Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Segunda Parte
- Detesto-os - murmurou Cáron. Olhei para ele surpreendido. Ele mantinha os olhos fixos no quadro. - Todos eles, são corruptos até à medula. Olha para eles, enfatuados e satisfeitos consigo próprios. Este retrato foi a primeira coisa que fizeram depois de se mudarem para esta casa, mandaram vir um artista de Roma. Estavam ansiosos por captar para a posteridade aquela expressão de satisfação maldosa e de triunfo que têm no rosto. - Parecia incapaz de continuar a falar; os seus lábios tremiam como se ele estivesse nauseado de repugnância. - Como posso contar-te o que vi nesta casa desde que eles para aqui vieram? A mesquinhez, a vulgaridade, a crueldade deliberada? Sexto Róscio podia não ser o melhor dos senhores e a senhora podia ter momentos de fúria, mas nunca me esbofetearam. E, se Sexto Róscio era um pai horrível para as suas filhas, o que tinha eu a ver com isso? Ah, as raparigas eram tão queridas. A pena que eu tive delas.
- Um pai horrível? - disse eu. - O que queres dizer? Cáron ignorou-me. Fechou os olhos e afastou-se do retrato.
- O que queres? Quem te enviou a Améria? Foi Sexto Róscio? Ou foi aquela mulher rica de Roma de que ele falava? O que vieste fazer, matá-los enquanto estiverem a dormir?
- Não sou um assassino - disse-lhe eu.
- Então o que estás aqui a fazer? - Subitamente, voltou a ter medo.
- Vim cá porque ontem me esqueci de te perguntar uma coisa.
- Sim?
- Sexto Róscio - pater, não filius - conhecia uma prostituta em Roma. Quer dizer, ele conhecia muitas prostitutas, mas esta era especial. Uma jovem de cabelo cor de mel, muito simpática. Chamava-se...
- Elena - disse ele.
- Sim.
- Trouxeram-na para aqui pouco depois de o velho ter sido assassinado.
- Quem a trouxe?
- Não me lembro quem foi nem quando. Foi tudo uma confusão, toda aquela tolice acerca das listas e da lei. Suponho que foram Magno e Málio Gláucia que a trouxeram.
- E o que lhe fizeram? Ele resfolegou.
- O que não lhe fizeram?
- Queres dizer que a violaram?
- Enquanto Cápeto assistia. E se ria. Ele chamou as raparigas da cozinha, para que lhe trouxessem comida e vinho enquanto aquilo decorria, assustando-as horrivelmente. Eu disse-lhes para não saírem da cozinha, que eu próprio serviria - e Cápeto bateu-me com uma chibata e jurou que havia de mandar cortar-me as bolas. Sexto Róscio ficou furioso quando eu lhe contei. Isto aconteceu quando ele ainda era autorizado a entrar nesta casa, embora os soldados o tivessem expulsado. Ele discutia constantemente com Cápeto e, quando não estava a discutir, amuava, fechado naquela casita do outro lado da rua. Sei que eles discutiam muito sobre Elena.
- E, quando a trouxeram aqui, já se notava a gravidez?
Ele lançou-me um olhar irado e assustado, e eu percebi que perguntava a si próprio como podia eu saber tanto, se não era um deles.
- Claro - lançou -, pelo menos quando estava nua. Não compreendes que a questão era precisamente essa? Magno e Gláucia afirmavam que podiam fazê-la abortar, especialmente se a possuíssem ambos simultaneamente.
- E isso aconteceu?
- Não. Depois, deixaram-na em paz. Talvez Sexto tenha conseguido suavizar Cápeto, não sei. A sua barriga estava cada vez maior. Ela foi colocada junto dos escravos da cozinha, e fazia a sua parte do trabalho. Mas, imediatamente a seguir a ter o bebé, desapareceu.
- Quando foi isso?
- Há três meses? Não me lembro exactamente.
- Quer dizer que a levaram outra vez para Roma?
- Talvez. Ou talvez a tenham morto. Ou a mataram a ela, ou mataram o bebé, ou mataram-nos a ambos.
- O que queres dizer?
- Anda cá, vou-te mostrar.
Sem dizer palavra, conduziu-me para fora de casa e para os campos que havia por trás dela. Atravessou um caminho por entre vinhas, passando por escravos que preguiçavam e dormiam à sombra das árvores. Um carreiro sinuoso subia uma colina, conduzindo ao cemitério da família, cujas esteias eu tinha avistado no dia anterior.
Aqui tens disse-me ele. Percebe-se pela terra quais são as mais recentes. O velho foi enterrado aqui, ao lado de Gaio. Apontou para duas sepulturas. A mais antiga estava decorada com uma esteia finamente esculpida, que representava um romano jovem e belo, vestido de pastor, rodeado de sátiros e de ninfas; havia uma série de gravações por baixo, nas quais percebi as palavras GAIO, AMADO FILHO, DOM DOS DEUSES. O aterro mais recente apenas estava assinalado por uma simples laje sem inscrições, que dava a impressão de ser meramente temporária.
Percebe-se como o pai gostava de Gaio disse Cáron. É um excelente trabalho, não achas? Foi especialmente feito por um artesão da cidade que conhecia o rapaz; está igual a ele. Era muito belo, como podes ver; a pedra até consegue reproduzir a sua expressão. Claro que, até agora, o velho tem apenas uma esteia de pedinte, que nem sequer tem o seu nome. Sexto tencionava mantê-la assim até poder encomendar uma esteia especial feita a partir de retratos do seu pai. Podes apostar que Cápeto não vai gastar nenhuma parcela da sua fortuna recente numa pedra.
Tocou com os dedos nos lábios e depois em cima de cada laje, à velha maneira etrusca de mostrar respeito pelos mortos, e depois conduziu-me a um canteiro cheio de ervas ali perto.
E esta foi a campa que apareceu depois de Elena ter desaparecido.
Tratava-se de um pequeno monte de terra, com uma pedra partida no topo, para marcar o local.
Ouvimo-la dar à luz na noite anterior. Gritava tanto que acordou a casa toda. Talvez Magno e Gláucia tivessem acabado por fazer alguma coisa horrível às suas entranhas. No dia seguinte, Sexto apareceu cá em casa, embora Cápeto há muito o tivesse proibido de entrar. Mas Sexto forçou a entrada e encurralou Cápeto no seu escritório. Bateram com a porta, e eu ouvi-os discutir durante muito tempo, primeiro a gritar e depois muito baixo. Mais tarde, Elena desapareceu, mas eu não sei para onde foi. E depois, um dos outros escravos falou-me do novo túmulo. É um túmulo pequeno, não é? Mas é bastante grande apenas para um bebé. Elena era pequena, pouco mais do que uma criança. O que achas, poderá conter uma rapariga e o seu filho?
Não sei respondi.
Nem eu. E nunca ninguém me disse. Mas o que eu penso é que o bebé nasceu morto, ou então eles mataram-no.
E Elena?
Levaram-na para Roma, para casa de Crisógono. Pelo menos foi esse o boato que correu entre os escravos. Talvez seja apenas aquilo que nós gostaríamos que fosse verdade.
Ou talvez seja Elena que está ali enterrada e a criança continue viva.
Cáron limitou-se a encolher os ombros, e voltou-se na direcção da casa.
Com tudo isto, parti de Améria ainda mais tarde do que esperara. Segui o conselho de Tito Mégaro e passei a noite em casa do seu primo. Durante todo esse dia na estrada e a noite debaixo do tecto de um estrangeiro, ponderei naquilo que Cáron me dissera e, fosse por que razão fosse, as palavras que se demoraram no meu espírito não foram as palavras sobre Elena e o seu filho, ou sobre Cápeto e a sua família, mas algo que ele dissera acerca do seu anterior proprietário: ”E, se Sexto Róscio era um pai horrível para as suas filhas, o que tinha eu a ver com isso?” Havia algo perturbador naquelas palavras, e eu dei volta a elas na minha cabeça, até que finalmente o sono voltou a tomar conta de mim.
Cheguei a Roma pouco depois do meio-dia. Estava um calor sufocante, mas no escritório de Cícero o clima era de frieza.
E onde estiveste tu? lançou-me ele, caminhando de braços cruzados à volta da sala, olhando para mim e depois para o átrio, onde um escravo doméstico estava sentado a arrancar ervas daninhas. Tiro estava de pé junto de uma mesa, diante de um monte de rolos de pergaminho abertos e seguros com pesos. Rufo também ali se encontrava, sentado a um canto, dando pancadinhas no lábio inferior. Ambos me lançaram olhares de solidariedade, que me comunicaram que eu não era o primeiro a ser objecto da ira de Cícero nesse dia. O julgamento era dali a quatro dias. O advogado estreante não estava a reagir bem a esse facto.
Certamente que saberás que estive em Améria disse eu. Disse isso a Tiro antes de partir.
Sim, muito bem, partiste para Améria e deixaste-nos aqui sozinhos a tratar do caso. Disseste a Tiro que voltarias ontem. Ele deu um pequeno arroto e fez uma careta, agarrando-se ao estômago.
Eu disse a Tiro que estaria fora pelo menos durante um dia, possivelmente mais. Presumo que não te interesse saber que, desde a última vez que te vi, a minha casa foi invadida por bandidos armados que poderão tê-la atacado novamente não posso dizer porque ainda lá não fui, uma vez que preferi vir directamente a tua casa. Ameaçaram a minha escrava, que teve a sorte de escapar, e mataram cruelmente a minha gata, o que pode parecer-te uma coisa de pouca importância, mas seria um presságio de proporções catastróficas num país civilizado como o Egipto.
Tiro pareceu aterrado. Cícero, dispéptico.
Um ataque a tua casa na noite em que saíste de Roma? Mas isso não pode ter nada a ver com o facto de estares a trabalhar para mim. Como é que alguém podia ter sabido...
Não posso responder a isso, mas a mensagem escrita a sangue na parede era bastante explícita. ”Cala-te ou morres. Deixa a justiça romana trabalhar à vontade.” Provavelmente é um bom conselho. Antes de sair de Roma, tive de cremar a minha gata, de encontrar alojamento para a minha escrava, e de contratar um guarda para me vigiar a porta. Quanto à viagem, convido-te a ires a Améria e regressares em dois dias a ver se isso te põe mais bem-disposto. Tenho as costas tão doridas, que quase não consigo estar de pé, e muito menos sentar-me. Tenho os braços queimados pelo sol, e sinto as entranhas como se tivesse sido erguido ao ar por um titã e lançado ao chão como um par de dados.
O maxilar de Cícero endureceu e estremeceu, os seus lábios apertaram-se. Ia voltar a falar-me com brusquidão.. Ergui a mão a fim de o silenciar.
Mas não, Cícero, não me agradeças ainda por tudo aquilo que sofri por tua causa. Primeiro, sentemo-nos calmamente durante uns momentos, enquanto pedes a um criado que nos traga uma coisa fresca para beber e que prepare uma refeição adequada a um homem faminto com um estômago de aço que não come desde o nascer do dia. Deixa-me contar-te o que descobri nas minhas rondas com Tiro, no outro dia, e aquilo que descobri em Améria. Depois poderás agradecer-me.
Coisa que, depois de eu terminar a minha narrativa, Cícero fez profusamente. A sua indigestão parecia ter desaparecido, e ele chegou mesmo a quebrar a sua dieta, partilhando connosco um copo de vinho. Eu mergulhei na desagradável questão das minhas finanças e percebi que ele estava completamente submetido. Não só acordou em me pagar quaisquer despesas adicionais que tivesse tido por ter deixado Vespa durante mais uns dias em Améria, como se ofereceu para pagar um profissional armado que guardasse a minha casa até depois do julgamento. Contrata um gladiador a quem quiseres disse ele. Cobra-me o que tiveres de lhe pagar. Quando eu lhe apresentei a petição dos cidadãos de Améria, pedindo a Sula que retirasse a proscrição do velho Róscio, pensei que ele ia nomear-me seu herdeiro.
Enquanto contava toda a história, ia olhando atentamente para Rufo. Afinal, Sula era seu cunhado. Rufo apenas mostrava desdém pelo ditador e, fosse como fosse, a história de Tito Mégaro não implicava Sula, mas Crisógono, seu antigo escravo e seu representante. No entanto, eu temia que ele se ofendesse. Por um instante, considerei a possibilidade de ter sido Rufo a trair-me aos inimigos de Sexto Róscio e a mandar Málio Gláucia invadir-me a casa, mas não consegui detectar qualquer duplicidade nos seus olhos, e era difícil imaginar que aquelas sobrancelhas zombeteiras e aquele nariz sardento pudessem pertencer a um espião. (Numa mulher, o cabelo ruivo é uma advertência, dizem os Alexandrinos, mas podemos confiar num homem ruivo.) Na realidade, quando a história passou a incluir Sula, colocando-o a uma luz pouco favorável, Rufo pareceu discretamente satisfeito.
Quando eu terminei a minha narrativa e Cícero começou a conceber a sua estratégia, Rufo mostrou-se ansioso por ajudar. Cícero pretendia enviá-lo ao Fórum, mas eu sugeri que Rufo viesse comigo e atendesse aos recados legais mais tarde. Agora que tinha descoberto a verdade, queria confrontar Sexto Róscio com ela, para ver se conseguiria ultrapassar a sua concha e, por razões de propriedade, preferia não aparecer em casa de Cecília Metela como um inquisidor solitário, mas como um humilde visitante, na companhia do seu caro e jovem amigo.
Tiro estava ocupado a redigir o seu resumo da minha narrativa. Logo que eu disse que ia visitar Cecília, vi-o erguer furtivamente os olhos. Mordeu os lábios e franziu a testa, tentando pensar numa desculpa razoável para ir connosco. Pensava na jovem Róscia, evidentemente. Enquanto Rufo e eu nos preparávamos para sair, ele ia ficando cada vez mais agitado, mas nada disse.
E, Cícero disse eu por fim, se pudesses dispensar Tiro isto é, se não precisares dele para nada que se relacione com o caso gostaria que o deixasses vir connosco. Observei o rosto de Tiro iluminar-se.
Mas eu tinha pensado que ele e eu podíamos rever o teu relato. Talvez queira introduzir algumas notas e observações minhas.
Sim, bem, estava só a pensar isto é, há uns pormenores das minhas conversas daquele dia em que ele foi comigo, em particular do interrogatório na Casa dos Cisnes, que eu gostaria de discutir com ele, buracos de memória que gostaria de preencher, esse tipo de coisa. Claro que posso esperar por outro dia, mas já não faltam muitos dias. Além disso, suspeito de que posso precisar dele para assentar algum material novo que obtenha do próprio Róscio.
Muito bem disse Cícero. Certamente posso passar sem ele durante o resto da tarde. No seu júbilo perante a perspectiva de uma vitória retumbante na Rostra, foi ao ponto de se servir de outro copo de vinho, e de uma crosta de pão.
Tiro parecia tão feliz, que eu pensei que ele ia chorar.
Eu mentira a Cícero; nada tinha a perguntar a Tiro. Foi com Rufo que conversei enquanto avançávamos pelo Fórum e subíamos o monte Palatino em direcção a casa de Cecília. Tiro trotava atrás de nós, distraído e de olhar fixo.
Eu pouco reparara em Rufo da primeira vez que o vira. Todas as suas qualidades tinham sido eclipsadas por aqueles que o rodeavam. Como nobre, Cecília Metela exsudava maior prestígio, sentindo-se mais confortável com o seu poder e mais consciente dele; Cícero sobrepunha-se a ele do ponto de vista intelectual; e, no campo da exuberância da juventude, ele não podia competir com Tiro. Finalmente, falando apenas com ele, fiquei impressionado com a sua reserva e as suas maneiras, bem como com a sua perspicácia. Aparentemente, Cícero mantivera-o ocupado no Fórum todos os dias, desde que tomara conta do caso, confiando a Rufo a tarefa de preencher os documentos necessários e organizar as questões relativas ao tribunal. Enquanto atravessávamos o Fórum, ele ia acenando ou trocando algumas palavras com aqueles que conhecia com deferência quando se tratava de nobres mais velhos, com menos deferência quando se tratava de pessoas com idades mais próximas da sua ou de classe inferior. Apesar de ainda não usar a toga da maturidade, era óbvio que conhecia pessoas importantes e que tinha conquistado o seu respeito.
Um homem é reconhecido no Fórum pela dimensão e a solenidade da sua comitiva. Crasso é lendário por se pavonear com guarda-costas, escravos, secretários, sicofantas, adivinhos e gladiadores a reboque. Afinal, somos uma república, e a massa de corpos que rodeiam um político chama a atenção. É a quantidade, e não a qualidade dos seus apoiantes que confere prestígio a um homem em pleno Fórum; diz-se que alguns cidadãos que procuram determinados cargos compram as suas comitivas por atacado, e que há romanos que vivem das migalhas que recebem em troca de seguirem um homem poderoso pela cidade. A meio do Fórum, descobri que Tiro e eu, por muito inadequados que fôssemos, éramos vistos como a comitiva de Rufo. A ideia deu-me vontade de rir.
Rufo parece ter-me lido o pensamento.
O meu cunhado começou ele, pronunciando estas palavras de tal maneira que apenas podia estar a referir-se a Sula adquiriu ultimamente o hábito de caminhar pelo Fórum sem comitiva, nem sequer um guarda-costas. Está a” preparar-se para se retirar, diz ele, e regressar à vida privada.
Será isso sensato?
Suponho que ele é tão grande, que não precisa de uma comitiva para impressionar os outros. Tão brilhante, que quaisquer companheiros seriam simplesmente invisíveis, obscurecidos por aquela luz que cega como velas por trás do sol.
E, embora as velas possam ser apagadas sem dificuldade, nenhum homem pode apagar o Sol.
Rufo acenou com a cabeça.
Que por isso não precisa de guarda-costas. É isso que Sula parece pensar. Ele gosta de chamar a si próprio Sula, o Bem-Amado da Fortuna como se fosse casado com a própria deusa. Pensa que teve uma vida encantada, e quem poderia pôr isso em causa?
Rufo dera o primeiro passo, mostrando disponibilidade para falar francamente acerca do marido da sua irmã.
Tu tens uma antipatia sincera por Sula, não tens? disse eu.
Tenho imenso respeito por ele. Penso que ele deve ser realmente um grande homem. Mas tenho dificuldade em estar na mesma sala que ele. Não consigo imaginar o que vê Valéria nele, embora saiba que ela o ama profundamente. Está ansiosa por ter um filho dele! Ouço-a falar sobre isso interminavelmente com as mulheres sempre que está em casa. Presumo que, sendo a bem-amada do Bem-Amado da Fortuna, obterá aquilo que quer.
Quer então dizer que o conheces bem.
Tanto quanto tenho de conhecê-lo, tendo em conta que sou o irmão mais novo da sua mulher.
E estás familiarizado com os membros do seu círculo?
Queres fazer-me perguntas sobre Crisógono.
Sim.
Todas as histórias são verdadeiras. Claro que, neste momento, nada existe entre eles para além de amizade. Em questões relacionadas com a carne, Sula é muito instável mas, ao mesmo tempo, muito fiel, porque nunca afasta os seus amantes; depois de ter oferecido o seu afecto, nunca o retira. Sula é profundamente constante, quer como amigo, quer como inimigo. Quanto a Crisógono, julgo que, se o vires, compreenderás. É verdade que ele começou por ser um mero escravo, mas por vezes os deuses gostam de colocar uma alma de leão no corpo de um cordeiro.
Queres dizer que Crisógono é um cordeiro feroz?
Já não é um cordeiro. É certo que Sula o tosquiou mas, quando voltou a crescer, a sua crina era de ouro puro. Crisógono usa-a bem. É muito rico, muito poderoso e completamente implacável. E é belo como um deus. Sula tem olho para isso.
Parece que tu gostas do favorito de Sula ainda menos do que o próprio Sula.
Nunca disse que não gostava de Sula, pois não? As coisas não são assim tão simples. É difícil de explicar. Ele é um grande homem. A atenção que me presta é lisonjeira, embora seja indecorosa, tendo em conta que é casado com a minha irmã. Olhou para mim de lado, parecendo ter bastante mais do que os dezasseis anos que realmente tinha. Suponho que pensaste que Cecília estava a brincar ou que estava louca, quando no outro dia sugeriu que eu influenciasse Sula a favor de Sexto Róscio. Resmungou e franziu o nariz. Com Sula? Não consigo imaginar essa possibilidade.
Passámos por um grupo de senadores. Alguns deles, reconhecendo Rufo, pararam para conversar, perguntando-lhe pelos seus estudos e dizendo-lhe que tinham ouvido dizer ao seu irmão Hortênsio que ele estava, de alguma maneira, envolvido no caso que ia ser apresentado diante da Rostra. Com homens da sua classe, Rufo exibia uma aproximação exacta a um comportamento perfeito, simultaneamente encantador e obsequiante, apagando-se e ao mesmo tempo promovendo-se, como fazem todos os Romanos; mas eu percebia que parte dele permanecia alheia e distanciada: era observador e crítico do seu próprio decoro artificial. Comecei a perceber por que razão Cícero se sentia tão satisfeito em tê-lo como protegido, e comecei a perguntar a mim próprio se não seria Cícero o aluno, aprendendo com Rufo a erguer-se acima do seu anonimato rural, a fim de imitar aquela segurança natural de um jovem nobre nascido numa das mais importantes famílias de Roma.
Os senadores prosseguiram e Rufo retomou a conversa, como se não tivéssemos sido interrompidos.
De facto, fui convidado para uma festa amanhã à noite em casa de Crisógono, no Monte Palatino, muito perto de casa de Cecília. Sula e o seu círculo mais íntimo também estarão presentes; Valéria não vai. Recebi esta manhã uma mensagem de Sula, onde me dizia que eu tinha absolutamente que comparecer. ”Em breve receberás a toga de adulto”, escreveu-me ele. ”Chegou o momento de dar início à tua educação como homem. Que melhor lugar para isso do que a companhia dos melhores de Roma?” Podes imaginar? ele está a falar acerca dos seus amigos do palco, todos eles actores, comediantes e acrobatas. Juntamente com escravos que ele transformou em cidadãos, para tomarem o lugar dos que mandou decapitar. Os meus pais têm insistido comigo para que vá. Hortênsio diz-me que eu seria louco se não fosse. Até Valéria é da mesma opinião.
Eu também disse eu serenamente, inspirando profundamente para iniciar a subida do Monte Palatino.
E passar a noite a esquivar-me aos avanços de Sula? Para isso, teria de ser acrobata, actor e comediante, tudo ao mesmo tempo.
Fá-lo por Sexto Róscio e pelo seu caso. Fá-lo por Cícero. À menção de Cícero, ele fez uma cara séria.
O que queres dizer?
Preciso de ter acesso a casa de Crisógono. Preciso de lá entrar, para ver quais são os escravos de Sexto Róscio que ainda são dele. Quero interrogá-los, se puder. Seria mais fácil se tivesse um amigo dentro da casa. Achas que é por acaso que esta festa coincide com as nossas necessidades? Os deuses estão a sorrir-nos.
A Fortuna, espero eu, e não Vénus.
Eu ri-me, embora isso me tenha custado uma preciosa exalação, e continuei a subir a colina.
Então é verdade? disse eu, olhando de frente para Sexto Róscio e tentando fazer com que ele pestanejasse antes de mim. Tudo aquilo que Tito Mégaro me contou? Mas, se assim é, por que não nos contaste?
Estávamos sentados no mesmo compartimento abafado e esquálido onde nos tínhamos encontrado anteriormente. Desta vez, e depois de ouvir um resumo da história, Cecília Metela veio connosco. A ideia de que o seu bem-amado Sexto fora proscrito como inimigo de Sula era absurda, dizia ela, obscena. Estava ansiosa por saber o que tinha o filho a dizer sobre o assunto. Rufo estava sentado ao lado dela, e uma das suas jovens escravas, de pé, a um canto, abanava-a silenciosamente com penas de pavão presas a uma pega comprida, como se ela fosse uma rainha egípcia. Tiro estava de pé, à minha direita, com a tabuinha e o estilete na mão, mostrando-se agitado.
Sexto olhava para mim, não parecendo disposto a pestanejar. O efeito era tão enervante como o calor. Se estava a esconder alguma coisa, não dava sinais disso. A maioria dos homens, se quisesse ganhar tempo para pensar numa mentira ou numa desculpa, desviaria o olhar para alguma coisa, fosse o que fosse, que não olhasse também para eles. Sexto Róscio olhava-me de frente, sem qualquer expressão, até que finalmente eu pestanejei. Julgo que nessa altura ele sorriu, mas pode ter sido apenas imaginação minha. Comecei a pensar que talvez ele fosse realmente louco.
Sim disse ele finalmente. É verdade. É tudo verdade. Cecília emitiu um peculiar ruído de perturbação. Rufo deu-lhe uma pancadinha na mão enrugada.
Então por que não o contaste a Cícero? Contaste a Hortênsio quando ele era o teu advogado?
Não.
Mas como é que podes esperar que estes homens te defendam, se não lhes contas aquilo que sabes?
Nunca pedi a nenhum deles que se encarregasse do meu caso. Foi ela. Apontou rudemente para Cecília Metela.
Estás a dizer que não queres um advogado? lançou Rufo. Que hipóteses julgas que tens se te apresentares sozinho diante da Rostra, contra um acusador como Gaio Erúcio?
Que hipóteses tenho agora? Mesmo que consiga escapar-lhes no tribunal, acabarão por me descobrir depois do julgamento e por dar cabo de mim, como deram cabo do meu pai.
Não necessariamente argumentou Rufo. Isso não acontecerá se Cícero conseguir denunciar as mentiras de Cápeto e de Magno em tribunal.
Mas, para isso, ele terá de dar cabo de Crisógono, não é? Oh, sim, não há maneira de apanhar as pulgas sem dominar o cão, e não é possível dominar o cão sem puxar pela coleira que o dono tem na mão. O cão pode morder e o dono não vai gostar de ser publicamente envergonhado por um advogado principiante. Mesmo que ganhe o caso, o teu precioso Senhor Grão-de-Bico acabará com a cabeça presa a um pau. Não me digas que existe em Roma um advogado disposto a cuspir na cara de Sula. E, se esse homem existir, será demasiadamente estúpido para me defender.
Rufo e Tiro estavam ambos desesperados. Como podia Róscio dizer tal coisa acerca de Cícero, o seu Cícero? Os temores de Róscio nada significavam para eles; a fé que tinham em Cícero era absoluta.
Mas eu temia que Sexto Róscio tivesse razão. O caso era exactamente tão perigoso como ele o descrevera. Já alguém fizera uma ameaça à minha vida (um facto que eu tivera o cuidado de não mencionar debaixo do tecto de Cecília). Se o não tinham feito a Cícero, era apenas porque ele ainda estava, por esta altura, um pouco na retaguarda das investigações, e era um homem com relações mais poderosas do que as minhas.
Ainda assim, havia algo de dissimulado nas palavras de Róscio Sim, o seu caso era perigoso e prossegui-lo implicaria incorrer na ira dos poderosos. Mas que podia isso importar-lhe, se a sua única alternativa era uma morte hedionda? Dando luta, armando-nos com a verdade que poderia provar que ele estava inocente e que os seus acusadores eram culpados, ele tinha tudo a ganhar: a vida, a sanidade, e talvez mesmo a inversão da proscrição do seu pai e a devolução das suas propriedades. Teria ele mergulhado num desespero tal, que se encontrava paralisado? Poderia um homem estar de tal maneira desmoralizado, que ansiasse pela derrota e pela morte?
Sexto Róscio disse eu, ajuda-me a compreender. Soubeste da morte do teu pai pouco depois de ela ter ocorrido. O seu corpo foi enviado para Améria e tu iniciaste os ritos funerários. Depois vieram os soldados anunciar que ele tinha sido proscrito, que a sua morte não fora um assassínio mas uma execução, e que as suas propriedades tinham sido confiscadas pelo Estado. Foste obrigado a largar a tua casa, e foste para casa de uns amigos, na aldeia. Houve um leilão em Roma; Cápeto, ou mais provavelmente Crisógono, comprou a propriedade. Sabias, nessa altura, quem tinha morto o teu pai?
Não.
Mas devias ter suspeitas.
Sim.
Muito bem. Uma vez instalado, Cápeto convidou-te graciosamente para ires outra vez viver para a propriedade, permitindo-te e à tua família ocuparem uma casa decrépita longe da villa. Como suportaste essa humilhação?
Que podia eu fazer? A lei é a lei. Tito Mégaro e o conselho da cidade tinham ido apresentar uma petição a meu favor ao próprio Sula. Apenas podia esperar.
Mas Cápeto acabou por te expulsar por completo da propriedade. Porquê?
Presumo que tenha acabado por se fartar de mim. Talvez tenha começado a sentir-se culpado.
Mas, por essa altura, deves ter percebido sem sombra de dúvida que o próprio Cápeto estava envolvido no assassínio do teu pai. Ameaçaste-o?
Ele desviou o olhar.
Nunca chegámos a vias de facto, mas tivemos umas discussões acesas. Eu disse-lhe que ele era doido por se instalar tão confortavelmente na casa grande, que nunca lhe permitiriam mantê-la. Ele disse-me que eu não era mais do que um pedinte, e que devia beijar-lhe os pés pela caridade que mostrava para comigo. Apertou os braços da cadeira, e ficou com os nós dos dedos brancos. Rangeu os dentes numa fúria repentina. Disse-me que era mais certo eu morrer do que recuperar a terra. Disse-me que tinha sorte por não ter ainda morrido. Expulsou-me, pelo menos aparentemente, mas a verdade é que fui eu que fugi para me salvar. Nem em casa de Tito estava a salvo; sentia que ele me vigiava a casa depois de escurecer, como um noitibó à espera da sua hora. Foi por isso que tive de vir para Roma. Mas nem aqui me sentia seguro no meio da rua. Este quarto é o único sítio onde me sinto seguro. E nem sequer aqui me deixam em paz! Nunca pensei chegar a isto, que me arrastariam pelos tribunais e me amarrariam dentro de um saco. Não percebes que eles têm o poder todo do lado deles? Quem sabe que tipo de mentiras dirá esse Erúcio. No final, será a palavra dele contra a de Cícero. De que lado achas que se colocarão os juizes, quando se tratar de ofender o ditador? Não podes fazer nada! Subitamente, começou a chorar.
Cecília Metela fez uma careta, como se tivesse comido uma coisa desagradável. Sem dizer uma palavra, levantou-se da cadeira onde estava sentada e saiu do quarto, com a jovem escrava e o seu leque de penas de pavão atrás. Rufo saltou, mas eu fiz-lhe sinal para que ficasse.
Róscio estava sentado com o rosto entre as mãos.
És um homem estranho disse eu por fim. És um desgraçado mas, por qualquer razão, não consigo ter piedade de ti. Enfrentas uma morte horrível, estás numa situação em que a maioria dos homens mentiria para se salvar, e no entanto tu omites a única verdade que pode salvar-te. Agora que a verdade é conhecida, admite-la e não tens qualquer razão para mentir e, no entanto... Fazes-me duvidar dos meus próprios instintos, Sexto Róscio. Sinto-me confuso, como um cão de guarda que fareja uma raposa dentro da toca de um coelho.
Ele ergueu lentamente a cabeça. Tinha o rosto retorcido numa expressão de repugnância e de desconfiança, acompanhadas pelo medo que continuava escondido nos seus olhos.
Eu abanei a cabeça.
Falar contigo cansa-me. Tu causas-me dores de cabeça. Só espero que Cícero tenha uma cabeça mais forte. Erguemo-nos para partir. Eu voltei-me. Havia outra coisa disse eu. É apenas uma insignificância. É sobre uma jovem prostituta chamada Elena. Sabes de quem estou a falar?
Sim. Claro que sim. Viveu durante algum tempo lá em casa, quando Cápeto se apoderou dela.
E como foi ela para lá?
Ele parou para pensar. Pelo menos tinha parado de chorar.
Julgo que Magno e Gláucia a descobriram na cidade. Suponho que o meu pai a tinha comprado algum tempo antes, tendo-a deixado à guarda do dono do bordel. Depois do leilão, Magno reclamou-a como propriedade sua.
Ela estava grávida, julgo eu. Ele fez uma pausa.
Sim, tens razão.
De quem era o filho?
Quem sabe? Afinal, tratava-se de uma prostituta.
Claro. E que lhe aconteceu?
Como queres que eu saiba?
Depois de ter tido o bebé, quero eu dizer.
Como queres que eu saiba? disse ele novamente, irritado. O que farias tu com uma prostituta e um escravo recém-nascido se fosses um homem como Cápeto? O mais provável é ambos terem sido vendidos no mercado há muito tempo.
Não disse eu. Ambos não. Pelo menos um deles morreu e está enterrado ao pé do teu pai, em Améria.
Observei-o cuidadosamente da porta e esperei, mas ele não reagiu.
Regressámos em silêncio aos aposentos de Cecília. Pelo canto do olho, vi Tiro arrastar os pés e ficar cada vez mais ansioso à medida que se aproximava o momento de partirmos. Eu tinha a cabeça demasiadamente cheia de Sexto Róscio para poder lidar com ele, mas por fim, quando chegámos à ala de Cecília, comecei a considerar que desculpa inconsistente poderia apresentar para o libertar e lhe permitir ir procurar a rapariga.
Mas Tiro adiantou-se-me. Parou subitamente e olhou à volta com o ar de um homem que tinha perdido qualquer coisa.
Por Hércules disse ele deixei o estilete e a tabuinha lá no quarto. Não demorarei mais de um momento a ir buscá-los a não ser que já não os tivesse comigo quando entrevistaste Róscio e os tivesse deixado noutro sítio qualquer acrescentou, procurando maneira de justificar um prolongamento da sua ausência.
Tinha-los contigo disse Rufo com um tom vagamente hostil. Lembro-me de os ver nas tuas mãos.
Eu abanei a cabeça.
Não tenho a certeza disso. Seja como for, o melhor é voltares e veres se os encontras, Tiro. Não tenhas pressa. É demasiadamente tarde para Rufo fazer seja o que for no Fórum ainda hoje, e o sol ainda está muito forte para regressarmos a correr a casa de Cícero. Penso que Rufo e eu conseguiremos que a nossa anfitriã nos receba no jardim durante algum tempo, para descansarmos um pouco deste calor.
Na realidade, Cecília não pode juntar-se a nós; o eunuco Ahausarus explicou-nos que a entrevista com Sexto Róscio a tinha esgotado. Embora estivesse indisposta, permitiu-nos utilizar os seus criados, que se agitavam à volta do peristilo, transferindo a mobília do sol para a sombra, trazendo-nos bebidas frescas e fazendo o possível por que nos sentíssemos confortáveis. Rufo estava inquieto e irritado. Eu voltei a interrogá-lo sobre a festa que seria dada na noite seguinte em casa de Crisógono.
Se te sentes realmente incomodado com a ideia disse-lhe eu, não vás. Só pensei que pudesses conseguir meter-me lá dentro, talvez pela porta dos escravos. Há alguns pormenores que não estou certo de conseguir descobrir de outra forma. Mas, claro, não tenho qualquer direito de to pedir...
Não, não murmurou ele, como se eu o tivesse apanhado a sonhar acordado. Eu vou. Vou mostrar-te a sua casa antes de deixarmos o monte Palatino; é aqui perto. Quanto mais não seja por Cícero, como tu disseste.
Chamou um dos criados e pediu mais vinho. Pareceu-me que talvez ele tivesse bebido um pouco a mais. Quando chegou o vinho, bebeu-o de um só trago e pediu mais. Limpei a garganta e franzi o sobrolho.
Como diz o ditado, todas as coisas com moderação, Rufo. Pelo menos estou certo de que Cícero insistiria nisso.
Cícero disse ele, como se fosse uma maldição; e depois disse-o novamente, como se fosse uma graça. Passou da cadeira sem costas para um divã de pelúcia e estendeu-se no meio das almofadas. Uma brisa suave atravessou o jardim, fazendo com que as folhas secas de pergaminho crepitassem e o acanto suspirasse. Rufo fechou os olhos e a expressão de doçura que se espalhou pelo seu rosto recordou-me que, apesar do seu nobre estatuto e das suas maneiras de adulto, ele era apenas um rapaz, que ainda vestia roupas de rapaz, de mangas compridas e modestas, tal como Róscia estaria certamente vestida naquele momento, a não ser que Tiro já a tivesse despido.
O que achas que eles estão a fazer neste momento? perguntou Rufo subitamente, abrindo um olho para observar o meu espanto.
Eu fingi que estava confuso e abanei a cabeça.
Sabes muito bem de quem estou a falar resmungou Rufo. Tiro está a demorar um tempo incrível a trazer o estilete, não achas? O estilete! Riu-se, como se tivesse acabado de perceber a piada. Mas o riso foi curto e amargo.
Então também sabes disse eu.
Claro que sei. Aconteceu da primeira vez que ele veio a esta casa com Cícero. E tem acontecido sempre desde então. Começava a pensar que não tinhas reparado. Perguntava a mim próprio que tipo de descobridor eras tu, para não reparares numa coisa tão óbvia. É ridículo como eles são óbvios.
Parecia invejoso e amargo. Eu acenei com solidariedade. Afinal, Róscia era uma rapariga bastante desejável. Eu próprio sentia alguma inveja de Tiro.
Baixei a voz, tentando ser amável mas não paternalista.
Afinal, ele não passa de um escravo, e tem tão pouco a esperar da vida.
A questão é exactamente essa! disse Rufo. Que um mero escravo possa encontrar satisfação e que para mim isso seja impossível. Crisógono também era um escravo, e encontrou aquilo que queria, tal como Sula encontrou o que queria em Crisógono, e em Valéria, e em todas as suas outras conquistas e concubinas e mulheres. Por vezes, parece-me que todo o mundo é composto por pessoas que se encontram umas às outras, enquanto eu permaneço sozinho, de fora.
E, em todo o mundo, ninguém mais me quer, para além de Sula é uma piada dos deuses! Abanou a cabeça, mas não se riu. Sula deseja-me e não pode ter-me; eu desejo outro, que nem sequer sabe que eu existo. É terrível querer apenas uma pessoa em todo o mundo e não vermos o nosso desejo satisfeito! Alguma vez amaste alguém que não te amasse, Gordiano?
Claro. A quem não aconteceu isso?
Chegou um escravo com mais um copo de vinho. Rufo deu um golo, depois sentou-se à mesa e ficou a olhar fixamente para ele. Não me parecia que Róscia merecesse tal agonia, mas eu também não tinha dezasseis anos.
É tão notoriamente óbvio resmungou ele. Quanto tempo irão demorar?
Cecília também sabe? perguntei eu. E Sexto Róscio?
Dos namorados? Estou certo de que não. Cecília vive imersa numa névoa, e quem sabe o que se passa dentro da cabeça de Sexto? Suponho que até ele se sentiria obrigado a mostrar-se um pouco afrontado, se descobrisse que a sua filha faz cabriolas com o escravo de outro.
Eu fiz uma pausa, não querendo importuná-lo excessivamente com perguntas. Pensava em Tiro e no perigo a que ele se expunha. Afinal, Rufo era jovem, bem nascido e sentia-se frustrado e Tiro era um escravo que estava a cometer o impensável em casa de uma mulher importante. Com uma simples palavra, Rufo poderia destruir a sua vida para sempre.
E quanto a Cícero Cícero está informado?
Rufo olhou-me directamente. A sua expressão era tão estranha, que eu não consegui compreendê-la.
Se Cícero sabe? murmurou ele. Depois o espasmo passou. Ele parecia muito cansado. Sobre o que se passa entre Tiro e Róscia, queres tu dizer. Ele nunca repararia em tal coisa. Essas paixões estão acima daquilo em que ele repara.
Rufo voltou a afundar-se contra as almofadas, em total desespero.
Compreendo disse eu. Embora te possa parecer difícil de acreditar, compreendo. Róscia é, evidentemente, uma bela rapariga, mas considera a situação em que se encontra. Não há qualquer maneira honrosa de tu poderes cortejá-la.
Róscia? Ele pareceu desconcertado, depois fez rolar os olhos. Róscia não me interessa.
Estou a perceber disse eu, não percebendo nada. Oh, então é por Tiro que te... Subitamente, confrontei-me com uma série inteiramente nova de complicações.
Foi então que percebi a verdade. Num instante, compreendi, não pelas suas palavras, ou sequer pelo seu rosto, mas por uma inflexão de que só então me lembrei, por um momento solto colocado ao lado de outro na memória, daquela maneira como as revelações por vezes nos surgem, sem preparação e de forma aparentemente inexplicável.
Que absurdo, pensei eu, e contudo que tocante, pois ninguém poderia deixar de se comover com a seriedade dos seus sentimentos. As leis do homem procuram o equilíbrio, mas as leis do amor são puro capricho. Parecia-me que Cícero o sério, exagerado e dispéptico Cícero era provavelmente o último homem de Roma capaz de corresponder aos desejos de Rufo; o rapaz não poderia ter escolhido um objecto mais desesperado para o seu amor. Certamente que Rufo, tão jovem, tão cheio de sentimentos intensos, embebido dos ideais gregos do círculo de Cícero, se considerava o Alcibíades do Sócrates que era Cícero. Não era de espantar que ficasse enfurecido ao pensar naquilo de que Tiro e Róscia estavam a usufruir naquele momento, enquanto ele ardia com uma paixão silenciosa e toda a energia reprimida da juventude.
Encostei-me na cadeira, perplexo e sem conselhos para lhe dar. Bati as palmas e acenei à jovem escrava, dizendo-lhe que nos trouxesse mais vinho.
O dono dos estábulos não ficou satisfeito quando viu o cavalo de quinta que eu montava em vez da sua bem-amada Vespa. Uma mão cheia de moedas e de garantias de que seria amplamente recompensado por qualquer inconveniência satisfizeram-no. Quanto a Betesda, informou-me de que ela tinha amuado durante todo o tempo em que eu estivera ausente, tinha partido três tigelas na cozinha, tinha dado cabo do trabalho de costura que lhe tinham encomendado e tinha feito em água a cabeça da cozinheira e da mulher-a-dias. O intendente tinha-lhe pedido autorização para a espancar, mas o dono dos estábulos, fiel aos meus pedidos, tinha-lho proibido. Gritou a um dos seus escravos que fosse chamá-la. ”E será um alívio”, acrescentou, embora eu tivesse reparado que, quando ela saiu a passos largos e de forma imperial de casa dele e entrou nos estábulos, ele não conseguia tirar os olhos de cima dela.
Fingi-me desinteressado. Ela fingiu-se distante. Insistiu em parar no mercado a caminho de casa, para comprar alguma coisa para comermos nessa noite. Enquanto ela fazia as compras, eu passeei pela rua, absorvendo os odores e as vistas esquálidas da Subura, satisfeito por regressar a casa. Nem a pilha de excrementos recentes pela qual tivemos de passar a caminho de casa fez diminuir a minha felicidade.
O escravo do dono dos estábulos, Escaldo, estava sentado no chão diante da porta, encostado a ela com as pernas estendidas. Primeiro, pensei que estava a dormir mas, ao sentir-nos aproximar, o colosso agitou-se e pôs-se de pé com rapidez alarmante. Reconhecendo-me, descontraiu-se e fez um sorriso estúpido. Disse-me que tinha alternado com o seu irmão, para que a casa nunca ficasse desprotegida, e que mais ninguém tinha lá estado na minha ausência. Eu dei-lhe uma moeda e disse-lhe que se fosse embora, e ele começou obedientemente a descer a colina.
Betesda olhou para mim alarmada, mas eu garanti-lhe que estaríamos a salvo. Cícero prometera pagar a protecção à minha casa. Eu iria procurar um profissional à Subura antes de irmos dormir.
Ela começou a falar e, pela maneira como retorcia os lábios, percebi que ia dizer qualquer coisa sarcástica. Mas eu cobri-lhe a boca com um beijo. Conduzi-a de costas para dentro de casa e fechei a porta com o pé. Ela deixou cair os legumes e o pão que trazia na mão e agarrou-se-me aos ombros e ao pescoço. Deixou-se cair no chão e arrastou-me consigo.
Estava felicíssima por voltar a ver-me, e não deixou de mo manifestar. Tinha ficado irritada por ter sido abandonada numa casa estranha, e também não deixou de mo mostrar, enterrando-me as unhas nos ombros, dando-me murros nas costas e beliscando-me o pescoço e as orelhas. Eu devorei-a como um homem que tivesse estado sem comer durante dias. Parecia impossível que apenas tivesse estado ausente duas noites.
Ela tinha tomado banho nessa manhã. A sua carne sabia a um sabão diferente e, por trás das orelhas, no pescoço e em pontos secretos do seu corpo, tinha-se untado com um perfume desconhecido surripiado, segundo me disse mais tarde, ao esconderijo privado da mulher do dono dos estábulos, quando ninguém estava a ver. Aos últimos raios de sol, deixámo-nos ficar, exaustos e nus, no vestíbulo, onde o nosso suor deixava marcas obscenas no tapete gasto. Foi nessa altura que olhei casualmente para lá das planícies macias do seu corpo e reparei na mensagem ainda rabiscada a sangue na parede por cima de nós: ”Cala-te ou morres...”
Uma brisa súbita, proveniente do átrio, gelou-me o suor na espinha. O ombro de Betesda, encostado à minha língua, arrepiou-se. Houve um estranho momento em que me pareceu que o meu coração tinha parado de bater, suspenso entre a luz que esmorecia, o calor do corpo de Betesda e a mensagem que estava escrita por cima de ambos. O mundo pareceu-me subitamente um lugar estranho, e eu imaginei ouvir aquelas palavras murmuradas ao meu ouvido. Talvez devesse ter lido isto como um presságio. Talvez devesse ter fugido de casa, de Roma, da justiça romana. Em vez disso, mordi-lhe o ombro, Betesda arquejou, e a noite prosseguiu até à sua conclusão desesperada.
Juntos, acendemos as lamparinas e, embora exibisse uma expressão destemida, Betesda insistiu uma vez mais em acender as lamparinas de todos os compartimentos. Eu disse-lhe que viesse comigo até à Subura à procura de um guarda, mas ela insistiu em ficar em casa para fazer a refeição. Tive um sobressalto de receio perante a ideia de deixá-la sozinha em casa, mesmo durante um curto período, mas ela insistiu em ficar, pedindo-me apenas que não me demorasse. Percebi que decidira ser corajosa e que, à sua maneira, queria reafirmar o seu domínio da casa; na minha ausência, queimaria um pau de incenso e realizaria um rito que a mãe lhe ensinara, há muito tempo. Depois de ter fechado a porta atrás de mim, ouvi-a trancá-la do interior, ficando em segurança.
A Lua erguia-se, quase cheia, lançando uma luz azul sobre as casas silenciosas da colina, fazendo com que os telhados parecessem recortados a cobre. Ao fundo, a Subura era um enorme tanque de luz e de som silencioso, que me engolia à medida que eu ia descendo rapidamente a colina, até que entrei na rua mais movimentada da noite de Roma.
Poderia encontrar um membro de um bando em qualquer esquina, mas eu não queria um bandido vulgar. Queria um combatente profissional e guarda-costas da comitiva de um homem rico, um escravo de valor reconhecido em quem pudesse confiar. Dirigi-me a uma pequena taberna escondida por trás de um dos mais dispendiosos bordéis da Subura, onde encontrei Varo, o Intermediário. Ele compreendeu imediatamente o que eu queria, e sabia que eu tinha crédito. Depois de eu lhe ter pago um copo de vinho, desapareceu. Não demorou muito tempo a regressar com um gigante a reboque.
Faziam um contraste engraçado, ao entrarem lado a lado no pequeno compartimento sombrio. Varo era tão baixo, que apenas dava pelo ombro do gigante; a sua cabeça calva e os seus dedos cobertos de anéis brilhavam, enquanto os seus traços pastosos pareciam suavizar-se e homogeneizar-se na incandescência das lamparinas. A besta que vinha ao seu lado não parecia completamente adestrada; tinha nos olhos uma luz vermelha que não provinha das lamparinas. Dava a impressão de uma força e solidez quase estranhas, como se fosse construído em blocos de granito e troncos de árvores; até o seu rosto parecia ter sido esculpido em pedra, um modelo grosseiro afastado por um escultor que tivesse decidido que ele era demasiadamente brutal para ser acabado. Tinha o cabelo e a barba compridos e hirsutos, mas não descuidados, e a sua túnica era feita de um tecido de boa qualidade. Este tratamento testemunhava um proprietário responsável. Parecia tão cuidado como um belo cavalo. Mas também parecia capaz de matar um homem com as suas próprias mãos.
Era exactamente o homem que eu queria. Chamava-se Zótico.
É o favorito do seu senhor garantiu-me Varo. O homem nunca sai de casa sem Zótico ao seu lado. É um assassino experimentado o mês passado torceu o pescoço a um ladrão. E é forte como um touro, não tenhas dúvidas. O seu hálito cheira-te a alho? O seu senhor alimenta-o como se alimenta um cavalo a aveia. Trata-se de um truque que os gladiadores utilizam, dá força a um homem. O seu senhor é rico, respeitável, dono de três bordéis, de duas tabernas e de uma casa de jogo, todos na Subura; é um homem piedoso, sem um inimigo, mas que gosta de se proteger do imprevisível. Quem não gosta? Não dá um passo sem o seu fiel Zótico. Mas, especialmente por minha causa, porque deve um favor a Varo, o homem emprestou-me a sua criatura pelos quatro dias que tu pediste, e não mais do que isso. Para me pagar uma dívida antiga. Tens muita sorte, Gordiano, em ser amigo de Varo, o Intermediário.
Discutimos o preço, e eu permiti-lhe fazer um bom negócio, uma vez que estava ansioso por regressar para junto de Betesda. Mas o escravo valia o preço; ao atravessar as multidões da Subura, vi que os estranhos recuavam para nos deixarem passar, e vi a sua expressão assustada, quando olhavam por cima da minha cabeça, para o monstro que se encontrava atrás de mim. Zótico falava pouco, o que me agradou. Enquanto subíamos o caminho deserto que conduzia a minha casa, deixando para trás os ruídos da Subura, ele avultava-se ao meu lado como um espírito protector, espreitando incessantemente para as sombras que nos rodeavam.
Quando a casa apareceu, ouvi a sua respiração acelerar-se e senti a sua mão, como um tijolo, no meu ombro. Havia outro homem diante da porta, de braços cruzados. Gritou-nos que parássemos onde estávamos, tirando depois um longo punhal da manga. Num abrir e fechar de olhos, Zótico tinha passado para diante de mim e, enquanto o mundo girava à minha volta, avistei na sua mão uma longa lâmina de aço.
A porta abriu-se e ouvi Betesda rir-se, e depois explicar. Aparentemente, eu tinha compreendido mal o que Cícero me dissera. Ele não só se tinha oferecido para pagar um guarda-costas, como se tinha mesmo dado ao trabalho de enviar ele próprio um homem. Minutos depois de eu ter deixado Betesda, ela ouvira uma pancada na porta. Começara por ignorá-la, mas acabara por espreitar pela grelha. O homem perguntara por mim; Betesda fingira que eu estava dentro de casa, mas indisposto. Depois, ele forneceu-lhe o nome de Cícero e deu-lhe os seus cumprimentos, dizendo-lhe que fora enviado por Cícero para guardar a casa, como o seu senhor se recordaria, e tomou o seu lugar ao lado da porta sem mais palavras.
Seja como for, dois são melhores do que um insistiu Betesda, e eu senti um baque de ciúme enquanto ela olhava de um para o outro; talvez tivesse sido aquela pontada de ciúme a cegar-me para o óbvio. Teria sido difícil dizer qual deles era mais feio, ou maior, ou mais assustador, ou qual deles Betesda achava mais fascinante. À excepção da sua barba ruiva e do seu rosto avermelhado, o outro poderia ser irmão de Zótico; até tinha o mesmo hálito a alho. Olharam um para o outro como fazem os gladiadores, com as mandíbulas cerradas e olhos de basilisco, como se a mais pequena contracção de um lábio pudesse desfigurar a pureza do seu desprezo mútuo.
Muito bem disse-lhe eu, esta noite ficarão ambos, e amanhã resolvemos o assunto. Um deles pode dar voltas à casa e patrulhar a rua, e outro ficar no vestíbulo, dentro de casa.
Cícero dissera-me que tomasse as minhas próprias disposições para arranjar um guarda; eu lembrava-me perfeitamente disso. Mas, pensei eu, talvez que, no calor da sua excitação por causa das notícias que eu lhe trouxera, Cícero se tivesse esquecido das suas próprias instruções. Eu só conseguia pensar nos cheiros que vinham da cozinha de Betesda e na longa noite de um sono sem preocupações que se aproximava.
Quando saí do vestíbulo, lancei um olhar ao ruivo enviado por Cícero. Estava sentado numa cadeira encostada à parede, a olhar para a porta fechada de braços cruzados. Continuava com o punhal na mão. Por cima da sua cabeça, estava a mensagem escrita a sangue, e eu não pude evitar voltar a lê-la: ”Cala-te ou morres.” Estava farto daquelas palavras; na manhã seguinte, diria a Betesda que limpasse a parede. Olhei para os olhos de Ruivo, que não pestanejou, e atirei-lhe um sorriso. Ele não respondeu.
Nas comédias, há muitas vezes personagens que fazem coisas absurdas, que são dolorosa e obviamente absurdas para todo o público, para todas as outras pessoas do universo, excepto para elas. O público contorce-se no seu lugar, ri-se, e chega mesmo a gritar: ”Não, não! Não estás a ver, imbecil?” O homem condenado que está em cima do palco não o ouve e os deuses prosseguem divertidos, engenhando a destruição de mais outro mortal cego.
Mas, por vezes, os deuses podem levar-nos à beira da destruição, acabando por nos puxar, no último momento, da berma do abismo, tão profundamente divertidos com a nossa inexplicável salvação como estavam com a nossa morte inesperada.
Acordei de repente, sem intervalo entre o sono e a vigília, para aquele estranho domínio de consciência que reina entre a meia-noite e a madrugada. Estava sozinho no meu quarto. Betesda conduzira-me para ali depois de uma longa refeição de peixe e de vinho, despindo-me a túnica e cobrindo-me com uma fina coberta de lã, apesar do calor, beijando-me na testa como se eu fosse uma criança. Ergui-me e deixei cair a coberta; o ar da noite estava pesado de calor. O quarto estava escuro, iluminado apenas por um feixe luminoso proveniente da Lua, que entrava por uma pequena janela no alto da parede. Caminhei de cor até ao canto mas, na escuridão, não consegui encontrar o pote do quarto, ou então Betesda tinha-o esvaziado e não voltara a pô-lo cá.
Não importava. Na estranheza daquela noite, o pote do quarto poderia ter-se transformado num cogumelo ou ter desaparecido no ar, que isso seria uma coisa sem importância. Sentia a mesma estranheza que sentira anteriormente, enquanto estava deitado com Betesda no vestíbulo. Via e sentia tudo o que me rodeava com absoluta clareza, mas parecia-me estar em território misterioso e estranho, como se a luz tivesse mudado de cor, como se os próprios deuses se tivessem afastado da terra, caindo num pesado torpor e deixando a existência entregue a si própria. Podia acontecer fosse o que fosse.
Empurrei a cortina para o lado e passei ao átrio. Talvez não estivesse, afinal, acordado e estivesse a dormir em pé, porque a casa possuía aquela irrealidade dos lugares familiares tornados estranhos pela geografia da noite. Mas o luar inundava o jardim, transformando-a numa selva de ossos, que lançavam sombras afiadas como facas. Aqui e ali, as lamparinas que rodeavam o peristilo ardiam suavemente, como sóis embranquecidos à beira da extinção. A mais forte das lamparinas brilhava para além da parede que escondia o vestíbulo, lançando para o outro lado da esquina uma luz amarela que parecia o brilho das luzes de um campo para além de uma saliência.
Avancei para a beira do jardim e ergui a túnica. Fui tão silencioso como um rapazinho, apontando para a relva macia e quase não fazendo barulho. Terminei e deixei cair a túnica, mantendo o olhar por cima do campo de ossos, transformado pela sombra de uma nuvem que passava nas ruínas cinzentas de Cartago numa noite sem Lua.
Por entre os cheiros da terra, da urina e dos jacintos, chegou até mim um longínquo odor a alho, transportado no ar quente e seco. A luz da lamparina do vestíbulo tremeluziu e moveu-se, erguendo a sombra indecisa de um homem contra a parede que encerrava o quarto de Betesda.
Como num sonho, atravessei o vestíbulo; como num sonho, parecia ser invisível. No chão, estava pousada uma lamparina forte, que lançava sombras estranhas para cima. O Ruivo estava de pé diante da parede desfigurada, com a sua mensagem ameaçadora, olhando para ela como se fosse um tanque e movendo uma mão sobre a superfície. A mão que se movia estava embrulhada num pano manchado de vermelho, que pingava uma coisa escura e espessa para o chão. A sua outra mão segurava o punhal. A lâmina brilhante estava manchada de sangue.
A porta de casa estava aberta para trás. Escarranchado contra ela, como que para mantê-la aberta, encontrava-se o corpo maciço de Zótico, com o pescoço tão rasgado que a cabeça estava quase separada do corpo. Uma grande poça de sangue escorrera do seu pescoço para o chão de pedra. O tapete estava ensopado em sangue. Enquanto eu o observava, o Ruivo recuou e inclinou-se para ensopar o pano na poça de sangue, nunca afastando os olhos da parede, como se fosse um artista e a parede fosse um quadro que ele estava a pintar. Deu um passo em frente e recomeçou a escrever.
Depois, muito lentamente, virou-se e viu-me.
Respondeu ao sorriso que eu lhe lançara anteriormente com uma horrível careta escancarada.
Deve ter-se aproximado de mim muito rapidamente, mas pareceu-me que ele se movia com uma lentidão ponderada e impossível. Eu tive todo o tempo do mundo para o ver erguer o punhal, para sentir nas narinas o súbito bafo a alho, para ponderar o tenso e palpitante rictus do seu rosto, e para perguntar a mim próprio, estupidamente, que razão poderia ele ter para me detestar daquela maneira.
O meu corpo foi mais sensato do que o meu cérebro. Não sei como, consegui agarrar-lhe o pulso e afastar o punhal. Ele tocou-me o rosto ao de leve, abrindo um fino traço vermelho que eu só senti muito mais tarde. Subitamente, sei por mim esmagado contra a parede, com a respiração cortada, de tal maneira confuso que por um momento pensei que estava esmagado no chão, com todo o peso do corpo do Ruivo em cima do peito.
Com um enorme puxão e um desvio, como se fôssemos acrobatas desequilibrados, cambaleámos para o chão. Engalfinhámo-nos como homens que se afundassem e fossem esmagados pela espuma do mar, de tal maneira que eu não conseguia perceber se estava por cima ou por baixo. A ponta do punhal aflorava-me constantemente o pescoço, mas eu conseguia empurrar-lhe o braço e afastá-lo do seu curso. Ele era absurdamente forte, mais parecendo uma tempestade ou uma avalancha do que um homem. Eu sentia-me como um rapazinho, a lutar com ele. Não tinha qualquer esperança de o derrotar. O máximo que podia fazer era manter-me vivo de um momento para o seguinte.
Subitamente, pensei em Betesda, e percebi que ela devia estar morta, juntamente com Zótico. Por que me teria ele deixado para o fim? Foi nessa altura que a moca se abateu sobre o crânio do Ruivo.
Enquanto ele oscilava em cima de mim, avistei Betesda por cima do seu ombro. Tinha nas mãos a tábua de madeira que barrava a porta. Era tão pesada, que ela quase não conseguia segurá-la. Começou a erguê-la novamente, e depois desequilibrou-se por causa do peso e cambaleou. O Ruivo recuperou as forças. Tinha um corte na parte de trás da cabeça, de onde jorrava sangue, que lhe escorria para a barba e para a boca, fazendo-o parecer um animal enlouquecido ou um lobisomem empanturrado de sangue. Pôs-se de joelhos e virou-se, erguendo o punhal. Eu bati-lhe no pescoço, mas não tinha força suficiente.
Betesda estava de pé com a tábua erguida. O Ruivo golpeava o ar com o punhal, mas apenas conseguiu cortar-lhe o fato. Voltou-se rapidamente e agarrou um bocado de tecido com a mão que tinha livre. Sacudiu-o com força e Betesda caiu para trás. A tábua desceu, potenciada pelo seu próprio peso. Com intenção ou por acaso, atingiu Ruivo na coroa da sua cabeça e, enquanto ele ’caía em cima de mim, eu agarrei-lhe no braço que tinha o punhal e voltei-o para o seu próprio peito.
A lâmina entrou-lhe no coração até ao punho. Ele tinha o rosto por cima do meu, com os olhos a rolarem e a boca muito aberta. Eu senti-me tonto por causa do cheiro a alho e a dentes podres quando ele inspirou, desesperada e ruidosamente. Depois agitou-se e caiu pesadamente em cima de mim, quando algo explodiu dentro dele. Um instante mais tarde, o sangue jorrou pela sua boca aberta, como a descarga de um esgoto.
Algures ao longe, Betesda gritava. Uma coisa morta, enorme e maciça, estava poisada, lisa e pesada, em cima de mim, convulsionando-se e jorrando veneno, cegando-me e inundando-me as narinas e a boca, e entupindo-me os ouvidos de sangue. Lutei para me escapar, inutilmente, até que senti Betesda empurrar ao longo do meu corpo. O enorme cadáver rolou de costas, ficando a olhar para o tecto de boca aberta.
Eu pus-me de joelhos, cambaleando. Agarrámo-nos um ao outro, ambos a tremer de tal maneira que quase não conseguíamos juntar-nos. Eu cuspia sangue e resfolegava, e limpei a cara ao corpete do seu fato branco. Acariciámo-nos um ao outro, balbuciando palavras sem sentido, de conforto e confiança, como sobreviventes de uma enorme devastação.
Lá no alto, a lamparina ardia e crepitava, lançando sombras lúgubres e fazendo com que os cadáveres rígidos parecessem mover-se. A estranha geografia da noite reinava impassível: nós éramos como amantes num poema, um despido e a outra seniivestida, abraçados, de joelhos, ao lado de um lago vasto e calmo. Mas o lago era feito de sangue o sangue era tanto, que eu conseguia ver nele o meu próprio reflexo. Olhei para os meus olhos e, com um choque, caí em mim, tendo finalmente percebido que não me encontrava dentro de um pesadelo, mas no próprio coração da grande e adormecida cidade de Roma.
É óbvio disse eu que a mensagem era uma advertência para ti, Cícero.
Mas, se ele pretendia matar-te, e à tua escrava, por que razão não acabou primeiro com o banho de sangue? Por que não te foi matar enquanto estavas a dormir, escrevendo a mensagem depois?
Encolhi os ombros.
Porque já tinha suficiente sangue à mão, a escorrer do pescoço retalhado de Zótico. Porque a casa estava silenciosa, e ele não tinha medo que despertasse. Porque, escrita a mensagem, no caso de haver complicações imprevistas ou de nós morrermos a gritar, ele poderia fugir imediatamente de casa. Ou talvez estivesse à espera de outro assassino. Não sei, Cícero, não posso falar por um homem morto. Mas que ele pretendia matar-me, disso estou certo. E a advertência era para ti.
A Lua tinha desaparecido. A noite estava no seu ponto mais negro, embora a madrugada não pudesse estar longe. Betesda encontrava-se algures nos aposentos dos escravos, profundamente adormecida, esperava eu. Rufo, Tiro e eu próprio estávamos sentados no escritório de Cícero, rodeados de braseiras crepitantes. O nosso anfitrião andava de um lado para o outro, fazendo caretas e esfregando o queixo.
Tinha um ar alterado e o queixo coberto de barba rala, mas os seus olhos estavam brilhantes, e nada adormecidos e era esse o seu aspecto quando Betesda e eu viemos bater-lhe à porta, depois de termos atravessado a correr metade da cidade a meio da noite. Espantosamente, Cícero ainda estava acordado e a sua casa fortemente iluminada. Um escravo de olhos inchados conduzira-nos ao escritório, onde Cícero caminhava de um lado para o outro com um maço de pergaminhos na mão, lendo em voz alta e bebendo de uma taça de sopa fumegante de alho porro a receita secreta de Hortênsio para adoçar a voz.
Com Tiro a transcrever, quase tinha terminado o primeiro esboço provisório da sua oração em defesa de Sexto Róscio, tendo trabalhado sobre ela incessantemente durante toda a noite. Tinha estado a ensaiá-la em voz alta, diante de Tiro e de Rufo, quando nós chegámos, ensopados em sangue e a tremer, à sua porta.
Betesda desaparecera rapidamente, apoiada na principal governanta de Cícero, que prometeu cuidar dela. Cícero insistiu em que eu me lavasse e vestisse uma túnica lavada antes de fazer o que quer que fosse. Eu tinha feito o que podia mas, à luz da lamparina do seu escritório, continuava a reparar em pequenas manchas de sangue seco, debaixo das unhas e nos pés descalços.
Então, nesta altura tens dois cadáveres em tua casa disse Cícero, revirando os olhos. Muito bem, amanhã envio alguém para dispor deles. Mais despesas! Presumo que o dono deste Zótico não ficará satisfeito por lhe devolverem um cadáver; terei de fazer contas com ele. Tu és como um poço sem fundo para onde eu estou constantemente a lançar moedas, Gordiano.
Essa mensagem interrompeu Rufo, pensativo, o que dizia ela exactamente?
Fechei os olhos e consegui distinguir as palavras, uma por uma, num vermelho vivo, iluminado pela lamparina tremeluzente:
”O louco desobedeceu. Agora está morto. Que um homem mais sensato interrompa o seu trabalho nos próximos sagrados Idos de Março.” E parece-me que ele também retocou a primeira mensagem com sangue fresco.
Muito meticuloso disse Cícero.
Sim, e sabia escrever melhor do que Málio Gláucia. As letras estavam bem delineadas, e parece-me que ele não trabalhou a partir de um papel, mas de memória. Era escravo de um senhor da classe alta.
Dizem que Crisógono tem gladiadores que sabem ler e escrever disse Rufo.
Sim, foi uma pena que tivesses de matar esse Ruivo disse Cícero em tom de censura. Se assim não fosse, ele poderia ter-nos dito quem o tinha enviado.
Mas ele disse que tinha sido enviado por ti, Cícero.
Não precisas de ser sarcástico, Gordiano. Claro que não fui eu que o enviei. Estava combinado que tu contratarias um guarda-costas e que eu o pagaria, o acordo tinha sido esse. Para ser perfeitamente honesto, esqueci-me por completo da combinação depois de tu teres partido. Comecei a trabalhar nas minhas notas para a defesa, e não pensei mais no assunto.
E, no entanto, quando ele me bateu à porta, disse claramente à minha escrava que tinha sido enviado por ti. Tratou-se de um ardil deliberado, calculado para me enganar; isso significa que, quem quer que o tenha enviado, sabia da combinação que tínhamos feito horas antes, que tu pagarias um único guarda para me proteger a casa. Como pode isso ser, Cícero? As únicas pessoas que sabiam dessa discussão são as mesmas que se encontram nesta sala neste momento.
Olhei de frente para Rufo. Ele corou e baixou os olhos. O amor frustrado pode transformar-se em ódio e um desejo contrariado pode ansiar por vingança. Ele fora sempre uma víbora, pensei eu, a quem fora confiado o coração da estratégia de Cícero, e que entretanto conspirava para a sua perversão. Não se pode confiar num nobre, pensei eu, por muito jovem e inocente que ele pareça. Não percebia bem como, mas os inimigos de Sexto Róscio tinham retorcido as motivações de Rufo, usando-as para conseguirem os seus próprios objectivos. Ele estivera disposto a sacrificar a minha vida e a vida de Sexto Róscio para conseguir que Cícero fosse derrubado parecia impossível, quando se olhava para o seu rosto gaiato e o seu nariz coberto de sardas, mas é desta matéria que os Romanos são feitos.
Estava quase a acusá-lo em voz alta, denunciando os seus segredos a sua paixão secreta por Cícero, a sua traição mas, no último instante, o deus que me tinha salvo a vida naquela noite decidiu salvar-me igualmente a honra, e eu fui poupado a uma humilhação diante de um cliente generoso e do seu admirador bem nascido.
Tiro emitiu um ruído abafado, como se tivesse tentado limpar a garganta, sem conseguir.
Voltámo-nos simultaneamente, olhando para ele. O seu rosto era a própria imagem da culpa pestanejava, corava, mordia os lábios.
Tiro? O tom de voz de Cícero era alto e rouco, apesar da sopa de alho porro. Mas o seu rosto apenas revelava uma consternação moderada, como se reservasse o seu juízo na expectativa de uma explicação simples e satisfatória.
Rufo olhou para mim com os olhos incendiados, como que a dizer:
”Como podes ter duvidado de mim?.”
Sim, Tiro disse ele, cruzando os braços e olhando por cima do seu nariz sardento. Há alguma coisa que queiras explicar-nos? Mostrava-se mais arrogante do que eu teria imaginado que ele pudesse ser. Esse olhar frio e implacável será uma máscara que todos os nobres transportam consigo, e que utilizam sempre que necessário, ou será a sua verdadeira face, que exibem quando todas as outras máscaras caíram?
Tiro mordia os nós dos dedos e começou a chorar. Subitamente, percebi a verdade.
A rapariga murmurei eu. Róscia. Tiro escondeu o rosto e soluçou em voz alta.
Cícero estava furioso. Andava pelo quarto, de um lado para o outro, como um lobo. Por vezes, quando passava por Tiro, que estava submissamente sentado, torcendo as mãos e fungando, pensei que ia esbofetear o pobre escravo. Em vez disso, lançava as mãos ao ar e gritava com toda a força dos seus pulmões, até ficar de tal maneira rouco que mal conseguia falar.
Ocasionalmente, Rufo tentava interpor-se, assumindo o papel do nobre que tudo compreende e tudo perdoa. Desempenhava esse papel com constrangimento.
Mas, Cícero, estas coisas estão sempre a acontecer. Além disso, Cecília não precisa de saber. Estendeu a mão para pegar na de Cícero, mas Cícero afastou-se irritadamente, cego à reacção de pesar de Rufo.
Enquanto toda a sua casa se ri nas suas costas? Não, não, Cecília pode ter sido enganada, tal como eu fui enganado, mas não estás certamente a pensar que os seus escravos desconheciam o facto. Não há nada pior, nada, do que um escândalo ter lugar debaixo do nariz de uma matrona romana, enquanto os seus escravos se riem nas suas costas. E pensar que fui eu que introduzi tal vergonha dentro de sua casa! Nunca mais poderei voltar a olhá-la de frente.
Tiro fungava e estremecia quando Cícero passava por ele. Eu raspei o sangue que tinha nas unhas e retraí-me aos primeiros sinais de uma dor de cabeça. A luz que vinha do átrio começava a exibir as cores pálidas da madrugada.
Chicoteia-o se quiseres, Cícero. Ou manda-o estrangular disse eu. Afinal tens o direito de o fazer, e ninguém objectaria a isso. Mas guarda a voz para o julgamento. Gritando dessa maneira, apenas estás a castigar Rufo e a mim próprio.
Cícero ficou rígido e voltou-se para mim com um olhar carregado. Eu tinha finalmente conseguido suspender a sua marcha constante.
Tiro poderá ter agido estúpida e mesmo imoralmente prossegui eu. Ou pode acontecer que ele tenha simplesmente agido como qualquer jovem apaixonado. Mas não temos razões para acreditar que te atraiçoou, nos atraiçoou, pelo menos conscientemente. Foi enganado. É uma história muito antiga.
Por um momento, Cícero acalmou-se, inspirando profundamente e olhando para o chão. Depois voltou a explodir.
Quantas vezes? perguntou ele, lançando as mãos para o ar. Quantas? Já tínhamos passado por isto, mas o número de vezes parecia irritá-lo particularmente.
Cinco, penso eu. Talvez seis respondeu Tiro submissamente, tal como tinha respondido de todas as outras vezes que Cícero lhe fizera a mesma pergunta.
A começar pela primeira vez, a primeira de todas as vezes em que eu visitei a casa de Cecília Metela. Como podes ter feito tal coisa? E depois, teres prosseguido em segredo, nas minhas costas, nas costas do pai dela e da patrona do pai dela, na casa dessa patrona! Não tens qualquer sentido de decência? Ou de razoabilidade? E se tivesses sido descoberto? Eu não teria alternativa senão impor-te o mais terrível dos castigos, logo ali! E teria sido considerado responsável. O pai dela poderia ter apresentado um processo contra mim, poderia ter-me arruinado. A sua voz estava tão rouca e áspera, que ouvi-lo me fazia estremecer.
Não é provável bocejou Rufo, dadas as circunstâncias.
Isso não tem qualquer importância! Francamente, Tiro, não vejo maneira de sair disto. Todos os castigos adequados em que consigo pensar são de tal maneira severos, que me fazem estremecer. E, no entanto, não vejo alternativa.
Podes sempre perdoar-lhe sugeri eu, esfregando os olhos.
Não! Não, não, não! Se Tiro fosse um trabalhador simples e ignorante, um escravo de baixa extracção, um homem pouco melhor do que um animal, o seu comportamento poderia ser desculpável teria, ainda assim, de ser castigado, claro, mas pelo menos o crime seria compreensível. Mas Tiro é um escravo culto, mais conhecedor das leis do que muitos cidadãos. Aquilo que ele fez com a jovem Róscia não foi um acto de uma criatura ignorante e impulsiva, mas uma decisão consciente de um escravo bem ensinado, cujo senhor foi claramente brando em excesso e muito, muito confiante.
Oh, em nome de Júpiter, pára, Cícero! Rufo atingira finalmente o seu limite. Eu fechei os olhos e rezei uma oração de agradecimento aos deuses invisíveis pelo facto de ter sido Rufo a falar e não eu, pois eu tinha estado a morder a língua com tanta força que ela quase sangrava. Não percebes que é inútil? Qualquer que seja o crime que Tiro tenha cometido, ele só é conhecido por nós, os que nos encontramos aqui nesta sala, e de mais ninguém que conte, pelo menos enquanto a rapariga se mantiver calada. Essa é uma questão que tem de ser resolvida entre ti e o teu escravo. Vai dormir e tira isso da cabeça até depois do julgamento, e entretanto limita-te a impedir que ele se aproxime da rapariga. Como diz Gordiano, guarda a tua voz e a tua irritação para coisas mais importantes, como salvar Sexto Róscio. O que importa agora é descobrir o que Tiro disse à rapariga e como é que a informação chegou aos ouvidos dos nossos inimigos.
E por que razão a rapariga traiu o seu próprio pai. Olhei para Tiro com lassidão. Talvez tenhas alguma ideia sobre isso.
Tiro olhou para Cícero com submissão, como que para verificar se teria autorização para falar, ou sequer para respirar. Por um momento, Cícero pareceu estar à beira de outra explosão. Em vez disso, limitou-se a lançar uma praga e voltou-se para o átrio fracamente iluminado, apertando os braços com força à volta do corpo, como que para conter a fúria.
Então, Tiro?
Ainda parece impossível disse ele baixinho, abanando a cabeça. Talvez eu esteja enganado. Mas, quando tu disseste que tinha de ser um dos que estavam nesta sala a trair-te, eu disse a mim próprio: eu não fui, eu não disse a ninguém, e depois percebi que tinha dito a Róscia...
Tal como lhe falaste de mim no dia em que eu entrevistei Sexto Róscio pela primeira vez disse eu.
Sim.
E, no dia seguinte, Málio Gláucia e outro dos bandidos de Magno foram a minha casa assustar-me para que eu me retirasse do caso, matando a minha gata e deixando uma mensagem escrita com o sangue dela. Sim, parece-me muito provável que a tua Róscia seja o buraco do nosso barco.
Mas como? Ela adora o pai. Faria fosse o que fosse para o ajudar.
Foi isso que ela te disse?
Sim. Era por isso que estava sempre a fazer-me perguntas sobre a investigação, perguntando-me o que estava Cícero a fazer para ajudar o pai. Sexto Róscio mandava-a sempre sair da sala quando falava de coisas sérias e não lhe dizia nada, nem a ela nem à mãe. Ela não conseguia suportar não saber nada.
E assim, no meio, ou durante, ou depois dos vossos apressados encontros, ela assediava-te com perguntas detalhadas acerca da defesa do pai.
Sim. Mas tu fazes com que tudo pareça tão sinistro, tão estranho, tão artificial.
Oh, não, estou certo de que ela é tão suave como ouro polido.
Fazes com que ela pareça uma actriz. Ele baixou a voz e lançou um olhar a Cícero, que nos voltara as costas e avançara para o átrio. Ou uma prostituta.
Eu ri-me.
Uma prostituta não, Tiro. E tu deves saber. Vi-o corar e voltar a olhar na direcção de Cícero, como se esperasse que eu mencionasse Electra e o destruísse ainda mais aos olhos do seu senhor. Não disse eu, as motivações de uma prostituta são sempre transparentes, compreensíveis precisamente por serem suspeitas, encantadoras apenas para um louco chapado, ou para um homem que deseje genuinamente ser enganado. Ergui-me da minha cadeira, atravessei rigidamente a sala, e pus a mão no seu ombro. Mas até os mais sensatos podem ser enganados por aquilo que parece ser jovem e inocente e belo. Especialmente quando também se é jovem e inocente.
Tiro olhou na direcção do átrio, onde Cícero já não tinha possibilidade de o ouvir.
Achas realmente que isso era a única coisa que ela queria de mim, Gordiano? Que queria apenas descobrir o que eu sabia?
Eu pensei naquilo que tinha visto no primeiro dia em casa de Cecília, na expressão do rosto da rapariga e no arco de desejo do seu corpo nu contra a parede. Pensei na expressão lúbrica que brilhara nos olhos do jovem Lúcio Mégaro, à memória da sua estada na casa do seu pai, em Améria.
Não, não completamente. Se queres saber se ela terá sentido alguma coisa quando estava contigo, duvido muito. É raro a confiança ser inteiramente pura, mas a traição também o não é.
Se ela estava a recolher informações disse Rufo talvez também estivesse a transmiti-las de uma forma inocente. Pode haver na casa um escravo em quem ela confie, um espião lá colocado por Crisógono, que a assedie com perguntas da mesma maneira que ela assedia Tiro.
Eu abanei a cabeça.
Não me parece. Diz-me se eu tenho razão, Tiro. Até agora, só conseguiste vê-la sempre que conseguias acompanhar um de nós em recados a casa de Cecília, correcto?
Sim... Ele pronunciou a palavra de forma ténue, como se previsse a pergunta seguinte.
Mas algo me diz que Róscia te fez uma proposta para um encontro amanhã?
Sim.
Mas como é que tu sabias? perguntou Rufo.
Porque o julgamento está muito próximo. Quem quer que esteja a recolher informações através de Róscia há-de ter insistido com ela para que obtivesse relatórios mais regulares à medida que o dia se aproxima. Eles não podem confiar na hipótese casual de Tiro poder vê-la todos os dias. Hão-de ter insistido com ela para que combinasse um encontro. Não é verdade, Tiro?
Sim.
E amanhã já chegou disse eu, olhando para o jardim onde Cícero ainda se recompunha. A luz passara de cor-de-rosa a ocre, e diluía-se rapidamente em branco. A frescura da noite estava a recuar. Quando e onde, Tiro?
Ele olhou para o seu senhor, que continuava a não dar sinais de estar a ouvir, e depois soltou um profundo suspiro.
No monte Palatino. Ao pé da casa de Cecília Metela, há um pedaço de terra com árvores e relva, um parque ao ar livre entre duas casas; combinei encontrar-me com ela aí às três horas da tarde. Disse-lhe que talvez fosse impossível. Ela disse-me que, se eu estivesse contigo ou com Rufo, podia dizer-vos que Cícero me encarregara de um recado urgente, ou vice-versa. Disse-me que tinha a certeza de que eu havia de lembrar-me de qualquer coisa.
Mas agora já não precisas. Porque eu vou contigo.
O quê? Era Cícero, que entrava indignado na sala. Isso está fora de questão! É impossível! Não haverá mais contactos entre eles.
Sim disse eu, haverá. Sou eu quem o diz. Porque, desde agora até ao julgamento, a minha vida estará em perigo minuto a minuto, e eu não deixarei de explorar qualquer caminho que possa conduzir à verdade.
Mas nós já conhecemos a verdade.
Conhecemos? Tal como conhecias a verdade há uma hora, antes de Tiro ter feito a sua confissão? Há sempre novas verdades a descobrir. Entretanto, sugiro que tentemos todos dormir um pouco. Temos um dia intenso à nossa espera. Rufo tem coisas a tratar no Fórum, Tiro e eu temos um encontro com a jovem Róscia. E esta noite, enquanto tu, Cícero, trabalhas nas tuas notas e dás lustro ao teu discurso e bebes sopa de alho porro, nós os três iremos a uma pequena festa dada pelo gracioso Crisógono na sua mansão no monte Palatino. Agora, bom dia, Cícero, e se quiseres mostrar-me um sítio onde eu possa dormir, boa noite.
Não sei quanto tempo o meu anfitrião dormiu, ou sequer se chegou a dormir de todo; só sei que, quando Tiro veio acordar-me suavemente nessa tarde ao minúsculo cubículo diante do escritório onde eu dormi, ouvi Cícero declamar na sua voz áspera e esganiçada, enquanto andava de um lado para o outro no pequeno jardim.
Considerem, meus senhores, a história relativamente recente de um certo Tito Clélio de Tarracina, uma cidade simpática a noventa quilómetros a sudeste de Roma, pela Via Ápia. Certa noite, acabou de jantar e foi para a cama, deitando-se no mesmo quarto que os seus dois filhos adultos. Na manhã seguinte, descobriu-se que lhe tinham cortado o pescoço. A investigação não revelou suspeitos nem motivações; os filhos insistiram em que tinham ambos dormido sem ouvir qualquer ruído. Contudo, foram acusados de parricídio e é um facto que as circunstâncias eram suspeitas. Como se explicava, argumentou a acusação, que eles se tivessem mantido adormecidos durante um tal acontecimento? Por que não se levantaram para defenderem o pai? E que tipo de assassino se teria atrevido a aventurar-se num quarto onde dormiam três homens com a intenção de matar um deles, desaparecendo em seguida?
E, no entanto, os bons juizes absolveram os filhos, libertando-os de qualquer suspeita. E qual foi o elemento comprovativo determinante? Os filhos tinham sido descobertos profundamente adormecidos na manhã seguinte. Como podia isto ser, argumentou a defesa, e concordaram os juizes unanimemente, se eles fossem culpados? Que homem seria capaz de cometer um crime indescritível e repugnante, perante todas as leis dos deuses e dos homens, e depois adormecer como um bem-aventurado? Certamente, argumentou a defesa, que homens que tivesse perpetrado um crime tão ultrajante contra o céu e a terra não conseguiriam voltar a adormecer calmamente no mesmo quarto, ressonando ao lado do cadáver ainda quente do seu pai. E foi assim que os dois filhos de Tito Clélio foram absolvidos...
Sim, sim, essa parte é muito boa, muito boa, não precisas de mudar nem uma palavra.
Ele clareou audivelmente a garganta, depois murmurou rapidamente para si próprio, antes de voltar a erguer a voz.
A lenda fala-nos de filhos que mataram as mães para vingar os pais: Orestes, que assassinou Clitemnestra para vingar Agamémnon, Alcméon que assassinou Erifila para vingar Anfiarau... ou terá sido Anfiarau que matou Erifila? Não, não, está bem... E, contudo, diz-se que estes homens agiram de acordo com a vontade divina, obedecendo a oráculos e às próprias vozes dos deuses, embora as Fúrias os persigam em seguida, privando-os implacavelmente de tudo o resto, pois tal é a natureza, mesmo quando isso se justifica por se estar a cometer um acto em nome de um pai assassinado, da natureza... Não, não, espera, não está bem. Não, isso não faz sentido. São demasiadas palavras, demasiadas palavras...
Queres que abra as cortinas? perguntou Tiro. Eu sentei-me no divã, esfregando os olhos e lambendo os lábios, que sentia secos. O quarto parecia um forno, opressivamente quente e abafado. As cortinas amarelas estavam inundadas de uma luz tão áspera como a voz de Cícero.
De maneira nenhuma disse eu. Assim, teria de vê-lo, para além de ter de o ouvir. E também não estou certo de conseguir suportar a luz. Há alguma coisa que se beba?
Ele dirigiu-se a uma pequena mesa, e encheu-me um copo com água que deitou de um jarro de prata.
Que horas são, Tiro?
É a hora nona do dia passam duas horas do meio-dia.
Ah, então dispomos de uma hora antes do nosso encontro. Rufo já se levantou?
Há horas que Rufo Messala partiu para o Fórum. Cícero encomendou-lhe uma enorme lista de recados.
E a minha escrava?
Tiro sorriu com recato afectado. O que teria Betesda feito ter-lhe-ia dado um beijo no rosto, tê-lo-ia lisonjeado, arreliado, ou teria simplesmente feito cintilar os olhos?
Não tenho a certeza onde está neste momento. Cícero indicou que ela não precisava de fazer coisa alguma, excepto atender às tuas necessidades, mas ela ofereceu-se para ajudar na cozinha esta manhã. Até que o principal cozinheiro insistiu para que se fosse embora.
A gritar atrás dela e a atirar-lhe coisas à cabeça, presumo.
Mais ou menos.
Muito bem, se vires o intendente, diz-lhe que pode fechá-la no meu quarto, se assim o entender. Ela que fique aqui sentada a ouvir Cícero declamar o dia todo. Isso deve ser castigo suficiente para algumas tijelas quebradas.
Tiro franziu o sobrolho, mostrando o seu desagrado pelo meu sarcasmo. Uma brisa ligeira fazia estremecer as cortinas amarelas, e transportava a voz de Cícero até mim:
E é precisamente pela enormidade do crime de parricídio que ele tem de ser irrefutavelmente provado antes de qualquer homem razoável acreditar nele. Pois que louco, que destroço totalmente pervertido de humanidade, atrairia sobre si próprio e sobre a sua casa uma tal maldição, não apenas da populaça, mas dos céus? Sabeis perfeitamente, bons romanos, que aquilo que eu estou a dizer é verdade: tal é o poder do sangue que liga um homem aos da sua carne, que uma só gota desse sangue cria uma mancha que nunca mais pode ser lavada. Ela penetra no coração de um parricida e planta a loucura e a fúria numa alma que já tem de ser totalmente depravada... Oh sim, é isso, exactamente. Por Hércules, isso é bom!
Trouxe-te uma taça com água e uma toalha, para o caso de quereres lavar a cara disse Tiro, apontando para uma pequena mesa ao lado do divã. E, como não trouxeste roupas, andei pela casa e des-cobri algumas coisas que penso que te servirão. Já foram usadas, evidentemente, mas estão limpas.
Pegou nas túnicas e depositou-as no divã, ao meu lado, para que eu as inspeccionasse. Não podiam ser de Cícero, cujo tronco era muito mais longo e mais estreito do que o meu; suspeitei de que tivessem sido feitas para Tiro. A túnica mais simples estava cosida com mais perfeição e era de melhor qualidade do que a minha melhor toga. Na noite anterior, o próprio Cícero emprestara-me uma veste sem mangas quando me conduzira à minha cama; aparentemente, não lhe passava pela cabeça que fosse possível dormir despido. Quanto à túnica manchada de sangue que eu vestira à pressa antes de fugir de casa com Betesda, tinha aparentemente sido recolhida do chão do meu quarto enquanto eu dormia, e deitada fora.
Enquanto eu me lavava e me vestia, Tiro foi à cozinha buscar pão e uma taça de fruta. Comi tudo e mandei-o buscar mais. Estava esfomeado, e nem o calor, nem sequer o zumbido constante de Cícero, bem como os seus ensaios e autocongratulaçÕes, poderiam estragar-me o apetite.
Finalmente, afastei as cortinas e saí com Tiro para a luz brilhante do jardim. Cícero ergueu os olhos do seu texto mas, antes que pudesse dizer uma palavra, Rufo apareceu ao seu lado.
Cícero, Gordiano, oiçam isto. Não vão acreditar. É um verdadeiro escândalo. Cícero voltou-se para ele e ergueu uma sobrancelha. Claro que é apenas um boato, mas certamente que poderemos verificá-lo. Sabes quanto valem, no total, as propriedades de Sexto Róscio?
Cícero encolheu ligeiramente os ombros e passou a pergunta para mim.
Uma correnteza de quintas calculei eu, algumas delas numa zona bastante valiosa, junto à confluência do Tibre e do Nar; uma villa dispendiosa, na principal propriedade, junto de Améria; uma pequena propriedade na cidade pelo menos quatro milhões de sestércios.
Rufo abanou a cabeça.
Perto de seis milhões. E quanto pensas tu que Crisógono sim, foi o próprio Louro de Nascença, e não Cápeto ou Magno quanto pensas tu que ele pagou por tudo isso em leilão? Dois mil sestércios. Dois mil!
Cícero estava visivelmente chocado.
É impossível disse ele. Nem Crasso é tão ganancioso.
Nem tão óbvio disse eu. Onde é que descobriste isso? Rufo corou.
O problema é esse. É também o escândalo! Foi um dos funcionários dos leilões que me contou. Foi ele que geriu a licitação.
Cícero lançou as mãos ao céu.
Um homem que nunca testemunhará! Rufo parecia magoado.
Claro que não. Mas pelo menos mostrou-se disposto a falar comigo. E tenho a certeza de que não estava a exagerar.
Não faz mal. Basta-nos ter um registo da venda. E, claro, o nome de Sexto Róscio nas listas de proscrição.
Rufo encolheu os ombros.
Procurei o dia inteiro, e não há nada. Claro que os registos oficiais são um desastre. Vê-se que foram pesquisados, marcados e remarcados e, tanto quanto se sabe, completamente roubados. Entre as guerras civis e as proscrições, os registos do Estado são uma incrível confusão.
Cícero torcia pensativamente o lábio.
Sabemos que, se o nome de Sexto Róscio foi introduzido nas listas de proscritos, isso foi uma fraude. E, contudo, se ele lá estiver, isso inocentará o filho.
E se não, como podem Crisógono e Cápeto justificar o facto de terem a propriedade em seu nome? disse Rufo.
Mas é certamente por isso interrompi eu que Crisógono e companhia querem ver Sexto morto e totalmente fora do seu caminho, se possível por meios legais. Quando a família tiver desaparecido por completo, ninguém poderá pô-los em causa, nem as questões relativas às proscrições e aos assassínios serão discutidas. O escândalo é óbvio para quem quer que investigue a verdade, mesmo sem grandes compromissos; é por isso que eles se tornaram tão desesperados e tão brutais. A única estratégia que podem adoptar é silenciar quem quer que saiba ou se preocupe.
E, contudo disse Cícero, é cada vez mais óbvio para mim que eles não estão preocupados com a opinião da populaça, nem sequer com as decisões do tribunal. O seu principal objectivo é evitar que Sula descubra o escândalo. Por Hércules, acredito honestamente que ele nada sabe, e eles querem desesperadamente que as coisas se mantenham nesse pé.
Talvez disse eu. E certamente contam que o teu sentido de autopreservação te levará a evitar tornar público, diante da Rostra, um escândalo desagradável. Não podes de maneira nenhuma abrir caminho até à verdade sem pôr em causa o nome de Sula. No mínimo, embaraçá-lo-ás, no máximo, implicá-lo-ás. Não tens maneira de acusar o ex-escravo sem insultares o seu amigo e anterior senhor.
Francamente, Gordiano, tens em tão pouca consideração as minhas capacidades oratórias? Claro que vou andar no fio da navalha. Mas Diódoto ensinou-me a valorizar, tanto o tacto como a verdade. Nas mãos de um advogado sensato e honesto, só os culpados têm de temer as armas da retórica, e um orador verdadeiramente sensato nunca as voltará contra si próprio. Lançou-me um sorriso cheio de autoconfiança, mas eu pensei que aquilo que até agora tinha ouvido do seu discurso só aflorava a periferia do escândalo. Chocar o público com histórias inexplicáveis de cadáveres assassinados durante a noite e serená-lo com lendas era uma coisa; mencionar o nome de Sula, por Hércules, era outra coisa completamente diferente.
Dei uma vista de olhos ao relógio de sol. Dispúnhamos de meia hora antes que a jovem Róscia começasse a ficar impaciente. Pedi licença a Rufo e a Cícero e apoiei a mão no ombro de Tiro, enquanto nos afastávamos. Atrás de mim, ouvi Cícero atirar-se imediatamente ao discurso, deliciando Rufo com as suas partes favoritas:
Pois que louco, que destroço totalmente pervertido de humanidade, atrairia sobre si próprio e sobre a sua casa uma tal maldição, não apenas da populaça, mas dos céus? Sabeis perfeitamente, bons romanos, que aquilo que eu estou a dizer é verdade... Olhei para trás por cima do ombro e vi que Rufo seguia cada palavra e cada gesto com uma expressão de arrebatada adoração.
Subitamente, apercebi-me de que Cícero não dissera uma palavra a Tiro antes da nossa partida, tendo apenas registado um aceno frio de despedida quando Tiro se voltara para se ir embora. Quaisquer palavras que tivessem sido trocadas entre eles a respeito da conduta de Tiro nunca me chegaram aos ouvidos e, se houve algum castigo formal, eu não fui informado disso, nem por Tiro nem por Cícero; e nem uma só vez, pelo menos na minha presença, voltou Cícero a fazer referência ao assunto.
Tiro manteve-se silencioso enquanto atravessávamos o Fórum e subíamos o monte Palatino. À medida que nos aproximávamos do lugar do encontro, ele foi ficando cada vez mais agitado e a sua expressão sombria como a máscara de um actor. Quando chegámos à vista do pequeno parque, tocou-me na manga e parou.
Deixas-me falar com ela a sós apenas por um momento? Por favor? pediu-me ele com a cabeça inclinada e os olhos baixos, como um escravo pede licença.
Eu respirei fundo.
Sim, claro. Mas apenas por um momento. Não faças nada que a leve a desatar a fugir. Eu mantive-me escondido na sombra de um salgueiro e vi-o avançar rapidamente para a passagem entre os muros altos das mansões vizinhas. Ele desapareceu no meio da folhagem, escondido pelos teixos e por uma grande profusão de rosas.
O que ele lhe disse no meio daquele arvoredo verde, nunca o saberei. Quando chegou o momento em que poderia ter-lhe perguntado, não o fiz, e ele nunca tomou a iniciativa de mo confidenciar. Talvez Cícero o tivesse interrogado mais tarde e tivesse ficado a conhecer os pormenores, mas não me parecia provável. Por vezes, até um escravo pode ter um segredo, embora o mundo lhe não permita ter mais nada.
Esperei apenas um momento, e não tanto como tencionara; a cada instante que passava, eu imaginava a rapariga a fugir pela saída existente na outra extremidade do parque, pelo que não consegui continuar quieto. Nunca haveria uma boa altura para lhe arrancar a verdade, mas esta era a melhor oportunidade por que eu poderia esperar.
O pequeno parque era sombrio e fresco, mas cheio de pó. Havia poeira presa às folhas secas das roseiras e da hera que subia pelos muros. A poeira erguia-se debaixo dos pés, nos sítios em que a relva estava gasta e era mais fina. Os pequenos ramos estalavam e as folhas crepitavam enquanto eu abria caminho por entre eles; Tiro e Róscia ouviram-me aproximar, embora eu avançasse o mais silenciosamente que podia. Avistei-os através do emaranhado e, no momento seguinte, vi-os sentados lado a lado num banco de pedra baixo. A rapariga ergueu para mim os olhos de um animal assustado. Teria fugido se Tiro não estivesse a segurar-lhe fortemente o pulso.
Quem és tu? Ela olhou para mim e fez uma careta, enquanto tentava soltar a mão. Olhou para Tiro, mas ele não lhe devolveu o olhar, preferindo contemplar o emaranhado de folhas.
Ela decidiu então ficar completamente quieta, mas eu apercebi-me do pânico e dos cálculos furiosos que havia por trás dos seus olhos.
Vou gritar disse ela calmamente. Se mais ninguém ouvir, ouvirão os guardas que estão em frente da porta de Cecília. Eles acorrerão se me ouvirem gritar.
Não disse eu, recuando um passo e falando suavemente para acalmá-la. Não vais gritar. Vais falar.
Quem és tu?
Sabes perfeitamente quem eu sou.
Sei, sim. És aquele a quem chamam o Descobridor.
Exactamente. E tu foste descoberta, Róscia Majora.
Ela mordeu o lábio e estreitou os olhos. Para uma rapariga tão bonita, era espantoso como podia tornar desagradável o seu rosto.
Não percebo o que queres dizer. Descobriste-me sentada ao lado deste escravo é o escravo de Cícero, não é? Ele atraiu-me aqui, dizendo-me que tinha uma mensagem do seu senhor acerca do meu pai...
Ela não falava no tom tentativo de quem estivesse a fabricar uma mentira para uso futuro, mas como se estivesse a dizer a verdade pura à medida que a ia inventando. Percebi que era uma mentirosa experiente. Tiro continuava a não olhar para ela.
Por favor murmurou ele. Gordiano, já me posso ir embora?
Certamente que não. Preciso de ti aqui para me dizeres se ela está a mentir ou a dizer a verdade. Além disso, és minha testemunha. Se me deixares sozinho com ela, o mais provável é que invente histórias sórdidas acerca do meu comportamento.
Um escravo não pode testemunhar lançou ela.
Claro que pode. Presumo que não ensinem a lei romana às filhas dos agricultores da Améria, pois não? Um escravo pode ser uma testemunha perfeitamente fiável, desde que o seu testemunho seja obtido sob tortura. Na realidade, a lei exige que um escravo que seja testemunha seja obrigatoriamente torturado. Por isso, espero que não grites e não inventes problemas, Róscia Majora. Ainda que aquilo que sentes por Tiro não seja mais do que desprezo, julgo que não quererás ser responsável pelo facto de ele ser torturado e queimado com ferros.
Ela olhou para mim.
Tu és um monstro, é o que tu és. Tal como os outros. Desprezo-vos a todos.
A resposta veio-me aos lábios sem esforço, mas eu fiz uma longa pausa antes de a lançar sabendo que, uma vez pronunciada, não poderia voltar atrás.
E ao teu pai mais do que a todos.
Não percebo o que queres dizer. Ela suspendeu momentaneamente a respiração, e a ira que lhe escudava a face desvaneceu-se abruptamente, revelando a dor que havia por trás. Era afinal uma criança, apesar da sua habilidade. Começou a mexer-se desajeitadamente, tentando cobrir-se com aquele escudo de amargura, mas só o conseguindo em parte, de tal maneira que, quando voltou a falar, foi como se estivesse semidespida, claramente hostil, mas com a sua vulnerabilidade penosamente exposta.
O que queres tu? murmurou ela asperamente. Por que vieste aqui? Por que não nos deixas em paz? Diz-lhe, Tiro. Ela tocou no braço que lhe segurava o pulso e acariciou-o ternamente, olhando para Tiro e depois lançando modestamente os olhos para o chão. O gesto pareceu simultaneamente calculista e sincero, manipulador mas com uma ânsia verdadeira de uma reacção de ternura. Tiro corou até à raiz dos cabelos. Pela brancura dos nós dos seus dedos e a súbita careta de Róscia, percebi que ele lhe apertava fortemente o pulso, talvez sem sequer se aperceber disso. Diz-lhe, Tiro arquejou ela, e ninguém poderia dizer se as lágrimas que havia na sua voz eram genuínas ou não.
Tiro já me disse o suficiente. Eu olhei-a de frente, mas ignorei a dor que lhe li no rosto. Falei num tom frio e ríspido. Com quem vais encontrar-te quando sais de casa de Cecília isto é, para além de Tiro? É aqui que revelas os segredos do teu pai aos lobos que querem vê-lo esfolado vivo? Diz-me lá, criança louca! Que género de suborno te convenceu a trair a tua própria carne?
A minha própria carne! guinchou ela. Trair a minha própria carne? Eu não tenho carne! Isto é a carne do meu pai, isto! Ela arrancou o braço da mão de Tiro, ergueu a manga e pegou num pedaço de carne do seu braço. Esta carne é carne sua! disse ela novamente, erguendo a ponta do fato para me mostrar as suas pernas brancas e nuas, beliscando a carne tensa como se pudesse arrancá-la dos ossos. E isto, e isto! Não é minha, é dele! gritava ela, puxando por si própria, pelas suas faces, as suas mãos e os seus cabelos. Quando puxou pelo decote para desnudar os seios, Tiro impediu-a. Ele tê-la-ia abraçado, mas ela afastou-o. Compreendes? Ela tremia como se chorasse, mas não saíam lágrimas dos seus olhos brilhantes e febris.
Sim disse eu. Tiro estava sentado ao lado dela, abanando a cabeça, ainda confuso.
Compreendes mesmo? Uma única lágrima caiu-lhe de um dos olhos e desceu pelas suas faces.
Eu engoli em seco e acenei lentamente.
Quando é que isso começou?
Quando eu tinha a idade de Minora. É por isso... Subitamente, ela começou a soluçar, tornando-se incapaz de falar.
Minora a pequenina, a tua irmã?
Ela acenou com a cabeça. Tiro compreendeu finalmente. Os seus lábios estremeceram. Os seus olhos escureceram.
Então isto é a tua vingança ajudar os seus inimigos sempre que podes.
Mentiroso! Disseste que compreendias! Não é uma vingança Minora...
Queres salvar a tua irmã dele.
Ela acenou, desviando o rosto envergonhada. Tiro observava-a com uma expressão de total incapacidade, movendo as mãos como se quisesse tocar-lhe mas tivesse receio de o fazer. Eu não conseguia suportar olhar para ambos ao mesmo tempo e voltei o rosto para o céu vazio, interminavelmente ardente.
Uma brisa atravessou o parque, fazendo agitar as folhas. Algures, ao longe, uma mulher gritou, e depois fez-se silêncio. No fundo do silêncio, ouvia-se lá em baixo o murmúrio distante da cidade. Um pássaro isolado voou para o alto e atravessou os céus.
Como é que eles vieram ter contigo? Como é que souberam?
Foi um homem... estava aqui... um dia. Ela deixara de soluçar, mas a sua voz era fina e alquebrada. Tenho vindo aqui todas as tardes desde que chegámos à cidade. É o único sítio que me recorda a minha casa, o campo. Certo dia, aproximou-se um homem deviam ter vigiado a casa de Cecília e sabiam que eu era a filha dele. Primeiro, assustei-me. Depois começámos a conversar. Coscuvilhices, chamou-lhes ele, tentando parecer inocente quando começou a falar sobre o meu pai, como se fosse apenas um vizinho curioso. Deve ter pensado que era muito subtil, ou então pensou que eu era uma idiota, pela maneira como começou a fazer perguntas. Ofereceu-me um colarzinho estúpido, do género de coisa que Cecília deitaria ao lixo. Eu disse-lhe que ficasse com ele, que parasse de me insultar. Disse-lhe que não era estúpida e que sabia exactamente o que ele queria. Oh, não, não, disse ele, e fez uma tal encenação que eu tive vontade de lhe cuspir na cara. Disse-lhe que chegava! Eu sabia o que ele queria. Disse-lhe que sabia que ele tinha sido enviado pelo velho Cápeto ou por Magno, e ele fingiu que nunca tinha ouvido falar deles. Deixa lá, disse eu. Sei o que tu queres. E vou-te ajudar como puder. Finalmente, convenceu-se. Devias ver a cara dele.
Eu olhei para a hera por cima da cabeça dela, para a escuridão densa e coberta de pó que era o domínio das vespas e dos caracóis e da miríade de formas menores de vida que se devoravam e redevoravam umas às outras.
E continuas a vir aqui todas as tardes.
Sim.
E é sempre o mesmo homem que vem ter contigo.
Sim. E depois eu mando-o embora, para poder ficar sozinha.
E contas-lhe tudo.
Tudo. O que o meu pai comeu ao pequeno-almoço. O que o meu pai disse à minha mãe na cama na noite anterior, enquanto eu escutava à porta. Sempre que Cícero e Rufo vêm visitar-nos e o que dizem.
E todos os pequenos segredos que consegues arrancar a Tiro. Ela hesitou, apenas por um instante.
Sim, isso também.
Tal como o meu nome e a razão por que Cícero me contratou?
Sim.
Tal como o facto de eu ter pedido a Cícero para contratar um guarda para minha casa?
Oh, sim. Isso foi ontem. Ele interrogou-me muito pormenorizadamente acerca disso. Queria saber com precisão o que Tiro me tinha dito, com todos os detalhes.
E claro que tu captas muito bem todos os pormenores e te lembras deles.
Ela olhou-me nos olhos. A sua expressão tinha voltado a endurecer.
Sim. Muito bem. Não me esqueço de nada. De nada. Eu abanei a cabeça.
Mas que podes tu ganhar com isso? O que vai ser da tua vida? Que futuro podes ter sem o teu pai?
Não será pior do que o passado, não será mais terrível do que todos os anos em que ele me obrigou... todos os anos em que eu fui sua...
Tiro tentou novamente consolá-la, e ela voltou a afastá-lo.
Mas, ainda que lhe tenhas esse ódio assassino, que vida vais ter, tu e a tua mãe e a pequena Minora, se as coisas continuarem assim? Sem ninguém a quem recorrer, reduzidas à condição de pedintes...
É o que nós somos actualmente.
Mas o teu pai pode ser absolvido. Se isso acontecer, há uma possibilidade de lhe conseguirmos devolver as propriedades.
Ela olhou para mim com intensidade, considerando e pesando o que eu tinha dito, com o rosto totalmente desprovido de expressão. Depois emitiu o seu juízo.
Não me importa. Se tivesse de escolher entre fazer o que tenho feito e voltar à vida que tinha, continuaria a não me arrepender. Voltaria a fazer exactamente a mesma coisa. Atraiçoá-lo-ia como pudesse. Faria tudo o que pudesse para ajudar os seus inimigos a condená-lo à morte. Ele já começou a aproximar-se dela. Percebo-o pela forma como a olha quando a minha mãe sai do quarto. Pela expressão dos seus olhos por vezes olha para Minora, depois para mim, e sorri. Consegues imaginar? Ele sorri para me mostrar que sabe que eu compreendo. Sorri para me fazer recordar todas as vezes em que teve prazer comigo. Sorri, pensando em todo o prazer que poderá vir a ter, ao longo dos anos, com Minora. Mesmo agora, quando a sua vida está quase a terminar, continua a pensar nisso. Talvez seja a única coisa em que pensa. Até agora, eu consegui mantê-la longe dele através de artimanhas, de mentiras; certa vez, cheguei mesmo a ameaçá-lo com uma faca. Mas sabes o que eu acho? Se o condenarem à morte, será a última coisa que ele há-de fazer. Ainda que tenha de fazê-lo diante dos seus executores, há-de arranjar maneira de a despir e de se meter dentro dela.
Ela estremeceu e vacilou, como se fosse desmaiar. Na sua fraqueza, permitiu a Tiro que a abraçasse suavemente pelos ombros. A sua voz era distante e profunda, como se viesse da lua.
Ele sorri porque há uma parte dele que ainda acredita que nunca conseguirão matá-lo. Pensa que viverá para sempre e, se assim for, então eu não poderei ter qualquer esperança de o impedir.
Eu abanei a cabeça.
Odeia-lo de tal maneira, que não te importa saber quem é que a tua traição pode afectar, nem quantos homens inocentes destróis. Já por duas vezes eu poderia ter sido morto por tua causa.
Ela empalideceu, mas apenas por um instante.
Nenhum homem que ajudar o meu pai é inocente disse ela pesadamente. O abraço de Tiro começou a afrouxar.
E qualquer homem é digno do teu corpo, desde que possa ser-te útil?
Sim! Sim, e não tenho vergonha disso! O meu pai tem todos os direitos sobre mim, diz a lei. Sou apenas uma rapariga, não sou nada, sou a porcaria que se acumula por baixo das suas unhas, pouco mais sou do que um escravo. De que armas disponho eu? Como posso proteger Minora? Só tenho o meu corpo. Só tenho a minha inteligência. Por isso utilizo-os.
Mesmo que a tua traição implique a minha morte?
Sim! Ainda que seja esse o preço ainda que outros tenham de morrer. Começou novamente a chorar, apercebendo-se do que tinha dito. Embora eu nunca tivesse pensado, nem soubesse. Ele é o único que eu odeio.
E quem amas tu, Róscia Majora? Ela esforçou-se por parar de chorar.
Minora murmurou.
E mais ninguém?
Mais ninguém.
E aquele rapaz de Améria, Lúcio Mégaro?
Conhece-lo?
E o pai de Lúcio, aquele amável agricultor, Tito, o melhor amigo do teu pai?
Isso é mentira lançou ela. Não aconteceu nada com ele.
Queres dizer que tu te ofereceste e que ele recusou. Eu fiquei quase tão surpreendido como Tiro quando o silêncio dela se impôs como uma admissão da verdade. Ele afastou-se completamente dela. Ela não pareceu ter reparado.
Quem mais foi objecto dos teus favores, Róscia Majora? Outros escravos da casa de Cecília, em troca de espiarem o teu pai? O espião que se encontra contigo aqui, essa criatura do inimigo, ele também? O que acontece depois de lhe transmitires a informação que ele pretende?
Não sejas estúpido disse ela pesadamente. Deixara de chorar e estava soturna.
Tiro também não significa nada para ti?
Nada disse ela.
Foi apenas um instrumento de que tu te serviste? Ela olhou-me de frente.
Sim disse ela. Nada mais do que isso. Um escravo. Um tolo. Um instrumento. Começou a olhar para ele, mas depois voltou-se.
Por favor... começou Tiro.
Sim disse eu. Já te podes ir embora, Tiro. Vamos ambos embora. Não há mais nada a dizer.
Ele não tentou voltar a tocar-lhe, nem olhou para ela. Passámos por entre as folhas enredadas, até emergirmos para os raios inclinados do sol da tarde. Tiro abanava a cabeça, dando pontapés no lixo.
Gordiano, perdoa-me começou ele, mas eu interrompi-o.
Agora não, Tiro disse eu, tão suavemente quanto consegui. O nosso pequeno encontro ainda não terminou. Suspeito de que estamos a ser observados neste preciso momento não, não olhes para trás; olha para diante e não repares em nada. Todas as tardes, disse ela. Não é provável que se tenha encontrado com o homem antes da tua visita; vai encontrar-se com ele depois. Ele está só à espera de que nós vamos embora. Segue-me até àquele salgueiro que fica no canto da casa de Cecília. Se conseguirmos esconder-nos atrás dele, julgo que poderemos observar a chegada ao local de refúgio de Róscia sem sermos vistos.
Não tivemos de esperar muito tempo. Momentos depois, um homem vestido com uma túnica preta atravessou a estrada e desapareceu no desfiladeiro verde. Indiquei a Tiro que me seguisse. Corremos para o local, e atravessámos a folhagem até que eu comecei a ouvir as vozes de ambos. Indiquei a Tiro que parasse. Apurei os ouvidos, mas apenas consegui ouvir algumas palavras, antes de entrever Róscia num intervalo dos teixos. Por azar, ela também me viu. Por um instante, pensei que se mantivesse calada, mas ela foi leal aos inimigos do seu pai até ao fim.
Vai-te embora! gritou ela. Corre! Eles voltaram! Ouviu-se um som de folhagem pisada, quando o homem avançou cegamente em direcção a nós.
Não! berrou ela. Vai pelo outro lado. Mas o homem estava demasiadamente tomado pelo pânico para conseguir ouvi-la. Chocou em cheio comigo, batendo com a cabeça na minha e empurrando-me para o chão. Um instante mais tarde, punha-se novamente de pé, empurrando Tiro para o lado. Tiro correu atrás dele, mas a perseguição foi inútil. Eu segui-os e encontrei-o na rua, regressando com uma expressão de derrota e a escorrer suor. Vinha agarrado ao antebraço, onde um espinho de uma das roseiras o tinha arranhado.
Tentei, Gordiano, mas não consegui apanhá-lo.
Óptimo; se tivesses conseguido, o mais provável era teres uma faca espetada nas costelas. Não tem importância. Eu consegui vê-lo bem.
Sim?
É um rosto conhecido na Subura, e também no Fórum. Trata-se de um assalariado de Gaio Erúcio, o acusador. Era o que eu pensava. Erúcio não se detém perante nada para obter as provas de que necessita.
Descemos penosamente a encosta do monte Palatino e, embora o caminho fosse a descer, nem por isso deixou de nos parecer longo e difícil. Sentia-me profunda e amargamente envergonhado por ter interrogado a rapariga de forma tão severa, mas tinha-o feito por Tiro. Ele amara-a; a revelação do seu sofrimento levara-o a amá-la ainda mais eu vira esse amor nascer diante dos meus olhos. Uma paixão tão desesperada apenas poderia trazer-lhe uma dor e uma tristeza sem fim. Só a rejeição dela poderia libertá-lo, por isso eu esforçara-me por trazer à superfície toda a sua amargura, para que ele pudesse conhecê-la. Mas agora começava a interrogar-me se Róscia não teria conspirado comigo por causa de Tiro, porque no último olhar que me lançara antes de falar dissera-me que compreendia e, quando falou de Tiro com tão evidente desprezo, talvez estivesse a dizer a verdade, ou talvez isso fosse o último presente de ternura que podia oferecer-lhe.
Quando regressámos à casa do Capitolino, Rufo tinha saído. Cícero estava a descansar, mas tinha deixado recado para que eu fosse imediatamente falar com ele. Enquanto Tiro se atarefava silenciosamente no escritório, o Velho Tiro, o porteiro, conduziu-me ao interior da casa, a uma região que eu ainda não conhecia.
O quarto de Cícero era tão austero como aquele que me fora atribuído. A única concessão ao luxo era o pequeno jardim privado que dava para o quarto, no qual cintilava e chorava uma pequena fonte, reflectindo em ondas suaves o rosto pensativo da Minerva que a ela presidia. A ideia que Cícero fazia do repouso era aparentemente trabalhar deitado e em vez de o fazer em pé. Encontrei-o deitado de costas, lendo atentamente um molho de pergaminhos que tinha nas mãos. Viam-se outros pedaços de pergaminho espalhados pelo chão.
Numa linguagem simples e seca, narrei-lhe os factos da traição de Róscia os abusos do pai, a amargura dela, a astúcia de Gaio Erúcio, que se aproveitara do desespero da rapariga. A novidade não pareceu ter qualquer efeito sobre Cícero. Fez algumas perguntas, a fim de esclarecer determinados pontos, acenou com a cabeça para mostrar que compreendia, e depois retomou a leitura com um breve aceno de despedida.
Eu mantive-me diante dele, intrigado e indeciso, perguntando a mim próprio se esta revelação acerca do carácter de Róscio não teria absolutamente nenhum efeito sobre ele. ”Isto nada significa para ti?” perguntei por fim.
O quê? Ele franziu o sobrolho irritado, mas não ergueu os olhos.
Parricida ou não, que género de homem é Sexto Róscio? Cícero baixou o pergaminho até ao peito, e olhou-me fixamente durante um longo momento antes de falar.
Gordiano, ouve-me com atenção. Neste momento, não tenho qualquer interesse em avaliar o carácter de Sexto Róscio, ou em verificar os seus pecadilhos morais. A informação que me trouxeste nada contém que possa ser-me útil nos meus preparativos; não me serve de nada. Não tenho tempo para ela não tenho tempo para coisa alguma que me distraia do círculo fechado e simples de lógica que luto penosamente por construir em defesa de Sexto Róscio. O teu dever, Gordiano, é ajudar-me a construir esse edifício, e não dar pontapés nos seus fundamentos ou puxar os tijolos que eu já fixei nos seus lugares. Compreendes?
Não se preocupou em verificar se eu assentava ou não. Com um suspiro e um gesto, dispensou-me e regressou ao estudo das suas notas.
Encontrei Betesda no meu quarto. Estava ocupada a pintar as unhas com um novo composto de hena que descobrira num mercado perto do Circo Flamínio, onde tinha passado a maior parte do dia, a passear e na coscuvilhice. Estava sentada, inclinada para diante e com a perna dobrada, de maneira que a veste lhe caía para trás, desnudando-lhe a coxa. Sorriu e agitou os dedos dos pés como uma criança.
Eu aproximei-me dela e acariciei-lhe o cabelo com as costas da mão. Ela estreitou os olhos e ergueu o queixo, esfregando a sua pele suave e macia contra os nós dos meus dedos. Senti-me subitamente como um animal, cansado de pensamentos e desejando apenas afundar-me nas sensações do corpo.
Em vez disso, fui assaltado pela confusão. A imagem de Róscia continuava a vogar nos recantos do meu espírito, inflamando-me, fazendo-me arder o rosto com um calor que não era apenas de luxúria nem apenas de vergonha, mas de ambas as coisas. Passei a mão pela carne de Betesda, fechei os olhos e vi o corpo nu e palpitante da rapariga encerrado entre a parede e os flancos de Tiro, que contra ele se encostavam. Poisei os lábios no ouvido de Betesda; ela suspirou e eu estremeci porque imaginei ouvi-la murmurar o nome da rapariguinha ”Minora, Minora”. Certamente que eu vira a criança quando entrevistei Sexto Róscio pela primeira vez, mas não me lembrava nada dela. Apenas conseguia ver o rosto de Róscia contorcido de angústia enquanto eu a interrogava, com a mesma expressão que tinha quando Tiro usufruíra dela.
Luxúria, vergonha; êxtase, angústia; todas as coisas eram uma só coisa, e nem o meu corpo era já distinto, quando se misturava com o de Betesda. Ela enganchou as suas coxas frescas à volta do meu sexo e apertou, rindo suavemente. Recordei-me do jovem Lúcio, na estrada para Améria, sorrindo tolamente e corando; pensei em Róscia, com as coxas ainda molhadas do sémen de Lúcio, oferecendo-se ao pai do rapaz. Como a teria Tito Mégaro recusado com um suspiro de pesar, um arrepio de desprezo, uma forte bofetada na cara? Vi as mãos brutais de Sexto Róscio, endurecidas pelo trabalho do campo, deslizando entre as coxas frescas da rapariga, com os calos raspando a sua carne macia. Fechei os olhos com força e vi-a olhar de frente para mim, com os olhos quentes como carvões. Betesda abraçou-me e arrulhou aos meus ouvidos, e perguntou-me por que estava a tremer.
Quando chegou o momento, afastei-me dela e ejaculei entre as suas pernas, inundando os lençóis já amarrotados e húmidos com o vapor dos nossos corpos. Abriu-se um grande vazio, que depois se fechou com um pestanejar. A minha cabeça estava pousada entre os seus seios, que balançavam suavemente como o convés de um navio no alto mar. Lentamente, lentamente, ela retirou das minhas costas as suas unhas pintadas de hena, como um gato recolhendo as garras. Sobrepondo-se ao som do seu coração nos meus ouvidos, ouvi uma voz aguda proveniente do jardim:
A natureza e os deuses exigem obediência absoluta ao pai. Os homens sábios declaram, para seu crédito, que um mero gesto facial pode ser uma quebra do dever... não, não, já revi suficientemente essa parte. Onde está, a secção em que eu... Tiro, ajuda-me aqui! Ah, cá está. Mas vamos agora ao papel desempenhado por esse Crisógono que não nasceu dourado, como sugere o seu nome estrangeiro, mas do mais vil dos metais, disfarçado e ordinariamente adornado pelos seus esforços insidiosos, como um vaso de lata coberto de ouro roubado...
A festa na mansão de Crisógono só começava depois do pôr do Sol. Por essa altura, já Cícero tinha comido e mudado de roupa para a noite. A maioria dos escravos dormia, e a casa estava às escuras, à excepção dos compartimentos onde Cícero ficaria a trabalhar no seu discurso antes de se retirar para o quarto. Por insistência minha, e sem grande convicção, ele posicionara alguns dos seus escravos mais robustos de vigia ao telhado e de guarda ao vestíbulo. Parecia-me improvável que os nossos inimigos se atrevessem a atacar Cícero directamente, mas eles já se tinham mostrado capazes de terror e derramamento de sangue para além das minhas expectativas.
Originalmente, eu tinha pensado que Tiro e eu podíamos acompanhar Rufo disfarçados de escravos seus, mas isso parecia estar agora fora de questão; havia todas as razões para pensar que algum dos convidados poderia reconhecer um de nós ou ambos. Em vez disso, Rufo iria à festa sozinho, partindo de casa da sua família e chegando com a sua própria comitiva. Tiro e eu esperaríamos na sombra, cá fora.
A casa de Crisógono ficava situada a curta distância da mansão de Cecília e muito perto do local em que Tiro se encontrara com Róscia. À luz que esmorecia, vi-o olhar furtivamente para as densas sombras quando por lá passámos, como se ela ainda estivesse à espera dele. Abrandou o ritmo até parar por completo, olhando fixamente para a escuridão. Permiti-lho por um momento, depois puxei-lhe pela manga. Ele teve um sobressalto, olhou para mim com um ar abstracto, depois seguiu-me rapidamente.
A entrada na mansão de Crisógono estava animada de som e de luz. O pórtico estava rodeado de tochas, algumas colocadas em palmatórias, outras seguras por escravos. Um grupo de escravos tocava liras, címbalos e flautas, enquanto os convidados se iam apresentando. Na sua maioria, chegavam em liteiras carregadas por escravos, que ficavam sem fôlego depois de subirem a colina. Alguns dos que viviam no Monte Palatino eram suficientemente modestos para irem a pé, rodeados por grupos de escravos e de servidores aduladores e supérfluos.
Tendo entregue os seus senhores, os carregadores de liteiras eram enviados a trotar para o outro lado da esquina, até à parte de trás da casa. Os outros escravos dispersavam-se para os locais onde os escravos costumam congregar-se enquanto os seus senhores se divertem. A noite estava quente; muitos dos convidados mantinham-se na entrada, ouvindo os músicos. A música parecia flutuar no lusco-fusco, mais doce que o canto dos pássaros. Crisógono só contratava os melhores.
Saiam da frente! A voz era-me familiar e vinha de trás de nós. Tiro e eu saltámos para o lado quando uma liteira atravancada passou. Tratava-se de uma cadeira aberta, transportada por dez escravos. Os passageiros não eram senão Rufo, acompanhado pelo seu meio-irmão, Hortênsio. Fora Rufo quem falara; parecia estar a divertir-se bastante, rindo-se e lançando-nos uma careta conspirativa quando passou por nós. Pelo rubor do seu rosto, suspeitei de que tivesse estado a beber, para se fortalecer para a noite.
Felizmente, Hortênsio estava a olhar para o outro lado e não reparou em nós. Se assim não fosse, certamente que me teria reconhecido. Eu apercebi-me subitamente de que nos encontrávamos em grande destaque, e puxei Tiro para uma sombra escura, por baixo dos ramos pendentes de uma figueira. Aí esperámos durante algum tempo, observando os convidados e as suas comitivas chegarem e desaparecerem dentro de casa. Se Crisógono estava a receber pessoalmente os seus convidados, fazia-o no interior do vestíbulo; não se avistava nos degraus nenhum semideus belo e loiro.
Finalmente, o corropio de convidados abrandou e diminuiu, parecendo mesmo que já todos teriam chegado, mas os portadores de tochas mantinham-se rigidamente nos seus lugares e os músicos continuavam a tocar os seus instrumentos. A cena tornou-se estranha e ligeiramente irreal, e depois fantástica: numa rua deserta banhada pelo luar, um grupo de escravos opulentamente vestidos iluminava uma entrada deserta e tocava para um público invisível. O convidado de honra ainda não tinha chegado.
Finalmente, ouvi o tropel de muitos pés. Olhei para trás, para o local de onde ele provinha, e vi uma caixa de gase amarela aproximar-se na escuridão, brilhante e palpitante como se fosse transportada sobre nuvens invisíveis. Parecia flutuar sem meios de propulsão ou de apoio e, por um breve momento, a ilusão foi absolutamente convincente, como se todas as coisas se combinassem para me enganar naquele preciso instante.
Depois, ondas de movimento tomaram forma à volta da caixa amarela. Durante um confuso momento, as ondas foram isso mesmo, sugestões de algo que ainda não se via; depois, abruptamente, transformaram-se em carne. Os transportadores da liteira eram todos Núbios. Tinham a pele absolutamente negra, vestiam tangas pretas e calçavam sandálias pretas. Na sombra, eram quase invisíveis; enquanto avançavam sob a lua que subia nos céus, parecia engolirem a luz, emitindo apenas um halo enevoado que delineava a largura dos seus ombros maciços. Eram doze ao todo, seis de cada lado, muito mais do que os necessários para transportar uma caixa privada com um único ocupante. O facto de serem muitos permitia-lhes moverem-se com uma estranha suavidade. Atrás deles, vinha uma enorme comitiva de escravos, criados, secretários, guarda-costas e penduras. Talvez fosse verdade, como dizia Rufo, que Sula decidira atravessar o Fórum sozinho à luz do dia, mas a verdade é que, à noite, continuava a mover-se pelas ruas com toda a pompa e precaução necessárias a um ditador da República.
Finalmente, Crisógono apareceu. Enquanto a comitiva se ia aproximando, um dos portadores de tochas do pórtico entrou dentro de casa. Um instante depois, Crisógono saiu para o pórtico; vinha todo vestido de amarelo e de ouro. Por qualquer razão, e apesar de todas as minhas andanças, eu nunca o tinha visto, tendo apenas ouvido falar da sua reputação. Era de facto notavelmente belo, alto e forte, com o cabelo dourado, uma queixada larga e olhos azuis brilhantes. À bruxuleante luz das tochas, consegui ler a sua expressão pouco firme: inicialmente ansiosa e hesitante, como a de qualquer anfitrião que espera um convidado de honra que se atrasou, depois subitamente severa e intensa, como se reunisse todas as suas forças, finalmente coberta por um encanto tão abrupto e dominante, que era difícil imaginar que pudesse assumir qualquer outra expressão. Fez um movimento ligeiro com uma das mãos. Os músicos, cuja actividade abrandara, começaram subitamente a tocar com mais força e mais entusiasmo.
A liteira chegou e parou. Os Núbios pousaram a sua carga. Um homem fardado ergueu a gase amarela que resguardava o ocupante da caixa. Sula ergueu-se sorrindo, corpulento, com o rosto avermelhado a brilhar à luz das tochas. Trazia vestido um elaborado fato de concepção asiática, um gosto que adquirira durante as suas campanhas contra Mitrídates; o fato era em sombreados de verde e bordado a prata.
O seu cabelo, que já tinha sido belo como o de Crisógono, era espesso e murcho, de um amarelo pálido como papa de aveia.
Crisógono avançou para o receber, inclinando-se ligeiramente. Os dois abraçaram-se. Falaram brevemente, rindo-se e sorrindo. Puseram os braços à volta dos ombros um do outro e desapareceram dentro de casa.
Os carregadores da liteira foram dispensados. Os membros da comitiva, organizando-se informalmente segundo níveis de importância, seguiram o seu senhor para dentro de casa. Os músicos foram atrás deles, continuando a tocar. Finalmente entraram os carregadores das tochas, dois dos quais ficaram para trás flanqueando a porta, a fim de receberem os convidados tardios com uma fraca luz de boas-vindas. Do interior, chegou até nós um som de palmas e exclamações. Chegara o convidado principal.
Dois dias antes, Rufo mostrara-me o exterior da mansão de Crisógono, apontando-me as diversas entradas e explicando-me o melhor que conseguia recordar-se a localização dos compartimentos. Para o lado norte, quem saía do pórtico e dava a volta à esquina da casa, havia uma pequena porta de madeira recuada na parede, resguardada por uma fileira de ciprestes que vinham desde os campos, na retaguarda. Rufo pensava que essa porta dava para uma despensa adjunta às enormes cozinhas que estavam situadas na parte de trás da casa. Tínhamos combinado esperar que Rufo ali viesse ter connosco, a não ser que ele próprio conseguisse descobrir os escravos de Sexto Róscio, Félix e Cresto, caso em que no-los enviaria. A escuridão não permitia que fôssemos vistos da rua. Os ciprestes escondiam-nos dos carregadores de liteiras, que circulavam ociosos no espaço aberto entre a casa e os estábulos. A casa propriamente dita não tinha janelas no lado norte, mas apenas uma varanda deserta e não iluminada no andar superior.
Eu temia que Tiro se agitasse, pois não estava habituado a estar sentado quieto no escuro, mas ele parecia bastante satisfeito por se manter encostado ao tronco de uma árvore, contemplando a noite. Quase não tinha falado comigo desde o nosso encontro com Róscia. Estava mais profundamente ferido do que mostrava. Ocasionalmente, olhava para mim e depois desviava rapidamente o olhar, com os olhos a faiscar.
Pareceu-me que tínhamos esperado muito tempo. A música proveniente do interior misturava-se com o cantar dos grilos e, a certa altura, ouvi vozes a declamar, interrompidas regularmente por explosões de risos e de aplausos. Finalmente, a porta abriu-se para trás. Eu colei-me à árvore, pronto para fugir, mas era apenas uma escrava que vinha despejar uma bacia de água suja. Atirou-a cegamente para a escuridão, depois voltou-se e bateu com a porta atrás de si. Tiro esfregou as pernas, nos pontos em que algumas gotas de água tinham salpicado a extremidade da sua túnica. Eu meti a mão dentro da manga e senti o punho da faca que trazia comigo a mesma faca que o filho mudo de Polia me tinha dado na rua da Casa dos Cisnes; parecia-me que tinha sido há muito tempo e muito longe dali.
Estava quase a dormitar quando a porta voltou finalmente a abrir-se. Agarrei na faca e sentei-me direito. A porta chiou suavemente nos gonzos, balançando até se abrir de uma forma tão obviamente furtiva, que eu percebi que devia ser Rufo, ou então era um grupo de assassinos que vinham matar-nos.
Gordiano? murmurou uma voz.
Sai de casa, Rufo. Fecha a porta atrás de ti.
Ele fechou-a da mesma forma exageradamente furtiva, e depois ficou ali, a piscar os olhos como uma toupeira, ainda incapaz de ver na escuridão, apesar do luar.
Já os descobriste? perguntei eu.
Sim, eles estão lá dentro. Pelo menos há dois escravos chamados Félix e Cresto, ambos novos na casa; foi o que me disse uma das raparigas que está a servir-nos. Mas ainda não vi nenhum deles. Eles não servem os convidados. Não têm qualquer contacto com ninguém exterior à casa. Crisógono utiliza-os como escravos pessoais. Disse-me a rapariga que eles quase não saem do andar de cima.
Talvez ela possa levar-lhes uma mensagem.
Já lhe perguntei. É inútil, diz ela. Crisógono ficaria furioso se eles descessem durante a festa. Mas ela não se importa de te levar até junto deles.
Onde está essa rapariga?
À minha espera, na despensa. Arranjou uma desculpa para vir buscar qualquer coisa.
Ou talvez tenha ido a correr ter com Crisógono.
Rufo olhou para a porta com preocupação, depois abanou a cabeça.
Não me parece.
Porquê?
Sabes como é. Consegue-se perceber quando um escravo está disposto a fazer uma patifaria nas costas do seu senhor. Não me parece que ela goste muito do Senhor Louro de Nascença. Sabes o que se costuma dizer, que os escravos odeiam trabalhar para libertos os antigos escravos são os mais cruéis dos senhores.
Olhei para a porta, pensando quão facilmente podia a morte esconder-se por trás dela. Inspirei profundamente, depois decidi confiar no ponto de vista de Rufo.
Vai tu à frente.
Ele acenou com a cabeça e abriu furtivamente a porta. O lintel era tão baixo, que eu tive de me inclinar. Tiro vinha atrás de mim. Não havia razões para ele vir, e eu tinha pensado em deixá-lo lá fora, mas quando olhei por cima do ombro vi que ele estava com uma expressão tão determinada, que aquiesci. Com um leve rangido, ele fechou a porta atrás de si.
A rapariga era jovem e bonita, tinha o cabelo comprido e preto e uma pele cremosa que brilhava como o mel à luz suave da lamparina que tinha na mão. Se fosse uma cortesã, o seu aspecto seria vulgar; para uma mera servidora, a sua beleza parecia absurdamente extravagante. Crisógono era famoso por se rodear de decorações e brinquedos bonitos.
São estes os homens explicou Rufo. Podes levá-los lá acima silenciosamente, para que ninguém se aperceba?
A rapariga acenou e sorriu, como se fosse uma tolice ele fazer sequer a pergunta. Depois, os seus lábios abriram-se, ela sobressaltou-se ligeiramente e voltou-se. A porta atrás dela começara a abrir-se.
O compartimento era pequeno e estreito, com prateleiras apinhadas de garrafas, umas taças e sacas. Havia cabeças de alho penduradas do tecto, e o húmido odor da farinha pesava no ar. Recuei o mais que pude para um canto, empurrando Tiro atrás de mim. Nesse mesmo instante, Rufo agarrou a rapariga pela cintura e aproximou-a de si, pressionando a boca contra a dela.
A porta abriu-se. Rufo beijou a rapariga durante mais um momento, e depois afastou-a.
O homem que estava à porta era alto e largo, tão grande que quase enchia o caixilho da porta. Iluminado por trás, o seu cabelo formava um difuso halo dourado à volta do seu rosto toldado pelas sombras. Riu-se suavemente e aproximou-se. A lamparina da rapariga, que lhe tremia na mão, iluminava-lhe o rosto de baixo. Eu apercebi-me do azul dos seus olhos e da covinha na sua queixada larga, dos ossos altos das faces e da testa suave e serena. Estava apenas a alguns passos de distância e certamente que, se não fosse a escuridão, me teria avistado por entre os potes e as urnas de argila. Percebi que a rapariga bloqueava intencionalmente a luz com o seu corpo, cegando-o com a lamparina e lançando-nos numa sombra profunda.
Rufo disse ele por fim, terminando com um som prolongado, como se não se tratasse de um nome, mas de um suspiro. Voltou a dizê-lo, articulando-o indistintamente e acentuando estranhamente as vogais. A sua voz era profunda e sonante, divertida, pretensiosa, íntima como o toque de uma mão. Sula perguntou por ti. Sórex vai dançar. É uma meditação sobre a morte de Dido já assististe? Sula não gostaria que a perdesses.
Houve uma longa pausa. Imaginei que via a parte de trás dos ouvidos de Rufo ficar vermelha, mas talvez se tratasse apenas do brilho da lamparina.
Claro que, se estás ocupado, posso dizer a Sula que foste dar uma volta. Crisógono falava lentamente, como um homem sem razões para se apressar. Voltou a sua atenção para a rapariga. Passou-lhe os olhos pelo corpo e estendeu a mão para ela. Tocou-lhe, não pude ver onde. Ela enrijeceu, arquejou e a lamparina tremeu-lhe na mão. Por trás de mim, Tiro fez um movimento brusco. Cegamente, eu poisei a mão em cima da dele e apertei-lha com força.
Crisógono tirou a lamparina da mão da rapariga e colocou-a sobre uma prateleira. Soltou-lhe a túnica pelo pescoço, onde ela se fechava, e fez-lha deslizar pelos ombros. A túnica agitou-se ao longo do corpo da rapariga como um bando de pombas batendo as asas, e ela ficou despida. Crisógono recuou, enrugando os seus lábios largos e carnudos e olhando de Rufo para a rapariga com a testa franzida. Riu-se suavemente.
Se a quiseres, jovem Messala, com certeza que ela pode ser tua. Nada nego aos meus convidados. Qualquer prazer que encontres em minha casa é teu sem que tenhas de o solicitar. Mas não precisas de te comportar como um rapazinho, escondendo-te aqui na despensa. Há lá em cima muitos quartos confortáveis. Diz à rapariga que te leve lá. Fá-la andar pela casa nua, se quiseres monta-a como a um pónei! Não seria a primeira vez. Voltou a tocá-la, e o seu braço movia-se como se ele estivesse a traçar uma marca sobre os seus seios despidos. A rapariga sobressaltou-se e ficou rígida, mas permaneceu absolutamente quieta.
Ele voltou-se e pareceu ir-se embora, depois regressou.
Mas não demores demasiado. Sula poderá perdoar-te se perderes a dança, mas depois Metróbio vai apresentar uma nova canção de... oh, de um sicofanta qualquer é impossível recordar o nome de toda a gente. O pobre tolo está cá esta noite, para tentar obter favores. Ouvi dizer que a canção é uma homenagem aos deuses por nos terem enviado um homem que pôs fim à guerra civil: ”Sula, o favorito de Roma, o salvador da República”, julgo que é assim que começa. Presumo que continue com a mesma veia enjoativamente piedosa só que... Crisógono sorriu e riu-se por trás dos seus lábios apertados, com um riso baixo e grave que parecia estar a guardar para si próprio, como um homem que rola moedas nas mãos. Só que Metróbio me disse que tomou a liberdade de acrescentar, por sua própria iniciativa, uns versos irreverentes, suficientemente escandalosos para que o jovem autor acabe com a cabeça cortada. Imagina a expressão do tolo do poeta quando vir a sua homenagem transformada em insultos mesmo diante de Sula que, como é evidente, perceberá imediatamente a piada e entrará nela, erguendo-se e fingindo sentir-se ultrajado é mesmo o tipo de piada que Sula adora. Será o ponto alto da noite, Rufo; pelo menos para alguns de nós. Sula ficará muito desiludido se tu não o partilhares com ele. Fez um sorriso insinuante, olhou fixamente para ambos durante um longo momento, depois retirou-se, fechando a porta atrás de si.
Ninguém se mexeu. Eu observei a carícia vacilante da luz da lamparina, que tocava levemente, em silhueta, a carne lustrosa das ancas e das coxas da rapariga. Finalmente, ela inclinou-se e pegou no fato. Tiro, resoluto e de olhos bem abertos, saiu de trás de mim e foi ajudá-la a cobrir-se. Rufo olhou diligentemente para o lado.
Bem disse eu por fim, julgo que foi o próprio dono da casa que nos deu licença para irmos bisbilhotar lá acima. Vamos?
A porta por onde Crisógono saíra dava para um estreito corredor. Por uma pequena passagem à esquerda chegava até nós o ruído de uma cozinha movimentada. A cortina que cobria a abertura à direita ainda oscilava em consequência da passagem de Crisógono. A rapariga não nos conduziu por nenhuma dessas passagens, mas para uma porta situada na extremidade do corredor, que dava para um lance de escadas de pedra em espiral.
Há outra escadaria na sala onde o senhor recebe os seus convidados murmurou ela, muito sumptuosa, de mármore fino, com uma estátua de Vénus no centro. Mas esta é a escada que os escravos utilizam. Se passarmos por alguém, limitem-se a ignorá-los, mesmo que olhem para nós de forma estranha. Ou, melhor ainda, dêem-me um beliscão suficientemente forte para eu guinchar, e finjam que estão todos bêbedos. Certamente que eles pensarão o pior e nos deixarão em paz.
Mas não encontrámos ninguém nas escadas e o corredor que havia no topo estava deserto. De algures lá em baixo, chegava até nós o som abafado da música de flautas e liras, e uma ocasional explosão de aplausos ou de riso presumivelmente como prova de admiração pela dança de Sórex, mas o andar de cima estava sombrio e silencioso. O corredor era bastante amplo e estava fabulosamente decorado, dando para compartimentos amplos e de tectos altos, ainda mais sumptuosos. As superfícies pareciam ser todas forradas, com tapetes ou tecidos, embutidas ou pintadas. Para onde quer que nos voltássemos, via-se um tumulto de cores, de texturas e de formas.
Vulgar, não achas? disse Rufo com o desdém de um nobre. Cícero teria concordado, mas a decoração só era vulgar por ser tão abundante e estar tão ostentatoriamente exibida. O que mais me impressionou foi a consistência do gosto de Crisógono, que apenas adquiria as melhores e mais dispendiosas obras de artesanato e de arte prata trabalhada em relevo, navios de bronze délio e coríntio, coberturas bordadas, tapetes de pelúcia do Oriente, mesas e cadeiras finamente trabalhadas com embutidos de conchas e de lápis-lazúli, mosaicos intrincados e azulejos ricamente coloridos, soberbas estátuas de mármore e quadros fabulosos. Não podia haver dúvidas de que todas estas coisas tinham sido saqueadas aos proscritos; de outro modo, seria necessária uma vida inteira para acumular tantas coisas, de tanta qualidade e de origens tão diversas. Mas ninguém poderia dizer que Crisógono tinha feito os seus saques às cegas. Os outros podiam ficar com a palha; para si, ele escolhera o melhor, com o olhar treinado para a qualidade normalmente desenvolvido pelos escravos dos ricos que sonham vir a ser livres e enriquecer eles próprios. Ainda bem que Cícero não tinha vindo connosco; ver o antigo escravo de Sula viver num luxo roubado a uma escala tão grandiosa poderia ter agitado as suas delicadas entranhas para além do suportável.
O corredor estreitava-se. As salas iam-se tornando menos resplandecentes. A rapariga abriu uma porta pesada, indicando-nos que passássemos; depois fechou-a e todos os sons provenientes do andar de baixo se desvaneceram. Também o mundo se transformou, e nós regressámos abruptamente a uma casa de paredes nuas estucadas e tectos manchados de fumo. Estes eram os compartimentos das necessidades quartos de arrumações, quartos dos escravos, salas de trabalho, mas até aqui o saque estava empilhado. Havia grades de vasos de bronze amontoadas nos cantos, carpetes enroladas encostadas às paredes como porteiros adormecidos, cadeiras e mesas embrulhadas em panos grossos e empilhadas até ao tecto.
A rapariga deslocou-se através do labirinto, olhando furtivamente em volta, e depois fez-nos sinal para que a seguíssemos. Afastou uma cortina.
O que estás a fazer aqui? perguntou uma voz petulante. Não está a haver uma festa?
Oh, deixa-a em paz disse outro, com a boca cheia. Lá porque Aufília me traz mais comida e torce o nariz perante a tua cara feia... mas o que é isto?
Não disse eu, não se levantem. Deixem-se estar. Acabem de comer.
Estavam ambos sentados no chão, comendo couves e cevada servidas em taças de argila rachadas, à luz de uma única lamparina. O compartimento era pequeno e estreito, de paredes nuas; a pequena chama escavava-lhes as rugas, transformando-as em cavernas, e fazendo erguer as suas sombras inclinadas até ao tecto. Eu deixei-me estar à porta. Tiro aproximou-se de mim por trás, espreitando por cima do meu ombro. Rufo manteve-se atrás dele.
O magro e petulante resfolegou e franziu o sobrolho na direcção da comida.
Para aquilo que pretendes, Aufília, este compartimento é demasiadamente pequeno. Não consegues encontrar um quarto vazio algures, com uma cama suficientemente grande para vocês os três?
Félix! sibilou o outro, batendo no seu companheiro com um cotovelo possante e gesticulando com o outro braço. Félix ergueu os olhos e empalideceu quando reparou no anel que eu tinha no dedo. Pensara que éramos todos escravos, à procura de um sítio para uma festa privada.
Perdoa-me, Cidadão murmurou, inclinando a cabeça. Ficaram calados, à espera que eu falasse. Antes, eram seres humanos, um deles magro e irritável, o outro gordo e bem-disposto, com os rostos vivos ao calor da luz, alimentando-se e brincando com a rapariga. De um momento para o outro, vi-os tornarem-se cinzentos e indistinguíveis, com a expressão neutra que têm todos os escravos de todos os senhores severos que alguma vez respiraram os ares de Roma.
Olhem para mim disse eu. Olhem para mim! E, se não querem acabar de comer, então poisem as tigelas e levantem-se, para que eu possa olhar-vos de frente. Não temos muito tempo.
A faca foi tirada antes que déssemos por ela dizia Félix. Num repente.
Sim, literalmente num repente! Cresto estava de pé ao lado dele, esfregando nervosamente as mãos rechonchudas, olhando para o amigo, depois para mim, e novamente para ele.
Depois de eu lhes ter explicado quem era e o que pretendia, mostraram-se espantosamente colaborantes, e mesmo ansiosos por falarem comigo. Tiro mantinha-se ao meu lado, silencioso, com o rosto pensativo iluminado pela chama da lamparina. Eu colocara Rufo no quarto mais próximo, no corredor principal, para que ele pudesse mandar embora quaisquer convidados que se encontrassem perdidos por ali. Mandei a rapariga com ele; ela era a desculpa que ele tinha para andar a coscuvilhar no andar de cima e, além disso, não havia qualquer razão para envolvê-la mais profundamente no caso, ou para lhe confiar a verdade daquilo que tínhamos vindo procurar.
Não tivemos a mínima hipótese de auxiliar o senhor. Eles afastaram-nos do caminho, atirando-nos ao chão disse Félix. Eram homens fortes, grandes como cavalos.
E fedendo a alho acrescentou Cresto. Ter-nos-iam morto, se Magno não os tivesse impedido.
Tens então a certeza de que se tratava de Magno? disse eu.
Oh, sim. Félix encolheu os ombros. Não lhe vi a cara, ele teve o cuidado de evitar isso. Mas ouvi-lhe a voz.
E o senhor chamou-o pelo nome, não te lembras?, mesmo antes de Magno o esfaquear pela primeira vez disse Cresto. ”Magno, Magno, maldito sejas!”, em voz baixa. Ainda o oiço em sonhos.
Félix apertou os seus lábios finos.
Ah, sim, tens razão. Tinha-me esquecido disso.
E os outros dois assassinos? perguntei eu. Eles encolheram os ombros ao mesmo tempo.
Um deles poderia ser Málio Gláucia, embora não tenha a certeza disse Félix. O outro homem tinha uma barba, se bem me lembro.
Ruiva?
Talvez. É difícil de dizer, a luz era pouca. Ainda era maior do que Gláucia e tresandava a alho.
O Ruivo murmurei eu. E como é que Magno evitou que eles vos matassem?
Proibiu-os de o fazerem. ”Parem, seus loucos!” rosnou Cresto, como se estivesse a desempenhar um papel. ”São escravos valiosos. Se fizerem mal a qualquer um deles, isso sai-vos do ordenado!” Escravos valiosos, foi o que ele disse e olha onde viemos acabar, a olear sandálias e a dar lustro aos potes do quarto do Senhor Louro de Nascença.
Mas nem por isso deixam de ser valiosos disse eu. Foi como se Magno planeasse herdar-vos.
Oh, sim acenou Félix. Isso devia fazer parte de todo o plano, ele e Cápeto lançarem mão, fosse como fosse, às coisas do senhor. Quem pode imaginar como conseguiram? E nós acabámos por regressar à cidade, só que nunca vemos a cidade. O Louro mantém-nos fechados nestes compartimentos abafados de dia e de noite. Parece que estamos a ser castigados. Ou escondidos, como ele esconde metade do que saqueia. Que coincidência, digo-te eu, olhar à minha volta, nestes mesmos compartimentos, e ver tantas coisas que vieram directamente da antiga casa do senhor, ao pé do Circo. Aquelas cadeiras que ali viste amontoadas, e o jarro amarelo que está no corredor, e a tapeçaria alexandrina que está enrolada ali no canto tudo isto pertencia ao senhor antes de ele ser assassinado. Não, nós não fomos os únicos bens que acabaram nas mãos de Crisógono.
Cresto acenou com a cabeça, concordando.
Na noite do crime disse eu, tentando fazê-los recuar. Vocês foram afastados, salvos por uma palavra de Magno, e depois desapareceram. Desvaneceram-se na noite sem um grito, sem um pedido de socorro não o neguem, tenho uma testemunha que jura que assim foi.
Félix abanou a cabeça.
Não sei que testemunha terás tu, mas nós não fugimos, não foi bem assim. Descemos a rua a correr e depois parámos. Cresto queria continuar a correr, mas eu detive-o.
Cresto pareceu abatido.
É verdade disse ele.
Mantivemo-nos ali, na escuridão, e observámo-los enquanto praticavam o crime. Era um homem excelente! Um óptimo romano! Nenhum escravo poderia querer melhor senhor. Em trinta anos, não me bateu uma única vez, nem uma vez! Quantos escravos poderão dizer o mesmo?
Foi horrível! Cresto suspirou, com os ombros carnudos a tremer. Nunca me esquecerei de como o seu corpo oscilou quando eles lhe espetaram os punhais. Como o sangue jorrou pelo ar como uma fonte. Pensei então que devia regressar para junto dele e atirar-me para o chão, ao lado dele, e dizer-lhes: ”Matem-me a mim também!” Até cheguei a falar nisso, não foi, Félix?
Bem...
Não te lembras de eu te dizer: ”As nossas vidas acabaram. As coisas nunca mais voltarão a ser as mesmas.” Não te disse? E não tinha razão? Começou a chorar baixinho.
Félix fez uma careta e tocou no braço do seu amigo a fim de o consolar, encolhendo os ombros na minha direcção como se a sua ternura o embaraçasse.
É verdade. Lembro-me de dizeres isso. Ah, foi horrível ver aquilo do princípio ao fim. Quando terminou, quando percebemos que o senhor estava morto sem sombra de dúvida, voltámos e corremos todo o caminho até casa. Mandámos uma liteira ir buscar o corpo e, na manhã seguinte, eu enviei um mensageiro a Améria.
Subitamente, franziu o sobrolho.
O que foi? perguntei eu.
Foi uma coisa de que acabei de me lembrar. Uma coisa estranha. Foi estranha na altura, e ainda é mais estranha agora, que estou a lembrar-me dela. Quando eles terminaram quando não havia dúvidas de que o pobre senhor estava morto, o que tinha barba começou a cortar-lhe a cabeça.
O quê?
Agarrou-lhe o cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás, depois começou a cortar com uma lâmina muito comprida. Como se fosse um carniceiro que tivesse passado a vida a fazer aquilo. Magno não o viu começar, julgo que estava a olhar para as janelas. Mas, quando olhou para trás, gritou, disse ao homem para parar imediatamente! Empurrou-o e deu-lhe uma bofetada na cara. Teve de erguer o braço.
Esbofeteou o Ruivo enquanto ele estava a cortar a cabeça do homem? Acho que isso é demasiadamente estúpido para eu acreditar.
Félix abanou a cabeça.
Não conheces Magno se pensas que isso o impediria. Quando perde a cabeça, seria capaz de esbofetear o próprio
Plutão e de lhe cuspir nos olhos. O amigo que ele tinha contratado conhecia-o suficientemente para saber que não devia atrever-se a responder. Mas por que achas que ele fez aquilo? Que começou a cortar a cabeça do senhor, quero eu dizer?
Por hábito disse eu. Era isso que eles faziam nas proscrições, não era? Cortavam a cabeça como prova, a fim de reclamarem a recompensa do Estado. O Ruivo era um profissional, tão habituado a cortar as cabeças como trunfo, que começou automaticamente a fazer a mesma coisa a Sexto Róscio.
Então por que é que Magno o impediu? Que lhe importava? Era Tiro, parecendo estranhamente sensato à luz da lamparina. Foi essa a história que eles inventaram, não foi, que Sexto Róscio tinha sido proscrito? Então por que não haviam de lhe cortar a cabeça?
Olharam os três para mim.
Porquê não sei. Porque Magno queria que parecesse um assassínio, e não uma proscrição? Queria que parecesse que tinha sido feito por ladrões e não por assassinos? Sim, porque nessa altura eles ainda não tinham decidido utilizar a história da falsa proscrição, nem tinham planeado acusar Róscio filius de parricídio. As palavras parecia fazerem sentido quando as pronunciei e, por um instante, pensei ter entrevisto a verdade. Depois, ela vacilou e desapareceu, como se um de nós tivesse apagado a lamparina com um sopro de ar. Abanei a cabeça. Não sei.
Não compreendo por que fazes essas perguntas disse Tiro sombriamente. Já sabíamos isto, o rapaz mudo tinha-no-lo contado.
O pequeno Eco não é propriamente uma testemunha competente. E a sua mãe nunca testemunharia.
Então e Félix e Cresto? Também nenhum deles pode ser testemunha, a não ser que... Tiro calou-se.
A não ser que o quê? Cresto, ignorando a lei, parecia esperançado. Antes de eu lhes ter contado, nem sequer estavam informados do julgamento de Sexto Róscio. A nova ideia de ser testemunha num tribunal parecia encantar Cresto. Tiro, escravo de um advogado, estava melhor informado.
A não ser disse eu que o teu novo senhor o permita. E eu penso que todos sabemos que Crisógono nunca o permitiria, por isso não se fala mais no assunto disse eu, sabendo que certamente se voltaria a falar do assunto. Na manhã seguinte, pediria a Rufo que obtivesse uma solicitação oficial do tribunal para que Crisógono permitisse que os seus escravos testemunhassem. Ele tinha o direito de recusar, mas que impressão causaria essa recusa? Cícero seria capaz de insistir com o homem para que permitisse ao tribunal questionar Félix e Cresto. Afinal, eles não tinham propriamente visto a cara dos assassinos e Crisógono podia não ter consciência de quanto eles sabiam. E que desculpa poderia Crisógono dar para se recusar a autorizá-los a testemunhar perante o tribunal, excepto o desejo de esconder a sua própria cumplicidade?
E se ele decidisse aceder e entregá-los? A lei romana, na sua sabedoria, exigia que qualquer escravo que fosse testemunha em tribunal fosse sujeito à tortura. Os testemunhos livremente apresentados por escravos eram inadmissíveis; só a tortura era um selo aceitável de boa fé. Como seria isso feito? Eu imaginei o corpulento Cresto pendurado nu e preso com correntes, com as nádegas marcadas com ferros quentes; ou o magro e quebradiço Félix amarrado a uma cadeira com a mão metida num torno.
E depois disse eu, para mudar de assunto vocês foram pôr-se ao serviço do filho do vosso senhor em Améria?
Não fomos logo explicou Félix. E não chegámos a servir o jovem Sexto Róscio. Ficámos na casa junto do Circo Flamínio, a gerir as coisas, a cuidar dos assuntos importantes, a ajudar o intendente. Não fomos para Améria, nem sequer para assistir aos ritos funerários do senhor. E depois, certo dia, Magno veio bater à porta, afirmando que a casa era sua, e nós também. Estava tudo nos papéis que ele trazia consigo; o que podíamos nós fazer?
Foi então que começou o tempo frio continuou Cresto, mas parecia que estávamos no pico do Verão, pela maneira como Magno se comportava. Oh, o velho senhor vivia bem e divertia-se, não tenhas dúvidas, mas ele sabia que todos os vícios tinham o seu lugar que as bebidas eram na taberna, a pederastia nas termas, os contactos com as prostitutas nos bordéis, e não em casa, e que todas as festas tinham um começo e um fim. Mas, com Magno, era apenas uma longa e continuada orgia, só interrompida por rixas ocasionais. A casa estava atulhada de gladiadores e de bandos e, em algumas noites, ele chegou a cobrar a entrada. Era um tormento, as pessoas que entravam e saíam, profanando a memória do senhor.
E depois foi o incêndio disse Félix com azedume. Bem, o que se pode esperar de uma casa entregue à bebida e completamente negligenciada? Começou na cozinha e subiu até ao telhado. Magno estava tão embriagado, que quase não se tinha de pé; ria-se perante as chamas chegou a cair de tanto rir. O que não significa que fosse benévolo. Obrigou-nos a entrar dentro de casa, para tirarmos de lá as coisas mais valiosas, ameaçando espancar-nos se nos encolhêssemos. Dois escravos morreram assim, apanhados lá dentro quando Magno os mandou ir buscar os seus chinelos preferidos. Podes ver o medo que todos tínhamos dele, de tal maneira que perferíamos enfrentar as chamas a enfrentar a sua ira. Suponho que viver em casa de Sexto Róscio nos tinha mimado a todos.
E logo a seguir prosseguiu Cresto passando adiante, fomos metidos em carroças e mandados para Améria, para o meio de nada, e acabámos na casa grande, obrigados a servir Cápeto e aquela mulher dele. Salvos de um incêndio e lançados numa inundação, como se costuma dizer. Quase não conseguíamos dormir durante a noite, por causa do barulho que eles faziam a gritar um com o outro. A mulher é louca, digo-te eu. Não é excêntrica Cecília Metela é excêntrica, é definitiva e completamente louca. Às vezes, chamava-me ao quarto dela a meio da noite, e dizia-me para contar os cabelos que tinham ficado na escova, e depois separar os cinzentos dos pretos. Ela tinha um livro onde apontava todos os cabelos que perdia! E não havia outra altura para os contar, senão a meio da noite, enquanto Cápeto dormia no seu próprio quarto e ela se sentava diante do espelho olhando para o rosto. Pensei que a seguir ela me obrigaria a contar-lhe as rugas.
Parou para respirar, e eu pensei que ele tinha acabado, mas ele tinha apenas começado.
O mais estranho de tudo era que o jovem Sexto Róscio continuava a aparecer, o filho do senhor. Eu pensava que ele também tinha morrido, senão nós teríamos acabado como seus escravos; mas depois pensei que, por qualquer razão, ele nos tinha vendido, juntamente com as terras. Mas isso também não parecia ser o caso, pois ele vivia praticamente como um prisioneiro ou um pobre numa pequena casa na propriedade. Foi então que ouvimos finalmente uns boatos acerca da história da proscrição, contados por outros escravos, o que não fazia qualquer sentido. Parecia-me que o mundo estava tão louco como a mulher de Cápeto.
”O mais estranho de tudo era a maneira como Sexto Róscio se comportava. O homem mal nos conhecia, é claro, porque nunca passara mais do que uns momentos em casa do seu pai, nas raras ocasiões em que ia a Roma e, afinal, nós não éramos seus escravos. Mas seria de supor que ele arranjasse maneira de nos chamar à parte, como tu fizeste, para nos interrogar acerca da morte do seu pai. Afinal, nós estávamos presentes quando aquilo aconteceu; e ele devia saber. Mas, sempre que nos via, desviava o olhar. Quando estava à espera de falar com Cápeto normalmente, vinha pedir-lhe dinheiro, e um de nós tinha qualquer razão para estar no vestíbulo, ele preferia esperar no exterior, mesmo que estivesse frio. Como se tivesse medo de nós! Comecei a pensar que lhe tivessem dito que nós tínhamos sido cúmplices do assassínio do seu pai, como se alguém pudesse acreditar em tal coisa acerca de dois escravos inofensivos!
Uma vez mais, algo semelhante à verdade tremeluziu na sala, como uma luz pálida por trás da luz da lamparina, demasiadamente fraca para produzir sombras. Eu abanei a cabeça, confuso. Senti uma mão no ombro e tive um sobressalto.
Gordiano! Era Rufo, sem a rapariga. Cresto e Félix recuaram. Gordiano, vou ter de regressar à festa. Já mandei a rapariga à minha frente. Crisógono mandou um escravo à nossa procura; Metróbio vai cantar. Se eu não estiver presente, isso chamará a atenção.
Sim, muito bem disse eu. Vai andando.
Achas que consegues encontrar a saída?
Claro que sim.
Ele olhou à volta do quarto, sentindo-se desconfortável com o mau gosto dos aposentos dos escravos. O papel de espião não se adequava a ele; estava mais à vontade no papel do nobre jovem e honesto, à luz do Sol do Fórum.
Estás quase a acabar? Acho que devias tentar partir o mais depressa possível. Quando Metróbio tiver terminado, será o fim do espectáculo, e haverá uma série de pessoas estranhas a circular pela casa. Não estarás em segurança aqui.
Já não demoramos disse eu, apertando-lhe o ombro e empurrando-o em direcção à porta. Além disso acrescentei em voz baixa, não deve ter sido assim tão horrível entreter Aufília durante uma hora.
Ele revirou o canto da boca e afastou-me a mão com um encolher de ombros.
Vi como a beijavas na despensa.
Ele virou-se e olhou para mim, depois olhou de soslaio para os outros e recuou até onde não pudessem ouvi-lo. Baixou a voz, de tal maneira que eu quase não consegui ouvi-lo.
Não brinques com isso, Gordiano. Saí para o corredor atrás dele.
Não estava a brincar respondi. Apenas queria dizer...
Eu sei o que tu querias dizer. Mas não te enganes a meu respeito. Não a beijei por prazer. Fi-lo porque tinha de o fazer. Fechei os olhos e pensei em Cícero. O seu rosto ficou tenso e depois voltou subitamente a mostrar-se sereno, tranquilizado, como todos os amantes, pelo acto de pronunciar o nome do seu bem-amado. Inspirou fundo, sorriu-me de uma forma estranha, e depois voltou-se para se ir embora. Eu vi-o passar a cortina e entrar no corredor formal. O que vi a seguir fez-me parar o coração.
Então estás aqui, jovem Messala! A voz era de facto dourada, parecia mel, parecia pérolas sobre âmbar. Ele transpunha o corredor na direcção de Rufo, a vinte passos de distância. Por um instante, vi-lhe o rosto e ele viu o meu. Depois, a cortina caiu.
Ouvi-o através do tecido.
Anda, Rufo, Aufília já voltou ao trabalho, e tu deves voltar aos prazeres. Riu-se com um riso profundo e gutural, muscular e maduro como uvas pesadas caindo sobre carne. ”Eros transforma os velhos em loucos e os novos em escravos”, diz o doce Sula, que certamente deve saber. Mas não quero que tu andes a vaguear por aqui, à procura de mais conquistas, enquanto o velho Metróbio chilreia o seu melhor.
Não havia suspeição na sua voz e, para meu alívio, ouvi-a ir-se apagando, enquanto ambos recuavam pelo corredor. Mas eu sabia o que tinha visto quando os nossos olhos se encontraram. Uma leve ruga surgira na sua testa lisa e eminentemente dourada, e um olhar de espanto brilhara nos seus olhos azuis, como se ele perguntasse a si próprio qual dos seus muitos servos seria eu, e se não fosse um dos seus escravos, de quem seria, e o que estava a fazer lá em cima durante a festa. Se a minha expressão foi naquele instante tão transparente como a dele se eu tiver parecido um décimo de espantado e receoso do que realmente me sentia, Crisógono mandaria os seus guarda-costas cá acima investigar logo que pudesse.
Voltei a entrar no quarto.
Rufo tem razão. Temos de nos despachar. Só queria perguntar-vos mais uma coisa disse eu; na realidade, esta tinha sido a verdadeira razão por que eu tinha vindo. Havia uma rapariga, uma escrava, uma prostituta jovem, loira, bonita. Era da Casa dos Cisnes chamava-se Elena.
Percebi pela expressão de ambos que a conheciam. Trocaram um olhar conspirativo, como se estivessem a decidir qual deles devia falar. Félix clareou a sua fina garganta.
Sim, a rapariga Elena. O senhor gostava muito dela. Até que ponto?
Houve um silêncio tenso. Eu mantinha-me à porta, imaginando ouvir ruídos provenientes do corredor.
Depressa! disse eu.
Foi Cresto quem falou, Cresto, o mais emotivo, aquele que quase tinha chorado. Mas a sua voz estava insípida e apagada, como se todas as paixões se tivessem dissipado. A Casa dos Cisnes mencionaste-a, por isso deves saber que foi de lá que ela veio. Foi aí que o senhor a descobriu. Desde o princípio que ela foi diferente das outras. Pelo menos, o senhor assim pensava. Ficámos espantados por ele demorar tanto tempo a tirá-la de lá. Ele hesitava, como um homem hesita em comprometer-se num noivado. Como se levá-la para casa pudesse realmente mudar a sua vida, e ele era um homem velho que não tinha a certeza de querer que a sua vida mudasse. Finalmente, decidiu comprá-la, mas o dono do bordel regateou muito; estava sempre a protelar e a mudar o preço. O senhor estava a ficar desesperado. Foi por ter recebido um recado de Elena que ele saiu da festa de Cecília Metela naquela noite.
Ele sabia que ela estava grávida? E vocês? Olharam um para o outro pensativamente.
Na altura não sabíamos disse Cresto, mas mais tarde não era difícil perceber.
Mais tarde, quando ela foi levada para casa de Cápeto?
Ah, sim, então também ouviste dizer isso. Então talvez saibas o que lhe fizeram na noite em que ela chegou. Tentaram dar-lhe cabo do corpo. Tentaram matar a criança que ela tinha dentro de si, embora não tivessem recorrido ao aborto por qualquer razão, Cápeto achou que isso seria uma ofensa aos deuses. Imagina, de um homem com tanto sangue nas mãos! Tinha medo dos não nascidos e do espírito dos mortos, mas estrangulara os vivos com todo o à vontade.
E Elena?
Não conseguiram quebrar-lhe a vontade; sobreviveu. Mantiveram-na fechada, separada dos outros, como ele nos mantém fechados aqui, mas eu consegui falar com ela algumas vezes, de maneira que acabei por lhe conquistar a confiança. Ela jurou que não tinha mandado aquela mensagem que levou o senhor para a rua naquela noite. Não sei se acreditei nela ou não. E jurou que o bebé era dele.
Algo sussurrou pelo chão, atrás de mim. Eu segurei no punho da faca e voltei-me, a tempo de avistar a longa cauda de um rato deslizando por entre duas carpetes enroladas encostadas à parede.
E foi então que a criança nasceu disse eu. E depois?
Foi o fim de ambos.
O que queres dizer?
Foi o fim de Elena. O fim da criança.
O que aconteceu?
Foi na noite em que ela entrou em trabalho de parto. Todos os que viviam lá em casa perceberam que tinha chegado a hora dele. As mulheres parecia que sabiam sem ninguém lhes dizer nada; os escravos estavam nervosos e irascíveis. Foi nessa noite que o intendente nos disse, a Félix e a mim, que Cápeto nos ia enviar outra vez para Roma. Para casa de Magno, pensámos nós; ele estava na cidade, juntamente com Málio Gláucia. Mas o intendente disse que não, que íamos ser enviados para casa de um novo senhor.
Na manhã seguinte, juntaram-nos bem cedo e meteram-nos dentro de um carro de bois, com mais alguns objectos destinados a casa de Crisógono mobiliário, caixas, esse género de coisas. E, quando estávamos mesmo a partir, trouxeram Elena.
”Ela quase não se tinha de pé, de tão fraca que estava. Magra e desgastada, pálida, coberta de suor devia ter dado à luz poucas horas antes. Não havia lugar para ela se deitar no carro. O melhor que pudemos fazer foi juntar as nossas roupas e ajudá-la a sentar-se contra as caixas. Ela estava cambaleante e febril, não sabia bem onde se encontrava, mas continuava a perguntar pelo bebé.
”Finalmente, a parteira saiu a correr de casa. Estava sem fôlego, e chorava histérica. ’Por amor dos deuses’, murmurei-lhe, ’onde está a criança?’ Ela olhou fixamente para Elena, com receio de falar. Mas Elena não parecia estar consciente; estava encostada ao ombro de Félix, murmurando, tremendo, a pestanejar constantemente. ’Um rapaz’, murmurou a parteira, ’era um rapaz’.
”’Sim, sim’, disse eu, ’mas onde está ele? Vamos partir a qualquer momento!’ Podes imaginar como eu me sentia confuso e irritado, perguntando a mim próprio como conseguiríamos cuidar de uma mãe frágil e de uma criança recém-nascida. ’Morreu’, murmurou a parteira, tão baixo que eu quase não consegui ouvi-la. ’Eu tentei impedi-lo, mas não consegui ele arrancou-me o rapaz das mãos. Eu fui atrás dele até à pedreira e vi-o lançar a criança para as rochas.’
”Depois chegou o condutor, com Cápeto atrás dele, gritando-lhe que partisse imediatamente. Cápeto estava branco como a cal. É tão estranho! Lembro-me de tudo, neste preciso momento, como se estivesse a vivê-lo! O estalar do chicote do condutor. O carro a começar a andar, a casa a afastar-se. As coisas soltas e amontoadas. Elena subitamente desperta, choramingando pelo bebé, demasiadamente fraca para conseguir chorar em voz alta. Cápeto olhando-nos, rígido como um pilar, com uma expressão de cinza, como uma coluna de cinzas! E a parteira, caindo de joelhos, agarrando-se às coxas de Cápeto e gritando: ’Senhor, piedade!’ E, precisamente quando nos dirigíamos à estrada, apareceu um homem à esquina da casa, sem fôlego, e depois recuou para a sombra das árvores era Sexto Róscio. A última coisa que vi e ouvi foi a parteira agarrada a Cápeto e gritando cada vez mais alto: ’Senhor, piedade!’
Estremeceu e inspirou profundamente, voltando o rosto para a parede. Félix apoiou a mão no ombro de Cresto e prosseguiu a história.
Que viagem aquela! Três dias não, quatro num carro de bois desconjuntado. Suficiente para nos despedaçar os ossos e nos pôr o queixo fora dos gonzos. Nós íamos a pé sempre que podíamos, mas um de nós tinha de permanecer no carro com Elena. Ela não conseguia comer nada. Nunca dormia, mas também não parecia estar acordada. Pelo menos, fomos poupados à necessidade de ter de lhe contar o que acontecera ao bebé. No terceiro dia, ela começou a sangrar por entre as pernas. O condutor não parou senão ao pôr do Sol. Descobrimos uma parteira que conseguiu estancar o sangue, mas Elena estava quente como um pedaço de carvão. No dia seguinte, morreu nos nossos braços, à vista da Porta Fontinal.
A lamparina crepitou e o quarto ficou sombrio. Félix inclinou-se calmamente e apanhou a lamparina, levou-a até um banco no canto do compartimento e deitou-lhe mais óleo. À luz flamejante, vi Tiro olhar para os dois escravos com os olhos muito abertos e húmidos.
Então foi Cápeto quem matou a criança? disse eu, sem convicção, como um actor que pronuncia uma deixa falsa.
Félix estava de pé, com as mãos fortemente enlaçadas e os nós dos dedos brancos. Cresto ergueu os olhos para mim, pestanejando como um homem acordado de um sonho.
Cápeto? disse ele sobriamente. Bem, suponho que sim. Como te disse, Magno e Gláucia estavam em Roma. Quem mais poderia ter sido?
A casa de Crisógono era grande, embora não se espraiasse como a mansão de Cecília; sem a orientação da rapariga Aufília, Tiro e eu virámos para o lado errado quando andávamos à procura da escada dos escravos. Depois de uma tentativa fracassada de voltarmos sobre os nossos passos, demos por nós numa galeria estreita, que abria para a varanda vazia que dava para o sítio onde nos tínhamos escondido, ao lado dos ciprestes, perto da porta da despensa.
De algures do interior da casa, chegou até nós o som de um chilreio de um homem a cantar num tom artificialmente alto, ou de uma mulher a cantar num tom muito baixo. O som foi aumentando à medida que eu ia empurrando Tiro para junto da parede interior. Parecia vir do lado de lá de uma fina tapeçaria. Encostei o ouvido esquerdo a um lúbrico Príapo, rodeado por ninfas de madeira igualmente lúbricas, e quase consegui perceber as palavras.
Devagarinho, Tiro murmurei, fazendo-lhe um gesto para que me ajudasse a erguer a extremidade da tapeçaria e enrolá-la para cima, revelando uma estreita ranhura horizontal na parede de pedra.
A abertura era suficiente para duas pessoas se colocarem confortavelmente lado a lado, partilhando a visão que ela proporcionava sobre Crisógono e os seus convidados. A pomposa sala onde ele recebia erguia-se sem interrupção desde o chão de mármore até ao tecto abobadado. A janela pela qual espreitávamos era voltada para baixo, recortada num ângulo pronunciado, de tal maneira que não havia esquinas que nos obscurecessem a visão era um buraco de espião, nem mais nem menos.
Tal como todos os outros compartimentos da casa de Crisógono, a sala de jantar era sumptuosa e excessivamente decorada. Quatro mesas baixas, cada uma delas rodeada por um semicírculo de nove canapés, estavam dispostas à volta de um espaço aberto no centro da sala. Cícero, ou mesmo Cecília Metela, teriam certamente recusado a ideia de receber mais de oito convidados ao mesmo tempo. Poucas leis não escritas das boas maneiras romanas são mais inflexíveis do que aquela que estabelece que um anfitrião nunca deve reunir à sua mesa mais visitantes do que aqueles com que consegue conversar simultânea e confortavelmente. Crisógono reunira quatro vezes aquele número, em quatro mesas onde se empilhavam acepipes azeitonas recheadas de ovas, taças de macarronete salpicadas dos primeiros e tenros rebentos de espargos da época, figos e pêras suspensos num xarope amarelo, a carcaça de um pequeno galo. Erguia-se no ar quente uma mistura de odores. O meu estômago roncou.
Os convidados eram, na sua maioria, homens e as poucas mulheres que havia entre eles estavam presentes por causa da sua óbvia voluptuosidade não eram as suas mulheres nem as suas amantes, eram cortesãs. Os homens mais jovens eram uniformemente esguios e belos; os mais velhos tinham aquela expressão indolente e bem alimentada dos muito ricos. Eu contemplei-os um após outro, pronto para me afastar rapidamente da janela, até perceber que não havia grandes hipóteses de algum deles olhar para cima. Todos os olhares estavam centrados no cantor, que se encontrava de pé no centro da sala, ou então voltavam-se fugaz e maliciosamente para Sula, ou para um jovem que se agitava e mordia os dedos, sentado à mesa de menor distinção.
O cantor tinha vestido um fato leve cor de púrpura, bordado a vermelho e cinzento. Uma massa de cabelo preto enfeitado com rosas brancas, com ondulados e caracóis, formava um penteado arquitectonicamente tão complexo, que era quase cómico. Quando ele se voltou na nossa direcção, vi que tinha o rosto pintado com sombreados de branco e ocre que lhe cobriam as faces enrugadas e os pesados maxilares, e reconheci imediatamente o famoso imitador de mulheres, Metróbio. Já o vira algumas vezes, nunca em público e nunca no palco, só de passagem na rua e uma vez em casa de Hortênsio, quando o grande advogado se dignou deixar-me passar da sua porta. Sula tivera uma inclinação por Metróbio há muito tempo, quando ambos eram novos, Sula era um pobre zé-ninguém e Metróbio era (segundo dizem) um actor jovem e encantador. Apesar da devastação produzida pelo tempo e de todos os caprichos da Fortuna, Sula nunca o abandonara. Na realidade, depois de cinco casamentos, de dezenas de casos amorosos e de incontáveis ligações, a relação de Sula com Metróbio tinha afinal durado mais do que qualquer outra.
Se Metróbio fora esguio e belo, suponho que também já teria sido um excelente cantor. Tinha agora a sensatez de restringir os seus desempenhos a reuniões privadas, entre aqueles que o amavam, e de limitar o seu reportório a efeitos cómicos e a paródias. Contudo, apesar da sua voz enrouquecida e das notas tensas, havia nos seus maneirismos floreados e nos gestos subtis das suas mãos e das suas sobrancelhas qualquer coisa que tornava impossível não observar todos os seus movimentos. O seu desempenho estava algures entre o canto e a declamação, como um poema cantado só com o acompanhamento de uma lira. Ocasionalmente, entrava um tambor, quando o tema se tornava marcial. Ele fingia levar cada palavra inteiramente a sério, o que apenas acentuava o efeito cómico. Já devia ter começado a mudar a letra antes de nós darmos com a cena, porque o jovem poeta e aspirante a sicofanta que era o autor ostensivo do hino sofria uma visível agonia de embaraço.
”Quem se lembra dos dias em que Sula era um rapaz, Sem casa nem sapatos, e sem moedas no bolso? E como conseguiu ele sair deste buraco? Como ascendeu ao seu destino, ao seu papel? Passou por um buraco! Passou por um buraco! Pela fenda da caverna de tamanho razoável Que se abre entre as coxas de Nicópole!”
O público rebolava de riso. Sula abanava a cabeça com desdém e fingia mostrar-se carrancudo. No canapé ao lado do seu, Crisógono quase brilhava de prazer. Ao mesmo tempo, Hortênsio murmurava ao ouvido da jovem dançarina Sórex, enquanto Rufo se mostrava aborrecido e desagradado. Do outro lado da sala, o poeta reescrito empalidecia terrivelmente.
A cada verso que se sucedia, a canção ia-se tornando mais irreverente e a multidão ria cada vez mais livremente. Não tardou que o próprio Sula começasse a rir a bandeiras despregadas. Entretanto, o poeta mordia os lábios e contorcia-se, mudando de cor como um pedaço de carvão ao vento, empalidecendo a cada impiedade e corando tremendamente a cada rima torturada. Tendo finalmente percebido a piada, começou por parecer aliviado afinal, ninguém iria acusá-lo das modificações, e até Sula se mostrava divertido. Conseguiu exibir um sorriso tímido, mas depois amuou, certamente ofendido por lhe terem destruído a homenagem patriótica. Os outros jovens que estavam sentados à sua mesa, não tendo conseguido fazê-lo rir, viraram-lhe as costas e riram-se ainda mais alto. Os Romanos adoram um homem forte que é capaz de se rir de si próprio, e desprezam o fraco que não é capaz de o fazer. A canção prosseguia.
Não é verdade que Lúcio Cornélio Sula não tivesse casa quando era rapaz. Nem me parece que tivesse havido algum tempo em que não tivesse sapatos, mas a sua pobreza inicial é acentuada em todos os relatos das suas origens.
Há várias gerações, os patrícios Cornélios eram uma família com alguma influência e algum prestígio. Um deles, um certo Rufino, foi cônsul nos dias em que o cargo exigia um homem de integridade e carácter. A sua carreira terminou em escândalo imagine-se, houve tempos honrados em que era ilegal um cidadão possuir mais de dez libras de prata! Rufino foi expulso do Senado. A família perdeu importância.
Até Sula. Também a sua infância foi marcada pela pobreza. O pai morreu novo, nada lhe deixando e, na sua juventude, Sula viveu em edifícios onde tinham como vizinhos ex-escravos e viúvas. Dizem os seus inimigos que, depois de um tal começo, a sua ascensão ao poder e à riqueza é um sinal seguro de corrupção e depravação. Os seus aliados, e o próprio Sula, gostam de insistir na mística daquilo a que chamam a sua boa fortuna, como se tivesse sido uma vontade divina, e não a determinação e o carácter do próprio Sula, a impulsioná-lo para tantos triunfos e banhos de sangue.
A sua juventude não deu sinais da importante carreira que se aproximava. A sua educação foi incerta. Ele movia-se entre a gente do teatro acrobatas, comediantes, mascarados, poetas, bailarinas, actores, cantores. Metróbio foi um dos seus primeiros amantes, mas de modo nenhum o único. Foi entre os vagabundos do palco que se iniciou a sua reputação de promiscuidade, que havia de acompanhá-lo durante toda a vida.
Dizem que o jovem Sula era encantador. Era um rapaz entroncado, de esqueleto largo e queixo quadrado, que compensava uma cintura extensa e macia com ombros musculosos. O seu cabelo dourado salientava-se em qualquer multidão. Os seus olhos, ouvi contar aos seus contemporâneos, eram na altura tão extraordinários como o são agora de um penetrante azul-claro, que a todos dominava e que confundia aqueles que lhe devolviam o olhar, parecendo apenas malicioso quando perpetrava os mais atrozes crimes, parecendo terrível e severo quando o seu único intento era o prazer.
Uma das suas primeiras conquistas foi uma viúva abastada, Nicópole. Os seus favores eram publicamente acessíveis a virtualmente qualquer jovem que os quisesse; dizia-se que ela decidira dar o seu corpo a todos os homens mas não entregar o seu coração a nenhum. Segundo se conta, Sula apaixonou-se genuína e profundamente por ela. A princípio, ela zombava de tanta devoção, mas a persistência e o encanto de Sula acabaram por quebrar a sua resolução e, aos cinquenta anos, ela percebeu que estava apaixonada por um jovem com menos de metade da sua idade. Quando morreu, em consequência de uma febre, deixou tudo o que tinha a Sula. Iniciara-se a boa fortuna deste.
Sula recebeu outro legado da sua madrasta, a segunda mulher do pai, que, já depois de enviuvar, herdara uma soma considerável da sua própria família. Morreu fazendo de Sula o seu único herdeiro, e estabelecendo-o assim com uma fortuna moderada.
Tendo conquistado os mistérios da carne e do ouro, Sula decidiu entrar para a política através do serviço militar. Mário acabara de ser eleito para o primeiro dos seus sete consulados; Sula conseguiu ser nomeado questor e tornou-se o protegido do grande populista. Em África, onde foi combater Jugurta, Sula envolveu-se em temeridades maritais, em espionagem, e na diplomacia da traição em tempo perfeito. Os pormenores tortuosamente complicados encontram-se nas suas Memórias, cujos primeiros volumes já circulam em Roma, em cópias furtadas. O vencido Jugurta foi trazido para a cidade, nu e a ferros, tendo morrido pouco depois na sua masmorra, semienlouquecido com as torturas e as humilhações. Mário orientara a campanha, mas fora Sula quem, com o risco da própria vida, persuadira o rei da Numídia a trair o seu genro votado à destruição. Mário desfilou triunfalmente, mas dizia-se que era Sula quem merecia os louros.
Os elogios a Sula irritaram o velho populista e, embora Mário continuasse a utilizar Sula, fazendo-o subir de categoria depois de cada nova campanha, em breve a inveja do velho levou Sula a procurar outros patronos. À frente das tropas do cônsul Catulo, Sula dominou as tribos selvagens dos Alpes. Quando as legiões foram surpreendidas nos campos por tempestades invernais prematuras, sem alimentos adequados, Sula deu provas de perícia, alterando as rotas e conseguindo obter alimentos frescos não apenas para as suas próprias tropas, mas também para as de Mário, que ficou lívido de indignação. A longa e desgastante rivalidade entre Sula e Mário, que acabaria por causar grande sofrimento e caos em Roma, iniciou-se com este género de incidentes, provocados pela inveja e a mesquinhez.
Sula partiu para o Oriente, onde a Fortuna lhe proporcionou novas vitórias na Capadócia. Com objectivos diplomáticos, aventurou-se até ao Eufrates, tendo-se tornado o primeiro funcionário romano a travar conversas amigáveis com esse povo que domina o resto do mundo, os Partos. O seu encanto (ou a sua arrogância cega) deverá ter enfeitiçado o embaixador parto, que se deixou convencer a tomar assento numa posição inferior à de Sula, como se fosse um suplicante ou um mero senhor romano. Depois disso, o rei parto condenou o embaixador à morte tendo perdido a face, o homem perdeu em seguida a cabeça, uma piada que Sula nunca se cansava de repetir.
Todos os homens grandes têm de ter augúrios de grandeza ligados à sua lenda no dia do nascimento de Alexandre, caíram estrelas do céu, Hércules estrangulou uma cobra no berço, e quando Rómulo e Remo eram retirados do útero da sua mãe, duas águias combatiam nos céus. Foi enquanto recebia a comitiva parta que a carreira de Sula começou a receber o verniz da lenda. Verdade ou ficção, só Sula pode sabê-lo ao certo, mas há uma história que diz que um sábio caldeu que acompanhava a comitiva parta fez um estudo do rosto de Sula, sondando-lhe o carácter através de princípios científicos desconhecidos no Ocidente. É provável que estivesse à procura de fraquezas que pudesse narrar aos seus senhores partos, mas a verdade é que acabou por recuar espantado. Sula, que nunca poderá ser acusado de falsa modéstia, narra pormenorizadamente, nas suas Memórias, a reacção do velho Caldeu: ”Poderá um homem ser tão grande e não ser o maior de todos os homens da Terra? Sinto-me espantado não com a sua grandeza, mas com o facto de ele se ter abstido, até agora, de assumir o seu lugar como primeiro em todas as coisas, acima dos restantes homens!”
Quando Sula regressou a Roma, Mário não se mostrou satisfeito por vê-lo.
A discórdia estalou com a chegada de uma estátua oferecida pelo rei da Numídia, um rei amigo, comemorando o fim da guerra africana e a queda de Jugurta. Por baixo das asas abertas de Vitória, as figuras douradas retratavam o rei entregando Jugurta, em cadeias, ao grande amigo do rei, Sula. Mário não aparecia em parte alguma. Mário ficou quase louco de raiva e ciúme perante a ideia de Sula se ter apoderado da sua glória, e ameaçou destruir a estátua com as suas próprias mãos se o Senado não aprovasse uma lei que obrigasse à sua retirada do Capitólio. A retórica aumentou de ambos os lados, até que o corte de relações entre os dois homens se tornou irreparável. Certamente que ele teria sido seguido de violência, não fosse o facto de todas as discussões privadas terem sido abruptamente adiadas pela erupção da Guerra Social entre Roma e os seus aliados italianos.
A escala da Guerra Social não teve precedentes em solo italiano, o mesmo se podendo dizer do sofrimento e da destruição que causou. Finalmente, foi possível estabelecer compromissos, os rebeldes intransigentes foram impiedosamente castigados, e Roma aguentou-se, mas nem todos os políticos romanos tiveram o mesmo destino feliz. Mário, já com mais de sessenta anos, com um poder militar diluído e com falta de saúde, praticamente nada fez durante a guerra. Sula, no auge da sua masculinidade e na crista da Fortuna, estava em toda a parte ao mesmo tempo, criando uma reputação de herói, de salvador, de destruidor, conseguindo o favor das legiões e reunindo prestígio político.
Quando a guerra acabou, Sula obteve o seu primeiro consulado, com a respeitável idade de cinquenta anos. Como um paciente agonizante que acabou de sobreviver a um violento espasmo, Roma estava prestes a sofrer outro.
O movimento populista de Mário atingiu o seu auge. Era seu homem de mão um tribuno radical e demagogo, Sulpício, o representante eleito das massas, cujo comportamento ridicularizava a cada instante o poder e o prestígio da nobreza. Com Sulpício, a cidadania romana foi vendida em leilão, no Fórum, a ex-escravos e a estrangeiros, um acto de impiedade que levou a velha nobreza à apoplexia. Mais insidiosamente, Sulpício reuniu um exército privado de três mil esgrimistas da classe equestre, jovens ambiciosos e impiedosos, prontos para tudo. Destes, seleccionou um corpo de guarda-costas de elite de seiscentos homens, que percorriam constantemente o Fórum. Sulpício chamava-lhes o seu Anti-Senado.
Lá fora, Mitríades devastava as possessões orientais de Roma, incluindo a Grécia. O Senado votou que Sula fosse enviado para reclamá-las, um dever que ele conquistara pelos seus serviços anteriores e que era seu direito como cônsul. Essa missão seria extraordinariamente lucrativa; não há como uma campanha oriental bem sucedida para permitir obter rendimentos avultados, através de tributos, de taxas e do saque puro e simples. E também daria ao seu comandante-geral um enorme poder; nos velhos tempos, os exércitos romanos eram leais ao Senado, mas agora seguem o homem que os chefia. O Anti-Senado de Sulpício decidiu que o comando devia ser atribuído a Mário. O caos tomou conta do Fórum. O Senado foi pressionado, no sentido de transferir o comando de Sula para Mário, e Sula escapou com dificuldade a ser assassinado nas ruas.
Sula fugiu de Roma, a fim de apelar directamente ao exército. Quando os soldados comuns ouviram contar o que se tinha passado, comprometeram-se com Sula e apedrejaram os seus próprios oficiais (nomeados por Mário) até à morte. Os seguidores de Mário reagiram em Roma, atacando membros do partido de Sula e saqueando-lhes as propriedades. Em pânico, o povo passava de um lado para o outro, fugindo de Roma para o campo de Sula ou do campo para Roma. O Senado capitulou, cedendo a tudo aquilo que Mário e Sulpício lhe exigiram. Sula marchou sobre a capital.
O impensável aconteceu. Roma foi invadida por Romanos.
Na noite anterior, Sula teve um sonho. Ao seu lado, viu Belona, cujo culto fora trazido do Oriente para Roma, e cujos templos antigos o próprio Sula visitara na Capadócia. Ela depositou nas suas mãos raios de poder. Nomeou os seus inimigos um a um e, à medida que os ia nomeando, eles iam surgindo do meio da neblina, como pequenas figuras avistadas do topo de uma colina. A deusa disse a Sula que os derrubasse. Ele lançou os raios. Os seus inimigos foram destruídos. Então, Sula acordou, contou-nos as suas Memórias, sentindo-se revigorado e supremamente confiante.
Que tipo de homem tem um sonho como este? Um louco? Um génio? Ou simplesmente um filho de Roma, abençoado pela Fortuna, a quem o poder que conduz o seu destino enviou uma mensagem de confiança e de êxito?
Antes da madrugada, à medida que o exército se ia reunindo, foi sacrificado um cordeiro. À luz da tocha que fumegava, o adivinho Postúmio leu-lhe as entranhas. Correu para Sula e ajoelhou-se a seus pés, erguendo as mãos, como se as oferecesse para serem algemadas. Pediu a Sula que o mantivesse prisioneiro, para que fosse sumariamente executado se as suas visões fossem falsas, tão certo estava ele do triunfo de Sula. É o que diz a lenda. Há em homens como Sula algo que impele os sábios e os adivinhos a pedirem-lhe para se arrojarem a seus pés.
Sula atacou do leste com uma força de 35 000 homens. Em algumas secções do monte Esquilino, onde ainda se podem ver as cicatrizes negras do seu avanço. Os muros foram derrubados. A populaça desarmada resistiu com um bombardeamento de telhas e de cascalho, atirados dos telhados. O próprio Sula foi o primeiro a pegar numa tocha e a lançar fogo a um edifício onde o povo se tinha juntado a fim de oferecer resistência. Famílias inteiras foram queimadas vivas; outras ficaram sem casa e arruinadas. As chamas não fizeram distinção entre culpados e inocentes, amigos e inimigos. Todos foram consumidos.
Mário foi empurrado até ao Templo de Telo. Aí, o seu populismo radical atingiu o auge: em troca do seu apoio, ofereceu a liberdade aos escravos de Roma. O facto de apenas três escravos se terem apresentado diz alguma coisa quanto à presciência dos escravos ou ao declínio da reputação de Mário. Mário e os seus apoiantes fugiram da cidade e dispersaram-se. O tribuno Sulpício, senhor do Anti-Senado, foi traído por um dos seus escravos e assassinado. Sula começou por recompensar o escravo traidor concedendo-lhe a liberdade, e depois castigou-o como homem livre, mandando-o atirar violentamente do alto da Rocha Tarpeia, provocando-lhe a morte.
Tendo vogado sozinhos nas asas da canção de Metróbio, os meus pensamentos regressaram abruptamente ao presente. Ecoando até nós, a voz de Metróbio imitava uma canção infantil, com uma pronúncia grega atrozmente grosseira:
”A cara de Sula é uma amora; a mulher de Sula é uma prostituta. A cara de Sula é vermelha e roxa; a mulher de Sula é uma chata. Sarapintada e espalhafatosa, com altos que devem fazer comichão É a cara de Sula ou serão os seios da sua cabra?”
A multidão arquejou. Alguns dos presentes riram-se nervosamente. Crisógono engoliu o seu sorriso dourado. O rosto de Sula estava completamente inexpressivo. Rufo parecia enojado. Hortênsio tinha acabado de pôr qualquer coisa na boca e olhava à volta, sem ter a certeza se havia de engolir. O jovem e arruinado poeta parecia nauseado literalmente nauseado, pálido e a suar, como se tivesse comido qualquer coisa que lhe tivesse feito mal e fosse vomitar de um momento para o outro.
A lira silenciou-se e Metróbio imobilizou-se por um longo momento. A lira emitiu uma nota vibrante. Metróbio ergueu a cabeça.
Bem disse ele maliciosamente, talvez não seja Sófocles, nem sequer Aristófanes mas eu gosto!
A tensão quebrou-se. A sala irrompeu em gargalhadas, e até Rufo sorriu. Hortênsio engoliu finalmente o que tinha na boca, e estendeu a mão para a taça. O jovem poeta ergueu-se cambaleando do seu canapé e saiu a correr da sala, agarrado à barriga.
O tocador de lira deu um toque descuidado no instrumento e Metróbio inspirou profundamente. A canção recomeçou.
Sula retomou o seu cargo de cônsul. Mário foi banido. Os seus amigos foram exilados, o Senado foi pacificado, a populaça ficou entorpecida, e Sula partiu para a Grécia para conquistar glória e expulsar Mitríades. Mais tarde, os seus críticos queixaram-se de que a sua devastadora campanha no leste foi a mais cara das expedições militares da história de Roma.
Para os Gregos, o preço foi devastador. No passado, os grandes conquistadores romanos da Grécia e da Macedónia sempre tinham prestado homenagem aos santuários e aos templos locais, fazendo ofertas em ouro e em prata respeitando, se não seus os actuais habitantes, pelo menos a memória de Alexandre e de Péricles. A atitude de Sula foi diferente. Ele saqueou os templos. As estátuas de Epidauro foram despidas do ouro que as cobria. As ofertas sagradas de Olímpia foram derretidas para fazer moeda. Sula escreveu aos guardiões do Oráculo de Delfos exigindo-lhes que entregassem o seu tesouro, afirmando-lhes que, nas suas mãos, ele ficaria a salvo dos acasos da guerra, e que, se tivesse ocasião para gastá-lo, não deixaria de o substituir. O enviado de Sula, Cáfis, chegou a Delfos, entrou no santuário interior, ouviu o som de uma lira invisível, e desatou a chorar. Cáfis escreveu a Sula pedindo-lhe que reconsiderasse. Sula respondeu-lhe, dizendo-lhe que o som da lira era certamente um sinal, não da ira de Apoio, mas da sua aprovação. A parte do tesouro que podia ser transportada foi levada em sacas. A grande urna de prata foi desmanchada e carregada em vagões. O Oráculo silenciou-se. Nem daqui a cem gerações os Gregos esquecerão.
Os Gregos, especialmente os atenienses, tinham acolhido Mitríades de braços abertos, felizes por se livrarem do jugo romano. Sula castigou-os. Se os Gregos pudessem criar outro Eurípides, um poeta da agonia e do terror, talvez ele visse na ânsia devoradora de Sula pelo domínio de Atenas um tema para a sua poesia à excepção do facto de não haver hubris na história da vida de Sula, mas uma interminável carícia da Fortuna, tão constante como as ondas do mar. O cerco foi amargo e inflexível. A populaça, faminta, manteve a sua coragem compondo canções de difamação a Sula. O tirano Arístion protestava contra os Romanos do alto dos muros da cidade, lançando insultos contra Sula e a sua mulher (a quarta, a Metela), acompanhado por um amplo e complicado vocabulário de gestos obscenos, muitos dos quais os Romanos nunca tinham visto, mas que foram subsequentemente importados e se tornaram comuns entre os bandos das ruas e os jovens ociosos da cidade. Muitos destes gestos têm nomes chistosos, e tratam sobretudo da violação de Atena por Sula, para desgosto da sua mulher.
Quando os muros foram escalados e os portões abertos, a mortandade foi aterradora. Diz-se que o sangue acumulado na cerca do mercado chegava literalmente à altura dos tornozelos. Quando a fúria acalmou, Sula pôs fim às pilhagens, subindo à Acrópole para dizer algumas palavras em louvor dos atenienses antigos, seguidas pela famosa afirmação: ”Perdoo a poucos por causa de muitos, aos vivos por causa dos mortos”, frequentemente citada como exemplo, quer da sua profunda sabedoria, quer da sua perspicácia.
Entretanto, a guerra civil fervilhava e fermentava em Roma, como se os seus muros fossem a orla de um caldeirão. Os aliados italianos protestavam por causa da lentidão na concessão da cidadania, prometida no final da Guerra Social; os conservadores do Senado protestavam porque os privilégios da cidadania estavam a ser desastrosamente diluídos; o exilado Mário partiu para África e regressou, perseguido pelas harpias como Ulisses. O cônsul Cina, outro demagogo radical que era adversário de Sula, deu as boas-vindas a Mário quando este regressou a Roma, banindo Sula. Por entre o caos e os banhos de sangue, Mário obteve o seu sétimo consulado, acabando por morrer dezassete dias depois.
Tendo expulsado Mitríades para o Ponto, Sula declarou sumariamente que a campanha oriental tinha sido um êxito total e regressou a Itália a grande velocidade. Aqui, as lendas e as Memórias narram novos encontros com videntes aduladores e sonhos de glória, mas para quê repeti-los? A deusa Belona emprestou-lhe novos raios e Sula dispensou-os aos seus leais generais, entre os quais Pompeu e Crasso, que os lançaram por toda a Itália e África, transformando em cinzas os inimigos de Sula. A Fortuna nem por um instante deixou de o acompanhar. Em Sígnia, Sula ocupou-se do exército de Mário, filho de Mário. Foram mortos vinte mil dos homens de Mário, e oito mil feitos prisioneiros; Sula apenas perdeu vinte e três soldados.
O segundo cerco a Roma não foi tão fácil. Sula e Crasso abordaram a cidade do norte, Pompeu do sul. A ala esquerda de Sula foi aniquilada, e ele próprio escapou por pouco a ser morto por uma seta; mais tarde, atribuiu a sua salvação à minúscula imagem de Apoio que roubara em Delfos, e que levava sempre consigo para as batalhas, muitas vezes presa nos lábios, murmurando orações e susssurrando palavras de adoração, como um amante. Os boatos acerca da morte de Sula espalharam-se dos dois lados, chegando mesmo a inflamar de desespero o exército de Pompeu. Finalmente, caída a noite, chegou a Sula a informação de que a ala direita, comandada por Crasso, destruíra o inimigo.
Uma vez em Roma, Sula cercou os restos desarmados do exército de defesa, seis mil Samnitas e Lucanianos, e reuniu-os como gado no Circo Máximo. Entretanto, convocou uma reunião do Senado e, no momento em que iniciava o seu discurso, começou a chacina no Circo. O estertor dos massacrados ouvia-se em toda a cidade; o ruído ecoou no Senado como um lamento de fantasmas. Os senadores ficaram perplexos. Sula continuou a falar num tom de voz perfeitamente equilibrado, como se nada de estranho estivesse a passar-se. Os senadores começaram a distrair-se e a murmurar uns para os outros, até que Sula bateu o pé e lhes gritou que ouvissem o que ele estava a dizer. ”Ignorem o ruído do exterior”, disse-lhes. ”Ordenei que fossem infligidas correcções a alguns criminosos.”
Com o consentimento do Senado, Sula proclamou-se ditador, uma tomada constitucional de autoridade que há mais de cem anos ninguém se atrevia a tentar. Como ditador, Sula destruiu por completo a oposição e recompensou os generais que lhe tinham sido fiéis. Foi-lhe concedida imunidade relativamente a todas as suas acções passadas. Ele refez a constituição, eliminando o poder de usurpação dos tribunos populistas e das massas e restabelecendo os privilégios dos nobres. Quando expirou o período legal original de um ano como ditador, o Senado impôs-lhe um prolongamento sem precedentes e constitucionalmente questionável do mandato, ”a fim de completar o seu trabalho, vital para a salvação do Estado”.
Durante algum tempo, Sula governou com mão leve, e a cidade deu um suspiro de alívio, como se tivesse chegado a Primavera, depois de um Inverno longo e difícil. Mas Sula não estava satisfeito com o seu triunfo quase total. Talvez algum adivinho o tivesse advertido para o perigo. Talvez Belona lhe tivesse entregue mais raios num sonho.
As proscrições começaram com a original Lista dos Oitenta. No dia seguinte, surgiu uma lista com mais de duzentos nomes. No terceiro dia, apareceu mais uma lista, novamente com mais de duzentos nomes.
Sula estava mais espirituoso do que nunca. No quarto dia, fez um discurso público defendendo os assassínios. Quando lhe perguntaram se seria de esperar uma quarta lista, explicou que, na sua idade, a memória começava a falhar-lhe. ”Até agora, publicámos os nomes de todos os inimigos do Estado de que consegui lembrar-me. À medida que me for lembrando de mais inimigos, publicaremos mais nomes.” Por fim, os listados ascenderam aos milhares.
O filho de um escravo emancipado foi acusado de ter escondido um dos Oitenta da lista original. O castigo por esconder um proscrito era a morte. A caminho da Rocha de Tarpeia, o desgraçado passou na rua pela comitiva de Sula e recordou-lhe que, a certa altura, os dois tinham vivido no mesmo edifício. ”Não te lembras?”, disse o homem. ”Eu vivia no andar de cima e pagava dois mil sestércios. Tu vivias nos compartimentos por baixo de mim e pagavas três mil.” Pela careta que fez, ninguém conseguiu perceber se o homem estava a brincar ou não. Por uma vez, Sula não pareceu divertido; talvez não estivesse com disposição para se recordar das suas origens humildes. ”Então vais gostar da Rocha de Tarpeia”, disse ele ao homem. ”A renda é gratuita e a vista é inesquecível.” E com isso prosseguiu, surdo aos pedidos de misericórdia do condenado.
Houve quem dissesse que os homens estavam a ser proscritos para que o Estado e os amigos do Estado pudessem apoderar-se das suas propriedades. ”Ouviste dizer”, corria como piada, ”que Fulano foi morto pela sua enorme mansão no monte Palatino, Beltrano pelos seus jardins e Cicrano pelos seus banhos de vapor, recentemente instalados.” Contava-se a história de um tal Quinto Aurélio, que foi ao Fórum e descobriu o seu nome nas listas. Um amigo que passava convidou-o para jantar. ”Impossível”, disse Quinto. ”Não tenho tempo. Estou a ser perseguido pela minha propriedade em Alba.” Virou a esquina e não andou mais de vinte passos antes de um assassino lhe cortar o pescoço.
Mas as proscrições terminaram finalmente. Pompeu partiu para África, para aniquilar o último dos inimigos do seu senhor. Crasso lançou-se na especulação imobiliária. Jovens populistas como César fugiram para o fim do mundo. Sula divorciou-se da sua bem-amada Metela (cujos seios tinham sido caluniados pelos atenienses), com a justificação religiosa de que a doença fatal de que ela sofria ameaçava poluir a sua casa, e viu-se perseguido por Valéria (sim, a irmã de Rufo), uma jovem e bela divorciada; numa exposição de gladiadores, ela tentou apanhar um fio solto da toga do grande homem a fim de conseguir para si uma parte da sua boa sorte, chamou a sua atenção, e tornou-se sua noiva. O trémulo prestígio da nobreza foi escorado com argamassa estalada e palha, e começaram a circular boatos de que, a qualquer momento, o recém-casado Sula abandonaria a sua ditadura e convocaria eleições consulares livres.
Lá em baixo, na sala de banquetes de Crisógono, rodeado pelos despojos da Guerra Social, da guerra civil e das proscrições, Metróbio erguia a cabeça e crispava as mãos, inspirando profundamente. Depois de ter revisto com pormenor fulminantemente satírico os principais momentos da carreira daquele que era o seu objecto, a canção aproximava-se do fim. Até o humilhado poeta, tendo esvaziado o estômago daquilo que o agoniava e regressado ao seu canapé, se juntara finalmente às ásperas gargalhadas.
Tiro voltou-se para mim, abanando a cabeça.
Não consigo compreender estas pessoas murmurou. Que género de festa é esta?
Também eu fazia a mim próprio a mesma pergunta.
Penso que os rumores devem ser verdadeiros. Penso que o nosso bem-amado Ditador e Salvador da República poderá estar a pensar numa reforma iminente. Isso implicará ocasiões e cerimónias solenes, hinos de louvor, orações retrospectivas, a publicação oficial das suas Memórias. Tudo muito rígido e formal, respeitável, romano. Mas aqui, entre os seus, Sula prefere beber e divertir-se com isso. Que homem tão estranho! Mas espera, a canção ainda não terminou.
Metróbio batia as pálpebras, moldando as mãos num gesto de donzela modesta, satirizando uma virgem tímida. Depois abriu a boca pintada, e cantou:
”Diz-se que se conheceram numa festa de gladiadores, Onde os vivos que continuam vivos só podem ser os melhores, Ela puxou-lhe pela toga para ficar com uma recordação Ou seria para olhar para o instrumento de Sula?”
As gargalhadas foram ensurdecedoras. O próprio Sula inclinou-se para diante, bateu com a mão aberta na mesa, e quase caiu do canapé. Crisógono sorria com um ar inchado, não deixando dúvidas quanto à autoria do verso. A brincar, Hortênsio lançou um espargo, como uma seta, na direcção de Metróbio; ela passou por cima da cabeça deste e atingiu o poeta em cheio na testa. Rufo afastou-se de Sórex, que sorria e tentava murmurar-lhe qualquer coisa ao ouvido. Não parecia divertido.
”Nesse dia, a carne foi trespassada; os homens contorciam-se no pó. Sula sacou da espada para provar que ela não se tinha enferrujado; E a senhora concordou, sim, a senhora declarou...”
A canção foi interrompida pelo choque ruidoso de uma mesa virada ao contrário. Rufo estava de pé, com o rosto congestionado. Hortênsio poisava-lhe uma mão na perna, pedindo-lhe calma, mas Rufo sacudiu-o.
Valéria poderá ser apenas tua meia-irmã, Hortênsio, mas é da minha carne e do meu sangue lançou ele, e eu não vou continuar a ouvir esta porcaria. E é tua mulher! disse ele, parando subitamente diante do canapé de honra e olhando abertamente para Sula. Como podes suportar estes insultos?
A sala ficou silenciosa. Durante um longo momento, Sula não se moveu, mantendo-se na mesma posição, reclinado sobre um cotovelo, com as pernas estendidas. Olhava em frente, mexendo o queixo para diante e para trás, como se tivesse uma dor de dentes. Finalmente, balançou as pernas para o chão e sentou-se lentamente, olhando para Rufo com uma expressão simultaneamente sardónica, magoada e divertida.
És um jovem muito orgulhoso disse ele. Muito orgulhoso e muito belo, tal como a tua irmã. Estendeu a mão para a taça de vinho e bebeu um golo. Mas, ao contrário de Valéria, aparentemente não tens sentido de humor. E, se Hortênsio é teu meio-irmão, talvez isso explique por que razão tens apenas metade do seu bom senso, já para não falar das boas maneiras. Bebeu um pouco mais de vinho e suspirou. Quando eu tinha a tua idade, havia muitas coisas no mundo que me desagradavam. Em vez de me queixar, eu procurei mudar o mundo, e consegui-o. Se uma canção te ofende, não tenhas um acesso de cólera. Escreve outra melhor.
Rufo devolveu-lhe o olhar, mantendo os braços firmemente estendidos ao longo do corpo, de punhos cerrados. Imaginei todos os insultos que lhe atravessavam o espírito e murmurei uma prece silenciosa aos deuses para que ele mantivesse a boca fechada. Ele abriu a boca e pareceu prestes a falar, depois olhou iradamente à volta da sala, e saiu.
Sula voltou a encostar-se, parecendo bastante desiludido por ter tido a última palavra. Houve um silêncio desconfortável, quebrado por um dito espirituoso do pretenso poeta:
Mais um jovem que deu cabo da sua carreira! Foi uma observação espantosamente estúpida, vinda de um zé-ninguém a propósito de um jovem Messala, cunhado do ditador. O silêncio tornou-se ainda mais desconfortável, quebrado apenas por suspiros dispersos e por uma tosse suprimida de Hortênsio.
O anfitrião não se deixou abater. Crisógono sorriu com o seu sorriso dourado e olhou calorosamente para Metróbio.
Penso que falta pelo menos um verso certamente que o melhor foi guardado para o fim.
Realmente! Sula ergueu-se, com os olhos a brilhar, cambaleando ligeiramente por causa do vinho. Dirigiu-se ao centro da sala.
Que presente me haveis dado todos esta noite! Mesmo o pequeno e querido Rufo, que se comportou como um tolo pretensioso que cabeça ardente, que temperamento ardente, tão contrário ao da sua irmã. Que noite! Fizestes-me recordar tudo, quer quisesse quer não
tanto os dias felizes como os mais infelizes. Mas os tempos antigos, esses foram os melhores, eu era um jovem que apenas tinha esperança, fé nos deuses e o amor dos meus amigos. Já nessa altura era um tolo sentimental!” Assim falando, tomou nas mãos o rosto de Metróbio e beijou-o em plena boca, gesto que o público aplaudiu espontaneamente. Quando Sula terminou o beijo, vi que tinha lágrimas no rosto. Ele sorriu e recuou, cambaleando, indicando ao tocador de lira que recomeçasse enquanto voltava a deixar-se cair no canapé. A canção recomeçou:
”E a senhora concordou, sim, a senhora declarou...”
mas Tiro e eu não chegámos a ouvir o final. Em vez disso, voltámos a cabeça ao mesmo tempo, distraídos pelo mesmo ruído inconfundível o áspero deslizar de uma lâmina de aço a ser retirada da bainha.
Crisógono sempre enviara alguém a investigar o que se passava no andar de cima, ou então nós tínhamos ficado demasiado tempo no mesmo sítio. Uma figura pesada emergiu da sombra da porta, coxeando ligeiramente quando entrou na poça do luar que entrava pela varanda. O seu cabelo bravio era uma espécie de halo azul, e a expressão que tinha no rosto transformou-me o sangue em gelo. Na mão esquerda, segurava uma faca, com uma lâmina com a extensão do antebraço de um homem talvez a mesma lâmina que tinha usado para esfaquear Sexto Róscio uma vez e outra.
Um momento depois, juntou-se a Magno o seu homem de mão, o gigante louro, Málio Gláucia. A cicatriz que Bast lhe deixara na cara parecia maior e mais feia àquela luz pálida. Ele mantinha a sua lâmina no mesmo ângulo que o seu senhor, voltada para cima e para diante como se estivesse preparado para esventrar um animal.
O que estão vocês a fazer aqui? disse Magno, fazendo rodar a faca nos dedos, de tal maneira que a lâmina brilhou ao luar. A sua voz era mais forte do que eu esperava. O seu latim rural estava coberto pela pronúncia nasal dos bandos de rua.
Eu olhei de frente para os dois homens; eles não faziam ideia de quem eu era. Gláucia fora enviado a minha casa para me intimidar ou me assassinar, certamente por ordem de Magno, mas nenhum deles me tinha propriamente visto, excepto de passagem, na rua em frente da casa de Cápeto. Retirei lentamente a mão de dentro da túnica. Fizera tenções de retirar a minha faca, mas acabei por tirar o anel de ferro. Ergui as mãos ao ar.
Por favor, perdoa-nos pedi eu, surpreendido com o pouco esforço que me era necessário para parecer dócil e humilde perante dois gigantes que brandiam lâminas de aço. Somos escravos do jovem Marco Valério Messala Rufo. Mandaram-nos vir chamá-lo cá acima antes de o espectáculo ter começado. Perdemo-nos somos mesmo estúpidos!
E era por isso que estavam a espiar o senhor desta casa e os seus convidados? sibilou Magno. Ele e Gláucia separaram-se e aproximaram-se de nós dos dois lados, como os flancos de um exército.
Parámos aqui, para olharmos pela varanda e respirarmos ar puro. Encolhi os olhos, mantendo as mãos à vista e fazendo o possível por parecer patético e confuso. Olhei para Tiro e vi que ele seguia admiravelmente as minhas orientações, ou então estava simplesmente assustado de morte. Ouvimos a canção, descobrimos a janelinha
somos mesmo estúpidos e presunçosos, e tenho a certeza de que o nosso jovem senhor nos mandará açoitar por esta insolência. Simplesmente, não é costume termos a oportunidade de observar uma reunião com tal esplendor.
Magno agarrou-me pelo ombro e empurrou-me até à varanda, para me ver ao luar. Gláucia empurrou Tiro em direcção a mim, de maneira que eu tropecei na parede de tijolos que se erguia à altura da cintura, e tive de me segurar ao seu bordo para me equilibrar. Olhei por cima do ombro. O abismo que se abria por baixo de mim transformou-se num monte de ervas manchado pelas sombras provocadas pelos ciprestes. Vista de baixo, a varanda não parecia estar tão longe do solo.
Magno puxou-me o cabelo e picou com a ponta da sua lâmina a pele suave por baixo do meu queixo, obrigando-me a voltar-me para o olhar de frente.
Já te vi em algum sítio murmurou ele. Gláucia, vem cá ver! De onde é que conhecemos este cão?
O gigante louro observou-me, mordeu os lábios e franziu o sobrolho. Depois abanou a cabeça, derrotado.
Não sei resmungou. Em seguida, o rosto iluminou-se-lhe.
Améria disse ele. Lembras-te, Magno? Foi no outro dia, na estrada, antes de entrarmos em casa de Cápeto. Ele vinha do outro caminho, sozinho.
Magno rosnou para mim.
Quem és tu? O que estás a fazer aqui? empurrou a faca com mais força, e eu senti a pele ceder. Imaginei o meu sangue a escorrer pela lâmina. Não te preocupes com isso, gostaria de ter dito. Eu sei quem tu és, sei quem são vocês os dois. Assassinaram o vosso primo a sangue-frio e roubaram-lhe os bens. E entraram à força em minha casa, deixando-me na parede uma mensagem escrita com sangue. E teriam assassinado Betesda se tivessem tido oportunidade. Provavelmente, teriam começado por violá-la.
Ergui o joelho com violência, em direcção às virilhas de Magno. Por reflexo, ele inclinou-se para baixo. A lâmina rasgou-me a túnica, tocando-me ao de leve no peito. Paciência; de qualquer maneira, eu sabia que estava condenado. Gláucia estava mesmo por trás dele, com o punhal em posição de ataque. Protegi-me com os braços do ataque ao meu coração. Cheguei a ouvi-lo, era um som doentio de carne rasgada.
Só que ninguém me esfaqueou, e Gláucia caiu de joelhos, largando a lâmina e erguendo as mãos para a cabeça. Tiro estava de pé por trás dele, segurando um tijolo ensanguentado.
Soltou-se da parede explicou ele, olhando-o espantado. Nenhum de nós pensou em pegar na lâmina de Gláucia, mas
Magno pensou. Pegou nela e recuou alguns passos, depois avançou com uma lâmina em cada mão, resfolegando como um touro cretense. Eu passara por cima da parede antes de ter percebido o que estava a fazer, como se o meu corpo tivesse saltado, deixando a cabeça para trás. Caí através da escuridão, mas não o fiz sozinho. Ao meu lado e um pouco acima de mim, havia outro corpo que se movia pelo espaço, Tiro. Um pouco para além dele, caindo a pique como um cometa queimado, via-se um fragmento de tijolo manchado de sangue, com um brilho cor de púrpura à luz azul da Lua. Magno era um rosto furioso que espreitava por cima de uma parede, lá no alto, flanqueado por dois punhais direitos, que se iam tornando cada vez mais pequenos.
JUSTIÇA
Senti que algo duro e imenso se erguia e me atingia por baixo: terra amontoada e seca. Como se tivesse sido empurrado pela mão de um gigante, caí para a frente, rolando sobre os calcanhares e depois estacando subitamente e por completo. Ao meu lado, ouvi Tiro gemer. Queixava-se de qualquer coisa, mas as suas palavras eram mal articuladas e indistintas. Por um momento, esqueci-me completamente de Magno. Só conseguia pensar que o ar era espantosamente fino, e o solo, por contraste, extraordinariamente denso. Depois, recuperei a presença de espírito e olhei para cima.
O rosto brilhante de Magno parecia incrivelmente longínquo; como era possível que eu tivesse saltado de uma distância daquelas? Não havia qualquer possibilidade de ele nos seguir nenhum homem sensato daria um salto como aquele excepto para salvar a vida. Mas Magno também não se atreveria a lançar um alarme geral, pelo menos enquanto Sula estivesse naquela casa isso poderia ocasionar demasiadas interrogações e complicações desagradáveis. No tempo que Magno demoraria a atravessar corredores e a descer escadas, há muito que nós teríamos desaparecido na noite. Por que começou ele subitamente a sorrir?
O som de um gemido desviou a minha atenção para Tiro, ajoelhado ao meu lado, com as mãos pousadas no chão, a tremer sobre a erva seca. Ergueu-se, ou tentou fazê-lo, e depois caiu desamparadamente para a frente; voltou a tentar e voltou a cair. O seu rosto estava retorcido de dor:
O meu tornozelo murmurou enrouquecido, e depois praguejou. Voltei a olhar para cima, para a varanda. Magno desaparecera.
Eu pus-me vivamente de pé e puxei Tiro, obrigando-o a levantar-se. Ele cerrou os dentes, fazendo um estranho ruído gorgolejante um grito de dor engolido por um acto de pura vontade.
Consegues andar? disse eu.
Claro que sim. Tiro afastou-se de mim e voltou imediatamente a cair de joelhos. Eu voltei a puxá-lo, obrigando-o a levantar-se, indiquei-lhe que se agarrasse ao meu ombro, e comecei a caminhar o mais depressa que podia, e depois a correr ligeiramente. Não sei como, ele conseguiu ir coxeando atrás de mim, saltitando e gemendo de dor. Andámos cerca de trezentos metros, antes de eu ouvir nas minhas costas um ligeiro arrastar de pés que me fez gelar.
Lancei um olhar por cima do ombro, e vi Magno sair para a rua, recortado pela luz das lamparinas do pórtico de Crisógono. Seguia-o outra figura o brutamontes Málio Gláucia. Por um instante, vi o rosto do gigante louro, iluminado pelo luar azulado e enquadrado por tochas crepitantes, manchado de sangue e com um aspecto pouco humano. Pararam a meio da rua, olhando para um lado e para o outro. Eu puxei Tiro para a sombra da mesma árvore de onde tínhamos observado a chegada de Sula, pensando que a escuridão poderia resguardar-nos, mas o movimento deve ter chamado a atenção de Magno. Ouvi um grito e depois o bater de sandálias contra as pedras do pavimento.
Aos meus ombros! sibilei. Tiro compreendeu imediatamente e manquejou para obedecer. Eu acocorei-me entre as suas pernas, ergui-o no ar, e comecei a correr, espantado com a minha própria força. Deslizava sem esforço pelas pedras macias. Inspirei profundamente e dei uma gargalhada, pensando que conseguiria correr um quilómetro distanciando-me de Magno a cada passada. Ouvia-os gritar atrás de mim, mas baixinho; ouvia sobretudo o latejar do sangue nos ouvidos.
Depois, em consequência de uma inspiração menos profunda que as outras, a excitação do momento desvaneceu-se. Passo a passo, a explosão de energia foi diminuindo. O solo pareceu inclinar-se ligeiramente para cima e depois derreter-se, como se estivesse a correr em cima de lama. Em vez de me rir, dei por mim a tossir, e subitamente comecei a ter dificuldade em erguer os pés; Tiro era pesado como uma estátua de bronze. Ouvi Magno e Gláucia atrás de nós, e os seus passos estavam tão próximos, que a parte de trás do meu pescoço começou a contrair-se, perante a perspectiva de sentir uma faca entre as omoplatas.
Aproximámo-nos a cambalear de um muro alto coberto de hera. O muro chegou ao fim. Foi então que vi a casa de Cecília Metela à minha esquerda. O pórtico estava iluminado com uma braseira, flanqueada pelos dois guardas ali colocados para salvaguarda de Sexto Róscio.
Um cidadão sem fôlego carregando um escravo às cavalitas era provavelmente a última coisa que os dois guardas de olhos cheios de remelas esperavam ver aproximar-se deles a correr, saindo da escuridão. Estenderam as mãos para as espadas e ergueram-se de um salto, como gatos assustados.
Ajudem-nos! consegui eu pronunciar. Cecília Metela conhece-me. Somos perseguidos por dois homens criminosos de rua, assassinos!
Os soldados afastaram-se e ergueram as espadas, mas não fizeram qualquer menção de me impedir, quando eu me inclinei e deixei Tiro escorregar de cima dos meus ombros. Ele deu um passo, a coxear, e depois encostou-se à porta a gemer. Eu passei por ele e comecei a bater à porta, depois olhei por cima do ombro, vendo Magno e Gláucia pararem ruidosamente, a distância suficiente para serem iluminados pela luz da braseira.
Até os guardas armados recuaram quando os viram Magno com o seu cabelo bravio, as cicatrizes na cara e as narinas bojudas, Gláucia com sangue a escorrer da testa, ambos de punhal na mão. Voltei a bater à porta.
Magno assumiu um ar inocente, baixou o punhal e indicou a Gláucia que fizesse a mesma coisa.
São dois ladrões disse ele apontando na minha direcção. Apesar da sua aparência selvática, a sua voz era calma e equilibrada. Nem sequer estava sem fôlego. Assaltantes declarou ele. Apanhámo-los a tentar entrar à força em casa de Lúcio Cornélio Crisógono. Entreguem-no-los.
Os dois soldados trocaram um olhar confuso. Tinham recebido ordens para não deixar sair o prisioneiro, e não para impedir quem quer que fosse de entrar, ou para manter a paz na rua. Não tinham qualquer razão para auxiliar dois homens de expressão bravia com punhais na mão. Nem tinham qualquer razão para proteger duas visitas inesperadas, que apareciam a meio da noite. Magno devia ter-lhes dito que éramos escravos fugitivos; isso teria obrigado os soldados, como cidadãos, a entregar-nos. Mas agora era demasiadamente tarde para mudar de história. Em vez disso, e vendo que os guardas não reagiam, Magno pôs a mão dentro da túnica e tirou de lá a sua bolsa, que tinha um aspecto pesado. Os guardas olharam para a bolsa, depois olharam um para o outro, e depois, sem qualquer afecto, para Tiro e para mim. Eu bati na porta com os dois punhos cerrados.
Finalmente, abriu-se uma fresta, e por ela espreitaram os olhos calculistas do eunuco Ahausarus. O seu olhar saltou de mim para Tiro e depois para os assassinos que se encontravam no meio da rua. Eu ainda estava sem fôlego, à procura de palavras para me explicar, quando ele abriu a porta, nos empurrou lá para dentro e a fechou com força atrás de nós.
Ahausarus recusou-se a acordar a sua senhora. E também não nos permitiu passar lá a noite. (”Impossível”, fungou altivamente, como se alojar Sexto Róscio e a família fosse já uma mácula suficiente naquela casa.) Magno podia continuar à espera do lado de fora do portão; pior ainda, podia ter mandado Gláucia ir buscar reforços. Quanto mais depressa partíssemos, melhor. Depois de umas negociações apressadas (que consistiram sobretudo em súplicas minhas, enquanto o eunuco erguia as sobrancelhas e contemplava o tecto), Ahausarus ficou satisfeito por nos ver partir acompanhados por um grupo de carregadores de liteira semiadormecidos, que transportavam Tiro, juntamente com alguns gladiadores da guarda pessoal da sua senhora.
Acabaram-se as aventuras! disse Cícero decididamente. Não vale a pena. Quando amanhã ouvir contar o que aconteceu, Cecília vai ficar escandalizada. Tiro ficou ferido. E nem vale a pena falar nas repercussões que poderão resultar daqui andar a espiar Crisógono na sua própria casa, com Sula presente! O meu próprio escravo e um homem de mão contratado perdoa-me, Gordiano, mas é verdade apanhados a passear-se numa casa privada no monte Palatino durante uma festa em honra de Sula. Não seria difícil transformar isto numa ameaça qualquer à segurança do Estado, não achas? E se eles vos tivessem apanhado e vos tivessem arrastado à presença de Crisógono? Chamar-vos-iam assassinos com a mesma facilidade com que vos chamaram ladrões. Queres ver a minha cabeça na ponta de uma lança? E tudo isso para nada não souberam nada de novo com esta escapada, pois não? Nada importante, pelo que posso perceber. O teu trabalho terminou, Gordiano. Desiste! Agora, tudo depende de Rufo e de mim. Mais dois dias amanhã e o dia a seguir, e depois é o julgamento. Até essa altura, não quero mais aventuras absurdas como esta! Não façam nada, e tentem manter-se vivos. Na realidade, proíbo-vos de saírem desta casa.
Há pessoas que não ficam muito bem-dispostas quando são acordadas a meio da noite. Cícero foi brusco e desagradável logo que chegou ao vestíbulo, chamado por um escravo a fim de testemunhar a bizarra chegada nocturna de um grupo de guarda-costas de andar pesado e de um escravo transportado numa liteira. Os seus olhos estavam rodeados de profundas bolsas negras; suponho que não lhe tivesse aparecido em sonhos nenhuma deusa amigável que lhe oferecesse raios de poder. Cansado ou não, Cícero continuava a falar, sobretudo para me criticar, ao mesmo tempo que girava à volta de Tiro como uma galinha choca; Tiro estava deitado de barriga para baixo sobre uma mesa, enquanto o médico da casa (que também era o chefe das cozinhas) lhe examinava o tornozelo, voltando-o para um lado e para o outro. Tiro estremecia e mordia os lábios. O médico acenava gravemente, com os olhos vermelhos e inchados por lhe terem interrompido o sono.
Não está partido disse por fim, está apenas torcido. Ele teve sorte; senão, poderia ficar a coxear para toda a vida. O melhor é dar-lhe bastante vinho para diluir o sangue coagulado e manter os músculos folgados. Metam-lhe o tornozelo em água fresca o resto da noite, quanto mais fresca melhor para combater o inchaço. Amanhã cubram-no e apertem-lho bem, e não o deixem andar sobre ele até a dor ter passado por completo. Vou mandar o carpinteiro fazer-lhe uma muleta logo de manhã.
Cícero abanou a cabeça, aliviado. Subitamente, o maxilar começou a tremer-lhe. A boca estremeceu-lhe. O queixo oscilou-lhe. Ele abriu a boca num bocejo arquejante, tentando mantê-la fechada. Pestanejou, já prestes a adormecer. Lançou-me um último olhar de censura através das pálpebras pesadas, abanou a cabeça com desaprovação para Tiro, e depois voltou para a cama.
Eu escapuli-me fatigadamente para o meu quarto. Betesda estava sentada na cama, completamente acordada, à minha espera. Estivera a ouvir à porta, mas apenas conseguira perceber as linhas gerais da aventura daquela noite. Fez-me uma série de perguntas. Eu fui-lhe respondendo, até muito depois de as minhas respostas resmoneadas terem deixado de fazer qualquer sentido.
A determinada altura, comecei a sonhar.
No sonho, estava deitado com a cabeça no colo de uma deusa que me afagava a testa. A sua pele era como o alabastro. Os seus lábios pareciam cerejas. Embora tivesse os olhos fechados, eu sabia que ela estava a sorrir, porque sentia o sorriso dela no meu rosto, como um raio quente de sol.
Abriu-se uma porta, e o quarto ficou cheio de luz. Entrou Apolo de Éfeso, como um actor entra em cena, despido e dourado e espantosamente belo. Ajoelhou-se ao meu lado e colocou os lábios tão perto dos meus ouvidos, que me roçou a pele. O seu hálito era tão suave como o sorriso de uma deusa e cheirava a madressilva. Ele sussurrava palavras de doce conforto, semelhantes ao murmúrio de um regato.
Mãos invisíveis tocavam uma lira invisível, enquanto um coro que não se avistava entoava a mais bela canção que eu jamais ouvira verso após verso de amor e de louvor, todos em minha honra. A certa altura, um gigante selvático entrou cegamente no quarto com um punhal na mão, com os olhos manchados de sangue coagulado proveniente de uma ferida que tinha na cabeça; mas nada mais estragou a perfeição absoluta daquele sonho.
Um galo cantou. Eu sobressaltei-me e ergui-me subitamente, imaginando que regressara à minha casa no Esquilino e pensando que ouvia estranhos a vaguear na madrugada cinzenta. Mas o ruído que eu tinha ouvido era apenas o som dos escravos de Cícero preparando-se para o dia que começava. Ao meu lado, Betesda dormia como uma pedra, com o cabelo preto espalhado sobre a almofada. Encostei-me para trás ao lado dela, pensando que, por mais que fizesse, não conseguiria voltar a adormecer.
Fiquei inconsciente quase antes de fechar os olhos.
O sono espalhou-se à minha volta em todas as direcções sem forma, sem sonhos, desprovido de marcas. Um sono assim assemelha-se à eternidade: sem nada que meça a passagem do tempo, sem marcas que distingam o volume do espaço, um instante não se diferencia de todo o tempo e um átomo tem o tamanho do universo. Toda a diversidade da vida, incluindo o prazer e a dor, se dissolve numa unicidade primordial, que absorve até o nada. Será isto a morte?
E depois, num repente, acordei.
Betesda estava sentada no canto do quarto, a coser a bainha da túnica que eu tinha vestido na noite anterior. A determinada altura, talvez quando saltei, ela tinha-se rasgado. Ao lado dela, vi um pedaço de pão meio comido, coberto de mel.
Que horas são? perguntei eu.
Meio-dia, ou quase.
Espreguicei-me. Tinha os braços rígidos e doridos. Reparei numa grande ferida cor de púrpura no ombro direito.
Levantei-me. Tinha as pernas tão doridas como os braços. Do átrio, vinha um zumbido de abelhas e o som de Cícero a declamar.
Já está anunciou Betesda. Ergueu a túnica, parecendo satisfeita consigo própria. Lavei-a esta manhã. A lavadeira de Cícero ensinou-me uma nova técnica. Até as manchas de hera saíram. O ar está tão seco, que não tardou a enxugar. Pôs-se de pé atrás de mim, e ergueu a túnica por cima da minha cabeça, para que eu me vestisse. Levantei os braços, resmungando por senti-los doridos.
Queres comer, Senhor? Acenei com a cabeça.
Vou comer ao peristilo, na parte de trás da casa disse eu. O mais longe possível do som do nosso anfitrião a declamar.
O dia era perfeito para a ociosidade. No quadrado de céu azul que se avistava por cima do pátio, flutuavam nuvens brancas e cheias, uma de cada vez, nem mais nem menos, como se os deuses tivessem decretado uma procissão. O ar estava quente, mas não tanto como nos dias anteriores. Uma brisa fresca e seca sussurrava sobre o telhado, deslizando pelos pórticos sombrios. Os escravos de Cícero andavam silenciosamente pela casa, com expressões de excitação e determinação contidas, contagiados pela gravidade dos acontecimentos que transpiravam do escritório do seu senhor. Hoje e mais um dia, e depois era o julgamento.
Betesda manteve-se perto de mim, oferecendo-se para me ir buscar uma coisa e outra, atendendo a tudo aquilo que eu desejasse um rolo de pergaminho, uma bebida, um chapéu de abas largas. O seu comportamento era estranhamente submisso. Embora não falasse nisso, era óbvio que os sinais do perigo da noite anterior que ainda estavam presentes a túnica rasgada, a ferida que eu tinha no ombro lhe pesavam no espírito, e que ela se sentia satisfeita por me ver seguro e perto de si. Quando me trouxe um copo de água fresca, eu poisei o pergaminho que estava a ler, olhei-a nos olhos e deixei os meus dedos tocarem nos seus. Em vez de me devolver o sorriso, ela pareceu ter um arrepio, e eu julguei ter visto os seus lábios tremer, tão ligeiramente como as folhas do salgueiro tremiam na suave brisa. Depois, retirou a mão e recuou, ao ver o Velho Tiro, o porteiro, atravessar o pátio na diagonal mesmo em frente de mim, esquecido das regras do decoro que obrigavam os escravos a passar discretamente por baixo dos pórticos. Passou por nós e voltou a desaparecer dentro de casa, enquanto abanava a cabeça e murmurava sozinho.
Ao velho liberto seguiu-se, pouco depois, o neto. Tiro atravessou o pátio querenando, apoiado numa rústica muleta de madeira, sem poisar no chão o tornozelo fortemente apertado e andando mais depressa do que a sua habilidade lhe permitia. Sorria estupidamente, orgulhoso da sua incapacidade como um soldado do seu primeiro ferimento. Betesda foi buscar uma cadeira e ajudou-o a sentar-se.
As primeiras cicatrizes e feridas da idade adulta são como um distintivo de iniciação disse eu. Mas, com a repetição, tornam-se aborrecidas e depois deprimentes. A juventude cede com orgulho a sua elasticidade, a sua força e a sua beleza, como sacrifícios no altar da idade adulta, e só mais tarde as lamenta.
O sentimento não o comoveu. Tiro enrugou a testa, ainda a sorrir, e olhou para o pergaminho que eu pusera de lado, pensando que estaria a citar epigramas.
Quem disse isso?
Alguém que já foi jovem. Sim, tão jovem como tu és agora, e igualmente resistente. Pareces muito bem-disposto.
Suponho que sim.
Não tens dores?
Algumas, mas não me vou preocupar com elas. É tudo muito excitante.
Sim?
Com Cícero, quero eu dizer. É necessário preparar uma série de papéis, há uma série de pessoas que passam por cá amigos da defesa, homens bons como Marco Metelo e Públio Cipião. Já para não falar na composição do discurso, na tentativa de prever os argumentos da acusação não há mesmo tempo para tudo. Rufo diz que é sempre assim, mesmo com um advogado experiente como Hortênsio.
Quer dizer que já viste Rufo hoje?
De manhã cedo, enquanto tu dormias. Cícero censurou-o por ter protestado com Sula na festa, disse que Rufo tinha sido demasiadamente severo e sensível tal como te censurou na noite passada.
Só que eu tenho a certeza de que Cícero está secretamente orgulhoso do que Rufo fez, e ambos o sabem. Mas comigo está realmente aborrecido. Onde está Rufo?
Foi ao Fórum. Cícero mandou-o tratar de um documento a enviar a Crisógono, pedindo-lhe que apresente os dois escravos, Félix e Cresto, para que deponham. Claro que Crisógono não vai permitir, mas isso vai parecer suspeito, estás a perceber, e Cícero pode aproveitar-se disso no seu discurso. Foi essa a parte que andámos a rever toda a manhã. Ele vai mesmo enunciar o nome de Crisógono. Eles não estão à espera disso, porque pensam que toda a gente tem demasiado medo de dizer a verdade. Até vai evocar Sula. Devias ouvir algumas das coisas que ele escreveu a noite passada, enquanto nós saímos, acerca da liberdade que Sula concedeu aos criminosos, da forma como encorajou a corrupção e o puro e simples assassínio. Claro que Cícero não pode usar tudo aquilo; seria suicídio. Terá de suavizá-lo, transformando-o em algo mais subtil mas, ainda assim, mais ninguém tem a coragem de se erguer no Fórum apelando à verdade.
Voltou a sorrir, com um sorriso diferente, não de orgulho infantil, mas com uma espécie de êxtase de adoração, tonto perante a perspectiva de seguir Cícero até ao Fórum, corado de excitação como um soldado que segue um general bem-amado. As feridas e o perigo apenas serviam para aumentar a excitação e fazer da causa algo mais esplêndido. Mas até onde se atreveria Cícero a ir, provocando a ira de Sula? Resmunguei sozinho e preparei-me para torturar Tiro com as minhas dúvidas. Mas segurei a língua. Afinal, os perigos que ele enfrentava ao lado de Cícero não eram menos reais do que os perigos que enfrentara ao meu lado. Ele saltara para o espaço atrás de mim. Atravessara a correr o monte Palatino iluminado pelo luar, cheio de dores e de medo, sem uma queixa.
Agora regressava para junto do seu senhor. Ergueu-se apoiado na muleta e equilibrou-se numa perna. Betesda fez menção de o ajudar, e ele permitiu-lhe que o fizesse, corando.
Agora tenho de me ir embora. Não posso ficar aqui mais tempo. Cícero vai voltar a precisar de mim. Ele não pára, quando está a meio de qualquer coisa. Mandou Rufo fazer uma dúzia de recados ao Fórum, e estivemos os três a pé toda a noite.
Enquanto eu recuperava o sono. Mas por que não ficas um pouco mais? Descansa; esta noite vais precisar de todas as tuas forças. Além disso, não tenho mais ninguém com quem falar.
Tiro cambaleou, encostando-se à muleta.
Não, tenho mesmo de me ir embora.
Está bem. Suponho que Cícero apenas te mandou vir ver como eu estava.
Tiro encolheu os ombros o melhor que podia, encostado à muleta. Lançou-me um olhar matreiro e corou.
Na verdade, Cícero mandou-me trazer-te uma mensagem.
Uma mensagem? Tu, com esse tornozelo torcido?
Suponho que pensou que os outros escravos... isto é, tenho a certeza de que ele próprio teria vindo, mas indicou-me que te recordasse o que ele te disse a noite passada. Lembras-te?
Lembro-me de quê? Fiquei novamente com uma disposição sarcástica.
Diz ele que não deves sair desta casa. Aproveita todos os confortos que Cícero puder oferecer-te. E, se precisares de alguma coisa do exterior, não hesites em mandar buscá-la por um dos escravos.
Não estou habituado a ficar em casa todo o dia e toda a noite. Talvez vá até ao Fórum com Rufo.
Tiro corou profundamente.
Na verdade, Cícero deu instruções aos vigilantes que contratou
para protegerem a casa.
Instruções?
Disse-lhes que não te deixassem sair. Que te obrigassem a permanecer dentro de casa.
Olhei para ele calmamente, sem acreditar no que estava a ouvir.
Tiro baixou os olhos.
Que me obrigassem a permanecer dentro de casa? Tal como os guardas da casa de Cecília obrigam Sexto Róscio a permanecer dentro de casa?
Bem, suponho que sim.
Sou um cidadão romano, Tiro. Como se atreve Cícero a prender outro cidadão romano em sua casa? O que farão esses guardas se eu sair?
Na verdade, Cícero disse-lhes que usassem a força, se fosse necessário. Não me parece que eles te espanquem...
Senti o rosto e as orelhas ficarem tão vermelhos como os de Tiro. Olhei para Betesda e vi que ela sorria muito ligeiramente, parecendo aliviada. Tiro inspirou profundamente e afastou-se de mim, como se tivesse traçado um risco com a muleta e tivesse recuado para trás dele.
Tens de compreender, Gordiano. Agora, a questão pertence a Cícero. Sempre pertenceu. Tu colocaste-te em perigo ao seu serviço e, por causa disso, ele colocou-te sob a sua protecção. Pediu-te que descobrisses a verdade, e tu assim fizeste. Agora, a verdade tem de ser julgada pela lei. Isso é o domínio de Cícero. A defesa de Sexto Róscio é o acontecimento mais importante da sua vida. Isto pode significar tudo para ele. Ele acha honestamente que, neste momento, tu és mais perigoso do que útil. Por favor, não te oponhas a ele nisto. Não o ponhas à prova. Faz o que ele pede. Obedece ao seu juízo.
Tiro voltou-se para partir, sem me dar tempo para responder, e utilizando a sua inabilidade com a muleta como desculpa para não olhar para trás nem fazer um gesto de despedida. A sua presença demorou-se no pátio: eloquente, leal, insistente e seguro de si próprio Tiro era o escravo do seu senhor, em todos os aspectos.
Eu voltei a pegar na história de Políbio que estava a ler, mas parecia-me que as palavras se juntavam umas às outras, deslizando para fora do pergaminho. Ergui os olhos e olhei para além do rolo, para as sombras do pórtico. Ali perto, Betesda estava sentada com os olhos fechados, feliz como uma gata ao sol. Uma nuvem em farrapos atravessou o céu, lançando sobre o pátio uma sombra manchada. A nuvem passou; o sol regressou. Passados alguns minutos, outra nuvem tomou o seu lugar. Betesda parecia quase ronronar. Eu chamei-a.
Leva-me este pergaminho disse-lhe. Está a aborrecer-me. Vai ao escritório. Pede desculpa ao nosso anfitrião pela interrupção, e pede a Tiro que me descubra qualquer coisa de Plauto, ou talvez uma comédia grega decadente.
Betesda afastou-se, murmurando o nome desconhecido para não se esquecer dele. Agarrou no rolo de pergaminho daquela maneira estranha como os iletrados pegam nos documentos cuidadosamente, sabendo que são coisas preciosas, mas sem demasiado cuidado, uma vez que não se partem facilmente, e sem qualquer afecto, mesmo a alguma distância. Quando ela desapareceu dentro de casa, eu olhei à volta e sondei o peristilo. Não se via ninguém. O calor do dia atingira o seu pico. Estavam todos dentro de casa, dormindo a sesta, ou simplesmente refugiados nas suas frescas profundezas.
Subir o telhado do pórtico foi mais fácil do que eu previra. Trepei por uma das colunas, agarrei-me com força ao telhado e icei-me. A altura parecia uma ninharia para quem tinha praticamente voado na noite anterior. Enganar o guarda postado no canto mais afastado do telhado constituía um desafio bastante maior, pelo menos assim me pareceu até que o meu pé fez soltar uma telha partida, lançando uma chuva de pedrinhas no pavimento do pátio. O guarda não se mexeu, mantendo-se de costas para mim, muito direito e dormitando encostado à lança. Talvez me tivesse ouvido quando eu saltei para a álea e bati num pote de barro, mas nessa altura já era tarde de mais. Escapei-me sem dificuldade. Desta vez, ninguém me perseguiu.
Circular por uma cidade conhecida sem um destino particular em mente, sem encontros marcados, sem deveres, sem obrigações produz uma agradável sensação de liberdade. A minha única preocupação eram certos homens, principalmente um, Magno, com quem desejava ardentemente não me cruzar. Mas eu julgava saber onde poderia estar um homem como Magno numa bela tarde como esta e, enquanto me mantivesse longe dos antros para onde aqueles que conheciam os meus hábitos poderiam conduzir um estranho que me procurasse, sentia-me relativamente seguro quase como uma sombra. Ou melhor, como um homem feito de vidro precioso, como se a luz do Sol que incidia nos meus ombros e na minha cabeça me atravessasse sem provocar sombras, e qualquer cidadão ou escravo com quem me cruzasse olhasse através de mim. Eu era invisível. Sentia-me livre. Não tinha nada para fazer e havia um milhar de ruas sem nome inundadas pelo sol onde podia dedicar-me a isso.
Cícero tinha razão; o meu papel na investigação do assassínio de Sexto Róscio terminara. Mas, até findar o julgamento, eu não podia de maneira nenhuma passar a outros assuntos, regressar em segurança a minha casa. Pouco habituado a ter inimigos pessoais (esse cenário em breve se alteraria, tendo em conta as suas ambições!), Cícero esperava que eu me escondesse até que tudo se esclarecesse, como se isso fosse simples. Mas em Roma o caminho de cada um nunca está completamente livre de inimigos. Quando qualquer desconhecido pode ser afinal uma encarnação de Némesis, nenhum homem pode estar inteiramente a salvo. De que valia esconder-me em casa de outro homem, atrás da lança do guarda de outro homem? A Fortuna é a única protecção real contra a morte; talvez fosse verdade que Sula era seguido para toda a parte pela sua mão protectora senão, como explicar a sua longevidade, quando tantos outros dos que o rodeavam, muito menos culpados e certamente mais virtuosos, tinham morrido há tanto tempo?
Teria sido divertido surpreender Rufo no Fórum; imaginei-me aparecendo furtivamente ao seu lado num canto poeirento do escritório poeirento de um funcionário, murmurando um verso da canção de Metróbio na noite anterior ”e a senhora concordou, sim, a senhora declarou”, mas o Fórum era provavelmente o lugar mais perigoso para eu andar a passear, à excepção da Subura. Sem um plano de marcha, fui andando para norte, na direcção da colina Quirinal, uma zona onde as casas eram pobres e as ruas estavam cobertas de lixo. Cheguei ao alto da Quirinal, por cima da muralha de Serviano; o caminho prosseguia numa descida acentuada, e as casas de ambos os lados eram recuadas, relativamente à rua, criando uma ampla plaza, com um canteiro de erva mal cuidada e uma única árvore desgrenhada.
Até na cidade onde nascemos podemos descobrir ruas que dão para paisagens inesperadas, e a deusa que conduz os viajantes sem destino guiara-me para um sítio assim. Parei durante um longo momento, olhando a moldura de Roma, para além das muralhas da cidade, desde a região do Tibre, à esquerda, brilhante sob o sol como se estivesse a arder, até à Via Flamínia, recta e ampla, à direita; desde a salgalhada de edifícios que se juntavam à volta do Circo Flamínio até ao Campo de Marte, lá ao fundo, enublado de pó. O som e o odor da cidade erguiam-se no ar quente como um sopro exalado do vale. Apesar de todos os perigos e de toda a corrupção, apesar de toda a maldade e de toda a miséria, Roma continuava a ser-me mais agradável à vista do que qualquer outra cidade do mundo.
Voltei a dirigir-me para sul, seguindo um caminho estreito que contornava as costas dos edifícios, atravessava áleas e passava por canteiros de relva. As mulheres chamavam-se umas às outras de cada lado da rua; uma criança começou a chorar, e a mãe cantou-lhe uma canção de embalar; um homem gritou, com uma voz embriagada e sonolenta, que todos se calassem. A cidade, langorosa e bem-disposta em consequência do calor, parecia engolir-me.
Atravessei a Porta Fontinal e prossegui sem destino, até que, ao virar uma esquina, vi erguer-se diante de mim a massa carbonizada de um edifício queimado. As janelas enegrecidas abriam-se para o céu azul e, enquanto eu estava a olhar, uma longa secção de uma das paredes desfez-se no chão, derrubada por escravos que puxavam longas cordas. O chão à volta estava completamente enegrecido com cinzas e coberto com pilhas de tecidos desfeitos e daquilo que restara dos deuses domésticos um pote barato derretido pelo calor, o esqueleto preto de um tear, um longo osso dentado que poderia ter sido de um homem ou de um cão. Alguns pedintes faziam as suas escolhas por entre as desoladas ruínas.
Dado o ângulo pouco familiar a partir do qual me aproximara, demorei algum tempo a perceber que se tratava do mesmo edifício que Tiro e eu víramos incendiar-se alguns dias antes. Outra parede enegrecida caiu e, através do espaço vazio, avistei Crasso, de pé no meio da rua, de braços cruzados e dando ordens aos seus capatazes.
O homem mais rico de Roma parecia muito bem-disposto, sorrindo o conversando com os membros da sua enorme comitiva que tinham o privilégio de se manter ao alcance das suas palavras. Eu vagueei cuidadosamente à volta da periferia das ruínas, e coloquei-me na extremidade do grupo. Um sicofanta com cara de rato, impossibilitado de se insinuar para o interior do ajuntamento, estava disposto a contentar-se com uma conversa com um estranho que por ali passava.
Esperto? disse ele, respondendo à minha interpelação e virando para mim o seu nariz de rato. Não me parece que isso descreva adequadamente Marco Crasso. É um indivíduo brilhante. Não há em Roma outro homem economicamente tão astuto. Diz o que quiseres sobre o brilho de Pompeu como general, ou mesmo de Sula. Há neste mundo outros tipos de generais. Os denários de prata são as tropas de Marco Crasso.
E os seus campos de batalha?
Olha para diante. Que maior carnificina poderias desejar?
E quem ganhou esta batalha?
Basta olhar para a cara de Marco Crasso para se perceber.
E quem a perdeu?
Os pobres pedintes da rua, que escolhem por entre aquilo que ficou dos seus pertences e gostariam de continuar a ter um tecto sob que se abrigar! O homem riu-se. E o desgraçado proprietário deste edifício. Ou melhor, o proprietário anterior. Estava de férias quando isto aconteceu. Não se pode dizer que seja muito bom estratega. Estava tão coberto de dívidas, que dizem que se suicidou quando o informaram do incêndio. Crasso teve de fazer negócio com um filho desconsolado e, naturalmente, aproveitou-se disso. Dizem que ele vendeu a propriedade por menos do que custa uma viagem a Baias. E tu achas que ele é apenas esperto? O homem estreitou os seus olhos de rato e enrugou os finos lábios num acesso de admiração.
Mas vai ter de pagar a reconstrução do edifício sugeri eu. O homem ergueu uma sobrancelha.
Não necessariamente. Dada a densidade do bairro, Crasso poderá não o reconstruir, pelo menos durante algum tempo. Assim, aumenta as rendas do edifício ao lado e mantém-nas elevadas. Comprou essa propriedade ao mesmo tempo, a um louco que estava em pânico, que lha vendeu por meia dúzia de tostões.
Estás a falar do edifício que quase foi atingido pelas chamas? Aquele ali, de onde as pessoas continuam a sair a correr, ajudadas por aqueles homens enormes que parecem membros de um bando das ruas?
São os empregados de Marco Crasso, que estão a expulsar os inquilinos que não podem pagar as novas rendas.
Observámos um velho magrinho, que vestia uma túnica esfarrapada, sair cautelosamente do edifício ao lado, com um enorme saco às costas. Um dos homens que estavam a expulsar os inquilinos tocou-lhe propositadamente no pé, pregando-lhe uma rasteira, e fazendo com que o saco lhe escorregasse das mãos e se abrisse para o meio da rua. Uma mulher saiu a correr de um carro já carregado, gritando aos homens enquanto auxiliava o velho a pôr-se de pé. O guarda inocente corou e voltou-se para o lado, mortificado, mas o culpado limitou-se a rir-se, com um riso tão roufenho que todos os que ali estavam se voltaram para ver o que se passava, incluindo Crasso.
O meu novo conhecido aproveitou a oportunidade de se encontrar na linha de visão do grande homem.
Não te preocupes, Marco Crasso gritou ele, trata-se apenas de um ex-inquilino rebelde a peidar-se para um dos teus criados! Lançou uma pequena gargalhada de rato. O eterno sorriso de Crasso vacilou um pouco, e ele olhou de passagem para o homem com uma expressão de perplexidade, como se estivesse a tentar recordar-se de quem ele era. Depois desviou o olhar e retomou o que estava a fazer. O homem da cara de rato ergueu o seu enorme nariz com uma expressão de triunfo presunçoso. Estás a ver disse ele, reparaste como ele se riu da minha piada? Marco Crasso ri-se sempre das minhas piadas.
Eu voltei-lhe as costas com desagrado, afastando-me com tal rapidez que nem vi bem para onde me dirigia. Choquei com um escravo seminu coberto de fuligem que tinha uma corda pendurada ao ombro. A corda soltou-se e ele empurrou-me para o lado, gritando-me que tivesse cuidado. Uma secção da parede veio estatelar-se aos meus pés, esmagando-se como pedaços de barro seco. Se eu não tivesse chocado com o escravo, talvez tivesse passado exactamente por baixo dela, e o mais provável é que morresse instantaneamente. Em vez disso, uma nuvem de fuligem ergueu-se inofensivamente à volta dos meus joelhos, sujando-me a extremidade da túnica. Sentindo um par de olhos cravados nas costas, voltei-me e vi que Crasso me olhava de frente; de entre todos os que o rodeavam, era o único que olhava para mim. Não sorria, mas fez uma sóbria e supersticiosa inclinação de cabeça, reconhecendo a inacreditável fortuna de um desconhecido. Depois retomou ao que estava a fazer.
Eu continuei a andar, como caminham as pessoas quando estão furiosas, ou aborrecidas, ou perdidas na inexplicabilidade da existência sem destino, sem cuidados, sem prestar maior atenção aos pés do que presta um homem ao bater do seu coração ou à sua respiração. Contudo, não podia ser por acaso que estava a refazer exactamente o caminho que Tiro e eu tínhamos tomado no primeiro dia da investigação. Dei por mim na mesma praça, observando as mesmas mulheres a tirarem água da cisterna de bairro e enxotando os mesmos miúdos indolentes e os mesmos cães. Fiz uma pausa junto do relógio de sol e tive um sobressalto quando passou por mim o mesmo cidadão, o mesmo homem que eu interrogara anteriormente acerca do caminho para a Casa dos Cisnes, aquele que citava peças de teatro e desprezava os relógios de sol. Ergui a mão e abri a boca, tentando pensar num cumprimento. Ele ergueu a cabeça e olhou para mim com uma expressão estranha, depois fez um movimento de desagrado, inclinando-se para o lado, mostrando-me de forma óbvia que eu estava a obstruir a sua visão do relógio de sol. Viu que horas eram, voltou a olhar para mim com uma expressão de desagrado e prosseguiu apressado. Afinal não era o mesmo homem, nem tinha com o primeiro mais do que uma semelhança superficial.
Eu prossegui, descendo a rua estreita e sinuosa que conduzia à Casa dos Cisnes, passando por muros pouco direitos guarnecidos de palmatórias e de restos de tochas e rabiscados de graffiti, políticos ou obscenos, ou ambos. (P. CORNÉLIO CIPIÃO A QUESTOR, UM HOMEM EM QUEM SE PODE CONFIAR, lia-se em letra elegante e, ao lado, escrito à pressa P. CORNÉLIO CIPIÃO ERA CAPAZ DE ENGANAR UMA PROSTITUTA CEGA E DE LHE FAZER UM FILHO HORRÍVEL.)
Passei pelo beco sem saída onde Magno e os seus homens de mão se tinham escondido à espera. Contornei a mancha de sangue esbatida que marcava o ponto onde Sexto Róscio tinha morrido. Estava mais esbatida do que no dia da minha primeira visita, mas não era difícil de localizar, porque o espaço a toda a volta estava marcadamente limpo, em contraste com as pedras enegrecidas da rua. Alguém andara a lavá-la, esfregando e esfregando, tentando eliminá-la de uma vez por todas. A tarefa devia ter demorado horas, mas fora completamente inútil o local ainda chamava mais a atenção do que antes e seriam necessários muitos passos e muitos ventos carregados de fuligem para fazê-lo voltar a desaparecer na rua. Quem trabalhara aqui durante horas, de joelhos (em pleno dia? a meio da noite?) com um trapo de limpeza e um balde, tentando desesperadamente apagar o passado? A mulher do comerciante? A viúva, mãe do rapaz mudo? Imaginei o próprio Magno a desempenhar-se da tarefa, e quase me ri com a ideia do assassino mal-humorado, de joelhos como uma criada de limpeza.
Inclinei-me, aproximei o rosto do chão e olhei fixamente para as pedras lisas e as pequenas manchas de vermelho-escuro que tinham ficado nas suas fissuras e nas covas por entre as pedras. Era a mesma matéria que dera vida a Sexto Róscio, o mesmo sangue que corria nas veias dos seus filhos, o mesmo sangue que aquecia o corpo da jovem Róscia, que na minha memória se mantinha de pé, nua, encostada a uma parede escura; o mesmo sangue que deverá ter corrido por entre as suas coxas quando o pai lhe tirou a virgindade; o mesmo sangue que brotaria da carne deste, se e quando um tribunal romano achasse adequado mandá-lo açoitar publicamente e depois fechá-lo vivo dentro de um saco cheio de animais selvagens. Olhei fixamente para a mancha, até ela se tornar tão vasta e tão profunda, que eu nada mais conseguia ver, mas continuando a não me dar respostas, nada revelando acerca dos vivos ou dos mortos.
Voltei a erguer-me, gemendo quando as pernas e as costas me recordaram o salto da noite anterior. Avancei, apenas o suficiente para espreitar para o interior da loja sombria. O velho estava sentado atrás do balcão, ao fundo, com a cabeça poisada no cotovelo e os olhos fechados. A mulher girava por entre as prateleiras e as mesas parcamente abastecidas. A loja lançava para a rua iluminada pelo sol um cheiro desagradavelmente húmido e frio, impregnado de podridão doce e de almíscar.
Entrei no edifício do outro lado da rua. O vigilante do andar de baixo não estava à vista. O seu pequeno parceiro do andar de cima estava a dormir, com a boca muito aberta, da qual escorria um fio de baba, e tendo na mão um copo meio cheio de vinho, inclinado de tal maneira que entornava algumas gotas de cada vez que ressonava.
Meti a mão dentro da túnica, tocando no punho da faca que o rapaz me dera. Fiz uma pausa, perguntando a mim próprio o que havia de dizer a ambos. A viúva Polia, que conhecia o nome do homem que a tinha violado? Que um deles, o Ruivo, tinha morrido? Ao pequeno Eco, que ele podia ficar com a faca, porque eu não fazia tenções de matar Magno nem Málio Gláucia para vingá-lo?
Atravessei o corredor longo e escuro. Todas as tábuas que pisava estalavam e gemiam, sobrepondo-se às vozes abafadas que provinham dos cubículos. Quem quereria amontoar-se dentro de casa, no escuro, num dia como este? Os doentes, os velhos, os aleijados, os pobres e os famintos, os coxos. Velhos incapazes do que quer que fosse, crianças ainda incapazes de andar. Não havia qualquer razão para que Polia e o filho estivessem sequer em casa, mas o coração subiu-me à boca quando bati à porta.
Uma jovem abriu a porta para trás, o que me permitiu ver todo o compartimento. A um canto, avistei uma velha enrolada em cima de um monte de cobertores. À janela, estava ajoelhado um rapazinho que olhou para mim por cima do ombro, voltando depois a observar a rua. À excepção do tamanho e da forma, o compartimento estava completamente diferente.
Dois olhos lacrimosos olharam-me de cima dos cobertores.
Quem é, pequena?
Não sei, Avó. A rapariguinha olhou para mim, desconfiada.
O que querem?
A rapariguinha fez uma expressão desesperada.
A minha avó pergunta o que queres?
Polia disse eu.
Não está aqui respondeu-me o rapazinho da janela.
Devo ter-me enganado na porta.
Não disse a rapariga irritada. Não te enganaste. Mas ela foi-se embora.
Estou a falar da jovem viúva e do filho, um rapazinho mudo.
Eu sei disse ela, olhando para mim como se eu fosse um imbecil. Mas Polia e Eco já não moram aqui. Ela foi-se embora primeiro, depois foi ele.
Foram-se embora acrescentou a velha, do canto. Foi assim que finalmente conseguimos esta sala. Nós vivíamos do outro lado do corredor, mas esta sala é maior. É o suficiente para nós os cinco o meu filho e a mulher e os dois pequenitos.
Gosto mais assim, quando a mãe e o pai estão fora, e só cá estamos nós os três disse o rapazinho.
Cala-te, Ápio lançou a rapariga. Um dia a mãe e pai vão-se embora e não voltam mais, como aconteceu ao Eco. Desaparecem, como a Polia. Hão-de ir-se embora porque tu estás sempre a chorar. Depois vais ver se gostas.
O rapazinho começou a chorar. A velha fez estalar a língua.
O que queres dizer? perguntei eu. Polia foi-se embora sem levar o rapaz?
Abandonou-o disse a velha.
Não acredito.
Ela encolheu os ombros.
Não conseguia pagar a renda. O senhorio deu-lhe dois dias para sair. Na manhã seguinte, ela foi-se embora. Levou tudo o que conseguiu transportar e deixou o rapaz, para que cuidasse de si próprio. No dia seguinte, apareceu o senhorio, apoderou-se do pouco que restava das coisas deles e pôs o rapaz na rua. Eco ficou por aqui durante uns dias. As pessoas tinham pena dele e deram-lhe restos para ele comer. Mas os guardas acabaram por expulsá-lo. És parente deles?
Não.
Bem, se Polia te devia algum dinheiro, o melhor é esqueceres.
De qualquer maneira, nós não gostávamos deles disse a rapariga. Eco era estúpido. Não dizia uma palavra, nem sequer quando Ápio o obrigava a deitar-se no chão e se sentava em cima dele e eu lhe fazia cócegas até ele ficar azul. Só fazia um ruído, como de um porco.
Como de um porco a ser picado disse o rapazito, começando subitamente a rir, em vez de chorar. Era o que dizia o pai.
A velha zangou-se.
Calem-se os dois.
O negócio estava animado na Casa dos Cisnes, especialmente tendo em conta que era bastante cedo. O proprietário atribuía o movimento a uma ligeira mudança do tempo. ”O calor irrita-os, põe-lhes o sangue a ferver mas o excesso de calor pode fazer esmorecer um homem vigoroso. Agora que o tempo voltou a ficar pelo menos tolerável, regressaram aos magotes. Todos aqueles fluxos reprimidos. Tens a certeza de que não estás interessado na Núbia? É nova cá, sabes? Ah!” Deu um suspiro de alívio quando um homem alto e bem vestido entrou no vestíbulo, vindo do corredor interior. O suspiro significava que Electra deixara de estar ocupada e poderia receber-me, o que queria dizer que o homem alto tinha sido o seu cliente anterior. Tratava-se de um homem belo, de meia-idade, com um toque de cinzento nas têmporas. Fez apenas um sorriso desmaiado e comprimido de satisfação, enquanto acenava com a cabeça ao nosso anfitrião comum. Eu senti uma estúpida pontada de ciúme e disse a mim próprio que ele sorria com a boca fechada porque tinha os dentes estragados.
Se esta casa fosse perfeita, nunca nos teríamos visto um ao outro, uma vez que éramos clientes consecutivos da mesma prostituta, mas as casas perfeitas deste género não existiam. O nosso anfitrião teve pelo menos o decoro de se atravessar entre nós, cumprimentando primeiro o outro enquanto ele passava, e depois voltando-se para mim. O seu enorme corpo constituía uma formidável divisória.
Só mais um momento disse ele, suavemente enquanto a senhora se compõe. Tal como acontece a um excelente vinho faleriano, não podemos abrir a garrafa com demasiada rapidez. A pressa pode estragar o aroma com pedaços de rolha.
Achas realmente que ainda há na rolha de Electra alguma coisa que esteja intacta? disse uma das raparigas pelo canto da boca, ao passar por trás de mim. O meu anfitrião não deu sinais de ter ouvido, mas os seus olhos dardejaram e os seus dedos crisparam-se. Percebi que ele estava habituado a usar as mãos nas prostitutas, mas que não o faria diante de um cliente.
Deixou-me por um momento, para regressar em seguida, sorrindo untuosamente.
Está tudo pronto disse ele, conduzindo-me ao corredor. Electra era tão impressionante como a recordava, mas havia nos seus olhos e na sua boca um cansaço que ensombrava a sua beleza. Estava reclinada no canapé, com um joelho erguido e o cotovelo poisado sobre ele, a cabeça lançada para trás, sobre a almofada, por cima da enorme massa do seu cabelo preto. A princípio, não me reconheceu, e eu senti um baque de desilusão. Depois, os seus olhos iluminaram-se um pouco e ela ergueu a mão, embaraçada, como que para arranjar o cabelo. Lisonjeei-me a mim próprio, pensando que, se eu fosse outro, ela não se importaria com o seu aspecto e, no instante seguinte, perguntei-me se ela não utilizaria o mesmo truque com todos os homens que vinham usá-la.
Outra vez disse ela, ainda a representar, utilizando um tom de voz quente e picante, que poderia utilizar com qualquer pessoa. E depois, como se, subitamente, se tivesse recordado com precisão de quem eu era, recuperou o seu tom natural e lançou-me um olhar de uma vulnerabilidade tão absoluta, que me fez estremecer. Mas hoje vieste sozinho.
Sim.
Sem o teu escravinho envergonhado? A sua voz recuperou um vestígio de preversidade, suave e alegre.
Não é envergonhado, é malandro. Pelo menos é o que pensa o seu senhor. E estava demasiadamente ocupado para vir hoje comigo.
Pensei que ele era teu.
Não.
O seu rosto voltou a ficar despido.
Então mentiste-me?
Menti? Só acerca disso.
Ela ergueu o outro joelho e encostou-os ambos ao peito, como se estivesse a esconder-se de mim.
Por que vieste cá hoje?
Para te ver.
Ela riu-se e ergueu uma sobrancelha.
E gostas do que vês? A sua voz voltara a ser picante e falsa. Parecia mudar de tom autonomamente, como o fechar da pálpebra interior de um lagarto. Ela não se moveu, mas a sua pose pareceu subitamente recatada, em vez de resguardada. Quando a conhecera, parecera-me forte e genuinamente enérgica, quase indestrutível. Hoje parecia-me fraca e quebrada, frágil, velha, sem esperanças. Parte de mim deixara-se excitar pela perspectiva de voltar a vê-la, sozinho e à minha vontade; mas agora a sua beleza só me provocava uma espécie de dor.
Ela estremeceu e desviou os olhos. O ligeiro movimento fez com que o fato se lhe abrisse à altura das coxas. Sobre a carne pálida e macia, via-se uma pequena lista, vermelha nas extremidades e púrpura no centro, a marca de uma vara ou de uma dura correia de couro. Alguém a tinha atingido naquele ponto, há tão pouco tempo, que a ferida ainda estava a formar-se. Recordei-me do nobre vagamente sorridente que se tinha ido embora de nariz no ar.
Descobriste Elena? A voz de Electra voltara a mudar. Agora era rouca e espessa como fumo. Ela mantinha o rosto desviado, mas eu via-lho reflectido no espelho.
Não.
Mas descobriste quem a levou e para onde.
Sim.
Ela está bem? Está em Roma? E a criança... ? Percebeu que eu estava a observá-la no espelho.
A criança morreu.
Ah! Baixou os olhos.
À nascença. Foi um parto difícil.
Eu sabia que seria. Ela própria não passava de uma criança, tinha umas ancas tão estreitas. Electra abanou a cabeça. Um madeixa de cabelo caiu-lhe sobre o rosto. A sua imagem, captada com exactidão pelo espelho, tornou-se de repente demasiadamente bela para ser contemplada.
Onde foi isso? disse ela.
Numa pequena cidade. A um dia ou dois de Roma.
A cidade natal de Sexto Róscio Améria, não era assim que se chamava?
Sim, foi em Améria.
Ela sonhava ir para lá. Ah, penso que deve ter gostado do ar fresco, dos animais, das árvores.
Eu pensei na história que Félix e Cresto me tinham contado, e senti-me quase doente.
Sim, é uma cidadezinha encantadora.
E agora? Onde está ela agora?
Elena morreu. Pouco depois do parto. Morreu em consequência do parto.
Ah, bem. Foi o que ela quis. Ela queria tanto ter essa criança. Voltou-me o ombro, para que eu não pudesse vê-la reflectida no espelho. Há quanto tempo não permitiria Electra que um homem a visse chorar? Passado um momento, voltou-se para mim e deitou a cabeça nas almofadas, tinha o rosto seco, mas os olhos brilhavam-lhe. A sua voz era dura. Poderias ter-me mentido. Pensaste nisso?
Sim. Agora fui eu que baixei os olhos, não por vergonha mas com receio de que ela visse neles toda a verdade.
Já me mentiste uma vez. Mentiste-me quando me disseste que o jovem escravo era teu. Por que não me mentiste desta vez?
Porque tu mereces saber a verdade.
Mereço? Sou assim tão horrível? Por que não tiveste misericórdia de mim? Podias ter-me dito que Elena estava viva e era feliz, que tinha ao peito um bebé saudável. Como poderia eu saber que se tratava de uma mentira? Em vez disso, dizes-me a verdade. De que me serve a verdade? A verdade é uma espécie de castigo. Merecê-la-ei realmente? Isso dá-te prazer? Corriam-lhe lágrimas do rosto.
Perdoa-me disse eu. Ela voltou-se para o outro lado e nada disse.
Saí da Casa dos Cisnes empurrando as prostitutas sorridentes de lábios tensos, que olhavam lubricamente os clientes que se demoravam no vestíbulo. O anfitrião desviou-se, sorrindo como se tivesse posta uma grotesca máscara de comédia. Já na rua, parei para recuperar o fôlego. Passado um momento, ele saiu a correr atrás de mim, gritando e cerrando os punhos.
O que é que lhe fizeste? Por que está ela a chorar daquela maneira? Chora e recusa-se a parar. Já é muito velha para chorar sem que se note, mesmo bonita como é. Vai ficar com os olhos inchados e será inútil durante o resto do dia. Afinal que género de homem és tu? Tens qualquer coisa de indecente, de artificial. Não voltes cá. Vai a outro sítio. Vai jogar os teus joguinhos com as raparigas de outro homem. E regressou a casa, batendo com a porta.
Um pouco adiante, suficientemente perto para ter ouvido tudo, estava parado o nobre descontraído que tinha saído antes de mim, rodeado por um par de guarda-costas e por uma pequena comitiva; devia ser, pelo menos, um magistrado inferior. Desataram todos a rir à gargalhada quando eu passei. O senhor lançou-me um sorriso fraco e condescendente, o género de olhar que um homem poderoso lança a um inferior ao reconhecer que, apesar da distância entre ambos, os deuses deram aos dois os mesmos apetites.
Parei e olhei para ele, de uma forma suficientemente prolongada e dura para que ele parasse de sorrir. Imaginei-o de queixo partido, inclinado para diante, a sangrar, surpreendido por uma avalancha de dor. Um dos guardas rosnou na minha direcção, como um cão de caça farejando ameaças invisíveis. Eu cerrei os punhos dentro da túnica, mordi a língua com tanta força que fez sangue, olhei em frente e obriguei-me a continuar a andar.
Andei até não poder mais, passando por praças cheias de gente onde me senti perfeitamente estranho, por tabernas onde não consegui entrar. A ilusão de invisibilidade voltou a descer sobre mim, mas não veio acompanhada de uma sensação de força ou de liberdade, mas apenas de vazio. Roma tornou-se uma cidade de miséria sem fim, de bebés a gritar, de fedor a cebolas cruas e a carne podre, da fuligem cobrindo as pedras sujas do pavimento. Observei um pedinte sem pernas arrastar-se pela rua, enquanto um grupo de crianças seguia atrás dele, atirando-lhe pedras e torturando-o com insultos.
O Sol começava a baixar. Senti um aperto no fundo do estômago, mas não conseguia comer. O ar tornou-se fino e fresco, ao lusco-fusco que se aproximava. Dei por mim diante da entrada das Termas de Palacina, um local que tinha a preferência do falecido Sexto Róscio.
Foi um dia movimentado disse o jovem servidor enquanto ia arrumar as minhas roupas. Não tem havido grande negócio nos últimos dias tem estado demasiado calor. Não precisas de te apressar esta noite. Vamos ficar abertos mais tempo, para compensar os prejuízos. Regressou com uma toalha para eu me limpar. Tirei-lha das mãos e disse qualquer coisa para o distrair, enquanto a enrolava à volta do braço esquerdo, para esconder a faca. Embora nu, não tinha intenção de andar desarmado. Entrei no caldário, e ele fechou a porta atrás de mim.
O pôr do Sol lançava um estranho brilho alaranjado pela janela aberta no alto do compartimento. Um criado acendeu com um círio a lamparina suspensa numa das paredes, sendo chamado antes de ter tempo para acender as restantes. O compartimento estava tão sombrio e o vapor da água era tão espesso, que a cerca de uma dúzia de homens que se encontravam estendidos à volta da piscina era indistinta como uma dúzia de sombras, como estátuas avistadas através de um forte nevoeiro cor de laranja. Deslizei lentamente para dentro de água, pouco a pouco, tolerando o calor com dificuldade, até que a água em torvelinho me chegou ao pescoço. À minha volta, os homens gemiam como se estivessem com dores ou em êxtase. Eu gemi com eles, misturando-me na obscuridade do calor e do vapor. A luz proveniente da janela ia desaparecendo imperceptivelmente. O criado não regressou para acender as lamparinas, mas ninguém se queixou nem gritou a pedir luz. A escuridão e o calor eram como amantes de quem ninguém se atrevia a separar-se.
A lamparina crepitou. A chama ergueu-se e depois voltou a reduzir-se, deixando o compartimento ainda mais escuro do que antes. A água batia suavemente contra os azulejos, os homens respiravam em suspiros e gemidos suaves. Olhei à volta e só vi vapor, sem forma e infinito, à excepção do único ponto de luz lançado pela lamparina, que era como o brilho de um farol no topo de uma colina distante. Sombras balanceavam-se à distância como ilhas flutuantes ou monstros das profundezas, vagueando à superfície.
Mergulhei fundo, até conseguir sentir o sopro das minhas narinas redemoinhar à superfície. Estreitei os olhos, olhei através do espaço de nevoeiro para a chama vacilante e, durante algum tempo, quase me pareceu que estava a dormir sem fechar os olhos. Não pensei em ninguém nem em nada. Era um homem que sonhava, uma ilha coberta de musgo que flutuava num mar húmido, um rapaz volteando numa fantasia, uma criança no útero.
Contra o pano de fundo do nevoeiro, uma das formas aproximou-se de mim uma cabeça flutuando na água. Aproximou-se e parou; aproximou-se mais e voltou a parar, sempre acompanhada pelo som quase imperceptível da carne abrindo caminho dentro de água, seguido pela carícia progressiva de pequenas ondas contra o meu rosto.
Aproximou-se de tal maneira, que eu quase consegui entrever-lhe a cara, contornada por um cabelo comprido e escuro. Ele ergueu-se um pouco, apenas o suficiente para que eu avistasse uns ombros largos e um pescoço forte. Parecia estar a sorrir mas, àquela luz, eu poderia imaginar o que quer que fosse.
Depois, mergulhou lentamente, com uma suave emissão de bolhas e um remoinho de nevoeiro como a Atlântida afundando-se no mar. A superfície da piscina fechou-se sobre ele, e a água misturou-se com o nevoeiro, imperturbável. Ele desaparecera.
Senti qualquer coisa mexer-se contra a pele da minha perna, como uma enguia deslizando dentro de água.
Senti o coração começar a bater fortemente. Fiquei com o peito apertado, circulara pela cidade durante horas, tão cegamente que o menos hábil assassino poderia ter-me seguido sem que eu desse conta disso. Voltei-me e estendi a mão para a toalha, que tinha deixado na borda da piscina, e para a faca que escondera por baixo dela. Quando a minha mão se fechou no punho da faca, a água borbulhou e chapinhou atrás de mim. Ele tocou-me no ombro.
Eu virei-me dentro de água, chapinhando, deslizando contra o chão da piscina. Estendi as mãos cegamente e agarrei-o pelo cabelo, aproximando-lhe a faca do pescoço.
Ele praguejou em voz alta. Atrás de mim, ouvi o murmúrio da multidão curiosa, como um animal cego acordado de um sono profundo.
Mãos! gritei eu. Fora da água! O murmúrio que nos rodeava transformou-se numa comoção. Dos dois lados do meu corpo, duas mãos ergueram-se da água, como peixes saltadores, vazias e inofensivas. Eu afastei a lâmina no seu pescoço. Devo tê-lo cortado; uma pequena linha escura marcava o entalhe da lâmina e dela corria um pequeno fio de sangue. Estava por fim suficientemente perto dele para lhe ver o rosto não era Magno, mas apenas um rapaz inofensivo de olhos esbugalhados que rangia os dentes.
Antes de o principal criado ter oportunidade de chegar, antes de as lamparinas serem acesas, denunciando-me por forma a que todos vissem quem era o louco varrido, soltei-o e icei-me para fora da água. Limpei-me enquanto corria para fora da porta, tendo o cuidado de esconder a faca antes de ter passado à zona iluminada e de ter pedido que me dessem as minhas roupas. Cícero tinha razão. Eu estava desequilibrado, era perigoso, e não estava em condições de andar pelas ruas.
Foi Tiro quem veio abrir a porta. Parecia exausto, mas exultante, tão profundamente satisfeito consigo próprio e com o mundo em geral, que eu percebi que teve de fazer um esforço para mostrar a sua desaprovação. Ao longe, zumbia a voz de Cícero, parando e recomeçando, formando um som de fundo que parecia o ruído que fazem os grilos numa noite de Verão.
Cícero está furioso contigo murmurou Tiro. Onde estiveste o dia todo?
À procura de corpos por entre pedras carbonizadas disse eu. A conversar com amigos dos grandes. A visitar fantasmas e velhos conhecidos. Deitado com prostitutas; desculpa, deitado para prostitutas. Brandindo facas diante de estranhos amáveis...
Tiro fez uma careta.
Não faço a menor ideia do que estás a dizer.
Não? Pensei que Cícero te tivesse ensinado tudo sobre as palavras. E, contudo, tu não me compreendes.
Estás embriagado?
Não, mas tu estás. Sim, olha para ti estás tonto como um rapaz depois do primeiro copo de vinho. Estás evidentemente embriagado com a retórica do teu senhor. Há oito horas que a ouves sem descanso, provavelmente de estômago vazio. Nem percebo como conseguiste vir atender a porta.
Não estás a dizer coisa com coisa.
Estou a ser perfeitamente claro. Mas tu estás de tal maneira embriagado com algaraviadas, que um pouco de senso comum deve parecer-te tão insípido como uma torrente de Primavera a um bêbedo inveterado. Ouve bem parece uma faca a raspar em ardósia. No entanto, a ti parece-te o canto de uma sereia.
Tinha pelo menos conseguido erradicar a alegria do rosto de Tiro e substituí-la por um olhar de consternação. Nesse momento, Rufo veio tentativamente espreitar à esquina e depois avançou para o vestíbulo, corado, sorridente, a pestanejar, com as pálpebras pesadas. Parecia completamente exausto, o que na sua idade servia apenas para fazer com que parecesse ainda mais encantador, especialmente porque não conseguia parar de sorrir.
Acabámos o segundo rascunho anunciou. O constante zumbido proveniente do escritório de Cícero tinha cessado abruptamente. No rosto de Rufo lia-se o olhar fascinado de uma criança que tivesse visto um centauro nos bosques e não conseguisse de maneira nenhuma descrevê-lo. Notável disse ele por fim. Claro que eu nada sei de retórica, a não ser aquilo que me ensinaram professores como Diódoto e Moio, e aquilo que ouvi com os meus próprios ouvidos, sentado no Senado e nos tribunais desde criança. Mas juro-te que ele vai fazer-te chorar quando o ouvires no tribunal. Os homens hão-de levantar-se com os punhos cerrados, exigindo que Sexto Róscio seja libertado. A versão final ainda não existe, evidentemente; temos de ter em conta toda uma série de possibilidades, dependendo dos truques que Erúcio resolva utilizar. Mas Cícero fez todos os possíveis por prever qualquer contingência, e o coração do seu argumento final está pronto, terminado e perfeito, como pilares à espera da cúpula do templo. É notável, não há outra palavra. Sinto-me tão humilde, simplesmente por ter testemunhado a sua produção.
Não achas que pode ser demasiadamente perigoso? disse Tiro em voz baixa, saindo de trás de mim e aproximando-se de Rufo, murmurando por forma a esconder as suas dúvidas a Cícero, que se encontrava no escritório.
Num Estado injusto, qualquer acto de decência é, pela sua própria natureza, perigoso disse Rufo. E também corajoso. Um homem corajoso não deixará de se colocar em perigo se tiver justa causa para o fazer.
Ainda assim, não estás preocupado com o que possa acontecer depois do julgamento? Aquelas palavras ríspidas dirigidas a Crisógono, e nem Sula é poupado.
Há lugar para a verdade nos tribunais romanos, ou não? disse Rufo. A questão é essa. Teremos chegado a uma situação tal, que a verdade é um crime? Cícero aposta o seu futuro na profunda equidade e honestidade dos cidadãos romanos. Que outra coisa pode fazer um homem com a sua integridade?
Claro disse Tiro sobriamente, acenando com a cabeça. Está na sua natureza desafiar a hipocrisia e a injustiça, agir com base nos seus princípios. Dada a sua natureza, não lhe restam alternativas.
Ali estava eu, esquecido e sozinho. Enquanto eles conferenciavam e discutiam, afastei-me em silêncio e fui juntar-me a Betesda, por entre os frescos lençóis da minha cama. Ela ronronou como um gato semiadormecido, depois enrugou o nariz com uma careta de desconfiança quando cheirou o perfume que Electra deixara no meu corpo. Eu estava demasiadamente cansado para lhe explicar, ou sequer para brincar com ela. Não a abracei; voltei-lhe as costas e deixei-a abraçar-me e, enquanto o zumbido de Cícero regressava subitamente, proveniente do átrio, deslizei para dentro de um sono inquieto.
Parecia que a casa estava deserta, ou que alguém adoecera gravemente, tão supremo era o silêncio que reinava no lar de Cícero na manhã seguinte. A tensão e a azáfama do dia anterior tinham sido substituídas por uma calma que tinha uma aparência de letargia. Os escravos não corriam de um lado para o outro, andavam calmamente, falando em sussurros. Até o constante zumbido da voz de Cícero tinha parado; não se ouvia um único som no seu escritório. Comi um prato de azeitonas e pão que Betesda me trouxe e passei a manhã como tinha passado no dia anterior, a descansar e a ler, no pátio junto às traseiras da casa de Cícero, com Betesda junto de mim.
Nunca cheguei a receber a reprimenda que esperara ouvir a Cícero. Ele preferiu ignorar-me, embora o não tivesse feito de forma severa. Parecia apenas que eu saíra do alcance da sua consciência. Reparei, contudo, que o guarda do telhado que eu tinha enganado no dia anterior alterara a sua rotina, passando a fazer um circuito ocasional pela colunata que circundava o pátio. Pelos seus olhares soturnos, percebi que pelo menos ele não tinha escapado à ira de Cícero.
A certa altura, Tiro apareceu. Perguntou-me se eu estava bem. Disse-lhe que tinha estado a ler Catão a manhã toda mas que, fora isso, não podia queixar-me.
E o teu senhor? disse eu. Não ouvi um único som durante todo o dia. Nem um epigrama, nem sequer a menor alusão, nem um espécime de aliteração. Nem sequer uma metáfora. Não está doente, pois não?
Tiro inclinou ligeiramente a cabeça e falou no tom de quietude de uma pessoa admitida ao círculo íntimo de um grande empreendimento. Perdoada (ou, pelo menos, momentaneamente esquecida) a sua transgressão com Róscia, ele estava mais do que nunca fascinado pelo seu senhor. Agora que o clímax se aproximava, a sua fé em Cícero tornara-se quase mística.
Cícero está a fazer jejum e a repousar a voz durante o dia de hoje disse-me ele com a gravidade de um sacerdote que explica os presságios que o voo de um bando de gansos pode comunicar. Os ensaios dos últimos dias esgotaram-lhe de tal maneira a garganta, que ele está rouco. Por isso, hoje não vai ingerir alimentos sólidos, mas apenas líquidos, a fim de acalmar a garganta e humedecer a língua. Tenho estado a copiar a última versão do discurso, enquanto Rufo analisa as referências legais, a fim de se assegurar de que nada foi esquecido ou falsamente atribuído. Entretanto, a casa tem de permanecer tão calma e silenciosa quanto possível. Cícero precisa de ter um dia de descanso e de calma antes do julgamento.
Senão... o quê? disse eu. Terá um ataque demencial de gases diante da Rostra? Betesda relinchou. Tiro corou, mas recuperou rapidamente. Estava demasiadamente orgulhoso de Cícero para permitir que um mero insulto o perturbasse. Assumiu uma atitude de altivez.
Só estou a falar nisto para que compreendas por que razão te peço que te mantenhas tão silencioso quanto possível e que não provoques perturbações.
Como aquela que provoquei ontem ao escapar pelo telhado?
Exactamente. Ele manteve-se direito durante um último momento de altivez, depois deixou cair os ombros. Oh, Gordiano, por que não podes simplesmente fazer o que ele te pede? Não compreendo por que te tornaste tão... tão desrazoável. Se soubesses. Cícero compreende coisas que nós mal entrevemos. Verás o que quero dizer amanhã, no tribunal. Só gostaria que confiasses nele como devias.
Voltou-se mas, enquanto se ia embora, inspirou profundamente e sacudiu-se, como os cães se sacodem para se secarem, como se eu tivesse deixado nele um resíduo de má vontade e descrença e ele não desejasse regressar à presença do seu senhor manchado por essa profanação.
Também não te compreendo disse Betesda suavemente, erguendo os olhos do seu trabalho de costura. Por que és sarcástico com o rapaz? É óbvio que ele te admira. Por que o obrigas a escolher entre ti e o seu senhor? Sabes bem que isso é injusto.
Era raro Betesda censurar-me de uma forma tão directa. Seria o meu comportamento tão evidentemente desapropriado, que até a minha escrava se sentia à vontade para o criticar? Eu nada tinha a dizer em minha defesa. Betesda percebeu que me tinha picado e fez uma nova incursão.
Se tens problemas com Cícero, não faz sentido castigares o escravo por isso. Por que não vais ter directamente com Cícero? Mas tenho de confessar que também não compreendo a tua atitude. Cícero tem sido sempre perfeitamente justo e razoável, pelo menos tanto quanto posso perceber; não, foi mais do que justo. Não é como os outros homens para quem tens trabalhado. Recebeu-te em sua casa para te proteger, juntamente com a tua escrava imagina! Alimenta-te, tens livre acesso à sua biblioteca, e até colocou um guarda no telhado para olhar por ti. Tenta imaginar o teu querido cliente Hortênsio a fazer a mesma coisa! Pergunto a mim própria como será o interior da casa de Hortênsio, e quantos escravos terá ele. Mas suponho que nunca saberei.
Betesda pousou o trabalho. Protegeu os olhos do sol e olhou à volta do pátio, observando as decorações e os floreados como se tivessem sido instalados especialmente para serem aprovados por ela. Não me incomodei a repreendê-la por ter falado daquela maneira. Afinal, que interessavam as opiniões de uma escrava só que, como sempre, ela tinha expresso as mesmas dúvidas e opiniões que giravam dentro da minha cabeça.
Os Idos de Maio amanheceram com uma pálida luz azul. Eu fui acordando progressivamente, deslocado dos meus sonhos e desorientado numa casa estranha que não era a minha casa no Esquilino nem nenhuma das casas por que tinha passado durante uma vida de viajante incansável. De todos os cantos da casa chegavam ao meu quarto vozes baixas e apressadas. Como se explicava tanta actividade quando ainda era tão cedo? Continuei a pensar que alguém devia ter morrido durante a noite mas, nesse caso, eu teria sido acordado por choros e lamentações.
Betesda estava encostada às minhas costas, com um braço por baixo do meu, abraçando-me o peito. Eu sentia a almofada macia e cheia dos seus seios contra as costas, empurrando-se suavemente contra mim a cada inspiração. Depois sentia o ar exalado, quente e doce, contra a parte de trás da orelha. Comecei a acordar e resisti, como os homens se agarram ao sono, mesmo que seja um sono perturbado, quando pende sobre eles um desespero carregado. Sentia-me satisfeito com os meus sonhos infelizes e totalmente apático relativamente à crise silenciosa que se gerava nesta casa estranha que me rodeava. Fechei os olhos e transformei a madrugada em noite escura.
Voltei a abrir os olhos. Betesda, já completamente vestida, estava de pé ao meu lado, abanando-me o ombro. O quarto estava cheio de uma luz amarela.
O que se passa contigo? dizia ela. Sentei-me imediatamente e abanei a cabeça. Estás doente? Não? Então acho que é melhor despachares-te. Os outros já se foram todos embora. Encheu um copo de água fresca e estendeu-mo. Pensei que eles se tinham esquecido completamente de ti, mas Tiro voltou atrás a correr e perguntou-me onde é que tu estavas. Quando eu lhe disse que já tinha tentado acordar-te duas vezes mas que tu continuavas deitado, ele ergueu as mãos ao céu e partiu a correr atrás do seu senhor.
Há quanto tempo foi isso? Ela encolheu os ombros.
Há bocadinho. Mas não vais conseguir apanhá-los se perderes tempo a lavar-te e a comer qualquer coisa. Tiro disse que não te preocupasses, que ele te guardava um lugar ao lado dele na Rostra. Tirou-me o copo vazio das mãos e sorriu. Consegui ver a mulher.
Que mulher? A imagem de Electra brilhou-me no espírito; parecia-me que tinha sonhado com ela, embora não me lembrasse muito bem. Tenho alguma túnica lavada, não?
Ela apontou para uma cadeira, no canto do quarto, onde tinha sido disposta a minha melhor roupa. Um dos escravos de Cícero devia tê-la ido buscar a minha casa. A túnica não tinha uma nódoa. Uma ponta rasgada da bainha da minha toga tinha sido cosida. Até os meus sapatos tinham sido escovados e polidos com óleo.
A mulher disse Betesda novamente. Aquela a quem chamam Cecília.
Cecília Metela esteve cá? Esta manhã?
Chegou pouco depois de amanhecer numa enorme liteira. Houve um tal movimento entre os escravos, que o barulho me fez levantar. Ela deixou-te entrar duas vezes em casa dela, não foi? Deve ser uma pessoa muito importante.
É de facto. Veio sozinha? Quer dizer, só com a sua comitiva?
Não, o homem também vinha; Sexto Róscio. Rodeado por seis guardas, com as espadas na mão. Fez uma pausa e pareceu concentrar-se, como se estivesse a tentar recordar-se de pormenores importantes. Um dos guardas era extremamente belo.
Sentei-me na cama para apertar as tiras de couro dos sapatos.
Não terás reparado no próprio Róscio?
Reparei.
E que aspecto tinha ele?
Estava muito pálido. Claro que a luz era fraca.
Não tanto que não tivesses conseguido ver o tal guarda.
Teria conseguido vê-lo mesmo que estivesse escuro.
Tenho a certeza de que sim. Agora ajuda-me a vestir a toga.
Reinava no Fórum a agitação de um meio-feriado. Estávamos nos Idos, por isso tanto a Comícia do povo como a Cúria do Senado estavam fechadas. Mas havia vários banqueiros que tinham os escritórios abertos e, embora os caminhos que circundavam a zona estivessem vazios, à medida que me aproximava do centro do Fórum, as ruas iam ficando cada vez mais congestionadas. Homens de todas as classes, sozinhos ou em grupos, dirigiam-se à Rostra com um ar de sombria animação. A multidão que se amontoava na própria Rostra era tão grande, que eu tive de abrir caminho à cotovelada. Nada excita tanto os Romanos como um julgamento, especialmente quando ele promete terminar na ruína de alguém.
No meio da multidão, passei por uma sumptuosa liteira que levava as cortinas corridas. Enquanto eu caminhava ao seu lado, uma mão atravessou as cortinas e agarrou-me no antebraço. Olhei para baixo, espantado com o facto de um braço tão mirrado ter tanta força. A mão soltou-me e retirou-se, deixando-me no braço os recortes de cinco unhas afiadas. As cortinas abriram-se e a mesma mão fez-me sinal para que metesse a cabeça lá dentro.
Cecília Metela, reclinada num leito de almofadas de pelúcia, vestia um fato roxo solto e tinha posto um colar de pérolas. O seu cabelo alto e enrolado estava seguro por um alfinete de prata, cuja cabeça era decorada por um cacho de lápis-lazúli. À sua direita, sentado de perna traçada, encontrava-se o eunuco Ahausarus.
Qual é a tua opinião, jovem? perguntou-me ela num sussurro rouco. Como achas que vai correr?
Para quem? Para Cícero? Para Sula? Para os assassinos? Ela franziu o sobrolho e estremeceu.
Deixa-te de graças. Para o jovem Sexto Róscio, evidentemente.
É difícil de dizer. Só os adivinhos e os oráculos conseguem prever o futuro.
Mas, com todo o trabalho de Cícero, e a ajuda de Rufo, certamente que Róscio receberá o veredicto que merece.
Como posso responder-te, quando não sei que veredicto deve ser esse?
Ela olhou-me sombriamente e tocou nos lábios com as suas longas unhas pintadas de hena.
O que estás a dizer? Depois de teres sabido a verdade, não podes achar que ele é culpado, pois não? A voz tremeu-lhe.
Como qualquer bom cidadão disse eu, confio na justiça romana. Recuei e deixei cair a cortina.
Algures perto do coração da multidão, ouvi uma voz chamar-me. Nesse momento preciso, parecia-me muito pouco provável que alguém que me conhecesse me desejasse bem; tentei continuar a andar, mas um grupo de trabalhadores de ombros largos bloqueou-me o caminho. Uma mão pousou-me no ombro. Respirei fundo e voltei-me lentamente.
A princípio, não o reconheci, dado que só o tinha visto na quinta, cansado de um dia de trabalho árduo, com a túnica suja, ou então repousado e cheio de vinho. Tito Mégaro de Améria tinha um aspecto completamente diferente, agora que vestia uma toga de excelente qualidade e tinha o cabelo cuidadosamente oleado e penteado. O seu filho Lúcio, que ainda não tinha idade para uma toga, usava um modesto fato de mangas compridas. Tinha uma expressão de extasiado entusiasmo.
Gordiano, que sorte encontrar-te no meio da multidão! Não imaginas o alívio que é um camponês encontrar um rosto conhecido na cidade...
É fantástico! interrompeu Lúcio. Que sítio! nunca teria imaginado. Tão grande, tão belo. E toda esta gente. Em que parte da cidade vives tu? Deve ser maravilhoso viver num sítio como este, onde estão sempre a acontecer imensas coisas.
Espero que lhe perdoes a má educação. Tito afastou com carinho um caracol rebelde da testa do filho. Quando tinha a idade dele, eu também nunca tinha vindo a Roma. Também só cá vim três vezes em toda a minha vida não, quatro, mas uma das vezes só cá estive um dia. Olha ali, Lúcio, eu tinha-te dito, é a Rostra aquele pedestal gigante decorado com as proas dos barcos cartagineses tiradas na batalha. O orador sobe as escadas que há lá atrás e dirige-se à audiência da plataforma instalada no cimo, e todos os que se encontram na praça podem vê-lo. Uma vez cheguei a ouvir o tribuno Sulpício falar da Rostra, nos dias que antecederam as guerras civis.
Olhei para ele sem expressão. Na sua quinta da Améria, eu tinha ficado impressionado com a sua graciosidade e o seu encanto, com o seu ar de profundo refinamento. Aqui no Fórum, ele estava fora do seu elemento, como um peixe fora de água, apontando e manifestando-se como um rústico.
Há quanto tempo estás na cidade? disse eu finalmente.
Só cheguei a noite passada. Fizemos uma viagem de dois dias desde Améria.
Dois dias muito longos e difíceis riu-se Lúcio, fingindo massajar o rabo.
Quer dizer que ainda não se encontraram com Cícero? Tito baixou os olhos.
Não, receio que não. Mas consegui descobrir os estábulos na Subura e devolvi Vespa ao dono.
Mas eu pensei que vocês chegavam ontem. Que ias a casa de Cícero para ele te entrevistar, para ver se poderia utilizar-te como testemunha.
Sim, é que...
Agora é tarde.
Sim, suponho que sim. Tito encolheu os ombros e desviou os olhos.
Estou a ver. Recuei um passo. Tito Mégaro não me olhava de frente. Mas decidiste, ainda assim, vir ao julgamento. Só como observador.
Ele apertou os lábios.
Sexto Róscio é era meu vizinho. Tenho mais razões para estar aqui do que a maioria destas pessoas.
E mais razões para o ajudar. Tito baixou a voz.
Já o ajudei fiz a petição a Sula, falei contigo. Mas falar em público, aqui em Roma sou pai, não compreendes? Tenho de pensar na minha família.
E se eles o considerarem culpado e o executarem, suponho que também quererás assistir a isso.
Nunca vi um macaco disse Lúcio alegremente. Achas que vão realmente metê-lo num saco...
Sim disse eu a Tito. Não te esqueças de trazer o rapaz para assistir. Tenho a certeza de que ele nunca se esquecerá.
Tito lançou-me um olhar dorido e implorante. Entretanto, Lúcio olhava para qualquer coisa por cima do meu ombro, esquecido de tudo excepto da animação do julgamento e das glórias do Fórum. Voltei-me rapidamente e desapareci por entre a multidão. Atrás de mim, ouvi Lúcio gritar, na sua voz clara e infantil:
Pai, chama-o. Como é que vamos voltar a encontrá-lo? Mas Tito Mégaro não me chamou.
Subitamente, a multidão comprimiu-se para dar passagem a um dignitário invisível, precedido por uma comitiva de gladiadores que abriam caminho até à bancada dos juizes, por trás da Rostra. Dei por mim apanhado num turbilhão de corpos, empurrado até embater em algo sólido e firme como uma parede o pedestal da estátua que se erguia como uma ilha no meio de um mar de corpos.
Olhei para cima para as narinas bojudas de um cavalo de guerra dourado. Montava o animal o próprio ditador, vestido de general mas com a cabeça descoberta, para que nada obscurecesse o seu rosto jubiloso. O guerreiro brilhante e sorridente que estava sentado em cima do corcel era consideravelmente mais jovem do que o homem que eu vira em casa de Crisógono, mas o escultor fizera um trabalho credível, captando o forte maxilar do original, juntamente com a imperturbável e tremenda autoconfiança dos seus olhos. Aqueles olhos contemplavam, não a multidão nem as bancadas dos juizes, mas directamente o orador que se encontrasse no alto da Rostra, colocando quem quer que se atrevesse a subir até ali de frente para o supremo protector do Estado. Recuei para conseguir ler a inscrição do pedestal, que dizia simplesmente: CORNÉLIO SULA, DITADOR, SEMPRE FELIZ.
Uma mão agarrou-me o braço. Voltei-me e vi Tiro, apoiado na sua muleta.
Óptimo disse ele, acabaste por vir. Estava com receio bem, deixa lá. Avistei-te do outro lado. Anda, vem comigo. Coxeou por entre a multidão, puxando-me atrás de si. Um guarda armado acenou a Tiro e deixou-nos passar por baixo do cordão. Atravessámos um espaço aberto na base da própria Rostra. O bico coberto de prata de um antigo navio de guerra erguia-se por cima das nossas cabeças, com a forma de uma besta de pesadelos, de crânio cornudo. A coisa olhava fixamente para baixo, para nós, parecendo quase viva.
Nunca tinham faltado pesadelos a Cartago; quando a matámos, legou-os a Roma.
O espaço diante da Rostra era uma praça pequena e aberta. Num dos lados via-se uma multidão de espectadores, no meio dos quais a estátua de Sula se erguia como uma ilha; estavam todos de pé, espreitando por cima dos ombros uns dos outros, confinados atrás do cordão mantido pelos funcionários do tribunal. Do outro lado, viam-se filas de bancos para os amigos dos litigantes e para espectadores demasiadamente estimados para ficarem de pé. Ao canto da praça, entre os espectadores e a Rostra, estavam os bancos para os advogados de acusação e de defesa. Imediatamente diante da Rostra, em cadeiras organizadas numa série de bancadas baixas, estavam sentados os setenta e cinco juizes escolhidos pelo Senado.
Observei as faces dos juizes. Uns dormitavam, outros liam. Outros comiam. Alguns discutiam entre si. Outros agitavam-se nervosamente nos seus lugares, claramente infelizes por terem de cumprir aquele dever. Outros pareciam estar a conduzir as suas actvidades habituais, ditando aos escravos e dando ordens aos escrivãos. Todos levavam vestida a toga senatorial que os distinguia da populaça que se reunia à volta do cordão. No passado, os tribunais eram constituídos por senadores e cidadãos comuns, lado a lado. Sula pôs fim a isso.
Olhei para o banco dos acusadores, onde Magno estava sentado de braços cruzados, de sobrolho franzido, olhando para mim com uma expressão sinistra. Ao seu lado, o acusador Gaio Erúcio e os seus assistentes folheavam diversos documentos. Erúcio era conhecido por apresentar acusações perversas, por vezes como contratado e outras por simples despeito; também era conhecido por costumar ganhar. Eu próprio já trabalhara para ele, mas só quando tinha muita fome. Pagava bem. Certamente que lhe teriam sido prometidos honorários muito generosos se conseguisse a condenação à morte de Sexto Róscio.
Erúcio olhou-me de lado quando eu passei, lançou-me um resmungo desdenhoso em sinal de reconhecimento, depois voltou-se para agitar o dedo a um mensageiro que esperava instruções. Tinha envelhecido consideravelmente desde a última vez que eu o vira, e as mudanças não tinham sido para melhor. Os rolos de gordura que tinha à volta do pescoço tinham-se tornado mais espessos e as sobrancelhas precisavam de ser aparadas. Os seus lábios roxos eram tão largos, que parecia estar sempre a fazer uma careta, e os seus olhos eram estreitos e de aparência calculista. Era a própria imagem do advogado conivente. Nos tribunais, muitos desprezavam-no. A multidão adorava-o. A sua óbvia corrupção, juntamente com a sua voz suave e os seus maneirismos untuosos, exerciam sobre a multidão um fascínio reptilíneo com o qual a honestidade rude e a simples virtude romana não podiam de modo algum competir. Se lhe entregassem um caso simples, excitaria habilmente a ânsia da multidão em ver punido um homem culpado. Se lhe dessem um caso complicado, era um mestre a semear dúvidas e suspeitas corrosivas. Se lhe dessem um caso com ramificações políticas, era certo que recordaria aos juizes, subtil mas seguramente, qual era exactamente o interesse pessoal de cada um deles.
Hortênsio estaria à sua altura. Mas estaria Cícero? Era óbvio que Erúcio não se sentia impressionado com a competição. Chamou um dos seus escravos em voz alta; voltou-se para trocar uma piada com Magno (ambos riram); espreguiçou-se e deu uns passos com as mãos nas ancas, não se preocupando sequer em olhar para o banco dos acusados. Aí estava sentado Sexto Róscio, inclinado para diante, com dois guardas atrás de si os mesmos que tinham sido colocados à porta da casa de Cecília. Parecia um homem já condenado, pálido, silencioso, inanimado como uma pedra. Ao lado dele, até Cícero parecia um homem robusto, quando se levantou e me agarrou o braço num gesto de boas-vindas.
Óptimo, óptimo! Tiro disse-me que te tinha detectado entre a multidão. Estava com receio de que chegasses tarde ou nem chegasses a vir. Inclinou-se para mim sorrindo, continuando a segurar-se no braço e falando num tom confidencial como se eu fosse o seu maior amigo. Tanta intimidade depois da frieza dos últimos dias enervou-me. Olha para os juizes sentados na bancada, Gordiano. Metade deles está entediada de morte; a outra metade está morta de medo. A que metade devo eu dirigir os meus argumentos? Riu-se não de maneira forçada, mas com bom humor genuíno. O maldisposto Cícero, que me tinha incomodado e atormentado desde o meu regresso de Améria, parecia ter desaparecido com a chegada dos Idos.
Tiro estava sentado à direita de Cícero, junto de Sexto Róscio, e tivera o cuidado de colocar a muleta fora de vista. Rufo sentava-se à esquerda de Cícero, juntamente com os nobres que o tinham ajudado no Fórum. Reconheci Marco Metelo, outro dos parentes jovens de Cecília, bem como a estimada não-entidade e antigo magistrado Públio Cipião.
Naturalmente, não podes sentar-te connosco aqui no banco disse-me Cícero, mas quero que estejas por perto. Quem sabe? Posso esquecer-me de um nome ou de uma data no último momento. Tiro mandou um escravo aquecer um lugar para ti. Apontou para a galeria, onde reconheci numerosos senadores e magistrados, entre os quais o orador Hortênsio e diversos Messalos e Metelos. Reconheci ainda o velho Cápeto, pequeno e mirrado ao lado do gigante Málio Gláucia, que tinha uma ligadura na cabeça. Crisógono não se avistava. Sula apenas estava presente pela virtude da estátua dourada.
A um gesto de Cícero, um escravo ergueu-se de um dos bancos. Enquanto eu me dirigia à galeria a fim de tomar o seu lugar, Málio Gláucia deu uma cotovelada a Cápeto e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ambos voltaram a cabeça, olhando para mim enquanto eu me sentava, duas filas atrás deles. Gláucia franziu o sobrolho e enrolou o lábio de cima numa rosnadela, parecendo-se espantosamente com um animal selvagem no meio de todos aqueles Romanos tranquilos e bem-educados.
O Fórum estava banhado em longas sombras matutinas. Precisamente quando o Sol se erguia por cima da Basílica Fúlvia, o pretor Marco Fânio, secretário do tribunal, subiu à Rostra e limpou a garganta. Com gravidade adequada, convocou o tribunal, invocou os deuses e leu as acusações.
Eu deixei-me envolver por aquela letargia mental que toma inevitavelmente conta de qualquer homem razoável num tribunal, onde é inundado por um oceano de retórica salgada, que vai desgastando rochedos resistentes de metáforas. Enquanto Fânio falava em tom monótono, fui-lhes estudando as expressões. Magno ardendo lentamente como um carvão em brasa, Erúcio pomposo e entediado, Tiro lutando por suprimir a ansiedade, Rufo parecendo uma criança no meio de tantos juristas grisalhos. Entretanto, Cícero permanecia serena e incompreensivelmente calmo, enquanto o próprio Sexto Róscio examinava nervosamente a multidão, como um animal ferido e encurralado que já perdeu demasiado sangue para poder aguentar uma luta.
Por fim, Fânio terminou a sua alocução e tomou o seu lugar entre os juizes. Gaio Erúcio levantou-se do banco dos acusadores e ergueu com grande pompa a sua majestosa fama até ao topo dos degraus da Rostra. Expirou e inspirou profundamente. Os juizes largaram os documentos em que estavam a trabalhar e suspenderam as conversas. A multidão silenciou-se.
Estimados Juizes, selectos membros do Senado. Venho hoje aqui com uma tarefa profundamente desagradável. Pois como pode ser alguma vez agradável acusar um homem de assassínio? Contudo, este é um dos deveres que, de vez em quando, cai sobre os ombros daqueles que procuram o cumprimento da lei.
Erúcio baixou os olhos, assumindo uma atitude de sofrimento abjecto.
Porém, estimados Juizes, a minha tarefa não consiste apenas em trazer um assassino perante a justiça, mas em fazer com que um princípio muito mais antigo, muito mais profundo do que as leis dos homens mortais seja hoje respeitado neste tribunal. Porque o crime de que Sexto Róscio é acusado não é um simples crime de assassínio e não há dúvida de que isso já seria suficientemente horrível, é um crime de parricídio.
O sofrimento abjecto transformou-se em horror abjecto. Erúcio enrugou os roliços vincos do seu rosto e bateu com o pé.
Parricídio! gritou, num tom tão agudo, que até na extremidade mais longínqua da multidão os homens tiveram um sobressalto. Imaginei Cecília Metela a estremecer na liteira e a tapar os ouvidos.
”Imaginem, se puderem, não, não recuem perante o hediondo crime, olhem de frente para as mandíbulas do voraz animal. Aquele homem é um assassino. Aquele homem é um parricida! Digo ”aquele homem” porque me dói pronunciar o seu nome: Sexto Róscio. Dói-me porque esse era também o nome do seu pai, o pai que aquele homem conduziu à sepultura um nome outrora honrado, de que agora goteja sangue, o mesmo sangue que manchou a túnica encontrada no corpo do velho, desfeita em farrapos pelas lâminas dos seus assassinos.
Aquele homem transformou o excelente nome que o seu pai lhe deu numa maldição!
Que posso eu dizer-vos acerca de... Sexto Róscio? Erúcio pronunciou o nome com todo o considerável desprezo que a sua voz e a sua atitude conseguiam evidenciar. Em Améria, a cidade de onde provém, dir-vos-ão que está longe de ser um homem piedoso. Ide a Améria, como eu fiz, e perguntai aos habitantes da cidade quando foi a última vez que viram Sexto Róscio numa festa religiosa. Nem saberão de quem estais a falar. Recordai-lhes então Sexto Róscio, o homem acusado de ter morto o próprio pai, e eles lançar-vos-ão um olhar de, reconhecimento e um suspiro, e desviarão os olhos, temendo a ira dos deuses.
”Dir-vos-ão que Sexto Róscio é, de vários pontos de vista, um mistério, um homem solitário, insociável, irreligioso, grosseiro e brusco nas suas relações com os outros. Ele é bem conhecido na comunidade de Améria deveria antes dizer que é famoso? por uma e apenas uma coisa: o conflito que toda a vida manteve com o seu pai.
”Um homem de bem não discute com o seu pai. Um homem de bem honra e obedece ao seu pai, não apenas porque é o que manda a lei, mas porque é a vontade dos céus. Quando um homem mau ignora esse mandato e mantém um conflito aberto com o homem que o trouxe à vida, entra por um caminho que conduz a todo o tipo de crimes inomináveis sim, incluindo aquele crime que aqui nos reunimos para punir.
”Qual foi a causa desse conflito entre pai e filho? Não sabemos exactamente, embora o homem que está sentado ao meu lado no banco dos acusadores, Tito Róscio Magno, possa testemunhar ter assistido directamente a muitas instâncias desse conflito; o mesmo poderá fazer outra testemunha que eu talvez chame, depois de a defesa apresentar os seus argumentos, o venerável Cápeto. Magno e Cápeto são ambos primos da vítima, e também daquele homem. São cidadãos respeitados em Améria. Assistiram durante anos, com temor e desgosto, aos actos de desobediência de Sexto Róscio ao seu pai, às suas blasfémias nas costas dele. Viram consternados o velho voltar as costas à abominação que atingira a idade adulta proveniente do seu próprio sémen, a fim de proteger a sua dignidade.
”Voltar as costas, digo bem. Sim, Sexto Róscio pater voltou as costas a Sexto Róscio filius, acabando certamente por lamentá-lo porque um homem prudente não volta as costas a uma víbora, nem a um homem com uma alma de assassino, mesmo que seja o seu próprio filho, a não ser que deseje receber uma faca nas costas!
Erúcio poisou os dedos na varanda da Rostra, olhou fixamente de olhos muito abertos por cima das cabeças da multidão, manteve essa pose durante um momento e depois recuou para recuperar o fôlego. O quadrado estava estranhamente silencioso depois do trovão da sua voz. Por esta altura, conseguia já estar a suar razoavelmente. Pegou na ponta da toga e passou-a pelo rosto que pingava. Ergueu os olhos e contemplou o céu, como se procurasse alívio para a terrível prova da procura da justiça. Numa voz queixosa, num tom suficientemente elevado para que todos pudessem ouvi-lo, murmurou:
Júpiter, dá-me forças! Vi Cícero cruzar os braços e rolar os olhos. Entretanto, Erúcio recuperava a compostura, dirigia-se à Rostra de cabeça inclinada e recomeçava.
Aquele homem não vale a pena pronunciar o seu nome manchado quando ele se atreve a mostrar-se em público, onde qualquer homem decente pode vê-lo e recuar horrorizado, aquele homem não foi o único filho do seu pai. Houve outro filho. O seu nome era Gaio. O seu pai amava-o profundamente, e por que não? Segundo todos contam, era o exemplo daquilo que qualquer jovem Róscio devia ser: piedoso para com os deuses, obediente ao seu pai, aspirante a todas as virtudes, um jovem agradável de todos os pontos de vista, encantador e refinado. Que estranho que um homem possa ter dois filhos, tão diferentes um do outro! Ah, mas é que os filhos tinham mães diferentes. Talvez não fosse o sémen que estava manchado, mas o chão onde ele foi depositado. Considerem duas sementes da mesma vinha plantadas em solos diferentes. Uma das vinhas cresce forte e saudável, dando frutos doces que produzem um vinho capitoso. A outra mostra-se estranha e enfezada desde o princípio, nodosa e cheia de picos; os seus frutos são amargos e o seu vinho é um veneno. Chamo Gaio ao primeiro vinho, e Sexto ao outro!
Erúcio limpou o rosto, estremeceu de repulsa e prosseguiu.
Sexto Róscio pater amava um dos filhos, mas não o outro. Mantinha Gaio constantemente perto de si, exibindo-o com orgulho à melhor sociedade, cobrindo-o publicamente de amabilidades e de afecto. Mas mantinha Sextofíliuso mais distante de si que podia, relegando-o para as quintas da família em Améria, mantendo-o longe da vista como se tivesse vergonha dele e não pudesse exibi-lo entre pessoas decentes. Tão profunda era esta divisão de afectos, que Róscio pater considerou profundamente a hipótese de deserdar completamente aquele que tinha o seu nome e de nomear Gaio seu único herdeiro, embora Gaio fosse o mais jovem dos seus filhos.
”Seria injusto, podeis vós dizer. É preferível que um homem trate todos os seus filhos com igual respeito. Quando ele começa a escolher favoritos, está à procura de sarilhos na sua própria geração e na seguinte. É verdade, mas neste caso julgo que devemos confiar na avaliação do velho Sexto Róscio. Por que desprezava ele o seu filho mais velho? Penso que seria por ter percebido, melhor do que qualquer outro homem, a perversidade que se acoitava no peito do jovem Sexto Róscio, e ter recuado perante ela. Talvez tivesse até um pressentimento da violência que o seu filho viria um dia a fazer desabar sobre ele, e era por isso que o mantinha à distância. Infelizmente, essa precaução não foi suficiente!
”A história dos Róscios termina em múltiplas tragédias numa série de tragédias que não podem ser emendadas, mas apenas vingadas, e apenas por vós, estimados juizes. Primeiro, a morte prematura de Gaio Róscio. Com ele, desapareceram todas as esperanças do seu pai para o futuro. Considerem se haverá maior alegria no mundo do que dar existência a um filho e ver nele a imagem do seu pai? Do que criá-lo e educá-lo de tal maneira, que nos renovemos à medida que ele vai crescendo? Falo com conhecimento de causa, eu também sou pai. E não será uma bênção, ao partir deste mundo, deixar para trás, como nosso sucessor e herdeiro, um ser proveniente de nós próprios? Deixar-lhe, não apenas as nossas propriedades, mas a nossa sabedoria acumulada, e a própria chama da vida, transmitida de pai para filho, para que ele a transmita aos seus filhos, de tal maneira que, enquanto o nosso corpo mortal se desvanece, continuemos a viver nos nossos descendentes?
”Com a morte de Gaio, esta esperança numa espécie de imortalidade morreu no seu pai, Sexto Róscio. Mas ele ainda tinha outro filho vivo, podereis protestar. É um facto, mas nesse filho via ele, não o seu reflexo, fiel e perfeito como o que se vê numa piscina de água limpa. Via nele uma imagem de si próprio como a que se reflectisse numa salva de prata esmagada, distorcida, retorcida e insultuosa. Mesmo depois da morte de Gaio, Róscio pater continuou a pensar na possibilidade de deserdar o seu único filho sobrevivente. Certamente que haveria na família muitos outros candidatos mais dignos do que ele a serem seus herdeiros, o menos digno dos quais não seria o seu primo Magno o mesmo Magno que se senta ao meu lado no banco de acusação, que amava suficientemente o seu primo para não deixar que o seu assassino permaneça impune.
”O jovem Sexto Róscio planeou de forma demoníaca a morte do seu pai. Não conhecemos nem podemos conhecer os pormenores exactos. Só aquele homem poderia contar-no-los, se se atrevesse a confessar. Aquilo que sabemos são os factos nus. Numa noite de Setembro, deixando a casa da sua patrona, a mui estimada Cecília Metela, Sexto Róscio pater foi atraído ao bairro das Termas de Palacina e esfaqueado até à morte. Pelo próprio Sexto Róscio fílius? Claro que não! Recordai os tumultos do ano passado, estimados juizes do tribunal. Não preciso de me deter nas suas causas porque este não é um tribunal político, mas tenho de recordar-vos a violência que invadiu as ruas desta cidade. Que fácil deve ter sido a um conspirador como o jovem Sexto Róscio encontrar bandidos dispostos a fazer o trabalho sujo. E que inteligente foi tentar encenar a execução num momento de tumultos, esperando que o assassínio do seu pai passasse despercebido no meio de todos aqueles levantamentos.
”Graças aos deuses, dispomos de um homem como Magno, que mantém os olhos e os ouvidos abertos e não tem medo de acusar os culpados! Nessa mesma noite, um liberto em quem ele deposita a sua confiança, Málio Gláucia, veio ter com ele, aqui em Roma, informando-o do assassínio do seu querido primo. Magno enviou imediatamente Gláucia a Améria, para dar essa notícia ao seu primo Cápeto, que se encontrava em casa.
”E agora entra nesta história, ao lado da tragédia, a ironia, amarga mas estranhamente justa. Pois, por uma particular volta da fortuna, aquele homem não havia de herdar a fortuna para cuja obtenção cometera um parricídio. Como disse atrás, isto não é um tribunal político, nem este é um julgamento político. Não nos interessam aqui as medidas drásticas impostas ao Estado em anos recentes de levantamentos e incertezas. Por isso, não tentarei explicar o curioso processo através do qual tive conhecimento de que determinados funcionários conscientes do Estado, ao investigarem a sua morte, descobriram que Sexto Róscio pater, aparentemente um homem de bem, se encontrava nas listas de homens proscritos. Não se sabe como, o velho escapou à morte durante meses! Que homem tão afortunado deverá ter sido, ou então muito inteligente!
”E, contudo que ironia! O filius mata o pater para garantir a herança, e descobre afinal que a herança já foi reclamada pelo Estado! Imaginai o seu desgosto! A sua frustração e o seu desespero! Os deuses pregaram uma terrível partida àquele homem, mas quem poderá negar a sua infinita sabedoria ou o seu sentido de humor?
”As propriedades de Sexto Róscio acabaram por ser vendidas em leilão. Os bons primos Magno e Cápeto foram dos primeiros a licitar, uma vez que conheciam bem as propriedades e o seu valor, tendo-se tornado assim aquilo que sempre deviam ter sido, os herdeiros do falecido Sexto Róscio. A fortuna recompensa os justos e castiga os malvados.
”E quanto àquele homem?. Magno e Cápeto suspeitavam da sua culpa, estavam mesmo quase certos dela. Mas, por piedade para com a sua família, ofereceram-lhe abrigo nas suas propriedades recém-adquiridas. Durante algum tempo, reinou entre os primos uma paz instável isto é, até Sexto Róscio se ter denunciado. Primeiro, descobriu-se que ele tinha escondido algumas partes da propriedade, que não tinham sido proscritas pelo Estado, como era devido por outras palavras, o homem não passava de um vulgar ladrão, que roubava ao povo de Roma aquilo que lhe pertencia por direito e pela lei. (Ah, Juizes, bocejais perante uma acusação de desfalque, e tendes razão o que vale isso, comparado com o seu crime maior?) Quando Magno e Cápeto lhe exigiram que entregasse aquelas coisas, ele ameaçou matá-los. Se estivesse sóbrio, o mais provável é que se tivesse contido. Mas desde a morte do pai que bebia excessivamente como é sabido que fazem os homens culpados. Na realidade, a todos os seus restantes vícios acrescentara Sexto Róscio o da embriaguez, quase nunca estando sóbrio. Tornou-se intoleravelmente insultuoso, a ponto de se atrever a ameaçar os seus anfitriões. Na realidade, ameaçou matá-los e, ao fazer essa ameaça, confessou inadvertidamente ter morto o seu pai.
”Temendo pela sua própria vida, e porque era seu dever, Magno decidiu apresentar queixa contra aquele homem. Entretanto, Sexto Róscio fugiu à sua alçada e partiu para Roma, regressando à cena do crime; mas os olhos da lei vigiam mesmo no coração de Roma, e nem numa cidade de um milhão de almas podia ele esconder-se.
”Sexto Róscio foi localizado. Normalmente, mesmo quando é acusado de um crime hediondo, é dada a oportunidade a um cidadão romano de renunciar à sua cidadania e escapar para o exílio, em vez de enfrentar o tribunal, se assim preferir. Mas o crime cometido por aquele homem foi tão grave, que ele foi colocado sob guarda armada, e assim esperou pelo seu julgamento e castigo. E porquê? Porque o crime que ele cometeu ultrapassa em muito a mera ofensa de um mortal contra a pessoa de outro mortal. É um golpe nos fundamentos desta república e nos princípios que a fizeram grande. É um ataque à primazia da patermidade. É um insulto aos próprios deuses, e a Júpiter acima de todos, o pai dos deuses.
”Não, o Estado não pode correr o mais pequeno risco de um crime como este escapar, nem podeis vós, estimados Juizes, correr o risco de o deixar partir sem punição. Pois, se o fizerdes, considerai o castigo divino que certamente visitará esta cidade, em retribuição pela sua incapacidade de limpar uma tal abominação. Pensai naquelas cidades por cujas ruas correu sangue ou cujos habitantes morreram de fome e de sede por terem cometido a loucura de ocultar dos deuses um homem ímpio. Não podeis permitir que isso aconteça a Roma.
Erúcio parou para limpar a testa. Todos os que se encontravam na praça o observavam com uma concentração quase sonhadora. Cícero e os seus parceiros já não rolavam os olhos nem troçavam de Erúcio à socapa; pareciam bastante preocupados. Sexto Róscio estava rígido como uma pedra.
Erúcio recomeçou.
Falei-vos do insulto que aquele homem fez ao divino Júpiter e do seu crime inconcebivelmente vil. Ele é também um insulto, se me for permitido fazer uma pequena digressão, ao Pai da nossa República restaurada! Aqui, Erúcio fez um gesto teatral, abrindo os braços como que numa súplica à estátua equestre de Sula, que parecia, do ângulo de onde eu a observava, estar a conceder-lhe um sorriso condescendente. Não preciso sequer de pronunciar o seu nome, porque os seus olhos estão poisados sobre nós neste preciso momento. Sim, os seus olhos vigilantes observam todas as coisas que se fazem neste lugar, o desempenho dos nossos papéis de cidadãos, de juizes, de advogados e de acusadores. Lúcio Cornélio Sula, Sempre Feliz, restabeleceu os tribunais. Sula reacendeu em Roma o fogo da justiça, depois de muitos anos de escuridão; compete-nos vigiar para que vilões como aquele homem sejam reduzidos a cinzas pela sua chama. Ou então, garanto-vos eu, estimados Juizes, o castigo cairá do alto sobre a cabeça de todos nós, como o granizo de um céu escuro e irado.
Erúcio fez uma pose e manteve-a durante algum tempo. Apontava com o dedo para o céu. Tinha as sobrancelhas unidas, e olhava ameaçadoramente, como um touro, para o grupo dos juizes. Falara do castigo de Júpiter, mas aquilo que todos nós ouvimos foi que o próprio Sula ficaria irado com um veredito de inocente. A ameaça não poderia ser mais explícita.
Erúcio recolheu as pontas da toga, ergueu o queixo e virou costas. Enquanto ele descia da Rostra, não se ouviram gritos ou aplausos da multidão, mas apenas um silêncio gelado.
Ele nada demonstrara. No lugar das provas, apresentara insinuações. Não apelara à justiça, mas ao medo. O seu discurso era uma terrível miscelânea de mentiras puras e simples e de ameaças hipócritas. E, contudo, ninguém que o tivesse ouvido falar da Rostra naquela manhã poderia duvidar de que Gaio Erúcio tinha ganho o seu caso.
Cícero ergueu-se e dirigiu-se resolutamente à Rostra, com a toga a ondear-lhe pelos joelhos. Eu olhei para Tiro, que roía as unhas, e para Rufo, que estava sentado com as mãos pousadas no regaço e tinha no rosto um sorriso mal reprimido de adoração.
Cícero avançou até ao pódio, clareou a garganta e tossiu. Uma onda de cepticismo percorreu a multidão. Nunca ninguém o tinha ouvido discursar; uma abertura atamancada era um mau sinal. No banco da acusação, Gaio Erúcio dava espectáculo, estalando os lábios e olhando fixamente para o céu.
Cícero clareou a garganta e recomeçou. Tinha a voz pouco firme e ligeiramente rouca.
Juizes do tribunal: deveis estar a perguntar a vós próprios por que razão, de entre tantos cidadãos distintos e eminentes oradores, fui eu que subi até aqui para me dirigir a vós...
De facto murmurou Erúcio. Ouviram-se risos entre a multidão.
Cícero prosseguiu.
Certamente que não posso comparar-me com eles, nem em idade, nem em capacidade nem em autoridade. Também eles acreditam, tal como eu, que uma acusação injusta, planeada com a maior vilania, foi lançada contra um homem inocente e deve ser repelida. É por isso que se apresentam perante vós, em visível cumprimento do seu dever para com a verdade, mas permanecem silenciosos devido às inclementes condições do dia. Aqui, ergueu a mão, como que para apanhar uma gota de chuva caída do céu azul sem nuvens ao mesmo tempo que parecia estar a apontar para a estátua equestre de Sula. Houve entre os juizes um desconfortável mexer de cadeiras. Erúcio, que inspeccionava as unhas, não assistiu.
Cícero voltou a limpar a garganta. A sua voz regressou, mais forte e mais audível do que antes. Os requebros terminaram.
Serei eu mais corajoso do que estes homens silenciosos? Mais dedicado à justiça? Penso que não. Estarei ansioso por ouvir a minha própria voz no Fórum, ou por ser elogiado pela minha capacidade de falar em público? Não, se houvesse um orador melhor do que eu que pudesse conquistar esses elogios por enunciar melhores palavras. O que me impeliu então, e não a homens mais importantes, a encarregar-me da defesa de Sexto Róscio de Améria?
”A razão é esta: se algum daqueles excelentes oradores se tivesse erguido para falar neste tribunal, e tivesse pronunciado palavras de natureza política inevitáveis num caso como este, as suas palavras seriam inevitavelmente interpretadas com muito mais amplitude do que era sua intenção. Começariam os boatos. Levantar-se-iam as suspeitas. Tal é o estatuto destes homens, que nada do que eles dizem passa despercebido, e nenhuma implicação dos seus discursos fica por debater. Eu, por meu lado, posso dizer tudo aquilo que tem de ser dito num caso como este, sem temer atenções adversas ou controvérsias sinistras. E isso acontece porque ainda não iniciei a minha carreira pública; ninguém me conhece. Se eu falar despropositadamente, se deixar passar uma indiscreção embaraçosa, ninguém dará conta, ou, se derem, perdoarão o lapso em consideração pela minha juventude e a minha inexperiência embora eu utilize o verbo perdoar num sentido muito amplo, porque os perdões propriamente ditos e os inquéritos judiciais gratuitos que eles exigem há muito foram abolidos pelo Estado.
Houve mais movimentos de cadeiras. Erúcio ergueu os olhos das unhas, franziu o nariz e olhou fixamente para meia distância, como se tivesse acabado de detectar uma pluma alarmante de fumo no ar.
Vedes pois que não fui escolhido por ser o orador mais dotado. Cícero sorriu, solicitando a indulgência da multidão. Não, fui simplesmente aquele que ficou quando todos os outros se puseram de lado. Era o homem que podia pleitear com menos perigo. Ninguém poderá dizer que fui escolhido para que Sexto Róscio tivesse a melhor defesa possível. Fui escolhido simplesmente para que ele fosse defendido por alguém.
”Podeis perguntar: que medo e que terror são esses, que afastam os melhores advogados e apenas deixa a Sexto Róscio um principiante para defender a sua vida? Ao ouvir Erúcio falar, ninguém diria que há perigo, uma vez que ele evitou deliberadamente nomear o seu verdadeiro empregador e mencionar as maléficas motivações que conduziram essa pessoa secreta a levar a tribunal o meu cliente.
”Que pessoa? Que motivações? Deixem-me explicar.
”Os bens do falecido Sexto Róscio que deviam pertencer neste momento ao seu filho e herdeiro, se os acontecimentos se tivessem desenrolado com naturalidade incluem quintas e propriedades cujo valor ultrapassa os seis milhões de sestércios. Seis milhões de sestércios! Trata-se de uma fortuna considerável, reunida durante uma vida longa e produtiva. Contudo, todos estes bens foram adquiridos por um certo jovem, presumivelmente em leilão público, pela espantosa soma de dois mil sestércios. Belo negócio! O parcimonioso jovem comprador foi Lúcio Cornélio Crisógono vejo que a simples menção do seu nome provoca rebuliço neste local, e por que não? Trata-se de um homem excepcionalmente poderoso. O alegado vendedor destes bens, representando os interesses do Estado, foi o valoroso e ilustre Lúcio Sula, cujo nome menciono com todo o respeito que lhe é devido.
Neste ponto, um ligeiro silvo encheu a praça, como uma chuva de humidade que caísse sobre as pedras quentes, enquanto os homens se voltavam uns para os outros e sussurravam a coberto das mãos. Cápeto agarrou-se ao ombro de Gláucia e grasnou-lhe ao ouvido. À minha volta, os nobres que se encontravam na galeria cruzaram os braços e trocaram olhares sinistros. Dois Metelos mais velhos, sentados à minha direita, acenaram um ao outro. Gaio Erúcio, cujos maxilares rechonchudos tinham subitamente ficado escarlates à menção de Crisógono, agarrou num jovem escravo pelo pescoço, deu-lhe uma ordem, e o escravo saiu da praça a correr.
Deixem-me ser franco. Foi Crisógono quem maquinou estas acusações contra o meu cliente. Sem qualquer justificação legal, Crisógono apoderou-se das propriedades de um homem inocente. Impossibilitado de usufruir plenamente dos bens que roubou, uma vez que o seu proprietário de direito ainda vive e respira, pede-vos, a vós, os Juizes deste tribunal, que alivieis a sua ansiedade fazendo desaparecer o meu cliente. Só então poderá ele malbaratar a fortuna do falecido Sexto Róscio com a dissipação livre de cuidados a que aspira.
”Isto parece-vos bem, Juizes? Parece-vos decente? Parece-vos justo? Em oposição, deixai-me apresentar as minhas exigências, que penso que considerareis mais modestas e mais razoáveis.
”Primeiro: que esse vilão Crisógono se contente em se apoderar da nossa riqueza e das nossas propriedades. Que evite exigir-nos também as nossas vidas!
Cícero começara a andar de um lado para o outro no pódio, mantendo o seu hábito de caminhar pelo escritório. Toda a incerteza abandonara a sua voz, que emergia mais vibrante e arrebatadora do que eu alguma vez a ouvira.
Segundo, bons Juizes, peço-vos o seguinte: voltai as costas às maquinações malignas de homens malignos. Abri os olhos e o coração ao apelo da vítima inocente. Salvai-nos de um perigo terrível, porque o perigo que impende sobre Sexto Róscio neste tribunal impende sobre todos os cidadãos livres de Roma. De facto, se no final desta investigação vos sentirdes convencidos de que Sexto Róscio é culpado não, nem sequer convencidos, basta que suspeiteis; se houver alguma ponta de prova que mostre que as horrendas acusações que lhe são feitas podem hipoteticamente ser justificadas; se puderdes acreditar honestamente que os seus acusadores o trouxeram a tribunal com outra motivação, que não fosse satisfazer a sua insaciável ganância de pilhagens então considerai-o culpado que eu não apresentarei qualquer objecção. Mas se a única questão for a avareza rapace dos seus acusadores e o seu desejo de verem a sua vítima eliminada por uma perversão de justiça, então peço-vos que vos apoieis na vossa integridade de senadores e de juizes, que vos recuseis a permitir que as vossas pessoas e os vossos cargos se tornem meros instrumentos nas mãos de criminosos.
”Peço-te, Marco Fânio, presidente deste tribunal, que olhes para a enorme multidão que se reuniu para assistir a este julgamento. O que os trouxe aqui? Ah, sim, a natureza da acusação é extremamente sensacional. Há muito tempo que os tribunais romanos não julgam casos de assassínio embora não tenha havido, entretanto, falta de assassínios abomináveis! Aqueles que se reuniram aqui estão fartos de assassínios; anseiam por justiça. Querem ver os criminosos severamente punidos. Querem ver o crime contido com assustadora severidade.
”É isso que eu vos peço: castigos severos e todo o rigor da lei. Normalmente, são os acusadores que fazem estas exigências, mas hoje não será assim. Hoje somos nós, os acusados, que apelamos a ti, Fânio, e aos outros juizes, para que punais o crime com toda a veemência que fordes capazes de convocar. Pois, se o não fizerdes se não aproveitardes esta oportunidade para nos mostrar em que assentam os juizes e os tribunais de Roma, então teremos claramente atingido aquele ponto onde todos os limites da ganância e da indignidade humanas foram afastados. A alternativa é a anarquia, absoluta e ilimitada. Capitulai perante os acusadores, deixai de cumprir o vosso dever e, a partir de hoje, a matança de inocentes deixará de ser feita nas sombras e escondida por subterfúgios legais. Não, esses assassínios serão cometidos aqui, no próprio Fórum, Fânio, diante da plataforma onde vos sentais. Pois tal é o objectivo deste julgamento, evitar que o roubo e o assassínio possam ser cometidos impunemente.
”Vejo diante da Rostra dois campos. Os acusadores: aqueles que pretendem apoderar-se das propriedades do meu cliente, que se aproveitaram directamente do assassínio do pai do meu cliente e que agora procuram incitar o Estado a matar um homem inocente. E o acusado: Sexto Róscio, a quem os acusadores nada deixaram senão a ruína, a quem a morte do pai trouxe, não apenas desgosto, mas destituição, que agora se apresenta diante deste tribunal com guardas armados atrás de si não para protecção do tribunal, como Erúcio sarcasticamente sugere, mas para sua própria protecção, com receio de que possa ser assassinado aqui mesmo, diante dos vossos olhos! Qual destas partes está realmente a ser julgada hoje? Qual delas convocou a ira da lei?
”Uma simples descrição destes bandidos não será suficiente para vos pôr em contacto com o negrume do seu carácter. Um simples catálogo dos seus crimes não tornará manifesto o grau de arbitrariedade que exibem ao atrever-se a acusar Sexto Róscio de parricídio. Tenho de começar por vos narrar o percurso dos acontecimentos que levaram a este momento. Só assim conhecereis toda a degradação a que este homem inocente foi sujeito. Então compreendereis por completo a audácia dos seus acusadores e o inominável horror dos seus crimes.
E vereis igualmente, não por completo mas com assustadora clareza, o estado calamitoso em que caiu esta república.
Cícero parecia um homem transformado. Os seus gestos eram fortes e inequívocos. A sua voz era apaixonada e clara. Se o visse à distância, não o teria reconhecido. Se o tivesse ouvido da sala ao lado, não teria sabido que era a sua voz.
Eu já assistira a transformações destas, mas só no teatro ou em determinadas ocasiões religiosas, quando esperamos ser surpreendidos pela elasticidade do receptáculo humano. Ver isso acontecer diante dos meus olhos num homem que eu pensava conhecer era espantoso. Teria Cícero sabido desde sempre que sofreria uma tal mudança neste momento de necessidade? Teriam Rufo e Tiro sabido isso? Certamente que o saberiam, pois não havia outra maneira de explicar a serena confiança que nunca os abandonara. O que tinham eles visto em Cícero, que eu não vira?
Erúcio entretivera a multidão com melodrama e um estilo bombástico, e a multidão mostrara-se satisfeita. Ameaçara os juizes directamente, e eles tinham sofrido os seus insultos em silêncio. Cícero parecia decidido a estimular uma verdadeira paixão nos seus ouvintes, e a sua fome de justiça era contangiante. A sua decisão de acusar Crisógono desde o princípio fora uma decisão ousada. À simples menção do nome, Erúcio e Magno lançaram-se num pânico visível. Era claro que esperavam uma oposição fraca, que apresentasse um discurso tão vago e circunstancial como o seu próprio. Mas Cícero mergulhara na história até ao pescoço, nada omitindo.
Descreveu as circunstâncias da vida do velho Sexto Róscio, as suas conexões em Roma e o antigo conflito com os seus primos Magno e Cápeto. Descreveu o carácter destes, de reputação duvidosa. (Comparou Cápeto a um gladiador encanecido e cheio de cicatrizes e Magno ao protegido de um velho lutador, que já tivesse ultrapassado o seu senhor em matança devastadora.) Especificou o tempo e o lugar do assassínio de Sexto Róscio, e chamou a atenção para o estranho facto de Málio Gláucia ter viajado toda a noite para levar um punhal ensanguentado a Améria e aí relatar a morte de Cápeto. Mostrou detalhadamente a relação entre os primos e Crisógono; a proscrição ilegal de Sexto Róscio depois da sua morte e depois de todas essas proscrições terem legalmente terminado; os inúteis protestos do conselho da cidade de Améria; a aquisição dos bens de Sexto Róscio por Crisógono, Magno e Cápeto; as suas tentativas de eliminar o jovem Sexto Róscio e a fuga deste para casa de Cecília Metela, em Roma. Recordou aos juizes a pergunta aplicada a todos os crimes pelo grande Lúcio Longino Ravila: a quem aproveita?
Quando se aproximou da pessoa do ditador, não hesitou; quase parecia sorrir.
Continuo convencido, bons Juizes, de que tudo isto aconteceu sem o conhecimento do venerável Lúcio Sula, que nem sequer se terá apercebido do processo. Afinal, a sua esfera é vasta e ampla; assuntos nacionais da maior importância reclamam a sua atenção, enquanto ele se ocupa a reparar as feridas do passado e prevê as ameaças do futuro. Todos os olhos estão postos sobre ele; todo o poder reside nas suas mãos seguras. Construir a paz ou fazer a guerra a opção, e ele está decidido a fazê-la, é sua e apenas sua. Imaginem a hoste de pequenos malfeitores que rodeiam um homem como este, que vigiam e espreitam aqueles, ocasiões em que a sua atenção está totalmente concentrada noutras coisas para poderem aproveitar-se rapidamente da situação. Sula é verdadeiramente Feliz, mas certamente que não há ninguém, por Hércules, tão amado pela Fortuna, que não se oculte em sua casa um escravo desonesto ou, pior ainda, um ex-escravo esperto e sem escrúpulos.
Consultou as suas notas e refutou todos os pontos do discurso de Erúcio, ridicularizando a sua ingenuidade. Contrariou o argumento de Erúcio de acordo com o qual a obrigação de Sexto Róscio de permanecer no campo eram um sinal de discórdia entre pai e filho com uma longa digressão sobre o valor e a honra da vida rural que era sempre um tema agradável para os urbanizados ouvidos romanos. Protestou contra o facto de os escravos que tinham testemunhado o assassínio não terem podido ser convocados como testemunhas, por o seu actual senhor Magno, que os mantém escondidos na casa de Crisógono se ter recusado a permiti-lo.
Meditou nos horrores do parricídio, um crime tão grave que uma condenação exigia provas absolutas.
Eu quase diria que os juizes têm de ver as mãos do filho salpicadas de sangue para acreditarem num crime tão monstruoso, tão chocante, tão abominável! Descreveu a antiga punição para o parricídio, para horror e fascínio da multidão.
O seu discurso foi de tal maneira exaustivo e longo, que os juizes começaram a mexer-se nas cadeiras, já não em consequência do susto de terem ouvido o nome de Sula, mas de impaciência. A sua voz começou a ficar rouca, embora ele bebesse ocasionalmente de um copo de água escondido por trás do pódio. Comecei a pensar que estava a tentar ganhar tempo, embora não conseguisse imaginar porquê.
Durante um certo período, Tiro estivera ausente do banco dos acusados ter-se-ia ido aliviar, presumi eu, uma vez que eu próprio sentia uma necessidade crescente de fazer o mesmo. Nesse preciso momento, Tiro aproximou-se, atravessando a galeria a coxear vivamente, apoiado na muleta, e tomando o seu lugar no banco. Do topo da Rostra, Cícero olhou para baixo e ergueu uma sobrancelha. Tiro fez-lhe um sinal qualquer e ambos sorriram.
Cícero limpou a garganta e bebeu um longo golo de água. Inspirou profundamente e, durante um breve momento, fechou os olhos.
E agora, Juizes, passemos ao problema de um certo patife e ex-escravo, egípcio de nascimento, imensamente avarento por natureza mas olhai, eis que ele chega, com uma esplêndida comitiva atrás de si, vindo da sua excelente mansão no monte Palatino, onde habita opulentamente, no meio de senadores e magistrados das mais antigas famílias da República.
Alertado por Erúcio, Crisógono tinha finalmente chegado.
Os seus guarda-costas esvaziaram rapidamente a última fila da galeria, onde alguns membros mais afortunados da multidão tinham ocupado os únicos lugares deixados livres pelos nobres de menor importância. Todas as cabeças se voltaram e um murmúrio atravessou a praça quando Crisógono caminhou a passos largos para o centro do banco e se sentou. A sua comitiva era tão grande, que alguns dos seus membros tiveram de ficar de pé nas alas.
Voltei a cabeça, juntamente com o resto da multidão, para avistar os lendários caracóis louros, a grandiosa testa alexandrina, a queixada comprida e larga, que tinha hoje uma feição dura e sinistra.
Voltei-me novamente, para olhar para Cícero, que parecia estar a preparar-se fisicamente para o ataque, erguendo os seus ombros estreitos e baixando a testa como um bode prestes a carregar.
Tenho andado a fazer investigações acerca deste ex-escravo disse ele. Descobri que é muito rico e não tem vergonha de o mostrar. Para além da sua mansão no monte Palatino, possui uma óptima casa de campo, para não falar de uma série de quintas, todas elas com solos excelentes e próximas da cidade. A sua casa está povoada de vasos délios e coríntios, de ouro, prata e cobre entre os quais uma urna para aquecimento mecânico de água que comprou recentemente em leilão por um preço de tal maneira exorbitante, que quem por lá passava, tendo ouvido a sua última oferta, pensou que ele estava a comprar uma propriedade inteira. O valor total das peças de prata trabalhada, das colchas bordadas, dos quadros e das estátuas de mármore que possui não pode ser contabilizado a não ser que nos dedicássemos a contabilizar a quantidade precisa de produtos de saque passíveis de serem pilhados a diversas famílias ilustres e amontoados numa única casa!
”Mas estes são apenas os seus bens mudos. Que dizer dos seus bens que falam? Eles incluem um vasto conjunto de escravos domésticos com as mais delicadas competências e excelentes dotes naturais. Nem vale a pena mencionar os ofícios vulgares cozinheiros, padeiros, pasteleiros, carregadores de liteiras, carpinteiros, estofadores, criadas para limpar o pó, criadas para esfregar, pintores, criados para polir o chão, criados para lavar os pratos, homens com ofícios vários, criados para os estábulos, para cuidarem dos telhados e especialistas em medicina. Para lhe encantar os ouvidos e suavizar o espírito, possui ele um tal conjunto de músicos, que todo o bairro ressoa com o som continuado de vozes, cordas, tambores e flautas. À noite, enche o ar com o estridor das suas devassidões os acrobatas fazem habilidades e poetas lascivos declamam para lhe dar prazer. Quando um homem tem este género de vida, Juizes, podereis imaginar a despesa que terá todos os dias? Os custos do seu guarda-roupa? O seu orçamento para entretenimentos abundantes e refeições sumptuosas? Não devíamos chamar à sua casa uma habitação, mas antes uma fábrica de dissolução e de vício, uma casa de alojamento para todo o género de criminosos. A fortuna de Sexto Róscio pouco mais duraria que um mês nas suas mãos!
O objectivo último dos acusadores é tão claro como repreensível: nada menos do que a completa eliminação dos filhos do proscrito, por qualquer meios à sua disposição. A vossa sentença jurada e a execução de Sexto Róscio serão os primeiros passos desta campanha.
Cícero chegara aos argumentos finais. Tentei acelerar a bexiga. Fechei os olhos e as comportas abriram-se. A sensação de alívio foi intensa.
Foi então que ouvi um ligeiro assobio nas minhas costas e parei a meio. Olhei por cima do ombro e avistei Málio Gláucia dez passos atrás de mim. Fez deslizar a mão para dentro da túnica, fechando-a à volta da forma inconfundível de um punhal, escondido dentro das dobras à altura da cintura. Acariciou-lhe o punho com um riso obsceno, como se estivesse a agarrar o sexo.
Tende cuidado, Juizes; pois, de outro modo, podereis inaugurar, neste dia preciso e neste preciso local, uma segunda onda de proscrições, muito mais cruel e impiedosa do que a primeira. Pelo menos a primeira era dirigida a homens que podiam defender-se; a tragédia que prevejo terá como objectivo os filhos dos proscritos, crianças de berço! Pelos deuses imortais, quem sabe onde tal atrocidade poderá conduzir esta república?
Continua disse Gláucia. Acaba o que estavas a fazer.
Eu larguei a ponta da túnica e voltei-me para olhá-lo de frente.
Gláucia sorriu. Lentamente, abriu a túnica, tirou o punhal e brincou com ele, passando vagarosamente a ponta pela parede, e fazendo um ruído que me pôs os nervos em crista.
Falo a sério disse ele, parecendo muito caritativo. Achas que eu era capaz de esfaquear um homem pelas costas enquanto ele estivesse a mijar?
É um ponto de honra razoável concordei eu, tentando manter a voz segura. O que queres?
Matar-te.
Eu inspirei profundamente, ficando com as narinas cheias do cheiro a urina rançosa.
Agora? Ainda?
Exactamente. Parou de arranhar a parede e tocou a ponta da lâmina com o dedo. Uma gota de sangue escorreu da carne. Gláucia chupou-a.
Juizes, convém a homens sábios, dotados da autoridade que vós possuís, aplicar os remédios mais seguros às doenças que ainda povoam esta república...
Mas porquê? O julgamento está quase a acabar.
Em vez de responder, ele continuou a chupar o polegar e recomeçou a arranhar a parede com a lâmina. Olhava fixamente para mim como uma criança demente, monstruosamente crescida. A faca que eu tinha dentro da túnica era do tamanho da dele, mas pareceu-me que o seu braço era bastante mais comprido do que o meu. Eu não teria grandes possibilidades.
Por que queres matar-me? O que quer que aconteça agora, nada do que possas fazer-me vai alterar as coisas. O meu papel neste assunto terminou há dias. Foi o escravo quem te bateu na cabeça na outra noite, se é que é isso que te irrita. Não tens nenhuma queixa contra mim, Málio Gláucia. Não tens razões para me matar. Nenhuma razão.
Ele continuava a arranhar a parede. Parou de chupar o polegar. Olhou para mim com um ar muito sério.
Mas eu já te disse que quero matar-te. Vais acabar de mijar ou não?
Não há entre vós nenhum homem que não conheça a reputação dos Romanos como conquistadores misericordiosos, clementes para com os seus inimigos estrangeiros; contudo, nos nossos dias, os Romanos continuam a voltar-se uns contra os outros com chocante crueldade.
Gláucia avançou em direcção a mim. Eu recuei contra a parede, colocando-me directamente em cima do dreno. Subiu-me às narinas um forte cheiro a excreções e a urina.
Ele aproximou-se.
Então? Não queres que eles te encontrem com a toga cheia de mijo, misturado com o sangue, pois não?
Apareceu por trás dele uma figura, outro espectador que viera utilizar os drenos. Pensei que Gláucia se voltasse apenas por um instante, o suficiente para eu poder empurrá-lo, talvez dando-lhe um pontapé entre as pernas mas Gláucia limitou-se a sorrir-me e a erguer a lâmina para que o recém-chegado pudesse vê-la. O outro desapareceu sem fazer o menor ruído.
Gláucia abanou a cabeça.
Depois disto, não posso continuar a permitir-te escolher disse ele. Vou ter de ser rápido.
Ele era grande. Também era desajeitado. Atacou-me mas eu consegui escapar-lhe com surpreendente facilidade. Tirei o meu próprio punhal, pensei que talvez acabasse por não ter de o utilizar, pelo menos se conseguisse simplesmente fugir dele. Corri para a saída, escorreguei no chão coberto de mijo e caí de bruços sobre as pedras duras.
A faca caiu-me da mão e deslizou para longe. Eu arrastei-me desesperadamente atrás dela. Ainda estava à distância de um braço quando algo enormemente poderoso me atingiu nos ombros e me empurrou para baixo.
Gláucia deu-me vários pontapés nas costelas e depois virou-me ao contrário. O seu rosto sorridente, avultando-se enormemente à medida que ele se inclinava sobre mim, era a coisa mais feia que eu já tinha visto. Então é assim que vai ser, pensei eu: não vou morrer de velhice com uma Betesda desdentada a grasnar-me ao ouvido e o perfume do jardim nas narinas, mas sufocado pelo fedor de uma latrina por limpar, com um assassino hediondo a babar-se sobre a minha cara e o eco da voz de Cícero a zumbir-me nos ouvidos.
Ouvi o som de uma coisa a deslizar, como uma faca a escorregar em cima de pedras, e senti um objecto afiado a tocar-me o lado. Pensei honestamente, com aquele tipo de fé reservado às mais puras vestais, que o meu punhal tinha de algum modo resvalado em direcção a mim, simplesmente porque eu o desejara. Talvez tivesse estendido a mão para agarrá-lo, se não estivesse a utilizar ambos os braços numa tentativa fracassada de manter Gláucia longe de mim. Olhava-o fixamente nos olhos, fascinado pelo ódio puro que neles via. Subitamente, ele olhou para cima e, no instante seguinte, vi uma pedra do tamanho de um pão embater contra a sua cabeça coberta com uma ligadura, como se saísse do cérebro, da mesma maneira que Minerva saiu da testa de Júpiter. Ali permaneceu, como se tivesse ficado colada pelo sangue que começou abruptamente a correr daquele ponto, não, o que ali mantinha a pedra eram duas mãos que a tinham feito cair sobre aquele ponto. Ergui os olhos e avistei Tiro de pernas para o ar, contra um fundo de céu azul.
Ele não parecia satisfeito por me ver. Sibilava qualquer coisa sem parar, uma vez e outra, até que a minha mão (mas não os meus ouvidos) apreendeu finalmente a palavra faca. Não sei como, voltei o braço para trás com uma inclinação impossível, agarrei na minha faca, que se encontrava no local para onde Tiro a atirara com um pontapé, e cravei-a de cima para baixo diante do meu peito. Não há, mas devia haver, palavra em latim que descreva a estranha sensação de reconhecimento que senti, como se já alguma vez tivesse feito exactamente a mesma coisa. Tiro ergueu a pesada pedra e voltou a bater com ela na cabeça já esmagada de Gláucia, e o gigante caiu como uma montanha em cima de mim, empalando o seu coração que explodia contra toda a extensão da lâmina de Eco.
Não continueis a permitir que esta preversão espreite sobre a terra, gritava uma voz distante. Expulsai-a! Negai-a! Rejeitai-a! Ela conduziu muitos Romanos a uma morte terrível. Mas, pior do que isso, destituiu-nos da nossa coragem. Ao rodear-nos de crueldade, hora após hora, dia após dia, entorpeceu-nos; sufocou por completo a piedade de um povo que já foi conhecido como o mais misericordioso do mundo. Quando, em todos os momentos e em todas as direcções, vemos e ouvimos actos de violência; quando nos sentimos perdidos numa implacável tempestade de crueldade e dolo; então, mesmo os mais amáveis e dóceis podem perder qualquer semelhança com a compaixão humana.
Houve uma pausa, e em seguida ouviu-se um enorme trovejar de aplausos. Confuso e coberto de sangue, pensei por um momento que a ovação era para mim. Afinal, as paredes da latrina pareciam-se um pouco com os muros de uma arena, e Gláucia estava tão morto como qualquer gladiador morto. Mas, ao erguer os olhos, apenas pude avistar Tiro, que endireitava a túnica com um olhar de desespero e de desgosto.
Ausentei-me durante a conclusão! lançou ele. Cícero vai ficar furioso. Por Hércules! Pelo menos não estou sujo de sangue. E assim se virou e desapareceu, deixando-me enterrado por baixo de uma enorme e palpitante massa de carne morta.
Cícero ganhou o caso. Uma maioria esmagadora dos setenta e cinco juizes, incluindo o pretor Marco Fânio, votou a favor da absolvição de Sexto Róscio da acusação de parricídio. Só os mais ferozes sulistas, incluindo uma mão cheia de novos senadores que tinham sido directamente nomeados pelo ditador, votaram a favor da condenação.
A multidão ficou igualmente impressionada. O nome de Cícero espalhou-se por toda a Roma, juntamente com bocados e partes do seu discurso. Durante dias, quem passasse pelas janelas abertas de uma taberna ou da oficina de um ferreiro ouviria homens que nem sequer tinham estado presentes repetir alguns dos golpes que Cícero tinha infligido a Sula ou falar da sua audácia em atacar Crisógono. Os seus comentários sobre a vida do campo e a vida de família, o seu respeito pelos deveres filiais e pelos deuses eram salientados com aprovação. De um dia para o outro, ele ganhou uma reputação de Romano corajoso e piedoso, de defensor da justiça e da verdade.
Nessa noite, houve uma pequena celebração em casa de Cecília Metela. Rufo estava presente, brilhante e triunfante, e bebendo um pouco em demasia. Também lá estavam aqueles que se tinham sentado ao lado de Cícero no banco do acusado, Marco Metelo e Públio Cipião, juntamente com alguns outros que, de uma maneira ou de outra, tinham auxiliado a defesa nos bastidores. Sexto Róscio estava reclinado num canapé, à direita da sua anfitriã; a sua mulher e a filha mais velha estavam modestamente sentadas em cadeiras, atrás dele. Tiro recebeu autorização para se sentar atrás do seu senhor, de maneira a poder participar na celebração. Até eu fui convidado e foi-me atribuído um canapé e um escravo que me trazia guloseimas da mesa.
Róscio podia ser o convidado de honra, mas toda a conversa girou à volta de Cícero. Os outros advogados citaram as melhores passagens do discurso com elogios efusivos; apontavam o desempenho de Erúcio com sarcasmo devastador e riam-se alto ao recordar a expressão que ele fizera quando Cícero se atreveu a pronunciar pela primeira vez o nome do Louro de Nascença. Cícero aceitava os seus louvores com jovial modéstia. Consentiu em beber um pouco de vinho; foi necessário muito pouco para lhe levar cor às faces. Pondo de lado as suas precauções habituais e certamente faminto, em consequência dos jejuns e do cansaço, comeu como um cavalo. Cecília louvou-lhe o apetite e disse que ainda bem que ele permitira que se organizasse uma festa de vitória pois, de outra maneira, todos os acepipes que ela ordenara aos criados que preparassem antecipadamente urtigas e castanholas do mar, trouxas em espargos, peixes púrpura em múrex, bicos de figo em compota de fruta, tetas de porca estufadas, pastéis de gordura de aves, patos, javalis e ostras, nauseam teriam acabado por ser lançadas numa álea da Subura, para os pobres.
Comecei a perguntar a mim próprio, depois de ter mandado o escravo servir-me pela terceira vez de cogumelos da Bitínia, se a comemoração não seria um pouco prematura. Certamente que Sexto Róscio recuperara a sua vida, mas permanecia no limbo, com as propriedades nas mãos dos seus inimigos, os seus direitos como cidadão cancelados pela proscrição, o assassínio do seu pai por vingar. Escapara à destruição, mas que possibilidades tinha de vir a conseguir ter uma vida decente? Os seus advogados não estavam com disposição para se preocuparem com o futuro. Eu mantive a boca cerrada, excepto para me rir das suas piadas ou para comer mais cogumelos.
Toda a noite Rufo olhou para Cícero com um desejo apaixonado que parecia invisível aos olhos de todos, excepto aos meus; depois de ter assistido ao desempenho de Cícero naquele dia, como podia eu ridicularizar o ardor não correspondido de Rufo? Tiro parecia muito satisfeito, rindo-se com todas as piadas, e mostrando-se mesmo suficientemente arrojado para lançar ele próprio algumas mas, de vez em quando, olhava para Róscia com os olhos cheios de dor. Róscia recusava-se teimosamente a devolver-lhe o olhar. Estava sentada na sua cadeira, muito rígida e infeliz, nada comendo, e acabou por pedir licença ao seu pai e à sua anfitriã para se retirar. Enquanto se afastava apressadamente da sala, começou a chorar. A mãe ergueu-se e foi a correr atrás dela.
A saída de Róscia iniciou um peculiar contágio de choro. A primeira a ser atingida foi Cecília, que bebia mais depressa do que qualquer outro. Toda a noite ela parecera cheia de vivacidade e de risos. A saída de Róscia fê-la mergulhar num súbito pavor.
Eu sei disse ele enquanto ouvia Róscia a soluçar no corredor, eu sei por que chora a rapariga. Sei sim. Acenou ebriamente com a cabeça. Está com saudades do seu querido, querido e velho avô. Oh, que homem tão amável ele era. Não devemos esquecer o que realmente nos juntou aqui esta noite a morte prematura do meu queridíssimo, queridíssimo Sexto. Meu amado Sexto. Quem sabe, se eu não tivesse sido estéril todos estes anos... Ergueu o braço e tocou desajeitadamente no cabelo, picando-se no alfinete de prata. Uma gota de sangue escorreu-lhe da ponta do dedo. Ela olhou para a ferida estremecendo e começou a chorar.
Rufo colocou-se imediatamente ao seu lado, para evitar que dissesse alguma coisa de que pudesse vir a envergonhar-se.
Depois foi Sexto Róscio quem começou a chorar. Lutou contra isso, mordendo os nós dos dedos e contorcendo o rosto, mas as lágrimas não queriam parar. Corriam-lhe pelo rosto até ao pescoço, pingando sobre as urtigas do mar que tinha no prato. Ele fungou, inspirando profundamente, e expeliu o ar num gemido longo e arrepiante. Cobriu o rosto com as mãos e entregou-se a um choro convulsivo. Atirou o prato ao chão; um escravo apanhou-o. Os seus soluços eram fortes e chocantes, semelhantes aos zurros de um burro. Foi necessário que ele a repetisse muitas vezes antes que eu reconhecesse a palavra que pronunciava sem parar:
Pai, Pai, Pai...
Tinha mantido a sua disposição habitual durante a maior parte da noite calado e sorumbático, só ocasionalmente consentindo em sorrir quando todos nos rebolávamos de riso ao ouvir uma piada inteligente contra Erúcio ou contra Crisógono. Mesmo quando o veredicto foi anunciado, contou-me Rufo, ele permaneceu estranhamente impassível. Tendo vivido tanto tempo sujeito ao terror, manteve o seu alívio controlado até ele explodir sozinho. Era por isso que chorava.
Pelo menos foi o que eu pensei.
Parecia a altura ideal para partir.
Públio Cipião, Marco Metelo e os seus nobres amigos deram-nos as boas-noites e foram-se embora, cada um com o seu destino; Rufo ficou com Cecília. Eu estava ansioso por ir dormir para a minha cama, mas Betesda ainda estava em casa de Cícero e a Subura era longe. Com a bondosa animação resultante do seu êxito, Cícero insistiu em que eu passasse uma última noite sob o seu tecto.
Se eu não tivesse ido com ele, esta história teria acabado aqui, entre meias-verdades e conjecturas falsas. Em vez disso, caminhei ao lado de Cícero, flanqueado pelos seus portadores de tochas e guarda-costas, atravessando o Fórum iluminado pelo luar e subindo o Capitolino até chegarmos a sua casa.
Foi assim que finalmente me confrontei com o mais afortunado dos homens vivos. Foi assim que vim a conhecer a verdade de que até então só vagamente suspeitara.
Cícero e eu conversávamos amenamente sobre nada de especial a longa temporada de calor, a austera beleza de Roma iluminada pela lua cheia, os cheiros que enchiam a cidade à noite. Virámos a esquina e entrámos na rua onde ele vivia. Foi Tiro quem primeiro reparou na comitiva acampada como um pequeno exército diante da entrada da casa de Cícero. Puxou ligeiramente a toga do seu senhor e apontou, de boca aberta.
Vimos a companhia antes de eles nos verem a nós a liteira vazia e os carregadores encostados a ela de braços cruzados, os carregadores de tochas desleixadamente sentados contra o muro, segurando as chamas em ângulos preguiçosos. A essa luz tremeluzente, alguns subalternos jogavam trígono na borda do passeio, enquanto os secretários os olhavam de lado e escrevinhavam em pergaminhos. Viam-se ainda uns quantos guardas armados. Foi um deles que nos viu parar na extremidade da rua e deu uma cotovelada a um escravo dispendiosamente vestido, que estava ocupado a apostar nos jogadores de trígono. O escravo levantou-se e caminhou altivamente e a passos largos na nossa direcção.
És o orador Cícero, o dono desta casa?
Sou.
Finalmente! Perdoa-nos esta companhia acampada à porta de tua casa parecia não haver outro sítio para instalar toda a gente. E certamente que perdoarás ao meu senhor por vir fazer-te uma visita a esta hora da noite; na verdade, há bastante tempo que estamos aqui, desde o pôr do Sol, à espera do teu regresso.
Estou a ver disse Cícero obtusamente. E quem é o teu senhor?
Está à tua espera lá dentro. Eu convenci o teu porteiro de que era absurdo obrigar Lúcio Sula a ficar à porta ainda que o seu anfitrião não estivesse em casa para recebê-lo. Vem, por favor. O escravo recuou e fez-nos um gesto para que o seguíssemos. O meu senhor está à espera há muito tempo. Ele é um homem muito ocupado. Os teus carregadores de tochas e os teus guarda-costas podem ficar aqui acrescentou ele implacavelmente.
Ao meu lado, Cícero inspirava profunda mas irregularmente, como um homem que se prepara para mergulhar em água gelada. Imaginei que conseguia ouvir o bater do seu coração no silêncio da noite, até perceber que se tratava do meu. Tiro continuava agarrado à toga do seu senhor. Mordeu os lábios.
Não te parece, senhor ele não se atreveria, dentro da tua casa...
Cícero mandou-o calar levando o indicador aos lábios. Avançou, indicando aos guarda-costas que ficassem ali. Tiro e eu seguimo-lo.
Quando entrámos em casa, os membros da comitiva de Sula regressaram às suas ocupações, lançando-nos apenas olhares rápidos e sombrios, como a culpa pelo seu tédio fosse nossa. Tiro adiantou-se para abrir a porta. Depois espreitou lá para dentro, como se esperasse ver uma fileira de punhais erguidos.
Mas não se via ninguém no vestíbulo, à excepção do Velho Tiro, que arrastou os pés até junto de Cícero, em pânico.
Senhor...
Cícero acalmou-o com um aceno de cabeça e um toque no ombro, e nós prosseguimos.
Eu esperava que houvesse mais elementos da comitiva de Sula dentro de casa mais guarda-costas, mais secretários, mais aduladores e sicofantas. Mas a casa estava povoada apenas pelo pessoal de Cícero, que se encostava às paredes tentando fingir que era invisível.
Encontrámo-lo sentado sozinho no escritório, debaixo de uma lamparina acesa, com uma taça meio vazia de papas de trigo na mesa ao lado e um rolo de pergaminho no regaço. Ergueu os olhos quando nós entrámos. Não parecia impaciente nem sobressaltado, mas apenas vagamente entediado. Pôs o pergaminho de lado e ergueu uma sobrancelha.
És um homem de considerável erudição e razoável bom gosto, Marco Túlio Cícero. Embora tenha encontrado nesta sala demasiadas obras aborrecidas e secas sobre gramática e retórica, fiquei satisfeito por ver uma excelente colecção de peças, especialmente de autores gregos. E, embora me pareça que coleccionas intencionalmente os piores poetas latinos, poderás ser perdoado por esse facto considerando que tiveste o discernimento de escolher este extraordinário exemplar de Eurípides da oficina de Épicles em Atenas, segundo vejo. Quando era jovem, tive a fantasia de vir a ser actor. Sempre pensei que poderia ser um comovedor Penteu. Ou parece-te que seria preferível como Dioniso? Conheces bem As Bacantes!
Cícero engoliu com dificuldade.
Lúcio Cornélio Sula, sinto-me muito honrado por teres vindo a minha casa...
Deixa-te de tolices! cortou Sula, apertando os lábios. Era impossível dizer se estava irritado ou divertido. Não está aqui mais ninguém. Não gastes o teu fôlego e a minha paciência com formalidades sem sentido. O facto é que estás profundamente perturbado por vires encontrar-me aqui, e gostarias que eu me fosse embora o mais depressa possível.
Cícero separou os lábios e fez um ligeiro aceno de cabeça, incerto sobre se havia de responder ou não.
Sula voltou a fazer a mesma cara semidivertida, semi-irritada. Ondulou a mão impacientemente pela sala.
Penso que há cadeiras suficientes para todos. Sentem-se. Tiro puxou nervosamente uma cadeira para Cícero e outra para mim e depois sentou-se à direita do seu senhor, observando Sula como se ele fosse um réptil exótico e perigoso.
Eu nunca observara Sula tão de perto. A luz da lamparina do alto lançava sombras persistentes no seu rosto, alinhando-lhe rugas na boca e fazendo-lhe brilhar os olhos. A sua enorme juba leonina, que já fora famosa pelo seu lustro, tornara-se vulgar e apagada. A sua pele estava manchada e descolorida, salpicada de cicatrizes e cauterizada com veias vermelhas, finas como pêlos de abelha. Tinha os lábios secos e gretados. De uma das narinas saía-lhe um tufo de pêlos pretos.
Era apenas um general idoso, um debochado envelhecido, um político cansado. Os seus olhos já tinham visto tudo e nada temiam. Tinham assistido a todos os extremos de beleza e de horror e já nada os impressionava. Contudo, ainda havia neles uma fome, algo que quase pareceu saltar e agarrar-me o pescoço quando ele se voltou para mim.
Tu deves ser Gordiano, aquele a quem chamam o Descobridor. Óptimo, ainda bem que estás presente. Também queria conhecer-te.
Olhou preguiçosamente de Cícero para mim e depois outra vez para Cícero, rindo-se de nós por trás dos olhos, testando a nossa paciência.
Podeis adivinhar por que estou aqui disse por fim. Um certo caso legal sem importância que hoje foi discutido na Rostra. Eu mal tinha tido conhecimento do assunto, quando ele chamou bruscamente a minha atenção à hora do almoço. Um escravo do meu caro liberto Crisógono entrou a correr, agitado e alarmado, delirando sobre uma catástrofe no Fórum. Eu estava ocupado a devorar um peito de pavão bem temperado; a notícia provocou-me uma forte indigestão. Esta papa de aveia que a tua criada da cozinha me trouxe não é má é macia e sedativa, tal como os médicos me recomendam. Claro que podia ter sido envenenada, mas a verdade é que não estavas à espera da minha visita, pois não? Seja como for, sempre preferi mergulhar no perigo sem pensar muito nisso. Nunca chamei a mim próprio Sula, o Sábio, mas apenas Sula, o Afortunado, o que me parece muito melhor.
Meteu o dedo indicador na papa de aveia durante um momento, depois subitamente varreu a mesa com o braço e a taça e a papa esparramaram-se no chão. Um escravo entrou a correr vindo do corredor. Viu a cara de Cícero, pálido e de olhos escancarados, e desapareceu rapidamente.
Sula meteu o dedo na boca e tirou-o limpo, prosseguindo em seguida, numa voz calma e melodiosa:
Que luta parece ter sido para ambos, fossar e farejar a verdade acerca desses Róscios repugnantemente insignificantes e dos repugnantemente insignificantes crimes que eles cometeram uns contra os outros. Disseram-me que passastes hora após hora, dia após dia à procura de factos; que tu, Gordiano, foste até essa Améria esquecida pelos deuses e voltaste, que chegaste a pôr a tua vida em perigo mais do que uma vez, tudo isso em troca de umas meras parcelas da verdade. E ainda não conheceis toda a verdade como uma peça a que faltam cenas inteiras. Não é divertido? Até hoje, eu nunca tinha sequer ouvido mencionar o nome de Sexto Róscio, mas bastaram-me umas horas na realidade, foram uns minutos para descobrir tudo aquilo que vale a pena saber acerca do caso. Limitei-me a convocar determinadas pessoas e a exigir que a história me fosse narrada por inteiro. Às vezes penso que a justiça seria muito mais simples e mais fácil nos tempos do Rei Numa.
Sula fez uma pausa e brincou com o rolo de pergaminho que tinha no regaço. Acariciou os pontos que ligam as folhas e passou os dedos sobre o pergaminho macio, depois subitamente amarrotou-o numa bola e lançou-o para o outro lado da sala. Ele foi cair em cima de uma mesa de rolos, deitando-os todos ao chão. Sula continuou, imperturbável.
Diz-me, Marco Túlio Cícero, qual era a tua intenção quando concordaste em ir defender o caso deste homem perverso no tribunal? Foste um agente voluntário dos meus inimigos, ou foram eles que te enganaram, levando-te a tomar essa atitude? És profundamente esperto ou absurdamente estúpido?
A voz de Cícero estava seca como um pergaminho:
Pediram-me que representasse um homem inocente contra uma acusação ultrajante. Se a lei não é o último refúgio do inocente...
Inocente? Sula inclinou-se para diante. O seu rosto ficou mergulhado nas trevas. A lamparina criava uma auréola sobre o seu cabelo colorido de fogo. Foi isso que te disseram os meus queridos e velhos amigos, os Metelos? Uma família muito antiga e muito importante, esses Metelos. Tenho andado à espera que eles me esfaqueiem pelas costas desde que me divorciei da filha de Delmático quando ela estava a morrer. Que outra coisa podia eu fazer? Foram os adivinhos e os pontífices que insistiram; eu não podia permitir que ela poluísse a minha casa com a sua doença. E é assim que os meus antigos parentes se vingam de mim utilizando um advogado sem família e com um nome que faz rir para me embaraçar nos tribunais. De que vale ser ditador quando a própria classe das pessoas a quem tanto nos esforçamos por agradar se volta contra nós em causas mesquinhas?
O que te ofereceram eles, Cícero? Dinheiro? Promessas de patrocínio? Apoio político?
Olhei de esguelha para Cícero, cujo rosto parecia de pedra. Era difícil ter a certeza, porque a luz era muito fraca, mas pareceu-me que os cantos da sua boca começaram a erguer-se num ligeiríssimo sorriso. Tiro também deve ter notado; uma expressão estranha obscureceu-lhe o rosto, como uma premonição de consternação.
Qual deles foi ter contigo, Cícero? Marco Metelo, esse idiota que teve a ousadia de se mostrar ao teu lado no banco dos acusados? Ou foi a sua prima, Cecília Metela, essa velha e louca insomníaca? Ou não foi nenhum dos Metelos, mas um dos seus representantes? Certamente não terá sido o meu cunhado Hortênsio Júpiter sabe que ele representaria o seu pior inimigo por dinheiro, mas teve a esperteza de não se deixar envolver nesta farsa. Lamentavelmente, não posso dizer o mesmo do querido irmãozinho de Valéria, Rufo.
Cícero continuava em silêncio. Tiro enrugou impacientemente o sobrolho e agitou-se.
Sula encostou-se para trás. A luz da lamparina incidiu-lhe na testa e nos olhos, que brilhavam como pedaços de vidro.
Tanto faz. Seja como for, os Metelos recrutaram-te contra mim. Então eles disseram-te que Sexto Róscio estava inocente. E tu acreditaste neles?
Tiro não aguentou mais.
Claro! explodiu. Porque ele está realmente inocente. Foi por isso que o meu senhor o defendeu não foi para se deixar meter no bolso de uma família nobre...
Cícero silenciou-o com um toque suave no pulso. Sula olhou para Tiro e ergueu uma sobrancelha apreciativa, como se tivesse reparado nele pela primeira vez.
O escravo não é suficientemente belo para lhe ser permitida semelhante insolência. Se fosses um verdadeiro Romano, Cícero, mandá-lo-ias espancar imediatamente até à beira da morte.
O sorriso de Cícero vacilou.
Por favor, Lúcio Sula, perdoa-lhe a sua impertinência.
Então responde à minha pergunta em vez de deixares o teu escravo responder por ti. Quando te disseram que Sexto Róscio estava inocente, acreditaste neles?
Acreditei suspirou Cícero. Juntou as pontas dos dedos e flectiu os nós dos dedos. Olhou para mim de forma breve, e depois para os nós dos dedos. A princípio.
Ah! Agora era Sula que exibia um leve e imprescrutável sorriso. Bem me parecia que eras demasiadamente esperto para te deixares enganar durante muito tempo. Quando percebeste a verdade?
Cícero encolheu os ombros.
Suspeitei dela quase desde o princípio, mas isso não teve qualquer importância. Continua a não haver provas de que Sexto Róscio tenha conspirado com os primos para mandar assassinar o velho.
Não há provas. Sula riu-se. Vocês, os advogados! As provas estão sempre de um lado. E do outro está a verdade. Abanou a cabeça. Esses loucos gananciosos, Cápeto e Magno, pensaram que conseguiam fazer com que o primo Sexto fosse condenado sem confessarem a sua participação no crime. Como é possível que Crisógono se tenha misturado com esse lixo?
Não compreendo murmurou Tiro. A sua expressão seria cómica se não fosse traída por tanta dor e confusão. Tive pena dele. Tive pena de mim próprio. Até àquele momento, esforçara-me por me agarrar à mesma ilusão em que Tiro se apoiara sem qualquer esforço a crença de que o nosso trabalho a favor de Sexto Róscio tinha um objectivo mais elevado do que a política ou a ambição, de que tínhamos servido algo que se chamava justiça. Ou seja, a crença de que Sexto Róscio estava inocente.
Sula ergueu uma sobrancelha e resmungou:
O teu insolente escravo não compreende, Cícero. Não és um romano iluminado? Não atendes à educação do rapaz? Explica-lhe.
Cícero baixou os olhos e estudou os dedos.
Pensei que já conhecesses a verdade, Tiro. Pensei que já tivesses percebido tudo. A sério que sim. Gordiano sabe, julgo eu. Não sabes, Gordiano? Ele vai explicar. É para isso que eu lhe pago.
Tiro olhou para mim com uma tal expressão de súplica, que eu comecei a falar contra a minha vontade.
Foi tudo por causa da prostituta disse eu. Lembras-te da jovem chamada Elena, que trabalhava na Casa dos Cisnes?
Sula acenou gravemente, mas ergueu um dedo para interromper.
Saltaste um passo da história. O irmão mais novo...
Sim, Gaio Róscio. Assassinado pelo irmão em casa de ambos, em Améria. Talvez os vizinhos tenham sido enganados, mas os sintomas não foram provocados pela conserva de cogumelos.
Colocíntio sugeriu Cícero.
Abóbora selvagem. É possível disse eu, especialmente em conjunção com um veneno saboroso. Certa vez, houve um incidente semelhante em Antioquia, com sintomas muito semelhantes os vómitos de bílis clara, seguidos por um acesso de sangue e pela morte imediata. Talvez já nessa altura Sexto conspirasse com o seu primo Magno. Um homem com as ligações de Magno tem facilidade em encontrar exactamente esse tipo de veneno em Roma, se estiver disposto a pagar por isso.
Quanto ao motivo, Sexto Róscio pater tencionava quase de certeza deserdar o filho mais velho a favor de Gaio, ou pelo menos Sexto filius estava convencido disso. Um crime vulgar com um motivo vulgar. Mas as coisas não acabaram por aqui.
Talvez o velho tivesse suspeitado de que Sexto matara Gaio. Talvez apenas o detestasse tanto, que andava à procura de uma desculpa para o deserdar. Ao mesmo tempo, estava a ficar apaixonado pela bela prostitutazinha, Elena. Quando ela ficou grávida, quer o filho fosse de Róscio, quer não, o velho planeou um esquema para comprá-la, libertá-la e adoptar a criança, nascida livre. Evidentemente que não podia comprá-la imediatamente; o mais provável é ter estragado o negócio o dono do bordel apercebeu-se da sua ânsia e elevou absurdamente o preço, pensando aproveitar-se de um velho viúvo confuso e apaixonado. Isto são apenas especulações...
São mais do que especulações disse Sula. Há, ou havia, provas concretas: uma carta endereçada ao filho e ditada pelo velho Róscio ao seu escravo Félix, que portanto conhecia o seu conteúdo. De acordo com Félix, o velho estava bêbedo e furioso. Na carta, ameaçava explicitamente fazer aquilo que descreveste deserdar Sexto Róscio a favor de um filho ainda por nascer. O documento foi posteriormente destruído, mas o escravo recorda-se dele.
Sula fez uma pausa para me permitir continuar. Tiro olhou para Cícero, que não lhe devolveu o olhar, e depois desesperadamente para mim.
Então, Sexto Róscio decidiu matar o pai disse eu. Claro que não podia fazê-lo pessoalmente, e outro envenenamento seria muitíssimo suspeito; além disso, os dois estavam tão distantes que não era fácil ele ter acesso a casa do velho. Por isso, pediu ajuda aos seus primos, Magno e Cápeto. Talvez eles o tivessem ajudado no envenenamento de Gaio. Talvez já tivessem insistido com Sexto para que se livrasse do pai. Começaram os três a conspirar. Sexto herdaria as propriedades do pai e mais tarde pagaria aos primos. Deve ter havido garantias...
Houve de facto disse Sula, fizeram um contrato escrito. Uma declaração de intenções, chamemos-lhe assim, de se livrarem do velho Róscio, em triplicado, assinada pelos três. Com uma cópia para cada um, para que todos pudessem chantagear-se uns aos outros se as coisas corressem mal.
Mas as coisas correram mal disse eu.
Sim. Sula dobrou o lábio, como se tudo aquilo fedesse. Depois do assassínio, Sexto Róscio tentou enganar os primos. Passou a ser o único proprietário dos bens por herança; como poderiam eles apoderar-se do que era dele, se o documento que todos tinham assinado era igualmente incriminador para os três? Sexto Róscio deve ter achado que era muito esperto; que louco foi, ao tentar quebrar o acordo com abutres como aqueles.
Sula inspirou e prosseguiu.
Parece que foi Cápeto quem se lembrou da falsa proscrição; Magno conhecia Crisógono de uma transacção obscura qualquer e abordou-o quantas vezes eu avisei aquele rapaz, para que não deixasse a avareza turvar-lhe a lucidez? Pois bem! Os bens foram proscritos e passaram para o Estado; Crisógono comprou-os ele próprio e partilhou-os com Cápeto e Magno conforme fora antecipadamente acordado. Sexto Róscio foi deixado ao frio. Que tolo se deve ter sentido! Que podia ele fazer? Correr às autoridades, acenando com um pedaço de papel que o implicava, juntamente com os outros, no assassínio do seu pai?
Claro que havia sempre a possibilidade de, num ataque de loucura ou de culpa, ele fazer precisamente isso, pelo que Cápeto permitiu a Sexto que permanecesse na velha propriedade da família, onde poderia vigiá-lo, vivendo num estado de pobreza e de humilhação. Os ressentimentos que estes primos do campo albergam uns contra os outros!
Tiro, não se atrevendo a dirigir-se a Sula, olhou para mim.
E Elena?
Eu abri a boca para falar, mas Sula estava demasiadamente envolvido na narrativa para passar a história a outro.
Entretanto, Sexto Róscio maquinava para recuperar os seus bens, de uma maneira ou de outra. Isto significava que o filho da prostituta poderia, de alguma forma, vir um dia a ser seu rival, ou pelo menos seu inimigo. Imagina-o matutando, dia após dia, na inutilidade do seu crime, na vileza de tudo aquilo; nas amarguras da Fortuna, na sua própria culpa, na ruína da sua família. E tudo por causa de Elena e do seu filho, que ele próprio envolvera na conspiração para matar o pai! Quando o bebé nasceu, Róscio matou-o com as suas próprias mãos.
E também poderia ter morto Elena disse eu.
Não seria grande vergonha manchar as mãos com mais sangue, depois de todos os seus crimes disse Sula, e eu percebi de que ele não dera conta da ironia das suas palavras, pronunciadas por uma pessoa mergulhada até ao pescoço no sangue de outros. Pouco depois, os primos conseguiram apoderar-se do exemplar de Sexto do acordo que os incriminava. Sem isso, ele estava indefeso; não tinha controlo sobre eles. Certamente estariam a considerar diferentes maneiras de o assassinar, e à sua família, quando ele fugiu, primeiro para casa de um amigo, em Améria, um certo Tito Mégaro, e depois para casa de Cecília Metela, em Roma. Tendo ele escapado às suas garras, o único recurso dos primos era destruí-lo através da lei. Uma vez que ele era realmente culpado da morte do pai, pensaram ingenuamente que poderiam reconstruir uma narrativa dos acontecimentos que os deixasse de fora do quadro. E claro que contavam com a intimidação que o nome de Crisógono constituiria para afastarem quaisquer oradores competentes de constituírem uma defesa se a questão acabasse por chegar a tribunal. Por esta altura, Sexto Róscio estava de tal maneira perturbado, que eles esperavam que ele viesse a suicidar-se, ou talvez se limitasse a confessar a sua própria culpa e a não constituir defesa.
Estavam obscenamente autoconfiantes disse Cícero suavemente.
Estavam? disse Sula absorto. A sua voz tinha um tom sinistro e pensativo. Mas não excessivamente. Se este julgamento tivesse tido lugar há seis meses, achas que o advogado de defesa se teria atrevido a pronunciar o nome de Crisógono? A mencionar o meu nome? A falar das proscrições? Achas que uma maioria de juizes de um dos tribunais reconstruídos por mim se teria atrevido a exibir a sua independência? Cápeto e Magno estavam simplesmente atrasados seis meses, é tudo. Há seis meses, os Metelos não teriam erguido um dedo para salvar Sexto Róscio. Mas agora sentem que o meu poder está a passar; agora decidiram testar os limites do meu prestígio e ofender-me com uma derrota em tribunal. Como se irritam estas famílias antigas e poderosas por estarem submetidas à mão firme de um ditador, embora eu sempre tenha utilizado o meu poder para enriquecer os seus cofres e manter controladas as massas invejosas. Querem ficar com tudo tal como Magno e Cápeto. Estás assim tão orgulhoso por teres sido o seu campeão, Cícero, por teres salvo um parricida sanguinário para poderes dar-me um pontapé nas bolas, tudo em nome de uma virtude romana fora de moda?
Durante muito tempo, Sula e Cícero olharam-se nos olhos, por cima do pequeno espaço que os separava. Subitamente, Sula pareceu-me muito velho e cansado e Cícero muito jovem. Mas foi Cícero quem primeiro baixou os olhos.
O que vai acontecer agora a Sexto Róscio? perguntei eu. Sula recostou e inspirou profundamente.
É um homem livre, exonerado pela lei. É um parricida, um duplo fratricida; tal homem merece viver? Mas, graças a Cícero, o miserável tornou-se uma espécie de herói sofredor, um mesquinho preso a uma rocha. Se lhe bicarmos as entranhas, como merece, o povo ficará ultrajado. Por isso, para Sexto Róscio, a Fortuna será misericordiosa.
Os bens do seu pai não lhe serão devolvidos. Era isso que os meus inimigos mais radicais desejariam ver rescindida uma proscrição devidamente registada, ver o Estado admitir um erro vergonhoso. Não! Isso nunca acontecerá, pelo menos enquanto eu viver. As propriedades de Róscio permanecerão nas mãos de quem as detém, mas...
Sula fez uma careta e mordeu a língua, como se tivesse comido qualquer coisa muito desagradável.
Mas Crisógono entregará voluntariamente a Sexto Róscio outros bens com o mesmo valor daqueles que lhe foram retirados, localizados tão longe de Améria quanto possível. Sexto Róscio, o parricida, voltará a ter a vida que conhecia, o melhor que puder, e longe daqueles que o conheceram no passado; mas a proscrição permanece, e ele será privado das propriedades da sua família e dos seus direitos civis. Sabendo o que sabes acerca do homem, podes realmente dizer que isto é injusto, Cícero?
Cícero mordeu o lábio superior.
E quanto à minha segurança, e à segurança de todos aqueles que o ajudaram? Há homens que não se importam de ser assassinos.
Não haverá mais derramamentos de sangue, não haverá represálias por parte de Magno nem de Cápeto. Quanto à morte misteriosa de um certo Málio Gláucia, cujo corpo foi descoberto ao início do dia numa latrina pública, sem dúvida adequadamente o incidente está encerrado e esquecido. A criatura nunca existiu. Fui perfeitamente firme com os Róscios neste ponto.
Cícero estreitou os olhos.
Um pacto tem sempre dois lados, Lúcio Sula.
Sim, pois tem. De ti espero uma certa contenção, Cícero. Em troca dos meus esforços a favor da tranquilidade e da ordem, tu não acusarás Cápeto nem Magno de assassínio; não haverá queixas oficiais contra a proscrição de Sexto Róscio pater, não serão feitas acusações de processo malicioso contra Gaio Erúcio. Nem tu nem nenhum dos Metelos ou os seus representantes constituirão qualquer espécie de processo contra Crisógono. Digo-to explicitamente, Cícero, para que possas transmiti-lo aos amigos que tens entre os Metelos. Compreendes?
Cícero acenou com a cabeça.
Sula ergueu-se. A idade tinha-lhe desgastado o rosto, mas não lhe tinha encurvado os ombros. Ele parecia encher a sala. Junto dele, Cícero e Tiro pareciam rapazes esguios.
És um jovem inteligente, Marco Túlio Cícero, e certamente que és um esplêndido orador. És estupidamente atrevido ou loucamente ambicioso, ou talvez ambas as coisas és precisamente o tipo de homem que poderia ser-me útil, e aos meus amigos, no Fórum. Estenderia a minha mão para te contratar, mas tu não aceitarias, pois não? A tua jovem cabeça ainda está muito perturbada com ideais vagos defender corajosamente a virtude republicana contra a tirania cruel e coisas assim. Tens ilusões de piedade; ilusões acerca da tua natureza. Os meus outros sentidos poderão estar a abandonar-me, mas ainda sou uma raposa velha e astuta, continuo a ter um faro apurado, e farejo outra raposa nesta sala. Deixa-me dizer-te uma coisa, Cícero: o caminho que escolheste na vida só pode ter um final, que é o lugar onde eu me encontro. O teu caminho poderá não te levar tão longe, mas não te levará a nenhum outro lugar. Olha para mim e vê-te ao espelho, Cícero.
”Quanto a ti, Descobridor... Sula olhou para mim astuciosamente. Não és uma raposa; não; julgo que és um cão, do tipo que anda a desenterrar ossos que os outros cães enterraram. Nunca ficas enojado com toda a lama que te fica presa ao focinho, já para não falar dos vermes que ocasionalmente te entram pelo nariz? Eu próprio poderia contratar-te, mas em breve deixarei de precisar de agentes disfarçados, de juizes subornados ou de advogados espertos.
”Sim, cidadãos, notícias tristes: dentro de poucos dias, anunciarei a minha retirada da vida pública; a saúde começa a faltar-me; e também a paciência. Fiz o que pude para resguardar a velha aristocracia e manter no seu lugar a populaça; que outro assuma a tarefa de salvar a República. Estou ansioso por iniciar uma nova vida no campo passeando, jardinando, brincando com os meus netos. Oh, e terminando as minhas memórias! Não me esquecerei de te enviar um exemplar para a tua biblioteca, Cícero.
Sula fez um sorriso amargo e dirigiu-se para a porta; subitamente, o seu sorriso adoçou-se. Olhava por cima das nossas cabeças, para o corredor. Ergueu uma sobrancelha e empertigou-se um pouco, irradiando encanto.
Rufo, caro rapaz trauteou, que prazer inesperado! Olhei por cima do ombro e vi Rufo parado à porta, desalinhado e sem fôlego.
Lúcio Sula murmurou com um aceno de cabeça, desviando os olhos; emitido o cumprimento formal, voltou-se para Cícero. Perdoa-me disse ele. Vi a comitiva lá fora. Claro que sabia quem devia ser. Talvez devesse ter esperado, mas a notícia... corri todo o caminho para te contar, Cícero.
Cícero franziu a testa.
Contar-me o quê?
Rufo olhou para Sula e mordeu o lábio. Sula riu-se em voz alta.
Caro Rufo, podes dizer o que quiseres nesta sala. Tivemos numa conversa muito franca antes de tu chegares. Nesta República, ninguém pode ter segredos para Sula. Nem sequer o teu querido amigo Cícero.
Rufo fechou a boca e olhou intensamente para o seu cunhado. Cícero interpôs-se entre eles.
Vá lá, Rufo. Diz o que tens a dizer. Rufo inspirou profundamente.
Sexto Róscio... murmurou ele.
Sim?
Sexto Róscio morreu.
Todos os olhos se voltaram abruptamente para Sula, que parecia tão espantado como nós.
Mas como? disse Cícero.
Caiu. Rufo abanou a cabeça, consternado. De uma varanda, nas traseiras da casa de Cecília. É uma altura considerável. A casa está construída sobre uma escarpa pronunciada. Uma estreita escada de pedra serpenteia à volta do declive. Aparentemente, ele tropeçou nos degraus e precipitou-se pelas escadas. Ficou com o corpo horrivelmente quebrado...
O louco! A voz de Sula parecia um trovão. O idiota! Se estava decidido a exterminar-se...
Suicídio? disse Cícero em voz baixa. Mas não temos provas disso. Pela sua expressão, percebia que ele suspeitava da mesma coisa que eu. Sem guardas em casa de Cecília, alguém poderia ter entrado nos aposentos de Sexto Róscio um assassino enviado pelos Róscios, ou por Crisógono, ou pelo próprio Sula. O ditador declarara uma trégua, mas até que ponto podíamos confiar nos seus amigos?
Mas a indignação do próprio Sula parecia ser uma prova da sua inocência.
Claro que foi suicídio lançou ele. Todos sabemos qual era o estado de espírito do homem nos últimos meses. Um parricida, a enlouquecer lentamente! A justiça acabou por prevalecer, e Sexto Róscio foi o seu próprio executor. Sula riu-se sem alegria e depois ficou pálido. Mas, se ele estava decidido a castigar-se, por que esperou para depois do julgamento? Por que não se matou ontem, ou no dia anterior, ou no mês passado, evitando todos estes sarilhos? Abanou a cabeça. Absolvido e vai-se matar. A culpa só toma conta dele depois de um tribunal o ter absolvido. É absurdo, ridículo. O único resultado é o meu embaraço perante Roma inteira! Cerrou o punho, ergueu os olhos ao céu e, numa voz baixa e acusadora, ouvi-o murmurar: Fortuna!
Percebi que estava a assistir a uma discussão entre um homem e o seu génio condutor. Toda a sua vida Sula fora abençoado; glória, riqueza, fama e prazeres da carne, tudo fora seu com um pequeno esforço, e nem o mais pequeno desaire tinha ensombrado o cortejo glorioso da sua carreira. Agora que era velho, que o seu corpo e a sua influência começavam a declinar, a Fortuna, como uma amante entediada, começara a mostrar-se inconstante para com ele, namoriscando com os seus inimigos, aguilhoando-o com pequenas derrotas e reveses triviais que deviam parecer realmente perversos a um homem tão mimado pelo êxito.
Envolveu-se na sua toga e dirigiu-se à porta de entrada, com a cabeça baixa como a proa de um navio de ataque. Quando Cícero e Rufo se afastaram para lhe dar passagem, eu coloquei-me à sua frente, bloqueando-lhe a saída, enquanto mantinha a cabeça humildemente inclinada.
Lúcio Sula, bom Sula, presumo que isto não ponha em causa nenhuma das condições hoje aqui acordadas?
Encontrava-me suficientemente perto dele para o ouvir inspirar vivamente, e para sentir o calor na testa quando ele expirou o ar. Pareceu-me que ele esperou muito tempo antes de responder o bastante para eu contemplar o rápido bater do meu coração e perguntar a mim próprio que louco impulso me levara a tomar esta atitude. Mas a sua voz, ainda que fria, era resoluta e calma.
Nada se alterou.
Então Cícero e os seus aliados continuam imunes à vingança dos Róscios...
Claro.
... e a família de Sexto Róscio, apesar da sua morte, receberá ainda uma recompensa de Crisógono?
Sula fez uma pausa. Eu mantive os olhos desviados.
Claro disse ele por fim. A sua mulher e as suas filhas receberão o que lhes é devido, apesar do seu suicídio.
És misericordioso e justo, Lúcio Sula disse eu, afastando-me da sua frente. Ele partiu sem olhar para trás, nem sequer se preocupando em esperar por um escravo que o acompanhasse até à saída.
Um momento depois, ouvimos o som da porta a ser aberta e fechada com violência, e em seguida a rua encheu-se do barulho da sua comitiva que partia. Depois, tudo voltou a ficar calmo.
No silêncio que se seguiu, a escrava regressou a fim de limpar o lixo feito por Sula. Enquanto ela juntava os cacos da taça de cerâmica, Cícero contemplava abstractamente a porcaria que resultara de Sula ter lançado a papa de aveia contra a parede.
Não mexas nos rolos de pergaminho, Atalena. Devem estar desordenados. Tiro apanha-os mais tarde. Ela acenou com a cabeça, obedientemente, e Cícero começou a andar de um lado para o outro.
Que ironia disse ele por fim. Tantos esforços de todos os lados, e no final até Sula ficou desiludido. Realmente, a quem aproveita?
A ti, por exemplo, Cícero.
Ele olhou para mim com astúcia, mas não conseguiu esconder o sorriso que lhe tremia nos lábios. Do outro lado da sala, Tiro parecia mais confuso e abatido do que nunca.
Rufo abanou a cabeça.
Sexto Róscio suicidar-se. O que queria Sula dizer quando afirmou que se tinha feito justiça, que Róscio se tinha executado a si próprio?
Explico-te tudo a caminho da casa de Cecília disse-lhe eu. A não ser que Cícero prefira ser ele a explicar-te. Olhei de frente para Cícero, que obviamente não se mostrou feliz com essa perspectiva. Ele também poderá explicar-me exactamente até que ponto sabia a verdade quando me contratou. Mas, entretanto, não vejo qualquer razão para aceitar que a queda de Róscio tenha sido um suicídio, pelo menos até ter provas disso.
Rufo encolheu os ombros.
Se assim não for, como explicá-la? A não ser que se tenha tratado de um simples acidente a varanda é traiçoeira e ele tinha estado a beber a noite toda; suponho que pode ter tropeçado. Além disso, quem poderia querer a sua morte naquela casa?
Talvez ninguém. Troquei um olhar furtivo com Tiro. Como poderia qualquer de nós esquecer a amargura e o desespero de Róscia Majora? A absolvição do seu pai tinha-a despojado de qualquer esperança de vingança e de protecção da sua bem-amada irmã. Limpei a garganta e esfreguei os olhos, que sentia pesados. Rufo, se não te importas, regressa comigo a casa de Cecília. Mostra-me como, e onde, morreu Róscio.
Agora? Ele estava cansado e confuso, e tinha aquela ex-pressão de um jovem que bebeu demasiado vinho quando a noite ainda mal começara.
Amanhã será tarde de mais. Os escravos de Cecília podem destruir provas.
Rufo aquiesceu com um aceno cansado.
E Tiro disse eu, respondendo ao pedido que vi nos seus olhos. Ele também pode vir, Cícero?
A meio da noite? Cícero franziu os lábios como prova de desagrado. Oh, está bem.
E tu também, claro.
Cícero abanou a cabeça. O olhar que me lançou era em parte de piedade e em parte de desdém.
Este jogo terminou, Gordiano. Chegou o momento de todos os homens que têm a consciência limpa se entregarem a um repouso bem merecido. Sexto Róscio morreu, e então? Morreu por decisão sua; o próprio Sula-para-quem-não-há-segredos o declarou. Desiste, Gordiano. Segue o meu exemplo e vai-te deitar. O julgamento acabou, o caso terminou. Terminou, meu amigo.
Talvez sim, Cícero disse eu, dirigindo-me ao vestíbulo e fazendo sinal a Rufo e a Tiro para que me seguissem. Ou talvez não.
Deve ter sido daqui, deste ponto exacto murmurou Rufo. A lua cheia incidia nas lajes da varanda e no parapeito de pedra que a rodeava; o parapeito erguia-se até à altura dos joelhos. Espreitando por cima da extremidade, avistei a escada que Rufo mencionara, imediatamente abaixo, a cerca de dez metros; as extremidades polidas e gastas dos degraus brilhavam apagadamente ao luar. A escada dava uma volta e perdia-se na escuridão, rodeada por arbustos altos e um matagal por cuidar, e obscurecida, aqui e ali, por ramos pendentes de carvalhos e salgueiros. O som de gemidos provenientes do interior da casa era transportado pelo ar quente da noite; o corpo de Sexto Róscio tinha sido colocado no santuário da deusa de Cecília, e as jovens escravas carpiam-no com gemidos e choros cerimoniais.
Este parapeito parece terrivelmente baixo disse Tiro, dando um pontapé num dos pequenos pilares, de uma distância segura. Mal bastaria para manter uma criança segura aqui na varanda. Recuou com um arrepio
Sim. Rufo acenou com a cabeça. Fiz a mesma observação a Cecília. Aparentemente, havia um segundo parapeito sobre este, um parapeito de madeira. Ainda estão por aí alguns suportes de metal. A madeira apodreceu e tornou-se perigosa, e alguém mandou tirá-lo. Cecília diz que fazia tenções de o substituir, mas foi adiando o assunto; esta ala da casa esteve vazia durante muito tempo, antes de Sexto e da sua família virem instalar-se aqui. Colocou-se ao meu lado e espreitou cuidadosamente por cima do parapeito. Aquela escada é mais inclinada do que parece daqui. E muito inclinada e está muito gasta, é escorregadia e dura. Já é suficientemente perigosa de descer; mas, para um homem que tivesse caído ou tropeçado... Estremeceu. Ele caiu até meio da colina antes de parar. É ali, estás a ver o sítio, olha através daquela abertura entre as folhas do carvalho, onde a escada faz uma curva apertada. Podes ver exactamente onde foi onde a lua incide no sangue, como se fosse uma poça de óleo preto.
Quem o descobriu? disse eu.
Fui eu. Eu fui mesmo o primeiro a descer e a voltar o corpo.
E como é que isso aconteceu?
Ouvi o grito.
Qual grito? O de Róscio, quando caiu?
Não. O de Róscia, a filha. O quarto dela, que partilha com a irmã mais nova é já ali adiante, na primeira porta quem desce o corredor.
Explica-te, por favor.
Rufo inspirou profundamente. Era óbvio que lutava por manter claros os seus pensamentos confusos.
Eu já tinha ido para o meu quarto aquele em que costumo dormir quando passo cá a noite. É perto do centro da casa, a meio caminho entre os aposentos de Cecília e estes. Ouvi um grito, o grito de uma rapariga, seguido por choros em voz alta. Saí do meu quarto e corri na direcção do som. Encontrei-a aqui na varanda, a tremer e a chorar ao luar, Róscia Majora. Claro que estivera a chorar toda a noite, mas isso não explicava o grito. Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela estremeceu tão violentamente que mal conseguia falar. Então apontou para ali, para o ponto onde o corpo de Róscio finalmente parara. Franziu o sobrolho. Por isso, presumo que tenha sido Róscia quem primeiro descobriu o corpo, mas fui eu que desci para ir ver.
Olhei por cima do ombro para Tiro, que abanou a cabeça tristemente. As suas piores suspeitas pareciam confirmar-se.
E como se explica que Róscia estivesse aqui, exactamente na varanda de onde caiu o seu pai? disse eu.
Também lhe perguntei isso disse Rufo, quando ela finalmente parou de tremer. Aparentemente, tinha acabado de acordar de um pesadelo, e tinha decidido sair para a varanda para apanhar um pouco de ar. Permaneceu aqui durante algum tempo, a olhar para a lua cheia, disse ela, e quando por acaso olhou para baixo...
Viu o corpo do pai, a cento e cinquenta metros ou mais de distância, no meio de uma mistura de folhas, de relva e de pedras?
Não era assim tão improvável disse Rufo defensivamente.
A lua incidia precisamente naquele ponto, eu próprio o avistei imediatamente quando ela apontou. E não era uma visão agradável, ele tinha os membros e o pescoço torcidos de uma forma tão estranha...
Parou e inspirou, compreendendo subitamente. Oh, Gordiano, não estás a pensar que a rapariga...
Claro que foi ela disse Tiro sem expressão, na sombra por trás de nós. A única questão é como conseguiu enganar Sexto, atraindo-o para aqui, para a varanda, embora esteja certo de que não deve ter tido grandes dificuldades.
Não é essa a única questão objectei eu, embora me parecesse meramente pedante considerar todas as possibilidades. Por exemplo, por que gritou ela depois de o ter empurrado, se de facto o empurrou, e especialmente se se tratou de um assassínio premeditado? Por que permaneceu na varanda até alguém a descobrir?
Tiro encolheu desinteressadamente os ombros; já tinha decidido.
Porque estava chocada com a realidade do que tinha feito. Afinal, não passa de uma rapariga, Gordiano, não é uma assassina endurecida. Era também por isso que estava a chorar quando Rufo chegou; o horror por tê-lo feito, o alívio, a visão do corpo desfeito do pai... Oh, estes Róscios! Primos e irmãos e filhos e até filhas, todos desesperados por exterminar a sua própria linhagem. Estou farto deles todos! Terão algum veneno no sangue? Algum desequilíbrio nos humores?
Tiro abanou a cabeça desesperado mas, quando a ergueu e eu pude ver-lhe o rosto, metade ao luar, metade na sombra, aquilo que nele li não foram pensamentos de choque e de horror, mas a memória de algo irrecuperavelmente perdido e excessivamente doce, ao mesmo tempo que doloroso, para se poder suportar.
Voltei-me novamente para o abismo, para o poço profundo de luar e de sombras no qual Sexto Róscio tinha acabado por cair, por sua própria vontade ou pela vontade de outro. Apoiei-me num joelho diante do parapeito e coloquei as mãos sobre ele. Passei casualmente as palmas sobre a superfície biselada, quase perfeitamente lisa à excepção de alguns grãos de pedra que se me agarraram às mãos. Ocorreu-me uma ideia.
Tiro, traz uma lamparina. Aqui, segura-a por cima do parapeito, para que eu possa ver mais de perto. A luz estremeceu e eu olhei para cima e vi Tiro empalidecer por se encontrar muito perto da beira.
Se não consegues deixar de tremer, entrega-a a Rufo. Tiro entregou a lamparina sem hesitação. Chega aqui, Rufo disse eu, segue-me e mantém a luz directamente apontada para o parapeito.
Não magoes o nariz disse Rufo, sentindo a minha excitação e reagindo com uma piada. Afinal, de que estás tu à procura?
Percorremos duas vezes o parapeito, a todo o comprimento, sem êxito. Eu ergui-me e encolhi os ombros.
Era só uma ideia. Se Sexto Róscio tivesse realmente saltado por sua própria vontade, é natural que tivesse começado por trepar para cima do parapeito, e que saltasse daí. Pensei que talvez houvesse um resto de pegada no pó. Mas não.
Virei as mãos para cima junto da lamparina e olhei para a poeira que me cobria as palmas, manchada, aqui e ali, por grãos de cascalho que tinham aderido à carne. Estava para sacudir as mãos quando reparei numas partículas diferentes de todas as outras. Eram maiores e mais brilhantes, com extremidades aguçadas e polidas; não eram cinzentas esbranquiçadas, antes luziam em vermelho forte à luz da lamparina. Virei-as com um dedo e percebi que não se tratava de pedrinhas.
O que é isso? murmurou Rufo, inclinando-se por trás de mim. São pedrinhas manchadas de sangue?
Não disse eu, é uma coisa cor de sangue seco.
Mas isto é sangue! disse Tiro. Enquanto Rufo e eu examinávamos o parapeito, ele tinha ido buscar outra lamparina e observara as lajes da varanda a uma distância segura da extremidade. Aos seus pés, tão insignificantes que não tínhamos reparado nelas, viam-se umas gotas de um líquido escuro. Ajoelhei-me e toquei nelas. As gotas de sangue estavam secas nas orlas, mas ainda estavam húmidas no centro.
Recuei e tracei uma linha recta com a mão.
Aqui, no chão da varanda, estão as gotas de sangue. Aí. diante delas, está o ponto do parapeito onde encontrei este objecto. Segurei o fragmento vermelho cuidadosamente entre o polegar e o indicador. E directamente diante disso, lá em baixo, é o local onde Sexto Róscio bateu nas escadas.
O que significa isso? perguntou Rufo.
Primeiro diz-me uma coisa: quem mais esteve aqui na varanda esta noite?
Só Róscia e eu próprio, tanto quanto sei. E, claro, Sexto Róscio.
Não esteve aqui nenhum escravo? Nem a mulher de Sexto?
Julgo que não.
Nem sequer Cecília Metela? Rufo abanou a cabeça.
Dessa tenha a certeza. Quando fui informá-la do que se passara, ela disse-me que não queria sequer aproximar-se desta ala da casa. Ordenou aos escravos que levassem o corpo de Sexto para o seu santuário para ser purificado.
Estou a ver. Leva-me até junto do corpo.
Mas, Gordiano suplicou Tiro, o que ficaste a saber?
Que Róscia não assassinou o pai.
A sua testa suavizou-se de alívio, depois voltou a enevoar-se de dúvida.
Mas, se ele saltou, como explicas o sangue?
Coloquei os dedos nos lábios. Tiro calou-se obedientemente, mas eu não estava a mandá-lo calar-se; beijava supersticiosamente o pequeno fragmento de prova que segurava entre o polegar e o indicador, e rezava para não estar enganado.
As portas do santuário da deusa de Cecília estavam firmemente cerradas, mas o odor do incenso e os gemidos das escravas sentiam-se no corredor. Ahausarus, o eunuco, estava de guarda e abanou sombriamente a cabeça quando tentámos entrar. Rufo agarrou-me no braço e puxou-me para trás.
Pára, Gordiano. Conheces as regras da casa de Cecília. Nenhum homem será admitido no santuário da deusa.
A não ser que esteja morto? lancei eu.
Sexto Róscio, o filho de Sexto Róscio, foi reclamado pela Deusa grasnou Cecília, que apareceu subitamente atrás de nós. Ela chamou-o para o seu ventre.
Voltei-me e vi uma mulher completamente transformada. Cecília estava de pé, muito direita, com a cabeça orgulhosamente inclinada para trás. Em lugar da estola, vestia um fato leve e solto, tingido do mais profundo preto. O penteado tinha sido desmanchado para a noite e o cabelo caía-lhe sobre os ombros em madeixas longas e onduladas. As diversas camadas de maquilhagem tinham sido limpas. Enrugada e despenteada, exibia ainda assim um vigor e uma determinação que eu nunca vira nela. Não parecia irritada nem satisfeita por nos ver, como se a nossa presença não tivesse qualquer significado.
A deusa poderá ter chamado Sexto Róscio disse eu, mas se não te importares, Cecília Metela, eu gostaria de examinar os seus restos.
Oh, que possível interesse pode o seu corpo ter para ti?
Desejo procurar uma marca. Tanto quanto sei, trata-se da marca da deusa, chamando-o para junto de si.
O seu corpo está todo torcido e voltado do avesso disse Cecília, demasiadamente retalhado para se conseguir ver um ferimento individual.
Mas eu tenho a vista muito apurada disse eu, fixando-a sem desviar os olhos.
Cecília aproximou-se, olhou para mim de esguelha, e acabou por consentir com um aceno de cabeça.
Ahausarus! Diz às raparigas para trazerem o corpo de Sexto Róscio aqui para o corredor. O eunuco abriu as portas e deslizou lá para dentro.
Elas podem com ele? perguntei eu.
Foram elas que transportaram pela escada acima e pelos corredores, até esta sala. Está lua cheia, Gordiano. O poder da deusa investe-as com uma força superior à de qualquer homem.
Um momento depois, as portas do santuário abriram-se para trás. Seis jovens escravas transportaram uma liteira para o corredor, e desceram-na até ao chão.
Tiro assobiou e recuou. Até Rufo, que já tinha visto o cadáver, inspirou rapidamente perante a visão daquilo que restava de Sexto Róscio. As suas roupas tinham sido cortadas, e ele estava nu. O lençol sobre o qual estava deitado estava empapado em sangue. O corpo estava coberto de golpes e de feridas. Muitos dos seus ossos tinham-se partido; em alguns pontos, apareciam através da carne rasgada. Alguém tinha tentado endireitar-lhe os membros, mas não fora possível fazer nada para disfarçar o estado do crânio. Aparentemente, caíra de cara para baixo. Tinha o rosto desfeito e o topo da cabeça era uma confusão de sangue e flegma, ligados por fragmentos de ossos. Incapaz de olhar para ele, Tiro voltou as costas e Rufo baixou os olhos. Cecília olhava firmemente o cadáver, sem qualquer expressão.
Eu ajoelhei-me e voltei o queixo partido; cartilagens e ossos rangeram por baixo dos meus dedos. Passei-lhe os dedos pelo pescoço, por cima de feridas sarapintadas e de acumulações de sangue, e descobri o que procurava pelo tacto.
Rufo, vem ver, e tu também, Tiro. Vêem, neste local onde eu tenho o dedo, um orifício na carne macia mesmo por baixo da laringe?
Parece uma ferida de uma picada arriscou Rufo.
Sim disse eu, uma ferida que podia ter sido feita por um objecto muito fino e aguçado. E, se o voltarmos para este lado Rufo, ajuda-me a empurrar, julgo que encontraremos o par desta ferida na parte de trás do pescoço de Róscio. Sim, aqui está, estás a ver mesmo ao lado da espinha.
Eu ergui-me e limpei o sangue que tinha nas mãos a um pano que uma das jovens escravas me estendeu. Controlei um abrupto ataque de náusea e recuperei o fôlego.
É uma ferida estranha, não achas, Cecília Metela? Não é de modo nenhum consistente com uma colisão a pique, de cabeça, e um trambolhão de umas escadas de pedra. Nem é o tipo de ferida que pudesse ter sido feita por uma faca. Parece ter atravessado o pescoço entrando pela frente e saindo por trás, ou ao contrário, não estou certo. Era um objecto tão fino e aguçado, feito de um metal tão forte, que atravessou por completo a carne e saiu do outro lado. Uma ferida tão limpa que só escorreram do instrumento umas gotas de sangue, que foram cair no chão da varanda. Diz-me, Cecília, já tinhas desfeito o penteado quando encontraste Sexto Róscio na varanda? Ou ainda tinhas o cabelo ao alto, num rolo, seguro por um daqueles longos alfinetes de prata que costumas usar?
Rufo agarrou-me o braço.
Silêncio, Gordiano! Já te disse que Cecília não esteve na varanda esta noite.
Cecília não esteve na varanda depois de Sexto Róscio ter caído. Mas antes disso enquanto tu te preparavas para te deitares, Rufo, e Róscia Majora estava dormir? Ele confessou-te a sua culpa directamente ali na varanda, Cecília, ou ouviste-o murmurar, no seu estupor embriagado?
Rufo apertou-me mais o braço, até começar a magoar-me.
Cala-te, Gordiano! Cecília não esteve na varanda esta noite. Eu libertei o braço e avancei em direcção a Cecília, cuja compostura basilisca não vacilou.
Se ela não esteve na varanda, como se explica que eu tivesse encontrado ali este curioso objecto, ao pé do parapeito? Levantei a coisa minúscula que segurava entre o polegar e o indicador. Cecília, posso ver a tua mão?
Ela ergueu uma sobrancelha, curiosa mas não muito preocupada, e estendeu-me a sua mão direita, voltada para baixo. Eu tomei-a na minha e abri-lhe suavemente os dedos. Rufo e Tiro aproximaram-se de mim, mantendo uma distância respeitosa e espreitando por cima dos meus ombros.
Aquilo que eu procurava não estava ali.
Se eu não tinha razão, tinha ido demasiadamente longe para me cobrir de desculpas. Uma ultrajante ofensa a uma Metela era uma forma espectacular de destruir, pelo menos, a minha reputação e a minha maneira de ganhar a vida. Engoli nervosamente, e olhei Cecília nos olhos.
Não detectei ali nenhum brilho de compreensão, nenhum frémito de divertimento, mas um sorriso frio como gelo atravessava-lhe os lábios.
Penso disse ela num tom de voz suave e sincero que deve ser esta mão que desejas examinar, Gordiano.
Colocou a mão esquerda na minha. Eu suspirei de alívio.
Na extremidade dos seus dedos esbranquiçados, vi cinco unhas perfeitamente envernizadas de vermelho perfeitas, à excepção da unha do indicador, que estava rachada de um dos lados e tinha uma fenda junto da ponta. Peguei no bocadinho de unha vermelha que encontrara na varanda e coloquei-a na fenda, onde ela se adaptava tão perfeitamente como uma noz numa concha.
Então sempre estiveste na varanda esta noite! disse Rufo.
Nunca te disse que não tinha estado.
Mas... então acho que deves explicar-te, Cecília. Insisto em que o faças!
Nesta altura, fui eu que contive Rufo, colocando-lhe o braço suavemente sobre os ombros.
Não são necessárias mais explicações. Sob o seu próprio tecto, Cecília Metela não tem grandes explicações a dar sobre os seus movimentos. Nem sobre as suas motivações. Nem sobre os seus métodos. Olhei para baixo, para o cadáver estropiado. Sexto Róscio morreu, foi chamado pela deusa desta casa para satisfazer a sua própria vingança. Não são necessárias mais explicações. A não ser, evidentemente inclinei a cabeça que a senhora da casa condescendesse em explicar os factos a três indignos suplicantes que fizeram uma viagem longa e cansativa em busca da verdade.
Cecília fez uma longa pausa. Olhando por sua vez para o cadáver de Sexto Róscio, permitiu finalmente que o desagrado que sentia por ele aparecesse no seu rosto.
Levem-no ordenou com um aceno de mão. As jovens escravas acorreram para carregar a liteira novamente para o santuário. Nuvens de incenso escaparam-se por entre meio das portas, quando elas as abriram e fecharam. E tu, Ahausarus reúne os escravos do jardim e manda-os começar a limpar as escadas de trás. Quero que todos os restos do sangue desse homem estejam limpos ao nascer do dia. Inspecciona tu próprio a tarefa!
Mas, Senhora...
Anda! Cecília bateu as palmas e o eunuco partiu, amuado. Depois voltou um olhar desdenhoso para Tiro. Era óbvio que não queria testemunhas supérfluas para a sua confissão.
Por favor disse eu, não mandes embora o escravo. Ela franziu as sobrancelhas, mas acedeu.
Há bocadinho, Gordiano, perguntaste-me se Sexto filius me tinha confessado ser o assassino de seu pai ou se eu o tinha ouvido por acaso. Nenhuma das alternativas está inteiramente correcta. Foi a Deusa que me revelou a verdade. Não por palavras nem através de uma visão. Mas foi a sua mão estou certa disso que me ergueu esta noite do santuário, onde eu me tinha prostrado, e me conduziu através dos corredores à parte da casa onde os Róscios estão alojados.
Ela estreitou os olhos e juntou as mãos. A voz tornou-se-lhe baixa e sonhadora.
Encontrei Sexto filius num dos corredores, cambaleando entorpecido, demasiadamente embriagado para se aperceber sequer de mim na escuridão. Balbuciava sozinho, chorando e rindo-se alternadamente. Ria-se porque fora absolvido e estava livre. Chorava por causa da vergonha e da inutilidade do seu crime. Os seus pensamentos eram incoerentes e desconexos; começava a dizer uma coisa, depois parava, mas não havia engano possível quanto ao significado dos seus delírios. ’Matei o velho, tão certo como se eu próprio tivesse dado os golpes’, não parava ele de dizer, ’maquinei tudo aquilo e fiquei a contar as horas até ele morrer. Assassinei-o, assassinei o meu próprio pai! A justiça teve-me na palma da sua mão e eu escapei!’
”Ao ouvi-lo falar daquela maneira, o sangue começou a latejar-me nos ouvidos. Imaginem o que eu senti, ali escondida na escuridão do corredor, ao ouvir Sexto filius confessar o seu crime, sem ninguém que o testemunhasse, para além de mim própria ninguém senão eu e a Deusa. Nessa altura, senti-a dentro de mim. Sabia o que tinha de fazer.
”Parecia-me que Sexto se encaminhava para o quarto das suas filhas não consigo imaginar porquê; estava de tal maneira embriagado, que presumo que se tivesse perdido. Começou a entrar dentro do quarto, mas isso não me convinha, eu não queria que ele acordasse as raparigas. Assobiei-lhe e ele apanhou um susto horrível. Aproximei-me e ele começou a recuar, com medo. Disse-lhe que saísse para a varanda.
”O luar era terrível, parecia o olho de Diana. Ela saiu para caçar esta noite e Sexto foi a sua presa. O luar capturou-o como se fosse uma rede. Eu exigi-lhe que ele me dissesse a verdade. Ele olhou para mim; percebi que estava a avaliar que possibilidades teria de me mentir, como tinha mentido a toda a gente. Mas o luar era demasiadamente forte. Riu-se. Chorou. Olhou-me nos olhos e disse: ’Sim! Sim, matei o teu velho amante! Perdoa-me!’
”Virou-me as costas. Estava a alguma distância da extremidade da varanda. Eu sabia que nunca conseguiria empurrá-lo por cima do parapeito, por muito embriagado que ele estivesse e por muito forte que eu me sentisse por causa do luar. Rezei à Deusa para que o fizesse aproximar-se do parapeito. Mas a Deusa já me tinha conduzido até ali; eu sabia que teria de ser eu a acabar com o assunto.
Então estendeste a mão disse eu e tiraste o alfinete do cabelo.
Sim, era o mesmo que tinha levado ao julgamento, decorado a lápis-lazúli.
E passaste-lho pelo pescoço, de um lado ao outro.
Os músculos do seu rosto descomprimiram-se. Os ombros descaíram-se-lhe.
Sim, suponho que sim. Ele não chegou a gritar, limitou-se a fazer um som estranho, que parecia um gorgolejo, um sufoco. Depois puxei o alfinete; quase não estava manchado de sangue. Ele deitou as mãos ao pescoço e cambaleou para diante. Bateu no parapeito, e eu pensei que ia cair. Mas não, parou. Por isso, eu empurrei-o com todas as minhas forças. Ele não fez qualquer ruído. Só ouvi o barulho do seu corpo a bater nas escadas, lá em baixo.
E depois caíste de joelhos disse eu.
Sim, lembro-me de me ter ajoelhado...
Espreitaste por cima da extremidade e agarraste-te ao parapeito agarraste-te de tal maneira, que partiste uma unha contra a pedra.
Talvez. Não me lembro disso.
E que aconteceu ao alfinete? Ela abanou a cabeça, confusa.
Acho que o lancei para a escuridão. Suponho que estará perdido no meio das ervas. Tendo contado a sua história, ficou subitamente esvaziada de todo o seu vigor. Pestanejou e deixou-se cair como uma flor morta. Rufo aproximou-se imediatamente dela. Querido rapaz murmurou ela, queres levar-me para o meu quarto?
Tiro e eu saíamos sem cerimónias, acompanhados pelo cheiro do incenso e pelo som abafado dos gemidos das escravas dentro do santuário.
Que dia! suspirou Tiro enquanto entrávamos em casa do seu senhor. Que noite!
Eu acenei, cansado.
E agora, se tivermos sorte, talvez consigamos dormir uma hora antes de o Sol nascer.
Dormir? Eu nunca conseguirei dormir. Tenho a cabeça a andar à roda. Pensar que, hoje de manhã, Sexto Róscio ainda estava vivo... e que Sula nunca tinha ouvido falar de Cícero... e que eu acreditava honestamente...
Sim?
Como resposta, ele apenas abanou a cabeça. Cícero desiludira-o terrivelmente, mas Tiro nunca diria uma palavra contra ele. Eu segui-o até ao escritório do seu senhor, onde tinha sido acendida uma lamparina, à espera do seu regresso. Ele olhou à volta da sala e dirigiu-se à pilha de rolos de pergaminho que Sula deitara abaixo da mesa.
Já agora, posso arrumar isto suspirou ele, ajoelhando-se.
Sempre estou ocupado.
Eu sorri perante a sua energia. Voltei-me para o átrio e estudei o jogo da Lua na areia. Inspirei profundamente e dei um enorme bocejo.
Amanhã parto com Betesda disse eu. Suponho que nessa altura voltarei a ver-te; ou talvez não, se Cícero te mandar fazer algum recado. Parece que já foi há muito tempo que vieste bater-me à porta, não parece, Tiro, embora só tenham passado alguns dias. Não me lembro de nenhum caso com tantas voltas e reviravoltas. Talvez Cícero precise outra vez de mim, ou talvez não. Roma é, de certa maneira, uma cidade pequena, mas é natural que não voltemos a encontrar-nos.
Subitamente, tive de limpar a garganta. Era do luar, pensei eu, que estava a tornar-me sentimental. Suponho que devo dizer-te, Tiro
sim, aqui e agora, enquanto a casa está silenciosa e estamos os dois sozinhos, devo dizer-te que te acho um jovem extraordinário. Falo-te do coração, e penso que Cícero concordaria comigo. Tens a sorte de ter um senhor que te valoriza imensamente. Oh, eu sei que Cícero por vezes parece brusco, mas Tiro?
Voltei-me e vi-o deitado de lado por entre os rolos de pergaminho espalhados pelo chão, ressonando baixinho. Sorri e aproximei-me suavemente dele. A dormir, iluminado pela luz da lamparina que se misturava com o luar, ele parecia verdadeiramente uma criança. Ajoelhei-me e toquei na pele macia da sua testa e na madeixa de cabelos suaves por cima dela. Peguei no rolo de pergaminho que ele tinha na mão. Era o exemplar amarrotado de Eurípides que Sula tinha estado a ler e tinha atirado para o outro lado da sala. Os meus olhos caíram sobre o resumo do coro:
Os deuses podem ter muitos disfarces.
Os deuses levam as crises ao seu clímax enquanto o homem conjectura.
O fim previsto não foi consumado.
Mas deus encontrou um caminho
para aquilo que nenhum homem esperava.
E assim termina a peça.
Levantei-me a meio da manhã, embora me tivesse deitado muito tarde. Betesda já tinha acordado há muito tempo e tinha arrumado as poucas coisas que me pertenciam. Insistiu comigo para que me vestisse depressa e observou-me como uma gata enquanto eu comia uns bocaditos de pão e de queijo; estava ansiosa por regressar a casa.
Enquanto Betesda esperava impacientemente ao sol da manhã no peristilo, Cícero chamou-me ao escritório. Tiro estava a dormir no seu quarto, disse-me ele, por isso foi o próprio Cícero a tirar uma caixa de prata e uma bolsa de moedas soltas e a contar os meus honorários, até ao último sestércio.
Disse-me Hortênsio que é habitual deduzir as refeições e o alojamento que te forneci suspirou, mas eu não gostaria de o fazer. Em vez disso... Sorriu e acrescentou dez denários à pilha de moedas.
Não é fácil fazer perguntas desagradáveis a um homem que acabou de nos pagar honorários generosos, além de um bónus substancial. Baixei modestamente os olhos enquanto juntava as moedas e disse, tão casualmente quanto pude.
Há ainda alguns pormenores que me confundem, Cícero. Talvez pudesses esclarecer-me.
Sim? O seu sorriso malicioso enfureceu-me.
Terei razão ao pressupor que sabias muito mais acerca deste caso do que me disseste quando me contrataste? Que talvez até soubesses da proscrição de Sexto Róscio pater? Que sabias que Sula estava de alguma maneira ligado a tudo aquilo, e haveria perigos graves e imediatos para qualquer homem que investigasse todo este sórdido caso:
Ele encolheu os seus ombros estreitos.
Sim. Não. Talvez. Na verdade, Gordiano, tudo aquilo de que eu dispunha eram rumores e fragmentos; ninguém me dizia tudo o que sabia, tal como eu não te disse tudo o que sabia. Os Metelos pensaram que podiam utilizar-me. Até certo ponto, foi o que fizeram.
Tal como tu me utilizaste como isca? Para ver se um cão perdido que fosse meter o nariz no assunto dos Róscio seria ameaçado, atacado, morto? Como eu quase fui, mais do que uma vez.
Os olhos de Cícero relampejaram, mas o seu sorriso era indestrutível.
Tu nunca foste ferido, Gordiano.
Graças à minha esperteza.
Graças à minha protecção.
E não te perturba, Cícero, que o homem que defendeste com tanto sucesso fosse afinal culpado?
Não há desonra em defender um cliente culpado pergunta a qualquer advogado. E há alguma honra em embaraçar um tirano.
O assassínio nada significa para ti?
O crime é uma coisa comum. A honra é uma coisa rara. E agora, Gordiano, tenho mesmo de te dizer adeus. Já sabes onde é a porta de saída. Cícero voltou-se e saiu da sala.
O dia estava quente, mas não desagradável. Ao regressarmos à casa do Esquilino, Betesda pareceu inicialmente inquieta, mas cedo começou a atarefar-se de sala em sala, voltando a pô-la a seu gosto. De tarde, acompanhei-a ao mercado. A azáfama da Subura abateu-se sobre mim os gritos dos vendedores, o odor da carne fresca, o movimento das caras semifamiliares pela rua. Sentia-me satisfeito por estar novamente em casa.
Mais tarde, enquanto Betesda preparava o jantar, dei uma longa volta sem destino pelo bairro, sentindo a brisa quente no rosto e voltando os olhos para as pálidas nuvens douradas no céu. Os meus pensamentos vaguearam para o telhado da casa de Mégaro, por baixo das estrelas; para a quente luz do Sol que inundava o átrio de Cícero; para a Casa dos Cisnes e para a profundidade dos olhos de Electra; para o vislumbre da coxa nua da jovem Róscia, enquanto Tiro se agarrava desesperadamente a ela e gemia encostado ao seu pescoço; para o corpo quebrado de Sexto Róscio, que ligara todas estas coisas e as cimentara com o seu próprio sangue e o do seu pai.
Senti um baque de fome, e dispus-me a voltar para casa. Olhei à volta, não reconhecendo por momentos o que me rodeava, e depois percebi que tinha vindo parar à longínqua entrada da Estreita. Não tencionava andar tanto, nem aproximar-me deste sítio. Talvez haja um deus cuja mão condutora se apoia tão ligeiramente no ombro de um homem, que ele nem a sente.
Voltei-me e comecei a andar em direcção a casa.
Não me cruzei com ninguém pelo caminho mas, de vez em quando, chegava-me das janelas abertas o som das mulheres a chamarem a família para o jantar. O mundo parecia pacífico e alegre, até que ouvi o bater de passos atrás de mim.
Muitos passos, que batiam contra as pedras do pavimento, juntamente com gritos agudos que faziam eco na Estreita e o ruído de paus arrastados contra os muros incertos. Durante um momento, não percebi se o ruído vinha de trás de mim ou da minha frente, tão estranho era o eco. Parecia-me aproximar-se cada vez mais, ora de frente, ora de trás, como se eu estivesse rodeado por todos os lados por uma multidão ululante.
Sula mentiu, pensei eu. A minha casa da colina está a arder. Betesda foi violada e assassinada. A populaça contratada por ele acaba de me apanhar na Estreita. Vão espancar-me com paus. Vão rasgar-me o corpo. Gordiano, o Descobridor, vai desaparecer da superfície da terra, e ninguém saberá nem se importará, à excepção dos seus inimigos, que depressa esquecerão.
O ruído tornou-se agudo e ensurdecedor. Vinha de trás de mim. As vozes que eu ouvia não eram de homens, mas de rapazes. Nesse momento, apareceram por trás de uma curva da Estreita, sorrindo, gritando, rindo-se e acenando com paus, trepando para cima uns dos outros e trepando em seguida aos muros. Andavam atrás de outro rapaz, mais pequeno do que os restantes, que vestia uma mancha de trapos nojentos, e que chocou de cabeça comigo e desapareceu dentro da minha túnica, como se eu fosse uma torre onde ele pudesse esconder-se.
Os seus perseguidores pararam, chocando uns com os outros, ainda a gritar e a rir e a bater com os paus contra os muros.
Ele é nosso! gritou um deles para mim com uma voz aguda. Não tem família, não tem língua!
A mãe deixou-o gritou outro. É quase um escravo. Devolvo-no-lo! Estamos apenas a divertir-nos um pouco com ele.
É divertido! gritou o primeiro. Especialmente os sons que ele faz! Se lhe bateres com força, ele tenta gritar, ”Pára”, mas só lhe sai um grasnido.
Olhei para baixo, para a massa enroscada de farrapos e de músculos que tinha nos braços. A criança ergueu os olhos para mim, temeroso, duvidoso, subitamente feliz quando me reconheceu. Era Eco, o rapaz mudo abandonado pela viúva Polia.
Ergui os olhos para o grupo de rapazes que guinchavam e gritavam. Algo de monstruoso deve ter-me atravessado o rosto; os que se encontravam mais perto recuaram e empalideceram quando eu empurrei suavemente Eco para o lado. Alguns dos rapazes pareciam assustados. Outros pareciam mal-humorados, e prontos para um combate.
Meti a mão dentro da túnica, onde nunca deixara de transportar o punhal, dia após dia, desde o momento em que ele mo dera. Empunhei-o. Os rapazes abriram muito os olhos e empurraram-se uns aos outros, com a pressa de fugirem. Ouvi-os durante muito tempo, a rir, a gritar, e a bater com os paus contra os muros enquanto se retiravam.
Eco estendeu a mão para agarrar o punhal. Eu deixei-o pegar nele. Ainda se viam na lâmina uns restos de sangue de Málio Gláucia. Eco viu-os e guinchou de satisfação.
Olhou para cima interrogativamente, com uma careta no seu rosto sujo enquanto pantomimava esfaquear o ar. Eu acenei com a cabeça.
Sim murmurei eu, é a tua vingança. Com o teu punhal e com as minhas próprias mãos te vinguei. Ele olhou fixamente para a lâmina e abriu a boca num frémito de êxtase.
Málio Gláucia era um dos homens que tinham violado a sua mãe; agora, Gláucia tinha sido morto com a lâmina do rapaz mudo. Que importava que eu nunca tivesse morto Gláucia se tivesse tido alternativa, nem sequer por causa do rapaz? Que importava que Gláucia gigantesco, pesado, louco por sangue fosse apenas um anão entre gigantes, em comparação com os Róscios? Ou que os Róscios fossem apenas crianças no regaço de um homem como Crisógono? Ou que Crisógono fosse apenas um brinquedo nas mãos de Lúcio Sula? Ou seria Sula que era apenas um fio na teia de sangue, dourada e vermelha, que há séculos era tecida por famílias como os Metelos que, pelas suas conspirações incessantes, tinham razões para reclamar o crédito de ter feito de Roma aquilo que ela era hoje? Na sua República, até mesmo um jovem pedinte sem língua poderia ter pretensões à dignidade romana, e a visão do sangue de um insignificante criminoso na sua lâmina fazia-o guinchar de excitação. Se eu lhe tivesse apresentado a cabeça de Sula numa bandeja, a criança não ficaria mais satisfeita.
Abri a minha bolsa e ofereci-lhe uma moeda, mas ele ignorou-a, agarrando na faca com ambas as mãos e dançando em círculos à sua volta. Eu voltei a meter a moeda dentro da bolsa e virei-me para me ir embora.
Tinha precorrido uns metros quando parei e olhei para trás. O rapaz estava imóvel como uma estátua, agarrado ao punhal e contemplando-me com solenidade. Olhámo-nos fixamente durante um longo momento. Finalmente, eu estendi a mão e Eco correu para mim.
Percorremos a Estreita de mão dada, descemos a movimentada Via Subura e subimos o caminho estreito. Quando entrei em casa, gritei a Betesda que haveria mais uma boca para alimentar.
Steven Saylor
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