irmã colocava um pedaço de queijo na boca - ela vagueou até um pequeno jardim encantador, onde tudo tinha crescido demasiado,
mas cheio de flores de cores vivas e de aves canoras, com um vidoeiro no centro e um banco corrido no qual repousava um livro. Não havia ninguém à vista. Ela andou
por ali, apreciando a inteligência com que as plantas tinham sido escolhidas, e ali, num canto, por baixo de um arbusto de consolda, viu um pé de sangue-do-coração.
Maraid emitiu um pequeno som; ela sabia o tesouro que aquela erva representava.
- Ela baixou-se para admirá-lo e, nesse momento, uma voz autoritária soou atrás dela: Não mexas nisso! - Parei para engolir um golo de cerveja, com a imagem de Anluan
nítida na minha mente: pálido como a neve, vermelho como o fogo, azul como as verónicas, triste como um coração despedaçado.
- Quem era?
- Isso terá de esperar até à próxima vez. - Queria ter a certeza de que captara a sua atenção ou a experiência seria de curta duração. O desgosto dela era profundo,
não sararia facilmente.
- Era um ogre? Um monstro? Um príncipe bem-parecido? Sorri.
- Não propriamente.
- É uma história verdadeira, Caitrin? - Maraid comera quase tudo o que eu lhe dera; naquele momento, bebericava a sua cerveja.
- Deixarei que faças o teu próprio juízo a esse respeito. Não a contei a ninguém. Se a contasse, a maioria das pessoas pensaria que estou realmente louca.
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- Foi isso que Ita me disse, Caitrin. Ela disse que, depois de eu partir, tu ficaste completamente desequilibrada. Ela disse que nem sequer te lavavas. Disse-me
que fugiste apenas com a roupa do corpo. Disse que nunca mais regressarias.
- Penso que ela não te terá dito que Cillian foi atrás de mim, que me encontrou e que me tentou forçar a regressar.
Os olhos dela arregalaram-se.
- Ele encontrou-te e não me disseram nada? Como puderam fazer uma coisa dessas? O que aconteceu, Caitrin?
- Amanhã - proferi. - É uma longa história.
Enquanto o Verão se transformava em Outono, a minha irmã começou a sarar, bem como a casa na qual ambas fôramos criadas com tanto amor e esperança. As vitórias eram
pequenas, mas cada uma delas foi muito apreciada: a primeira vez que Maraid sorriu, a primeira vez em que ela se ofereceu para ajudar a preparar uma refeição, o
dia em que Fidelma e Brendan decidiram que conseguíamos lidar com a situação e eles regressaram a casa. Disseram-nos que seríamos bem-vindas a sua casa sempre que
desejássemos fazer-lhes uma visita e eu fiz-lhes o mesmo convite. A gentileza deles fora uma dádiva extraordinária.
Fianait e eu esfregámos a casa de alto a baixo. Arejámos as roupas de cama e pusemos flores nos parapeitos das janelas. Fizemos pão, cerveja e conservas. Contratei
um rapaz para ajudar com o trabalho do exterior e ele assobiava enquanto abastecia a pilha de lenha e cavava o caneleiro dos vegetais. Lentamente, a nossa velha
casa começou a recuperar o seu coração, e a minha irmã o dela.
Enquanto as faces de Maraid recuperavam o seu tom rosado e o seu corpo começava a encher, Etain florescia, transformando-se, diante dos nossos olhos, de uma enjeitada
pálida numa bebé formosa e saudável. O choro constante cessou. Gritava pelas suas refeições, alimentava-se com entusiasmo e depois dormia num silêncio ditoso. Gostava
de a libertar em cima dos panos em que a embrulhávamos e vê-la espernear e esticar os braços como se estivesse desejosa pelo que o mundo tinha para lhe oferecer.
Adorava vê-la dormir, pois havia um mistério terno naquele pequeno rosto em repouso, com as pálpebras fechadas a esconderem pensamentos secretos para além da compreensão
de todos excepto a de um bebé pequeno. Olhando para Etain, desejava ter um filho meu.
Chegou o dia em que, quando passava pela porta aberta do quarto, ouvi a voz da minha irmã falando com a bebé enquanto a amamentava.
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- Ele compunha as mais belas músicas, Etain, tinha uma Voz que derreteria o coração de uma estátua de pedra e os seus dedos percorriam a harpa tão levemente como
as andorinhas percorrem os céus. Era o melhor pai que poderias ter, meu amor, o melhor do mundo inteiro. Os olhos dele eram iguaizinhos aos teus, verdes como a relva
e brilhantes como gotas de orvalho. Nunca digas que ele partiu. Apenas que está por perto, a olhar por nós em cada momento do dia.
Afastei-me em bicos de pés, a chorar, percebendo que uma vitória muito maior fora alcançada. Enquanto estava no pátio a tentar recompor-me, o meu desejo de estar
com Anluan atingiu-me no peito como um vidro afiado. Nunca seguraria o filho dele nos meus braços, nunca me deitaria com ele ou experimentaria a alegria que Maraid
tivera com Shea. O meu corpo doía-me por essa perda. O meu coração sangrava por ela.
Maraid ouvia a minha história em pequenos trechos. Também Fianait escutava com uma atenção arrebatada enquanto a história progredia gradualmente. Falei dos queridos
e estranhos amigos que fizera em Whistling Tor, as pessoas que tivera de deixar para trás. Descrevi todas as partes daquele estranho e atribulado Verão. Quase todas.
Não mostrei a Maraid o livro de Anluan, embora há muito que tivesse voltado a última página para descobrir, não a decisão lúgubre de me banir, mas este perfeito
reflexo dos meus próprios sentimentos:
Começo a compreender por fim porque o meu pai agiu como agiu. Perder-te é como derramar o sangue do meu próprio coração. Não sei se serei capaz de suportar a dor.
Deve tê-lo escrito antes de me ir ver naquela noite, antes de me dizer que teríamos de nos separar para sempre. Já o lera uma e outra vez. Guardava o pequeno livro
debaixo da minha almofada e olhava para ele já noite tardia, à luz da vela, ou logo de manhã, quando até Etain ainda dormia. Tentei compreender porque razão ele
fora tão frio naquela noite, se o seu coração se estivera a partir, tal como o meu. Talvez essa fosse a única maneira de ele conseguir emitir o decreto de desterro.
O espelho era o meu elo com ele, um guia frustrante no qual não podia confiar para saber o que se passava em Whistling Tor na minha ausência. Olhava para ele com
frequência, mas não enquanto havia pessoas por perto, pois embora tais fenómenos misteriosos e assustadores fizessem parte integrante da vida na casa de Anluan,
não pertenciam a Market Cross.
Por vezes, o espelho mostrava o céu azul de um Verão imaginário e, por vezes, o meu próprio reflexo, com os caracóis escuros bem penteados, as feições compostas,
os olhos um pouco desesperados. Mas por
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vezes via Whistling Tor e Anluan no jardim com Muirne, a sua figura alta inclinando-se para ouvir, a figura mais pequena dela a gesticular enquanto tentava convencê-lo
de algo. Ponderei tudo o que aprendera acerca dela, juntando um comentário casual aqui, outro ali, e imaginei-a a sussurrar ao ouvido de Anluan: Não podes vencer.
Não há esperança. E, no entanto, ele não cedia ao desespero. Num dia em que o Outono estava bem avançado e ventos tempestuosos faziam as folhas mortas dançar no
pátio, fechei a porta do quarto, retirei o espelho da prateleira onde o tinha e sentei-me à procura de respostas. O que vi aqueceu-me, e fez-me querer gritar de
alegria. Havia homens reunidos na povoação, Tomas, Duald, um bom número deles. Tinham armas improvisadas por cima dos ombros. Anluan e Magnus também lá estavam e
Anluan dirigia-se à multidão reunida, com a cabeça erguida, com uma postura ao mesmo tempo calma e autoritária.
] Esta visão desapareceu para ceder lugar a outra: um grupo de cavaleiros, não normandos, mas irlandeses. Esperavam no sopé do Tor. A figura musculada de Magnus
desceu o caminho, cumprimentou-os e depois voltou-se e conduziu-os para cima. Os cavalos estavam irrequietos enquanto percorriam o caminho serpenteante da floresta.
Não havia sinais da hoste, embora sentisse a sua presença, à espreita. No pátio, Anluan estava de pé nos degraus em frente da porta principal com Rioghan a seu lado
e Cathaír de guarda atrás dele. Os cavaleiros desmontaram. Olcan veio para levar os cavalos. O chefe tribal de Whistling Tor avançou para cumprimentar os visitantes,
como qualquer nobre o faria. Havia bastantes faces pálidas e olhares ansiosos, mas os visitantes mantiveram-se firmes e o seu líder colocou as mãos nos ombros de
Anluan como se fossem amigos ou talvez parentes. Brión de Whiteshore? Teria Anluan feito as pazes com a família da mãe, apesar dos males do passado? Não havia sinal
de Muirne. Olhei para o homem que eu amava, querendo que o espelho me mostrasse mais, mas a imagem desvaneceu-se, deixando-me a olhar para os meus próprios olhos.
O meu coração batia, veloz. Ele estava a conseguir. Estava a conseguir juntá-los a todos. Talvez, talvez Anluan conseguisse vencer as contrariedades e ganhar a sua
guerra improvável.
O Outono passava depressa. Fianait dedicou-se a fiar e fez um xaile quente para aninhar a bebé. Phadraig, o rapaz que fazia os nossos trabalhos pesados, trouxe um
abastecimento de lenha para dentro de casa e empilhou-a contra a parede, perto do fogão. Os dias ficaram mais curtos.
A nossa audiência em tribunal chegou e passou. Eu, que em tempos fora transformada pelo medo numa mulher silenciosa e trémula, levantei-me e respondi às perguntas
do juiz com uma competência calma.
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Dissera aos meus parentes que nunca mais os queria ver, mas nesse dia enfrentei-os em tribunal sem me encolher. Já não sentia raiva. A recuperação de Maraid moderou
os sentimentos duros que surgiram em mim quando a tornei a ver. Quase senti pena, pena que as pessoas pudessem ser tão consumidas por ganância egoísta que perdessem
de vista toda a sua humanidade. Cillian foi bastante incoerente quando questionado. Ita estava esganiçada e amarga, incapaz de perceber onde errara. Levaram uma
ou duas testemunhas, pessoas dos meus conhecimentos que fizeram um relato de como eu ficara com o espírito perturbado depois da morte do meu pai, de como os meus
modos se tornaram estranhos e distantes. Nós também tínhamos testemunhas - aquelas que podiam depor que Ita se recusara a deixar que alguém me visitasse durante
esse tempo de trevas, aquelas que se lembravam de que ela recusara a oferta dos serviços de um médico, aquelas que me conheciam desde criança e que acreditavam que
só estava afligida pelo desgosto. Para além disso, Brendan viajou da vila onde morava até Market Cross para depor pessoalmente a favor da minha sanidade mental.
Quando terminou, e a sentença determinou que Ita e Cillian perdessem não só a nossa propriedade como a deles, eu agradeci a Colum e aos outros homens da lei, fui
para casa com a minha família e fechei a porta sobre o passado.
Os dias ficaram ainda mais curtos. Fianait fez bolos de especiarias, Maraid fez cerveja aquecida e aromatizada e convidámos Colum e a sua mulher para nos visitarem
e admirarem a bebé. Alguns dos amigos do pai também vieram, pessoas que se haviam afastado quando Ita passara a governar a casa. Embora não os perdoasse completamente
por terem acreditado na história dela sobre a minha loucura, sabia que tinha de fazer as pazes com eles.
Quando todos partiram e uma bocejante Fianait se retirou para a cama, Maraid e eu sentámo-nos diante da lareira, ela com Etain à mama, eu a olhar fixamente para
as chamas. Já não tinha de contar uma história para encorajar a minha irmã a comer ou a cuidar da filha. Ela já estava bem, e apesar de a tristeza ainda permanecer,
não deixava que esta engolisse o seu amor por Etain ou a sua esperança em relação ao futuro.
- Caitrin?
- Hum?
- Vais começar a fazer os teus trabalhos de escriba outra vez? Agora temos posses, o suficiente para começares. Podias comprar tintas, pergaminho, todos os materiais
de que precisas para abasteceres a sala de trabalho.
Mal entrara na sala de trabalho desde que regressara a casa. Não considerara a possibilidade de começar de novo. Mas Maraid tinha razão,
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o que o pai nos deixara não nos sustentaria para o resto das nossas Vidas. Mais cedo ou mais tarde, teria de procurar novas encomendas. Seria difícil. Poucos dos
nossos antigos clientes souberam a extensão do papel que eu desempenhara na execução dos delicados documentos nos quais nos especializáramos. Poderiam mostrar-se
relutantes em deixar-me fazer uma prova. No entanto, não era impossível. Colum poderia estar preparado para me recomendar a nível local. Se não tivesse coragem para
procurar trabalho, poderia sempre ir trabalhar para Donal em Stony Ford, desempenhando as tarefas relativamente simples de copiar, escrever cartas. Não tinha muito
entusiasmo para fazer nada daquilo.
- Caitrin? - O olhar de Maraid era astuto.
- É uma sugestão sensata. Fá-lo-ei. Um dia destes.
- Porque não agora? É o que adoras fazer. Costumavas passar dia inteiro a fazê-lo, tão absorvida pelo próximo movimento da pena que te esquecias que o resto do mundo
existia enquanto houvesse um trabalho para fazer.
Não disse nada. A verdade era que, o futuro que eu sempre quisera, os longos dias de paz e tranquilidade, os manuscritos perfeitos que se desenvolviam sob as minhas
mãos, a satisfação de pôr o meu ofício em prática e sustentar-nos, já não parecia importante. E, no entanto, tinha uma vida ali, tinha a minha irmã e a minha sobrinha,
tinha uma casa e recursos, tinha a oportunidade de voltar para algo que se parecia com a bela existência que eu tanto acarinhara. Mas já não era suficiente.
- Vejo que não me queres dizer, por isso vou tentar adivinhar, Caitrin. Não, não tentes impedir-me, também me fizeste falar dos meus problemas. Tu amas esse teu
Anluan, o monstro do jardim. Mesmo com os normandos à sua porta, desejas regressar para lá. Aquela casa, e um dos seus membros em particular, é mais importante para
ti do que qualquer outra coisa no mundo.
- Não mais importante do que tu e Etain! Nunca penses uma coisa dessas!
Maraid sorriu.
- Talvez não, mas é importante de uma forma diferente. Caitrin, está escrito na tua cara quando falas dele. Porque estás tão determinada a colocá-lo de parte?
- Anluan mandou-me embora. Fossem quais fossem os motivos dele, ele queria que fosse para sempre.
- É claro que ele queria que estivesses a salvo quando os normandos chegassem. Mas parece-me, pela forma como contaste a tua história, que ele te ama tão profundamente
como tu a ele. E não me parece que
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ele seja o tipo de homem que se preocupa muito com a convenção que diz que um chefe tribal não se casa com uma artífice. Porque não podes regressar quando os normandos
partirem? Quer vença, quer seja vencido, irá precisar de ti.
As lágrimas arderam-me nos olhos.
- Foi isso que Gearróg disse, na manhã em que eu parti. É de ti que Anluan mais precisa. E talvez seja verdade. Mas ele não casará comigo.
Maraid franziu o sobrolho.
- Ele disse porque não?
- É um pouco embaraçoso...
- Sou tua irmã, Caitrin. Se não me contares, a quem o farás? Vá lá. Olhei para baixo, para as minhas mãos juntas em cima do colo.
- Ele nunca o disse com clareza, apenas sugeriu que algo não estava bem. Estava preocupado com a minha segurança, sei disso. Mas havia... - Como é que eu podia contar-lhe
a visão, a que fizera Anluan despedaçar o espelho com o seu punho nu? - Ele disse... Ele sugeriu que a paralisia lhe afectara mais do que o braço e a perna, Maraid.
E Muirne disse que Anluan nunca seria capaz de... Ela disse que ele não seria capaz de me satisfazer. Ou a qualquer outra mulher. Que, se eu queria ter filhos, teria
de procurar noutro lugar. - As minhas faces estavam a arder.
Maraid não falou durante algum tempo, mas ficou a pensar, com o braço curvado em torno de Etain, que se deixara dormir enquanto mamava.
- Isso é muito triste - acabou por dizer. - Se for verdade. Caitrin, Anluan sente desejo físico por ti?
As minhas faces ficaram ainda mais quentes.
- Sim - balbuciei. - Falei-te do espelho do podia-ter-sido, o que mostrava as imagens dele próprio sem a deficiência, a cavalgar, a praticar luta livre, a gozar
as actividades de um líder jovem e capaz. Não referi que uma das imagens me incluía a mim. - Era difícil de dizer, mesmo à minha própria irmã. - Anluan e eu, a fazer
o que os maridos e as mulheres fazem. Foi bastante... Foi bastante claro que ele sentia desejo, Maraid. Perfeitamente claro.
- E o espelho mostrou o que podia ter sido. O que ele podia ter feito se não tivesse sido atingido pela paralisia. Caitrin, existem outras maneiras de um homem satisfazer
uma mulher, sabes, sem ter de executar o acto de amor em si. Usando a sua boca, as suas mãos.
- Mas... Eu não penso que Anluan seja incapaz... Eu sei que ele é capaz de... de manifestar os sintomas físicos do desejo.
- Ah, sim? - Maraid estava a sorrir.
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Pensei que a conversa não podia ficar mais embaraçosa, mas estava enganada.
- Não quero dizer que ele e eu... Só houve uma ocasião em que ficámos suficientemente próximos para o poder notar... Mas... Era claro fque ele me queria.
- Isso quer dizer que a paralisia pode ter enfraquecido o seu braço e perna direitos e alterado o seu rosto, mas não teve o mesmo efeito na sua virilidade? Ele tem
o equipamento de que precisa e parece estar a funcionar? - A voz de Maraid era gentil, ela conhecia-me muito bem. Anuí.
- Ele não parece acreditar ser capaz - proferi. - Muirne insinuou o mesmo. Se queres um verdadeiro homem, Caitrin, não procures aqui. Foi o que disse.
- Essa mulher ama Anluan ou odeia-o? Só pude esboçar um esgar; não tinha resposta para aquela pergunta.
- Vamos lá analisar esta questão, passo a passo - disse Maraid. - Se ele te quisesse de volta, mas não pudesses ter filhos com ele, regressarias?
- Sim - respondi sem hesitação. - Mas... Não é assim tão simples, pois não? Eu casaria com ele mesmo sabendo que não poderíamos ter filhos. Viveria com ele, mesmo
que não nos pudéssemos casar. Mas quero ter filhos meus, Maraid. Quero ter os filhos dele. A ausência deles será difícil de ultrapassar. Nisso, talvez um pouco da
maldição de família perdurasse. Ele sentiria sempre que fracassara em relação a mim. É esse o tipo de homem que ele é. Eu sentiria sempre que havia algo ausente
da minha vida.
- É uma pena não te teres apaixonado por aquele Magnus - comentou a minha irmã, com secura. - Parece ser o tipo de homem que te daria os pequenos gallóglaigh que
quisesses e que olharia por ti tão bem, como qualquer mulher desejaria.
- Já para não falar da ceia que ele cozinha todas as noites - brinquei eu, conseguindo esboçar um sorriso. - Maraid, como é que Anluan pode saber se é ou não capaz
de ter filhos? Mal saiu do monte desde os sete anos de idade.
- Um homem só sabe uma coisa dessas se há muito que experimenta e fracassa - explicou Maraid. - Talvez seja um problema que só exista na mente de Anluan. Quando
é que pode ter tido a oportunidade de se deitar com uma mulher?
Pensei em tudo o que sabia acerca do passado de Anluan: Magnus a cuidar dele até ficar bem depois da paralisia, quando Anluan tinha treze
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anos, o isolamento da casa, a relutância em sair do monte, a dificuldade em arranjar pessoas que ajudassem.
- Não teria tido grande oportunidade - concluí. - Suponho que talvez tivesse havido criadas lá em cima, durante curtos períodos de tempo. Ou Magnus poderia ter providenciado...
- Isto estava tão para além do que eu sabia, que mal podia imaginar o que pudesse ter acontecido.
- Sabes - explicou Maraid -, para um rapaz com o seu passado e a sua deficiência, apenas uma má experiência o convenceria de que é um completo fracasso. Ele parece
bastante propenso ao desespero. Pensas que poderá ser apenas isso?
Ponderámos o assunto durante algum tempo e eu pensei como seria impossível, mesmo que conseguisse um dia regressar a Whistling Tor, abordar Anluan com tal assunto.
- Um rapaz poderia sentir-se muito embaraçado a fazer amor - comentou a minha irmã - se tivesse o uso limitado de um braço e de uma perna. Se fosse a sua primeira
vez, se ele se sentisse inseguro de si próprio e a mulher não compreendesse a sua dificuldade, é fácil ver como poderia correr mal. Com a mulher certa, uma que o
pudesse ajudar um pouco, o mesmo homem poderia considerar a experiência muito diferente. Quanto aos filhos, eles não aparecem a menos que as pessoas os tentem fazer.
Passado um momento, eu disse:
- Nunca na vida me deitei com um homem. - O meu coração martelava-me no peito.
- Ele ama-te - concluiu Maraid. - Tu ama-lo. Com quem conseguiria ele fazê-lo senão contigo?
CAPÍTULO TREZE
Era a primeira vez que eu considerava seriamente a possibilidade de regressar a Whistling Tor, desafiando o decreto de desterro de Anluan.
A ideia provocava-me alguma inquietação, embora o meu coração tivesse voado para lá se pudesse, como uma andorinha que regressa a casa.
Para Maraid era fácil dizer estas coisas. Ela não compreendia as várias camadas de história que se sobrepunham naquele lugar. Ao lado do caso de Nechtan, a questão
de Anluan ter ficado impotente devido à paralisia e ser meramente assolado por dúvidas sobre a sua competência, perdia a importância até se tornar insignificante.
Incapaz de tomar uma decisão, distraí-me adquirindo um novo abasstecimento de materiais para a minha sala de trabalho - não uma grande quantidade, apenas o suficiente
para produzir algumas amostras que poderiam ser apresentadas a potenciais clientes. Vi que Maraid estava satisfeita, apesar de não fazer qualquer comentário.
Coloquei pergaminho, penas e tinta em cima da mesa familiar. Faria três amostras e mantê-las-ia simples. Havia tempo suficiente para embelezamentos, caligrafias
complicadas, folha de ouro e tintas raras depois de me ter estabelecido. Primeiro faria uma passagem de poesia, escrita em caligrafia minúscula, o tipo de peça que
uma mulher nobre apreciaria como oferenda de alguém que lhe fizesse a corte. Comecei por marcar a página, usando o nível e um dos lados direitos da minha caixa de
escrita.
A secretária vazia que estava a meu lado era eloquente. Dei comigo a olhar de relance para lá, como se para verificar como é que o pai estava a progredir com o seu
próprio trabalho. Recordei o brilho da sua cabeça calva sob a luz da janela, o hábito que ele tinha de morder o lábio inferior quando estava particularmente absorvido,
os seus elegantes dedos de pontas quadradas colocados de determinada maneira, segurando o pergaminho no lugar.
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Nunca me despedira dele, não de forma adequada. No dia da sua morte, eu estivera descrente, incapaz de aceitar que ele partira. No ritual de enterro, estivera apática.
Pousei o nível e ajoelhei-me no chão de laje, no lugar onde ele caíra. Naquele preciso lugar, embalara-o nos meus braços, implorando à morte que mudasse de ideias,
pedindo ao tempo que voltasse para trás. Ali emitira os soluços ruidosos de uma criança abandonada.
- Pai - disse naquele momento -, tens uma neta linda. Maraid e eu estamos novamente juntas, e a casa está... purificada. Estamos a fazer dela um bom lar, como era
antes. Espero que estejas a olhar por nós, pai, assim como a mãe e o Shea. É nisso que Maraid acredita. Pai, não tenho estado muito bem desde que te perdemos. Nem
sempre fui tão corajosa como queria. Mas estou a tentar. Quero que fiques orgulhoso de mim. Quero fazer uso de tudo o que me ensinaste.
Fiquei ajoelhada durante algum tempo e pareceu-me que, para lá da janela, o céu ficou um pouco mais claro. O aposento estava tão silencioso como um bebé adormecido.
- Adeus, pai - sussurrei. Depois levantei-me e regressei ao trabalho.
Completei o poema, acabando o trabalho com uma margem de vinhas. A peça tinha um aspecto agradável, ainda que pouco aventuroso. Os meus olhos precisavam de descanso.
A próxima peça que planeara seria um documento legal, escrito numa caligrafia comum, mas teria de esperar até à tarde.
Ouviu-se um grito algures dentro de casa; algo caiu com um estrondo. Corri para o corredor e quase embati em Maraid, que se apressava em direcção ao nosso quarto.
Chegámos à entrada juntas. Lá dentro estava Fianait, pálida como o linho, com um jarro partido e uma poça de água aos pés. Olhava para a prateleira que tinha na
frente como se lá vivesse um demónio.
- Aquele espelho - arfou ela. - Tem coisas lá dentro, coisas a mexerem-se...
Esquecera-me de guardar o espelho.
- Está tudo bem - murmurei, passando por cima dos destroços para retirar o artefacto enquanto Maraid se encarregava de sossegar a rapariga assustada. Enquanto pegava
no espelho, algo escuro e sombrio mudou dentro dele: um aposento, a lua a entrar por uma janela alta, um rosto...
- Caitrin? - A voz de Maraid era um murmúrio. - O que é? O que viste? - E, quando o silêncio se prolongou: - Caitrin? Estás bem?
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Eu estava imóvel, agarrando o espelho com as mãos. Lá estava Anluan no seu quarto em Whistling Tor, deitado na pequena cama, parado como a morte. Os olhos dele estavam
fechados, o peito dele não mostrava qualquer elevação, a sua pele era de um cinzento doentio. Lá estava eu, o meu rosto era uma máscara de angústia, embalando-o
nos meus braços.
- Não - pronunciei suavemente - Não! - gritei.
- O que se passa, Caitrin? O que vês? Caitrin, fala comigo!
- Ele não pode estar morto! Não pode! A minha irmã espreitou por cima do meu ombro para o metal polido.
- É Anluan? - perguntou. - Oh, Deus... A Caitrin do espelho colocou a mão dela na face de Anluan, curvou-se para lhe beijar a testa pálida. Apenas por um momento,
antes de a imagem se desvanecer, vi uma figura à entrada do quarto de Anluan: uma pessoa delgada e elegante, com um vestido e um véu recatados, com os seus olhos
lustrosos fixos na mulher em sofrimento e no homem imóvel. As suas feições não mostravam qualquer vestígio de emoção.
- Tenho de ir ter com ele - proferi. - Agora, neste momento, passa-se algo de muito errado, não isto, uma vez que eu estava na visão com ele, mas algo... É um aviso...
Tenho de lá estar, Maraid. - Eu sabia que fosse ou não Anluan capaz de me amar como um marido ama a sua mulher, viesse ou não a ser a mãe dos seus filhos, estava
presa a ele como uma árvore à terra, como as estrelas ao céu, presa através de um amor que ultrapassaria quaisquer obstáculos. Tinha de ir. Iria. Nada no mundo me
impediria.
Parti na manhã seguinte, depois de a minha irmã me convencer a esperar até que ela me arranjasse transporte com um carroceiro de boa reputação e a dormir uma boa
noite de sono antes de iniciar a viagem.
Combináramos tudo depois da ceia, mais abertamente do que antes.
Apesar da necessidade premente de me fazer à estrada em direcção de Whistling Tor, sentira-me dividida.
- Detesto deixar-te sozinha - confessei. - Parece-me demasiado cedo para isso.
- Ficarei bem. - A postura calma de Maraid tranquilizou-me. - Não estou sozinha, com Fianait e Phadraig cá em casa, já para não falar na Etain. Caitrin, eu não estava
cá quando tu precisaste de mim depois de o pai morrer. Estava tão desesperada por sair daqui que não pensei no que isso podia significar para ti. Devo-te a oportunidade
de fazeres
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isto. Não te sintas culpada por nos deixares. Mas manda-me, se puderes, uma mensagem. Vou ficar preocupada. Caitrin, espero que Anluan esteja bem. Espero que chegues
lá a tempo.
Estava grata a Deus pelo facto de a minha irmã conseguir aceitar até as partes mais estranhas da minha história, pensei eu enquanto as rodas da carroça rolavam pela
estrada a caminho de Stony Ford, local onde mudaria de carruagem para a parte ocidental da minha viagem. Dera-lhe uma descrição detalhada das minhas visões no espelho
de obsidiana e contara-lhe os pormenores tenebrosos das actividades da hoste no passado, incluindo a morte de Mella. Até lhe mostrei uma ou duas páginas do livro
de anotações de Anluan. Ela fizera muitas perguntas; a mistura curiosa de pessoas que constituíam o círculo íntimo de Anluan intrigava-a claramente. Desejei que
ela pudesse ter vindo comigo.
Enquanto os meus vários transportes me levavam devagar, penosamente devagar, para Whistling Tor, considerei o que me poderia esperar lá e rezei para encontrar Anluan
vivo e de boa saúde. Levei o espelho comigo. Olhava frequentemente para a sua superfície de brilho fosco, apenas para encontrar os meus próprios olhos preocupados
a olharem-me de volta. O tempo estava agreste. Viajámos debaixo de céus opressivos, descemos caminhos de lama traiçoeiros, atravessámos terras planas onde o vento
assobiava, cortante e salgado, à medida que nos aproximávamos da costa ocidental.
Quanto mais avançávamos, menos os carroceiros se queriam demorar. Quando cada um deles chegava ao seu destino, descarregava a sua mercadoria, deixava-me na estalagem
mais próxima e regressava imediatamente. As estalagens estavam cheias de conversas e isso trouxe-me um novo medo. Fora vista uma força de soldados normandos a dirigir-se
para oeste. Os boatos diziam que tinham sido enviados para tomar o território de um chefe tribal local e colocar um deles no seu lugar. Ninguém tinha a certeza onde
isto se passava, mas pensavam ser perto da fortaleza de um chefe tribal chamado Brión. Perguntei quantos soldados eram e disseram-me que eram demasiados para qualquer
chefe tribal irlandês vencer. Perguntei há quanto tempo haviam passado e disseram-me que há dez dias ou mais. Ninguém ouvira falar de Stephen de Courcy, mas não
tinham qualquer outro nome para oferecer no lugar deste. Quando os homens de armas passaram nos seus excelentes cavalos de guerra, com os seus trajes de cota de
malha e as suas carroças cheias de provisões, as pessoas retiraram-se silenciosamente para dentro das suas casas e aferrolharam as portas.
Perto do território de Silverlake vimos algo atravessado na estrada que tínhamos por diante. O homem que me transportava juntamente com três porcos que protestavam
parou a carroça.
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- Não gosto muito do aspecto daquilo - murmurou ele. - Estão dois fulanos ali de lado, nos arbustos. Podem ser quaisquer uns. - A mão dele aproximou-se do cinto,
onde uma bainha de couro gasta continha uma arma qualquer. Não havia como voltar para trás silenciosamente e retirar-nos sem ser vistos, não com os porcos na carroça.
- Alto! - gritou alguém, e um homem subiu para o caminho, ao lado da barreira. Espreitando por entre a chuva que nos acompanhava há já algum tempo, vi que o obstáculo
era um pedaço sólido de madeira, um tronco de uma pequena árvore que talvez tivesse sido derrubada por uma tempestade e depois arrastada e colocada de atravessado
para impedir a passagem. O homem vestia calções e uma túnica de lã, e ambas as peças de vestuário estavam encharcadas. Não tinha um aspecto perigoso.
- Para onde vais?
- Para a Quinta das Três Árvores - disse o carroceiro, com ambas as mãos novamente postas nas rédeas. O fulano que estava na estrada era um homem de Connacht. -
A oito quilómetros daqui, mas não sei como é que vou passar a carroça à volta disso.
- Qual é o problema? - Quem é a tua passageira? - Havia dois homens no caminho naquele momento e ambos me olhavam de alto a baixo. A minha roupa e a minha atitude
devem ter deixado claro que eu não era a mulher de um carroceiro.
- Tenho amigos em Whistling Tor - respondi. - Vou visitá-los e estou com pressa. Alguém poderá estar gravemente enfermo. - Que isso não fosse verdade.
- Whistling Tor? Não é esse o lugar onde... - disse um para o outro.
- É melhor não ires mais longe - proferiu o segundo homem. - Vem por aí uma batalha; qualquer pessoa que passe por estas estradas está a pedir sarilhos. Deves levar
esta jovem senhora para trás, para a última estalagem, e os porcos com ela. É esse o meu conselho.
O carroceiro olhou fixamente para ele, e eu também, questionando-me se lhe poderia perguntar ao serviço de quem ali estava, pois era óbvio que a barreira fora ali
colocada de propósito, que não caíra naquele sítio convenientemente. O carroceiro falou antes de eu poder formular uma pergunta.
- Não percebes muito sobre porcos, pois não? O que esperas que faça, que peça ao estalajadeiro que lhes dê guarida esta noite, no seu melhor quarto, acrescentando
uma caneca de cerveja para cada um? Se não os fizer chegar à Quinta das Três Árvores rapidamente, não estarei em casa antes do cair da noite.
- A senhora também se dirige para a Quinta das Três Árvores?
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- Já vos disse - respondi. - Dirijo-me para Whistling Tor. Este homem vai levar-me até à Quinta das Três Árvores e depois arranjarei outro transporte. Podem fazer
o que ele vos pede e deixar-nos passar, por favor? Temos de avançar.
- Não chegarás a Whistling Tor - afirmou o segundo homem. - Há um exército de normandos acampado em redor do lugar, à espera de obrigar o chefe tribal local a sair
por falta de mantimentos. Nem sequer quererás aproximar-se. Para além de normandos nas estradas, existem... coisas por lá.
- Coisas? - perguntei, o meu coração gelado com a ideia de que poderia chegar demasiado tarde. Como poderia aproximar-me de Anluan no meio de um cerco? Como poderia
mudar o futuro se nem sequer lhe podia fazer chegar a notícia de que estava ali?
- Coisas estranhas. Coisas que não deviam existir. Um cavalo todo ele ossos, um cão tão grande como um boi. Sombras e vozes. Não quererás ir para além da Quinta
das Três Árvores.
Aparentemente haviam decidido deixar-nos passar. O carroceiro desceu para ajudar os dois homens a levantar o tronco. Quando o desviaram o suficiente para nos deixar
prosseguir pela estrada de terra batida, perguntei:
- Quem vos pediu para estar aqui? Um dos chefes tribais locais?
- És tola se esperas uma resposta a essa pergunta - declarou o primeiro homem. - Fica feliz por estarmos aqui, senão ter-te-ias dirigido para um grande sarilho.
Segue o meu conselho, rapariga, e volta para o sítio de onde vens assim que este homem descarregar os porcos. - Vendo a minha expressão, ele acrescentou: - Talvez
o teu amigo tenha saído antes de os normandos terem cercado o lugar. - O tom dele não inspirava confiança.
Dirigimo-nos para a Quinta das Três Árvores, que estava dentro da fronteira de Silverlake, a sudeste de Whistling Tor. Maenach fora em tempos chefe tribal naquela
região, Maenach, aquele a quem Nechtan vira como um desagradável inimigo. Depois de descarregados os porcos, o fazendeiro ofereceu-nos hidromel e bolos de aveia
e uma oportunidade de nos aquecermos diante da sua lareira. Era óbvio que o carroceiro pretendia regressar assim que acabasse de comer.
- Não vou contigo - informei-o. - Tenho de chegar a Whistling Tor o mais depressa possível. Se não há ninguém que me leve, caminharei até lá.
O fazendeiro, a mulher e o carroceiro voltaram as suas cabeças para a porta entreaberta, para além da qual a chuva caía cadenciada.
- Estás doida - comentou o fazendeiro.
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- Poderíamos oferecer-te uma cama para esta noite. - A expressão da mulher dele era dúbia. - Mas não encontrarás ninguém que te leve a Whistling Tor hoje, amanhã
ou em breve. Não se trata apenas dos normandos. Ninguém vai para aquele lugar. Sabes o que dizem a respeito dele.
- Que o chefe tribal é um aleijado imprestável e que o monte está repleto de monstros e de cães gigantes? - proferi, lutando para me manter calma. - Sim, sei o que
dizem, vivi em Whistling Tor durante o Verão. Tenho de lá chegar. Não há ninguém que use as estradas?
Eles olharam um para o outro e pensei que havia algo que eles não me estavam a dizer ou que tinham sido proibidos de dizer.
- O que é? O que se passa?
- Nada - garantiu o fazendeiro. - Não sabemos nada além de que, se fores para Whistling Tor, levarás a tua vida nas mãos. É um aviso justo. Não estás mesmo a pensar
em ir até lá?
- Não tenho escolha. Quanto tempo pensas que irei demorar?
Se acharam que perdera o juízo, isso não os impediu de me oferecerem a sua ajuda, e abençoei-os por isso. Parti da quinta com uma grossa capa de feltro por cima
da minha roupa húmida. Deram-me uma tira de couro para atar em torno da minha caixa de escrita e poder colocá-la por cima do ombro, como ao meu saco, deixando-me
as mãos livres. Deram-me um cajado e um embrulho com comida. O melhor presente de todos foi um mapa grosseiro do caminho que devia tomar, com os pontos de referência
rabiscados a carvão num pedaço de casca de vidoeiro. Resguardei-o da chuva, escondendo-o debaixo da capa. O agricultor aconselhou-me a parar numa das quintas ao
longo do caminho e a prosseguir a viagem de manhã, uma vez que não teria qualquer possibilidade de chegar a Whistling Tor ao cair da noite. A Lua estaria quase cheia,
mas com as pesadas nuvens a cobrir o céu, não me iluminaria o caminho. Não lhe disse que não fazia qualquer intenção de parar antes de chegar ao meu destino. Não
queria saber se a noite caía, não queria saber se não havia luar. Haveria de encontrar uma forma de continuar. Anluan. O nome dele era um talismã contra a escuridão,
contra o medo, contra a vontade de desistir. Anluan, estou quase a chegar a casa. Espera por mim.
Caminhei durante toda a tarde e pelo crepúsculo adentro. Caminhava pela estrada e, quando ouvia algum grupo de cavaleiros aproximarem-se
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à luz que se desvanecia, andava ao seu lado, a coberto das árvores. Não conseguia ver bem os cavaleiros, mas à medida que passavam ouvia o tilintar do metal e vozes
a falarem numa língua que me era estranha. Reforços para o exército sitiador, talvez. Como poderia Anluan vencer tantos? Ergui o queixo e prossegui. Ficou escuro.
Segui a fita mais pálida da estrada de terra; de ambos os lados, na escuridão, poderia estar o que quer que fosse. Repentinas subidas íngremes, descidas abruptas,
perigosas. Gado, ovelhas, monstros. As velhas histórias rodopiavam na minha mente, repletas da ameaça do que espreitava nas sombras para lá dos lumes das lareiras.
Continuei a caminhar. Chegaria a tempo. Tinha de chegar a tempo. Porque é que o espelho me mostrara o que escolhera mostrar-me, se fosse apenas para me atrair de
volta a Whistling Tor com Anluan morto?
Quando os pés e as costas começaram a doer-me, quando as camadas de roupa húmida e o ar gelado da noite começaram a levar a minha coragem, quando já não podia fingir
que não precisava de descansar, deixei-me cair no chão, ao abrigo de uma parede de pedra que se desmoronava. No momento em que parei de me mexer, os joelhos começaram
a tremer. A minha cabeça estava zonza. Os meus dedos estavam tão dormentes que tiveram dificuldade em abrir o saco. As nuvens dispersaram um pouco, trazendo uma
sugestão de luar. Comi um pouco de pão com queijo do embrulho e bebi água do cantil. Estava demasiado escuro para perceber se estava no trilho certo. Estava demasiado
escuro para ler o meu mapa de casca de vidoeiro.
Arrumei o que restava da comida no saco e, ao fazê-lo, as minhas mãos tocaram na extremidade do espelho.
- Agora seria uma boa altura para me mostrares algo de útil - murmurei. - Um candeeiro, por exemplo, ou uma vela, algo que me iluminasse o caminho. - Mas não insisti.
A última visão ainda estava fresca na minha mente: o rosto cinzento de Anluan, a sua forma inerte, a minha figura curvada e desgostosa a segurá-lo, e Muirne, de
pé junto à entrada, com aquela expressão estranha e impávida no rosto. O olhar dela fez-me arrepiar. Era como se não tivesse qualquer percepção do certo e do errado...
Num momento de intuição, apercebi-me. Aislinn. Aislinn que vira no espelho de obsidiana, observando enquanto Nechtan realizava os seus actos de tortura. Aislinn
que aprendera tanto com o homem que a acolhera debaixo da sua alçada: a ajudá-lo no seu trabalho, a manter registos meticulosos, a reunir e a preparar os materiais
necessários aos rituais mágicos, a pôr de lado o sofrimento humano ou animal se isso pudesse providenciar conhecimentos vitais. Aislinn, cujo rosto eu nunca vira,
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pois as visões mostraram-me as mãos dela a esfregar, a sua figura curvada sobre a mesa, a sua cascata de cabelo dourado como o trigo, mas nunca as feições que, sem
dúvida, olhavam para o seu patrono com nada além de admiração enquanto ele a ensinava a pôr de parte a sua consciência.
O meu coração acelerou. Poderia ser? Poderia Aislinn ter regressado depois de morta para se juntar à hoste que ela e Nechtan libertaram com a sua experiência mal
conseguida? Depois daquele fatídico dia de Todos os Santos, a rapariga desaparecera completamente dos escritos de Nechtan. Não me lembrava de uma única referência
depois da descrição dos seus preparativos: as ervas, a grinalda, o vestido branco, o encantamento. Para onde fora ela? Teria ela pensado melhor acerca do caminho
pelo qual Nechtan a conduzia, retirando-se de Whistling Tor? Ou permanecera lá? Muirne. Oh, Deus, Muirne que era tão dedicada a Anluan como Aislinn fora a Nechtan,
Muirne que fora companheira de cada um dos chefes tribais... As imagens afligiram-me: Muirne a ajustar as canecas numa prateleira de modo que ficassem perfeitamente
alinhadas. Aislinn a limpar os vestígios da tortura. O véu de Muirne, que cobria cada madeixa de cabelo - se ela retirasse essa cobertura, cairia uma cascata de
madeixas douradas sobre os seus ombros e pelas suas costas? Aislinn e Muirne. Podia ser. E se fosse, isso queria dizer que Muirne tinha um talento que mais ninguém
em Whistling Tor conhecia. Ela sabia ler.
A Lua apareceu gradualmente, revelando uma paisagem pintada em muitos tons de cinzento, o caminho a serpentear adiante, as encostas pedregosas dos montes de cada
lado, formas pálidas que tanto podiam ser rochas como ovelhas. Tinha de continuar. As bolhas recentes que me magoavam os pés teriam de esperar até chegar a Whistling
Tor. Anluan precisava de mim. Podia estar deitado naquele momento, doente, ferido, em desespero. E se as minhas suspeitas acerca de Muirne estivessem certas, não
a queria perto dele.
Desci um pequeno monte e vi à distância uma elevação maior, escuro sobre escuro, com o que talvez fosse uma alta muralha no topo. Estava quase lá. E eis que surge
uma estrada secundária. Retirei o meu mapa e semicerrei os olhos para o ver ao luar. Sim, havia um pequeno bosque de carvalhos por perto e um alto pinheiro solitário
a norte. Teria de abandonar o caminho principal e tomar o secundário, ainda suficientemente largo para acomodar uma carroça ou um grupo de homens de armas a cavalo,
mas pouco utilizado. Era o caminho que eu tomara quando fora para ali a primeira vez, quando fugia de tal maneira dos meus demónios que me aventurara para onde ninguém
no seu juízo perfeito iria. Quando chegasse ao marco de pedra, estaria a refazer os meus próprios passos.
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Antes de me aproximar, a bruma começou a levantar-se. Em fiapos e fitas, em gavinhas tortuosas que me envolviam enquanto passava, transformando um caminho iluminado
pelo luar numa tapeçaria enganadora de padrões cambiantes. Amaldiçoado lugar! Até os elementos conspiravam para manter as pessoas afastadas. A lembrança daquele
dia na biblioteca regressou: as nuvens de fumo que me cegavam, o pânico, a luta para conseguir respirar. Afastei a memória. Se me mantivesse na orla do trilho poderia
continuar a andar, encontrando o caminho passo a passo.
O tempo passou; o meu progresso era dolorosamente lento. Mantive-me do lado em que se encontraria o marco de pedra que indicava Whistling Tor e rezei para não ter
passado por ele sem me aperceber. Os sons chegaram-me através das cortinas de bruma, o chamamento de uma coruja, algo a estalar, um estremecimento nas pequenas plantas
rasteiras enquanto uma pequena criatura passava por perto. E depois, não a muita distância dali, ouvi vozes masculinas, vozes estrangeiras, e um som deslizante e
metálico, talvez o de uma arma a ser desembainhada. Algures à minha frente, vi um clarão como o de uma lareira. Dei dois passos em frente e esbarrei com o marco
de pedra, praguejando ao esfolar os joelhos. Um momento mais tarde, alguém gritou o que era claramente um desafio e ouviu-se o som de botas a aproximarem-se.
Não havia onde esconder-me, apenas a bruma para me ocultar. Se fugisse cegamente para fora do trilho, em breve encontraria sarilhos. Se ficasse ali, seria tomada
pelos normandos. Fiz deslizar o saco das minhas costas, abri bruscamente o atilho e peguei no espelho. Ajuda-me. Ajuda-me agora. Olhei fixamente para a superfície
polida, procurando não sei bem o quê. Depressa!
No metal, algo se mexeu. Antes de eu poder ver do que se tratava, uma figura alta apareceu diante de mim, um homem com um traje tecido em anéis de metal, a forma
de armadura normanda, com um elmo na cabeça e uma lança pronta a arremessar. Ele gritou algo e mais dois guerreiros apareceram por entre a bruma, atrás dele. Eu
deixei-me ficar onde estava, imóvel, com a caixa de escrita às costas, o espelho na mão, a olhar fixamente para eles. Atirando a sua lança para um dos outros, o
primeiro homem aproximou-se e agarrou-me no braço com força suficiente para deixar marcas. O espelho caiu ao chão. A bílis subiu-me à garganta, o meu coração batia
ruidosamente de terror. Não gritaria. Quanto mais chamasse a atenção, mais difícil seria fugir.
Os três conversavam e o tema era claro: É apenas uma mulher. Devemos deixá-la seguir o caminho dela? Não, leva-apara ali. Isso não podia acontecer. Não devia acontecer.
Se aqueles normandos descobrissem que eu tinha
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alguma relação com Anluan, usar-me-iam para forçar a sua queda. Permitir isso era zombar do sacrifício que ele fizera ao mandar-me embora. Seria a responsável pela
sua derrota.
- Larguem-me! - exigi de forma cortante, tentando tomar a iniciativa. - Não podem fazer isto! Soltem-me neste instante!
O homem reagiu apertando-me ainda mais o braço. Um dos outros tinha uma expressão no olhar que pôs o meu estômago às voltas de apreensão. Poderiam levar-me ao chefe
deles e interrogar-me. Ou poderiam decidir que gostavam de uma diversão rápida, sem mais perguntas. A bruma daria um esconderijo perfeito.
- Larguem-me! - rosnei, tentando libertar-me das mãos do meu captor, e um dos outros esbofeteou-me na boca com força suficiente para me fazer ranger os dentes nos
maxilares. Lançou-me um comentário e começaram a arrastar-me para fora da estrada. Através do nevoeiro que se adensava, vi vislumbres de tendas e cavalos arreados,
pilhas ordeiras de sacos que poderiam conter mantimentos, estacas espetadas no chão que poderiam ser para bandeiras ou galhardetes. Clarões esbatidos aqui e além
sugeriam que havia mais de uma fogueira. Tratava-se de um acampamento de muitos guerreiros, uma considerável força sitiante. Se rodeava o Tor por completo, não havia
forma de o dizer. No mínimo, suspeitava que existiam guardas colocados em pontos estratégicos em redor do monte, prevenindo assim a fuga das forças de Anluan.
Estávamos a dirigir-nos para uma tenda maior, que mais se parecia com um pavilhão, dentro da qual ainda ardia uma luz. Um dos homens foi adiante, aproximando-se
da tenda maior, chamando uma pessoa lá de dentro. Uma espia. Uma espia no acampamento. Querem interrogá-la? Mais quatro passadas e estaria dentro da tenda, completamente
à sua mercê. Tinha de fazer algo.
Mordi a mão do meu captor com força. Ele praguejou, o aperto dele suavizou-se momentaneamente e eu voltei-me para fugir para o meio da bruma e desaparecer de vista.
Um dos outros tentou alcançar-me e eis senão quando se ouviu um som estranho, um ranger, um chocalhar, um relinchar misterioso e assustador. Os homens estacaram,
petrificados, os seus rostos empalideceram à medida que o som se materializou e detrás da cortina obscura saiu um cavalo alto, uma criatura toda ela ossos, os beiços
esticados num sorriso hediondo, e no seu dorso um cavaleiro de olhos vermelhos vestido com o hábito de um monge, a sua cabeça uma caveira e o seu sorriso tão temerário
como a própria morte. Os meus companheiros dispersaram em todas as direcções enquanto o cavalo e o cavaleiro se aproximavam de mim e paravam. Segurei a minha caixa
de escrita com uma mão e estendi a outra. Eichri inclinou-se, encaixou
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o braço à minha volta e elevou-me para a sela, sentando-me à sua frente, como se eu não fosse mais pesada do que uma criança. Retrocedemos um pouco.
- Segura-te bem, Caitrin - pediu o monge, envolvendo-me com o seu braço ossudo. O cavalo esquelético ergueu-se nas patas traseiras e depois lançou-se num salto poderoso.
Fechei os olhos com força. Não me atrevi a olhar até sentir o desconcertante cavalo atingir o chão. Estávamos do outro lado das linhas inimigas. O cavalo continuou
a correr ao longo do trilho, subindo o monte e entrando na floresta.
- Magoaram-te? - perguntou Eichri.
Lentamente, o meu coração regressou ao seu ritmo habitual.
- Uma ou outra nódoa negra - proferi. - Como soubeste?
- Vimos-te num espelho. Estás bem assim? Não vamos demasiado depressa para ti?
Era como correr sobre um monte de paus, precário e desconfortável. Mas isso não interessava; estava a salvo. Estava em casa. Naquele momento teria de fazer a pergunta.
- Eichri, Anluan ainda está vivo?
- Vivo? Muito vivo. Regressaste mesmo no meio da confusão. Temos uma surpresa para os malditos camisas-de-ferro de manhã. A primeira luz da aurora, atacá-los-emos
com tudo o que temos. O meu velho amigo Rioghan fez o plano de batalha e parece ser dos bons, embora ele se recuse a admiti-lo até tudo ter terminado e os normandos
terem partido das terras de Anluan.
São Patrício, eu chegara no dia da batalha.
- Ele vai ficar zangado - constatei. - Anluan. Ele não me queria cá. Mas... - Começava aperceber-me de que já não estávamos sós. Enquanto o cavalo subia o monte
numa dança de ossos trementes, apareciam figuras debaixo das árvores, homens, mulheres e crianças, a ver-nos passar. Vi a expressão dos olhos deles, orgulhosa, vingada,
cheia de esperança e de empolgamento, e ouvi as suas vozes sombrias. Ela regressou. A senhora regressou. É ela, que está de volta a casa.
- Zangado? - inquiriu ele. - Se ele estiver zangado, comerei as minhas sandálias. É claro que não o viste quando eu lhe disse que estavas lá em baixo no sopé do
monte. Ele teria saído a correr para te ir buscar, atravessando o acampamento normando, se Rioghan não o tivesse chamado à razão.
- Ah. - Enquanto chocalhávamos para o interior do pátio seguidos de uma multidão sussurrante de gente espectral, o meu coração levantou voo.
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- Ocorreram algumas mudanças desde que partiste - explicou Eichri, enquanto a sua formidável montada parava. O monge saltou para o chão e depois estendeu-se para
me ajudar a descer.
Algumas mudanças. Era uma expressão um tanto eufemística. Havia pessoas por toda a parte, não apenas homens de armas da hoste, mas homens da povoação, homens vulgares
que trabalhavam ao lado dos habitantes desconcertantes de Whistling Tor. Lá estava Cathaír, ainda com a camisa ensanguentada, olhando na minha direcção com assombro
enquanto ajudava um jovem rapaz, talvez um moço de lavoura, a colocar a corda no arco. Lá estavam os colegas clérigos de Eichri, entrando e saindo da torre leste,
onde ficava a capela, com pilhas de panos dobrados, bacias e garrafas. A capela fora transformada numa enfermaria; antecipavam baixas de guerra. Lá estava a mulher
de Tomas, Orna, atravessando o pátio com uma mulher-fantasma ao seu lado. A lua iluminava esta actividade nocturna. Um único archote ardia do lado de fora da entrada
principal da casa. Apesar do número invulgarmente grande de pessoas que andavam por ali, reinava o silêncio.
- Mal posso acreditar - confessei, olhando para um lado e depois para outro. - Conseguir fazê-los trabalhar em conjunto... Derrubar tantas barreiras... Como é que
ele conseguiu, Eichri?
- Com cooperação. Com planeamento. Com pura persistência. Todos o ajudámos. Ele enviou Magnus para falar com Brión de imediato, pouco depois de teres partido. Afinal
os chefes locais estavam muito mais preocupados com a ameaça normanda do que com a hoste. Todos estavam convencidos de que Anluan não tinha vontade de liderar. Quando
se procuravam opiniões, habituaram-se a deixá-lo de parte. Depois de saberem que as coisas tinham mudado, trabalhámos para os convencer de que a hoste estava sob
controlo.
A hoste parecia estar realmente sob controlo. A cooperação silenciosa que vi entre os aldeões e a gente espectral deu-me um arrepio na espinha.
- Isso é verdade? - perguntei. - Ele detém o controlo mesmo para lá do monte? E o frenesi?
- Temos estado a trabalhar nisso - explicou Eichri. - Rioghan ensinou aos homens formas de se manterem fortes; e Magnus também. É claro que ainda não foram postas
à prova.
O meu coração esmoreceu. Ao romper da aurora eles sairiam para confrontar o exército normando. Nem conseguia pensar no risco.
- Onde está Anluan? - perguntei. Era a única coisa que importava naquele momento.
- Nos aposentos dele; está à tua espera. Caitrin, não terão muito tempo para estarem a sós. Atacamos antes da alvorada. Anluan tem trabalho
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para fazer. E também precisa de descansar. Terá de suportar um fardo pesado quando a hoste deixar o monte. - Talvez eu tivesse uma expressão surpreendida, porque
Eichri acrescentou: - O plano de Rioghan prevê que metade da hoste se movimente para além da fronteira para se manifestar entre as linhas normandas. Anluan terá
de ir lá abaixo com eles. Se o frenesim assolar as nossas forças de combate, ele é o único capaz de os manter controlados. Não faças essa cara, Caitrin. Têm algum
tempo. Gearróg está de guarda; certificar-se-á de que ninguém vos interrompe.
Enquanto andávamos a caminho da torre sul e dos aposentos privados de Anluan, a minha mente estava preenchida com a visão negra de Anluan deitado na sua pequena
cama, eu desgostosa, e Muirne... E se eu entrasse naquele quarto e Anluan estivesse morto?
- Onde está Muirne? - perguntei.
- Deve andar por aí algures. Não a temos visto muito desde que as pessoas da povoação subiram o monte, quando soubemos que os normandos vinham a caminho. Vi-a uma
ou duas vezes na torre norte ou no jardim de Irial. E tem estado na biblioteca. Já não aparece às horas das refeições desde que os membros da casa se expandiram
de repente. E Magnus não está cá.
Olhei para Eichri, abismada. O leal Magnus não abandonaria certamente Anluan num tal tempo de crise.
- O que aconteceu?
- Faz tudo parte do plano. Anluan contar-te-á. Se tudo correr como esperado, veremos Magnus amanhã de manhã. Aquela mulher, Orna, tem estado a cozinhar com uma catrefada
de assistentes. Olcan tem cuidado da quinta. - Já estávamos quase junto à torre. - Oh, olha para aquilo - comentou Eichri enquanto uma pequena forma corria para
mim. Ajoelhei-me e recebi-a nos meus braços, sentindo os seus, gelados, em torno do meu pescoço. Fiz festas no seu cabelo branco e ralo. Ela agarrava-se a mim, a
chorar.
- Estou de volta - murmurei. - Está tudo bem. Mas tenho de falar com Anluan. Esperas aqui com Gearróg. Vejo-te em breve. - Levantei-me e encontrei os olhos do homem
que me salvara do fogo, o homem que me chamara o tesouro mais precioso de Anluan. Estava de pé, no seu posto de guarda, do lado de fora da porta da torre sul, de
lança na mão.
- Mantive a minha palavra - afirmou Gearróg. - Mantive-o a salvo.
- E eu mantive a minha. Estou de regresso a casa. Gearróg era um homem de poucas palavras.
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- É melhor entrares, então - declarou. - Não falta muito para a primeira luz do dia. - Passado um momento, acrescentou: - Encontraste a tua irmã, não encontraste?
Era típico dele lembrar-se de tal coisa. Era o tipo de homem que nunca se colocaria a si próprio em primeiro lugar.
- Encontrei, sim, e ela... - A porta da torre sul abriu-se e lá estava Anluan, o seu cabelo era um rio de chamas sobre os ombros, tinha uma mão encostada à ombreira
da porta e a outra segurando a candeia cuja luz quente jorrou para diante, abrindo um trilho para os meus pés cansados, iluminando o meu caminho para casa. O rosto
de Anluan estava tão branco como o Inverno. Mas o seu sorriso era todo Verão.
O resto do mundo desapareceu. Ele estendeu a mão, eu agarrei-a e fui puxada para dentro. Anluan pousou a candeia e fechou a porta depois de entrarmos, fazendo deslizar
o ferrolho. E depois estávamos nos braços um do outro, as palavras saindo aos tropeções, sem fazer grande sentido, pois havia uma maré que subia e que varria toda
a razão. Não pensei que fosse pôr em prática, tão cedo, os conselhos da minha irmã, mas pareceu-me de repente que devia talvez tentar recordar-me deles.
- Precisas de descansar, de te refrescares - murmurou Anluan, libertando-me e dando um passo para trás. - Estás ferida, os teus pés...
- Não é nada. - Sentei-me e libertei-me das botas, encolhendo os pés. - Mas as minhas roupas estão molhadas. E perdi o meu saco quando Eichri me foi buscar. - Graças
a Deus, guardara o livro de Anluan na bolsa do cinto. - Podes dar-me alguma coisa para vestir? Temos tão pouco tempo que não quero sair para pedir...
Anluan não disse absolutamente nada. Movimentou-se para retirar uma peça de roupa de uma pilha desordenada que estava em cima da sua arca, mas não ma deu. Em vez
disso, ficou com a peça de roupa nas mãos, a três passos de distância do sítio onde eu estava sentada na borda da cama.
Eu consigo fazer isto, disse a mim própria. Eu amo-o. Ele ama-me. Ele quer-me. Eu consigo fazê-lo. Depois levantei-me e, uma a uma, despi cada peça de roupa. Mantive
os olhos nos dele, vendo-o observar, vendo as mudanças no rosto dele enquanto a capa, o xaile, o corpete, a saia e as meias caíam, à vez, no chão. Sabia que as minhas
faces estavam tão vermelhas como maçãs maduras, mas não me importei com isso. Tudo o que importava era a expressão do olhar de Anluan e a excitação pulsante que
crescia no meu corpo. Passei a minha fina combinação de algodão por cima da cabeça; deixei-a cair devagar. Fiquei de frente para ele, vestida apenas com a cascata
do meu cabelo.
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- Este quarto não está propriamente quente - proferi. - Eichri disse-me que precisas de descansar antes de amanhecer. Deitas-te comigo durante algum tempo?
Anluan não se mexera.
- Caitrin... - articulou ele, e depois pigarreou. - Caitrin, vou desiludir-te... Eu não sou capaz...
- Não poderias desiludir-me - afirmei, puxando para trás o cobertor e deitando-me na cama enquanto o meu coração fazia uma dança desenfreada de excitação aterrorizada.
- Nem sequer penses nisso. Se precisas de descansar, então descansa a meu lado e aquece-me. Senti mais a tua falta do que posso expressar por palavras, Anluan. Quero
abraçar-te.
E depois parámos de falar e eu ajudei Anluan a despir a sua própria roupa para podermos deitar-nos pele na pele e, passado pouco tempo, aquecemo-nos muito bem, mas
não descansámos. As palavras sábias de Maraid estavam retidas algures na minha mente, ajudando-me enquanto as minhas mãos mostravam às dele onde tocar, enquanto
a minha boca ficava mais arrojada e a dele seguia o exemplo. Fiz com que o meu corpo acomodasse o dele, encontrando formas de me mover e de agarrar, de deslizar
e de me torcer, dentro dos limites do que os seus membros fracos podiam fazer. Uma ou outra vez, foi um pouco embaraçoso, mas não tão embaraçoso que o fizesse afastar-se,
receoso do fracasso. Já passáramos para além desse ponto, e quando por fim os nossos corpos se uniram, foi como na visão do espelho do podia-ter-sido, encantador,
poderoso, avassalador, um dar e receber, um juntar e separar, uma união que era ao mesmo tempo desesperada e terna, até que uma onda de sensações se abateu sobre
nós e nos deixou esgotados, com os corações a bater como tambores e os corpos entrelaçados.
Passou-se algum tempo até qualquer um de nós falar. Eu estava deitada de encontro a ele, o seu braço rodeava-me, a minha cabeça estava encostada ao seu ombro. O
meu corpo tocava no dele numa centena, num milhar de pontos de pele contra pele; sentia cada um deles. Jamais me queria mexer daquele lugar.
- Por todos os santos - murmurou Anluan. Havia uma nota de assombro absoluto na sua voz. - Sinto-me como se fosse capaz de fazer qualquer coisa. Qualquer coisa.
- E és - declarei. - Sempre o soube. - Não lhe perguntei porque acreditara que aquilo era algo que não podia fazer. Se ele mo quisesse dizer, di-lo-ia a seu tempo.
- Caitrin?
- Hum?
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- Ficas desta vez? Ficas e aceitas ser minha mulher? Por um momento, o meu coração estava demasiado cheio para me deixar falar.
- Seria uma honra - sussurrei. - Nunca mais te quero deixar. - E ocorreu-me que o que acontecera não fora, de facto, como a visão do espelho, onde Anluan fora uma
versão perfeita dele próprio a fazer amor comigo. Isso fora uma fantasia, uma imagem do que não podia ser. Mas o que acontecera fora real: real nas suas falhas e
nas suas incertezas, real nos seus pequenos triunfos, real nas suas cedências e entendimentos.
Anluan, perdoas-me pelo que te disse na noite em que discutimos? Não foi sentido. Magoou-me tanto saber que não me querias que penso que fui assolada por uma espécie
de loucura...
- Chiu - disse ele, tocando-me nos lábios com os dedos. - Não há necessidade de falar disso. Para além disso, eu fui tão cruel como tu. Bani-te da forma mais grosseira
possível. Se me tivesse permitido a mim próprio amolecer, não teria conseguido dizer as palavras. Temia pela tua segurança. - As suas faces coraram. - Não foi esse
o único motivo. Suponho que saibas que acabei de me surpreender a mim próprio. Caitrin, queria ter-te a meu lado, queria ter-te na minha cama. Mas nunca acreditei
que fosse... adequado.
- Tenho pouca experiência nestes assuntos - confessei, corando eu também. - Mas parece-me que foste muito mais do que adequado. Anluan, li o teu pequeno livro uma
e outra vez. Quando saí daqui pensei que não me amavas, não como eu te amava. O livro mostrou-me que estava errada.
- Como podias não saber? - A voz dele estava cheia de assombro. - Mudaste-me completamente. Foste como uma... uma maravilhosa flor de cor exuberante num jardim repleto
de ervas daninhas. Como uma maiúscula graciosa numa página repleta da mais feia caligrafia, uma letra decorada com as mais belas e profundas cores de toda a Erin.
Como uma chama, Caitrin. Como uma canção.
Retive estas palavras enquanto permanecíamos deitados lado a lado, a descansar mas não a dormir. Para lá da porta fechada da torre sul, a Lua cheia atravessou o
céu e a noite aproximou-se da aurora. Tão pouco tempo. E depois ele teria de marchar para uma batalha tão desigual, tão imprevisível que só de pensar nela o meu
coração apertava-se de medo. Não disse nada sobre isto. A recém-encontrada crença de Anluan em si próprio poderia vir a ser a sua melhor arma.
Inevitavelmente, ouviu-se uma pancada na porta.
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- Meu senhor? - Era a voz de Gearróg. - Tens aqui comida e bebida. Foi Orna que as trouxe. Rioghan disse-me que devia acordar-te; precisas de comer algo antes de
marchar para a batalha.
Anluan suspirou.
- Obrigado, Gearróg - gritou ele.
- Tenho fome - disse eu, percebendo que já passara muito tempo desde que comera aquela refeição desagradável à beira da estrada. - Vou buscar a comida, sim?
- Não assim. - Anluan observava-me da cama enquanto eu saía e me punha de pé, completamente nua, no centro do quarto. - Veste pelo menos a camisa. Mesmo assim, vais
chocar aquele teu guarda devoto. Ele tem feito um óptimo trabalho, Caitrin. Retribuiu a tua confiança, vezes cem. Pedi-lhe que ficasse contigo quando descermos o
monte hoje.
A porta, aceitei o tabuleiro das mãos de Gearróg. Havia um sorriso nas suas feições bruscas. Orna preparara uma saborosa refeição para dois, com uma espécie de carne
assada fria, fatias de pão escuro e ovos cozinhados com ervas. Um pequeno jarro continha cerveja. Pareceu-me que toda a casa estava acordada, e sem dúvida que toda
a casa percebera o que Anluan e eu estivéramos a fazer sozinhos no quarto dele, mas eu não me importava com isso. O Tor estava cheio de esperança naquela noite.
Os corações estavam exaltados. Eu encontrara o tesouro que acreditava ter perdido para sempre, por isso um pouco de embaraço não tinha importância.
Servi duas canecas de cerveja, depois passei uma delas a Anluan que se estava a sentar na cama com o cobertor em cima do colo. Estava com frio, metida dentro da
camisa emprestada. Aproximei-me da arca, remexendo na pilha de roupa à procura de uma túnica ou de uma capa. Mais tarde veria se alguma da roupa que deixara para
trás ainda estava lá em casa.
Um som atrás de mim, como uma leve tosse ou um pigarrear, depois uma pancada seca quando algo caiu no chão. Voltei-me. Anluan deixara cair a caneca. Tinha ambas
as mãos na garganta e o seu rosto estava cinzento.
- O que é? - Estava ao lado dele, com o coração aos saltos. - O que é, o que se passa?
Ele tentou falar, mas parecia não conseguir respirar. Gesticulava freneticamente, tentando passar-me uma mensagem qualquer; mas eu não compreendia o que ele queria
dizer. Assim que cheguei junto dele para o apoiar, ele caiu para trás, em cima da cama, revirando os olhos.
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- Gearróg. - gritei. Oh, Deus, era verdade, afinal acontecera. Pedira demasiado dele, esgotara-lhe a energia... Havia qualquer problema que ele não me contara, qualquer
enfermidade...
Gearróg entrou de rompante, emitiu uma praga, e depois voltou lá para fora para gritar por ajuda. Enquanto eu lutava para manter a calma, colocando uma mão no peito
de Anluan para sentir se o coração dele ainda batia, colocando os meus dedos no seu pescoço no local onde o sangue pulsava, o quarto encheu-se de pessoas: Olcan,
Eichri, Orna e Tomas. E atrás deles, Rioghan, que olhou para ele uma vez e disse:
- Santo Deus, foi exactamente o que aconteceu a Irial.
- O quê... - comecei, ultrajada que alguém pudesse pensar que Anluan, o meu amado Anluan, que me abraçara, se deitara e fizera magia comigo, pudesse querer suicidar-se.
Depois percebi o que ele queria dizer. A caneca. O súbito colapso. A cor azul-acinzentada, a perda da fala, a respiração ofegante... - Ele foi envenenado - proferi.
- A cerveja, essa cerveja foi só o que ele ingeriu. Quem preparou este tabuleiro?
Façam alguma coisa, salvem-no, agora, agora!, gritava a minha voz interior, atirando-me cada vez mais para o pânico total.
- Foi Sionnach quem preparou a comida - replicou Orna. Estava sempre a olhar para os lados, como se a presença de gente desconcertante ainda a deixasse nervosa.
- Tomas foi buscar a cerveja para nós e eu trouxe o tabuleiro a Gearróg. Estava a meio caminho da casa quando te ouvi gritar. É a mesma comida e bebida que todos
nós ingerimos à ceia, e ninguém mais ficou doente.
Fez-se silêncio, embora todos estivessem ocupados, Olcan suportando Anluan, Eichri junto à porta a dar instruções concisas a Gearróg, Orna a passar um pano húmido
na testa do homem aflito. A respiração de Anluan era superficial e desigual. A pele dele parecia a de um cadáver, repleta de sombras.
- Entrou mais alguém na cozinha enquanto Sionnach preparava a comida?
- Quem mais lá estaria a meio da noite? - Orna franziu o sobrolho. - Ah, aquela estranha criatura passou por lá, a rapariga do véu. Entrou e saiu àquela maneira
dela, que me arrepia de susto. Só lá esteve um instante.
Um instante era o suficiente. O suficiente para colocar uma gota de veneno num jarro. O suficiente para matar um homem.
- Tem de haver um antídoto. Só temos de perceber que tipo de veneno foi usado. Quem percebe de ervas?
- Apenas Magnus - afirmou Rioghan. - Ele não está cá. Além disso, é o mesmo que matou Irial e nunca descobrimos o que foi. Ninguém soube.
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Queria gritar, rasgar as minhas roupas e gemer como uma louca. Chamei a mim mesma a resolução fria que me ajudara antes quando entrei em minha casa e confrontei
Ita e Cillian.
- Há alguém que sabe - proferi. - Encontrem Muirne. Tragam-na cá agora. Isto é obra dela. - Aislinn era perita em ervas. Aislinn sabia tudo sobre poções. Amava Anluan,
mas talvez também o odiasse, odiava-o porque ele me amava, odiava-o por ter modificado tudo no monte. Talvez pouco lhe tivesse importado qual de nós bebesse primeiro.
- Depressa - pedi, mas Rioghan já lá não estava.
- Caitrin. - Eichri falou calmamente. - Se é o mesmo veneno que Irial tomou, não temos muito tempo. Uma hora, talvez. Não podemos esperar por Muirne, mesmo que tenhas
razão. - Percebi na voz dele que não acreditava que Muirne se voltasse contra o objecto da sua devoção. - Temos de fazer alguma coisa agora ou perdemo-lo enquanto
eles a procuram.
- Irial - disse eu, quando tive uma ideia nova. Se Muirne estava preparada para matar o seu amado Anluan por ciúmes, não poderia ter feito o mesmo a Irial, de quem
fora uma companheira igualmente devota? - Irial devia saber o antídoto. Escrevia notas sobre tudo o que descobria, devia ter registado todas as plantas que existiam
no Tor, tenho a certeza. Deve estar num daqueles pequenos livros. Ele deve ter escrito os sintomas, todos os pormenores. Precisamos de encontrar primeiro o veneno,
ele deve ter anotado o antídoto por baixo. - Uma hora. Pouco menos de uma hora. E eu era a única pessoa da casa que sabia ler, à excepção dela. Se tivesse havido
um erudito entre eles, talvez tivessem conseguido salvar Irial.
Peguei na mão inerte de Anluan e levei-a aos lábios. Ele parecia já ter partido, mas eu sentia o sangue a correr-lhe nas veias, ainda que fraco; sentia o bater hesitante
do coração. Largar-lhe a mão e ausentar-me era uma pequena morte.
- Vou para a biblioteca - disse por cima do ombro. - Preciso de uma candeia segura e de um homem para guardar cada uma das portas. Se alguém encontrar Muirne, quero
vê-la de imediato. Gearróg, não deixes que ela se aproxime de Anluan.
Corri através do pátio com os pés descalços, com a capa de Gearróg atirada por cima da camisa emprestada. A notícia espalhava-se com rapidez. Quando cheguei ao jardim
de Irial, gente da hoste e gente da povoação aglomeravam-se em pequenos grupos, com rostos sombrios. Cathaír veio a correr até ao jardim de Irial antes de eu entrar
em casa com uma candeia numa mão e um punhal na outra.
- Eu guardarei esta porta, minha senhora. Broc está a guardar a outra, com o cão. Deixa-me abrir-te esta. - Empurrou a porta da biblioteca,
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abrindo-a de par em par; o ferrolho interior não fora trancado. - Onde queres esta luz?
- Na prateleira, aqui no canto. Se Muirne entrar no jardim, chama-me imediatamente. Ela tem a resposta, estou certa disso. - Muirne? - Cathaír parecia menos duvidoso
do que Eichri. - Ela vinha para aqui muitas vezes, enquanto estiveste fora. Limpava prateleiras. Mexia as coisas de um lado para o outro. Olhava para os livros.
O meu coração estava tão gelado como a campa. Peguei numa braçada de livros de anotações da prateleira e coloquei-os numa mesa que havia por perto. Comecei a voltar
páginas, não perdendo tempo a ler nada completamente, pois não havia tempo - mantém-te vivo, por favor, por favor -, mas escrutinando-as à procura de palavras que
pudessem sobressair: efeito imediato, respiração, fala, cinzento-azulado, veneno, antídoto...
Um livro, dois livros, três... Havia venenos, mas não o que eu queria. Havia azul-acinzentado, mas apenas a descrição de uma folha. As minhas mãos transpiravam de
medo, o meu corpo estava pegajoso. O meu coração batia descompassadamente no peito, sentia o meu estômago às voltas. A caligrafia fina de Irial desfocava-se diante
dos meus olhos. Cinco livros, sete, nove...
- Alguma coisa? - Cathaír dera um passo para dentro. Quando olhei de relance para cima, uma dor atingiu-me o pescoço. Mal me mexera durante... quanto tempo? Demasiado.
- Não consigo encontrá-lo! - a minha voz cedeu. - Não consigo encontrar nada! E não se trata apenas de a encontrar, é preciso preparar a cura e dar-lha e estou a
ficar sem tempo! - Peguei noutro livro, comecei a passar as páginas e soube que estava perto de perder a capacidade de entender as palavras que estavam diante de
mim.
- Minha senhora - disse Cathaír, e o seu tom era cauteloso -, estão a dizer que pensas que foi Muirne quem fez isto. Quem deu o veneno a Lorde Anluan.
- É isso que eu penso, sim. Que ela sabe ler. Que ela conhece as plantas e os seus usos. Que ela lho deu e que está escondida para que eu não a obrigue a revelar
o antídoto antes de ele morrer. - Arruda, consol-da, absinto, erva-ulmeira, artemísia, tomilho. Era inútil, inútil. Devia regressar e abraçá-lo, embalá-lo. Pelo
menos estaria lá para me despedir.
- É só que... - Cathaír hesitou.
- Continua.
- Se é ela, Muirne, talvez queiras ver na adega. Sabes, o pequeno anexo junto ao muro do jardim. É para lá que ela vai à noite. Irial
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costumava fazer o trabalho dele ali, as suas poções de ervas. Desde que ele morreu, ninguém lá entrou; ninguém excepto ela. E ela adora esses pequenos livros, os
que aí tens. É para esses que ela olha quando vem para a biblioteca. Segura-os de encontro ao peito como se se tratasse de crianças.
Eu já estava no jardim de Irial antes de ele acabar de falar. A porta de acesso ao baixo edifício de pedra estava aferrolhada, como sempre. Isso não seria uma barreira
para Muirne. Provavelmente, ela conseguia atravessar paredes.
- Preciso que me abras esta porta - pedi. - Depressa. E preciso que me ajudes a procurar. Deve estar num livro pequeno, como aqueles outros. - As tristes notas à
margem de Irial estavam numeradas até às quinhentas e noventa e quatro. Mas ele vivera mais dois anos que a mulher, perfazendo mais de setecentos dias. A menos que
tivesse deixado de as escrever, a menos que tivesse perdido de todo a vontade de escrever, teria de existir outro diário algures.
Cathaír desferiu um golpe com a bota na porta da pequena adega. As portas de madeira separaram-se, a corrente caiu solta, o ferrolho foi arrancado da parede de pedra.
Espreitei para o interior obscuro.
- Segura na candeia - pedi, afastando-me. Tive a sensação de que algo estava errado naquele lugar, algo que não consegui identificar. Esperava encontrar coisas bolorentas
e velhas, ferramentas armazenadas e esquecidas ou as reminiscências desmoronadas do trabalho botânico de Irial. Mas a adega estava perfeitamente arrumada. Havia
uma vassoura de barbas de milho-miúdo a um canto, um espanador pendurado na parede. Havia velas enfileiradas numa prateleira. Havia uma bancada de trabalho, com
cadinhos e frascos, alguns contendo objectos que não consegui identificar. Havia um almofariz e um pilão ao lado de um suporte para facas e outros utensílios que
brilhavam levemente à luz da candeia. Havia molhos de ervas pendurados do tecto. Num dos lados da divisão imaculada estava uma pequena cama, em cima dela estava
uma caixinha com tampa.
Não havia quaisquer livros à vista.
- Ela deve tê-lo aqui algures - balbuciei. - Procura em toda a parte, Cathaír. Está aqui, eu sei que está. Está aqui, mas está escondido. - Peguei no cobertor que
estava amarrotado aos pés da cama, a única nota de desarrumação que havia em toda a divisão. Sacudi-o; não havia lá nada. Estiquei-me para sentir se havia alguma
coisa atrás da cama. Nada. Agachei-me para olhar debaixo da cama, enquanto Cathaír procurava nas prateleiras, levantando e pousando coisas. Havia um monte de trapos
no chão, debaixo da cama; tirei-os para fora. Eram-me familiares, mas o que eram?
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- Bebé! - A pequena voz falou da entrada e um momento depois a menina-fantasma estava agachada a meu lado, pegando no monte patético, tentando manter os pedaços
unidos, pedaços que eram brancos, como rosto de Róise, violeta, como o pequeno toucado que eu fizera para cobrir o cabelo estragado da boneca, e castanhos, como
a saia que fora rasgada no sossego do meu quarto. Fios de cabelo de lã, fragmentos esfarrapados de uma boca sorridente bordada com amor. A criança levantou-se e
apertou o seu tesouro violado contra o peito. - Está tudo bem agora, bebé - sussurrou ela.
Cathaír agachou-se ao lado da menina e, apesar de os seus olhos estarem tão selvagens e irrequietos como sempre, havia algo de meigo nos seus modos.
- Pequenina - perguntou ele. - Já vieste aqui antes?
- Hum - murmurou ela, mas não olhou para ele. A cabeça dela estava inclinada sobre o seu bebé estragado.
- Há aqui algum livro? - perguntou o jovem guerreiro. - A senhora do véu tem algum livro especial escondido aqui? Silêncio.
- Por favor - pedi, tentando manter a minha voz tão calma e meiga como a de Cathaír, embora me sentisse perto de gritar. - Se sabes onde está, por favor, mostra-nos.
Uma pequena mão elevou-se, um dedo apontou para a caixa que estava em cima da cama. Era demasiado pequena para esconder um livro, mesmo um minúsculo, e o meu coração
esmoreceu de novo, mas levantei-me e abri o fecho. Abri a tampa e vi o lenço bordado da minha mãe dobrado com precisão. Debaixo dele havia uma estranha variedade
de pequenos artigos: uma tira de tecido brilhante, em tons de violeta e púrpura; uma fivela decorativa de um sapato de senhora; um bonito fecho para uma capa, em
prata e âmbar. Ela guardou um troféu de cada uma de nós, pensei. De cada uma que odiou e pensou matar. De cada uma que lhe roubou um amado chefe tribal.
- O que é aquilo no fundo? - perguntou Cathaír.
- É uma chave. - Um fino fio de esperança, por fim. - O que abre?
A criança encolheu-se sobre si própria, talvez assustada pelo meu desespero.
- Por favor - pedi-lhe com mais calma. - Por favor, ajuda-me. Lorde Anluan está muito doente, temos de o salvar. Sabes para que serve a chave? - Levantei o lenço
bordado e estendi-o em cima da cama. - Podes pôr aqui o teu bebé e embrulhá-lo em segurança.
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A criança colocou o seu monte de farrapos no meio do lenço e observou enquanto eu apertava os cantos, dois a dois, fazendo uma trouxa bem-feita.
- O espelho - murmurou ela.
- Espelho? - Havia uma nota estranha na voz de Cathaír, e quando olhei para cima vi-o levar a mão à testa como se estivesse com dores. - Qual espelho?
Abruptamente, a menina começou a chorar.
- Dói-me a cabeça - sussurrou ela, pegando na trouxa feita com o lenço e apertando-a contra o peito.
Não isto; não agora, oh, por favor...
- Aguenta-te, Cathaír - pedi eu. - Preciso de ti. Precisamos de encontrar aquele livro. - Do lado de fora, do jardim, chegaram os sons de gente a praguejar, a lamentar-se
e a gritar de dor.
O jovem guerreiro cambaleou, estendeu uma mão, agarrou a bancada e endireitou-se. Fechou os lábios e assobiou algumas notas desesperadas: Levantai-vos e lutai...
homens do monte...
- Aquele espelho - soluçou a criança-fantasma, e apontou.
Estava velho, corroído, revelando nada para além dos restos antigos de muito tempo de negligência. Estava encostado à parede, na parte de trás da bancada de trabalho,
tapado por uma fila de frascos. Enquanto os afastava para o lado, os seus conteúdos agitavam-se numa desconcertante semelhança de vida. Levantei e afastei o espelho
antigo e ali, por trás dele, estava uma portinhola de madeira com uma fechadura.
- Intrépidos e corajosos... unidos pela vontade - cantava Cathaír, e outras vozes se lhe juntaram, vindas de fora da adega, os tons profundos dos homens, os tons
mais agudos das mulheres. - Empunhem as espadas com orgulho, ergam as cabeças...
Dei a volta à chave e abri a portinhola.
- Livros - declarou Cathaír, interrompendo a sua canção. - Olha, deixa-me segurar-te a luz.
Dois livros, um igual aos livros de anotações de Irial, o outro ainda mais pequeno. Abri o primeiro em cima da bancada e vi a familiar caligrafia fina e as ilustrações
delicadamente desenhadas.
- É isto - disse eu, enfiando o outro livro num dos bolsos da capa de Gearróg. Depressa, depressa... Comecei a voltar as páginas. Uma espécie de entrada de diário,
que não estava de todo relacionada com ervas, uma cataplasma para a dor de ouvidos nas crianças, uma discussão sobre várias ervas que poderão ser usadas para aliviar
o desgosto...
Encontrei-o mais ou menos a meio. O veneno feito com quantidades precisas de bagas de garra-de-dragão, moídas e mergulhadas numa
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cerveja forte, depois escorridas em gaze e deixadas a repousar durante sete dias. O efeito é rápido, escrevera Irial. Primeiro, a pele fica cinzenta, segue-se a
falta de ar, a perda da fala, e depois um estado de inconsciência que conduz à morte em pouco mais de uma hora. O antídoto é... - Sangue-do-coração - balbuciei,
enquanto corria pelo jardim com o livro numa mão. As pessoas desviavam-se do meu caminho, muitas das quais haviam esperado enquanto eu procurava. - Devia ter adivinhado.
Maldita Muirne! Cathaír, preciso de alguém que me ajude a preparar o antídoto.
Cheguei ao canto onde a erva crescia. Caí de joelhos, Cathaír segurou a candeia. O círculo de luz banhou o suave cinzento esverdeado das folhas do arbusto de consolda
e mostrou, por baixo dele, os resquícios secos e mirrados das flores de sangue-do-coração. Apenas duas. Uma mão-cheia de pétalas cortadas finas, escrevera Irial.
Tão frescas quanto possível.
- Tem de resultar, tem de chegar - murmurei, inclinando-me para fazer a minha colheita patética.
A volta do jardim a canção continuou a soar, mais confiante naquele momento.
- Irmãos, juntos, vivemos e morremos! - Rioghan ensinara-os bem. Ensinara-os a ter esperança face ao desespero.
- Eu ajudo-te. - Era a mulher sábia da hoste, a que tinha a Lua tatuada na testa. As suas feições estavam calmas, mas vi dor nos seus olhos; o frenesi, ao que parecia,
tocava-os a todos. - Precisas de outras ervas?
- Flores de alfazema secas. Há um molho delas pendurado na adega. Eu vou correndo para a cozinha. - Voltar pela biblioteca, era o caminho mais rápido, através da
divisão na penumbra e saindo pela outra porta, surpreendendo o velho guerreiro, Broc, que rugia a canção com as mãos agarradas tão firmemente à sua lança como hera
secular. Fianchu ladrava e corria à minha frente como se soubesse o que tinha de ser feito. Cathaír atrás de mim, desesperadamente preocupado com a minha segurança,
lutando contra a dor. A cozinha cheia de gente, o lume aceso, a amiga de Orna, Sionnach, levantando a chaleira fumegante. A própria Orna na ombreira da porta e a
entrar, atrás dela, a mulher sábia, com um feixe de alfazema seca nas mãos. Fora rápida.
- Uma de vocês corte estas flores em pedaços tão finos quanto conseguir. Uma de vocês desfaça as flores de alfazema. Orna, precisamos de... - A expressão do rosto
dela fez-me parar.
- Ele ainda está vivo - esclareceu Orna rapidamente. - Mas não temos muito tempo. O que estamos a preparar?
- Vida, espero. É um antídoto para o que penso que lhe deram. É simples, apenas estas duas plantas transformadas numa infusão.
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- Tens uma medida precisa para isto? - perguntou a mulher sábia da hoste. - O sangue-do-coração é uma erva perigosa. Se lhe dermos demasiado, poderá levá-lo para
sempre.
- Dois copos de água, acabada de ferver. - O remédio estava inculcado na minha mente; conseguia ver cada traço da escrita de Irial. - Uma mão-cheia de pétalas de
sangue-do-coração finamente cortadas. Duas mãos-cheias de alfazema. - Olhei para a escassa colheita de sangue-do-coração. - Não se...sei se é suficiente. - Senti
o terror crescer dentro de mim. Pensar que Anluan poderia morrer por falta de uma simples flor...
- Reduzimos a metade - sugeriu Orna, pegando numa faca da bancada e dirigindo-se para a mesa. - Não podes esperar que um homem quase inconsciente engula dois copos
cheios desta mistura. Deve chegar, não achas? - Olhou de relance para a mulher espectral.
- Acredito que seja o suficiente.
- Façamo-lo, então. Sionnach, não voltes a pôr a chaleira ao lume, não ouviste o que Caitrin disse? Acabada de ferver.
- Muirne veio? - perguntei, trémula, percebendo que a tarefa me fora tirada das mãos. Orna cortava, a mulher sábia media, Sionnach deitava a água quente dentro de
um jarro. Lá fora, os cantares continuavam. Esperei que o som não chegasse ao acampamento dos normandos ou o ataque surpresa não seria nenhuma surpresa.
- Maldita melodia - murmurou Orna, mas o seu tom era bem-intencionado. - Vou acabar por ouvi-la nos sonhos. Até ouço Tomas a cantar. É justo, suponho; agora estamos
todos juntos. Homens do monte. E mulheres.
- Ela não veio - respondeu a mulher-fantasma. - A rapariga do véu. Se conseguires ser bem-sucedida, se o curares, ela irá temer-te ainda mais.
- Temer-me? - ecoei, assustada. - Muirne teme-me? - Mas não havia tempo para perguntar mais. Eichri estava junto à porta.
- Dizem que o encontraste. O antídoto. É verdade? - Parecia desesperado; um leve chocalhar disse-me que ele estava a tremer.
- Vamos agora levá-lo - confirmei eu. - Ele só tem de aguentar mais uns momentos. - Santo Deus, não mo leves...
- É melhor apressares-te - disse Eichri.
A mulher sábia passou o jarro para as minhas mãos, cuidadosamente. Estava tão quente que quase o deixei cair. Orna tirou um pano da louça de um suporte de madeira
e ajudou-me a embrulhar o jarro nele.
- Quando chegarmos à torre - garantiu ela -, estará suficientemente frio para ele o beber.
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Sionnach pegou numa caneca limpa. Caminhámos para fora de casa e atravessámos o pátio; enquanto passávamos, a canção esmorecia, interrompia-se e cessava. A nossa
volta, todos os olhos estavam postos em nós, os olhos afligidos dos que ainda travavam uma batalha contra o que lhes tentava envenenar os pensamentos; os olhos assustados
de pessoas vulgares cujo mundo mudara para sempre. Eu queria correr, voar, estar ao lado de Anluan naquele preciso momento, mas segurei o jarro, com a sua salvação
no interior, e caminhei como se pisasse cascas de ovos.
A entrada da torre, Gearróg mantinha-se firme, embora visse a tensão no seu corpo e o esforço da resistência no seu rosto. O frenesi atormentava-o muito, como anteriormente.
Murmurava para si próprio e quando passei por ele ouvi-o dizer:
- Deus, não deixes Lorde Anluan morrer. Dizem que ouves a prece de um pecador. Ouve a minha esta noite, sim? Estamos todos por um fio.
Depois cheguei ao quarto e à cabeceira da cama de Anluan. Ele estava deitado nos braços firmes de Olcan, a boca entreaberta, as pálpebras fechadas, a respiração
assobiando como o vento a passar pelos juncos.
Estava vivo, por todos os santos, ainda estava vivo. As minhas mãos tremiam tanto que não consegui deitar a infusão do jarro para a caneca, por isso Orna fê-lo por
mim, mas fui eu quem lhe levou o recipiente aos lábios.
- Anluan - pedi eu, com as lágrimas a correrem-me pelas faces -, tens de beber isto. Basta um golinho para começar. Anluan, por favor, tenta. - Era óbvio que ele
não me conseguia ouvir. A beberagem preciosa cairia da sua boca inanimada e ensoparia os cobertores, perdendo-se.
- Molha o pano. - Era a voz calma da mulher sábia. - Espreme um pouco para dentro da boca. Dá-lha a beber como o farias a um bebé órfão.
Embebi o pano que ela me dera num pouco da infusão; elevei-o cuidadosamente. Perder uma gota que fosse poderia significar perder esta batalha. Olcan puxou a cabeça
de Anluan ligeiramente para trás e eu espremi a infusão para dentro da sua boca. Bebe-a. Bebe-a.
Ele engoliu. Eu libertei o ar que retivera nos pulmões e mergulhei novamente o pano na beberagem. E outra vez. O quarto estava tão sossegado que eu pensei ouvir
o meu coração bater. Mais umas gotas; as pálpebras de Anluan mexeram-se. Ele arfou para tentar inspirar, retesou-se, voltou a cabeça.
- Usa a caneca agora - sugeriu a mulher sábia. - Ele recuperará a consciência em breve. Vai devagar.
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- Bebe, meu querido - pedi, pondo uma mão no seu pescoço e inclinando a caneca na direcção dos seus lábios.
Ele bebeu; parou para inspirar; bebeu novamente, com sede. Os olhos dele abriram-se, azuis como o céu no mais belo dos dias de Verão completamente confusos.
- O que é que... - conseguiu dizer, e depois ficou sem ar.
- Chiu, não tentes falar. - Pousei a caneca vazia, voltando a minha cabeça para que ele não visse as lágrimas que me caíam pelas faces. - Está tudo bem, estás bem
agora. Leva o tempo que precisares.
- Caitrin... Olcan... o que é que...? - Anluan voltou a cabeça para um e outro lado, colocou uma mão na testa, tentou sentar-se na cama, caiu para trás amparado
pelo braço de Olcan. - O que me aconteceu? Sonhei que... - Silêncio, depois senti a sua mão estender-se para me tocar. - Caitrin, estás a chorar. O que é que...
O que é isto? - A voz dele estava um pouco mais forte e, quando me voltei para olhar para ele, havia uma leve sugestão de cor nas suas faces abatidas.
- Quem poderia imaginar? - pasmou Orna. - Sangue-do-coração. Pensei que apenas servisse para fazer tinta para gente rica. Meu senhor - de repente ela ficou tímida,
o seu tom deferente -, estiveste terrivelmente doente. Quase a morrer. Caitrin trouxe-te de volta.
- Doente? - Anluan franziu o sobrolho, os seus olhos passando por cima da caneca vazia que eu tinha na mão e do jarro vazio que a mulher sábia segurava. - Mas...
- Pigarreou. - Eu sonhei... Caitrin, estás mesmo aqui?
- Sim - respondi, sentindo-me corar.
- Foi real... tu e eu...
O rubor tornou-se mais profundo, as minhas faces estavam a arder.
- Foi - respondi. - E eu também sou. Anluan, tens de ficar deitado a descansar, estiveste muito doente.
- Não... - Estava a tentar sentar-se outra vez, a sua respiração ofegante. - Não, não há tempo para isso... Tenho de... Deus, não consigo respirar... Conta-me o
que se passou...
Expliquei-lhe com toda a calma que consegui, enquanto ele tentava regularizar a respiração e Olcan o amparava, até que, por fim, ele conseguiu sentar-se sozinho.
Não falei de Muirne, apenas do veneno, que era o mesmo que matara o seu pai. Expliquei-lhe que encontrámos o antídoto, mas não onde. Não falei da pequena horda de
troféus que encontrara.
- Veneno - repetiu Anluan, o seu tom inexpressivo. - Agora, na hora da batalha, veneno...
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Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, a figura alta de Rioghan, envolta na capa vermelha, apareceu à entrada com Cathaír atrás.
- Deus seja louvado - suspirou de alívio o conselheiro, com os seus olhos escuros pousados em Anluan. Voltou-se para encarar o pátio e não havia dúvida de que ele
queria gritar numa voz que se parecesse com uma trompeta de guerra, mas manteve o seu comunicado jubiloso calmo: - Ele está salvo! Lorde Anluan está bem outra vez!
Bem? Nem por isso, pensei, segurando a mão de Anluan na minha. ] Olhei de relance para Rioghan, adivinhando o que aí vinha.
- Meu senhor - proferiu Rioghan, entrando e caindo sobre um dos joelhos ao lado da cama de forma cortês -, aproxima-se a primeira luz da aurora. Não podemos fazê-lo
sem ti.
- Ele não pode ir já! - protestei. - Não lhe podes pedir que o faça! - Há menos de nada, Anluan estivera ali estendido, perto da morte. Mal era capaz de se pôr de
pé sozinho. Não seria de todo capaz de liderar um exército para o campo de batalha. - Não podem adiar a investida até amanhã?
- Tem de ser hoje, Caitrin - explicou Rioghan. - O plano já está montado. Temos de descer o monte antes da aurora. Metade da nossa força de combate manifesta-se
no acampamento normando e desafia-os. A outra metade aguarda escondida debaixo das árvores. Depois de criarmos o caos generalizado nas linhas inimigas, Magnus trará
as companhias de guerra de Silverlake e de Whiteshore, sob o comando dos seus próprios líderes. Os normandos serão empurrados para a floresta e para a armadilha
que os aguarda. É demasiado tarde para fazer recuar os reforços de Magnus; eles cavalgaram dos seus próprios territórios para correrem este risco por nós e não lhes
podemos enviar uma mensagem sem alertarmos o inimigo. Esperamos que o repentino aparecimento dramático de Eichri para te salvar não os tenha alertado. A bruma deve
ter ajudado; ele pensa que poucos o viram. Com sorte, os que o viram ainda estarão a discutir se foste realmente levada por um cavaleiro espectral ou se terão imaginado
tudo. Meu senhor, tens apenas tempo para te vestires. Não mais do que isso. Cathaír e eu ajudar-te-emos. Anluan levantou-se. Cambaleou, e depois endireitou-se.
- Eu sou capaz, Caitrin - afirmou ele, erguendo o queixo. Lutei por encontrar uma coragem igual à dele.
- Eu sei que sim. Deixo-te para que te prepares. - Olhei de relance em redor do quarto, onde todos estavam em silêncio: o leal Olcan, Rioghan, com o seu maxilar
contraído, a lutar contra a memória de um fracasso, Eichri, no seu hábito castanho, Orna e Sionnach, a mulher com
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a Lua gravada no seu semblante calmo. Cathaír dirigiu-se à arca para retirar várias peças de roupa: uma protecção de couro para o peito, como a que Magnus usava,
um elmo, um cinto com fivela de prata. - Tenho orgulho em ti, tanto orgulho que me parte o coração. Regressa são e salvo. - Queria beijar Anluan como devia ser,
mas aquela não era a altura mais apropriada. Naquele momento, ali de pé, um pouco torcido e segurando acanhadamente um lençol para esconder a sua nudez, era um chefe
tribal da cabeça aos pés. Pus-me em bicos de pés, pousei as mãos nos seus ombros e encostei a minha face à dele. - Amo-te - sussurrei.
- Amo-te, Caitrin. - Não foi um sussurro, mas uma declaração peremptória e orgulhosa. - Gearróg ficará contigo até eu regressar. Vários dos homens da povoação também
ficarão aqui em cima e temos uma pequena força posicionada no topo da muralha. Não corras riscos.
- Ele vestia uma camisa que Cathaír segurava.
- Caitrin, quem poderia ter colocado o veneno na caneca?
Quando Anluan se curvou para puxar as calças, Rioghan prendeu-me o olhar. Fez o mais leve abanar de cabeça e eu engoli as palavras que estivera prestes a dizer.
Não era a altura ideal para falar de Aislinn e do que deixara de ser uma suspeita e passara a realidade.
- Podemos falar sobre isso mais tarde - respondi. - Que Deus olhe por ti e te proteja de todo o mal.
CAPÍTULO CATORZE
Reuniram-se no pátio pouco depois. Ainda vestida com a camisa e a capa emprestadas, estava de pé nos degraus, com Orna de um lado e um Gearróg atento do outro. A
nossa volta estavam reunidas as mulheres e as crianças da hoste, as mulheres e as crianças da povoação, um grupo muito mais pequeno, bem como uns homens muito idosos,
os demasiado frágeis para marchar para a batalha. Por cima de nós, no passadiço, estavam posicionados alguns homens da hoste, com os arcos e as aljavas a postos,
os olhos fixos na encosta do monte para lá da muralha. Uma quietude envolvia-nos a todos; na quase escuridão da madrugada, ouvia-se um único pássaro a emitir um
pio sonolento, mais pergunta que afirmação. Já está na hora?
Era um exército extraordinário, a substância de sonhos loucos. Anluan era uma figura sombria. Estava vestido de preto por baixo das peças que o escudavam. O seu
cabelo flamejante estava escondido pelo elmo de couro. A única arma que trazia era uma longa faca presa ao cinto. Tinha um aspecto pálido. As rugas em torno do nariz
e da boca, as que em tempos me fizeram acreditar que ele era mais velho que os seus vinte e cinco anos, estavam bem visíveis naquela manhã. Certifiquei-me de que
a minha ansiedade não se espelhava no meu rosto.
Ao lado dele estava Cathaír, vestido com a sua camisa cheia de sangue. Trazia uma espada embainhada à cintura e uma lança de arremesso na mão. Pareceu-me que os
olhos dele estavam mais calmos naquele dia; de facto, havia um propósito naquele grupo de pessoas, tão diferentes entre si, que me sossegou o coração, deixando a
esperança entrar. Talvez fossem capazes de o fazer. Talvez, mesmo para lá das fronteiras do monte, fossem capazes de se manter firmes contra o frenesi, se ele viesse,
e de seguir o seu chefe tribal para a vitória.
Olcan estava do outro lado de Anluan com Fianchu preso por uma trela de corda. Eram ambos formidáveis, força ajaezada. Era difícil de acreditar que aquele temível
cão de combate dormira enroscado em torno
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da pequena criança, quente contra o frio eterno. Perto deles estava Rioghan, tão lúgubre como a própria morte.
Um chocalhar de ossos precedeu o aparecimento de entre as árvores do cavalo esquelético e do monge cavaleiro. Eichri olhou na minha direcção e ele e a sua montada
sorriram. Nas extremidades da força ali reunida estavam os homens da povoação de Whistling Tor, Tomas entre eles. Havia armaduras suficientes para metade deles,
mas as peças tinham sido partilhadas: um homem tinha apenas um elmo, outro tinha protecções para os pulsos de pares diferentes, um terceiro e mais afortunado tinha
uma couraça gasta. Alguns traziam escudos redondos, lascados e gastos, mas recém-pintados com o emblema do Sol dourado num campo azul. Recordei o espelho do podia-ter-sido
e a imagem de Anluan a cavalgar com um grupo de jovens guerreiros capazes, sob um estandarte com as mesmas cores. Os homens da povoação pareciam nervosos. Cresceram
a ouvir histórias sobre a hoste, histórias negras de assassínio e desordem violenta. Para chegarem àquele ponto fora necessário um notável grau de liderança, da
parte de Anluan e de Rioghan, e uma grande dose de coragem por parte daquela gente comum.
- Está na hora - anunciou Anluan, voltando-se para incluir toda a assembleia no seu olhar. - Conhecem o plano. Respeitem-no e varreremos estes invasores da nossa
terra para o esquecimento. Homens da povoação, sabem o que disto depende. Lutamos pela nossa terra, pelas nossas famílias, pelo futuro. Homens da hoste, para vós
a parada é ainda mais alta. Ganhem hoje e ganharão tempo para procurarmos um feitiço de reversão. Ganhem-me esta batalha e juro-vos que o encontrarei, nem que leve
todos os anos da minha vida.
- Homens, sabem o que têm de fazer. O primeiro grupo vai para lá da fronteira do monte, para além da linha onde tenho a certeza de ser capaz de vos controlar, aconteça
o que acontecer. Se o frenesi tocar as vossas mentes, não poderão cantar para o afastar, não até ao momento do ataque. Uma vez fora das muralhas da fortaleza, devemos
manter um silêncio absoluto ou o inimigo será alertado. Estarei lá para vos liderar. Se o frenesi vier, lembrem-se de que a minha voz é a única a que devem obedecer.
Se a loucura ameaçar desviar-vos do caminho, agarrem-se a isso. Vocês são os meus homens, são os homens do monte. Marchamos para a vitória. Quando todos os soldados
normandos partirem do nosso território, quando Whistling Tor for novamente nosso, marcharemos aqui para cima, com os nossos corações ao alto e a cantar de tal maneira
que até as muralhas desta fortaleza estremecerão.
A vontade de dar a este discurso o aplauso estrondoso que ele merecia espelhava-se em todos os rostos. O facto de ninguém proferir uma
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palavra era testemunho da transformação daquele grupo extraordinário de aldeões assustados e espectros insubordinados numa força de combate disciplinada. Anluan
voltou a cabeça para mim. Sorriu, e naquele sorriso vi o amor que ele me tinha, e o medo. Encontrei um sorriso para lhe devolver e esperei que estivesse cheio de
confiança.
- Avancem, homens! - ordenou Anluan, e eles afastaram-se, pela falha da muralha e para baixo, para a floresta escura. Os homens do monte; jovens e idosos, mortos
e vivos, monge, conselheiro, guerreiro, artífice, estalajadeiro, fazendeiro. A esperança brilhava nos seus olhos, o orgulho mantinha os seus corpos direitos e firmes.
Por cima das árvores, o céu deixava adivinhar um leve vestígio da aurora.
- Bem - disse Orna, quando os últimos da fila desapareceram de vista. Passou uma mão pelo rosto. - É melhor não ficares aí de pés descalços muito mais tempo, Caitrin,
já para não falar dessa camisa que mostra metade das tuas pernas. Vejamos se conseguimos encontrar-te um vestido em qualquer parte. Entras? - Esta última questão
foi dirigida à mulher sábia.
- Esperaremos ao ar livre. - A mulher com a tatuagem da Lua juntaram-se as outras que vira na noite do conselho de Anluan, a dona de casa de aldeia e a criatura
elegante de jóias reluzentes e feições de beleza esmorecida. - Tem cautela, Caitrin - acrescentou a mulher sábia. - Se havia veneno naquele jarro, também tu eras
uma pretensa vítima. Se tiveres razão e a rapariga do véu o tiver feito, é mais esperta e mais malévola do que qualquer um de nós acreditava. Pensámos que ela fosse
inofensiva. A devoção que ela dedicava aos chefes tribais de Whistling Tor parecia ser inconsequente. Poderá ter a capacidade de fazer os outros ver do modo que
ela deseja. Ela ainda está aqui. Ainda te vigia. Tem cuidado.
Anuí e uma onda de apreensão percorreu o meu corpo. Parecia ser verdade. Poderia explicar a cegueira de todos os homens do círculo íntimo de Anluan em relação ao
comportamento estranho de Muirne. Pensavam que ela era bem-intencionada e inofensiva. Muitas vezes, pareciam nem reparar nela. E talvez fosse exactamente isso que
ela queria. Era extremamente conveniente ser tão invisível que quando algo de mau acontecia ninguém pensava na possibilidade de ela poder ser a responsável.
Algum tempo depois, envergando um vestido, um xaile e chinelos emprestados, sentei-me à mesa da cozinha com um grupo de mulheres da povoação. Gearróg estava de guarda
junto à porta exterior. Na porta interior estavam posicionados dois rapazes da aldeia que pareciam não ter mais de treze anos de idade, cada um com um pau afiado.
- Tenho uma boa faca de trinchar aqui à mão - murmurou Orna, seguindo o meu olhar dúbio. - E há três atacadores de fogo no lume,
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todos eles incandescentes. Não ficaremos aqui sentadas se os normandos quiserem tomar este lugar, Caitrin. Whistling Tor é a nossa casa. Ninguém nos vai expulsar
daqui.
Esperei que não chegasse a isso, uma vez que o inimigo só chegaria à fortaleza se a estratégia arrojada de Rioghan fracassasse e o exército de Anluan fosse derrotado.
Ou se esse exército fosse assolado por uma fúria assassina e se voltasse contra os seus.
- Gostaria que pudéssemos ver o que se passa - confessei, embrulhando-me no xaile e tentando não imaginar o pior. Eles já deviam estar junto ao sopé do monte por
aquela altura, dividindo-se nos seus dois grupos, um para avançar para além da fronteira, outro para esperar a coberto das árvores. O que não perguntara, porque
não queria pensar nisso, fora onde Anluan pretendia estar quando o primeiro grupo se manifestasse no meio do acampamento normando. Para os manter fortes para além
da fronteira, teria de estar perto deles, teria de os liderar. Eles eram de natureza espectral e não podiam ser mortos. Anluan era um homem vivo.
- Está frio lá fora - comentou Orna, falando para quebrar o silêncio nervoso.
Apercebi-me de que deixara a capa de Gearróg estendida sobre um banco corrido quando mudara de roupa. Peguei nela, pretendendo levar-lha, e percebi que havia algo
no bolso: o pequeno livro que eu retirara do esconderijo secreto de Muirne. Tirei-o para fora.
- O que é isso? - perguntou Orna. E, quando eu não lhe respondi: - Caitrin?
Estava muito quieta, com o livro nas mãos, a capa da frente ligeiramente aberta para revelar, escrita numa perfeita caligrafia minúscula, o nome Aislinn.
- Usou uma pena de corvo - murmurei distraída, voltando a primeira página com dedos pouco firmes. - Orna, tenho de ler este livro. Levas a capa a Gearróg, por favor?
Coloquei o livro em cima da mesa, ao lado do livro de anotações de Irial. Percebi porque é que o livro mais pequeno fora escondido; não só o nome revelava a identidade
de Muirne, mas também pude ver com uma rápida vista de olhos que as páginas continham anotações pessoais, fórmulas, diagramas, sugerindo que este devia ser o mesmo
livro de anotações no qual escrevinhara a primeira vez que a vi no espelho de obsidiana. Um diário de crueldade, de feitiçaria e de uma ambição desmesurada que correu
terrivelmente mal. Mas porque guardara ela o livro de Irial juntamente com aquele? Era apenas um de muitos. Poderia querer impedir-me de encontrar o antídoto, mas
aquele livro estivera ausente
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desde que eu começara a ler os registos de Irial: muito antes de os ciúmes dela a levarem a cometer o acto malévolo daquele dia. Haveria mais evidências das suas
maldades no livro de Irial? Folheei as páginas, procurando algo de invulgar, e vislumbrei um título: Para a preparação da tinta de sangue-do-coração. Os componentes
e o método estavam listados abaixo. Não havia um fiapo de entusiasmo em mim, apenas a desilusão perante mais uma página sem nada que eu pudesse usar, nenhuma chave,
nenhuma pista.
Um momento. Havia uma diferença essencial, algo que fazia com que aquele volume se distinguisse dos restantes livros de anotações de Irial. Folheei-o de novo até
ao princípio; verifiquei o meio outra vez; examinei as últimas páginas. Não havia notas à margem naquele livro, Nenhum registo do longo tempo de desgosto de Irial.
Na primeira página, em irlandês e não em latim, o pai de Anluan escrevera o seguinte:
Adeus, meu raio de Sol e meu luar, minha doce rosa, meu amor. Passaram-se seiscentos dias desde que te perdi e não verterei mais lágrimas, embora o meu coração fique
de luto até que nos encontremos de novo no lugar para lá da morte. O nosso filho vive e cresce. Enquanto eu estive afundado num desgosto no qual mal me reconhecia,
Magnus nutriu-o com tanta sabedoria e ternura que poderia ser o seu segundo pai. No nosso menino vejo todos os teus bons dons, Emer: coragem, inteligência, constância,
esperança. Hoje, no jardim, Anluan caiu e magoou o braço. Não foi para mim que ele correu para o reconfortar, mas para Magnus. Tenho de começar de novo. Tenho de
fechar os meus ouvidos à voz do desgosto e do desespero se quero ajudar o nosso filho a crescer e a transformar-se num homem. Embora não escreva mais sobre a minha
tristeza, nunca penses que me esqueci de ti, bem-amada. Todos os dias, vives nele.
Mãe de Deus. Que crueldade, que crueldade desnecessária esconder aquele livro para que Anluan nunca soubesse o quanto o pai o amava, Êscondê-lo de Magnus, que carregava
o peso da culpa por não ter reconhecido a profundidade do desespero do seu amigo. Aqueles não eram os pensamentos de um homem que estava prestes a matar-se de desgosto.
Na minha mente, vi Muirne com o pesaroso Irial, o homem cujo jardim ela assombrava, o homem cuja sala de trabalho ela tomara como dela, como lugar secreto. Vi-a
a observá-lo com Emer, vi a expressão do seu rosto, gémea da que me dedicava por vezes a mim. Imaginei-a a atear o fogo que tirou a vida da sua rival. Não tinha
qualquer dificuldade em acreditar que ela envenenara o seu amado Irial apenas porque ele amava demasiado a mulher e o filho e não sobrara nada para ela. Acreditara
que a morte de Emer o faria dela. Enganara-se. Por isso, matara-o também. E, naquele dia, quase matara o filho dele.
Com mãos trémulas, abri o pequeno livro de Aislinn. Ela estava ali em casa, algures. Voltaria, e quando o fizesse eu queria estar preparada
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para ela. O que fazer - lê-lo do princípio ao fim, o que levaria algum tempo uma vez que estava escrito em latim bem como em irlandês, ou passar as páginas rapidamente?
Comecei a voltar as páginas, olhando para números e figuras que pouco significado tinham para mim, um pentagrama dentro de um círculo perfeito, o último desenhado
sob a forma de uma serpente a engolir a própria cauda. Uma lista de ervas invulgares, com notas precisas sobre a forma como cada uma devia ser colhida. Visco, a
ser cortado apenas no sexto dia do ciclo lunar, e com uma foice de pedra; a colheita não podia tocar a terra e teria de ser levada com grande cuidado para o local
de preparação. Preparação para quê? Aqui e além, observações que não estavam relacionadas com o trabalho dela: Nechtan é um paradigma de saber e coragem. Nunca poderei
esperar igualá-lo. E algumas páginas depois: Ele olha para mim quando acredita que não o vejo. Ele confia-me os seus segredos mais profundos. Ele ama-me. Estou cheia
de felicidade.
Fiquei com a pele arrepiada e, no entanto, senti pena dela, recordando Nechtan no espelho de obsidiana, e a facilidade com que ele punha de lado a sua luxúria pela
rapariga para salvaguardar os interesses do trabalho que o esperava. Amor? Nunca amor. Uma tal ideia surgira apenas na mente de Aislinn.
Faltam apenas três dias para a noite de Todos os Santos. O meu vestido está quase pronto;farei a grinalda no último dia, para que estejafresca. Mal posso acreditar
que ele me tenha confiado a mais vital de todas as tarefas. Quando ele tiver traçado o padrão secreto, eu ficarei no centro. Enquanto ele disser as palavras de invocação,
os seres surgirão, atraídos pela minha essência. O exército iráformar-se em meu redor, entre as pontas do pentagrama. Conheço as palavras do encantamento; ele ensaia-as
interminavelmente, murmurando-as para si próprio enquanto cuida das tarefas de preparação. Pedi-lhe que me descrevesse exactamente como funciona, mas ele não me
diz. Saber mais é estar em risco, Aislinn, disse ele, e não te colocarei em risco, minha querida. Ele diz-me que serei como uma sacerdotisa, como uma rainha.
E noutra página:
Ele ainda não me tocou. Mas olha-me; oh, como me olha. Nunca disse nada sobre o depois, no entanto vejo uma promessa nos seus olhos. Quando isto terminar e Mella
partir, ficaremos juntos.
E depois, na base de uma página desalinhada na qual várias palavras sem sentido - erappa, sinigiku, egruser - haviam sido rabiscadas, riscadas, combinadas de diversas
maneiras como se ela estivesse a solucionar um enigma, escreveu:
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Já o descobri, por fim. O segredo. A chave. Já a tenho. É tão simples, demasiado simples para uma mente como a dele que procura sempre níveis mais elevados, desafios
para além dos limites de homens comuns. Ele zomba da necessidade de podermos um dia precisar disto, e talvez tenha razão. Depois do grande trabalho estar concluído,
contar-Lhe-ei que descobri o que ele não conseguiu. Mal posso esperar para ver a sua expressão de orgulho.
- O que se passa? - Orna olhava fixamente para mim. - O que estás a ler?
- Sinigilac oigel - balbuciei voltando as páginas apressadamente. - hegio caliginis... um exército das trevas... - Levantei-me de repente, agarrando o livro de Aislinn
na minha mão. As outras mulheres assustaram-se. - Tenho de ir para a biblioteca - disse. - Agora. Preciso do espelho de obsidiana. Gearróg!
Ele entrou a correr, depois parou abruptamente, com a mão a meio caminho do punho da espada.
- Vamos para a biblioteca. Traz uma luz. - Os meus olhos pousaram nos dois rapazes que guardavam a porta interior, os quais pareciam meio adormecidos. Teriam dificuldade
em defender algo maior do que um cão vadio.
- Eu vou. - Orna tirava uma candeia de um gancho, pegando no seu xaile quente. Sentir-me-ia bem mais segura com ela e com a sua enorme faca de trinchar ao pé de
mim do que com aqueles dois meninos que tentavam ser homens. - Sionnach, fica de olho nesta porta. As outras, preparai-vos para pegar num desses atiçadores e usá-los,
se for preciso. Vai à frente, Gearróg.
Corremos os três, pelo interior da casa até à porta da biblioteca, que já não estava guardada desde que Broc deixara o seu posto para se juntar à marcha que descera
o monte. Tremendo da cabeça aos pés, dirigi-me para a secretária onde passara longas horas com a pena e as tintas repondo a ordem no caos da colecção de Anluan.
Inspirei profundamente, in-clinei-me e abri o baú que continha os escritos pessoais de Nechtan. Retirei a trouxa, coloquei-a em cima da mesa e destapei o espelho
de obsidiana. Gearróg colocara-se junto à porta de acesso ao jardim de Irial, alerta para o perigo. Depois de colocar a candeia por forma a iluminar-me, Orna postou-se
do lado de dentro da outra porta. Apesar da sua palidez, havia nela uma expressão severa e capaz, e eu soube que tinha uma grande dívida de coragem para com ela.
Abri o livro de anotações de Aislinn na página onde ela começara a descrever o ritual: o padrão secreto, a invocação, o papel dela como uma espécie de fio condutor
para os espíritos. Havia uma probabilidade, remota mas real, de que o que funcionara com os escritos de Nechtan
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também pudesse funcionar com os da sua devotada assistente. Pelo menos, tinha de tentar. Um pavor arrepiante estava a apoderar-se de mim, um pressentimento negro.
Esperava estar enganada. Parecia que Aislinn acreditara que o seu latim baralhado era um encantamento de poder. Um feitiço de reversão: deveria ter acreditado nisso,
senão para quê reverter as palavras de um encantamento - guerreiros das trevas, avançai - a menos que fosse para mandar esses demónios de regresso ao local de onde
vieram?
Talvez Aislinn se tivesse enganado. Parecia demasiado simples, algo que Nechtan teria experimentado depois de descobrir que não conseguia fazer a hoste obedecer-lhe.
Mesmo assim, o meu coração acelerou numa antecipação amedrontada. Se o que ela escrevera no livro fosse realmente o feitiço de reversão, Anluan possuía os meios
para banir a hoste. Poderia desfazer a maldição da família e acabar com cem anos de sofrimento. Tinha de saber mais, tinha de ver o ritual para saber como é que
fora feito e o que correra mal. Tinha de ser mais complicado do que dizer ao contrário algumas palavras em latim.
- Mostra-me - murmurei, o meu olhar movendo-se do espelho para o livro e novamente para o espelho. - Mostra-me, depressa. - Quando Muirne descobrisse que o livro
dela desaparecera, viria atrás de mim para o recuperar. Não abdicaria de ânimo leve do seu tesouro escondido, a ferramenta de imenso poder que ela guardara para
si durante todos aqueles anos. Tinha de descobrir como usar o feitiço antes de Muirne me encontrar.
A caligrafia perfeita de Aislinn olhava para mim, as suas filas espaçadas com exactidão, as suas letras redondas e cuidadas, nem um traço fora do lugar. Serei como
uma sacerdotisa, como uma rainha. O rosto do espelho de obsidiana brilhou à luz da candeia. Através da porta aberta para o jardim de Irial pensei ouvir um clamor
lá em baixo no monte, gritos, berros, o choque de armas, o relinchar histérico dos cavalos.
- Começou - afirmou Gearróg. - Aguentem firme, rapazes.
- Que Deus os proteja - murmurou Orna. - Encontraste o que precisavas, Caitrin?
Não respondi, pois a superfície do espelho começara a rodopiar, a mudar, a escurecer e a iluminar-se, a abrir-se e, ali, diante de mim, estava o pátio no interior
da muralha da fortaleza, não com a vegetação demasiado crescida como agora, mas limpo e aberto. A luz fria da Lua cheia banhava o espaço central, mas debaixo das
árvores havia uma profunda escuridão. Na base dos degraus estava Nechtan, vestido de preto. A luz da braseira transformava as suas feições ossudas numa máscara de
fogo e sombra.
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- As ervas, Aislinn - diz ele, e ela passa-lhe a sua pequena colheita, folhas secas reduzidas a pó, uma mistura destinada à transição entre mundos, para abrir portais.
Esta noite, de todas as noites, tais portas podem abrir-se de par em par. Na noite de Todos os Santos, medita ela, ele seria tolo se não esperasse o inesperado.
Há um formigueiro no corpo dela, uma antecipação cortante que a deixa inquieta enquanto espera, consciente que, se alguma vez foi bela, era agora. O vestido é do
linho mais branco, mais refinado do que algum que ela tenha usado antes, as bainhas bordadas com vinhas e flores delicadas. Nechtan pediu-lhe que usasse o cabelo
solto, e este envolve-a como seda pálida. Aislinn consegue sentir cada fio contra a sua pele. Consegue sentir o peso do olhar de Nechtan. Os olhos dele devoram-na.
Mais tarde, prometem àqueles olhos. Mais tarde.
Ele marcou o pentagrama com areia, as suas pontas a tocarem o círculo que o encerra, um círculo desenhado com a forma de uma serpente, com a cauda entre as mandíbulas.
Agora ele deita as ervas para a braseira. O fumo fragrante difunde-se pelo local do ritual. Há uma grande magia à solta esta noite, mas Nechtan mantê-la-á em segurança.
Ele ama-a. Quando isto acabar, ela será sua mulher, Mella não o merece. Não é adequada para ele. Mella não compreende o seu trabalho, a mente dela é demasiado limitada
para o abarcar. Mella nunca foi bonita.
A Lua esconde-se atrás de uma nuvem; um sopro de vento atravessa o pátio. A braseira incandesce de forma estranha, com as faíscas a dançarem para cima.
- Chegou a hora, Aislinn - afirma Nechtan, a sua voz profunda e suave. Ele dirige-se a ela, uma figura imponente no seu manto ritual; estende uma mão. Aislinn pega-lhe.
Ah, o toque dele! Sente-o dentro de si; as partes secretas do corpo dela estremecem e pulsam. Mais tarde... mais tarde. Leva-a para o centro. Ensaiaram-no até ficar
perfeito em cada pormenor; nem um grão de areia se agita enquanto os seus pés cuidadosos lhe passam por cima. Agora estão no centro do padrão. Nechtan coloca-a de
determinada maneira, com os braços caídos ao longo do corpo, o rosto voltado para o local onde ele estará quando fizer a invocação, no segundo degrau de acesso à
entrada principal. Ele estará do lado de fora do círculo.
A casa está mergulhada em trevas. Se Mella sabe o que se passa aqui, afastou-se. Talvez esteja a colocar compressas frias no rosto ferido ou a cuidar do seu fedelho
chorão. É mais provável que esteja deitada. Dormirá sozinha. Desta noite em diante, dormirá sempre sozinha.
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Nechtan inclina-se para beijar Aislinn na testa, um toque casto. Atravessa novamente o círculo para a base dos degraus. Ela vê-o inspirar profundamente várias vezes,
preparando-se, invocando a sua força.
Aislinn conhece as regras às quais terá de obedecer esta noite. Mantém-te calada, não fales. Mantém-te tão imóvel como uma pedra. Sintas o que sentires, vejas o
que vires, permanece no centro. Não tenhas medo. Eu controlo-os, não te podem fazer mal. Ela consegue fazê-lo. Tem praticado manter-se quieta durante muito mais
tempo do que o que será necessário esta noite; aprendeu a vencer as tonturas. Não precisou de praticar o estar calada. É com frequência que ela e Nechtan trabalham
da aurora ao ocaso quase sem dizer uma palavra, satisfeitos com o seu companheirismo silencioso. Que ele a tenha escolhido a ela, que ela seja tão honrada... Faz
o seu coração transbordar. É um milagre, uma maravilha, uma bênção.
Ela pensa no seu segredo, no encantamento que descobriu sozinha, sem necessidade da orientação de Nechtan. Mal pode esperar para o partilhar com ele. Assim que terminar,
contar-lhe-á o estudo que tem estado a fazer no seu tempo livre, as coisas que aprendeu, oh, quantas coisas, o conhecimento secreto que adquiriu. Talvez quando,
por fim, se deitarem juntos, ela o satisfizer e ele se deitar para trás para descansar, ela diga, casualmente, Adivinha o que eu descobri!
O vento caprichoso agita as folhas mortas por cima das lajes. A Lua emerge, um rosto pálido e impávido que os olha de cima. Nechtan começa a movimentar-se solenemente
em torno do círculo, olhando para norte.
- Pelo poder duradouro da terra, chamo-vos! - Caminha para leste. - Pelo poder invisível do ar, chamo-vos! - Move-se no sentido do Sol, uma vez que se trata de um
ritual de manifestação. - Pelo poder transformador do fogo, chamo-vos! - E para o oeste: - Pelo poder fluido da água, chamo-vos! - Já contornou o círculo e agora
começa a deslocar-se pelas linhas do pentagrama, certificando-se de que os seus pés não perturbam o padrão.
Quando a figura fica completa, coloca-se junto à ponta norte, a que está mais próxima dos degraus. Volta-se para encarar o centro.
- Pelo poder controlador do espírito, que não conhece nem princípio nem fim, invoco-vos! Chamo-vos das sombras! Da escuridão sem rumo vos conjuro!
A voz dele é profunda e poderosa. Ressoa pelo pátio iluminado pelo luar, fazendo as árvores tremer. As palavras antigas puxam e empurram, lisonjeiam e chamam, seduzem
e ordenam. Quem poderia resistir a um tal chamamento?
Um tremor percorre o corpo de Aislinn, uma premonição da mudança e, pela primeira vez, ela sente-se ansiosa. E se...? Não; olha para
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Nechtan, os olhos negros dele a brilharem de confiança, a sua pose triunfal. Ele é um mestre na sua arte e não irá fracassar.
Agora vem o encantamento propriamente dito, as palavras do poder em latim. Uma, duas, três vezes ele profere o feitiço:
- Legio caliginis apparel Appare mihi statim! Ressurge! Ressurge! Tudo é silêncio. Enquanto espera, imóvel como uma estátua de mármore pálido, Aislinn mal se atreve
a respirar.
Em torno do círculo, nos espaços entre as cinco pontas da estrela, começam a elevar-se fiapos de vapor. Enquanto observa, com o coração a bater descompassado, os
fios e fiapos transformam-se em formas, figuras de homens nas vestes de tempos antigos, com armas nas mãos e elmos nas cabeças. Há um guerreiro gigantesco, com uma
maça no punho; além um jovem com a camisa ensanguentada, agarrando uma lança, com os olhos dardejando para a frente e para trás, como se estivesse surpreendido por
se encontrar aqui. Aqui um homem de pele escura com um arco e uma aljava, ali um fulano magro com um cinto cheio de facas... Estão apenas meio formados, estes guerreiros
espíritos, são ainda mais bruma do que substância, as suas figuras ondulam como se estivessem inclinadas a desaparecer de novo para o reino de sombras de onde foram
invocadas. Ainda não estão suficientemente fortes...
- Ressurge! - chama novamente Nechtan, num grande grito. As pernas de Aislinn estão estranhas, dormentes e repentinamente fracas, como se fosse ter um colapso. Não
pode desmaiar, não pode desapontá-lo. Mantém-te tão imóvel como uma pedra. Ela inspira profundamente, lutando contra a fraqueza. Mas passa-se algo de errado, não
consegue respirar convenientemente. Permanece no centro. Ela arfa, luta, tenta inspirar o ar, mas os pulmões dela não estão a funcionar como deviam. Os membros dela
parecem feitos de chumbo.
As figuras são agora mais claras, manifestando-se no que parecem quase ser formas carnais; vêem-se cores, o azul de um escudo antigo, o vermelho de uma camisa ensanguentada,
o cabelo loiro de um homem a brilhar ao luar. Mantém-te imóvel... no centro... Aislinn sente a cabeça estranha. Inspira superficialmente. Não pode desmaiar. Não
irá desiludi-lo. Mais formas espectrais aparecem, uma dúzia, vinte, cinquenta. Os espaços entre as pontas estão cheios delas, apinhados, ombro contra ombro, os seus
olhos fixos em Nechtan onde ele se ergue nos degraus, o seu rosto incandescente de triunfo.
Está feito. Ele tem um exército. Ondas de náusea varrem o corpo de Aislinn, mas agora não parece conseguir mexer-se de todo. Tem a cabeça a andar à roda, sente-se
como se tivesse uma banda de ferro em torno do peito. Não consigo respirar, quer ela dizer, mas a voz não sai. Não
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é apenas a falta de ar, mas outra coisa. Uma quietude pesada arrasta-se pelo seu corpo acima, não consegue mexer sequer um dedo. Tenta falar de novo, mas a sua língua
está imóvel, o seu maxilar inflexível, a sua garganta rígida. Ela tenta dizer a Nechtan, com os olhos, que algo correu mal. Ajuda-me. Nechtan, ajuda-me.
Por fim os olhos de Nechtan encontram os dela. Graças a Deus, agora ele irá desfazer o mau feitiço que a assolou e salvá-la. Socorro. Socorro. Ele olha para ela
e o rosto dele mostra apenas o triunfo da experiência, do grande plano executado sem falhas, da ferramenta da sua futura grandeza entregue nas suas mãos. Num momento
de repentina intuição gelada, Aislinn compreende. A tua essência trá-los-á, disse-lhe ele. A essência dela... A vida dela... É esse o preço do poder que ele almeja.
O vestido branco, a grinalda, a sua relutância em tocar nela... Uma vítima sacrificial, jovem, bonita e pura. Com o corpo imóvel como que aprisionado em pedra, a
respiração laboriosa agitando o seu peito, Aislinn olha nos olhos de Nechtan e vê a amarga verdade. Ele sempre soube que ela morreria e não se importou. Usou-a,
e agora irá livrar-se dela sem pensar duas vezes.
Mas espera, o encantamento, o feitiço de reversão... Ela tem-lo, ela sabe-o, só precisa de dizer as palavras e tudo pode ser desfeito... Através do nevoeiro que
se abate rapidamente sobre a sua mente, Aislinn luta para encontrar o que precisa, para sussurrar, num sopro incerto, as palavras que a podem salvar:... sinigil...mitat...
Quase o consegue... sigilin... oi-leg... Os malvados guerreiros estão a ficar cada vez mais vivos, mais pesados, mais sólidos: um exército formidável. Espreguiçam-se,
olham para os próprios membros, olham fixamente uns para os outros, perplexos. Erap... sinigla... egur... egrus... É demasiado tarde. O encantamento escapou-se-lhe.
Fixando os seus olhos moribundos no homem que amou, no homem que reverenciou com cada fibra do seu ser, Aislinn fala na sua mente as palavras que os seus lábios
não conseguem formar: Amaldiçoo-te! Esperam-te cem anos de má fortuna, cem anos de sofrimento, cem anos de fracassos! Pensas livrar-te de mim como de lixo numa estrumeira,
mas não será assim. As-sombrar-te-ei. Serei a sombra dos teus passos e de todos os que te são queridos, atormentarei a tua família de geração em geração. Que o exército
que tanto desejaste seja um fardo e uma miséria para ti e para os teus! Com o meu último sopro, amal-diçoo-te!
A medida que tudo se turva e se desvanece em seu redor, enquanto os últimos fiapos de clareza abandonam a sua mente, Aislinn vê a expressão de Nechtan alterar-se,
o seu triunfo transcendente maculado pelo primeiro traço de dúvida. Algo... Algo está errado...
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Um grito, um estrondo, e voltei a mim. Forcei-me a afastar o olhar do espelho, levantei a cabeça e olhei-a directamente nos olhos. Estava de frente para mim, do
outro lado da mesa, com o véu ligeiramente torto e o vestido um pouco menos que imaculado.
- Dá-me o meu livro. - A voz dela era precisa e clara; cada palavra sua alertava-me.
Gearróg. Orna. Onde estariam eles? O que acontecera enquanto estivera absorvida pela visão? O aposento estava claro com a luz da manhã. Quanto tempo estivera ali
sentada, a olhar fixamente para o espelho, enquanto lá em baixo no sopé do monte uma batalha grassava?
Um gemido perto da porta. Pelo canto do olho, vi Gearróg encolhido no chão, com os braços apertados firmemente sobre a cabeça. Tal como da última vez, tal como no
dia em que Anluan deixara o monte, a hoste enlouquecera e eu quase morrera. Olhei para o outro lado, lá estava Orna, estendida e imóvel em cima das lajes, perto
da porta interior, com um braço esticado e os dedos inertes. A minha mente encheu-se de terror, por nós os três e pelo exército de Anluan que, naquele momento, ainda
estava para lá da fronteira de segurança. Levantei-me, agarrando o pequeno livro contra o peito.
- Dá-me o meu livro.
Quando não respondi, Muirne voltou-se para o prostrado Gearróg e levantou uma mão, apontando. O corpo dele convulsionou-se e um tremor febril assolou-o.
- Mataste-os - disse ela. A voz dela estava tão alterada que poderia ter sido a de outra pessoa, pois o tom era o de uma feiticeira que pronuncia um encantamento
malévolo. - A tua mulher, os teus filhos, mataste-os num acesso de raiva ciumenta, partiram todos, afogados, o teu menino, o teu bebé, partiram todos debaixo de
água...
- Nãooo! - gemeu Gearróg. - Mentira, é mentira!
- Foste tu. - Muirne estava calma, calma e fria. - Porque pensas que aqui estás com os outros? A mácula do que fizeste ficará para sempre. Nunca...
- Pára com isso! - Encontrei coragem. - Deixa-o em paz! - Um momento depois, o verdadeiro significado do que acabara de testemunhar desceu sobre mim e deixou-me
muda de choque por um instante. - És tu - arfei. - Tudo, a voz, o frenesi... Usaste o que ele te ensinou e depois... Aislinn, isto é verdadeiramente malévolo!
- Dá-me o meu livro ou vergarei a hoste como verguei este teu guarda. Destruirei as suas mentes como se fossem galhos! Sou capaz de
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o fazer! Dá-me o meu livro ou certificar-me-ei de que o teu precioso Anluan nunca mais volta a subir este monte. Trá-lo-ão para casa numa tábua, tão morto como aquela
mulher que ali está no chão.
O meu coração ficou frio. Orna morta, apenas pela ofensa de ter feito frente àquele espírito desvirtuado?
- Tu amas Anluan - afirmei. - Porque quererias matá-lo? Porque matarias Irial? Não te chegam cem anos de vingança, Aislinn?
Os olhos dela estreitaram-se.
- Dá-me o que é meu, Caitrin - ripostou ela. - És tola se duvidas de mim. Posso semear o caos entre a hoste. Já o fiz anteriormente. Uma leitora inteligente como
tu, já deve saber disso.
Embora ainda estivesse imóvel, a minha mente começara a trabalhar com uma enorme rapidez. Com Gearróg encolhido e indefeso no chão, porque é que ela não me arrancava
o livro das mãos? Empata-a, disse-me a voz do senso comum. Fá-la falar. Tinha de a distrair, de retardar o momento no qual ela lançaria o frenesi sobre a hoste.
Anluan tinha de vencer a batalha. Não poderia acabar, mais uma vez, em desordem violenta, em caos, em retirada, em fracasso. Quando Anluan voltasse a pôr os pés
dentro da fronteira do Tor, ela perderia a capacidade de semear um tal caos. Nos escritos de Nechtan e nos de Conan, esse fora sempre o padrão.
- Como é que o fazes? - perguntei, com a voz a tremer. - O... O frenesi, a voz? Como consegues controlar tantos ao mesmo tempo? Foste tu, cada vez que a hoste desobedeceu
a Nechtan, cada vez que correram desenfreados sob a liderança de Conan? Como te tornaste tão poderosa, Aislinn?
Um breve sorriso passou-lhe pelos lábios, um sorriso de superioridade, de autoridade.
- Tenho tido muito tempo para aperfeiçoar a minha arte - respondeu ela, e eu vi que escolhera exactamente a mudança de conversa que a manteria a falar. - Sempre
fui capaz, rápida, inteligente. Ele amava-me por isso. - O sorriso desapareceu. - Não me amou como devia ter amado.
- Mas como consegues falar com todos eles ao mesmo tempo, dizendo a cada um deles algo diferente? Pareces saber exactamente quais as memórias que mais os atormentarão.
Até eu senti o toque das tuas capacidades, e eu sou uma mulher viva. - Escolhi as palavras com cuidado. - Pareces-me ser tão poderosa quanto Nechtan.
Os lábios dela curvaram-se outra vez.
- Mais poderosa. Acredita em mim, Caitrin, há uma forma de entrar em qualquer mente, se soubermos procurá-la. Aqui no Tor todos se vergam à minha vontade.
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Não todos, pensei. Enquanto Anluan estivesse dentro da fronteira e a controlar a hoste, o poder dele era superior. Não restava a menor dúvida na minha mente de que
se ele não tivesse ali estado para me manter em segurança, há muito que ela se teria certificado de que eu era mandada embora, ou pior. Ela ter-me-ia atirado da
torre para morrer como Líoch morrera. Ela ter-me-ia deixado fechada na biblioteca para perecer pelo fogo como a pobre Emer.
- Dá-me o livro, Caitrin. Não me deixes à espera. - A voz dela adquirira um tom ríspido; já não estava calma e controlada. Levantou uma mão e nela estava a faca
de trinchar de Orna.
O meu coração estremeceu de pânico. Recordei as palavras da invocação de Nechtan na minha cabeça: Legio caliginis appare! Appare mihi sta-tim! Ressurge! Estava bastante
segura de que conseguiria lembrar-me delas correctamente. Conhecia a imagem do pentagrama dentro da serpente com a forma de um círculo. Lembrava-me das palavras
que Nechtan usara no início, dirigindo-se aos espíritos dos elementos. Mesmo sem o livro, poderia ser capaz de dar a Anluan o que ele precisava para acabar com aquilo.
Se conseguisse sobreviver tempo suficiente.
- Não compreendo porque tentaste matar Anluan - proferi -, mas poderia ter sido eu a beber o veneno em primeiro lugar. Não teria havido ninguém para encontrar o
livro de anotações de Irial e ler o antídoto se tivesse sido eu a estar ali deitada e incapaz de falar. Não posso devolver-te o livro sem uma promessa de boa-fé.
Afastei-me da mesa que estava entre nós, mas não podia ir longe, pois havia um conjunto de prateleiras por trás, encurralando-me. Havia uma grande probabilidade
de ela me espetar a faca no corpo, mesmo que eu abdicasse do seu tesouro. O que fazer, com Orna ali deitada, talvez morta, talvez a precisar da minha ajuda, e Gearróg
agora assustadoramente silencioso? Do sopé do monte ainda me chegavam sons aos ouvidos, um grande rugido como o de muitas vozes que se elevavam em conjunto num grito
de guerra ou numa canção, o trovejar dos cascos dos cavalos.
- Para o Tor! - gritou alguém.
- Para o Tor! - berraram cem vozes em resposta.
Grito de comando ou grito de retirada, não sabia qual dos dois seria. Sustive o olhar de Aislinn e falei tão calmamente quanto o bater do meu coração permitia. Tinha
de manter a atenção dela desviada da hoste.
- Foste cruelmente injustiçada, vi-o no espelho há pouco. Nechtan não conseguiu reconhecer a tua força, a tua capacidade, o teu potencial. Compreendo porque o castigaste
como fizeste. Mas Irial... era um bom
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homem. Nunca tentou usar a hoste para fazer mal e não acredito que tenha sido indelicado para contigo. Porque é que o mataste? Porque quiseste matar Anluan, que
quer apenas o que é melhor para Whistling Tor? Pensei que o amasses.
- Amor, ódio - afirmou Aislinn, e contornou a mesa na minha direcção, de faca na mão, sustendo os meus olhos com os dela -, pouco os divide. Os herdeiros de Nechtan
são fracos. Não conseguem igualar as suas elevadas aspirações, a sua genialidade, a sua... a sua beleza.
Sagrado São Patrício, depois de tudo, depois da traição indiferente, depois do longo, longo tempo de sofrimento, ela ainda nutria sentimentos de ternura por ele.
Mesmo enquanto trabalhava para perpetrar a maldição que fizera cair sobre ele e sobre os dele, ela gostava dele. Era uma noção de amor tão distorcida que me enojava
e não encontrei nada para dizer.
- Tinha esperança em relação a Irial - disse Aislinn, dando mais um passo na minha direcção. A ponta da faca estava a um braço de distância do meu coração, a tremer.
Aquela calma glacial estava a abandoná-la. - Aprendi muito com ele e ensinei-lhe muito também. Não faças essa cara tão alarmada, Caitrin, sei mais sobre ervas do
que um homem poderia aprender na vida. Mas, no final, Irial desiludiu-me. Amou de forma insensata. Atreveu-se a ser feliz. Irial queria um futuro para Whistling
Tor que não era... admissível. Quanto a Anluan... - Os olhos dela sua-vizaram-se, e com a mesma rapidez transformaram-se em pedra. - Selaste o destino dele quando
lhe abriste a mente à esperança - afirmou ela. - Em Whistling Tor, não pode haver esperança. A maldição proíbe-o. Ele perderá a batalha. Conhecerá o desespero novamente.
Quanto a ti, escriba metediça, tentaste mudar o que fora selado com um último sopro de vida. Porque sobreviverias?
O mais ligeiro dos sons vindo da entrada para o jardim. Olhei para além de Aislinn e vi a criança-fantasma ali parada, com o seu cabelo pálido como lanugem de cardo
à luz do Sol. Os olhos muito abertos de pavor, enquanto olhava de mim para Aislinn e para Gearróg caído no chão. Agarrou na sua pequena trouxa com ambas as mãos.
- Catty? - perguntou com a voz a tremer de incerteza. Aislinn voltou-se para a criança. Vi-a ficar imóvel.
- Onde foste buscar isso? - Havia tanto veneno na sua voz que me encolhi como se tivesse sido agredida. Fora o lenço bordado que a fizera falar assim, um dos seus
troféus, tirado do seu lugar secreto. O passo lógico seguinte surgiu com a rapidez de um relâmpago. - Sua desgraçada insignificante, sua abominação, foste tu que
lhe contaste onde estava! Vais arrepender-te...
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- Toma, fica com o teu livro - disse eu, e atirei-o por cima da cabeça de Aislinn. Caiu com um estrondo no chão, perto do canto de Irial. A criança desapareceu num
instante, lá para fora para o jardim. Enquanto Aislinn se deslocava para recuperar o seu tesouro, um vulto levantou-se por trás dela, todo ele músculos contraídos
e olhos furiosos. A faca caiu no chão com um ruído metálico. Tombaram juntos, a figura dela debatia-se desenfreadamente presa pelos braços fortes de Gearróg. Podiam
ser espectros, mas a luta era violenta e real, o desespero dela contra a força dele.
- Mataste-os! - gritou Aislinn, a voz dela agora esganiçada e rouca. - O teu menino, o teu bebé...
- Tem tento nessa tua língua suja e mentirosa! - Gearróg tinha uma mão na garganta dela, a outra segurando-lhe os braços acima da cabeça, enquanto se ajoelhava por
cima do corpo que se debatia. - Foi um acidente! Um acidente! Não cuspas o teu veneno para dentro dos meus ouvidos!
- Fá-lo parar - arfou Aislinn, e os olhos dela rolaram na minha direcção. - Chama o teu bruto ou farei com que os normandos subam o monte com a mesma facilidade
com que aquele teu parente o fez, aquele com o qual não tiveste a sensatez de partir! Já o fiz antes e posso fazê-lo de novo. Só preciso de dizer uma palavra, estalar
os dedos... Tira as tuas mãos imundas de cima de mim, porco! Não fiques aí parada a olhar, fá-lo, Caitrin!
Talvez estivesse espantada; o véu caíra completamente quando Gearróg a agarrara e o seu cabelo espalhara-se pelo chão da biblioteca, longo, reluzente, da cor do
trigo maduro ao sol. Recordei, com desconforto, o quanto Nechtan desejara tocar-lhe.
- Foi um acidente - disse Gearróg novamente, e tal era a mudança no seu tom de voz que o meu coração parou por um momento. - Não fui eu. Foi um acidente. - O que
fora uma negação furiosa transformou-se num reconhecimento atordoado. Ele agora lembrava-se e sabia que era verdade. Algo mudara, mudara profundamente.
Novas figuras à entrada: a mulher sábia da hoste e atrás dela as outras duas que tinham ido com ela para o jardim esperar. Atravessaram a biblioteca para se ajoelharem
junto a Orna. Enquanto Aislinn se acalmava sob o aperto de Gearróg, mais e mais gente veio colocar-se à nossa volta, observando atentamente, expectantes. Não havia
qualquer dúvida de que o que ouvíamos do sopé do monte era uma canção. Soava pelo ar claro da manhã, jubilante, forte, não bem em uníssono:
- Empunhem as espadas com orgulho, Ergam as cabeças, Irmãos, juntos, Vivemos e morremos!
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Alguém gritou:
- Lorde Anluan! Muitas vozes responderam:
- Lorde Anluan! O Tor!
- Acabou. - Gearróg poderia estar a testemunhar um milagre, tal era o assombro na sua voz. - Eles conseguiram.
E, no mesmo momento, a mulher sábia disse:
- Lamento, não podemos ajudá-la. - Deitou a forma imóvel de Orna no chão e voltou-se para me encarar. - O pescoço dela está partido. Uma morte rápida e corajosa.
Era demasiado para mim. A batalha ganha. Orna assassinada. Talvez, quando os homens subissem o monte de novo, soubéssemos de mais perdas, de mais almas corajosas
que teriam dado as suas vidas para que Anluan pudesse reconquistar o seu território e o deles. O mais estranho de tudo era a quietude de Aislinn no chão, que já
não cuspia insultos, que já não se debatia.
- Esta noite é a noite de Todos os Santos - informou a mulher sábia. - Cem anos depois do amaldiçoado chefe tribal de Whistling Tor nos ter invocado. - Voltou o
seu olhar para mim. - Encontraste o que procuravas?
- Está no livro dela - afirmei, e assim que falei Aislinn moveu-se de repente, torcendo-se como uma enguia, escapando ao aperto de Gearróg, mergulhando para o outro
lado da biblioteca para recuperar o seu diário. Levantou-se, os olhos selvagens, o livro preso nas mãos. O seu cabelo dourado estava despenteado, as suas roupas
desarranjadas. Gearróg precipitou-se na sua direcção. - Não! - pedi eu, obedecendo a um impulso que mal compreendia, e ele parou onde estava.
- Mas... - protestou Gearróg, enquanto Aislinn abria o pequeno livro e começava, com uma força febril, a arrancar cada página de pergaminho da sua costura, a rasgá-la
e a atirá-la para as lajes.
- Deixa-a, Gearróg. - Quase conseguia ouvir os pensamentos dela. Embora o seu rosto fosse uma máscara gelada, era possível lê-los nos seus olhos enquanto ela devastava
o que acarinhara durante cem anos, o adorado repositório do seu conhecimento secreto. Como se atrevem a ignorar-me? Como se atrevem a falar como se eu fosse invisível?
Sou uma feiticeira. Sou poderosa. Destruir-vos-ei. Destruir-vos-ei a todos. E ao mesmo tempo, a voz de uma menina que acabara de se tornar mulher, uma voz de anseio,
de desejo, de promessa: Olha para mim. Vê-me. Ama-me. Pareceu-me que ela fora apanhada na sua própria maldição: amara, odiara e perdera cada um deles à vez.
Minúsculas tiras de pergaminho, aqui duas palavras, ali apenas uma... Estendiam-se à sua volta, espalhadas como folhas depois do primeiro
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vendaval de Outono. Aislinn pegou nas capas vazias do seu livro e rasgou-as em duas partes.
- Ele não o conseguirá fazer agora - ripostou ela com perfeita clareza, com os olhos postos em mim. - Não há como banir a hoste sem o feitiço. Não acabarão com isto
assim tão facilmente. - Voltou-se e saiu para o jardim de Irial, a gente da hoste desviou-se para a deixar passar.
Eu estava apática, a vê-la partir. Gearróg abria e fechava as mãos, como se sentisse necessidade de provocar alguns danos com elas.
- Estás bem? - perguntei-lhe.
- Sim. Não. Vais deixá-la ir-se embora, sem mais nem menos?
- Por agora. - Parecia que Anluan vencera a batalha. Quando regressasse ao monte e soubesse da verdade, poderia mantê-la sob controlo. E era véspera de Todos os
Santos. - Ela está enganada - assegurei.
Olhei para a mulher sábia e ela retribuiu-me o olhar calmamente.
- Pouco importa que ela tenha rasgado o livro. Penso que Anluan será capaz de o fazer sem ele.
Os olhos de Gearróg arregalaram-se.
- Quer dizer...
- Se o que ela escreveu no seu pequeno livro é mesmo o feitiço de reversão, ele pode usá-lo. Acredito que ele vos possa libertar a todos.
Ele deixou-se cair de joelhos, com as mãos por cima do rosto. Ajoelhei-me a seu lado.
- Estarás com eles outra vez, Gearróg - proferi calmamente, colocando a minha mão no seu ombro. - Com os que amas, com os que perdeste. Acredito verdadeiramente
que sim. Agora vem. Tenho outra tarefa para ti.
Não regressámos pela porta interior, mas atravessámos o jardim de Irial numa procissão solene. As mulheres da hoste iam à frente e depois seguia Gearróg com Orna
nos braços. Eu caminhava em último lugar. Não estava sozinha; a criança-fantasma saíra de um canto do jardim, com a trouxa bordada nas mãos, para caminhar a meu
lado, roçando a saia do meu vestido emprestado. De repente, senti o peso do que se passava. Se o feitiço de reversão funcionasse, despedir-nos-íamos de todos eles.
De Cathaír. De Gearróg. Da menina. De Eichri. De Rioghan. Um rol de lágrimas.
Enquanto atravessava a arcada, algo me fez voltar e olhar para trás para o jardim vazio. A luz fria do sol de Outono incidia sobre um monte de folhas caídas, o bebedouro
dos pássaros vazio, um tapete de musgo que suavizava o assento de pedra. Um pássaro solitário cantava nos ramos
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nus do vidoeiro. E junto à adega houve uma mudança. Não vi nada a mexer-se, mas tive a sensação de que alguém se retirara, de que alguém pousara um fardo. Aquele
jardim sempre me parecera um lugar seguro. Apercebi-me de que alguém olhara por ele, alguém que amara tudo o que lá crescia. Demorara-se para além do seu tempo,
sabendo que havia um dever a cumprir, algo a proteger; afinal, acabara por ver o seu filho transformar-se num homem. O décimo elemento do círculo, o que não se via,
a presença invisível e reverenciada por todos. Estivera ali, não pela compulsão de um feitiço perverso, mas por uma escolha altruísta. Fora um bom homem, merecedor
do descanso eterno, mas o amor prendera-o ali até ter a certeza de que o seu filho ficaria a salvo. Fixei os meus olhos num lugar onde um ancinho descansava contra
a parede da adega, com um chapéu pendurado nele que certamente não estava ali quando eu entrara no jardim pela primeira vez, e sussurrei:
- Adeus, Irial. Vai ter com a tua Emer. Eu olharei por ele agora.
CAPÍTULO QUINZE
Foi um dia de triunfo e de perdas, de júbilo e de luto, um dia que daria lugar a cem anos de histórias contadas à lareira. Anluan conduziu de volta o seu exército
de ralé, monte acima até ao pátio com a cabeça bem erguida. Os homens da povoação marchavam atrás dele, carregando os seus escudos com orgulho, segurando as armas
nas mãos mais acostumadas a pegar em forquilhas, em foices e em redes de pesca do que em arcos e lanças. Os homens da hoste vinham a seguir, com uma nova luz nos
seus olhos sombrios. Tinham-se aguentado firmes; permaneceram ao lado dos seus camaradas de armas. Obedeceram às ordens recebidas e respeitaram o plano. Rioghan
parecia atordoado. Talvez não se tivesse atrevido a acreditar que daquela vez a sua estratégia audaciosa traria a vitória e devolveria o seu senhor a casa, são e
salvo.
A enfermaria improvisada encheu-se. O sucesso atordoante não fora conseguido sem baixas e os monges espectrais andavam para a frente e para trás com bacias e ligaduras,
talas e poções, cuidando dos feridos da povoação e da força de combate que Magnus trouxera para o ataque surpresa.
Mal tive tempo de cumprimentar Anluan antes de ele ficar rodeado de uma multidão de gente empolgada. Enquanto eu atravessava o pátio, a história chegou-me em fragmentos.
Em todo o Tor as pessoas falavam, falavam, tentando reconstituir o que se passara. Os chefes tribais de Whiteshore e Silverlake, com as tropas que lhes restavam,
estavam ainda a lidar com os resquícios destroçados do exército normando. Estavam a fazer a limpeza, ouvi alguém dizer. Tendo os cavalos fugido, o inimigo dispersava
a pé, desordenado e aterrorizado. Não havia dúvida de que Stephen de Courcy ouvira as histórias de Whistling Tor antes de decidir sitiar o lugar. Mas isso não era
a mesma coisa que acordar para lutar contra um exército como o de Anluan. Magnus era de opinião de que Lorde Stephen já teria desistido de reclamar o monte como
seu. Mas, para o caso de ele ainda não o ter feito, Brión de Whiteshore e Fergal de Silverlake estavam lá para o lembrar da sabedoria de uma tal escolha.
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O primeiro grupo de Anluan, liderado por Cathaír e constituído unicamente por guerreiros espectrais, entrara no acampamento normando enquanto o inimigo dormia, manifestando-se
depois abruptamente, assustando os cavalos e causando um pandemónio. Embora os normandos fossem muitos mais do que os seus atacantes, não tiveram tempo para assumir
as suas formações de combate ou para restabelecer a ordem necessária para ripostar eficientemente. Enquanto a hoste ainda semeava o caos, as forças substanciais
lideradas por Brión e Fergal montaram o seu ataque surpresa, fazendo o inimigo subir o monte. Ali, a segunda força de Anluan, sob o seu comando pessoal, caíra sobre
os normandos gritando e gemendo, desaparecendo e reaparecendo, recorrendo a artimanhas e surpresas, já para não falar nas tradicionais armas - segundo todos os relatos,
os guerreiros da hoste deram bom uso às suas habilidades de combate. Os homens da povoação representaram o seu papel com coragem. Lutar lado a lado com aqueles que
constituíram os seus piores pesadelos fora um desafio, mas o tempo que passaram no monte preparou-os e estavam orgulhosos dos seus esforços. Ouvi vários homens perguntarem
daí a quanto tempo poderiam descer à povoação para ver o que restava das suas casas e dos seus pertences. Perderam quatro dos seus e um deles era Tomas, o estalajadeiro.
Enterrá-los-íamos lado a lado, a ele e a Orna.
O rosto de Olcan avisou-me de mais uma perda. As suas faces habitualmente vermelhas estavam cinzentas, o seu sorriso bem-intencionado desaparecera. Quatro homens
da hoste carregavam Fianchu em cima de uma porta velha. A respiração do cão arranhava-lhe a garganta. Estava completamente imóvel para além da subida e descida do
seu dorso.
- O que aconteceu? - perguntei, aproximando-me para colocar uma mão no pescoço de Fianchu. - Ainda havia vida nos pequenos olhos, mas pareceu-me que se estavam a
enublar, escurecendo a cada momento.
- Ele salvou a vida de Lorde Anluan - informou um dos carregadores. - Saltou para a frente quando um maldito camisa-de-ferro brandiu a espada, levou com um golpe
pesado nas costas. Para onde o levamos?
A última pergunta fora dirigida a Olcan, que apontou para a casa. Pensara que Olcan e Fianchu vivessem para sempre. Não imaginara que uma morte vulgar pudesse atingir
qualquer um deles - desde sempre que habitavam o Tor, ou assim parecia. Vi Olcan seguir o seu amigo moribundo pela porta da frente e para dentro de casa. O pátio
estava repleto de gente e de falatório; o homem da floresta moveu-se por entre a multidão como se estivesse completamente só. Anluan e Rioghan estavam
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rodeados de pessoas da aldeia. Eichri estava embrenhado numa conversa com outro monge, não um dos seus irmãos espectrais, mas um clérigo de carne e osso que devia
ter acompanhado os feridos monte acima. Hesitei, pensando em Aislinn e nas novidades que teria de contar a Anluan assim que o conseguisse afastar da multidão. Olcan
não podia fazer esta última vigília sem amigos a seu lado.
Magnus apareceu a meu lado. Envergava o seu traje de guerra e as vestes mostravam os sinais de uma luta bem travada, o cabelo escuro de transpiração onde o elmo
de couro o cobrira, os olhos cinzentos calmos.
- Pobre Fianchu - proferiu.
Anuí, contendo as lágrimas. A mulher de um chefe tribal precisava de ser forte em momentos como aquele; se ainda não estava casada com Anluan, estaria em breve.
- Vou para dentro para fazer companhia a Olcan - disse eu. - Mas preciso de falar contigo, e com Anluan, Rioghan e Eichri, o mais depressa possível. É urgente. Mesmo
com Fianchu às portas da morte, temo que este assunto não possa esperar.
Magnus olhou de relance para os degraus, onde o chefe tribal de Whistling Tor enfrentava uma nova espécie de cerco, feito por pessoas que percebiam, por fim, que
ali estava um líder que as podia ajudar, e agora faziam-lhe todas as perguntas que haviam guardado durante anos. A seu lado, Rioghan tentava manter o controlo da
situação, enquanto atrás Cathaír se mantinha de guarda.
- Somos capazes de ter dificuldade em afastá-lo dali - disse ele.
- Diz-lhe que se trata do feitiço de reversão.
- Ah, sim? - As suas sobrancelhas ergueram-se. - Direi, então. A propósito, sê bem-vinda.
- E tu também. Conseguiste feitos notáveis enquanto eu estive fora, mal posso acreditar. Magnus, tenho de te avisar acerca de Muirne. Poderá ser difícil de acreditar,
mas ela tentou envenenar Anluan. Aconteceram certas coisas enquanto a batalha se desenrolava e é isso que tenho de explicar a todos.
Na verdade, a novidade da minha descoberta espalhava-se pela hoste como um fogo desgovernado, pois Gearróg fora incapaz de conter as notícias. Ouvi-os murmurar,
de um para outro, enquanto atravessava o pátio com Magnus a meu lado - ela encontrou-o, talvez esta noite, ela pensa que podemos partir, por fim, por fim - e, na
minha mente, repetia as palavras em latim do encantamento de Nechtan, aquelas das quais tudo dependia. Perguntei-me porque é que Aislinn se arriscara a guardar qualquer
parte da resposta por escrito. Era inteligente, deve ter percebido que até aqueles
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rabiscos baralhados poderiam permitir a um erudito, a alguém que tivesse conhecimentos de latim, descobrir a resposta ao enigma e levantar a maldição que ela lançara
sobre Whistling Tor. Teria sido bem mais seguro guardar o encantamento na sua memória, onde apenas ela o poderia encontrar.
Mas não. Recordei aquele momento aterrorizante da visão no qual ela tentara dizer as palavras que poderiam libertá-la do feitiço de Nechtan. Estava a morrer e incapaz
de se lembrar. A morrer e incapaz de se salvar, mesmo tendo descoberto o remédio sem a ajuda do seu mentor. Quando se encontrou a si própria, depois da morte, aprisionada
pela sua própria maldição e ligada a cada um dos chefes tribais de Whistling Tor, era provável que já não confiasse na sua memória. Por isso, em vez de destruir
o livro que continha as anotações febris do seu eu anterior, aquele que queria acima de tudo impressionar o homem que idolatrava, Muirne escondeu-o, fechou-o num
lugar especial onde pensava que ninguém o procuraria. Mesmo Irial, que usara aquela adega regularmente para o seu trabalho, não devia saber que ele lá estava. Ela
era inteligente, não havia dúvida disso. Esperava que ela não tivesse mais partidas para nos pregar.
Encontrámos Gearróg e incumbimo-lo de passar a mensagem a Anluan o mais depressa possível. Depois Magnus e eu dirigimo-nos para a cozinha onde, como eu esperava,
Fianchu fora deitado no seu cantinho junto ao lume. Tinha um cobertor por cima dele e Olcan estava sentado de pernas cruzadas a seu lado, murmurando. No seu meio-tom
suave, ouvi um catálogo das boas acções de Fianchu, os seus muitos actos de amabilidade, força e lealdade. Instalei-me ao lado do homem da floresta a chorar. Magnus,
sempre pragmático, atarefou-se a pôr a chaleira ao lume e a levantar a mesa, não dizendo nada. As mulheres da aldeia foram-se embora para começar a arrumar as suas
coisas para o regresso a casa, que aconteceria assim que Fergal e Brión mandassem dizer que era seguro abandonar o Tor.
Ficamos como estávamos durante algum tempo. A voz de Olcan era um contraponto regular ao som da respiração laboriosa de Fianchu, cada subida e descida era como uma
montanha cada vez mais difícil de subir e de descer. Cada vez mais vagarosa, cada vez mais sumida...
Os outros entraram um a um. Eichri foi o primeiro. Ajoelhou-se para colocar uma mão reconfortante no ombro de Olcan.
- Lembras-te daquela vez que ele correu com uma alcateia de lobos, sozinho? - perguntou o monge com um ligeiro sorriso. - Eles nem sabiam se haviam de descer ou
de subir. Tens um enorme coração, Fianchu.
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O cão jazia inerte debaixo do seu cobertor; não sabíamos se ele ainda ouvia, embora Olcan continuasse a murmurar-lhe e a fazer-lhe festas no pescoço.
- Cão corajoso. Querido e velho amigo. O melhor cão do mundo.
Descansa bem agora, isso mesmo...
Magnus aproximou-se e deu-me um lenço. Limpei o rosto e assoei o nariz. Esperámos.
Não tivemos de esperar muito. Contra todas as expectativas, Fianchu levantou a cabeça por um momento e Olcan inclinou-se para sussurrar-lhe à orelha, tão suavemente
que eu não consegui ouvir o que ele disse. Fianchu pousou novamente a cabeça, estendendo-se no cobertor, e Olcan debruçou-se por cima dele. Ouviu-se um som rouco
e um ruído áspero enquanto a respiração do cão falhava, depois, silêncio.
- Ele partiu - declarou Eichri. - Que descanse em paz, não merece menos. Era um cão valente, leal e corajoso.
- Lamento imenso, Olcan - consegui dizer. - Ele foi um amigo maravilhoso para todos nós, tão delicado quando precisava de o ser e, no entanto, suficientemente temível
e forte para desempenhar o papel dele, no campo de batalha... Estou certa de que nunca existiu outro como ele. Olcan balbuciou um agradecimento. Colocara-se de modo
que a cabeça de Fianchu lhe repousasse nos joelhos. O cão estava inerte, a ponta da língua saía-lhe da boca. A mão de Olcan continuou a mover-se delicadamente sobre
o pescoço do cão.
Anluan e Rioghan entraram pouco depois disso. Anluan parecia um morto-vivo. O seu rosto era uma máscara de exaustão, os ossos proeminentes, os olhos demasiado brilhantes.
Ainda nem sequer tivera oportunidade de mudar de roupa. Queria abraçá-lo, chorar no seu ombro, dizer-lhe repetidamente o quanto estava orgulhosa, aliviada e feliz.
Mas não era altura para isso. Olhei simplesmente para ele, com todo o amor que tinha em mim.
Anluan colocou a mão contra a sua protecção de couro, por cima do coração, e lançou-me o seu sorriso assimétrico. Os olhos cansados suavizaram-se; nunca vira uma
tal mistura de orgulho e ternura. Depois dirigiu-se a Olcan e Fianchu e agachou-se ao seu lado.
- Eu sei que há coisas das quais temos de falar - declarou Olcan. - Falem, não se importem comigo. Vou só ficar aqui sentado mais um pouco.
- Tu também travaste uma grande luta lá em baixo, Olcan - elogiou Rioghan. - És um perito com o machado.
- Fiz o que pude. Gostaria de o ter salvo.
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- Fianchu exibiu uma coragem exemplar - afirmou Anluan. - Foi um amigo querido de todos nós. Devo-lhe a minha vida. Tenho para com ambos uma dívida de gratidão que
nunca poderá ser paga. Esta luta não era vossa.
- Enfim. - Olcan aceitou a caneca de cerveja que Magnus lhe oferecia. - Talvez não fosse, mas sinto-me como se fizesse parte da tua família agora, e ele também o
sentia. Era um bom cão, o Fianchu. - Dito o seu simples epitáfio, elevou a caneca, bebeu, voltou a pousá-la. - Bem-vinda a casa, Caitrin. Não me lembrei de o dizer
antes. Gosto de te ver.
- Gearróg disse que tinhas notícias urgentes para nós, Caitrin - proferiu Anluan. - Ele está de guarda do lado de fora da porta e mandámos Cathaír à volta para o
outro lado, para sermos avisados se alguém se aproximar. Conta-nos o que aconteceu.
Sentámo-nos à mesa, embora Olcan continuasse no chão. Contei-lhes a história da experiência de Nechtan, quase bem-sucedida, mas alterada pela rapariga que não quisera
abdicar da sua vida para que o seu mentor pudesse ficar com o seu desconcertante exército, a descoberta que ela fizera do feitiço de reversão, o seu regozijo face
à sua própria inteligência, o seu desespero quando não conseguiu usar as palavras para se salvar a si própria. A maldição pronunciada em silêncio, a maldição cuja
forma eu conhecia porque o espelho de obsidiana me abria uma janela para a mente de quem quer que tivesse escrito o texto que colocasse a meu lado. Cem anos de má
fortuna, cem anos de sofrimento, cem anos de fracassos.
- E ela tinha o poder para a levar a cabo - esclareci, enquanto a minha audiência continuava sentada à minha volta, silenciosa e imóvel. - Ela aprendeu muito mais
com Nechtan do que ele alguma vez se apercebeu, era tão hábil como ele no lançamento de feitiços. Serei a sombra dos teus passos e de todos os que te são queridos,
era parte da maldição. Há quatro gerações que ela o faz, agitando a hoste e sussurrando palavras de desespero a cada um dos chefes tribais. Usou as suas habilidades
de feitiçaria para aumentar o caos.
- Mas... - O braço de Anluan estava tenso contra o meu. - Como pude não ver? Como pude não perceber? Estás a dizer que tudo, a voz que eles tanto temem, o frenesi
que os faz perder a cabeça e atacar aleatoriamente, era ela?
- Creio que sim - declarei.
- Santo Deus, Caitrin! - exclamou Anluan. - Se qualquer outra pessoa me tivesse contado isso eu diria que não passava de mera fantasia. Sussurrando palavras de desespero.
Isso soa-me verdadeiro. Tenho estado
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demasiado predisposto a acreditar nelas. Para as considerar minhas. Devia estar cego.
- Suponho - continuei - que parte do seu talento pode estar na capacidade de fazer com que os outros a vejam como inofensiva. - Não se esforçara muito comigo, pois
a sua inimizade fora óbvia desde o começo. No entanto, eu levara muito tempo, quase demasiado tempo, a perceber a extensão do seu poder e da sua malícia. - Parece
que o teu pai passou tempo com ela, talvez até tenha procurado a sua ajuda para o trabalho botânico que realizava, recebendo bem o seu companheirismo depois de a
tua mãe morrer. Mas... bem, há algo que eu encontrei que penso que deves ler. Estava guardado com os objectos pessoais de Muirne. - Retirei o último livro de anotações
de Irial da bolsa do meu cinto, abri-o na primeira página e entreguei-lho.
No silêncio que se seguiu, Magnus levantou-se e atiçou o fogo, eu enchi novamente as canecas de todos e Olcan deixou-se estar sentado em silêncio com o seu velho
amigo. Rioghan e Eichri olhavam um para o outro, com a mesa de permeio, a sombra de uma despedida iminente apagando todos os traços do seu habitual humor sardónico.
Quando Anluan acabou de ler, deixou-se estar sentado, em silêncio, durante algum tempo. Depois disse, sem emoção:
- Ela matou-o. Ele queria viver e ela matou-o.
- Creio que sim. O teu pai morreu do mesmo veneno que ela usou contra ti. - Olhei de relance para Magnus, cujos olhos se arregalaram. - Nesta carta, Irial escreve
sobre a decisão que tomara de sair do seu nevoeiro de tristeza, diz à sombra de Emer que nunca a esquecerá, mas que a verá viver em Anluan. Não se trata da mensagem
de um homem que está prestes a matar-se de desespero. Aislinn - Muirne - escolheu esconder este facto de Anluan, e de ti, Magnus. Ela amava-o e queria manter tudo
como ela achava que devia ser em Whistling Tor. Era suficientemente mau que Irial amasse Emer como nunca poderia amar Aislinn. Quando ele quis trazer esperança para
o Tor e para a gente que aqui morava, quando ele quis uma vida para o seu filho melhor do que a que tivera, Aislinn provavelmente sentiu-o como uma traição. Não
aguentou. Por isso pôs-lhe um fim. Creio que ela também foi responsável pela morte da tua mãe, Anluan. É claro que isso nunca poderá ser provado. - Não disse nada
acerca de Conan e Iioch. O que dissera era mais do que suficiente.
- Santa Mãe de Deus - murmurou Magnus. - O fogo desconcertante, o facto de ninguém ter visto nada até ser demasiado tarde...
- Fogo sem fumo, fumo sem fogo. O método está num daqueles livros de magia negra. É como te digo, ela era... é... uma hábil praticante de feitiçaria.
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Anluan contraíra a sua mão boa num punho. Os olhos dele estavam tão frios como gelo.
- Não há dúvida de que Nechtan lhe fez mal - disse ele. - Mas esta tem sido uma longa e amarga vingança. Onde é que ela está agora?
Vendo a fúria estampada no seu rosto, não menos alarmante pelo controlo óbvio que ele impunha a si próprio, estava feliz por não ter mencionado o facto de Aislinn
me ter ameaçado com uma faca de trinchar.
- Não sei - confessei. - Mas estará atenta. Precisamos de ter cuidado até ao momento em que as palavras do feitiço de reversão sejam proferidas. Ela não gosta que
os acontecimentos se desviem do padrão que ela estabeleceu. Ela lutará para manter a sua maldição em curso, embora eu pense que apenas lhe tenha trazido miséria.
Tentou fazer com que eu lhe desse o livro, atormentando Gearróg e depois magoando a menina. Por fim, atirei-lho e ela rasgou-o.
Silêncio; cinco pares de olhos voltaram-se para mim, interrogativos.
- Isso quer dizer que ela não acredita que sejamos capazes de o fazer - continuei. - Ela viu-me usar o espelho de obsidiana com o livro dela; deve saber, ou adivinhar,
que eu vi o ritual. Mas, pelo que ela disse, é óbvio que não me acredita capaz de recordar as palavras da invocação de Nechtan depois de as ter ouvido apenas uma
vez e de ter olhado de relance para o livro dela. O feitiço de reversão é muito simples: o chefe tribal tem de dizer a invocação em latim, de trás para a frente.
Imagino que os outros elementos do ritual precisem de ser iguais, o pentagrama, a serpente em forma de círculo, as ervas, e por aí em diante. Há uma mulher da hoste
que poderá ajudar-nos com os preparativos.
Anluan ainda olhava fixamente para mim.
- Decoraste-o? Todo? Anuí.
- E agora tu terás de fazer o mesmo - concluí. - Em privado, por detrás de portas fechadas e guardadas. Aislinn não quer que nós o façamos. Se ela acreditar que
é uma tentativa vã, baseada em pouco mais do que adivinhas, poderemos conseguir terminar.
- Tens a certeza de que resultará, Caitrin? - A voz de Eichri era hesitante.
- Não, não tenho a certeza de que resultará. Mas tenho a certeza de que sei as palavras certas e tenho a certeza de que sei como se executa o ritual. O que nos resta
testar é a convicção de Aislinn de que o feitiço de reversão é algo tão óbvio. Parece surpreendente que Nechtan não se tenha lembrado de o experimentar.
- Provavelmente não queria - interveio Magnus. - Ele pode nunca ter abdicado da ideia de que um dia poderia transformar a hoste
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no poderoso exército que ele queria. E se era esse o seu pensamento, provavelmente nunca contou a Conan as palavras da invocação original - porque contaria? Muito
provavelmente, não havia qualquer registo escrito da invocação para além das notas de Aislinn. É claro que havia o livro de onde Nechtan a tirou, mas Conan poderia
não saber disso.
- Além disso - acrescentei -, ela pronunciou a maldição, cem anos de tristeza e por aí em diante, e talvez o feitiço de reversão não tivesse funcionado até esse
tempo se esgotar.
- O que acontecerá esta noite - observou Olcan do seu canto. - Véspera de Todos os Santos.
- Se Muirne, Aislinn, for tão inteligente como nos dizes - acrescentou Eichri -, ela deve sabê-lo. Porque está a lutar contra isso?
Não sabia como expressá-lo por palavras: a minha convicção era de que Aislinn estava aprisionada no seu próprio feitiço, que o seu desejo de punir e magoar cada
chefe tribal de Whistling Tor andava lado a lado com o seu amor por eles. Imaginei-a a deitar o veneno no jarro enquanto os seus olhos se enchiam de lágrimas.
- Aislinn não faz parte da hoste - notou Eichri. - O feitiço de reversão pode não funcionar nela. Poderá permanecer aqui para sempre, deixando uma mancha no Tor
e em todos os que nele vivem. Não olhes assim para mim, Caitrin.
- Ela terá partido daqui antes de o Sol voltar a nascer - declarou Anluan, com uma voz de ferro. - Quanto à ameaça de hoje, enquanto eu estiver no Tor, Muirne terá
de se submeter à minha vontade. Temos de preparar-nos para executar este ritual, e quando precisarmos que ela venha, eu invocá-la-ei. - Ele olhou para os outros,
um de cada vez, pousando por fim os olhos em Eichri e em Rioghan. - Compreendem que tenho de o fazer - disse ele.
- Enfim - proferiu Eichri, numa tentativa vã de parecer casual. - É melhor colher os lucros da minha última aposta, conselheiro. Paga!
Rioghan enfiou uma mão no manto e retirou uma brilhante moeda de prata. Esta dançou por cima da mesa até cair nas mãos do seu velho amigo.
- Essa foi pelo quê? - perguntei, pestanejando para afastar as lágrimas.
- Se estarias de volta antes ou depois de Anluan vencer a batalha.
Olhei fixamente para eles.
- Todos vocês acreditaram que eu regressaria?
- O teu lugar é aqui. - Os dedos de Anluan apertaram-se em torno dos meus. - Mandar-te embora foi o maior erro da minha vida, como
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estes nossos amigos me têm lembrado desde o dia em que descobrimos que partiras. Não pensei que, ao te perdermos, perderíamos também o nosso coração.
- Foi correcto partir. E foi correcto regressar.
- Encontraste a tua irmã? - perguntou Magnus. - Gostei do que disseste acerca dela.
- Há uma longa história a contar sobre isso, parte triste, parte feliz e parte entre uma coisa e outra. Quando tivermos tempo, contá-la-ei. - Olhei de relance para
Anluan. - Devo ensinar-te o feitiço. Está em latim e tens de o dizer de trás para a frente.
- Santa Brígida me salve. É melhor começarmos de imediato. - Anluan levantou-se. - Ou quase de imediato, tenho de me lavar e de mudar de roupa, pelo menos. Olcan,
precisas de ajuda...?
- Eu ajudo-o - ofereceu-se Magnus. - Tens mais do que fazer. Foi uma luta corajosa. Na minha opinião, mostraste o que vales.
Anluan inclinou a cabeça em sinal de reconhecimento, corando. As palavras de Magnus foram semelhantes ao reconhecimento de um pai em como o filho provou ser um homem.
- Precisamos de receber Brión e Fergal aqui em cima dentro em breve - lembrou Rioghan. - Mandaram dizer que se apresentarão pessoalmente logo que os normandos sejam
corridos para lá das fronteiras. Uma vez que vais estar ocupado, Magnus, tratarei dos preparativos para os receber, procurarei o melhor hidromel e o que for preciso.
- Obrigado - agradeceu Anluan. - Caitrin, mandar-te-ei Cathaír assim que estiver preparado para te receber. Quero que mantenhas Gearróg contigo em todos os momentos.
Chama-o agora e não saias da sua vista.
Depois foi para os seus aposentos e Eichri saiu para ir procurar o hidromel e alguns outros mantimentos adequados à visita de chefes tribais. Depois de falar calmamente
com Olcan, Magnus chamou dois homens corpulentos da hoste para levarem Fianchu. Eu dei um pequeno beijo no focinho do cão e Rioghan agarrou Olcan pelo braço, dizendo:
- É uma perda triste, velho amigo. Desejo-te força. E depois levaram o cão para ser enterrado.
Rioghan e eu estávamos sozinhos na cozinha, à excepção de Gearróg que estava de guarda junto à porta das traseiras. Senti a necessidade de fazer algo, de manter
as mãos ocupadas, por isso, procurei um pano e limpei a mesa, pensando que, se Orna não se tivesse voluntariado para ir comigo na noite passada, poderia ainda ali
estar, mexendo uma panela ou dando ordens às suas assistentes. Esperei que as perdas não
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fossem demasiado pesadas para a gente da povoação. Seria importante manter a confiança extraordinária que se desenvolvera aquando da ameaça normanda. Anluan estaria
realmente muito ocupado, assim como eu, pensei.
- Caitrin. - Rioghan sentara-se novamente à mesa, com as longas mãos juntas diante de si. Parecia estranhamente acanhado.
- Hum?
- Acreditas realmente que irá resultar? Este feitiço de reversão?
- Espero que sim - confessei. - Como eu disse, não há certezas de nada. Mas creio que devemos tentar.
O silêncio arrastou-se. Voltei-me para olhar para ele, surpreendendo uma estranha expressão no seu rosto pálido. Parecia que encontrara um tesouro há muito procurado
e, ao mesmo tempo, como se estivesse prestes a perder o que mais amava no mundo.
- Hoje ajudaste Anluan a conseguir algo verdadeiramente notável - proferi. - Aos olhos do mundo exterior, o facto de ele ter vencido aquela batalha deve parecer
algo saído de um sonho impossível.
Durante muito tempo, Rioghan não falou. Depois disse:
- Vou sentir a falta dele. Vou sentir a tua falta. Até vou sentir a falta daquela desonrosa desculpa para um monge. Costumava pensar que, se algum dia se encontrasse
um feitiço de reversão, lutaria contra ele com todas as minhas forças. Mas... Penso que talvez esteja preparado para partir. O sucesso de hoje foi estrondoso. O
meu plano funcionou na perfeição. Mas não me sinto jubilante. Não me sinto vingado. Só me sinto cansado.
- Se funcionar, poderás vê-lo de novo - disse suavemente. - O teu senhor, Breacán. Certamente não irás outra vez para aquele lugar entre lugares. Não depois do que
aconteceu hoje.
- Pensas que não?
O sorriso dele era dúbio.
Sentei-me de frente para ele, inclinei-me na sua direcção e envolvi as suas mãos nas minhas.
- Eu tenho visto como és boa pessoa, Rioghan. Leal, corajoso, gentil... Tens apoiado Anluan com firmeza. Creio verdadeiramente que o teu erro passado não te atormentará
daqui em diante. - Passado um momento, acrescentei: - Este lugar não será o mesmo sem ti.
- Enfim. - Abanou a cabeça como que para a livrar de dúvidas. - O que posso dizer é que agradeço a Deus que aqui estejas, Caitrin, para fazer companhia ao nosso
rapaz. Quanto a nós, é melhor que nos esqueçam.
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- Nunca penses isso - proferi com um nó na garganta. - Se mais ninguém passar as vossas histórias para escrita, eu fá-lo-ei certamente. Fazem parte da história do
Tor. E agora pára com isso ou estarei a chorar demasiado para me comportar como uma senhora quando os visitantes chegarem. Quero causar boa impressão.
Anluan e eu passámos a hora ou duas seguintes fechados nos seus aposentos. Sem dúvida que as pessoas da povoação tinham a sua própria ideia sobre o que estávamos
a fazer. Não saímos até Anluan memorizar a forma e as palavras do ritual, embora ele não praticasse o feitiço de reversão em voz alta. Só o diria naquela noite,
quando tudo estivesse preparado. Falámos demoradamente sobre o que devia ser feito e chegámos a uma conclusão. Poderíamos repetir cada aspecto do ritual o mais parecido
possível com a última vez que fora feito, mas não havia como saber se o resultado seria o que desejávamos. Fosse como fosse, teríamos de tentar.
Havia muito para fazer. Os feridos ainda estavam estendidos no que fora a capela e precisavam de atenção. A gente da povoação preparava-se para ir para casa, levando
os seus mortos consigo. Fianchu fora enterrado na quinta e, naquele momento, Magnus e um Olcan de olhos vermelhos voltavam a sua atenção para os preparativos. Magnus
colhera as ervas de que iríamos precisar. Eu lembrava-me dos nomes de duas ou três, mas a mulher sábia ofereceu o seu conselho relativamente àquelas que ajudariam
à transição entre mundos. Olcan obteve areia limpa de um abastecimento que havia na quinta. Sob as minhas indicações, ele marcou o pentagrama encerrado no círculo
em forma de serpente. A mulher sábia foi colher visco. Não fazia mal, disse ela, que não fosse o sexto dia do ciclo lunar - colhida com a fórmula correcta de palavras,
a erva seria igualmente eficaz. Esteve ausente durante algum tempo, antes de emergir da floresta com um pequeno ramo nas mãos.
Estas actividades cessaram durante algum tempo quando Brión de Whiteshore e Fergal de Silverlake subiram ao Tor para cumprimentar Anluan e para lhe dizer que as
forças de Lorde Stephen haviam retirado dos três territórios. Ambos os chefes tribais beberam algum do nosso hidromel e falaram do futuro. Se havia uma ligeira apreensão
na sua atitude, foi bem escondida, e a sua postura perante Anluan foi cortês e respeitosa. Anluan concordou que devia ser reunido um conselho antes que o rigor do
Inverno tornasse as viagens demasiado difíceis. Stephen de Courcy seria apenas o primeiro de muitos estrangeiros arrivistas a querer uma
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porção da boa terra de Connacht. Foi feita uma referência a Uí Conchubhair e sobre como tudo poderia ser diferente se um dos seus filhos tomasse o lugar de Rei Supremo.
Os chefes tribais locais teriam de estar unidos e fortes até esse tempo chegar. Escutei com atenção enquanto sorria e passava o hidromel, mas a minha mente estava
fixa naquela noite, no ritual, em Aislinn. Onde estaria ela? Possuiria ainda alguma forma de arruinar os nossos esforços?
Os chefes tribais de visita não permaneceram muito tempo. Ambos estavam desejosos de regressar a casa com os seus homens de armas, agora que a missão fora concluída.
Anluan agradeceu-lhes o apoio e lamentou profundamente as suas perdas. Brión deixou-nos os dois curandeiros que acompanhavam o seu exército, pois sabia que os membros
da nossa casa eram poucos e estariam sobrecarregados com a necessidade de prestar apoio a todos os feridos. Quando os nossos visitantes partiram, despedimo-nos da
gente da povoação, que estava preparada para deixar o Tor. No dia seguinte, dissera Anluan, desceríamos para participar no ritual de despedida dos seus mortos. Depois
do tempo de luto, queria falar com eles acerca do futuro. Vi que novos líderes davam um passo em frente para substituir Tomas e Orna. Duald, que em tempos tivera
tanto medo de uma escriba errante, era um deles, e a amiga de Orna, Sionnach, parecia falar em nome das mulheres. Haveria um caminho em frente para todos nós; se
o feitiço de reversão resultasse, se Aislinn estivesse certa; se eu o recordasse correctamente; se não acontecesse mais nada que interferisse. Vendo a esperança
nos olhos de Gearróg, de Cathaír e dos outros, rezei para não ter cometido um erro terrível.
Enquanto o crepúsculo caía, a hoste começou a reunir-se no pátio: homens, mulheres e crianças, em pequenos grupos ou sozinhos, à espera. O burburinho do falatório
emocionado que se fizera ouvir anteriormente nesse dia desaparecera, substituído por um silêncio de antecipação. Anluan dissera-me que queria falar com a hoste antes
de o ritual começar e fazia-o naquele momento. Não era o tipo de discurso grandioso que as pessoas esperam que um chefe tribal vitorioso faça no seu regresso a casa.
Em vez disso, caminhava entre eles, uma figura alta vestida de preto, dando a cada um deles o tempo que podia, escutando-os, dizendo-lhes que lamentava que o acto
malvado do seu antepassado os tivesse condenado a cem anos de miséria. Observei os seus rostos de onde estava com Magnus, junto ao círculo. Não encontrei raiva,
nem tristeza, apenas respeito, reconhecimento e uma esperança que crescia. Esta noite, esta noite ficaremos em descanso.
- Tem de resultar - murmurei. - Tem de resultar.
- E se Muirne não aparecer? - perguntou Magnus em voz baixa. - Parece que não pode resultar sem ela.
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Discutira aquele ponto com Anluan durante bastante tempo: qual seria o papel de Aislinn, se deveria ficar novamente no centro e o que lhe aconteceria se ficasse.
Não estaria disposta a colaborar. Teria de ser coagida a tomar o seu lugar e isso não me parecia bem.
- Fá-lo-á se eu lho disser - dissera Anluan. - Caitrin, aquela rapariga assassinou várias pessoas. Tem de ser banida com os restantes. Se o feitiço de invocação
de Nechtan requereu que ela estivesse no meio do pentagrama, então teremos de o fazer outra vez.
- Penso que ela virá se Anluan a chamar - respondi eu, naquele momento. - Ela sempre lhe obedeceu. - Mas mesmo assim, nas profundezas da minha mente, perguntei-me
se seria correcto. Anluan não vira a última visão do espelho de obsidiana. Não sentira o terror absoluto de Aislinn quando percebeu que Nechtan não a salvaria, que
não queria salvá-la, que a vida dela era o preço do sucesso dele. Sim, ela praticara actos malévolos, era uma assassina, no entanto, eu sabia que se me coubesse
a mim obrigá-la a pisar o centro do pentagrama naquela noite, não seria capaz.
Fiz as minhas próprias despedidas enquanto o ocaso escurecia e se transformava em noite. A luz fria da Lua brilhou sobre o pátio, iluminando os rostos cansados das
pessoas da hoste. A mulher sábia: agradeci-lhe pela sua ajuda tranquila e ela inclinou a cabeça num reconhecimento solene. Porque motivo aquela criatura controlada
e serena se encontrava no meio da hoste de Nechtan, eu não conseguia compreender. Os monges, que naquele momento emergiam da capela para se juntar aos outros, agradeci-lhes
por terem cuidado dos feridos.
- E pelos vossos cânticos - acrescentei. - Quando os ouvi, pareceu-me que Deus estava presente, mesmo aqui, neste lugar que se diz amaldiçoado. Recordou-me que quando
nos perdemos, Ele nos reconduz a casa.
- Abençoada sejas, filha - disse um. Os outros responderam:
- Ámém.
Anluan estava a falar com Eichri naquele momento e tinha uma mão no ombro do clérigo. Rioghan estava sozinho, a sua capa vermelha uma nota de cor ao luar. Caminhei
para ele, lembrando-me do dia em que ambos me encontraram na estrada e me mostraram o caminho.
- Rioghan.
Ele nunca fora dado a sorrisos e também não sorria naquele momento, mas havia um brilho caloroso nos seus olhos escuros.
- Caitrin, senhora encantadora. Trouxeste uma grande alegria ao nosso rapaz. Sê feliz também, minha querida. Vive bem a tua vida.
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- Viverei, Rioghan. Tens sido um amigo maravilhoso. Quero agra-decer-te a tua lealdade para com Anluan. - Maldição, pensara ser suficientemente forte para não derramar
lágrimas; haveria tempo suficiente para elas mais tarde, quando tivesse terminado. - Gostaria que pudesses ficar connosco. Tenho esperança que encontres o que mais
desejas. Já fizeste por merecê-lo, certamente.
- Tens uma grande bondade dentro de ti, Caitrin. Que o mundo te trate de igual forma. Quanto ao que virá a seguir, a mim, àquele miserável monge - o olhar de relance
que lançou a Eichri era afectuoso - e ao resto deste grupo tresmalhado, quem sabe o que podemos esperar? Um final diferente para cada um de nós, talvez. Estás certa
em usar a palavra esperança. É apenas isso que podemos ter. - O corpo dele foi assolado por um arrepio e ele puxou a capa mais contra si.
Depois, Cathaír. Ele mudara desde o dia em que eu fugira do Tor para confrontar os meus próprios demónios. Os olhos dele ainda dardejavam em todas as direcções,
a sua pose mantinha-se irrequieta e ainda transferia o peso de um pé para o outro. Mas havia um propósito na sua expressão, uma força e uma calma nos contornos do
seu rosto. Ele estivera na frente do ataque daquele dia, liderando os guerreiros para o centro do acampamento inimigo. Representara um papel vital na vitória. Vi
confiança no seu olhar e um novo respeito por si próprio. A confiança de Anluan transformara-o.
- Ficarás feliz por partir, Cathaír - disse eu.
- Há muito que espero pelo sono, senhora. Sim, partirei alegre para a terra para lá do cinzento. No entanto, não poderia ir sem este dia. Estes últimos dias. Ver
o Tor ganhar vida de novo, cantar a canção de batalha... - Caiu sobre um joelho na minha frente. - Lorde Anluan é um verdadeiro líder. Tem sido uma honra servi-lo.
Mas tu... - A voz dele embargou-se e depois fortaleceu-se de novo. - Vieste para aqui com amor no coração. Desde o primeiro momento, fomos reais para ti, tão reais
como quando vestíamos a carne e o sangue dos nossos corpos vivos. Não olhaste para nós com censura, mas com compaixão. Deste-nos esperança. As minhas lágrimas corriam
agora livremente. Coloquei a minha mão no seu ombro.
- És um homem bom, Cathaír - proferi. - Serviste-o com grande coragem. Desejo-te paz.
Isto estava a tornar-se cada vez mais difícil. O meu olhar cruzou o de Anluan enquanto ele abraçava Eichri. Ele sorriu e dei-me conta que se para mim estava a ser
uma provação, para ele era muito pior. Ele vivera no meio daqueles espectros toda a sua vida. Eram a sua família.
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Enquanto Anluan se afastava, aproximei-me de Eichri e, abandonando a conduta própria da mulher de um chefe tribal, abracei-o. Era um abraço gelado, mas o meu coração
sentiu apenas calor.
- Querido Eichri, sentirei a tua falta todos os dias. Tenho tanta pena por teres de partir, tu e Rioghan. - Afastei-me, colocando as minhas mãos nos seus ombros.
Imediatamente, vi que algo estava diferente. O estranho colar, com a sua carga de ossos e objectos mirrados não identificáveis, desaparecera. No seu lugar, o meu
amigo usava uma tira de couro da qual pendia uma simples cruz de madeira.
Eichri viu que eu estava a olhar e sorriu.
- Nunca pensaste ver uma coisa assim, pois não, Caitrin? Não há dúvida de que te convenci que seria para sempre um pecador sem contrição. Quase me convenci a mim
próprio.
- Como foi que...? - Não conseguia encontrar a forma mais correcta de fazer a pergunta delicada.
- Brión de Whiteshore trouxe um sacerdote com ele, para cuidar dos feridos e dizer orações sobre os moribundos. Conversámos. Há algum tempo que me questionava, Caitrin,
que revia os meus erros passados. Somos ensinados que Deus perdoa os pecadores. Perguntei a mim próprio se um pecador como eu seria algum dia merecedor de tal misericórdia.
Não tinha a certeza, no passado, de sequer a querer. Algo mudou em mim enquanto estiveste ausente. Talvez tenha sido o padrão de bondade que trouxeste contigo. Talvez
tenha sido o desabrochar da esperança no Tor. Seja como for, falei com o irmão Oisín acerca do meu passado. Ele escutou e, na sua opinião, eu estava errado acerca
da misericórdia de Deus. Por isso, estou a trabalhar a questão do arrependimento. E ainda bem que assim é. Rezo para que este ritual não me condene a cem anos num
lugar cinzento, a meio caminho daqui e de lá. Mais do que ao fogo do Inferno, temo o tédio. - Olhou para mim com sobriedade, depois mostrou os seus dentes grandes
num sorriso largo. - E não, não perguntei ao irmão Oisín acerca de uma certa biblioteca secreta. Parece ser o tipo de homem que ficaria profundamente chocado com
tal ideia.
- Anluan nunca a procurará - garanti, olhando de relance para o local onde o chefe tribal de Whistling Tor se despedia solenemente de Rioghan. - Irá executar o ritual
desta noite porque a isso é obrigado; mais ninguém o poderia realizar com sucesso. Creio que, depois disto, ele repudiará o mais simples exercício das artes mágicas.
Teme tornar-se igual ao bisavô. Penso que irá destruir os livros de magia negra.
- Hum. - Uma expressão de reflexão invadiu os olhos sombrios de Eichri. - Este lugar encontra-se repleto de magia, Caitrin. Whistling Tor era um lugar de histórias
misteriosas e assustadoras muito antes de Nechtan
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aparecer e se meter em feitiçarias. Não é fácil pôr de parte uma tão longa história de fenómenos fantásticos. Anluan devia guardar os livros, para o caso de vir
a precisar deles. É a minha opinião. Adeus, minha querida. Cuida bem do nosso esplêndido homem.
- Cuidarei. - Passei uma mão pela cara.
- Está na hora. - A voz profunda de Anluan ressoou pelo pátio cada vez mais escuro e um silêncio desceu sobre o lugar. Magnus acendeu um archote na pequena braseira
e subiu os degraus para o colocar num suporte perto da porta da casa. Uma bruxuleante luz vermelha fez com que a sombra de Anluan atravessasse o círculo ritual para
tocar no espaço vazio do centro. As pessoas da hoste começaram a juntar-se entre a serpente e a estrela, em cinco grupos de homens, mulheres e crianças. Perguntara-me
como é que os espaços que Olcan marcara acomodariam tantos, mas lá estavam eles, dentro das linhas de areia, uma multidão escura e sombria. Rioghan despiu a sua
capa vermelha, deixan-do-a cair nas lajes onde ficou como uma poça de sangue escuro. Eichri esperava por perto. Os dois velhos amigos abraçaram-se, olhando-se demoradamente
olhos nos olhos.
- Aposto duas moedas de prata em como vamos acabar juntos outra vez, conselheiro - desafiou Eichri.
E Rioghan respondeu:
- Está apostado, irmão!
Mas só trocaram um sorriso. Os irmãos de Eichri formavam uma pequena procissão, os seus lábios moviam-se em preces silenciosas. Ele deu um passo para dentro da linha
e eles entraram no círculo como se entrassem numa capela. Rioghan colocou-se entre os guerreiros, aos quais apertou as mãos em sinal de cumprimento e de despedida,
um de cada vez.
Gearróg estava na base dos degraus, guardando Anluan até ao último momento. Fui colocar-me ao lado dele.
- Obrigada, Gearróg - agradeci -, por teres mantido Anluan a salvo como te pedi, e pela coragem para além da exigida pelo dever. Por seres igual a ti próprio. Espero
que possas ver os teus entes queridos em breve. Desejo-te felicidades, meu leal amigo.
Se ele pudesse ter falado naquele momento, tê-lo-ia feito. Pude ver que havia demasiado no seu coração para permitir que as palavras saíssem. Acenou com a cabeça
e depois afastou-se para tomar o seu lugar entre a hoste.
No degrau de baixo, perto de mim, estava uma pequena figura agachada, de cabeça baixa, ombros encolhidos e trouxa nas mãos. Tentando ser esquecida, tentando ser
invisível.
- Está na hora, Caitrin - proferiu Anluan, olhando de relance para a criança e depois para mim.
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Sentei-me no degrau ao lado dela e coloquei um braço por cima dos seus ombros. Era como mergulhar o meu braço em água gelada.
- Querida - murmurei -, agora tens de partir. Tens de entrar dentro do círculo com os outros. Está na hora do adeus.
Um rosto branco como a neve voltou-se para cima, para o meu, os seus olhos sombrios fixaram-se em mim.
- Partir para onde? - perguntou ela.
- Para um sítio bom - disse-lhe, sentindo-me mentirosa e traidora. - Talvez vejas a tua mamã outra vez.
- Eu quero ficar contigo - admitiu a criança-fantasma, a sua pequena voz clara e verdadeira. - Podes ser a minha mamã.
Foi como se uma lança me trespassasse o coração. Não consegui encontrar uma resposta, pois nenhuma seria correcta.
- Vem, pequenina. - A mulher sábia estendeu uma mão. - Vem para perto de mim. Tem cuidado para não pores os pés em cima da areia; levanta-os bem alto, como se estivesses
a dançar.
A criança não voltou a olhar para mim. Caminhou para o outro lado do círculo, com passos cuidadosos, levando com ela o lenço bordado da minha mãe e os últimos fragmentos
de Róise, uma lembrança do amor da minha irmã. Colocou-se ao lado da mulher sábia, entre duas pontas da estrela. Os olhos dela olhavam fixamente para o nada.
- Estamos preparados para começar - declarou Anluan calmamente. Magnus estava do seu lado esquerdo. Eu limpei os olhos à minha manga e depois ocupei o meu lugar
do lado direito. Olcan estava ao pé da braseira. - Chamá-la-ei.
Mas não houve qualquer necessidade de a chamar. Da arcada de acesso ao jardim de Irial, Muirne deu um passo em frente. Já não usava os impecáveis vestido e véu que
antes a dissimulavam. Vestia um traje antigo, outrora branco, um vestido de cintura alta com uma bainha bordada. A saia flutuava à sua volta enquanto ela se aproximava.
O cabelo estava solto, uma cascata reluzente. Uma pequena grinalda de verdura coroava-lhe a cabeça. Os olhos dela brilhavam ao luar.
- Estou aqui, meu senhor - disse ela.
A minha pele arrepiou-se. Aislinn vinha de moto própria ajudar-nos? Aislinn, já vestida nos seus trajes rituais, calma e cooperante? Estivéramos certos de que Anluan
teria de a chamar e que teria de ser forçada a representar o seu papel. Antecipáramos relutância, fúria, talvez medo. Não aquilo.
- Podia dizer-te muitas coisas, Muirne - afirmou Anluan, mantendo o seu tom de voz regular; não havia qualquer traço da fúria amarga
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que eu sabia que ele tinha para com ela, pela morte dos seus amados pais, pelo atentado contra a minha vida, pelos longos anos de sofrimento. - Mas direi apenas
isto. Pelo mal que o meu bisavô te fez, peço-te desculpa. Pelo mal que me fizeste a mim e ao meu povo, Deus julgar-te-á. Ela observava-o calmamente, sem um vestígio
de emoção no rosto.
- Esta é a noite de Todos os Santos - declarou Anluan. - Passaram-se cem anos desde que amaldiçoaste a família de Whistling Tor e está na altura de levantar a sentença
que nos lançaste.
- Não és Nechtan - desafiou Aislinn. - Tenta, de qualquer modo. Tenta e fracassa. Tens talento para isso.
Anluan inspirou profundamente, susteve o ar durante um momento, depois libertou-o lentamente.
- Ocupa o teu lugar no centro, Muirne. Lamentavelmente, parece que precisamos da tua ajuda.
- Parece que sim - retorquiu ela, e voltou-se para atravessar as linhas, levantando a saia para não varrer as marcas rituais para fora do seu lugar. As pessoas da
hoste encolheram-se enquanto ela passava e alguém sibilou. No centro do pentagrama, Aislinn parou e voltou-se para nós, com as mãos cuidadosamente juntas na sua
frente.
- Estou preparada - proferiu ela, calmamente. - Tenta o teu feitiçozinho.
Anluan fixou-a com o seu olhar.
- Permanecerás em silêncio - ordenou ele, e ela calou-se. O sorriso desmaiado que brincava nos lábios dela preocupou-me; era tão zombeteiro como as suas palavras.
Se estava preparada para ali estar, no mesmo lugar onde sofrera a traição e a morte, devia a ter a certeza absoluta de que fracassaríamos.
Olcan lançara para a braseira as ervas rituais que inundaram o ar com o seu aroma pungente, despertando a mente para um estado de consciência pura. Anluan iniciou
a sua lenta caminhada em torno do círculo, parando junto aos quartos. Eu sabia pelos livros de magia negra que, para executar um feitiço de expulsão, o círculo tinha
de ser percorrido no outro sentido, por isso ele caminhava no sentido contrário ao do Sol; a fórmula de palavras que escolhêramos também era diferente.
- Espírito místico da água, honramos-te! - Anluan passou pela criança-fantasma, que estava ao lado da mulher sábia na zona oeste do círculo. A menina curvara a cabeça
e olhava fixamente para o chão. - Espírito purificante do fogo, honramos-te! - Passou pelos guerreiros, que estavam direitos e orgulhosos do feito daquele dia. -
Espírito vivificante do ar, honramos-te! - Passou pelos monges, que estavam ajoelhados
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com as mãos juntas em oração. Vários homens e mulheres-fantasma apoiavam-se mutuamente, dando as mãos ou os braços; os seus olhos seguiam o movimento dele. - Espírito
sustentador da terra, honramos-te!
Anluan completara o círculo e começara a delinear as linhas do pentagrama, caminhando com cuidado para que a areia não fosse perturbada. Para manter o ritual de
Nechtan, ninguém se encontrava dentro das pontas da estrela, juntando-se todos nos espaços de permeio, à excepção de Aislinn, sozinha no centro, parecendo uma princesa
de Inverno de um conto antigo, toda ela branca e dourada.
A lenta caminhada de Anluan terminou. Voltou-se na última ponta, permanecendo onde as linhas se juntavam a norte, levantou os braços e abriu-os.
- Divina essência da alma, fonte de toda a bondade e sabedoria, honramos-te!
Parou, inspirando profundamente. Era altura de dizer o feitiço de reversão. A voz dele soou de novo, profunda e envolvente.
- Erappa sinigilac oigel! Mitats ihim erappa!
Um tremor percorreu as pessoas da hoste, a sombra de uma memória. As palavras tinham poder. Permaneceram no ar, conjurando o desconhecido.
- Egruser! - gritou Anluan. - Egruser!
Esperámos um pouco e o ar arrefeceu à nossa volta. Ele proferiu novamente as palavras de expulsão. Senti que tudo escurecia à nossa volta, embora nem uma nuvem cobrisse
a Lua. Enquanto Anluan abria a boca para dizer as palavras uma terceira vez, pareceu-me que algo nos puxava para o círculo, como se nos quisesse arrastar a todos
para aquele mundo para lá da morte. O meu maxilar estava contraído, o meu coração batia violentamente no peito. Agora... Agora...
- Egruser! - gritou Anluan, e o feitiço de expulsão estava completo. Silêncio. Nada se mexeu. Nada mudou, embora um frio de gelar os ossos se mantivesse sobre todos
nós. E depois o riso de Aislinn soou como um carrilhão.
- O que foi que eu disse? - O olhar que ela lançou a Anluan era quase afectuoso, como o de uma mulher a provocar o marido por ser desastrado. - Caitrin enganou-se.
Tu enganaste-te. Não és um feiticeiro. - Voltou-se no seu lugar, olhando para a gente da hoste, gente que acabara de ver gorada a sua esperança mais profunda. -
Ele fracassou - proferiu. - Foram tolos por esperar outra coisa.
- Cala essa boca venenosa! - rugiu Gearróg, caminhando na sua direcção com as mãos estendidas como se pretendesse agarrá-la pelo
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pescoço e abaná-la. Outros também se moveram, o velho guerreiro Broc e um ou dois dos homens mais novos.
- Fiquem quietos! - gritou Anluan, e eles ficaram. - Não perturbem o padrão!
- Está tudo acabado, Anluan - declarou Aislinn. - Não és capaz. Admite-o. Essa tua mulher tola fez uma promessa que tu não podes cumprir. Isto não pode acabar assim
tão facilmente.
- Silêncio! - rugiu Anluan. No círculo, a criança-fantasma começou a chorar, um pequeno ruído pesaroso.
- O que fazemos agora? - murmurou Magnus.
Pensa, Caitrin. As palavras em latim estavam correctas, tinha a certeza. O padrão estava correcto, as ervas eram tão semelhantes quanto possível. As saudações aos
elementos haviam sido cuidadosamente escolhidas - a relutância de Anluan em percorrer o caminho da feitiçaria obrigara a isso. Era o sítio certo, a hora certa...
Olhei para o círculo, desesperada por uma resposta, e encontrei os olhos límpidos de Aislinn. Lembrei-me da luxúria de Nechtan por ela, o modo como encarara cada
movimento dela como um convite. Ela fora jovem, bonita, desejável - para ele, talvez ainda mais desejável porque era inteligente. A rapariga da primeira visão começara
a perder a noção do certo e do errado, mas estava longe de ser a entidade malévola que se encontrava entre nós naquele momento. Nechtan quisera-a. Escolhera não
a possuir. Ele sabia que, se o fizesse, estragaria o seu grande trabalho de magia.
E era essa a resposta. Havia apenas um aspecto que não estava certo, e não era o feitiço de expulsão.
- Anluan - disse eu -, temos de o fazer outra vez.
Ele olhou para mim, o seu rosto pálido ao luar, a irregularidade dos seus traços mais marcada do que era habitual.
- Mas não com Aislinn no centro - expliquei. - É por isso que ela estava disposta a fazê-lo, porque sabia que estava errado. Quando Nechtan a preparou para o ritual,
precisou que ela fosse inocente, uma donzela intocada - ele resistiu à tentação para a manter nesse estado. Deve ser um requisito do feitiço. Depois da maldade que
semeou aqui ao longo de cem anos, Aislinn já não poderá desempenhar este papel. Terá de ser outra pessoa a ficar no centro, uma jovem que não tenha sido maculada
pelo pecado.
Um sussurro inquieto entre a gente da hoste. Um movimento nas suas fileiras e a menina-fantasma foi gentilmente empurrada para a frente.
- Não! - gritei, sentindo uma repentina dificuldade em respirar. Não aquela pequenina, tão frágil, tão terna. Ela confiara em mim, sussurrara-me
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a sua dor, refugiara-se na minha cama. Pedira-me... O meu coração parou por um momento. Santo Deus, era isso que tinha de ser feito. Era algo que parecia muito errado,
mas era a única forma de fazer com que o feitiço de reversão resultasse. Era o oposto do que acontecera da primeira vez. Não era uma menina viva, mas um espírito.
Se ela ficasse no centro, seria deixada para trás, deixada neste mundo enquanto os outros partiriam. E era exactamente isso que ela queria. - Anluan - disse. - Penso
que é esta a resposta. Mas primeiro temos de fazer uma promessa à criança.
Os olhos dele estavam postos em Aislinn, e quando segui o seu olhar, vi o horror crescente no rosto dela.
- Estou certa de que é esta a resposta - acrescentei, a meia-voz. Aislinn mexeu-se, rápida como um relâmpago, fugindo do centro sem se preocupar com o padrão. A
areia espalhou-se. Antes de ela conseguir passar pelas pessoas da hoste, dois pares de braços fortes impediram a sua fuga: os de Cathaír de um lado e os de Gearróg
do outro.
- Uma promessa - repetiu Anluan. - Que promessa?
- Que se ela ficar seremos seus pais. - Pensei nos longos anos que viriam, com uma criança que nunca poderia aquecer, uma criança que permaneceria como estava, com
cinco anos, enquanto Anluan e eu nos tornaríamos velhos e cansados. Ela era um espírito, como poderia ser de outra forma?
- Homens, segurem Muirne aí - ordenou Anluan. - Olcan, por favor, entra no círculo e refaz o padrão. - O tom autoritário deu lugar a um tom mais gentil. Ele desceu
os degraus, ficou junto à extremidade exterior do padrão e agachou-se. - Pequenina - pediu ele -, avança.
A criança aproximou-se, com cuidado para manter os pés longe das linhas de areia, não demasiado, não estava segura em relação a ele.
- Precisamos da tua ajuda - explicou Anluan. - Terás de ser muito corajosa, tão corajosa como o cão grande do Olcan que me salvou a vida hoje. És capaz?
Um aceno da cabeça de lanugem de cardo.
- Os outros vão partir - explicou ele com cuidado. - Cathaír e Gearróg, Rioghan e Eichri, e todas estas pessoas, vão para outro lugar. Se quiseres, poderás ficar
comigo e com Caitrin. Poderás ficar aqui. Seremos a tua mãe e o teu pai. É isso que queres?
- Não! - O grito de Aislinn cortou o ar, quebradiça como vidro fino. - Não podes fazer isso! - Bem segura no aperto de ambos os homens, ela agitou-se e lutou, o
cabelo voando de um lado para o outro.
- Quieta, Muirne! Boca calada!
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Ela obedeceu; Anluan sempre fora capaz de a comandar quando estava no Tor e o controlo ainda se mantinha, embora os olhos dela estivessem desesperados.
- Não tenhas medo - pediu Anluan à menina. - Diz-me ao ouvido, sim ou não. Ajudas-nos? Gostarias de ficar?
Ela anuiu, fixando o seu olhar solene no rosto pálido dele. Sussurrou algo, mas foi apenas para os ouvidos de Anluan.
- Muito bem - concluiu ele, levantando-se. - Terás de ir para ali, para o meio da grande estrela e ficar muito quieta até eu dizer que te podes mexer. És capaz?
Os lábios de Aislinn mexiam-se, embora ela não emitisse qualquer som. Imaginei as palavras dela: Não me mandes embora, por favor, por favor! Eu amo-te! Mas Anluan
estava a olhar para a menina enquanto ela percorria o caminho por entre as linhas de areia.
A criança colocou-se no centro, de pés juntos e com a trouxa apertada contra o peito. O luar brilhava sobre o seu cabelo de teia. Olcan varrera a areia de volta
ao seu lugar e depois retrocedera para junto da braseira; o padrão fora refeito. Anluan subiu novamente os degraus, voltou-se, ergueu os braços. A hoste estava,
mais uma vez, preparada.
- Erappa sinigilac oigell Mitats ihim erappa!
Uma deslocação, um redemoinhar em torno do círculo. O frio era tão profundo como o gelo mais agreste de Inverno. O tempo pareceu parar o seu curso; uma nuvem repentina
obscureceu a Lua. A criança deu um gemido de terror e deixou cair o lenço bordado. Uma rajada sobrenatural apanhou a pequena trouxa, arrastando-a pelas lajes para
um canto no interior do pentagrama, perto do lugar onde ambos os guerreiros mantinham Aislinn cativa. Rápido como um relâmpago, o pé de Aislinn passou por cima da
linha e pontapeou a trouxa para fora do alcance da criança.
- O meu bebé! - gritou a menina. - Preciso do meu bebé!
- Vem buscá-lo, então - provocou Aislinn, com a voz esganiçada e rouca, como se lhe custasse desobedecer à ordem de Anluan. - Vá lá, pensei que fosses corajosa,
não é, pequena espia? Corre até lá e agarra o teu precioso bebé. Não cuidaste muito bem dele, pois não? Agora não passa de uma trouxa de farrapos.
A menina vacilava, tremia, numa ânsia de correr e agarrar de volta a sua querida boneca, mas manteve-se quieta porque prometera. A meu lado, Anluan inspirou irregularmente.
Estava tudo por um fio. Uma palavra errada, um gesto fora do lugar e fracassaríamos de novo. Não podíamos pedir à criança que o fizesse segunda vez; ouvíramos uma
nota de puro terror na sua voz.
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Gearróg murmurou algo e largou Aislinn. Cathaír continuou a agarrá-la com firmeza. Gearróg baixou-se para recuperar a trouxa e depois deslocou-se para o centro do
pentagrama, ajoelhando-se para colocar o lenço nas mãos da criança. Ela soluçava de medo. Ele pegou-lhe ao colo; instalou-a na sua anca.
- Está tudo bem, pequenina - sossegou-a. - Vamos fazê-lo juntos, tu e eu. Um jogo de faz de conta. Estamos a fazer de conta que somos corajosos cães de guarda, como
Fianchu. - Olhou para Anluan e anuiu como que para lhe dizer Podes prosseguir.
Não havia como voltar atrás. Nem como pensar para além do momento presente.
- Egruser! - gritou Anluan. - Egruser!
E, enquanto ele dizia as palavras rituais, um grito irrompeu através do círculo, um dilacerante gemido de angústia:
- Nãooooo! - A lutar ainda contra o encantamento, Aislinn desva-neceu-se. As sombras dançavam. O archote apagou-se, deixando o círculo praticamente na escuridão.
Outra rajada de vento. As folhas estremeceram nas árvores, o padrão de areia foi soprado pelas lajes fora.
No tempo de um fôlego, a hoste desapareceu. Entre as pontas da estrela ritual, os espaços estavam vazios. No centro, estava uma figura leal, com os pés afastados
e a cabeça erguida, e nos seus braços uma pessoa mais pequena, cujo cabelo já não era de teia mas escuro como boa madeira de carvalho.
- Magnus - pediu Anluan numa voz que não parecia a dele -, acende o archote outra vez.
- Gearróg? - Desci os degraus, sem ter a certeza do que estava a ver, mas sabendo que acabara de testemunhar um acto de uma tal coragem altruísta que ficara estupefacta.
A luz brilhou quando Magnus tocou com o archote na braseira e o ergueu bem alto.
- Por todos os santos - disse ele, em tom de assombro. Gearróg pousou a criança no chão e ela correu para mim. A luz do archote o seu cabelo brilhava num castanho
lustroso, o seu rosto era rosado. Quando lhe peguei ao colo, senti-a quente e real. Gearróg examinava as mãos, mexia os pés, tocava no rosto, como se mal pudesse
acreditar que ainda ali estava.
- Eu... - disse ele, não acreditando. - Eu posso...
Sem uma palavra, Anluan caminhou para ele e abraçou o guarda. Olcan foi buscar outro archote e tornou-se óbvio que algo verdadeiramente surpreendente acontecera.
Ali, diante de nós, estavam dois seres
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vivos: uma menina de cinco anos e um homem bem constituído de trinta e cinco, talvez. O sangue corria-lhes debaixo da pele, os seus corpos eram de carne e osso.
Gearróg colocou uma mão de encontro ao peito.
- Está a bater como um tambor - confirmou ele, maravilhado. - Bom Jesus, meu senhor, fizeste um milagre.
- Se é um milagre - respondeu Anluan com a mão no ombro de Gearróg -, não foi obra minha. Não acredito que uma tal mudança maravilhosa pudesse ser feita pelo proferir
de um encantamento cujas origens repousam sobre um negro trabalho de feitiçaria. Esta... Esta transformação não foi provocada pela minha tentativa incerta de reverter
o feitiço de Nechtan, mas pelo teu acto de altruísmo, Gearróg, e pela confiança amorosa da criança. - Ele olhou para mim e para menina que eu tinha nos braços. Vi
que depois daquele longo dia que o tinha posto à prova tantas vezes e de tantas formas, ele estava prestes a chorar. - Temos de encontrar um nome para ti, pequenina
- prosseguiu Anluan. - Não podemos ter uma filha sem nome.
- É tarde - constatei, lutando para me agarrar ao mundo real com os seus desafios práticos e as suas rotinas reconfortantes. - Ela já devia estar na cama. - Emer,
pensei enquanto levava a nossa filha ao colo para dentro de casa. Se Anluan concordasse, dar-lhe-íamos o nome da sua mãe.
Ninguém conseguiu dizer muito mais. A imensidão do que acontecera chocara-nos profundamente. Estávamos demasiado atordoados para sentir felicidade perante o nosso
sucesso, demasiado espantados para absorver as consequências daquela noite de profunda mudança. Cada um de nós refugiou-se nas coisas comuns, nas pequenas coisas
que nos ajudam a lidar com o que é demasiado grande para as nossas mentes abarcarem. Gearróg levou a criança ao colo para os aposentos de Anluan enquanto Magnus
encontrava uma pequena enxerga de palha e um ou dois cobertores. Adormeceu antes de a deitarmos na cama improvisada. Aconcheguei a trouxa bordada dentro das cobertas,
ao lado dela. Anluan foi até à capela, para ver se estava tudo bem com os feridos e com quem deles cuidava, e regressou com a notícia de que até mesmo o ferido mais
grave se estava a aguentar. Gearróg ofereceu-se para ficar de guarda durante a noite, enquanto dormíamos. Anluan agradeceu-lhe solenemente e respondeu-lhe que nem
sonhasse com isso. Se Gearróg estava preocupado com a nossa segurança, prometer-lhe-íamos aferrolhar a porta até ao nascer do Sol.
- Também tu tens de dormir - esclareceu ele.
- Dormir - balbuciou Gearróg num tom abismado. - Há cem anos que não durmo. - Um longo bocejo tomou conta dele.
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- Vem daí, então - convidou Magnus da entrada, onde estava com Olcan. - É melhor encontrarmos uma cama para tu dormires. Mas talvez nós os três possamos partilhar
um jarro de cerveja antes, eh?
Anluan fechou a porta, empurrou o ferrolho e ficou muito quieto durante um momento, sem se voltar.
- Estás bem? - perguntei-lhe. Magnus trouxera-nos uma vela; a sua luz bruxuleante dançava pelo quarto. Alguém arrumara o lugar, endireitando as roupas de cama e
removendo os vestígios do nosso esforço desesperado para salvar a vida de Anluan. Uma lembrança desse momento ficaria comigo para sempre.
- Penso que sim, Caitrin. Aconteceram tantas coisas hoje que poderei ter de passar o resto da minha vida a tentar compreender tudo. Uma mudança tão grande. Sinto-me
como se tivesse sido voltado do avesso e de cabeça para baixo. E no entanto...
Sentei-me na borda da cama e comecei a desapertar o meu corpete.
- E no entanto parece que só consigo pensar na oportunidade que estarei a perder esta noite, uma vez que estou demasiado cansado para fazer mais do que meter-me
debaixo das cobertas, abraçar-te e dormir. - Anluan sentou-se a meu lado e inclinou-se para descalçar as botas.
- Temos sempre amanhã - disse eu. - Deixa-me ajudar-te a fazer isso.
VERÃO
O jardim de Irial está repleto de cor: as madressilvas cobrem os muros, os canteiros de alfazema zumbem de abelhas, a folhagem cinzento-esverdeada do gigantesco
arbusto de consolda abriga a nossa planta de sangue-do-coração que deu cinco pés esta estação. O bebedouro hospeda uma multidão de pardais chilreadores. Streak,
o terrier, corre como um doido pelo caminho, perseguido por uma Emer enlameada. A nossa filha cresce depressa; o cabelo dela está suficientemente longo para entrançar
e já perdeu dois dentes de leite. A noite de Todos os Santos de Nechtan trouxe a morte de Aislinn. A noite de Todos os Santos de Anluan deu vida à nossa filha e
ao seu protector.
Observo-os da janela da biblioteca. Mais de um ano se passou desde o dia em que subi pela primeira vez o monte até Whistling Tor e conheci um homem com cabelos de
fogo e pele de neve, um homem deformado que gritou comigo e quase me afastou com o susto. Agora aqui estou. Esse homem deformado é o meu bem-amado marido. Temos
a nossa filha e mais um filho a caminho. E eu tenho a minha primeira encomenda: copiar um livro de versos clássico para Fergal de Silverlake. Fergal quer maiúsculas
decoradas, margens ornamentadas e um toque de folha de ouro, e irá pagar o preço justo. O trabalho corre bem. É uma alegria retomar novamente o meu ofício passado
tanto tempo, perdendo-me nos seus pormenores intrincados e ver algo de belo florescer diante de mim numa folha branca. Tive de banir Emer da biblioteca. Com as melhores
intenções do mundo, ela entra em qualquer aposento como um remoinho de vento, geralmente com Streak atrás dela, e aqui existem artigos preciosos, os livros de anotações
de Irial, os materiais de escrita e outros documentos, agora guardados em caixas. Pusemos a história negra da família de Anluan para trás, mas jamais a esqueceremos.
Gearróg está agora no jardim, com o cesto por cima do braço. Emer gosta de recolher os ovos. Olcan, que está a trabalhar na quinta esta manhã, adora ver a criança
e o pequeno cão, pois ainda sente a falta de
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Fianchu. Gearróg pega na mão de Emer e saem pela arcada, com Streak a dançar-lhes em torno dos pés.
Ah, Gearróg! Só falou comigo uma vez acerca daquela noite e de como se sentiu por desistir da oportunidade de se reunir aos seus entes queridos no lugar que Cathaír
chamava a terra para além do vento. Queria-o tanto. Ainda me lembro da forma como ele se deixou cair de joelhos com as mãos por cima do rosto quando soube que era
possível. Mas Gearróg é um homem pragmático. Sabe que tem um lugar aqui. Anluan encarregou-o da defesa da nossa casa. Os normandos poderão ter perdido o interesse
em Whistling Tor, mas isso não significa que tenha terminado a ameaça à nossa parte de Connacht.
Além disso, acrescentou Gearróg quando falámos deste assunto, a nossa casa tem poucos ajudantes para fazer o que quer que seja e ele pode muito bem ordenhar vacas,
levar mensagens ou cavar o canteiro dos vegetais. Quanto à família dele, acabará por vê-los um dia. Talvez Deus queira que assim seja. Talvez tenha de viver o resto
da sua vida para poder compensar as coisas erradas que fez antes.
O bom tempo está a trazer todos para o jardim de Irial hoje. Aqui está Maraid com um chapéu de abas largas e um cesto de costura, atrás dela, uma Etain que acabou
de aprender a andar, com as suas pequenas mãos bem seguras nas enormes de Magnus. Orgulhosa do seu feito, a bebé sorri enquanto cambaleia ao longo do caminho; o
sorriso de Magnus é quase tão largo como o dela. Maraid fala com ele, voltando a cabeça, e se ela não é capaz de ver o que paira nos olhos dele enquanto lhe responde,
eu sou. A minha irmã veio na Primavera, para assistir ao nosso casamento, e ficou muito mais tempo do que pretendia. Ainda sofre por Shea. Mas o tempo está, lentamente,
a sarar essa ferida, o tempo e o amor que a rodeiam a ela e à filha aqui em Whistling Tor. Magnus é um homem paciente. Ela já gosta muito dele; a sua força e gentileza
são exactamente aquilo de que ela precisa. Com o tempo, creio que ela acabará por amá-lo.
- Já terminaste o trabalho desta manhã? - Anluan está junto à entrada interior, com uma mão na ombreira. Pergunto-me há quanto tempo ali está, observando-me sem
emitir um som.
Levanto-me e atravesso a biblioteca, ele estende os braços para me receber. Tem um aspecto cansado, mas é um cansaço bom, provocado pelos longos dias de trabalho
na reconstrução dos nossos laços com a comunidade para lá do Tor. Ele, de todos nós, carregou o fardo mais pesado, e continua a fazê-lo. A hoste poderá ter partido,
mas existem novos desafios, os que todos os chefes tribais de Erin enfrentam nestes tempos conturbados. Encostando-me a ele, no calor do seu abraço, eu digo:
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- Emer contou-me que ouviu novamente o cavalo na noite passada. Um relinchar e um chocalhar de ossos.
- Tem saudades de Eichri, sem dúvida. Assim como eu, mais do que consigo expressar. E de Rioghan; não tinha percebido o quanto dependia da sua amizade e dos seus
sábios conselhos. Espero que eles sejam felizes onde quer que estejam.
- Estão sentados de frente um para o outro, a trocar gracejos e a fazer apostas num lugar para lá da morte, imagino. - É difícil sorrir, mas faço-o por Anluan. -
Vem, juntemo-nos aos outros por um momento, antes de tu e Magnus saírem para a vossa reunião. Sabias que o sangue-do-coração já está a florir? - Maraid dissera-me
que tentaria fazer a tinta quando as flores estivessem prontas. Isso agrada-me, uma vez que significa que ficará pelo menos até ao Outono. - Anluan - digo eu, ao
pararmos junto do limiar da porta.
- Hum?
- Eles ficariam tão orgulhosos se te vissem agora. Refiro-me a Irial e a Emer. Os nossos filhos terão o futuro que o teu pai queria para ti.
- Creio que eles olham por nós - diz Anluan, surpreendendo-me. - Os espíritos bons, as almas dos entes queridos que partiram. Sinto a presença do meu pai no jardim.
Deve estar feliz por ouvir aqui as vozes de crianças, por ver gente ocupada de um lado para o outro, por saber que a maldição que cobriu o Tor de sombras durante
tanto tempo foi finalmente levantada.
Ouve-se um choramingar vindo do jardim quando Etain dá um tombo. Magnus pega-lhe ao colo e embala-a contra o ombro, como se ser pai fosse tão simples como fazer
uma boa tarte. Para ele, talvez seja. A bebé já está a sossegar nos seus braços.
- Vem cá para fora, Caitrin! - chama a minha irmã. - Magnus e eu estamos em desacordo em relação ao método de preservação dos ovos e precisamos de ti para arbitrar.
Anluan dá-me a mão e saímos juntos para o jardim de Irial.
Juliet Marillier
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