Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
S A R A H
ESTA NOITE, deixei por duas vezes de poder respirar. O meu corpo permaneceu vazio, tão encarquilhado como um odre de couro ressequido. De boca aberta para acolher o vento da madrugada, era incapaz de o absorver. Tremendo, ergui as mãos na escuridão. A dor percorreu-me os ossos, gulosa como um bicho esfomeado.
Depois, tudo parou. Por duas vezes o ar regressou aos meus lábios. Pousou na minha língua, com a frescura e a doçura do leite.
É um sinal e sei reconhecê-lo. Depois de tantos anos e de tantas provas, Yhwh, o deus invisível, vai separar Sara de Abraão. Na próxima noite, ou na seguinte. Dentro em pouco, tirar-me-á a vida.
Assim vão as coisas e assim deve ser. Não é necessário protestar ou enchermo-nos de medo. Yhwh traçará o meu caminho a partir desta terra ainda com a marca dos meus passos. Passos de mulher idosa, tão ligeiros que agora a erva mal se inclina sob o meu peso.
Assim são as coisas e tanto melhor. Na próxima vez que o ar se recusar a entrar na minha garganta, terei menos medo.
Quando a alvorada espalhava há pouco a sua pálida carícia pelas pradarias e falésias poeirentas que circundam Hebron, abandonei a tenda das mães. Não fui esperar Abraão diante da sua, com pão e frutos, como fiz milhares de vezes desde que o desposei. Vim para aqui, para a colina de Quiriate-Arba e sentei-me numa pedra à entrada da gruta de Makhpela. Precisei de algum tempo para subir o carreiro. Mas que importa o esforço! Se Yhwh decidir cortar-me a respiração em pleno dia, quero que o meu corpo desfaleça aqui mesmo, neste jardim, diante desta gruta.
Este lugar enche-me de paz e alegria. Uma falésia branca circunda a entrada como um muro finamente trabalhado. À sombra de um enorme choupo, uma fonte escorre para um vasto jardim em semicírculo. O seu suave declive, oferecendo-se como uma palma de mão, desce para a planície, pontuado por muros longos e baixos, erguidos pelos pastores e por árvores de troncos espessos, perfumado por arbustos de salva e alecrim.
Daqui avisto as nossas tendas comprimidas em volta da tenda de riscas brancas e negras de Abraão. São tão numerosas, que não saberia contá-las. Centenas, por certo. Tão longe quanto a minha vista enxerga, vejo brilhar na pradaria a lã dos rebanhos, por entre uma erva mais verde que a água de um lago. Estamos no final da Primavera. As chuvas foram clementes e chegaram na altura apropriada. Vejo também colunas de fumo que se elevam na vertical, em redor das fogueiras, sinal de que o vento de leste, seco e carregado de areia, ainda nos poupará hoje. Ouço as trombetas, os cães que ladram reunindo os rebanhos. De vez em quando chegam-me gritos de crianças, vibrando no ar. A minha audição não enfraqueceu, tal como a minha visão. Ainda há coisas boas no corpo de Sara!
A juventude ignora o tempo, a velhice só a ele conhece. Quando jovens, brincamos às escondidas com a sombra. Quando velhos, procuramos o calor do sol. Ora, a sombra é imutável e o sol é efémero. Eleva-se, atravessa o céu e desaparece. Depois, esperamos impacientemente pelo seu regresso. Hoje amo tanto o tempo quanto amava outrora Isaac, o meu filho tão esperado.
Para mim, o ciclo das estações girou muito tempo sobre si sem me imprimir marcas. Um dia seguia-se ao outro e o meu corpo não trazia nenhum vestígio da sua passagem. Assim aconteceu durante anos e anos. Ainda não me chamava Sara, mas Sarai. Diziam que eu era a mais bela mulher. Uma beleza que fascinava tanto quanto assustava. Uma beleza que atraiu Abraão assim que me viu pela primeira vez. Uma beleza que não murchava, perturbante e maldita como uma flor que nunca engendraria um fruto. Não havia dia em que não execrasse essa beleza que não mais me deixava.
Até que por fim Yhwh apagou o gesto terrível que esteve na origem de tudo. Uma falta cometida na inocência da infância, por amor daquele que então se chamava Abrão. Uma falta, ou palavras que não soube entender na ignorância em que vivíamos.
Agora o sol sobe no horizonte. Aquece-me o velho corpo através das finas agulhas dos cedros e das folhas que dançam no grande choupo. Tomei-me tão pequena que hoje poderia cobrir-me com os meus longos cabelos que nunca esbranquiçaram. Um corpo bem pequeno, mas que alberga tantas e tantas recordações! Tantas imagens, tantas lembranças de perfumes, carícias, rostos, emoções e palavras, que com eles poderia povoar toda a terra de Canaã.
Gosto deste local. Aqui, as recordações jorram em mim como uma cascata que refresca o rio. O ar fresco que chega do interior da gruta aflora-me a nuca e as faces com a ternura de um murmúrio familiar. Por momentos parece-me ser o meu próprio sopro, aquele que, na noite passada, Yhwh reteve fora de mim.
Na verdade este local é um ponto fulcral no pilar do tempo, semelhante às marcas de cerâmica que assinalam a presença das almas nos muros esplêndidos de Ur, a minha cidade.
Há duas noites recebi outro sinal de Yhwh. Sonhei de olhos abertos. A minha respiração ainda era calma, mas o meu corpo estava rígido e frio. Na escuridão da tenda, sem dispor sequer dos raios do luar brincando nas tecelagens das tendas, ouvi subitamente o som de utensílios de metal martelando na pedra. Ouvi vozes de homens a trabalhar. Perguntei a mim mesma que poderiam estar a fazer, em plena noite, perto da tenda das mães. Quis levantar-me para espreitar. Mas antes que conseguisse apoiar-me no cotovelo, vi. Vi com os meus olhos o que só o espírito dos sonhos nos dá a ver.
A noite já findara. O sol iluminava a falésia branca e a entrada da gruta de Makhpela. Era aí que os homens trabalhavam desde o raiar da madrugada. Erguiam muros. Muros sólidos, espessos. Erguiam uma bela fachada, perfurada por uma porta e janelas. Uma casa de pedra tão esplêndida como um palácio de Ur, Eridu ou Nippur. Uma casa que reconheci imediatamente.
Construíam o nosso túmulo.
O túmulo de Abraão e de sua esposa, Sara.
Eu seria a primeira a ocupá-lo. Mais tarde, o meu bem-amado Abraão estenderia nele o seu corpo para que eu pudesse finalmente alcançar a paz no outro mundo.
O sonho desvaneceu-se. As marteladas na pedra cessaram. Os meus olhos abriram-se na escuridão da tenda. De respiração tranquila, Raquel e Léa dormiam a meu lado.
Contudo, o sentido desse sonho permaneceu em mim. Nós, todos a quem o deus invisível de Abraão Se revelou, todo este povo, doravante tão numeroso, a quem Ele ofereceu a Sua Aliança para a eternidade, só conhecemos cidades de tendas, essas cidades do deserto, do vento e da errância. Contudo, eu, Sara, nasci numa casa de trinta salas, numa cidade que contava com centenas de outras casas semelhantes e cujo templo mais belo era tão alto como a colina de Quiriate-Arba. Os seus muros eram mais espessos que um boi.
Durante toda a minha vida, quando seguia Abraão pelas montanhas onde nasce o Eufrates, quando caminhava a seu lado à procura da terra de Canaã e até no Egipto, nunca vira cidade tão esplêndida como a Ur da minha infância. E nunca me esqueci dela.
Tal como também não me esqueci do que lá aprendi: que o poder dos povos de Akkad e da Suméria reside na beleza das suas cidades, na solidez das suas muralhas, na perfeição dos seus canais e fontes, na magnificência dos seus jardins.
Então, quando o dia se levantou, fui ver Abraão. Enquanto ele comia contei-lhe o que vira em sonho.
- Chegou a altura do nosso povo construir muralhas, casas e cidades - declarei. - Deve estabelecer raízes nesta terra. Lembra-te como apreciámos as muralhas de Salem. Como ficámos deslumbrados com os palácios do Faraó. Mas neste campo, no campo do grande rei Abraão, o homem que ouve a palavra de Yhwh e que sabe fazer-se ouvir, as mulheres ainda tecem telas para as tendas como faziam no clã do teu pai Terá, aos pés das muralhas de Ur, no espaço reservado aos mar. Tu, os homens-sem-cidade.
Abraão escutou-me sem deixar de me olhar. Uma lembrança fez-lhe estremecer a barba.
- Sempre soube que tinhas saudades dos muros da tua cidade.
Pegou-me nas mãos e assim nos quedámos um longo momento. Velhos corpos unidos pelas mãos e por milhares de palavras de ternura que já não é necessário pronunciar.
Finalmente, disse o que queria dizer desde que o meu sonho se desvanecera:
- Quando parar de respirar, quero que enterres o meu corpo na gruta de Makhpela, na colina de Quiriate-Arba. O jardim que a circunda é o mais belo que vi depois daqueles que avistava do palácio do meu pai. Pertence a um Hitita chamado Efron. Comprá-lo-ás, sei que ele não rejeitará a tua oferta. Quando o meu corpo estiver enterrado, chamarás os pedreiros de Salem ou de Beer Sheva. Será ainda melhor se possuírem o saber dos pedreiros do Faraó. À entrada da gruta, pedir-lhes-ás para edificarem os mais belos, os mais sólidos muros que saibam construir, a fim de elevar o túmulo de Abraão e de Sara. Será a primeira casa do nosso povo. Ele reunir-se-á aqui, confiante e em grande número. Isaac e Ismael também ficarão aqui. Juntos. Com a ajuda de Yhwh, não é a nós que cabe assegurar o futuro?
Abraão não precisou de me prometer que agiria de acordo com o meu desejo. Sei que assim será, pois sempre foi assim.
Hoje quero esperar calmamente pela perda do meu sopro. Esperar e recordar-me. Não há vento e, contudo, as folhas do choupo tremem sobre mim, enchendo a atmosfera com um ruído de chuva. Sob os cedros e as acácias, a luz dança como que espalhando uma chuva fina de lamelas douradas. Um perfume a lírio e a hortelã pousa nos meus lábios. As andorinhas brincam e piam sobre a falésia. Tudo era parecido naquele dia em que o sangue escorreu pela primeira vez entre as minhas coxas. Naquele dia em que começou a longa vida de Sarai, filha de Ichbi Sum-Usur, filha de Taram.
O sangue das esposas
COM os COTOVELOS, Sarai afastou o cortinado que servia de porta. Levada pelo seu elã, avançou até ao centro do terraço de tijolo que dominava o pátio das mulheres. Os primeiros raios de luz da alvorada bastavam para que pudesse ver o sangue nas mãos. Fechou as pálpebras para conter as lágrimas que lhe acudiam aos olhos.
Não precisava de baixá-los para adivinhar as manchas que lhe sujavam a túnica. Bastava-lhe sentir a humidade que lhe colava o fino tecido de linho contra as coxas e os joelhos.
E eis que tudo recomeçava! Uma dor aguda. Uma garra demoníaca que se agitava entre as suas ancas! Parou, de pálpebras semi-cerradas. A dor desapareceu tão rapidamente como surgira.
Estendeu as mãos sujas. Devia ter invocado Inanna, a poderosa Dama do Céu. Contudo, não conseguiu proferir palavra. Estava petrificada. O medo, o nojo e a denegação misturavam-se no seu espírito.
Momentos antes, ao despertar com a barriga cheia de dores, mergulhara as mãos entre as coxas. No sangue que escorria dela pela primeira vez. O sangue das esposas. Aquele que engendra a vida.
O sangue não escorrera como lhe tinham prometido. Não era orvalho nem mel. Escorria como que de uma ferida invisível. Num instante de pânico, viu-se a si mesma esvaziando-se como uma ovelha sob o cutelo de bronze.
Era apenas uma tolice infantil e agora sentia-se novamente envergonhada. Mas o seu medo fora suficiente para se levantar da cama, gemendo e precipitando-se para o exterior.
À luz da alvorada nascente, observava agora as mãos avermelhadas como se elas não lhe pertencessem. Passava-se algo estranho no seu corpo, que afogava de uma só vez todas as felicidades da sua infância.
Amanhã, depois de amanhã, todos os dias, todos os anos futuros seriam diferentes. Sabia o que a esperava. O que esperava cada rapariga por onde escorria o sangue das esposas.
Sililli, a sua serva, bem como todas as mulheres da casa, iriam rir, dançar, cantar, agradecer a Nintu, parteira do Mundo.
No entanto, Sarai não sentia nenhuma alegria. Nesse preciso momento desejava que o seu corpo não lhe pertencesse.
Respirou profundamente. O odor das fogueiras nocturnas que ainda flutuava na brisa fresca da madrugada acalmou-a um pouco. A frescura dos tijolos sob os seus pés descalços fez-lhe bem. Não se ouvia nenhum ruído na casa ou nos jardins. Nem sequer o de um voo de pássaro. Toda a cidade parecia reter a respiração antes da irrupção do sol ainda escondido pelo reverso do mundo, enquanto a luz ocre que o precedia se espalhava pelo horizonte como uma mancha de óleo.
Recuou bruscamente e, passando novamente pelo cortinado, voltou à penumbra do quarto. Mal distinguia o ferro do leito onde dormiam Nisaba e Lillu. Sem se mexer, Sarai escutou a respiração regular das irmãs. Pelo menos não as acordara.
Avançou prudentemente para o seu próprio leito. Queria sentar-se nele. Hesitou.
Pensou nos conselhos de Sililli. Mudar de túnica, retirar o lençol, enrolar nele a palha manchada, pegar nas bolinhas de lã, perto da porta e embebidas em óleo de amêndoa doce, lavar as coxas e o sexo com elas, pegar noutras, embebidas em essência de terebin-to, para absorver o sangue. Mas não podia. Não sabia porquê, mas nem sequer conseguia enfrentar a ideia de ter de tocar no corpo.
A cólera também ia substituindo o medo. Por que teria de aceitar que Nisaba e Lillu a descobrissem naquele estado e gritassem, amotinando toda a casa e berrando para o pátio dos homens: «Sarai sangra, Sarai tem o sangue das esposas!»?
Isso seria ainda o mais repugnante.
Por que razão o sangue que lhe escorria pelas coxas a tornaria mais adulta? Porquê, ao obter a liberdade de falar, ia perder a de agir? Pois era isso que lhe ia acontecer. Doravante, em troca de alguns siclos de prata ou de algumas medidas de cevada, o seu pai podia oferecê-la a um homem, a um desconhecido que talvez tivesse de detestar para o resto da vida. Por que deviam as coisas ser assim e não de outra maneira?
Sarai esforçou-se por repelir o caos de pensamentos que a tristeza e a cólera faziam entrechocar na sua cabeça. Devia ter encontrado as palavras das preces que Sililli lhe ensinara, mas já não se recordava delas. Como que devido a um efeito demoníaco, o seu coração e o seu espírito não conseguiam formar qualquer palavra. Dama Lua ia ficar furiosa. Lançaria sobre ela a sua maldição.
Sentiu-se novamente invadida pela cólera e pela denegação. Não podia ficar no escuro, mas não queria acordar Sililli. Logo que se encontrasse nas mãos dela, tudo começaria.
Tinha de fugir. Fugir para lá da área que circundava a cidade, talvez até à curva do Eufrates onde se estendiam, por dezenas de ús, a confusão da cidade baixa e as lagunas de juncos. Mas aí esperava-a outro mundo. Um mundo hostil e fascinante. Sarai' não teve coragem. Preferiu refugiar-se no jardim, imenso, com uma centena de tipos diferentes de árvores, flores, legumes, rodeado por um muro que em certos locais chegava a ser mais alto que os quartos mais elevados. Dissimulou-se num tufo de tamareiras, encostadas à parte mais antiga do muro. Aqui e além, o sol, o vento e as chuvas tinham esboroado o monte de tijolos, reduzindo-o a um pó duro e ocre. Quando as tamareiras estavam em flor, imensas plumas rosas, formavam então uma espécie de cabeleira vegetal que era possível admirar da outra ponta da cidade. Esse passara a ser o signo distintivo da casa de Ichbi Sum-Usur, filho de Ella Dum-tu, poderoso de Ur, mercador e funcionário de primeira classe ao serviço do rei
Amar-Sin, que reinava sobre o império de Ur pela vontade de Ea, o Todo-Poderoso.
- SARAI! SARAI!
Reconheceu as vozes. A voz penetrante de Lillu, e a voz mais abafada e inquieta de Sililli. Há pouco, as servas já tinham corrido pelas áleas do jardim, mas tinham regressado de mãos a abanar.
O silêncio voltou, apenas acompanhado pelo chilrear dos pássaros e pelo murmúrio da água que escorria nos canais de irrigação. De onde estava, Sarai via tudo, mas não podia ser vista. A casa do seu pai era uma das mais belas da cidade real. Tinha a forma de uma mão apertando um enorme pátio central, todo em comprimento, e para o qual dava o pórtico da entrada. Dois edifícios com paredes de tijolos envernizados de verde e amarelo, abertos unicamente para recepções e festas, separavam ambos os lados do grande pátio de dois outros, de menores dimensões: o pátio das mulheres e o dos homens. Os quartos do quarteirão dos homens, com as suas escadas brancas, dominavam o templo dos antepassados da família, os entrepostos e a sala dos escribas do seu pai. Os aposentos das mulheres encontravam-se sobre as cozinhas, os quartos de dormir das servas e o quarto vermelho. Todos davam para um largo terraço em forma de lua, albergado por caramanchões de vinhas e glicínias, abrindo para os jardins. Assim, à noite, os esposos podiam juntar-se às esposas sem terem de passar pelos pátios.
Dos arbustos onde se encontrava, Sarai' avistava também grande parte da cidade e o zigurate, a Plataforma Sublime, que a dominava como uma montanha. Não havia dia em que não fosse admirar os seus jardins, semelhantes a um lago de folhagem entre o céu e a terra. Da sua verdura abundante, onde se cruzavam toda a espécie de flores e de árvores que os deuses tinham semeado pela terra, brotavam as escadarias cobertas de cerâmicas pretas e brancas que conduziam ao Quarto Sublime, com as colunas e as paredes cobertas de lápis-lazúli. Era aí que uma vez por ano o rei de Ur se unia à Dama do Céu.
Mas hoje só tinha olhos para o que se passava em casa. Tudo estava outra vez calmo. Tinha a impressão que já não a procuravam. Há pouco hesitara em ir ter com as servas, no jardim. Mas cada hora que passava tornava-a mais culpada. Já era demasiado tarde para sair do seu esconderijo. Alguém que a visse naquele estado soltaria gritos de medo, desviando-se, tapando os olhos como diante de uma mulher possuída pelos demónios. Era impensável apresentar-se daquela maneira diante das mulheres. Toda a casa do pai ficaria conspurcada. Devia esperar pela noite, sem se mexer. Só então poderia fazer algumas abluções na fonte que servia para irrigar o jardim. Depois pediria desculpa a Sililli. Se possível, com muitas lágrimas e terror na voz, para a dulcificar.
Até lá devia esquecer a sede e o calor que transformava pouco a pouco o ar imóvel num estranho magma de poeira seca.
- SARAI!
Ela ficou hirta.
- Sarai, responde-me! Sei que estás aí! Queres morrer hoje, com a vergonha dos deuses amaldiçoando-te?
Subitamente, caiu em si. Reconheceu as amplas barrigas das pernas, a túnica amarela e branca, debruada de preto.
- Sililli?
- Quem queres que seja?
A voz da serva era rude, cheia de cólera, mas as palavras eram sussurradas.
- Como fizeste para me encontrar?
Sililli afastou-se alguns passos, ralhando numa voz ainda mais baixa:
- Deixa-te de conversas e sai depressa daí antes que nos vejam.
- Não deves olhar para mim - avisou-a Sarai.
Saiu dos arbustos, ergueu-se com dificuldade, os músculos doridos pela longa imobilidade. Sililli abafou um grito.
- Todo-poderoso Ea! Oh! Perdoa-lhe, perdoa-lhe!
Sarai não ousava erguer os olhos para a serva. Fixou a sombra curta e arredondada que se agitava no solo. Isso bastou para compreender que Sililli erguia as mãos ao céu, antes de as levar ao regaço, enquanto resmungava, de voz opressa:
- Poderosa Dama do Céu, perdoa-me por ter visto o seu rosto conspurcado, as suas mãos conspurcadas! É apenas uma criança. Em breve será purificada por Nintu.
Sarai conteve-se para não se precipitar nos braços da serva. Num murmúrio que mal se ouvia, desculpou-se:
- Tenho muita pena... Não fiz o que me recomendaste. Não consegui.
Não teve tempo para dizer mais. Um cobertor de linho caiu sobre ela, cobrindo-a da cabeça aos pés. As mãos de Sililli abraçaram-lhe a cintura. Desta vez, Sarai pode apoiar-se sem vergonha contra o corpo carnudo e firme daquela que fora a sua ama, quase uma mãe.
Encostada ao seu ouvido, através do linho, já sem furor na voz, e apenas com a tremura do medo, Sililli sussurrou:
- Sim, conheço este esconderijo desde há muito, pequena tola. Desde a primeira que vieste aqui! Julgas poder escapar à tua velha Sililli? Que foi que te deu, em nome do todo-poderoso Ea? Julgavas poder escapar às leis sagradas de Ur? Para ires para onde? Para ficares em estado de pecado toda a vida? Oh, minha filha! Por que não vieste ter comigo? Pensas ser a primeira a ter medo do sangue das esposas?
Sarai' quis justificar-se, mas Sililli tapou-lhe a boca.
- Não! Contar-me-ás mais tarde. Não devem ver-nos aqui. Grande Ea! Quem sabe o que te aconteceria se te vissem nesse estado? As tuas tias já sabem que te tornaste mulher. Esperam-te no quarto vermelho. Não tenhas medo, elas não te ralharão se te apresentares antes do pôr-do-sol. Trouxe-te uma bilha com água, sumo de limão e casca de terebinto para lavares as mãos e o rosto. Atira a tua túnica suja para debaixo das tamareiras. Virei buscá-la para a queimar. Cobre-te com este véu de linho. Tem muito cuidado, de forma a evitares as tuas irmãs, pois ninguém conseguiria impedir essas pestes de irem contar tudo ao teu pai.
Através do tecido, Sarai sentiu a mão de Sililli que lhe acariciava a cara:
- Faz o que te peço. E sem demora. O teu pai deve ignorar a tua escapadela.
- Sililli!
- Que há ainda?
- Também estarás no quarto vermelho?
- Claro. Onde queres que esteja?
LIMPA, PERFUMADA, com o véu de linho atado no ombro direito, Sarai chegou ao pátio das mulheres sem encontrar vivalma. Reunira toda a sua coragem para alcançar a porta misteriosa da qual nunca se aproximara.
Visto do exterior, o quarto vermelho era apenas um longo muro branco, maciço, sem janelas. Ocupava todo o espaço situado sob os aposentos reservados às mulheres: esposa, irmãs, filhas, parentes e servas de Ichbi. Uma espécie de pórtico de junco, cuidadosamente arranjado e coberto por uma ampla bignónia de flores ocre, dissimulava a porta. Deste modo era possível atravessar o pátio das mulheres em qualquer direcção sem nunca a ver.
Sarai passou pelo pórtico. Diante dela, estava a porta do quarto vermelho, pequena, dupla, constituída por uma espessa madeira de cedro, pintada de azul em cima e de vermelho em baixo.
Bastava-lhe dar alguns passos para empurrá-la. Mas não se mexeu. Dir-se-ia que os seus membros eram retidos por fios invisíveis. Seria o medo?
Como todas as raparigas da sua idade, ouvira muitas histórias sobre o quarto vermelho. Como todas as raparigas da sua idade, sabia que as mulheres se fechavam ali durante sete dias, uma vez por mês. Aquando das luas cheias, era aí que se reuniam para formular votos e súplicas que não podiam formular em mais lado nenhum. Riam, choravam, partilhavam os seus sonhos e segredos comendo mel, bolos, frutos. Por vezes morriam no meio de sofrimentos atrozes. Através das suas paredes espessas, Sarai chegara a ouvir os berros de um parto e, por vezes, nunca mais vira aquela que lá entrara, feliz, com o seu ventre redondo. Nenhum homem podia lá entrar e nem sequer tentava dar uma espreitadela. Os temerários, os curiosos, carregavam o seu pecado até ao inferno de Ereschkigal.
Porém, na realidade, sabia muito pouco sobre o que lá se passava. Entre irmãs e primas, cochichavam-se os mais loucos rumores. As raparigas-ainda-fechadas ignoravam o que acontecia àquelas que entravam pela primeira vez no quarto vermelho. Nenhuma das múnus, as mulheres-abertas, revelava o segredo.
Chegara o seu dia. Quem podia contrariar a vontade dos deuses? Sililli tinha razão. Tinha chegado a sua hora. Não podia permanecer assim por muito mais tempo. Devia ter a coragem de passar por aquela porta.
CEGOS PELA INTENSIDADE DA LUZ EXTERIOR, OS SEUS olhos habituaram-se lentamente à escuridão. Uma mistura de fortes odores flutuava no ar confinado. Reconheceu o perfume do óleo extraído das cascas de laranja e amêndoa, que se misturava ao do óleo de sésamo utilizado nas lâmpadas. Depois, passado um momento, captou outro odor que nunca sentira. Um odor mais espesso, mais enjoativo.
Sombras formaram-se na sombra, silhuetas animaram-se. O quarto vermelho não era totalmente desprovido de luz. Uma dezena de mechas de lâmpadas reflectia-se nos discos de cobre, difundindo uma claridade amarelada e vacilante. A sala era maior do que Sarai a imaginara. Também era mais alta, com as paredes dos lados contendo separações que davam para pequenas salas. O solo estava pavimentado de tijolos refrescados por um estreito rego, por onde escorria uma água límpida. Do fundo, chegava o ruído ligeiro de uma fonte.
Um batimento de palmas sobressaltou-a. Três das suas tias encontravam-se diante dela. Atrás, ligeiramente recuada, distinguiu Sililli, ao lado de duas jovens servas. Todas as mulheres traziam uma toga de linho branco com largas faixas negras, cabelos seguros por lenços de cor escura. Sorriam afectuosamente.
A tia Égimé, a mais velha das irmãs do seu pai, deu um passo em frente. Bateu novamente com as mãos e depois cruzou-as no peito, de palmas abertas. Sililli estendeu-lhe então um jarro de cerâmica cheio de água perfumada e, num gesto gracioso, Égimé mergulhou uma mão nela, para aspergir Sarai.
- Nintu, senhora das menstruações, Nintu, tu, que decides da vida no ventre das mulheres, Nintu, tu, senhora bem-amada das nascenças, acolhe neste quarto Sarai, engendrada por Taram e filha de Ichbi, poderoso de Ur. Ela está aqui para se purificar, está aqui para te confiar o seu primeiro sangue, está aqui para se tornar novamente pura e poder assim deitar-se no leito das nascenças!
Depois desta prece de boas-vindas, as outras mulheres bateram palmas três vezes. Uma a uma, aspergiram a jovem com água perfumada, que escorreu pelo rosto e pelos ombros de Sarai. Era um perfume violento, tão violento que lhe entrava pelas narinas, pela garganta, enchendo-a de uma embriaguez surda.
Quando o jarro ficou vazio, as mulheres rodearam Sarai, pegaram-lhe nas mãos, levando-a para uma das alcovas. Ela viu então uma tina redonda, alta, mas pouco larga. Sililli desapertou-lhe o véu de linho. Nua, conduziram-na para a tina. Era mais profunda do que pensara: a água chegava-lhe à parte inferior dos seios, ainda mal formados. Os seus ossos gelaram. Arrepiou-se. Enlaçou o corpo, num gesto infantil. As mulheres riram. Esvaziaram frasquinhos na tina e depois esfregaram-na vigorosamente com saquinhos de linho cheios de ervas. Novos perfumes explodiram à sua volta. Desta vez reconheceu a hortelã e o terebinto, bem como o estranho odor a bílis de doninha, com que se ungia por vezes os pés para afastar os demónios.
O óleo amaciou a água. Sarai habituava-se à sua frescura. Fechou os olhos e abandonou-se. Pouco depois, a tensão e o medo desapareceram sob as fricções e as carícias.
Quando já tomara gosto pelo banho, Égimé ordenou-lhe que saísse da tina. Sem procurar cobri-la com o menor tecido, a velha tia levou-a para uma parte da sala onde estava estendido um tapete de cores vivas. Sem rodeios, obrigou-a a afastar as pernas e colocou-lhe lestamente um vaso de bronze de amplo gargalo por entre as coxas. Sililli pegou-lhe numa mão, enquanto, de olhar fixo no vaso, Égimé pronunciava em voz forte:
- Nintu, senhora das nascenças neste Mundo, tu, que recebeste o tijolo sagrado do parto das mãos de Enki, o Poderoso, tu, a guardiã do cutelo que corta o cordão umbilical,
Nintu, tu, que recebeste o vaso verde de lazulite, o silagarra oferecido por Enki, o Poderoso, acolhe o sangue de Sarai.
Assegura-te da sua fecundidade.
Nintu, acolhe o sangue de Sarai como o sulco da terra acolhe o orvalho. Assegura-te que ele fabrique o seu néctar. Ó Nintu, irmã de Enlil, o Primeiro, assegura-te que a vulva de Sarai seja fértil e suave como a tâmara de Dilum e que o seu futuro esposo nunca se canse dela!
Seguiu-se um estranho silêncio.
Sarai podia ouvir o coração latejar contra as têmporas e na garganta. A pele começava a aquecer-lhe nas pernas, nas nádegas, nos ombros, no ventre, na testa. Tinha a impressão que a tinham batido com urtigas.
Então, com a mesma voz seca e autoritária, a velha tia recomeçou a sua prece. Desta vez, as tias reataram a melopeia em conjunto.
Depois, recomeçaram tudo outra vez.
Sarai compreendeu que seria assim até que o seu sangue escorresse para o vaso de bronze.
A cerimónia parecia não ter fim. A cada palavra pronunciada por Égimé, a mão de Sililli apertava os dedos de Sarai. Subitamente, uma dor fria paralisou-lhe os rins, mordeu-lhe as coxas. Teve vergonha da sua nudez, da sua posição. Porque duraria tanto tempo? Porque tardava o sangue a escorrer agora, quando ainda de manhã escorria tão abundantemente?
Seguiram-se vinte longas súplicas. Por fim, o vaso tingiu-se de vermelho. As mulheres aplaudiram. Égimé pegou no rosto de Sarai com os seus dedos ásperos e deu-lhe um beijo na testa:
- Muito bem, minha filha! Vinte súplicas é um número que convém. Agradas a Nintu. Podes regozijar-te e agradecer-lhe.
Pegou no vaso de bronze e colocou-o nas mãos de Sarai.
- Segue-me - ordenou-lhe.
No fundo do quarto vermelho, contra a parede coberta por barro amassado com palha, pintada de vermelho e azul, elevava-se uma estátua de terracota, maior que Sarai. Tinha os traços de uma mulher de rosto redondo, lábios espessos, os caracóis da sua cabeleira retidos por um aro de metal. Numa das mãos segurava um vaso minúsculo, idêntico ao que Sarai trazia. Na outra, brandia o cutelo que corta o cordão umbilical. Aos pés da estatueta, o altar estava tão coberto de alimentos quanto uma mesa para um festim.
-Nintu, parteira do Mundo - murmurou Égimé, de testa inclinada. - Sarai, filha de Taram e de Ichbi, saúda-te e agradece-te.
Sarai olhou-a sem compreender. Com uma expressão de aborrecimento, a velha tia agarrou-lhe na mão direita, molhou-lhe os dedos no sangue e esfregou-os no ventre da estátua.
- Recomeça - ordenou-lhe novamente.
Com uma repulsa que a levou a cerrar os lábios, Sarai obedeceu. Égimé pegou então no vaso de bronze, derramou algumas gotas da menstruação no pequeno vaso que a estátua de Nintu segurava. Quando se endireitou, um grande sorriso, como Sarai nunca lhe vira, iluminava-lhe o rosto.
- Bem-vinda ao quarto vermelho, filha do meu irmão. Bem-vinda entre nós, futura múnus! Se bem entendi as explicações confusas de Sililli, parece que ainda não comeste desde manhã. Suponho que estás com fome...
Uma grande gargalhada soou atrás de Sarai. Sililli puxou-a de encontro a si, envolvendo-a com os braços. Sarai abandonou-se a este abraço, descobrindo um espantoso reconforto ao pousar a sua têmpora contra o peito bem redondo que a acolhia.
- Como vês, não é assim tão terrível - murmurou a serva, com uma nota de censura. - Não valia a pena fazeres tantas histórias.
NESSA NOITE, antes de se saciar com bolos, frutos e folhados de cevada com mel e queijo fresco de ovelha, ofereceram-lhe uma túnica nova: uma fina tecelagem de linho e lã, com faixas negras, idêntica às das suas tias e servas. Também lhe ofereceram um xaile para os cabelos. Depois, as mulheres ensinaram-na a viver confortavelmente com as regras. Mostraram-lhe como podia confeccionar pequenos tampões de lã que era molhada num óleo especial, aquele cujo forte odor, um tanto enjoativo, ela sentira assim que empurrara a porta.
- É azeite - explicou a sua tia Égimé. - Um óleo raro e precioso produzido pelos mar.Tu, os homens-sem-cidade. Podes agradecer ao teu pai: manda trazê-lo para as mulheres do rei e subtrai algumas ânforas para nós. Quando já não há mais, utilizamos óleo de peixe. Acredita-me que é menos suave e cheira horrorosamente. Cheira tanto que depois temos de passar o dia a molhar as nádegas em óleo de cipreste. Caso contrário, quando vêem ter connosco à cama, os nossos homens podem pensar que as nossas vulvas se tornaram cestos de pesca!
A piada foi saudada por grandes gargalhadas. Por fim, Sililli explicou-lhe como dobrar o pano que devia colocar nas entrepernas.
- Mudas de pano todas as noites antes de te deitares. Na manhã seguinte deves lavá-lo. Vou mostrar-te onde está o pequeno fogão, além, no fundo do quarto.
O quarto vermelho tinha na verdade todo o necessário para que as mulheres nele pudessem viver sete dias, sem nunca terem de sair. Os leitos eram confortáveis, os frutos, as carnes, o queijo e os bolos eram abundantemente fornecidos pelas mulheres do exterior. Os cestos transbordavam de lã fiada e nos teares encontravam-se trabalhos já bem avançados.
Como o motivo da presença de Sililli no quarto vermelho se devia apenas à iniciação de Sarai, ela não pôde dormir ali nessa noite nem nas noites seguintes. Antes de regressar ao pátio das mulheres, preparou uma tisana que entregou a Sarai numa taça fumegante.
- Assim não terás dores no ventre esta noite.
Os lábios suaves de Sililli pousaram ternamente nas têmporas dela.
- Só posso voltar ao crepúsculo. Se algo correr mal, dirige-te à tia Égimé. Como viste, ela é resmungona, mas gosta de ti.
Por certo que pusera na bebida algo mais do que as ervas destinadas às dores de ventre. Pouco após a sua partida, Sarai adormeceu com um sono que não foi perturbado por nenhum pesadelo.
Quando acordou, as suas tias e servas já se afadigavam. Apesar da penumbra, os dedos delas fiavam com o mesmo à-vontade que à luz do dia. Tagarelavam como passarinhos chilreando, parando apenas para se rirem ou para se descompor fogosamente.
Égimé ordenou a Sarai que fosse agradecer a Nintu e depositar no altar alguns alimentos como oferta. Em seguida, a jovem lavou-se na tina, onde uma serva veio despejar óleos, ungindo-lhe depois o ventre e as coxas com uma pomada perfumada.
Quando ficou pronta, Égimé aproximou-se dela perguntando-lhe se ainda sangrava e com regularidade. Sarai pôde então saciar-se com leite de ovelha, queijo de vaca mal coalhado, misturado com mel, pão de cevada embebido num molho de carne e que era servido com tâmaras esmagadas, damascos e pêssegos.
No entanto, quando se aprontava para ajudar na tecelagem, para aprender a passar os fusos por entre os fios das tramas mais subtis, as suas jovens tias colocaram diante dela uma alta placa de bronze.
Espantada, Sarai, observou-as sem compreender.
- Despe a tua túnica, vamos dizer-te qual é o teu aspecto.
- Com que me pareço?
- Exactamente. Vais olhar-te ao espelho, inteiramente nua, e vamos dizer-te o que o teu futuro esposo verá quando te perfumar com o unguento do casamento.
Estas palavras gelaram o ventre de Sarai mais do que o banho matinal. Olhou para Égimé. Sem parar o seu trabalho, a velha tia inclinou a cabeça com um sorriso que equivalia a uma ordem.
Sarai encolheu os ombros com um desdém que estava longe de sentir. Lastimou a ausência de Sililli. Na sua presença, as suas tias mais novas nunca se teriam atrevido a troçar dela.
Desembaraçou-se da túnica com um gesto brusco. Enquanto as mulheres se sentavam à sua volta galhofando, fingiu a maior indiferença nos gestos e na expressão do rosto.
- Volta-te lentamente, para que te vejamos bem - ordenou uma das tias.
A sua silhueta animou-se no cobre do espelho. Na verdade, não distinguia nada, tão escassa era a claridade. Égimé foi a primeira a comentar o espectáculo:
- O sangue das esposas escorre do seu ventre, mas temos de admitir que é apenas uma criança. Se quiser provar o bolo de mel logo no dia do casamento, o futuro esposo não ficará lá muito regalado.
- Só tenho doze anos e duas estações! - protestou Sarai, sentindo a cólera aquecer-lhe o peito. - Claro que sou uma criança!
- Mas tem umas coxas finas e bem constituídas - interveio uma das servas. - Vê-se que as suas pernas serão bonitas.
- Terá mãos e pés pequeninos, o que será certamente gracioso - disse outra.
- Desde quando um esposo se interessa pelos pés e pelas mãos da mulher no dia do casamento? - resmungou Égimé.
- Cara irmã, se estás a pensar nas suas nádegas, ele terá a devida recompensa. Vê como são altas e rijas. Parecem pequenas cabaças douradas. Que esposo resistiria a tentação de as morder? E vê a covinha dos rins. Digo-vos, irmãs, que dentro de um ou dois anos, o esposo poderá regalar-se com o seu leite.
- Também tem um ventre encantador e uma pele finíssima - comentou a tia mais nova. - É um verdadeiro prazer passar a palma da mão pela sua pele.
- Levanta os braços, Sarai! - pediu outra. - Ai, ai, irmãs, infelizmente os braços da nossa sobrinha não são tão graciosos como as suas pernas!
- Tem os cotovelos esfolados como os de uma criança, mas isso há-de passar. Os ombros são bonitos. Parece que serão bem largos. Que achas Égimé?
- Grandes ombros, grandes tetas, como se costuma dizer. Já o verifiquei dezenas de vezes.
Riram-se todas.
- Mas, por ora, o esposo não terá nada a provar!
- Mas os cordeirinhos já estão a crescer, a adquirir forma!
- Não se dá por isso! Vemos mais a forma dos ossos que a dos seios.
- Na idade dela os teus não eram maiores - lembrou Égimé à sua irmã - e agora vê como são as coisas: temos de tecer túnicas duas vezes mais compridas para que os possas cobrir!
Riram novamente, sem se aperceberem que Sarai enxugava com o punho as lágrimas que lhe corriam até à boca.
- Bom, pelos vistos, o que o esposo não poderá ver no dia do casamento será o matagal. Nem sombra dele! Terá de se contentar com o sulco e, na minha opinião, deverá esperar que o campo cresça para o laborar!
- Basta!
Sarai derrubou o espelho de bronze com um pontapé.
- Sarai! - admoestou-a Égimé.
- Não quero mais ouvir as vossas maldades! Não preciso de ninguém para saber que sou bela e que o serei ainda mais quando for crescida. Serei mais bela que vocês todas. Vocês têm apenas ciúmes, essa é a verdade!
- Orgulhosa e língua de serpente, eis o que és! - retorquiu Égimé. - Não será ao ver-te que o teu futuro esposo fará uma careta. Será ao ouvir-te. Espero que o meu irmão Ichbi tenha tomado as devidas precauções para não receber uma recusa!
- O meu pai não decidiu casar-me. Não vale a pena estar sempre a repetir as mesmas coisas. Não terei nenhum futuro esposo. Vocês são todas velhas e só dizem disparates.
Quase gritara, num tom estridente. As suas palavras ecoaram pelas paredes húmidas do quarto vermelho, caindo no pavimento de tijolo, no meio de um silêncio embaraçado. Os risos pararam. Égimé enrugou ainda mais a testa:
- Como sabes que não terás nenhum futuro esposo?
Sarai sentiu um arrepio percorrê-la. Experimentava novamente o medo que lhe apertara a barriga na noite anterior.
- O meu pai não me disse nada - soprou. - Diz-me sempre o que deseja que eu faça.
As suas tias e as servas desviaram os olhares.
- O teu pai nada tem a dizer sobre as coisas que se passam como se devem passar - retorquiu Égimé.
- Não, o meu pai diz-me tudo. Sou a sua filha preferida...
Sarai interrompeu-se bruscamente. Bastara-lhe pronunciar estas palavras para se aperceber da mentira que elas continham.
Égimé soltou um breve suspiro.
- Tolices de menina! Não inventes o que não existe. As leis da cidade e a vontade de Ea, o Poderoso, serão respeitadas. Ficarás connosco ainda mais quatro dias e ao sétimo dia poderás sair do quarto vermelho e então preparar-te-emos para os teus esponsais. O mês da lavoura será um bom mês para isso. Haverá refeições e cantos. Aquele que se tornará teu esposo deve estar a caminho de Ur. Tenho a certeza que o teu pai escolheu um homem rico e poderoso. Não terás razões de queixa. Antes da próxima lua, ter-te-á ungido com bálsamo de cipreste. Assim será e é muito bom que assim seja.
Abrão
APÓS SETE LONGOS DIAS E NOITES repletos de sonhos que não ousou confiar a ninguém, Sarai deixou o quarto vermelho. Temia tanto este momento quanto ansiava por ele.
O sol ainda não ia bem alto, mas a luz do dia cegou-a de tal modo que mal conseguiu abrir os olhos. Mais do que ver, ouviu Sililli acolhê-la, abraçá-la com gritinhos de contentamento, enquanto Égimé lhe dispensava os últimos conselhos.
Antes de conseguir pronunciar uma palavra, Sililli levou-a pelas escadas que conduziam aos quartos das mulheres. A alvura das paredes brilhava mais que a do pátio. Sarai deixou-se conduzir como uma cega. Sob os seus pés, as escadas pareciam-lhe mais numerosas do que se recordava. Abriu os olhos e olhou para o terraço superior da casa. Sililli empurrou uma porta de cedro tão nova que ainda cheirava a resina.
- Entra!
Com a palma da mão encostada à testa como uma pala, Sarai hesitou. A porta parecia dar apenas para um buraco sombrio.
- Vamos lá, entra! - repetiu Sililli.
Era uma sala espaçosa, mais comprida que larga. Tinha uma janela quadrada que deixava entrar o sol matinal. Por baixo dela, a parede formava uma espécie de bancada coberta por uma esteira.
O pavimento era constituído por tijolos vermelhos oleados e o tecto, alto, por juncos finos, cuidadosamente ligados a vergas esquadriadas. Tudo era novo: as duas camas, tanto a grande como a pequena, bem como um enorme cofre pintado e reforçado com pregos de prata. Uma armação para a tecelagem, também nova, estava encostada a uma parede. Os vasos, as tigelas e as taças dispostos num cofo de vime a um canto da sala nunca tinham servido, tal como a lareira de terracota nunca fora lambida pela menor chama.
- Não é magnífico? Foi o teu pai que arranjou tudo.
As faces de Sililli estavam coradas de excitação. Numa torrente de palavras, contou como Ichbi Sum-Usur apressara os carpinteiros e os pedreiros para que todas aquelas maravilhas estivessem prontas para o dia em que Sarai saísse do quarto vermelho.
- Tratou de tudo! Ele próprio determinou a altura das paredes. Disse: «É a primeira das minhas filhas que darei em casamento. Nada será suficientemente belo. Quero que o seu quarto de casada seja o mais alto e o mais belo do pátio das mulheres!»
Uma estranha sensação serpenteou pela garganta de Sarai. Desejava partilhar a alegria de Sililli e, ao mesmo tempo, o seu peito estava tão opresso que mal conseguia respirar. Não conseguia desviar os olhos da grande cama. Sililli tinha razão: era a mais bela que jamais vira. Nos amplos pés do seu suporte em madeira de plátano tinham sido delicadamente esculpidas as figuras do zodíaco. Na larga prancha escura que, na extremidade, retinha as peles de carneiro de um branco imaculado, estava pintada uma silhueta de Nintu, em vermelho.
- Tem todos os meses das quatro estações - comentou Sililli, que passou o dedo indicador pelo desenho do Peixe-Cabra, a constelação de Mul.suhur. - Para que todos te sejam favoráveis.
Apontou para a pequena cama no outro canto da sala e acrescentou:
- Aquela é para mim. Também é nova. Claro que só dormirei nela nos dias em que não estiveres acompanhada.
Sarai evitou o seu olhar, mas Sililli não cabia em si de contentamento. Fez tinir as guarnições de ferro do grande cofre e levantou a tampa de madeira espessa, pondo a descoberto um monte de tecidos e xailes.
- O teu pai também quis um cofre cheio! Olha para estes belos tecidos! São rakutus de linho tão fino que julgaríamos uma pele de bebé. E vê só isto...
Abriu uma bolsa de couro. Toda a espécie de fíbulas, braceletes, alfinetes de madeira e prata, para o cabelo, tiniram sobre as peles de carneiro. Sililli continuou a agitar-se. Com alguns gestos habilidosos, colocou um dos tecidos à volta de Sarai, uma toga de dobras perfeitas que, de acordo com os costumes, deixava o ombro esquerdo desnudado.
Recuou um passo, mas Sarai não lhe deu tempo para apreciar a sua obra. Retirou o tecido da toga e deixou-o cair na cama, perguntando numa voz mais trémula do que desejaria:
- Sabes quem vai ser?
- Sarai... Mas de que estás a falar?
- Dele. Daquele que o meu pai escolheu para meu esposo. Daquele que irá deitar-se comigo nesta grande cama.
As rugas regressaram à testa de Sililli e o seu peito arfou com um grande suspiro. Voltou a pegar automaticamente no tecido abandonado por Sarai, dobrando-o cuidadosamente.
- Como poderia saber? Não é a uma serva que o teu pai confia essas coisas.
- Ele já cá está? - enervou-se Sarai. - Pelo menos isso deves saber.
- Não é costume o esposo e o pai dele apresentarem-se diante da futura esposa antes de esta ter participado na primeira refeição para os convidados. Égimé não te ensinou nada durante estes sete dias?
- Oh, sim! Ensinou-me a cantar, a lavar a roupa, a tecer fios de cor, muito finos, mas sólidos. Ensinou-me o que uma esposa deve fazer para que o seu marido nunca passe fome. Como alimentá-lo de manhã e à noite. O que deve e não deve dizer-lhe. Ensinou-me a pintar as unhas dos pés, a pentear-me com o xaile, a besuntar as nádegas de pomada! A minha cabeça ainda zune!
O tom da sua voz ia crescendo, com as lágrimas subindo-lhe aos olhos, o que ela teria gostado de dissimular.
- Mas não me disse quem seria o meu esposo.
- Porque ela não sabe.
Sarai procurou ler a mentira nos olhos de Sililli. Apenas viu uma ternura um pouco triste. Um pouco lassa.
- Ela não sabe, Sarai' - repetiu a serva. - É assim, minha filha. Uma filha pertence ao seu pai e o seu pai oferece-a ao seu esposo. É assim que as coisas se passam!
- É o que vocês dizem. Mas eu vou perguntar ao meu pai.
- Sarai! Sarai! Abre os olhos! Amanhã toda a casa estará em festa. O teu pai oferecerá o primeiro banquete e mostrará a tua beleza aos seus convidados. O teu esposo virá oferecer a bandeja de núpcias, as barras de prata, e então conhecê-lo-ás. Depois de amanhã ungir-te-á com o perfume da esposa e pertencer-lhe-ás. Aí tens! É isso que irá passar-se. Nada poderá mudar o curso dos acontecimentos, pois é assim que se casam as filhas dos poderosos de Ur. E tu és Sarai, filha de Ichbi Sum-Usur. Dentro de duas noites, o teu esposo irá dormir neste belo quarto, nesta bela cama. Para tua grande felicidade. O teu pai não pode ter feito uma má escolha...
Com as mãos nos ouvidos para não ouvir mais nada, Sarai precipitou-se para fora da sala. Uma sombra imobilizou-a à entrada: Kiddin, o seu irmão mais velho, estava diante dela.
Tinha quinze anos, mas parecia ter mais dois ou três. Apesar da sua barba não passar ainda de uma penugem transparente, exibia a bela aparência de um jovem senhor de Ur, filho varão de uma grande casa. Os seus traços eram regulares. Os músculos dos ombros, dos braços e das coxas já eram os de um guerreiro. Kiddin adorava a luta e praticava-a todos os dias. Cuidava dos cabelos e controlava o seu olhar, o tom e o alcance das suas palavras, dos seus gestos. Sarai já notara há muito que ele se arranjava de modo a que o tecido da sua toga, sobre o ombro direito desnudo, realçasse a fineza da pele e suscitasse o desejo feminino de deslizar aí os dedos. Em casa preocupava-se sobretudo que todos respeitassem o seu estatuto de filho varão. A própria Sililli que, contudo, só parecia temer Ichbi Sum-Usur, tinha sempre cuidado para não o contrariar.
A voz fria de Kiddin anunciou:
- Bom-dia, irmã. O teu pai pede que te juntes a ele, pois vai
sacrificar ovelhas a fim de conhecer o teu futuro de esposa. O baru já está no templo. Bebe e perfuma-te.
Sarai abriu a boca para fazer uma pergunta que a perseguia, mas apenas conseguiu pronunciar um «Bom-dia, irmão». Um raio perpassou pelos olhos de Kiddin. Um sorriso trocista recordou que ele era apenas um adolescente.
- Prepara-te. Venho buscar-te daqui a pouco.
Voltou as costas e abandonou a sala com ares de grande senhor que gosta de deixar pairar o silêncio sobre as suas palavras.
A PEQUENA SALA ONDE o PAI DE SARAI trabalhava estava bem ata-fulhada. Duas das paredes encontravam-se sobrecarregadas de prateleiras repletas de tabuinhas de argila. Cartas e contratos, centenas de contas. Todas essas coisas importantes que faziam de Ichbi Sum-Usur um homem temido e respeitado.
Numa comprida mesa de ébano, um servo comprimia uma bola de argila numa matriz de madeira, com a ajuda de um pilão. À sua esquerda e à sua direita, encontravam-se caixinhas de argila fresca cobertas de linho húmido, cutelos de bronze, púcaros cheios de calamos pequenos e grandes... tudo o que era necessário para escrever. Sentado na outra extremidade da mesa, dedos precisos e alerta, um escriba esculpia palavras na massa.
Sarai ouviu o seu pai ditar:
- .. .o esposo poderá vir a minha casa, e nela residir como um filho bem-vindo...
Ela deixou cair o cortinado da porta atrás de si.
- Filha!
Sob a barba longa e negra, de ondulações perfeitas, o duplo queixo do pai inchou-se de prazer. Com um gesto, Ichbi Sum-Usur mandou os servos embora. O escriba e o seu ajudante tiveram o cuidado de cobrir com um pano a obra inacabada e eclipsaram-se inclinando-se várias vezes diante de Sarai. O seu pai abriu então os braços dizendo, como se as palavras vindas da sua boca fossem mel:
- A minha filha, a primeira a casar-se!
- Estou muito feliz por te ver, pai.
E era verdade. Ficava sempre feliz ao vê-lo. Não que o seu pai fosse um homem particularmente belo. Era pouco mais alto que ela e a sua corpulência traía a falta de exercício bem como as copiosas refeições que gostava de organizar em todas as ocasiões. Contudo, sentia-se seduzida pelo seu garbo, por aquela espécie de distinção que o poder confere e que só pertencia aos mais nobres nativos de Ur. O seu olhar, sublinhado por um largo traço de khôl(1) manifestava a segurança daqueles que se sabem superiores à multidão. Além disso, hoje trazia uma túnica magnífica, debruada com bordados multicores e pequenos passamanes de prata, insígnias dos funcionários do primeiro grau. Em comparação e apesar de uma extrema fineza, a túnica de Sarai quase parecia banal.
Sentia-se orgulhosa do pai, orgulhosa por ser sua filha e apesar de caber a Kiddin, o irmão mais velho, o papel do primeiro dos filhos de Ichbi Sum-Usur, não duvidava de que era a primeira no seu coração. E do que mais gostava era de certificar-se disso mesmo.
Inclinou o busto numa saudação respeitosa, talvez um tanto excessiva, mas que provocou um pequeno rugido de satisfação do pai. Ele aproximou-se e ergueu-lhe a cabeça colocando-lhe um dedo sob o queixo.
- Estás linda de ver, filha. Égimé disse-me que te comportaste bem no quarto vermelho. Bravo. Estou contente contigo. E tu, estás contente comigo?
Sarai respirou o perfume a mirra de que ele se impregnara profusamente e como resposta contentou-se com um batimento de pestanas.
- É tudo? Mandei construir para ti o mais belo quarto da casa e é assim que me agradeces?
- Estou muito satisfeita com o quarto, pai. Sobretudo, com a cama, que é muito bela. Tudo é muito bonito. O cofre e os vestidos. Tudo. E tu continuas a ser o meu pai adorado.
- Mas...? - suspirou Ichbi Sum-Usur, que sabia ler nela tão bem como numa tabuinha dos escribas reais.
(1) Substância proveniente da carbonização de matérias gordas, destinada a maquilhar as pestanas. (N. do T.)
- Mas, meu bem-amado pai, nada sei sobre o esposo que nele irá viver comigo. Consoante o tipo de homem que for, talvez ache a minha cama muito menos bonita e o meu quarto pior que uma casa de adobe da cidade baixa.
A surpresa arredondou o sobrolho de Ichbi Sum-Usur antes que um gemido, semi-suspiro, semi-riso, lhe agitasse os passamanes da toga.
- Sarai'! Sarai, minha filha! Nunca mudarás?
- Pai, quero apenas saber quem escolheste para meu esposo e porquê. Não tenho esse direito?
A voz de Sarai não era nem lamurienta nem submissa. Pelo contrário, o pai pôde detectar nela uma vibração que bem conhecia. Era a modulação da sua própria voz quando esperava que alguém acatasse as suas ordens sem discussão.
Os seus olhos semicerraram-se. Como quando queria impressionar os subalternos, deixou o silêncio adensar-se. Lá fora, no pátio, ouviam-se vozes proferindo as saudações de boas-vindas. Os convidados chegavam. Sarai pousou a sua mãozinha no largo punho do pai. Este ergueu-se com toda a solenidade de que era capaz.
- Um pai escolhe o marido da sua filha de acordo com as razões que lhe convém. Aquele que escolhi para ti convém-me. Se convém a mim, convirá a ti.
- Só quero ver-lhe o rosto.
- Terás toda a tua vida de esposa para o veres.
- E se ele não me agradar?
- Um casamento não é um capricho. Não se escolhe um esposo por ele ter um belo nariz.
- Quem falou em nariz? Não foste tu que me ensinaste a reconhecer o destino de um homem observando o seu rosto e a sua postura?
- Então, confia em mim. Fiz uma boa escolha.
- Pai, por favor!
- Chega! - enervou-se de uma vez por todas o bom Ichbi Sum-Usur. - Que julgas? Que te vou levar a casa dele para lhe examinares a cara? Protege-me, poderoso Ea! Talvez deva também enviar mensagens por toda a cidade para anunciar que Ichbi Sum-Usur mudou de ideias, que já não vai casar a sua deusa de filha, pois ela não acha a seu gosto o marido que ele lhe escolheu! Sarai, Sarai...! Por favor, não zangues os deuses com novas tolices.
Voltou-se e, com um gesto de fúria, pegou na tabuinha de argila fresca na qual o escriba escrevia há pouco. Ergueu-a diante do rosto de Sarai.
- Esta tabuinha é o teu contrato de esposa. Faltam sete dias, sete dias para eu receber uma idêntica, com a marca inscrita pelo cálamo do teu esposo e do seu pai. Sete dias de festins, cantos e preces, que me irão custar duas mil medidas de cevada! Sete dias durante os quais a minha filha só terá um direito e um dever: ser bela e sorrir.
O seu tom de voz elevara-se, proferindo as últimas palavras com tanta cólera que as deviam ter ouvido no pátio. Lançou a tabuinha para cima da mesa e ajeitou cuidadosamente a túnica que lhe deslizara do ombro.
- O adivinho aguarda-nos. Esperemos que não vá descobrir não sei que catástrofe nas entranhas dos carneiros.
O ADIVINHO ERA UM VELHO HOMEM tão magro que o seu corpo mal parecia existir sob a toga. A sua cabeleira e a sua barba, perfeitamente penteadas e oleadas, cobriam-lhe os ombros e o peito. Do seu rosto, apenas se descortinavam as pupilas negras, luminosas como pedras polidas.
Sarai estava entre o pai e Kiddin. Sentia o calor deles contra os ombros e podia ouvi-los respirar. De vez em quando, Kiddin lançava-lhe olhares que ela preferia não enfrentar. Ele não escondia o facto de ter ouvido a cólera do pai. Juntara-se-lhes quando se dirigiam para o templo, arvorando um sorriso bem expressivo. Aliás, não precisava de exprimir os seus pensamentos em voz alta, pois Sarai adivinhava-os tão bem como se os tivesse sussurrado ao seu ouvido: «Desta vez, mana, o pai aguentou firme. Não cede aos teus caprichos! Já era tempo! Acaso julgas ser a sua preferida?»
Só lhe restava esperar que os deuses lhe fossem favoráveis. E que o seu pai não lhe tivesse escolhido como esposo alguém semelhante a Kiddin! Sempre a querer exibir a sua força e a sua soberba. Não o suportaria nem um dia!
Sarai afastou estes pensamentos. Não devia pensar em nada de negativo enquanto o baru iniciava a cerimónia. Pelo contrário, devia abrir o coração ao adivinho e aos Poderes do Céu. Para que eles pudessem ver o que havia de bom nela. Para que agissem de modo a que o seu esposo fosse um homem capaz de cultivar o que havia de melhor nela.
Endireitou-se, distendeu os dedos, ergueu suavemente o rosto, como para que a vissem melhor. Lutou contra o odor acre que provinha das achas de cedro que o adivinho lançava para as brasas de uma pequena fogueira. Não se via nada, pois todas as aberturas do templo tinham sido tapadas. Só duas tochas de cera de abelha iluminavam a bancada com as estátuas e os altares dos antepassados da família. O adivinho colocara três fígados de carneiro ao pé dos antepassados de Ichbi Sum-Usur. De costas voltadas, proferia palavras que ninguém compreendia. Porém, todos se esforçavam por se comportar o melhor possível para não lhe perturbar a concentração.
Atrás da primeira fila ocupada por Sarai', pelo pai e pelo irmão, encontravam-se apenas, a alguns passos, meia dúzia de parentes próximos e dois ou três convidados. Pessoas de quem Sarai, ao entrar no templo, evitara os sorrisos e os encorajamentos, ainda furiosa por não ter conseguido fazer ceder o pai. Agora, como ela, todos se esforçavam por respirar e por não tossir, apesar do fumo que lhes irritava os olhos e a garganta.
Subitamente, o baru reuniu os três fígados numa espessa bandeja de vime. Voltou-se e dirigiu-se na direcção de Sarai e do seu pai. Esta não conseguiu evitar olhar para as entranhas de onde escorria um ténue fio de sangue quente. A voz forte e nítida do adivinho soou pelo templo:
- Ichbi Sum-Usur, servo fiel, tu, cujo nome significa «Filho que salva a sua honra», Ichbi Sum-Usur, coloquei um fígado diante do teu pai. Coloquei outro diante do pai do teu pai. E outro ainda diante do teu bisavô. Peço aos três que estejam presentes para o oráculo. Ichbi Sum-Usur, saberás aquilo que eles souberem.
O rosto macilento do adivinho estava mesmo diante de Sarai'.
O seu hálito leitoso, ligeiramente azedo, fê-la recuar. A mão impiedosa de Kiddin obrigou-a a voltar ao seu lugar. Num profundo silêncio, o baru perscrutava os menores detalhes do seu rosto. A concentração arreganhara-lhes os lábios, como a uma fera. Fascinada, Sarai olhava para as suas gengivas demasiado brancas, para os seus dentes demasiado amarelos e para os numerosos espaços entre eles. Conteve-se o mais possível, para não mostrar a sua repulsa e a sua apreensão. À sua volta não ouvia nem um sopro, nem um roçar de pés, nem o estalido de uma língua. Apenas ouvia o crepitar das achas nas brasas.
Sem qualquer aviso, o baru empurrou a bandeja com as entranhas contra o peito de Sarai. Ela segurou nas bordas. Era muito mais pesada do que imaginara. Evitou baixar o olhar para a carne viva e escura.
O baru afastou-se dela, recuando vários passos. Sem deixar de a fitar, parou perto da fogueira de tijolo. Ao lado, numa mesa de pedra, tinha colocado a estatueta do seu próprio deus. A sua barba começou a tremer, mas a boca mantinha-se firme. Lentamente, muito lentamente, os seus olhos ergueram-se para a penumbra do tecto. Depois, voltou-se para o seu deus. Os seus braços afastaram-se, o seu corpo inclinou-se para a frente e a sua voz troou, sobressaltando-os a todos:
- Ó Asalluli, filho de Ea, senhor todo-poderoso da adivinhação, apresento-me diante de ti purificado com o odor do cipreste. Ó Asalluli, aceita este ikríbu para Ichbi Sum-Usur, teu servo, e para Sarai, tua serva. Ó Asalluli, honra-nos com a tua presença, digna-te ouvir a inquietude de Ichbi Sum-Usur, que vai oferecer a filha como esposa. Ouve a sua pergunta e transmite-nos um oráculo favorável. A partir deste mês, kislimú, do terceiro ano do reino de Amar-Sin e até à hora da sua morte, será Sarai uma esposa boa, fecunda e fiel?
O silêncio, denso, enfumaçado, recaiu no templo.
Não aconteceu nada. Ninguém se mexeu. Sarai sentiu os músculos dos ombros enrijecer e, depois, encherem-se de agulhas finas. Pouco a pouco, a nuca começou a doer-lhe como se nela estivessem a espetar a ponta de uma flecha. Depois, foi a vez dos rins, das coxas, dos braços! Todo o seu corpo retesado pelo peso da bandeja com os fígados inflamava-se de tal modo que julgou ir gritar de dor.
O adivinho aproximou-se novamente dela. Pegou-lhe nas mãos, envolvendo-as com as suas. Mãos geladas, cuja carne mal tinha a espessura necessária para proteger os ossos. Tirou-lhe a bandeja com um gesto seco. Sarai respirou profundamente. A dor abandonou então os seus membros, como uma água que escorre para longe. Atrás dela ouviu suspiros de alívio. No entanto, nem o seu pai nem Kiddin pestanejaram.
O baru depositou os fígados em três cilindros de terracota, dispostos em volta da estatueta do seu deus. De um grande saco de couro, retirou tabuinhas escritas e um fígado de carneiro em olaria envernizada. Com um passo vivo, foi erguer o cortinado que tapava a abertura mais próxima da mesa. A luz do dia jorrou na sala, brincando com as volutas de fumo azulado, espessas como algas.
Quando regressava para perto da mesa, um ruído estranho imobilizou-o. Era uma espécie de som chiante, quase um assobio. Todos ficaram hirtos, olhos ampliados pela inquietude. O adivinho fixou intensamente os fígados. Uma bolha formou-se naquele que estava à esquerda. Depois o sangue escorreu lentamente pelo lóbulo. Ouviu-se mais uma vez o som chiante. Um murmúrio de receio percorreu a assistência. Sarai sentiu o braço do seu pai tremer de encontro ao seu.
O adivinho avançou um passo, prudentemente. O fígado deslizou do cilindro que o sustinha, encolhendo-se como um trapo mole. Enquanto soava um grito de medo pelo templo, o fígado caiu no solo.
O silêncio paralisou-os a todos. Sarai não ousava olhar para o pai. Sentia um aperto na garganta e nos rins, devido ao medo. Sem dizer palavra e sem olhar uma única vez para a assistência, o adivinho dirigiu-se para a mesa. Inclinou o seu corpo encanecido, agarrou no fígado que caíra, colocando-o num cesto vazio perto das achas de cedro. Depois, sem qualquer explicação, inclinou-se para as restantes entranhas e começou a sua auscultação.
Um suspiro de alívio percorreu a audiência e todos se prepararam para uma longa espera.
Sarai encheu-se de coragem e paciência. As coisas podiam durar várias voltas de clepsidra. Um adivinho podia começar a análise do oráculo a meio do dia para só a terminar ao crepúsculo. Cada parte do fígado necessitava de um exame difícil. O baru aflorava-as, esfregava-as, cortava-as. Contava os quistos, as fissuras, as pústulas, verificava a sua localização, a sua orientação e a sua importância nas tabuinhas e no fígado de terracota. Às vezes também escrevia as suas observações em tabuinhas frescas.
No entanto, desta vez não demorou muito. Uma hora, no máximo. Ergueu o corpo frágil. Lavou as mãos ensanguentadas e enxugou-as cuidadosamente. Ichbi Sum-Usur empertigou-se. Sarai ouviu-o respirar com mais força. O seu próprio coração bateu mais depressa. A inquietação picava-lhe novamente os rins.
Sem olhar para ela, o baru regressou para diante do seu pai.
- A sessão terminou, Ichbi Sum-Usur. Como viste, o teu bisavô recusa o seu oráculo. Quanto aos outros, eis o que se passa: dois fígados, uma elevação na parte esquerda do baço. Um fígado: uma perfuração. Um fígado: uma cruz no Dedo. Um fígado: duas fissuras na Base do trono. Um fígado sem fissura. Quanto ao resto, amanhã dar-te-ei as tabuinhas onde tudo estará confirmado. O oráculo é favorável à tua filha. Boa esposa e até voluntariosa. Esposa fiel, apesar de isso não fazer parte do seu carácter. Quanto à fecundidade, temos duas crianças, provavelmente de sexo masculino.
Sarai ouviu ao mesmo tempo o riso do pai e as exclamações dos parentes atrás dela. Mas antes de compreender se o oráculo era bom ou mau para ela de acordo com o seu próprio ponto de vista, o seu pai ergueu uma mão.
- Baru, por que recusa o pai do meu pai o oráculo? O baru olhou para Sarai.
- Ichbi Sum-Usur, o teu bisavô não quer responder à tua pergunta.
- Porquê? - exclamou este, com voz surda. - Terei efectuado uma má escolha?
O adivinho inclinou a cabeça.
- A pergunta era: será Sarai uma esposa boa, fecunda e fiel? Não se trata da tua escolha, Ichbi Sum-Usur, mas da tua filha. O teu antepassado diz: «Não quero ter nada a ver com esses esponsais.»
Seguiu-se um pesado silêncio. O coração de Sarai acelerava. Ao lado dela, Kiddin cerrava nervosamente as mãos.
- Não compreendo - disse o seu pai. - Devo recusar a minha filha àquele que desejar desposá-la?
- Não. Bastam dois fígados e dois antepassados. O oráculo permanece. Contudo, como és bom cliente, ofereço-te gratuitamente o seguinte conhecimento, que não gravarei na tabuinha: o pai do pai do teu pai disse: «A tua filha agrada a Ishtar. Pode ser uma esposa sem esposo. Faz parte daquelas que engendram a violência. Isso pode ser nefasto ou glorioso. Os deuses decidirão da sua sina: rainha ou escrava». Contudo, tanto para a tua família, como para a do homem que a desposar, convém que tenha filhos sem tardar.
- RAINHA ou ESCRAVA!
- Mas, também, fecunda e fiel - aprovou Sililli, sem parecer impressionada ou inquieta. - É o mais importante. O teu pai deve estar aliviado! Eu estou. E, como vês, disse-te a verdade. Ele não podia mudar de ideias.
Sarai absteve-se de responder. Estavam no novo quarto e Sililli, lavava-lhe cuidadosamente os cabelos, esfregando-os com um perfume oleoso, antes de os juntar numa dezena de tranças.
- Amanhã serás uma rainha - assegurou-lhe ainda. - Também sei isso. Tão bem como um baru.
Com o seu longo pente de chifre de carneiro na mão, inclinava-se para apreciar a justeza do risco que acabara de traçar. Sarai permaneceu calada ainda um momento, antes de perguntar:
- Pensas que os baru dizem sempre a verdade? Sililli demorou algum tempo antes de responder.
- Às vezes enganam-se. Às vezes os deuses também mudam de parecer. Mas quando um adivinho está seguro de si, inscreve-o numa tabuinha. O que não regista na tabuinha, só entra por um ouvido. Eu também posso dizer o teu futuro olhando bem para os teus olhos. Tanto mais que os conheço de cor. Rainha de um bom esposo, com belos filhos. Só vejo coisas boas.
Riu-se, sem esperar pelo riso de Sarai. Os seus dedos trabalhavam com uma agilidade assombrosa, formando trança após trança, enquanto Sarai via a noite aproximar-se através da pequena janela. Pensava: «Estarei aqui todas as noites, a preparar a comida para o meu esposo. A deitar-me nesta cama para que ele se torne pai. Apenas daqui a alguns dias. E durante anos e anos. Até ser mais velha que Sililli».
Como era possível?
Por muito que se esforçasse, não conseguia formar as imagens desses momentos no seu espírito. Não por lhe faltarem o rosto, a silhueta e o corpo do esposo. Não conseguia simplesmente ver o seu corpo deitado naquela cama, um corpo tão pequeno, sem ter sequer o peito formado, como tinham observado as suas tias, e ao lado de um grande corpo de homem. E não apenas deitada ao lado.
Perguntou:
- Sililli? Pensas que ele irá fazer isso? Procurar ter filhos imediatamente?
Sililli soltou um pequeno resmungo e acariciou-lhe a face. Sarai afastou-lhe a mão.
- Não é possível, pois não? Olha para mim: sou apenas uma criança! Como poderia ter filhos?
Sililli interrompeu o seu trabalho. Tinha as faces tão coradas como se estivesse diante de uma fogueira.
- Não te apoquentes tanto. Ele não o fará imediatamente. Se calhar é ainda um grande papa-açorda. Vocês terão todo o tempo.
A sua voz carecia de convicção. Sarai conhecia perfeitamente toda a escala das suas tonalidades.
- Mentes - observou, sem maldade.
- Não minto! - protestou Sililli. - Só que na realidade nunca sabemos exactamente como as coisas ocorrerão. Mas um homem seria louco se quisesse semear o seu grão numa moça tão nova como tu.
- Excepto se um adivinho o aconselhar a fazer filhos sem mais delonga.
Nada havia a responder a este comentário. Calaram-se até Sililli acabar de a pentear.
NA MANHÃ SEGUINTE, logo que houve claridade suficiente, a casa encheu-se de ruídos. Os servos acabaram os preparativos para o primeiro dos sete banquetes a realizar. Tinham erguido um estrado de bambu no grande pátio central, onde se instalariam os esposos e os parentes mais próximos, dominando o resto do pátio, onde os convidados seriam divididos, mulheres do lado esquerdo e homens do lado direito. Estenderam-se esteiras, tapetes, acomodaram-se almofadas e pequenos assentos de vime. Compuseram-se mesas baixas, nas quais foram sabiamente dispostas pétalas de flores, ramos de mirto e loureiro, bem como taças com água perfumada de laranja e limão. Estenderam-se dosséis de junco entre os terraços de modo a que o espaço ocupado pelo festim permanecesse fresco mesmo durante a parte mais quente do dia.
As estátuas dos antepassados da casa foram transportadas do templo até debaixo de uma arcada que conduzia ao pátio dos homens e os seus altares foram cuidadosamente reconstituídos, exalando um odor a alimentos e perfumes. O próprio Ichbi Sum-Usur tratou da disposição dos vasos com plantas raras, oriundos de Magan e Meluha, dos gatos presos a trelas, das gaiolas com pombos arrufando, dos cestos com serpentes, dispostos em diversos pontos do pátio para divertir e impressionar os convidados.
Por fim, trouxeram dezenas de pratos, bandejas com bolos e cestos cheios de pão de cevada ou de trigo. Abriram-se os jarros de vinho e de cerveja...
Quando o sol ia mais alto, Kiddin veio buscar Sarai. Sililli soltou uma exclamação ao vê-lo. Uma fita finamente tecida segurava os seus caracóis untados. Um traço de khôl sublinhava a brancura dos seus olhos. À excepção dos passamanes em fio de prata, trazia uma toga de cerimónia quase tão magnífica quanto a do pai. Resplandecia de tal forma como um deus, que podia passar pelo esposo.
Pegou na mão de Sarai e, enquanto atravessavam o pátio das mulheres, ouviu os gritinhos excitados das jovens servas que tinham parado o trabalho para se extasiarem diante da beleza do seu jovem senhor.
Kiddin só largou a mão da irmã diante do estrado, para onde subiu para um pequeno assento esculpido, rodeado pelas suas tias.
A velha Égimé inspeccionou os menores detalhes do seu traje. Mas Sililli trabalhara com esmero e ela não encontrou nada a dizer. O penteado de Sarai era tão perfeito que podia passar por um diadema seguro por alfinetes de prata; cada prega da sua túnica estava no seu devido lugar e o cinto de lã tecida para a ocasião realçava-lhe a fineza da cintura. Para este primeiro banquete, o da Apresentação, ela não utilizara nenhuma maquilhagem, a não ser uma fina camada de caulim que lhe cobria o rosto, tornando-o tão branco quanto a lua cheia. Nesta simplicidade, a delicadeza dos seus traços e a sua pequena estatura tornavam-na mais estranha que bela.
A partir desse momento, Sarai pôs-se muito hirta no seu assento, olhando em frente, esperando que o sol alcançasse o zénite e que os primeiros convidados passassem pela dupla porta do palácio.
Eram mais de uma centena. Todos os membros da grande família de Ichbi Sum-Usur tinham sido convidados. Alguns vinham de Eridu, Larsa e, até, de Uruk. Ichbi obtivera do rei Shu-Sin salvo-condutos para que eles pudessem viajar até Ur. Esta disposição era a mais bela prenda que o soberano podia ter dado ao seu fiel servo. O pai de Sarai corava de orgulho.
Os convidados subiram pela passagem aberta por entre mesas, assentos e almofadas, e atravessaram o pátio até ao estrado. Cada um saudou Ichbi Sum-Usur e o seu filho varão com muitas palavras afáveis e muitos risos, antes de mergulhar as mãos numa bacia de bronze. A água que ela continha estava perfumada com uma mistura de benjoim, âmbar e mirto. Os convidados aspergiam o rosto, o ombro e até a axila posta a nu pela peça de roupa, do lado esquerdo ou direito, consoante se tratasse de uma mulher ou de um homem. Depois, um escravo estendia-lhes um tecido de linho branco com faixas amarelas, com o qual se enxugavam antes de voltarem a compor a túnica.
Por fim, os homens afastavam-se para se irem sentar diante de uma mesa, mais ou menos afastada do estrado, consoante o seu estatuto. Não dirigiam o menor olhar nem prestavam a menor atenção a Sarai. As mulheres, ao invés, passavam uma a uma diante dela. Não propriamente para a saudarem. Avaliavam a sua expressão e a sua aparência para proferirem depois comentários intermináveis.
Este cerimonial durou duas longas horas. Quando todos se encontraram sentados, Ichbi Sum-Usur e Kiddin efectuaram as suas libações e preces diante do altar dos antepassados. Em seguida, o pai de Sarai regressou para junto dos seus convidados e, abrindo os braços, desejou bem alto as boas-vindas a todos e declarou que os deuses do céu de Ur queriam saciar a sua fome e o seu prazer em honra da fome e do prazer que a sua filha Sarai conheceria em breve, enquanto verdadeira múnus.
A Terra grande e achatada fez-se brilhante, adornando o corpo na alegria,
A Terra ampla ornou o corpo de metal precioso e de lápis-lazúli,
Embelezou-se com diorito, calcedónia e cornalina brilhante,
O Céu, o deus sublime, colocou os joelhos na Terra ampla,
Vertendo no seu seio o gérmen dos heróis, das árvores e dos juncos,
A Terra doce, a vaca fecunda, humedeceu com o rico gérmen do Céu,
Na alegria, a Terra engendrou as plantas da vida...
Uma dezena de mulheres cantava ao pé do estrado. Um coro de vozes lancinantes e incansáveis. Alguns dançarinos evoluíam rodopiando entre os convidados e as mesas, os músicos batiam nos tambores e sopravam nas flautas, todos pareciam insensíveis ao calor. Contudo, os dosséis que protegiam os convidados das queimaduras do sol também retinham o ar do pátio. Não passava a menor brisa pelos poderosos odores dos perfumes e da cozinha. Incapaz de comer, Sarai bebera tanto quanto pudera. A camada de caulim que pusera nas faces e na testa enrijecia ao absorver a transpiração, parecendo estar prestes a asfixiá-la.
Ao lado dela, e tal como o resto dos convidados, as suas tias bebiam grandes quantidades de cerveja, de vinho com mel e ingeriam alimentos. Abanavam o rosto com um leque de vime, tagarelavam e riam a bandeiras despregadas. O mesmo acontecia do lado dos homens. Na realidade ninguém prestava a menor atenção aos cantos ininterruptos, cujas palavras pareciam ser exclusivamente destinadas a Sarai:
...E a mim, a virgem,
A mim, alto montículo erguido,
A mim, virgem de ventre oferecido,
Quem me laborará a vulva?
Molhando o piso em minha honra,
Que esposo aí introduzirá o seu touro?
De repente, os cantos cessaram. Os dançarinos imobilizaram-se, os escravos pousaram os jarros. Ichbi Sum-Usur despediu a sua corte com um gesto seco. Apenas se ouvia o rufar dos tambores e a melodia das flautas, enquanto todos os olhares convergiam para a entrada.
Sarai adivinhou-lhe a silhueta logo que ele entrou no pátio.
A silhueta daquele que a queria como esposa.
Não se apercebeu que se levantara para o ver melhor. Ainda o distinguia mal por entre a sombra dos dosséis. Ele avançava lentamente, atrás de um homem mais velho, certamente seu pai. À primeira vista pareceu-lhe muito alto e seguro de si.
Abriu a boca, mas o seu corpo parecia ter-se esquecido de respirar. O coração martelava-lhe as costelas. As mãos tremiam-lhe. Escondeu-as nas pregas da toga.
O pai do prometido parecia ter prazer em avançar com uma lentidão exasperante. Todos os convidados, homens ou mulheres, saudavam-no respeitosamente. Sarai julgou ouvir um murmúrio de aprovação. A menos que fosse o zumbido do sangue latejando-lhe nos ouvidos.
Contudo, quanto mais os dois homens avançavam, mais um sorriso de alegria brotava dela. Agora via-o melhor. Um corpo esbelto, apesar dos ombros largos. Uma nuca forte sob a toga, cabelos abundantes e encaracolados, presos num carrapicho apertado por um aro de prata. Já tinha barba, até bem fornecida. O balanceamento dos braços, a descontracção ao caminhar, indicava tratar-se de um verdadeiro homem. Não era uma criança, nem sequer um adolescente da idade de Kiddin.
Sarai ouviu os elogios mal contidos das suas tias quando pai e filho se apresentaram diante da bacia com água perfumada. Um após outro, aspergiram o rosto.
Desta vez pôde vê-lo melhor. Sobrancelhas direitas, nariz fino e arqueado. Entre as volutas da barba, a boca tinha a nitidez de um traço. As pestanas quase lhe tapavam os olhos, de tal maneira eram longas. A toga de linho fiada de vermelho e azul deixava ver a barriga das pernas e os pés. Os tornozelos, sólidos, estavam elegantemente apertados pelas correias de cabedal das sandálias. No conjunto, possuía certamente a nobreza que se podia esperar de um homem da Suméria e de Akkad.
Uma mão segurou no cotovelo de Sarai, apertando-a tanto quanto umas garras. Ela sobressaltou-se, voltou-se de lado e sentiu o hálito embriagado de Égimé murmurar-lhe fogosamente:
- Aqui está o teu esposo! Olha bem para ele, minha filha. Acolhe-o como merece. É um rei. Sou eu que o digo. Nós todas, aqui presentes, suplicar-lhe-íamos para que nos afastasse as pernas!
Sarai teve vontade de dar largas a um sorriso de quem não teme mais nada. Desejava que o coração lhe batesse apenas de impaciência, alegria e prazer! De facto, tudo indicava que o seu pai encontrara o homem mais poderoso, belo e nobre, para a filha bem-amada.
Ichbi Sum-Usur acolhia presentemente os dois homens, Kiddin felicitando já o esposo, o seu futuro irmão. Via-se a que ponto admirava o recém-chegado e procurava agradar-lhe. Sorrisos, risos, saudações com a cabeça, trocas de xailes!
Sim, Kiddin não teria hesitado em desposar aquele homem.
Ao vê-lo comportar-se daquela maneira, uma dúvida agitou-se no ventre de Sarai como uma pequena serpente.
Demasiado absorvida a contemplar aquele que seria dono dos seus dias e noites, ainda não prestara nenhuma atenção à bandeja do ritual que o esposo devia oferecer à família da esposa. Quatro escravos traziam-na agora, subindo o estrado. Ouviram-se gritos e aplausos. Os convidados já não conseguiam conter a admiração.
A bandeja, grande e dominada por uma estatueta, estava esculpida em madeira preciosa vinda de Zagros, revestida de couro, bronze e prata. No seu centro, fazendo parte da mesma peça de madeira, erguia-se um touro com chifres de ouro, focinho de prata e olhos de lápis-lazúli. Sob o seu peito embutido de marfim e ébano erguia-se um enorme sexo de bronze.
Os gritos de aclamação não cessavam. Os olhos de Kiddin lançavam faíscas de excitação.
Sarai sentiu um arrepio.
Ichbi Sum-Usur avançou. Disse algo em voz alta que Sarai não entendeu, levou a mão ao touro e acariciou-lhe os chifres. Um riso percorreu as filas dos nobres. Sarai apercebeu-se que o esposo ria, boca aberta, revelando os dentes brancos. Num ápice viu o rosto daquele homem no seu quarto, na sua cama. Aquele homem com aquele riso, boca grande, aberta sobre ela. Como se a fosse morder ou rasgar.
Na mesma altura o esposo empunhou com uma mão o sexo de bronze do touro. Com a outra afastou rispidamente os escravos. Como um deles não compreendeu o seu gesto, pontapeou-o na coxa e fê-lo dar um trambolhão pelo estrado, desencadeando assim novas gargalhadas. Com um só braço, que quase nem vacilava sob o peso da bandeja, ergueu a sua oferta por cima da cabeça. As mulheres soltaram gritos agudos, os homens levantaram-se para o aclamar.
Égimé, que não largara o braço de Sarai, guinchou ao apertá-la tanto que, por sua vez, esta gritou, enquanto o coro das cantoras entoava um novo canto:
Contigo deitar-se-á, deitar-se-á, Contigo o teu esposo deitar-se-á, Contigo, o seu sémen jorrará, Contigo, no teu regaço fértil, Contigo, o teu esposo...
Então, no meio do barulho, ele voltou-se para ela e olhou-a pela primeira vez.
Ela viu que os seus olhos a perscrutavam de alto a baixo, regressando depois ao rosto.
Viu a sua expressão.
Viu o que ele descobria e o que pensava.
Uma criança magra e desprovida de graça. Uma rapariga sem peito, sem ancas, de mãos trementes, com ossos salientes nos punhos. Uma miúda de rosto ridículo, sob a camada de caulim que se fendera como a terra no Verão. Não era uma mulher de maçãs do rosto salientes, lábios orlados e olhos de bezerra mansa.
Viu tudo isso nos olhos dele e a crispação da sua boca, enquanto diminuía o seu esforço, deixando cair a bandeja dos esponsais nas mãos dos escravos. E o que ela viu nem sequer se podia chamar uma decepção. Era a expressão de um homem que despreza. Que avalia, agastado, o esforço que terá de despender para olhar mais uma vez para aquela que será a sua esposa.
NA MANHÃ SEGUINTE, duas horas após o amanhecer, o pátio ainda acolhia convidados. Alguns aguardavam na ruela diante da casa, apesar dos servos terem retirado os assentos para arranjar mais espaço. Os cantos, as flautas e os tambores dificilmente chegavam a cobrir o vozeirão geral.
A meio do dia, as estátuas dos antepassados de Ichbi Sum-Usur foram içadas para o estrado e colocadas ao lado das da família do esposo. Diante delas, foi instalada a bandeja nupcial. O touro desaparecia sob pétalas de flores, jóias e ofertas de tecidos finos. Caiu o silêncio quando os dois pais, depois de terem lançado achas de cedro para as fogueiras de terracota, entoaram um canto aos seus deuses e venerados antepassados.
Uma vintena de escravos trouxe também para o estrado uma grande bacia de bronze, onde as jovens de toga branca despejaram jarros de unguento de cedro e âmbar, diluídos em água do Eufrates.
Depois, os escravos estenderam ao longo de todo o muro um biombo de junco e vime que tapou a visão da bacia de bronze e dos antepassados aos convidados que permaneciam no pátio. Conduzida por Égimé, Sarai' chegou à ponta do estrado reservada às mulheres.
Trazia a sua toga nupcial, bordada com passamanes com fios de prata, cingida por uma larga faixa de tecelagem escarlate que lhe deixava os ombros nus. Das sobrancelhas às maçãs do rosto, as suas pálpebras estavam cobertas por uma espessa camada de khôl. Os seus olhos brilhavam como os de um animal surpreendido na escuridão. Os seus lábios pareciam maiores devido à pasta de âmbar com que os tinham marcado. No entanto, as suas tias repararam que tinha as faces tão pálidas que parecia que Sililli não as desembaraçara suficientemente do caulim da véspera.
Diante dela, do outro lado do estrado, o seu pai, Kiddin e os seus tios rodeavam o esposo e o pai deste. Todos a fitavam, mas o fumo das ervas e do cedro velava os seus olhares. Quanto a Sarai', evitava cuidadosamente enfrentar o olhar do homem que devia brevemente partilhar o seu leito.
Do outro lado do biombo, elevou-se o som das flautas por entre a multidão dos convidados invisíveis. Suave, vibrante, melodioso. A música envolveu ternamente Sarai. Enrolava-se à volta do seu coração, subia-lhe peito acima, acalmando-a como uma carícia. Todos os pensamentos que desde aquela manhã lhe tinham retesado o corpo, dissiparam-se. Os músculos dos ombros e o ventre descontraíram-se. Sentiu-se calma, segura de si, pronta a fazer aquilo que devia.
E tudo começou. Para ela, tudo se desenrolou num único e mesmo movimento.
Atrás do biombo, as cantoras acompanharam as flautas.
Quando, pelo touro selvagem, me tiver banhado Quando a minha boca tiver revestido de âmbar
Ichbi Sum-Usur percorreu o estrado, atravessando o fumo liberto pelas achas de cedro, fazendo-a girar em torno dele.
Quando os meus olhos tiver pintado de khôl Égimé empurrou-a de encontro ao pai. Este conduziu-a por entre o fumo, para diante dos antepassados, agradecendo-lhes, ao passo que as cantoras, acompanhadas pelas vozes de todos os convidados, prosseguiam o canto nupcial:
Quando, para ele me tiver enfeitado
Quando as suas mãos me tiverem acariciado os rins
Ichbi Sum-Usur agarrou então nos cordões do cinto de Sarai e desapertou-os. Puxou pela toga, retirando-a pelos ombros. E ela ficou nua.
Quando com leite e creme ele me tiver esfregado as coxas
Segurando-a pelos rins, o pai levou-a para a bacia de bronze. Pegou numa taça de madeira que um escravo lhe estendia. Encheu-a de água perfumada. Ergueu a mão bem acima de Sarai antes de deixar escorrer a água pelo seu peito. Ela dobrou ligeiramente os joelhos enquanto a água fria lhe escorria pelo ventre, até à fenda do sexo.
O canto tornava-se cada vez mais fervente. O ritmo dos tambores sublinhava agora as palavras.
Quando na minha vulva a sua mão ele tiver pousado Quando, como um barco negro, a sua poupa tiver fendido...
Sem sequer o ver, soube que ele estava ali, atrás dela. Ele, o esposo. Viu a taça de madeira deixar a mão do pai para passar para a daquele homem e julgou que o seu coração ia explodir.
O esposo inclinou-se por sua vez para encher a taça. O seu ombro nu roçou pela anca de Sarai'. Ela respirou o forte odor da sua cabeleira untada de mirto. Os dedos que iam tocá-la reflectiram-se na água perfumada.
Ela saltou então para fora da bacia. Escorrendo água, agarrou na túnica que estava no chão e correu até à extremidade do estrado onde se encontravam as mulheres. Égimé foi a única a atravessar-se-lhe no caminho. Sarai repeliu-a sem-cerimónia. Ouviu o som de uma queda e gritos. Correu através de uma sala e, depois, de outra. Os cantos tinham parado. Viu o rosto estupefacto de uma serva e correu ainda até ao jardim. Sabia por onde devia passar: pelos canais e pelos tanques. Podia pular de uns para outros, de modo a chegar às ruas da cidade, sob os muros do palácio.
CAMINHAVA SEMPRE EM FRENTE, pensando apenas em fugir para o mais longe possível. Entre os elevados muros de tijolo, as ruas eram estreitas e sombrias, por vezes apenas suficientemente largas para deixar passar três ou quatro pessoas de frente ou um burro albardado. Sob o olhar estupefacto dos passantes, sem abrandar a corrida, esgueirou-se por entre os sacos e os cestos dos vendedores ambulantes.
Quase sem fôlego, chegou finalmente ao grande canal que ladeava a muralha principal da cidade real de Ur. Através de mil ramificações, era aí que se distribuía a água do Eufrates pelos templos, palácios reais e residências dos Poderosos. Alcançando os portos abertos sobre o rio, a norte e a sul, enlaçava a cidade nobre como uma ilha, separava-a e purificava-a dos dejectos da cidade baixa, onde vivia o povo comum.
Encostada à sombra de um muro, Sarai procurou reconhecer por entre a multidão os servos e os escravos que o seu pai podia ter enviado no seu encalço. Não viu nenhum. A surpresa devia ter sido tão grande que ela já devia estar longe antes da busca ter principiado.
Agora devia alcançar o mais depressa possível uma das portas. No entanto, hesitou. Os deuses iriam permitir-lhe franquear os limites da cidade nobre?
Devia ter um aspecto muito esquisito, pois vestira apressadamente a toga de passamanes com as pregas em desordem, com os olhos negros de khôl e a cabeleira penteada em diadema, descomposta pela corrida! Adivinhou antecipadamente os olhares dos guardas que vigiavam apertadamente as entradas e saídas da cidade nobre, tão espantados quanto os dos passeantes com que se cruzara até ali.
Por um momento pensou: «E se eu voltasse para casa do meu pai? Sililli poderia ajudar-me a introduzir-me no quarto. Ela deve estar a chorar copiosamente, cheia de inquietação. Ficará muito contente por me ver. Por certo que já não se fala de esposo ou de esposa.» Certamente humilhado pela sua fuga, o tão nobre esposo que o seu pai lhe encontrara já devia ter abandonado a casa. Uma casa onde se devia ouvir a fúria de Ichbi Sum-Usur por todas as salas.
Não, não podia regressar. Tudo acabara. Desde que vira aquele homem, o seu esposo, no estrado, tomara logo a sua decisão. Nunca mais veria Sililli, as suas irmãs, o seu pai, nem sequer Kiddin, de quem não tinha quaisquer saudades. O gesto que efectuara aos olhos de todos, transformava-a dali em diante numa rapariga sem família. Tudo o que interessava presentemente era escapar aos soldados que, com a chegada do crepúsculo, enviavam as pessoas para casa e perseguiam os que deambulavam pela cidade nobre. Encontraria um abrigo para a noite no exterior das muralhas. Não era altura para se compadecer da sua sina. Pelo contrário, devia endurecer o coração e dar provas de coragem. Amanhã teria tempo para reflectir, mais e melhor.
Com uma maneira de andar que procurava mostrar a maior naturalidade, voltou atrás para se embrenhar na sombra vermelha de uma ruela pouco frequentada. Na sua corrida, avistara um beco sem saída quase tapado por um muro meio desfeito. Esgueirou-se para ela.
Escondida dos olhares, desfez a cabeleira, retirou as agulhas feitas de chifre, à volta das quais Sililli lhe enrolara as madeixas. Teria sido preferível desfazer as tranças, mas não tinha tempo. Limitou-se a puxá-las para trás do pescoço. Servindo-se de um pedaço da toga, esfregou os lábios e os olhos, esperando retirar a maquilhagem. Depois despiu-se, rasgou as bainhas da túnica para retirar os passamanes de esposa que dela ainda pendiam. Consciente de ter cometido um gesto irremediável, lançou-os por entre os tijolos.
Destramente voltou o tecido do avesso para que a tecelagem parecesse menos luxuosa e, em seguida, cobriu-se e tapou a cabeça. Esperava que talvez os guardas a vissem apenas como uma serva, mas assaz nobre para não lhes chamar a atenção. Com uma confiança inteiramente nova, e até com uma alegre excitação, passou novamente pelo muro para alcançar o canal e a porta a norte.
Na verdade, a sua nova confiança enfraqueceu logo a seguir.
A muralha da cidade nobre de Ur, construída há mais de mil anos, tinha a espessura de cinquenta homens e a altura de cem. No reino de Shu-Sin, filho de Shulgi, só Nippur possuía tão formidáveis muralhas. As portas permitiam a passagem para os quatro pontos cardeais. Portas reforçadas de bronze, tão pesadas que eram precisos cinquenta homens e bois para as manobrar. Agora que se encontrava perto delas, via deambular os guardas, lança na mão, com capacetes e protegidos por capas dobradas a couro, perscrutando de olhar vigilante todos os que entravam e saíam.
No entanto, os deuses decidiram facilitar-lhe as coisas. No meio de grande alarido, chegou uma procissão que regressava dos grandes templos de Sin ou de Ea, da cidade baixa. Atrás dos músicos, homens transportavam liteiras transbordando de flores, onde imperavam as estatuetas dos seus antepassados. Ao lado, jovens sacerdotisas, envergando a simples toga dos templos secundários, sem faixas nem jóias para os cabelos, transportavam incensórios de onde escapava o fumo acre do junco e a goma de bidurhu. Atrás, a multidão comprimia-se. Sarai não teve qualquer dificuldade em misturar-se a ela. Uma jovem da sua idade quase nem se espantou ao vê-la ocupar um lugar a seu lado.
A procissão passou pela ponte de madeira que atravessava o canal. Os guardas alinharam-se ao lado das portas, como deviam. Sarai reteve a respiração enquanto se embrenhava na frescura da muralha. Esta era tão espessa que pareciam avançar por um túnel. Não ouviu nenhum grito nem nenhum apelo.
Do outro lado estendiam-se os jardins e a miscelânea de escadas talhadas numa antiga muralha. Subitamente, Sarai descobriu a imensa cidade baixa. Centenas de ruas encabrestadas perdiam-se ao longe, numa extensão de dezenas de ús. Adivinhavam-se os telhados ao longo da curva do rio.
No exterior das muralhas da cidade real, a desordem tomou conta da procissão. Jovens escaparam do cortejo disputando-se e brincando. Habitantes comprimiram-se na berma das ruas, para cantar, dançar e bater palmas, acompanhando os músicos. Alguns aglutinaram-se à volta dos portadores de liteiras. Lançavam pétalas, frasquinhos de perfume ou de cerveja sobre as estatuetas. Os gritos, os risos e as saudações abafaram os cantos. Sarai aproveitou a confusão para entrar na primeira rua que encontrou.
DURANTE MUITO TEMPO CAMINHOU AO ACASO. Não reconhecia nada à sua volta. Aqui, as casas eram apenas cubos imbricados uns nos outros. As portas eram simples batentes de madeira ou cortinados e as paredes estavam revestidas por uma mistura branca de barro amassado com palha.
Circulava muita gente no exterior. Pessoas comuns, de túnica ou de tanga, com solas de vime, barrigas das pernas empoeiradas. Falavam, riam, chamavam-se, transportavam cestos ou sacos, conduziam jumentos ou empurravam carroças carregadas de juncos ou melancias. Algumas olhavam espantadas para Sarai, mas sem verdadeira curiosidade. Para ela, tudo era estanho e assombroso.
Durante toda a sua infância, só saíra meia dúzia de vezes da cidade real, para se dirigir aos grandes templos de Eridu. Nessas ocasiões atravessava o rio de barco, com o pai, rumo a oeste. Os Poderosos não iam à cidade baixa, a cidade do norte. Só nutriam por ela desprezo e desconfiança. As servas contavam que de noite as ruas pululavam de demónios de pele negra, animais de múltiplos corpos, com mandíbulas e garras ferozes e outros horrores surgidos das cavernas infernais das profundezas da terra.
Aqui, na cidade baixa, homens e mulheres estavam submetidos ao poder dos Poderosos de Ur, sem nunca lhes verem os rostos. Se Ichbi Sum-Usur precisasse de artesãos ou mercadores que vivessem nos seus domínios, dirigia-se aos escribas, contramestres ou regentes.
Bastava a Sarai olhar à sua volta para compreender que não encontraria nem ajuda nem guarida. Quem acolheria uma rapariga da cidade real, ainda por cima uma fugitiva, sem temer a fúria dos Poderosos? Isso saber-se-ia e muito depressa. Ali, não havia segredo possível. As pessoas viviam tanto no interior das casas como no exterior. As portas estavam frequentemente abertas e os passantes podiam ver os pátios interiores. Crianças, gansos, cães e, até, porcos iam e vinham como lhes apetecia, enchendo ruas e ruelas.
A cada passo era preciso evitar as imundícies. Mas ninguém parecia incomodar-se. Cada um tratava dos seus assuntos, de boca aberta, apressando-se como se nada se passasse à volta das bancadas onde se vendiam e trocavam alimentos, cordas, pedaços de tecido, sacos de grãos ou, até, burros. O cheiro dos legumes azedados, da carne e dos peixes expostos ao calor, misturava-se ao das bostas de burro e dos dejectos das crianças que a terra poeirenta ainda não absorvera. Era um fedor tão asfixiante que Sarai tinha de levar o véu à boca para respirar. Era certamente a única a fazê-lo, mas todos estavam tão ocupados que ninguém lhe prestava atenção. Por fim, um apelo sobressaltou-a:
- Minha menina, minha menina!
Sentada na soleira de uma casa, uma velha sorria-lhe. Ou fazia uma careta. O seu rosto não era mais do que um montão de rugas onde os olhos desapareciam. A sua boca, desdentada, deixava ver uma língua de um cor-de-rosa repugnante. Agitou um dedo retorcido na direcção de Sarai, convidando-a a aproximar-se.
- Ervas, ervas, filha! Não queres as minhas ervas?
Uma dezena de pequenos cestos estava alinhada a seu lado, ao longo do muro. Transbordavam de folhas, grãos de todas as cores, pedras, cristais de goma. Sarai quis fugir, mas o olhar da velha reteve-a.
- Ervas... ou outra coisa? Vem cá, filha, não tenhas medo!
A sua voz suavizou-se. Adivinhava-se nela uma certa gentileza. «A sorte e os deuses estarão sorrindo-me?», pensou. Talvez a velha lhe pudesse encontrar um abrigo para a noite. Que podia temer uma mulher daquelas? Porém, nessa altura a outra exclamou:
- Minha deusa, precisas de alguma coisa? Kani Alk-Nàa vender-te-á o que quiseres...
Ao ouvir a palavra deusa, Sarai imobilizou-se. A mulher tê-la-ia reconhecido como rapariga da cidade real? Ou estaria simplesmente a troçar dela? Fingindo-se indiferente, Sarai debruçou-se sobre os cestos. Apenas continham ervas e grãos. Alguns transbordavam de esqueletos de animais, fetos, crânios, entranhas ressequidas e sabem lá os deuses que mais! Estava diante do antro de uma feiticeira, uma kassaptu!
Esta viu a sua expressão enojada e soltou uma sonora gargalhada.
- Minha deusa, perdeste-te muito longe de casa! Não te deixes devorar pelos demónios da noite!
Sarai endireitou-se, com o medo a apertar-lhe o estômago, e afastou-se correndo.
Atrás dela, as elevadas muralhas de Ur tingiam-se com a cor ocre do crepúsculo, imensas como montanhas e doravante intransponíveis antes da alvorada. Mais acima, apenas se avistavam os terraços superiores do zigurate, com a coroa sombria dos seus jardins de onde emergia o Quarto Sublime, cujas lazulites reflectiam o sol, como uma estrela diurna. Não existia maior beleza no mundo.
Sarai' corria, sem se voltar, pensando no seu jardim, no seu quarto novo, na macieza da sua cama. Abrandou o passo. A noite chegava como o mar vem afagar as margens.
Sabia que àquela hora, se tivesse ficado no palácio do pai, entre as mãos desdenhosas do seu esposo apressado em pôr termo a tudo, não veria nada de belo no seu quarto ou na sua cama. Contudo, as lágrimas vieram molhar-lhe os olhos e morder a sua coragem.
«NÃO TE DEIXES DEVORAR PELOS DEMÓNIOS DA NOITE!», guinchara-
-lhe a velha. O aviso ainda lhe soava aos ouvidos. O sol desaparecia na beira do mundo. Custava-lhe avançar. As pernas pesavam-lhe. Tinha as suas belas sandálias de pele de cabrito ensopadas em lama. A água chapinhava sob os seus pés nus. A parte inferior da túnica estava encharcada. Os juncos fustigavam-lhe os braços e os ombros.
Chafurdava à beira-rio sem saber como fora ali parar. Seguira uma ruela, as casas tinham-se espaçado. Correra sempre em frente, esgotada, demasiado aterrorizada para parar, esperando ainda não se sabe o quê. Uma cabana de juncos, um barco, um tronco de árvore, um covil, qualquer coisa que a pudesse proteger. Ora, o frio e a noite chegavam e sentia a nuca apertada.
- Ai!
De repente, o seu pé deslizou em algo duro, sentiu um golpe contra a coxa, pensou nos demónios, gritando de terror. Caiu de cabeça na água. Os seus dedos enterraram-se no lodo. O tecido da toga rasgou-se nas mangas e quase a estrangulou. Com um golpe de rins, conseguiu sentar-se, disposta a enfrentar a mais terrível das mortes.
No entanto, aquilo que viu, de pé, recortando-se sob a fraca luminosidade, não era um monstro, mas um homem.
Talvez nem fosse um homem: era antes um rapaz, de cabeça aureolada por cabelos encaracolados, corpo alto e esguio, todo músculos, quase nu, uma tanga de linho cru à volta dos rins, pernas sujas de lodo, até aos joelhos. Na mão esquerda, uma espécie de cesto de vime cilíndrico onde se agitavam animais. Sarai mal lhe distinguia as feições. Apenas via o brilho dos olhos que a fixavam.
Ele fez um gesto furioso com o braço, mostrou o rio e disse algo numa língua que ela não compreendeu. Depois, calou-se, observando-a mais atentamente.
Ela passou uma mão pelo rosto para se desembaraçar da lama. O tecido rasgado da sua túnica deixava ver o seu ventre e a fina penugem do seu sexo. Apertou rapidamente as pernas, pôs-se de joelhos na água, tapando-se tanto quanto podia com o tecido molhado. Por fim, levantou-se.
O rapaz era um pouco mais alto que ela. Olhava-a calmamente, sem sorrir, apesar do aspecto medonho que ela devia ter. De olhos fixos nas suas tranças, perguntou-lhe:
- Que fazes aqui?
Desta vez utilizou a língua adequada. Era uma voz desprovida de maldade, apenas espantada e curiosa. Com as costas da mão, Sarai' limpou novamente a cara e as pálpebras.
- E tu?
Ele levantou o cesto e sacudiu-o. Duas rãs inchavam o pescoço, piscando os olhos. Desta vez ela viu-lhe claramente o rosto, estreito, de testa alta, sobrancelhas muito arqueadas, quase juntas sobre um grande nariz recurvado. Na derradeira luz do dia, o castanho um pouco esverdeado dos seus olhos tornava-se translúcido e os seus lábios eram belos: grandes, plenos, de forma curiosamente alada. Tinha as faces cobertas por uma penugem irregular. Queixo saliente, sobre um pescoço magro. Os ossos dos seus ombros desenhavam recantos de pele húmida. Ele disse:
- Pescava.
Sorriu, olhou para o rio que a noite começava a tornar imenso e acrescentou:
- É a hora indicada para pescar rãs e lagostins. Se ninguém vier pisar-nos, desatando aos berros.
Desta vez, Sarai' tinha a certeza: era um mar.Tu, um desses Amorritas vindos das fronteiras do mundo, onde o sol desaparecia. Um homem que só possuía deuses inferiores e que nunca seria autorizado a entrar na cidade real.
Estremeceu, sentindo a pele arrepiar-se nos braços, sob o frio. O vento levantou-se. Colou-lhe o tecido molhado contra o corpo. Sem saber porquê, teve vontade de dizer a verdade. Que o rapaz soubesse quem ela era. Então, numa voz baixa e frágil, disse-lhe de uma assentada:
- Chamo-me Sarai'. O meu pai, Ichbi Sum-Usur é um Poderoso de Ur. Devia casar-me hoje. O meu esposo também é um Poderoso de Ur. Mas quando me olhou, soube logo que nunca poderia viver com ele, no mesmo quarto, na mesma cama. Soube que preferiria morrer a sentir as suas mãos no meu corpo e o seu sexo entre as minhas coxas. Pensei esconder-me dentro de casa. Mas não era possível. A serva que se ocupa de mim conhece todos os meus esconderijos. Quis saltar de um muro e partir as pernas. Faltou-me coragem. Fugi. Agora o meu pai deve julgar que a sua filha morreu...
O rapaz escutava-a, olhando alternadamente para a sua boca e para as suas tranças. Quando ela se calou, não disse nada. A escuridão da noite parecia aproximar-se a correr, transformando-os em simples silhuetas sob um céu cada vez mais estrelado.
Finalmente, ouviu-o dizer:
- Eu chamo-me Abrão, filho de Terá. Sou um mar. Tu. As nossas tendas ficam a cinco ou seis ús mais a norte. Não devemos permanecer aqui, senão vais gelar.
Ela ouviu o ruído da água quando ele deu um passo em frente na sua direcção e sobressaltou-se. Ele segurava-lhe na mão. Palmas unidas, apertava os dedos quentes, um pouco ásperos, em volta dos seus.
Firmemente, mas com uma estranha doçura, levou-a consigo. Uma doçura que irisou todo o corpo de Sarai', das coxas ao fundo do peito.
Desta vez não conseguiu reter as lágrimas enquanto ele acrescentava:
- Temos de encontrar um lugar seco e acender uma fogueira. A noite é fria nesta época do ano. Suponho que não sabes para onde ir. Não é todos os dias que as filhas dos Poderosos de Ur se perdem por entre os juncos, à beira-rio. Podia levar-te até à tenda do meu pai, mas ele pensaria que lhe traria uma esposa e os meus irmãos ficariam com ciúmes. Não sou o mais velho. Não faz mal. Havemos de encontrar qualquer coisa.
ESSE «QUALQUER COISA» foi uma simples cabana de areia. Mas era quente e protegia do vento.
Abrão parecia capaz de ver na escuridão. Não demorou muito a encontrar juncos secos e zimbros mortos. Acendeu uma fogueira, servindo-se de líquenes e raminhos de zimbro que rodou habilidosamente nas palmas das mãos. A visão das chamas aqueceu Sarai tanto quanto o próprio calor.
Abrão continuou a atarefar-se, desaparecendo constantemente para regressar com novas braçadas de juncos e ramos secos. Quando achou a quantidade suficiente, acocorou-se sem dizer palavra.
Agora podiam ver-se muito melhor. Ora, quando os seus olhos se cruzavam, desviavam imediatamente o olhar, embaraçados. Calaram-se muito tempo, aquecendo-se junto às chamas de onde escapavam faíscas em torvelinho.
Sarai achou que o jovem mar. Tu devia ter aproximadamente a idade de Kiddin. Devia ser menos forte, certamente mais habituado a longos percursos do que à luta, exercício preferido do seu irmão. Os seus cabelos também lhe conferiam um aspecto muito diferente, menos nobre, menos orgulhoso, mas que lhe agradava.
De repente, quebrando o torpor que embotava Sarai, morta de cansaço e emoção, Abrão levantou-se e anunciou:
- Vou até às tendas.
Sarai pôs-se imediatamente de pé, num pulo. Abrão riu-se ao ver o seu rosto aterrorizado. Agarrou no cesto de vime e sacudiu as rãs:
- Não te apoquentes. Apenas quero ir buscar alguma coisa para comer. Tenho fome e tu talvez estejas também esfomeada. Não é o que pesquei que nos irá alimentar.
Como Sarai se voltava a sentar, vexada por ter mostrado o seu medo, ele sorriu, trocista.
- És capaz de lançar madeira para o fogo?
Ela limitou-se a responder encolhendo os ombros.
- Perfeito - disse ele.
Examinou o céu durante um momento. A lua já tinha aparecido. Sarai reparou que ele tinha o hábito de erguer o rosto para o firmamento, como se procurasse as marcas do sol nas estrelas. Depois, com alguns passos, sumiu na noite. Sarai só captava a brisa nos juncos, o marulho da água e, ao longe, muito ao longe, do lado da cidade baixa, o latido dos cães.
O medo voltou a atormentá-la. O rapaz podia perfeitamente abandoná-la. A fogueira podia assinalar a sua presença aos demónios. Os seus olhos vasculharam a escuridão, como se pudesse descobrir nela uma multidão trocista. Depois o seu orgulho levou a melhor. Envergonhou-se de si mesma. Devia parar de ter medo. Só temia o que não conhecia. Esta noite tudo possuía a novidade absoluta do desconhecido. A noite, a fogueira, o rio, o céu, sobre ela, na sua infinita imensidão. E até o nome do rapaz mar.Tu: Abrão.
Que nome mais esquisito! Abrão! As sílabas enrolavam-se-lhe na boca de uma maneira que lhe agradava.
Ora, precisamente, Abrão não mostrava qualquer medo da noite. Deslocava-se nela como de dia. Nem sequer parecia temer os demónios.
Talvez fosse assim, um mar.Tu...
Na verdade tudo lhe agradava naquele rapaz. Talvez porque se sentira simplesmente amedrontada por se ter perdido e por estar sozinha em plena noite. Ou porque ele não era nada parecido com Kiddin. Aliás, também não se assemelhava em nada ao esposo que o seu pai escolhera.
Pensou, divertida, nas expressões horrorizadas de todos se tivessem visto Abrão pegar-lhe na mão sem qualquer cerimónia! Um mar.Tu que ousava tocar na filha de um Poderoso! Que sacrilégio!
Mas ela nem sequer pensara em retirar a mão. Não sentira nenhuma vergonha, nenhuma repulsa. Mesmo o cheiro dele, que nada tinha a ver com os perfumes abundantemente usados pelos Poderosos de Ur, não lhe repugnava.
Na verdade, também lhe agradava que ele fosse um bárbaro mar. Tu!
Gostaria de saber o que ele pensava dela, apesar do seu aspecto horrível. Seja como for, Abrão nada dera a entender. Talvez fossem os modos dos homens-sem-cidade. O seu pai, tal como Sililli, pretendia que eles tinham sentimentos grosseiros, obscuros, manhosos. Não obstante, aquele não hesitara em socorrê-la.
A menos que o seu pai e Sililli tivessem razão e que ela não mais o voltasse a ver.
Zangou-se consigo mesma por ter este pensamento. Voltou a colocar madeira na fogueira e forçou-se por não mais deixar o seu espírito divagar.
ELE ACORDOU-A deixando cair a seu lado duas peles de carneiro de longos pêlos brancos e um grande saco de couro.
- Levei algum tempo porque não queria que os meus irmãos me vissem - explicou. - Teriam pensado que eu queria dormir ao relento para partir de manhã cedo à caça e ter-me-iam seguido. Seguem-me sempre que vou à caça. Já matei dois linces e três veados. Um dia enfrentarei um leão.
Sarai perguntou a si mesma se ele se vangloriava ou se procurava impressioná-la. Mas, não. Abrão desenrolou as peles de carneiro e retirou do saco uma veste grosseira que lhe estendeu.
- Para substituir a tua toga.
Ele próprio trocara a sua tanga por uma túnica apertada na barriga por um cinto com um estojo de couro de onde saía o cabo de um punhal.
Enquanto Sarai recuava para a zona mais escura para mudar de roupa, ele voltou-lhe ostensivamente as costas, atiçando novamente a fogueira e retirando a comida do saco.
Ela avaliou-o com um rápido olhar enquanto se acocorava novamente diante da fogueira. Ele mostrou um sorriso levemente irónico, que lhe arredondava as faces. À luz tremeluzente das chamas, o castanho dos seus olhos era ainda mais transparente.
- É a primeira vez que vestes uma peça dessas, não é? - perguntou, divertido. - Cai-te bem.
Foi a vez de ela sorrir.
- Ainda tenho os olhos manchados de negro? - perguntou. Abrão hesitou e depois rebentou a rir. Um riso muito tempo
contido e cheio de ironia, que lhe fez estremecer todo o corpo.
- Os olhos, sim! - exclamou, recobrando fôlego. - E também as maçãs do rosto, as têmporas... Tão negras, que se não tivesse visto a pele da tua barriga há pouco, ter-te-ia julgado uma negra. Parece que elas existem, bem longe, no Sul, à beira-mar. Mulheres inteiramente negras!
Sarai sentiu a fúria e a vergonha arderem-lhe no rosto.
- É o khôl com que se maquilham as esposas.
Pegou na sua toga para rasgar raivosamente um pedaço, mas o tecido resistiu.
- Espera - disse Abrão.
Puxou do punhal. Uma lâmina curva com um cabo de madeira muito duro como Sarai nunca vira e que cortou facilmente o tecido humedecido. Quando ele lho entregou, ela agarrou-lhe na mão.
- Não te importas de seres tu a fazê-lo?
A sua voz tremia mais do que teria desejado. Recompôs-se e tentou falar num tom mais seguro ao explicar-lhe:
- Tu vês na escuridão.
Ele inclinou a cabeça, embaraçado. Ela fechou os olhos para acalmar o seu embaraço. Ajoelhado diante dela no calor luminoso da fogueira, limpou-lhe as pálpebras, as faces, a testa. Suavemente. Como se soubesse fazer aquilo desde há muito.
Quando terminou, Sarai reabriu os olhos. Ele sorriu e os seus belos lábios alados pareceram esvoaçar. Ela ousou perguntar-lhe:
- Agora já me achas bonita?
- As nossas raparigas não têm um penteado tão bonito - disse ele, simplesmente. - Nem um nariz tão direito.
Sarai não sabia se se tratava de um cumprimento.
Em seguida, para afastarem o embaraço e acalmar a fome, atiraram-se à comida que ele trouxera. Cabrito ainda morno, peixe branco, queijos, frutos, leite fermentado num cantil de pele. Pratos de forte sabor, sem nada de açucarado, como os Poderosos de Ur apreciavam. Sarai devorou com tanto prazer quanto Abrão, sem deixar transparecer qualquer surpresa.
PRIMEIRO, COMERAM EM SILÊNCIO. Depois, Abrão perguntou-lhe o que contava fazer na manhã seguinte. Ela disse que não sabia, que poderia encontrar refúgio nos grandes templos de Eridu, onde as raparigas sem família se tornavam sacerdotisas. Faltava-lhe convicção na voz. Na verdade, não sabia de nada. Amanhã parecia-lhe tão distante!
Abrão perguntou-lhe ainda se não temia que os deuses a castigassem por ter recusado o esposo que o seu pai lhe escolhera e por ter abandonado a casa. Ela respondeu que não, desta vez com tanta segurança que ele a olhou espantado, parando de comer. Ela explicou:
- Não, senão, ao cair da noite, ter-me-iam enviado demónios em vez de me conduzirem ao teu encontro.
Esta ideia divertiu muito Abrão.
- Só vocês, os Poderosos de Ur, acreditam que a noite está povoada de demónios. Eu só vejo touros, elefantes, leões ou tigres. São ferozes, mas um homem pode matá-los. Ou correr atrás das gazelas!
Sarai não se zangou. As chamas crepitavam, as brasas aqueciam cada vez mais, as peles de carneiro eram macias sob as suas mãos. Abrão tinha razão. À sua volta, a noite já não a intimidava.
Brutalmente, sentiu a felicidade invadi-la, acalmando tudo, os pensamentos e o corpo, desde a ponta das madeixas aos dedos dos pés. Sentia calor e o riso brotava-lhe no peito sem precisar de transpor os seus lábios. As chamas dançavam para ela, o tempo imobilizara-se e aquele rapaz, Abrão, que ainda não conhecia quando o sol ainda brilhava, tão perto dela que o podia aflorar com o ombro, ia protegê-la de tudo. Isso sabia.
Então desataram a falar, formulando perguntas, dando respostas. Abrão falou dos seus dois irmãos, Haran, o mais velho, e Naor. Falou do seu pai que moldava na argila estátuas de antepassados, para pessoas como Ichbi Sum-Usur. As cabeças que saíam das suas mãos pareciam capazes de falar.
Sarai quis saber se ele não lastimava viver numa tenda. Ele explicou que o clã, cujo chefe era o seu pai, Terá, criava grandes rebanhos para um Poderoso de Ur. Deste modo, todos os dois anos, chegado o momento dos impostos reais, eles acompanhavam os animais até Larsa, onde os funcionários de Shu-Sin os contavam.
- Depois, voltamos só com algumas cabeças e criamos um novo rebanho. Um dia o meu pai ganhará o suficiente com as suas estátuas e já não precisaremos dos rebanhos.
Ele também lhe fez perguntas. Sarai contou-lhe a sua vida no palácio. Falou de Sililli, de Kiddin, das suas irmãs e, pela primeira vez desde há muito, da recordação ténue e dolorosa que tinha de sua mãe, morta quando Lillu nascera. Levada pelo ela das suas confidências, evocou até o quarto vermelho e o estranho presságio do baru: rainha ou escrava...
Abrão sabia escutar, atento e sem se impacientar.
Falaram tanto tempo que faltou madeira na fogueira e a lua percorreu mais de metade do céu escuro. Sarai disse que os seus temiam que a Dama Lua desaparecesse certa noite, para sempre. E que os deuses, encolerizados, reteriam o sol. Então faria um frio insuportável.
- Numa tenda seria ainda mais terrível do que numa casa - acrescentou.
Abrão abanou a cabeça, atiçando as brasas e dizendo que não acreditava em nada disso. Não havia motivo para que o sol e a lua desaparecessem.
- Porque estás tão convencido? - perguntou-lhe Sarai.
- Ninguém se lembra disso ter alguma vez acontecido. E se isso nunca aconteceu desde o começo do mundo, porque teria um dia de acontecer?
E acrescentou:
- Dormir numa tenda não impede a reflexão e ensina-nos a olhar à nossa volta.
Pela primeira vez Sarai ouviu o seu tom de raciocinador, vibrante de orgulho. Contudo, para atenuar a observação, ele precisou que não sabia inscrever e ler as palavras na argila, como os Poderosos de Ur. E que estes possuíam um saber que ele ignorava. Subitamente, estendeu uma mão para Sarai.
- Vem ver!
Contornou a fogueira. Inteiramente ancilosada, Sarai precipitou-se atrás dele, vagamente inquieta, apesar da luz do luar lhe permitir ver o suficiente para que Abrão não sumisse na escuridão.
Ele parou no cimo da duna. Diante deles, como que suspensas entre a escuridão da terra e o firmamento polvilhado de estrelas, centenas de tochas desenhavam uma tiara na noite: o zigurate. O zi-gurate, cujas escadas imensas e cujas plataformas eram iluminadas todas as noites. Mas ela só o contemplara assim a partir da sua casa e nunca de tão longe. Só agora percebia o desenho perfeito, adequado à dimensão inumana dos deuses.
- Podemos atravessar o rio, caminhar pela estepe, durante dois, três dias de marcha e ainda o vemos - disse Abrão.
Voltou-se para ela e pegou-lhe no rosto, entre as mãos. Eram suaves e escaldantes. Sarai' estremeceu, julgando que ele a ia beijar, perguntando-se se devia abandonar-se ou resistir à impudicícia do mar. Tu. As mãos de Abrão voltaram lentamente o seu rosto para as estrelas que ornavam a noite.
- Olha para os fogos do céu. São mais extraordinários que o zigurate. Vê bem o seu número e vê como estão longe! Achas que vive um deus em cada um deles?
Como podia responder-lhe àquela pergunta? Ela permaneceu silenciosa. Colocou os lábios no pulso de Abrão. Este sorriu ironicamente.
- Julgas verdadeiramente que uma filha de um Poderoso de Ur possa abandonar a cidade, a casa do pai, sem que a busquem e a castiguem?
Foi como se lhe tivesse despejado água fria pelo corpo. Num
ápice, as lágrimas e a cólera expulsaram a sua felicidade, com enorme violência. Ela correu duna abaixo e encolheu-se na sua pele de carneiro. Esforçou-se por engolir as lágrimas. Quando ele se ajoelhou atrás dela e lhe pôs as mãos nos ombros, ela quis levantar-se para o esbofetear. Mas apenas se encostou a ele soltando um gemido, segurando-lhe nos braços para os apertar com toda a força de encontro ao seu peito. Foi assim que se estenderam lado a lado, rosto enfiado nos pêlos da pele de carneiro. Sem mais se mexerem.
- Desculpa-me - cochichou-lhe Abrão ao ouvido. - Não havia maldade nas minhas palavras. Não queria que te fizessem mal. Se amanhã ainda quiseres fugir, ajudar-te-ei.
Ela quis perguntar-lhe porque faria isso, mas os seus lábios não pronunciaram nenhuma palavra. Bastava-lhe tê-lo ali encostado a ela, respirar o seu estranho odor, sentir o calor do seu corpo e o sopro dele na nuca... Nada mais.
E como não se mexiam, a perturbação apagou as lágrimas. As palmas de Abrão contra os seus seios pareceram-lhe subitamente escaldantes. Escaldantes como os seus mamilos. Sentiu o sexo dele crescer contra as suas nádegas. O tremor que lhe escavava o ventre nada tinha a ver com o medo ou a cólera. Lembrou-se daquele que quase se tomara seu esposo, empunhando o sexo do touro esculpido na bandeja nupcial. Ainda era o seu dia de esposa. A sua noite de esposa. Sentiu o desejo de estender a mão e pegar no membro de Abrão. De se voltar e pousar os lábios na sua bela boca.
Nessa altura Abrão relaxou o abraço e afastou-se dela, dizendo que deviam dormir. Que na manhã seguinte ela precisaria de toda a sua energia.
Agarrou na segunda pele para os cobrir, deitou-se de costas, oferecendo-lhe um braço estendido à laia de travesseiro. Quando ela pousou a cabeça, disse-lhe:
- Cheiras bem. Nunca senti um perfume tão bom numa rapariga. Sei que sempre me recordarei do teu odor. E do teu rosto.
Foi como se estas palavras absorvessem a queimadura do desejo. Logo a seguir, o cansaço apoderou-se brutalmente de Sarai. Adormeceu sem saber se tinha realmente beijado Abrão ou se tudo não passara de um sonho.
Quando acordou, estava sozinha entre as peles de carneiro. Havia soldados à sua volta, de azagaia e escudo na mão. O seu chefe ajoelhou-se diante dela e perguntou-lhe se era a filha de Ichbi Sum-Usur, o Poderoso de Ur.
A erva da infertilidade
A CÓLERA DE ICHBI SuM-UsuR DUROU QUATRO LUAS. Durante esse período proibiu que pronunciassem o nome de Sarai. Também proibiu toda a gente de cruzar com o seu olhar, de comer, rir ou perfumar-se na sua companhia. Proibiu que lhe entrançassem os cabelos, que ela se deslocasse sem véu na cabeça, se maquilhasse com khôl e âmbar e se enfeitasse com jóias.
Sililli teve de acatar à letra todas estas interdições, ela que continuava a ser a serva de Sarai. Além disso, recebeu ordens para a vigiar dia e noite. Ichbi Sum-Usur precisou:
- Se esta rapariga deixar novamente a casa sem a minha autorização, morrerás. Pendurar-te-ei pelos pés e abrir-te-ei o ventre, que encherei de escorpiões.
Sarai não encontrou apenas inconvenientes nestes castigos. Assim, não teve de suportar os olhares furibundos e de comiseração das suas tias, ou as tagarelices cheias de subentendidos das suas irmãs ou servas.
Não obstante, durante uma semana, quer à noite, na cama, quer ao despertar, mal o dia despontava, teve de suportar as lamúrias e os fungos de Sililli e ouvi-la soluçar, rezando à Todo-Poderosa Inanna para que lhe perdoasse.
Teve também de assistir ao sacrifício de sete ovelhas, sob os olhares dos seus antepassados e de todos os membros da família presentes na casa. Teve de praticar mil abluções no templo, lavar-se e purificar-se vezes sem conta.
Sililli e Égimé esgotaram-na com perguntas, quiseram saber o que fizera durante a fuga, que demónios encontrara à beira-rio e a tinham assolado nessa noite. Aliás, não tinham sido os demónios que a tinham incitado a abandonar o banho nupcial quando o esposo ia ungi-la de perfumes?
Sarai respondeu-lhes com calma e tantas vezes quantas elas quiseram ouvir, que nenhum demónio se aproximara dela, nem ali, em casa, nem à beira-rio.
«Estava sozinha, estava perdida».
Não falou de Abrão.
Tanto Sililli, como Égimé, não acreditaram numa só palavra. Sarai não teve de cruzar com os seus olhares para se aperceber disso. Bastavam os trejeitos e os suspiros. Égimé decidiu então verificar a virgindade da sua sobrinha. Com uma cólera fria, Sarai deitou-se na cama e afastou as pernas.
Enquanto as rugas do rosto da sua tia se cavavam ainda mais ao constatar a evidência, Sarai pensou no desejo que sentira por Abrão durante a noite passada à beira-rio. Lembrou-se das palmas das mãos dele e do membro endurecido contra o seu corpo. Nesse momento tão humilhante, esse pensamento foi uma carícia tranquilizadora. Bem no fundo do coração e do espírito, agradeceu-lhe secretamente por ter tido a sabedoria de resistir perante a sua inocência.
Depois, num tom glacial que valia bem o do seu pai, e olhando-as de frente para as obrigar a baixar as pálpebras, declarou-lhes:
- A partir de agora já não responderei às vossas perguntas. Ninguém deve pronunciar o meu nome nesta casa. Quanto a mim, não sou obrigada a falar para alimentar a vossa parvoíce.
Mesmo assim, as duas mulheres mantiveram as suas dúvidas. Para preservarem o que ainda podia ser preservado, penduraram grande quantidade de amuletos na porta do quarto de Sarai, na madeira da sua cama e mesmo à volta do seu pescoço.
E os dias foram passando.
Os soluços de Sililli cessaram. As pessoas da casa aprenderam a viver com Sarai' como com uma pessoa semiausente. Por vezes chegavam até a lançar piadas na sua presença, fingindo não ver o seu sorriso.
A própria Sarai habituou-se a esta vida que lhe permitia ficar só com os seus pensamentos. Pensamentos que solicitavam a presença de Abrão. Como nos sonhos acordados, podia ouvir a voz dele e até captar o seu odor de homem-sem-cidade. Muitas vezes, à noite, antes de se entregar ao sono, cantava em silêncio, para ele, para Abrão, palavras que nunca teria aceite declarar àquele que queria desposá-la:
Toca-me, touro selvagem, Toca-me, a mim, que me banhei, Que me perfumei de mirto e cedro, Toca-me na vulva, pastor do poderoso rebanho, Põe os teus lábios nos meus, ó fiel pastor, Comigo conhecerás uma agradável sina, Comigo conhecerás um nobre destino, Toca-me, acaricia-me as ancas, E acolherei o teu barco negro...
Contudo, as últimas semanas tinham-na suficientemente amadurecido para se iludir com essas felicidades imaginárias. A cada dia que passava avaliava melhor o que houvera de extraordinário e efémero no seu encontro com o jovem mar. Tu. No entanto, subsistiam algumas perguntas: por que motivo ele não estava a seu lado quando foi despertada pelos soldados? Ter-se-ia despedido sem que ela se tivesse apercebido quando lhe assegurara que nunca se olvidaria do seu rosto? Ainda pensaria nela? Acharia que seria melhor esquecer a rapariga da cidade real, uma rapariga que nunca devia ter encontrado? Uma rapariga de que nada tinha a esperar pois nenhum habitante de Ur se lembrava de ter visto um bárbaro amorrita ousar tocar na filha de um Poderoso, a não ser em caso de violação?
Às vezes, escapando à vigilância de Sililli, ao cair da noite dirigia-se para a parte superior do jardim e contemplava longamente as tochas que iluminavam o zigurate. Talvez Abrão estivesse nesse mesmo momento à beira-rio, estendido entre os juncos, um cesto cheio de rãs e de lagostins perto dele, olhando também para o diadema de fogo da Escadaria do Céu? E, quem sabe, talvez estivesse também a pensar nela?
Foi no regresso de um desses passeios nocturnos, quando uma bruma melancólica e anunciadora da estação das chuvas se instalava em Ur, que Sililli lhe confiou finalmente o fundo do seu tormento.
- Asseguras que nenhum demónio te visitou na noite que passaste sozinha à beira-rio. Mas os guardas que te encontraram dizem que dormias em peles de carneiro novas e que havia uma fogueira apagada a teu lado... Também havia restos de comida. Sem contar com aquilo que nós mesmas pudemos constatar: regressaste aqui com uma vulgar peça de roupa quando te tinhas escapado com uma bela túnica. Uma peça de roupa tão grosseira que tenho a certeza que nunca foi confeccionada em Ur. Nem um escravo desta casa a quereria!
Sililli não a questionava verdadeiramente, mas sofria por não saber a verdade. Ao ouvi-la, Sarai apercebeu-se de que também sofria por ter de guardar o segredo só para si. Então, numa voz tão baixa que Sililli teve de a abraçar e colar o ouvido à boca dela para poder escutar, contou-lhe tudo. Falou de Abrão, da sua beleza, da sua gentileza, da sua pele morena e fina, do seu cheiro. E a promessa que fizera de nunca esquecer o rosto dela.
Quando se calou, sentiu as lágrimas que corriam do rosto de Sililli passando para a sua própria cara. A serva acabou por se afastar e abanou a cabeça, murmurando:
- Um mar.Tu! Um mar.Tu! Um mar.Tu!
Depois, permaneceram silenciosas até Sililli a apertar contra o seu peito bem redondo, com tanta^força que Sarai julgou que ela a queria fazer desaparecer no regaço.
- Esquece-o, esquece-o, ou ele será a tua desgraça, muito mais do que podes imaginar! Esquece-o, minha Sarai, como se ele fosse um demónio!
Aperceberam-se simultaneamente do lapso: Sililli acabara de pronunciar o seu nome. Riram-se, por entre lágrimas. Impelida pela emoção, Sililli repetiu:
- Minha Sarai'! O teu pai prometeu que me faria devorar pelos escorpiões caso pronunciasse o teu nome. Mas eu amo-te, a ti, que precisas de mim para esquecer esse mar. Tu. Promete-me que nunca mais voltaremos a falar dele.
CERTO DIA, QUANDO A DAMA LUA, cheia e redonda, ainda era visível no céu da madrugada, o sangue regressou às coxas de Sarai. Pela segunda vez, entrou no quarto vermelho. Aí encontrou Égimé que se esmerou para que todas as tias e servas ali presentes respeitassem à letra os desejos de Ichbi Sum-Usur. Durante sete dias, evitaram tomar o banho das abluções na sua companhia, mantendo uma distância inabitual quando ela ajudava na tecelagem e dirigindo-se-lhe apenas de maneira indirecta.
Além disso, para que ela tivesse plena consciência dos castigos que ameaçavam as mulheres insubmissas, contavam umas às outras os tristes destinos daquelas que não se tinham submetido às leis dos deuses, pais e esposos. As que tinham profanado os seus deveres de esposa absorvendo ervas de infertilidade para não engendrarem ou, ao invés, as que tinham parido depois das suas coxas terem acolhido homens que nem sequer se deviam ter aproximado delas, estrangeiros ou, por vezes, até, demónios.
- Sim, se não se cuidam, as mulheres são as suas próprias inimigas - barafustava Égimé. - O pior acontece durante a juventude, quando têm de distinguir os bons dos maus sonhos, os que nos fazem bater o coração e molhar o sexo e os que nos levam para o antro de Ereshkigal tão seguramente como um soldado elamita viola e mata. Ea é grande, pois concebeu os nossos pais e, depois, os nossos esposos, para nos proteger das nossas fraquezas.
Sarai escutava em silêncio, não deixando transparecer nada.
O que Égimé e as outras ignoravam é que Sarai não sonhava enquanto todas dormiam na espessa escuridão nocturna do quarto vermelho. Não, os pensamentos que lhe acudiam, as imagens que pairavam na escuridão não se revestiam da manha da ilusão; pelo contrário, tinham o peso real da lembrança: pensava nos lábios de Abrão, que não tivera coragem de beijar.
Pensava no beijo que não dera e não recebera. Ambos tinham permanecido puros. E se o seu pai tinha bons motivos para estar furioso, ela em nada ofendera os deuses. Eles não tinham nenhuma razão para se zangarem. Sentia-o.
Sentia-o bem no fundo do seu próprio ventre, ao fazer as ofertas a Nintu, parteira do Mundo.
Sentia-o bem no fundo do seu peito, ao dirigir as suas preces a Inanna, a Todo-Poderosa.
Às vezes imaginava que a punição dos deuses podia revestir uma forma muito diferente daquela que as mulheres da casa imaginavam. Podia ser, por exemplo, aquela dor que a atormentava um pouco mais cada dia, podia ser, precisamente, aquela lembrança de não ter acolhido com os seus lábios a doçura dos lábios do mar. Tu Abrão. Não era uma punição essa dor suave e quase tranquilizadora, cujo segredo era preciso proteger?
Assim, quando saiu do quarto vermelho, quando a viram deambular melancolicamente pela casa e pelo jardim, sempre modesta, sem manifestar a menor rebelião, todos julgaram que a filha de Ichbi Sum-Usur estava na via da redenção.
As semanas passaram. Sarai foi ainda duas vezes para o quarto vermelho. Égimé mostrava-se menos distante e as suas jovens tias, mesmo que nem sempre cruzassem com o seu olhar, já não hesitavam em conversar com ela, como outrora, e até em felicitá-la pela sua obra, de tal modo ela sabia agora cardar e fiar a lã, com destreza.
Sililli observou esta mudança com uma alegria que já não dissimulava. Aliás, Sarai obedecera-lhe à letra: desde a tarde da sua confissão, nunca mais se referira ao mar. Tu. Deste modo, após algumas luas de paciência, quando uma chuva invernal e diluviana fechava cada um no seu quarto, ela declarou-lhe subitamente:
- O teu pai está contente contigo. Observa-te desde há alguns dias. Vi no seu rosto que já não está zangado. Tenho a certeza de que te perdoará brevemente.
Sarai mal esboçou uma inclinação da cabeça para assinalar que ouvira. Só muito mais tarde perguntou, numa voz monocórdica:
- Julgas que o meu pai pensa arranjar-me um novo esposo?
Na penumbra desse dia apagado pela chuva, o sorriso de Sililli espaireceu, mais luminoso que um arco-íris.
- Nesta casa, todos queremos apenas o teu bem!
DESTA VEZ, PREPARARA-SE MUITO MELHOR. Uma toga como se podia pôr para visitar os grandes templos, um cesto para oferendas com flores, um penteado que a podia fazer passar por uma serva. Não deixara nada ao acaso. Até suspendera ao pescoço um saquinho de tecido com três siclos de anéis de cobre e prata, caso fosse necessário negociar a distracção dos guardas. Sentia-se capaz disso, tão forte e determinada como um soldado frente à linha cerrada das lanças inimigas.
Abandonara o quarto antes da alvorada, quando Sililli ainda dormia profundamente. Depois, esperara pacientemente perto dos tanques, ultrapassando-os assim que a luz do dia o permitiu. Dirigiu-se, sem se enganar, para a muralha da cidade. As ruas estavam quase desertas. Não chovia, mas a cidade exalava ainda o odor a poeira húmida e os tijolos dos muros estavam mais sombrios que de costume. Os guardas tinham acabado de abrir as portas da cidade real e as primeiras carroças com alimentos franqueavam a entrada.
Os soldados viram-na chegar ao longe. Ela compreendeu depressa que o seu disfarce funcionava perfeitamente: parecia a serva de uma boa casa da cidade baixa, de regresso dos templos depois de aí ter passado a noite, trazendo de volta flores sagradas. De olhos ainda inchados pelas horas de vigília, mostraram-se muito felizes por verem uma bela rapariga àquela hora tão matinal e responderam ao seu sorriso com uma saudação familiar.
Chegada à cidade baixa, Sarai caminhou depressa. Perdeu-se uma ou duas vezes, mas isso não tinha importância. Bastava-lhe reorientar-se na direcção do rio.
Pareceu-lhe ter chegado à laguna de juncos, perto do local onde encontrara Abrão. Eram os mesmos casebres miseráveis, semides-truídos, os mesmos terrenos arenosos, ora em pousio, ora plantados com melões e ervas odoríferas. No entanto, teve de acompanhar o rio ao longo de vários ús, antes de avistar as tendas dos mar. Tu, pouco mais elevadas que os juncos, para poderem deixar o vento deslizar pelos seus cumes encurvados. Centenas de tendas redondas, com espessas telas castanhas ou beges. Algumas eram tão vastas como verdadeiras casas, outras, muito compridas, circundavam cercas de juncos onde estavam reunidas as pequenas cabeças de gado.
À vista daquele imenso acampamento onde já se agitavam mulheres com longas túnicas e crianças seminuas, Sarai parou, com o coração a bater. Se os deuses desaprovassem o que estava a fazer, era agora que a sua cólera recairia sobre ela.
Retomou a marcha pelo caminho arenoso que levava ao interior do acampamento. Mal alcançou as primeiras tendas, as mulheres pararam o trabalho. Por sua vez, as crianças interromperam os jogos. Embaraçada, corada, Sarai procurou arvorar um sorriso, que não chegou. Sem dizer palavra, as mulheres juntaram-se no meio do caminho. As crianças avançaram ao seu encontro. Com os olhos brilhando de curiosidade, comprimiram-se à volta dela, examinaram-lhe o cinto, o cesto que ela nem sequer se lembrara de desembaraçar das flores. Seria a primeira vez que viam uma habitante da cidade real?
Reunindo a sua coragem, num tom o mais neutro possível, Sarai saudou-os respeitosamente, invocando para todas e todos a protecção de Ea, o Poderoso, e depois perguntou onde se encontravam as tendas do clã de Terá, o fabricante de ídolos que moldava as estátuas dos antepassados.
As mulheres não pareceram compreender. Sarai temeu não ter pronunciado correctamente o nome do pai de Abrão. Repetiu: «Terá, Terá...», procurando as entoações que as sílabas podiam ter no idioma amorrita. A mais velha das mulheres proferiu então algumas palavras na língua mar. Tu. Outras duas responderam-lhe abanando a cabeça. A velha observou ainda Sarai, com uns olhos cinzento-pálidos mais benevolentes, antes de anunciar:
- Terá já cá não está. Partiu com os seus.
- Partiram?
A surpresa de Sarai foi tal que quase gritou. A velha mar. Tu explicou:
- Já há duas luas. Estamos no Inverno. É a época de levar os rebanhos dos Poderosos para pagar os impostos.
PREVIRA TUDO, MAS NÃO IMAGINARA, nem um só instante, que Abrão e a sua família já lá não estivessem.
Pensara na cólera que Abrão talvez sentisse ao vê-la. Ou na felicidade de descobrir o seu sorriso quando ela surgisse diante dele.
Pensara nas palavras que lhe diria: «Vim ter contigo para receber um beijo teu. O meu pai vai procurar-me um novo esposo. Desta vez. não poderei recusar. Se pedisse o meu parecer, escolher-te-ia a ti. Mas sei que um Poderoso da cidade real jamais deu a filha a um mar. Tu. No entanto, desde há três luas, não há dia em que não pense em ti. Penso nos teus lábios e no beijo que te quis dar na noite em que me protegeste. Pensei no assunto. Orei a Santa Inanna, depositei oferendas a Nintu e diante das estátuas dos nossos antepassados, no templo do meu pai. Esperei que me falassem, que me dissessem se os meus pensamentos eram maus. Não disseram nada. Deixaram-me sair da cidade, sem se zangarem. Agora estou diante de ti, pois sei que o teu beijo me purificará de tudo. Tanto quanto a água gelada do quarto vermelho, melhor que uma bacia de água perfumada ou que os sacrifícios das ovelhas. Dá-me esse beijo, Abrão, e eu regressarei a casa do meu pai para me tornar a esposa daquele a quem me oferecerá. Aceitá-lo-ei. Quando ele vier para o meu leito, nos meus lábios haverá o sopro do teu beijo para me proteger.»
Pensara que ele riria. Ou se zangaria. Pensara que ele talvez não se satisfizesse com um simples beijo. Estava pronta para isso. Nada que viesse dele a poderia macular. Nada do que ele lhe pudesse tirar e que o seu futuro esposo não obteria, a poderia diminuir.
Mas talvez lhe dissesse: «Não! Não quero que te vás embora. Não quero que um desconhecido entre na tua cama. Vem, vou apresentar-te ao meu pai e aos meus irmãos. Serás a minha esposa. Partiremos para longe de Ur».
Também estava pronta para isso.
Quantas coisas imaginara!
Mas nunca pensara que ele pudesse ter abandonado a beira-rio. Estava longe dela e inalcançável.
Que iria fazer, agora que corria esbaforida para longe das tendas dos mar.Tu, para não chorar?
Sililli devia procurá-la por todos os recantos da casa, coração aos pulos, louca de terror, escondendo a todos e todas que, ao despertar, encontrara o leito de Sarai vazio. Temia demasiado a fúria de Ichbi Sum-Usur. Devia suplicar aos seus deuses para que a fizessem regressar.
Sarai podia cumprir o desejo de Sililli. O de o seu pai. Podia regressar e dizer: «Fui orar ao grande templo para me purificar». Sililli acreditá-la-ia, tal seria o seu alívio. Congratular-se-iam pela sua sabedoria.
Da próxima vez que saísse do quarto vermelho, o seu pai anunciar-lhe-ia que tinha finalmente convencido um homem da cidade real a desposá-la. Um Poderoso, menos rico e menos belo que aquele que ela humilhara, mas de quem era a culpa?
Sarai deveria então inclinar a cabeça, entrar no templo, escutar o adivinho. O seu pai não convidaria ninguém. Não haveria nem cantos, nem danças, nem festins. Mas o esposo, cheio de impaciência, iria ao seu quarto, à sua cama.
Tocar-lhe-ia sem que ela tivesse o beijo de Abrão para a proteger. Sem que os lábios, as palavras e as carícias de Abrão a assistissem ao longo da sua vida de esposa.
Foi então que ouviu uma frase. Uma frase sem lábios para a pronunciar, como só os deuses ou os demónios podem soprar:
«Minha deusa, precisas de alguma coisa? Kani Alk-Nàa vende-te o que quiseres!»
Sarai parou de correr, com o peito a arder, as lágrimas picando-lhe os olhos.
«Minha deusa, precisas de alguma coisa?»
A velha feiticeira! A kassaptu que a interpelara no dia do seu encontro com Abrão! A sua voz soava na cabeça de Sarai. E, como se um eco lhe respondesse, lembrou-se das histórias que as suas tias contavam no quarto vermelho: «Uma mulher bebeu a erva da infertilidade. Deixou de ter regras durante três luas. O seu esposo nunca mais quis tocá-la nem ouvir falar dela. Nem ele, nem mais nenhum homem. Quem desejaria uma mulher capaz de parar o seu fluxo menstrual?»
Sarai recobrou fôlego. Um sorriso tão cinzento como o céu rasgou-lhe as feições. Os deuses não a abandonavam. Não a deixavam desaparecer nas mãos de um esposo, como uma carne morta.
- ERVA DE INFERTILIDADE? - resmungou a kassaptu. - É mesmo isso que queres?
Sarai' limitou-se a inclinar a cabeça. O seu coração batia desalmadamente. Fora menos difícil encontrar o antro da feiticeira do que entrar nele. Na cidade baixa, todos pareciam conhecer Kani Alk-Nàa. Contudo, antes de encontrar a coragem para passar pela entrada da única sala que lhe servia de covil, Sarai calcorreara a rua uma dezena de vezes.
- És muito jovem para querer a erva da infertilidade - prosseguiu Kani Alk-Nàa. - É muito perigoso na tua idade.
Sarai resistiu ao desejo de retorquir. Apertou mais as mãos para que a feiticeira não as visse tremer.
- És casada, ao menos?
Sarai voltou a não responder. Fixou as dezenas de cestos que se amontoavam nos cantos da sala, exalando um odor a pó e a frutos apodrecidos. Um risinho húmido e abafado atraiu o seu olhar. A velha ria, com a pequena língua cor-de-rosa entre as gengivas nuas, como uma cauda de serpente.
- Tens medo? Tens medo que Kani Alk-Nàa te lance um sortilégio, filha de Poderoso?
Sem dizer palavra, Sarai pegou na bolsa que trazia pendurada ao pescoço e despejou o conteúdo diante da feiticeira.
- Três siclos - calculou esta.
Pegou avidamente nos anéis de cobre e prata. Já não ria.
- Estou-me nas tintas se és casada ou não. Mas preciso saber se isso já aconteceu.
Sarai hesitou, não muito segura de ter bem compreendido. A velha suspirou e disse, agastada:
- Já acolheste o touro entre as coxas? És uma mulher-aberta? Senão, virás ver-me depois de um homem te ter afastado as coxas.
- Sou uma mulher-aberta - mentiu Sarai, com uma voz enrouquecida.
Durante um momento, os olhos da kassaptu, que mal se distinguiam por entre as pregas das suas pálpebras, permaneceram fixos nela. Sarai temeu que ela adivinhasse a verdade, mas Kani apenas lhe perguntou:
- Bem. E desde quando está o leite do homem no teu ventre?
- Há... quase uma lua.
- Hum. Devias ter vindo mais cedo - resmungou a velha, esticando o seu corpo enfezado.
Vasculhou um momento nos seus cestos e depois estendeu a Sarai cinco saquinhos de erva envoltos em folhas de junco secas.
- Aqui está a tua erva de infertilidade.
- Serve para quantas vezes? - perguntou Sarai, sem ousar erguer os olhos.
- Quantas vezes irá o teu sangue parar? Isso depende das mulheres. Duas luas, talvez três, pois és jovem. Logo verás. Deita os saquinhos num silà com água a ferver, sem os abrir, e deixa-os macerar durante metade do dia. Depois, retira-os e bebe a infusão por três vezes, entre o amanhecer e o crepúsculo. Assim, começas na alvorada e acabas à noite. Faz como te digo, filha de Poderoso e tudo correrá bem.
SARAI ADIVINHARA. Encontrou Sililli aterrorizada no seu quarto, lavada em lágrimas, guinchando recriminações de alívio, fúria e ternura. No entanto, por muito grande que tivesse sido o seu terror, calara-se. Na casa ninguém sabia que Sarai' desaparecera desde manhã.
- Disse que estavas doente com uma grande dor de barriga e que te dera ervas para adormeceres. E que não deviam incomodar-te para que as ervas surtissem efeito. Que todos os Poderosos do céu me perdoem, só disse mentiras desde esta manhã!
- Não, não, as tuas ervas sempre me fizeram grande bem! Amanhã ver-me-ão, estarei de pé, e dirão que Sililli é a serva que melhor cura com ervas em toda a cidade!
O cumprimento e a promessa que Sarai se mostraria por toda a casa no dia seguinte arrancaram um sorriso a Sililli, por entre as lágrimas. Contudo, não tardou a recomeçar as suas queixas:
- Hás-de matar-me, minha filha! Hás-de matar-me! Pela mão
do teu pai, com todos os escorpiões da sua fúria! Ou então os deuses arrancar-me-ão o coração por causa
de todas as minhas mentiras!
- É só uma pequena mentira - troçou amargamente Sarai. - É quase verdade.
- Por favor, não blasfemes! Não o faças num dia como hoje. E, numa voz tão baixa que mal se ouviam as suas palavras, proferiu finalmente a pergunta que tanto a atormentava:
- Estiveste com ele? Com o mar. Tu?
Sarai hesitou em contar a verdade. Mas pensou nos saquinhos da kassaptu, que lhe arranhavam a pele sob a túnica. Mentiu outra vez. Afinal de contas, que importância tinha mais uma mentira?
- Não, fui até ao grande templo de Inanna. Queria fazer algumas oferendas e solicitar a protecção da Todo-Poderosa, para que eu seja uma boa esposa para aquele que o meu pai escolher.
- Ao grande templo? Foste lá?
- Tenho de me preparar. Não quero ter mais medo.
- E não me disseste nada? Não me preveniste, quando sabes que o teu pai te proibiu de saíres de casa?
- Apeteceu-me quando ainda dormias. Todos dormiam, até o meu pai. E eu queria estar sozinha diante de Santa Inanna.
Sililli inclinou a cabeça, gemendo:
- Hás-de matar-me, minha filha! Hás-de matar-me!
Sarai encontrou forças para sorrir, para a abraçar, apertando-a com força, face contra face, até que Sililli abandonasse as suas perguntas com um suspiro resignado.
- Enfim, agora estás aqui e todos temos de morrer um dia. No entanto, não mais largou Sarai. Acordava de noite para se certificar que a filha de Ichbi Sum-Usur não escapulira. Andava num tal desassossego que Sarai só pôde preparar a erva de infertilidade pouco tempo antes de ter de ir novamente para o quarto vermelho. E, mesmo assim, não pôde seguir à letra as instruções de Kani Alk-Nàa.
Depois de ter surripiado na cozinha um púcaro de água a ferver, verteu nele os cinco saquinhos de ervas e escondeu tudo no jardim. Contudo, a vigilância de Sililli não lhe permitiu ir beber a efusão tão depressa quanto desejava. Só no dia seguinte conseguiu, em segurança, escapar ao olhar da serva. Esgueirou-se pelo jardim e retirou os saquinhos de erva do púcaro. Estes tinham-se tornado brancos e encarquilhados. Seria importante o facto de terem macerado tanto tempo? O que interessava era que ela os escondesse até ao momento em que pudesse destruí-los!
Depois de ter respirado os odores repugnantes que empestavam o antro da feiticeira, Sarai temia o sabor da poção. Ficou muito surpreendida ao achar a infusão doce, tão açucarada que parecia conter mel. Apenas lhe deixava um travo amargo e refrescante. Não era nada desagradável e até podia ser bebido só por prazer. Deste modo, temendo não dispor de nenhum momento livre nas horas seguintes, não hesitou em ingurgitar toda a bebida de uma só vez.
Quando regressou ao pátio das mulheres, sentiu-se calma pela primeira vez desde há vários dias. Finalmente, conseguira. A erva de infertilidade estava no seu ventre. O sangue não regressaria às suas coxas.
Adivinhava como as coisas se iriam passar. Após dois, três, cinco dias sem que o sangue manchasse a roupa da cama, Sililli, as suas tias e o seu pai julgá-la-iam doente, pois nenhum deles podia imaginar que ela tivesse tido a coragem de penetrar no antro de uma kassaptu. Teriam de fazer inúmeras oferendas a Nintu. Não obstante, o sangue não escorreria durante duas, talvez três luas.
O tempo suficiente para que o seu pai tivesse de adiar a vinda do seu esposo.
O tempo suficiente para que renunciasse oferecer a filha a quem quer que fosse.
O tempo suficiente para que o mar. Tu tivesse regressado.
Nessa tarde, aproveitando uma breve ausência de Sililli, Sarai dissimulou lestamente os cinco saquinhos de erva de infertilidade na sua cama. Depois, colocou-se diante da figura da deusa Nintu, pintada de vermelho, no pé do seu leito. Abriu os braços, as palmas das mãos, ergueu o rosto para o céu. Sem mexer os lábios, para que ninguém a ouvisse, implorou a clemência de Nintu:
O Nintu, senhora das nascenças neste Mundo, tu, que recebes o tijolo sagrado do parto das mãos de Enkí, o Poderoso, tu, a guardiã do cutelo que corta o cordão umbilical, Considera a tua filha Sarai, sê paciente para com ela, Baixa o teu olhar e contempla a minha fraqueza, Vê o sangue que corre no meu coração: Ele está frio para o esposo que não escolhi. A erva de infertilidade é como a nuvem no céu, Não impede o sol de brilhar por muito tempo. Ò Nintu, perdoa a Sarai, filha de Ichbi Sum-Usur.
Foi só AO FIM DA NOITE, quando dormia profundamente, que o inferno visitou o ventre de Sarai.
A princípio, viu-o em sonho. As chamas dançavam e penetravam no seu corpo, como um homem. Tentou rechaçá-las. Mas as suas mãos atravessaram o fogo sem lhe diminuir a intensidade. Viu o seu próprio corpo. Ele inchava e avermelhava-se enquanto a kas-saptu franzia os olhos de prazer, clamando em voz alta: «Aqui está a verdade: agora és uma mulher-aberta». E o corpo de Sarai fendia-se, as suas entranhas rasgavam-se, calcinavam-se. Via-as cair no chão, negras e encarquilhadas. A dor agitava-a e torcia-a. O seu ventre, semelhante a uma cabaça esvaziada, arrancava-lhe lágrimas, gritos. Gritos que se misturavam ao seu nome e que a acordaram.
- Sarai! Sarai! Porque gritas assim?
Sililli segurava-lhe na mão, de rosto inclinado para o dela, mal iluminado pela mecha de óleo, deformado pelo medo.
- Tens dores? - perguntava Sililli. - Onde é que te dói? Sarai não podia responder. No seu ventre, o fogo consumia o ar
dos seus pulmões. Mal conseguia respirar.
- É apenas um pesadelo - suplicava-lhe Sililli. - Tens de acordar.
O fogo gelava-lhe os membros. Sentia-os tornarem-se duros e quebradiços. Abriu a boca ao máximo, de tal modo lhe era difícil respirar. Sililli segurou-a pelo meio do corpo para ajudá-la a endireitar o busto alquebrado. De repente, dentro dela, tudo se tornou duro, poeirento, como que uma podridão transformando-se em cinzas. O ar entrou-lhe finalmente pulmões adentro. Varreu a cinza que lá se encontrava e o que restava do fogo. Viu a escuridão chegar. Uma escuridão imensa e acolhedora. Sentiu-se feliz por desaparecer nela. Não ouviu o berro de Sililli que acordou toda a casa de Ichbi Sum-Usur.
JULGARAM-NA MORTA ATÉ DE MANHÃ.
Sililli encheu de choros o pátio das mulheres. Ichbi Sum-Usur mandou apagar todas as fogueiras. Enclausurado no templo da casa, prosternou-se diante das estátuas dos seus antepassados com um fervor que siderou o seu filho mais velho. Com uma decepção a que se misturava a repulsa, Kiddin descobriu que as lágrimas corriam pelas faces do seu pai. Quando o viu estender-se no solo e verter uma taça de cinzas frias na sua nobre cabeleira, pensou que os deuses possuíam uma sabedoria ilimitada: tinham retirado deste mundo aquela irmã incapaz de se vergar às leis e aos deveres das mulheres. Uma irmã mal nascida, que atraía as máculas demoníacas, mas que derretia o coração de um pai demasiado pusilânime. Se ela tivesse vivido mais alguns anos, ele próprio, tal como o seu pai, ter-se-iam tornado o alvo da chacota de Ur.
Pouco depois da alvorada, Égimé soltou um grito:
- Sarai' está viva! Está viva, respira!
Repetiu-o até que Ichbi Sum-Usur corresse para o pátio das mulheres e caísse um silêncio de estupefacção.
Substituindo Sililli, incapaz de se aproximar do cadáver daquela que considerava como uma filha, Égimé lavara Sarai, purificara-a e vestira-a para a sua viagem pelas trevas dos defuntos. Mas uma dúvida parara-lhe os gestos.
- Ela não está fria nem rígida - explicou. - E, por vezes o seu ventre ainda está escaldante. Coloquei a mão no seu peito, auscultei-lhe a boca: ainda respira.
Como se encontravam diante do corpo inerte de Sarai, deitado no seu belo leito de esposa, Égimé quis que o testemunhassem. Aproximou-se dos lábios gretados da sobrinha com uma pena de pomba de fina penugem. A penugem estremeceu. Inclinou-se com lenta regularidade, para um lado e, depois, para o outro. Não havia lugar para dúvidas. O ar entrava e saía do corpo de Sarai.
- Ela está viva. Está a dormir - desferiu Égimé.
Sililli soltou um gemido de ovelha a ser abatida e desmaiou. Ichbi Sum-Usur foi agitado por um longo riso nervoso que conteve com dificuldade, apesar dos olhares raivosos de Kiddin. Quando conseguiu acalmar-se, mandou reacender todas as fogueiras, queimar cem silà de achas de cedro e ordenou que as jovens tias de Sarai se purificassem e se dirigissem ao grande templo de Inanna para aí oferecerem, em seu nome, metade de um rebanho.
À hora do zénite, Sarai ainda dormia. E ao crepúsculo continuava a dormir. Sililli, que velava este sono obstinado como um púcaro de leite ao lume, voltou-se para Égimé.
- Não é possível. Ela não pode estar a dormir.
- Está. Sei o que se passou. Chegou a hora da punição. Os deuses daquele que devia desposá-la reclamaram justiça a Ereshkigal. Este enviou Pazzuzzu, o seu grande demónio, para a levar durante a noite. Ele conduziu-a para o inferno. Mas ela deve ter encontrado um meio para o comover. Sabes como ela é. O demónio acabou por largá-la. Regressou tão esgotada que tem de dormir muitas horas.
Sililli levou algum tempo para reflectir antes de abanar a cabeça.
- Talvez as coisas se tenham passado assim. Mas por que motivo Pazzuzzu a teria largado para que ela dormisse?
- É isso que ela está a fazer.
- Não, eu sei o que é dormir. Uma pessoa mexe-se, agita os membros. Ora, ela não se mexeu desde manhã.
- Não tardará a acontecer - retorquiu Égimé, com uma réstia de fastio. - O sono do regresso dos infernos é diferente do sono habitual.
- Mas não se trata de um sono! - obstinou-se Sililli. - É a sua doença que continua. É isso que penso.
- Ela dorme. Pouco interessa o que pensas.
- E porquê? Eu, Sililli, sou quase sua mãe. A vida dela é a minha! Ela faz tão parte de mim como se a tivesse parido.
- Que desplante! Vimos toda a sabedoria que lhe ensinaste! Palavra puxa palavra, as duas mulheres começaram a disputar-se tão violentamente que tiveram de as separar. Égimé deixou o quarto de Sarai', levando consigo uma fúria que desferiu sobre todos os que dela se aproximavam.
Sozinha diante do corpo magro e imóvel de Sarai, Sililli fortaleceu a sua opinião: como era possível dormir quando duas mulheres berravam ao lado? Não havia sono que pudesse ser tão profundo.
Acossada por um horrível pressentimento, começou a fazer uma nova toilette a Sarai'. Aproveitou para lhe mudar a roupa da cama. Os seus dedos encontraram então os cinco saquinhos de folhas secas.
Saquinhos de ervas maléficas como faziam as kassaptu! Esbranquiçados e encarquilhados por terem estado em água a ferver!
- Grande Ea! Ó Grande Ea, protege-nos!
Agora percebia perfeitamente o motivo da ausência de Sarai durante todo o dia. Égimé podia continuar a iludir-se como lhe aprouvesse. Sarai não dormia.
Oh, que desgraça! Mas era melhor do que estar morta.
No DIA SEGUINTE Sarai continuava a não abrir os olhos e todos se renderam à opinião de Sililli: ela não dormia.
No entanto, Sililli, cuja pele se acinzentara e cujos olhos estavam inchados pela falta de sono, guardou o seu segredo. Com as suas próprias mãos procedera ao fim do sacrilégio: queimara os saquinhos. Não duvidava que Ichbi Sum-Usur preferia ignorar até à morte que a filha fora buscar ervas a uma feiticeira. Foi suficientemente forte para enterrar o segredo de Sarai tão profundamente no coração que conseguia efectuar as suas purificações quotidianas e as suas intermináveis súplicas a Inanna com quase tanta fé e pureza como outrora.
Porém, também não sabia como fazer regressar Sarai ao mundo dos vivos. Enquanto Ichbi Sum-Usur gastava uma fortuna em oferendas que vertia nos altares de todos os deuses e deusas que pudessem interessar-se pela felicidade da família, Sililli fazia tudo para que Sarai não morresse de fome e de sede antes de conseguirem vencer a obra dos infernos.
Preparou uma papa de cevada e sumo de pêssego. Com uma paciência infinita, munida de uma colher de madeira, ia enfiando a papa pela boca de Sarai. Por vezes, com um tremor semelhante a um soluço, a garganta aspirava-a. Na maioria das vezes, permanecia-lhe na boca até que Sililli a retirasse com os dedos.
Égimé, que viera espiá-la à entrada do quarto, não conseguiu evitar aconselhá-la, num tom áspero, para que se limitasse ao sumo de pêssego.
- Vais acabar por asfixiá-la com a tua papa! De que serve alimentar alguém que dorme?
- Para que ainda possa sonhar mais algum tempo - retorquiu Sililli, sem se deixar impressionar.
Ao crepúsculo, Ichbi Sum-Usur entrou no quarto de Sarai com o adivinho que anunciara o destino do seu devir de esposa.
O baru exigiu que lhe explicassem pormenorizadamente o modo como Sarai caíra na inconsciência. Sililli descreveu-lhe o melhor que podia os gritos e os sofrimentos. O baru fez-lhe perguntas sobre os dias e as horas que tinham precedido esse terrível momento. Sililli ocultou a verdade sem temer demasiado perturbar-lhe a ciência. Afinal, o adivinho possuía os seus próprios meios para destrinçar o verdadeiro do falso, essa era a sua tarefa e era para isso que lhe pagavam.
O adivinho pediu que lhe trouxessem pequenos fogões de sala, achas de cipreste, óleos, lâmpadas, tabuinhas de argila finamente escritas, fígados, corações e pulmões de carneiro, que foram colocados em mesas de vime ao pé do leito de Sarai. Depois exigiu que o deixassem sozinho e que fechassem a porta.
Permaneceu no quarto até uma hora avançada da noite. Apareceu tão subitamente à entrada do quarto muito iluminado que acordou todos os que esperavam no terraço. Ichbi Sum-Usur soltou um grito que acabou por aterrorizar ainda mais as mulheres. O baru ergueu os braços para as acalmar e, numa voz onde transparecia a surpresa, declarou:
- A filha de Ichbi Sum-Usur está de olhos abertos. Já não dorme. Sililli foi a primeira a precipitar-se. O adivinho não mentira.
Sarai estava até sentada na cama, tremendo como uma folha. Quase conseguiu esboçar um sorriso ao reconhecer Sililli e, depois, voltou a cair de costas.
Sililli agarrou-lhe nas mãos, suplicando a Ea, o Todo-Poderoso, para que, na confusão do seu despertar, ela não deixasse escapar uma palavra que pudesse comprometê-la. Mas Sarai' apenas perguntou:
- Que me aconteceu?
Sililli apertou-a contra si, sussurrando-lhe logo ao ouvido que sabia tudo, que era preciso, sobretudo, calar-se, quando a voz do baru anunciou:
- Já o disse e a análise confirma-o: a filha de Ichbi Sum-Usur agrada a Ishtar. A Poderosa da Guerra reclama-a. A filha de Ichbi Sum-Usur foi concebida para o templo. Deverá renunciar ao sangue das esposas, ou então morrerá.
O templo de Ishtar
A Santa Serva
DE PÉ, NO GRANDE PÁTIO DO TEMPLO, uma centena de homens estavam perfeitamente alinhados em quatro filas, vestidos com uma capa de cabedal e de lança e escudo na mão. A faixa de ouro, insígnia dos oficiais, que circundava os seus capacetes de couro, estava agora invisível na noite que também lhes escondia as feições. À volta deles, velavam as esculturas imensas de Enki e Ea, de Dumuzi, o deus morto e ressuscitado, antepassado de todos os Antepassados dos Poderosos de Ur, e de Ishtar, Dama da Guerra, que apesar da escuridão, resplandecia com todo o seu ouro.
Estavam ali, imóveis, aguardando este momento desde o crepúsculo.
Uma após outra, as tochas de nafta que iluminavam os muros e as escadarias do zigurate apagaram-se. Durante um breve instante fez noite cerrada, na presença das estrelas e do leite dos deuses. Depois o céu aclarou-se lentamente. A luz da alvorada apagou as estrelas. As faixas de ouro começaram a brilhar nos capacetes dos jovens oficiais. Os seus olhos também brilhavam, doridos pela imobilidade.
Então, nas alturas, as colunas sagradas, as placas de lazulite, as sacadas de bronze e os relevos de prata do Quarto Sublime captaram o primeiro raio de sol.
Um suspiro vibrou no ar. O estrondo das trompas e dos tambores eclodiu. Na plataforma do templo, as cantoras de Ishtar, vestidas com togas púrpuras, entoaram a sua súplica:
Ó Dama ilustre,
Estrela do clamor guerreiro,
Rainha de todos os locais habitados,
Tu, que abres os teus imensos braços de luz...
Garganta rouca de fervor, os jovens oficiais uniram as vozes às das cantoras:
Tu, que levas os irmãos à disputa,
Tu, que fazes vacilar os deuses,
Tu, que atemorizas os vivos logo que te vêem,
Concede-nos a graça,
Ó pastora das multidões...
As grandes portas do templo abriram-se. Puxados por quadrigas, dois grandes carros avançaram pelo pátio, enquadrando um touro rodeado por uma dezena de soldados de lanças baixadas. Por entre os seus chifres repousava um adorno de ágata e cristal e nos flancos exibia um tapete polvilhado de anéis de cobre e grânulos de bronze e marfim.
Lentamente, ao ritmo com que o sol descia agora pela Escadaria do Céu, os carros e o touro foram colocar-se diante dos guerreiros.
Então ela fez a sua aparição na plataforma sagrada.
O seu diadema, sobrepujado por três flores douradas com centro de coralina, tornava-a inidentificável. A toga, branca, apertada por um cinto de ouro com a forma entrançada de uma espiga de cevada, realçava-lhe a beleza da cintura. No peito imperava um imponente colar de pérolas turquesa, com bolas de ouro e bronze. Kiddin reconheceu-a pela sua maneira de andar.
Ele ali estava, na primeira fila dos jovens oficiais. Era mesmo ela, sim, tão bela e deslumbrante como lha tinham descrito: Sarai, a Santa Serva do Sangue!
Sem se aperceber, bateu com a lança no escudo. Foi imitado por cem mãos. Transido pelo ruído, o touro mugiu.
Sarai avançou por entre as cantoras e os sacerdotes. Os seus passos pareciam assentar não na plataforma, mas no som abafado dos escudos. De palmas estendidas, acolheu o canto que emanava das vozes ardentes:
Ó Estrela do clamor guerreiro,
Luz celeste que brilha contra os inimigos,
Ó colérica Ishtar, ruína dos arrogantes!
Era uma súplica de carne e sangue que procurava fazer tremer o céu, enquanto o sol, com o seu eterno movimento, alcançava as densas folhagens que circundavam o centro do zigurate.
Kiddin procurou captar o olhar da irmã. Mas entre os espessos traços de khôl, os olhos de Sarai permaneciam fixos e as suas pupilas sombrias, longínquas. Involuntariamente, numa breve imagem, Kiddin comparou aquela mulher, quase desconhecida, à menina rebelde e perniciosa que quase provocara a ruína da sua casa.
Desde a sua semimorte, tinham decorrido sete ou oito anos que lhe haviam esculpido o porte e o rosto. Até no desenho da boca, avermelhada pelo âmbar, na altura das maçãs do rosto e na força dos ombros, a beleza de Sarai possuía a autoridade, o fogo e o distanciamento divino de Ishtar.
Por fim, o sol alcançou os degraus inferiores da Escadaria do Céu. Sarai ergueu os braços.
O silêncio instalou-se imediatamente. Os sacerdotes suspenderam os martelos com que tocavam nos tambores. As servas pararam de cantar. Os guerreiros cessaram os golpes de lança e as súplicas das vozes. No meio deste silêncio, cada um, de cabeça fervente, viu que a toga de Sarai deslizara, libertando o seu seio esquerdo, luminoso como a esfera lunar.
Surpreendido, o touro ergueu a cabeça, fazendo tinir os seus adornos, rebolando o olhar exorbitado para ver melhor a mulher de toga branca deslizar até à beira da plataforma. Como os guerreiros, estremeceu quando a Santa Serva lançou o seu apelo:
A ti te invoco, Ó Ishtar, princesa e poderosa,
Tu, que sirvo noite e dia,
Ouve a minha prece,
A prece da filha que escolheste,
Escuta a súplica daquela cujo sangue retiveste,
Acorda a graça aos guerreiros de Shu-Sin, teu filho...
Sarai voltou-se, oferecendo as costas ao touro e aos guerreiros, e o rosto ao olhar dourado da estátua de Ishtar. Como espelhos, as flores de ouro do seu diadema resplandeceram ao sol.
Tu, que cavalgas os grandes Poderes,
Que pulverizas os escudos,
Acorda a tua graça a estes guerreiros
Que esperaram pelo teu despertar,
Afasta as feridas dos seus corpos,
As lágrimas da morte e a vergonha da derrota.
O seu apelo cessou bruscamente. A sua voz calou-se e suspendeu o tempo. O silêncio caiu sobre os guerreiros, pesando tanto quanto a sombra do zigurate durante a noite.
Devagar, as ancas de Sarai esboçaram um primeiro balanceamento. Os seus braços dobraram-se. Os seus pés deslizaram.
Os tambores bateram.
Uma vez. Ainda outra.
Cada um dos seus passos era acompanhado por uma tonalidade abafada, que lhe ritmava a dança, apoiando-a. Ampliando a curva das suas ancas.
Então, os guerreiros bateram com as lanças nos escudos e gritaram: Ilulama! Ilulama!
Passo a passo, seguindo o rodopio da dança, ela desceu em direcção ao touro. Espantado, o animal inclinou o focinho, oferecendo a ponta dos chifres. Sarai avançou, as ancas seguindo o rufar dos tambores, o grito dos guerreiros.
O touro esgravatou o solo e gemeu. Recuou, arquejante, de peito enfurecido. A voz de Kiddin tremeu. A silhueta de Sarai girava sob o olhar do touro. O ouro do seu cinto brilhava nas pupilas do animal. O desejo de investir abanava o sexo do animal. O punho de Kiddin crispou-se na lança. Sarai bateu com as palmas das mãos. Num só movimento, as dez lanças dos soldados enterraram-se então no pescoço do touro. O sangue jorrou até aos jovens oficiais. Sarai declamou:
Ó minha soberana, Tu, que seguras o cabo sagrado, Com a tua boca espumosa Bebe o sangue do touro raivoso, Come o seu coração furioso, E apoia o combate deles...
- NÃO GOSTO QUE TE APROXIMES TANTO DOS CORNOS - resmungou
Sililli, com a sua voz dos maus dias. - Não serve de nada. Sei-o muito bem, pois perguntei aos sacerdotes. Todos me responderam a mesma coisa: «A Santa Serva do Sangue pode permanecer na plataforma enquanto matam o touro».
Sililli seguira a cerimónia em silêncio. Agora que desapertava as fíbulas da toga de Sarai, podia finalmente expressar a sua angústia.
- Não arrisco nada - retorquiu Sarai. - A minha soberana protege-me.
Os lábios de Sililli pareciam amuar.
- Um destes dias encontrarás pela frente um animal mais furioso que os outros. Uma só marrada e corta-te ao meio.
- Por que o permitiria Ishtar? Nenhuma sacerdotisa deste templo lhe é tão dedicada como eu. Já fiz as contas: desde que recomeçou a guerra com os Gutis, já ofereci oitenta e sete vezes o sangue aos oficiais.
- Oh! Bem sei! Sei que és uma sabichona em cálculo e em muitas outras coisas! Mas isso não importa. Aproximas-te cada vez mais do touro. Ele não gosta disso. E eu tampouco.
- A mim, agrada-me! - gozou Sarai, acabando de se despir.
O suor brilhava-lhe na pele pálida. Enxugou algumas gotas entre os seios, com a ponta dos dedos e acrescentou:
- Senão, seria muito aborrecido. E todos esses belos guerreiros não experimentariam o mesmo fervor!
Riu-se, e entrou no banho perfumado, acentuando, por troça, o movimento lascivo das ancas. Sililli prometeu ainda o advento de algumas desgraças e foi colocar o diadema de ouro, o colar, o cinto e a toga na estátua de Inanna, que imperava no centro da ampla sala.
Encontravam-se num dos inúmeros quartos do giparu, a imensa residência das sacerdotisas de Inanna, contígua ao zigurate, no interior do recinto sagrado do templo. As paredes estavam cobertas de tapeçarias e a luz do dia entrava por grandes janelas em arco, os turíbulos dispensando os mais suaves perfumes. Água, sempre pura, corria, cantando ao longo de uma série de fontes cobertas com tijolos envernizados. Por vezes, as Santas Servas reuniam-se aí, para se purificarem. Outras vezes, a Suma Sacerdotisa de Inanna, irmã do rei Shu-Sin, convidava uma ou outra a juntar-se-lhe para conversar em paz e descansar das longas preces. Mas quando Sarai enfrentava o touro e oferecia o sangue aos guerreiros, tinha o privilégio de poder purificar-se sozinha.
Fechou os olhos e entregou-se à volúpia, na água um pouco mais quente que o seu corpo. A disputa com Sililli não era nova. Com o decorrer dos anos, esta não se tornava apenas mais gorda e lenta, a sua disposição também piorava, tornando-a receosa nas áreas em que Sarai se sentia precisamente mais forte e poderosa. Afinal de contas, que tinha a temer a Santa Serva do Sangue mais respeitada do templo?
- Sililli, não há motivo para te apoquentares por mim - disse-lhe Sarai', numa voz calma.
Ouviu o deslizar das sandálias pelos tijolos do pavimento. Os dedos de Sililli, amaciados pelo unguento perfumado, apertaram-lhe os ombros e iniciaram a sua deliciosa massagem.
- Sabes muito bem que há sempre motivos de inquietação - resmungou Sililli. - Além disso, há outras coisas que não me agradam na tua maneira de dançar.
- Por favor, não me estragues o melhor momento do dia.
- De que serve mostrares o teu seio a esses jovens fogosos? Julgas que isso os deixa indiferentes? Já és suficientemente bela para os excitares vestida; antes de partirem para a guerra, não vejo a necessidade de lhes retesares o arco ainda mais que ao touro.
Sarai não teve tempo para responder. O sino de bronze tiniu à entrada da sala e duas servas entraram. Num conjunto perfeito, inclinaram o busto para anunciarem, no mesmo tom de voz:
- Santa Serva, um Poderoso oficial deseja que o vejas. Recebeu a bênção esta manhã e quer agradecer-te.
- Estás a ver? - resmungou asperamente Sililli.
- Quem é?
- O filho varão do Poderoso Ichbi Sum-Usur.
Os dedos de Sililli apertaram com mais força os ombros de Sarai, que reabriu os olhos, espantada:
- Kiddin? Estava aqui esta manhã? Bom, que aguarde no pequeno pátio, se tiver paciência. Irei ter com ele quando estiver pronta.
ESTAVA DE PÉ NO MEIO DO PÁTIO, sem lança nem escudo, mas com a capa e o capacete com a grinalda de ouro. De costas voltadas, observava as servas que, diante das cozinhas, dispunham em palanquins de junco os inumeráveis pratos das refeições destinadas aos ídolos. Há muito que irmão e irmã não se encontravam frente a frente. Os seus ombros tinham-se alargado. Sarai não duvidava que ele se tornara um dos mais temíveis lutadores, bem como um guerreiro prometedor. Quando se voltou para a acolher, o rosto e o sorriso, sob a cabeleira e a barba abundantes, eram aqueles que ela sempre conhecera. Kiddin inclinou-se com todo o respeito de que era capaz:
- Que Ea te conceda a sua graça, Santa Serva Poderosa! Numa assentada, sem sequer esperar pela saudação da irmã,
com quantidade de frases floridas, disse-lhe quanto sentira a presença de Ishtar graças à invocação da Santa Serva do Sangue, quanto se sentia protegido e encorajado, ele, que em breve iria conduzir as lanças dos soldados de Ur contra os invasores das montanhas.
- E todos nós, presentes esta manhã, levamos connosco a lembrança da tua coragem diante do touro. Se devêssemos enfraquecer nos combates, recordar-nos-íamos da tua silhueta por entre os cornos do animal. Nós também desprezamos os picos dos nossos inimigos. Sarai sorriu. Kiddin, o orgulhoso, o altivo, o belo Kiddin, que polia o seu corpo tanto quanto o seu estatuto, fazia um grande esforço para lhe agradar e, até, para se mostrar humilde, à sua maneira. Num tom que continha mais distância que afecto, respondeu-lhe:
- Bom-dia, irmão. Sinto-me feliz pela invocação te ter sido tão benéfica.
- Podes ter a certeza, Santa Serva.
Kiddin endireitou-se. O olhar que perscrutou Sarai de alto a baixo nada tinha de humilde. Nem de fraterno. Era antes um daqueles olhares que eriçavam Sililli. Um olhar de jovem fera, incendiado pela beleza de Sarai e carregado de desejo.
A mão do jovem oficial deslizou sob a sua capa de cabedal. Quando a retirou, um colar de bolas de ouro, cornalinas e aros de prata, pendia-lhe nos dedos.
- Aceita este presente. Que ele possa realçar a tua beleza, a maior que os meus olhos jamais contemplaram.
O riso de Sarai soou de tal maneira pelo pátio que as servas se voltaram.
- Agradecimentos, palavras ternas, um colar... Não acredito nos meus olhos e nos meus ouvidos! Que te acontece, Kiddin? A perspectiva do combate ter-te-á perfumado o carácter, caro irmão?
Os lábios de Kiddin arreganharam-se, como beiços sobre presas.
- Já não somos crianças! Acabou a época das zaragatas. Fazes resplandecer o nome do nosso pai neste templo desde há muitas luas e agradeço-te por isso. Talvez tenha sido injusto contigo. Quem podia adivinhar que a mão de Inanna presidia aos teus caprichos? No entanto, tens razão: tenho o dever de me mostrar humilde diante de ti. As minhas palavras e a minha prenda são sinceras. E grande é o meu orgulho: como todos nós, na nossa casa, também soube da notícia, Santa Serva do Sangue.
Inclinou novamente o busto com respeito, a mão estendida para que Sarai pegasse no colar em que ainda não tocara. Ela limitou-se a franzir o sobrolho, perguntando-lhe:
- A notícia?
- Ah, ainda não sabes? Na realidade, só ontem informaram o nosso pai. O Nosso Poderoso soberano designou-te. No próximo mês das sementeiras, serás a sua esposa sagrada no Quarto Sublime.
A surpresa cortou a respiração a Sarai. Kiddin ganhou coragem. Avançou um passo e colocou o colar nas mãos da irmã. Com a voz cheia de excitação, murmurou:
- Não estejas espantada. Já esperávamos por esta escolha desde há muito. Quem, melhor que tu, pode aspirar a tal honra? Em todos os templos de Ur, de Eridu ou até de Larsa, não há sacerdotisa em que o sangue das esposas não corra desde há tanto tempo. Sete anos! Sem falar da tua beleza... Inanna nunca esteve tão presente e nunca foi tão poderosa numa sacerdotisa. Hoje, que a guerra se anuncia, ninguém poderá substituir melhor do que tu a Dama da Guerra no leito sagrado do rei.
Sarai quis afastar as mãos, mas Kiddin reteve-as.
- Imensa é a honra que concedeste à nossa casa. Eu apenas aspiro igualar-te. Quando te tiveres unido a ele, o Poderoso Shu-Sin confiar-me-á um dos seus quatro exércitos. Também saberei merecer essa distinção. Graças à tua bênção desta manhã, bater-me-ei como um leão logo nas primeiras refregas. Irmã, pensa no que representará dentro em pouco a nossa linhagem em Ur! Tu, a Sacerdotisa do Quarto Sublime e eu, o Touro dos exércitos.
- Ainda não chegámos lá - retorquiu friamente Sarai. - A escolha do rei ainda não é certa. Desconfia dos rumores. No templo, as palavras voam mais depressa que as moscas!
- Não, não! Podes ter a certeza do que digo. Aliás, estou aqui para te comunicar o desejo do meu pai: ele quer que venhas a nossa casa. Embelezou de novo o nosso templo para que este seja digno de receber a Santa Serva do Sangue. Quer que sejas tu a efectuar as primeiras oferendas às novas estátuas dos nossos antepassados.
Kiddin captou a hesitação de Sarai. Sem esforço, encontrou o tom de outrora que já nada tinha de terno ou humilde:
- Ninguém compreenderia a tua recusa. Desde que vives neste templo não me recordo de te ter visto mais de três vezes no nosso pátio. Se não fores saudar os nossos antepassados será uma afronta para todos nós, vivos e mortos.
ALGUNS DIAS DEPOIS, Sarai entrava em casa de Ichbi Sum-Usur, seguida por Sililli e pelas servas que a tinham escoltado. Todos os habitantes da casa estavam reunidos no pátio da recepção. O seu pai e o seu irmão encontravam-se diante das tias, tios e primos, servas, jardineiros e escravos. Os membros da família tinham vestido as suas togas de cerimónia, ornadas por passamanes e bordados, perucas e jóias.
Avançando por entre as esteiras e os tapetes cobertos de pétalas, Sarai' apercebeu-se a que ponto Kiddin tinha razão. Já não passava pelas portas daquele palácio há tanto tempo que mal reconhecia os muros. Ichbi Sum-Usur mandara decorar as salas comuns enquadrando o pátio com colunas maciças, nas quais o sol desenhava sombras geométricas. Cada uma sustinha esplêndidos baixos-relevos com tijolos envernizados, onde se inscrevera a vida dos deuses numa dezena de cenas. As cores, as formas e a subtileza dos modelados eram notáveis: dir-se-ia que os Poderosos do céu, tão vivos quanto os humanos, iam saltar para o pátio.
Ichbi Sum-Usur também ganhara relevo. A sua toga deixava agora entrever um pneu na barriga e um duplo queixo cheio de satisfação rematava-lhe a curva das bochechas descaídas. Uma longa peruca oleada substituía a sua cabeleira natural. A alegria por ver a sua filha bem-amada era sincera. Com doçura e uma deferência que ela não lhe conhecia, inclinou o busto diante de Sarai, com as palmas das mãos voltadas para o céu numa marca de respeito que ela só lhe vira dispensar aos mais poderosos. Os seus olhos velaram-se de emoção.
- Bem-vinda a minha casa, Santa Serva do Sangue. Louvados sejam Enlil, Ea e a Dama da Lua.
Enquanto o pai proferia estas palavras, Kiddin inclinou o busto tão profundamente quanto o resto do pessoal da casa. Numa marca de distinção pela sua nova posição, trazia à cintura o machado simbólico dos oficiais do rei. Quando se endireitou, um sorriso tão branco como o sal iluminava-lhe a barba escura.
Sarai aproximou-se do pai. Pegou-lhe nas mãos, levou-as à testa e, por sua vez, inclinou-se.
- Pai! Aqui sou apenas Sarai, a tua filha. Outrora chamavas-me «minha filha bem-amada».
Não pôde prosseguir. Retirando bruscamente as mãos, Ichbi Sum-Usur recuou:
- Não, não, Santa Serva! Não é possível! Presentemente Ea é o teu único pai e Inanna a tua terna mãe. Eu, Ichbi Sum-Usur, sou apenas o modelo vivo que te conduziu por esta vida para que eles pudessem escolher-te.
Sarai abriu a boca para protestar, mas Kiddin antecipou-se-lhe:
- O meu pai tem razão!
E acrescentou, alto e de bom som para que todos pudessem ouvi-lo:
- A filha e a irmã que conhecíamos morreram há mais de sete anos, nesses dias em que Ishtar lhe deu a conhecer o céu dos Poderosos, nesses dias em que dormiu com um sono que não era humano. Aquela que reabriu os olhos é para sempre a nossa bem-amada Santa Serva do Sangue. Nomeá-la de outra forma seria irritar os Poderosos do céu.
O peito de Sarai' encheu-se de um frio tão glacial quanto o vento do Inverno. Esteve prestes a lembrar a Kiddin as palavras que ele próprio utilizara quando lhe viera solicitar uma audiência ao giparu. Nessa ocasião, não pronunciara os termos que proibia agora a todos: «Sarai», «minha irmã», «minha estimada irmã»?
Porém, reteve o seu protesto. Se Kiddin pecava por falta de sinceridade, o mesmo não se podia dizer do seu pai e de todos os presentes no pátio. Estes contemplavam-na com intenso e temeroso respeito.
Sim, para eles ela era a encarnação da Deusa da Guerra! Desaparecera a menina caprichosa, a rebelde que era preciso vigiar. Os deuses tinham-na escolhido. Sentiu a garganta apertar-se-lhe com a tristeza. Nunca se sentira tão só na vida.
Até o sol atingir o zénite, fez apenas, resignadamente, aquilo que dela esperavam. O templo fora decorado de novo, tinham erguido altares de madeira preciosa, cobertos de pétalas, prontos a acolher as novas estátuas dos antepassados. Ela pronunciou as preces e cantou os louvores aos defuntos, queimou os perfumes, recebeu as oferendas e devolveu-as. Tudo isto numa indiferença automática que passou pelo desprendimento habitual de uma sacerdotisa familiarizada com estas cerimónias. De vez em quando, adivinhava o contentamento do pai e de toda a casa. Forçou-se por encontrar nele uma forma de satisfação.
Quando o sol alcançou finalmente o pino, regressaram para o grande pátio, onde tinham instalado as mesas e almofadas destinadas aos banquetes. A tradição exigia que cada membro da família se instalasse para uma refeição para a qual seriam convidadas quer as estátuas dos antepassados, quer os parentes, após uma longa viagem. Enquanto não tivessem ocupado o seu lugar entre os vivos, os pratos mais ricos não seriam abundantemente oferecidos e ninguém estava autorizado a beber ou a tocar na comida.
Cada um ocupou um lugar de acordo com a sua posição. Servas colocaram um assento para Sarai no meio de um pequeno estrado, entre Ichbi Sum-Usur e as tias. Logo que ela se sentou, todos foram atingidos por uma estranha imobilidade. Ninguém pronunciou qualquer palavra. A casa petrificou-se como se estivesse povoada de estátuas. Apenas o voo dos pássaros, que faziam deslizar sombras vivas aqui e além, lembrava que a vida continuava.
Um arrepio percorreu a nuca e os ombros de Sarai. Os seus dedos tremeram e cerrou discretamente as palmas das mãos. Uma onda dolorosa, semelhante à do medo, serpenteou-lhe por entre os rins.
De repente, os seus olhos deixaram de ver os rostos tensos dos seus parentes instalados nas mesas do banquete. Eles contemplavam o estrado que, num dia já longínquo, tinham instalado nesse preciso lugar. Já não ouvia o pesado silêncio da espera pelos antepassados. Ouvia o ruído dos cantos dos esposos. Aos seus pés, talvez no lugar onde estava hoje sentada, via a bacia de bronze com água perfumada. Viu-se a si mesma, nua diante do pai e daquele que a desejava como futura esposa. Julgou sentir novamente na pele o contacto da água perfumada, enquanto entrava nela de coração desalentado.
Passara tanto tempo! Tanto tempo, que não mais pensara nisso tudo! Tanto tempo que já não sonhava com um mar. Tu que viria buscá-la para levá-la para longe de Ur, unicamente graças ao poder de um beijo!
Um longo rangido, semelhante a uma lamúria, fê-la sobressaltar-se. Finalmente tinham aberto o grande pórtico da casa. Transportados em palanquins de junco, pintados de fresco e resplandecentes, os cinco antepassados de Ichbi Sum-Usur fizeram a sua entrada no pátio.
De tamanho natural, estavam acocorados em almofadas púrpuras, pretas e brancas. Os caracóis das suas perucas balouçavam-lhes pelos ombros, as suas togas apresentavam um pregueado perfeito. Os seus rostos severos exibiam as rugas da idade e os seus olhares, de marfim e lápis-lazúli, pareciam perfurar a alma dos vivos com a segurança de flechas. Numa das mãos, cada um trazia um molho de cevada dourada, de trigo ou de espelta e, na outra, uma foice ou tabuinhas para escrever.
Raramente se vira antepassados tão perfeitamente concebidos. Um murmúrio impressionante percorreu o pátio. A imobilidade tanto tempo conservada, quebrou-se como uma ganga. Mãos e braços ergueram-se e os cânticos de acolhimento jorraram com fervor.
Ó Pais dos nossos pais, Semente da terra húmida, Esperma dos nossos destinos, Ó pais bem-amados...
Ichbi Sum-Usur e Kiddin ergueram-se, rosto corado, olhar brilhante, mãos estendidas. Os escravos trouxeram os palanquins até ao estrado e depositaram cuidadosamente as estátuas entre os turíbu-los. E, atrás deles, Sarai viu o rosto dele e reconheceu-lhe os lábios.
TUDO SE DESENROLOU COM UMA LENTIDÃO que não tinha nada a ver com as leis naturais. Na realidade, durou apenas o tempo de um relâmpago.
Alguns passos atrás dos antepassados, dois homens entraram no pátio. Pararam ao pousar as estátuas. Um era idoso, o outro estava na força da juventude. Traziam a túnica de linho puro, espesso, dos mar. Tu. Foi isso que atraiu a atenção de Sarai'. O rosto do mais velho estava vincado pelas rugas. A pele das suas mãos esbranquiçara de tanto moldar a argila. Os seus gestos eram reverentes, mesmo um tanto inquietos. De busto hirto, sobrolho franzido, o mais novo lançava à sua volta olhares mais espantados que admirativos. Os seus olhos pousaram nos baixos-relevos resplandecentes de luz. Depois, voltaram-se para o estrado. Olhos morenos, transparentes. Detiveram-se em Kiddin e Ichbi Sum-Usur. Era ele.
Parecia não ousar cruzar com o olhar dela, admirando simplesmente a sua toga, a sua silhueta. Ela não se apercebeu de que avançava prudentemente pelo estrado. Uma voz interior soprou-lhe: «É ele. Reconheço-o».
Tinha crescido, os seus ombros eram mais largos e o seu pescoço mais espesso. A barba, finamente encaracolada, brilhava ligeiramente à luz do sol, descobrindo-lhe a boca. A voz disse: «Reconheço-lhe os lábios. É mesmo ele».
Ergueu o olhar para ela, intrigado, não a reconhecendo; no entanto, não conseguia deixar de a contemplar.
A voz interior repetiu: «São os lábios dele. Não mudaram e eu nunca me esquecerei deles. Mas ele, como poderia reconhecer-me?»
Os cânticos e a música transformaram-se num alarido doloroso. Pensou que o chamava, através de todo aquele estrondo: «Abrão! Abrão! Sou a Sarai'...
Ele estremeceu. O velho observou-o com temor.
Uma mão agarrou então no braço de Sarai.
- Que estás a fazer?
Kiddin puxou-a para trás, sem modos. Ela apercebeu-se que estava mesmo à beira do estrado. Os seus pés quase tocavam numa das estátuas. No pátio os rostos voltavam-se para ela, alarmados.
Ela continuou a olhar para Abrão. Adivinhou um sorriso nos lábios dele. Reconhecera-a. Agora tinha a certeza.
- Que foi que te deu? - resmungava Kiddin.
- Meu filho, como ousas tratar assim a Santa Serva? - inquietou-se Ichbi Sum-Usur.
- Quem são aqueles dois mar. Tu, além, no pátio? Que fazem
perguntou Kiddin, sem lhe responder.
- É o oleiro e o seu filho. Foram eles que moldaram as estátuas.
Fizeram um trabalho tão bom que os autorizei a acompanhar os nossos antepassados até ao templo.
Sarai mal escutava. Talvez nem tivesse pronunciado o nome dele em voz alta. No entanto, ele ouvira-a.
- Que deixem o pátio! - ordenou Kiddin, apontando para os estrangeiros.
- Meu filho!
- Pai, faz o que te peço. Que esses mar. Tu abandonem imediatamente a nossa casa!
Abrão compreendeu o gesto de Kiddin. Pegou no braço do pai para o levar até à porta. Quando estavam prestes a desaparecer, Sarai pronunciou o nome dele em voz alta e inteligível: «Abrão».
Desta vez Kiddin e Ichbi Sum-Usur ouviram-na. Mas o seu pai, transportado pelo poder da cerimónia, pelos cânticos e pela música, já lhe estendia as primeiras tigelas com oferendas.
Antes de pegar nelas, Sarai olhou para Kiddin, ainda vibrante de fúria. Com voz calma, disse-lhe:
- Nunca mais ouses erguer a mão sobre mim, filho de Ichbi Sum-Usur, ou o sangue do touro poderá tornar-se o teu próprio sangue.
SILILLI, tão lamurienta como se o telhado do templo lhe tivesse desabado em cima, proferia os seus disparates: «És doida; Kiddin nunca te perdoará a afronta que lhe fizeste... O mar. Tu regressou e as desgraças já começaram... Julgava que tinha mudado, que te tinhas esquecido! Por que motivo os deuses não apagaram as tuas recordações?»
Não lhe escapara nada do que ocorrera no pátio de Ichbi Sum-Usur. No entanto, soubera manter-se calada até terem regressado do templo. Foi quando Sarai lhe pediu ajuda que rebentou a torrente de queixas e terror.
Pacientemente, Sarai pegou-lhe nas mãos e, sem elevar a voz, repetiu o pedido: queria que ela lhe encontrasse as tendas dos mar.Tu e agradecesse ao oleiro Terá pela beleza das estátuas.
- Diz-lhe que lastimo a brutalidade de Kiddin e a afronta que lhe fizeram. Diz-lhe que, em compensação, eu, a Santa Serva do Sangue, convido o seu filho Abrão para partilhar a minha refeição matinal, depois de amanhã. Sililli arregalou os olhos.
- Não podes chamá-lo! É uma blasfémia deixar um mar. Tu entrar aqui! Vais conspurcar o templo! Que acontecerá se isso chegar ao conhecimento dos outros? Eu sei o que se passará: a Suma Sacerdotisa contará tudo ao rei. E será o fim, ele já não te quererá no Quarto Sublime.
- Pára com as tuas tolices e põe a cabeça a trabalhar! - exasperou-se Sarai'. - É perfeitamente normal um oleiro vir ao palácio. Todos os dias há oleiros que vêm mostrar as suas obras.
- Mas não aqui, no giparíi. Não para partilhar uma refeição com uma sacerdotisa. Kiddin tem razão, vais levar-nos directamente à desgraça.
Sarai afastou-se, glacial, rosto duro e altivo como punha por vezes diante do touro.
- Muito bem. Desenvencilhar-me-ei sem ti.
Com um gesto, ordenou-lhe que a deixasse sozinha. Mas Sililli não se mexeu. Os seus dedos gorduchos enxugaram as lágrimas que lhe perlavam as pálpebras. Com uma voz quase inaudível, tremendo e cansada, perguntou:
- Que irás dizer ao teu mar.Tu? Que o sangue já não escorre pelas tuas coxas desde há sete anos? Até os mar.Tu gostam de mulheres de ventre fértil.
Sarai corou como se a serva a tivesse esbofeteado. Mas Sililli não tencionava calar-se:
- Ainda não compreendeste? És uma Santa Serva do Sangue. E sempre o serás. Aqui, desejam-te tal como és. Aqui respeitam-te e invejam-te. Os guerreiros amam-te pois, graças a ti, esperam não derramar sangue em combate. Mas, Sarai, fora deste templo, és apenas uma mulher de ventre estéril.
- Não tens o direito de me falar dessa maneira.
- Então passo a tê-lo. Posso fazê-lo. Matei-me por ti durante todos estes anos. Fui eu quem queimou as ervas da feiticeira. Os deuses já te perdoaram uma vez. Não lhes peças demasiado.
A dor deformava-lhe os traços do rosto. A cólera de Sarai desapareceu tão depressa quanto chegara. Num impulso há muito esquecido, acocorou-se junto de Sililli, abraçou-a e pousou a cara no ombro dela.
- Só peço para o ver e ouvir uma única vez - cochichou-lhe. - Uma só vez. Para saber se ele também pensou em mim durante todos estes anos.
- E depois?
- Depois, tudo voltará ao mesmo.
SARAI JULGOU QUE ELE NÃO VIRIA. Sililli não lhe trouxera nenhuma resposta à sua mensagem:
- Olhou para mim como se eu fosse uma velha louca, o que significa que ele, ao menos, tem juízo. Esperou simplesmente que eu me fosse embora. O seu pai agradeceu-me e foi tudo.
Ficou combinado que Sililli o esperaria ao cair da noite, na porta aberta no muro do recinto, nas traseiras do giparíi. Era uma passagem estreita e sem fausto, por onde passavam habitualmente os condutores de animais, das carroças com grãos e com todos os alimentos necessários às oferendas. Nas primeiras horas matinais, ninguém daria pela presença de um mar. Tu por entre a multidão atarefada dos servos e das escravas.
Discretamente, durante a noite, com a ajuda recalcitrante de Sililli, Sarai dispusera lâmpadas, almofadas e bandejas com alimentos numa das salas dissimuladas onde se colocavam as togas e os ornamentos para a próxima grande cerimónia das sementeiras. Chegava-se lá através de um estreito corredor aberto no enorme muro que circundava o giparíi, apenas utilizado pelas servas. Quando Abrão lá estivesse, bastaria a Sililli colocar-se no corredor; dessa forma, ninguém poderia surpreendê-los.
Mas, presentemente, ao aguardar entre essas paredes escondidas, Sarai tinha dúvidas. No meio do enorme silêncio que rodeava a sua espera, tinha de confessar a si mesma que Sililli dissera a verdade sobre vários aspectos. Verdades cruas, que ela procurava ignorar como se deseja ignorar uma dor lancinante e sem remédio.
Não obstante, e tal como outrora, quando era ainda uma jovem convencida que um beijo de Abrão a purificaria para o resto da sua vida de esposa, hoje esperava também que o encontro lhe proporcionasse uma espécie de milagre.
Não, ela não mentira a Sililli. Talvez lhe bastasse saber que durante todos aqueles anos ele também não a olvidara.
Mas, e se ele não viesse?
Rejeitou esta pergunta. Tinha de se encher de paciência. Talvez o tempo passasse mais lentamente do que lhe parecia e que, lá fora, o sol mal tivesse acabado de se levantar.
O ROÇAR DE SANDÁLIAS SOBRESSALTOU-A. Ele estava ali, de pé, sob a luz tremeluzente das lâmpadas de óleo.
Registou-se um breve momento de embaraço. Depois, ele inclinou-se cerimoniosamente. As suas primeiras palavras foram para se desculpar por não saber como se devia saudar uma Santa Serva do Sangue, dedicada às ofertas a Ishtar.
A sua voz não mudara. Tinha sempre o sotaque de mar. Tu. Ela respondeu:
- Com muito respeito e com ainda mais temor.
Riram-se ambos. Um riso como Sarai não tivera desde há muito, semelhante à água fresca e que dissipou um pouco o embaraço de ambos.
Sentaram-se nas almofadas, uma mesa baixa entre eles. À excepção dos cabelos e da barba, mais fornecidos, Abrão não mudara. A sua boca continuava sempre tão bela, tão perfeita como outrora. Tinha as maçãs do rosto mais proeminentes. Um rosto de homem decidido e que já enfrentara provas.
Sarai verteu a infusão de tomilho e alecrim nos grandes copos de cobre e disse:
- Receei que não ousasses vir.
- O meu pai e os meus irmãos opunham-se. Sentem-se muito receosos ao pensar que a minha vinda aqui possa representar uma blasfémia. Têm medo do teu pai e do teu irmão. É assim connosco, os mar.Tu: receamos muitas coisas.
Lembrava-se do tom dele, muito seguro. Acrescia-se-lhe agora uma ironia tranquila, o distanciamento de um homem que pesava a força dos seus pensamentos antes de os adoptar. Bebeu um trago e acrescentou:
- Deixei as tendas a meio da noite, sem que eles me vissem. Peguei nas peças de barro que estavam no forno do meu pai, para que ele pensasse que as levava ao templo. Dei-as à tua serva. São a minha oferta à tua deusa!
Sarai sentiu o coração bater mais depressa. Estas palavras equivaliam a uma primeira promessa: ele também fazia batota e mentia por ela.
- Da última vez, à beira-rio, também tiveste de te esconder para trazer as peles e a comida.
Abrão inclinou a cabeça com um ligeiro sorriso.
- Sim... há tanto tempo...
- Mas não te esqueceste.
- Não.
Num ápice, o embaraço instalou-se novamente. Ambos comiam tâmaras e bolos de mel. Abrão mostrava um sincero apetite. Sarai sentiu um estranho prazer, novo e perturbador, ao vê-lo fazer aqueles gestos simples. Por cima da gola da túnica, onde principiava o pescoço, a pele de Abrão pareceu-lhe de uma extrema fineza. Apeteceu-lhe tocá-la.
Disse-lhe:
- Nessa manhã os soldados encontraram-me e levaram-me de volta a casa do meu pai.
Deixou escapar um risinho.
- Ele ficou fulo. No entanto, alguns dias depois consegui escapulir-me novamente. Fui até às tendas. Queria... agradecer-te pela tua ajuda. Mas disseram-me que a tua família já lá não estava.
- Tínhamos partido para o Norte, onde permanecemos. Abrão contou como após ter levado os rebanhos para o imenso centro do imposto real, em Puzrish-Dagan, Terá decidira instalar-se em Nippur para vender as suas peças de olaria.
- Em Nippur, há templos por todo o lado. Todos os anos, os Poderosos querem novas estátuas dos seus antepassados - troçou Abrão.
Enquanto o ateliê do seu pai prosperava, ele e os irmãos, Haran e Naor, tinham feito crescer os rebanhos de pequeno gado por conta das grandes famílias de Nippur. Em três ou quatro anos, a sua prosperidade, devida quer à criação, quer aos trabalhos do pai, desenvolvera-se suficientemente para que pudessem possuir os seus próprios rebanhos. O número de animais aumentou tanto que após cada colecta de impostos em Puzrish-Dagan passaram a deslocar os rebanhos de uma cidade para outra, de Urum a Adab, ladeando as encostas das montanhas onde a erva era alta e abundante.
- O meu pai Terá tomou-se chefe da nossa tribo. Uma grande tribo: mais de quinhentas tendas... Mas, no último Inverno, a guerra reacendeu-se com as populações da montanha. Os Gutis aproximaram-se de Adab. Pilharam casas e depósitos, roubaram rebanhos. É sempre assim: basta eclodir uma guerra entre as cidades e começa-se por roubar os nossos animais e por violar as nossas mulheres. Ninguém vem em nosso auxílio. Não fomos feitos para a guerra: o meu pai decidiu regressar a Ur.
Teve novamente aquele sorriso que lhe enrugava os olhos:
- Os Poderosos de Ur estão muito felizes com o nosso regresso. Como o teu pai, apreciam muito as cerâmicas do mar.Tu Terá!
- São belas. Eu também gosto delas.
Abrão comeu uma tâmara e abanou a mão como se tudo aquilo não passasse de fumo. Com o sorriso ainda bailando nos olhos, perguntou:
- E durante todo este tempo tu tornaste-te a mulher mais formosa e, não obstante, nenhum Poderoso de Ur te quis como esposa?
Sarai sentiu a garganta secar e o sangue queimar-lhe as faces. Assim era Abrão. Apanhava-a desprevenida, respondia às perguntas antes que lhas fizessem e ia directamente ao fundo da questão. Ela pensara nas frases que lhe diria. Agora parecia-lhe que empestavam todas a mentira.
As palavras de Sililli acudiram-lhe à memória: «Até os mar. Tu desejam mulheres de ventre fértil!» O seu estava vazio e há tanto tempo que já duvidava de voltar um dia a ter as regras. Mas podia explicar a Abrão que bebera as drogas de uma kassaptu por estar desesperada por não ter recebido um beijo dele? Que nessa altura era apenas uma garota furiosa e incapaz de avaliar as consequências do seu gesto?
Acabou por balbuciar:
- Não, ninguém pode desposar uma serva de Ishtar.
O rosto de Abrão gelou. Evitando o seu olhar, Sarai contou-lhe resumidamente a sua «doença» depois de se terem encontrado, e como o adivinho compreendera o significado da sua estadia nos infernos e a levara a tornar-se uma filha do templo.
Escutou-a sem pestanejar enquanto ela explicava, com certo orgulho, como durante cinco longos anos aprendera o saber das sacerdotisas, a escrita nas tabuinhas, os poemas e os cânticos, a dança, a preparação das oferendas e, por fim, a submissão do touro.
- O touro? - admirou-se ele. Foi a única vez que a interrompeu.
- Sim, é isso ser a Santa Serva do Sangue: saudar o touro antes de oferecer o sangue dele à Deusa da Guerra.
Explicou como o sangue do touro que escorria diante dos guerreiros que partiam para o combate os protegia dos ferimentos e da morte. Uma vez saciada a sua sede, os deuses insuflavam um pouco do seu poder nos braços dos humanos que lhes tinham oferto essa dádiva. Omitiu-lhe o facto da sacerdotisa ser virgem de qualquer menstruação, seca como o pó calcado pelos pés de um vencedor.
Quando terminou, Abrão ficou um momento pensativo. Depois inclinou a cabeça e perguntou:
- Vocês derramam o sangue do touro para agradarem aos vossos deuses, de forma a obterem o seu apoio? E se os guerreiros inimigos fizerem a mesma coisa? Como podem os vossos deuses escolher um campo e não o outro? A não ser que apoiem os dois inimigos e que não haja nem vencedor, nem vencido... Talvez não apoiem ninguém... Então é o mais forte e manhoso que vence, enquanto os deuses digerem as vossas ofertas?
A ironia regressara-lhe à voz, mais fluida e dura. Sarai iníer-rompeu-o com ternura:
- Não, não estás a compreender: os deuses dos Poderosos de Ur não são deuses de mais ninguém! Só nós os podemos invocar!
- E julgas que os teus deuses te levaram até aos infernos? Que te designaram dessa maneira para que dançasses diante dos guerreiros até à morte de um touro que eu e os meus irmãos criámos pacientemente?
Sarai hesitou. A sagacidade de Abrão impressionava-a. De facto, como acreditar na afirmação do adivinho e dos sacerdotes se ela própria conhecia a verdadeira causa da sua doença? Até Sililli, sempre disposta a ver a presença dos deuses em toda a parte, mantinha-se mais do que circunspecta a esse respeito.
Respondeu-lhe:
- Não sei. Às vezes penso que estive simplesmente doente. Mas os sacerdotes afirmam que são os deuses que decidem sobre as nossas doenças e as nossas curas. E era... Era uma doença fora do comum. Quem pode saber o que desejam os deuses?
- Sim, quem pode saber?
Abrão arvorou uma expressão céptica. Bebeu e comeu novamente, pensativo e silencioso. Ao vê-lo assim, Sarai pensou que amava cada um dos seus gestos. Gostava daqueles dedos quando pegavam no grande copo de cobre, do peito dele quando respirava, do jogo dos seus músculos sob a túnica. O desejo que ele lhe tocasse, que a acariciasse e a aflorasse como fazia com os objectos e os alimentos, o desejo do beijo enterrado durante tantos anos nos seus sonhos, regressou-lhe brutalmente.
De repente, Abrão disse:
- Quem pode saber se esses deuses existem? Tanto os dos Poderosos de Ur como os de todas as cidades que visitei. São tantos e tantos! Quase tantos quanto os homens. Onde estão? Que provas temos da sua presença? Como saber se ajudam ou ameaçam os homens, se estes vêem um sinal da sua presença em todas as coisas? Atribuem um significado a todos os seus actos e até ao seu silêncio. Uma pedra cai em cima de um burro e mata-o: foi por vontade dos deuses. Porquê? Se ninguém sabe, eles, ou os seus sacerdotes, sabem-no. Uma mulher morre durante o parto e o seu filho morre ao nascer? Foi por vontade dos deuses. No entanto, essa mulher é pura como água da fonte e o seu filho mal acabou de vir ao mundo. Onde está a justiça? A bondade dos deuses? Por quê esse sofrimento? Os sacerdotes dirão que o esposo ou o pai do esposo, o tio ou não sei quem, se esqueceram um dia de saudar um Poderoso. Ou que tiveram um mau pensamento. Ou que comeram um carneiro quando a lua ainda estava escondida... E pronto, está determinada a cólera do deus!
A sua voz subira de tom e ecoava pela pequena sala. Apercebendo-se subitamente da sua brutalidade, interrompeu-se, soltando uma gargalhada:
- Desculpa estas palavras num lugar destes, Santa Serva! Talvez Ishtar me fulmine com um raio ao sair daqui...
Deixou passar um silêncio, como se quisesse que a própria Ishtar ouvisse a sua gargalhada e lhe respondesse. Talvez também para dar tempo a Sarai de se zangar, protestar, talvez até de o expulsar. Ela permaneceu impassível. Então ele inclinou-se para a frente, novamente sério.
- A cidade de Urum está construída à beira de um rio tão largo como o Eufrates e que chamam o Tigre, de tal modo sabe mostrar-se violento. Aí encontrei um velho homem que percorreu as margens até à sua fonte, longe, nas montanhas do Norte. Procurava pedras preciosas. Apenas trouxe cobre e dioritos. Mas, do outro lado das montanhas, encontrou povos que não eram bárbaros e que acreditavam num só deus. Um deus que teria apenas uma tarefa e um desejo: criar o mundo para o oferecer aos homens.
Sarai não despregou os olhos dos dele, não compreendendo bem o que ele lhe queria dizer com aquele conto. Um terno sorriso aflorou os lábios de Abrão:
- Um deus que gosta suficientemente dos homens para não obrigar as suas sacerdotisas a dançar entre os cornos de um touro. E que lhes permite arranjar um esposo.
Uma onda de fogo atravessou o ventre de Sarai. Ela inclinou-se, de nuca e ombros rígidos:
- Abrão, nunca pude esquecer o teu rosto nem a noite que passámos à beira-rio. Permaneceste nos meus pensamentos e nos meus sonhos e, no entanto, julgava que nunca mais te veria. De ti, apenas conhecia o teu nome. Mas desde essa noite desejei que os teus lábios se pousassem nos meus e me protegessem para o resto da vida. Nada disso mudou. Ignoro a vontade dos deuses. Não reflecti, como tu, nas suas injustiças e nos seus poderes. Umas vezes, parece-me sentir a presença deles, outras não. Mas sei que quase morri por não ter recebido o teu beijo.
Com uma voz alterada, dolorosa, Abrão respondeu:
- Um mar. Tu não beija a filha de um Poderoso de Ur... Haran, o meu irmão mais novo, encontrou uma esposa em Adad. Teve um filho. Entre nós é raro ver o mais novo casado e pai antes do mais velho. Não há dia em que o meu pai não se apoquente com a minha solidão.
Sarai conseguiu sorrir:
- Já não sou a filha de Ichbi Sum-Usur. Ele próprio o confirmou. Já não sou a irmã do meu irmão. Sou apenas uma serva de Ishtar.
- Um mar. Tu não beija uma serva de Ishtar que ninguém tem o direito de desposar.
A voz e a boca de Sarai' tremeram:
- Daqui a três luas, aquando da grande festa das sementeiras, o nosso rei Shu-Sin abrirá as minhas coxas, lá em cima, no Quarto Sublime. Dormirá comigo, como um esposo, como a Dama da Lua se uniu a Dumuzi, o Poderoso. E eu só preciso do teu beijo para me proteger.
A estupefacção paralisou Abrão antes da cólera o levar a levantar-se, tremendo.
- Vocês são loucos! - exclamou. - Vocês, Poderosos das cidades, vocês são loucos!
Agarrou nos ombros de Sarai, petrificada.
- Como ousas fazer uma coisa dessas?
Ela não teve tempo para responder. Sililli chamava-a:
- Sarai, Sarai!
Apareceu à entrada da sala e olhou-os siderada. Abrão largou Sarai e recuou um passo. Sililli agarrou-o pela manga da túnica:
- Depressa, depressa, não devemos ficar aqui. Kiddin está no grande pátio da recepção. Pede aos sacerdotes para ser recebido pela Santa Serva do Sangue.
Abrão libertou-se secamente da mão de Sililli.
- De qualquer modo já era altura de partir.
- Não, espera! - protestou Sarai. - Está fora de questão receber o meu irmão. Ele não tem nada a fazer aqui.
- As jovens servas procuram-te por toda a parte! - exclamou Sililli. - Se não te encontrarem, as pessoas vão desconfiar de alguma coisa. Tens de te mostrar.
- O meu lugar também não é aqui - disse Abrão.
- Abrão...
- Agradeço a Santa Serva pela sua hospitalidade e desejo-lhe que seja poderosa neste templo.
A sua saudação foi tão seca, cruel e amarga quanto o seu tom de voz. Voltou-lhe costas e encontrou-se no corredor antes que Sarai reagisse. De rosto desolado, Sililli murmurou:
- Eu tinha-te dito. Não devias ter marcado este encontro. É contra a vontade dos deuses.
O xaile da vida
ASSIM ERA O HOMEM QUE ELA AMAVA. Transbordando de pensamentos, fogosidade e revolta! Um homem corajoso, combativo e belo. Que a amava sem o dizer por palavras, mas mostrando-o com ciúme e fúria.
E, doravante, sem qualquer esperança.
Nos dias seguintes, Sarai não parou de pensar nele. Não conseguia dormir. Enquanto anunciavam que os exércitos de bárbaros das montanhas estavam cada vez mais perto da cidade e que o templo rugia, de manhã à noite, com invocações e cânticos, enevoado pelos fumos e abarrotando de oferendas, ela desempenhava os seus deveres de Santa Serva sem emoção. Pretextando a necessidade de uma purificação extraordinária para agradar a Ishtar, ficava só, o mais tempo possível. Ordenou a Sililli que pusesse termo às suas lamúrias e conselhos de velha amedrontada.
- O mar. Tu regressou à sua tenda. Não nos voltaremos a ver. Se souberes calar-te, amanhã nem me lembrarei do nome dele.
Acreditando-a ou não, Sililli acabou por lhe obedecer. Contudo, ao pronunciar estas palavras o coração de Sarai entrara em desespero. Nada era justo: Abrão recusara-se dar-lhe aquele beijo por que ansiava. Não tinha mais nada a esperar dele. Numa só vez, ele condenara as leis de Ur, os deuses e a felicidade que podiam partilhar, mesmo secretamente. O melhor seria esquecê-lo. Devia ser fácil: havia tão pouco a olvidar! Um longínquo encontro nas margens do rio, algumas palavras, uma curta presença num quarto dissimulado.
Só lhe restava servir Ishtar de acordo com as regras que lhe tinham ensinado, senão mesmo com devoção. Só lhe restava esperar que o Poderoso Shu-Sin erguesse o sexo entre as suas coxas no Quarto Sublime. Sem o pensamento de Abrão para a proteger. Sem a lembrança do seu beijo para repelir o medo e o nojo.
Abrão tinha razão para condenar o que ela ia aceitar: o desejo de homens que pretendiam que ela já não era uma mulher, uma filha ou uma irmã, mas um ventre sagrado cujo único destino era a submissão.
Mas Abrão ignorava o que fazia dela uma serva da Dama da Guerra: um ventre árido. E essa verdade enunciada por Sililli: até um mar.Tu deseja uma esposa de ventre fértil!
Se os deuses tinham o poder de castigar os humanos, a punição de Sarai já se realizava desde há muito.
Na maior escuridão, sem poder dormir, como se fosse a qualquer momento cair pela segunda vez na fossa dos infernos, Sarai' permanecia de olhos bem abertos.
Foi assim que ouviu um ligeiro roçagar na terceira noite desse suplício. Depois, outros. Uma luz débil passou diante da sua porta e afastou-se pelo corredor.
Silenciosamente, tendo o cuidado de não despertar Sililli, Sarai' cobriu-se com uma toga de lã e esgueirou-se para o corredor, o suficiente para ver a luz desaparecer à direita, na direcção do grande pátio.
Conhecia essa parte do giparu para saber orientar-se no escuro. De mãos estendidas, tacteando os tijolos das paredes, chegou em pouco tempo às colunas do grande pátio. Aí, as tochas iluminavam constantemente a entrada das cozinhas e a porta que conduzia à Esplanada Sublime. Lá em cima, sobre o templo, como todas as noites, as pérolas da fogueira de nafta iluminavam as escadarias e os terraços do zigurate.
A PRINCÍPIO NÃO VIU NEM OUVIU NADA.
Depois, duas sombras pareceram mover-se no canto do pátio oposto às cozinhas. Sarai pensou em chamar os guardas. Estariam os Gutis tão perto de Ur que já enviassem os seus espiões até ao templo?
Uma das sombras endireitou-se. Ela hesitou. Se fossem bárbaros, teriam tempo de a massacrar antes da chegada dos guardas. Sentiu uma pontada de medo nos rins.
As duas sombras também hesitaram, prontas a fugir. Sarai ouviu um sussurro. Pronunciavam o seu nome!
Ela avançou prudentemente. A sombra agitou uma mão. Novo sussurro. O seu coração batia com mais força: reconhecera a voz.
- Abrão? És tu, Abrão?
Uma das sombras mostrou uma lanterna em olaria que escondera atrás de si e ergueu-a até ao rosto do companheiro.
- Abrão, que fazes aqui? - cochichou Sarai, estupefacta. Ele agarrou-lhe nas mãos. Ao sentir este simples contacto, um
arrepio semelhante à febre perpassou pela nuca de Sarai.
- Este é o meu irmão Haran - anunciou Abrão. - Vim buscar-te, se quiseres.
- Buscar-me?
- Os Gutis não irão aparecer onde os Poderosos de Ur os esperam. São mais astuciosos que isso. Entraram a bordo das embarcações dos Huhnurs, com quem firmaram uma aliança. Amanhã estarão no rio e desembarcarão na cidade baixa.
- Poderoso Ea!
A exclamação arrancou um sorriso a Haran. Era um pouco mais baixo que Abrão, de rosto e corpo mais redondo, com dois olhos brincalhões.
- Tens razão ao invocá-lo, Santa Serva. Os Poderosos de Ur vão precisar da sua ajuda.
Abrão franziu o sobrolho para mandar calar o irmão. Apertou as mãos de Sarai com mais força e, falando baixinho e depressa, explicou-lhe que o seu pai e toda a tribo tinham desmontado as tendas. Para colocarem o rebanho fora do alcance dos Gutis, tinham abandonado os arredores da cidade há dois dias, rumo ao Norte.
- Haran aceitou arrepiar caminho comigo...
- Abrão assegurou-me que sabia entrar no teu templo e orientar-se nele - murmurou Haran, alargando o seu sorriso. - Entrar, lá conseguimos; mas dirigirmo-nos neste labirinto é outra coisa! Se não tivesses vindo ao nosso encontro...
- Haran! - protestou Abrão. - Não temos tempo para ouvir as tuas piadas. Queres vir comigo, Sarai?
- Contigo? Mas...
- Queres desposar-me? Viver comigo na tenda dos mar.Tu? Abandonar o luxo do templo, os deuses e o teu poder?
- E enfrentar a má disposição do nosso pai - não conseguiu evitar de acrescentar Haran. - A união do seu filho varão com a filha de um Poderoso amedronta-o.
Abrão inclinou a cabeça, agastado.
- Haran diz a verdade. A princípio, talvez não sejas bem-vinda entre nós.
Haran esboçou uma reverência:
- Mas quando descobrirem a tua beleza, farão como eu. Compreenderão melhor a obstinação de Abrão. E terão ciúmes da sua felicidade.
Sarai mal o ouvia. Num ápice, sentiu-se assolada por todos os pensamentos contraditórios que a tinham apoquentado nos últimos dias. A felicidade, o receio de uma blasfémia, a pura alegria de ouvir o apelo de Abrão, o tormento do segredo que não conseguia revelar, tudo se misturava.
- Abrão...
- Cuidado, vem aí alguém! - soprou Haran.
Um homem avançava com passo vivo pelo pátio, lança numa mão, tocha na outra, capa de cabedal batendo-lhe nas pernas e capacete brilhando-lhe na testa.
- Viu-nos! - resmungou Abrão.
- Escondam-se - murmurou Sarai. - É apenas um guarda. Vou mandá-lo embora.
Mas mal Sarai se aproximou viu luzir as folhas de ouro no capacete. A tocha baixou ligeiramente, iluminando melhor o rosto do oficial:
- Kiddin!
- Ele próprio, Santa Serva. Estou de guarda às portas do giparu desde há três noites. Sabia que o teu olhar sobre o mar.Tu no outro dia não ficaria sem efeito. Como pude acreditar que tinhas mudado? Haverá algum dia da tua vida em que os demónios não se agitem no teu coração?
-Não tenho de ouvir os teus insultos, filho de Ichbi Sum-Usur. Lembra-te que já não és meu irmão. E não tens nada que estar aqui. O riso de Kiddin soou, cheio de soberba.
- E que vais fazer, Santa Serva? Chamar a guarda para te ajudar? Queres mostrar quem introduziste no templo, até no pátio sagrado da Suma Sacerdotisa?
- Acalma a tua cólera, poderoso oficial - disse a voz de Haran, nas costas de Sarai. - Vamo-nos embora. Dentro de um momento, a noite e este templo já não se lembrarão da nossa passagem. É inútil despertar a boa gente que dorme.
Como por magia, um longo cajado apareceu-lhe na mão. De encontro à coxa, Abrão segurava num chicote de pastor com uma longa correia de couro. Aproximou-se tranquilamente de Sarai, desdenhando Kiddin, como se este não existisse.
- Já decidiste, Sarai? » Ela sorriu.
- Já. Só esperava por essas palavras. Acompanhar-te-ei para tão longe quanto quiseres.
- Ah, então era isso! - explodiu Kiddin. - Enquanto os inimigos de Ur se aproximam da cidade, a Santa Serva do Sangue trai Ishtar! Como ousas?
Kiddin apontou-lhes a arma, de olhos exorbitados de raiva.
- Vou massacrá-los aos três. O vosso sangue purificará este pátio que estão a conspurcar...
Ergueu o braço direito, lança apontada para o peito de Abrão. Num pulo, Haran chegou-se perto dele e abateu o seu cajado na haste da lança. Abrão agarrou no punho de Sarai e puxou-a para trás. Kiddin lançou a sua tocha contra o peito de Haran, que aparou o golpe, apoiando-se no cajado.
Com um rugido de alegria, Kiddin girou a sua arma. A pesada haste atingiu as costelas de Haran, obrigando-o a colocar um joelho no solo. Na mesma altura Sarai viu o braço direito de Abrão levantar-se e a correia de couro esticar-se na sombra. Tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. O bronze brilhante da lança rasgou a pele de Haran. A correia do chicote assobiou e estalou. Kiddin levou as mãos à cara. O grito de Haran confundiu-se com o do oficial. A sua túnica estava vermelha e o sangue escorria por entre os dedos de Kiddin.
Abrão precipitou-se para levantar o irmão. A ponta da lança abrira-lhe no peito uma ferida escura e longa como uma mão.
- Não é profundo - gemeu Haran. - Não há-de ser nada. Kiddin estava de joelhos, respiração enrouquecida. Com a mão direita procurava agarrar novamente na lança. Sarai afastou-a com um pontapé. A correia do chicote rasgara o rosto de Kiddin de alto a baixo, arrancando-lhe um olho e a pálpebra. Sarai não sentiu nem satisfação nem compaixão. Numa voz dura disse-lhe:
- É inútil morreres por mim, filho de Ichbi Sum-Usur. Morre antes pelos teus deuses, a tua cidade e a tua linhagem. Há muito que já não faço parte de vocês.
Atrás dela, Abrão rasgava a parte superior da túnica para improvisar um penso na ferida do irmão. Kiddin levantou-se, com a barba avermelhada de sangue, o seu olho válido exorbitado pela cólera. De modo fugaz, Sarai pensou no olho dos touros antes da sua dança. Ergueu uma mão.
- Ouve-me: vou oferecer-te um dom mais importante do que a minha morte ou a de dois mar.Tu. Os Gutis teceram-vos uma armadilha. Não virão de Leste, onde estão colocados os homens de Shu-Sin, mas nas embarcações huhnurs que acostarão amanhã na cidade baixa. Vai prevenir os Poderosos. Poderás exibir orgulhosamente a tua ferida: é o preço pela novidade que lhes levas. Serás um herói. E se vocês forem suficientemente corajosos, salvarão a cidade.
Sem se demorar a ouvir as maldições que Kiddin lhe dirigia, Sarai conduziu Abrão e Haran para a entrada do estreito corredor que contornava o interior do giparu.
- Apressemo-nos. Fizemos barulho suficiente para acordar todo o templo.
A mecha de uma lâmpada irrompeu subitamente da escuridão.
- Sarai'! - sussurrou Sililli.---Que fazes? E quem são...
Calou-se, de boca aberta, ao descobrir Abrão e Haran, com o peito ligado por um pedaço de tecido vermelho.
- Poderoso Ea!
Sarai pousou delicadamente os dedos na boca da serva.
- Vou-me embora, Sililli. Parto com Abrão. Deixo o templo e a cidade. Vou desposar Abrão, o mar.Tu.
Sililli afastou-lhe a mão. A boca tremia-lhe, mas desta vez não proferia nenhum som.
- Depressa - apressou-os Abrão. - Temos de atravessar a porta do sul antes que os guardas nos impeçam.
- E que eu deixe de estar em estado de correr - arquejou Haran.
- Partes, deixas-nos, casas-te...- disse Sililli, numa voz quase infantil. - E eu? Que vai ser de mim? Pensaste nisso? A cólera deles vai desabar sobre mim!
Com um gesto mais terno, Sarai acariciou-lhe a face do rosto.
- Podes vir comigo.
- Mas decide-te depressa - ordenou Abrão.
No entanto, Sililli levou algum tempo para o observar, como se o visse pela primeira vez. Depois, o seu olhar pousou no peito de Haran, onde o sangue escorria agora pelo espesso tecido.
- Viver nas tendas dos mar.Tu! Ó Poderoso Ea, protege-me! - suspirou.
- Sê prudente. Nas tendas dos mar. Tu é muito possível que Ea nada possa por ti - disse Haran, com uma careta.
- Oh, não tenho dúvidas! - retorquiu Sililli. - Mas tu, meu rapaz, farias melhor em poupar a tua respiração e o teu sangue se quiseres fugir.
E, dirigindo-se a Sarai e Abrão, acrescentou:
- Fujam na direcção da pequena porta. Vou passar pelo quarto para pegar nalguma roupa e em ervas para cuidar melhor da ferida dele quando estivermos no exterior do templo.
DEIXARAM UR, escondidos no carregamento de uma barca, cujos remadores Abrão pagou generosamente. Depois de remontarem a corrente do rio durante uma dezena de ús, desembarcaram-nos na margem oposta. Aí esperava-os uma carroça ligeira, com xalmas de junco e vime, atrelada a dois jumentos.
Logo que foi possível, Abrão, que temia os controlos reais, abandonou a estrada principal que seguia na direcção de Nippur. Atrelados, um atrás do outro, os jumentos entraram pelos carreiros dos rebanhos, que bem conheciam. Não descansaram. Abrão e Sarai desciam por vezes da carroça para aliviar o peso. Caminhavam lado a lado, mão na mão, sem dizer palavra.
Sarai' pensou então que os seus esponsais começavam bem. Ainda não se tinham beijado mas, no entanto, não ousava provocar esse beijo. Ele chegaria na hora devida.
Lembrou-se do encontro deles na margem do Eufrates, quando Abrão lhe pegara na mão para a levar para o cimo da duna, onde acendera uma fogueira. Então dissera-lhe, com uma nota de troça na voz: «Não é todos os dias que as filhas dos Poderosos de Ur se perdem por entre os juncos, à beira-rio. Podia levar-te até à tenda do meu pai, mas ele pensaria que lhe traria uma esposa e os meus irmãos ficariam com ciúmes».
Agora era precisamente isso que estava a acontecer: Abrão levava-a para a tenda do seu pai. Amanhã seria seu esposo. A noite interrompida do seu encontro ia finalmente prosseguir.
CHEGARAM AO ACAMPAMENTO A MEIO DO DIA SEGUINTE.
A tribo de Terá tornara-se tão numerosa que o conjunto das tendas fazia pensar numa pequena cidade.
A princípio, prestaram menos atenção a Sarai do que a Haran. As ervas e os cuidados de Sililli tinham limitado a febre, mas não o sofrimento. Contudo, depois de lhe terem desinfectado a ferida, depois de ele ter bebido um vinho com especiarias que o iria fazer dormir, ele designou Sarai, que se mantinha recuada. Com um sorriso pálido, anunciou:
- Esta é a esposa do meu irmão Abrão e regozijem-se com a
sua obstinação. O que nos honra, a nós, pastores-sem-cidade, não é o facto de ela ter nascido no seio dos Poderosos de Ur, mas a sua beleza e a sua coragem. Acreditem-me, ela traz consigo uma promessa de futuro para todos nós.
Sarai inclinou a cabeça ao ouvir o elogio. O olhar de Abrão encheu-se de reconhecimento pelo irmão.
Ela compreendeu melhor o que estava ali em jogo quando este a levou diante de Terá. De perto, parecia mais velho do que o imaginara no pátio de Ichbi Sum-Usur. Tinha uns olhos claros e frios. Os seus lábios finos realçavam a dureza da expressão. Não obstante, apesar das rugas, da cabeleira e da barba esbranquiçadas, emanava um poder diante do qual até Abrão se inclinava.
Observava Sarai sem ternura. Era evidente que a beleza e a coragem da mulher escolhida pelo seu filho não o encantavam de forma alguma. Após um silêncio que arrastou mais do que necessário, declarou:
- O meu filho escolheu-te a ti. Não é costume a filha de um Poderoso misturar o seu sangue ao nosso, mas respeitarei a vontade de Abrão. Entre nós cada um é livre de escolher e é responsável pelos seus erros. Sê bem-vinda.
Sem se esforçar mais para ser amável, regressou à sua tenda. Sarai mordeu os lábios e Abrão disse-lhe baixinho:
- Não fiques zangada com ele. Só gosta daquilo que conhece. Mudará de opinião quando te conhecer melhor.
Abrão enganava-se. Não era a má disposição de Terá que gelara repentinamente a felicidade de Sarai, mas o pensamento sobre aquele sangue que o velho mar.Tu temia ver misturado ao seu, quando, na verdade, o seu ventre não continha a menor gota desse poder de vida.
Agora sentia-se menos capaz que nunca de revelar o seu segredo. Quem sabe se o amor de Abrão não teria o poder de apagar a aridez que trazia nela?
Abrão levou-a até à tenda das mulheres. As crianças acorreram, gritando e rindo. As jovens perscrutaram-na sem esconder a sua curiosidade e, algumas, com um ciúme evidente. Mas as mais velhas felicitaram-na francamente. Uma delas, minúscula, de pele fina e lisa apesar da idade, levou Sarai para a grande tenda das mães. As outras seguiram-na.
Pela primeira vez, Sarai viu a luz quente que as telas das tendas propalavam. Descobriu o odor suave das peles e dos tapetes que revestiam o solo, os cofres de madeira pintados, as jóias que pendiam das estacas.
A velha mulher abriu um cofre. Retirou um tecido de linho fino, caseado, bordado a cores, com fios prateados. Aproximando-se de Sarai, estendeu-lhe o tecido, sorrindo.
- Bem-vinda, Sarai, futura esposa de Abrão. Chamo-me Tsilla. A mãe de Abrão já morreu há muito tempo e, quando necessário, fui eu que a substituí. Entre nós, esposo e esposa unem-se com mais simplicidade que no lugar de onde vens. Comemos borrego diante da tenda do esposo, bebemos cerveja e vinho, ouvindo a flauta e, às vezes, algumas canções de bom augúrio. A esposa traz uma túnica simples e o grande xaile que a cobre completamente. Este é velho e precioso: já serviu para mais de cem mulheres. Ouviu os seus suspiros e temores, a sua felicidade e a sua decepção. Nós, as mulheres, chamamos-lhe «o xaile da vida».
Calou-se. À sua volta as mulheres observavam Sarai com uma severidade amistosa que lhe recordava os rostos das jovens servas quando a preparavam para enfrentar o touro. Sorriu, com os olhos brilhando de felicidade. Por sua vez, Tsilla inclinou a cabeça, sorrindo também.
- Muito bem - aprovou. - Deves trazer o xaile da vida com esse olhar! Quando estiveres sozinha na tenda, na companhia do teu esposo, só deverás fazer uma coisa antes de ele te erguer o xaile. Terás de girar em seu torno, à distância de um braço, três vezes num sentido e, depois, outras três em sentido contrário. Quanto ao resto, Abrão ensinar-te-á...
Ouviu-se um risinho, que aumentou de volume, passando por todas as bocas, até à de Sarai.
TUDO DECORREU CONFORME Tsilla LHE EXPLICARA.
Sarai entrou na tenda coberta com o xaile da vida. O coração batia-lhe até à boca. Através do tecido, à luz das lâmpadas, via o rosto cheio de desejo de Abrão.
Com as coxas e o ventre inchados pelo seu próprio desejo girou em torno dele. Três vezes num sentido, e outras três em sentido contrário. Depois, parou. Ouvia o sopro de Abrão, apesar dos risos e da música da flauta no exterior.
Ele aproximou-se e tratou-a pelo seu nome:
- Sarai, minha bem-amada.
Aproximou-se ainda mais e, através do xaile, beijou-a nos lábios. Sarai começou a tremer.
Abrão pegou no bordo do xaile e levantou-o, sem que ela fizesse o menor gesto. Olharam-se, enquanto ele levava a mão ao rosto de Sarai, deslizando os dedos pelas suas faces, pela sua nuca. Ela parou de tremer. Sorriu.
Retirou-lhe a túnica, e ela ficou nua. Ele recuou como se receasse tocá-la. Soltou um leve gemido. A sua túnica caiu abruptamente. Ficou também nu, de sexo erecto.
Sarai ergueu a mão para pousar os dedos na pele dele, tão fina na região onde começava o pescoço. Aí o sangue latejava com tanta força que os seus dedos estremeceram. Abrão arquejava, arrepiando-se sob o efeito da carícia. Sarai sentiu o sexo dele dando-lhe pancadinhas no ventre. Então, dobrou os joelhos. Abrão estendeu-a sobre os tapetes, de lábios nos dela, partilhando o mesmo sopro, o mesmo gemido de felicidade. E o beijo que a protegeria, finalmente, até à morte.
Harân
As lágrimas de Sarai*
LADEANDO o EuFRATES, a tribo de Terá remontou até à sua fonte, seguindo a estrada em que se praticava o comércio com os bárbaros do Norte. Avançavam lentamente para que os rebanhos pudessem pastar com regularidade, sem se cansarem. Todas as noites a felicidade de Sarai e de Abrão era tão brilhante como a luz das estrelas. Sarai submeteu-se à simplicidade e às obrigações da vida dos mar. Tu com uma facilidade que espantou até o próprio Terá. Em menos de uma estação, aquela que fora a filha de um Poderoso e a Santa Serva de Ishtar, sempre rodeada de escravos e servos prontos a executar os seus menores caprichos, comendo e bebendo o que outras mãos lhe preparavam, abandonou as togas com bainhas de ouro, as jóias sumptuosas, as maquilhagens e os penteados rebuscados sem mostrar a menor pena. Com a mesma naturalidade que as mulheres nascidas nas tendas, vestiu uma túnica modesta, colocou uma fita entrançada de lã vermelha e azul nos cabelos e dormiu na tenda. Com a mesma facilidade, aprendeu a esmagar os cereais, a cozer a carne ou a preparar a cerveja. A única coisa que conservou do seu antigo modo de vida foi a destreza, adquirida junto das suas tias, a cardar e fiar finamente a lã para tingir, para grande admiração das mulheres do acampamento.
Pouco tempo depois, deixaram os reinos de Akkad e da Suméria, com as suas cidades ricas e poderosas, mas tão desdenhosas para com os mar.Tu. Ao aproximarem-se das montanhas a norte, cruzaram com mercadores de Ur. Sarai tomou conhecimento da morte de Kiddin, massacrado pelos Gutis quando defendia as muralhas da cidade. Pensou no desgosto do seu pai, Ichbi Sum-Usur, que sonhava com a glória do filho. Pensou nas ruas de Ur, na casa da sua infância, talvez invadida pelos bárbaros. Mas a sua tristeza não durou. A sua infância já ia longe e o olhar de Abrão protegia-a de tudo!
Descobriu a neve, o frio, os dias inteiros passados sob as peles de carneiro, onde esquecia o gelo exterior copulando com Abrão até transpirar de suor. O seu esposo nunca se espantava por não ver o seu sémen engravidar a esposa. Nunca se mostrava impaciente para ter um menino ou uma menina. Nada conseguia diminuir a felicidade que sentiam todas as manhãs ao acordarem ao lado um do outro.
A infelicidade chegou repentinamente, de um só golpe, numa tarde cinzenta e glacial. Para encurtarem a marcha, e apesar dos avisos do pai, Haran quis atravessar um rio de vau incerto. Uma carroça transportava o seu filho Lot e a sua esposa Havila, bem como pesados cestos de grãos. O frio era tão intenso que o gelo cobria as pedras imersas. As rodas deslizaram numa rocha, caindo num buraco. Por muito sólida que fosse a carroça, não pôde resistir à força da corrente e começou a deslocar-se. As mulas aterradas lutaram em vão contra o peso que lhes esmagava os rins. Lot e a sua mãe berraram de terror enquanto Haran e Abrão se lançavam à água.
Com o rosto já azulado de frio, Abrão conseguiu agarrar na mão de Lot. Os homens fizeram uma cadeia para os içar para fora de água. Mas a ferida de Haran, infligida por Kiddin aquando da luta travada no grande templo, abriu-se novamente devido a uma lasca da roda quebrada. Não conseguindo impedir o afogamento de Havila sob a carroça virada, Haran deixou-se levar pela corrente furiosa, perdendo todo o sangue.
Foram precisos dois dias de marcha ao longo do rio para encontrar o seu corpo. Na tarde do enterro de Haran e Havila, quando os cânticos e os choros pararam finalmente, Terá e Abrão pediram a Sarai para se ocupar de Lot como se fosse seu filho.
Estranhamente, foi depois deste drama que Tsilla começou a inquietar-se por não ver o ventre de Sarai engrossar. Também se espantavam por nunca a verem lavar os lençóis manchados pelas regras. Para afastar as suspeitas, Sililli manchou alguns com o sangue dos animais que conseguia subtrair aquando do seu abate. Às escondidas, preparou montes de oferendas para os seus deuses. Trouxe ervas e pediu a Sarai para girar em redor das árvores nas noites de lua cheia, besuntar as coxas com pólen, comer carne de serpente ou dormir com uma bolsa com esperma de touro encostada ao seu sexo. Não havia lua cheia em que a boa Sililli não inventasse uma nova esperança. Mas Sarai não tardou a recusar-se a praticar essas magias inúteis, quer por repugnância, quer pelo medo de ser descoberta por Tsilla ou por uma das mulheres do acampamento.
No entanto, se o desejo de Abrão não diminuía, se continuavam a dormir no mesmo leito com mais frequência que muitos casais, cada dia que passava, Sarai sentia, como todos, a que ponto a dureza aumentava no coração do esposo.
Quando chegaram a Harân, Terá decidiu judiciosamente parar a marcha. Aí, os rebanhos podiam pastar com fartura e havia filas de carroças que atravessavam permanentemente as cidades, transportando madeira do Norte para as poderosas cidades do reino de Ur. Tudo isso enriquecia profusamente os comerciantes de Harân, que não tardaram a apreciar as estatuetas de Terá. Com os seus dedos ágeis, ele moldava mil rostos e corpos de ídolos consoante os caprichos dos clientes. Não havia estátua nem deus que se assemelhassem.
As encomendas afluíam de tal maneira que decidiram que Abrão trabalharia ao lado do pai. Mas, na lua seguinte, Abrão recusou colocar oferendas diante dos deuses de Terá ou no altar de qualquer outro deus, o que provocou grande altercação. A partir desse dia o azedume entre ambos não parou de crescer. Terá evitava falar com a nora. A disposição de toda a tribo alterou-se. Sarai surpreendia cada vez mais olhares pesados e insistentes. Baixava as pálpebras, pois também pensava que a má disposição de Abrão se devia ao seu ventre liso.
Presentemente chegava por vezes a soerguer-se em plena noite, escutando a respiração dele a seu lado. Que ocorreria se o acordasse e lhe contasse a verdade? Seria ele capaz de compreender o terror que ela experimentara na infância? Compreenderia a que ponto já o amava nessa altura a ponto de ter recorrido aos sortilégios da kas-saptu? Poderiam as palavras substituir o vazio do seu ventre?
Tinha tantas dúvidas que se contentava em acariciar-lhe a nuca, deitando-se novamente perto dele, olhos bem abertos e o silêncio gelando-lhe o peito.
A BOLA DE LÃ comprimida numa tela de linho elevou-se pelos ares. As crianças berraram de alegria. Quando caiu no solo, precipitaram-se para ela, no meio de grande confusão. Como sempre acontecia, Lot foi o primeiro a sair da barafunda de pernas e braços, com a bola nas mãos. Sarai, que os vigiava, sobrolho franzido, descontraiu-se. Retomou o seu trabalho, estendendo as peças novamente tecidas e lavadas, nos rochedos aquecidos pelo sol.
As crianças correram ainda algum tempo, gritando pelos campos de erva espessa que ladeavam o acampamento. Depois, o jogo levou-as mais abaixo, para perto do rio, do ateliê e do forno de Terá. Desapareceram atrás do muro de tijolos de onde o fumo se escapava constantemente. Sarai pensou em chamá-los de volta, mas já era muito tarde para que a pudessem ouvir e ela não tinha nenhuma vontade de correr atrás deles.
Lançou um olhar às mulheres que se atarefavam à sua volta, lavando novas tecelagens ou comprimindo-as com pedras para as enxugar e amaciar. Uma das mulheres sorriu-lhe e agitou a mão na direcção do rio:
- Deixa-os lá, Sarai. Se incomodarem Terá, ele saberá como afastá-los!
- Ele vai é pôr-lhes a bola no forno e nós teremos de fabricar outra! - desferiu outra mulher.
Reataram o trabalho, batendo nas telas e nos tapetes ao ritmo das canções que entoavam. De repente, os gritos das crianças tornaram-se mais estridentes, logo seguidos por um silêncio suspeito. Todas as mulheres ergueram a cabeça. Massajando os rins, uma delas disse:
- Andaram outra vez à pancada!
Lot surgiu no canto do ateliê de Terá, sozinho. Segurando o
rosto entre as mãos, vacilando como um bêbedo, começou a subir a encosta. Sarai levantou a parte inferior da túnica e correu ao seu encontro. A meio caminho, mesmo antes de se lhe juntar, Lot caiu de joelhos na erva. O sangue perlava por entre os seus dedos e escorria-lhe até ao pescoço. Sarai afastou-lhe as mãos: apresentava um corte feio da têmpora até à massa densa dos cabelos. Pó de tijolo incrustara-se na ferida aberta. Na verdade tratava-se de uma ferida pouco profunda, sem gravidade, mas que sangrava abundantemente.
- Quase partiste a cabeça! - exclamou Sarai. - Dói-te muito?
- Não muito - respondeu Lot, numa voz abafada. Esforçava-se por não chorar, mas tremia como uma folha.
- Empurraram-me para cima de um monte de cerâmicas quebradas, atrás do ateliê do avô.
Agora o sangue inundava-lhe a face e deslizava-lhe túnica abaixo. Sarai retirou lestamente o seu cinto para lhe cobrir a cabeça. Lá em cima uma mulher perguntou:
- Precisas de ajuda?
- Não - gritou-lhe Sarai. - Não é muito grave. Só um corte. Sililli deve ter ervas para tratar da ferida.
Com a parte inferior da túnica enxugava o rosto de Lot o melhor que podia. Ele não conseguiu reter as lágrimas sob as suas carícias, mas a sua boca tremia de orgulho e cólera.
- Viraram-se todos contra mim! Nem um só tomou a minha defesa!
Sarai deu-lhe um beijo e murmurou-lhe:
- É por seres o mais forte. Se não se juntassem todos contra ti, nunca te ganhariam.
Lot observou-a fungando, de olhar sombrio e sério. O sangue tingia cada vez mais de vermelho a ligadura improvisada e dava-lhe o aspecto de um guerreiro de regresso do combate.
- Sinto-me orgulhosa de ti - afirmou Sarai.
Com uma careta, Lot esboçou um sorriso. Deslizou as mãos pela túnica que ainda continuava levantada e, com todas as suas forças, encostou-se às coxas nuas de Sarai.
- Vamos para a tenda - disse-lhe esta, afastando-se com doçura.
SILILLI, É CLARO, desatou aos berros ao vê-los chegar. Contudo, um pouco mais tarde, depois de lavado e com roupa nova, Lot arvorava uma grande ligadura retendo um emplastro de argila e erva esmagadas.
- Não te metas outra vez em pancadarias! - ordenou Sililli, apontando-lhe um dedo autoritário para o peito. - O penso tem de ficar no mesmo lugar até amanhã, senão deixar-te-ei sangrar como o pequeno leitão que és!
Lot encolheu os ombros e retorquiu com desplante:
- Não é grave. Sarai ocupar-se-á de mim.
Abraçando Sarai, enquanto Sililli se fingia zangada, acrescentou:
- Gosto de ser tratado por ti. És tão meiga para comigo quanto para o tio Abrão.
Sarai riu suavemente, comovida, e encheu o pescoço do rapaz de pequenos beijos antes de o pôr a andar.
- Ouçam-me só este miúdo guloso! - disse Sililli dando-lhe uma palmadinha no rabo.
Lot deu pulinhos até à entrada da tenda. Aí, em plena luz do dia, voltou-se para dizer:
- É quando tratas de mim que sei que és mesmo como a minha mãe.
De olhos subitamente embaciados, Sarai fez-lhe sinal para que sumisse dali para fora. Começou a arrumar nervosamente os saquinhos de ervas e os jarros com emplastros. Sentia o olhar de Sililli nas suas costas. Enquanto juntava os pedaços de tecido ensanguentados pela ferida de Lot, Sililli decidiu falar-lhe:
- Tsilla voltou a fazer-me a mesma pergunta esta manhã: «Continua a não haver nada no ventre de Sarai?» Respondi-lhe que não, como de costume. Perguntou-me se tu e Abrão dormiam muitas vezes na mesma tenda. Disse-lhe: «Demasiadas vezes, para o meu gosto. Não passam três noites sem me despertarem com o barulho do seu prazer!» Isso fê-la rir, bem como a todas as comadres que andam sempre à escuta por todo o lado.
Sarai inclinou a cabeça, enxugando as faces com a palma da mão. Sililli aproximou-se, retirou-lhe os tecidos ensanguentados das mãos e acrescentou, numa voz mais baixa:
- Tsilla riu-se para que as outras também se rissem. Porque
gosta de ti. Agradaste-lhe desde o primeiro dia, quando ela te estendeu o véu de esposa. Riu porque gosta tanto de Abrão como eu gosto de ti. Mas não se faz ilusões. Compreendeu. Sabe.
De olhos novamente secos, Sarai dominou a tremura da voz:
- Como podes ter a certeza? Ela disse-te?
- Oh, isso não! Não vale a pena. Velhas como eu e Tsilla não precisam de se contar tudo, compreendemo-nos. Ela faz a mesma pergunta todos os meses desde que chegámos a Harân. Mesmo para o sangue nos lençóis, tenho a certeza de que ela sabe.
Sarai afastou-se.
- Tenho de voltar para junto das outras, ainda não acabei o meu trabalho.
Sililli reteve-a pelo braço, disposta a não lhe poupar nada.
- Tsilla sabe, mas é boa e meiga. Conhece todas as provas da vida. As outras, aquelas com quem estás a bater as tecelagens, não possuem essa clemência. Leio-o nos seus olhos como um escriba lê numa tabuinha de argila. Elas pensam: «Sarai é bela, a mais bela de nós todas». Não há homem, marido ou filho que não sonhe ter uma filha de Ur na cama ou conhecer a felicidade de Abrão quando ele te acaricia. Sim, o ciúme brilha nos seus olhos e envenena-lhes o peito. Mas o tempo passa. O ventre da filha de Ur, aquela que Abrão escolheu como esposa contra o parecer do pai, aquela que provocou o desespero de todas as virgens da tribo, esse ventre continua liso. E vejo que voltam a sorrir. Também começam a compreender que Sarai não terá filhos. A beleza, isso sim; mas, também, a esterilidade da areia do deserto.
- Sei tudo isso - enfureceu-se Sarai. - Guarda os teus gemidos para ti. Não preciso de ninguém para ver e ouvir.
- Nesse caso - prosseguiu Sililli, imperturbável - talvez te tenhas apercebido da mudança de carácter de Abrão... Poderoso Ea, o teu marido tornou-se tão sombrio e fechado como uma cave! Já não brinca com Lot que, no entanto, adora como se fosse o seu verdadeiro pai. Está com um feitio mais embirrento que a pior das mulas. Não há lua em que não se dispute com alguém. A começar pelo pai, Terá. Desde o início da Primavera, ambos se exasperam por um nada.
Sarai afastou a mão de Sililli e avançou até à luz do sol, no exterior da tenda. Sililli seguiu-a, com os pedaços de tecido sempre apertados contra o seu robusto peito.
- Sarai, escuta-me. Sabes que só vivo para te ver feliz. Ainda preciso de o provar?
Sarai não se mexeu. O acampamento animava-se, a hora da refeição chegava. Pensou nos pratos cheios de carne e ervas que ela própria cozera para Abrão, sem a ajuda de nenhuma serva. Uma receita que inventara e com que desejava surpreendê-lo. Em vez de escutar as lamúrias de Sililli que lhe despedaçavam o coração, faria melhor em desempenhar o seu papel de esposa: ir buscar os pães, juntar-se a Abrão e dar-lhe de comer. Mas Sililli já não conseguia calar-se.
- Sarai, minha filha, eis a verdade: todos temem pela tribo. Todos pensam que Abrão não escolheu uma boa esposa. Todos pensam: «Haran, filho de Terá, morreu, e dentro em pouco Abrão tornar-se-á o chefe da tribo». Mas o que representa um chefe cuja esposa não lhe dá filhos e filhas? Então ocorrerá a disputa pela chefia da família. Então, voltar-se-ão todos contra ti.
Sarai' permaneceu ainda um momento silenciosa e, depois, inclinou a cabeça:
- Vou ver Abrão e contar-lhe tudo. Estou-me nas tintas para o que os outros pensam. O que não está bem é o facto de eu ainda não ter tido coragem para lhe confessar a verdade.
- Pensa nas consequências... Ele repudiar-te-á. Escolherá uma concubina. Ficarás reduzida a nada. Mesmo se escolher uma serva, quando ela tiver o seu sémen e o seu filho no ventre, a mãe será ela. Tu não representarás mais nada. É assim que as coisas se passam. O melhor seria que te desembaraçasses daquilo que fizeste. Posso encontrar ervas, podemos tentar fazer com que o teu sangue regresse.
- Quantos tipos de ervas já me fizeste ingerir? E que outros efeitos provocaram, a não ser o de me fazerem correr para trás dos arbustos?
- Ainda podemos tentar. Ouvi falar de uma poderosa kassap-tu que mora à entrada da cidade...
- Não. Não quero mais magia. E enganas-te. Abrão não é igual aos outros. Ama a verdade. Dir-lhe-ei o motivo da aridez do meu ventre. Por amor por ele, desde que cruzámos o nosso primeiro olhar. Ele compreenderá.
- Seria a primeira vez que um homem compreenderia a dor de uma mulher! Que Inanna, a nossa Poderosa Dama da Lua, te possa ouvir.
DE CORAÇÃO PESADO, Sarai foi encher um cesto com os seus pães, e pegou num cantil de água fresca e noutro com cerveja. Acrescentou ainda uvas e pêssegos e cobriu tudo com um tecido fino que confeccionara com as suas próprias mãos. Desde que vivia junto dos mar.Tu, era um dos gestos que aprendera a apreciar. Contudo, naquele momento o simples facto de pôr o cesto debaixo do braço apertava-lhe a garganta.
Pensando nos olhares pousados nela, endireitou-se, deixou o acampamento com um passo seguro, respondendo aos sorrisos e aos apelos como era seu costume.
Ao longe viu um grupo de crianças reunidas à volta de Lot. Apesar do seu desalento, ocorreu-lhe um pensamento terno e trocista. Não havia dúvida que Lot conseguira impor o respeito aos outros rapazes. Também não havia dúvida que ela sentia pelo sobrinho de Abrão a ternura e o orgulho que uma mãe sente pelo filho bem-amado.
Desceu na direcção do rio até ao ateliê de Terá. Desde que tinham chegado a Harân, era aí que Abrão trabalhava com o pai. O fogo rugia no forno cilíndrico duas vezes mais alto que um homem. Os ajudantes de Terá alimentavam-no com grandes achas através de uma lucarna onde se viam as chamas dançar. Apesar de trazerem apenas uma tanga, o calor era tal que o suor lhes escorria pelos corpos.
Sarai hesitou em avançar: Terá não gostava nada que as mulheres entrassem no alpendre onde conservava as estátuas dos deuses para as polir e pintar, antes de as levar aos clientes. Chamou um dos ajudantes e perguntou-lhe por Abrão. Ele disse-lhe que Abrão não estava ali. Deixara o ateliê de manhã cedo e ninguém mais voltara a vê-lo.
Sarai pensou logo numa nova disputa com Terá.
- Sabes para onde foi?
O ajudante foi perguntar aos colegas. Eles designaram um carreiro que atravessava o rio e subia pela encosta da outra margem, até um elevado planalto onde os rebanhos pastavam. Agradeceu-lhes e, sem hesitar, seguiu a direcção indicada.
Atravessou o rio onde tinham lançado troncos de árvore destinados a servir de ponte, com a certeza de que o olhar de Terá a seguia desde a porta do alpendre. Apressou o passo, ansiosa por se juntar ao esposo.
Enquanto subia o carreiro que levava ao planalto, procurou formular as frases que devia pronunciar diante de Abrão. Já era sua esposa há quase vinte luas. Há vinte luas que fugira do grande templo de Ur. Luas de felicidades e infelicidades. Contudo, nunca encontrara verdadeiramente a coragem para lhe confessar a verdade. Agora devia fazê-lo. Já não podia recuar.
CAMINHAVA DEPRESSA e chegou ao alto da encosta arquejando, com o coração a bater com tanta força que os ouvidos lhe zuniam. Tão longe quanto a sua vista enxergava, o planalto estava deserto. Nenhum rebanho. Nenhum homem.
Avançou até um grande sicómoro que imperava, solitário, à beira do planalto. Projectava uma sombra ampla e fresca. Abrão deslocava-se frequentemente ali para descansar e pensar, às vezes até para dormir, quando as noites eram demasiado quentes.
Mas não havia ninguém encostado ao tronco estriado, mais velho que muitas gerações humanas. Não havia sinal de Abrão em lado nenhum.
Caminhou até à sombra do sicómoro, pousou o cesto e perscrutou mais uma vez o planalto. A brisa vergava a erva. Muito longe, a norte e a leste, no azulado fundo celeste, os planaltos com neve pareciam tão transparentes como pétalas. Dali tudo parecia imenso e infinito.
Dobrou os joelhos e sentou-se, ombros e cabeça encostados à casca rugosa. De repente, sentiu-se terrivelmente cansada. Tão desamparada como uma criança abandonada. Queria aconchegar-se nos poderosos braços de Abrão, no calor da sua voz e na doçura dos seus lábios, para lhe dizer o que era tão importante!
Mas Abrão não estava ali.
Nesse momento a ausência dele pareceu-lhe absoluta. Como se, onde quer que ele estivesse, se encontrasse imensamente longe dela.
As lágrimas que retivera tanto tempo brotaram-lhe dos olhos como uma fonte que transborda. Corriam-lhe pelas faces, deslizavam-lhe por entre os lábios, inundavam-lhe o pescoço. Como ninguém a podia ver, Sarai' chorou tanto quanto o seu corpo desejava.
Depois, quando os olhos ficaram novamente enxutos e o seu coração acalmou, a confiança em Abrão regressou-lhe. Mais cedo ou mais tarde ele acabaria por aparecer. Podia esperá-lo. Descansar. Recobrar forças para que as suas palavras fossem fortes e justas.
Involuntariamente, lembrou-se de uma prece muito velha dirigida a Inanna:
Inanna, Santa Lua, Santa Mãe,
Rainha do céu,
Abre-me o coração,
Ouve o meu ventre,
Escuta as minhas palavras,
Acolhe os meus pensamentos como dádivas.
O deus de Abrão
GRITOS E RUÍDOS ELEVAVAM-SE da aldeia das tendas. O forno de Terá, semelhante a um incensório que embalsamasse terra até perder de vista, difundia através do seu fumo um odor onde se misturava o cheiro a carvalhos, cedros, sicómoros e resinas de outras árvores. Ao longo do ateliê, o caminho que saía do acampamento serpenteava por entre as colinas opulentas e juntava-se à grande estrada que ia até Harân. À beira do planalto, Sarai podia adivinhar as suas ricas casas. As sombras estendiam-se, cada vez mais longas. Abrão continuava sem aparecer. Entorpecida pela frescura da sombra e pela paz imensa do planalto, Sarai quase adormecera.
Sentiu fome e sede; comeu um dos pães que prepara para Abrão e bebeu do cantil que conservara a água fresca.
Esperou ainda, lutando contra a inquietude. Era raro que Abrão se ausentasse tanto tempo sem lhe dizer nada, a ela ou a Lot.
No acampamento, já deviam ter dado pela sua ausência.
E se ele não regressasse antes da noite? E se ela tivesse de voltar sozinha para a tenda?
De repente, sentiu qualquer coisa. A presença dele.
Talvez até o ruído dos seus passos.
Pôs-se de pé e perscrutou o planalto de uma ponta à outra.
E então viu-o. Espantou-se consigo mesma: como pudera pressentir a sua chegada?
Ainda estava tão longe! Era apenas uma silhueta, além, que avançava pelas altas ervas!
Mas reconhecia-o. Não precisava de lhe ver o rosto para saber que era ele.
Caminhava depressa, com grandes passos. Uma lufada de alegria varreu as suas dúvidas e temores. Teve vontade de o chamar, mas levantou apenas os braços para lhe fazer um sinal.
Abrão respondeu. Ela desatou a correr.
Quando chegaram perto um do outro, ela apercebeu-se de que ele ria. Tinha um rosto radiante, iluminado pela alegria. Um rosto como não lhe via há muitas luas!
Ele abriu os braços e parou para a acolher.
- Sarai, minha bem-amada!
Abraçaram-se como amantes separados por uma longa viagem. Junto à cara, sob os cabelos, Sarai ainda ouvia o riso de Abrão. Depois, ouviu as suas palavras rápidas e arquejantes:
- Ele falou-me! Ele chamou-me: «Abrão! Abrão!» E eu respondi: «Aqui estou!». E, depois, caiu o silêncio. Então caminhei e caminhei, para além do planalto. Julgava que já não O ouviria. Mas Ele chamou-me outra vez: «Abrão!» E eu respondi-Lhe: «Sim, estou aqui!»
E ria novamente.
Sarai afastou-se, sobrolho franzido pela incompreensão, uma pergunta suspensa nos lábios. Então Abrão colocou-lhe o rosto entre as suas mãos. Um gesto idêntico ao que tivera da primeira vez, em Ur, à beira-rio, na noite em que se encontraram. Desta vez, pousou os lábios nos dela. Um longo beijo, pleno de ardor, poder e desejo. Um beijo de pura felicidade.
Quando se separaram, Sarai perguntou, rindo:
- Mas quem? Quem te chamou? De quem falas?
- D' Ele!
A mão de Abrão ergueu-se, designou o horizonte, as montanhas e os vales. Tanto a terra como o céu.
- Ele?--insistiu Sarai sem compreender.
- Ele, o Deus único! O meu Deus!
Sarai teria gostado de lhe fazer mais perguntas. Quem lhe falara, ao certo? A que deus se assemelhava o deus único? E como se chamava? Mas as mãos de Abrão tremiam. Todo ele tremia, ele, o homem mais robusto da tribo de Terá! Então Sarai apertou os dedos à volta dos dele.
- Ele disse-me: «Vai! Vai, abandona esta terra...» Vamos partir, Sarai. Amanhã mesmo.
- Partir? Para onde? Abrão...
- Não, agora não! Farás as perguntas mais tarde. Vem, tenho de falar ao meu pai. Tenho de falar a todos.
De mãos dadas, levou Sarai para o carreiro que levava ao rio e ao ateliê de Terá.
Sarai compreendeu que não podia revelar a sua verdade a Abrão. Hoje, não. E amanhã também não. Ele não precisava ouvi-la. Todos se enganavam: Terá, Tsilla, Sililli, e ela própria. A cólera e a má disposição de Abrão nos últimos tempos não tinham nada a ver com o seu ventre liso.
ABRÃO POSTOU-SE DIANTE DO ATELIÊ. Ao vê-lo, todos sabiam que tinha algo de importante a dizer. Um ajudante foi buscar Terá, que oferecia aos antepassados as suas oferendas da tarde. Outros homens e mulheres desceram com ele até à beira-rio. As crianças pararam de brincar e, por sua vez, aproximaram-se.
De ligadura ainda na testa, Lot veio pegar na mão de Sarai, um pouco recuada. Ergueu os olhos para ela. Ela leu a inquietude que discernia em todos os rostos. Todos pensavam que Abrão decidira enfrentar o pai para tomar a chefia da tribo. Por isso ficaram estupefactos quando ele começou a falar.
- Pai, hoje o Deus Altíssimo chamou-me. Eu estava aqui, convosco, preparando o forno, quando senti como que um grito ecoando nos ares. Mas com o ruído que fazíamos a partir madeira, não o ouvi. Subi ao planalto. Caminhei. E, de repente, ouvi: «Abrão!» Chamavam-me. O som do meu nome vinha de todos os lados, à minha volta, proferido por uma voz poderosa que eu não conhecia. «Abrão!» Ouvi outra vez o meu nome. Exclamei: «Estou aqui! Sou eu, Abrão.» Não houve resposta. Então, caminhei. Desci para o vale que leva a Harân pelo norte e, de repente, a voz estava em todo o lado. No ar, nas nuvens, na erva e nas árvores, até nas profundezas da terra. Na pele do meu rosto. E clamava o meu nome: «Abrão!» Soube quem falava. Gritei novamente: «Estou aqui! Sou eu, Abrão!» A voz perguntou: «Sabes quem sou?» Respondi: «Penso que sim.» Ele disse: «Abrão, deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei, engrandecerei o teu nome e serás uma fonte de bênçãos. Abençoarei aqueles que te abençoarem, e amaldiçoarei aqueles que te amaldiçoarem. E todas as famílias da Terra serão em ti abençoadas.» Essas foram as Suas palavras, pai. Voltei para repeti-las diante de ti, pois quero que saibas porque te vou deixar.
Abrão calou-se. O silêncio adensou-se. Nos rostos, a inquietação substituiu a surpresa. Então o filho queria afastar-se do pai, renegando os seus antepassados? Todos espreitavam a reacção de Terá. O velho homem parecia cansado, apesar da cólera lhe brilhar entre as pálpebras. Afagou a espessura da barba e perguntou:
- Disseste: «Essas foram as Suas palavras». De quem falas, filho?
- Do Deus único, Criador do Céu e da Terra, que é o deus de Abrão.
- Como se chama?
Abrão não conseguiu reter um riso simples, sinceramente divertido. Abanou a cabeça.
- Não disse o Seu nome, pai.
- Porquê?
- Não precisa de nome para se dirigir a mim e para que eu O reconheça. Não tem nada a ver com esses deuses cujos rostos ridículos moldamos para os vender aos Poderosos de uma cidade e aos comerciantes de outra.
Um murmúrio de desaprovação passou por todas as bocas. Terá ergueu uma mão.
- O teu deus não tem rosto?
- Nem rosto, nem corpo.
- Então como o vês?
- Não O vejo. Nenhum ser humano, nenhum animal que viva nesta terra pode vê-Lo. Não brilha, não tem toga dourada, nem diadema. Não tem garras, asas, focinho de leão ou de touro. Não tem a carne de um homem nem as formas de uma mulher. Não tem corpo. Não O vemos.
- Como sabes isso tudo se não te encontras com ele, se não o vês?
- Ele falou-me.
- E como te pode falar, se não tem rosto nem boca?
- Porque não precisa de nenhum rosto para falar. Porque é Ele.
Risos de troça rebentaram atrás de Abrão. Lot chegou-se ainda mais a Sarai. As mulheres já não hesitavam em aproximar-se e escutar. Por sua vez, Terá riu. Numa voz mais forte, desferiu:
- Eis o que nos acontece: hoje, o meu filho Abrão viu o seu deus, mas ele não tem nem carne nem corpo! É invisível!
- Assim é o Deus único que está na origem de tudo o que vive, de tudo o que morre e de tudo o que é eterno - proferiu, por sua vez, Abrão, sem levar em consideração a troça.
- Ouviste as palavras de um sonho, ou então um demónio divertiu-se contigo - declarou um velho homem que avançara até ao lado de Terá.
- Os demónios não existem - retorquiu pacientemente Abrão. - Existe o bem e o mal, o justo e o injusto. Somos nós que fazemos o bem e o mal. Somos nós, eu e tu, os homens, que nos revelamos justos ou injustos.
Desta vez havia cólera nos protestos. Todos exclamaram ao mesmo tempo:
- Um deus que não se vê não existe!
- Um deus que não brilha é impotente!
- De que serve um deus se não impede o mal ou a injustiça?
- E se não nos dá a chuva e não nos protege dos relâmpagos?
- Quem faz germinar a cevada?
- Quem causa a nossa morte? Quem nos faz adoecer?
- Como fariam as mulheres para parir, sem Nintu?
- Estás a disparatar, Abrão. Insultas os teus antepassados.
- E os nossos deuses!
- Eles ouvem-te e eu também os oiço. Sinto que já rugem de cólera.
- Vão vingar-se sobre nós, pelas palavras que proferiste.
- Que nos perdoem! Que nos perdoem por estarmos aqui a ouvir-te.
- É toda a tribo do teu pai que pões em perigo, Abrão.
- Terá, pede ao teu filho para se purificar!
- Condena o teu filho, Terá, ou a desgraça abater-se-á sobre nós...
Abrão berrou, estendendo os braços.
- Ouçam-me!
Sarai julgou que ele também se deixara invadir pela cólera. Mas viu-lhe os lábios, os olhos. Soube que ele permanecia calmo e seguro de si. Avançou e, mais do que o seu berro, foram a calma e a dureza do seu rosto que restabeleceram o silêncio.
- Querem uma prova da existência do Deus único? Uma prova de que Ele me falou e chamou pelo meu nome? Eu sou essa prova, eu, Abrão, aquele que Ele hoje chamou. Amanhã de manhã, tal como Ele me pediu, caminharei para Oeste com a minha esposa Sarai, com Lot, filho do meu irmão Haran, com o meu rebanho e os meus servos. Rumo ao país que Ele me indicar.
O silêncio voltou a cair, como se cada um procurasse desvendar o enigma destas palavras. Depois, ouviram-se risos de troça, aqui e além. Uma mulher exclamou:
- Eis uma bela prova! O homem que nem sequer é pai vai-se embora. Que grande bem lhe faça!
Sarai viu os lábios de Abrão comprimirem-se. Sentiu a mão de Lot na sua, estremecendo e escaldando. Abrão avançou mais um pouco. Recuaram diante dele, procurando manter-se a boa distância.
- Nesse caso, vou fornecer-lhes outra prova! - rugiu.
Sob os olhares estupefactos, dirigiu-se a toda a pressa para o ateliê de Terá e voltou com os braços carregados com duas grandes estátuas, perfeitamente acabadas, pintadas e vestidas. Sarai compreendeu imediatamente o que ele ia fazer. O frio do medo deslizou-lhe pelo corpo e a sua boca secou. Quando Abrão lançou as cerâmicas para o ar, ouviu-se um grito de horror à sua volta. Elas caíram aos pés de Terá. Ouviu-se um estalido seco, um som de chicote, de chuva batendo em terra seca. No solo, os ídolos estavam reduzidos a cacos.
- Os vossos deuses são poderosos? - exclamou Abrão. - Que me matem! Aqui, agora, já. Que os raios me fulminem! Que o céu me esmague! Pois acabo de quebrar o rosto e os corpos daqueles que vocês chamam de Inanna e Ea!
Tal como os outros, Sarai não conseguiu conter um gemido. Mas Abrão, dedo erguido para o céu, ainda gritava:
- Vocês veneram esses deuses, inclinam-se diante deles de manhã à noite. Eles estão sempre a observar tudo o que vocês fazem. As cerâmicas que saem das mãos do meu pai, são a carne, o corpo deles, a sua presença sublime.
Os queixumes e os gemidos cresciam. Dir-se-ia que um exército acabara de lhes entalhar os corpos. A voz de Abrão elevou-se mais alta que os gritos:
- Acabo de quebrar o que é sagrado para vocês. Que seja punido! Que Inanna e Ea me abatam!
Começou a girar sobre ele próprio, de braço sempre levantado, rosto oferto ao céu. Apertando o magro corpo de Lot contra ela, Sarai' murmurava: «Abrão! Abrão!». Mas este continuava a girar e perguntava:
- Onde estão, aqueles que vocês tanto temem? Não os vejo. Não os ouço. Só vejo cerâmica quebrada. Só vejo pó. Só vejo a argila que retirei do rio com as minhas próprias mãos!
Inclinou-se, apanhou a cabeça do deus Ea, cujo nariz se quebrara, e lançou-a contra uma pedra, onde ela se estilhaçou.
- Por que não tapa Ea o sol? Por que não abre a terra sob os meus pés? Quebro o seu rosto e não acontece nada...
Alguns homens tinham caído de joelhos, nuca inclinada, mãos na cabeça. Berravam como se lhes tivessem aberto a barriga. Outros, de olhos esbugalhados, recitavam preces sem recobrar fôlego. Mulheres choravam, fugiam, rasgando as túnicas nas moitas, puxando pelos braços das crianças. Algumas permaneciam de boca aberta, perscrutando o céu. O velho corpo de Terá vibrava como um ramo no meio da tempestade. Lot olhava para Sarai, abrindo desmesuradamente os olhos, mas esta não deixava de fitar Abrão. Ele mostrava uma calma aterradora. Voltou-se para ela e sorriu-lhe com uma ternura e uma paz que lhe incendiaram o coração.
E não se passou nada.
Um estranho silêncio regressou.
Os pássaros continuavam a voar pelo céu quente do crepúsculo. As nuvens permaneciam pequenas, lá no alto. A água do rio prosseguia o seu marulho.
Abrão avançou para o forno e pegou num longo toro de madeira.
- Não chega? Tenho de destruir todas estas cerâmicas, não deixando nenhuma inteira, antes que os vossos deuses se manifestem?
Já caminhava para a entrada do ateliê, de braço estendido. A voz de Terá soou:
- Abrão! Este voltou-se.
- Filho, não destruas o meu trabalho.
Abrão baixou o toro que trazia na mão. Pai e filho enfrentaram-se, rosto contra rosto. Pela primeira vez, desde há muito, pareciam não mais estar separados.
O velho Terá inclinou-se. Pegou num caco de cerâmica. A boca, o nariz, um olho de Inanna. Deslizou os dedos pela argila e depois apertou o caco contra o peito.
- Talvez os deuses te castiguem amanhã, ou daqui a algumas luas - disse, numa voz baixa e tremida, que obrigou toda a gente a calar-se. - Talvez daqui a pouco, talvez nunca. Quem pode saber o que eles decidem?
Abrão sorriu e lançou o toro para o solo. Terá aproximou-se muito dele, como se quisesse tocá-lo.
- O teu deus diz: «Vai». Diz-te: «Parte, não deves nada a Terá, teu pai». Diz-te que doravante deves depositar nele a confiança que um filho deposita no pai. Se essa é a tua vontade, então parte. Obedece ao teu deus. Leva a tua parte dos meus rebanhos e afasta-te das nossas tendas. Assim será. A partir deste momento, para mim já não és o filho que se chama Abrão.
Foi UMA NOITE CURTA, tanto havia a fazer para preparar os cofres, desmontar as tendas, reunir o gado, as mulas e as carroças à luz das tochas. Enquanto os servos, homens e mulheres que aceitavam acompanhar Abrão e Sarai se atarefavam, todo o acampamento parecia atormentado. Sombras iam e vinham, lâmpadas deslocavam-se e, por momentos, ouviam-se gritos de crianças, choros, ou clamores de animais incomodados no seu repouso.
Quando a alvorada estava prestes a despontar, Sarai' afastou-se das carroças que tinham acabado de encher. Foi sentar-se numa pedra, massajando os rins para se repousar. O crescente lunar deitava-se por entre pequenas nuvens e as estrelas brilhavam aqui e além, frescas como água de fonte.
Sarai sorriu: o céu não desabara, o fogo nada destruíra, a água não inundara o mundo, como todos temiam depois de Abrão ter quebrado os santos ídolos.
Sentiu que alguém colocava as mãos nos seus ombros. Reconheceu-lhes imediatamente o peso e a pressão. Deixou-se inclinar para trás, apoiando as costas e os ombros na barriga de Abrão. Ele perguntou-lhe suavemente:
- Não O ouviste como eu O ouvi?
- Não. O teu deus não me falou.
- No entanto, estavas no planalto. Também podias tê-Lo ouvido.
- Não. Estava à tua espera.
- Só vens comigo para cumprires o teu papel de esposa?
- Vou contigo porque tu és Abrão e eu sou Sarai.
-No entanto, ainda há pouco tempo eras a Santa Serva de Ishtar.
- Ishtar devia ter-me fulminado por a ter abandonado. Há luas e luas que deixei de colocar oferendas no seu altar. Inanna não me fulminou. Tal como Ea não me matou.
Abrão riu e o seu riso fez estremecer a cabeça de Sarai. Ele acariciou-lhe a cara.
- Pensas que Aquele que me falou existe?
- Não sei. Mas confio em ti. Eu também sei que um dia conduzirás um grande povo.
Abrão calou-se como se pensasse no que ela acabara de dizer. Sarai temeu subitamente que lhe perguntasse: «Como poderei engendrar um grande povo com o teu ventre vazio?». Mas ele inclinou-se para lhe beijar a têmpora e murmurou:
- Orgulho-me de ti. A única mulher que desejo como esposa é Sarai, filha de Ur.
QUANDO o CÉU SE ACLAROU, estavam estafados mas prontos a partir. Sililli resmungava, de disposição quezilenta, assegurando que partir sem os cânticos e as despedidas daqueles que ficavam no acampamento lhes traria desgraça. Não era assim que as pessoas se separavam quando tinham cometido um pecado ou um crime? O próprio Terá não viera saudar o filho. Como todas as mulheres com experiência, Tsilla afirmava que era um acontecimento único e infeliz! Agastada, Sarai acabou por lhe dizer que não era obrigada a acompanhá-los.
- Compreendo que queiras ficar.
- Ah, sim? - zangou-se Sililli. - E que farias sem mim, minha pobre filha? Tu, que fazes sempre o contrário daquilo que deves! A quem contarias o que não podes confiar a ninguém? Claro que devo partir contigo. Embora digam que no lugar para onde o teu esposo nos leva só há bárbaros e o deserto e que o mundo dos homens termina aí para se despenhar no mar.
Sarai não conseguiu suster o riso. Sililli resmungou:
- Pelo menos a minha idade servirá para alguma coisa: morrerei antes de ver esses horrores. Mas podes avisar o teu esposo: eu não caminharei. Irei sentada numa carroça.
- De acordo quanto à carroça - disse Sarai.
Quando Abrão se preparava para dar a ordem de partida, Lot tinha desaparecido. Abrão ia partir em sua busca quando ele chegou, todo esbaforido:
- Abrão, Sarai, venham ver, venham ver!
Puxando-os pela mão, fê-los atravessar o acampamento que parecia muito calmo, como se todos tivessem finalmente resolvido dormir. No entanto, quando chegaram ao caminho que dominava o ateliê de Terá, descobriram uma longa fila de carroças. As encostas das colinas que ladeavam a estrada estavam brancas com os rebanhos que aí tinham sido reunidos. E cem, talvez duzentos rostos voltaram-se para Abrão. Homens, mulheres, crianças, velhos e jovens. Mais do quarto da tribo de Terá.
Ali estavam, pacientes, à sua espera.
Um homem chamado Arpakashad avançou. Era da mesma altura que Abrão, mas um pouco mais velho e conhecido pelas suas qualidades de pastor. Declarou:
- Abrão, esta noite reflectimos sobre aquilo que disseste. E vimos que nem Ea, nem Inanna, nem nenhum dos deuses que tememos até hoje, te castigaram. Confiamos em ti. Se aceitares, iremos contigo.
- O meu pai diz que os seus deuses talvez me castiguem mais tarde - respondeu Abrão, emocionado. - Não os temem?
Arpakashad sorriu:
- Tememos uma coisa e, depois, outra. Seria bom que deixássemos de temer.
- Então, julgam que o Deus que me falou existe? - insistiu Abrão.
- Confiamos em ti - repetiu Arpakashad.
Abrão olhou para Sarai. Os seus olhos brilhavam de orgulho.
- Nesse caso, venham com Sarai e Abrão. E assim constituirão os fundamentos da nação que o Deus único me prometeu.
CANAÃ
As palavras de Abrão
A PRINCÍPIO, caminharam todos os dias, da alvorada ao crepúsculo. Deixaram as montanhas de Harân, alcançaram as margens do Eufrates, que seguiram para Sul, como se regressassem do reino de Akkad e da Suméria.
Assim caminharam durante três ou quatro luas. Carneiros, mulheres e crianças revezavam-se nas carroças. Aprenderam a confeccionar sandálias de solas mais espessas, melhor cosidas, odres maiores e túnicas mais compridas, capazes de proteger tanto do calor dos dias, mais secos, como do frio das noites, mais violentas. Quando chegavam ao alcance da vista de uma cidade ou do acampamento de outra tribo, as pessoas iam ao seu encontro e chamavam-nos os «passadores», os Hebreus.
Ninguém se queixou dessas longas e desgastantes jornadas. Ninguém perguntou a Abrão por que escolhia uma direcção em vez de outra. Só Sarai via a inquietação que se apoderava por vezes do esposo nas primeiras horas do dia, antes de prosseguirem caminho.
Certa manhã, Abrão sentiu o olhar de Sarai. O sol ainda não dissipara toda a escuridão nocturna a leste; ele examinava o horizonte, sobrolho franzido, boca crispada pela ansiedade. Sorriu para Sarai, mas esse sorriso não lhe retirou a circunspecção inscrita na testa. Ela aproximou-se. Com os dedos acariciou-lhe a testa antes de levar a mão fresca à sua nuca.
- Ele já não me fala - admitiu Abrão. - Desde que deixámos Harân, não disse nem mais uma palavra, não proferiu nem mais uma ordem. Já não ouço a Sua voz.
Sarai' continuava a sua suave carícia. Abrão prosseguiu:
- Vou por onde penso que devemos ir, na direcção do país que Ele me prometeu. Mas, e se me enganei? E se fizemos todo este percurso para nada?
Sarai acrescentou um beijo à sua carícia e respondeu:
- Confio em ti. Todos confiamos em ti. Por que razão o teu deus também não confiaria em ti?
Não voltaram a abordar o assunto. No entanto, alguns dias depois, Abrão decidiu seguir um caminho na direcção do Poente. Deixaram para trás as fartas pastagens que bordejavam o Eufrates para entrarem nas terras arenosas, de erva áspera e disseminada. Arpakashad foi ter com Abrão e pediu-lhe para deixar descansar os rebanhos.
- Dentro em breve vamos entrar no deserto e ninguém sabe quanto tempo decorrerá antes de voltarmos a encontrar terras com erva. É melhor deixar os animais engordar e recobrar forças. Um pouco de repouso também não nos fará mal.
- Estás inquieto? - perguntou-lhe Abrão. Arpakashad sorriu.
- Não. Ninguém está inquieto, Abrão. Nem impaciente. Só tu. Nós seguimos-te. A tua via é a nossa. Nesse caso, por que se apressar se ela deve ser longa?
Abrão riu e disse-lhe que ele tinha razão. Já era tempo de instalar o acampamento para uma ou duas luas.
A partir desse dia, a marcha voltou a ser idêntica à de Terá, quando este conduzia a tribo. Precisaram de mais de quatro estações para atravessar, de oásis em oásis, o deserto de Tadmor e entrar na região de Damasco, onde descobriram árvores e frutos desconhecidos, cidades que contornavam prudentemente, instalando-se apenas nas pastagens mais pobres de modo a não provocar a cólera dos habitantes.
Todos se habituaram tão bem a esta existência de errância que alguns até se esqueceram que ela devia acabar um dia. Às vezes, aquando de uma paragem, um membro da tribo estabelecia uma aliança com uma mulher ou um homem que encontrava em redor dos poços ou quando entabulavam comércio. Abrão concedia-lhes então o direito de se desposarem. Aumentava o número de nas-cenças. Só uma mulher continuava com o ventre obstinadamente vazio: Sarai, a sua esposa. No entanto, já ninguém olhava para ela. Até Sililli se abstinha de assediá-la com os seus conselhos e deixara de lhe comunicar as tagarelices das mulheres da tribo. Pareciam ter aceite que se o próprio Abrão se armava de paciência esperando que o ventre de Sarai se tornasse fecundo, eles também deviam encher-se de paciência. Lot, o sobrinho de Abrão, preenchia o lugar do filho. Só a própria Sarai' não conseguia suportar o facto das suas entranhas continuarem vazias.
Um dia entrou na tenda comum das mulheres quando uma jovem esposa ia ter o seu primeiro filho. Era uma rapariga mais jovem do que ela, de pele muito pálida, grandes olhos negros e seios opulentos. Chamava-se Lehklaí. Desde há várias luas, Sarai via o ventre e, depois, o corpo dela arredondar-se: ancas, nádegas, seios, ombros e, até, faces e lábios. Espreitara-a todos os dias com inveja. No entanto, havia outras mulheres grávidas na tribo de Abrão, mas para Sarai, Lehklai era, de longe, a mais bela. Sem o mostrar, invejava-a, amava-a e detestava-a com tal violência que chegava por vezes a perder o sono. Deste modo, apesar de evitar habitualmente a tenda comum quando as mulheres nela pariam, desta vez entrara para assistir ao parto de Lehklaí.
Logo de início viu que nada corria bem. Lehklai gemia, cabelos colados ao rosto pelo suor, boca escancarada e lábios secos, olhos demasiado fixos, como se a dor a absorvesse integralmente. Todo o dia decorreu dessa maneira. As parteiras proferiam palavras de conforto a Lehklai, enquanto lhe besuntavam o ventre e as coxas com um óleo suave e mentolado. Eram as palavras e os gestos do costume; no entanto, Sarai viu a que inquietação delas aumentava. Lehklai gemia, perdia a respiração, gemia novamente, de olhos sempre fixos e como que absorvida pelo interior.
Durante a tarde deixou de responder às perguntas que lhe faziam. Por fim, as parteiras pediram a Sarai e a Sililli que as ajudassem a massajar Lehklai, pois o sangue dela parecia recusar-se a circular normalmente. Contudo, quando Sarai deslizou as palmas das mãos pelo ventre dela, pelos rins e pelos seios areolados, eles estavam escaldantes.
Sem mais esperar, as parteiras depositaram no solo os tijolos destinados ao parto. Segurando Lehklai, tentaram expulsar o bebé. Foi uma luta terrível, longa e mortífera. Introduziram as mãos no ventre da parturiente e conseguiram retirar um bebé minúsculo, uma menina com uma boca já destinada a chorar e a rir. Quando o sol aflorou o horizonte, Sarai e Sililli saíram da tenda, tremendo, com a cabeça e o peito ainda martelados pelos berros de Lehklai, que só a morte interrompera.
Entreolharam-se, silenciosamente. No velho rosto da serva, Sarai leu aquilo que a boca dela calava: «Ao menos tu não morrerás assim».
Levou algum tempo para observar o sol, gota de sangue absorvida pela extremidade do mundo. A lua, cheia e brilhante, dominava a noite que se aproximava. Estava imenso calor. Um calor espesso que a brisa da tarde não conseguia diminuir. Sarai abanou a cabeça e murmurou suficientemente alto para Sililli a ouvir:
- Enganas-te. A morte de Lehklai não me mete medo. Invejei-a quando estava plena de vida, tão bela, tão gorda. Ainda a invejo.
NESSA NOITE SARAI DECIDIU FAZER AQUILO que sempre proibira a si mesma desde que desposara Abrão. Abriu um dos cofres da tenda para retirar um saco contendo um punhado de achas de cedro e uma estatueta de madeira pintada com a efígie de Nintu. Apesar do desdém de Sarai, Sililli nunca quisera separar-se dela.
Deslizou alguns tições num púcaro com uma abertura, tapado por uma tampa de cabedal e, depois, tendo cuidado para não ser vista, abandonou o acampamento. Caminhou ao luar até ao outro lado de uma colina. Quando teve a certeza de estar bem abrigada, acendeu uma pequena fogueira entre algumas pedras.
De joelhos, espírito vazio, esperou que as chamas se transformassem em brasas para acrescentar algumas achas de cedro.
Quando o fumo se tornou suficientemente espesso, tirou do cinto uma delgada lâmina de marfim que Abrão lhe oferecera. Num gesto seco, fez um entalhe na cova da palma esquerda e, depois, na da direita. Agarrou na estatueta de madeira e girou-a por entre as mãos, besuntando-a com o seu sangue enquanto murmurava:
Ó Nintu, Senhora das menstruações,
Nintu, tu, que decides da vida no ventre das mulheres,
Ouve a súplica da tua filha Sarai,
Nintu, senhora das nascenças neste Mundo, tu, que recebeste o tijolo sagrado do parto das mãos de Enki, o Poderoso, tu, guardiã do cutelo que corta o cordão umbilical,
Nintu, escuta-me, escuta a dor da tua filha,
Não a deixes no vazio.
Calou-se, com a garganta enrouquecida pelo fumo do cedro e com os olhos irritados. Em seguida, endireitou-se, rosto voltado para a lua. Com a estatueta cingida ao ventre, prosseguiu a sua súplica:
Ó Nintu, irmã de Enlil, o Primeiro, assegura-te que a vulva de Sarai seja fértil e suave como a tâmara de Dilum.
Ó Nintu, tu, que decides da vida no ventre das mulheres,
Permite que Sarai dê à luz, perdoa o seu silêncio e o seu desdém,
Que os sortilégios e malefícios se dissolvam na presença do teu grande poder,
Que desapareçam como um sonho,
Que abandonem o meu corpo como a muda da serpente,
Ó Nintu, acolhe o sangue de Sarai como o sulco da terra acolhe o orvalho.
Assegura-te que o mel do sémen do meu esposo se transforme em vida.
Repetiu a prece sete vezes, antes de o sangue deixar de escorrer pelos cortes que fizera nas mãos. Esmagou as brasas com uma grande pedra e regressou ao acampamento.
Dirigiu-se prudentemente para a tenda de Abrão. As lâmpadas estavam apagadas. Por sorte, Abrão não estava entretido num daqueles conciliábulos intermináveis na companhia de Arpakashad e de alguns velhos da tribo, que podiam mantê-lo acordado até de manhã.
A tela que servia para fechar a entrada da tenda tinha sido levantada para deixar circular o ar. Sarai deixou-a cair, sem ruído. Através do tecido, a luz do luar dispensava uma penumbra leitosa que lhe permitiu orientar-se entre estacas e cofres. Abrão estava deitado, nu, sobre um monte de tapetes e peles que lhe serviam de leito. A sua respiração, lenta e regular, era a de um sono profundo, desprovido de sonhos.
Sarai deslizou delicadamente a estatueta de Nintu entre a camada de peles, sob os pés de Abrão. Despiu a túnica e ajoelhou-se ao lado do esposo. Pegou no sexo dele e acariciou-o suavemente. Sem que Abrão despertasse, ele cresceu e endureceu lentamente entre os seus dedos. O peito e a barriga de Abrão começaram a estremecer. Sarai deslizou os seus longos cabelos soltos pelo peito do esposo, roçando-o com a ponta dos seios, colocando-lhe os lábios no pescoço, nas têmporas, encontrando-lhe a boca. Abrão abriu os olhos como um homem que ainda não sabe se não estará a sonhar. Murmurou:
- Sarai?
Ela respondeu-lhe com outras carícias, colocando os rins nas suas mãos e os seios na sua boca. Viram-se como sombras. Duas feras rugindo tanto de desejo como uma mulher e um homem. Abrão ainda sussurrava o nome dela: Sarai, Sarai!, como se ela lhe fosse escapar, dissolver-se nos seus braços, ao passo que ela o introduzia no seu próprio corpo, envolvendo-o até ao fundo do seu ventre. Empunharam-se como esfomeados, sem que uma só parcela dos corpos escapasse à voracidade do seu desejo. Ambos tiveram consciência de copular diferentemente das vezes anteriores, com menos contenção e mais fúria. Sarai recebia as ondas de prazer de Abrão em todos as partes do corpo, como se se tivesse transformado subitamente em toda uma vasta região, tão leve e líquida quanto um céu e um mar imbricados no horizonte. Depois, o seu próprio prazer, em vagas sucessivas, endureceu-lhe o ventre e os rins, cortando-lhe a respiração e reenviando-a a ela própria. Abrão voltou-a. Enlaçando-lhe a nuca como se se pendurasse a um enorme pássaro que se apronta a voar, Sarai ofereceu a boca e o peito ao sopro de Abrão e deixou-se invadir pela ondulação do homem.
MAIS TARDE, com o peito e as ancas ainda doridas de prazer, Sarai sussurrou:
- Abrão, sou uma mulher estéril. O sangue já não me escorre pelas coxas há vários anos. O teu sémen perde-se no meu ventre como se o largasses no pó.
- Eu sei - respondeu Abrão, com a mesma brandura.--
Sabemo-lo todos e desde há muito tempo.
- Enganei-te - insistiu Sarai. - Já estava seca e incapaz de engravidar quando me foste buscar ao templo de Ur. Não ousei confessar-te. A felicidade de ser levada por ti era desmedida, nada mais contava.
- Também sabia isso. Uma Santa Serva de Ishtar é uma mulher sem regras. Quem o ignora em Ur?
Sarai soergueu-se com a ajuda de um cotovelo para olhar para o esposo. A palidez do luar tornava o rosto de Abrão tão nítido e liso como uma máscara de prata. Mais belo que nunca. Uma beleza calma, tão terna que a garganta se lhe apertou. Com os dedos trementes, acariciou-lhe as sobrancelhas, aflorou-lhe as maçãs do rosto até ao local onde a barba nascia.
- Mas porquê? Porque me aceitaste como esposa, se sabias? Uma mulher de ventre árido!
Os lábios de Abrão pousaram no seu seio, beijando-lhe a esfera quente e o mamilo sedoso.
- Tu és Sarai. Só te quero a ti como esposa.
Ela abanou a cabeça, cheia de perguntas, de incompreensão.
- O teu deus prometeu-te um povo, uma nação. Como te tornarás num povo e numa nação se a tua esposa nem sequer te dá um filho?
Abrão sorriu, trocista.
- O Deus único não me disse: «Escolheste uma má esposa». Abrão é um esposo feliz.
Sarai sentou-se no leito, observou-o em silêncio, incapaz de se satisfazer com aquelas palavras que a deviam ter enchido de paz. Ao invés, o prazer retirara-se inteiramente da memória da carne para deixar apenas lugar para a tristeza.
Porque não conseguia regozijar-se com as palavras de Abrão? Elas não exprimiam todo o amor e toda a bondade que uma pessoa podia esperar?
Não, parecia-lhe que Abrão não media toda a extensão da sua culpa, o peso que carregava e fazia carregar, não só a ambos, e talvez para sempre, como também a todos os que os acompanhavam.
- Amei-te logo que te encontrei à beira-rio quando fugia do esposo escolhido pelo meu pai - começou a contar numa voz quase inaudível. - Queria um beijo teu.
Por fim, contou-lhe porque comprara a erva de infertilidade no antro da kassaptu. Como quase morrera e como, apesar de ele ter deixado a cidade de Ur com o pai, ela nunca deixara de esperar por um beijo dele.
- Mal era uma mulher. Cometi o meu erro tanto devido à ignorância da juventude, como por necessitar de ti. Hoje o desejo não cessou, mas tornei-me inútil. Tu precisas de uma mãe para os teus filhos, uma esposa fecunda que te permita realizar o que o teu deus espera de ti - repetiu-lhe.
Abrão abanou a cabeça. Pegou-lhe nas mãos e apertou-as contra o seu peito.
- Enganas-te: preciso de Sarai. A tua obstinação é a minha felicidade. Aquele que me fala, Aquele que me chama e me guia sabe quem tu és. Tanto como eu. Também Lhe agrada que estejas a meu lado. Sei que também fazes parte da Sua bênção.
Beijou-lhe ardentemente as mãos. De repente, ergueu a cabeça. Sob os lábios, adivinhara os cortes ainda frescos que ela se infligira por devoção a Nintu. Sarai viu a cólera enrijecer-lhe a nuca.
- Que fizeste? - exclamou.
Ela abandonou o leito e retirou a estatueta de Nintu de debaixo das peles de carneiro. Nua e de pé diante dele, estatueta nas mãos, repleta de franqueza e receio, explicou:
- Uma mulher estéril engoliria terra, lodo e até monstros ou demónios se isso trouxesse a vida de volta às suas entranhas. Hoje a jovem Lehklai morreu ao dar à luz a sua filha. Apesar de todo o meu amor por ti, Abrão, não desejo mais mortes.
Abrão pôs-se de pé diante dela, o sexo ainda intumescido pelo prazer. Na penumbra opalescente da lua dir-se-ia que os seus traços se apagavam, que deixara de ter rosto. O seu peito arfava seguindo o ritmo rápido da respiração.
- Esta noite acariciei Nintu com o meu sangue - balbuciou Sarai, mostrando a estatueta. - O teu sémen está no meu ventre. Diz-se que quando é lá depositado com o maior prazer que um homem e uma mulher possam experimentar, ela é mais poderosa, mais ágiL,.
Calou-se e julgou que Abrão ia gritar, talvez até bater-lhe. Estendeu a mão. Ele falou sem violência:
- Dá-me essa boneca.
Com a mão a tremer, Sarai entregou-lhe a estatueta. Abrão cerrou o punho em torno do rosto de Nintu. De uma estaca, retirou uma curta espada de bronze de lâmina recurvada. Uma arma pesada e sólida com a qual Sarai o vira cortar a cabeça de um carneiro. Nu, sem se dar ao trabalho de pôr uma tanga, saiu para o exterior. No solo, partiu o ídolo com alguns golpes e, com um rugido de fera, atirou os cacos para longe.
Quando regressou à tenda, Sarai tinha posto a sua túnica. O corpo hirto pela humilhação e pela dor, conservava-se bem direita, de olhos secos e boca fechada. Apesar do calor, dir-se-ia que tremia de frio.
Abrão aproximou-se, pegou-lhe nas mãos e levou-as à sua boca. Elas deixaram de tremer quando lhe apertou os dedos contra os lábios. Depois, beijou-lhe as palmas das mãos, deslizou a língua pelas feridas com a doçura de uma mãe que beija o ferimento do filho para eliminar a dor. Puxando-a contra ele, murmurou-lhe:
- Os habitantes de Ur queriam que enfrentasses o touro até que ele te esventrasse, a pretexto de que o sangue não escorre entre as tuas coxas. O meu pai Terá e todos os que permaneceram com ele, julgaram-te mal, pois nós temos relações só para nosso prazer. Estou ao corrente das perguntas que Tsilla te fazia, lua após lua. Sei como tiveste de suportar os olhares. E sei que te deixei sozinha com a vergonha e as questões. Não encontrava palavras para acalmar a tua dor. Como explicar a todos que nenhuma sombra obscurecia a felicidade de ter Sarai' como esposa? Como lhes dizer que o amor da minha esposa crescia à minha volta tanto quanto os filhos e filhas que ela tivesse podido dar-me? Todos eles invocavam os seus deuses, deuses dos pecados e dos rancores. Todos viam apenas malefícios no teu ventre. E eu, que apenas via a credulidade e a submissão deles, eu deixei-te sozinha com o peso da tua dor.
Calou-se. Sarai reteve a respiração. As palavras de Abrão, pelas quais esperava há tanto tempo, tinham finalmente chegado. Escorriam nela, escaldantes e doces como um mel de Inverno.
- Não acarretes contigo os seus medos e superstições. Confia na minha paciência, como eu confio em ti. Julgas que o deus de Abrão ainda não é o teu. Tens a certeza de ainda não O teres visto nem sentido. No entanto, quem sabe se as ervas da infertilidade não foram a palavra que Ele te endereçou, a ti, Sarai, filha do Poderoso de Ur, para te afastar das tuas vãs adorações? Quem sabe se não foi a via que Ele te ofereceu para que pudéssemos tornar-nos esposos um do outro? Em Harân, Ele disse-me: «Deixa a casa do teu pai». Não me disse: «Deixa a tua esposa Sarai, que não pode transformar a tua semente numa criança». Ele diz o que não quer. E diz o que quer. Ele disse: «Serás uma fonte de bênçãos. Abençoarei aqueles que te abençoarem». Quem me abençoa mais do que Sarai, dia após noite? Prometeu-me um povo. Dar-me-á um povo. Como nos dará o país que me prometeu. Sarai, meu amor, não te firas mais com o cutelo da vergonha, pois não és culpada de nada e a tua dor é a minha.
Abrão fez deslizar a túnica de Sarai, deixando-a cair no solo. Beijou-lhe o ombro e disse:
- Vem dormir a meu lado. Esta noite e todas as noites, até que o Deus único nos indique o país onde nos instalaremos.
Salem
ISSO OCORREU NA LUA SEGUINTE. As colinas por onde passavam desde há alguns dias pareciam mais redondas e verdes. O pó não cobria nem as folhas das árvores nem as pradarias. Não precisavam de procurar poços ou de se contentarem com água estagnada para dessedentar os animais. Os rios que corriam de um vale para outro, tinham por vezes profundidade suficiente para alguém perder pé. Havia muitos insectos, como acontece apenas nas terras opulentas. Certa manhã começou a chover. Abrão decidiu que nesse dia não caminhariam para que a chuva lavasse a lã dos animais e as telas das tendas. Quando parou, um pouco antes do cair da noite, o sol reapareceu por entre as nuvens e todos ficaram estupefactos pela beleza que os rodeava.
Infelizmente, e apesar de não terem encontrado ninguém desde há vários dias, todos se apercebiam que aquela terra não estava abandonada. Havia muros delimitando as pastagens e caminhos com marcas da passagem de rebanhos. Assim, passaram uma noite silenciosa à volta das fogueiras, preferindo calar-se e sonhar com a felicidade que sentiriam se Abrão os conduzisse para uma região semelhante àquela. Ao raiar da madrugada seguinte, Sarai acordou sobressaltada. A seu lado, o lugar de Abrão ainda estava quente, mas vazio. A entrada da tenda ainda balouçava.
Levantou-se silenciosamente e quando chegou ao exterior ainda teve tempo para ver o seu marido afastar-se apressadamente. Sem reflectir, seguiu-o.
Abrão começou a correr. Sem abrandar, atravessou um riacho, salpicando água à sua volta. Embrenhou-se num grande bosque coroado por um pequeno outeiro. Sarai' seguiu-o sob as árvores. Já não o via, mas diante dela ouvia o som dos ramos mortos que estalavam sob os passos apressados de Abrão. Quando estava prestes a sair do bosque, parou. Com a respiração acelerada, escondeu-se atrás do tronco de um carvalho verde. Cem passos adiante, no cume do outeiro, Abrão imobilizara-se, de pé na erva que lhe chegava às coxas. Estava de costas para ela, com o rosto ligeiramente voltado para o céu e os braços semierguidos como se se aprontasse para acolher algo nas mãos.
Excepto que diante dele só havia o ar matinal que a brisa mal agitava.
Ela quedou-se tão imóvel quanto ele. Espreitando um movimento, um som.
Não discernia nenhum ruído, nenhum gesto.
A brisa soprava-lhe em pleno rosto. As ervas inclinavam-se e endireitavam-se. Minúsculas borboletas amarelas e azuis esvoaçavam sobre gramíneas, cujas flores começavam a despontar. Os pássaros chilreavam nas folhagens. Alguns voaram para pousar noutros ramos. A única luz provinha do sol que se erguia no horizonte, dourando grandes nuvens rechonchudas. Não havia nada a ver. Apenas a actividade habitual do mundo.
No entanto, tinha a certeza que Abrão estava com o seu deus.
Abrão ouvia a voz do seu deus invisível.
Como era possível um deus não dar nenhum sinal da sua presença? Nem rosto, nem brilho. Sarai não compreendia.
E se Abrão falava com o seu deus, ela não o ouvia.
Via apenas um homem de pé na erva, rodeado de insectos e pássaros indiferentes, rosto voltado para o céu como se tivesse perdido a razão.
Tudo pareceu demorar muito tempo, mas talvez não fosse assim. De repente, Abrão levantou os braços. Um grito vibrou.
Os pássaros calaram-se.
Mas os insectos e as ervas continuaram a redemoinhar, inclinando-se, endireitando-se.
Abrão gritou outra vez.
Sarai captou duas sílabas. Uma palavra desconhecida.
Teve medo e fugiu. Tão silenciosamente quanto possível. Com o rosto em brasa, como se tivesse visto algo que não devia.
MAIS TARDE, DIRIGINDO-SE A Sililli, que pilava o trigo duro, e a Lot, que a ouvia de boca aberta, disse-lhes:
- No entanto, não havia nada a ver. Posso certificar-vos que nada se mexia. Abrão também não. Se estava a falar, a sua voz era inaudível. E o que via, para mim era invisível.
Sililli abanou a cabeça, calada e pouco convencida.
- Mas Abrão pronunciou o nome do seu deus - disse Lot felicíssimo, pronto a ouvir novamente a história.
- Eu não percebi se era um nome - aprovou Sarai. - Quando ele gritou, só ouvi dois sons, como aqueles que Arpakashad emite com o seu corno de carneiro para reunir os rebanhos. Só depois é que Abrão me disse: «O Deus único falou-me. Disse-me qual era o Seu nome. Chama-se Yhwh».
- Yhwh! - exclamou Lot, rindo-se. - Yhwh! É fácil, não corremos o risco de o esquecer. E, é verdade: parece um som de trompa!
- Um deus que nem sequer podemos ver, que não fala e que só diz o seu nome a um único homem! E, mesmo assim, só quando lhe apetece - resmungou Sililli. - Pergunto a mim mesmo para que serve um deus desses!
- Para encontramos uma bela região, rica e cheia de água! - retorquiu Lot, peremptório. - Não ouves o que Sarai diz, o deus de Abrão não deu apenas o seu nome: também disse que doravante esta terra é nossa. A terra mais bela que vimos desde que deixámos Harân. Mas tu, Sililli, tu és demasiado velha para apreciares os campos de erva abundante. Mais ninguém quer rebolar neles contigo...
- Alto lá, garoto! - ralhou-lhe Sililli, desferindo um vigoroso golpe com o pilão de madeira nas nádegas de Lot. - Vê lá se fechas essa boca. Talvez já seja muito velha para aquilo em que estás a pensar, mas tu também ainda és muito pequeno para sonhares com isso!
- Era o que eu estava precisamente a dizer - gozou Lot, sem se impressionar. - Demasiado velha para ver a beleza de uma região e demasiado velha para ver a de um rapaz que se vai tornando um verdadeiro homem!
- Ouçam-me só isto! - exclamou Sililli, siderada pela audácia do rapaz.
Lot fez uma pose de adulto diante das duas mulheres, mãos nas ancas ágeis, um fino sorriso de provocação descendo-lhe dos olhos aos lábios. Porém, dissimulando a surpresa, Sarai e Sililli tiveram de convir que ele tinha razão. Nas últimas luas, ela olhara apenas automaticamente para Lot, continuando a vê-lo somente como um grande rapaz transbordando de energia, orgulho e sensibilidade. No entanto, em pouco tempo, como acontece frequentemente com os adolescentes, o homem crescera nele em todos os aspectos. Crescera ao ponto de já ser mais alto do que elas. Os seus ombros alargavam-se, ágeis e musculosos sob a túnica, uma penugem sedosa sombreava-lhe as faces, o queixo e o lábio superior e a luz que bailava no seu olhar já não era a da inocência. Foi assim que sorriu a Sarai, fazendo-a corar, ao murmurar com a sua voz ligeiramente rouca:
- Ao ver todos os dias a beleza da minha tia, uma pessoa até se sente impaciente por se tornar um homem.
Sililli soltou um gritinho, fingiu-se ofendida e expulsou Lot, que se foi sentar um pouco mais longe, resmungando. Só quando se voltou de costas, é que Sarai e Sililli trocaram um olhar divertido.
- Não é o único a pensar assim - reconheceu Sililli, em voz baixa. - A tua beleza começa a aquecer todos estes jovens cordeiros por aí à solta. Está na altura de Abrão decidir fazer uma verdadeira pausa. Que construa a nossa cidade. Os jovens cabritos teriam finalmente qualquer coisa com que gastar as energias.
Sarai ficou calada durante algum tempo. Lançou grãos para o morteiro e viu-os rebentar sob os golpes de pilão desferidos por Sililli.
- Talvez tenhamos chegado ao termo da nossa viagem. Abrão assegura que o seu deus nos deu esta terra. A todos nós, hoje, a todos nós, amanhã, e a todos aqueles que ainda irão nascer.
Sililli inclinou a cabeça com cepticismo. Mas como Sarai se calara novamente, ergueu a testa. Não precisavam de palavras para pensarem na mesma coisa.
- Quem sabe? - perguntou Sililli, com ternura. - Talvez diga a verdade.
- Ele tremia de alegria ao regressar à tenda. Atirou-se a mim para me cobrir de beijos. Beijava-me o ventre e repetia as palavras do seu deus: «Dou esta terra à tua semente!» Como lhe respondi que a terra das minhas colinas e dos meus vales não era nada opulenta apesar de todo o ardor com que ele a lavrava, quase se zangou. «Não compreendes! Se Yhwh fala assim, isso significa que pensa em ti, na minha esposa, aquela que acolhe a minha semente! Tem paciência, o Deus único em breve mostrar-te-á o Seu poder».
Sililli agitou os dedos cheios de farinha.
- Hum... Quem sabe? - repetiu.
- Mas paciência é coisa que ele não tem - gozou Sarai. - Posso dizer-te que não passa dia ou noite sem se certificar se o seu deus poderá fazer frutificar a sua semente!
Um riso bailou-lhe nos olhos e, depois, explodiu numa gargalhada. Uma grande gargalhada, leve e de bom coração. Mais longe, Lot levantara-se e perguntava:
- Porque riem? Porque riem?
No DIA SEGUINTE chegaram à beira de um vasto vale que se estendia ao longo de uma cadeia de montanhas. Os tons verdes e amarelos dos campos de flores, de cereais e das pastagens entrecruzavam-se como numa tecelagem. Animais pastavam, homens trabalhavam nos prados.
A frustração estragou-lhes o deslumbramento. Por que motivo o deus de Abrão lhes indicara aquela terra?
Resumindo o que todos pensavam, Sarai voltou-se para Abrão: - Esta terra é magnífica, mas aparentemente é habitada. Achas que podemos montar aqui as nossas tendas e construir uma cidade? Abrão contemplou longamente a paisagem que se estendia diante dele. Era evidente que Yhwh quisera que ele tomasse consciência da beleza daquela terra antes de lá entrar. Sim, aquela terra era capaz de suportar a presença deles. A oeste e a sul não se avistava nem a lã branca dos carneiros nem as silhuetas escuras do gado. Observou:
- Há espaço para nos acolher.
- É bem possível - retorquiu gravemente Arpakashad. - Mas Sarai tem razão: logo que os nossos rebanhos beberem a água dos riachos, logo que os nossos baldes retirarem a água dos poços, as quezílias começarão.
Abrão sorriu, sem se zangar. Há muito que não o viam tão contente e tão sereno. Nada parecia capaz de quebrar a sua boa disposição. Inclinou a cabeça.
- Esta terra está parcialmente desocupada. Vejam: há uma cidade no cume da montanha. Venham.
Pediu que fizessem avançar três das melhores carroças atreladas às mais belas mulas. Mandou revestir o interior de lençóis limpos e declarou:
- Encham estas carroças com todos os pães que cozemos ontem e esta manhã. Acrescentem-lhes tudo o que temos como bons alimentos: tanto os bezerros acabados de matar, como os frutos que colhemos nos últimos dias. Vamos oferecê-los aos habitantes dessa cidade.
Uma mulher exclamou, com voz estridente:
- Estás a despojar-nos por completo. Que sobrará para comer nos próximos dias?
- Não sei - retorquiu Abrão. - Veremos. Talvez os habitantes da cidade nos dêem, por sua vez, de comer...
Abrão parecia tão seguro de si que apesar das suas palavras poderem parecer presunçosas, todos sabiam que não tinham outra alternativa a não ser seguir a sua obstinação.
No CALOR DA TARDE, seguiram o carreiro que levava à cidade.
Formavam uma longa coluna. Mais de um milhar de homens, mulheres e crianças, pelo menos o dobro de cabeças de pequeno gado, sem contar com as carroças transportando tendas e cofres e com as manadas de mulas e burros. Ao longe, podia avistar-se a nuvem de pó levantada pelas sandálias e pelos tamancos. Podiam ouvir-se os balidos, os rangidos dos eixos das rodas e até as pedras que rolavam sob o martelar dos seus passos.
Deste modo, mal foram avistados da cidade, as trombetas e os tambores deram o sinal de alarme. Com o seu comprido cajado numa mão e a outra repousando na correia da albarda da mula, Abrão teve o cuidado de avançar lentamente. Queria que os pudessem examinar à vontade a partir das muralhas, de modo a que os observadores se assegurassem de que eles se aproximavam tranquilamente, desarmados e sem intenções guerreiras.
No entanto, quando chegaram ao alcance de um lançamento de flechas das muralhas de um branco resplandecente, a enorme porta pintada de azul que constituía a sua única abertura permaneceu hermeticamente fechada.
Cabeças e lanças movimentavam-se por entre o conjunto de seteiras. Aqui e além, torres estreitas, com aberturas verticais, permitiam entrever silhuetas. Abrão ergueu o cajado. A coluna imobilizou-se. Pondo as mãos à volta da boca, gritou:
- Chamo-me Abrão. Venho em paz com o meu povo para saudar aqueles que embelezaram esta terra e construíram esta cidade!
Largando o cajado, estendeu a mão direita para pegar na de Sarai e, com a esquerda, na de Lot. Pediu que todos fizessem o mesmo. As famílias formaram magotes de gente de mãos dadas. Vindo colocar-se ao lado de Abrão e Sarai, uniram-se numa espécie de crescente lunar. Para aqueles que os espreitavam era fácil assegurarem-se de que não dissimulavam armas.
Ficaram assim um longo momento, sob o sol.
De repente a porta rangeu, rugiu, entreabriu-se e escancarou-se.
Surgiram soldados. Escudo e lança nos punhos, com túnicas de cores violentas, em duas colunas bem alinhadas, avançaram com passo firme em direcção a Abrão e aos seus. Alguns não puderam reter um movimento de medo, recuando. Mas'como Abrão não se mexia nem um polegar, voltaram ao seu lugar.
Quando chegaram a uma vintena de passos, os soldados pararam. Todos repararam que não lhes apontavam as lanças, as quais estavam dirigidas para o céu, cabo assente no solo. Repararam também que os rostos deles se assemelhavam aos seus. As suas sobrancelhas, barba e cabelos eram de um negro profundo. Como os guerreiros de Akkad e da Suméria, não traziam peruca nem capacete, mas estranhos bonés de cor. O khôl fazia brilhar as suas pupilas tão escuras como a pele.
Uma trombeta soou à porta da cidade. Um som grave e suave.
Precedendo uma multidão garrida e nervosa, surgiu uma dezena de homens. Traziam longas capas de um vermelho e azul intenso. Na cabeça, um largo turbante amarelo. Jovens caminhavam a seu lado, erguendo as palmas das mãos para se protegerem do sol. Eram homens idosos, de ventre redondo, com a barba assaz comprida para lhes chegar ao peito coberto de colares de prata e jaspe. Sorriam. Um sorriso que a todos surpreendeu. Um sorriso que todos reconheceram, a começar por Sarai: era o mesmo sorriso que não abandonava os lábios do seu esposo desde aquela manhã.
Os sábios da cidade pararam. Largando as mãos de Sarai e de Lot, Abrão foi buscar dois grandes pães à carroça mais próxima. Inclinou-se diante do homem mais velho, que parecia o mais nobre e que era o mais ricamente trajado. Ofereceu-lhe os pães, ao mesmo tempo que as suas saudações de respeito.
- Chamo-me Abrão. Venho em paz com o meu povo. Chamam-nos os Hebreus, os homens que passam, pois viemos de longe. Aqui estão os pães que cozemos ontem e hoje. Sinto-me feliz por oferecê-los aos habitantes desta cidade, apesar de ela ser rica e certamente capaz de cozer uma quantidade cem vezes maior.
O velho homem pegou nos pães entre os seus dedos anelados e confiou-os àqueles que o rodeavam. Atrás deles, os soldados não conseguiam conter a multidão formada pelos habitantes da cidade. Curiosos e excitados, estes comprimiam-se à volta dos recém-chegados. Crianças gritavam e gesticulavam para chamarem a atenção das crianças viajantes.
O velho homem a que Abrão se dirigira ergueu a mão sobre o ombro. A trombeta soou e o silêncio regressou.
- Chamo-me Melquisedeque. Sou o rei desta cidade que se chama Salem, deste povo e destas terras. Do rio, a leste, até à margem do mar, a oeste, outros povos habitam nesta região que chamamos Canaã.
Falava amorrita, lenta e pausadamente, com um sotaque que Sarai nunca ouvira.
- Eu, Melquisedeque, bem como Salem e Canaã, acolhemos-te a ti, Abrão, bem como aos que te acompanham. Abrimos os nossos braços para vos acolher. Em nome do Deus Altíssimo, Criador do Céu e da Terra, abençoo a tua vinda.
Caiu um silêncio pesado.
Abrão voltou-se para Sarai. O seu rosto era só júbilo. Numa voz forte, para que todos o ouvissem, exclamou:
- Ouviram? O senhor Melquisedeque, rei de Salem, dá-nos a sua bênção em nome do Deus único. Aqui somos acolhidos por irmãos.
A beleza de Sarai
A FELICIDADE DUROU APROXIMADAMENTE DEZ ANOS.
Numa festa onde se misturou a comida dos habitantes de Salem à dos recém-chegados, os participantes embriagaram-se com cerveja e histórias, admiraram-se e descobriram-se. Foi decidido que Abrão pagaria um dízimo por cada cabeça do seu rebanho que pastaria nas terras de Canaã. Também foi decidido que não edificaria nenhuma cidade para não rivalizar com a bela cidade de Salem e que, tal como no passado e como acontecera outrora com os seus pais, eles e os seus montariam e desmontariam as tendas consoante as pastagens.
O rei Melquisedeque e os seus sábios questionaram Abrão sobre a região de onde viera e sobre o aspecto daquelas que tinham atravessado durante a sua longa marcha até Salem. Ficaram espantados por ele ter descoberto o caminho para Canaã através de mil montanhas e vales, rios e desertos. Ignoravam tudo sobre o reino de Akkad e da Suméria e pediram a Sarai que lhes mostrasse a escrita aí utilizada numa tabuinha de argila fresca. Ficaram estupefactos pela possibilidade de designar coisas, animais, homens, cores e até sentimentos por meio de signos.
Por fim, perguntaram a Abrão o que sabia sobre o Deus único. Eles próprios O veneravam: era o Deus dos seus pais e sempre Lhes assegurara a paz e a riqueza nas suas terras. Contudo, o Deus invisível nunca se lhes dirigira. Não confiara o Seu nome a nenhum deles.
Yhwh.
Desta forma, o rei Melquisedeque declarou que, apesar de se parecer com um pastor que arrastava atrás de si um povo heteróclito que nem sequer provinha do seu próprio sangue, Abrão era certamente um rei tão nobre quanto ele. Com a sua voz plena de juventude, anunciou que, não obstante a diferença de idades, se inclinava perante ele e com todo o respeito que teria concedido a um igual.
Dito isto, todos os sábios e habitantes de Salem o imitaram. Em seguida, Melquisedeque voltou-se para Sarai', que se mantinha direita e silenciosa. Disse-lhe:
- Abrão, permite que também me incline diante da tua esposa, Sarai. É possível que vocês estejam habituados a uma beleza como a dela e que essa beleza não vos incendeie os olhos de deslumbramento. No entanto, é a mais bela mulher que o Deus único jamais colocou no meu caminho. E não duvido que a tenha colocado junto de ti, como sinal de todas as belezas que deseja oferecer à tua nação.
E Melquisedeque inclinou-se também diante de Sarai. Depois, apertando a sua longa barba contra o peito, pegou num pedaço da túnica de Sarai' para o levar aos lábios. A sua boca tremia quando se ergueu e murmurou, de modo a que só ela o ouvisse:
- Sou um homem velho, mas agora isso constitui um motivo de felicidade pois sabendo que existes e não és minha, não saberia como viver se fosse jovem.
SARAI ESPERARA QUE UMA VEZ CHEGADO à terra prometida pelo seu deus, Abrão mandasse construir uma cidade. Uma verdadeira cidade, com casas de tijolo, ruelas, pátios, portas e telhados frescos. Sim, uma cidade em todo o seu esplendor. Na verdade, sentia saudades da beleza de Ur. Sentia a falta do esplendor sólido, imutável e imóvel do zigurate. E, também, do seu quarto na casa de Ichbi Sum-Usur, dos aromas do jardim, do som dos odres a serem enchidos, do murmúrio da água dos tanques, à noite.
Não era a única a sentir-se cansada de montar e desmontar as tendas e seguir os rebanhos ao sabor da sua fome. Porém, muito rapidamente, lua após lua, todos se aperceberam a que ponto o país de Canaã era prodigioso.
Era possível permanecer na mesma terra duas ou três estações. O leite e o mel pareciam escorrer das colinas e dos vales. A chuva alternava com a seca e a frescura com o calor, sem nunca serem excessivos. A abundância engordava rebanhos e crianças. Os filhos tornavam-se mais altos que os pais. Assim, com o decorrer do tempo, todos, inclusive Sarai, se esqueceram do seu sonho citadino. As tendas aumentaram de tamanho, até possuírem quartos separados por cortinados interiores. Abrão mandou confeccionar uma tenda com listas brancas e negras, assaz vasta para nela poder reunir os chefes das diferentes famílias. As mulheres de Salem ensinaram as recém-chegadas a tingir a lã e o linho de cores vivas e alegres. Mostraram-lhes como tecê-los com motivos originais. As túnicas e as capas brancas e cinzentas foram guardadas nos cofres. Começaram a vestir-se de encarnado, ocre, azul, amarelo.
Após dois anos, a reputação da paz e da riqueza de Canaã, a fama da sabedoria de Abrão e de Melquisedeque chegaram às regiões vizinhas, transmitidas pelos pastores e pelas caravanas de mercadores.
Inicialmente isolados e, depois, cada vez mais numerosos, chegaram estrangeiros com magros rebanhos, vindos do Norte e de Leste. Pais e filhos inclinavam-se diante de Abrão com as mesmas palavras e as mesmas esperanças:
- Abrão, ouvimos falar de ti e do teu deus invisível que te protege e te orienta. Da região de onde viemos tudo é pobreza, pó e conflitos. Se aceitares a nossa presença, obedecer-te-emos e seguir-te-emos em tudo. Serviremos o teu deus, oferecer-lhe-emos dádivas seguindo as tuas indicações. Serás o nosso pai e nós seremos os teus filhos.
Alguns chegaram do Sul, depois de terem atravessado os três desertos que bordejavam a opulenta terra de Canaã. Pareciam mais ricos e menos grosseiros que aqueles que vinham do Norte e de Leste, mas nem por isso deixavam de querer pertencer ao povo de Abrão.
- Da região de onde vimos, um rio enorme, de fonte desconhecida, irriga uma terra de grande riqueza - diziam. - Aí reina um soberano de poder ilimitado que é também um deus vivo. Chama-se o Faraó. Senta-se ao lado de outros deuses que têm uma aparência semi-humana, semianimal, ora a de um pássaro, ora a de um felino ou a de um cordeiro. As suas cidades e palácios são magníficos e os túmulos dos seus pais ainda conseguem ser mais belos que os palácios. Mas todo esse poder embriaga aqueles que o servem. Matam-se pessoas como se esmagam moscas. Não se teme a fome, mas a servidão e a humilhação.
Abrão nunca recusava as pastagens de Canaã aos recém-chegados. Abençoava a sua chegada como Melquisedeque os abençoara a eles, à entrada de Salem. De uma espantosa tolerância, nunca obrigava ninguém a acreditar no seu deus, apesar de Lhe dedicar uma devoção absoluta. Mandava construir altares para Ele e todos os dias ia oferecer dádivas e gritar o Seu nome: Yhwh! Yhwh! A única pena que conhecia era o facto de só o silêncio lhe responder. Não havia dia em que não esperasse que o Deus Altíssimo - como começava a chamá-Lo - o interpelasse e lhe ordenasse uma nova tarefa.
Mas Yhwh calava-se. Que teria podido dizer? Tal como prometera, Abrão tornara-se um povo, uma nação, um grande nome.
E tudo isso sem que Sarai lhe tivesse dado um filho ou uma filha!
Desde que se tinham instalado nas terras de Canaã, já ninguém se espantava com a esterilidade de Sarai.
Todos, homens ou mulheres, caminhantes desde Harân ou recém-chegados, estavam subjugados pela sua beleza.
Uma beleza que em si mesma parecia um sinal tão perfeito de abundância que obrigava a calar a inveja e a concupiscência. Da mesma maneira, também compreendiam que Abrão, aproveitando essa beleza como um jovem esposo, não parecesse sentir qualquer tristeza pelo facto de não ter descendentes. Tudo corria bem. A felicidade e a paz embotavam corações e espíritos. O bem-estar tornara-se um alimento quotidiano para todos e para cada um. Nenhum pesar jamais vinha perturbar esta espécie de embriaguez. A beleza de Sarai, o seu ventre sempre raso, as maçãs lisas do seu rosto, a sua nuca, os seus seios e as suas ancas de adolescente tinham-se tornado o sinal da felicidade que lhes era dispensada por Yhwh, o deus de Abrão.
Decorreu muito tempo antes de se aperceberem do prodígio que tinham diante dos olhos: o tempo não deixava marcas na beleza de Sarai'. Decorriam luas, estações e anos, e a sua juventude parecia inalterável.
Depois de a ter encantado, o peso deste silencioso prodígio começava a aterrorizar a própria Sarai.
CERTO DIA DE VERÃO, Sarai banhava-se na parte mais profunda de um rio, como gostava de fazer às horas de maior canícula. As árvores densas formavam aí um quarto de verdura. Mais em baixo, a corrente escavara uma concavidade profunda na rocha, formando uma bacia natural, de tons esverdeados e azulados, suficientemente profunda para tomar banho. Sarai' ia frequentemente a esse local banhar-se nua. Depois, tremendo, e enquanto o sol e o calor faziam crepitar as folhas sobre ela, estendia-se nas rochas da margem, ainda frescas, polidas pelas cheias do Inverno e macias como uma pele. A maioria das vezes adormecia.
Nessa tarde um ruído perturbou a sua sonolência. Soergueu-se, pensando num animal. Ou num ramo morto que tivesse caído na água. Não viu nada e o ruído não se repetiu.
Tinha encostado a cara e o peito à rocha quando ouviu um riso mais acima. Um corpo surgiu por entre as árvores, apanhou a sua túnica e ergueu-se novamente, para desaparecer com estrondo na água. Mas Sarai reconhecera-o.
- Lot!
A cabeça de Lot surgiu à tona da água, trocista. Com uma grande gargalhada, agitou a túnica de Sarai, escorrendo água. Esta encolheu-se e escondeu a sua nudez o melhor que podia.
- Lot, não sejas estúpido! Devolve-me a túnica e vai-te embora! Com duas braçadas poderosas, Lot chegou aos pés dela. Antes
que ela se pudesse mexer lançou a túnica para longe enquanto lhe cingia a barriga das pernas. Beijou-lhe furiosamente os joelhos, procurando abraçar-lhe a cintura. Com um grito de raiva, Sarai agarrou-lhe nos cabelos. Num movimento de ancas, puxando-lhe a cabeça, libertou as suas pernas. Deixando de se preocupar com o seu pudor, conseguiu pôr um pé no ombro de Lot e outro contra o seu peito. Empurrou-o com toda a força. Mas Lot tornara-se um jovem cheio de vigor. Afrouxou o enlace, mas não a largou. Rindo, ébrio de excitação, lutou, agarrou na nuca de Sarai, colocou-lhe uma mão no peito. Então, com os músculos endurecidos pela cólera, ela pulou para o lado e desferiu-lhe um pontapé no sexo, esbofeteando-o com toda a força.
Sob o choque, quer da dor, quer da estupefacção, Lot rolou pela rocha e caiu na água. Sarai' pôs-se de pé, encontrou a túnica e enfiou-a prontamente, mesmo encharcada como estava. Com um gemido infantil, Lot saiu do rio. Ficou um momento deitado de lado, com as mãos massajando o sexo erguido sob a sua tanga. A dor e o embaraço desfiguravam-lhe os traços do rosto. Sarai olhava-o sempre com a mesma fúria.
- Que vergonha! Que a vergonha recaia sobre ti, sobrinho de Abrão!
Lot ergueu-se, de rosto lívido, com o queixo a tremer.
- Desculpa-me - pediu-lhe. - És tão bela...
- Não é um motivo. Sou a esposa de Abrão. Ter-te-ás esquecido? Não tens desculpa possível.
- Sim, existe uma grande e verdadeira razão!
Quase gritara. Desviou os olhos, sentou-se na rocha, de costas voltadas para Sarai. Prosseguiu:
- Tu não te apercebes de nada. Eu vejo-te todos os dias. À noite, sonho contigo. Ao abrir os olhos penso em ti.
- Não deves.
- Não é uma escolha. Não se escolhe a mulher que se ama.
- Nem sequer devias pronunciar palavras dessas. Se o deus de Abrão te ouvisse...
- Que Ele me ouça, se quiser! - interrompeu-a violentamente Lot.---Quem não me ouve és tu! Nem sequer vês que estou
mais vezes ao pé de ti que Abrão. Não vês que te sirvo com mais atenção do que ele. Não há nada que não me peças que eu não faça com a maior alegria. Mas não me vês. E quando dizes o meu nome, penso ser ainda a criança com que ralhavas. Já não o sou, Sarai. O meu corpo cresceu, os meus pensamentos cresceram e o meu sexo também.
De repente, Sarai sentiu-se cheia de confusão e embaraço. A voz de Lot vibrava de dor. Por que não vira ela todo aquele sofrimento? Ele tinha razão. Ela não o via. Ou melhor, enquanto via o homem em que ele se tornara, homem de grande beleza, mais delgado e fino que Abrão, com algo de feminino na sua agilidade, continuava a pensar na criança brincalhona e divertida que ele sempre fora. Entretanto, as jovens de toda a região de Canaã deviam adormecer pensando nele, sonhando desposá-lo um dia.
A cólera de Sarai amainou. Procurou uma frase sensata que pudesse acalmá-lo. Mas Lot postara-se diante dela, com uns olhos tão brilhantes como se estivessem maquilhados de khôl.
- Sei no que estás a pensar. Conheço todas as palavras que tens na ponta da língua e com as quais me queres condenar ou acalmar. Pensas em Abrão, que é como que um pai para mim. E vais dizer-me que és como que uma mãe para mim.
- E não é verdade? Existirá maior pecado do que desejar a sua própria mãe? A esposa do seu próprio pai?
O riso de Lot foi terrível.
- Abrão não é meu pai! Aliás, não quer sê-lo, não me adoptou. E tu dizes-me que és como que uma mãe para mim, mas que mãe se parecerá contigo?
- Lot!
- És aquela que, durante anos, sempre amei como a uma mãe, é verdade. Mas presentemente quem te pode tratar como a uma mãe? Nem eu!
- Que queres dizer?
Lot levou a mão à água para salpicar o rosto e o peito como se se consumisse apesar de estarem à sombra.
- Eles são como que cegos. Mas tu não podes sê-lo. Tu, não. Lot pegou nos dedos de Sarai'. Reteve-os quando ela se tentou libertar. Beijou-os e levou-os à testa com uma doçura plena de respeito.
- Sempre te amei, Sarai. De todo o coração, com tudo o que em mim é capaz de amar. Sim, até ao ponto de ter sido feliz quando foi necessário que te tornasses a minha mãe. E, para minha felicidade ou infortúnio, à excepção de Abrão sou o único homem que conheceu a suavidade da tua pele, a firmeza e calor do teu corpo. Apertaste-me de encontro ao teu peito. Há muito tempo, mas ainda me recordo como se fosse agora, dormi no teu leito durante algumas noites. Acordava sentindo o perfume dos teus seios.
- Lot!
- Todos os dias, desde a minha infância, contemplo o teu rosto. E todos os dias vejo o mesmo rosto perfeito.
Sarai' retirou secamente as mãos das de Lot. Agora era ela que evitava o seu olhar. Mas Lot prosseguiu:
- Como é possível que eles não vejam? Fui criança e, depois, adolescente. Agora sou um homem. O tempo passou por mim. Moldou-me o corpo. Mas, em ti, Sarai, não deixou nenhuma ruga. As jovens da minha infância têm hoje pesadas ancas, o ventre amolecido pelos partos. Têm rugas à volta dos olhos e da boca, a testa e o pescoço marcados. Olho para ti e não vejo nada disso. A tua pele é mais bela que a das moças que desejam que eu as acaricie atrás dos arbustos. A verdade é que o tempo não passa por ti.
- Cala-te - implorou-lhe Sarai. Lot inclinou a testa e murmurou:
- Podes pedir-me tudo o que quiseres, excepto não te amar como um homem ama uma mulher.
NUMA DAS NOITES SEGUINTES, quando Abrão se lhe tinha juntado no leito e repousavam um ao lado do outro na escuridão, ainda entorpecidos pelas carícias, Sarai contou como Lot a surpreendera à beira-rio. Abrão desatou a rir:
- Deves ser a única surpreendida pela paixão de Lot. Quando o senhor Melquisedeque lhe perguntou por que parecia tão relutante a colocar oferendas no altar do Deus Altíssimo, ele retorquiu que teria a certeza da existência de Yhwh no dia em que Ele se manifestasse sob a tua aparência!
Riram ambos. Depois, Sarai acrescentou:
- Quando Lot era apenas uma criança, quando prosseguíamos caminho desde Harân, ele entusiasmava-se pelo teu deus. Queria que lhe contasse constantemente o que tu dizias acerca dele. Agora é um homem e diz-me que não me pode amar como a uma mãe ou como a uma tia porque o tempo não passa por mim. Também é isso que pensas? Que o tempo não passa por mim?
Abrão permaneceu um momento imóvel e silencioso. Depois, com uma voz quente, cheia de alegria, concordou.
- Não será uma maldição? Uma punição que o teu deus me enviou? - perguntou Sarai num só sopro.
Abrão soergueu-se e afastou o cobertor. Com um longo beijo, deslizou os lábios pelo pescoço de Sarai até à cova das suas coxas.
- Noite após noite, a minha carne, os meus dedos, o meu coração e a minha boca enchem-se de felicidade com a tua beleza. Na verdade as estações passam e a beleza de Sarai não murcha. Pelo contrário. Os dias empurram-nos para a morte como o burro puxa a roda que faz subir a água do poço. Mas a minha esposa Sarai é sempre aquela noite tão fresca quanto a da primeira vez que a desnudei.
- E isso não te amedronta?
- Por que estaria amedrontado?
- Não temes que outros fiquem perturbados tanto quanto Lot, mas com menos ternura e sensatez? Não temes que a tua esposa se torne uma fonte de desejo, rancor e ódio?
Abrão soltou um pequeno riso confiante:
- Não existe homem em Canaã que não esteja cheio de desejo de te ver. Como poderia não me aperceber? Não existe homem ou mulher que não inveje Abrão ou Sarai. Mas nem um ousará agir como Lot. Pois eles sabem. Sabem o que Melquisedeque viu em ti quando chegámos a Salem: Yhwh quer a tua beleza, mas não a reserva para mim. Fá-la brilhar sobre Canaã. Oferece-a ao povo de Abrão. Da beleza de Sarai, a minha esposa que não engravida, fez a semente da nossa felicidade eterna. O Deus Altíssimo retém a passagem do tempo sobre ti, pois és a mensageira de todas as belezas que Ele pode realizar. Quem, por entre o povo de Abrão, ousaria conspurcar essa mensageira?
Sarai teria gostado de protestar. Teria gostado de dizer que não sentia nada disso, mas sim o peso do tempo imóvel e o desejo incansável de dar à luz. Teria gostado de dizer que esses pensamentos só existiam na cabeça dos homens. Que o deus de Abrão nunca anunciara nem prometera nada disso, apenas um povo e uma semente fértil. Contudo, o entusiasmo de Abrão reduziu-a ao silêncio: cobriu-a de beijos e saciou-se novamente com o prazer que tanto o satisfazia.
Mais tarde, na escuridão, com a respiração do sono de Abrão contra o seu ombro, a tristeza invadiu Sarai. Mordeu os lábios e cerrou as pálpebras para evitar as lágrimas.
Como teria preferido que o seu ventre se arredondasse e o seu rosto se enchesse de rugas! Que podia fazer com aquela beleza seca como uma pastagem rachada? Como podia preferir uma beleza estéril ao grito cheio de vida e ao riso de um filho?
Assolada por questões cada vez mais dolorosas, cheia de medo e de cólera, não conseguiu adormecer. Pela primeira vez desde que tinham partido de Harân, Sarai foi acometida por uma violenta dúvida.
E se Abrão se enganasse? E se fosse vítima de uma ilusão devido ao desejo de amar o seu deus e de realizar grandes coisas? Ao julgar ouvir um deus invisível e incorpóreo, não estaria sucumbindo à sua própria imaginação ou às manobras de um demónio? Na verdade, de que valia o poder de um deus incapaz de fazer correr o sangue por entre as suas coxas?
Um filho da fome
A PARTIR DA MANHÃ QUE SE SEGUIU ÀQUELA NOITE, a felicidade de Canaã começou a esboroar-se. Os que vinham aumentar a tribo de Abrão tornaram-se subitamente mais numerosos. Vinham sobretudo do Norte, por vezes até das cidades, sem rebanho, mas com a sua experiência de artesãos. E todos diziam:
- Tivemos más colheitas. Não houve chuva, os campos estão secos, os rios mostram os seus calhaus.
Sem hesitar, Abrão oferecia-lhes um lugar. Dentro em pouco, não havia pedaço de terra de Canaã que não devesse alimentar rebanhos e manadas. Nenhuma tenda foi desmontada no Outono. A erva das pastagens tornou-se curta e dura. Pela primeira vez, na grande tenda de riscas brancas e negras, os Anciãos, aqueles que tinham vindo com Abrão, perguntaram:
- Não receias nada?
- Que devo recear?
- Não nos tornámos demasiado numerosos na terra de Canaã? Abrão respondeu:
- O Deus Altíssimo deu-me esta terra e mais nenhuma, e não colocou limites ao meu povo.
Os outros pensaram que uma má estação podia estabelecer um limite onde Abrão não queria. No entanto, calaram-se. Sarai também.
Abrão tornara-se tão seguro de si, tão confiante, que repelia as dúvidas e as questões como um escudo de bronze repele as flechas. Começou também a partilhar menos vezes o leito de Sarai. Esta confiou amargamente a Sililli:
- Até a maior das belezas pode cansar um esposo. Agora basta-lhe pensar no prazer que pode ter comigo, já não precisa de o experimentar.
- Nunca se viu um homem cansar-se dessas coisas! - gozou Sililli. - Mesmo que vacilem e gaguejem, desde que ainda consigam levantar a haste, imaginam-se lenhadores!
Sarai abanou a cabeça sem sorrir.
- Abrão sabe que o meu rosto e o meu corpo serão os mesmos amanhã e nos dias seguintes. E que não obterá nada de diferente daquilo que já obteve. Para quê apressar-se?
Não acrescentou aquilo em que estava a pensar, tal como Sililli.
Lot também via o seu desânimo. Desde que lhe confessara o seu amor, evitava fazer o menor gesto que pudesse provocar a cólera de Sarai. Mas continuava por perto, afectuoso e silencioso. Por vezes passavam fins de tarde juntos, ouvindo os cantos e a música do acampamento, os contos e as lendas narrados com abundantes pormenores pelos mercadores de passagem ou pelos velhos de um clã recentemente chegado.
Às vezes Sarai deixava o seu olhar errar pelo belo rosto de Lot. Estremecia quando ele rebentava a rir ao ouvir as piadas de um contador de histórias. Experimentava uma estranha sensação de alegria, ternura e remorso ao vê-lo tão fielmente presente e atento. Dizia-lhe:
- Por que não vais ter com as raparigas que te esperam? É o teu lugar.
Não ousava acrescentar: «Terás de acabar por escolher uma esposa.»
Lot olhava-a com uma expressão a um tempo séria e tranquila. Inclinava a cabeça e respondia:
- O meu lugar é ao pé de ti. Não desejo mais ninguém. Então, por vezes, Sarai abria os braços para o acolher. Apertava-
-o de encontro-a ela, dava-lhe beijos no pescoço e deixava-se beijar, como quando Lot era criança. Quando os surpreendia assim, Sililli resmungava:
- Vais enlouquecê-lo.
- Não somos mãe e filho, mas podemos ser irmão e irmã! - retorquia Sarai', ruborizada.
- Irmão e irmã! Quando as ovelhas tiverem asas! - guinchava então Sililli, seriamente zangada. - Gosto tanto de Lot como tu e vou dizer-te uma coisa: a maneira como tu, a bela, e Abrão, o indiferente, se comportam com ele é de uma extrema crueldade. Deviam obrigá-lo a desposar uma rapariga, a ter o seu próprio rebanho e a ir fazer filhos para o deserto de Neguev!
Sililli tinha razão. O peito de Sarai gelava, o medo torcia-lhe os rins: as faltas cometidas por ela e Abrão não paravam de aumentar.
Certa noite teve um pesadelo que não ousou contar a ninguém, sobretudo a Sililli. Viu-se a si mesma saindo do rio onde Lot a surpreendera, mas ele não estava presente. Encontrava-se rodeada por muitas crianças, meninas e meninos. Estranhas crianças de ventre cheio como se fossem dar à luz e de rosto vazio. Inteiramente vazio: sem boca, sem nariz, sem olhos nem sobrancelhas, e tão parecidos que não lhe era possível distingui-los. No entanto, não se sentia assustada. Avançava pelas pastagens, assim acompanhada pela caterva de miúdos. Em Canaã, tudo parecia tão belo como de costume. Flores extravagantes tinham brotado em campos recentemente lavrados. Flores com grandes hastes e vastas corolas de pétalas amarelas. Sarai e os miúdos corriam, gritando de alegria, para as colherem. Ao aproximarem-se, apercebiam-se que as hastes estavam cobertas por duros espinhos que impossibilitavam a sua colheita. As próprias flores eram afinal bolas de fogo semelhantes a sóis incandescentes. Faziam arder a vista, queimavam os campos, secavam as árvores. Sarai começou a gritar de medo. Quis avisar Abrão, Melquisedeque e todos os Anciãos da tribo: «Cuidado, as flores vão destruir tudo, vão transformar Canaã num deserto!» Mas, ternas e sempre alegres, as crianças acalmaram-na, mostrando-lhe os seus grandes ventres e dizendo-lhe: «Não faz mal! Não faz mal! Vê como os nossos ventres estão grandes. Vamos parir todos os vossos pecados e podê-los-eis comer quando os campos estiverem desertos».
ALGUNS DIAS DEPOIS, quando Sarai' se decidira por fim a convencer Lot de que ele devia desposar uma mulher e afastar-se dela, este anunciou-lhe com um risinho de desânimo:
- Abrão brinca ao papá.
- Que queres dizer?
- Por entre os recém-chegados de Damasco, está um jovem que não lhe larga os calcanhares. Ou, se preferires, é Abrão que não o larga.
- Que idade tem?
- Onze ou doze anos. A idade que eu tinha quando te tornaste minha mãe.
O sorriso de Lot parecia ranger como um pêssego caído na areia. Encolheu os ombros e acrescentou:
- Um belo moço, de cabelos muito encaracolados. Uma boca grande, um nariz comprido, que agradará às mulheres. Além disso, é esperto e faz batota ao jogo. Já o observei; sabe como proceder com Abrão. É muito mais carinhoso do que eu jamais fui.
- Por que anda com Abrão? - perguntou Sililli. - Não tem pais?
- Tem tudo o que precisa. E, sobretudo, toda a atenção de Abrão.
- Mostra-me quem ele é - pediu Sarai.
O rapaz chamava-se Eliézer e a descrição de Lot assentava-lhe perfeitamente. Belo, vivo, meigo, o género de pessoa que cai no goto dos outros. Contudo, à primeira vista, desagradou a Sarai. Ela não percebia porquê. Seria a sua maneira de rir, inclinando a cabeça de lado? Seriam as suas pestanas um tanto espessas, que quase lhe escondiam os olhos?
- Talvez estejas com ciúmes... - suspirou Sililli. E, com a sua franqueza habitual, acrescentou:
- Tens motivos para isso. No entanto, este rapaz é uma boa notícia. Abrão apercebeu-se finalmente que está cansado de não ser pai. Descobre as alegrias da paternidade com esse Eliézer. Quem ousaria criticá-lo? Ao querer tornar-se rei de um grande povo sem sentir o que é ser pai, o teu esposo começava a inquietar-me.
- Pois bem, eu não vejo nada nesse rapaz de que me possa regozijar! - retorquiu secamente Sarai.
À primeira oportunidade, perguntou a Abrão:
- Quem é esse rapaz que não te larga?
- Eliézer? É o filho de um almocreve de Damasco. Abrão sorria, radiante.
- Agrada-te assim tanto?
- É o miúdo mais adorável de Canaã. Não é apenas bonito. Também é inteligente e corajoso. Aprende depressa e sabe obedecer.
- Mas ele já tem um pai, Abrão. Precisa de dois?
O sorriso de Abrão apagou-se. Pela primeira vez na sua vida de casados, Sarai viu que ele esquecia o seu amor por ela.
Permaneceram frente a frente, em silêncio, temendo ambos as palavras que poderiam jorrar das suas bocas e magoar como pedras. Sarai soube que tinha razão e que vira justo desde há algumas luas: a sua beleza já não bastava. A culpa pesaria mais sobre ela do que sobre Abrão?
Assim, disse com a maior doçura:
- Há muito que sabia que isto devia acontecer. Ninguém se portou melhor que tu com uma esposa estéril.
Abrão ficou calado. Olhar duro, à espera, adivinhando que ela queria acrescentar qualquer coisa.
- Tanto tu como eu sempre considerámos Lot como nosso filho. O que ele é efectivamente desde há muitos anos, quer nos factos, quer nos nossos corações. Porquê preteri-lo por um rapaz desconhecido que tem ambos os pais, quando podias adoptar Lot, fazendo dele a descendência que eu não sei dar-te?
- Lot é filho do meu irmão. Já tem um lugar a meu lado, hoje e amanhã - respondeu friamente Abrão, antes de deixar a tenda.
A noite mal começara. Mais uma vez passou-a longe dos braços de Sarai.
No INVERNO SEGUINTE, o vento soprou, mas a chuva não caiu. A terra endureceu tanto que quase não era possível abrir sulcos nela. Na Primavera, continuou a não haver chuva e as sementes secaram no solo, sem germinar. Assim que os primeiros dias de calor começaram a fazer vibrar o ar nas pastagens, todos pensaram na fome.
Como muitos, Sarai não passava um dia sem que se inquietasse com o amanhã. Lembrava-se do seu pesadelo. As vezes parecia-lhe que a terra de Canaã se tornara como o seu ventre: bela e seca.
Teria gostado de confiar-se a Abrão, perguntar-lhe novamente: «Não te enganas sobre o sentido dessa beleza que se me agarra? Ao forçar-me a uma tal beleza, o teu deus não quererá dizer que a minha falta é maior do que eu imaginava? Que devo afastar-me antes que a secura do meu ventre se transmita às pastagens de Canaã?»
Mas quando evocava os seus tormentos, Sililli soltava grandes gritos e apressava-a a calar-se.
- Minha filha, que orgulho julgar que chove ou não por tua causa! Mesmo em Ur, onde vocês, os Poderosos, eram capazes de se julgarem o umbigo do mundo, era preciso mais de uma falta para que os deuses retivessem a chuva! Além disso, vou dizer-te uma coisa: não é com essas tolices que farás regressar o teu esposo às tuas coxas.
Durante todo esse tempo, Abrão parecia o mais despreocupado de todos. Não passava dia sem que partisse com Eliézer, caminhando de uma pastagem a outra, deitando-se ao relento, aqui e além, lançando redes à beira-mar, ensinando o rapaz a entrançar o vime ou o junco para fabricar cestos, a esculpir chifres e a amestrar mulas.
Ao vê-los, Sarai sentia um nó na garganta. A sua saliva tornava-se ácida como se mastigasse limões verdes. Procurava recobrar o seu bom-senso, escutar os conselhos de Sililli: «Está certo. Tem de ser assim. Gosta dessa criança como Abrão gosta, e assim serás novamente feliz. Que outra coisa podes fazer?»
Mas não, ela não conseguia gostar de Eliézer.
Depois, chegou um dia em que Melquisedeque se dirigiu para a tenda de riscas brancas e negras.
- Abrão, as sementes não germinam, a erva das pastagens seca, a água diminui nos rios e nos poços. Não dispomos de reservas importantes. Na vida de um homem, ninguém se lembra de ter havido fome aqui, na terra do mel e do leite. Mas o país de Canaã tomou-se tão povoado que mal nos alimenta a todos.
- O Deus Altíssimo deu-nos esta terra. Por que haveria de espalhar a fome por ela?
- Quem pode saber melhor que tu, visto que Ele só se dirige a ti?
Abrão hesitou, franzindo o sobrolho. Melquisedeque agarrou-lhe num braço e insistiu, afectuosamente:
- Abrão, preciso da tua ajuda. Não temos a tua segurança. Precisamos de ser reconfortados e conhecer a vontade de Yhwh. Lembra-te que te acolhi diante das muralhas de Salem, dizendo: «Abrão é o meu mais caro amigo».
Abrão abraçou-o e declarou:
- Se existe um desígnio de Yhwh nesta prova, Ele dir-me-á. Mandou sacrificar novilhas, carneiros e cordeiros. Afastou-se
com Eliézer para ir gritar o nome de Yhwh em todos os locais de Canaã onde mandara construir altares. No entanto, após uma lua, teve de admitir:
- O Deus Altíssimo não me responde. Temos de esperar, nada advém sem ter um sentido.
- De que serve um deus que não nos ajuda quando lhe oferecemos dádivas? - ousou perguntar alguém.
A cólera fez tremer a boca de Abrão antes que ele se contivesse e respondesse:
- Conhecestes dez anos de felicidade. Uma felicidade e uma riqueza tão perfeitas que causaram a inveja de todos os povos à volta de Canaã. E agora, que conheceis a primeira seca, já vos haveis esquecido disso. Sois livres de pensardes o que quiserdes. Eu digo: conhecemos a felicidade e agora conhecemos a dificuldade. Yhwh quer certificar-se que temos confiança n'Ele, mesmo quando os tempos são duros.
A SECA DUROU AINDA UM ANO. Os poços secaram, as pastagens amareleceram e, depois, transformaram-se em pó. Nos campos de cereais abriam-se longas fendas onde as serpentes espreitavam a menor presa. Os gafanhotos começaram a morrer, seguidos pelos pássaros. Os rebanhos enlouqueceram. Os animais corriam desalmadamente, ferindo-se. Às vezes desfaleciam ao sol, ou gelavam com o frio da noite. O rei Melquisedeque abriu os recipientes onde guardavam os grãos em reserva nas caves de Salem, mas essa medida foi insuficiente. Cada um carregava com a sua fome, de tez cinzenta e faces
UM FILHO DA FOME 197
encovadas. Em pouco tempo, Sarai não ousou mais mostrar-se. Emagrecia, como todos, mas sem que a sua beleza se alterasse.
- Tenho vergonha do meu aspecto - confiou a Sililli numa noite em que não conseguiam dormir. - Como posso expor esta terrível beleza que me cola aos ossos, quando as mulheres já não têm leite que chegue nos seios para alimentarem os filhos?
Como resposta, ouviu um sopro rouco.
- Sililli?
Sililli buscava a sua respiração, tremendo, encolhida, para não desfalecer. A febre ampliava-lhe os olhos.
- Que te acontece? - gemeu Sarai.
Sililli teve de reunir todas as suas forças para cochichar:
- Começou esta tarde... Há muitos como eu... é a água... A água putrefacta...
Sarai' mandou chamar Lot e uma parteira. Enrolaram Sililli i2m cobertores e peles. Ela começou a transpirar, rangendo os dentes. Por momentos os seus lábios arreganhavam-se, revelando as gengivas demasiado pálidas.
- A febre está a matá-la - constatou a parteira.
- Ela conhece as ervas, saberá encontrar as que precisa! - exclamou Lot.
- Já não está em estado de nos explicar como salvá-la, já não consegue falar - reconheceu Sarai, de garganta apertada.
A meio da noite Sililli perdeu consciência. A febre parecia ter-lhe enfiado os olhos para dentro. A parteira foi chamada a outras tendas, onde se registava o mesmo horror. Lot obstinou-se e procurou fazer escorrer cerveja pela garganta de Sililli. Ela engasgou-se, cuspiu, vomitou e, durante algum tempo, pareceu acalmar.
De madrugada, abriu os olhos com o frio matinal. Parecendo inteiramente consciente, segurou nos punhos de Sarai e de Lot. Quiseram saber onde encontrar ervas e como tratá-la. Ela piscou as pálpebras. Com uma voz quase inaudível, murmurou:
- Chegou a minha hora, deslizo para o mundo inferior. Tanto melhor, será uma boca a menos a alimentar.
- Sililli!
- Desiste, minha filha. Nascemos e morremos. Está tudo bem.
Foste a grande felicidade da minha vida, a minha deusa. Não mudes, continua como és. Sei que até o deus de Abrão dobrará o joelho diante de ti.
- Lembra-te que Ele não tem corpo - gozou Sarai, com o rosto lavado em lágrimas.
Sililli esboçou um sorriso.
- Veremos...
Sarai inclinou o corpo, tal como fazia em criança, e colocou a testa entre os seios de Sililli. Estes tremiam, quase frios e, contudo, vibrantes de febre. A mão de Sililli pousou delicadamente na nuca de Sarai.
- Lot! Lot! - arquejou Sililli num derradeiro esforço. - Esquece Sarai, encontra uma mulher.
Morreu antes do sol brilhar intensamente por cima do horizonte.
DURANTE ESSA MANHÃ Sarai permaneceu de pé, diante da tenda, invadida pela cólera. Já não chorava. Choros, havia-os por todo o lado. Doravante, a dor da perda e o sofrimento de viver alimentavam os únicos rios da abundância de Canaã, os rios de lágrimas!
Bruscamente, Sarai começou a caminhar. Dirigiu-se para a grande tenda de Abrão. Havia homens à volta dele, ocupados a discutir. E Eliézer, alguns passos adiante.
O rosto de Abrão estava fechado, duro, cansado. Semelhante a uma rocha escaldada pela areia. Contudo, compreendeu logo, ao primeiro olhar de Sarai. Pediu a todos que saíssem e os deixassem sozinhos. Eliézer permaneceu sentado na sua almofada. Sarai disse-lhe:
- Também se aplica a ti, rapaz.
Eliézer olhou-a, com fogo nas pupilas. Buscou apoio junto de Abrão. Mas, com um gesto, este fez-lhe sinal para que obedecesse.
- Não sejas demasiado rude com o miúdo - pediu Abrão, logo que ficaram sozinhos. - Não é responsável pela fome e os seus pais morreram ontem.
Sarai respirou a plenos pulmões para acalmar a sua fúria.
- E outras dezenas morrerão hoje. Sililli faleceu esta madrugada. Sem dizer palavra, de olhos velados, Abrão inclinou a cabeça.
No meio do silêncio, a voz de Sarai soou como um estalido de chicote.
- Que deus é esse, Abrão, que não pode nem alimentar o teu povo nem tornar fecundo o ventre da tua esposa?
- Sarai!
- É o teu deus, Abrão, não o meu.
As mãos de Abrão tremeram. A respiração erguia-lhe o peito, o sangue latejava-lhe nas têmporas. Sarai teve medo. Pensou na febre de Sililli. E se a doença também o tivesse afectado? Precipitou-se, colocou as mãos do esposo nas suas e levou-as aos lábios:
- Estás doente? - inquietou-se.
Abrão abanou a cabeça, respiração entrecortada, incapaz de falar. Subitamente agarrou nos ombros de Sarai', apertou-a de encontro a ele, mergulhando o rosto nos seus cabelos.
- Ele já não me fala, Sarai. Yhwh cala-se! Sarai afastou-o suavemente.
- E é uma razão para te tornares impotente, Abrão? Este desviou-se, resmungando.
- O teu deus cala-se - prosseguiu Sarai - mas esse silêncio deve permanecer entre vocês. Abrão, meu esposo, Abrão, igual de Melquisedeque, tu, que nos conduziste desde Harân, tu, que abriste a terra de Canaã aos recém-chegados, tu não estás reduzido ao silêncio! Estamos aqui, diante da tua tenda, aguardando as tuas palavras. Aqueles que vieram ao teu encontro estão aqui, tremendo de febre e de fome. Esperam que Abrão dê ordens para desmontar as tendas.
- Para irmos para onde? Julgas que não penso nisso desde há numerosas luas? Canaã está rodeada de fome ou de desertos, a Norte, a Leste e a Sul. E a Oeste, é o mar!
- No Sul, depois do deserto, há a terra do Faraó. Abrão olhou-a, estupefacto.
- Ouviste, como eu, o que se diz sobre o Faraó, sobre a sua crueldade, o seu prazer em reduzir os humanos à escravatura, sugando-lhes suor e sangue.
- Ouvi, mas também ouvi como a sua terra é opulenta, sempre regada por um rio enorme, e como as suas cidades são ricas.
- O Faraó julga-se um deus!
- A que ponto isso pode inquietar aquele cujo nome foi pronunciado pelo Deus Altíssimo?
De olhar aguçado, Abrão contemplou Sarai. Estaria a troçar dele?
- Abrão, não compreendes que tens de decidir sem esperar por ajuda? - prosseguiu Sarai com mais suavidade. - Doravante, nada é pior do que permanecer na terra de Canaã. Aqui, morreremos. E connosco, a gente de Salem que nos acolheu. Que arriscamos ao ir pedir protecção ao Faraó? Que morte pode ele acrescentar àquela que nos espera?
Abrão não retorquiu. Sarai prosseguiu:
- O teu deus cala-se e tu comportas-te como uma criança que se zanga com a indiferença do pai. Eu, Sarai, que troquei definitivamente a protecção de Inanna e de Ea pela tua, quero ouvir as tuas palavras.
NESSA MESMA TARDE, Abrão anunciou a Melquisedeque que logo na manhã seguinte se poria a caminho da terra do Faraó. Cheio de emoção, Melquisedeque abraçou-o e prometeu-lhe que a terra de Canaã seria sempre a dele. Quando os tempos da seca acabassem, Abrão poderia regressar e seria recebido com a maior felicidade. Abrão pediu ainda um favor a Melquisedeque.
- Fala, concedo-to antecipadamente.
- Os pais do jovem Eliézer de Damasco morreram. Diante de ti, declaro que doravante o considero como o meu filho adoptivo. Peço-te que o guardes perto de ti durante a minha estadia na terra do Faraó. Ninguém sabe o que nos espera. Se eu morrer, Eliézer poderá permanecer na terra de Canaã, reclamando a utilização do meu nome.
Melquisedeque achou que se tratava de uma sábia decisão. Mas quando Lot soube da ocorrência, soltou um riso gélido.
- Com que então, Abrão encontrou um filho da fome - declarou a Sarai.
O Faraó
A minha irmã Sarai
AVANÇAVAM LENTAMENTE, caminhando curtas horas, na frescura da manhã e do fim da tarde. Era esse o desejo de Abrão, para não esgotar os mais fracos, homens ou animais, cujos músculos tinham sido devorados pela fome de Canaã.
O mar era tremendamente brilhante. Cegava a vista, embriagava o olhar com a sua imensidão. A maioria não estava habituada. O marulhar nocturno inquietava e impedia o sono. Mas dava-lhes de comer. Abrão mostrou como confeccionar redes de pesca e como lançá-las dos rochedos ou de pé, na água, no meio de praias imensas de areia dourada. Também mostrava como colher conchas sob a areia e como apanhar lagostins com cestos. À sua volta, as crianças reencontravam os seus risos e aprendiam depressa.
Sarai' observava-o, cheia de ternura. Lembrava-se das primeiras palavras que ele lhe dirigira na margem do Eufrates: «Pescava. É a hora indicada para apanhar rãs e lagostins. Se ninguém vier pisar-nos, desatando aos berros!»
Chegaram a aldeias cujas casas eram apenas choupanas. O vento do mar soprava por entre os juncos. Avistavam-nos ao longe: formavam uma longa coluna colorida e lenta, rodeada por rebanhos dispersos de lã acinzentada pela poeira. Eram acolhidos com desconfiança e curiosidade. Mas, apesar dos poucos animais que lhe restavam, Abrão trocava uma ovelha por peixe seco, tâmaras, ervas frescas e odoríferas, figos e informações. Dizia:
- Vamos para a terra do Faraó, pois a fome reina em todo o Norte, de onde viemos.
Respondiam-lhe:
- Tem cuidado. Há muitas guerras na terra do Faraó. Ele não gosta de estrangeiros. Fica com as mulheres e o gado, mata os homens e as crianças. Há um número incrível de soldados por toda a parte, bem vestidos e bem armados. Diz que é um deus e acreditam-no, de tal modo é poderoso. Dizem que sabe transformar as coisas. Que pode provocar a chuva ou a seca. Dizem que está rodeado de ouro. Os seus palácios estão cobertos de ouro e até o corpo das suas esposas é feito de ouro.
Abrão franzia o sobrolho, um tanto trocista:
- Esposas de ouro?
Os velhos pescadores riam, apontando para Sarai:
- Menos belas que a tua, certamente. Mas é isso que se diz, com efeito. Esposas de ouro. O Faraó atrai para junto dele tudo o que há de mais belo. É o seu poder.
Abrão inclinava a cabeça, incrédulo, mas preocupado. De vez em quando mandava montar a tenda com riscas brancas e negras. Aí escutava então as queixas de uns e as sugestões de outros. Muitos perguntavam:
- Que diremos ao Faraó quando ele nos enviar os seus soldados?
- Que apenas necessitamos de um pouco de erva para fazer pastar e crescer os nossos rebanhos. Nada mais.
- Mas se ele nos quiser roubar as nossas mulheres, como afirmam os pescadores?
Abrão olhava para Sarai e anunciava, entre a cólera e a ironia:
- Esses pescadores têm tanto medo do Faraó que estão dispostos a atribuir-lhe todos os poderes. Até parece que regressámos ao reino de Akkad e da Suméria.
DE ALDEIA EM ALDEIA, repetiam-lhes contudo os mesmos avisos. O Faraó tinha uma armada invencível. O Faraó era um deus. Às vezes mudava de cabeça para se transformar num falcão, num touro, ou num cordeiro. O Faraó tinha um gosto insaciável pela beleza, quer a das cidades, quer a das mulheres.
Sarai sentia o receio aumentar à sua volta. A palavra «Faraó» deslizava como uma sombra de boca em boca, ensombrando os rostos.
Abrão afastou-se, permanecendo dias inteiros longe deles. Sarai adivinhava que ele ia gritar por Yhwh, esperando pelo Seu conselho. Mas, quando regressava, a decepção endurecia-lhe as feições. Também ele permanecia silencioso. No entanto, lançou um olhar a Sarai' que parecia dizer: «Insististe para que eu conduzisse o meu povo até à terra do Faraó. Agora vê o perigo que corremos por causa dessa decisão».
Lot surpreendeu esse olhar e compreendeu-o. Nessa mesma tarde trouxe a Abrão o último jarro de cerveja que lhe restava de Canaã. Quando beberam dois copos, observou:
- Vê quantos somos, Abrão. Todo um povo. Milhares. Sem contar com o gado, mesmo se os nosso rebanhos emagreceram. Poder-se-ia pensar numa invasão de gafanhotos! Quem não se assustaria ao ver-nos chegar às suas terras?
- Que queres dizer?
- Cada dia que passa aproxima-nos da terra do Faraó. Temos de ser prudentes.
Abrão riu-se amargamente:
- Aqui, não conheço ninguém que não tenha pensado nisso.
- Mas eu tenho uma ideia: deixa-me ir à frente com alguns companheiros para saber onde estão os soldados do Faraó.
- Para fazeres o quê?
- Para conhecer o seu número, a sua força, saber em que caminhos se encontram, se nos esperam ou se ficarão surpreendidos quando nos virem.
- Vais enfrentá-los? Mal levantes um dedo, cortar-to-ão imediatamente! - exclamou Abrão. - Além disso, vamos pedir ajuda ao Faraó. Não se combate aquele a quem estendemos a mão.
- Quem falou em combater? - protestou Lot. - Muito pelo contrário. Quero simplesmente encontrar os soldados do Faraó. Seremos poucos, uma pequena embaixada. Não irão pensar que os gafanhotos lhes invadem as pastagens. Podemos pedir-lhes a autorização para entrarmos nas terras do Egipto. Eles aceitarão ou recusarão. Saberemos com que contar.
- Nada os impedirá de massacrá-los.
Foi a vez de Lot mostrar um sorriso trocista:
- Pois bem, então terei mostrado que mesmo que não seja seu filho, sou digno do nome de Abrão.
Abrão ignorou o sarcasmo. Consultou os Anciãos. Todos concordaram que se tratava de uma proposta judiciosa. Uma vintena de jovens aceitou acompanhar Lot.
Partiram na manhã seguinte, apenas com os seus cajados e uma mula carregando um pouco de água e alimentos. Sarai apertou Lot contra o seu peito. Beijou-lhe os olhos e o pescoço, murmurando-lhe palavras de ternura e prudência. Enquanto conseguiu avistar a silhueta do pequeno grupo afastando-se pela encosta de uma colina arenosa, seguiu-os com um olhar repleto de apreensão.
Nos DIAS SEGUINTES, Abrão mandou avançar a coluna ainda mais devagar que de costume. Todos esperavam pelo regresso de Lot e dos seus companheiros. Todos temiam ver aparecer os soldados do Faraó no horizonte, depois de contornarem uma colina, uma duna ou um bosquezinho de palmeiras.
Por fim, regressaram uma tarde em que o sol parecia derreter chumbo no mar e em que todos procuravam uma nesga de sombra. Depois de risos e abraços, contaram que em menos de quatro dias de marcha, após passar pelas dunas e pelas falésias da costa, se avistava o Egipto.
- Nada é mais verde. Nem sequer Canaã, antes da fome. E imenso. Para onde quer que se olhe, só se vê riqueza.
- E os soldados do Faraó? - perguntou Abrão, com impaciência.
- Não encontrámos nenhum! - exclamou Lot. - Nada!
Apenas rebanhos e manadas. Vimos estradas, casas de tijolo, aldeias, armazéns, mas não avistámos qualquer soldado.
- Que dizem as pessoas ao vê-los? - perguntou alguém.
- Nada - respondeu Lot, divertido. - Ou nada que tenhamos compreendido. Não falam a nossa língua. Também são com-pletamente imberbes. Sim, os queixos dos homens são tão lisos como os das mulheres. E o seu carácter parece tão suave e tranquilo quanto as suas faces são glabras. Ofereceram-nos várias vezes cerveja de cevada em sinal de boas-vindas. A mais doce que me foi dada beber. Decorei o sabor e o nome: bouza!
Ouviram-se alguns risos.
- Então o que os pescadores contam é falso?
- Pelo que pudemos constatar - afirmaram os companheiros de Lot - a terra do Faraó é a mais calma, a mais acolhedora que se possa imaginar. Não vi homem com aspecto de escravo, nem Poderoso de chicote na mão, como contam.
Porém, a alegria e a esperança não conseguiam dissipar inteiramente a inquietação. Seria possível instalarem-se verdadeiramente na terra do Faraó, sem nada pedir e sem nada temer?
Trocaram-se conversas e opiniões no meio de um alarido e de uma excitação que só diminuíram ao crepúsculo e porque deviam dar de beber aos animais. Durante todo esse tempo Abrão permaneceu afastado, pensativo. Ao fim do dia, retirou-se para oferecer as suas dádivas a Yhwh. Já de noite, lavado e mudado, juntou-se a Sarai, que servia uma refeição a Lot.
Sentou-se ao lado deles, sob a pouca luz dispensada pelas lâmpadas. Sarai estendeu-lhe o pão. Abrão pegou nele mas, num gesto inusitado, reteve a mão dela para lhe beijar os dedos. Sarai e Lot observaram-no mais atentamente, adivinhando que ele já tomara a sua decisão. Partiu o pão em três partes, antes de falar.
- Penso que os pescadores disseram a verdade. Os soldados do Faraó virão ao nosso encontro. Não tenho dúvidas.
Lot abriu a boca para protestar. Abrão ergueu a mão para o mandar calar.
- Não os viste, Lot, mas aqueles que te viram na terra do Faraó, avisá-los-ão. É assim que as coisas se passam.
- Como sabes? - perguntou Sarai.
- Os mercadores que chegavam a Salem vindos da terra do Faraó contavam todos a mesma história. As caravanas deles avançavam sem problema pelas terras do Egipto. Um, dois dias de marcha, sem que ninguém os questionasse, sem que ninguém lhes perguntasse: «Que fazem aqui, para onde vão, que trazem nos sacos e nos cestos?» Depois, subitamente os soldados encontravam-se diante deles.
- Então, por que me deixaste partir, se já sabias isso tudo? - insurgiu-se Lot, furioso.
- Porque o desejavas. Todos o desejavam. Com razão. Agora, todos nós sabemos que a terra do Faraó é tão opulenta como nos contaram. Isso dar-nos-á a coragem para enfrentarmos o medo dos soldados. E eu sei que os mercadores de Salem diziam a verdade.
Abrão sorriu, divertido. Sarai' também sorriu. A astúcia do esposo não lhe desagradava.
- Eles virão e executarão as ordens do Faraó - prosseguiu Abrão, de olhos fixos em Sarai. - Examinarão os nossos rebanhos, assegurar-se-ão se somos ricos ou pobres. E verão a beleza da minha esposa. E voltar-se-ão para mim e perguntar-me-ão: «É a tua mulher?» E eu responderei: «Sim, é Sarai, a minha esposa». Então, massacrar-nos-ão para a levarem para o palácio do Faraó. Eis o que se irá passar.
Caiu um silêncio de pedra. Lot foi o primeiro a reagir, de voz estridente:
- Como podes estar tão seguro?
Abrão não lhe respondeu. Os seus olhos continuavam fixos em Sarai. Ela aprovou com um sinal da cabeça.
- Abrão tem razão. Se é verdade aquilo que se diz, as coisas poderão passar-se assim.
- Nesse caso, teremos de te esconder! - exclamou Lot. - Podemos... vestir-te de homem. Ou cobrir-te o rosto de fuligem. Cobrir-te uma perna com panos, como se tapasses uma chaga. Ou ainda...
- Os soldados serão iludidos no primeiro dia, talvez ainda no segundo - interrompeu-o Abrão com calma. - Mas virá o momento em que alguém lhes dirá que a mulher de Abrão é a mais bela que jamais lhes foi dado contemplar. A fúria dos soldados será ainda maior, pois terão sido enganados e recearão a cólera do Faraó. Calaram-se novamente, até Sarai perguntar:
- Nesse caso, que devemos fazer?
- As coisas não se passarão assim caso eu lhes diga que és minha irmã.
Sarai e Lot suspenderam a respiração.
- Se eu disser que és minha irmã - prosseguiu Abrão - talvez o Faraó te convide para um dos seus palácios. Sim, certamente. Quererá ver-te. Mas não terá de se desembaraçar de mim, nem de nós todos.
- Queres oferecer Sarai ao Faraó? - exclamou Lot, levantando-se, com a boca deformada pela fúria. - Para não morreres? É essa a coragem do grande Abrão?
- Não - retorquiu Abrão. - Não quero dar Sarai. E não se trata do meu medo.
- Compreendo - murmurou Sarai', pálida, retendo Lot pelo punho.
- Trata-se da vida do povo de Abrão e não da minha - insistiu Abrão. - É nisso que devemos pensar.
- Não! - gritou Lot. - Nem quero pensar nisso. Não tens o direito de pensar numa coisa dessas!
Sarai pousou uma mão na cara de Lot.
- Sim. Abrão tem razão.
Os seus olhos brilharam, tristes e resignados. Por sua vez Abrão levantou-se e afastou Lot para a abraçar:
- Salvar-nos-ás a todos - implorou-lhe.
- Se o teu deus assim quiser.
ABRÃO ACERTARA.
Chegaram sem problemas às proximidades de uma cidade de casas baixas e brancas, chamada Midgol. Todos puderam constatar que Lot não mentira. Os habitantes sorriram ao avistá-los. Homens de faces imberbes e lisas acolheram-nos com frases incompreensíveis pronunciadas num idioma deslizante e sinuoso, semelhante ao som da água.
Água era coisa que havia por todo o lado. Midgol fora construída perto de um dos braços do Nilo. Jardins, pastagens, bosques de palmeiras, de canas-da-índia e de laranjais, estavam rodeados por canais cuidadosamente tratados. Permitiram-lhes dessedentar os animais. Abrão agradeceu oferecendo-lhes um casal de rolas. Todos riam. Falavam por sinais, ruídos de boca, batimentos de mãos.
Depois de saciados os rebanhos, Abrão declarou:
- Aproximemo-nos do rio. Talvez encontremos um baldio onde os animais possam pastar.
A estrada que entrava pelo país do Faraó era larga, com sombra proporcionada por elevadas palmeiras. Abrão caminhava à frente, vigilante. Atrás dele, Lot e os seus jovens companheiros precediam o resto da coluna. Seguindo as ordens de Abrão, as esposas e os filhos iam de pé nas carroças, instaladas por sua vez por entre os animais reunidos num só rebanho.
Homens e mulheres que trabalhavam nos campos, reuniam-se à berma da estrada para os verem passar. Surpreendidos ao ver todos aqueles homens barbudos, as crianças esfregavam as faces, rindo-se.
De repente, a estrada desembocou num rio atravessado por uma pequena ponte de madeira. Diante da ponte, sobre ela, e ainda na outra margem, em toda a parte, estavam os soldados do Faraó.
Duzentos ou trezentos. Talvez mais.
Eram jovens, glabros, com o corpo cingido por uma tanga e os ombros cobertos por uma curtíssima capa. Não traziam capacete e tinham cabelos espessos, escuros e brilhantes. Uns traziam lanças e um escudo redondo, outros traziam arcos. Todos tinham um punhal de cobre ou maças de pedra suspensas à cintura.
Abrão imobilizou-se erguendo o seu cajado. Lot e os outros rodearam-no. Atrás deles, os homens gritaram para que parassem o rebanho e as mulas. O ruído das grandes rodas das carroças cessou. Os soldados formaram duas colunas. De lanças em riste, rodearam Abrão e a cabeça do rebanho. Os que estavam na outra margem avançaram para tomar posição na ponte.
Três homens com bastões dourados aproximaram-se de Abrão. Traziam folhas de bronze cosidas nas capas de cabedal e longos braceletes de cobre nos antebraços. Também não tinham pêlos nos braços. As rugas da idade marcavam-lhes as faces. Dos três, apenas um trazia uma cabeleira, uma espécie de capacete de couro, semelhante a um véu dobrado, onde estava fixada, na testa, uma pequena cabeça de carneiro em bronze. O seu olhar pousou sem hesitar em Abrão.
- Chamo-me Tsut-Phénath. Sirvo o deus vivo Merikarê, Faraó das Duas Terras.
Ficaram surpreendidos por o compreenderem tão bem. Falava amorrita quase sem sotaque. O seu olhar deslizou para Lot e, depois, para uns e outros. Dois olhos castanhos-claros, sem expressão, regressaram a Abrão:
- Sabes que entraste nas terras do Faraó?
- Sei. Venho solicitar o seu auxílio. Chamo-me Abrão. A seca expulsou-me da terra de Canaã, onde vivia com o meu povo. A fome instalou-se lá. O sol abriu a terra e tudo o que vive, morre. O que peço à bondade do Faraó é um espaço de erva, para que os nossos rebanhos possam reconstituir-se e para que o meu povo não chore a morte dos seus filhos.
O oficial do faraó ficou um momento imóvel, de olhos semi-cerrados, uma nota de dúvida pairando-lhe nos lábios. Talvez procurasse meter-lhes mais medo. Talvez procurasse apenas compreender as palavras de Abrão. Ouviam-se os grunhidos dos animais inquietos, o arrastar dos tamancos, mas nem uma palavra.
De repente, sem se mexer, o oficial proferiu algumas ordens na sua língua. Soldados avançaram ao longo da coluna até às carroças. Afastaram os animais, o que agitou todo o rebanho. Lot quis acompanhá-los. Abrão ordenou-lhe:
- Não! Não te mexas!
Um dos oficiais que se calara até então, gritou qualquer coisa. Outros soldados afastaram Lot e os seus companheiros. Com a ponta dos punhais encostada aos rins de Abrão, obrigaram-no a colocar-se na berma da estrada. Mais atrás, os soldados obrigavam as mulheres a descer das carroças. Tudo demorou muito tempo.
O que se chamava Tsut-Phénath emitiu uma nova ordem e o terceiro oficial juntou-se aos soldados.
A espera continuou, enquanto Tsut-Phénath permanecia impassível.
Não aguentando mais, Lot perguntou:
- Que fazem?
Tsut-Phénath nem sequer olhou para ele. Abrão disse-lhe:
- Estão a cumprir as ordens do faraó. Fiquem tranquilos. Não há nada a temer.
Desta vez Tsut-Phénath voltou-se para Abrão, considerou-o atentamente e, depois, inclinou a cabeça, esboçando um sorriso.
Os soldados regressavam, empurrando um grupo de mulheres diante deles. As mais novas, as mais belas.
Quando elas se imobilizaram, Tsut-Phénath afastou os soldados com um gesto da mão. Avançou, examinando-lhes o rosto. Por vezes servia-se do seu bastão dourado para afastar o véu que lhes cobria a cabeça. Quando chegou diante de Sarai, parou. Ela baixou os olhos. Ele contemplou-a tanto tempo, que ela acabou por erguer as pálpebras, enfrentando a dureza do seu olhar.
Tsut-Phénath inclinou a cabeça:
- Como te chamas?
- Sarai'.
Aprovou com um sinal, como se o nome lhe conviesse. Proferiu algumas palavras na sua língua. Os outros oficiais aproximaram-se para rodear Sarai e afastar as outras mulheres.
- O Faraó deseja vê-los - anunciou Tsut-Phénath, voltando-se para Abrão. - A ti e à tua esposa, esta mulher que se chama Sarai.
- Não é minha esposa - respondeu Abrão sem pestanejar. - É minha irmã.
O oficial do Faraó imobilizou-se, surpreendido.
- Tua irmã? Disseram-nos que vinhas a caminho com a tua esposa, a mulher mais bela do vosso povo, a mais bela para lá do deserto, perto da cidade de Salem. Olho para esta mulher que se chama Sarai e não vejo como poderás ter uma esposa mais bela.
- Como sabes que viemos de Salem? - exclamou Lot, sem conseguir conter a sua cólera.
Tsut-Phénath replicou com um riso pleno de soberba:
- O Faraó sabe tudo. Aproximou-se de Sarai.
- É verdade? És irmã daquele que se chama Abrão?
- Sou - assegurou ela, sem hesitar.
Tsut-Phénath contemplou-a ainda um momento. O seu olhar era tão agudo, tão insistente, que Sarai teve a impressão que a túnica já não a cobria. Por fim voltou-se para Abrão e anunciou:
- Vamos levar uma das vossas carroças. O Faraó também quer vê-las. Assim, a tua irmã não terá de caminhar. Quanto aos outros, nomeia-lhes um chefe durante a tua ausência. Vamos acompanhá-los até um local onde poderão montar as tendas e fazer pastar os rebanhos enquanto esperam a decisão do Faraó quanto ao destino a dar-lhes.
A terra e o grão
VESTIDA COM UMA TOGA VERDE, um colar de pedras vermelhas deslizando-lhe por entre os seios, a mulher que avançava na direcção de Sarai tinha uma pele escura e dentes com a brancura do leite. A sua beleza parecia fazer eco à de Sarai. Fez uma rasgada vénia:
- Chamo-me Agar. Enquanto estiveres por entre estes muros, considera-me como tua serva.
Ergueu-se, bateu palmas, fazendo surgir uma dezena de raparigas muito novas. Umas traziam roupa de cama, toalhas, outras taças com perfumes, frasquinhos com unguentos, pentes e cofres.
- O teu percurso deve ter sido longo e desgastante - explicou Agar. - Preparámos-te um banho. Se me quiseres acompanhar...
Já lhe voltava costas, abandonando o terraço. Sarai avançou, dócil, subjugada, seguida pelas jovens.
O caminho fora certamente longo e cansativo. Tiveram de atravessar seis braços do Nilo e embrenhar-se profundamente nas terras opulentas do Egipto, antes de chegarem ao palácio do Faraó, em Neni-Nepsu. Separada de Abrão durante todo o trajecto, Sarai deixara-se invadir pela imaginação ao pensar na ferocidade do Faraó e nas humilhações que teria provavelmente de suportar. Ela, que agora era a irmã de Abrão!
Na verdade o seu ressentimento contra ele não parara de aumentar ao longo do percurso. Enquanto Tsut-Phénath, o oficial do Faraó, a vigiava constantemente, a decisão de Abrão, que ela aceitara, não era mais do que ameaça, solidão e abandono.
Depois, a cólera e o receio dissiparam-se ao avistar as muralhas de Neni-Nepsu. Tudo era esplendor, opulência e doçura. O palácio era imenso, elegante, apesar do seu tamanho. Os seus muros de uma brancura resplandecente sustinham cascatas de flores púrpuras, formando um conjunto sumptuoso de terraços, colunatas de pedra e madeiras pintadas e douradas, que ligavam as numerosas escadarias.
Na sombra tranquilizante das salas pavimentadas com pedras lisas, as paredes estavam revestidas de pinturas incríveis. As alcovas transbordavam de esculturas, tecidos, móveis embutidos de ouro e prata. E de onde quer que se olhasse a partir dos terraços, só se avistavam jardins, lagoas e canais. As lagoas eram tão vastas que havia barcas navegando nelas. Altas paliçadas de estacas retinham os mais estranhos animais: elefantes, leões, macacos, tigres, gazelas ou girafas, e outros, mais feios, que chamavam camelos.
Sarai jamais vira algo de semelhante. Nem sequer os mais esplêndidos palácios de Ur, cuja lembrança acarinhava, conseguiam aguentar a comparação com esta riqueza. A forma como tinham acabado de a acolher, introduzindo-a no centro do palácio, parecia fazer parte de um sonho.
A serva Agar aproximou-se de uma porta com guarnições de bronze, guardada por dois soldados de tanga e capa folheadas de prata. Agar agitou a mão. Os soldados deslizaram para o lado e abriram a porta. Sarai seguiu a serva por uma sala alta, cheia de luz.
Um perfume estranho, meloso e acre, chegou-lhe às narinas antes de descobrir uma longa piscina rodeada de colunatas. A piscina não continha água, mas leite de burra.
Agar viu a surpresa de Sarai. Sorriu, divertida.
- Não há nada melhor para a nossa pele. O leite de burra com mel retira o cansaço e as más lembranças. Conserva a beleza melhor do que qualquer unguento. Apesar de dizerem que não precisas dele, o próprio Faraó ordenou que preparássemos este banho para ti.
Sarai quis fazer uma pergunta, mas não teve tempo. As jovens que a acompanhavam já lhe tinham pegado na túnica para a despirem. Por sua vez, a serva Agar desnudou-se. As suas ancas e os seus seios eram mais pesados que os de Sarai e o seu corpo teria sido perfeito não fosse uma cicatriz, bordejada e nacarada de rosa, que brilhava através dos seus ombros.
Agarrando suavemente na mão de Sarai, conduziu-a para a escada que descia para o banho. O leite de burra estava morno. Sarai entrou nele lentamente, deixando-se envolver até à cintura pela sua suave carícia.
- Há um leito de pedra no centro da piscina - indicou Agar. Mostrou a Sarai como se estender nele de barriga para o ar. Um banquinho de madeira coberto por uma almofada forrada de salva mantinha-lhe a cabeça fora do leite.
- Respira profundamente - disse Agar. - A salva desembaraçará as tuas narinas da poeira dos caminhos.
Ela reclamou óleos e unguentos às jovens ajoelhadas à beira da piscina. Com uma mão experiente, começou a massajar os ombros e os rins de Sarai, agitando a superfície do leite com pequenas ondas odoríferas.
Sarai fechou os olhos, entregando-se àquele prazer inesperado. Pensou de forma fugaz em Abrão, perguntando-se se o Faraó lhe concederia tão suave tratamento. Também perguntou a si mesma por que tinham temido tanto o rei do Egipto. Um rei, um Poderoso que acolhia daquela maneira os estrangeiros vindos em busca do seu auxílio, poderia ser tão cruel como diziam? Não teriam sido ludibriados pelos boatos? Infelizmente, se assim fosse, ela e Abrão tinham mentido sem motivo. E essa mentira, longe de os proteger, não iria provocar a sua perda? Estaria ela neste banho, caso o Faraó soubesse a verdade e a julgasse esposa de Abrão?
- Já te disseram quem sou? - perguntou a Agar.
- És Sarai, irmã de Abrão, aquele que acredita num deus invisível. Também dizem que a tua beleza é insensível à passagem do tempo. É verdade?
- Como sabes isso tudo?
- Foi a minha senhora, a esposa mais recente do Faraó, que mo contou. Aliás, desde ontem, esposas e servas só falam da tua chegada.
- Mas ele, o Faraó, sabe quem eu sou? Agar riu.
- O Faraó sabe tudo.
Sarai fechou as pálpebras, com o coração a bater. Saberia o Faraó verdadeiramente tudo?
A massagem de Agar tornou-se mais insistente, mais acariciante. Apesar da sua nova inquietação, Sarai sentiu o cansaço abandoná-la. O seu corpo, endurecido pela viagem e pelo calor, parecia diluir-se no leite da piscina. Sem interromper os movimentos ágeis dos dedos, Agar tagarelava:
- A minha senhora disse-me: «Amanhã, servirás aquela que anunciam como a mulher mais bela que vive para lá do deserto, a Leste». Também me disse: «Escolho-te a ti, Agar, pois és a minha mais bela serva e veremos se essa Amorrita brilhará assim tanto a teu lado.»
- É verdade que és muito bela - aprovou Sarai'. - As tuas ancas são mais bonitas que as minhas.
- É por não seres esposa e ainda não teres tido filhos.
- E tu tens?
Agar esperou um momento antes de responder. Pressionando o ombro de Sarai, obrigou-a a voltar-se de costas. Massajando-lhe as coxas, disse-lhe:
- Nasci longe, no Sul, à beira-mar de Suph. O meu pai era rico e possuía uma cidade onde se comerciava muito com o país de onde vens. Por isso sei falar a tua língua. Ofereceu-me como esposa quando eu tinha quinze anos e dei à luz uma menina. Quando esta fez dois anos, o Faraó entrou em guerra com o meu pai. Os seus soldados mataram-no, bem como ao meu esposo. Procurei fugir, o que era estúpido. Uma flecha rasgou-me as costas. Doravante, esta cicatriz impossibilita o Faraó de me oferecer como esposa a quem bem lhe aprouver. Sou serva. Umas vezes lamento-o, outras não.
Surpreendida e comovida pela sinceridade daquela confissão, Sarai' não encontrou nada para responder. Retirou as mãos do leite e acariciou o ombro de Agar, aflorando a ponta da sua cicatriz. Olharam-se amistosamente.
- Agora já não me sinto triste - disse ainda Agar. - A vida das mulheres é assim. Os homens oferecem-nos, pegam em nós. Matam-se uns aos outros e alguns decidem do nosso destino.
Sarai fechou os olhos, estremecendo. Teria desejado contar a Agar como fugira da Suméria com Abrão. O preço que ele tivera de pagar por isso. Como mentira hoje. E como descobrira que o próprio Abrão também podia agir como os outros homens!
Agar suspirou:
- Quem sabe se um dia não sairei deste palácio? Talvez nessa altura já não o deseje. Aqui a vida pode ser cheia de doçura. Aperceber-te-ás com o tempo.
- Com o tempo?
- A minha senhora é uma esposa ciumenta, teme-te antecipadamente, mas ignora a que ponto tem razão. Quando o Faraó te vir, ficará deslumbrado.
Sarai ergueu-se.
- Que queres dizer? Que vai acontecer?
O espanto paralisou as feições da serva. Com um sorriso cúmplice e maroto, colocou as palmas suaves das mãos em volta dos seios de Sarai e acariciou-lhes os bicos:
- Que queres que aconteça? Que fazem os homens quando uma mulher os deslumbra? Mesmo quando são Faraós. Vamos vestir-te, perfumar-te, maquilhar-te, enfeitar-te com jóias e, depois, comparecerás diante de Merikarê, o deus das Duas Terras.
Sarai agarrou nos punhos de Agar, tão embaraçada pela carícia como alarmada pelo que ouvia.
- E depois?
- Depois, tu não és nem serva nem escrava. Se ele achar que és realmente a mais bela mulher, o que deverá certamente suceder, desposar-te-á, depois de se certificar que lhe darás tanto prazer na cama como ele o imagina.
SARAI AVANÇOU PELO TERRAÇO. A multidão comprimia-se na luz tépida da tarde. Mulheres ou homens, rosto maquilhado, todos arvorando jóias e ornamentos, com os punhos e o pescoço cobertos de ouro.
Uma enorme sala prolongava o terraço no interior do palácio. Entre as colunas que separavam o interior do exterior, alguns jovens adolescentes tocavam música, produzindo sonoridades cambiantes e graves, dedilhando cordas esticadas entre madeiras recurvadas como cornos de um touro.
Os rostos voltaram-se para ela. Soou um gongo. A música parou. E nada ocorreu como Sarai' esperara.
A cada passo que dava, as pregas da sua túnica dançavam contra as suas coxas e as suas ancas. O diadema de bronze e de calcite que lhe retinha o penteado pesava-lhe na nuca. Um longo ornamento de lápis-lazúli balouçava-lhe no peito, cavando o tecido entre os seios e revelando a sua forma. A sua maquilhagem realçava-lhe a graça incrível do rosto. Vira pouco antes a surpresa e a admiração de Agar quando acabara de pôr um traço de khôl em volta dos olhos. Sabia-se bela. E, até, no auge do poder da sua beleza.
Talvez suficientemente poderosa para enfrentar o Faraó. Para se colocar diante dele e ter a coragem de lhe anunciar a mentira provocada pelo medo de Abrão, antes de ser arrastada para o irreparável.
De olhos ávidos, detalhando-a da cabeça aos pés, murmurando os seus comentários, os cortesãos apartaram-se diante dela. O Faraó estava sentado numa grande cadeira coberta por uma pele de leão, braços esculpidos com cabeças de carneiros. Merikarê, undécimo deus-rei das Duas Terras.
A primeira surpresa de Sarai foi a descoberta do seu busto nu e muito magro: trazia apenas um véu transparente aos ombros. Apesar de ter uma pele fina, o rosto dele assemelhava-se a uma máscara. Um estranho corno de ouro pendia-lhe do queixo. Os seus traços eram finos e regulares, as faces perfeitamente lisas. Um unguento vermelho sublinhava-lhe os lábios e os olhos; as pálpebras estavam marcadas de khôl e uma maquilhagem azul escura alongava-lhe as sobrancelhas. Uma coifa de tecido com uma fita de ouro, escumilha e couro, cobria-lhe os cabelos e dava um toque final à sua aparência irreal. Dois gigantes de pele escuríssima estavam de pé atrás do seu assento, com capacetes em forma de sol.
Abrão estava presente, de pé, por entre os cortesãos, com uma túnica púrpura que Sarai não lhe conhecia. Procurou o seu olhar. Ele evitou-o.
Como Agar lhe recomendara, avançou até se encontrar mesmo diante do Faraó. Olharam-se, tão imóveis um quanto o outro.
Foi a sua segunda surpresa: não detectou nem emoção nem prazer na máscara de Merikarê. No entanto, ele examinava-a sem-cerimónia. Inspeccionava cada parcela do seu rosto. Depois, cada parte do corpo. No entanto, não deixava transparecer o espanto e a cobiça que os homens demonstravam habitualmente ao vê-la.
Desconcertada, baixou os olhos e não ousou pronunciar as palavras que preparara e que trazia mesmo debaixo da língua. Cheia de apreensão, pareceu-lhe que a sua beleza se velava, se esbatia. Que, naquela sala, todos se apercebiam desse desbotamento. No entanto, com uma voz suave e ligeira, de forte sotaque, o Faraó declarou:
- Abrão de Salem, a tua irmã é tão bela como me tinham dito. Muito bela.
Aliviada, Sarai ergueu os olhos, com um agradecimento na ponta da língua. E continuou calada. O Faraó já não olhava para ela. Perscrutava Abrão, que respondia:
- Faraó, estou lisonjeado e espantado que saibas tantas coisas sobre nós. Eu nada sei sobre ti e o teu povo.
- Posso dizer-te como sei tudo o que acontece longe de mim. Os mercadores vão e voltam, escutam e vêem. E se não confiarem aquilo que viram aos oficiais do Faraó, perdem as suas mercadorias. Não é tremendamente simples? Assim, sei que acreditas num deus único e invisível.
- É verdade.
Sarai escutava esta conversa e a cólera ia tomando conta dela. Era essa toda a admiração que suscitava no Faraó? Ouviu-o perguntar ainda a Abrão:
- Se o teu deus é invisível e não tem qualquer aparência, como sabes que existe? Como sabes se lhe agradas ou não?
- Ele fala-me. É desse modo que dirige as minhas acções e os meus passos. A Sua palavra é a Sua presença.
Toda a corte, talvez à excepção de algumas mulheres, só tinha olhos para Merikarê e Abrão, que iam trocando as suas sábias perguntas e respostas. Sarai tentou repelir o seu fastio. Não era uma sorte a sua beleza não ter deslumbrado o Faraó? Afinal, Abrão tivera razão ao fazê-la passar por sua irmã. Contrariamente ao que lhe assegurara a serva Agar, o Faraó não sentia nenhum desejo por ela e certamente que desejava ainda menos desposá-la.
Pensava nisso tudo e devia sentir-se satisfeita, tranquilizada. No entanto, não era isso que acontecia.
Um irreprimível despeito ardia-lhe nas faces. Cerrou os lábios de cólera. Cólera contra Abrão, cólera contra o Faraó! Cólera contra a sua insultuosa indiferença, cólera contra a impaciência deles por se enfrentarem, cólera contra a maneira como procuravam seduzir e impressionar com o brio dos seus próprios pensamentos. E o Faraó prosseguia, com as suas elegantes sobrancelhas franzidas, quebrando a austeridade da sua máscara para espantar os outros, numa voz suspicaz, incrédula:
- Sem corpo nem boca?
- Não precisa. A Sua fala é uma presença suficiente - respondia Abrão, tranquilamente amável, com voz melosa.
Abrão, seguro de si, sem medo. Sem sequer recear que o Faraó desprezasse a beleza da sua esposa, transformada em irmã! E o Faraó erguia-se, deixando o trono real, roçando por Sarai como por uma sombra esquecida, chegando-se perto de Abrão, que era um pouco mais alto que ele.
- Então o teu deus teria criado o mundo?
- Sim.
- Todos os mundos? O mundo da escuridão e o da luz, o do mal e o do bem, aquele em que vivem os mortos e aquele onde estão os que ainda não nasceram?
- Todos.
- Ah... E como?
- Pela Sua vontade.
Humilhada, Sarai não ousava enfrentar os olhares dos cortesãos. Preparava-se para recuar, desaparecer, fugir para qualquer lugar no palácio. Mas, nessa altura, o Faraó voltou-se. Olhou-a de alto a baixo, com um ar mais intrigado. As suas íris pareciam conter pequenas lamelas verdes e castanho-avermelhadas, os seus lábios cheios e crispados mostravam os dentes num esgar trocista. Os músculos desenhavam sombras deslizantes no seu corpo nu de mamilos sombrios. Apesar da sua cólera, Sarai achava-o belo e atraente, se bem que estranhamente pouco humano.
- Como é possível criar um mundo só pela sua própria vontade? E se fosse possível, seria ainda necessário engendrá-lo, fazê-lo nascer. Como pode um deus único e solitário realizar aquilo que resulta de uma cópula? Penso que te enganas, Abrão. Os nossos sábios reflectiram muito nesse assunto e desde há muito tempo. Segundo eles, Atum engendrou-se a ele próprio. Esplêndido, deslumbrante. Mas incompleto e sem mulher para engendrar. Então masturbou-se e lançou o seu sémen no vazio. Shu, o ar que respiras, nasceu. Atum pegou novamente no seu sexo e criou Tefhut, a humidade do mundo. De Shu e Tefhut nasceram então Gheb, a terra onde caminhamos, e Nut, o céu para onde olhamos. E eu, Merikarê, disponho hoje da minha vontade. Mas é para escolher onde deposito o meu sémen e procrio.
Sorriu. À sua volta os cortesãos riram e aplaudiram. Sempre sorridente, o Faraó ergueu a mão direita para reclamar o silêncio. Estendeu a mão como se apontasse uma lança para Abrão.
- No entanto, agradas-me, Abrão. Um homem cujo deus só se afirma pela palavra não pode ser um bárbaro. O meu pai, Akhtoès, o Terceiro, também conhecia o poder das palavras. Para mim, redigiu um rolo com ensinamentos, onde está escrito: «Sê um artista ao utilizares as palavras, para obteres a vitória; a língua é o gládio do rei. A palavra é mais poderosa que qualquer arma e as palavras são superiores a qualquer combate».
Um murmúrio de aprovação percorreu a sala. O Faraó regressou ao seu assento. Mas, desta vez, a sua mão apertou a de Sarai. Ela estremeceu. Os dedos finos e duros atraíram-na para junto do assento real, antes de a largar. A voz do faraó soou, imperiosa:
- Música, diversões e comida!
HOUVE COMIDA EM QUANTIDADE SUFICIENTE para saciar todo um povo. Houve cantoras com vozes lamurientas, meneando as ancas de forma estonteante e lasciva. Houve dançarinos, cujos corpos pareciam turbilhões, cuja espinha se dobrava como uma roda ou um pião. Houve mágicos, que lançavam para o solo paus que se transformavam em serpentes, que faziam voar aranhas terrificantes, que extraíam pombas de entre os seios das cortesãs, que acendiam fogos nas fontes de água pura e dobravam lâminas de punhais só pelo poder do olhar.
O Faraó comeu pouco, divertiu-se distraidamente e falou ainda com Abrão. Sobre o seu deus, as cidades de Akkad e da Suméria, as guerras e a terra de Canaã. Mas, enquanto comia, se divertia e falava, não deixava de olhar para Sarai. Porém, só lhe dirigiu a palavra quando Abrão declarou que ela sabia escrever como os Sumérios.
Com uma ordem breve, mandou que lhe trouxessem argila fresca e calamos, com os quais os seus escribas escreviam nas folhas de papiro. Cuidadosamente, Sarai' inscreveu várias palavras na argila, cruzando uma e outra vez pequenos traços cónicos. O Faraó apontou para a forma de uma estrela.
- Que significa isto?
- O rei-deus.
- E isto?
- Shu, a mão.
- Que diz a frase?
- «O rei-deus tem mãos fortes e suaves.»
O Faraó mal sorriu. Com a ponta dos dedos, aflorou o relevo formado pelas palavras na tabuinha, antes de imprimir a sua marca por baixo. Depois, os seus dedos deslizaram pelas costas da mão de Sarai. Ela sentiu a frescura húmida da argila na pele.
- Sabes dançar tão bem como escreves? - perguntou o Faraó.
Sarai hesitou. Olhou para Abrão. Ele estava de cabeça voltada, falando com um cortesão. Então, sem dizer palavra, levantou-se. Um gongo soou e a música parou. Os dançarinos suspenderam o seu bailado e retiraram-se para lhe cederem o lugar. Os cortesãos cessaram o seu zunzum para a observarem. Abrão olhava finalmente para ela.
Ela colocou-se diante do Faraó, erguendo os braços até ao nivel dos ombros. Devagarinho, as suas ancas esboçaram um primeiro balanceamento. Os seus braços dobraram-se, uma mão sob o rosto, a outra por cima. Os seus pés deslizaram e bateram no solo. Inclinou-se para o lado e bateu novamente com a planta do pé. Então os músicos compreenderam. Os seus dedos dedilharam as cordas das harpas acompanhando o ritmo dos passos de Sarai. Os sons de uma flauta e de um oboé elevaram-se, sinuosos como as suas ancas.
Ela fechou os olhos. Sem se aperceber, só pela felicidade de surpreender o Faraó e de captar o seu interesse, inebriou-se com a sua própria graça. O seu corpo não se esquecera da dança do touro. Dobrava-se e oferecia-se com a mesma fascinante sugestão que inflamara outrora o sopro da fera. Mas hoje era o coração do Faraó que ela inflamava.
Soube-o ao bater palmas uma última vez e ao imobilizar-se de peito arquejante. Nada se mexeu na sala. O faraó levantou-se e aproximou-se dela. A pupila dos seus olhos tinha aumentado de volume. Vibrava. Pensou que ele lhe ia tocar, mas voltou-se para Abrão. A sua voz já não era tão leve:
- Abrão, concedo-te terras para o teu rebanho e para o teu povo. Até que as pastagens de Canaã fiquem novamente cobertas de verdura. Amanhã, Tsut-Phénath levar-te-á de volta para junto dos teus. A tua irmã ficará ao pé de mim. Talvez ela saiba tornar-se a minha terra e o meu grão.
A verdade
SARAI DESPERTOU com a frescura que antecedia a madrugada. O frio pousou como uma mão no seu peito nu. Soergueu-se sobressaltada, afastando a mão imaginária.
Atrás dos cortinados transparentes, as chamas de nafta vacilavam no terraço, projectando uma luz arruçada pelo quarto.
Voltou inteiramente a si.
O Faraó mexeu-se, a seu lado.
Já não era propriamente o Faraó, mas um homem nu, de faces lisas, corpo macio, dormindo numa cama em forma de barca, imensa e cheia de sombras. Tinha cabelos curtos e encaracolados como os de uma criança e ombros fortes. Sarai adivinhava as marcas que os seus dentes tinham lá deixado durante a noite, no arrebatamento do seu prazer.
Teve vontade de as acariciar, de as beijar. Conseguiu conter-se.
Baixou os olhos para o seu próprio ventre, para as coxas e os seios. Não havia nenhuma marca neles. Era só no interior que o seu corpo ainda permanecia febril devido ao prazer que o Faraó despertara nele. Um prazer absoluto, que a devorara completamente, deixando-a aterrorizada e, depois, inteiramente satisfeita.
Como era possível?
Lembrou-se das carícias que lhe haviam feito estremecer a carne. Afastou essa recordação, mas foi o pensamento sobre Abrão que a veio perturbar. Rechaçou-o violentamente. Nesse momento odiava Abrão. Não queria mais vê-lo ou conhecê-lo.
Sim, o Faraó desejava-a, sentia tanto prazer quanto ela; por que não permaneceria para sempre a irmã de Abrão?
Até detestava o deus de Abrão!
A vergonha apertou-lhe a garganta. Dissimulou o rosto nas mãos, curvando-se, coxas apertadas contra o corpo.
Mas o soluço não lhe subia à garganta. A mão do Faraó pousou-se na cova dos seus rins. A carícia subiu até à nuca. Ela estremeceu, inclinando-se para ele, com um gemido animal. Apertou-lhe as faces lisas nas mãos, já ávida daquela boca, da agilidade daquele longo corpo contra as suas ancas, ávida do desejo do faraó que flamejava no ouro das suas íris e se alimentava dela até mergulhar na inconsciência do prazer.
O DIA MAL DESPONTARA. Sarai estava de pé, atrás dos cortinados transparentes. Através dos fios frouxos, olhava para as sombras que desapareciam dos jardins e dos lagos.
Já não queria estar na cama. Já não queria estar junto do Faraó. Já não queria o desejo do Faraó.
Procurava não pensar em nada. Deixar de sentir o que quer que fosse.
Desejava que a sua carne escaldante, irritada pelas carícias, se transformasse numa pedra de gelo!
Pensou na serva Agar, com a cicatriz nas costas.
Caso fugisse, atirar-lhe-iam flechas?
Mas fugir para onde?
Haveria um único lugar no Egipto onde pudesse escapar ao Faraó?
Soltou um pequeno riso, amargo como o fel.
Murmurou:
- O Faraó sabe tudo!
O FARAÓ DESPERTOU SOBRESSALTADO, gemendo. Soergueu-se de boca aberta.
- Sarai!
Abriu os braços no grande leito que mais parecia uma barca, chamando e ordenando:
- Sarai!
- Estou aqui.
Viu-a diante dos cortinados, nua e fria. Gritou:
- Acabo de ter um pesadelo! A fome do teu povo tornava-se a fome do meu. Os meus lagos transbordavam de serpentes e crocodilos. As minhas esposas apodreciam entre os meus braços e uma voz gritava-me que não eras a irmã de Abrão, mas a sua esposa.
Sarai aproximou-se do leito e do Faraó. Aflorou-lhe a face e, depois, puxou o grande lençol para se cobrir.
- É a verdade. Sou Sarai, a esposa de Abrão. O Faraó berrou:
- Que foi que me fizeste?
Sarai afastou-se, aliviada, calma, vigiando as mãos do Faraó para se proteger dos seus golpes. Mas ele ainda berrava:
- Porquê? Por que me mentiste dessa maneira?
- Porque Abrão teve medo que o matasses para me desposares. Porque eu também tive medo que o matasses.
O Faraó soltou um riso malvado, semelhante a um escarro.
- O medo!
- Sim, o medo do Faraó.
Este riu-se, troçando. Sentia a dentada que Sarai lhe infligira no ombro. Aflorou-a, pôs-se de pé. Hesitou em aproximar-se dela, e renunciou, abanando a cabeça.
- Então, O Deus Altíssimo de Abrão não é suficientemente poderoso para os proteger?
Sarai inclinou a testa, sem responder.
- Tu e o teu esposo enganaram-se. O Faraó não os lançará aos crocodilos. O meu pai escreveu, na minha intenção: «Não sejas malvado. Alimenta o pobre, um povo rico não se sublevará contra ti. Engrandece e deixa a tua marca no tempo pelo amor que dispensares». Repetirás as minhas palavras a Abrão.
Calou-se, de rosto impassível, trazendo já a máscara e a indiferença do Faraó. Mas percorreu o espaço que o separava de Sarai e apertou-lhe o rosto entre as mãos. Boca contra boca, soprou-lhe:
- E quanto a ti, não te chicotearei, não te lapidarei, para que a minha memória guarde a lembrança da perfeição do teu corpo. Assim, tu também terás de viver com a dor da lembrança do nosso encontro.
HEBRON
O véu de Sarai
TESTA E PEITO COBERTOS DE OURO, balouçando num estranho cesto de vime preso nas costas de um elefante, Sarai' foi reconduzida de volta ao acampamento. Uma coluna de soldados precedia-a e um rebanho de mais de mil cabeças de burros e mulas atulhava a estrada atrás dela.
Era uma rainha, uma deusa do Nilo que regressava do palácio do Faraó. Porém, Abrão acolheu-a sem lhe perguntar nada e quase sem a olhar. Apenas Lot correu ao seu encontro. Quis ajudá-la a descer do elefante, mas caiu no solo, ébrio. Durante a ausência de Sarai não passara dia sem esvaziar púcaros inteiros de cerveja egípcia.
De olhos vermelhos, desatou a rir e levantou-se, vacilando. Sarai recusou-se a abraçá-lo, de tal forma fedia a cerveja. Sem uma palavra, sem um sorriso para os que admiravam este magnífico regresso, desapareceu numa tenda que tinham montado para ela. Alguns momentos mais tarde mandou as suas servas anunciarem que queria ficar sozinha e descansar da longa viagem. Lot protestou, assegurando que ela o queria ver. Afastaram-no, sem-cerimónia.
O próprio Abrão não tentou entrar na tenda da esposa. Aliás, festejava-se ruidosamente. Alguns homens içaram-no aos ombros, transportando-o triunfalmente por entre as tendas, gritando o nome dele e de Yhwh. O Faraó não tivera de vergar o joelho diante do Deus Altíssimo? Não só não dera ordens para matar ou capturar como, ainda por cima, oferecia a Abrão com que enriquecer novamente o seu povo!
Dançaram até noite avançada, ao som das flautas, à volta de fogueiras cujas cinzas de carvão se elevavam na escuridão, turbilhonando como insectos fluorescentes. Vinho e cerveja escorreram em abundância. A alegria e o alívio foram tão intensos que se esqueceram de Sarai. Ninguém se espantou com a ausência dela ao lado de Abrão, até que os gritos de Lot lhes interromperam a alegria.
De gatas diante da tenda de Sarai, voz embargada pelas lágrimas e pela cerveja, guinchava:
- Mostra-te, mostra-te! Não te vejo há tanto tempo! Mostra-te, Sarai!
Tinha a túnica manchada e rasgada, o seu rosto parecia um campo de batalha. Olhos dementes, lábios brancos de saliva, atirava-se contra as estacas da tenda para as quebrar. Estatelava-se, rasgando o peito contra os ângulos das estacas. Contudo, mesmo quando gesticulava mais, tinha o cuidado de não rasgar o cortinado que Sarai mantinha fechado.
Levantaram-no, mas encontrou forças para se debater e vociferar:
- Dancem! Dancem como imbecis... Não se perguntem por que motivo a minha tia Sarai regressou para junto de nós como uma rainha! Sejam cobardes. Façam como Abrão: não perguntem nada! O seu Deus Altíssimo, esse também não pergunta nada! Eh, eh, eh! Só o sobrinho Lot pergunta! Ele está-se nas tintas para os burros e as mulas do Faraó! Mas Lot quer saber! Ele pergunta: por que motivo Sarai regressa para junto de nós como uma rainha?
Soltou um riso malvado, apontou para os rostos que o rodeavam, procurando o de Abrão. Não o encontrando, cuspiu de nojo antes de agarrar no homem mais próximo guinchando:
- E tu, sabes porventura alguma coisa, hein? Não, não sabes nada! Então, vou dizer-te: o que a irmã de Abrão nunca quis fazer com Lot, fê-lo com o Faraó! E eis-nos ricos com o ouro que a nossa Sarai engendrou graças ao sexo do faraó!
Calaram-no à força. A festa acabara. Os corações estavam pesados, tão fechados quanto a tenda de Sarai.
No DIA SEGUINTE, outra caravana chegou ao acampamento, conduzida por Tsut-Phénam. O grande oficial do Faraó não trazia nem rebanho nem grãos, mas três corres de ouro e prata carregados por um elefante, do qual desceu uma mulher velada.
Sem prestar atenção aos soldados que formavam uma barreira de lanças em volta do campo, o povo de Abrão juntou-se. Todos quiseram aproximar-se dos cofres que Tsut-Phénath mandou abrir diante da grande tenda de riscas brancas e negras. Ao contrário do que sucedera na véspera, não se ouviram nem gritos de regozijo nem se viram abraços. Contudo, nunca ninguém vira tantas riquezas.
Tsut-Phénath colocou-se diante de Abrão, cheio de soberba:
- O Faraó concede-te uma lua para preparares os rebanhos, desmontares as tendas e deixares as suas terras. Se tu, ou um membro do teu povo regressar aqui, será morto. O Faraó deseja-lhes um bom regresso, a ti à tua esposa. Espera que se lembrem dele durante muito tempo.
Abrão mostrou um sorriso amarelo:
- Dirás ao Faraó que pode ter a certeza que o povo de Abrão saberá lembrar-se dele. Temos boa memória. Que o Deus Altíssimo o abençoe pelas suas dádivas.
Com o pé fechou as tampas dos cofres e perguntou:
- Quem é a mulher velada que veio contigo? Num gesto desenvolto, Tsut-Phénath respondeu-lhe:
- O último fruto da bondade do Faraó para com a tua esposa. Entretanto, diante da tenda de Sarai, a serva Agar tinha retirado o véu e inclinava-se respeitosamente:
- O Faraó afastou-me da minha senhora e enviou-me para te servir, pois já não deseja nada no palácio que possa recordar-lhe a tua presença.
Ergueu o rosto com um sorriso feliz que não esmoreceu perante a expressão amarga de Sarai'. Pegou-lhe nas mãos, e levou-as à testa e ao peito, à maneira egípcia.
- Pressinto que estas palavras são duras para ti. O Faraó encarregou-me de as pronunciar logo que te visse. Está feito, podes esquecê-las. O meu coração diz-te: Sê a minha senhora e tornar-me-ás a mais feliz de todas as mulheres. Serás o bálsamo para a cicatriz que tenho nas costas e eu ser-te-ei fiel até à morte. Sarai abraçou-a com doçura.
- Nada receies! Nunca te pedirei um sacrifício desses. É uma felicidade ter-te como serva, mas não ficarás tão bem alojada como no palácio do Faraó. Não tenho palácio nem piscina para te oferecer, apenas tendas e longos dias de caminhada.
Agar teve um riso encantador:
- Aprenderei a preparar o leite de burra nas cabaças! E se já não tenho nenhum palácio ao pé de mim, foi por teres aberto a jaula onde eu estava aprisionada.
Sarai aprontava-se para pedir de comer e de beber quando a sua atenção foi atraída por uma gritaria. Entreabrindo o cortinado da tenda, as duas mulheres viram um grupo de jovens gesticulando, no qual se destacava a cabeça de Lot. Rodeado pelos Anciãos, Abrão saiu da tenda de riscas brancas e negras.
Por entre os jovens, ouviu-se um grito:
- Lot está bêbedo, mas a sua pergunta é justa. Por que motivo somos expulsos pelo Faraó, quando ele nos oferece tantas riquezas?
Assaz poderosa para cobrir todos os gritos, a voz de Abrão troou, sem admitir qualquer réplica:
- Porque Yhwh o visitou em sonhos. Um sonho cruel em que Lhe mostrou todo o mal que podia fazer, a ele e ao seu povo, caso não nos tratasse bem. O Faraó teve medo do Deus Altíssimo e obedeceu-Lhe. Com as riquezas que nos oferece pela mão do Faraó, Yhwh mostra-nos que a nossa prova terminou. Esta é a única verdade! Amanhã desmontaremos as tendas e retomaremos o caminho de volta para Canaã, a terra que Ele me deu.
Agar pôs ternamente a mão em volta da cintura de Sarai.
- O teu esposo sabe falar - sussurrou. - Compreendo que o Faraó prefira vê-lo longe de si.
POUPANDO o SEU IMENSO REBANHO, contornando o deserto de Shur, levaram mais de um ano para chegar a Canaã.
Um ano durante o qual Sarai só se dirigiu a Abrão quando era indispensável. Também não o recebeu na sua tenda. E nunca perdoou a Lot as palavras que ele pronunciara quando ela regressara do palácio do Faraó. O sobrinho de Abrão arrastou-se a seus pés, humilhou-se com repetidos arrependimentos públicos, recriminou-se pela sua tristeza e pela sua embriaguez. Sempre que agia deste modo, Sarai voltava-lhe as costas.
Lot deixou de se lamentar. Não abandonou mais a retaguarda da caravana, avançando apenas por entre a poeira dos rebanhos e bebendo como um perdido, ao cair do crepúsculo. A embriaguez apoderava-se dele até de manhã e, de vez em quando, até uma hora avançada do dia. Às vezes era preciso transportá-lo num burro, preso como um saco.
Abrão nunca lhe dirigiu nenhum sermão.
Na realidade, todos baixaram a cabeça durante várias luas.
Do alto do assento de vime preso nas costas do elefante, o olhar de Sarai pesava sobre eles. Um olhar de pedra. Trazia sempre as jóias que o Faraó lhe oferecera. Ao sol, o seu ouro brilhava tão intensamente na sua testa, no seu pescoço e nos seus seios, que teria cegado os olhos daqueles que tivessem ousado erguê-los na sua direcção.
Só ao fim da tarde, quando descia do seu animal monstruoso, algumas mulheres perscrutavam então o seu rosto às escondidas. Queriam detectar nele a pena ou o perdão, mas apenas encontravam a indiferença e a beleza. Essa beleza sempre prodigiosa, que nem sinais trazia de rugas ou emurchecimento devido ao vento do mar ou às queimaduras do sol.
No entanto, certa manhã da Primavera, quando se aproximavam finalmente de Canaã, um murmúrio percorreu a caravana. As cabeças voltaram-se para o elefante. Lá em cima, no seu assento de vime, Sarai' cobrira a cabeça com um véu vermelho que lhe descia até à cintura. Um véu emalhado assaz frouxo para que pudesse ver através dele sem que a vissem a ela.
Nos dois dias seguintes, pôs o mesmo véu. E em todos os que se seguiram. De ora em diante, Sarai só aparecia no exterior da tenda coberta pelo seu véu vermelho.
Alguns julgaram que o seu rosto mudara durante a noite. Que ela se tornava feia. Talvez tivesse até apanhado a lepra no palácio do Faraó e não desejasse que se apercebessem. Mas viram Abrão comportar-se como se nada de estranho lhe tivesse acontecido. Não lhe fazia perguntas. Não a questionava sobre o motivo daquela dissimulação.
Pouco a pouco, os murmúrios e as loucas sugestões cessaram. Pouco depois, sem que se pronunciassem palavras, todos compreenderam que Sarai não queria que a sua cólera e a sua beleza se transformassem num fardo para todos. Estava farta de lembrar, pela sua aparência, a fonte da nova abundância de que desfrutavam. No entanto, havia uma pessoa contra a qual a sua indignação não esmorecia. O único que pudesse levantar-lhe o véu para lhe implorar perdão e que não o fazia: o seu esposo Abrão.
Foi grande o alívio. Habituaram-se ao véu vermelho de Sarai. Acharam até muito tranquilizador não terem mais de enfrentar a sua beleza perfeita e inalterável, vendo apenas, de vez em quando, a beleza infinitamente mais cambiante da sua serva Agar. Os risos regressaram às tendas. Cada um deu largas à sua alegria por chegar em breve à terra de Canaã.
APROXIMARAM-SE DE SALEM NUM DIA DE CHUVA. Os campos e as colinas reverdejavam sob as borrascas. Os troços dos caminhos estavam amolecidos por uma lama assaz pastosa para impedir que os rebanhos levantassem poeira.
Melquisedeque precipitou-se ao seu encontro, seguido pelas trombetas, tambores e risos de boas-vindas do seu povo. Maravilharam-se com a riqueza daqueles que tinham partido assolados pela fome e que regressavam agora gordos e rubicundos. Rodearam os elefantes, rindo diante das suas trombas e orelhas desmedidas.
No entanto, quando Sarai saudou Melquisedeque sem retirar o véu, a surpresa e a tristeza estamparam-se no rosto do velho rei. Quis fazer-lhe uma pergunta. O seu olhar cruzou com o de Abrão. Calou-se, pestanejou e abriu os braços, enquanto os cantos de alegria louvavam o Deus Altíssimo pelas suas graças. Sem esperar pelo fim dos abraços, um rapaz empurrou-os, levando Abrão a gritar:
- Eliézer!
Eliézer de Damasco crescera. Tinha a mesma altura que Abrão. Os caracóis dos cabelos caíam-lhe nos ombros. A penugem da sua primeira barba cobria-lhe o queixo. Abraçou o pai adoptivo com a efusão de um filho. Todos puderam ver os olhos húmidos de Abrão.
Nessa noite, pela primeira vez desde que tinham deixado a terra de Canaã rumo ao Egipto, ouviram o riso de Abrão.
Um riso que soou mais alto que a música da festa e que se ouviu tão longe que Agar, enquanto preparava o leito de Sarai que entretanto se retirara, perguntou quem era aquele belo rapaz que tornava Abrão tão feliz.
Sarai deixou que as mãos da sua nova serva lhe retirassem a túnica e lhe massajassem as costas com um unguento macio, antes de responder, com uma indiferença cansada:
- Chama-se Eliézer de Damasco. Abrão escolheu-o para substituir o filho que não lhe pude dar. É agradável e charmoso. Desconfia dos seus olhares. São como aqueles frutos que brilham quando o sol e o calor te secam os lábios. Leva-los à boca e ficas envenenada.
- Porque dizes isso?
- Talvez por ciúme. Era o que pensava a minha cara Sililli. Ou talvez porque agora sou capaz de reconhecer o bem ou o mal sem me preocupar com a máscara com que se aproximam.
O regresso foi festejado durante sete dias. Todas as manhãs, Abrão e Melquisedeque conversavam com os Anciãos na grande tenda de riscas brancas e negras. Abrão falava sobre o país do Nilo e as perguntas que o Faraó lhe fizera sobre o Deus Altíssimo. Por sua vez, Melquisedeque contou como a chuva regressara a Canaã tão subitamente como cessara. Uma chuva como nunca tinham visto. Uma chuva de pleno Verão, mas sem trovoada, abundante, mas não violenta, saciando a terra sedenta, mas sem provocar barrancos. Uma chuva que enchera poços e fontes durante todo o Inverno, de tal modo que a Primavera desabrochara tão verde como outrora.
- No Outono, quando vi de que tipo de chuva se tratava, soube que o Deus Altíssimo tomava conta de ti - afirmava Melquisedeque a Abrão, com um sorriso tranquilo. - Disse: «Abrão e o seu povo vão bem. Regressarão em breve. Yhwh prepara Canaã para eles, como se prepara uma esposa para a noite de núpcias.»
Todos riam, contentes e tranquilizados. Contudo, durante uma dessas conversas, Lot surgiu e declarou rudemente:
- Quero falar com Abrão!
Temeram logo a sua embriaguez e a sua violência. No entanto, apesar de ter o rosto avermelhado, os olhos inchados e as roupas em desordem, não estava ébrio. Abrão convidou-o a sentar-se:
- Fala, escuto-te.
- O que tenho a dizer é muito simples. Já nos conduziste uma vez à fome. Não quero mais suportar as tuas incoerências. Quero ir para uma terra que me pertença, levando comigo o meu rebanho e os que me quiserem acompanhar. Não me digas que o teu deus me pode impedir. Eu troço do teu deus!
Melquisedeque franziu o sobrolho. Ouviram-se murmúrios de desaprovação. Não obstante, Abrão respondeu com uma doçura que a todos surpreendeu:
- Compreendo-te a aprovo-te. Ouve o seguinte, Lot: és o meu sobrinho. És meu irmão, tal como o era o teu pai. No meu coração ocupas o teu lugar e o do teu pai Haran. Não haverá disputa entre nós.
- Então deixas-me escolher uma terra só para mim? - repetiu Lot, espantado.
- Deixo. Aprovo a tua decisão. É muito sensata. Não só te deixo tomar posse de uma terra como te proponho que escolhas as pastagens que te parecerem as melhores para o teu rebanho e para aqueles que constituirão a tua família. Se fores para a esquerda irei para a direita; se fores para a direita, irei para a esquerda.
Lot levantou-se, mais corado que à chegada. Avaliou os rostos que tinha à sua frente. Como que num desafio, anunciou:
- Quero a terra que fica na curva do Jordão, a leste de Salem.
- Mas é a terra mais rica de Canaã! - exclamou Melquisedeque, indignado. - É irrigada o ano inteiro e é mais bela que um jardim!
- É uma boa escolha - interveio Abrão.
Sorria, aprovando com a cabeça. Melquisedeque ainda quis protestar. Abrão impediu-o. Levantou-se e abraçou Lot.
- Sinto-me feliz por o meu irmão poder viver numa terra tão rica.
- Mesmo assim! Reflecte, Abrão! - exclamou alguém. - Ele fica com as tuas melhores terras e o seu rebanho é o quinto do teu.
Abrão guardou o braço em cima dos ombros de Lot e repetiu:
- Autorizei-o a escolher. Ele escolheu e está tudo bem.
À noite, as casas de Salem e as inumeráveis tendas instaladas à volta da cidade comentavam a bondade de Abrão para com o sobrinho. Nunca se vira alguém ceder a sua riqueza com tão boa disposição. E como nada permitia considerar Abrão como um fraco, a sua generosidade só aumentou de esplendor. Tomou-se ainda mais admirável aos olhos de todos.
A história chegou depressa aos ouvidos de Agar, que em breve a comunicou à sua senhora. Sarai não conseguiu conter um sorriso. Também se sentia tocada pela bondade de Abrão e, mais ainda: o facto de ele ter agido de forma tão inusitada, como outrora, quando a fora buscar ao templo de Ur, atenuava um pouco da cólera que sentia por ele.
No dia seguinte, Abrão, Melquisedeque e muitos outros colocaram-se à beira do caminho para verem Lot deixar Salem à cabeça do seu rebanho e daqueles que tinham decidido acompanhá-lo. Sarai apareceu. Lot olhou para o véu vermelho que a cobria, como de costume. Dir-se-ia que os seus olhos iam incendiar, furar o tecido. Pensaram que Sarai talvez fosse finalmente acalmar o seu tormento e mostrar o rosto ao sobrinho que a adorava. Ela aproximou-se:
- Vim despedir-me de ti.
Lot calou-se. Hesitou. Boca dorida, feições arruinadas pelas suas numerosas bebedeiras, fazia pena vê-lo. À sua volta, todos estavam suspensos à sua hesitação. Sarai' esperou que ele dissesse uma palavra que lhe permitisse abraçá-lo.
Mas ele soltou um riso trocista, um riso de ébrio:
- Quem me fala sob esse véu? Uma serva do Faraó?
Sarai recuou um passo, com o peito a arder, as faces vermelhas de indignação, sob o véu. Uma réplica fustigante veio-lhe à boca. Nesse momento, surpreendeu o amplo sorriso do jovem Eliézer, ao lado de Abrão. Como ele já se sentia feliz pela disputa que se anunciava!
Calou-se, e voltou as costas a Lot e aos outros, antes de desaparecer sob a tenda.
Todos viram que Abrão não levantara a mão para a reter, tal como não abrira a boca para a chamar.
Nos DIAS SEGUINTES, enquanto o seu rebanho se dispersava pelas pastagens bem verdejantes, Abrão voltou a fazer aquilo que já fizera há alguns anos, antes da fome. Acompanhado por Eliézer, percorreu a linha do horizonte de Canaã, para oferecer sacrifícios e gritar pelo nome de Yhwh.
Entretanto, Sarai pediu a Melquisedeque que lhe concedesse uma carroça e a ajuda de alguns homens para instalar a sua tenda a sul de Salem. Descobrira aí um longo vale coberto de terebintos e loureiros em flor, bordejado de falésias, picos de rochas ocre de onde desciam, em cascatas, riachos sempre frescos.
Quando Melquisedeque lhe perguntou se não queria esperar pelo regresso de Abrão para não ficar sozinha num espaço tão vasto, ela respondeu:
- Sozinha já eu estou, e desde há muito tempo, neste pequenino espaço que é o meu corpo. Abrão ocupa-se do seu deus. Suponho que está certo. Se me quiser falar, dir-lhe-ás que estou na planície de Hebron. Ele saberá como me encontrar.
Encontrou-a uma lua depois. Chegou em pleno meio-dia. Agar e Sarai ouviram-no antes de o verem, pois ele berrava o nome dela por todo o vale:
- Sarai! Sarai, onde estás? Sarai!
Ela estava ocupada a cozer pães recheados de ervas odoríferas e queijo. Agar subiu a uma encosta para poder ver mais longe:
- Talvez tenha acontecido algo de grave - inquietou-se. Sarai perscrutou os caminhos, os bosques próximos, as margens dos rios que serpenteavam nas pastagens. Não viu nada.
- Sarai! - berrava a voz de Abrão.
- Talvez esteja ferido - disse Agar.
- Vai ter com ele - ordenou-lhe Sarai. - Fia-te ao som da sua voz.
Enquanto Agar se afastava, Sarai' colocou o véu vermelho na cabeça. Viu Abrão sair de um bosque de oliveiras, no caminho que levava ao Jordão. Agar gritou e foi ter com ele. Abrão começou a gesticular de modo divertido, como uma criança toda excitada. Quando eles se aproximaram, Sarai soube que Abrão não sofria, nem estava ferido. Arfava, mas o seu sorriso brilhava sob a barba.
- Sarai! Ele falou-me! Yhwh falou-me!
Rebentou a rir, exuberante, alegre como um jovem. Bateu palmas, girou sobre si mesmo.
- Ele falou-me! Chamou-me: «Abrão!» Como em Harân: «Abrão!» E eu disse: «Estou aqui, Deus Altíssimo! Estou aqui!» Há tanto tempo que O esperava! Há tanto tempo que percorria toda a região de Canaã, gritando pelo Seu nome!
E recomeçou a rir, gritando, de lágrimas nos olhos, tão loucos como os de Lot quando embriagado. Agarrou na cintura de Agar e arrastou-a nalguns passos de dança, desencadeando o grande riso voluptuoso da serva. Sarai sorriu, atrás do seu véu. Louco de contentamento, Abrão ganhou coragem, largou os braços de Agar, apanhou a mão de Sarai, agarrou-lhe na cintura e girou com ela, como se flautas acompanhassem a sua farândola. Agar continuava a rir a bandeiras despregadas. O véu de Sarai levantava-se, tal como a parte inferior da túnica, até que Abrão tropeçou numa pedra, estatelando-se ao comprido e arrastando-a.
Agar ajudou-o a levantar-se.
- Já chega - disse Sarai. - Pára de te comportares como uma criança, estás esgotado.
- Não comi nem bebi desde ontem - anunciou Abrão, galhofeiro e arfando como um boi.
- Vem sentar-te. Vou dar-te de comer e beber.
- Tenho de te contar o que Ele me disse!
- Isso pode esperar. Por favor, Agar, traz almofadas, água e vinho.
Foi buscar os pães que acabara de cozer, uvas e romãs colhidas na colina de Hebron. Pediu ainda a Agar que instalasse um dossel sobre Abrão, para que ele pudesse ficar à sombra. Depois, sentou-se, olhou-o comendo, sorrindo sob o seu véu, feliz por vê-lo devorar com tanto apetite.
Quando ficou saciado, Agar trouxe-lhe um púcaro de água com limão e uma toalha limpa. Ele limpou as mãos e o rosto. Por fim, Sarai disse:
- Escuto-te.
- Não estava muito longe daqui. Tencionava até vir fazer-te uma visita. E a voz soou por todo o lado. Como em Harân. Exactamente como em Harân, lembras-te?
- De que me poderia lembrar, Abrão? Não vi o teu deus, só te vi a ti, correndo, excitado como hoje.
Uma breve decepção franziu o sobrolho de Abrão. Perscrutou o véu que lhe impedia adivinhar a expressão do rosto de Sarai. Inclinou a cabeça, afastou a sua contrariedade e contou:
- Não durou muito. Yhwh disse-me: «Abrão, ergue os teus olhos e, do sítio em que estás, contempla o norte, o sul, o oriente e o ocidente. Toda a terra que estás a ver, dar-ta-ei, a ti e aos teus descendentes, para sempre. Farei com que a tua descendência seja numerosa como o pó da terra. Levanta-te, percorre esta terra em todas as direcções, porque é a ti que a darei».
Abraão calou-se, de olhos brilhantes. Soltou uma grande gargalhada. Agar também se riu. Mas não Sarai.
Não se mexeu.
Abrão e Agar calaram-se, vendo o peito dela inchar. Depois, as palavras fizeram tremer o véu diante da boca:
- O pó da terra!
E repetiu, com mais força:
- A tua descendência, o pó da terra!
Abrão já se levantara, adivinhando a cólera que ia explodir. Como que para se proteger, declarou:
- Foi exactamente o que Yhwh me disse: «A tua descendência é o pó da terra».
- Mentira! - berrou Sarai, levantando-se. - Mentira! Agarrou no púcaro de água e lançou-o a Abrão. Este desviou-
-a com o braço. O púcaro partiu-se aos pés de Agar, que recuou uma boa distância. Sarai' gritou de novo, com todas as forças:
- Mentiras!
- Yhwh disse-o! - gritou Abrão, respondendo-lhe.
- Quem o sabe, a não seres tu? Quem mais o ouve, a não seres tu?
- Não blasfemes!
- Não mintas! Sobretudo não troces de mim. Como farás para que a tua semente se transforme nesse pó? Tu, que nem sequer consegues ter um filho! Tu, que te rebaixas a ponto de fazeres dessa serpente do Eliézer teu herdeiro...
Com um pontapé, Abrão derrubou a bandeja que continha os restos da refeição:
- Cala-te, não sabes o que dizes. Estás cheia de azedume e ressentimento. Imaginas como te vêem com esse véu ridículo que te tapa o rosto?
- Oh, sim, sim, imagino, Abrão! Sei muito bem o que vêem: nada! Absolutamente nada. Tal como não vêem o teu deus. Eu também sou como ele! Uma mulher que não é nada, estéril, seca como todos os desertos e como todas as fomes. Uma mulher que pode ser dada, possuída uma e outra vez, sem que a vida nasça dela. Nunca. Nem sequer imprimindo-lhe uma marca, uma ruga, nada. NADA!
Berrara tão alto que o eco da palavra ressoou por todo o vale de Hebron. Encostou o véu ao rosto:
- Podes abençoar este véu, Abrão, pois se a tua esposa, que não é nada, o retirar, ela tornar-se-á a imagem viva do teu fracasso.
- Yhwh prometeu-me uma descendência! - gritou Abrão erguendo os braços ao céu, com os olhos esbugalhados de fúria. - O Deus Altíssimo prometeu-mo. E assim será. Tudo o que Ele promete realiza-se!
O riso de troça de Sarai foi terrível. Num pulo, colocou-se diante de Abrão e agarrou-lhe na mão, encostando-a ao seu ventre:
- Ah sim? Desde há quantos anos dizes as mesmas tolices? «O meu Deus Altíssimo vai realizar o milagre!» Por que ainda não o fez? Por que não encheu ainda as minhas entranhas, se o pode fazer? A tua semente deve povoar o país? E de que vulva sairá esse povo? Vais engravidar as esposas de Canaã, aquelas que já olham para ti como se fosses um semideus? Afinal, por que não? Poderás pretender outra vez que sou tua irmã. Lot tinha razão: todos se acomodarão...
Abrão rugiu, procurando retirar a mão da de Sarai. Ela abriu os dedos bruscamente, repelindo-o com um empurrão no peito e recuperando fôlego antes de gritar:
- Por que motivo o teu deus não se preocupa comigo? Sabes responder? Não... Yhwh falou-te. Prometeu-te e tu danças e ris. E eu choro e escondo-me! E estou vazia. Oh! Que linda promessa! Pára de ouvir apenas o som da tua própria loucura, Abrão. Deixa de ver aquilo que ninguém vê e enfrenta a verdade: o meu ventre está liso. Não pudeste enchê-lo. Tal como o teu deus. Nem o próprio Faraó o conseguiu!
O rugido de Abrão foi tão feroz que Agar se precipitou, julgando que ele ia massacrar Sarai. Mas apenas a empurrou contra a tela da tenda. Ela caiu enquanto ele fugia a toda a pressa.
A solidão
SARAI PERDERA Sililli, perdera Lot. Foi como se tivesse perdido Abrão.
Só tinha Agar por companhia. Agar era terna, atenta, prestável. No entanto, não podia ocupar o lugar de Sililli no seu coração. Agar nada sabia do passado. Não tinha nenhuma recordação de Ur ou da Suméria. Ela não podia evocar nenhuma das lembranças dos tempos felizes em que Abrão partilhava todas as noites o seu leito. Tempos em que Sarai ainda esperava que o deus de Abrão fosse capaz de fazer um milagre. Não podia, como Sililli, troçar, resmungar, proferir a sua verdade cruel e salutar a propósito de tudo e de nada.
Pior ainda: Agar era muito nova. A vida curvava-lhe graciosamente as ancas. Adivinhava-se que toda ela tremia de desejo, apelando o sémen dos homens como as flores se apartam para receber os zangãos. Engravidaria numa só noite de amor. Sentiria a dor da criança a nascer. Quando pensava nisso, Sarai preferia ficar com-pletamente só, sem a presença da serva ao alcance da sua vista.
Deste modo, o único bem-estar, os únicos prazeres que lhe restaram, durante luas e luas, foram a solidão e a indiferença.
Certas noites, era assombrada por sonhos. Neles era uma mulher quase saciada nos braços do Faraó. Acordava de boca amarga, corpo dorido e com o desejo já gelado. Cerrava os punhos contra a boca para abafar a dor e a fúria. Por que não podia chorar até dissolver o corpo como uma estátua de sal, fazendo-o desaparecer na terra ávida? Nem isso lhe era outorgado. Tal como lhe prometera o Faraó: «Assim, tu também terás de viver com a dor da lembrança do nosso encontro.»
Então, certa manhã, Agar anunciou-lhe ao despertar:
- Abrão vem montar as suas tendas aqui perto. Decidiu instalar-se na planície de Hebron.
Dizia verdade. A planície cobria-se de tendas. Os rebanhos espalhavam-se até perder de vista. Os golpes das maças enterrando as estacas ressoavam no ar. Nascia uma cidade de tela. Antes do sol atingir o zénite, a tenda de riscas brancas e negras foi içada.
Agar observou:
- Ao instalar-se perto de ti, Abrão manifesta a ternura que sente por ti. Não queres que lhe vá dar as boas-vindas da tua parte?
Sarai não respondeu. Parecia nem ter ouvido.
Abrão bem podia encher a planície de Hebron com aqueles que formavam o seu «povo», como fizera de Eliézer de Damasco o seu filho. E que tinha isso tudo a ver com ela? Em que medida concretizaria a promessa não realizada do seu deus? Nem o seu desejo de solidão, nem a sua indiferença seriam afectados.
Continuou na mesma disposição quando Abrão lhe enviou três jovens servas, para que ela dispusesse de um melhor serviço.
- Podem voltar para onde vieram - disse-lhes, simplesmente. - Agar serve-me muito bem e chega-me.
Então Abrão enviou três cestos de frutos, cordeiros para assar, aves, peças de linho ou tapetes para o Inverno. Sarai recusou estes presentes como recusara as servas. Mas, desta vez, Abrão ignorou a sua recusa e ordenou que os presentes fossem levados de volta e depositados diante da tenda.
Desenrolando os tapetes aos pés do leito de Sarai, Agar suspirou de inveja.
- Estás a ensinar-me uma coisa: aqui está uma boa maneira de fazer com que o esposo morra de desejo e nos trate bem!
Sarai ficou enfastiada com o comentário. Falou menos com Agar e adquiriu o hábito, ao cair da noite, de subir às falésias brancas que dominavam a planície, até ao cume da colina de Quiriate-Arba.
Aí, podia desfrutar de uma solidão verdadeiramente plena e total. Tudo era calma. Nos dias de Primavera, os rios corriam em cascatas, o sol libertava fragrâncias das moitas de salva e alecrim. Caso se sentisse curiosa podia contemplar a agitação do acampamento, lá em baixo, na planície. Às vezes distinguia uma silhueta por entre as outras, caminhando mais depressa, dirigindo-se para mais longe. Tinha a certeza que era Abrão.
Então, desviava quase sempre os olhos para observar os pássaros ou o lento movimento da escuridão que ia tomando conta da terra.
UM DIA AGAR ANUNCIOU:
- Dizem que a guerra ameaça os que se instalaram nas cidades do Jordão, em Sodoma e Gomorra, onde vive o teu sobrinho Lot. Dizem que os habitantes de Sodoma enriqueceram tanto que os reis vizinhos estão roídos de inveja e querem apropriar-se das suas riquezas.
- Como sabes?
- Encontrei Eliézer ao ir buscar odres novos para o leite. Já é um homem. Apesar de ainda ser novo, senta-se ao lado de Abrão na tenda de riscas brancas e negras. Aprende a ser chefe.
- Foi ele que te disse?
- Foi. Mas, lá em baixo, na planície, as mulheres asseguraram-me que é verdade. Dizem que ele aprende depressa e que gosta disso.
- Não duvido - disse Sarai.
- É agradável de ver. As raparigas riem nas suas costas e fazem grande alarido para atrair a sua atenção. Quanto a ele, parece um jovem cordeiro todo orgulhoso dos seus novos cornos.
Agar riu-se de bom grado. Fingia troçar, mas a sua voz traía a excitação.
- Sei que não gostas dele - admitiu. - Eu não respondo aos seus olhares, mas sinto que lhe agrado. E quanto menos olho para ele, mais lhe agrado.
- Claro que lhe agradas! Haverá homem a quem não agrades? Riram ambas. Depois, mais séria, Sarai acrescentou:
- Eliézer é uma pessoa falsa. Não te deixes iludir. Não penses que ele conduzirá um dia o povo de Abrão. Isso nunca acontecerá.
- E porquê?
- Porque nunca será digno dessa função.
Agar olhou-a de viés e durante um momento continuou a trabalhar em silêncio, amuada. Sarai aproximou-se dela, acariciou-lhe a nuca e pôs-lhe uma mão em cima do ombro.
- Não julgues que te estou a falar como uma mulher acrimoniosa. Não o sou. Mesmo se me mantenho afastada de todos, mesmo se não desejo estar nos braços de um homem, nem que ele seja o meu esposo. É verdade que te invejo. Mas o meu desejo é ver a tua barriga crescer, trazer uma criança. Quando esse dia chegar, dar-te-ei a mão. Contudo, afasta-te de Eliézer. Logo que te tiver possuído, esquecer-te-á.
Dito isto, Sarai' perguntou a si mesma: «Serei realmente uma mulher azeda? Se o meu rosto tivesse envelhecido como um rosto normal, não veria nele aquela tristeza e aquela boca fina e amarga das esposas que já não esperam nenhum prazer nem nenhuma surpresa agradável da parte do marido?»
Preferiu não responder às suas próprias perguntas, mas reparou que Agar descia cada vez mais frequentemente à planície. A pretexto de uma ou outra coisa, não passava dia em que não encontrasse algo para fazer entre as tendas de Abrão. Quando regressava, e contrariamente ao que era seu hábito, calava-se, não dizia nada acerca dos seus encontros e das suas conversas. Sarai não tinha dúvidas que ela via muitas vezes Eliézer, apesar dos conselhos que lhe dera.
Contentou-se em encolher os ombros. Afinal de contas, Agar já era suficientemente crescida para escolher o homem que lhe agradasse e com o qual quisesse viver.
CERTA TARDE, um grande alarido agitou as tendas de Abrão. Sarai viu gente correndo em todas as direcções. O fenómeno durou tanto tempo que começou a inquietar-se, temendo que tivesse ocorrido alguma desgraça. Já tinha posto o seu véu vermelho para ir em busca de notícias, quando Agar chegou, esbaforida:
- É a guerra! Abrão vai para a guerra! O teu sobrinho Lot foi feito prisioneiro em Sodoma e ele quer ir libertá-lo!
- Mas ele não tem nenhum exército - retorquiu imediatamente Sarai. - Nem sequer tem armas, só cajados! Não sabe como combater!
Nessa altura as trombetas soaram pelo acampamento e os apelos vibraram pela planície. A coluna conduzida por Abrão colocou-se junto das tendas. Ouviram-se os gritos das esposas e das crianças.
- Já estão de partida? - exclamou Sarai, incrédula. - Abrão enlouqueceu!
- É preciso libertar o teu sobrinho antes que o matem - retorquiu Agar, num tom crítico.
Sarai mal a ouvia. Perscrutava a coluna que se afastava ao longo do caminho. Que coluna tão magra! Procurou descobrir Abrão à frente, perguntando-se como se vestira e armara para o combate. Devia ter certamente levado a sua curta espada de bronze. E os seus companheiros ainda deviam ir menos equipados do que ele. Adivinhava os cajados que levavam aos ombros, os paus com picos que serviam para conduzir as mulas e os bois.
Que loucura!
Pensou correr ao encontro de Abrão, para lhe dizer: «Não podes ir combater dessa maneira! Corres para a tua perda. Aqueles que puderam vencer Sodoma e Gomorra são poderosos. Massacrar-te-ão, a ti e todos os que te acompanham!»
Mas Abrão não lhe prestaria ouvidos. Após todo este tempo de silêncio, com que direito podia ela proclamar o que era sensato?
Depois, pensou em Lot. Agar tinha razão. Lot corria perigo. Era bom que Abrão fosse em seu auxílio. Pensou: «Lot espera o amor de Abrão há tanto tempo! Não devo impedir nada. Mas amanhã ou depois de amanhã virão anunciar-me a morte de ambos».
Bruscamente, a apreensão oprimiu-lhe o peito.
Um medo como já não sentia desde há muito fê-la sentir picadas nos rins.
Depois de tanto afastamento, desejou subitamente ter visto o rosto de Abrão. Teria desejado beijar-lhe os lábios antes de ele partir para o combate. Passar a mão nas suas roupas, nas suas pálpebras, na sua testa. Sorrir-lhe para que ele não fosse combater com o frio que a esposa lhe depositara no coração.
Mas ele já ia demasiado longe. A coluna desaparecia a leste de Hebron.
- Que fiz? - gritou Sarai, surpreendendo Agar. Afastou-se precipitadamente da tenda. Apesar da encosta
íngreme, correu para o alto da colina de Quiriate-Arba, de onde podia dominar a planície do Hebron, avistar as montanhas e os rios de Canaã.
Assim que lá chegou ficou estupefacta com o que via. Vindas do sul, do oriente e do ocidente, afluíam outras colunas que se juntavam à de Abrão. Chegavam de todos os lados. Dos vales, das montanhas, das aldeias no meio das pastagens, das margens do mar do Sal! Dir-se-iam correntes, afluentes que se reuniam num só caudal, que aumentava e aumentava à medida que avançava para norte. Agar chegou perto dela, esbaforida. Rindo de alívio, Sarai apontou na direcção do pó que formava agora uma nuvem por cima do exército de Abrão:
- Olha! Talvez não estejam bem equipados mas, pelo menos, são bem numerosos. Milhares!
Nessa tarde Sarai desmontou a sua tenda, abandonou a colina onde se mantivera isolada desde há tanto tempo e desceu para a planície, juntando-se aos outros.
Descobriu que desde o primeiro dia em que se instalara em Hebron, Abrão proibira a instalação de qualquer tenda ao lado da sua. Instalou-se na tenda do esposo sem hesitar. Pela primeira vez desde há tanto tempo, puderam vê-la sem o véu vermelho dissimulando-lhe o rosto.
Todos puderam constatar que o tempo continuava a não deixar marcas da sua passagem pelo corpo e pelo rosto de Sarai. Ninguém fez a menor observação; todos se comportaram como se fosse um prodígio natural.
O único que se mostrou espantado foi Eliézer de Damasco. Não estava habituado ao rosto de Sarai, tendo-o quase sempre avistado com o véu. Sentiu-se atraído pela curiosidade. Quando se encontrou diante dela, a beleza da sua madrasta perturbou-o suficientemente para o levar a mostrar-se lisonjeador e acolhedor:
- Ainda és mais bela que nas minhas lembranças. Eu era apenas uma criança... Abrão falou-me muitas vezes da tua beleza. Não sabia a que ponto falava verdade. Sinto-me muito feliz por te ver de volta entre nós. Tenho a certeza que o meu pai ficaria louco de alegria. Se precisares seja do que for, chama-me. Utiliza-me, considera-me como o teu filho bem-amado. Será a minha maior felicidade.
Sarai não respondeu, mas continuou a fixá-lo. Eliézer não pareceu embaraçado.
- Queria ir com Abrão para a guerra - prosseguiu com ar contrariado. - O meu lugar é ao pé dele e não há hora em que não lamente não o ter acompanhado.
- Nesse caso, que fazes aqui? - perguntou Sarai, erguendo uma sobrancelha cheia de ironia.
- Foi o meu pai, Abrão, que mo pediu! - exclamou Eliézer, com toda a sinceridade de que se julgava capaz. - Quis que eu ficasse aqui durante a sua ausência, para poder substituí-lo caso fosse necessário.
- Substituí-lo?
- Ensinou-me tudo o que era preciso para isso. O riso de Sarai quebrou a segurança de Eliézer.
- Meu rapaz, seja o que for que aprendeste com Abrão, duvido que algum dia o possas substituir. Nem sonhes. Faz como eu e espera sabiamente pelo seu regresso.
O VERÃO PASSOU SEM MAIS NOTÍCIAS, a não ser a que o exército de Abrão entrara em Sodoma. Mas Lot já lá não estava e a cidade fora pilhada e esvaziada dos seus habitantes. Abrão prosseguira os saqueadores rumo ao Norte, talvez para lá de Damasco.
Sem mais informações, com o tempo a passar lentamente, a incerteza aumentava. No Outono correu o rumor que o exército de Abrão fora vencido. Era bem possível que Abrão estivesse entre os mortos. Quando Agar lhe transmitiu este rumor, Sarai mandou-a calar:
- São disparates! Não acredito nem numa palavra.
- É o que eles dizem - desculpou-se Agar, brandamente. - E preferi que fosse eu a dizer-te.
- Quem diz isso? Agar desviou a cabeça.
- Eliézer. E outros.
Sarai soltou um risinho de cólera.
- E onde foram buscar essa informação? Receberam algum mensageiro? Não vi nenhum.
- São coisas que se dizem em Salem. E noutros sítios.
- Disparates. Disparates e maldades! Sei que Abrão está vivo, sinto-o!
Sarai não acrescentou que não havia noite em que não sonhasse com ele. O seu esposo, o seu amor. O jovem Abrão de Ur, o dos esponsais, o de Harân. Aquele que lhe trazia um cobertor à noite, na margem do Eufrates, aquele que procurava Canaã seguindo apenas a intuição da crença no seu deus. Aquele que rugia de prazer entre os seus braços e lhe dizia: «A única mulher que desejo como esposa é Sarai!» Aquele que não ligava à aridez do seu ventre, que a enchia de prazer com os seus beijos, as suas mãos, o seu sexo. Na realidade ela acordava agora, noite após noite, cheia de terror, sabendo que ainda o amava como no primeiro dia. Que esse amor nunca se dissipara, talvez tivesse apenas esmorecido. Sim, presentemente sentia-se inteiramente disposta a perdoar-lhe; desejava-o. Era a esposa de Abrão, para sempre, e apesar do seu ventre, apesar do Faraó e até do Deus Altíssimo, que por vezes levava para longe dela o espírito e o coração do seu esposo. E assim, todas as manhãs, chegava à alvorada com a testa e o ventre húmidos, cheia de esperança de vê-lo nesse mesmo dia, horrorizada ao pensar que podia nunca mais voltar a pôr os seus lábios nos dele.
Agar inclinou a testa, toda embaraçada. Sarai pegou-lhe no queixo e fê-la erguer o rosto:
- Sei de onde vem esse rumor. Contudo, Eliézer confunde os
seus desejos com a realidade. Devia acostumar-se a não ser nada. Para que ele se torne o filho e o herdeiro de Abrão, é preciso que depositem o corpo do meu esposo à minha frente e isso não acontecerá amanhã. Podes repetir-lhe o que acabo de te dizer, se o teu coração assim o disser.
O MENSAGEIRO CHEGOU quando nevava e gelava nas colinas em redor de Hebron. Abrão não só estava vivo, como vencera.
- Traz de volta Lot e a sua família para Sodoma, bem como todas as mulheres desta cidade, sequestradas pelos reis de Chinear, Elassar, Elam e Goim. Traz alimentos e ouro de Damasco. Todos o aclamam estrada fora e diz-se que o seu deus invisível o apoiou como jamais um deus apoiou alguém. É isso que o atrasa, mas estará aqui em menos de uma lua.
Enquanto as fogueiras e as danças quebravam o frio nocturno, enquanto a alegria e a exuberância se apoderavam como uma embriaguez de todas as esposas, filhas e irmãs, que tanto tinham esperado, Sarai' reparou no rosto sisudo de Eliézer. Ele ainda questionava o mensageiro, argumentava, queria pôr em dúvida a notícia. E quando não pôde mais evitar a verdade, o esgar que exibiu à laia de satisfação fazia pensar mais na fúria do que no alívio.
Tal como os outros, Agar ficou chocada.
- Tinhas dito a verdade sobre ele. Desculpa-me por ter duvidado do teu julgamento. Penso que isso acontece sempre que o leito de uma mulher fica muito tempo vazio. Um sorriso engana-nos logo.
Soltou um pequeno riso, rouco e desiludido, encostando o rosto ao pescoço de Sarai, para lhe murmurar ainda:
- Como te invejo por teres um esposo tão belo como Abrão, um vencedor que estará brevemente nos teus braços, cheio de impaciência! Dentro de poucas noites todas as tendas de Hebron vibrarão de prazer! Resta-me tapar os ouvidos e beber tisana de salva!
Sarai respondeu às carícias de Agar e afastou-a, séria, olhando-a subitamente com uma ternura comovida, quase temerosa.
- Que foi? - espantou-se Agar, rindo francamente.
- Nada - respondeu Sarai.
SARAI NÃO ESPEROU ABRÃO à entrada do acampamento, por entre as outras esposas, mas na tenda. Quando ele afastou o cortinado da entrada e a descobriu sem véu, despida, começou a tremer.
Avançou como um jovem. Tímido, maravilhado, respirando apressadamente. Caiu de joelhos diante dela. Abraçou-a com receio. Encostou a testa e cara ao ventre dela.
Sarai mergulhou os dedos na cabeleira dele. Como estava acinzentada! Aflorou as rugas espessas da sua testa, os seus ombros tisnados. Com o tempo, a pele dele tornara-se menos fina e firme, branca como leite nas zonas que a túnica protegia do sol.
Ela levantou-o, despiu-o, beijou-lhe o início do pescoço, lambeu-lhe as pequenas cicatrizes, as costas e o ventre musculoso. Ele sabia a erva e a pó.
Começou a tremer quando foi a vez de ele a levantar, levando-a até ao leito. Abrindo-lhe as coxas como se desvela a oferenda de uma delícia.
Não pronunciaram uma palavra antes de reencontrarem o sopro do prazer da sua redescoberta.
JÁ ERA NOITE QUANDO ABRÃO DECLAROU:
- Fiz a guerra, combati com a ajuda do Deus Altíssimo. Mas não houve dia em que não pensasse em ti. Senti o teu amor na força do meu braço e na minha vontade de vencer.
Sarai sorriu, sem o interromper.
- Pensei nas tuas cóleras. Quando mais longe me encontrava de Canaã e quando mais vencia, mais descobria a justeza das tuas palavras. Deste modo, quando Yhwh me chamou no caminho do regresso, a primeira coisa que lhe disse, foi: «Deus Altíssimo, avanço inteiramente nu! O herdeiro da minha casa é Eliézer de Damasco. Não me deste descendência. Alguém, que não é meu filho, vai ficar com o que tenho!» Ele respondeu: «Não! Esse não ficará com nada. Aquele que engendrares é que ficará com tudo.» Abrão calou-se. A sua respiração era opressiva, inquieta. Sarai abraçou-o com mais força. Ele repetiu:
- «Aquele que engendrares é que ficará com tudo». Estas foram as palavras de Yhwh. Não posso dizer mais. E não entendo como isso poderá acontecer.
- Eu entendo - disse suavemente Sarai, decorrido algum tempo. - O teu deus não modificará o meu ventre. Já não vale a pena esperar. Mas Eliézer é malvado, mais ainda do que imaginas. A tua morte tê-lo-ia regozijado, como todos se aperceberam.
- Já me disseram. Mas não é importante. E não é o facto de o expulsar que me trará um filho.
- Agar dar-to-á.
- Agar? A tua serva?
- Ela é bela e já teve filhos.
Abrão ficou imóvel, silencioso, sem ousar olhar para ela.
- Sou eu que te peço - insistiu Sarai. - Abrão não pode ficar sem herdeiro por ele engendrado. É o que diz o teu próprio deus.
- E Agar não se importa? Já não sou jovem.
- Ela morre de desejo por um homem, jovem ou velho. Além disso admira-te tanto quanto tu admiras o teu deus!
Abrão continuou calado e procurou o olhar de Sarai na penumbra. Com a ponta dos dedos, acariciou-lhe suavemente os lábios.
- Vais sofrer - cochichou-lhe. - Não será o teu filho.
- Serei forte.
- Darei prazer a Agar. Vais sofrer.
Sarai sorriu para dissimular as lágrimas que lhe acudiam aos olhos.
- Saberei então o que sentiste na terra do Faraó.
O ciúme
MAS SARAI NÃO FOI TÃO FORTE COMO JULGAVA. A dor principiou na primeira noite que Agar passou na tenda de Abrão. Ao deitar-se, teve a infelicidade de pensar na cicatriz de Agar, naquela orla nacarada que lhe atravessava os ombros. Pensou nos lábios de Abrão pousando na cicatriz. Cobrindo-a de beijinhos. Sentiu tantas dores na barriga, na nuca e nos rins que não pregou olho até de madrugada. Pelo menos teve a coragem de permanecer no seu leito.
No dia seguinte evitou tanto a presença de Abrão como a de Agar. Contudo, ao crepúsculo, as pontadas recomeçaram a incendiar-lhe o peito. Logo que a noite chegou, ergueu-se atrás do cortinado que servia de porta no interior da tenda e escutou. Ouviu, claro, a grande gargalhada voluptuosa de Agar. Depois, os seus gemidos e até o arfar de Abrão.
Saiu para o exterior da tenda a fim de respirar melhor. Infelizmente para ela, ainda ouvia melhor o prazer do seu esposo e da sua serva. Ao abrigo dos olhares, acocorou-se como uma velha, mãos nos ouvidos, pálpebras cerradas. Ainda foi pior. Na sua cegueira via o sexo de Abrão, as belas ancas de Agar, o seu êxtase guloso. Via pormenorizadamente tudo o que não devia ver.
Vomitou como uma mulher embriagada.
No dia seguinte, munida de um cantil de leite, pão, azeitonas e uma pele de carneiro, teve a sabedoria de abandonar o acampamento para subir à colina de Quiriate-Arba. Durante duas noites, pensando em todo o tipo de rostos de crianças, conseguiu dormir ao relento. Regressou ao acampamento sorrindo.
Agar também sorria. Como não ousavam olhar-se, Sarai acabou por rir. Abraçou Agar e murmurou-lhe ao ouvido:
- Sinto-me feliz. Mas não há nada a fazer: é mais forte que eu, tenho ciúmes.
- Já não há motivos para isso - suspirou Agar. - Abrão partiu esta manhã, gritar o nome de Yhwh por Canaã e colocar oferendas em todos os altares que mandou construir.
E, de facto, o ciúme cessou.
Sarai esperou com impaciência a chegada da nova lua. Foi a primeira a aplaudir quando Agar lhe anunciou que o sangue não lhe escorria por entre as coxas.
A partir desse dia Sarai deixou de considerar Agar como sua serva. Rodeou-a de atenções e ternura, como uma mãe que se ocupa da filha. Agar tomou gosto a este tratamento. Apesar do seu ventre mal ter crescido, deixou de pilar o grão para fabricar farinha, deixou o serviço na tenda para outras servas e absteve-se de transportar o menor objecto. As mulheres passavam longas tardes na sua companhia, trazendo-lhe bolos de mel, unguentos perfumados e elogiando-a tanto como se fosse a verdadeira esposa de Abrão.
É verdade que ela resplandecia. Sarai reparou que os seus lábios se tornavam mais espessos e sedosos. As maçãs do rosto alargavam-se, e até os seus olhos pareciam mais luminosos e ternos. Efectuava gestos lentos que se assemelhavam aos de uma dança. Ria com uma voz grave, atirando os ombros para trás e inchando o peito. Dormia a qualquer hora do dia como se estivesse sozinha no mundo. Acordava para reclamar comida. Em todos os aspectos, era uma mulher cheia de felicidade por ir dar à luz.
Ao vê-la assim, cada dia mais feliz e mais carnuda, o ciúme voltou a provocar um novo aperto na garganta de Sarai.
Prudente, esforçou-se por se afastar frequentemente, procurando ocupações mais longe da tenda, indo dormir entre os braços de Abrão como se isso a pudesse proteger de tudo. E, talvez até, como se isso pudesse desagradar um pouco a Agar.
No entanto, no pino do Verão, numa tarde em que entrava na sua tenda, cortinado já levantado para deixar circular o ar, descobriu Abrão ajoelhado diante da sua serva. Agar tinha erguido a túnica até ao pescoço e a mão de Abrão acariciava-lhe ternamente o ventre nu!
De respiração cortada, deu um pulo para trás. Mas não conseguiu evitar de espiar Abrão. Este inclinava-se, encostando a cara e o ouvido contra aquele ventre cheio de vida, a sua cabeleira branca cobrindo os seios de Agar, de mamilos dilatados e escuros.
Ouviu o murmúrio afectuoso de Abrão. Um murmúrio que lhe esmagou o peito.
Ouviu os risinhos de Agar. Os beijos de Abrão no ventre terrivelmente rechonchudo. Os arrufos de Agar que oferecia toda a sua carne à beatitude de Abrão.
Fugiu, cabeça em polvorosa, devorada pelo ciúme. Sabendo que esse ciúme não mais iria parar. Que já não era suficientemente forte para o suportar.
QUANDO AGAR JÁ ÍA NA SÉTIMA LUA da sua gravidez, afastou, enojada, o prato que Sarai acabara de lhe trazer.
- Está mal cozido! - exclamou. - E as especiarias foram mal escolhidas. Não convêm para uma mulher no meu estado.
Sarai olhou-a, siderada, sem conseguir dizer palavra e, logo a seguir, submergida pela cólera.
- Como ousas falar-me dessa maneira?
- Estou apenas a dizer que a carne está mal cozida - insistiu Agar, com desenvoltura. - Não é culpa tua, isso acontece.
- Por ser atenciosa contigo, julgas que me tornei a tua serva? Agar sorriu.
- Não te zangues! É normal que tomes conta de mim. Trago o filho de Abrão no meu ventre.
Sarai esbofeteou-a com toda a força.
- Quem julgas que és?
Arregalando uns olhos atemorizados, uma mão no rosto, a outra sustendo o ventre, Agar desatou a guinchar e chamou por ajuda. Sem se importar minimamente, toda entregue à sua fúria, Sarai berrou:
- Não és a esposa de Abrão. És apenas um ventre que carrega o fruto da sua semente e mais nada! Uma barriga emprestada. És a minha serva e foi a minha serva que engravidou. Que direito julgas ter aqui? E, ainda por cima, sobre mim! Sobre mim, Sarai, a esposa de Abrão?!
As mulheres acorriam, procurando segurar os braços de Sarai, temendo que ela batesse novamente em Agar. Sarai libertou-se com fúria.
- Não sejam estúpidas! Não vou matá-la. Momentos depois estava diante de Abrão.
- Levei Agar para a tua cama e agora que engravidou julga-se tua esposa. Já não é suportável.
O rosto de Abrão enrugou-se de tristeza. Pegou nos ombros de Sarai e apertou-a de encontro a ele.
- Tinha-te prevenido que sofrerias.
- Não se trata de sofrer - mentiu Sarai. - Agar não pára de me faltar ao respeito. Não pode continuar a viver perto de mim.
Abrão respirou profundamente, levou algum tempo para se sentar e perguntou:
- Que queres de mim?
- Tens de escolher entre Agar e Sarai. Abrão sorriu, sem alegria:
- A escolha já foi feita há muito tempo. És a minha esposa e ela é a tua serva. Faz o que entenderes com a tua serva.
- Nesse caso, vou expulsá-la.
AGAR ABANDONOU A PLANÍCIE DE HEBRON nessa mesma tarde, em lágrimas, levando a sua grande barriga pelos caminhos e uma trouxa ao ombro.
Durante três dias Sarai enfrentou a vergonha dos seus ciúmes. A vergonha da sua dureza, da sua intransigência. Do seu ventre estéril. Julgou que ia morrer.
No entanto nada pôde decidi-la a correr atrás de Agar para a trazer de volta. Nem sequer o rosto de Abrão, cinzento de tristeza. Nem sequer ao lembrar-se de Eliézer de Damasco, que agora vivia algures na planície e que devia regozijar-se por voltar a ser o herdeiro de Abrão.
Na manhã do quarto dia, Sarai ouviu exclamações de alegria, gritos femininos. Com a boca subitamente seca, reconheceu a voz de Agar.
Precipitou-se para o exterior, hesitando entre gritar a sua cólera e conceder o seu perdão. Mas Abrão já corria ao encontro da sua serva.
Rodeada, acarinhada, Agar chorava, ria, choramingava. Sarai viu-a pendurar-se ao pescoço de Abrão. Ouviu a voz deste dizer-lhe com a doçura de um cordeiro:
- Vem, vem estender-te! Já nos vais contar a tua história, mas primeiro vem estender-te e comer um pouco.
Nenhum homem ou mulher ousou enfrentar o olhar de Sarai. Ela aproximou-se, de rosto fechado, engolindo a sua vergonha, a sua cólera e o seu ciúme, para ouvir a fábula que Agar ia contar, de rosto contraído, mas de olhar feliz.
- Foi anteontem à noite. Tinha sede e aproximei-me da fonte que se encontra no caminho para Shur, aterrorizada à ideia de ter de atravessar em breve o deserto. De repente, senti uma presença que se aproximava de mim. Digo «uma presença», pois tratava-se de alguém que se parecia com um homem, mas não era. Não tinha rosto, mas possuía corpo e voz. Perguntou-me: «Que fazes aí?» Eu disse-lhe: «Fujo de Sarai, a minha senhora, que me expulsou! Vou morrer no deserto com um filho no ventre!» Então, ele disse-me, ainda mais perto do meu ouvido: «Não, volta para a casa dela. Estás grávida e vais ter um filho, e dar-lhe-ás o nome de Ismael, porque Yhwh escutou a voz da tua angústia pela humilhação que te infligiu a tua senhora. Ele será como um cavalo selvagem entre os homens; a sua mão erguer-se-á contra todos, a mão de todos erguer-se-á contra ele, verdadeiro desafio para os seus irmãos». Eis o que ele me disse.
Agar calou-se. Radiante. Ninguém ousou dizer palavra, fazer uma pergunta. A cabeça branca de Abrão balanceava como se soluçasse.
Agar viu a expressão sisuda de Sarai atrás das outras mulheres. Deixou de sorrir e agarrou na mão de Abrão, levando-a ao seu ventre:
- É a verdade, têm de acreditar em mim. O mensageiro do teu deus pediu-me para voltar a casa, para junto de ti. Disse-me: «Pouco importa se a tua senhora te humilhar novamente. Terás de suportá-lo». Então regressei o mais depressa possível para que pudesses acolher o teu filho, erguê-lo nos teus braços logo que ele sair da minha vulva.
Sarai pensou: «Mentiras! Está a humilhar-me, a mim, Sarai, sua senhora, que ela trata como a uma serva. Quem poderá acreditar nela? É o deus de Abrão que se lhe dirige! Mais mentiras. Uma fábula que inventou e que vai seduzir Abrão. Ah, isso sim!»
Mas conservou-se calada. Não ia expulsar Agar outra vez, tornar-se ainda mais dura, mais detestável aos olhos de todos. Aliás, seria inútil. Abrão, de olhos húmidos, acariciava o ventre de Agar:
- Acredito em ti, acredito em ti, Agar! Sei como o Deus Altíssimo pode dar a conhecer a Sua vontade. Descansa, cuida de ti, dá à luz o meu filho.
Voltou-se, procurando Sarai com os olhos.
- Não te esqueças que Sarai é a tua senhora. Se ela não tivesse querido, nunca me teria deitado contigo para ter um filho. Não te aproveites da tua felicidade para a tornar fraca e ciumenta.
Sarai afastou-se antes que ele chegasse a acabar a frase.
SARAI NUNCA MAIS MOSTROU o SEU CIÚME. Mas este consumiu-a como a uma vara seca de cepo.
Quando Agar sentiu as primeiras dores, Sarai mandou chamar as parteiras, preparou ela própria os panos, os unguentos calmantes, aqueceu a água com as ervas e certificou-se que tudo corria bem. Depois foi deitar-se no fundo da sua tenda e tapou os ouvidos para não ouvir nem os gritos de Agar, nem os do bebé.
No entanto, no dia seguinte foi beijar a testa do filho do seu esposo, que chamaram de Ismael. Sorriu durante o tempo que pôde ao ver a grande alegria de Abrão que erguia o recém-nascido para o céu clamando o nome de Yhwh. Depois, abandonou o acampamento.
Caminhou durante horas, sempre em frente, levantando a túnica para que o vento da planície acalmasse a fornalha do ciúme que a consumia.
Quanto a Abrão, foi passear o seu contentamento por quase todos os cantos de Canaã, agradecendo ao seu deus, por toda a parte, pelo filho que Agar lhe dera. Mas regressou bem depressa. Abandonava as suas longas conversas na tenda de riscas brancas e negras, para admirar Agar que, ao longo do dia, oferecia as suas tetas à boca de Ismael. Então, começava a rir. Um riso que Sarai não lhe conhecia e que, em breve, explodia a propósito de tudo e de nada.
Logo que foi possível, Abrão começou a brincar com o filho. Passava horas na sua companhia, sob o olhar enternecido de Agar, soltando gritos, chilreando como um passarinho. Eram gritos e mais gritos, pai e filho abraçados, rolando pelos tapetes, pela erva seca. Inventavam pássaros nas nuvens, brincavam com os insectos, explodiam de felicidade por um nada.
Enjoada com toda aquela gritaria, quebrada por aquela felicidade, Sarai deixou de dormir. Adquiriu o hábito de abandonar a sua tenda a meio da noite para deambular como um fantasma. Por vezes, no ar frio e escuro, o fogo do seu ciúme cessava de a consumir.
Com a raiva do orgulho, absteve-se contudo de mostrar o seu sofrimento. Forçou-se a pegar em Ismael, a embalá-lo, a respirar o seu suave aroma de criança. Cheia de ternura, olhos semicerrados, anichava a cabeça minúscula do bebé no seu pescoço até que ele adormecesse. Depois, escondia-se de novo, tremendo de febre, sem que as lágrimas conseguissem refrescar-lhe a cara.
Aguentou durante um tempo que lhe pareceu infinito. Emagreceu. A sua boca tornou-se estranha, transparente. A sua pele, apesar de não enrugar, tornou-se ligeiramente áspera, mais espessa. Parecia ser calcinada do interior e mostrou-se terrivelmente susceptível. Já não suportava que a tocassem, nem sequer Abrão.
DURANTE o SEGUNDO INVERNO após a sua nascença, Ismael começou a caminhar, a quebrar vasos rindo-se, a balbuciar as primeiras palavras. Foi assim que acabou por esbarrar um dia nas pernas de Sarai'. Ela inclinou-se, como era hábito, para o pôr nos seus braços. Ismael afastou as mãos dela, de sobrolho franzido. Olhou-a como a uma desconhecida. De olhar sombrio, soltou um grito de pequena fera voraz e amedrontada, antes de fugir, berrando, para os braços de Agar.
Sarai afastou-se como se a criança lhe tivesse batido.
Desta vez os ciúmes abrasavam-na até aos ossos, de forma insuportável.
Ao chegar o crepúsculo, subiu novamente à colina de Quiriate-Arba. Estava frio, quase gelava. No entanto a sua pele escaldava como se lhe aplicassem tições. Revia o olhar de Ismael, tudo o que tivera de suportar durante estações e estações, e não aguentava mais.
Na berma do caminho ouviu o marulhar de um rio. Este fluía tumultuosamente. Sem reflectir, atirou-se para a água gelada. O rio não era nada profundo, mas a corrente chicoteou-lhe os rins enquanto ela salpicava o ventre e a cara com grandes gestos.
Pensou que podia ficar ali, assim, sob a mordedura do frio, até que o seu corpo cedesse finalmente. Até que a sua beleza se quebrasse, até que a idade a levasse como a um fruto esquecido, como a um ramo quebrado pelo Inverno.
Sim, era isso que devia fazer. Permanecer no rio até que a sua carne cedesse! Se a corrente conseguia desgastar as rochas mais duras, por que não arruinaria a beleza inútil de Sarai?
Tremendo, ergueu os olhos para contemplar a noite estrelada. Aqueles milhares de estrelas que - como diziam na sua infância -os grandes deuses de Ur tinham imobilizado, uma após outra.
Lembrou-se do poema que aprendera quando era Santa Serva, ignorante e ávida de vida:
Quando os deuses concebiam o homem, Estavam atarefados e trabalhavam: Considerável era o seu trabalho, Infinito o seu labor...
Foi então que o apelo lhe jorrou da boca, num berro que fez estremecer tudo à sua volta:
- Yhwh, ajuda-me! Deus Altíssimo de Abrão, ajuda-me! Não
aguento mais. Não aguento mais o meu ventre estéril, os meus ciúmes abrasadores. A prova é demasiado longa. Yhwh! Tu dirigiste-te a Agar! Tens pena dela e ajuda-la e, a mim, nada! Nada desde há tanto tempo. Ouves a lamentação da minha serva, mas ignoras-me a mim, esposa daquele que escolheste, a mim, esposa de Abrão! Oh, como é pesado o teu silêncio! Ó Yhwh! De que serve seres simplesmente o deus de Abrão? Como poderás engendrar a sua descendência sem insuflar a vida no meu corpo? Como dar começo a algo se Sarai é uma autêntica fonte seca? Como podes prometer um povo e uma nação ao meu esposo quando a minha vida não engendra outra? Se és tão poderoso quanto Abrão pretende, então sabes fazê-lo. Sabes porque cometi uma falta em Ur, há tanto tempo, com as ervas da kassaptu. Ó Yhwh, era por amor por Abrão! Se não me perdoas a falta da inocência e do amor, de que serve criares tanta esperança no coração de Abrão? Ó Yhwh, ajuda-me!
SIM, FOI ASSIM QUE GRITEI. Lembro-me muito bem. De rosto voltado para o céu, braços erguidos, corpo todo dorido, berrei como as leoas rugem à lua: «Yhwh, ajuda-me! Ajuda-me!»
Apelei, sem vergonha, ao Deus Altíssimo de Abrão. Na verdade, não acreditava que Ele me ouvisse; tinha sobretudo necessidade de berrar.
Ainda era Sarai.
Tudo era duro e difícil.
Hoje, enquanto aguardo o momento em que Yhwh parará a minha respiração, essa lembrança faz-me sorrir. Pois, na verdade, Ele ouviu-me!
O rio onde gelava não fica longe daqui. De onde estou sentada, diante da gruta que será o meu túmulo, avisto as moitas de hortelã que orlam a sua margem. Nessa noite havia apenas pedras e escuridão. Fiquei tanto tempo na água que teria podido morrer. Mas não, Yhwh não o quis!
De manhã fui ver Abrão. Disse-lhe:
- É demasiado duro, meu esposo. Os meus ciúmes são excessivos. Mas não te quero envergonhar nem estragar a felicidade que o teu filho te dá. Permite-me erguer a minha tenda lá no alto, sob os terebintos, longe do acampamento.
Hesitei confiar-lhe que berrara o nome de Yhwh até perder o fôlego. Também teria de lhe contar como permanecera na água gelada. Para quê? Todos já me achavam assaz louca. Era inútil perturbá-lo ainda mais.
Abrão escutou-me em silêncio. Agora que Ismael conseguia saltar para cima dos seus joelhos, pouco lhe importava que eu estivesse perto ou longe. Beijou-me e deixou-me partir.
Na minha tenda afastada, solitária, sem sequer uma serva para a partilhar comigo, finalmente consegui dormir. Dois ou três dias de uma assentada. Acordando para beber apenas um pouco de leite.
O sono era bom como uma carícia. Acalmei-me. Até soube rir de mim mesma. Porquê querer sempre lutar, remoer o que já fora feito há lustres? Porquê tantos gritos, tantos dramas, se uma criança nascera, se a descendência de Abrão se realizara verdadeiramente? Não fora por minha vontade? Claro que Agar era a mãe da criança. Mas seria assim tão importante? Em breve Ismael cresceria e, em toda a parte e para sempre, chamá-lo-iam «o filho de Abrão». Ninguém se preocuparia com o ventre que o tinha engendrado.
Sim, pensava nisso tudo com um sorriso, procurando encontrar uma razão. Sentindo, ai de mim, que não conseguiria. Sou assim. Desde que carrego o meu fardo, não soube acomodar-me a ele.
Depois, eis que uma manhã, quando ia lavar roupa ao rio, descobri pequenas manchas nas mãos. Irregulares, semelhantes às marcas de uma casca. À tarde voltei a examiná-las. Pareceram-me mais escuras. Logo que acordei na manhã seguinte, ergui as mãos na fraca claridade da madrugada e examinei-as. Ali estavam, bem visíveis. Mesmo mais do que na véspera!
Nos dias seguintes os músculos dos meus braços e das minhas coxas começaram a diminuir. Era todo o meu corpo que se transformava! Ao examinar-me melhor, descobri na minha barriga uma prega mais pronunciada que habitualmente. No dia seguinte, descobri outra. E assim por diante. O meu ventre enrugava! Examinei os seios: achei-os menos altos, menos redondos. Nem frouxos, nem como as tetas de uma cabra, não, mas mais firmes. Sopesei-os. Estendiam-se pela palma da minha mão. Escavavam-se onde antes eram arredondados. Corri para encher de água um jarro com um grande gargalo, para examinar o reflexo do meu rosto. Rugas! Rugas sob os olhos, à volta dos olhos, no alto das maçãs do rosto, na borda do nariz, dezenas de minúsculas rugas à volta dos lábios! E as minhas faces estavam menos esticadas, o meu pescoço mais relaxado...
O meu rosto tornava-se o de uma mulher da minha idade. Envelhecia.
Pulei, berrando de alegria. Comecei a dançar, rindo de felicidade como uma menina que recebeu o seu primeiro beijo. Finalmente envelhecia! Tinha acabado aquela beleza de jovem que me colava aos membros e que há tanto tempo me velava com um brilho falso!
Durante pelo menos uma lua não parei de me examinar, de me olhar na água, contando as rugas, medindo a queda dos meus seios, as pregas da minha barriga. Sempre que constatava o envelhecimento, embriagava-me de felicidade.
Se me vissem de lá de baixo, das tendas de Abrão, deviam pensar: «Eis que Sarai, completamente sozinha na sua encosta e entregue aos seus ciúmes, perdeu a cabeça de vez!»
Não me importava de parecer uma louca. O tempo regressara finalmente ao meu corpo. Como se deposita um recém-nascido no berço, ele depositava-me na aparência da minha idade. E com aquela idade, com aquele corpo, o meu tormento podia cessar: já estava fora de questão parir. Pela primeira vez desde o meu encontro com a kassaptu da cidade baixa de Ur, era normal que o sangue não mais escorresse entre as minhas coxas.
Oh, que alívio!
Pensei: «Afinal, talvez Yhwh me tenha ouvido! Ouviu o teu lamento. Não podendo mudar a tua barriga, quebra finalmente o prodígio da tua beleza e acalma-te com a doçura da velhice».
Foi o que julguei! Levei o atrevimento até me pôr bem direita, palmas das mãos abertas, como vira fazer Abrão para agradecer a Yhwh. Pela primeira vez orava por ele, chamando-o de meu Deus Altíssimo. Que orgulho!
Algum tempo depois, Abrão veio visitar-me, de rosto grave e sério. Pensei que algo não corria bem com Agar ou com o seu filho Ismael. Talvez viesse pedir-me para me afastar ainda mais um pouco, quem sabe? Aprontei-me. Aprontei-me também para a surpresa que teria ao ver-me.
Mas, não... Parou, franzindo um pouco mais o sobrolho. Lançou um olhar só um pouco mais intrigado para o meu pescoço e para a minha testa, sem dizer palavra. Sem me fazer uma pergunta. Na verdade, como seria possível surpreender um homem como Abrão, que já tinha papos sob os olhos, faces moles e costas ligeiramente curvadas?
Fi-lo sentar-se confortavelmente, trouxe-lhe de beber e de comer. Por fim, quando me fixou verdadeiramente, disse-lhe:
- Escuto-te, meu esposo.
- Yhwh falou comigo esta manhã. Anunciou-me: «Quero fazer uma aliança contigo e multiplicarei a tua descendência até ao infinito. Eis a aliança estabelecida entre mim e vós, que tereis de respeitar: todo o homem, entre vós, será circuncidado. Oito dias depois de nascer, toda a criança do sexo masculino, das vossas gerações futuras, será circuncidada por vós e, desta forma, será marcado na vossa carne o sinal da minha aliança perpétua.»
Sorriu. O seu primeiro sorriso desde que se instalara diante de mim. Acrescentou, como se receasse que eu não compreendesse:
- O Deus Altíssimo oferece-Se a nós.
Pensei nas minhas rugas e foi a minha vez de sorrir. Abrão enganou-se quanto ao motivo do meu sorriso. Colocou a sua grande mão no meu joelho. Com um tremor na voz, acrescentou:
- Sim, mais do que julgas! Ouve-me. Yhwh ainda me disse: «Já não te chamarás Abrão, mas sim Abraão, porque Eu farei de ti o pai de inúmeros povos. Não chamarás mais à tua mulher Sarai', mas o seu nome será Sara. Abençoá-la-ei e dar-te-ei um filho por meio dela, a quem hás-de chamar Isaac».
Creio que o céu tremeu quando Abrão pronunciou estas palavras. A menos que tenha sido o meu ventre. A minha boca também tremeu. Pensei nos meus berros no rio, no prodígio da idade que me regressara na última lua, quebrando o prodígio da beleza. Sim, é possível que tenha pensado nisso tudo, pensando que Abrão talvez dissesse a verdade e que o seu deus, desta vez, acorria finalmente em meu auxílio e apoiava-me.
Mas não deixei transparecer nada. Depois de todo aquele tempo, era uma esperança demasiado difícil de aceitar. Além disso, bastava olhar nessa altura para nós, para a velha Sarai e o velho Abrão, para que fosse risível imaginar-nos numa cama e, mais ainda, imaginar-me dando à luz!
Não, não queria saber nada da promessa contida nas palavras de Yhwh.
Coloquei a minha mão na de Abrão.
- Tudo bem quanto ao meu nome, Sara. Isso não me incomoda. Abraão também é um nome que desliza bem pela língua. Também é bonito.
Abraão suspirou como um jovem. Os seus olhos brilharam, trocistas e radiantes. Os seus lábios alongaram-se, lembrando-me aqueles que tanto me tinham seduzido outrora, na margem do Eufrates.
- Não acreditas, pois não?
- Em quê?
- Oh, não te armes em burra! Sabes bem! Ouviste-me.
- Abraão, dado que é esse o teu novo nome, já viste como envelheci?
- Envelheceste? Não. Pareces-me ter apenas um rosto condizente com a tua idade e sinto-me muito feliz por ti! Sara, meu amor, Yhwh anuncia-te: Ele abençoa-te e o teu filho chamar-se-á Isaac. Que mais queres?
- Enfim, Abraão, pára de sonhar, querido esposo. De que ventre sairia esse filho, esse Isaac?
- Do teu! Do ventre de Sara. De que outro querias que saísse?
- E brotando de que semente?
- Da minha, que raio de pergunta! Ah, estou a ver: já não me julgas capaz, pois não?
Não consegui evitar de rebentar a rir.
- Oh, isso sim, acredito! Tu és capaz de tudo. Mas, depois de todo este tempo, para mim tudo acabou. Não basta eu tornar-me Sara para te fazer um filho. Tenho rugas e sou estéril, como é natural. Uma mulher é uma mulher, Abraão. Até eu.
- Disparates! Não ouves as palavras de Yhwh. Eu também duvidei. Também ri. Yhwh zangou-se: «Haverá algo de difícil para Yhwh?», perguntou-me. Sara, basta-nos... Mas pára de rir!
Mas nem assim conseguia parar o meu louco riso. Abracei o meu velho esposo. Coloquei a sua cabeça entre as minhas mãos, beijei-lhe os olhos, encostei a sua testa à minha cara:
- Não precisas de tantas palavras para vires para a minha cama, Abraão. Mas não tenhas ilusões. Não vais conhecer aquela que lá encontrarás. Já não aguenta qualquer comparação com Agar.
Procurou os meus lábios, resmungando, ainda de má disposição:
- Tu és Sara e eu sou Abraão. É tudo o que conta e vou provar-to, com a ajuda do Deus Altíssimo.
E foi o que fez.
Enchendo-me de prazer, um prazer que eu não conhecia, calmo e terno. Lembrei-me das palavras da minha cara Sililli: «Nunca se viu um homem cansar-se dessas coisas. Mesmo que vacilem e gaguejem, desde que ainda consigam levantar a haste, imaginam-se lenhadores!» Mas uma mulher também não se cansa disso, mesmo quando o seu corpo é apenas a lembrança da sua juventude.
Depois dormimos profundamente. Sobretudo eu, que nem o ouvi levantar-se quando o dia já ia avançado. Acordei ao som de vozes. Abraão dizia:
- Senhores! Senhores, não passeis adiante sem parardes em casa do vosso servo. Permiti que vos traga um pouco de água para vos lavar os pés e descansai debaixo desta árvore de espessa folhagem. Vou buscar um bocado de pão e quando as vossas forças estiverem restauradas, prosseguireis o vosso caminho.
Ouvi os viajantes desconhecidos agradecerem-lhe:
- Faz como disseste.
Abraão instalou-os debaixo da árvore antes de pular para dentro da tenda:
- Depressa! Prepara leite coalhado e frutos.
- Mas quem são esses viajantes, Abraão?
Olhou-me como se não compreendesse a minha pergunta.
- Para quê tanta pressa? - perguntei ainda.
- São os enviados, os anjos de Yhwh.
Saiu, sempre apressado. Então ouvi a voz de um dos viajantes perguntando:
- Onde está Sara, a tua mulher?
Imobilizei-me, perturbada. Então já conheciam o meu novo nome, quando Abraão mo anunciara apenas na véspera?
- Está na tenda - respondeu Abraão.
- No mesmo dia do próximo ano a tua mulher terá um filho. Foi mais forte que eu. Pensei na noite que acabara de passar
com Abraão e ri-me. Não um riso louco. Nem um risinho divertido ou contido. Um riso como nunca tivera na minha vida. Um riso para acreditar e não acreditar nas palavras de Yhwh. Um riso que me fazia estremecer dos pés à cabeça, que escorria pelo meu sangue, pelo meu coração, que me inundava o peito e se anichava no meu ventre como uma vida agitando-se.
Um riso que fez pena a Yhwh, pois os viajantes perguntaram um tanto secamente:
- Porquê esse riso?
Mas, atrás do cortinado da tenda, procurei mentir:
- Não, eu não me ri.
- Sim, riste-te.
Impossível de dissimular o riso, impossível mentir a Deus.
Mas hoje sei que Yhwh me acordou esse riso, pois eu merecia-o. Depois de tantos anos a ser apenas Sarai de ventre estéril, esposa de Abrão, transformara-me numa velha mulher e em Sara, a fecunda! Sara, que ia dar uma descendência a Abraão: Isaac, o meu filho! Como evitar o riso?
Não, não troçava de Yhwh. Quem ousaria? Apenas troçava de mim mesma, do rumo da minha vida. Dos meus receios, do meu consolo e do meu encantamento.
Pois tudo adveio.
Foi a minha vez de conhecer o ventre redondo, os seios que incham e endurecem. As ancas pesadas, os caprichos, os suores. Por fim, vi Abraão ajoelhar-se entre as minhas coxas, ouvido colado ao meu umbigo, tremendo como um jovem e exclamando:
- Ele mexe-se, ele mexe-se!
Foi a minha vez de ter medo. Conheci as noites passadas de
olhos abertos, com sombrios pensamentos. Lembrei-me de Lehklai, de todas as que vira falecer ao darem à luz.
Foi a minha vez de sentir um orgulho ilimitado, mostrando a minha grande barriga por todo o vale do Hebron. A quem a desejava ver, dizia:
- Quem acreditaria? Sara e Abraão esperam um filho engendrado pela sua própria carne. Por muito velhos que sejamos, essa é a vontade de Yhwh.
Eles também se riam.
Tal como tinham previsto os viajantes, foi a minha vez de me deitar sobre os tijolos do parto. De testa húmida, dores nos rins e gritos na boca. Mas fui suficientemente lúcida para pedir às parteiras:
- Se as coisas correrem mal, não hesitem. Abram-me o ventre e retirem a criança viva. Eu já vivi a minha vida.
Mas, desta vez, Yhwh estava no meu corpo. Para grande estupefacção de todos, a dor foi curta, não mais violenta que a de uma mãe de doze filhos. Isaac nasceu belo e rechonchudo, suave como um pão de mel. O meu Isaac, o menino mais lindo do mundo!
Logo à nascença tinha os lábios de Abraão, olhos que vos vão directamente ao coração. Bastou que crescesse para poder adivinhar até que ponto seria forte e clarividente, com um pouco da graça da mãe, da beleza de Sarai.
As pessoas acorriam de toda a parte, para nos verem. Todos se espantavam em voz alta:
- Quem diria? Sara aleitando um filho para os velhos dias de Abraão!
Partiam, impressionados com a grandeza de Yhwh, admirando o Seu poder e a fidelidade das Suas promessas.
O próprio Eliézer de Damasco veio rodar à volta da minha tenda. Sempre o mesmo. Belo homem, mas com as pálpebras demasiado cerradas sobre os olhos. Ao voltar a vê-lo, pensei naquelas lindas flores enxofradas do mar do Sal. Vamos colhê-las e partimos os membros nas fendas que elas dissimulam.
Depois de constatar que Isaac era tão belo e forte como diziam, anunciou numa voz plena de despeito:
- O teu sobrinho Lot porta-se muito mal em Sodoma. Não respeita Yhwh. Está sempre embriagado, deita-se com quem lhe apetece, jovem ou velho, mulher ou rapaz. Dizem que até se deita com as suas próprias filhas.
Perguntei-lhe:
- «Dizem...» Mas tu, que foi que viste? Ficaste a segurar na vela, dentro da tenda?
Ele riu-se amargamente:
- Dizem e acredito no que dizem. Que eu o veja ou não, isso não tem importância. O Deus Altíssimo também o vê. Podes ter a certeza que se vai zangar.
Respondi-lhe:
- Por muito que te desagrade Eliézer, Abraão gosta de Lot. Não o abandonará. Se for preciso, disputará a vida dele com Yhwh. E foi precisamente o que aconteceu. Yhwh destruiu Sodoma, mas Abraão suplicou-lhe que poupasse Lot. Disse-Lhe: «E será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado?» E o Deus Altíssimo ouviu-o. Eliézer não ficou contente. Nunca mais voltei a vê-lo. Que alívio. Aí está alguém que vai ser esquecido para sempre.
Quanto a Lot, uma vez que Abraão lhe obtivera a misericórdia de Yhwh, enviou-me um vitelo e perfumes e o seu servo para me dizer que a minha felicidade era a dele e que ia viver com os seus para o deserto do Neguev.
Pobre Lot! Amei-o menos do que ele queria e mais do que devia. Amei-o mal, e a minha beleza prodigiosa fez dele uma vítima. É uma sombra na minha vida. Como Agar.
Depois do nascimento de Isaac, ela veio visitar-me com Ismael. Uma, duas vezes e, depois, cada vez mais frequentemente. Não tínhamos nada a dizer uma à outra. Ela espreitava os risos de Ismael enquanto eu vigiava a sua brusquidão, temendo sempre um pouco por Isaac. Até ao dia em que ela exclamou:
- Vê como o meu filho é meigo com o teu. Vão ser felizes juntos, como dois irmãos!
- Não creio - respondi.
- Que queres dizer?
- É melhor que te vás embora. Já não és a minha serva e Isaac não precisa de um irmão. O teu filho é grande. Presentemente vocês já podem caminhar e encontrar um lugar que seja inteiramente vosso.
- Mas, porquê? Sara, eu amei-te mais do que uma amante. Como uma irmã...
Interrompi-a com um gesto.
- Não, Agar. Os meus ciúmes não morreram, estão apenas postos de lado. O meu desejo de ver Isaac tornar-se o único herdeiro de Abraão também não morreu. Sê sensata. Já não gostamos uma da outra. Os nossos filhos não poderão gostar um do outro pois sentirão a desconfiança que existe entre as suas mães. Está no meu poder ordenar-te que partas e é isso que te digo.
Resisti às suas lágrimas e súplicas.
Ainda hoje há gente que me recrimina por isso.
Terei agido mal? Como saber? Orgulhava-me da minha felicidade e não queria nada que pudesse ensombrar o meu riso.
Mas Yhwh encarregou-se de o transformar em grito, para me ensinar a ser um pouco mais modesta.
Tudo se passou numa manhã em que as nuvens estavam muito baixas, sem que chegasse contudo a chover. Procurava Isaac e não o encontrava. Desci na direcção da tenda de Abraão e vi-os a ambos, carregando com lenha as albardas de um jumento. Abraão tinha um ar sério. Parecia-me até pálido, de tez leitosa sob a pele tisnada. Isaac tinha o ar do costume, amável e despreocupado. Excepto que trazia uma túnica nova que eu não me lembrava ter-lhe dado de manhã.
Intrigada, observei-os sem me aproximar. Abraão sentou-se no jumento e pegou em Isaac. Com um golpe de calcanhar lançou o animal a pequeno trote, a caminho de Moriá.
Primeiro vi-os afastarem-se. Depois, senti um aperto por todo o corpo.
A garganta apertou-se-me com um mau pressentimento. O meu coração e os meus dedos gelaram. Não imaginava nada, mas sabia que não me devia afastar de Isaac. Então corri atrás deles. Corri tão depressa quanto me permitiam as minhas velhas pernas e a minha respiração. Dessa vez lamentei a minha idade.
Enquanto corria, pensei que Abraão tinha o hábito de fazer ofertas a Yhwh, no planalto de Moriá. Holocaustos: um cabrito, uma ovelha ou um cordeiro. Talvez levasse o filho com ele para lhe ensinar a efectuar a oferta e para o associar, nas suas palavras, ao Deus Altíssimo.
No entanto, pensava na sua expressão cinzenta, na túnica nova de Isaac. A lenha para a fogueira do holocausto estava nas albardas do jumento. Mas onde estava o cabrito, a ovelha ou o cordeiro?
A dor da minha respiração impedia-me de ir tão depressa como eles. A angústia cortava o que me restava de respiração. Tentava pôr juízo na minha cabeça, tentava acalmar-me: «Mas em que estás a pensar? É impossível. Porquê chegar mesmo a ter um pensamento desses?»
Mas, tinha.
Quando cheguei finalmente ao cume da pequena encosta que dava para o planalto de Moriá, descobri-os a cem passos de mim.
Isaac empilhava a lenha sobre o altar. Uma linda fogueira, cuidadosamente arranjada. Abraão mantinha-se a seu lado, de olhar perdido. Vi-o tirar da cintura o seu longo cutelo e soube que não me tinha enganado.
Ia berrar e precipitar-me.
«Isaac! Isaac, vem para os meus braços! Que estás a fazer, Abraão? Enlouqueceste?»
Mas nem um som atravessou a minha boca. Os meus berros eram berros silenciosos. Não consegui correr, nem sequer avançar um passo. Estava atrás da fenda de uma rocha e uma força impedia-me de me mexer. Sob o meu olhar, Abraão chamou Isaac para junto dele. Acariciou-lhe a cara e pegou na corda que prendia a lenha do holocausto para lhe atar os braços. Caí de joelhos no pó. Estava impotente, apenas com os meus olhos para ver.
Ó Isaac! Meu filho! Corre, foge, não estendas os braços!
Mas Abraão ergueu-o e levou-o para a fogueira.
Odeio-te Abraão, como podes, como ousas? O teu filho, o teu único filho! A minha única vida.
Mas foi o que Abraão fez. Estendeu Isaac, que não chorava, de olhos apenas espantados. Abraão afagou-lhe a testa. Beijou-o e a mão que segurava o cutelo afastou-se da sua anca. Lentamente o seu braço levantou-se, a lâmina brilhando no punho.
Então eu, Sara, gritei:
«Yhwh, deus de Abraão, escuta a minha voz. A voz de uma mãe. Não podes. Não, não podes pedir a vida do meu filho, a vida de Isaac. Tu, não. O Deus da justiça, não».
«Escuta o meu grito. Se deixares Abraão abater o seu cutelo, que o céu escureça para sempre, que as águas submirjam a terra, que a Tua obra desapareça, se quebre, como os ídolos de Terá que Abraão destruiu em Harân.
«Precisei de toda a minha vida para poder dar à luz Isaac. Foi precisa a Tua vontade, o sopro da Tua boca para que ele nascesse. Que outra prova do Teu poder reclamas? Ao permitires ao meu velho corpo engendrar Isaac, Tornaste-Te, para todos nós, homens e mulheres, o deus que concede o prodígio da vida. Ó Yhwh, preserva essa vida! Senão, quem irá acreditar num deus que deixa matar uma criança inocente? Quem obedecerá a um deus que protege a morte e mata o fraco?
«Ó Yhwh! Fui jovem e orei aos deuses de Ur, que gostavam do sangue. Voltei-lhes as costas e envelheci junto de Abraão sem ver um único justo abandonado por Ti. Salvaste Lot. Isaac valerá menos que os Justos de Sodoma?
«A tua voz vibrou no ar e Abraão disse logo: 'Estou aqui!' E não houve dia em que não nos mostrasse que Tu és a nossa bênção. Se deixares morrer Isaac, Tu serás a nossa maldição!
«O que é um deus que mata, Yhwh? Que ordem espalha pela terra? Eu digo-Te que, nesse caso, uma mulher é mais poderosa que um deus. Não existe nada, nenhuma ordem, nenhuma justiça que possa tirar um filho à sua mãe.
«Ó Yhwh! Suspende a mão de Abraão. Deita fora o seu cutelo! A Tua glória encontrará um lugar no meu coração e no coração de todas as mulheres de Canaã. Não rejeites esta prece, pensa em nós, nas mulheres, é através delas que a Tua Aliança semeará o futuro, de geração em geração. Imploro-te com este grito, Yhwh: Que a tua fidelidade esteja em mim, como a minha esperança está em Ti!»
Na verdade não tenho a certeza de ter gritado. Mas, na altura em que lancei esta súplica, as nuvens derramaram a sua água, a trovoada ribombou e um cordeiro chegou, trotando.
Gritei:
- Abraão! Abraão! O cordeiro, olha o cordeiro atrás de ti!
Desta vez o meu grito soou. Hoje Abraão diz que ouviu a voz de Yhwh e não a minha. Devemos ter gritado ao mesmo tempo.
Pouco importa. Acabou. O cutelo apenas cortou as cordas atadas aos punhos de Isaac. O meu filho viu-me e lançou-se nos meus braços.
Não me ri dessa felicidade. Chorei. Durante muito tempo e com um terrível receio.
E agora aqui estou, sozinha diante da gruta de Mahkpela, a ver a minha vida acabar. Sozinha, pois desde há quanto tempo não vejo o rosto do meu filho? Ele cresceu e afastou-se de mim. É quase um homem, inteiramente ocupado pelos seus amores e pelo seu papel junto de Abraão. Assim é a vida e é muito bom que assim seja.
Esperar e lembrar-me, eis o que me resta por pouco tempo.
Não há vento e, no entanto, as folhas do choupo tremem, sobre mim. Enchem o ar com um ruído de chuva. Sob os cedros e as acácias, a luz dança numa chuva dourada que me recorda a suavidade da pele do Faraó. Uma lembrança que se desvanece com o aroma da açucena e da hortelã que pousa nos meus lábios. As andorinhas brincam e chilreiam sobre a falésia. Sinto-me bem.
Oh, vejo que me enganei. Não vou estar sozinha para a minha última viagem. Vejo uma multidão que se pôs a caminho, pelo vale. É todo um povo que sobe o carreiro da colina. Sim, parece-me ver Isaac bem à frente. E, atrás dele, Ismael. E, ao lado deles, Abraão.
Ó meu terno esposo, como caminhas lentamente! É o passo de um homem muito velho. Do homem que tanto amei e que vem segurar a minha mão antes que Yhwh me corte a respiração. Leva-me, meu bem-amado, leva-me, a mim, a Mãe dos crentes, para o jazigo de Makhpela. Reza ao Deus Altíssimo para que se lembrem muito tempo de Sara e de Abraão.
Marek Halter
O melhor da literatura para todos os gostos e idades