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SANGUE INFERNAL / James Rollins e Rebecca Cantrell
SANGUE INFERNAL / James Rollins e Rebecca Cantrell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Verão, 1606 - Praga, Boémia
Finalmente, está quase pronta...
No interior do seu laboratório secreto, o alquimista inglês, conhecido como John Dee, encontrava-se diante de uma campânula gigantesca feita de um vidro imaculado. Tinha altura suficiente para um homem caber em pé no seu interior. O trabalho espantoso fora realizado por um vidreiro conceituado na longínqua ilha de Murano, perto de Veneza. Fora necessária uma equipa de artesãos com enormes foles e uma técnica conhecida apenas por alguns mestres para girar e soprar durante um ano uma pérola colossal de vidro derretido transformando-a nesta escultura de perfeição. Depois disso, demorou mais cinco meses a transportar a preciosa campânula da ilha onde fora concebida para a corte gelada do Santo Imperador Rodolfo II no extremo norte. Quando chegou, o imperador ordenou a construção de um laboratório de alquimia secreto à sua volta, rodeado por oficinas que se estendiam a grande profundidade debaixo das ruas de Praga.
Tal acontecera há uns longos dez anos...
A campânula encontrava-se agora no cimo de um pedestal circular de ferro, num canto do laboratório principal. As extremidades do pedestal já tinham adquirido o tom vermelho da ferrugem há muito. Junto à metade inferior da campânula, encontrava-se uma porta redonda, também de vidro, trancada por fora por barras robustas e selada de forma que o ar não pudesse entrar ou sair.
John Dee tremia de frio onde se encontrava. Embora se sentisse aliviado por ver a sua tarefa quase completa, também estava assustado. Passara a odiar o aparelho infernal, conhecendo o terrível propósito por trás da sua conceção. Ultimamente, evitava a campânula o mais que conseguia. Durante vários dias, deambulara pelo seu laboratório, com a bata comprida manchada pelos químicos, a barba branca quase mergulhando nos frascos, os olhos lacrimosos evitando a superfície de vidro poeirenta da campânula.
Mas agora a minha missão está quase terminada.

 


 


Virou-se, aproximando-se da lareira. Com os dedos nodosos, remexeu os fechos elaborados e abriu uma pequena câmara esculpida no mármore. Apenas ele e o imperador sabiam da existência daquele pequeno compartimento.

Quando enfiou a mão no interior, ouviu-se um bater frenético atrás dele. Olhou para a campânula, para a criatura que se encontrava aprisionada no seu interior. A besta fora capturada por homens leais ao imperador e arrastada para ali há poucas horas.

Tenho de trabalhar rapidamente.

A besta ímpia batia contra o interior da campânula, como se pressentisse o que estava prestes a acontecer. Mesmo com a sua força sobrenatural, não conseguia libertar-se. Criaturas mais antigas e bastante mais fortes tinham-no tentado e falhado.

Ao longo dos últimos anos, John mantivera muitas destas criaturas enclausuradas dentro daquela cela de vidro.

Tantas...

Embora soubesse que estava seguro, o seu coração fraco batia de forma acelerada, a parcela animal do seu ser pressentia o perigo de uma forma que a sua mente lógica não conseguia contrariar.

Soltou um suspiro trémulo, colocou a mão no compartimento secreto da lareira e retirou um objeto envolto num pano oleado. O embrulho, atado com um cordão escarlate, tinha um revestimento de cera. Com cuidado para não partir o invólucro de cera, John levou o embrulho até à janela, segurando-o contra o peito. Apesar do pano oleado e da cera, uma frieza terrível emanava do objeto e entorpecia-lhe os dedos e as costelas.

Abriu ligeiramente as cortinas grossas, permitindo a entrada de uma nesga de luz do sol da manhã. Com as mãos a tremer, colocou o embrulho debaixo da poça de luz que se estendia por cima da sua secretária de pedra e posicionou-se do lado oposto de forma a garantir que nem a mais pequena sombra recaía sobre a superfície do objeto. Retirou uma faca afiada do cinto e cortou o revestimento de cera e o cordão escarlate. De forma muito cuidadosa, retirou o pano oleado, enquanto flocos de cera brancos se separavam e caíam em cima da sua secretária.

O sol checo das primeiras horas da manhã brilhava sobre o que se revelava agora do interior do casulo de cera e pano oleado: uma magnífica pedra preciosa, tão grande como a palma da sua mão, num tom brilhante de verde-esmeralda.

Contudo, não se tratava de uma esmeralda.

— Um diamante — sussurrou ele na sala silenciosa.

A sala encontrava-se novamente tranquila, com a criatura enclausurada na campânula a esconder-se do que brilhava em cima da secretária. Os olhos da besta moviam-se rapidamente de um lado para o outro enquanto a pedra preciosa refletia a luz e formava veios brilhantes cor de esmeralda nas paredes.

John ignorou o medo do prisioneiro e olhou diretamente para o coração do diamante, para a escuridão profunda que rolava no seu interior. Fluía como uma mistura de fumo e óleo, algo vivo, tão preso dentro do diamante como a criatura dentro da campânula.

Graças a Deus.

Tocou na gema gelada com um dedo. Segundo rezava a lenda, a pedra fora extraída de uma mina no Extremo Oriente. Tal como todas as boas pedras preciosas, dizia-se que esta carregava consigo uma maldição. Homens tinham matado para a possuir, morrendo pouco tempo depois de a terem nas suas mãos. Diamantes mais pequenos extraídos do mesmo filão adornavam as coroas de governantes longínquos, mas esta não fora utilizada para fins tão fúteis.

Com muito cuidado, ergueu o diamante verde. Tinham passado várias décadas desde que fora esvaziado. Dois joalheiros perderam a visão para criar o espaço oco no interior do luxuriante coração verde da gema, utilizando brocas minúsculas com ponta de diamante. Um fragmento de osso, tão fino que era quase translúcido, fechava a pequena abertura — um osso trazido de uma sepultura em Jerusalém há mais de mil anos —, o último fragmento intacto de Jesus Cristo.

Ou pelo menos era o que se dizia.

John tossiu. O gosto metálico encheu-lhe a boca, e cuspiu para dentro de um balde de madeira que mantinha junto à secretária. A doença que o consumia por dentro dava-lhe pouco descanso nos últimos tempos. Sentia dificuldade em respirar, pensando se era desta vez que não ia conseguir recuperar o fôlego. Ouvia-se a pieira produzida pelos seus pulmões, semelhante a um fole danificado.

Um bater abafado na porta assustou-o e a pedra escorregou-lhe por entre os dedos e caiu no chão de madeira. Lançou-se para apanhar o precioso objeto verde com um grito.

A pedra aterrou no chão, mas não se partiu.

Uma pontada de dor estendeu-se do coração de John até ao seu braço esquerdo. Caiu contra a perna maciça da secretária. Uma proveta estilhaçou-se no chão e espalhou o líquido amarelo pelas tábuas de madeira. Uma nuvem de fumo ergueu-se da ponta de um tapete de pele de urso estendido no chão.

— Mestre Dee! — Uma voz jovem soou do outro lado da porta. — Está ferido?

A tranca fez um estalido e a porta abriu-se.

— Afasta... — disse John com dificuldade. — Afasta-te, Vaclav.

Contudo, o jovem já entrara a correr para ajudar o seu mestre. Levantou John do chão.

— Está doente?

A doença de John estava muito além das capacidades de cura até dos mais poderosos alquimistas da corte de Rodolfo II. Tinha dificuldade em respirar e deixou que o rapaz o amparasse até a tosse acalmar. Contudo, a dor aguda que sentia no peito não diminuiu, como costumava acontecer.

O jovem aprendiz tocou cuidadosamente com os dedos na testa suada de John.

— Não dormiu a noite passada. A sua cama estava intacta quando cheguei esta manhã. Vim vê-lo — a voz de Vaclav esmoreceu quando olhou de relance para a campânula de vidro — e descobri a criatura aprisionada no seu interior.

Era algo que aqueles olhos jovens e inocentes nunca deveriam ter visto.

Um arquejo escapou dos lábios de Vaclav, um misto de surpresa e horror.

A criatura, por sua vez, fitou o rapaz com fome no olhar, encostando a palma da mão ao vidro. Uma única unha arranhou a superfície. Ela não se alimentava há vários dias.

O olhar de Vaclav fixou o corpo nu da mulher. Cabelo louro encaracolado descia pelos seus ombros redondos, caindo sobre os seios nus. Ela quase poderia ser considerada bonita. Mas, com a luz ténue que se escapava por entre as cortinas, o vidro espesso conferia um tom esverdeado à sua pele branca como a neve, como se já estivesse em decomposição.

Vaclav virou-se para John a fim de obter alguma explicação.

— Mestre?

O seu jovem aprendiz começara a servi-lo quando era ainda um rapazinho esperto de oito anos. John vira-o crescer e tornar-se um jovem com um futuro brilhante pela frente, com uma enorme capacidade para misturar poções e destilar óleos.

John gostava dele como se fosse um dos seus filhos.

Ainda assim, não hesitou quando ergueu a faca afiada e cortou a garganta ao rapaz.

Vaclav colocou as mãos sobre a ferida, os olhos fixos nos de John, incrédulo e traído. O sangue escorreu-lhe por entre os dedos e salpicou o chão. Caiu de joelhos, ambas as mãos a tentar apanhar o sangue da sua vida.

A criatura dentro da campânula atirou o corpo contra o vidro com tanta força que o pesado pedestal de ferro abanou.

Consegues cheirar o sangue? É isso que te excita tanto?

John inclinou-se para apanhar a pedra preciosa verde. Ergueu-a contra a luz do Sol para verificar o selo. A escuridão rolava no seu interior, como se procurasse uma fenda, mas não havia saída possível. Fez o sinal da cruz e murmurou uma oração de agradecimento. O diamante permanecia intacto.

John voltou a colocar a pedra sob a luz do Sol e ajoelhou-se junto a Vaclav. Afastou carinhosamente o cabelo encaracolado do rosto do jovem.

Os lábios pálidos de Vaclav moveram-se e a sua garganta gorgolejou.

— Perdoa-me — sussurrou John.

Os lábios de John formaram uma única palavra.

Porquê?

John nunca o conseguiu explicar ao jovem, nunca pagou pelo seu assassínio. Colocou as mãos em concha sobre a face do seu aprendiz.

— Preferia que nunca tivesses visto isto. Que tivesses vivido uma longa vida de estudo. Mas não foi essa a vontade de Deus.

Os dedos ensanguentados de Vaclav tombaram da sua garganta. Os seus olhos castanhos ficaram vítreos quando a morte chegou. Com dois dedos, John cerrou as pálpebras ainda quentes do jovem.

John baixou a cabeça e murmurou uma oração breve pela alma de Vaclav. Ele era um inocente e descansava agora num lugar melhor. Ainda assim, era um desperdício trágico.

A coisa dentro da campânula de vidro, o monstro que outrora fora humano, estabeleceu contacto visual com John. O seu olhar intenso movia-se do corpo de Vaclav para o rosto de John. A criatura devia ter conseguido perceber a angústia da situação porque, pela primeira vez desde que lhe fora entregue, sorriu, exibindo longas presas brancas, deliciada com a sua desgraça.

John levantou-se com dificuldade. A dor que sentia no coração não diminuíra. Tinha de terminar a sua tarefa rapidamente.

Atravessou a sala aos tropeções, fechou a porta que Vaclav deixara aberta e trancou-a. A única outra chave que existia desta sala encontrava-se no chão, na poça de sangue de Vaclav, que agora arrefecia. John não voltaria a ser incomodado.

Regressou à sua tarefa, deslizando um dedo pelo tubo de vidro que se estendia desde a campânula até à sua secretária. Examinou o seu comprimento à procura de falhas ou fendas, demorando o tempo necessário para o fazer.

Estou demasiado perto para cometer erros.

No final, o tubo estreitava e terminava numa abertura minúscula, pouco maior que o buraco de uma agulha de costura, o trabalho de um artesão no auge das suas capacidades. John afastou as cortinas grossas até um raio de sol da manhã cair sobre o pequeno terminal do tubo de vidro.

A sua dor no peito aumentou, imobilizando-lhe o braço esquerdo. Precisava da sua força agora, mas esta esmorecia rapidamente.

Com a mão direita trémula, pegou na pedra. Cintilava com a luz do Sol, bela e mortífera. Contraiu os lábios para controlar as tonturas e utilizou pinças prateadas minúsculas para puxar o fragmento de osso de uma das pontas da pedra.

O seu joelho tremeu, mas ele cerrou os maxilares. Agora que o fragmento fora retirado, tinha de manter a pedra banhada pela luz do Sol. Até mesmo uma ínfima sombra momentânea podia fazer com que a escuridão fuliginosa que se encontrava dentro da pedra escapasse para o mundo exterior.

Isso não podia acontecer... pelo menos, por enquanto.

A escuridão subiu pelas paredes da sua pequena prisão, tentando alcançar a abertura, mas parou, claramente receosa de se aventurar para a luz. O mal no interior devia, de alguma forma, pressentir que a luz do Sol tinha o poder de o destruir. O seu único refúgio continuava a ser o interior do coração verde do diamante.

Lentamente e com muito cuidado, John encaixou o pequeno orifício esculpido no diamante na abertura do tubo de vidro. A luz do Sol incidia sobre os dois.

Pegou numa vela com a chama tremeluzente que se encontrava sobre a secretária manchada e ergueu-a por cima do diamante, deixando a cera pingar sobre a gema e o tubo de vidro, criando uma junção hermeticamente fechada entre eles. Só então cerrou as cortinas e permitiu que a escuridão caísse sobre a gema verde.

A luz da vela iluminava a massa escura que se movia no interior do coração do diamante. Rodopiava, rastejando em direção à abertura. Susteve a respiração, observando a massa fluir na extremidade. Pareceu experimentar a junção selada e, só depois de descobrir que não existia qualquer saída para o laboratório, é que a escuridão subiu pelo tubo de vidro. Percorreu o comprimento do tubo e continuou o seu percurso inexorável em direção ao final do tubo — à campânula de vidro e à mulher no seu interior.

John abanou a sua cabeça grisalha. Apesar de ter sido humana, já não era uma mulher. Ele não se devia permitir vê-la como tal. Ela acalmara e encontrava-se imóvel no centro da campânula. Os seus luminosos olhos azuis estudavam-no.

A pele dela brilhava branca como alabastro, o cabelo como fios de ouro, ambos com uma tonalidade aquosa verde através do vidro espesso. Ainda assim, ela era a criatura mais bela que alguma vez vira. Ela encostou uma palma da mão ao vidro. A luz da vela tremeluzia por entre os magníficos dedos compridos.

Atravessou a sala e colocou a sua mão sobre a dela. O vidro estava frio ao toque. Mesmo sem a dor e a fraqueza que se apoderavam dele, John sempre soubera que esta seria a sua última. Ela era a sexcentésima sexagésima sexta criatura que se encontrava aprisionada naquele caixão. A sua morte completaria a sua tarefa.

Os lábios dela formaram uma única palavra, a mesma de Vaclav.

Porquê?

Ele não lhe conseguia explicar, da mesma forma que não conseguira explicar ao seu aprendiz morto.

O olhar da criatura dirigiu-se para a escuridão que rastejava cada vez mais perto da sua prisão.

À semelhança das outras criaturas, ela ergueu a mão na direção da névoa sórdida que entrava agora na sua cela de vidro. Os seus lábios moveram-se silenciosamente, o seu rosto extasiado.

Nos primeiros anos, John sentira vergonha ao observar esta comunhão sombria e íntima, mas este sentimento já o tinha abandonado há muito. Inclinou-se sobre o vidro, tentando chegar o mais próximo possível. Até mesmo a dor no peito desapareceu enquanto observava.

No interior da campânula, o fumo negro juntou-se no cimo da cela, formando uma névoa de gotículas minúsculas que choveram sobre a única ocupante da cela. A humidade fluiu ao longo dos dedos brancos e dos braços erguidos. A criatura lançou a cabeça para trás e gritou. John não precisou de ouvir o seu grito para reconhecer o seu êxtase. Ela pôs-se em bicos dos pés, com o peito erguido, estremecendo à medida que as gotículas lhe acariciavam o corpo, tocando todo o seu ser.

Estremeceu uma última vez e, depois, colapsou contra o vidro, o seu corpo agora sem vida no fundo da campânula.

A névoa pairou sobre a sua figura, à espera.

Está feito.

John afastou-se da campânula. Contornou o corpo de Vaclav e dirigiu-se apressadamente para a janela. Abriu totalmente as cortinas, o suficiente para o sol da manhã beijar a parede da campânula. O corpo amaldiçoado da rapariga incendiou-se no interior, juntando o seu fumo nauseabundo à névoa expectante.

A neblina negra, agora mais densa com a essência da rapariga, fugiu da luz do Sol, retirando-se para o único caminho escuro que lhe fora deixado: o tubo de vidro que levava de volta ao diamante. Recorrendo a um espelho de mão prateado, John refletiu a luz ao longo do tubo, perseguindo a escuridão terrível e encaminhando-a de volta ao coração esmeralda da pedra preciosa, ao seu único lugar de refúgio neste mundo iluminado.

Quando a escuridão estava novamente aprisionada, John quebrou o selo de cera com muito cuidado, libertando o diamante do tubo. Manteve a abertura minúscula sempre iluminada pela luz do Sol enquanto transportava o diamante para o pentagrama que desenhara no chão há muito tempo. Colocou a pedra no centro, ainda exposta à luz.

Está quase...

John desenhou cuidadosamente um círculo de sal à volta do pentagrama. Enquanto o fazia, entoava orações. A sua existência estava quase a chegar ao fim, mas pelo menos iria realizar o sonho da sua vida.

Abrir um portal para o mundo angelical.

Mais de seiscentas vezes, desenhara este mesmo círculo, mais de seiscentas vezes, entoara estas mesmas orações. Contudo, no seu íntimo, sabia que desta vez seria diferente. Lembrou-se do versículo do Livro do Apocalipse: É aqui que é preciso sabedoria. Quem for dotado de inteligência calcule o número da Besta, porque é o número de um homem, e o seu número é: seiscentos e sessenta e seis.

— Seiscentos e sessenta e seis — repetiu ele.

Esse era o número de criaturas que já aprisionara na campânula, o número de essências que recolhera neste mesmo diamante após as suas mortes flamejantes. Demorara uma década a encontrar tantas, a aprisioná-las e a juntar a essência do mal que dava vida a estas criaturas malditas. Agora, essas mesmas energias abririam o portal para o mundo angelical.

Cobriu o rosto com as mãos, tremendo da cabeça aos pés. Tinha tantas perguntas a fazer aos anjos. Desde os tempos documentados pelo Primeiro Livro de Enoque que os anjos não vinham ao encontro do Homem sem serem enviados por Deus. Desde essa altura que o Homem não beneficiava da sua sabedoria.

Mas eu vou trazer a sua luz para a Terra e partilhá-la com toda a humanidade.

Dirigiu-se para a lareira e acendeu uma vela comprida. Percorreu o círculo com ela na mão, acendendo cinco velas colocadas nas pontas do pentagrama. As chamas amarelas pareciam fracas e insubstanciais à luz do Sol, tremeluzindo com a corrente de ar da janela.

Por fim, fechou as cortinas e a escuridão engoliu a sala.

Voltou apressadamente para junto do pentagrama e ajoelhou-se na borda do círculo.

Da pequena abertura da pedra preciosa fluiu um fumo leitoso, movendo-se de forma hesitante, talvez pressentindo que o mundo exterior ainda brilhava com o novo dia. Depois, pareceu ficar mais ousado, dirigindo-se velozmente para John, como que para o possuir, para o fazer pagar pelo longo aprisionamento. No entanto, o círculo de sal manteve-o afastado.

Ignorando a ameaça, a voz de John sibilava juntamente com o crepitar da lareira, enquanto recitava palavras em língua enoquiana, uma língua que se pensava há muito perdida para a humanidade.

— Eu ordeno-te, Mestre das Trevas, que me mostres a luz que é o oposto das tuas sombras.

Dentro do círculo, a nuvem negra estremeceu uma, duas vezes, expandindo-se e contraindo-se como um coração vivo, ficando maior a cada batimento.

John juntou as mãos à sua frente.

— Protege-me, Senhor, enquanto contemplo a glória que criaste.

A escuridão juntou-se numa forma oval suficientemente grande para um homem ficar dentro dela.

Palavras murmuradas roçaram a orelha de John.

— VEM A MIM...

A voz surgiu do portal.

— SERVE-ME...

John pegou numa vela apagada que se encontrava ao lado do seu joelho e acendeu-a com uma das velas do pentagrama. Ergueu a vela, suplicando novamente a proteção de Deus.

Surgiu um novo ruído, como se algo se tivesse mexido do outro lado do portal, acompanhado por um som de metal a bater em metal.

As palavras regressaram, entrando-lhe na mente.

— DE TODOS OS MORTAIS, ENCONTREI EM TI UM SER DIGNO.

John levantou-se e deu um passo na direção do círculo, mas o seu pé roçou a mão de Vaclav. Parou, sentindo de repente que não era digno de contemplar tal glória.

Eu matei um inocente.

A sua confissão silenciosa foi ouvida.

— A GRANDEZA TEM O SEU PREÇO — foi-lhe assegurado. — POUCOS ESTÃO DISPOSTOS A PAGÁ-LO. TU NÃO ÉS COMO OS OUTROS, JOHN DEE.

John tremeu com estas novas palavras, sobretudo com as últimas duas.

O meu nome é conhecido, proferido por um anjo.

Oscilava entre o orgulho e o medo, a sala parecia andar à volta. A vela caiu-lhe dos dedos. Ainda acesa, rolou para dentro do círculo e depois atravessou o portal, iluminando o que se encontrava escondido do outro lado.

Ficou boquiaberto com a figura incrivelmente majestosa que se encontrava sentada num trono brilhante de ébano. A luz da vela refletia os olhos negros como o óleo, num rosto de uma beleza austera, cada linha parecia esculpida em ónix. No cimo deste belíssimo semblante encontrava-se uma coroa partida de prata, a sua superfície baça e manchada de preto, as suas pontas recortadas semelhantes a chifres. Para lá dos ombros largos erguiam-se duas asas poderosa, cujas penas eram negras e brilhantes como as de um corvo. Estendiam-se muito alto, envolvendo a forma nua no seu abraço.

A figura moveu-se para a frente, perturbando as correntes prateadas e baças que envolviam a sua figura perfeita, prendendo-a ao trono.

John sabia quem contemplava.

— Tu não és um anjo — murmurou ele.

— SOU... E SEMPRE FUI. — Embora a voz suave inundasse a sua mente, os lábios da criatura não se moviam. — AS TUAS PALAVRAS CONVOCARAM A MINHA PRESENÇA. QUE MAIS SERIA EU?

A dúvida pairava no peito de John, juntamente com uma dor crescente. Cometera um erro. A escuridão não convocara a luz... em vez disso, convocara a escuridão.

Enquanto contemplava horrorizado, um elo da corrente que prendia a figura estilhaçou-se. Prata pura cintilou do pedaço fragmentado. A criatura estava a libertar-se.

A visão quebrou o transe em que John se encontrava. Afastou-se do círculo e dirigiu-se aos tropeções para a janela. Não podia deixar esta criatura da escuridão entrar neste mundo...

— ALTO...

Aquela sílaba única de comando provocou uma dor aguda na cabeça de John. Não era capaz de pensar, mal se conseguia mexer, mas forçou-se a avançar. Com mãos que mais pareciam garras, agarrou a cortina grossa e puxou com toda a sua força débil.

O veludo rasgou-se.

A luz do Sol inundou a sala, incidindo sobre a campânula, a secretária, o círculo e, por fim, o portal da escuridão. Um grito penetrante ouvui-se atrás dele, fazendo com que o seu crânio quase rebentasse.

Era demasiado.

Mas foi o suficiente.

Quando John Dee caiu inanimado no chão, a sua derradeira visão foi a escuridão a fugir da luz, retirando-se para o seu refúgio no interior da pedra preciosa. Ofereceu uma última oração pelo mundo ao abandoná-lo.

Que ninguém encontre nunca esta pedra maldita...

Ao meio-dia, soldados estilhaçaram a porta do laboratório com um aríete. Os homens ajoelharam-se no corredor quando o próprio imperador passou por eles a correr.

— Não levantem a cara do chão — ordenou ele.

Os soldados obedeceram sem questionar.

O imperador Rodolfo II passou pelas suas figuras prostradas e entrou na sala, assimilando o pentagrama, as poças de cera e os dois corpos no chão, o alquimista e o seu jovem aprendiz.

Rodolfo sabia o que as suas mortes significavam.

John Dee falhara.

Não olhando duas vezes para os cadáveres, Rodolfo entrou no círculo místico e recuperou o precioso diamante que se encontrava no centro. Uma massa negra ondeava malevolamente no interior do seu coração verde como uma folha. Uma fúria gelada emanava da pedra e tentava atingir a mente de Rodolfo, mas não podia fazer mais do que isso. O que quer que Dee tivesse feito, contivera o mal.

Mantendo a pedra brilhante à luz do Sol, Rodolfo fechou a abertura com o fragmento de osso que se encontrava abandonado a um canto da secretária, translúcido como um floco de neve, mas ainda assim poderoso. Acendeu uma vela e selou o osso ao diamante usando gotas de cera que lhe queimaram os dedos.

Depois disso, sentou-se na velha cadeira. Com movimentos cuidadosos, cobriu a pedra verde e a escuridão que continha com um pano oleado novo. Em seguida, atou o embrulho e aproximou-o de um caldeirão de cera morna que Dee mantinha sempre junto à lareira. Rodolfo mergulhou o embrulho para garantir que a cera o selava perfeitamente.

Olhou de relance para os homens que se encontravam no corredor. Estavam como lhes fora ordenado, os rostos colados ao chão. Satisfeito com o facto de não estar a ser observado, abriu o compartimento da lareira e enfiou o objeto maldito no interior. Em língua enoquiana, murmurou uma breve oração de proteção antes de fechar a porta secreta.

Por agora, o mal estava oculto.

A fadiga afetava-lhe agora os membros. Já há muito tempo que não descansava adequadamente e também não era hoje que o faria. Com um suspiro, caiu na cadeira junto à secretária de Dee e pegou num pedaço de pergaminho que se encontrava numa pilha desorganizada. Mergulhou uma pena num tinteiro de prata e começou a escrever em alfabeto enoquiano. Muito poucos conheciam os segredos desta língua.

Quando terminou, o imperador dobrou o papel duas vezes, selou-o com cera preta e pressionou o selo do seu anel no líquido quente. Um homem da sua confiança sairia a cavalo dentro de uma hora para entregar o pergaminho.

O imperador procurava ajuda.

Precisava do conselho da única pessoa que se embrenhara tão profundamente quanto Dee no mundo da luz e dos anjos negros. Olhou fixamente para os corpos no chão, rezando para que ela conseguisse reverter os danos causados aqui.

Ergueu a carta escrita à pressa. A luz do Sol brilhou sobre as letras pretas do seu nome famoso.

Condessa Elisabeta Bathory de Ecsed


PRIMEIRA PARTE

Efetivamente, Jesus estava a dizer-lhe: «Sai desse homem, espírito impuro!»

Perguntou-lhe em seguida: «Qual é o teu nome?»

Respondeu: «Legião é o meu nome, porque somos muitos.»

— SÃO MARCOS, 5: 8-9


CAPÍTULO 1

17 de março, 16h07 CET
Cidade do Vaticano

Não sejas apanhada.

Este aviso mantinha todos os músculos do corpo da doutora Erin Granger tensos ao agachar-se por detrás do expositor de postais no meio da sala de leitura da Biblioteca Apostólica Vaticana. Frescos elaborados adornavam a superfície branca do teto alto e abobadado que se encontrava por cima da sua cabeça. Prateleiras e mais prateleiras dos livros mais raros do mundo estendiam-se de ambos os lados. A biblioteca continha acima de setenta e cinco mil manuscritos e mais de um milhão de livros.

Em circunstâncias normais, enquanto arqueóloga, este era precisamente o tipo de lugar onde adoraria passar horas e dias a fio, mas ultimamente tornara-se mais uma prisão do que um local de descoberta.

Hoje, tenho de fugir daqui.

Ela não estava sozinha nesta conspiração. O seu cúmplice era o padre Christian, que se encontrava de pé ao seu lado, à vista de todos, apressando-a silenciosamente, acenando com a mão. Ele aparentava ser um padre jovem, alto, com cabelo castanho-escuro e olhos verdes penetrantes, as maçãs do rosto definidas, a pele perfeita. Podia ser facilmente confundido com um jovem de vinte e muitos anos, mas era várias décadas mais velho do que isso. Fora em tempos um monstro, um antigo strigoi, uma criatura que sobrevivia de sangue humano. No entanto, há muito que se juntara à Ordem Católica dos Sanguinistas e fizera o voto de viver eternamente através do sangue de Cristo. Era agora um sanguinista e um dos poucos em quem Erin confiava implicitamente.

Assim, acreditava na sua palavra no que dizia respeito a esta desconhecida que se encontrava agora ao seu lado.

A jovem freira, a irmã Margaret, estava escondida com Erin atrás do expositor. Respirava pesadamente, tentando despir o hábito escuro com alguma dificuldade, a sua touca já no chão entre elas. Dava para perceber que ela era humana pela transpiração visível sobre a sua sobrancelha. Erin jurava que conseguia ouvir o bater frenético do coração da freira. Era provável que espelhasse o seu.

— Aqui — disse Margaret, sacudindo a cabeça para libertar o seu longo cabelo louro, cruzando o olhar de Erin com os seus olhos de um tom escuro de âmbar.

A irmã Margaret tinha a mesma estatura e cor de Erin, o que era essencial para o seu plano.

Erin vestiu o hábito de Margaret pela cabeça. A sarja preta arranhou-lhe as faces. O tecido cheirava a lavado. Deslizou o hábito ao longo do corpo e ajeitou-o sobre as ancas o melhor que conseguiu, mantendo-se sempre agachada. Margaret ajudou-a a colocar a touca branca na cabeça, ajustando-a à volta do rosto de forma a cobrir-lhe o cabelo louro, escondendo algumas madeixas soltas.

Quando terminou, a freira recostou-se para trás sobre os calcanhares, a avaliar minuciosamente o disfarce de Erin.

— O que achas? — perguntou Christian pelo canto da boca, apoiando um braço sobre o expositor de postais de forma a ocultar o que fazia.

Margaret acenou com a cabeça, satisfeita. Erin parecia agora uma freira vulgar, praticamente anónima, na Cidade do Vaticano, onde apenas os turistas e os padres ultrapassavam em número as freiras de hábito.

De forma a completar o disfarce, Margaret colocou um cordão preto com uma cruz prateada grande ao pescoço de Erin e deu-lhe um anel prateado. Erin deslizou o círculo quente no dedo anelar, apercebendo-se de que nunca usara um anel naquele dedo.

Trinta e dois anos e nunca casei.

Ela sabia que o seu pai, que falecera há muito, teria ficado horrorizado com tal perspetiva para a sua filha. Ele pregara ardentemente que o dever mais importante de uma mulher era criar bebés que servissem a Deus. É claro que ele ficaria igualmente mortificado se soubesse que ela frequentara uma escola secular, obtivera um doutoramento em arqueologia e passara os últimos dez anos a provar que a maior parte da história registada na Bíblia não tinha origens miraculosas. Se ele já não a tivesse banido quando ela fugira da religião na adolescência, então agora iria amaldiçoá-la. No entanto, Erin já fizera as pazes com tudo isso.

Há alguns meses, fora-lhe oferecido um vislumbre da história secreta do mundo, um mundo que não era passível de ser explicado pelos livros que estudara na escola ou pela ciência que constituía a base de toda a sua crença pessoal. Conhecera o seu primeiro sanguinista, a prova viva de que os monstros existiam e de que a devoção religiosa podia subjugá-los.

Ainda assim, continuava a ser uma cética, ainda questionava tudo. Só depois de conhecer um, de ver a sua ferocidade e de examinar os seus dentes pontiagudos, é que aceitara a existência dos strigoi. Erin confiava apenas no que podia verificar por si mesma, razão pela qual insistira neste plano.

Margaret apanhou o cabelo louro num rabo de cavalo, como Erin usava habitualmente. Por baixo do hábito, a freira já tinha vestido um par de calças de ganga de Erin e uma das suas camisolas brancas de algodão. À distância, seria facilmente confundida com Erin.

Ou, pelo menos, espero que seja.

Ambas se viraram para Christian para uma última aprovação. Ele ergueu os polegares, depois inclinou-se e sussurrou ao ouvido de Erin.

— Erin, o perigo que tens pela frente é real. Onde estás prestes a entrar é um local proibido. Se fores apanhada...

— Eu sei — respondeu ela.

Christian entregou-lhe um mapa dobrado e uma chave. Erin tentou agarrá-los, mas o padre segurou-os com força.

— Estou disposto a ir contigo — continuou ele, os seus olhos brilhantes de preocupação. — Basta dizeres.

— Mas não podes — replicou ela. — Sabes disso.

Erin olhou de relance para Margaret. Para este disfarce resultar, Christian tinha de ficar na biblioteca. Ele fora designado guarda-costas de Erin. E legitimamente. Nos últimos tempos, o número de ataques strigoi por toda a cidade de Roma aumentara de forma significativa. Algo provocara os monstros. E não apenas por aqui. Relatos de todo o mundo indicavam uma mudança no equilíbrio entre a luz e as trevas.

Mas o que estaria a causar isso?

Erin tinha as suas suspeitas, mas queria obter confirmação antes de as partilhar, e esta investida hoje poderia dar-lhe algumas das respostas de que precisava.

— Tem cuidado — disse Christian largando por fim o mapa e a chave.

Depois pegou na mão de Margaret e ajudou-a a levantar-se. Era esperado que toda a gente pensasse que a loira ao lado de Christian fosse Erin, mantendo a ausência desta indetetada.

— O teu sangue — murmurou Erin. Ela precisaria tanto deste último item como da chave.

Christian acenou ligeiramente com a cabeça e entregou-lhe um pequeno frasco de vidro que continha alguns mililitros do seu próprio sangue negro. Erin colocou o frasquinho no outro bolso, junto à pequena lanterna.

Christian tocou na cruz que trazia ao peito e sussurrou:

— Vai-te a eles.

Em seguida, apressou a irmã Margaret a sair de trás do expositor de postais e a dirigir-se à mesa onde Erin deixara a sua mochila e o seu bloco de notas. Erin olhou fixamente para a mochila, detestando deixá-la para trás. No seu interior, selado numa pasta especial, encontrava-se um tomo mais precioso do que toda a multitude de volumes antigos guardada nos arquivos secretos do Vaticano.

O Evangelho de Sangue.

O livro de profecias fora escrito por Cristo, escrito com o Seu sangue divino. Apenas algumas páginas do livro se tinham revelado. Erin imaginou aquelas linhas ardentes a ganharem vida naquelas páginas brancas antigas. Eram estrofes de profecias crípticas. Algumas já tinham sido decifradas; outras ainda permaneciam um mistério a ser desvendado. No entanto, o mais intrigante eram as centenas de páginas brancas que ainda não tinham revelado o seu conteúdo oculto. Dizia-se que aqueles segredos podiam conter todo o conhecimento do universo, de Deus, do significado da existência e do que se encontrava para além disso.

Erin sentia a boca seca só de pensar em deixar para trás aquela imensurável fonte de conhecimento. O orgulho também lhe percorria o corpo, sabendo que tal conhecimento lhe era dirigido. Antes, nos desertos do Egito, o livro tinha sido ligado a ela. As suas palavras só podiam ser lidas se ela segurasse o livro nas suas mãos. Assim, até àquele momento, Erin levara-o consigo para todo o lado, nunca o perdendo de vista.

Mas agora tinha de o fazer.

As freiras não andavam com mochilas às costas e, para o seu disfarce resultar, tinha de deixar o precioso tomo nas mãos capazes de Christian.

E quanto mais depressa fizer isto, mais depressa poderei regressar.

Este pensamento fez com que se pusesse de pé. Tinha muito para fazer e, se não estivesse de volta ao final do dia, quando a biblioteca encerrasse, seriam apanhados. Tentando ignorar esse pensamento, manteve-se curvada para a frente para que não lhe vissem o rosto. Respirou fundo e saiu de trás do expositor para o murmúrio sereno da biblioteca.

Ninguém pareceu prestar-lhe atenção enquanto se dirigia lentamente para a porta da entrada. Esforçou-se por se manter calma. Os sanguinistas tinham sentidos de tal maneira apurados que eram capazes de ouvir o bater do coração humano. Podiam desconfiar de uma freira a caminhar por uma biblioteca tranquila com o ritmo cardíaco acelerado.

Passou por várias filas de prateleiras e por estudiosos sentados às secretárias de madeira polida com pilhas de livros. Muitos desses estudiosos tinham esperado muitos anos para visitar este lugar. Encontravam-se debruçados de forma reverente sobre as suas tarefas, tão devotos como qualquer padre. Em tempos, Erin não fora muito diferente deles, até ter descoberto uma ramificação alternativa e mais profunda da história. Textos bem conhecidos e caminhos familiares já não a satisfaziam.

E ainda bem que assim era. Tais caminhos da escolástica já não se encontravam à sua disposição. Erin fora recentemente afastada do seu cargo na Universidade de Stanford após a morte de um estudante numa escavação arqueológica em Israel. Ela sabia que devia estar a preparar-se para o futuro, a preocupar-se com a sua carreira a longo prazo, mas nada disso importava. Se ela e os outros não fossem bem-sucedidos, ninguém teria de se preocupar com o futuro.

Erin empurrou a pesada porta da biblioteca e saiu para a rua, para a luminosa tarde italiana. O sol da primavera sabia-lhe bem no rosto, mas não tinha tempo para se demorar por ali e gozar o calor. Acelerou o passo, percorrendo apressadamente a Cidade Sagrada em direção à Basílica de São Pedro. Havia turistas por todo o lado a consultar mapas e a apontar.

Fizeram com que Erin abrandasse, mas acabou por conseguir chegar à majestosa e imponente basílica. O edifício simbolizava o poder papal e quem olhasse para ele não podia deixar de reconhecer a sua força e grandiosidade. Embora conhecesse o seu propósito austero, a beleza da sua fachada e as suas enormes cúpulas maravilhavam-na sempre.

Erin dirigiu-se de imediato para as portas gigantescas e passou sem ser intercetada por ninguém entre colunas de mármore tão altas que se estendiam ao longo de dois pisos. Enquanto atravessava o átrio e entrava na nave da enorme basílica, olhou de relance para a Pietà de Miguel Ângelo à sua direita, uma escultura pesarosa da Virgem Maria com o corpo morto do filho ao colo. A visão funcionou como um lembrete e fez com que Erin acelerasse o passo.

Muito mais mães vão lamentar a morte dos filhos se eu falhar.

Ainda assim, Erin não sabia bem o que estava a fazer. Nos últimos dois meses examinara minuciosamente a Biblioteca do Vaticano, à procura da verdade por detrás da última profecia do Evangelho de Sangue: Em conjunto, o trio deverá enfrentar a sua derradeira demanda. Os grilhões de Lúcifer foram abertos e o seu Cálice permanece perdido. Será necessária a luz dos três para forjar um novo Cálice e para o banir novamente para a escuridão eterna.

O lado cético de Erin — aquele lado que ainda tinha dificuldade em aceitar a verdade sobre strigoi e anjos e milagres que se desenrolavam à frente dos seus olhos — perguntava-se se a tarefa era sequer possível.

Voltar a forjar um cálice antigo antes de Lúcifer fugir do Inferno?

Parecia mais um mito de outrora do que um ato a ser realizado nos tempos modernos.

No entanto, ela era um membro do trio profético referenciado no Evangelho de Sangue. Os três indivíduos eram o Cavaleiro de Cristo, o Homem Guerreiro e a Mulher Sábia. E, enquanto mulher sábia, o dever de Erin era descobrir a verdade por detrás daquelas palavras crípticas.

Os outros dois membros do trio aguardavam a sua solução, mantendo-se ocupados com as suas próprias tarefas enquanto ela trabalhava nas bibliotecas do Vaticano, tentando encontrar respostas. Nenhum deles se encontrava em Roma de momento, e ela sentia a falta de ambos, querendo-os ao seu lado, nem que fosse apenas para expor a sua multitude de teorias.

É claro que era mais do que isto no caso do sargento Jordan Stone, o Homem Guerreiro. Poucos meses depois de se terem conhecido, ela apaixonara-se pelo militar duro e atraente, com os seus olhos azuis penetrantes, humor descontraído e inabalável sentido de dever. Ele era capaz de a fazer rir nas alturas mais stressantes e já lhe salvara a vida inúmeras vezes.

Então, o que havia para não amar naquele homem?

Não amo a tua ausência.

Era um pensamento egoísta, mas também sincero.

Ao longo das últimas semanas, ele começara a distanciar-se dela e de tudo o resto. Ao início, Erin pensou que ele estava aborrecido por estar afastado do seu trabalho normal no exército por ter sido destacado para ajudar os sanguinistas contra a sua vontade. Mas, ultimamente, desconfiava que o seu afastamento se devia a algo mais profundo e que o estava a perder.

As dúvidas atormentavam-na.

Talvez ele não queira o mesmo tipo de relação que eu quero...

Talvez não seja a mulher certa para ele...

Ela detestava pensar nisso.

O terceiro membro do trio, o padre Rhun Korza, era ainda mais problemático. O Cavaleiro de Cristo era um sanguinista. Ela aprendera a respeitar o seu código moral consistente, as suas incríveis aptidões de luta e a sua dedicação à Igreja, mas também o receava. Pouco depois de se conhecerem, ele bebera o seu sangue num momento de absoluta necessidade e quase a matara nos túneis escuros sob a cidade de Roma. Até mesmo agora, enquanto atravessava a Basílica de São Pedro, conseguia lembrar-se sem qualquer dificuldade dos dentes afiados a penetrar-lhe a garganta, o estranho êxtase daquele momento, selando o ato como simultaneamente erótico e perturbador. A memória assustava-a e fascinava-a em igual medida.

Assim, por enquanto, os dois permaneciam parceiros próximos, embora alguma prudência pairasse entre eles, como se ambos soubessem que a linha que fora transposta naqueles túneis nunca poderia ser completamente esquecida.

Talvez tenha sido por isso que Rhun desapareceu de Roma nos últimos meses.

Erin suspirou, novamente desejando que os dois homens estivessem ali, mas sabendo que a tarefa que tinha pela frente era somente sua. E era uma tarefa e tanto. Se o trio tinha de voltar a forjar algo chamado Cálice de Lúcifer, ela tinha de descobrir alguma pista sobre a natureza do cálice profético. Já pesquisara nos arquivos do Vaticano: desde as suas criptas subterrâneas a esboroar-se com a idade às prateleiras no cimo da Torre dei Venti, a Torre dos Ventos, cujos degraus tinham sido percorridos no passado pelo próprio Galileu. No entanto, apesar de todo o seu estudo, ainda não descobrira nada. Havia apenas mais uma biblioteca por explorar, uma coleção proibida a qualquer pessoa com batimento cardíaco.

A Bibliotheca dei Sanguines.

A biblioteca privada da Ordem dos Sanguinistas.

Mas primeiro tenho de lá chegar.

A biblioteca encontrava-se situada muito abaixo da Basílica de São Pedro, em túneis reservados a membros da Ordem dos Sanguinistas, a esses strigoi que tinham jurado servir a Igreja, que tinham abandonado o consumo de sangue humano para sobreviver apenas do sangue de Cristo — ou, mais precisamente, do vinho transubstanciado pela bênção e oração naquela essência sagrada.

Erin caminhou mais depressa pela vasta basílica, reparando que havia mais Guarda Suíça Pontifícia do que era habitual. A cidade-estado estava em alerta máximo devido ao surto de ataques strigoi. Mesmo com o nariz constantemente enfiado nos livros, Erin ouvira histórias de que os monstros envolvidos nesses assassínios eram, de alguma forma, mais fortes, mais rápidos e mais difíceis de matar.

Mas porquê?

Era outro mistério, um mistério cuja resolução poderia estar naquela biblioteca secreta.

Ao longo dos últimos meses, Erin lera milhares de manuscritos poeirentos, pergaminhos antigos e tábuas de argila. Os textos encontravam-se em várias línguas, escritos por muitas mãos, mas nenhum deles continha a informação de que precisava.

Isto é, até há dois dias...

Na Torre dos Ventos, Erin descobrira um velho mapa escondido entre as páginas de um exemplar do Livro de Enoque. Consultara esse antigo texto judaico, um livro cuja escrita fora atribuída ao bisavô de Noé, porque a obra era sobre anjos caídos e os seus descendentes híbridos, conhecidos como Nefilim. Fora Lúcifer quem liderara esses anjos caídos durante a Guerra Celeste. No final, fora banido por ter desafiado o plano divino para a humanidade.

No entanto, quando abriu o volume antigo na Torre dos Ventos, caiu um mapa de entre as suas páginas. Fora desenhado com uma tinta preta espessa num pedaço de papel amarelado e anotado com uma caligrafia medieval elegante, mostrando outra biblioteca na Cidade do Vaticano ainda mais antiga do que qualquer uma das outras.

Foi a primeira vez que teve conhecimento desta biblioteca secreta.

Segundo o mapa, esta coleção encontrava-se escondida dentro do Santuário, no labirinto de túneis e divisões por baixo da Basílica de São Pedro, onde habitavam muitos sanguinistas. Naqueles túneis antigos, os sanguinistas juntavam-se para passar incontáveis anos das suas vidas imortais em silenciosa contemplação e oração, longe das preocupações do mundo luminoso que se encontrava centenas de metros acima. Alguns viviam naqueles corredores há séculos, sobrevivendo com apenas alguns goles de vinho sacramental. Todos os dias aquelas figuras imóveis eram alimentadas com o vinho por padres, que lhes seguravam cálices de prata junto aos lábios pálidos. Procuravam apenas paz, e o acesso aos seus túneis era cuidadosamente controlado.

De acordo com o mapa no seu bolso, o Santuário continha os arquivos mais antigos do Vaticano. Consultara Christian em privado sobre este lugar, descobrindo que a maioria dos documentos lá escondidos tinha sido escrita por sanguinistas imortais que passaram pelos acontecimentos no mundo antigo. Alguns chegaram mesmo a conhecer Cristo. Outros já eram velhos muito antes desse tempo, convertidos à ordem após centenas de anos de selvajaria enquanto strigoi ferozes.

Embora a entrada no Santuário fosse interdita a humanos, Erin já lá tinha ido uma vez, acompanhada por Rhun e Jordan. O trio levara o Evangelho de Sangue até ao lugar mais sagrado dos sanguinistas para ser abençoado pelo fundador da Ordem dos Sanguinistas, uma figura conhecida como o Ressuscitado. Contudo, ela descobrira nessa altura que ele tinha um nome bastante mais significativo para a história bíblica.

Lázaro.

Ele fora o primeiro strigoi que Cristo pusera ao seu serviço.

Depois de descobrir a existência desta biblioteca, Erin confrontou o líder atual da ordem em Roma, o cardeal Bernard. Pediu permissão para entrar naquela biblioteca a fim de continuar a sua investigação, mas esta foi firmemente recusada. O cardeal mostrou-se inflexível relativamente a permitir a entrada de humanos. Também assegurou a Erin que a biblioteca continha apenas informação sobre a ordem, nada que a ajudasse na sua demanda.

Erin não ficara surpreendida com a reação do cardeal. Bernard tratava o conhecimento como um tesouro precioso que devia ser guardado a sete chaves.

Ela tentara jogar o seu trunfo. «O próprio Evangelho de Sangue me sagrou Mulher Sábia», relembrou ao cardeal Bernard, citando a profecia recente revelada no deserto. «A Mulher Sábia está agora vinculada ao livro e ninguém o pode separar dela.»

Ainda assim, o cardeal recusara-se a ceder. «Já li muitos dos livros dessa biblioteca e em grande profundidade. Ninguém nesse santuário alguma vez caminhou ao lado de Lúcifer e dos seus anjos caídos. As histórias da sua queda foram escritas muito depois de esta ter acontecido. Assim, não existe nenhum relato em primeira mão de como Lúcifer caiu ou onde caiu, onde se encontra aprisionado, ou como os grilhões que o mantêm preso na escuridão eterna foram forjados ou como poderiam ser novamente forjados. Seria uma perda de tempo procurar as respostas nessa biblioteca, mesmo que o seu acesso não fosse proibido.»

Ao fitar intensamente os seus austeros olhos castanhos, Erin apercebeu-se de que não seria capaz de quebrar aquelas regras antigas. Isso significava que iria ter de encontrar o seu próprio caminho lá em baixo.

Olhou fixamente para os últimos metros da basílica, na direção da estátua de São Tomé, o apóstolo que duvidava de tudo até lhe serem apresentadas provas. Erin esboçou um leve sorriso no meio do seu nervosismo.

Aí está um apóstolo com o qual me identifico.

Continuou a caminhar em direção à estátua. Por baixo dos seus pés encontrava-se uma pequena porta. Esta não costumava ser vigiada, mas, quando Erin se dirigiu a ela, viu um guarda pontifício de pé, parcialmente escondido na ombreira da porta. Cerrou os maxilares e afastou-se para o lado, ficando fora do seu campo de visão. Ela sabia quem era o culpado por esta nova aquisição.

Raios te partam, Bernard.

O cardeal devia ter colocado ali um guarda depois da sua discussão acesa anterior, desconfiado que ela pudesse tentar esgueirar-se para ali sozinha.

Erin procurou uma solução e descobriu-a numa menina a poucos passos de distância. A criança parecia ter uns oito ou nove anos e estar terrivelmente aborrecida, arrastando os pés pelas lajes de mármore. Rolava uma bola de ténis verde-fluorescente entre as palmas das mãos. Os pais deambulavam vários metros à frente dela e falavam num tom animado.

Movendo-se rapidamente, Erin acompanhou o passo da menina.

— Olá.

A menina olhou para cima, semicerrando os olhos azuis, desconfiada. Sardas salpicavam-lhe o nariz e o cabelo ruivo estava apanhado em dois puxos.

— Olá — disse relutantemente a menina em inglês, como se soubesse que tinha de responder a uma freira.

— Podes emprestar-me a tua bola?

A menina escondeu a bola de ténis atrás das costas.

Está bem, nova tática.

Erin levantou a mão, revelando uma nota de cinco euros entre os dedos.

— Então, se calhar posso comprá-la?

Os olhos da criança arregalaram-se, contemplando a tentação, depois atirou a bola felpuda na direção de Erin, aceitando a troca, ao mesmo tempo que olhava sorrateiramente para as costas dos pais.

Com o negócio feito, Erin esperou que a criança se afastassse e se juntasse aos pais. Em seguida, atirou a bola num arco longo pela nave em direção a um pequeno grupo de pessoas a vários metros do guarda. A bola bateu na nuca de um homem baixo de sobretudo cinzento.

O homem soltou um grito estridente, praguejando em italiano e provocando uma confusão que ecoou pelo amplo espaço. Tal como esperava, o guarda pontifício foi investigar o sucedido.

Erin usou a distração para se aproximar da porta e meter a chave que Christian lhe dera na fechadura. Pelo menos as dobradiças pareciam estar bem oleadas quando Erin abriu a porta. Depois de entrar, fechou-a atrás de si e trancou-a, o seu coração a bater desenfreadamente.

Colocou a palma da mão contra a porta, cada vez mais preocupada. Como é que vou sair daqui sem ser apanhada?

No entanto, sabia que era demasiado tarde para pensar nisso.

Havia apenas um caminho.

Ligou a lanterna e examinou o que estava ao seu redor. Um túnel comprido estendia-se à sua frente. O teto abobadado parecia ter quase três metros e as paredes encurvavam-se. Junto à porta encontrava-se uma mesa de carvalho poeirenta com velas de cera de abelha e fósforos em cima. Erin pegou em alguns deles, mas não os acendeu. Seriam úteis caso as pilhas da lanterna falhassem.

Retirou o mapa do bolso. Nas costas, Christian desenhara um esquema dos túneis que conduziam ao Santuário propriamente dito. Sabendo que não podia voltar atrás, pegou na saia pesada com uma mão e pôs-se a caminho. Tinha de percorrer, pelo menos, um quilómetro e meio antes de chegar ao portão do Santuário.

A luz da lanterna saltava para cima e para baixo à medida que ela percorria apressadamente o caminho, o seu estreito feixe de luz movia-se à sua frente, revelando entradas de túneis secundários. Ela contava-os entredentes.

Se virar no sítio errado, posso perder-me neste labirinto durante vários dias.

O medo fê-la mover-se mais depressa à medida que descia escadas estreitas e atravessava o labirinto de túneis. O frasquinho com o sangue de Christian batia-lhe na anca, lembrando-a de que o preço a pagar pelo conhecimento era, por vezes, sangue. Esta era uma mensagem que lhe fora incutida desde pequena, tornada excecionalmente real quando o seu pai descobriu um livro escondido debaixo do colchão dela. A voz áspera do pai ecoava aos seus ouvidos, transportando-a de volta ao passado.

«O que aconteceu a Eva quando comeu da árvore do conhecimento?», perguntou-lhe o pai, agigantando-se sobre a versão de nove anos de Erin, as suas poderosas mãos de agricultor cerradas em punhos ameaçadores ao lado do corpo.

Erin não tinha a certeza se devia responder à pergunta e permaneceu em silêncio. Ele ficava sempre mais irritado com o que ela dizia do que quando ficava calada.

O livro, O Almanaque do Agricultor, encontrava-se aberto no chão de tábuas de madeira bem varridas, a luz da lâmpada incidia sobre as suas páginas beges. Até àquele dia, apenas lera a Bíblia porque o pai lhe dissera que continha todo o conhecimento de que ela alguma vez precisaria.

No entanto, nas páginas do almanaque, Erin descobriu novos conhecimentos: quando plantar sementes, quando fazer a colheita, as datas das fases da Lua. Até continha algumas anedotas, que acabaram por ser a sua desgraça. Ela rira demasiado alto e fora apanhada, sentada de pernas cruzadas debaixo da sua secretária a ler.

«O que aconteceu a Eva?», insistiu o pai, a sua voz grave e ameaçadora.

Erin decidiu proteger-se com citações bíblicas, mantendo a sua atitude discreta e sóbria. «E os olhos de ambos abriram-se e viram que estavam nus.»

«Qual foi o seu castigo?», continuou o pai.

«E à mulher ele disse, irei multiplicar a tua dor e a tua conceção.»

«E é essa a lição que vais aprender pela minha mão.»

O pai obrigou-a a escolher um ramo de salgueiro e a ajoelhar-se à sua frente. Obediente, ela ajoelhou-se no chão limpo da mãe e levantou o vestido, tirando-o pela cabeça. A sua mãe fizera-o para ela e Erin não o queria sujar. Dobrou-o cuidadosamente e colocou-o no chão ao seu lado. Depois agarrou os joelhos frios e preparou-se para receber os golpes.

Ele fazia-a sempre esperar muito tempo pelo primeiro, como se soubesse que a antecipação da dor era quase tão má quanto o próprio golpe. Sentia arrepios a percorrer-lhe a coluna. Pelo canto do olho, vislumbrou o almanaque e não se arrependeu.

O primeiro golpe atingiu-lhe a pele e Erin mordeu o lábio para não gritar alto. Se o fizesse, o pai ia bater-lhe mais. Ele bateu nas costas nuas de Erin até o sangue escorrer e ensopar-lhe a roupa interior. Mais tarde, ela teria de limpar os salpicos de sangue vermelho-vivo das paredes e do chão. Mas, antes, tinha de aguentar os golpes e esperar até o pai decidir que já vertera sangue suficiente.

Erin estremeceu com esta memória, os túneis escuros tornando tudo, de alguma forma, mais real. Até agora sentia pontadas nas costas, como que recordando a velha dor e a lição aprendida.

O preço a pagar pelo conhecimento era sangue e dor.

Mesmo antes de as suas costas sararem, Erin regressara ao escritório do pai e lera o resto do almanaque em segredo. Uma secção continha a previsão do tempo. Durante um ano, Erin monitorizou o tempo para ver se os autores tinham razão e constatou que estavam errados muitas vezes. E apercebeu-se de que as coisas nos livros podiam estar erradas.

Até mesmo na Bíblia.

Naquela altura, o medo do castigo não a detivera.

E não me vai deter agora.

Os seus pés batiam na pedra, conduzindo-a até chegar, por fim, à porta do Santuário. Não era a entrada principal para o território deles, mas antes uma porta das traseiras raramente utilizada, que dava para uma biblioteca. Esta porta parecia uma parede branca com uma alcova minúscula que continha uma bacia de pedra, bastante semelhante a uma pequena tigela ou taça.

Ela sabia o que tinha de fazer.

O portal secreto só podia ser aberto com o sangue de um sanguinista.

Meteu a mão no bolso e retirou o frasquinho de vidro de Christian. Examinou o sangue negro que turvava o interior. O sangue dos sanguinistas era mais espesso e mais escuro que o dos humanos. Movia-se com vontade própria, correndo pelas veias sem necessitar de um coração a pulsar. Era tudo o que sabia sobre a essência que sustentava os sanguinistas e os strigoi, mas, de súbito, queria saber mais, descobrir os segredos daquele sangue.

Mas não agora.

Esvaziou o conteúdo escuro do frasco na bacia de pedra, enquanto proferia palavras em latim. «Este é o Cálice do Meu Sangue, do novo e eterno Testamento.»

O sangue rodopiou dentro da taça, movendo-se sozinho, provando o seu estado sobrenatural.

Erin susteve a respiração. Será que o portal rejeitaria o sangue de Christian?

A resposta surgiu quando a poça negra se infiltrou na pedra, desaparecendo sem deixar rasto.

Erin deixou escapar um suspiro, sussurrando as últimas palavras: «Mysterium fidei.»

Afastou-se da parede selada, sentindo o coração a latejar na garganta. De certeza que algum sanguinista ouviria aquele batimento denunciador e saberia que ela se encontrava à entrada.

Ouviu-se o som pesado da pedra a raspar sobre a pedra e abriu-se lentamente uma passagem diante dela.

Deu um passo em direção à escuridão expectante, lembrando-se da lição dolorosa do seu pai. O preço a pagar pelo conhecimento é sangue e dor.

Que assim seja.


CAPÍTULO 2

17 de março, 16h45 CET
Cumas, Itália

Porque é que estou sempre enfiado debaixo de terra?

O sargento Jordan Stone arrastava-se apoiado sobre os cotovelos pelo túnel exíguo. Pressionado por rocha por todos os lados, a única maneira de continuar era contorcendo-se como uma minhoca. Enquanto prosseguia com dificuldade, a terra e a poeira passavam-lhe através do cabelo e caíam-lhe sobre os olhos.

Pelo menos, ainda estou em movimento.

Impulsionou-se para a frente mais alguns metros.

Uma voz com um sotaque acentuado gritou do túnel à frente, encorajando-o.

— Estás quase!

Era Baako. Jordan imaginou o sanguinista alto que surgira de algures em África. Na semana anterior, quando Jordan lhe perguntara de que país vinha exatamente, Baako respondera de forma vaga, limitando-se a dizer: Tal como muitas outras nações em África, o país de onde venho já teve muitos nomes e é provável que venha a ter ainda mais no futuro.

Era uma resposta típica dos sanguinistas: dramática e praticamente inútil.

Jordan olhou para a frente. Conseguia discernir vagamente um brilho ténue, uma promessa de que este maldito túnel tinha chegado a uma caverna interior. Jordan apressou-se a seguir em direção à luz.

Naquele dia, Baako descera a este túnel descoberto há pouco tempo, regressando com a informação de que conduzia diretamente aos templos sibilinos. Uma batalha terrível fora travada na caverna há poucos meses, quando um rapaz inocente fora oferecido em sacrifício numa tentativa de abrir os portões do Inferno. O esforço falhou e, em seguida, um enorme terramoto selou o local.

Enquanto rastejava, outra voz com um melodioso sotaque indiano surgiu atrás dele e apressou-o a continuar, gozando com ele.

— Talvez não devesses ter comido tanto ao pequeno-almoço.

O sargento olhou para trás, para Sophia, discernindo a sua silhueta ágil. Ao contrário do sisudo Baako, esta sanguinista em particular parecia sempre prestes a rir, a sombra constante de um sorriso nos seus lábios, os olhos escuros a brilhar de diversão. Ele costumava apreciar o seu sentido de humor.

Neste momento, não.

Jordan esfregou a poeira dos olhos irritados.

— Pelo menos, eu ainda como ao pequeno-almoço — gritou-lhe ele de volta.

Jordan cerrou os maxilares e continuou em frente, querendo ver pessoalmente o que restava daquele templo após a batalha. A seguir ao terramoto, o Vaticano interditara toda esta montanha vulcânica. A Igreja não podia deixar ninguém encontrar os corpos, sobretudo os dos strigoi e os dos seus irmãos e irmãs sanguinistas mortos.

Uma típica operação «salva-a-tua-pele».

Visto que o Vaticano era o seu novo patrão depois de o exército o destacar para ali, Jordan viu-se envolvido nessa operação de encobrimento. Mas não se queixava. Significava que podia passar mais tempo com Erin.

Ainda assim, e embora essa perspetiva o devesse ter animado, algo o preocupava, uma sombra escura que lhe toldava as emoções. Não é que já não a amasse. Amava. Ela era inteligente e sexy e engraçada, mas essas qualidades pareciam interessar-lhe cada vez menos à medida que o tempo passava.

Tudo parecia interessar-lhe cada vez menos.

Era evidente que ela também o sentia. Ele via-a a fitá-lo com um ar intrigado, muitas vezes com uma expressão angustiada. Sempre que ela mencionava o assunto, ele dizia-lhe para não se preocupar, recorrendo a uma piada ou a um sorriso que nunca lhe chegava ao coração.

Que raio se passa comigo?

Ele não sabia, por isso fez o que fazia melhor: colocou um pé à frente do outro. Continuou a trabalhar, mantendo-se distraído. Tudo acabaria por se resolver.

Ou, pelo menos, assim espero.

E se não fosse por mais nada, trabalhar aqui proporcionava-lhe algum tempo longe de Erin, permitindo-lhe encontrar o equilíbrio que há muito perdera. Não que tivesse muito tempo livre. Ao longo da última semana tinham retirado os corpos dos túneis da montanha, deixando os restos mortais dos strigoi arderem até desaparecerem sob o sol italiano, e resgatando os corpos dos sanguinistas para serem devidamente enterrados. O passado de Jordan no exército fora ao serviço da investigação forense. Era uma experiência mais do que adequada à tarefa que tinham em mãos.

Sobretudo quando este túnel fora descoberto.

Ninguém se lembrava de ter visto esta passagem misteriosa antes e, pelo ar recentemente escavado das paredes à volta, parecia ter sido aberta há pouco tempo.

Um facto que apresentava um dilema interessante: o túnel teria sido construído por alguém que escavava para baixo, em direção à caverna do templo, ou por alguém que tentava trepar para fora, vindo de baixo?

Nenhuma das perspetivas era boa, mas Jordan descera agora para investigar.

Por fim, Jordan saiu a custo do túnel e estatelou-se no chão de pedra duro. Baako ajudou-o a levantar-se, puxando-o sem qualquer esforço, como se se tratasse de uma criança em vez de um soldado de quase dois metros de altura.

Uma pequena lâmpada no chão da caverna oferecia alguma iluminação, mas Jordan ligou a lanterna do seu capacete, ao mesmo tempo que Sophia emergia do túnel, pondo-se graciosamente de pé, com um aspeto praticamente impecável.

— Exibicionista — repreendeu ele, sacudindo a poeira da roupa.

O fantasma constante do sorriso de Sophia tornou-se mais evidente. Afastou o cabelo curto preto das maçãs do rosto morenas e salientes enquanto examinava o local. Com o seu olhar sobrenatural e apurado, não precisava da lâmpada ou da luz do capacete de Jordan para ver.

Jordan invejava a visão noturna de Sophia. Esticando o pescoço ao máximo, olhou em volta. Quando respirou fundo, o cheiro a enxofre encheu-lhe as narinas, mas não era tão intenso como da última vez que ali estivera, durante a luta, quando uma fenda larga no chão fumegava, libertando fumo e enxofre escaldante.

Ainda assim, um novo odor sobrepunha-se ao enxofre.

O cheiro nauseabundo e familiar dos mortos.

Jordan reparou nos corpos de vários strigoi espalhados à sua direita, despedaçados e queimados, a sua pele estalada e rasgada. Uma parte de si queria virar-se e fugir dali, um instinto natural quando se é confrontado com um tão horrendo matadouro, mas tinha uma missão. Recorrendo à sua experiência para se acalmar, pegou numa câmara de vídeo e filmou a divisão. Demorou o seu tempo, certificando-se de que filmava cada corpo, mais por força de hábito do que por qualquer outra razão. Jordan trabalhara como investigador de cenas de crime no Departamento Forense da Expedição Conjunta do Exército no Afeganistão, e aprendera a ser meticuloso.

Continuou a percorrer a caverna, filmando o altar de pedra, tentando não se lembrar do rapaz, Tommy, que ali fora acorrentado, e do seu sangue a correr para o chão. O sangue angelical do rapaz fora o agente catalisador para abrir o portal para o submundo e, no final, a coragem desse mesmo rapaz fora decisiva para o fechar.

Tommy também deixara a sua marca em Jordan, curando-o com um toque da palma da sua mão. Jordan ainda conseguia sentir aquela impressão, que parecia queimar cada vez mais a cada dia que passava.

— Bem — disse Baako, trazendo Jordan de volta ao presente —, o que achas?

Jordan baixou a câmara.

— É certo que... mudou desde que aqui estivemos pela última vez.

— Como assim? — perguntou Sophia, juntando-se a eles.

Jordan apontou para uma pilha de ratos mortos a um canto.

— Eles são recentes.

Baako atravessou a caverna, pegou num dos pequenos corpos e cheirou-o. Isto fez Jordan encolher-se.

— Interessante — disse Baako.

— Como é que isso é interessante? — inquiriu Jordan.

— Foi drenado de sangue.

Sophia pegou no rato, examinou-o e confirmou o mesmo.

— O Baako tem razão.

A franzina mulher indiana estendeu o corpo do rato a Jordan.

— Eu acredito na tua palavra — disse ele. — Mas, se vocês têm razão, isso significa que algo esteve aqui em baixo a alimentar-se dos ratos.

O que podia significar apenas uma coisa...

Jordan colocou a mão na pistola-metralhadora que tinha no coldre. Uma Heckler & Koch MP7. A arma era compacta e potente, capaz de disparar 950 munições por minuto. Sempre fora a sua arma de eleição, só que agora o seu carregador estava cheio de balas de prata. Também olhou para o punhal KA-BAR banhado a prata que tinha preso ao tornozelo.

— Um dos strigoi deve ter sobrevivido ao ataque — disse Sophia.

Baako olhou de relance para o túnel.

— Deve ter-se alimentado de ratos até ficar forte o suficiente para cavar o túnel e sair.

— Talvez não tenha sido um strigoi — interrompeu Jordan, com o coração a latejar na garganta, quando, de súbito, algo lhe ocorreu. — Ajuda-me a examinar os corpos.

Sophia lançou-lhe um olhar inquisitivo, mas os dois sanguinistas obedeceram. Um a um, examinaram os rostos dos mortos.

— Ele não está aqui — disse Jordan.

Baako franziu o sobrolho.

— Quem é que não está aqui?

Jordan imaginou o rosto infantil do seu antigo amigo, alguém em quem confiara totalmente; essa confiança tinha sido atraiçoada naquela caverna.

— O irmão Leopold — murmurou Jordan para a escuridão. Dirigiu-se para um local, onde o sangue ainda manchava o chão de pedra. — Rhun apunhalou Leopold neste preciso lugar. Foi aqui que ele caiu.

O seu corpo desaparecera.

Baako fez um gesto a abarcar a divisão.

— Já revistei a gruta. O terramoto selou todas as outras passagens.

Jordan apontou a luz do capacete para o túnel estreito e disse:

— Por isso, ele cavou a sua própria passagem.

Jordan fechou os olhos, vendo novamente Rhun a dar a extrema-unção a Leopold, o sangue deste a formar uma enorme poça debaixo do seu corpo. Com um ferimento francamente fatal, como poderia Leopold ter sobrevivido e, ainda por cima, arranjado forças para cavar um túnel dali para fora? Não podia haver assim tanto valor nutritivo naquela pilha de ratos.

A mesma pergunta devia pairar na mente de Sophia.

— O túnel tem, pelo menos, trinta metros de comprimento — disse ela. — Acho que nem mesmo um sanguinista saudável conseguia cavar com as próprias mãos toda esta terra e pedra.

Baako ajoelhou-se ao lado da mancha de sangue no chão de pedra, avaliando a sua extensão.

— Foi derramado muito sangue. Este irmão devia estar morto.

Jordan acenou com a cabeça, chegando à mesma conclusão, e disse:

— O que significa que nos escapou algo.

Jordan regressou ao túnel, examinou a caverna, depois começou a caminhar lentamente num padrão em grelha, procurando algo que pudesse explicar o que acontecera. Moveram corpos, procurando debaixo deles. Jordan chegou mesmo a pôr-se de gatas para examinar a velha fenda no chão, junto ao altar, descobrindo um fina linha dourada onde esta se fechara.

Sophia agachou-se ao seu lado e deslizou a sua mão morena sobre o comprimento total da fenda.

— Parece fechada.

— Isso são boas notícias, pelo menos — disse Jordan, endireitando-se e batendo com a cabeça na parte de baixo do altar, o que lhe entortou o capacete.

— Cuidado aí, soldado — disse Sophia, dissimulando um ligeiro sorriso.

Jordan voltou a pôr o capacete direito. Ao fazê-lo, a lâmpada do capacete iluminou dois pedaços do que parecia ser vidro, verde como os cacos de uma garrafa de cerveja partida, caídos na sombra do altar.

Hum...

Calçou um par de luvas de látex e pegou num dos dois pedaços.

— Parece uma espécie de cristal.

Ergueu o pedaço mais alto. À luz da lâmpada, arcos-íris de luz refletiam-se das superfícies partidas. Examinou a ponta estilhaçada, depois voltou a colocar o fragmento junto ao outro. Os dois pareciam ter feito parte de uma única pedra, do tamanho de um ovo de ganso, agora partida em dois. Encaixou as metades uma na outra, reparando que a pedra parecia ser oca por dentro, tal como um ovo.

Baako olhava fixamente por cima do ombro de Jordan.

— Já o tinhas visto? Talvez durante a batalha?

— Que me lembre, não, mas estava a acontecer muita coisa ao mesmo tempo. — Jordan rodou o objeto para o examinar de todos os ângulos. — Mas repara aqui.

A ponta do seu dedo enluvado pairava sobre linhas embutidas na superfície cristalina. Formavam um símbolo.

Jordan olhou de relance para Sophia.

— Já tinhas visto alguma coisa assim?

— Eu não.

Baako encolheu ligeiramente os ombros e disse:

— Parece-se vagamente com uma taça.

Jordan apercebeu-se de que ele estava certo, mas talvez não representasse apenas uma taça.

— Talvez seja um cálice.

Sophia ergueu uma sobrancelha, cética.

— Como o Cálice de Lúcifer?

Desta vez, Jordan encolheu os ombros.

— Pelo menos, vale a pena investigarmos.

E conheço uma certa rapariga que ficaria muito intrigada com isto.

Com o telemóvel, Jordan tirou várias fotografias da pedra e do símbolo, com a intenção de as enviar a Erin por correio eletrónico assim que tivesse rede.

— Eu devia voltar para a superfície e enviar isto à...

O som de algo a raspar atraiu a atenção de todos de volta para o túnel. Uma figura escura serpenteou da escuridão até à luz. Jordan mal teve tempo de se aperceber das presas da criatura, antes de esta se lançar diretamente sobre ele.


CAPÍTULO 3

17 de março, 11h05 EET
Siwa, Egito

Uma ponta de remorsos inflamava o coração silencioso de Rhun. Encontrava-se sentado sobre os calcanhares na base de uma duna alta e ouvia o leve sibilar dos grãos de areia a descer pelas encostas egípcias. Dava-lhe uma imensa sensação de paz profunda estar ali, sozinho, a fazer o trabalho de Deus.

Mas até essa pureza foi maculada por uma escuridão que lhe invadia os sentidos. Virou-se lentamente na sua direção, compelido pela bússola que se encontrava submersa nas profundezas do seu sangue imortal. Quando se inclinou para a frente, à procura da sua origem, a luz do Sol brilhou na cruz de prata que tinha pendurada ao pescoço. O seu manto negro roçava na areia, enquanto a palma da sua mão percorria a superfície quente do deserto, deslizando sobre os grãos finos. As pontas dos dedos inquisitivas pressentiam uma semente de malevolência por baixo da superfície.

Tal como um corvo à caça de uma minhoca escondida debaixo de terra, Rhun inclinou a cabeça, dirigindo a sua atenção para um ponto na areia. Assim que teve a certeza, retirou uma pequena pá da sua mala e começou a cavar.

Há várias semanas, Rhun chegara com uma equipa de sanguinistas encarregados de cumprir esta mesma tarefa. No entanto, os fragmentos do mal desenterrados aqui ameaçaram dominar os outros, consumi-los totalmente. No final, ele obrigara-os a abandonar o local de escavações e a voltar para Roma.

Ao que parecia, Rhun, sozinho, era capaz de suportar o mal enterrado aqui.

Mas o que é que isso diz da minha própria alma?

Rhun passou por uma peneira cada pazada de areia escaldante, como uma criança na praia. Contudo, aquilo não era trabalho para crianças. A peneira não retinha conchas nem pedras.

Em vez disso, capturava pedaços de pedra em forma de lágrimas, negros como obsidiana.

O sangue de Lúcifer.

Há mais de dois milénios, uma batalha fora travada por Cristo, ainda criança na altura, neste areal, entre Lúcifer e o Arcanjo Miguel. Lúcifer foi ferido e o seu sangue derramado na areia. Cada gota ardeu com um fogo profano, derretendo minúsculos grãos de areia e formando estes fragmentos corrompidos de vidro. Acabaram por ficar soterrados com o passar do tempo, e era agora tarefa de Rhun trazê-los de volta à luz.

Apareceu uma única gota negra, capturada no fundo da peneira.

Rhun pegou na gota e segurou-a durante alguns momentos na palma da mão em forma de concha. Queimava em contacto com a sua pele nua, mas sem a intenção de o corromper, como aos outros sanguinistas. Ao contrário deles, Rhun não viu cenas de derramamento de sangue e de terror, de luxúria e tentação. Em vez disso, as orações enchiam a sua mente.

Abrindo uma bolsa de pele ao seu lado, Rhun deixou cair a pedra negra no seu interior. Bateu noutras duas, que encontrara naquele mesmo dia. As gotas eram agora mais pequenas e mais difíceis de encontrar. A sua tarefa estava quase terminada.

Rhun suspirou, olhando fixamente para a grande extensão de areia vazia.

Eu podia ficar... fazer deste deserto o meu lar.

Um barril de vinho santificado esperava por ele no acampamento. Não precisava de mais nada. Bernard enviara-lhe um recado a pedir que aumentasse os seus esforços, pois era preciso em Roma quanto antes. Assim, de forma relutante, tinha de partir, embora não quisesse que esta missão terminasse.

Pela primeira vez em muitos séculos, sentia-se em paz. Há alguns meses, redimira-se do seu maior pecado ao restituir a alma à sua antiga amada, transformando-a de strigoi em mulher humana. É claro que Elisabeta — ou Elizabeth, como preferia ser chamada agora — não lhe agradecera por isso, tendo-o amaldiçoado por lhe ter devolvido a sua mortalidade, mas Rhun não precisava da gratidão dela. Procurava apenas redenção e encontrara-a muitos séculos depois de ter perdido a esperança de a alcançar.

Quando se endireitou, esquecendo a sua tarefa, ouviu um lamento distante. Tentou ignorá-lo enquanto fechava cuidadosamente a bolsa de pele e arrumava as suas ferramentas. Contudo, o som persistia, queixoso e aflitivo.

Deve ser apenas uma criatura do deserto qualquer...

Iniciou a subida em direção ao acampamento, mas o som perseguiu-o, entrando-lhe nos ouvidos, destruindo a sua sensação de paz. Era agudo, como o silvo de um gato. A irritação cresceu dentro dele, juntamente com uma ponta de curiosidade.

O que se passava com aquela criatura?

Chegou ao seu pequeno acampamento e pensou numa forma de desmontar a tenda e de arrumar o equipamento de modo a não deixar qualquer rasto da sua passagem por ali.

Ainda assim, nenhum dos seus pensamentos foi capaz de atenuar a dor daquele lamento nos seus ouvidos. Era como ouvir o arranhar de um ramo seco no vidro da janela do quarto. Quanto mais se tentava ignorar e voltar a adormecer, mais alto o som se tornava.

Tinha, no máximo, mais uma noite sozinho no deserto. Se não fizesse nada em relação àquele lamento, nunca seria capaz de desfrutar dos seus últimos momentos de paz.

Olhou fixamente para o local de onde vinha o som, deu um passo, depois outro em direção à sua origem. Sem dar por isso, correu pela areia iluminada pelo sol, voando sobre as dunas. À medida que se aproximava, o som tornava-se mais alto, atraindo-o de forma inexplicável para a frente. Uma parte dele reconheceu algo de pouco natural nesta caçada, de como o atraía, mas, de qualquer modo, continuou cada vez mais depressa.

Por fim, avistou a origem do barulho à distância. O lamento vinha de uma acácia que espalhava uma grande sombra. A árvore do deserto devia ter encontrado uma fonte de água subterrânea, as suas raízes resistentes lutavam pela sobrevivência nesta terra seca. O tronco espinhoso estava inclinado para um dos lados, uma prova dos ventos rigorosos da zona.

Muito antes de chegar à árvore, foi atingido por um cheiro tóxico. Mesmo a favor do vento, o cheiro era-lhe familiar, assinalando a presença de uma besta corrompida pelo sangue dos strigoi e transformada em algo monstruoso.

Um blasphemare.

Teria sido aquele sangue corrompido que o conduzira de forma tão inextricável pelo deserto? Teria a sua malevolência afetado os seus sentidos apurados, sentidos esses aguçados pelas muitas semanas a explorar o areal à procura daquelas gotas malignas? Abrandou o suficiente para retirar as suas lâminas das bainhas que tinha nos pulsos. A luz do Sol refletia-se nos punhais de prata, antigas karambit, cada uma delas curva como a garra de um leopardo. Ele precisaria dessas garras para enfrentar o que se encontrava à sua frente. Naquele momento, já conseguia identificar o cheiro da sua presa: um leão blasphemare.

Rhun circundou a árvore à distância. Os seus olhos vasculharam as sombras até descobrirem um monte de pelo amarelo-acastanhado, a maior parte escondida por baixo da vegetação. Na sua forma natural, a leoa devia ser linda. Mesmo enquanto criatura corrompida, a sua magnificência era inegável. A corrupção enchera a sua forma com músculos volumosos, enquanto o seu pelo crescia grosso como veludo. Até a sua enorme cabeça, que descansava sobre as patas, revelava um focinho inteligente.

Ainda assim, a doença palpitava em cada batimento fatigado do seu coração.

Quando se aproximou dela, reparou no sangue negro seco no seu lombo. Parecia que uma grande parte do seu pelo fora queimada nos flancos.

Ele conseguia adivinhar a origem desta leoa corrompida e dos seus ferimentos. Imaginou as hordas de blasphemare que acompanharam o exército de Judas durante a batalha que travara aqui no inverno passado. Chacais, hienas e uma mão-cheia de leões. Rhun acreditava que estas feras tinham sido afugentadas ou mortas, juntamente com as forças strigoi, no final dessa guerra, quando o sagrado fogo angelical varrera este areal.

Depois da batalha, uma equipa de sanguinistas fora enviada para caçar quaisquer sobreviventes errantes, mas era evidente que esta besta escapara ao fogo e aos caçadores.

Mesmo ferida, sobrevivera.

A leoa ergueu o focinho dourado e rosnou na sua direção. Os seus olhos brilharam entre as sombras num tom carmesim, a sua verdadeira cor roubada pelo sangue strigoi que a corrompera. Contudo, até este esforço parecia ser demasiado para a força que lhe restava. Voltou a enterrar a cabeça nas patas. Não tinha muito mais tempo de vida.

Devo pôr fim ao seu sofrimento ou esperar que ela morra?

Rhun avançou, aproximando-se, ainda inseguro. Mas, antes que conseguisse decidir, ela lançou-se das sombras para a luz do Sol escaldante. O movimento apanhou-o desprevenido. Conseguiu rolar para o lado, mas as garras afiadas da leoa rasgaram-lhe o braço esquerdo.

Ele rodou para voltar a estar de frente para ela, com o sangue a escorrer para a areia quente.

A leoa agachou-se, cautelosa. A pele do seu focinho arreganhou-se num rosnar. O som gelou até o seu coração frio. Ela era uma adversária poderosa, mas não podia passar muito tempo longe da sombra da árvore. Continuava a ser um blasphemare e enfraqueceria rapidamente sob a luz direta do Sol.

Rhun moveu-se de forma a ficar entre ela e a segurança da árvore.

A ameaça agitou-a, fazendo com que abanasse a cauda em arcos violentos. Juntou as patas traseiras e saltou. Os dentes amarelos dirigiram-se ao seu pescoço.

Rhun enfrentou o desafio desta vez, saltando na sua direção, com um plano em mente. Rodou para o lado no último instante, arrastando o seu punhal de prata pelo lombo queimado da leoa. Aterrou enrolado, virando-se para não a perder de vista.

O ferimento sangrou profusamente, esguichando sangue espesso e negro. Era um golpe fatal. Rhun afastou-se, dando-lhe espaço para se retirar para as sombras e morrer em paz.

Em vez disso, um uivo sobrenatural irrompeu das profundezas do peito da leoa, e esta lançou-se novamente sobre ele, ignorando a segurança das sombras, atacando-o sob a luz direta do Sol.

Apanhado de surpresa por este novo ataque, Rhun foi demasiado lento a mover-se. Os dentes da leoa fecharam-se sobre o seu pulso esquerdo, tentando esmagar-lhe os ossos. A lâmina caiu-lhe dos dedos.

Virou-se, ainda preso, e atacou-a com a outra mão, enterrando-lhe a outra lâmina no olho.

A leoa uivou de agonia, afrouxando a pressão dos maxilares à volta do seu pulso ferido. Rhun libertou o braço, cravou os calcanhares na areia e afastou-se dela. Levou o pulso ferido ao peito, preparando-se para outro ataque.

No entanto, a sua lâmina golpeara a leoa de forma certeira e esta caiu por terra. O olho que não fora ferido fitou Rhun. O brilho cor de carmesim esmoreceu e deu lugar a um tom profundo de castanho-dourado antes de o fechar pela última vez.

A maldição abandonara-a no final, como acontecia sempre.

— Dominus vobiscum — sussurrou Rhun.

Com mais um vestígio de corrupção removido deste areal, Rhun virou-se e começou a caminhar, quando ouviu novamente um lamento queixoso.

Parou e virou-se para trás, inclinando a cabeça para o lado. Ouviu o som ténue de outro batimento cardíaco. Uma pequena sombra deslizou das sombras, movendo-se para junto da leoa morta.

Uma cria.

O seu pelo era branco e puro como a neve.

Rhun olhou em choque. A leoa devia estar prenha, dando o que restava da sua vida para parir, o derradeiro sacrifício de uma mãe. Ele agora entendia por que razão a leoa não se retirara para as sombras quando ele lhe dera essa oportunidade. A leoa lutara com ele até ao último suspiro para proteger a sua cria e para o afastar dela.

A cria roçou o focinho no corpo inerte da mãe. O terror inundou Rhun. Se a cria tivesse nascido do ventre maculado dela e se se tivesse alimentado do seu sangue corrompido, então também seria, com certeza, um blasphemare.

Também vou ter de a destruir.

Apanhou a lâmina que caíra no areal.

A cria roçou o focinho na cabeça da mãe, tentando fazer com que ela se levantasse. Gemeu como se soubesse que agora estava órfã e abandonada.

Enquanto se aproximava da criatura, Rhun estudou-a cuidadosamente. Embora mal lhe chegasse à altura dos joelhos, até mesmo um blasphemare tão pequeno podia ser perigoso. Agora ainda mais perto, reparou que o seu pelo cor de neve tinha manchas cinzentas, a sua maioria concentrada junto à testa arredondada. A cria devia ter nascido depois da batalha, tendo pouco mais de doze semanas.

Se Rhun não tivesse encontrado a cria, esta teria sofrido uma morte agonizante debaixo do sol escaldante ou morrido à fome nas sombras.

Seria um ato de compaixão tirar-lhe a vida.

Apertou com força o punho da sua karambit.

Sentindo-o aproximar-se pela primeira vez, a jovem cria olhou para ele, com os olhos a brilhar à luz do Sol. Sentou-se sobre as patas traseiras, revelando que era um macho. A cria inclinou a cabeça para trás e uivou alto, claramente exigindo algo de Rhun.

Aqueles pequenos olhos encontraram novamente os dele.

Ele sabia o que a cria queria, o que todas as jovens criaturas desejavam: amor e carinho.

Sentindo que não havia qualquer ameaça iminente, Rhun baixou o braço com um suspiro. Voltou a enfiar a lâmina na bainha que tinha no pulso e aproximou-se, caindo sobre um joelho.

— Vem cá, meu pequeno.

Rhun acenou com a cabeça, depois esticou-se lentamente para lhe tocar, enquanto a cria se aproximava com as suas patas cómicas, que eram maiores que o resto do seu corpo. Assim que Rhun tocou no pelo quente, um ronronar surgiu do interior da pequena criatura. Uma cabeça suave roçou contra a mão aberta de Rhun e os bigodes frágeis rasparam na sua pele fria.

Rhun coçou por baixo do focinho da cria, o que tornou o seu ronronar ainda mais alto.

Olhou fixamente para o Sol intenso, reparando que a cria parecia indiferente e não demonstrava qualquer reação adversa à luz.

Que estranho.

Rhun ergueu o animal até à altura do seu nariz e cheirou-o: leite, folhas de acácia e o cheiro almiscarado de um leão bebé.

Sem indícios da corrupção dos blasphemare.

Olhos húmidos fitavam-no. As íris tinham um tom de castanho-caramelo, rodeadas por uma fina linha dourada.

Olhos normais.

Sentou-se enquanto ponderava este mistério. O felino subiu para o seu colo, enquanto ele o acariciava distraidamente por baixo do focinho aveludado com a mão que não estava ferida. A ronronar, a cria pousou o focinho sobre o joelho de Rhun, cheirando-o e lambendo algum do sangue que escorrera do ferimento no pulso para as calças.

— Não — resmungou ele, empurrando a pequena cabeça para o lado e começando a levantar-se.

A luz do Sol refletiu-se no cantil prateado que Rhun tinha preso à perna. A cria lançou-se para apanhar o reflexo, prendendo uma garra no cordão que segurava o cantil de vinho e mordiscando a tira de pele.

— Basta.

Embora fosse óbvio que a cria estava apenas a brincar, Rhun empurrou o animal teimoso para longe da sua perna e endireitou o cantil. Apercebeu-se de que não bebera um único gole de vinho desde o dia anterior. Talvez essa fraqueza tivesse amolecido o seu coração em relação à criatura. Devia fortalecer-se antes de tomar qualquer decisão.

Devo agir com base na força e não no sentimento.

Com esse fim em mente, Rhun desapertou o cantil e levou o vinho aos lábios, mas, antes que conseguisse beber um gole, a cria de leão ergueu-se sobre as patas traseiras e derrubou o cantil dos dedos de Rhun.

O cantil caiu na areia, derramando o vinho sagrado.

O leão inclinou-se para a frente e bebeu daquela fonte vermelha. Embora a cria estivesse claramente desidratada e procurasse qualquer líquido para matar a sede, Rhun retesou-se de medo. Se a cria tivesse uma única gota de sangue blasphemare no corpo, a santidade do vinho iria queimar a criatura até ficar reduzida a cinzas.

Deu um encontrão à cria para a afastar. O felino olhou de relance para ele, o vinho manchava-lhe o focinho cor de neve. Rhun limpou as gotículas com as costas da mão. A cria parecia indemne. Rhun observou-a de mais perto. Por um breve instante, podia jurar que vira aqueles pequenos olhos cintilarem com um brilho dourado puro.

A cria roçou novamente a cabeça no joelho de Rhun e, quando olhou para ele, os olhos tinham voltado ao seu tom castanho-caramelo.

Rhun esfregou os seus próprios olhos, culpando a luz do deserto pela breve ilusão.

Ainda assim, era um facto que a cria se movera diretamente sob a luz do Sol e consumira vinho sacramental sem sofrer qualquer mal, provando que o felino não era um blasphemare. Talvez o fogo sagrado tivesse poupado o jovem felino por este não passar de um inocente dentro do útero da mãe. Talvez isso também explicasse o facto de a leoa ter sobrevivido à explosão, enfraquecida, mas forte o suficiente para trazer esta nova vida ao mundo.

Se Deus poupou esta vida inocente, como é que a posso abandonar agora?

Com uma decisão tomada, Rhun embrulhou a cria no seu hábito e regressou ao acampamento. Embora um sanguinista não pudesse ter uma criatura blasphemare, nada o proibia de ter um animal de estimação vulgar. Ainda assim, enquanto atravessava o deserto com a cria quente encostada ao peito, a ronronar, Rhun tinha uma certeza inabalável.

Esta criatura não tinha nada de vulgar.


CAPÍTULO 4

17 de março, 17h16 CET
Cidade do Vaticano

Palavras do Inferno de Dante enchiam a cabeça de Erin enquanto atravessava o portal dos sanguinistas para o Santuário da ordem: Deixai toda a esperança, vós que entrais. Segundo Dante, esse aviso fora inscrito por cima da entrada do Inferno.

E também era bastante adequado aqui.

A antecâmara que se encontrava depois da entrada estava rodeada por tochas feitas de pequenos molhos de juncos e dispostas a intervalos regulares pelas paredes. Apesar do fumo, iluminavam o longo corredor de tal forma que Erin desligou a sua lanterna.

Começou a percorrê-lo, reparando que as paredes não tinham frescos elaborados como os que podiam ser encontrados na Basílica de São Pedro. O Santuário da ordem era conhecido por ser simples, quase austero. Para além do fumo, o ar cheirava a vinho e incenso, tal como uma igreja.

Ao final do corredor, estendia-se uma enorme câmara circular, também ela sem adornos.

Contudo, isso não significava que estivesse vazia.

Pequenos nichos tinham sido esculpidos nas paredes nuas. Alguns deles continham o que pareciam ser estátuas brancas requintadas, com as mãos em oração, os olhos fechados, os rostos inclinados para baixo ou erguidos em direção ao teto. Mas estas estátuas mexiam-se, eram, na verdade, antigos sanguinistas mergulhados num estado profundo de meditação e contemplação.

Eram conhecidos como os Enclausurados.

A passagem que ela e Christian escolheram para entrar no Santuário abria-se para o lugar mais sagrado dos sanguinistas. Erin escolhera esta entrada porque a biblioteca dos sanguinistas ficava na mesma ala de meditação dos Enclausurados, o que fazia todo o sentido, visto que a proximidade deste depósito de conhecimento seria útil para reflexão e estudo.

Erin aproximou-se da entrada da ampla sala e parou. Certamente os Enclausurados tinham sentido o portal abrir-se ou ouvido o batimento frenético do seu coração, mas nenhuma das figuras se moveu.

Pelo menos, ainda não.

Esperou mais um momento. Christian aconselhara-a a dar tempo a estes antigos sanguinistas para se habituarem à sua presença e ver o que decidiam. Se a quisessem manter longe do seu domínio, era precisamente isso que fariam.

Erin olhou fixamente para uma arcada distante. De acordo com o mapa, assinalava a entrada da biblioteca. Quase sem se aperceber, moveu-se na sua direção. Caminhou lentamente, não para ser silenciosa, mas por respeito aos que se encontravam à sua volta.

O seu olhar percorreu as paredes, esperando que um braço se erguesse ou uma voz rouca se pronunciasse. Reparou que muitas das figuras imóveis usavam vestes e mantos de ordens que já não existiam no mundo em cima. Imaginou aqueles tempos passados, tentando visualizar estas formas imóveis e contemplativas como antigos guerreiros da Igreja.

Todos estes Enclausurados já estiveram tão vivos quanto Rhun.

Rhun estivera prestes a ocupar um destes nichos, a virar as costas ao mundo exterior, mas depois fora chamado pela profecia para procurar o Evangelho de Sangue, juntando-se a ela e a Jordan nesta demanda em curso para travar o apocalipse iminente. Mas, por vezes, Erin via uma profunda melancolia em relação ao mundo naquele padre sombrio, via o peso do derramamento de sangue e dos horrores por que passara.

Começou a compreender o seu ar atormentado. Ultimamente, era frequente acordar com um grito preso na garganta. Os horrores que suportara eram revividos incessantemente nos seus sonhos: soldados despedaçados por criaturas selvagens... os olhos cor de prata de uma mulher que Erin abatera para salvar a vida de Rhun... crianças strigoi a morrerem na neve... um miúdo cheio de vida a sucumbir pela lâmina de uma espada.

Já demasiado fora sacrificado nesta demanda.

E esta estava longe do fim.

Erin olhou para as estátuas imóveis.

Rhun, é esta a paz que procuras verdadeiramente ou só queres esconder-te aqui em baixo? Será que me esconderia aqui em baixo se pudesse, perdida na investigação e na paz?

Suspirando suavemente, continuou a atravessar a ampla sala. Nenhum dos Enclausurados acusou a sua passagem. Por fim, alcançou a arcada que conduzia à biblioteca mergulhada na escuridão. Os seus dedos tocaram na lanterna, mas depois moveram-se para a vela de cera de abelha que guardara anteriormente. Acendeu o pavio numa das tochas próximas e, em seguida, entrou na biblioteca.

Com a vela erguida, um brilho tremeluzente iluminava o espaço hexagonal, rodeado por prateleiras de livros e cubículos para pergaminhos. Não havia cadeiras, nem luzes de leitura, nada que satisfizesse necessidades humanas. Percorrer o espaço à luz da vela fê-la ter a sensação de viajar para trás no tempo.

Sorriu com este pensamento e consultou o mapa. À sua esquerda, uma arcada mais pequena conduzia a outra sala. O homem medieval que fizera o mapa anotara que esta sala continha os textos mais antigos dos sanguinistas. Se existisse algum conhecimento da queda e aprisionamento de Lúcifer no Inferno, era ali que deveria começar a sua busca.

Dirigiu-se para essa sala e encontrou outra divisão hexagonal. Visualizou a disposição desta biblioteca, imaginando-a a estender-se em várias salas semelhantes, como os favos de uma colmeia, embora, neste caso, a recompensa não fosse um riacho de mel dourado, mas sim uma fonte antiga de conhecimento. Esta sala era semelhante à primeira, mas com mais pergaminhos do que livros. Uma parede continha até uma prateleira poeirenta com tábuas de cobre e argila, indicando a natureza mais ancestral desta coleção em particular.

No entanto, não foi a presença de tais artefactos raros que a fez parar.

Uma figura, coberta por uma camada de pó, encontrava-se de pé no meio da sala, mas, tal como os Enclausurados, não se tratava de uma estátua. Embora estivesse de costas voltadas para ela, Erin sabia quem ali se encontrava. Olhara-o uma vez nos olhos, negros como azeitonas, e ouvira a sua voz grave. No passado, as poucas palavras proferidas por aqueles lábios pálidos mudaram tudo. Aqui estava o fundador da Ordem dos Sanguinistas, um homem que contara entre os seus amigos o mais santo dos santos, o que morrera e se erguera novamente pela própria mão de Cristo.

Lázaro.

Erin baixou a cabeça, não sabendo o que mais fazer. Ficou parada à sua frente pelo que pareceu um momento interminável, com o coração a latejar-lhe nos ouvidos.

Ainda assim, a figura permaneceu imóvel, de olhos fechados.

Por fim, sem ser proferida qualquer palavra contra a sua transgressão, Erin respirou fundo, o que a fez estremecer, e passou pela figura imóvel. Não sabia o que mais fazer. Viera até aqui com um objetivo específico em mente e, desde que ninguém a parasse, continuaria no percurso que iniciara.

Mas por onde começar?

Procurou nas prateleiras e cubículos. Seriam precisos vários anos para traduzir e ler tudo o que se encontrava naquela sala. Perdida e confusa, virou-se para o único ocupante da sala, o seu bibliotecário improvisado. A luz da vela de Erin refletia-se nos olhos escuros da criatura, agora abertos.

— Lázaro — sussurrou ela. Até o nome dele parecia soar demasiado alto neste lugar, mas Erin continuou. — Estou aqui para descobrir...

— Eu sei. — Uma nuvem de poeira caiu dos lábios da figura com estas poucas palavras. — Tenho estado à espera.

Um braço ergueu-se suavemente, espalhando mais poeira no ar. Um único dedo comprido apontou para uma tábua de argila que se encontrava na extremidade de uma prateleira. Erin moveu-se na sua direção, olhando de relance para baixo. Era do mesmo tamanho que um baralho de cartas e da cor da terracota. Linhas manuscritas cobriam a sua superfície.

Erin pegou na tábua cuidadosamente e examinou-a, reconhecendo a escrita em aramaico, uma língua que conhecia bem. Leu por alto as primeiras linhas. Relatava uma história familiar: a chegada de uma serpente ao Jardim do Éden e o seu confronto com Eva.

— Do Génesis — murmurou ela para si mesma.

De acordo com a maioria das interpretações, essa serpente era Lúcifer e chegara ao Paraíso para tentar Eva. Contudo, este relato parecia referir-se à serpente como apenas outro animal do jardim, embora mais arguto que os restantes.

Erin aproximou a vela do descritor mais significativo daquela serpente, pronunciando-o foneticamente em voz alta. «Chok-maw.»

A palavra podia ser interpretada como sábio ou arguto, até mesmo esperto ou manhoso.

Erin continuou a traduzir a tábua, considerando a história lá inscrita muito semelhante à versão contida na Bíblia do Rei Jaime. Eva recusara-se a comer o fruto, argumentando que Deus a avisara de que morreria se desobedecesse. Mas a serpente dissera-lhe que não morreria, mas que, em vez disso, obteria conhecimento — o conhecimento do bem e do mal.

Erin deixou escapar um pequeno suspiro, apercebendo-se de que, nesta história, a serpente era mais sincera do que Deus. No final, Adão e Eva não morreram por terem mordido o fruto proibido, mas, tal como a serpente dissera, obtiveram o conhecimento.

Erin não deu importância a este pormenor, sobretudo depois de ler a linha seguinte. Era uma novidade absoluta. Traduziu-a em voz alta, com a vela a tremer na mão.

«E a serpente disse à mulher: Jura que comerás o fruto e o partilharás comigo.»

Erin leu a passagem mais duas vezes para ter a certeza de que não a traduzira incorretamente, depois continuou. Na linha seguinte, Eva fez um pacto com a serpente e jurou que lhe daria o fruto. Depois disso, a história continuava na mesma linha da relatada na Bíblia: Eva come o fruto, partilha-o com Adão e são ambos amaldiçoados e banidos do Paraíso.

As palavras do seu pai ecoavam-lhe na cabeça.

O preço do conhecimento é sangue e dor.

Erin releu a tábua.

No final, Eva quebrara a promessa que fizera à serpente, não partilhando o fruto.

Erin refletiu sobre esta história alterada. Antes de mais, o que queria a serpente fazer com tal conhecimento? Em todas as outras histórias bíblicas, os animais não se interessavam pelo conhecimento. Será que esta versão mais extensa da história era uma prova de que a serpente no jardim era, de facto, Lúcifer disfarçado?

Erin abanou a cabeça, tentando compreender, encontrar algum significado. Olhou para Lázaro, esperando que este lhe fornecesse algum esclarecimento adicional.

Os seus olhos limitavam-se a fitá-la diretamente.

Antes que conseguisse questioná-lo, um som ecoou pela sala vindo do fundo da biblioteca, o arrastar pesado da pedra.

Ela olhou nessa direção.

Alguém deve estar a abrir a passagem dos sanguinistas.

Olhou para o relógio de pulso. Christian avisara-a de que um grupo de padres sanguinistas cuidava dos Enclausurados, trazendo-lhes vinho para beber. Contudo, não sabia os seus horários ou com que regularidade desciam aos túneis. Erin esperara ter alguma sorte do seu lado.

E essa tinha acabado naquele momento.

Assim que os padres se aproximassem, ouviriam o coração dela a bater, expondo-a. Rezou para que Bernard não fosse muito severo para com Christian e a irmã Margaret.

Voltou a colocar a tábua na prateleira, mas, quando se virou, preparada para enfrentar as consequências da sua transgressão, Lázaro inclinou-se para a frente e apagou a vela com um sopro. Aturdida, cambaleou para trás. A biblioteca ficou mergulhada numa imensa escuridão, iluminada apenas pelas tochas longínquas da câmara principal.

Lázaro colocou a mão fria sobre o braço de Erin, os seus dedos apertaram-no como que a dizer-lhe que permanecesse quieta. Conduziu-a para a frente, a fim de que pudesse espreitar para a câmara onde se encontravam os Enclausurados.

Os anciãos sanguinistas moveram-se. Ouviu-se o ruge-ruge de tecido e nuvens de pó caíram das suas vestes antigas.

Ao seu lado, Lázaro começou a cantar. Era um hino em hebraico. Os Enclausurados na câmara exterior começaram também a cantar. O medo de Erin desapareceu, apanhada pela melodia das suas vozes, tão constante como as ondas do mar a baterem na costa. Uma sensação de encantamento apoderou-se dela.

Surgiram algumas figuras ao longe. Um grupo de padres sanguinistas de manto negro entraram na câmara, trazendo consigo frascos com vinho e taças de prata. Olharam fixamente para os Enclausurados, boquiabertos. Ao que parecia, os cânticos não eram uma ocorrência habitual.

Os dedos de Lázaro largaram o ombro de Erin, mas não sem um último aperto. Erin percebeu. Lázaro e os outros estavam a protegê-la. Os seus cânticos disfarçariam o som do bater do seu coração.

Erin permaneceu completamente imóvel, na esperança de que o plano deles resultasse.

Os jovens padres moviam-se de um lado para o outro, a cumprir as suas tarefas, aproximando as taças dos lábios, mas esses mesmos lábios continuavam a entoar os cânticos, ignorando o vinho. Os sanguinistas trocaram olhares inquietos entre si, claramente intrigados. Tentaram outra vez, com o mesmo resultado.

As belas e poderosas vozes soaram ainda mais alto.

Por fim, o pequeno grupo de padres desistiu, retirando-se para a entrada e saindo da biblioteca. Erin ouviu a passagem distante a fechar-se... Só nessa altura é que os cânticos cessaram.

Lázaro encaminhou-a para a câmara iluminada por tochas quando os Enclausurados voltaram a ficar novamente imóveis e silenciosos. Apontou para a saída.

Erin virou-se para ele.

— Mas não aprendi nada — protestou ela. — Não sei como encontrar Lúcifer e muito menos como voltar a forjar os seus grilhões.

Lázaro falou, a voz profunda mas distante, como se estivesse a falar para si mesmo e não para Erin.

— Quando Lúcifer se encontrar à tua frente, o teu coração vai guiar o teu caminho. Deves cumprir o pacto.

— Como é que vou encontrá-lo? — perguntou Erin. — E de que pacto falas? Da profecia no Evangelho de Sangue?

— Tu sabes tudo o que podes saber — respondeu ele, a sua voz dispersando-se cada vez mais. — O caminho será revelado e tu irás segui-lo.

Erin queria abaná-lo para obter respostas e até chegou a dar um passo na sua direção. As perguntas surgiam umas atrás das outras na sua cabeça, mas conseguiu dar voz à mais importante de todas.

— Vou ser bem-sucedida? — perguntou ela.

Lázaro fechou os olhos e não respondeu.


CAPÍTULO 5

17 de março, 17h21 CET
Roma, Itália

Tenho de me libertar...

O estado de consciência de Leopold afundava-se num mar de fumo negro. Enquanto sanguinista, já se habituara à dor — a queimadura constante da cruz de prata contra o seu peito, o ardor do vinho sacramental a descer pela garganta — mas essas dores eram banais quando comparadas com a agonia em que se encontrava naquele momento.

Aprisionado no interior de um poço escuro de fumo, estava perdido, desprovido dos seus sentidos. Até mesmo a consciência dos próprios membros lhe fora retirada pelo manto de fumo negro.

Quem diria que a privação de dor, de qualquer sensação, podia ser a pior de todas as torturas?

Mas ainda mais monstruoso que isso eram os momentos em que a escuridão recuava e dava por si a contemplar tudo de novo pelos seus próprios olhos. Demasiadas vezes, revelavam horrores e derramamento de sangue, mas até mesmo esses breves vislumbres fora da escuridão eterna eram bem-vindos. Nesses momentos, tentava recuperar o máximo possível de vida, antes de ser novamente dominado pelo demónio que possuíra o seu corpo. No entanto, por mais que tentasse agarrar-se a esses momentos, nunca duravam muito. No final, tais esperanças acabavam por se revelar mais cruéis do que qualquer tormento.

É melhor, simplesmente, deixar-me ir, deixar que a minha chama se extinga por completo, juntar o meu fumo à multidão que veio antes de mim.

E ele sabia que houvera outros antes dele. De vez em quando, sentia passar ligeiras espirais de fumo, que traziam fragmentos das vidas de outras pessoas: um vislumbre do rosto de uma pessoa amada, a picada de uma pestana, o riso de uma criança a correr pelo campo.

É nisto que a minha vida se tornou? Fragmentos levados pelo vento?

Enquanto imaginava esse vento, a escuridão dissipou-se à sua volta, como se tivesse sido soprada por uma forte ventania. Deparou-se com uma mulher nua debaixo dele numa cama. Um fio carmesim escorria-lhe pelo pescoço e entre os seios, cobrindo um medalhão dourado que trazia ao peito. Os seus olhos, verdes como folhas de carvalho, encontraram os dele. Estavam arregalados de medo e pânico, e imploravam-lhe que a deixasse ir embora.

Ofegante, desviou o olhar para a sala sumptuosa. Cortinas prateadas e pesadas encontravam-se corridas em todas as janelas para impedir que o sol entrasse, mas ele pressentiu que estas seriam abertas em breve. Com o relógio eterno de um sanguinista, sabia que faltava menos de uma hora para o pôr do sol.

Outros corpos encontravam-se estendidos no chão frio de mármore, de ambos os lados da cama, nus e inertes.

Contou nove.

O demónio dentro de mim deve estar faminto.

Mas não era apenas o demónio.

Meia dúzia de strigoi partilhavam a câmara com ele, alguns entorpecidos e sonolentos, outros ainda a banquetearem-se com os mortos. O cheiro intoxicante a morte pairava no ar, incitando Leopold a juntar-se à matança. Contudo, sentia a sua barriga cheia.

Talvez tenha sido por isso que me libertei, ainda que por este breve instante.

Tencionava aproveitar-se disso.

Saiu de cima da mulher, embora uma das suas mãos ainda lhe agarrasse o braço. Ela encolheu-se, o seu coração batendo debilmente como as asas de um pássaro ferido. O demónio alimentara-se demasiado dela. Não a podia salvar, mas talvez a pudesse largar para ela morrer em paz. Reunindo toda a sua concentração, forçou um dedo, depois outro para a soltar, tentando que a sua mão obedecesse.

Gotículas de suor brotaram por cima das suas sobrancelhas devido ao esforço, mas conseguiu libertar o braço da mulher. Sem conseguir falar, acenou-lhe para que se fosse embora.

A tremer, a mulher olhou para o seu braço e depois de novo para ele.

A luz das velas brilhou nos olhos verdes e recordou-lhe outro clarão de esmeralda. O diamante verde. Um ódio impotente percorreu todo o seu ser. Só o facto de pensar naquela pedra entorpecia-lhe o corpo, fazendo com que fosse ainda mais difícil mexer-se.

Pela minha própria mão, amaldiçoei-me a mim mesmo... e a tantos outros.

Fora incumbido de destruir a maldita pedra preciosa por um amo que ele acreditava poder devolver Cristo a este mundo. Contudo, ao estilhaçar a pedra, libertara um demónio. Lembrou-se daquela escuridão gelada, que fluíra do coração do diamante despedaçado, a invadir-lhe o corpo, trazendo consigo outras vozes, fragmentos de outras vidas. Desorientou-se rapidamente, ensurdecido pela cacofonia... mas um nome destacou-se de todos os outros.

Legião.

Era esse o nome da escuridão que o sufocara, do demónio que o consumira.

Desde então, estivera sempre a perder e a recuperar a consciência.

Mas durante quanto tempo?

Não sabia. Apenas tinha a certeza de que o demónio parecia estar a reunir outros para lutar ao seu lado, a formar um exército de strigoi.

Com grande esforço, Leopold ergueu a mão diante do próprio rosto, enquanto a mulher se arrastava dali para fora, ficando enrodilhada nos lençóis da cama. Ignorou-a, à medida que a onda de choque o percorria. A sua mão, habitualmente branca e pálida, estava negra como tinta. Virou a cabeça, descobrindo um espelho pendurado na parede.

No seu reflexo, estava nu, uma escultura de ébano.

Leopold gritou, mas nenhum som saiu dos seus lábios.

A mulher caiu da cama, perturbando um dos strigoi adormecidos. O monstro sibilou, cuspindo sangue. Quando se levantou, Leopold reparou na impressão de uma palma negra no meio do seu peito nu, como uma marca ou tatuagem, só que essa escuridão tresandava a corrupção e maldade, um cheiro muito mais intenso do que o fedor do strigoi que a tinha.

O pior é que aquela escuridão viscosa tinha a mesma tonalidade da sua nova pele.

Mas isso não era tudo.

Leopold esticou o braço, afastando os dedos, dando conta de um novo horror.

Aquela marca na besta tem a mesma forma e tamanho da minha mão.

O demónio deve ter marcado este monstro como se fosse seu, talvez para o escravizar como era certo que fizera a Leopold.

O strigoi agarrou na mulher, virou-a de costas e rasgou-lhe a garganta.

Antes que Leopold conseguisse reagir, a escuridão envolveu-o novamente, arrastando-se de volta para aquele mar de fumo, levando consigo a visão da mulher dilacerada. Por uma vez, não resistiu, contente por deixar os horrores daquela sala. Contudo, à medida que se afundava no vazio, perdeu qualquer esperança de fuga.

Foi invadido por um novo desejo.

Tenho de arranjar maneira de me redimir dos meus pecados...

No entanto, esse objetivo levantou uma questão que o inquietava, uma questão que podia vir a revelar-se importante: Porque será que só agora me libertou durante tanto tempo? O que distraíra a atenção do demónio?

17h25
Cumas, Itália

Raios, este sacana é rápido...

Jordan ergueu a sua pistola-metralhadora e disparou três vezes sobre o atacante que surgira do túnel. As suas munições atingiram a parede de pedra do templo cavernoso, não encontrando o alvo.

Falhei outra vez...

Pelas suas presas, era claramente um strigoi, mas Jordan nunca vira nenhum mover-se daquela maneira. A criatura estava ali e passado um segundo já o monstro se encontrava do outro lado da sala, como se se tivesse teletransportado.

Baako e Sophia protegiam a retaguarda de Jordan, literalmente. Os três estavam dispostos num círculo, com os ombros encostados uns aos outros. Baako empunhava uma espada africana comprida e Sophia dois punhais curvos.

O strigoi sibilou por detrás do altar da sala. Um profundo golpe sangrava no seu peito. Era um ferimento que Baako lhe infligira quando a besta os atacara e que salvara a vida de Jordan.

Infelizmente, fora o único golpe que a sua equipa acertara.

— Está a tentar cansar-nos antes de nos matar — disse Sophia.

— Então, está na altura de mudarmos de estratégia.

Jordan apontou a sua arma, mas, quando premiu o gatilho, moveu a arma para o lado e disparou para o vazio, antecipando que o strigoi se fosse mexer novamente.

E foi o que este fez... ficando diretamente na linha de fogo.

Um grito sobrepôs-se ao rugido da arma de Jordan. O strigoi foi atirado para trás e o seu sangue salpicou as paredes.

Foi um tiro de sorte, mas vai contar como um ponto a nosso favor.

O strigoi fugiu a rodopiar, desaparecendo novamente num borrão. Jordan procurou-o, apontando a arma de um lado para o outro, mas então, do nada, umas mãos frias ergueram-no no ar e atiraram-no contra a parede. Ainda no ar, Jordan retirou o punhal da bainha que trazia presa ao tornozelo, preparando-se para lutar.

Infelizmente, a besta também se preparara — não só apanhou Jordan, como a espada de Baako. Quando embateram os dois na parede, o seu atacante espetou a espada roubada no abdómen de Jordan.

Jordan arquejou, caindo de joelhos no chão.

Baako e Sophia vieram imediatamente em seu auxílio. Com um golpe certeiro, Sophia cortou o braço do strigoi que segurava a espada. Espetou a sua segunda lâmina no estômago do monstro e rasgou-o da virilha ao pescoço.

Sangue negro e frio espirrou para o rosto de Jordan, que olhava fixamente para a lâmina que ainda o empalava.

Já é um pouco tarde, pessoal.

17h28
Roma, Itália

A dor rasgava a escuridão em redor de Leopold, lançando-o de volta para o mundo, de volta àquela sala ensanguentada. Agarrou-se à barriga, esperando sentir carne dilacerada e entranhas a sair. Em vez disso, os seus dedos descobriram pele macia e uma barriga redonda e intacta, ainda cheia de sangue do último banquete do demónio.

Leopold esfregou o seu abdómen nu, sentindo ainda um fantasma daquela dor.

Viu o mesmo matadouro ensanguentado de antes, mas também outra câmara por cima desta: uma caverna escura com um altar no meio.

Eu conheço aquele lugar.

Era o templo sibilino, escondido no coração de uma montanha vulcânica em Cumas, o mesmo lugar onde Leopold libertara o demónio Legião neste mundo.

Mas como estou a ter esta visão?

Era como se estivesse a ver a cena através dos olhos de outra pessoa. Enquanto observava, mãos com garras ergueram-se e agarraram uma barriga que jorrava sangue escuro e viscoso, enquanto pedaços de vísceras saíam dela.

Contudo, não era apenas a visão que partilhava com este outro ser — também sentia aquela dor.

Em seguida, aquela forma distante tombou para o lado. Tinha de ser um strigoi, provavelmente um membro do exército de Legião, talvez um dos que o demónio escravizara. Leopold imaginou a marca negra no peito daquele strigoi.

Será que aquela marca serve como uma espécie de elo psíquico? Será que este se quebrava quando a besta morria?

Fumo negro ergueu-se à sua volta, preparando-se para o arrastar dali. Ainda assim, conseguiu ver o interior do templo cavernoso, o elo ainda intacto à medida que o strigoi sucumbia. Até mesmo enquanto morria, a besta examinava a caverna, como se procurasse alguma maneira de se salvar.

Porém, o seu olhar parou sobre o altar, focando-se sobre dois pedaços de uma pedra esmeralda.

O diamante verde.

Foi isso que te mandaram vir buscar?

Algures nas profundezas da sua alma possuída, Leopold sentiu aquele desejo de Legião. Leopold lembrava-se vagamente de ter escavado um túnel para sair daquele templo, os seus membros fortalecidos de forma quase impossível pelo demónio que o possuía, embora o monstro também estivesse desejoso de escapar da montanha, de se libertar daquela prisão de rocha vulcânica. Depois de séculos aprisionado dentro daquela pedra preciosa, não era capaz de aguentar nem mais um minuto preso e, na sua pressa, esquecera-se de levar a gema consigo.

Mas porque é que o demónio precisa daquela pedra?

O diamante brilhava intensamente em cima do altar, como que a fazer troça do fracasso de Legião. Mas os olhos do strigoi ficaram enevoados, turvando-lhe a visão. Restava-lhes pouca vida. O seu olhar fixou-se em algo próximo que se moveu de repente, um agitar de pernas. Os membros afastaram-se o suficiente para revelar um homem ajoelhado na pedra, com uma lâmina atravessada na barriga.

Leopold fitou diretamente os olhos azuis do homem.

Foi inundado por uma sensação de reconhecimento.

Jordan...

Com esse pensamento, Legião voltou a ganhar vida, levantando-se das cinzas do strigoi que morria agora naquela caverna. A escuridão apoderou-se de Leopold. Com essa onda, sentiu a atenção do demónio voltar-se para si. Conseguia senti-lo a vasculhar as suas memórias. Tentou ao máximo ocultar o seu conhecimento.

Sobre Jordan, sobre os outros.

Mas falhou.

Enquanto sucumbia ao vazio, sentia os seus próprios lábios mexerem-se, ouvia a sua própria voz, mas não se tratava de Leopold, mas de Legião, que proferia agora o outro nome de Jordan, o seu nome mais verdadeiro.

— O Homem Guerreiro...

Meu Deus, o que fiz eu?

Leopold fugiu pelo único caminho que ainda se encontrava aberto para ele por mais alguns segundos de respiração, por aquele elo prestes a desaparecer.

17h31
Cumas, Itália

Estendido numa poça do seu próprio sangue, Jordan olhava fixamente para o teto da caverna. Baako pressionava o ferimento de Jordan com as suas mãos enormes, ao mesmo tempo que Sophia atirava para o lado a comprida lâmina. Jordan quase não sentira a lâmina a ser arrancada do seu corpo. Uma estranha dormência mantinha a sua barriga fria, fazendo com que a poça de sangue debaixo dele parecesse quente.

Baako ajoelhou-se sobre ele, dirigindo-lhe um sorriso reconfortante.

— Vamos estabilizar-te e mandar-te de volta a Roma num instante.

— És... um péssimo mentiroso — resmungou Jordan.

Ele nunca sobreviveria a ser arrastado pelo túnel com a barriga dilacerada. Duvidava de que conseguisse sequer chegar com vida ao outro lado da gruta.

Consciente disto, uma visão do rosto de Erin surgiu na sua mente, os seus olhos castanhos a rir, um sorriso nos lábios. Outras memórias sobrepuseram-se: um caracol molhado de cabelo louro a cair-lhe sobre a face, o roupão de banho a escorregar aberto, revelando o seu corpo quente.

Não quero morrer enfiado num buraco, longe de ti.

Aliás, ele não queria morrer de maneira nenhuma.

Desejou que Erin ali estivesse naquele preciso momento a segurar-lhe a mão, a dizer-lhe que ia ficar bem, mesmo que não fosse verdade. Queria vê-la mais uma vez, dizer-lhe que a amava e fazê-la sentir isso mesmo. Ele sabia que Erin tinha medo do amor, acreditando que este se derreteria como neve, que nunca duraria.

E, agora, é isso mesmo que lhe estou a provar.

Agarrou o braço forte como aço de Baako.

— Diz à Erin... que a vou amar para sempre.

Baako manteve a pressão sobre o ferimento e respondeu:

— Diz-lhe tu.

— E à minha família...

Eles também precisariam de saber. A sua mãe ficaria devastada, as suas irmãs e irmãos sofreriam com a sua morte, e as suas sobrinhas e sobrinhos mal se lembrariam dele daqui a poucos anos.

Devia ter telefonado mais vezes à minha mãe.

Porque, qualquer que fosse o turbilhão de emoções que o afligia, ultimamente aquilo dizia respeito não só a Erin, mas também à sua família. Ele afastara-se de todos.

Cerrou os maxilares, não querendo morrer, nem que fosse para fazer as pazes com toda a gente. Contudo, a poça de sangue quente que se espalhava dizia-lhe que o seu corpo ferido não queria saber dos seus planos futuros de ter filhos e de se sentar numa cadeira de baloiço no alpendre a ver o milho crescer.

Virou a cabeça, enquanto Sophia examinava o seu atacante.

Pelo menos, não estou com tão mau aspeto como aquele tipo.

Também não restava muito tempo de vida ao strigoi. Estranhamente, a criatura olhava fixamente para Jordan. Aqueles lábios frios e desprovidos de sangue moveram-se, como que a falar.

Sophia inclinou-se para a frente, com uma das sobrancelhas muito levantada.

— O que é que ele disse?

O strigoi inspirou profundamente e, num sotaque que Jordan conhecia bem, disse:

— Jordan, mein Freund... desculpa.

Sophia retirou de imediato a mão de cima do corpo da criatura. Jordan ficou igualmente chocado.

Leopold.

Mas como?

O strigoi estremeceu e depois ficou imóvel.

Sophia sentou-se para trás e abanou a cabeça. A besta estava morta, levando consigo qualquer explicação.

Jordan tentava compreender, mas o mundo continuava a escapar-lhe à medida que sangrava o que restava da sua vida. Sentiu-se cair, a sala onde se encontrava tornou-se cada vez mais longínqua, mas, em vez de se deslocar para a escuridão, mergulhava para um brilho intenso. Queria levantar a mão para se proteger dela, sobretudo à medida que esta se tornava mais brilhante, queimando-o. Fechou os olhos com força, mas não ajudou.

Só sentira uma luz tão ardente uma outra vez na sua vida, quando fora atingido por um relâmpago na adolescência. Sobrevivera ao raio, mas este deixara a sua marca, queimando uma cicatriz com um padrão fractal que se estendia do seu ombro à parte superior do peito. Aqueles estranhos desenhos que se assemelhavam a gavinhas eram chamados figuras de Lichtenberg ou, por vezes, flores de relâmpago.

Agora, fitas de fogo líquido propagavam-se por aquelas cicatrizes, preenchendo-as por completo e estendendo-se para além delas. Gavinhas de calor expandiam-se para fora, desembocando no seu estômago, onde uma agonia abrasadora explodiu. O fogo contorcia-se nas suas entranhas como se tivesse vida própria.

Então a morte é isto?

No entanto, não se sentia enfraquecer. Em vez disso, sentia-se inexplicavelmente mais forte.

Inspirou fundo uma e outra vez.

Aos poucos, a sala ficou nítida novamente. Nada parecia ter mudado. Ainda se encontrava deitado numa poça do seu próprio sangue que arrefecia. Baako continuava a pressionar com força o seu ferimento.

Jordan viu o olhar preocupado do africano e afastou-lhe as mãos.

— Acho que estou bem.

Melhor que bem.

Baako afastou as palmas das mãos e olhou de relance para o local onde a espada empalara Jordan. Dedos fortes limparam o sangue residual.

Baako deixou escapar um assobio baixinho.

Sophia aproximou-se dele e disse:

— O que se passa?

Baako olhou para ela.

— Parou de sangrar. Juro que o ferimento até me parece mais pequeno.

Sophia também examinou Jordan. Mas a sua expressão tornou-se mais preocupada do que aliviada.

— Devias estar morto — disse ela de forma abrupta, apontando para a poça de sangue. — Sofreste um ferimento fatal. Vi muitos ao longo dos últimos séculos.

Jordan sentou-se.

— Já me deram por morto antes. Até cheguei a morrer uma vez. Não, duas. Mas quem é que está a contar?

Baako suspirou.

— Saraste, como o livro disse que farias.

Sophia citou o Evangelho de Sangue. «O Homem Guerreiro está unido aos anjos a quem deve a sua vida mortal.»

Baako deu-lhe uma pancadinha no ombro.

— Parece que esses anjos ainda estão a zelar por ti.

Ou ainda não acabaram o que têm planeado para mim.

Sophia voltou a sua atenção para o strigoi morto.

— Ele sabia o teu nome.

Jordan ficou contente com a distração, lembrando-se das últimas palavras proferidas por aqueles lábios moribundos.

Jordan, mein Freund... Desculpa.

— Aquela voz — disse ele. — Podia jurar que era a do irmão Leopold.

— Se estiveres certo — continuou Sophia —, esse é um milagre que pode esperar. Temos de te levar à equipa médica do acampamento.

Jordan abriu a camisa. O ferimento era agora uma crosta peganhenta. Ele até apostava que desapareceria daí a umas horas. Ainda assim, imaginou aquela espada a atravessá-lo, o que levantava outro mistério.

— Já alguma vez tinham visto um strigoi deslocar-se daquela maneira?

Baako olhou para Sophia, como se ela tivesse mais experiência.

— Nunca — respondeu ela.

— Não era apenas rápido — disse Baako —, mas também forte.

Sophia aproximou-se da criatura morta, virou-a para que ficasse de barriga para cima e começou a despir-lhe a roupa. Três buracos de bala decoravam a massa central do corpo. Jordan estava muito impressionado por ter acertado na criatura. Enquanto Sophia lhe tirava a camisa, Jordan susteve a respiração em choque.

Gravada no peito pálido do strigoi encontrava-se a impressão de uma mão negra. Jordan já vira uma igual antes, queimada no pescoço da agora falecida Bathory Darabont. Esta marca unira-a ao seu amo anterior, marcando-a como um dos dele.

A presença desta marca aqui e agora só podia significar uma coisa.

— Alguém enviou esta criatura cá abaixo.

17h28
Roma, Itália

Eu sou Legião...

Ele encontrava-se diante de um espelho prateado, regressando ao seu corpo depois da sua estadia naquela caverna terrível. Nesse reflexo, via um corpo banal: membros fracos, peito afundado, barriga mole. Contudo, a sua marca agraciava a forma deste, conferindo à sua pele um tom tão escuro como o vazio entre as estrelas. Olhos tão negros como sóis extintos fitavam-no intensamente do outro lado do espelho.

Deixou esses olhos fecharem-se e procurou nas sombras que compunham a sua verdadeira essência. Seiscentos e sessenta e seis espíritos. Deixou essas gavinhas percorrerem a sua consciência, lendo o que ainda restava, procurando respostas. Teve vislumbres de um sofrimento comum do passado, de uma prisão de vidro, de uma figura de barba branca a olhar fixamente para dentro com repugnância.

No entanto, tanto sofrimento originou o seu nascimento.

Eu sou muitos... eu sou plural... eu sou Legião.

No interior desses remoinhos de escuridão que constituíam o seu ser, uma única chama brilhava, tremeluzindo naquelas sombras intermináveis. Aproximou-se daquele fogo, lendo o fumo que vinha dele, à medida que o espírito que o sustinha sufocava.

Ele sabia o nome daquele, o corpo que ele possuíra.

Leopold.

Fora através do fumo daquela chama enfraquecida que Legião aprendera tudo sobre este mundo atual. Examinou aquelas memórias, aquelas experiências, para se preparar para a guerra que estava para vir. Formara um exército escravizando outros com o mero toque da sua mão. Deixara que a força da sua escuridão fluísse para dentro deles. Com cada toque, os seus olhos e ouvidos neste mundo multiplicavam-se, fazendo com que a sua consciência aumentasse ainda mais e se estendesse por todo o lado.

Tinha um único propósito.

Imaginou um ser com um poder angelical imensamente sinistro, sentado num trono negro.

Há vários séculos, aqueles seiscentos e sessenta e seis espíritos foram reunidos por aquele anjo negro, mantendo Legião dentro da pedra preciosa. Ele fora ali deixado como mensageiro do que estava por vir, uma semente do mal à espera de criar raiz neste novo mundo e de se espalhar.

Quando foi finalmente libertado da gema, ligou-se à criatura que partiu a pedra. Leopold. Legião enraizou-se profundamente no seu novo corpo, ligando-se a Leopold, possuindo-o, os dois tornaram-se um só. O corpo de Leopold era o vaso em que podia crescer neste mundo, espalhando os seus ramos por todo o lado, reclamando outros, marcando-os, escravizando-os. E embora a sua existência neste mundo dependesse de Leopold estar vivo, ele era capaz de viajar por esses ramos e controlá-los à distância.

O seu dever era abrir caminho para o regresso do seu amo, preparar este mundo para a sua purificação, quando o verme que era a humanidade fosse purgado para fora deste jardim na Terra. O anjo negro prometera este paraíso a Legião, mas, antes que lhe fosse concedido tal prémio, teria de cumprir o seu dever.

E agora sabia que existiam forças alinhadas contra ele.

Também descobrira isso através da chama tremeluzente dentro de si.

Legião não compreendia totalmente aquela ameaça, mas reconhecia que o corpo que ocupava se esforçava por esconder dele determinados elementos de informação. Há poucos instantes, sentira a chama do espírito de Leopold brilhar mais intensamente com o choque, sentira-a tremeluzir na escuridão, chamando-lhe a atenção. Daquele fumo, descobriu um nome e atribuiu-lhe um rosto.

O Homem Guerreiro.

Mas não apenas esse nome. Outros também escaparam, como memórias queimadas reduzidas a fumo.

O Cavaleiro de Cristo.

A Mulher Sábia.

Murmúrios de profecia elevaram-se com esse fumo, juntamente com a imagem de um livro escrito pelo próprio Filho de Deus. Examinava agora essa chama, tentando descobrir mais.

Quem mais se encontra no meu caminho?


CAPÍTULO 6

17 de março, 08h32 PST
Santa Bárbara, Califórnia

E por falar em exercícios fúteis...

Com os maxilares cerrados, Tommy subiu mais uns centímetros na corda que se encontrava pendurada no meio do ginásio. Por baixo dos seus pés, os seus colegas de turma gritavam palavras de encorajamento ou insultos. Ele não conseguia perceber lá de cima de qual dos dois se tratava, sobretudo devido ao som do bater frenético do seu coração e da sua respiração ofegante.

Não que tivesse muita importância, de qualquer forma.

Sempre detestara a aula de Educação Física, mesmo antes de ser diagnosticado com cancro. Descoordenado e bastante lento, era sempre o último a ser escolhido para a maioria dos desportos de equipa. Também descobriu rapidamente que preferia afastar-se de qualquer tipo de bola do que andar atrás dela.

Quero dizer, qual é o objetivo?

Apenas uma atividade o interessava verdadeiramente: trepar. Era mesmo bom nisso e apreciava a simplicidade da tarefa. Era só ele e a corda. Sempre que trepava, as suas preocupações e medos dissipavam-se.

Ou, pelo menos, a maior parte deles.

Enrolou as pernas à volta da corda e impulsionou-se para cima. O suor escorria-lhe pelas costas. O tempo estava sempre quente em Santa Bárbara e quase sempre soalheiro. Ele gostava disso. Depois de passar algum tempo na Rússia e a bordo de um quebra-gelo no Ártico, nunca mais queria sentir tanto frio.

É claro que, depois de ter sido congelado dentro de uma escultura de gelo de um anjo, qualquer pessoa apreciaria o sol do sul da Califórnia.

Olhou para cima em direção a esse sol, por onde este fluía através de uma fila de janelas no cimo do ginásio.

Estou quase lá...

Mais dois metros e conseguiria tocar nas grades de arame que protegiam as luzes do teto. Tocar nos arames poeirentos era como receber uma medalha de honra no nono ano, e ele tencionava chegar lá.

Parou durante um momento, preparando-se para a última parte da subida. Ultimamente, ficava sem fôlego com tanta facilidade. Era preocupante. Há meio ano, fora tocado por um anjo... literalmente. Sangue angelical correra-lhe nas veias, curando-o do cancro, fortalecendo-o, tornando-o até temporariamente imortal. Mas tudo isso desaparecera, queimado nas areias do Egito.

Voltara a ser apenas um miúdo normal.

E tenciono continuar assim.

Ficou pendurado durante um momento, olhando para cima e respirando fundo.

Eu consigo fazer isto.

Um grito mais agudo surgiu de baixo dele.

— Já chega! Volta para baixo!

A voz pertencia a Martin Altman, o único amigo de Tommy na escola nova. Perdera os amigos que tinha quando se mudara para casa dos tios. Depois da morte dos pais de Tommy, eles eram os seus únicos parentes.

Tommy bloqueou esse pensamento, antes que as más memórias se apoderassem dele. Olhando de relance por entre os pés, viu Martin a olhar para ele. O seu amigo era alto e magro, com pernas e braços compridos. Martin estava sempre pronto a fazer uma piada e ria-se com muita facilidade.

É claro que os pais de Martin não tinham morrido nos seus braços.

Tommy sentiu um surto de fúria contra o amigo, mas sabia que não passava de ciúme mesquinho, por isso reprimiu-o. Ainda assim, a corda escorregou-lhe das palmas suadas. Agarrou-se com mais força.

Talvez Martin tenha razão.

Uma vertigem acabou por convencê-lo disso. Começou a descer, mas tudo se tornava cada vez mais turvo. Segurou-se com dificuldade enquanto descia rapidamente, agora a deslizar, queimando as palmas das mãos.

Faças o que fizeres, não...

Em seguida, começou a cair. Olhou para cima, para a luz do Sol que entrava pela janela, lembrando-se de uma outra vez em que caíra desamparado. Mas, nessa altura, era imortal.

Hoje não tinha essa sorte.

Caiu com força em cima de uma pilha de colchões que se encontrava por baixo da corda. O ar fugiu-lhe do peito. Arquejou, tentando voltar a encher os pulmões, mas estes recusavam-se a colaborar.

— Saiam da frente! — gritou Lessing, o professor de Educação Física.

Tudo ficou cinzento, depois Tommy conseguiu recuperar o fôlego. Inspirou sofregamente, o que o fez parecer uma foca rouca.

Os seus colegas de turma olhavam-no fixamente. Alguns riam, outros pareciam preocupados, sobretudo Martin.

O senhor Lessing passou por entre os alunos.

— Estás bem — disse ele. — Ficaste apenas sem ar.

Tommy tentou abrandar a respiração. Queria enfiar-se dentro de um buraco no chão. Sobretudo quando avistou o rosto de Lisa Ballantine entre os outros. Gostava dela, e agora fizera figura de parvo.

Tentou sentar-se, o que provocou uma pontada de dor que lhe percorreu as costas magoadas.

— Devagar — disse o senhor Lessing, ajudando-o a levantar-se, o que fez com que o rosto de Tommy aquecesse ainda mais.

Ainda assim, o ginásio inclinou-se um pouco, e Tommy agarrou com força o braço do professor de Educação Física. Este dia não podia ficar pior.

Martin apontou para a mão esquerda de Tommy.

— Isso é uma queimadura feita pela corda?

Tommy olhou para baixo. As suas palmas estavam certamente vermelhas, mas Mark apontava para uma marca escura na parte de dentro do pulso.

— Deixa-me ver isso — disse o senhor Lessing.

Tommy abanou a mão para se soltar e afastou-se aos tropeções, cobrindo a mancha com a outra mão.

— É só uma queimadura feita pela corda. Como o Martin disse.

— Está bem, agora podem afastar-se todos — ordenou o senhor Lessing. — Vão tomar duche. Rapidamente.

Tommy apressou-se a sair dali. Ainda se sentia tonto, mas não era da queda. Manteve a lesão coberta. Não queria que mais ninguém soubesse, sobretudo os seus tios. Guardaria segredo durante o tempo que fosse possível. Embora não percebesse o que estava a acontecer, tinha a certeza de uma coisa.

Não ia fazer quimioterapia desta vez.

Esfregou a mancha no pulso com o polegar, como para a apagar, porque sabia que já não havia mais milagres para ele.

O cancro regressara.

Medo e desespero inundaram-no. Desejou poder falar com a mãe ou com o pai, mas isso era impossível. Ainda assim, havia uma pessoa a quem podia telefonar, uma pessoa a quem podia confiar este segredo.

Outro imortal que, tal como ele, perdera a imortalidade.

Ela saberá o que fazer.

18h25 CET
Veneza, Itália

De pé, no meio do jardim do convento, Elizabeth Bathory ajustava o chapéu de palha de abas largas de forma a cobrir o rosto e proteger os olhos do sol baixo da primavera. Para resguardar a pele, usava sempre um chapéu quando trabalhava no exterior, até mesmo aqui, no pequeno jardim de ervas aromáticas no pátio interior que lhe servia de prisão.

Fora-lhe ensinado há muitos séculos que uma pessoa de sangue real nunca devia ter o mesmo tom de pele dos camponeses que trabalhavam nos campos. Naquele tempo, Elizabeth tinha os seus próprios jardins no castelo de Cachtice, onde cultivava plantas medicinais, estudando as artes da cura, extraindo remédios das pétalas de uma flor ou de uma raiz resistente. Mesmo naquela altura, nunca ia para o exterior com a sua tesoura de poda e os seus cestos sem qualquer forma de sombra.

Embora este pequeno jardim de ervas aromáticas fosse insignificante quando comparado com os seus antigos campos, Elizabeth apreciava aqueles momentos entre a miscelânea fragrante de timo, cebolinho, basílico e salsa do convento. Passara a tarde anterior a limpar o terreno de restos velhos de alecrim para preencher os novos espaços com lavanda e menta. Os seus aromas agradáveis enchiam o ar quente.

Se fechasse os olhos, conseguia imaginar que era um dia de verão no seu castelo e que os seus filhos não tardariam a correr ao seu encontro. Ela iria dar-lhes as ervas que apanhara e caminharia com eles pelos campos, enquanto ouvia as suas histórias do dia.

No entanto, esse mundo acabara há quatrocentos anos.

Os seus filhos estavam mortos; o seu castelo em ruínas. Até mesmo o seu nome era sussurrado como uma maldição. Tudo isto porque fora transformada num strigoi amaldiçoado.

Imaginou o rosto de Rhun Korza, lembrando-se dele em cima dela, o sabor do seu próprio sangue nos lábios dele. Naquele momento de fraqueza e desejo, a sua vida fora alterada para sempre. Após o choque inicial da sua transformação num strigoi, Elizabeth aprendera a aceitar aquela maldita existência, a apreciar tudo o que ela oferecia. Contudo, até isso lhe fora arrancado no último inverno, roubado pela mesma mão que o concedera.

Agora, era novamente um mero ser humano.

Fraca, mortal e enclausurada.

Maldito sejas, Rhun.

Ela agachou-se, cortou selvaticamente um ramo de alecrim e atirou-o para o caminho de lajes. Marie, uma freira mais velha, trabalhava nos jardins com ela, varrendo o caminho com uma vassoura feita à mão. Marie era uma mulher idosa que mais parecia um alperce enrugado, com oitenta anos e os olhos azuis nublados pela idade. Tratava Elizabeth com uma condescendência generosa, como se esperasse que o seu comportamento problemático passasse. Se ela soubesse que Elizabeth já vivera mais séculos do que aqueles que esta velha mulher veria em toda a sua vida!

Contudo, Marie não sabia nada sobre o passado de Elizabeth, nem mesmo o seu nome completo.

Ninguém no convento fora informado.

Uma pontada aguda num dos joelhos fez com que Elizabeth mudasse de posição, reconhecendo de imediato a causa da dor.

Envelhecimento.

Uma maldição substituída por outra.

Pelo canto do olho, viu Berndt Niedermann atravessar o pátio em direção ao salão para jantar. O elegante alemão encontrava-se alojado num dos quartos de hóspedes do convento. Estava vestido com roupa que passaria como algo formal nesta época: calças com vinco e um casaco azul de muito bom corte. Levantou uma mão como que a cumprimentar.

Ela ignorou-o.

Ainda não tinham chegado ao ponto da familiaridade.

Pelo menos, por agora.

Endireitou as costas para aliviar a dor, olhando de relance em todas as direções menos na de Berndt. O convento veneziano tinha o seu encanto. No passado, fora uma grande mansão com uma entrada imponente sobranceira a um amplo canal. Colunas altas flanqueavam uma porta sólida de carvalho que dava para a doca. Passara muitas horas a olhar pela janela do seu quarto, a observar a vida a passar pelos canais. Veneza não tinha carros, nem cavalos, apenas barcos e pedestres. Era um anacronismo curioso, uma cidade que pouco mudara com o passar do tempo.

Durante a última semana, conversara ocasionalmente com o hóspede alemão. Berndt era um escritor de visita a Veneza para fazer alguma pesquisa para um livro, que parecia incluir caminhar pelas estradas empedradas, comer comida requintada e beber vinho caro. Se a tivessem deixado acompanhá-lo durante um dia, ela poderia ter-lhe mostrado tanto mais e partilhado a história desta cidade inundada, mas isso nunca iria acontecer.

Elizabeth estava sempre debaixo da vigilância apertada da irmã Abigail, uma sanguinista que deixara bem claro que Elizabeth nunca deveria sair do convento. Para manter a sua vida — mortal, como era agora —, Elizabeth tinha de ficar enclausurada no interior daquelas imponentes paredes.

O cardeal Bernard fora bastante claro nesse aspeto. Deveria permanecer enclausurada ali para se redimir dos seus crimes passados.

Ainda assim, este alemão poderia revelar-se útil. Com esse propósito em mente, Elizabeth lera os seus livros, discutira-os com o autor enquanto bebiam vinho, tendo o cuidado de os elogiar sempre que podia. Nem mesmo estas breves conversas eram privadas. Só lhe era permitido falar com os hóspedes quando supervisionada, habitualmente por Marie ou Abigail, aquela sanguinista inflexível de cabelo grisalho.

Ainda assim, Elizabeth encontrava falhas na sua supervisão, sobretudo ultimamente. À medida que os meses do seu aprisionamento passavam, os outros começavam a baixar a guarda.

Há duas noites, Elizabeth conseguira esgueirar-se para o quarto de Berndt enquanto ele estava fora. Entre os seus pertences, descobrira a chave do seu barco alugado. Num ato de ousadia, roubou-a, na esperança de que ele pensasse que a guardara noutro sítio.

Até agora, nenhum alarme fora dado.

Ótimo.

Limpou a testa com um lenço de bolso, quando um rapazinho de boné azul de mensageiro surgiu na outra ponta do pátio. A criança movia-se da maneira despreocupada e moderna que já vira em Tommy, como se as crianças dos dias de hoje não tivessem qualquer controlo sobre os seus membros e isso as fizesse baloiçar de forma disparatada sempre que se mexiam. Nem quando era mais novo do que este rapaz, o seu filho Paul, há muito falecido, caminharia de forma tão ridícula.

Marie dirigiu-se ao mensageiro para o receber, enquanto Elizabeth esticava o pescoço para ouvir a conversa. O seu italiano já era razoável, visto que não tinha muito mais para fazer do que tratar do jardim e estudar. Ela estudava pela noite dentro. Tudo o que aprendia era uma arma para usar um dia contra os seus captores.

Uma abelha pousou na sua mão e ela ergueu-a à altura do rosto.

— Tenha cuidado — avisou uma voz atrás dela, assustando-a.

Tal nunca aconteceria se ainda fosse um strigoi. Nessa altura era capaz de detetar um batimento cardíaco a vários campos de distância.

Virou-se e viu Berndt de pé, atrás dela. Devia ter dado a volta ao pátio todo para se aproximar dela de forma tão discreta. Encontrava-se tão perto que Elizabeth conseguia sentir o cheiro do seu aftershave almiscarado.

Ela olhou de relance para baixo, para a abelha.

— Devia ter medo desta pequena criatura?

— Muitas pessoas são alérgicas a abelhas — explicou Berndt. — Se me picasse, era capaz de me matar.

Elizabeth levantou uma sobrancelha. O homem moderno era tão fraco. No seu tempo, ninguém morria com a picada de uma abelha. Ou talvez muitos tivessem morrido e simplesmente ninguém ficara a saber.

— Não podemos permitir que isso aconteça.

Elizabeth afastou a mão de Berndt e soprou a abelha para que ela voasse.

Quando o fez, uma figura saiu das sombras da parede do pátio e dirigiu-se a eles.

A irmã Abigail, claro.

A sua guardiã sanguinista parecia uma freira britânica inofensiva: os membros magros e fracos, os olhos azuis mortiços devido à idade. Quando chegou ao pé deles, enfiou na touca uma madeixa de cabelo grisalho que escapara.

— Boa tarde, Herr Niedermann — cumprimentou Abigail. — O jantar será servido em breve. Se for andando para o salão, tenho a certeza de que...

Berndt interrompeu-a:

— Talvez a Elizabeth me queira fazer companhia.

Abigail pegou no braço de Elizabeth com tanta força que certamente deixaria uma nódoa negra. Ela não resistiu. As nódoas negras eram capazes de gerar alguma compaixão por parte de Berndt nas circunstâncias certas.

— Temo que a Elizabeth não possa ir consigo — disse Abigail num tom de voz irritado que não admitia qualquer tipo de discussão.

— É claro que posso, irmã — retorquiu Elizabeth. — Não sou uma prisioneira, pois não?

O rosto quadrado de Abigail corou violentamente.

— Então, está decidido — continuou Berndt. — E talvez possamos dar uma volta de barco a seguir?

Elizabeth esforçou-se por não reagir, receando que Abigail ouvisse o acelerar súbito do seu coração. Será que dariam pela chave desaparecida?

— A Elizabeth tem estado doente — disse Abigail, claramente sentindo alguma dificuldade em arranjar uma desculpa para manter Elizabeth dentro das paredes do convento. — Não se deve cansar demasiado.

— Talvez a brisa do mar me faça bem — respondeu Elizabeth com um sorriso.

— Não posso permiti-lo — argumentou Abigail. — O seu... o seu pai ficaria muito zangado. De certeza que não quer que telefone a Bernard, pois não?

Elizabeth desistiu de brincar com a mulher, por mais que a encantasse fazê-lo. Era certo que não queria que a atenção do cardeal Bernard se virasse na sua direção.

— É uma pena — lamentou Berndt. — Sobretudo, porque me vou embora amanhã.

Elizabeth olhou diretamente para ele.

— Pensei que ia ficar mais uma semana.

Ele sorriu com o seu interesse, claramente confundindo-o com afeto.

— Temo que os negócios me chamem de volta a Frankfurt mais cedo do que esperava.

Aquilo era um problema. Se tencionava usar o barco dele para fugir, teria de ser naquela noite. Pensou rapidamente, sabendo que esta era ainda a sua melhor oportunidade... não só para fugir, mas para muito mais.

Ela tinha planos mais grandiosos, queria ser mais do que apenas livre.

Embora Elizabeth pudesse andar ao sol novamente, perdera tanto. Enquanto humana mortal, não era capaz de ouvir os sons mais suaves, cheirar os mais ténues aromas ou observar as cores brilhantes da noite. Era como se tivesse sido embrulhada num cobertor espesso.

Odiava aquilo.

Queria os seus sentidos strigoi de volta, queria sentir aquela força pouco natural a correr-lhe pelos membros novamente, mas, mais do que tudo, desejava ser imortal... queria ser libertada não só das paredes do convento, como da passagem dos anos.

Não vou deixar que nada me pare.

Antes que se conseguisse mexer, o telemóvel que tinha escondido no bolso das suas saias vibrou.

Apenas uma pessoa tinha aquele número.

Tommy.

Afastou-se do alemão, dizendo:

— Obrigada, Berndt, mas a irmã Abigail tem razão. — Fez-lhe uma vénia rápida, apercebendo-se demasiado tarde de que já ninguém fazia tal coisa. — Sinto-me um pouco tonta por causa do trabalho nos jardins. Talvez deva jantar no meu quarto, afinal.

Os lábios de Abigail contraíram-se numa linha fina.

— Penso que é o mais sensato — disse a irmã.

— É uma pena — afirmou ele, com a desilusão a tomar conta da sua voz.

Abigail pegou no braço de Elizabeth, os dedos da freira a apertarem ainda mais agora, e conduziu-a para o seu quarto.

— Não saia daqui — ordenou ela assim que chegaram à pequena cela. — Eu trago-lhe o jantar.

Abigail trancou a porta atrás dela. Elizabeth esperou que os seus passos se deixassem de ouvir, depois atravessou a cela até à janela com grades. Agora sozinha, retirou o telemóvel do bolso e retornou a chamada.

Quando ouviu Tommy, percebeu de imediato que algo de errado se passava. As lágrimas gelavam-lhe a voz.

— O meu cancro voltou — disse ele. — Não sei o que fazer, a quem contar.

Elizabeth segurou o telemóvel com mais força, como se conseguisse chegar ao rapaz de quem gostava tanto como do seu próprio filho.

— Explica-me o que aconteceu.

Ela conhecia a história de Tommy, sabia que estivera doente antes de uma infusão de sangue angelical o ter curado, concedendo-lhe a imortalidade. Agora era um mero mortal, como ela... atormentado, como antes estivera. Embora ela o tivesse ouvido dizer a palavra cancro, nunca compreendera a natureza da sua doença.

Querendo compreender mais, pressionou-o a continuar:

— Conta-me mais sobre esse cancro.

— É uma doença que te come por dentro. — As suas palavras tornaram-se suaves, desesperadas e perdidas. — Está na minha pele e nos meus ossos.

O coração dela doía pelo rapaz. Queria reconfortá-lo, como costumava fazer com o seu próprio filho.

— De certeza que os médicos te conseguem curar desse mal nestes tempos modernos.

Fez-se uma longa pausa, depois ouviu-se um suspiro cansado.

— O meu cancro, não. Passei anos a fazer quimioterapia, a vomitar o tempo todo. Perdi o cabelo. Até os ossos doíam. Os médicos não o conseguiram travar.

Elizabeth encostou-se ao reboco frio da parede e observou as águas escuras do canal do lado de fora da sua janela.

— Não podes tentar essa quimioterapia novamente?

— Não vou tentar. — Ele parecia firme, mais um homem do que uma criança. — Devia ter morrido naquela altura. Penso que é isso que devia ter acontecido. Não vou passar por aquele tormento outra vez.

— E o teu tio e a tua tia? O que é que eles dizem que deves fazer?

— Não lhes contei, nem o vou fazer. Eles iriam obrigar-me a passar por todos os procedimentos médicos outra vez, e não vai adiantar de nada. Tenho a certeza. É assim que deve ser.

A raiva cresceu dentro dela ao ouvir a derrota na sua voz.

Podes não querer lutar, mas eu quero.

— Ouve — disse ele —, ninguém me pode salvar. Só telefonei para conversar, para desabafar... com alguém em quem confie.

A honestidade de Tommy comoveu-a. Ele, sozinho no mundo, confiava nela. E ele era a única pessoa em quem ela confiava. A determinação cresceu dentro dela. O seu próprio filho morrera porque ela falhara e não fora capaz de o proteger. Não ia deixar que isso acontecesse com este rapaz.

Tommy falou durante mais alguns minutos, sobretudo sobre os seus falecidos pais. Enquanto o fazia, um novo propósito cresceu no coração de Elizabeth.

Vou libertar-me destas paredes... e vou salvar-te.


CAPÍTULO 7

17 de março, 18h38 CET
Cidade do Vaticano

Para fora da frigideira, diretamente para o meio das chamas...

Depois de conseguir sair da biblioteca dos sanguinistas sem ser detetada, Erin encontrara-se com Christian e com a irmã Margaret antes de ser chamada ao gabinete do cardeal Bernard no Palácio Apostólico. Seguiu um padre de manto preto por um longo corredor revestido de painéis, passando pelos apartamentos papais a caminho da ala privada dos sanguinistas.

Perguntava-se por que razão fora chamada de repente.

Será que Bernard ficou a saber da minha invasão de propriedade?

Tentou afastar a tensão do seu passo. Já tentara inquirir o padre à sua frente. O seu nome era Gregory. Era o novo assistente de Bernard, mas o homem mantinha-se calado, um atributo necessário para qualquer pessoa que estivesse ao serviço do cardeal.

Erin examinou o padre recentemente recrutado. Tinha a pele branca como o leite, sobrancelhas grossas e escuras, e cabelo preto que lhe dava pelo colarinho. Ao contrário do anterior assistente do cardeal, não era humano — era um sanguinista. Parecia ter trinta e poucos anos, mas podia ser vários séculos mais velho que isso.

Chegaram à porta do gabinete de Bernard e o padre Gregory abriu-lhe a porta.

— Cá estamos, doutora Granger.

Erin reparou no sotaque irlandês.

— Obrigada, padre.

Ele seguiu-a para dentro da sala, agarrando num relógio de bolso antiquado preso por uma corrente e olhando de relance para ele.

— Chegámos um pouco antes da hora, lamento. O cardeal deve chegar daqui a pouco.

Erin desconfiava que isto não passava de um truque de Bernard, de uma forma mesquinha de afirmar a sua superioridade, deixando-a à espera. O cardeal ainda se sentia ofendido com o facto de o Evangelho de Sangue estar ligado a ela.

O padre Gregory puxou uma cadeira para ela em frente da comprida secretária de mogno do cardeal. Erin pousou a mochila junto à sua cadeira.

Enquanto esperava, observou cuidadosamente a sala, encontrando sempre novas surpresas. Volumes antigos com lombadas de pele enchiam estantes que se estendiam do chão até ao teto, um globo adornado com joias do século dezasseis cintilava em cima da secretária e uma espada do tempo das Cruzadas encontrava-se pendurada por cima da porta.

O cardeal Bernard manejara essa mesma espada para tirar Jerusalém das mãos dos sarracenos há mil anos, e a própria Erin testemunhara a sua aptidão com ela há poucos meses. Embora parecesse preferir trabalhar nos bastidores, o cardeal era um guerreiro destemido.

Algo para ter em mente.

— Deve estar cansada depois do seu longo dia a estudar — disse o padre Gregory, voltando para a porta. — Vou buscar café enquanto espera.

Assim que fechou a porta, Erin dirigiu-se para o outro lado da secretária do cardeal. Examinou os papéis que se encontravam espalhados na superfície da mesma, lendo-os rapidamente. Há poucos meses nunca teria invadido a privacidade do cardeal, mas já vira demasiada gente morrer para respeitar os segredos de Bernard.

O conhecimento era poder, e Erin não deixaria Bernard monopolizá-lo.

A folha que se encontrava mais em cima estava escrita em latim. Ela passou os olhos pelas palavras, traduzindo-as enquanto o fazia. Dois strigoi tinham atacado numa discoteca em Roma, matando trinta e quatro pessoas. Tais ataques às claras eram invulgares, extremamente raros nos tempos modernos. Ao longo dos séculos, até os strigoi tinham aprendido a ocultar-se e a esconder os corpos das suas presas.

Mas, aparentemente, isso já não era verdade.

Erin leu o relatório confidencial do massacre e descobriu um pormenor ainda mais perturbador. Entre os mortos contava-se um trio de sanguinistas. Engoliu com dificuldade ao aperceber-se da aparente impossibilidade disso.

Dois strigoi tinham matado três sanguinistas treinados?

Afastou a folha para o lado e leu o relatório seguinte, este em inglês. Descrevia um ataque semelhante numa base militar nos arredores de Londres, vinte e sete soldados armados mortos ao final do dia no refeitório.

Erin folheou apressadamente as restantes páginas. Documentavam ataques estranhos e ferozes em Itália, na Áustria e na Alemanha. Ficou de tal maneira perdida nos horrores daqueles relatos que mal reparou na porta do gabinete a abrir.

Ergueu a cabeça.

O cardeal Bernard entrou, vestido com a sua indumentária escarlate. Com o cabelo branco e postura calma, podia ser facilmente confundido com o avô amável de alguém.

Ele suspirou, acenando com a cabeça para a secretária.

— Vejo que já leu os meus relatórios confidenciais.

Erin nem sequer tentou negar.

— São um pouco vagos. Já descobriu mais alguma coisa sobre estes atacantes?

— Não — respondeu ele, enquanto trocavam de lugar. Sentou-se na sua cadeira e ela regressou à sua. — Sabemos que as suas táticas são violentas, indisciplinadas e imprevisíveis.

— E há testemunhas?

— Até agora não deixaram quaisquer sobreviventes. Contudo, neste último ataque, na discoteca, conseguimos obter filmagens das câmaras de segurança.

Erin endireitou-se na cadeira.

— É bastante terrível — avisou ele, virando o ecrã do computador na direção dela.

Erin aproximou-se e disse:

— Mostre-me.

O cardeal abriu um ficheiro e uma filmagem pouco nítida revelou um grupo de pessoas a dançar numa pista escura. As luzes piscavam e, embora a gravação não tivesse som, Erin conseguia imaginar a batida grave da música.

— Observe estes dois — disse Bernard, apontando.

Indicou dois homens, ambos vestidos com roupa escura, numa das extremidades do ecrã. Dirigiam-se lentamente para a pista de dança. Um tinha pele branca, a do outro era negra. Erin semicerrou os olhos e aproximou-se do ecrã, examinando a figura escura. A qualidade do vídeo era demasiado má para identificar características faciais, mas parecia que a sua pele absorvia a luz. De alguma maneira, o seu rosto não parecia natural, assemelhando-se mais a uma máscara do que a pele humana.

Como se as pessoas que dançavam na pista pressentissem os caçadores no seu meio, a pequena multidão afastou-se, formando um círculo à volta das duas criaturas. Tinham razão para se sentirem apreensivas. Passado um momento, os dois strigoi atacaram, movendo-se tão rapidamente que as suas imagens não passavam de borrões no ecrã. Erin nunca vira strigoi moverem-se a tal velocidade.

Em menos de dez segundos, apenas os dois strigoi permaneciam de pé. Corpos despedaçados e ensanguentados estendiam-se aos seus pés. Cada vulto pegou numa mulher ferida do chão, atirou-a por cima do ombro e desapareceu da imagem.

Erin estremeceu ao pensar o que esperava aquelas pobres raparigas.

O cardeal premiu uma tecla e a imagem parou.

Erin engoliu com dificuldade, ao pensar na dor e no medo que aquelas pessoas deviam ter sentido nos seus derradeiros momentos. Nenhuma delas tivera a mínima hipótese.

— A polícia anda à procura destes assassinos? — perguntou ela.

O cardeal voltou a endireitar o monitor.

— Estão à procura, mas não sabem o que estão a caçar.

— O que quer dizer com isso?

— A polícia não teve autorização para ver esta filmagem. Como sabe, não podemos deixar que sejam reveladas provas da existência dos strigoi.

Erin recostou-se na cadeira.

— Então, como podem as pessoas proteger-se?

— Já enviámos equipas adicionais para patrulhar a cidade dia e noite. Vamos encontrar este par de assassinos e destruí-los. Esse é o nosso dever sagrado.

Erin pensou quantas vidas inocentes seriam ceifadas antes que tal acontecesse.

— Aqueles strigoi eram rápidos como eu nunca vi antes.

O cardeal fez uma careta.

— E não são os únicos. Temos relatos semelhantes vindos de todo o mundo. Por alguma razão, os strigoi começaram a mudar, a ficar mais poderosos.

— Foi o que eu ouvi, mas porque é que isso está a acontecer? E porquê agora?

— Não tenho a certeza, mas receio que tenha que ver com a profecia.

Erin franziu o sobrolho, tentando adivinhar o que ele queria dizer.

— Com o facto de os grilhões de Lúcifer terem, de algum modo, começado a soltar-se. E, por causa disso, mais iniquidade está a entrar no nosso mundo. Um equilíbrio fundamental alterou-se, dando mais força às criaturas do mal e, ao mesmo tempo, enfraquecendo as forças sagradas.

Erin olhou mais atentamente para o cardeal, analisando-o.

— Sente-se mais fraco?

O cardeal cerrou um punho sobre a secretária.

— Aqui, neste território sagrado, não. Mas perdemos dezoito sanguinistas nas últimas doze semanas.

Dezoito? A ordem já começara a enfraquecer em número ao longo das últimas décadas, muito à semelhança do sacerdócio católico. Os sanguinistas não se podiam dar ao luxo de perder mais soldados, sobretudo se uma guerra estivesse iminente.

— Os ataques seguem algum padrão geográfico? — perguntou ela. — Se soubéssemos onde tudo isto começou, talvez pudéssemos obter alguma pista para lhe pôr fim.

O cardeal semicerrou os olhos, estudando-a.

— Doutora Granger, como é habitual, parece ter acertado no cerne da questão.

Erin endireitou-se ainda mais na cadeira.

— O cardeal já sabe de algo.

— Temos estado a registar meticulosamente as datas e as localizações destes ataques.

— Para elaborar uma base de dados — disse ela. — Muito inteligente.

O cardeal acenou com a cabeça como que a agradecer o elogio e inclinou o ecrã na direção dela. Abriu rapidamente a imagem de um mapa da Europa. Surgiram pequenos pontos vermelhos, assinalando os locais dos ataques. Erin ficou chocada com a quantidade de pontos, mas manteve-se concentrada.

— Se extrapolarmos para o que já sabemos — começou Bernard —, parece que os ataques se têm propagado a partir de uma única localização.

O cardeal ampliou a imagem no epicentro dos ataques.

Erin leu o nome no mapa, sentindo o sangue fugir-lhe do corpo.

— Cumas... é onde ficam os templos sibilinos.

E onde Jordan está a trabalhar.

Ela olhou fixamente para Bernard.

— Já teve notícias de Jordan e da sua equipa? Descobriram alguma coisa?

O cardeal afundou-se na cadeira.

— Foi essa a outra razão por que a chamei. Achei que devia ouvir de mim primeiro. Houve um ataque...

Foi interrompido pelo padre Gregory, que entrou com um serviço de café prateado. Erin olhou de relance para trás, com uma onda de pânico vertiginosa a apoderar-se dela. Gregory deve ter ouvido o batimento frenético do seu coração e parou à porta.

Erin virou-se novamente para Bernard.

— O Jordan está bem?

Bernard fez sinal a Gregory.

— Deixe o café ali na mesa. É tudo.

Erin nem esperou que o assistente de Bernard saísse. Os seus dias à espera de que os sanguinistas se decidissem a contar-lhe as coisas tinham chegado ao fim.

— O que aconteceu? — gritou ela, inclinando-se para a frente de forma agressiva.

Bernard ergueu a palma da mão, claramente pedindo-lhe que se acalmasse.

— Não tema, Jordan e a sua equipa estão ilesos.

Erin voltou a encostar-se para trás. Deixou escapar um suspiro trémulo, embora sentisse que o cardeal estava a omitir algo. Contudo, com a sua maior preocupação apaziguada, esperou que o padre Gregory saísse para confrontar Bernard.

— O que é que não me está a contar? — perguntou ela.

— Esta manhã, a equipa de Jordan descobriu um túnel novo, que parecia ter sido escavado recentemente. Dava a impressão de que algo escavara uma saída para fora daquele templo soterrado.

— Algo? O que quer isso dizer?

— Não sabemos. Mas o que sabemos é que o corpo do irmão Leopold desapareceu desse templo.

Erin assimilou toda aquela informação. Durante a batalha naquele templo no inverno passado, Leopold fora morto por Rhun... ou, pelo menos, era o que parecia ter acontecido. No entanto, se o seu corpo desaparecera, isso significava que ele ainda estava vivo ou que alguém levara o seu corpo.

Voltou a sentir-se preocupada com algo mais pessoal.

— O cardeal disse que houve um ataque.

— Um strigoi fez uma emboscada a Jordan e à sua equipa nesse templo.

Erin levantou-se e atravessou a sala em direção ao serviço de café, sentindo-se demasiado ansiosa para permanecer sentada. Serviu-se de café, lembrando-se de que Jordan estava bem.

Ainda assim...

Aquecendo as palmas das mãos na chávena, virou-se de frente para Bernard.

— Quem os atacou era um daqueles strigoi?

— Parece que sim. A boa notícia é que os outros vão trazer o corpo do strigoi para Roma a fim de ser estudado. Pode ser que aprendamos algo com os restos mortais.

— Quando? — perguntou ela de forma brusca, ansiosa por ver Jordan para se certificar de que ele estava realmente bem.

— Devem chegar na próxima hora. Mas eles também encontraram outra coisa na câmara, algo de que não queriam falar por telefone. Na verdade, Jordan disse que queria que a Erin o visse primeiro. — O cardeal parecia irritado por alguém lhe estar a omitir algum tipo de informação. — Ele acha que é capaz de o reconhecer, porque, como tão categoricamente insistiu, a Erin é a Mulher Sábia.

Erin bebeu um gole de café, deixando que o calor dissipasse o gelo residual do seu pânico. Ela apreciava a confiança que Jordan depositava nela, só esperava corresponder às suas expectativas. Sem saber o que ele lhe traria de Cumas, pensou no mistério do desaparecimento do corpo de Leopold e na afirmação críptica de Bernard.

Algo escapou para fora daquele templo.

19h02
Roma, Itália

Legião caminhava de lado pela beira de uma parede alta no coração de Roma. Mantinha a sombra da barreira sobre a sua forma. Embora o Sol já tivesse desaparecido no horizonte, as ruas vizinhas ainda brilhavam com o lusco-fusco. Preferia os locais mais escuros para caçar. Como precaução extra, puxou o capuz do casaco de forma a cobrir ainda mais a cabeça, tendo apenas uma certeza.

Ninguém pode contemplar o meu rosto descoberto e não reconhecer a minha glória.

No entanto, muito permanecia desconhecido.

E isso teria de acabar.

O corpo daquele que possuíra, de seu nome Leopold, revelara-se valioso. A partir daquela chama tremeluzente que ainda brilhava na escuridão dentro do seu ser, Legião ficara a saber mais sobre a profecia e sobre aqueles que se opunham ao seu dever.

As palavras daquele enigma assaltavam-no a cada passo que dava.

Em conjunto, o trio deverá enfrentar a sua derradeira demanda. Os grilhões de Lúcifer foram abertos e o seu Cálice permanece perdido. Será necessária a luz dos três para forjar o Cálice e para o banir novamente para a escuridão eterna.

Ele imaginou o rosto daquele que era conhecido como Homem Guerreiro, concentrando-se na imagem dos seus olhos azuis e das linhas fortes do seu rosto. O Guerreiro exsudava tudo o que a masculinidade representava, a imagem genuína de um homem.

Enquanto caminhava junto à parede, um veículo grande passou velozmente na rua ao seu lado, levantando lixo e expelindo fumos desagradáveis. Pelas memórias de Leopold, Legião sabia que aquilo se chamava autocarro. No entanto, retirou-se para as suas próprias memórias. Enquanto anjo caído, já caminhara durante vários anos por este jardim que era o mundo, bem antes da passagem conturbada do Homem por ele. Onde antes cresciam coisas selvagens, a humanidade cobrira a terra com pedra artificial. Onde antes riachos límpidos corriam sob um céu azul, agora existia sujidade, tanto na água, como no ar.

Mesmo desde o início, Legião sabia que o Homem não estava à altura de herdar este paraíso. Durante a guerra dos Céus, onde se juntara a outros contra o plano de Deus para a humanidade, esperara reclamar este jardim para si mesmo. Contudo, no final, ele e os outros perderam essa batalha e ficaram desalentados, e agora a humanidade provara, tal como ele previra, que não passava de uma influência perniciosa neste jardim, uma erva daninha que tinha de ser arrancada e queimada.

Vou reaver este paraíso.

Não deixaria que nada o travasse.

Nem mesmo a profecia.

Para alcançar esse fim, tinha de aprender mais sobre aquele trio, o suficiente para os parar. Passou as pontas dos dedos sombrias pela parede ao seu lado, sentindo a queimadura da santidade naquelas pedras. Esta barreira separava Roma da Cidade do Vaticano. Legião caminhava pela parede com um propósito definido.

Ficara a saber através de Leopold o nome dos dois membros do trio que restavam: a Mulher Sábia e o Cavaleiro de Cristo. Era provável que se encontrassem por perto, escondidos neste bastião de religiosidade. Tirou os dedos da parede e olhou para a palma da mão, onde a escuridão serpenteava pela sua pele.

Se colocasse a mão sobre um dos membros do trio, conseguiria possuí-lo de imediato.

Com um único toque, posso acabar com a ameaça desta profecia.

O primeiro passo para alcançar este objetivo aproximava-se agora. Tivera esperança de encontrar um deles a vaguear pelos limites da cidade sagrada. A figura caminhava pelo passeio na sua direção, assemelhando-se a qualquer outro transeunte. Contudo, com os seus sentidos apurados, Legião apercebera-se de uma diferença significativa.

Nenhum coração batia no peito deste.

Era um sanguinista, uma palavra que aprendera com Leopold. O servo de Deus apercebeu-se da condição sobrenatural de Legião demasiado tarde. Legião agarrou o antebraço nu do homem com os seus dedos negros. A sua presa caiu de joelhos enquanto Legião lhe extinguia a vontade própria e empurrava as suas sombras para o interior do seu coração.

Serás os meus olhos e os meus ouvidos naquela cidade sagrada.

Legião olhou fixamente para cima, para a parede. Com este escravo conseguiria descobrir onde se escondiam os seus inimigos e acabaria com aquela ameaça.

Não vou voltar a falhar.

19h15
Cidade do Vaticano

Enquanto esperava o regresso de Jordan, Erin estudava o mapa no ecrã do computador de Bernard, reparando na propagação dos ataques a partir de Cumas.

— É como uma praga — murmurou ela.

O cardeal levantou os olhos dos relatórios que se encontrava a rever.

— O que disse?

Erin apontou para o ecrã.

— E se considerarmos o padrão destes estranhos ataques strigoi como uma doença, um agente patogénico que se está a espalhar por todo o lado?

— Em que é que isso nos ajuda?

— Se calhar, em vez de tentarmos impedir os ataques, devíamos concentrar os nossos esforços a descobrir o paciente zero. Se o conseguirmos encontrar...

Um leve bater na porta interrompeu-a.

— Entre — gritou Bernard, endireitando o solidéu carmesim. O cardeal era mais vaidoso do que alguma vez admitiria.

Erin virou-se quando a porta se abriu e o padre Gregory entrou, mas ele estava apenas a segurar a porta para outros entrarem. Viu o primeiro visitante e deu por si de pé e a meio da sala antes que se apercebesse.

Jordan apanhou-a nos seus braços e ergueu-a no ar. Ela abraçou-o com força. Assim que ele a pôs no chão, Erin inclinou-se para trás, mantendo as mãos sobre os ombros dele, examinando-o.

Apesar das palavras anteriores de conforto do cardeal, Erin continuara preocupada com o bem-estar de Jordan. Contudo, ele parecia estar bem. Na verdade, parecia ótimo, a sua pele bronzeada quase brilhava de tão saudável.

Erin pôs-se em bicos de pés, pedindo um beijo. Jordan inclinou-se para baixo e beijou-a na face. Os lábios dele queimavam, como se estivesse com febre. Erin voltou a assentar os calcanhares no chão, levantando a mão para tocar na face.

Um beijo na cara?

Uma demonstração de afeto tão morna era pouco usual da parte dele e fê-la sentir-se rejeitada.

Erin estudou os seus olhos azul-claros e esticou-se para passar a mão pelo seu cabelo curto e louro, querendo perguntar-lhe o que se passava. Ele não reagiu ao seu toque. Erin encostou as costas da mão à testa dele. A sua pele estava a escaldar.

— Estás com febre?

— Não. Sinto-me ótimo. — Jordan recuou e agitou o polegar na direção do companheiro atrás dele. — Provavelmente estou mais quente por ter andado a correr atrás deste tipo.

Referia-se a Christian, mas, tendo em conta a expressão no rosto do jovem sanguinista, também ele estava preocupado. Não havia dúvida de que Jordan não lhe estava a contar alguma coisa.

Antes que conseguisse insistir no assunto, Christian entrou na sala. Estava vestido de forma casual, com calças de ganga pretas desbotadas e um corta-vento azul-escuro, por baixo do qual era visível a sua camisa e colarinho de padre. Acenou com a cabeça para Bernard.

— A Sophia e o Baako vão trazer o corpo do strigoi para a clínica do Papa.

Erin pôs de lado a sua preocupação com o afastamento de Jordan e concentrou-se no mistério que ele e os outros lhe tinham trazido. Se conseguissem descobrir a origem da força e da velocidade invulgares deste strigoi, talvez fossem capazes de arranjar uma maneira de a travar no futuro.

Contudo, isso teria de esperar.

Christian tirou um trapo caqui do bolso do seu casaco. Lançou um olhar de culpa a Jordan e disse:

— A Sophia pediu-me que mostrasse isto a Erin.

Erin susteve a respiração ao reconhecer o trapo. Era um pedaço da t-shirt de Jordan — só que estava coberta de sangue seco, com um corte limpo ao meio. Erin olhou de forma ansiosa para Jordan.

Ele sorriu-lhe.

— Não é nada grave. Só levei uma facadinha durante a luta.

— Facadinha? — Erin pressentiu que ele lhe escondia algo. — Mostra-me.

Jordan ergueu as palmas das mãos.

— Juro... não há nada para ver.

— Jordan... — Um tom de aviso toldava a sua voz.

— Está bem. — Jordan levantou a t-shirt com uma mão. Os seus abdominais definidos saltaram à vista.

Não havia absolutamente nada de errado com eles, isso era certo.

Erin deslizou um dedo pela sua pele invulgarmente quente, reparando na linha fina de uma cicatriz. Isso era novo. Sem tirar a mão da barriga de Jordan, olhou novamente para a t-shirt ensanguentada que Christian segurava. O corte na parte da frente da t-shirt coincidia com a cicatriz.

— Se foi ou não só uma facadinha — disse ela —, não deveria ter sarado tão depressa.

Bernard também se aproximou para examinar Jordan.

— Segundo a Sophia e o Baako — explicou Christian —, Jordan sarou espontaneamente, sem sofrer quaisquer efeitos do golpe.

Sem sofrer quaisquer efeitos do golpe?

A pele dele queimava sob as pontas dos dedos de Erin. Ele quase não a olhava diretamente nos olhos. Ela lembrava-se de uma outra vez em que ele ardera desta maneira, quando fora curado pelo sangue angelical de Tommy. Seria isto uma prova da existência da profecia no que dizia respeito ao Homem Guerreiro? As palavras ecoavam na sua cabeça: O Homem Guerreiro está unido aos anjos a quem deve a sua vida mortal.

Jordan puxou novamente a t-shirt para baixo, olhando de relance para Erin.

— Não queria que te preocupasses. Ia contar-te quando estivéssemos sozinhos.

Ias mesmo?

Erin detestava duvidar dele, mas duvidava.

— Pensei que tivéssemos assuntos mais importantes a tratar primeiro — continuou ele.

Jordan tirou algo das suas calças de camuflado e ergueu-o para que todos vissem. Os seus contornos aguçados tremeluziam à luz das velas. Pareciam dois pedaços de um ovo verde partido.

— Encontrámos isto junto ao altar no templo sibilino — explicou Jordan.

Atravessou a sala e colocou os dois pedaços em cima da secretária do cardeal. Todos se reuniram à sua volta. A sua superfície facetada lançou reflexos irisados sobre os seus rostos, a coisa mais brilhante que Erin já vira — amarelos como raios de sol, verdes como a luz do Sol a incidir sobre a relva, azuis como o céu no verão. Os pedaços não eram feitos de vidro vulgar.

— Que tipo de pedra é? — perguntou ela.

— Diamante, penso eu — disse Christian, aproximando-se. — Um diamante verde, para ser mais preciso. Extremamente raro.

Hipnotizada pela sua beleza, Erin olhou fixamente para a pedra. O cristal lançava reflexos sobre o tampo da secretária. Aquelas lágrimas de esmeralda brilhantes lembravam-lhe folhas minúsculas a dançar numa brisa de verão.

Jordan juntou os dois pedaços.

— Já a encontrámos partida nestas duas metades, mas em tempos deve ter sido uma única pedra preciosa. E vejam isto...

Virou a pedra de lado, revelando um símbolo gravado no cristal.

Erin aproximou-se ainda mais, delineando o símbolo com o dedo indicador. Parecia que o desenho fora fundido no interior da pedra.

— É estranho, não é? — perguntou Jordan ao reparar no interesse de Erin. — É como se o símbolo já fizesse parte do diamante e não tenha sido gravado posteriormente.

Erin franziu o sobrolho.

— Já ouvi falar de falhas e de inclusões em pedras preciosas, mas é difícil acreditar que um emblema tão definido se tenha formado naturalmente.

Christian acenou com a cabeça.

— Concordo.

Erin endireitou-se.

— Além disso, já vi este símbolo.

Uma pequena parte de Erin gostou das expressões chocadas nos rostos deles.

— Onde? — perguntou Bernard.

Erin apontou para a estante do cardeal.

— Ali mesmo.

A fim de o provar, Erin aproximou-se da estante e retirou um pequeno tomo encadernado a couro. Ela mesma entregara este livro depravado ao cardeal, tendo-o apanhado do chão coberto de neve em Estocolmo depois de Elizabeth Bathory o ter deixado cair. Era o diário pessoal da Condessa Sanguinária, um registo das suas atrocidades e experiências macabras.

Erin voltou para junto da secretária e abriu a frágil capa do livro. Tinha vários séculos. Ainda assim, Erin podia jurar que sentia o cheiro a sangue emanar das suas páginas. Folheou o livro, passando por desenhos de plantas medicinais até encontrar as experiências mais recentes de Bathory, aquelas que continham desenhos pormenorizados da anatomia humana e strigoi. O seu olhar foi atraído para as notas escritas com esmero dos testes horríveis que realizava em mulheres vivas e strigoi, atos hediondos que deviam ter causado um sofrimento terrível e a morte.

Folheou rapidamente essas páginas.

No final do livro, Erin encontrou o que procurava. Rabiscado, como que à pressa, na última página do livro, encontrava-se um símbolo.

Coincidia exatamente com o que se encontrava na pedra.

— O que significa? — perguntou Bernard.

— Teremos de perguntar à mulher que o escreveu — respondeu Erin.

Jordan resmungou:

— Algo me diz que ela não será muito cooperante, sobretudo depois do que Rhun lhe fez. Ela não é o tipo de pessoa que perdoa.

— Ainda assim — continuou Erin —, Rhun é capaz de ser o único a conseguir convencê-la.

Jordan suspirou.

— Por outras palavras, está na hora de voltar a juntar a banda.

Jordan não parecia muito feliz, mas Erin sentiu um ligeiro alívio ao pensar nos três juntos novamente, o trio da profecia reunido.

Imaginou o rosto pálido de Rhun, os seus olhos escuros atormentados, e virou-se para Bernard.

— Então, onde está ao certo o nosso Cavaleiro de Cristo?


CAPÍTULO 8

17 de março, 20h37 CET
Castel Gandolfo, Itália

Uma última missão e serei livre para regressar a Roma.

Na verdade, Rhun não tinha muita pressa. Depois de regressar do Egito, parara antes de mais na residência de verão do Papa na região rural de Castel Gandolfo. Como o pontífice raramente a visitava, a residência era governada como uma casa de campo. O ritmo era lento e pausado, mudando apenas com as estações do ano.

Rhun encontrava-se de pé junto à janela e olhava através dos campos verdejantes para as águas do lago Albano, iluminadas pelo luar. Não se apercebera de quanto sentira a falta de ver água depois de passar vários meses no deserto. Respirou fundo o ar impregnado do cheiro da água, coisas verdes e peixe.

Em seguida, sentiu uma dor aguda no calcanhar, o que desviou novamente a sua atenção para o chão de pedra e para a cria de leão brincalhona que lhe mordia a parte de trás do sapato. A cria branca como neve encontrava-se deitada no chão, com as patas esticadas à sua frente como a esfinge. À exceção de que a esfinge não tinha a cabeça inclinada para o lado e os dentes cravados em couro.

— Já chega, meu amigo.

Rhun sacudiu a cria determinada do seu pé.

O jovem leão aguentara bem a viagem do Egito. Antes do voo para Itália, a cria devorara um enorme pequeno-almoço de leite e carne, e depois adormecera enroscada na jaula durante várias horas.

Parece que estás novamente com fome... fome de couro de sapato.

Um bater na porta fez com que ambos olhassem nessa direção. Rhun dirigiu-se apressadamente para a porta, na esperança de que fosse a pessoa que pedira para se encontrar com ele nesta área remota da residência papal. Abriu a porta e deu de caras com um padre rechonchudo, com o cabelo grisalho rapado numa tonsura de frade. A sua cabeça mal chegava ao ombro de Rhun.

— Frei Patrick, obrigado por teres vindo.

O sanguinista ignorou a cortesia formal de Rhun e entrou no quarto. Segurou nas suas mãos frias as de Rhun.

— Quando me disseram que me tinhas vindo visitar, não quis acreditar. Já passaram tantos anos.

Rhun sorriu com o entusiasmo do frade.

— Frei Patrick, envergonhas-me. Já passou assim tanto tempo?

O homem franziu o rosto, pensativo.

— Penso que a última vez que falámos foi quando o homem pisou a Lua. Sei que estiveste por cá há pouco tempo, mas chegaste e partiste muito rapidamente — repreendeu-o o frade, agitando o dedo. — Devias ter passado por cá.

Rhun acenou com a cabeça. Na altura, estivera muito ocupado a lidar com a ameaça de um traidor na ordem, mas não se incomodou a tentar explicar. Por sorte, a atenção do frade foi rapidamente direcionada para a outra visita ao castelo.

— Oh, céus! — Patrick assentou um joelho no chão e estendeu a mão na direção da cria, acariciando-lhe as orelhas suaves com os dedos. — Não há dúvida de que isto compensa a tua longa ausência. Já não via um animal tão magnífico há muito tempo.

O frade cuidara, em tempos, da coleção de animais do Papa, que naquele tempo consistia em cavalos, gado, pombos e falcões. Apesar da sua estatura pequena e constituição robusta, era capaz de selar uma parelha de cavalos mais depressa do que ninguém. Há mais de um século, Rhun trabalhara com ele nos estábulos. Ninguém possuía um elo mais forte com as criaturas de Deus do que Patrick.

— Este pequenote parece ter fome — disse Patrick, demonstrando essa afinidade natural.

— E dei-lhe imenso de comer há bem pouco tempo.

O velho frade riu.

— Isso é porque ele está a crescer. — Patrick levantou-se e fez sinal para a porta. — Anda. Segue-me. Já escolhi um lugar confortável para ele. Depois de teres espalhado a palavra sobre o teu encantador companheiro, preparei tudo.

Com a cria a correr alegremente atrás deles, Patrick conduziu Rhun para fora do quarto, desceram umas escadas e saíram para o exterior da mansão. Atravessaram o terreno das traseiras, onde se encontravam os estábulos antigos.

Assim que Rhun entrou, o cheiro dos cavalos, do couro e do feno fê-lo recuar cem anos. O bater do coração dos cavalos, forte e lento, envolveu-o como se fosse música. Apenas alguns animais viviam nos estábulos agora, nem perto do grande número que existia antes, num tempo em que todas as viagens exigiam algo com quatro patas.

Os cavalos relincharam quando viram Patrick, o qual tirou do bolso um cubo de açúcar para cada um, afagando um focinho atrás do outro enquanto passava pelas baias.

Rhun pegou ao colo a curiosa cria de leão para evitar que esta entrasse pelas baias adentro.

Por fim, Patrick chegou à porta do seu escritório e fez sinal para que entrassem depressa. Imagens de cavalos enchiam as paredes — fotografias e desenhos a lápis. Rhun reconheceu um dos cavalos do seu tempo, um campeão que Patrick criara.

O frade seguiu o olhar de Rhun.

— Lembras-te do Fogo Sagrado, não é? Que campeão que ele era. Juro que caiu do útero da mãe e aterrou de patas.

Patrick ignorou a sua secretária desarrumada e aproximou-se de um pequeno frigorífico. Do interior, retirou um jarro de metal com leite, e uma tigela de cerâmica grande de uma prateleira, enchendo-a até à borda.

Assim que a pousou no chão, a cria atirou-se de imediato à tigela, enfiando metade do focinho no leite. Um ronronar sonoro encheu a divisão.

Por um estranho momento, Rhun sentiu que estava a ser puxado para fora do seu corpo. Deu por si a olhar para baixo, para uma poça branca diante do seu nariz, sentiu o leite gelado a deslizar-lhe pela garganta. Em seguida, voltou bruscamente ao seu próprio corpo, cambaleando para trás, surpreendido.

Patrick olhou para ele com um ar preocupado.

— Rhun?

Rhun abanou a cabeça, recompondo-se, sem perceber o que acontecera. Olhou fixamente para a cria, depois para Patrick, prestes a culpar a exaustão pelo que acontecera. Neste momento, tinha assuntos mais importantes com que se preocupar.

— Obrigado por aceitares cuidar dele. Sei que será um fardo, mas agradeço que fiques com ele o tempo que for possível.

— Fico contente por fazê-lo, mas não posso ficar com um leão para sempre, não ao pé dos cavalos. Eventualmente, terá de ser entregue a um jardim zoológico, a algum lugar com espaço para cuidar dele de forma adequada. — Patrick olhou para Rhun e afagou o flanco da cria. — Embora ele seja encantador, isso é verdade, nem parece teu trazeres animais vadios para casa. O que tem este pequenote de tão único?

Rhun não estava preparado para explicar a origem blasphemare da cria, por isso contornou o assunto.

— Ele estava abandonado. Encontrei-o junto do corpo morto da mãe.

— Muitas criaturas estão sozinhas e tu não as arrastas para dentro do meu estábulo.

— Ele é... diferente, talvez especial.

Patrick esperou por algo mais parecido com uma explicação, mas, quando não a obteve, bateu com as mãos nas ancas e levantou-se.

— Posso ficar com ele durante algumas semanas. De qualquer forma, vou começar a procurar uma casa permanente para ele.

— Obrigado, Patrick.

O telefone em cima da secretária tocou. O frade franziu o sobrolho.

— Parece que mais alguém precisa da minha atenção.

Enquanto Patrick atendia o telefonema, Rhun baixou-se para afagar rapidamente a nuca da cria, depois dirigiu-se para a porta, mas, quando ia a sair do escritório, Patrick fez-lhe sinal para voltar para trás.

— Pelos vistos, enganei-me, Rhun. Parece que alguém precisa da tua atenção.

Rhun voltou a entrar no escritório.

Patrick baixou o auscultador.

— O telefonema era do gabinete do cardeal. Parece que Sua Eminência quer que vás imediatamente para Veneza.

— Veneza?

— O cardeal Bernard vai receber-te pessoalmente lá.

Rhun sentiu um arrepio de inquietação, tentando adivinhar a razão por detrás desta convocação. Elisabeta fora enviada para Veneza após os acontecimentos no Egito. Lá era vigiada e mantida num convento, uma prisioneira das suas paredes.

O que terá feito Elisabeta agora?

Rhun reajustou os seus planos. Depois de largar o leão, tencionava ir diretamente para Roma, a fim de entregar o saco com as pedras negras, aquelas gotas do sangue de Lúcifer retiradas das areias egípcias. Contudo, esta mudança súbita exigia que, antes de mais, guardasse as pedras em segurança. Não queria tal malevolência perto de Elisabeta.

Aproximou-se da secretária do frade. Patrick deve ter lido a expressão do seu rosto.

— Que mais precisas que faça, meu filho?

Rhun retirou o saco de couro do bolso e colocou-o em cima do tampo da secretária. O frade recuou, sentindo o mal.

— Podes guardar isto no cofre do cardeal aqui, no castelo? Ninguém pode tocar no que está no seu interior.

Patrick olhou para o saco com aversão, mas acenou com a cabeça.

— Vens com muitas posses curiosas, Rhun.

Rhun segurou a mão do frade com força.

— Aliviaste-me de dois fardos hoje, meu velho amigo. Agradeço-te por isso.

Com o assunto tratado, Rhun saiu, mas sentia-se pouco aliviado. Não sabia o que o esperava em Veneza. Tinha apenas uma certeza.

Elisabeta não gostaria da sua visita.


SEGUNDA PARTE

Discutiam então os judeus uns com os outros, dizendo:

«Como pode Ele dar-nos a comer a Sua carne?»

Disse-lhes Jesus: «Em verdade, em verdade vos digo:

Se não comerdes da carne do Filho do Homem, e não beberdes

o Seu sangue, não tereis a vida em vós.

Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida

eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia.»

— SÃO JOÃO, 6: 52-54


CAPÍTULO 9

17 de março, 20h40 CET
A sobrevoar Veneza, Itália

Enquanto o helicóptero sobrevoava o mar Adriático, Jordan olhava para o relógio. Tinham demorado pouco tempo de Roma até aqui. À frente, a cidade de Veneza brilhava em contraste com o pano de fundo negro da sua lagoa, como uma coroa de joias abandonada nas águas italianas.

A bordo do helicóptero, ele e Erin estavam acompanhados por um trio de sanguinistas. À frente, Christian encontrava-se debruçado sobre os comandos da aeronave, enquanto Sophia e Bernard partilhavam a cabina das traseiras com eles. O facto de o cardeal se ter juntado a eles na viagem surpreendera Jordan.

Acho que Bernard se cansou de estar de braços cruzados em Roma.

Ainda assim, o cardeal e os outros eram guerreiros hábeis. Jordan não se importava de ter uns músculos a mais, sobretudo depois do ataque naquele templo subterrâneo. A sua barriga ainda ardia, um fogo alimentado por uma miraculosa capacidade de cura qualquer. O mesmo calor corria pela antiga cicatriz que se estendia do ombro até à parte superior do tronco, provocada pelo relâmpago que o atingira quando era adolescente.

Erin estava encostada a esse ombro agora. Ele segurava-lhe os dedos. De vez em quando, durante o voo, ela olhava para ele com preocupação. Ele não a podia censurar, até mesmo Sophia e Baako estavam assustados com a sua quase morte.

O helicóptero abanou de forma violenta, atraindo a atenção de Jordan para fora da janela, à medida que a cidade de Veneza se tornava visível. Christian inclinou a aeronave para ver melhor.

— Mesmo por baixo de nós — transmitiu Christian pelos auscultadores que todos tinham —, fica a Praça de São Marcos. Aquela torre vermelha e branca é o Campanário de São Marcos e aquele edifício que parece um bolo de casamento gótico é o Palácio Ducal. Ao lado, temos a Basílica de São Marcos. A ordem tem o seu próprio domínio por baixo daquele território sagrado, tal como em São Pedro. É lá que vamos passar a noite depois de interrogar Elizabeth Bathory acerca do símbolo.

Erin apertou a mão de Jordan, inclinando-se sobre ele, assimilando tudo.

— Veneza permaneceu imutável por mais de mil anos — disse ela. — Imaginem só...

Jordan sorriu com o entusiasmo dela, mas teve de se forçar um pouco. Ainda se sentia estranhamente desligado. E não era apenas a sua reação indiferente à mulher que amava. Hoje não almoçara nem jantara, e ainda assim não tinha fome. E mesmo quando se forçara a comer algo, a comida não lhe sabia a nada. Comera mais por obrigação do que por vontade.

Esfregou o polegar ao longo da sua nova cicatriz na barriga.

Não há dúvida de que alguma coisa mudou.

E embora devesse estar perturbado com isso, até mesmo assustado, sentia antes uma calma profunda, como se o que quer que estivesse a acontecer fosse obra do destino. Não conseguia expressá-lo em palavras, por isso evitava ao máximo falar sobre o assunto, até mesmo com Erin, mas, de algum modo, parecia bater tudo certo.

Como se estivesse a tornar-se melhor e mais forte.

Enquanto Jordan pensava sobre este mistério, Christian afastou a aeronave da Praça de São Marcos e aterrou no topo de um hotel de luxo próximo. Enquanto o helicóptero desligava, Jordan verificou rapidamente as suas armas: pistola no coldre, pistola-metralhadora e punhal. Olhou em redor, para os outros, à espera de que Christian lhes fizesse sinal de que era seguro abandonar o helicóptero.

Erin parecia entusiasmada, mas ele também reparou nas sombras por baixo dos seus olhos. Para uma civil, passara por muito num curto período. Nunca tivera tempo de recuperar, de interiorizar tudo o que acontecera no último ano.

Do banco do piloto, Christian acenou, dando-lhes permissão para saírem, mas Sophia não os deixou passar, pois queria ser ela a primeira a desembarcar. Durante o voo até Veneza, a mulher indiana de estatura franzina estivera sentada com os olhos semicerrados, irradiando um sentimento de paz. Se essa calma vinha da sua fé ou de uma capacidade extraordinária de permanecer imóvel, Jordan não sabia. Sophia abriu a porta e desceu do helicóptero com uma graça surpreendente.

Bernard seguiu-a, revelando o mesmo nível de compostura. Quando o cardeal pisou terra firme, uma rajada de vento abriu-lhe o casaco escuro, revelando as vestes carmesins por baixo. O seu olhar percorreu o telhado à procura de quaisquer ameaças. Embora Bernard tivesse passado a viagem a rezar, com os dedos enluvados piedosamente pousados sobre o colo, não parecia estar mais descontraído naquele momento.

Não era de admirar, visto que o objetivo da sua longa viagem, Elizabeth Bathory, seria provavelmente um desafio para todos eles. Sobretudo para o cardeal, que tinha um passado longo e sangrento com a mulher em questão. Nutriam uma inimizade mútua há muitos séculos.

Christian aproximou-se, agachando-se por baixo das pás do helicóptero que agora abrandavam, para ajudar Erin a descer. O vento produzido pelos rotores soprou o cabelo louro de Erin, fazendo-o parecer uma auréola de gaze quando olhou para trás, para Jordan. Os seus olhos cor de âmbar brilhavam sob as estrelas, tinha as faces rosadas e os lábios ligeiramente abertos, como que à espera de ser beijada.

Por um momento, a sua beleza dilacerou o nevoeiro escaldante que o enchia.

Eu amo-te mesmo, Erin.

Isso nunca mudará, jurou ele em silêncio — mas, no fundo, perguntou-se se seria capaz de cumprir tal promessa.

20h54

No seu quarto no convento, Elizabeth encontrava-se deitada sobre a cama dura, completamente vestida, e observava as luzes da cidade que se refletiam no canal e lhe salpicavam o teto. Os seus pensamentos estavam a milhas dali, com Tommy.

Tocou no telemóvel que tinha escondido dentro do bolso da saia. Assim que se encontrasse em liberdade, arranjaria maneira de o ajudar. Os seus próprios filhos tinham-lhe sido roubados. Não deixaria que isso acontecesse com Tommy. Ninguém lhe tirava o que era seu.

Virou a cabeça para a janela, para o pequeno buraco no estuque onde escondera a chave do barco que roubara a Bernard. Por enquanto, tinha simplesmente de esperar e tentar manter a respiração constante e o batimento cardíaco lento. Não podia deixar que as freiras sanguinistas que se misturavam com as suas irmãs mortais do convento pressentissem a sua ansiedade e suspeitassem do seu plano de fugir destas paredes naquela mesma noite.

O convento impunha o recolher obrigatório à meia-noite para os seus hóspedes e, como era habitual, Abigail mantinha-se de vigia na receção até os portões do convento fecharem. Depois disso, a velha freira retirava-se para o seu quarto nas traseiras da mansão. Contudo, Elizabeth não se podia fiar no sono da freira. Elizabeth lembrava-se de como a noite recarregava de energia o seu corpo strigoi, de como exigia que ela fosse para o exterior e sentisse a luz da lua e das estrelas na pele. Os sanguinistas deviam sentir algo semelhante, por muito que tentassem controlar os seus desejos com oração.

Uma porta fechou-se com estrondo ao fundo do corredor.

Outro turista que voltava para a cama.

Como era primavera, os quartos de hóspedes do convento estavam lotados, o que era bom. Com tantos corações a baterem nesta ala, Abigail teria dificuldade em distinguir o ritmo do de Elizabeth entre os demais. Aqueles batimentos a mais poderiam ser suficientes para permitir a sua fuga.

E eu tenho de fugir.

Reviu o plano na sua cabeça: retirar a chave do barco da janela, esgueirar-se pelo corredor alcatifado com os sapatos na mão, destrancar o portão de ferro na parede lateral do convento e contornar a mansão em direção ao barco de Berndt. Ali, desprenderia as amarras e deixaria a corrente levá-la durante algum tempo antes de ligar o motor, partindo rumo à liberdade.

Os seus planos para o que aconteceria depois eram vagos, o que era bastante problemático.

Antes de cair nas mãos dos sanguinistas no inverno passado, Elizabeth enterrara uma grande soma de dinheiro e ouro nos arredores de Roma, um tesouro que reunira dos corpos e das casas daqueles que predara, depois de acordar nesta era após vários séculos de um sono profundo no interior de um sarcófago cheio de vinho sagrado.

Rhun aprisionara-a naquele caixão de pedra, tal como a enclausurara aqui.

Ergueu uma mão para tocar na parede do seu quarto, determinada a não deixar que a impedissem de chegar a Tommy antes de ser demasiado tarde para o rapaz. Assim que estivesse em liberdade, encontraria um strigoi e persuadi-lo-ia a transformá-la — em seguida, levaria essa mesma dádiva a Tommy.

E então viverás... e ficarás para sempre ao meu lado.

Os seus ouvidos captaram o som de passos no corredor. Um grupo grande aproximava-se, demasiados para se tratar de uma família de turistas.

Será que as freiras tinham, de alguma maneira, descoberto os seus planos?

Sentou-se direita na cama, quando nós de dedos bateram com firmeza na sua porta.

— Condessa — chamou uma voz masculina com sotaque italiano.

Elizabeth reconheceu de imediato a autoridade pouco velada naquela voz. Fez com que o seu maxilar doesse. Cardeal Bernard.

— Está acordada? — perguntou ele através da sólida porta.

Elizabeth pensou em fingir que dormia, mas sabia que não adiantava — além disso, estava curiosa para saber o motivo desta visita inesperada.

— Estou — sussurrou ela, sabendo que ele a ouviria com os seus sentidos apurados.

Ela levantou-se para os receber. As suas saias roçavam ruidosamente no chão frio de ladrilhos, enquanto destrancava a porta. Como era habitual, o cardeal estava vestido de escarlate, uma vaidade que a divertia. Bernard tinha sempre de deixar claro a toda a gente o seu estatuto elevado.

Atrás do cardeal, Abigail olhava para ela com um ar reprovador. Ela ignorou a freira e acenou com a cabeça para os que acompanhavam Bernard, pois conhecia bem a maior parte deles: Erin Granger, Jordan Stone e um jovem sanguinista chamado Christian. Reparou que faltava alguém neste grupo.

Rhun não estava com eles.

Será que se sentia demasiado envergonhado para aparecer?

A raiva percorreu-lhe o corpo, mas Elizabeth limitou-se a contrair ainda mais os lábios. Não se atrevia a mostrar qualquer sinal de agitação.

— É tarde para uma visita.

— As minhas desculpas por a incomodar a estas horas inconvenientes, condessa. — O cardeal falava com uma suavidade diplomática. — Temos um assunto que queremos discutir consigo.

Elizabeth manteve a expressão do rosto impassível, sabendo que o que quer que tivesse trazido este grupo à sua porta devia ser urgente. Também sentia evaporar-se a sua oportunidade de fugir esta noite.

— Não me importo de falar convosco de manhã — disse ela. — Estava a preparar-me para dormir.

A irmã Abigail aproximou-se e arrastou Elizabeth para o corredor, sem se preocupar em esconder a sua força sobrenatural.

— Eles querem conversar agora.

Jordan colocou uma mão moderadora sobre o braço da freira.

— Penso que podemos fazer isto sem recorrer à força.

— E este assunto requer alguma discrição — acrescentou Bernard, fazendo sinal para que Abigail se afastasse.

Um músculo estremeceu por baixo do olho da freira.

— Como queira. Tenho outros assuntos para tratar, por isso deixo Lady Elizabeth ao seu cuidado.

Abigail largou Elizabeth, virou-se e afastou-se.

Elizabeth gostou de a ver ir embora.

— Gostariam de falar nos meus aposentos? — Elizabeth fez sinal para a sua cela, permitindo que uma veia de irritação se revelasse. — Embora sejam um pouco exíguos.

Bernard aproximou-se, ao mesmo tempo que olhava para o fundo do corredor.

— Vamos levá-la para as nossas capelas por baixo da Basílica de São Marcos, onde podemos conversar em privado.

— Estou a ver — respondeu ela.

O cardeal estendeu o braço, como se a fosse escoltar pela mão, mas, em vez disso, colocou uma algema fria de metal à volta do pulso dela e a outra à volta do seu.

— Algemas? — perguntou ela. — Um ser com a sua força não consegue controlar uma mulher mortal, pequena e indefesa como eu?

Jordan sorriu.

— Mortal ou não, aposto que não há nada de indefeso em si.

— Talvez tenha razão — respondeu ela, inclinando a cabeça para o lado e sorrindo para ele.

Jordan era um homem atraente — maxilar forte, rosto quadrado, e um vestígio de barba cor de trigo no queixo e nas faces. Emanava calor, um fogo interno com que ela gostaria de se aquecer.

Erin pegou na mão de Jordan, reclamando a sua posse. Algumas coisas não mudavam com a passagem dos séculos.

— Conduza-me ao meu destino, sargento Stone — disse Elizabeth.

Em grupo, caminharam pelo convento e saíram pelos portões principais. Ela viu de relance o barco de Berndt e sentiu alguma irritação, mas deixou que esta se dissipasse.

Embora não fosse rumar à liberdade no barco esta noite, talvez tivesse surgido uma oportunidade ainda melhor.

21h02

Erin caminhava atrás dos sanguinistas, enquanto estes passavam pelas vielas e por cima das pequenas pontes abobadadas de Veneza. Segurava a mão de Jordan, a palma quente dele na sua. Tentou afastar os seus medos em relação a ele. Embora estivesse febril, parecia saudável, pronto para dar conta de um exército inteiro.

Assim que estivessem sozinhos, ia pedir-lhe mais pormenores sobre o que acontecera naquela caverna e por que razão parecia estar a afastar-se dela ultimamente. Erin desconfiava que a causa destas mudanças era a essência angelical com que Tommy o impregnara quando lhe salvara a vida. Ainda assim, enquanto a sua mente ponderava esta possibilidade, o seu coração ia de imediato para razões mais triviais.

E se ele, simplesmente, já não me amar?

Como se tivesse adivinhado os seus pensamentos, Jordan apertou-lhe a mão.

— Já estiveste em Veneza? — perguntou ele, suavemente.

— Só li sobre a cidade. Mas é tal e qual como a imaginei.

Grata pela distração, Erin olhou em redor. As vielas desta cidade-ilha eram tão estreitas que, em alguns locais, apenas duas pessoas conseguiam passar lado a lado. Pequenas fachadas de lojas exibiam livros antigos, canetas feitas de vidro, máscaras de couro, lenços de seda e veludo. Veneza sempre fora um centro de trocas comerciais. Há centenas de anos, estas mesmas montras tinham encantado outros transeuntes com artigos manufaturados. Esperava-se que o continuassem a fazer por muitas mais centenas de anos.

Inspirou profundamente, cheirando o mar dos canais, o aroma a alho e tomate vindo de um restaurante próximo. Mais perto dela, as fachadas das casas estavam pintadas em tons ocres, amarelos e azuis desbotados, os vidros das janelas envelhecidos pelo passar dos séculos.

Era fácil imaginar que tivesse entrado numa máquina do tempo e chegado cem ou mesmo mil anos antes. Erin fora criada numa zona rural com pais cuja vida diária era mais primitiva do que a das pessoas que tinham vivido nesta cidade há muitos séculos. A fé do seu pai fizera com que repudiasse o mundo moderno, e ela receava que, por vezes, a sua profissão, a sua curiosidade pela história, também a pudesse deixar dessincronizada com o tempo.

E não sou eu filha do meu pai?

Por fim, o grupo percorreu um túnel escuro que atravessava um muro antigo. No seu final, a Praça de São Marcos abria-se diante deles, e Erin avistou a famosa basílica da cidade.

Uma luz dourada iluminava a frente do edifício bizantino, uma fachada extravagante com pórticos abobadados, colunas de mármore e mosaicos elaborados. Erin esticou o pescoço para assimilar as suas dimensões. Ao centro, no topo, encontrava-se uma estátua de São Marcos por cima de um leão dourado com asas, o seu símbolo. Ao lado do Santo Guerreiro encontravam-se seis anjos.

Toda a estrutura era o epítome de opulência e grandiosidade.

Jordan tinha a sua opinião.

— Parece um pouco berrante.

Erin deixou escapar uma gargalhada. Não conseguiu evitar. Parecia o Jordan que conhecera pela primeira vez em Israel.

— Espera até veres o interior — disse ela. — Chamam-lhe Igreja de Ouro por uma boa razão.

Jordan encolheu os ombros.

— Se vale a pena fazer, mais vale exagerar.

Erin sorriu para Jordan, enquanto atravessavam a Praça de São Marcos. Durante o dia, o local estava repleto de pombos e turistas, mas a esta hora tardia a praça estava praticamente deserta.

À frente, a condessa caminhava de forma régia ao lado do cardeal Bernard, a cabeça erguida e os olhos fixos num ponto distante à sua frente. Mesmo com um vestido bastante moderno, parecia uma princesa de um conto de fadas, saída diretamente das páginas de um livro antigo. No caso da condessa, seria um livro de contos de fadas macabros.

Quando se aproximaram da basílica, Erin apontou para os mosaicos na entrada.

— Foram colocados no século treze. Ilustram cenas do Génesis.

Erin lembrou-se da história na tabuleta que se encontrava na biblioteca dos sanguinistas — e de como a história se alterara. Procurou nos mosaicos acima dela a serpente no jardim, lembrando-se de como a versão antiga mencionava um pacto que Eva fizera com a serpente: partilhar o fruto da Árvore do Conhecimento.

Antes que conseguisse dar uma boa vista de olhos, um padre idoso surgiu de baixo de uma arcada sombria. Tinha o cabelo branco desgrenhado e a sua sotaina estava mal abotoada. Uma argola cheia de chaves encontrava-se pendurada no seu cinto.

O padre recebeu Bernard nos limites da basílica.

— Esta é uma situação muito invulgar. Nunca, em todos os meus anos...

Bernard interrompeu-o, levantando a mão.

— Sim, é um pedido invulgar. Fico-lhe grato por ter acedido a ele com tão pouca antecedência. Se não fosse urgente, nunca me teria passado pela cabeça incomodá-lo.

— Fico sempre contente por ajudar.

O velho padre parecia ligeiramente mais calmo.

— Como todos nós — respondeu o cardeal.

O padre italiano virou-se, conduziu-os em direção à porta principal e destrancou-a.

Enquanto se desviava para o lado, avisou Bernard:

— Desativei os alarmes. Assim, deve notificar-me quando terminar.

O cardeal agradeceu-lhe e apressou-se a entrar, levando consigo o resto do grupo.

Erin seguiu-os, boquiaberta ao ver os mosaicos dourados que surgiam, cobrindo todas as superfícies: paredes, arcadas e tetos abobadados.

Jordan deixou escapar um pequeno assobio de admiração perante tal visão.

— São os meus olhos a pregarem-me partidas ou tudo aqui dentro brilha?

— Os ladrilhos foram concebidos assim — explicou Erin, sorrindo perante a reação de Jordan. — Foram criados fundindo folhas de ouro no meio deles. Torna-os mais refletores do que o ouro puro.

Elizabeth fitou Jordan com os seus olhos cor de prata, atraídos, talvez, pelo seu entusiasmo.

— São maravilhosos, não são, sargento Stone? Alguns destes mosaicos foram mandados fazer pelos meus antepassados boémios.

— A sério? — perguntou Jordan. — Fizeram um trabalho impressionante.

Erin não gostava de como o sorriso de Elizabeth se abria com a atenção de Jordan.

Talvez sentindo a irritação de Erin, a condessa virou-se de frente para o cardeal Bernard.

— Presumo que não me tenha trazido aqui para admirar o trabalho dos meus antepassados. O que é tão urgente que obrigue a esta viagem noturna?

— Conhecimento — respondeu ele.

Naquele momento, chegaram ao centro da igreja. Era bastante claro que Bernard não queria que ninguém escutasse secretamente a conversa. Christian e Sophia mantiveram-se um de cada lado, circundando lentamente o grupo, provavelmente para o proteger e também para manter à distância um ou outro padre que vagueasse por ali.

— O que deseja saber? — indagou a condessa.

— Está relacionado com um símbolo que encontrámos num dos seus diários.

O cardeal colocou a mão no interior do casaco e retirou um livro encadernado a couro gasto.

Elizabeth estendeu a mão que tinha livre.

— Posso vê-lo?

Erin aproximou-se e pegou no livro. Folheou até à última página e apontou para o símbolo que parecia um cálice.

— O que nos pode dizer sobre isto?

Os cantos dos lábios da condessa reviraram-se num sorriso genuíno.

— Se estão a perguntar por ele agora, então presumo que tenham encontrado esse mesmo símbolo noutro lugar.

— Talvez — respondeu Erin. — Porquê?

A condessa tentou agarrar o livro, mas Erin pô-lo fora do seu alcance. Um indício de irritação atravessou as feições suaves de Elizabeth.

— Deixem-me adivinhar, então — continuou Elizabeth. — Encontraram o símbolo numa pedra?

— De que está a falar? — perguntou o cardeal.

— É um bom mentiroso, Vossa Eminência. No entanto, a resposta à minha pergunta encontra-se estampada no rosto desta jovem.

Erin corou. Detestava ser tão transparente, sobretudo quando não fazia ideia do que a condessa estava a pensar. Elizabeth explicou:

— Refiro-me a um diamante verde, com aproximadamente o tamanho do meu punho, com esta mesma marca gravada.

— O que sabe sobre isso? — perguntou Jordan.

A condessa inclinou a cabeça para trás e riu-se. O som ecoou pelo espaço cavernoso.

— Não vos darei a informação que procuram.

O cardeal inclinou-se sobre ela.

— Podemos obrigá-la a fazê-lo.

— Acalme-se, Bernard. — O facto de Elizabeth ter utilizado o seu nome próprio só pareceu irritar ainda mais o cardeal. Ela estava claramente a adorar provocá-lo. — Eu disse que não vos daria o conhecimento, mas isso não significa que o vá guardar para mim.

Erin franziu o sobrolho.

— O que quer dizer com isso?

— É simples — continuou ela —, vou vender-vos o meu conhecimento.

— A condessa não está em posição de negociar nada — disse o cardeal de forma abrupta.

— Creio que estou numa posição bastante privilegiada — argumentou ela, enfrentando a fúria crescente do cardeal com uma calma perfeita. — O cardeal tem medo deste símbolo, desta pedra, dos acontecimentos que estão neste momento a surgir contra si e contra a sua preciosa ordem. Vai pagar-me o que eu quiser.

— A condessa é prisioneira — começou o cardeal —, não tem...

— Bernard, o meu preço é modesto. Tenho a certeza de que o pode pagar.

Erin apertou o diário ainda com mais força, o seu olhar fixo no rosto triunfante da condessa, receosa do que ia acontecer a seguir.

O cardeal manteve o seu tom de voz cauteloso.

— O que quer?

— Algo muito pouco valioso — respondeu ela. — Apenas a sua alma eterna.

Jordan ficou tenso ao lado dela, como se esperasse um ataque, e perguntou:

— O que é que isso significa exatamente?

A condessa aproximou-se mais do cardeal, com o seu cabelo negro a roçar nas suas vestes escarlates. O cardeal recuou um passo, mas ela acompanhou-o.

— Devolva-me à minha antiga glória — sussurrou ela, a sua voz mais sedutora que exigente.

Bernard abanou a cabeça.

— Se se refere ao seu antigo castelo e propriedades, isso não está nas minhas mãos.

— Não me refiro às minhas terras. — Elizabeth ria-se abertamente. — Posso recuperá-las eu mesma se algum dia precisar delas. O que quero de si é algo muito mais simples.

O cardeal olhou fixamente para ela com um ar de repulsa estampado no rosto. Ele sabia o que ela ia pedir.

Até Erin sabia.

Elizabeth estendeu a mão na direção da boca do cardeal, das suas presas escondidas.

— Transforme-me em strigoi novamente.


CAPÍTULO 10

17 de março, 21h16 CET
Veneza, Itália

Elizabeth estremeceu de prazer à medida que o choque aniquilava a calma habitual do cardeal Bernard. Por um instante, Bernard arreganhou os dentes para ela, deixando cair a sua máscara, revelando a sua verdadeira natureza. Após muitos séculos de luta, ela conseguira finalmente quebrar a sua fachada de diplomacia e ordem, expondo o animal que se encontrava por baixo.

Eu preciso daquele animal.

Ela arriscaria até a morte para o libertar.

Ao lado deles, a arqueóloga e o soldado pareciam igualmente surpreendidos, mas a reação mais viva veio dos sanguinistas. O jovem Christian retesou-se; a mulher sanguinista com delicadas feições orientais franziu o lábio com repulsa. Nas suas mentes piedosas, aquele pedido era inimaginável.

No entanto, a falta de imaginação sempre fora o maior pecado dos sanguinistas.

— Nunca. — A primeira palavra do cardeal surgiu como um murmúrio, depois a sua voz ficou mais alta, explodindo-lhe do peito e ecoando ruidosamente por toda a igreja. — A condessa... a condessa é uma abominação!

Elizabeth enfrentou a fúria do cardeal, alimentando-a ainda mais com a sua calma.

— O seu puritanismo sacerdotal não tem qualquer interesse para mim. E, não se engane, não sou maior abominação que o cardeal.

Bernard esforçou-se por refrear a sua fúria, por a reprimir, mas esta continuava a transparecer. Tinha os punhos cerrados ao longo do corpo.

— Não discutiremos tais pecados mortais neste local sagrado de adoração.

Bernard deu um puxão no pulso algemado de Elizabeth, com tanta força que as algemas lhe cortaram a pele. Caminhou bruscamente em direção ao fundo da igreja, arrastando-a, como se tudo nela estivesse igualmente algemado a ele.

E talvez estivesse, de alguma maneira.

Elizabeth teve de correr para o acompanhar, mas não conseguiu manter o andamento. Os seus pés tropeçaram na saia comprida e caiu no chão de mármore. A algema cravou-se ainda mais fundo na pele do seu punho.

Manteve-se em silêncio, saboreando a dor.

Se ele a estava a magoar, é porque perdera o controlo.

E eu recuperei-o.

Elizabeth teve dificuldade em voltar a pôr-se de pé, perdendo um sapato na tentativa. No seu esforço para se levantar, rasgou o vestido no ombro. Segurou o vestido com a mão livre para o impedir de cair.

Christian bloqueou a passagem de Bernard, tocando no braço do cardeal.

— Ela não consegue acompanhá-lo, Vossa Eminência. Não se esqueça de que ela agora é mortal, por muito que deseje não o ser.

Jordan ajudou Elizabeth a levantar-se, as suas mãos quentes e fortes encostadas ao seu corpo.

— Obrigada — sussurrou ela para o sargento.

Até mesmo Erin veio ajudá-la, aproximando-se e ajustando-lhe o vestido para que não ficasse tão descaído. Apesar do passado desprezível da mulher, Erin era um poço de bondade suficientemente fundo para ajudar um inimigo em apuros. Talvez fosse isso que, em parte, atraía Rhun: a sua simples bondade.

Elizabeth afastou-se de Erin, sem sequer lhe agradecer. Tirou o sapato que lhe restava, para não coxear. As plantas dos pés descalços sobre a pedra fria.

Bernard pediu desculpa entredentes.

— Peço perdão, condessa Bathory.

O cardeal virou-se e continuou em frente, mas agora num passo muito mais moderado. Ainda assim, a sua fúria era evidente em cada passo exagerado. Era óbvio que ele não gostava do que ela queria, do que ela lhe exigira. Ele fora imortal durante tanto tempo que se esquecera dos desejos mortais, da fraqueza mortal. Contudo, ao fazê-lo, também criara uma fraqueza poderosa dentro de si mesmo.

E irei explorá-la ao máximo.

O cardeal chegou ao outro lado da basílica e conduziu-os para baixo, por umas escadas, que provavelmente levavam à capela subterrânea dos sanguinistas.

Um espaço sombrio para segredos sombrios.

Ao fundo das escadas, encontrava-se uma cripta iluminada pela luz de velas. O chão era liso e limpo, era fácil de caminhar sobre ele, mesmo descalço. Na extremidade da cripta, Bernard parou em frente de uma parede de pedra adornada com uma figura esculpida de Lázaro.

Elizabeth supôs que fosse um dos portais ocultos da ordem.

Como eles gostavam dos seus segredos.

Diante da estátua, o cardeal descalçou a luva esquerda e retirou uma faca do cinto. Cortou a sua palma com uma pequena faca e deixou o sangue cair para dentro do cálice que Lázaro segurava. Falou suavemente em latim, demasiado depressa para que ela conseguisse acompanhar.

Passado um momento, a pequena porta abriu-se com um som irritante.

O cardeal virou-se de frente para os outros.

— Falarei com a condessa sozinho.

Murmúrios espalharam-se entre o grupo, a incerteza estampada nos rostos.

Christian era o mais arrojado, talvez por ser o mais novo na ordem, sempre disposto a confrontar diretamente o seu superior.

— Vossa Eminência, isso vai contra as nossas regras.

— As regras já não se aplicam neste momento — contrapôs Bernard. — Posso chegar a um acordo bastante mais satisfatório sem a presença de terceiros.

Erin interveio.

— O que pensa fazer com ela? Torturá-la até obter a informação?

Jordan apoiou a arqueóloga.

— Eu sempre fui contra as técnicas de interrogatório extremas no Afeganistão e não vou tolerá-las agora.

Ignorando-os, o cardeal atravessou a porta, arrastando Elizabeth consigo. Da soleira, gritou uma ordem que ecoou por toda a cripta.

— Pro me. Por mim e só por mim.

Antes que alguém conseguisse reagir, a porta fechou-se entre eles.

A escuridão envolveu Elizabeth.

Bernard sussurrou-lhe ao ouvido:

— Agora és minha.

21h20

Erin batia com a palma da mão aberta na parede selada.

Devia estar à espera de uma manobra tão mesquinha por parte de Bernard. Quando havia segredos por descobrir, ele já demonstrara no passado que era capaz de tomar medidas drásticas para controlar o fluxo de informação. Erin não ficaria surpreendida se o cardeal escondesse o que quer que Elizabeth lhe contasse, talvez até a matasse para a silenciar.

Virou-se para Christian e apontou para o cálice nas mãos da estátua.

— Abre esta porta.

Antes que conseguisse obedecer, Sophia tocou no ombro do jovem sanguinista, mas as palavras eram dirigidas a todos.

— O cardeal irá interrogar a condessa sozinho. Ele tem experiência nestes assuntos.

— Eu sou a Mulher Sábia — argumentou Erin. — O que quer que Elizabeth saiba está relacionado com a nossa demanda.

Jordan acenou com a cabeça.

— E o Homem Guerreiro também concorda.

Sophia não recuou.

— Não podem ter a certeza de que a informação dela tenha relevância direta na vossa demanda.

Erin estava furiosa, detestando o facto de ter sido afastada de forma tão abrupta. Mas tinha também uma preocupação ainda maior. Não confiava na condessa, nem mesmo com o cardeal. Erin receava que Bernard ficasse em desvantagem em relação a Elizabeth. Era evidente que a mulher sabia provocar Bernard, mas seria apenas um jogo sádico ou estaria Elizabeth a manipulá-lo para obter o que queria?

Erin adotou uma estratégia diferente e disse:

— Se as coisas azedarem, em quanto tempo nos consegues pôr lá dentro?

— Define azedar — respondeu Christian.

— O cardeal Bernard está trancado naquela sala com a Condessa Sanguinária. Ela é uma mulher brilhante que sabe mais sobre strigoi e sobre a sua natureza do que qualquer outra pessoa.

Sophia ergueu uma sobrancelha. Parecia ligeiramente surpreendida.

Erin continuou:

— A condessa já realizou experiências em strigoi para tentar determinar a sua natureza. Está tudo no seu diário.

Jordan olhava fixamente para o portal fechado.

— O que quer dizer que é provável que a condessa conheça as fraquezas de Bernard, possivelmente melhor do que ele mesmo.

Erin fitou Christian. Ele queria ajudá-la, mas era evidente que ainda sentia a obrigação de seguir as ordens de Bernard.

— De qualquer modo, não interessa — disse Sophia. — O cardeal fechou a porta com a ordem pro me, o que significa que só ele a poderá abrir.

O quê?

Erin virou-se para a porta com um ar preocupado.

— Então, ele está preso lá dentro com ela — murmurou Jordan.

Christian clarificou:

— Nós podemos entrar, mas não com o sangue de apenas dois de nós. — Christian fez sinal a Sophia. — Para contornar a ordem do cardeal, seria necessário um trio de sanguinistas. O poder de três pode abrir a porta a qualquer momento.

Sophia franziu o sobrolho, preocupada.

— Talvez seja melhor eu ir buscar o terceiro. Só para a eventualidade de ser preciso.

— Faz isso — disse Erin.

E despacha-te.

Sophia atravessou apressadamente a cripta e fundiu-se com a escuridão da escada.

O olhar de Erin cruzou o de Jordan e viu as suas preocupações refletidas nele.

Isto vai acabar mal.

21h27

Elizabeth lutou contra o pânico. Com a porta fechada, a escuridão era de tal maneira densa que parecia ter substância, como se pudesse rastejar pela sua garganta abaixo e sufocá-la. No entanto, obrigou-se a si mesma a manter a calma, sabendo que Bernard devia conseguir ouvir o bater frenético do seu coração. Endireitou as costas, recusando dar-lhe essa satisfação.

Concentrou-se na dor intensa que a algema provocava no seu pulso. Sangue quente escorria da sua pele ferida e pingava para a palma da sua mão. O cardeal também devia conseguir sentir isso.

Ótimo.

Esfregou as mãos uma na outra, espalhando o sangue pelas duas.

— Anda — disse Bernard com a voz rouca.

Puxou as algemas, arrastando-a ainda mais para o interior deste covil frio dos sanguinistas. Elizabeth tremeu de frio. Conduziu-a à força por entre a escuridão no que pareceu demorar uma eternidade, mas que não devia ter sido mais do que alguns minutos.

Em seguida, pararam novamente, e Elizabeth viu o clarão de um fósforo a acender, trazendo consigo o cheiro a enxofre. A luz iluminou o rosto pálido e austero de Bernard. Ele encostou o fósforo a uma vela de cera de abelha dourada que se encontrava num suporte na parede. Passou para outra, acendendo-a também.

Em pouco tempo, uma luz quente e tremeluzente iluminava a sala.

Olhou para cima, para o teto abobadado, cujos mosaicos prateados brilhavam. Tal como os ladrilhos da basílica que se encontrava por cima deles tinham sido fabricados com folha de ouro, estes eram feitos de prata. Cobriam todas as superfícies.

A sala brilhava em todo o seu esplendor.

O mosaico ilustrava um motivo sanguinista familiar: a ressurreição de Lázaro. Estava sentado num caixão castanho, pálido como a morte, um fio carmesim escorria-lhe de um dos cantos da boca. Diante dele encontrava-se um Cristo dourado, a única figura dourada do mosaico. Os ladrilhos admiravelmente pormenorizados ilustravam os olhos castanhos e luminosos de Cristo, o seu cabelo preto encaracolado e um sorriso triste. Uma grandeza suprema emanava da sua simples forma, espantando aqueles que se tinham juntado para presenciar este milagre. E não eram apenas humanos. Anjos de luz observavam a cena de cima, enquanto anjos negros aguardavam em baixo, e Lázaro permanecia eternamente preso entre eles.

O Ressuscitado dos sanguinistas.

A sua vida teria sido tão mais simples se Lázaro nunca tivesse aceitado o desafio de Cristo.

Elizabeth desviou o olhar do teto, deixando-o recair sobre o outro único ornamento da sala. No centro da câmara erguia-se um altar coberto com um pano branco. Em cima, encontrava-se um cálice de prata. O toque da prata queimava strigoi, bem como sanguinistas. Beber de um cálice de prata significava intensificar a dor de um sanguinista, agravar a sua penitência quando consumia o vinho sagrado.

Os lábios de Elizabeth esboçaram um sorriso de escárnio.

Como podem estes tolos seguir um Deus que lhes exige um sofrimento infindável?

Bernard confrontou-a:

— Vais dizer-me o que preciso de saber. Aqui. Nesta sala.

Elizabeth manteve o tom de voz frio, as palavras simples.

— Primeiro, paga o meu preço.

— Sabes que não posso fazê-lo. Seria um pecado grave.

— Mas já foi feito antes. — Elizabeth tocou na sua garganta, lembrando-se de dentes a trespassar-lhe a carne macia. — Pelo teu Escolhido, por Rhun Korza.

Bernard desviou o olhar, baixando a voz.

— Ele era jovem, um novato nestas andanças. Deixou-se levar num momento de luxúria e orgulho. Eu não sou tão tolo. As regras são claras. Nunca devemos...

Ela interrompeu-o:

— Nunca? Desde quando é que essa palavra faz parte do teu vocabulário, cardeal? Já quebraste muitas das regras da tua ordem. Há muitos séculos. Achas que eu não sei disso?

— Não te cabe a ti julgar-me — argumentou ele, o calor a subir-lhe às palavras. — Só Deus o pode fazer.

— Então é certo que Ele me julgará também — Naquele momento, os seus pés descalços começavam a doer por causa do frio, mas Elizabeth manteve-se firme. — Decerto que é Sua vontade eu estar aqui neste momento, a única que possui este conhecimento. Uma verdade que pode ser tua se pagares o seu preço.

Um vestígio de incerteza atravessou o rosto de Bernard.

Elizabeth aproveitou-se disso e continuou a pressioná-lo.

— Se o teu Deus é omnisciente e todo-poderoso, por que razão me colocou à tua frente como único repositório do conhecimento que procuras? Talvez o que eu te estou a pedir seja Sua vontade.

Percebeu de imediato que fora longe demais — percebeu pelo endurecimento da expressão dele.

— Tu, uma mulher caída em desgraça, atreves-te a interpretar a Sua vontade? — repreendeu ele, as suas palavras remetendo-a para o nível de uma mulher que vendia o corpo em troca de dinheiro.

Como te atreves!

Elizabeth esbofeteou o rosto desdenhoso do cardeal, deixando uma mancha do seu próprio sangue na pele dele.

— Eu não sou uma mulher caída em desgraça. Eu sou a condessa Bathory de Ecsed, de sangue real que data de há muitos séculos. E não serei insultada por tais calúnias. Sobretudo vindas de ti.

A resposta do cardeal chegou rápida como um relâmpago. O seu punho atingiu-a com um golpe violento. Ela recuou um passo, com o rosto a latejar. Recompôs-se rapidamente, endireitando as costas. Sentiu o sabor do sangue na boca.

Excelente.

— Eu posso fazer-te o que quiser aqui dentro — disse ele com um tom de voz sombrio.

Elizabeth lambeu os lábios, molhando-os com o seu próprio sangue. Ela sabia que o cardeal já devia conseguir sentir o cheiro do sangue fresco a secar na sua própria face. Reparou que o nariz de Bernard levantava ligeiramente, revelando o animal dentro dele, o monstro que se escondia por detrás da máscara.

Ela tinha de libertar aquele monstro dos seus grilhões.

— O que me podes fazer? — desafiou ela. — És demasiado fraco para me conseguires persuadir a ajudar-te.

— Não confundas a minha compostura por fraqueza — avisou ele. — Lembro-me da Inquisição, quando a dor ao serviço da Igreja foi elevado a arte. Consigo infligir-te um sofrimento tão intenso como nunca sentiste antes.

Ela sorriu com a fúria dele.

— Não és capaz de me ensinar nada sobre dor, padre. Durante mais de cem anos foi proibido mencionar o meu nome no meu próprio país por causa do que fiz. Já infligi e recebi mais dor do que consigas imaginar... e recebi mais prazer. Estas coisas estão interligadas de formas que nunca compreenderás.

Ela aproximou-se, obrigando-o a recuar, mas as algemas não lhe permitiam afastar-se muito.

— A dor não me assusta — continuou ela, emanando o cheiro quente do seu sangue na direção dele.

— Mas... mas devia assustar-te.

Ela queria que ele continuasse a falar, sabendo que para falar precisava de respirar. E, com cada respiração, ele inalava mais profundamente o cheiro dela.

— Fere-me — avisou ela — e vê qual de nós gosta mais.

Bernard recuou até estar encostado aos mosaicos de prata que cobriam as paredes. No entanto, as algemas arrastavam Elizabeth consigo, sempre ao seu lado.

Elizabeth mordeu ainda com mais força a bochecha ferida, enquanto inclinava a cabeça para baixo. Entreabriu a boca, deixando o sangue fresco escorrer-lhe pelos lábios. Em seguida, atirou a cabeça para trás, expondo o pescoço e esticando-o languidamente, permitindo que a luz das velas fizesse brilhar aquela fita vermelha enquanto escorria e convergia para a concavidade da garganta.

Sentiu os olhos dele seguirem aquele rasto quente em direção à promessa que este continha. A sua riqueza ardente chamava a besta que se encontrava enterrada em cada gota do seu próprio sangue maldito.

Ela sabia que o cheiro se espalhava pela sala de formas que ela já não conseguia sentir, que o cheiro podia encher as narinas de uma pessoa, até mesmo a boca. Há muito tempo, ela sentira o que ele sentia agora. Ela conhecia o seu poder imenso. Aprendera a aceitá-lo, e isso fortalecia-a.

Ele negava-o — e isso mantinha-o fraco.

— Como me torturarias agora, Bernard?

Ela arrastava as palavras na boca cheia de sangue, usando a intimidade do nome dele.

Bernard levou a sua mão livre à cruz que trazia ao pescoço, mas ela bloqueou-lhe o movimento, cobrindo a prata com a sua própria palma, impedindo-o de lhe tocar, negando-lhe o prazer da dor sagrada. Os dedos dele fecharam-se sobre a mão de Elizabeth, apertando-a, como se pensasse que a sua mão era a cruz, a sua salvação.

— Eu digo-te o que queres saber — sussurrou ela, pronunciando o desejo mais secreto de Bernard. — Vou ajudar-te a salvar a tua Igreja.

Os dedos dele apertaram ainda com mais força, quase partindo os pequenos ossos da mão de Elizabeth.

— Será simples para ti — urgiu ela. — Já cometeste pecados de sangue antes, e eu sei que os teus pecados são muito mais obscuros do que alguém desconfia. Cometeste muitos pecados em nome d’Ele, não foi?

A expressão do seu rosto confirmou as suas palavras.

— Então, faz isto agora — disse ela —, e a tua ação dar-te-á o poder de protegeres a tua Igreja, a tua ordem. Estarias disposto a não cumprir a tua palavra, a perder tudo por teres demasiado medo de agir? Por pores o teu medo das regras à frente da tua missão sagrada?

Ela passou a ponta da língua pelos lábios novamente, cobrindo-os de fresco, sabendo como o seu sangue devia parecer brilhante em contraste com a sua pele pálida, como a sua visão e cheiro seriam apelativos para ele.

Sem se dar conta, Bernard lambeu os próprios lábios.

— Como é que salvar o mundo d’Ele com as ferramentas que Ele te deu poderia ser um pecado? — indagou ela. — És mais forte do que as regras, Bernard. Eu sei que és... e, no fundo, tu também o sabes.

Elizabeth inspirou devagar, sem nunca tirar os olhos dos dele. As palavras dela penetraram-no, deixando-o na dúvida, desafiando a sua arrogância.

Ele estremeceu perante ela — querendo as suas respostas, querendo o seu sangue, querendo-a a ela.

Ele podia ser um sanguinista agora, mas já fora um strigoi em tempos e um homem antes disso. Devorara carne, saboreara o prazer. Estes desejos estavam entranhados em cada fibra do seu ser, sempre.

O coração dela batia freneticamente e a sua face latejava com o ardor do golpe que ele lhe dera. Ela sempre adorara dor, precisava dela da mesma forma que mais tarde precisaria de sangue. Fechou os olhos e deixou a dor percorrer-lhe o corpo — desde a face, do pulso ferido.

Era uma maravilha.

Quando abriu os olhos, ele ainda lhe segurava na mão encostada à cruz junto ao coração. Os olhos do cardeal viajavam dos seus lábios vermelhos do sangue para a pulsação na sua garganta, para os seus ombros, tão brancos em contraste com o vestido sedoso. Ela mexeu-se para que o vestido rasgado lhe caísse dos ombros. Agora, a luz das velas incidia sobre os seus seios, tão claramente visíveis sob a roupa interior de seda.

Ele olhou fixamente para ela durante muitos batimentos cardíacos.

Ela inclinou-se para a frente com uma lentidão infinita — em seguida, pôs-se em bicos dos pés e, suavemente, mal tocando na superfície, roçou os seus lábios nos dele. Por um longo instante, permaneceu assim, deixando-o sentir o seu calor, absorver o cheiro do seu sangue maduro.

— Se não é a vontade d’Ele, então porque estou eu aqui? — murmurou ela. — Só tu és suficientemente forte para obter a resposta de mim. Só tu tens o poder de salvar o teu mundo.

Em seguida, afastou os lábios frios dele com os seus e enfiou a língua entre eles, fazendo com que Bernard sentisse o sabor do sangue.

Ele gemeu, entreabrindo a boca para ela.

Elizabeth sentia agora as presas dele crescerem à medida que ela aprofundava o beijo.

Ainda com os lábios unidos, ele virou-se e atirou-a contra a parede, pressionando o seu corpo contra o dela. Ladrilhos velhos estilhaçaram-se e soltaram-se debaixo dela, os cacos de vidro rasgaram-lhe o fino vestido de seda e cortaram-lhe a pele. Sangue quente escorria-lhe pelas costas para o chão de pedra.

Ela afastou os lábios dos dele, oferecendo-lhe o pescoço.

Sem hesitar, ele mordeu.

Ela arquejou com a dor.

Bernard sugou uma grande quantidade do seu sangue, levando consigo o calor dela. Ela estremeceu à medida que os seus membros ficavam cada vez mais frios. Uma dor gelada trespassou-lhe o coração. Esta não era a união extática que experimentara com Rhun.

Isto era uma necessidade animalesca.

Uma fome dolorosa em que não havia lugar para amor ou ternura.

Era capaz de a matar e a deixar sem nada, mas ela tinha de arriscar, de acreditar que o conhecimento era tão importante como o sangue para o homem que a tinha nos braços.

Ele não me deixará morrer com os segredos que guardo.

Contudo, tendo libertado a fera dentro do homem, seria isso verdade?

O corpo dela caiu no chão. À medida que o seu coração enfraquecia, a dúvida preenchia esses espaços vazios — e o medo também.

Depois, uma escuridão eterna fez o mundo desaparecer.


CAPÍTULO 11

17 de março, 21h38 CET
Veneza, Itália

Rhun caminhava apressadamente pelo chão polido da Basílica de São Marcos. Aterrara em Veneza há um quarto de hora. Por uma mensagem que lhe fora deixada, ficara a saber que Bernard e os outros tinham trazido Elisabeta para aqui. Só que, quando chegou, descobriu a porta da igreja destrancada e não parecia estar ninguém no seu interior.

Será que já tinham ido para a capela sanguinista em baixo?

Olhou fixamente pela nave da igreja para o transepto norte da basílica. Do que se lembrava, uma escadaria daquele lado conduzia a uma cripta subterrânea e ao portal secreto que dava acesso aos aposentos sanguinistas. Dirigiu-se a ela, mas um movimento chamou-lhe a atenção para o transepto sul. Da escuridão, uma enchente de sombras vinha na sua direção, movendo-se com uma velocidade sobrenatural.

Rhun ficou tenso, agachando-se, não tendo a certeza de quem era este grupo, preocupado com os ataques recentes.

De certeza que nenhum strigoi se atreveria a atacar neste solo sagrado.

Uma voz chamou-o, à medida que as sombras se moviam cada vez mais em direção à luz, revelando ser um grupo de sanguinistas: dois homens e uma mulher.

— Rhun! — Ele reconheceu as feições delicadas de Sophia.

A mulher franzina dirigiu-se apressadamente para o lado de Rhun, arrastando os outros consigo.

— Chegaste mesmo a tempo.

Ele percebeu a ansiedade no seu olhar.

— O que se passa?

— Vem connosco — disse ela, e dirigiram-se para o transepto norte. — Há um problema no portal dos sanguinistas.

— Conta-me tudo — respondeu ele, verificando a karambit que tinha embainhada no pulso, enquanto a acompanhava, seguindo no mesmo passo apressado que ela.

Ela contou-lhe o que acontecera lá em baixo, que Bernard atravessara o portal levando Elisabeta consigo e que o trancara.

— O Christian já lá está em baixo, mas são precisos três de nós para abrir novamente o portal. — Ela fez sinal para os dois padres que se encontravam atrás dela. — Eu vim cá acima buscar mais ajuda, mas demorei demasiado tempo a encontrá-los. E a Erin teme o pior.

Quando chegaram à escadaria, Rhun foi à frente. Ele confiava no discernimento de Erin. Se ela estava preocupada, devia haver uma boa razão para isso. A meio das escadas, ouviu dois batimentos cardíacos a ecoar vindos da cripta.

Erin e Jordan.

Rhun conseguia distingui-los tão bem como pelas vozes. O batimento cardíaco acelerado de Erin revelava-lhe o seu medo. Chegou à cripta e viu Christian a bater com força na parede do fundo, gritando o nome de Bernard.

Ele sabia o que tanto excitava o jovem sanguinista.

Para lá do portal, detetou outro batimento, abafado pela pedra, mas ainda assim audível com os seus sentidos apurados, o som amplificado pela acústica da longa cripta.

Elisabeta.

O coração dela falhava, ficando mais fraco a cada batimento.

Ela estava a morrer.

Christian virou-se, ouvindo-os aproximar.

— Depressa!

Rhun não precisava de ser apressado. Atravessou rapidamente a cripta. Erin avançou para o receber, mas ele passou por ela sem uma única palavra. Não havia tempo.

Retirou a sua lâmina da bainha e fez um corte na palma da mão, vertendo sangue para o cálice de pedra que a estátua de Lázaro segurava. Sophia e Christian encontravam-se ao seu lado, juntando rapidamente o seu sangue ao dele.

Juntos entoaram: «Pois este é o Cálice do nosso sangue. Do novo e eterno Testamento.»

O contorno da porta apareceu na pedra.

«Mysterium fidei», entoaram em coro.

Lentamente — demasiado até — a porta abriu-se. O cheiro de sangue fresco inundou-os de imediato, denso e intoxicante, com o perfume do perigo.

Assim que o portal abriu o suficiente, Rhun esgueirou-se de lado e correu, seguindo aquele cheiro a sangue em direção à sua fonte.

Chegou à entrada da capela principal — a tempo de ouvir o coração de Elisabeta parar. Apreendeu a visão impossível. Naquela câmara sagrada, sob o brilho dos mosaicos de prata, Elisabeta encontrava-se deitada de costas, os seus membros inertes e sem vida.

Mas não estava sozinha.

Bernard encontrava-se ajoelhado ao lado de Elisabeta, algemado a ela pelo pulso, a sua boca ensanguentada. Virou-se para Rhun com um ar desolado. Lágrimas corriam pelas faces do cardeal, atravessando a mancha carmesim do seu pecado.

Rhun ignorou aquela dor e correu para o lado de Elisabeta, caindo de joelhos, segurando-a nos braços, embalando-a. Afastou o corpo dela o máximo possível de Bernard, embora estivessem algemados um ao outro.

Queria enfurecer-se contra este pecado, deixar a raiva consumir a dor que o assolava. Um dia, ia fazer Bernard pagar por isto, mas não hoje.

Hoje era apenas para ela.

Christian foi o primeiro a chegar junto de Rhun. Tocou-lhe no ombro em sinal de compaixão, depois pôs um joelho no chão e começou a abrir as algemas. As tiras metálicas caíram ruidosamente do pulso esguio dela para o chão.

Agora que Elisabeta estava livre do seu assassino, Rhun pegou no seu corpo frio e levantou-se, necessitando de a afastar de Bernard.

Sophia conduziu os seus dois companheiros sanguinistas até à figura desolada do cardeal. Levantaram-no de forma brutal. Pelos seus murmúrios, não conseguiam acreditar que o cardeal tivesse feito algo assim.

Mas tinha — ele matara Elisabeta.

— Rhun... — disse Erin, que se encontrava ao lado de Jordan, encostada ao seu braço, agarrada a ele, àquela vida dentro dele que era tão intensa.

Rhun não conseguia enfrentar tudo aquilo e afastou-se, levando Elisabeta para o altar, querendo rodeá-la de santidade. Fez-lhe a promessa de que ela ficaria para sempre nessa mesma graça, a partir daquele dia. Jurou procurar o local onde os seus filhos estavam sepultados para a enterrar junto deles.

Ela merecera-o.

Há muito tempo, ele roubara-a do seu lugar legítimo, mas agora faria o possível por lhe restituir o que estivesse ao seu alcance. Era tudo o que podia fazer por ela.

Uma esplêndida luz prateada banhava a pele pálida de Elisabeta, as suas longas pestanas e os seus caracóis negros. Mesmo na morte, ela era a mulher mais bonita que ele alguma vez vira. Manteve o olhar afastado do ferimento brutal na garganta de Elisabeta, do sangue que lhe escorria pelos ombros e lhe ensopava o fino vestido de seda.

Assim que chegou ao altar, não conseguiu deitá-la naquela cama fria. Quando a largasse, ela estaria verdadeiramente perdida para sempre. Em vez de a deitar, sentou-se no chão ao lado do altar, puxando o pano branco que cobria o altar para cobrir os membros nus dela.

Com uma ponta do pano sagrado, limpou-lhe o sangue do queixo, dos lábios cheios, das faces. Uma nódoa negra cobria um dos lados do seu rosto. Bernard devia ter-lhe batido.

Vais pagar por isso também.

Inclinou-se mais sobre ela.

— Desculpa — sussurrou ele.

Rhun já lhe dissera muitas vezes esta palavra... demasiadas vezes.

Quantas vezes te fiz mal...

As suas lágrimas caíam sobre o rosto frio e pálido de Elisabeta.

Acariciou-lhe a face suavemente sobre a nódoa negra, como se ela ainda conseguisse sentir. Tocou-lhe nas pálpebras macias, desejando que ela pudesse simplesmente voltar à vida, abrir os olhos outra vez.

E foi quando ela o fez.

Elisabeta estremeceu nos braços dele, despertando como uma flor, abrindo as pétalas para um novo dia. Ao início, tentou afastar-se, mas depois reconheceu-o e acalmou-se.

— Rhun... — disse ela, debilmente.

Ele olhou fixamente para ela, sem palavras, sem ouvir o bater do coração dela, sabendo a verdade.

Meu Deus, não...

Rhun olhou por cima do ombro, a fúria crescia dentro dele, substituindo a dor. Bernard não só se alimentara dela, como também forçara o seu próprio sangue para dentro dela. Ele condenara-a da mesma forma que Rhun fizera há muitos séculos, corrompendo-a. Elisabeta era novamente uma abominação sem alma.

Há poucos meses, Rhun sacrificara reaver a sua própria alma para salvar a dela, e Bernard reduzira essa oferenda a ruína e cinzas.

O cardeal levantou-se, rodeado por Christian e pelos outros três sanguinistas. Bernard cometera o maior dos pecados e seria castigado, talvez até com a morte.

Rhun não sentia pena dele.

Elisabeta encostou a cabeça ao peito de Rhun, demasiado fraca para a erguer. Sussurrou-lhe algo, mais respiração que palavras.

— Estou cansada, Rhun... cansada até à morte.

Ele segurou-a, sussurrando no mesmo tom suave:

— Tens de te alimentar. Vamos encontrar alguém que nos dê sangue para recuperares as tuas forças.

Sophia falou atrás de Rhun, inclinando-se sobre eles.

— Isso é impossível. Não podemos permitir que ela exista. Ela agora é um strigoi e temos de a destruir.

Rhun olhou para os outros, não encontrando neles qualquer discordância. Tencionavam abatê-la como um animal. Contudo, encontrou auxílio vindo da pessoa mais improvável.

Bernard falou como se ainda tivesse voto na matéria.

— Ela deve beber o vinho, tornar-se uma de nós. Eu cometi o pecado da sua criação... porque a condessa jurou que enfrentaria este desafio: beber o vinho sagrado e juntar-se à nossa ordem.

Ou morrer a tentar.

Rhun olhou para Elisabeta em choque. Ela nunca teria feito tal acordo. Contudo, Elisabeta encontrava-se nos seus braços, com os olhos novamente fechados, tendo sucumbido ao seu estado enfraquecido.

Sophia tocou na cruz de prata que tinha pendurada ao pescoço.

— Mesmo que ela passe no teste, isso não vai amenizar o seu pecado, cardeal.

— Eu aceitarei o meu castigo — disse ele —, mas ela deve beber o vinho sagrado... e aceitar o julgamento de Deus.

Rhun protestou.

— Este pecado não é dela.

Christian juntou-se a Sophia.

— Rhun, lamento. Não interessa como ela se transformou, apenas que agora ela é um strigoi. Não devemos permitir que tais criaturas vivam. Devem enfrentar esta provação, beber o vinho... ou ser mortas.

Rhun considerou fugir com ela. Mesmo que conseguisse dar conta dos que ali se encontravam, e depois? Uma existência maldita a vaguear pela terra, a lutar para evitar que ela expressasse a sua verdadeira natureza, ambos privados da graça divina?

— Tem de ser feito e tem de ser feito agora — disse Sophia.

— Esperem. — Jordan levantou a mão. — Talvez devêssemos parar um pouco, discutir melhor o assunto.

— Concordo — disse Erin. — Estamos perante circunstâncias extraordinárias. Não se esqueçam de que ela tem informações de que precisamos. Não devíamos, pelo menos, obtê-las antes de nos arriscarmos a perdê-la novamente?

— A Erin tem razão — concordou Jordan. — Parece que o preço que a condessa pediu foi pago na totalidade. Ela obteve o que pediu e agora tem de nos dizer o que sabe.

Christian franziu o sobrolho, mas parecia estar a inclinar-se lentamente para o lado deles. Infelizmente, Sophia parecia pouco convencida e tinha o apoio dos dois sanguinistas que se encontravam ao seu lado.

Foi então que o apoio veio de uma nova direção.

— Eu vou dizer-vos o que sei — interveio Elisabeta, virando a cabeça, o que pareceu exigir um enorme esforço da sua parte. — Mas não se isso significar a minha morte.

Sophia desembainhou duas espadas curvas, as suas lâminas a brilharem à luz das velas.

— Não podemos deixar que um strigoi viva. As regras são claras. Um strigoi tem apenas duas escolhas: juntar-se à nossa ordem ou ser morto de imediato.

Rhun abraçou Elisabeta com mais força. Não podia perdê-la duas vezes numa noite. Se fosse necessário, lutaria.

Talvez sentindo que a tensão se estava a acumular, Erin pôs-se entre Rhun e os outros.

— Não podemos abrir uma exceção para ela? Deixem-na manter a sua forma atual. A Igreja estava disposta a trabalhar com ela quando era strigoi e nós andávamos à procura do Primeiro Anjo. Era-lhe permitido viver enquanto strigoi em troca da sua ajuda naquela altura. As circunstâncias atuais são assim tão diferentes?

O silêncio caiu sobre a sala.

Bernard quebrou-o, por fim, com a verdade.

— Já lhe mentimos antes. Se ela tivesse sobrevivido como strigoi depois de recuperarmos o Primeiro Anjo, teria sido morta.

Erin arquejou.

— Isso é verdade?

— Eu devia acabar com a sua vida maldita com as minhas próprias mãos — disse Bernard.

Rhun olhava fixamente para o seu mentor, para o homem que o criara nesta nova vida. Confiara em Bernard durante centenas de anos. Agora sentia o mundo fugir-lhe debaixo dos pés. Nada era o que parecia ser. Ninguém era quem dizia ser.

Exceto Elisabeta.

Ela nunca fingira ser algo que não era, mesmo quando era um monstro.

— Então, as tuas promessas são ocas, cardeal — concluiu Elisabeta. — Assim sendo, não vejo qualquer razão para cumprir as minhas promessas. Não te digo nada.

— Então, vais morrer agora — respondeu o cardeal.

Elisabeta olhou fixamente para o cardeal, os dois sempre em guerra um com o outro.

— Faz-me a pergunta, então — continuou ela. — Oferece-me o que vocês, sanguinistas, têm de oferecer a qualquer strigoi que tenham sob a vossa custódia.

Ninguém falou.

Ela recostou a cabeça novamente, olhando para cima, para Rhun, os seus olhos brilhavam de tristeza.

— Faz-me a pergunta, Rhun.

— Não o farei. Não tens nada por que responder.

— Oh, mas tenho, sim, meu amor. No final, todos temos. — Esticou-se e tocou na sua face com uma mão trémula. O fantasma de um sorriso aflorou os seus lábios. — Estou pronta.

Bernard interrompeu:

— Ficarás reduzida a cinza se tocares no vinho. Diz-nos antes o que sabes e talvez Deus te perdoe.

Elisabeta ignorou-o, mantendo o olhar fixo em Rhun.

Ele percebeu a sua determinação. Com os lábios frios, Rhun perguntou-lhe:

— Bathory de Ecsed, renegas a tua existência maldita e aceitas a oferenda de Cristo de servir a Igreja, de beber apenas o Seu sangue, o Seu vinho sagrado... agora e para sempre?

O olhar de Elisabeta nunca fraquejou, mesmo quando as lágrimas dele lhe caíram sobre o rosto.

— Aceito.


CAPÍTULO 12

17 de março, 23h29 CET
Veneza, Itália

Erin ficou a olhar para a vasta cúpula no centro da Basílica de São Pedro, erguendo o rosto para o brilho dourado como se este fosse o sol nascente. Aproximava-se a meia-noite, mas aqui a escuridão da noite não tinha lugar.

Mais cedo, na capela prateada mais pequena em baixo, tinha visto os outros levarem a condessa para os recessos mais escuros do nível dos sanguinistas. Erin estava preocupada com o que eles lhe podiam fazer, mas Sophia fora inflexível, aquele era um ritual da sua ordem que Erin não podia presenciar. Tudo o que ela sabia é que Elizabeth seria banhada e vestida com um hábito de freira antes de ser submetida ao ritual da transformação, o qual, aparentemente, envolvia orações, arrependimento e beber o vinho transubstanciado.

Erin gostaria de testemunhar o evento, mas não fora a única excluída dele.

Não fora permitido a um sanguinista acompanhar os outros.

Pelo menos, não ainda.

Ela virou-se e viu Rhun percorrer a vasta basílica a todo o seu comprimento e largura, agitando a chama das velas na sua esteira ao passar de uma sombra para outra. Apertava um rosário numa mão, nunca o largando. Os seus lábios moviam-se numa oração constante. Ela nunca o tinha visto tão agitado.

Jordan, pelo contrário, estava esparramado num banco de igreja ali perto. A sua pistola-metralhadora encontrava-se a um alcance confortável. Ela atravessou a basílica e dirigiu-se para junto dele rapidamente, pousando a mochila ao seu lado.

— Acho que o Rhun vai fazer um sulco no mármore — disse Jordan.

— A mulher que ele ama pode morrer esta noite — retorquiu ela. — Ele ganhou o direito de o fazer.

Jordan suspirou.

— Ela não é lá muito bom partido. Perdi a conta às vezes em que ela o criticou.

— Isso não significa que ele queira vê-la morrer. — Erin pegou na mão de Jordan, baixando a voz, sabendo que provavelmente Rhun conseguiria ouvi-los mesmo do outro lado da nave. — Gostava que houvesse alguma coisa que pudéssemos fazer.

— Por quem? Rhun ou Elizabeth? Lembra-te, ela pediu para ser transformada em strigoi. Alguma coisa me diz que ela considerou a questão de todos os ângulos antes de ter concordado em transformar-se. Acho que devemos deixar as coisas correrem.

Erin inclinou-se para Jordan, reparando de novo no calor que emanava dele. Ele afastou-se dela. Foi um movimento ligeiríssimo, mas inequívoco.

— Jordan? — começou ela, disposta a confrontar os seus próprio medos. — O que é que te aconteceu em Cumas?

— Já te contei.

— Não me falaste do ataque. Ainda estás a escaldar... e... e pareces diferente.

Aquela palavra dificilmente descrevia o que ela sentia.

Jordan soou distante.

— Não sei o que está a acontecer. Tudo o que sei... e isto vai parecer estranho... mas sinto que o que mudou em mim está a levar-me para um bom caminho, um caminho que devo seguir.

— Que caminho? — Erin engoliu em seco.

E posso ir contigo?

Antes que ele pudesse responder, Rhun surgiu junto do banco de igreja onde estavam sentados.

— Podes dizer-me as horas, Jordan?

Jordan tirou a mão de entre as mãos dela para ver o seu relógio de pulso.

— Onze e meia.

Rhun agarrou na cruz que trazia ao peito, ficando a olhar fixamente para o poço das escadas no transepto norte, claramente perturbado. A cerimónia devia começar à meia-noite.

Erin levantou-se, atraída pela sua angústia. Não ia conseguir obter alguma coisa mais concreta de Jordan. Talvez ele não soubesse mais do que já lhe tinha dito, ou talvez simplesmente não quisesse dizer-lhe. Fosse como fosse, não servia de nada ficar ali sentada.

Aproximou-se de Rhun.

— O Jordan tem razão, sabes?

Rhun virou o rosto para ela.

— Sobre o quê?

— A Elizabeth é uma mulher inteligente. Ela não concordaria em transformar-se se não pensasse que tem uma boa hipótese de sobreviver.

Rhun suspirou.

— Ela pensa que o processo é complexo, que dá margem para a dúvida e o erro, mas não dá. Assisti a muitas destas cerimónias no passado. Vi muitos... sucumbirem quando beberam o vinho. Ela não vai conseguir fazer batota para se safar.

Rhun começou a andar outra vez de um lado para o outro, mas Erin manteve-se ao seu lado.

— Talvez ela tenha mudado — sugeriu, não acreditando realmente nisso, mas sabendo que Rhun queria acreditar.

— É a sua única esperança.

— Ela é mais forte do que pensas.

— Rezo para que tenhas razão, porque eu... — A voz de Rhun quebrou e ele engoliu em seco antes de continuar. — Não vou suportar vê-la morrer de novo.

Erin aproximou-se dele e pegou-lhe na mão fria. As pontas dos seus dedos estavam vermelhas, empoladas pela prata das contas do rosário. Ele parou e fitou-a. O sofrimento naqueles olhos escuros era difícil de encarar, mas ela não desviou o olhar.

Rhun inclinou-se para ela e, instintivamente, Erin acolheu-o nos seus braços. Pelo período de uma respiração, ele acalmou encostado a ela e deixou-a amparar a sua forma fria e compacta. Por cima do ombro dele, ela viu Jordan observá-los. Sabendo o que Jordan sentia em relação a Rhun, Erin supôs que ele estivesse com ciúmes, mas o olhar dele passou por cima dela, claramente perdido no seu próprio mundo, um mundo em que ela parecia estar a perder o seu lugar.

Rhun libertou-se dos seus braços, tocando-lhe ao de leve no ombro. Aquele simples gesto transmitia-lhe a sua gratidão. Mesmo na sua angústia, ele estava mais atento a ela do que Jordan.

Percorreram em silêncio a nave até chegarem junto de Jordan.

Ele olhou-os de relance, parecendo irritantemente calmo.

— São quase horas — disse antes que Rhun tivesse tempo de perguntar. — Vais estar com a Elizabeth quando ela beber o vinho?

— Não posso — respondeu Rhun num tom de voz ainda mais baixo. — Não posso.

— Não te permitem estar lá? — indagou Jordan.

O seu silêncio culpado foi resposta suficiente.

Erin tocou no braço de Rhun.

— Devias estar lá.

— Ela vai viver ou morrer independentemente da minha presença e eu não consigo olhar se... se...

Ele afundou-se ao lado de Erin.

— Ela está assustada, Rhun — disse ela. — Por muito que o queira esconder. Há uma hipótese de estes serem os seus últimos momentos na Terra e tu és a única pessoa no mundo que realmente a ama. Não podes deixá-la sozinha.

— Talvez tenham razão. Se eu a tivesse deixado viver a sua vida como Deus lha destinou, ela agora não estaria a sofrer este destino. Talvez seja meu dever...

Erin apertou-lhe o braço. Sentiu como se tocasse uma estátua de mármore, mas havia um coração ferido algures muito no seu âmago.

— Não vás por dever, vai porque a amas — encorajou-o.

Rhun baixou a cabeça, mas ainda parecia indeciso. Virou-se e começou a andar outra vez pela nave. Desta vez, ela deixou-o ir sozinho, sabendo que ele precisava de pensar nas suas palavras para se decidir.

Ela suspirou e sentou-se de novo ao lado de Jordan.

— Se estivéssemos na mesma situação, deixavas-me beber o vinho sozinha?

Ele levantou o queixo dela para a fitar.

— Eu faria o impossível para que não se chegasse a isso.

Ela sorriu-lhe, gozando aquele momento, que não durou muito.

Christian surgiu à entrada da basílica e dirigiu-se a eles pela nave lateral. Carregava uma caixa achatada que cheirava a carne, queijo e tomate. Na outra mão trazia duas garrafas castanhas.

— Piza e cerveja — exclamou Jordan. — És um sonho tornado realidade.

— Lembra-te disso quando calculares a minha gorjeta.

Christian estendeu-lhe a caixa.

Rhun voltou para junto deles, suspeitando que Christian tivesse trazido mais que um jantar tardio.

O jovem sanguinista acenou com a cabeça para Rhun.

— Chegou a hora. Mas não tens de estar presente. Compreendo como deve ser doloroso.

— Eu vou. — Olhou para Erin demoradamente. — Obrigado por me lembrares porquê, Erin.

Ela baixou a cabeça, agradecendo as suas palavras, desejando poder ir com ele, estar lá por ele se a condessa não sobrevivesse.

Rhun virou-se e saiu para enfrentar o que estava por vir, para o partilhar com Elizabeth.

Os seus destinos para sempre entrelaçados.

23h57

Elizabeth encontrava-se mais uma vez na capela prateada onde tinha morrido e renascido. Alguém tinha limpado o seu sangue do chão e das paredes. A sala cheirava a incenso, pedra e limão. Velas novas de cera tinham sido acesas no altar.

Era como se nada tivesse acontecido.

Ela olhou para cima, para os mosaicos de Lázaro no teto. Ele tinha feito o que ela em breve tentaria e sobrevivera. Porém, ele amava Cristo.

Ela não.

Elizabeth fez deslizar a mão sobre o seu vestuário preto, o hábito de uma noviça. Um rosário de prata tinha sido colocado à volta da sua cintura e uma cruz peitoral pendia do seu pescoço. Os dois objetos queimavam mesmo através do pano grosso. Ela sentia-se como se tivesse vestido uma fantasia que poderia usar num baile.

Mas aquele não era o seu único disfarce.

Mantendo-se imóvel para que ninguém soubesse o que ela estava realmente a sentir, Elizabeth regozijava-se com a força dentro dela. O cardeal alimentara-se profusamente dela e em troca dera-lhe muito pouco do seu sangue, insuficiente para a sustentar. Ainda pior, os seus pés sensíveis estavam pousados sobre chão sagrado, um lugar que a enfraquecia ainda mais.

Mas ela sentia-se forte — mais forte, talvez, do que alguma vez se sentira.

Alguma coisa mudou no mundo.

Oito sanguinistas partilhavam a capela com ela, vigiando-a, julgando-a. Porém, ela só reparou num. Rhun viera para participar no ritual, mantendo-se ao lado dela. Sentiu-se surpreendida ao ver quão profundamente aquele gesto a impressionou.

Ele aproximou-se mais, as suas palavras reduzidas a um fraco murmúrio.

— Tens fé, Elisabeta? Fé suficiente para sobreviver a isto?

Elizabeth olhou para cima, vendo a preocupação nos olhos de Rhun. Durante séculos, ele só desejara que ela lutasse contra o mal dentro dela, que se devotasse a uma existência infeliz a servir uma Igreja em que ela não confiava. Quis reconfortá-lo, acalmá-lo, mas recusava-se a mentir-lhe, não quando estes podiam ser os seus últimos momentos juntos.

O sanguinista atrás dele entoava uma oração. Se ela tentasse fugir, matá-la-iam — e, se ela morresse, Tommy morreria com ela. Naquele caminho escaldante estava a única oportunidade de salvar a vida do rapaz e a sua.

— Eu tenho fé — disse ela a Rhun, o que era verdade. Só não era a fé que ele queria que Elizabeth professasse. Ela tinha fé em si própria, na sua capacidade de sobreviver e salvar Tommy.

— Se não acreditas — avisou-a Rhun —, se não acreditas que Cristo possa salvar a tua alma amaldiçoada, morrerás com o primeiro gole do Seu sangue. Sempre foi assim.

Foi?

Rasputine fora excomungado da Igreja, no entanto, ela vira com os seus próprios olhos que ele ainda vivia fora da esfera da Igreja. Da mesma maneira, o monge alemão, o irmão Leopold, tinha traído a Igreja durante cinquenta anos, porém, bebera o vinho vezes sem conta e nunca fora queimado.

Seria a crença do monge no seu propósito, naquele que ele servia, que o protegera?

Ela esperava que assim fosse. Pela sua salvação, e pela de Tommy. Ela tinha de acreditar que havia outros caminhos para a salvação oferecidos por aquele sangue sagrado. Embora o seu coração não fosse puro, certamente que ajudar Tommy era um objetivo suficientemente nobre.

Mas se eu estiver errada...

Ela procurou o pulso nu de Rhun, tocando-o com um dedo.

— Quero que sejas tu a dar-me o vinho. Mais ninguém.

Se morrer, quero que seja pelas mãos de alguém que me ama.

Rhun engoliu em seco, o medo tornou o seu rosto sombrio, mas não recusou.

— O teu coração deve estar puro — avisou-a. — Deves dirigir-te a Ele com sinceridade e amor. Podes fazer isso?

— Vamos ver — disse ela, esquivando-se à pergunta.

Satisfeito mas relutante, Rhun indicou com um gesto o cálice de prata sobre o altar. O cheiro intenso do vinho elevava-se dele, sobrepondo-se ao do incenso. Era difícil compreender que uma substância tão simples, uma fermentação de uvas, pudesse conter o segredo da vida. Ou que pudesse destruir a sua recém-adquirida imortalidade e ao mesmo tempo a ela.

Rhun ficou de pé à frente do altar, virado para ela.

— Primeiro, deves arrepender-te publicamente dos teus pecados, de todos os teus pecados. Em seguida podes beber o Seu Sangue sagrado.

Sem alternativa, ela desfiou pecado após pecado, vendo como cada um deles caía nos ombros de Rhun, como ele arcava com a culpa dos atos dela. Ele sofria-os à sua frente, e ela reconheceu a dor e o remorso nos seus olhos. Apesar de tudo, ela tê-lo-ia poupado àquilo se pudesse.

Quando ela acabou, estava rouca. Tinham-se passado muitas horas. O seu corpo de strigoi sentiu que a luz do dia não estava longe.

— É tudo? — perguntou Rhun.

— Não é suficiente?

Ele virou-se, tirou o cálice de prata de cima do altar e ergueu-o sobre a sua cabeça. Entoou as orações necessárias para transformar o vinho no sangue de Cristo.

Enquanto isso, Elizabeth sondava a sua consciência. Sentia medo por estes poderem ser os seus últimos momentos? Por em breve poder transformar-se em cinzas espalhadas pelo chão limpo? Chegou apenas a uma conclusão.

O que quer que deva acontecer, acontecerá.

Ela ajoelhou-se à frente de Rhun.

Ele inclinou-se e levou o cálice aos lábios dela.


CAPÍTULO 13

18 de março, 05h41 CET
Veneza, Itália

Jordan esticou-se para desfazer um nó nas suas costas. Tinha adormecido estendido num dos bancos de madeira da basílica. Pôs-se de pé e rodou a coluna de um lado para o outro, forçando a circulação de sangue de volta ao seu corpo. Curvou-se e massajou um espasmo no músculo da perna.

Consigo curar miraculosamente uma ferida mortal, mas não consigo fazer nada por uma cãibra.

Dirigiu-se com passo pouco firme para Erin, que examinava uma peça de arte a alguns metros dele. Estava com Christian, que tinha ficado a fazer-lhes companhia durante esta longa vigília, todos à espera de ter notícias de Elizabeth. Pelo ligeiro arquear das costas de Erin e os seus olhos inchados e vermelhos, duvidava que ela tivesse conseguido dormir.

Christian podia ter-se juntado aos seus companheiros sanguinistas e participado no ritual, mas ficara ali, tanto para os proteger de qualquer tipo de ameaça como para evitar que eles pudessem interferir no que estava a acontecer lá em baixo. Ou, simplesmente, da mesma forma que Rhun, talvez não quisesse ver a condessa ser reduzida a cinzas.

Durante toda a noite, Christian fora franco com eles, respondendo a todas as perguntas de Erin sobre o que provavelmente se passava lá em baixo. E, mais importante, também ia buscar cerveja para Jordan.

— Afinal, o que é que estamos a ver? — perguntou Jordan juntando-se a eles.

Erin apontou para o mosaico sobre a sua cabeça.

Ele olhou para cima.

— Aquele é Jesus sentado num arco-íris?

Ela sorriu.

— Por acaso, é. Está a ascender ao Céu. O que dá o nome a esta secção da basílica: a Cúpula da Ascensão.

Os três continuaram a andar ao longo da nave. Erin fazia perguntas a Christian acerca de várias peças de arte, mas, claramente, havia uma questão mais importante suspensa na mente dos três.

Jordan finalmente fez a pergunta.

— Pensas que ela vai sobreviver ao vinho?

Christian parou e suspirou alto.

— Ela sobreviverá se se arrepender sinceramente dos seus pecados e O aceitar no seu coração.

— Não é provável que isso aconteça — exclamou Erin.

Jordan concordou.

Christian tinha uma opinião mais compassiva.

— Nunca podemos saber o que vai no coração de alguém. Por muito que pensemos que sabemos. — Virou-se para Jordan. — Leopold enganou-nos a todos, servindo há décadas como agente de Belial dentro da nossa congregação.

Erin anuiu com a cabeça.

— E conseguiu beber o vinho sagrado sem ser reduzido a cinzas.

Jordan fez uma careta, percebendo que havia um assunto que nunca tinha tido tempo de discutir. Ele contara a toda a gente que o corpo de Leopold desaparecera do templo subterrâneo, mas nunca refletira na estranheza daquela história.

— Erin — disse ele —, há algo que nunca mencionei naquele ataque em Cumas. Aquele strigoi que... que me feriu... mesmo antes de morrer, disse que lamentava. Ele sabia o meu nome.

— O quê?

Christian virou-se abruptamente para ele. Ao que tudo indicava, Baako e Sophia também não tinham partilhado aquele pormenor com o sanguinista. Talvez todos eles o tivessem pura e simplesmente descartado como uma coincidência. Talvez o strigoi morto fosse alemão, o que explicaria o sotaque. Talvez soubesse o nome de Jordan porque quem quer que tivesse mandado aquele monstro lá para baixo sabia que o Homem Guerreiro estava naquele templo soterrado.

Contudo, ele não comprava aquilo.

Jordan, mein Freund...

— Juro que a voz que veio do strigoi era a de Leopold — garantiu ele.

— É impossível — murmurou Erin, porém, ela já testemunhara demasiadas coisas impossíveis, o que a fazia sentir-se insegura agora.

— Eu sei o que parece — disse ele. — Mas penso que o Leopold estava a usar aquele corpo como porta-voz.

Erin manteve-se em silêncio, com o olhar ausente enquanto digeria aquela informação.

— Que espécie de conexão pode existir entre os dois para permitir que isso aconteça?

Christian adiantou uma teoria.

— Quando Leopold morreu, talvez o seu espírito se tenha introduzido naquele strigoi.

Erin virou-se para ele.

— Isso já aconteceu antes?

Christian encolheu os ombros.

— Que eu saiba, não, mas desde que vos conheci que presenciei muitas coisas que pensava serem impossíveis.

Erin concordou com a verdade das suas palavras. Olhou para Jordan.

— Havia mais alguma coisa invulgar naquele strigoi, alguma coisa que possa explicar essa ligação psíquica?

— Além de ter uma força e velocidade excecionais?

— Além disso.

Jordan lembrava-se de um último pormenor.

— De facto, havia outra coisa bizarra. Ele tinha uma marca negra no peito. — Imitou-a com a palma da sua própria mão. — Tinha a forma de uma mão.

Os ombros descaídos de Erin endireitaram-se.

— Como Bathory Darabont tinha?

— Foi exatamente o que pensei. Algum tipo de marca de propriedade.

— Ou possessão — acrescentou Erin.

Christian parecia preocupado.

— Já devem ter acabado a autópsia àquele corpo na Cidade do Vaticano. Talvez tenham uma explicação melhor quando voltarmos. O cardeal Bernard provavelmente saberá o que...

A voz de Christian morreu. Pura e simplesmente, tinha momentaneamente esquecido que o cardeal já não estava à frente dos sanguinistas. Agora, era um prisioneiro.

Jordan abanou a cabeça. Não podia haver pior altura para a ordem ser abalada por problemas de liderança.

— Que vai acontecer a Bernard? — perguntou ele.

Christian suspirou.

— Será levado para Castel Gandolfo e ficará em prisão domiciliária até estar pronto para enfrentar o julgamento. Porque é um cardeal, um conclave de doze outros cardeais deve reunir-se para pronunciar a sentença. Pode demorar cerca de duas semanas, em especial devido aos crescentes ataques dos strigoi.

— O que é provável que decidam? — indagou Erin.

— O cardeal Bernard é poderoso — disse Christian. — Poucos quererão falar contra ele. Por causa disso, e pelo facto de haver circunstâncias atenuantes, ser-lhe-á dada uma penitência.

— Que espécie de penitência? — perguntou Jordan.

— Ele cometeu um pecado grave. Normalmente, seria condenado à morte. Porém, a ordem pode decidir perdoá-lo. Sophia disse-me que o cardeal quebrou as nossas leis no passado, alimentando-se de humanos inimigos durante as cruzadas.

— As cruzadas? — A voz de Erin subiu um tom. — Isso foi há mil anos.

— Os vossos homens têm longas memórias — comentou Jordan.

— É um chamamento difícil. — Christian desfiou as contas do rosário. — E se a condessa Bathory tiver informação que vos possa ajudar na vossa missão de voltar a acorrentar Lúcifer, a ordem poderá ser branda para com o cardeal.

Erin olhou para baixo, ao longo de todo o comprimento da nave.

— Então a vida de Bernard pode depender da sobrevivência da condessa à transformação?

— Parece adequado — comentou Jordan.

— Adequado ou não — retorquiu Christian —, estou certo de que conheceremos o seu destino em breve.

Jordan calculou que não seria fácil para Bernard descansar naquela noite.

Bem que o merecia.

05h58

Com os dois braços algemados à sua frente, Bernard apoiou as pernas o melhor que pôde na linha de mediania do barco. As algemas de prata queimavam-lhe os pulsos de cada vez que se mexia, enchendo o espaço escuro com o cheiro da sua própria carne crestada.

Fui encarcerado como um vulgar ladrão.

E ele sabia a quem culpar pela sua situação atual: o cardeal Mario. O cardeal de Veneza sempre odiara Bernard, principalmente porque este frustrara a sua campanha de séculos para deslocar o centro da Ordem Sanguinista para aquela decadente cidade de canais. Esta cruel viagem para uma cela escura era o castigo por esse pecado.

Ainda assim, aquilo era apenas um aborrecimento. Bernard não tinha ilusões sobre o que se ia passar. Embora não soubesse com exatidão qual seria o castigo pelo seu pecado maior, perderia o seu eminente cargo, caindo tão baixo que nem era capaz de adivinhar onde iria aterrar. Certamente seria privado do seu título.

A morte seria uma opção mais simples.

Baixou a cabeça. Tinha servido a Ordem Sanguinista durante quase mil anos. Restavam poucos sanguinistas da sua idade. Em todo aquele tempo, nunca se sentira tentado a retirar-se para o Santuário e tornar-se um dos Enclausurados. Esse não era um caminho para si e para a sua ambição.

Eu pertenço às fileiras da Igreja, servindo a ordem com todas as minhas capacidades.

Bernard levantou as mãos algemadas suficientemente alto para tocar a sua cruz peitoral com os polegares. A dor era familiar, reconfortante. Lembrou-lhe que ainda não tinha deixado de servir.

Tinha de se focar nisso — em vez de se focar em como tinha descido baixo graças aos caprichos de Elizabeth Bathory. A fúria percorreu-o, mas repreendeu-se, aceitando as suas falhas. A condessa reconhecera a profundidade do seu orgulho, usara o fogo da sua ambição contra ele. As palavras dela ecoavam na sua cabeça.

Só tu tens o poder de salvar o teu mundo.

Ela tentara-o — não apenas com sangue, mas com o seu precioso conhecimento. Guardados no seu cérebro estavam segredos que ele desejava tanto quanto ela queria o seu sangue. Ele pagara demasiado facilmente o seu preço. Ela soubera que música tocar.

E eu fui apenas o seu instrumento.

Mas não o seria mais.

Os outros não percebiam a profundidade do mal que a condessa carregava no seu coração negro, mas Bernard sabia. Não tinha qualquer dúvida de que o vinho a consumiria, mas, se não o fizesse, ele precisava de estar preparado.

Ele sabia de uma maneira de a controlar se ela sobrevivesse. Ela preocupava-se com o rapaz, Tommy.

Controla a criança, e controlarás a mãe.

Bernard moveu-se o suficiente para tirar o telemóvel do bolso. Os seus captores tinham-no despojado das armas, mas deixado o telemóvel. Marcou um número às escuras. Mesmo em tempos como aqueles, havia quem lhe fosse leal.

— Ciao? — disse uma voz do outro lado.

Bernard explicou rapidamente o que queria.

— Será feito — declarou o seu aliado, desligando.

Bernard retirou pouco conforto de que o seu plano para a condessa não falhasse.

Desta vez, transformá-la-ei num instrumento para os meus objetivos.

Custasse o que custasse.

06h10

Elizabeth ajoelhou-se com o cálice junto aos lábios, oscilando à beira da salvação ou da extinção. Sobre a sua cabeça, o mosaico de Lázaro olhava-a, assim como Cristo, mas ela fitava aqueles que se tinham juntado para testemunhar o evento. Eles eram a família de Lázaro, as suas irmãs, Marta e Maria de Betânia. Os pequenos ladrilhos de vidro capturavam as suas expressões de horror, não de alegria.

Tinham elas receado que o seu irmão não sobrevivesse ao ato de beber o sangue de Cristo?

O seu olhar vagueou para outro olhar que igualava o seu medo, segurando o cálice junto dos seus lábios. O reflexo da luz das velas brilhou sobre a face tensa de Rhun, tornando prateada a sua pele pálida. Ela nunca o tinha visto tão aterrado, a não ser no momento em que ela o beijara pela primeira vez em frente da lareira, no seu castelo, o momento que pusera em marcha os acontecimentos que os tinham levado aos dois àquele lugar.

Os olhos escuros de Rhun fitavam os dela. Aquele era o momento para uma despedida poética, mas ela não conseguia pensar em nada para lhe dizer, especialmente à frente da assembleia de sanguinistas.

Ela focou-se em Rhun, deixando tudo o resto de lado.

— Ege’sze’ge’re — murmurou Elizabeth sobre a borda do copo. Era um brinde comum na Hungria: À tua saúde.

Os olhos de Rhun suavizaram-se com a sombra de um sorriso.

— Ege’sze’ge’re — repetiu ele com um ligeiro aceno.

Ela curvou a cabeça, e ele inclinou a taça.

O vinho derramou-se sobre a sua língua.

Está feito...

Quando ela o engoliu, o líquido queimou um trilho ardente na sua garganta. Parecia que tinha bebido rocha fundida. As lágrimas inundaram-lhe os olhos. As suas costas arquearam-se em agonia, empurrando os seus seios contra o tecido áspero do hábito. Os seus braços abriram-se violentamente. O fogo fluiu pelo seu corpo para os seus membros, pelas pontas dos dedos. Chamas corriam em cada veia do seu corpo. Era uma agonia que ela nunca experimentara.

Com aquela dor, a santidade do vinho espalhou-se dentro dela, drenando a sua força de strigoi, lutando contra a escuridão no seu sangue. Porém, a santidade não venceu. O mal não foi completamente queimado. Ainda pulsava dentro dela, como um fogo latente.

Finalmente, ela arquejou um sopro, expulsando algum do fogo.

Ela suspeitava do que vinha a seguir, fortificando-se contra isso. Pela explicação de Rhun, de cada vez que ela bebia o vinho, era forçada a reviver os seus piores pecados. Ele chamava a esta experiência penitência. O objetivo desta era lembrar a cada sanguinista que era falível e que só a incrível graça d’Ele podia fazê-lo superar os seus pecados.

E eu tenho tanto por que expiar.

À medida que o fogo recuava dentro dela, curvou-se para a frente sobre os joelhos, cobrindo o rosto molhado pelas lágrimas com as mãos. Mas não era para eclipsar quaisquer terríveis memórias.

Era para esconder o seu alívio.

Ela sobrevivera ao teste — e não viu cenas de depredações passadas. A sua mente estava tão clara como sempre estivera. Aparentemente, ela não precisava de penitência.

Talvez porque eu não tenho remorsos.

Ela sorriu atrás das palmas das mãos.

Seriam os sanguinistas os arquitetos da sua própria penitência e da sua própria dor?

A mão de Rhun pousou sobre o seu ombro como que para a confortar. Ela deixou-a ficar, insegura quanto ao tempo que a penitência devia demorar. Manteve as mãos sobre o rosto e esperou.

Por fim, os dedos de Rhun apertaram o seu ombro com mais força.

Tomando isto como um sinal, ela levantou a cabeça, tendo o cuidado de manter uma expressão trágica.

Rhun estava radiante ao ajudá-la a levantar-se.

— O bem em ti saiu triunfante, Elisabeta. Graças ao Senhor pela Sua eterna misericórdia.

Ela apoiou-se nele, notavelmente mais fraca por causa da santidade, despojada da estranha força de strigoi. Apertou a mão de Rhun, ao mesmo tempo que olhava para os rostos à sua volta, muitos mantinham-se impassíveis, mas alguns não conseguiam esconder a sua surpresa.

Ela continuou a desempenhar o papel que esperavam dela. Fitou Rhun.

— Agora que renasci, não posso quebrar a promessa que te fiz, que fiz a todos. Vou contar-te o que sei, uma coisa que te poderá ajudar na tua demanda. Esse será o meu primeiro ato de contrição.

Rhun abraçou-a com mais força, agradecendo-lhe e talvez querendo certificar-se de que ela estava realmente viva.

— Então vamos.

Ele acompanhou-a pelo meio dos outros. Estes tocaram nos ombros dela à medida que Elizabeth andava entre eles, dando-lhe as boas-vindas às suas fileiras. Contudo, uma testemunha não conseguia esconder a sua expressão chocada. Foi a última a saudar Elizabeth.

A irmã Abigail fez-lhe um ligeiro aceno com a cabeça.

— Sinto-me honrada por me juntar a vós — disse Elizabeth.

A velha freira recompôs a sua expressão em qualquer coisa semelhante a boas-vindas.

— É um caminho difícil aquele que agora trilhas, irmã Elizabeth. Rezo para que encontres força dentro de ti para que o mantenhas.

Elizabeth arvorou uma expressão contrita no seu rosto.

— Também rezo por isso, irmã.

Ela dirigiu-se para fora da capela, reprimindo o riso que crescia dentro dela.

Quem diria que seria tão fácil escapar?


CAPÍTULO 14

18 de março, 09h45 CET
Veneza, Itália

A Condessa Sanguinária sobreviveu...

Ainda a habituar-se à ideia, Erin olhava fixamente para as costas de Elizabeth enquanto a antiga condessa os conduzia pelas profundezas da Basílica de São Marcos. Estava vestida com um simples hábito de freira, agora aceite como uma sanguinista. Ainda não acreditando na mudança brusca, Erin estudava-a. Apesar da roupa humilde que vestia, Elizabeth ainda caminhava com a altivez da realeza, com os ombros para trás e o pescoço rígido.

Mas ela passou no teste dos sanguinistas.

Erin abanou ligeiramente a cabeça, aceitando esta verdade.

Pelo menos, por agora.

E, ainda que não fosse por mais nada, a mulher colaborara bastante até agora.

— Foi isto que vos vim mostrar — disse Elizabeth, parando por baixo de um magnífico mosaico que adornava o teto acima deles. — É intitulado a Tentação de Cristo, um dos mais requintados da basílica.

Rhun manteve-se ao lado de Elizabeth, espelhando cada movimento seu, o olhar intenso sobre ela, o rosto repleto de alívio e deslumbramento... e alegria. Depois de tudo o que a condessa o fizera passar, ele ainda a amava.

Jordan seguia um pouco afastado de Erin. Ela desejava que Jordan a olhasse com aquela mesma expressão de amor inquestionável e insaciável. Em vez disso, ele estudava a arte que se estendia perante eles.

— Então, este ilustra as três vezes que Satanás desafiou Cristo — disse Jordan —, enquanto Cristo jejuava no deserto durante quarenta dias.

— Precisamente — respondeu Erin. — A secção mais à esquerda ilustra o diabo (o anjo negro à Sua frente) a trazer pedras para junto de Cristo, para O tentar a transformá-las em pão.

Christian anuiu com a cabeça e disse:

— Mas Cristo recusou, afirmando que o Homem não viverá somente de pão, mas de cada palavra de Deus.

Erin apontou para a secção seguinte.

— A segunda tentação ocorre quando o diabo desafia Jesus a saltar de um edifício e a pedir que Deus o ampare, mas Jesus recusa-se a tentar o Senhor. E a última, aqui representada por Cristo no cimo de uma montanha, é quando o diabo oferece a Cristo todo o reino da Terra.

— Mas Jesus recusa — disse Jordan.

— E o diabo é banido — acrescentou Erin. — Depois, aqueles três anjos à direita cuidam de Jesus.

Uma nova voz intrometeu-se.

— E esse número é significativo.

Erin virou-se para Elizabeth, que mantinha um ar reservado, com as mãos sobre o colo.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Erin.

— Três tentações, três anjos — explicou Elizabeth. — Repara também que Cristo se encontra no cimo de três montanhas durante a segunda tentação. O três sempre foi um número importante para a Igreja.

— Como no caso do Pai, do Filho e do Espírito Santo — concluiu Erin.

A Santa Trindade.

Elizabeth ergueu as mãos do colo e apontou para Rhun, para Christian e para si mesma.

— E é por essa razão que os sanguinistas se deslocam sempre em grupos de três.

Erin também se lembrou de que fora preciso o sangue de três sanguinistas para abrir o portal que Bernard selara. Mesmo a profecia do Evangelho de Sangue se centrava em três figuras: a Mulher Sábia, o Homem Guerreiro e o Cavaleiro de Cristo.

— Mas esse não é o trio mais significativo que se encontra escondido neste mosaico — disse Elizabeth, e apontou para cima. — Olhem com mais atenção para as montanhas por baixo das sandálias de Cristo.

Jordan semicerrou os olhos.

— Parece que Cristo está em cima de uma bolha de água?

— E dentro dessa bolha? — perguntou Elizabeth.

Com o mosaico tão longe, Erin desejou ter um par de binóculos, mas ainda conseguiu ver o suficiente para compreender. Pequenos e luminosos ladrilhos brancos rodeavam um trio de objetos escondidos no interior da bolha, que flutuavam no brilho aquoso.

— Três cálices — disse Erin, incapaz de evitar o espanto na sua voz.

Uma esperança emergiu das muitas que lhe passavam pela cabeça: será um deles o Cálice de Lúcifer, o cálice que se esperava que encontrassem? Virou-se para Elizabeth e perguntou:

— Mas por que razão nos mostra isto?

— Porque é capaz de estar relacionado com a vossa demanda. Há muito tempo, esta obra de arte foi mandada fazer por homens que, mais tarde, formariam uma corte, em Praga, ao serviço do Imperador Rodolfo II. A Corte dos Alquimistas.

Erin franziu o sobrolho. Já lera sobre esse grupo em contos infantis sobre o golem bíblico. Eram um grupo de alquimistas famosos, reunidos em Praga, que estudavam o oculto, bem como formas de transformar chumbo em ouro. Nos seus muitos laboratórios, tentavam descobrir os segredos da imortalidade.

Até onde sabia, tinham falhado.

— Qual é a importância dos cálices? — perguntou Erin.

— Não tenho a certeza. Mas sei que estão, de alguma forma, relacionados com a pedra verde que vocês encontraram. Aquele diamante verde.

— Relacionados de que maneira? — indagou Jordan.

— Essa pedra também tem um historial que está ligado à Corte dos Alquimistas. A um homem que eu conheci, na altura em que fazia a minha própria investigação sobre a natureza dos strigoi.

Erin franziu o sobrolho com a escolha de palavras de Elizabeth. Investigação. Era uma forma desprezivelmente cínica de descrever a tortura e o assassínio de centenas de raparigas.

— Ele era um dos alquimistas da corte — continuou Elizabeth. — Ele mostrou-me o símbolo que vocês descobriram nesse diamante, a marca que copiei para o meu diário.

— Quem era ele? — insistiu Erin.

— Chamava-se John Dee.

Erin olhou ainda mais intensamente para Elizabeth. John Dee era um famoso cientista inglês que vivera no século dezasseis. Com as suas capacidades de navegação, ajudara a rainha Isabel a erigir o Império Britânico. Contudo, mais tarde na sua vida, ficou mundialmente conhecido enquanto astrólogo e alquimista. Ele vivera numa altura em que a religião, a magia e a ciência se encontravam numa encruzilhada.

— No que é que ele estava a trabalhar que envolvesse um diamante verde? — perguntou Erin.

— Um dos objetivos de vida de Dee, objetivo esse que o faria cair em descrédito no final, era falar com os anjos.

Anjos?

Há um ano, Erin teria gozado com a ideia, mas agora — olhou de relance para Jordan — sabia quanto eles eram reais.

Elizabeth continuou:

— Dee trabalhou com um jovem chamado Edward Kelly, que dizia ser vidente.

— O que é isso? — perguntou Jordan.

— Um adivinho — explicou Erin. — Usavam bolas de cristal, folhas de chá e outros meios para prever o que ia acontecer no futuro.

— No caso de Kelly, ele possuía um espelho polido preto, que dizia ser feito de obsidiana vinda do Novo Mundo. Naquele espelho, os anjos apareciam-lhe, ou pelo menos foi disso que convenceu John Dee. Dee transcreveu as palavras desses anjos, utilizando uma língua especial que ele inventou.

— Enoquiano — disse Erin.

Elizabeth anuiu com a cabeça.

— Passado algum tempo, Dee perdeu a fé em Edward Kelly e quis ser ele a falar com os anjos diretamente. Para esse fim, tentou abrir um portal para o mundo angélico através do qual poderia falar com esses seres e partilhar a sua sabedoria com a humanidade.

— Mas o que é que isto tudo tem que ver com a pedra verde? — perguntou Jordan.

— Precisamente — sussurrou Erin.

— A pedra continha o poder de abrir aquele portal. Estava repleta de uma energia obscura, suficientemente forte para atravessar os nossos mundos. No dia em que Dee ia abrir o portal, ocorreu uma calamidade, e ele e o seu aprendiz foram encontrados mortos no laboratório. O imperador escondeu a pedra para que ninguém pudesse libertar o seu poder novamente.

— Como descobriu isso? — perguntou Erin.

A condessa alisou as pregas da sua saia.

— Porque o imperador Rodolfo II me contou.

Christian franziu o sobrolho, desconfiado.

— Conheceu o imperador?

— É claro que conheci — respondeu ela de forma ríspida, claramente zangada. — Eu venho de uma das casas reais da Europa.

— Não quis ofendê-la, irmã — disse Christian.

Elizabeth recompôs-se rapidamente, voltando a colocar as mãos sobre o colo, parecendo esforçar-se ao máximo para voltar a ser aquela freira humilde. Falhou redondamente.

— O imperador escreveu-me uma carta — explicou ela. — Ele sabia que Dee e eu éramos os únicos do mundo conhecido na altura a fazer o mesmo tipo de investigação: explorar a natureza do bem e do mal.

— Como é que isto nos ajuda a avançar na nossa demanda? — indagou Jordan.

— Dee sabia muito mais sobre esse diamante do que partilhava nas suas cartas — disse ela. — Como aquele símbolo. Desconfio que Dee sabia o que ele significava. Se conseguíssemos encontrar os seus apontamentos antigos, as suas notas privadas, podíamos descobrir a verdade.

Erin anuiu com a cabeça. Pelo menos, é um começo.

Rhun olhava fixamente para Elizabeth. Na verdade, o seu olhar raramente abandonava as feições dela.

— O que te deixou com um ar tão preocupado?

Erin tentou ler essa mesma ansiedade no rosto estoico da mulher, mas não conseguiu. Mas também, Rhun conhecia-a como ninguém.

— Pelos pormenores da descrição que o imperador fez do estado em que encontrou os corpos de Dee e do rapaz, receio que o portal de Dee não se tenha aberto para os anjos sagrados, mas para o anjo mais negro de todos: o próprio Lúcifer.

Elizabeth olhou para as figuras negras por cima das suas cabeças, as que tentavam Cristo. O silêncio inundou a vasta igreja à medida que as implicações da afirmação de Elizabeth eram lentamente assimiladas por todos. Por fim, a condessa virou-se para eles novamente.

— Aconteça o que acontecer — avisou Elizabeth —, temos de manter a pedra intacta.

Jordan trocou um olhar com Erin.

— Mostra-lhe — disse Erin.

Jordan retirou lentamente do seu bolso os dois pedaços do diamante. Elizabeth recuou, afastando-se dos cacos verdes que brilhavam. Até mesmo Erin conseguia ver o medo puro estampado no rosto dela. Era claro agora.

— Está à solta — sussurrou ela.

— O quê? — perguntou Erin.

— Não há nada que possamos fazer — continuou Elizabeth, ignorando a pergunta, o tom da sua voz baixo e assustado. — A não ser planear para o regresso de Lúcifer.

10h38

Rhun olhava para Elizabeth, incrédulo, procurando sinais de fingimento, mas encontrando apenas medo genuíno.

— Lúcifer? — perguntou ele. — Achas mesmo que o seu regresso está iminente?

— Os strigoi mudaram, não mudaram? — Os olhos de Elizabeth fixaram-se intensamente nos dele. — Estão mais velozes, mais fortes?

Jordan anuiu com a cabeça, esfregando a barriga.

— Mas o que é que isso significa? — inquiriu Erin.

— Significa que o perigo que vocês enfrentam é maior do que pensam. — Elizabeth tocou com um dedo nas pedras partidas. — Fugiu da sua prisão.

— O que é que fugiu? — perguntou Rhun, afastando-lhe as mãos dos fragmentos. Se ainda havia algum mal naquela pedra, ele não queria Elisabeta perto dele.

— A pedra preciosa estava repleta de forças do mal, uma energia reunida e destilada durante muitos anos, à medida que John Dee as recolhia.

— Recolhia quem? — perguntou Erin. — De que energia fala?

— A essência de mais de seiscentos strigoi. Dee recolhia as suas energias moribundas no momento da sua morte e canalizava-as para o coração do diamante. — Elizabeth virou-se para Rhun, agarrando-lhe o braço com força. — Já mataste strigoi suficientes para teres visto o fumo escuro que se liberta quando morrem.

Rhun anuiu lentamente com a cabeça, olhando de relance para Erin e para os outros, vendo reconhecimento nas suas expressões. Todos o tinham visto a uma dada altura.

Erin falou:

— Nos seus diários, mencionava o facto de ter morto um strigoi num caixão de vidro. A Elizabeth ilustrou esse fumo a sair dos seus corpos.

— Foi o mais longe que consegui chegar com as minhas experiências. Mas John Dee conseguiu capturar e recolher essas essências, utilizando um aparelho de vidro que ele mesmo inventou. De algum modo, descobriu que esta pedra verde era capaz de conter essa imensa concentração de maldade.

Jordan olhou para baixo, para os dois cacos pesados nas suas mãos.

— E agora essas forças foram libertadas.

— O ato de partir esta pedra — refletiu Erin — poderia ser aquilo a que a profecia do Evangelho de Sangue referia? O facto de os grilhões de Lúcifer se terem aberto?

— Talvez — respondeu Elizabeth —, mas é sem dúvida a razão por que os strigoi se tornaram mais poderosos ultimamente.

— Porquê? — inquiriu Rhun.

Ela virou-se para ele.

— Não sabes mesmo?

Rhun limitou-se a franzir o sobrolho.

— Nunca te perguntaste o que é que te dá a tua longa vida, a tua força? — perguntou Elizabeth.

— Uma maldição — retorquiu ele.

— Essa é uma resposta simples — começou ela. — De certeza que a Igreja tem eruditos que já se debruçaram sobre este mistério com maior profundidade do que isso.

— Se assim é — interrompeu Christian —, não o sabemos. Por isso, diga-nos.

Elisabeta abanou a cabeça, como se não conseguisse acreditar na ignorância deles.

— Pelas minhas experiências e pela investigação de Dee sobre os anjos, temos razões para crer que todos os strigoi são alimentados por uma única força angelical: um anjo negro.

Rhun olhou para cima, para as figuras de Lúcifer.

Elisabeta seguiu o olhar dele e continuou:

— Nunca reparaste que o fumo de um strigoi moribundo não vai para cima, mas rasteja para baixo?

Rhun anuiu lentamente com a cabeça.

— Regressando assim ao Inferno.

— Regressando à sua origem. A Lúcifer.

Rhun levantou as mãos, olhando para a sua carne, pensando naquela energia satânica a correr no seu interior, reprimida apenas pelo sangue sagrado de Cristo. Ao seu lado, Christian parecia igualmente aterrado, ambos compreendendo, talvez pela primeira vez, a sua verdadeira natureza.

Felizmente, Erin encaminhou o assunto numa direção mais prática.

— A Elizabeth mencionou antes que algo estava à solta, que algo escapara da sua prisão. O que acha que foi libertado daquele diamante?

— Não posso afirmar com toda a certeza, mas John Dee recolheu um número específico de espíritos strigoi. Seiscentos e sessenta e seis, para ser mais exata.

— O número bíblico da Besta — observou Erin.

— Dee acreditava que, quando chegasse a esse número, essas essências iam coalescer, aglutinar-se para dar origem ou talvez conter um demónio.

— A Besta bíblica — disse Rhun, começando a perceber o terror anterior de Elisabeta.

— Dee acreditava que era capaz de coagir esse demónio a abrir o portal angelical, mas enganou-se.

— E agora está à solta neste mundo — concluiu Rhun.

Elisabeta juntou as mãos à altura da cintura.

— Para termos alguma esperança de o travar, temos de encontrar as notas antigas de Dee. Só ele pode ter compreendido aquilo que criou.

— Onde começamos a procurar? — perguntou Erin.

— Nos seus velhos laboratórios em Praga. Isto é, se ainda existirem. Dee sabia como manter segredos. Tinha compartimentos secretos espalhados por várias divisões. Na lareira, em paredes falsas, até em cavernas por baixo do seu laboratório. Temos de ir ao local de trabalho dele em Praga e procurar essas respostas.

Rhun olhou para Erin e Jordan. Era uma pista bastante fraca, mas mais sólida do que qualquer outra coisa que tivessem de momento.

— O que é que vocês os dois acham? — perguntou Rhun.

Jordan olhou de relance para Erin.

Ela acenou com a cabeça e disse:

— Acho que vale a pena tentar. E, com tudo o que está a acontecer, devíamos ir imediatamente.

— Posso ir aquecer o helicóptero — sugeriu Christian. — Mas quem é que vai?

Erin fez sinal para Rhun e Jordan.

— O trio, claro.

Elisabeta estremeceu, endireitando os ombros.

— Eu também vos devia acompanhar. Já visitei o local de trabalho de Dee e conheço muitos dos seus segredos.

Christian levantou uma sobrancelha.

— Acabou de se juntar à nossa ordem, irmã Elizabeth. É costume para quem entra na ordem passar vários meses em isolamento, a fim de aprender a domar as forças animais que se encontram dentro de si. É uma altura bastante perigosa.

Elisabeta inclinou a cabeça para baixo, mas Rhun viu um clarão familiar de raiva nos seus olhos cor de prata.

— Se é essa a vontade da Igreja, devo obedecer. No entanto, não vejo como possam ser bem-sucedidos nesta missão sem a minha ajuda.

Uma voz ouviu-se atrás deles, revelando alguém que estivera a escutar em segredo a conversa, escondido nas sombras.

— A irmã Elizabeth deve assistir o trio na sua demanda — disse Sophia, acenando com a cabeça para Christian. — Não há ninguém na Igreja que tenha o seu conhecimento. Temos de correr riscos se queremos ser bem-sucedidos.

Elisabeta inclinou a cabeça para baixo.

— Obrigada, irmã Sophia.

— A irmã Elizabeth já bebeu o vinho. Se Deus confia em si, nós não podemos fazer menos que isso. — Sophia acenou com a cabeça para Christian. — No entanto, as preocupações levantadas há alguns momentos são reais, por isso vou convosco. Para vos ajudar a estarem alerta no que diz respeito às tentações.

— Recebo de bom grado a sua sabedoria nestes assuntos — disse Elizabeth.

Rhun desconfiava que Sophia se juntara a eles, não como tutor, mas como guarda-costas, para manter Elisabeta debaixo de olho. E talvez isso fosse sensato da sua parte. De qualquer maneira, estava decidido.

Christian virou-se.

— Vou preparar um horário de voo. Se não houver imprevistos, estaremos em Praga amanhã ao meio-dia.

Enquanto se preparavam para seguir, Rhun observou Jordan a guardar no bolso as duas metades da pedra verde, lembrando-lhe o que fora libertado sobre este mundo. Se os receios de Elisabeta se confirmassem, fora libertado um demónio.

Mas que tipo de besta seria?


CAPÍTULO 15

18 de março, 11h12 CET
Veneza, Itália

Quanto mais tenho de esperar...?

Legião mantinha-se oculto na sombra de uma arcada. Da escuridão, estudava a fachada com colunas da enorme igreja que se encontrava do outro lado da praça iluminada pela luz do Sol. O sol intenso do meio-dia refletia da sua superfície dourada e queimava-lhe os olhos, mas ele manteve-se no mesmo sítio.

Já esperei mais tempo, e posso esperar ainda muito mais.

Enquanto mantinha a sua vigilância, enraizado dentro de Leopold, procurava com outros olhos, os daqueles que escravizara com o toque da sua mão. Através dessas ramificações distantes, desses outros olhos, contemplou centenas de outras vistas, de lugares que ainda se encontravam na escuridão:

... a garganta dilacerada de um jovem mulher, vertendo carmesim sobre ruas de alcatrão negro...

... os olhos húmidos e aterrorizados de um homem dentro de uma caixa de metal, antecipando a sua morte pelos dentes afiados de uma criatura da noite...

... outro a caçar por um bosque escuro, cercando um casal nos braços um do outro, alheio a tudo menos ao seu desejo...

A qualquer momento, podia fazer mais do que simplesmente observar. Podia passar a sua consciência para um desses escravos, tomando posse dos seus membros e corpo. No entanto, Legião manteve-se onde estava, firmemente enraizado neste corpo que possuíra, sempre com uma ligação ao seu próprio mundo. Procurou novamente através das memórias emanadas por aquela pequena chama que tremeluzia na enormidade da sua escuridão.

Leopold reconhecera a fortaleza santificada do outro lado da praça.

E, agora, eu também a conheço.

A Basílica de São Marcos.

Legião viera de Roma para aqui trazido por um trémulo padre sanguinista, que escutara atrás da porta de alguém a quem chamavam cardeal Bernard. Através desses ouvidos, ficara a saber que o trio da profecia se iria reunir aqui. Embora quisesse saber o que se passava dentro daquelas paredes sagradas, não se atrevia a entrar.

Não só por causa daquele chão sagrado, mas também pela intensa luz do Sol que ameaçava queimá-lo e reduzi-lo a cinzas. Não trouxera nada com que se cobrir. Mesmo nas sombras, a luz do Sol fazia arder a sua pele. Dentro de pouco tempo, o sol iria persegui-lo e fazê-lo retirar para uma casa próxima ou talvez até para as profundezas do mar que alimentava os canais.

Posso descansar debaixo da água verde e fresca durante as horas de maior calor do dia.

A tentação chamava-o a experimentar aquela beleza: o brilho dos peixes fugidios, a dança dos véus cor de esmeralda das algas. Queria deleitar-se nela, fazer parte dela.

Mas ainda não.

Em vez disso, devia permanecer nesta cidade de canais sujos, uma miscelânea incongruente de depravação humana e santidade. O trio que ele caçava procurara refúgio aqui. E, apesar das tentativas de Leopold para esconder a sua existência, Legião descobrira tudo aos poucos.

Dois membros do trio eram, claro, mortais.

O Guerreiro e a Mulher.

Mas o terceiro — o Cavaleiro chamado Rhun Korza — chegara depois dos outros. Ele era um sanguinista, tal como Leopold, o que significava que era corruptível. Legião era capaz de tocar nessa escuridão dentro do Cavaleiro com as suas próprias sombras.

Marcando-o, subjugando-o à minha vontade.

Infelizmente, era algo que não podia fazer com o Guerreiro ou com a Mulher, que não tinham essa escuridão dentro deles, mas Legião precisava apenas do Cavaleiro.

Korza seria o seu meio para entrar no seio do trio, o seu meio para destruir a profecia a partir do seu interior.

Uma porta pesada fechou-se com estrondo do outro lado da praça, chamando-lhe a atenção.

Um grupo de sanguinistas de coração silencioso saiu daquele lugar sagrado para a ampla praça. Legião procurou entre os seus rostos, respirando profundamente o fumo expelido pela chama de Leopold. Leopold conhecia muitos deles pelo nome e vestes.

Contudo, o seu olhar fixou-se num que se encontrava ao centro, junto ao Guerreiro e à Mulher.

Rhun Korza.

Assim que ele se render a mim, iremos purgar o seu mundo, que voltará a ser um paraíso.

No entanto, a sua presa manteve-se sempre à luz do Sol, o que era extremamente frustrante para Legião. Sem outra opção, seguiu-os pelas ruas estreitas de Veneza, mantendo-se nas sombras. Através das portas dos locais por onde passava, ouvia o bater dos corações daqueles que seguiam as suas tristes vidas humanas — mas um coração prendeu a sua atenção.

O Guerreiro já devia estar morto. Legião lembrava-se de ter possuído o strigoi que atacara o homem: o trespassar da lâmina na sua barriga macia, o sangue quente a escorrer-lhe profusamente entre as mãos frias.

Mas o coração do Guerreiro ainda batia.

Agora mais próximo, Legião reconheceu algo diferente no ritmo dele, como se o som de uma enorme corneta ecoasse por detrás daqueles batimentos constantes.

Era um mistério, mas um mistério que teria de esperar.

Os outros chegaram ao seu destino, apressando-se a percorrer os últimos metros sob aquele sol impiedoso.

Não tenho mais tempo.

Os outros entraram rapidamente num edifício que cheirava a óleo, tal como grande parte deste mundo. Uma máquina com pás repousava sobre o telhado. Leopold conhecia aquele aparelho.

... um helicóptero, para voar como uma abelha...

Um vestígio de espanto invadiu Legião ao ver o domínio destes mortais sobre o seu mundo limitado. O Homem conquistara muito ao longo dos séculos em que Legião estivera aprisionado.

Até os céus.

Sabendo isso, Legião sentiu dificuldade em perceber como iria continuar a sua caçada. Em breve, o helicóptero voaria em direção ao sol de um novo dia, levando consigo o trio. Tinha de descobrir para onde iam.

As pás do helicóptero já tinham começado a girar.

Do edifício em baixo saiu um grupo mais pequeno de sanguinistas. Era a escolta que guardara a passagem do trio pela cidade, preparando-se para regressar às suas tarefas sagradas. A maior parte deles regressou para o local de onde viera, de volta à basílica, mas uma figura separou-se e seguiu noutra direção.

O seu caminho levou-a ao longo do canal, cujo banco mais próximo ainda se encontrava mergulhado numa escuridão profunda.

Legião percorreu rapidamente trechos imersos em escuridão para seguir o rasto dela.

Enquanto corria, ouvia a cidade, os seus gritos e risos, o roncar dos seus motores, o martelar das suas construções. Ouvia pouco do mundo natural aqui. Não ouvia o cantar dos pássaros, o vento a passar por entre as folhas. A humanidade apoderara-se desta ilha — bem como da maior parte deste mundo moderno — e subjugara-a às suas necessidades, destruindo os jardins silvestres, matando as criaturas que lá viviam em harmonia.

Enquanto Deus tolera a ruína da sua criação, eu não o farei.

Com esse objetivo em mente, apertou o cerco à medida que o seu alvo continuava a caminhar pelo canal, alheio ao predador que se aproximava por trás.

Extraiu o nome de Leopold e disse-o em voz alta.

— Irmã Abigail...

A sanguinista virou-se para ele. O cabelo dela era cinzento como uma pedra, apartado de um rosto irascível. Era evidente que estava irritada, e a sua raiva fez com que reagisse de forma demasiado lenta. À medida que o terror lhe arregalava os olhos, refletindo o semblante sombrio dele, Legião atacou-a.

Ele atirou-se a ela e tocou-lhe na face, gravando a sua marca na pele dela.

Ela caiu de imediato. Ele amparou-a e envolveu-a nos seus braços. Enquanto a segurava, percorreu-lhe as memórias como quem folheia as páginas de um livro.

... a caminhar pelas ruas molhadas de Londres, segurando a mão de alguém à altura da sua cabeça. Mãe...

... de pé, diante de uma simples laje branca. Pai...

... pessoas felizes a dançar nas ruas. A Grande Guerra terminou, mas perderam-se tantas vidas. Tantos campos bombardeados e transformados em faixas de morte...

... pedras gigantescas a caírem do céu. Bombas. Outra guerra, ainda maior que a anterior. Armas suficientemente poderosas para aniquilar tudo o que foi dado ao Homem...

... um homem com olhos da cor das nuvens de trovoada e pele fria. Ele tira-lhe o sangue e oferece-lhe o seu em troca...

... um campo de batalha de lama. Olhos castanhos, oblíquos. Bombas a cair, destruindo da mesma forma o bom e o mau. Outra guerra, Coreia, e ela caça com o homem dos olhos da cor da tempestade...

... uma escolha oferecida por uma mulher que usa um crucifixo. Arrepende-te ou morre. Vinho a queimar-lhe os lábios...

Legião absorveu a vida da mulher, assimilando-a toda, mas o seu passado tinha pouco interesse para ele. Ignorou aquelas memórias e procurou as mais recentes.

... surge o rosto de uma mulher. Tem caracóis pretos, olhos cinzentos como a prata. É linda e a forma fria de Abigail odeia-a...

Legião extrai o seu nome.

Condessa Elizabeth Bathory.

Ela não tinha qualquer utilidade para Legião. A perder a paciência, concentrou-se antes num único propósito, canalizando-o para a mulher que tinha nos braços.

Para onde é que eles vão?

Os lábios de Abigail mexeram-se, já muito próximos do ouvido de Legião.

— Vão para Praga.

Legião estremeceu ao ouvir aquele nome, um lugar ligado à sua própria história, onde fora capturado pela primeira vez. Parecia que, por mais que perseguisse o trio, mais eles se acercavam do seu passado.

Legião expressou a sua intenção com uma única palavra.

Porquê?

Palavras sussurradas chegaram-lhe ao ouvido.

— Eles procuram os diários de John Dee.

Naquele momento, as suas próprias memórias inundaram-no.

... O homem com a barba branca como leite e olhos escuros e vivos...

... aqueles olhos sorriem para mim do outro lado da chama verde. Ele é o meu captor...

... Eu ardo de dor e ódio...

Empurrou Abigail para longe, segurando-a à distância de um braço, a sua marca gravada na face dela. Agora sabia para onde tinha de ir.

Para Praga.

Já tinha escravos nas proximidades e ia reuni-los e enviá-los para aquela velha cidade, mas pretendia ir lá pessoalmente. Abigail conseguia deslocar-se à luz do dia e podia ajudá-lo a fazer o mesmo.

Naquela cidade, vingaria o seu passado, protegeria o seu futuro... e destruiria a esperança de toda a humanidade.


TERCEIRA PARTE

A iniquidade está ardendo como um fogo que devora os abrolhos e os espinhos: abrasa a espessura da floresta, subindo ao alto turbilhões de fumo.

— ISAÍAS, 9: 17


CAPÍTULO 16

18 de março, 14h40 CET
A sobrevoar a República Checa

Sentada na parte de trás do helicóptero, Elizabeth apertava o seu arnês de segurança com ambas as mãos. Rios, árvores e cidades passavam por baixo da pequena aeronave a uma velocidade estonteante. A janela do seu lado revelava um mundo de brincar, e ela era a criança que olhava de cima para ele, pronta para brincar.

No interior do seu sangue, o vinho ardente empurrava as forças obscuras. Ainda assim, Elizabeth sentia-se completa novamente, sentia-se bem pela primeira vez em muitos meses.

Isto é quem eu sou, quem devo ser.

Talvez até pudesse vir a perdoar Rhun por tudo o que ele a fizera passar, porque ele lhe mostrara o caminho até aqui, conduzira-a a este momento.

Durante o voo de Veneza, Rhun lançara-lhe olhares demorados, como se estivesse à espera de que ela desaparecesse a qualquer momento. Do outro lado da cabina, Erin e Jordan tinham adormecido rapidamente, enquanto Sophia e Christian se encontravam sentados no cockpit a pilotar a aeronave por infindáveis rios de ar.

Esta era uma altura maravilhosa para se estar vivo.

E eu vou apreciar tudo.

Elizabeth observou as terras que se estendiam à frente, sabendo que em breve estariam em Praga. Perguntava-se se iria reconhecer a cidade ou se tudo seria desconhecido para ela, como grande parte de Roma fora. Na verdade, não queria saber. Iria aprender e adaptar-se, fluir por entre as mudanças vindouras por toda a eternidade.

Mas não sozinha.

Imaginou o pequeno rosto de Tommy. No passado, ele ensinara-lhe tanto sobre estes tempos modernos. Por sua vez, ela revelara-lhe as maravilhas da noite, dos prazeres do sangue, do passar dos anos que nunca mais os afetaria.

Ela sorriu.

Quem precisa de sol com um futuro tão brilhante pela frente?

O rádio fez um ruído nos auscultadores que ela tinha postos. A voz de Christian acordou os outros, fazendo com que Rhun se endireitasse.

— Estamos a chegar a Praga.

Rhun reparou no sorriso que ainda se encontrava estampado no rosto de Elizabeth e sorriu por sua vez.

— Pareces estar bem — disse Rhun.

— E estou bem... tão bem.

Os olhos escuros de Rhun eram alegres e bondosos. Iria sofrer quando ela abandonasse a ordem. Ela ficara surpreendida ao descobrir o quanto esse pensamento a incomodava.

Elizabeth voltou a olhar pela janela. O helicóptero deslizava sobre estruturas de vidro modernas e edifícios feios, mas, ao longe, ela reconheceu uma parte mais antiga da cidade com telhados vermelhos e ruas estreitas e sinuosas.

À medida que o helicóptero seguia o fluir do amplo rio Moldava, ela reconheceu a ponte de tijolo que o atravessava, estendendo-se sobre as águas numa sucessão de arcos majestosos. Fico feliz por nem tudo ter mudado. Praga parecia ainda manter muitas das suas torres e marcos históricos.

— Aquela é a Ponte Carlos — disse Erin, reparando na atenção de Elizabeth.

Elizabeth escondeu um sorriso irónico. Fora em tempo chamada simplesmente Ponte de Pedra. Observou as pessoas a percorrerem a sua extensão. No seu tempo, cavalos e carruagens passavam esta mesma ponte.

Portanto, algumas coisas mudaram.

À medida que o helicóptero se dirigia para o coração da cidade, Elizabeth observou a paisagem, procurando ruas e edifícios que conhecera no passado. Reconheceu as agulhas gémeas da Igreja de Nossa Senhora de Týn, junto à praça principal da cidade. A torre da câmara municipal ainda suportava a sumptuosidade do Orloj, o famoso relógio astronómico da cidade.

Erin seguiu o olhar de Elizabeth.

— É uma maravilha, aquele relógio medieval. Diz-se que os membros do Conselho de Praga mandaram cegar o relojoeiro que o fez, para que nunca pudesse construir outro.

Elizabeth anuiu com a cabeça.

— Com um atiçador de ferro quente.

— Que agressivos! — exclamou Jordan. — Não é lá um prémio muito bom por ter terminado o trabalho.

— Os tempos eram outros — disse Elizabeth. — Mas também se diz que o relojoeiro se vingou, que rastejou para dentro da torre e destruiu o mecanismo delicado com um mero toque... e depois morreu nessa mesma torre. O relógio permaneceu avariado durante cem anos.

Elizabeth olhava fixamente para o mostrador requintado do relógio. Era bom que parte do passado se mantivesse preservado e apreciado. Embora o relojoeiro tivesse morrido, a sua obra-prima sobrevivera ao passar dos anos.

Tal como eu sobreviverei.

Christian comunicou com eles através do rádio.

— Vamos aterrar dentro de alguns minutos.

O telemóvel de Elizabeth vibrou no fundo do seu bolso. Cobriu-o com a palma da mão, na esperança de que Rhun não o tivesse ouvido com o rugido do motor e o ruído abafado dos auscultadores. Tinha de ser Tommy. Mas porque estaria a telefonar? Temendo o pior, mexeu-se de forma impaciente no seu lugar, desejando poder falar com o rapaz. Mas, para o fazer, precisava de um momento sozinha.

Quando a vibração do telemóvel parou, juntou as mãos, apertando-as com força, desejando que o avião aterrasse. Felizmente, não levou muito tempo. Tal como Christian prometera, não demorou muito até estarem em terra firme. Depois de alguns momentos confusos, Elizabeth deu por si fora da aeronave, seguindo os outros por um pavimento duro em direção a um edifício comprido e baixo.

O ar era mais frio do que em Veneza, mas ainda assim queimava. Ergueu a palma da mão aberta na direção do sol do meio-dia. Enquanto strigoi, a sua pele devia empolar e queimar até ficar reduzida a cinzas, mas parecia que o sangue sagrado a protegia. Mas não completamente. A luz do Sol ainda a queimava, visto que remanescia escuridão suficiente no seu interior. Tirou a mão da frente e inclinou o rosto para baixo, resguardando-se nas sombras da touca do seu hábito.

Rhun reparou na sua reação.

— Vais habituar-te com o tempo — disse ele.

Elizabeth franziu o sobrolho. Até o dia tinha as suas limitações para os sanguinistas. Era uma vida de constante adaptação e dor. Ela desejava com todas as suas forças livrar-se de tais restrições e limitações... ser verdadeiramente livre outra vez.

Mas ainda não.

Ela seguiu os outros até ao terminal do aeroporto. Olhou com um ar reprovador para a estrutura feia, impessoal, cinzenta e branca. Nesta época moderna pareciam ter medo da cor.

— Dão-me um momento para lavar o pó das mãos e do rosto? — perguntou Elizabeth a Rhun, procurando arranjar algum tempo a sós para telefonar a Tommy. — A viagem desorientou-me.

— Eu levo-a — ofereceu Sophia. A mulher franzina falou demasiado depressa, evidenciando a sua desconfiança.

— Obrigada, irmã — disse Elizabeth.

Sophia conduziu-a por um corredor lateral em direção a uma casa de banho com muitos cubículos e entrou atrás dela. Elizabeth dirigiu-se ao lavatório e lavou as mãos na água quente. Sophia juntou-se a ela, salpicando água para o rosto.

Elizabeth aproveitou o momento para estudar a mulher de pele escura, imaginando como ela teria sido antes de se tornar uma sanguinista. Teria uma família que deixara para trás com o passar dos anos? Que atrocidades cometera enquanto strigoi antes de beber o vinho sagrado?

No entanto, o rosto da mulher continuava a ser uma máscara estoica, escondendo toda e qualquer dor que pudesse assombrar o seu passado. E Elizabeth sabia que havia algo.

Todos nós somos assombrados à nossa própria maneira.

Imaginou o seu filho, Paul, lembrando-se do seu riso alegre.

Parecia que a passagem pela vida não era mais do que uma acumulação de fantasmas. Quanto mais se vivia, mais sombras nos assombravam. Olhou fixamente para a sua imagem no espelho, surpreendida com uma única lágrima que lhe corria pela face.

Em vez de a limpar, usou-a.

— Posso ficar um momento sozinha? — perguntou Elizabeth, virando-se para Sophia.

Sophia parecia prestes a recusar, mas o seu rosto suavizou-se quando viu a lágrima. Ainda assim, olhou em volta, claramente à procura de uma janela ou de outra saída. Quando não encontrou nenhuma, tocou no braço de Elizabeth e retirou-se.

— Espero por si lá fora.

Assim que Sophia saiu, Elizabeth retirou o telemóvel do bolso. Deixou a água a correr para disfarçar o som da sua voz e marcou rapidamente o número de Tommy.

Ele atendeu de imediato.

— Elizabeth, obrigado por me telefonares de volta. Apanhaste-me na altura certa.

Ela sentiu-se aliviada por ele parecer tão calmo.

— Está tudo bem?

— Bem o suficiente, penso eu — respondeu ele. — Mas estou tão entusiasmado por te ver em breve.

Elizabeth franziu o sobrolho, sem perceber. O rapaz não tinha como saber que ela tencionava ir ter com ele assim que conseguisse fugir dos outros.

— O que queres dizer com isso?

— Um padre passou por cá. Vai levar-me para Roma.

Elizabeth ficou tensa, a sua voz endureceu.

— Que padre? — A sua cabeça estava a mil, com dificuldade em compreender esta novidade. Era inesperado e parecia-lhe errado, como uma armadilha. — Tommy, não...

— Espera — disse Tommy, interrompendo-a. Ela ouviu-o responder a alguém, depois voltou a falar. — A minha tia diz que eu tenho de desligar. A minha boleia chegou. Mas vejo-te amanhã.

A voz dele parecia tão entusiasmada, porém, Elizabeth sentiu-se inundada por um terror profundo.

— Não vás com esse padre! — avisou ela, a sua voz ríspida.

Mas a chamada caiu. Ela voltou a marcar o número dele, enquanto andava de um lado para o outro da casa de banho. O telefone tocava e tocava, mas ele não atendia. Ela cerrou o punho em volta do telemóvel, imaginando as razões por que o teriam levado.

Talvez tivessem levado Tommy para um lugar seguro por causa de todos aqueles ataques strigoi.

Ela pôs esta esperança de lado, sabendo que a Igreja já não tinha qualquer interesse no rapaz.

Então, por que razão o levaram? Porque será que Tommy é novamente importante para eles?

Foi então que soube.

Por minha causa.

A Igreja sabia que Tommy era importante para ela. Alguém estava a controlar o rapaz e tencionava usá-lo como um peão, uma forma de colocar uma trela à volta do pescoço dela. Apenas um padre usaria um rapaz tão inocente para a chantagear.

Mesmo preso, aquele vilão ainda devia conseguir exercer o seu poder.

Cardeal Bernard.

Elizabeth bateu com o punho cerrado no espelho. Este estilhaçou-se, formando pequenos anéis a partir da zona do impacto.

Elizabeth olhou de relance para a porta, sabendo que Sophia a esperava do outro lado da porta. Fora um ato precipitado, provocado pela raiva. Contudo, se queria salvar Tommy, tinha de ser mais esperta. Antes que Sophia entrasse para averiguar, Elizabeth fechou a torneira e dirigiu-se apressadamente para a entrada.

Quando saiu, Sophia olhou para ela, desconfiada.

Elizabeth endireitou a touca e passou a mão pelo rosário. Uma ligeira dor percorreu-lhe as pontas dos dedos por causa da prata. Usou a dor para se recompor.

— Eu... eu estou pronta para continuar — disse ela.

Voltaram para junto dos outros.

Erin tinha um mapa aberto no seu telemóvel, outra maravilha deste mundo moderno.

— Não estamos muito longe do antigo palácio. A maior parte dos laboratórios de alquimia fica situada na sua proximidade — disse Erin.

— O laboratório que nós procuramos não fica aí. Temos de ir para o centro da cidade, junto ao Orloj — disse Elizabeth, com o intuito de esperar pela sua oportunidade.

Vou esperar e observar.

O seu tempo chegaria.

Tal como o de Bernard.

15h10

Erin puxou a mochila mais para cima à medida que se dirigiam para a saída do terminal, muito consciente de que trazia o Evangelho de Sangue ao ombro. Sentia-se preocupada. Talvez tivesse sido melhor deixar o livro em Roma, onde poderia ser guardado em segurança, mas, visto que o livro era sua responsabilidade, recusava-se a perdê-lo de vista.

Sentia que o livro era, agora, parte de si.

À frente, Rhun caminhava ao lado da condessa, elegante como uma pantera com as suas calças de ganga escuras e casaco comprido preto. Elizabeth, por sua vez, deslizava graciosamente. Os dois faziam um casal atraente, e uma pontada de ciúme atingiu Erin com uma força inesperada. Apanhou-a de surpresa. Quereria ela ser a mulher ao lado de Rhun, desejaria mesmo que tal fosse possível?

Olhou para cima, para Jordan. Os seus olhos azuis examinavam a sala, sempre à procura de perigo, mas tinha os ombros descontraídos. Barba por fazer dourada cobria-lhe o maxilar quadrado. Lembrava-se do arranhar daqueles pelos na sua barriga, nos seus seios.

Jordan apanhou-a a olhar para ele, e Erin corou, desviando o olhar para o chão.

Quando saíram para o exterior, para a tarde fresca, Elizabeth ajeitou a sua touca para lhe cobrir melhor o rosto. O casaco de Rhun tinha capuz, mas ele não se preocupou em puxá-lo para cima.

Erin aproximou-se de Christian.

— Porque é que a luz do Sol parece incomodar mais a Elizabeth?

— Ela é nova na ordem — explicou Christian. — Não sei se é o passar do tempo ou os muitos anos de penitência, mas sei que, no caso dos sanguinistas, quanto mais velhos são, mais habituados estão à luz.

— Como podes não saber como tudo funciona exatamente? — perguntou Erin, surpreendida com a falta de curiosidade do sanguinista em relação à sua própria natureza. — Não podes deixar o cérebro à porta. Qual é o problema de descobrir o que te estão a fazer?

Sophia respondeu do outro lado de Christian.

— «Confia no Senhor com todo o teu coração e não no teu próprio entendimento» — parafraseou ela num tom ríspido. — Isso não é para ser questionado.

— Ser sanguinista não é um processo científico de descoberta — acrescentou Christian. — A nossa jornada assenta na fé. «A fé é a substância das coisas por que esperamos, a prova das coisas que não vemos.» E não o ato de provar tais coisas.

Jordan revirou os olhos.

— Talvez se vocês tivessem feito mais perguntas antes, não estivéssemos metidos nesta alhada agora.

Ninguém discordou, e Christian apontou para a frente, para um pequeno café com uma esplanada.

— E que tal pararmos para reabastecer? Temos um longo dia pela frente.

Apenas Erin e Jordan precisavam de reabastecer, mas Christian tinha razão. Um pouco de cafeína seria bom... e muita seria ainda melhor.

Christian entrou para fazer o pedido, enquanto Jordan juntava duas pequenas mesas redondas por baixo de um chapéu de sol. Christian regressou pouco tempo depois com um tabuleiro, com dois cafés servidos em canecas de cerâmica e uma pilha de folhados. Antes de pousar o tabuleiro, inclinou-se para a frente e inalou o aroma fumegante das duas chávenas.

Suspirou em sinal de apreço.

Erin sorriu, mas do canto do olho viu Sophia franzir os lábios com desdém. Os sanguinistas consideravam qualquer sinal de humanidade uma fraqueza. Mas Erin achava os resquícios de humanidade de Christian cativantes, fazendo-a confiar mais nele e não menos.

Erin segurou a caneca entre as palmas das mãos, deixando-a aquecê-la, acalmá-la. Olhou para os outros.

— Qual é o plano a partir daqui? Parece que andamos a tatear no escuro como um homem cego. Está na altura de mudarmos isso. Está na altura de começarmos a fazer as perguntas difíceis. Como entender a natureza dos sanguinistas e strigoi. Isso parece ser fundamental para a nossa demanda.

Jordan acenou com a cabeça, olhando diretamente para Christian e Sophia.

— Quanto menos entendermos, mais probabilidade existe de falharmos — disse Jordan.

— Concordo — disse Elizabeth. — A ignorância não nos serviu no passado e não servirá agora. Há coisas que a Igreja devia saber. Tiveram dois mil anos para estudar esses assuntos, no entanto, não sabem responder às perguntas mais simples. Como: o que dá vida a um strigoi?

— Ou outra pergunta: como é que se muda quando se faz os votos de sanguinista? — acrescentou Erin. — Como é que o vinho vos sustém?

As perguntas de Erin deram origem a uma discussão breve, mas acalorada. Rhun e Sophia escolheram o lado da fé e de Deus. Erin, Jordan e Elizabeth argumentaram a favor do método científico e da razão. Christian assumiu de forma relutante o papel de árbitro, tentando encontrar um consenso.

No final, acabaram todos ainda mais em desacordo do que no início.

Erin empurrou para longe a sua caneca vazia. Tudo o que sobrava no seu prato eram migalhas. Jordan dera apenas uma dentada no seu folhado de maçã, mas parecia que não queria mais — se não do pastel e do café, pelo menos da conversa.

— Devíamos ir — disse ele, levantando-se.

Sophia olhou para o relógio e disse:

— O Jordan tem razão. Já desperdiçámos tempo suficiente.

Erin reprimiu uma resposta ríspida, sabendo que de nada adiantava.

Surpreendentemente, Elizabeth foi mais conciliadora.

— Talvez venhamos a descobrir as respostas a estas perguntas no laboratório de John Dee.

Erin levantou-se.

É bom que as encontremos... ou o mundo estará condenado.


CAPÍTULO 17

18 de março, 15h40 CET
Praga, República Checa

Rhun encontrava-se de pé, ao lado de Elizabeth, no meio da velha praça da cidade de Praga. As nuvens tinham coberto o céu e caía uma chuva miudinha, salpicando as pedras da calçada. Elizabeth parara e olhava para cima, para o mostrador dourado do relógio astronómico, o famoso Orloj. Em seguida, desviou a sua atenção para os edifícios à volta.

— Então, onde é que fica exatamente o laboratório desse tipo? — perguntou Jordan.

— Só preciso de me orientar — disse Elizabeth. — Muito mudou, mas, felizmente para nós, muito não mudou nada.

Rhun estudava os mostradores sobrepostos e os símbolos. Já eram quase quatro da tarde, o que lhes indicava que tinham mais duas horas e meia de luz.

Erin encolhia-se de frio no seu leve casaco azul.

— Eu pensava que o laboratório de John Dee ficava algures na Viela dos Alquimistas, junto ao castelo de Praga.

— Mas estás enganada — disse Elizabeth, num tom irritantemente altivo. — Muitos alquimistas tinham as suas oficinas nessa viela, mas o trabalho mais secreto era feito não muito longe daqui.

— Então, onde era o laboratório de Dee? — perguntou Sophia.

Elizabeth afastou-se lentamente da torre do relógio em direção à praça. Virou-se, fazendo um círculo lento, como uma bússola a tentar encontrar o Norte. Por fim, apontou para uma rua estreita que saía da praça. Edifícios altos de apartamentos estendiam-se de ambos os lados da rua.

— A menos que tenha sido destruído, o laboratório dele é por ali.

Erin franziu o sobrolho, inquieta. Rhun compreendia a sua preocupação. Se já não existisse, não só teriam feito esta viagem para nada, como também estariam perdidos, sem rumo a seguir.

Elizabeth pôs-se a caminho, obrigando os restantes a seguirem-na. Sophia apressou-se para se manter ao lado dela, enquanto Rhun ficava para trás com os outros.

Erin olhava em redor, claramente absorvendo a história do local, mas a sua mente estava mais concentrada num acontecimento recente.

— Em 2002 — começou ela, agitando o braço —, Praga foi fortemente atingida por cheias. O rio Moldava galgou as margens e inundou a capital. Quando as águas recuaram, partes das ruas da cidade, incluindo esta, se não me engano, colapsaram para dentro de túneis, revelando salas há muito perdidas, oficinas... até mesmo laboratórios de alquimia. — Erin olhou para eles, depois para as pedras húmidas aos seus pés. — Ao longo dos anos, é provável que um milhão de pessoas tenha percorrido esses túneis sem saber o que lá existia. Agitou a comunidade arqueológica na altura.

À frente deles, Elizabeth murmurou uma única sílaba ríspida que Rhun reconheceu como sendo um palavrão em húngaro. Todos se apressaram a juntar-se a ela. Ela parara junto a um sinal de madeira que se encontrava pendurado sobre a rua. Ao lado dele, estavam duas portas azul-escuras abertas. Elizabeth franziu o sobrolho. Parecia prestes a arrancar o sinal das suas dobradiças de metal.

Numa das portas, um círculo prateado brilhante rodeava um símbolo de dois frascos ligados entre si por tubos. As palavras Speculum Alchemiae Muzeum Prague encontravam-se escritas à sua volta.

— É um museu! — exclamou Elizabeth. — Esta é a forma como a vossa era moderna guarda os seus segredos?

— Parece que sim — respondeu Jordan.

Rhun aproximou-se. Frascos em forma de pera pendiam de uma prateleira de ferro forjado que se encontrava presa às portas. Um escudo dourado à frente legendava cada um dos seus conteúdos: Elixir de Memória, Elixir de Saúde e Elixir da Eterna Juventude.

Rhun lembrava-se de poções requintadas semelhantes dos tempos da sua infância.

Christian pôs as mãos nas ancas, olhando com um ar de dúvida para o museu.

— Os papéis de John Dee estão aqui? — perguntou ele.

— Eles estavam aqui — corrigiu Elizabeth. — Isto costumava ser uma casa com um aspeto perfeitamente normal. Tinha um salão grande à frente e uma sala de estar nas traseiras, onde os alquimistas recebiam convidados e falavam sobre os seus trabalhos. Incluindo eruditos como Tycho Brahe e o rabi Loew. Homens velhos com barbas brancas debruçados sobre cadinhos e alambiques. E, claro está, também charlatães, como aquele maldito Edward Kelly.

As gotas de chuva caíam sobre os olhos de Rhun, e ele limpava-as com as costas da mão.

— Estavam a trabalhar em quê? — perguntou ele.

Elizabeth sacudiu as gotas de chuva da sua touca e disse:

— Em tudo. Procuravam muitas coisas que acabavam por se revelar perfeitas perdas de tempo ou demasiado vagas, como uma pedra filosofal capaz de transformar metais comuns em ouro, mas também descobriram muitas coisas verdadeiramente importantes. — Elizabeth bateu com o seu pequeno pé nas pedras do chão. — Descobertas que, mais tarde, se perderam. Coisas que a vossa mente moderna jamais poderá compreender. E agora vocês transformaram tudo isto num programa de entretenimento para crianças.

— Bem, já que viemos até aqui — disse Christian, passando por ela —, mais vale dar uma olhadela.

Todos o seguiram, arrastando Elizabeth com eles apesar dos seus protestos.

Duas mulheres atrás de um balcão deram-lhes as boas-vindas. A mais velha, morena com o cabelo salpicado de branco, brincava com o colar que estava a enfiar, enquanto a mais nova, provavelmente sua filha, limpava o pó de uma vitrina de vidro com um espanador de penas comprido.

Rhun examinou a sala. Baixou-se para evitar as ervas secas que pendiam de um teto abobadado. A toda a volta, estantes de madeira cobriam as paredes, repletas de todo o tipo de livros antigos e objetos de vidro e cerâmica. Reparou numa porta grande de madeira à direita do balcão. Encontrava-se fechada.

Elizabeth passou por ele e dirigiu-se diretamente para a receção, confrontando a mais velha das duas mulheres.

— É possível ver o salão? — exigiu ela. — E talvez as salas que se encontram por baixo?

— É claro que sim, irmã. — A mulher espreitou por cima das lentes em forma de meia-lua dos seus óculos, estudando o grupo de freiras e padres de colarinho branco com alguma curiosidade. — Nós fazemos visitas guiadas.

Elizabeth parecia horrorizada, mas Christian avançou.

— Gostaria de comprar seis bilhetes — disse ele, rapidamente. — Quando é a próxima visita guiada?

— Agora mesmo — respondeu ela.

A mulher mais velha recebeu os euros que Christian lhe entregou e deu a cada um deles um bilhete retangular.

A mulher mais nova sorriu para Jordan. Tinha olhos castanhos e bondosos e parecia ter cerca de vinte e cinco anos. O seu longo cabelo escuro estava apanhado num coque e preso com uma fita roxa. A cor combinava com o da sua camisa e da saia justa que ficava bem acima dos joelhos.

Elizabeth meteu-se entre ela e Rhun, fitando a roupa justa da mulher com um ar reprovador.

— O meu nome é Tereza — disse a jovem, tentando ao máximo ignorar o olhar intenso e contundente de Elizabeth. — Eu serei a vossa guia pelos laboratórios dos alquimistas. Façam o favor de me seguir.

Com uma chave pesada, a mulher destrancou a porta. Quando a abriu, uma lufada de ar húmido e bolorento atingiu-os. Rhun sentiu um formigueiro pelo pescoço quando captou o cheiro de outra coisa. Lembrou-se dos dias passados no deserto egípcio, reconhecendo aqui a mesma malevolência que perseguira nas areias.

Olhou em redor, mas não encontrou qualquer sinal de perigo. Os outros sanguinistas não expressaram tais receios.

Ainda assim, Rhun aproximou-se de Erin.

16h24

Com a jovem a guiá-los, Erin seguiu Rhun pela porta para um corredor escuro. Jordan seguia atrás deles, espirrando de forma ruidosa por causa do pó. Ou talvez tivesse alergia ao bolor. Ainda assim, Rhun saltou com o som repentino, empurrando Erin contra a parede com um braço que mais parecia uma barra de aço.

Jordan reparou no gesto protetor.

— Prepara-te se eu arrotar — disse a Rhun. — Isso é muito mais perigoso.

Continuaram em frente. Erin observou as pinturas a óleo que cobriam as paredes de ambos os lados, provavelmente reproduções.

À frente, Tereza agitou um braço, enquanto andava de costas.

— Estas pinturas são...

Elizabeth interrompeu-a, apontando com o braço para as várias pinturas.

— Imperador Rodolfo II, Tycho Brahe, o rabi Loew e o médico particular de Rodolfo... cujo nome não me recordo de momento. Não estão muito parecidos.

Em seguida, passou pela guia e entrou num dos quartos do corredor, como se soubesse para onde ia.

— Irmã! Espere! — Tereza correu atrás de Elizabeth e todos os outros as seguiram.

Elizabeth parou no meio de uma sala de tamanho médio, com as mãos juntas à frente, como se estivesse a rezar, mas Erin não acreditava que fosse esse o caso. O seu olhar altivo percorreu a sala.

Por cima das suas cabeças, um candelabro redondo com duas máscaras com chifres lançava uma luz cor de laranja sobre um tapete de pele de urso que se encontrava estendido em frente de uma lareira de mármore. A atenção de Erin focou-se numa vitrina antiga, cheia de livros velhos, crânios e espécimes dentro de frascos de vidro.

Intrigada, aproximou-se.

Era assim que devia ser há quatrocentos anos.

Elizabeth aproximou-se da secretária com tampo de granito, que se encontrava encostada a uma das paredes, e depois de uma janela por detrás desta. Parou e examinou a sala.

— Onde está a campânula?

— A campânula? — Tereza parecia nervosa.

— Havia uma campânula gigantesca de vidro em frente desta janela. Suficientemente grande para caber uma pessoa no seu interior. — Elizabeth assentou um joelho no chão e examinou os ladrilho debaixo dos seus pés. — Deixou marcas no chão. John Dee guardava o seu aparelho aqui e não no laboratório principal lá em baixo, porque precisava da luz do Sol para as suas experiências.

Erin juntou-se a ela, passando os dedos pelo chão.

— Estes ladrilhos são novos?

Tereza anuiu com a cabeça.

— Penso que são.

Elizabeth levantou-se com um suspiro e limpou as mãos ao seu hábito húmido.

— Para onde foi levada a campânula?

— Não sei do que está a falar — disse Tereza. — Pelo que sei, nunca existiu uma campânula.

Tereza afastou-se ligeiramente, murmurando algo entredentes. Parecia um expletivo checo. Elizabeth respondeu-lhe de forma abrupta, na mesma língua, fazendo a guia engolir em seco.

Jordan pôs-se ao lado de Tereza e tocou-lhe no braço de forma reconfortante.

— E que tal se deixássemos esta jovem contar-nos tudo o que sabe. Afinal, pagámos uma visita completa.

Parecia que Elizabeth ia dizer algo, mas em vez disso juntou as mãos atrás das costas. Olhou de relance para o local onde esperara encontrar a campânula com uma expressão calculista no rosto.

Tereza respirou fundo, depois tentou retomar o seu discurso.

— Es... esta sala era onde os alquimistas recebiam os seus convidados, mas não era uma simples sala de convívio. Reparem que cada canto da sala tem um símbolo alquímico: Terra, Ar, Fogo e Água.

Erin virou-se lentamente para examinar cada símbolo. Elizabeth dirigiu-se para a lareira, de costas para a guia. Inclinou-se sobre a lareira, como se estivesse prestes a vomitar.

Tereza continuou, de forma mais ousada, aparentemente contente por já não ter a freira irritável em cima dela.

— A energia destas forças era canalizada através do candelabro no meio da sala. Essas energias eram utilizadas para todo o tipo de fins ocultos e alquímicos. Se vierem até esta vitrina, posso mostrar-vos...

Erin afastou-se, esgueirando-se para junto de Elizabeth que entretanto se virara de costas para a lareira.

— Que estava a fazer? — perguntou ela, baixinho.

Elizabeth manteve o tom de voz baixo.

— Dee tinha um compartimento secreto no interior daquela lareira de mármore. O diamante verde esteve, em tempos, escondido ali, quando a pedra ainda se encontrava intacta. Fui verificar o compartimento.

— Encontrou alguma coisa?

Elizabeth abriu a mão e revelou um pedaço de papel.

— Apenas isto.

Erin reparou numa fila de símbolos invulgares escritos no papel.

— É um nome escrito em enoquiano — explicou Elizabeth.

Erin olhou fixamente para as estranhas letras. Sabia que John Dee criara a sua própria língua, mas nunca a aprendera.

— Que nome?

— Belmagel.

Erin franziu o sobrolho, não reconhecendo o nome.

— Belmagel era um anjo com quem Edward Kelly supostamente falava durante as suas sessões com John Dee de adivinhação com a bola de cristal. Dee acabou por ter as suas dúvidas e os dois homens entraram em desacordo, mas o imperador Rodolfo era um admirador acérrimo e obstinado de Kelly.

— Então, quem acha que deixou esse pedaço de papel?

— Apenas Rodolfo, Dee e eu sabíamos da existência daquele compartimento. Rodolfo era muito reservado em relação a isso. Até mandou matar quem o concebeu para garantir que ele nunca revelaria a sua existência. Se Dee tivesse deixado algo ali, Rodolfo tê-lo-ia levado depois da morte do homem, por isso creio que esta nota foi deixada pelo próprio Rodolfo.

— Que mais sabe sobre esse Belmagel? — inquiriu Erin, apontando com a cabeça para o papel.

— Kelly comunicava com dois anjos. Sudsamma era um anjo bom, um ser de luz. Belmagel era um anjo negro, nascido do mal.

Talvez isto fosse uma pista. O seu grupo estava à procura do anjo mais maligno de todos: Lúcifer.

— Se Rodolfo deixou isto, é capaz de ser uma mensagem para mim — explicou Elizabeth. — Algo que só eu perceberia.

— O que estava ele a tentar dizer-lhe? — indagou Erin.

Elizabeth abanou ligeiramente a cabeça, frustrada.

— Deve ter algo que ver com aquele charlatão, Edward Kelly. Talvez isto estivesse escondido para me levar ao homem, à casa dele.

— Onde é que ele vivia?

— Ele tinha muitas casas. Quem sabe se alguma delas ainda está de pé?

Erin olhou para uma pessoa que talvez soubesse. Ergueu o braço e perguntou:

— Tereza, posso fazer uma pergunta?

A guia virou-se para ela.

— O que gostaria de saber?

— Edward Kelly era colega de John Dee. Sabe onde Kelly morava e se o lugar ainda existe?

Os olhos de Tereza arregalaram-se, obviamente contente por ter uma resposta.

— Claro que sei. É um lugar infame. Chama-se Faustus Dum ou a Casa de Fausto e fica na Praça Carlos, embora não esteja aberta ao público.

Erin olhou de relance para Elizabeth. A condessa acenou ligeiramente com a cabeça, mostrando que conhecia o lugar. Pela sua expressão sombria, não estava contente com a localização.

Enquanto Tereza regressava à sua palestra com os outros, Erin falou baixinho para Elizabeth.

— O que sabe sobre a Casa de Fausto?

— Era um lugar de muitas infâmias. Antes de Kelly se mudar para lá, o astrólogo do imperador Rodolfo, Jakub Krucinek, morava nessa casa com os dois filhos. Mais tarde, o mais novo matou o mais velho por causa de um tesouro que se encontrava supostamente escondido na casa. O próprio Kelly equipou-a com todo o tipo de armadilhas. Portas que se abriam sozinhas, escadas que mudavam de lugar, maçanetas que davam choques quando se lhes tocava.

Elizabeth fez um som trocista e depois continuou:

— O homem era uma fraude e um vigarista. Mas a casa... essa é genuinamente malévola. É por essa razão que foi associada à lenda de Fausto.

— O erudito que fez um pacto com o diabo?

— Há quem diga que o próprio Fausto morou ali, que foi nessa mesma casa que ele foi levado para o Inferno, sendo arrastado diretamente pelo teto.

Erin olhou para a condessa com um ar desconfiado.

Elizabeth encolheu os ombros.

— Lenda ou não, estranhas ocorrências foram associadas àquele lugar. Desaparecimentos misteriosos, explosões ruidosas durante a noite, luzes estranhas.

Erin apontou para o pedaço de papel com a escrita enoquiana.

— Poderá Rodolfo ter deixado essa mensagem secreta para si, a encaminhá-la para a Casa de Fausto? O diamante verde tinha uma ligação com um anjo negro e esse lugar também.

— Talvez...

Tereza falou mais alto, aproximando-se de uma estante:

— E agora a próxima paragem da nossa visita guiada.

A guia empurrou a estante para o lado, revelando uma série de degraus que conduziam ao andar de baixo.

Jordan exclamou em voz muito alta, parecendo uma criança entusiasmada:

— Fixe! Uma passagem secreta.

Tereza parou no patamar das escadas secretas.

— Esta passagem leva-nos ao laboratório secreto de um alquimista. Se olharem para baixo, junto ao chão, verão um anel grande de metal no interior da sala. Diz-se que o rabi Loew acorrentava o seu infame golem lá quando este se portava mal.

Erin sorriu ao pensar nisso, mas os sanguinistas fitavam o anel com ceticismo. Ao que parecia, eles acreditavam em strigoi e anjos, mas não num homem gigantesco de barro criado pelos alquimistas. Parecia que tinham de ter os seus limites.

Tereza conduziu-os pelas escadas abaixo.

Erin seguia com Elizabeth, que deu um pontapé no anel quando passou por ele.

— Que disparate — murmurou a condessa. — Dee acorrentava um lobo a esse anel, uma besta que obedecia apenas a Dee. No dia em que Dee morreu, Rodolfo teve de matar o animal para conseguir entrar na sala.

Erin descia os degraus de pedra em último. As escadas eram estreitas, por isso tinham de seguir numa fila única. Na base das escadas, estendia-se um túnel, e Tereza indicou-lhes que seguissem em frente. Contudo, Erin parou para examinar uma porta de metal que se encontrava à esquerda. Tinha uma abertura quadrangular à altura dos olhos, como a porta de uma cela de prisão. Através da abertura, conseguia ver outro túnel.

— Atrás daquela porta — explicou a guia, reparando na atenção de Erin —, encontra-se um túnel que dá para a velha praça da cidade. Descobrimos aquele túnel e mais uns quantos há alguns anos, a seguir à grande inundação. Demorou algum tempo a retirar toda a lama.

Jordan olhou de relance para Erin, lembrando-se claramente de a ouvir falar dessa inundação.

Tereza continuou:

— Na sala da fornalha em frente, descobrimos um túnel que se estende por baixo do rio até ao Castelo de Praga.

Elizabeth acenou com a cabeça.

— Rodolfo utilizava esse túnel e outros para se deslocar por baixo da cidade, de modo que ninguém soubesse onde estava.

Erin não conseguia deixar de se sentir fascinada por essas histórias, tentando imaginar aquele tempo envolto em mistérios e lendas, quando a ciência, a religião e a política se fundiam.

Continuaram pelo túnel. Jordan tinha de manter a cabeça baixa por causa da altura do teto. A passagem finalmente terminou, desembocando numa pequena sala com uma fornalha redonda de metal ao centro. A fornalha continha frascos de metal com bicos compridos e um conjunto de foles encontrava-se diante da sua abertura. Tudo estava coberto de fuligem: teto, paredes, até as lajes de pedra do chão estavam negras.

Esta devia ser a sala da fornalha que Tereza mencionara. Ao fundo, outra porta dava acesso a uma sala escura. A guia apontou na sua direção.

— Na sala ao lado, era onde os alquimistas trabalhavam na transmutação, transformando metais comuns em ouro.

Elizabeth murmurou entredentes:

— Que disparate. Quem poderia acreditar que é possível transformar metais simples em ouro?

Jordan ouviu-a, olhando para trás com um sorriso.

— Na verdade, é possível. Se bombardearmos um determinado tipo de mercúrio com neutrões. Infelizmente, o processo custa mais do que o ouro que produz. Além disso, o ouro acaba por ser radioativo e desintegra-se no período de dois dias.

Elizabeth suspirou de forma exagerada.

— Então, parece que o homem moderno ainda não desistiu das suas velhas obsessões.

— A fornalha e os frascos maiores são originais — disse Tereza, continuando a sua palestra sobre as tentativas dos alquimistas de fabricar um elixir de juventude eterna. — Encontrámos um frasquinho desse elixir selado num cofre secreto na parede desta sala. Juntamente com a sua receita.

Desta vez foi Erin que gozou:

— E podemos fazê-lo nos dias de hoje?

Tereza sorriu.

— É um processo complicado, com setenta e sete ervas, colhidas à luz da Lua, infundidas em vinho. A preparação demora um ano inteiro, mas, sim, pode ser feito. Na verdade, está atualmente a ser feito pelos monges de um mosteiro em Brno.

Até mesmo Elizabeth parecia surpreendida com esta informação.

Erin estudou a cápsula do tempo com quinhentos anos do mundo alquimista. Deambulou pela sala, examinando a fornalha e os objetos de vidro. Conseguiu ver uma pequena porta por trás da fornalha.

Deve ser aquele túnel que vai até ao castelo.

Rhun apareceu de repente ao seu lado e agarrou-lhe o braço. Ela virou-se, reparando agora que os sanguinistas estavam imóveis, a olhar para cima. Até Elizabeth tinha a cabeça erguida, o nariz a apontar para o teto.

— O que foi? — perguntou Jordan.

A mão de Jordan deslizou instintivamente para a cintura, onde costumava ter a sua pistola-metralhadora, mas por causa das leis checas não pudera passar pela alfândega com as armas.

— Sangue — sussurrou Rhun, olhando na direção do túnel que conduzia às salas no piso de cima. — Muito sangue.


CAPÍTULO 18

18 de março, 16h39 CET
Praga, República Checa

O sangue está quente na minha língua...

Legião sabia que na verdade não era a sua própria língua. O seu corpo — enraizado nas profundezas do corpo possuído de Leopold — encontrava-se estendido nas traseiras de um veículo ruidoso. As janelas eram de vidro fumado, obscurecendo o sol escaldante do meio-dia. Pressentia que o pôr do sol estava perto, mas até lá tinha de caçar de longe, espreitando por outros olhos, canalizando a sua vontade para aqueles que carregavam a sua marca.

Mais próxima, a mulher sanguinista — Abigail — controlava o veículo, este enorme e ruidoso cavalo negro que cuspia nuvens de veneno à sua passagem. Ela parecia indiferente ao sol. O vinho dos sanguinistas protegia-a da luz, a sua santidade funcionava como um escudo.

Legião estava determinado a subjugar mais como ela, a criar forças que se pudessem movimentar à luz do Sol e na escuridão, aumentando as suas fileiras para a guerra que se aproximava.

O sangue chamava-o novamente, direcionando a sua consciência de volta ao escravo que devorava a mulher velha na pequena sala, um espaço repleto de ervas secas, pó e livros. Estendeu os seus sentidos ainda mais longe, vendo por mais três pares de olhos. Mais três escravos, que se encontravam subjugados à sua vontade, percorriam sorrateiramente túneis escuros, aproximando-se da presa escondida por baixo deles.

Legião convocara estes e outros para aquela cidade a fim de destruir a antiga profecia impregnada no corpo do trio: o Guerreiro, a Mulher e o Cavaleiro.

Não lhes ia permitir qualquer descanso, qualquer refúgio seguro.

Tencionava matar os mortais, mas aquele chamado Korza...

Tu serás o meu melhor escravo, uma arma a brandir contra o Céu.

Mas primeiro Legião precisava de atrair o Cavaleiro para o exterior.

Levantou a mão, observando as espirais de escuridão a nadar-lhe na palma. Enviou uma ordem para aqueles que tinham a sua marca.

Matem-nos... mas guardem o Cavaleiro para mim.

16h50

Na sala da fornalha, Jordan puxou Erin para trás de si. Rhun, Sophia e Christian desembainharam as suas lâminas e vigiaram as escadas ao fundo que subiam para o museu.

— O que estão a fazer? — perguntou Tereza, reparando nas armas, cobrindo a garganta com a mão.

Erin pegou na outra mão da mulher e disse:

— Mantenha-se perto.

Jordan avançou e agarrou na única arma que viu: um velho atiçador de ferro que se encontrava encostado à fornalha.

Não era o mesmo que a pistola-metralhadora de que tinha saudades, mas teria de servir.

Elizabeth viu Jordan arranjar uma arma e fez o mesmo. Pegou num frasco pelo bico e partiu a base, criando um punhal de vidro.

Tereza arquejou ao ver os estragos, mas manteve-se ao lado de Erin.

— Fumo — disse Rhun junto à porta.

Jordan mudou de posição o suficiente para espreitar por cima do ombro. Das escadas ao fundo do túnel, uma vaga de escuridão fuliginosa deslizou dos degraus para o interior do túnel. O piso superior devia estar a arder.

— A minha... a minha mãe — disse Tereza. Começou a avançar naquela direção, mas Erin travou-a.

E com uma boa razão.

Daquela parede de fumo, surgiu uma figura negra. O fumo dissipou-se, revelando um homem com o cabelo rapado e um físico musculado. Segurava uma faca comprida numa mão. A sua t-shirt branca estava manchada com o tom carmesim do sangue fresco. Exibiu as suas presas, cheirando o ar, caçando-os.

Quando o fez, Jordan reparou numa marca negra de cinco dedos na sua garganta, identificando-o como strigoi escravizado, tal como o que os atacara na caverna em Cumas.

Sophia sussurrou em sinal de reconhecimento.

O strigoi baixou o olhar ao ouvir o ruído, depois lançou-se para a frente, movendo-se a uma velocidade incrível.

Rhun saltou para dentro do túnel, enfrentando a criatura. O padre segurava uma karambit de prata em cada mão, as lâminas de metal curvas assemelhavam-se a longas garras. Quando se aproximou da besta, golpeou com as lâminas — mas não encontrou nada à sua frente.

O strigoi baixou-se, depois girou, golpeando com o seu punhal. Mas, no último instante, desviou a lâmina e acertou com o punho de ferro num dos lados da cabeça de Rhun. O golpe atirou Rhun contra a parede do túnel, deixando-o claramente atordoado.

O strigoi passou por ele, investindo diretamente sobre Sophia e Christian.

Elizabeth avançou, com a preocupação a ecoar na sua voz.

— Rhun...

Jordan empurrou Erin e Tereza mais para trás. Demasiado tarde, apercebeu-se do erro da sua estratégia de defesa. O ranger de dobradiças velhas soou atrás dele. Jordan virou-se a tempo de ver uma forma escura avançar sobre ele, vindo da pequena porta que conduzia ao túnel secreto de Rodolfo.

O strigoi arrancou Tereza dos braços de Erin e dilacerou a garganta da jovem, afogando o seu grito de surpresa em sangue. Outro strigoi seguia no encalço daquele, investindo sobre Erin com uma lâmina comprida na mão.

Jordan já se encontrava em movimento nessa altura. Alcançou Erin, puxou-a pelo braço para trás dele e bloqueou a lâmina do strigoi com o atiçador. Com o som do aço a bater no ferro, um pensamento surgiu na cabeça de Jordan.

Eu não devia ter conseguido mexer-me assim tão depressa.

Não tinha tempo para compreender este mistério, apenas para se sentir grato por ele.

O strigoi rosnou, recolhendo a sua lâmina e encolhendo-se com a surpresa. Atrás dele, a outra besta acabou com Tereza e juntou-se ao seu companheiro, sibilando sangue para Jordan. Por enquanto, pareciam cautelosos em relação a Jordan, preocupados com a sua rapidez e força.

Em seguida, Christian e Sophia juntaram-se a ele, um de cada lado. Christian ergueu uma longa espada, enquanto Sophia brandia duas adagas, uma em cada mão.

Três contra dois... as probabilidades estão a nosso favor.

Um terceiro strigoi surgiu do túnel da sala da fornalha, um enorme gigante, uma besta do tamanho de um ogre.

Lá se vão as nossas probabilidades.

De um dos lados da sala, Erin pegou num par de pinças de metal, preparando-se para ajudar.

— Temos de sair daqui e ir para onde haja luz!

Era mais fácil dizê-lo do que fazê-lo.

E o Sol estava prestes a pôr-se.

O som de estilhaços atrás dele indicava-lhe que Rhun e Elizabeth ainda lutavam contra os seus primeiros adversários no túnel. Assim, essa saída estava bloqueada. Além disso, as escadas que conduziam ao piso de cima estavam a arder.

Jordan concentrou-se nos três inimigos que tinha à frente. Atrás deles, uma vaga de fumo vinda da pequena porta inundava a sala, trazendo consigo o cheiro a madeira queimada e gasolina. Parecia que quem quer que lhes armara esta emboscada pegara fogo a esse túnel também, garantindo que ninguém fugia por ali.

O enorme strigoi, claramente o líder do grupo, passou para a frente dos outros dois. O seu rosto era um mapa de cicatrizes, as suas presas, amarelas. Ergueu um sabre e brandiu-o num movimento circular, tão depressa que se tornou um borrão prateado.

Christian avançou para enfrentar o atacante, mas um dos strigoi mais pequenos moveu-se agachado a uma velocidade sobrenatural e placou Christian, atirando-o ao chão. O outro atirou-se a grande velocidade a Sophia, atirando-a contra a fornalha.

Jordan ergueu o atiçador, apercebendo-se de que o gigante usara a sua manobra com o sabre como distração, permitindo aos outros dois emboscar os sanguinistas, eliminando as ameaças maiores.

Deixando apenas Jordan e Erin.

Então, vamos ver o que vales, grandalhão.

Jordan lançou-se sobre o strigoi armado. Atingiu a lâmina rodopiante com um golpe retumbante. Sentiu o impacto desde os ombros até aos calcanhares.

Mas também o strigoi o sentiu.

O gigante deixou cair a lâmina que tinia e recuou um passo. Um sorriso curvou-lhe os cantos do lábio, depois lançou-se sobre Jordan. Este sentiu-se como se tivesse sido atropelado por um camião. Foi projetado para trás e caiu em cima de uma mesa, estilhaçando vários objetos de vidro. Dentes cravaram-se no antebraço de Jordan, as presas penetrando até ao osso.

No entanto, em vez de uma dor incapacitante, Jordan sentiu uma labareda percorrer-lhe o braço.

O strigoi gritou, largando o braço de Jordan. Cambaleou para trás, agarrado ao rosto. Jordan observou enquanto a carne do strigoi se empolava e ardia, e sangue negro borbulhante jorrava para fora. Caiu, contorcendo-se no chão à medida que a conflagração se espalhava, queimando-lhe rapidamente o corpo.

Jordan olhou para baixo, para o seu braço ferido, e depois para o gigante.

O meu sangue é veneno.

Em vez de medo, uma sensação de calma apoderou-se dele, tornando-se cada vez mais forte, reduzindo o movimento na sala a câmara lenta. Os sons ficaram abafados. A luz assumiu um tom dourado, fazendo com que tudo parecesse enevoado.

O strigoi que lutava contra Sophia entrou em pânico com o que acontecera ao gigante e fugiu para o túnel em chamas. Christian aproveitou a surpresa para decepar a cabeça do outro strigoi.

Jordan pegou num pedaço de vidro partido que se encontrava em cima da mesa e, sem pensar, perseguiu o strigoi que fugira. Agarrou-o pela nuca e cortou-lhe a garganta de orelha a orelha, deixando, em seguida, o corpo cair.

Jordan virou-se e viu Erin a puxar-lhe o braço, tossindo por causa do fumo, tentando que ele se mexesse.

— Está tudo a ruir! — gritou-lhe ela, a sua voz parecia estar debaixo de água. — As salas em cima estão a começar a ruir para o nível da cave.

Ele seguiu-a, trazendo consigo Christian e Sophia.

No túnel, Elizabeth segurava o strigoi imobilizado por trás, enquanto Rhun o atacava com o seu punhal. Aos olhos de Jordan, o braço de Rhun movia-se lentamente, a lâmina na sua mão captava cada partícula de luz. Os salpicos de sangue negro pareciam ficar suspensos no ar.

Quando aquele último corpo caiu, Erin puxou Jordan. Apontou para lá de Rhun, em direção à porta junto à base das escadas.

— Temos de chegar ao túnel que dá para a velha praça da cidade!

Enquanto ele observava, uma viga de carvalho caiu do teto para o chão de pedra, espalhando brasas incandescentes. Mais fumo encheu o túnel.

— É demasiado tarde! — gritou Erin.

17h02

Erin estava a sufocar com o fumo, os seus pulmões ardiam, os olhos lacrimejavam. Foi então que surgiu Rhun, que a cobriu com o seu casaco. Felizmente, os sanguinistas não precisavam de respirar.

— Mantém-te agachada — avisou-a Rhun.

Ela obedeceu e puxou para cima a gola do hábito, ensopada pela chuva, respirando através do tecido húmido. Mais à frente, Christian e Sophia indicavam-lhes o caminho, usando a sua força para desimpedir a passagem por entre tábuas em chamas e derrocadas de pedra. Caíam coisas em cima deles à medida que as salas em cima colapsavam para o túnel.

Mais ao fundo da passagem, Elizabeth encontrava-se agachada junto à porta para a única saída que tinham, claramente com dificuldade em abri-la. Para lá dos ombros da mulher, as chamas consumiam as escadas, transformando-as na boca de uma enorme lareira.

Erin olhou de relance para trás, tossindo roucamente. Jordan caminhava sem pressa atrás dela, aparentemente indiferente ao fumo e ao calor. Ela lembrou-se do que acontecera ao enorme strigoi, daquela carne a ferver em sangue. Ela já vira antes danos semelhantes, quando o sangue angélico tocava num strigoi.

Seria isto mais uma prova da natureza angélica de Jordan? E o que significava isso para o homem que amava?

Um som alto de metal atraiu o olhar de Erin para a frente.

Elizabeth arrancara a porta das dobradiças.

— Depressa! — gritou ela, sacudindo brasas incandescentes de cima do seu hábito. De imediato, a condessa saiu para a escuridão, desaparecendo.

Erin temia que a mulher aproveitasse a oportunidade para fugir.

E eu não a censuraria.

Apressaram-se todos a entrar no túnel e a percorrê-lo, perseguidos pelo fumo.

Muito próximos um do outro, Christian e Sophia iam à frente, seguindo Elizabeth, claramente alerta para novos perigos, novos ataques.

Rhun continuava no encalço de Erin, seguido por Jordan.

À medida que a luz esmorecia atrás deles, Erin enfiou a mão no bolso e retirou uma lanterna. Ligou-a e um pequeno feixe de luz rasgou a escuridão.

Erin tossia com violência — com os seus pulmões ainda a arder —, o que fazia com que a luz oscilasse para cima e para baixo. Um estrondo ecoou atrás deles. Erin imaginou o túnel dos alquimistas a colapsar por completo.

Por fim, abriu-se uma porta à sua frente e a luz inundou o túnel.

Luz do Sol... gloriosa luz do Sol.

Erin acelerou em direção a ela. A cada passo, o ar tornava-se mais fresco, mais limpo, mais frio.

Assim que se aproximou, Erin viu Elizabeth a segurar a porta aberta para saírem.

Então, ela não fugiu.

Saíram todos do túnel aos tropeções para uma viela soalheira — ensanguentados, parcialmente queimados, mas vivos.

Erin virou-se de imediato para Jordan, preocupada por este não ter dito uma única palavra durante toda a fuga pelos túneis.

Tocou-lhe na face, mas os seus olhos azuis estavam distantes, a fitar o vazio. O pânico percorreu-lhe o corpo, mas esforçou-se por o refrear.

Erin manteve a palma da mão sobre a face escaldante de Jordan.

— Jordan, consegues ouvir-me?

Ele pestanejou uma vez.

— Jordan... volta.

Jordan pestanejou novamente, um tremor percorreu-lhe o corpo. Lentamente, os seus olhos ganharam vida novamente. Ele olhou para baixo, para ela.

— Erin...?

Ele parecia inseguro, como se não a conhecesse.

— É isso mesmo — disse ela, suavemente, magoada e assustada. — Estás bem?

Ele acabou por se sacudir, como um cão, depois olhou para os outros.

— Eu estou bem... acho eu.

— Talvez estivesse desorientado por causa do fumo — sugeriu Elizabeth.

Erin não acreditava nisso. O que quer que se passasse com ele não tinha nada que ver com o fumo. Ela pegou-lhe no braço, separando em dois a manga rasgada para examinar a marca da dentada. A ferida já começara a sarar, a carne unia-se como se ele tivesse sido atacado há dias e não há poucos minutos.

Ainda mais desconcertante, Erin descobriu uma linha vermelha que serpenteava desde o seu bíceps até à ferida, formando arabescos em volta das extremidades da carne que sarava. Erin puxou o resto da manga de Jordan para cima, revelando a origem.

Estendia-se desde a velha cicatriz, de quando fora atingido por um relâmpago. Quando era adolescente, Jordan fizera uma tatuagem com um padrão fractal por cima, como uma espécie de lembrança por quase ter morrido, criando assim uma decoração quase floral.

Mas esta linha vermelha era nova.

Erin deslizou o dedo pela linha, sentindo o calor ao longo dela.

— A tua tatuagem está a crescer...

Jordan soltou o braço e abanou-o para a manga descer.

— Diz-me o que se está a passar — exigiu ela.

— Não sei — murmurou ele, virando-se ligeiramente. — Tudo começou quando o Tommy me tocou, me curou. Ao início, era apenas uma sensação de ardor.

— Mas e desde então?

— Tornou-se mais forte desde que aquele strigoi me apunhalou em Cumas. E ainda mais forte quando fui mordido há pouco.

Jordan não conseguia olhar Erin de frente.

Ela pegou-lhe na mão. Pelo menos, ele deixou-a segurar-lhe a mão.

Como se pressentisse a aflição dela, Rhun tocou-lhe ao de leve nas costas.

— Temos de ir embora — avisou Elizabeth ao ouvir sirenes à distância. — O Sol vai pôr-se em breve.

Mas para onde podiam ir?

17h37

Legião estudou o edifício em chamas à medida que os fogos ateados pelas suas forças se espalhavam. Contemplou as labaredas vermelhas a dançar em contraste com o céu cinzento, lembrando-se deste lugar. Tinha sido numa sala no interior desta estrutura que ele fora enclausurado dentro do diamante verde. Através do rendilhado de fumo dos seiscentos e sessenta e seis espíritos dentro dele, Legião conseguiu evocar fragmentos de memórias daquele tempo.

... um velho de barba branca deambula do outro lado do vidro verde...

... a luz do Sol a queimar pele e osso, não deixando nada para além de fumo...

... esse fumo a ser perseguido pela luz até ao coração obscuro de uma pedra fria...

Para lá dos confins do veículo onde Legião se encontrava escondido, o fogo continuava a rugir, consumindo tudo à sua passagem, transformando a história dolorosa em cinzas e fumo.

Que apropriado.

Enviou uma ordem a Abigail. O veículo rosnou e deslizou para fora do passeio, afastando-se do fogo. Através dos olhos dos seus escravos, já vira o seu inimigo vencer as suas forças do mal. Não sabia qual era o destino do trio da profecia, mas deixara-lhes apenas um caminho a seguir. Um único túnel aberto. Se sobrevivessem, o inimigo cairia na sua armadilha.

Legião já chamara mais forças a Praga, uma tempestade à espera de ser libertada. Legião esperava apenas por um último elemento. Espreitou pelo vidro fumado, em direção à orbe brilhante sob o Sol já baixo no horizonte.

O dia pode pertencer-lhes, mas a noite será minha.


CAPÍTULO 19

18 de março, 18h08 CET
Praga, República Checa

Rhun percorreu apressadamente mais uma rua, seguindo Erin, que descarregara um mapa de Praga para o seu telemóvel. Um vento frio soprava pela rua estreita, à medida que uma tempestade se aproximava da cidade. Rhun conseguia cheirar a chuva distante, o crepitar da eletricidade.

Adiante, a rua terminava numa grande praça relvada, salpicada de fontes. Uma placa de cobre manchada de verdete anunciava o seu destino em letras góticas largas.

— Praça Carlos — traduziu Erin, assim que desembocaram na praça.

O edifício da câmara municipal, com a sua torre alta, estendia-se de um dos lados, mas foi a enorme igreja jesuíta, com as suas agulhas de estilo barroco, que chamou a atenção de Rhun. Era a Igreja de Santo Inácio. Rhun não se teria importado de passar algum tempo lá, para todos terem a oportunidade de recuperar. Christian tinha o braço ligado; Sophia tratava vários arranhões e nódoas negras proeminentes. Até Elizabeth perdera a sua touca e exibia um arranhão profundo na face, que escondia com uma madeixa de caracóis escuros.

No entanto, não tinham tempo a perder.

À medida que o grupo atravessava a praça, o céu laranja tornava-se vermelho, depois azul-índigo, à medida que o Sol se punha. Se havia mais strigoi nesta cidade, não demoraria muito até estarem à solta na rua. Alguém enviara aqueles strigoi pelos túneis para os emboscar, e essa ameaça permanecia.

No caminho, Rhun mantivera-se alerta para ver se alguém os seguia, mas a cidade estava repleta de turistas na altura da primavera. Até mesmo agora, conseguia ouvir o bater do coração de pessoas a vaguear pela cidade, a jantar nos restaurantes, a fazer compras nas lojas. Tentou escutar sons mais furtivos, produzidos por aqueles que não tinham batimento cardíaco: passos silenciosos, respiração fria. Embora não ouvisse qualquer evidência dessas criaturas, isso não significava que não estivessem lá, escondidas nas sombras, à espera de que o Sol se pusesse por fim.

Rhun olhou de relance para a Igreja de Santo Inácio. Assim que a sua equipa terminasse a investigação neste último local na cidade, podiam refugiar-se todos na igreja.

— Aquela deve ser a Casa de Fausto — anunciou Erin. — Ali, no canto sudoeste da praça.

A estrutura erguia-se por quatro andares: pedra cinzenta no piso térreo, um tom salmão no de cima, com colunas coríntias a adornar a sua fachada. Assim que se aproximaram o suficiente, foi possível ler FAUSTUS DUM a letras douradas por cima da entrada em arco, confirmando que esta era, sem dúvida, a infame Casa de Fausto.

Elizabeth acreditava que Rodolfo lhe deixara aquela mensagem como uma espécie de código só para ela, conduzindo-a até sua casa. Se era esse o caso, então algo valioso devia estar escondido aqui.

Mas o quê?

À medida que se aproximavam, Rhun mantinha a sua vigilância cautelosa e a chuva começava a cair. Estacionaram do lado oposto à casa. Passavam carros a grande velocidade por eles, com os condutores a tentarem chegar a casa antes que a tempestade atingisse a cidade.

Enquanto se ouvia o trovejar à distância, Jordan olhava fixamente para o edifício, parecendo estar mais em si agora, embora Rhun tivesse reparado que o seu batimento cardíaco mudara de forma subtil depois do ataque, soando mais como o martelar de um tambor, acompanhado por um ligeiro tinir. Talvez aquela irregularidade sempre tivesse existido e o que quer que acontecera durante o ataque tivesse exacerbado essa mudança.

— Aquele Kelly devia estar a safar-se bem para poder pagar uma casa destas — disse Jordan.

Erin anuiu com a cabeça.

— É um facto que ele tinha o apoio e o financiamento do imperador Rodolfo. Além disso, o lugar estava, supostamente, amaldiçoado.

— O quê? — exclamou Jordan, olhando bruscamente para ela.

— Durante a nossa caminhada até aqui, fiz uma busca no Google sobre este lugar no meu telemóvel — explicou ela. — Nos tempos pagãos, esta propriedade era usada como um local onde as pessoas se juntavam para fazer sacrifícios a Morena, a deusa da Morte. Esta história pode ser a razão por que a lenda do Doutor Fausto foi associada a esta casa. E é provável que tenha, também, dado mais credibilidade às afirmações de Edward Kelly de que falava com Belmagel, o anjo negro.

Jordan esticou ainda mais o pescoço.

— Não importa. Eu só vejo uma casa demasiado cara com uma série de para-raios.

Elizabeth encontrava-se ao lado de Jordan, protegendo os olhos da chuva com uma mão muito magra.

— O que é um para-raios?

Jordan apontou para o telhado coberto de telhas vermelhas.

— Consegue ver o cata-vento? E a haste ao lado? Ambos são concebidos para atrair os relâmpagos e canalizá-los para o chão, onde a sua energia será libertada de forma segura na terra.

Os olhos de Elizabeth brilharam.

— Que ideia inteligente.

E, como se estivesse à espera da sua deixa, um trovão crepitou pelos telhados, ressoando ruidosamente e lembrando-lhes de que tinham pouco tempo.

— Como vamos entrar? — indagou Erin. — Parece que todas as janelas do rés do chão têm barras.

Rhun apontou para mais alto.

— Eu trepo a parede, abro uma daquelas janelas de cima e depois volto para baixo e deixo-vos entrar pela porta da frente.

— E os alarmes? — perguntou Sophia.

Christian abanou a cabeça e disse:

— Este lugar tem centenas de anos, é provável que não tenha sido modernizado. Na melhor das hipóteses, têm apenas as janelas do primeiro andar ligadas a um alarme, confiando que as barras nas janelas do andar térreo façam o trabalho de segurança por eles. — Apontou para mais alto. — É provável que não haja problemas se conseguirmos chegar àquelas janelas mais pequenas no segundo andar. Duvido que essas estejam ligadas a algum alarme.

Rhun anuiu com a cabeça, validando a sua análise. Olhou em volta e estudou o que o rodeava. Por fim, a chuva afugentara a maioria das pessoas da praça. Esperou até não passar nenhum carro pela rua, depois dirigiu-se rapidamente para o cano de escoamento de água que percorria um canto escuro da fachada.

Agarrou-se ao cano com as pontas dos dedos e escalou com rapidez até ao segundo andar. Agarrando-se ao capitel de uma das colunas ornamentais de estilo coríntio, deslocou cuidadosamente o pé para a direita, deslizando pela fachada molhada da casa como um lagarto, tentando chegar à janela mais próxima.

Quando a alcançou, esperou pelo estrondo de outro trovão e, nesse momento, partiu o vidro da janela com o cotovelo. Cacos de vidro espalharam-se pelo chão no interior. Esperou para ver se surgia algum grito. A casa continuou mergulhada no silêncio.

Ainda assim, Rhun avançou com cuidado. Enfiou a mão pelo vidro partido, destrancou o fecho e abriu lentamente a janela. O interior da casa cheirava a bolor e cimento — mas foi outra coisa que o arrepiou. Ficou onde estava, a ouvir atentamente, mas, quando não soou qualquer alarme, rolou para dentro de casa.

Mesmo antes de os seus pés tocarem no chão, sentiu a força sair-lhe do corpo. Aterrou encolhido, lembrando-se da história de Erin, de como esta casa fora construída num lugar amaldiçoado.

Algumas lendas eram verdadeiras.

Rhun agarrou na sua cruz, para se concentrar. O ar dentro da casa era gelado e crepitava de tanta maldade. Procurou alguma ameaça iminente, mas não encontrou nada. A luz vinda dos candeeiros da rua revelaram uma sala vazia, com tetos altos e brancos, e paredes lisas de reboco.

Sussurrou uma oração de proteção — depois dirigiu-se ao andar térreo para deixar os outros entrar, ignorando uma vontade irresistível de fugir daquele lugar.

18h19

Enquanto Rhun segurava a porta alta de ferro forjado, Elizabeth entrou, passando à frente dos outros que se encontravam parados à porta. Pressentiu a iniquidade daquele lugar assim que entrou. Atraiu-a como uma traça para as chamas — mas, em vez de se queimar quando entrou, sentiu uma vaga de poder fluir dentro de si, o lugar profano chamava a escuridão no seu sangue.

Reparou que Rhun estava prostrado, agarrado à maçaneta da porta para se manter de pé.

É evidente que este lugar iníquo o afetou profundamente.

Viu o mesmo efeito quando Christian e Sophia entraram. Era como se um peso enorme tivesse caído sobre os ombros deles.

Então porque é que não me afeta?

Elizabeth olhou em volta, pensando se seria por ter bebido o vinho sagrado há pouco tempo, mas desconfiava que era por outra razão, um testemunho da verdadeira natureza do seu coração.

A fim de o esconder, encostou a mão à parede e apoiou-se nela, como se tivesse sido atingida pelo mesmo mal-estar profano.

Rhun aproximou-se dela, oferecendo-lhe o seu braço.

— É o solo maldito — explicou ele. — Luta contra a nossa força porque ela tem origem no sangue de Cristo.

Elizabeth acenou com a cabeça.

— É... é horrível.

Jordan lançou a Elizabeth um olhar desconfiado quando passou por eles, como se soubesse que ela estava a fingir.

Sophia falou com uma voz tensa:

— Vamos despachar-nos a fazer o que nos trouxe aqui.

— Por onde devemos começar? — perguntou Erin, olhando para Elizabeth à procura de orientação, desconfiada de que ela já aqui estivera antes. — Tem alguma ideia?

Jordan ligou a lanterna, revelando um candelabro de ferro forjado e paredes brancas de reboco. Encontravam-se numa entrada ampla que conduzia a um enorme corredor, com uma escadaria em caracol ao fundo.

Elizabeth largou a mão de Rhun e dirigiu-se para o corredor.

— O anjo maldito de Kelly, Belmagel, não aparecia a mais ninguém. — Elizabeth olhou de relance para trás, para os outros. — Porque, como é óbvio, era tudo uma farsa disparatada. Kelly era um charlatão que tentava ganhar dinheiro à custa de tolos. Mas o que eu sei é que Belmagel só aparecia a Kelly numa sala no andar de cima. Se Rodolfo deixou aquela mensagem para mim, talvez devêssemos começar a procurar lá.

Erin manteve-se ao lado de Rhun, numa atitude protetora, a sua preocupação com ele estampada no rosto.

— Esta iniquidade que estás a sentir — começou Erin — emana de algum lugar ou está por todo o lado?

— Sinto que é mais forte lá em cima — admitiu Rhun.

— Pior que isto? — murmurou Christian entredentes, parecendo extremamente descontente.

Rhun anuiu com a cabeça.

Elizabeth também a sentiu quando chegou às escadas em caracol. Era como uma brisa a deslizar pelos degraus de madeira abaixo. Embora parecesse manter os sanguinistas afastados, Elizabeth tinha de lutar arduamente para não desatar a correr como uma criança ao seu encontro.

— Devíamos seguir esse rasto profano — recomendou Erin. — O que quer que tenha amaldiçoado esta casa pode ser importante para a nossa causa.

— Ou pode meter-nos em sarilhos — acrescentou Jordan.

Elizabeth continuou a guiá-los, chegando às escadas primeiro. Subiu devagar, simulando fraqueza, agarrando-se ao corrimão trabalhado e fingindo ter de o usar para se impulsionar para cima. Esforçou-se ao máximo para seguir ao mesmo passo que os sanguinistas atrás dela. Mas, a cada degrau, sentia uma força negra fluir das tábuas de carvalho debaixo dos seus pés.

Impaciente, distraiu-se examinando as paredes por onde passava. Tinham um tom intenso de ocre e estavam decoradas com pinturas da Renascença. À primeira vista, pareciam pinturas perfeitamente vulgares da vida na corte, mas uma observação mais minuciosa revelava demónios com vestes de lordes e senhoras da nobreza a olharem para ela de esguelha. Um demónio segurava uma criança inocente ao colo; outro banqueteava-se com a cabeça de um unicórnio.

Por fim, chegaram ao andar mais elevado. Aqui, o ar zumbia e crepitava de tanta maldade. Elizabeth desejava ardentemente inclinar a cabeça para trás e absorvê-la toda. Mas, em vez disso, manteve a mão sobre a cruz ardente de prata e a expressão do rosto vazia.

— Por aqui — sugeriu Elizabeth. — Kelly tinha o seu próprio laboratório de alquimia mesmo ali à frente. Era onde ele, supostamente, invocava Belmagel.

Elizabeth conduziu-os através de duas portas para uma sala ampla e circular com chão de madeira. Uma mesa de madeira manchada fora empurrada contra uma parede curva.

— Cheira a enxofre aqui — observou Rhun, hesitando à entrada da sala, encostando-se à ombreira da porta.

— O enxofre era um componente alquímico bastante comum — explicou Elizabeth, enquanto entrava na sala com Erin e Jordan. — Ao que parece, o que quer que Kelly tenha feito aqui entranhou-se nos próprios alicerces da casa.

Era uma explicação razoável, mas até Elizabeth desconfiava que fosse verdade.

É a maldade que se encontra neste lugar que infeta a casa.

Começou a perguntar-se se estaria enganada em relação a Kelly. Talvez ele tivesse conseguido mesmo evocar algo obscuro neste lugar.

Enquanto Jordan examinava a secretária, abrindo várias gavetas, Erin olhava para as paredes, reparando numa série de três frescos pintados no reboco liso, estudando a inscrição em latim por baixo de cada um deles.

Quando terminou, voltou para o meio da sala e fez-lhes sinal com o braço.

— Estes símbolos de alquimia são semelhantes aos que vimos na sala de estar de John Dee. — Erin voltou para junto de um dos frescos, um círculo que continha linhas azuis ondulantes, e leu em voz alta a inscrição em latim que se encontrava por baixo. — Aqua. Água.

Intrigada, Elizabeth aproximou-se do segundo símbolo, um anel salpicado de verde, como folhas no verão.

— Este diz Arbor. Significa árvore ou jardim em latim.

Jordan dirigiu-se ao terceiro, não muito longe da secretária. O seu círculo estava repleto de linhas carmesins.

— Sanguis. — Jordan olhou para os outros com um ar sinistro. — Sangue.

Erin retirou uma câmara fotográfica da mochila e começou a tirar fotografias dos três. Falou enquanto o fazia.

— Na casa de John Dee, havia quatro símbolos, que representavam a Terra, o Vento, o Ar e o Fogo. Estas marcas não só são diferentes, como não existe um quarto símbolo.

Elizabeth procurou em volta. A única outra decoração nas paredes era um mural elaborado. Aproximou-se dele, inclinando-se para o examinar mais de perto, para ver se o quarto símbolo que faltava se encontrava escondido algures neste quadro exuberante.

O mural ilustrava um vale verdejante rodeado por três montanhas, cujos cumes estavam cobertos de neve. Um rio atravessava o vale e desaguava num lago negro. Curiosamente, um sol vermelho encontrava-se na parte de cima da imagem. Por baixo do fresco eram visíveis as palavras checas jarní rovnodennost.

Ela passou os dedos por cima das palavras, traduzindo-as em voz alta:

— Equinócio vernal.

Erin juntou-se a ela.

— O que é aquilo que está a sair do meio do lago?

Elizabeth olhou mais de perto. Da superfície escura da água, membros e rostos demoníacos pareciam arder por baixo daquele sol vermelho.

— Parece que o Inferno está prestes a abater-se sobre a Terra — disse Jordan, olhando diretamente para Erin.

Erin endireitou-se, parecendo indisposta.

— Será que é este o lugar onde Lúcifer se liberta? Este vale? — Erin tocou no sol vermelho. — Pela posição em que se encontra, parece ser meio-dia. No equinócio vernal. — Olhou para os outros. — Será que é um aviso? Um prazo que devemos respeitar?

— Quando é o equinócio? — indagou Jordan. Christian respondeu do outro lado da sala. Até o ato de falar parecia um esforço brutal.

— Vinte de maio. Depois de amanhã.

— A isso é que eu chamo ser mesmo à justa — disse Jordan, fitando o mural de sobrolho franzido. — Sobretudo quando não sabemos onde fica o lago... isto é, se existir na realidade.

Erin olhou novamente para os três círculos coloridos, como se esperasse encontrar neles a resposta. E talvez encontrasse. Elizabeth não podia negar a inteligência extraordinária da mulher.

— Porquê apenas três símbolos? — murmurou Erin.

— A insígnia da alquimia é um triângulo — sugeriu Elizabeth. — Talvez seja por isso que existem apenas três símbolos.

Erin virou-se, fazendo um círculo lento, claramente desenhando um triângulo invisível entre o trio de frescos.

— Na casa de Dee, os quatro símbolos estavam pintados de forma a canalizar as suas supostas energias para o candelabro, aquele com as máscaras com chifres que se encontrava pendurado no meio da sala. De certeza que este local também já teve um ponto focal desse tipo.

Elizabeth anuiu com a cabeça.

— Se os três símbolos formam um triângulo alquímico, devíamos procurar algo que se encontre no meio dos três.

Com a ajuda dos outros, percorreram as linhas invisíveis entre os frescos. Erin permaneceu no centro.

— O chão — disse ela — é de madeira. Talvez exista um compartimento secreto debaixo dele. Como na casa de John Dee.

Christian avançou, desembainhando a sua espada.

— As tábuas são velhas. Devo conseguir levantá-las.

Erin afastou-se para o lado, cruzando os braços, preocupada.

— Cuidado para não danificares nenhuma...

Um estrondo ribombante de ferro e vidros partidos soou, vindo de dois andares abaixo de onde eles se encontravam.

Todos se imobilizaram.

Elizabeth ouviu o caminhar de muitos pés, entre rosnadelas e sons sibilantes. Olhou para lá da porta da sala onde se encontravam, para uma das janelas da frente da casa. A escuridão reclamava para si a noite para lá do brilho dos candeeiros de rua. Os trovões ribombavam e o clarão de um relâmpago iluminou os contornos das nuvens escuras.

O Sol já se pusera e a tempestade estava prestes a rebentar sobre eles.

Em seguida, surgiu outro ruído forte, ouvido de imediato até pelos ouvidos menos apurados de Erin e Jordan.

O uivo lamuriento vinha de baixo, sedento de sangue e fúria. Foi seguido por outro, e por um terceiro.

Parecia que as forças strigoi não tinham vindo sozinhas desta vez.

Jordan reconheceu o carácter corrompido daquele uivo, sugerindo a presença de uma besta aterrorizadora, uma que todos os sanguinistas temiam.

— Ótimo. Trouxeram uma matilha de grimwolves.

18h23

Legião encontrava-se na rua varrida pela chuva, as palmas das mãos erguidas na direção do edifício de pedra diante dele, como se estivesse a aquecer-se em frente de uma lareira. Contudo, não era o calor que o aquecia nesta noite fria.

Uma malignidade fluía daquele edifício, pulsando para fora do seu coração envenenado. Ele queria consumi-la e, consigo, todas as almas no seu interior.

Observou as suas forças a entrarem no edifício. Através da ligação que tinha com os strigoi, sentia os membros deles serem alimentados por aquele mal, ficando cada vez mais fortes à medida que avançavam.

Anteriormente, quando o Sol ainda não se tinha posto, Legião colocara vigias no final daquele túnel escuro junto à velha praça da cidade. Através desses olhos escravizados, observara a sua presa a emergir daquele túnel para a luz do Sol, escapando aos fogos ateados pelas suas forças strigoi, seguindo o único caminho que ainda se encontrava disponível para eles.

Levando-os diretamente a mim.

Ele servira-se de muitos olhos, escondidos nas sombras e em salas escuras, para seguir o grupo desde a velha praça até à mais recente, até esta enorme estrutura malévola — onde se encontravam agora encurralados.

Ele sabia, através da réstia de espírito de Leopold que ainda tinha dentro de si, que os sanguinistas perderiam as forças, incluindo o Cavaleiro, o qual tencionava marcar e subjugar à sua vontade esta noite. Para assegurar o fim da profecia, mataria também o Guerreiro e a Mulher e ofereceria o seu sangue em sacrifício neste lugar profano.

Legião ergueu o rosto para a tempestade.

Não existe sol para vos proteger agora.

Da entrada, surgiu uma luz brilhante, chamando de novo a sua atenção para a casa. Observou através de múltiplos olhos, alternando de uns para os outros, não se demorando em nenhum durante muito tempo. Ele era um e muitos ao mesmo tempo, e via tudo.

... mobília partida em chamas...

... óleo combustível espalhado por todo o lado...

... uma chama multiplica-se, consumindo os andares de baixo...

Ele tencionava atrair a sua presa para o telhado, onde subjugaria o Cavaleiro entre chamas e fumo. Não haveria escapatória desta vez.

Para garantir que assim era, Legião recorreu a outro dos seus subjugados, um que se encontrava mais perto do seu coração negro do que qualquer outro escravo, o líder dos lobos. Direcionou a sua consciência para a enorme besta, saboreando os seus desejos mais obscuro, o poder dos seus membros musculados. Uivou através dos enormes maxilares da criatura, gritando a sua ameaça pela noite dentro.

Legião enviou uma ordem para as profundezas do sangue do lobo.

Caça.


CAPÍTULO 20

18 de março, 18h27 CET
Praga, República Checa

— Depressa — apressou Erin, detetando o cheiro do incêndio que subia dos andares em baixo.

Ajoelhou-se no chão com Jordan e Elizabeth, mais ou menos a meio dos três símbolos alquímicos: aqua, arbor e sanguis.

Há alguns momentos, Rhun e Christian tinham saído dali a correr, desaparecendo pelas escadas abaixo, antes sequer de o uivo dos grimwolves ter esmorecido. Sophia mantinha a sua posição junto à porta, empunhando duas espadas.

Erin tinha a sua própria responsabilidade.

Descobrir o que está escondido aqui.

Elizabeth enfiou um punhal entre as tábuas do chão e soltou uma delas com destreza, atirando-a para longe com o rodar do seu pulso. Depois usou os dedos para arrancar as tábuas que se encontravam de ambos os lados. Movia-se rapidamente, a sua força era incrível, mesmo enfraquecida pela impiedade do lugar.

Erin apontou a lanterna para o buraco feito, revelando traves do chão, pó e fezes de ratazana. As traças juntavam-se à volta do feixe de luz à medida que ela movia a lanterna.

— Não está aqui nada.

Elizabeth parecia estar tão frustrada como Erin se sentia.

O que é que nos está a escapar?

Elizabeth levantou-se, estudando os símbolos, tentando resolver o mistério.

Erin olhou para cima, para Elizabeth — depois levantou-se de um pulo quando um laivo de inspiração a percorreu.

Em cima...

— O candelabro... na casa de John Dee! Era para aí que as energias daqueles símbolos deviam ser encaminhadas. Para o teto. Não é no chão que temos de procurar.

Jordan juntou-se a ela, semicerrando os olhos em direção ao teto.

— Não vejo nada ali em cima.

Erin também não, mas sentia a excitação da certeza.

— Lembraste da história do Doutor Fausto? — perguntou Erin. — Uma lenda associada a este lugar. Segundo a história, ele foi levado pelo teto, arrastado pelo diabo. E se essa história tiver a sua origem neste preciso lugar?

Elizabeth olhou para cima.

— Consigo discernir o contorno ténue de um quadrado. Apesar de nunca ter visto pessoalmente, ouvi dizer que Kelly tinha portas e escadas secretas por toda a casa.

Então porque não poderia ter uma no teto?

Jordan parecia menos convencido.

— Mesmo que exista um sótão lá em cima, quem sabe se é importante?

— É, sim — afirmou Elizabeth. Assentou um joelho no chão e afastou o pó. — Esta sala toda grita a sua importância. A sala circular, o triângulo e agora o quadrado em cima.

Elizabeth inscreveu a disposição dos três no pó, formando um símbolo.

— Este é o símbolo da pedra filosofal! — exclamou Elizabeth.

O coração de Erin começou a bater mais depressa, enquanto tentava discernir os contornos do quadrado.

— Diz-se que a pedra filosofal conseguia transformar chumbo em ouro e também criar o elixir da vida. É o elemento mais importante da alquimia. Deve haver algo lá em cima — explicou Erin.

Jordan dirigiu-se apressadamente para a secretária abandonada.

— Ajuda-me com isto! — exclamou Jordan.

Antes que Erin se conseguisse mexer, já Elizabeth se encontrava ao lado de Jordan a empurrar a secretária para o centro da sala, com pouca ajuda de Jordan.

Uma vez no lugar, Erin trepou para cima dela, esticando-se para chegar ao teto, mas ainda não o alcançava. Até Jordan tentou, mas ficou a cerca de sessenta centímetros de raspar com as pontas dos dedos no teto. No entanto, agora Erin conseguia ver o contorno do quadrado.

Erin virou-se para Jordan.

— Vou precisar que...

O som de aço com aço interrompeu-a, ecoando dos andares inferiores. Depois de atear os fogos em baixo, assegurando-se de que não haveria escapatória por ali, o inimigo devia ter começado o seu ataque nas escadas, subindo na sua direção — mas deparando-se com Rhun e Christian de guarda nos degraus.

Mas quando tempo aguentariam a sua defesa?

A resposta chegou de imediato: um grito de dor surgiu do andar de baixo. Elizabeth girou na direção do som, reconhecendo a sua origem.

— Rhun...

— Vai! — ordenou Erin, mas Elizabeth já atravessara a sala e a porta, passando por Sophia, correndo em auxílio de Rhun.

Sophia apontou para Erin e Jordan, enquanto agarrava na maçaneta da porta.

— Encontrem o que está aí em cima! — ordenou ela, depois saiu para o corredor, fechando as portas atrás dela, deixando Erin e Jordan sozinhos.

— Dá-me impulso — disse Erin, quase sem fôlego, mantendo-se concentrada na tarefa em mãos para evitar o pânico paralisante.

Jordan ergueu-a, e Erin trepou para cima dos seus ombros. Um pouco cambaleante, fez força contra o centro do quadrado que se encontrava por cima dela, mas este não cedeu.

Gritos e rosnadelas ecoavam através da porta que Sophia guardava.

— Despachem-se! — gritou Sophia ao fundo.

— Estás segura — garantiu Jordan a Erin. — E tu consegues fazer isto.

É melhor que consiga.

Erin respirou fundo para se recompor, usou os ombros de Jordan para se impulsionar e embateu com o ombro no teto. Empurrou com força. Poeira e pedaços de reboco choveram em cima deles, à medida que um dos cantos do quadrado cedia, elevando-se cerca de dois centímetros.

Afinal, é mesmo uma porta!

Erin reposicionou-se, aproximando-se da ponta que cedera, e empurrou novamente. A porta ergueu-se mais, o suficiente para Erin conseguir enfiar na fenda a sua lanterna de trinta centímetros, mantendo-a aberta.

— Já está...

Erin agarrou na ponta da abertura e esgueirou-se através da fenda estreita, rastejando de barriga para baixo, passando pela lanterna com cuidado para não a deslocar. Uma vez do outro lado, deu uma volta e usou as pernas para levantar ainda mais a porta.

— Não sei quanto mais tempo a consigo aguentar! — gritou ela para baixo.

— Eu posso saltar.

Jordan provou ser um homem de palavra. Os seus dedos agarraram a ponta da abertura e ele ergueu-se, atravessando a porta e trepando para junto de Erin. Em seguida, usou as suas pernas musculadas para segurar a porta, enquanto Erin encontrava uma barra de ferro robusta por perto para a manter aberta.

A arfar por causa do esforço, Erin retirou a lanterna da abertura e apontou o seu feixe de luz para o espaço vazio do sótão. Estava tudo coberto de pó. Das vigas altas pendia todo o tipo de cordas e roldanas.

Erin afastou-se da porta aberta, empurrando para o lado um pedaço de corda pendurada, provocando um tornado de traças.

— Tudo isto deve fazer parte de algum dos mecanismos secretos de Kelly utilizado para mover portas e escadas.

— É pena que nada esteja operacional — disse Jordan. — Talvez o pudéssemos usar para fugir daqui.

Recordada da ameaça, Erin derrubou acidentalmente uma roda dentada do seu gancho. Caiu ruidosamente no chão. O som era absolutamente explosivo naquele espaço confinado.

Erin continuou a explorar o espaço. A área do sótão parecia ter metade do tamanho da sala em baixo. Não demorou muito até o feixe de luz da lanterna revelar um objeto alto, a um canto, coberto de fuligem.

A sua forma era inconfundível.

— A campânula — disse Erin.

Ela contemplou o enorme artefacto, a extensão saliente do tubo de vidro, lembrando-se da história que Elizabeth contara sobre as centenas de strigoi que tinham morrido no seu interior, sendo o seu fumo recolhido e canalizado através daquele tubo. Por momentos, teve medo de chegar perto dele, sabendo da sua terrível história. No entanto, pôs as suas superstições de lado e aproximou-se.

— O imperador Rodolfo deve tê-la mandado esconder aqui após a morte de John Dee — sugeriu ela.

— Então, era essa a mensagem do imperador para Elizabeth, mostrar-lhe como encontrar esta maldita coisa? Para quê? Para ela continuar o trabalho que John Dee começou?

— Espero que sim — respondeu Erin.

Jordan olhou para Erin de forma severa.

— Porque haverias de desejar isso?

Com o punho da manga da camisa, Erin limpou os séculos de porcaria e pó do vidro. Depois de limpar uma grande parte da superfície, espreitou para dentro do vidro espesso e esverdeado.

— Por isto...

Jordan aproximou-se dela.

— Está uma pilha de papéis no interior.

— Se Rodolfo trouxe a campânula de John Dee para aqui — disse ela, acenando com a cabeça para a pilha —, de certeza que também terá incluído as notas do velho alquimista.

— Como uma espécie de manual de instruções. Faz sentido. — Jordan deslizou as palmas das mãos pela superfície da campânula, procurando uma abertura. — Olha! Está aqui uma porta. Acho que consigo abri-la.

Jordan forçou as dobradiças e ficou com a porta nas mãos.

Erin colocou a mão dentro da campânula e retirou as resmas de papel do interior.

— A maior parte parece escrito em enoquiano — disse ela, enfiando os papéis dentro da mochila, junto à pasta que continha o Evangelho de Sangue. — Esperemos que Elizabeth os consiga traduzir.

— Então, vamos embora daqui.

Juntos, regressaram à porta no teto — ouvindo, em seguida, uma explosão de madeira despedaçada.

Quando olharam para baixo, viram uma porta partida destruída pelo chão. Sophia surgiu no campo de visão deles, deslizando com destreza, virando-se de frente para a entrada com as espadas em riste.

— Não saiam daí! — gritou ela sem olhar para cima.

A razão para tal surgiu em seguida.

De uma nuvem de fumo negro, emergiu uma besta gigantesca, de cabeça baixa, dentes à mostra e uma juba de pelos escuros eriçados que se estendia ao longo do pescoço e da coluna.

Um grimwolf.

Jordan praguejou e pontapeou a barra de ferro que suportava a porta do sótão.

Esta caiu no chão com um enorme ruído.

Encurralando-os no sótão.

18h37

Caído no chão, num patamar amplo das escadas, Rhun manteve a sua posição, o seu braço direito pendurado inutilmente ao lado do corpo. Não conseguira sequer ver a lâmina que o ferira. Os seus golpes defensivos e contra-ataques pareciam-lhe lentos e desajeitados. No seu estado de fraqueza, sentia-se uma criança a brincar às lutas com estes soldados fortalecidos pela maldição.

E eles, por sua vez, pareciam estar a brincar com ele.

Já o podiam ter morto, mas não o tinham feito.

Porquê? Seria por pura maldade ou haveria outra razão?

Três strigoi fecharam um triângulo à sua volta. Eram todos maiores, muito musculados e cobertos de cicatrizes e tatuagens. Cada um segurava uma cimitarra curva e pesada. Nenhum deles era especialmente hábil com a sua arma, mas eram mais rápidos e mais fortes que Rhun. Primeiro um, depois outro, lançavam-se contra Rhun e golpearam-lhe os braços, o peito, o rosto. Já o podiam ter morto em qualquer altura, mas, em vez disso, optavam por brincar com ele, como um gato com um rato assustado.

Mas eu não sou um rato.

Rhun aguentou os golpes, observou os seus movimentos e procurou detetar as suas fraquezas.

Fumo emergia por baixo das escadas. Christian lutava algures lá em baixo, mas Rhun perdera-o de vista depois de tentar perseguir um grimwolf que passara por ele há um instante. Ele ouvira-o atravessar a porta no andar de cima, ouvira Sophia gritar. Ainda assim, não se conseguia libertar destes três para ir em auxílio dos outros.

Pelo menos, não o consigo fazer sozinho.

Um grito mais agudo e o tinir do aço indicaram-lhe que Christian ainda se encontrava vivo. Mas e Elizabeth? Ela viera em seu auxílio há uns momentos, descendo as escadas praticamente a voar, como um falcão negro, derrubando dois adversários, incluindo o strigoi que incapacitara o braço direito de Rhun. Ela e os dois adversários tinham desaparecido no meio do fumo.

Será que ela ainda estava viva?

Distraído por este pensamento, moveu-se de forma demasiado lenta quando o maior dos seus adversários se lançou sobre ele novamente. A sua espada fez um corte na zona das costelas de Rhun. Outro strigoi atacou-o do lado que já se encontrava ferido. Rhun não tinha maneira de...

De repente, o segundo atacante desapareceu, puxado de volta para a parede de fumo. Um grito gorgolejante ecoou de lá. Os outros dois strigoi recuaram quando uma figura pequena e sombria surgiu, subindo as escadas para o patamar do segundo andar.

Elizabeth.

Ela segurava um sabre que escorria sangue negro. A lâmina parecia absurdamente enorme nas suas mãos delicadas, mas ela segurava-a sem esforço, como se o peso não a incomodasse.

O maior dos strigoi lançou-se a ela, a sua cimitarra rasgando o ar mais depressa do que os olhos de Rhun conseguiam acompanhar. Porém, Elizabeth esgueirou-se no último instante, rodopiando num só pé, brandindo a sua espada no ar e cortando a garganta do seu atacante sem qualquer dificuldade. O corpo sem cabeça da criatura tombou pelas escadas abaixo.

Rhun aproveitou a distração da dança de Elizabeth para atacar o último strigoi, cravando a sua karambit na nuca da criatura, separando-lhe a cabeça do corpo com um golpe hábil do pulso. Quando o corpo deixou de se mexer, Rhun lançou-o por cima do corrimão das escadas para o andar de baixo.

Elizabeth juntou-se a Rhun, com ambos os braços ensanguentados e o rosto salpicado de sangue.

— São demasiados — disse ela, quase sem fôlego. — Quase não conseguia voltar.

Rhun agradeceu-lhe, tocando-lhe na mão que tinha livre. Ela apertou-lhe os dedos.

— Se trabalharmos juntos — disse ela —, ainda somos capazes de chegar à porta da frente.

Rhun encostou-se à parede. Pingava sangue de uma centena de cortes. Se fosse humano, teria morrido mais de uma dúzia de vezes. Não sendo, sentia-se terrivelmente fraco. Ergueu o braço para cima.

— Erin e Jordan — disse ele. — Não os podemos abandonar.

O uivo do grimwolf recordou-lhe o perigo que corriam.

Elizabeth colocou um braço à volta dos ombros dele, apoiando-o.

— Mal te consegues aguentar em pé.

Rhun não podia contra-argumentar. Salvar os outros teria de esperar mais um pouco. Tirou o cantil de vinho da sua coxa e esvaziou-o com um gole demorado. Elizabeth manteve-se de vigia ao seu lado, paciente e em silêncio no meio do fumo. Ele lembrou-se de um dia, há muito tempo, em que tinham caminhado por campos envoltos no nevoeiro do final da primavera, muito semelhante a isto. Ela ainda era humana, e ele ainda era o sanguinista que nunca caíra em desgraça.

Ele fechou os olhos e esperou pela sua penitência.

Foi transportado para o pior pecado que cometera. As memórias inundaram-no, mas não tinha tempo para cumprir a sua penitência agora e lutou contra isso, sabendo que seria muito mais penoso da próxima vez que bebesse o vinho.

Ainda assim, resquícios do seu passado percorreram-lhe o corpo.

... o aroma a camomila no castelo de Elizabeth, há muito em ruínas...

... a luz do fogo refletida naqueles olhos cor de prata...

... a sensação da pele quente e corada dela contra a sua, enquanto a transformava...

... o corpo dela a morrer-lhe nos braços...

... a sua escolha disparatada, terrível...

Rhun voltou a si, com o sabor do sangue dela ainda na sua língua: sumptuoso, salgado e vivo. Agarrou a cruz que tinha em volta do pescoço, rezando entre a dor, até o sabor dela se desvanecer.

Em seguida, libertou-se do braço de Elizabeth, endireitando-se, e sentiu uma força renovada percorrer-lhe as veias. Os olhos cor de prata de Elizabeth encontraram os de Rhun, e foi como se ela visse através dele aquela noite e a paixão e a dor que partilharam. Ele inclinou-se sobre ela, os seus lábios tocaram os dela.

Um pedaço do teto caiu, vindo do lance de escadas acima, o que os fez recuar. Brasas em chamas elevaram-se, cercando-o e pegando fogo à sotaina e ao cabelo de Rhun.

Elizabeth apagou-as com ambas as mãos. A fúria percorreu-lhe os olhos cor de prata, depois alguma resignação.

— Não podemos voltar lá para cima... pelo menos, não pelo interior da casa. Ajudamos mais os teus amigos se sairmos daqui agora e treparmos até ao telhado pelo exterior da casa.

Rhun reconheceu a lógica da sua sugestão. Ele tinha de chegar a Erin, Jordan e Sophia antes de esta maldita casa ruir, transformando aquele lugar na sua sepultura em chamas.

Ele apontou para baixo, para o remoinho de fogo e sangue, rezando para que não fosse demasiado tarde.

— Vai!


CAPÍTULO 21

18 de março, 19h02 CET
Praga, República Checa

Legião caminhava pelo telhado plano da estrutura maldita, enquanto o céu por cima da sua cabeça crepitava com relâmpagos. Em baixo, vários fogos ardiam pela casa, labaredas irrompiam das janelas e o fumo sufocava a noite chuvosa. Por baixo dos seus pés, o mal deste lugar fluía pelos ossos do corpo que possuíra, enchendo-o de poder e propósito.

Em cima do telhado, Legião perseguia a sua presa, apertando o cerco sobre eles: dois batimentos cardíacos, indicando os dois únicos humanos no interior da estrutura em chamas.

O Guerreiro e a Mulher.

Tal como planeara, o inimigo fugira dos fogos que ele ateara, subindo cada vez mais alto para escapar.

Vindo na minha direção.

Se os dois humanos estivessem por perto, o Cavaleiro não estaria longe deles. Mas como este imortal não tinha batimento cardíaco que pudesse seguir, Legião não tinha a certeza de onde ele se encontrava. Assim, tencionava caçar estes dois e esperar pelo Cavaleiro.

E não caçava sozinho.

Patas pesadas caminhavam ao seu lado, esparrinhando as poças de água da chuva. O lobo rosnava com cada trovão, como que a desafiar os céus.

Legião partilhava os sentidos da besta, olhando através dos seus olhos, escutando com os seus ouvidos mais apurados, cheirando os relâmpagos no ar. Deleitava-se com o seu coração selvagem. Mesmo corrompido pelo sangue negro, o lobo relembrava-lhe a beleza e a sumptuosidade deste jardim terrestre.

Juntos, fecharam o cerco sobre os dois batimentos cardíacos debaixo deles. Legião tencionava matar o Guerreiro primeiro, mesmo ouvindo agora o estranho bater desse coração, como tinia como um sino dourado: esplêndido, límpido e sagrado. Também se lembrava de como o sangue do Guerreiro queimara um dos seus escravos. Não podia permitir que continuasse vivo.

E a pedra que o Guerreiro possui será minha.

Mas a Mulher... ainda podia vir a ser útil.

Leopold dera o nome dela a Legião: Erin. E, juntamente com o nome, mais pormenores sobre a profecia que lhe estava associada, a esta Mulher Sábia. O respeito e admiração de Leopold pela mente determinada da mulher era facilmente percetível. Juntos num só, Leopold também sabia qual era o objetivo de Legião e que este precisava das três pedras. Leopold acreditava que ela, de todas as pessoas, tinha capacidade para encontrar as outras duas pedras. E, embora não fosse capaz de possuir e subjugar a Mulher à sua vontade, encontraria outras formas de a persuadir, de a submeter.

Por fim, chegaram ao ponto no telhado exatamente por cima daqueles dois batimentos cardíacos. Legião comunicou o seu desejo ao lobo. Patas poderosas começaram a escavar entre as telhas de barro e, em seguida, as garras afiadas despedaçaram o metal verde por baixo delas.

Quando já só restava uma camada fina de madeira, Legião tocou no flanco do lobo, comunicando-lhe o seu apreço e respeito.

— Esta presa é minha — sussurrou ele.

O grimwolf submeteu-se, baixando o focinho, sempre fiel. Legião sentiu o seu amor pela enorme besta selvagem ecoar de volta para si. Sabendo que este o protegeria com a própria vida, Legião aproximou-se da parte destruída do telhado e bateu com o seu calcanhar poderoso no último pedaço de madeira, abrindo caminho, e caiu ruidosamente pelo buraco.

Caiu no chão em baixo, aterrando de pés, sem sequer fletir um joelho.

Deu por si de frente para o Guerreiro, que segurava uma barra de ferro. A Mulher escondeu-se atrás do seu ombro, segurando a lanterna acesa. Estavam ambos preparados, nenhum deles surpreendido, pois tinham ouvido o lobo a esgaravatar, mas ainda assim, Legião deleitou-se com o terror estampado nos seus rostos enquanto contemplavam a sua sombria glória pela primeira vez.

Ele sorriu, mostrando os dentes, revelando as presas de Leopold.

Legião sentiu uma alteração no batimento cardíaco do Guerreiro, em sinal de reconhecimento e alguma confusão.

No entanto, uma emoção era mais forte que todas as outras e estava bem patente nos seus rostos.

Determinação.

Nenhum deles se iria render esta noite.

Que assim seja.

Tudo o que importava era o Cavaleiro, e aquele que se chamava Korza não estava presente.

O Guerreiro empurrou a Mulher — Erin — ainda mais para trás do seu coração dourado, como se o seu corpo por si só pudesse protegê-la de Legião. A luz da lanterna deslizou para o lado quando Erin se mexeu. O feixe de luz recaiu sobre um objeto alto do lado esquerdo de Legião, refletindo-o na sua superfície espelhada, brilhando intensamente numa secção que fora polida há pouco tempo.

O matiz esmeralda captou a atenção de Legião, despoletando nele uma fúria intensa.

Era a odiada campânula.

O fumo dos seiscentos e sessenta e seis rodopiou dentro dele ao reconhecer o aparelho infernal. Serpenteou para cima como uma tempestade negra, remexendo memórias num remoinho incessante. A consciência de Legião fragmentou-se entre o passado e o presente, entre as suas próprias recordações e as de muitos outros.

... ele rasteja pela superfície lisa do diamante verde à procura de uma abertura...

... ele falha seiscentas e sessenta e seis vezes...

Antes que Legião conseguisse recuperar por completo do choque, o Guerreiro caiu-lhe em cima. Mãos impossivelmente poderosas agarraram-lhe os pulsos. Quando aquela pele abençoada pelo sol tocou na sua pele sombria, uma labareda dourada irrompeu entre eles, ardendo do seu braço até ao ombro.

Pela primeira vez numa eternidade, Legião gritou.

19h10

Erin colocou ambas as mãos sobre os ouvidos, largando a lanterna e caindo de joelhos com o ataque. Vieram-lhe lágrimas aos olhos, enquanto se esforçava por não desmaiar.

Tenho de ajudar o Jordan...

A apenas alguns passos de distância, Jordan agarrava com firmeza a cara cor de ébano do monstro. Atirou o corpo do seu oponente com força contra a parede, arrancando-lhe o ar dos pulmões para fazer cessar o grito estridente.

O impacto soltou as telhas do buraco em cima, fazendo com que caíssem com um enorme estrondo no chão do sótão. Erin olhou para cima — e viu um par de olhos a fitá-la intensamente, brilhando em tons de carmesim, revelando a corrupção que existia dentro da enorme criatura.

Um grimwolf.

Por enquanto, o buraco era demasiado pequeno para o seu enorme corpo, mas o lobo escavava nas pontas, alargando o buraco, tencionando claramente ir em auxílio do seu amo. Ao fundo do sótão, Jordan continuava a lutar com o seu sombrio atacante.

Erin recuou até ficar encostada à superfície lisa e coberta de fuligem da campânula de vidro. As suas mãos tatearam o chão à procura de uma arma, mas encontrou apenas a roda dentada que derrubara do gancho anteriormente. Apertou os dedos à sua volta, por muito inútil que pudesse ser.

Ainda assim...

Com as costas voltadas para a campânula, esticou-se até alcançar com os dedos um tubo de vidro comprido que saía de um dos lados da campânula. Virou-se e bateu com a roda dentada de metal na base do tubo, onde este se encontrava ligado à campânula. O tubo soltou-se e caiu ao chão, partindo-se em pedaços mais pequenos.

Erin pegou no mais comprido e grosso de todos.

Com a lança de vidro na mão, virou-se de frente para o lobo. A besta estava quase a passar. Reagindo à postura ameaçadora de Erin, o lobo enfiou a cabeça pelo buraco, abrindo e fechando a boca para ela, com a saliva a pingar dos lábios arreganhados. Mas os seus enormes ombros ainda o impediam de passar.

Pelo menos, por enquanto.

Tencionando aproveitar ao máximo a situação, Erin dirigiu-se para o lugar onde Jordan se debatia com o seu adversário. Parecia que estava a combater a própria sombra. Encontravam-se no chão, a rolar e a lutar, movendo-se a uma velocidade que desafiava os olhos de Erin.

Ela agarrou na sua lança, com medo de falhar o golpe e empalar Jordan em vez de Legião.

E contra o que é que ele estava a lutar, exatamente?

Ela vira o rosto do inimigo quando este caíra do teto. A sua pele era negra, mais escura que o carvão, e pareceu-lhe retrair-se com o brilho ténue da sua lanterna. Lembrava-se de ter visto uma figura sombria semelhante no computador do cardeal Bernard, no vídeo do ataque naquela discoteca em Roma, mas a gravação era pouco nítida para obter pormenores exatos.

Mas agora já não.

Ela reconhecia agora aquelas feições, por mais negras que estivessem.

Irmão Leopold.

Jordan obteve uma vantagem temporária na sua luta e prendeu aquele mistério ao chão com o peso do seu corpo. Ao ficar por cima, Jordan largou o pulso negro de Leopold e agarrou-lhe a garganta.

Erin reparou como o pulso livre de Leopold se tornou pálido, da mesma cor da palma e dos dedos de Jordan, como se aquelas sombras tivessem fugido do toque de Jordan. Enquanto Erin observava, a escuridão voltou a preenchê-lo, correndo como óleo sobre o pulso pálido.

Em seguida, Erin ouviu Jordan arquejar, chamando-lhe a atenção para o rosto de Leopold.

Enquanto Jordan apertava o pescoço do homem, as sombras fugiam da mão que segurava aquele pescoço negro. A escuridão retrocedeu do queixo, da boca e do nariz de Leopold, revelando as feições pálidas do monge.

O seu rosto contorceu-se de agonia, quase não conseguia falar.

— Matem-me — sussurrou Leopold.

Jordan olhou sobre o ombro para Erin, sem saber o que fazer, mas recusando-se a largar o pescoço do homem.

Erin aproximou-se dele rapidamente, na esperança de obter alguma explicação.

— O que lhe aconteceu?

Olhos azul-acinzentados fitaram-na intensamente.

— Legião... um demónio... têm de me matar... não consigo aguentar...

A sua voz sucumbiu à medida que um óleo fumarento começava a fluir pelos seus olhos. A mão que tinha livre atacou Jordan, agarrando-o pelo pescoço — torcendo com força.

Ossos partiram no pescoço de Jordan.

Não...

Um rosnar selvagem ouviu-se atrás dela. Um olhar de relance revelou um grimwolf a passar a parte mais volumosa do seu corpo pelo buraco, determinado a acabar com eles.

19h14

Elizabeth corria pelo telhado molhado e escorregadio atrás de Rhun. Embora fosse um poder profano a impulsionar os seus membros, ela não conseguia acompanhá-lo agora. Ele era um corvo negro a deslizar pelo ar à sua frente, a sua velocidade alimentada não pela maldição, mas pelo medo e pelo amor.

Os dois tinham conseguido lutar e sair da casa, recolhendo Christian, que se encontrava gravemente ferido, pelo caminho. Assim que chegaram ao exterior, barricaram a porta, encurralando dentro da casa o maior número de strigoi possível. Christian mantinha o seu posto na entrada, protegendo a retaguarda.

Mas quando Elizabeth e Rhun chegaram ao telhado — seguindo os sons de luta e os batimentos cardíacos de Erin e Jordan — viram o grimwolf a abrir um buraco entre as telhas, tentando entrar no sótão.

Rhun alcançou a besta antes de Elizabeth e atacou-lhe os flancos, afastando-a do buraco. Elizabeth não abrandou e saltou por cima deles, brandindo a sua espada para baixo em pleno voo, cortando uma das orelhas da besta quando esta levantou a cabeça.

Ela aterrou, escorregando nas telhas molhadas, virando-se para enfrentar o grimwolf, que uivava enfurecido.

À sua direita, Rhun rolou pelo chão e levantou-se, desembainhando a sua karambit de prata. Como se pressentisse qual deles era o mais fraco, a besta baixou a cabeça e posicionou-se para atacar Rhun.

Elizabeth deu um passo em frente, com a intenção de dissuadir o lobo da sua ação — quando um movimento nas sombras lhe chamou a atenção para a esquerda. Uma figura sombria apareceu entre véus de chuva, como se tivesse descido das nuvens. O recém-chegado vestia um hábito preto igual ao de Elizabeth, pelo menos ao que restava dele.

— Sophia...? — chamou Rhun, mas estava enganado.

A luz do clarão de um relâmpago revelou um rosto mais velho por baixo de um ninho húmido de cabelo grisalho. A freira segurava uma cimitarra curva numa das mãos.

— Abigail? — exclamou Elizabeth, com dificuldade em esconder a surpresa.

O que estaria aquela sanguinista de mau temperamento a fazer aqui?

Um relâmpago rebentou com um clarão ainda mais forte, revelando uma nova característica no rosto da freira: a marca negra de uma mão na sua face molhada.

Abigail investiu sobre Elizabeth, movendo-se com a velocidade sobrenatural dos possuídos.

A espada de Elizabeth mal conseguiu defender o primeiro golpe de Abigail. A velha freira antipática rodou para o lado com uma velocidade e uma agilidade que Elizabeth admirou tanto quanto receou. Abigail ergueu a espada novamente, os seus olhos tão mortos como os de um cadáver.

Rhun tentou ir em auxílio de Elizabeth, mas o grimwolf atacou-o. Os dois rolaram pelas telhas. Dentes amarelos rangeram junto ao rosto de Rhun, enquanto a karambit de prata brilhava.

Abigail investiu contra Elizabeth, movendo-se velozmente, já sem a lentidão provocada pela santidade dos sanguinistas. Em vez disso, Abigail estava agora fortalecida por um mal muito mais obscuro que o próprio coração de Elizabeth.

Elizabeth fintou-a pela direita e conseguiu golpear o ombro esquerdo de Abigail.

A freira não deu qualquer sinal de que estava ferida. A sua espada atacou uma e outra vez. Elizabeth esforçou-se por deter a chuva de golpes, mas os ataques de Abigail eram rápidos e certeiros.

O último golpe fez um corte profundo até ao osso na coxa de Elizabeth.

A sua perna cedeu e Elizabeth caiu.

A freira avançou na sua direção, implacável como o mar.

19h18

Erin ouvia sons de luta e uivos vindos do telhado. Há apenas um momento, um vulto escuro derrubara o grimwolf para longe do buraco, salvando-a. Havia apenas uma pessoa tão intrépida e corajosa.

Rhun...

Ganhando coragem, Erin aproximou-se de Jordan e da forma possuída de Leopold. Jordan ainda estava em cima do monstro, mas a mão negra do demónio continuava a estrangulá-lo, fazendo com que o seu rosto ficasse roxo e parecesse que os seus olhos iam saltar das órbitas.

Jordan viu-a aproximar e, com toda a força que lhe restava, rolou para o lado, arrastando o corpo de Leopold para cima dele, de forma que o antigo monge ficasse de costas para ela.

Ela queria hesitar. Leopold fora seu amigo; ele salvara-lhe a vida mais do que uma vez no passado. No entanto, aproximou-se rapidamente dele, erguendo no ar a sua única arma: uma lança de vidro partido.

Apunhalou-o com a força de ambos os braços, trespassando Leopold pelas costas, fazendo pontaria ao coração morto.

Um rugido de dor irrompeu da garganta de Leopold. A mão que apertava o pescoço de Jordan abriu-se. O corpo de Leopold caiu para o lado, como se um fio tivesse sido cortado. Os seus dedos tremeram uma vez, ficando imóveis de seguida.

Embora já estivesse livre, Jordan continuou deitado de costas, o seu rosto virado para o lado. Erin caiu de joelhos junto dele. O seu pescoço estava ferido até ao osso. Um nódulo duro projetava-se para fora da zona cervical. A sua coluna fora partida.

— Jordan? — chamou ela suavemente, demasiado receosa de o mover.

Ele não respondeu, mas outra voz ténue sim.

— Erin...

Virou-se e viu Leopold a olhar para ela. A escuridão abandonara-lhe o rosto, juntamente com o sangue negro que fluía do seu peito empalado. Ela sabia que os sanguinistas conseguiam controlar o seu próprio sangramento, fazendo-o parar.

Leopold não o fazia, claramente querendo morrer.

A dor invadiu-a, sabendo que existia bondade no interior do antigo monge, embora tivesse sido corrompida.

— Já me salvaste antes — murmurou ela, lembrando-se daqueles túneis escuros por baixo da Basílica de São Pedro.

Uma mão fria tocou-lhe no pulso.

— ... salvaste-me.

Ele acenou ligeiramente com a cabeça, reconfortando-a.

Erin deixou escapar um soluço.

Mesmo na hora da morte, ele tentava consolá-la.

A voz dele tornou-se tão ténue como um sussurro.

— Legião...

Erin aproximou-se dele, detetando a urgência na sua voz.

— Três pedras... Legião quere-as...

— Do que estás a falar? Quais pedras?

Leopold parecia surdo às palavras de Erin, já há muito morto, falando do que parecia ser o outro lado do mundo.

— O jardim... corrompido... selado pelo sangue, banhado pela água... é para aí que Lúcifer vai...

Em seguida, aqueles olhos azuis ficaram vidrados, aqueles lábios silenciosos para sempre.

Erin queria abaná-lo para obter mais respostas, mas, em vez disso, tocou na face de Leopold.

— Adeus, meu amigo.

19h20

Caída no telhado, Elizabeth amaldiçoou a sua perna ferida.

Abigail aproximou-se dela, cheirando a algodão molhado. O clarão iluminou a lâmina erguida. Os seus olhos mortos olhavam para baixo, para Elizabeth, não de forma fria, mas com a intensidade de um predador indiferente.

Do outro lado do telhado, Rhun debatia-se com o grimwolf, ambos ensanguentados, mas ainda a lutar.

Desarmada, Elizabeth preparou-se para o ataque. O arrependimento percorreu-lhe o corpo. A sua morte selaria o destino de Tommy. Ela não fora capaz de salvar os seus próprios filhos e também não salvaria esta criança.

Em seguida, o lobo uivou, um som nunca dantes ouvido.

Um som repleto de raiva, dor e choque.

Viu o grimwolf investir sobre Rhun, derrubando-o para longe, depois virar-se e fugir — na direção de Elizabeth e Abigail.

— Foge! — A palavra foi proferida com uma autoridade que lhe era familiar, vinda de cima dela.

Elizabeth olhou para cima, para Abigail. Os olhos da freira estavam agora focados, brilhando de fúria. A sua face não tinha qualquer mancha, a marca desaparecera da sua carne.

Abigail agarrou em Elizabeth, puxou-a para cima e empurrou-a para o lado.

— Vai!

Elizabeth fugiu aos tropeções, enquanto Abigail erguia a sua cimitarra e enfrentava a besta que entretanto se aproximara. As patas do grimwolf deslizaram, as suas garras fincaram-se e partiram umas quantas telhas. Fitou intensamente Abigail, parecendo momentaneamente estupefacto com esta ameaça por parte de um antigo aliado. No entanto, não demorou muito até a confusão dar lugar à raiva, e saltou para cima da velha freira.

Abigail brandiu a sua espada. Muito mais lenta agora, falhou, e os dentes do grimwolf cravaram-se no seu braço. Ainda assim, forçou as pernas a empurrar, arrastando a enorme besta apenas com a sua força. Chegou à beira do telhado e atirou-se, levando consigo a besta.

Elizabeth coxeou até à beira do telhado a tempo de ver os seus corpos a embater no passeio, quatro andares abaixo. Abigail parecia uma boneca partida, os seus membros arqueados, o pescoço torcido. Sangue negro escorreu para a sarjeta. O grimwolf sobreviveu, de algum modo, à queda. Levantou-se cambaleante, depois fugiu por entre as sombras.

Em baixo, Christian surgiu a cambalear na rua. Tinha um par de strigoi no seu encalço, mas, tal como o lobo, também essas criaturas fugiram, largando as armas e desaparecendo na noite.

Do outro lado do telhado, Rhun dirigiu-se a correr para o buraco escavado pelo grimwolf e desceu para o sótão, para ver como estavam os outros.

Sozinha no telhado, Elizabeth manteve-se de pé, pensando no que teria mudado tão de repente o curso desta batalha. Veio-lhe à cabeça a imagem da marca a desaparecer da face de Abigail. Era evidente que a mulher se conseguira libertar da sua possessão.

Seria essa a razão por que os outros também tinham fugido?

Mas algo lhe pareceu estranho. Elizabeth olhara brevemente nos olhos do grimwolf antes de ele atacar e fugir. Ela vira a sua inteligência — bem mais elevada do que uma besta comum devia possuir, mesmo uma tão corrompida.

Mas o que é que isso significava?

Elizabeth estremeceu com medo da resposta.

19h25

— Não consigo fazer com que o Jordan me responda — disse Erin a Rhun, feliz por o ter ao seu lado. — E olha para o pescoço dele.

Jordan encontrava-se deitado no chão junto ao corpo de Leopold. As nódoas negras tinham desaparecido, mas ainda era visível uma saliência perturbadora na sua vértebra cervical. Ela verificou-lhe o pulso suavemente. Sentia um batimento cardíaco estável por baixo dos dedos, tão lento e constante como se ele estivesse simplesmente a dormir.

— Jordan! — chamou ela, com medo de o abanar. — Acorda!

Jordan não deu qualquer resposta, os seus olhos abertos limitavam-se a fitar em frente.

Rhun parecia igualmente preocupado. Já examinara Leopold, pressionando a sua cruz de prata contra a testa do monge. A prata não lhe queimara a pele, o que sugeria que o mal saíra de dentro dele.

Mas para onde fora era uma preocupação para mais tarde.

Um grito abafado surgiu de baixo das tábuas de madeira do chão do sótão.

— Erin! Jordan!

Erin endireitou-se, virando o tronco para olhar para a porta do sótão, lembrando-se subitamente:

— A Sophia ainda está lá em baixo.

Com um grimwolf.

Mas essa não era a única ameaça.

Erin reparou no fumo que subia por entre as tábuas do chão. Rhun aproximou-se e abriu a porta do sótão. Uma onda de calor irrompeu, trazendo consigo mais uma nuvem de fumo.

Erin tossiu, tapando o nariz com o interior do cotovelo.

Rhun esticou-se e ajudou a puxar Sophia para o sótão. A pequena sanguinista estava coberta de sangue — algum seu, algum do grimwolf. Ela tentou compor a roupa esfarrapada.

— O lobo fugiu — disse Sophia, os olhos ainda a revelar algum pânico. — Não sei porquê.

Erin olhou para Leopold, adivinhando o que mudara.

Um ruído de passos por cima das suas cabeças chamou-lhes a atenção para o buraco. Ficaram todos tensos, na expetativa de terem mais problemas, mas foi Christian que espreitou pelo buraco.

— Temos de ir — avisou ele. — Parece que isto vai tudo ruir.

Trabalhando depressa, Sophia e Rhun levantaram Jordan. Passaram-no a Christian, que lhe pegou nos ombros e o içou para o telhado com a ajuda de Elizabeth.

Rhun virou-se para Sophia.

— Ajuda-os a levar Jordan para a rua. Eu e Erin vamos a seguir. Vamos para a Igreja de Santo Inácio. Devemos conseguir esconder-nos lá.

Com um aceno de cabeça, Sophia levantou-se de um pulo, aproximou-se da beira do telhado e desapareceu.

Rhun virou-se para Erin.

— E o corpo de Leopold? — perguntou ela.

— O fogo tratará disso.

Um arrependimento profundo percorreu-a, mas sabia que não tinham escolha. Rhun ajudou-a a sair pelo buraco no telhado. O ar frio e a chuva límpida ajudaram-na a refrear a sensação de desespero.

O Jordan vai ficar bom.

Ela recusava-se a acreditar no contrário. Examinou o telhado, mas os outros já tinham desaparecido, levando consigo a figura comatosa de Jordan. Sem o querer perder de vista muito tempo, dirigiu-se apressadamente para a beira do telhado com Rhun.

— Eu levo-te para baixo — disse ele, estendendo os braços para ela.

Erin virou-se para ele com um sorriso agradecido — quando o telhado por baixo dela ruiu.

Erin mergulhou na escuridão quente e cheia de fumo.


CAPÍTULO 22

18 de março, 19h29 CET
Praga, República Checa

Rhun caiu com Erin.

Agarrou o braço dela e puxou-a com força contra o seu peito. Colocou os seus braços e pernas à volta de Erin para a proteger quando se despenharam no meio de madeira a arder, fumo e uma chuva de argamassa. Depois bateram num piso ainda intacto. Deu o seu melhor para rolar, a fim de atenuar a força do impacto.

Parou de joelhos, abraçando a forma inerte de Erin. Ela estava atordoada. Sangue corria-lhe pela face de uma ferida profunda na cabeça. Chamas e fumo redemoinhavam à sua volta, mas ele reconheceu o quarto circular onde tinham aterrado: a velha sala de alquimia de Edward Kelly.

Ergueu Erin, sentindo os pulmões dela lutarem com o fumo, ouvindo o palpitar fraco do seu coração à medida que ela sufocava. Rhun tropeçou, meio cego, em direção à parede, tencionando deslocar-se junto desta até à porta e depois até à janela.

Sobre a sua cabeça, ouviu-se um estrondo quando outra trave do teto cedeu. Alguma coisa muito grande desabou em cima. Chamas irromperam com uma tonalidade esverdeada, brilhando através do vidro.

A campânula.

Por instinto, Rhun ergueu o braço, protegendo Erin, escudando-a com o seu corpo. A campânula atingiu o seu braço e as costas, atirando-o para o chão. Vidro grosso estilhaçou-se sobre ele, cortando-lhe o braço e o ombro, golpeando os músculos e quebrando os ossos.

A dor cegou-o e ele gritou.

Erin ouviu e estremeceu por baixo dele.

— Rhun...

Ele rolou de cima dela, cortando ainda mais a sua carne.

— Vai — murmurou.

Ela gatinhou, livre, mas, em vez de seguir a sua ordem, agarrou no braço ileso de Rhun e tentou arrastá-lo para longe dos destroços da campânula. Antes de o conseguir, o chão enfraquecido pelo fogo cedeu sob o peso da campânula partida. Enquanto as tábuas queimadas caíam por baixo dele, Rhun virou-se e viu a forma vacilante de Leopold precipitar-se do sótão em cima, seguindo os destroços da campânula quebrada, caindo para os alicerces em chamas da casa.

O corpo de Rhun deslizou também nessa direção, mas Erin arrastou-o para longe do buraco, mantendo-o no quarto circular. A dor consumia-o, mas ele forçou-se a reagir, a ficar naquele quarto com Erin. Não podia deixá-la, ainda lhe podia ser útil.

O fumo fervilhante invadia o quarto pelo buraco em baixo aberto pela campânula. O vento levou-o para cima através daquela espécie de chaminé para o telhado. A maior parte do chão já tinha ardido. As chamas rugiam por baixo deles.

Erin amparou-o, protegendo-o por sua vez como ele fizera. Tinha-o arrastado para junto da parede. Rhun desejou que ela o tivesse abandonado e fugido.

— Deixa-me — forçou-se Rhun a dizer, virando o rosto na direção da porta, na direção do débil brilho do candeeiro da rua que se avistava entre o fumo. — Tenta sair pela janela...

Sangue frio jorrava-lhe de lado. Ele tinha estado envolvido em batalhas suficientes para reconhecer um ferimento mortal. Mas talvez Erin conseguisse trepar por aquela janela, descer pela fachada e escapar-se para a segurança. Ela não precisava de morrer com ele.

Porém, ela recusou-se a abandoná-lo. Em vez disso, tirou o seu cinto de couro, pô-lo à volta do ombro dele e apertou-o com força.

Rhun arquejou com a dor.

— Desculpa — disse ela, tossindo. — Tenho de parar a hemorragia.

Rhun olhou para onde o cinto estava apertado.

Sob o cinto, o seu braço tinha desaparecido, cortado pela campânula partida.

19h33

Erin pressionou o seu punho contra os lábios de Rhun.

— Bebe — ordenou-lhe.

O torniquete abrandara a hemorragia a um fio, mas ele não sobreviveria muito mais tempo sem um fornecimento fresco de sangue.

Sem forças, Rhun virou a cabeça para o lado, recusando.

— Raios te partam, Rhun. Tu precisas da força do meu sangue. Peca agora, arrepende-te depois. Não te vou deixar e não consigo carregar-te sozinha.

Ela abanou-o, mas ele descaiu contra ele, inconsciente.

Ela tentou fazê-lo deslizar para junto da porta, mas Rhun era demasiado pesado. Erin mal conseguia respirar; os seus olhos inundaram-se de lágrimas, tanto por causa do fumo como da frustração.

A alguns metros, uma viga rachou e cedeu. Outra secção do chão precipitou-se para o fogo que ardia em baixo. O calor atingiu-a na face, tão escaldante como a boca de uma fornalha. As chamas rugiram na sua direção.

Então, o fumo transferiu-se para a porta, abrindo-a e permitindo que uma sombra escura voasse para dentro do quarto.

Christian caiu em cima dela como um anjo negro. Devia ter seguido o batimento do coração de Erin. Fez um gesto para a agarrar, mas ela empurrou Rhun para os braços dele.

— Leva-o — disse ela, tossindo.

Ele obedeceu, carregando Rhun sobre o seu ombro e puxando-a com a outra mão. Arrastou-a aos tropeções para um ar mais fresco. Os calcanhares dela pisaram vidro partido até à janela do quarto andar. Christian devia tê-la partido para chegar a eles.

— Como é que vais...? — começou ela a dizer.

Movendo-se rapidamente, agarrou nela, içou-a e lançou-a pela janela. Ela caiu a pique com um grito preso na sua garganta. O chão corria para ela — e então Elizabeth e Sophia apareceram em baixo. Mãos agarraram-na antes que ela se esmagasse no empedrado, amortecendo a queda, mas ela bateu no passeio com força suficiente para abanar os seus dentes.

Virou-se a tempo de ver Christian bater no chão a alguns metros dela, rebolando pelo empedrado e erguendo-se com facilidade com Rhun nos seus braços.

Aliviada, Erin ficou sentada nas pedras molhadas, a tossir. Entre cada ataque de tosse, aspirava todo o ar fresco que conseguia. Os seus pulmões doíam.

Uma forma agigantou-se sobre ela, depois ajoelhou-se ao seu lado.

— Erin, estás bem?

— Jordan...

Os olhos dele brilharam. Tinha voltado a si de novo. Lágrimas assomaram aos olhos de Erin, mas a preocupação ainda se fazia sentir.

— O teu pescoço?

Ele esfregou a parte de trás do colarinho, parecendo encabulado.

— Ainda dói como mer... quer dizer, dói imenso.

Ele sorriu-lhe.

Tinha-se curado.

Outra vez.

— Anda — disse ele, mudando de assunto. — Temos de ir.

Ele ajudou-a a levantar-se e os seus braços envolveram-na com força. Os joelhos dela vacilaram, mal conseguindo mantê-la de pé. Ela olhou para ele, absorvendo a visão dele.

— Não faças isso outra vez — murmurou ela. — Não me deixes.

Porém, ele parecia não a ouvir.

Em vez disso, virou-a na direção de Christian, onde Elizabeth ajudava o sanguinista com o corpo de Rhun. Este já parecia morto, a sua cabeça pendia inerte, os seus membros sem vida. O sangue ainda saía do torniquete que Erin fizera.

Sophia correu para o lado de Jordan.

— Temos de o levar para Santo Inácio. Para a nossa capela. Depressa.

A mulher franzina conduziu-os rapidamente pela praça escura, varrida pela chuva. Erin tropeçava atrás dela, com Jordan a ampará-la.

A Casa de Fausto enraivecia-se atrás deles à medida que o fogo consumia os seus segredos.

À frente, uma luz tremeluzia do halo dourado que rodeava a figura no topo da Igreja de Santo Inácio. Sophia evitou a fachada barroca e dirigiu-se a uma secção da parede lateral protegida por uma grande árvore. Uma pequena bacia de mármore projetava-se da parede, como a pia batismal que contém a água sagrada no limiar de uma igreja. A freira desnudou um corte gotejante no seu braço e deixou o seu sangue cair sobre a água.

Pedra raspou contra pedra e uma pequena porta abriu-se para eles.

Elizabeth envolveu Rhun nos seus braços e carregou-o para dentro. Todos a seguiram, mas Sophia demorou-se atrás do portal, onde murmurou «Pro me».

Erin olhou de relance para trás, lembrando-se de que o cardeal Bernard proferira aquelas mesmas palavras para se trancar na capela em São Marcos, de modo que só um trio de sanguinistas pudesse abrir a porta. Sophia devia ter feito a mesma coisa, temendo que as forças escravizadas de Legião ainda estivessem nas redondezas, em especial algumas que pudessem ser sanguinistas.

Mesmo aqui, poderiam não estar em segurança.

A porta fechou-se atrás de Sophia e a escuridão engoliu-os.

Ouviu-se o raspar de um fósforo e uma vela acendeu-se à frente de Erin. Christian usou essa chama para acender mais velas, iluminando lentamente uma simples capela de pedra. Erin entrou. Um teto abobadado de tijolo caiado abria-se sobre as suas cabeças e simples paredes brancas de gesso rodeavam-nos. O cheiro de incenso e vinho envolveu-a, confortando-a e prometendo-lhe proteção.

Entre filas de bancos grosseiramente talhados, um corredor levava a um altar coberto com um pano branco e coroado por uma pintura de Lázaro a receber o seu primeiro vinho das mãos de Cristo. Os seus olhos castanhos brilhavam de convicção e Cristo sorria-lhe.

Christian dirigiu-se a um armário ao lado do altar e retirou dele uma caixa branca de metal com uma cruz vermelha na frente. Um kit de primeiros socorros. Entregou-o a Jordan, enquanto Sophia se deslocava para trás do altar para um tabernáculo de prata. Abriu-o e tirou lá de dentro frascos com vinho abençoado, o equivalente dos kits de primeiros socorros para os sanguinistas.

Elizabeth pousou a forma inerte de Rhun em frente do altar. Despiu-lhe os restos do casaco e da camisa, expondo o seu braço e peito. Centenas de ferimentos profundos e escuros revelaram-se na pele pálida, mas nenhum era tão grave quanto o braço amputado.

Elizabeth examinou o torniquete, depois os seus olhos da cor da prata encontraram os de Erin.

— Fizeste um bom trabalho — disse a condessa —, obrigada.

Erin detetou um reconhecimento sincero na voz dela. Por muito que tentasse negá-lo, Elizabeth preocupava-se com Rhun.

Erin acenou com a cabeça, levando a mão à boca face a um forte acesso de tosse. Jordan colocou-se ao seu lado e levou-a para um banco. Ela pousou a sua mochila e ele abriu o kit de primeiros socorros, procurou no seu interior e retirou duas pequenas garrafas de água. Entregou-lhe uma delas. Enquanto ela bebia um grande gole, ele usou a outra para molhar um pano.

Gentilmente, limpou o rosto de Erin. As suas mãos percorreram suavemente o corpo dela, em busca de ferimentos graves, despertando sensações completamente inapropriadas numa capela cheia de padres. Ela deu por si a fitá-lo.

Jordan fitou-a por sua vez, depois inclinou-se e beijou-a lenta e demoradamente.

Por muito que ela quisesse acreditar que este gesto de afeição era um gesto de paixão, não podia deixar de sentir que era também um beijo de despedida. Quando ele por fim se afastou, as suas sobrancelhas franziram-se quase impercetivelmente. Ele limpou as lágrimas do rosto dela, não compreendendo a razão do seu choro.

— Estás bem? — murmurou ele.

Ela engoliu, anuiu com a cabeça e secou os olhos.

— É demasiado...

Erin tentou respirar fundo, mas uma dor aguda no peito deteve-a. Podia ter uma costela fraturada. Porém, as suas lesões eram de somenos importância comparadas com as de Rhun.

Os sanguinistas ajoelharam-se à volta do corpo dele.

Porém, estavam a tentar curá-lo... ou a despedir-se?

20h04

Elizabeth pôs algumas gotas de vinho na boca de Rhun, com a frustração a invadi-la e a fazer tremer os seus dedos. O vinho espalhou-se pela face de Rhun abaixo.

Christian aproximou-se e firmou as suas mãos.

— Deixa-me ajudar — sussurrou ele, retirando o frasco de prata dos seus dedos a escaldar.

Ela afastou-se, esfregando a palma das mãos nos joelhos, tentando fazer desaparecer a santidade do vinho e o ferrão da prata. Ficou a olhar horrorizada para o corpo destroçado de Rhun. Tinham-no despido deixando-o praticamente nu, com pouco mais que o pano nas virilhas que Cristo usava na cruz sobre o altar. Mas nem mesmo Cristo tinha sofrido tanto. Ela leu o mapa da agonia de Rhun nas centenas de cortes e na pele dilacerada. O seu olhar parou no coto do braço, que fora cortado entre o ombro e o cotovelo.

As lágrimas subiram-lhe aos olhos, desfocando a sua visão, como se para apagar a terrível imagem.

Ela enxugou-as com raiva.

Eu darei testemunho... por ti, Rhun.

Enquanto Christian continuava a fazer gotejar vinho entre os lábios exangues de Rhun, Sophia passava um pano molhado em vinho sobre os seus ferimentos, limpando-os, queimando-os com a sua santidade. De cada vez que o tocava, a pele de Rhun retraía-se de dor.

Elizabeth procurou a sua mão, segurou-a, querendo afastar dele aquela agonia, mas pelo menos era evidente que Rhun ainda estava vivo, enterrado profundamente no seu corpo destroçado.

Volta para mim...

Sophia pegou num frasco de vinho e despejou-o sobre o coto dilacerado do braço de Rhun. O corpo dele arqueou-se, levantando as nádegas do chão, a sua boca aberta num grito. A sua mão apertou os dedos de Elizabeth, esmagando-os, mas ela aceitava aquela dor se isso o ajudasse mesmo que ligeiramente.

Por fim, o corpo dele afundou-se de volta ao chão.

Sophia sentou-se sobre os calcanhares, o seu rosto era uma máscara de preocupação.

— Será que ele consegue recuperar com o vinho? — perguntou Elizabeth.

— Ele precisa de descansar — retorquiu Sophia, parecendo que estava a tentar convencer-se a si própria.

— Ele precisa de beber sangue — disse Elizabeth, deixando uma ponta de fúria entrar na sua voz. — Todos vocês o sabem e, no entanto, não vão fazer nada, a não ser torturá-lo.

— Ele não deve beber sangue — argumentou Sophia. — Pecar nesta capela retirar-lhe-ia a força da santidade deste local. Poderia matá-lo ainda mais rapidamente.

Elizabeth não sabia se acreditava nela ou não. Considerou levar o seu corpo e fugir daquele lugar. Porém, o chão sagrado enfraquecia-a e aqueles dois sanguinistas tinham bebido o vinho, retirando força adicional do sangue de Cristo.

E o que faria eu com Rhun sozinha nestas ruas desertas?

Se ele deve morrer, que seja num lugar que ame.

E ao lado daqueles que o amavam.

Ela apertou a mão dele.

Uma voz fez-se ouvir atrás dela.

— A Elizabeth tem razão — disse Erin. — Rhun precisa de sangue para viver.

Christian olhou com tristeza para ela.

— Sophia disse a verdade. Ele não o deve beber. O pecado seria...

— Quem disse que ele tem de o beber? — retorquiu Erin, ajoelhando-se junto deles. Tinha um punhal na mão. — E se eu banhar as suas feridas com o meu sangue? Estou disposta a arcar com esse pecado, se é que é um pecado.

Christian trocou um olhar esperançado com Sophia.

— Não — disse Sophia com voz firme. — Pecado de sangue é pecado de sangue.

Christian pareceu menos seguro.

Erin encolheu os ombros.

— Vou fazê-lo.

Elizabeth sentiu uma explosão de afeição pela coragem de Erin.

— Não o permitirei — exclamou Sophia, movendo-se para a deter.

Christian parou Sophia com uma mão.

— Não temos nada a perder por tentar.

— Exceto a sua alma eterna.

Sophia tentou empurrá-lo para o lado, mas Elizabeth juntou-se a ele, mantendo Sophia afastada de Erin.

Os olhos de Elizabeth encontraram os de Erin.

— Fá-lo.

Com um aceno de cabeça, Erin cravou a lâmina na palma da sua mão. A arqueóloga estremeceu de dor, mas manteve-se firme. O cheiro do sangue fresco, impulsionado para fora por um forte batimento cardíaco cheio de vida, encheu a pequena capela.

Elizabeth sentiu os dois sanguinistas agitarem-se, arquejando face ao cheiro. Os seus corpos feridos pediam-lhes que bebessem a vida oferecida naquela poça carmesim na palma da mão de Erin. Elizabeth cheirou-o, também, imaginando a sua doçura dentro dela, mas ela não se negava sangue há tanto tempo como os outros. Podia resistir-lhe.

E este sangue não me é destinado.

Erin inclinou-se sob a forma nua de Rhun. Ela molhou os seus dedos na escuridão da poça na sua mão e baixou-se para pintar suavemente com o seu sangue quente a pele fria de Rhun. De novo, a carne de Rhun retraiu-se sob o seu toque, mas não era dor o que o fazia arrepiar-se.

Era prazer.

Os seus lábios entreabriram-se deixando escapar um gemido suave.

Elizabeth lembrou-se de ter ouvido aquele mesmo gemido no seu ouvido, há muito tempo, recordando-o em cima dela, abraçando-a.

Erin continuou a sua tarefa, manobrando meticulosamente, não falhando nenhum ferimento. Por fim, olhou para baixo, para o osso e o músculo dilacerados, com o sangue negro a gotejar lentamente. Erin virou-se para Elizabeth, como que a pedir-lhe permissão.

Ela acenou impercetivelmente com a cabeça.

Fá-lo.

Erin massajou o seu antebraço com a mão ilesa, obrigando mais sangue a sair da palma da mão. Só depois de o sangue escorrer pelos seus dedos é que ela agarrou a ponta do braço de Rhun, derramando a sua vida sobre o brutal ferimento.

Rhun estremeceu violentamente, as suas costas arquearam-se, enquanto Erin mantinha a sua mão no braço dele.

Um grito escapou da sua boca, um grito de êxtase tão primitivo que Sophia se afastou.

Ou talvez a freira se esquivasse da prova concreta do prazer de Rhun. O pano que lhe cobria as virilhas de pouco servia para disfarçar o seu crescente ardor, revelando o homem dentro da besta, o desejo sexual que o colarinho branco do seu cargo nunca poderia refrear inteiramente.

Elizabeth lembrava-se disso, também, caindo de imediato no passado, sentindo-o profundamente dentro dela, tumefacto ali, os dois tornando-se um.

Quando Rhun desabou para trás no chão de pedra, Erin finalmente parou. Rhun estava ali estendido, todo o seu corpo tremia suavemente, cansado mas claramente mais forte.

Os muitos pequenos cortes tinham-se fechado.

Mesmo o seu braço dilacerado tinha deixado de sangrar, a carne já cobria o osso.

Christian suspirou fundo.

— Acho que ele vai sobreviver... com mais descanso.

Até Sophia o reconheceu.

— O vinho deve ajudá-lo até se curar.

Erin manteve-se ajoelhada. Jordan dirigiu-se a ela e tratou o seu ferimento que dera a vida a Rhun, ligando-o. Erin submeteu-se aos seus ternos cuidados.

— O braço dele... — disse ela, com os olhos ainda cravados em Rhun. — Vai... vai...?

Jordan acabou a frase por ela, com a voz firme.

— Vai voltar a crescer?

— Com o tempo... muitos meses, senão anos — respondeu Christian. — Para esse milagre, ele ainda vai precisar de muito mais descanso.

— Quais são as implicações disso para a nossa demanda? — indagou Jordan.

Ninguém tinha uma resposta, apenas mais perguntas.

— Nem sabemos para onde devemos ir — disse Sophia, com uma voz derrotada. — Não aprendemos nada com todo este derramamento de sangue.

Erin abanou a cabeça.

— Isso não é verdade.

Todos os olhos se viraram para ela.

Ela falou com segurança.

— Eu sei do que é que andamos à procura.

20h33

— O que queres dizer com isso? — perguntou Christian.

— Dá-me um minuto.

Erin levantou-se, auxiliada por Jordan, mas libertou-se dos seus braços. Precisava de se afastar um pouco dele, de toda a gente. Ela estremeceu, lembrando-se do que sentira quando segurara o braço de Rhun. Durante alguns instantes, sentira a sua paixão ardente, a sua tensão sexual, o prazer angustiante do sangue dela a espalhar-se pelo seu corpo, dissolvendo-a em si, os dois a tornarem-se um só.

Ela fechou a mão ligada num punho, interrompendo essa memória.

Jordan tocou-lhe no ombro.

— Erin? — Os seus olhos azuis fitavam-na com preocupação. Ela afastou-se, precisando de se manter em movimento.

Eu fiz o que tinha de fazer... nada mais.

Ainda assim, uma pontada de culpa atingiu-a. Ela e Rhun tinham partilhado um momento de intimidade nesta igreja à frente de toda a gente.

Dirigiu-se para a sua mochila e abriu-a com os dedos a tremer. Enfiou a mão no interior e deixou a sua palma pousar sobre a pasta que continha o Evangelho de Sangue. Reuniu forças da sua presença, depois retirou o molho de papéis que recuperara do interior da campânula. Empilhou os papéis em cima do banco corrido.

— Acho que estes são os antigos apontamentos de John Dee — disse ela. — Mas não tenho a certeza porque estão escritos em enoquiano.

Elizabeth levantou-se e foi para junto dela.

— Deixa-me ver. — Elizabeth deu uma vista de olhos rápida, folheando as páginas. — Isto é, sem dúvida, de John Dee. Reconheço a caligrafia.

— Consegue traduzir o enoquiano? — perguntou Erin.

— Claro que sim. — Elizabeth instalou-se no banco. — Mas vai demorar algum tempo.

— Por agora, pode dar uma vista de olhos rápida e procurar alguma referência ao diamante verde?

— Sim, mas porquê?

Christian ecoou a sua pergunta.

— Erin, o que é que sabes?

Ela voltou-se para ele, deixando que a dor da morte de Leopold a recompusesse.

— Muito pouco. Mas antes de morrer Leopold libertou-se do demónio que o possuía.

— Que demónio? — perguntou Sophia.

Erin respirou fundo, lembrando-se de que só ela ouvira as últimas palavras de Leopold.

— Ele chamou-lhe Legião.

Christian olhou de relance para Sophia.

— Esse demónio é mencionado na Bíblia.

Sophia anuiu.

— Cristo expulsou-o, mas não antes de o confrontar, perguntando-lhe o nome. «E ele respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos.»

— Pois nós somos muitos — repetiu Erin, considerando aquelas palavras. — Poderá ser essa a natureza deste demónio? A de possuir muitos?

— Não há dúvida de que parecia capaz de subjugar outros à sua vontade — disse Elizabeth, enquanto começava a ler cuidadosamente a pilha de papéis velhos. — Até mesmo a irmã Abigail.

— Mas a nós não — interrompeu Jordan, acenando para Erin. — Eu lutei com ele, mas ele não me conseguiu possuir.

— Talvez ele consiga apenas controlar aqueles que já estão corrompidos — sugeriu Sophia com uma expressão preocupada. — Uma erva daninha precisa de solo onde crescer. Talvez ele precise que essa escuridão já lá esteja antes de se poder enraizar em alguém.

— Se este demónio é como uma erva daninha — perguntou Christian —, poderá ele ter sobrevivido à morte de Leopold?

— Não sei — admitiu Erin. — Mas Leopold disse que Legião estava à procura de três pedras. — Ela olhou diretamente para Jordan. — Ele mandou um dos seus escravizados para aquele templo em Cumas. Talvez quisesse o que restava do diamante verde.

— Talvez — concordou Jordan. — Ou talvez só me quisesse matar. Raios, esteve bastante perto de o fazer.

— Não, eu acho que ele queria a pedra.

— Porque tens tanta certeza? — indagou Christian, depois acrescentou com um ligeiro sorriso: — Não que eu esteja a duvidar da Mulher Sábia.

— Pelas últimas palavras de Leopold, mesmo antes de morrer. Mencionou algo sobre um jardim corrompido... selado pelo sangue, banhado pela água. Deu a entender que era aí que Lúcifer se iria erguer.

— Mas que jardim? — indagou Christian. — O que é que isso significa?

— Talvez o Jardim do Éden? — sugeriu Sophia.

Erin olhou para o vazio, murmurando entredentes.

— Não pode ser só uma coincidência.

Jordan tocou-lhe no ombro.

— O quê?

Erin virou-se de frente para os outros.

— Aqueles três frescos no laboratório de alquimia de Kelly. Arbor, Sanguis e Aqua. Representam jardim, sangue e água.

Christian esfregou o queixo.

— Símbolos que refletiam as últimas palavras de Leopold.

— E Legião está à procura de três pedras — acrescentou Erin. — Talvez espelhem o mesmo. Arbor, Sanguis e Aqua.

Jordan retirou do bolso as duas metades do diamante em tons de esmeralda.

— Este talvez represente o arbor. É verde como um jardim.

Ela anuiu.

— E sabemos que não é apenas um simples diamante. Tem aquele símbolo fundido no seu interior. Além disso, era capaz de conter os espíritos fumarentos de mais de seiscentos strigoi.

— E, eventualmente, o próprio Legião — acrescentou Christian.

Erin tocou no diamante com a ponta do dedo.

— Talvez tenha sido por essa razão que Leopold descreveu o jardim, esta pedra, como corrompido. Estava contaminada com o mal.

— Se estiveres correta — disse Elizabeth do banco onde estava sentada —, então devem existir mais duas gemas. Sanguis e Aqua.

Erin detetou algo na voz da condessa e virou-se para ela.

— Sabe alguma coisa sobre as pedras?

— Não — respondeu Elizabeth, mas a sua expressão continuava pensativa. — Mas talvez devêssemos perguntar ao homem que enviou a pedra verde a John Dee.

Erin virou-se de frente para ela.

— E quem é ele?

Elizabeth ergueu uma folha amarelada de papel antigo com um sorriso.

— Está aqui uma carta para John Dee do homem que lhe enviou a pedra.

Erin aproximou-se para a ver, mas reparou que a página estava escrita em enoquiano.

Elizabeth usou um dedo para sublinhar um conjunto de símbolos.

— Este é o nome dele — esclareceu Elizabeth. — Hugh de Payens.

O nome pareceu familiar a Erin, mas não o conseguia situar. A exaustão fazia com que fosse difícil pensar.

Christian aproximou-se com o rosto franzido.

— Não pode ser.

— Porque não? — perguntou Jordan.

— Hugh de Payens era um sanguinista — explicou Christian. — Do tempo das Cruzadas.

De súbito, Erin lembrou-se do nome do homem e do seu proeminente lugar na História.

— Hugh de Payens... não foi ele quem, com Bernard de Clairvaux, fundou a Ordem dos Cavaleiros Templários?

— Ele mesmo — respondeu Christian. — Mas, na verdade, ele fundou a Ordem Sanguinista desses cavaleiros. Nove cavaleiros unidos pelo sangue.

Erin franziu a testa, recordando que a história que lhe tinham ensinado não era mais que uma peça teatral de luzes e sombras e que a verdade estava algures no meio.

— Mas Hugh de Payens morreu na Segunda Cruzada — acrescentou Christian.

— Quem te disse isso? — perguntou Elizabeth. — Porque esta carta de Dee tem a data de 1601, quatro séculos depois da Segunda Cruzada.

— Ouvi essa história do companheiro de Hugh na fundação dos Cavaleiros Templários, Bernard de Clairvaux, um homem que testemunhou essa nobre morte. — Christian olhou para Erin, franzindo as sobrancelhas. — Ou, como melhor o conheces, o cardeal Bernard.

Os olhos de Erin arregalaram-se.

— Bernard é o Bernard de Clairvaux?

Fazia algum sentido. Ela sabia que o cardeal lutara nas Cruzadas e que desde então ocupava um lugar de topo na Igreja.

— Parece que Bernard não foi inteiramente honesto — disse Elizabeth com um sorriso irónico. — De novo.

— Isso pode esperar por agora. — Erin fez um aceno com a cabeça para o papel. — O que é que a nota diz?

Os olhos de Elizabeth esquadrinharam a página, traduzindo as letras arcaicas. Um sorriso desabrochou no seu rosto.

— Parece que Hugh queria que eu ficasse com a pedra se algo acontecesse a John Dee. O alquimista deve ter contado a natureza do meu trabalho ao seu benfeitor secreto.

— Então, se Dee falhasse — concluiu Jordan —, esse tipo queria que a condessa terminasse o seu trabalho?

— É o que parece. O plano era Edward Kelly ficar com a pedra após a morte de Dee, para a proteger e trazer até mim. Deve ter sido por essa razão que o imperador Rodolfo deu a pedra e a campânula a Kelly. — Elizabeth continuou com um ar reprovador. — Mas aquele charlatão ganancioso guardou-os para si. Deve ter vendido o diamante em segredo. É digno de uma quantia avultada.

— Ainda assim, depois disso — continuou Erin —, a gema amaldiçoada encontrou maneira, ao longo da história, de voltar para as suas mãos.

— Não se deve brincar com o destino — disse Elizabeth.

Erin teve de fazer um esforço enorme para não revirar os olhos.

— Essa carta diz alguma coisa sobre as outras duas pedras?

— Nem uma palavra.

— Então, é um beco sem saída — concluiu Jordan.

— A não ser que Hugh de Payens ainda esteja vivo — sugeriu Erin. — Sabemos que ele não morreu quando Bernard disse que ele tinha morrido. Por isso, talvez ainda ande por aí.

Jordan suspirou de forma ruidosa e perguntou:

— Se assim é, como o encontramos?

Erin colocou os punhos cerrados junto às ancas.

— Perguntamos ao seu amigo mais antigo. Bernard de Clairvaux. — Erin virou-se para Christian e Sophia. — Onde está o cardeal?

— Foi mandado para Castel Gandolfo — retorquiu Christian. — À espera da sua sentença.

— Vamos rezar — acrescentou Sophia — para que ainda não o tenham matado pelos seus pecados.

Erin concordou.

Não se podiam dar ao luxo de mais alguma coisa correr mal.


CAPÍTULO 23

18 de março, 21h45 CET
Praga, República Checa

O lobo escava por entre fumo e brasas ardentes.

As suas patas gigantescas remexem a lama e afastam traves partidas. Pedras aguçadas rasgam-lhe as almofadas das patas. Faíscas caem e queimam-lhe a espessa pelagem.

Um nó de escuridão agarra o trovão do seu coração, arrastando-o cada vez mais para o fundo.

Não há palavras, nem ordens, somente ânsia.

A origem daquele desejo sombrio aguarda por baixo, enrolada à volta da mais pequena chama tremeluzente, aninhada dentro da carcaça fria que a mantém segura.

O lobo escava na sua direção.

Um desejo irresistível atrai-o cada vez mais para o interior das ruínas em chamas.

Liberta-me.


QUARTA PARTE

Estão profundamente corrompidos, como no tempo de Guibeá. Ele se lembrará das suas iniquidades, e punirá os seus pecados.

— OSEIAS, 9: 9


CAPÍTULO 24

19 de março, 06h19 CET
Castel Gandolfo, Itália

Erin debatia-se violentamente para sair de um pesadelo de chamas e demónios.

Acordou numa sala que brilhava com a luz de um novo dia. Demorou algum tempo a respirar, ofegante, para reconhecer a sala simples, para se lembrar do seu voo à meia-noite de Praga para esta idílica região rural a sul de Roma. Encontrava-se na residência papal em Castel Gandolfo. Erin saboreou a sua familiaridade: as paredes brancas lisas, o chão de madeira que brilhava sob a luz da manhã como mel quente, a cama de mogno sólido com um crucifixo pendurado por cima da cabeceira. Ela e Jordan já tinham ficado neste mesmo quarto da última vez que lá tinham estado.

Estou em segurança...

Talvez isso não fosse inteiramente verdade, mas era o mais segura que se sentia em muito tempo.

As janelas estavam protegidas com persianas grossas de madeira, mas duas delas tinham as ripas abertas o suficiente para deixar entrar a luz do nascer do sol. Erin recebia com agrado aquela luz dourada depois da longa noite de terror. Tinham embarcado num avião privado — um Citation X — que os levara, sob as ordens do Papa, daquela cidade medieval para aqui. Tinham aterrado exaustos e doridos, ensanguentados e feridos.

O seu primeiro pensamento foi para Rhun.

Assim que aterraram, Rhun foi levado de maca para a enfermaria dos sanguinistas. Erin queria ter ido com ele, mas mal se aguentava em pé. Jordan carregara-a até aqui, encostada ao seu ombro, a meio da noite. Tinham ambos caído na cama, abraçados. Por uma vez, ela não se importara com o calor que emanava da pele nua de Jordan, enroscando-se nele.

Ainda assim, continuava a sentir uma certa culpa por abandonar Rhun. Esforçou-se por a afastar, evitando lembrar-se de ter tocado em Rhun e partilhado com ele aquele elo de sangue momentâneo.

Rhun está em boas mãos, lembrou a si mesma. De certeza que tinha uma enfermeira que não lhe faria mal a cuidar dele. Elizabeth recusara-se a sair do seu lado. Embora ele nunca tivesse recuperado a consciência, ela segurara-lhe a mão durante todo o voo e acompanhara a maca até à enfermaria, embora o cansaço fosse evidente no seu rosto e no seu corpo.

Erin podia não confiar muito em Elizabeth, mas, no que dizia respeito a Rhun, não havia melhor cão de guarda enquanto ele recuperava.

O som de uma torneira do duche a fechar atraiu o olhar de Erin para a porta da casa de banho. Fora o barulho da água a correr que a acordara. Esticou a mão para o feixe de lençóis amarrotados ao seu lado, sentido o calor do corpo de Jordan que agora esmorecia. Erin pousou a palma da mão sobre a impressão deixada pela cabeça dele na almofada.

A preocupação que sentia por ele percorreu-lhe o corpo de forma angustiante, mas tinha de admitir que se sentia muito melhor depois de passar a noite ao seu lado. Espreguiçou-se e suspirou.

Muito bom... tendo em conta o que aconteceu.

Mas seria só por ter descansado? Embora as nódoas negras mosqueassem as suas costas e o ferimento no seu escalpe tivesse sido fechado com um penso adesivo, Erin sentia-se muito melhor — melhor do que devia.

Erin deslizou para o lado da cama de Jordan que ainda estava quente, deliciando-se com a memória da pele dele contra a dela, perguntando-se se a noite mergulhada naquele calor tinha algo que ver com a forma como se sentia agora.

Ou seria, simplesmente, por ter passado algum tempo a sós com Jordan?

Não havia dúvida de que ele parecia estar mais em si agora.

A porta da casa de banho abriu com um rangido e ela virou-se.

Como que chamado pelos pensamentos de Erin, Jordan encontrava-se de pé junto à ombreira da porta, delineada pelo vapor, apenas com uma toalha branca à volta do corpo. Ela sorriu-lhe, ainda enroscada nos lençóis, que de repente lhe pareciam muito mais quentes.

Ele levantou uma sobrancelha e deixou a toalha cair, limpando com a mão um fio de água que lhe escorria na têmpora. Ela observou-o, apreciando cada curva, cada rasto molhado.

Todos os membros do grupo estavam cobertos de nódoas negras e cortes. Mas Jordan, não. A sua pele macia encontrava-se imaculada e quase brilhava de tão saudável. A luz suave refletia-se nos pelos louros das suas pernas e braços musculados. Ele parecia uma estátua grega — demasiado perfeito para ser real.

Jordan atravessou o quarto até estar de frente para ela. A sua pele nua estava a apenas alguns centímetros da dela. Ela queria tocar-lhe.

— Como te sentes? — perguntou ele.

— Pronta para qualquer coisa — respondeu ela, o seu sorriso alargando-se. — A começar por ti.

Ela olhou para cima, para os seus olhos azul-claros. Já tinham estado assim muitas outras vezes, mas parecia sempre algo novo, algo que fazia o seu coração saltar um batimento. Erin tocou na tatuagem sinuosa que cobria o ombro e a parte de cima do peito de Jordan. O bater do coração dele contra a pele suave da palma da sua mão. Erin delineou aquelas sinuosas linhas azuis, as pontas dos seus dedos deslizaram pela pele macia do abdómen dele.

Ela conhecia a forma e o tamanho da tatuagem. Não havia dúvida de que estava maior agora do que há apenas alguns dias, estendendo-se em espirais e gavinhas de um tom escuro de escarlate — um sinal visível de como ele estava a mudar. Ela sentia-se sobretudo preocupada com as linhas que agora lhe envolviam o pescoço, como se aquelas novas gavinhas o estrangulassem como os dedos negros daquele demónio o tinham, certamente, feito. No entanto, ela também sabia que era provável que aquelas mesmas linhas escarlates o tivessem curado, dissipando as suas nódoas negras e reparando as vértebras da coluna que tinham sido esmagadas.

Ela devia apreciar aquelas linhas, porém, assustavam-na.

— Não estejas tão preocupada. — Jordan pegou-lhe na mão que se encontrava sobre o seu peito e beijou-lhe a palma. Os lábios suaves dele queimavam-lhe a pele. — Estamos aqui juntos e vivos. Não há melhor do que isso.

Erin não podia dizer o contrário.

A língua de Jordan percorreu a mão dela até à parte interior do pulso. A respiração de Erin ficou-lhe presa na garganta. Ele apoiou um joelho no chão, beijando-lhe o braço, a sua boca leve como uma borboleta contra a pele magoada de Erin. Sentiu um arrepio subir-lhe pelo braço acima até aos seios e espalhar-se pelo corpo.

Ela envolveu-o com um braço e puxou-o para si. Queria sentir novamente a pele dele contra a sua, esquecer-se de tudo o que acontecera e acreditar que, ainda que por um momento, estava tudo bem.

Jordan enfiou-se na cama, ao lado dela, as suas mãos quentes acariciaram-na, explorando-a, descendo cada vez mais. Ela queria perder-se completamente nele, mas o seu calor ardente lembrou-a de como Jordan se afastara dela, de como aqueles olhos a tinham fitado sem sequer a ver.

Erin estremeceu.

— Chh — sussurrou ele, interpretando mal a reação dela. — Estás em segurança agora.

Jordan rolou para cima dela. Os seus envolventes olhos azuis disseram-lhe que ele só a queria a ela, que ainda a amava. Enquanto os seus olhos se fechavam, Erin aproximou-se dele para o beijar.

Os lábios de Jordan sussurraram suavemente contra os dela, suaves como o vento.

— Tive saudades tuas.

— E eu, tuas — respondeu ela.

A boca dela entreabriu-se ao toque da dele, sedenta de sentir o seu sabor. Os braços dele apertaram-se à sua volta, segurando-a tão perto que ela mal conseguia respirar. Ainda assim, não era suficientemente perto.

Quando Jordan inclinou a cabeça para trás, Erin gemeu. Ela não queria que aquele beijo terminasse. Nunca. Não conseguia conceber a ideia de o perder, de perder esta proximidade. Ela delineou o contorno do seu maxilar, das suas faces. A ponta do dedo dela demorou-se no minúsculo recorte no seu lábio superior, que tinha a forma de um arco. Aqueles lábios sorriram-lhe e beijaram-na novamente.

Durante muito tempo, nada mais existiu, só eles dois, perdidos no calor do corpo um do outro. O tempo tornou-se insignificante. Era apenas o sabor dele, o roçar da sua barba curta na coxa dela, a pressão dos seus corpos unidos, dele dentro dela, fazendo-a sentir-se completa, não porque ela precisasse dele para estar completa, mas porque parecia destinado.

Então, por um breve instante, perdidos na paixão, o corpo dela a responder a cada toque e movimento dele, Erin fechou os olhos — e teve um vislumbre daquele momento na capela com Rhun, lembrando-se do ardor impetuoso do seu sangue a fluir dentro dele, até o corpo dele se tornar o dela.

Erin respirou ofegante, arqueando-se debaixo de Jordan, puxando-o para si com as pernas. Deixou-se levar, perdida no êxtase, sem saber onde o seu corpo começava e acabava.

Por fim, deixou-se cair, ofegando, estremecendo.

Jordan beijou-a, acalmando-a, sorrindo-lhe.

Ela olhou para ele, amando-o mais do que nunca. Ainda assim, um sentimento de culpa percorreu-a, sabendo que nem toda a sua resposta fora provocada pelo toque de Jordan.

— Passa-se alguma coisa? — perguntou ele, passando um dedo pela face dela.

— Não... foi perfeito.

Demasiado perfeito — e isso assustava-a.

Ficaram abraçados enquanto a luz do Sol penetrava no quarto. A uma dada altura, Erin adormeceu. Quando acordou, tentou ouvir o som da água do duche a correr ou qualquer outro sinal de que Jordan ainda lá estava, mas sabia que ele já se fora embora.

Uma pontada de pânico emergiu dentro dela.

Deve ter ido tomar o pequeno-almoço.

Refreou os seus medos e saiu da cama, precisando de se mexer. Tomou um duche rápido. A água a ferver massajou-lhe as dores que ainda sentia no corpo, despertando-a. Em seguida, secou o rosto e vestiu um conjunto de roupa limpa que lhes fora deixado na noite anterior, um par de calças de ganga e uma camisa branca de algodão.

Por fim, vestiu um casaco de pele. O casaco fora feito com pele de um grimwolf. Pela sua experiência anterior, sabia que era uma armadura resistente. Deixou que parte dessa força a impregnasse, preparando-a para o dia que tinha pela frente.

Alguém bateu à porta. Erin virou-se quando esta se abriu. O seu corpo ficou tenso até ver Jordan.

— Trouxe o pequeno-almoço — disse ele, segurando um tabuleiro com café, fruta e croissants. — Juntamente com as ordens do dia.

— Ordens do dia?

— Cruzei-me com Christian. Ele diz que nos foi dada autorização para falarmos com o prisioneiro.

O cardeal Bernard.

— Já não era sem tempo! — exclamou ela.

Jordan repreendeu-a a brincar.

— Não é que algum de nós estivesse em condições de o interrogar ontem à noite.

Verdade.

— Quando podemos falar com ele?

— Às oito... dentro de cerca de uma hora. — Jordan atravessou o quarto até à cama com o tabuleiro, sentou-se e bateu no colchão. — E o que achas de eu te servir o pequeno-almoço na cama?

Erin aproximou-se dele.

— Acho que só vale se estiveres despido.

Jordan colocou o tabuleiro em cima da mesa de cabeceira.

— Gosto dessa regra... e tu sabes como eu sou um fanático das regras.

Jordan começou a desapertar os botões da camisa.

07h20

Elizabeth mudou cuidadosamente a ligadura embebida em vinho do coto do braço esquerdo de Rhun. Retirou a antiga e examinou a ferida. A pele já cicatrizara sobre a maior parte do músculo exposto, mas ainda havia muito para sarar. Cobriu o ferimento com uma compressa embebida em vinho sagrado, recebendo de Rhun apenas um pequeno gemido de dor, mas ainda assim os seus olhos não abriram.

Volta para mim, Rhun.

Envolveu a compressa com uma ligadura limpa, depois encostou-se para trás. Pressentia que o Sol tivesse nascido há cerca de uma hora. Passara a noite inteira com ele, na sua cela sem janelas. Tresandava a incenso e vinho, com um ligeiro aroma a feno e pó de tijolo, lembrando-lhe o tempo que estivera aprisionada ali. Ainda assim, ficara, querendo estar presente quando Rhun acordasse.

Ela olhou em volta com um ar reprovador, considerando o espaço desadequado.

A cela continha uma simples cama de madeira com um colchão de palha, uma mesinha de cabeceira com uma vela de cera de abelha acesa, tiras brancas de gaze limpa e frascos com unguentos que cheiravam a vinho e resina. O quarto era igual ao de Elizabeth na porta ao lado, não que ela o tivesse usado nesta longa noite.

O barulho do roçar de cabedal na pedra atraiu-lhe o olhar para uma pequena porta. Um pequeno monge rechonchudo com uma tonsura grisalha entrou, trazendo consigo mais vinho e ligaduras.

— Obrigada, frei Patrick.

— Tudo pelo Rhun.

O frade assistira Elizabeth nos cuidados a Rhun, entrando e saindo ao longo de toda a noite. Uma dor genuína atravessava-lhe o rosto, ao ver a figura inerte de Rhun sobre a cama. Ele gostava de Rhun, mais do que só por serem ambos sanguinistas. Talvez os dois fossem amigos.

— Devia ir descansar, irmã Elizabeth — sugeriu ele pela décima primeira vez. — Eu posso olhar por ele. Se houver alguma alteração, informo-a de imediato.

Elizabeth abriu a boca para recusar — quando sentiu uma ligeira vibração no bolso da sua saia, vinda do telemóvel que escondera no seu interior.

Tommy.

Aproveitara muitas ocasiões durante a noite — quando se encontrava sozinha — para tentar telefonar ao rapaz, mas ouvia sempre a mesma voz mecânica a pedir-lhe para deixar mensagem. Nunca o fizera, com receio de quem pudesse ouvir as suas palavras.

— Obrigada, frei Patrick. — Elizabeth levantou-se do banco que se encontrava à beira da cama. — Acho que vou descansar um pouco.

A expressão dele foi um misto de surpresa e alívio.

Elizabeth fez-lhe uma vénia, depois virou-se e saiu da sala. Dirigiu-se para a cela ao lado e fechou a porta pesada. Só depois tirou o telemóvel do bolso da saia. Palavras brilhavam no pequeno ecrã.

Ela não sabia como responder à mensagem de Tommy, nem percebia o pequeno símbolo no final. Mas percebia o significado da palavra problemas.

Receosa, pegou no telemóvel e marcou o número de Tommy.

19h32
Roma, Itália

Vá lá, despacha-te...

Tommy encontrava-se sentado em cima do tampo fechado da sanita, a água do duche corria ruidosamente ao seu lado. Tinha apenas uma toalha à volta do corpo. Olhava fixamente para o telemóvel, rezando para que Elizabeth respondesse à sua mensagem. Vigiava a porta trancada, com medo dos guardas que se encontravam no corredor deste apartamento nos arredores de Roma. As janelas tinham grades. A única maneira de sair ou de entrar era passando por um par de padres sanguinistas, ambos vestidos com roupa civil, que guardavam aquela porta.

Por fim, o telemóvel vibrou-lhe nas mãos.

Ele atendeu de imediato, mantendo a voz tão baixa como um sussurro.

— Elizabeth?

— Tommy, onde estás? O que se passa? — Como era habitual, ela dispensava sempre a conversa fiada que todas as outras pessoas tinham ao telefone.

— Estou algures em Roma.

— Estás em perigo?

— Acho que não, mas algo está errado nesta situação toda. O padre que veio comigo de Santa Bárbara não me levou para a Cidade do Vaticano. Em vez disso, largou-me num apartamento qualquer. Está tudo trancado... e há guardas por todo o lado.

— Consegues dizer-me alguma coisa sobre o lugar para onde te levaram?

— É um edifício antigo. Amarelo. Cheira a alho e peixe. Estou no quarto andar. Vejo um rio da janela do quarto e uma fonte com um peixe a cuspir água. Também acho que existe um jardim zoológico aqui perto. Pelo menos, ouvi leões a rugir.

— Ótimo. Devo conseguir encontrar esse edifício amarelo. Pode demorar algum tempo, mas vou encontrar-te.

Tommy baixou mais uma vez a voz.

— Eles dizem que eu corro perigo... ao teu lado, mas eu sei que isso não é verdade.

— Eu nunca te faria mal, mas vou fazê-los pagar bem caro se alguma coisa de mal te acontecer enquanto estás entregue aos seus cuidados.

Tommy sorriu. Ele não tinha qualquer dúvida de que ela viria dar-lhes um enxerto de pancada, mas não queria que ela se magoasse.

À medida que a casa de banho se enchia de vapor por causa da água quente a correr, Tommy ouviu com atenção durante um instante, para se certificar de que ninguém ouvia a sua conversa, antes de continuar.

— Eu ouvi-os dizer que Bernard me quer manter trancado a sete chaves até tu fazeres o que eles querem que faças. Não sei se isso é verdade ou não. Mas, se é, não cedas à vontade deles.

— Eu farei o que tiver de fazer para chegar a ti. Vou libertar-te e vou arranjar uma maneira de te pôr bom outra vez.

Tommy suspirou, arregaçando a manga. O único melanoma multiplicara-se, espalhando-se como um fogo incontrolável por todo o seu braço. Tinha novas lesões nas pernas e na nádega esquerda. Agora, sem o seu sangue angelical, era como se o cancro estivesse a compensar o tempo perdido.

— Não está muito mal — mentiu ele. — Só fico cansado com muita facilidade, mas eles deixam-me dormir.

— Guarda as tuas forças.

Sim, é mais fácil dizer do que fazer.

Tommy ouviu o som de nós dos dedos a bater na porta da casa de banho, fazendo-o saltar. Não ouvira ninguém aproximar-se, mas os sanguinistas conseguiam mover-se como fantasmas.

— Tenho de desligar — sussurrou Tommy. — Tenho saudades tuas.

— Eu... também tenho saudades tuas.

Tommy carregou no botão para terminar a chamada, enfiou o telemóvel atrás do autoclismo e dirigiu-se para o duche. Salpicou-se ruidosamente com a água antes de gritar.

— Não se pode tomar um duche em paz?

— Já aí estás há muito tempo — respondeu uma voz áspera — e ouvi-te falar.

— Sou adolescente! Credo. Estou sempre a falar sozinho.

Fez-se um longo silêncio, depois o guarda falou num tom mais paternal. Devia saber que Tommy estava a mentir e a tentar encobrir algo, mas o tipo decidiu optar pela explicação errada.

— Se te estás a tocar aí dentro, meu rapaz, fica a saber que não é nada de que devas ter vergonha. No entanto, terás de confessar esses pecados ao padre da tua paróquia.

— Antes de mais, eu sou judeu. E vá-se lixar!

Tommy manteve-se debaixo do jato de água, com o rosto mais quente que o vapor.

Está bem, agora quero mesmo morrer.

19h35
Castel Gandolfo, Itália

Elizabeth dirigiu-se para o quarto de Rhun, colocando a palma da mão sobre o telemóvel escondido. A raiva crepitava dentro dela, mas conseguiu refreá-la. Quando chegasse a altura de resgatar Tommy, ela teria de agir com uma clareza imperturbável. As emoções não tinham lugar até essa altura.

Ela tencionava confrontar o cardeal, mas, antes disso, queria ver como estava Rhun.

Ao entrar no quarto dele, alisou o tecido da saia e compôs as mangas. Encontrou frei Patrick ajoelhado ao lado da cama de Rhun, a segurar-lhe a mão.

O frade levantou a cabeça e fez-lhe sinal para entrar.

— Ele ainda está a descansar.

Aproximando-se da cama, Elizabeth estudou o rosto de Rhun, descontraído enquanto dormia. Ele tinha a aparência que sempre tivera, intocada pelos muitos anos e tragédias que compunham a sua longa vida. Quem lhe dera que ele tivesse vivido a vida de um padre normal, morrendo apenas com uma única vida de preocupações no final. Ele não merecia o destino que lhe fora traçado.

— Tenho a certeza de que se vai levantar em breve — continuou Patrick. — Os cuidados imediatos no terreno salvaram-lhe a vida.

Elizabeth imaginou Erin a espalhar o seu sangue pelas feridas dele. Apesar de frágil e mortal, a arqueóloga salvara-o.

— Pode sentar-se e rezar comigo, se quiser — sugeriu o frade.

Ela queria ficar, mas voltou a olhar de relance para a porta de madeira.

— Tenho de falar com o cardeal primeiro.

— Ouvi dizer que os outros se vão reunir com ele em breve.

Ela não sabia de nada.

Sentiu a raiva crescer dentro dela, sabendo o que aquele vilão fizera com o rapaz doente, transformando-o num mero peão.

Saiu do quarto e atravessou apressadamente o corredor. Um trio desconhecido de sanguinistas — dois homens e uma mulher — guardava esta parte da residência. Mas seria para proteger Rhun ou para a manter presa naquele lugar?

Elizabeth falou com a mulher, uma africana, com a pele mais escura que Elizabeth alguma vez vira.

— Tenho de falar com o cardeal Bernard. Tenho informações cruciais para a segurança da ordem.

Os olhos redondos da mulher estudaram Elizabeth.

— O acesso ao prisioneiro é restrito. Apenas o seu assistente pessoal, o padre Gregory, está autorizado a falar com ele, a satisfazer os pedidos do cardeal. Eu posso dar essa mensagem ao padre Gregory para ele a passar ao cardeal.

— Eu tenho de falar pessoalmente com o cardeal.

Os lábios da sanguinista contraíram-se.

— Tendo em conta os crimes que o cardeal cometeu contra si, receio que isso seja proibido.

Elizabeth manteve a voz suave, tão branda quanto conseguiu.

— Pelo que sei, os meus companheiros vão reunir-se com ele esta manhã. De certeza que posso falar com ele na presença de outros?

— A ordem é clara. — A expressão no rosto da freira tornou-se mais severa. — Enquanto vítima das queixas apresentadas contra ele, não poderá vê-lo em qualquer circunstância.

— Então, parece que vou ter de pedir aos meus companheiros para lhe passarem a informação.

Elizabeth acenou ligeiramente com a cabeça, escondendo a sua fúria, e caminhou devagar de volta para a sua cela.

Mais uma vez a sós no seu quarto, bateu com força com a palma da mão na parede de tijolo.

Vou fazer-te pagar por teres levado Tommy, Bernard... nem que, para isso, tenha de destruir tudo aquilo que te é precioso.

Uma pancada na porta chamou-lhe a atenção. O frade Patrick gritou por entre as grossas tábuas de madeira, a sua voz repleta de felicidade.

— Rhun... ele acordou!


CAPÍTULO 25

19 de março, 07h39 CET
Castel Gandolfo, Itália

Rhun debatia-se através de um nevoeiro de dor e sangue. Cheirava-lhe a vinho e incenso. Ouvia vozes excitadas irritantemente familiares. A sua visão vagueava, depois, lentamente, fixou-se revelando um pequeno quarto iluminado por um candelabro.

Onde estou...?

Tentou levantar a cabeça, mas isso fez com que o mundo girasse mais rapidamente. Mãos frias tocaram a sua testa, encorajando-o a ficar deitado.

— Está tudo bem, Rhun, meu filho. Não tão depressa.

Ele focou o rosto sorridente e amável, reconhecendo o frade.

— Patrick...

— Certo. — O frade afastou-se o suficiente para revelar alguém ajoelhado atrás dele.

— Vejo que finalmente acordaste — disse Elizabeth com severidade, mas os seus olhos brilhavam com evidente alívio.

— Acordei.

Ele mal reconhecia a sua própria voz. Soava grave e rouca, a voz de outro homem, um homem mais fraco. Tentou sentar-se, porém, caiu para trás com a violência da dor no lado esquerdo do corpo. Cerrou os dentes, tentando massajar a área — e não encontrou lá nada. Virou-se para ver.

O meu braço desapareceu.

O choque despoletou um caleidoscópio de recordações: a campânula a despedaçar-se em cima dele, Erin a arrastá-lo para a segurança, o fogo e o fumo a fecharem-se sobre eles.

Era tudo de que se lembrava.

— O que aconteceu? — gaguejou ele. — Como é que viemos parar a Castel Gandolfo? Porque é que estamos...?

Elizabeth afundou-se num banco e pegou na mão direita dele. Ele agarrou-se aos dedos dela, e ela, por sua vez, apertou-lhe a mão, tranquilizando-o.

Ele inspirou várias vezes, tentando acalmar-se.

— Há quanto tempo estou inconsciente?

— Só esta noite. — Elizabeth explicou-lhe lentamente tudo o que se passara, dizendo-lhe o que tinham ficado a saber com os papéis de John Dee e como os haviam ligado ao cardeal Bernard.

— É por isso que estamos aqui, para descobrirmos o que ele sabe. Porém, tu, o famoso Cavaleiro de Cristo, precisas de descansar.

Ela sorriu-lhe.

Ele virou a cabeça e examinou a ligadura à volta do braço.

— Lembro-me...

A sua voz morreu ao recordar uma vaga visão de si a contorcer-se de prazer, de dedos quentes cobertos de sangue a deslizarem sobre a sua pele, levando-o aos píncaros do êxtase.

Fitou Elizabeth.

— Erin.

A mágoa ensombrou os olhos dela.

— Sim, foi a arqueóloga que te salvou. Usou o sangue dela para te arrancar das garras da morte.

Patrick tocou no ombro de Elizabeth.

— Mas foste tu, querida irmã, que nunca saiu do seu lado a noite toda, a tratar das suas feridas, a levar o sangue de Cristo aos seus lábios.

Rhun tocou no joelho de Elizabeth.

— Obrigado.

Ela ignorou a sua gratidão abanando a cabeça.

— Erin e Jordan têm um encontro marcado com Bernard para esta manhã.

— Quando?

Elizabeth olhou para Patrick, que consultou o relógio.

— Dentro de vinte minutos mais ou menos — informou ele.

— Eu devia estar lá. — Rhun usou o braço que lhe restava para se levantar. Uma dor atroz explodiu, mas desta vez manteve-se firme.

— Onde está a minha roupa?

— Não me parece que isso seja sensato — disse Patrick.

— Sensato ou não, devo ir.

Reconhecendo a sua determinação, Patrick pôs um braço à volta dos seus ombros. O frade lançou um olhar rápido a Elizabeth quando a manta que envolvia Rhun caiu, expondo a sua nudez.

— Talvez devesses deixar-nos a sós por enquanto, irmã.

Elizabeth virou-se para a pilha de roupa, escolheu um par de calças dobradas e entregou-lhas.

— Não querendo ser imodesta, mas quem é que esteve toda a noite a limpar as feridas dele? Não sou propriamente uma mulher fraca que vá desmaiar com a visão de um homem nu.

Patrick baixou a cabeça, ocultando uma careta.

— Como queiras. — O frade ajudou Rhun a ficar em pé. — Vai devagar.

Era um conselho prudente. O quarto pareceu balançar quando ele tentou dar alguns passos, mas depois de várias tentativas conseguiu ficar de pé sozinho e andar com algum auxílio. Ainda assim, precisava de ajuda para se vestir, em especial só com um braço.

Quando acabou de se vestir, Elizabeth deu um nó na manga solta e entalou-a no cinto. Olhou-o de cima a baixo.

— Já tiveste melhor aspeto, Rhun.

— Já me senti melhor.

Patrick agarrou-o pelo cotovelo, ajudando-o a equilibrar-se até à porta.

— Vou contigo, levo-te até onde o cardeal Bernard está preso.

Rhun olhou para Elizabeth.

— Vens?

Ela pareceu desejosa de o fazer, mas frei Patrick atalhou rapidamente:

— Temo que não seja permitido. O cardeal insistiu que só falaria com o trio da profecia.

Elizabeth troçou.

— Estando preso, pode impor condições?

— Pode — respondeu Patrick. — Ele continua a ter aliados na Santa Sé. Mesmo agora. Lamento sinceramente, irmã.

— Seja. — Elizabeth cruzou os braços, parecendo mais desafiadora do que a aquiescência das suas palavras davam a entender.

Rhun compreendia a sua frustração. Bernard fizera-lhe mal, roubara-lhe a sua alma, e no entanto era livre para ditar os termos do seu contacto, enquanto ela se encontrava limitada e confinada nos seus movimentos. Quem estava de facto prisioneiro?

— Vão — disse ela, despedindo-se dos dois, as suas palavras eram amargas. — Talvez tente aprender a bordar enquanto espero.

Não lhe restando outra escolha senão deixá-la para trás, Rhun passou pela porta e percorreu o corredor. Mesmo com o auxílio de Patrick, apoiava-se na parede de tijolo caiado para manter o equilíbrio. O seu braço esquerdo fora-se. Mesmo vendo o coto e sentindo a dor, não conseguia conformar-se com o seu estado.

Vai crescer um novo braço.

Tinha visto aquele tipo de milagre no passado, mas também sabia que podia demorar anos.

Como posso proteger Erin e Jordan estando mutilado? O que acontecerá à nossa demanda?

Patrick conduziu-o através da residência papal, deixando Rhun marcar o ritmo do andamento. Felizmente, ele ia ficando mais forte com cada sala iluminada que atravessavam, com cada escadaria ventosa que subiam. Por fim, deixou de precisar do apoio de Patrick, mas o frade manteve-se ao seu lado.

Rhun sentiu que o seu amigo queria falar.

— O que se passa, Patrick? Se continuas a olhar constantemente sobre o teu ombro, ainda ficas com um torcicolo.

Frei Patrick meteu as mãos nas mangas largas.

— Tem que ver com o teu outro amigo.

Rhun demorou algum tempo a decifrar as suas palavras.

— A cria de leão...

Lembrou-se do uivo queixoso da criatura, de como o pequeno gato dava marradinhas no corpo da mãe morta.

— Mudou muito. Cresce muito mais depressa do que qualquer criatura normal. — Patrick olhou para ele. — O que é que não me disseste sobre ele?

Rhun sabia que não podia continuar a manter segredo sobre o nascimento da cria.

— A mãe era blasphemare.

Patrick parou de repente, forçando Rhun a fazer o mesmo.

— Porque é que não me disseste?

A vergonha esmagou-o.

— Pensei que, se soubesses que a cria podia estar corrompida, não ficasses com ela.

— Que disparate. Claramente, a cria não está corrompida. Se é diferente em alguma coisa, eu diria que é abençoada.

— Que queres dizer?

— Nunca vi nada assim. É uma alma nobre. Travessa, sim, mas sem qualquer corrupção. Vejo apenas bondade.

Rhun sentiu-se profundamente aliviado. No deserto, ele pressentira a bondade da sua essência e estava feliz por o ver confirmado.

— Tenho pensado nisso desde que a encontrei.

— E sabes mais alguma coisa sobre ela?

— Muito pouco. A mãe estava gravemente ferida por causa da explosão angelical que se seguiu à batalha no Egito. Suspeito que a cria foi poupada no ventre da mãe, uma prova da sua inocência. E talvez alguma dessa essência angelical tivesse sido instilada nela.

Patrick tocou-lhe no braço.

— Não duvido disso. Obrigado por partilhares este milagre comigo. Nunca pensei ver nada assim, uma criatura que é o oposto dos blasphemare, uma besta abençoada pela pureza. É assombroso.

— Podes manter isto em segredo... pelo menos por agora?

— Não te preocupes com isso. — Patrick acenou para a frente e continuaram a andar. — Estou feliz por ter este milagre só para mim por agora.

Dirigiram-se a uma das extremidades mais remotas da residência.

— O cardeal está detido num apartamento privado já ali à frente — disse Patrick.

Ao virarem para outro corredor, Rhun avistou dois sanguinistas, ambos de capuz e mantos, armas desembainhadas, no fundo de um corredor. Guardavam uma sólida porta de madeira, que dava entrada para a atual cela de Bernard.

Rhun dirigiu-se a ela, reparando nas janelas que davam para o majestoso lago Albano. Quadros raros renascentistas pontuavam as paredes, as suas cores incandescentes sob a luz do sol. Calculou que a cela de Bernard tivesse a mesma vista e estivesse igualmente bem adornada.

Obviamente, o cardeal tinha aliados que velavam por ele.

Um chamamento ouviu-se atrás deles, vindo de outro corredor que desembocava naquele.

— Rhun!

Ele voltou-se e viu Erin correr para ele, com a casaco aberto a adejar à sua volta. Jordan seguia-a, parecendo menos entusiasmado por o ver.

— Não devias estar ainda de cama? — disse o homem enorme quando chegou junto deles.

Frei Patrick curvou a cabeça na direção de Erin e apertou a mão de Jordan.

— Ele aguentou bastante bem até agora, mas espero que tomem conta dele daqui em diante. — O frade virou-se para Rhun. — Deixo-te com os teus companheiros, mas fico na propriedade para o caso de precisares do conselho de um velho tonto como eu.

— Nunca foste um velho tonto — redarguiu Rhun.

Frei Patrick encolheu os ombros, meteu as mãos nas mangas e afastou-se rapidamente.

Os olhos de Erin estudaram Rhun com ansiedade à medida que se dirigiam para a porta guardada.

— Como te sentes?

— Mais forte — respondeu ele com sinceridade. — Parece que tenho de te agradecer pela minha vida.

Ela dirigiu-lhe um breve sorriso.

— Era a minha vez.

— Tenho de admitir que — disse Jordan —, para um tipo que conta os seus aniversários por séculos, és um osso duro de roer.

Rhun sentiu-se descontrair na camaradagem deles. É certo que juntos formavam uma equipa que já tinha sobrevivido a muito, mas eram mais do que isso.

Eles eram amigos.

Quando chegaram à porta, os guardas afastaram-se. Sob o seu capuz, um deles falou, não parecendo muito feliz com a intrusão, nem em relação àquele que eles vinham visitar.

— O cardeal está à vossa espera — disse o guarda, evidenciando claramente o seu desprezo pelo prisioneiro.

O outro guarda tirou uma grande chave de baixo do manto e destrancou a porta. Não se deu ao trabalho de a abrir.

Rhun avançou, mas desequilibrou-se. Erin agarrou-lhe o braço.

Jordan dirigiu-se à porta e escancarou-a, dizendo aos guardas:

— Têm de melhorar a vossa hospitalidade. Acreditem, vou escrever uma péssima crítica sobre este lugar.

Jordan deu passagem a Erin e Rhun.

Entraram num sumptuoso vestíbulo, decorado com móveis magníficos e pesados cortinados de seda. Para lá daquele espaço, um pequeno corredor levava a vários quartos, uma saleta e uma casa de banho. O lugar estava às escuras, à exceção de um candeeiro que brilhava por uma porta entreaberta ao fundo. Rhun ouviu uma voz fraca vinda dali. As palavras eram demasiado inaudíveis para se perceberem, mas a sua inflexão era inconfundível.

Bernard.

Estaria alguém com ele? Patrick dissera-lhe no caminho para ali que o assistente de Bernard, o padre Gregory, ia e vinha a todas as horas do dia e da noite, provavelmente servindo de mensageiro ao cardeal na sua luta para manter a sua posição e controlar as engrenagens que o seu pecado pusera em movimento.

Jordan também ouviu o cardeal e avançou rapidamente pelo corredor. Avaliou o lugar à medida que andava.

— Isto é o que se pode chamar uma bela gaiola — resmungou, irritado.

Rhun seguiu-o.

Erin pairava ao seu lado, claramente preocupada com o seu equilíbrio, mas Rhun fez um gesto para ela passar para a frente.

Jordan chegou primeiro à porta entreaberta e bateu com os nós dos dedos. Como ninguém respondeu, Jordan entrou. Erin mantinha-se nos seus calcanhares, nitidamente desejosa de inquirir Bernard.

Rhun apressou-se atrás deles. Tinha muitas perguntas a fazer a Bernard sobre as suas mentiras e meias-verdades, especialmente algumas relacionadas com um velho amigo do cardeal, o cruzado Hugh de Payens.

Quando Rhun entrou no quarto, viu o estado caótico da secretária temporária de Bernard, as poças de cera derretida em cima dela, os pesados cortinados de seda corridos sobre as janelas.

Alguma coisa não está...

A porta bateu com força atrás dele.

Ele virou-se demasiado lentamente para parar o ombro que o abalroou, lançando-o ao chão. Uma dor lancinante percorreu-o ao aterrar sobre o lado esquerdo, magoando o coto do braço e reduzindo a sua visão a uma fenda.

Uma forma escura passou por ele e desferiu uma pancada no crânio de Jordan com o busto de uma estátua. Quando Jordan caiu, Erin foi agarrada e lançada por cima da secretária, batendo na janela coberta pelo cortinado e desabando no chão.

Antes mesmo que Rhun se pudesse sentar, uma mão agarrou no seu pescoço com dedos férreos e levantou-o, até que só os seus dedos dos pés rasassem o tapete.

Uma gargalhada medonha abriu caminho por entre a sua dor.

O cardeal Bernard olhava maldosamente para ele. As suas vestes escarlates pendiam em farrapos do seu corpo quase nu. A loucura alucinava os seus olhos castanhos.

— Bem-vindo, Cavaleiro de Cristo... bem-vindo à tua ruína.


CAPÍTULO 26

19 de março, 08h02 CET
Castel Gandolfo, Itália

Atordoada com o ataque súbito, Erin apoiou-se na borda da secretária e levantou-se, ignorando a dor de lado. O seu corpo lançado pelo ar tinha derrubado a única vela. A sala estava agora às escuras, iluminada apenas pela luz filtrada que vinha das janelas.

O seu primeiro pensamento foi: strigoi.

Cambaleou para a janela atrás dela e abriu os cortinados. Uma faixa tinha sido amarrada sobre eles, impedindo-os de se abrirem por inteiro, mas ela conseguiu separar a pesada seda o suficiente para a luz do Sol entrar na sala.

Voltando para trás, deparou-se com uma visão impossível. O cardeal Bernard erguia Rhun pela garganta contra uma estante de livros. Farrapos escarlates cobriam o corpo do homem quase nu, revelando marcas de arranhões na pele branca, como se ele tivesse arrancado a própria roupa num ataque de raiva.

No tapete por baixo deles, encontrava-se um corpo imóvel no chão, com sangue a escorrer do seu escalpe.

Jordan...

Rhun parecia estar a recuperar da surpresa. Uma lâmina de prata surgiu na sua mão direita e cravou-se profundamente no braço do cardeal. Os dedos deste largaram a sua garganta. Ao cair ao longo da estante, Rhun golpeou o cardeal — mas tudo o que encontrou foi ar.

Bernard já estava do outro lado da sala, retirando uma espada da parede. A velocidade sobrenatural a que ele se movia disse-lhe que o cardeal já não obedecia aos votos dos sanguinistas. Como os strigoi, o seu poder tinha uma origem mais sombria.

O que tinha acontecido?

Jordan mexeu-se, os seus olhos abertos revelavam confusão. Na escuridão, cintilaram com um leve brilho dourado.

Antes que Jordan conseguisse recompor-se, Bernard atacou Rhun.

Rhun saltou para o lado, chocando desajeitadamente contra um enorme vaso chinês. A sua graciosidade natural era gravemente prejudicada pelo braço em falta.

Erin tirou um punhal de uma bainha interior do casaco, disposta a defender os outros. Porém, ela não era uma combatente. A sua melhor arma era a sua mente. Bernard voltou a ir atrás de Rhun, mas Jordan atacou violentamente o cardeal, atirando-o contra um grande globo.

Quando o cardeal se levantou de um salto com um rugido — enquadrado num feixe de luz do Sol —, Erin observou atentamente o corpo quase nu, procurando a impressão de uma mão negra.

Nada.

Erin não ficou surpreendida.

Como poderia Legião ter possuído o cardeal? Em especial, estando o homem preso ali? Porém, se Legião não era a causa da sua corrupção, o que poderia ser?

Tenho de pensar...

Jordan juntou-se a Rhun, ambos enfrentando a besta alucinada em que se transformara o cardeal.

Erin esquadrinhou a sala, procurando o que quer que mantivesse o cardeal prisioneiro. O seu olhar percorreu o caos em cima da secretária. Não viu nada de invulgar: papéis, livros, um diário forrado a couro. Olhou à volta da base da secretária. Ao fazê-lo, o seu pé tocou numa bolsa preta no chão. Alguma coisa rolou pela sua extremidade aberta.

Um pedaço de vidro negro.

Parecia exsudar escuridão. Ela já vira aquele artefacto tóxico no deserto egípcio. Rhun liderara recentemente uma equipa para livrar as areias daquele mal. Ela baixou-se sobre um joelho, sabendo o que se encontrava sobre o tapete.

Uma gota do sangue de Lúcifer.

Ela usou um bocado de papel para apanhar a pedra, agarrando as fitas que fechavam a bolsa. Endireitando-se, fez rolar a lágrima negra na poça de sol em cima da secretária e despejou o conteúdo da bolsa ao lado dela. A pilha de gotas negras parecia sugar a luz, criando pequenos vazios no tecido do universo. Não precisava de tocar neles para sentir a sua malignidade, a sua erroneidade.

Mas como podia ela derrotá-la?

A luz do sol, claramente, não tinha qualquer poder sobre ela.

E porque havia de ter?

Há milénios, aquelas gotas do sangue de Lúcifer tinham-se fundido com a areia do Egito, criando um vidro negro que selara dentro dele a sua malevolência e protegera a escuridão no seu interior da luz do Sol. Se dois mil anos de calor do deserto não as tinham deteriorado, então a simples luz do sol italiano não teria qualquer efeito.

Mas e se...

Os seus olhos pousaram num pesa-papéis num canto da secretária de Bernard. Tinha a forma de um anjo — mas, mais importante, era pesado.

Agarrou nele, ergueu-o bem alto e baixou-o com força sobre uma gota negra, reduzindo-a a pó.

Do outro lado da sala, Bernard uivou e sibilou.

Então, tu sentes isto, não é verdade?

Ela ergueu o pisa-papéis uma e outra vez, esmagando gota após gota. Com cada golpe, uma gavinha de fumo negro subia do pó cristalino, rodopiava num círculo, contorcendo-se para longe da luz do Sol, depois deslizava pela borda da secretária e mergulhava através do chão.

Ela lembrava-se de Elizabeth ter dito que a essência de um strigoi fazia o mesmo quando este morria, regressando à sua origem.

Lúcifer.

Ao esmagar o último bocado de obsidiana, o cardeal Bernard deu um último suspiro e tombou. O seu corpo bateu com estrondo no chão.

08h12

Rhun ajoelhou-se sobre o corpo de Bernard, com a sua faca apontada à garganta do cardeal, preparado para matar o seu velho amigo. Jordan apanhara a espada caída e mantinha-se em guarda junto ao seu ombro. Naquele momento, os dois guardas encapuzados precipitaram-se para a sala, entrando de rompante com as armas desembainhadas, atraídos pelo ruído da breve luta.

Receando que outro mal pudesse estar nos arredores, Rhun gritou.

— Guardem a porta! Não deixem ninguém entrar sem a minha autorização!

Eles acenaram com a cabeça e regressaram ao seu posto.

À medida que Rhun olhava, a loucura desvaneceu-se dos olhos do cardeal. Foi substituída por algo que Rhun nunca ali vira antes.

Dúvida.

Rhun recuou, afastando a sua lâmina, mas mantendo-se em guarda.

Bernard sentou-se, juntando os farrapos da roupa à sua volta, como que tentando fazer o mesmo com a sua dignidade. Acabou por pousar as mãos trémulas no colo.

Erin dirigiu-se a Rhun, ainda com a pequena escultura do anjo nas mãos. A sua base estava rachada, coberta de pó negro.

— Foram aquelas gotas do sangue de Lúcifer.

Rhun anuiu, percebendo.

— Deixei-as aqui quando regressei do Egito. Guardadas no cofre do cardeal. A culpa é minha.

— Não... — Bernard abanou a cabeça. — Foi a minha arrogância. Estava convencido de que podia brincar com a escuridão e não ser tocado por ela.

— Mas porque resolveu mexer nelas? — indagou Jordan.

— Esperava aprender alguma coisa com elas, alguma coisa sobre Lúcifer. — Bernard fitou Rhun. — A noite passada, quando o padre Gregory me disse que regressavas de Praga e que querias fazer-me perguntas sobre pedras associadas a Lúcifer, lembrei-me das que tinhas trazido do Egito.

— As pedras de vidro — exclamou Rhun.

— Ia esperar até estarem todos aqui para as examinar, mas, depois de o padre Gregory as ter ido buscar ao cofre no meu antigo escritório, elas chamaram-me. Não consegui resistir.

Rhun acenou com a cabeça e virou-se para os outros.

— Eu vi a mesma maldição atingir os membros da equipa que viajou comigo para o Egito.

Bernard olhou em volta e ergueu uma mão para tocar na testa, confuso.

— Não sei quanto tempo fiquei sob o seu poder. Possuiu-me e não me deu nada em troca.

— Mas agora está livre — disse Erin — e nós temos perguntas a fazer-lhe.

— Sobre Hugh de Payens — murmurou Bernard com um aceno triste. — O padre Gregory informou-me disso também. Vocês querem a verdade sobre o meu amigo.

Erin falou num tom mais amável, possivelmente em resposta à dor e à tristeza refletida na voz do cardeal ao mencionar alguém do seu passado.

— Então Hugh não morreu, como o senhor disse, no decurso da Segunda Cruzada?

A voz de Bernard não era mais do que um sussurro.

— Não, não morreu.

Erin estendeu a mão ao cardeal para o ajudar a levantar-se.

— Jordan, vai buscar uma manta.

Rhun conduziu Bernard para um conjunto de cadeiras ao lado da lareira, evitando cuidadosamente os cacos do vaso chinês espalhados pelo chão. Jordan voltou de um quarto ao lado com uma manta de lã e entregou-a a Bernard, que se envolveu nela ocultando a sua nudez, suspirando de gratidão, recuperando lentamente a sua dignidade. Parecia-se de novo com o homem que Rhun conhecia há muito tempo.

Erin sentou-se na cadeira à frente de Bernard, inclinando-se para ele.

— Diga-nos o que aconteceu realmente.

Bernard olhou para a lareira fria, com o olhar ainda perdido, deslizando para o passado.

— Hugh acolheu-me quando eu era uma besta selvagem. Ele rezou por mim quando eu estava perdido.

Rhun nunca tinha ouvido aquela história.

— Estás a dizer que foi ele que te converteu, que te trouxe para as fileiras dos sanguinistas?

Um pequeno aceno confirmou as suas palavras.

Rhun conhecia o significado daquele feito monumental, como podia vincular profundamente dois seres. De facto, fora Bernard quem trouxera Rhun para aquele caminho sagrado, tornando-se seu mentor e amigo, e, apesar da conduta recente do cardeal, ele teria uma eterna dívida de gratidão para com Bernard. O vínculo entre Bernard e Hugh de Payens devia ter sido igualmente forte.

— Eu era um selvagem perdido até que ele me salvou — continuou Bernard. — Juntos trouxemos muitos para a ordem. Muitos. Fundámos os Cavaleiros Templários. Fizemos muito bem.

— Nove homens ligados pelo sangue — disse Erin serenamente. — Uma ordem sanguinista de monges guerreiros.

— O que eram exatamente estes sanguinistas templários? — perguntou Jordan.

Bernard olhou para ele. Um vestígio de orgulho endireitou-lhe as costas curvadas.

— Éramos uma ordem de cavaleiros dentro de uma ordem de cavaleiros, capazes de levar a cabo um duplo combate tanto contra os adversários nascidos da carne como contra os espíritos nascidos do mal. A nossa armadura era a nossa fé, tanto quanto o era a nossa cota de malha. Não temíamos nem homens nem demónios.

— Então o senhor é realmente Bernard de Clairvaux? — indagou Erin.

— Sim, sou. E juntos, Hugh e eu realizámos grandes feitos, unindo os templários dispersos sob um único estandarte, dando-lhes unidade e a força de um propósito. — Bernard olhou em volta para eles. — Devem entender, Hugh era um grande líder. Carismático, afável, empático. Homens e sanguinistas seguiam-no, dispostos a darem as suas vidas por ele. Porém, com o passar do tempo, tornou-se demasiado para as suas forças.

— Conheço homens assim — disse Jordan. — As características que fazem de um homem um grande líder, como a empatia, por vezes, fazem com que sejam mais suscetíveis à fadiga de combate, à PSPT.

— O que aconteceu a Hugh? — perguntou Erin.

Bernard suspirou fundo.

— Abandonou os templários. Depois da Segunda Cruzada. — Fitou Rhun. — De facto, ele saiu completamente da nossa ordem.

— Ele saiu da Ordem Sanguinista? — Rhun não conseguiu esconder o choque.

Os sanguinistas não saíam. Ou eram mortos ao serviço da Igreja ou renunciavam aos seus votos, regressando à sua natureza ímpia de modo que tinham de ser perseguidos e abatidos. O único sanguinista que escapou a esse destino foi Rasputine, que fundara a sua própria versão distorcida da ordem dentro da Igreja Ortodoxa Russa, entrincheirados em segurança na cidade de São Petersburgo, fora do alcance dos sanguinistas.

Porém, ao que tudo indicava, houvera outro.

— Para onde é que ele foi? — indagou Rhun.

Bernard olhou para as mãos.

— Ele foi para longe em peregrinação, sozinho, tanto eremita como nómada. Por fim, fixou-se nas montanhas remotas de França, num eremitério que ele mesmo construiu. Aí, encontrou algum tipo de paz, descobrindo a graça nos lugares selvagens do mundo.

— O que queres dizer? — perguntou Rhun. — Que ele regressou à condição de strigoi?

Bernard abanou a cabeça.

Rhun debatia-se para compreender.

— Então como é que ele conseguiu viver sem a proteção da Igreja?

— Simplesmente, conseguiu — respondeu Bernard, evasivo, sem olhar para Rhun.

Foi Erin que esclareceu em parte a história.

— Foi por isso que espalhou a mentira da sua morte, não foi? Hugh de Payens abandonou a ordem, mas não voltou à condição de selvagem. Ele encontrou o seu próprio caminho para a graça, independente da Igreja.

Rhun olhou-a fixamente, incapaz de aceitar as suas palavras. Não havia qualquer outro caminho para a graça que não o do humilde serviço à Igreja. Ele e todos os outros sanguinistas tinham aprendido esta simples verdade desde os dias de Lázaro.

— Eu não podia deixar que alguém soubesse — explicou Bernard. — O que aconteceria se mais sanguinistas abandonassem a ordem? Por isso, inventei a história de uma morte nobre, de uma vida dada ao serviço da Igreja. Mas essa é apenas metade da razão para a mentira.

— Qual é a outra metade? — indagou Erin.

— Quando Hugh falou em sair da ordem, eu sabia que o matariam. Para o salvar, inventei uma história. — Bernard olhou para Rhun, como que em busca de absolvição. — Menti à ordem. Menti à Igreja. Mas eu sabia que o caçariam como se ele fosse um animal, e ele não era um animal. Ele era meu amigo.

Rhun sentou-se pesadamente numa cadeira, debilitado tanto pelos seus ferimentos, como pelas revelações.

Um sanguinista encontrou a graça fora da Igreja.

A mente de Rhun rodopiava. Ele juntara-se aos sanguinistas porque pensara que era a única maneira de viver com aquela maldição. A escolha que lhe fora dada era muito simples: morre como um strigoi ou vive como um homem de hábito, ajudando a proteger os outros. Na altura, séculos atrás, Rhun já tinha estado no caminho do sacerdócio, estudando num seminário, por isso, a sua decisão fora fácil: serviria. Pensara que era o único caminho.

Quando Rasputine deixara a Igreja há cerca de um século e formara um exército de seguidores suficientemente forte para o proteger da justiça da Igreja, a fé de Rhun não vacilara. A vida de Rasputine era uma vida de perversidade e enganos, e Rhun nunca seguiria tal exemplo. Mas saber que podia haver outro caminho assustava-o e enraivecia-o.

Ficou a olhar fixamente para a luz do Sol que fluía pelas janelas.

Toda a minha existência foi uma mentira?

08h25

Erin viu como Rhun se afundava na cadeira e reparou no ar perdido gravado no seu rosto. Ela sabia que ele passara por muito. Quase morrera e perdera um braço, mas ela suspeitava que aquelas revelações eram um golpe muito mais profundo, um golpe que demoraria algum tempo a sarar, se é que sararia. Quase podia ver os alicerces e a fé de Rhun na Igreja desintegrarem-se.

Porém, por agora, tinham assuntos mais urgentes a discutir.

Ela confrontou Bernard.

— Hugh ainda está vivo?

— Sim.

Rhun olhou atentamente para Bernard, mas o cardeal continuava a recusar-se a olhar para ele.

— Ele ainda vive no seu eremitério remoto naquelas montanhas — admitiu Bernard.

— O senhor sabe alguma coisa sobre as pedras? — Erin fez um aceno com a cabeça para Jordan, que mostrou os pedaços do diamante verde. — Hugh deu esta a John Dee e talvez mais duas como esta.

— Não sei de nada. Foi por isso que resolvi mexer naquelas malditas gotas.

Jordan voltou a guardar o diamante no bolso.

— Então parece que vamos ter de fazer uma visita a quem sabe, se quisermos algumas respostas.

Exatamente.

— Diga-nos como é que podemos encontrá-lo — urgiu Erin.

Bernard levantou uma mão, mas deixou-a cair sobre o joelho num gesto de derrota.

— Não se pode simplesmente requerer uma audiência com Hugh de Payens. Ele não tem qualquer interesse em assuntos mundanos e o seu eremitério está bem guardado.

— Guardado? — Jordan franziu as sobrancelhas. — Como?

— Vocês têm de perceber que o que fez de Hugh de Payens um grande líder foi a sua capacidade de ler o coração dos homens, de os conhecer melhor do que eles se conhecem a si mesmos. E não apenas o coração dos homens. Ele tinha uma profunda afinidade com todas as criaturas de Deus e tornou-se um grande admirador de São Francisco de Assis.

— O santo padroeiro da natureza e dos animais — disse Erin.

Ela conhecia as lendas associadas ao santo italiano, como mesmo as aves se juntavam para o ouvir pregar, pousando nos seus ombros. Dizia-se que Francisco até amansara um lobo selvagem que aterrorizava uma aldeia. Fazia sentido que Hugh o admirasse.

Bernard olhou para baixo, com um sorriso melancólico no rosto, revelando como gostava sinceramente aquele homem.

— Dizia-se por brincadeira que Hugh era capaz de falar com os animais.

Durante as cruzadas, os cavalos de guerra seguiam-no com cães. Faziam tudo por Hugh: carregavam para o meio dos combates mais intensos ou mesmo para o fogo se ele o ordenasse. Penso... penso que o sangue deles pesava mais na sua consciência do que o sangue dos homens que morriam ao seu lado. Na cabeça de Hugh, eles eram inocentes chacinados pela sua lealdade para com ele. Por fim, tornou-se demasiado.

Erin compreendia aquilo demasiado bem, ao recordar as mortes dos seus estudantes no Egito.

— No final, Hugh não conseguia obrigar-se a matar nem mesmo os blasphemare.

— Eu pensava que vocês tinham de matar todas as criaturas amaldiçoadas — disse Jordan. — Que vocês tinham ordens para as matar assim que as avistassem.

— E temos — retorquiu Rhun. — Elas são bestas corrompidas pelo mal. E, ao contrário dos strigoi, não podem ser conduzidas para o bem. Para pôr um fim ao seu sofrimento, elas devem ser destruídas.

— Mas têm a certeza disso? — perguntou Erin, reconhecendo agora mais do que nunca como muitos dos decretos gravados na pedra eram errados. — Porque é que não podem existir caminhos diferentes para a salvação para esses pobres animais? Talvez mesmo para os próprios strigoi?

— Hugh teria concordado consigo — retorquiu Bernard. — Suspeito que é esse modo de sentir que talvez explique por que razão os blasphemare são atraídos para o eremitério. Vêm de longe e de todo o lado, criaturas solitárias separadas dos seus criadores a quem estavam ligados pelo sangue, que procuram o consolo e proteção que ele oferece.

— O quê? — Rhun endireitou-se na cadeira, parecendo horrorizado.

— E não só essas criaturas corrompidas — continuou Bernard —, mas também strigoi.

Rhun levantou-se.

— E mantiveste isso em segredo?

— Deixe-me adivinhar — exclamou Jordan —, quando disse que o eremitério era guardado, era isso que queria dizer. Ele tem um exército de strigoi e blasphemare leais a ele e que o guardam.

Bernard baixou a cabeça, confirmando aquela verdade.

— Excelente — murmurou Jordan.

Bernard fitou-os.

— Mas estou a contar-vos tudo porque isso também vos oferece uma maneira de chegarem a ele. — Virou-se para Rhun. — Tu próprio trouxeste a chave que abrirá o coração de Hugh.


CAPÍTULO 27

19 de março, 08h55 CET
Castel Gandolfo, Itália

Jordan observou o cardeal a pousar o auscultador do telefone que se encontrava em cima da secretária.

— Está feito — disse Bernard, depois caminhou de volta para a sua cadeira com as pernas ainda cambaleantes. — A chave será trazida para aqui.

Jordan olhou de relance para Rhun, esperando algum tipo de explicação. Erin ajoelhou-se ao lado da cadeira de Rhun, examinando as ligaduras no seu coto. A gaze estava manchada com sangue fresco da luta recente. Rhun dissera uma vez a Jordan que todas as sensações eram mais intensas para os sanguinistas, incluindo a dor. Se isso era verdade, Jordan nem conseguia imaginar a agonia que Rhun deveria estar a sentir agora.

— Está bem, cardeal — disse Jordan —, e que tal contar-nos mais sobre o facto de a casa de Hugh estar guardada, sobre o que poderemos ter de enfrentar lá?

Bernard coçou o queixo.

— Para compreender isso, terão de compreender a filosofia de Hugh. Tive muitas conversas demoradas com Hugh sobre esse mesmo assunto antes de ele abandonar a ordem. Relativamente a blasfemare, ou até mesmo strigoi, ele acreditava que eram todos criaturas de Deus, cujo único pecado era o facto de a sua inocência lhes ter sido roubada.

— É capaz de ter alguma razão — disse Erin. — Nenhum deles teve alguma escolha no que diz respeito à sua corrupção. Geralmente, foi-lhes imposto contra a sua vontade.

— Não importa — argumentou Bernard. — Todos nascemos com o pecado original, um pecado que mancha as nossas almas inocentes devido à afronta de Adão e Eva no Jardim do Éden. É somente através do ritual do batismo que esse pecado é purificado.

Erin não parecia abalada por este argumento.

— Na altura — continuou Bernard —, eu pensava que os argumentos de Hugh tinham apenas uma natureza teórica. Depois, quando ele saiu da ordem e foi deambular pelo mundo, não tive mais notícias dele. Presumi que tivesse morrido, como acontece com tantos outros sem a proteção da Igreja.

— Mas ele sobreviveu — concluiu Jordan.

— Um dia, recebi uma carta dele. Disse-me que se estabelecera nas montanhas em França, que encontrara paz a cuidar das criaturas perdidas e danificadas do mundo.

— Isso inclui blasphemare e strigoi? — perguntou Erin.

Bernard acenou com a cabeça.

— Não contei a ninguém. Hugh só queria ser deixado em paz e viver nas montanhas como São Francisco de Assis. Só o tolerei porque ele proibiu que se matasse nas suas montanhas. Nem aqueles que se encontram sob a sua proteção tinham autorização para matar, a não ser que fossem provocados para defender o seu eremitério.

Jordan não gostava do que ouvia.

— Mesmo com a chave nas nossas mãos, como propõe que ultrapassemos esse desafio?

— Têm de ir até à montanha de Hugh, não para os sitiar, mas como suplicantes. — Bernard olhou fixamente para Jordan, depois para Rhun. — O que significa que terão de ter cuidado para não fazer mal a nada que vos apareça pela frente naquela montanha, independentemente do quanto sejam pressionados a fazê-lo. Se falharem, não só Hugh recusará receber-vos, como serão abatidos antes de conseguirem deixar aquelas montanhas verdejantes.

— Então, devemos subir a uma montanha repleta de monstros — começou Jordan — e dar a outra face quando eles nos atacarem.

Bernard ergueu um dedo.

— E devem levar uma oferenda que Hugh não seja capaz de recusar.

O que poderá ser isso?

— Assim que tiverem a atenção dele — salientou Bernard —, será vossa responsabilidade convencerem-no a ajudar-vos, provar que a vossa missão é merecedora e que serve os interesses de todos, não apenas dos sanguinistas, mas de todas as criaturas de Deus.

— Então, vai ser canja — troçou Jordan. — E só temos um dia ou pouco mais para o convencer a ajudar-nos a salvar o mundo.

Bernard franziu o sobrolho, parecendo confuso.

Erin explicou:

— Pelo que vimos numa pintura que se encontrava no laboratório de Edward Kelly, temos até ao meio-dia do equinócio vernal para impedir que Lúcifer se liberte dos seus grilhões.

Jordan olhou para o relógio, enquanto Erin explicava mais pormenores sobre este prazo, e disse:

— Isso dá-nos cerca de vinte e sete horas.

— Mas poderá não ser o equinócio vernal deste ano — sugeriu Erin. — Aquele mural foi pintado há vários séculos. Quem sabe, ao certo, o que o inspirou?

Bernard não estava a acreditar nesta explicação... nem Jordan.

— As coisas ficam piores por todo o mundo a cada hora que passa — disse o cardeal. — O equilíbrio entre o bem e o mal está a resvalar para a ruína. Até as estrelas se estão a alinhar contra nós, sugerindo que o equinócio de amanhã é importante.

— Qual é o presságio? — indagou Erin.

— Não ouviste? — perguntou ele.

— Temos andado ocupados — respondeu Jordan.

— Vai haver um eclipse solar... um eclipse parcial.

Erin franziu o sobrolho e disse:

— O sol pintado naquele mural era vermelho-sangue. Talvez o artista estivesse a tentar simbolizar um eclipse.

Antes que conseguissem discutir o assunto, ouviram bater à porta. Todos se viraram quando esta se abriu.

Um dos guardas espreitou e chamou-os, a sua voz estranhamente agitada.

— Padre Korza, este visitante diz que foi chamado por si. Diz que o padre os queria ver aos dois.

O guarda afastou-se, revelando o primeiro visitante: a figura rechonchuda de frei Patrick entrou. Rhun levantou-se, erguendo um braço para o cumprimentar.

Então, quem mais teria o frade...

Um vulto cor de neve passou pelas pernas do frade, quase derrubando o homem.

Jordan pestanejou de surpresa ao vê-lo. A criatura era um leão jovem, do tamanho de um pastor-alemão, com pelo cor da neve, garras prateadas e olhos de um tom castanho-dourado.

Quando o leão se lançou pelo pequeno corredor em direção a eles, Jordan mudou de posição para proteger Erin. No entanto, o felino saltou de imediato para cima de Rhun, derrubando-o e lambendo-lhe o rosto.

Jordan ouviu o som mais estranho que alguma vez ouvira.

Rhun a rir.

Em seguida, a cria olhou para cima, para Jordan, e levantou-se de um pulo, cheirando-lhe os tornozelos e as pernas. Jordan teve de empurrar o focinho inquisitivo do leão para que este não se enfiasse entre as suas pernas.

— Sim, olá para ti também. — Jordan virou-se para Bernard, lembrando-se da sua história sobre o amor de Hugh de Payens pelos animais. — Deixem-me adivinhar. Aqui está a chave para o coração do seu amigo.

Bernard olhou para o animal com uma nostalgia evidente.

— Esta besta é muito mais do que isso.

Jordan assentou um joelho no chão e passou os dedos pela sua juba ainda pouco desenvolvida. Seria um leão adulto impressionante. O felino respondeu, marrando com a cabeça na testa de Jordan.

Quando as suas cabeças se tocaram, Jordan sentiu um esticão percorrer-lhe o corpo todo. As cicatrizes no seu ombro e peito brilharam como fogo.

Mas que raio?

Os olhos dourados da cria cruzaram-se com os seus, e Jordan não conseguia desviar o olhar, sentindo-se como se fossem almas gémeas, como se ele também tivesse sido tocado pelos anjos.

Bernard tinha razão.

És, sem dúvida alguma, mais do que aparentas ser, pequenote.

Depois, o leão rosnou, exibindo as suas presas.

09h04

Rhun avançou para segurar o jovem leão, surpreendido pela sua súbita agressividade para com Jordan. Mas antes que os seus dedos conseguissem agarrar o animal, o felino virou-se e fugiu. A rosnar, o animal voltou para o corredor. Os pelos que se estendiam ao longo das suas costas cor de neve eriçaram-se.

Frei Patrick observou o seu comportamento e levantou uma mão.

— Deixem-no ir! Ele apanhou o cheiro de algo!

O leão virou quando chegou ao final do corredor, para dentro de um dos quartos escuros.

— Estive lá ainda há pouco a buscar um cobertor — disse Jordan. — O quarto está vazio.

Na eventualidade de o seu amigo estar enganado, Rhun apanhou a sua karambit do chão e seguiu o felino na sua caçada. Os outros foram atrás dele.

— Patrick — gritou Rhun para o frade —, vai chamar os guardas.

O leão caminhava rente ao chão, a sua cauda abanava furiosamente. Conduziu-os até um guarda-fatos antigo, que se encontrava de um dos lados da cama. O seu rosnar esmorecia enquanto olhava fixamente para as portas.

Está algo no interior.

Rhun esperou até ouvir os guardas atrás dele, depois passou para a frente do felino.

Jordan surgiu do outro lado da cria, com a espada em riste. Estendeu a mão livre para os puxadores do guarda-fatos. Olhou de relance para Rhun, o seu olhar inquisitivo.

Rhun acenou com a cabeça.

Jordan abriu a porta com um puxão — e uma pequena figura escura lançou-se sobre eles. Embateu violentamente em Jordan, empurrando-o contra a estrutura da cama. Rhun atacou com a sua lâmina curva, cortando carne, mas desferindo apenas um golpe de raspão.

O atacante moveu-se com a velocidade sobrenatural de um strigoi. Mas Rhun conseguiu ver um colarinho branco. Um sanguinista.

Bernard empurrou Erin para o lado, depois girou — agarrando na espada de um dos guardas e brandindo-a em toda a volta, atingindo o atacante no pescoço. A cabeça voou pelo corredor e o corpo tombou no chão. Rhun olhou em volta para se certificar de que não existia mais nenhuma ameaça.

— Luz! — gritou Bernard, e apontou com a espada. — Abram as cortinas do corredor!

Os dois guardas arrancaram as pesadas cortinas de seda das janelas. A luz brilhante do Sol inundou o corredor.

Bernard atravessou o corredor e virou a cabeça caída para ver o rosto do seu atacante. O cardeal deu um passo atrás em choque.

— É o padre... o padre Gregory.

Rhun afastou Bernard, encaminhando-o para o escritório, para longe da cabeça do seu antigo assistente. Rhun ordenou aos guardas:

— Revistem o resto do apartamento. E o corpo. Procurem marcas negras na sua pele.

Os outros seguiram Rhun de volta ao escritório, até mesmo o felino.

Erin encontrava-se de pé, com os braços à volta do peito, os seus olhos a brilhar com a clara noção de que já nenhum lugar era seguro. Rhun ansiava poder confortá-la, mas ela estava certa.

Bernard falou, a sua voz ligeiramente trémula.

— Poderá... poderá ter sido das gotas de sangue de Lúcifer? Talvez ele estivesse atormentado como eu. O padre Gregory trouxe-as até mim.

— Não — afirmou Erin com convicção. — O seu assistente teria sido libertado quando eu destruí as pedras. Tal como o cardeal foi. Acho que é mais provável que ele lhe tenha trazido aquelas pedras a noite passada, sabendo que o mal o iria chamar. Outra força maligna tinha-o como servo.

A confirmação surgiu quando um dos guardas voltou para a porta e anunciou:

— Os outros quartos estão seguros. Mas encontrámos a marca de uma mão negra na base da coluna do padre Gregory.

— Legião — declarou Erin.

— Então, o seu mal ainda perdura — disse Rhun, tal como tanto temera.

— Parece que sim. — Erin olhou para o fundo do corredor. — E se ele estava a ouvir a nossa conversa, temos de presumir que ele sabe tanto quanto nós.

Jordan dirigiu-se para junto de Erin e disse:

— Então, temos de chegar a Hugh antes de Legião.

Bernard acenou com a cabeça.

— Vocês têm uma vantagem.

— E qual é ela? — perguntou Jordan.

O cardeal olhou fixamente para o leão.

— Ele é uma criatura abençoada.

Surpreendido, Rhun olhou de relance para Patrick.

— Eu não revelei o nosso segredo — declarou o frade.

— Isso é verdade, Rhun — disse Bernard, como se Rhun confiasse no cardeal. — Mas nada fica fora da vista e dos ouvidos daqueles que me são leais, aqui e no Vaticano. Além disso, um leão na residência papal não é algo que passe despercebido. Sobretudo, este.

Bernard colocou uma mão sobre a cabeça da cria, mas o animal sacudiu-a.

Um sinal claro de bom discernimento.

— É uma criatura completamente nova — disse Bernard —, e é por isso que irá fascinar Hugh de Payens.

O leão roçou-se nas coxas de Rhun, um sonoro ronronar emergiu do seu peito. Rhun tocou na sua cabeça sedosa. A sorrir, Erin estendeu uma mão. A cria cheirou-a, depois marrou com o focinho, de forma brincalhona, contra a palma da mão dela.

— Onde o encontraste? — perguntou Erin.

Rhun contou uma versão abreviada da história, terminando com: «Acredito que foi o fogo angelical que poupou a vida da cria no ventre e abençoou a sua forma atual.»

— Se estiveres certo — começou Jordan, o seu olhar pensativo fixo no animal —, isso significa que foi esse mesmo fogo que me curou, uma oferenda de Tommy. — Olhou para baixo, para a cria. — Isso torna-nos irmãos de sangue, pequenote.

Rhun olhava fixamente para Jordan e para o leão. Os dois tinham sido, de facto, abençoados pela mesma fonte. Talvez existisse uma razão para ambos se encontrarem agora juntos na mesma sala. Rhun encontrou alguma esperança nessa pequena providência.

Contudo, ao mesmo tempo, sentia algum medo, sabendo que o seu adversário ainda se encontrava por aí, o espelho obscuro da claridade que aqui se encontrava. O inimigo conseguira infiltrar-se no coração da sua ordem, envenenando-a.

Então, em quem podiam confiar?

Rhun olhava fixamente para Erin e Jordan, tendo apenas uma certeza.

Posso confiar neles, nos seus corações.


CAPÍTULO 28

19 de março, 10h01 CET
Praga, República Checa

Legião sentiu aquela gavinha negra a ser apartada, cortada pela prata. À medida que secava e se retraía, a sua consciência regressou à escuridão de uma cave gelada, por baixo de um velho edifício em Praga. Os que moravam nos andares acima já estavam mortos, os seus corações silenciados para sempre.

Ele entreabriu os lábios e deixou mais sangue jorrar por cima da sua língua sedenta e pela garganta queimada abaixo. Os seus servos eram poucos agora, apenas aqueles a quem Legião ainda se conseguia agarrar quando o corpo que possuía se encontrava tão danificado. A ferida aberta no seu peito já fechara. Os seus ossos partidos endureceram e sararam. A sua pele enegrecida pelo fogo caía profusamente, descamando o passado deles como uma cobra.

Mas Legião agarrava-se a esse passado, deixando-o queimá-lo por dentro, da mesma forma que o fogo crestara este corpo frágil.

Lembrava-se de garras e dentes a arrastá-lo para fora dos destroços fumegantes daquela mansão maléfica. Fora puxado pelos degraus da casa abaixo até à escuridão. Ele sabia quem fora o seu benfeitor. Dormitava agora ao seu lado, a respirar profundamente, mas ainda alerta, ainda a protegê-lo.

O grimwolf.

Uma vez aqui, Legião erguera as suas sombras em volta da chama ténue de Leopold, onde fora obrigado a proteger aquela réstia de vida, tornando-a novamente uma pequena chama. Se Leopold tivesse morrido, a presença de Legião neste mundo ter-se-ia evaporado, lançando-o de volta para a escuridão informe. Por isso, cuidava daquela chama, preservando o corpo que possuía. Fora necessário todo o seu esforço e concentração, custando-lhe muitos dos seus ramos, libertando aqueles que subjugara anteriormente.

Mas não todos.

Embora a árvore tivesse morrido à fome, secando aos poucos todos os seus ramos, a raiz sobrevivera.

E eu crescerei novamente e ainda mais forte.

Depois de o lobo o ter arrastado até aqui, Legião recorrera àqueles que ainda se encontravam sob o seu domínio e atraíra-os para este lugar, matando tudo o que se encontrava acima, trazendo sangue fresco para reavivar e fortalecer o corpo que possuía. Ele procurou com os seus muitos olhos, descobrindo quantos restavam espalhados por outras terras, recorrendo aos que não se tinham libertado quando ele caíra. Pô-los em movimento, numa única direção.

Todos, à exceção de um.

Legião lançara a sua consciência para um padre dentro da Ordem Sanguinista. Marcara o homem antes de sair de Roma. Ele ficara a saber da sua existência através do sanguinista que subjugara nas sombras das paredes do Vaticano. Fora tão simples atrair o outro, explorando a confiança pura da vítima no companheiro sanguinista, que o levou a Legião.

Como aquele padre gritou quando viu Legião — mas tudo terminou quando o homem foi imobilizado no chão, despido das suas vestes, e Legião colocou a palma da sua mão no fundo das costas do padre, escondendo aí a sua marca.

Através desses mesmos olhos e ouvidos, espiou o inimigo, ficando a saber tudo o que este sabia.

O que eu sei agora...

A sua tentativa de os corromper com o sangue obscuro do anjo negro podia ter falhado em Praga, mas ele sabia para onde eles iam a seguir.

Para onde eu vou...

Para encontrar as pedras.

Precisava das três para multiplicar o seu poder, a fim de forjar a chave para os grilhões de Lúcifer. Em seguida, levaria o reinado da humanidade a um fim catastrófico.

A sua mão encontrou o lobo ao seu lado, sentindo a sua natureza selvagem por detrás da corrupção, fazendo-lhe uma promessa.

Vou devolver-te o paraíso... e a mim também.

O vosso novo rei negro.


QUINTA PARTE

Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá.

A vaca pastará com o urso, as suas crias repousarão juntas; o leão comerá a palha com o boi.

A criancinha brincará na toca da áspide e o menino desmamado meterá a mão na caverna da serpente.

Não haverá dano nem destruição em todo o meu Monte Santo, porque a terra está cheia da ciência do Senhor, tal como as águas que cobrem o mar.

— ISAÍAS, 11: 6-9


CAPÍTULO 29

19 de março, 14h14 CET
Pirenéus, França

Jordan pôs-se de pé na clareira, à medida que os motores do helicóptero começavam a abrandar atrás dele. Respirou fundo a brisa com aroma a pinheiro que soprava pela montanha alta à sua frente. A neve do inverno ainda congelava o seu pináculo de granito, enquanto, em baixo, uma floresta verdejante de primavera adornava os seus declives, brilhando em todos os tons de esmeralda sob o sol da tarde.

— Tenho de admitir que — concluiu Jordan —, maluco ou não, este tipo escolheu um pedaço lindo da terra verdejante de Deus para fazer a sua casa.

Erin aproximou-se dele, movendo-se velozmente por entre o trevo e a erva. Era óbvio que a queda através do telhado em Praga a abalara. Ela precisava de mais tempo para sarar — tempo esse que eles não tinham. Jordan olhou para o Sol, sabendo que esperavam já não se encontrar nestas montanhas ao pôr do sol.

Ele olhou para trás, para os seus companheiros. Os sanguinistas pareciam pouco melhor que Erin: Rhun movia-se de forma estranha com a falta de um braço, Sophia tinha um corte na face e as mangas compridas de Christian escondiam as ligaduras.

O último membro do grupo parecia ser o mais forte dos sanguinistas. Elizabeth trocara as suas vestes religiosas por um par de botas de caminhada, calças e um casaco de cabedal pelo joelho. Ela poderia ser facilmente confundida com um caminheiro, desejoso de enfrentar esta montanha. Tinham trazido a condessa por causa do seu passado com Hugh de Payens. Precisavam de toda e qualquer vantagem.

Incluindo trazer a mascote da equipa.

Rhun libertara o leão da sua jaula nas traseiras do helicóptero, e este saltava agora agilmente pela clareira, perseguindo uma borboleta azul. Jordan reparou no ligeiro sorriso de Rhun ao apreciar a natureza descontraída do jovem leão e como esse sorriso apagava as linhas de tensão e dor que tinham marcado o rosto do padre durante todo o voo. Jordan nunca vira nada que fizesse Rhun descontrair como aquele gato grande.

Christian terminou a aterragem da aeronave e juntou-se a eles.

— Isto é o mais próximo que podemos chegar. Segundo Bernard, Hugh de Payens não permite a passagem de veículos modernos para lá deste ponto.

Era um lembrete de que estavam em território inimigo.

O plano era Christian ficar junto da aeronave, não só para a vigiar e impedir que alguém lhe mexesse, mas também para estar por perto se fosse necessária uma evacuação de emergência.

Erin olhou para cima, para a montanha, protegendo os olhos do brilho intenso do cume gelado.

— Para onde vamos?

Rhun estendeu um mapa e juntaram-se todos à sua volta. Bateu com o dedo num ponto no mapa topográfico, bem alto na montanha, onde um rio corria pela encosta, estendendo-se desde a linha de neve até uma série de poças e cascatas.

— A localização exata do eremitério de Hugh é desconhecida, mas Bernard acha que se encontra algures nesta área. Vamos para lá e esperemos o melhor.

— Aposto que este monsieur de Payens já sabe que nós estamos aqui — disse Elizabeth. — A nossa chegada de helicóptero foi tudo menos silenciosa.

— É por essa razão que vamos aderir ao lema dos escuteiros — sugeriu Jordan. — Estar preparado.

Para tudo.

Jordan encaixou no ombro a bandoleira da sua metralhadora Heckler & Koch MP7. Tinha também uma arma de reserva no coldre, um Colt 1911, carregada com munições de prata, e um punhal banhado a prata preso ao tornozelo.

Embora Jordan levasse a sério o aviso de Bernard — nada de matar — não queria que dar a outra face fosse a sua única opção durante um confronto.

Os outros estavam igualmente armados. Erin tinha o seu Colt 1911, e os sanguinistas carregavam vários tipos de facas e espadas embainhadas por todo o corpo.

— Vamos seguir — gritou Jordan —, antes de desperdiçarmos mais luz do Sol.

Em grupo, marcharam pelo campo em direção à linha das árvores, liderados pela sua entusiástica mascote. O chilrear dos pássaros deu-lhes as boas-vindas quando entraram na floresta sombria. Num espaço de poucos metros, as faias tornaram-se tão grossas que, por vezes, tinham de se virar de lado para passar entre os seus troncos cinzentos.

Não havia dúvida de que a floresta era antiga aqui e permanecera intocada durante muitos séculos.

Era óbvio que Hugh protegera as suas terras de qualquer ataque.

Quando as copas das árvores se tornaram mais altas e as sombras mais densas, não havia como escapar à sensação primitiva da floresta. Era como se estivessem a caminhar por uma espécie de catedral natural.

Também era bastante fácil perderem-se.

O leão esfregou o focinho em vários troncos de árvore, como que deixando uma sinalização de cheiro para os ajudar a encontrar o caminho de volta. De resto, a cria comportava-se mais como um gatinho: levantava as folhas que cobriam o chão e saltava por entre os arbustos. Ainda assim, quando uma coruja piou por cima da sua cabeça, o leão saltou trinta centímetros no ar e aterrou numa pilha de folhas e paus secos.

O felino também estava tenso.

Ou talvez esteja só a detetar e a refletir a nossa ansiedade.

Caminharam pouco mais de um quilómetro e meio, saltando por cima de troncos caídos e serpenteando por entre faias e ocasionais inheiros, nunca se movendo em linha reta durante muito tempo. Se mantivessem este ritmo, conseguiriam chegar ao local assinalado no mapa no espaço de uma hora.

Passados outros dez minutos, Jordan descobriu um velho trilho de veados.

Se formos por aqui, conseguiremos poupar ainda mais tempo.

— Aqui — sussurrou ele, com receio de elevar a voz, não tanto por medo de alertar o inimigo, mas por sentir uma reverência estranha por aquela floresta.

Seguiram o trilho, movendo-se ainda mais rápido agora.

Foi então que um galho se partiu por cima das suas cabeças e à esquerda do trilho, soando tão alto como o tiro de uma arma.

Jordan empurrou Erin para trás das suas costas e virou-se na direção do som. Os sanguinistas ladearam-no, enquanto o leão permanecia aos pés de Rhun, rosnando suavemente.

A cerca de dez metros, um enorme cão desgrenhado saltou para o trilho e ficou de frente para o grupo. O seu pelo negro era mais sombra que substância, a camuflagem perfeita para esta floresta.

Exceto pelo sobrenatural brilho vermelho dos seus olhos.

Um blasphemare.

As omoplatas da besta erguiam-se acima da anca de Jordan. Quando baixou a cabeça e recuou as orelhas, revelou um longo pescoço possante e um corpo musculado. Parecia mais um urso que um cão.

Um urso bem alimentado.

Até o seu pelo negro parecia polido.

Não se tratava de um animal vadio.

Embora fosse invulgarmente grande e tivesse a pelagem negra, Jordan reconheceu a raça, um cão-de-montanha-dos-pirenéus. Originalmente criados como cães pastores, eram, de uma forma geral, criaturas gentis, mas também extremamente protetoras dos seus donos e territórios.

Outras sombras moveram-se de ambos os lados do trilho, claramente deixando-se ser vistas.

Ele contou mais quatro.

Então, é uma matilha.

A primeira coisa a fazer era levar Erin para um local seguro.

Jordan moveu-se lentamente, entrelaçando os dedos. Virou-se e ofereceu-se para dar impulso a Erin para cima.

— Sobe para aquela árvore — sugeriu ele.

Erin não perdeu tempo com falsos discursos de coragem e acenou rapidamente com a cabeça. Apoiou a bota nas mãos dele e impulsionou-se, ao mesmo tempo que Jordan a empurrava ainda mais para cima. Esticando-se, agarrou-se a um ramo suspenso de uma faia robusta, ergueu-se, depois continuou a trepar pela árvore.

Jordan nunca desviou o olhar dos cães.

A matilha movia-se, agitada, mas não se aproximou.

Jordan balançou a pistola-metralhadora para o ombro, enquanto facas e lâminas surgiam nas mãos dos sanguinistas, a prata a brilhar na sombra.

Passado um momento de tensão, a matilha começou a mover-se ao mesmo tempo, como se obedecesse a um apito silencioso. O primeiro cão saltou para o trilho, focando-se em Jordan. Os outros separaram-se, caminhando lado a lado em direção aos sanguinistas.

— Lembrem-se de que não devemos fazer-lhes mal — avisou Rhun.

— Está bem, eu prometo não o morder primeiro — respondeu Jordan, mantendo a pistola-metralhadora em riste, apontada ao focinho arreganhado do cão.

Pouco impressionado pela ameaça, o líder da matilha aproximou-se, ofegante, franzindo o focinho a cada rosnadela.

Jordan manteve o dedo firme no gatilho.

Tinha de fazer uma escolha.

Matá-lo, feri-lo ou fazer as pazes com ele.

Jordan lembrou-se do seu treino enquanto soldado.

Baixou a arma.

Obedece às ordens dadas.

O seu coração batia rapidamente, enquanto erguia a palma da mão para o animal.

— Não te vou magoar — sussurrou ele, suavemente. — Prometo.

De repente, o cão saltou para cima dele, tentando morder-lhe a mão e apanhando-lhe os dedos.

Jordan conseguiu retirar a mão. Sangue escorria profusamente das pontas dos seus dedos.

Mas, pelo menos, ainda tenho dedos.

Jordan observou atentamente o seu adversário. Talvez o seu sangue fosse venenoso para o cão, como o fora para o strigoi que o atacara nos túneis por baixo de Praga. O cão limitou-se a arreganhar os dentes e a lamber o focinho.

Não teve essa sorte.

O cão voltou a atacá-lo, saltando-lhe para a garganta.

Jordan caiu de costas, estendeu as pernas para a frente e acertou com os pés em cheio na barriga do cão. Atirou-o por cima da sua cabeça para trás. Quando o cão aterrou e voltou a levantar-se, já Jordan se encontrava em pé, de frente para ele.

Saliva escorria das presas do animal, enquanto se movia num círculo lento à volta de Jordan, os seus passos silenciosos sobre o espesso tapete de folhas mortas.

Jordan colocou a palma da mão em cima da coronha da pistola-metralhadora... deixando-a cair, em seguida.

Não o posso alvejar.

— Bom menino! — gritou Jordan, avançando novamente em direção ao cão, com as mãos abertas, mostrando-se inofensivo.

Pelo canto do olho, viu os sanguinistas a defenderem-se dos ataques dos outros cães com todo o tipo de meios não letais, o que consistia basicamente em correr e saltar.

Mas durante quanto tempo vamos aguentar assim?

Como se soubesse que o seu alvo estava distraído, o cão lançou-se diretamente contra o peito de Jordan, atirando-o ao chão. Jordan conseguiu levantar o braço para proteger a garganta, mas as presas afiadas perfuraram a carne do seu antebraço. Contorcendo-se para o lado, Jordan retirou o punhal da bainha do tornozelo.

Já sofrera o suficiente em nome da paz.

O cão rosnou, fincando ainda mais os dentes até ao osso. Olhos vermelhos fitavam intensamente os de Jordan. Ele não viu neles raiva ou malícia, somente uma determinação selvagem.

As palavras de Bernard ecoaram nos seus ouvidos: não façam mal a nada do que encontrarem nestas montanhas.

A missão deles era conseguir a ajuda de Hugh. O que quer que acontecesse com Jordan era insignificante em comparação. Deixou o punhal cair da sua mão.

Para lá das orelhas do cão, Jordan viu Erin num ramo de árvore. Os seus olhos castanhos estavam arregalados de terror. Ela apontou a pistola ao cão.

— Não dispares! — gritou Jordan por entre a dor.

Para garantir que ela obedecia, Jordan atirou-se para o lado, rolando o cão para baixo dele, protegendo-o com o seu corpo. Ele tinha de proteger o cão. Se o cão morresse, a missão falharia.

Mas ninguém partilhou este plano com o cão.

O focinho arreganhado desprendeu-se do braço de Jordan e tentou morder-lhe o rosto. Jordan empurrou a cabeça do cão para trás.

Má jogada.

Dentes amarelos cravaram-se na garganta exposta de Jordan.

15h18

Erin gritou enquanto o cão sacudia a cabeça, os dentes a penetrar ainda mais fundo. Sangue jorrava da garganta de Jordan para o focinho do cão debaixo dele.

Erin mantinha a pistola apontada, mas ainda tinha receio de disparar, de acertar em Jordan por engano.

Uma busca frenética em volta revelou que os três sanguinistas estavam ocupados com os seus próprios problemas. Cada um enfrentava um cão e nenhum deles podia ajudar Jordan.

Por baixo do ramo onde se encontrava, o animal rosnava e rolava, atirando Jordan de um lado para o outro como uma boneca de trapos. Jordan já não se mexia, a sua cabeça encontrava-se pendurada entre os maxilares do monstro. Ela fez pontaria, tendo agora o alvo na mira. Lembrou-se do aviso de Jordan.

Não dispares!

Que se lixe Hugh de Payens e as suas regras.

Erin manteve o dedo firme no gatilho, pronta para o premir.

De repente, um clarão branco saiu disparado das sombras debaixo das árvores e atacou o cão, que era muito maior, afastando-o de cima de Jordan.

O leão de Rhun.

Sombra e luz debateram-se num emaranhado de membros, depois o cão libertou-se, voltou a pôr-se de pé, enfrentando o felino a rosnar. A cria parecia tão pequena. Ainda assim, o felino bufava e levantava a pata, expondo garras prateadas.

Aparentemente pouco impressionado, o cão avançou na direção do felino — foi então que o leão se lançou, atacando com a rapidez de uma cobra, e arranhou o focinho negro do cão. O líder da matilha ganiu e recuou. Sangue negro escorreu de quatro arranhões no nariz do cão.

A cria mudou de posição para ficar à frente do corpo de Jordan. O seu pelo branco como a neve estava eriçado e um rugido profundo emergiu do seu peito. Levantou novamente uma pata ameaçadora, mostrando-se pronto para continuar a lutar.

Com um ganido, o cão virou-se e fugiu, fundindo-se novamente com as sombras da floresta. O resto da matilha seguiu-lhe o exemplo, abandonando as várias refregas e desaparecendo.

Erin desceu rapidamente da árvore, caindo ao pé de Jordan, e ajoelhou-se junto dele. A cria mantinha-se por perto, parecendo igualmente assustada. O felino baixou o seu pequeno focinho e empurrou o rosto de Jordan. Um pequeno clarão surgiu entre eles, como um choque de eletricidade estática numa sala escura, só que este era claramente dourado, relembrando-a da natureza angelical dos dois.

Vá lá, Jordan, tu consegues sair-te desta.

Ela limpou o pescoço dele com o punho da manga da camisa. A cria lambeu as faces e a testa de Jordan. O sangue já parara de correr. Enquanto observava, a pele rasgada de Jordan começou a unir-se. As gavinhas carmesins que se ramificavam da tatuagem e rodeavam o pescoço ficaram novamente mais grossas, serpenteando ao longo da pele ferida, curando a sua carne.

Erin tocou-lhe na face com a ponta dos dedos. A sua pele estava extremamente quente. Ninguém conseguiria sobreviver muito tempo com uma febre daquelas.

— Jordan.

Ele abriu os olhos, a sua tonalidade azul como o céu a espreitar por entre nuvens escuras.

Ela sabia tudo sobre aqueles olhos — como o anel à volta da íris tinha um tom mais escuro de azul, como a ganga, mas o resto da íris era muito mais clara, com linhas descoradas a atravessá-la como pequenos riachos. Aqueles olhos azuis tinham rido com ela, chorado com ela e prometido um futuro juntos. Mas agora olhavam-na como se ela fosse uma desconhecida.

— Jordan?

Ele resmungou qualquer coisa e sentou-se, com uma das mãos a afagar distraidamente o felino. Ergueu a outra mão para tocar no pescoço. Por baixo do sangue residual, a tatuagem parecia uma videira a estrangular uma árvore. Através da manga rasgada desse mesmo braço, Erin viu os ferimentos que também já tinham sarado. Enquanto observava, uma gavinha carmesim formou uma espiral na parte da trás da mão dele.

Erin tentou pegar-lhe nessa mão, mas Jordan afastou-se e levantou-se.

Rhun dirigiu-se apressadamente para junto deles.

— O Jordan está bem?

Erin não sabia como responder a isso.

Elizabeth e Sophia juntaram-se a Rhun. Os sanguinistas estavam com um ar maltratado, mas não tão feridos como Jordan. Talvez os cães com quem tinham lutado estivessem a brincar com eles, em vez de a tentar arrancar-lhes a garganta.

Elizabeth olhou para a floresta com um ar pensativo, enquanto endireitava os farrapos da manga do seu casaco.

— Porque será que os cães abandonaram a luta?

Erin manteve o seu olhar fixo em Jordan e disse:

— O felino... acho que ele os assustou.

Rhun afagou a cabeça do leão, sussurrando o seu agradecimento.

Erin pôs-se à frente de Jordan, obrigando-o a olhar para ela, e agarrou-lhe os ombros fortes.

— Estás bem?

Jordan acabou por olhar para ela, pestanejou umas quantas vezes, depois acenou com a cabeça. Os olhos dele focaram-se nela, vendo-a. Tocou no pescoço, parecendo ligeiramente desorientado.

— Estou bem.

Erin abraçou-o, apertando-o com força contra o peito.

Ele demorou um pouco a reagir, mas os seus braços acabaram por envolvê-la também.

— Estou ainda melhor agora — sussurrou ele por cima da cabeça dela.

Erin sorriu encostada ao seu peito, ao mesmo tempo que reprimia o choro.

Elizabeth sacudiu as folhas da sua camisa, parecendo impaciente.

Erin soltou-se do abraço, mas manteve-se de mão dada com Jordan, esforçando-se por aguentar o calor escaldante da palma e dos dedos dele, com medo de que ele pudesse não voltar da próxima vez.

Erin parou um instante para acariciar as orelhas aveludadas do leão, sabendo quem realmente salvara a vida de Jordan.

— Obrigada, amiguinho.

Ao longe, um cão uivou nas profundezas da floresta, lembrando-lhes que ainda não se encontravam a salvo. Nem perto disso.

— Temos de ir — disse Jordan. — Se aqueles cães estão a regressar a casa, somos capazes de conseguir seguir-lhes o rasto.

— Ele tem razão — concordou Rhun. — Se estes animais são os emissários de Hugh de Payens, então talvez tenham sido enviados para nos levar a ele.

— Ou talvez sejam apenas blasphemare selvagens que nos vieram matar — sugeriu Erin com rancor.

Mas, sem um plano melhor, puseram-se a caminho com Rhun à frente. Os olhos dele estudavam o chão, provavelmente a tentar encontrar pegadas na lama ou ver galhos partidos. De vez em quando, levantava a cabeça e inspirava o cheiro da matilha amaldiçoada.

— Pelo menos temos o nosso próprio cão de caça — sussurrou Jordan ao lado de Erin.

Mas para onde nos leva Rhun, que mais horrores estarão nesta montanha?


CAPÍTULO 30

19 de março, 15h44 CET
Pirenéus, França

Rhun seguiu o rasto dos cães pela floresta, esforçando-se ao máximo para ignorar a dor latejante que sentia no braço decepado. Avaliou aqueles que o rodeavam depois da batalha, sabendo que teria de contar com a sua ajuda.

Agora mais do que nunca.

Elizabeth caminhava sem qualquer dificuldade atrás dele, tendo apenas sofrido um pequeno ferimento na mão. Ele vira a destreza com que ela lutara contra o blasphemare, recordando-o de que Elizabeth era uma guerreira destemida. Ainda assim, Rhun notava nela uma relutância em estar aqui, uma impaciência inquietante que era algo novo. Tal como Jordan, Elizabeth tornara-se distante, a sua mente absorta. Ele tentara confrontá-la sobre isto durante o voo, mas ela ignorara-o.

Ainda assim, Rhun sentia que algo acontecera em Castel Gandolfo, algo que a enraivecera e, simultaneamente, a preocupara.

Ela estava a esconder alguma coisa.

Mas não estamos todos?

Atrás dele, ouvia-se o ruge-ruge das folhas secas, à medida que Erin e Jordan caminhavam pela floresta com passos pesados, incapazes de se moverem tão agilmente como os sanguinistas. Rhun escutou o bater do coração de Jordan, ouvindo novamente o som baixo de um tambor de guerra. O que quer que fosse que o sustinha não parecia assustá-lo. Em vez disso, parecia trazer-lhe força e paz. O mesmo não se podia dizer de Erin, que mal conseguia desviar o olhar de Jordan, avaliando-o a cada passo, o bater do seu coração pautado pelo medo.

Atrás deles, Sophia guardava o grupo, a sua pequena forma seguindo-os de perto como uma espécie de gnomo. No entanto, Rhun sabia que a mulher franzina era tão astuta como ágil, mortífera com as suas espadas e rápida a detetar as fraquezas do adversário. Em Praga, lutara sozinha com um grimwolf e estava viva para contar a história. Poucos podiam dizer isto.

À esquerda de Rhun, a cria caminhava velozmente por entre os troncos cinzentos, quase prateados, das faias, seguindo, à semelhança de Rhun, o cheiro da matilha de blasphemare. O ar da floresta estava carregado com o cheiro corrompido dos cães, mas, estranhamente, o odor intenso não o deixava inquieto como costumava acontecer.

Há algo diferente nestas criaturas.

Era evidente que as sombras da densa floresta proporcionavam um amplo esconderijo para os cães, lembrando a Rhun quão numerosos estes animais eram no passado, quando até os lugares mais recônditos da floresta permaneciam imersos na escuridão mesmo quando o sol brilhava no céu. Desde os seus dias enquanto mortal, tantos lugares selvagens tinham caído sob o machado da civilização. E tantas criaturas, blasphemare e naturais, tinham desaparecido juntamente com as árvores.

A floresta de faia deu gradualmente lugar a pinheiros prateados, à medida que subiam mais alto na montanha. Algures à sua esquerda, corria um riacho por entre as pedras, cheirando a neve derretida e gelo. O som da água a correr ficava cada vez mais alto à medida que avançavam, até soar como um rugido, vindo do que só podia ser uma grande cascata mais à frente.

Por fim, um brilho ténue de luz do Sol surgiu por entre as copas sombrias, encaminhando-os para a frente. Rhun pressentiu que a matilha se dividira, fundindo-se novamente nas árvores frondosas, o seu dever aparentemente cumprido.

Eles trouxeram-nos até aqui por alguma razão.

Rhun prosseguiu em direção à luz. Mais à frente, o leão caminhava a passos mais largos, não revelando qualquer medo em relação ao que poderia encontrar adiante.

As árvores tornaram-se rapidamente mais finas e espaçadas. A erva ondulava nas colinas, como um mar cor de esmeralda. Pequenas flores brancas brilhavam ali, prístinas e puras sob a luz do Sol.

Depois de tanto tempo na escuridão, aquela claridade fazia os olhos arderem. Rhun semicerrou-os, enquanto Elizabeth resfolegou. Ela era ainda mais sensível à luz. Quando saíram da floresta, Elizabeth puxou o capuz do casaco por cima da cabeça, protegendo o rosto.

Rhun olhou em redor. O espaço aberto formava uma área oval verdejante, salpicada por rebentos brancos de gencianas. Uma série de pedregulhos cinzentos espreitavam através da erva, como se fossem sentinelas alerta. Por entre eles serpenteava um riacho prateado, correndo de uma cascata alta ao fundo, onde inúmeras camadas de água jorravam de um penhasco para um amplo lago azul.

A equipa reuniu-se na orla da floresta, todos os olhos à procura de ameaças.

Rhun fez sinal com a cabeça para a frente.

— Este é o local que Bernard assinalou no mapa, onde acreditava que Hugh de Payens construíra o seu eremitério.

— Não há nada aqui — disse Jordan. — Este lugar está vazio.

— Não — contrariou Elizabeth. — Isso não é verdade. Bernard não está errado em relação a esta localização... uma raridade, no caso dele.

Rhun detetou uma nota de amargura na voz de Elizabeth ao mencionar o cardeal.

Ela apontou para a cascata muito alta.

— Por detrás do véu de água da cascata, consigo ver os contornos de uma estrutura.

Erin semicerrou os olhos.

— Tens a certeza?

Nem mesmo Rhun conseguiu discernir nada e olhou desconfiado para Elizabeth.

— Ali! — exclamou ela, com um suspiro exasperado.

Ela aproximou-se mais de Rhun, apontando com o braço, deixando-o seguir o seu dedo gracioso. Contornou com ele a sombra indefinida de uma entrada em arco na pedra atrás da cascata, a meio do penhasco.

Assim que ela apontou, ele também viu.

Duas janelas flanqueavam aquela porta, com uma janela redonda maior centrada acima dela.

Parecia a fachada de uma igreja, esculpida na rocha por detrás da cascata. A parte de baixo pairava a uma altura de dois andares acima do lago azul. Seria uma subida difícil para chegar lá, sobretudo com a força da água que caía.

De repente, Rhun ficou demasiado consciente da dor que sentia no antebraço, ao ser relembrado de que seria impossível para ele fazer tal subida com apenas um braço.

Erin deu um passo à frente, para a clareira.

— Também já consigo ver!

— Devíamos avançar em grupo — avisou Jordan, puxando Erin para trás, refreando sabiamente o entusiasmo da mulher. — Embora este Hugh qualquer coisa nos tenha deixado chegar até aqui, não vamos correr riscos desnecessários.

Rhun admitiu a sabedoria das palavras dele e fez sinal com a mão para continuarem até à cascata. Ninguém falou enquanto caminhavam pelo campo aberto, evidenciando a tensão do grupo. Rhun tinha a certeza de que a sua travessia estava a ser observada. À medida que se aproximavam da cascata, o rugido da água tornava-se ensurdecedor, o que fazia com que Rhun ficasse ainda mais apreensivo.

Ao chegar ao pequeno lago, reuniram-se todos na sua margem. A água era de um azul puro, tão límpida que Rhun conseguia ver trutas a nadarem no fundo e a fugirem quando a sua sombra recaiu sobre a superfície.

Procurou degraus esculpidos na base do pedregulho por detrás da cascata ou qualquer outro modo de alcançar a fachada da igreja que se encontrava bem acima deles. Não descobriu nenhuma forma de lá chegar que não envolvesse uma subida escorregadia através da cascata.

Jordan deu voz à preocupação de todos, gritando para sobrepor a sua voz ao rugido da água.

— Como raio é que chegamos lá acima?

Foi novamente a visão apurada de Elizabeth que descobriu a resposta, apontando para baixo, em vez de para cima, para as profundezas do lago.

— Entre as pedras no fundo da cascata está escondida a entrada de um túnel. Talvez exista aí uma passagem por baixo de água que nos leve à igreja lá em cima.

Erin estudou as águas com um nervosismo evidente, cruzando os braços. Rhun sabia, por experiências anteriores, que a arqueóloga não nadava bem e que tinha medo de água.

Erin engoliu com dificuldade.

— Tem de haver outra maneira de chegar àquele sítio. Duvido que aqueles cães atravessem o túnel a nado. Sobretudo aqui, um lugar exposto à luz do Sol.

Rhun concordava com ela. Hugh de Payens já aqui se encontrava há vários séculos. Era provável que a montanha estivesse repleta de túneis e de entradas e saídas escondidas. No entanto, a sua equipa não tinha tempo para as descobrir.

Jordan suspirou.

— Hugh conduziu-nos a esta clareira com os seus cães. Algo me diz que isto é outro teste. Ou descobrimos o caminho para a igreja através desse túnel submerso ou nem sequer lá chegamos.

— Então, vamos nadar — disse Erin, descruzando os braços e fazendo uma expressão determinada.

— Em grupo — acrescentou Jordan. — Tudo ou nada.

O homem corpulento despiu-se até ficar só de calças, atirando também as botas para o lado. Rhun ficou impressionado com a transformação da sua tatuagem azul, seguindo as linhas carmesins que se estendiam dela e lhe envolviam agora o pescoço, entrelaçando-se ao longo do seu braço. Era um desenho bonito, mas sombrio, como se os próprios anjos o tivessem gravado na sua carne.

E talvez o tivessem feito.

Rhun e os outros seguiram o seu exemplo, despindo os casacos e livrando-se da roupa mais pesada.

Quando terminaram, Elizabeth encontrava-se ao lado de Rhun, apenas de calças e sutiã, não revelando qualquer timidez, de costas direitas. Passou uma mão pelos seus caracóis escuros, afastando-os do rosto, e amarrou-os com um pedaço de fio. Os seus seios eram firmes e brancos por baixo da seda fina, e a sua pele pálida brilhava, até mesmo na sombra lançada pelo pedregulho saliente.

Rhun lembrou-se da sensação de ter aquela pele macia encostada à dele, os seus lábios nos dela. Ele quisera devorá-la naquela altura, possuí-la por completo.

Ainda queria.

Apesar disso, evitou olhar para ela, focando a sua atenção na pilha de roupa e nas armas abandonadas. Iam desarmados para este encontro. Talvez fosse essa a razão por que Hugh os conduzira para esta entrada — para os obrigar a despirem-se.

Rhun pegou numa só arma.

Retirou da pilha a cruz de prata que usava ao peito e pendurou-a à volta do pescoço. Queimava em contacto com a pele nua. Elizabeth olhou fixamente para ele. Rhun sentiu-se constrangido por ter o coto exposto. Porém, ela olhava para a cruz. Depois baixou-se e agarrou na sua, colocando-a em volta do pescoço, como ele fizera. A prata deixou uma linha cor de rosa no branco-pérola entre os seus seios. Queimava-lhe a pele, tanto como a ele, mas não a tirou.

— Vamos — disse Jordan, e mergulhou logo, voltando à superfície como uma lontra.

— Espera — pediu Erin, e pegou na mochila que se encontrava no meio da pilha de roupa. Virou-se para Rhun. — Podes levar isto? Não a quero deixar aqui, mas não sei nadar bem o suficiente para a levar comigo.

Rhun sabia que a mochila transportava o Evangelho de Sangue, selado numa pasta à prova de água. Ela tinha razão em não querer deixá-lo para trás, sobretudo aqui. Rhun colocou a mochila sobre o seu ombro bom.

— Vou mantê-lo em segurança.

— Obrigada.

Erin engoliu com dificuldade, virou-se de frente para o lago, arquejando por causa do frio.

Rhun e os outros sanguinistas juntaram-se a ela. A água era neve derretida, a sua temperatura pouco acima do ponto de congelação... mas, pelo menos, o frio glacial entorpecia a dor que sentia no coto.

O grupo atravessou o lago em direção às águas trovejantes da cascata. Até a cria de leão saltou para a água e nadou com firmeza ao seu lado. As suas patas gigantescas impulsionavam-no como pás. O bater do seu coração era rápido e constante. O animal não mostrava qualquer medo da água.

Erin, por outro lado, lutava para se manter à tona, a esbracejar mais do que a nadar, o seu coração aos pulos. Rhun deixou-se ficar para trás, para se manter ao lado dela, tal como Sophia.

— Eu só aprendi a nadar quando tinha cento e cinco anos! — gritou Sophia a Erin. — Por isso, também ainda não sou muito boa nadadora.

Erin sorriu para a freira e continuou a nadar.

Rhun apreciou as suas palavras, mas, ao contrário de Erin, Sophia não precisava de respirar. No entanto, Rhun já vira Erin quase a afogar-se. Ele sabia que ela não desistiria, mesmo quando chegasse ao ponto em que não houvesse mais nada a fazer.

Adiante, Jordan e Elizabeth chegaram à cascata. Elizabeth olhou de relance para cima, como que a orientar-se, e mergulhou. Jordan seguiu-a de imediato.

Rhun nadou só com um braço ao lado de Erin até chegarem à cascata. Ele e Sophia mantiveram-se à tona sem sair do lugar durante algum tempo, para que Erin recuperasse o fôlego. Os lábios dela estavam comprimidos numa linha fina, a ficar azuis por causa do frio.

Rhun olhou de relance para Sophia. O som trovejante da água tornava a conversa impraticável, mas Rhun obteve dela um ligeiro aceno de cabeça, como que aceitando o seu pedido.

Mantém Erin em segurança.

Erin dirigiu-lhes um sorriso débil e mergulhou, os seus pés pálidos brilharam ao sol por um momento antes de ela desaparecer debaixo da água.

Rhun e Sophia seguiram-na, fustigados pelas águas turbulentas.

Rhun rapidamente se sentiu frustrado por nadar só com um braço, acabando por se limitar a dar às pernas. Ainda assim, conseguia acompanhar facilmente Erin.

Sentiu algo bater-lhe na perna, e o arranhar de garras nas calças. Olhou de relance e viu a cria mergulhar atrás deles. Parecia que o felino não os ia deixar prosseguir sozinhos.

Chegaram à entrada do túnel que Elizabeth avistara. Rhun não viu qualquer indício dos outros dois. Erin hesitou, mas a cria de leão passou por ela a grande velocidade e entrou primeiro, arranhando com as patas as paredes rochosas e impulsionando-se mais para o fundo.

Talvez inspirada pela coragem do leão, Erin seguiu-o.

Mas quão mais longe conseguiria ela ir?

16h24

Os pulmões de Erin ardiam enquanto nadava atrás do felino.

Apesar de, na verdade, parecer mais rastejar do que nadar, pois Erin cravava as mãos nas paredes e apoiava os pés no fundo do túnel para se impulsionar.

Qual seria a comprimento desta passagem?

Era uma pergunta que a aterrorizava.

Já lhe doía o peito com a falta de ar. Ela duvidava de que tivesse ar suficiente para regressar à superfície do lago, de volta à luz do Sol e à brisa fresca. Isto fazia com que tivesse apenas um caminho a seguir.

Para a frente.

Erin patinhava, seguindo a cria que dava às patas à sua frente. A luz do Sol que penetrava na água atrás dela transformou-se rapidamente numa escuridão profunda, mas o pelo cor de neve do felino brilhava à sua frente, como um fogo-fátuo no escuro. Ela confiava plenamente na cria. Esta precisava de respirar, tal como ela. Se a cria voltasse para trás, também ela o faria.

Assim sendo, continuou, ordenando aos seus braços frios que a puxassem e às suas pernas entorpecidas que se mantivessem em movimento.

Foi então que, de repente, as patas traseiras do leão desapareceram para cima, para a escuridão.

Erin sentiu o túnel dissolver-se à sua volta, tornando-se mais amplo, escuro como breu.

Às cegas, Erin continuou para cima.

Passados poucos segundos, a sua cabeça veio à tona. Tentou recuperar o fôlego, arfando uma e outra vez, apreciando a pequena caverna à sua volta, iluminada por réstias de luz que atravessavam as fendas no teto.

Jordan e Elizabeth saíram da água ao fundo da caverna, trepando por uma saliência na rocha, ao lado de uma porta simples de madeira embutida na parede de granito. A cria passou por Erin e tentou subir com alguma dificuldade, até Jordan resgatar a sua figura ensopada de dentro de água.

Jordan avistou Erin e acenou com um braço, enquanto estendia o outro.

— Já te apanhei.

Sim, bem podias ter-me apanhado um pouco mais cedo... ou, pelo menos, esperado por mim.

Como outros tinham feito.

Rhun e Sophia vieram à superfície atrás dela.

Ainda assim, por muito que lhe custasse que Jordan a tivesse abandonado, ela sabia que ele não tinha culpa. O que quer que estivesse a acontecer ia, eventualmente, passar, e ele voltaria a ser o que era.

Se ao menos eu conseguisse acreditar nisso.

Erin nadou rapidamente até à saliência na rocha e Jordan puxou-a para cima, como se ela não pesasse nada. Deu-lhe um abraço rápido, sendo o seu calor escaldante bem-vindo pela primeira vez. Ela estremeceu, envolvida no seu abraço, e ficou assim até os tremores de frio nos seus membros passarem.

Ao lado, Sophia ajudava Rhun a subir para a saliência na rocha.

— Temos de arranjar maneira de abrir esta porta — disse Elizabeth, deslizando a palma das mãos por ela.

Com os dentes ainda a bater de frio, Erin aproximou-se. Se do outro lado da porta estivessem toalhas quentes e uma fogueira, ela própria a mandaria abaixo.

Erin examinou a porta juntamente com Elizabeth. Era feita de uma única tábua espessa de madeira, lisa como vidro, sem dobradiças nem trancas visíveis daquele lado.

— Parece que só pode ser aberta do outro lado — concluiu Erin.

— Ou então podemos mandá-la abaixo deste lado — sugeriu Jordan.

Erin desconfiava que isso não seria bem visto pelo dono, Hugh de Payens.

— Acho que devemos esperar — disse ela. — Mostrar paciência.

— Então esperamos — decidiu Rhun.

Rhun ajoelhou-se para acariciar a orelha da cria, que não parecia muito feliz com o seu estado encharcado atual.

Jordan aproximou-se da porta e disse:

— Ou então fazemos isto.

Ergueu o punho e bateu na tábua grossa, depois afastou-se, levando a mão aos lábios.

— Olá! — gritou ele, a sua voz ecoando ruidosamente na pequena caverna.

Erin susteve a respiração, mas, como não veio qualquer resposta, deixou escapar um suspiro.

— Talvez não esteja ninguém em casa — disse Jordan, encolhendo os ombros.

Outro elemento do grupo tentou.

A cria pôs a cabeça para trás e soltou um enorme rugido.

Erin deu um pulo, encolhendo-se com o barulho, chocada pelo facto de esta enorme explosão de ruído sair de uma criatura tão pequena.

O rugido soou a um desafio.

Quando os ecos esmoreceram, uma voz grave fez-se ouvir, parecendo emergir de todo o lado. Erin arrepiou-se.

— Só o leão pode entrar.

O som de algo a raspar surgiu do outro lado da tábua grossa, como se uma barra tivesse sido levantada. A porta abriu-se lentamente para dentro.

Erin tentou ver para lá da ombreira, mas estava demasiado escuro, o espaço iluminado apenas pela luz tremeluzente de uma tocha.

Ainda de joelhos ao lado da sua cria, Rhun apontou para a porta.

— Tu consegues.

O leão levantou-se timidamente, depois virou-se e segurou com cuidado o pulso de Rhun entre os dentes. A cria empurrou Rhun em direção à porta aberta.

— Parece que o pequenote não quer entrar sozinho naquele lugar sinistro — observou Jordan. — Não posso dizer que o censure.

Rhun tentou resistir, mas a cria recusava-se a largá-lo.

A voz regressou, ligeiramente timbrada de divertimento.

— Parece que o teu parceiro não entra sem ti, padre. Por isso, entrem todos, mas não podem passar da primeira sala.

Jordan acariciou a cria.

— Boa, amigo. E eu que estava aqui a pensar que talvez me pudesse safar desta.

Liderados por Rhun e pelo seu leão, os elementos do grupo transpuseram a porta, um a um.

Erin estudou a antecâmara para lá da porta. Duas tochas pendiam de suportes de ferro, revelando um espaço do tamanho de uma garagem para dois carros, escavada no granito da montanha. Uma arcada elevava-se ao fundo, mas era evidente que não a podiam transpor.

Pelo menos, por enquanto.

Da arcada, surgiu uma figura para se juntar a eles.

— Descontraiam — cumprimentou ele, embora mantendo uma distância considerável. — Eu sou Hugh de Payens.

A sua aparência e postura surpreenderam Erin. Ela esperava encontrar um eremita medieval, alguém com vestes simples, alguém parecido com Francisco de Assis. Em vez disso, o homem usava calças cor de caqui e uma camisola grossa de lã. Parecia um agricultor ou um pescador, e não um antigo padre.

Ela estudou o seu rosto redondo, os grandes olhos castanhos, a cabeleira farta de caracóis pretos. Apesar da sua expressão cautelosa, parecia ser gentil. Tinha as mãos finas juntas à frente do corpo, claramente sem armas.

— Já passou muito tempo desde a última vez que a Ordem dos Sanguinistas se preocupa comigo — disse ele num tom áspero e grave, como se não usasse a voz muitas vezes. Olhou fixamente para Elizabeth, depois acenou ligeiramente com a cabeça. — E vejo que trouxeram alguém do meu passado longínquo. Bem-vinda, condessa Bathory.

— Agora é irmã Elizabeth — corrigiu ela, tocando na cruz que trazia ao peito.

Ele ergueu uma sobrancelha, surpreendido.

— A sério?

Elizabeth encolheu discretamente os ombros.

— Então, estes são mesmo tempos estranhos — continuou o homem. — E parece que a condessa... ou melhor, a irmã Elizabeth não é o único elemento intrigante do grupo.

Hugh de Payens aproximou-se, olhando para a cria. Quando chegou ao pé do felino, fitou Rhun.

— Posso?

Rhun recuou um passo.

— Ele é dono de si mesmo.

— Bem dito — retorquiu Hugh, estendendo a mão para o leão cheirar.

O leão olhou para Rhun, que lhe acenou ligeiramente com a cabeça. Só então a cria se inclinou para a frente e cheirou os dedos esticados do homem. Aparentemente satisfeita, a cria lambeu a mão do eremita.

Hugh sorriu para o leão.

— Incrível — murmurou ele. — Algo completamente novo. Uma criatura que não foi corrompida pela escuridão, mas sim iluminada pela luz. Posso perguntar-te como a encontraste, padre Korza?

Rhun pareceu surpreendido pelo facto de Hugh saber o seu nome, mas Erin desconfiava que ele soubesse muito mais do que a sua postura dava a entender. Ninguém sobrevivia durante séculos, escondido da ordem sanguinista, sem ter algum talento para o subterfúgio.

— Eu matei a mãe dele no deserto, no Egito — explicou Rhun. — Ela era um blasphemare ferido.

Hugh endireitou-se.

— Presumo que ela fosse um daqueles animais infelizes que foram apanhados por aquela explosão no deserto.

— É isso mesmo — respondeu Rhun lentamente.

Até isto surpreendeu Erin. Apenas algumas pessoas sabiam desse acontecimento. A maior parte delas encontrava-se naquela mesma sala. Então, este eremita estava mais ao corrente dos acontecimentos atuais do que eles esperavam.

— Depois de matar a mãe, a cria veio ter comigo — explicou Rhun. — Eu trouxe-a para a manter em segurança.

— De acordo com as regras da tua ordem, devias ter matado também a cria. Contudo, não o fizeste. — Hugh abanou a cabeça, a fingir que o repreendia. — Sabias que os budistas consideram os leões bodhisattvas, ou seja, filhos de Buda? São considerados seres que atingiram um nível elevado de iluminação espiritual. Eles ficam neste mundo para libertar outros do seu sofrimento. És afortunado, padre Korza, por esta criatura te ter escolhido. Talvez seja por usares a coroa do Cavaleiro de Cristo.

Hugh olhou para Erin e Jordan.

— E por viajares com o Homem Guerreiro e a Mulher Sábia.

Jordan interrompeu-o:

— Como é que sabe tanto sobre nós?

A sua pergunta foi ignorada por Hugh, que deslizava os dedos pelo lombo da cria, provocando um ronronar constante. Só depois se levantou e enfrentou Jordan, mas, em vez de responder à pergunta, estendeu a mão.

— Posso ver a pedra preciosa que trazes no bolso?

Jordan recuou um passo, mas Erin agarrou-lhe no cotovelo. Não havia qualquer razão para guardar segredos, sobretudo porque este homem parecia saber todos eles. Além disso, precisavam de rodas as respostas que Hugh de Payens lhes pudesse dar.

— Mostra-lhe — insistiu Erin.

Jordan procurou no bolso das calças e retirou os dois pedaços da pedra verde partida.

Hugh pegou nelas e juntou as metades na sua palma. Ergueu a pedra à luz das tochas, como que para verificar o desenho gravado na sua superfície.

— Já passaram muitos séculos desde que vi esta pedra, quando ainda estava intacta, incorrupta.

Baixou a mão e devolveu os bocados a Jordan. Parou apenas o tempo suficiente para inclinar a cabeça e olhar fixamente para os desenhos entrelaçados na pele de Jordan.

— Parece que és, de facto, o portador adequado desta pedra — disse ele de forma críptica.

Erin aproveitou esta afirmação para abordar a razão por que tinham viajado até aqui.

— Estamos à procura de mais duas pedras. Muito parecidas com esta.

Hugh sorriu-lhe.

— Estão enganados. As outras duas não são nada parecidas com esta.

— Então, sabe da existência delas? — perguntou Rhun, aproximando-se. — Nós achamos que elas são a chave para...

— Para concretizar a vossa profecia.

— Pode ajudar-nos? — perguntou Erin.

Antes que Hugh conseguisse responder, a cria soltou um miado de fome.

— Parece que há outros assuntos mais importantes neste momento. — Hugh fez-lhes sinal para a arcada que os levaria ainda mais para o interior da montanha. — Entrem em minha casa. Tenho toalhas secas, comida e vinho para os que precisarem de se alimentar.

Afagou a cabeça do leão com o nó do dedo.

— E, é claro, carne e leite para ti, meu amigo.

Erin seguiu Hugh de Payens, à medida que ele os conduzia para as profundezas dos mistérios encerrados no interior daquela montanha.

Mas será que podemos confiar nele?


CAPÍTULO 31

19 de março, 16h48 CET
Pirenéus, França

Rhun deixou cair a mão sobre a cabeça do leão enquanto seguiam Hugh através da segunda porta, a qual revelava uma escadaria sinuosa que subia, esculpida na mesma pedra. Enquanto o grupo subia, passaram patamares que davam acesso a outros andares, cada um deles selado por portas robustas. Ele imaginou o labirinto de túneis que provavelmente corriam por esta montanha.

No entanto, o seu anfitrião conduzia-os mais para cima, segurando no ar uma tocha fumarenta.

A escadaria terminava com outra porta, esta de madeira e ferro.

— Abram! — gritou Hugh através dela.

A sólida porta abriu-se. Rhun seguiu Hugh e entrou no que parecia ser uma igreja. À esquerda, estava a porta alta que eles tinham avistado através da cascata. De momento, encontrava-se fechada, mas Rhun ainda conseguia ouvir o rugido abafado através dela, imaginando como seria quando aquelas enormes portas duplas estivessem abertas em frente ao véu que caía em cascata, a água iluminada pelo sol a oriente quando um novo dia amanhecia.

Através das janelas de ambos os lados e por cima das portas, Rhun conseguia apreciar um vislumbre desse espetáculo, mas as janelas eram de vitral, o trabalho de um autêntico mestre. O círculo por cima da porta ilustrava uma rosa perfeita, com as pétalas a desabrocharem em todos os tons de vermelho. A janela lateral mais pequena exibia uma imagem de árvores em flor, as suas copas repletas de pombas e corvos, as suas sombras ocultando veados e lobos, cordeiros e leões, todos a viverem em perfeita harmonia.

Rhun entrou na sala, mas avisou os outros para não avançarem.

Não estavam sozinhos.

Nas sombras ao fundo da igreja, estavam os quatro cães peludos que os tinham atacado na floresta. Outras criaturas encontravam-se por ali, com os olhos vermelhos a brilharem, revelando a sua natureza amaldiçoada. Viu um par de grimwolves, um leopardo negro e, apoiado no nó de um dedo, um enorme gorila-das-montanhas.

— Não tenham medo — disse Hugh, desviando-se para o lado com a tocha na mão. — Vocês são meus convidados... até eu dizer o contrário.

Rhun avançou com os outros, mas manteve toda a gente afastada daquela sombria coleção de animais, cujos olhos os observavam com igual desconfiança. Rhun franziu o sobrolho ao ver o estado daquela pequena catedral. A nave central não tinha bancos e o chão de pedra estava coberto de palha. Uma dúzia de camas de lona alinhavam-se junto às paredes, enquanto as capelas secundárias mais pequenas se encontravam fechadas, sendo visíveis apenas gamelas e feno solto.

Sophia deu uma cotovelada a Rhun, apontando com a cabeça para uma série de figuras altas e esguias que se deslocavam junto a estátuas de mármore.

Strigoi.

Pelo menos uma dúzia.

Os strigoi não tinham armas, pelo menos que ele visse, à exceção de utensílios de jardinagem que se encontravam encostados às paredes — ancinhos, enxadas e pás.

— Não tens nada a temer aqui, padre Korza — assegurou Hugh.

Rhun esperava que ele estivesse a dizer a verdade. Ele olhou em volta, para o edifício em si. Em vez de pedra pura, as paredes estavam cobertas de tijolo branco, que se estendiam para cima até formar amplas abóbadas góticas. Enormes candelabros de ferro forjado pendiam do teto, pingando cera das velas.

Mesmo ali em cima, criaturas moviam-se.

Hugh reparou na sua atenção, levantou um braço e assobiou.

Uma sombra separou-se da pedra e desceu a pique, aterrando no punho de Hugh.

Era um corvo com penas cor de ébano e olhos cintilantes. O seu bico era uma lança, as suas garras, autênticos gadanhos. Hugh usou um dedo para acariciar suavemente as penas do pescoço do corvo. O pássaro curvou-se, respondendo-lhe com uma cabeçada.

— Este é Muninn. — Hugh olhou de relance para cima, à procura no teto. — Huginn também está lá em cima. Ou talvez tenha ido caçar.

Erin pareceu reconhecer os nomes.

— Os corvos de Odin! — exclamou ela. — Dizia-se que eram capazes de voar à volta do mundo e que traziam informações ao deus nórdico, mantendo-o informado de tudo. Não está a sugerir que estes são...

— Os mesmos? Não, minha querida. — replicou Hugh com um sorriso. — Apenas me diverte chamá-los por esses nomes. E estes são só dois exemplares de um bando enorme que caça nesta floresta, uma mistura de blasphemare e pássaros naturais.

— Incrível! — exclamou Erin, percorrendo o teto com o olhar.

Rhun desconfiava que ela não estava à procura de mais pássaros, mas que a sua atenção fora capturada pela decoração do teto abobadado. O teto era branco, mas tinha pintadas rodas azuis e estrelas vermelhas, formando um desenho elaborado e elegante.

— Os frescos no teto — sussurrou Erin, confirmando as suspeitas de Rhun — são extraordinários. Parecem do Médio Oriente, com as rodas e as estrelas, mas não inteiramente.

Erin deu alguns passos pela sala para os apreciar melhor.

Jordan manteve-se ao seu lado. Elizabeth começou a segui-los depois de Rhun lhe ter feito sinal para que o fizesse.

Sophia apontou para as criaturas e para os strigoi e perguntou:

— Como é que eles vieram aqui parar?

Hugh olhou embevecido para o seu rebanho, enquanto Muninn lhe saltava para cima do ombro.

— A minha experiência diz-me que as criaturas procuram o seu verdadeiro amo. Para chegar a este santuário, muitos blasphemare e strigoi viajaram centenas de quilómetros. Eu não os chamei. Eles vieram ter comigo, como este doce leão veio ter com Rhun.

Rhun afagou a cabeça da cria.

— Mas como faz para que eles não matem nestas montanhas?

Hugh ergueu os braços.

— Porque, tal como tu, eles estão em paz com a sua natureza. Em vez de serem comandados pelo seu sangue selvagem, eles controlam-no. Já não são assassinos.

Sophia parecia pouco convencida pelas palavras do homem.

Rhun não a censurava.

— Como é que alguém encontra a paz longe dos laços da Igreja?

— Aceitação e consciência plena — respondeu Hugh. — Ensinaram-me muitas técnicas ao longo das minhas viagens, há muito tempo, formas de abrir a mente e desenvolver paciência e amor. Posso ensinar-tas, se quiseres. Todos são bem-vindos aqui.

Hugh fez sinal para trás.

— Francesca, podes juntar-te a nós? Eu penso que as verdades são mais fáceis de ouvir da boca de quem as viveu em primeira mão.

Uma mulher esguia saiu das sombras a apenas alguns metros de onde eles se encontravam. Rhun nem sequer sabia que ela ali estivera aquele tempo todo. Era provável que tivesse sido bonita outrora, com o seu cabelo louro-pálido e os seus membros flexíveis, mas havia agora uma ligeira fragilidade no seu corpo débil. Ela sorriu para Hugh, com amor a brilhar nos olhos.

Rhun reparou nos indícios de presas e na ausência de batimento cardíaco.

— Conta-lhes — disse Hugh.

— Primeiro, foi-nos ensinada a tomada de consciência — murmurou ela com reverência. — Tomada de consciência da nossa natureza, de quem somos. De que somos criaturas de Deus.

Sophia fez um som de troça e disse:

— Vocês são predadores, caçam os mais fracos.

Francesca sorriu-lhe com tristeza.

— Ninguém julga um leão por matar uma gazela. É próprio da natureza do leão, e o leão não tem de sentir culpa ou vergonha.

Hugh aproximou-se de um banco e sentou-se. Uma raposa cinzenta com três patas apareceu do nada e saltou para o colo de Hugh. Uma ligadura branca e limpa fora colocada à volta do coto, e Rhun sentiu alguma simpatia pela criatura. Quando Hugh lhe acariciou as costas, a raposa encostou-se a ele, não mostrando qualquer medo, nem mesmo do leão, que levantou as orelhas quando avistou o animal ferido.

— Mas como é que vocês se sustentam? — perguntou Rhun.

— Em parte, com vinho — respondeu Hugh. — Como vocês.

— Monsieur de Payens, ainda pode consagrar vinho mesmo depois de ter virado costas à Igreja? — indagou Elizabeth.

— Um padre carrega consigo uma marca indelével, gravada na sua alma — explicou Rhun —, o que significa que continua a ser padre e a consagrar o vinho, mesmo depois de deixar a Igreja.

Sophia reparou num pormenor malicioso na explicação do homem.

— Disse que é o vinho que vos sustenta em parte. O que precisam mais para além disso?

— De sangue, claro. — Hugh não mostrou qualquer indício de vergonha ou culpa nesta admissão. — Tal como Francesca disse, somos todos predadores e temos de aceitar a nossa natureza.

Rhun sentiu-se agoniado, lembrando-se de como os seguidores de Rasputine misturavam vinho com sangue humano para sobreviver. Continuavam a ser assassinos. Parecia que Hugh caíra na mesma armadilha pecaminosa. Lembrava-se demasiado bem do sabor do vinho de sangue maldito de Rasputine.

Hugh ergueu uma mão.

— Entendam, nós tiramos somente o que precisamos para sobreviver... mas também temos direito a sobreviver. Como disse antes, a tomada de consciência é apenas a metade de um todo. A consciência plena é igualmente importante.

Francesca anuiu, explicando:

— Enquanto a aceitamos e tomamos consciência da nossa natureza, temos de estar plenamente focados em não perder o controlo. Meditamos, aprendemos a discernir a necessidade do desejo, tirando apenas o que é necessário e certo.

— Como é que qualquer tipo de matança pode ser algo certo? — indagou Rhun.

Francesca cruzou as mãos finas.

— Nós só tiramos o sangue daqueles que estão em sofrimento ou daqueles que provocam sofrimento nos outros.

— O nosso objetivo é acabar com o sofrimento — expôs Hugh. — Encontramos aqueles que estão a sofrer terrivelmente e desejam morrer. Aqueles que estão destruídos pela doença e que nunca vão recuperar. Pomos termo à vida deles com misericórdia, benevolência e alegria.

Enquanto padre, Rhun convivera com pessoas à beira da morte. Embora repudiasse o conceito de matar como ato de misericórdia, ele sabia que o Homem criara tecnologia para adiar a morte, mas muitas vezes parecia que, em vez disso, esses métodos acabavam por prorrogar o sofrimento, prolongar um fim inevitável para além do tempo natural.

Hugh suspirou.

— E, quando não conseguimos encontrar pessoas assim, por vezes tiramos a vida daqueles que infligem sofrimento sobre os inocentes. Violadores, assassinos. Mas, na verdade, raramente precisamos de recorrer a esses meios. Como eu disse, sustentamo-nos com o mínimo de sangue possível.

Jordan pronunciou-se, lembrando a todos que esta não era a razão que os trouxera ali.

— Isso é tudo muito bonito, mas e aquelas outras duas pedras?

— Eu tenho na minha posse uma delas — admitiu Hugh. — Mas ela tem de ser merecida. Têm de provar que são dignos de a levar daqui.

— Merecida como? — inquiriu Jordan.

— A vossa Mulher Sábia deve mostrar o seu valor. — Os olhos de Hugh pousaram sobre Erin. — Ela tem de provar que compreende a noção de tomada de consciência para encontrar o lugar onde a pedra foi escondida... e demonstrar a sua própria consciência plena para descobrir para onde esta pedra deve ser levada.

17h07

Que bom, pensou Erin de forma sarcástica. Deve ser facílimo.

Durante o voo de helicóptero, Erin lera sobre Hugh de Payens e a sua história com os cavaleiros templários, mas era provável que não tivesse ficado a saber um décimo do que precisava para enfrentar o seu desafio.

Hugh levantou-se do banco, mandando a raposa de volta para a sua toca nas sombras.

— Então, Mulher Sábia, o que me podes dizer sobre este lugar?

Erin olhou em volta para as capelas, abóbadas e paredes circundantes, reparando na estrutura entrecruzada, típica de qualquer grande igreja, mas o seu olhar fixou-se no pormenor mais distinto: o teto.

— As igrejas medievais não são a minha especialidade — admitiu ela —, mas alguns destes ornamentos são semelhantes aos que podemos encontrar na Catedral de São Cristóvão em Montsaunes, França, um edifício construído pelos templários, a ordem que Hugh fundou.

— Eu lembro-me da construção dessa capela.

Erin aceitou o comentário como um sinal positivo e estudou mais atentamente os frescos no teto. Seria este o teste da tomada de consciência? Teria de decifrar o enigma que se encontrava lá em cima?

Inclinando a cabeça para o lado, Erin procurou pistas. Por entre o caleidoscópio de estrelas vermelhas e rodas azuis em cima, tinham sido pintados outros desenhos elaborados: luas, sóis e várias formas geométricas. Ela reparou nas influências da cultura islâmica, bem como da egípcia. Aquela roda raiada parecia decididamente budista. Os seus olhos começaram a desfocar-se devido à quantidade de desenhos e à falta de harmonia entre eles.

Ao olhar para cima, Erin desconfiara que isso fora propositado, para que o observador se concentrasse nos pormenores e não visse o quadro geral. Não havia dúvida de que era necessária a tomada de consciência para ignorar o caos e ver através dele o que era verdadeiramente importante.

Olhou para cima e decompôs lentamente a iconografia de cada cultura representada naquele grande fresco, analisando-a com o olho da mente, considerando cada pedaço por si só. Infelizmente, não encontrou nada significativo neste exercício. Erin considerou se estes eram exemplos das culturas que Hugh visitara depois de abandonar a Igreja. O cardeal Bernard dissera-lhes que Hugh viajara por todo o mundo antes de assentar em França.

Mas como é que isso me ajuda? Erin fechou os olhos. O que é que eu não estou a ver?

Foi então que soube.

Erin abriu os olhos, tirando aqueles símbolos do teto, à procura da verdade escondida por trás do ruído, por trás da cacofonia da humanidade.

O que se encontrava por trás dos pormenores.

Assim que os ornamentos elegantes desapareceram da vista do olho da sua mente, apenas um elemento permanecia ali pintado, no fundo de toda aquela confusão.

As estrelas.

Elas eram eternas.

— Papel — disse ela, estendendo um braço. — E uma caneta.

Rhun procurou dentro da mochila dela e entregou-lhe um bloco de notas e uma esferográfica. Erin começou a mapear aquelas estrelas, reparando nas constelações. Algumas eram maiores, representadas de forma mais proeminente. As estrelas pintadas naquelas constelações tinham seis pontas, em vez de cinco como as outras.

Enquanto trabalhava, ouviu Jordan confrontar Hugh.

— Porque não pode simplesmente dizer-nos?

— É um teste — repetiu Hugh, de forma categórica. — O trio deve mostrar-se merecedor.

— Então, qual é o meu teste? — insistiu Jordan.

— Já o passaste. Na floresta, sacrificaste-te sem dar luta, provando que és um Guerreiro capaz de atingir os seus objetivos através da paz e sem violência.

— Então, e o meu teste? — indagou Rhun.

— Veio contigo. — Hugh fez sinal com a cabeça, apontando para a cria de leão. — Tu, um Cavaleiro de Cristo, tiveste pena e misericórdia de uma criatura que acreditavas ter nascido da escuridão, desafiando os éditos da tua ordem para a matar. Por essa misericórdia, recebeste um milagre de luz e graça.

E agora é a minha vez.

De repente, Erin desejou que lhe tivesse calhado um teste mais fácil. Mas ela era a Mulher Sábia. Tinha de resolver isto sozinha.

Erin fez uma última comparação entre o mapa das estrelas pintado no teto e aquele que copiara para o papel. Satisfeita, voltou para junto de Hugh com o bloco de notas na mão. Sentiu-se como uma aluna a dirigir-se ao quadro para resolver um problema perante a turma.

— São as estrelas — afirmou ela. — Era disso que queria que eu tomasse consciência no meio de toda aquela confusão.

Hugh sorriu, mas permaneceu em silêncio.

Estou no caminho certo.

Ela lembrou-se de um princípio hermético, frequentemente associado aos cavaleiros templários: O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima. Desde os primórdios da civilização que as estrelas são um instrumento de navegação, sendo utilizadas as posições das estrelas no céu para encontrar significado aqui em baixo, na Terra.

Erin continuou a raciocinar em voz alta, andando de um lado para o outro.

— É suposto eu descobrir onde este céu seria visível na Terra, mas, para o fazer, precisava de saber em que data este céu em particular apareceria.

Ela estudou a página do bloco de notas. As constelações em destaque eram as que estavam associadas à primavera: Caranguejo, Leão, Virgem...

Então, deve ser um céu de primavera.

Depois lembrou-se da pintura que se encontrava por baixo do mural na casa de Edward Kelly, aquela que ilustrava um lago na montanha e o inferno a desabar sobre a Terra. Elizabeth traduzira a legenda em checo: equinócio vernal.

Talvez fosse essa a resposta, mas ela queria confirmação. Franziu o sobrolho, ao lembrar-se de ver palavras em latim pintadas no teto.

Correu pela sala, procurando novamente, remexendo a palha que se encontrava espalhada pelo chão. Sentiu-se observada, tanto pelos seus, como por aqueles olhos que brilhavam num tom profundo de carmesim. Por fim, encontrou a inscrição, uma pintada a vermelho no lado oriental da igreja, e a outra a azul no lado ocidental.

Duas palavras.

Aequus e Nox.

Fechou os olhos com alívio.

Equinócio.

Juntou-se aos outros, com as pernas a tremer.

— É o equinócio da primavera. É essa a data. — Erin agitou o bloco de notas no ar para mostrar o mapa das estrelas. — Então, tenho de descobrir onde, no mundo, este céu noturno em particular é visível durante o equinócio de amanhã.

Do seu bolso de trás, Jordan retirou o telemóvel de um saco de plástico impermeável.

— Tenho uma aplicação para isso. Qualquer soldado que se preze tem um modo de navegação à mão.

Erin olhou de relance para Hugh para se certificar de que lhe era permitido usar aquele tipo de tecnologia.

Ele encolheu os ombros.

Ela manteve a página aberta para Jordan.

— És capaz de mapear isto?

— Vou tentar. — Jordan tirou uma fotografia com o seu telemóvel, depois demorou algum tempo a mexer no programa da aplicação, tentando encontrar uma correspondência. — Digo-te já que a constelação de Leão está no sítio errado lá em cima. Pelo menos para os céus por cima de França.

— Então, encontra o lugar onde está no sítio certo — apressou-o.

Erin reparou que Hugh olhava intrigado para ela, como se lhe estivesse a escapar algo.

Então, o professor quer que eu ganhe pontos extra?

Contraiu os lábios e dirigiu a sua atenção para o teto, analisando as constelações, concentrando-se sobretudo nas da primavera. Três das constelações de primavera mais pequenas estavam ligadas entre si, entrelaçadas por linhas fluidas.

Hydra, Crater e Noctua.

— A cobra, a taça e a coruja — murmurou ela, indicando o nome das formas que representavam. Ela não tinha qualquer dificuldade em compreender o seu significado. A cobra provavelmente representaria Lúcifer, a taça poderia referir-se ao cálice mencionado na profecia, e a coruja era o símbolo do conhecimento para muitas culturas desde o princípio dos tempos.

Erin olhou para a sua mochila. De acordo com a profecia, o Evangelho de Sangue continha nas suas páginas todo o conhecimento do universo. Voltou a sua atenção novamente para cima, reparando nas linhas mais pequenas, que formavam espirais e floreados elaborados em volta das três constelações, interligando-as.

— Elas estão ligadas numa só — afirmou Erin.

Um olhar de relance revelou um sorriso rasgado e congratulatório no rosto de Hugh. Ela queria esbofeteá-lo para lhe arrancar aquele ar presunçoso da cara e obter algumas respostas.

Por sorte, Jordan interrompeu, segurando o telemóvel na mão.

— Encontrei!

Erin aproximou-se dele.

— Aqui está o céu noturno sobre a França.

Ela olhou para o ecrã e viu que Jordan assinalara a constelação Leão.

— Estamos a uma latitude de cerca de quarenta e três graus — explicou ele. — Nesta altura do ano, Leão deveria estar na ponta mais ocidental do céu, mas claramente não está no mapa das estrelas do teto.

Erin olhou para cima, reconhecendo o quanto aquele mapa das estrelas era diferente lá em cima.

— Então, em que lugar no planeta existe correspondência com esse céu?

— Longe, para leste, a cerca de vinte e oito graus de latitude a norte.

— Poderá ser no Tibete? — perguntou Erin. — Ou talvez no Nepal?

Jordan assobiou em sinal de apreço e levantou o telemóvel no ar para ela ver, revelando o nome que a aplicação do seu telemóvel sugerira.

KATMANDU, NEPAL

27º 30’ N 85º 30’ E

— Não te esqueças que — advertiu Jordan — isto são valores aproximados. Mas essa é a região do mundo referida acima. Portanto, pode ser em qualquer sítio nos Himalaias.

Erin lembrou-se do mural pintado na parede de Kelly, que ilustrava três montanhas à volta de um lago negro. Devia ser algures na cordilheira dos Himalaias, no Nepal.

Mas onde?

— Como é que adivinhaste que era no Nepal? — perguntou-lhe Rhun.

— Por causa das rodas e das estrelas no teto. São símbolos budistas. De todas as culturas pintadas no teto, a budista é a que está mais representada. — Erin falava muito depressa agora, segura do que dizia. — Aquela roda que ali está é a roda da transformação de Buda. O aro é a limitação, o centro representa o mundo, e os oito raios simbolizam o Nobre Caminho Óctuplo que tem de ser percorrido para acabar com o sofrimento.

Erin virou-se para Hugh, desafiando-o.

— Foi onde aprendeu as suas técnicas de meditação, não é verdade? Foi para leste nas suas viagens antes de assentar em França. Aprendeu estas técnicas com monges budistas.

Hugh anuiu com a cabeça.

Rhun franziu o sobrolho.

— Mas em que medida é que os budistas o podiam ajudar com a sua natureza amaldiçoada?

— Porque os monges eram, também eles, strigoi.

O choque ficou estampado no rosto dos sanguinistas, e no de Elizabeth também, mas esta arvorou um ar mais curioso do que horrorizado.

Hugh olhou para as janelas.

— Depois de abandonar a Igreja, deambulei durante muitos anos, tentando perceber aquilo que era. Segui as lendas de que monges eternos residiam no Extremo Oriente, imortais como nós. Passei grandes dificuldades para os encontrar, mas fui sempre seguindo em frente, até chegar, por fim, a um vale entre três montanhas, onde viria a aprender muito sobre a minha natureza e a do mundo.

No silêncio abismado que se seguiu, Elizabeth falou.

— E o Hugh deixou um registo disso, não é verdade?

Hugh levantou as sobrancelhas de espanto, provavelmente uma expressão rara para o homem.

— Sim, deixei.

Elizabeth virou-se para Erin, como se ela também devesse saber disso.

Foi então que soube.

Três montanhas.

Tudo começou a fazer sentido na sua cabeça.


CAPÍTULO 32

19 de março, 17h43 CET
Pirenéus, França

— Do que é que Elizabeth está a falar? — perguntou Jordan a Erin, reparando numa expressão familiar a assomar-lhe as feições, uma expressão que revelava que ela compreendia. Ela percebera algo.

Erin tirou-lhe o telemóvel dos dedos.

— Tens cópias das minhas fotografias aqui, não tens? De Veneza?

— Sim...

Ela procurou nos ficheiros, parando numa fotografia recente em que se encontrava praticamente nua, a sair da casa de banho. Ele tirara-a em segredo quando estavam em Castel Gandolfo. Não resistira a tirá-la.

Quer dizer, olhem só para aquele corpo.

Ela olhou de relance para ele, lançando-lhe um ligeiro sorriso, mas não era essa a fotografia que procurava. Por fim, encontrou-a e ergueu o telemóvel no ar.

— Havia três montanhas pintadas no mural de Edward Kelly. Na altura, lembrou-me algo que Elizabeth nos mostrara em Veneza, mas depois a situação ficou um pouco descontrolada em Praga.

Erin virou-se de frente para Hugh.

— Existe um mosaico famoso na catedral em Veneza, que, pelo que percebi da sua história, era a sua cidade preferida de Itália. O Hugh passou lá muito tempo.

— E como poderia não ter passado? — admitiu ele. — É uma cidade rara, uma cidade que se funde com o mar. Apela à dicotomia da relação do Homem com o mundo natural. Veneza é um exemplo da luta do Homem para capturar a natureza e, simultaneamente, fazer parte dela.

— E a basílica lá — continuou Erin —, a de São Marcos. Elizabeth disse-me que este mosaico em particular foi encomendado por alquimistas em Praga, os mesmos homens a quem Hugh entregou o seu diamante verde.

Erin mostrou a fotografia de um dos mosaicos da basílica. Era um tríptico de um demónio negro a confrontar Cristo de três maneiras diferentes.

Jordan lembrava-se agora.

— As Tentações de Cristo.

— O Hugh esteve por trás desta encomenda, não é verdade? — inquiriu Erin. — As três montanhas daquele vale dos monges, era isso que Kelly tinha pintado na parede, algo que Hugh deve ter partilhado com aqueles alquimistas quando lhes entregou esse diamante, algo que também tinha representado num mosaico de uma cidade intemporal, numa basílica que existiria durante muitos séculos. O Hugh fez um registo desse vale nos ladrilhos de vidro e ouro.

Jordan ainda não compreendia o que ela queria dizer.

Erin aproximou a imagem da terceira tentação — é sempre o número três — e aumentou a área por baixo das sandálias de Cristo. Ele encontrava-se de pé, em cima de montanhas, com uma bolha em forma de globo de neve debaixo dos pés, como se estivesse a caminhar sobre a água.

— Tens razão — admitiu Hugh. — Esse conhecimento não poderia ter sido perdido com o passar do tempo. É demasiado importante.

— O que é que tem de tão importante? — perguntou Jordan a Hugh.

Erin respondeu em vez de Hugh.

— Aquela bolha de luz aquosa por baixo das pernas de Cristo contém os três cálices. — Erin olhou intensamente para Hugh. — Aqueles três cálices representam as três pedras, não é verdade?

— Sim, é — respondeu Hugh.

— Foi aí que os viu pela primeira vez — afirmou Erin —, foi aí que os encontrou. Arbor, Aqua e Sanguis. As pedras preciosas de Jardim, Água e Sangue.

— É isso mesmo. Nesse vale sagrado, um lugar de iluminação divina.

— Chega de enigmas — disse Rhun. — Onde ficam essas montanhas?

Hugh ignorou-o.

— Revelou-se suficientemente hábil, Mulher Sábia. Essas montanhas rodeiam um lugar conhecido como Vale Sagrado Escondido da Felicidade.

Erin fechou os olhos e abanou ligeiramente a cabeça, divertida.

— Conheces esse lugar? — inquiriu Sophia.

— Só pela reputação. Gostaria de poder dizer que adquiri esse conhecimento através de estudo e pesquisa, mas foi, na verdade, através da leitura de um artigo numa revista de viagens. Uma mera coincidência.

— Não! — exclamou Hugh. — Não existem coincidências dessas.

— Então, foi o quê? — perguntou Erin com desdém. — O facto de eu ter lido o artigo foi obra do destino?

— Não. O destino não existe. Nós somos donos dos nossos destinos. — Hugh acenou com a mão para abranger a plateia sombria, incomodando o corvo ainda pousado no seu ombro e fazendo-o agitar as penas. — Foi a tua consciência e natureza inquisitiva que te fez ver e ler aquele artigo, enquanto outras pessoas o teriam ignorado. Foi a tua consciência plena que te fez lembrar dele. Sempre foste assim, Erin Granger. Desconfio que foi isso que te fez abandonar a família, seguir um caminho longe da obediência cega ao destino, descobrir o teu próprio caminho para o conhecimento e a sabedoria. Destino, sorte, coincidência... nada disso importa. És simplesmente uma Mulher Sábia. Essa é a tua verdadeira natureza. Foi isso que te trouxe até mim.

Erin aproximara-se de Jordan durante esta revelação, visivelmente abalada, não só pelo conhecimento do homem sobre o seu passado, mas também pela rapidez com que ele expusera a essência do seu ser.

Jordan puxou-a para mais perto, sentindo-a tremer, começando a perceber por que razão até monstros e bestas se curvavam perante este homem.

— Onde fica esse vale? — insistiu Rhun.

Erin respondeu:

— O vale Tsum fica no Nepal. Só há pouco tempo foi aberto aos turistas devido à sua história sagrada. Diz-se que é a casa de Shambhala, um reino budista lendário. Ou, como é mais frequentemente chamado na cultura ocidental, Shangri-la.

Jordan conhecia a história, mas só dos filmes.

— É supostamente um lugar perdido no tempo, onde ninguém envelhece nem morre.

Isto fê-lo pensar: seriam aqueles monges strigoi a origem dessa lenda?

— Mas há uma história sobre Shambhala que tem mais que ver com a nossa situação — disse Erin. — Eu li que o segundo buda, Padmasambhava, abençoou o vale como um lugar que seria redescoberto quando a Terra se estivesse a aproximar da destruição, quando o mundo se tornasse demasiado corrompido para sobreviver.

— Isso parece-me mesmo o que está a acontecer neste momento — concluiu Jordan.

— E esse vale existe mesmo? — inquiriu Rhun.

— Existe, sim — respondeu Erin. — O vale é, há muito, um lugar sagrado para o budismo. Alguns monges e freiras ainda lá vivem, e é proibido matar nas suas montanhas.

— Tal como aqui — acrescentou Jordan, pensando se Hugh não construíra este eremitério como se fosse o seu vale Tsum privativo.

— Os monges que me ensinaram — explicou Hugh — viviam num mosteiro naquele vale, construído entre duas grandes árvores, árvores essas tão eternas como os próprios monges. Por baixo da sombra de uma árvore, os monges sentavam-se para meditar. Essa árvore chamava-se Árvore da Iluminação Espiritual. Por baixo da outra, os monges bebiam o seu vinho, sendo essa apelidada de Árvore da Vida Eterna.

Erin libertou-se do braço de Jordan.

— Por outras palavras, a árvore do conhecimento e a árvore da vida. Como na história bíblica do Jardim do Éden.

Até mesmo Elizabeth parecia aterrada.

— Estás a dizer que esse lugar, o vale Tsum, é a localização atual do Jardim do Éden?

Sophia franziu o sobrolho.

— Como poderia o Jardim do Éden ser nos Himalaias?

— Existe uma escola de pensamento que o situa aí — disse-lhe Erin. — Alguns estudiosos acham que as lendas de Shambhala são demasiado semelhantes às histórias sobre o Jardim do Éden, de forma que poderão ser o mesmo lugar. Tal como o Éden, dizia-se que Shambhala era um jardim onde não havia morte e onde somente os puros podiam permanecer.

— Os nazis enviaram uma expedição aos Himalaias nos anos trinta — acrescentou Jordan, recorrendo aos seus conhecimentos sobre a Segunda Guerra Mundial. — Para procurar a origem da raça ariana, uma raça de super-homens. Não há dúvida de que aqueles strigoi budistas imortais se encaixavam bem nesse quadro.

Todos os olhares se viraram para Hugh, à procura de confirmação.

Ele encolheu um ombro e disse:

— Estou apenas a dizer que o vale tem duas árvores. Não posso presumir que sei onde o Jardim do Éden era ou se alguma vez existiu.

— Ainda assim — continuou Jordan, voltando a chamar-lhes a atenção para o assunto mais urgente em mãos —, de acordo com o mural de Edward Kelly, esse vale é onde o Inferno se vai libertar sobre a Terra.

Jordan imaginou aquele lago e as sombras negras a borbulharem para fora dele.

Hugh acenou-lhe ligeiramente com a cabeça e continuou:

— Os monges disseram-me que este jardim fica numa interseção entre o bem e o mal. E que eles eram os guardiães dessa entrada.

— E as três pedras? — indagou Erin.

— Segundo os meus professores, esse trio de pedras preciosas detém o poder de abrir e fechar esse portal entre os mundos. No entanto, à medida que o Homem moderno começou a invadir cada vez mais o seu território, ameaçando expô-los, os monges recearam não serem suficientemente fortes para guardar as pedras. Por isso, deram-me duas delas para as dispersar pelo mundo.

— Por outras palavras — interrompeu Jordan —, não guardem os ovos todos no mesmo cesto.

— Sabedoria intemporal — concordou Hugh.

— Mas porque entregou um artefacto tão poderoso a John Dee? — perguntou Elizabeth.

— Uma presunção tola, quando penso nisso agora — disse Hugh com um suspiro. — Quando o mundo da investigação científica se ergueu das cinzas da Idade das Trevas, altura em que a alquimia se tornou química e física, pensei que conseguiria descobrir mais sobre as pedras por mim mesmo.

Jordan sabia que o cardeal Bernard caíra na mesma armadilha recentemente, ao brincar com as gotas do sangue de Lúcifer. Não era de admirar que estes dois tivessem sido, em tempos, melhores amigos. Partilhavam uma natureza semelhante.

— John Dee era um homem sensato e bom — continuou Hugh. — Eu pensava que ele estava a usar a pedra para conter o mal, aprisionando-o gota a gota. Não conseguia sequer imaginar onde isso podia levar. Depois de ele morrer, tentei recuperar a pedra, mas a ganância de Edward Kelly levou-o a vendê-la. A partir daí, perdi-lhe o rasto.

— Então, o nosso objetivo deve ser levar a sua pedra e aquela que está no bolso de Jordan de volta para o vale — disse Erin. — Onde os monges ainda mantêm em segurança a terceira. Mas porquê?

— Eu apenas sei o que vos contei — assegurou Hugh. — Talvez os monges saibam mais.

— E, não se esqueçam — lembrou Jordan a todos, olhando de relance para as janelas, feliz por ainda ver a luz do Sol brilhar através da cascata —, não somos os únicos à procura daquelas pedras.

Legião ainda andava por aí.

— Mas, afinal, porque é que aquele demónio se importa? — perguntou Sophia. — Qual é o papel dele?

Rhun parecia muito sério.

— Com aquelas pedras, ele poderia abrir o portal naquele vale e soltar o Inferno sobre o mundo, libertando Lúcifer durante o processo.

Erin acenou com a cabeça.

— E, ao que parece, cabe-nos a nós usar essas mesmas pedras para encontrar uma forma de manter essa horda demoníaca no seu lugar, uma forma de conter o Inferno.

— Parece bastante fácil — disse Jordan com uma confiança exagerada. — É claro que, primeiro, precisamos da pedra que tem aqui escondida, Hugh.

O homem abriu os braços.

— Têm toda a liberdade para procurar a pedra na minha igreja.

— Se Erin passou no teste — perguntou Elizabeth, com os olhos a brilhar de raiva —, porque não lhe dá simplesmente a pedra?

— Ela tem de a encontrar sozinha.

Jordan olhou fixamente para Erin.

— Lamento, querida, parece que está na hora da segunda parte do teste. Por isso, pega no lápis afiado e começa.

Jordan olhou para o brilho do Sol que se punha, sabendo que só lhes restava cerca de uma hora de luz.

E é melhor apressares-te.

18h04

Erin olhou com um ar carrancudo para Hugh de Payens.

Não era de admirar que ele e Bernard fossem tão bons amigos.

Eram ambos mestres em segredos e manipulação.

Erin enfrentou o seu desafio.

— Deixa-me adivinhar. Aqua, a pedra da água, ainda está no lago na montanha. O que quer dizer que Hugh tem na sua posse a Sanguis, a gema do sangue. Faz sentido que os monges lhe enviassem essa em particular, visto ser um sanguinista.

— A pedra nunca me foi destinada — respondeu Hugh. — Tens de decifrar o enigma para reaveres a pedra que te pertence.

Que me pertence? O que é que isso significa?

Erin pôs esse pensamento de parte por um momento e virou-se de frente para a igreja. Se Hugh a escondera algures por aqui, teria de ser num lugar significativo.

— Sanguis... sangue... — murmurou ela entredentes.

Rhun observava-a, erguendo os dedos inquietos para tocar na cruz que trazia ao peito. O crucifixo assentava sobre o seu coração silencioso, a prata queimava-lhe a pele, a dor servia para lhe lembrar eternamente o seu juramento perante Cristo e a Igreja. Ela olhou por um momento para o seu coto ligado.

Não seria já dor suficiente para qualquer deus?

Erin voltou a concentrar-se na igreja, reconhecendo a sua disposição em cruz.

Tal como o crucifixo de Rhun.

Um pensamento surgiu dentro da sua cabeça. Ela andou de um lado para o outro, caminhando sobre a palha. Dirigiu-se para o centro da cruz da igreja, para onde o transepto se cruzava com a nave.

Olhou para trás, para Rhun, vendo a queimadura sobre o seu coração.

Encontrava-se agora no coração da igreja de Hugh.

E não era a função do coração bombear sangue?

A pedra Sanguis tinha de estar ali.

Erin olhou diretamente para cima, outra vez para o teto. Será que Hugh a escondera algures lá em cima?

Não, decidiu ela, esse enigma foi resolvido.

Um princípio ecoou na sua cabeça.

O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima.

Olhou para baixo, para os seus dedos dos pés, depois ajoelhou-se. Inclinou-se e varreu com a mão o feno do chão, à procura. Remexeu por ali até encontrar uma pedra com uma indentação recortada distinta.

Como uma taça.

— Está aqui em baixo — disse ela com hesitação, depois mais alto e com maior confiança. — Tornou a Sanguis o coração da sua igreja, monsieur de Payens! Escondeu-a aqui.

Os outros aproximaram-se a correr, provocando o voo repentino de um bando de pássaros negros pela abóbada de tijolo.

Hugh seguiu-os.

Rhun chegou a Erin primeiro, agachando-se ao lado dela. Estendeu a palma da mão por cima do pedaço de pedra que ela encontrara.

— Ela tem razão. Até consigo sentir um murmúrio de santidade a emanar daqui.

Sophia juntou-se a ele, aquecendo as mãos com aquele brilho. De todos os sanguinistas, apenas Elizabeth não se aproximou, mantendo-se de braços cruzados, sem demonstrar interesse.

Até o leão se aproximou. A cria mantivera-se sempre junto a Hugh, a maior parte do tempo de olho no pássaro pousado em cima do ombro do homem, com uma curiosidade felina natural. O felino lambera o focinho umas quantas vezes. Assim que chegou perto, a cria passou com a pata sobre a indentação em forma de taça, batendo no que quer que fosse que sentia.

O movimento chamou a atenção de Erin de volta para essa pequena característica. Deslizou o dedo pela borda recortada, lembrando-se de que o sangue também deveria ser a chave aqui.

— É um portal sanguinista, não é? — afirmou Erin. — A única forma de o abrir é com o sangue de um sanguinista.

— És uma mulher verdadeiramente extraordinária — admitiu Hugh. — Com uma consciência plena impressionante.

Ela olhou fixamente para ele, pressentindo que ainda havia mais.

— Algo me diz que abrir este portal em particular não é assim tão simples.

— Precisamente. Estes portais podem ser fechados de muitas formas únicas.

Erin lembrava-se de Bernard os ter fechado do lado de fora com a ordem pro me.

— Nem mesmo eu o consigo voltar a abrir — admitiu Hugh. — Fechei-o com uma ordem de que poucos sanguinistas ainda se lembram. Nem mesmo o meu caro amigo Bernard.

Erin anuiu. Pelo menos, fazia sentido. Estava fechado de uma maneira que ninguém podia obrigar Hugh a abri-lo sob coação.

— Estou demasiado corrompido agora para o abrir — disse Hugh. — Será necessária pureza para destrancar a pedra sagrada.

— Pureza? — perguntou Erin.

— Só poderá ser aberto por um sanguinista que nunca tenha bebido sangue antes de ingerir o vinho e aceitar a oferenda de Cristo. — Hugh olhou intensamente para eles. — Será preciso o sangue do Escolhido.

Erin virou-se para Rhun.

18h18

Rhun recuou com a intensidade do olhar dos outros.

Eu não sou o Escolhido... pelo menos, já não.

Era verdade que ele não tinha provado sangue humano antes de se tornar sanguinista. Ele lembrava-se de ter sido atacado junto à campa da irmã por um strigoi e de ser salvo por um trio de sanguinistas que o levaram até Bernard. Ali, de joelhos, Rhun fizera os seus votos, bebera o vinho e aceitara o manto para se juntar à ordem.

Mas estou muito longe de ser puro agora.

— Só podes ser tu — insistiu Erin.

— Não posso ser eu. Eu pequei. Eu provei sangue.

— Mas os teus pecados foram perdoados no deserto — disse ela, suavemente, tocando-lhe no ombro nu. — És tu.

Elizabeth franziu o sobrolho.

— És o mais puro de todos nós, Rhun. Que mal faz tentar? Será que o medo de falhar, de não ser suficiente, te assusta assim tanto? Eu pensei que fosses mais forte que isso.

Rhun sentiu uma pontada de vergonha. Elizabeth tinha razão. Ele tinha medo, mas também reconhecia que não se podia negar a esta tarefa se houvesse uma possibilidade de fazer o bem.

Rhun ajoelhou-se com relutância no chão frio e inclinou a cabeça para a frente. Agarrou na cruz de prata que trazia ao peito. A sensação de ardor na sua palma recordou-o da sua natureza profana e de como esta o governava. Mas tinha de tentar de qualquer forma. Ergueu a palma da mão por cima da indentação na pedra e apercebeu-se de que não tinha outra mão para segurar a faca e cortar a palma da própria mão.

Ao que eu cheguei... um Cavaleiro com apenas um braço.

Sophia veio em seu auxílio, aceitando uma pequena faca de Hugh. Espetou o centro da palma de Rhun. Sangue negro jorrou da ferida. Rhun virou o pulso, formando um punho, e verteu o seu sangue maldito para a parte oca da pedra.

Assim que terminou, benzeu-se com o sinal da cruz e cumpriu o ritual, terminando com mysterium fidei.

Todos olharam fixamente.

A pedra não se moveu.

Falhei.

O desespero abateu-o, esmagando-o com uma verdade inegável.

Os meus pecados condenaram-nos a todos.


CAPÍTULO 33

19 de março, 18h22 CET
Pirenéus, França

Elizabeth olhou para baixo, para Rhun, as suas costas curvadas, a cabeça caída. Ele era a imagem da derrota. Ela suspirou face à fragilidade destes sanguinistas, apoiando-se na fatalidade, como um pedinte numa muleta. Derruba-a lançando a dúvida, e eles caem tão facilmente.

Sophia desempenhava o papel do coro grego neste drama.

— Rhun era a nossa única esperança. Ele era o único membro da nossa ordem, em muitos milénios, que nunca bebeu sangue antes de aceitar a oferenda de Cristo.

Isso não é verdade.

Pelo menos, a arqueóloga continuava a lutar.

— Tem de haver outra maneira. Se tentarmos com um cinzel e um martelo no chão...

— Eu não vou permitir que a minha igreja seja profanada dessa maneira — disse Hugh. — E se tentarem algo assim, a pedra será lançada ao rio que corre no coração desta montanha e ficará perdida para sempre.

— Então armadilhou o seu cofre secreto — concluiu Jordan. — Tenho de admitir que se preparou bem.

Enquanto Elizabeth via os lábios de Rhun moverem-se em fútil oração, sentiu pena dele. Ele dera tudo o que tinha pelo seu Deus, e o seu sacrifício fora um desperdício. Aos olhos do Senhor, ele era julgado como sendo tão impuro como qualquer strigoi ímpio. Este fracasso era a sua recompensa por vários séculos ao serviço de Cristo.

Assim, não havia dúvida de que seria particularmente doloroso para Rhun descobrir quem os ia salvar agora, quem conseguiria abrir este cofre quando ele falhara.

— Afastem-se — disse Elizabeth, tirando a faca dos dedos de Sophia.

Elizabeth ajoelhou-se ao lado de Rhun e usou um molho de palha para limpar o sangue dele do recetáculo na pedra.

Rhun observou-a.

— O que...?

— Silêncio! — repreendeu ela.

Ainda de joelhos, Elizabeth cortou a palma da mão e estudou o sangue enquanto este formava uma poça. Na sua superfície brilhante, surgiu o reflexo do seu próprio rosto.

Desculpa, Rhun, sei como isto te vai magoar.

Elizabeth entoou as palavras certas em latim.

— «Este é o cálice do Meu sangue, do novo e eterno Testamento.»

Em seguida, virou a mão e deixou o sangue pingar para a indentação no chão. Rapidamente encheu o reservatório pouco profundo. Quando ficou cheio, Elizabeth entoou as últimas palavras do encantamento:

— «Mysterium fidei.»

Com um ligeiro raspar, a pedra afundou-se no chão, depois moveu-se para o lado.

Ela ouviu a exclamação de descrença de todos eles.

Apenas Erin riu.

Os outros viraram-se para ela.

— Já percebi — disse Erin. — Elizabeth voltou a ser completa quando Rhun lhe devolveu a alma no deserto. Depois, em São Marcos, quando Bernard lhe roubou essa nova alma ao torná-la novamente um strigoi, ela não pôde beber sangue. Em vez disso, foi obrigada a beber o vinho nessa mesma noite.

— E não toquei numa única gota de sangue desde então — acrescentou Elizabeth, virando-se para Rhun. — De acordo com os éditos da Igreja, o meu ser mantém-se puro. Eu sou o Escolhido. E aqui está a prova.

Ela moveu-se para o lado para permitir que um raio de sol que entrava pelas janelas da igreja incidisse no espaço oco. Uma luz ardente refletiu-se da superfície de uma pedra preciosa vermelho-escura escondida no interior, incendiando as suas facetas. O brilho intenso parecia jorrar do coração da pedra.

Embora os seus olhos estivessem ofuscados, Elizabeth observou a pedra carmesim, atordoada pela sua beleza. Já contemplara muitas gemas ao longo da sua vida. Na sua vida mortal, ela fora uma das mulheres mais ricas do mundo. No entanto, nenhuma dessas pedras preciosas tinha o mesmo fascínio que esta.

Elizabeth não era a única cativada.

Jordan caiu de joelhos, a luz a salpicar-lhe o rosto, parecendo sangue fresco.

— A pedra canta — gemeu ela.

18h27

O coração de Jordan cantou para a pedra ardente, e esta respondeu-lhe com uma sinfonia sagrada, atraindo-o ainda mais para a sua melodia, para a sua luz. À volta dele, o mundo mergulhou nas sombras face ao seu brilho.

E como poderia ser de outra maneira?

Ao longe, ouviu os outros a conversar, mas as suas palavras eram apenas murmúrios face ao esplendor daquele cântico.

— Não ouvem? — perguntou ele, tentando fazê-los ouvir.

Uma voz mais penetrante sobrepôs-se à melodia, soando entre as notas individuais.

— Erin Granger, pega na pedra! Resguarda-a da luz antes que ele se perca nela para sempre!

Jordan reconheceu a voz do eremita.

Alguns momentos depois, o brilho esmoreceu, abafando aquela canção eterna. O mundo encontrou a sua substância, peso e sombras. Jordan viu uma mulher a embrulhar a pedra preciosa num tecido branco, extinguindo o seu fogo. Os olhos dela fitaram-no com medo e preocupação.

Outra pessoa levou-lhe um saco, e ela guardou o tesouro dentro dele. O som do fecho a correr soou muito alto na igreja silenciosa.

Os braços de Jordan ergueram-se na direção da mulher e do embrulho. Ele desejava ardentemente tirar a pedra do seu esconderijo, expô-la à luz do Sol e ouvir a sua melodia até ao fim.

A mulher recuou mais um passo.

— Algum de vocês ouviu cantar? — perguntou ela.

Um coro de negações respondeu-lhe.

Lentamente, mais um pouco do mundo se tornou consistente à sua volta. Mas, se se esforçasse, ainda conseguia ouvir um sussurro ténue daquela canção vinda do saco, até mesmo um eco a emergir do seu próprio bolso. Esse eco era uma esmeralda mais sombria, repleta de vida verdejante, da promessa de raiz e folha, flor e caule.

— Jordan — disse uma voz terna ao seu ouvido. — Consegues ouvir-me?

Sim.

— Jordan, responde-me. Por favor. — Em seguida a voz tornou-se ainda mais suave à medida que se afastava. — O que se passa com ele?

— Ele está desequilibrado. — O eremita, novamente.

— O que é que isso significa?

— Ele foi tocado pelo sangue angelical. Embora o proteja e o cure, também consome a sua humanidade cada vez que o salva. Podes ver um mapa desta guerra desenhado na sua pele. Se a força angelical prevalecer, vais perdê-lo para sempre.

Uma mão tocou-lhe na testa, gelada como a neve derretida em contacto com a sua pele escaldante.

— Como podemos ajudá-lo? — O nome dela é... Erin.

— Não o deixem esquecer a sua própria humanidade.

— O que é que isso significa exatamente? O que é que fazemos?

Ele ouviu uma mudança naquela melodia indistinta, distraindo-o. Era um sussurro de acordes menores, um fio mais sombrio tecido através da canção, introduzindo notas mais profundas de aviso.

Ele forçou os seus lábios a moverem-se.

— Vem aí alguém.

Seguiu-se um silêncio profundo, permitindo-lhe ouvir melhor.

— Impossível — respondeu o eremita. — Tenho guardas por todo o lado. Nas sombras da floresta, nos túneis escuros. Eles ter-me-iam avisado. Estão em segurança.

As notas sombrias soaram mais alto na sua cabeça.

O leão rosnou, e o seu pelo branco eriçou-se como sinal de aviso.

Jordan levantou-se, caminhou até à parede e agarrou numa arma de cano comprido.

— Pousa a enxada — disse o eremita. — Não há necessidade de recorrer à violência.

Jordan virou-se para enfrentar as sombras profundas ao fundo da igreja.

Tarde demais.

Ele está aqui.

18h48

Legião entrou no túnel vindo do arvoredo sombrio da velha floresta. Outros conduziram-no, aqueles que ele encontrara a deambular pelo mato, aqueles de natureza corrompida que pensavam ter encontrado paz no cume desta montanha. Em vez disso, tinham acabado com a palma de Legião pousada nas suas faces, onde ele os marcou, subjugando-os. Apoderou-se das suas memórias, do seu conhecimento relativamente ao esconderijo do eremita, aprendendo os caminhos secretos da montanha.

Nesse dia, depois de ter ficado a saber da existência deste lugar através dos olhos e dos ouvidos do padre Gregory, Legião saíra de Praga, o seu corpo ainda fraco carregado por aqueles que tinham a sua marca. Um trio de sanguinistas subjugados assegurara o seu transporte, um helicóptero com janelas protegidas do sol, para que ele pudesse voar sobre terras iluminadas pela luz de um novo dia.

Tinham aterrado na montanha, do lado oposto ao lugar onde o helicóptero do inimigo se encontrava. A partir daí, esta velha floresta protegera-o da luz do Sol. Enquanto subia, deleitara-se com o aroma intenso da argila, do bolor da madeira carcomida e da doçura das folhas e da casca das árvores. A cada passo, os seus olhos absorveram o tom rico de esmeralda da copa do arvoredo, as pétalas suaves das flores. Os seus ouvidos captaram cada sussurro, chilreio e movimento, lembrando-lhe que paraíso este mundo podia ser se fosse intocado pelo Homem.

Este lugar vai voltar a ser um verdadeiro jardim, pensou ele. Vou ceifar e remover as ervas daninhas e queimar tudo até voltar a ser um paraíso.

Naquela floresta, Legião descobrira os guardiães do eremita, tanto os animais, como os strigoi, aqueles que eram leais a um homem que lhes prometera um caminho para a serenidade. Bastou um único toque para os libertar dessa presunção, para os subjugar, de forma a não ser dado qualquer alarme.

Legião entrava agora nos túneis, divertido com o facto de o inimigo ter procurado este refúgio, rodeando-se de corrompidos, aqueles que podiam tão facilmente ser virados contra eles. Legião continuou a embrenhar-se na montanha, alastrando a cada toque uma tempestade que crescia dentro do coração sombrio da montanha.

A cada passo que dava na direção do esconderijo do eremita, os seus olhos multiplicavam, a sua voz expandia-se. Os seus subjugados evocavam outros para o servir. Eles vinham a Legião como traças atraídas pela sua chama fria, aumentando cada vez mais o seu exército.

Ele continuou a seguir as suas forças... até ouvir batimentos cardíacos que lhe eram familiares.

A palpitação frenética da Mulher, o batimento estrondoso do Guerreiro.

Aqui estava o par que quase destruíra o corpo que ele possuíra.

Uma fúria súbita percorreu-o, enquanto levantava o braço.

Vão!, ordenou ele.

A sua tempestade percorreu furiosamente os túneis, prestes a desabar sobre os que se encontravam em baixo. Ele sabia que os outros já tinham obtido a segunda pedra. A sua melodia ardente ecoara até ele enquanto caminhava na sua direção. Sabendo que a pedra fora encontrada, Legião já não precisava de nenhum dos outros, nem mesmo do Cavaleiro.

Legião lançou a sua derradeira ordem, impregnando os corações silenciosos do seu exército com o seu desejo.

Matem-nos a todos!

18h50

Com a cria ao seu lado, Rhun pegou numa gadanha do molho de ferramentas de jardim.

Sophia empunhou um machado de lenha numa mão e um martelo na outra.

Elizabeth ergueu uma pá.

Rhun virou-se no momento exato em que várias figuras emergiram de um túnel ao fundo da igreja, caindo em cima dos strigoi e blasphemare que ali se encontravam reunidos, como uma onda a embater nas rochas.

Se não fosse o aviso de Jordan há pouco, não estariam preparados e teriam sido emboscados antes de conseguirem reagir.

Um dos atacantes afastou-se da luta, voando pelo ar em direção a Erin. Ela estava ajoelhada no chão, agarrada à mochila que continha a pedra e o Evangelho, protegendo ambos.

Rhun deslizou para o lado dela, brandindo a gadanha bem alto no ar, trespassando a perna da besta e atirando o seu corpo para longe. O strigoi embateu com violência no chão, sangue negro escorrendo-lhe do membro decepado. Ainda assim, tentou atacá-los, esgadanhando e pontapeando, um grito furioso irrompendo-lhe da garganta, expondo a marca de uma mão negra gravada na sua face pálida.

A marca de Legião.

Em seguida, Jordan apareceu, movendo-se com a mesma rapidez que um falcão ao ataque. Baixou a enxada sobre a criatura e abriu-lhe o crânio.

Rhun puxou Erin para que se pusesse de pé, enquanto Jordan rodopiava para longe deles e partia a sua arma nas costas de uma pantera blasphemare. Depois virou-se e espetou a ponta estilhaçada no olho do animal. Antes de Rhun conseguir sequer reagir, Jordan deu uma volta e arrancou-lhe a gadanha da mão.

Rhun não protestou, batendo em retirada com Erin, sabendo que tinha de a manter em segurança e ao que ela carregava.

Sophia e Elizabeth protegiam-nos dos lados, enquanto Jordan continuava a lutar contra o inimigo, à medida que mais animais e strigoi inundavam a parte de trás da igreja. O seu número era esmagador. Era uma luta que não poderiam ganhar.

Foi então que uma luz intensa irradiou atrás de Rhun, acompanhada de um estrondoso rugido.

— A mim! — gritou Hugh.

Rhun olhou de relance para trás e viu Hugh abrir o segundo par de portas duplas da igreja, revelando a cascata de água retumbante para lá da soleira. Rhun também reparou o quanto essa luz parecia sombria. Embora ainda restassem alguns minutos de luz solar, a igreja estava virada para leste. Com o Sol a pôr-se a oeste, a montanha fazia sombra sobre a soleira. A luz era demasiado fraca para oferecer uma verdadeira proteção.

Provando que isto era verdade, outro strigoi afastou-se da luta e lançou-se sobre eles.

Contudo, um clarão branco atravessou o ar e atingiu a figura esguia, derrubando-a, arranhando-lhe o rosto e a garganta com as garras prateadas, como se tentasse apagar a marca de Legião da sua carne.

Hugh agarrou no cotovelo de Rhun e atirou-lhe uma folha de velino enrolada.

— É um mapa antigo, desenhado no calfe. Irá mostrar-lhe o caminho para o vale.

Rhun aceitou o manuscrito e enfiou-o no cinto das calças para o prender. Depois agarrou Erin pela cintura, sabendo que havia apenas uma maneira de sobreviver a este ataque.

— Temos de saltar — disse ele.

Erin virou-se, ficando de frente para a igreja sombria e para a luta que decorria no seu interior.

— Jordan...

Rhun viu o homem, um rochedo no meio de um remoinho negro de água. Jordan movia-se com uma velocidade e uma ferocidade incríveis, sangrando de mil cortes, salpicando aquela escuridão com o seu sangue sagrado, queimando e cortando tudo à sua volta com a sua gadanha.

No entanto, nem mesmo o Homem Guerreiro conseguiria aguentar muito mais perante uma tempestade tão violenta.

Enquanto Rhun observava, Jordan caiu por terra, prestes a ser dominado.

— Vamos buscá-lo — disse Sophia, acenando para Elizabeth.

Hugh assobiou e, das sombras, a matilha de cães negros apareceu.

— Defendam-nas — ordenou Hugh, apontando para as duas mulheres. — O Homem Guerreiro não pode sucumbir.

A matilha arrancou com Sophia e Elizabeth.

Rhun segurou Erin com mais força.

— Elas não vão falhar — prometeu-lhe.

Erin fitou Rhun, com os olhos a brilhar de medo, mas confiava nele o suficiente para acenar com a cabeça.

Do outro lado, uma nova figura emergiu na igreja, mais escura que as sombras, uma escultura negra de um velho amigo.

Erin também viu aquele monstro.

Era Legião na pele de Leopold.

Então, o demónio ainda estava vivo.

Rhun não esperou e tomou o único caminho que ainda lhe restava.

Puxou Erin para mais perto, recuou até ao rugido estrondoso e saltou da montanha.

18h55

Erin arquejou com a água fria e sentiu o ar sair-lhe do peito com a força da água. Virou-se enquanto caía, mas o braço de Rhun era como ferro à volta dos seus ombros, as suas pernas como aço à volta da sua cintura, as faces dele encostadas às suas.

Foi então que embateram no lago em baixo, com um impacto que fez tremer cada osso do seu corpo. Mergulharam fundo, para onde as águas se tornavam escuras. Erin engoliu água, engasgando-se. Depois sentiu-se a ser impulsionada para cima. Rhun batia as pernas, mas mantinha o braço à sua volta, sem nunca a largar.

Chegaram à superfície, e foram saudados pelo rugido da cascata.

Ela tossiu, expelindo a água, e inspirou sofregamente o ar.

Rhun arrastou-a para a margem. Ela finalmente recuperou fôlego suficiente para nadar sozinha. Rastejaram sobre as mãos e os joelhos para fora do lago. Erin virou-se, sentou-se de lado e olhou para cima. Com o Sol quase posto atrás da montanha, a cascata ficara escura, escondendo a igreja atrás dela.

— Jordan — gemeu Erin.

Rhun levantou-se e dirigiu-se para a pilha de roupa e equipamento deles. Erin reconheceu a sensatez da ação dele e seguiu-o, com os membros a tremer de frio e medo. Pegou no Colt 1911. O aço da coronha ajudou-a a acalmar.

Rhun recuperou a sua karambit de prata.

— O Sol vai pôr-se dentro de poucos minutos. Temos de ir.

— E Jordan? E os outros?

Como que evocados pelas suas palavras, uma série de figuras irrompeu da cascata escura. Caíram e embateram no lago em baixo, mergulhando a uma grande profundidade. Erin correu para a margem, procurando nas águas, observando uma tempestade de bolhas a emergir... e foi então que, das profundezas, surgiu uma figura.

Elizabeth.

Ela arrastava para a superfície a figura inerte de Jordan, virando-o sobre si mesmo para que ficasse de costas. Ele não se mexia. O sangue espalhava-se à sua volta, manchando as águas azuis como um derramamento de petróleo. Cortes e arranhões entrecruzavam-se no seu peito. Uma enorme ferida aberta deixava entrever o osso branco.

Depois apareceu Sophia atrás deles, puxando para cima a forma ensopada de um jovem leão. O felino batia com as patas e chapinhava, momentaneamente em pânico, engolindo água. Em seguida, a cria recompôs-se e seguiu os outros.

Erin entrou na água com Rhun para ajudar a tirar Jordan do lago. Os olhos de Jordan olhavam fixamente para cima, o seu azul brilhava, mas era evidente que não via nada.

Estaria morto?

Foi então que o seu peito se elevou uma e outra vez.

— Ele ainda está vivo — disse Elizabeth. — Mas o seu coração enfraquece com cada batimento.

— Ela tem razão — confirmou Elizabeth. — Nem mesmo as suas miraculosas capacidades de cura podem ser suficientes para o salvar sem ajuda.

Erin desejava ter os sentidos deles, ouvir o coração de Jordan, estar ainda mais perto dele.

Sophia apontou em direção à floresta negra e aos montes mais baixos.

— Temos de sair desta montanha. O caminho já se encontra suficientemente sombrio, permitindo que as forças de Legião nos apanhem.

Um chape ruidoso fez com que todos se virassem para trás, sobressaltados.

Uma forma negra gigantesca saltou por entre a cascata, com os membros volumosos estendidos. Todos recuaram. Jordan continuava estatelado na margem do lago, o seu sangue ainda escorria para dentro de água.

A enorme figura embateu na água não muito longe da margem, ficando submersa apenas até à cintura, e as suas pernas musculadas não exibiam qualquer efeito de uma queda daquela altura.

Erin ergueu o Colt, apontando-o para o peito do blasphemare. Ela reparara nesta criatura antes, na igreja, uma das criaturas que fazia parte da coleção de animais de Hugh.

O gorila-das-montanhas de pelo negro dirigia-se para Jordan.

— Não — disse Sophia, puxando o braço de Erin para baixo. — Ele não está corrompido. Ele estava ao lado de Hugh quando saltámos da igreja.

O gorila pegou em Jordan e, com cuidado, colocou o seu corpo ensanguentado por cima do ombro. O animal bufou ruidosamente, mexendo o focinho.

— Hugh deve tê-lo enviado para nos ajudar — sugeriu Sophia.

— Então, agarrem nas armas — ordenou Rhun.

Sophia e Elizabeth armaram-se rapidamente. Erin pegou na bandoleira da pistola-metralhadora de Jordan e colocou-a à volta do pescoço.

Para a usares quando te sentires melhor, prometeu ela.

Fugiram em grupo pelo campo, conduzidos pelo gorila, que caminhava rapidamente a passo largo, abrindo caminho entre a vegetação.

— E Hugh? — perguntou Erin.

Elizabeth olhou para trás, a expressão do seu rosto estranhamente abatida.

— Ele nunca abandonaria o seu rebanho.

— Ele também tencionava dar-nos tempo — acrescentou Sophia, caminhando apressadamente.

Quando chegaram à orla do arvoredo, ouviram gritos atrás deles. Um remoinho de formas negras irrompeu da cascata, como formigas a sair de um ninho inundado.

Parece que ficámos sem tempo.


CAPÍTULO 34

19 de março, 19h04 CET
Pirenéus, França

Legião levantou a palma da face da mulher, afastando as madeixas de cabelo louro do seu rosto. Ele observou-a enquanto os olhos dela se tornavam os seus. Ele conseguia ver agora através dos olhos dela e contemplar a glória do seu próprio rosto. Agora, à medida que as suas memórias o inundavam, também sabia o nome dela.

Francesca.

Através de muitos outros olhos, Legião espiava os seus predadores, enquanto estes perseguiam as suas vítimas na floresta lá fora, ouvindo os seus uivos ecoarem pela montanha.

Legião permanecia na igreja, a enfrentar o seu próprio alvo.

Agora, possuía todos os animais e strigoi que se encontravam na capela.

Exceto um.

O eremita encontrava-se à sua frente, de costas para a parede, ensanguentado mas firme. Nenhum indício de medo marcava o seu rosto suave. Os seus olhos castanhos fitavam serenamente os de Legião.

— Podes parar — disse o homem. — Mesmo agora. A paz e o perdão estão ao alcance de todos. Até ao teu, um espírito da escuridão.

— Procuras absolver-me — interrompeu Legião, exultante. — Mas eu estou para além do pecado e da condenação, por isso não preciso de perdão. Mas, quanto a ti — Legião ergueu a mão —, deixa-me livrar-te da tua dor, do teu sofrimento, até mesmo da tua falsa sensação de paz. Encontrarás a verdadeira serenidade na obediência cega. E, ao fazê-lo, partilharás comigo tudo o que sabes, tudo o que lhes constaste.

— Não te vou dizer nada.

O eremita virou-se, como que a recusar a sua oferta. Mas, em vez disso, as mãos do homem agarraram uma enorme alavanca de madeira escondida numa fenda. Com uma tremenda elevação, Hugh empurrou-a para baixo. Um estrondo ruidoso ecoou, vindo de baixo, fazendo tremer o chão... em seguida, este cedeu sob os pés de ambos.

Legião lançou-se para a frente quando enormes pedaços de tijolo e pedra solta desabaram por baixo dos seus pés. O eremita saltou bem alto para agarrar as grossas cadeias de ferro de um ornamento na parede. Legião saltou atrás dele, agarrando a bota do homem com a sua mão negra.

Enquanto se encontrava ali pendurado, o resto do chão desmoronou-se para dentro de um fosso escondido por baixo da igreja, levando consigo o que restava do seu exército. Uma enorme nuvem de pó de tijolo e pedaços de madeira partida foram impulsionados para cima, trazendo consigo o som trovejante da água, que ecoou em baixo, assinalando a existência de um veio subterrâneo neste pico, um enorme rio que corria na base da montanha.

Se Legião caísse, ficaria para sempre nas entranhas da Terra, aprisionado como certamente o fora anteriormente no coração daquele diamante verde.

O terror percorreu-o de cima a baixo.

Legião olhou para cima e viu o eremita a olhar para ele.

Não o faças, avisou ele.

No entanto, os dedos de Legião seguravam apenas couro, e não pele. A vontade do eremita ainda era a sua própria vontade. E, usando-a, o homem desprendeu os dedos e soltou-se.

Juntos, mergulharam na escuridão em baixo.

19h10

— Continuem! — gritou Rhun para os outros.

Há pouco, ouvira o som abafado de uma explosão, de pedra a raspar e madeira a partir. Ele não sabia o que é que isso significava, apenas que o seu grupo continuava a ser caçado e perseguido por uma miscelânea numerosa e uivante de strigoi e blasphemare.

Rhun manteve-se ao lado de Erin. À frente, o gorila corria com Jordan ao ombro, movendo-se a grande velocidade pela encosta da montanha, passando velozmente por arbustos, afastando pequenas árvores como se fossem galhos. O seu corpo abria caminho entre a floresta densa à frente deles, como um pedregulho a rolar pela encosta abaixo.

Sophia pedira emprestada a arma de Jordan e disparava atrás deles enquanto fugiam. Munições de prata atravessavam as agulhas dos pinheiros e despedaçavam as folhas das árvores. Elizabeth protegia o caminho à esquerda de Rhun, armada com uma espada e uma faca, À direita, a cria de leão protegia-lhe o flanco, movendo-se como um fantasma.

Ainda assim, estavam a perder terreno rapidamente.

O inimigo estava prestes a cair-lhes em cima a qualquer momento.

Sophia apareceu ao lado de Rhun, atirando as suas armas fumegantes para trás das costas.

— Não tenho munições. — O medo percorreu-lhe o rosto. — Não vamos conseguir. Vamos ter de...

Um estrondo interrompeu-a.

— TODOS PARA O CHÃO!

Rhun obedeceu, reconhecendo a voz. Empurrou Erin para um monte de folhas secas e cobriu-a com o seu corpo. Os outros atiraram-se para o chão. Até a cria deslizou para o lado de Rhun e imitou-o. Uma cauda branca atravessou furiosamente as folhas.

Apenas o gorila continuou o seu caminho, correndo pesadamente pela encosta.

No caminho deixado aberto pela passagem do animal, era possível avistar Christian a alguns metros, ao fundo da encosta. Ele voou baixinho, equilibrando a coronha das duas metralhadoras nas ancas... e abriu fogo.

A barragem de fogo despedaçou a floresta, fazendo chover pedaços de madeira e folhas por cima deles. O rugido das armas ensurdeceu Rhun. Mesmo quando acabou, os seus ouvidos ainda zumbiam por causa do barulho.

— Venham! — gritou Christian, atirando para o lado as armas sem munições. — Isto só nos vai dar algum tempo! Corram para o helicóptero!

Todos se puseram de pé (e patas) e correram ainda mais.

Por fim, saíram disparados da floresta para a clareira. O helicóptero rugia à frente deles, os motores já aquecidos e prontos, os rotores a girar lentamente.

Naquele momento, o Sol já se pusera por completo.

Precisavam de sair daquela montanha.

O gorila esperava por eles junto à aeronave, apoiado sobre um só braço robusto e a ofegar, claramente exausto. Dirigiram-se todos para junto do animal. Sophia e Christian ajudaram a carregar Jordan para a cabina traseira. Erin subiu com ele, pairando sobre ele.

Rhun aproximou-se do gorila e colocou uma mão sobre o seu enorme ombro.

— Obrigado.

Uma parte dele ainda questionava o trabalho de Hugh, acreditando que a redenção destas criaturas amaldiçoadas era impossível.

Mas já não era nisso que acreditava.

O gorila deu uma cabeçada amistosa no peito de Rhun, como se percebesse.

Em seguida, virou-se e voltou para a floresta, o seu olhar erguido para aquela cascata distante, tencionando regressar e proteger o homem que oferecera a esta enorme criatura não só uma casa, mas também o seu coração.

Rhun olhou para a montanha enquanto subia para o helicóptero.

Que o Senhor te mantenha a salvo.

19h22

Legião encontrava-se caído e em mau estado num ninho de madeira partida e pedaços estilhaçados do chão da igreja. A mistura de destroços ficara presa numa saliência rochosa numa das paredes do fosso cavernoso, dando origem a este poleiro precário. Ele caíra para ali não por sorte, mas por força de vontade. Reparara na saliência quando ia a cair e atirara o seu corpo para lá, na esperança de que aguentasse com ele.

E não só com ele.

Ele nunca largara a bota do eremita enquanto caíam. O corpo do homem encontrava-se estatelado ao lado dele, ainda em pior estado. O pescoço do seu adversário estava torcido num ângulo mau; o seu sangue escorria entre as pedras e pingava para o rio que se estendia lá em baixo.

Porém, ainda lhe restava alguma vida.

Talvez a suficiente.

Legião rolou cuidadosamente para o lado, moendo alguns ossos.

Eu ficarei a saber o que tu sabes.

Legião esticou-se para tocar na face pálida do homem, enquanto olhos castanhos o fitavam, débeis, mas ainda assim desafiantes. Legião ignorou o olhar e colocou a palma da mão sobre a sua vítima. Com um toque, sentiu o quão fraca estava a chama que permanecia no interior do eremita, quase apagada.

Seria suficiente?

Legião ficou preocupado ao retirar a mão. Tal como receara, a palma da sua mão não deixara marca. O eremita estava demasiado perto da morte para receber a sua marca. Legião tentou novamente, mas a sua escuridão não encontrava nada substancial para subjugar.

O eremita fechou os olhos. Um sorriso pairava nos lábios do velho padre, crendo que levara a melhor.

Estás enganado.

Legião foi mais além. Embora não pudesse transformar o homem num demónio, existiam outros caminhos para obter o conhecimento.

O corpo que eu ocupo ainda é um strigoi.

Legião exibiu as presas. Como se tivesse sentido o predador junto à sua garganta, os olhos do homem voltaram a abrir-se, revelando medo.

Legião enterrou os dentes bem fundo na carne fria. Bebeu tudo o que conseguiu daquela fonte que se extinguia, criando um elo de sangue entre os dois, entre o predador e a presa, entre o strigoi e a vítima. Com cada gota, Legião absorvia mais da vida do homem no seu ser, devorando as suas últimas forças, obrigando-o a partilhar tudo o que sabia, enquanto se tornavam um só.

Mesmo depois de ter obtido o conhecimento, Legião continuou a alimentar-se, drenando a sua vítima em grandes golfadas, até não restar nada. Só nessa altura se deitou para trás e lançou a sua vontade sobre aqueles que ainda sobreviviam, mandando trazer uma corda para o puxar dali e mais sangue para o curar.

Legião sorriu na escuridão.

Ficara a saber algo através do eremita, algo que ele não partilhara com os outros. Se o fizera de propósito ou por mera falta de atenção, Legião não sabia.

Ainda assim, usaria esse conhecimento contra o seu inimigo.

Mas primeiro tenho de sair daqui... e chegar ao vale antes deles.


CAPÍTULO 35

19 de março, 20h04 CET
Lasserre, França

Erin segurava a mão inerte de Jordan, enquanto o helicóptero onde se encontravam fazia uma aterragem atribulada num pasto de vacas nos arredores da vila francesa de Lasserre. Há poucos instantes, a aeronave deixara a montanha a grande velocidade e sobrevoara o contraforte, deslizando sobre esta vila escura, um assentamento rural pitoresco de casas de pedra, extensões de vinhas e pequenas quintas.

Uma vez em terra firme, Christian dirigiu-se às traseiras da aeronave e retirou uma maca do compartimento da carga. Sophia e Elizabeth ajudaram a mover Jordan do banco de trás para a prancha almofadada no exterior. Erin seguiu-os, tentando não olhar para a quantidade de sangue que ensopava o banco de trás e formava uma poça na pele do assento.

Jordan, não morras.

Durante o voo, Erin e Elizabeth usaram o kit de primeiros socorros para limpar e ligar a ferida maior. A condessa agira com destreza, parecendo muito experiente a tratar de feridas de guerra. No entanto, tinham ficado sem material antes de conseguirem ligar todas os ferimentos. Depois disso, Erin embrulhara o corpo de Jordan num cobertor vermelho de emergência, e examinava regularmente debaixo dele, apercebendo-se rapidamente de que até os cortes mais pequenos não saravam desta vez. Jordan estava a morrer.

Aterrorizada, desceu do helicóptero e juntou-se aos outros. Procurou em volta, reparando numa pequena propriedade atrás de uma cerca. Luz brilhava de todas as suas janelas.

Porque é que aterrámos aqui?

— Jordan precisa de um hospital — exclamou Erin, expressando a sua confusão e frustração. — De uma equipa de médicos.

— Isto vai ter de chegar — disse Christian, levantando uma das pontas da maca. — O hospital mais próximo é demasiado longe.

Sophia pegou na outra ponta, enquanto Rhun prendia o leão na sua jaula de transporte no helicóptero. Christian não esperou e dirigiu-se para a casa. Erin teve de correr para se manter ao lado de Jordan na maca.

— Então, para onde estamos a levá-lo? — indagou ela.

— Um médico reformado vive aqui — gritou-lhe Christian. — Um amigo da ordem. Ele está à nossa espera.

Quando se aproximaram da porta da frente, um velhote de cabelo grisalho abriu-a e fez-lhes sinal para que entrassem. Usava calças castanhas de bombazina e uma camisa azul aos quadrados. Tinha uma farta cabeleira branca e olhos castanhos, cor de whisky, debaixo de umas sobrancelhas desgrenhadas. O seu rosto enrugado ficou extremamente sério quando olhou para Jordan.

O homem deu algumas ordens em francês.

Os sanguinistas conduziram apressadamente a maca através de um corredor rústico até à cozinha nas traseiras. Erin seguiu-os.

Na cozinha, um fogão de ferro forjado ocupava um canto da divisão. Irradiava calor da sua superfície, e uma panela com água fervia em cima dele. Uma pilha de toalhas turcas dobradas encontrava-se sobre uma cadeira, juntamente com uma mala de médico de couro gasto. Parecia um adereço de um filme e não algo que os pudesse ajudar.

O sanguinista passou Jordan da maca para a mesa da cozinha.

Ao ver Jordan debaixo daquelas luzes mais fortes, Erin sentiu que ia desmaiar. As linhas carmesins tinham alastrado significativamente, estendendo-se pelo seu peito, pescoço e rosto. Espirais de aspeto ameaçador subiam-lhe pelo queixo até aos lábios. As linhas sobressaíam em contraste com o rosto pálido.

Mas, pelo menos, os cortes mais pequenos pareciam estar finalmente a sarar.

Foi então que o médico retirou um pedaço de gaze ensanguentada e o estômago de Erin se contraiu. Um corte profundo estendia-se do ombro direito de Jordan até à anca esquerda. Ainda estava aberto, revelando osso e músculo ensanguentado.

As mãos nodosas do médico moviam-se com rapidez, enquanto lavava o peito de Jordan com uma das toalhas, passando-a a Erin quando terminou. Ela segurou o pedaço de tecido quente e ensanguentado nas mãos, sem saber bem o que fazer, até Sophia o levar.

— Ele vai ficar bem? — perguntou Erin.

— Ele perdeu muito sangue — respondeu o médico em inglês. — Mas estou mais preocupado com aquele ferimento grande. Não está a sangrar muito, mas também não estancou por completo. É como se os vasos sanguíneos se tivessem fechado.

— O que pode fazer para o ajudar? — Erin detestava o tom de histeria na sua voz. Respirou fundo para controlar o pânico, precisando de se manter calma por Jordan.

— Vou coser as artérias e fechar a ferida. Mas ele está a arder em febre. Não percebo porquê. Com uma hemorragia destas, a temperatura do seu corpo devia estar a cair. Tenho de a conseguir baixar.

— Não — disseram Erin e Rhun ao mesmo tempo.

— A febre não está a ser causada por nenhuma doença — explicou Rhun.

— É algo que está para além da fisiologia — acrescentou Erin, tentando encontrar palavras para explicar o inexplicável. — Algo no sangue dele, algo que é capaz de o ajudar a sarar.

Pelo menos, assim espero.

O médico encolheu os ombros.

— Eu não percebo, nem sei bem se quero perceber, mas vou tratá-lo como um paciente normal e ver se ele reage. Não posso fazer mais nada.

Enquanto o médico trabalhava, Erin puxou a cadeira que restava para junto da mesa e agarrou na mão de Jordan. Queimava em contacto com a sua palma. Passou os dedos pelo seu cabelo curto e louro, o couro cabeludo estava agora encharcado de suor provocado pela febre.

Christian aproximou-se do médico.

— Deixe-me ajudar, Hugo. Conhece as minhas aptidões.

— Agradeço a tua ajuda — respondeu o médico. — Vai buscar os instrumentos que estão na panela de água a ferver.

Erin também queria ajudar, mas sabia qual era o seu lugar, a segurar com firmeza na mão de Jordan. Fisicamente, o médico estava a fazer tudo o que podia, mas ela sabia que os ferimentos de Jordan eram mais profundos do que isso. Ela traçou com o dedo a linha espiralada nas costas da mão dele, simultaneamente odiando aquela marca e rezando para que o poder que corria dentro dela salvasse o homem que amava. Ela sabia que esse mesmo poder o podia consumir por completo, roubá-lo dela da mesma forma que a morte, mas seria isso assim tão mau para Jordan? Ele podia estar a transcender a sua humanidade e a tornar-se totalmente angelical. A sua transformação nunca parecera incomodá-lo tanto quanto a ela. Como podia ela comparar o seu desejo egoísta de ficar com ele com a oportunidade de ele se tornar um anjo?

O aviso de Hugh de Payens ecoou dentro dela: Não o deixem esquecer a sua própria humanidade.

Mas o que é que isso significava?

21h21

Jordan vagueava entre um nevoeiro esmeralda, perdido para si mesmo, perdido para tudo, à exceção do sussurro subtil de uma melodia. Cantava suavemente para ele, prometendo-lhe paz, atraindo-o cada vez mais para a doçura do seu abraço.

No entanto, uma réstia do seu ser permanecia, uma nota única contra aquele coro poderoso. Esta coalescia num nó apertado de resistência, à volta de uma simples palavra.

Não.

À volta dessa palavra, agregavam-se memórias, como uma pérola a formar-se em volta de um grão de areia.

... discutir com a sua irmã sobre quem ia à frente no carro...

... esforçar-se ao máximo para arrastar um amigo ferido para a segurança, com balas a voar por todo o lado...

... recusar-se a desistir de um caso arquivado e encontrar justiça quando todos desistiram...

Uma nova palavra formou-se desses vislumbres esquivos, definindo a sua natureza, um sustentáculo a partir do qual edificar mais.

Obstinado.

Ele aceitou isso como sendo o que ele era e usou-o para lutar, para se debater, para procurar além da promessa da melodia, para querer mais do que paz.

A sua luta agitou o nevoeiro, levantando-o o suficiente para vislumbrar ao longe uma partícula de luz avermelhada. Moveu-se na sua direção, sentindo-se mais em si agora para adicionar uma nova palavra.

Desejo.

A partícula ardente tornou-se maior, hesitando ocasionalmente, por vezes desaparecendo por completo. Mas ele concentrou-se nela, ancorando mais do seu ser nela, sabendo que era importante que o fizesse, ainda que as notas mais subtis lhe dissessem o contrário.

Por fim, aquela partícula rubi aproximou-se o suficiente, estabilizou-se o suficiente, para ser possível discernir outro som: o rufar de um tambor. Rufava contra o coro, em contraponto com aquelas notas subtis. O tambor batia e ribombava, repleto de caos e agitação, tudo o que a melodia não era.

Formou-se uma nova palavra, definindo a sua perfeição confusa.

Vida.

Sentiu-se nascer de novo com esse pensamento, um nascimento acompanhado por uma dor lancinante que atravessou o nevoeiro e lhe deu membros, e peito, e ossos, e sangue. Pegou naquelas novas mãos e tapou as orelhas que agora também se formavam, bloqueando aquelas doces notas.

Contudo, o rufar vermelho tornou-se cada vez mais alto.

Ele reconhecia-o agora.

Um batimento cardíaco humano, frágil e pequeno, simples e vulgar.

Jordan abriu os olhos e viu um rosto a olhar para ele.

— Erin...

21h55

— O herói acordou — disse Elizabeth, tentando soar desdenhosa, mas até para os seus próprios ouvidos as suas palavras pareceram gratas, felizes até.

E como poderiam não ser?

A alegria estava estampada no rosto de Erin ao beijar Jordan. O alívio da mulher irradiava da sua pele; a ternura brilhava nos seus olhos. Rhun já olhara para Elizabeth daquela maneira. Quase sem se aperceber, levou os dedos aos lábios, recordando. Voltou a baixar a mão.

Depois de duas horas de cirurgia improvisada, Jordan descansava agora numa pequena cama num quarto nas traseiras da quinta, o seu corpo envolto em ligaduras, o seu rosto um mapa de suturas. O médico fizera um bom trabalho, mas Elizabeth sabia que a verdadeira cura estava para lá daqueles inúmeros pontos.

Rhun mexeu-se na cadeira periclitante no canto do quarto, perturbando o jovem leão enrolado aos seus pés. Ele deixara o leão entrar dentro de casa quando organizaram esta vigília junto à cama de Jordan. Christian e Sophia tinham rezado pelo homem, até acabarem por sair lá para fora para esticar os joelhos devotos e elaborar mais planos.

Rhun levantou-se, tocou no ombro de Erin, depois virou-se para Elizabeth.

— Vou dar a boa notícia a Sophia e Christian.

Quando saiu, Elizabeth aproximou-se de Erin, ficando atrás dela de braços cruzados. O amor da arqueóloga pelo seu homem era evidente em cada toque, em cada sussurro. Erin disse algo que fez surgir um sorriso no rosto de Jordan, enrugando as suas suturas, fazendo-o contorcer-se, mas não parar de sorrir.

Apesar de toda a alegria, Elizabeth estudou as linhas carmesins espalhadas pelo corpo e pelo rosto de Jordan.

É verdade que ainda respiras, mas não estás bem.

No entanto, Elizabeth guardou estes pensamentos tristes para si mesma.

O médico voltou, tendo ouvido a notícia sobre o seu paciente, e começou a examinar Jordan: apontou uma luz aos seus olhos, auscultou-o, colocou a palma da mão sobre a sua testa.

— Incroyable! — exclamou o homem, enquanto se endireitava e abanava a cabeça.

A porta bateu e Rhun entrou a correr com os outros sanguinistas. Antes disto, tinham consumido vinho, até mesmo Elizabeth. Ela sentia-se rejuvenescida agora e via a mesma vitalidade emanar dos outros, mas por baixo disso conseguia detetar a ansiedade nos seus rostos, a impaciência nas suas atitudes e movimentos.

Eles sabiam a verdade.

O mundo estava a sucumbir à escuridão naquela noite, com histórias terríveis de banhos de sangue e monstros a serem contadas na televisão, na rádio. Os avisos e o pânico continuavam a aumentar a cada hora que passava.

Eles não se atreviam a demorar-se ali muito mais.

Christian falava rapidamente quando entrou com Rhun.

— O nosso jato Citation está abastecido e a postos. Podemos estar a percorrer o alcatrão dentro de quinze minutos e levantar voo logo a seguir. Se puxar ao máximo pelos motores, conseguimos chegar a Katmandu em menos de sete horas. Já estaremos a voar só com os vapores do combustível, mas devemos conseguir.

Esse plano dependia de um pormenor crucial.

Christian perguntava-o agora, sentando-se aos pés da cama.

— Como te sentes?

— Já estive melhor — respondeu Jordan.

Rhun virou-se para o médico.

— Quando é que ele estará suficientemente bem para viajar?

O homem olhou horrorizado para Rhun, praguejou agressivamente em francês, depois respondeu.

— Vários dias, se não semanas!

— Estou pronto agora — disse Jordan, tentando sentar-se com dificuldade e acabando por conseguir fazê-lo. — Posso dormir no avião.

Erin virou-se para Rhun, a preocupação brilhava nos seus olhos, claramente implorando-lhe que dissuadisse Jordan, que concordasse com o médico.

Em vez disso, Rhun virou-lhe as costas.

— Então, partimos agora. Preparem-se.

Somente Elizabeth viu de relance o rosto de Rhun quando Erin saiu disparada do quarto e passou por ela. Elizabeth viu como dizer aquelas palavras a Erin o tinha destroçado.

E, depois de ver aquela expressão, uma parte de Elizabeth também ficou destroçada, reconhecendo quanto Rhun ainda amava aquela mulher.

Então, Elizabeth deixou Rhun sair... daquela sala e do seu coração.

Existe outra pessoa que precisa mais de mim.


CAPÍTULO 36

19 de março, 10h04 CET
Roma, Itália

Tommy atravessou a rua escura a correr em direção à cúpula iluminada da Basílica de São Pedro. A praça em frente da basílica costumava estar cheia de turistas, a passear por ali e a abrir a boca de espanto com tudo o que viam, mas hoje encontrava-se vazia devido ao recolher obrigatório. Inúmeras patrulhas percorriam a cidade, uma mistura de homens armados e padres sanguinistas vestidos com roupa civil.

Mas estavam a perder esta noite.

Sirenes ecoavam por toda a cidade, intercaladas por gritos. Fogos ardiam por todo o lado, lançando fitas de fumo pelo ar, vindas de inúmeros pontos da cidade.

Tommy tropeçou no passeio e caiu com o joelho no chão. Foi levantando de imediato por um dos seus três guardas sanguinistas. Estavam a mudá-lo do seu apartamento junto ao rio para a Cidade do Vaticano.

Para tua proteção, tinham-lhe dito.

Tentara opor-se, receando que Elizabeth não soubesse para onde o levavam. Tentara telefonar-lhe depois do pôr do sol, cada vez mais assustado com o caos que se alastrava, mas as linhas estavam ocupadas, sobrecarregadas.

À frente, alguém montara barricadas à entrada da Praça de São Pedro. Tinham sido erguidas placas de metal, formando uma parede de três metros de altura. Atiradores furtivos encontravam-se dentro de jaulas à prova de bala em cima da parede. Holofotes gigantescos na base da barreira iluminavam as ruas circundantes.

A cidade estava a ser atacada.

Mas por quem?

Nesse dia, assistira ao noticiário da BBC, colado à televisão, e vira reportagens de atacantes noturnos por toda a Europa e pelo mundo fora. Os militares patrulhavam as cidades mais importantes, sobretudo depois de anoitecer. Roma não era a única cidade a submeter-se à lei marcial.

Tommy achava que os strigoi se tinham tornado mais fortes e estavam descontrolados.

Quando o seu pequeno grupo chegou à barricada e a atravessou, Tommy ficou boquiaberto com a quantidade de elementos da Guarda Suíça Pontifícia e sanguinistas de manto que se encontravam no seu interior, a postos nas paredes e nas varandas que rodeavam a praça. Mais homens armados entraram apressadamente atrás deles, antes de os portões serem fechados.

Parecia que a Igreja estava a fazer recuar a maioria dos seus soldados, protegendo-se, deixando todas as outras pessoas entregues a si mesmas.

Tommy foi conduzido pela praça, em direção à basílica. Até mesmo aquelas enormes portas tinham sido reforçadas com placas de metal novas.

— Ficarás a salvo na Basílica de São Pedro esta noite — disse um dos guardas, tentando confortá-lo.

Talvez...

A preocupação que sentia relativamente a Elizabeth ardia dentro dele. Ela estava lá fora. Algures. Quem sabe por que dificuldades estava a passar? Tommy queria-a, egoistamente, ao seu lado. Só nessa altura se sentiria verdadeiramente seguro. No entanto, sabia que havia algumas coisas de que nem Elizabeth o conseguia proteger.

Tossiu ruidosamente para a mão, curvando-se para a frente com a dor.

Olhou para a palma da mão.

Sangue.


SEXTA PARTE

Serpentes, raça de víboras! Como podereis fugir à condenação da Geena?

— MATEUS, 23: 33


CAPÍTULO 37

20 de março, 10h48 NPT
A sobrevoar os Himalaias, Nepal

Erin susteve a respiração à medida que o helicóptero subia para o cume escarpado da montanha coberta de neve. A parede de gelo à sua frente elevava-se a uma altura de seis mil metros, o limite máximo a que a aeronave conseguia voar. Quando alcançaram a crista, os rotores levantaram redemoinhos de neve, ao mesmo tempo que o vento açoitava o aparelho para a frente e para trás. O helicóptero parecia encurralado, balançando naquela aresta de gelo. Em seguida, o seu nariz afundou e deslizaram pela encosta para o lado mais remoto das montanhas.

Erin respirou fundo e rodou o pescoço para um lado e para o outro, tentando libertar a tensão.

— Aterragem aos dez — informou pelo rádio Christian, sentado no lugar do piloto, com uma voz irritantemente calma.

Tinham acabado de sobrevoar a última cordilheira — o Ganesh Himal — e agora desciam para um grande vale. Picos gigantescos e afiados rodeavam-nos por todos os lados, o que explicava por que razão este lugar se mantivera intocado pelo mundo moderno durante tanto tempo. Segundo o antigo mapa que Hugh de Payens lhes fornecera, devia correr um rio no centro do vale, porém, em baixo, Erin só conseguia ver um manto brilhante de uma brancura ininterrupta. Provavelmente, o rio gelara e estava coberto de neve nesta altura do ano. Talvez este vale fosse um lugar verdejante no verão, mas neste momento parecia uma inóspita terra de ninguém.

Definitivamente, não parece o Jardim do Éden.

Para obrigar a circulação a voltar às suas pernas, Erin bateu com força no chão com as suas pesadas botas de neve. Os crampons de aço para o gelo ressoaram contra o chão de metal. Apesar do aquecimento da cabina e da roupa de inverno, o frio destas montanhas gelavam-na até aos ossos.

Ou talvez fosse apenas o medo.

Lançou um olhar rápido aos outros, abrigados nas suas parcas brancas. Embora os sanguinistas de sangue frio não precisassem daquele equipamento isolador, o branco da cor da neve oferecia-lhes uma boa camuflagem no terreno invernoso. Até mesmo a cria de leão, com a sua incipiente juba e pelo brancos, parecia ter sido feita para aquela expedição.

Todos começaram a movimentar-se, preparando-se para o que estava para vir.

Erin esticou o pescoço pela janela e olhou para cima, na direção do Sol, que se destacava num céu azul luminoso, pontuado por algumas manchas de cirros. Faltava pouco mais de uma hora para o meio-dia.

Jordan viu-a olhar para o céu e aproximou-se dela, tocando-lhe no joelho.

— Que diabo, quem disse que o prazo-limite era o meio-dia? Pode ser que tenhamos mais tempo para fechar os portões do Inferno.

Erin virou-se para ele. O rosto de Jordan tinha apenas cicatrizes esbatidas do ataque recente, mas agora a sua pele pálida apresentava linhas sinuosas vermelhas que lhe cobriam metade da cara. Ele tinha a parca aberta, aparentemente indiferente ao frio. Erin calculou que, se tirasse as suas luvas de neve, poderia aquecer as mãos no calor que emanava dele.

Ela respirou fundo e desviou o olhar, incapaz de continuar a ver aquelas linhas, sabendo que elas indicavam quão pouca da humanidade de Jordan restava. Porém, uma parte dela sentia-se culpada, mesmo egoísta, com a sua reação ao estado de Jordan. Ele tinha regressado das portas da morte em França graças ao seu poder angelical e à sua obstinação humana. Quando chegasse a altura, ele teria de decidir qual dos caminhos iria trilhar. E ela teria de o deixar livre, por muito que receasse perdê-lo.

Para fugir dos pensamentos que a atormentavam, respondeu à pergunta dele.

— Só temos até ao meio-dia de hoje.

— Como é que tens tanta certeza? — perguntou Rhun do outro lado da cabina. O leão esticou-se no lugar ao lado dele, arqueando a coluna.

Elizabeth respondeu à sua pergunta antes que Erin o pudesse fazer.

— Olha para a Lua.

Todos se viraram para as várias janelas. Uma lua cheia pairava sobre a borda flamejante do Sol.

Jordan inclinou-se sobre Erin para ver.

— Bernard mencionou que hoje haveria um eclipse — murmurou ele. — Mas parcial, se bem me lembro.

— Um eclipse parcial em França — corrigiu-o Erin. — Aqui, tão a leste, será um eclipse total. Verifiquei durante o voo. O Sol ficará totalmente oculto nos Himalaias um minuto depois do meio-dia.

Ela lembrou-se do mural pintado na parede do laboratório de Edward Kelly. Aquele sol vermelho como o sangue sobre o lago negro podia ser a representação do artista de um eclipse total.

Sabendo isto, ela desejou que tivessem feito um tempo melhor para chegarem ali. Pilotado por Christian, o Citation X voara a toda a velocidade sobre a Europa e a Ásia. Durante a viagem, Bernard ia-os atualizando regularmente através do telemóvel via satélite sobre a situação em terra, sobre o aumento dos ataques que iam ocorrendo nas cidades sombrias que sobrevoavam. Os strigoi e os blasphemare tinham-se tornado mais ousados e fortes à medida que a maré do mal se espalhava, fazendo a balança pender para o seu lado. Porém, aqueles monstros eram apenas a faísca daquela tempestade de fogo. O pânico gerado fazia o resto, alimentando as chamas do caos a novas alturas.

Ao transporem a montanha, avistaram uma pequena aldeia aninhada na encosta. Sobre os telhados de ardósia pontiagudos, as chaminés lançavam espirais de fumo para o ar, pressupondo pessoas no interior que cozinhavam, riam, viviam. Lembraram a Erin a razão por que lutavam.

Um iaque solitário trotava ao longo de um trilho estreito. Uma figura vestida com cores vivas caminhava ao seu lado, com um gorro enterrado numa cabeça redonda. Tanto o homem de pele morena como o iaque pararam e ficaram a olhar para o helicóptero.

Erin encostou a palma da mão ao vidro, desejando aos dois uma vida longa e feliz.

À medida que a aldeia desaparecia atrás deles, a última coisa que viram dela foi um templo budista, com as suas cordas engalanadas com bandeiras de oração.

Porém, não era aquele o templo que eles procuravam.

Christian continuou em frente, dirigindo-se para o local marcado no mapa de Hugh.

— Não vejo nenhum lago, talvez esteja debaixo de toda essa neve. Vou ter de voar em círculos.

Quando ele subiu com o aparelho a uma maior altitude, Erin avistou à direita uma garganta com a forma de uma taça.

— Ali — indicou ela a Christian, inclinando-se para a frente e apontando.

Christian acenou com a cabeça.

— Já vi. Vamos verificar.

Ele inclinou a aeronave para aquela bacia, passando entre dois picos. No fundo daquele vale mais pequeno estendia-se uma extensão plana de neve, com cerca de metade do tamanho de um campo de futebol, mas a sua superfície não era contínua. Gelo negro refletia-se na sua direção, como fendas escuras no vidrado de um vaso branco.

— Tem de ser aqui — disse Erin.

— Só há uma maneira de saber. — Christian manobrou os comandos do helicóptero e baixou o aparelho até este pairar sobre a neve.

A deslocação de ar dos rotores levantou a fina camada de gelo, revelando uma extensão do lago gelado. A sua superfície era negra, como obsidiana, como o lago pintado no mural na Casa de Fausto. Mas ali não havia monstros a rastejarem.

Pelo menos, não agora.

Erin observou o céu, vendo que a Lua já tinha coberto uma parte do Sol.

— Achas que estamos no sítio certo? — perguntou Christian.

Sophia falou de uma das extremidades da cabina e apontou.

— Olha por cima dos penhascos deste lado.

Erin torceu-se no assento para ver melhor. Levou algum tempo para perceber o que tinha atraído a atenção da freira franzina. Mas então avistou aquilo também. Meio escondido pela sombra da superfície rochosa, duas árvores gigantescas abraçavam o penhasco. As duas tinham troncos de um cinzento pálido, sem folhas, com os ramos encrostados de gelo e cobertos de neve.

Sophia virou-se para eles.

— Hugh de Payens não mencionou que o vale daqueles monges strigoi tinha duas poderosas árvores a crescerem nele?

Possivelmente a Árvore do Conhecimento e a Árvore da Vida Eterna.

Erin sentiu uma onda de desapontamento ao vê-las. As duas pareciam árvores vulgares, certamente velhas, mas nada espetaculares. Ainda assim, correspondiam à descrição de Hugh.

— Põe-nos lá em baixo — disse Erin. — Este deve ser o lugar certo.

Christian obedeceu, avisando-os:

— Esperemos que o gelo seja suficientemente espesso para nos aguentar. É o único lugar onde posso aterrar.

Tinha razão. A toda a sua volta, as margens inclinavam-se abruptamente, erguendo-se e fundindo-se nas falésias rochosas. Christian baixou o aparelho com cuidado até que os patins tocaram suavemente no gelo. Só quando a superfície pareceu suportar o seu peso é que ele deixou a aeronave pousar por completo.

— Parece tudo bem — disse ele, e desligou os motores do aparelho.

Erin tirou os auscultadores e esperou enquanto os sanguinistas, incluindo Elizabeth, saíam primeiro, atentos a quaisquer perigos. Assim que as portas se abriram, o ar gelado irrompeu pelo interior da cabina, varrendo-a, como se tentasse sugá-la para fora. Ela estremeceu na sua parca, mas não do frio. Todos os pelos do seu corpo de repente se puseram de pé.

Os sanguinistas reagiram ainda mais intensamente: Christian caiu sob um joelho no gelo, Sophia arquejou suficientemente alto para Erin a ouvir sobre o assobio agudo do vento, Rhun apertou a cruz escondida sob o seu casaco, vacilando como um ébrio ao dar alguns poucos passos. Elizabeth agarrou-o pelo cotovelo e amparou-o, franzindo a testa para os outros.

Erin lembrou-se de ter visto os sanguinistas reagirem exatamente daquela maneira na Casa de Fausto. A iniquidade aqui era muito mais forte.

Até eu a senti, pensou ela, tremendo de ansiedade.

Ao lado dela, Jordan levantou os ombros contra os ouvidos e inclinou a cabeça, fazendo uma careta.

— Este barulho... como unhas a arranharem um quadro de ardósia. Não, como garras de aço a rasparem o quadro de ardósia. Meu Deus...

Ele parecia nauseado.

Erin não ouvia o que ele ouvia, apenas ele ouvira o canto vindo das pedras. A sua audição estava claramente sintonizada numa frequência inteiramente diferente da dela.

Ela saiu da aeronave para se juntar aos outros, e Jordan saltou atrás dela. Quando os crampons de aço de Erin tocaram o gelo, as suas pernas ficaram frias, como se o calor do seu corpo tivesse sido sugado.

Atrás de Jordan, o gato pulou em liberdade, saltando como que para evitar o gelo, porém a margem estava muito longe. A cria aterrou sobre as garras cor de prata, depois dirigiu-se a Rhun, erguendo cada pata cuidadosamente antes de a pousar de novo no chão, como se estivesse a tentar não tocar aquela superfície negra.

— Há qualquer coisa de errado aqui — sussurrou ela.

— Um mal poderoso habita este lago — concordou Rhun. — Vamos despachar-nos a sair daqui.

Apesar do desejo de correrem para a margem, caminharam com cautela sobre o gelo escorregadio, receosos de perturbar o que se encontrava lá em baixo. Rhun conduziu-os para a margem mais próxima das árvores.

Erin suspirou quando finalmente os seus pés saíram do gelo para a rocha. Sentiu-se imediatamente mais leve, como se tivesse tirado a mochila dos seus ombros.

Rhun juntou-se a ela, agora com as costas direitas. Os sanguinistas pareciam ganhar uma nova vida à medida que saíam do lago, como flores a abrir sob o sol.

— Ainda o sinto — disse Sophia. — Flutua vindo do lago e enche o vale.

Rhun anuiu.

Christian limpou a testa com uma luva e olhou com ansiedade para o helicóptero.

— Quem me dera ter aterrado mais perto da margem. Não me apetece nada fazer a caminhada de volta ao helicóptero.

Esperemos que tenhamos a oportunidade de voltar.

Erin olhou para o céu, para o brilho ofuscante do Sol à medida que a Lua continuava a avançar sobre a sua superfície. Baixou o olhar para a encosta escarpada que subia na direção das árvores maciças. Apenas naquele momento é que reparou que as rochas se encontravam engenhosamente colocadas, enquadrando um trilho coberto de neve que se perdia na direção das falésias.

— Há um trilho — disse ela, e começou a dirigir-se para ele.

Jordan parou-a.

— Fica ao meu lado.

Ela olhou-o, feliz por ver a natureza protetora dele revelar-se de novo. Deu-lhe a mão, desejando que não tivessem de usar luvas.

Com o leão ao seu lado, Rhun tomou a dianteira. Lentamente, subiram por entre as rochas, atentos ao gelo. Na curva final junto ao topo, Rhun parou de repente e o leão rosnou baixinho.

— Não estamos sozinhos — murmurou Rhun.

11h12

Rhun quase não os viu.

Três homens estavam ajoelhados entre as grandes raízes das árvores, tão silenciosos e imóveis que podiam ser tomados por estátuas. A neve caíra sobre os seus ombros e cabeças calvas, criando solidéus polvorentos. Rhun não ouviu qualquer batimento cardíaco vindo deles, mas sabia que estavam vivos.

Olhos cravaram-se nele, brilhando das sombras sob as árvores desprovidas de folhas.

Sabendo que tinham sido vistos, os homens levantaram-se em simultâneo, suavemente, com a neve a deslizar pelos seus corpos vestidos de branco. Avançaram para a luz do Sol para saudarem Rhun e os outros, com as mãos pálidas cruzadas à altura da cintura.

Rhun sabia que eles eram strigoi, porém, caminhavam sob o sol tão facilmente como qualquer sanguinista. Como Hugh de Payens afirmara, aqueles monges tinham encontrado outra maneira de conviver com o dia.

Rhun avançou e fez uma vénia. Manteve as mãos à vista para que eles pudessem ver que não tinha armas.

— Fomos enviados por Hugh de Payens — disse ele. — Trazemos a sua bênção.

O monge da frente tinha um rosto redondo e olhos escuros e gentis.

— Trouxeste as pedras que o nosso amigo tinha à sua guarda?

— Nós temo-las — admitiu Rhun.

Erin tirou a mochila do ombro e abriu-a, claramente disposta a entregar a sua pedra, mas Rhun aconselhou-a a não se precipitar. Hugh dissera que podiam confiar nos monges, porém o mal palpável que subia do lago tornava-o cauteloso.

Até mesmo o leão se mantinha junto das suas pernas, nitidamente nervoso com a atmosfera do vale.

Os três monges inclinaram-se em simultâneo, como que ouvindo um sino silencioso.

— Então sejam bem-vindos — disse o monge da frente ao mesmo tempo que se endireitava com um sorriso beatífico no rosto. — O meu nome é Xao. Por favor, entrem no nosso templo e deixem-nos juntar as vossas pedras à sua irmã azul. O tempo, como sabem, escasseia.

Os monges viraram-se e conduziram-nos em direção às árvores. Mais perto agora, Rhun reparou que as duas árvores eram praticamente idênticas, com grossos troncos cinzentos e casca lisa. As árvores estavam de tal maneira próximas que os ramos mais altos cresciam entrelaçados, formando uma arcada natural no cimo. Os troncos retorcidos estremeciam sob o vento frio que soprava das montanhas, mas pareciam firmemente enraizados.

À volta deles, o terreno fora varrido. As cerdas da vassoura tinham deixado um padrão circular na camada fina da neve que ainda restava. A disposição deliberada das linhas lembrava os desenhos feitos na areia de um jardim zen, porém, os desenhos em si — arabescos e arcos — lembraram a Rhun a tatuagem de Jordan no peito e no pescoço.

Os monges pararam junto da parede rochosa centrada atrás das árvores. Entoaram um cântico em uníssono numa língua que Rhun não reconheceu, mas Erin sussurrou atrás dele, com a voz cheia de admiração.

— Acho que estão a falar sânscrito...

Xao tirou uma pequena escultura prateada de uma rosa de um bolso. Fechou a mão com força à volta do caule, cravando os seus espinhos na sua carne. Em seguida, deixou correr o sangue em cima da rocha que se projetava do penhasco e ouviu-se um forte raspar de pedra.

— É como um portal sanguinista — murmurou Christian.

Ou o precursor de um, pensou Rhun.

À medida que a pedra gemia e estalava, uma pequena porta redonda surgiu e rolou para o lado. A neve rangeu sob o seu peso.

Os monges entraram, claramente à espera de que eles os seguissem. A porta era tão baixa que tiveram de se curvar para entrarem. Provavelmente, fora concebida para ser assim, a fim de imbuir de humildade aqueles que entrassem.

Rhun e o leão passaram primeiro, seguidos pelos outros.

Uma vez no interior, Rhun endireitou-se e deu por si face a uma extensão cavernosa, iluminada pelo brilho de mil velas e dezenas de braseiros fumegantes que enchiam o ar de incenso. Percebeu de imediato que não era uma caverna natural, mas um espaço enorme escavado na rocha circundante, esculpido à mão numa obra-prima. Devia ter demorado séculos a ser feito.

Erin arquejou perante aquela visão ao entrar com Jordan e os outros.

Era como se uma pequena aldeia tivesse sido esculpida na pedra, com os alicerces ainda ligados ao solo rochoso, como se os edifícios tivessem nascido da caverna. Havia centenas de estátuas, com as suas bases também fundidas na pedra, que retratavam aldeões vulgares nas suas tarefas do dia a dia, incluindo um iaque em tamanho natural a puxar uma carroça e rebanhos de cabras e ovelhas a pastarem em manchas de erva de pedra.

— É como se tivessem pegado na aldeia por que passámos e a tivessem transformado em pedra.

Os monges ignoraram as suas reações de admiração e conduziram-nos para o centro da aldeia, onde estava sentado um Buda maciço, com pelo menos nove metros de altura. Os seus olhos de pedra estavam fechados numa meditação tranquila. O seu rosto não era estilizado e parecia representar um homem real, com olhos afastados, um nariz forte e direito, sobrancelhas delicadamente arqueadas e o vestígio de um sorriso nos lábios cheios. As suas feições eram perfeitas; dava a ideia de que podia abrir os olhos a qualquer momento.

Rhun sentiu paz, ordem e tranquilidade emanarem daquela escultura — um bem-vindo contraste ao mal que pairava lá fora.

Como um só, os monges deram as mãos e curvaram-se perante a estátua, depois conduziram-nos por trás do Buda a um grande templo. A sua torre em forma de sino elevava-se graciosamente quase até ao teto. Cordas saíam dela, com bandeiras penduradas, todas feitas de pedra, esculpidas para parecerem ondear sob um vento que há muito não soprava.

Mais próximas, duas estátuas guardavam a porta do templo. No lado direito, um dragão estilizado estava enrolado sobre um pilar; com a boca ligeiramente entreaberta, revelando dentes que pareciam suficientemente afiados para cortar. À esquerda, uma criatura peluda estava de pé, apoiada nas patas traseiras, com os seus poderosos membros dianteiros erguidos, expondo fortes garras. Parecia um cruzamento entre um macaco e um urso. Rhun nunca tinha visto nada assim.

A cria cheirou o dragão, com o pelo ligeiramente eriçado, como se esperasse que a besta alada pudesse regressar à vida a qualquer momento.

Jordan deslizou os dedos sobre as características monstruosas da outra criatura.

— Parece uma espécie de abominável homem da neve.

— Não — disse Erin aproximando-se. — Penso... penso que é um yeti. Uma criatura que supostamente assombra os Himalaias.

Ela olhou para Xao em busca de confirmação.

O rosto deste permaneceu inescrutável.

— É uma representação de uma criatura, uma das várias que saem do lago. Bestas com vários aspetos que periodicamente rastejam para o nosso mundo vindas daquele lugar sombrio. Umas estão nuas e rapidamente sucumbem ao frio. Outras, como esta, deambulam pelas montanhas durante anos antes que as possamos levar de volta, inspirando lendas à volta das fogueiras.

— O que quer dizer com levar de volta? — indagou Jordan.

— Capturamos as que escapam e levamo-las de volta ao lago. Tentamos com isso que não lhes façam mal nem elas façam mal a alguém, embora falhemos demasiadas vezes.

— Mas não são demónios? — perguntou Sophia.

— A nossa filosofia não nos permite condenar tais criaturas pela sua natureza — respondeu Xao benevolentemente, assemelhando-se muito a Hugh de Payens. — Estamos aqui para proteger todos. — Xao virou-se e acenou para as portas abertas do templo. — Mas continuemos. Temos tarefas importantes pela frente.

Rhun não discutiu. Com o seu instinto de sanguinista, sentiu o desaparecimento do Sol lá fora, o seu brilho a ser lentamente consumido pela sombra da Lua.

Estavam quase sem tempo.


CAPÍTULO 38

20 de março, 11h22 NPT
Vale Tsum, Nepal

Elizabeth foi atrás dos outros para o templo, seguindo-os como uma vulgar plebeia. Detestava ser relegada para trás, porém, isso também lhe permitia ter tempo para estudar tudo, livre do olhar de Rhun e dos outros. Hugh de Payens mostrara-lhe outra maneira de viver, outra maneira de equilibrar a luz e a escuridão, a noite e o dia. Estes monges claramente tinham adotado esse mesmo caminho.

Posso ensinar o mesmo a Tommy.

Por isso, de momento, dava tempo ao tempo, esperando aprender tanto quanto pudesse antes de fugir e voltar para junto de Tommy, a fim de salvar o rapaz de uma morte que ele não merecia.

Ao entrar no coração do templo, o cheiro floral do jasmim flutuou sobre a ampla sala. Sob os pés, o chão de pedra fora talhado para parecer ser feito de tábuas de madeira, uma tarefa que devia ter levado anos de devoção. Um Buda sereno esperava no canto mais afastado da comprida sala. Ao contrário da estátua no exterior, esta tinha sido esculpida com os olhos abertos.

Ela interrogou-se sobre a razão de ser da imensidão daquele templo, uma vez que só lá viviam três monges. Tentou escutar outros, mas não ouviu o mínimo arrastar de sandálias sobre a pedra, nenhum roçar de tecido sobre a pele, qualquer ruído de contas de oração. Parecia que só restavam aquelas três sentinelas do vale.

Os monges conduziram-nos a uma grande mesa carmesim com uma bandeja de prata em cima. A mesa estava colocada em frente do Buda. Dentro da bandeja, areia e sais numa grande diversidade de tons e cores tinham sido combinadas com arte para criar um quadro de areia. Era uma réplica perfeita do vale invernoso lá fora: areia branca para a neve, sal negro para o lago. Duas árvores cinzentas encontravam-se numa das margens, com cada ramo retorcido perfeitamente replicado.

O jovem leão farejou a bandeja, até Rhun fazer um gesto para o curioso animal recuar.

Os três monges deslocaram-se então à volta da mesa e levaram Erin, Jordan e Rhun pela mão para cantos diferentes da bandeja. Cada um ficou num canto, enquanto as árvores ficaram no quarto.

Xao apontou, rodando o pulso, com um dedo a pairar sobre uma figura minúscula desenhada na areia do mesmo lado do lago em que Erin se encontrava. O monge colocou um pequeno rubi em frente dessa figura.

— O Sol ergue-se a leste — entoou ele.

Outro monge passou junto do ombro de Rhun e, com um minúsculo conta-gotas de prata, depositou uma pérola perfeita de água na areia em frente de uma figura desse lado.

— A Lua põe-se a oeste — disse Xao.

O último monge inclinou-se ao lado de Jordan e soprou muito suavemente uma semente verde da palma da sua mão. Esta flutuou e aterrou em frente de uma figura pintada ali.

— O jardim recolhe a luz do sul — continuou Xao. O monge então dirigiu-se ao último canto e apontou para o par de árvores pintadas na areia. — Enquanto as raízes eternas se ancoram no norte.

— O que quer isso dizer? — indagou Jordan, olhando para a figura à sua frente.

— É assim que abrimos o portal, não é? — perguntou Erin.

Xao fez um muito ligeiro aceno com a cabeça, confirmando.

— As pedras devem ser colocadas em cima de pilares, cada um deles situado no ponto cardeal certo. Quando o Sol atingir o zénite e a sua luz incidir sobre as pedras, as gemas refletirão o seu brilho, lançando-o sobre o lago. Assim que cada raio se juntar aos outros, nascerá uma nova luz, uma luz do branco mais puro.

Erin parecia um tanto ou quanto cética.

— Então está a dizer que as três cores de luz refletida... vermelho, azul e verde... se unirão para produzir uma luz branca.

Jordan endireitou-se.

— Faz sentido. É como nos ecrãs de televisão antigos. Fabricados com emissores VVA. Vermelho, verde, azul. Todas as outras cores podem ser obtidas com essas três.

Xao forneceu uma explicação mais refinada.

— A escuridão é a ausência de luz, ao passo que dentro da luz branca se esconde um arco-íris.

— Todo o espectro da luz — concordou Jordan com um aceno de cabeça.

— Então o que é que acontece? — perguntou Elizabeth, não compreendendo inteiramente a explicação, mas aceitando-a por ora.

Xao explicou.

— A luz pura irá penetrar a eterna escuridão que amortalha o lago. E da mesma forma que uma agulha quente lanceta um furúnculo, o mal em baixo subirá à superfície. Mas não receiem, a pirâmide de luz criada pelas três gemas conterá as criaturas nascidas dessa malevolência, impedindo-as de entrar no nosso mundo.

Elizabeth começou a perceber.

— Como uma jaula com grades de luz.

— Exatamente — anuiu Xao. — Porém, devemos ter muito cuidado. Se as pedras forem deslocadas enquanto o portal ainda estiver aberto, as grades de luz quebrar-se-ão e o mal será libertado neste mundo.

— Parece que já fez isto antes — disse Jordan.

— Foi assim que fez com que as criaturas que escaparam no passado regressassem ao lago? — perguntou Erin. — Como o yeti?

Uma expressão pesarosa ensombrou o rosto de Xao.

— É a única maneira de as fazer regressar às suas terras de trevas, de fazer regressar o equilíbrio a este mundo.

Um dos outros monges tocou ao de leve na túnica de Xao, como que instando-o a apressar-se. Para estas almas tranquilas, aquele simples gesto equivalia a um abanão violento.

Xao anuiu.

— E agora enfrentamos um perigo ainda maior. A escuridão tem-se tornado mais forte nestes últimos meses. O rei negro que governa lá em baixo, aquele a quem vocês chamam Lúcifer, soltou os seus grilhões o suficiente para quebrar a superfície do lago. Temos de abrir o portal e reparar as correntes quebradas antes que ele consiga libertar-se completamente.

— E como é que fazemos isso? — perguntou Erin.

— Temos de o atrair para o portal, seduzido por aquilo a que ele não consegue resistir. — Xao olhou para os três. — Os herdeiros deste mundo: o Guerreiro, a Mulher e o Cavaleiro que dominaram o próprio sangue negro do rei.

Erin estava horrorizada.

Jordan abanou ligeiramente a cabeça.

— De modo que, por outras palavras, nós somos o isco.

Até Rhun parecia abalado, ainda a olhar fixamente para a bandeja, como se procurasse respostas naqueles arabescos de areia.

— E quando Lúcifer for atraído, o que é que temos de fazer? Como é que o acorrentamos de novo?

— Preparámo-nos para este dia. Há milénios. Este templo abençoado foi escavado na orla do vale para guardar não só as três gemas, mas também para proteger e manter sagrado um grande tesouro, esculpido por um único par de mãos. Apenas o Iluminado podia criar semelhante perfeição.

Xao virou-se e curvou-se diante da estátua.

— O Buda — disse Erin com a voz cheia de admiração.

Os três monges dirigiram-se à estátua, e Xao abriu uma porta na barriga do Buda, uma abertura tão impercetível que nem mesmo Elizabeth reparara nela. Do seu interior oco, dois dos monges retiraram uma grande arca de madeira branca polida, com flores de lótus pintadas nos lados.

Pela tensão no rosto dos monges, era extremamente pesada. Ainda assim, eles mantiveram-na suspensa, como se receassem que a arca tocasse no chão. Xao abriu-a — e uma onda de santidade inundou a sala.

Os sanguinistas arquejaram. Rhun inclinou-se para a arca, atraído para aquela fonte abençoada. Elizabeth recuou, querendo fugir dela, com a santidade da arca a expor os lugares escuros dentro dela.

Até mesmo o leão se inclinou perante a arca aberta, afundando-se sobre a barriga.

Jordan e Erin aproximaram-se para ver o tesouro.

— Correntes — exclamou Jordan. — Correntes de prata.

As palavras não faziam justiça à sua beleza. As correntes eram de prata pura, ardente de santidade. Cada elo era perfeito, esculpido e gravado para mostrar cada folha e criatura que vivia sob o sol. Era o mundo natural desenhado em prata.

— E podemos voltar a acorrentar Lúcifer com estas correntes? — perguntou Erin.

Xao olhou para ela e, em seguida, para Jordan.

— Vocês os dois, não. Apenas criaturas como nós, como os vossos companheiros, podem levar este tesouro através dos níveis desta pirâmide de luz. Atravessar essa barreira seria morte certa para aqueles cujo coração ainda bate. Só os amaldiçoados podem passar incólumes, aqueles que equilibraram a luz e a escuridão dentro deles.

Xao inclinou-se perante os outros monges, depois perante os sanguinistas.

Christian avançou.

— Deixe-me ir. Rhun deve proteger o seu pilar da pirâmide. Mas eu posso entrar na pirâmide e trazer as correntes para prender Lúcifer.

— Mas não sozinho — exclamou Sophia. — Vou contigo.

Pela tensão dos ombros dos dois monges que seguravam a arca, seriam necessários dois sanguinistas para aguentar aquele peso. Possivelmente, três. Mas Elizabeth manteve-se calada. Ela não iria a não ser que lho ordenassem, e talvez nem mesmo assim.

Xao avançou e, num gesto de humildade, pôs um joelho em terra e beijou as mãos de Christian e Sophia.

— A nossa bênção irá convosco. A jornada pela escuridão dentro daquela pirâmide de luz não será fácil.

Erin murmurou baixinho.

— O quê? — perguntou Jordan.

A arqueóloga virou-se de costas para os monges e estendeu a mão a Jordan.

— Deixa-me ver a tua pedra verde.

Jordan tirou do bolso as duas metades e entregou-lhas. Enquanto os sanguinistas continuavam extasiados com a arca e com o que ela continha, Elizabeth aproximou-se de Erin. Esta juntou as duas metades e rodou a gema para expor o desenho gravado no seu interior. Porém, desta vez, inverteu a imagem, pondo o símbolo com a forma de cálice ao contrário.

— Poderá este símbolo ser uma representação da pirâmide de luz? — perguntou Erin.

Erin virou-se para Xao em busca de confirmação. Nas suas mãos, a pedra escorregou, separando-se nas duas metades.

O monge olhou para baixo e, pela primeira vez, teve uma forte reação, as suas feições plácidas franziram-se num ricto de horror e desânimo.

— Não, não pode ser. — O seu rosto endureceu de fúria, avançando ameaçadoramente para Erin. — O que é que fizeste?

Erin recuou e Rhun correu a meter-se entre ela e o monge.

— Ela não fez nada — disse Rhun com um tom ameaçador.

Xao abanou a cabeça.

— A pedra do Jardim está partida. Nesse estado, não pode abrir o portal. — O monge olhava-os atónito, de olhar perdido. — Com esta chave partida, não há futuro. O mundo acaba hoje.

11h34

Erin ficou a olhar para as duas metades da gema nas suas mãos, esmagada pelo desespero que crescia dentro dela. Estava a sua demanda condenada desde o início? Recusava-se a aceitar isso, não depois de todo o sangue e sacrifício para chegar àquele vale.

— Deve haver alguma maneira de reparar isto — disse ela.

Jordan pegou nos bocados da pedra.

— Deixei o tubo de supercola no bolso das minhas outras calças.

— Não compreendes — exclamou Xao. — A pedra não está simplesmente partida, está corrompida. Posso sentir os farrapos de escuridão que ainda ensombram o seu coração.

Erin visualizou a campânula de John Dee e as centenas de strigoi reduzidos a cinzas lá dentro, tudo para que a sua negra essência fosse reunida dentro da gema sagrada.

— Não pode ser purificada? — perguntou Erin. — Batizada?

O ritual sagrado do batismo podia lavar o pecado original da alma. Não seria possível que as gemas pudessem igualmente ser purificadas?

— Apenas o bem pode vencer o mal — respondeu Xao. — Apenas a luz pode expulsar a escuridão. Para purificar tal corrupção, seriam necessários o maior bem e a luz mais brilhante.

O monge virou-se para conferenciar com os seus irmãos. Sussurraram em sânscrito andando de um lado para o outro. Erin desejou poder entendê-los, mas sentia que a resposta não viria daqueles três.

Eu sou a Mulher Sábia.

Olhou para o reflexo dos fragmentos da esmeralda nas mãos de Jordan — e depois para o quadro de areia. Estudou as três figuras, cada uma delas com a representação de Arbor, Aqua e Sanguis em frente delas, e lembrou-se de uma coisa que Hugh dissera.

Tens de decifrar o enigma para reaveres a pedra que te pertence.

Ela voltou a sua atenção para Jordan, reparando no modo como a luz salpicava as suas feições. As manchas de luz de um verde cintilante pareciam-se com folhas minúsculas a brotarem das linhas vermelho-escuras do seu rosto. Era como se a pedra fosse na realidade uma semente que germinara no interior de Jordan.

Ela falou em voz alta.

— Estas pedras... estão ligadas a nós individualmente?

Xao virou-se para ela.

— Assim é dito nos provérbios do Iluminado. A Filha de Eva será unida à pedra vermelha pelo seu sangue. O Filho de Adão será enraizado na pedra verde pela sua ligação à terra. E o Imortal será unido à pedra azul porque controlou a sua natureza para poder andar sob o céu azul.

Erin desejou ter tempo para ler todos aqueles antigos provérbios, mas concentrou-se no problema atual.

— Se a pedra do Filho de Adão está partida, então talvez o Filho de Adão possa repará-la — continuou ela. Olhou fixamente para o leão cor de neve e para Jordan, consciente do elo comum que os dois partilhavam. — O sangue de Jordan contém a essência dos anjos, seres de luz e retidão. Talvez essa pureza possa retirar a escuridão da pedra.

— E se esse sangue pode curar Jordan — acrescentou Rhun —, talvez tenha o poder de curar a pedra.

Jordan encolheu os ombros.

— E se tudo isso falhar, posso sempre limitar-me a segurar as duas metades juntas com as mãos nuas.

Erin sabia que aquelas palavras eram ditas só meio a brincar.

— Que outra alternativa temos? — perguntou.

— Erin tem razão — concordou Christian em voz alta, olhando de relance para o teto, provavelmente sentindo o Sol. — Mas o que quer que façamos, é melhor apressarmo-nos.

— Então vamos ver o que é que o meu sangue consegue fazer. — Jordan tirou um punhal da bota. — Não é provável que a pedra fique pior do que já está.

Ele levou a lâmina à altura do pulso.

— Não, aqui não! — gritou Xao. — É proibido derramar sangue no templo sagrado.

— Então, onde? — perguntou Jordan, esperando com a ponta do punhal encostada à pele.

Erin sabia que não tinham tempo para uma segunda oportunidade. Apontou para o quadro de areia.

— Teremos de tentar logo que estejamos todos nas posições certas. — Dirigiu-se a Xao. — Onde está a terceira pedra? A gema azul?

A que é destinada a Rhun.

Xao fez um sinal com a cabeça a um dos seus irmãos, que voltou à barriga do Buda e retirou outra caixa, também branca, mas pintada com um céu cheio de nuvens. Era suficientemente leve e pequena para ser transportada nas mãos do monge, que a levou a Rhun e lha entregou.

Rhun começou a abri-la, mas Erin deteve-o.

— Não abras — avisou-a ela, lembrando-se do efeito que a pedra Sanguis tivera em Jordan anteriormente na igreja de Hugh. Não queria que aquela gema sagrada fizesse Jordan desmaiar como antes.

Apontou na direção do portal aberto.

— Xao, leve-nos para onde devemos ir.


CAPÍTULO 39

20 de março, 11h44 NPT
Vale Tsum, Nepal

Rhun apressou-se a sair do templo com os outros, de volta à aldeia de pedra. O seu relógio interno sentia a aproximação do meio-dia, ao mesmo tempo que a santidade no seu sangue reagia à passagem da Lua sobre o Sol. À medida que a escuridão se aproximava, a sua força desaparecia gradualmente a cada segundo que passava, como a areia que se escoa pelo gargalo da ampulheta.

À frente, para lá do portal aberto, a claridade do dia reduzira-se a um crepúsculo turvo à medida que a sombra da Lua avançava sobre as montanhas. Correram para a frente e curvaram-se pela passagem de volta ao vale invernoso, onde o mal era ainda mais palpável.

Endireitando-se, Rhun olhou para o céu, constatando que só restava um fino crescente de sol. O brilho intenso queimou-lhe os olhos, enchendo-o de certezas.

Não temos tempo.

Sob o arco das duas árvores maciças, o grupo dividiu-se rapidamente. Um monge conduziu cada um dos membros do trio. Rhun afastou-se com o monge mais alto, que o apressou num ritmo rápido ao longo da base dos penhascos gelados em direção à margem ocidental do lago negro. Xao levou Erin pela mão e o outro monge foi com Jordan. Ambos se dirigiram para a outra direção, para as suas respetivas posições na margem oriental e na margem sul.

Entre eles, Sophia e Christian esforçavam-se sob o peso da arca e das suas correntes sagradas de prata e deslocavam-se para baixo, mantendo-se sob a sombra das árvores na extremidade norte.

Os restantes dois membros do grupo seguiram nos calcanhares de Rhun. Um não o surpreendeu. O jovem leão caminhava sobre a neve atrás dele, rosnando suavemente, de cabeça baixa devido ao mal que emanava do lago. Claramente, aquele vale atormentava os sentidos da cria do mesmo modo que os de Rhun.

O seu último companheiro surpreendeu-o. Elizabeth caminhava a passos largos atrás dele com as costas direitas e o olhar cravado no lago. Ao contrário de Rhun e do leão, ele detetou um desejo ardente no rosto dela, como se quisesse correr para aquele lago e deslizar sobre a sua superfície.

Porque é que ela parece tão pouco incomodada pelo mal que se faz sentir aqui?

Ela reparou na atenção dele, lendo a pergunta no seu rosto, mas não a interpretando corretamente.

— Não te vou deixar fazer isto sem que haja alguém a proteger a tua retaguarda. Especialmente com um braço em falta.

Ele dirigiu-lhe um sorriso agradecido.

Ela franziu a testa.

— Cuidado com onde pões os pés, Rhun, ou tu e a tua pedra ainda acabam por rebolar por aqui abaixo.

Ele virou-se para a frente seguindo o monge por um trilho estreito até um marco alto que se erguia na margem. Era um pilar de granito cinzento, coberto de gelo, que subia à altura do seu tronco.

O monge limpou o gelo da coroa do pilar com dedos reverentes, revelando a escultura de uma pequena taça, idêntica ao cálice representado nos mosaicos de Veneza. Como as estruturas do templo budista, a base do cálice de pedra fundia-se na rocha, fazendo da taça e do pilar uma única peça.

Rhun calculou que, se limpasse a neve da base do pilar, também ele seria uma parte desta montanha.

O monge colocou-se ao lado de Rhun, tirou a caixa da sua única mão, depois virou-a de modo que o trinco ficasse de frente para Rhun.

— A pedra do Céu é para ti — entoou o monge, inclinando-se ligeiramente. — Deves colocar a gema sagrada no seu lugar ao mesmo tempo que os outros.

O monge acenou com a cabeça na direção do cálice.

Rhun percebeu.

Devo depositar a pedra Aqua no seu recetáculo.

Rhun estendeu a mão para a caixa, soltou o trinco com o polegar e abriu-a. Pelo instante de uma respiração, esperou não encontrar nada, algum ato final de traição dos monges. Porém, repousando num leito de seda, estava uma gema perfeita. Cintilava com o brilho de um céu azul puro, como se um dia perfeito tivesse sido capturado naquela pedra, preservado para a eternidade.

Um pequeno suspiro de reverência escapou dos seus lábios.

O leão aproximou-se, pousando a sua pata no joelho de Rhun para erguer o focinho mais alto, de modo a ver a pedra. Elizabeth limitou-se a cruzar os braços.

Rhun afastou o leão da sua perna e fechou os dedos à volta da gema, sentindo-se profundamente indigno.

Como é que tal beleza pode ser-me destinada?

No entanto, ele sabia qual era o seu dever e agarrou na pedra, sentindo a santidade aquecer-lhe os dedos e o pulso, e subir pelo seu braço. À medida que o calor lhe impregnava o peito, quase esperava que o seu coração voltasse a bater. Quando não o fez, virou-se de frente para o pilar e o cálice esculpido nele.

Por cima do lago, Rhun viu que os outros já se encontravam nas suas posições. Xao estava inclinado sobre o ouvido de Erin, sussurrando, provavelmente transmitindo-lhe as mesmas instruções.

Erin olhou para cima na sua direção. Embora estivesse a cerca de cinquenta metros, ele podia ver o medo no seu rosto. Ele sabia qual era a causa da sua ansiedade e virou-se para lá também. O trio necessitava de agir em simultâneo, mas faltava levar a cabo uma última tarefa.

Rhun olhou para Jordan.

Poderia o sangue do homem purificar e reparar a gema partida?

11h52

Jordan pressionou a ponta fria do punhal contra a pele do pulso.

É melhor que isto resulte.

Um rápido olhar para cima revelou o que restava do Sol: uma lâmina de fogo carmesim na orla da sombra negra da Lua. O seu brilho feriu-lhe os olhos, deixando a sua visão encandeada quando voltou a olhar para a lâmina encostada ao seu pulso. Agora, o vale estava velado sob o cone de sombra da Lua, que coloria a neve com um suave tom avermelhado e tornava o gelo do lago ainda mais negro, recordando-lhe as gotas de sangue de Lúcifer.

O lago parece um buraco neste mundo.

O seu sangue gelou com essa visão, sentindo a sua erroneidade.

Sabendo o que devia fazer, pressionou com força a ponta do punhal na carne e arrastou a lâmina sobre o pulso. Uma espessa linha de sangue brotou. Embainhou o punhal e pegou nos fragmentos da pedra verde, entregando um deles ao monge que estava ao seu lado. Jordan agarrou na outra metade e segurou-a sob o seu pulso, recolhendo a primeira gota de sangue no centro oco da gema.

Preparou-se para alguma reação dramática, mas, quando nada aconteceu, continuou a encher a cavidade da pedra. Quando o seu sangue começou a transbordar pela beira da gema, trocou a metade cheia pela vazia e repetiu o mesmo procedimento.

Mais uma vez, não houve qualquer clarão de luz ofuscante, nenhum crescendo de som.

Jordan olhou para o monge em busca de ajuda, mas ele parecia igualmente perdido — e assustado.

Só há uma coisa a fazer...

Pondo de lado as suas preocupações, Jordan agarrou nas duas metades. Com o seu sangue a escorrer sobre as facetas da pedra, ajustou os dois fragmentos.

Vá lá...

Por um momento, não aconteceu nada — então a pedra começou a aquecer entre as suas mãos, ficando cada vez mais quente, de modo semelhante ao calor febril do seu corpo a curar-se. Jordan rezou para que isso fosse um bom sinal. Em breve, o fogo interior queimou-o, como se estivesse a segurar carvão incandescente. Porém, Jordan continuou a segurá-la firmemente, fazendo uma careta de dor.

Viu novas linhas vermelho-escuras aparecerem ao longo das costas das suas mãos, queimando espirais através da pele, entrelaçando-se nos dedos. Quase esperou que as suas mãos se fundissem sobre a pedra, tornando-se um invólucro para a semente ardente que segurava.

Quando pensou que já não podia aguentar mais tempo, o fogo amainou, sendo substituído por um cântico que ecoava através dele, atraindo-o, enraizando-o de uma nova maneira à pedra. Aquele débil eco que anteriormente ouvira vindo da pedra cresceu transformando-se num grande coro.

Cantava os dias de verão quentes, o cheiro do feno no celeiro, o som do vento a soprar sobre os campos de milho. Tocava com o zumbido das abelhas ao final da tarde, o suave grasnar dos gansos em migração ao sabor das mudanças de estação, as notas graves de uma baleia em busca de uma companheira.

Jordan inclinou a cabeça, ouvindo uma nova canção fundir-se com a melodia das gemas. Uma fita vermelha e quente de esperança e vida flutuou e dançou naquela canção, as novas notas pareciam batimentos do coração, riso e o suave relinchar de um cavalo saudando alguém que ama.

Então uma terceira voz juntou-se ao coro, tão azul como a mais brilhante plumagem de um gaio sob a luz do dia. Este refrão soou mais profundamente no meio do coro: fluindo com o estrondo de uma queda de água, o suave tamborilar da chuva na terra seca e o suspiro da maré ao subir e ao descer, um movimento tão eterno como a Terra.

As três canções entrelaçavam-se num grande cântico da vida, um cântico que revelava em cada nota e refrão a beleza e o milagre deste mundo, da sua infindável harmonia e variedade, como cada peça se encaixava num todo.

Jordan sentiu-se uma parte desta canção, e ainda assim um observador.

Então, no meio daquela grandiosidade, veio uma ordem que chegou aos seus ouvidos.

— Agora — gritou Erin. — Aos três.

Jordan desviou o olhar das profundezas esmeralda da sua pedra e viu Erin diante do pilar, com os braços erguidos, segurando ao alto uma pedra vermelha cintilante que desafiava a escuridão do eclipse.

O coração de Jordan doeu com a visão dela, permitindo que a canção baixasse o suficiente para ouvir e obedecer. Ela parecia uma antiga deusa tribal, com a sua figura iluminada por aquele brilho vermelho-escuro, transformando o seu cabelo em fogo.

A oeste, Rhun também erguia a sua pedra.

— Um. — A voz límpida de Erin soou sobre o lago.

— Dois — ecoou Rhun, como se tivessem ensaiado aquilo.

Jordan pôs um ponto final naquele momento.

— Três.

11h59

Erin baixou a pedra Sanguis sobre o cálice à sua frente.

Assim que as suas facetas tocaram no granito, o rubi brilhou com uma luz incandescente, replicando o fogo carmesim do Sol que desaparecia. Chamas irromperam da superfície da gema e dançaram à volta do cálice de pedra. Calor e santidade banharam o rosto de Erin. Ela receou que se se aproximasse demasiado pudesse ser reduzida a cinzas.

Xao não mostrou tal preocupação. Avançou para o seu lado e estendeu as mãos para as chamas. Ao mesmo tempo que aquecia o corpo frio naquele fogo, o monge entoou um cântico em sânscrito. Erin ouviu os outros monges ecoarem o cântico.

À medida que a Lua eclipsava o Sol por completo, mergulhando o vale num crepúsculo sombrio, a gema contra-atacou a escuridão. As chamas irromperam mais alto, elevando-se ferozmente, como se um fole gigantesco tivesse atiçado um redemoinho de fogo. Erin queria fugir daquele inferno, mas sabia que o seu lugar era ali.

Então, tão rapidamente como tinham surgido, as chamas foram sugadas de volta à pedra, fazendo-a brilhar ainda mais intensamente, como se uma parcela do Sol tivesse ficado dentro daquele cálice. Logo, as chamas irromperam de novo — desta vez, não das facetas da gema, mas a toda a sua volta.

Erin esticou o pescoço, olhando para todos os lados, percebendo que aquelas chamas delimitavam uma bolha rubi que a rodeava, a sua superfície perseguida por um fogo carmesim. Era como se a própria gema se tivesse expandido de repente, engolindo-a inteiramente.

E eu sou apenas uma falha no seu coração.

Ao olhar por cima da superfície negra do lago, viu Rhun numa esfera de fogo azul e Jordan num globo esmeralda.

Ela deu um passo na direção deles, mas Xao ainda estava ao seu lado e pôs uma mão no seu ombro, segurando-a com firmeza. Ela olhou para o fogo líquido que rolava sobre a superfície da esfera, lembrando-se do aviso do monge quanto ao perigo que os humanos corriam se atravessassem estas barreiras de luz, como seriam consumidos por esse fogo.

Ou talvez Xao a estivesse a aconselhar a ver o que ainda estava para vir.

De repente, as chamas rodopiaram e juntaram-se em cima da sua bolha — e em seguida lançaram-se para o céu, curvando sobre o lago. Lanças semelhantes de fogo — azuis e verdes chamejantes — irromperam das outras esferas, para cima, juntando-se à coluna rubi.

As três colunas colidiram acima do centro do lago, fazendo soar uma nota retumbante que fez Erin cambalear, mas Xao ajudou-a a equilibrar-se. Ela ficou boquiaberta diante da pirâmide de fogo. No cimo, aqueles três infernos moveram-se em espiral num turbilhão, entrelaçando as suas chamas, misturando e fundindo as suas cores, exibindo uma suspensão de cada combinação de luz. Então aquele turbilhão girou ainda mais rapidamente, movendo-se demasiado depressa para o olho humano o poder acompanhar, até que todas as cores se tornaram uma, criando uma lagoa de puro fogo branco.

Erin lembrou-se do símbolo invertido que mostrara a Jordan e Elizabeth.

Ei-lo aqui, trazido à vida.

Em seguida, da lagoa suspensa, uma coluna de luz disparou para o lago em baixo, atingindo o gelo negro. O gelo quebrou-se com o impacto, fendas abriram-se ao longo do lago. O chão rasgou-se sob os seus pés.

No rescaldo, o mundo ficou silencioso.

Erin não ouviu qualquer sopro de vento, qualquer rangido do tronco das árvores, qualquer som de vida.

Exceto o bater do seu próprio coração na sua garganta.

Ela olhou à medida que a coluna branca de luz se expandia pelo lago, formando um cone brilhante vindo de cima, criando uma pirâmide dentro de uma pirâmide. Dentro daquela labareda cónica fulgurante, o gelo negro ondulou como a água sob uma forte brisa.

Erin lembrou-se do mural da Casa de Fausto, que mostrava toda a espécie de monstros a içar-se para este mundo. Ela armou-se para o que estava para vir — mas mesmo então Erin sabia que não estaria preparada.

12h01

Com a pele a formigar antecipando o perigo, a mão de Jordan tirou o Colt 1911 do coldre debaixo da parca. Ele sabia que a arma seria inútil contra o que ele sentia emergir das profundezas sombrias daquele lago, mas queria sentir a sua solidez na mão, em contraste com aquele buraco no mundo que vacilava perante os seus olhos.

À sua esquerda, Erin parecia assustada, fechada dentro da sua esfera em chamas. Era como se ela tivesse sentido os olhos dele postos nela, porque virou a cabeça para olhar para ele. Jordan lançou-lhe o que esperava ser um sorriso reconfortante, e ela conseguiu sorrir-lhe de volta.

À sua esquerda, encontrava-se Rhun com um dos monges dentro de uma esfera de chamas azuis. Atrás dele, Elizabeth desembainhara a sua espada. O leão andava de um lado para o outro para lá da esfera, tendo ficado fora dela quando a pedra preciosa se incendiara, o único suficientemente esperto para não ficar preso.

E Jordan sabia que estava preso, não se atrevendo a atravessar esta barreira de luz esmeralda, convencido de que ficaria reduzido a cinzas se o tentasse. Assim, tudo o que podia fazer era segurar a sua arma com força.

No meio do lago, aquela escuridão ondulante começou a avançar com sombras e fumo, enchendo lentamente os limites daquele cone branco. Por fim, Jordan deixou de conseguir ver através dele o lado norte do lago, onde Christian e Sophia esperavam com a arca de correntes de prata.

Enquanto observava, a escuridão começou a juntar-se no núcleo, e as sombras e o fumo tornaram-se substância. Uma figura escura formou-se ali, com uma altura de dois andares, sentada num trono de obsidiana. Tinha as feições negras e a pele nua repleta de sombras escuras como breu. Por trás dos ombros fortes, um par de asas enormes desenrolaram-se, cobertas de penas negras. Onde aquelas pontas em chamas roçavam na luz, relâmpagos negros atravessavam a superfície interior do cone... mas a barreira aguentava.

A criatura alada levantou-se do seu trono, debatendo-se com as correntes de prata, o seu corpo puxado para baixo com o peso.

Jordan sabia quem enfrentava.

O rei do fosso sem fundo.

Lúcifer em pessoa.

E Jordan não conseguia evitar achar este anjo negro...

12h03

... tão belo.

Erin estava maravilhada com a perfeição da figura no trono. Cada músculo dos seus braços e peito estava impecavelmente definido, as suas asas ardiam com fogo negro. Mas foi o seu rosto que atraiu mais a atenção de Erin. As maçãs do rosto eram altas, esculpidas em arcos graciosos, ao lado de um nariz estreito e direito. Ainda mais acima, pestanas compridas adornavam olhos que brilhavam com uma imponência sombria, vendo tudo e nada.

Ela achou impossível desviar o olhar.

Um dos elementos da sua equipa não estava tão impressionado e maravilhado.

— Do que estás à espera? — gritou Elizabeth do outro lado do lago, quebrando o feitiço.

Erin viu Rhun abanar a cabeça para sair do estado de transe em que se encontrava, e gritou para o lado norte do lago.

— Christian, Sophia! Vão!

O par arrancou da margem rochosa, carregando a pesada arca entre si. Tal como Xao prometera, os dois sanguinistas atravessaram sem qualquer problema aquele plano exterior da pirâmide. No entanto, quando chegaram ao gelo, a malevolência enfraqueceu-os, fazendo com que as suas pernas cambaleassem e tropeçassem. As novas fendas no gelo também faziam com que o caminho fosse mais traiçoeiro, obrigando o par a seguir uma via alternativa através dos estragos, atrasando-os ainda mais.

Com o medo a percorrê-la de cima a baixo, Erin virou-se para Jordan, desejando que ele estivesse ao seu lado.

Jordan reparou na sua atenção e ia gritar-lhe algo, quando uma sombra prateada surgiu de repente atrás dos seus ombros.

Erin gritou um aviso.

— Jordan! Cuidado com...

Dedos frios e fortes fecharam-se à volta do seu pescoço, estrangulando-lhe as palavras.


CAPÍTULO 40

20 de março, 12h04 NPT
Vale Tsum, Nepal

Jordan moveu-se assim que ouviu Erin gritar, respondendo a muitos anos de instinto enquanto soldado. Baixou-se no momento exato em que uma lâmina curva e comprida lhe passou por cima da cabeça.

Embora a lâmina tivesse falhado o seu alvo, o aço acertou com força na pedra esmeralda, soltando a pedra preciosa e fazendo com que esta rolasse sem governo pela borda do cálice de granito. Jordan caiu no chão junto à base do pilar e virou-se de lado, erguendo o Colt e disparando contra o peito do monge que brandia a espada.

Sabendo que o seu adversário era um strigoi, Jordan esvaziou por completo o carregador da arma. O monge voou para trás, saindo disparado para fora da bolha esmeralda, e caiu de costas na neve, o seu peito a fumegar por causa das munições de prata, sangue negro a jorrar por baixo do seu corpo.

Jordan rodou sobre si mesmo, o seu corpo em alerta, ainda em sintonia com a pedra.

Lançou-se com o braço esticado para apanhar a pedra que parara de rolar na borda do cálice e caía para o chão. Infelizmente, apenas os seus dedos rasparam nas suas facetas antes de cair num banco de neve aos pés do pilar.

Ao bater na neve, um estrondo fez tremer o chão. Jordan rastejou em direção à pedra, enquanto esta continuava a brilhar intensamente entre a neve. Mas o mal fora feito. Apesar de a bolha esmeralda se manter intacta à sua volta, ainda a arder, uma das colunas da pirâmide fora deslocada da sua base.

Tenho de a voltar a pôr no sítio, antes que seja demasiado...

Uma série de estalidos ruidosos explodiram junto à sua mão, soando tão alto como os disparos de uma espingarda, ecoando da superfície do lago.

Jordan olhou para cima e viu o gelo estilhaçar, quebrando como um espelho caído. No entanto, o que aquele espelho tencionava refletir era algo muito mais sombrio, algo que não devia estar neste mundo.

E libertou-se.

Criaturas fervilharam à superfície do lago: arrastando-se pesadamente, rastejando e emergindo do gelo. A horda marchava para a margem, a maior parte em direção a ele e à base partida do pilar, pressentindo uma forma de escapar.

Jordan desviou o olhar, respondendo com a parte reptiliana do cérebro, recusando-se a aceitar o que estava a ver, mas, ao mesmo tempo, incapaz de o negar. O seu estômago contraiu-se com aquela visão, com os horrores que o seu cérebro não conseguia entender. Mas quando os seus dedos tocaram na parte interior da superfície da esfera incandescente que o rodeava, uma dor lancinante percorreu-lhe o braço até ao peito. Retirou imediatamente a mão. As pontas queimadas dos seus dedos fumegavam.

Apercebeu-se de que estava preso dentro daquela esfera, sem escapatória possível, lembrando-se do aviso do monge.

Atravessar essa barreira seria morte certa para aqueles cujo coração ainda bate.

No entanto, as abominações que rastejavam para fora do lago não tinham corações que batiam, nem esse tipo de limitações.

Algo emergiu da água, à direita, avançando como uma pessoa comum, mas com um rosto plano e negro, sem olhos e sem boca, mas ainda assim gritava, uivava para o mundo. À sua esquerda, uma criatura gigantesca ressaltava pelas rochas, agarrando-se a elas, com cascos rachados e uma cabeça deformada, depois saltou e desapareceu.

Ele queria tapar os olhos, mas temia ainda mais o desconhecido.

Imediatamente à sua frente, uma criatura com a forma de um crocodilo rastejava e emergia do gelo partido. Mas não tinha cabeça, apenas uma ventosa saliente à frente, exibindo um anel de dentes afiados. Deixava para trás um trilho brilhante de baba cor de bílis. Parecendo sentir a presença de Jordan, esgaravatou mais depressa na sua direção, passando incólume através do véu esmeralda da sua bolha e trazendo consigo um fedor a enxofre e carne putrefata.

A mente de Jordan tinha dificuldade em compreender a impossibilidade daquilo, roçando a insanidade. Contudo, um medo ainda maior mantinha-o realista, momentaneamente ancorado.

Erin.

Contudo, ali preso, Jordan nunca conseguiria chegar a ela.

Apenas uma pessoa podia fazê-lo.

12h06

Rhun lançou-se com a sua karambit, desviando para o lado a espada do monge, mas o impacto do golpe atordoou-o. Este inimigo era, de longe, mais poderoso e rápido do que qualquer outro strigoi que alguma vez enfrentara, sendo a sua força provavelmente alimentada pela malevolência que emanava do lago e pela vaga presença do seu mestre da escuridão, Lúcifer.

Para se manter de pé depois daquele golpe, Rhun cambaleou para fora do véu azul de luz. Para lá dessa esfera, o ar tresandava a morte e pestilência. A repulsa rastejou-lhe pela pele, como mil aranhas.

O monge perseguiu-o, a sua espada comprida a brilhar como um clarão, refletindo o azul da esfera, mas o seu golpe nunca foi desferido. Em vez disso, algo atingiu o monge de lado, derrubando-o. A cria rolou pelo chão, mas voltou a pôr-se de pé, a bufar ruidosamente. O monge levantou-se com a velocidade de uma cobra em modo de ataque, brandindo a sua lâmina em direção à garganta da cria. No entanto, o monge caiu desamparado para a frente, a sua cabeça saindo disparada do corpo, e a sua espada cravou-se inofensivamente num banco de neve ao lado do felino.

Elizabeth encontrava-se de pé ao seu lado, com sangue negro a escorrer pela lâmina da sua espada.

Mais uma vez, ela salvara-lhe a vida, e provavelmente a do felino também, mas não tinha tempo de lhe agradecer.

Durante a luta intensa, vira Jordan matar o monge à sua frente, com a arma ainda a fumegar. Vira também a pedra preciosa a cair, fazendo com que o lago se estilhaçasse desse lado, permitindo que o Inferno se soltasse sobre este mundo. Naquele preciso momento, continuavam a sair criaturas da água, espalhando-se para todo o lado. Outras saltavam pelo gelo, sussurrando freneticamente à volta dos pés do seu amo. Várias repararam na arca que Christian e Sophia transportavam e foram atrás deles, enraivecidos pela santidade das correntes ou talvez comandados pelo próprio anjo negro.

— Protege a pedra — ordenou Rhun a Elizabeth.

Ele tinha de chegar a Erin. Há pouco, vira-a a ser atacada quando tentava avisar Jordan, e ainda agora se debatia nas garras de ferro de Xao. Os dedos do monge estavam à volta da garganta dela, erguendo-a bem alto no ar, até apenas os seus dedos dos pés roçarem na neve.

Rhun correu pelas margens em direção a ela. Uma criatura reptiliana saiu do gelo e lançou-se sobre ele, mas Rhun desviou-se agilmente, atacando-a e decepando-lhe a cabeça escamosa com um só golpe. Fumo amarelo emanou do coto, enquanto um salpico de sangue lhe corroeu a parca e queimou a pele como ácido. Ainda assim, continuou, seguido de perto pelo leão.

Algumas criaturas ameaçaram atacá-lo, mas pareciam mais interessadas em escapar do lago para este mundo novo, do que em atacar. O mesmo não era verdade no que tocava a Christian e Sophia no gelo. O par pousara a arca e lutava contra a horda cada vez maior. Os seus mantos estavam ensopados de sangue.

Do outro lado do lago, um novo tiroteio revelou que Jordan recarregara a arma e disparava contra uma criatura qualquer dentro do clarão esmeralda, ainda a aguentar-se.

Rhun percorreu os últimos metros em direção à esfera vermelha.

Erin ainda estava viva, o coração batia-lhe acelerado no peito, respirava com dificuldade por ter as mãos de Xao à volta do pescoço.

Xao viu Rhun a chegar e sorriu. Rhun sabia que o monge já poderia ter partido o pescoço de Erin como se fosse um galho seco, mas não o fizera, talvez apenas para saborear melhor aquele momento.

O monge soltou uma mão e ergueu um punhal, encostando-o à garganta de Erin.

Não...

A lâmina fez um corte fundo e amplo, abrindo-lhe o pescoço macio. O sangue jorrou profusamente como uma fonte quando o monge a largou.

Erin tombou desamparada, caindo de lado, a sua vida a evaporar-se na neve.

As pernas de Rhun cederam com a verdade, sabendo que era demasiado para parar, demasiado para sarar. Ainda assim, esforçou-se ao máximo para percorrer aquela última distância. Não iria perdê-la. Prometera protegê-la, não só enquanto Cavaleiro de Cristo, mas enquanto alguém que a amava, alguém que não conseguia imaginar o mundo sem ela.

Xao recebeu a fúria de Rhun com um sorriso ainda maior, os olhos sombrios a brilharem malícia.

Isto não fora obra de Lúcifer.

Rhun sabia quem o fitava atrás daqueles olhos.

12h07

Do outro lado do lago, Legião saboreava a expressão de horror e derrota no rosto do Cavaleiro. Ele testemunhava-o através do olhar do monge possuído e dos olhos do corpo que habitava agora.

Legião permanecia escondido entre as rochas, do lado sul do lago, de onde manipulara os acontecimentos até agora, esperando o momento certo para se revelar.

No seu âmago, a pequena chama de Leopold esmorecia, abalada pela morte súbita da Mulher às mãos do monge. Legião imaginou aquela chama débil a chorar lágrimas fumegantes.

Como tinha sido fácil fazer o trio dançar ao som dos seus desejos!

Usando o conhecimento roubado a Hugh de Payens, Legião chegara aqui antes dos outros, apanhando os monges desprevenidos.

Com um só toque, tornaram-se meus.

Legião pensara tirar partido de um segredo, um segredo que Hugh não partilhara com os outros. O eremita sabia que a pedra partida já não podia abrir o portal neste vale. No entanto, Hugh acreditara que os monges saberiam como repará-la, por isso Legião também ficou convencido disso. Infelizmente, quando se apoderou das muitas memórias dos monges, não encontrou tal conhecimento.

Frustrado, Legião elaborou novos planos. Leopold e Hugh de Payens confiavam ambos na Mulher Sábia e tinham-na em alta conta. Se alguém conseguiria descobrir como reparar a pedra, era ela. Assim, escondeu-se e manipulou cuidadosamente os três monges, usando-os para extrair a verdade do trio, para fazer o trabalho por si.

E como isso resultara na perfeição!

A Mulher forneceu a resposta, e o Cavaleiro deu o seu sangue. Em conjunto, o trio abrira o portal, o que deixou a Legião a simples tarefa de partir as pedras, para garantir que este não voltava a ser fechado. Este mundo seria reclamado para o anjo negro. Assim que ele fosse libertado, o jardim seria purgado da humanidade, ficando o paraíso para Legião.

Uma promessa feita a Legião por Lúcifer.

Legião saiu da pequena gruta nas rochas e ergueu os braços para o céu escurecido pelo eclipse. Tinha apenas breves instantes para completar a sua tarefa. O Sol já nascia novamente no céu, erguendo-se ardente das cinzas do eclipse. Sabendo que tinha pouco tempo, escolhera com antecedência este lugar para se esconder, um abrigo o mais perto possível da pedra verde, o mais perto possível do Guerreiro que ainda a guardava. Embora remendada, aquela pedra continuava a ser a mais fraca. Legião iria estilhaçá-la primeiro, depois destruiria as outras, uma a uma.

Para assegurar o seu sucesso, atraíra o Cavaleiro para longe, ao ameaçar a Mulher. Legião esperara até o padre sanguinista estar perto antes de matar o primeiro elemento do trio. A seguir, Legião iria destruir o Guerreiro, que continuava preso pela luz esmeralda, como um pássaro dentro de uma gaiola. Só então, mataria o Cavaleiro, depois de o quebrar, matando todos aqueles que lhe eram queridos.

No entanto, Legião não o faria sozinho.

Quando saiu da gruta, para baixo daquele céu maldito, os habitantes daquela terra sombria vieram até ele, juntando-se à sua volta como sombras. Lambiam-lhe as botas desfeitas, faziam vénias e mordiam-se uns aos outros numa excitação selvagem à sua passagem. É claro que o amavam.

Ele libertara-os.

E agora libertaria este mundo da praga do Homem.

Legião fitou o Guerreiro de cima a baixo.

A começar por este.

12h08

Estendida de lado, Erin apertava a garganta com ambas as mãos. Sangue quente escorria-lhe entre os dedos e o seu rosto estava em cima da neve fria, que funcionava como uma almofada gelada.

Ela podia apenas assistir, enquanto Xao passava por cima do corpo dela e enfrentava o ataque de Rhun com um punhal ensanguentado numa mão e uma espada de lâmina curva na outra. Para lá da esfera ardente, aço e prata embateram numa troca de golpes, contra-ataques e defesas. A cria ajudava, voando para agarrar com os dentes o manto de Xao, a fim de o desequilibrar, ou embatendo contra as pernas do homem.

Agora, Erin compreendia a origem desta traição, sabendo como tinham sido manipulados com mestria neste vale sagrado, usados como fantoches por Legião, tão certamente como se tivessem sido possuídos pelo demónio. Legião precisara deles para trazerem as duas pedras, reparar a partida e abrir o portal, para que Lúcifer se pudesse erguer da escuridão do lago.

E fomos nós que fizemos isso tudo.

A raiva mantinha-a quente, enquanto o sangue continuava a escorrer-lhe por entre os dedos.

Xao recuou para junto dela, atravessando o fogo para reentrar na esfera. O demónio no interior parecia completamente alheado dela, talvez pensando que ela já estaria morta ou, pelo menos, demasiado fraca para lutar.

Mas eu sou mais do que a Mulher Sábia.

Erin estendeu a perna e pregou uma rasteira a Xao, derrubando-o, apanhando o demónio de surpresa. Quando ele caiu e baixou a guarda, Rhun atacou-o rapidamente com a sua karambit, espetando-a bem fundo no olho do monge. Rhun usou a adaga como pega para girar o crânio de Xao e embater violentamente com ele no pilar de granito próximo. Bateu com ele no pilar uma e outra vez, até o monge ficar imóvel.

Depois disso, Rhun virou-se e caiu de joelhos ao lado dela.

Pelo menos não vou morrer sozinha.

Mas, em última análise, ela não importava.

— Jordan... — gemeu ela.

Rhun pegou-lhe na mão, recusando-se a sair do lado dela.

Erin deixou a outra mão cair da garganta e empurrou o joelho de Rhun, pedindo-lhe que ajudasse Jordan. Em vez disso, Rhun colocou a sua própria mão sobre o ferimento dela. Os seus dedos mais fortes exerciam uma pressão mais firme, como se soubesse onde pressionar para fechar as artérias maiores.

Ela queria estrebuchar, mas não tinha forças para o fazer.

A cria andava de um lado para o outro no exterior daquele véu em chamas, ansioso, querendo ajudar.

Erin cerrou o maxilar, detestando desiludi-los. Ela era a Mulher Sábia e ainda tinha um trabalho a fazer. Ela iria lutar da única maneira que ainda lhe era possível.

Moveu-se para expor melhor a mochila que tinha às costas.

— O Evangelho — sussurrou ela.

De certeza que havia alguma resposta naquele livro. Ela carregara o volume até aqui, não só porque não confiava em Bernard, mas também porque sabia que o livro teria alguma utilidade. Ela estivera sempre ligada àquele livro. Isso tinha de ser importante.

Mas, se eu morrer, o potencial do Evangelho morre comigo.

Ela não podia deixar que isso acontecesse sem tentar tudo.

Talvez acreditando que lhe estava a conceder o seu último desejo, Rhun largou-lhe o pescoço, pegou na sua mão e mostrou-lhe onde aplicar pressão. Só depois tirou o Evangelho da sua mochila e da capa onde se encontrava. Pousou sobre a neve o livro aberto à frente dela, depois voltou a aplicar pressão no seu pescoço, murmurando uma oração.

Erin virou a cabeça atá a ponta da capa lhe tocar na face. A maioria das páginas estava em branco, ainda à espera de serem preenchidas com as palavras que Cristo escrevera há muito tempo. Bernard dissera-lhe uma vez que o Evangelho de Sangue poderia conter a chave para libertar a divindade que existia no interior de cada pessoa, conhecimento esse contido naquelas páginas brancas. Se isso era verdade, então o mundo nunca ficaria a saber por causa dela.

Rhun abrira o livro na página que continha as últimas linhas da profecia, talvez na esperança de que ela encontrasse ali algum significado. Mas aquelas palavras brilhavam a dourado, como se troçassem dela pelo seu fracasso.

Com a ponta de um dedo trémulo, ela virou essa página da profecia e colocou a sua mão ensanguentada sobre a página em branco seguinte. Sentiu o papel ficar mais quente por baixo da sua palma, a sua superfície estranhamente macia.

Rhun susteve a respiração ao ver letras douradas aparecerem por baixo dos dedos de Erin, enchendo o papel como se estivessem a ser escritas no momento, linha por linha, fluindo pela página.

Rhun virou a página, depois outra.

Mais palavras, mais linhas.

Rhun folheava com rapidez.

— O livro está todo preenchido — disse ele, espantado.

Erin estudou a página que ainda estava aberta, apercebendo-se de que não era capaz de ler as palavras. As letras pareciam enoquianas, a língua desenvolvida por John Dee para comunicar com os anjos.

Erin fechou os olhos, sem conseguir perceber por que razão Cristo decidira escrever o resto do Evangelho em enoquiano, quando as anteriores profecias tinham sido escritas em grego, a língua do Homem. Por que razão escrever o resto na língua dos anjos? Apenas uma resposta fazia sentido. Talvez estas novas palavras, talvez até o evangelho inteiro, não tivessem sido escritas para a humanidade, mas sim para os anjos.

Não, não para os anjos, apercebeu-se ela, abrindo os olhos. Para o anjo... um anjo.

Não era de admirar que as páginas só tivessem aparecido agora, neste vale.

Erin virou o rosto para o único anjo presente.

Lúcifer estava sentado no seu trono negro, a olhar diretamente para ela.

Erin apertou o joelho de Rhun com os dedos. Ele aproximou-se dela.

— Eu... eu sei — murmurou ela, suavemente. — Eu sei o que tenho de fazer.


CAPÍTULO 41

20 de março, 12h09 NPT
Vale Tsum, Nepal

Jordan voltou a colocar a pedra no seu lugar. Assim que a gema tocou no cálice de granito, a coluna de fogo daquele lado da pirâmide ardeu com mais intensidade. O gelo voltou a formar-se sobre o lago, selando o portal entre os mundos. Várias criaturas foram apanhadas a meio, ficando presas entre este plano e o outro, os seus corpos congelados e contorcidos no gelo.

No entanto, os seus esforços não valeram de nada para as centenas de criaturas que já tinham escapado.

Christian e Sophia ainda se encontravam cercados por um grande número delas, impedidas de atravessar o lago para alcançar Lúcifer. Elizabeth mantinha a sua posição junto à pedra azul, ensanguentada, mas ainda a defender o seu posto. Do outro lado do lago, Rhun encontrava-se ajoelhado ao lado de Erin, que ainda estava viva, embora a poça de sangue vermelho que a rodeava lhe dissesse que já não lhe restava muito tempo. Jordan queria mais que tudo correr para junto dela, segurá-la nos braços pela última vez.

Contudo, mesmo que conseguisse libertar-se da sua prisão esmeralda, havia outro adversário determinado a pará-lo.

Assim que Jordan se virou de costas para o pilar de granito, Legião desceu dos penhascos em direção a ele. Estava rodeado por uma sombra de abominações, um manto de carne viva. Jordan usou as suas últimas munições para alvejar o demónio, mas, cada vez que disparava, uma das sombras saltava e punha-se à frente, parando a bala com o seu corpo deformado.

Sem munições, Jordan segurou no seu punhal KA-BAR numa mão. Largou a pistola e dobrou-se para apanhar a espada abandonada do monge, grato por esta ter caído dentro da esfera verde de luz.

— Vá lá! — gritou Jordan por cima da vaga de gritos das criaturas do demónio. — Vem buscar-me!

Os olhos negros do demónio fixaram-se nos de Jordan.

— Não tenhas tanta pressa de morrer, Homem Guerreiro, estarei aí em breve.

Ótimo... Estou pronto para ti desta vez.

Jordan ardia com uma raiva dourada, inflamada simultaneamente pelo seu sangue angelical e pelo seu desejo de vingança. Quando Legião se aproximou, Jordan ergueu a espada roubada, uma lâmina comprida e curva com o punho com jade embutido. Jordan afastou as pernas para se equilibrar e preparou-se para enfrentar o demónio.

Legião também empunhava uma espada com uma lâmina negra que parecia envenenada, brilhando como uma longa lasca de obsidiana. Não era deste mundo, provavelmente fora trazida para aqui e oferecida ao demónio por um elemento da sua horda.

Jordan fez sinal com a ponta da sua arma.

— Só nós dois — disse ele —, a não ser que tenhas medo de um só homem?

— Embora sejas mais do que um mero mortal — respondeu Legião —, não serei apanhado desprevenido mais uma vez. Sim, vamos acabar isto.

Com a espada erguida bem alto, Legião largou os seus monstros e entrou na esfera esmeralda. Sem rodeios, Legião atacou Jordan com a sua espada, obrigando-o a fazer uma defesa rápida que lhe entorpeceu o braço até ao cotovelo. Legião atacou uma e outra vez, empurrando lentamente Jordan para o limite da esfera.

Se não for aquela lâmina a matar-me, será o fogo verde.

Seguiu-se uma sequência de golpes rápidos. O aço tinia contra o cristal negro. Legião entrava e saía disparado da esfera, usando o véu em chamas como escudo, sabendo que Jordan não podia ir atrás dele.

Um golpe rápido finalmente penetrou a defesa de Jordan e feriu-o de lado. Sangue vermelho e quente ensopou a sua camisa. Outra série de ataques terminou com a lâmina de Legião a fazer-lhe um corte profundo no antebraço. Legião saiu da esfera a sorrir.

Jordan apercebeu-se da dura realidade.

Legião está a brincar comigo.

Jordan contorceu-se, deixando cair o punhal e pondo um braço sobre o lado ferido, mantendo a espada em riste.

Legião avançou, claramente determinado a acabar com ele.

Assim que o demónio atravessou a barreira, Jordan lançou-se para a frente, na esperança de que as chamas tivessem cegado o demónio por uma fração de segundo. Quando a perna do demónio entrou na esfera, Jordan deu-lhe um pontapé e cravou os crampons de aço das suas botas de neve no joelho do demónio. A perna partiu-se com um estalido agudo. Quando Legião cambaleou para o lado, Jordan agarrou no braço do demónio que segurava a espada, rolou Legião para baixo de si e atirou o corpo negro ao chão.

Assim que embateram no chão, Jordan aproveitou o ímpeto para enfiar a sua espada na barriga mole do demónio, golpeando até ao seu coração silencioso. Legião gritou e afastou-o com a força do coice de um touro. Jordan saiu disparado, rolando pela neve. O que o impediu de ir contra a barreira em chamas foi o pilar de granito. Embateu nele de lado, com força suficiente para partir algumas costelas.

Legião já estava ao pé dele. O demónio deixou cair a sua própria espada na neve e retirou a lâmina do monge da sua barriga negra, lançando-se sobre Jordan com a arma em riste. Jordan esquivou-se, tentando alcançar o punhal que deixara cair. Só se apercebeu de que fora um erro demasiado tarde.

Legião passou por ele e baixou a espada, batendo com o punho de jade embutido no diamante verde. A pedra preciosa estilhaçou-se, assim como o cálice por baixo dela. A coluna de fogo verde extinguiu-se, apagada como uma vela abafada.

Mais uma vez, o lago explodiu naquela margem. A superfície inteira elevou-se no ar como se tivesse sido empurrada por baixo. Criaturas ainda maiores vieram à tona, coisas nunca vistas: o rolar de um gigantesco olho negro, o agitar de tentáculos negros. Jordan desconfiava que estas criaturas eram mais antigas e tenebrosas do que os demónios mais pequenos libertados até agora.

Para lá daquela maré monstruosa, Lúcifer contemplava do seu trono, a sua expressão indecifrável. O cone de luz branca ainda mantinha o anjo negro preso, mas por quanto mais tempo? Aquele branco puro era agora atravessado por faixas de sombras, refletindo os estragos feitos na sua prisão.

Como que sabendo disso, Lúcifer ergueu-se ainda mais no seu trono, quebrando mais elos das correntes que o prendiam.

O chão estremecia e abanava com os seus esforços.

Legião virou-se de frente para Jordan, o sorriso do demónio triunfante.

— O tempo do Homem está a chegar ao fim.

12h10

Erin encontrava-se encolhida debaixo de Rhun, à medida que os tremores de terra esmoreciam. Ela vira a coluna esmeralda a apagar-se, vira o gelo ao fundo a quebrar, expondo criaturas monstruosas. Novas rachas abriram-se ao longo do lago.

Christian e Sophia arrastaram a arca para uma área de gelo sólido, perseguidos por mais criaturas, manifestamente mais ousadas com a alteração de forças.

Erin procurou Jordan, mas um denso vapor negro elevou-se daquele lado do lago, obscurecendo a sua visão.

Rhun continuava a apertar a garganta de Erin com uma mão, inclinando-se para ela.

— Erin, o que queres dizer com isso de saberes o que tens de fazer? — perguntou ele.

Ela percebeu o significado subjacente da sua pergunta: O que acreditas poder fazer estando tão perto da morte?

Erin respondeu-lhe silenciosamente O que me é possível.

Ela apertou o Evangelho de Sangue contra o peito com um braço, visualizando as linhas de escrita enoquiana que enchiam as suas páginas. Ela sabia a verdade com uma certeza absoluta, mas, ainda assim, as palavras recusavam-se a sair. Estava demasiado aturdida com o que acabara de compreender: o verdadeiro propósito por detrás deste Evangelho de Cristo perdido.

O livro não fora escrito para ajudar os humanos a libertar a sua divindade. Fora escrito para um único ser, um anjo, a fim de se redimir: Lúcifer. Lembrou-se da tábua que Lázaro lhe mostrara na biblioteca sanguinista e que contava uma versão diferente da história do Jardim do Éden, de como Eva prometera partilhar o fruto da Árvore do Conhecimento com a serpente, mas acabara por quebrar a sua promessa no fim.

As palavras de Lázaro regressavam agora à sua mente, à medida que o mundo escurecia à sua volta.

Quando Lúcifer se encontrar à tua frente, o teu coração vai guiar o teu caminho. Deves cumprir o pacto.

Ela não compreendera estas palavras na altura, mas agora sim.

A serpente — Lúcifer — fora privada de conhecimento secreto, conhecimento esse que poderia ter levado o anjo negro a fazer escolhas diferentes: o conhecimento do bem e do mal. Ele pedira-lhe esse conhecimento, Eva prometera dar-lho, mas não o fez, por isso Lúcifer nunca o aprendeu.

Contudo, Cristo enviara-lho para aqui.

— Tenho de cumprir o pacto de Eva — murmurou ela com os lábios secos e gelados.

Para lá do limite da esfera, o leão olhava fixamente para ela, miando suavemente. A cria lembrava-lhe o primeiro gato que tivera, um gato enorme chamado Nebuchadnezzar. Ele também era branco como a neve.

— Olá, Neb — sussurrou ela, momentaneamente perdida no tempo.

Rhun inclinou-se mais sobre ela, voltando a captar-lhe a atenção. O sofrimento nos olhos dele dava-lhe vontade de lhe tocar, de o confortar.

— De que pacto estás a falar? — indagou ele.

Erin esforçou-se por focar o olhar.

— O livro... o evangelho... tem de ser entregue a Lúcifer.

Os olhos de Rhun arregalaram-se de surpresa, de indignação até.

— Como pode o Evangelho de Cristo ser entregue a um anjo que foi expulso do Céu por Deus?

Ela não tinha forças para discutir, mas conseguiu proferir algumas palavras trémulas cada vez que respirava com dificuldade, sabendo que a sua audição apurada de sanguinista as conseguiria ouvir.

— Cristo escreveu-o para redimir Lúcifer. Se Eva lhe tivesse dado o fruto do conhecimento do bem e do mal, ele saberia o que era o bem. Ele poderia ter escolhido o bem. O pacto de Eva tem de ser cumprido. Rhun, tens de lhe dar esse conhecimento.

Rhun olhou para cima, para o céu negro.

— Não te posso deixar morrer sozinha.

— Tens de ir... foi para isto que fomos escolhidos.

Rhun pegou no evangelho quando ela o largou, feliz por se ver livre daquele fardo. Os seus dedos vazios voltaram a pressionar a garganta, por muito que o gesto de nada servisse agora. Ela focou-se em Rhun. O seu rosto dizia-lhe quanto queria ficar com ela e quanto lhe custava deixá-la. O olhar de Rhun voltou-se para o livro, aberto na sua única mão, e, de repente, pareceu ficar assustado.

O que se passa?

Ele respondeu à sua pergunta silenciosa.

— As letras desapareceram. — Inclinou o livro, folheando as suas páginas, todas em branco. — Lembras-te, o evangelho está ligado a ti, Erin. Estas palavras não são reveladas a mais ninguém.

Ela estava tão fria agora. Não sabia o que dizer, o que fazer.

— Talvez te possa levar a ti e ao livro até Lúcifer — sugeriu Rhun. — Podemos entregar-lho juntos.

Não...

Ele também percebeu isso rapidamente, debruçado sobre Erin.

— Isso não vai resultar. Enquanto estiveres viva, a luz irá reduzir-te a cinzas. Apenas os sanguinistas e os strigoi conseguem atravessar incólumes a barreira.

A visão de Erin ficou turva. Usou o seu último suspiro para murmurar a verdade derradeira.

— Tens de me transformar... é a única maneira.

Eu tenho de me tornar strigoi.

12h12

Jordan perdera Erin de vista quando a densa névoa negra se estendeu pelo lago estilhaçado, erguendo-se com gritos e uivos distantes, a sua escuridão quebrada apenas pelo brilho de labaredas ainda mais negras. Formas gigantescas agitavam essa névoa, coisas que lhe arrancariam a sanidade, o pouco que lhe restava dela, se as visse.

Ainda assim, com a esfera esmeralda em ruínas à sua volta, Jordan mantinha-se ajoelhado. O portal ficara danificado para sempre com a destruição da pedra preciosa, sendo impossível voltar a fechá-lo.

Jordan não via qualquer razão para continuar a lutar, sobretudo sabendo que Erin estaria provavelmente morta.

Se ainda não está, não faltará muito.

Sem Erin, Jordan não sabia se queria viver ou morrer.

No entanto, tinha a certeza de uma coisa.

Queria vingança.

Jordan olhou para cima quando Legião caiu sobre ele. O demónio levantou bem alto a espada do monge com o rosto a brilhar, triunfante. Aquela lâmina ainda fumegava com o próprio sangue do demónio.

Foi isso que deu a ideia a Jordan.

Parecendo render-se, Jordan estendeu-se para trás no chão, como se se estivesse a prostrar perante Legião, a aceitar a morte. Em vez disso, atirou-se para cima da lâmina que colocara há pouco erguida atrás de si. A lâmina trespassou-lhe as costas e saiu pela barriga. A espada de obsidiana negra queimava-o como um espigão de gelo. Era a espada de Legião, abandonada na neve anteriormente, a lâmina agora coberta pelo sangue ardente de Jordan.

Quando o demónio avançou para ele, a cambalear devido ao joelho partido, Jordan deu-lhe novamente um pontapé. Os crampons de aço da sua bota atingiram o tornozelo de Legião que não estava ferido, fazendo com que caísse em cima de Jordan.

Jordan abriu os braços. Legião caiu desamparado em cima dele, empalando o seu corpo na espada ensanguentada, coberta com o sangue angelical de Jordan. O demónio gritou e contorceu-se naquele espigão, mas Jordan pôs os seus braços à volta de Legião e rolou para o lado, vertendo o sangue ardente que jorrava da sua ferida para cima do corpo frio e negro de Legião. Jordan fez com que toda a sua essência angelical fluísse, para queimar este demónio para fora do corpo de Leopold.

— Volta para o Inferno, sacana.

Legião contorcia-se e uivava, expelindo nuvens de fumo negro, como se o demónio ardesse em cima de carvões no corpo de Jordan. Lentamente, a escuridão abandonou o rosto e o corpo de Legião. Os olhos azul-claros de Leopold fitavam agora Jordan.

— Mein Freund... — disse Leopold, encostando a testa à face de Jordan. — Libertaste-me.

Jordan segurou-o nos braços, não para o impedir de fugir, mas para que ele sentisse que não estava sozinho, que fora perdoado e que era até amado. Jordan segurou-o até o corpo do seu amigo ficar imóvel nos seus braços, encontrando finalmente a verdadeira paz.

12h13

Rhun viu as mãos de Erin caírem inertes, demasiado fraca para continuar a pressionar os ferimentos terríveis na sua garganta. Rhun levantou a sua mão para aplicar a pressão por ela, mas sabia, a cada batimento débil do seu coração cada vez mais fraco, que o esforço era inútil. Pegou-a ao colo, segurando-a nos braços, e apertou-lhe os dedos ensanguentados. A sua cabeça caiu para trás, o seu rosto banhado pela luz do fogo carmesim da pedra.

Como poderia ele transformá-la, a mulher que viera a amar, que ainda amava.

Os strigoi eram abominações sem alma e era pecado criá-los. Ele já resvalara para esse caminho há muito, quando tomara a vida de Elizabeth, e daí só viera o mal. Ela, anteriormente uma curadora de homens, transformara-se numa assassina de homens, matando centenas de inocentes.

Rhun olhou na direção de Elizabeth, mas agora, aquela névoa assustadora espalhara-se, ocultando a sua posição. A coluna de fogo azul continuava a arder no céu escuro. Ele esperava que isso significasse que ela ainda estava viva. Rhun sabia que havia algum bem dentro de Erin, embora ela ainda não fosse capaz de o ver. Ele rezava para que ela vivesse o tempo suficiente para o descobrir.

Os seus olhos fitavam a escuridão mais profunda, onde a coluna esmeralda se extinguira. Será que Jordan estava vivo? De qualquer forma, com o portal danificado, que esperança lhes restava?

O leão uivou do exterior da bolha ardente, como se o repreendesse. Aqueles olhos dourados fitavam intensamente os seus, recordando-lhe que ainda havia esperança e que esta se encontrava nos seus braços.

— Mas é proibido — disse ele à jovem criatura. — Olha para estes demónios sem alma. Achas que ela se deveria juntar ao seu exército?

A resposta surgiu num suspiro dos lábios de Erin, provavelmente o seu último.

— Por favor.


CAPÍTULO 42

20 de março, 12h14 NPT
Vale Tsum, Nepal

Erin pairava à beira da inconsciência. Embora os seus olhos estivessem abertos, ela via apenas sombras. Ainda assim, conseguia discernir a silhueta do rosto de Rhun contra um fundo em chamas. Para lá dos ombros dele, o brilho do eclipse penetrava aquelas sombras, mas até esse fogo se extinguia aos poucos com a vaga crescente de névoa negra emanada pelo lago, uma escuridão que se não fosse travada, consumiria todo este mundo.

Já não tinha mais argumentos para convencer Rhun, nem força para falar, mas a sua mente continuava com eles.

Ela sabia que esta luta já fora travada muitas vezes no passado. Mesmo que os outros conseguissem forjar novos grilhões para Lúcifer, isso não seria o fim.

O que fora forjado podia voltar a ser estilhaçado.

Ela sabia que existia apenas uma maneira de acabar com isto.

Lúcifer tem de ser redimido.

Erin olhou para cima, para Rhun, tentando fazer com que ele procurasse essa verdade no rosto dela e aceitasse o que tinha de ser feito.

Não deixes que a minha morte seja em vão. Liberta-me, para que eu possa fazer o que é preciso.

Porém, Rhun continuava a pressionar suavemente os seus lábios frios contra a testa dela. Ela desejava que fosse Jordan a beijá-la naquele momento, a segurá-la agora. Mas Jordan não podia fazer o que tinha de ser feito. Só Rhun podia.

Por favor...

Quando Rhun se endireitou, afastando-lhe o cabelo da testa, Erin usou as suas últimas forças para fazer a sua súplica brilhar através dos seus olhos cada vez mais mortiços.

Lágrimas corriam pelas faces de Rhun. Ele abanou a cabeça, como se soubesse exatamente o que ela estava a pensar. Ela conseguia lê-lo da mesma forma, conhecendo a escritura que provavelmente o impedia de agir, de lhe tirar a alma: Que aproveita ao Homem ganhar o mundo inteiro, e perder a sua alma?

Ela tentou fazê-lo compreender.

Eu não estou a ganhar o mundo... estou a salvá-lo.

Ela deixou esse pensamento emanar dos seus olhos.

Rhun puxou-a para mais perto dele e olhou intensamente para dentro dela. Erin viu pela primeira vez que os seus olhos não eram pretos. Eram castanho-escuros, raiados por linhas da cor da canela, como a casca de uma árvore de pau-brasil, vibrantes e cheios de vida no seu rosto pálido.

— Desculpa — sussurrou ele.

Os lábios dele roçaram suavemente nos dela, como uma brisa fria das montanhas.

Ela fechou os olhos, derrotada.

Depois, esses lábios deslizaram para o pescoço e dentes afiados cravaram-se na carne dela.

O pouco sangue que ainda tinha dentro dela fluiu numa única onda serena.

Obrigada, Rhun.

12h15

Rhun foi muito cuidadoso, sabendo que a morte ensombrava o coração de Erin. Enquanto sugava aquelas últimas faíscas de vida do seu corpo cada vez mais frio, ignorou o surto de êxtase e concentrou-se nos últimos batimentos erráticos do seu coração. Ele precisava de sangue suficiente para a transformar, mas não de tanto que a matasse.

Há pouco, vira a determinação nos olhos de Erin, vira o conhecimento que lá se encontrava, a certeza... mas, mais importante de tudo, testemunhara o amor, aquele poço de compaixão dentro do seu coração, não só por Jordan, não só por ele.

Por toda a gente.

Para salvar todos, Erin estava disposta a sacrificar-se. E não tinha Cristo tomado essa mesma decisão no jardim de Getsémani e na cruz?

Como poderia eu não honrar a sua escolha agora?

Ele deixou-a ficar imóvel por baixo dele e retirou os dentes da sua carne, os lábios da sua pele. Olhou para baixo, para a mulher que ele amava tanto, ainda nos seus braços.

Mesmo agora sentia-se hesitante, sabendo o que tinha de ser feito, porém, demasiado aterrorizado para o fazer.

Por si e por ela.

Em seguida, ouviu um batimento pesado do coração dela, o último da sua vida, exigindo-lhe que agisse.

Rhun cortou-se com a sua karambit, enfiando a prata bem fundo na sua garganta. Enquanto o seu sangue escuro jorrava, Rhun largou o punhal, inclinou a cabeça de Erin para trás e aproximou a boca dela da fonte negra. Deixou que o seu sangue fluísse por entre os lábios imóveis de Erin, pela sua garganta abaixo. Ela estava inconsciente e não conseguia engolir sozinha, mas Rhun manteve-a ali, esperando, rezando.

Ele olhou para cima, para o céu escuro, vendo o Sol morrer novamente, consumido não pela Lua, mas pelo fumo terrível que emanava do lago através dos portões do Inferno.

Depois, sentiu uma pontada de esperança quando um par de lábios suaves se fixou na sua carne e começou a beber, transportando-o para um estado de serenidade carmesim.

Ainda assim, lágrimas frias corriam-lhe pelo rosto.

O que é que eu fiz?

12h16

Erin acordou com sangue frio na boca, que sabia a sal e prata. Ela engolia força com cada gole. Continuou a beber, despertando uma paixão sombria dentro dela. Estendeu os dedos para agarrar Rhun pelos cabelos, para o puxar para mais perto. A sua língua explorou e moveu-se até obter um fluxo maior. Ela bebeu como respirara outrora, com grandes goles, como se se estivesse a afogar e finalmente conseguisse respirar.

Era vida e era morte.

E era êxtase.

O seu corpo gritava por mais, os seus braços agarravam Rhun com mais força, como se o quisesse puxar para dentro dela, sugar-lhe tudo o que ele tinha. Recordou-se daquele momento íntimo na capela, quando o banhara com o seu sangue. Esse episódio era insignificante quando comparado com este êxtase carmesim, em que os dois se tornavam um só.

Ela sentiu-o retesar-se, rolando para cima dela, esmagando-a debaixo do seu corpo.

Sim...

Mas ainda não era suficiente.

Ela queria tudo dele.

Os dentes dela rasgavam agora o pescoço dele, exigindo mais, não aceitando qualquer recusa da sua parte.

Foi então que dedos de ferro lhe agarraram o cabelo e afastaram os lábios e os dentes daquela fonte extasiante. Ela esbracejou, esticando-se para lhe chegar à garganta, mas Rhun era muito mais forte.

— Não... — disse ele e saiu de cima dela.

Um ar frio soprou entre eles, e ela queria chorar de solidão. Ela desejava ardentemente aquela intimidade, aquela ligação, quase tanto como o sangue dele. Lambeu os lábios, à procura de uma réstia daquele êxtase.

Rhun cobriu a garganta com a mão.

— Vinho — disse ele com a voz rouca.

Erin voltou lentamente a si, e com isso veio o medo de ter bebido demasiado do sangue dele. Desprendeu o cantil da perna de Rhun, destapou-o e despejou-o sobre os lábios dele. A prata queimava-lhe as pontas dos dedos, mas ela segurou no cantil com firmeza, ofegando à medida que as gotas de vinho lhe salpicavam a mão, ardendo como se fosse ácido.

Aquele fogo queimava-lhe a verdade na pele.

Eu sou strigoi.

Rhun engoliu o vinho convulsivamente, acabando com o conteúdo do cantil, atirando-o para o lado em seguida. Levantou-se a tremer e puxou-a para cima.

Ela ergueu-se com o seu novo corpo, aceitando-o. Os seus sentidos apuraram-se de uma maneira incrível. Ouvia cada barulho, sentia cada brisa, cada cheiro era uma sinfonia. A escuridão parecia brilhar à volta dela. A malevolência que emanava do lago atraía-a, chamava-a.

Mas isso não era tudo.

A fome rugia dentro dela, atraindo o seu olhar para o outro lado do lago, para um rufar intenso nos seus ouvidos. O bater de um coração. Assinalava o único humano ainda vivo naquele vale.

Ela queria, precisava, desejava ardentemente o calor que este prometia, o sangue que bombeava, querendo saciar aquela fome que a corroía. Sentiu a sua origem a aproximar-se, a vir lentamente na sua direção.

Ela deu um passo ao seu encontro, mas Rhun travou-a.

— É Jordan — disse-lhe ele.

Ela pestanejou ao ouvir o nome, lembrando-se, demorando uma eternidade para deixar memórias mais agradáveis acalmar aquele desejo insaciável até se tornar apenas uma moinha. Ainda assim, não desaparecia por completo. Não era seguro Erin estar perto de Jordan, sobretudo agora, talvez até nunca mais.

Rhun colocou-lhe a mão sobre o pulso.

— Tens de lutar contra isso.

Erin não sabia se era capaz, compreendendo finalmente a luta de Rhun.

Sem ter um braço livre, Rhun empurrou o Evangelho de Sangue para perto de Erin com a biqueira da bota, fazendo-o deslizar ignobilmente pela neve. Erin ainda era arqueóloga o suficiente para, de forma instintiva, se baixar e tirar o artefacto antigo da neve antes que se estragasse. Mas assim que os seus dedos tocaram naquela capa de couro gasto, uma luz dourada emanou do livro, inundando-a e acalmando o pior do seu desejo.

Ela endireitou-se, reparando como até o bater do coração de Jordan se tornara abafado.

Procurou pelas margens, voltando a sentir um desejo insaciável não pelo sangue de Jordan, mas pelo homem que amava.

— Temos de ir — urgiu Rhun.

Erin permitiu que Rhun a ajudasse a atravessar o véu de chamas, deixando a sua vida antiga arder atrás de si.

12h17

Enquanto se arrastava pela margem, Jordan pressionava com o punho o ferimento na sua barriga. Não sabia ao certo se estava a sarar. Tinha receio de ter derramado a maior parte da sua essência angelical, juntamente com o seu sangue, para dentro daquele demónio. Ainda assim, uma chama ardia na sua barriga, sugerindo que lhe restava ainda alguma, mas sentia-a esmorecer rapidamente.

Mesmo assim, continuou a andar. A sua outra mão arrastava a espada negra de Legião atrás de si, com o sangue do demónio ainda a escorrer dela. Jordan continuou através do nevoeiro maldito que emanava do pedaço estilhaçado do portal atrás dele. Depois de matar Legião, fugira da pior parte daquela horda frenética e enlouquecida, que se aglomerava naquela neblina para receber as abominações maiores que saíam vagarosamente do lago para este mundo.

Deixem-nos estar... desde que me deixem em paz.

Seguiu o único caminho possível, mantendo-se junto à margem, cauteloso relativamente aos dois planos da pirâmide que ainda ardiam através do gelo.

Ao longe, o cone de luz branca de Lúcifer continuava a brilhar, mas mesmo através da névoa negra Jordan sabia que a pureza daquela luz branca estava a dissipar-se. Com o portal partido, seria só uma questão de tempo até o anjo negro se libertar.

Quando isso acontecesse, Jordan queria estar ao lado de Erin, mesmo que fosse apenas para segurar, pela última vez, o corpo frio dela nos seus braços. Ainda assim, havia uma réstia de esperança que o fazia continuar, um passo difícil atrás do outro.

Talvez ela ainda esteja viva... talvez a consiga beijar pela última vez.

Por fim, um brilho avermelhado surgiu entre o nevoeiro. Quando se aproximou, viu que se tratava da esfera ardente em volta do pilar Sanguis. Saiu cambaleante do meio do pior dos nevoeiros e correu, encontrando a esfera vazia.

Ela desaparecera.

Apoiou-se na espada e procurou em redor, apercebendo-se de que não estava completamente sozinho.

A cria de leão aguardava à beira do lago, o seu olhar fixo no gelo. Jordan coxeou até ele, seguindo aquele olhar atento.

Duas figuras moviam-se lá.

Rhun... e Erin.

Ela caminhava ao lado do sanguinista, segurando nos braços o Evangelho de Sangue. O brilho do livro lançava sobre eles uma luz dourada.

Ele queria chorar de felicidade, correr para junto dela, mas apenas conseguiu cair de joelhos à beira do lago, sabendo que não podia atravessar este plano exterior da pirâmide ardente. Não percebia como é que ela ainda estava viva, como atravessara aquela barreira.

Será que o livro a curara, que o seu brilho permitira a Erin atravessar aquele véu de chamas?

— Erin! — gritou ele, querendo, pelo menos, ver o seu rosto outra vez.

Ela ouviu-o e virou-se.

A metade inferior do seu rosto estava coberta de sangue negro. Ela viu-o, mas não havia qualquer alegria nos seus olhos, apenas sofrimento. Rhun olhou de relance para trás, expondo a ferida no seu próprio pescoço.

Jordan sabia a verdade. Não fora o livro que a curara, não fora o brilho que lhe permitira travessar incólume a barreira.

Perdi-a.

Rhun tocou no braço de Erin e, com um último olhar desolado, ela virou as costas a Jordan.

— Ela foi-se embora — disse uma voz atrás dele.

Era Elizabeth, coberta de sangue, a maior parte seu.

Jordan olhou de relance para o pilar azul em chamas daquele lado, onde Elizabeth estivera a guardar a pedra Aqua. Esta ainda brilhava com intensidade.

— Fui levada dali — explicou Elizabeth — por uma criatura gigantesca com tentáculos...

Jordan não queria saber. Voltou a concentrar-se em Erin.

Elizabeth confirmou o seu pior receio.

— Não ouço o bater do coração.

Uma tristeza desolada inundou as palavras da mulher, chorando a sua própria perda, não a dele.

Elizabeth ajoelhou-se ao lado de Jordan. Como strigoi, podia ter atravessado aquela barreira e saído do gelo. Mas era evidente que não tinha uma razão para o fazer.

Rhun também estava perdido para ela.


CAPÍTULO 43

20 de março, 12h19 NPT
Vale Tsum, Nepal

Erin queria virar-se, desatar a correr para os braços de Jordan.

Rhun parecia ter pressentido o seu desejo, não por estarem ligados pelo sangue, mas porque, simplesmente, conhecia o coração dela, até mesmo este novo silencioso.

— Tens de ir até Lúcifer — disse Rhun. — Esse é o teu destino agora.

Ela sabia que ele tinha razão, por isso continuou a caminhar pelo gelo, com o Evangelho de Sangue apertado junto ao peito, tirando dele força para continuar. A cada passo que dava, o livro brilhava mais intensamente, empurrando a escuridão, queimando através da névoa densa.

Um pequeno grupo de criaturas deformadas investiu na sua direção, abandonando o cerco à volta de Christian e Sophia. Algo negro saltou do nevoeiro por cima deles e mergulhou na sua direção. Erin mal teve tempo de ver a forma reptiliana desprovida de penas, antes de esta chocar contra aquela luz dourada e incendiar-se.

Rhun empurrou Erin para o lado quando o corpo da criatura se despenhou sobre o gelo.

Ao verem isto, as outras criaturas afastaram-se, fugindo daquele brilho, rastejando de volta para a escuridão, não querendo ter nada que ver com aquela luz dourada.

Erin e Rhun continuaram apressadamente, cautelosos com as fendas no gelo, em direção a Christian e Sophia. O par não se estava a sair nada bem. Eram uma ilha no meio de uma massa crescente de demónios.

Christian removera a corrente sagrada da arca e pendurara os elos pesados à volta do seu pescoço, embora a prata o estivesse a queimar. Agitou no ar a ponta solta da corrente, como se fosse uma espécie de boleadeira sagrada, atacando e atingindo os demónios. Atravessou a horda como se aqueles elos fossem feitos de aço derretido.

Ainda assim, o rosto de Christian escorria sangue e as suas vestes estavam em farrapos.

Ao lado dele, Sophia encontrava-se ainda pior. A mulher franzina reparou que eles se aproximavam e talvez fosse precisamente disso que esta à espera, aguentando este tempo todo apenas com a sua força de vontade.

Erin via-o nos seus olhos.

Não o faças...

Sophia fez um derradeiro e corajoso esforço, virando-se e trespassando com a sua lâmina uma criatura pelas costas, antes que esta conseguisse atacar Christian. Mas, ao fazê-lo, foi obrigada a baixar a guarda. A horda estava agora em cima dela, atacando-a e fazendo-a cair por terra.

Christian tentou lutar para se aproximar dela, mas eram demasiados.

Finalmente, Erin chegou junto deles, trazendo consigo a luz dourada, afastando as criaturas. Algo escuro e espinhoso fugiu aos saltos, deixando para trás um corpo caído no gelo.

Erin deslizou pelo gelo até parar e cobriu a boca com a mão.

Não.

Sophia, íntegra e bondosa, estava morta.

Erin tremeu, mas Rhun acalmou-a.

— Só o livro interessa — disse ele. — Tem de chegar a Lúcifer.

Erin anuiu. Ou o sacrifício de Sophia teria sido em vão.

Ainda assim, foi preciso um ligeiro empurrão de Rhun para Erin se mexer. Não tardou muito até que começasse a correr, a voar sobre o gelo, os seus membros movidos por uma força sobrenatural, em direção àquele cone de luz. Os demónios afastavam-se daquela luz, abrindo caminho, mas já não fugiam. Sibilavam e rosnavam à sua passagem, como se soubessem que a apanhariam em breve.

E ainda podiam ter essa oportunidade.

Talvez até o Evangelho de Sangue não conseguisse resistir durante muito tempo a um mal tão manifesto. A luz dourada começava a esmorecer, despedaçada por aquelas névoas, esfarrapada pelo mal aqui presente. Quanto mais avançava, maior o estrago.

Rhun e Christian esforçavam-se ao máximo para compensar, avançando ao seu lado, afastando tudo o que se atrevesse a aproximar-se. Christian agitou a corrente no ar e acertou num macaco sem pelo que se deslocava velozmente aos saltos. O sibilar de carne queimada acompanhou o guincho agonizante da criatura, à medida que esta rolava para fora do caminho deles.

Erin estava concentrada no seu objetivo: Lúcifer continuava a debater-se no seu trono, partindo mais elos. As suas asas, cobertas de penas negras em chamas, batiam contra o brilho que o aprisionava. Cada golpe fazia com que a luz esmorecesse, manchando-a com escuridão.

Erin correu os últimos metros, mas a sua força esmorecia com aquela luz dourada. As suas pernas doíam, os braços pareciam-lhe demasiado pesados até mesmo para segurar no evangelho, e o seu corpo começou a gritar novamente com o desejo de sangue.

À sua frente, Lúcifer debatia-se, tentando partir as correntes de prata que o aprisionavam.

Por fim, ela e os outros chegaram à beira daquele cone brilhante.

Erin abrandou, cambaleando o resto do caminho. Christian ultrapassou-a e estendeu a mão em direção à luz branca. Gritou e retirou o braço, exibindo um coto fumegante que terminava no pulso. A luz queimara-lhe a mão por completo.

Christian cambaleou para cima de Rhun. Por entre a agonia do homem, surgiu uma dor ainda maior: a compreensão de que nem os sanguinistas conseguiam atravessar esta última barreira.

Erin aproximou-se dele, mas, quando a sua luz dourada tocou na barreira, extinguiu-se, fazendo desaparecer o seu escudo. Antes que os sanguinistas conseguissem reagir, uma criatura com uma carapaça negra saltou do nevoeiro atrás dela e agarrou-se às suas costas, prendendo as pernas à sua volta e cravando-lhe as presas no ombro.

Erin gritou.

12h25

Rhun rodopiou e lançou-se com a sua karambit de prata, decepando duas das seis pernas da criatura. Foi o suficiente para Christian conseguir arrancar a criatura das costas de Erin e atirar o monstro para o cone de luz. O seu corpo bateu na barreira e desapareceu numa nuvem de cinzas.

Rhun puxou Erin para trás de si, enquanto ele e Christian enfrentavam a massa crescente de criaturas que tornavam ainda mais sombria a densa neblina. Rhun desembainhou a espada, enquanto Christian girava lentamente a ponta da corrente para a frente e para trás, deixando-a arrastar-se pelo gelo de forma ameaçadora.

— Rhun... — gemeu Erin.

Ele virou-se e viu uma escuridão venenosa estender-se pelo seu decote acima, queimando a sua pele à medida que alastrava. Erin perdeu a força nas pernas. O Evangelho de Sangue caiu-lhe das mãos trémulas.

O que quer que a tivesse mordido, devia ser venenoso.

Ele virou-se para a ajudar quando algo caiu do nevoeiro acima deles e o derrubou sobre o gelo. Parecia ser um morcego, com um aspeto semelhante a couro, de um tamanho gigantesco. Dentes afiadíssimos tentavam morder-lhe o rosto. Com apenas um braço, Rhun teve de largar a espada e agarrar a criatura pela pescoço, mantendo aqueles maxilares longe da sua garganta.

Ao lado deles, Erin começou a desequilibrar-se, tombando em direção à luz branca, mas Christian correu para junto dela e agarrou-a à volta da cintura com o seu braço ferido. Puxou-a para a segurança, depois apanhou o Evangelho do chão gelado e enfiou-o dentro do casaco.

Enquanto Christian recuava, Erin debatia-se por se libertar dele e a sua cabeça oscilava de um lado para o outro, virando o rosto na direção da luz, de Lúcifer.

Até mesmo agora, ela parecia determinada a levar a sua missão até ao fim.

Christian arrastou-a dali para fora, partindo em auxílio de Rhun. Lançou-se com a sua corrente, afastando a criatura semelhante a um morcego, queimando um pedaço da sua pele espessa. A criatura bufou e voou de volta para a escuridão.

Vindas daquela névoa, sombras tenebrosas aproximavam-se, cercando-os.

— E agora? — perguntou Christian.

12h26

O corpo frio de Erin era devorado por um fogo venenoso. Sentiu a carne derreter à volta da ferida da dentada no ombro. O seu sangue corria profusamente ali, como se tentasse apagar aquele fogo. O mesmo veneno consumia-lhe o rosto e corria-lhe pelo braço desse lado.

Outra vez.

Sentia dificuldade em concentrar-se com a dor, a náusea, mas ela sabia que a palavra era importante. Há pouco, começara a cair. Para se proteger, estendera o braço, já repleto de toxinas... e a sua mão e antebraço atravessaram aquela barreira de chamas. A pureza daquela luz arrefeceu-lhe o braço e fez desaparecer aquele veneno sombrio.

Depois Christian agarrou-a e puxou-a para longe da barreira.

A toxina fluía novamente pelo seu braço.

Demasiado fraca para se levantar, apoiou-se no braço de Christian. Sentia dificuldade em falar por causa das bolhas que se tinha formado na sua face, mas tinha de os fazer compreender.

— A luz... eu consigo atravessá-la — disse ela com dificuldade.

— Ela está a delirar — sugeriu Christian.

— Consigo, sim.

Erin virou a cabeça para olhar para Rhun, deixando-o ver a verdade lá escondida, para que confiasse na ligação de sangue que existia entre eles, no seu mútuo entendimento de cada um.

— Ela está a dizer a verdade — afirmou Rhun, olhando de relance para o cone de luz e para o anjo negro que se debatia dentro daquela prisão.

Antes de conseguirem elaborar um plano, as sombras negras do nevoeiro caíram em cima deles. Rhun foi rapidamente separado dos outros. Comprometido pela falta de um braço, Rhun mal conseguia manter as criaturas afastadas da sua garganta, quanto mais voltar para junto deles. Pouco tempo depois, desapareceu entre o nevoeiro, mas continuava a lutar, revelando-se em clarões de prata.

Christian nunca saiu de junto de Erin. Continuava a lutar corajosamente, brandindo a sua corrente de um lado para o outro, abrindo caminho à sua volta e mantendo afastada a horda demoníaca. No entanto, a sua força começava a esmorecer, tendo usado todas as suas reservas a lutar durante tanto tempo ao lado de Sophia.

Christian envolveu Erin com o seu braço ferido e apertou-a com mais força, contemplando o clarão que mantinha Lúcifer aprisionado. Brandiu a sua corrente mais uma vez, atingindo uma cobra enorme com tanta força que o sangue esguichou do seu corpo e salpicou o cone de luz, sendo queimado por completo com um sibilar.

Em seguida, retirou os elos pesados de cima dos ombros.

Erin franziu o sobrolho.

— O que estás...

— Parece que isto não pode ser feito sem sacrificar um cristão. — Um sorriso iluminou-lhe as feições. — Vou ter saudades tuas, doutora Erin Granger.

Ela compreendeu.

Não...

Christian envolveu-a nos braços e saltou bem alto, usando as suas últimas forças para passar a grande velocidade pelas criaturas mais próximas. Juntos, embateram contra a barreira. O corpo dele ficou reduzido a cinzas à volta de Erin e ela passou para o outro lado. Aterrou em segurança dentro do cone, deslizando sobre a anca, o choro preso na sua garganta. O Evangelho de Sangue deslizou pelo chão e bateu-lhe nos pés, tão incólume quanto ela.

Erin sentou-se, sentindo a força regressar, o veneno negro eliminado do seu corpo pela passagem através da luz. Ela olhou fixamente para além da barreira, observando tudo o que restava do seu amigo engraçado, irreverente e corajoso a desaparecer numa chuva de brasas ardentes.

Christian merecia melhor. Ele sacrificara-se para que Erin entrasse no cone de luz. Ela tencionava fazer com que a dívida fosse paga na íntegra.

Pegou no Evangelho de Sangue e virou-se para enfrentar o prisioneiro.

Lúcifer encontrava-se sentado no seu trono, já sem se debater, olhando para baixo, para ela, claramente curioso e, ao mesmo tempo, surpreendido com a sua presença.

Erin não se encolheu perante aquele olhar intenso e sombrio. Dera a sua vida e a sua alma para estar ali, à frente dele. E agora, já só tinha uma coisa para dar.

Ergueu o livro sobre as palmas das mãos.

Somente Eva podia colher o fruto da Árvore do Conhecimento e somente a filha de Eva podia trazer esse conhecimento de volta à serpente.

Os lábios de Lúcifer moveram-se, mas não saiu deles qualquer palavra, apenas um som, como o repicar de um grande sino. No entanto, tal metáfora ficava aquém da verdadeira beleza daquele som, da voz de um anjo, da música das esferas. O sino repicou novamente, cristalino e inquiridor.

Ele estava a falar, mas Erin não o percebia.

Ergueu o livro mais alto, na esperança de que ele percebesse, se não as palavras dela, pelo menos as suas ações.

— Aqui está o Evangelho de Cristo, escrito com o Seu próprio sangue e escondido durante muitos anos. A minha tarefa é trazê-lo até ti, e cumprir o pacto que foi feito com Eva há muito tempo.

Aquela cabeça inclinada para o lado, aquelas feições imaculadas e indecifráveis.

Erin abriu o livro entre as palmas das mãos para lhe mostrar. Quando a capa se abriu, uma luz dourada brilhou intensamente. Mesmo sem olhar, ela sabia que aquelas páginas estavam a transbordar de letras que brilhavam, todas escritas em enoquiano.

Lúcifer inclinou-se para baixo, depois estendeu uma mão gigantesca na direção dela.

Erin queria fugir, mas não o fez.

Assim que os dedos dele se aproximaram o suficiente, Erin fechou o livro e fê-lo deslizar suavemente para as suas mãos negras. Ele voltou a encostar-se no trono, levando o livro consigo. Com um dedo cor de ébano abriu a capa, e aquela luz dourada brilhou com maior intensidade, resplandecendo de forma tão majestosa que encandeou Erin.

Ela teve de desviar o olhar, aquele brilho era mais intenso e terrível do que mil sóis em eclipse. Ainda assim, sentia aquela luz atravessar-lhe o crânio e as pálpebras fechadas. Por um momento, sentiu fragmentos de conhecimento presos dentro da sua cabeça: os segredos da criação, o movimento das estrelas, o código secreto da vida. No entanto, esses fragmentos vibravam dentro dela, rodopiando como folhas num remoinho. Ela tentou trazê-los à consciência, embora soubesse que tais conhecimentos a poderiam destruir.

Assim, Erin aguentou a tempestade, esperando que esmorecesse, o que acabou por acontecer, acompanhado por um som estridente que atraiu o seu olhar para cima.

Lúcifer ainda estava sentado no seu trono, mas as correntes encontravam-se caídas aos seus pés.

Ele estava livre.

Contudo, não foi isso que fez com que Erin caísse de joelhos. O corpo de Lúcifer já não era negro, mas sim branco como mármore polido, radiante com um fogo interno que emanava dos seus olhos, enquanto olhava para cima, com o evangelho fechado sobre o seu colo. A escuridão dos seus pecados fora lavada do seu corpo, da mesma maneira que o veneno o fora da carne de Erin.

Lúcifer fora redimido.

A sua beleza e a sua glória brilhavam com tanta intensidade que o resto do mundo parecia ser sombrio e insubstancial. O cone de luz, os fragmentos ardentes da pirâmide de fogo partida, tudo isso desaparecera, consumido pelo brilho sagrado.

Ao longe, Erin conseguia discernir o lago escuro, as montanhas cinzentas e o céu azul. Até mesmo o maravilhoso dia de inverno iria regressar quando o eclipse terminasse. No entanto, tudo parecia distante, o sonho de um outro mundo.

Por uns instantes, essa visão mudou, enchendo-se de luz quente, derretendo o inverno num verão de relva verdejante, águas azuis e um sol vermelho escaldante. Junto aos penhascos, duas árvores montavam guarda, as suas copas densas com folhagem abundante, os seus ramos pesados com fruta madura.

Será isto o Jardim do...

Ouviu-se novamente o repicar dos sinos, impossível de ignorar, atraindo o olhar de Erin de volta para Lúcifer. Contudo, este repicar jubiloso surgiu não da redenção de um anjo, mas dos céus acima. O coro era de alegria e boas-vindas, convidando Lúcifer a regressar. Passados todos estes anos, eles queriam que Lúcifer regressasse a casa.

Lúcifer levantou-se, estendendo as suas asas, cobertas agora com chamas brancas.

Sem nunca abandonar com o olhar a promessa do Céu, Lúcifer inclinou-se para baixo e colocou um dedo sobre a cabeça de Erin. Com aquele toque, um calor intenso percorreu-a, inundando o seu corpo de cima a baixo. A alegria borbulhou dentro dela como uma fonte.

Foi então que um tambor soou uma vez nos ouvidos dela, depois outra vez, mais baixinho.

Ela reconhecia aquele ritmo, tendo-o ouvido a sua vida toda.

Era o bater do seu próprio coração.

Erin cobriu o rosto, um choro de felicidade escapou-lhe. Lúcifer trouxera-a de volta à vida. Ela sacrificara a sua vida por ele, e ele retribuíra.

Os sinos repicavam ainda mais alto agora, com um toque insistente, premente.

Estava na hora de este anjo luminoso regressar ao lugar que era seu.

Lúcifer bateu as suas asas e levantou voo, pairando sobre o vale. Deixou-se ficar durante algum tempo no ar, segurando o livro junto ao peito.

Depois olhou para baixo, talvez pela última vez.

O seu olhar percorreu o lago, a sua superfície novamente congelada. Por cima do lago e pelo vale, formas negras rastejavam, deslizavam e vagueavam, os seus movimentos completamente fora deste mundo. Fugiam e contorciam-se, choramingavam e uivavam, sabendo que o seu caminho para casa fora fechado para sempre.

Lúcifer olhou para baixo, não com aversão, nem pena. Em vez disso, o amor emanou do seu corpo. Abriu a boca e deixou escapar uma nota sombria. As criaturas que se encontravam mais próximas, pararam de imediato. Mais uma vez, de cabeça inclinada, a olhar fixamente lá para baixo, talvez a pensar no mal que tais demónios podiam libertar sobre o nosso mundo.

Se Lúcifer se fosse embora, o reino terreno poderia estar condenado.

Como se estivesse à procura da resposta certa, Lúcifer abriu o evangelho mais uma vez, permitindo que aquela luz dourada brilhasse sobre o seu rosto. Passado um momento, um brilho de certeza emergiu nos seus olhos, talvez até uma ponta de remorso.

Lúcifer olhou para o céu uma última vez, depois voou com as suas asas de fogo de volta para o lago congelado, tocando ao de leve no gelo. Pressentindo o que estava por vir, Erin recuou até sentir mãos frias tocarem na sua pele quente.

Rhun...

Enquanto mais um repicar sombrio emanava de Lúcifer, Rhun puxou Erin para o seu lado. O alívio estava estampado no seu rosto. Ele sabia que ela era novamente humana. No entanto, agora não era a melhor altura para fazer uma reunião. Agarrou na mão dela e, juntos, correram pelo gelo em direção à margem.

Demónios e abominações de todo o tipo passaram por eles, respondendo ao toque de sirene do seu amo, apressando-se a voltar para junto de Lúcifer.

Erin avistou Jordan de pé, com Elizabeth, junto à margem. O leão veio a correr para cima do gelo, pulando em redor das pernas deles, cada movimento seu pleno de alegria, insistindo para que se juntassem todos.

Erin não precisava que o leão insistisse muito.

Libertou-se de Rhun e desatou a correr para Jordan.

Ele foi ao encontro dela a coxear, com um braço ligado junto à ferida na barriga.

— Cuidado, minha senhora — avisou ele, mas o seu sorriso era um convite caloroso.

Erin chocou com ele sem abrandar e abraçou-o com força, tencionando nunca mais o largar.

Contudo, Rhun mandou-os sair do lago.

— Continuem — ordenou ele. — Para o mais longe possível do lago.

Todos obedeceram, abrigando-se junto às duas árvores antigas. Só então pararam e se viraram. Por debaixo daquela copa gelada, Erin manteve-se sempre colada a Jordan.

Por aquela altura, já os demónios se tinham juntado todos à volta de Lúcifer, ensombrando o brilho daquele anjo.

Lúcifer olhou na direção de Erin. Uma luz prateada refletia-se do seu rosto, emanando paz e aceitação, sabendo claramente o que estaria a sacrificar com a sua próxima ação. Ergueu as asas bem alto e bateu-as. Um clarão de luz brilhou, cegando-os, mas não antes de Erin ver um buraco negro abrir-se por baixo da horda demoníaca e as sombras caírem, levando com elas aquela estrela brilhante.

Quando o brilho esmoreceu, o lago estava vazio, completamente congelado.

Lágrimas correram dos olhos de Erin.

— Ele escolheu voltar para lá — disse ela. — Ele poderia ter ascendido ao Céu, mas voltou para lá para guardar os demónios, para manter tudo em segurança.

— Porque tu o redimiste. — Rhun tocou na cruz que trazia ao peito. — Face a tanta glória, ele optou por servir no Inferno, em vez de no Céu.


CAPÍTULO 44

22 de março, 10h42 CET
Cidade do Vaticano

Dois dias depois dos acontecimentos no Nepal, Elizabeth encontrava-se sentada à cabeceira da cama de Tommy.

Um guarda sanguinista trouxera-a até lá e esperava do lado de fora da porta. Era uma pequena cedência que tinha de fazer para poder ver Tommy, para saber onde o rapaz estava hospedado na Cidade do Vaticano. Ela tencionara avaliar o estado de saúde de Tommy e elaborar os seus planos. E, na pior das hipóteses, sabia que seria capaz de subjugar facilmente o guarda solitário e levar Tommy dali, antes que qualquer pessoa desse por isso.

Quando chegou, encontrou Tommy a dormir, parecendo muito mais doente do que alguma vez imaginara. O seu coração estava doente e fraco. A sua pele pálida era apenas uns poucos tons mais escuros do que a almofada onde descansava a cabeça. E os seus braços, cruzados por cima do cobertor, estavam cobertos de nódoas negras.

Tenho de fazer alguma coisa rapidamente.

Como que sentindo a sua presença, os olhos castanhos do rapaz abriram-se, lembrando-lhe um cervo — rechonchudo e inocente. Ele pestanejou, depois esfregou as pálpebras com os nós dos dedos.

— Elizabeth? És mesmo tu?

— É claro que sou eu! — As suas palavras saíram mais ásperas do que tencionara.

— Ouvi dizer que tinhas regressado.

Tommy sentou-se com dificuldade, mas ela não lhe ofereceu qualquer ajuda, sabendo como ele prezava a sua autonomia. Ainda assim, para disfarçar o choque ao ser confrontada com a sua fraqueza extrema, ajustou-lhe a almofada atrás das costas para garantir que ele estava bem apoiado.

— Também ouvi dizer que vocês salvaram o mundo... outra vez — gracejou ele com um sorriso cansado. — E que tu és uma heroína entre os sanguinistas.

— Eu nunca quis ser considerada uma heroína pelos sanguinistas — respondeu ela.

Tommy franziu o sobrolho.

— Mas eu pensava que eras um deles agora.

— Fiz os votos deles, sim.

— Ótimo.

Elizabeth ficou tensa.

— Porque é que isso é ótimo?

— Não sei — respondeu ele com um encolher de ombros. — Podes travar amizade com outros sanguinistas. Não terás de estar sempre sozinha. Nem sequer terás de caçar.

A preocupação de Tommy por ela emocionou-a.

— Eu encontrei outra maneira.

Ela contou-lhe o que descobrira em França, que existia outra forma de viver fora dos vínculos da Igreja, sem se tornar vítima da sua própria natureza selvagem.

— Mas os sanguinistas não vão atrás de ti se tentares abandonar a Igreja? — indagou ele.

— Já andam atrás de mim há muitos anos, mas ainda aqui estou.

Tommy ficou em silêncio, as suas mãos brincavam com o cobertor e estava claramente a evitar olhar diretamente para ela.

— O que foi? — perguntou ela.

— Quando te vais embora?

Ela não elaborara essa parte do plano, e disse-o.

— Ainda não decidi.

— Então, ficas pelo menos... até eu partir? — Tommy olhou para o crucifixo pendurado na parede, para a porta, para a janela, para todo o lado à exceção de Elizabeth. — Já não falta muito, penso eu.

— Eu vou ficar contigo — prometeu ela —, mas não para te ver morrer. Mas para te ajudar a viver.

Tommy cobriu o pescoço com a mão, sabendo o que ela queria dizer.

— Não.

— Não?

— Não me quero tornar um monstro.

— Mas não tens de ser um monstro. — Parecia que não tinha sido suficientemente clara. — Eu contei-te o que aconteceu em França, nos Himalaias, sobre a outra maneira.

Ele abanou violentamente a cabeça.

— Estou pronto para morrer. Devia ter morrido em Massada com os meus pais.

— Terás tempo para morrer — afirmou ela —, mas não tão cedo.

— Não — repetiu ele, caindo sobre as almofadas. O esforço que fizera para discordar dela fora demasiado. — Não quero ser imortal. Não quero viver de sangue ou de vinho. Já vi essa vida e não a quero.

Elizabeth tocou-lhe na mão. Era mais quente do que a sua, mas mais fria do que deveria ser. Podia levá-lo. Seria fácil. Ela era mais forte. Já perdera a conta a quantos humanos matara e transformara. Centenas. Mas ele seria o primeiro que mataria por amor.

Tommy apertou-lhe a mão.

— Por favor, deixa-me ir.

— Não sabes do que estás a falar.

— Sei sim — replicou ele. — Eu vi Rasputine, e Bernard, e Rhun, e os outros. Eu sei como é que eles vivem. Eles não são felizes, e eu também não o seria.

O que sabia ele sobre a felicidade ou a vida? Tinha catorze anos, e passara dois deles a morrer desta doença. Ela podia transformá-lo. Com o tempo, ele poderia vir a perdoá-la, e, mesmo que não o fizesse, pelo menos estaria vivo. Elizabeth não conseguia suportar a ideia de ele morrer.

Aqueles olhos castanhos fitavam intensamente os dela. Tinham visto muito naqueles poucos anos de vida e, ainda assim, refletiam inocência e bondade. Eram escuros, como os de Rhun, mas ela nunca vira felicidade pura ou inocência nos olhos de Rhun. A imortalidade também lhe fora imposta, mas não se adequava a ele. Rhun não era um assassino. Ele sempre estivera destinado a ser padre, a servir os outros. Tornar-se strigoi fora uma perversão da sua natureza.

Tal como seria uma perversão da natureza de Tommy.

Como posso eu impor-lhe a minha vontade e perverter essa inocência?

Seria um ato egoísta. Estaria a tirar-lhe a alma para poupar a sua à dor de perder outro filho. Não o podia prejudicar para se poupar. Jamais.

Tommy devia ter visto a mudança nos olhos dela, pois descontraiu-se e sorriu-lhe.

— Obrigado — sussurrou ele.

Elizabeth desviou o olhar e pestanejou para conter as lágrimas. Ele iria sofrer e acabar por morrer, e ela não o poderia salvar. Levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a janela, virando-se de frente para as persianas para que ele não a visse chorar. Ela sofreria em silêncio e ficaria ao seu lado até ao fim. Respirou fundo e evocou todas as forças que tinha.

— Talvez devêssemos ir lá para fora dar um passeio ao sol? — sugeriu ela. Estava determinada a ajudá-lo a desfrutar o tempo que lhe restava.

Antes que ele tivesse tempo para responder, ouviu-se bater à porta. Sem esperar autorização, Rhun entrou de rompante, com a cria de leão a segui-lo de perto.

— Desculpem a intrusão. — Rhun olhava alternadamente para Elizabeth e para Tommy. — Ouvi dizer que estavas aqui, irmã Elizabeth, e eu...

Ela repreendeu-o com o olhar, sabendo o que o trouxera ali de forma tão intempestiva. Rhun temia que ela transformasse o rapaz.

— Estou bem — disse Tommy.

Ela sorriu, olhando para o seu rosto pálido.

— Essa é a verdade.

O leão passou a correr por Rhun e saltou para cima da cama. Os seus olhos dourados prenderam-se nos de Tommy, e os dois estudaram-se mutuamente com imensa atenção.

— Apresento-te o leão de Rhun — disse ela, numa espécie de apresentação.

Tommy parecia surdo para as palavras de Elizabeth, perdido no olhar intenso do animal, como se se conhecessem.

Rhun ficou a observar e sussurrou baixinho:

— A cria reagiu da mesma maneira quando conheceu Jordan pela primeira vez. Acho que é por causa do sangue angelical que uma vez partilharam. Os três carregaram a essência angelical do arcanjo Miguel em alguma altura das suas vidas.

A cria debruçou-se para a frente e roçou a cabeça na face do rapaz, quebrando o encantamento e provocando uma gargalhada sonora.

O coração de Elizabeth doeu ao ouvir aquele som, sabendo quanto iria sentir a sua falta.

Rhun dirigiu-se para a janela e abriu as persianas. A luz do Sol inundou o quarto, mas não a incomodou tanto como incomodara há uns dias.

O leão deleitou-se ao sol da manhã, espreguiçando-se ao lado de Tommy. Um ronronar baixinho ecoou daquele peito felpudo. O som estava repleto de amor, satisfação e puro prazer.

Enquanto ouvia, Elizabeth sentiu uma estranha sensação de calor percorrer-lhe o corpo, deixando-a ligeiramente tonta. Encostou-se a um dos postes da cama até passar.

Talvez não esteja tão habituada à luz do Sol como pensava.

Tommy ergueu uma mão pálida e acariciou o pelo cor de neve do leão, com um sorriso melancólico nos lábios.

Se não fosse por mais nada, era bom ver o rapaz feliz. Até o batimento do seu coração parecia mais forte, e o seu sangue corria de forma mais intensa pelas suas veias.

Então, Elizabeth recuou em choque, não conseguindo tirar os olhos da pele pálida de Tommy.

— O teu braço — disse ela.

Tommy olhou para baixo, confuso, ficando depois igualmente surpreendido.

— As minhas nódoas negras...

— Desapareceram! — exclamou ela.

O leão levantou a cabeça com toda aquela agitação e abriu os olhos sonolentos. Os olhos da cria cor de neve já não eram dourados. Eram apenas castanhos, como os de Tommy.

— Rhun... — disse Elizabeth, virando-se para Rhun à espera de uma explicação.

Rhun pôs um joelho no chão, tocou na cruz que trazia ao peito e examinou o leão e a pele de Tommy.

— Sinto-me melhor — declarou Tommy, os seus olhos arregalados, como se estivesse surpreendido por dizer aquelas palavras.

Elizabeth sorriu. Tentou evitar, mas a esperança inundou-lhe o coração há muito gelado.

— Está curado?

Rhun levantou-se.

— Não sei. Mas parece que a essência angelical da cria desapareceu. Jordan regressou do Nepal sem qualquer indício desse espírito no sangue. Provavelmente, o que restava da essência no leão precisava de realizar um último milagre.

Elizabeth lembrou-se da estranha sensação de calor que sentira com o ronronar do felino. Fora isso que acontecera? Ultimamente, pouco lhe interessava o mecanismo da cura, apenas a cura em si.

— Vamos dizer aos médicos para o examinarem — prometeu Rhun —, mas eu acho que ele é apenas um rapaz como outro qualquer, um rapaz que se curou da sua doença, mas continua a ser um rapaz.

O sorriso de Tommy ficou maior.

Elizabeth aproximou-se dele e afagou-lhe o cabelo grosso e quente. Isso era tudo o que ele sempre quisera: ser um rapaz como outro qualquer.

Depois de alguma conversa trivial e promessas, Elizabeth seguiu Rhun para o corredor, seguidos de perto pela cria.

— Fico feliz por não o teres transformado — disse Rhun, assim que estavam suficientemente longe para que Tommy não os ouvisse.

— Pensaste que ia fazê-lo? — Elizabeth arregalou os olhos, tentando mostrar uma inocência em que Rhun não acreditava.

— Tive medo que o fizesses — admitiu ele.

— Eu sou mais forte do que pensas — disse ela.

— O que vai ser do rapaz?

— Terá de voltar para junto dos tios, e vou garantir que assim seja — disse Elizabeth. — Uma pessoa como eu não daria uma boa mãe para ele.

— Serás simplesmente capaz de o entregar?

— Não será simples. — Elizabeth ergueu o queixo. — E não o entregarei por completo. Irei sempre olhar por ele, aparecer quando ele precisar e deixá-lo em paz quando não for esse o caso.

— Duvido que a ordem te permita manter o contacto com ele.

Elizabeth riu-se.

— Eu não sou propriedade deles. Irei fazer o que quiser.

— Serias capaz de abandonar a ordem? — Rhun engoliu em seco. — E eu?

— Não posso ficar ligada à Igreja. Devias saber isso melhor do que ninguém. Enquanto aqui estiveres, não poderemos ficar juntos.

— Então, teremos de nos despedir em breve — concluiu Rhun, tocando-lhe no braço, fazendo-a parar. Elizabeth virou-se para ele. — Foi-me dada autorização para me retirar, para começar um período de isolamento e reflexão no Santuário da ordem.

Elizabeth queria troçar dele, ridicularizá-lo por virar as costas ao mundo, mas, quando ouviu a alegria sincera na sua voz, só conseguia olhar para ele com tristeza.

— Vai então, Rhun, encontra a tua paz.

17h06

Rhun percorria os corredores do Santuário com uma alegria silenciosa, disposto a abandonar, finalmente, as suas preocupações terrenas. Caminhava sozinho, os seus passos ecoavam pelas câmaras e passagens amplas. Com a sua audição apurada, conseguia ouvir os murmúrios de orações distantes, marcando o início das vésperas.

Continuou a embrenhar-se no Santuário, descendo a níveis em que até esses murmúrios se tornavam praticamente inaudíveis.

O mundo luminoso em cima não tinha mais nada para lhe oferecer. Antes de o cardeal Bernard o ter enviado para Massada, para procurar o Evangelho de Sangue, Rhun estava disposto a viver uma vida de reclusão no Santuário. Sentia-se ainda mais disposto agora.

Está na hora.

A partir deste momento, os tetos altos do Santuário seriam o seu céu. Absorto na meditação, os padres sanguinistas iriam trazer-lhe o vinho, tal como ele o fizera outrora a outros. Podia descansar aqui, no seio da Igreja que o salvara há tantos anos. O seu papel de Cavaleiro de Cristo terminara, e não precisava de servir novamente a Igreja. Estava livre dessas responsabilidades agora.

Rhun inclinou a cabeça para a frente numa vénia quando chegou ao domínio dos Enclausurados. Aqui, os seus irmãos e irmãs descansavam em paz, de pé em nichos ou deitados na pedra fria, abstendo-se das questões carnais em prol da contemplação e reflexão. Fora-lhe dada uma cela ali em baixo, onde durante um ano não falaria, onde as suas preces ficariam para si mesmo.

Mas antes de entrar parou e acendeu uma vela à frente do friso de um santo padroeiro, apenas um entre as centenas de pequenos momentos de veneração encontrados por todo o Santuário. Ajoelhou-se, à medida que o brilho da chama tremeluzia sobre as feições de uma figura de manto que se encontrava de pé, debaixo de uma árvore, com pássaros pousados nos ramos e nos ombros do santo: São Francisco de Assis. Fez uma vénia com a cabeça, lembrando-se de Hugh de Payens e do sacrifício que ele fizera para os salvar e a tantos outros.

Rhun despedira-se de Jordan e Erin de manhã, no aeroporto, antes dos seus voos de regresso aos Estados Unidos da América e às suas vidas felizes. Eles ainda estavam vivos porque um herói como Hugh morrera. Apesar de o eremita ter virado costas à ordem, Rhun tencionava que ele fosse homenageado, nem que fosse apenas desta pequena forma.

Obrigado, meu amigo.

Fechou os olhos e moveu os lábios em oração. Passado algum tempo, bem depois de as vésperas terminarem, uma mão tocou-lhe no ombro, tão leve como a asa de uma borboleta.

Rhun virou-se e deparou-se com uma figura alta atrás de si.

Surpreendido com a visita, Rhun fez uma vénia ainda maior com a cabeça.

— Que honra — sussurrou ele perante o Ressuscitado, o primeiro da ordem a que pertencia.

— Levanta-te — disse Lázaro, a sua voz rouca por causa da idade.

Rhun obedeceu, mas continuou a olhar para o chão.

— Porque estás aqui, meu filho? — perguntou Lázaro.

Rhun gesticulou para as figuras silenciosas mais próximas, cobertas de pó, imóveis como estátuas.

— Vim partilhar com elas a paz do Santuário.

— Deste tudo o que tinhas à ordem — disse Lázaro. — A tua vida, a tua alma e os teus serviços. Darias agora o resto dos teus dias?

— Sim. Eu dei tudo isso de boa vontade, para uma causa maior. Eu existo apenas para O servir, com um coração simples e honesto.

— No entanto, entraste nesta vida por meio de uma mentira. Não estavas destinado a servir desta forma. Poderias ter seguido outro caminho, e ainda o podes fazer.

Rhun levantou a cabeça, não ouvindo censura, mas apenas mágoa na voz de Lázaro. Ele não compreendia. Lázaro virou-se de costas para ele e afastou-se, fazendo com que Rhun o seguisse.

Lázaro passou pelas figuras imóveis de freiras e padres que tinham ido para ali à procura de paz.

— Já não paguei o suficiente pelos meus pecados? — perguntou Rhun, receando que lhe fosse negada essa paz.

— Tu não pecaste — respondeu Lázaro. — Pecaram contra ti.

Rhun continuou a seguir a figura sombria, a sua mente num turbilhão, enumerando os pecados que cometera na sua longa vida e aqueles que tinham sido cometidos contra si. Contudo, não encontrou qualquer esclarecimento.

Lázaro continuou a conduzi-lo para as profundezas do Santuário, por corredores cada vez mais escuros, onde as figuras usavam vestimentas antigas e deambulavam com a cabeça inclinada para o chão ou erguida para o teto. Rhun ouvira falar deste lugar, para onde vinham aqueles que procuravam não só reflexão eterna, mas também absolvição, refletindo sobre o significado dos pecados... dos seus e os dos outros.

Rhun olhou em volta, fitando aqueles rostos ensombrados pela humilhação.

Porque fui trazido para aqui?

Por fim, Lázaro parou diante de um padre que se encontrava de pé com a cabeça inclinada para baixo. Ele usava as vestimentas castanhas simples que Rhun usara há muito tempo, durante a sua vida mortal. Embora Rhun não lhe conseguisse ver o rosto, sentia nele alguma familiaridade.

Deve ser um dos meus irmãos de há muito tempo que decidiu retirar-se para uma vida de contemplação.

Lázaro inclinou-se para o rosto do homem, a sua respiração agitou o pó que se instalara sobre a orelha da figura.

Por fim, o homem levantou a cabeça, revelando um rosto que assombrara os pesadelos de Rhun durante mais de quatrocentos anos. Rhun cambaleou para trás, como se tivesse sofrido um golpe profundo.

Não pode ser...

Rhun estudou os longos cabelos negros, as sobrancelhas arqueadas, aqueles lábios cheios. Lembrava-se daqueles lábios encostados à sua garganta, daqueles dentes cravados na sua pele. Ainda conseguia sentir o sabor do sangue do homem na sua língua. Ainda agora, o seu corpo se lembrava daquele êxtase. Ainda agora, sentia que estavam ligados.

Aqui estava o strigoi que o atacara junto à campa da sua irmã, que lhe arrancara a alma do corpo, acabando com a sua vida enquanto mortal. Rhun pensava que a besta fora morta. Lembrava-se de ter visto a criatura a ser arrastada pelos guardas sanguinistas leais a Bernard.

No entanto, aquele monstro usava agora as vestimentas da ordem.

O homem abriu os olhos e olhou para Rhun com imensa ternura. Tocou num dos lados do pescoço de Rhun, onde os seus dentes tinham perfurado a carne dele. Os seus dedos demoraram-se aí.

— Pensei que estava a servir quando cometi este pecado terrível contra ti.

— A servir? A servir quem?

O homem tirou a mão e fechou novamente os olhos, com a consciência a esmorecer.

— Perdoa-me, meu filho — disse o homem, a sua voz tornando-se um mero sussurro. — Eu não sabia o que fazia.

Rhun esperou por mais, por algumas palavras que permitissem fazer sentido daquela impossibilidade.

— Ele é o símbolo da mentira — explicou Lázaro. — A mentira que te roubou do teu caminho piedoso de serviço a Deus e te atirou para uma longa jornada de servidão dentro da nossa ordem.

— Não compreendo — exclamou Rhun. — Que mentira é essa?

— Tens de perguntar a Bernard — respondeu Lázaro, pegando no cotovelo de Rhun e encaminhando-o de volta para a entrada do Santuário.

Quando chegaram ao portão, Lázaro mandou-o sair rapidamente.

Rhun hesitou junto à ombreira, com receio de deixar a proteção do Santuário, não querendo ficar a saber estes últimos segredos.

Contudo, Lázaro bloqueou a entrada, não lhe deixando outra escolha.

— Compreende o teu passado, filho, para compreenderes o teu futuro. Aprende quem realmente és. Depois escolhe onde queres passar os teus dias.

Rhun partiu. Não sabia dizer como os seus pés tinham encontrado o caminho para cima, através dos túneis, até à Basílica de São Pedro. Enquanto subia, formou-se na sua cabeça uma imagem daquela noite em que fora transformado, de como fora encontrado por sanguinistas antes de pecar, de como fora trazido à presença de Bernard e de como o cardeal o convencera a renegar a sua natureza maligna e a viver a vida dos sanguinistas.

Todos os caminhos iam dar a Bernard.

As palavras do homem lá em baixo ecoaram uma e outra vez na cabeça de Rhun.

Pensei que estava a servir quando cometi este pecado terrível contra ti.

Rhun conhecia o significado por detrás daquelas palavras.

Bernard sabia das suas visitas noturnas à campa da irmã. Sabia que Rhun estaria na rua à noite, sozinho e vulnerável. Fora Bernard quem enviara um dos membros da ordem para o cemitério, fazendo-se passar por strigoi, para o transformar, para o recrutar, para tornar a profecia realidade e para criar o Escolhido, um sanguinista que nunca provara sangue humano. Bernard sabia, através de profecias com centenas de anos, que apenas o Escolhido da ordem podia encontrar o Evangelho de Sangue perdido.

Por isso, Bernard criara um.

Enquanto começava a compreender, um surto de raiva ardeu dentro dele como um fogo purificador. Bernard roubara-lhe a alma e Rhun agradecera-lhe por isso mais de mil vezes.

Toda a minha existência foi uma mentira.

Como se estivesse no meio de um sonho, Rhun deu por si a entrar no Palácio Apostólico, em direção ao escritório de Bernard, onde o cardeal ainda estava autorizado a trabalhar enquanto esperava ser julgado pelo crime de sangue que cometera contra Elizabeth. Rhun não bateu quando chegou à porta. Irrompeu pela sala como uma tempestade.

Bernard levantou os olhos da secretária coberta de papéis, os seus olhos arregalados com a surpresa. O homem usava a sua sotaina escarlate, as suas luvas vermelhas, tudo o que era próprio do seu cargo.

— Rhun, o que aconteceu?

Rhun mal conseguia falar, a raiva que sentia estrangulava-o.

— Foste tu que deste a ordem que me roubou a alma.

Bernard levantou-se.

— O que estás a dizer?

— Foste tu que mandaste a besta que me transformou numa abominação. Conduziste-me até aos braços de Elizabeth e tiraste-lhe a alma. A minha vida, a minha morte, tudo isso foi manipulado por ti, a fim de forçar a vontade de Deus, de manipular a profecia à tua vontade.

Rhun observou, enquanto Bernard escolhia cuidadosamente as palavras, procurando a melhor resposta para estas acusações.

Por fim, Bernard resolveu contar a verdade.

— Então sabes que o que eu fiz estava certo.

— Certo? — A palavra irrompeu furiosamente dos lábios de Rhun, repleta de amargura e sofrimento.

— Agora que as profecias passaram, terias feito alguma coisa de maneira diferente? Tu sabes o preço que o mundo pagaria se tivéssemos fracassado.

Rhun abanou a cabeça com fúria. Bernard arrancara-o da sua família, condenara-o a uma eternidade a desejar ardentemente sangue, fizera-o acreditar que o serviço à Igreja era o único caminho possível e transformara a mulher que ele amava numa assassina.

Tudo para salvar o mundo nos seus termos. Para cumprir a profecia que poderia nunca ter acontecido se não tivesse interferido. Para manter os sanguinistas na escuridão em relação às suas escolhas para além da Igreja e para além do seu controlo.

Aos olhos de Bernard, qualquer sacrifício valia a pena para alcançar esse fim. O que era o sofrimento de um homem comparado com o do mundo? Uma condessa? Uns quantos sanguinistas?

Enojado e traído, Rhun virou-se e saiu do gabinete de Bernard.

Bernard gritou-lhe:

— Não te precipites, meu filho!

Mas não era precipitado. A sua traição demorara anos a preparar.

Rhun correu para o jardim papal, precisando de apanhar ar fresco, com o céu aberto em cima. Como já era noite, o ar estava seco e frio. As estrelas salpicavam o céu. Uma Lua enorme brilhava bem alto.

Lázaro enviara-o para a superfície para descobrir a verdade e poder escolher livremente o seu destino, escolha essa que Bernard lhe negara. A ele e a todos os outros sanguinistas. A verdade sobre Hugh e os strigoi budistas já se espalhara pela ordem, e outros enfrentavam a escolha que Rhun enfrentava esta noite: como e onde passar a sua eternidade.

Embrenhou-se nos jardins, até sentir um cheiro familiar.

O leão percorreu o terreno aos saltos, um pedaço de luar prateado a correr sobre a relva escura, perseguido por um porteiro irritado.

— Volta aqui, Nebuchadnezzar !

A cria correu para Rhun e chocou com força nas suas canelas, depois roçou-se furiosamente contra as suas pernas. O leão ia ser levado para Castel Gandolfo na manhã seguinte, ficando ao cuidado de frei Patrick, mas alguém decidira que devia ao leão uma última corrida pelos jardins por ter salvado a vida de Tommy.

Elizabeth correu até ele, usando calças de ganga pretas, sapatilhas brancas e uma camisola carmesim por baixo de um casaco ligeiro. Tinha o cabelo solto, com os caracóis a balouçar à frente do seu rosto, soprados pelo vento que corria pelo jardim. Nunca estivera tão bonita.

Praguejou em húngaro.

— As criaturas amaldiçoadas não obedecem.

— Contudo, deste-lhe um nome — disse Rhun. — Nebuchadnezzar.

— O rei da Babilónia — explicou Elizabeth, puxando o cabelo para trás, desafiando-o a troçar dela. — Foi Erin que sugeriu. Eu achei mais do que adequado. E, para que saibas, vou levá-lo comigo quando me for embora.

— Vais mesmo?

— Ele não deve ficar preso num estábulo qualquer. Precisa de campos abertos, céus intermináveis. Ele precisa do mundo.

Rhun olhou fixamente para ela, amando-a com todo o seu coração. Quando se aproximou e lhe pegou na mão, os dedos fortes dela entrelaçaram-se nos dele. Ela inclinou o rosto para o lado e fitou-o intensamente, talvez pressentindo quanto ele mudara desde aquela manhã.

— Mostra-me — sussurrou ele.

Ela aproximou-se dele, começando a perceber.

— Mostra-me o mundo.

Rhun inclinou-se para ela e beijou-a, de forma intensa e apaixonada, sem qualquer dúvida. Não era o beijo casto de um padre.

Pois ele já não era um padre.


E A SEGUIR...

Finais da primavera
Des Moines, Iowa

Paz e sossego, finalmente...

Enquanto o Sol descia lentamente no horizonte, Erin entrou no caramanchão de pau-brasil e inspirou o aroma delicado das rosas que trepavam pelas treliças que o rodeavam. Sentou-se num banco e recostou-se para trás.

Por perto, o riso de crianças pairava sobre o relvado. Estavam a jogar à apanhada com os seus fatos alugados e vestidos de festa, e mais do que um dos jogadores tinha manchas de relva na roupa ou joelhos raspados. Os adultos encontravam-se atrás deles, também vestidos com roupa de cerimónia, a beber champanhe e a conversar sobre banalidades.

Ela gostava de todos eles, até amava alguns deles, mas conviver com eles era demasiado para ela. Só queria estar com uma pessoa naquele momento.

Como se tivesse lido os seus pensamentos, uma figura familiar entrou no caramanchão. Jordan seguira-a até ali, como ela esperara que fizesse.

— Há espaço para mais um? — perguntou Jordan.

— Sempre — respondeu ela.

O seu cabelo louro cor de trigo crescera nos últimos meses e estava agora mais comprido do que o habitual corte do exército. As madeixas mais compridas davam-lhe um ar mais descontraído, menos militar, sobretudo no uniforme que usava hoje, um fato completo cinzento-carvão. Os seus olhos não tinham mudado, ainda eram azul-claros com um anel mais escuro à volta da íris. Ele encostou-se a uma trave, à entrada, e sorriu-lhe. Irradiava amor e felicidade.

Ela acolheu-o com um sorriso.

— Está linda esta noite, senhora Granger-Stone — disse ele.

— Digo-lhe o mesmo, senhor Granger-Stone — respondeu ela.

Há apenas uma hora, Erin ficara com o seu nome, e ele com o dela, em frente da família dele e dos amigos dela, trocando votos sob o céu azul.

Até que a morte nos separe.

Depois de tudo o que lhes acontecera, essas palavras tinham mais significado. Jordan pedira-a em casamento depois de regressarem a Roma, e ela aceitara de imediato.

O tempo era demasiado precioso para se perder, nem que fosse mais um segundo.

Erin tocou na ferida quase curada no seu pescoço. Escolhera um vestido de noiva de gola subida para cobrir a cicatriz rosada, mas ainda se conseguia ver um pouco a espreitar por cima dela. A ferida já não lhe doía, mas todos os dias a via quando olhava para o espelho e lembrava-se de como morrera e voltara à vida, sabendo quanto estivera perto de perder o seu futuro com Jordan.

Jordan tirou-lhe suavemente a mão do pescoço e segurou-a entre as suas mãos. A pele dele estava quente e natural ao toque. Até a sua tatuagem diminuíra de volta ao tamanho original. Ele voltara a ser o homem atraente e generoso que Erin conhecera no deserto de Massada, antes de os sanguinistas terem tomado conta das suas vidas.

Eles agora tinham a sua própria vida.

Juntos.

Jordan respirou fundo e sentou-se ao lado dela.

— Vêm aí grandes mudanças. Tu e eu a trabalharmos na selva... tu a desenterrares artefactos, eu de óculos a estudar para ser antropólogo forense. Nada de lutas, nada de monstros. Achas que te vais sentir feliz com isso?

— Mais do que feliz. Extática.

Através de contactos no Vaticano, ela arranjara um ótimo trabalho a liderar uma escavação arqueológica na América do Sul, onde iria lutar para extrair a história da selva, para lhe arrancar os seus segredos e preservá-la para as gerações vindouras. Seria um trabalho árduo, mas que não tinha nada que ver com santos e anjos. A sua vida pertencia-lhe agora... era sua para partilhar com o seu marido.

Jordan fora dispensado com honra do exército e candidatara-se a um programa para estudar antropologia forense ao lado dela. Estava preparado para investigar crimes antigos, em vez de modernos. Queria envolver-se quando o sangue já tivesse desaparecido há muito tempo, quando os mistérios fossem puzzles intelectuais e não emocionais.

Esta vida oferecia-lhes um futuro juntos.

E não só para eles dois.

Jordan beijou-lhe a palma da mão, demorando-se lá com os lábios, provocando-lhe um arrepio quente pelo braço acima. Ela acariciou-lhe o cabelo louro e puxou-o para ela, querendo beijá-lo, saboreá-lo, perder-se nele. As mãos dele deslizaram pelas costas dela e pararam nas suas ancas envoltas em seda. Uma das suas mãos moveu-se para a barriga dela.

Erin olhou para baixo, interrogando-se se já se notava.

— Achas que a tua mãe sabe? — perguntou Erin.

— Como poderia saber? Nem nós sabíamos antes de regressarmos aos Estados Unidos. É o nosso segredo por enquanto. — Jordan acariciou-lhe suavemente a barriga. — Mas acho que a minha mãe vai perceber daqui a uns sete meses. Sobretudo sendo gémeos.

Erin colocou a sua mão ao lado da dele na barriga.

Gémeos... um rapaz e uma rapariga.

Erin descontraiu nos braços dele, imaginando um rapazinho louro com os olhos azuis de Jordan e a sua atitude destemida... e uma menina de olhos cor de âmbar, que leria tudo o que apanhasse à frente.

— Estava a pensar — disse Jordan —, que tal chamar Sophia à menina?

Ela sorriu para Jordan e beijou-lhe os lábios com suavidade.

— É perfeito.

Erin descansava feliz nos braços dele, mas uma preocupação ainda crescia dentro dela.

Assim que tinham regressado aos Estados Unidos, Erin fizera uma série de exames. Tudo voltara normal. Ela concebera os gémeos quando Jordan ainda possuía sangue angelical dentro dele, o que a deixava preocupada em relação ao que ele poderia ter passado aos bebés.

Ou ao que eu poderei ter passado aos bebés?

Enquanto estava grávida, Erin morrera brevemente e tivera nela sangue strigoi.

Jordan pressentiu os medos dela e beijou-a novamente.

— Vai correr tudo bem.

Erin retirou forças da certeza na voz de Jordan, confiando nele.

Uma insistente voz de criança gritou do outro lado do relvado.

— Está na hora de cortar o bolo! — A voz pertencia a Olivia, a sobrinha de Jordan, cujo gosto por doces era conhecido de todos. — Despachem-se!

Jordan sorriu, os seus lábios demorando-se sobre os dela.

— E quanto ao rapaz...

— Deixa-me adivinhar. Estavas a pensar chamar-lhe Christian.

— Não, na verdade pensei em Thor. É muito macho!

— Thor? — Erin empurrou-o para trás e levantou-se. — Anda lá comer bolo. A ver se o açúcar te repõe o bom senso.

Erin pegou-lhe na mão e conduziu-o para fora do caramanchão, para a relva banhada pela luz do Sol. Passaram pelo aroma das rosas, em direção à promessa doce do bolo... e de uma vida juntos.

 

 

                                                   James Rollins E Rebecca Cantrell         

 

 

 

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