Biblio "SEBO"
SANGUE FRIO
Segunda Parte
A casa da família de Tilda Brown fora construída no lago durante os anos setenta. Era constituída por um conjunto de rectângulos e cubos brancos, com um toque de tradição sob a forma de remodelações recentemente efectuadas, que lhe haviam imprimido linhas arquitectónicas tradicionais, colunas quadradas e varandas em socalcos a menos de dois metros do chão, as quais fizeram lembrar a Lorraine cotos de asas de alguma ave não voadora. Apesar de tudo, a simplicidade das suas linhas não se devera a falta de dinheiro, pois este ainda se encontrava bem patente: um descapotável de marca europeia e um sofisticado jipe estavam estacionados em frente, e via-se um jardineiro a trabalhar no lado de fora. Havia um pátio amplo, de aparência cuidada, logo a seguir ao declive, e Lorraine disse ao motorista, um rapaz negro e taciturno de vinte anos, que estacionasse a uma certa distância, pois queria ir a pé até às traseiras.
Espere por mim, está bem?
Sim, minha senhora, fui contratado para o dia inteiro. Lorraine conseguia ver, do cimo da elevação, um campo de ténis e uma piscina, ambos dotados de holofotes e com um pavilhão cubista ao lado. Junto da piscina uma jovem loura tomava banhos de sol numa cadeira baixa e comprida; Lorraine deu a volta até à frente da casa antes de a rapariga Miss Tilda, segundo presumia dar pela sua presença. Tocou à campainha, e a porta foi aberta por uma criada fardada de cor-de-rosa.
Faça o favor de entrar, Miss Page. Miss Brown encontra-se na piscina e manda perguntar se deseja uma bebida fresca.
Agradeço.
Tilda Brown exibia um magnífico bronzeado integral, o seu cabelo louro, impecavelmente cortado pela altura da cintura, era sedoso, e usava o mais ínfimo dos biquinis.
Lorraine, consciente do calor, ficou aliviada ao ver Tilda levantar-se da sua cadeira para banhos de sol e sugerir que fossem para a casinha da piscina que, além de ter ar condicionado, ficava à sombra de palmeiras frondosas. A jovem sentou-se numa cadeira de «verga» de aço inoxidável, com almofadas forradas em spandex rosa-vivo, e fez sinal a Lorraine para que a imitasse, instalando-se na que estava ao lado.
Hoje está realmente muito calor comentou Tilda, sorrindo, mas já estou a arrepiar-me por ter saído debaixo do sol. Se me dá licença vou buscar algo com que me cobrir...
Lorraine retribuiu o sorriso. A criada apareceu para servir limonada caseira. Lorraine já tinha meio copo bebido quando Tilda voltou, envolta num longo quimono de seda, de óculos escuros com armações brancas e a cheirar a flores. Estava muito nervosa; as mãos miúdas tremiam-lhe ao servir-se do refresco.
Não se importa de me falar da sua relação com a Anna Louise Caley?
Claro, ela é a minha melhor amiga. Somos as duas daqui, ou melhor, não que ela viva sempre aqui como a minha família, mas conhecemo-nos era eu muito pequena, sabe, devia ter uns seis ou sete anos. Depois ficámos muito tempo sem nos vermos, uns cinco anos, mas, como fui para a UCLA, voltámos a encontrar-nos e foi como se o tempo não tivesse passado. Foi bom receberem-me tão bem em casa dela porque eu às vezes sentia-me muito só.
Portanto, conheciam-se muito bem?
É verdade, e sinto muitas saudades dela.
Lorraine pediu licença para fumar e Tilda esboçou um gesto de indiferença, aproximando um pequeno cinzeiro cromado.
Tiveram uma discussão na véspera de ela sair de LA observou Lorraine acendendo o seu cigarro.
Costumávamos discutir muito, Miss Page, pois nem sempre concordávamos uma com a outra, apesar de sermos grandes amigas.
A rapariga atirou o cabelo sedoso para cima do ombro com uma mão de unhas elegantemente tratadas e pintadas de rosa laçado, a condizer com as dos pés. Lorraine invejava as Tilda Brown daquele mundo, a sua capacidade para nunca transpirarem. Tudo ali à volta deixava transparecer a existência de muito dinheiro e via-se que aquela jovem, apesar dos seus poucos anos, jamais passara pela menor necessidade na vida.
Pode dizer-me qual foi o motivo da discussão? Passou-se na manhã de catorze de Fevereiro do ano passado.
Tilda ficou com uma expressão sombria.
Bem, como sabe, a Anna Louise era uma excelente jogadora de ténis, e costumava impacientar-se comigo por eu não ser capaz de estar à sua altura. Mesmo durante o nosso aquecimento, punha-se com grandes jogadas, e eu ficava furiosa porque não estávamos a jogar a sério. Mas com a Anna Louise... Hesitou.
Sim, continue, Tilda.
Bem, a Anna Louise era competitiva em tudo e eu comecei a fartar-me disso. Disse-lhe que já não queria voltar a jogar, mas ela atirou-se ao ar e fez uma birra tremenda. Só lhe digo, Miss Page, que, quando se zangava, perdia completamente a cabeça e era capaz de dizer coisas horríveis. Fiquei farta daquilo e disse-lhe que, ou ela me pedia desculpa, ou eu não vinha com eles para cá, de modo algum. Preferia viajar sozinha do que na companhia de uma pessoa tão má e irascível como ela estava a ser comigo... Pois recusou-se a fazê-lo... e eu então fui ter com Miss Phyllis e informei-a de que queria partir imediatamente.
Assim, sem mais nem menos?
Exacto. A Phyllis pediu ao Mário que me levasse ao aeroporto e até tratou de me arranjar o bilhete. Telefonei aos meus pais a pedir que me fossem buscar. Disse-lhes que não queria falar sobre o assunto, mas que nunca mais iria ficar a casa da Anna Louise.
Lorraine acabou de beber o conteúdo do copo e Tilda apressou-se a enchê-lo de novo. Tirou, finalmente, os óculos de armações brancas. Lorraine estivera com vontade de lhe ver os olhos, para assim se certificar da facilidade com que a jovem era capaz de mentir.
Não voltei a vê-la. E tenho-me sentido muito culpada. Na última vez em que estivemos juntas, discutimos imenso, dissemos todas aquelas palavras feias uma à outra, e se... se ela nunca mais voltar, eu... Cada vez me sinto pior, às vezes choro porque sei que teríamos feito as pazes, de certeza absoluta, pois era o que acontecia sempre.
Portanto, ela não veio visitá-la quando chegou com os pais?
Não, não veio, mas quem me dera que tivesse vindo.
Lorraine tomou mais um gole da sua limonada bem gelada, reflectindo sobre a melhor maneira de avançar. Tilda parecia verdadeiramente entristecida com o desaparecimento da amiga. Em determinada altura, chegara mesmo a ter lágrimas nos olhos azul-acinzentados; porém, nunca olhara directamente para Lorraine e estava excessivamente nervosa.
Onde se encontrava na noite em que a Anna Louise chegou a Nova Orleães?
Em casa. Tive uma sessão de prova de roupa, depois jantei com os meus pais e fui deitar-me, deviam ser umas dez da noite.
Ela nunca chegou a aparecer, para fazerem as pazes?
Não, mas, como disse, quem me dera que o tivesse feito. Agora não faço outra coisa senão rezar para que ainda esteja viva, pois hei-de compensá-la por aquela briga parva que tivemos... E se foi parva!
Conhece alguém chamado Polar? Tilda franziu o sobrolho.
Refere-se aos ursos-polares? Não, nunca ouvi falar de ninguém com esse nome.
E quanto ao Tom Heller?
Oh, esse conheço, foi meu colega.
Lorraine estava a ficar irritada com a vozinha cândida da rapariga. Achou que já esperara tempo suficiente.
Alguma vez foi ao Viper Room com o Tom? Bingo, as bochechas ficaram fortemente rosadas.
Viper Room...
Os olhos de bebé pestanejaram e as bochechas ficaram ainda mais vermelhas quando Lorraine puxou da fotografia que mostrava Anna Louise em plena orgia com a rapaziada, no Viper Room.
Oh, Deus me valha...
Hum, Deus me valha a mim. Isto foi tirado na noite que antecedeu a vossa pequena briga, não foi? A menina estava lá em cima, não é verdade, na secção privada do Viper Room?
Tilda foi-se rapidamente abaixo. Inclinou a cabeça e começou a soluçar, implorando a Lorraine que não contasse nada aos pais. Se a família alguma vez viesse a saber, ela ficaria cheia de problemas.
Lorraine passou a Tilda um lenço de papel tirado de uma caixa forrada no mesmo tecido sintético que as almofadas, e a jovem assoou-se.
Estou tão envergonhada. Chorou durante algum tempo até, por fim, se acalmar. A Anna Louise costumava tirar comprimidos à mãe. Quando os experimentámos pela primeira vez, ficámos só um pouco malucas, mas depois começou a tomá-los regularmente, sabe, e obrigava-me a beber vodca, uma bebida de que ela gostava muito. Depois íamos até aos clubes e... nem imagina a vergonha que sinto.
Ao pé de mim não precisa de estar assim observou Lorraine, encorajando-a a falar.
Não me lembro do que costumávamos fazer ou do que eu fazia, pois desmaiava sempre.
Mas faziam sexo, não é?
A jovem abanou a cabeça em sinal afirmativo, recomeçando a chorar.
Acho que sim.
Vocês brigaram na manhã a seguir à sua ida àquele clube com a Anna Louise... Portanto, é natural que estivessem com uma certa ressaca, não? Diga-me lá: a briga foi por causa do ténis ou de algo mais importante?
Tilda suspirou.
Oh, foi horrível, ela às vezes era péssima. Quis certificar-se de que as nossas histórias batiam certo, para que os nossos pais não descobrissem. Estávamos no campo de ténis e, é como diz, não jogámos. Eu estava com uma dor de cabeça terrível, sentia-me agoniada e Mister Caley passou por nós, a caminho do trabalho. Quando parou e me perguntou se estava a sentir-me mal, desatei a chorar. Sei que o que fizemos foi muito feio, mas ela conseguia levar a dela sempre avante, compreende? Ameaçou-me de que, se não lhe fizesse as vontades, contaria tudo aos meus pais.
Lorraine esperou que a rapariga secasse as lágrimas e depois voltou a recostar-se.
Mister Caley foi muito gentil prosseguiu Tilda, fez-me sentar e perguntou-me se eu não estava a sentir-me bem, se havia algum problema. Deu-me mesmo o seu lenço... eu só chorava e chorava, pois não podia contar-lhe nada. Ficou lá sentado ao pé de mim até eu parar de chorar e disse que, se houvesse algo a preocupar-me, era sempre melhor desabafar, que, se alguma vez quisesse falar com ele, bastava telefonar-lhe. Estava tão preocupado, tão amável e delicado, assim como um amigo...
A Anna Louise estava junto de vocês?
Não, fora para dentro da casa da piscina, afirmando que ia dar um mergulho e...
E? perguntou Lorraine impacientemente.
Oh, Mister Caley foi-se embora. Deu-me um beijinho querido na cara e disse que tinha de ir para o escritório. Foi depois disso que ela se atirou a mim.
Quem?
A Anna Louise, claro. Atirou-se logo a mim aos pontapés e aos socos, completamente enlouquecida. Bateu-me com a sua raqueta com toda a força, depois atirou-me ao chão e pôs-se em cima de mim a esgatanhar-me a cara e a puxar-me os cabelos. A certa altura empurrou-me a cabeça contra o chão.
Terá a Anna achado que a Tilda contara ao pai dela a ida ao Viper Room? E por isso a atacou?
Sim, disse-me que me vira a falar com o pai. Não me dava ouvidos... Declarou que ia fazer com que eu me arrependesse. Eu também lhe bati e aí ela cuspiu-me para a cara e gritou que iria contar aos meus pais, a toda a gente, que eu andava a atirar-me ao pai dela. Fiquei tão chocada... nem consegui responder.
Mas ele estava só a ser paternal e amigável, não?
Ora, claro que sim. Mas Anna Louise é louca por ele.
Espere aí, que quer dizer com essa do louca por ele? Tilda crispara as mãos.
Andava obcecada pelo pai, só falava nele, afirmava que nenhum homem se lhe comparava e que...
Tilda desviou o rosto e voltou a corar fortemente.
Continue, Tilda, e que mais?
Disse que eram amantes, que estavam apaixonados. Lorraine ficou perdida por instantes, tal o choque sentido com as palavras de Tilda.
Ela disse mesmo que tinha uma relação sexual com o pai, Tilda?
Sim, sim, foi o que disse.
E a Tilda acreditou?
Tilda retorceu os dedos, puxando por um anel.
Tive de me ir embora, Miss Page. Corri para dentro de casa e pedi à Phyllis que me arranjasse um bilhete de avião, não queria voltar a vê-la nunca mais.
Lorraine tinha o coração aos pulos.
Não me respondeu à pergunta, Tilda, e olhe que isto é muito sério. O Robert Caley e a filha eram amantes?
Tilda passou a língua pelos lábios e retraiu-se, mal se fazendo ouvir.
Não sei. Ele era muito simpático comigo, de verdade, mas nunca fez nenhuma tentativa desse género.
E quanto às outras amigas da Anna Louise?
Eu era a sua única amiga verdadeira. Ela não podia falar dos seus problemas com ninguém, todos a achavam maravilhosa, não a conheciam a sério. E ninguém gostava de lá ir a casa porque Mistress Caley agia de forma estranha, sabe como é, completamente embriagada e às vezes tão fora de si que se tornava simplesmente embaraçoso.
Lorraine ficou mais meia hora, levando Tilda a repetir cuidadosamente todas as declarações feitas à Polícia e as razões pelas quais nunca admitira a verdade no que dizia respeito à discussão tida com a amiga na tal manhã, razões que se resumiam numa só: o receio de que se soubesse que ela, tal como Anna Louise, costumava ir a clubes nocturnos completamente pedrada e embriagada. Tilda parecia não se dar conta da importância que assumia a possibilidade da relação de Robert Caley com a filha ser de carácter sexual ou não. Quando Lorraine a pressionou no sentido de fornecer provas, começou a ficar agitada e chorosa.
Tilda, seria só imaginação da Anna Louise ou acha que havia mais do que uma relação entre pai e filha?
Tilda recusou-se a olhar para Lorraine, mordiscando o lábio inferior. Lorraine explicou-lhe pacientemente que, se o que ela dissera era verdade, talvez fosse essa a razão que estava por trás do desaparecimento da Anna Louise, a razão que, se calhar, a levara a fugir, e que, provavelmente, ainda estava viva, mas receosa de regressar. O que Tilda, por fim, confessou fez com que Lorraine ficasse de rastos.
Ela contou-me que dormiam juntos e que ele a fez tomar a pílula por ter medo de que engravidasse.
Quando Lorraine voltou para junto do seu motorista, deixara Tilda Brown reduzida a uma boneca de trapos: o rosto inchado de chorar, o nariz vermelho de se assoar e até os pequenos lábios rosados pareciam deformados e feios. Lorraine acreditava instintivamente nas razões de Tilda para não admitir o motivo que estivera na base da discussão entre as duas raparigas. Também ficara a conhecer mais uma razão para que continuassem a considerar Robert Caley o suspeito número um. Lorraine precisava de uma bebida a sério, mas como tinha medo de mandar parar o carro para a arranjar, ordenou ao motorista que a levasse até à mansão de Lloyd Duval. O choque inicial que sentira, ao saber de Robert Caley e Anna Louise, havia-a feito passar por uma espiral de emoções. O facto de ter dormido com ele na noite anterior levava-a a desejar não acreditar no que ouvira; mas porque mentiria Tilda Brown? A pouco e pouco, a sensação de traição e insensatez que a dominara transformou-se numa raiva ardente. Robert Caley tinha realmente um motivo para se livrar da filha, e ela iria prová-lo.
Nick praguejou, ciente de que se apeara do eléctrico algumas paragens antes da necessária, de modo que se pôs a estudar o seu próprio mapa de ruas, ignorando o impecável conjunto de mapas de ruas e locais que Rosie lhe dera, juntamente com números de telefone de restaurantes, empresas de táxis, etc. Não gostava de andar carregado com mais do que aquilo de que necessitava, ou algo que não pudesse enfiar no bolso de trás das calças. Encontrava-se perto do novo Convention Centre, na Lafayette, à procura da Agência de Detectives Francis X. Roper. Tivera um amigo seu a trabalhar aí e, apesar de não ter a certeza de o encontrar, valia a pena tentar.
Assim que descobriu a Agência Roper, pôs-se a apreciá-la antes de entrar. Tratava-se de um estabelecimento de aspecto surpreendentemente elegante. A recepcionista, uma ruiva espampanante de óculos de aros verdes, lançou-lhe um olhar avaliador que arrasaria qualquer outro que não Nick, retorquindo-lhe secamente que nunca ouvira falar em nenhum Leroy Able fazendo com que até o nome soasse detestável. Aquela era uma agência topo de gama, que tratava de casos de fraude e trabalhava de perto com a Polícia. Pareceu conferir grande importância à palavra «Polícia».
Por acaso tem alguma agenda com moradas?
Consulte a lista telefónica.
Tem alguma?
A mulher franziu os lábios e empurrou a enorme lista de páginas amarelas, que tinha em cima da secretária imaculada, na direcção de Nick. Este folheou-a, lançando olhares disfarçados aos cartazes e anúncios que enchiam as paredes: pessoas desaparecidas, vigilância doméstica activa, instalação de câmaras de vídeo, trabalho de vigilância activa. Um dos cartazes proclamava que a agência considerava todos os casos prioritários.
Está ocupada? perguntou, enquanto verificava os As. Ela ia a responder quando o telefone tocou. Agarrou no auscultador e disse secamente o nome da agência, escutando, sem perder Nick de vista. De repente adoptou uma voz doce para o potencial cliente que aparecera no outro lado da linha.
Sim, senhor, temos seis investigadores a tempo inteiro. Todos com licença e altamente qualificados. Trabalhamos com o nosso próprio equipamento de filmar, que inclui uma variedade de lentes de longo alcance e binóculos de grande potência. As nossas equipas também estão munidas de aparelhos de comunicação via rádio e de telemóveis.
A seguir pegou numa grande agenda de secretária, enquanto Nick tomava nota da morada de Leroy Able. Se o colega ainda trabalhava ou não, era algo que teria de descobrir.
Agradeceu à mulher dos óculos verdes, que pareceu nem sequer dar pela sua partida, e seguiu para a Magazine Street, que ficava no bairro dos armazéns. Quando descobriu a morada de Able, quis ter a certeza de que estava no sítio certo, pois no rés-do-chão havia um ginásio de boxe.
Nick subiu as escadas que conduziam ao ginásio e espreitou pela porta dupla.
Alguém conhece o Leroy Able?
Andar de cima respondeu um lutador de boxe cinquentão que estava a socar desalmadamente um saco.
Leroy encontrava-se a folhear ociosamente a Times-Picayune, com uma chávena de café à sua frente e os pés apoiados em cima da secretária. No ar pairava o inconfundível cheiro da chicória de Nova Orleães.
O Leroy Able está? perguntou Nick. O jornal baixou lentamente.
Quem deseja saber?
Um velho amigo. Merda, és tu, não és? Leroy tirou lentamente as botas de cima da secretária e olhou para Nick fixamente. Sou Nick Bartello, do Departamento de Narcóticos de LA. A última vez que te vi foi há uns dez anos ou mais.
Ah, sim? Bem, eu cá nunca tive grande memória para caras, portanto como é que dizes que te chamas?
Merda, homem, Nick, Nick Bartello.
Ah, sim, sim, já me lembro do nome. Senta aí, queres um café?
Nick sentia-se um pouco aborrecido por Leroy não mostrar reconhecê-lo minimamente.
Fui até à agência onde certa vez me disseste que trabalhavas.
Leroy passou a Nick um copinho de papel com café simples e empoleirou-se na ponta da sua secretária.
Sabes o que mais detesto? As pessoas que se põem a falar com sotaque sulista mal chegam a Nova Orleães. Que treta é essa de seres um velho conhecido, Bartello? Leroy deu uma pancadinha na cabeça de Nick e sorriu-lhe abertamente Por um instante, aquilo que me fez hesitar, pá, foi esse gris-gris que trazes ao pescoço.
Nick mexeu no fio de cabedal e nos ossos.
Não sei que merda é esta, foi-me dada ontem à noite num bar qualquer.
Leroy apalpou os ossos e ergueu as sobrancelhas.
Bem, deves ter caído nas graças da pessoa, isto não é treta para turista, é mesmo a sério.
Nick encolheu os ombros.
Então, que tal vai a vida?
Leroy voltou a instalar-se na sua cadeira giratória.
Ah, vai andando, faço umas massas que, ultimamente, invisto sobretudo no dentista, sabes...
Nick riu-se, enquanto Leroy se recostava e dava um grande bocejo, exibindo a esplêndida dentadura capeada a esmalte e ouro.
Pois é, pá, já se passou muito tempo desde o Departamento de Narcóticos de LA, mas ao menos não fiquei com a perna cheia de chumbo. E sou patrão de mim mesmo.
Portanto, tu sabes quem eu sou disse Nick, pegando no seu café.
Sei, mas por um segundo receei que tivesse ficado a dever-te alguma massa, o que não é o caso, pois não?
Nick disse que não com a cabeça e olhou em redor, observando o escritório. A piada de Leroy sobre o dentista não ligava bem com a realidade, pois tudo aquilo parecia estar a precisar de uma boa reforma e o negócio não devia andar de vento em popa.
Queres trabalho? perguntou Leroy, reparando no olhar curioso de Nick.
Não, isso tenho eu, e é por essa razão que me encontro em Nova Orleães.
Ah, sim, e do que se trata?
Do caso da rapariga chamada Anna Louise Caley, que desapareceu há onze meses.
Leroy sabia de quem se tratava.
Pois é, já ouvi falar, meteu muito da privada. Quiseram que eu participasse, sabias? Mas eu preferi não me meter, gosto mais de lidar com objectos.
Mas deves ter ouvido falar no assunto...
Claro, como te disse, na altura não se falava noutra coisa, mas tanto quanto sei ficou tudo em águas de bacalhau. Constou que a rapariga dera à sola... Isso acontece muito por estes lados, sabes, especialmente na altura do Carnaval. As miúdas vêm para cá aos magotes, vão para a cama com tipos, ficam pedradas e depois partem na companhia de algum vadio. A cidade atrai-as como um íman.
Esta é diferente, é podre de rica. Leroy apoiou-se nos cotovelos.
Nick, as miúdas ricas não são diferentes das outras. Gostam de ficar pedradas e de ir para a cama com tipos, de preferência em situações que ofereçam algum perigo. Depois voltam para a mamã e o papá, que as recebem de braços abertos.
Mas esta já desapareceu há onze meses.
Nesse caso diria que está morta.
Nick levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
E, eu também sou dessa opinião. A questão está em descobrir quem a matou, o que me dará um belo bónus.
Bem, eu gostaria de ajudar, pá, mas como te disse ando às voltas com este caso dentário.
Nick sorriu.
Então, o que é que te faz manter ao largo, hein? Leroy hesitou e de repente ficou sério.
Queres que eu seja sincero?
Claro que quero, quero que me digas tudo o que sabes e me possa ajudar.
Leroy passou a mão pelos caracóis grisalhos.
Está bem. Os Caley e os tipos com quem estás a lidar são gente daqui com muita massa. A Elizabeth Caley é considerada uma grande estrela nestas bandas, portanto, aparece muita gente com aldrabices, à cata da recompensa choruda que eles oferecem. Penso que anda à volta dos vinte e cinco mil dólares. Sei que, até à data, umas vinte pessoas afirmaram ter visto a rapariga, depois vai-se a ver e não é nada. Depois... Leroy balançou na sua cadeira. O dinheiro acaba-se e um tipo descobre que gastou metade dos seus honorários a obter resultados falsos. Portanto, eu fico-me pelo que já tenho. Nick acabou de beber o seu café.
Que sabes acerca de um velho negro tocador de jazz chamado Fryer Jones?
Leroy ficou a olhar para Nick, que remexeu nos ossos do fio que tinha ao pescoço.
Foi ele que me deu isto.
O Fryer Jones?
Isso mesmo, ontem à noite.
Ele é famoso na zona dele, o Bairro Francês... É a Ward Nine. A miudagem adora ir àquele bar, tocar uns trechos com ele e os velhotes... já foi um óptimo tocador de trombone. Ficam por lá, arranjam um bocado de droga, quando calha tocam umas coisas. Ele serve-se dos miúdos a seu bel-prazer, mas a Polícia não o chateia. O que as autoridades municipais querem é que não trafique às abertas nem se meta nas rotas principais dos turistas. Leroy esfregou o polegar contra o dedo médio a indicar dinheiro e depois recostou-se de novo. Eu diria que, neste momento, o Fryer vale muita massa. A sério, ele dirige aquele bar há dezenas de anos, tem um grupo de meninas a trabalhar para si, tudo em nome do jazz, irmão! Mas se queres a minha opinião sincera, não passa de um espertalhão, porque o que o prende àquele bar não tem nada a ver com os blues, mas sim com isso que trazes ao pescoço.
Nick tocou nos ossos.
O quê?
Leroy sacudiu a cabeça.
Não sabes, pois não? É suposto os gris-gris protegerem das maldições vodu, e o velho Fryer costumava ter alguns contactos nesse campo. Até te digo, acho mesmo que está ligado a uma das irmãs Salina.
Nick ficou tenso.
Espera aí, disseste Salina?
Disse assentiu Leroy. Uma chama-se Juda, a outra... merda, agora não consigo lembrar-me, mas casou. Eram autênticas princesas reais. Dizem que a... gaita, quem me dera recordar-me do nome, mas essa irmã da Juda tem uma filha, Ruby Corbello, com cerca de dezoito anos, que trabalha num cabeleireiro. À parte, faz umas passagens de modelo, e um desses grupos de negros está a preparar-se para a eleger sua rainha no Carnaval.
Nick puxou os jeans para cima.
Espera aí, vais demasiado depressa para mim, pá. Em LA há uma Juda Salina que lê cartas tarot, esse tipo de coisa...
Elas fazem muito mais do que ler o tarot, Nick. Se se trata da mesma Juda que é da família Corbello, é quase uma realeza nalgumas áreas... e não estou a falar em nada para turista ver. Parece que são mesmo a sério, vêm de uma linhagem de grandes rainhas vodu do século passado e são capazes de enfiar o temor a Deus dentro da cabeça das pessoas. Como te disse, o que faz a miudagem pairar muito ao pé daquela gente é mais do que a bebida e a droga, e se tu tivesses juízo nessa cabeça mantinhas-te afastado do Jones e de quem quer que se relacione com as irmãs Salina. Acredita que muito pouca coisa no mundo me faria passar a porta da casa delas, e só iria ao bar do Fryer por uma razão muito forte.
Nick sentiu-se perturbado; além disso, as pernas começavam a incomodá-lo depois de tanto andar. Esfregou-as com força com a palma da mão.
Salvei a vida ao tipo; portanto, é natural que tenha ficado em dívida para comigo.
Faz as malas e volta para casa, Bartello, não te deixes envolver nessa merda. Como te disse, não ficarás a lucrar nada.
Nick desceu as escadas penosamente, passou pelo ginásio onde, naquele momento, só se ouviam os arquejos violentos dos putos aos socos nos sacos de treino. Era estranho, mas sempre fora assim: quanto mais o alertavam para que se afastasse de algo, mais ele sentia a adrenalina a jorrar. Além disso, não acreditava nessa treta do vodu.
Lorraine sentou-se numa poltrona ampla e escorregadia, forrada a seda adamascada rubro-escarlate com flores-de-lis estampadas em dourado, enquanto Lloyd Dulay se instalava em frente, noutra igual. O velho magnata resolvera receber Lorraine na sua sala de estar para a impressionar com aquele expoente máximo de fulgor da sua casa: os seus melhoramentos naquela divisão haviam-se limitado a cobrir uma das paredes com espelhos do chão ao tecto, onde estavam reflectidas duas poltronas Hepplewhite que davam a impressão de se encontrar numa sala de espera de aeroporto. Por todo o lado se viam festões e ornamentos dourados os reposteiros, evidentemente, eram uma massa de tecido cor de milho presa de lado com laços cor de chocolate; a lareira exibia uns ornamentos em gesso dourado, ostentando um gigantesco espelho sobre a cornija e um guarda-fogo, em frente do qual se viam dois toros artificiais sobre um suporte. O medalhão central do tecto teria uns dois metros de diâmetro repletos de espigas, grinaldas e rosetas em estuque, e do meio dele pendia mais um esplêndido candelabro como se fosse um gigantesco lírio ornamental. Havia uma série de quadros com pinturas modernas abstractas pendurados por laços de tafetá, não havendo superfície na sala que não estivesse atravancada de candeeiros, bugigangas, bibelôs e arranjos volumosos de flores tanto frescas como secas. Lorraine detestou o lugar. Sentia-se incomodada, com a boca seca, de modo que a ideia de uma bebida vinha-lhe constantemente à cabeça, obrigando-se, porém, a afastá-la dos pensamentos.
Desejava falar comigo por alguma razão pessoal, Mistress Page?
É verdade, Mister Dulay.
O magnata acenou com a cabeça, agitando a cabeleira branca e olhou significativamente para o relógio.
Estou a investigar o desaparecimento da Anna Louise Caley.
Não me diga! Quem me dera ganhar um milhão de dólares por cada um dos ditos agentes com quem já falei. Francamente, não creio que haja mais nenhum ponto que possa acrescentar ao que já disse que ajude. Tenho negócios com Robert Caley e já conheço a linda mulher dele há mais de trinta anos, portanto, lido com a pequena Anna desde que me dava pela altura do joelho.
Lorraine detestou-o mais à sua voz tonitruante e aos seus modos condescendentes e autoritários. A casa monumental fazia-a encolher-se por ser o reflexo daquele homem: grande, ruidosa e pesada. Achou que devia haver um letreiro na porta da entrada a dizer «Tenho biliões de dólares, portanto vai-te lixar.»
Todos aqueles com quem já falei acerca de Anna Louise dizem o mesmo continuou Lorraine, que ela era ingénua, tímida e linda. Diga-me o que achava dela.
Dulay fechou os olhos.
Ela era tudo isso e também terna, meiga, com um sorriso que derreteria o coração de qualquer homem. Eu adorava aquela menina, Mistress Page, adorava-a.
O Robert Caley amava a filha?
O homem ficou descoroçoado durante uma fracção de segundo.
Ora essa, claro que sim, era o pai.
Lorraine olhou directamente para os gélidos olhinhos azuis.
Que opinião tem sobre o Robert Caley?
Dulay riu-se, no entanto, Lorraine sabia que ficara confuso.
Porque pergunta?
Lorraine aguentou-lhe o olhar desagradável e ele é que foi obrigado a desviá-lo.
Talvez andasse a dormir com a própria filha e esta tivesse motivos para desaparecer!
O homenzarrão ergueu-se em toda a sua estatura.
Se fosse um homem, atirava-a já contra aquela parede.
Mas não sou, apenas investigo o desaparecimento de uma menina, senhor.
Dulay pairou acima dela.
Deixe-me que lhe diga uma coisa, Mistress Page. Se eu desconfiasse sequer de que o que diz é verdade, eu próprio pegava numa pistola e matava o filho da mãe.
E se também descobrisse que Anna Louise não é tão inocente, doce, como todos pensam, como se sentiria?
Não estou a perceber, Mistress Page.
Lorraine tirou lentamente a fotografia da bolsa e os olhos dele estreitaram-se de desconfiança.
Pegou na fotografia com a manápula e ergueu-a de modo a receber luz, já que a vista, ao contrário da presença, não era tão forte.
Que diabo é esta nojeira?
Uma fotografia respondeu Lorraine suavemente.
Isso sei eu, mulher, mas onde, em nome de Deus, a arranjou? É que esta não é a menina que conheci, esta é... Santo Deus, que grande desgosto.
Talvez o Robert Caley também não seja o homem que conhece, portanto, que me diz dele?
Dulay estava verdadeiramente abalado.
A Elizabeth Caley tem conhecimento disto?
Tem.
E o Robert?
Não.
Dulay sacudiu a cabeçorra, deixando-se cair em cima da poltrona.
Gostava tanto dela como da minha própria filha adorada. Santo Deus, porque se terá ela submetido a uma coisa nojenta como esta?
Talvez porque se sentia violentada, irada, sei lá. Contrataram-me apenas para a encontrar, morta ou viva.
Está morta? Lorraine desviou o olhar.
Espero que não.
Dulay continuava a olhar para a fotografia, enquanto Lorraine ia ouvindo o tiquetaque do relógio que se encontrava em cima da cornija. A certa altura, Dulay puxou de um lenço de seda estampada e limpou os olhos.
Sei que a Anna Louise dispõe de um fideicomisso de montante elevado.
Dulay levantou imediatamente a cabeça, esquecendo a fotografia.
Mister Dulay, ando à procura de motivos que possam ter originado o desaparecimento da Anna Louise Caley. É por essa razão que lhe faço perguntas sobre o Robert Caley. O fundo é no valor de cem milhões de dólares.
Ah é? disse ele, em voz débil.
Também tenho conhecimento de que Mister Caley está no limite das suas possibilidades financeiras por causa do negócio do casino e...
Mistress Page, como já lhe disse, se o Robert Caley tocasse num só cabelo daquela menina, eu pegaria numa arma e daria cabo dele, não só por mim como também pela Elizabeth. Posto isto, não acredito nem por um instante que o homem que conheço há vinte anos tenha alguma inclinação desse tipo pela própria filha. A ideia é doentia, degradante e injusta. Não é um grande indivíduo, mas é um trabalhador incansável e ganhou o seu dinheiro com grande esforço. Eu faço parte do grupo de conselheiros que toma conta do dinheiro e dos investimentos da Elizabeth, além de ser amigo de confiança da família, de maneira que tenho de me certificar de que sai desta casa sem lançar calúnias sobre o nome do Robert Caley.
Lorraine recuperou a fotografia e voltou a enfiá-la no seu envelope.
Tem conhecimento de que a Elizabeth Caley sofre de uma toxicodependência grave?
Não, não acredito nisso.
Lloyd levantou-se e olhou-se arrogantemente nos espelhos que estavam por trás da cabeça de Lorraine, como que para confirmar as suas certezas na sua própria imagem. O objectivo do espelho naquele sítio era mais que evidente permitia a Lloyd desfrutar não só da visão da sua imagem, como do som da sua própria voz.
Posso dar-lhe a morada da clínica onde ela se encontra internada neste momento. Esperou que ele se sentasse, com expressão preocupada e confusa. Lamento que esta conversa o tenha perturbado, e como é evidente devo pedir o maior...
Nunca divulgarei o que acabou de me dizer, Mistress Page, jamais contarei a quem quer que seja, Deus me livre. Estou pasmado, pasmado... e chocado, porque se o que diz é verdade, aqueles que me são mais chegados não passam de uns mentirosos.
Não necessariamente disse Lorraine, sorrindo.
Como?
Lorraine fechou a pasta.
Talvez tenham preferido que não soubesse. Como investigadora, tenho a obrigação de descobrir o que se esconde abaixo da superfície.
A sua missão não é encontrar a Anna Louise Caley? Lorraine assentiu, dirigindo-se para a porta.
Sim, é, Mister Dulay, mas se, durante as minhas tentativas para a localizar, deparar com certas discrepâncias ou declarações desprovidas de lógica, é minha obrigação investigá-las. Se não tem nada a acrescentar nem mais nenhum elemento com que possa ajudar-me, agradeço o tempo que me dispensou.
O Robert Caley é um homem bom insistiu Dulay em voz lamurienta.
Lorraine, ao chegar à porta, voltou-se para trás.
Sim, penso que é, mas preciso de ter a certeza, de que ele não tem nada a ver com o desaparecimento da filha para o poder eliminar da lista de suspeitos.
Dulay levantou-se da sua poltrona e aproximou-se dela.
A sua agência considera-o suspeito?
Todos são considerados suspeitos até eu chegar à verdade, Mister Dulay. Se puder fazer-me o favor de indagar se Mister Caley tem andado a utilizar o fundo da filha, eu agradecia. Posso voltar a telefonar-lhe?
Dulay concordou. Não se despediu de Lorraine, que fechou a porta atrás de si e descobriu, sozinha, o caminho até à saída. O homenzarrão deixou-se ficar sentado, em estado de desorientação e de dúvida, sentindo-se ultrajado e traído. Decidiu, ali e de uma vez por todas, retirar-se do empreendimento de Caley. Queria confrontar Robert Caley cara a cara, mas primeiro precisava de saber se o filho da mãe tocara num cêntimo do fundo para Anna Louise. Ninguém melhor que ele para o descobrir os cem milhões tinham sido doados por si.
Lorraine sentia-se simultaneamente usada e desgostosa consigo mesma. Sabia que aquilo que fizera estava errado e não respeitara a ética profissional. Por um lado, não percebia muito bem porque desejava pressionar tanto Dulay, mas, por outro, talvez, na realidade, fosse uma forma indirecta de também o fazer a Robert Caley por causa do que Tilda Brown dissera. Detestava encará-lo como suspeito, preferia que fosse inocente. Ao mesmo tempo, tinha a certeza de que ele era culpado, mas de quê? Recusava-se a acreditar que era já mais que provável que tivesse assassinado a sua própria filha.
Rosie encontrou, finalmente, a tabuleta que indicava o caminho para o Museu do Vodu, em Dumaine, e entrou no edifício muito nervosa, deparando com um grupo de oito pessoas, na sua maioria mulheres, a comprar uma variedade de pós para dar sorte, novidades, bonecos e velas em saldo, enquanto aguardavam o início da visita guiada. Por trás da mulher que se encontrava à secretária da recepção via-se o retrato de uma mulher imponente, vestida à moda do século passado: tinha um lenço na cabeça, argolas de ouro nas orelhas, uma pele acastanhada e uns olhos negros impenetráveis. Apesar de se tratar apenas de uma pintura a óleo, o olhar fixo parecia passar além do tempo e a sua presença dominava a sala. Quando o guia apareceu, foi para a pintura que, em primeiro lugar, chamou a atenção dos turistas.
Senhoras e senhores, este é o retrato de Marie Laveau, a rainha vodu mais poderosa que esta cidade teve. Era conhecida como a «papisa do vodu» porque, aos quarenta anos, era consultada pelas gentes da alta sociedade, assim como pelo seu próprio povo e até pela realeza, sendo conhecida em todo o mundo. Os seus poderes eram lendários e quando caminhava pelas ruas, as multidões paravam, em silêncio, erguendo as crianças para que a vissem. Era como se soubessem que, cem anos após a sua morte, as pessoas ainda falariam nela. Realizava os seus rituais perto do Bayou Saint John, e o povo dizia que a vira caminhar sobre as águas. Ela podia fazer com que o sol escurecesse, invocar os espíritos do amor e, claro... fez uma pausa e sorriu da destruição também.
Rosie olhou para os olhos sem idade da grande feiticeira: tinha a certeza de que já vira aquele rosto, no entanto, por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia recordar-se onde.
A algaraviada dos turistas dera já lugar ao silêncio quando o guia conduziu o grupo pela passagem estreita, em cujas paredes se viam quadros de uma série de rainhas vodu, nenhuma delas, no entanto, com a proeminência de Marie Laveau, apesar de terem sido suas alunas. O guia deteve-se então diante do retrato de uma outra jovem negra de pele clara, que envergava um vestido formal e antiquado, com umas trancinhas pretas presas atrás da cabeça e outras caídas em frente das orelhas: aqueles olhos eram cruéis.
Esta, dizem as pessoas, é filha de Marie, Marie Segunda, se quiserem chamá-la assim, e parece que estava mais vocacionada para o lado maléfico dos seus poderes do que a mãe. Afirmam que a viram até mil novecentos e dezoito ou dezanove, mas o mais provável é que se tratasse da Marie Laveau número dois, embora haja quem diga que a Marie, sua mãe, nunca morreu: basta que batamos no seu túmulo para que nos escute.
Marie Laveau ainda tem família viva? perguntou um dos elementos do grupo, cheio de interesse.
O guia riu-se.
Andam por aí muitos praticantes de vodu a dizer que têm ligação de sangue com Marie Laveau, mas quem o reivindica com mais força é a família Salina: há duas irmãs que foram, em tempos, praticantes de vodu, e aqueles que de entre vós ficarem para o Carnaval terão oportunidade de ver uma filha da família, Ruby Corbello, sair como rainha de um novo grupo negro formado este ano.
O guia fê-los seguir pela passagem, até chegarem a uma sala onde se ouvia um batuque ritmado e estranhamente tranquilizador. O grupo entrou, hesitante, na divisão, e viu-se rodeado por uma fantasmagórica colecção de máscaras e estátuas esculpidas em madeira, algumas decoradas com contas e jóias, tendo à frente pratos contendo ofertas do mais variado tipo e velas acesas. Um dos cantos da sala estava separado do espaço restante por uma velha corrente de ferro própria de cemitérios e, no interior, viam-se lápides e ossos humanos, assim como de animais, que fizeram Rosie arrepiar-se, não obstante a explicação do guia, segundo a qual os sinais da morte não deviam ser receados, mas sim acarinhados para que deles se obtivesse protecção. Chamou a atenção para uma caixa de vidro onde se viam tambores e outros instrumentos xamânicos, destinados a facilitar a jornada para o mundo espiritual; e para uma outra contendo uma grande variedade de ossos, garras e peles de animais secas, raízes, pós, bagas e cascas; segundo lhes disse, cada uma daquelas «coisas» era um mojo e a sua combinação por um praticante formava um gris-gris, um poderoso amuleto de protecção, muitas vezes guardado dentro de um saquinho fechado que se usava ao pescoço. No canto mais afastado da sala via-se uma grande quantidade de estatuetas e bonecos, na sua maioria toscamente feitos com um bocado de palha ou erva seca atada à volta de dois pauzinhos cruzados, cobertos com uns farrapos que tinham minúsculos crânios e rostos de expressão feroz pintados. Alguns deles, contou o guia, destinavam-se a aumentar a fertilidade; não se referiu a nenhum outro uso.
Ao chegarem à porta da divisão seguinte, acolheu-os um cheiro adocicado a incenso: ali, depois das sombras do ambiente anterior, as máscaras e as estátuas exibiam cores alegres e de celebração. Pendentes ricamente trabalhados e quadros com motivos religiosos mostravam muitos sinais de influência cristã. Havia imagens de santos católicos gravadas em papel presas à toalha verde que cobria uma mesa, sobre a qual se viam ainda mais velas acesas, estatuetas e uma garrafa de rum. Na parede em frente, via-se um pequeno genuflexório em frente de um crucifixo. O guia passou então a explicar que o vodu não era nenhuma seita de feitiçaria maléfica, mas sim uma religião, que fora o único elo que os negros tinham podido estabelecer com a sua própria cultura nos tempos de escravatura, a qual os sustivera no decorrer daqueles dias difíceis. Esta via Deus latente em toda a criação e, mais tarde, fundira-se facilmente com o cristianismo, os loas, ou espíritos individuais, passando a identificar-se com os anjos e os santos.
A própria Marie Laveau, continuou ele, ia à missa com regularidade na Catedral de São Luís, tinha amigos entre os membros do clero, praticara muito a caridade no seio de prisioneiros condenados e durante as febres epidémicas. Ainda assim, quando o guia indicou que a pequena estrutura de madeira a um canto albergava um pitão com o mesmo nome da famosa serpente de Marie Laveau, Zombi, símbolo da ponte entre espírito e matéria, gerou-se um certo desconforto no meio do grupo e alguns membros esticaram o pescoço para ver melhor através das paredes de vidro.
A visita estava oficialmente terminada. Rosie aproximou-se um pouco mais do altar, enquanto os outros membros do grupo se entretinham a olhar para a serpente ou examinavam o tronco de árvore onde os seguidores de Marie Laveau deixavam cair orações e pedidos, e viu mais quatro dos incongruentes bonecos dispostos numa prateleira acima das chamas das velas. A presença de um mundo que não compreendia, mas ainda vivo na cidade que a circundava, incutia-lhe temor e um certo fascínio, de modo que, antes de ir embora, comprou umas lembranças e um livrinho sobre a carreira de Marie Laveau. O rosto, belo e imperioso, parecia persegui-la, provocando-lhe uma sensação insistente de déjà vu, mas talvez Marie Laveau fizesse com que todos quantos a viam achassem que a conheciam de algum lugar, que a achassem simultaneamente misteriosa e familiar.
Rooney, dentro do seu carro alugado, suava. Fazia mais de meia hora que estava estacionado em frente do ponto de encontro designado e não se sentia muito à vontade ali parado, na zona portuária da cidade, com um autocolante da firma de aluguer de automóveis colada no vidro de trás, mostrando obviamente que não era dali. Estava quase a desistir da espera quando viu um carro-patrulha passar lentamente e parar atrás de si. Ajustou o espelho retrovisor para observar melhor quem o iria abordar. Sacudiu a cabeça. Não havia dúvida de que os homens em geral, e os polícias em particular, se apresentavam nas mais variadas formas e feitios; no entanto, Rooney nunca vira nenhum que se parecesse com Harris J. Harper.
Estou a falar com o Rooney? perguntou Harper ao chegar junto da janela do carro.
De perto, via-se que tinha um rosto tão esquisito como o seu corpo bamboleante. Devia ter sido um daqueles bebés bonitos e sadios, de narizinho empinado, boquinha carnuda e cor-de-rosa e olhos azuis brilhantes, porque, apesar de o corpo lhe ter crescido, o rosto mantivera o mesmo tamanho, as bochechas tinham-se-lhe expandido e os vários queixos davam-lhe a malograda aparência de quem não tinha o mínimo de pescoço.
Rooney assentiu com um aceno de cabeça. Harper deu a volta até à porta do lado do passageiro com o seu passo bamboleante e entrou. Ao sentar-se, as molas deram a impressão de rebentar.
Está à espera há muito tempo?
Sim, desde as dez, mas não tem importância respondeu Rooney.
Uma cerveja vinha mesmo a calhar, não acha?
Sem dúvida.
Muito bem, comandante Rooney, venha atrás de mim, conheço um bar que fica a um quarteirão daqui. É só seguir-me.
Obrigado.
Harper içou o corpanzil para fora do carro e depois inclinou-se para dentro deste.
Hein... concorda que sejam quinhentos dólares? Rooney hesitou.
Espero que valham a pena, é muita massa.
Harper fechou a porta e deu uma palmadinha no cimo do carro alugado.
Valerão, comandante, valerão.
O vodu é uma religião tão séria como qualquer outra prosseguiu Rosie. Tem muito de oculto, muita coisa obscura que lhe está associada, mas isso não interessa. Permite que haja uma ligação com o que é positivo e espiritual na vida e é completamente natural, desempenha um papel importante na vida de muitas pessoas...
Chorrilho de disparates comentou Nick, bocejando. Rosie inclinou-se para a frente.
Discordo. Muita gente acha que aquilo tem a ver com a matança de pessoas e na sua transformação em zumbis... Está a ouvir, Nick?
Sim, todo eu sou ouvidos, Rosie.
Transformar uma pessoa em zumbi é apenas uma forma de castigo contra aqueles que cometem crimes muito graves, assim como o assassinato...
Nick olhou para cima, exasperado.
Prefiro mil vezes a velha cadeira eléctrica, querida. Rosie fitou-o com irritação.
Se está a troçar, não lhe conto. O sacerdote podia dar-lhes uma espécie de veneno para os nervos, que originaria um estado que qualquer médico ocidental classificaria de morte, e a pessoa seria então o que eles designam de «passada pela terra... enterrada e depois desenterrada. É por isso que os brancos chamam aos zumbis mortos-vivos.
Nick levantou a cabeça e viu Lorraine aproximar-se da mesa onde se encontravam.
Lá vem uma agora.
Rosie seguiu a direcção do olhar dele.
O quê?
Uma zumbi. é Mistress Page.
Lorraine deixou-se cair pesadamente numa cadeira ao lado das que Nick e Rosie ocupavam na zona sombreada da esplanada do hotel.
Escutem começou Nick, talvez tenhamos de repensar alguns aspectos. Fui visitar o Leroy Able, um velho camarada que esteve comigo no Departamento de Narcóticos. Para ser sincero, há mais de dez anos que não o via, mas costumávamos dar-nos bem... Nick acabou de beber a sua cerveja antes de continuar. Muito bem, vocês sabem que existem grandes sacerdotisas na igreja vodu, são mulheres muito poderosas, e no topo da escala vodu está sempre, como aqui as senhoras gostarão de saber, uma mulher. É mesmo a sério, Lorraine, aqui são uma autêntica realeza e mandam em tudo.
Eu estive no Museu do Vodu principiou Rosie, imediatamente interrompida por Lorraine. Nenhum deles lhe deu oportunidade, sequer, para começar.
Por Cristo, Nick, que tem isso a ver com o nosso caso?
Já lá chego ripostou Nick, tenha calma. Vivem cá duas irmãs com grande poder nesse meio, fazem poções ou seja lá que raio. A Rosie trouxe uns materiais do museu que você mesma pode ler. Segundo o Leroy, a Juda Salina e a irmã são as rainhas dessa malta.
Lorraine ficou estupefacta. Pegou numa lata de Coca-Cola e sacudiu-a. Estava vazia. Olhou para a mesa em busca de algo para beber. Estava cheia de sede.
Porque não me contou? perguntou-lhe Rosie.
Tencionava fazê-lo, Rosie. A Edith Corbello, irmã da Juda Salina, ainda vive cá, numa zona muito degradada, embora agora já não esteja muito activa. Lembram-se de querer que o Raoul fosse investigado? Pois, ele é filho da Edith Corbello e sobrinho da Juda Salina. Existem mais dois rapazes, um chamado Willy e o outro Jesse, e duas filhas, a mais nova com o nome de Sugar May e a mais velha, não menos importante, uma tal Ruby Corbello, cabeleireira e modelo amador, que este ano vai ser eleita rainha do Carnaval.
Lorraine estava mesmo a precisar de uma bebida: tinha a boca seca e a cabeça a latejar.
Muito bem, agora juntemos todas estas peças porque eu estou com a cabeça à razão de juros, Nick e... caramba, são capazes de me arranjar um copo de água?
Rosie encheu-lhe um copo com água, com a atenção presa em Nick.
Agora esqueçam toda essa treta do vodu e concentrem-se na Juda Salina. Ela dominava a Elizabeth Caley, conhecia-a daqui, eles chegaram mesmo a trazê-la cá para tentar descobrir o rasto da Anna Louise.
Nick acendeu um cigarro e passou-o a Lorraine, acendendo depois um para si. Vira o modo como ela bebera a água que Rosie lhe passara, reparando que a mão com que segurava no copo tremia nitidamente.
Desde o princípio que temos procurado um motivo, uma razão, e se fosse chantagem? Você descobriu aquelas fotografias da Anna Louise, soube coisas sobre a Elizabeth Caley...
Espere aí, mais devagar, Nick. Sugere que o motivo foi simplesmente o da chantagem e a coisa correu mal?
Lorraine franziu o sobrolho e massajou as têmporas, tentando assimilar tudo o que lhe estava a ser dito.
Isso mesmo, tudo conduzido por essa cabra gorda da Salina. Ela tem cá família suficiente para fazer desaparecer uma pessoa, pode até ter ido ter com eles...
Lorraine puxou sofregamente o fumo ao seu cigarro.
É melhor eu investigar isso, o apelido dela é Corbello? Há por aí mais água, Rosie?
Nick pegou-lhe na mão.
Calma aí, eu não acredito nessas baboseiras, está bem? E o meu colega Leroy diz que também não; para ele essa gente é, isso sim, perigosa, não com os feitiços e essa treta, mas com o que não hesitam em fazer, que é matar por dá cá aquela palha. Também avisou para que tivéssemos muito cuidado, pois dispõem de um autêntico exército. Tocam os seus tambores e uma pessoa nunca mais é vista.
Assim como aconteceu com a Anna Louise Caley? perguntou Lorraine em voz branda, estendendo imediatamente a mão para o copo que Rosie lhe estava a encher.
Exactamente, mas isso faz com que, agora, o Robert Caley passe para segunda posição porque surgiram outras evidências que talvez façam mais sentido, nada que tenha a ver com o seu casino ou o seu dinheiro...
Droga? perguntou Lorraine, bebendo a água às goladas.
É possível. Sabemos que a Anna Louise se metia nos copos e ficava pedrada na companhia da amiga Tilda Brown. E se na noite em que desapareceu terá ido a casa dessa tal Corbello para arranjar material e viu algo? E se essa Juda Salina, com quem ela foi ter, como sabemos, era passadora de droga, não aqui mas em LA?
Lorraine passou as mãos pelo cabelo, que começara a ficar humedecido de tanto ela transpirar.
Merda, Nick, acho que tem razão, temos andado no rasto errado desde o princípio.
Nick assentiu.
E estou convencido de que a Elizabeth Caley também não está envolvida. Se calhar é apenas uma óptima cliente. Sabemos que precisava de droga, portanto, o elo é a Juda Salina e a sua família.
Rosie levantou-se da mesa e saiu do pátio. Lorraine nem pareceu dar por isso.
Onde é que vai? gritou-lhe Nick.
Buscar mais umas bebidas, se não se importa respondeu-lhe ela sem sequer se virar para trás.
Nick apagou a ponta do cigarro, olhando para Lorraine de lado.
Que se passa, querida?
Não se passa nada, Nick, deve ser só cansaço.
Procurou mais um cigarro dentro da bolsa, mas Nick ofereceu-lhe um do seu maço amachucado, que tirou, acendeu e passou, como fizera ao anterior.
Detesto esta marca, sabe a algo saído do frigorífico desabafou Lorraine, não deixando, porém, de puxar o fumo com força, batendo nervosamente com o pé contra a perna da mesa.
Nick agiu como se não houvesse nada fora do comum.
Tem sido um dia difícil, hein?
Nada que eu não possa aguentar redarguiu Lorraine, pegando numa lata de Coca-Cola que Rosie deixara em cima da mesa mas tão desajeitadamente que a fez cair, entornando um pouco de líquido sobre a toalha
Merda exclamou, furiosa. Nick agarrou-lhe na mão.
Está sob um grande stress, tenha calma.
Lorraine baixou a cabeça e agarrou-se à mão de Nick.
Às vezes tenho tanta vontade de tomar uma bebida que fico louca. Aparece-me de repente e deixo de raciocinar, ou então começo a pensar demasiado...
Nick afastou-lhe suavemente uma madeixa de cabelo do rosto e chegou-se para mais perto dela.
Aguente um pouco. A Rosie foi buscar mais Cola e eu arranjo-lhe mais cigarros da marca que fuma.
Obrigada. Gostava da força da mão dele, não tinha vontade de a largar, mas ao olhar para cima viu Rosie aproximar-se com nova série de Coca-Colas e sacos de batatas fritas. Ao pousar tudo ruidosamente em cima da mesa, exclamou:
Ah, olha o que fizeste ao meu livro, andava a lê-lo e tu agora molhaste-o todo com Coca-Cola e cerveja! Francamente!
Lorraine inclinou-se por cima da mesa e pegou na brochura de folhas azuis, sacudindo-lhe o líquido que lhe caíra em cima. Ao fazê-lo, reparou na fotografia de Marie Laveau que vinha na frente.
O que é isto? perguntou a Rosie.
É a Marie Laveau, a rainha de vodu mais famosa de todos os tempos.
Porque parecerá tão familiar? admirou-se Lorraine, quase de si para si.
Rosie pegou na brochura.
Bem, realmente eu também tive a mesma sensação, pareceu-me conhecê-la, já ter visto a cara dela.
O turbante, a túnica... mostra aí a brochura, Rosie. Lorraine pôs-se a andar de um lado para o outro, Merda! Não posso acreditar, está mesmo diante dos nossos olhos, Rosie.
De que estás a falar? Lorraine pousou a brochura.
Esta é a Elizabeth Caley, ela tem este retrato na sala de estar, é de um filme.
Não, não é. Isso é de um quadro de Marie Laveau que está no Museu do Vodu; mas tens razão, é tal e qual ela.
O Pântano disse Lorraine, batendo as mãos de contente. O filme chamava-se O Pântano. Foi o primeiro que Elizabeth Seal fez, não foi, Rosie?
Talvez haja em vídeo sugeriu Rosie.
Boa ideia, tentemos encontrá-lo. Como ela é muito famosa aqui, talvez não seja impossível. Grande mulher, Rosie, esta foi francamente boa.
Obrigada agradeceu Rosie, sorrindo.
Falo a sério, o teu trabalho está a ser excelente! Ainda faço de ti uma detective!
Lorraine levantou-se, deu um abraço a Rosie, começando ela própria a sentir-se melhor.
Se vocês não se importam, vou arrancar para tirar uma soneca, estou exausta, se calhar também aproveito para tomar um duche.
Rosie guardou a brochura na bolsa e Lorraine tocou ao de leve no ombro de Nick.
Eu estou bem, Nick murmurou. Não fique a olhar para mim. Só preciso de descansar um pouco.
Nick encolheu os ombros e ficou a ver Lorraine afastar-se.
A que propósito foi aquilo? perguntou Rosie.
Nada replicou Nick.
Ai não? A mim pareceu-me bastante em baixo. Acha que devo ir fazer-lhe um pouco de companhia?
Não, talvez seja melhor ir à procura do tal vídeo. Eu fico por aqui à espera do Bill.
Rosie pegou nas suas coisas e olhou-o de soslaio.
Não quererá ir fazer de baby-sitter a Sua Senhoria? Pareceu-me com ar de quem precisa de um ombro amigo.
Pois é, mas eu ficarei por aqui. E deixe as Coca-Colas, está bem?
Sozinho, Nick ficou a brincar com a lata gelada de Coca-Cola, desejando poder ir até ao quarto de Lorraine e deitar-se ao seu lado não apenas para a reconfortar como amigo.
O Bar Crawfish ficava numa esquina esquálida da zona portuária, num edifício de tábuas de madeira com a tinta a descascar e janelas de rede metálica ferrugenta. Em tempos, fora uma mercearia e era preciso tocar à campainha da porta para entrar; saltava à vista que exerciam o seu negócio com cautela. Quando Rooney e Harper se instalaram nos bancos altos do balcão do bar, que tinha uma televisão por cima, este estava praticamente vazio. Os comentários ao jogo de futebol que decorria disfarçavam as suas vozes.
Não sei bem se irei gostar disto disse Rooney, olhando para o prato de caranguejos cozidos que tinha na frente e também para o enorme prato de plástico preto, quase do tamanho de uma tampa de contentor do lixo, que haviam colocado displicentemente ao lado para receber as cabeças e as cascas.
Claro que vai. Estas criaturinhas são conhecidas por «besouros da lama» porque vivem nos regatos de água doce cá do sítio, e garanto-lhe, homem, que são os mais frescos em toda a cidade afiançou Harper, prendendo o guardanapo debaixo do queixo.
Rooney olhou, incredulamente, para o que lhe pareciam lagostas em miniatura.
Pronto, agora veja como eu faço. Primeiro agarra-se assim na cabeça com o polegar e o indicador...
Harper mostrou como se fazia e Rooney imitou-o obedientemente. O agente estava mais interessado no seu almoço do que em falar, dizendo que primeiro comeriam e esvaziariam as suas cervejas e só depois é que falariam de negócios. Portanto, só cerca de meia hora depois é que se dispôs a passar informações, mas não antes de enfiar a sua nota de quinhentos dólares na carteira.
Então, o que é que pretende saber, Bill?
O que puder contar-me acerca do desaparecimento da Anna Louise Caley.
Harper encolheu os ombros gordos.
Uma linda doidivanas!
É tudo o que me diz por quinhentos dólares? ripostou Rooney com maus modos.
Harper olhou furtivamente em volta.
Depende do que quer saber mais...
O que há de sujo sobre o Robert Caley?
Nada. Nem pensar. É um homem muito respeitado, obteve a sua licença para construir, teve de esperar um bocado, apesar de ser casado com a Elizabeth Seal, mas não andou por aí a subornar ninguém, apenas se candidatou na qualidade de residente em Nova Orleães através dos canais certos.
Mas ele não é propriamente um residente, pois não?
Está a brincar comigo? Eles têm cá palácios residenciais, uns três ou quatro. É podre de rico. É certo que, aqui há uns vinte e cinco anos, ela, a Elizabeth Seal, e um grande magnata chamado Lloyd Dulay eram muito amigos e parece que ele contribuiu para a fortuna da senhora.
É um dos sócios no empreendimento do casino do Caley, não é? perguntou Rooney.
É, ele e mais dois ricaços. Eu diria que aquilo acaba por ir. É só uma questão de tempo.
Alguma vez lhe chegou aos ouvidos que a Elizabeth Caley tivesse um problema de toxicodependência?
O quê, está a brincar comigo? Nem pensar. Rooney suspirou.
Pronto, então pode dar-me mais pormenores sobre o modo como conduziram a vossa investigação? Ofereciam uma recompensa choruda e apareceu muita gente a reclamá-la, não foi?
É verdade, mas, quando fomos averiguar os dados das chamadas testemunhas oculares, era tudo treta e algumas tinham mesmo sido armadas por alguns agentes desejosos de deitar a mão à recompensa...
Na sua opinião, o que foi que aconteceu à rapariga? Harper limpou o suor da cara.
A rapariga engatou um vadio qualquer, tiveram uma discussão e ele deu-lhe cabo do canastro. Só houve uma detenção, a de um tipo chamado Fryer Jones. Alguém disse que o viu a falar com ela no Bairro Francês.
Rooney franziu o sobrolho.
Fizeram uma detenção? Mas isso não consta em nenhum dos relatórios que mandaram para LA.
Bem, nem tinha de constar, não é? LA é LA e Nova Orleães é Nova Orleães, e nestas bandas as coisas passam-se de maneira um bocado diferente. Se calhar, também não encontra nenhum relatório sobre o Fryer Jones no nosso departamento.
Porquê?
Porque ninguém gosta de ficar de mal com esse velho malandro. Ele é muito influente e temos muita gente supersticiosa por aqui. O Fryer tem muito jeito para distorcer as mentes de acordo com as suas conveniências.
Não estou a perceber! Afinal, qual era a gravidade da acusação que lhe foi feita?
Harper encolheu os ombros.
Tratou-se apenas de alguém que pensou ter visto a Anna Louise a falar com ele. Claro que o bar dele fica perto do hotel, repare, não é no mesmo tipo de zona, mas até lá não são mais de dez, quinze minutos a pé. Não arranjámos ninguém para confirmar o relatório da testemunha ocular, que foi encontrada a flutuar no rio aqui há uns cinco meses; portanto, como lhe disse...
Acha que essa testemunha foi assassinada por causa do relatório que apresentou sobre o Fryer?
É bem possível, mas como também era um drogado, pode facilmente ter tropeçado e caído no rio.
Portanto, não foram feitas acusações?
Não. O Fryer negou ter visto a Anna Louise Caley e levou uma vintena de testemunhas que afiançaram que ele não saíra do seu bar naquela noite. Assim, deixámo-lo em paz. Harper consultou o relógio. Vou entrar de serviço.
Acha que ele falará comigo? Harper puxou as calças para cima.
É consigo, mas eu não me aproximaria do bar dele sozinho ou à noite; é muito perigoso. Nós não o incomodamos e ele faz o mesmo connosco. Tal como disse, é um homem do qual prefiro manter distância porque, quer acredite ou não, aquela gaita do vodu dá-nos mesmo cabo da cabeça, percebe o que quero dizer?
Lorraine, depois de tomar um duche e engolir duas aspirinas, sentiu-se melhor. Só depois de enfiar o seu roupão de banho é que verificou as mensagens que tinham chegado para si. Eram quatro, todas pedindo-lhe que entrasse em contacto com Robert Caley, e mais uma para que ligasse a Lloyd Duval. Ficou a olhar para o nome de Caley, desejosa de lhe telefonar, mas receosa de, sequer, lhe ouvir a voz, de modo que resolveu começar por Dulay, que não estava em casa. Ia a deitar-se na cama quando bateram à porta.
Sou eu e o Bill disse Nick.
Lorraine suspirou, sem vontade nenhuma de os ver.
Ia agora mesmo tomar um duche mentiu ao abrir a porta.
Então, vá, que eu aproveito e também tomo brincou Nick com um sorriso.
Rooney não estava para brincadeiras. Cheio de calor e suado, tinha os pés inchados como balões e sentou-se numa cadeira de costas direitas, enquanto Nick se deixava cair em cima da única cama de solteiro que o quarto tinha.
Bem, vocês dois podem ficar aqui depois de tratarmos de umas questões disse Rooney, algo irritado. É que este polícia que aqui está tem algumas informações muito interessantes.
Espero bem que sim, sempre arrotaste quinhentos dólares por elas observou Nick bocejando e fazendo uma careta ao coçar a perna. Caramba, detesto esta cidade, a minha perna põe-me doido, é da humidade.
Rooney folheou os seus apontamentos.
Vamos ao que interessa?
O telefone tocou. Lorraine olhou para Nick.
É capaz de atender? Se for o Robert Caley, diga-lhe que não estou, e se for da recepção, peça-lhes que suspendam todas as chamadas, está bem?
Com certeza.
Nick pegou no auscultador do telefone que se encontrava em cima da mesinha-de-cabeceira, satisfeito por ela não querer ver Caley.
Fala do quarto de Mistress Page.
Entrevistei o tal polícia, certo? continuou Rooney. Disse-me que os filhos da puta daqui fizeram uma detenção.
Nick fez sinal a Lorraine.
Está aqui disse, tapando o bocal com a mão.
Quem é? perguntou Lorraine.
É da Polícia, algo relacionado com a Tilda Brown. Lorraine ficou com ar preocupado e pegou no auscultador, sentando-se na cama mais perto de Nick.
Fala Lorraine Page. Escutou e, a certa altura, ficou hirta. Sim, falei hoje, sim. Desculpe, que foi que disse?
Rooney e Nick eram todos ouvidos; a linguagem corporal da colega era o bastante para perceberem que algo acontecera.
Sim, com certeza, irei imediatamente. Oh, então esperarei em frente do hotel.
Lorraine pousou o auscultador.
A Tilda Brown enforcou-se esta tarde. Querem falar comigo, descobriram o meu cartão no bolso do robe dela, sabem que estive lá esta manhã...
Merda disse Nick, em voz baixa.
Lorraine estava francamente abalada e premia a mão contra a testa.
Vão mandar um carro da esquadra a buscar-me... Oh, merda! Raios partam! Que rapariga mais estúpida!
Nick pegou-lhe na mão.
Vá, recomponha-se. Se quiser, vou consigo. Lorraine afastou-se dele.
Não, não, vocês fiquem aqui, falem sobre aquilo que se descobriu. Oh, Deus! Porque é que ela fez isto, porquê?
Vá, não te podes culpar, Lorraine interpôs Rooney. Lorraine foi até à casa de banho e depois voltou.
Não? Encostei-a à parede, cheguei mesmo a mostrar-lhe a fotografia da Anna Louise e... e tu dizes-me que não tenho nada a ver com o assunto? Quem é que pretendes enganar?
Dito isto, atirou com a porta inadequadamente feita de persianas da casa de banho. Nick olhou para Rooney.
Talvez seja melhor voltares para o meu quarto e deixá-la sossegada durante algum tempo.
Rooney suspirou.
Está bem, mas eu preciso de uma cerveja ou coisa do género, este calor está a dar cabo de mim.
Eu já vou ter contigo.
Nick esperou que a porta batesse para se dirigir à casa de banho, onde entrou sem se fazer anunciar. Lorraine estava de pé, a tremer, agarrada ao lavatório com ambas as mãos, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Nem sequer teve energia para lhe pedir que saísse quando Nick lhe desprendeu as mãos e a atraiu a si, abraçando-a com força enquanto ela aninhava o rosto no ombro dele.
Pronto, pronto, não queira que me vá embora nem faça força para não chorar. Depois sentir-se-á melhor, acredite no que lhe digo.
Lorraine agarrou-se a ele, que lhe pegou ao colo, levando-a para o quarto. Deitou-a sobre a cama, como tão ardentemente desejara fazer havia pouco, estendeu-se ao seu lado, mantendo-a aninhada contra si e chegando mesmo a beijá-la enquanto ela chorava. Lorraine precisava dele, embora não tão desesperadamente como ele a desejava, mas o simples facto de estar ali tão perto dela já lhe dava esperança, o que se acentuou ainda mais quando Lorraine se apoiou à almofada e o olhou nos olhos.
É uma pessoa mesmo especial, sabia, Bartello?
Sim, já mo tinham dito.
Lorraine sorriu e Nick limpou-lhe a face com um dedo.
Assim é que eu gosto. Agora diga-me, quer que fique aqui ao pé de si?
Não, tenho de me recompor, já cometi asneiras suficientes, Nick.
Lorraine apanhou-o de surpresa ao pegar-lhe no rosto e ao beijá-lo nos lábios meiga e platonicamente, o que não o impediu de entrar em ebulição. Nick teve a sensatez suficiente e o autocontrole necessário para não precipitar os acontecimentos; o beijo, porém, deu-lhe mais esperança que nunca.
Sabia que me tem na sua mão, Mistress Page? Lorraine afastou-se dele, já a autodisciplinar-se para deitar mãos ao trabalho e encarar a Polícia.
Ouviu o que eu disse?
Lorraine virou-se e olhou para ele com aquele seu jeito que tanto lhe agradava, inclinando a cabeça, de modo a que o cabelo lhe tombasse de lado, ocultando a cicatriz, e respondeu-lhe:
Nick, se calhar eu não valho esse esforço!
Ele riu-se e dirigiu-se para a porta, saindo sem olhar para trás.
Eu é que verei se vale ou não!
Enquanto Lorraine acabava de se vestir, haviam-lhe enfiado dois pequenos envelopes com mensagens por baixo da porta:
um era de Lloyd Duval, em resposta ao seu telefonema, e o outro de Robert Caley, a dizer que precisava urgentemente de lhe falar e que Elizabeth Caley chegava a Nova Orleães naquela tarde. Pegou neles quando saiu ao encontro do carro-patrulha.
Estive cá esta manhã com um grupo explicou Rosie ao jovem que fazia o último turno no Museu do Vodu: tinha um ar muito apagado em comparação com a rapariga sorridente que ali estivera antes na recepção.
Se perdeu alguma coisa, hoje ainda não encontrámos nada declarou o rapaz sem sequer levantar os olhos do jornal que lia.
Não se trata de nada disso. Preciso de umas informações acerca de um vídeo insistiu Rosie, apresentando um cartão da Agência de Investigações Page.
Isto não é nenhuma casa de vídeos, minha senhora retorquiu o rapaz, sem sequer olhar para o cartão.
Eu sei, mas trata-se de um vídeo especial, de um filme antigo chamado O Pântano, com Elizabeth Seal a fazer de Marie Laveau, e nenhuma das casas de vídeo o têm. Sei que o filme foi feito, eu mesma vi uma fotografia de Miss Seal no papel de...
O jornal foi fechado com brusquidão.
Acho que está enganada! Elizabeth Seal é branca e a Marie Laveau é negra. Se deseja fazer nova visita guiada...
Olhou para Rosie com frieza, assustando-a, porém esta não desistiu.
Eles usam maquilhagem, sabe, e...
E a senhora não ouviu o que eu disse. Deram-lhe uma informação errada. Se não deseja fazer nenhuma visita guiada, é melhor retirar-se.
Obrigada, farei mais uma.
O rapaz aceitou o dinheiro de Rosie, em troca de outro bilhete, com ar mal-humorado e não lhe prestou qualquer atenção quando passou por ele, dizendo que esperaria pelo guia na parte de dentro. Aguardou alguns minutos na sala obscura e perfumada, mas ninguém foi ter consigo. Continuou à espera, com o coração a bater. De repente, o batuque suave começou a ouvir-se e Rosie perguntou a si mesma se o rapaz não teria posto alguma gravação.
Entrou no corredor e olhou para os retratos das rainhas, embora o rosto reluzente e os olhos negros fantasmagóricos de Marie Laveau não lhe saíssem da cabeça. Deu um autêntico salto ao sentir alguém atrás de si, não o jovem guia mas sim um negro alto, de ar austero e cabelos grisalhos. Envergava um elegante fato cinzento com camisa branca, colarinho engomado e gravata. Exibia o cartão de Lorraine na sua mão grande e impecavelmente cuidada.
A senhora é que é Mistress Lorraine Page? perguntou com voz tranquila e profunda.
Não, sou a sua assistente, melhor dizendo, sócia, chamo-me...
Faça favor de vir interrompeu o velho, indicando o quarto ao fundo.
Rosie sentia tanto medo que lhe faltava o ar. Tinha a certeza de que ficara mais escuro e o batuque tornara-se enervante.
O que andam a investigar, exactamente?
Rosie não parava quieta, apoiando-se ora num pé, ora noutro.
Bem, essa questão é privada, mas posso dizer-lhe que fomos contratados pelo casal Caley.
Para quê, exactamente? perguntou o homem, sem desviar o olhar dela.
Bem, eles tinham uma filha chamada Anna Louise, que desapareceu há onze meses aqui... Não exactamente aqui, mas sim do seu hotel em Nova Orleães.
Hum, lembro-me de ter lido algo sobre isso observou o homem com voz profunda. Mas que tem esse filme a ver com... Caley, disse?
Sim, acontece apenas que a Elizabeth Caley tinha o apelido Seal em solteira.
Ah, sim, pois tinha, era estrela de cinema, uma mulher muito bonita.
Rosie sentiu-se mais confiante e acercou-se um pouco mais do homem.
O seu primeiro filme chamou-se O Pântano e em casa dela há um retrato onde aparece quase igual à pessoa que está no quadro da...
Da rainha Marie Laveau.
Precisamente. E nós, ou seja, Mistress Page e eu, mais o comandante Rooney, que também faz parte da agência, bem, gostaríamos de ver o filme.
Porquê?
Rosie passou a língua pelos lábios.
Olhe, para ser sincera não sei, acho que andamos a tentar juntar antecedentes, esse género de coisas. Realmente foi uma coincidência eu vir aqui e ver aquele quadro.
Desculpe?
O velho inclinou-se para a frente e a luz das velas iluminou-lhe as feições agradáveis.
Permita-me que lhe explique algo. A rainha Marie é uma parte muito importante da nossa herança. Ela é o nosso orgulho, a nossa adoração, trouxe-nos esperança e fé onde antes só existia o vazio. Objectámos fortemente contra o filme a que se refere. Foi uma traição à nossa fé, um típico veículo comercial de Hollywood que distorceu os factos. Esse filme não é aceite por ninguém que seja de Nova Orleães, do estado da Luisiana.
Quer dizer que esse filme é sobre o vodu?
O velho ficou a olhar para Rosie e depois abanou a cabeça, sorrindo.
Digamos que foi uma tentativa para retratar a nossa grande rainha que acabou por se transformar num insulto à sua memória. Para começar, puseram uma branca no papel. A Elizabeth Seal pode ter sangue negro nas veias, mas tem vergonha de o admitir, apesar de ter sido, durante muitos anos, uma benemérita muito generosa da nossa causa. Fez uma vénia formal. Portanto, com sua licença...
Ia dizer que a Elizabeth Caley...
É uma mulher crente, muito generosa e solícita. Agradeço que lhe transmita as minhas condolências em relação à morte da filha. Boa tarde.
Muito obrigada tartamudeou Rosie, ainda não muito certa de ter ouvido bem. Mas não ficou mais tempo por ali. As batidas de tambor soavam em compasso com as do seu coração e assustavam-na de morte.
Lorraine sentou-se no escritório abafado e superaquecido da esquadra da Polícia de Nova Orleães. O seu depoimento estava a ser anotado por um agente. Um sargento-detective, sentado à sua secretária atravancada, fazia chiar a sua cadeira ao mais ligeiro movimento do corpo.
Portanto, não tem conhecimento de nenhuma razão que possa ter levado Miss Tilda Brown a escolher este desfecho trágico?
Não. Como já disse, só lá estive durante três quartos de hora, na verdade a repetir as mesmas perguntas que vocês já lhe tinham feito: se a Anna Louise Caley a visitou ou não na noite em que desapareceu, perguntas de rotina...
Pareceu-lhe perplexa ou perturbada?
Sim, sendo a melhor amiga da Anna Louise, é natural que se mostrasse abalada.
Lorraine tinha a cabeça a funcionar vertiginosamente e resolveu não mencionar a fotografia nem as insinuações sobre o facto de Anna Louise e o pai serem amantes.
Bem, é uma tragédia, mas quem pode adivinhar o que vai na cabeça de uma adolescente? observou o sargento, fazendo ranger agoirentamente a cadeira.
Sim, quem pode? repetiu Lorraine, hesitando em seguida. Tem a certeza de que foi suicídio? Ela deixou algum bilhete?
O polícia franziu o sobrolho.
Não temos indicação de que tenha havido mais alguém envolvido.
Portanto, havia um bilhete? O agente assentiu.
Não estou autorizado a revelar o seu conteúdo, pois era dirigido aos pais. Era filha única.
Mas foi suicídio?
Sim, foi. Tinha só um robe de seda vestido, ao qual tirou o cinto, que amarrou ao varão de uma cortina... Depois subiu para cima de um pequeno banco de toucador e fê-lo cair com o pé. O seu corpo não apresentava sinais visíveis de violência, além das marcas deixadas pelo cinto. Foi a mãe quem a encontrou. Está agora sob a acção de sedativos. Como disse, era filha única. Lorraine passou pelo balcão da recepção do hotel e informou que, embora não fosse sair, não queria receber chamadas, nem ser incomodada por ninguém, incluindo os seus sócios instalados no hotel.
Tinha mais envelopes contendo mensagens debaixo da porta. Nem sequer abrira os que levara consigo. Sentia-se esvaída e não queria ver nem falar com ninguém, nem mesmo Robert Caley, pois culpava-se pela morte de Tilda Brown. Queria rever tudo o que ela e a jovem haviam dito, porque algures poderia haver alguma pista sobre o motivo que levara uma linda rapariga de dezoito anos, com todas as razões do mundo para viver, a tomar uma decisão tão trágica. Talvez até mesmo encontrasse alguma pista sobre o desaparecimento de Anna Louise Caley.
Nick bebera já umas quantas cervejas na companhia de Bill Rooney. Tinham trocado apontamentos, discutido as descobertas recentes e, a certa altura, Rosie foi ter com eles, levando consigo as notas tiradas sobre o encontro que tivera no museu. Depois, continuaram a discutir os dados no decorrer do jantar num pequeno restaurante próximo. Os três concluíram que Robert Caley deixara de ser o seu suspeito número um e deviam concentrar-se na interligação entre Juda Salina, a droga e o vodu, sobretudo depois de saberem que Fryer Jones fora realmente interrogado pela Polícia sobre o desaparecimento de Anna Louise Caley.
Já passava das dez quando regressaram ao hotel. Rooney e Rosie estavam fatigados, mas Nick sentia-se completamente alerta; fora sempre um noctívago. Quando souberam que Lorraine se encontrava no seu quarto, mas pedira para não ser incomodada, Nick ficou irritadíssimo, porém os dois colegas sentiram-se aliviados.
Nick foi para o seu quarto, passeou de um lado para o outro e bebeu meia garrafa da vodca que comprara, antes de se decidir a ir ver Lorraine. Bateu à porta desta e aguardou, depois olhou rapidamente para o corredor vazio e tirou a chave do seu próprio quarto do bolso. Já estivera em muitos hotéis, calculando que a segurança das chaves deixasse muito a desejar, como acontecia na maioria dos estabelecimentos daquele género. Tinha razão a sua chave servia, pelo que abriu a porta do quarto de Lorraine.
Ficou a olhar para ela, desarrolhando a tampa da garrafa para tomar um gole generoso. Lorraine estava de barriga para baixo, com um dos braços a pender num dos lados da cama, o outro enfiado debaixo da almofada e o lençol a tapá-la só a partir do fundo das costas. Nick acercou-se um pouco mais e. sentou-se na beira da cama do outro lado a sorvê-la com os olhos, mais desesperado do que alguma vez se sentira por se deitar, nu, ao seu lado. Lorraine dormia silenciosamente, de lábios entreabertos. A luz fraca não o impedia de ver as cicatrizes que lhe sulcavam o braço e as costas. O álcool foi fazendo com que as suas inibições diminuíssem e, a certa altura, enfiou a garrafa debaixo da cama e passou a palma da mão suavemente ao longo da curva desenhada pela espinha dela. Lorraine agitou-se e virou-se lentamente para ele, acordando.
Nick? murmurou Lorraine, ainda meio adormecida.
Sim, sou eu disse ele suavemente.
Lorraine virou-lhe as costas, puxando o lençol sem pressas para cobrir o peito desnudo.
Como diabo é que entrou? Nick sorriu.
Ora, impei e inchei e deitei a porta abaixo com o meu sopro brincou.
Está bêbedo observou ela, bocejando.
Ainda não, mas não consegui ficar afastado de si. Lorraine sentou-se, tapando-se melhor com o lençol.
É melhor ir embora, Nick, isto é uma loucura.
Eu sei, mas como disse... não fui capaz de ficar afastado.
Lorraine suspirou. Aquela situação era despropositada e começava a irritá-la.
Preciso de dormir, Nick.
O detective levantou-se, parecendo subitamente um rapazinho.
Eu sei, desculpe, sempre fui um idiota chapado, mas... Lorraine deixou-se cair pesadamente para trás, olhando para ele.
Mas, o quê?
Nick puxou os jeans para cima, fugindo ao olhar dela.
Mas o quê, Nick? Ele riu suavemente.
Acha que poderá dar-me um beijo, só um, antes de me ir embora?
Sabe que é maluco, não sabe?
Sei, mas não quero mais do que isso... Bem, não é bem assim, eu gostaria de muito mais, mas esta não será a melhor altura para mergulharmos os dois debaixo dos lençóis.
É melhor ir repetiu Lorraine, embora sorrisse. Não conseguia deixar de o fazer. Tinha consciência, e ele se calhar também, de que começava a agradar-lhe.
Deixe-se disso, Bartello, vamos combinar o seguinte...
Um beijo insistiu ele, quase saltando para cima da cama de modo a abraçá-la contra si.
Lorraine inclinou a cabeça para trás e deu-lhe um beijo nos lábios. Nessa altura, o lençol resvalou e Nick baixou a cabeça, beijando-lhe um mamilo.
Nick, já chega.
Ele gemeu ao passar-lhe a língua pelo seio; depois puxou-lhe o lençol suavemente para cima.
Boa noite, princesa. Amo-a.
Lorraine ficou a vê-lo coxear até à porta, virando-se ligeiramente para lhe lançar um último olhar, e em seguida sair. Às vezes, parecia-se tanto com Jack Lubrinski que lhe dava vontade de chorar, porém não era Jack, mas sim Nick Bartello, e Lorraine, ao aninhar-se de novo, sentiu o calor do seu amor, o que, embora não gostasse de o admitir, lhe soube bem.
De volta ao seu próprio quarto, Nick viu que não conseguiria dormir. Às onze da noite ainda não sossegara, de modo que resolveu voltar ao bar de Fryer e ver se conseguia descobrir mais alguma coisa. Era quase meia-noite quando atravessou a recepção silenciosa, onde estava apenas de serviço o porteiro da noite. Ao que parecia, os outros hóspedes, na sua maioria idosos, já se haviam recolhido, à semelhança de Rosie e Rooney.
Robert Caley estava sentado, com uma garrafa de uísque à sua frente. Bebia desde as sete da tarde e naquele momento a bebedeira já era tremenda. A única mulher por quem se interessara tanto não só não respondia aos seus recados como também o traíra de maneira tão grave que não sabia se lhe apetecia dar cabo dela ou de si mesmo. Lloyd Dulay fora ter com ele como um louco, acusando-o de dormir com a filha e comunicando-lhe, com nítido prazer, que o governador lhe dissera, em privado, que não haveria a menor possibilidade de Caley conseguir a sua licença para operar um casino. Em breve haveria uma comunicação pública nesse sentido; no entanto, o governador indicara que considerava mais apropriada uma distribuição mais ampla de poderes, e ele, Lloyd, não hesitara em aceitar o convite que o grupo Doubloons lhe dirigira. Dulay finalizara dizendo asperamente que, segundo ele, Caley se metera numa trapalhada dos diabos, e que, se utilizasse um cêntimo que fosse do fundo da filha para se safar, ver-se-ia em apuros judiciais.
Quem foi que lhe contou toda esta aldrabice? perguntara-lhe Caley, furioso.
Dulay hesitara, mas depois olhara Caley nos olhos e respondera:
A detective, Lorraine Page.
Caley ficara completamente siderado. As acusações tinham sido autênticas punhaladas no seu coração. Porque teria Lorraine feito aquilo, perguntava-se constantemente. Como podia ela ter estado nos seus braços uma noite para depois o destruir sistematicamente no dia seguinte? A não ser que tivesse tido essa intenção desde o princípio... Mas tinha dificuldade em acreditar. O álcool ajudava a entorpecer a dor e quanto mais bebia, mais se convencia de que ela não poderia ter feito semelhante coisa. No entanto, depois de ver que Lorraine não respondia às suas numerosas chamadas, começou a ficar furioso consigo mesmo por ser um trouxa e nunca ter passado disso mesmo em toda a sua vida de adulto, um trouxa.
A sua fúria ainda foi maior quando recebeu um telegrama a dizer que Elizabeth saíra da clínica e dera ordens a Edward para a levar de avião a Nova Orleães. Caley telefonara a Phyllis e soubera que Lloyd Dulay ligara a pedir para falar com ela. Phyllis dera-lhe o número de telefone da clínica.
Cerca das onze da noite, Caley estava bêbedo, magoado e completamente desnorteado, além de também se ver diante da bancarrota. Continuou também a ligar para Lorraine, ávido por lhe falar, por lhe dar a oportunidade de se explicar perante ele, visto ainda acreditar que ela jamais o trairia. Nada mais lhe interessava, nem o dinheiro, nem mesmo Anna Louise, apenas a possibilidade de Lorraine, a mulher por quem se apaixonara estupidamente, se ter servido dele. Nem mesmo o telefonema que recebeu de Elizabeth o fez sair da sua apatia. Ela parecia calma, distante e irada. A mulher recusou-se a dizer-lhe por que motivo saíra da clínica, informando-o apenas de que não iria ter com ele ao hotel, mas que seguiria, sim, para a casa no Garden District.
Caley imaginava o que Dulay lhe teria dito, porém não se sentia com forças para ter uma discussão ao telefone, preferindo deixá-la para quando se encontrassem. No entanto, perguntara-lhe se Lorraine Page lhe falara para a clínica. Elizabeth mostrou-se surpreendida, e ele notou que o medo se insinuava na sua voz.
Ela já descobriu alguma coisa?
Caley suspirou, puxando o fumo ao seu cigarro.
Talvez, mas não creio que tenha algo a ver com a Anna Louise...
Então, do que se trata? perguntou Elizabeth, com voz trémula.
Tu é que tens segredos, Elizabeth. Eu sou apenas o trouxa imbecil que alinhou em tudo.
Houve uma pausa prolongada.
Achas que nós devemos suspender os pagamentos?
Nós? Nósí Tu é que instigaste esta investigação, Elizabeth, não eu. Tu é que a contrataste, agora despede-a.
De novo houve uma grande pausa; e pôde ouvi-la a respirar ofegante, ciente de que estava a ter um ataque de pânico, mas daquela vez ele não queria saber, daquela vez não estava disponível para resolver o problema e reconfortá-la.
Havia um bónus disse Elizabeth suavemente.
O quê? perguntou, acendendo outro cigarro na beata do anterior. De que estás a falar?
De novo a mesma pausa e depois Elizabeth a respirar fundo.
Não te zangues comigo, mas ofereci-lhes um milhão de dólares no caso de encontrarem a Anna Louise.
Robert fechou os olhos. Elizabeth chorava e ele próprio também sentia vontade de o fazer.
Bem, isso é contigo. Encontramo-nos em casa. Pousou o auscultador antes de a mulher poder responder, a seguir ligou para a recepção e deu instruções para não ser incomodado.
Caley deixou-se ficar deitado em cima da cama a fumar vorazmente. Um milhão de bónus! Não admirava que ela tivesse feito amor com ele. Um homem que se sentisse um idiota e traído, um homem que se sentisse tão desestabilizado como ele estava naquela altura, tornava-se perigoso, porque se Lorraine Page naquele momento entrasse, ter-lhe-ia apertado o pescoço até lhe roubar o último sopro de vida.
Lorraine mergulhara num sono profundo, exausto e livre de sonhos. Empurrara o lençol para os pés e jazia encolhida, nua e com o corpo a luzir de transpiração. No entanto, nada a acordou, nem mesmo a luzinha vermelha a piscar no telefone à medida que as chamadas foram chegando, uma à meia-noite, outra quinze minutos depois e a última à uma e um quarto da madrugada.
Juda Salina acordou com o corpo maciço encharcado em suor. Sentia um aperto terrível na garganta e percebeu que a visão que tivera uns dias antes estava a concretizar-se naquele momento.
Raoul chamou com voz enrouquecida, acabando por gritar: Raoul, vem cá.
O rapaz apareceu à entrada do quarto com os olhos avermelhados.
Que foi? Que quer?
Água, traz-me água.
Estava a acontecer e ela nada podia fazer contra isso. Não havia como fugir ao que vira e sentira, teria de aguentar, mas o facto de estar tão exposta a tanto sofrimento revoltava-a. No entanto, era o condão que Deus lhe dera e, por muito que o odiasse, tinha de se conformar e deixar que se manifestasse. Era a vontade dos espíritos, ela fora escolhida e não havia nada que pudesse fazer contra isso.
Raoul passou-lhe um copo cheio de água tépida que ela bebeu sofregamente, esvaziando-o com a mão gorda trémula. O sobrinho manteve-se por perto, aguardando.
Está doente?
A vidente sacudiu a cabeça em sinal negativo e recostou-se de novo no seu monte de almofadas, suspirando.
Não, não estou doente, isto ainda funciona.
Quer mais água?
Não, senta-te antes aqui um pouco a conversar comigo. O rapaz sentou-se na beira da cama, com a tanga de algodão fortemente apertada em torno da cintura.
Lá na nossa terra anda tudo numa roda-viva, o Carnaval está mesmo à porta e a Ruby não se aguenta de tão nervosa contou.
Juda suspirou novamente.
Falaste com a tua mãe?
Claro assentiu Raoul. Contou-me que desancou o Jesse e o Willy à vassourada porque andaram a drogar-se no bar do Fryer Jones, e a Sugar May também está a dar que fazer porque, como quer ser cantora, também não arranca de lá. A mãe não se aguenta de tanta preocupação.
Juda abanou a cabeça.
A Ruby tem uma cara bonita e um corpo encantadoramente firme, mas não me parece que tenha esperteza, por isso é que estou convencida de que não irá ter problemas. Mas quando voltares para casa, reúnes os teus irmãos e dizes-lhe que se mantenham bem afastados do Fryer Jones. Se assim não for, sofrerão muito, e o mesmo conselho vai para a Sugar May.
A vidente fechou os olhos, enquanto Raoul roía as unhas e batia com o pé numa das pernas da cama.
Tu já não te drogas, pois não, Raoul?
Não, tia Juda, desde que trabalho para si.
Bom menino, isso não era vida para ti. Pára de bater na cama, estás a enervar-me. Ultimamente andas muito irrequieto, portanto, se não consegues dormir, prepara e bebe um chá daqueles que arranjei para Mistress Caley.
Aquilo põe um elefante a dormir observou o rapaz, continuando a roer as unhas.
Bem, com o correr dos anos precisei de lhe aumentar a potência. Raoul descruzou as pernas e voltou imediatamente a cruzá-las, com o pé a mexer-se incontrolavelmente. Não conseguia pará-lo, sentia contracções musculares pelo corpo todo e precisava de voltar para o seu cachimbo; estava precisamente a fumar quando a tia o chamara. Se ela o olhasse com mais atenção teria visto por si mesma. Raoul evoluíra: já não fumava o seu charro, antes passara a utilizar crack ou cocaína, na maioria das noites. Assim que dava por a tia adormecer, escapulia-se de casa e ia para os clubes, regressando antes de ela acordar e aperceber-se de que saíra à procura de droga. Nick dirigiu-se para o bar de Fryer Jones de mãos enfiadas nos bolsos dos jeans e o cigarro a pender-lhe de um dos cantos dos lábios. Ouviu um estampido do tubo de escape que fez lembrar o disparo de uma arma, e desviou automaticamente o corpo para o lado, voltou-se e encostou-se à parede do passeio. Novo estrondo de descarga e, logo de seguida, chegou-lhe aos ouvidos música aos berros e viu um velho Camaro em mau estado lançar-se na sua direcção.
Willy estava delirante e o irmão, Jesse, ia debruçado para fora da janela, a gritar:
Já te disse que é ele, é ele, Will Acelera, rápido. Nick suspirou, irritado, de modo algum assustado com os dois putos pedrados; no entanto, tirara as mãos dos bolsos e olhava para um lado e outro da rua, procurando decidir-se por que lado seguir, tentando ver se havia alguém que testemunhasse o que ele sabia que ia acontecer.
Ei, tu, filho da puta, tu
O velho Camaro parou bruscamente com uma guinada, poucos metros a seguir a Nick. Este chegou-se mais à parede, de punhos cerrados, pronto a dar uma sova aos dois, consciente de que, se fosse caso disso, sacaria da 22 que trazia enfiada numa das botas.
Willy meteu a marcha atrás ruidosamente e o Camaro recuou no meio de grande chiadeira. Não fora sua intenção subir o passeio, mas calculou mal a distância a que a esquina se encontrava. Jesse continuava pendurado para fora da janela do lado do passageiro, praguejando e chamando nomes ao tipo que arrumara com eles na noite anterior. No entanto, quem estava na mó de cima naquela noite eram eles, sem o cabrão velho do Fryer Jones por perto. Quando Nick ia a desviar-se para o lado, a fim de escapar à investida do automóvel, a sua perna doente cedeu. Cambaleou e acabara de se reerguer quando Jesse se atirou a ele, a berrar e com um golpe lateral de kung fu. Nick agarrou-lhe o pé e torceu-o, desequilibrando o rapaz, que se estatelou sobre as mãos e os joelhos.
Apanha o cabrão, Willy, apanha-o!
Willy correu para Nick de bastão de basebol em punho e atingiu-o no braço com que tentou proteger o rosto. A sua perna voltou a ceder, proporcionando a Jesse tempo suficiente para se pôr de novo em pé. Tirou o bastão ao irmão e, ao aproximarem-se os dois de Nick, este baixou-se e desatou a correr em direcção a um bar que tinha as luzes acesas. Deslocou-se o mais depressa de que foi capaz, apesar das dificuldades que a perna lhe levantava, tirando rapidamente a pistola da bota. Os putos, no entanto, iam-se aproximando cada vez mais e Jesse tentava acertar-lhe desesperadamente com o bastão. A certa altura atingiu Nick num ombro, mas este continuou a correr. Quando estava prestes a alcançar a segurança do bar, a sua perna voltou a ceder. Willy colocou-se à sua frente e Nick viu a faca aparecer. Ergueu as mãos, arquejante.
Ei! Vá, tenham calma, hein...?
Nick avistou o beco mesmo no outro lado da rua e investiu pelo meio dos dois, não antes, porém, de Jesse voltar a tomar balanço com o bastão. Dessa vez, atingiu Nick de lado na cabeça, mesmo por cima do ouvido, fazendo-o vacilar. Mas este avistara o letreiro luminoso de uma casa de bebidas e tentou chegar lá, na esperança de encontrar alguém que ajudasse. O ar saía-lhe aos sopetões do peito, a perna doía-lhe terrivelmente e sentia a cabeça a latejar, mas conseguiu chegar à soleira da porta. Esta estava fechada. Carregou desesperadamente no botão de uma campainha de segurança e encolheu-se contra a porta.
Abram a porta, abram o raio da porta.
Os dois rapazes sorriam, um a balançar o bastão, o outro a abrir e a fechar uma navalha de ponta e mola. Tinham-no cercado, o beco não tinha saída e não havia por onde fugir. Nick estava encurralado.
Raoul continuava sentado na beira da cama da tia, sentindo agora comichões no corpo todo, ansioso por voltar ao seu cachimbo.
Ainda precisa de mim aqui, tia?
Juda não respondeu. O rapaz levantou-se e inclinara-se ligeiramente sobre ela, a fim de se certificar de que adormecera, quando, de repente, ela lhe pregou um susto de morte. Sentou-se muito direita, com as mãos na garganta, e começou aos vómitos. Raoul recuou, apesar de já ter assistido àquela cena muitas vezes; sua mãe costumava passar pelo mesmo e ele detestava aquilo, assim como odiava a maneira como, durante toda a vida, vira as pessoas irem até à sua casa miserável, entrarem no quarto escuro da frente e porem-se a berrar e a gritar, enquanto os miúdos eram corridos para o quintal.
Viu a tia contorcer-se na cama, fazendo-a chiar com o seu peso. A certa altura, reparou mesmo que o colchão se levantava sobre um dos lados, acompanhando o movimento do corpo da tia. Foi então que reparou na velha caixa de madeira e ficou ainda mais agitado, assustando-se com os grunhidos e os gemidos que a velha soltava. A saliva escorria-lhe pelo queixo gordo, tinha espuma ao canto dos lábios; no entanto, ele só pensava na caixa, pois sabia o que lá estava dentro.
Nick Bartello não tinha por onde fugir. Tentou puxar da sua 22 mas o bastão acertou-lhe no braço e ele ouviu o ruído do osso a partir. Estava indefeso, mas lembrava-se da cara daqueles dois arrogantes putos negros, tão novos, a quem dera uns açoites no bar de Fryer. Quando eles começaram a sová-lo com o bastão, ainda lhes fez frente o melhor que pôde, mas percebeu que estava arrumado, pois, a dor que sentia na perna não lhe permitia defender-se. Enrolou-se sobre si sob a saraivada de pontapés e ergueu as mãos para se proteger. Então um dos rapazes inclinou-se sobre ele. Viu então a lâmina aproximar-se. Nesse instante, toda a sua vida lhe passou diante dos olhos. A sua última imagem antes de lhe cortarem a garganta foi a do rosto de Lorraine. Depois de lhe deferirem um último pontapé, viraram-lhe o corpo para cima.
Fryer Jones encontrava-se sentado no seu lugar habitual ao balcão do bar. Willy e Jesse Corbello entraram e arrastaram uns bancos para perto, instalando-se neles; Fryer continuou a mexer no seu trombone, enquanto Willy atirava o colar gris-gris para cima do balcão.
Isto pertence-lhe, Fryer?
O velho negro pegou no colar, sentiu o sangue ainda pegajoso nos ossinhos brancos e suspirou.
Rapazes, acabaram de cometer uma má acção, isto era meu e foi dado de boa-fé.
Não nos deste o prometido, cabrão velho, além disso, vais fazer por nós o mesmo que fizemos por ti, certo? Estivemos a noite toda aqui metidos, homem, não pusemos o pé fora do teu bar disse Jesse, inclinando-se para se servir de uma cerveja.
Willy abriu a carteira de Nick Bartello. Mas quem é que se vai interessar? Ninguém nos pôs a vista em cima, fomos fixes. Ei! Bebidas por conta da casa, acabámos de ganhar umas massas.
Fryer olhou para os rapazes e fez passar o ar por entre os dentes. Estavam a ficar descontrolados, tal qual Raoul, o maluco do irmão deles. Examinou o grís-gris que dera ao pobre desgraçado. Pegou nele, deitou-lhe um pouco de cerveja em cima, raspando-lhe o sangue com o polegar ossudo, e depois pendurou-o ao pescoço.
Acho que vou tocar um pouco disse, sem se dirigir a ninguém em especial. Levantou-se do banco alto do bar e ao dirigir-se para o palco espelhado, passou por dois negros encorpados que jogavam às cartas e murmurou-lhes: Dêem-lhes uma boa tareia, têm de receber uma lição de alguém, estão a ficar fora de controlo.
Os dois rapazes continuavam sentados nos bancos do bar, rindo e dizendo piadas, deliciando-se com a cerveja de borla, confiantes na sua boa estrela por serem filhos da irmã de Juda Salina.
Onde está o Nick? perguntou Lorraine ao ir ter com Rosie e Rooney à mesa do pequeno-almoço para comer as suas panquecas com natas.
Não sei, mas fomos todos para a cama cedo disse Rooney, esquadrinhando a lista. Liguei para o quarto dele mas ninguém atendeu.
Lorraine sentou-se e colocou todos os seus envelopes brancos com recados em cima da mesa.
Como é que isso correu ontem à noite? perguntou Rosie, fazendo sinal à empregada de mesa.
Lorraine começou a abrir os envelopes.
Não sabem exactamente a que horas é que a Tilda Brown se enforcou, mas acham que deve ter sido três ou quatro horas depois de eu sair.
Havia quinze mensagens de Robert Caley, uma delas a informar que a mulher estava a chegar a Nova Orleães. Dulay telefonara quatro vezes, e Nick, duas. Reparou na hora da última chamada.
Eu diria que o Nick ficou a recuperar das insónias que teve esta noite alvitrou Lorraine, atirando o papel da mensagem a Rooney.
Rosie, que estivera a analisar a ementa, virou-se para Rooney.
Talvez seja melhor abstermo-nos de todo este açúcar. É certo que fizemos um trato, não sei o que pensas, mas eu sentia-me bem melhor antes de termos engordado todos estes quilos aqui.
Rooney concordou.
Manda vir também para mim.
Está bem, nesse caso talvez peça só fruta fresca.
Óptimo disse ele, corando ao apanhar Lorraine a fitá-lo, sorridente.
Porque olhas para mim assim? perguntou-lhe, na defensiva.
Porque é bonito ver vocês os dois a darem-se tão bem.
Reparei que tu e o Nick também andam muito amiguinhos interpôs Rosie, receosa de que Lorraine não aprovasse a sua amizade com Rooney ou a considerasse pouco profissional.
Raios, não estejas assim tanto na defensiva, Rosie; além disso tens razão, estou a dar-me muito bem com o Nick, é bom homem, mas isso não significa que vá haver um casamento duplo ou...
Rooney sobressaltou-se.
Quem é que está a falar em casamentos? Eu e a Rosie estamos só a fazer a mesma dieta.
Rosie levantou rapidamente a lista de modo a ocultar o rosto, pois não queria que Rooney notasse que a observação dele a magoara.
Portanto é só fruta, não é?
Juda Salina enfiou o corpanzil debaixo do chuveiro e gritou a Raoul que lhe preparasse o café e fosse buscar o carro para seguirem para o aeroporto. Fora uma noite má mas chegara ao fim, a nuvem negra passara. Um quarto de hora mais tarde, ao abrir a porta da cozinha com um pontapé e ao ver que não havia café no fogão, apenas o saco de dormir de Raoul no meio do chão, vazio, é que a realidade se abateu sobre ela como um manto negro. Tudo ficou ainda mais escuro quando, ao voltar para o seu quarto, viu a sua preciosa caixa a espreitar por baixo do colchão. Apesar de toda a sua gordura, ajoelhou-se e pegou nela. Nunca a tivera tão ali na ponta, não era louca. Na verdade, dormia sentindo-a propositadamente entre o colchão e as molas da cama, de modo a nunca ninguém lha roubar durante a noite.
Ao aperceber-se de que todas as suas economias haviam desaparecido, mais de cento e cinquenta mil dólares, pôs-se a gritar. Era dinheiro para ajudar Ruby a preparar-se para o Mardi Gras, dinheiro para a irmã, para os seus filhos. Todas as suas economias tinham desaparecido.
Ao princípio, Edith Corbello pensou que era algum cliente a guinchar ao telefone; só passado um bocado é que percebeu que se tratava da irmã.
Calma, Juda, calma, assim não consigo entender uma palavra do que dizes.
Juda acabou por baixar o tom de voz e dizer que Raoul lhe roubara tudo o que tinha, todas as economias que fizera na vida, tudo aquilo que lhe custara tanto trabalho a conseguir com o objectivo de voltar para Nova Orleães e viver em grande estilo. Tudo sumira.
Não, não, querida, deves estar enganada.
Não, não estou enganada, ele até o meu carro levou, o meu carro, Edith, aquele malandro até o raio do carro me levou.
Juda agarrou-se à cama com força, a arfar com falta de ar, o peito opulento a subir e a baixar com o esforço.
Eu nunca fiz trabalhos voltados para o mal, Edith, tu bem sabes, mas juro por Deus que o farei com o Raoul. Encherei aquele rapaz de males que lhe comerão as entranhas vivo, ele há-de querer nunca ter visto a luz do dia!
Dito isto, Juda atirou o auscultador para cima do descanso. Deixou-se afundar numa poltrona, tapou a cara com as mãos e chorou. Quantas vezes Mrs. Caley a aconselhara a meter o dinheiro no banco e ela não dera importância? Praguejou e amaldiçoou Raoul por entre lágrimas. Nem sequer ficara com dinheiro suficiente para ir passar o Carnaval à terra, não assistiria à coroação de Ruby.
A certa altura, as lágrimas e a raiva reduziram-se a uma depressão profunda e Juda deixou-se ficar na sua poltrona, como que pregada a ela.
Como é que ele pôde fazer-me uma coisa destas? murmurou de si para si vezes sem conta, olhando depois para o tecto. Porque será que os espíritos falam comigo e eu não sou capaz de adivinhar quando é que as pessoas do meu próprio sangue me roubam?
Juda limpou a cara com um lenço de papel, fungou e pegou de novo no auscultador. Talvez ela a ajudasse, como sempre fizera ao longo de todos aqueles anos.
Phyllis atendeu, ficando siderada ao ouvir a voz queixosa no outro lado da linha.
Juda? Mistress Salina, é a senhora?
Sim, Phyllis, sou eu. Aconteceu algo de terrível e preciso de falar com Mistress Caley.
Phyllis franziu os lábios de enfado, certa de que daquela vez iria divertir-se.
Lamento, Mistress Salina, mas a senhora saiu.
É capaz de lhe dizer que entre em contacto comigo?
Bem, se ela ligar para casa, transmito-lhe o recado. Phyllis tinha a certeza de que a horrível criatura estava a chorar, mas, ao lembrar-se de todos aqueles anos em que fora tratada abaixo de cão por aquela mulher gorda, desfrutou daquele momento de poder.
A Phyllis sabe que tenho sido uma boa amiga para Mistress Caley, já nos conhecemos há muito tempo, portanto peço-lhe por tudo que, se ela ligar para casa, lhe diga para me falar. Desta vez sou eu que preciso dela, e muito.
Como já lhe disse, Mistress Salina, transmitirei o recado a Mistress Caley. Adeus.
Pousou o auscultador no momento em que Peters entrava no corredor.
Quem era?
Phyllis seguiu-o até à sala do pequeno-almoço.
Aquela malfadada gorda da Juda Salina a dizer que quer falar com Mistress Caley. Respondi-lhe que dava o recado, mas acho que me vou esquecer. Sempre a detestei, não passa de uma sanguessuga, e Mister Caley também não gosta dela.
Phyllis sentou-se em frente de Peters e tomaram o pequeno-almoço juntos. A certa altura, Peters ficou a olhar para fora da janela.
Sabe bem termos a casa só para nós, não sabe?
A senhora está bem, Mistress Caley? perguntou Edward.
Elizabeth baixou a revista.
Não devia estar aos comandos do avião? O piloto sorriu.
Está em piloto automático, Mistress Caley. Elizabeth desviou o olhar.
O senhor é pago para fazer voar este avião, não para o deixar entregue ao piloto automático, Mister Hardy. Agradeço que permaneça no cockpit; sabe como fico nervosa quando viajo por este meio.
Deseja alguma coisa, Mistress Caley? perguntou Mário.
Não, nada, obrigada.
Elizabeth pegou de novo na sua revista, olhando sem ver para as páginas lustrosas. Os modelos, nas suas poses elegantes e vestidos, só lhe faziam lembrar a última viagem que fizera com Anna Louise. Ainda podia ouvi-la dizer: «Gosto deste, mãe, que achas?»
Ela respondera que o achava simplesmente lindo sem sequer olhar para ele. Bastava-lhe ver a filha para o coração lhe doer; era tão nova, tão bonita, com toda a sua vida pela frente. Invejava a juventude de Anna Louise e o seu talento para as actividades atléticas. O facto de se parecer tanto com o pai e possuir aqueles cabelos louros e os olhos azuis brilhantes às vezes dava-lhe cabo dos nervos.
Elizabeth suspirou. Viviam-se dias em que o segredo do parentesco de Anna Louise deixara de ter importância, ninguém lhe prestaria atenção; no entanto, quando ela tivera aquela mesma idade, vinda de onde vinha, a situação fora exactamente a inversa. Fechou os olhos e recordou a sua vida, reflectindo que, se pudesse escolher de novo, jamais teria enveredado pelo caminho do cinema nunca teria feito aquele filme. Destruíra-a, tornara-a dependente de Juda Salina e dos da sua laia, e, algures no seu íntimo, ansiava por se ver livre de tudo isso. Talvez fosse essa a razão pela qual tomava tanta droga, jogando com a própria vida. Sentia-se ávida de liberdade, ar, sol, esse sol que temia que lhe tocasse na pele de um branco leitoso não por a fazer arder, mas porque lhe daria uma forte tonalidade castanho-dourada.
Os belos olhos amendoados de Elizabeth marejaram-se de lágrimas, que lhe escorreram pelas faces como que em câmara lenta. No decorrer da sua carreira, orgulhara-se de recorrer àquela capacidade de chorar sempre que o seu papel lho impunha; no entanto, naquele momento, não havia ali nenhuma ordem de «acção» nem máquina de filmar. As lágrimas que vertia eram pela sua própria vida vazia, estúpida e assustada.
Todos os hóspedes já se tinham retirado da sala do pequeno-almoço, restando só Lorraine, Rosie e Rooney, sentados à sua mesa.
Muito bem, vamos a isto disse Rooney, empurrando a cadeira para trás e levantando-se.
Lorraine apagou o resto do cigarro.
Tenta o quarto de novo, Rosie. Se vires que ele não atende, deixa-lhe um recado debaixo da porta a informá-lo onde nos pode encontrar.
Assim farei, e vocês cuidem-se. Lorraine sorriu.
Com certeza, minha senhora...
Escuta, quanto ao tal vídeo...
Lorraine encaminhou-se para a saída, rodeando amigavelmente os ombros de Rosie com o braço.
Que tal perguntar ao Lloyd Dulay se tem algum? Conhece a Elizabeth Caley desde essa altura e, como vais estar com ele, pensei que...
Boa ideia, eu pergunto-lhe, Rosie.
Rooney estava em frente do balcão da recepção.
Aquele filho da mãe não está no quarto, passou a noite toda fora.
Bem, se calhar ficou num sítio qualquer com uma pega alvitrou Lorraine, ligeiramente irritada, dirigindo-se para o elevador.
Estava surpreendida com a sua própria reacção: sentia ciúmes, porém disfarçou imediatamente. Sorriu e disse a Rooney que deixasse Nick dormir até se recompor, mas sem abusar. Já só dispunham de uma semana.
Edith Corbello encontrou Jesse nas traseiras, enfiado no banco de trás da velha carripana. Levara uma sova valente, tinha o nariz e o braço direito partidos. Apresentava escoriações por todo o lado e chorava com dores, mas, quando a mãe lhe perguntou quem lhe fizera aquilo, limitou-se a lamuriar, dizendo que caíra pelas escadas.
Começara a limpar o filho quando ouviu a porta da frente fechar e passos arrastados no corredor.
És tu, Willy? Vem cá imediatamente.
Estava convencida de que Willy dera uma sova no irmão e, quando o viu entrar na cozinha, não lhe sobraram dúvidas. Willy tinha os dois olhos negros, o nariz sangrava-lhe e nascera-lhe um galo na cabeça do tamanho de uma manga. Por sua vontade tê-lo-ia esbofeteado com força, mas reparou que o rapaz mal conseguia andar.
Estou farta de vos ver à pancada um com o outro, vou pedir ao Fryer Jones que venha cá resolver o assunto. Já não vos aguento e já é tempo de ele também assumir alguma responsabilidade.
Foi o Fryer Jones que nos fez isto disse Willy, levando um pontapé tão violento de Jesse que uivou de dor. Tinha tantas equimoses no corpo que era difícil não acertar numa.
Estás a dizer-me que foi aquele cabrão que vos fez isto aos dois? Estás?
Jesse sacudiu a cabeça.
Não, mãe, fomos nós a lutar um com o outro, a sério, começámos a implicar um com o outro e...
Edith ficou furibunda.
Leva-me imediatamente o teu irmão ao hospital; vocês todos partidos e a vossa irmã prestes a ser coroada. Lavo as minhas mãos de vocês. Fazem-me ter vergonha, percebem? Vergonha.
Edith atirou com a porta ao voltar para dentro de casa. Só sentia vontade de chorar. O dia começara mal, com Raoul desaparecido e Juda aos berros ao telefone, e ainda nem sequer eram nove da manhã, O pior é que ela sabia que tudo iria piorar muito mais quando tivesse de dizer a Ruby que não havia dinheiro para terminar o vestido já quase pronto.
Ruby, que ocupava o melhor quarto da minúscula casa degradada, estava deitada na sua cama com uma máscara de beleza no rosto. No dia seguinte seria fotografada para uma revista de penteados, apenas uma promoção para o salão onde trabalhava, mas já era um começo. Quando ouviu o que a mãe tinha para lhe dizer, levantou-se da cama enraivecida.
Estás a dizer-me que o Raoul roubou o dinheiro todo à tia Juda? Roubou-o?
Foi o que ela disse, e agora nem sequer pode comprar o bilhete de avião para assistir ao desfile.
Ruby gritou de raiva. Diabos a levassem se ia permitir que o chanfrado do irmão a impedisse de se afastar daquela casa e de todos os que nela viviam. Soluçou, arranhou a parede com as unhas, enquanto as lágrimas lhe abriam sulcos na máscara branca até, por fim, se acocorar a um canto como uma criança, desaparecida a energia.
Ai, mãe, o que vamos fazer, o que vamos fazer?
No piso de baixo, Sugar May, de ouvido à escuta, sorria, esfuziante. Era bem feito para aquela cabra convencida. Ruby Corbello conseguia sempre o que queria, nunca precisava de vestir roupas usadas como ela. Escapuliu-se de casa, radiante, na altura em que um velho táxi amarelo vinha buscar Willy e Jesse para os levar ao hospital.
Edith sentou-se na cama da filha, ela própria à beira das lágrimas. Todos aqueles acontecimentos haviam-na esgotado.
Que tal pedirmos ao padre Leroy, Ruby? Ruby sacudiu a cabeça.
O dinheiro que ele tem já mal lhe chega para a mulher e os dois filhos, mãe. O trabalho de investigação que faz não dá fortuna nenhuma. A única pessoa que tem dinheiro a sério sabes tu quem é.
Edith disse que não com a cabeça.
Não peço absolutamente nada ao Fryer.
Não me referia ao Fryer, mãe. Que tal pedi-lo àquela amiguinha da tia Juda, a que lhe tem dado toda aquela massa ao longo dos anos? Pedimos-lhe directamente, ela é rica, não é? Edith disse outra vez que não, abanando a cabeça.
Não, nós não podemos entrar no território da Juda, Ruby. Essa tal Mistress Caley é que lhe dá o pão para a boca e é com esse dinheiro que ela nos tem sustentado a todos. Eu jamais agiria nas costas da Juda.
Ruby colocou-se em frente da mãe.
Eu sei que já fizeste coisas por dinheiro, coisas com que nunca concordaste, eu sei disso, mãe.
Cala-me essa boca imediatamente ordenou Edith, dando uma bofetada à filha.
Ruby conseguiu escapar.
Eu sei que o fizeste, mãe, vi a Juda entrar aqui a buscar o seu... O seu chamado chá. Tenho a certeza.
Edith voltou a bater-lhe.
Tu não viste ninguém vir aqui, percebeste. Se me contas uma palavra que seja a alguém... Ficas avisada...
Ruby não esmoreceu.
Não, mãe, estou só a avisar-te porque o meu dia vai ser o melhor dia da minha vida e não permitirei que ninguém dê cabo dele.
Ruby correu para fora do quarto e Edith cobriu o rosto com as mãos. Ouviu a porta da frente bater com força e chegou-se à janela. Viu a filha seguir rua adiante em passadas largas, com os braços a balançar, ainda com a cara coberta de creme. Estava a ser uma manhã terrível, era como se tudo se tivesse subitamente desmoronado. E as coisas não se ficariam por ali.
Quando ia a descer pesadamente a escada estreita, Sugar May passou por ela com um jornal enrolado na mão. Esmagou uma mosca com ele.
Se esse jornal é de hoje, Sugar May, não dês cabo dele dessa maneira ainda antes de eu lhe dar uma vista de olhos.
A rapariga entregou o jornal à mãe com maus modos.
Vou fugir de casa, vou à procura do Raoul e partilhar de todos aqueles milhões de dólares.
Deitou a língua de fora à mãe, que se serviu do mesmo jornal para lhe dar com ele na cabeça. Sugar May limitou-se a rir e saiu de casa a correr.
A meio da primeira página vinha um artigo com o seguinte título por cima: «Antiga Debutante Suicida-se!» Edith sentou-se pesadamente nos degraus, olhando para o jornal com os olhos arregalados, e leu o artigo que relatava em pormenor o suicídio de Tilda Brown. Teve a sensação de que lhe apertavam cada vez mais o pescoço com um nó corrediço, impedindo-a de respirar.
Ruby ajoelhou-se diante da alta tumba branca que se erguia logo à entrada do Cemitério de Saint Louis. Desenhara-lhe na frente, no chão, o ve-ve de Marie Laveau, o hieróglifo em espiral que invocaria o espírito da rainha do vodu, e naquele momento juntava mais uma cruz às centenas já existentes no monumento, premindo a palma da mão contra a pedra fria e batendo depois nela várias vezes. Estava de tal maneira concentrada nas suas orações ao espírito da sacerdotisa morta que não ouviu as passadas suaves de Leroy Able, que se aproximava. Ainda tinha o rosto meio coberto de creme, pelo que Able pensou por instantes, petrificado, que estava diante de uma mulher saída de uma tumba.
Ruby?
A jovem voltou-se.
Pensei que não acreditavas em nada disto.
Uma das maiores mágoas de Edith era a filha mais velha parecer não ter tempo para se dedicar ao que os seus ancestrais lhe tinham deixado de herança, e dizer, trocista, que tudo não passava de uma série de superstições africanas que a manteriam no gueto, quando o que ela queria era ir para Nova Iorque e ser a nova Veronica Webb.
Bem proferiu Ruby asperamente, embaraçada por ter sido vista, acho que não tem nada de mal. Aconteceu algo de terrível. O Raoul fugiu com o dinheiro que era para o meu vestido, que já está alinhavado, só me faltam mais duas provas.
Sai daí, rápido, o lugar está a encher-se de turistas, que vêm ver as tumbas. Depressa, esconde-te.
Ruby deixou que Leroy a levasse do túmulo de Marie Laveau para uma zona do cemitério mais sossegada, onde ficavam as sepulturas das pessoas demasiado pobres para terem acesso a um dos sepulcros alinhados nas paredes circundantes. Aceitou o lenço que ele lhe ofereceu e sentou-se no chão a limpar a cara, estendendo as longas pernas bem modeladas à sua frente. A rapariga mudara desde a última vez em que ele a vira; o lindo rosto oval, os olhos negros amendoados e o cabelo negro ondulado que lhe ia até à altura da cintura tinham começado a fazê-la parecer-se, cada vez mais, com a grande rainha; poderia ter passado por filha de Marie Laveau ou pela própria, acabada de voltar à vida e à juventude uma segunda vez.
Arranjaremos o dinheiro, Ruby, todos contribuirão para o vestido, não precisas de te preocupar com isso. O grupo não te deixará ficar mal. Estás a ser uma tolinha.
Ruby suspirou,
Talvez, mas lá em casa as coisas não estão nada bem e os meus irmãos meteram-se numa grande alhada. Até a minha irmã mostra jeito de arranjar problemas, passa a vida metida naquele bar ranhoso, aliás, todos eles.
Leroy inclinou-se e afagou-lhe os cabelos sedosos.
Mas tu não?
Não respondeu a jovem suavemente.
Porque és diferente?
Tu sabes que eu sou diferente. Tenho mais perspectivas à minha frente do que aquele bairro ou toda esta maldita cidade, pelo menos tinha, até o Raoul dar cabo de tudo. Mas não descansarei enquanto não arranjar aquele dinheiro e ter o meu dia; cheguei mesmo a dizer à mãe para telefonar...
Mordeu os lábios e calou-se. Leroy ficou com uma expressão preocupada.
Telefonar a quem? Ruby sacudiu a cabeça.
Já falei de mais.
Não, Ruby, não disseste absolutamente nada. A quem pediste que a tua mãe ligasse?
Ruby manteve a cabeça baixa.
A Mistress Caley.
Leroy ergueu-se e olhou-a do alto da sua estatura.
Não, nem penses em fazer isso, ouviste? Desde o desaparecimento da filha que a Polícia e detectives particulares andam à volta deles com perguntas, e tudo isso ainda continua, percebeste? Mantém-te afastada. Falo a sério, Ruby, não te deixes envolver em nada.
A jovem ergueu rebeldemente os olhos para ele.
Mas então que faço com o meu vestido, Leroy? A Alma Dicks não o termina se não lhe pagarmos.
Leroy ajudou a jovem a pôr-se de pé. Parecia tão leve, tão frágil.
O teu vestido ficará pronto, Ruby, e tu serás a rainha mais bonita que o Mardi Gras já teve.
Ruby sorriu.
Queres ver uma coisa, Leroy? começou a mover o corpo sinuosamente. Sei fazer a dança da serpente, como a minha mãe costumava fazer.
Contorceu as ancas e rolou a cabeça. Era flexível e hipnótica como uma serpente e ele teve vontade de a tomar nos seus braços, porém Ruby começou a dançar em direcção às tumbas altas e, de repente, depois de passar entre duas delas, desapareceu. Era como se nunca tivesse estado ali. Leroy suspirou. Ele mudara muito desde que voltara de LA. Não se tratava apenas da responsabilidade de ter mulher e filhos. Regressara e encontrara as suas raízes, redescobrira-se a si mesmo e às suas crenças, mas, às vezes, era difícil fugir daquele outro Leroy que fornicava com tudo o que usava saias. E ser confrontado com uma beldade como Ruby Corbello era colocar a sua fé verdadeiramente à prova.
O corpo nu de Nick Bartello encontrava-se na morgue e as suas roupas dobradas dentro de um saco de plástico. Não lhe tinham encontrado qualquer identificação e, como os seus bolsos haviam sido esvaziados, depreendeu-se que fora vítima de um assalto, embora não tivesse ar de turista das grandes ruas, fazendo lembrar mais um vagabundo vindo para o Carnaval. Eram encontrados muitos Nick Bartellos sem identificação e assim teria ficado se não fosse a tatuagem que tinha no braço esquerdo: um distintivo da Polícia de Los Angeles.
Leroy Able regressara ao seu escritório e à sua função de pessoa pública quando recebeu o telefonema. Quando o sargento lhe perguntou se fora contactado por algum dos seus antigos camaradas, franziu o sobrolho e apoiou os cotovelos sobre a secretária.
Não, porque pergunta?
Esta manhã encontrámos um cadáver e você esteve na polícia de LA, não esteve?
Sim, porquê?
Bem, este tipo tem um distintivo tatuado no braço e não lhe foi encontrada mais nenhuma identificação. Também tem um par de cicatrizes na perna direita.
Quer que lhe dê uma olhada? perguntou Leroy, hesitante.
Então não é que o encontrámos num beco que fica a dois quarteirões do bar do Fryer! observou o polícia gordo que seguia, gingando, à frente de Leroy. Garganta cortada, grande sova, nenhuma testemunha, nada de nada.
O lençol foi afastado do rosto de Nick e Leroy fitou-o.
Não, lamento, mas nunca lhe pus a vista em cima. Como sabe, estes velhos hippies faziam muitas tatuagens, essa não deve significar nada de especial.
Lorraine tivera tempo para examinar demoradamente cada caixa de bombons, tabuleiro enfeitado de pedrinhas sem valor, abajur pintado à mão e periquito em louça chinesa na cavernosa sala de estar de Lloyd Duval. Fê-la esperar mais de uma hora e, quando entrou, aproximando-se dela de mão estendida, ela estava furibunda.
As minhas desculpas, mas no aeroporto fizeram com que me atrasasse. Fui esperar a Elizabeth Caley, depois tive de a acompanhar a casa e foi difícil vir-me logo embora.
Não tem importância disse Lorraine friamente. Dulay sentou-se no sofá escarlate e dourado, esticando as pernas compridas.
Tornou-se ainda mais complicado quando falámos sobre o fideicomisso da Anna Louise... Lorraine ficou a olhar para ele. A sério?
Sim, tem cerca de quarenta e dois milhões a menos. Lorraine tossiu.
Foi o Robert Caley?
Leroy fez um gesto amplo com as mãos enormes.
Não podia ter sido mais ninguém. Ele sabe que eu estou a par, além disso, retirei-me do negócio do casino, o homem não passa de um ladrão. Não negou nada e tive vontade de lhe dar uma sova. Também me quis fazer o mesmo quando lhe disse que sabia da relação dele com a Anna Louise. Negou a pés juntos, jurou-me que jamais lhe tocara. Fiquei sem saber se estava a falar verdade ou não.
Lorraine humedeceu os lábios:
Acha que ele também poderá tê-la morto?
O quê?
Se o que diz é verdade e o Robert Caley se serviu do fideicomisso da filha, acha que terá tido alguma coisa a ver com o desaparecimento dela?
A senhora não me falou nisso, Mistress Page.
Pois não, mas estou a perguntar-lho agora.
Dulay levantou-se e passou a mão pela farta cabeleira branca.
Ele não precisaria de matar a filha para encobrir o sucedido, o mais provável era ela nunca vir a descobrir.
Se o negócio do casino fosse por diante.
Exacto.
Mas se não fosse o caso?
O homenzarrão encolheu os ombros.
Não lhe posso dar nenhuma resposta porque, na verdade, não sei.
Será capaz de me dizer quanto dinheiro a Elizabeth Caley provavelmente tem?
Dulay deslizou sobre um tapete da Bessararábia, de valor incalculável, e deteve-se em frente das janelas.
A Elizabeth recorreu sempre aos melhores conselheiros financeiros para investir o seu dinheiro; eu sei porque sou um deles... Permaneceu de costas para Lorraine. Ela recebeu uma herança muito substancial... Calculo que a sua fortuna possa ser estimada em algo muito próximo dos duzentos milhões, talvez mais.
Lorraine pestanejou. Não se preparara para ouvir um número daquela magnitude.
Dulay voltou-se para ela.
Sabe, tanto quanto pude perceber, o Robert também teve acesso a uma grande parte dele, mas não passa de um emproado. Queria singrar na vida pelos seus próprios méritos. Ela, claro, sempre se prontificou em safá-lo dos seus falhanços. Esboçou um gesto de desprezo. Estou convencido de que a Elizabeth o livrará até mesmo desta trapalhada em que ele se meteu.
Acha possível?
Acho possível o quê?
Que ele se livre de apuros financeiros, como diz? Dulay olhou para ela como se fosse uma criança pouco dotada de inteligência.
Bem, sim e não. A julgar pelos ventos que correm, ele não conseguirá nenhuma licença para operar o casino, mas acho que, se porventura isso acontecer, quem o fizer terá de negociar a terra com ele. Se a Elizabeth lhe der algo que o faça aguentar-se, talvez não precise de vender a baixo preço só para arranjar dinheiro vivo.
Lorraine foi de novo apanhada de surpresa e desviou o olhar, não querendo que Dulay reparasse na sua confusão, porém este não olhava para ela. Remexia numa corrente de ouro que tinha presa ao colete.
Vou contar-lhe uma coisa extremamente confidencial, Mistress Page, mas antes disso quero que me jure que o assunto não sairá das paredes desta sala.
Lorraine cruzou os braços.
Bem, se tiver alguma ligação criminal com a investigação, não posso fazê-lo...
Não tem.
Nesse caso tem a minha palavra, Mister Dulay. O homenzarrão voltou a sentar-se pesadamente.
Se houvesse alguma coisa entre eles, não se trataria propriamente de incesto.
Como disse?
Eu disse, Mistress Page, que não seria incesto. Estou a referir-me ao que sugeriu ontem, que o Caley manteve uma relação sexual com a Anna Louise.
Não compreendo.
A Anna Louise não é filha do Robert Caley, mas sim minha, Mistress Page, e foi por esse motivo que pude informar-me sobre o seu fideicomisso, por ser constituído por dinheiro que também me pertenceu. A Anna Louise é minha filha, não do Robert Caley.
Ele sabe?
Evidentemente que sim.
E a Anna Louise também sabia?
Não.
Lorraine suspirou fundo.
O senhor confrontou o Robert com a questão do fideicomisso e ele admitiu que sim, mas disse-me que não sabia ao certo se ele mantinha uma relação sexual com a Anna Louise.
Se quer que lhe reproduza, palavra a palavra, eu disse que se ele andava a abusar da minha filha lhe dava um tiro na cabeça, ao que respondeu, e passo a citar, Mistress Page, que se eu lhe fizesse sequer uma acusação nojenta como essa quem levava um tiro na cabeça era eu!
Mas o senhor acreditou ou não nele? perguntou Lorraine calmamente.
Sim, acho que sim, porque o vi muito chocado. Na verdade, passou por toda uma gama de emoções de que, sinceramente, nunca o julguei capaz, mas no fim restou-lhe apenas uma enorme raiva. Inclinou-se para a frente no seu sofá, olhando fixamente para o rosto corado de Lorraine. Talvez seja melhor investigar todos os factos antes de atirar lama, Mistress Page.
Lorraine levantou-se e ripostou-lhe secamente:
Se mos houvessem fornecido, talvez eu não tivesse precisado de o fazer. Estou apenas a tentar fazer o meu trabalho, Mister Dulay.
Lloyd Dulay enfiou as mãos nos bolsos e, como Lorraine já se dirigia para a porta, seguiu-a. De repente, a detective parou.
Tem algum vídeo do filme O Pântano, aquele em que Mistress Caley entrou?
Santo Deus, para que o quer?
Saber o máximo possível sobre os meus clientes faz parte, apenas, do meu trabalho.
Dulay foi até junto de um armário onde guardava a sua colecção de vídeos.
A Elizabeth não vai ficar nada contente com isto. É um filme terrível, barato, de segunda, mas ela está maravilhosa.
Entregou-lhe a cassete.
Lorraine guardou-a na pasta. Sentia-se trémula e furiosa consigo mesma. Tirara aquelas conclusões nojentas com tanta ligeireza que sentia vergonha. Se nem mesmo tivera coragem de responder aos telefonemas que ele lhe fizera na noite da véspera, a ideia de o encarar naquele momento fazia-a corar de vergonha; pôs essa possibilidade de lado, recusando-se a pensar no que teria de fazer para reparar os danos causados.
Ordenou ao motorista, o mesmo do dia anterior, que a levasse de novo a casa de Tilda Brown.
Sabes, Bill, estou a ficar preocupada comentou Rosie ao sentarem-se na esplanada de um café próximo do Bairro Francês.
Eu também, a coisa tresanda. Deitam a mão a esse filho da mãe, uma informação anónima diz que o viram a falar com a Anna Louise Caley e...
Não estou a falar do Fryer Jones interrompeu Rosie. Rooney olhou para o relógio.
O Nick foi sempre um grande apreciador de saias observou, sentindo-se, porém, pouco convencido.
Porque é que não telefonou?
Como é que eu hei-de saber? respondeu Rooney, agastado, fazendo-lhe imediatamente uma festa na mão. Desculpa, desculpa. Olha, vamos fazer assim, digamos que esperamos até à uma da tarde, altura em que a Lorraine deve estar de volta ao hotel. Se o Nick não aparecer até essa altura, começamos a procurá-lo.
Aonde? Esta cidade é enorme.
Rooney bebeu o seu terceiro café com leite do dia.
Começaremos pela morgue. Se não o tiverem por lá...
O quê?
O ex-polícia limpou a espuma que lhe ficara na boca.
Morgue, Rosie, começa-se sempre pelo ponto mais baixo e vai-se daí para cima. Uma coisa é certa: enquanto esse malandro não aparecer não me aproximo sequer do tal bar do Fryer Jones, e espero por Deus que a Lorraine não tenha arrancado sem vir falar connosco primeiro. Se olhares para a lista das chamadas testemunhas oculares que dão àquele tocador de trombone um álibi dos diabos, verás que metade delas é constituída por parentes da Juda Salina, entre eles o Raoul Corbello.
Tentei entrar em contacto com a Juda Salina. O telefone esteve ocupado durante quase uma hora e depois ninguém atendeu.
E quanto à Edith Corbello? Rosie corou redondamente.
Não vem na lista telefónica. Tencionava tentar através de outros meios quando tu chegaste.
Rooney levantou-se.
Bem, voltemos ao hotel e façamos nova tentativa. Para já, enquanto a Lorraine não chegar, não podemos fazer mais nada.
Helen Dubois, irmã de Mrs. Brown, entrou na sala de estar cujo interior estava revestido a metal, vidros e tábuas de madeira tão polidas que brilhavam como se estivessem laçadas. As paredes, forradas em tons de bege e aveia requintadamente discretos, evidenciavam a elegante colecção de quadros e objectos de arte primitiva nelas pendurada. A mulher, de formas amplas e expressão atormentada, parecia demasiado humana e deslocada naquele ambiente austero.
Receio que nem Mister nem Mistress Brown possam recebê-la, Mistress Page. Ainda estão muito chocados e a minha irmã tomou sedativos.
Sim, peço imensa desculpa. Agradeço que transmita as minhas condolências. Lorraine pegou na bolsa e na pasta sem pressas. A Polícia ligou para mim a pedir declarações, pois estive aqui ontem de manhã cedo e entrevistei a Tilda.
Sim, eu sei.
Não consigo deixar de imaginar que, se calhar, o acontecido teve alguma coisa a ver com algo que eu tenha dito...
Jamais saberemos, não é verdade? disse Mrs. Dubois tristemente.
Mas a Polícia disse que a Tilda deixou um bilhete.
Deixou, mas não encontrámos nenhuma explicação nele.
Posso saber o que dizia?
Helen Dubois puxou de um lenço e premiu-o contra os olhos.
Dizia apenas: «Que Deus perdoe... Tilda.» Encaminharam-se para a porta da frente e Lorraine fez por não se apressar, reparando em mais têxteis de aspecto mexicano e na floreira cheia de flora do deserto que estava no corredor.
Mistress Dubois, sabe o que me trouxe aqui, a razão pela qual vim falar com a Tilda?
Sim, segundo creio quis fazer-lhe perguntas sobre a Anna Louise Caley.
Importa-se de que dê uma vista de olhos ao quarto da Tilda?
Porquê?
Lorraine hesitou, tentando encontrar a melhor maneira de dar a volta ao assunto.
Bem, por um lado, a Anna Louise pode ainda estar viva, é uma possibilidade, e ela e a Tilda eram grandes amigas. Depois da tragédia de ontem, espero não ter deixado nenhuma pista por averiguar na minha busca. Ao mesmo tempo, apesar de não me lembrar de nada, talvez tenha dito algo inadvertidamente... estou com uma terrível sensação de culpa, Mistress Dubois, e só desejo poder sentar-me um pouco no quarto da Tilda, reflectir em tudo aquilo de que falámos e ver se, por acaso, descubro alguma pista sobre os motivos que a levaram a cometer semelhante acto, o que daria um pouco de conforto aos seus pobres pais.
Mrs. Dubois hesitou, olhando para o alto da escada de madeira.
Não sei.
O cordão da Polícia ainda está colocado?
Não, levantaram-no há cerca de duas horas.
O quarto de Tilda Brown assemelhava-se muito ao de Anna Louise Caley era suficientemente amplo para acomodar um sofá azul-turquesa com base metálica, uma cómoda, um espelho giratório também rodeado de metal gravado em relevo, em estilo mexicano, e uma cama de casal. Tudo era branco, com excepção do sofá, e a divisão parecia estranhamente desnuda, incaracterística, porém as exigências do gosto do decorador tinham sido suficientemente permissivas para que houvesse uma alcatifa branca e uma parede de roupeiros embutidos a ladear a porta, que dava para uma espaçosa casa de banho. O espaço mostrava poucos sinais de a sua ocupante ainda só estar na adolescência.
A alcatifa apresentava marcas, junto à janela, de uma série de pegadas, provavelmente deixadas pela Polícia e pelo pessoal médico que removera o corpo, assim como uma série de vestígios de nódoas acastanhadas, já secas, que poderiam ter sido de café ou, talvez, como é habitual acontecer nos suicidas por enforcamento, provenientes do esvaziamento dos intestinos de Tilda e posteriormente limpas. Não havia nenhum outro sinal de algo de adverso se ter passado naquele quarto; até mesmo o varão do cortinado onde Tilda se pendurara permanecia na sua posição e a banqueta do toucador, forrada a tecido branco e com botões prateados que pareciam lantejoulas em tamanho gigante, voltara para o seu lugar em frente do espelho de três faces.
Mrs. Dubois ficou à porta a premir o lenço contra os olhos numa tentativa de suster as lágrimas.
Não precisa de ficar junto de mim disse-lhe Lorraine suavemente.
Obrigada.
Mistress Dubois ia a afastar-se quando Lorraine reparou no urso branco encostado a uma das almofadas da cama.
Só mais uma coisa, Mistress Dubois pediu Lorraine, pegando no boneco com a certeza de que era igual aos que vira alinhados na cabeceira da cama de Anna Louise. Sabe onde é que a Tilda arranjou este ursinho?
Mrs. Dubois engoliu em seco, franzindo a testa com ar interrogativo.
É que a Anna Louise também tinha uns iguais insistiu Lorraine, e eu gostaria de saber quem deu este à Tilda.
Mistress Dubois negou com a cabeça.
Não faço ideia, creio que já aí está há algum tempo. Lembro-me de o ter visto antes de... É um urso-polar, não é?
Polar repetiu Lorraine em voz baixa.
Sim, era assim que ela lhe chamava, Polar.
Mrs. Dubois recomeçou a chorar e pediu desculpa, retirando-se. Lorraine voltou a pousar o ursinho sobre a almofada. Assim que a senhora desapareceu, puxou as cobertas para trás e apalpou debaixo das almofadas, dos lençóis e do colchão, ajoelhando-se de modo a olhar por baixo da base; porém não havia nada escondido na cama ou debaixo dela.
Lorraine passou em revista a casa de banho, sentou-se ao toucador e abriu todas as gavetas. Estas continham roupa interior, lingerie, tudo peças muito caras, dobradas e separadas por papel de seda. Até as peúgas de ténis, enroladas, estavam alinhadas como se fossem bolas. Quando abriu os armários de parede, viu que Tilda possuía um guarda-roupa tão rico e variado como o de Anna Louise, assim como filas de caixas de sapatos. Lorraine baixou-se, esperançada em voltar a ter a mesma sorte que no caso de Anna Louise, ou seja, que também ali houvesse recordações pessoais escondidas no mesmo estilo; no entanto, nada encontrou além de sapatos. Recordou o quarto dos seus tempos de rapariga, cheio de tralha, livros, revistas, cartões pregados e colados ao papel de parede em mau estado, assim como todas as fotografias das estrelas de rock e de cinema de que era fã. Mas era claro que nos quartos de Anna Louise e de Tilda o que prevalecia era o gosto dos decoradores, quase não se vendo bugigangas pessoais, além dos bonecos de pelúcia, de certo modo lamentáveis. Até a série de cosméticos e perfumes era mais apropriada para uma mulher muito mais velha. Os cremes que Tilda tinha na casa de banho imaculada eram para peles secas e enrugadas, hidratantes intensos, soros e esfoliantes químicos. Nada tivera uso; até a escova de dentes parecia completamente nova.
Lorraine suspirou. Uma rapariga enforcara-se dentro daquele inocente quarto mais branco que branco; todavia, não havia qualquer sinal da tragédia, nenhum indício de quem Tilda Brown fora. Fechou os olhos, tentando lembrar-se da conversa havida entre as duas. Segundo Tilda, Anna Louise tinha ciúmes de todos quantos mostrassem afeição pelo pai; teria sido Robert Caley a oferecer os ursos-polares às raparigas? Seria essa a razão pela qual utilizara o nome «Polar» nas suas mensagens secretas? Os cartões do Dia dos Namorados e os presentes de aniversário teriam sido de Robert Caley? Este servir-se-ia do nome «Polar»?
Lorraine pegou numa das raquetas de ténis meticulosamente alinhadas a um canto do roupeiro que Tilda destinara ao seu equipamento de desporto e esqui. Mesmo que Robert Caley se assinasse como Polar, que importava isso naquele momento? Mesmo que tivesse abusado sexualmente de Anna Louise ou mantivesse relações sexuais consentidas com ela, já sabia que não havia nenhum laço consanguíneo entre os dois.
Lorraine inclinou-se para a frente e colocou a raquete ao lado das outras. Reparou que uma delas tinha a capa ligeiramente saliente num dos lados... Seria algum par de meias? Enfiou a mão e tocou num embrulho, que tirou para fora. Era algo embrulhado em jornal e fortemente amarrado com um cordel. Lorraine sentou-se na banqueta do toucador, desapertou cuidadosamente o nó e retirou o cordel. Pô-lo de lado e colocou o embrulho em cima do tampo do toucador espelhado, depois de afastar escovas e pentes de cabos em madrepérola.
O jornal, reparou, era de 15 de Fevereiro, o ano não se via, pois esse bocado fora rasgado. Também estava muito sujo, manchado com o que parecia ser lama, parte da impressão estava mesmo esborratada. Abriu o bocado de jornal e por pouco não o deixava cair, dando um pulo na banqueta, chocada por causa do cheiro horrível. Urina e fezes humanas empastavam uma boneca, cujo tronco, braços e pernas eram feitos de trapos grosseiramente envolvidos e presos com fios de lã. A boneca tinha um vestido branco, também cosido à mão de maneira desajeitada, feito com o que parecia ser um velho pedaço de T-shirt. A cabeça era de plástico, barata, fazia lembrar a de uma boneca Barbie, e colada à cara estava uma fotografia de Tilda. Via-se um alfinete vulgar de costureira espetado no olho esquerdo, saindo do outro lado da cabeça. Quando Lorraine a virou, viu dois ou três cabelos louros compridos e o que parecia serem partículas de sangue seco, presos a um fragmento de pele rosa-acastanhado atado ao torso com dois fios cruzados de lã.
Mistress Page chamou Helen Dubois do lado de fora.
Lorraine voltou a embrulhar rapidamente a boneca e guardou-a na pasta antes de abrir a porta.
Acho melhor retirar-se. Mister e Mistress Brown mandaram vir o capelão para tratar do funeral e...
Com certeza, já estava de saída.
O motorista pôs o motor a trabalhar mal viu Lorraine sair da casa. A detective sentou-se no interior quente e abafado do automóvel e baixou lentamente a janela do seu lado. Sentia o cheiro da boneca que lhe chegava do interior da pasta, pelo que afastou esta para longe de si. Não tinha vontade de a tirar para fora, de voltar a mexer nela sem dispor de água e sabão por perto. Assim que voltou ao seu quarto no hotel lavou imediatamente as mãos várias vezes. Depois de as secar e cheirar, ficou a olhar para o embrulho.
Lorraine? Estás aí? Era Rosie.
Lorraine deixou-a entrar, voltando logo para junto da cama.
Nem imaginas o que encontrei no quarto da Tilda Brown. Já começou a empestar o quarto, e...
Rosie tinha os olhos vermelhos de chorar e trazia um lenço na mão.
Lorraine., tenho uma coisa para te dizer.
Quando Rooney entrou no quarto com o seu corpanzil, fechou a porta atrás de si e se colocou perto de Rosie, Lorraine percebeu que algo acontecera.
Que foi? Que sucedeu? Sentia as pernas a tremer. Rooney não queria ser bruto, mas não havia outra maneira.
Trata-se do Nick. Ele morreu, Lorraine.
A cor desapareceu do rosto de Lorraine, que olhou para Rosie, depois de novo para Rooney, esperançada em que fosse alguma espécie de brincadeira; no entanto, viu que não era pela expressão dos seus rostos. Apoiou-se na ponta da cama com movimentos incertos e sentou-se, tentando manter a calma e o equilíbrio.
Como é que aconteceu? Rooney ajudou Rosie a sentar-se.
Foi assassinado, cortaram-lhe a garganta. A Polícia encontrou-o ao princípio desta manhã num beco, sem carteira nem identificação, e levaram-no para a morgue. Ainda não lhe fizeram a autópsia. Rooney esboçou um gesto de impotência. O único sinal identificativo era uma tatuagem do distintivo da Polícia de Los Angeles no braço; estava muito na moda fazerem-nas quando se alistavam.
Sim, eu sei disse Lorraine em voz sumida. O Jack Lubrinski tinha uma, não era no braço, mas sim no rabo. Os lábios de Lorraine tremeram e cerrou fortemente os dentes, ansiosa por ficar sozinha. Se não se importam, quero ficar um bocado a sós.
Rooney assentiu com a cabeça e pegou no braço de Rosie.
Claro, quando quiseres falar connosco, liga. O instinto dizia-lhe que era melhor saírem, mas Rosie queria ficar mais um pouco. Anda, Rosie. Vem daí, querida.
Puxou-a suavemente em direcção à porta, que fechou depois de saírem, enquanto Lorraine ficava de pé, imóvel, com as mãos, fortemente cerradas, a penderem-lhe de cada lado do corpo.
No corredor, Rosie virou-se para Rooney.
Caramba, ela não passa de uma gaja fria e insensível, imagina pôr-se a falar do Lubrinski... Quero dizer, o Nick, o Nick era...
Rosie começou a soluçar e Rooney abraçou-a, amparando-a ao longo do corredor.
Não mostrou nenhuma tristeza por ele queixou-se Rosie no meio das lágrimas, mas Rooney sabia que não era assim: era polícia há demasiado tempo para não reconhecer aquela expressão com que uma pessoa ficava, muitas vezes seguida por uma piada ou algum comentário casual, tudo para esconder o golpe acabado de receber. A ele não restavam dúvidas de que Lorraine choraria por Nick, porém ninguém o testemunharia. Também tentaria conformar-se com a morte do colega à sua maneira, tal como ele, em privado: não gostavam de mostrar o sofrimento aos outros.
Lorraine passou o rosto por água fria, ainda de olhos secos e em estado de choque, ainda sem interiorizar verdadeiramente o facto de que nunca mais voltaria a ver Nick. Sussurrou o seu nome repetidas vezes, em tom interrogativo, enquanto secava a cara com pancadinhas da toalha; depois saiu da casa de banho e entrou no quarto, olhando primeiro para a cama onde dormia quando ele a acordara, depois para a do lado, onde Nick se sentara. Deitou-se na sua cama, encolheu-se e ficou voltada para a que estava vazia, sentindo vontade de estender a mão, como se ele ainda ali estivesse.
Nick? sussurrou de novo. Oh, Nick... repetiu.
Nesse momento, as lágrimas chegaram, e ela, engelhando o rosto como uma criança, chorou por Nick Bartello, adorável e louco como fora. Chorou até ficar exausta, gritou, até que por fim, se deixou ficar sentada com a cabeça metida entre as mãos.
Foi então que reparou na garrafa de vodca que ele deixara. Caíra para o chão e rolara para debaixo da cama. Mirou-a fixamente, incapaz de desviar o olhar, sentindo que a atraía como um íman, levando-a ajoelhar-se para lhe chegar. Pegou nela, examinou-a, quase a acariciou, e depois rodou lentamente a tampa. Só um gole, só precisava de um gole para se recompor e poder trabalhar. Apenas um; depois conseguiria pôr a garrafa de parte. Tinha a certeza.
Terminada a autópsia, Rooney tomou providências para que o corpo de Nick fosse enviado para casa. Telefonara à irmã de Nick a dar a notícia e, apesar de esta se mostrar pouco emocionada e comunicativa, disse que o enterraria e forneceu a morada, que era no centro de LA. Só no fim da chamada é que quis saber como é que ele morrera. Quando Rooney lhe contou, a sua voz só deixou transparecer uma quebra quase imperceptível.
O Lenny andava sempre a meter-se em sarilhos.
O Lenny? repetiu Rooney, confuso.
Sim, ele chamava-se Nick, mas nós, família, tratávamo-lo sempre pelo nome do meio, Lenny, melhor dizendo, Leonardo. Só uma coisa, Mister Rooney... não podemos ficar com o cão dele.
Não tem importância, eu tratarei do cão.
Como não tinham mais nada a dizer um ao outro, Rooney apresentou as suas condolências e desligou.
Eu ficarei com o Tiger dissera Lorraine calmamente.
Rooney concordara com um aceno de cabeça, depois retirara-se. Percebera que Rooney precisava de chorar, o que fez, encostado ao elevador, regressando mais tarde para obrigar todos a retomar o trabalho.
Lorraine bebia de uma lata de Coca-Cola, aparentemente mais preocupada em iniciar o dia de trabalho do que em falar de Nick, e a sua aparente falta de emoção deixava Rosie muito confusa e preocupada. Rooney avisara-a de que não importunasse a amiga nem lhe fizesse perguntas, porém não conseguia deixar de olhar para ela: tirando a palidez intensa do rosto e os olhos muito vermelhos, Lorraine parecia possuída de uma vivacidade quase excessiva.
Rosie, vê se deixas de olhar para mim com essa cara disse-lhe com aspereza.
Apenas tento ver se estás bem.
Estou óptima, Rosie! E agora que tal voltarmos à razão que nos trouxe a todos aqui?
Falaram sobre a horrenda boneca podre que, logo a seguir, Rosie embrulhou em dois jornais, enfiando-a dentro de uma gaveta. Lorraine não se sentia com forças para entrevistar quem quer que fosse; no entanto, sabia que não poderia deixar de o fazer a Elizabeth e Robert Caley. Também discutiram a importância da detenção e libertação de Fryer Jones, assim como a sua implicação no desaparecimento de Anna Louise; porém, Rosie e Rooney não concordaram que Lorraine fosse sozinha ao bar. Nick fora assassinado a poucos quarteirões dele e teriam de descobrir se havia alguma ligação. A estupidez de Nick em sair sozinho enfurecia-os, pois naquele momento não tinham ideia de onde estivera ou com quem falara. A sua raiva, no entanto, não lhes atenuava a dor.
Rosie fez uma careta ao sentir o cheiro que saía da pasta de Lorraine quando lá foi buscar a cassete vídeo de O Pântano. Ajoelhou-se em frente do leitor de cassetes da sala de estar que convencera o recepcionista a emprestar-lhes.
Lorraine correu as cortinas e empoleirou-se na sua cama, enquanto Rosie e Rooney se sentavam na do lado. Reparou que ele dava uma pancadinha carinhosa na colega, chegando-se para mais perto dela.
Estás bem, querida?
Rosie disse que sim com a cabeça, retribuindo-lhe o gesto afectuoso, o que fez com que Lorraine se sentisse excluída, mas esforçou-se por se alhear, enquanto o filme começava. Apresentava-se um pouco desvanecido, como algumas velhas películas em technicolor dos anos sessenta. Até o logotipo dos Estúdios Columbia se via mal e a música deslizava com dificuldade. O comentário que antecedia o filme fez com que todos se inclinassem para a frente.
«Este filme, realizado com base em pesquisas exaustivas, retrata a vida e a época de Marie Laveau, a rainha do vodu, que chegou a Nova Orleães no início do século dezanove.»
O filme era enfadonho, a verdadeira trama levando muito tempo a desenrolar-se. A má qualidade da fotografia e os riscos sobre as imagens não impediam que se visse que Elizabeth Seal era, sem dúvida, uma verdadeira beldade, e a sua dança com uma serpente foi o ponto alto dos primeiros vinte minutos.
Não há dúvida de que fizeram um bom trabalho de maquilhagem, pois ela parece mesmo negra murmurou Rosie.
O filme continuou a rolar e o enredo tornava-se, muitas vezes, confuso. Apesar de a história se estender por mais de uma geração e todas as outras personagens ficarem grisalhas e mirradas, a estrela pareceu não passar dos vinte anos do princípio ao fim. Mesmo quando depuseram o seu corpo no caixão, continuava bela e jovem, enquanto, na vida real, Marie Laveau vivera até depois dos oitenta anos. Era mais uma distorção dos factos reais tão ao jeito de Hollywood.
As legendas finais começaram a passar e Rosie pegara no comando para desligar o aparelho quando Lorraine gritou:
Espera, espera! Rola isso para trás, Rosie, PÁRA! Olharam para a última secção dos agradecimentos e por baixo do grupo com o título «DANÇARINAS DA SERPENTE ENCANTADA» apareciam dois nomes conhecidos, Juda e Edith Salina, e sob o dos «SACERDOTES VODU» estava o de Fryer Jones. Rosie desligou o aparelho e correu as cortinas, enquanto Lorraine pegava numa lata de Coca-Cola a caminho da casa de banho. Aí, despejou parte do seu conteúdo na sanita e depois acabou de a encher com a vodca de Nick Bartello, antes de voltar para o quarto. Sentou-se a beber da lata, agitando o pé.
Bem, a energia voltou-me. Esta tarde quero falar com a Elizabeth Caley...
Queres que vá contigo? perguntou-lhe Rooney.
Não. Temos de ir ter com a irmã da Juda Salina. Já arranjaste a morada, Rosie?
Não, ainda não, ia precisamente tratar disso quando... Por pouco não proferia o nome de Nick. Não vem na lista telefónica, mas arranjei uma lista de videntes e consultoras de vodu no museu. Deve constar nela, ainda não verifiquei.
Fá-lo, mas não te chegues perto dela antes de eu voltar. A partir de agora, ficamos em ligação uns com os outros, falamo-nos frequentemente e, se avançarmos sozinhos, informamos das horas e da localização.
Rooney pareceu aborrecido e Lorraine virou-se para ele.
Bill, conduzi mal a questão relacionada com o Caley. Numa entrevista com o Lloyd Dulay disse coisas que não devia, antes de confirmar primeiro os factos. Por isso, tenho de falar com ele a sós e pedir-lhe desculpa.
Está bem, tu sabes o que fazes.
Nem sempre, Bill, e com o Caley não agi correctamente.
Bem, mas obtiveste resultados.
Sim, obtive. Hesitou. O Nick foi assassinado, a Tilda Brown suicidou-se. Obtive estes resultados porque estava furiosa e cansada, cansada porque passei a noite anterior na cama com o Robert Caley.
O quê, estás a falar a sério? Foste para a cama com o Robert Caley?
Sim, sim, fui.
Eu não acredito exclamou Rosie, atónita.
Pois bem, é verdade, foi uma estupidez, mas... Esboçou um sorriso lúgubre e encolheu os ombros à laia de desculpa. Não fui capaz de me conter. Portanto, no dia seguinte estava de tal maneira resolvida a ver se ele era suspeito ou não que agi irreflectidamente.
Quer dizer que o Nick tinha razão? Ele bem disse que o tinhas feito e houve resultados.
Lorraine desviou o olhar.
Não, Bill, o Nick estava enganado. Não dormi com o Caley para obter informações, mas sim porque tive vontade disso. Agora, se me dão licença, preciso de tomar um duche.
Cerrou a porta da casa de banho. Rosie fechou bruscamente o seu bloco de apontamentos com expressão severa. Rooney pegou no casaco e dirigiu-se para a porta.
Ficamos assim? perguntou Rosie, furiosa. O colega virou-se para ela, surpreendido.
O quê?
Rosie pousou as mãos nas ancas.
Aceitamos o que se passou, assim, sem mais nada? Ela dorme com o nosso cliente. O tipo contratou-nos e ela vai para a cama com ele. Não há dúvida de que é um trabalho muito eficaz e profissional. Passa uma noite de paixão tão violenta que na noite seguinte está de rastos, deita-se cedo, enquanto o Nick sai sozinho e é morto?
Rosie alertou Rooney, lançando olhares na direcção da casa de banho.
Quero lá saber que ela me ouça, estou revoltada, enojada!
Não estejas.
Por que raio não? Agora vai ter com a mulher dele... Se esta descobre, que julgas tu que acontece? Perderemos aquele bónus. Estou farta de receber ordens desta desavergonhada.
Rooney abriu a porta do quarto e saiu para o corredor.
Anda, Rosie, se ela não tivesse passado por aquela porta de ligação, se calhar nunca obteria a informação sobre o fídeicomisso da rapariga. Deteve-se e virou-se ligeiramente para a colega com um meio sorriso. Nós não temos nenhuma, pois não?
Que disseste? Atirou com a porta e apanhou-o junto do elevador. Isso foi algum convite de mau gosto, Bill? Rosie olhava-o, furiosa.
Raios, não. Foi só uma brincadeira. Entrou no elevador. Eu não te faria uma proposta tão indecorosa, Rosie, teria mais respeito.
A porta do elevador fechou-se e Rooney carregou no botão do piso para onde iam. Mantiveram-se calados até chegarem ao seu destino e depois saíram para o corredor. A porta de Rosie era a primeira. Estava resolvida a abri-la sem sequer olhar para Rooney, porém, este pousou a mão enorme no manípulo.
A não ser que tu me quisesses, não? Rosie olhou para ele, não se permitindo sorrir.
Há muito tempo que não me fazem uma proposta decente ou indecente, Bill, mas neste momento, com o desaparecimento do Nick, não creio que esteja preparada para nenhuma delas. Até logo.
Fez girar a chave e entrou. Só depois de fechar a porta é que cedeu e esboçou um pequeno sorriso.
O velho engatatão está mesmo caidinho por mim comentou de si para si.
Lorraine vestiu-se com grande esmero, mantendo a ventoinha do tecto a funcionar, não fosse o suor fazer a sua aparição antes de acabar de se admirar. Pusera um dos fatos saia-casaco comprados recentemente, uma blusa de seda, sandálias de saltos altos e um único fio de pérolas baratas mas com muito bom aspecto. Pegou na sua pasta, cujo interior já lavara, conseguindo livrá-lo do cheiro fétido da boneca.
Ao chegar à recepção, passou por Rooney, que se voltou para ela, sorrindo.
Óptimo aspecto.
Obrigada. Quem atirou com a porta foste tu ou a Rosie?
Eu, preocupado com a possibilidade de teres deitado a perder o nosso milhão. Sabes se Mistress Caley já descobriu?
Se assim for, lá me desenvencilharei. Não será por minha causa que vocês ficarão a perder, Bill. Sei que o que fiz não foi ético, mas também não menti. Dizer que lamentava o sucedido também seria faltar à verdade. Gostei dele. Gostei mesmo muito dele.
Rooney desviou o olhar.
E quanto ao Nick? Também gostavas dele?
Sabes bem que sim.
Quer então dizer que agora é a dividir por três? perguntou ele, com tristeza.
Parece que sim. Que tens aí?
Rooney segurava uma folha de papel dobrada ao meio na mão.
Uma lista dos pertences do Nick. Roupas, não tinha mais nada consigo. As suas botas de cowboy; a carteira e a carta de condução desapareceram.
Lorraine suspirou. Sentia-se acabrunhada, mas de repente lembrou-se de algo. E aquele colar, o gris-gris, que ele tinha ao pescoço Também está na lista? Não, mas não sabemos se ele não o levava ou se foi roubado. Bem, procura no seu quarto. Assim que acabar de falar com os Caley, venho directamente para aqui. Eles sabem que vais lá? Não, prefiro aparecer de surpresa! Repara que podem negar-se a receber-me, embora duvide. Nesta altura, já devem saber o que aconteceu a Tilda Brown, saiu nos jornais. Lorraine ia a caminho da porta de saída quando parou. Bill, o jornal que vem a embrulhar aquela boneca tem a data de quinze de Fevereiro, mas falta-lhe o ano. És capaz de arranjar maneira de descobrir qual é? A data parece-me uma coincidência demasiado grande. A Anna Louise desapareceu a quinze de Fevereiro; portanto, se aquele jornal é do ano passado, isso significa que a Tilda Brown conservou aquela coisa durante muito tempo. Saiu pela pesada porta da frente, ao encontro do motorista que a aguardava. Rooney ficou a olhar para a miserável lista dos pertences de Nick Bartello e não pôde deixar de recordar a voz do colega a dizer-lhe com a sua risada áspera do tabaco: «As coincidências não existem, meu velho Bill. Nunca acredites nelas, só o bom trabalho de investigação é que conta.» Rooney suspirou, sentindo um nó na garganta. Na verdade, não conseguia lembrar-se de quem fizera aquela observação, se Nick ou Jack Lubrinski. Tinham sido tão parecidos um com o outro, e agora estavam ambos mortos. Rooney tomou consciência da sua própria mortalidade e ficou assustado. Não tinha filhos nem mulher, mas talvez viesse a poder desfrutar, no futuro, de alguma segurança financeira, além da sua magra pensão. E se calhar também teria Rosie.
Elizabeth atirou o bule creme de louça Lancaster à cabeça de Robert; este desviou-se por pouco e a peça fragmentou-se contra a parede do seu quarto na magnífica mansão de Garden District, onde crescera.
Como pudeste, como foste capaz de me fazer semelhante coisa?
Caley desviou-se dos pincéis e do espelho de prata que se seguiram e esperou até Elizabeth enrolar o seu robe de veludo em torno do corpo, levando a mão à testa num clássico gesto melodramático.
Afasta-te de mim, odeio-te! Caley aplaudiu.
Bravo, nenhum dos teus desempenhos mereceu tanto o Oscar como este, Elizabeth.
Vai-te lixar!. gritou ela.
Que tal acalmares-te? Para quê pores-te assim, até chegares ao ponto de precisares de telefonar ao teu passador de droga a pedir algo que te alheie de tudo? É o que fazes habitualmente, não é?
Elizabeth atravessou o quarto, fitando-o com raiva.
Acalmar-me? Tu roubaste, roubaste o fideicomisso da tua própria filha!
Correcção: ela não é minha filha.
Foste pago para a tratares como tal. Tinha o rosto vermelho de fúria, mas, mal acabou de proferir aquelas palavras, arrependeu-se de imediato, pois reparou na expressão magoada do rosto do marido. Refugiou-se imediatamente nas lágrimas. Como foste capaz de roubar a Anna Louise, Robert, e porquê? Sabes que quando precisas de alguma coisa, acabo sempre por ta dar. Então, porquê?
Caley sentou-se, taciturno, com as mãos unidas à sua frente.
Porque estava farto de vir ter contigo a pedinchar. Farto de estar sempre com a mesma charada, de precisar constantemente que me ajudasses a sair de apertos financeiros. Não queria tocar em mais nenhum cêntimo do teu maldito dinheiro. Queria, pelo menos uma vez, aguentar-me sozinho, provar que era capaz de vencer. Talvez até mesmo recuperar a minha auto-estima. Foi apenas isso, não querer recorrer à tua ajuda.
Elizabeth sorriu.
Porque não? Tem-lo feito ao longo destes últimos vinte anos! Além disso, tenho que chegue e sobre! Por amor de Deus!
A simples tentativa de se explicar deixava Robert exausto, mas devia-lhe ao menos isso.
Porque eu tinha a certeza de que resultaria. Tinha a certeza e seria a minha independência. Não compreendes? Teria sido tudo da minha responsabilidade, não da tua, nem mesmo com a tua colaboração.
Elizabeth sorriu afectadamente.
Mas não foste capaz, pois não? Da mesma maneira que não terias conseguido nada de nenhum dos teus chamados sócios se não fosse eu... sem eu ser quem sou.
Robert suspirou, abanando a cabeça com amargura; quando falou, a sua voz vinha carregada de sarcasmo:
É verdade, tudo o que sou devo a ti, tu é que me deste tudo o que tenho. Que queres que eu faça, que beije os teus pés? Santo Deus, Elizabeth, já passei demasiado tempo de joelhos, já aguentei demasiadas merdas de ti para voltar a fazê-lo.
Merdas minhas? Achas que me agrada estar casada com um falhado? Pensas que eu não teria preferido alguém em quem pudesse apoiar-me? Alguém que pudesse assumir responsabilidades?;
O quê? Que foi que disseste.
Eu preciso, sempre precisei... Robert mal se pôde conter.
Não tenho feito outra coisa, desde o dia em que concordei em casar contigo, senão tomar conta de ti e das tuas necessidades, o que, como tu muito bem sabes, fazia parte do acordo, aceitar-te com as tuas drogas, os teus copos e a filha ilegítima do Lloyd Dulay. Não me venhas falar nas tuas necessidades. Quando é que alguma vez te preocupaste comigo? Hein?
Puxou-a contra si com violência, assustando-a. Sim,
olha para mim, Elizabeth, mas olha bem porque aquilo que porventura me foi pago para casar contigo... o contrato que me obrigaste a assinar para ficar de boca calada, tinha a ver com a Anna Louise. Agora ela morreu, portanto, esse contrato está anulado.
Elizabeth debateu-se, tentando libertar-se; Robert, porém, tinha-a bem presa pelos pulsos e puxava-a para si.
Sim, morta, tu é que não queres enfrentar essa realidade.
Não está, não está, como podes dizer semelhante coisa? Não tens a certeza.
Robert teve vontade de a esbofetear, mas limitou-se a largá-la, afastando-se dela o mais depressa que pôde.
Já se passou quase um ano, Elizabeth. Se não morreu, onde diabo está?
Elizabeth começou a chorar e Robert ia a afastar-se quando ela lhe gritou:
A Juda disse-me que sente a sua presença. Robert deteve-se e agitou o indicador no ar.
Aquela mulher maldita não passa de uma sanguessuga.
É preciso ser uma para reconhecer outra, Robert. Este chegou junto dela com quatro passadas e desferiu-lhe uma bofetada no rosto. Elizabeth cambaleou e ele agarrou-a então pelos cabelos.
Tens gasto milhares de dólares com essa malfadada cabra aldrabona. Até mesmo quando proibi a sua entrada nesta casa continuaste a vê-la, chegaste a levar a Anna Louise até junto dela, uma porca gorda e malcheirosa que apenas passa manteiga pela tua vaidade, a fim de obter o que quer. Pois bem, quanto é que ela conseguiu que lhe desses pelas ditas sensações psíquicas sobre a Anna Louise? Quanto, Elizabeth?
Nem de longe nem de perto tanto quanto tu tens tirado numa semana, já para não falar em vinte anos. A Juda e eu...
Por favor, não me venhas com essa ladainha da velha amiga do passado, porque fico com vontade de vomitar. Ela não passa de uma vigarista, e só entendo que te tenha tão presa a si há vinte anos por uma questão de chantagem.
Não sejas ridículo.
Ridículo? Robert sentou-se e abanou a cabeça. Tu não vives, Elizabeth, tu passas os dias e as noites num torpor alcoólico e alucinogénio, e a Lorraine Page... Hesitou. Bastou-lhe pronunciar o nome para ficar fortemente abalado. Mistress Page disse-me que agora andas a injectar um estupefaciente que pode provocar-te uma trombose. Será que te lembras de eu te meter numa ambulância nesta última vez, para te salvar a vida? Quantas mais clínicas serão precisas, Elizabeth? Que maus tratos mais pode esse corpo ainda aguentar, quantas vezes mais pode ser reconstituído cirurgicamente? Bom, o problema já não é da minha conta.
Que queres dizer? perguntou Elizabeth, mostrando-se assustada.
Acabou-se, desisto. Quero o divórcio respondeu Robert calma e firmemente.
Mandar-te-ei prender por teres violado o fideicomisso da Anna Louise, o Lloyd chamará a Polícia.
Robert Caley riu-se. Era a primeira vez, em dias, ou talvez anos, que se sentia bem no seu íntimo.
A sério? Bem, estás à vontade, mas saberás o que farei? Contarei a todos que me mentiste, que a Anna Louise não era minha filha. Exigirei que façam testes sanguíneos ao Dulay, e isso significará aquilo de que tens tanto medo, Elizabeth, o exame do teu sangue. As luvas não servirão de nada e, se queres jogar sujo, será mais sujo do que alguma vez te passou pela cabeça. Vou revelar a tua dependência da droga e a amizade excêntrica que tens com essa prostituta gorda.
Pára com isso!
Ele riu-se tiquetaqueando com os dedos.
Vou fornecer pormenores sobre a tua operação plástica facial, a celulite do teu corpo, a lipoaspiração. O teu estatuto de grande estrela chegou ao fim! O único sítio onde ainda és uma estrela é aqui, não no mundo real, onde caíste no esquecimento há quinze anos atrás.
Pára com isso
Não, Elizabeth. Tu é que tens de parar imediatamente com essa hipocrisia, porque isso não tem cabimento nenhum. Sem a Anna Louise, nada feito. Podes consultar os teus advogados que não te servirá de nada.
Não faças isso, Robert. Estou a falar a sério, não faças isso que te vais arrepender. Nem sabes o quanto te vais arrepender.
Ai sim? E dirigiu-se para a porta, sem deixar de sorrir. Desde o dia em que nos casámos, Elizabeth, que estou arrependido. Agora vais pagá-las, vais pagar por esses vinte anos. Essa megafortuna vai ser partida ao meio, podes acreditar.
Olha que te estou a avisar retorquiu furiosa.
Não, eu é que te estou a avisar, porque desta vez é a sério!
Ela lançou-lhe um olhar fulminante, a boca mal se via.
Tudo bem, vou lutar contra ti, diz-lhes que até fizeste sexo com a tua filha!
Agora merecias levar um murro na cara, Elizabeth, mas não te vou voltar a bater. Nunca mais me vais atirar essa à cara. Além do mais, ela não era minha filha, como tu sabes.
Mas adoptaste-a.
Dei-lhe o meu nome. E gostava dela como se fosse minha filha, e ela também gostava de mim. Isso não podes negar. Não há nada que possas fazer para me prejudicares. Acabou-se. Adeus!
A filha preciosa que tanto amavas não passava de uma puta barata.
Não faças isso, deixa-a em paz. Elizabeth sorriu desdenhosamente e proferiu:
Pede a Mistress Page que te mostre a fotografia da tua adorável e doce filhinha.
Robert Caley saiu, fechando calmamente a porta atrás de si. Elizabeth ficou hirta, completamente possuída por uma fúria desmedida, com vontade de ir atrás dele a gritar, de pontapeá-lo, socá-lo, arrancar-lhe os olhos. Em vez disso, acercou-se da janela e olhou para fora, apertando o corpo com os braços e as mãos cerradas. A sua voz mal se ouvia.
Far-te-ei sangrar, Robert Caley. Juro por Deus que transformarei a tua vida num inferno, tal como a minha tem sido.
Lorraine espraiou o olhar pela janela do carro, observando as filas de graciosas casas providas de colunatas que a leva de americanos chegados a Nova Orleães construíra no Garden District, na altura em que o algodão, o açúcar e a escravatura começara a enriquecê-los: todas as ruas apresentavam o mesmo panorama de colunas brancas, cercas em ferro forjado pintado de preto, o verde escuro de árvores frondosas e as magníficas sebes aparadas. A maior parte da área datava de décadas anteriores à guerra civil, altura em que a riqueza natural de toda a região fora concentrada em Nova Orleães. Era como se as magníficas casas em estilo italiano e neoclássico tivessem sido construídas para mostrar ao mundo que o Sul era um império capaz de rivalizar com qualquer outro jamais surgido à face da Terra.
Zona bonita comentou o motorista. Começara a simpatizar com Lorraine. Gostava do facto de esta nunca ter sentido necessidade de se armar em patroa com ele, de o envolver em conversas sem sentido e de não disfarçar os seus estados de espírito. Agradava-lhe vê-la umas vezes francamente atraente como mulher, outras não. Naquela noite, dava-se o primeiro caso. Lorraine estava sexy, cheia de classe, e isso fizera-o empertigar-se no seu assento. Quando chegaram à imponente mansão, de varandas duplas, saíra rapidamente do seu lugar para lhe ir abrir a porta. Lorraine erguera-lhe a mão por um instante, tomara um gole de uma lata de Coca-Cola que trouxera consigo, aconchegando-a depois contra o banco. A bebida suave estava misturada com vodca, e ela já comprara mais uma garrafa para levar para o hotel.
Muito bem. Mais vale esperar aqui um pouco, pois não sei se eles vão deixar-me entrar ou não.
Olhou para a enorme casa branca que se erguia entre dois castanheiros do lado de lá de uma austera cerca de pontas em seta, e ajeitou o casaco.
Com certeza, minha senhora, fico aqui à sua espera, também não tenho aonde ir.
Lorraine virou-se para ele e fitou-o por um instante.
Como se chama?
Frankie, de Francois.
Lorraine tocou-lhe ao de leve no ombro.
Mantenha os dedos cruzados, Francois.
Ele gostou de que não o tratasse por Frankie; Francois parecia mais fixe.
Missy, uma das criadas dos Caley, fez Lorraine entrar para a sala de estar.
Se não se importa aguarda aqui, enquanto vou avisar Miss Elizabeth da sua chegada. Creio que neste momento está a descansar um pouco.
Obrigada, e agradeço que lhe diga que é muito importante.
Elizabeth desligou o telefone e sorriu; nem precisara de se dar ao trabalho de convencer Juda, esta concordara imediatamente. A seguir ligou para Edward a pedir-lhe que regressasse imediatamente a LA, a fim de ir buscar Mrs. Juda Salina; era extremamente importante que esta viesse o mais depressa possível.
Naquele momento sentia-se mais confiante; poria Robert no seu lugar, fá-lo-ia pagar. Sorriu para o seu próprio reflexo no enorme espelho emoldurado em gesso trabalhado e pintado de dourado que estava por cima da sua escrivaninha. A sensação de raiva reprimida evaporara-se, e o simples facto de pensar em se vingar deixava-a quase aérea. Robert Caley não passava de um vigarista barato, já o era quando o conhecera. Era um homem muito atraente, o que ajudara, e mordera o isco ainda mais depressa do que ela imaginara. No entanto, tivera de agir com rapidez porque já ia nos três meses de gravidez e nem ela nem Lloyd Dulay, que já era casado, queriam escândalos. Depois de Caley ter assinado os acordos pré-nupciais e os vários outros negócios por uma quantia de dinheiro considerável, Lloyd e Elizabeth haviam celebrado com champanhe gelado.
Ele é um achado excelente, Elizabeth observara Dulay com admiração.
Bem, não tínhamos muitas mais opções.
Dulay inclinara-se para ela e dera-lhe uma palmadinha carinhosa na barriga.
Os vigaristas são fáceis de controlar. Nunca o deixes manobrar os cordões da bolsa, minha querida. Eu tomarei sempre conta desses assuntos, e também atribuirei fundos a ti e à minha filhinha.
E se for um rapaz, Lloyd?
Nesse caso, o escândalo que se lixe. Tu livras-te do cretino, eu divorcio-me e casamos.
E voltaram a brindar.
Tinham mesmo resolvido pôr-lhe o nome de Louis se fosse rapaz. Quando viram que era uma menina, chorara, mas haviam-lhe dado o nome de Anna Louise em honra do filho que Lloyd tanto desejara. No entanto, este cumprira com a sua palavra e fizera importantes doações tanto a ela própria como a Anna Louise, contratando até consultores financeiros para gerir o dinheiro e os fundos. Todavia, as suas visitas foram-se tornando cada vez mais espaçadas, até só o ver uma vez por ano, no Carnaval. Anna Louise nunca soubera quem era o seu verdadeiro pai, porque Caley cumprira a sua parte do combinado, criara-a como se fosse sua filha e dera-lhe o seu nome na certidão de nascimento.
Missy espreitou para o quarto.
Está lá em baixo uma tal Mistress Page que pede para falar com a senhora. Diz que é importante.
Elizabeth esboçou uma expressão de contrariedade pela interrupção dos seus devaneios, mas depois sentiu remorsos.
Já desço, Missy. É só pôr um pouco de pó-de-arroz.
Abriu uma das gavetas da sua escrivaninha de madeira acetinada e ficou a olhar para as filas de frascos de comprimidos, acabando por fechá-la com força.
Agora não, Elizabeth, não voltes ao mesmo disse severamente ao seu reflexo no espelho. Tens de manter a calma.
Lorraine ficou a aguardar no piso térreo, olhando para a sala dupla onde se encontrava, cujas proporções elegantes e mobiliário eram tão discretas e elegantes quanto as da casa de Dulay berrantes e ostensivas. Elizabeth guardara a sua tendência para o glamour das estrelas de cinema na sua casa em Los Angeles. Ali pouco tinha mudado desde o inventário feito pela sua bisavó. Os frescos pintados no tecto pouco depois de a casa ser construída nunca tinham sido tapados, enquanto os tapetes russos, o piano e a caixa de música, assim como as delicadas cadeiras e mesinhas, tinham feito parte do dote da jovem noiva; os cortinados, que caíam a direito para o chão, não competiam com o trabalhado magnífico das cornijas, e há cinquenta anos que as paredes exibiam um profundo e sereno tom de azul-do-nilo. As duas lareiras sobressaíam pela sua simplicidade, desprovidas de flores secas ou toros de imitação. Por cima de uma delas via-se um retrato de família, por cima da outra, um Corot.
Só um quarto de hora mais tarde é que Elizabeth Caley entrou na sala, esplendorosamente bonita num fato de seda creme.
Mistress Page, desculpe tê-la feito esperar. Lorraine sorriu.
Não tem importância.
Vejamos, aceita uma bebida? Champanhe, vinho ou talvez um autêntico gim do Sul?
Eu não bebo, Mistress Caley.
Oh, então, talvez um chá gelado, não?
Será óptimo.
Elizabeth carregou numa campainha a chamar a criada, depois puxou uma das cadeiras e sentou-se em frente de Lorraine.
Queria falar comigo?
Elizabeth estava cheia de vivacidade, não tinha um cabelo fora do sítio, a sua maquilhagem era perfeita e aparentava uma segurança que Lorraine nunca lhe vira antes.
Está com óptimo aspecto comentou Lorraine.
Obrigada, reconheço que sim. Ah, cá estão os refrescos. Missy passou a ambas copos altos cheios de chá de limão gelado, com fatias de limão e lima. Era uma bebida refrescante, agridoce.
Hum, delicioso elogiou Elizabeth, pousando o seu copo. Um cigarro?
Lorraine puxou do seu maço e acendeu o de Elizabeth antes do seu.
Já tem resultados? Há novidades? quis saber a dona da casa com o mesmo tom com que teria perguntado a um agente pelo contrato de um filme, não demonstrando a menor emoção.
Bem, não há dúvida de que tenho andado bem atarefada disse Lorraine, abrindo o seu bloco de apontamentos e pegando numa caneta. Foi a senhora quem deu os pequenos ursos-polares que a Anna Louise tem na sua cama?
Elizabeth abriu muito os olhos de surpresa, porém percebeu que se tratava de uma pergunta a sério.
Não, acho que foi o Robert quem lhe ofereceu uns três ou quatro. Ela costumava chamar-lhe «Polar», porque às vezes ele consegue mostrar-se gélido, sabe.
Também ofereceu algum à Tilda Brown? Elizabeth pareceu, mais uma vez, confundida com a pergunta.
Na verdade, não sei. Lorraine fitou-a directamente.
Já soube do que aconteceu à Tilda Brown?
Sim, já, eles foram as primeiras pessoas a quem telefonei à minha chegada. Trágico, simplesmente terrível.
É verdade. Eu interroguei a Tilda, só para confirmar as suas declarações anteriores, mas ela voltou a afirmar que nunca mais viu a Anna Louise.
Lorraine fez uma pausa, enquanto Elizabeth tomava um gole do seu chá gelado e tocava levemente nos lábios com um guardanapo de linho branco dobrado.
Conhece um indivíduo chamado Fryer Jones? Elizabeth pestanejou e depois sacudiu a cabeça.
Não, creio que não.
Foi a única pessoa que a Polícia deteve para interrogatório, uma testemunha ocular viu-o a falar com a Anna Louise na noite do dia quinze, perto do bar que ele tem no Bairro Francês, nas proximidades do seu hotel.
Eu nem sequer sabia que eles tinham detido alguém afirmou Elizabeth, aparentemente surpreendida.
Bem, a coisa não constou porque eles libertaram-no nessa mesma noite. Apresentou álibis; uma série de pessoas afirmaram em como estivera a noite toda no bar. Entre estas figuraram Jesse Corbello, seu irmão Willy, a irmã mais nova Sugar May, mais... Lorraine passou a Elizabeth a folha em que Rooney tomara nota dos nomes com base no ficheiro da Polícia. Conhece alguma dessas pessoas?
Não, não. Desculpe, mas não.
Conhece a Edith Corbello?
Não.
Lorraine pareceu concentrar-se no seu bloco de apontamentos; no entanto, estava muito atenta a Elizabeth, que mal olhara para a lista.
Mas conhece a Juda Salina.
Mrs. Caley começara a ficar tensa, deixando transparecer pequenos sinais de insegurança. Premiu os joelhos um contra o outro e os braços agitaram-se-lhe ligeiramente.
Sabe bem que sim.
É irmã da Edith Corbello. Eram conhecidas pelas irmãs Salina.
De repente, Elizabeth exclamou:
Claro que conheço, já me lembro. Não a conheço pessoalmente, mas recordo-me de a Juda falar na irmã que, segundo creio, é casada com o Fryer Jones.
Lorraine, apanhada de surpresa, olhou para Elizabeth. Fez uma pausa antes de continuar.
Também há outro filho, o Raoul Corbello, que trabalhava para a Juda em Los Angeles.
Não me recordo desse nome.
E ainda uma segunda filha, com dezoito anos, Ruby Corbello, que parece que vai ser eleita rainha.
Debutante do ano é que não, certamente!
Não, é a rainha de um novo grupo negro que se formou para o Carnaval deste ano. Ao que parece, é uma grande distinção e haverá uma cerimónia importante.
Sim, sim, é. Mais chá?
Não, obrigada. Lorraine pegou no seu copo, de onde mal bebera, e viu Elizabeth sacudir algo da sua saia. E quanto ao Lloyd Dulay, conhece-o?
Elizabeth ergueu a cabeça repentinamente e olhou para Lorraine com uma expressão sobressaltada.
Claro que conheço o Lloyd, é um velho amigo muito querido.
A Anna Louise era sua filha disse Lorraine sem mais rodeios.
Elizabeth desviou o olhar, corando.
Não há dúvida de que tem andado atarefada. Espero que tenha sido igualmente discreta, é uma questão muito pessoal e privada. Quem lhe contou, foi ele ou o Robert?
Garanto-lhe que continuará sigilo, Mistress Caley, mas foi-me dito pelo próprio Mister Dulay.
Santo Deus!
Elizabeth suspirou, disse que estava cansada e que, se Lorraine não tivesse mais perguntas a fazer-lhe, retirar-se-ia.
Vi o seu filme O Pântano e gostei muito. Elizabeth riu-se, um tudo-nada teatralmente.
Oh, Deus me valha, onde é que o descobriu?
Mister Dulay teve a gentileza de me emprestar a cassete de vídeo. Reparei que na lista do casting, tanto as irmãs Salina como o Fryer Jones participaram no filme, em papéis pequenos, sobretudo figuração.
Eu não me dava com os figurantes, Mistress Page.
Mas conhece a Juda Salina muito bem.
Sim, mas não a conheci durante as filmagens. Encontrámo-nos anos depois num evento qualquer nesta cidade, mas, se não se importa que lho diga, não vejo que relação esse filme antigo possa ter com a sua investigação sobre o paradeiro da minha filha. Caramba, eu tinha quase a idade dela quando o fiz, portanto já foi há muito tempo.
Acredita no vodu, Mistress Caley? Elizabeth agitou as mãos.
Francamente, não posso responder a isso, não, não posso responder a isso.
E a sua filha?
Duvido muito, era uma menina muito sensata.
Também os milhares de devotos daqui o são. Sabe se a Tilda Brown acreditava?
A Tilda? Não faço ideia, mas uma pessoa nunca sabe o que se passa na cabeça das crianças.
Dificilmente se poderia considerar uma criança, tinha quase dezanove anos, a mesma idade da Anna Louise...
Lorraine não sabia se deveria mencionar a boneca. Achava que Elizabeth mentia, os seus tiques começavam a tornar-se cada vez mais acentuados: passava a mão pela saia, depois sacudia o pó à seda e arranhava-a com as suas longas unhas vermelhas.
Houve uma pausa prolongada antes de Lorraine atirar a matar:
Encontrei uma boneca dentro do forro de uma das raquetes de ténis da Tilda. Era uma boneca nojenta e fedorenta, feita à mão e envolta em excrementos e urina. Prepararam-na de modo a que se parecesse com a Tilda, tinha mesmo uma fotografia recortada do rosto dela presa à cabeça. No cimo havia cabelo humano e o que me pareceu ser sangue. Também havia um alfinete espetado no olho esquerdo, que saía do outro lado da cabeça.
Elizabeth Caley, agora muito quieta, olhava fixamente para o dedo grande de um dos seus pés que saía da sandália. Houve nova pausa prolongada, antes de Lorraine prosseguir:
O luto da família Brown não me permitiu falar-lhes das minhas descobertas; no entanto, os meus sócios vão levar a boneca à casa mortuária, na esperança de obterem amostras do cabelo e do sangue da Tilda que lhes permitam ver se condizem.
Isso não tem nada a ver com a Anna Louise declarou Elizabeth secamente.
Talvez não, mas sabe o que aquela boneca representa? Segundo um livro que tenho sobre a cultura do vodu, é uma maldição terrível. Trata-se, Mistress Caley, de uma boneca morta.
Lorraine folheou um dos livros que Rosie trouxera do museu. Encontrou a página e abriu-a um pouco mais nessa parte.
«Coloque fios do cabelo da pessoa que deseja afectar na face da boneca, utilize um alfinete preto no sítio onde pretender induzir dor», até traz um diagrama...
Não, não quero ver, afaste isso de mim por favor. Lorraine fechou o livro.
- Isto pode não ter nada a ver com a Anna Louise, mas eu tenho de...
Pare imediatamente com isso e, por amor de Deus, não mostre uma coisa tão repelente aos Brown. Já é suficientemente pavoroso que chegue a pensar que a pobre Tilda teria...
Não foi ela que fez a boneca. Alguém a fez e lha deu. Nunca se sabe se o seu autor não é culpado, no mínimo, de homicídio!
Não, ela suicidou-se.
Eu sei, Mistress Caley, mas a Tilda era a melhor amiga da Anna Louise; só estou a tentar descobrir se elas andavam metidas nisso, se iam a cerimónias.
Não, de maneira nenhuma. Não.
Mas em tempos a senhora conviveu de perto com a Juda Salina, antiga alta sacerdotisa, tal como a irmã. A Edith Corbello anda, aparentemente, menos activa nesta altura, mas ainda orienta um grupo espírita e tem uma prática semelhante à da que a irmã exerce em LA. A Juda Salina não fala da ligação com o vodu, mas distribui panfletos aos clientes a publicitar que é vidente, lê o tarot, é especialista em transes e hipnotismo, espiritismo e... vodu. Tenho aqui uma cópia...
Não, não sei nada sobre o assunto.
Mas... como a Anna Louise a acompanhou várias vezes a casa da Juda Salina, não teria visto isto? E como era jovem e impressionável, se calhar começou a meter-se no culto.
Elizabeth empurrou a cadeira para trás, enrugando o lindo tapete antigo.
Não quero repetir-me, Mistress Page, mas isto já foi demasiado longe. Não desejo discutir este assunto seja de que maneira for. Na verdade, se está convencida de que a Anna morreu, não faz sentido que continue.
Lorraine levantou-se.
Não faz sentido? Estou a tentar descobrir se a sua filha foi assassinada e, ao mesmo tempo, quem é o responsável. Já está desaparecida há onze meses.
Eu sei!
Portanto, porque diz que não faz sentido continuar a investigar esta vertente?
O vodu não é uma vertente, Mistress Page, é um modo de vida, e muito provavelmente a senhora não compreenderia as suas complexidades. É levado muito a sério nesta terra, mas não tem nada a ver, como sugeriu, como o oculto ou a magia negra. Não é utilizado para maldições ou para o mal, pelo contrário, é praticado como uma salvaguarda contra a doença e é espiritualmente engrandecedor.
Estou a tentar aprender, Mistress Caley, e, se a senhora dispuser de informações, ficarei grata.
Informações, que informações? Não tenho informações nenhumas! Porque pensa que a contratei? E da mesma maneira que requisitei os seus serviços, agora dispenso-os. Reembolsarei integralmente todas as despesas que teve até este momento, mas já não quero que prossiga esta investigação.
Lamento, mas não posso largar tudo como está.
Claro que pode, a senhora foi apenas contratada, não tem nenhuma ligação pessoal com o assunto.
Receio bem que tenha. Sabe, o meu sócio foi assassinado quando trabalhava neste caso; portanto, tenho fortes razões pessoais para querer chegar a uma conclusão.
Elizabeth hesitou, porém não pediu mais pormenores sobre o crime, ignorando-o.
Parece ter esquecido de que conclusão se tratava, Mistress Page.
De modo algum: era encontrar a sua filha, morta ou viva.
Mas não a encontrou.
E o meu tempo ainda não terminou. Ainda me falta mais de uma semana. Temos um acordo.
Mas estou a pagar-lhe para que desista. A Phyllis enviar-lhe-á um cheque. E agora, se me dá licença...
Um milhão, Mistress Caley. Pode pagar a última semana agora ou quando quiser, mas o contrato mantém-se.
Não seja tola, não deixou de ser um contrato verbal...
Não, não foi. Temo-lo por escrito, um milhão de dólares. Mas mesmo que me pagasse para terminar, eu não o faria. Só depois de esgotar todas as possibilidades. Lamento.
Elizabeth tinha as mãos fortemente cerradas e uma expressão de intensa raiva no rosto.
Não sabe com o que se está a meter, Mistress Page.
Quando se trata de um caso, realmente nunca se sabe, Mistress Caley. As voltas e reviravoltas inesperadas é que o tornam tão interessante.
É capaz de deparar com algo inesperado aqui proferiu Elizabeth com voz velada e ameaçadora, e pode crer que desejará ter-se afastado.
Lorraine sentiu-se esvaída, enquanto Elizabeth saía da sala, fazendo ecoar os seus passos nos mosaicos em xadrez a preto e branco do vestíbulo, chamando pela empregada.
Missy, Mistress Page já está de saída, acompanha-a à Porta.
A criada apareceu à entrada da sala.
Não é preciso, Missy, eu sei o caminho.
Lorraine guardou o bloco de apontamentos dentro da pasta e, ao ouvir a porta fechar-se estrondosamente, voltou-se e deparou com Robert Caley.
Que grande descaramento, vires a esta casa. Lorraine fechou a pasta bruscamente, sentindo as pernas a tremer por vê-lo de maneira tão inesperada. Recuperou o autodomínio e olhou-o nos olhos.
Devo-te um pedido de desculpas. Disse coisas que devia ter investigado primeiro. Lamento sinceramente.
Robert enfiou as mãos nos bolsos das calças.
Lamentas? Difamaste-me junto dos meus sócios, puseste a circular acusações ofensivas e nojentas sobre mim e a minha filha, tiraste apontamentos de documentos privados que estavam na minha secretária e...
Já pedi desculpa.
Não chega. Quero que envies uma carta com um pedido formal de desculpas ao Lloyd Dulay.
Lorraine corou, sem conseguir olhar directamente para Robert.
Mas tu serviste-te ilegalmente de dinheiros do fideicomisso da Anna Louise...
Não recua nem um pouco, pois não, Mistress Page? Esse bónus de um milhão de dólares deve ser um grande incentivo.
Talvez tão grande como o fideicomisso da tua filha é para ti, não?
Touched
Lorraine pegou na sua pasta.
Não estou aqui para marcar pontos, Robert.
Não? Lorraine suspirou.
Não, não estou. Estou apenas a tentar fazer o meu trabalho, nada mais.
Ele estava tão zangado que tinha vontade de a estrangular.
Isso inclui dormir com alguém para obter informações, tal como costumavas fazer a troco de um copo?
Lorraine ansiava dizer-lhe que o acontecido entre os dois fora muito importante para si, queria deixar cair a pasta e atirar-se para os seus braços. Em vez disso, manteve-o à distância, fitando-o com um olhar completamente desprovido de emoção, tão directa e fria que foi ele a quebrar o momento, afastando-se dela.
Deste ursos-polares à Anna Louise? Robert sacudiu a cabeça, incrédulo.
O quê?
Ela tinha uma fila de pequenos ursos-polares na cabeceira da cama. Foste tu que lhos deste?
Fui.
E o teu diminutivo era Polar?
Sim, sim, era.
Também ofereceste algum a Tilda Brown?
Não.
Lembras-te de quantos deste à tua filha?
Caley teve de se sentar. Lorraine atirava-lhe as perguntas como se ele fosse um suspeito detido numa esquadra da Polícia para averiguações.
É importante, Robert, quantos?
Cinco, quando fez treze, catorze, quinze, dezasseis e dezassete anos. Depois, disse-lhe que já chegava de ursinhos, não havia mais espaço, eles marcariam os seus tempos de adolescente nos seus diários.
Diários?
Caley passou uma mão pela cabeça.
Sim, os ursinhos têm um fecho de correr, uma espécie de bolsa secreta onde ela costumava guardar os seus primeiros diários.
Lorraine sentiu um formigueiro de excitação.
A Polícia deu com eles?
Caley sacudiu a cabeça em sinal negativo.
Não...
Porque não?
Já lá não estavam. Se calhar ela cresceu e fartou-se deles. Não faço ideia.
O formigueiro de Lorraine desapareceu por completo.
Merda! Está bem. Agora és capaz de te recordar se, no voo do dia quinze de Fevereiro, a Anna Louise levou consigo algum desses ursinhos brancos? Robert suspirou e ela acercou-se ainda mais. Fecha os olhos e pensa, Robert. Disseste que a bolsa dela estava na sala de espera e que o vestido novo se encontrava estendido em cima da cama do seu quarto, portanto deves ter olhado para a bolsa.
Porquê? É assim tão importante?
Lorraine aproximara-se dele o suficiente para lhe tocar se quisesse; no entanto, absteve-se.
Quando entrei no quarto da Anna Louise em LA
prosseguiu Lorraine, encontrei quatro ursinhos alinhados junto das almofadas. Quatro, Robert, não cinco.
Robert estendeu a mão para ela, sem a olhar, e afagou-lhe a barriga de uma das pernas que, de tão magra, quase podia envolver por completo.
Não, não havia nenhum no hotel.
Puxou-a de modo a colocá-la à sua frente e encostou a cabeça ao seu ventre.
Porque não respondeste a nenhum dos meus telefonemas, Lorraine, porquê?
Eu queria, Robert, mas sentia-me demasiado culpada. Naquele dia estava completamente de rastos, depois de ter passado a noite contigo. Acho que, depois, quando a Tilda insinuou aquilo sobre ti e a Anna, e o Dulay me falou no fundo, talvez tenha ficado enciumada, ou simplesmente furiosa, mas o certo é que não tenho desculpa, não devia ter feito aquelas afirmações sem...
Podia sentir a respiração dele, os seus lábios a comprimirem-se contra si através da saia; porém, uma parte da sua mente trabalhava sozinha. Lembrava-se de Phyllis lhe dizer que fizera as malas a Anna Louise no dia da partida, ou teria sido Elizabeth?
Tenho de ir, Robert.
Robert deixou cair os braços e recostou-se de novo na poltrona, erguendo os olhos para ela.
Que tem esse urso de tão importante?
Lorraine pegara já na sua pasta e dirigia-se para a porta.
A Tilda Brown disse que a Anna Louise não esteve com ela no dia quinze, mas... e se estivesse a mentir? E se o ursinho tivesse sido um presente destinado a fazerem as pazes depois daquela discussão tão grande? Foi por causa de ti, Robert, sabias? A tua filha tinha ciúmes da atenção que dispensavas à Tilda.
Robert levantou-se, abrindo as mãos num gesto de incompreensão.
Ciúmes? Ciúmes da pequena Tilda?
Nesse dia, antes de ires para o trabalho, passaste pela Tilda que estava no campo de ténis, lembras-te? Deste-lhe um beijinho porque chorava, e a Anna Louise viu.
Juro por Deus que foi completamente inocente!
Eu sei, mas a Anna Louise não sabia e acho que isso desencadeou uma terrível onda de ciúmes, que resultou na...
Na partida da Tilda...
Lorraine assentiu e depois olhou para o telefone.
Posso fazer uma chamada?
Não esperou pela resposta e ligou para a casa dos Caley em Los Angeles. Foi Phyllis quem atendeu e, mesmo antes que pudesse saber de Mrs. Caley, Lorraine perguntou-lhe se se recordava de ter visto Anna Louise fazer as malas no dia quinze do mês em que desaparecera. Phyllis ficou calada.
Phyllis, ainda está aí?
Sim, estou, estava a tentar lembrar-me. Sabe, fazer as malas não era da minha competência, mas recordo-me de Mistress Caley me pedir que fosse ver se a Anna Louise emalara algum vestido de noite, pois iria ser convidada para uma série de festas e...
Lorraine interrompeu-a.
Viu o que ela tinha na mala?
Bem, vi, e Mistress Caley também: estava cheia de T-shirts e ténis.
Mais alguma coisa?
Não me parece. Mais tarde, tiveram uma pequena discussão sobre o assunto porque Mistress Caley mandou a Anna Louise refazer as malas. Mas não cheguei a ver o que levava na mala, e Mistress Caley também não. Era alguma coisa importante?
Lorraine respondeu que não e agradeceu a Phyllis. Ao pousar o auscultador, Missy apareceu à porta.
Já trouxe todas as suas malas para baixo, Mister Caley.
Lorraine ficou com uma expressão intrigada. Robert esperou que a empregada se retirasse para lhe dizer calmamente que ia voltar de novo para o hotel.
Posso telefonar-te?
Lorraine aproximou-se dele e beijou-o. Robert rodeou-a com os braços e estavam abraçados quando Elizabeth Caley apareceu à porta. Lorraine reparou nela e afastou-se rapidamente.
Merda! Robert viu então Elizabeth voltar para trás e subir as escadas apressadamente.
Deixa estar, vou deixá-la. É verdade. Estou farto. Vou-me embora para sempre. Anda, acompanho-te ao carro. Vais voltar para o teu hotel?
Vais deixá-la?
Vou, já o devia ter feito há anos.
Robert beijou Lorraine mais uma vez antes de esta entrar para o carro.
Que tal jantarmos hoje à noite?
Sim, gostaria muito.
Sorriu-lhe, desejosa de que ele a beijasse de novo, e Robert acariciou-lhe o rosto com o dedo.
A Elizabeth disse algo sobre uma fotografia da Anna Louise que lhe mostraste. É verdade?
É, foi tirada num clube nocturno.
Tem-la contigo? Achas que devo vê-la?
Lorraine hesitou. Tinha-a na bolsa, mas resolveu não a mostrar.
Hoje à noite falamos sobre isso.
Robert beijou-a outra vez e fechou a porta do carro, ficando a vê-la acenar para ele, sorridente, levada por Francois.
Francois lançou um olhar a Lorraine através do espelho retrovisor e sorriu.
Ena, eles deixaram-na realmente muito bem-disposta! Viu-a soltar uma risada sonora. Não havia dúvida de que gostava cada vez mais daquela senhora.
Voltamos para o Sainte Marie? Lorraine recostou-se e fechou os olhos.
Não, vamos até casa da Tilda Brown.
Sentia-se culpada por estar tão feliz e não pôde deixar de sorrir. Robert deixara de ser um suspeito, e ao abandonar Elizabeth também ficaria livre. Estava ansiosa por passar mais uma noite com ele. Lorraine bebeu o resto da Coca-Cola com vodca, dizendo constantemente a si mesma que estava tudo sob controlo; a ansiedade desaparecera; já não sonhava com a bebida, agora não passava de uma sede normal. Estava tudo sob controlo.
Elizabeth Caley, por detrás dos cortinados de renda antigos do seu quarto, viu o carro afastar-se. Não sabia como iria lidar com toda aquela situação; precisava urgentemente de Juda. Tudo ruía à sua volta e os comprimidos que tinha na gaveta atraíam-na como um íman.
Lorraine ajeitou-se no assento e pôs-se a folhear o seu bloco, a fim de consultar os apontamentos feitos no início do trabalho. Estava tudo ali: como fora estranho Anna Louise encomendar realmente o tal vestido que vira na Vogue e depois querer que lho enviassem a todo o custo. Telefonara do avião a Phyllis e pedira-lhe que o mandasse vir. Era, portanto, natural que não tivesse refeito as malas depois da conversa com a mãe, metendo antes o ursinho na sua bolsa. Lorraine tinha a noção de que estava a fazer suposições ao acaso e a tirar conclusões apressadas, mas talvez aquela vontade toda de mandar vir o vestido tivesse uma razão, pois quando chegaram ao hotel, na noite em que Anna Louise desaparecera, iam todos com excelente disposição.
Lorraine estava tão concentrada em chegar a uma conclusão racional que fez exactamente aquilo que concordara em não fazer: esqueceu-se de ligar a Rosie e a Rooney a informá-los de que saíra dos Caley e ia naquele momento a caminho da casa de Tilda Brown. Havia uma outra coisa que tencionava não lhes contar, que era ter mandado Francois passar por uma loja de bebidas, onde comprara uma embalagem de seis Coca-Colas e mais uma garrafa de vodca. Não havia problema, disse de si para si, ninguém ficaria a saber, e desde que ela continuasse a deitar pequenas porções na lata, ninguém desconfiaria. Aquilo também ajudava, e muito, a esquecer a voz de Nick Bartello, o seu sorriso, fazia com que tudo se desvanecesse. Acima de tudo, fazia-a ter a certeza de que estava a controlar a situação.
Mistress Dubois começou por se recusar a receber Lorraine em casa; estavam a decorrer os preparativos para o funeral de Tilda, portanto não era a altura mais conveniente para nenhum dos progenitores falar com a detective.
Só preciso de ir ao quarto de Tilda. Por favor, Mistress Dubois, é muito importante; caso contrário, eu jamais viria importunar-vos numa altura tão triste. Acho que deixei lá a minha chave quando aqui estive, deve ter-me caído da bolsa. São só dois minutos.
Mrs. Dubois acabou por concordar e pediu à empregada que acompanhasse Lorraine ao andar de cima.
A serviçal ficou à porta enquanto Lorraine começava a examinar o quarto, aproximando-se a pouco e pouco do ursinho branco que continuava encostado à almofada de Tilda. Quando Mrs. Dubois a chamou ao piso de baixo para que a ajudasse a fazer qualquer coisa, a criada deixou Lorraine sozinha e esta pegou imediatamente no boneco. Estava demasiado leve e via-se que não tinha nada dentro, mas ainda assim procurou o fecho oculto e tirou as dúvidas. Desiludida, nem sequer se deu ao trabalho de fingir que andara à procura de umas chaves quando a empregada voltou e bateu na porta do quarto.
Obrigada, não tive sorte! declarou, caminhando na direcção da rapariga, que aguardava. Esta pareceu-lhe nervosa. Que tal se dava com Miss Tilda? perguntou-lhe.
Bem, minha senhora, muito bem, mas a menina era muito calada. Eu costumava arrumar-lhe o quarto, passava-lhe a roupa. Mas ela já não era a mesma. Pediram-me que a acompanhe à porta. Mistress Dubois está ocupada.
Que quer dizer quando refere que ela já não era a mesma? perguntou Lorraine, mantendo o ar despreocupado e simpático.
Bem, a empregada que cá esteve antes de mim foi despedida, não se davam bem, e a mim disseram-me que não mexesse nos objectos pessoais de Miss Tilda. Nem sequer gostava que eu lhe arrumasse o quarto, mas nem era preciso porque era muito limpa e cuidadosa.
Quando é que despediram a empregada que a antecedeu?
Oh, o ano passado, só estou a trabalhar cá desde então. Lorraine continuou a sorrir.
Lembra-se da data?
A criada parecia verdadeiramente ansiosa por que Lorraine se fosse embora, lançando olhares para o corredor que ficava ao fundo das escadas.
Bem, eu fui entrevistada em meados de Fevereiro, pois a Ruby já se fora embora.
Ruby?
Lorraine seguiu-a escadas abaixo.
Sim, miss, a rapariga que trabalhava aqui chama-se Ruby Corbello. Sei que depois foi para um cabeleireiro.
Muito obrigada.
De novo com todos os seus sentidos alerta, Lorraine saiu apressadamente, sem mesmo pedir para se despedir de Mrs. Dubois, o que foi um grande alívio para a empregada.
Lorraine, sentada no carro, reflectiu que aquilo era coincidência a mais e suspirou. Talvez fosse a pista de que precisava. Consultou as horas e pediu a Francois que a levasse de volta ao hotel, dando-se conta de que já era muito tarde e recordando-se das suas próprias instruções no sentido de se manterem em contacto uns com os outros.
Rosie e Rooney encontravam-se sentados numa das mesas do jardim do Sainte Marie a beber café com leite.
Não percebo, ela pede-nos para telefonarmos uns para os outros, e depois vai não sabemos para onde. Mas por onde é que ela andará neste momento? Mistress Caley disse que ela saiu há mais de hora e meia protestou Rosie, irritada.
Rooney olhou para o relógio e ficou calado. Seguira as instruções dadas por Lorraine, fora à secção de achados e perdidos da Polícia para saber do colar gris-gris que, porventura, teriam encontrado no corpo de Nick ou no meio dos seus objectos pessoais.
Se calhar não o levou com ele sugeriu.
O quê?
O colar.
Tanto quanto me lembro, trazia-o ao pescoço na última vez em que o vimos. Parece que gostava daquilo. Tenho saudades dele, Bill.
Pois é, eu também, ele era bom tipo. Beberricaram o seu café com leite em silêncio, e a seguir Rosie pegou no seu bloco de apontamentos.
Que vamos fazer em relação à Edith Corbello? Não vale a pena perder tempo. Obtive a morada dela, mas o número de telefone não vem na lista, por isso teremos de ir até lá.
Rooney empurrou a sua chávena para o lado.
Tens razão, vou meter os meus apontamentos debaixo da porta da Lorraine e depois vamos ver Mistress Corbello. Ao menos estaremos entretidos!
Lorraine encontrou as páginas que Rooney arrancara ao seu bloco de apontamentos metidas por baixo da porta do seu quarto. Sentou-se na cama a ler os gatafunhos. Não tinham encontrado nenhum colar no corpo de Nick Bartello. Havia também um breve resumo a reiterar o que a Polícia dissera sobre Fryer Jones e os seus álibis. Acrescentava, entre parênteses, que Fryer Jones era casado com Juda Salina. Coincidências! Lorraine sublinhou o nome de Raoul, lembrando-se de lhe ter falado em LA.
O que Rooney não mencionou foi o facto de ele e Rosie irem visitar Edith Corbello. Ela tencionava fazê-lo, mas Rosie sugerira-lhe que os dois fossem até lá primeiro para verem se descobriam alguma coisa que transmitiriam posteriormente a Lorraine. Esta ainda ficou à espera deles durante algum tempo, mandando que lhe servissem uma sanduíche e uma Coca-Cola na esplanada do jardim. Passou uma vista de olhos pelos seus apontamentos para tentar decidir-se sobre o que fazer, e resolveu não seguir a pista de Ruby Corbello antes de falar com Fryer Jones.
Francois estava um pouco receoso de levar Lorraine ao bar de Fryer Jones. Viu-a, através do espelho retrovisor, a beber a Coca-Cola misturada com vodca, porém não lhe pareceu de modo algum embriagada.
Sou apenas uma turista, Francois. Mas você fique à espera no lado de fora, e se vir que não apareço meia hora depois, entre e vá buscar-me! Portanto, leve-me até lá!
Certo, certíssimo, vamos a isto.
O táxi parou em frente da minúscula casa delapidada no velho Irish Channel.
Tem a certeza de que é a morada certa? perguntou o motorista.
Tenho, mas se esperar ganha a corrida de volta disse Rooney, entregando-lhe o dinheiro e uma gorjeta de dez dólares.
Claro que ficarei aqui em frente à sua espera, senhor. Rooney e Rosie olharam para a maltratada porta da frente
com o seu painel de vidro quebrado e tapado com um bocado de cartão. As quatro vidraças de cima de uma janela francesa também tinham sido partidas em determinada altura e posteriormente substituídas por vidro fosco, que não permitia olhar para dentro de casa. Rooney deu alguns passos pelo carreiro que se estendia entre aquela casa e a do lado e viu uma cerca em mau estado a rodear um quintal nas traseiras, cheio de carcaças de automóveis, além de uma rede presa entre duas árvores despidas de folhas. Havia peças de motores de carros enferrujadas à mistura com pneus rasgados, câmaras de ar e sacos a rebentar de lixo.
Se a morada está certa, deixa que seja eu a falar disse Rooney, puxando as calças para cima.
Já disseste isso três vezes observou Rosie com petulância.
Está bem, então vê se o fazes tu, sem interrupções. A campainha não funcionava. Rooney bateu com o punho na porta e esta entreabriu-se com um rangido.
Ficaram na entrada à espera de que aparecesse alguém antes de voltarem a bater, espreitando para o corredor sombrio.
Sim, que querem? perguntou Sugar May da cozinha.
Mistress Corbello?
Ela neste momento está ocupada. Têm marcação?
Rooney olhou para Rosie e disse-lhe calmamente:
Pronto, agora fazemos como eu disse, vejamos o que conseguimos.
Rosie assentiu com um movimento de cabeça. Rooney olhou para Sugar May, que entretanto aparecera, e sorriu-lhe abertamente.
Ora viva. Vimos recomendados pelo Fryer Jones disse. Sugar May engelhou o nariz, percorrendo o corredor escuro
e sujo.
Ela não gosta de ser interrompida, mais vale esperarem para ver o que diz.
Sugar May apontou para uma sala a meio do corredor e desapareceu de novo na cozinha.
Rooney e Rosie sentaram-se num sofá, sentindo as molas salientes por baixo deles. A alcatifa estava no fio, as beatas empilhavam-se no chão e havia nódoas de cerveja em todas as superfícies disponíveis. À entrada encontrava-se uma cortina de contas, presa no alto.
Que espelunca comentou Rosie calmamente; virou-se quando um grito estridente, vindo do quarto ao fundo do corredor, a fez endireitar-se bruscamente.
No quarto havia uma mesa coberta por uma toalha, um espelho erguido por trás que reflectia uma figura da Virgem, e uma fotografia de Marie Laveau na parede em frente. Diante da estatueta ardia incenso e três velas azuis, rodeadas de pires contendo água da chuva, um pratinho com pão e maçãs e outros com ervas especiais e óleo.
Edith fizera a rapariguinha deitar-se num catre e banhava-lhe a cabeça com uma infusão de ervas. A certa altura, premiu as fontes da jovem com as mãos, de olhos fortemente cerrados, e entoou cânticos destinados a invocar os poderes curativos dos espíritos.
A cabeça da rapariga oscilou sob a pressão das mãos fortes de Edith. Tinha a impressão de que o seu pescoço estava prestes a quebrar-se, o que lhe provocava um sofrimento muito maior do que as dores de cabeça que costumava ter todos os meses.
Vejam só a tensão que aqui vai. Tanta tensão. Agora endireita-te, rapariga, e baixa a cabeça para eu te poder apalpar O pescoço.
A jovem gemeu e Edith fechou os olhos, esfregando e massajando as vértebras ao longo do pescoço da rapariga, até sentir um estalido. Deu uma torção rápida ao pescoço da jovem e ouviram-se mais dois cliques sonoros. Edith sorriu.
Isto já está. Agora já te sentes melhor, não é verdade, querida?
A certa altura, os gemidos pararam e ouviu-se uma risadinha. Rosie olhou para Rooney; porém, este concentrara toda a sua atenção numa revista.
Escuta isto. Os escravos trouxeram o vodu de África no século dezasseis e o nome da Marie Laveau em Nova Orleães é lendário. Reza a história que era filha de um plantador abastado e de uma jovem mulata. Esta, meio indiana, casou com Jacques Paris, que desapareceu misteriosamente após o casamento, altura em que começou a ser conhecida pela Viúva Paris. Caraças! A Marie Laveau teve quinze filhos e viveu na Sainte Anne Street, entre a North Rampart e a Burgundy Street. Consta que eliminou todas as outras rainhas devido aos seus poderes com o gris-gris, sentenciando-as literalmente à morte através do vodu. Presentemente, há médicos, pertencentes a escolas de medicina conceituadas, que consultaram médicos vodus para o tratamento da esquizofrenia paranóica.
Rooney ia a prosseguir a leitura quando a porta ao fundo do corredor se abriu e, embora não pudessem ver Edith Corbello, a voz baixa e ressonante desta chegou aos seus ouvidos.
Tulla, não te preocupes com o pagamento. Fica boa, arranja emprego e depois vem falar comigo.
Sugar May gritou da cozinha.
Ei, mamã! Tens clientes na sala de espera, ouviste? Edith Corbello foi ter com Rosie e Rooney à sala e estes acharam que aquilo de que porventura estariam à espera pouco tinha a ver com a mulher enorme, de avental, chinelos velhos e os cabelos frisados, quase grisalhos, que rodeavam o rosto grande, redondo e suado.
Sim?
Rooney levantou-se.
Sou Bill Rooney e esta é a minha amiga Rosie. Edith suspirou.
Hum... Que desejam?
Podemos falar consigo? A senhora é Edith Corbello, não é verdade?
Claro que sou, mas não recebo desconhecidos. Quem os mandou ter comigo?
O Fryer Jones respondeu Rooney.
Edith assentiu e voltou para o quarto de onde viera.
Entrem, mas olhem que tenho uma marcação para daqui a um quarto de hora.
O quarto encontrava-se obscurecido pelos cortinados velhos corridos em frente da janela e, além da cama e da mesinha que fazia de altar, só tinha mais um enorme baú antigo e uma fila de cadeiras de madeira. Apesar da luz fraca, tinha um aspecto mais limpo e arrumado do que o resto da casa, com uma série de máscaras na parede.
Sentem-se aí nas cadeiras disse Edith a Rooney. Foi até à parte de trás da mesinha, abriu o baú e tirou de dentro dele um baralho de cartas e alguns panfletos.
Estes são os meus preços.
Entregou-lhes dois folhetos com os cantos revirados e a tinta de impressão ligeiramente sumida. Exibiam uma lista com rituais, consultas e leituras para revelar o futuro, assim como banhos curativos, com uma longa lista de óleos e mezinhas herbárias que davam saúde e vitalidade. Todos os tratamentos referidos custavam entre os quinze e os vinte dólares. Sublinhados a vermelho estavam os artigos extras cujo custo seria adicionado ao de cada sessão: ervas, chás, velas e incenso, além de mais alguma visita ao domicílio que fosse necessária.
Rooney abriu a carteira e retirou duas notas de cinquenta dólares.
Quer uma leitura? perguntou Edith, indicando o baralho de cartas de tarot.
Rooney chegou-se a Rosie e pegou-lhe na mão.
Precisamos de conselho.
Vieram ao lugar certo disse Edith, olhando para Rooney sem, porém, tocar nas duas notas de cinquenta dólares.
Bem, Mistress Corbello, a Rosie e eu, a propósito, esta é a Rosie... queremos casar.
Rosie por pouco não caiu da cadeira e virou-se para RoOney de boca aberta. Este pespegou-lhe um beijo na face.
Estamos apaixonados elucidou.
Rosie não conseguiu falar, em estado de choque com as suas palavras, pelo que Rooney não precisava de recear que ela o interrompesse.
Hum... Edith juntou as mãos sobre o ventre rotundo e pôs-se a olhar, sorrindo, ora para um, ora para outro; no entanto, os olhos deixavam transparecer desconfiança e prudência. Muita gente quer o mesmo, casar. Se o senhor quer esta senhora e ela o aceita, onde está o problema?
Eu já sou casado.
Obtém o divórcio.
Ela não mo quer dar.
Ah, quer dizer que tem uma mulher problemática?
Exactamente.
Hum, hum... Eu também já o fui. E soltou uma risada.
Rooney largou a mão de Rosie.
Ofereci-lhe uma boa indemnização, mas recusou, sem mais nem menos, e recusa-se a sair de casa, apesar de não termos filhos. Não me quer dar a liberdade só por despeito.
Isso é triste, os filhos dão vida a uma casa, embora também dêem cabo dela. Soltou nova risada.
Rooney não contara que aquilo decorresse daquela maneira. Não se viam espíritos maus, som de tambores, apenas uma mulher enorme que parecia, no máximo, estar a divertir-se à sua custa. Não sabia muito bem como abordar o que realmente lhe interessava, quando Edith se inclinou para ele.
O senhor não é impotente, pois não? perguntou-lhe Edith, começando a manusear as cartas do tarot com as manápulas.
Não, não sou, de maneira nenhuma. Mas é assim que me sinto junto de uma mulher que não me quer dar o divórcio. Tenho de esperar dois anos ou mais, só depois é que ela...
Há quanto tempo é casado com essa outra mulher?
Hum... vinte e cinco anos.
Muito tempo. E ela tem sido boa esposa?
Tem.
Quer então dizer que já não presta, é? Já não a deseja?
É precisamente isso. Então... aquilo que estávamos a pensar, aquilo que nos disseram foi que podia ajudar-nos.
Edith assentiu com a cabeça, contendo um bocejo, com a mão pousada nas cartas do tarot, que só utilizava quando lhe apareciam tipos como aquele, turistas brancos.
Rooney tossiu; o quarto estava extremamente quente e abafado.
Se isso do vodu funcionar, como nos disseram, então queremos que faça algo por nós. O que nós queremos é o vodu.
Hum, hum... Edith olhou fixamente para Rosie e, passados instantes, perguntou: Não fala?
Eu concordo com o Bill, ele fala por nós dois respondeu Rosie em voz submissa.
Ele sabe disso? Mas, vejamos, Bill, o que é que vocês querem no concreto, hein? O vodu abrange uma área enorme, por isso agradeço que me digam o que pretendem exactamente de mim.
Que a minha mulher morra, Mistress Corbello. Tem poder para isso? Faça-nos uma dessas bonecas vodu que levam as pessoas a...
Edith desferiu uma palmada violenta na mesa e ficou de má cara.
Querem que vos faça uma boneca vodu? Que leve a sua mulher a ficar com medo da própria sombra? Que pense que está amaldiçoada? Que tenha tanto pavor dos espíritos que se deixe ficar deitada a morrer aos poucos? Que fique com todos os seus membros retesados ao ponto de começar a parecer um zumbi? Hein? É o que estão a pedir-me?
Rosie sentiu-se atemorizada e olhou para Rooney.
Isso, isso... e mesmo que custe mais de cinquenta dólares, estou disposto a pagar.
Edith recostou-se na cadeira e cruzou os braços.
Acredita que posso fazer isso por si?
Pode? perguntou Rosie.
Também quer essa boneca, Miss Rosie bochechuda? Rosie assentiu e a seguir por pouco não caiu da cadeira
quando Edith deixou tombar a tampa do baú estrondosamente, espalhando as cartas pelo chão. Por um instante ambos pensaram, ao verem-na levantar-se e fazer pairar o corpo avantajado sobre eles, que ia entrar em transe.
Saiam da minha casa, Vocês os dois, saiam imediatamente da minha casa!
Mas, Mistress Corbello... balbuciou Rooney.
A mulher dirigiu-se a ele, espetando-lhe um dedo no peito.
O senhor sabe o meu nome, mas não me conhece a mim nem eu a si. Leve os seus pensamentos malévolos para fora da minha casa e o seu dinheiro também! Atirou-lhes as duas notas de cinquenta dólares à cara e escancarou a porta. Sugar May, Sugar May. Estas duas pessoas estão de saída e nunca mais voltarão.
Rosie e Rooney foram empurrados para fora de casa pela rapariguinha de rabo-de-cavalo e sapatilhas de borracha. A maltratada porta de entrada bateu-lhes estrondosamente nas costas para depois se voltar a abrir. Não admirava que já não lhe sobrasse nenhum vidro.
Bem, eu deixei que fosses tu a falar! exclamou Rosie, enquanto seguiam pelo carreiro fora.
Eu tentei declarou Rooney, irritado. E tentei por causa daquela boneca que a Lorraine encontrou. Achei que nós a convenceríamos a falar.
Nós? Quem falou foste tu, Bill Rooney, e não resultou, pois não? protestou Rosie, olhando de um lado para o outro na rua à procura do motorista de táxi. Fora-se embora, mas Rosie encolheu os ombros. Não lhe interessou ficar à nossa espera, Bill. Ofereceste-lhe uma bela gorjeta, dez dólares além do preço da corrida observou, dando-lhe o braço.
Não importa, iremos a pé retorquiu Rooney, sentindo-se idiota e desajeitado. A sua intervenção fora um fiasco, o que o levava a pensar se não teria já perdido o jeito. Estava francamente aborrecido. Devíamos ter esperado pela Lorraine acrescentou.
E esperámos... Ela é que não apareceu ripostou Rosie. Começava a sentir-se farta de ter de esperar por Lorraine,
mas, ainda assim, voltaram para o hotel como dois meninos da escola malcomportados, certos de que não escapariam a um raspanete.
Edith estava na janela do piso de cima a ver as duas figuras encorpadas afastarem-se pela rua fora, furiosa com Fryer Jones por lhe mandar gente assim. Abriu a gaveta do toucador e tirou de lá o telefone. Tinha-o sempre escondido porque o detestava, não suportava a intrusão do seu som estridente, sobretudo quando estava a trabalhar.
O telefone tocou num dos extremos do bar sombrio, junto da porta que deitava para o quarto de Fryer Jones. O barman, que acabara de entrar de serviço, atendeu.
Bar do Fryer.
Chama-me imediatamente esse filho da mãe ao telefone! ordenou Edith, furibunda.
A que filho da mãe é que está a referir-se? perguntou o homem, sorrindo.
Zak, grande sacana, fala a Edith e tu sabes perfeitamente, portanto chama-o ao telefone. Diz-lhe que nunca mais me mande escumalha como aquela com quem acabei de lidar agora. Via-se perfeitamente que eram da Polícia e percebi logo que ele não tinha mulher nenhuma, essa já está enterrada e bem enterrada. Podia ter-me arranjado um lindo sarilho.
Zak pousou o auscultador depois de dizer que ia ver se Fryer estava.
Tenho a certeza de que está, esse filho da puta nunca tira o cu daí! gritou Edith para o bocal do auscultador.
Zak subiu as escadas estreitas fazendo soar os pés nas tábuas nuas.
Ei, homem, Fryer, a Edith está no telefone, está toda furiosa por teres mandado uns tipos da Polícia a casa dela.
O quê? Estou só a repetir o que ela berrou ao telefone. Está fula de todo.
A porta ao cimo das escadas abriu-se ligeiramente.
Diz a essa cabra gorda que nunca mandei lá ninguém. Ela é tão boa a inventar coisas como a educar mal os filhos.
Zak encolheu os ombros e a porta fechou-se. Voltou para o bar.
Está, Edith disse ao pegar no auscultador.
Esse filho da puta que venha falar comigo! gritou ela.
Zak respirou fundo.
O Fryer manda dizer que nunca gasta o seu precioso tempo a mandar ninguém falar contigo que não conheça ou em quem não confie como num irmão. Neste momento não se sente muito bem, mas disse que mais tarde te telefona. Se precisares que ele vá até aí, largará todos os seus afazeres porque és uma mulher muito importante na sua vida.
Que Deus perdoe as mentiras que se escapam daquela boca, Zachary. Esse estupor sem préstimo, se calhar, nem chegou a levantar a cabeça ressacada do travesseiro.
Dito isto, atirou com o auscultador para o descanso.
Zak riu, mas depois virou-se para a porta do bar que dava para a rua, a qual acabava de se abrir. Lorraine Page franziu os olhos para os habituar à penumbra e depois entrou lentamente na sala. Zak não desviou os olhos dela um momento, vendo-a erguer ligeiramente a saia para se instalar em cima de um dos bancos altos do balcão.
Uma Coca-Cola Diet quando acabar de tentar adivinhar o preço do meu fato disse Lorraine suavemente, abrindo o maço de tabaco com um movimento rápido. Tem lume?
Edith voltou a enfiar o telefone dentro da gaveta. Há anos que não pagava uma conta. Os rapazes tinham feito uma ligação qualquer nos cabos do exterior, juntando a sua linha com a de uma outra pessoa. Ninguém telefonava, com excepção, talvez, de Juda. As marcações nunca eram feitas por telefone porque Edith não constava na lista e nunca pagara tarifas sobre os seus gastos, por muito poucos que fossem. Um pouco de ladroagem nunca a preocupara, mas sim a vinda de desconhecidos a sua casa, sobretudo desconhecidos que cheirassem a Polícia e pedissem trabalho que prejudicasse outros. Ajustaria contas com Fryer. Conhecia-a há tantos anos e continuava a não a compreender nem a acreditar nela. Aí é que estava o seu problema, em público não era crente, mas em privado ela assustara-o várias vezes, mesmo que Fryer se tivesse recusado a admiti-lo.
Juda viajou no avião particular dos Caley, rodeada do maior luxo, e quando chegou ao aeroporto já lá tinha o carro da família à espera para a conduzir imediatamente à mansão. Sentia curiosidade em saber por que razão Elizabeth precisava da sua presença com tanta urgência, e só a perspectiva de ter de lidar com ela já a deixava cansada. Mas teria de se conformar, como sempre fizera, para pagar todos os «luxos» a que se habituara, e aquilo ali era de primeiríssima classe.
Foi Missy quem abriu a majestosa porta da frente, com ar assustado.
Oh, Mistress Salina, ainda bem que a senhora chegou, ela não se encontra nada bem. Está lá em cima a chorar e aos gritos, e atirou-me o tabuleiro, tal é a raiva. Mister Caley fez as malas e foi-se embora, dizendo que nunca mais volta.
Muito bem, Missy, não estejas assim tão nervosa, prepara imediatamente um bom chá, daqueles que Mistress Caley aprecia, e leva-o lá acima.
Juda começou a subir lentamente a escadaria em ligeira curva. As pernas doíam-lhe, tinha os pés inchados da viagem, mas lá foi subindo, degrau a degrau, apoiando-se pesadamente ao corrimão.
Ela tem alguma medicação lá no quarto, Missy? A rapariga olhou temerosamente para cima.
Não sei o que tem lá em cima, Mistress Salina, mas o certo é que está a ter um comportamento de louca, diz que vê gente ao pé de si e coisas dentro dela. Fez-me correr as persianas e depois abri-las logo a seguir. Fico toda a tremer!
Juda conseguia agora ouvir a mobília a ser remexida e a voz de Elizabeth, enrouquecida, a falar muito alto consigo mesma.
Afasta-te de mim, fica longe, não me toques
Juda respirou fundo antes de abrir a porta do quarto. Eli’ zabeth Caley estava desgrenhada, com o longo cabelo solto, e deambulava da cama até à janela e à escrivaninha. A beleza e dignidade do quarto faziam com que o seu comportamento parecesse ainda mais grotesco. Dava a impressão de estar meio a dançar, meio a controlar os espasmos do corpo que pareciam prestes a evoluir para uma espé’cie de ataque. Formara-se espuma aos cantos da sua boca, mas, assim que viu Juda, suspirou de alívio e estendeu-lhe os braços.
Graças a Deus vieste, Juda, ajuda-me. Por favor, ajuda-me, elas querem apanhar-me. Estão cá outra vez, as serpentes voltaram a entrar dentro de mim.
Robert Caley desemalou as suas coisas quase embriagado na sua própria adrenalina. Conseguira, finalmente, fazer aquilo que já devia ter sido realizado há anos.
Telefonou para Lorraine, mas disseram-lhe que não se encontrava no seu quarto; a seguir ligou para a recepção do seu próprio hotel a certificar-se de que a suite adjacente à sua continuava reservada em nome dela. Falou então a Lloyd Dulay e perguntou-lhe se o podia receber. Não iria rastejar, isso nunca mais. A Doubloons não obtivera a almejada licença de jogo, a mesma fora atribuída a uma poderosa sociedade de entretenimento de outro distrito que ninguém sabia, sequer, que estava na corrida. Saltava à vista que o governador arranjara novos amigos, mas não esquecera os antigos a terra, evidentemente, ainda pertencia a Caley, e o governador anunciara que Caley, a Doubloons e o novo grupo deviam reunir-se em torno de uma mesa e elaborar um acordo com vista à formação de uma sociedade. O futuro financeiro de Caley estava garantido.
Bastou Dulay ouvir o tom de voz de Caley para aceder imediatamente a recebê-lo. Caley combinou então encontrar-se com o velho sócio no dia seguinte. Sentia-se confiante, certo de que naquele momento sabia o suficiente sobre Lloyd Dulay para ter a certeza de que este não lhe daria problemas. Sabia bem. A única pessoa, porém, com quem desejava partilhar a sua liberdade recém-adquirida não se encontrava no seu hotel. Deixou recado no Sainte Marie a dizer que precisava de lhe falar com urgência, assim como o número do seu telemóvel, através do qual poderia ser contactado a qualquer hora daquela noite.
Lorraine começou a sentir-se incomodada quando algumas pessoas entraram no bar de Fryer Jones e se foram sentando o mais afastadas dela possível.
Pediu para falar com Fryer, mas o barman disse-lhe que ele estava a repousar. Fumou quatro cigarros, sentindo-se cada vez mais impaciente e enervada com aquela espera; olhava para as filas de garrafas, ansiosa por outra bebida; no entanto, disciplinou-se e não pediu nenhuma, dizendo a si mesma que não lhe fazia a menor falta. O telefone tocou e o barman pediu à pessoa para esperar, desaparecendo pelo corredor que ficava ao fundo do bar. Ouviu-o chamar por Fryer e uma voz roufenha gritou-lhe em resposta.
Merda, homem, para que me acordaste? Diz-lhe que apareça cá hoje à noite.
Lorraine saiu do banco e foi até ao fundo do bar.
Vejo que já está acordado. Sendo assim, vou lá acima falar com ele, quer queira quer não.
Zak estendeu a mão para o telefone para falar a quem estava no outro lado da linha e aconselhou:
Eu se fosse a si não ia lá acima, miss.
Tente deter-me retorquiu-lhe Lorraine com secura, desaparecendo em seguida.
Fryer Jones estava com uma ressaca mais violenta que de costume. Ao ouvir falar alto lá em baixo, sentou-se. Inclinou-se sobre a beira da cama e pegou numa garrafa de uísque, tomando um gole generoso antes de se deixar cair de novo sobre as suas almofadas sujas e manchadas. A porta abriu-se e Lorraine olhou para dentro.
Mister Fryer, sou a Lorraine Page.
O quê? grunhiu o homem, apoiando-se no cotovelo. Lorraine entrou no quarto, mas a escuridão mal a deixava vê-lo. Ele via-a e o que via agradava-lhe. «Bem, entra na minha casinha, disse a aranha à linda garota metediça, de pasta na mão e tudo.»
O quarto tresandava a urina, tabaco, bebidas azedas e odor corporal. Por trás da cama de solteiro de Fryer havia uma pequena janela tapada por uma cortina rasgada, vendo-se também uma poltrona partida com o recheio a sair, atravancada de resmas de pautas musicais amareladas pela acção do tempo. As paredes estavam cobertas de cartazes, fotografias antigas e máscaras. Viam-se prateleiras tortas sob o peso de livros e revistas.
Deseja sentar-se? convidou Fryer esfregando a virilha.
Estava descalço, tinha a camisa de ganga aberta até à cintura, o cinturão de couro dos jeans sebentos meio desapertado e a braguilha aberta; porém, comportava-se como se estivesse instalado num boudoir cheio de drapeados, além de falar com uma tal elegância de gestos que ficava acima da sordidez do que o rodeava.
Faça o favor de se sentar, miss. Como disse que se chamava?
Lorraine Page, Mister Fryer.
Lorraine entregou-lhe um cartão seu e olhou, hesitante, para a única cadeira onde não existia um monte de lixo em cima. A cadeira de balanço tinha um xaile tricotado a cobri-la e, quando se sentou nela, chiou ominosamente, inclinando-se para trás, fazendo com que Lorraine ficasse com os pés afastados do chão, antes de voltar a equilibrar-se, desajeitadamente, e poder pousar a pasta no chão, ao seu lado.
Mistress Lorraine Page disse Fryer suavemente, atirando depois o cartão para o lado. Com que então uma detective particular...
É verdade, Mister Fryer, fui contratada por Elizabeth e Robert Caley para descobrir o paradeiro de sua filha Anna Louise.
A cadeira de balouçar chiou de novo e Lorraine agarrou-se aos braços num esforço para se imobilizar. Não pôde deixar de reparar que um dos cartazes quase a cair da parede húmida era do filme O Pântano. Tratava-se de uma fotografia extravagante de Elizabeth Seal com os braços estendidos para o céu e uma serpente enrolada à volta do corpo.
Lorraine abriu a pasta e tirou o seu bloco de apontamentos.
Importa-se que lhe faça algumas perguntas?
Para uma senhora que entra no quarto de um cavalheiro em passada tão resoluta, eu diria que não tenho outro remédio. Que me diz a sentar esse seu lindo traseiro aqui ao lado do meu?
Estou bem aqui, Mister Fryer.
Fryer Jones sorriu, depois deixou escapar uma risada roufenha e arrastada.
Calculo que sim, Mistress Page, o pior é que não sei como ajudá-la na sua investigação. Viu-a olhar para o velho cartaz de cinema. Eu entrei naquele filme, O Pântano, esse para onde está a olhar constantemente, de Mistress Caley, sua patroa.
Sim, eu sei. E foi preso no dia dezasseis de Fevereiro último e interrogado sobre o desaparecimento da Anna Louise, filha de Mistress Caley.
Pois fui, mas retiraram-me imediatamente as acusações e libertaram-me. Além disso, eu tinha um bar cheio de clientes que testemunharam que nunca saí de lá a noite inteira.
Sim, eu sei, mas a maioria era constituída pelos seus próprios parentes.
Fryer Jones passou as pernas pela borda da cama de maneira a sentar-se, ficando a olhar para os dedos dos pés.
Não me diga. Bem, talvez seja melhor falar com a Polícia acerca disso, pois têm uma lista do comprimento das suas lindas pernas, que diz que naquela noite não estavam só os meus parentes a beber e a fazer música no meu bar, mas também muitos amigos.
Viu a Anna Louise Caley naquela noite, Mister Fryer? Fryer Jones pegou num pacote de mortalhas e numa bolsa de tabaco.
Não, mas um filho da puta qualquer disse que me viu a falar com essa pobre criança, e aqui, Mistress Page, filhos da puta é o que mais há. Mas quando a Polícia desta bela cidade prende uma pessoa, ela não refila, não tem opção. Leva pancada a caminho do calabouço, leva pancada quando lá está e leva pancada por mais qualquer coisa quando a soltam. É uma espécie de costume que nós temos aqui em Nova Orleães.
Deitou um bocado de tabaco, ou o que parecia sê-lo, numa mortalha e passou-lhe a língua pela borda. Os olhos de Lorraine já se tinham habituado à obscuridade que reinava no quarto sebento, e a ele; Fryer Jones possuía uma espécie de magnetismo. Dava a impressão de não se importar com a sua presença ali, tão desprendido e descontraído se mostrava, falando com a profunda voz, enrouquecida e áspera pelo tabaco, quase atraente.
No entanto, mantiveram-no preso até à manhã seguinte.
É verdade, mas eles precisavam de confirmar se o que eu dizia era verdade, Mistress Page. Não pus os olhos em cima de Miss Caley nessa noite. Na verdade, já não a via há muito, muito tempo. Talvez uns quatro ou cinco anos.
Mas conhecia-a.
Claro que sim, assim como conhecia a mãe dela.
Mistress Caley afirma que não o conhece, Mister Fryer.
Bem, ela não me conhece, eu é que a conheço a ela, se calhar só ouviu falar de mim. O que não nos torna amigos, pois não?
Fryer Jones acendeu o cigarro e inalou profundamente. Fê-lo mais três vezes, deixando o fumo rodopiar até aos seus pulmões, inalando-o rápida e audivelmente antes de o exalar. Então, para espanto de Lorraine, ofereceu-lho.
Quer dar uma passa?
Não, obrigada.
E que tal uma bebida? Pegou na sua garrafa de uísque.
Obrigada, eu não bebo.
Fryer Jones riu-se de olhos postos nela, e a certa altura tomou dois goles antes de voltar a colocar a tampa. Lorraine tirou um cigarro do seu maço e, como se esquecera do seu isqueiro, teve de se aproximar dele para que lhe desse lume. Fryer Jones acendeu um fósforo, erguendo os olhos para ela.
Oh, sim, também tem uns lindos olhos, gosto do seu aspecto. Aprecio a sua contenção, a senhora é uma mulher de classe, Mistress Page, hum... hum...
Lorraine voltou ao seu assento precário.
Foi casado com a Edith Corbello, não é verdade?
Quase acertou. Estive casado com a irmã dela, a Juda Salina.
Lorraine mordeu o lábio. Fryer Jones continuou a fumar o seu charro, fitando-a com ar divertido, enquanto ela tentava pensar numa maneira de chegar ao que pretendia perguntar-lhe, ligeiramente desconcertada por Elizabeth Caley lhe ter dado aquela informação incorrecta.
Portanto, foi casado com a Juda Salina?
É verdade, minha senhora. Conhecemo-nos no tal filme, foi o melhor dinheirinho que ganhei na vida. Era suposto filmarmos durante uma semana, mas depois passaram duas, três, e acabei por ficar um mês sem fazer nada, mas eles pagaram na mesma, e bem. Consegui este bar graças a essa massa, nunca na vida voltei a ganhar um dinheiro tão fácil.
Riu de novo.
E quanto à Juda e à irmã?
Fryer Jones assentiu com um movimento de cabeça, rodeado por uma nuvem de fumo do seu charro, que cada vez ficava mais densa.
As irmãs Salina foram chamadas por causa dos problemas, percebe, para aquietar as coisas. Estava a gerar-se um descontrolo, mas eu não queria saber, pois continuavam a pagar-me. Nenhum de nós tinha emprego. Voltou a recostar-se, sorrindo a Lorraine. Sabe, custa a acreditar, mas aquelas duas irmãs eram lindas, caramba, consolava olhar para elas. Mas enfim, a natureza seguiu o seu curso, e hoje estão de tal maneira inchadas que custa a acreditar que em tempos tenham sido de fazer parar o trânsito. Eram tão lindas que eu não sabia com qual ir para a cama primeiro.
Fryer Jones ficou a olhar para determinado ponto do seu tecto sujo e manchado, suspirando e esfregando-se.
A Elizabeth Seal também era linda disse Lorraine suavemente.
Não, a Elizabeth Seal era apenas uma coisinha bonita. Eu gostava muito dela, ao contrário dos locais, que estavam contra ela por ser branca, rica e não ser a Marie Laveau. Nunca poderia ser, pensavam eles. A Marie Laveau é uma deusa adorada nesta zona, de modo que pôr uma bonita rapariga branca a desempenhar esse papel criou grande descontentamento. Dobrou as pernas e deitou-se de lado. Portanto, foram buscar as irmãs Salina para acalmar as hostes, percebe, para actuarem como consultoras espirituais, pois a malta de cá acha que elas descendem da Marie Laveau, e se elas aprovassem o que se estava a passar, nesse caso, ficava tudo bem.
Fryer olhou para a ponta incandescente do seu charro e atirou-o para dentro do cinzeiro que estava na mesinha-de-cabeceira.
Estou a ficar com uma grande pedrada. É da idade, cada vez é preciso menos quantidade. Vou tomar mais uma bebida. Sim, acho que sim. Tem a certeza de que não me quer fazer companhia, Mistress Page?
Voltou a beber da garrafa e depois de lhe pôr a tampa, começou a preparar outro charro.
Sabe por que razão a Elizabeth Seal é louca, Mistress Page? prosseguiu, a atenção fixa no charro. A de Lorraine estava na garrafa: a vontade de beber começara a tornar-se obsessiva.
Não, não sei.
Quer que lhe diga?
Quero.
Então venha aqui para junto do velho Fryer, sente-se aqui bem perto.
Estou bem aqui respondeu ela.
Está? Bem, se o diz, mas olhe que nunca nenhuma mulher se queixou. Posso estar velho, mas a minha serpente ainda não me deixa ficar mal.
Fale-me mais da Elizabeth Seal interrompeu-o Lorraine.
Depois vem sentar-se aqui ao pé de mim? Lorraine encolheu os ombros, desejosa de o pôr a falar,
não a divagar.
Talvez.
Ohhh, nesse caso deixe-me pensar... A Elizabeth Seal... Bem, era uma rapariga com grandes expectativas, grandes sonhos, e tudo isso começara a ir por água abaixo por duvidar de que o filme fosse mesmo para a frente. Havia muita confusão, as pessoas embebedavam-se e não apareciam para trabalhar, e... se e quando se apresentavam, começavam a discutir entre si. Foi então que a Juda descobriu algo sobre Elizabeth, não sei como, mas ela conseguia saber tudo. Nunca ninguém podia ter segredos para as irmãs Salina.
Descobriu o quê?
Fryer soltou uma risada, levando agora mais tempo a enrolar o charro, pois os seus movimentos tinham-se tornado mais lentos.
A Marie Laveau era uma mulher que provinha de várias raças, e a Juda descobriu que nas veias da Elizabeth Seal corria sangue negro. Essa mistura tivera lugar várias gerações antes, mas estava lá, como uma cobra adormecida. Então pagaram muito bem à Juda para ela reunir todos e dizer-lhes que tinham de parar com as ameaças e as maldições.
Que quer isso dizer?
Raios, eles andavam a colocar feitiços em frente do atrelado dela, a bater tambores, ao ponto de não lhe darem o mínimo de sossego, a infernizar a vida da pobre menina com os seus cânticos e maldições. Corriam mesmo boatos de que tinham feito uma espécie de sacrifício para ela não poder andar, falar ou dizer as deixas que enchiam as folhas a que chamavam guião. Então, uma noite, um bando de filhos da puta levou-a para os pântanos com a desculpa de quererem apenas mostrar-lhe rituais. Pois bem, fizeram bem mais que isso.
O quê, por exemplo?
Fryer hesitou, tomando mais um gole da garrafa. Lorraine pôde ver, pela dificuldade que tinha em voltar a colocar-lhe a tampa, que estava a ficar tão bêbedo como pedrado. Por momentos balançou para a frente e para trás, chupando os dentes.
Ela era aquilo a que chamamos um zumbi, compreende o que quero dizer? Tinham-na assustado de tal maneira que andava de olhos esbugalhados e hirta, completamente morta por dentro. Assustava-me imenso, aliás assustava todos quantos a viam, pois era suposto tomarem conta dela. Não tinha mais de uns quinze, dezasseis anos, e dava a impressão de que nunca mais poderia voltar a trabalhar. E... ah, é verdade, eles tinham uma grande cena montada e andavam a correr desorientados de um lado para o outro sem saberem se deviam chamar o médico ou não.
Não estou a perceber.
Fryer lambeu a mortalha e enrolou novo charro.
Foram então buscar novamente as irmãs Salina e deram-lhes ainda mais dinheiro. Miss Seal esteve fechada com elas durante dois dias. A seguir, a Juda convocou uma reunião com todos, quero dizer, os negros, numa velha igreja, fecharam as portas todas, a Juda subiu ao púlpito e pôs-se a gritar que tinham feito uma coisa má, uma coisa muito má. Disse que a Elizabeth Seal tinha todo o direito de fazer de Marie Laveau porque era tão negra quanto ela. Levantou então a fotografia dela e disse com uma voz muito calma...
Lorraine teve de esperar que o velho acendesse o seu charro.
«Olhem para a cara da vossa rainha, olhem bem e digam-me se não vêem as parecenças.» Começou de novo a casquinar, encolhendo as pernas mais uma vez. Disse cá para mim que havia de ter um bocado daquela beldade. Ela era tão boa, tão poderosa, e fazia com que todos aceitassem o que dizia sem refilar! Afirmou que todo o mal que tinham colocado à porta da Elizabeth lhes seria devolvido a dobrar. Berraram, gritaram, quase deitavam a igreja abaixo com o berreiro. O certo é que as janelas tremeram que nem umas danadas.
Era verdade? Era mesmo verdade o que a Juda estava a dizer?
Fryer virou-se para ela e o seu rosto mostrou-se repentinamente irado.
Quem sabe o que é verdade e o que não é? Aquelas duas irmãs estavam a receber mais dinheiro do que eu, do que todos nós, na condição de porem o filme a andar. Não sei o que é verdade e o que não é. Suspirou. Só sei que a única cena do filme que vale alguma coisa é a da menina a dançar com a serpente. O certo é que ela não parecia branca nem agia como tal, mas a partir daí, a Juda e a irmã ficaram com ela no enorme atrelado cheio de luxos até o filme terminar.
Fryer abriu de novo a sua garrafa e bebeu. Os seus enormes olhos pretos começavam a ficar desfocados.
Na sua opinião, o que aconteceu à Anna Louise Caley? O velho ergueu as mãos ao alto.
Raios, eu sei lá, mas deve ter sido alguma coisa má. Nestas bandas, uma rapariga não desaparece a não ser que alguém queira, ou então aconteceu algo de mau.
Lorraine abriu a pasta.
Quero mostrar-lhe uma coisa.
O velho esfregou-se, olhando-a de soslaio.
Se vier sentar-se aqui ao pé de mim, eu é que lhe mostro uma coisa.
Lorraine tirou a boneca vodu embrulhada numa toalha.
Encontrei isto no quarto da Tilda Brown, que era amiga da Anna Louise. Sabe o que significa? Mais importante, sabe quem poderia ter feito uma coisa destas?
Fryer olhou para a boneca aninhada na toalha. Fungou e recostou-se.
Onde é que disse que isso estava?
Com a Tilda Brown, a rapariga que se suicidou. Escondida no seu quarto.
Fryer Jones fungou de novo, depois cobriu a boneca com a toalha.
Mistress Page, eu não sou crente, mas não brinco com este tipo de coisas. Ponha-me isso daqui para fora e a senhora saia também. Vá, saia, saia! Saltou da cama, assustando-a, e apontou o dedo descarnado para o peito dela. Leve essa merda para fora da minha casa. Eu não acredito, mas isso não quer dizer que não fique incomodado, percebe? Não me meto com eles e eles deixam-me em paz.
Não... não percebo.
O velho olhou-a de esguelha.
Pois não, como era de esperar, nenhum branco percebe. Vocês todos tentam analisar a questão, esforçam-se por compreendê-la, mas é escusado, isso jamais acontecerá. Do mesmo modo que o preto é preto e o branco é branco. Se quer um conselho, deite isso fora, queime-o, porque...
Porquê, Mister Fryer? E se me dissesse o que isto é?
Precisaria de toda uma vida, doçura.
Lorraine pegou na boneca e embrulhou-a novamente na toalha com todo o cuidado.
Só disponho de mais alguns dias para localizar a Anna Louise Caley. Todas as ajudas que possa arranjar são poucas.
Fryer Jones apontou para a boneca.
Alguém está a tentar assustar alguém. Quem quer que tenha dado isso àquela menina queria que ela sofresse longamente e muito, tanto que destruir isso tornaria tudo ainda pior. É algo muito, muito mau: é terror.
Lorraine fechou a pasta com um movimento brusco.
Se calhar, o resultado de tudo isso foi levar uma jovem de dezoito anos a acabar com a própria vida.
Já vi pior.
O que poderia ser pior?
Fryer Jones tirou o postal da parede.
O que eles fizeram à Elizabeth Caley: tornaram-na escrava dos tambores. Sentou-se na cama e pegou no seu trombone. Na base de tudo está o facto de se ser escravo. Eu sou escravo deste instrumento, ele domina a minha vida, só me sinto um homem completo quando toco. Perco-me, sinto os sons, tal como a jovem Elizabeth Caley sentia a terra por baixo dos pés e dançava até entrar em transe, e o sangue que renegara lhe fluía como um suco, e se ela sabia dançar... A senhora dança?
Não, acho que não.
Isso é triste. Mas a senhora também é uma pessoa triste. Sinto algo por si, Mistress Page, sente-se ao pé de mim. Venha, tome um copo comigo.
Lorraine assim fez, contra a sua própria vontade, atraída, no entanto, por ele e pela garrafa. Fryer tirou a tampa, limpou o bocal à manga e passou-a a ela, já sem impulso sexual, apenas com gentileza. O uísque atingiu-a com força na garganta, aquecendo-a, e Lorraine sorriu-lhe, tomando mais um gole.
Sabe, quando trouxeram os escravos para cá, arrastaram-nos, acorrentados, para longe das suas raízes e da sua religião. Eles enterravam os seus mortos em enormes sepulturas abertas, juntamente com cães e gatos. Sentiam-se confusos e assustados ao verem os seus entes queridos viajar até ao outro lado sem comida nem água. Tinham medo porque acreditavam que, se os mortos não levassem algo que os sustentasse naquela jornada, as suas almas ficariam a deambular eternamente pela Terra. E a superstição, misturada com o medo, é uma arma poderosa.
Pousou a garrafa e pegou no trombone cheio de mossas.
Se der essa coisa que aqui trouxe a alguém que não tenha medo, só a incomodará com o mau cheiro. Mas se for uma pessoa que acredite, queima-lhe as narinas e torna-se algo terrível, uma maldição. Compreende o que quero dizer?
Lorraine estava a tentar seguir o que o velho dizia, perguntando a si mesma se Tilda Brown teria sabido o que significava receber uma maldição tão hedionda.
Acha que terá sido a Juda ou a irmã?
Fryer Jones fitou-a e Lorraine viu-se obrigada a fugir aos tenebrosos olhos escuros.
Não, não, nunca utilizariam erradamente o que consideram uma dádiva dos espíritos. Elas fazem trabalhos bons, Mistress Page, não trabalhos maus. Tocou no centro da testa. Possuem a terceira visão, aqui, conseguem ver o passado e o futuro.
Mas o senhor não acredita? insistiu Lorraine suavemente.
Fryer Jones fechou os olhos, afagando o trombone.
Já as vi entrar em transe, expulsando o mal e atenuando ° sofrimento. Mas nunca quis participar, sabia que nunca conseguiria. Não sou como elas, a minha alma é jovem, vive na minha música e sou feliz assim. Jamais quereria ver-me diante de toda aquela dor, nunca saberia lidar com ela.
Franziu os lábios e arrancou duas notas baixas ao seu trombone. Depois olhou para Lorraine e sorriu, o que fez com que dentes de ouro brilhassem na obscuridade.
Encontre quem fez a boneca, Mistress Page, e deparará com o mal, ou então fique a meu lado e só terá boa música.
Lorraine retribuiu-lhe o sorriso, sentindo que perdera o medo dele, que o apreciava, e ele apercebeu-se disso porque desatou a rir.
Esse é que é o meu mal, as mulheres gostam todas muito de mim. Claro que também as adoro e, deixe-me que lhe diga, já tive muitas e não houve uma única que se tivesse ido embora insatisfeita.
Lorraine pôs-se de pé, rindo tambe’m.
Tem a certeza disso?
Não, nunca tenho a certeza de nada senão disto. Ergueu o trombone. Não a seguiu com os olhos quando Lorraine saiu do quarto, mas começou a polir o instrumento com a ponta da camisa, observando o rosto enrugado que o olhava. Sabia que falara de mais, mas nunca o podia evitar quando ficava pedrado. Recostou-se na sua almofada com expressão preocupada.
Algo lhe raspou o pescoço; meteu a mão de baixo da almofada, apalpando o colar. Já não o usava desde que os rapazes lho tinham trazido, coberto de sangue viscoso. Ficara enervado, assustado mesmo, e nunca mais voltaria a pô-lo ao pescoço. Mas queria-o sempre perto de si quando dormisse, porque aqueles rapazes malucos poderiam perfeitamente ter-lhe cortado a garganta a ele. Fora-lhe oferecido por Juda. Esta amara-o em tempos e nunca quisera que mal algum acontecesse ao homem de quem gostara. Até o aconselhara a nunca se separar dele, pois protegia-o contra qualquer mal que o ameaçasse. Até ali tivera sorte, ao contrário do pobre filho da mãe do homem manco.
Lorraine, quando chegou junto de Francois, caminhava de maneira muito insegura, porém, tomou mais uma bebida a caminho do hotel, dizendo a si mesma que assim dormiria melhor depois de tomar um café forte, passar-lhe-ia. Sentia-se bastante descontraída e ia sorridente, mas, quando se aproximaram do hotel, a sua disposição começou a mudar e, a certa altura, atirou a lata de Coca-Cola pela janela fora, praguejando e murmurando entre dentes. Francois assistia a tudo através do espelho retrovisor, reparando que ela passava as mãos pelos cabelos e oscilava de um lado para o outro nas curvas que o carro dava, que nem sequer eram feitas a grande velocidade.
Talvez fosse melhor não beber mais, Mistress Page. Lorraine inclinou-se para a frente com o rosto distorcido de raiva.
Cale a boca! Quem diabo pensa que é para me dizer o que devo fazer? Limite-se a guiar o carro, é para isso que é pago, seu filho da puta.
Com certeza, minha senhora, estamos quase a chegar. Francois viu-a cambalear ao caminhar para o hotel, e às tantas parar para alisar a saia e pôr os óculos escuros. Deu a impressão de inspirar profundamente o ar várias vezes antes de entrar no átrio e desaparecer por trás das palmeiras.
Lorraine encontrou Rosie e Rooney sentados na esplanada do pátio das palmeiras.
Onde diabo é que andaram? perguntou-lhes com maus modos.
Isso perguntamos nós ripostou-lhe Rosie, aborrecida. Lorraine sentou-se, descalçando os sapatos com gestos bruscos.
A trabalhar, aí têm o que andei a fazer.
Bem, se calhar nós também redarguiu Rosie, dando um encontrão a Rooney por baixo da mesa para que dissesse algo.
Lorraine apoiou a cabeça nas mãos e resumiu-lhes o que andara a fazer, depois esticou os braços acima da cabeça e bocejou.
O Fryer tem razão, temos de descobrir quem fez a boneca. Fez sinal à criada de mesa. Queres outra cerveja ou já te chega?
Rooney desviou o olhar, aborrecido com Lorraine. Rosie observou-a atentamente: a princípio não teve a certeza, mas depois cheirou-lhe a álcool. Lorraine esquadrinhou o terraço sem tirar os óculos escuros, falando um pouco alto de mais.
A Ruby Corbello é a primeira da minha lista de amanhã. Foi despedida da casa dos Brown no mesmo dia em que Anna Louise chegou a Nova Orleães. Pode ser que tenha tirado o diário do ursinho antes de se ir embora, e esse diário é muito importante. Talvez seja tudo o que temos, se calhar também poderá dar-nos uma pista sobre quem lhe deu aquela boneca. Também precisamos de saber quando é que isso aconteceu. Sempre investigaste a questão da data do jornal, Bill? A criada apareceu nesse momento, o que deixou Rooney aliviado, pois não tratara do assunto e, a julgar pelo humor de Lorraine, isso traria problemas. Esta mandou vir um café forte e uma sanduíche.
Portanto, Rosie, descobriste a morada dos Corbello? Lorraine ficou a ouvir o relato das actividades de Rosie e
Rooney, enquanto acendia um cigarro, batendo, com fúria crescente, com o pé na perna da mesa.
Se bem me recordo, nunca vos disse para irem ter com a Edith Corbello nem inventarem uma história idiota qualquer como essa de quererem que vos fizessem uma boneca. Jesus Cristo, nunca ouvi nada tão parvo! Agora a minha ida lá vai ser um problema. Porquê? Porque fizeste semelhante coisa, Bill? Sempre pensei que, ao menos tu, jamais cometerias um tal disparate. Caramba, é suposto seres um profissional.
Assim como tu? perguntou Rosie.
O quê?
Cheira-me à distância, Lorraine.
Rooney olhou para Rosie e para Lorraine com ar preocupado.
Comi uns bombons de chocolate com licor disse Lorraine rindo sem humor e demasiado alto. Espreitou por cima dos óculos escuros. Fizeste asneira, Bill.
Desculpa pediu ele, encolhendo os ombros.
Isso não chega! retorquiu Lorraine com secura. Rosie estava a ficar verdadeiramente furiosa.
Esperámos aqui por ti, mas vimos que não aparecias como tínhamos combinado, e quando nos disseram que saíras de casa dos Caley, ficámos sem saber o que pensar. Por isso não estejas com sermões connosco, tu é que devias ter vindo ao hotel dizer-nos o que deveríamos fazer.
Cala a boca, Rosie, e põe-te a andar, estás a enervar-me. Rosie levantou-se de rompante.
Farei isso mesmo e, quem sabe, talvez quando curares a piela possamos ter uma conversa séria, como duas profissionais.
Afastou-se. Rooney olhou primeiro para ela e depois, de novo, para Lorraine.
Está a dizer disparates... portanto, vejamos, o que se passa contigo, Bill? Perdeste a língua além do jeito? perguntou Lorraine, sarcasticamente.
Rosie, que ainda estava suficientemente perto para ouvir, voltou-se de rompão para trás.
Deixa-o em paz ordenou com maus modos.
Oh, agora também falas pelo Bill? Então, diz-me, Rosie, ele procurou saber qual a data do jornal que vinha a embrulhar a boneca?
Merda, eu sabia que havia alguma coisa exclamou Rooney, incomodado, reparando que as pessoas nas outras mesas começavam a olhar para eles.
Lorraine fitou-o.
Procuraste o gris-gris no quarto do Nick? Rosie olhou para ele e depois para Lorraine.
Devíamos levá-la para o quarto, Bill.
Fiz a porra de uma pergunta interrompeu Lorraine. Então, procuraste ou não?
Não, não procurei.
Lorraine deu uma palmada no tampo da mesa.
Que tal ires lá agora fazer isso? Não tardam a alugar o quarto a outras pessoas, se calhar já o fizeram, portanto pergunta na recepção se encontraram alguma coisa por lá.
Rooney levantou-se.
Certo, como quiseres, mas fala baixo. Estão todos a olhar para nós.
Rosie acercou-se um pouco mais.
Não consintas que te fale assim, Bill! Está bêbeda. Não sentes o cheiro? Olha para ela!
Lorraine já se levantara, atirando a cadeira ao chão e apontando para Rooney.
É o que eu digo, Bill. Gostaria que vocês os dois parassem de estragar tudo. De agora em diante, é favor fazerem como vos mando.
Rooney afastou-se da mesa. Parecia deprimido e triste. Lorraine, apercebendo-se disso, deixou-o ir. Ainda não terminara, mas não conseguia encontrar os sapatos. Voltou-se então para Rosie.
Vocês têm de parar de brincar aos detectives. Isto é muito sério!
Ai é? Por isso é que foste para a cama com o Robert Caley? Foi um gesto muito profissional! Agora vê se te recompões e vai para o teu quarto.
Ao menos as coisas comigo evoluíram, o que já não se pode dizer de vocês os dois, que andam por aí a comportar-se que nem amadores. Acabaram de deitar a perder a possibilidade de obter informações através da Edith Corbello.
Mas tu disseste que o Fryer Jones...
Lorraine voltou a bater no tampo da mesa, dessa vez com o tacão do sapato.
Rosie, nem tudo o que o velho disse conta para mim. Não confio minimamente no homem. O que levo muito a peito foi o facto de o Rooney, que me devia dar apoio, ter deitado tudo a perder.
Rosie fez beicinho. Às vezes detestava francamente Lorraine; no entanto, antes que pudesse responder, a empregada trouxe o café.
Ele já te levou para a cama? perguntou, vendo Rosie corar. Ora, deixa-te disso, para quê essa reacção? Não te fica bem armares em tímida... Além disso, os olharezinhos que vocês deitam um ao outro, além das festinhas, dão-me cabo dos nervos.
Se calhar o teu mal é a inveja atirou-lhe Rosie, reparando nos olhares de curiosidade que os hóspedes das mesas vizinhas lançavam a Lorraine, que voltara a sentar-se, para tomar o seu café.
Onde está a minha sanduíche? Mandei vir uma de fiambre e queijo.
A empregada ficou tensa e disse que não demoraria. Lorraine beberricou o seu café.
Inveja, eu? Deves estar a brincar, Rosie. Mas não respondeste à minha pergunta. Ele já o fez? É capaz disso?
Riu-se, deitando açúcar no café e entornando algum na frente da blusa. Rosie falou-lhe mais de perto.
O problema é meu, não teu, e devias pedir desculpa pela maneira como lhe falaste. De facto, devias era olhar bem para ti mesma, Lorraine, porque não passas de uma cabra arrogante e bêbeda.
A bofetada foi de tal modo inesperada que fez com que Rosie cambaleasse para trás. Cerrou o punho para devolver a agressão, mas conteve-se. Ouvia as pessoas a murmurar à sua volta e todos estavam de olhos postos nelas.
Agora é melhor pedires-me desculpa, porque nós não precisamos de ti.
Pois não, só da vossa parte no bónus de um milhão de dólares para o qual eu estou a fazer o trabalho todo...
Não te preocupes, Rosie, vamos dividi-lo em três partes, como foi combinado. Isso, se o obtivermos.
Rosie não se aguentou e desferiu-lhe um soco no ombro, não lhe acertando na cara, como pretendia. Lorraine deslizou da cadeira para o chão, mas Rosie absteve-se de a ajudar a levantar-se.
Sim, se o obtivermos. Quem deu cabo das hipóteses que tínhamos foste tu, que caíste nos encantos do Robert Caley.
Lorraine agarrou-se à mesa para conseguir pôr-se de pé.
Começava a sentir-se agoniada.
Mas mesmo que não consigamos o dinheiro, não faz mal porque surgiu algo entre nós dois, algo que eu duvido que alguma vez venhas a ter. Vamos casar-nos, Rosie.
Dito isto, Rosie afastou-se, deixando Lorraine apoiada à beira da mesa. Tudo à sua volta girava e começava a ficar desfocado; quando a empregada voltou com a sanduíche pedida, Lorraine desmaiou.
Rooney viu Rosie na recepção e foi ter com ela.
Levei-a para o quarto... bem, com a ajuda do paquete. Está uma lástima observou ele.
Rosie acenou com a cabeça e passou-lhe uma folha de computador com a lista de despesas de Lorraine.
Tem andado a meter tudo na conta, repara. Vodca, garrafas dela.
Merda tartamudeou Rooney.
Vamos ter de a ajudar a sair desta, talvez levá-la a uma reunião disse Rosie impacientemente, transferindo a raiva que sentia de Lorraine para Bill. Porque permitiste que te falasse daquela maneira?
Bom, de certa maneira ela tinha razão. Além disso, sabia que algo de estranho se passava com ela...
Senti-lhe o cheiro mal se sentou declarou Rosie, furiosa.
Bem, agora o melhor é deixá-la dormir até tudo passar e depois conversarmos quando voltar ao normal.
E se ela não se recompõe? perguntou-lhe Rosie com azedume.
Foi a vez de Bill falar asperamente a Rosie:
Se assim for, eu assumo a liderança do caso porque já estou farto desta porcaria. Não estou disposto a perder a minha fatia no milhão, mesmo que ela esteja.
Antes que Rosie pudesse pedir-lhe desculpa, Rooney afastou-se, deixando as portas que davam para a recepção a balouçar.
Lorraine sentia-se muitíssimo mal e, para cúmulo, naquele momento aparecera-lhe uma dor de cabeça monumental. Ensopara uma toalha, enchera-a de gelo e estava deitada na cama, mal conseguindo levantar a cabeça da almofada. Suspirou, sentindo dificuldade em perceber porque fora tão agressiva e cruel. Teria de se desculpar junto de Rooney e Rosie. Naquela noite estava demasiado cansada para isso.
Tentou também analisar tudo aquilo em que estivera a trabalhar naquele dia: tinha de descobrir quem fizera a boneca. E... quem a dera a Tilda Brown. Estremeceu ao ouvir o barulho da porta a abrir-se para dar passagem a Rosie, que trazia um tabuleiro de sanduíches e uma cafeteira de café forte, que pousou ruidosamente.
Vais pôr-te sóbria disse-lhe, enchendo uma chávena. Enfias-te debaixo daquele chuveiro, bebes este café todo, comes estas sanduíches e depois vais comigo a uma reunião. Arranjei uma morada onde daqui a uma hora haverá uma.
Lorraine começou a chorar, fungando e limpando o rosto.
Deixa-me em paz, não me sinto bem, foi qualquer coisa que comi.
Pois, bombons com licor, disseste tu. As mentiras não resultam, Lorraine, sei que estavas a cair de bêbeda. Aliás, todo o hotel sabe. Admira-me que não nos tenham convidado a sair. Agora, SENTA-Tâ
Não.
Rosie obrigou Lorraine a pôr-se de pé e enfiou-a, vestida e tudo, debaixo do chuveiro. Quando os jactos de água gelada a atingiram, berrou que nem uma possessa, ameaçando matar Rosie, esfaquear Bill e arrancar-lhe os testículos. As suas ameaças foram-se tornando cada vez mais ridículas, até acabar por desistir de se debater contra Rosie.
A seguir, Rosie ajudou-a a vestir uma camisa de dormir e obrigou-a a comer as sanduíches e a beber o café, recusando-se a deixá-la ir dormir antes de lhe prometer que iria a uma reunião no dia seguinte, de jurar sobre a Bíblia do hotel que não tocaria noutra gota de álcool e que chamaria por ela ou por Bill se por acaso tal ideia lhe passasse pela cabeça. Lorraine pedia agora desculpas, chorando como uma criança de castigo.
Rosie, eu não quis dizer aquilo, juro por Deus que não, foi apenas o Fryer Jones que me ofereceu de beber na casa dele, pensei que era Coca-Cola. Dou-te a minha palavra de que não toco noutra gota, agora só preciso de dormir, por favor.
Rosie suspirou, deu uma arrumadela no quarto, verificando se não havia mais garrafas de bebida. Quando chegou ao fim, Lorraine já estava meio adormecida; então sentou-se na beira da cama por um instante.
Também tens de pedir desculpa ao Bill, ouviste? Ele gostava muito do Nick e a sua morte custou-lhe muito. Portanto, amanhã de manhã, a primeira coisa que fazes é isso. Eu já estou habituada, mas ele não. Foste muito rude.
Lamento muito repetiu Lorraine com uma voz infantil.
Acho bem, já que está tanta coisa em causa. Rosie levantou-se e Lorraine estendeu-lhe os braços.
Dá-me um chi-coração, Rosie, por favor, estou tão arrependida.
Rosie abraçou a amiga, depois sorriu-lhe afectuosamente, afofando-lhe as almofadas.
Não há dúvida de que pões os teus amigos à prova, Lorraine Page.
Mas sou uma mulher de sorte por tê-los retorquiu-lhe Lorraine suavemente.
Rosie retirou-se, pensando que a deixava a dormir; o sono, porém, recusava-se a chegar a Lorraine. A certa altura levantou-se e foi ver as mensagens que tinha; várias eram de Robert Caley. Parte de si queria telefonar-lhe porque se a convidasse a ir ter consigo, iria. Não lhe bastava ser abraçada por Rosie, por uma amiga, desejava ser amada por alguém por Robert Caley. Porque encontrariam Rosie e Rooney consolo nos braços um do outro e ela não? Apesar de tudo, continuou a engendrar débeis desculpas para não ligar a Robert Caley.
Abriu a pasta, tirou a toalha suja para fora e abriu-a, ficando a olhar para a boneca grotesca. Alguém colocara a fotografia de Tilda Brown de cara para baixo sobre a cabeça de plástico. Alguém colara cabelo louro ao corpo feito de trapos, cobrindo-o de excrementos e urina, e depois alguém inserira um longo alfinete fino em cheio na cara de Tilda Brown. Esse alguém tivera acesso àquela fotografia, teria conhecimento de que a maldição aterrorizaria uma pessoa que acreditasse nos espíritos maus e nos seus poderes. Lorraine perguntou a si mesma se teria sido Elizabeth Caley ou até mesmo a filha desaparecida, Anna Louise. Quem sabe se fora Juda Salina, Edith Corbello ou, até, Robert Caley, possibilidade que se recusava a aceitar.
O mal-estar manteve-se enquanto mudou de roupa e se preparou para dormir. O telefone tocou e sobressaltou-a violentamente, mas não atendeu. Depois ligou para a recepção e soube que fora Robert Caley. Fechou os olhos, voltou a sentir o mesmo acesso de calor de quando ele a beijara de novo, dizendo-lhe que ia deixar a mulher. Começara a apaixonar-se por ele e isso assustava-a. Não conseguia deixar de relembrar a revista pornográfica, os cartões do Dia dos Namorados que encontrara no quarto de Anna Louise, todos eles de Caley sob o pseudónimo de «Polar». Quem tirara os diários, caso os houvesse, dos ursinhos de Anna Louise? Caley dissera que nunca nenhum fora encontrado, porém conhecia o seu esconderijo e sabia, portanto, que, se Tilda Brown tivesse algum diário, também esse estaria escondido no mesmo lugar. As suspeitas giraram vezes sem conta pela sua cabeça, até sentir vontade de chorar de tanto cansaço.
Por favor, que não seja ele... sussurrou.
Rooney teve de esperar mais de uma hora para que o tipógrafo retirasse os bocados de jornal em que o corpo da boneca vodu estava envolvido. Eram quase oito da noite quando, finalmente, um homenzinho mirrado, de avental e com as mãos sujas de tinta de impressão, saiu de uma divisão dos fundos trazendo consigo a cópia de uma página de jornal inteira.
Sabe que isto tem um preço, não sabe? Rooney fez um sinal de assentimento com a cabeça.
Quanto?
Bem, tive de passar os ficheiros a pente fino e voltar a confirmar as fotografias... digamos, quinze dólares.
Rooney sorriu, esperara que lhe pedissem bem mais.
Claro, parece-me justo.
Puxou da carteira e entregou os quinze dólares ao tipógrafo, que os meteu no bolso, lançando um olhar furtivo à sua volta. Como dissera, fora necessário correr os ficheiros, mas fizera-o no tempo do patrão.
Muito bem, este artigo saiu no dia quinze de Fevereiro do ano passado, porque as fotografias são do casino e...
Rooney não o deixou terminar e agarrou na folha.
Isso já me chega, obrigado.
Deteve-se à porta da tipografia a dobrar a cópia da folha única do jornal do ano anterior, até formar um pequeno quadrado. A tarde estava quente e húmida. Suava por todos os poros, pelo que foi andando pela rua abaixo até avistar o eléctrico, para dentro do qual subiu. Sentou-se no banco próximo da entrada, esperançado em apanhar uma brisa, mas o ar estava quente e pegajoso. Aliviou o colarinho com o dedo, sem saber muito bem se estava assim por causa do calor ou do facto de ter decidido declarar-se a Rosie.
Barbeado e de duche tomado, bateu-lhe à porta. Rosie abriu-lhe a porta de toalhão enrolado à volta do corpo roliço.
Como é que foi?
Bem, era a data que todos nós queríamos, quinze de Fevereiro do ano passado. Posso entrar?
Claro. Desviou-se para o lado para o deixar passar, ajustando melhor o toalhão. Saí agora do duche.
Rooney sentou-se na beira de uma das várias camas, aguardando que ela se vestisse na casa de banho. Achou que não passava de um velho doido solitário e concluiu que era melhor desistir do que pretendia propor a Rosie.
Estás divorciada? perguntou a custo, quando a amiga voltou.
Rosie ficou surpreendida.
Estou, já to disse, há anos. Porquê? Rooney respirou fundo.
Por nada respondeu com enfado, desdobrando a cópia da página de jornal e passando-lha.
Isso é mentira, certamente há uma razão. Olhava para a folha de papel dobrada. O que é?
Queres ficar comprometida comigo, Rosie?
Podes crer que sim.
O quê?
Rosie sentou-se ao lado dele e pegou-lhe na mão enorme.
Eu disse que sim, quero...
Merda, a sério?
Sim... isso preocupa-te?
Raios, não, era o que queria ouvir de ti.
Fez-se silêncio por um momento e depois olharam, lentamente, para a cara um do outro.
Quer dizer que estamos noivos? perguntou Rosie timidamente.
Pois, acho que sim respondeu Rooney com simplicidade.
Tudo acontecera como ele esperara, apenas um pouco depressa de mais! É melhor contarmos à Lorraine disse Rosie, reparando que Rooney hesitava.
Talvez seja mais aconselhável não nos precipitarmos. Habituemo-nos primeiro à ideia, está bem?
Rosie anuiu, sorrindo.
Refiro-me ao artigo do jornal, Bill!
Lorraine estava profundamente adormecida quando Rooney lhe telefonou a dizer que a data do jornal coincidia com o dia em que Anna Louise chegara a Nova Orleães. Recusou-se a ir jantar com eles, dizendo que precisava de uma boa noite de descanso. Já passava das nove e não conseguiu voltar a adormecer durante muito tempo. Ainda pensou em ir ver Robert Caley, porém desistiu da ideia. Em vez disso, ficou às voltas na cama, esforçando-se por não pensar nele, rememorando o que se passara durante o dia com excepção da sua recaída no álcool.
Levantou-se, agitada, e começou a andar de um lado para o outro no quarto. Chegara à conclusão de que só havia uma pessoa capaz de odiar Tilda Brown assim tanto, e que essa pessoa era Anna Louise Caley. Mas como diabo poderia prová-lo sem nenhuma das duas viva? Além disso, o suicídio de Tilda não deveria ganhar prioridade sobre o desaparecimento de Anna Louise, a não ser que estivessem entreligados. E o instinto dizia a Lorraine que estavam... mas como?
Apeteceu-lhe uma bebida e procurou alguma garrafa que Rosie porventura tivesse deixado por ali sem querer, ainda convencida de que tudo continuava sob o seu controlo, que o problema fora provocado pelo uísque bebido no bar de Fryer, não pela vodca diluída que fora beberricando ao longo do dia. Sabia, no entanto, que tinha de ser muito mais esperta, pois Rosie e Rooney andariam de olho nela. Não podia ligar para a recepção a pedir que lhe mandassem uma garrafa ao quarto, pois tinha a certeza de que Rosie já descobrira a marosca, talvez os tivesse até alertado para que não lhe enviassem nada ao quarto, e ela não tinha forças para sair.
Não se apercebia de que a energia nada tinha a ver com a bebida e que começara a entrar numa nova fase de viciação a do medo. Tinha medo de sair do quarto do hotel, medo de encarar Rosie e Rooney, além da sua confiança na capacidade de analisar o caso vacilar terrivelmente. Quanto mais revia os seus apontamentos em busca de pormenores para analisar, menos confiante se sentia, não sabendo que passo dar a seguir. Só mais tarde, quando começou a suar, é que Lorraine percebeu de que precisava de algo que a ajudasse a pôr-se de pé novamente. Ligou para a recepção a saber se o motorista, Francois, estava em frente do hotel, pedindo que, se assim fosse, lhe dissessem para subir ao seu quarto.
Só mais de meia hora depois é que localizaram Francois. Quando este foi falar com Lorraine, concordando em lhe ir comprar uma garrafa de vodca, já se escoara mais de uma hora.
Lorraine telefonou então para a recepção e mandou vir um conjunto de seis Coca-Colas, reunindo tudo aquilo de que precisava, porém não abriu a garrafa imediatamente. O simples facto de saber que a tinha ali já bastava para que se sentisse melhor.
No entanto, o sono continuava a não chegar e Lorraine foi dando voltas, mentalmente, ao caso, até acabar por adormecer planeando ir falar com Ruby Corbello logo de manhã. Quando despertou, voltou a assegurar a si mesma que tudo se resolveria.
Robert Caley saíra da cidade nessa noite e fora de carro pela zona costeira acima, até um casino situado em Gulfport, Mississipi, em cujas salas privadas ele e Dulay tinham jogado muitas vezes. Os jogadores de alto gabarito raramente o faziam nos casinos fluviais de Nova Orleães, mas, quando aquele de quem ele agora iria ser sócio abrisse, tudo isso mudaria. A partir dali, muitas coisas se transformariam para si. Às nove e meia perdera já mais de dez mil dólares, mas não se importava, pois ia ser rico. Não haveria limite para a procura de jogo e sabia que nunca mais teria de voltar a preocupar-se com dinheiro. Dulay chegou depois das dez. Soube-lhe bem vê-lo sorrir afável e falsamente, com um charuto preso ao canto da boca. Nem mesmo o maldito conseguira afastá-lo do negócio à traição, pois tivera o máximo cuidado a aplicar o seu dinheiro: os contratos de arrendamento, que lhe tinham dado a impressão de ser como pedras gigantescas amarradas ao seu pescoço, haviam-lhe salvo a vida.
Viva, Robert, como é que isso vai? Caley sorriu.
Bem, muito bem.
Bom, parece que dinheiro é coisa que não nos vai faltar... depois da declaração feita, claro. Até os seus modos delicados denunciavam um certo constrangimento. Agora estamos todos no mesmo barco... como devia ser, não é, Robert?
Caley sorriu: o homem era uma serpente. Não havia razão para o grupo da Doubloons ter entrado no negócio, mas não havia dúvida de que empurrar o carrinho de golfe do governador dera os seus frutos. Ainda assim, sabia-lhe bem ter saído de tudo aquilo como um vencedor; além disso, tinha a certeza, a certeza absoluta, de que, a longo prazo, ficaria com todas as cartas na mão.
É verdade, Lloyd retorquiu com simpatia igualmente falsa. Parece que estamos. Agora, se me dás licença, eu já ia a sair.
Consultou o relógio de pulso, curioso em saber se Lorraine teria telefonado. Queria vê-la, queria que ela soubesse e que celebrassem juntos. Regressou a Nova Orleães a pensar no novo mundo que partilhariam. Queria-a aquela noite, pois a partir dali tudo iria ser diferente: já não dependia de ninguém, libertara-se. Estivera aprisionado durante anos, apanhado nos pesadelos secretos de Elizabeth Caley, mas isso terminara. Além de que tinham sido pesadelos que ele nunca procurara compreender nem se dera ao cuidado de aprofundar.
Caley ligou a Lorraine, mas, como o informaram de que esta não recebia telefonemas, deixou recado a dizer que voltara para o seu hotel e lhe reservara a mesma suite. Era meia-noite quando voltou a ligar, porém a situação não se alterara: Mrs. Page não queria ser incomodada. Confuso, deixou o auscultador cair sobre o descanso. Não lhe faria mais telefonemas, esperaria que fosse ela a ir ter consigo.
De manhã cedo, ainda antes de Rosie e Rooney descerem para o pequeno-almoço, Lorraine saiu do hotel. Obrigara-se a vestir e a sair graças a dois goles de vodca e a meia cafeteira de café. Tremia horrivelmente, pois estava com uma ressaca diabólica, mas ao menos conseguira sair do quarto. Ficou sentada dentro do carro alugado, olhando para a casa dos Corbello através da janela.
Espere aqui, Francois.
Bateu três vezes antes de lhe abrirem a porta.
Olá, queria falar com a Ruby Corbello.
A miúda que apareceu à porta trazia um vestido diminuto e uns chinelos de borracha.
É da organização da festa?
- Não, mas preciso de falar com ela, e se for preciso pago. Lorraine tirou uma nota de vinte dólares para fora.
- Ela hoje à tarde vai tirar a fotografia para uma revista. Só recebe a imprensa.
Sou jornalista mentiu Lorraine.
Está no quarto das traseiras.
A rapariguita passou por Lorraine, tirou-lhe a nota da mão com um movimento rápido e deixou a porta aberta.
Ruby? Ruby? chamou Lorraine.
Quem quer falar com ela? perguntou uma voz aguda.
Sou da imprensa que dá cobertura à organização Mardi Gras respondeu Lorraine.
Ruby Corbello desceu lentamente as escadas envolta nu lençol. Era extraordinariamente bonita.
Quem é você?
Chamo-me Lorraine Page. Posso falar consigo? Ruby deslizou pelos últimos degraus e apoiou-se ao pilar do corrimão, inesperadamente coquete.
Não quero que me tirem fotografias antes de estar maquilhada.
Lorraine olhou para a divisão ao fundo do corredor.
Podemos conversar?
Ruby assentiu, apanhando as pontas do lençol que a tapava.
Claro, mas nada de fotografias enquanto não puser o vestido.
Fez sinal a Lorraine para que se sentasse num sofá velho e gasto e ficou em pose ao lado. O lençol rasgado poderia perfeitamente ter saído das mãos de Yves Saint Laurent, já que tudo o que assentava naquela rapariga parecia ter classe.
Lorraine abriu o seu bloco de apontamentos.
É verdade que trabalhou para a família Brown como empregada doméstica?
Sim, sim, é verdade, mas isso já ficou para trás. Lorraine sorriu.
Fale-me da Tilda Brown.
Miss Brown? perguntou Ruby, irritada.
Porque deixou de trabalhar naquela casa, Ruby? O rosto perfeito de Ruby ensombrou-se.
Porque é que quer saber? Andaram a dizer coisas sobre mim, é?
Lorraine suspirou.
Bem, de certo modo, mas se vou traçar este seu perfil para os jornais...
Eu não fui despedida, nem nada disso. Vim-me embora, saí de lá porque aquela mulher era maluca e eu queria uma carreira como deve ser.
Refere-se à Tilda?
Hum, hum, andava sempre a implicar comigo, fazia-me a vida num inferno, pois achava-se toda importante e poderosa. Mas não era assim tão importante e poderosa. Eu sei, eu sei tudo sobre Miss Tilda Brown.
Sabe que ela se suicidou?
Hum, hum, sei.
Porque acha que se matou?
Ruby encolheu os ombros e sentou-se na beira de uma cadeira.
Isso não sei.
Conhece a Anna Louise Caley?
Hum, já a vi, e aquelas duas eram igualzinhas. Essa era outra que tinha a mania de que era importante e poderosa.
Veio aqui a sua casa?
Ruby atirou a linda cabecinha para trás e riu-se.
Que ideia, não, essas raparigas brancas jamais se atreveriam a pôr os pés aqui.
E Mistress Caley, veio? Ruby recostou-se.
O quê? Está a brincar comigo? A famosa Elizabeth Caley vir aqui? Nem pensar, minha senhora.
Lorraine mordeu o lábio, sem saber muito bem como conduzir a questão. Ruby atirou a farta cabeleira para trás dos ombros, como que a preparar-se para uma câmara de filmar.
Contaram-me que foi despedida da casa dos Brown por roubar.
O quê? exclamou Ruby, levantando-se de um pulo e pondo-se a saltitar e a querer saber, à viva força, quem dissera semelhante coisa sobre a sua pessoa. A certa altura, colocou-se em frente de Lorraine e interpelou-a de muito perto.
Quem se atreve a dizer isso de mim?
Não sei dizer-lhe, Ruby, mas tenho de fazer a pergunta porque, se vamos pô-la na primeira página do jornal, temos de ter a certeza de que depois não haverá repercussões. Você é uma das rainhas do Carnaval deste ano, e a América inteira estará de olhos postos em si.
Ruby deixou-se cair pesadamente numa cadeira.
Eu não fiz nada de mal, absolutamente nada, só foi porque ela andava a espiar-me.
De que se tratou?
Eu descobri aquilo.
Descobriu o quê?
O diário da Tilda. Estava dentro daquele brinquedo estúpido que ela tinha em cima da almofada, sabe, um urso. Percebi que havia qualquer coisa lá dentro e resolvi ver o que era.
Lorraine sentiu os joelhos tremer ao inclinar-se para a frente.
O diário da Tilda Brown está consigo?
Raios, não, não está.
Mas esteve.
Ruby disse que sim com a cabeça, chupando a ponta do lençol.
Ela gritou comigo e acusou-me de uma data de coisas, como por exemplo o roubo de jóias, quando eu nunca lhes pus as mãos em cima sequer. Juro por todos os santos que nunca toquei em nada, mas os pais dela mandaram-me embora. Fiquei furiosa e subi até ao quarto dela; não queria roubar nada, talvez apenas desarrumar-lhe as coisas, mas foi então que lhe descobri o diário. Tencionava devolvê-lo.
Quando é que isso se passou exactamente, Ruby?
No dia em que ela voltou para casa. Lorraine respirou fundo.
Foi despedida no dia em que a Tilda voltou para casa, ou seja, no dia...
Catorze de Fevereiro, Dia dos Namorados. E, ela despediu-me no dia em que voltou. Lembro-me de que foi nesse dia porque me mandaram muitos corações, o Errol Bagley até me enviou um pequeno arranjo de flores, e eu disse-lhe que não me ralava nada de me ir embora. Acho que o que ela tinha era inveja de mim e de todos os cartões e das flores que me mandaram, pois não recebeu patavina.
Ruby, tem a certeza de que ela voltou na véspera da chegada da Anna Louise a Nova Orleães?
; Não sei quando é que essa chegou, só sei é que eu já não trabalhava para a família Brown. Deram-me uma semana de salário! Uma semana, quando devia ter sido um mês!
Lorraine perguntou a Ruby há quanto tempo Tilda tinha o urso, mas a jovem não foi capaz de se recordar, respondendo que começara a ver-lho não há muito. Ao querer saber o que Ruby fizera com o diário, viu-a tornar-se evasiva, recostando-se toda na cadeira a morder uma ponta do lençol. Evitou os olhos de Lorraine.
A Ruby leu-o?
Claro que li, pelo menos uma grande parte.
Que foi que fez com ele? insistiu Lorraine. Ruby afundou-se ainda mais na cadeira.
Nada de mal, nada de ilegal, além disso, precisávamos de fazer um adiantamento para o meu vestido da cerimónia. O meu vestido vai custar quase mil dólares. Devia falar disso na notícia.
Lorraine escrevinhou no seu bloco de apontamentos, receando estar a fazer demasiada força para obter informações. Adiantou então algumas perguntas sobre o estilo e o corte do vestido, vendo que Ruby começava a ficar mais ansiosa por falar.
É em seda azul, toda ela bordada à mão a fio de ouro. Eu mostrava-lho, mas ainda está na costureira.
Lorraine sorriu encorajadoramente, simulando interesse.
A julgar pela sua descrição, deve ser magnífico, Ruby.
Sim, é mesmo, e os sapatos são a condizer!
Posso ver o diário?
Ruby já andava a esvoaçar pela sala, arrastando o lençol de cama.
Caramba, porque não pára de me fazer perguntas sobre isso? Não o tenho.
Então, quem o tem, Ruby?
Ruby ficou a olhar pela janela, pondo-se depois a examinar as unhas pintadas em busca de imperfeições.
Não sei nada sobre isso, não sei absolutamente nada. Porque quer saber do diário? Ele disse-me que nunca ninguém viria a saber, portanto, com quem é que esteve a falar?
Lorraine sentiu o sangue gelar, pois sabia a quem Ruby se referia.
Quanto é que o Robert Caley lhe pagou por ele?
Duzentos dólares respondeu Ruby em voz sumida.
Lembra-se da data em que ele lhe deu esse dinheiro? Ruby acenou com a cabeça e suspirou.
No dia a seguir, no hotel dele. Acabara de chegar e ia nadar. Acho que foi no dia a seguir àquele em que fui despedida.
Lorraine respirou fundo.
Dia quinze de Fevereiro do ano passado?
Ruby assentiu com a cabeça. Como é que Mister Caley soube que o diário estava consigo?
Ruby fez beicinho e não respondeu.
Sabia que a Anna Louise desapareceu nessa mesma noite? Ruby fez um sinal afirmativo.
Ele disse-me para não contar a ninguém que eu lhe tinha telefonado, e eu assim fiz.
Telefonou-lhe para o hotel?
Sim, claro. Bem, não exactamente. Trabalha lá um paquete chamado Errol, que tem um fraquinho por mim, foi o mesmo que me mandou o arranjo de flores de que lhe falei há pouco. Seja como for, pedi-lhe que fosse dizer a Mister Caley que eu estava à espera dele em frente do hotel, precisava de lhe falar urgentemente.
Que horas eram, Ruby?
Oh, umas seis da tarde. Sabe, eu sabia da vinda deles. Miss Tilda era para vir com eles, mas adiantou-se um dia.
O esforço que Lorraine estava a fazer para que Ruby continuasse a responder às perguntas punha-lhe a cabeça a latejar. Tentar assimilar todas aquelas informações era esgotante. Respirou fundo e sorriu de novo para uma Ruby que mostrava já sinais de tédio.
Porque daria ele tanto dinheiro em troca do diário da Tilda Brown?
Ruby bocejou e esticou os braços acima da cabeça.
Acho que não queria que a mulher soubesse.
Soubesse o quê?
Ruby soltou uma risadinha.
Que ele e aquela menina importante e poderosa andavam a dormir juntos. Mister Robert Caley fornicava com Miss Tilda Brown, aí tem a razão!
Tapou a boca com a mão e casquinou que nem uma criança. Achava tudo aquilo danadamente divertido.
Lorraine deixou-se ficar sentada dentro do carro, com a cabeça apoiada ao banco. Francois olhou para ela, convencido de que fora a casa de Edith Corbello para uma leitura.
Isso anda mal de amores, hein?
Pois é, Francois, muito mal. É capaz de parar na próxima loja de bebidas?
Quando iam a afastar-se, Edith Corbello chegava a casa com dois enormes sacos de plástico cheios de mercearias. Fora às compras para preparar o jantar para Juda e, quando entrou em casa, contava vê-la aparecer-lhe.
Ruby, a Juda ainda não chegou?
A cabeça de Ruby apareceu ao cimo do corrimão partido das escadas.
Se já cá estivesse, mãe, ela própria to diria.
Não telefonou nem nada? perguntou Edith, seguindo para a cozinha e pousando os sacos pesados.
Não, não telefonou, mas eu acabei de dar uma longa entrevista a uma senhora dos jornais: vão fazer um perfil meu na primeira página.
Edith virou-se para a filha, que aparecera à porta da cozinha em grande pose.
E tu recebeste uma jornalista meio despida, rapariga? Ruby olhou para o tecto com enfado. Edith suspirou e começou a tirar as compras dos sacos.
Se esse é o lençol limpo que eu te dei para a cama da tia Juda, tira-o e vai preparar o quarto do Jesse como te mandei! Vá, toca a subir essas escadas!
Ruby saiu da cozinha a menear-se, enquanto Edith continuava a encher o velho e barulhento frigorífico. Tinha calor, estava exausta, e só de olhar para a cozinha imunda dava-lhe vontade de chorar. Levaria horas a limpar a casa. Juda era toda esquisita, mas, como era ela quem providenciava praticamente todo o sustento daquela casa, tinha de manter as coisas arrumadas e limpas. Mas isso custava-lhe um esforço cada vez maior. A tentar controlar os dois rapazes e sem que Ruby ou Sugar May ajudassem, a casa ia ficando cada vez mais deteriorada.
Ruby entrou na cozinha no preciso momento em que a mãe deixara tombar a cabeça sobre o peito e adormecera. Deu uma palmada na mesa, fazendo com que Edith levantasse imediatamente a cabeça, sobressaltada.
Encontrei isto debaixo da almofada do Jesse, mãe, andou outra vez no gamanço. É a carteira de alguém, carta de condução e...
Edith arrancou a carteira das mãos da filha e abriu-a.
Se tinha dinheiro, agora está vazia comentou Ruby. Edith viu o bilhete de identidade muito manuseado com a morada de Nick Bartello e dirigiu-se pesadamente para a porta que dava para o quintal, abrindo-a com um pontapé.
Jesse estava estendido em cima de uma velha rede meio roída pela traça, a escrever no gesso que lhe envolvia um dos braços com uma caneta de bico de feltro. Edith deu-lhe um safanão que o fez cair desajeitadamente no chão.
Vai imediatamente para dentro da cozinha e leva o inútil do teu irmão contigo!
Porquê? Que foi que eu fiz, mãe? Tenho estado a dormir e tu por pouco não me partes o meu outro braço, caramba!
Edith sacudiu-lhe a carteira roubada em frente do nariz.
Já vos avisei, aos dois, que não queria mais roubos, portanto metam-se dentro daquela cozinha ou ainda chamo a Polícia.
Encontrei-a disse Jesse, recuando.
Ah, encontraste? Nesse caso não te importas que chame a Polícia e diga isso, pois não? Pois não?!
Puxou-lhe as orelhas, fazendo-o correr que nem um danado, a gritar pelo irmão.
Ruby estava furiosa, especada de mãos nas ancas.
Eles metem-se em sarilhos, mãe, depois vem tudo nos jornais e não é justo, pois o meu grande dia está quase a chegar. Eles vão estragar tudo.
Edith voltou-se para a filha.
Ninguém fará nada que prejudique a tua coroação, Ruby Corbello.
Só talvez ela própria disse Fryer, entrando pelo portão das traseiras e detendo-se, de olhos postos em Edith.
Eu nunca fiz nada, Fryer Jones guinchou Ruby e tu não devias falar, pois deixas a Sugar May beber naquele teu bar e ela ainda é uma miúda. Já só falta tirar a roupa como aquelas putas que trabalham para ti.
Mete-me esse cu lá pra dentro! gritou Edith, ordenando-lhe depois que fosse acabar de limpar o quarto onde Juda ficaria.
Ruby, vexadíssima, entrou e atirou violentamente com a porta. Edith sentou-se pesadamente nos degraus defronte desta e ficou a olhar para a carteira gasta.
Não consigo ter mão neles, Fryer, ultimamente fico cansada só de acordar.
Fryer encostou-se ao varão da cerca, olhando para o rosto de Edith. Estendeu a mão para a carteira e abriu-a.
Este sarilho é maior do que algum que já possas ter tido, Edith. Os teus rapazes mataram este tipo.
Não, não, eles não fariam semelhante coisa! declarou ela com firmeza.
Fryer acocorou-se de modo a ficar ao nível dela e rodeou-lhe os ombros com um braço.
Fizeram, sim, Edith, estavam com uma pedrada e depois foram gabar-se para o meu bar. Além disso, o Jesse levava uma arma. Eles andam por aí metidos em todo o tipo de disparates quando te apanham a dormir, mas podemos resolver este problema. Vais-me deixar tratar dele à minha maneira.
Edith disse que sim com a cabeça, Fryer ajudou-a a levantar e entraram os dois na cozinha. Ruby estava a atirar com a louça suja para dentro do lava-louça. Fryer sentou-se na mesa desconjuntada e serviu-se de uma cerveja.
Para começar, queimamos a carteira. Tanto quanto sei, ninguém os viu no acto e a Polícia não sabe que foram eles. Se aparecerem com perguntas, direi que passaram a noite toda no meu bar. Já levaram uma boa surra minha, acho que está na hora de lhes dar a segunda.
Edith concordou com um aceno de cabeça e Fryer tirou o cinto das calças. Ruby pôs a água quente a encher o lava-louça. Os canos gorgolejaram e tiniram, enquanto ela lavava a louça suja sem grandes cuidados, tentando não lascar o verniz das unhas. Edith parecia vergada sob o peso de tudo aquilo, abanando-se com um jornal velho e olhando pela janela.
Vêm a entrar pelo portão agora anunciou em voz seca. Fryer brincou com o gargalo da garrafa de cerveja.
Anda por aí uma detective a fazer todo o tipo de perguntas. Já cá esteve? Edith sacudiu a cabeça em sinal de negação. Bem, ficam avisados sobre ela, foi contratada pelos Caley para encontrar a tal filha deles. É uma tipa alta, loura, jeitosa, com uma cicatriz na cara.
Ruby deixou cair um prato, que se partiu em cacos no meio do chão. Fryer lançou-lhe um olhar desconfiado.
Ruby, sabes alguma coisa sobre essa mulher, que se chama Lorraine Page?
Ruby agarrou-se ao lava-louça.
Não, nunca a vi.
Edith pegou nos cacos do prato e atirou-os para a pilha de lixo. Nesse momento, os dois rapazes apareceram à entrada.
Então, muito bem, Edith, e tu, Ruby, saiam da cozinha.
Ruby, que se sentia assustada, pôs-se a fazer a cama, escutando a tareia dada aos irmãos, que uivavam como cães. Durou uns bons quinze minutos.
Edith começara a aspirar com uma máquina velha que deitava mais pó do seu saco do que sugava; no entanto, cobria o berreiro dos filhos.
Os rapazes limpavam os olhos à manga da camisa, enquanto Fryer voltava a enfiar o cinto nas presilhas das calças.
Eu fico de boca calada, mas vocês têm de me pagar, a combinação é essa, rapazes. Daqui em diante, trabalham para mim. Limpam o meu bar e obedecem às minhas ordens, caso contrário, levo esta carteira à Polícia. Mostrou-lhes a carteira de Nick Bartello. Primeiro, começam pela vossa própria cozinha, quero-a a brilhar de impecável, com tudo arrumado no seu lugar, ouviram?
Responderam que sim com um aceno de cabeça, fazendo lembrar crianças amuadas.
A partir de agora, vocês os dois trabalham para mim até eu vos dizer que estão livres para procurarem emprego noutro sítio qualquer.
Começaram a levar o lixo para fora, enquanto Fryer abria nova garrafa de cerveja. Queimaria a carteira, mas não diria nada aos rapazes.
Sugar May apareceu com uma embalagem de leite com chocolate, oscilando sobre um par de sapatos de saltos altos prateados. Ao ver os irmãos às voltas com vassouras, esfregonas e baldes, riu-se silenciosamente.
Onde é que está a graça, Sugar May? perguntou Fryer.
A jovem soltou uma risada. Ouvi-os apanhar e guinchar que nem uns porcos. Ah, sim? E onde estiveste tu hoje de manhã? Sugar May encolheu os ombros. Ora, por aí às voltas.
Fryer olhou para os sapatos dela.
Hum, hum, andaste a passear por aí em cima dessas solas de plataforma, foi?
A jovem deu às ancas e esvaziou o pacote, chupando ruidosamente o leite com chocolate, antes de o atirar para o sítio onde os sacos de lixo tinham estado.
Deixa-me dar uma olhada a esses teus sapatos, Sugar May disse Fryer, estendendo as mãos para segurar no pé da rapariga que, equilibrando-se sobre um dos pés, levantou o outro, pousando-o em cima dos joelhos de Fryer. Roubaste estes sapatos, Sugar?
Claro que não, comprei-os.
Onde é que arranjaste dinheiro para comprar sapatos de cabedal desta qualidade?
Foi-me dado por uma jornalista que veio falar com a Ruby, vinte dólares, juro por Deus.
Fryer viu a rapariguita franzina caminhar afectadamente até à porta com os sapatos que faziam com que os seus pés parecessem ridiculamente grandes.
Quando é que essa senhora jornalista cá veio?
Esta manhã. Pergunte à Ruby, não estou a mentir. Fryer acabou de beber a cerveja e apontou para Sugar May com a garrafa.
Vai ajudar a tua mãe a limpar a casa, vão receber visitas, a tua tia Juda vem jantar.
Porque haveria de ajudar se não sujo nada? rebelou-se a jovem ao chegar à porta, fazendo beicinho.
Fryer olhou-a fixamente e depois agitou um dedo na sua direcção.
Porque estou a mandar, e se tu não o fizeres és tão inútil como os teus irmãos. É isso que queres?
Ia a responder-lhe, mas algo nos seus modos fê-la mudar de ideias. Voltou para junto do lava-louça, a fim de terminar o que Ruby começara.
Fryer passou por Edith, que aspirava o corredor.
A Ruby está lá em cima? Edith acenou com a cabeça. Não precisas de te preocupar com aqueles teus dois rapazes; durante uns tempos portar-se-ão bem.
Subiu as escadas lentamente; a certa altura inclinou-se sobre o corrimão e olhou para baixo, observando o corpo avantajado e coberto de suor. Custava a acreditar que aquela mulher fora, tal como sua irmã, Juda Salina, tão bonita como Ruby.
Envelhecer é muito duro, não é, Edith?
Hum, hum, sobretudo quando se tem dois rapazes desempregados. A Ruby não me dá grande trabalho.
Mas tu continuas a trabalhar, não é verdade?
Claro, mas sabes como é, Fryer, metade das pobres almas que aqui vêm não têm onde cair mortas. Estão tão tesas como nós.
Fryer não estava teso, tinha dinheiro, só detestava partilhá-lo; no entanto, vasculhou dentro dos bolsos dos seus jeans velhos e rotos.
Edith, vai buscar umas flores frescas para a Juda e, se quiseres, compra um vestido novo para ti.
Atirou-lhe um rolo grosso de notas, que caiu no soalho do corredor. Edith desligou o aspirador.
És um bom homem, Fryer. Ele continuou a subir as escadas.
Não sou, não, Edith, nunca fui nem nunca serei, mas de explorador também não tenho nada.
Ruby, pouco entusiasmada, ia tirando a tralha de cima do toucador, aproveitando a oportunidade para se olhar ao espelho. Quando Fryer entrou, trancando a porta atrás de si, ficou furiosa.
Não se sente na cama, acabei de a fazer disse-lhe com maus modos.
Fryer instalou-se mesmo no meio da cama, sem desviar nunca os olhos do rosto bonito.
Hoje de manhã recebeste uma visita, Ruby. A mulher disse que era jornalista. Isso é verdade?
Hum, hum. Vai-me pôr nos jornais.
Bem, é provável que saias nos jornais, Ruby, mas não da maneira que imaginas. Deves aparecer numa fotografia grande, mas a seres presa, talvez de mãos algemadas.
Ruby ia a responder-lhe torto, porém conteve-se. Não tinha medo de Fryer Jones como os irmãos; ele não passava de um velho devasso que a apalpava desde miúda.
Então, Ruby, queres contar-me quanto te pagaram para fazer aquela boneca?
Ruby ficou de boca aberta.
Eu nunca fiz nada.
Fryer sorriu, apoiando os cotovelos na almofada branca e limpa.
Fizeste sim, mas prefiro que sejas tu a dizer-me para quem foi, embora eu já saiba.
Se sabe, porque pergunta?
Fryer Jones continuava sentado, mas perdendo já a paciência.
Porque andaste a brincar com o fogo, miúda, e talvez tenhas de pagar por isso. Vais contar-me tudo desde o princípio, Ruby Corbello, ou preferes que to arranque à pancada?
Se encostar um dedo em mim, farei com que se arrependa, Fryer Jones.
Fryer não pôde deixar de se rir. Aquela rapariga ficava tão bonita quando se zangava que só de olhar para ela sentia-se cheio de desejos. Fazia-lhe lembrar Juda, era o mesmo fogo no ventre, o mesmo olhar fantástico de serpente. Desviou o olhar, suspirando, mas, quando a jovem tentou sair do quarto, levantou-se rapidamente da cama. Arrastou-a de volta pelos cabelos, puxando-lhe a cabeça para trás à bruta, ao mesmo tempo que se inclinava sobre ela.
Tens as mãos manchadas de sangue, Ruby.
A rapariga olhou-o no rosto sem medo. Começou a desabotoar a blusinha branca barata, humedecendo os lábios com a língua.
Quer brincar comigo, Fryer?
Fryer agarrou-lhe no pescoço e apertou com força, fazendo-a arquejar.
Não, Ruby, não quero brincar, estou aqui para salvar a tua alma, portanto vais contar aqui ao Fryer o que tens andado a fazer. E se mentires, acabo contigo.
Ruby rolou sobre si mesma, afastando-se, enquanto ele aguardava. Dava a impressão de não se preocupar ou intimidar com as suas ameaças, enrolando e desenrolando uma das madeixas do farto cabelo nos dedos longos e esguios.
A tal Tilda Brown acusou-me de andar a bisbilhotar as suas coisas, quando eu nada mais fiz do que trabalhar que nem uma escrava para ela e a família. Não me respeitava e eu descompu-la, dizendo-lhe que ela tinha a mania de que era importante e poderosa com a pessoa errada. Então disse-me com aquela sua vozinha esganiçada: «Ah, sou? Pois então está despedida, Miss Ruby Corbello.»
Fryer, sentado com a cabeça metida entre as mãos, escutava a voz doce de Ruby subir e descer como música. Sentiu o corpo dela rolar de novo e chegar-se para mais perto dele, parando de retorcer os caracóis para lhe acariciar suavemente as costas. Contou-lhe, quase em tom de chacota, que quando os pais de Tilda Brown tinham tomado o partido da filha, confirmando o seu despedimento, ela ficara furiosa e subira ao quarto da filha dos patrões. Não tivera a intenção de roubar o que quer que fosse, quisera apenas urinar-lhe nas lindas roupas cheias de folhos. A ideia fê-la rir. Fora então que encontrara o diário de Tilda.
Fryer ouviu, atónito, Ruby contar-lhe que lera o diário e percebera logo que se inteirara de algo que valia dinheiro; portanto, falara para Errol, que trabalhava no hotel onde os Caley se encontravam hospedados, e pedira-lhe que marcasse um encontro entre ela e Robert Caley em privado. Suspirou, dizendo que agora já percebera que podia ter pedido muito mais dinheiro, mas na altura achara que duzentos dólares eram um bom preço.
Devia ter pedido milhares. Fui uma parva. Ele pagou-me sem pestanejar e depois disse-me que nunca deveria dizer uma palavra do assunto a ninguém, jamais admitir perante alguém que me encontrara com ele, pois, pelo seu lado, nunca falaria daquilo a quem quer que fosse.
Fryer continuava a sentir os dedos dela nas suas costas, o que o levou a esticar-se para trás, fazendo-a rir.
Continua, Ruby.
A jovem explicou que fora à costureira pedir que lhe bordasse o vestido a fio de ouro, mas esta respondera-lhe que duzentos dólares só davam para a parte da frente do corpete.
Eu queria o vestido todo bordado a ouro, Fryer, queria brilhar como se fosse o Sol.
Afastou-se para longe dele, que se voltou de modo a ficar de frente para ela.
Seja como for, o Errol tinha-me oferecido um bonito ramalhete de flores no Dia dos Namorados; voltei ao hotel para lho agradecer. Estávamos nós no átrio quando a Anna Louíse Caley me chamou. Queria que eu fosse ter com ela ao quarto, disse que era urgente.
Ela ficara ainda cheia de medo de encontrar Robert Caley, pois acabara de lhe entregar o diário de Tilda; por isso, Errol fizera-a passar às escondidas pela entrada do pessoal e ela fora ao quarto de Anna Louise.
Foi um disparate, Fryer. Sabe, pensei que ela vira o diário, sabe-se lá como, e comecei logo a dizer que não tinha nada a ver com ele, tal como prometera a Mister Caley. Mas ela ficou profundamente enraivecida, Fryer. Nunca vira ninguém assim em toda a minha vida. Espumava de raiva e não descansou enquanto eu não lhe contei o que vinha lá escrito.
Fryer tocou suavemente na face de Ruby com as costas da mão descarnada.
Continua, querida, que foi que fizeste depois? Ruby chuchou num dos dedos e sorriu.
Quis que eu fizesse uma boneca vodu, deu-me uma fotografia e um pequeno envelope com um bocado de cabelo, pele e sangue da Tilda. Mas para mim aquilo eram apenas umas coisitas esquisitas.
Fryer sentia o coração a pulsar fortemente, enquanto a voz cantarolante contava agora que depois regressara a casa e se pusera a fazer a boneca. A rapariga riu como uma criança ao relatar-lhe que deitara urina e fezes em cima da boneca antes de a embrulhar num jornal e atá-la com um cordel.
Ela deu-me mais trezentos dólares, Fryer, mas não gastei uma moeda, foi tudo para o meu vestido de noite; agora já tenho a saia toda bordada a ouro.
Como é que lhe fizeste chegar a boneca?
Ruby sorriu, descrevendo como Anna Louise fizera baixar uma espécie de cordão da varanda do seu quarto no hotel, ao qual ela atara a boneca, que depois fora puxada para cima. Ruby fora depois para casa e nunca mais pensara no assunto.
Fryer estava cheio de dores de cabeça quando se levantou da cama. Ao reparar no reflexo de Ruby no espelho do toucador, viu que se apoiara sobre um cotovelo, tinha a mini-saia levantada até acima, a blusa meio desabotoada e as pernas abertas.
Não deves contar o sucedido absolutamente a ninguém, ouviste?
Ruby pôs a cabeça de lado.
Só contei a si, Fryer, não sou estúpida. Mas sabe o que é esquisito no meio disto tudo?
O quê?
Ruby balançou as pernas para fora da cama e baixou a cabeça.
Bem, a Anna Louise estava cheia de ódio, deitava raiva pelos poros. Queria que a Tilda Brown sofresse muito. Quando eu estava a fazer a boneca, peguei num dos alfinetes da minha costureira, olhei para a boneca, fechei os olhos, apalpei-lhe a cabeça com os dedos e enfiei-lhe o alfinete com força. E fui dizendo: «Isto irá fazê-la sofrer muito.» Queria que sofresse por ter sido tão má comigo, por me ter despedido daquela maneira, portanto dei-lhe uma torcidela extra, à minha conta.
Fryer viu a rapariga erguer a cabeça. O cabelo, ao afastar-se do rosto, revelou-lhe os olhos brilhantes e ele teve a impressão de estar a olhar para os olhos de uma serpente perigosa.
Então não é que depois ela se enforcou? sussurrou Ruby, sorridente. Não é curioso?
Fryer entrou na cozinha, onde os rapazes esfregavam o chão e Edith fritava frango numa frigideira. Tudo parecia muito vulgar, muito doméstico e inocente.
Agora vou voltar para o meu bar, Edith. Dá cumprimentos meus à Juda.
Claro que darei, Fryer. A Sugar May foi comprar-lhe um ramo de flores frescas e cheirosas para o quarto.
Boa ideia.
Edith limpou as mãos ao avental.
Vais ao baile connosco, Fryer? Vai ser um acontecimento muito especial e a Ruby ficará de sonho quando a coroarem.
Fryer acenou com a cabeça, certo de que seria verdade, do mesmo modo que o facto de saber o quanto esse sonho custara o incomodava. Sempre se sentira perturbado na companhia das irmãs, nos seus tempos de jovem: eram as suas poções, as suas visões, toda aquela gente a chegar em busca de orientação espiritual, chorando e gemendo, tratando-as como se fossem da realeza, o que, de certo modo, era verdade. Agora Ruby crescera, e ele estava convencido de que, ao contrário do que Edith e Juda acreditavam, ou seja, que os seus poderes morreriam com elas, não seria assim. O legado de Marie Laveau continuaria. A prova estava no andar de cima, no quarto minúsculo e, como sempre acontecera, o facto perturbava-o.
Toma-me conta daquela rapariga, Edith. Talvez seja altura de tu e a Juda se sentarem a conversar com ela, para terem a certeza de que não utiliza mal o dom que Deus lhe deu. Certifiquem-se sem demora.
Edith franziu o sobrolho, sem compreender totalmente a preocupação de Fryer Jones.
A Ruby é apenas uma menina bonita, Fryer... Fryer, porque estás a falar dessa maneira?
Não estou a falar de nenhuma maneira especial, Edith querida, só te peço que estejas atenta àquela miúda. Talvez seja altura de aprender a ter um coração grande como o teu.
Foi-se embora antes de ela ter oportunidade de lhe fazer mais perguntas, de modo que voltou ao frango que estava a fritar, enquanto gotas de transpiração lhe deslizavam pelo rosto papudo. Alguém bateu à porta das traseiras. Pousou a colher de pau com brusquidão e foi ver quem era.
A mulher tinha uma criança de tenra idade nos braços. Olhou para Edith com expressão desesperada.
Por favor, Mistress Corbello, o meu mais novo está muito mal, é uma espécie de febre.
Edith fez entrar a mulher assustada na salinha do altar. Ia a fechar a porta, mas hesitou, acabando por chamar para o andar de cima:
Ruby, querida, vem cá abaixo, se fazes favor. Ruby inclinou-se sobre o corrimão e espreitou.
Estou muito ocupada a tratar do meu cabelo, mãe.
Bem, fazes isso depois. Quero-te aqui em baixo ao pé de mim.
Ruby pestanejou de espanto, pois a mãe nunca lhe pedira para ir à salinha onde recebia os clientes.
Quer que eu vá aí ter consigo? insistiu Ruby, hesitante.
Sim, sim, anda. Temos aqui uma criança doente.
O tom de voz de Edith dava a entender que não aceitaria uma recusa.
Ruby desceu as escadas a abotoar a blusa e a alisar a saia, um pouco assustada. Edith estava sentada à mesa, enquanto a mulher chorava, embalando o bebé doente.
Há quanto tempo não mama do teu peito?
Há dias, Mistress Corbello. Ficou-me sem reacção e vomitou a noite toda. Agora não se mexe. Arranjei-lhe um biberão e tentei alimentá-lo, mas não quis.
Ruby viu a mãe pegar na criança, tirá-la de dentro do cobertor, despindo-a a seguir, enquanto a mãe chorava e se balançava para a frente e para trás na cadeira. Edith fez sinal para que a filha fosse para o seu lado.
Segura bem nele, Ruby, e depois deita-o sobre o cobertor. Edith saiu da sala e foi apressadamente à cozinha. Pôs uma panela de leite ao lume e depois examinou o biberão, cheirando-o. A seguir, esterilizou tanto o recipiente de vidro como a tetina numa panela de água a ferver. Quando Ruby entrou na cozinha com o bebé embrulhado no cobertor, voltou-se para ela.
Mãe, este pequenino está todo ferido na barriga e nas costas.
Eu sei. Temos de falar com ela com calma e ver o que tem a dizer. Aplicaremos umas ervas e uns óleos nas partes magoadas e vamos mantê-lo arejado. Precisarei de um pano limpo e de água fresca.
Ele devia ir a um médico, mãe.
Edith atarefou-se ao fogão, provando o leite.
A mulher não tem dinheiro para um médico e, além disso, está com medo por causa do que fez ao bebé. Se um médico visse isso, prendiam-na, por isso veio ter comigo. Portanto, faz o que te digo, Ruby.
Enquanto Ruby tratava do bebé, Edith conversou calmamente com a mulher chorosa. A criança continuava sem reacção; no entanto, os cremes calmantes começaram a baixar-lhe a temperatura. A mãe acabou por admitir que batera na criança depois de dias sem conseguir dormir. Edith examinou-lhe o peito e disse-lhe que já não tinha leite, que a criança chorara por causa da fome, tornando-se necessário encorajá-la a mamar pelo biberão. Não ralhou nunca com a mulher, tratando-a sempre com brandura e compreensão.
Ruby levou a tetina do biberão à boca do bebé, enquanto a mãe da criança se agarrava à mão de Edith; viu esta dizer à assustada mulher que lhe libertaria a mente para ela poder ligar-se ao seu bebé. As suas mãos enormes massajaram a cabeça e os ombros da mulher até os olhos desta se fecharem. A seguir, trabalhou-lhe a nuca e as costas, numa massagem forte e incisiva. Depois, sorveu água de uma chávena e Ruby viu, de boca aberta, a mãe aspergir o rosto e a cabeça da mulher. Repetiu a mesma operação três vezes, antes de conduzir a mulher até ao catre a um canto da divisão, onde a ajudou a deitar-se. Mal pousou a cabeça na almofada, já tinha adormecido profundamente.
Ruby olhou de novo para a criança. Não proferiu palavra, mas Edith viu-a mergulhar o seu olhar nos olhos da criança com serena intensidade, desaparecido todo e qualquer traço da adolescente trocista que habitualmente era. Os olhos do bebé abriram-se e olhou para Ruby, já com vivacidade, bebendo dos seus olhos. De repente fez biquinho com os lábios e começou a mamar no biberão que Ruby empunhava.
Ruby ergueu os olhos para a mãe, que tomou o pulso à criança. E foi como se a visse pela primeira vez em todos aqueles anos não com excesso de peso e irritável, mas quase magnificente, alguém digno de admiração, o que a fez sentir humildade e vergonha. Não conseguiu impedir que as lágrimas lhe assomassem aos olhos. Edith beijou a filha no alto da cabeça e apanhou-lhe a lágrima que vinha a descer com um dedo. Por um instante, foi um cristal límpido e cristalino.
Eles não buscam lágrimas, Ruby, mas sim o teu amor e um pouco da tua força. A minha já começou a enfraquecer, mas...
Eu sou forte, mãe, sou forte.
Até a voz de Ruby mudara, parecia mais comedida, mais melodiosa.
Edith assentiu com um movimento de cabeça.
Eu sei que és, Ruby. Purifica o teu coração porque talvez sejas mais forte do que imaginas.
Lorraine manteve-se silenciosa durante todo o caminho até casa de Elizabeth Caley. Francois ainda tentou meter conversa, mas, ao ver que não obtinha resposta, calou-se, observando-a através do espelho retrovisor. Ela levava uma garrafa dentro de um saco de papel castanho. Vira-a abri-la em duas ocasiões, desistindo logo a seguir. Agia como uma mulher que acabara de receber más notícias. Assim fora; e Lorraine precisara de toda a sua força de vontade para não ir ter com Robert Caley de imediato, mas ainda mais para não tomar uma bebida. Precisava de encontrar mais provas da culpa de Robert Caley. Voltara a ser o seu suspeito principal e, desta vez, ela não se deixaria ludibriar pelas suas emoções. Queria apanhá-lo.
Lorraine aguardou no vestíbulo da mansão de Elizabeth Caley. Juda Salina desceu lentamente a escadaria recurva. Estava cansada como nunca lhe acontecera na vida.
Bem, desta vez ela quase conseguiu. Têm estado a esvaziá-la de tudo o que engoliu e agora dorme como uma criança.
Lorraine esperou que Juda chegasse ao último degrau.
Seria uma pena que a sua galinha dos ovos de ouro morresse, não é verdade? observou, sarcástica.
Juda lançou-lhe um olhar severamente reprovador.
Mereço cada centimo que ganhei dela, pode crer, Mistress Page, cada centimo.
Missy levou-lhes chá à sala de estar e depois deixou-as a sós. Juda beberricou o seu chá; parecia verdadeiramente exausta e a maquilhagem espessa escorrera-lhe pelo rosto gordo e redondo.
Nunca imaginei que voltaria a vê-la.
Porque diz isso? quis saber Lorraine.
Nenhuma razão respondeu Juda, sorrindo depois para si mesma. Os poderes estão a diminuir, hoje em dia fico confusa e canso-me muito. Tem alguém próximo cujo nome comece por L?
Não.
Ainda bem. Tive uma premonição sobre alguém, ainda pensei que fosse a senhora.
Lorraine encolheu os ombros.
Bem, como vê, Mistress Salina, estou bem. Sabe onde o Robert Caley se encontra?
Não faço ideia, talvez no seu hotel. Deixei recados, mas ele não chegou a vir aqui, portanto deduzo que já não queira saber.
Da Elizabeth?
Sim, sim. Pensou que o marido viesse, se eu lhe dissesse que ela estava mesmo mal, mas creio que já o fez demasiadas vezes. Juda agarrou-se aos braços da poltrona. Sabe, Mistress Page, talvez custe a acreditar, mas Mistress Caley é uma mulher muito bondosa. Acontece apenas que tem demónios dentro de si. Há vinte anos que tento ajudá-la, mas eles são tão poderosos que ela simplesmente enlouquece e às vezes chega a assustar-me mesmo a mim. Talvez Mistress Caley devesse mostrar-se como de facto é, mas recusa-se a isso, prefere disfarçar; por isso, recorre a tudo o que alivie o seu sofrimento, tudo o que faça parar os demónios. Lorraine olhou fixamente para Juda.
E a senhora contribui para os manter vivos, não é? Eu já me inteirei da vida dela, sei que tem demasiado medo de admitir que lhe corre sangue negro nas veias, mas, mesmo assim, não acredito que o problema seja só esse!
Juda sorriu.
Oh, vejo que andou a falar com o Fryer, só ele sabe. Estou certa, não estou? Esteve a conversar com o Fryer Jones.
Lorraine acenou afirmativamente com a cabeça.
Contou-me que estava a par desse facto, mas não sei se sabia que a Anna Louise não era filha do Robert Caley.
Oh, sabe. Mas, Mistress Page, olhe que, se calhar, metade do que ele lhe disse era apenas para tentar entreligar as coisas. O velho Fryer gosta de saber de tudo, sempre detestou que lhe escapasse algum pormenor.
A senhora exerceu alguma chantagem, no passado ou no presente, sobre Mistress Caley por causa do seu passado?
Juda riu suavemente, fechando os olhos.
Não, Mistress Page, nunca fiz nada disso, jamais desceria tão baixo.
Lorraine compôs uma expressão algo intrigada, pois, se Ruby era capaz de se lembrar de arrancar dinheiro a Robert Caley, tinha a certeza de que Juda ou Edith lho tinham sugerido.
Não acredita em mim?
Não, Mistress Salina, não acredito. Eu vi o seu apartamento e a sua limusina... Não me diga que consegue morar na requintada Doheny Drive apenas com o seu negócio...
Juda olhou para Lorraine.
Ela paga-me, admito-o, e paga bem, mas não da maneira como pensa.
Então como é, Juda?
Juda suspirou e desviou o olhar.
Mistress Caley foi enfeitiçada já faz muito tempo. Como desempenhou o papel de Marie Laveau naquele filme, passou a acreditar e, como crente, precisava de mim. Para ela, fui apenas alguém com quem falar, alguém que conhecia os seus segredos e conseguia apaziguar os seus medos, apenas isso. Ela é uma mulher muito temerosa.
Só isso? A Elizabeth Caley tinha medo de quê? Juda encolheu os ombros gordos, recusando-se a olhar para Lorraine. E quanto à Anna Louise Caley, Juda?
Juda tomou um gole do seu chá.
A única coisa que há a dizer é que tinha uma grande obsessão pelo pai, queria-o apenas para si.
Ele gostava dela em termos sexuais? Juda sorriu e abanou a cabeça.
Não, querida, aquilo era apenas uma paixoneta da rapariga. Ele é um homem muito bonito, com um belo corpo, e a Anna estava a passar por uma crise da sua jovem vida. Mas estava constantemente a vir ter comigo, implorando-me que a ajudasse, que lhe arranjasse pós, ervas e saquinhos de gris-gris para estimular o amor. Eu apenas deixava a criança falar.
Deu-lhe alguma dessas coisas? Juda desviou o olhar.
Preciso de ganhar a vida, mas nunca incentivei a menina. Sempre lhe disse que aquilo não traria nada de bom, que não era natural uma rapariga estar assim tão obcecada com o pai.
Mas ele não era pai dela e a senhora sabia. Chegou a dizer-lho?
Juda sacudiu a cabeça.
Não, minha senhora, a criança não sabia, esse era o grande segredo que todos nós guardávamos. Mistress Page, eu nada podia fazer, além de lhe dizer que não devia ir atrás de uma pretensão impossível, mas ela era um pouco amalucada, sabe. Pedia-me poções, coisas sobre as quais andara a ler, tudo o que o levasse a reagir como um homem perante ela. É preciso não esquecer que a Anna Louise passou muito tempo aqui, em Nova Orleães. Quando era criança, ficava muitas vezes entregue a si mesma em casa durante meses a fio. O pessoal era negro, ela tinha uma mente muito viva, aprendia tudo com facilidade, era uma menina verdadeiramente curiosa. Juda suspirou e fechou os olhos. Eu estava sempre a dizer-lhe que o que ela queria era mau e tudo aquilo só poderia dar mau resultado, mas olhe que a ideia até parecia agradar-lhe. Aquela rapariga possuía uma faceta má. Não gosto nada de falar assim agora, mas às vezes ela ficava com uma expressão malévola e cruel. Era mimada, habituada a ter tudo o que queria, excepto o que mais desejava, que era o próprio pai em cima dela! Uma questão verdadeiramente doentia, sem dúvida.
O que acha que lhe aconteceu?
Juda abriu os olhos e olhou para Lorraine com dureza.
Se eu soubesse, querida, também entraria na corrida para ganhar esse tal milhão de dólares.
Como é que teve conhecimento disso? Juda respirou fundo.
Querida, pouca coisa há, relacionada com a Elizabeth Caley, que eu não saiba. A verdade é que... a única coisa que eu sei é que essa criança está morta, e há muito tempo.
Onze meses?
Sim assentiu Juda. Ela desapareceu há todo esse tempo, eu não a sinto viva, portanto agora já sabe. Mas preciso de ganhar a vida, tenho uma família numerosa para sustentar, e, às vezes, Mistress Caley necessitava de um pouco de esperança para conseguir aguentar-se.
Mesmo sendo mentira? perguntou Lorraine friamente.
Nunca seria eu a dizer-lhe que já não sentia a sua filha viva, pois sabia que recomeçaria imediatamente a tomar aquela droga prejudicial. Tentei apenas mantê-la estável.
Lorraine coçou a cabeça.
Portanto, deixe-me que lhe pergunte mais uma vez: na sua opinião, o que foi que aconteceu a Anna Louise Caley?
Eles só me trouxeram cá já se passara algum tempo sobre o seu desaparecimento, mas nessa altura foi demasiado tarde, não obtive nenhuma resposta.
E que me diz à Ruby?
Juda esboçou um pequeno sorriso rígido e Lorraine percebeu que estava muito tensa.
Bem, a Ruby é a Ruby. É minha sobrinha. Porque me Pergunta sobre ela?
Trabalhou para a família da Tilda Brown.
Hum, hum, pois trabalhou. Na verdade, até fui eu que lhe arranjei esse emprego. A Anna Louise disse-me que a amiga estava a precisar de uma empregada, então telefonei à Edith e a Ruby foi lá a casa. Deve ter sido já há uns três anos. O trabalho escasseia por estes lados, há muito desemprego.
Mas a Tilda Brown veio ter consigo, não veio? Na companhia da Anna Louise?
Juda franziu os lábios, fazendo com que o baton brilhante e grosso lhe escorresse pelas rugas à volta da boca, lembrando fendas em barro vermelho.
Li-lhe o tarot uma vez ou duas, vi-lhe as mãos, mas nada de sério. Eram apenas duas adolescentes, foi inofensivo e pagaram-me cinquenta dólares!
Juda, a crença da Tilda era igual à da Anna Louise? Quero dizer, eram amigas íntimas, podiam ter achado divertido ou interessante. Vieram vê-la na mesma altura?
Juda suspirou.
Uma vez, Miss Tilda Brown marcou uma consulta para si, incentivada, creio, pela Anna Louise. A Tilda mostrou-se, quando muito, assustada, e, quando vi a Anna Louise a seguir, aconselhei-a a não inventar histórias, pois estava a fazer com que a amiga tivesse pesadelos. Compreende, a Tilda também nasceu por aqui, terá sido criada por criados negros, e as crianças escutam coisas que depois distorcem.
Lorraine começara de novo a sentir-se impaciente. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
Que tipo de pesadelos?
Oh, não era capaz de dormir às escuras, tolices. Perguntou se, caso alguém a enfeitiçasse, o que poderia fazer, esse tipo de coisas.
Quem é que andava a enfeitiçá-la?
Não sei. Quando lho perguntei, respondeu-me que tinha lido num livro qualquer, nada mais.
A Anna Louise pediu-lhe que fizesse alguma coisa especial para a amiga, Juda?
Sim, já lhe disse, coisas para o amor.
Não foi antes uma boneca da morte? Uma boneca vodu à imagem da Tilda?
Juda sobressaltou-se e cerrou os punhos.
Não, não, além disso, eu jamais brincaria com uma coisa dessas, Mistress Page. Não participaria nisso, por muito dinheiro que me oferecessem.
A sério? Fosse quanto dinheiro fosse? A Anna Louise era rica, podia oferecer-lhe muito, não é verdade?
Juda, furiosa, levantou-se sobre os pés gordos bem afastados.
Não sou obrigada a ficar aqui sentada a ouvi-la dizer esse tipo de coisas. Deus é testemunha de que eu nunca seria capaz de me servir erradamente dos poderes que tenho, nem por uma criança nem por ninguém. Não brinco com a escuridão porque também teria de entrar nela. Talvez a senhora não possa ou não queira compreender aquilo que sou, mas não é um dom que eu deseje a alguém, é uma vocação. Eu ajudo gente, não brinco com o fogo.
Lorraine mostrou-se incrédula.
Tem a certeza do que está a dizer-me, Juda? É que não a vejo nada mal instalada na vida. E quanto à sua irmã? Ela também goza desses poderes que afirma possuir?
Continue a brincar, querida, nós já perdemos a esperança de vocês, os brancos, alguma vez perceberem. Quando vocês vêm ter connosco, não é para nada de bom, não é para ajudar os outros. Não é para espalharem alegria, curarem ou fazerem bem, mas sim para fazerem mal. Só nessas alturas é que vocês querem acreditar, quando querem algo de nós. Há séculos que é assim.
Lorraine riu suavemente.
Ora, ora, não somos nós que cortamos o pescoço a galinhas e bebemos sangue. Ou seriam os recém-nascidos que costumavam sacrificar nas suas jubilosas cerimónias sob o lema
«ama o teu vizinho»?
Juda voltou a franzir os lábios de enfado, com o rosto todo a brilhar como o seu baton, a sombra azul dos olhos a esborratar-lhe o rímel preto das pestanas postiças.
A senhora não conseguirá enfurecer-me o suficiente para dizer algo que me prejudique, Mistress Page, porque eu não fiz nada de mal.
O quê? Não brinque comigo, a senhora ocultou provas, Juda. Declarou a mim, e à Polícia, que a Anna Louise não a visitava, tão-pouco a sua amiga Tilda Brown. Também anda há anos a fazer chantagem com a Elizabeth Caley. A senhora diz que não, mas não acredito. Neste momento, porém, o que eu quero é saber que raio aconteceu à Anna Louise Caley, porque estou convencida de que foi ela quem fez isto E que depois deu à Tilda.
Lorraine tirou da bolsa a boneca vodu embrulhada na toalha do hotel e entregou-a a Juda. Os opulentos seios em forma de melão da negra ergueram-se quando, ofegante, começou a desembrulhar lentamente a toalha em cima de uma mesinha lateral. Lorraine reparou que a cabeleira postiça preta resvalara ligeiramente, deixando ver o cabelo grisalho curto e encarapinhado. Juda estava encharcada em suor e tinha os caracóis húmidos na nuca e ao longo da testa. Nas costas do seu vestido via-se um V escuro, o tecido estava molhado na zona dos sovacos, os tornozelos mostravam-se inchados e os pés transbordavam-lhe dos sapatos caros apertados. Lorraine viu Juda lançar um olhar à boneca, cheirá-la, tal como Fryer Jones fizera, e depois afastá-la.
Isto não foi feito por um profissional de vodu. Se alguém quisesse conjurar os maus espíritos, faria uma bola e não uma boneca. Isto é trabalho de amador, uma porcaria. O alfinete também é apenas um de costura, não como deve ser. Quem fez isto não sabia o que estava a fazer.
Juda pegou numa ponta da toalha e tapou a boneca.
Não fui eu quem fez isto, Mistress Page, e para ser franca não faço ideia de quem tenha sido. Já estou a ficar velha, tal como a Edith; sentimo-nos muito cansadas com os transes e os rituais. Agora são feitos pelos mais novos, nós duas já estamos velhas e cansadas.
E quanto à Ruby? Ela tem os poderes, como vocês dizem? Juda riu-se.
Eu afirmo que os tenho e, se a senhora se dispusesse a perder um pouco dessa sua arrogância, veria que não minto e que até está um pouco assustada. Leva muito tempo, Mistress Page, mas a senhora está a começar a acreditar.
Não, Mistress Salina, não estou.
Juda abanou a cabeça em ar de dúvida, tirou um lenço de papel do bolso e limpou a zona da boca.
Para mim é igual, mas devia perguntar à minha galinha dos ovos de ouro, como rudemente descreveu Mistress Caley, se eu estou a exercer chantagem sobre ela ou não. Pergunte-lhe, querida.
Talvez o faça.
Juda pousou as mãos nas ancas largas.
Mistress Page, eu não quero voltar para LA, prefiro ficar aqui com os meus parentes. Sou uma velha cansada e rezo para que os poderes que a Edith e eu possamos ter morram connosco, como penso que acontecerá. A pequena Ruby não possui a visão, e... sabe que mais? Sinto-me contente com isso, porque às vezes o sofrimento torna-se insuportável. Quando temos uma pessoa a desfazer-se em lágrimas à nossa mesa, não lhe dizemos o que pressentimos em relação a ela, mas sabemos sempre. O conhecimento é uma atribulação com que nascemos. Aproximou-se de Lorraine e segurou-lhe no queixo com os dedos, olhando-a nos olhos.
A senhora é uma mulher inteligente, Mistress Page, de olho vivo como o pica-pau, e esses seus olhos espertos não deixam escapar nada, mas eu olho para si e consigo ver que neste momento sofre, sofre por um amor que está a destroçá-la. Há muito tempo que não tem amor na sua vida, mas não é no fundo de uma garrafa que o encontrará.
Lorraine corou e Juda riu suavemente.
Estou certa, hein? Sabe o que escapa à minha compreensão? É eu não ser capaz de prever quando é que o meu próprio sobrinho me vai roubar todas as economias. E esta? Portanto, de que me serve ter esta visão extra em relação a todo o desgraçado que vem ter comigo? Porque será que não consigo prever coisas que irão prejudicar-me? A vida não é nada fácil, não é?
Lorraine chegou-se mais para a frente no sofá, não querendo perguntar, mas incapaz de se conter.
Que vê para mim no futuro, Juda? Juda riu brandamente.
Querida... isso custar-lhe-á cinquenta dólares. Lorraine ia a abrir a bolsa, porém Juda pousou-lhe a mão na cabeça.
Não... não faça isso. Tem de continuar em frente, a senhora é quem faz o seu próprio futuro, acredite em mim. Não queira saber o que lhe está reservado. Além disso, neste momento não estou com forças para me meter nisso.
Missy apareceu.
Mistress Salina, a senhora está a chamar por si, diz que tem de ficar cá, não quer que se vá embora.
Juda assentiu e apontou para a porta.
Estou a mantê-la viva, Mistress Page, e, se ela me paga por isso, quem sou eu para não aceitar? Tenho uma sobrinha que meteu na cabeça ser rainha com um vestido rico e uma costureira que pede mais dinheiro do que devia. Portanto, se quer subir e vê-la, faça favor. Eu preciso de me ir lavar, refrescar.
Lorraine ficou a ver Juda dirigir-se para a porta. Naquele momento parecia vergada não apenas pelo peso da sua corpulência mas também por algo mais, uma imensa tristeza. Lorraine lembrou-se então do que Fryer lhe dissera: que, em tempos, ela fora uma beldade.
Lorraine bateu à porta do quarto de Elizabeth.
Juda, és tu?
A voz fazia lembrar a de uma criança assustada, e, quando Lorraine entreabriu a porta, viu que o quarto se encontrava mergulhado numa semiescuridão, com as persianas corridas. Nem mesmo a obscuridade disfarçava o facto de Elizabeth ter o rosto branco como a cal, tão pálido que Lorraine ficou alarmada.
Sou eu, Lorraine Page, Mistress Caley. Sente-se bem?
Vá-se embora. Quero a Juda, preciso da Juda. Elizabeth estava toda encolhida, agarrada a uma almofada, mal se fazendo ouvir. Por favor, chame a Juda, chame-a, preciso dela... Estou doente, muito doente.
Lorraine deu mais alguns passos dentro do quarto obscurecido, enquanto Elizabeth gemia e, a certa altura, se esticou. Tinha os punhos cerrados e começou a emitir sons profundos e guturais, o seu corpo a agitar-se espasmodicamente, como que sob o efeito de um ataque.
Juda, Juda! gritou, rolando os olhos para cima ao ponto de mostrar apenas a zona branca. Lorraine, que não sabia o que fazer, sentia-se assustada, mas nessa altura Juda apareceu atrás de si. Mudara para uma túnica ampla, trazia um turbante na cabeça e os pés descalços.
Estou aqui, querida, acalma-te, a Juda está aqui. Lorraine viu Juda ir à casa de banho molhar um pano em água corrente e depois mergulhá-lo num balde de gelo que estava ao lado da cama.
Quer fazer alguma pergunta a Mistress Caley? Faça favor. Já alguma vez viu alguém assim? Olhe bem, Mistress Page, estes são os demónios que a habitam.
Lorraine olhou para Elizabeth, prostrada sobre a cama. Esta gemeu e atirou os lençóis de um lado para o outro, mas Juda não deu mostras de se impressionar.
Está assim há trinta e cinco anos. Tudo começou naquele seu filme. Eles enfeitiçaram esta pobre criança, fizeram-na acreditar que tinha dentro de si o espírito da serpente, e de vez em quando esta domina-a. Neste momento é o que a faz ficar fora de si. Não é a droga nem a bebida, mas sim os seus medos. Isto é o que o mal pode fazer. É o que faz brincar com os espíritos, Mistress Page. Esta pobre mulher foi amaldiçoada.
Não compreendo sussurrou Lorraine.
Não, os da vossa raça não são capazes. Agora, se não tem nada a perguntar-lhe, deixe-me acalmá-la. É para isto que me pagam e eu faço-o porque ela não pode confiar em mais ninguém.
Lorraine olhou uma vez mais para Elizabeth Caley e saiu. Fechou a porta atrás de si, ainda sem entender completamente o que estava a acontecer. O certo é que não queria continuar a presenciar aquilo; ver alguém tão descontrolado, como que vítima de um ataque, deixava-a de rastos. Quando chegou junto do carro, tirara já uma conclusão: Elizabeth Caley devia sofrer de um tipo qualquer de epilepsia.
Juda sentou-se na beira da cama de Elizabeth Caley e passou-lhe o pano húmido pela testa suada. Nunca cessava de se maravilhar diante da beleza de Elizabeth, beleza que sempre lhe tocara a alma, do mesmo modo que os demónios que habitavam a ex-actriz a deixavam desesperada e exaurida. Todas aquelas maldições terríveis lançadas sobre a cabeça de Elizabeth Seal, então com dezasseis anos, tinham criado uma agonia e um terror que a acompanhavam ao longo de toda a sua vida adulta e jamais desapareceriam. Juda sabia que só lhe restava acalmá-la, impedi-la de se afundar num estado de terror que lhe paralisasse o corpo e a mente. Era o que fazia naquele momento: dissipava-lhe o terror falando-lhe em voz suave, sussurrando-lhe que tudo passaria em breve. Juda sentia o mal, às vezes chegara a passá-lo para o seu próprio corpo, do mesmo modo que adivinhara a tristeza nos olhos de Lorraine Page. Quando lhe olhara para o rosto, vira uma insegurança profunda, o que a levara a sentir compaixão por ela não muita, mas alguma.
Juda murmurou Elizabeth.
Estou aqui, querida, como sempre, perto de ti. Podes estender a mão e agarrar-me, não me irei embora.
Juda sentiu as unhas de Elizabeth perfurarem-lhe a palma da mão ao apertá-la espasmodicamente. O seu corpo continuava a sofrer esticões, porém deixara de vomitar. O corpo erguia-se, arfante, a língua pendia-lhe da boca, a espuma e a saliva escorriam-lhe pelo queixo. Era como se estivesse a libertar algo de dentro de si. De repente, imobilizou-se e a sua mão largou a de Juda. Terminara.
Dez minutos depois, os olhos maravilhosos abriram-se e o medo desaparecera. Juda viu o sorriso doce e inocente de agradecimento.
Todos me deixam menos tu, Juda. Adoro-te Juda, adoro-te.
Juda beijou a face imaculada.
Eu sei. Agora estás bonita e tranquila, acabaram-se os medos, nunca mais ninguém te magoará, Marie. Minha querida Marie Laveau.
Elizabeth fechou os olhos e suspirou.
Fala-me mais dela, de como era forte. Juda sorriu.
Bem, lembras-te do dia em que te conheci? Estavas ao pé daquela serpente e disseste-me: «Juda, não posso deixar que aquela coisa se enrole à volta do meu corpo.» E eu disse: «Ora essa, se a Marie Laveau podia, tu também podes. E mais, vais dançar com ela, apaixonar-te por ela, sentir o seu corpo dentro de ti.» E tu disseste...
«Dança comigo, dentro e fora do inferno.»
Juda começara a embalá-la suavemente nos seus braços.
Exactamente, querida, mostraste que não tinhas medo. Apetece-te dançar agora, torrãozinho de açúcar, ou estás demasiado cansada?
Elizabeth afastou as cobertas e, ajudada por Juda, levantou-se, o chiffon amarfanhado da camisa de dormir mal lhe ocultando o contorno do corpo brilhante de suor.
Quero dançar, Juda.
Já não saberia precisar quantas vezes assistira àquela cena; no entanto, voltou a fingir que era a primeira vez, continuando a sussurrar incitamentos, enquanto Elizabeth cambaleava pelo quarto, fazendo os braços ondular como serpentes, a camisa de dormir diáfana a rodopiar à sua volta. Juda sentiu então vontade de chorar, de chorar pela beleza exótica que Elizabeth fora um dia, que por um instante deixara transparecer o sangue real que lhe corria nas veias, captada no celulóide como a reencarnação da maior rainha do vodu de todos os tempos.
Não fora apenas Juda a jurar ter visto Marie Laveau voltar à vida por breves instantes, mas muitas outras pessoas: quando a grande cena de vodu começara a ganhar vida própria e a jovem Elizabeth Seal dançara até à exaustão total, as câmaras continuaram a filmar e o realizador nada disse. Não terminara aí, tão-pouco quando Juda a ajudara a voltar para o seu atrelado. Não saíra do transe em que mergulhara, e Juda não fora capaz de impedir os homens de entrar e de a encorajar a uma noite de deboche. Mesmo depois de o realizador e o pessoal da filmagem arrumarem o material e partirem, a «dança» prosseguiu até os homens levarem Elizabeth para os pântanos. Juda fora impedida de ir. Só trouxeram Elizabeth de madrugada: fora violada repetidas vezes, tinha o rosto e o vestido cobertos de sangue. O que de terrível sofrera naquela noite deixara nela marcas que, volvidos trinta e cinco anos, ainda a martirizavam e, por vezes, transportavam ao mundo tenebroso da noite fatídica.
Elizabeth Caley acreditava estar amaldiçoada por ter desempenhado o papel de Marie Laveau, e quando lhe fora dada a oportunidade de admitir que tivera esse direito, visto correr-lhe sangue negro nas veias, recusara-a e denunciara publicamente a alegação como uma mentira ofensiva. Ainda hoje temia que o facto fosse provado, mas, como os pais tinham morrido pouco depois do filme O Pântano, não restara ninguém para a trair, somente o sol. Elizabeth Caley não era alérgica ao sol; ele não lhe queimava a pele delicada e nívea apenas revelava a sua herança. Se tal tivesse acontecido nos seus tempos de estrela de cinema em Hollywood, ela teria perdido o seu contrato com o estúdio. O nascimento da filha, Anna Louise, acalmara as más-línguas o cabelo louro e os olhos azuis da criança enterraram o segredo de Elizabeth ainda mais fundo, pois a menina puxara ao pai, Lloyd Dulay. Este, louro e de olhos azuis, fora o homem que Elizabeth amara durante mais de vinte anos; mas, como tudo o mais na sua vida triste, até isso fora obrigada a manter em segredo.
Rosie voltou a pousar o auscultador no descanso e olhou para Rooney.
A criada dos Caley disse que acabou de sair. O detective suspirou.
Bem, se calhar essa tua preocupação excessiva não tem razão de ser, querida.
Não, olha que tem, Bill, tu não viste como ela estava. Não compreendes, ela é uma alcoólica... Prevaricando uma vez, não ficará por aí.
Raios, a Lorraine levantou-se antes de qualquer de nós, talvez seja mais resistente do que imaginas.
Pois é, mas se calhar eu também a conheço melhor do que ela a si mesma, e, se queres saber, é porque eu própria já fui um pouco dependente do álcool. Houve muitas ocasiões em que me imaginei capaz de me controlar, sabes como é, só um copo não fará mal. Mas olha que fez, de modo que estou preocupada.
Gostas muito dela, não gostas? Rosie fitou-o com surpresa.
Claro que gosto. Quero dizer, podemos gritar uma com a outra, mas no fundo ela é a melhor amiga que eu já tive.
Não é bem essa a minha impressão. Tem uma língua viperina. Eu sei, porque já levei com ela em cheio.
É preciso também não esquecer, Bill, que nós dois estamos aqui por causa dela. Tu e eu também iremos ganhar uma data de massa graças a ela. Tu próprio me disseste muitas vezes que a achavas uma das agentes mais competentes... Bem, quando estava sóbria.
Eu sei, Rosie... O que estou a querer dizer é que não é o meu caso. Ela incentiva-me e é capaz de resolver as questões com mais facilidade e rapidez que eu, que ultimamente me tenho sentido cansado, sabes? Não sei se é por já não ter incentivo, o facto é que não sou nenhum ás, nunca fui... Só agora é que me dei verdadeiramente conta disso.
Eras bom e ainda és! Repara na maneira como levaste aquele polícia a abrir-se.
Rooney soltou uma gargalhada graciosa.
Não, Rosie, eu sou da velha guarda, uma espécie em extinção, mas sabes que mais? Cheguei mesmo a ter medo de o admitir perante mim mesmo, mas é a verdade nua e crua: passei a vida toda no meio da escória da humanidade e gostaria de viver o tempo que me resta a respirar ar puro. Tenho pensado muito nesta questão.
Rosie sentiu-se subitamente assustada: estaria ele a querer dizer que desejava a sua nova vida sem ela? O coração saltava-lhe no peito, mas ficou a ouvir Rooney prosseguir a sua linha de raciocínio.
Podes não estar interessada, mas olha que, se conseguirmos mesmo ganhar este bónus enorme, poderemos ter uma boa vida, ir viajar, mesmo até à Europa. Sempre tive vontade de conhecer Viena... aí está outra coisa que nunca admiti a ninguém.
Rosie abraçou-o com força.
Vou contigo aonde quiseres, Viena, China...
China? admirou-se, olhando para o rosto erguido para ele.
Pois é, sempre quis ir até lá, não me perguntes porquê. Gostaria de ir a um sítio exótico, estimulante... Percebes o que quero dizer?
Rooney ficou radiante.
Pois será a China. Mas antes disso não seria melhor arranjarmos uma aliança, percebes, oficializarmos a nossa relação?
Rosie não cabia em si de felicidade e beijou-o apaixonadamente em pleno vestíbulo do hotel, alheia ao grupo de senhoras idosas que passava. Ninguém prestou muita atenção em Nova Orleães havia coisas muito mais interessantes para ver do que um casal de apaixonados de meia-idade a beijar-se.
Lorraine estacionara em frente da casa de Tilda Brown a esvaziar a sua segunda lata de Coca-Cola misturada com vodca e a reflectir sobre a melhor maneira de levar aquela missão por diante: confrontar os pais e exigir-lhes que a recebessem ou ir pela porta dos fundos e falar com os empregados. Pediu a Francois que enveredasse pelo caminho impecavelmente arranjado dos Brown e tentou reunir forças para abrir a porta do carro; porém, sentia-se vazia e esvaída. Robert Caley voltara a ser o suspeito número um, o que lhe doía. A simples lembrança do que Nick Bartello dissera também lhe doía, tal como a sua morte... Enfim, tudo. Não era capaz de sair do carro.
A senhora está bem, Mistress Page?
Não, Francois, não estou. Lembro-me de um homem bom que morreu e de outro que eu imaginava honesto mas não é. Se eu hoje entrar ali dentro terei de obter resultados. Caso contrário, nunca haverá oportunidade para isso.
Francois recostou-se.
Quer um conselho, Mistress Page? Lorraine quase riu.
Porque não?
Bem, o meu conselho é voltar amanhã. Agora vê-se bem que está fraca. Aquilo que porventura precisar de descobrir nesta casa pode esperar.
Lorraine sorriu e acabou por concordar.
Pois é, tem razão. Voltaremos amanhã, Francois, e amanhã não beberei.
O rapaz brindou-a então com aquele seu sorriso onde os buracos alternavam com as coroas de ouro.
Muito bem, Mistress Page.
Juda estava na cozinha, e só o cheiro daquela frigideira de galinha frita a rejuvenescia. A pequena casa estava limpa e arrumada, mais limpa do que alguma vez se lembrava de a ver. Tinham-lhe levado os sacos para um dos quartos, onde iria ficar, e mostrara-se sensibilizada com as lindas flores frescas e perfumadas. Os rapazes, elegantemente vestidos, e Sugar May, de vestido estampado novo, punham a mesa para o jantar.
Edith mudara de roupa e estava verdadeiramente contente por ver Juda, a quem abraçou com carinho, quase esquecendo o que de terrível Raoul lhe fizera. Não foram imediatamente a esse assunto porque, entretanto, a costureira de Ruby chegara para a última prova, o que provocara grande excitação na sala da frente, onde Ruby guinchava, exigindo que ninguém entrasse até o vestido estar pronto.
Edith abriu uma cerveja e passou um copo a deitar espuma por fora a Juda.
Poderás ficar algum tempo?
Não sei, depende. Tenho de estar à disposição de Mistress Caley. Esta noite voltou a piorar, mas aquela mulher tem uma resistência dos diabos. Vejo-a muito mal, muito mal, Edith, mas logo a seguir arrebita por completo.
Juda tomou um gole da sua cerveja. Edith puxou uma cadeira, sentando-se em frente da irmã.
Já sabes que tens sempre um lugar aqui à tua disposição.
Nem eu esperaria outra coisa, Edith. Desde que me lembro que sou eu a manter esta casa!
De repente ouviu-se o toque abafado do telefone escondido dentro da gaveta, e Edith olhou para Juda, confusa.
É o telefone, vou atender. Não faço ideia de quem possa ser, pois só tu é que tens o número. Edith abriu a gaveta e tirou de lá o aparelho, que continuava a tocar. Talvez seja o Fryer, ele tem o número. Pegou cuidadosamente no auscultador. Está? Ouviu-se um ruído de estática. Quem fala, por favor? perguntou nervosamente, sempre receosa de que um dia fosse da central telefónica.
Mãe? Estou num telemóvel. Era a voz de Raoul. Edith teve de se sentar, desatando a suar.
Onde estás, rapaz? Onde estás?
Raoul riu-se e respondeu que estava a ligar do seu carro.
Quero voltar para casa, mãe, mas não estou disposto a levar nenhuma sova nem com um desses teus bruxedos. Sei que procedi mal, mas quero ir a casa ver a minha maninha ser coroada, mãe.
Edith passou o auscultador a Juda.
É o Raoul, fala tu com ele. Eu não quero saber desse rapaz desavergonhado e ladrão. Juda agarrou no auscultador. Ele está a falar do carro num telemóvel explicou Edith.
Ah, eu sei muito bem de quem era o dinheiro que comprou esse telemóvel declarou Juda ficando vermelha de fúria. Daqui fala a Juda, estás a ouvir-me, Raoul Corbello? Põe-me esse cu aqui e traz-me o meu dinheiro! Está contigo, não está?
Está, sim, tia Juda, menos alguns dólares, mas, se me quer fazer mal, não ponho aí os pés. Foi uma maluqueira que me deu, mas prometo devolver tudo o que restou. Só quero estar com a minha família e assistir à coroação da minha irmã.
Andas a drogar-te, rapaz?
Raios, não, tia Juda, estou limpo, já me deixei disso, pelo menos desde que fiz esta maldade tão grande de roubá-la a si, que é sangue do meu sangue.
Juda franziu os lábios.
Não há dúvida de que falas bonito, rapaz, mas podes voltar para casa. Traz-me o meu dinheiro e talvez resolvamos isto amigavelmente, sem tareias, mas juro por Deus que, se desapareceres, mando o diabo atrás de ti.
Em breve estarei aí, tia Juda. Então, até breve.
Juda atirou com o auscultador para cima do descanso. Teria gostado de lhe dizer que ela própria lhe arrancaria o couro de pancada, mas antes disso queria reaver as poupanças de toda a sua vida.
Edith preparou-se para ouvir poucas e boas sobre o seu filho Raoul, mas nesse momento chegou-lhes um berro de Ruby a dizer que já podiam entrar para vê-la. Juda levantou-se e estendeu a mão à irmã para a ajudar.
Ela está diferente, Juda, foi de repente. Verás que não reconheces a menina que andava por aqui em correrias.
Juda acabou de beber a sua cerveja e pousou o copo cuidadosamente.
Tem-se portado bem, Edith?
Edith acenou afirmativamente com a cabeça e deu o braço a Juda.
É muito parecida connosco, Juda.
Juda agarrou-se ao braço da irmã. Falava baixinho, pois não queria que Jesse e Willy escutassem. Estes, que envergavam os seus melhores fatos e faziam lembrar dois meninos de coro, não se atreviam nem mesmo a tirar uma Coca-Cola do frigorífico sem autorização. A tareia dada por Fryer pusera-os na linha, pelo menos durante algum tempo.
Parecida connosco até que ponto, Edith? Edith olhou a irmã nos olhos.
Em todos os aspectos. Eu não achava, mas hoje deu-me uma ajuda e notei algo nela, senti-o.
Edith empurrou a porta do quarto, levando Juda atrás de si. Ao verem Ruby, a emoção foi tão grande que agarraram na mão uma da outra. Até a velha costureira rabugenta, que passava a ferro junto da parede ao fundo, estava à beira das lágrimas, sorrindo de orgulho.
Ruby virou-se lentamente para a mãe e a tia. Só havia uma lâmpada acesa e a sua luz rodeava Ruby com um halo fraco, fazendo com que o vestido tão ricamente bordado a fio de ouro parecesse luzir. O corpete, muito justo, acentuava a cinturinha de vespa da jovem, enquanto o decote, requintadamente enfeitado a toda a volta com grinaldas bordadas, deixava ver a pele castanha macia do peito e do pescoço. O corte, no entanto, era simples, e as longas mangas azuis eram a todo o comprimento do braço e apertadas com uma dezena de botões que iam do punho ao cotovelo. Nas ancas, o tecido alteava, formando uma espécie de anquinhas, como as que se usavam antigamente, criando um efeito só possível numa rapariga com a esbeltez de gazela de Ruby, e a saia quase enchia todo o chão do quarto.
Olhe, mãe, olhe disse Ruby, sorrindo e levantando a orla da saia para mostrar o forro de seda e os saiotes de rede, e por fim o tornozelo delicado e o sapato de salto alto dourado. Agitou as saias e o bordado dançou e refulgiu como os raios de Sol na água. Edith limpou uma lágrima ao canto do olho. Também há um manto exclamou Ruby, fazendo sinal à costureira, que desdobrou uma capa de seda azul, forrada com o mesmo material em dourado, e a prendeu aos ombros de Ruby com dois fechos dourados em forma de concha, enquanto a jovem pegava no cabelo comprido e o enrolava habilmente num coque luzidio.
Toma, rapariga, põe isto antes do toucado sugeriu a costureira, desprendendo as argolas de ouro que trazia penduradas nas orelhas. Experimenta para ver como ficam com o cabelo.
Ruby enfiou as argolas nas orelhas, de olhos modestamente baixos.
Caramba! sussurrou Juda.
Está a seu gosto, tia Juda? perguntou Ruby suavemente, só então erguendo os olhos, da cor da noite, para os da tia; eram olhos que guardavam segredos, que tinham o dom de decifrar pesadelos e sonhos.
Juda sussurrou, olhando para a sobrinha quase com reverência.
Oh, sem dúvida, sem dúvida. Agora estás pronta para ser uma verdadeira rainha, Ruby. Já tens uma luz dentro dos teus olhos, filha, sente-la brilhar? Agora não abuses dela, querida, nunca a utilizes mal, pois é preciosa.
De repente, tudo terminou. A costureira colocou o toucado de plumas altas de avestruz na cabeça de Ruby e esta voltou a ser a jovem rainha do Carnaval, alegre e cheia de pose. Mas Juda não esquecera o que vira e olhou para a irmã não precisaram de trocar uma palavra; ambas sabiam que o dom da visão era precioso, assim como tinham consciência de que ele esgotaria e subjugaria a rapariga. Todavia, quando a escuridão parecesse querer arrastá-la para o esquecimento, elas estariam ali, tal como acontecera com a mãe, avó e bisavó delas.
Lorraine sentou-se à mesa, folheada e barata, que tinha no quarto do seu hotel a actualizar as informações. Rosie e Rooney tinham-lhe deixado um bilhete a dizer que iam jantar fora, referindo o nome e a morada do restaurante, assim como a maneira de lá chegar. Também escreveram o número de uma reunião dos Aa, e Rosie dirigira-lhe umas palavras especiais, sublinhadas, a dizer que se Lorraine tivesse o mínimo de juízo, não faltaria. Apesar de haver um convite subjacente para que fosse ter com eles ao restaurante, Lorraine sentiu-se excluída, e culpada por ter passado o dia todo a beber, embora moderadamente, ao ponto de ter a certeza de que nem mesmo Rosie, que a conhecia tão bem, poderia dar por isso. Escondeu as garrafas que comprara - com tantas camas à escolha, não faltavam colchões debaixo dos quais ocultá-las antes de mandar vir mais garrafas de Coca-Cola, um hambúrguer e batatas fritas.
Terminou os seus apontamentos, certificando-se de que estava tudo organizado e inteligível. Nada devia denunciá-la, ninguém devia ter a mínima suspeita de que voltara a beber. Nem mesmo ela o admitia perante si própria.
Já era tarde, passava da meia-noite, e Fryer Jones balouçava-se na sua cadeira, olhando, meio sorridente, ora para Edith ora para Juda. Às vezes, esquecia-se de com qual das irmãs casara e não estava muito certo de não ter sido com as duas. Dormira inúmeras vezes tanto com uma como com outra, razão pela qual Edith Corbello o deixara, e não sabia quais dos filhos desta eram seus. Tão-pouco sabia bem se chegara a divorciar-se de Juda. Não tinha intenção de acabar com aquela animada sessão de copos que, mais uma vez, voltaram a ser cheios. Beberam então a Marie Laveau, a mais poderosa rainha de vodu, cuja luz continuava a brilhar, agora nos olhos de Ruby Corbello. O vinho foi-se assenhoreando de todos. Juraram, então, com as vozes toldadas, que nunca ninguém destruiria o passado que pertencia ao seu povo. Juda e Edith entrechocaram os copos em mais um brinde qualquer e Fryer levantou-se; para ele, chegava.
Boa noite a todos. Velem por aquela desmiolada da Ruby, e se ela se meter em sarilhos, chamem-me. Vocês, suas bruxas, podem não gostar, mas o certo é que eu desempenho um papel importante nesta família.
Percorreu o carreiro entre as casas pequenas e em mau estado, ansioso, como sempre, por tocar um pouco de música naquela noite. Estava convencido de que tomara todas as medidas para garantir a segurança de Ruby e dos rapazes, quer fossem seus filhos ou não. Dali a pouco teria os lábios naquilo que mais adorava beijar no mundo: o seu trombone.
Lorraine passou os seus apontamentos em revista, verificando informações, anotando nomes e datas num bloco novo, de modo que já passava da meia-noite quando se deitou. Não houvera telefonemas de Robert Caley, mas deixara ordens na recepção para que lhe dissessem que não estava. Deveriam despertá-la às sete da manhã seguinte e uma mensagem enviada a Rooney e Rosie informava-os de que se encontrariam para o pequeno-almoço às sete e meia.
Lorraine estava de tal maneira exausta que adormeceu mal pousou a cabeça na almofada; no entanto, já se encontrava a pé, de duche tomado e vestida, quando o serviço de despertar ligou. Antes de descer à sala de jantar, consultou os apontamentos mais uma vez. Tomara apenas um gole de vodca e depois procedera à rotina habitual, despejando parte da Coca-Cola e acabando de preencher o restante espaço com a bebida alcoólica. Tinha a certeza de que nada nos seus modos poderia denunciá-la.
Rooney e Rosie já estavam sentados à mesa, embora ainda só fossem sete e vinte e cinco.
Bom dia. Obrigada por estarem aqui tão cedo, temos de deitar mãos ao trabalho.
É para isso que cá estamos, prontos para o que der e vier, chefe declarou Rooney, servindo-lhe café.
Lorraine pousou a sua lata de Coca-Cola e abriu o bloco de apontamentos, sem sequer se dar ao trabalho de dizer as trivialidades do costume.
Muito bem, encontraste o tal colar gris-gris do Nick no seu quarto de hotel?
Não, no quarto dele não está replicou Rooney. Lorraine mordeu a ponta da caneta.
Tens a certeza de que o levava quando saiu?
Não, não cheguei a vê-lo sair, mas no dia anterior tinha-o. Na verdade, nunca mais o tirou desde que o Fryer Jones lho deu.
Lorraine tomou nota e depois olhou para o colega.
Quanto ao jornal, já tens a confirmação escrita de que datava de quinze de Fevereiro do ano passado?
Rooney disse que sim com a cabeça e tirou uma fotocópia da página do bolso.
O que significa que a boneca foi dada à Tilda no próprio dia ou no outro a seguir. Isso porque uma pessoa não embrulharia algo com o jornal acabado de receber nessa manhã, mas sim com o da véspera que tivesse por perto, não é? Portanto, sabemos mais ou menos em que data entregaram a boneca à Tilda.
Hum... murmurou Lorraine, beberricando o seu café. Fechou o bloco de apontamentos e pegou na lista, que depois atirou para o lado. A única coisa que lhe apetecia era a lata de Coca-Cola, de modo que pegou de novo nela. Rosie olhou rapidamente para Rooney e depois para a lata. Quando Lorraine começou a delinear os acontecimentos da véspera de maneira desprendida, interrompeu-a.
Acabaste de dizer que a Tilda Brown andava a dormir com o Robert Caley?
Exactamente. Bem, foi o que escreveu no seu diário. Talvez fosse invenção sua, mas, como ele pagou à Ruby pelo seu silêncio, duvido. Devia haver alguma culpa, e isso explica melhor o facto de a Anna Louise ter ficado tão furiosa por vê-lo a beijá-la, talvez já tivesse descoberto tudo. Não sei, o certo é que estava enganada em relação ao ursinho, ela já o tinha há meses, como a Ruby disse, e, seja como for, agora já não interessa. Duvido que esse diário ainda exista.
Rooney examinou a lista de olhos franzidos e depois olhou para Rosie.
Queres tu mandar vir? Nada que engorde demasiado. Rosie concordou e fez sinal à criada de mesa, que tomou nota do seu pedido: mais café e fruta fresca.
Não comes? perguntou Rosie, virando-se para Lorraine quando a empregada se afastou.
Não, não quero nada, só café.
O pé de Lorraine não parava de bater contra a mesa. Indicou pelos dedos o que descobrira sobre Elizabeth Caley e o envolvimento de Juda, intervalando o relato com pequenos goles de café e Coca-Cola.
Aquela boneca foi feita pela Ruby Corbello, pela Juda ou pela Edith. Quem sabe, até, pelo Fryer Jones? O certo é que foi um deles, tenho a certeza. E foi feita para pregar um susto de morte à Tilda. Mas a rapariga não se matou quando lha deram. Portanto, o que a fez esperar tantos meses e porque não a destruiu?
Rooney serviu-se de mais café.
Achas que a Anna Louise lhe deu a boneca? Lorraine respondeu-lhe com brusquidão.
Claro, é evidente. A dúvida está em saber como e quando a recebeu e quando é que a entregou à Tilda.
Rooney coçou a cabeça.
Cá por mim foi na noite em que desapareceu, talvez achasse que estaria de volta ao hotel antes do jantar, mas algo lhe aconteceu ou em casa da Tilda Brown ou quando voltava dela.
Sim, tens razão concordou Lorraine, além disso, tenho pensado vezes sem conta no que disse à Tilda, na tarde em que a interroguei, que a pudesse levar a acabar com a própria vida, ou algo que ela me tivesse dito nessa perspectiva.
A única coisa que lhe referi foi que, se a Anna Louise andava a ter relações com o pai, talvez isso tivesse originado o seu desaparecimento. Depois descobri que quem o fazia não era a Anna Louise, mas sim a Tilda... Por isso, o facto de saber que eu talvez fosse falar com o Caley a deixasse tão receosa de que a verdade viesse à tona que se enforcou. Isso e também o facto de eu estar na posse da fotografia de Anna Louise no Viper Room e de ela ter medo de que também isso constasse, pois antes de se suicidar deixou um bilhete a dizer algo como: «Deus me perdoe...»
O pequeno-almoço chegou num carrinho de rodas e a empregada colocou uma taça enorme de fruta em cima da mesa, assim como outro recipiente de café. Entretanto, o bater nervoso do pé de Lorraine na mesa não parava.
Tu, Bill, vais falar com o paquete do hotel do Caley que se chama Errol; assusta-o um bocado. Ele fez entrar a Ruby Corbello lá dentro e entregou um recado seu, porém não o confessou nem a mim nem à Polícia.
Lorraine acabou de beber o conteúdo da lata e depois deitou açúcar no seu café simples.
Não preferes mel? perguntou Rosie. Basta pedires.
O açúcar serve perfeitamente.
Rosie observava Lorraine com atenção. Talvez se enganasse, mas algo lhe dizia que a amiga andava a beber. Viu-a vasculhar o interior do seu maço de Marlboro na esperança de ainda lá ter ficado algum, mas depois atirou-o para o lado, vazio.
Queres que te arranje outro maço?
Depois respondeu Lorraine, sem deixar de bater com o pé na mesa. Muito bem, por hoje é tudo. Mantém-te bem longe do Caley, Bill. Não me quero aproximar daquele hotel porque ainda não estou com vontade de o encarar! E tu, Rosie, também tens um trabalho. Contactas todas as empresas de táxis e informas-te se dispõem de algum livro de registos onde conste a noite em que a Anna Louise desapareceu.
Rooney concordou, olhando para Rosie.
Sabemos que já foram interrogados, mas não deram nenhuma pista disse ele. Portanto, desta vez fornece-lhes a data, quinze de Fevereiro, a hora, cerca das sete da tarde, e a morada da Tilda. Quem sabe, se lhes disseres que foi encontrada uma bolsa que nunca foi reclamada e que um motorista a entregou nos achados e perdidos, eles se lembrarão. Tal coisa seria de estranhar num sítio como este, mas vê o que consegues fazer, Rosie; por exemplo, dizes que andas à procura do sujeito para lhe entregares uma recompensa, não sei, inventa alguma coisa, mas não menciones a Anna Louise Caley nem algo relacionado com o nosso caso.
Rosie concordou. Gostava quando Bill deixava o velho comandante Rooney vir à tona, apesar de não o ter conhecido quando estava na Polícia. Lorraine folheou os seus apontamentos e Rooney tocou-lhe no cotovelo.
Talvez seja melhor eu ver se a Polícia procurou o colar do Nick no bar do Fryer.
Isso, boa ideia. Em caso negativo, pede-lhes que o façam, ou então leva um deles contigo. O tal tipo a quem pagaste quinhentos dólares talvez possa ajudar e, se for necessário, dá-lhe mais algum. Mas não vás sozinho, Bill, aquela zona é péssima.
Tu foste!
Lorraine assentiu com um movimento de cabeça.
Sim, eu sei, e foi um disparate, mas algo me dizia que aquilo ali não passava de uma cambada de machos chauvinistas e que, portanto, me safaria. Tipos do teu tamanho talvez não tenham a mesma sorte. Ele tem por lá homens que parecem cobras e uns tantos tipos cheios de músculos. Como já te disse, não corras riscos.
Rosie sorriu e levantou-se.
Vou buscar-te cigarros, não demoro nada. Na recepção têm tabaco.
Lorraine ergueu os olhos para ela e sorriu.
Obrigada, Rosie.
Rooney começou a descascar uma maçã.
Então, mais alguma coisa em agenda? Quero dizer, eu sei o que vou fazer, e tu?
Lorraine franziu o sobrolho.
Estamos a mexer-nos prosseguiu Bill, mas... como sabes, ainda nos falta muito para descobrir o paradeiro da Anna Louise Caley, por muitas informações que já tenhamos obtido. Para chegar aonde estamos foi preciso muito tempo e tempo é algo de que não dispomos. Sem esse diário, sem provas de que tenha havido um relacionamento de tipo sexual entre o Caley e a Tilda, será a palavra dele contra a tua. E quando fizerem uma transcrição da investigação não ficará bem, por exemplo, ao perguntarem-te quando é que falaste sobre esse possível motivo sexual, tu responderes: «Oh, quando fui para a cama com o réu.»
Lorraine reprimiu a ira e olhou para o lado.
Às vezes és mesmo bruto, Bill.
Mas sabes que tenho razão. Lorraine concordou.
Vá, Bill, as coisas não estão assim tão mal, e talvez apareça por aí algum motorista de táxi a dar-nos uma alegria.
Rooney deu uma dentada na maçã.
Achas? Bem, se olhares com atenção para esses documentos sobre o caso, todos os motoristas de táxi da zona foram interrogados e mostraram-lhes fotografias da Anna Louise Caley. Nenhum admitiu tê-la transportado nem visto. Foi a primeira parte da investigação de todos os detectives particulares contratados e da Polícia, aqui e em LA. Não descobriram patavina. Queres uma fatia de maçã?
Lorraine sorriu e abriu a boca como uma cria de passarinho num ninho.
Claro, gosto dela sem casca, sempre tem outro sabor, não achas?
Rosie disse na recepção que precisava de ir ao quarto de Lorraine buscar algo, e a rapariga do balcão, como sabia que eram amigas, entregou-lhe imediatamente a chave. Rosie foi rápida, pois sabia em que lugares a amiga costumava esconder garrafas; não demorou muito a descobrir a reserva oculta de Lorraine. Deixou ficar as garrafas no mesmo sítio e saiu.
Aí tens, um pacote de pauzinhos cancerígenos disse, atirando o maço para cima da mesa. Viu que Lorraine pegava no seu bloco de apontamentos e se levantava para partir.
Devíamos conversar um pouco mais sugeriu Rosie calmamente.
Já disse tudo o que tinha a dizer, Rosie, não temos tempo para ficar de bate-papo.
Precisas de ir a uma reunião, Lorraine.
Rooney bateu ao de leve na mão de Rosie.
Talvez seja melhor deixar isso para mais tarde.
Não podemos deixar isso para mais tarde, pois não, Lorraine?
Claro que podemos. Neste momento tenho coisas mais importantes em que pensar, Rosie, e contigo também devia ser assim.
Rosie pegou na lata vazia e cheirou-a, ficando depois a segurar nela.
Talvez consigas tapar os olhos do Bill e, se calhar, até os teus, mas comigo não é assim. Eu sei, Lorraine, é isto... toma, Bill, cheira a lata, o que estava lá dentro foi misturado com vodca. Um dos maiores mitos da história é a crença de que a vodca não deita cheiro... mas cheira, acreditem que cheira.
De que está ela a falar? perguntou Rooney.
Diz-lhe, Lorraine, que quantidade é que tiveste de beber para conseguires descer para o pequeno-almoço? Ainda por cima, estás de estômago vazio.
Não me chateies, Rosie. Rosie amachucou a lata.
Por amor de Deus, Lorraine, não sejas parva, não consegues safar-te, talvez penses que sim, mas não é verdade, não podes.
Que raio se passa? perguntou Rooney.
Diz-lhe, Lorraine, diz-lhe!
Deixa-me em paz ripostou Lorraine com maus modos.
Nada feito, o que está em jogo é demasiado importante. Ela anda a beber, Bill, voltou à bebida.
Rooney recostou-se, espantado.
Oh, merda, só nos faltava esta. Por amor de Deus, Lorraine, perdeste o juízo?
Lorraine tentou desajeitadamente abrir o novo maço de cigarros, recusando-se a olhar para um ou para o outro.
Tem garrafas guardadas no quarto acrescentou Rosie, sem cerimónias.
É verdade? quis saber Bill, com voz triste.
Achas que estou a mentir? Acabei de vir do quarto dela atirou-lhe Rosie secamente, o que fez com que Bill a fitasse com gravidade.
Rosie, faz-me um favor, deixa-nos um pouco sozinhos, está bem? Espera por nós no vestíbulo.
Rosie levantou-se de má vontade.
Muito bem, mas não esperarei muito. Como ela disse, não dispomos de muito tempo.
Rooney acendeu um fósforo e chegou-o ao cigarro de Lorraine, que inalou profundamente.
Estava a fazer-te muita falta, hein? Lorraine deixou o fumo escapar-lhe pelo nariz.
Estava a fazer-me muita falta, Bill, mas garanto-te que controlo a situação. Só preciso disto por algum tempo, depois irei a uma dessas malfadadas reuniões.
És capaz de controlar essa necessidade?
Tentou pegar-lhe na mão, mas Lorraine retraiu-se. Quando falou, fê-lo em voz baixa e enrouquecida.
Por favor, não fales no miúdo que matei, por favor. Só preciso de algo que me ajude a serenar. Senão, vou-me abaixo, sinto-me muito mal por dentro.
Trata-se do Caley?
Lorraine acenou afirmativamente com a cabeça e depois suspirou.
Sim, é por causa dele. Gosto mesmo dele, Bill, e, para ser franca, pensei que talvez tivesse chegado a altura de ter um pouco de amor na minha vida. Depois havia o Nick... uma excelente pessoa. Às vezes, tenho a impressão de que sempre que alguém é simpático comigo, me ama um bocadinho, eu estrago tudo ou ele estraga tudo de qualquer outra maneira, e começo a sentir-me tão só...
Tu sabes lembrou Rooney suavemente que eu e a Rosie te adoramos. Ela preocupa-se de verdade contigo e eu só não quero ver-te de cabeça perdida.
Lorraine sorriu-lhe naquele seu jeito raro e doce.
Prometo que, se me deixares continuar com isto, pelo menos até o tempo que temos para este caso chegar ao fim, eu me manterei estável. Tentarei mesmo não tocar na maldita porcaria. Mais do que isto não posso prometer...
Rooney concordou.
Está bem, mas se te portares mal, aí... Suspirou. Não te autodestruas, Lorraine, porque és demasiado competente, demasiado inteligente e uma detective danada, melhor do que eu alguma vez poderia ser, melhor do que a maioria dos que já conheci.
Obrigada. Agora vai falar com a Rosie, temos muito que fazer.
Rooney inclinou-se e deu-lhe um beijo na face.
Só quero que me prometas que recorres a nós sempre que precisares. Estamos aqui para te ajudar.
Lorraine viu-o afastar-se, envergonhada, mas incapaz de chorar. Lágrimas, já vertera muitas.
Rooney foi até junto de Rosie, que se encontrava no vestíbulo. Lorraine passou por eles apressadamente, sorriu mas não abrandou o passo.
Não te importas de nos dizeres onde poderemos encontrar-te no caso de descobrirmos alguma coisa? perguntou-lhe Rooney com hesitação, e Lorraine voltou-se para trás.
Vou a casa da Tilda Brown e depois voltarei para aqui, não sei quanto tempo demorarei.
As portas ficaram a bater depois de ela passar para se ir enfiar rapidamente no carro. Rosie quis seguir a colega, porém Rooney susteve-a pelo braço.
Deixa-a ir, Rosie, deixa-a ir.
Rosie fitou-o com ar de poucos amigos.
Espero que saibas o que estás a fazer: ela voltou a beber, Bill.
Eu sei retorquiu ele com tristeza, puxando o queixo de Rosie para cima para obrigá-la a olhar para si. Podemos tentar cuidar dela, mas não impedi-la do que quer que seja, ela tem algo dentro de si que nenhum de nós tem.
Ah, pois bem, deixa-me que te diga...
Não retorquiu Bill firmemente, eu é que te vou dizer uma coisa. A Lorraine sente mais remorsos do que nós alguma vez sentiremos, e se precisa de recorrer ao álcool para se aguentar, nós só temos de respeitar essa decisão e cuidar dela o melhor que pudermos... Ainda por cima já não nos resta muito tempo. Ela tem consciência do problema, Rosie, podes crer que tem, e eu confio nela.
Rosie encolheu os ombros.
Está bem, mas se continua assim, Viena e a China não se concretizarão porque ela não será capaz de funcionar.
Rooney empertigou-se.
Mas nós somos, e temos muito que fazer. Portanto, mãos à obra.
Robert Caley estava a ficar aborrecido com o silêncio de Lorraine, pois, pura e simplesmente, não conseguia compreendê-lo. Depois começou a sentir-se incomodado com as razões que a levariam a não lhe telefonar; por isso, tentou de novo falar-lhe. Estava a marcar o número do hotel onde ela se encontrava quando bateram levemente à sua porta. Foi abrir e deparou com o paquete.
Sim? perguntou Caley secamente.
Errol olhou primeiro para o corredor e depois de novo para Caley.
O que queres?
Bem..., posso entrar, senhor? É que andam por aí a fazer-me perguntas e eu não sei muito bem o que responder.
Caley suspirou e abriu mais a porta.
O que se passa?
Errol tirou o seu chapéu de paquete.
Mister Caley, sou amigo da Ruby Corbello, fui eu quem naquela noite, o ano passado, lhe trouxe o bilhete.
Não sei do que estás a falar. Que bilhete, que noite? Errol mostrava-se agitado.
A noite em que o senhor se hospedou aqui o ano passado. A Ruby deu-me um bilhete para si, eu entreguei-lho e depois o senhor foi encontrar-se com ela lá em baixo, ao pé da piscina.
Caley respirou fundo e puxou da carteira.
Não, não me recordo de ter sequer falado contigo ou com Miss Corbello. Na verdade, nem sei de quem se trata. E agora, quanto te devo?
Errol passou a língua pelos lábios e espreitou pela porta semiaberta.
Compreende, quando vinha para o trabalho apareceu-me um tipo a fazer-me perguntas sobre o tal bilhete e eu respondi-lhe que não tinha entregue nenhum, e...
O olhar de Caley parecia de gelo.
E não entregaste mesmo, nem eu recebi o que quer que
fosse naquela noite. Agora tens aqui cem dólares, vais-te embora e nunca mais voltas a incomodar-me, senão, ainda perdes o emprego. E quando o meu casino abrir, vou precisar de empregados com boas recomendações e experiência, percebes?
Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Caley, pouco preocupado, fechou a porta com um pontapé depois de Errol sair. Se alguma vez viesse a haver problemas, seria a sua palavra contra a do rapaz. No entanto, sabia que também precisava de fazer com que Ruby Corbello percebesse que mais valia ficar de boca calada. O diário já não existia, fora imediatamente destruído, mas não gostava de deixar pistas, sobretudo numa altura em que tudo corria tão bem. Jamais relacionara o diário com a sua filha desaparecida. Ela começava, a pouco e pouco, a desvanecer-se da sua mente. Fosse como fosse, não era sua filha de verdade, mas ainda assim fora-lhe útil.
Lloyd Dulay não gostara nada de o ouvir dizer que, se a acusação de que ele mantinha uma relação sexual com Anna Louise não fosse publicamente retractada, o caso iria a tribunal e aí, obviamente, o facto de a rapariga ser filha de Dulay viria a lume. Fora apenas uma ameaça sua, porém Dulay levara-a a sério e perguntara se, em vez de desmentir um mexerico tão estúpido, Caley não preferiria antes que ele se mostrasse aberto a uma total colaboração consigo nas negociações do novo consórcio, o que seria duplamente vantajoso. Por um lado, repudiaria as alegações e provaria que eram, simplesmente, ridículas, pois se um homem da estatura de Lloyd Dulay aceitava entrar num negócio com alguém que era acusado de manter uma relação sexual com a própria filha, era porque isso não correspondia à verdade. Por outro, não seria necessário fazer constar que Anna Louise era, na realidade, filha de Lloyd Dulay. Além disso, Elizabeth encontrava-se com o seu sistema nervoso tão fragilizado que ele não queria submetê-la a um horrível escândalo nos jornais. Dulay fizera vingar a sua pretensão e até nem sequer precisara de fazer muita força.
Caley não recorreu ao seu motorista particular, optou antes por percorrer a pé a pequena distância que separava o hotel do local de paragem do eléctrico, que o levou até mais adiante, onde depois apanhou um táxi até casa de Edith Corbello.
E
Lorraine voltara a casa da família Brown. Conversaram durante cerca de meia hora, o que se revelou uma tarefa fastidiosa e que não conduziu a conclusão nenhuma. Não conseguiam lembrar-se da última vez em que tinham visto Tilda com Anna Louise ou com Robert Caley. Tanto quanto sabiam, a filha nunca tivera o menor problema, razão pela qual fora tão difícil aceitarem a sua morte.
Quer dizer que, durante o tempo em que a Anna Louise esteve desaparecida, o comportamento da Tilda nunca lhes levantou a mínima suspeita? Ou seja, ela nunca mudou? Não se tornou de certo modo melancólica ou retraída?
Mrs. Brown mostrava-se de tal maneira pálida e esvaída que Lorraine sentia que era quase uma crueldade estar a interrogá-la. Chorava constantemente e limpava as lágrimas a um lencinho, que desdobrava para se assoar e voltava a dobrar para limpar os olhos.
Bem, claro que andava muito, muito preocupada. A Anna Louise era a sua melhor amiga e nada a conformava daquele desaparecimento tão repentino. Eram muito chegadas desde crianças, e estou convencida de que o que piorou foi terem estado a discutir no dia anterior, o que impediu que a Tilda pudesse fazer as pazes com a amiga. Isso é o que a perturbava acima de tudo.
Lorraine olhou para Mr. Brown que, sentado muito direito, tinha uma expressão dorida e estranha.
Acha que a Tilda fez o que fez por ainda estar preocupada com a Anna Louise? perguntou Lorraine com voz calma, articulada e, até para si mesma, demasiado conspirativa.
Não fazemos ideia, pensávamos que tinha ultrapassado esse problema, mas pelos vistos não foi assim, e é bem possível, Mistress Page, que a sua visita a tenha feito mergulhar numa depressão. Não sabemos, tal como também desconhecemos o motivo que a levou a vir falar com ela. Fitou Lorraine quase com olhar acusador e começou a ficar agitado, fechando e abrindo as mãos, embora se esforçasse por disfarçá-lo, premindo-as contra as coxas. Interrogaram-nos durante muitas semanas, após o desaparecimento da Anna Louise e ela, além de ter ficado sem a sua melhor amiga, foi a mais sacrificada com perguntas. Que foi que lhe perguntou, Mistress Page? Porque não nos conta se ela ficou perturbada, porque precisamos muito de saber o que levou a nossa única filha a cometer um acto tão terrível. Estamos destroçados.
Lorraine mentiu durante mais uma meia hora, inventando perguntas e respostas inofensivas para a conversa tida com Tilda sobre Anna Louise. Foi tudo tão intenso sob o ponto de vista emocional que Lorraine sentiu que lhe sugavam toda a energia.
Preciso de falar com alguma amiga com que a Tilda se desse mais regularmente, assim como saber que lugares costumava frequentar. É importante que construa um retrato da vossa filha antes da tragédia.
O casal Brown trocou algumas palavras em voz baixa e a seguir, Mrs. Brown inclinou a cabeça e pediu licença para se retirar, saindo da sala.
Mr. Brown suspirou e olhou para a parede de vidro através da qual se avistavam a piscina e o campo de ténis.
Tentámos conformar-nos com o que aconteceu, Mistress Page. Sabemos que a Tilda andava muito perturbada com o desaparecimento da Anna Louise. Corriam histórias sobre rapto e violação, ou até mesmo, Deus queira que não, de que ela poderia ter sido assassinada. Daí que a Tilda tivesse passado os últimos meses muito metida consigo, no entanto, a minha mulher dar-lhe-á mais pormenores.
Agradeço.
O pai de Tilda ficou a olhar fixamente para os sapatos e, a certa altura, acrescentou:
Apesar de tudo, não percebo por que razão tem tanto interesse neste caso. Tanto quanto sei, os Caley contrataram a senhora para dar seguimento à busca da filha, e muito bem, só não compreendo porque gasta tanto tempo à volta da Tilda. Na verdade, sinto-me até muito culpado por se desviar da sua investigação para falar da Tilda.
Lorraine sorriu.
Por favor, Mister Brown, estou convencida de que no fim isso só ajudará. Sabe, como as duas eram muito amigas, quanto mais eu souber sobre a Tilda, mais descobrirei sobre a pobre Anna Louise Caley.
Ah, sim, compreendo, bem...
Lorraine abriu a pasta e tirou a boneca, ainda embrulhada na toalha. O pai de Tilda parecia não estar muito atento, continuando de olhar perdido no que ficava no outro lado do vidro. Lorraine aproximou-se de uma mesa de jantar próxima da janela e desembrulhou a boneca.
Não quis que a sua mulher visse isto, que considero muito perturbador, mas acho que o senhor devia dar uma olhadela.
Mr. Brown aproximou-se da mesa, mas depois sobressaltou-se.
Santo Deus, onde encontrou isto?
No quarto da Tilda, escondido dentro do saco de uma raquete de ténis.
O pai de Tilda tinha as mãos a tremer quando as estendeu, não para tocar na boneca, mas sim para se segurar à borda da mesa,
Estava no quarto da minha filha? perguntou, horrorizado.
Exactamente. Como pode ver, tem a fotografia da sua filha no sítio da cara, e...
Mr. Brown desferiu um soco no tampo da mesa.
Deve ter sido um dos empregados, mas qual? Deus Todo-Poderoso, porque terá algum deles feito uma coisa destas? É revoltante.
Trata-se de uma boneca vodu, Mister Brown.
Eu sei do que se trata ripostou ele secamente.
Portanto, já percebe por que razão estou aqui. Conheço a Ruby Corbello, uma rapariga que trabalhou nesta casa e foi despedida, e suspeito de que tenha sido ela a autora, por despeito, para amedrontar a Tilda.
Mandá-la-ei prender.
Mas não tem provas em como foi ela, Mister Brown. Além disso, o jornal em que isto vinha embrulhado data de quinze de Fevereiro do ano passado, o dia em que a Anna Louise desapareceu, o que quer dizer que a sua filha tinha esta boneca em seu poder há muito tempo.
O pai de Tilda olhava para a boneca e, de repente, começou a soluçar violentamente.
Nesse momento, Mrs. Brown entrou, trazendo uma folha de papel violeta na mão.
Tomei nota de todas as pessoas de que me lembrei. Mr. Brown endireitou-se, tentando controlar-se, porém
não conseguia disfarçar a sua perturbação.
Desculpe, desculpe, por favor, dê-me licença, desculpe. Passou apressadamente pela mulher, enquanto Lorraine cobria logo a boneca e olhava para ele. A mulher tentou tocar-lhe, mas ele saiu imediatamente, fechando a porta.
A mãe de Tilda aproximou-se de Lorraine, que estava junto da janela, e suspirou.
Acho que sei o que o deve ter perturbado: a Tilda e a Anna Louise costumavam jogar ali durante horas a fio quando eram crianças. Devíamos mandar deitar tudo abaixo.
Lorraine olhou na mesma direcção, mas só conseguiu ver o jardineiro a aparar sebes e uma pequena construção branca, do tamanho de uma cabana, perto dos arbustos. Apesar da distância, reparou que a porta estava fechada com um cadeado enorme.
O meu marido mandou fazer aquela casinha de brincar para a Tilda, que nunca deixou que a tirassem dali. Costumava dizer que queria trazer os nossos netos para brincar ali quando se casasse; portanto, vê-la deve ter-lhe trazido essa lembrança à memória. Adorávamos a nossa filha, Mistress Page.
Sim, claro, compreendo.
Mrs. Brown entregou a folha de bloco, impecavelmente dobrada, a Lorraine.
Estas são algumas das amigas que eu sei que a minha filha visitava, assim como o pastor e o grupo com quem ia à igreja. Tem aí o nome do seu médico e o das raparigas com quem costumava praticar equitação; e esta é a lista das pessoas que conhecia na faculdade. Anotei as respectivas moradas e números de telefone, ou aqueles de que me recordo que vinham nos cartões de Natal. A maioria veio ao funeral, excepto os colegas da faculdade.
Obrigada, fico-lhe muito grata.
Ela nunca mais voltou a Los Angeles depois do desaparecimento da Anna Louise, dizia que não era capaz de lá estar sem ela e que preferia ficar aqui, não fosse telefonar-lhe ou contactá-la. Mrs. Brown voltou a puxar do mesmo lenço encharcado. Ia tão bem na faculdade, foi uma pena, mas afirmava que não conseguiria raciocinar ou concentrar-se enquanto não descobrisse o que acontecera à Anna.
Lamento, ela deve ter ficado muito afectada. Mrs. Brown assentiu com a cabeça.
Sim, todos nós ficámos afectados. Agora, bem, nunca mais nada voltará a ser como dantes.
Lorraine sentou-se pesadamente dentro do carro e baixou o vidro da janela.
Jesus Cristo, eles dizem que não sabem por que motivo a filha se enforcou, quando salta à vista que estava a ficar louca dentro daquela casa por causa do desaparecimento da melhor amiga... Lorraine inclinou-se para a frente. Não voltou à faculdade. Passava a maior parte do tempo em casa e andava nervosa e preocupada. Tinha uma horrenda boneca da morte dentro da capa de uma raquete de ténis. Caramba, eles deviam estar mesmo cegos para não verem que a filha precisava de ajuda médica! Para cúmulo, a pobre miúda andara a ser regiamente fornicada pelo pai da melhor amiga. Não admira que tenha atado o nó. Acho que, nas mesmas circunstâncias, eu também o faria.
Francois esperou que Lorraine examinasse a lista das chamadas amizades tão elaboradamente feita por Mrs. Brown. Não fazia ideia do que ela estava a falar, no entanto, abanou a cabeça com ar compreensivo.
Muito bem, Francois, primeiro quero falar com o pastor. Depois teremos de ir às duas primeiras moradas que estão nesta lista.
Entregou a lista de Mrs. Brown ao motorista.
Sim, minha senhora, vamos então até à igreja. O pastor Bellamy é muito boa pessoa. Conhece-o? Não, minha senhora, mas tem fama de pregar bons sermões. Lorraine sorriu. Vocês mentem todos, Francois? Que quer dizer com «todos», Miss Lorraine? Ela riu-se.
Motoristas de táxi, Francois, motoristas de táxi. Pensava que eu queria dizer «todos os negros»?
O rapaz dirigiu-lhe um dos seus sorrisos desdentados que mostravam uma boa porção de gengiva.
Nunca me passaria pela cabeça que uma senhora assim tão simpática pudesse ser capaz de fazer uma observação tão racista. Quem conduz um táxi ouve e vê muita coisa, mas fica de boca calada, Mistress Page.
A não ser que lucre alguma coisa com isso murmurou Lorraine.
A não ser que lucre alguma coisa com isso repetiu Francois, rindo.
Passaram pelos portões da frente e Lorraine foi recapitulando mentalmente a conversa. Tinha a certeza de que o que tanto perturbara Mr. Brown não fora a casa de brincar, mas sim a boneca pestilenta que lhe mostrara. Suspirou. Talvez não devesse tê-lo feito; afinal, de nada servira, apenas aumentara mais a sua dor.
Cerca das dez e meia, Rosie concluiu que o montante oferecido era pequeno. A primeira firma de táxis que contactara não parecera minimamente interessada na recompensa por algo deixado num veículo há cerca de onze meses atrás, pois folhear os registos do ano anterior levaria horas. Portanto, repensou a sua abordagem e dessa vez apanhou um táxi até ao Hotel Cavagnal. Perguntou se dividiam o território, se percorriam as ruas em busca de clientes ou se recebiam pedidos pelo telefone, e responderam-lhe que faziam as três coisas, o que pouco ajudou. O que também não ajudava era o facto de a cidade estar a encher a olhos vistos, à medida que os preparativos para o Carnaval aceleravam. Penduravam-se bandeiras e bandeirolas, regavam-se canteiros enormes de flores e não havia montra de loja que não estivesse a ser decorada. Cartazes a anunciar os festejos iminentes eram colados em todos os espaços disponíveis das paredes, e as ruas começavam a encher-se com os primeiros visitantes que chegavam para os cortejos.
Rosie apeou-se junto ao hotel, porém não entrou no pátio fechado. Em vez disso, subiu um quarteirão rua acima. Tanto quanto sabia, Anna Louise não pedira um táxi através do hotel; teria ido até ao cruzamento principal e mandado parar um? Rosie começou a reparar nos diferentes táxis que passavam de um lado para o outro. Alguns chegavam mesmo a abrandar e a perguntar-lhe se queria ir a algum lado. A certa altura, mandou parar um mais insistente, que já passara três vezes por ela.
A senhora parece perdida disse-lhe o motorista delicadamente.
Não, perdida não estou. Ando à procura de um táxi especial. Sou de uma companhia de seguros e, se descobrir esse motorista de táxi, ele habilita-se a... Hesitou, sem saber muito bem a partir de quanto é que seria um bom incentivo. De repente calou-se, recordando-se de que, numa das sessões em que os três haviam feito o ponto da situação, Lorraine dissera que Caley vira a bolsa da filha em cima da cama. Quereria isso dizer que a jovem não levara nenhum dinheiro consigo? Assim sendo, talvez alguém do hotel lhe tivesse dado boleia até ao sítio aonde porventura fora naquela noite.
Rosie despediu-se do persistente motorista de táxi e olhou em volta à procura de uma cabina telefónica, pois precisava de falar com Lorraine.
Ligou para casa dos Brown, mas informaram-na de que Lorraine já saíra. A seguir contactou o hotel, no entanto nem Rooney nem Lorraine tinham aparecido por lá. Voltou ao Cavagnal e ficou algum tempo em frente deste a tentar decidir-se sobre o que fazer e a ver os dois paquetes a levar para fora a bagagem de hóspedes que partiam e para dentro a daqueles que chegavam. Apesar de se tratar de um hotel muito pequeno, tinha grande movimento. Ouviu um dos paquetes, que se debatia com um conjunto de malas Hermes, gritar algo ao colega.
Essas vão para a suite azul do segundo piso, Errol. Rosie aproximou-se calmamente do suado Errol, sem saber
se Rooney já o teria interrogado ou não.
Viva, será que me pode dar uma ajuda? perguntou, sorrindo afavelmente.
Faça favor de dizer, minha senhora ofereceu-se o rapaz, esboçando uma pequena vénia.
Rosie disse que não estava hospedada naquele hotel, mas precisava de falar com ele em particular e recompensaria esse favor. Se não estivesse disponível naquela altura, ela aguardaria.
Errol empurrou o chapeuzinho para cima e olhou em volta.
Bem, qual é o assunto?
Rosie experimentou a abordagem directa.
Anna Louise Caley.
O rapaz levou os braços ao céu e sacudiu a cabeça.
Minha senhora, já me perguntaram tantas vezes por essa rapariga que perdi a conta. Nada sei sobre ela, a sério.
Rosie desviou o olhar, algo que aprendera com Lorraine.
Está bem. É uma pena, pois tenho quinhentos dólares para dar a quem me prestar uma pequena informação.
Que informação? perguntou o rapaz, reflectindo no que Robert Caley lhe dissera, no que este lhe pagara e no que o futuro lhe poderia trazer. Nessa altura, porém, um carro parou e teve de voltar ao trabalho.
Daqui a um quarto de hora faço um intervalo. Que tal vir falar comigo nessa altura?
Robert Caley pediu ao motorista do táxi para parar nas proximidades da casa de Ruby Corbello. Pagou-lhe e disse-lhe que, se ficasse à sua espera, ganharia a dobrar. Depois foi o resto do caminho a pé.
Ora então... é Mister Caley! exclamou Juda ao vê-lo, lamentando estar com uma ressaca tão grande.
Olá, Mistress Salina cumprimentou Robert, disfarçando a surpresa que sentia ao vê-la.
Faça favor de entrar convidou ela com voz arrastada, e Caley olhou da soleira da porta para ver se havia alguém a assistir à cena, o que não acontecia.
Caley sentou-se na cozinha e recusou qualquer bebida, reflectindo se devia, ou não, pedir para falar com Ruby.
A minha irmã e a minha sobrinha, Ruby, saíram para ir visitar um bebé doente. Estou cá sozinha, o que é óptimo pois dá-me a oportunidade de lhe falar muito a sério.
Caley assentiu, curioso em saber até que ponto ela estaria a par dos acontecimentos e se iria tentar chantageá-lo como a sobrinha. Tudo começava a ser de mais, a ficar demasiado pesado. Alargou o colarinho.
Sei que não gosta nem nunca gostou de mim disse Juda, servindo-se de um copo de cerveja sem álcool. Mas agora sou eu que lhe peço ajuda.
Quer que eu a ajude? admirou-se Caley, sorrindo.
Sim, senhor. Acabei de perder a poupança de toda uma vida, roubada por um sobrinho meu, e voltei para aqui com uma mão à frente e outra atrás, tal como quando de cá parti há mais de vinte anos.
«Lá vem ela», pensou Caley, curioso em saber quanto lhe iria ser pedido daquela vez.
Quero ficar aqui, Mister Caley, não pretendo regressar a LA, não sou de lá, esta é que é a minha terra.
Caley olhou para o papel de parede manchado, pensando que aquilo iria custar-lhe uma boa maquia; no entanto, absteve-se de o dar a entender. Mostrou ingenuidade.
Não posso continuar a cuidar da sua mulher, Mister Caley, ela deixa-me esvaída, suga-me toda por dentro, mas, como gosto muito dela, não a quero deixar ao abandono. Sinto remorsos, acho que ela é responsabilidade minha, e isso não me tem dado sossego nenhum. Antigamente pensava que a culpa era de certo modo minha, mas isso já passou.
Está a pedir-me dinheiro, Mistress Salina?
Não, senhor, não quero o seu dinheiro. Quero que arranje outra pessoa para Mistress Caley porque eu estou completamente exausta e desejo ficar aqui a viver com a minha irmã. Pretendo vender o contrato de arrendamento da minha casa em Doheny Drive. Nunca mais voltarei para lá, Mister Caley.
Robert tossiu e passou o dedo pelo colarinho.
Creio que ainda não percebi muito bem o que deseja de mim, Mistress Salina.
Talvez não, mas olhe que devia conhecer melhor as actividades de Miss Elizabeth. Ela tem aquele comportamento porque não o pode evitar.
Tenho a certeza de que pode contrapôs Caley com brusquidão, irritado com Juda. Â certa altura inclinou-se sobre a mesa. A minha mulher droga-se e bebe como se o mundo fosse acabar; tem uma personalidade dependente.
Não, senhor, o que ela tem é pavor dentro de si, que tenta fazer desaparecer. O senhor pode não acreditar e está no seu direito, mas ela precisa de alguém que controle os seus demónios. Se não tiver ajuda, enlouquecerá.
Caley sorriu com ar trocista.
Está, portanto, a dizer que ela neste momento já não está bem?
Juda virou-se para ele.
Estou a dizer que o senhor recusa-se a compreender que a sua mulher precisa de ajuda, não das vossas clínicas mas sim de...
De pessoas como a senhora? Juda aproximou mais o rosto.
E o que é que o senhor pensa que eu sou, Mister Robert Caley?
Caley em vez de recuar, inclinou-se mais para a frente.
Só sei que a senhora chantageou a minha mulher e a manteve numa espécie de terror.
Engana-se. O que eu sou é obrigada a controlar o terror dela e o que lhe estou a dizer é que não posso continuar a fazê-lo. Estou velha e esgotada. Ela é sua mulher, o senhor depenou-a mais do que me é possível sequer imaginar, mas isso não é problema meu. O meu dever é ajudá-la porque, ao contrário do senhor, Mister Caley, eu adoro-a.
A sério?
Sim, senhor, mas, como já disse, estou demasiado velha; portanto, peço-lhe que volte para junto dela. Arranjarei alguém a quem ela se possa agarrar, como tanto precisa.
Quer dizer, alguém que lhe forneça droga? Juda recostou-se, abanando a cabeça.
Não, senhor, refiro-me a ajuda espiritual, essa foi a única ajuda que alguma vez prestei à sua mulher.
Eu nunca mais voltarei para a minha mulher, Mistress Salina.
Juda fitou-o e sentiu-se gelar dos pés à cabeça.
Então, o que o trouxe cá? Foi para me dizer isso? Robert Caley encolheu os ombros: viera ver Ruby, tudo aquilo estava a irritá-lo e já se sentia ansioso por se retirar. Juda olhou para o rosto bem-parecido, onde viu fraqueza, e sorriu.
O senhor jamais terá a mulher que deseja, Mister Caley. A ganância gelou o seu coração. Acho melhor que se retire, não quero ter mais nada a ver consigo.
Caley ia a levantar-se da cadeira quando Ruby entrou. A jovem lançou-lhe um olhar desafiador e foi ao frigorífico buscar uma cerveja sem álcool para si.
Ora, então não é Mister Robert Caley... disse, abrindo ruidosamente uma gaveta para tirar um abre-latas.
Vocês conhecem-se! exclamou Juda.
Claro que nos conhecemos: este é o papá da Anna Louise, não é verdade?
Juda olhou para Caley e depois para Ruby, que fez saltar a tampa da garrafa e bebeu o seu conteúdo sequiosamente.
Já se esqueceu de que eu trabalhei para a Tilda Brown, tia Juda? Ela era a melhor amiga de Mister Caley. Não é verdade, Mister Caley?
Sim, realmente concordou Robert, olhando fixamente para Ruby, incapaz de imaginar o que estava a acontecer e até que ponto Juda estaria a par da verdade. Da irritação deslizou para o medo.
Mister Caley vai abrir um casino enorme, tia Juda, vai ser um homem muito, muito rico.
Juda observou a sobrinha, depois Caley. Não percebia muito bem o que estava por detrás daquilo; no entanto, sentia algo, além do ascendente que a jovem demonstrava ter sobre ele.
Ruby aproximou-se silenciosamente de Caley, meneando as ancas. Este afastou-se.
Mister Caley é um homem muito sexy e gosta delas novas e fresquinhas, assim da minha idade, não é, Mister Caley?
Robert pôs-se de pé e afastou-se de Ruby o máximo que a pequena cozinha permitia. Juda sentia-lhe o medo e, de repente, agarrou na jovem quando esta ia a passar.
Mister Caley, não se importa de esperar uns minutos no corredor? Vejo que deseja falar com a minha sobrinha.
Caley passou por Juda e foi para o corredor. Juda fechou estrondosamente a porta com um pontapé.
O que é que se passa, Ruby?
Ruby sentou-se na beira da mesa e deleitou-se a relatar o que lera no diário de Tilda Brown sobre Robert Caley. O soco que a atirou ao chão apanhou-a desprevenida.
A sua garrafa de cerveja partiu-se em mil bocadinhos, e ela pôs-se de pé com um salto, aterrorizada, enquanto Juda pegava no pano da louça húmido e começava a açoitá-la com tanta força que lhe fez subir lágrimas aos olhos. A rapariga cobriu a cabeça, guinchando, mas depois vieram os pontapés e as bofetadas. Era como se Juda tivesse enlouquecido, mas a tareia continuou até ser obrigada a sentar-se, extenuada. A respiração saía-lhe aos arquejos.
Tu é que fizeste aquela boneca para a Anna Louise Caley, não foi?
Ruby começou a chorar, cheia de medo da tia.
Não devias ter feito semelhante coisa, Ruby, cometeste um erro muito grande, despertaste o mal.
Ele é que é o mal! Andava a foder a Tilda Brown. Juda desferiu-lhe um pontapé com tal força que Ruby encolheu-se como uma bola apertada. Em seguida, Juda encheu um copo de água fria até à borda. Ruby não reparou se a engoliu, apenas viu a figura enorme inclinar-se sobre si e aspergi-la com um jacto de água. Tentou desviar-se, mas Juda agarrou-a pelos cabelos e depois premiu fortemente a cabeça da rapariga entre as suas mãos.
Tens o mal dentro de ti, rapariga, e eu tenho de te livrar dele.
Caley aguardava de pé, no corredor húmido. Não podia deixar de ouvir os gritos e soluços de Ruby, assim como a estranha voz alta mas profunda de Juda Salina a proferir palavras cujo sentido lhe escapava. A certa altura, Ruby reapareceu, a chorar e com o cabelo a pingar colado à cara.
Por favor, não vá embora, Mister Caley. Ajoelhou-se em frente dele e juntou as mãos. Estou arrependida de lhe ter ido pedir dinheiro, não queria prejudicar ninguém, nunca foi essa a minha intenção. Palavra que nunca mais lhe pedirei nada. Por favor, nunca conte a ninguém o que eu fiz, assim como eu jamais falarei a ninguém sobre o que estava no diário daquela pobre rapariga.
Caley não sabia o que dizer, nesse momento Juda saiu da cozinha.
Agora, vá-se embora desta casa, Mister Caley. A Ruby nunca mais voltará a incomodá-lo, tem coisas mais importantes a fazer na vida. Não queremos dinheiro seu, não queremos nada de si.
É verdade, Ruby?
Ruby, que continuava de joelhos, acenou com a cabeça e, pouco depois, Caley saiu porta fora. Juda manteve-se atrás dela.
Nunca mais farás nada que cause tanto sofrimento, ouviste, Ruby?
Sim, tia Juda respondeu num sussurro.
Se fizeres o mal, ele tomará conta de ti, compreendes? Tu tens o poder, filha, mas nunca o deves utilizar a favor da escuridão, senão, ela mergulhará na tua alma e tornar-te-á sua escrava. Estás a ouvir?
Ruby acenou com a cabeça e depois viu a tia ajoelhar o corpanzil ao seu lado.
Agora, pede perdão, Ruby. A jovem uniu as mãos.
E se nós ganhássemos muito dinheiro para depois ajudar os outros, tia Juda?
Nós não queremos o dinheiro do demónio porque ele é manhoso e pede sempre algo em troca. Nunca deves ficar em dívida para com o demónio. Conheci uma mulher que lhe devia, não quero que isso jamais aconteça contigo. Tu tens o futuro todo à tua frente, mas precisas de obedecer aos espíritos e cuidar dos teus, assim como fez a rainha Marie.
Ruby apertou ainda mais as mãos e sussurrou à tia que tinha medo.
Todos nós temos, querida, toda a alma vivente tem medo em determinada altura da sua vida, mas tu podes ajudar as pessoas a ultrapassar esse medo. Tens de respeitar esse poder, jamais utilizá-lo de maneira errada. Ama-o e ele far-te-á bem. Mister Caley pagará o que tem a pagar, tu só tens de te preocupar com os teus, Ruby.
Errol, com o seu chapéu de paquete na mão, coçava a cabeça.
Amo a Ruby Corbello, amo-a já desde o liceu, mas ela não parece ligar-me a menor importância. Às vezes passa por mim, quando vai a caminho do bar do Fryer Jones, a dar às ancas e com aquele seu sorriso. Sei que não é para o meu bico, mas isso não impede que o meu coração estremeça como se estivesse a ter uma espécie de ataque. É esse o efeito que ela me provoca: faz o meu coração bater mais depressa do que devia.
Rosie esboçou um sinal de compreensão.
Sei como se sente, eu também estive assim por causa de uma pessoa durante muito tempo. A minha auto-estima era tão baixa que nunca acreditei que ele viesse a amar-me, Errol, mas olhe, há duas noites atrás, pediu-me em casamento.
Está a gozar comigo? Alguém quer casar consigo?
O rapaz esbugalhara os olhos de espanto, completamente alheio ao insulto. Para ele, Rosie era tão diferente da sua linda Ruby Corbello que lhe custava admitir que alguém pudesse querer casar com aquela gorda ali sentada ao seu lado. Rosie desatou a rir.
Garanto-lhe que é verdade.
Talvez, Miss Rosie, mas consigo é diferente, a senhora talvez não saiba o que é o desejo.
Errol, pode crer que todos, gordos, magros, feios ou bonitos, encontram o seu par e para esses ele torna-se a criatura mais bela do mundo disse Rosie com bom humor.
A senhora não compreende, pois não? Sabe, a Ruby Corbello é, de facto, a mulher mais bela que Deus criou. É uma deusa.
Que trabalhou como criada para a família Brown antes de ser despedida por roubar, e agora varre o chão de um cabeleireiro qualquer. Que deusa a sua, Errol. Rosie fez uma pausa. A única coisa que pretendo saber é se ajudou a Ruby a entregar um embrulho a Miss Anna Louise Caley e se sabia o que estava lá dentro. Pode ser completamente sincero comigo porque não tenho nada a ver com a Polícia.
Rooney regressou ao hotel. Não conseguira contactar com o polícia seu conhecido porque este andava na rua em patrulha; no entanto, disseram-lhe para ligar depois de almoço, altura em que já estaria de volta à esquadra. Tão-pouco tivera sorte com o paquete, que se recusara a abrir a boca, pelo que a manhã fora, até ver, bastante aborrecida. Ao passar pela recepção, tinha um recado para si: telefonar para o quarto de Lorraine.
Rosie abriu a porta do quarto de hotel de Lorraine. Trazia um ar complacente, o que levou Rooney a deduzir que descobrira algo, porém, manteve-se calada.
Lorraine saiu da casa de banho com um ar esgotado.
Bem, começo eu. Até agora, tive uma manhã pesada mas pouco produtiva. O pai da Tilda Brown foi-se abaixo ao olhar para a casa de brincar que mandara construir para a filha e onde os seus netos brincariam um dia... e esse foi o ponto alto. O resto foi sempre a descer, mas ainda tenho mais uns quantos amigos «chegados» com quem falar. Espero que sejam mais acessíveis do que o padre local, que disse, e passo a citar: «A Tilda Brown era um exemplo para todas as adolescentes. Era alegre, entusiástica e sempre disposta a ajudar o próximo.»
Que esta criatura exuberante de alegria tenha atado o cinto do seu robe ao varão da cortina para se enforcar é que lhe deve ter escapado. Só houve um rapaz, colega do coro onde a Tilda cantava, chamado Eddie Mellor, que disse que ela mudara muito nos últimos seis meses. Costumava ser muito mais extrovertida e sociável, mas depois passou a quase não falar com as pessoas e pareceu-lhe andar muito mal dos nervos. Rooney tossiu.
Posso dizer uma coisa?
Claro, avança.
Bem, nós fomos contratados para localizar a Anna Louise Caley, mas tenho a impressão de que essa tal Tilda Brown te desviou desse objectivo.
Estás a querer dizer que ando a perder tempo, é, Bill?
Não, só me parece que estamos a desviar-nos do objectivo principal.
Rosie falou-lhes então da ida ao hotel e da conversa tida com Errol.
Foi o que eu também fiz disse Rooney.
Eu sei, contava encontrar-te por lá retorquiu-lhe Rosie, sorridente. A diferença é que obtive melhores resultados que tu, pois eu e o Errol tivemos uma conversa longa e esclarecedora. Admitiu ter entregue um bilhete a Mister Caley; portanto, este mentiu quando disse que fora nadar na piscina, ou talvez não fosse exactamente uma mentira, serviu-se apenas dessa desculpa para disfarçar o facto de, na verdade, se ter ido encontrar com a Ruby Corbello. Contou que esta falou com Mister Caley e, depois de Caley voltar para o seu quarto, a Anna Louise viu o Errol a conversar com a Ruby no pátio. Fez sinal a esta para que subisse, pelo que a Ruby lhe pediu que a fizesse entrar discretamente pelas escadas das traseiras. Isto passou-se, segundo ele, por volta das seis da tarde. A Ruby ficou com a Anna Louise apenas uns dez minutos, depois saiu da mesma maneira como entrou. Também disse que ela estava com uma pressa terrível. Aquilo que ainda desconhecíamos é que o Errol viu novamente a Ruby nessa noite, a noite em que l a Anna Louise desapareceu, deviam ser umas sete e meia; portanto, a rapariga voltou lá ao hotel. Lorraine folheou o bloco de apontamentos mais antigo.
Os Caley disseram que desceram para jantar por volta dessa hora, no restaurante do hotel.
Rosie anuiu e continuou:
O Errol contou então que viu a Ruby a tentar esconder-se no meio das palmeiras ao fundo do pátio. Como está apaixonado por ela, enfurece-se só de pensar que a rapariga anda a encontrar-se com algum dos outros rapazes que trabalham no hotel. Seguiu-a e viu-a falar com a Anna Louise, que estava dobrada sobre o parapeito da varanda do seu quarto. O que significa que, às sete e meia, ela ainda não saíra do hotel.
Sim... e que mais? perguntou Lorraine impacientemente.
Bem, quando o Errol chegou junto da varanda, ou se colocou debaixo dela, já não viu sinais nem de uma nem de outra e, como estava de serviço, teve de voltar imediatamente para a entrada do hotel.
Lorraine suspirou.
É tudo?
É. Agora vejamos, não passa de uma suposição, mas o certo é que a Anna Louise pode ter-se servido das escadas de serviço, tal como a Ruby Corbello, para sair do hotel. Isso significa que não chegou a passar pela recepção nem utilizou o elevador. As tais escadas vão dar às traseiras do hotel, perto do sítio da recolha do lixo, e podia lá ter um carro à sua espera.
Hum... murmurou Lorraine com ar pensativo, aproximando-se da sua secretária e procurando algo em cima do tampo. Preciso de saber quanto tempo é preciso para ir do hotel à casa da Ruby.
Rooney e Rosie entreolharam-se.
Lorraine remexia no meio dos mapas e guias, empurrando-os para o lado, procurando o mapa das ruas que vira no meio dos panfletos com as atracções turísticas.
Se a Ruby saiu daquele hotel às seis e um quarto, para depois voltar às sete e meia, isso deu-lhe cerca de uma hora para fazer a tal boneca, embrulhá-la e vir trazê-la à Anna Louise.
A não ser que a tenha feito no bar do Fryer Jones alvitrou Rooney.
Lorraine encontrou o mapa e examinou atentamente o pequeno impresso. Depois seguiu o percurso com o dedo e pôs-se a tamborilar impacientemente na madeira.
É possível que a tenha feito no bar do Fryer Jones, mas, se assim não foi, até casa dela é um belo estirão, a não ser que...
Alguém a tenha levado lá de carro sugeriu Rosie.
Exactamente, alguém a levou até lá.
Os três foram até aos contentores de lixo que estavam ao pé da entrada de serviço do Hotel Cavagnal. Rosie iria percorrer o caminho até ao bar de Fryer Jones e voltar, Rooney faria o mesmo em relação à casa dos Corbello. Os dois perguntaram a Lorraine ao mesmo tempo:
E tu, o que vais fazer?
Falar com a segurança. Muito bem, verifiquem as horas e avancem
Sorridente, viu-os arrancar como duas crianças em dia de competição desportiva. Reparou no número de pessoas que entrava e saía pela porta de serviço. Depois esgueirou-se por ela e percorreu um corredor estreito. Ao fundo havia uma pequena escada por onde subiu, deparando então com uma porta onde se lia: «PRIVADO PROIBIDA A ENTRADA A ESTRANHOS». Lorraine entreabriu a porta e viu um segurança de guarda no outro lado. O homem nem ouviu a porta abrir e fechar nas suas costas, de modo que Lorraine subiu mais um par de escadas, até chegar ao piso onde ficavam as instalações de Robert Caley. Não encontrara ninguém, não a tinham detido em nenhum ponto e voltou para trás pelo mesmo caminho. Mais uma vez não encontrou ninguém; porém, ao abrir a porta para sair, deparou com um segurança que se voltou para ela e perguntou de cenho franzido:
Faz parte do pessoal?
Não, sou hóspede respondeu Lorraine secamente, dizendo o número da suite onde estivera. O homem fez sinal com a mão para que aguardasse e ligou para a recepção a dizer o seu nome. Quando lhe confirmaram que a suite fora alugada por Mr. Robert Caley em nome de Lorraine Page, pediu desculpa, mas advertiu-a de que aquelas escadas só se destinavam exclusivamente ao pessoal.
Estou muito impressionada com a segurança deste hotel observou Lorraine, sorrindo.
O homem dirigiu-lhe um pequeno aceno de cabeça.
Esta saída está sempre a ser vigiada?
Sim, minha senhora.
Noite e dia?
Sim, minha senhora.
Quantos seguranças trabalham aqui?
Três, minha senhora, por turnos.
Há quanto tempo trabalham cá?
Cinco anos.
Lorraine assentiu e continuou a sorrir.
Portanto, o senhor estava cá quando a Anna Louise Caley desapareceu?
Sim, estava.
Mister Caley contratou-me para localizar a filha, e presumo que o senhor tenha sido interrogado, tal como o resto do pessoal.
Sim, fui.
Lorraine voltou-se para a porta de serviço.
É possível que ela tenha saído do hotel por esta porta, daí que ninguém a visse... Acha possível?
O homem encolheu os ombros, sem querer comprometer-se.
Vocês devem ter de fazer um intervalo... portanto, pode ter acontecido, não acha?
É possível. Como a senhora disse, fazemos intervalos, mas normalmente tentamos cobrir-nos uns aos outros.
Lorraine sorriu e voltou-se para o pequeno pátio.
Os carros costumam estacionar aqui?
Não, é proibido. Se alguém põe o carro aqui, é rebocado.
Mas podem vir até aqui buscar pessoas, não é?
Sim, vir cá buscar alguém não é o mesmo que estacionar, e algumas das mulheres que fazem o turno da noite gostam de sair acompanhadas. O Bairro Francês está cheio de bêbedos.
Desculpe, que foi que disse?
Que as mulheres gostam de se sentir seguras.
Servem-se de alguma firma específica de táxis?
Sim, a Gordon’s Cabs, o pessoal recorre à Gordon’s Cabs.
Lorraine assentiu.
Mas os hóspedes, não?
O segurança sorriu.
Não, minha senhora, esses carros não têm grandes luxos. São só dois irmãos, um deles já cá trabalhou. Quer que lhe dê o número de telefone deles?
Agradeço disse Lorraine afavelmente, passando-lhe dez dólares, que o homem guardou rapidamente. A seguir escreveu um número nas costas de um cartão do hotel.
Obrigada, estou à espera de dois amigos que devem estar mesmo a chegar, uma senhora corpulenta e um senhor de rosto muito corado. Não se importa de lhes pedir que subam à minha suite?
Lorraine caminhou até à rua e depois deu a volta até à parte da frente do hotel. Fora uma sorte Robert Caley ter-lhe alugado aquela suite. Pediu a sua chave na recepção, perguntou se Mr. Caley se encontrava no seu quarto e foi com grande alívio que soube que não. Subiu então ao seu piso no elevador. O quarto estava maravilhosamente fresco. Sentou-se na cama e mandou vir chá e bolinhos, ligando depois para a firma de táxis Gordon’s Cabs. Respondeu-lhe um atendedor de chamadas, mas ela não deixou mensagem, telefonaria mais tarde. O seu olhar era irresistivelmente atraído para a porta de comunicação fechada que dava para o quarto contíguo, ao mesmo tempo que o seu corpo recordava a noite ali passada. Aproximou-se lentamente dela, certa de que, mais cedo ou mais tarde, teria de encarar Caley. Estava fechada à chave, e ela premiu o rosto contra a madeira branca e polida com alívio. No entanto, não era capaz de esquecer ou pôr de lado a proximidade de que tinha desfrutado, pois fora bem real. Nessa noite, sentira-se profundamente amada. Depois foi dominada pelo medo, lembrando-se do que Juda lhe dissera sobre o amor estar afastado dela já há muito tempo, e a tristeza invadiu-a de novo. Essa noite nada tivera a ver com o amor, sim com a luxúria, e tinha a certeza de que Robert Caley se servira dela para se proteger a si mesmo, cobrindo o seu rasto para que a verdade não viesse à tona e se descobrisse que matara a filha. Afastou-se bruscamente da porta. Já o dissera a si mesma antes, mas naquele momento apontou para a porta e repetiu em voz alta:
Hei-de apanhar-te, Robert Caley.
Rosie regressara e estava a examinar a suite quando o chá que Lorraine mandara vir chegou.
Caramba, isto é magnífico, não me importava nada de me mudar para aqui observou Rosie com admiração, olhando desde o dossel da cama ao luxuoso quarto de banho.
Lorraine serviu chá a ambas.
Quanto tempo levaste?
Demorei quarenta e cinco minutos a pé. Se tivesse ido a correr, provavelmente seria menos. A propósito, o bar estava à cunha, música óptima e um grupo no lado de fora a beber cerveja, na maioria jovens. Esta cidade está a aquecer, e não me refiro só ao tempo.
Rooney só apareceu vinte minutos depois e vinha a suar por todos os poros. Sentou-se pesadamente na beira da cama, ignorando por completo a decoração da suite.
Lá fora está um calor dos diabos. Levei dez minutos a arranjar táxi. O Carnaval ainda nem começou e as ruas já estão apinhadas. Puseram palhaços a distribuir panfletos e deparei com duas situações de congestionamento de tráfego, mas diria que, numa noite mais desimpedida, a Ruby não chegaria a levar uma hora a ir e vir.
O que não lhe deixa muito tempo para fazer a boneca observou Lorraine com ar taciturno.
Portanto, fê-la no bar do Fryer Jones sugeriu Rosie, passando uma chávena de chá a Rooney.
Não foi propriamente feita com grande esmero lembrou Rooney.
Lorraine suspirou.
Mais parece que estamos a juntar as peças de um puzzle.
Vocês estão a tentar determinar o tempo que a rapariga levaria a ir até casa da Tilda Brown, não é? perguntou Rooney.
Lorraine assentiu.
O pior é que também ninguém a viu sair de cá, nenhuma companhia de táxis a transportou e ela não levava nenhuma bolsa consigo.
Há uma possibilidade.
Uma possibilidade de quê? quis saber Rosie.
A firma de táxis. Os funcionários do hotel têm dois irmãos que fazem o transporte a altas horas da noite; porém, não constam nas Páginas Amarelas, conforme verifiquei. Penso que são apenas dois tipos que têm dois carros e que, provavelmente, até trabalham sem licença. És capaz de os investigar, Rosie? Quem sabe, encontrares-te com eles pessoalmente? E tu, Bill, quando acabares de beber o teu chá, telefona ao tal polícia e aprofunda a questão do bar do Fryer. Vê se descobres o paradeiro do colar e se a Ruby esteve lá na noite do dia quinze ou não.
Lorraine bocejou, sentia-se cansada e deprimida, como se estivessem a andar aos círculos. O tempo estava a passar, já só dispunham de cinco dias, facto de que todos tinham a noção. Bill e Rosie retiraram-se sem se fazer rogados.
Lorraine não queria adormecer: planeara rememorar tudo mentalmente e tirar conclusões sobre o que, até ali, tinham descoberto. Não ouviu a chave girar na porta de ligação, que se abriu tão silenciosamente que não deu conta de que Robert Caley entrara no quarto.
Afagou-lhe a face com um dedo, fazendo-a acordar sobressaltada.
Viva! Começava a pensar que nunca mais te veria. Lorraine soergueu-se, corando.
Nunca respondeste aos meus telefonemas. Sabes quantas vezes tentei ver-te, falar contigo? Já nem preciso de dizer o meu nome, a recepcionista do teu hotel já me conhece a voz.
Desculpa, tenho tido muito que fazer.
Robert sentou-se numa cadeira, em frente da cama. Envergava uma camisa branca sem colarinho, jeans e os mocassins de que ela gostava.
Queria levar-te até um dos barcos do rio, aliás a uma série de sítios.
Bem, tu sabes que eu estou aqui em trabalho, Robert.
Oh, eu sei, mas, se não me queres ver, porque não mo dizes francamente?
Meteram-se muitas coisas pelo meio. Robert inclinou a cabeça para o lado.
Que tal jantarmos hoje à noite?
Não creio que seja boa ideia retorquiu, evitando fitá-lo.
Não crês que seja boa ideia? Devo presumir que tens outro compromisso? Que queres dizer com isso?
Lorraine mordeu os lábios. Robert observava-a, tentando perceber a sua atitude, e a certa altura inclinou-se para a frente.
Seria agradável celebrar com alguém. Lorraine ergueu a cabeça.
Celebrar o quê?
Robert Caley acenou afirmativamente com a cabeça.
O projecto do casino vai avançar. Um grupo de fora da cidade conseguiu a licença e, como o terreno é meu, fico como sócio. O Dulay passou-se para o outro lado, mas agora tenho-o a ele, mais a esse grupo, a comer na minha mão. Portanto, as massas vão começar a rolar, não tarda.
Como está a Elizabeth? interrompeu-o Lorraine.
Não sei. Já te disse que a deixei. Depois disso, tenho estado sempre aqui à tua espera, no outro lado daquela porta de ligação!
Tens? Lorraine sentou-se na beira da cama e pousou os pés na alcatifa, ficando a olhar para os dedos. Respirou fundo e ergueu lentamente a cabeça, olhando-o nos olhos. O senhor é um excelente mentiroso, Mister Caley, o melhor que já encontrei no meu caminho.
O quê?
Ouviste o que eu disse, és um mentiroso. Robert Caley recostou-se e abriu as mãos.
Em que é que eu menti?
Lorraine levantou-se e foi até ao toucador. Ele ainda estendeu o braço para lhe chegar, mas ela desviou-se. Começou a escovar o cabelo, mantendo o contacto visual através do espelho.
Sobre o que é que mentiste? Bem, podemos começar pela Ruby Corbello.
Robert Caley agitou-se um pouco, mas não afastou os olhos dos de Lorraine.
Mandou-te um recado por intermédio do Errol, o paquete, para te ires encontrar com ela na piscina. Isso terá sido na noite de quinze de Fevereiro do ano passado e, no caso de te teres esquecido, essa também foi a noite em que a tua filha, ou enteada, desapareceu.
Robert desviou o olhar sem demonstrar a menor emoção.
A Ruby tinha um diário com ela, não tinha? O diário da Tilda Brown, e nesse diário de adolescente vinham pormenores explícitos da sua relação sexual contigo. Contigo, Robert Caley! Portanto, aquele beijo no campo de ténis não foi tão inocente como quiseste fazer parecer, pois não?
Robert encolheu os ombros e depois apoiou-se sobre o cotovelo, ocultando parte do rosto na mão; todavia, exibia uma expressão firme e não mostrava a menor hesitação perante o olhar irado de Lorraine.
Que tens a dizer sobre essa questão?
Muito pouco, Lorraine, mas, se queres que entre em pormenores, tudo bem. A Tilda Brown não era menor, já tinha dezoito anos. Na verdade, ela é que tomou a iniciativa e tu sabes bem as condições físicas em que a minha mulher se encontra; isto já para não falar no seu estado mental, de modo que era difícil ignorar uma jovem bonita e disponível que se enfiava no meu quarto à noite e que me provocava uma grande excitação. Portanto, dormi com ela. Ela gostou, eu também, e não há mais nada a dizer.
Também se suicidou lembrou-lhe Lorraine num tom seco.
Eu sei, e lamento profundamente, mas não vejo como o meu relacionamento sexual com ela possa ter tido alguma coisa a ver com isso.
Não vês?
Não, não vejo, mas tudo indica que tu vês. Se tens algo a dizer, não hesites.
Lorraine atirou a escova para cima do toucador.
A tua filha competia com a Tilda Brown pelo teu afecto e tu sabias. O que aconteceu... isso também te dava gozo? Como já referiste, a Anna Louise não era tua filha de verdade... Será que também andavas a dormir com ela?
Não, não andava. Era apenas a Tilda e mais umas quantas senhoras amigas. Queres saber os nomes? Robert Caley pôs-se de pé com um salto e foi então que Lorraine reparou no estado de ira em que se encontrava. Via-se um pequeno músculo a tremer-lhe de lado, no pescoço. Eu menti para proteger a Tilda. Ela já andava muito deprimida com o desaparecimento da Anna Louise e a minha intenção foi defendê-la de mais perguntas desnecessárias por parte da Polícia e dos detectives.
Querias proteger a Tilda ou a ti próprio?
Isso interessa?
Lorraine abriu a pasta com um movimento brusco e tirou de dentro dela a boneca embrulhada na toalha.
Desembrulha isso, dá uma olhada. Estou convencida de que foi a tua amiga Ruby Corbello quem fez isso para oferecer à tua namorada Tilda. Vá, abre, Robert. Como disseste, tinha dezoito anos e sabia o que fazia. Só não disseste há quanto tempo andavas a ter uma relação sexual com ela, que era amiga de infância da tua filha, não era?
Robert Caley desferiu-lhe uma bofetada na face e Lorraine pegou na escova e acertou-lhe no rosto com ela. Robert recuou.
Caramba, essa foi uma esquerda de mestre, mas enfim, tu és uma mulher rija, não é verdade? Tens as cicatrizes para o provar. Uma puta, uma bêbeda... Devia ter-te pedido um teste de sangue antes de te foder, não devia?
Cabrão! exclamou Lorraine.
Sou? E tu, o que és? Ao menos, tenho a certeza de que uma jovem como a Tilda não me pegava nada.
Lorraine atingiu-o violentamente na virilha. Robert arquejou e encolheu-se, dobrando-se sobre si mesmo.
Também sei tomar conta de mim, Mister Caley. Se me queres dizer merdas, levas de volta, algo que talvez uma jovem inocente não fosse capaz de fazer. Agora, olha para a boneca.
Robert Caley ainda gemia de dor, dobrado sobre si, quando Lorraine abriu a toalha e expôs a boneca vodu.
Sabes se a Ruby Corbello fez esta boneca a pedido da tua filha?
Claro que não, é um nojo!
Também tu. Encontrei isto no quarto da Tilda, escondido dentro da capa de uma raquete de ténis.
Robert teve de se sentar na cama.
A Anna Louise não faria algo tão doentio como isso. A mãe dela, talvez. Já agora, se descobrires a autora desse trabalho, mandarei fazer um para a Elizabeth.
Achas graça?
Não, não acho, não sei que raio pensar e agora esta dor horrível ainda me dificulta mais o raciocínio. Por que raio me deste um pontapé neste sítio?
Lorraine voltou a embrulhar a boneca na toalha.
Conseguiste desviar dinheiro do fideicomisso da Anna Louise. Não passas de um ladrão, Robert Caley.
Ele riu-se.
Tretas, hei-de repor tudo até ao último cêntimo. Já se propuseram fazer-mo, mas o Lloyd Dulay nem quis ouvir falar nisso, e olha que o dinheiro é dele, Lorraine. Portanto, quem está a roubar quem?
Tu roubaste a inocência da Tilda Brown. Robert atirou a cabeça para trás e desatou a rir.
Roubei? Então, o que foi isso que me contaste de ela e a Anna Louise irem a um clube qualquer brincar com os tipos? Lorraine, tu andas a ver se consegues encontrar alguma coisa que prove que eu sou... o quê? O que estás a querer provar que eu sou?
Um ladrão. Robert riu-se.
Admito que sou. Certo, e que mais? Oh, claro, um molestador de crianças, claro, essa é a segunda acusação. Mais alguma coisa?
Um assassino, talvez.
Robert Caley pôs-se de pé, ainda mal se aguentando nas pernas.
Quem é que eu assassinei, Lorraine? A Anna Louise? É o que estás a tentar provar?
Lorraine cruzou os braços.
Eu não matei a minha filha, desconheço outra razão que a levasse a desaparecer da face da Terra a não ser afastar-se do estupor da mãe, como eu estou a fazer. Admito que me servi do fideicomisso da Anna Louise, mas tinha todo o direito: dediquei os melhores anos da minha vida à Elizabeth e à sua filha. Cuidei daquela criança desde o dia em que nasceu, e era obrigado a contentar-me com o dinheiro que aquela cabra entendia dar-me, como se fosse um empregado. Fui eu quem lhe arranjou os bens imobiliários que tem, não valiam um chavo quando os encontrei, hoje valorizaram-se em milhões. Fui eu quem lhe aturou as bebedeiras e a droga, quem lhe salvou a vida não uma vez mas Deus sabe quantas, apesar de nunca me mostrar uma réstia de respeito. Tenho sido interrogado vezes sem conta pela Polícia e por pessoas como tu que, afinal de contas, prosseguem esta investigação por dinheiro. Mas tu, tu levas o prémio. Estás tão desesperada pelo milhão de dólares que a louca da minha mulher ofereceu que tentarás tudo, e eu sei porquê. Tens só mais cinco dias para resolver este caso. Chegaste mesmo a dormir comigo para obteres mais informações. Tu, minha querida, és a mais abjecta de todos. Agora, agarra nessa prova fedorenta e põe-te daqui para fora antes que eu te corra a pontapé, grande puta!
Estava de tal maneira irado que arquejava, mas Lorraine, em vez de se encolher, enfrentou-o de sorriso nos lábios.
Só um escroque reconhece outro, Robert.
Atingiu-o em cheio no queixo com o punho direito e Robert recuou, não antes de lhe desferir um murro na barriga que a fez arquejar e cambalear para trás; no entanto, tomou impulso ao embater na parede, pronta a atirar-se de novo a ele. Foi então que Robert lhe acertou num dos olhos com o punho. Depois ficou paralisado, pois não queria prolongar a briga, e esse foi o seu erro. Lorraine projectou o joelho para cima, atingiu-o em cheio e, como se tal não bastasse, socou-o no rosto com tanta força que sentiu os nós da mão abrirem-se contra os dentes dele. Robert deixou-se cair sobre os joelhos, incapaz de soltar um som.
Lorraine pegou na sua pasta, enfiou a boneca dentro dela e fechou-a. Atirou vinte dólares para cima da figura encolhida e gemebunda.
Isso é para pagar o chá.
Sacudiu o punho doía-lhe mais que o soco no olho. Ao abrir a porta, o telefone tocou. Lorraine hesitou, mas acabou por atender na extensão mais próxima da porta.
Rosie estava tão entusiasmada que até ofegava.
Tivemos sorte. O Nicky Gordon apanhou a rapariga em frente da saída do pessoal do hotel; acabara de lá deixar um cliente habitual.
Lorraine interrompeu-a, por um lado porque Robert Caley começara a levantar-se lentamente, por outro, porque estava ansiosa por saber onde é que estava a referida sorte.
E aonde é que ele a levou?
A casa da Tilda Brown.
Rooney colocou o bife cru sobre o olho de Lorraine, que já inchara bastante.
Ei, se achas que estou com mau aspecto, havias de ver o tipo.
Rosie ligava-lhe os dedos, que tinham os nós inchados e a pele fendida.
Lorraine, se calhar rachaste algum osso do dedo disse.
Que ideia, isso não é nada de especial e eu estou bem. Lorraine levantou-se com esforço e mancou até ao espelho. Bastou-lhe uma olhadela para quase desmaiar: tinha o olho direito fechado e já a ficar escuro à volta.
Bem, estou realmente com bom aspecto, nunca pensei que tivesse ficado tão mal. Seja como for, não percamos mais tempo.
Rosie abriu o seu bloco.
Ele diz que nunca comunicou nada nem foi interrogado sobre o assunto porque pensou que a rapariga fazia parte do pessoal e, além disso, levava um lenço na cabeça e óculos escuros. Saiu pela porta de serviço quando ele largou Mimi Lavette, uma cinquentona que trabalha nos quartos e ia para o último turno. Ao dar uma volta em U para voltar para trás, a Anna Louise fez-lhe sinal para parar, deu-lhe a morada e impacientou-se quando ele lhe pediu que repetisse. Estava todo nervoso por falar comigo, mesmo tendo a dita recompensa em vista. Tinhas razão, o tipo não tem licença para conduzir o táxi e, pelo aspecto do veículo, eu diria que nem mesmo paga impostos nem tem seguro.
Lorraine premia o bife contra o olho, quando o telefone tocou. Rosie atendeu, disse à pessoa no outro lado que esperasse e por um momento Lorraine chegou a pensar que se tratasse de Robert Caley, mas era Harris Harper, o polícia. Só podia falar com Rooney na manhã seguinte.
Lorraine propôs que deixassem a visita ao bar de Fryer Jones para o dia seguinte. Regressar a casa de Tilda Brown teria de ser a sua prioridade absoluta.
Rosie ficou no carro, enquanto Rooney e Lorraine subiam as escadas e tocavam à campainha, que ecoou pelo vestíbulo às escuras. Lorraine tentou ver através do vidro, enquanto Rooney voltava a tocar. Uma criada acendeu as luzes da entrada e abriu a porta.
Preciso de falar urgentemente com Mister ou Mistress Brown.
Lamento mas não estão em casa.
Quando é que voltam?
Jantam com uns amigos.
Lorraine, Rooney e o motorista Francois esperaram dentro do carro durante mais de uma hora. Finalmente, viram os faróis de um automóvel aproximarem-se na sua direcção.
Espero que sejam eles.
Viram o carro abrandar lentamente, passar por eles e virar à esquerda, pelo caminho da casa. No banco de trás, Lorraine virou-se imediatamente para Francois.
Vá atrás deles, não quero que nos recusem a entrada. O casal Brown voltou-se, espantado, quando Lorraine saiu do carro.
Mister Brown, desculpe, mas preciso de falar consigo.
Meia hora depois, os Brown continuavam a afirmar categoricamente que, na noite de quinze de Fevereiro, Tilda ficara a ver televisão no seu quarto. Não jantara com eles, mas pedira que lhe levassem um tabuleiro com comida ao quarto às sete e meia da noite. Às dez e meia, ambos tinham subido para lhe dar as boas-noites. A jovem não saíra do quarto, ninguém a visitara nem lhe telefonara. Tudo isso fora já declarado vezes sem conta e Mr. e Mrs. Brown estavam fatigados e já ligeiramente irritados.
Importam-se que eu vá ao quarto dela?
Rooney e Lorraine entraram no quarto da jovem falecida, enquanto Mr. Brown abria as portas que davam para a varanda baixa, rodeada de grades metálicas. Mrs. Brown começara a chorar de novo e o marido mostrava-se irado com a intrusão, porém Lorraine recusou-se a sair. Rooney sentia-se embaraçado perante o nítido desgosto do casal e não sabia o que fazer. Lorraine estava com mau aspecto, pois o olho magoado inchara e continuava fechado.
Talvez seja melhor voltarmos amanhã de manhã sugeriu em voz baixa.
Não. Se aquele motorista de táxi está a falar verdade, a Anna Louise Caley veio cá naquela noite. Lorraine saiu para a varanda e apontou para uma escada de metal estreita que ia dar ao jardim.
Os senhores não têm cão, pois não?
Não, não temos. Lorraine olhou para o jardim.
Portanto, se alguém viesse aqui de noite e atravessasse estes terrenos, não teria dificuldade em se aproximar desta varanda, pois não?
Imagino que não, mas por que motivo quereria fazê-lo?
Para não ser visto, Mister Brown. E se essa pessoa conhecesse a disposição da casa e só precisasse de olhar para esta janela para saber se a Tilda se encontrava aqui, poderia entrar e sair?
Mr. Brown compôs uma expressão severa e voltou-se repentinamente para Lorraine.
O que é que está, exactamente, a insinuar? Que a minha filha recebeu alguém aqui no quarto, alguém que não queria que conhecêssemos?
Não, Mister Brown, esse alguém é que poderia não querer ser visto. Pode deixar-nos sozinhos por dez minutos? Agradecia.
Os Brown deixaram Rooney e Lorraine a sós; no entanto, não esconderam o facto de o fazer contrariados. Disseram que esperariam dez minutos na sala de estar, não mais. Depois de a porta se fechar, Lorraine voltou-se para Rooney.
Que achas?
O detective sentou-se na cama da rapariga falecida.
Ainda não tirei grandes conclusões, excepto a possibilidade de a Anna Louise ter vindo cá e depois ido embora. Passaram-se mais quatro horas até o Robert Caley e a mulher contactarem a Polícia; portanto, ela podia ter-se encontrado com a Tilda Brown, mas depois disso só Deus sabe o que pode ter-lhe acontecido.
Lorraine pegou no urso-polar e atirou-o de novo para cima da cama.
Se ela se foi embora, não apanhou nenhum táxi, pois não existem registos disso e aquele em que veio já se fora embora. Bill, e se ela não chegou a partir?
O quê?
Lorraine saiu para a varanda e ficou a olhar para os jardins. Mesmo à direita, encontrava-se a casa de brincar, o sítio onde as duas raparigas se tinham entretido quando pequenas, agora fechado a cadeado. De repente, Lorraine teve a noção do que acontecera. Os cabelos da sua nuca arrepiaram-se.
Não creio que tenha ido embora.
O quê? repetiu Bill.
Vem comigo lá abaixo, Bill.
Quando Lorraine entrou na sala de estar, encontrou Mr. e Mrs. Brown sentados em silêncio e de má catadura, mas, antes que a convidassem a retirar-se, apontou para a janela com a sua valiosa persiana.
Reparei que a casa de brincar do jardim está fechada a cadeado. Podem dizer-me porquê?
Mrs. Brown olhou para o marido, confusa, mas este absteve-se de responder, ficando apenas ainda mais carrancudo.
Foi o senhor que lhe pôs o cadeado, Mister Brown?
Não, que me lembre. Foste tu, querida?
Não, pensei que tivesses sido tu. Talvez tenha sido a Tilda.
Mr. Brown levantou-se.
Não fui eu, até evito olhar para lá, traz-me lembranças. Tem a certeza de que está fechada a cadeado?
Lorraine encolheu os ombros.
Bem, reparei na corrente quando cá estive de dia, mas talvez me tenha enganado. Tem uma lanterna?
Rooney foi atrás de Lorraine, enquanto Mr. Brown ia na frente, de lanterna acesa.
És capaz de me explicar o que raio estamos a fazer, Lorraine?
Diz-me tu. Aqui na rua, todos dispõem de sistemas de vigilância telecomandados, eles não, deixam os portões abertos e depois colocam um cadeado numa casa de brincar? Não faz sentido.
A luz débil da lanterna confirmou a existência de um cadeado, e dos grandes.
Se calhar o jardineiro anda a guardar o equipamento aqui sugeriu Mr. Brown.
Tem por aí um alicate ou algo com o qual possamos abrir o cadeado?
Porquê? perguntou Mr. Brown. Lorraine hesitou.
Quero ver o que está lá dentro.
Só cerca de dez minutos depois é que conseguiram cortar um dos elos da grossa corrente. Lorraine abriu a porta de tamanho reduzido e baixou-se para entrar.
Agradecia que iluminassem isto aqui dentro, se fazem favor.
No interior só cabia uma mesinha, posta com chávenas e pires de plástico, duas cadeiras a condizer, e uma espécie de cama em miniatura, onde se viam duas bonecas deitadas e tapadas com um cobertor.
Aqui dentro não há nada observou Rooney. Lorraine tirou a lanterna a Mr. Brown e passeou o feixe de luz em volta, pousando-o depois na cobertura de oleado que forrava o chão.
Sentes algum cheiro, Bill Rooney?
Rooney fungou, inclinando-se pela porta diminuta.
Só me cheira a bolor.
Estou cheio de frio queixou-se Mr. Brown, que ficara no lado de fora, ao lado de Rooney.
Lorraine sugeriu-lhe que voltasse para dentro de casa e Mr. Brown, depois de alguma hesitação, afastou-se. Lorraine percorreu lentamente o interior da casinha com a luz, cheirando o ar, até se pôr de joelhos e fazê-lo mais perto do chão.
Tens a certeza de que é bolor?
Rooney suspirou e dobrou-se ainda mais para conseguir entrar. Cheirou.
Sim, é bolor, mofo, bafio ou coisa do género, mas não admira. Quando o Sol brilha, isto aqui dentro deve ficar quente como um forno, é tudo em plástico e deve deitar cheiro com o calor. O que estás a fazer?
Segura na maldita luz, Bill, vou tirar esta cobertura plástica do chão.
Por amor de Deus, Lorraine, porque não voltamos de manhã?
Porque estamos aqui agora, portanto faz o que eu digo.
Rooney apoiou-se nos joelhos e nas mãos, iluminando Lorraine, que começou a puxar pelo oleado. Empurrou a mesinha e as cadeiras em miniatura para o lado e agarrou no oleado, começando a puxá-lo. Sentou-se sobre os calcanhares e pegou num dos pratinhos de plástico.
Que fazes?
Escavo, que te parece? Por amor de Deus, mantém a luz levantada, assim não consigo ver.
Rooney acocorou-se, vendo-a raspar a terra que estava por baixo da cobertura plástica.
Aqui dentro a terra devia estar seca. Estamos em Fevereiro, não é? Portanto, se houvesse alguma coisa enterrada aqui debaixo deste oleado, manter-se-ia seca, e tu dizes que cheira a bolor. Ora, se estivesse um corpo enterrado aqui, tresandaria a mofo, que é muito parecido com o bolor.
Rooney manteve a lanterna ao alto, mas a certa altura varreu o minúsculo espaço do piso, deixando Lorraine às escuras.
O que estás a fazer?
À procura de dejectos de rato, que não deixariam de aparecer se houvesse aqui algum corpo enterrado, o que não acontece, Lorraine. Além disso, há guaxinins nesta zona, e esses teriam dado cabo disto com as suas escavações.
Lorraine continuou a escavar com o prato de plástico, sujando as mãos e as unhas de terra, enquanto Rooney iluminava o sítio com a lanterna, aguardando. O buraco já tinha cerca de meio metro de profundidade e Lorraine não desistia. De repente, o feixe de luz da lanterna começou a empalidecer.
As pilhas estão a acabar disse Rooney. Lorraine começou a escavar a terra com as próprias mãos e, a certa altura, sentou-se.
Está aqui alguma coisa, aproxima-te mais. Por amor de Deus, ainda mais, não consigo ver. E também dava jeito que me ajudasses um pouco.
Rooney gatinhou até junto dela, o feixe de luz já reduzido a um amarelo fraco.
O que é?
Não sei, não sou capaz de ver. Escava tu, eu seguro na lanterna.
Recostou-se para trás e pegou na lanterna, enquanto Rooney começava a escavar com mais força. Serviu-se de uma das chávenas de chá de plástico, atirando a terra para o lado. A terra caiu em cima de Lorraine, que a sacudiu.
Merda! Tens razão, há aqui alguma coisa. Rooney escavou durante mais uns minutos e de repente espreitou para dentro do buraco de olhos franzidos. Uma ponta de saco de plástico preto do lixo ficara à vista. Rooney ergueu a mão, que veio cheia de larvas agarradas ao punho do casaco. Oh, merda, são aos milhões, vermes, malditos vermes brancos... Passa-me a lanterna, não consigo ver nada.
Lorraine entregou-lhe a lanterna e ele fez incidir a pouca luz na abertura que fizera no plástico preto. Ao afastar cuidadosamente um dos lados, o feixe amarelado revelou parte de um crânio com a pele completamente decomposta, mas onde se via ainda uma porção de cabelo louro comprido e o que parecia ser uma fita de cabeça.
Acho que encontrámos a Anna Louise Caley disse Rooney em voz branda.
Também acabámos de ganhar um milhão de dólares acrescentou Lorraine.
Rooney observou-lhe o rosto com um olho negro num lado e a cicatriz ao longo do outro. Parecia uma jogadora de boxe prestes a iniciar o décimo assalto.
Tu não desistes facilmente, pois não?
Não, mas enfim, a vida também não é fácil. Pelo menos, a minha. Levantou-se sem deixar, no entanto, de ficar curvada, visto o tecto da casinha ser muito baixo.
Vou falar com os Brown.
Quando a aurora chegou ainda lá estavam, enquanto a Polícia colocava os seus cordões e montava a iluminação. Foram necessárias duas horas para retirar o cadáver, que fora metido dentro de quatro sacos de plástico do lixo e depois envolvido de alto a baixo por fita adesiva, ficando como se fosse uma múmia. Já só restavam alguns farrapos a apodrecer. O corpo fora enterrado fazia quase um ano, a julgar pelo estado adiantado de decomposição. Havia insectos e vermes no interior das órbitas e do crânio. O odor horrendo da morte não se fizera sentir porque todos os gases se tinham evaporado e a mumificação do corpo, completamente embrulhado em plástico e sem ar, secara todos os tecidos. Pouco restara para identificar o cadáver, exceptuando os registos dentários e, possivelmente, o belo cabelo louro quase pela altura da cintura. Teriam mesmo dificuldade em determinar a causa da morte.
Cerca das onze da manhã seguinte, os registos dentais tinham seguido de avião para o laboratório de medicina legal de Los Angeles. O corpo foi formalmente identificado ao meio-dia e meia. Anna Louise Caley morrera, aproximadamente, há onze meses. A morte fora provocada por uma pancada na base da nuca com um objecto arredondado, de gume cego.
Ao meio-dia e quarenta e cinco, Elizabeth Caley foi informada da descoberta do corpo da filha em casa de Tilda Brown. Também lhe comunicaram que o achado fora feito por Lorraine Page e Mr. William Rooney, seu sócio. Pouco passava das duas dessa mesma tarde quando Francois levou Lorraine até à residência dos Caley, no Garden District.
Vem buscar o seu bónus? perguntou-lhe Elizabeth friamente.
Mostrava-se elegante como sempre e Lorraine ficou impressionada com a resistência da mulher.
Organizarei os meus relatórios e depois enviar-lhos-ei, para Los Angeles ou para aqui, conforme preferir.
Como é que ela morreu? perguntou Elizabeth, acendendo um cigarro.
Nesta fase é difícil fornecer-lhe pormenores, mas apresentava uma perfuração profunda na base do crânio.
Elizabeth inalou.
Trouxeram-me uma fita de cabeça e a Polícia perguntou-me se podia identificá-la como pertencendo à Anna Louise. Não era dela, mas sim, minha.
Lorraine olhou para os recibos das despesas que Rosie guardara e juntara meticulosamente.
Enviarei à Phyllis a relação pormenorizada dos custos relativos às despesas da viagem a Nova Orleães, a não ser que prefira que a deixe aqui... Mistress Caley?
Elizabeth fitava as figueiras que se erguiam no terreno que ficava no outro lado da janela comprida.
Mande tudo à Phyllis. Ela procederá ao pagamento. Lorraine voltou a meter os documentos dentro da pasta.
Quem é que a matou, Mistress Page? perguntou Elizabeth calmamente.
Lorraine hesitou.
Só podemos trabalhar com suposições, pois sem o depoimento dela nunca saberemos exactamente o que aconteceu.
Mas, na sua opinião, o que foi que aconteceu?
Bem, a sua filha tinha muitos ciúmes da Tilda Brown. Sabia que esta mantinha uma relação sexual com o seu marido?
Elizabeth arqueou uma das sobrancelhas impecáveis.
Bem, imagino que ele precisasse de se aliviar nalgum sítio. Comigo não era, de certeza.
Lorraine desviou o olhar, tão enojada se sentia com Mrs. Caley, que parecia não dar mostras da menor emoção, mantendo-se calma, quase sarcástica.
Continue, por favor. Estou a pagar-lhe por isto; portanto, mais vale ouvir o que tem a dizer.
A Anna Louise parecia ter muitos ciúmes porque estava apaixonada pelo padrasto, e a briga que as duas raparigas tiveram, antes de a senhora e a Anna Louise partirem para Nova Orleães, derivou do facto de a Anna Louise ter visto a Tilda a beijar ou a abraçar Mister Caley.
O reles filho da mãe comentou Elizabeth com amargura, esmagando a ponta do cigarro.
Lorraine humedeceu os lábios. Sentia a cabeça a latejar, e o olho, embora menos inchado, ainda lhe doía muito. Além disso, estivera toda a noite a pé.
Continue, Mistress Page ordenou Elizabeth secamente.
Bem, depois de chegarem ao vosso hotel na tarde do dia quinze de Fevereiro, a Tilda...
Elizabeth aproximou-se da janela e ficou a olhar para as árvores, enquanto Lorraine continuava.
Sei que o seu marido se encontrou com uma rapariga chamada Ruby Corbello, que fora criada em casa dos Brown. A rapariga tentou chantageá-lo.
O quê?
Descobrira o diário da Tilda e queria dinheiro por ele. O diário continha a confirmação de que a Tilda e o seu marido mantinham uma relação sexual.
Leu esse diário? perguntou Elizabeth.
Não, não li. Não chegou às minhas mãos, mas o seu marido admitiu que se encontrou com Miss Corbello e que esta lhe deu o diário a troco de duzentos dólares.
Elizabeth riu.
Saiu-lhe barato, a tolinha podia ter pedido muito mais. Continue, Mistress Page.
A Ruby Corbello entrou então pela porta de serviço e foi conduzida à suite da Anna Louise. Saiu do hotel dez minutos depois; no entanto, viram-na de novo no pátio que fica por baixo da varanda da sua filha. Acho que a Anna Louise pediu à Ruby que fizesse uma boneca, uma boneca vodu parecida com a Tilda Brown. Possivelmente entregou uma fotografia da amiga e deve ter pago à Ruby, que nunca admitiu ter feito a boneca, o que, sem o depoimento da sua filha, será difícil de provar.
Elizabeth acendeu outro cigarro. Lorraine reparou que a mão lhe tremia; de resto continuava impassível, fazendo um gesto a Lorraine para que continuasse.
Descobri uma companhia de táxis que opera sem licença e que o pessoal do hotel utiliza para ir apanhar o ferry quando fica a trabalhar até tarde. Um dos motoristas recorda-se de ter levado uma mulher jovem do hotel até casa da Tilda Brown na noite de quinze de Fevereiro do ano passado. Lorraine bebeu um pouco do chá gelado que entretanto fora trazido. Foi a última vez que a sua filha foi vista. Penso que ela conhecia a casa da Tilda tão bem que nem precisou de entrar pela porta da frente, bastou-lhe subir até à varanda, que fica só no primeiro piso, e encontrou-se com a Tilda no seu quarto. Os pais da Tilda asseveraram que a filha permaneceu a noite toda no quarto; por isso, devem ter-se encontrado por volta das sete e quarenta e cinco da tarde.
Elizabeth sentou-se e passou a mão pela saia justa, cruzando as pernas.
Continue, por favor.
Lorraine suspirou, sentindo a cabeça a latejar cada vez mais.
Como é que poderemos saber, exactamente, o que aconteceu? Elas eram jovens, estavam furiosas uma com a outra, enciumadas, e ambas tinham estado com a Juda Salina muitas vezes para leituras de tarot ou algo do género. Claro que tanto uma como outra, por terem sido criadas aqui, tinham conhecimento do vodu, a Anna Louise talvez por causa das suas ligações.
Das minhas ligações? repetiu Elizabeth asperamente.
A senhora fez de Marie Laveau no cinema, tem mesmo uma fotografia que a mostra nesse papel na sua casa de Los Angeles. Portanto, a Anna Louise devia estar a par da cultura vodu. Não sei, mas talvez ambas a receassem... No entanto, creio que a Anna Louise queria amedrontar a Tilda, assustá-la de verdade. Talvez lhe tenha mostrado a boneca, o que, se calhar, a assustou; o certo é que já tinham discutido antes. Na verdade, quando entrevistei a Tilda, ela descreveu-me como a Anna Louise a socara e arranhara. As duas raparigas já se tinham confrontado fisicamente antes... Nessa noite, se calhar, voltaram a fazê-lo e a Tilda pegou num objecto qualquer, talvez uma raquete, e atingiu a Anna Louise.
Elizabeth permaneceu em silêncio, com a cabeça ligeiramente baixa, enquanto Lorraine acendia um cigarro dos seus.
Talvez a Anna Louise estivesse a ir-se embora, voltada para a varanda, e a Tilda a atingisse por trás. Havia manchas na carpete nessa zona, mas, depois do suicídio da Tilda, mandaram limpá-la. Nunca saberemos se eram de sangue ou não.
Elizabeth olhou pela janela com ar inexpressivo.
Estou convencida de que a Tilda foi imediatamente à cozinha buscar sacos de plástico, porque o corpo foi muito bem embrulhado neles logo após a morte prosseguiu Lorraine. Depois serviu-se de vários rolos de fita adesiva para o envolver apertadamente. Provavelmente, deixou-o escondido no quarto até à manhã seguinte, ou então atirou-o ao chão pela varanda, arrastando-o depois para a casa de brincar. Em seguida, cavou um buraco, enterrou a Anna Louise, fechou então a porta a cadeado e...
Deixou a minha filhinha a apodrecer disse Elizabeth em voz baixa.
Exacto. Não voltou à faculdade, ficou com a família e, segundo as pessoas que interroguei, tornou-se nervosa e metida consigo, provavelmente passou a viver num estado de terror permanente, com medo de que o cadáver fosse encontrado. Penso que a minha visita a assustou muito, pois viu que alguém andava de novo a fazer investigações passado todo aquele tempo. Acho que fui a única pessoa a descobrir a promiscuidade sexual das duas raparigas e os ciúmes que sentiam uma da outra. A Tilda ficou muito perturbada com as minhas perguntas, mas não me mostrou indícios de ter participado na morte da Anna Louise.
Participado? Santo Deus, ela matou-a!
Eu diria que a tensão a que foi sujeita é que...
Agradeço que não desculpe a rapariga, ela assassinou a minha filha,
Sim, realmente.
Elizabeth levantou-se, premindo as mãos contra os lados do corpo e depois alisou a saia com uma delas.
Portanto, acabou.
Lorraine também se pôs de pé. Vacilou, sentindo-se enfraquecida, e teve de se agarrar ao braço da poltrona.
Sente-se bem? perguntou Elizabeth, olhando directamente para Lorraine pela primeira vez desde que esta chegara.
Estou muito cansada.
Que aconteceu ao seu rosto?
Oh, fui contra uma porta. Não é nada, mas agora gostaria de me retirar.
Elizabeth foi até uma escrivaninha e abriu-a. Sentou-se numa das elegantes cadeiras inglesas e passou um cheque, enquanto Lorraine pegava no seu casaco e na pasta.
Ainda tem a boneca consigo, Mistress Page?
Sim, sim, tenho-a aqui.
Não a entregou à Polícia?
Não.
Não se importa de ma deixar? Não me parece necessário que mais alguém a veja.
Lorraine abriu a pasta.
Posso saber por que razão não a entregou à Polícia?
Bem, é apenas uma prova circunstancial.
Santo Deus, a senhora é muito profissional, não é? Lorraine pousou a boneca, ainda embrulhada na toalha.
Elizabeth puxou o cheque e soprou-o para secar a tinta. Depois esticou o braço e estendeu-o a Lorraine.
O seu bónus, Mistress Page.
Lorraine percorreu a curta distância que a separava de Elizabeth e aceitou o cheque. Olhou de relance para ele: um milhão de dólares.
Tem cobertura observou Elizabeth, fechando a tampa da escrivaninha.
A seguir, sem olhar para trás, pegou na boneca e dirigiu-se para a porta.
A empregada acompanha-a à saída, Mistress Page. Muito obrigada.
Lorraine permaneceu no mesmo sítio a olhar para o cheque, enquanto o ruído dos sapatos de salto alto de Elizabeth Caley ecoava nos ladrilhos do vestíbulo, até deixar de se ouvir.
Missy apareceu e fez um gesto a Lorraine para que a acompanhasse até à saída. Nessa altura, já Elizabeth ia quase no cimo da escadaria em espiral, mas quando a detective saiu não se voltou.
Elizabeth viu-a partir no carro com motorista e depois deixou cair a cortina. Foi até ao toucador. A fita de cabeça continuava no saco de plástico onde a Polícia a trouxera. Tocou-lhe ao de leve com um dedo, depois pegou nela e atirou-a para o cesto dos papéis. Acercou-se da cama onde pousara a boneca e desembrulhou-a lentamente, ficando a olhar para o rosto hediondo com a fotografia de Tilda Brown e o alfinete espetado no olho esquerdo da boneca. Pegou nela, levou-a para junto da velha e ampla lareira, inclinou-se e colocou-a sobre a grelha de ferro vazia. Despejou-lhe um frasco inteiro de acetona em cima e depois acendeu um fósforo e pegou-lhe fogo. Ficou a ver as chamas levantarem e aquilo arder rapidamente. A última coisa a arder e a derreter foi a pequena cabeça de plástico com o rosto de Tilda Brown.
Elizabeth esperou até tudo ficar reduzido a cinzas e ao cheiro acre do plástico queimado; depois, foi até à sua mesinha-de-cabeceira e pegou na fotografia de Anna Louise, que apertou contra o peito. Deitou-se, agarrada a ela, de rosto impassível, enquanto os seus olhos se enchiam a pouco e pouco de lágrimas, que depois lhe escorreram pela face. Ficou a soluçar baixinho, repetindo o nome da filha vezes sem conta, sussurrando que lamentava, lamentava muito, muito.
Pediram a Robert Caley para ver o corpo, ou o que restava dele, mas nada o preparara para a visão enegrecida e decomposta com que deparou. Ficou chocado e fora de si, retirando-se imediatamente. Tal como a mulher, chorou por Anna Louise. Também lhe pediu perdão, consciente de que, em muitos aspectos, a culpa também fora sua. Estava prestes a concretizar tudo aquilo com que sonhara e viria a tornar-se, sem dúvida, um homem muito rico, no entanto, sentia-se vazio, esgotado e envergonhado. Duas jovens tinham morrido devido à sua insensatez e egoísmo. A mulher que poderia ter amado vira-o tal como era. Sabia que o dano era irreparável. A lembrança dela fê-lo olhar para a porta de ligação e, quando a abriram, ficou com o coração nas mãos.
Desculpe, Mister Caley, mas o gerente quer saber se o senhor ainda quer a suite dupla para...
Não, não, hoje ao fim da tarde também me vou embora.
Deseja então que informe o gerente, Mister Caley? Com o Carnaval a aproximar-se...
Sim, agradeço, obrigado.
A criada fechou a porta à chave e ele fez as malas, ansioso por se afastar dali o mais depressa possível.
O paquete acabara de lhe meter as malas no carro quando Saffron Dulay chegou no seu descapotável Rolls Corniche.
Querido, não te vais embora, pois não?
Robert viu-a deslizar por detrás do volante e aproximar-se dele, bamboleante e de braços estendidos para o abraçar. Tinha a pele e os cabelos dourados, fazia-lhe lembrar Anna Louise.
«Papá, dá-me um abraço, um grande abraço de urso e diz-me que me amas aos montes e montes.»
Caley abraçou Saffron, a chorar.
Pronto, querido, eu sei, eu sei que a encontraram murmurou-lhe Saffron em voz arrulhadora, afagando-lhe a cabeça.
Caley afastou-se, embaraçado com as suas lágrimas, mas ela voltou a chegá-lo a si.
Vejamos, não te vais embora, pois não? Não, depois de eu vir cá de propósito; além disso, o meu pai e tu entraram num negócio juntos. Portanto, não é altura de saíres de cá, tens de celebrar.
Saffron já deitara a morte de Anna Louise para trás das costas. Era assunto encerrado, fazia parte do passado. Viu-o hesitar e voltou-se para o paquete.
Não se importa de meter as malas de Mister Caley no meu porta-bagagens? Dirigiu-lhe aquele seu sorriso rasgado e gélido. Ei, vamos divertir-nos à grande, o Carnaval está mesmo a começar, Deu a volta ao carro e instalou-se de novo ao volante, enquanto colocavam as malas de Caley no porta-bagagens. Pôs os óculos escuros e ligou o motor.
O meu pai contou-me que deixaste aquela mulher a quem estiveste preso durante mais de vinte anos. É verdade, Robert?
Caley assentiu com um gesto de cabeça, sentando-se ao lado dela e pondo igualmente os seus óculos escuros enquanto arrancavam para o meio do trânsito. Seguiram na direcção de Esplanade, Robert com o braço por cima das costas do banco e a afagar o pescoço esguio de Saffron.
Oh, sim, sabe tão bem... observou ela, rindo. Caley esboçou um sorriso triste de quem sabia que a suanova vida passaria a estar cheia de mulheres como Saffron. O dinheiro atrai dinheiro, assim como crápulas.
Lorraine olhava pela janela do carro abafado e quente de Francois. Tinha a certeza de que Caley não a vira, o que a alegrava, não por estar com mau aspecto, mas porque talvez ela não tivesse conseguido disfarçar a sua expressão. Saffron atirara a cabeça loura para trás, rindo, com a mão de Robert Caley apoiada na sua nuca. Um par dourado, aparentemente despido de remorsos, desgostos e mágoas. O que lhe ia na alma superava esse contentamento só de se lembrar da loucura que fora sentir algo por aquele homem, mesmo que por pouco tempo. Ele não o merecia, não merecia nem mais um pensamento, e o que porventura sentira em breve desapareceria. Depressa seria esquecido, assim como a pobre e desorientada Anna Louise, cujo esqueleto jazia agora debaixo de um lençol, na morgue.
Lorraine entrou quando Rosie estava a fechar a última mala em cima da colcha de nylon cor-de-rosa, cheia de rufos, da cama.
Pronto, já fiz as malas. Sabias que eles querem que saiamos o mais cedo possível porque têm tudo esgotado?
Reservaste o quarto por quanto tempo?
Bem, como te disse, fazem-nos um preço especial se sairmos antes de o hotel encher. O Carnaval é o seu período mais agitado.
Eu sei respondeu Lorraine com secura.
Rosie foi até à escrivaninha.
Fiz uma reserva provisória num sítio nos arredores da cidade, para o caso de precisarmos de ficar mais algum tempo, o que não acontece, não é verdade?
Rooney entrou de roldão e deixou cair pesadamente as malas que trazia no chão.
Então, como é que foi?
Tenho o cheque na minha bolsa, um milhão!
Rosie ficou de boca aberta e Rooney desferiu um murro na parede fina.
Boa, boa. Um milhão! Lorraine cruzou os braços.
Quer dizer que se vão os dois embora? Rooney franziu o sobrolho.
Bem, tanto quanto sei, vamos todos, não é? Ou vocês querem cá ficar para o Carnaval?
Não, a ideia de andar a receber cotoveladas pelas ruas não é propriamente a que mais me agrada, mas...
Mas o quê? perguntou Rosie, abrindo a carteira de Lorraine e retirando o cheque.
Mas então vocês acham que já terminámos o trabalho por aqui?
Rosie passou o cheque a Rooney.
Referes-te a sabermos se tem cobertura? Duvido de que nos pregassem semelhante partida disse ele, examinando o cheque com atenção.
Lorraine tinha um ar hesitante, mudando o peso do corpo de um pé para o outro.
O quarto do Nick está alugado, não está?
O quê?
Perguntei se o quarto do Nick está alugado.
Está, bem, deixámos de pagar por ele respondeu Rosie, já desconfiada.
A irmã veio buscar o corpo?
Veio respondeu Rooney, com cara de caso.
Sabes que veio, nós dissemos-te. Nesta altura já deve estar enterrado.
E esquecido, não é, sem mais nem menos? Esquecido como aquele esqueleto lamentável que está na morgue? Pois bem, para vossa informação, eu não esqueci o Nick Bartello, não o esqueci de forma nenhuma.
Merda, Lorraine, nós também não. Se estás a querer insinuar que devemos dar a parte dele no milhão aos parentes, eu não me importo declarou Rooney.
Não precisamos de dar a ninguém uma parte do milhão disse Lorraine, deixando-se cair numa poltrona e apoiando a cabeça nas mãos.
Então, qual é o problema?
Lorraine sacudiu a cabeça e recostou-se, fechando os olhos.
O problema é que um estupor qualquer matou o Nick, e esse estupor, seja quem for, anda por aí à solta e ninguém está a fazer nada para que pague pelo que fez. Aí está o problema.
Rooney suspirou, sentindo o roçagar da carpete sob o peso dos enormes pés chatos.
Lorraine, a Polícia não tem pistas nenhumas e nós também não. Que queres que façamos, que fiquemos aqui e iniciemos uma nova investigação?
Quero que terminemos o que começámos. Disse que fosses ao bar do Fryer Jones, que lhe revistasses a casa com a ajuda daquele polícia teu conhecido a quem deste quinhentos dólares, porque alguém ficou com o colar dele. A besta que matou o Nick Bartello anda por aí e eu quero que investiguemos algumas coisas antes de nos pirarmos para Los Angeles e comprarmos o nosso próprio condomínio, certo?
Rooney suspirou, erguendo as mãos num gesto apaziguador.
Está bem, tem calma, eu entro imediatamente em contacto com ele, podemos fazer tudo isso sem demora. Mas uma coisa é certa, Lorraine, se não descobrirmos nada, vou-me logo embora. E tu, Rosie?
Rosie concordou.
Sim, eu irei com o Bill. Lorraine levantou-se.
Óptimo, mas eu ficarei por aqui até me certificar de que a parte do dinheiro que caberia ao Nick foi aplicado para tentar descobrir o seu assassino. Portanto, precisarei de um quarto, pode ser o meu, já que nem sequer comecei a fazer as malas.
Lorraine atirou com a porta da casa de banho com força e Rosie suspirou.
Quando ela se põe com estes modos, apetece-me dar-lhe um murro, a sério que apetece. Como é que haveremos de descobrir alguma coisa, se a própria Polícia não encontrou nada, hein? Diz-me. Ela é mesmo obsessiva. Rooney esfregou o queixo.
Se ela não fosse tão obsessiva, Rosie, nunca teríamos descoberto a Anna Louise Caley, nem o cheque de um milhão estaria agora nas nossas mãos. Portanto, deitemos mãos ao trabalho e façamos como ela quer, porque temos de a manter calma. Não a quero ouvir dizer de repente que tem direito a uma fatia maior.
Ela não pode fazer uma coisa dessas! Rooney acenou com o cheque.
Isto foi passado no nome dela, Rosie. Vai ter de o depositar na sua conta e só depois é que nos paga a nossa parte. É melhor fazermos-lhe a vontade.
Lorraine tomou duche e mudou de roupa; no entanto, não se sentia refrescada nem com as energias renovadas, apenas irada, ciente de que o facto se devia a ter visto Robert Caley. Olhou-se fixamente ao espelho.
Ei, esfria a cabeça e deixa-te disso. Lembra-te de que ele não merece nem um segundo do teu tempo. Portanto, pára com isso!
Rooney bateu à porta e ela foi abrir.
Tens alguém aí dentro?
Não, estava a falar comigo mesma.
Oh, bem, o tal polícia está lá em baixo. Queres falar com ele?
Quero.
Rooney manteve a porta aberta. As suas malas e as de Rosie atravancavam o quarto.
Desde já te aviso que o tipo não é nenhum Burt Lancaster, tem um ar esquisito.
Ah, sim?
É. O pescoço dele é da largura do cu!
Harper estava sentado ao lado de Rosie, esta toda sorridente. Os dois faziam um belo par. Ele tinha uma cerveja na mão gorda e bolachuda e ergueu meia bochecha do rabo quando Lorraine chegou. Ficaram sentados debaixo de um chapéu-de-sol grande, nas cadeiras e mesa de plástico azuis e brancas de um café de terceira com esplanada no passeio. As letras do anúncio luminoso brilhavam fracamente sob a luz do dia, e a rua, em frente, fervilhava de transeuntes.
Esta é a Lorraine Page.
Olá, como vai?
Bem, obrigada por ter vindo.
Não tem problema, deseja uma cerveja ou...
Café respondeu Lorraine, acendendo um cigarro.
Isto está a aquecer. É uma pena não ficarem para o Carnaval.
Lorraine esmagou o cigarro.
Muito bem, podemos passar ao motivo que nos levou a querer falar consigo?
Claro, dispare à vontade.
Lorraine falou com rapidez, pormenorizando os acontecimentos que tinham conduzido à morte de Nick Bartello e mencionou o facto de este ter estado no bar de Fryer Jones na noite anterior e de, possivelmente, lá ter voltado.
Olhe, sei que ele era vosso camarada, certo? Mas foi um louco em ir até aquela zona a tão altas horas da noite e deixar-se envolver com alguém por lá. Agora, vejamos: eu sei que investigámos o caso, fizemos perguntas na área, visto ele ter sido encontrado nas imediações do bar, sabe, a cerca de um quarteirão dele, ao fundo de um beco, mas ninguém da zona o viu. Também não foi visto por nenhum morador desse beco.
Lorraine inclinou-se para a frente.
Muito bem, está então a querer dizer que, às portas do Carnaval, o desgraçado de um tipo dá uma volta por aí, vai ao bar do Fryer Jones tomar um copo e mais adiante fica com a garganta cortada? E tudo o que a Polícia tem a dizer é que ele não devia ter ido àquele bairro? Vocês têm cartazes por lá a dizer: «Cuidado, podem morrer»?
Harper franziu o nariz rosado, sentindo-se incomodado por uma mulher lhe falar naquele tom.
Lorraine prosseguiu, contando pelos dedos.
Sabemos que ele foi lá, que chateou uns miúdos que estavam a apontar uma pistola ao Fryer Jones. Sabemos que os fez parecer uns imbecis, sabemos isso tudo. Sabemos que o Fryer Jones deu um colar ao Nick, um gris-gris, que não foi encontrado no seu corpo, tal como a carteira e a carta de condução. Ele costumava guardá-las separadas nos dois bolsos de trás das calças.
Hum, hum... assentiu o polícia, fazendo ondular o rosto gordo.
O Fryer Jones admitiu perante mim ter conhecido o Nick; de modo que eu quero saber quem esteve no bar na noite a seguir. Por outras palavras, quero saber se o Nick Bartello voltou ao bar do Fryer Jones e alguém de lá lhe cortou a garganta. Portanto, se isso significa arranjar um mandado de busca, se significa...
Harper sacudiu a cabeça.
A senhora é muito impaciente, sem dúvida.
Bem, só temos o quarto alugado por mais uma noite observou Lorraine com um sorriso sombrio.
Muito bem. Toda a gente sabe que a zona aonde o vosso amigo foi não é a mais indicada para ser frequentada por brancos a horas mortas, a não ser aqueles que lá vão fornecer-se de droga. O vosso amigo drogava-se, não?
Não, não se drogava respondeu Rooney com maus modos.
Então, foi estupidez dele. O problema é que nós só vamos a sítios como o bar do Fryer Jones quando temos uma boa prova. Não gostamos de o fazer porque o Fryer é um informante.
Lorraine recostou-se.
Ah, é? Foi por isso que o prenderam na noite em que a Anna Louise Caley desapareceu?
Pois foi, minha senhora, de facto prendemos o homem e tivemos de lhe dar algumas. Precisávamos de que o velho Fryer nos dissesse se tinha ouvido alguma coisa, sabe, se sabia aonde ela fora parar, pois naquela zona nada se passa que não chegue aos seus ouvidos. Mas temos sempre de fazer com que tudo pareça real, pois, se a coisa viesse à baila, quem apareceria com a garganta cortada como o vosso amigo seria o velho Fryer. Harper recostou-se e arrotou, batendo no peito com o punho fechado. Faz mal reprimir.
Lorraine acendeu novo cigarro e olhou para um lado e outro da rua, inalando o fumo.
Muito bem, experimentemos de outra maneira. Está a dizer-me que não puderam arranjar nenhum mandado de busca para aquele bar, mandar lá talvez um par de tipos da esquadra? É o que está a dizer, não é?
Acho que sim. Não gostamos de agitar as águas.
Certo, então quanto custaria agitá-las?
Desculpe?
Deixe-se disso, você ouviu-me. Pergunto-lhe quanto custaria arranjar uns quatro ou cinco de vocês para me apoiar, armados com algo mais do que os vossos bastões de madeira. Podem ser polícias ou não, compreende o que quero dizer?
Rosie sentia a cerveja sem álcool às voltas no estômago. Rooney virou-se para olhar para a rua; o suor escorria-lhe pela cara.
Quanto? perguntou Harper.
Diga-me você respondeu Lorraine calmamente. Rooney lançou um olhar a Rosie, que tinha o rosto a luzir de transpiração e retorcia a ponta da toalha entre os dedos. Harper tocou na gota de água que escorria do gargalo da sua cerveja e lambeu o dedo.
Vão estar por cá até hoje à tarde?
Sim, voltaremos para o hotel, onde poderemos ficar à espera do seu contacto.
Harper empurrou a cadeira e pôs-se de pé.
Depois direi alguma coisa. Tive muito gosto em falar convosco, Mistress Page e Bill, e foi um prazer conhecê-la, Rosie.
Afastou-se a bambolear, dando a impressão de que abria uma onda pelo meio da multidão que enchia a rua, servindo-se da barriga não para empurrar as pessoas mas para as fazer ressaltar contra si, o pescoço grosso a dar-lhe um ar de lutador, que o bigodinho sobre a boca miúda acentuava.
Quanto é que achas que ele vai querer? perguntou Rosie.
Lorraine levantou-se.
Porquê, tens medo de repartir o dinheiro tão arduamente ganho, Rosie?
Não, estou apenas a ser cautelosa. E tu devias meter o cheque no banco antes que o percas.
Lorraine riu-se e meteu a bolsa ao ombro.
Claro, e calculo que vocês os dois queiram um cheque com a vossa parte, mas, se não se importam, esperam que eu primeiro deposite isto na minha conta, está bem?
Dito isto, afastou-se e Rooney pegou na mão de Rosie.
Não gostei dele e ela cada vez me agrada menos.
Ambos olharam na direcção de Lorraine que, ao chegar ao passeio, virou-se lentamente para eles, pois no outro lado da rua vira um descapotável vermelho, Mustang, passar. Era conduzido por Raoul Corbello, que levava uma das mãos fora da janela enquanto, com a outra, manejava indolentemente o volante branco. Tinha a música rap muito alta e os olhos, ocultos pelos vidros espelhados dos óculos, postos numa jovem negra que vendia postais. Continuou em frente; podia arranjar algo bem melhor do que uma vendedora de rua; além disso, precisava de ir ao bar do tio Fryer Jones. Raoul estava cheio de crack até à ponta dos cabelos e tinha de acalmar, de se deixar daquilo por algum tempo, de modo a poder encarar a família e assistir à coroação da sua preciosa Ruby. Fora para isso que viera a casa: o Carnaval, o Mardi Gras.
Raoul Corbello entrou discretamente no bar do tio e ficou ao pé da porta, precisamente na parte onde o velho balcão de madeira terminava. Encostou-se à parede desprovida de janela e esperou que o barman se aproximasse dele.
Uma mexicana e um shot de uísque com gelo pediu, de colarinho levantado e sem tirar os óculos escuros.
Claro, Raoul, mas primeiro quero ver o teu dinheiro.
Vai-te lixar, Zachery Blubber.
Apesar disso, espalmou uma nota de vinte dólares em cima do balcão.
Zak abriu uma cerveja, pousou-a ruidosamente sobre o balcão e foi buscar o uísque no seu passo bamboleante.
Então, que tal está LA, pá? Vieste de lá nessa carripana cheia de estilo?
Raoul encolheu os ombros. Tinha o nariz a escorrer e fungou, enquanto Zak se encostava ao balcão, fazendo deslizar o copo com o uísque na direcção dele.
Porreira, está porreira.
Estás mesmo com ar de quem precisa de se refrescar. Raoul bebeu o uísque de um trago e pegou na cerveja.
Os teus irmãos estão lá atrás a trabalhar.
O tio Fryer está por aí?
A dormir, como é costume a esta hora. Ontem à noite a casa estava a deitar pelas bordas e ele tocou tanto que ficou com aqueles seus velhos beiços todos inchados, mas não há dúvida de que é um génio a tocar aquela sua gaita amolgada.
Raoul voltou a fungar e limpou o nariz à manga da camisa. Puxou de um rolo grosso de notas, de onde tirou mais uma de vinte.
Repete, e tu serve-te também de uma.
Zak olhou para o maço de notas e afastou-se lentamente, ao longo do balcão.
Não me importo nada, irmão, não me importo mesmo nada.
Raoul teve de esperar que o barman fosse encher novamente os copos de dois clientes. Começava a ter tremuras e perguntou a si mesmo por que raio viera até ali. Quando aparecesse lá por casa, o seu problema não seriam apenas as tremuras. O que parecera uma ideia brilhante estava já a empalidecer.
Zak passou-lhe mais uma cerveja e um uísque e ergueu-lhe o copo em sinal de que também se servira, começando a falar em voz baixa com dois clientes já velhotes que bebiam, juntos, na outra ponta do balcão.
Zak, ei, Zak, pá, chega aqui um segundo, está bem? chamou Raoul em voz alta, emborcando a sua cerveja.
Que queres? perguntou Zak, entregando cervejas e atirando as garrafas vazias para dentro de uma grade por baixo do balcão. Como já sabia do que se tratava, abriu uma gaveta que tinha debaixo da caixa registadora e tirou de lá um pacote. É isto, não é?
Raoul pousou a mão no saco de plástico, enquanto Zak se inclinava para ele e lhe segredava que era material caseiro de boa qualidade, à sua responsabilidade.
Tens por aí mortalhas? perguntou-lhe Raoul, puxando de cinquenta dólares.
Caraças, homem, se calhar também queres que fume por ti, não?
Meteu a mão no bolso de trás das calças e puxou de um pacote amachucado de mortalhas, que atirou para cima do balcão.
Os dois rapazes Corbello estavam imundos de andarem a empilhar as grades todas e preparavam-se para carregar o camião com elas quando Raoul apareceu à porta das traseiras do bar. Desataram aos gritos e abraçaram o irmão, sentando-se depois todos em frente do cubículo da casa de banho exterior, onde Raoul enrolou três charros, um para cada um.
Por que raio estão vocês a trabalhar aqui atrás? perguntou Raoul.
Os dois rapazes começaram por se mostrar hesitantes, mas depois de algumas «passas» contaram-lhe que Fryer estava a ficar impossível de aturar. Acrescentaram, no meio de muitas risadas, que, quando a tia Juda pusesse as mãos em cima de Raoul, este levaria pancada de criar bicho. Raoul riu-se, dizendo que estava porreiro e desatou a falar-lhes do seu Mustang, da sua negociata como passador de droga e da pipa de massa que roubara de baixo da cama da tia. Ela bem lhe podia chegar a roupa ao pêlo que ele jamais lhe diria onde guardara o que restava. Os dois rapazes escutavam, fascinados, o irmão mais velho, e quanto mais pedrados ficavam, mais se gabavam de ter limpo o sebo a um branco abrindo-lhe a garganta. Raoul escutou-os, sentindo os olhos a fechar-se, no fundo sem acreditar na história nem tão-pouco se ralando. Enrolaram mais alguns charros e começaram a ficar irrequietos; às tantas, Raoul pôs-se a urinar, precisando de se apoiar à parede do cubículo para o conseguir.
Ei! Como está a Ruby?
Oh, homem, anda tão metida com a mãe e com a Juda que nem tem tempo para nós.
Está a meter-se nessa merda toda do vodu, não é?
Os dois rapazes, que se tinham posto a atirar garrafas vazias contra a parede, não lhe prestavam grande atenção. Fryer Jones espreitou pela janela imunda do seu quarto, afastando a cortina de serapilheira para o lado. Dali podia ver os três sobrinhos, que se calhar até eram seus filhos, mas o certo é que o que via não lhe agradava. Andavam aos pulos e aos gritos, a partir garrafas. Enfiou os velhos jeans e, depois de uma boa coçadela, desceu ao piso térreo. Estava com uma boa ressaca. A noite correra bem, demasiado bem, e ele ainda se sentia entontecido.
Ei, Zak, dá-me aí um reconstituinte, está bem? gritou para o barman.
Zak já tinha o habitual cálice de aguardente à sua espera.
O Raoul apareceu informou.
Fryer engoliu o líquido de uma vez e lambeu os lábios tumefactos.
Sim, já o vi, e já estou farto de tanto parente estuporado. Dá-me outra dose, pois preciso de estar bem acordado quando puxar do cinto e chegar a roupa ao pêlo àqueles merdosos sem préstimo.
Lorraine estava a lavar o cabelo; dormira umas horas razoáveis e sentia-se, se não a cem por cento, pelo menos muito melhor. Deixara de beber e não engolia uma gota desde que estivera no hotel de Caley; porém, não se congratulava, pura e simplesmente esperava continuar a aguentar-se. À sua volta, espalhada pelo quarto, estava a bagagem de Rosie e Rooney, embora não fizesse ideia aonde eles se encontravam. Instantes depois, porém, Rosie bateu à porta.
Somos nós, Lorraine chamou.
Está aberta replicou Lorraine, continuando a esfregar o cabelo.
Os sócios entraram. Rooney sentou-se pesadamente na cama, pois, ao contrário de Lorraine, não conseguira pôr o sono em dia. Bocejou, recostando-se nas almofadas.
Fui depositar o cheque no banco, mas o caixa disse-me que só daqui a uns dois dias é que o dinheiro está disponível. E vocês, por onde andaram? perguntou Lorraine, penteando o cabelo e secando-o com o secador.
Estivemos com o Harper respondeu Rosie.
Arranjou cinco tipos, com ele são seis, além de mim e da Rosie. Ele acha melhor tu não entrares lá, Lorraine.
Eu quero ir. Conseguiu um mandado de busca? Rooney sacudiu a cabeça.
Não falou sobre isso, mas duvido. Já saíram todos da Polícia e cada um leva dois mil.
O quê? exclamou Rosie, atónita.
Acho que por doze mil dólares vale a pena disse Rooney.
Lorraine desligou o secador.
Além disso, o Nick Bartello morreu. Se estivesse vivo, Bill, receberia bem mais da sua parte do milhão de dólares; portanto não te lamentes. E tu também não, Rosie.
Eu não me pronunciei!
Certo, mas estavas a pensar nisso observou Lorraine, examinando o cabelo.
As pontas ainda estavam húmidas, pelo que ligou novamente o secador e começou a revirá-las com a escova. Observou Rosie e Rooney pelo espelho, reparando que ambos pareciam exaustos. Rosie a bocejar e Rooney quase a fechar os olhos, recostado na almofada.
Ninguém proferiu uma palavra, e Rooney adormeceu mesmo, começando a ressonar. Lorraine acabou por desligar o secador e foi para a casa de banho vestir-se. Quando voltou, Rosie dormia profundamente. Lorraine sorriu: aqueles dois às vezes pareciam duas crianças, e ela sentia receio por se irem envolver na cena do bar de Fryer. Não queria que lhes acontecesse nada de mal, muito menos agora que, finalmente, se tinham encontrado um ao outro.
Ficou a observá-los durante um bocado e depois sentou-se a escrever-lhes um bilhete. Deixou o papel em cima do peito largo de Rooney, que subia e descia compassadamente, fez as malas e levou-as para fora, fechando depois a porta em silêncio. Nenhum dos dois acordou. O bilhete dizia: «Não fiquem para o Carnaval, vemo-nos na minha casa nova. Boa sorte. L.»
Lorraine deixou as malas na recepção e foi pagar a Francois. Este deixou-se ficar, mesmo depois de receber o seu dinheiro, perguntando-lhe se não queria que a levasse ao aeroporto, atónito por Lorraine não pretender ficar para o Carnaval.
Obrigada, mas não é preciso, Francois. Até qualquer dia. Saiu, enquanto ele ficava a contar os dólares. Dera-lhe um bónus, cinquenta dólares a mais do que ele lhe pedira. Sorriu, satisfeito.
Lorraine encaminhou-se para o Bairro Francês. Estava uma noite quente e húmida e a rua tinha um número cada vez maior de turistas. Por todo o lado se viam enfeites em escarlate, verde e dourado e no ar já pairava um cheiro a Carnaval; ela, porém, não se sentia virada para festejos.
Os seis homens aguardavam ao fundo de uma rua lateral, dentro de dois carros-patrulha. Fumavam, tinham óculos escuros e todas as janelas abertas. Lorraine sentou-se ao lado do enorme agente, que a apresentou aos indivíduos que se comprimiam uns contra os outros no banco de trás.
Primeiro o pagamento, Mistress Page. Lorraine abriu a bolsa e tirou um envelope.
Doze mil, não é verdade? Metade agora e metade depois do serviço feito.
Harper virou-se, a fim de consultar os agentes no banco de trás e estes encolheram os ombros. Depois apeou-se e foi ao carro de trás, onde trocou algumas palavras com os indivíduos que lá estavam, voltando logo a seguir.
Está bem, mas é melhor não tentar passar-nos a perna. Lorraine sorriu.
Então acha que eu seria capaz de passar a perna a vocês?
Deixe-se disso, sei perfeitamente que estão a correr um grande risco.
As suas palavras pareceram resultar. Harper acenou com a cabeça, fazendo as bochechas ondular.
Então, como é que vamos fazer? perguntou Lorraine calmamente.
Rooney grunhiu e o seu corpo estremeceu. Ergueu a cabeça.
Merda, que horas são?
Rosie murmurou qualquer coisa, enquanto ele se levantava da cama. O bilhete esvoaçou até ao chão e Rooney apanhou-o. Como o quarto estava às escuras, acendeu o candeeiro da mesinha-de-cabeceira.
Rosie, acorda, rapariga. Rosie!
Rosie pestanejou e engoliu em seco, sentando-se, sobressaltada.
Ela foi-se embora. Lê isto.
Rosie precisou de uns momentos para se adaptar à luz e poder ler o bilhete.
Que havemos de fazer?
Rooney hesitou e depois foi à casa de banho.
Saber se há avião para nos levar daqui. Se não houver, ficamos.
Vamos deixá-la cá?
Só iremos ver se há avião, querida.
Rooney passou a cara por água, depois secou-a com uma das toalhas húmidas que Lorraine deixara por ali; cheirava a champô. Olhou-se ao espelho. Sentia-se velho e gasto, perguntando a si mesmo que raio lhe dera para se comprometer, com aquela idade. Ter-lhe-ia ele mesmo sugerido que fossem viver juntos? Sentou-se na beira da banheira, desejando ter-se descalçado antes de adormecer, pois os pés haviam-lhe inchado.
Rosie chamou-o, dizendo que dali a hora e meia tinham um voo.
Só um instante gritou-lhe ele em resposta.
Não sabia o que fazer. Desconhecia o que Lorraine combinara com Harper ou quando iriam pôr o plano em acção ou, até, por que razão. Que esperaria ela lucrar? Suspirou.
Quando voltou para o quarto, Rosie escovava o cabelo.
Dei-lhe o número do teu cartão de crédito. Não te importas, pois não? Viu-o atravessar pesadamente o quarto e virou-se para ele. Bill, queres ir embora ou não?
Ainda estou a pensar, Rosie.
Esta também estivera a pensar e apresentou-lhe exactamente as mesmas dúvidas que ele tivera há instantes atrás.
Ainda não percebi o que é que ela pensa conseguir no fim.
Não sei, Rosie, talvez que alguém se assuste o suficiente para confessar que viu o Nick, sei lá. Cá por mim, está a desbaratar dinheiro precioso, mas essa é apenas a minha opinião.
Também é a minha. Claro que eu gostava do Nick, mas as hipóteses de descobrir o assassino são tão remotas, não são? Nem mesmo sabemos se chegou a ir ao bar do Fryer na noite em que foi morto. Mesmo que a Lorraine encontrasse o gris-gris, e quem quer que tenha tirado a vida ao Nick fosse suficientemente estúpido para ainda o ter consigo, não o teria no bar, não achas?
Não faço ideia, Rosie.
Não fora sua intenção responder-lhe com brusquidão, mas saíra-lhe assim.
Escuta, se estás com remorsos por nos irmos embora, ficamos.
Não estou com remorsos.
Óptimo, nesse caso, vamos embora, não é? Rooney sentou-se, dizendo que precisava de uma bebida.
Rosie atirou com a escova para cima do toucador.
Não podemos ficar aqui mais tempo, Bill, o avião parte daqui a hora e meia.
Já tinha ouvido, Rosie.
Nesse caso, repito.
Já na recepção, Rooney esperou que Rosie entregasse as chaves do quarto e viu as malas de Lorraine guardadas atrás do balcão.
Bill, se queres esperar, mais vale que digas, pois eles têm gente à espera do quarto. O que significa que, se dermos baixa dele, ficaremos sem sítio onde dormir hoje à noite, se mudarmos de ideia. É Carnaval, Bill, os hotéis estão à cunha.
De repente, Rooney tomou uma decisão.
Tu ficas aqui com as malas, eu vou até ao bar do Fryer.
Mas... e o avião?
Rooney voltou-se para ela, furioso.
O avião que vá à merda. Raios, se for Preciso alugamos um privado, está bem? Espera aqui.
E saiu. Rosie ficou à beira das lágrimas, pois ele nunca lhe falara assim, nunca fora tão brusco consigo. Mas de repente percebeu porquê: estava preocupado com Lorraine. Apesar de todas as queixas que tinha contra a colega, nutria uma grande amizade por ela, e Rosie, pensando melhor, também.
Desculpe, Mistress Page deixa o quarto ou não?
Rosie olhou com cara de poucos amigos para a recepcionista, que ia ficando cada vez mais extenuada à medida que o dia passava. No Carnaval era sempre assim, por isso é que o detestava..
Sim, Mistress Page desiste do quarto, mas podemos deixar as malas aqui, não é?
A recepcionista suspirou. Estava até à ponta dos cabelos com as pessoas a deixarem ali as bagagens-
Acho que sim, mas olhe que o hotel não se responsabiliza por elas.
Está bem, então levo-as comigo ali para fora.
Rooney tentou, em vão, arranjar táxi. O passeio estava apinhado de gente, havia pessoas a passear de braço dado pelas ruas. Apareceram em cena mais prestidigitadores e palhaços a distribuir panfletos que anunciavam os festejos prestes a iniciar-se, e o espírito do Carnaval já pairava no ar. Disparavam-se foguetes em todas as direcções, foguetes que zuniam e estouravam no alto, iluminando o céu escuro. Uma banda dixieland tocava ou ensaiava, começando e parando repetidamente. Era como se tivesse entrado numa roda gigante e não conseguisse sair. Empurrou, gesticulou e abriu caminho pela rua, procurando desesperadamente um táxi, sem conseguir libertar-se da sensação de pânico crescente que o invadia. Não sabia muito bem o que mais o perturbava, se a sua vida pessoal, se Lorraine. Ou talvez fosse a recordação de Nick Bartello; o certo é que tinha a sensação aterradora de que algo se iria passar, e a sua frustração em não estar no controlo da situação só piorava tudo. Lorraine estava algures com um grupo de sujeitos, provavelmente da pesada. Encontrava-se sozinha e ele não a devia ter deixado ir sem apoio. Era agora o homem que lhe protegia a retaguarda, o seu sócio. Nunca mais poderia ficar em paz consigo mesmo se algo lhe acontecesse, pois, apesar de todos os seus defeitos e obstinações, gostava de Lorraine mais do que alguma vez se atrevera a admitir. E uma coisa era certa: a colega era uma agente e tanto, quer na Polícia, quer fora dela. Lorraine tinha uma classe muito própria. Táxi! gritou.
Rosie sentou-se fora do hotel, na pequena área do terraço. Não era a única pessoa a estar ali no meio de um mar de bagagens. Via-se muita gente de mochila às costas, famílias inteiras, alguns lambiam sorvetes, outros começavam a perder a paciência com as crianças esgotadas, e o barulho persistente do fogo-de-artifício estava a provocar-lhe uma dor de cabeça arrasadora.
Francois buzinou e disse-lhe adeus. Rosie levantou-se de um salto e acenou-lhe freneticamente. Ele sorriu e depois percebeu que ela lhe fazia sinal para que se aproximasse.
Importa-se de meter estas malas todas no carro?
Claro que não, quer ir para o aeroporto?
Quero, mas não já. Antes, preciso que me leve ao bar do Fryer Jones, na Ward Nove. A Lorraine está lá.
Francois apeou-se, abriu o porta-bagagens e começou a arrumar as malas.
Rooney suava. Por pouco não se pegara à pancada com uma drag queen que também mandara parar o mesmo táxi, mas como ele, ou ela, tinha um bom palmo mais de altura do que Rooney, este preferiu desistir. Ao ouvir que o chamavam pelo nome, virou-se e olhou em todas as direcções. Às tantas, percebeu que era a voz de Rosie e abriu caminho por entre a multidão, até a ver a acenar-lhe de dentro do carro de Francois. O seu pânico aumentou quando um rapaz que guiava uma bicicleta, em cima da qual se equilibravam precariamente mais três pessoas, por pouco não o deitou ao chão.
Que aconteceu? Tiveste notícias da Lorraine?
Não, entra e cala-te.
Rooney sentou-se ao lado de Rosie e esta fez sinal a Francois para que arrancasse.
Vamos para o aeroporto?
Não respondeu-lhe Rosie com secura. Vamos para o bar do Fryer Jones, está bem?
Rooney pegou-lhe na mão e atraiu-a a si.
Ela é minha sócia, Rosie.
Também é minha, para o caso de te teres esquecido. Nesse momento, novo foguete explodiu por cima deles.
O Carnaval está a começar! gritou Francois alegremente. Caramba, este lugar está a aquecer, não sentem isso? Isto vai ficar uma loucura, pá, uma verdadeira loucura!
Ruby pousou o guisado de caranguejo fumegante em cima do jornal que servia de toalha. Juda, Edith e Sugar May serviram-se imediatamente. Todas tinham cervejas geladas e enormes pedaços de pão; comeram avidamente, pois tinham estado o dia todo a trabalhar na plataforma. Haviam-lhes sido entregues cestos e cestos de flores frescas e era necessário colocá-las todas em redor do trono, compondo um mar de cor por onde a rainha caminharia quando fosse sentar-se.
Ruby estava descalça e usava apenas uma camisola interior velha. Prendera o cabelo no alto da cabeça, pois começara a suar. Sentiam-se cansadas, mas na manhã seguinte estariam todas a pé e a trabalhar. Preparar a plataforma obrigava a muito esforço e empenho e todo aquele trabalhão só contribuía para aumentar ainda mais o entusiasmo, ao ponto da embriaguez.
Juda molhou o seu pão e chupou-o; era bom estar de volta a casa, livre. Resolvera não voltar a LA, mesmo que Elizabeth Caley lhe oferecesse uma fortuna. Nunca mais abandonaria a sua terra. Partiu mais um pedaço de pão e ia a mergulhá-lo no prato quando viu a notícia no jornal.
«Encontraram o Corpo da Filha de Estrela de Cinema Desaparecida!»
Desvia o prato para o lado, Sugar May.
Juda deu um jeito ao jornal de modo a poder ler.
Encontraram o corpo da Anna Louise Caley. Tirou o jornal de cima da mesa e sacudiu as migalhas. Oh, meu Deus, ela estava enterrada na... Oh, santo Deus, santo Deus.
Edith olhou para a irmã.
Que foi, Juda?
Juda dobrou o jornal num rolo, olhando fixamente para Ruby.
Encontraram a pobre Anna Louise enterrada num jardim, diz aqui que em circunstâncias estranhas.
Ruby continuou a comer, chupando o pão ruidosamente.
Onde, Juda?
Juda não desviou o olhar de Ruby.
No jardim de Miss Tilda Brown. Sabes de quem se trata, não sabes, Ruby?
Ruby ergueu os olhos, que lhe brilhavam, e falou com voz doce, quase sussurrante.
Sei quem ela é, tia Juda, foi aquela que amarrou o cinto do roupão no pescoço e se enforcou.
Sugar May levou a mão à boca, rindo, e apanhou na cabeça com o jornal. Edith, confusa, olhava para a irmã, que se levantou lentamente da mesa. Deixara de usar a cabeleira e as pestanas postiças, vestia apenas uma bata velha e tinha o cabelo grisalho muito curto a ficar ralo no cocuruto.
Ruby tentou aparentar indiferença, continuando a molhar o pão no molho, mas já não se atrevia a erguer os olhos e a encarar a tia. Tinha medo dela, ainda mais quando o seu corpanzil se erguia em todo o seu tamanho ali mesmo ao seu lado.
Ruby, lembra-te do que te disse: brinca com o demónio e ele virá reclamar a tua alma.
Não, não virá. E tenha eu feito o que fiz, o Fryer tomará conta como faz com os meus irmãos. Ninguém saberá de nada.
Edith, ainda confusa, olhava ora para a irmã, ora para a filha.
De que estão vocês a falar? Juda dirigiu-se para a porta.
Ela sabe, Edith, a Ruby sabe, o Fryer nunca tomou conta de ninguém senão dele mesmo. É o seu estilo de vida. Ele já vendeu a alma ao diabo há muito, muito tempo.
Edith, já verdadeiramente preocupada, afastou o prato meio consumido para longe de si e foi atrás de Juda.
Que foi que fizeste? perguntou Sugar May à irmã em voz baixa.
Ruby bebeu um gole e, voltando-se para ela, borrifou-a de água.
Só usei os meus poderes, Sugar May, só usei os meus poderes.
Sugar May apressou-se a ir atrás da mãe e Ruby ficou sozinha à mesa. Passado um momento, pegou no prato da mãe e despejou o conteúdo no seu. Continuou depois a comer, molhando o pão no molho e chupando-o. Não sentia culpa nem remorso pelo que fizera ou pelo que desencadeara. Afinal de contas, só lhes dera o que queriam.
Elizabeth Caley encontrava-se sentada ao lado de Lloyd Dulay, composta e bela como sempre. Vestia de preto, por respeito à filha, e todos os presentes lhe tinham apresentado as suas condolências. Os Dulay eram uma família rica muito antiga e conceituada e toda a sociedade de Nova Orleães aceitara o convite por curiosidade, desejosa de ver a mãe sofredora com os próprios olhos. Elizabeth não os decepcionou. Controlada e distante, era como se o desgosto a tivesse paralisado de dor e choque. Era mais um filme na sua vida, representando o seu papel na perfeição. Sabia que Robert exigiria uma indemnização maciça, mas isso não a incomodava, pois dinheiro não lhe faltava. Este nunca fora uma prioridade para Elizabeth, crescera com dinheiro, sempre o tivera e nunca lhe passara pela cabeça ficar sem ele. Iria ser convidada para todos os bailes de Carnaval e outras festas da alta-roda em Nova Orleães, como sempre acontecera desde criança. Era famosa, naquele momento ainda mais devido ao fim trágico da filha. Estava sentada ao lado de Lloyd Dulay, o homem que sempre amara. Era a sua convidada de honra, porém, naquela noite isso não a deleitava naquela noite deixara de apreciar a situação. Decidira acabar com os segredos, esperava apenas pelo momento oportuno. Este proporcionou-se quando Lloyd se levantou e convidou os presentes a erguer as taças num brinde a Elizabeth Seal.
Um murmúrio contido percorreu a sala, pois ninguém esperara que falasse; no entanto, ela manteve uma postura de rainha, segurando na taça com a mão direita e erguendo-a quase imperceptivelmente.
Já faz muito tempo, deram-me o papel principal num filme chamado O Pântano. Tinha então dezasseis anos e a perspectiva de vir a ser uma estrela de cinema fascinava-me. Personificar a grande rainha do vodu, Marie Laveau, não me mereceu atenção. Não reflecti na cultura que Marie Laveau trouxera para o seu povo, era apenas um filme e eu iria fazer cinema.
Elizabeth desempenhou o melhor papel da sua vida, acontecia apenas que este não constava em nenhum guião, vinha dos seus próprios anos de tormento, do pesadelo durante as filmagens em que fora levada e violada, tendo-lhe escrito maldições a sangue pelo corpo todo. Falou-lhes da boneca que encontrara no seu atrelado, uma boneca onde tinham posto o seu rosto, amaldiçoando-a, mais à descendência que pudesse vir a ter, a que vivesse no inferno dos mortos-vivos, e condenando Elizabeth Seal a passar o resto dos seus dias a sentir o peso da tampa do caixão da grande rainha a comprimir-lhe o coração. Então, os presentes, à medida que foram ficando assustados pelas suas declarações arrebatadoras e emocionadas, ajoelharam-se diante dela quando, finalmente, confessou:
Sou negra e tenho vivido escondida atrás de uma pele branca. Tenho sido punida e amaldiçoada por não respeitar a rainha Marie Laveau, a grande deusa do vodu. Todos os filhos que o meu ventre concebesse também estavam condenados a viver à sua sombra.
Elizabeth via claramente o que devia fazer, exactamente o que devia dizer, e o impacte das suas palavras fá-la-ia sentir-se mais forte do que alguma vez lhe acontecera na sua vida devastada. Ia libertar-se, os grilhões quebrar-se-iam. Já não precisava de Juda, nunca mais teria pesadelos, estava tudo terminado.
Elizabeth tinha a fotografia da filha na mão e a droga ia-lhe distorcendo a mente, levando-a a acreditar verdadeiramente que estava a jantar ao lado de Lloyd Dulay e que toda aquela cena estava a decorrer. Na realidade, este esperava por ela impacientemente no andar de baixo quando Missy, que não conseguira acordar Mrs. Caley, saiu do quarto de dormir a correr. Gritou-lhe que algo de mau acontecera.
Lloyd Dulay tomou o pulso de Elizabeth e apercebeu-se de que estava muito débil. Esta abriu os olhos, apenas uma vez, e sorriu-lhe, dizendo que já estava tudo bem, que já tudo terminara. Ao seu lado encontrava-se o vestido de noite preto, assim como os sapatos a condizer e a bolsinha de lantejoulas, tudo pronto a ser usado. Quando o médico chegou, já estava morta. Parecia em paz e tranquila, com um sorriso meigo e inocente nos lábios. Lloyd Dulay sentou-se numa cadeira, ao lado da cama.
Oh, Elizabeth, minha querida rainha.
Harper olhou para os seus homens. Falou pelo rádio, todo suado, e depois voltou a encaixar o aparelho no suporte do painel do carro.
Eles já estão no lado das traseiras, à espera. Nós entramos pela frente e mantemos o cerco o mais apertado possível, sem tiroteio, a não ser que... Bem, já não é a primeira vez, portanto mãos à obra.
Olhou para Lorraine.
Fique aqui! Assim que tivermos o sítio controlado pode entrar, mas só depois de eu lhe dizer. Vamos!
Fryer Jones estava sentado na ponta mais afastada do balcão com Raoul, a tentar recompô-lo o suficiente antes de o levar para casa e fazê-lo enfrentar a sua tia Juda. Os dois irmãos tinham ficado no quintal, completamente pedrados, no meio das grades de bebidas que era suposto terem empilhado. No bar estavam apenas alguns clientes habituais espalhados pelas mesas; aquilo só começava a animar depois da meia-noite. Sugar May entrara sorrateiramente e estava escondida no fundo, a falar com uma das prostitutas, imaginando alguém a quem imitar, quando aconteceu.
Fryer Jones viu, estupefacto, os homenzarrões entrarem de rompante pela porta das traseiras e da frente. Até Zak ficou de boca aberta. Há anos que ninguém lhes fazia uma rusga, pagavam um preço alto para que isso não acontecesse, daí que ninguém estivesse a perceber muito bem o que raio se passava. Copos partiram-se e espelhos estilhaçaram-se quando os gorilas irromperam sala dentro, berrando a quem estava para que se encostasse à parede. Era uma rusga. Os clientes levantaram os braços, aterrorizados, ao mesmo tempo que eram atirados contra a parede e outros corriam a abrigar-se debaixo das velhas mesas do bar.
Fryer, sentado no seu banco alto, voltou-se e gritou, enfurecido:
O que é que vocês estão a fazer, seus filhos da puta?
Os bastões golpearam cabeças, botas pontapearam virilhas, e não houve vivalma dentro daquele bar que não desejasse desaparecer paredes adentro. Fryer Jones berrava insultos. Os agentes estavam de roda dos clientes, perguntando-lhes os nomes entre socos e bastonadas. Um dos polícias de grande envergadura atirara virtualmente os dois irmãos Corbello ao chão, onde se enrolaram sobre si sob o impacte das botas, gritando desalmadamente que não tinham feito nada.
Raoul foi arrancado do seu lugar pelos cabelos, porém ninguém tocou em Fryer.
Acho bem que tenham um bom motivo para isto, seus filhos da puta gritou Fryer.
Lorraine, incapaz de esperar mais tempo, entrou no bar. Parecia o fim do mundo, só se ouviam gritos e berros, via-se gente encolhida pelos cantos a chorar sob a chuva de pontapés e bastonadas.
Lorraine gritou:
Isto é pelo Nick Bartello, Nick Bartelo.
Fryer franziu os olhos na penumbra que reinava ao fundo do bar, tentando ver de quem se tratava.
Cortaram-lhe a garganta num be’co, a um quarteirão daqui.
Fryer sacudiu a cabeça e apontou para Lorraine.
Você é uma cabra chanfrada, sabia?
Entretanto, os agentes atiravam a droga tirada de dentro da gaveta sob o balcão para cima do tampo deste. Dois outros subiram as escadas que iam dar ao quarto de Fryer Jones.
Rooney entrou a tempo de ver Fryer cuspir um jacto de cerveja para cima de Lorraine.
Vais pagar por isto, grande puta. Ninguém entra aqui e toma o meu bar de assalto. Ninguém!
Quer apostar, Mister Jones? Eu no seu lugar não o fazia, pois eles já o tomaram.
Rooney chegou-se mais perto e disse a um dos polícias que não parava de pontapear um tipo entalado entre as mesas:
Estou com ela, estou com Mistress Page.
Lorraine voltou-se e, ao ver Rooney, dirigiu-lhe um sorriso breve antes de encarar novamente Fryer.
Iremos todos embora, Fryer, assim que nos der o nome de quem cortou a garganta ao Nick Bartello. Não queremos mais nada, eu não quero mais nada, não acusaremos ninguém, ouviram todos? Não haverá acusações, mas queremos saber quem cortou a garganta ao meu amigo.
Um dos polícias que estivera a vasculhar o andar de cima apareceu à soleira da porta por trás do bar.
Mistress Page?
Lorraine virou-se para o agente, que lhe fez sinal para que se aproximasse mais um pouco, e arremessou a carteira de Nick Bartello para cima do balcão. Fryer olhou e depois franziu os lábios, praguejando. Ele bem tencionara destruir aquilo, mas agora estava tudo lixado. Não obstante, continuou a sorrir.
Vocês vão pagar por isto, seus cabrões, vão pagar. Lorraine aproximou-se mais dele, depois estendeu a mão e pegou-lhe no colar que tinha ao pescoço.
Isto pertence-lhe, Mister Jones, não é verdade? Fryer olhou para ela e riu-se.
Claro que pertence, doçura, fazemo-los aos milhares para o museu, quantos quer, hein? Aposto que vocês, seus filhos da puta, nem sequer têm mandado de busca para estar aqui!
O segundo polícia desceu as escadas. Trazia a carta de condução de Nick Bartello dentro de um saquinho de plástico, que atirou para cima do balcão.
Harper olhou para a carteira e para o documento, pousando finalmente o olhar em Lorraine.
Isto era do seu amigo?
Lorraine pegou na carteira vazia e examinou a carta de condução:
Sim, isto pertencia ao Nick Bartello respondeu. Harper levantou uma mão.
Muito bem, todos quietos. Vamos, silêncio! Voltou-se para Fryer Jones e puxou das algemas que trazia.
Muito bem, Fryer, puseste a pata na poça, desta não te livras.
É a primeira vez que vejo isso! declarou Fryer calmamente.
Harper prendeu-lhe rudemente as mãos atrás das costas com as algemas.
Bem, aquilo estava debaixo da sua almofada, Fryer, e é bem possível que tenha lá as suas impressões digitais. Portanto, vamos sair daqui sem fazer ondas, está bem?
Fryer Jones baixou a cabeça. Via Raoul a tremer a um canto, os irmãos encolhidos debaixo de uma mesa e Sugar May a chorar ao pé das prostitutas. Fryer levantou-se do banco, com as mãos algemadas nas costas. Ao passar por Lorraine, fitou-a.
Você tem o demónio dentro de si, mulher.
Fryer Jones recostou-se no banco do carro-patrulha e fechou os olhos. Nunca poderia denunciar os seus; se calhar, algum deles era mesmo seu filho. Portanto, suspirou e perguntou se podia levar o trombone consigo. Harper virou-se e ficou a olhar para ele ao ouvir o pedido, pois no fundo achava que Fryer Jones nada tinha a ver com Nick Bartello. Inclinou-se pela janela e gritou:
Tragam o raio do trombone a este velho chanfrado.
Lorraine sentou-se no banco de trás do carro de Francois e chorou, ladeada por Rooney e Rosie. Estes limitaram-se a aconchegá-la contra si, ela não precisava de que lhe dissessem nada. Na verdade, estavam todos comovidos, e a certa altura Francois perguntou-lhes se queriam que os levasse ao aeroporto.
Chegaram lá ainda com cinco minutos de avanço, de malas e bagagens intactas.
Fryer Jones tocou trombone na sua cela até os companheiros de infortúnio o mandarem calar, pois não conseguiam dormir. Ficou sentado, em silêncio, a olhar para a janela diminuta. Não denunciaria os rapazes Corbello, nem Ruby, nem nenhum deles. Achava que chegara a altura de assumir responsabilidades, de pagar pelos seus pecados; portanto, confessou ter morto Nick Bartello. Não pediu nenhum advogado, o único telefonema que fez foi para Juda Salina. Esta foi vê-lo, como ele esperava, toda engalanada com o seu turbante e as pestanas postiças.
A Elizabeth Caley morreu.
Hum, hum.
O corpo da Anna Louise Caley foi encontrado.
Hum, hum.
Juda suspirou, sem o fitar nos olhos.
A Ruby está pronta para ser coroada, sem sentimentos de culpa nem remorsos. Aquela rapariga preocupa-me... Oxalá ganhe juízo.
Hum, hum.
O Raoul voltou, só com metade das minhas economias.
E eu estou preso por um crime que não cometi. Agarrou nas barras com as mãos descarnadas. Faço isto por ti, Juda. Toma conta do meu bar e mantém aqueles jovens na linha.
Juda afagou-lhe a mão com ternura.
Porque o fazes, Fryer?.
Ele brindou-a com aquele seu sorriso feito de buracos e de dentes capeados a ouro.
- Porque já foste jovem e bela como a Ruby. Nada permanece jovem e belo, Juda, só as recordações. Agora vai e fica bem.
Juda tinha vontade de chorar, mas limitou-se a afastar-se. Ficou a ouvir o som do seu trombone durante muito tempo depois de sair. Ainda o escutava dentro do seu pequeno quarto na casa de Edith. A vida pregava daquelas partidas, ouviam-se coisas que não estavam ali, viam-se coisas que ainda não tinham acontecido. A vida estava cheia de coisas estranhas, sobretudo ali, em Nova Orleães, e sempre nas vésperas do Carnaval.
Rosie tinha a seu lado as malas feitas e dois caixotes enormes cheios.
Bem, tenho tudo aqui disse com tristeza. Olhou de novo em volta: sem os seus objectos, a casa parecia maior. Se ficares aqui, Lorraine, mais vale mandares renovar a cozinha.
Lorraine sorriu.
É essa a minha ideia, Rosie, fazer obras na casa. Ir para outro lado qualquer seria um desperdício de dinheiro, isto serve perfeitamente.
Rosie mordiscou o lábio.
Se precisares de alguém no teu escritório, poderás sempre chamar-me, sabes, em part-time. Estarei sempre disponível.
É bem provável. Sim, eu sei, já mo disseste quatro ou cinco vezes. Agora vamos aos cheques, tens aí os dois de que falámos?
Claro que tenho respondeu Rosie, dando pancadinhas na bolsa.
Lorraine sorriu.
Sabes, nunca pensei vir algum dia a passar cheques nesse montante, ainda por cima da minha conta. Estamos ricos, Rosie, ficamos os três com mais de um quarto de milhão. Portanto, diz-me: estás feliz?
Rosie abanou a cabeça em sinal afirmativo.
Bem, não é nada do outro mundo, mas acho que dará muito jeito. Vou tentar, e tu vê se não faltas às reuniões, ouviste?
Aguenta-te, pois detestaria ver-te perder esta oportunidade, Lorraine.
Rosie, eu sei que por pouco não deitei tudo a perder, mas garanto-te que já larguei aquilo e, se isso te faz sentir melhor, dou-te a minha palavra de que continuarei a ir às reuniões. Pedirei ao Jake que seja o meu mentor, que tal?
Rosie beijou a amiga e depois desatou a rir.
Oh, raios, vou ter saudades tuas.
Estava Rosie à beira das lágrimas quando Rooney chegou e apitou da rua. Rosie começou a descer com as malas e os caixotes, e ele apareceu para a ajudar, no meio de lamentos, a levar a tralha para baixo.
Não sei se isto vai resultar, Lorraine, mas pelo menos... Lorraine riu-se.
Vais tentar? Mas tu sabes que terás sempre trabalho na Agência de Investigações Page. Também já o disse à Rosie. O escritório abrirá segunda-feira de manhã. Tens o número?
Tenho, obrigado.
Acabaram por se despedir de vez. Era um pouco estranho, pois Lorraine sabia que, apesar de todas as ofertas de trabalho no futuro, era o fim da sua associação. Nem Rosie nem Rooney tocaram no assunto, mas tinham essa noção. Todos tinham essa noção.
Se calhar, vamos partir numa espécie de lua-de-mel prolongada murmurou Rooney.
Esplêndido, façam isso mesmo, mas não se esquecem de me convidar para o casamento, pois não?
Raios, não sejas parva.
Não havia mais nada para dizer, porém, como era o último momento, teimavam em não o largar. Não sabiam bem como fazer para sair por aquela porta; Lorraine empurrou-os dizendo que, quando estivessem todos instalados, fariam um belo jantar de celebração, mas para já queria-os dali para fora e que a deixassem em paz.
Rosie começou a chorar, e Rooney disse-lhe que fosse andando, voltando-se depois para Lorraine e semicerrando a porta.
Já sabes que, se precisares de alguma coisa, estarei sempre à tua disposição... no caso de esse problema da bebida se complicar. Ligas para mim, para nós, que viremos logo ter contigo.
Lorraine abraçou-o.
Bill, não te preocupes que eu fico bem, mas agradeço-te na mesma.
Rooney ficou a abraçá-la por instantes, depois virou-se abruptamente e saiu, deixando a porta de rede bater atrás de si.
Lorraine deixou-se cair em cima do sofá-cama, onde não mais teria de voltar a dormir. Ficaria com o quarto de Rosie só para si. De repente olhou em volta e sentiu-se bem. O seu quarto. O seu apartamento. Começaria a redecorá-lo já no dia seguinte, e deixou-se ficar a pensar nas cores, nos cortinados, mas de repente soergueu-se, praguejando. No meio de toda a excitação que rodeara o seu regresso a casa e do depósito do milhão de dólares, esquecera-se dele e da sua promessa.
Quando chegou, o canil estava quase a fechar. Lorraine fizera uma promessa e tencionava respeitá-la, mas, quando o responsável do canil lhe disse que ele só arranjara sarilhos desde o dia em que fora ali deixado, começou a ter dúvidas. Atacara todos os tratadores e os colegas de cativeiro da mesma box, pelo que passara a ficar sozinho.
Tiger não a cumprimentou, ficou sentado no canto mais afastado da sua box de rede, com os olhos azuis redondos e brilhantes a fitá-la com ar de poucos amigos.
Olá, rapaz, não tenhas medo, sou eu. O Nick não poderá levar-te para casa.
Tiger continuou sentado no mesmo lugar, começando a rosnar com os dentes à mostra.
Escuta, pá, é contigo, mas olha que não arranjas melhor do que eu. Se eu me for embora, resta-te a injecção letal. Percebes o que quero dizer?
Os olhinhos azuis mostraram medo e o cão baixou a cabeça.
Vá, Tiger, eles querem fechar e eu estou cansada.
Tiger levantou-se lentamente, de cabeça pendente, e aproximou-se dela. De repente a sua enorme cauda farfalhuda começou a abanar.
Muito bem, pá, toca a sair daqui.
Linda La Plante
O melhor da literatura para todos os gostos e idades