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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SCARAMOUCHE / Rafael Sabatine
SCARAMOUCHE / Rafael Sabatine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

 

                         O Republicano

André Moreau nasceu com o dom do riso e a certeza de que o mundo era divertido. Não tinha outro património. Abandonado ainda criança, fora recolhido e baptizado pelo senhor de Kercadiou, nobre de Gavrillac. Na escola da vila aprendeu as primeiras letras. Quando completou os quinze anos, Kercadiou mandou-o para Paris, como pensionista de um dos mais famosos colégios da capital. Aos vinte e dois anos estava formado em Direito. Com o título de advogado - todas as despesas tinham corrido por conta do padrinho e protector - voltou a Gavrillac, onde, dois anos decorridos, passou a auxiliar mestre Rabouillet, o notário, na direcção dos seus trabalhos. O futuro, segundo o desejo de Kercadiou, parecia, pois, assegurado.

Numa manhã de Novembro de 1788, André tomava o pequeno-almoço - um copo de leite e um naco de pão - na sala de jantar do notário. Pela janela contemplava as árvores despidas e, de vez em quando, levantava os olhos; o céu outonal, de um azul quase cinzento, estendia-se como ligeiro véu por sobre a vila bretã. Passara uma noite excelente, povoada de belos sonhos. Pois não tinha ele, agora, a certeza de não ser indiferente à jovem que amava? E só de pensar que, daí a meia hora, iria esperar o seu melhor amigo, Filipe de Vilmorin, sentia-se plenamente feliz.

Com vinte e quatro anos de idade, André era de estatura mediana, delgado e elegante. Tinha um rosto fino, de nariz e malares salientes; os cabelos, negros, quase lhe chegavam aos ombros. A boca era larga, fria e irónica. Quem à primeira vista o julgava feio mudava de opinião ao ver aqueles olhos soberbos, de pupilas escuras e cintilantes. Em muitas ocasiões mostrara já um espírito caprichoso e cheio de originalidade. Na Academia Literária de Rennes - um dos clubes que começavam a proliferar em França e onde os jovens intelectuais discutiam todos os aspectos da vida social à luz da filosofia do século XVIII -, frequentemente dera provas de um inato dom de palavra. Mas a reputação que conquistou desta maneira, de resto involuntariamente, não era das mais invejáveis. Na verdade, achavam-no muito mordaz e por vezes inclinado a destruir teorias sublimes, que deviam tornar feliz o género humano.

De tal maneira indispusera os belos espíritos da Academia que bem cedo a sua exclusão teria sido pronunciada se não fossem as constantes intervenções, em seu favor, de Filipe de Vilmorin - o jovem estudante de teologia que André alegremente se preparava para receber daí a um quarto de hora, quando chegasse a diligência.

Estava já pronto para sair e dirigir-se ao largo principal, quando soaram passos no corredor; a porta abriu-se e entrou o melhor amigo de André, aquele a quem um dia dissera: “Tu és quase meu irmão!”

Filipe de Vilmorin, com vinte e dois anos, era alto; vinha vestido, como é próprio dos seminaristas, com um austero fato preto onde realçava o peitilho e os punhos brancos. Nos saltos brilhavam esporas de prata, mas não trazia nem um grão de pó nos cabelos castanhos. Entrou ligeiro, com expressão agitada.

André recebeu-o de braços abertos:

- Filipe! Como foi que...

- Sim, sim! - cortou o outro com voz arquejante. - A diligência veio a grande velocidade. Chegámos com vinte minutos de avanço.

- Maldita diligência! Privou-me de um prazer que há muitos dias acalentava: ir esperar-te.

André riu ao dizer isto. Os dois amigos abraçaram-se. Mas depressa Filipe o afastou. Uma ruga de preocupação vincava-lhe a testa. O rosto, ordinariamente pálido, estava corado. Surpreendido, André perguntou:

- Que tens? Algum aborrecimento na viagem?

- Não, nada disso, ou antes, sim... um aborrecimento que nos toca a todos... todos! Ouves?

- Não percebo - André estava cada vez mais surpreendido.

- Pois bem, ouve - a voz do seminarista tornou-se sombria. - Na posta da muda dos cavalos de Meuport, ouvi uma notícia terrível. Um camponês de Gavrillac, chamado Mabey, foi abatido, de madrugada, no bosque do senhor de La Tour, por um dos seus guardas. O desgraçado soltava um faisão da armadilha que lá havia posto. O guarda atirou por ordem do patrão. Não se trata de um assassínio, mas de um acto de tirania característica. Há que demascarar este abuso, este crime! E como a vítima morava em Gavrillac é preciso pôr o caso, já, ao senhor de Kercadiou. Mabey deixa viúva e três órfãos. Nem que seja só por eles, é preciso exigir uma reparação!

Por momentos, André ficou de cabeça baixa, embebido nos seus pensamentos. Depois, segurando o braço trémulo do amigo, levou-o até uma cadeira que estava diante da alta chaminé, onde crepitava um alegre fogo de achas de pinheiro.

- Senta-te.

Filipe deixou-se, antes, cair na cadeira. Com acento febril, perguntou:

- Então? Que pensas disto?

- Estava já ao corrente - André disse isto em tom indeciso.

- Mas, palavra de honra, não pareces admirado!

- Nada me admira da parte do marquês de La Tour. É homem de uma crueldade intrínseca. Sabe-se isso a léguas daqui. Mabey foi estúpido em roubar-lhe os faisões. Teria sido melhor caçar noutro domínio...

- É tudo o que tens para dizer?

- Que posso dizer-te mais? Sou um realista, eu. Não um sonhador...

- Pois eu, eu, eu proponho que vamos os dois a casa do teu padrinho, o senhor de Kercadiou, e que apelemos para o seu sentido de justiça.

- Contra o marquês de La Tour? - André levantou as sobrancelhas.

- Porque não?

- Meu caro Filipe, és muito ingénuo! Não sabes que os lobos não se comem uns aos outros?

- És injusto para o teu padrinho. O senhor de Kercadiou não é apenas justo; é também humano.

- Sem dúvida. Infelizmente, não se trata de humanidade, mas de caça furtiva.

Filipe, desanimado, ergueu os braços ao céu. Gritou:

- Tu falas como homem de leis!

- Naturalmente. Mas não te zangues. Diz antes o que te propões fazer.

- Olha, ir contigo ao senhor de Kercadiou e pedir-lhe que use da sua influência para que o culpado seja castigado e dadas as reparações devidas à viúva e aos órfãos.

- Meu caro Filipe, sabes bem que estou pronto a tudo, para te ser agradável. Iremos, pois, ver o meu padrinho. Mas previno-te já, será um passo provavelmente inútil.

Os dois jovens, enquanto faziam horas para ir a casa de Kercadiou, conversaram sobre diversas coisas. Filipe deu ao amigo as últimas novidades da agitação que reinava em Rennes; como era seu costume, passou do particular ao geral, de ninharias a uma crítica cerrada e violenta da sociedade.

- Não vês o que se prepara? Em obediência ao rei, os nobres invadem o trono que, a cair, não deixará de os esmagar. Mas serão cegos?

- São. Que queres? Em todos os países, quaisquer que sejam, os aristocratas só compreendem o que representa o proveito próprio.

- Muito justo. É, aliás, o que tencionamos modificar.

- Se bem compreendo, querem acabar com os aristocratas? Seria uma experiência interessante. Mas vê tu, Filipe, o Criador fez os homens todos iguais. Entretanto, alguns são impelidos a criar, entre eles, uma hierarquia inflexível e...

- Não, não! Não temos intenção de acabar com o que quer que seja. Só desejamos que o governo do país passe para outras mãos.

- E crês que daí venham mudanças apreciáveis?

- Estou convencido.

- Admiro a tua confiança, Filipe. Apesar de tudo, se bem que não sejas ainda padre, o Todo-Poderoso deu-te, talvez, parte da Sua possível intenção de modificar, profundamente, a natureza humana.

O rosto ascético do seminarista entristeceu.

- Pretendes que seja impossível melhorar a sorte do povo? - disse.

- Como me compreendes mal, Filipe! Apenas me esforço por discorrer sem tomar partido. Vejamos, que forma de Estado preconizas tu? A república? Mas, meu caro Filipe, a França é, já hoje, uma república!

O seminarista olhou o amigo, por um instante, com estupefacção.

- André, quando deixarás de falar por paradoxos? Que fazes ao rei?

- O rei? O mundo inteiro sabe que, desde Luís XV, a França não tem rei. Há, em Versalhes, um fidalgo obeso que usa uma coroa; mas o que acabas de contar da indisciplina das classes dirigentes mostra, claramente, que a pessoa em questão apenas tem uma existência fictícia, se assim me atrevo a dizer. São os nobres e o alto clero que governam. Mas sabes qual é a classe que aspira a governar? Vou eu dizer-te: a burguesia!

Filipe pareceu reflectir, por momentos. Depois, com mais entusiasmo, voltou ao ataque:

- Tudo isso estará muito bem. Mas o que fazes dos intoleráveis abusos do poder que nos rege, neste momento?

- Todo o poder comete abusos. Quando já os não cometer, a sua conservação dependerá da satisfação que der ao povo.

- Que ilusão! Quando o poder é forte, o povo nem mesmo tem o direito de levantar a voz, Filipe!

- O povo tem todos os direitos. Porque é ele que, com a sua massa, deterá a verdadeira força. Em todo o caso, nós, bretões, estaremos prontos para o combate! - gritou com ardor juvenil.

- Ora! - a voz de André vinha repassada de desprezo. - Até agora não fizemos grande coisa. Contentamo-nos em brincar, discutir, gastar saliva. Claro que um momento virá em que os nobres compreenderão que têm de defender-se ou render-se. Ora, estou certo que se defenderão. É próprio da natureza humana não saber sacudir o que é fútil e ridículo!

- Talvez aches a morte de Mabey fútil e ridícula! Tenho a impressão de que não será preciso muito para que tomes a defesa do marquês de La Tour e me digas: “o seu guarda-caça mostrou-se generoso matando Mabey, porque este seria, com toda a certeza, condenado a trabalhos forçados”.

- Vejo, caro Filipe, que não sou tão caridoso como tu - disse André, após um momento de reflexão. - Claro que a lamentável sorte de Mabey não me deixa insensível. Mas, vê tu, domino a emoção e não posso esquecer que este homem quando foi morto se preparava para roubar!

Filipe fez-se rubro de indignação. Disse entre dentes:

- Bem se vê que trabalhas para um notário que é o homem de negócios de um nobre e, ao mesmo tempo, o seu representante nos Estados da Bretanha!

- Filipe! É possível? Encolerizas-te contra mim?

- Estou magoado, eis tudo, profundamente magoado com a tua atitude. E não sou só eu a reprovar as tuas simpatias verdadeiras ou falsas pela reacção. Sabes que a Academia Literária se prepara, uma vez mais, para te expulsar?

André encolheu os ombros:

- Não me aquece nem arrefece!

- Às vezes penso que não tens coração. Tu só pensas na lei e nunca na justiça - o seu tom voltara a ser apaixonado. - Fiz mal em te pedir que me acompanhasses, porque tenho a impressão de que na presença do senhor de Kercadiou não darás ajuda alguma.

Filipe pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta. De um salto, André alcançou-o. Segurou o amigo pelo braço.

- Juro-te que jamais discutirei política contigo. Sou muito teu amigo, Filipe, para te perder por uma questão que teve origem nas dificuldades dos outros.

- As dificuldades dos outros são as minhas - respondeu Filipe, prontamente.

- Sim, eu sei, e essa é uma das razões por que te tenho tanta amizade. Breve serás padre. É, pois, normal que te interesses, desde já, pela sorte dos nossos semelhantes. Mas eu sou apenas um jurista, um homem de leis. Neste ponto, a diferença entre nós é considerável. Contudo, não te deixo, vou contigo.

- Falando francamente - respondeu o seminarista -, eu preferiria que não assistisses à entrevista com o teu padrinho. Parece-me que, a sós com ele, me exprimirei com mais facilidade.

Já não estava encolerizado; falava em tom calmo e resoluto.

- Como quiseres! - respondeu André. - Mas nada me impedirá de te levar ao castelo. Esperarei por ti enquanto falas com o senhor de Kercadiou.

Lado a lado, os dois jovens saíram da casa de mestre Rabouillet e meteram pelas ruas de Gavrillac.

 

                                     O aristocrata

O castelo de Gavrillac deve o aspecto senhorial muito menos ao estilo do que à sua situação no cimo de uma colina. Construído em granito, escurecido com a patina dos séculos, compõe-se de um corpo de fachada nua de dois andares, cada um com quatro janelas de persianas de madeira. Torres de telhados cónicos flanqueiam as extremidades do corpo principal.

Precedido de um jardim - agora despido pelo Outono, mas muito agradável no

tempo bom - e de um terraço rodeado por balaustrada de pedra, esta habitação dir-se-ia feita para abrigar pessoas mais interessadas em vigiar as suas terras do que correr aventuras.

O proprietário do castelo, Quintino de Kercadiou, senhor de Gavrillac - era seu único título de nobreza! - parecia, à primeira vista, tão rude como as paredes de granito que o rodeavam. Tinha sessenta e cinco anos e, apesar das aparências, uma saúde débil; nunca frequentara a corte nem servira no exército do rei. Os únicos cuidados que o afligiam eram a caça, os cortes que, periodicamente, fazia nos seus bosques e a organização das culturas. Muito simples na maneira de vestir, podia até confundir-se com um dos seus caseiros. Recebia pouco, mas tinha em casa uma sobrinha - Aline. Esta, órfã desde pequena, passara dois anos em Versalhes com outro tio, Estêvão de Kercadiou. Chegara um ano antes, impelida pelo simples desejo de, pouco a pouco, levar o seu benfeitor a sair de uma existência que ela julgava muito retirada, demasiado solitária. Mas, até agora, todos os esforços tinham esbarrado com a obstinação do senhor de Gavrillac.

Naquela manhã, Aline passeava no terraço do castelo. Para melhor se defender do vento fresco que subia da campina, pusera pelos ombros uma capa branca e na cabeça um gorro debruado de pele, também branca, seguro por um lenço azul-pálido atado sob o queixo. Do gorro fugia uma madeixa de cabelos, tão louros como espigas de trigo maduro. O ar fresco dava-lhe uma cor rosada às faces e parecia avivar ainda mais o azul-cintilante das pupilas. Mas porque percorria ela o terraço com um passo tão rápido, quase nervoso? Porque teria os sobrolhos carregados, as mãos juntas sobre o peito?

Inesperadamente, vendo que André e Filipe avançavam pelo jardim, não pôde reprimir um movimento de surpresa. Nem um só instante pudera pensar que André viria acompanhado do seu amigo mais querido. Dominou-se com dificuldade. Dissipou-se a nuvem que lhe cobria o rosto, ainda há pouco, e foi com expressão sorridente, quase luminosa, que recebeu os dois jovens.

- Se vêm ver meu tio - disse -, escolheram mal o momento. O senhor de Kercadiou está muito, muito ocupado!

- Esperaremos o que for preciso, menina - respondeu Filipe. - Por mim, sinto-me feliz pelo acaso que a colocou no meu caminho.

- Senhor abade - gritou ela -, quando fordes ordenado, tomar-vos-ei por confessor. Sois tão amável e pareceis tão compreensivo!

- E tudo isso, na verdade - disse André. - Só lhe falta um pouco mais de curiosidade...

- Que queres dizer, André? - perguntou a jovem.

O jovem órfão e a sobrinha do senhor de Gavrillac, tendo passado juntos toda a infância, não tinham deixado de se tratar por tu.

- Não procure o que ele quer dizer - disse, rindo, o seminarista. - Sabe-o, por acaso, ele próprio?

Neste instante avistou uma carruagem, parada a um dos lados do terraço. Era um carro como raramente se via no campo, um magnífico “cabriolet” de dois lugares, cuja porta era ornada com uma paisagem campesina, pintada com arte bizarra. O cocheiro estava sentado no seu lugar. O trintanário passeava de um lado para o outro. Quando ele se aproximou do terraço, Filipe de Vilmorin viu que vestia a brilhante libré azul e ouro do marquês de La Tour d'Azyr.

- Quê? - exclamou. - O visitante de seu tio será o senhor da La Tour d'Azyr?

- Adivinhastes!

Por um instante Filipe pareceu reflectir. Depois, inclinando-se diante da jovem:

- Desculpe-me, menina - e dirigiu-se para o castelo.

- Não queres, realmente, que te acompanhe? - perguntou-lhe André.

- Para quê? Contenta-te em esperar-me.

Aline viu-o entrar. Voltou-se de novo para André, com uma espécie de inquietação:

- Porquê tanta precipitação? Que quer ele?

- Ver teu tio e também o senhor de La Tour.

- Mas é impossível! - gritou ela. - Não disse diante dele que meu tio estava ocupado? Não pode esperar alguns instantes?

André olhava-a com um sorriso, sem dar atenção ao que ouvia. Mas, de repente, percebeu que uma nuvem toldara o rosto da rapariga e que os olhos tão azuis tinham uma expressão de indizível tristeza.

- Que há, Aline? - perguntou. - Que se passa? Porque me olhas assim?

Ela pegou-lhe no braço e levou-o para o extremo do terraço. Encostou-se à balaustrada e disse:

- Ontem à tarde, depois de partires, meu tio participou-me, segundo a sua expressão, uma grande novidade. O senhor de La Tour pede-me em casamento!

André teve a sensação de que uma descarga eléctrica lhe caíra aos pés.

- Não, não é possível! - começou, com a voz estrangulada pela emoção.

- Ai de mim! Sim... O meu primeiro impulso foi protestar, dizer, como o teriam feito muitas raparigas em semelhante caso: “Não quero que me obrigue a casar contra vontade. Entretanto, prometi-me a alguém, e esse alguém não é senão...” Mas dominei-me a tempo. Conheces meu tio, André. É bom, mas teimoso. De resto, nunca lhe viria à ideia que a sobrinha pudesse tentar, sequer, recusar o homem que lhe escolheu. Se bem que tenha ficado solteiro, sempre viu à sua volta mulheres que casam por simples razão de conveniência ou de fortuna. Opondo-me a ele, não faria mais que endurecê-lo. De resto, ele deu-me a novidade como uma coisa perfeitamente natural. Disse-me: “Estive em casa de La Tour d'Azyr muitas vezes por este motivo. De amanhã em diante, ele virá pessoalmente, para começar a fazer-te a corte...”

- É monstruoso! - gritou André, com as faces vermelhas de cólera. - Vou imediatamente procurar teu tio e dizer-lhe que não tem o direito...

- André, acalma-te. - A rapariga pegou-lhe na mão. - Por teu lado, uma semelhante tentativa, neste momento, só poderia trazer resultados catastróficos. Toda a noite procurei um meio de resolver o problema. Bem entendido, não encontrei, pelo menos de momento, senão o de conduzir-me como sobrinha aparentemente dócil e deixar correr o tempo. Compreendo as intenções do senhor de La Tour. Mal me conhece. O seu único desejo, casando comigo, é juntar às suas as terras de meu tio, de que sou herdeira...

- Aline! - disse André, com voz surda. - Não me disseste ainda o que pensas deste pedido... desta união que se projecta para ti, sem mesmo te terem consultado!

- Eu penso, talvez te alarmes, André, que nada tem de anormal. Meu tio, tornando-me mulher do senhor de La Tour julga fazer a minha felicidade e assegurar-me o futuro. Ele deve pensar: “La Tour é rico, belo, sedutor...”

Pronunciou estas últimas palavras com um ar de malícia no olhar, que contrastava estranhamente com a tristeza do rosto. André, cego pela cólera, caiu na ratoeira.

- Belo! - respondeu com um trejeito de desdém. - Isso basta para te fazer esquecer que és, neste momento, o objecto de uma espécie de mercado e que se prepara a tua venda?

- André...

Mas ele interrompeu-a:

- Aline, eu saberei defender-te, guardar-te...

- Se me queres demonstrar a tua afeição, não faças nada... não intentes nada que possa complicar uma situação já de si delicada. A menor imprudência da tua parte precipitaria um acontecimento que ambos receamos. Julgava-te um espírito positivo. Mas vejo que perdes a cabeça ao primeiro obstáculo. Se eu ontem tivesse dito ao meu tio: “Prefiro ficar solteira, a não casar com André”, ele teria uma daquelas cóleras cegas que já conheces. Fechava-te a porta. Quanto a mim, enquanto esperava o dia do casamento, meter-me-ia num convento, longe daqui, longe de ti... Não fui mais atilada, escondendo os meus sentimentos? Tranquiliza-te - acrescentou, pegando-lhe na mão -, contornaremos este escolho e triunfaremos!

Mas ele afastou-se bruscamente.

- Bem gostaria de te acreditar - disse com amargura.

- Não tens confiança em mim?

- Oh! Sim... Contudo, vejo que somos mais fracos do que eu imaginava. Temos contra nós... toda a sociedade! Porque sou um vadio, devo calar-me e proibir-me de aspirar à única felicidade que me parece digna de viver-se?

Depois, com certa hesitação, pousando na jovem o olhar insistente, de pupilas sombrias:

- Que me restará, se te perder?

- Aconteça o que acontecer, não me perderás.

Neste momento, um ruído vindo da porta fê-los voltar.

O marquês de La Tour, conde de Solz, cavaleiro do Santo Espírito e de São Luís, oficial do rei, acabava de aparecer na entrada do castelo. Com vinte e dois anos, era alto, elegante, muito direito, de porte marcial. Tinha os ombros vigorosos, um rosto de traços regulares e expressão desdenhosa. Pela abertura do fato de veludo, enfeitado com galões dourados, via-se um colete cor de ferrugem. O calção e as meias eram de seda preta. Fivelas com diamantes brilhavam nos sapatos de tacões vermelhos. Trazia debaixo do braço esquerdo um pequeno tricórnio e pousava, com negligência, a mão direita no copo dourado da espada.

O senhor de Kercadiou, que o seguia, fazia com ele um contraste chocante. Pequeno e bastante gordo, este homem de sessenta e cinco anos tinha uma cabeça enorme, rosto rude e pensativo, com sinais da varíola que quase o ia matando em criança. Este solteirão endurecido vestia, com uma negligência próxima do desleixo, um fato castanho com punhos e plastrâo de cor duvidosa. Os sapatos eram mais os de um caçador que os de um fidalgo que recebia visitas.

Atrás da sua figura maciça, vinha Filipe de Vilmorin. O seminarista, pálido e de sobrolho carregado, parecia, contudo, muito senhor de si.

Foi então que André e Aline tiveram uma imensa surpresa. O trintanário, que fazia sentinela no jardim, correu para a carruagem e abriu a porta. Um elegante senhor, o cavaleiro de Chabrillane, primo e alter ego do marquês, saltou ligeiro para o chão e começou a falar em voz baixa.

Com certeza tinha assistido a toda a cena que se desenrolara no terraço entre os dois jovens...

Vendo Aline, o senhor de La Tour dirigiu-se para ela, em passo rápido. Passando por André, fez-lhe um sinal de cabeça amável, mas condescendente. André respondeu com frieza; por discrição, se bem que a cólera fervilhasse nele, afastou-se e dirigiu-se para Filipe.

O marquês pegou na mão que Aline lhe estendia, levou-a aos lábios e disse:

- Menina, seu tio autorizou-me a apresentar-lhe as minhas homenagens. Quererá receber-me amanhã? Terei algo de muito importante a dizer-lhe...

- Algo de muito importante? Assusta-me, senhor!

Mas não havia vestígios de susto no rosto calmo de Aline, enquadrado pelo gorro debruado de pele.

- Assustá-la?! Não tenho a mínima intenção disso.

- Mas para quem é importante o que me quer dizer, senhor? Para si? Para mim?

- Para ambos... pelo menos assim o espero - respondeu com um clarão nas belas e ardentes pupilas.

- Aguça-me a curiosidade! Muito bem, está combinado. Terei muito prazer em recebê-lo amanhã.

- Até amanhã, pois, à mesma hora. Mas não esqueça, menina, que, de nós ambos, o prazer será meu!

Um instante depois subiu para a carruagem. Antes de descer os degraus do terraço, saudou o senhor de Kercadiou e disse algumas palavras a Filipe. Este, por resposta, moveu a cabeça em sinal de assentimento.

Logo que a carruagem transpôs o monumental portão do jardim, Filipe tomou o braço de André:

- Vamos.

- Nunca! - gritou o senhor de Kercadiou. - Quero que almocem ambos connosco.

- Lamento, senhor - respondeu Filipe, em tom nítido e firme. - Tenho um encontro. É-me impossível aceitar o vosso convite.

- E tu, André? - perguntou o senhor de Kercadiou.

- Eu? - disse o jovem, estremecendo, como se brutalmente o houvessem arrancado de um sonho. Mas, recobrando a presença de espírito, acrescentou:

- Lamento também, padrinho, não poder aceitar o seu convite. Filipe esqueceu-se de lhe dizer que ambos nos encontramos com a mesma pessoa...

A verdade é que tinha vontade de fugir o mais depressa possível de Aline, pelo acolhimento sorridente que dispensara ao senhor de La Tour!... Fugir do mundo inteiro!

 

               A eloquência é um dom dos deuses

Os dois jovens desceram a colina em direcção à vila. Filipe, sombrio e preocupado, ia silencioso. Mas André, como para enganar o desgosto, lançou-se numa diatribe feroz contra o género humano. O tom da sua voz repercutia pela planície; o companheiro, sempre mergulhado nos seus pensamentos, apenas lhe prestava uma atenção distraída.

À entrada da vila, diante das Armas da Bretanha, ao mesmo tempo estalagem e muda de cavalos de Gavrillac, o seminarista, pegando no braço de André interrompeu com um gesto as suas invectivas e mostrou-lhe a carruagem de La Tour, parada em frente da estalagem.

- Tenho um encontro nesta estalagem com o senhor de La Tour. Em casa do teu padrinho, não pude dizer-lhe grande coisa. De resto, o momento era mal escolhido. Mas agora, espero...

- Que esperas?

- Que repare, na medida do possível, o mal que fez e tome o encargo de velar pela viúva e pelos órfãos de Mabey. Se não tivesse já esta intenção, porque me marcaria encontro aqui?

- Estranho... - murmurou André. - O senhor de La Tour não tem o hábito, que eu saiba, de testemunhar aos seus semelhantes uma complacência tão grande...

- Não te compreendo. Não é natural que ele deseje entender-se comigo aqui, quer dizer em terreno neutro, de preferência a fazê-lo em casa do teu padrinho?

- Não... não é, de facto, natural. Mas entremos e veremos. A menos que julgues a minha presença de mais...

- Pelo contrário - respondeu Filipe. Após um silêncio, acrescentou sorrindo:

- Apesar de tudo, em todo o negócio sério, uma testemunha nunca é inútil...

Entraram. O senhor estalajadeiro conduziu-os à sala que o senhor de La Tour tinha mandado pôr à sua disposição para esta conversa. Perto da chaminé, onde crepitava um lume de lenha, o marquês e o primo - o cavaleiro de Chabrillane - estavam sentados frente a frente. Logo que viram Filipe de Vilmorin, levantaram-se ao mesmo tempo. André fechou a porta e ficou uns passos atrás.

-Agradeço-lhe o ter acedido tão prontamente ao meu pedido, senhor de Vilmorin - disse o marquês com fria delicadeza. - Sente-se, peço-lhe.

Depois, vendo André, concluiu:

- O senhor Moreau acompanha-o, pelo que vejo!

- Sim, senhor - disse o seminarista -, se não vê nisso inconveniente...

- Nenhum, com certeza.

E, sem voltar a cabeça, como se se dirigisse a um criado:

- Sente-se também, Moreau...

- É muito amável da sua parte, senhor - começou Filipe -, ter-me dado a possibilidade de prosseguir, nesta estalagem, a conversa começada em casa do senhor de Kercadiou.

O marquês cruzou as pernas, estendeu para as chamas uma das suas belas mãos e respondeu, sem sequer olhar o interlocutor:

- Não se dê ao trabalho de me agradecer.

A esta reflexão, o senhor de Chabrillane desatou a rir. André olhou-o com surpresa. Que tinha o marquês dito de divertido? Mas já Filipe respondia:

- Contudo, estou-lhe muito reconhecido, senhor, por me permitir defender esta causa...

- Que causa? - La Tour voltou-se, finalmente, para Filipe.

- Mas... a causa da viúva e dos órfãos do infeliz Mabey! Por um instante, o marquês olhou fixamente o seminarista.

Depois, lançou um olhar ao cavaleiro que, de novo, desatou a rir, mas agora dando fortes pancadas na coxa.

- Tenho a impressão de que não falamos do mesmo assunto. Se pedi para vir aqui, foi apenas para não continuar a nossa discussão diante do senhor de Kercadiou e para evitar justamente, que fosse a minha casa. Mas quero sublinhar que o meu maior desejo é pedir-lhe alguns esclarecimentos a propósito de certas expressões que empregou no decorrer do nosso primeiro encontro. Espero, pois, esses esclarecimentos... que vai dar-me a honra de apresentar.

André que, desde há algum tempo, observava com atenção o rosto impassível de La Tour, começava a sentir uma vaga inquietação. Mais sensível, mais intuitivo que Filipe, perguntava a si próprio: “Que significa esta comédia?”

- Não compreendo, senhor - disse o seminarista. - De que expressões fala?

- Já que assim é, vou refrescar-lhe a memória. Deslocou-se ligeiramente na cadeira, de modo a ficar de frente para Filipe de Vilmorin, e acrescentou:

- Disse, senhor, com uma eloquência diante da qual me curvo... sem a apreciar, contudo, que a execução do chamado Mabey, no momento em que me roubava faisões, constituía uma infâmia. Sim, o senhor empregou a palavra infâmia! E fez ainda mais: não a retirou quando lhe disse que o meu guarda havia agido por ordens minhas!

- Com efeito, empreguei bem a palavra infâmia - respondeu Filipe. - E se se trata, na verdade, de uma infâmia, é tanto mais condenável quanto o seu responsável ocupa um lugar elevado na sociedade.

- Bem! Bem! - disse o marquês, tirando do bolso uma cigarreira de ouro. - Tratando-se, na verdade, de uma “infâmia”, devo entender que está menos peremptório do que no decorrer da nossa conversa em casa do senhor de Kercadiou?

Filipe pareceu perplexo. Havia qualquer coisa que lhe escapava.

- Se bem compreendo, senhor - respondeu com ingenuidade -, aceita assumir a responsabilidade do acto... mais que lamentável, que foi objecto da nossa conversa. Mas como o justifica?

- Aqui temos melhor... muito melhor! - disse o marquês, aspirando delicadamente uma pitada de tabaco, ora pela narina esquerda, ora pela direita e retirando, com um piparote, alguns grãos caídos no peitilho de renda. - Escute bem, senhor de Vilmorin. O acontecimento que o preocupa não é daqueles para que se preparou. Não é proprietário, que eu saiba! É, pois, natural que tenha feito desta banal história de gatunagem um juízo apressado. Quando disse que, de há alguns meses a esta parte, as minhas propriedades são dizimadas pelos gatunos, admitiu que eu estava no direito de tomar disposições bastante enérgicas para pôr fim à ladroeira. Por outro lado, com certeza já reparou que anda no ar, neste momento, um espírito de revolta e de insubordinação contra o qual só vejo uma solução. Tolerá-lo, mostrarmo-nos indulgentes a seu respeito, seria condenarmo-nos a empregar contra ele, num futuro próximo, meios ainda mais radicais. Estou convencido que julga de mau gosto estas explicações que lhe não devo! Se qualquer coisa, no que acabo de dizer, parece ainda obscuro, consulte, sem demora, as leis da caça que o seu amigo, o senhor Moreau - excelente jurista, segundo se diz - terá prazer em explicar-lhe.

O marquês, sem mais uma palavra, voltou-se, de novo, para a chaminé. André, trémulo de cólera e de desgosto, tinha-o ouvido com aquela atenção aguda que resulta, por vezes, da antipatia e da desconfiança. O marquês, com esta explicação, em que a insolência alternava com o desprezo, não tinha pretendido, apenas, fazer sair Filipe fora de si? De facto, este voltou-se, rápido, e perguntou em tom irritado:

- Não há neste mundo senão as leis da caça? Nunca ouviu falar, senhor de La Tour, nas leis da humanidade?

O marquês, sempre mergulhado na contemplação das chamas, deu um suspiro irónico:

- Que me importam as leis da humanidade?

Durante segundos, como petrificado pela admiração, Filipe olhou-o.

- Evidentemente, são-lhe indiferentes! Isso salta aos olhos. Mas pode ser que um dia lamente tê-las desdenhado!

Subitamente, o marquês voltou-se. Uma expressão imperiosa espalhou-se-lhe por todo o belo rosto.

- Que quer dizer? Não é a primeira vez que hoje me dirige palavras ambíguas que têm, para mim, o ar de ameaças.

- Não, senhor, não se trata de ameaças... mas de um aviso. Um acto como este de que falamos... um atentado de tal género contra uma criatura de Deus...

- Espero, senhor abade, que não irá fazer-me um sermão? - cortou.

- Ria, senhor! Troce! Mas estará assim tão seguro no dia em que Deus lhe pedir contas do sangue que suja as suas mãos?

- Senhor! - gritou o cavaleiro de Chabrillane, levantando-se dum pulo.

Com um gesto, o marquês acalmou-o:

- Senta-te, meu caro. E não interrompas o senhor abade. Está a interessar-me imenso...

De parte, André sentia que fios invisíveis se teciam a pouco e pouco em volta de Filipe; levantou-se também. Aproximou-se do amigo e disse, tocando-lhe no braço:

- Vamos, é preferível.

Mas Filipe, aliviado por dar livre curso a sentimentos muito tempo recalcados, não quis atender a nada:

- Senhor, pense um pouco na sua maneira de viver; o senhor e todos os da sua classe. Pense nos abusos que cometem. Pense no resultado que não deixarão de colher!

- Revolucionário! - retorquiu o marquês, com desdém. -

Quando penso que tem a audácia de falar, diante de mim, a linguagem dos vossos pretensos intelectuais modernos!...

- Não se trata disso, senhor, mas da sua alma! Trata-se deste feudalismo de que o senhor é um dos representantes e que domina os pobres como se esmagasse uvas no lagar! Não vê acumularem-se as nuvens que anunciam tempestade? Sem dúvida imagina que os Estados Gerais que nos prometem para o ano que vem, não se reunirão senão para procurar novos meios de esmagar o povo e precipitar a bancarrota do Estado? Se assim é, engana-se redondamente e não o tardará a perceber. O Terceiro Estado, que despreza, é uma força irresistível. Ele destruirá os privilégios que esmagam, gradualmente, o nosso desgraçado país!

O marquês, após ter descruzado e recruzado as pernas, acabou por responder:

- Possui, senhor, uma eloquência perigosa... dessas eloquências bastante entusiastas e persuasivas para inflamar o povo. Entretanto, estou convencido de que, se tivesse nascido fidalgo, as suas ideias seriam diferentes destas que, neste momento, defende.

Filipe achou-se de pé sem o perceber. Depois com voz trémula, respondeu:

- Mas, senhor, nasci fidalgo. A minha raça é tão antiga como a sua!

O marquês, de sobrolho levantado, contemplou, por momentos, o seu interlocutor com um sorriso indulgente.

- Graceja! - deixou, enfim, cair.

Seguiu-se um silêncio de morte. Filipe não deixava de fitar o senhor de La Tour com expressão perturbada. E, de repente, soltando um grito rouco, atirou-se para a frente e, com toda a força, esbofeteou o marquês.

Num salto, o senhor de Chabrillane veio colocar-se entre os dois homens.

André vira a armadilha, mas, paralisado pela surpresa, não interveio a tempo de impedir que o amigo caísse nela.

O marquês estava pálido, salvo na face direita onde os sinais dos dedos de Filipe começavam a aparecer. Mas conservava-se calado. E foi o senhor de Chabrillane quem, voltando-se para o seminarista e representando, com arte consumada, o papel que lhe cabia nesta comédia, cortou o silêncio:

- Espero, senhor, que tome bem consciência do que fez e esteja pronto a suportar-lhe as suas consequências!

Filipe baixou a cabeça. O infeliz jovem, obedecendo a um generoso impulso, não tinha pensado senão em defender a sua honra. Media agora toda a gravidade do acto que acabava de praticar; e se buscava fugir-lhe era unicamente por respeito para com aquele hábito que envergava e lhe proibia resolver uma questão, qualquer que fosse, pelo meio que o senhor de Chabrillane queria sugerir.

- Um insulto apaga o outro. Parece-me mesmo que a balança pende para o lado do senhor de La Tour. Mas não lamento menos que as coisas fiquem por aqui.

- Impossível! - disse o cavaleiro, com tanta doçura como firmeza. - Bateu, senhor, no adversário. Ora eu posso afirmar que o marquês jamais usou semelhante tratamento. Se se julga insultado, cabe-lhe pedir reparação pelos processos habituais. O seu gesto parece demonstrar que as palavras pronunciadas pelo senhor de La Tour não reflectem senão a verdade. Mas nada o dispensa, de qualquer maneira, de suportar as consequências que tal gesto implica...

Que admirável actor, o cavaleiro Chabrillane! Com que facilidade atiçava a cólera do seminarista!

- Não tenho a intenção de me furtar a elas! - respondeu Filipe.

 

                                     A herança

Em poucos minutos, tomaram-se todas as disposições indispensáveis. Os quatro jovens, saindo pela porta traseira da estalagem, dirigiram-se para o fundo do jardim. Pararam num canto onde se julgavam suficientemente protegidos dos olhares indiscretos por uma cortina de árvores frutíferas.

De resto, não houve nenhuma formalidade. Ninguém pensava medir as armas, nem escolher o terreno. O marquês, por desprezo pelo adversário, conservou o fato, desembaraçando-se apenas do cinto e da bainha da espada. Alto, esbelto, atlético, veio colocar-se diante de Filipe de Vilmorin. Este, de estatura igual à do senhor de La Tour, mas magro e delicado, tinha resolvido também não se despir. Ao pôr-se em guarda, duas rosetas de febre animavam-lhe as faces e destacavam-se do fundo pálido do rosto.

As espadas chocaram. Começou o combate. O senhor de La Tour, com os joelhos ligeiramente flectidos, pés ligeiros, não expunha a Filipe senão o estreito perfil do seu corpo delgado; pelo contrário, o seminarista, com as pernas pesadas e hirtas, não tentava mesmo apagar-se. Que magnífico alvo!

Como era de esperar, o encontro foi rápido. Noutros tempos, como todas as crianças da nobreza, Filipe tinha aprendido a combater com o velho mestre de armas da família e conhecia, pelo menos, os rudimentos da esgrima. Mas em que lhe podiam ser úteis esses rudimentos, em face de um homem que parecia ter nascido de espada na mão?

Após três surtidas, sem pressa, o marquês avançou o pé direito no chão húmido, curvou-se com muita graça e, forçando o adversário a defesa desajeitada, enterrou-lhe, tranquilamente, a espada no peito.

André correu a tempo de segurar o amigo. Mas, desequilibrando-se com o peso, deixou cair o corpo do seminarista. Ajoelhou-se junto dele. A cabeça de Filipe abandonava-se-lhe no ombro. O sangue borbulhava à superfície da ferida e começava a ensopar a roupa.

Com o rosto descomposto, os lábios trémulos, André levantou os olhos. Gravemente, mas sem o menor sinal de remorso, o senhor de La Tour contemplava a sua obra.

- Mataste-o! - disse André.

- Com certeza - respondeu o marquês, enxugando a espada num lenço de renda. - Tinha-o prevenido. A eloquência é um perigoso dom.

E voltou as costas. Mas André ainda não tinha acabado.

- Anda, assassino! Mata-me, agora a mim! Então poderás dormir sobre as duas ovelhas.

O marquês semi-voltou-se, com o rosto crispado pela cólera. Para o reter, o senhor de Chabrillane pegou-lhe no braço. O cavaleiro, em parte responsável pelo que se tinha passado, começava a ter medo. E que ele não era da mesma têmpera do senhor de La Tour...

- Vem - disse ao primo. - Ele está de cabeça perdida. Filipe de Vilmorin era seu amigo.

- Não ouviste o que ele disse? - perguntou o marquês.

- Sim - tornou André -, não passais de um assassino, senhor da La Tour! Mas sois também um covarde, porque - vós mesmo me avisastes - não matastes o meu amigo senão por medo dele!

- E se assim fosse? - respondeu o marquês, altivamente.

- Não tendes outro fito na vida além de vestir com elegância, pentear à última moda e exterminar os inocentes e fracos como Filipe de Vilmorin? Não tendes espírito nem alma? Devo lembrar-vos que os covardes só matam os seres que receiam: animais ou homens! Ainda se tivésseis atacado o meu amigo pelas costas!... Não passaríeis de um simples bandido. Mas apanhaste-lo numa armadilha e, sob o disfarce de duelo, executaste-lo como se fôsseis um carrasco!

Bruscamente, o marquês soltou-se do amplexo do primo e avançou alguns passos, erguendo a espada como se fosse o cabo de um chicote. Porém, o cavaleiro segurou-o e disse-lhe, suplicante:

- Não, Gervásio! Deixa isso e, em nome de Deus, vamo-nos embora!

- Faz mal em prendê-lo, senhor de Chabrillane - disse André em voz rouca. - Deixe-o que complete a obra. É, para ele, o único meio de escapar ao castigo reservado aos poltrões!

Ouvindo isto, o cavaleiro largou o primo que, de lábios tão brancos como o peitilho, os olhos faiscantes, fitou com terrível atenção o homem que tinha a audácia de o insultar. Depois, por um fenómeno inesperado, pareceu dominar-se. Acabaria de lembrar-se dos estreitos laços de amizade entre André e o senhor de Kercadiou? Pensaria: “Se mato este miserável, o meu prestígio na região ficará intacto, mas ser-me-á preciso renunciar a desposar Aline?”

Chegou a dois passos de André; mas, após alguns segundos de hesitação, rodou bruscamente nos calcanhares, não sem praguejar por entre dentes, e afastou-se acompanhado pelo cavaleiro.

Quando o estalajadeiro e os criados apareceram no jardim, André apertava a cabeça do amigo contra o peito e murmurava-lhe ao ouvido:

- Filipe! Filipe! Não me ouves? Fala-me, Filipe, peço-to! Rapidamente, o estalajadeiro percebeu que era inútil chamar o médico ou o cura da vila. O rosto de Filipe estava já da cor do chumbo. Os olhos, pelas fendas das pálpebras semicerradas, eram vítreos. Um pouco de espuma sangrenta avermelhava os lábios entreabertos.

Quase cego pelas lágrimas, André seguiu os criados ao quarto do primeiro andar, onde depositaram o cadáver. Logo que saíram, André ajoelhou-se perto da cama, tomou uma das mãos do morto entre as suas e, na sua raiva, jurou fazer pagar caro ao senhor de La Tour o crime que acabava de cometer.

- Ele temia, Filipe, a tua eloquência! Se não puder obter justiça contra ele, pelo menos farei com que o seu feito fique estéril, porque o que ele temia em ti quero que o receie em mim de hoje em diante. Sabia que podias inflamar o povo e incitá-lo a destruir a nobreza! Pois bem, a acção que te propunhas empreender, serei eu quem a levará tão longe quanto mo permitirem as forças. A tua eloquência, os teus argumentos, as tuas ideias - serão a herança que me deixas. Adoptarei a tua fé, a tua confiança no futuro dos homens, o teu evangelho da liberdade. A minha voz prolongará a tua. De nada servirá ao teu assassino ter tingido as mãos no teu sangue. Ele continuará a ouvir-te. Por meu intermédio, tu o perseguirás até ao seu último suspiro!

Quando acabou este pensamento, André sentiu-se mais calmo. A meia voz, pôs-se a rezar. Mas, de repente, com um estremecimento, disse: “É horrível, Filipe, que tu, tão puro, tão irrepreensível, vás comparecer perante o Criador com a alma ainda abrasada pela cólera!”

Pensou um pouco, mas sossegou: “Não, Filipe, tu sempre tão meigo e inofensivo, não podes ser condenado por essa cólera, Deus perdoará sem esforço, porque Ele, Ele não tem a dureza dos nobres!”

 

                           O Senhor de Gavrillac

Quando André chegou ao castelo, o senhor Kercadiou percorria a biblioteca nervosamente.

- Padrinho... - começou o jovem.

- Sim, já sei - cortou o velho, levantando a mão. - O senhor de Chabríllane acaba de sair.

Parou, inclinou a pesada cabeça e acrescentou:

- Que desgraça! Um rapaz tão digno, com tão belo futuro! Ah! Este La Tour é um homem duro, impiedoso, quando se trata de honra! Teria ele razão? Não sei. Nunca matei um adversário só porque ele não tinha as mesmas ideias que eu.

André, branco como a cal, mas calmo e muito senhor de si, declarou:

- Padrinho, a questão importante é esta: que faremos? O senhor Kercadiou olhou-o com assombro.

- Que poderíamos fazer? Segundo me disseram, Filipe de Vilmorin esbofeteou La Tour.

- É exacto... mas depois de uma provocação inqualificavel-mente grosseira!

- Pode ser. Mas, se estou bem elucidado, ele suscitou esta provocação com seus propósitos revolucionários. O pobre rapaz, muitas vezes eu próprio notei, tinha a cabeça transtornada pelas obras dos enciclopedistas. Ler em excesso é sempre perigoso...

André sentia apertar-se-lhe o coração. O padrinho, em quem depositara algumas esperanças, não lhe seria, pois, de nenhuma utilidade?

- Todas as suas críticas se dirigem ao morto - disse - e nenhuma ao assassino! Não me parece possível que desculpe semelhante crime!

- Um crime? - gritou o velhote. - Mas, meu querido filho, tu esqueces que falas do senhor de La Tour d'Azyr!

- Não, padrinho, não o esqueço. E repito-o: ele cometeu um crime, um crime abominável!

- Alto! - interveio o senhor Kercadiou. - Não te permito que fales em tais termos de um homem que é meu amigo e a quem talvez brevemente estarei unido por laços mais estreitos que os da amizade!

- Por laços mais estreitos que os da amizade? De repente, compreendeu. Aline!

- Como! Depois do que se passou, dará ainda Aline ao marquês de La Tour d'Azyr?

- Tu confundes duas coisas que nada têm de comum entre si. Lamento este duelo. Mas não posso condená-lo. É a única maneira de regular uma pendência grave entre cavalheiros.

- Um duelo? A situação era a mesma se, em vez de espadas, os adversários tivessem pistolas e só a do marquês estivesse carregada! Quando o senhor de La Tour convidou Filipe a ir à Estalagem das Armas da Bretanha, a sua intenção era a de o fazer exceder-se e de o matar. Não invento. O próprio marquês mo disse.

Um pouco impressionado com o ardor do afilhado, o senhor Kercadiou baixou a cabeça, encolheu os ombros e, em passo arrastado, dirigiu-se para uma das janelas.

- Para julgar semelhante feito - disse, finalmente -, seria preciso um tribunal de honra. Ora, nós não o temos.

- Mas temos tribunais.

Bruscamente, o senhor Kercadiou voltou-se e perguntou em tom irritado:

- A que tribunal te referes?

- Ao de Rennes. Pode apresentar-se queixa ao juiz.

- Acreditas que o juiz consentia em ouvir-te?

- A mim talvez não, padrinho... Mas se o senhor mesmo fizesse a exposição...

- Tu querias que... - começou com expressão horrorizada.

- Porque não? O acontecimento deu-se nos seus domínios.

- Quê? Queres que eu apresente queixa contra o senhor de La Tour d'Azyr? Mas estás doido! Tão doido como o infeliz Vilmorin! As palavras que ele próprio dirigiu ao marquês, a propósito de Mabey, foram das mais injuriosas. E não me admira que o senhor de La Tour exigisse uma reparação.

- Começo a compreender - murmurou André, em tom desesperado.

- Que queres dizer?

- Que vou ver-me reduzido a agir pessoalmente.

- Que pensas fazer?

- Vou a Rennes e exporei os factos ao juiz.

- Está muito ocupado para que te receba. Tem muito trabalho com a agitação que reina na Bretanha e, muito especialmente em Rennes, desde que Necker anunciou que irá reunir os Estados Gerais e que, por este meio, restaurará as finanças do reino. Como se um banqueiro suíço, um protestante desprezível, pudesse vencer, num empreendimento onde pessoas como Cal-lone e Brienne falharam!

- Adeus, padrinho - disse André, com expressão ausente.

- Aonde vais?

- A minha casa, por agora. E amanhã, de manhã, tomarei a carruagem para Rennes.

- Vejamos, meu filho, vejamos! - gritou o senhor Kercadiou, pousando uma das manápulas nodosas no ombro do afilhado. - Escuta-me. A diligência que vais empreender não te pode dar nenhum resultado positivo. Leste D. Quixote, não? Lembras-te do que lhe aconteceu quando lutou com os moinhos de vento?... Não te quereria exposto a perigos de cuja extensão - vejo bem - não tens a mínima ideia!

Disse as últimas palavras com um acento de profunda afeição. André olhou-o com o rosto iluminado por um sorriso pálido.

- Fiz hoje um juramento - murmurou com voz surda -, que não poderei quebrar sem me condenar ao inferno!

Então, o senhor Kercadiou mudou bruscamente de humor.

- Se bem percebo - disse com impetuosidade - estás resolvido a não seguir os meus conselhos, não é? Está bem, vai... Vai para o diabo, se assim o queres! Mas se tiveres dificuldades, não venhas para cá lamentar-te!

André inclinou-se e dirigiu-se para a porta. Ali, voltou-se e disse, com um pouco de ironia:

- Não são os moinhos de vento que representam perigo, mas os homens. Adeus, padrinho.

Quando chegou ao corredor do castelo, André parou bruscamente. Decerto não tinha a intenção de se ausentar por muito tempo. Mas poderia ir sem prevenir Aline?

Vendo Benoit que atravessava o corredor e ia entrar na sala de jantar, perguntou-lhe:

- A menina Aline está no castelo?

- Não, senhor André, a menina partiu, há uma hora talvez, para casa da senhora Plougastel.

- Obrigado.

Pensou, e depressa tomou uma decisão. Não era livre de fazer o que queria, no castelo? Não tinha vivido uma boa parte da sua infância e da sua juventude nesta enorme habitação que considerava um pouco sua?

Deu meia volta, subiu a quatro e quatro os degraus da escada monumental. No primeiro andar voltou à direita, seguiu o corredor e entrou, sem bater, no quarto de Aline. Aproximou-se da pequena escrivaninha colocada perto da janela, na luz difusa coada pelas cortinas cor-de-rosa. De uma das gavetas tirou uma folha de papel de carta, mergulhou a caneta no tinteiro de porcelana de Saxe e rabiscou as seguintes palavras:

 

                Querida Aline

Parto para Rennes. Quero pedir justiça contra o assassino de Filipe. Quando regressares, saberás a sua identidade. Jurei vingar o meu melhor amigo. Agora só me restas tu!

                                           André

 

                      O moinho de vento

Na manhã seguinte, André alugou um cavalo na Armas da Bretanha e, em menos de duas horas, sem quase deixar de galopar através da planície, debaixo de um morno sol de Inverno, chegou a Rennes; passou a ponte de Villaine e entrou nesta importante cidade, que contava então setenta mil habitantes. Pela multidão turbulenta que coalhava as ruas, o jovem pôde reconhecer que Filipe não o havia enganado ao descrever-lhe a febre que reinava na capital da Bretanha.

Durante muito tempo avançou com dificuldade. Por fim chegou à Praça Real, onde a multidão lhe pareceu ainda mais compacta do que nas ruas. Instalado no soco da estátua equestre de Luís XV, um jovem pobremente vestido, sem dúvida estudante, arengava para a multidão. Vários camaradas faziam sentinela em volta dele.

Apesar da distância, André percebia, de tempos a tempos, algumas palavras, restos de frases:

- “O rei tinha prometido... Mas eles troçam da autoridade real! Pretendem ser os senhores da Bretanha... O rei dissolveu-os. .. Que pensam destes insolentes nobres que, não contentes em desfalcar o seu rei, ameaçam o povo?...”

Se André não tivesse sido posto ao corrente dos acontecimentos que tinham levado o Terceiro Estado à revolta, estas poucas palavra seriam suficientes para o esclarecer. “Além disso - pensou - esta manifestação de mau humor popular poderia ajudar-me. Em semelhante ocasião, o juiz não pode recusar-se a ouvir-me e, talvez, a dar-me uma satisfação...”

Deu meia volta e meteu pela Rua Real, onde a multidão era já menos densa. Parou na Estalagem do Chifre de Veado, levou o cavalo à estrebaria e, a pé, dirigiu-se para o tribunal.

Diante da catedral, cujas obras de restauração haviam começado um ano antes, viu um novo agrupamento. Mas, desta vez, nem sequer parou; seguiu até ao tribunal.

Com algum esforço abriu passagem por entre os solicitantes que enchiam a sala conhecida pelo nome de “Os passos perdidos”, e foi-lhe precisa meia hora para encontrar um contínuo que consentisse levá-lo à antecâmara do juiz. Ali, esperou ainda outra meia hora.

Por fim, foi convidado a passar por uma porta ricamente decorada e entrou numa sala luminosa, a que os dourados e a seda davam um aspecto de toucador.

O juiz estava sentado ao fundo da sala, à direita de uma das altas janelas que abriam para um pátio interior, e por detrás de uma secretária decorada com painéis que representavam cenas campesinas. De dentro de um fato vermelho, sobre que chamejava o colar da Ordem de S. Miguel, e do meio do farfalhudo peitilho constelado de diamantes, emergia a cabeça grande e empoada do senhor Lesdiguières - tal era o nome do magistrado. A expressão do seu rosto era tão arrogante que André perguntou a si mesmo se seria necessário ajoelhar diante dele.

- Se me não engano - grunhiu -, você vem de Gavrillac e tem uma comunicação importante a fazer-me.

Falava em tom autoritário. Mas enganava-se, julgando impressionar o visitante. André achou-o simplesmente ridículo. Com ousadia avançou alguns passos, parou junto da secretária e disse:

- Visto que sois o representante de Sua Majestade na Bretanha, venho pedir-vos justiça.

- Justiça? - repetiu o magistrado, surpreso. - O assunto que o traz aqui tem alguma relação com a atitude presente dessa canalha?

- Nenhuma relação, senhor.

- - Então, porque me vem maçar num momento em que tenho tantas preocupações?

- Porque o assunto que quero apresentar tem um carácter de urgência, que julgareis quando o ouvirdes.

- No momento actual não há assunto urgente, salvo os que já me preocupam!...

O juiz estendeu a mão para a campainha que estava em cima da mesa.

- Um momento, senhor! - disse André, em tom de tanta estranheza que o magistrado ficou com a mão no ar. - Eu posso, em poucas palavras...

- Não compreendeu ainda...

- Sim, senhor, compreendi muito bem. Mas, depois de me ouvirdes, reconhecereis o justo fundamento da minha insistência.

E, sem deixar ao interlocutor sequer o tempo de tomar fôlego, contou a execução de Mabey, a discussão na Armas da Bretanha, o duelo no jardim e a morte de Filipe. Mas julgou mais prudente, com receio de ser interrompido antes que tivesse mesmo acabado a exposição, deixar para o fim o nome do culpado.

Pouco a pouco o rosto do magistrado tinha-se distendido e a sua expressão passou da hostilidade a uma espécie de simpatia.

- Como se chama o culpado? - inquiriu, por fim.

- O marquês de La Tour d'Azyr.

O efeito foi instantâneo. O juiz, bruscamente vermelho de cólera, urrou:

- Quem?

E depois, sem esperar resposta:

- Como ousa você acusar diante de mim um fidalgo tão irrepreensível como o senhor de La Tour? Como se atreve a falar dele como se se tratasse de um poltrão?

- Poltrão... É assassino! -- rectificou André. - E exijo que lhe sejam aplicadas todas as disposições previstas para casos semelhantes.

- Quê? Insinua que o senhor de La Tour deveria ser enforcado?

- Porque não, senhor, não é essa a Lei? Quanto ao meu depoimento, um simples inquérito mostrará que falo verdade.

- Ousa... ousa pedir um inquérito?

- Sim, senhor. Se recusais, concluirei que a lei não existe para os poderosos e que é letra morta quando se trata de vítimas obscuras e sem influência.

O senhor de Lesdiguières começou a perceber que perdia tempo a discutir com este jovem calmo, resoluto e subtil. Tomou a decisão de recorrer à ameaça.

- Aconselho-o - disse - a sair imediatamente. E considere-se feliz por deixar o meu gabinete sem ser punido pelas suas insolências!

- Devo então comprender que estais resolvido a não fazer o inquérito... e que nem mesmo consegui comover-vos?

- Deve compreender que, se se demora aqui dentro mais dois minutos, o mandarei expulsar como um insolente!

E o senhor de Lesdiguières agitou a sineta de prata.

- Senhor! - respondeu André, com calma. - Disse-vos que houve um duelo, se assim se pode chamar, e que um dos adversários matou o outro, ou antes, assassinou-o. Devo lembrar-vos, a vós que representais na Bretanha a justiça do rei, que os duelos são proibidos e que é vosso dever mandar fazer um inquérito! A título de representante legal da infeliz mãe de Filipe de Vilmorin, exijo que se faça esse inquérito!

André não tinha percebido que atrás dele a porta se abrira. O senhor de Lesdiguières, agora pálido de raiva, dificilmente se continha.

- Acaso jurou fazer-me perder a paciência? Imagina bastar que um aventureiro impudente levante a voz, para que se faça justiça do rei? Um último conselho, antes de nos separarmos, senhor advogado: desconfie da sua língua, porque ela poderá custar-lhe muito caro!

Depois, com a mão coberta de anéis, fez um gesto negligente ao contínuo que se encontrava atrás de André e disse com a voz seca:

- Acompanhe-o!

André hesitou um instante. Mas, de súbito, com um encolher de ombros, rodou nos calcanhares, deixando o juiz com os seus importantes trabalhos.

 

                                   Levanta-se vento

Com passo apressado, André retomou o caminho da Praça Real. A multidão ainda aí estava, mais densa que nunca. Um brouhaha furioso enchia o ar. Aqui e ali, combatia-se à bengalada e a soco; a febre parecia ter atingido o seu máximo. Os polícias, enviados pelo tribunal para restabelecer a ordem, vagueavam como perdidos nesta tempestade humana. De todos os lados partiam gritos de “Ao tribunal!”, “Abaixo os assassinos!”, “Morte aos nobres!”, “Ao tribunal!”

O vizinho mais próximo de André, um artesão de traços descompostos, quis elucidá-lo sobre as causas desta cólera:

- Mataram o estudante que tinha subido ao pedestal da estátua. O cadáver ficou junto do pedestal. Há menos de uma hora outro estudante foi morto diante da catedral. Ah! Os patifes! São capazes de tudo!

André voltou-se e, com esforço, abriu caminho até à estátua de Luís XV. Com efeito, o cadáver do estudante jazia perto do pedestal. Em volta dele vários jovens, petrificados pelo espanto, mantinham-se imóveis.

- Moreau!

André voltou-se e deu de cara com um homem pequeno, com perto de trinta anos, moreno, boca firme, o nariz proeminente.

Tratava-se de um advogado de Rennes, chamado Chapelier, membro influente da Academia Literária. Enérgico e fértil em ideias revolucionárias, tinha já uma sólida fama de eloquente.

- Olha! És tu, Chapelier? Porque não lhes falas? - disse André, mostrando o pedestal. - Porque não lhes dizes o que devem fazer?

Le Chapelier, com os olhos negros e inquietos, parecia procurar, no rosto de André, um sinal qualquer daquela ironia a que de há muito estava habituado.

- Admiro-me - respondeu finalmente, olhando o seu interlocutor - que me dês hoje semelhante conselho...

- É que, justamente hoje, os nossos pontos de vista coincidem.

- Julgava que aprovavas os métodos adoptados pelos nobres... - o tom de Le Chapelier era friamente hostil.

André olhou-o sem mostrar a menor surpresa. Como podia Le Chapelier adivinhar que, em vinte e quatro horas, uma mudança tão grande se tinha operado nele? Apenas disse:

- Se não lhes falares, sou eu quem o fará!

- Se tens vontade de ser morto, tu também, não me oponho. De resto, ficaria um morto de cada lado.

Mas depressa lamentou as palavras que acabava de dizer porque, dum salto, André subiu para o pedestal. Le Chapelier, receando que ele defendesse a causa dos nobres, agarrou-o por um tornozelo, clamando:

- Não fiques aí! Julgas que deixaremos estragar tudo pela tua maluquice? Anda, desce!

Em vez de lhe obedecer, André segurou-se solidamente a uma das pernas do cavalo de bronze. E então, com voz tão forte que se fez ouvir em toda a praça, gritou:

- Cidadãos de Rennes! A França está em perigo!

O efeito foi instantâneo. Um arrepio percorreu a multidão e muitos rostos se voltaram para o pedestal, muitos olhares se fixaram naquele jovem de negros cabelos soltos ao vento, rosto pálido e pupilas inflamadas.

André, a quem o instinto mostrara que estava senhor da situação pela sua audácia, sentiu-se tomado por um acesso de febre. O próprio Le Chapelier parecia impressionado. Então, lentamente, em tom recolhido, o afilhado de Kercadiou retomou a palavra nestes termos:

- Horrorizado com o crime que se acaba de cometer aqui mesmo, peço que me escutem! Um inocente acaba de ser assassinado à vossa própria vista, só porque pretendia desmascarar os abusos de que todos somos vítimas! Temendo a sua voz, temendo sobretudo a verdade, os nossos opressores não encontraram, para o fazer calar, outro meio senão matá-lo!

Estupefacto, Le Chapelier acabou por largar o artelho de André. “Mas, palavra - pensava -, não está a brincar? Que lhe teria acontecido?”

-- A história que quero contar-lhes - continuou André - mostrar-lhes-á que a morte de hoje tem precedentes; e mostrar-lhes-á também toda a extensão das forças obscuras contra as quais, legitimamente, nos revoltamos. Ontem...

Neste momento uma voz subindo da multidão, a uns vinte passos, berrou: “O quê? Ainda outro?”

Ouviu-se um tiro. Uma bala de pistola foi bater no bronze, muito perto de André. Le Chapelier e os estudantes voltaram-se para o orador e gritaram-lhe:

- Desce! Eles vão matar-te, como mataram La Rivière!

- Deixa-os matar! - replicou André, rindo e abrindo os braços à maneira dos actores. - Estou ao seu dispor. Deixem que eles juntem o meu sangue ao que, dentro em breve, os afogará!

E sem ligar a menor importância ao rumor que se produziu no local onde se encontrava o homem que tinha disparado sobre ele, contou os acontecimentos que na véspera se haviam desenrolado em Gavrillac. Em linguagem veemente, mas tão desprendida quanto possível, descreveu a morte de Mabey, o abandono da viúva e dos órfãos, a morte de Filipe de Vilmorin.

Após um silêncio, André continuou:

- Entretanto, a minha intenção não é somente perdir-lhes vingança para Filipe de Vilmorin, mas, sobretudo, dizer-lhes o que ele próprio lhes diria, se hoje estivesse vivo.

E elevando mais o tom de voz, acrescentou, persuadido de que transmitia o pensamento de Filipe:

- Pensem no que representa a França de hoje! Um milhão dos seus habitantes pertence à aristocracia! Eles, e só eles, são a França! Os outros? Bem, esses não têm valor algum, importância alguma! Vinte e quatro milhões de almas que não contam e não existem senão para servir um milhão de aristocratas!

Muito tempo falou assim, rodeado por total silêncio. Descreveu a miséria do povo, passou em revista todos os abusos insuportáveis dos nobres. As suas palavras vibravam pelos quatro cantos da praça.

- Sabem qual é o papel dos juizes? - perguntou. - Serem o escudo dos aristocratas! Defendê-los das indiscrições e dos rigores da justiça!... Depois disto, não se admirem que os nossos chefes estejam resolvidos a não ceder, seja no que for!...

Lembrando-se do que na véspera lhe dissera Filipe, continuou, martelando as sílabas:

- Agindo desta maneira, os aristocratas destroem a monarquia! Na sua cegueira eles não compreendem que, se o trono cair, os arrastará na queda e os esmagará!

Uma formidável aclamação saudou esta última frase. Ergueram-se mãos que brandiam paus e até espadas. Algumas vozes gritaram: “Ao tribunal! A morte Lesdiguières! A morte o Juiz!”

Muito senhor de si, André respondeu:

- Um momento! O senhor Lesdiguières, instrumento de uma organização corrompida, não é digno da vossa cólera! E a própria organização que é preciso atacar e destruir. Mas, antes de tudo, desconfiem da violência! Peço-lhes que fiquem calmos. A violência atrai a violência! Um gesto impensado da nossa parte justificará represálias sangrentas de que todos seremos vítimas!

- E então? - perguntaram várias vozes. - Que devemos fazer?

- Vou dizê-lo. Nantes é a força e a riqueza da Bretanha. Foi do seu seio que saíram os primeiros movimentos de revolta quando o rei resolveu dissolver os Estados Gerais, e os nobres, temendo a ascensão do Terceiro Estado, entravaram a aplicação desta decisão. Ponham esta poderosa cidade ao corrente do que se passou aqui. Peçam-lhe, pois, que mostre o caminho que devemos seguir! Ela tem poder para impor a sua vontade! Já o mostrou. Graças ao seu apoio, se soubermos manter-nos unidos e calmos, triunfaremos e vingados serão os nossos mortos!

Inclinou-se para saltar do pedestal. Tinha acabado.

Logo que tocou o pavimento da praça, uma dúzia de estudantes apoderou-se dele e levou-o aos ombros. Le Chapelier ergueu para André os olhos brilhantes e disse-lhe:

- Meu caro, acabas de acender nos corações dos nossos concidadãos um fogo que se estenderá por toda a França, como um incêndio de liberdade!

E voltando-se para os estudantes:

- Para a Academia Literária... Já! Vamos hoje mesmo tomar todas as disposições indispensáveis e designar um delegado que levará a Nantes a mensagem do povo de Rennes!

A multidão afastou-se para deixar passar o cortejo. André, sempre em charola aos ombros dos estudantes, dizia, voltando-se, ora à esquerda, ora à direita:

- Sejam prudentes! Voltem para casa! Tenham paciência! Brevemente haverá novidades!

E acrescentou:

- Durante séculos, suportaram a servidão com admirável coragem. Suportem-na da mesma maneira ainda algumas semanas ou mesmo alguns meses. As vossas provações atingem o fim...

O cortejo atravessou a praça, seguiu a Rua Real quase toda e parou diante de um prédio. Era ali, numa sala do primeiro andar, por detrás de estreitas janelas com colunatas, que se reunia a Academia Literária. Vários homens, na sua maioria jovens e entusiastas que ardiam por morrer ou vencer pela liberdade, correram ao encontro de André, já avisados do que se havia passado na Praça Real. Acolheram-no como a um filho pródigo e encheram-no de felicitações e agradecimentos. Depois levaram-no para o primeiro andar, enquanto uma guarda de honra, composta por operários e artesãos, se instalava, voluntariamente, no rés-do-chão.

Le Chapelier tomou a palavra. Com calor, evocou a morte de Mabey e a do camarada Filipe de Vilmorin. Descreveu, depois, a conduta de André e o que ele chamou “a sua brilhante conversão às ideias novas”.

Aplausos saudaram este pequeno discurso.

- E agora - voltou o orador a dizer -, vou pedir-lhes, meus amigos, para designarem o delegado que será encarregado de levar a Nantes a mensagem do povo de Rennes. Proponho-lhes que escolham, para este fim, o próprio André Moreau!

Soaram novos aplausos. Então André, passado o primeiro movimento de surpresa, levantou-se, inclinou-se ligeiramente e respondeu com simplicidade:

- Aceito.

E após um breve silêncio:

- Partirei esta noite.

- Nunca! - gritou-lhe Le Chapelier. - Depois do que acabas de fazer, aconselho-te a que não fiques uma hora mais em Rennes. Partirás secretamente. Enfim, se queres vencer, na verdade deves esconder com cuidado a tua identidade durante toda a viagem. De outra maneira, o senhor de Lesdiguières não terá dificuldade em te apanhar... e será o cadafalso, sem qualquer espécie de processo!

 

                             O desconhecido de Nantes

Afastando-se de Rennes, André verificou que estava enterrado, até ao pescoço, numa aventura que nem sequer imaginava, quando deixou a sonolenta vila de Gavrillac. Passou a noite numa estalagem, à beira da estrada. Na manhã seguinte, ainda madrugada, partiu; chegou a Nantes quando acabava de soar meio-dia. Durante esta longa caminhada solitária através das planícies desoladas da Bretanha, teve tempo de reflectir na situação em que o juramento de vingar Filipe o havia colocado: “Que estranha evolução! - pensava. - Estou convencido do valor das ideias que já defendi na Praça Real? Em todo o caso, se mais tarde elas se mostrarem ineficazes, terão pelo menos servido para limpar, da superfície terrestre, o marquês de La Tour e os seus semelhantes. Isto chega para as justificar amplamente...”

E foi assim que, de coração leve e consciência tranquila, André Moreau, revolucionário de fresca data, entrou na bela cidade de Nantes que, pelas ruas espaçosas, pela prosperidade do esplêndido porto, podia bem rivalizar com Bordéus e Marselha.

Parou no cais da Fossa, entrou numa estalagem, pôs o cavalo na estrebaria, almoçou na penumbra de uma janela e admirou a ampla bacia do Loire onde se balouçavam, ancorados, navios de todas as nacionalidades.

Eram duas horas da tarde quando André chegou à Praça do Comércio. Diante dele erguia-se ajunta do Comércio, imponente monumento de estilo clássico. Muitas pessoas estacionavam no pórtico e obstruíam a entrada. Vários contínuos estavam no alto das escadas.

Com esforço, André conseguiu abrir passagem até um deles, a quem disse, a meia voz:

- Venho de Rennes. Quero falar ao presidente.

- O seu nome, senhor?

André quase chegou a esquecer os conselhos de prudência que Le Chevalier lhe dera. Mas pensou a tempo e respondeu:

- O presidente não me conhece. E, de resto, a minha identidade não tem importância. Sou o porta-voz do povo renense. Aqui tem. Vá e diga ao presidente que o espero aqui.

Depressa este apareceu, seguido de várias pessoas que, na ânsia de ouvir as novidades, se atropelavam atrás dele.

- Vem de Rennes? - perguntou o presidente.

- Sim. A Academia Literária envia-me para pôr a população nantense ao corrente de certos factos.

- O seu nome?

- Na actual situação - respondeu André, após uma hesitação -, o nome de qualquer de nós deve ser pronunciado o menos possível.

O presidente era um homem corpulento, com expressão vaidosa. Franziu a testa, mas, por fim, disse:

- Muito bem. Venha ao meu gabinete.

- Com sua licença, senhor - respondeu André -, é aqui que direi o que tenho a dizer.

- Aqui? - repetiu o homenzarrão.

- Sim. A mensagem de que me encarregaram dirige-se ao povo de Nantes. Ora, do alto desta escadaria, posso dirigir-me a grande número de nantenses. É exactamente o que desejam aqueles que me enviaram.

- Diga-me, senhor, é verdade ter o rei dissolvido os Estados Gerais?

- Não tardará a sabê-lo - André sorriu ao responder. Olhou a multidão, deu alguns passos em frente, tirou o chapéu e, com voz forte, começou assim:

- Povo de Nantes! Vim para vos convidar a pegar em armas! Parou, passeou o olhar pela assistência, durante alguns segundos, e continuou:

- Delegado do povo de Rennes, encarregaram-me de vos pôr ao corrente da situação e de vos anunciar que chegou o momento de vos unirdes para ir em socorro do nosso país!

- O seu nome! O seu nome! - gritaram algumas vozes. E depressa, toda a multidão gritava em coro:

- O seu nome! O seu nome!

Compreendendo que não era já possível fugir por qualquer vereda, como fugira quando o presidente lhe fizera a mesma pergunta, André respondeu:

- Chamo-me Omnes Omnibus, significando estas duas palavras - para aqueles que dentre vós já esqueceram o latim - Todos por Todos! Contentem-se, de momento, com esta explicação! Na verdade, não sou mais do que um enviado, um passa-palavra, uma voz! Vim anunciar-vos que, tendo os privilegiados transgredido a nossa vontade, o rei dissolveu os Estados Gerais!

Seguiu-se uma formidável onda de aplausos. Homens e mulheres riam às gargalhadas. Muitos milhares de bocas gritaram:

- Viva o rei! Viva o rei!

Quando se restabeleceu o silêncio, André acrescentou:

- Alegram-se demasiado cedo! Os nobres, arrogantes e indisciplinados, como sempre, decidiram não levar em conta a dissolução pronunciada pelo rei... Continuam, pois, nos seus lugares e a conduzir os acontecimentos do país como muito bem lhes parece!

O orador esperou. Todos os rostos, na sua frente, tinham agora uma expressão consternada.

- Assim - continuou - estes homens, já de si rebeldes ao povo, à justiça, à equidade e à própria humanidade, são hoje rebeldes ao rei! Em vez de abandonar uma polegada dos seus inacreditáveis privilégios, preferiram desprezar a autoridade real. Parecem resolvidos a mostrar que em França a única soberania é a que eles próprios exercem sobre o povo francês!

Houve alguns aplausos, mas a maior parte dos ouvintes manteve-se silenciosa.

- Necker acaba de ser chamado ao poder pela terceira vez e parece que vai conseguir, no fim de contas, dar-nos verdadeiros Estados Gerais. Mas os privilegiados têm uma resposta muito rápida. Não podendo impedir que estes Estados reúnam, vão tentar tirar-lhes toda a eficácia! Para isto, dispõem de dois meios: paralisar, pelo número, os representantes do Terceiro Estado ou destruí-los... pura e simplesmente. Ontem, em Rennes, dois jovens que falavam ao povo, como neste momento eu vos falo, foram mortos por assassinos a soldo da nobreza! O seu sangue clama vingança!

Um longo clamor de indignação subiu da turba.

- Cidadãos de Nantes! - continuou. - O nosso país está em perigo! Preparemo-nos para defendê-lo! Quebremos as cadeias que pesam desde séculos sobre o Terceiro Estado!

Formidáveis aclamações subiram no espaço. André compreendeu que, tal como acontecera com o povo de Rennes, tinha conquistado o povo de Nantes pelo encanto poderoso da sua eloquência. Então, logo que as aclamações cessaram, concluiu:

- Juremos, em nome da Humanidade e da Liberdade, colocar-nos, como uma muralha, diante dos nossos inimigos! Juremos, pela honra da nossa pátria, lutar, com todas as forças e até à morte se for preciso, contra qualquer espécie de despotismo!

Aclamações e aplausos delirantes soaram de novo, fazendo vibrar as altas colunatas da Câmara do Comércio.

André não só tinha acendido o facho da revolução em Nantes, como havia dado aos seus habitantes o gosto pelos protestos. Um destes, assinado alguns dias depois por milhares de pessoas, foi um dos documentos sobre que, em 27 do mês de Novembro, Necker se apoiou para impor, contra a violenta oposição do clero e da nobreza, um decreto da mais alta importância: nele se estipulava que os deputados aos Estados Gerais seriam pelo menos mil, sendo os do Terceiro Estado tão numerosos como os das outras duas ordens reunidas.

 

                             Consequências

No dia seguinte, pela tardinha, André encontrava-se a uma légua de Gavrillac. Enchia-o de alegria a perspectiva de, em breve, tornar a ver Aline. Se ele apenas ouvisse o coração, teria galopado em linha recta para a vila. Mas pensava: “É preciso que não saibam que fui a Nantes. Se os nossos bons aldeões soubessem que acabo de pregar aí a revolução!...” Então, para iludir os indiscretos, deu uma larga volta, atravessou a ribeira de Bruz e voltou a atravessá-la um pouco para lá de Charagne. Assim, chegaria a Gavrillac pelo norte e daria a impressão de vir, muito simplesmente, de Rennes, aonde todos sabiam que tinha ido dois dias antes.

A cerca de meia légua do pequeno povoado viu, ao longe, um cavalo que lentamente se dirigia para ele. A medida que o cavaleiro se aproximava, viu-o inclinar-se na sela e ouviu uma voz feminina gritar:

- És tu, André? Finalmente!

Um pouco surpreendido, puxou as rédeas, mas logo lhe dirigiram, em tom inquieto e ansioso, outra pergunta:

- Aonde foste?

- Aline! - gritou ele.

- Sim, sou eu. Aonde foste?

- Dar um pequeno passeio. Por aqui e por ali. Necessidade de tomar ar, percebes?

Ela interrompeu-o com impaciência:

- Espero-te nesta estrada desde o princípio da tarde - falava num tom apressado. - Vários polícias de Rennes chegaram esta manhã a Gavrillac. Passaram busca, não apenas à vila, mas também ao castelo. Depois souberam que voltarias porque havias alugado um cavalo na Armas da Bretanha. Então, instalaram-se na estalagem e aí aguardam que chegues. Há longas horas que te espero para evitar que caias na armadilha.

- Desculpa ter-te causado tantos aborrecimentos, querida Aline!

- Não é isso que conta...

- Pelo contrário, é precisamente isso que tem importância. O resto, é que não conta!

Ela interrompeu-o com impaciência:

- Não compreendes que te querem prender? Tu és acusado de subversão. O senhor de Lesdiguières passou um mandado de captura contra ti.

- Subversão? - repetiu ele, enquanto pensava: “Será possível que a notícia de que fui a Nantes já tenha chegado a Rennes?”

- Sim, de subversão. Pronunciaste em Rennes, na quarta-feira, na Praça Real, um discurso revolucionário...

- Oh! Isso... foi uma brincadeira!

Respirou. O juiz parecia não estar bem ao corrente da parte mais importante da sua actividade durante a curta viagem...

- Ouve, André - disse Aline, com o ar mais sério. - É preciso que não voltes a Gavrillac. Vais desmontar aqui mesmo. Levarei o cavalo para o castelo e amanhã à tarde, que já estarás longe, eu o levarei à estalagem.

- Mas, vejamos, é impossível!

- Impossível? Porquê?

- Por várias razões. Em primeiro lugar não pareces medir o perigo a que te expões...

- Eu? - disse a jovem com orgulho. -Julgas, André, que temo os polícias de Lesdiguières? E depois, nada fiz de censurável...

- Sem dúvida. Mas, ajudando um homem considerado culpado, procedes contra a lei.

- A lei? Quero lá saber!

- Sim... - murmurou André. - Tu, o ser que mais amo no mundo, tu, pertences a essa classe social para a qual a lei não existe...

- André - respondeu com voz vibrante -, falaremos disso mais tarde! Não pareces compreender a que ponto a tua situação é grave. Não deves ir a Gavrillac. Pelo contrário, é preciso que fujas imediatamente e te escondas até que o caso esteja um pouco esquecido... até que o meu tio tenha conseguido o teu perdão.

- O meu perdão? - repetiu André, com azedume. - Em primeiro lugar, não creio que meu padrinho possa intervir com eficácia em meu favor. Tem poucas relações. Nunca tratou de ser bem visto na corte. Não tem amigos poderosos...

A jovem parecia mergulhada nos seus pensamentos. Depois, de repente, levantou a mão e disse:

- Com certeza, André, vais estremecer. Mas não esqueças isto: na proposta que te vou fazer, a minha única intenção é tudo tentar para te salvar... quaisquer que sejam os meios.

- Primeiro que tudo, estás certa de que me quero salvar? - perguntou André, com tanta altivez como desconfiança.

Com um gesto, ela mandou-o calar.

- Ouve - disse. - Não conheço senão uma pessoa que pode tirar-te de apuros.

- Quem?

- O marquês de La Tour!

André tremeu de indignação. Bradou:

- La Tour d'Azyr! O quê! O assassino de Filipe, o homem que te quer arrancar a mim? Mas tu não sabes, Aline, que é principalmente contra ele que tentei levantar a cólera do povo de Rennes? Tendo sido vã a minha intervenção junto de Lesdiguières, procurei atingir esse criminoso por outro meio. Pareces esquecer que jurei vingar Filipe!

- Não. Nada esqueci. Mas como nós, mulheres, em certas circunstâncias, somos mais lúcidas do que vocês, lembrei-me que o assassino do teu amigo era o homem que aspirava a casar comigo...

- E acreditas que, mesmo aceitando eu essa solução, ele consentiria em salvar-me?

- Bastaria que eu lho pedisse...

- E depois?

- Depois? - repetiu ela com espanto.

- Não vês que ficarias com as mãos atadas? Não vês que serias forçada a casar com esse assassino? Porque estou certo de que ele não te faria um tal favor sem exigir, primeiro, que lhe prometesses a tua mão!

Aline rompeu num riso fresco que ressoou no crepúsculo. Depois, pousando a mão direita no braço do jovem:

- André, que criança és! Como me conheces pouco! Julgas que seria bastante parva para fazer ao marquês qualquer promessa, qualquer que fosse?

Sem responder, André olhava-a fixamente; Aline tinha a impressão que as sombrias pupilas do jovem lançavam chispas. Quase teve medo diante daquele rosto de traços tão rígidos como o mármore.

- Não - disse finalmente André, em tom resoluto. - Se aceitasse a tua proposta, e nem um segundo pensei aceitá-la!, teria a possibilidade de ficar perto de ti, de continuar a ver-te. Mas ficaria esmagado só com a ideia de haver traído Filipe, pedindo um favor ao homem de quem jurei vingá-lo! Toda a nossa vida, a tua e a minha, ficaria envenenada pelo desprezo que acabaríamos por ter de nós próprios...

- André - gritou ela, com uma expressão de radiosa alegria. - Perdoa ter-te estendido esta armadilha! A resposta que acabas de me dar é, precisamente, a que eu desejava! Conheço-te, pois, bem. Mas nunca te tinha visto em semelhante situação. E pensava: oxalá não aceite! Eu conhecia o teu coração. Agora conheço-te a alma.

A noite quase caíra por completo; e a Lua acabava de aparecer por entre as nuvens.

- Que vamos fazer? - perguntou André.

- Como te disse, não podes entrar em Gavrillac... Mas... atenção! Vem aí um carro. É preciso que não te vejam!

E, fazendo voltar o cavalo, ela arrastou o companheiro para um carreiro que, contornando a vila, permitia chegar directamente ao castelo. Durante alguns instantes caminharam em silêncio.

Depois, quando se julgaram bastante afastados da estrada, pararam ao abrigo de uma sebe. André desmontou e, estendendo os braços à jovem, ajudou-a a descer também.

- Aline, é possível que estejamos condenados a separar-nos? Como ela não respondesse, ele acrescentou:

- Não queres ir comigo? Oh! Claro que a existência que te ofereço não é das mais invejáveis! Prevejo dificuldades, provações. Mas, ao menos, estaríamos juntos...

Ela parecia hesitar.

- Partir contigo? - murmurou por fim. - Nada me faria mais feliz! Mas...

- Mas o quê?

- Não pensaste no meu tio. Sabes que a sua saúde deixa muito a desejar, desde há algum tempo. Não tem ninguém no mundo, além de mim. Esta manhã, quando os polícias passaram busca ao castelo, não imaginas a sua emoção... Encolerizou-se e jurou não te tornar a ver. Vês tu, André, não posso partir contigo. Ele está velho; abandonado neste grande castelo com um único criado. Tem sido muito bom para mim; serviu-me de pai. É meu dever tratá-lo, ficar junto dele todo o tempo que for preciso. E em tudo isto esqueces, também, que tenho um papel importante a desempenhar: é preciso que te reconcilie com ele. Porque têm, um pelo outro, uma afeição profunda, não?

- É muito simples - disse André -, devo-lhe tudo...

- Então, sejamos corajosos. A nossa felicidade, quando nos voltarmos a ver, será maior, porque nada a impedirá. Agora separemo-nos. É preciso que não permaneças nos arredores da vila. Vou levar o cavalo à estalagem. Quanto ao resto, vai tranquilo: não te esquecerei.

- Só te peço uma coisa, Aline. Promete-me que não desposarás o senhor de La Tour.

- Admiro-me que exijas esta promessa! No entanto, faço-ta.

- Como contas fugir-lhe?

- Dominando, pouco a pouco, a vontade de meu tio, usando de astúcia, de rodeios. Nem sempre será fácil! Mas terei a última palavra.

Ele estendeu-lhe as rédeas:

- Quando voltaremos a ver-nos?

- Talvez mais depressa do que pensas. Tem confiança em mim.

André ajudou a jovem a montar. Quando ela pegou nas rédeas dos dois cavalos, perguntou:

- Aonde pensas ir, André?

- Nem sei ainda. Mas logo que possa, darei notícias.

- Deus te proteja, André - e estendeu-lhe a mão.

 

                                         O BORZEGUIM

 

               Os intrusos

André chegou à estrada de Redon, alguns minutos mais tarde, obedecendo sobretudo ao instinto; com passo cansado e maquinal, tomou a direcção do norte. Aonde ia? Para onde devia ir? Mas, de momento, tratava-se, sobretudo, de pôr a maior distância possível entre si e Gavrillac.

Muito tempo, na noite, caminhou como um autómato. Por fim, teve de reconhecer que as pernas já não podiam mais. Contornara Grichen e estava agora a um quarto de légua dali; desde que deixara Gavrillac tinha já percorrido cerca de sete léguas.

Quando parou, encontrava-se no meio de um grande prado comunal, num atalho que tufos de canas ladeavam aqui e ali. A direita, erguia-se uma sebe de espinheiros e, atrás dela, uma granja. André teve uma breve hesitação. Depois, dirigiu-se para a cancela que interrompia a sebe e abriu-a. Entrou. A granja parecia uma pequenina casa assente em doze pilares de tijolo. Estava cheia de feno. Que providência para o viajante perdido numa noite tão fria! Vendo uma escada grosseira encostada a um dos pilares, André serviu-se dela a fim de trepar para o monte de feno.

Quando acordou, o Sol ia alto no céu. E concluiu, antes mesmo de a si próprio perguntar onde estava, que a manhã ia já bastante avançada. Então percebeu, vindo de curta distância, um ruído de vozes, a que não prestou logo atenção. Sentia-se tão bem neste feno quente e cheiroso!

Mas, ao fim de um instante, lembrando-se da série de acontecimentos que o haviam forçado a procurar refúgio naquela granja, voltou a cabeça com prudência... e deu um suspiro de alívio ao ouvir uma mulher dizer, com acentos argentinos: “Meu Deus, Leandro! Separemo-nos aqui! Imagina que era meu pai...”

Um homem respondeu em tom calmo e tranquilizador:

- Não, Climene. Enganas-te. Não há ninguém por estas paragens. Tens cada ideia!...

- Ah! Leandro! Se ele nos encontrasse juntos! Até tremo!... André não pôde deixar de sorrir. Levado pela curiosidade, saiu do esconderijo e arrastou-se até à beira do monte de feno.

Entre a granja e a sebe de espinheiros estavam um homem e uma mulher, ambos jovens. Ele era um rapaz bastante belo, de traços regulares e cabelos castanhos, presos na nuca por um grande laço de seda preta. Estava vestido com requinte, mas também com um gosto mais que duvidoso. Via-se bem o uso do fato de veludo cor de ameixa com galões dourados. Os punhos, sem goma, caíam-lhe nas mãos.

A rapariga - que de rapariga não passava, pois não teria mais de vinte anos - somava à voz doce e harmoniosa um encanto e vivacidade de expressão e de movimentos, na verdade incomparáveis. Trazia um casaco verde, com o capuz caído para os olhos; o sol punha-lhe reflexos de ouro nos cabelos, nos caracóis de um castanho-claro que lhe emolduravam o rosto oval, cuja cor tinha a delicadeza das pétalas das rosas. Os olhos, de um azul-transparente, cintilavam a cada bater das pestanas escuras.

Sem saber porquê, André lamentou que esta encantadora criatura parecesse ligar tanta importância ao seu interlocutor, que parecia bem pouco digno dela, com aquelas vestes de que pelo menos uma parte parecia tirada do espólio de um fidalgo. De novo prestou atenção ao que diziam:

- Não terei paz, Leandro - dizia a jovem -, senão quando casarmos. Entretanto, quantas dificuldades ainda! Se nos casarmos sem o consentimento de meu pai, ele condenar-nos-á à morte. E, se lho pedirmos, certamente no-lo recusará!

Ouvindo estas palavras, André pensou: “Eis um pai cheio de sabedoria. Não se deixou iludir com a falsa elegância do senhor Leandro, nem pelos seus caracóis postiços!...”

- Minha querida Climene - respondeu o jovem, segurando as mãos da rapariga -, tens tempo de ceder ao desânimo. Se te não revelo desde já o estratagema que arranjei para conseguir o consentimento de teu pai, é porque quero fazer-te uma surpresa. Entretanto, tem confiança em mim, assim como no amigo engenhoso de quem te falei e que chegará de um momento para o outro.

“O idiota! Teria decorado este discurso? Seria incapaz de se exprimir de maneira mais simples, embora calorosa? Como podia a encantadora Climene sentir-se bem na companhia de um pedante com tão ridículo nome?” - estas eram as perguntas que André fazia a si próprio, do alto do seu observatório. Mas já Climene voltava a falar:

- Leandro, conheces bem o meu coração. Mas tenho muito medo de que o teu estratagema chegue demasiado tarde! Sabes que desposo hoje esse horrível marquês de Sbrufadelli. Deve chegar ao meio-dia para assinar o contrato. Vou na realidade tornar-me a marquesa de Sbrufadelli? Não, é impossível; o título, só por si, me fere os lábios! Se se tornar o meu, nunca o pronunciarei... nunca! Leandro, salva-me! És a minha única esperança...

André estava um pouco decepcionado. Pois quê, esta era a linguagem de uma jovem desesperada? Porque se exprimia ela tal qual o seu ridículo apaixonado? Que falta de ardor, de sinceridade!

- Juro - respondeu Leandro - que não desposarás o marquês de Sbrufadelli!

Enquanto falava, brandia o punho para o céu. Dir-se-ia Ajax desafiando Júpiter! Mas, depressa, volveu:

- Ah! Eis o nosso subtil amigo!

André viu então um homem magro passar a cancela. Vinha vestido com um casaco cor de ferrugem e trazia um tricórnio descido para o nariz, como se quisesse tapar a cara. Quando levantou o tricórnio, para saudar rasgadamente os dois namorados, André estremeceu: nunca lhe tinha sido dado contemplar semelhante rosto de patife! Se Leandro parecia vestido com os despojos de um fidalgo, o recém-vindo parecia ter-se contentado com os de Leandro. Entretanto, apesar dos trajos desprezíveis e o rosto que a barba de três dias tornava mais inquietante, caminhou com passo seguro e inclinou-se com graça estudada.

- Senhor - ciciou com a expressão de um conspirador - o momento de agir chegou... e o marquês também.

Ouvindo estas palavras, Climene juntou as mãos e entreabriu os lábios.

Mas, no mesmo instante, deu um grito fraco:

- Meu pai! Aí está! Estamos perdidos!

- Salvemo-nos, Climene! - disse Leandro.

- Muito tarde. - soluçou ela. - Muito tarde!

- Calma, menina, calma - aconselhou o “amigo subtil”. - Tenha confiança em mim. Tudo correrá bem.

- Ah! - gritou Leandro, desesperado. - Estamos perdidos. É o fim das nossas esperanças. Não sairemos indemnes desta situação...

Um homem corpulento acabava de surgir, atravessando, por sua vez, a cancela. Tinha o rosto redondo e vermelhusco, no meio do qual aparecia um imenso nariz; vestia como um burguês rico. Era evidente que alimentava violenta cólera. Mas a maneira como a exprimia não deixou de admirar o espectador invisível desta cena.

- Leandro! - gritou. - És um imbecil! És muito brando, meu caro, muito brando! Se queres comover os camponeses, é preciso agir de outra maneira. Ouvindo-te, jurar-se-ia que nem tu mesmo percebes o que dizes. Olha, vê o que é preciso fazer!

E, colocando-se junto de Leandro, repetiu, com entoação de desespero, as palavras que este acabava de pronunciar sem ênfase.

- Compreendeste? - respondeu, por fim, em tom desdenhoso. - É preciso que a paixão vibre no que dizes! Não estás em via de dirigir propostas insignificantes a Scaramouche. És um apaixonado que exprime o seu...

Parou bruscamente. Com efeito, André, compreendendo por fim a cena a que acabava de assistir, não pôde reprimir uma gargalhada que fazia estremecer o telhado da granja.

O enorme homem foi o primeiro a recobrar o sangue-frio. Aproveitando a ocasião, disse:

- Escuta, Leandro! Os próprios deuses troçam de ti! - Depois, levantando a cabeça: - Dizei, oh, vós, lá de cima!

André avançou um pouco mais a cabeça despenteada.

- Bom dia - disse alegremente, pondo-se de joelhos no feno.

Então, compreendeu tudo. Do outro lado da sebe, no prado comunal, estava um trem, um carro carregado com peças de madeira que atravessavam as telas pintadas que o cobriam e uma espécie de atrelado com uma chaminé de onde saía um rolo de fumo. Três grandes cavalos flamengos e dois burros, presos, pastavam tranquilamente a erva do prado. Em volta dos carros, várias pessoas iam e vinham. Outras estavam encostadas à cancela. Entre elas, André descobriu uma Colombina, um Arlequim e um rapaz com um boné pontiagudo que devia representar de bobo ou de boticário.

Sempre com a cabeça levantada, o homenzarrão - pelo trajo devia ser o Pantalonas do grupo - respondeu, com voz trovejante:

- Que diabo faz aí em cima?

- O mesmo que você - respondeu André. - Repouso numa propriedade sem ser para isso autorizado...

- O quê? - fez Pantalonas, olhando os companheiros com espanto.

Depois, voltando-se de novo para André:

- Em casa de quem estamos? - perguntou já com menos segurança.

- Em casa do marquês de La Tour - respondeu André calçando as meias.

- Esse fidalgo é... severo?

- Não é severo. É infernal! O diabo em pessoa.

- O que o não impede a você - disse o homem da barba de três dias, o Scaramouche do grupo - de se instalar tranquilamente numa granja que é dele.

- É que eu sou jurista. Ora os juristas, todo o mundo sabe, são incapazes de respeitar a lei como os actores de representar como deve ser. De resto, como toda a gente, eu sou escravo da Natureza. Ontem à noite, a Natureza ordenou-me que parasse nesta granja e aqui passasse a noite, sem me importar com o alto e poderoso senhor de La Tour. Enfim, senhor Scaramouche, note que, se eu cometi uma falta, pus nela mais discrição que o senhor e os seus companheiros...

Depois de calçar as botas, deixou-se escorregar do monte de feno em mangas de camisa, deitando pelos ombros o casaco de viagem. Quando Pantalonas viu que o vestuário do desconhecido era de bom corte e a camisa de belo tecido, mostrou-se mais amável.

- Agradeço-lhe bastante, senhor, por nos ter prevenido...

- É inútil agradecer-me. Contente-se em aproveitar o meu aviso. Os guardas do senhor de La Tour têm ordem de atirar sobre toda a gente surpreendida nos seus domínios. Imitem-me. Levantem o acampamento quanto antes!

E, seguido por todos, saiu da granja, atravessou a sebe e entrou no prado.

Neste momento ouviu um ruído de cascos. Voltou-se e ficou paralisado pela surpresa. Em baixo, na estrada que bordejava o prado, acabavam de surgir sete polícias a cavalo, com farda azul e vermelha.

- Estou perdido! - pensou. E teve a impressão de que a sombra da forca se erguia diante dele!

Os cavaleiros pararam e o oficial que os comandava gritou: “Eh! Vocês lá!”

Todos os membros do grupo se imobilizaram. O director, direito e muito digno, deu um passo em frente e perguntou, numa voz menos firme que a atitude:

- Que desejam?

Depois de um conciliábulo de poucos segundos, os cavaleiros entraram no prado e dirigiram-se, a trote, para o campo.

André, sempre atrás do atrelado, continuava, maquinalmente, a pentear-se. Mas não tinha senão um pensamento: “Em que direcção vou eu fugir?”

Sem deixar de trotar, o oficial voltou a dizer em tom impaciente:

- Quem os autorizou a acampar aqui?

- De que autorização quer falar? - perguntou o director. - Estamos num prado comunal, aberto a toda a gente!

O oficial sorriu e, sem responder, continuou a avançar. Então, André aproximou-se do director e disse em voz baixa:

- “Não há prados comunais nos vastos domínios do senhor de La Tour. Eu sei por exemplo que os seus intendentes cobram uma taxa aos donos dos animais que pastam aqui.”

- Mas, palavra de honra - gritou Pantalonas -, este marquês de La Tour é um ogre!

- Já lhe disse o que penso dele - respondeu André. - Quanto a estes “vivaços” que se dirigem para nós, deixe-me agir... Estou habituado...

E sem esperar resposta do director, André avançou um pouco para os polícias. Compreendia que só a ousadia o poderia salvar.

Um instante depois o oficial parou o cavalo diante do jovem. Este, sem deixar de se pentear, olhou com um meio sorriso, que se esforçava por tornar tão ingénuo como desarmante.

- Você é o chefe destes saltimbancos? - perguntou o oficial com voz desagradável.

- Sim, se assim o diz... Quer dizer, o chefe verdadeiro é meu pai, que vê além - acrescentou, mostrando o director que, prudentemente, se conservava a distância.

Depois, sem deixar ao interlocutor tempo de reflectir:

- Em que o poderei ajudar, capitão?

- É para me ajudar que os vou prender a todos, por estarem instalados neste prado! - respondeu o oficial com voz tão forte que os comediantes, assustados, se chegaram uns aos outros.

- Não percebo, capitão - respondeu André. - Estamos num prado da comuna, acessível a toda a gente...

- Nada disso!

- Mas então, onde estão as vedações?

- As vedações? Trata-se bem disso. É proibido pastar no prado onde acamparam, sem pagar um imposto especial ao marquês de La Tour.

- Mas... nós não pastamos! - disse André com a mais perfeita inocência.

- Não te faças tolo! Claro que vocês não pastam. Mas as vossas alimárias, o que fazem?

- Oh! Comem tão pouco... - respondeu André sempre com o mesmo desarmante sorriso. O oficial lançou-lhe olhares furibundos.

- O que importa - berrou -, é que vocês se preparam para cometer um roubo. Ora a prisão não se fez para os cães, mas para os ladrões!

- Em teoria, tem razão - suspirou André, continuando sempre a pentear-se. - Nós pecamos por ignorância. E, como estamos agradecidos por nos ter avisado...

Passou o pente para a mão esquerda, meteu a direita na algibeira das calças e respondeu, fazendo tilintar as moedas:

- Estamos desolados por tê-los feito desviar do caminho. Em reparação, os seus homens aceitam, talvez, beber, na estalagem mais próxima, à saúde de... do senhor de La Tour, por exemplo?

O oficial começava a amansar. Contudo, foi com voz ainda rude, que disse:

- Bem... bem... Mas, compreendam, é indispensável que levantem o acampamento o mais depressa possível.

Enquanto falava, inclinava-se na sela e estendia a mão; nela André deixou cair duas libras, dizendo:

- Está bem, capitão. Dentro de meia hora sairemos.

O oficial começou a fazer recuar o cavalo. Depois mudou de opinião e chamou:

- Senhor!

André aproximou-se.

- Andamos à procura de um tal André Moreau, de Gavrillac. É acusado de rebelião e merece, realmente, a forca. Não o encontraram? É fácil reconhecê-lo pelo rosto patibular...

- Mas com certeza que o encontrámos! - respondeu André com desenvoltura.

- Encontraram-no? Onde? Quando?

- Ontem à noite, próximo de Guignen. Parecia esconder-se. Que idade pode ele ter? Uns cinquenta...

- Cinquenta! - respondeu o oficial com expressão desanimada. - O homem que procuramos, pelo que nos disseram, deve ter a sua idade... a mesma altura mais ou menos... os mesmos cabelos negros... Tome atenção, se o vê, senhor, nas suas deslocações. O juiz criminal de Rennes, o senhor Lesdiguières, prometeu dez luíses de ouro de recompensa a quem, por indicações precisas, o auxiliasse a prender o nosso espertalhão. Dez luíses. Pense bem, senhor. É uma mina, não acha?

- Com efeito, capitão, é uma mina! - respondeu André, rindo à socapa.

Mas já o oficial se afastava para o fim do prado, seguido dos seus homens. Durante alguns segundos ainda, André continuou a rir com aquele riso silencioso que não podia evitar quando qualquer piada lhe parecia particularmente engraçada.

Por fim, com lentidão, rodou nos calcanhares e aproximou-se dos saltimbancos.

Pantalonas avançou para ele, com as mãos estendidas.

- Foi o nosso salvador! - declamou o homenzarrão. - Afastou do nosso caminho a horrível ameaça da prisão! Nós somos pobres, mas tão honestos que nunca nenhum de nós teve qualquer coisa com a justiça. Como se arranjou para nos tirar destas dificuldades?

- Mostrando três moedas de prata com o retrato do nosso rei Luís XVI a este valente polícia.

- Como lhe ficamos reconhecidos! - gritou o director, segurando o jovem pelos ombros. - Naturalmente, almoçará connosco.

__Devo dizer-lhe - respondeu André com alegria - que contava um pouco com esse convite.

 

                               Os saltimbancos

Alguns instantes depois, à clara luz do Sol que sauvizava a frescura um pouco agreste dessa manhã de Novembro, André estava instalado, atrás do atrelado, entre os seus novos companheiros. Que gente estranha e sedutora! Pareciam impregnados de alegria.

Eram onze - três mulheres e oito homens. Cada um usava o nome da personagem que, frequentemente, representava.

Pantalonas disse ao recém-chegado:

- Somos um dos últimos grupos ligados à velha “Commedia dell'Arte”. Por preço algum desejamos sobrecarregar as nossas memórias com as lucubrações dos autores cómicos. Autores, somos nós na medida em que desempenhamos o papel que nos é distribuído. Somos improvisadores da nobre escola italiana!

- Bem o percebi, quando escutei há pouco o vosso ensaio... Pantalonas franziu as sobrancelhas.

- Já reparei que o seu temperamento o leva para a ironia. Muito bem! Entretanto, por acaso, tem razão em troçar de nós. O ensaio a que assistiu - ensaio absolutamente excepcional, porque nunca ensaiamos - tornou-se necessário pela inexperiência e estupidez do nosso Leandro. Queremos incutir nele uma arte que a natureza parece ter-lhe negado; e continua a não seguir as nossas instruções... No que me diz respeito, não perdi todas as esperanças. De resto, gostamos muito de Leandro, apesar dos seus defeitos. E agora, deixe que lhe apresente os meus comediantes. Voltou-se para Rodomonte, que André já conhecia.

- O comprimento dos seus membros - disse -, o nariz adunco e sobretudo os seus pulmões levaram-me a incitá-lo a representar os fanfarrões e insolentes. Ah! Gostaria que o ouvisse rugir! Depois do grande Mondor, ninguém melhor do que ele soube fazer tremer os espectadores e ressoar as galerias! Dou-lhe a minha palavra de actor e de fidalgo, senhor - porque sou fidalgo ou, antes, fui -, que o nosso Rodomonte justificou todas as minhas esperanças.

O invejável Rodomonte, confuso com este elogio público, estava vermelho que nem um tomate.

- E aqui tem Scaramouche - continuou o director -, também já o conhece. Na cena faz às vezes de Scapin ou Coviello, mas quase sempre de Scaramouche. Convém-lhe melhor este último papel. Mas ele não é Scaramouche apenas no palco, é-o na vida real, porque possui o dom inato da intriga. Ninguém melhor do que ele sabe agarrar as pessoas pelo nariz e mostrar-se insolente e agressivo... quando se sabe ao abrigo de todas as represálias. Sim, ele é Scaramouche até às pontas dos cabelos. Poderia agora passar à crítica. Mas, por temperamento, sou caridoso e mais levado a amar o próximo do que a criticá-lo...

- Caridoso à maneira de Tartufo... - murmurou Scaramouche, claramente.

- Como vê - disse o director -, também ele usa a ironia! Depois, mostrando outro comediante que fazia lembrar um Querubim rústico:

- Este vivaço, de nariz semelhante a uma batata, de sorriso simples e boçal, reconheceu-o? É Pierrot...

- Seria bem melhor se deixassem de me mandar representar de amoroso! - grunhiu o interessado.

- Pierrot está sempre cheio de ilusões! - continuou o director em tom desdenhoso.

E designando dois outros membros do grupo:

- Este insecto marreco, este homem - se assim se pode chamar - cujas rugas indicam os seus vícios e cujo apetite aumenta à medida que envelhece, é o nosso amigo Polichinelo! E aqui tem Arlequim, crivado de sardas e esperto como um macaco. Admire agora Pasquariel. Faz, alternadamente, de boticário, notário, escudeiro e bêbado. Ou também de excelente cozinheiro, o que não admira; é de Itália, a terra dos glutões. E, para acabar, falto eu, o director e pai do grupo. Interpreto, com igual arte, o papel de Pantalonas e o das personagens mais distintas. De quando em vez sou também um médico ignorante e cúpido. Chamam-me quase sempre Pantalonas, mas o meu verdadeiro nome é Binet... para o servir, senhor.

Limpou o rosto vermelhusco, respirou fundo e acrescentou:

- Não esqueçamos as senhoras! Por ordem de antiguidade, na casa, se assim me é dado dizer - murmurou apontando uma loura de quarenta e cinco anos, sentada sobre o último degrau do atrelado -, aí está a nossa aia: mas faz também de mãe, ou de ama, quando é preciso. A dois passos dela, repare, com o nariz em trombeta e grande boca, está a pequena que representa de Colombina. Finalmente, apresento-lhe a minha filha Climene, ingénua de muito talento, muito superior às ingénuas da Comédia Francesa. Devo acrescentar que ela tem a fraqueza e... o mau gosto de querer entrar para lá.

A encantadora Climene sacudiu os caracóis castanhos e voltou-se, rindo, para André. Este pôde ver que ela não tinha os olhos azuis como julgara há pouco, quando estava empoleirado no monte de feno, mas cor de avelã.

A conversa generalizou-se. André soube então que o grupo se dirigia para Guichen onde contava actuar antes da feira, cuja abertura estava marcada para a semana seguinte. Perto do meio-dia de sábado fariam a sua entrada triunfal na vila, armariam o teatro na praça do velho mercado e representariam, nessa mesma noite, uma peça da autoria de Binet e que, segundo ele, causaria a admiração de todos os rústicos da vizinhança!

Então, o director voltou-se para Polichinelo sentado à sua esquerda, e disse:

- Que faremos sem Feliciano?

- Bem! Cá nos arranjaremos... - disse Polichinelo, com a boca cheia.

- Bem se vê que não és tu quem tem de se arranjar - suspirou Binet.

- Não deve ser difícil substituir Feliciano - interveio Arlequim.

- Claro, se estivéssemos numa terra civilizada. Mas aqui, no meio destes rudes Bretões, não encontraremos um imbecil tão pouco dotado como ele...

Depois, voltando-se para André, o director explicou:

- Feliciano era o nosso homem de negócios, o regente, o encenador, o maquinista e, de vez em quando, representava...

- Se bem percebo, era uma espécie de Fígaro - disse André.

- Belo, conhece então Beaumarchais? - perguntou Binet, encarando o seu interlocutor com renovado interesse.

- Como toda a gente...

- Como todos os parisienses, quer dizer! Mas estava a cem léguas de pensar que a sua glória chegava até às planícies selvagens da Bretanha!

Depois, com uma ligeireza muito de admirar em homem tão corpulento, o director deu um salto e começou a dar ordens, como se fosse um general no campo de batalha.

- Vamos, vamos, meus filhos! Pensam que ficamos na cavaqueira, aqui, todo o dia? O tempo passa e temos muito que fazer se queremos chegar a Guichen ao meio-dia.

Todos se deitaram ao trabalho, electrizados por aquelas palavras autoritárias. Encheram-se caixas e cestos com os restos do parco almoço. Num abrir e fechar de olhos, o chão ficou limpo.

As mulheres dirigiram-se para a carruagem que lhes era reservada. Os homens subiram, um após outro, para o atrelado. No momento de entrar nela, Binet voltou-se e disse a André, num tom dramático e estendendo-lhe a mão esquerda:

- Senhor! É preciso separarmo-nos, mas não esqueceremos nunca o que fez por nós. Ficamos-lhe gratos e amigos.

André apertou a mão do director e respondeu:

- Sou eu, senhor, que lhes estou grato. Nem todos os dias temos a felicidade de encontrar no caminho companheiros tão encantadores e tão... brilhantes!

O director franziu o sobrolho. O jovem troçaria dele? Entretanto, o seu rosto, em vez de reflectir ironia, exprimia candura e boa-fé...

- Sim, senhor - continuou André. - Vou deixá-los, mas contra vontade, porque esta separação não me parece necessária...

- Porquê? - perguntou Binet sempre de testa franzida e retirando lentamente a mão que o jovem parecia não querer largar.

- Pois bem, eu explico. Julgue-me uma espécie de cavaleiro andante, em busca de aventuras. Porque não havia eu de desejar travar um mais amplo conhecimento consigo e com os seus companheiros? Por seu lado, não percebi eu que desesperava de substituir Feliciano, o faz-tudo do vosso grupo? Se não houvesse vaidade da minha parte, propor-lhe-ia substituir as funções que...

- Ah?! Vejo que recomeçou a brincar - cortou o director, levantando a mão direita. - É pena que seja assim tão pouco sério. Porque há, naquilo que acaba de dizer, uma ideia digna de ser examinada.

- Mas decerto! Quanto ao meu feitio e a esta ironia que parece desagradar-lhe, talvez fosse possível aproveitá-los para qualquer coisa...

- Explique-se.

- Poderia, por exemplo, ensinar Leandro a interpretar os papéis de amoroso!

Binet pôs-se a rir.

- Não lhe falta autoconfiança! E a modéstia não o sufoca!

- Num actor, a modéstia é um defeito.

- Já representou?

- Algumas vezes - respondeu André, imperturbável.

- Conhece o teatro?

- A fundo.

- Tinha razão: a modéstia não é o seu forte!

- Mas, senhor, eu apenas digo a verdade! Conheço as peças de Beaumarchais, Fabre d'Eglantine, Louis-Sebastien Mercier, André Chénier...

- Basta!

- A minha lista ainda não acabou.

- Acabá-la-á qualquer outro dia. Porque diabo leu tantos autores dramáticos?

- É que eu, veja o senhor, apaixono-me pelo estudo do homem. Ora, há alguns anos, descobri que o melhor meio de o estudar era procurá-lo nas obras concebidas para o teatro.

- Aí está uma ideia tão profunda como original, e devo dizer que nunca me ocorreria - respondeu Binet com o ar mais sério do mundo. - É um rapaz inteligente. Desde que nos encontrámos que o notei. Vejamos, sente-se capaz de me ajudar a acabar o enredo de uma peça? Tenho tantos detalhes de organização a tratar que o meu espírito, pelo menos neste momento, não tem a clareza necessária para este género de trabalho. Pois bem, acha que me poderia ser útil?

- Sem dúvida alguma.

- Perfeito. Quanto ao resto, você mesmo se porá ao corrente das tarefas de que se encarregava Feliciano. E visto que aceita a minha proposta, suba. Ah! Já me esquecia: o ordenado! Porque creio que o exige, não?

- Não quereria fugir a esse hábito - disse André, com um sorriso.

- Que diria a seis libras por mês?

- Diria que não é o Brasil...

- Então, ponhamos quinze libras. É-me impossível ser mais generoso. Os tempos estão difíceis, bem sabe.

- Esforçar-me-ei por torná-los melhores para si.

- Bem dito! Então, estamos de acordo?

- Inteiramente.

E foi assim que o noivo de Aline, o amigo inconsolável de Filipe de Vilmorin, o inimigo declarado do senhor de La Tour entrou, inesperadamente, ao serviço de Téspis (1).

 

(1) Poeta grego, considerado o criador da tragédia grega (séc. VI a.C).

 

                 A musa cómica

Se a chegada do grupo a Guichen não foi, propriamente, triunfal, não deixou, pelo menos, de surpreender os habitantes da terra. Tinham a impressão, assaz justa, de ver aparecer gente vinda de outro mundo.

André conduzia pela arreata, na cauda da cavalgada, os dois burros que puxavam a pequena carruagem carregada com os utensílios outrora utilizados por Feliciano. Para esconder o rosto, tinha posto um nariz postiço. Mas não havia mudado de roupa. De resto, ninguém lhe prestava atenção.

A cavalgada deu a volta à vila, onde reinava já, em virtude da feira que se faria na semana seguinte, uma actividade febril. De tempos a tempos parava, e Polichinelo anunciava, com voz de estentor: “Esta tarde, às cinco horas, o célebre grupo de improvisadores do senhor Binet interpretará, no antigo mercado, uma nova comédia em quatro actos, intitulada: O Pai Impiedoso!”

Chegou, por fim, ao velho mercado, uma espécie de largo habitualmente aberto por todos os lados. Mas, para a circunstância, haviam-no fechado com tábuas tão mal unidas que os pedintes e os avarentos da vila podiam, sem dificuldade, assistir também ao espectáculo.

Naquela tarde, André, pouco afeito ao trabalho manual, julgou-se, por várias vezes, a ponto de desfalecer. Pensava continuamente: “Binet julga que me vai fazer trabalhar desta maneira, todos os dias, por quinze libras mensais!” Durante uma hora, sob as ordens de Pantalonas, ajudou dois dos companheiros, Rodomonte e Leandro, a montar as barracas num dos extremos do mercado, enquanto os outros membros do grupo almoçavam com as mulheres.

Um pouco mais tarde, Polichinelo, Scaramouche, Pierrot, Arlequim e Pasquariel vieram substituí-los. Depois, André seguiu a estreita ruela que levava à modesta estalagem onde o grupo estava hospedado.

Sentou-se à mesa com alguns dos companheiros e comeu, com grande apetite, dois arenques e algumas fatias de pão escuro.

Então, Binet perguntou-lhe:

- Na verdade, como te chamas?

André estremeceu. Mas após uns momentos de reflexão, respondeu:

- É verdade. Acho natural que lhe diga o meu nome. Chamo-me... Parvissimus.

- Parvissimus? É esse o nome da tua família?

- Não é bem... Mas como cada componente do grupo usa o nome do seu emprego, parece-me natural que eu use o nome do meu. Parvissimus é superlativo de “parvus”, que quer dizer o mais pequeno, o mais humilde, o mais apagado...

Binet sorriu. Não se enganara. O recém-chegado tinha o espírito vivo. Disse:

- Estou convencido de que me vais ser muito útil na elaboração dos enredos das nossas peças.

- E eu, garanto-lhe que preferiria ajudá-lo nesse género de trabalho, a ter de fazer de carpinteiro!

Contudo, foi preciso voltar ao velho mercado, e trabalhar de novo, a pé-firme, na construção do palco, até às quatro horas. Acabada a tarefa, ajudou o director a instalar a iluminação - velas de sebo e lamparinas alimentadas com óleo de peixe.

As cinco horas troaram as três pancadas, e a cortina levantou-se sobre o cenário da peça “O Pai Impiedoso”.

Entre as muitas funções que André herdara de Feliciano, havia a de porteiro. Binet desconfiava dos porteiros em geral e não queria que o recém-chegado, como algum dos seus antecessores, fugisse com a “receita”; obrigou André a trocar o seu vestuário por um de Polichinelo; o jovem, sempre com o desejo único de não ser reconhecido, pôs um nariz postiço, e, para maior precaução, um nariz diferente do que usava à chegada.

A representação foi das mais insípidas. Os espectadores eram raros e pouco entusiastas. A receita rendeu, no fim de tudo, dois luíses, dez libras e dois soldos. Não ficaria grande coisa quando Binet pagasse o aluguer do mercado, as velas e as lamparinas e a pensão do grupo.

Pela tardinha, quando voltaram à estalagem, perguntou a André, em tom aborrecido:

- Que pensa disto tudo?

- O resultado podia ser melhor! Com surpresa, o director estacou.

- Pelo menos, pode dizer-se que é franco!

- A franqueza é o único serviço que se pode prestar a imbecis.

- A imbecis! Mas, senhor Parvissimus, tenho a pretensão de não ser um imbecil!

Furibundo, afastou-se, a grandes passadas. Mas uma hora mais tarde, no decurso do jantar, voltou à carga.

- O nosso noviço, o excelente senhor Parvissimus, teve a impudência de me fazer compreender que o nosso espectáculo não valia nada.

E, sacudindo as bochechas vermelhas, desatou a rir.

- Infelizmente - disse Polichinelo, com expressão trocista -, o público pareceu ser da mesma opinião!

- Um punhado de pobres ignorantes! - murmurou Leandro agitando a sua bonita mão direita.

- Meu caro Leandro - interveio Arlequim -, não te metas a critico! Foste feito para exprimir sentimentos ternos. Nada mais.

- E tu para que foste feito? - Leandro olhou o outro com desdém, ao fazer-lhe a pergunta.

- Não sei. Ou, pelo menos, não sei ainda... como de resto acontece com quase todos nós.

- Mas enfim - disse Binet, na intenção de retomar a direcção da conversa e para atalhar uma discussão que ameaçava azedar-se -, porque proíbes, Arlequim, que Leandro emita uma opinião?

- Porque, em geral, se engana... e porque, por meu lado, espero que o público de Guichen seja bastante compreensivo para com “O Pai Impiedoso”.

- Pois eu - interrompeu André -, direi que “O Pai Impiedoso” é bastante estúpido para o público de Guichen.

- Não vejo a diferença - teimou Leandro.

- Não existe, com efeito. Mas creio que o meu pensamento, tal como o acabo de formular, é mais preciso que o de Arlequim.

- O senhor é subtil!- troçou Binet. Arlequim perguntou:

- Porque julga ser o seu pensamento, expresso dessa maneira, mais preciso que o meu?

- Porque me parece mais fácil elevar “O Pai Impiedoso” ao nível do público de Guichen do que descer o mesmo público ao nível de “O Pai Impiedoso”.

- Tudo isso me parece bastante complicado.

Neste momento, Climene, sentada na cabeceira da mesa, entre a aia e Colombina, perguntou:

- Se bem percebo, senhor Parvissimus, quer modificar a peça, não é?

- Não, simplesmente sugiro que seria útil modificá-la!

- E se lhe confiassem esse trabalho, que faria?

- Como o faria?

- Sim, escutamo-lo, senhor. O director berrou:

- Cale-se toda a gente! Tem a palavra o senhor Parvissimus! Sorridente, André olhou o pai, depois a filha.

- Pelo que vejo, estou entre a espada e a parede. Se me sair bem, será porque sou um homem protegido pelos deuses. Mas, está bem, já que tanto insistem, vou dizer o que faria: procuraria o original da peça e nele me inspiraria, embora com mais liberdade.

- O original? - Binet, na sua candura, julgava-se o autor da peça.

- Sim, o original. Trata-se, creio eu, de “O Senhor de Pourceaugnac”, comédia em três actos e em prosa de um tal Molière!

Esta revelação foi um balde de água fria. Binet, atingido no mais profundo do seu amor-próprio, lançou um olhar hostil a André, ao dizer:

- Parece que se prepara para me acusar de plagiato! - e perscrutou o rosto do jovem. - Acusa-me, sim ou não, de ter roubado Molière?

- Aconselho-o, senhor, a roubá-lo!

Desconcertado, Binet endireitou-se na cadeira.

- O quê? Aconselha-me... a mim... António Binet... na minha idade... a roubar Molière?

- É uma ofensa! - disse Climene, indignada.

- Uma ofensa, na verdade! - repetiu Binet. Depois, voltando-se de novo para André:

- Como? Come à minha mesa... dou-lhe a honra de pertencer à minha companhia... e tem a audácia de me aconselhar a cometer um roubo... o mais desprezível de todos os roubos? É intolerável! Ah! Enganou-me, senhor, tanto quanto se enganou a meu respeito! Eu não sou o ladrão, o plagiário, que parece supor! E não suportarei mais tempo a companhia de um indivíduo que me dá semelhantes conselhos!

A sua voz fazia vibrar as paredes da pequena sala. Todos os presentes, de boca aberta, olhavam fixamente André. Este era o único a conservar-se indiferente às rajadas desta misteriosa indignação.

- Já reparou, senhor - disse ele - que injuria a memória de um morto ilustre?

- O que diz? - perguntou Binet, julgando ter ouvido mal. Então, André desenvolveu tranquilamente os seus paradoxos.

- Sim, senhor, insulta a memória de Molière, quando insinua que há baixeza em fazer o que ele próprio fez, o que a maior parte dos grandes escritores nunca hesitou em fazer. Julga que Molière perdia tempo a ter ideias? Julga que os enredos das suas peças não haviam já sido utilizados antes dele? Molière - talvez o tenha esquecido - aproveitava às mãos-cheias o tesouro do teatro italiano... que por sua vez tinha ido buscar a sua inspiração na... Mas, não remontemos ao Dilúvio! Molière adoptava as histórias já dez vezes contadas e modificava-as à sua maneira, dando-lhes o cunho do seu génio. É, precisamente, o que lhe aconselho a fazer. Vocês são uma companhia de improvisadores. Inventem, pois, o diálogo, à medida que a peça se desenrola. Mas como Molière, mergulhem largamente nas fontes!

No fim deste curto discurso, André, de ordinário pálido, tinha, na faces rosetas de febre. Todos os comediantes se sentiam vivamente impressionados. Quanto a Binet, pensava: “Não está mal, o raciocínio! Em todo o caso, eis-me protegido, doravante, por um argumento de peso de que me poderei servir sempre que me acusem de plagiato...” Deixou passar alguns segundos para não ter o ar de se deixar vencer pelo primeiro argumento. Depois disse:

- Se bem o percebi, considera que “O Pai Impiedoso” poderia ser enriquecido por uma... comparação com “O Senhor de Pourceaugnac”, com o qual, reconheço, apresenta certas... semelhanças, aliás superficiais?

- Sim, creio-o - respondeu André -, com a condição, bem entendido, de proceder com cautela. Não esqueça que os tempos mudaram, desde Molière!

Alguns minutos mais tarde, Binet convidava André a ir ao seu quarto. Os dois homens trabalharam juntos toda a noite e toda a manhã seguinte, que era domingo.

Depois do almoço, Binet leu aos actores a nova versão, melhorada e ampliada, de “O Pai Impiedoso”. Achou dever declarar, antes de começar a ler:

- Eis o trabalho que fiz, não sem pena, aliás, com os conselhos do senhor Parvissimus.

Ninguém o acreditou e, no fim da leitura, todos ficaram persuadidos que o verdadeiro autor do novo enredo não era o director da companhia. A história, contada desta maneira, tinha uma vivacidade e um picante incomparáveis.

De resto, quem na assistência conhecia Molière, perceberia que o enredo, embora inspirando-se sempre no “Senhor de Pourceaugnac” , se afastava dele com uma ousadia cheia de desenvoltura. Todos os papéis tinham sido modificados. Scaramouche, na personagem do misterioso Sbrigandini, tinha agora o primeiro lugar. Até o título tinha mudado; já não era “O Pai Impiedoso” mas “Fígaro-Scaramouche”.

Este último pormenor provocou animada discussão entre Binet e o seu colaborador - ou antes entre o antigo e o novo autor do enredo. Mas André venceu.

- É preciso ser do seu tempo, senhor - dissera. - Em Paris não se faz teatro sem Beaumarchais. “Fígaro” é hoje conhecido do mundo inteiro. Roubemos-lhe um pouco da sua glória. Basta-lhe o nome para atrair os espectadores que nem se dariam ao trabalho de lamentar um “Pai Impiedoso”. Pois bem, arranjemos forma de incluir o nome de “Fígaro” no nosso título.

- Mas - repetiu Binet com a voz cada vez mais fraca - o director da companhia não é o senhor, sou eu!

- Na verdade, é o senhor. Entretanto, estou resolvido a impedir que prejudique os seus próprios interesses e os dos seus companheiros. Vejamos, não é natural que Scaramouche tenha o primeiro papel, uma vez que é uma espécie de irmão gémeo de Fígaro? Não acha natural que liguemos, no nosso título, os nomes destes dois alegres companheiros?

O tirânico Binet cedeu. Pensava: “Apesar de tudo, prometendo quinze libras por mês a este rapaz cheio de recursos, não fiz má operação...”

 

               Parvissimus desfaz-se em fumo...

Na tarde de segunda-feira, às quatro horas, a cortina do palco subiu sobre o cenário de “Fígaro-Scaramouche”. Três quartos da sala estavam cheios. Binet atribuiu este sucesso à afluência que a feira atraíra a Guichen e à magnífica parada que a companhia tinha organizado através das ruas da vila. Mas André atribuía-o inteiramente ao título da peça. Bastara o nome mágico de Fígaro para atrair a burguesia local, que ocupava quase todos os lugares mais caros.

Os artistas excederam-se. A assistência seguiu, deliciada, as sonoras intrigas de Scaramouche; e, encantada com a frescura e beleza de Climene, comoveu-se, até chorar, com as infelicidades desta jovem que um destino cruel, durante quatro longos actos, afastara dos braços suplicantes do belo Leandro. Saboreou-se, como convinha, a sábia ignomínia de Pantalonas, a comicidade saltitante de Arlequim e as espantosas ameaças do terrível Rodomonte.

Parecia, pois, assegurado o êxito da companhia em Guichen. Nessa noite beberam-se garrafas de vinho pelos proventos de Binet.

A receita - oito luíses - era quase fabulosa. E, como é natural, Binet nadava em alegria. A todo o momento exprimia a satisfação com gargalhadas que lhe sacudiam a grande barriga. Consentiu até em reconhecer que uma boa parte desta receita se devia a Parvissimus.

No dia seguinte o sucesso, artística e financeiramente, foi ainda maior. Depois do espectáculo, André, que desempenhava sempre as funções de encarregado da bilheteira, entregou ao director a enorme soma de dez luíses e sete libras.

- Fantástico! - gritou Binet. - Nunca julguei que uma miserável vila como Guichen...

- Sim - disse André. - Entretanto, é preciso ter em conta que a feira atraiu gente vinda mesmo de Rennes e Nantes. Amanhã, justamente o último dia da feira, a afluência será ainda maior e os espectadores mais numerosos. Podemos pois contar com uma receita ainda melhor.

- Ainda melhor? Mas, caro amigo, serei muito feliz se ela for apenas igual à desta noite!

- Acredite: não será igual, mas superior à desta noite. E agora, oferece-nos algumas garrafas de vinho?

Foi neste momento que se deu a tragédia. Anunciou-se por uma série de ruídos vindos do exterior. Todos os presentes, inquietos, se voltaram. Pierrot correu à porta. Um homem estava caído, de barriga para baixo, perto da escada, e gemia que fazia dó. Quando se voltou, todos reconheceram Scaramouche, mas um Scaramouche de rosto alterado por atroz sofrimento.

Apertando-se atrás de Pierrot, os comediantes desataram a rir.

- Sempre te disse que trocasses o papel comigo! - gritou Arlequim. - Sabes cair tão bem!

- Imbecil! - respondeu Scaramouche. - É o momento próprio para troçar, agora que pergunto a mim mesmo se não estou todo partido, excepto a coluna vertebral.

- Bem, não está tudo perdido, pois que a tua coluna vertebral está intacta. Vamos, levanta-te, meu velho! - e estendeu-lhe a mão.

Scaramouche aceitou a mão de Arlequim, semivoltou-se, mas deixou-se cair gemendo:

- O meu pé!

Binet aproximou-se. A inquietação secava-lhe a garganta; não, não era a primeira vez que a' sorte lhe pregava estas partidas!...

- O teu pé? Que tens, então? - perguntou em tom azedo.

- Creio que está partido...

- Partido? Estás a brincar! Vamos, levanta-te!

E segurando Scaramouche pelos sovacos, ajudou-o a levantar. Durante alguns segundos, o ferido ficou de pé sobre uma perna, com a outra dobrada debaixo dele. Mas suspirava, gritava de dor e teria certamente caído se o director, emitindo pragas tão grosseiras como variadas, não o segurasse com toda a força.

- Não irás deixar de berrar? - disse. - Cala-te, uma vez por todas!

Depois, para a assistência:

- Uma cadeira, depressa!

Quando trouxeram a cadeira sentou Scaramouche, e, apesar dos seus protestos, descalçou-lhe o sapato e a meia. Depois, segurando o artelho com a mão esquerda, começou, com a direita, a apalpar o pé sem o menor cuidado. Scaramouche, naturalmente, urrava o mais que podia. Então Climene aproximou-se e disse ao pai:

- Não tem coração? Ele está ferido! Porque o tortura assim?!

- Ferido? - disse Binet. - Não vejo nada... nada que justifique estes urros de selvagem. Uma simples contusão, com certeza...

- Se fosse uma simples contusão, ele não gritava desta forma - disse a aia por detrás do ombro de Climene. - Talvez tenha deslocado o artelho...

- É o que receio! - lamuriou Scaramouche. Binet ordenou:

- Levem-no para o quarto e vão procurar um médico.

Um quarto de hora depois, o médico inclinava-se sobre o ferido.

- Nada de grave - disse, por fim. - Uma entorse, eis o que é. Alguns dias de repouso e tudo voltará ao seu lugar.

- Alguns dias de repouso? - gritou Binet. - Quer dizer que, durante alguns dias, ele não poderá andar?

- Claro! Não seria razoável. De resto, ele não poderia dar mais que dois ou três passos.

Binet pagou ao médico e acompanhou-o à porta; depois, pegando numa garrafa de vinho, encheu um copo, esvaziou-o de um trago e deixou-se cair numa cadeira. Suspirou:

- Aqui está o género de aventuras para que pareço ter nascido!

Todos os artistas, silenciosos e consternados, mantinham-se imóveis diante dele.

- Isto ia tão bem! A primeira vez, depois de anos, que ganho dinheiro de verdade... Devia pensar que me iria acontecer alguma... E aqui está, acabou-se... Amanhã, pegamos na trouxa e, ala! O melhor dia da feira... uma receita de quinze luíses pelo menos!

- Pensa não representar amanhã? - perguntou André. Todos os olhares, incluindo o de Binet, se voltaram para ele.

- Como quer que representemos “Fígaro-Scaramouche” sem Scaramouche? - perguntou o director com um ricto de amargura.

- Com certeza! Com certeza! - disse André. - Mas talvez seja possível tornar a distribuir os papéis. Olhe, por exemplo: Polichinelo é um excelente actor.

Polichinelo inclinou-se com graça e trocista:

- Encantado.

- Mas ele tem já um papel! - objectou Binet.

- Um muito pequeno... que Pasquariel poderia bem interpretar.

- E quem interpretaria o papel de Pasquariel?

- Ninguém. Vamos suprimi-lo. E a peça nada sofrerá com isso.

- Que homem! - disse Polichinelo, troçando. - Pensa em tudo!

Mas Binet não tinha ainda consentido...

- Julga na verdade que Polichinelo poderia representar o papel de Scaramouche? - perguntou com expressão incrédula.

- Porque não? É capaz disso!

- Cada vez mais encantado! - disse Polichinelo, inclinando-se outra vez.

- Representar Scaramouche com este físico? - insistiu Binet, mostrando o dorso grosso e as pernas curtas do comediante.

- Pois não temos melhor... - murmurou André.

- Cada vez mais encantado! - disse Polichinelo, inclinando-se, desta vez, até ao chão. - Palavra de honra, corei tanto, que sinto o rosto a arder! Será preciso tomar ar...

- Vai para o diabo! - gritou-lhe Binet.

- Cada vez melhor! - gracejou Polichinelo. Dirigiu-se para a porta.

Mas, no limiar, voltou-se, tomou uma atitude teatral e declarou:

- Meta bem isto na cabeça, Binet: seja em que circunstância for nunca interpretarei o papel de Scaramouche!

E, com grande nobreza, deixou o quarto. Que magnífica saída! André encolheu os ombros, ergueu os braços ao céu e disse, voltando-se para o director:

- Tem tudo estragado! Ora, tratava-se de um negócio que podia bem ser arranjado. Tanto pior! E depois, o senhor é o patrão. E se quer que partamos amanhã, está bem, partiremos!

Por sua vez, saiu do quarto. Binet reflectiu durante momentos. Depois, com um brilho de triunfo no olhar, seguiu o jovem, apanhou-o no corredor e disse-lhe, segurando-o por um braço, num tom dos mais amáveis:

- Vamos dar um passeiozinho juntos, senhor Parvissimus! O primeiro movimento de André foi recusar. Não gostava nada de se mostrar inutilmente na vila... Mas Binet levou-o à força até à porta da estalagem e dali para a rua. Um momento mais tarde os dois companheiros, braço por baixo, braço por cima, passavam diante das barracas da feira instaladas em volta do mercado e dirigiam-se para a ponte.

- Não partiremos amanhã - disse, por fim, o director. - E representaremos amanhã à noite.

- Não creio que Polichinelo mude de opinião.

- Oh! Não se trata de Polichinelo!

- De quem, então?

- De si.

- Muito honrado, senhor Binet. Mas que espera de mim? Havia na atitude, muito doce e muito insinuante de Binet, qualquer coisa que lhe desagradava...

- Espero de si que interprete o papel de Scaramouche!

- Está a brincar!

- O menos possível. Nunca estive tão sério na minha vida.

- Mas eu não sou actor!

- Bem sei. Entretanto, não me disse que podia representar?

- Na ocasião... um pequeno papel, talvez...

- Está bem. Eu, eu proponho-lhe um grande papel... a possibilidade de atingir a glória de repente. Julga que muitos homens tiveram esta sorte?

- É uma sorte que me deixa indiferente, senhor Binet. Se mudássemos de conversa?

Falara com grande frieza, porque lhe parecia sentir, na atitude do interlocutor, uma vaga ameaça...

- Mudaremos de conversa quando eu quiser! - respondeu Binet com voz untuosa, mas um olhar cheio de dureza. - Amanhã à noite fará de Scaramouche. Não só tem a figura que convém ao papel, mas o espírito rápido e mordente. Obterá muito sucesso.

- E se me revelasse... lamentável?

- Não tem importância! - disse Binet, com cinismo. A única vítima do seu fracasso será você mesmo. E eu, nesse momento, terei já a minha receita na algibeira!

- Encantador!

- Faremos quinze luíses amanhã à noite.

- Que pena não ter Scaramouche!

- Mas tenho um, senhor Parvissimus!

Com um brusco movimento, André soltou o braço.

- Começo a achá-lo espantoso! Volto para a estalagem.

- Um momento, senhor Parvissimus! Se me fizer perder os quinze luíses, espero que não quererá procurar-me uma compensação por outros meios?

- Isso não lhe diz respeito, senhor Binet.

- Desiluda-se. Poderia muito bem dizer-lhe respeito, a si também...

E retomando o braço de André:

- Faça favor de me acompanhar até ao fim da rua. Quero mostrar-lhe uma coisa.

André atravessou a rua, ao lado do director. Mas tinha já compreendido o que o companheiro queria dizer. Com efeito, um pequeno edital, colado na porta da esquadra, prometia “uma recompensa de vinte luíses a qualquer pessoa capaz de facilitar a detenção de André Moreau, jurista de Gavrillac, acusado de revolta e procurado pelo tribunal de Rennes”.

- E então, meu amigo? - disse Binet quando André acabou de ler o edital. - Que pensa disto? Que escolhe?

- E se por acaso estiver enganado? - perguntou André, impassível.

- Não o creio. De resto, cometeu uma asneira, meu caro. Você disse há dias, no prado do senhor de La Tour, que era jurista. Ora, é pouco provável que dois juristas se escondam, neste momento, na mesma região... Como vê, não é preciso ser muito perspicaz... Então, André Moureau, jurista de Gavrillac, que decide?

- Vamos discutindo, enquanto voltamos devagar para a estalagem.

- Não percebo o que quer discutir...

- Há dois ou três pontos que gostaria de esclarecer. Venha, senhor Binet, venha.

- Muito bem.

Deram meia volta. Binet, pronto para tudo, segurava sempre o braço do jovem, sem se dar conta da inutilidade desta precaução. André, de resto, não era dessas pessoas que esbanjam energia e sabia bem que, fisicamente, o companheiro era mais forte. Disse com voz suave:

- Se me inclino perante a sedução da sua eloquência, que garantia tenho amanhã, depois do espectáculo, que me não venderá por vinte luíses?

- Mas, senhor, terá a minha palavra!

André desatou a rir.

Na escuridão, não viu que o rosto do director se tornara mais vermelho que de costume. Alguns segundos passaram, depois do que Binet murmurou:

- No fim de contas, talvez tenha razão em duvidar da minha palavra. Que garantia quer?

- É a si que pertence dizer.

- Já afirmei que o não trairei.

- Até ao ponto em que achar bom não o fazer!

- A si cabe manter-me nesse ponto, senhor. Peça a Deus que o nosso êxito seja ainda maior amanhã do que hoje. De resto, é a si que o devemos. Reconheço-o de boa vontade...

- Diante de mim, sim! Mas em público!... Binet não pegou na deixa e respondeu:

- O que fez para nós com “Fígaro-Scaramouche” pode bem fazê-lo com outra peça e noutra localidade. Eis porque tenho que o guardar. Não é garantia suficiente?

- Entretanto, estava pronto, ainda há pouco, a vender-me por vinte luíses...

- Porque me tinha enfurecido, recusando um serviço fácil. Acredita que se eu fosse um malandro teria esperado até hoje para o trair?

- Se o deixar, senhor Binet, não tarda a pedir-me desculpa!

- E você não perde nenhuma ocasião de troçar de mim! Se não toma cautela, o seu espírito cáustico acabará por lhe causar dissabores. Mas eis-nos chegados à estalagem e não decidimos ainda.

André olhou-o longamente. Por fim, murmurou:

- É preciso que eu ceda... O senhor é tão convincente!...

O director deu-lhe uma valente pancada nas costas.

- Belo. Não o lamentará. E, se bem conheço o teatro, posso afirmar-lhe que acaba de tomar a maior decisão da sua vida! Amanhã à noite me agradecerá.

André encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta da estalagem, mas Binet chamou-o:

- Senhor Parvissimus!

André voltou-se. O luar desenhava os ombros largos e a cabeça grande do director. Este estendeu-lhe a mão:

- Nada de ódios, não é verdade? O ódio é uma coisa que detesto. Vamos, apertemos a mão e esqueçamos tudo.

André olhou-o com desgosto. Mas quando percebeu que a cólera começava a ferver nele, dominou-se conforme pôde; resolveu não perder o sangue-frio diante deste desprezível mestre-cantor. Sorrindo, apertou-lhe a mão.

- Não há ódio? - insistiu Binet.

- Mas, não, claro; não há ódio - respondeu o jovem.

 

                             Nasce Scaramouche

Todo vestido de preto, desde o chapéu aos sapatos com pompons, o rosto branco de farinha, um fino bigode retorcido, pequena espada ao lado e guitarra às costas, Scaramouche contemplava-se no espelho; e, como convinha ao papel, sentia-se de bom humor.

Ouvindo Binet chamá-lo, desceu ao rés-do-chão e encontrou toda a companhia reunida no corredor da estalagem. Dez minutos mais tarde, depois das três pancadas, a cortina ergueu-se sobre um cenário de cores desbotadas, semijardim, semifloresta, onde Climene esperava, com ansiedade, a chegada de Leandro. Nos bastidores, o melancólico amoroso aguardava, em companhia de Scaramouche, que devia entrar a seguir a ele.

Para André, estes últimos momentos foram atrozes. Várias vezes tentou, mas sempre em vão, lembrar-se do primeiro acto de que era o principal autor. Com o rosto coberto de suor, chegou-se à parede onde, sob uma lanterna de luz vacilante, estava afixado um resumo da peça. Não tinha acabado ainda a leitura, quando uma vigorosa mão lhe agarrou o braço e o tirou dos bastidores; Binet, vestido de Pantalonas, tinha o rosto convulso pela cólera. Soprou-lhe, com voz furiosa:

- É você, energúmeno! Já é a terceira vez que Climene repete a mesma deixa!

Antes que tivesse percebido, o que se passava, Scaramouche, empurrado brutalmente pelo director, achou-se no palco, onde ficou imóvel, cego pelas velas e lâmpadas da ribalta. Tinha o ar tão estúpido que os espectadores largaram a rir.

Pelo canto do olho, Climene espiava-o e gozava já a sua humilhação. Leandro examinava-o, com tristeza. Quanto a Binet, sempre nos bastidores, grunhia: “Santo nome de Deus! O que se passará quando descobrirem que ele não representa?”

Mas os espectadores não descobriram absolutamente nada. Scaramouche retomou o sangue-frio. Então, para fazer ver aos espectadores que o seu receio era inspirado por uma personagem colocada fora de cena, lançou um olhar aos bastidores, foi esconder-se por detrás de um arbusto de tela pintada, e logo que os risos cessaram, dirigiu-se a Climene: “Perdoe-me, senhora bela, esta aparição brusca! A verdade é que eu não sou o mesmo depois da minha questão com o conde Almaviva. Por tudo e por nada, o meu coração bate desordenadamente. Eis o que lhe queria dizer. Há instantes, na extremidade do carreiro que vê lá em baixo, dei de cara com um fidalgo de meia-idade, que segurava na mão um pesado cacete. Pensei - com que angústia! - que podia ser o seu pai e que, sem dúvida, está já ao corrente do pequeno estratagema que organizámos para a casar secretamente e com todo o sossego. Creio que foi à vista desse maldito cacete que me veio à cabeça esta ideia. Não que eu seja, de natural, medroso. Na verdade, não tenho medo de nada! Mas não pude deixar de pensar: - Se é o pai e me fende o crânio, tudo acabou! Nem estratagema, nem casamento! Porque, sem mim, que seria de vós, meus pobres filhos?”

Nova onda de gargalhadas saudou esta tirada. Os espectadores estavam ainda mais satisfeitos porque André, sempre no receio de ser reconhecido, não só tinha pintado o rosto mas também modificado a voz. Esforçava-se por imitar a de um estudante espanhol que conhecera em Paris, o qual, embora falasse o francês na perfeição, tinha conservado um forte sotaque de além-Pirenéus.

Binet, tranquilizado pelos risos que sacudiam a sala, não deixou de notar este pormenor.

- “Bom sangue! - murmurou. - Este acento espanhol é um achado!”

Parecia-lhe fantástico como este actor improvisado, atrapalhado à entrada em cena, recobrasse o sangue-frio tão prontamente.

No final do primeiro acto, Scaramouche e Climene tiveram o favor do público; várias vezes vieram agradecer diante da cortina. Quando chegaram a casa, Binet pousou uma das mãos no ombro de Scaramouche e olhou-o com um sorriso untuoso.

- Querido filho! Tenho grandes projectos para si... para nós, naturalmente. Amanhã estaremos em Maure onde, no fim da próxima semana, haverá uma feira. Depois, segunda-feira, tentaremos a sorte em Pipriac... Depois de Pipriac... bem, veremos... Ah! Meu Deus! Parece-me que chegou o momento de realizar o sonho da minha vida!

E mudando de tom:

- Devemos ter feito mais de quinze luíses esta noite. Onde está esse marau de Cordemais?

Cordemais era o pobre diabo - o primeiro Scaramouche - que tão desajeitadamente tinha torcido o tornozelo.

- Procurem-no - continuou o director. - Depois voltamos para a estalagem e esvaziaremos umas boas garrafas!

Mas parecia impossível encontrar Cordemais. Os artistas não o tinham visto depois de finda a representação. O director começava a estar inquieto. Por fim, empalideceu sob a maquilhagem quando Polichinelo lhe trouxe a bengala de Cordemais, encontrada à entrada da sala.

- Vejamos - gritou -, ele não pode andar sem bengala! Que se passou?

- Talvez tenha voltado à estalagem - sugeriu alguém.

- Sem a bengala? Impossível!

Quando se convenceu que Cordemais não estava na sala, tomou o caminho da estalagem, seguido de toda a companhia. Ali, vendo a estalajadeira, perguntou-lhe:

- Viu Cordemais?

- Sim, há cerca de meia hora.

- Onde está ele?

- Saiu imediatamente. Veio buscar o saco.

- O saco! - repetiu Binet com voz estrangulada. - Há quanto tempo?

- Meia hora, já lhe disse. Alguns minutos antes da passagem da diligência para Rennes.

- A diligência para Rennes! Mas... mas., ele podia então andar?

- Andar? Mas, bom senhor, corria como um coelho, quando deixou a estalagem! Eu própria pensei: “É estranho! Depois da queda que deu ontem na escada...”

O director tinha-se atirado para uma cadeira e, com a cabeça nas mãos, gemia surdamente.

- Troçou de nós! - gritou Climene. - A queda na escada... pura aldrabice! Na verdade, tinha projectado roubar-nos... roubar a receita!

- Uma receita de quinze, talvez dezasseis luíses! - disse Binet. - Ah, o malandro, o pulha! Fazer-me isto, a mim que sempre o tratei como filho... e neste momento!

Os artistas baixaram a cabeça. Cada um pensava: “De quanto, pela falta de Cordemais, o meu pobre salário será diminuído?” Mas, neste momento, uma grande gargalhada partiu de um dos cantos da sala. Binet ergueu a cabeça. Tinha os olhos injectados de sangue. Berrou:

- Quem riu? Quem teve a audácia de troçar da minha desgraça?

André, sempre vestido de Scaramouche, avançou uns passos. Ria ainda.

- Ah! É você! Você sabe bem que, se eu quiser, terei um meio de me reembolsar da perda que acabo de sofrer...

- Estúpido! Elefante com cérebro de pássaro! - cortou André. - Não vê que se Cordemais partiu levando os seus quinze luíses, lhe deixou um tesouro?

- Um tesouro?

- Sim... uma ideia de peça! Vejo-a, como se a tivesse já debaixo dos olhos! Quanto ao título, iremos, em parte, buscá-lo a Molière. Chamá-la-emos: “As Ilusões de Scaramouche”; e se não deixarmos Maure e Pipriac, abandonando aos médicos a maioria dos espectadores doentes de rir, não quero mais representar sob a direcção do estúpido Pantalonas!

Polichinelo bateu palmas.

- Soberbo! - gritou. - Arrancou a fortuna à desgraça, transformando a perda em benefício. Eis o que se chama ter génio!

André agradeceu:

- Polichinelo, és um verdadeiro irmão! Gosto das pessoas que sabem reconhecer-me mérito. Se Pantalonas tivesse, pelo menos, metade do teu espírito, beberíamos Borgonha esta noite... apesar da traição de Cordemais!

- Borgonha?... - rugiu o director.

Sem lhe dar tempo de prosseguir, Arlequim gritou:

- Eh! Estalajadeira! Ouviu? O senhor Binet pediu Borgonha!

- Não pedi nada!

- Sim! Sim! De resto, todos ouviram! Você também, estalajadeira, não é verdade?

Enquanto os artistas faziam coro, André, sorridente, batia no ombro de Binet.

- Coragem, homem, um pouco de coragem! Não disse estar prestes a realizar o sonho da sua vida? Não temos, daqui em diante, o meio de conquistar fortuna? Depressa, estalajadeira, dez garrafas de Borgonha! Beberemos à saúde de “As Ilusões de Scaramouche!”

 

                                   Climene

Na semana seguinte, a companhia de Binet interpretou, em Maure, “As Ilusões de Scaramouche”. Teve grande êxito. Na verdade, a nova peça era superior à anterior pela engenhosidade e pelas peripécias, e André tinha desempenhado o primeiro papel e encontrado maneira de se mostrar mais brilhante do que em

Guichen.

O trabalho não lhe faltava, graças a Deus. As representações de Pipriac davam tão bons resultados materiais que ele julgou poder sugerir a Binet:

- Porque é que, na próxima semana, depois de Fougeray, não tentaremos a sorte em Redon, dessa vez numa cidade e num teatro verdadeiro?

Binet mostrou-se, primeiro, espantado com a perspectiva. Um teatro!... Mas os artistas nunca tinham conhecido espectáculos senão ao ar livre ou ao fraco abrigo das feiras e mercados!...Pediu tempo para reflectir. Mas, instado por André e levado, também, pela ambição, acabou por ceder.

Por seu lado, André começava a apaixonar-se pela sua nova profissão. Já não duvidava que tinha talento, como actor e como autor. Chegava mesmo - era tão jovem! - a deixar-se embalar por sonhos de glória...

Mas nem por isso perdia o espírito prático.

- Já percebeu, com certeza - disse uma noite a Binet -, que tenho o poder de lhe abrir as portas da fortuna... ou de as manter fechadas?

Estavam sentados no salão da estalagem de Pipriac, diante de uma garrafa de Borgonha. Acabavam de dar a quarta e última representação de “As Ilusões de Scaramouche”, e os resultados nesta localidade tinham sido tão bons como em Maure e Guichen.

- Sim, meu bom Scaramouche, percebo - respondeu Binet. - E agora, onde quer chegar?

- A isto simplesmente: por quinze libras mensais, não posso desperdiçar dons tão excepcionais como os meus!

- Não ignora, no entanto, que, com uma palavra apenas, eu posso obrigá-lo a isso! - respondeu o director.

- Não seja estúpido! Sabe bem que o não pode!

Binet voltou-se, como se lhe tivessem batido. Não era hábito ser assim tratado pelos seus comediantes. André continuou com ar indiferente:

- Pois bem, olhe, eu mudo de opinião. Faça o que quiser. Vá dizer aos agentes que eu sou André Moreau. Mas, previno-o, não se falará mais em ir a Redon, nem representar, pela primeira vez na porca da vida, num teatro de verdade! Sem mim, nada poderá fazer!

- Que ardor! Que animosidade! - gemeu Binet. - E porquê, grande Deus? Quando fizemos as nossas combinaçõezinhas, eu estava a cem léguas de duvidar que você me seria verdadeiramente útil. E, para provar-lhe que não sou nenhum avarento, mas um homem generoso, dou-lhe, a partir de hoje, trinta libras por mês.

- Muito bem! Mas como quero que seja tão ambicioso como generoso, ouça os meus projectos: depois de Redon, iremos a Nantes. Ora, Nantes, como sabe, quer dizer o Teatro Feydeau.

Binet, que se preparava para levar o copo à boca, engasgou-se. O Teatro Feydeau. O Teatro Feydeau era a comédia-francesa de província, onde o grande Fleury dera os seus primeiros passos, diante do difícil público de França!... O director, que sentia já palpitações quando pensava em Redon, experimentou verdadeira angústia com a perspectiva de levar os seus artistas a uma cidade tão importante como Nantes...

- Porque não Paris e a Comédia-Francesa? - perguntou Binet, em tom sarcástico, quando retomou o fôlego.

- Não misture as etapas - respondeu André, sem pestanejar. •- Falaremos de Paris mais tarde.

E, à guisa de conclusão, acrescentou com o mesmo ar indiferente:

- Por outro lado, peço-lhe que responda sim ou não à proposta que vou fazer-lhe.

- Que proposta?

- De me aceitar como sócio, quer dizer, partilhar comigo os lucros dos espectáculos.

De vermelho que era habitualmete, Binet tornou-se pálido como um cadáver. Por momentos, fitou André. Depois explodiu:

- É preciso que esteja louco para me fazer uma proposta tão monstruosa!

No entanto, após uma longa e por vezes violenta discussão, o negócio foi concluído e anunciado, em reunião, a todos os artistas. Como não podia deixar de ser, houve ciúme e rancores. Mas um e outros não tardaram a dissipar-se, porque todos compreendiam que as novas disposições se traduziriam por um aumento do salário.

Houve uma única nuvem: a animosidade de Climene. A jovem discutiu tão violentamente com o pai, quando este aceitou tomar André por sócio, que Binet perdendo a paciência, a chamou à razão com um sopapo bem aplicado. No seu íntimo, Climene inscreveu este sopapo no débito de André e jurou tirar dele grossa vingança. Mas não conseguia encontrar ocasião para isso.

Com efeito, Scaramouche andava muito ocupado. Durante a estada da companhia em Fougeray, isto é, durante uma semana, apenas o via nos espectáculos. Em Redon, a mesma história! Continuamente com o chapéu desabado sobre os olhos - porque temia sempre ser reconhecido -- rápido como o relâmpago, infatigável, ele corria da estalagem para o teatro e deste para aquela.

Nos primeiros dias, a experiência de Redon pareceu justificar-se plenamente. Encorajado com este resultado, André, ao longo do mês que a companhia passou nesta cidadezinha tão animada, trabalhou de manhã à noite e, às vezes, pela noite fora. O momento tinha sido bem escolhido, porque o mercado das castanhas acabava de abrir e todas as tardes o teatrinho se enchia até abarrotar. A fama da companhia começava a estender-se, atraindo os espectadores, que não hesitavam em vir de vilas tão afastadas como Saint-Perrieux, Allavie e Saint-Nicolas. Não querendo ver fraquejar o negócio, André todas as semanas preparava uma boa peça. Escreveu, assim, três, que se juntaram às duas: “Fígaro-Scaramouche” e “As Ilusões de Scaramouche”, que já tinha escrito para a companhia. As três novas peças chamavam-se: “O Casamento de Pantalonas”, “O Tímido Amoroso” e “O Capitão Terrível”. Sobretudo a última, obteve um êxito retumbante. Inspirada no “Glorioso Milles”, de Plauto, implicava dois papéis principais: um para Rodomonte, o Mata-Mouros por excelência, e outro para Scaramouche, o seu falso tenente.

Nunca André trabalhou tanto! Percebia, com surpresa, que possuía uma força, uma energia, um entusiasmo e um bom humor inesgotáveis!

Entretanto, bem percebia que este bom humor era apenas aparente. Claro que se apaixonara pela sua nova profissão. Mas quando, à noite, se encontrava sozinho no quarto, chegava às vezes a sentir-se invadido por um imenso desencorajamento. Porque partilhava ele tão mal, apesar das aparências, a alegria descuidada dos companheiros? No melhor do trabalho, a pena caía-lhe dos dedos e o olhar perdia-se-lhe no vácuo. Dois meses tinham já passado desde que deixara Gavrillac.

Todas as cartas para Aline tinham ficado sem resposta. Porque lhe não dava ela sinal de vida? Que fazia? Bem se esforçava ele por imaginar. Via-a passeando no jardim do castelo, sentada à mesa com o senhor de Kercadiou, aquecendo-se, sonhadora, diante da chaminé da biblioteca ou recebendo visitas no terraço - o senhor de La Tour, quem sabe!

Todavia, até esta imagem aparecia já menos nítida. André tinha dificuldade em recordar os traços de Aline. Sem que o percebesse, o tempo tinha começado, na sua memória, um trabalho de desagregação. E depois, dúvidas cada vez mais prementes se lhe introduziam no espírito. Obstáculos que outrora julgara poder vencer com facilidade pareciam-lhe agora intransponíveis. Havia horas de cansaço em que pensava: “Nunca será minha mulher. Um aventureiro não tem o direito de casar com uma aristocrata. Não será melhor seguirmos separados os nossos destinos?”

Uma tarde, depois da representação, quando os outros artistas tinham já voltado para a estalagem, Climene postou-se diante de André e perguntou-lhe à queima-roupa:

- Quer dizer-me o que lhe fiz?

- O que me fez? - André arregalou os olhos. Ela teve um gesto de impaciência.

- Porque me detesta?

- Eu, detestá-la? - disse ironicamente. - Nunca detestei ninguém nem mesmo os meus inimigos! O ódio é um sentimento tão estúpido!

- É bela, a resignação cristã!

- Odiá-la! - repetiu no mesmo tom irónico. - A si, sobretudo! A si, que acho encantadora! Mas, menina, se soubesse como invejo Leandro! Até pensei em fazer-lhe representar o meu papel e tomar eu o dele...

- Não seria, parece-me, uma iniciativa muito feliz.

- Tomá-la-ia, se não tivesse receio de estragar a qualidade dos nossos espectáculos... e se me sentisse animado pela mesma inspiração de Leandro...

- Que inspiração?

- A que o mantém, quando lhe dá a réplica!

Durante segundos ela olhou-o com atenção. Depois, bruscamente, lançou-lhe à cara:

- Troça de mim!

E voltando as costas, afastou-se rapidamente. Na verdade, nada havia a esperar deste Scaramouche! Não tinha a mínima sensibilidade! Seria mesmo um homem?

Cinco minutos depois, quando quis sair da sala, encontrou André à porta.

- Esperava-a, menina. Permite que a acompanhe à estalagem?

- Que galanteria! Que delicadeza!

- Talvez prefira ir só?

- Ah!, senhor Scaramouche, como recusar um tão excepcional prazer? Claro, vamos ambos para o mesmo lado e as ruas são de toda a gente. Mas a honra que me dá é muito grande para que eu pense, um só instante, em recusá-la...

O rosto fino, de expressão gaiata, parecia toldado por um véu de dignidade. André não pôde deixar de rir.

Lado a lado, conversando alegremente, andavam com passo rápido; a atmosfera desse dia de Inverno estava gelada. Mas, nessa noite, após o jantar, Climene encontrou-se com André no salão do primeiro andar que Binet tinha alugado para uso exclusivo dos seus artistas, na hospedaria.

Quando a jovem se levantou para se retirar, André fez o mesmo, pegou na vela e estendeu a mão direita; Climene pousou nela os dedos longos.

- Boa noite, Scaramouche - disse, com acento afectuoso. André levou aos lábios a mão da jovem. Neste momento a porta abriu-se e entrou Binet. André, tranquilamente, voltou-lhe as costas e disse a Climene com um sorriso, ao entregar-lhe a vela:

- Deixe-nos, Climene. Quero conversar com seu pai.

A jovem fugiu com passo ligeiro. André fechou a porta e, de novo, enfrentou Binet. A que móbil obedecia o jovem? Cedeu à estranha complexidade que, por vezes, o fazia deitar-se às cegas contra certos obstáculos? Esperaria, desta maneira, cicatrizar, de uma vez para sempre, a profunda ferida que o silêncio de Aline lhe causara, e acalmar a raiva que lhe devorava o coração desde que via desfazerem-se em fumo, uma a uma, as suas mais queridas esperanças? Quis, simplesmente, dar-se ao prazer de uma grande mistificação?

Foi ele ainda quem se dirigiu ao sócio, nestes termos:

- Caro senhor Binet, creio inútil esconder-lhe que uma forte inclinação nos prende, a Climene e a mim. Parece-me que o fim normal desta inclinação deveria ser, num futuro mais ou menos próximo... Mas, decerto já compreendeu, não?

Binet, cujo rosto corava gradualmente, pousou em André as pupilas chamejantes. A sua irritação era tanto mais violenta quanto conhecia bem o valor do adversário e sabia, de antemão, estar vencido.

Por fim, deu um formidável soco no braço da cadeira e gritou com voz forte:

- Você é um pirata; um autêntico pirata! Primeiro, roubou-me metade dos lucros e agora quer tirar-me a filha! Que eu seja maldito se a der de boa vontade a um farsante como você... um bandido para quem o carrasco já preparou a corda!

 

                           A conquista de Nantes

Um mês depois, a 2 de Fevereiro, dia da Purificação, chegava a Nantes a companhia de Binet.

Na noite da primeira representação no Teatro Feydeau, quando a cortina se ergueu para o primeiro acto de “As Ilusões de Scaramouche”, Binet, esperando o pior e trémulo de medo, não saía dos bastidores. A sala estava quase cheia; os espectadores, que exprimiam pela atitude uma grande curiosidade, testemunhavam que André tinha plenamente atingido o alvo.

Como acontecia muitas vezes na comédia de improviso, nada já restava do enredo original de “As Ilusões de Scaramouche”. A cortina, ao erguer-se, deixou ver Polichinelo, o sombrio marido de Climene, pedir a Colombina que o informasse de tudo o que fazia a patroa. Mas Colombina depressa lhe fez compreender que, embora gostasse de brincar, tinha horror aos homens feios e, sobretudo, corcundas. Então, o terrível Polichinelo passou da doçura à ameaça; depois, à corrupção; porém, nada conseguiu, senão depois de esvaziar os bolsos na mão da insaciável criada...

Quando Polichinelo saiu pela porta que dava para o jardim, Scaramouche saltou pela janela do pátio. Em geral, esta aparição provocava a hilaridade das salas, nas vilas. Mas, desta vez, não foi saudado por riso algum. E, por estranho que isto pareça, era exactamente o que André previra. Nessa manhã mesmo, na cama, tinha decidido modificar completamente a sua personalidade, suprimir as palhaçadas do costume e todos os efeitos grosseiros que exerciam uma acção quase infalível nos camponeses. Só desejava o êxito pela subtileza. E, para isso, manteria um jogo comedido e digno; mostrar-se-ia sóbrio, mesmo na mentira; lançaria as críticas aceradas com um relevo cheio de desenvoltura. Desta maneira, os espectadores levariam mais tempo, sem dúvida, a compreender e descobrir o seu valor, mas, no fim de contas, melhor o apreciariam.

Tomada esta decisão, apresentou-se, pois, como um amigo... dedicado do pobre Leandro. Com este título, pediu novas de Climene e aproveitou esta circunstância para subtrair a Colom-bina, com desarmante cinismo, entre outras informações sobre as economias de Pantalonas, um pouco do dinheiro que Polichinelo lhe tinha dado. Por outro lado, usando de audácia, tinha abandonado o velho hábito negro de Scaramouche por um brilhante fato - calça e casaca brancas - em que mandara pôr bandas vermelhas, e substituído a tradicional boina negra por outra branca como o fato e enfeitada, do lado esquerdo, com um tufo de plumas. Quanto à guitarra, julgou-a inútil.

Binet, depois de ter esperado em vão a formidável tempestade de risos que geralmente saudava a aparição de Scaramouche, percebeu que havia algo de novo na atitude do actor. Conservava, é certo, o sotaque espanhol, mas parecia ter perdido aquela impetuosidade à qual devia, em parte, o seu ascendente sobre os espectadores...

- Tudo está perdido! - gemeu Binet, torcendo as mãos com desespero. - Este homem arruinou-nos! É bem feito para mim! Conduzi-me como um imbecil! Nunca lhe devia ter permitido que me tirasse a autoridade!

Enganava-se redondamente. De resto, não demorou a reconhecer o erro. Quando ele próprio entrou em cena, verificou que o público não só estava atento, mas seguia o desenrolar dos acontecimentos com um sorriso de aprovação. Uma trovoada de aplausos saudou o final do primeiro acto.

Então pensou: “Pelo menos podemos estar certos de que nos deixarão partir sem nos meterem em apuros...”

Quando a cortina desceu sobre o último acto e os espectadores aclamaram longamente Scaramouche e os companheiros, a companhia reuniu-se no salão do teatro. Polichinelo tomou a palavra para agradecer a André:

- Pelo seu talento e energia, quando não passávamos de verdadeiros saltimbancos, fez de nós, em poucas semanas, actores de primeira ordem. Estamos prontos a segui-lo não importa aonde e, sob a sua direcção, a conquistar todo o mundo!

Binet, ferido por se ver relegado para segundo plano, quis, entretanto, salvar as aparências. Pronunciou, por sua vez, um breve discurso de felicitações dirigido ao seu “querido sócio”. Mas não deixou de acentuar que, sem ele, Scaramouche nada poderia fazer... Ninguém o coadjuvou na manobra e, o próprio Binet, vendo aparecer sorrisos escarninhos nos lábios dos ouvintes, começou a sentir, em relação a André, um sentimento que não era de desconfiança e antipatia, mas se assemelhava já a ódio...

Nessa noite houve ruidosa e alegre reunião no primeiro andar da estalagem do cais da Fossa, onde a companhia desembarcara. Nesta mesma estalagem, três meses antes, André tinha tomado uma refeição solitária, antes de levar a população de Nantes à revolta. Quanto caminho percorrido nesses três meses! Quantas aventuras! Partilhando sempre da alegria geral, André pensava: “Quis o acaso que eu desse à minha vida uma brusca reviravolta. Não cedamos aos encantos do que lá vai. O meu caminho está agora traçado! Voltar atrás seria um crime contra mim próprio e contra esta gente que em mim confia. Quanto a Climene...”

Continuava a achá-la encantadora e espirituosa. Mas amava-a? O que considerava afectuosa camaradagem com uma actriz, acima de tudo preocupada com a arte, poderia acabar num casamento? Haveria, nela, com que preencher o grande vácuo que Aline, ao desaparecer da sua vida, lhe deixara no coração?

Na noite seguinte, a companhia interpretou “O Tímido Amoroso”, perante uma sala à cunha, prova de que a reputação estava já feita. Na quarta-feira representou, com igual sucesso, “Fígaro-Scaramouche”. Na manhã de sexta-feira, o Correio de Nantes publicava um artigo ditirâmbico a duas colunas, que punha nos cocurutos da Lua os artistas improvisados em detrimento dos actores vulgares, “os papagaios que não fazem mais que repetir a lição”...

Ao sentar-se na sala de jantar para tomar o pequeno-almoço, André encontrou o jornal em cima da mesa. Não teve necessidade de ler o artigo... de que era autor. Contentou-se em olhar o título, esboçando um sorriso discreto.

Quando Binet e Climene apareceram, agitou o Correio de Nantes:

- Está resolvido! Ficamos em Nantes até à Páscoa!

- Sério? - perguntou Binet, azedo.

- Leia o senhor mesmo!

Com expressão desagradável, Binet leu. Depois, em silêncio, colocou o jornal em cima da mesa e começou a comer.

- Tinha razão? - perguntou André, surpreendido com a atitude do sócio.

- A propósito de quê?

- Da vinda a Nantes, que diabo!

- Se não fosse da sua opinião, nunca teríamos vindo a esta cidade! - respondeu Binet, metendo de novo o nariz no prato. André, apesar do seu espanto, mudou de conversa.

Depois da refeição, foi com Climene tomar um pouco de ar para o cais, se bem que gostasse pouco de passear nesta cidade onde a sua acção revolucionária certamente não fora esquecida e onde se arriscava, continuamente, a ser reconhecido. Quando os dois jovens saíam da estalagem, Colombina juntou-se-lhes; nem por sombras desconfiaria que eles poderiam querer estar sós!...

Mas o equilíbrio restabeleceu-se sem dificuldade porque, cem passos andados, Arlequim, correndo, os alcançou e ofereceu o braço a Colombina.

André afastou Climene para o lado e disse-lhe, quando viu que não podia ser ouvido pelos dois maçadores:

- O seu pai trata-me de uma forma estranha. Mostra-me mesmo uma espécie de hostilidade. Porquê?

- Tem cada ideia! Meu pai está-lhe reconhecido, como todos nós, de resto.

Mas André já não a ouvia. Acabava de descobrir, entre as carruagens que formigavam no cais, uma que avançava na direcção deles, puxada por dois magníficos cavalos baios.

Dentro, uma jovem, de casaco de peles, inclinava-se para a frente; de lábios entreabertos, olhava fixamente André. No mesmo momento o jovem deteve-se, como que petrificado pelo espanto. Surpreendida no meio da frase, Climene voltou-se para o companheiro e perguntou-lhe, puxando-o pela manga:

- Que há Scaramouche?

André não respondeu. A carruagem acabava de parar muito perto deles. Com a sua bonita ocupante, a porta onde brilhava um escudo dourado e o cocheiro de meias brancas que saltou imediatamente, dir-se-ia o carro da Gata Borralheira! A desconhecida, de faces rosadas e pupilas extraordinariamente brilhantes, inclinou-se ainda um pouco e gritou, estendendo a Scaramouche uma das mãos enluvadas:

- André!

Este, quase maquinalmente, pegou-lhe na mão e, erguendo a cabeça, ao mesmo tempo gritava, cheio de alegria:

- Aline!

 

                                     O sonho

- A porta! - ordenou Aline, dirigindo-se ao cocheiro. Depois, voltando-se para André:

- Sobe depressa para o pé de mim!

- Um momento, Aline!

Arlequim e Colombina acabavam de se juntar a Climene e, todos os três, assistiam de boca aberta a esta cena para eles incompreensível.

- Dá licença, Climene? - disse André. - Felizmente, não está sozinha. Arlequim e Colombina far-lhe-ão companhia durante o passeio. Encontrá-la-ei ao almoço. Até já.

E, sem mesmo esperar resposta, saltou para a carruagem. O cocheiro fechou a porta, voltou ao seu lugar e fustigou os cavalos. Um instante mais e a elegante carruagem afastou-se a trote, ao longo do cais.

Aline, de traços contraídos, olhava André com ar grave. Este, por seu turno, tinha a impressão de que a vida, sob o impulso de incompreensível destino, acabava de chegar a uma nova encruzilhada. ..

- Pareces ter escolhido companheiros bem estranhos, André! - disse por fim a jovem. - Mas talvez me tenha enganado. A... pessoa com quem estavas não é, com certeza, a menina Binet, do Teatro Feydeau!...

- Não te enganaste, Aline - a voz saiu-lhe estrangulada pela emoção. - Mas não sabia que a menina Binet gozava já de tão grande reputação!

Aline encolheu os ombros.

- Como não havia de reconhecê-la? Ontem à noite estive no Teatro Feydeau...

- Não te vi.

- Tu também estavas?

- Com certeza!

Mas, depressa percebendo a sua precipitação, mudou de tom.

- Sim, estava...

Subitamente, tão grande era o receio de se ver forçado a fornecer pormenores sobre a sua nova vida, aparentou uma expressão inpenetrável.

- Percebo - disse Aline, de lábios contraídos.

- Que queres dizer?

- Que assistias a essa representação apenas para admirar a menina Binet!... Que decepção para mim, André! Oh! Eu sei, sou estúpida! Que queres? A meus olhos eras uma espécie de idealista...

- Que engano! - André tinha crispado o rosto num ricto amargo.

- Sim, vejo-o agora. Mas que queres? Mostravas propósitos tão elevados! Eras filósofo, poeta... Sem o querer, enganaste-me. E estou até espantada que, com semelhantes dons de actor, não tenhas entrado para a companhia da menina Binet.

- Mas... foi o que fiz - respondeu André, pensando: “Para que serve continuar a jogar ao gato e ao rato?”

O rosto da jovem exprimiu uma incredulidade cheia de angústia.

- Não, não é possível! - gritou.

- Há uma coisa que ignoras... com certeza. É que no início me vi obrigado a escolher entre o palco e a forca. Ora, calcula que tive a fraqueza de escolher o palco! Como vês, não passo de um revolucionário em botão. Julguei a minha vida mais preciosa do que as minhas ideias. E agora, queres que mande parar o carro e te livre da minha desprezível pessoa; ou preferes que te conte como tudo se passou?

Ela pareceu hesitar.

Por fim disse:

- Conta. Depois veremos...

Ele relatou então o encontro com a companhia Binet.

- Meu pobre André! - disse Aline já em tom mais indulgente. - Porque me não elucidaste logo?

- - Nem me deste tempo. E depois - acrescentou, meio sério meio irónico -, não queria defrontar o teu desprezo. Quando se caiu tão baixo como eu...

- Parece que te teria julgado menos severamente se tivesse sabido mais cedo... se estivesse preparada... Mas quando penso que, durante quatro meses, nem mesmo te dignaste dar-me notícias!

- Não te dei notícias? - repetiu André, abrindo os olhos. - Mas, Aline, escrevi-te várias vezes de Guichen, de Maure, de Pipriac... - olhava a jovem com uma expressão espantada. - Não recebeste, então, as minhas cartas?

- Não - respondeu Aline, mordendo os lábios.

- Juro que te escrevi... três vezes... quatro vezes... nem sei! Acreditas-me, espero?

Ela não respondeu.

- Estás certa de que as minhas cartas não foram apanhadas por ninguém, em Gavrillac?

- Por quem poderiam ser apanhadas? É Benoít quem recebe o meu correio e mo remete directamente...

Seguiu-se um longo silêncio. “Não, decididamente, não podia ser Benoít. Então quem? - pensava André de cabeça baixa. - Se as minhas cartas não foram devolvidas, é porque foram interceptadas à partida. E este alguém... Climene? Não, impossível! Aliás, não vejo porque não... Binet? Mas, naturalmente, é ele! Seguindo as suas instruções conduzi-me como um imbecil. Deveria desconfiar... um homem que me tinha já feito suar!

Levar-me as cartas à diligência... Ele quis, para melhor me agarrar, com certeza, ter sobre mim mais amplos conhecimentos, conhecer as minhas relações... O patife!” - Olhou a jovem e esteve quase a dizer-lhe tudo. Mas reconsiderou. - “Para quê? É tarde! - Pensou com um aperto no coração. - Sem o supor, Binet tornou-se o instrumento do destino... Nem sequer posso pensar em retroceder, de reconstruir o que ele destruiu! Entre Aline e eu cavou-se um fosso intransponível.”

- Desconfias de alguém? - perguntou ela, com indiferença. Ele estremeceu. Respondeu vagamente:

- - Não... sim... talvez... Mas... sabes... nessas cartas, eu não te dizia o que fazia...

- Pensas que teria vergonha por te ver obrigado a adoptar um tal modo de vida?

André agarrou-se a esta pergunta como a uma tábua de salvação e, recobrando, de repente, por efeito do desgosto, o seu espírito cáustico, respondeu:

- Queria surpreender-te com os meus sucessos...

- Crês estar destinado a ser um grande actor? - perguntou, sem esconder o desdém.

- Não é impossível. Mas o que mais me interessa é tornar-me um verdadeiro actor cómico. Não, Aline, tu tão fina, tão inteligente, não faças essa cara! Não é desonroso - pelo contrário! - escrever peças de teatro. Toda a França se orgulha, por exemplo, de Molière, de Beaumarchais...

- Esperas igualá-los?

- Porque não?... Não sem reconhecer, aliás, que lhes devo tudo. Que pensas da peça que interpretámos ontem?

- É divertida... bem construída.

- Então permite que te apresente o autor!

- Tu? Mas... trata-se de uma companhia de improvisadores!

- Mesmo os improvisadores não podem passar sem um enredo: é o que faço agora. Mas, brevemente, escreverei peças, autênticas peças!

- Não tenhas ilusões, meu pobre André! A peça que interpretaram ontem deve tudo aos actores e, principalmente, ao mais notável de todos: o vosso Scaramouche.

- Pois bem, aqui para nós, Aline... aqui tens Scaramouche - respondeu, batendo no peito.

- Tu... Scaramouche? - gritou, olhando-o fixamente.

- Sim, eu - disse com um fino sorriso que traçava nas suas faces magras rugas semelhantes a covinhas.

- Quando penso que te não reconheci!...

- Que julgavas, então? Que era maquinista, figurante? Mas, agora, fala-me de ti, fala-me de Gavrillac. Como está o meu padrinho?

- Melhor. Esteve gravemente doente, e durante perto de três meses quase não deixei a sua cabeceira. Oh! Embirrou contigo pelo que fizeste em Rennes, mas sei que, no fundo, continua inquieto com a tua sorte...

Para esconder a comoção, André voltou a cabeça para a porta da carruagem. Estremeceu, quando Aline lhe interrompeu o sonho:

- Vou escrever-lhe a dizer que te vi.

- Sim, peço-te. Diz-lhe que estou bem e que os meus trabalhos estão florescentes. Mas não lhe digas o que faço, porque ele tem preconceitos... também. De resto, sabe-lo bem, é preciso que eu seja prudente. Posso agora fazer-te a pergunta que me queima os lábios desde que subi para a tua carruagem? Aline, porque te encontras em Nantes?

- Estou em casa de minha tia, a senhora Santrou. Ela acompanhou-me ontem ao teatro. A princípio, bastante me aborreci no. seu castelo. Mas, a partir de hoje, minha tia vai receber muitos convidados, e, entre eles, estará, creio, o senhor de La Tour.

André franziu os sobrolhos e tornou-se pálido. Então, sem poder mais dominar-se, perguntou:

- Sabes como Filipe foi morto? No nosso último encontro nem tivemos tempo de falar desse drama!

- Sim, sei. Meu tio e o senhor de La Tour elucidaram-me o melhor possível...

- E isto não basta para que tomes uma decisão a propósito desse... casamento?

Ela voltou-se para ele e deitou-lhe um olhar cheio de altivez. Entretanto, foi com calma que respondeu:

- Como tomar uma decisão? Não passo de uma mulher, e tu pareces esquecê-lo. É-me impossível julgar entre dois homens, quando se trata de um caso de honra...

- Compreendo que te seja difícil - disse André com voz rouca. - Mas, no caso de que falamos, tu sabes a verdade, porque o meu padrinho, tal como o conheço, certamente ta não escondeu... Entretanto - acrescentou com acento mordente - preferiste, sem dúvida, fechar os olhos...

De novo ela se voltou para ele, examinou-o durante alguns segundos com expressão trocista e gritou:

- Cada vez melhor! Sabes que és quase parvo? Como! Encontro-te no esgoto, nos braços de uma actriz, e atreves-te a pregar-me moral!

- O esgoto? - repetiu em tom seco. - O teatro não é o esgoto. Quanto às actrizes, como dizes, valem bem muitas meninas da nobreza... sobretudo quando estas parecem prestes a desposar um belo título e vastos domínios!

Aline olhou André. Tinha-se tornado tão pálida como ele e os lábios tremiam de cólera. Para mandar parar a carruagem, puxou o cordão, dizendo com voz débil:

- Dou-te a liberdade... Vai procurar essa saltimbanca!

- Não te permito, Aline, que fales da menina Binet em tais termos!

- Mas, palavra, por quem te tomas? Devo falar dessa... André, para a interromper, levantou a mão. Na sua raiva, acabava de resolver um grande golpe... mesmo que não correspondesse à verdade o que ia dizer - longe disso, ah, sim, muito longe disso:

- Se tens absolutamente que falar dela, Aline, considera-a, já, como minha noiva.

- Como tua... - gritou ela com as pupilas dilatadas pelo horror.

- E deixa-me acrescentar: esta jovem que desprezas pelo seu espírito e talento - duas qualidades que as meninas nobres não possuem - criou uma situação excepcional entre as actrizes da região. Irá longe, estou convencido. De resto, sendo honesta e sincera, ela deverá tornar feliz o homem que escolheu, não por cálculo, mas com o coração!

Tudo isso era verdadeiro? Por momentos André troçava da verdade. Na sua loucura só tinha um desejo: espezinhar, destroçar. ..

Com gesto furioso, Aline puxou o cordão:

- Desce imediatamente! - gritou, quando a carruagem se deteve.

André abriu a porta, saltou, voltou-se e ainda lançou azedamente:

- Os meus cumprimentos ao assassino que tens pressa de tornar teu marido!

Depois, dirigindo-se ao cocheiro:

- Ala! - ordenou, atirando com a porta.

Quando entrou na sala de jantar onde estavam reunidos todos os artistas, as conversas cessaram bruscamente. “Bem! Bem! - pensou. - Falava-se de mim.” Sentou-se à mesa e comeu em silêncio; os companheiros, um após outro, começaram a conversar sobre assuntos insignificantes. Climene, imóvel no seu lugar, olhava-o com expressão indefinível.

 

                         O despertar

Terminada a refeição, André e Climene encontraram-se sós na sala de jantar. Enchendo o cachimbo - desde há algum tempo tinha começado a fumar -, André foi sentar-se perto da chaminé. Climene levantou-se também, deixou-se cair com graça numa cadeira mesmo em frente dele, e disse:

- Sabe que continuo à espera da explicação que me deve?

- Uma explicação? - André franziu os sobrolhos. - A propósito de quê?

- Enganou-me... enganou-nos...

- Não percebo. Não enganei ninguém.

- Sim... pelo seu silêncio, escondendo-me certos factos ligados a si e, sobretudo, à sua verdadeira categoria social. Não deveria ter-se feito passar por um simples jurista de aldeia. Salta aos olhos que é mais do que isso. Claro, a surpresa é bastante romanesca, mas... Vejamos, quer elucidar-me?

- Posso garantir-lhe, Climene - respondeu André, tirando uma fumaça -, que nunca procurei enganá-la. Se não a pus ao corrente do que me diz respeito, é porque considerava o facto sem importância. Eu sou aquilo que lhe disse... nem mais nem menos.

Climene apertou os lábios. A casmurrice de André iria fazer-lhe perder a paciência?

- E a bela dama de sociedade pela qual me deixou de repente, sem cerimónia, e que o levou no trem, que lhe é ela?

- Uma espécie de irmã...

- Uma espécie de irmã? Essa espécie de irmã, suponho que tem nome...

- Com efeito, tem. Chama-se Aline Kercadiou e é sobrinha do senhor de Kercadiou, nobre de Gavrillac.

- Evidentemente, a sua irmã não podia deixar de ser uma menina nobre. Mas quais são, exactamente, os laços que o unem a ela?

Pela primeira vez, desde que conhecia Climene, André notava na sua atitude, na sua voz, qualquer coisa de vulgar, mas de acariciador, também...

- Conheço-a há muito tempo.

- E mais?

- Isto não lhe basta? Pois bem, aqui tem: o senhor de Kercadiou é meu padrinho. Conhecemo-nos, portanto, eu e ela, desde a infância. Fomos educados juntos. Por outro lado, se pude instruir-me e seguir os estudos de Direito, em Paris, devo-o à generosidade de Kercadiou. Na verdade, devo-lhe tudo o que tenho, ou antes o que tinha. Porque, por minha própria vontade, cortei todas as amarras com o passado; não tenho hoje mais do que ganho no teatro... ou o que ganharei.

Por momentos, Climene ficou calada, com os olhos absortos. Quê, este apaixonado - este quase noivo - que ela considerava um fidalgo desde que o tinha visto subir para a carruagem de uma mulher da alta, não passava, no fim de contas, de um modesto plebeu? Que decepção, que humilhação, até!...

- Deveria ter-me dito tudo isso mais cedo - disse ela, com voz desgostosa.

- Com certeza. Mas porquê?

- Porquê? Mas...

Pareceu reflectir por momentos.

- Quem são os seus pais?

- Sou uma criança abandonada - disse André com franqueza. - Mas tudo isto não tem a mínima importância! Doravante não serei mais que Scaramouche... Bem vê, minha querida, não procurei enganá-la.

- É certo, não procurou enganar-me - respondeu com um pequeno riso seco. Suspirou profundamente, levantou-se e acrescentou:

- Estou muito cansada...

André, com a sua habitual galanteria, imediatamente se levantou também. Mas, com um gesto, ela deteve-o:

- Vou repousar até à hora de nos juntarmos.

E, arrastando um pouco os pés, dirigiu-se para a porta e saiu da sala, sem mesmo deitar um olhar para trás.

Continuando a fumar o seu cachimbo, André chegou-se à janela, olhou o Loire. Pensava: “Choquei-a. Mas porquê e como? Uma rapariga como ela, educada entre artistas errantes, ligará importância ao nascimento? Seria bastante ridículo...”

André passou todo o dia seguinte no quarto, a trabalhar numa peça. Nessa noite, quando entrou em cena, a primeira pessoa que viu foi Aline; a segunda, o marquês de La Tour. Ocupavam um camarote, à direita e próximo do palco. Uma senhora de certa idade, magra e muito bela, a condessa de Santrou, acompanhava-os. Como fascinado, André, voltado para o camarote, ficou algum tempo imóvel. Tinha esquecido, até, a razão por que se achava no palco! Mas depressa se refez e começou a representar com uma verve tão brilhante e uma arte tão consumada, que foi recompensado em aplausos ainda mais entusiastas que de costume.

Entretanto, outra surpresa o esperava. Depois do segundo acto viu, na extremidade do corredor, Climene e o senhor da La Tour. Este, inclinado para a jovem, falava-lhe sorridente.

André, estupefacto, estremeceu. Depois, recobrando o sangue-frio, olhou o marquês com atenção. Que distinção! Que graça! Que à-vontade! Era então este homem quem tinha friamente assassinado Filipe de Vilmorin? André permaneceu muito tempo no mesmo lugar, convencido de que, sob o disfarce de Scaramouche, o marquês o não podia reconhecer. Quando viu que a imagem do inimigo se lhe tinha de novo gravado na memória, mais nitidamente que nunca, voltou-se e afastou-se um pouco. “Apesar de tudo - pensou - faça ela o que entender! Quero lá saber! Pensemos em coisas mais importantes...”

Na segunda-feira seguinte, de manhã, André saiu mais cedo. Esperava que o andar lhe daria, senão o bom humor, pelo menos o equilíbrio e o sentido da realidade. No ângulo da praça do Bonffay encontrou-se frente a frente com um homem de estatura mediana, moreno, vestido de negro, que estacou:

- Moreau! Onde diabo te escondes desde Novembro?

Era Le Chapelier, o advogado de Rennes, o membro mais influente da Academia Francesa.

- Escondo-me sob o manto de Téspis.

- Não percebo.

- Já esperava! Precisamente, é o que eu queria... E tu, meu caro, como estás? E a população? Encontro-a bastante tranquila há algum tempo!

- Bastante tranquila! -gritou Le Chapelier, desatando a rir. Em poucos minutos traçou um quadro da situação nos campos.

Depois, passando bruscamente ao assunto que o preocupava mais, continuou:

- E agora, André, vais saber porque estou tão satisfeito por te encontrar, depois de te haver procurado, em vão, durante longos meses: Nantes envia cinquenta delegados à Assembleia que se deve reunir em Rennes para escolher os deputados ao Terceiro Estado e estabelecer o nosso caderno de reivindicações. Queres ser um dos delegados?

- Não - respondeu André, sacudindo a cabeça com firmeza.

- Como, recusas? És doido! Não percebes que, aceitando, serás sem dúvida eleito deputado e enviado aos Estados Gerais de Versalhes para nos representar e salvar o País?

Mas André não pensava já em salvar a França. Mostrou-se tão decidido na recusa que Le Chapelier desistiu de convencê-lo.

- É estranho -- disse André. - Estou em Nantes há já certo tempo e não tinha percebido que a cidade estava tão agitada politicamente!...

- Agitada! - retorquiu Chapelier. - Mas, caro amigo, se a população não tuge nem muge é porque a convencemos de que tudo vai bem. Basta dizer-lhe o contrário, para que rebente!

- Sério? - disse André com expressão pensativa. - Aí está uma informação interessante...

Depois, sem transição:

- Sabes que o La Tour está cá?

- Em Nantes? Tem coragem de mostrar-se? Os Nantenses não são fáceis de roer e sabem o papel que La Tour desempenhou em Rennes. Estou admirado que o não tenham já liquidado. Mas, mais dia menos dia...

- Sim... Mais dia menos dia - repetiu André, com um sorriso. - Entretanto, sabes, ele não se mostra muito. Nunca se vê pelas ruas. Tem, pois, menos coragem do que tu supões. A meu ver, não tem mesmo coragem nenhuma... como um dia eu lhe disse... Só tem insolência!

Ao separarem-se, Chapelier renovou a proposta que fizera:

- Se mudares de opinião, manda-me uma palavra. Estou no Hotel do Cervo e só partirei depois de amanhã. Se tens ambições, fazes mal deixar passar uma ocasião como esta...

- Lamento! Mas, sabes? Creio que não tenho ambições... Nessa noite, em cena, ele pensou de repente: “E se eu experimentasse ver o que a gente de Nantes tem na cabeça?...” A companhia interpretava “O Capitão Terrível” e, no último acto, Scaramouche devia desmascarar a covardia escondida sob as fanfarronadas de Rodomonte. Chegado o momento, André decidiu dar à tirada que todas as noites inventava, uma conclusão política. Por isso, em voz alta, atirou:

“Assim, pois, ó grandíloquo capitão, eis-te desmascarado! Os fracos julgavam-te forte e temível, porque tens grandes braços e grandes pernas, porque trazes uma grande espada, porque dás ao teu chapéu um inclinação insolente, porque falas em tom formidável! Mas, à primeira resistência, quebraste. Tremes, gemes como uma rapariga medrosa e a tua grande espada permanece na bainha! Olha, fazes-me lembrar os privilegiados quando se encontram, pela primeira vez, diante dos representantes do Terceiro Estado!”

Isto foi como um fósforo lançado em meda de feno bem seco. Rebentou uma verdadeira tempestade de aplausos. Os espectadores puseram-se de pé, subiram às cadeiras, lançaram os chapéus ao ar, aclamando sempre o audacioso Scaramouche. Por fim, caiu o pano. No último momento, André distinguiu, sobressaindo da penumbra do camarote que habitualmente ocupava, o rosto pálido e os olhos coriscantes do senhor de La Tour.

- Pois bem - disse Rodomonte -, você pode bem dizer que tem a arte de acertar em pleno coração dos espectadores.

André olhou-o, sorrindo:

- É uma arte por vezes útil...

E dirigiu-se para o camarim. Depois de ter mudado de trajo, ocupou-se dos preparativos da peça que devia ser representada no dia seguinte; quando acabou este trabalho, a companhia tinha já deixado o teatro. Mandou parar uma carruagem de aluguer e entrou sozinho na estalagem.

Quando subia a escada, ouviu Binet falar, com entusiasmo, na sala do primeiro andar. Empurrou a porta com mão firme. Binet voltou-se e acolheu-o nestes termos:

- Aqui está, enfim! Espero que me diga porque provocou tal escândalo?

- Escândalo? Parece-me, pelo contrário, que o público não ficou descontente, porque me aplaudiu.

- O público? A ralé, quer dizer? A sua intenção será privar-nos da protecção dos nobres, fazendo apelo às mais baixas paixões da populaça?

André encolheu os ombros e avançou para a mesa. Este homem, no fim de contas, contendia-lhe com os nervos!

- Como de costume, exagera... estupidamente!

- Não, não exagero! E depois, sou dono do meu teatro! Esta companhia é a companhia Binet. E será dirigida como eu entendo!

- Quem são os nobres cuja protecção lhe parece tão preciosa?

- Quem? Pois bem, o marquês de La Tour, por exemplo! Depois do espectáculo, procurou-me e condenou, com as mais severas expressões, a sua escandalosa apóstrofe! Tive de pedir-lhe desculpa e...

- Não passa de um imbecil! - cortou André. - Se se respeitasse a si próprio, teria posto esse homem na rua!

O rosto do director começou a colorir-se.

- Você julga que esta companhia lhe pertence e que é o dono do teatro? - continuou André, calmamente. - E inclina-se como um criado diante do primeiro espectador insolente bastante para lhe vir dizer que não gostou da última frase dita por Scaramouche! Repito: se se respeitasse a si próprio, teria posto o marquês de La Tour na rua! - E acrescentou: - Deixou-me alguma coisa para comer?

Chegaram-lhe vários pratos. Encheu o seu e jantou com apetite.

 

                       Tempestade no Teatro Feydeau

Nessa noite, André dormiu um sono de chumbo. Ao acordar, bastante tarde já, sentiu-se um homem novo. Longamente, antes de sair da cama e com os olhos fixos no tecto, reflectiu. Nova borrasca acabava de lhe atravessar a vida, de a modificar de cima a baixo! Em doze horas, uma brutal reviravolta se lhe produziu no espírito e no coração. Achou-se tal como era ao sair de Gavrillac pela primeira vez, montado num cavalo alugado na Estalagem das Armas da Bretanha. Mas o que lhe restava de tudo o que possuía nesse momento? Aline, certamente, já não pensava nele senão com desespero e cólera... Que fim poderia dar à vida, daí em diante?...

Então, a imagem de Filipe apareceu-lhe nítida. Dir-se-ia vir de uma grande distância, a passos lentos, com o peito ensanguentado, o rosto lívido...

Que mais precisava para decidir-se? Ergueu-se de um pulo, lavou-se, vestiu-se, desceu a escada. Nada, agora, o poderia deter. Percorreu o cais em passos rápidos, voltou à direita para uma ruazinha suja e entrou na loja de um armeiro que tinha visto casualmente dias antes. Cinco minutos depois voltou; ficou a passear no cais, com o chapéu caído para os olhos, sempre de cachimbo na boca. Pelo aspecto pacífico, ninguém poderia supor que acabava de tomar uma resolução inabalável e que havia jurado não acabar o dia sem cumprir um dos actos mais importantes da sua vida - talvez o mais importante, até!...

De súbito, Leandro avançou para ele. O seu primeiro movimento foi voltar-lhe as costas. Pobre Leandro! Que pálido estava! Parecia até mais triste! André pegou-lhe no braço e arrastou-o consigo...

Estiveram ausentes toda a tarde. O jantar decorreu sem eles. Binet, inquieto, repetia sem cessar: “Os bandidos! Se não voltarem, não podemos representar esta noite.”

Às oito horas, toda a companhia, com excepção de André e Leandro, se dirigiu para o teatro. Binet tinha já preparado um discurso para o público, se fosse preciso anunciar que a representação ficaria adiada para o dia seguinte. Mas arrepelava-se ao pensar que tinha de devolver o dinheiro dos bilhetes. Por isso, imaginem o seu espanto e alegria quando viu que André e Leandro se encontravam já nos camarins e começavam a pintar-se! O primeiro ímpeto foi pedir-lhes explicações. Mas desistiu, pensando: “No fim de contas, têm o direito, durante o dia, de fazer o que bem entendem!...”

A sala estava à cunha. Representava-se nessa noite “As Loucuras de Scaramouche”. Os dois primeiros actos decorreram com brio incomparável. Os artistas, como transportados pela febre da sua arte, entusiasmavam os espectadores! Logo que entrara em cena, André tinha visto, no lugar habitual, o senhor de La Tour e o inseparável Chabrillane...

Após o segundo acto, mal caiu o pano, correu ao camarim que Polichinelo e Rodomonte partilhavam. Aquele preparava-se para mudar de roupa.

- Se fosse eu, não teria esse trabalho - disse André. - A peça, segundo todas as probabilidades, não irá além da cena em que eu e Leandro abrimos o terceiro acto.

- Que quer dizer? - perguntou Polichinelo.

- Vai compreender - disse André.

Pousou uma folha de papel em cima da mesa atravancada com boiões de cremes.

- Leia isto. É uma espécie de testamento em favor da companhia. Oh! Descanse: está em regra. Fui advogado. Sei o que é preciso fazer nestes casos... Deixo a todos a minha parte de sócio. Dividi-la-ão.

Rodomonte abriu a boca, mas não conseguiu emitir sequer um som.

- Não tem a intenção de nos deixar, pois não? - gritou

Polichinelo.

André teve um encolher de ombros eloquente.

- Oh! Certamente - disse Polichinelo - é à cautela... Mas porque parte? Foi você que fez de nós o que hoje somos! Você é o cérebro da companhia! Graças a si, somos hoje verdadeiros artistas. Se alguém deve partir, é Binet... e além dele a filha! Pois bem, se parte - em nome de fidalgote que sou -, partiremos consigo!

- Claro - reforçou Rodomonte que tinha, finalmente recuperado a fala -, estamos fartos deste bêbado do Binet!

- Já pensei mandá-lo para os seus caros estudos. Não é vaidade da minha parte, convençam-se, mas confiança na vossa amizade. Há uma ideia que poderemos examinar de novo... amanhã, por exemplo... se eu ainda for vivo...

- Se ainda for vivo! - gritaram em coro os dois comediantes. Polichinelo ergueu-se de um salto.

- O que quer dizer toda esta brincadeira? Neste momento soaram as três pancadas.

- Tenho de guardar o papel, Polichinelo. Apesar de tudo, talvez nem venha a ser necessário.

Saiu. Rodomonte olhou para Polichinelo. Este olhou para Rodomonte.

- Que diabo pensará ele fazer?

- Só vendo, o poderemos saber. Vamos, pois! - respondeu

Polichinelo.

Não obstante o conselho de André, mudou de roupa. Alguns minutos depois, os dois comparsas deslizavam pelos corredores. Quando se aproximaram do palco, ouviram uma salva de palmas, acompanhada de exclamações que lhes pareceram bizarras.

Quando se restabeleceu o silêncio, a voz de Scaramouche ergueu-se, clara e vibrante como um toque de sino:

- Assim, pois, caro senhor Leandro, verifico que, quando se fala do Terceiro Estado, é necessário ser mais explícito. Vejamos: o que é afinal o Terceiro Estado?

- Nada - respondeu Leandro.

Um rumor de espanto subiu da assistência. Mas já Scaramouche continuava:

- Sim, senhor Leandro, tem razão, pois! E que poderia ser este pobre Terceiro Estado?

- Tudo - respondeu Leandro.

Nova salva de palmas e exclamações mais violentas do que as anteriores.

- Exacto! - disse Scaramouche. - Mas o que é mais, ele será tudo... é já tudo. Duvidará, acaso, senhor Leandro?

- Quereria bem acreditá-lo - respondeu Leandro, em tom do aluno que sabe a lição.

- Senhor Leandro, é preciso acreditar-me! É preciso! Desta vez, os aplausos subiram da sala como o ribombar de um trovão. Polichinelo e Rodomonte trocaram um olhar. O segundo tinha uma expressão perplexa. Mas o outro sorria. Percebia. Foi então que uma voz, por detrás deles, rosnou:

- Nome de um cão. Este patife do Scaramouche recomeçará a fazer alusões à política?

Voltaram-se. Binet, em bicos dos pés, tinha deslizado até eles. Envergava ainda o trajo de Pantalonas - calças vermelhas e roupão até aos pés. De cada lado do nariz postiço, os olhinhos flamejavam. Scaramouche tinha avançado até à boca de cena e dirigia-se agora aos espectadores:

- Este caro Leandro, quereria bem acreditar-me! Vejam como todos os que adoram o ídolo carunchoso, a que chamamos Privilégio, não se podem resignar a inclinar perante uma verdade que amanhã saltará aos olhos de toda a gente! Que fazer para o convencer? Devo contar-lhe o que se passou em Rennes há poucas semanas? Devo dizer-lhe que alguns nobres e os respectivos criados - seiscentos ao todo - querendo, uma vez ainda, impor a sua vontade ao povo, foram corridos por representantes do Terceiro Estado durante uma batalha de ruas?

Com um gesto, Scaramouche impediu que os aplausos rebentassem.

- Resta-me apresentar-lhes o chefe destes nobres, o chefe desta ralé aristocrática. Todos o conhecem: o senhor de La Tour! Indignado por o povo querer opor-se à nobreza, decidiu maltratá-lo! Mas, longe de o permitir, o povo pegou em armas e obrigou o valente marquês e as suas tropas a procurar refúgio para lá dos muros espessos dos conventos franciscanos!...

Novamente com um gesto, Scaramouche conteve os aplausos.

- Oh! Foi, segundo se diz, um espectáculo memorável aquele do arrogante senhor, fugindo como uma lebre e implorando a protecção dos monges! Desde então, o senhor de La Tour desapareceu de Rennes. Mas ele alia a discrição à coragem. Onde se esconde esse privilegiado que quis fazer correr, nas ruas, rios de sangue, o homem que estava pronto a massacrar artífices, operários, pequenos burgueses, na esperança de lhes abafar a grande voz da Razão e da Liberdade que soará amanhã por toda a França? Onde pensam que ele se esconde? Pois bem, vou dizê-lo: esconde-se na vossa leal cidade, em Nantes!

Desta vez não pôde impedir os aplausos, a que se misturaram gritos e perguntas.

- Que dizem?! - fez Scaramouche, simulando espanto. - Pretendem ser impossível? Pois bem, amigos, vou satisfazer-lhes a curiosidade. Saibam que este sangrento aristocrata está aqui mesmo, no nosso teatro, e que se esconde no camarote que ali vêem!... Mas que timidez, senhor de La Tour! Peço-lhe que se mostre! E, a propósito, continua a julgar a eloquência como um dom perigoso? Oh! É tarde, agora, para que possa discorrer sobre o assunto. Contente-se em mostrar-se. Os espectadores não me acreditarão, se o não virem!

Houve um silêncio curto. Todos da plateia olhavam para o camarote que Scaramouche continuava a apontar com o dedo. La Tour, carregado de defeitos e de vícios, tinha, pelo menos, uma qualidade: coragem física, de que já dera inúmeras provas. Agora, apesar das súplicas de Chabrillane, levantou-se e apareceu em plena luz, à entrada do camarote. Estava pálido, mas muito senhor de si. Um sorriso de desprezo fazia-lhe descair os cantos da boca.

Foi acolhido com apupos. Punhos e paus levantaram-se contra ele.

- Assassino! Poltrão! Traidor!

Impassível, parecia esperar que a tempestade acalmasse, resolvido, por sua vez, a tomar a palavra. Mas, a expressão desdenhosa agiu, como um irritante, sobre os nervos do público.

De resto, na própria sala, tinha começado uma verdadeira batalha. Davam-se socos, puxavam-se cabelos. Espadas desembainharam-se, mas, felizmente, tornava-se quase impossível utilizá-las, tão densa era a multidão. Os timoratos e os que tinham levado as mulheres, procuravam já as portas da saída, desejosos de fugir desse inferno; outros, para se munirem de projécteis, desmontavam os lustres...

Imóvel, no palco, Scaramouche olhava o quadro com ar de triunfo. Sob os seus olhos formavam-se grupos segundo as suas afinidades políticas. Uns gritavam: “Abaixo os protegidos!”; e outros: “Abaixo a canalha.”

Depois elevou-se um grito, logo repetido por centos de bocas:

- Ao camarote! À morte La Tour, carrasco do povo!

E houve um movimento em direcção de uma das portas que davam acesso à escada dos camarotes.

Mas o marquês e o cavaleiro já não estavam sós. Vários fidalgos, assim como alguns grandes burgueses ligados ao partido, tinham vindo juntar-se-lhes.

Na sala, um grupo de aristocratas procurava aproximar-se do palco, na intenção evidente de saldar contas com o audacioso comediante que tinha deitado fogo à pólvora. De momento, trocavam golpes com alguns partidários do Terceiro Estado que, espontaneamente, se haviam colocado ao longo da rampa e lhes opunham vigorosa resistência.

André voltou-se para Leandro e disse:

- Será imprudente, creio, demorarmo-nos aqui mais tempo...

Leandro, espantado com aquela tempestade cujas proporções ultrapassavam tudo o que o seu cérebro podia imaginar, abriu a boca; mas, incapaz de falar, contentou-se em responder com a cabeça. Porém, era demasiado tarde para fugir.

Binet, depois de se desembaraçar de Polichinelo e Rodomonte, acabava de surgir dos bastidores seguido de uma meia dúzia de fidalgos com as espadas desembainhadas. Mas, atrás deles, apareceu também um grupo silencioso formado por Polichinelo, Rodomonte, Arlequim, Pierrot e Pasquariel. Tinham-se armado com todos os utensílios que encontraram ao alcance e pareciam prontos a lutar até à morte para defenderem Scaramouche, em quem começavam a ver um arauto da revolução e da liberdade.

Com passo rápido, brandindo a longa cana com que sempre se munia para entrar em cena, Binet avançou para André e berrou, com voz estrangulada pela cólera:

- Maldito patife! Arruinaste-me! Mas, raio dos raios, vais pagar-me caro!

André saltou para o lado e a cana partiu-se-lhe no ombro; ter-lhe-ia fendido o crânio se não fora tão ligeiro. Rápido como a luz, meteu a mão ao bolso, tirou uma das pequenas pistolas que comprara de manhã, apontou-a a Binet e fê-lo parar, gritando:

- Aquele que pagará caro não sou eu, és tu, ladrão de correspondência, mestre-cantor!

Binet caiu como uma massa. Então Polichinelo, aproximou-se de André e disse-lhe:

- Está doido! Isso não era preciso! Agora, se não quer ser esfolado vivo, salve-se. Salve-se!

André pensou que o conselho era bom. Em duas pernadas e tirando do bolso a segunda pistola, chegou aos bastidores enquanto os artistas mantinham em respeito, com as armas improvisadas, os fidalgos que seguiram Binet ao palco. No corredor encontrou-se com dois oficiais da ronda; no mesmo momento, alguns outros tentavam restabelecer a ordem na sala.

Sabendo o que lhe custaria deixar-se prender, não teve tempo de reflectir. Apontou a pistola e disse com voz ameaçadora:

- Deixem-me passar! Senão...

Intimidados por tanta resolução, os oficiais afastaram-se. André não esperou por mais nada; voltou costas à porta do salão onde muitos espectadores se tinham refugiado, galgou a escada e encontrou-se, instantes depois, na rua deserta por detrás do teatro. Sem a mínima hesitação deitou a correr para a estalagem; aí mudou de roupa, pois era-lhe impossível fugir com o trajo de Scaramouche, agarrou nas suas economias e fugiu.

 

                                               A ESPADA

 

               Transição

Numa tarde de Abril de 1789, André, que havia um mês já se encontrava em Paris, releu a carta que acabava de escrever, dirigida a Chapelier:

“Que pena - dizia - ter sido forçado a abandonar o trajo de Scaramouche! Ficava-me maravilhosamente! Creio que o meu destino é largar por toda a parte fogo à pólvora e salvar-me no preciso momento em que a explosão se vai produzir. Tenho desculpas? Sem dúvida! Da primeira vez quiseram prender-me porque tivera o arrojo de falar ao povo na Praça Real de Rennes. Devia eu, depois, como um carneiro, dar satisfação ao carrasco? Desta vez querem ainda prender-me por causa do que aconteceu no Teatro Feydeau e, também, provavelmente, por assassínio. Ignoro, com efeito, o que aconteceu ao sacripanta do Binet. Sobreviveu à carga de chumbo que enterrei na sua espessa barriga? Mas, apesar de tudo, rio disso. Tenho outros gatos a esfolar! O dinheiro que trouxe, quando fugi de Nantes naquela terrível noite cujos estampidos soam ainda aos meus ouvidos, evaporou-se como um sonho. Os dois mesteres que posso exercer - actor e advogado - estão-me proibidos, se não quero trair a minha presença em Paris. Vou, pois, morrer de fome nesta cidade, onde os preços sobem continuamente? Não pode ser! Tenho uma missão imperiosa: vingar Filipe de Vilmorin. E até ao meu último sopro, guardarei a esperança de a cumprir...”

Uma semana depois, por uma ventosa manhã de Abril, quando passeava a barriga vazia pelo bairro, não sem deitar à direita e à esquerda olhares inquietos, viu, a pouca distância da esquina em que a Rua do Acaso corta a de Richelieu, um cartaz afixado numa porta:

 

                   BERTRAND DES AMIS

                     MESTRE-DE-ARMAS

                 PELAS ACADEMIAS REAIS

 

André parou. Pensou se teria as qualidades requeridas e monologou: “Sou jovem! Destro tanto como qualquer um e mais do que muitos, talvez... Quanto aos meus conhecimentos de esgrima... Bem...”

Reflectiu. Durante os anos de estudo tinha frequentado algumas vezes, com outros estudantes, algumas salas de armas parisienses; por isso, podia bem afirmar, sem mentir, que era capaz de pegar numa espada. Entrou no corredor, subiu os dois andares e deteve-se diante de uma porta entreaberta de onde vinha um ruído de armas e de pés que se deslocavam vivamente no soalho e sons de uma voz vibrante e sonora que dizia:

- Atacar!... Em guarda... Muito bem!... Atacar! Mais! A fundo... Muito bem.

As espadas cessaram de fazer ruído e a voz voltou a ouvir-se:

- Basta por hoje.

Julgando a lição terminada, André bateu. Um homem de quarenta anos, alto, magro, bem proporcionado, atendeu. Vestia calças e meias de seda negras. Sob o braço esquerdo segurava uma máscara de rede. Com olhar agudo examinou o recém-chegado. Depois, em tom cortês, perguntou:

- O que deseja, senhor?

- Acabo de ler o seu anúncio... - respondeu o jovem.

O mestre-de-armas mostrou logo uma ligeira surpresa. Depois espalhou-se-lhe pelo rosto uma expressão satisfeita.

- E... é a tal respeito que me quer falar?

- Sim, senhor.

- Está bem, entre e sente-se. Estou às suas ordens dentro de momentos.

André sentou-se no banco encostado a uma das paredes brancas. O soalho da sala grande e baixa estava inteiramente desimpedido. Ao longo da parede, em frente, um móvel grande; sobre ele, máscaras, luvas de punho, peitilhos acolchoados, espadas, floretes, sabres, adagas. A um canto, uma pequena biblioteca e, perto, frente às quatro janelas que iluminavam a sala, estavam dispostas uma pequena secretária e uma cadeira. A dois passos da secretária, um homem novo magnificamente vestido acabava de pôr a cabeleira postiça. O mestre-de-armas, com um andar que André achou extraordinariamente elástico, dirigiu-se ao jovem e, enquanto lhe falava, ajudou-o a vestir o fato.

Logo que o aluno, limpando o rosto com um lenço perfumado, deixou a sala, o senhor Des Amis fechou a porta e voltando-se para o visitante, perguntou-lhe:

- Onde estudou?

- Estudou? - repetiu André, pondo-se de pé. - Mas... fiz o meu curso de Direito em Paris.

O mestre-de-armas franziu o sobrolho. Troçaria dele?

- Não é questão de Direito! - gritou. - Eu quero saber em que academia estudou esgrima!

- Ah! Esgrima...

André não pensara nunca que a esgrima pudesse ser considerada uma ciência...

- Bem... - continuou - fiz alguns combates, de tempos a tempos, com camaradas. Mas não posso dizer que tenha, seriamente, estudado esgrima...

- Mas, então •- disse o mestre-de-armas com impaciência -, porque vem maçar-me?

- Julguei... O seu edital pede um jovem hábil, com alguns conhecimentos de esgrima. Ora eu sou jovem, possuo, pelo menos, rudimentos de esgrima e creio possuir faculdades de aprendizagem superior à média. Quanto à minha habilidade, só posso pedir-lhe que me ponha à prova.

O mestre-de-armas pareceu satisfeito com esta resposta.

- O seu nome?

Tomado de improviso, André hesitou um pouco:

- O meu nome? André...

- Nada mais?

- Sim... Pedro. André é o meu apelido.

- Curioso apelido... E... se bem percebo, pelo sotaque, vem da província!?

- Da Bretanha.

- Que veio fazer a Paris?

- Procurar fortuna...

- Procurar fortuna?

André hesitou outra vez. Por momentos olhou fixamente o interlocutor. Experimentaria ele, após um longo mês de solidão e silêncio, a necessidade de se confiar? Porque seria que este homem, que apenas conhecia de há pouco, lhe inspirava tão brusca simpatia?

- Não quero mentir-lhe. Não vim a Paris fazer fortuna, mas para me esconder. Tinha um amigo... e um nobre, que é também um esgrimista de primeira ordem, matou-o... assassinou-o...

- E quer aprender esgrima para voltar à sua província e castigar esse nobre? - perguntou o mestre-de-armas, cujas pupilas flamejaram.

- Sim... Sim, é isso!

André não tinha entrado nesta casa senão para tentar ganhar a vida. E eis que, sem dizer água vai, este desconhecido oferecia-lhe o meio de rivalizar, talvez, com o senhor de La Tour no seu próprio terreno!

- Sim é isso! Entretanto...

- Não diga mais! Nem mesmo quero saber o nome do seu inimigo. À primeira vista, você parece talhado para a esgrima. Espírito vivo, corpo ligeiro, leve... elasticidade!... Eis as minhas intenções: vou elucidá-lo de maneira a que possa ensinar as primeiras regras aos meus novos alunos. Tire o casaco. Pegue numa máscara e numa espada e siga-me.

Levou André para a outra extremidade da sala, a um sítio onde, no chão, alguns traços a giz permitiam aos principiantes manter-se na linha.

Dez minutos depois, após um assalto durante o qual André, apesar da sua inexperiência, tinha mostrado aptidões, o senhor Des Amis disse:

- Basta!

E, retirando a máscara, acrescentou:

- Dou-lhe quarenta libras por mês. Em troca, peço-lhe não só que ensine os rudimentos aos meus novos alunos, mas também que os ajude a despir e vestir. Esfregará a sala todas as manhãs, brunirá armas e far-me-á os recados. Se não tem quarto, pode instalar-se no que fica nas traseiras da sala. Aceita?

- Aceito.

Ao fim de uma semana, Des Amis, sensível ao entusiasmo do ajudante, disse-lhe:

- O seu zelo e dedicação são dignos de elogio. Por isso vou confiar-lhe os segredos da minha arte. Em guarda!

Três segundos depois, a espada de André voava através da sala. O senhor Des Amis levantou a máscara:

- Fixe bem isto: a espada é como um pássaro. Se o segurar com demasiada força, abafa-o. Se o não segurar bem, voa... Demais, você está ainda nervoso, confuso. É preciso lutar com a cabeça e não com o coração...

Ao fim de um mês, Des Amis percebeu de repente que o ajudante se tornava um esgrimista terrível, um homem contra o qual tinha agora de lançar mão de todos os recursos.

- Lembra-se de eu lhe dizer, no dia em que se apresentou aqui, que estava talhado para a esgrima? Pois, tinha razão.

- Se fiz progressos, ao senhor os devo.

As suas relações com o mestre tinham-se tornado bastante amistosas. Des Amis, franco e cavalheiresco, experimentava simpatia por este jovem ardente e trabalhador que se preparava, na sombra, para uma grande vingança. De resto, se bem que fosse discreto e jamais tivesse feito ao ajudante quaisquer perguntas sobre as razões que o haviam levado a deixar a Bretanha, não lhe escondia, contudo, o interesse que experimentava pelas ideias “novas”.

- O surpreendente - disse-lhe André - é que todos os seus alunos são nobres. Ora, se a nobreza desaparecesse...

- É um ponto de vista em que não quero colocar-me. A nobreza comete muitos abusos para que eu prefira a sua permanência à cabeça da sociedade francesa. E depois, se ela desaparecesse, a burguesia substituí-la-ia. A espada, depois de ter sido uma arma, tornar-se-ia um jogo, o mais elegante, o mais apaixonante de todos os exercícios físicos!

 

                       Prelúdio de tempestade

Uma vez por outra, André deixava o retiro e passeava pelas ruas de Paris. A mesma força que o impelia a trabalhar em segredo com propósitos que julgava infalíveis, atraía-o também para o exterior. E nada escapava ao seu olhar, de há muito habituado à observação dos homens e das coisas.

Na Primavera do ano de 1789, a capital tinha um aspecto de fome. Saltava aos olhos a pobreza dos habitantes, assim como a sua calma paciência; o povo francês vivia apenas na esperança dos Estados Gerais que lhe haviam prometido e que viriam libertá-lo de uma tirania velha de séculos. A indústria estava parada e o próprio comércio, reduzido à sua expressão mais simples. Cada um ia reflectindo: “Só Necker nos pode tirar do atoleiro.”

André encontrava-se nos jardins do palácio real na manhã do domingo em que se espalhou a notícia da demissão de Necker. De súbito, viu um homem novo e magro, de magníficos olhos e o rosto crivado de marcas de varíola, saltar para uma mesa do café Foy e gritar:

- Cidadãos! Não há um momento a perder! Venho de Versalhes! Necker foi apanhado. Esta demissão é o toque a rebate de um S. Bartolomeu de patriotas!...

André voltou-se para o vizinho mais próximo, um velho trabalhador que acabava de colocar uma folha de árvore no chapéu, como ornamentação:

- Quem é?

- Como? Não o conhece? É Camilo Desmoulins!

A multidão, com exclamações entusiásticas, impedia já a passagem ao orador. Preso no torvelinho, André preparava-se para seguir o movimento da turba quando se encontrou, frente a frente, com um fidalgo de elevada estatura, magnificamente vestido, que o olhava com ar sombrio. Era o marquês de La Tour!

Mas uma nova vaga humana o arrastou. Quis resistir, vencer esta corrente de peitos, de braços, de pernas. Teve de desistir e, antes de se afastar por completo, ainda viu ao longe a silhueta imóvel do marquês e o seu rosto marmóreo onde os lábios rasgavam um sorriso cruel.

Então, a passos lentos, chegou à Rua do Acaso. Durante muito tempo percorreu a sala de armas. Queria ler ou exercitar-se. Mas não tinha coragem de ir à biblioteca buscar um livro nem de escolher uma espada. Sem cessar, repetia a si mesmo, com uma espécie de angústia, mesclada de alegria: “O marquês está em Paris... o marquês está em Paris... Aproxima-se o fim!”

Toda a tarde e toda a noite ficou só; sentado diante de uma das janelas da sala meditava, elaborava planos, sem saber que, em Paris, o sangue começava a correr.

À meia-noite André levantou-se para atender algumas fortes pancadas na porta. Quatro homens entraram e depuseram, no chão da sala, o cadáver de Bertrand Des Amis. O infeliz tinha sido morto numa escaramuça, vítima da Revolução.

 

                       O presidente Le Chapelier

Nos dois dias seguintes, o jovem velou o corpo do mestre-de-armas. Apenas recebia ecos amortecidos dos acontecimentos que se desenrolavam na cidade. A noite de 12 para 13 de Julho foi das mais agitadas. O povo dirigiu-se à Bastilha e abateu, a tiro, os soldados que guardavam a entrada. O grito “à Bastilha!” repercutia pelas ruas. Na manhã do dia 13, a bandeira verde foi abandonada e substituída por outra azul, branca e vermelha. Os burgueses e os artesãos formaram companhias que usavam os nomes de “Voluntários do Palácio Real”, de “Tulherias”, de “Basoche”, de “Arcabuz”, etc. No dia seguinte, 14 de Julho, às seis horas da tarde, André soube, pela irmã de Des Amis, que chegara da província para assistir às exéquias do irmão, que a Bastilha fora tomada e que os vencedores tinham marchado para a Câmara, levando trofeus e arrastando atrás deles prisioneiros e canhões da “fortaleza do despotismo”. No dia 15, depois do enterro de Des Amis, André encontrou-se de novo só na sala de armas. Que iria fazer? Não querendo ceder ao desencorajamento, dominou o desgosto - tinha por Bertrand Des Amis sincera amizade - e decidiu voltar ao trabalho. Para isso, utilizou um ardil digno de Scaramouche: por baixo da inscrição da porta: “Academia de Bertrand des Amis”, acrescentou ele, a pincel, com tinta branca e bela letra redonda: “dirigida por Pedro André”...

No dia seguinte, os alunos recomeçaram a afluir. E foi por eles e pelos jornais - pois que lhe era quase impossível deixar a sala -- que André se pôs ao corrente dos acontecimentos. Soube assim da nomeação de Lafayette para a chefia da milícia burguesa; da volta de Necker; da crescente influência de Mirabeau; da agitação nas províncias; da discussão, na Assembleia, da Declaração dos Direitos do Homem; do enfraquecimento gradual da autoridade do rei perante a vontade do povo; da nomeação de um tal Le Chapelier para a presidência da Assembleia...

Atento a estes rumores, André trabalhava nada menos do que dez horas por dia; e de noite surpreendia-se a sonhar que dava ainda lições de esgrima. Acordava banhado em suor, o rosto febril. Na primeira semana de Agosto, sentindo-se extremamente fatigado, arranjou um ajudante. Depois pensou: “Não posso mais. Porque não descansar um dia ou dois?”

Assim, numa bela manhã de sol, fez-se conduzir de carruagem de praça ao café d'Amaury, em Versalhes. Ali se reunia o clube bretão, mais tarde clube dos jacobinos.

Um instante depois, Le Chapelier descia a escada:

- André! - gritou. - És tu? De onde vens?

- Das trevas, Luís, a ver-te em toda a tua glória!

- Em toda a minha glória! Mas, és tu, André, quem deveria estar no meu lugar...

- Não, não tenho queda para os altos cargos. A atmosfera é, aí, muito rarefeita. Mas tu não tens boa cara, meu amigo. Estás doente?

- Estou maravilhosamente! Um pouco cansado, eis tudo! A Assembleia reuniu-se toda a noite. Estes malditos privilegiados levantam-nos obstáculos. E assim será até ao dia em que votarmos a abolição dos seus direitos!

Depois, à queima-roupa:

- Na Assembleia, somos sessenta e seis deputados bretões. Se se der uma vaga, gostarias de enfileirar ao nosso lado? Com as recordações que deixaste em Rennes e em Nantes, basta uma só palavra minha para que a coisa se realize! André desatou a rir.

- Nunca te encontrei, que me não convidasses para a política!

- Porque não? Pareces nascido para ela!

- Por agora, não falemos nisso... Tenho outros projectos... Diz-me antes o que aconteceu ao meu velho amigo, o marquês de La Tour.

- La Tour? Bem, está em Versalhes! É uma espinha na carne da Assembleia! O castelo que tinha nos arredores de Rennes foi incendiado. Infelizmente, não se encontrava lá nesse momento! E agora não se esconde para dizer: “Quando esta loucura revolucionária for sufocada, terei novamente servos para reconstruir o lar dos meus antepassados!”

- E.. em Gavrillac? Sabes o que se passou?

- Nada de especial. Kercadiou não é um senhor cruel, como o marquês. Sempre amou os seus. Há, pois, grandes probabilidades de que Gavrillac seja poupada. Mas... não te correspondes com o teu padrinho?

- Não... E o que acabas de dizer-me vai tornar ainda mais difíceis as minhas relações com ele. Pelo menos, se teve conhecimento da minha intervenção em Rennes, na Praça Real, o meu padrinho não deixará de incluir-me no número dos responsáveis pela agitação que reina na Bretanha. Queres ser tão amável que te informes se tudo vai bem em Gavrillac? Depois, dir-me-ás.

- Logo que tenha notícias seguras, transmitir-tas-ei. No momento de voltar para a carruagem, André parou:

- Sabes se o marquês de La Tour casou?

- Não ouvi dizer nada! Se essa importante pessoa tivesse tomado esposa, a nova certamente se espalharia.

- Claro... - disse André, fingindo indiferença. - Adeus, meu caro. Vem visitar-me o mais depressa possível. Moro na Rua do Acaso, número treze, a dois passos do palácio real.

- Conta comigo, logo que os meus deveres o permitam.

- Em resumo - disse André, rindo -, a defesa da causa da liberdade faz de ti um escravo!

- É certo. E acabo mesmo de me encarregar de um dever suplementar: o de levar André Moreau a pertencer à Assembleia Nacional, entre os representantes da Bretanha!

- Aí está um dever que vivamente te aconselho a desprezar!

Momentos depois, rolava em direcção a Paris.

 

                             Em Meudon

Um dia, lá para o fim dessa mesma semana, Chapelier apresentou-se em casa de André, mal acabava de soar o meio-dia.

- O teu padrinho está em Meudon há dois dias! - gritou. - Mas já o sabias, talvez?!

- Não, palavra! - André tinha a voz comovida. - Que faz ele em Meudon?

- Ignoro-o. Soube que tinha havido novos barulhos na Bretanha...

- Talvez se refugiasse junto do irmão.

- Não, nem junto do irmão, nem em casa dele. Palavra de honra, em que mundo vives tu, André? Não sabes que Estêvão de Gavrillac emigrou há já muito tempo? Ele pertencia à corte do duque de Artois. Neste momento deve estar na Alemanha, ocupado a conspirar contra a França... de resto, como todos os emigrados. A rainha, a “Austríaca” - assim lhe chama o povo -, acabará por destruir a monarquia!

- Claro... claro - respondeu André, vagamente.

Nesse dia, a política interessava-lhe menos do que nunca... Voltou a perguntar:

- E o castelo de Gavrillac?

- O castelo de Gavrillac? A esse respeito só sei uma coisa: que foi confiado à guarda de mestre Rabouillet. De resto, só há duas horas soube de tudo isto. Vim ver-te sem demora, pensando que terias, sem dúvida, vontade de ir a Meudon.

- Sim... vou lá... logo que possa. Não hoje, certamente, nem amanhã. Tenho muito que fazer.

Sempre conversando, apontava a porta da sala de armas de onde vinham tinidos de espadas, um ruído de pés que sapateavam no chão e a voz do ajudante que André tinha contratado alguns dias antes.

- Muito bem, pensa em tudo isto - disse Le Chapelier. - E agora, deixo-te com as tuas ocupações. Queres que jantemos juntos esta noite, no café Foy?

- Um momento! - disse André, quando o amigo se dirigia para o patamar. - A menina Kercadiou está com o meu padrinho?

- Não sei nada. Vai a Meudon e informar-te-ás melhor do que eu o poderei fazer.

Não obstante a sua impaciência, só no domingo seguinte André esteve livre. Antes de partir penteou-se com esmero e vestiu-se o mais elegantemente possível. Tomou uma carruagem de aluguer e partiu para Meudon, onde chegou cerca de uma hora depois.

A moradia que Estêvão de Kercadiou agora habitava erguia-se no meio de um admirável parque florido. No terraço, André foi recebido por Benoit, o velho senescal do nobre senhor. O pobre homem, doido de alegria, pôs-se a gritar, arrastando André para a entrada:

- Senhor... Senhor! É o senhor André, o seu afilhado que o vem cumprimentar! Venha ver como está belo... elegante!

Abriu a porta de uma sala para onde André entrou. Era uma sala monumental, onde tudo parecia dourado: tecto, móveis, paredes e até as molduras das janelas abertas para o parque.

Kercadiou estava sentado junto de uma destas portas-janelas, levantou-se de um salto e franziu as sobrancelhas.

- O quê?... Quem?... André?

Depois, conservou-se silencioso por momentos. O rosto, devastado pela doença, tinha empalidecido. Por fim, murmurou:

- Que vens fazer aqui? Tu ofendeste-me. E o que é pior, cometeste um acto inqualificável, deixando-nos sem notícias!

- Padrinho, foi-me impossível fazê-lo porque, dando-lhe a minha morada, arriscava a vida. Depois, mais tarde, conheci... a miséria - é a palavra exacta. Mas por nada deste mundo queria perdir-lhe socorro!

Agora, Kercadiou parecia inflexível.

- Merecias as atribulações que sofreste. De qualquer forma, verifico que não abateram o teu impudor. Imaginas que basta apresentares-te aqui para que te perdoe? Que engano! Cometeste grave falta. Traíste a confiança que tinha em ti. Pertences ao grupo dos patifes que desencadearam a revolução!

Aproximou-se da chaminé e puxou o cordão da campainha. Disse ao criado que abriu a porta:

- Benoit, reconduz o senhor Moreau!

André atravessava o parque, quando viu então Aline colocar-se diante dele a barrar-lhe a passagem. Ficaram frente a frente.

- André, não quero ver-te partir desta maneira. Conheço meu tio e sei que, dentro de pouco tempo, lamentará e desejará o teu regresso. Então ficará desesperado por não saber onde encontrar-te.

- Acreditas nisso?

- Tenho a certeza. Vieste em má ocasião. Ele está contrariado por ter sido forçado a deixar a Bretanha. Esta casa é muito luxuosa para ele. Lamenta o seu castelo, as caçadas, as suas terras. Evidentemente, considera-te um dos responsáveis pela actual situação. Dentro de pouco tempo, se eu conseguir convencer meu tio de que tu não mereces o tratamento que te dá, em que morada te poderei mandar procurar?

- Moro na Rua do Acaso, número treze, junto do palácio real.

Ela repetiu:

- Rua do Acaso, número treze. E agora vou acompanhar-te ao portão.

Atravessaram o parque, lado a lado. O sol, deslizando por entre as árvores, desenhava arabescos complicados no saibro da rua que seguiam.

- Sabes que mudaste muito, André? Estás muito elegante! Os teus negócios devem ir prósperos. Sinto-me feliz por ti.

E, sem lhe dar tempo a responder, acrescentou, com aquela espontaneidade que lhe dava tanto encanto:

- Tenho pensado muito em ti! Eras o único ser de quem eu poderia esperar uma ajuda e o único que nunca ousou dizer-me a verdade. Porque não me deste qualquer sinal de vida?

- Porquê? - disse André com admiração. - Mas, Aline, esqueceste o que se passou entre nós, em Nantes, na tua carruagem?

- Queres-me mal por isso?

- Não. De resto, desconheço o ódio.

- Queria perguntar-te - disse ela a meia voz - o que se passou de verdade no Teatro Feydeau!

André franziu as sobrancelhas. Fez um resumo da memorável noite. Aline escutou-o, atenta. Depois, levantou a cabeça:

- É bem o que me disseram. E a companhia... dos actores?

- Não sei para onde foram. De resto, pouco me interessam.

- E a menina Binet? Deste-me a entender que...

André encolheu os ombros. Depois sorriu:

- Como pudeste acreditar... Mas tu, em que ponto estás com...

No momento de dizer “com La Tour”, foi incapaz de pronunciar esse nome. Aline compreendeu-o.

- As coisas estão no mesmo ponto. Ele está em Paris. Ontem veio, pois soube que estávamos cá. Por várias vezes tentei fazer-lhe compreender... Mas por causa de meu tio, que envelheceu muito nestes últimos meses - pudeste ver tu mesmo! - e cuja saúde está cada vez mais frágil, é-me impossível...

Como hesitasse, André julgou poder completar a frase:

- Resolver as coisas?

Ela olhou-o em silêncio, com uma expressão cheia de altivez.

- De qualquer maneira, não casarás com o marquês. Está próximo o dia em que...

Calou-se a tempo.

- Que queres dizer?

- Oh!, nada... Ou antes, sim: que és muito bela, encantadora, muito pura para esse homem... esse monstro...

Ia a dizer alguma coisa mais, quando uma carruagem parou junto à sua, em frente ao portão. Aline disse:

- É minha tia, a senhora de Plougastel. Está em Paris há já algumas semanas. É muito boa para mim. Estou certa de que me ajudará a reconciliar-te com meu tio.

Neste momento a carruagem passou o portão e parou diante dos jovens. Uma senhora de idade inclinou-se à portinhola:

- Bom dia, Aline!

- Bom dia, tia.

- Quem está contigo?

- É André. Não o reconhece?

- - Mas, sim! - gritou a senhora.

André beijou a mão que se lhe estendia e ficou calado. Viúva desde há muito, a senhora Plougastel era irmã de Kercadiou. Quando pequeno, André tinha brincado muito no belo parque que rodeava o seu castelo, nos arredores de Gavrillac.

- Como mudaste, André! E deste-nos bastantes inquietações durante todo este ano! Que fizeste?

- Tia - disse Aline -, tenho coisas importantes a dizer-lhe. Entre e espere-me no salão pequeno, sem ver meu tio. Vou levar André até ao carro.

- Adeus, André. Espero que não fiques agora tanto tempo sem nos dar notícias!

André inclinou-se.

Um momento depois, quando ia a subir para o carro, Aline pegou-lhe na mão:

- Logo que tenha conseguido convencer o tio, far-te-ei saber, de qualquer maneira.

Três dias mais tarde, à noite, levaram-lhe uma carta de Aline, nestes termos:

 

           “Caro André

Consegui. Graças a nós - minha tia e eu -, o teu padrinho está pronto a esquecer, “com a condição - diz ele - de não falares mais em política”. Infelizmente está de novo doente e teve de voltar à cama. Não fora isso, iria eu própria dar-te a boa nova. Esperamos-te.

                     Aline”

 

Mas, no dia seguinte, quando se preparava para partir para Meudon, André recebeu uma visita...

 

                 Entreabre-se a porta da política

Leduc, o ajudante de André, entrou no quarto e disse:

- Estão ali dois senhores que o procuram.

André acabou de vestir-se, atravessou a sala de armas e encontrou na antecâmara o seu amigo Le Chapelier; atrás dele estava uma homem hercúleo, com o rosto desfigurado por marcas de varíola. Que idade poderia ele ter? Talvez trinta anos.

Le Chapelier, em tom grave, fez as apresentações:

- André Moreau... o senhor Danton, advogado e membro do Clube dos Franciscanos... de quem, com certeza, já ouviste falar.

Sim, André tinha já ouvido falar de Danton. A sua fama crescia de dia para dia.

O próprio Danton tirou-o de meditações, dizendo com uma voz que fazia lembrar o ribombar do trovão:

- Le Chapelier falou-me de si. Para ele, você é um patriota convicto!

- Patriota, sim. Mas porque juntar-lhe esse qualificativo? Quando se é patriota, não se é sempre convicto?

- Vejo que gosta de gracejos - e riu, com um riso tão poderoso que as janelas da sala vibraram. - Mas, vamos ao caso. Certamente já ouviu contar o que ontem se passou na Assembleia?

- Palavra que não.

- Como? Não sabe que o rei abriu a fronteira às tropas austríacas e que estas se preparam para...

- Sim, isso sei - disse André com certa frieza. A atitude do interlocutor começava a bulir-lhe com os nervos.

- Então, que pensa? - Dantou abriu os braços e inclinou-se para a frente.

André voltou-se para Le Chapelier:

- Não percebo. Trouxeste este senhor para que ele me faça um exame de consciência?

- Le Chapelier, o teu amigo é muito susceptível! Não é um homem, mas um porco-espinho!

- Vejamos, vejamos! - Le Chapelier tomou um tom conciliador. - Ouve, André, temos necessidade da tua ajuda. Danton acha que és o homem que procuramos. No momento em que multiplicamos os esforços para pôr de pé uma constituição, o rei toma, sem nos consultar, a decisão de abrir as fronteiras aos inimigos da França. Esta medida é o cúmulo! Em resultado disso, começou na Assembleia uma guerra aberta entre o Terceiro Estado e os privilegiados.

- E não foi sempre assim? - rugiu Danton.

- Certamente - disse Chapelier. - Mas esta guerra acaba de entrar na sua fase mais aguda. Houve já um duelo entre Lameth, representante do Jura, e o duque de Castries. Lameth foi ferido! Para o vingar, o povo, furioso, saqueou o palácio do adversário. Por outro lado, Mirabeau, em cada sessão, é provocado, insultado. Até aqui, contudo, ele tem conservado todo o sangue-frio. Infelizmente, alguns dos nossos colegas rendem-se pouco a pouco. O sangue corre. Os recontros multiplicam-se. A espada, exímia nas mãos da nobreza, é agora utilizada como último argumento político. A situação torna-se intolerável. Ainda há dois dias, perante toda a Assembleia, o senhor d'Ambly ameaçou Mirabeau com a bengala. Ontem, Faussigny levantou-se e disse aos representantes da nobreza: “Lancemo-nos sobre estes patifes, de espada na mão!” Sim, André, estas foram, precisamente, as palavras que pronunciou!

- Claro - disse André -, é mais simples e mais rápido matar do que legislar...

- Mas ainda não é tudo. Na confusão que se seguiu a estas palavras, Lagron, representante de Ancenis, deu uma réplica que nós não ouvimos. Empurraram-no, quando quis sair da sala do Manejo, onde, como sabes, a Assembleia se reúne agora. Claro que teve de se servir dos punhos para afastar a multidão. Um aristocrata gritou: “Senhor! Bateu-me!” O duelo deu-se esta manhã, nos Campos Elíseos. Lagron foi morto de um só golpe, em pleno peito. O pobre diabo nunca tinha pegado numa espada. Foi preciso emprestar-lhe uma, antes de ir para o campo.

André continuava a pensar em Filipe. E, agora, cerrava os punhos, de maxilares contraídos.

Danton olhava-o com atenção. Perguntou:

- Então, a sua opinião? Não seria justo castigar essa gente, voltando contra eles as armas de que se servem para nos liquidar?

- Com efeito... - murmurou André, sempre mergulhado nos seus pensamentos.

- Escuta, André. Vou fazer-te perceber agora em que temos necessidade de ti. Entre os teus alunos, quero dizer, naturalmente entre os que não pertencem à nobreza deve haver alguns que sejam hoje de primeira força no uso das armas...

Danton cortou-lhe a palavra com voz de estentor:

- Sim; colocá-los-íamos à saída do Manejo, sob a sua direcção, porque, claro está, você segui-los-ia de perto. Daí resultarem alguns duelos e alguns aristocratas mortos ou feridos. Por mim, preferia-os mortos... Que pensa disto?

André olhava-os fixamente, com expressão indecifrável.

- Pois bem, que pensa disto? - repetiu Danton.

- Muito engenhoso!

André voltou costas e aproximou-se da janelinha que iluminava a antecâmara.

- É tudo o que encontra para dizer?

- Sim, é tudo... Além de que o desculpo, senhor Danton, porque não me conhece!

E, voltando-se para Le Chapelier:

- Mas tu, como pudeste pensar que eu aceitaria semelhante proposta?

Le Chapelier corou até às orelhas.

- Desculpa, André...

- Por favor! - disse este. - Volta a procurar-me amanhã de manhã; hoje estou muito ocupado. Aqui onde me vês, preparo-me para seguir para Meudon...

- Se me permite, senhor - disse Danton -, voltarei com Le Chapelier. Porque é absolutamente necessário que, juntos, encontremos o meio de reduzir à impotência o senhor de La Tour e os seus amigos.

- Quem?

- Eu disse o senhor de La Tour.

- Em que medida a proposta que me fez diz respeito a esse senhor?

- Mas... o principal assassino é ele! - exclamou Le Chapelier. - A sua última vítima foi Lagron, de quem acabei de te falar.

- É vosso amigo? - perguntou Danton. André baixou a cabeça. Disse com voz pausada:

- E quer que eu o mate?

- Exacto. Mas devo acrescentar que não é tarefa para aprendiz.

- Isso muda tudo... É tentador... muito tentador...

- Então aceita?

- Um momento - disse André, levantando a mão. Tornou a aproximar-se da janela e reflectiu. Depressa a resolução lhe apareceu, clara, nítida, indiscutível. Deu meia volta. Estava muito pálido. Nas pupilas escuras brilhava uma luz estranha. - Vai ser difícil, sem dúvida, substituir esse pobre Lagron - disse com fingida indiferença. - Não devem ser muitas as pessoas que queiram cair sob os golpes dos aristocratas...

- Com efeito, não vai ser fácil. - Le Chapelier franziu o sobrolho.

Depois, de repente, o rosto iluminou-se-lhe, como se acabasse de ter uma inspiração.

- André! - gritou-lhe. -- Aceitarias, tu...

- É justamente o que tenho estado a pensar. Desta forma, eu teria um lugar na Assembleia e, se La Tour me desafiasse... pois bem, creio que não lhe negaria satisfação... Vês - acrescentou, sorrindo -, eu sou um parvo que se esforça por parecer honesto. Para sempre, fiquei marcado pela personalidade de Scaramouche, esse amável sofista. Crês que Ancenis me aceitará como representante?

- Qual a cidade da Bretanha que recusaria a candidatura de Omnes Omnibus? - respondeu Le Chapelier, com ardor.

- Certamente será preciso que eu vá a Ancenis?

- Nada disso! Basta uma carta minha para a municipalidade.

Então, combinado?

- Sim, combinado. - Ao responder, André olhou Le Chapelier bem nos olhos.

 

                         Os espadachins

O dia estava chuvoso e sombrio, uma luz cinzenta banhava a sala da Assembleia. Nas oito filas de cadeiras, dispostas em círculo, sentavam-se uns novecentos representantes do Terceiro Estado, da Nobreza e do Clero.

Subitamente, o brouhaha cessou e todas as cabeças, até as dos secretários sentados na mesa redonda, ao centro, se voltaram para um jovem vestido de negro que, pela primeira vez, subia os degraus da tribuna. Um dos oficiais anunciou nesse momento:

- O senhor André Moreau, deputado por Ancenis, substitui Emmanuel Lagron, falecido.

O marquês de La Tour, que parecia sonolento junto do primo Chabrillane, abriu os olhos. O sucessor do deputado que ele tinha assassinado dias antes não podia deixar de despertar-lhe interesse.

- Senhores! - começou André. - Substituo Emmanuel Lagron, assassinado a semana passada.

La Tour pensou: “Na verdade, trata-se de uma provocação!” Como a nobreza protestasse, com indignação, André voltou-se para ela e respondeu, sorrindo:

- Estes senhores da direita parece não terem gostado do que acabo de dizer. Isso não me espanta. Eles nunca gostaram da verdade!

Desta vez foi uma algazarra. E, sobrepujando todo este concerto, a voz de La Tour ergueu-se, cortante:

- Saltimbanco! Vadio! Não estás no palco! André respondeu-lhe em tom igual:

- Tem razão, senhor. A Assembleia não é um teatro. Mas vai tornar-se um local de caça... onde os animais serão representados pelos espadachins!

A algazarra tornou-se ensurdecedora. André olhou em volta. A pouca distância, Le Chapelier que, de momento, não ocupava o lugar presidencial, encorajava-o com a mão e o sorriso. Kersaint - outro bretão, sentado junto de Le Chapelier - estava de costas voltadas. Um pouco mais longe, Mirabeau, com a cabeça leonina atirada para trás, olhava o orador com uma expressão de cepticismo e de surpresa. Um pouco mais longe ainda, Robespierre examinava o representante de Ancenis com um ricto gelado. No fim da sessão, quando saía da sala acompanhado por Le Chapelier, André viu que vários representantes bretões o rodeavam, como guarda-costas. Dirigiu-se para a saída, sob os olhares furibundos dos nobres, espalhados pela entrada, em pequenos grupos.

Depois, enquanto via a chuva cair no passeio, um homem apareceu a seu lado, empurrou-o brutalmente e fê-lo cair. Com imensa decepção, reconheceu Chabrillane. “Oh! - pensou - começamos sempre por este...”

- Creio, senhor, que me empurrou - disse, subindo o passeio.

Sem responder, Chabrillane aproximou-se novamente e pisou-o.

- Não gosto que me pisem! Tenho os pés sensíveis, imagine... Que disse?

Ligeiramente desorientado, o cavaleiro respondeu:

- Não disse nada...

- Sério? Parecia-me que me pedia desculpa.

- Desculpa? Começo a achá-lo divertido. E de novo Chabrillane o empurrou.

- Aleija-me, senhor! - gritou André, voltando ao passeio.

- Mas visto que este divertimento parece agradar-lhe...

Um instante depois, o elegante cavaleiro, atirado por um braço que a prática assídua da esgrima tinha endurecido, estatelava-se no meio da rua. Sob os olhares trocistas dos assistentes, levantou-se coberto de lama e avançou para André, gaguejando:

- Eu mato-o... Exijo uma reparação! André desatou a rir.

- Era isso que desejava? Mas, senhor, devia tê-lo dito mais cedo. Evitava que o atirasse para a lama! Está em bonito estado!

- Quando nos encontramos? - perguntou Chabrillane, lívido.

- Uma vez que, de nós ambos é o senhor quem tem a intenção de matar, escolha o momento.

- Está bem, amanhã de manhã, no Bosque. Leve um amigo.

- Entendido, senhor, no Bosque, amanhã de manhã. Levarei um amigo. Espero que faça bom tempo. Detesto a chuva.

O cavalheiro olhou André e viu com surpresa que sorria o mais amavelmente possível.

- E a hora, senhor?

- Nove horas - respondeu Chabrillane, secamente.

E, muito digno no seu fato manchado de lama e sob os remoques dos representantes do Terceiro Estado, postados atrás de André, tomou a direcção da Rua Dauphine, onde a carruagem o esperava. Na manhã seguinte, quando a sessão abriu, os lugares de André e de Chabrillane estavam vazios. A consternação reinava entre os representantes do povo. Alguns lamentavam ter trazido até eles um homem tão imprudente. Outros, formando pequeno grupo com Le Chapelier, não desesperavam de o voltar a ver.

As dez horas menos dez, André apareceu, frio e indiferente aos muitos olhares cravados nele. O orador, representante da nobreza, parou no meio do discurso, de boca aberta, os olhos arregalados pela admiração. Depois, uma voz traduziu a opinião geral: “O encontro não se deu...” André, que se preparava para se sentar, julgou necessário revelar a verdade:

- Senhor presidente, peço-lhe que me desculpe o atraso. Fui retido por um compromisso a que me era impossível faltar. Devo também apresentar-lhe as desculpas do senhor de Chabrillane. A sua ausência da Assembleia será, contudo, definitiva.

Depois de dizer isto, André sentou-se no meio do silêncio geral...

 

                                   O paladino do povo

No final da sessão, o jovem teve a surpresa de se ver sozinho na entrada da Assembleia.

Os amigos, julgando-o talvez bastante hábil e bastante forte para se defender sem eles, não o acompanharam.

Doze fidalgos esperavam-no à porta, lançando-lhe olhares hostis. Parou, procurando entre eles o senhor de La Tour. Mas o marquês parecia ter-se evaporado. Logo que soubera do desastroso acidente que vitimara Chabrillane, deixara a sala, com certeza para ir buscar o corpo do primo. Porque não voltara? Não quereria, então, vingar o cavaleiro?

Decepcionado, André pensava: “É pena! Vou ser forçado a provocar uma hecatombe antes de encontrar o meu marquês? Em suma, só ele me interessa, só ele! Os outros não passam de objectos sem valor. Ah! Tanto pior, pois eles parecem desejá-lo... Quem seguirá, destes cavalheiros?”

Quem seguiu foi um certo visconde de La Motte-Royau, uma das melhores espadas da nobreza.

Na manhã seguinte, quarta-feira, chegando outra vez tarde à Assembleia, André, depois de se ter desculpado, declarou:

- Quanto ao senhor de La Motte-Royau, durante algumas semanas não perturbará as nossas decisões... admitindo que se cure de uma ferida que teve a infelicidade de receber há pouco. Na quinta-feira, o mesmo atraso, e quase idêntica declaração, visando desta vez Blavon. Na sexta-feira, depois de ter desculpado Troiscantins, André voltou-se para a nobreza, com a mais sincera simpatia:

- Sinto-me feliz por informá-los, senhores, que Troiscantins está entre as mãos de um excelente operador; espero que vos devolva o vosso amigo, antes de expirar o presente trimestre.

Estas declarações diárias criaram uma atmosfera irreal, paralisante. Todos os representantes, quer pertencessem à Nobreza ou ao Terceiro Estado e até ao Clero, repetiam com admiração: “Será possível? Um pequeno advogado de província? Ter despachado, em poucos dias, quatro duelistas dos mais notáveis da Assembleia? E anuncia-nos isto com uma tal indiferença!...”

Todos começavam a achá-lo uma pessoa extraordinária. A sua fama não tardou a espalhar-se por Paris. Camilo Desmoulins dedicou-lhe, no seu jornal - “As Revoluções de França e de Brabante” - um panegírico onde o chamava “o paladino do Terceiro Estado”. Em contrapartida, o panfleto realista periódico “Os Actos dos Apóstolos” falava dele com desdém, mas sobretudo com mal dissimulado rancor.

No sábado dessa semana tão cheia de acontecimentos, quer dizer, na tarde do dia em que se havia batido com Troiscantins, André, ao sair da Assembleia, entre Le Chapelier e Kersaint, viu, com surpresa, que os provocadores nobres tinham desertado.

- Ter-se-iam cansado?

- Cansados de esbarrar contigo, sim! - disse Le Chapelier. - Entretanto, podes estar certo de que não vão deixar de lançar-se sobre um adversário menos perigoso...

André estava cada vez mais decepcionado. Tinha-se metido nessa tarefa com um desígnio determinado. Claro que sentira alguma satisfação mandando para o outro mundo o cavaleiro Chabrillane, cúmplice no assassínio de Filipe de Vilmorin. Mas aos outros três, defrontara-os com alguma repugnância. Enfim, tudo isso não passava de aperitivo. O que ele queria era La Tour!

Depois, o círculo fechar-se-ia e ele poderia de novo voltar à vida. Mas La Tour continuava invisível. Logo que cada sessão acabava, desaparecia. Seria necessário armar-lhe uma cilada?

Ao chegar à porta, André viu, conversando no passeio, um grupo de fidalgos e, entre eles... La Tour! Cerrou os lábios. O coração bateu-lhe mais depressa. “Calma! - pensava. - É ele que deve procurar-me, senão - tanto mais que 'Os Actos dos Apóstolos' descobriram esta manhã que sou mestre-de-armas profissional - todo o mal que eu fizer será vão.”

Olhou para o lado oposto, mas disse em voz alta:

- Começo a crer que terei de ir todos os dias ao Bosque de Bolonha!

Pelo canto do olho notou, com satisfação, que todos os fidalgos tinham deixado de conversar e o olhavam.

- Não achas estranho que o assassino de Lagron não tenha ainda atacado o seu sucessor? - disse, enquanto avançava entre os dois companheiros. - Mas, no fim de contas, não obedece, talvez, senão à prudência!

Pronunciou estas últimas palavras, com um risinho insolente, no momento preciso em que passava junto do grupo dos fidalgos. Quase no mesmo instante, ouviu atrás de si um passo rápido e sentiu a mão de alguém tocar-lhe no ombro. Voltou-se. La Tour tinha o rosto impassível, mas os olhos faiscavam. Disse com voz alterada pela cólera:

- Creio que é para mim que fala!

- Sim, visto que falava de um assassino. Não era a si que me dirigia, mas aos meus amigos.

André mantinha-se muito calmo.

- Quero crer que se dirigia aos seus amigos; porém não havia razão nenhuma para falar tão alto.

- Alto? É talvez porque o senhor tem o ouvido mais apurado do que é comum.

- Ao que vejo, procurou ofender-me!

- Por nada deste mundo, senhor de La Tour. Mas há uma coisa que detesto: é que me toquem com as mãos que não posso considerar limpas. Nestes casos é preciso mesmo não contar com a minha proverbial delicadeza.

A tais palavras o marquês perdeu o controlo e gritou:

- Não sei mais nada do que isto: acaba de tratar-me como assassino! Fê-lo pela primeira vez em Gavrillac. E em Nantes, no Teatro Feydeau, você encarregou a multidão de me aplicar esse epíteto!

- E eu a julgar que o senhor tinha esquecido tudo isso! Enganei-me...

- Tratou-me, ou antes, fez com que me tratassem de criminoso. E isto só porque me servi da minha habilidade de esgrimista para mandar ad paires um indivíduo que ameaçava gravemente a sociedade a que pertenço. Mas você, hoje mestre-de-armas, não hesitou em matar ou ferir pessoas que, de espada na mão, lhe são naturalmente inferiores!

Os outros fidalgos aproximaram-se. Pelas suas expressões, era fácil compreender o que pensavam: “Como pode La Tour, um nobre, descer a discutir com este idiota? Degrada-se e, o que é pior, ridiculariza-se!”

André continuou com um sorriso:

- Não esqueça, senhor, que eles me provocaram... por meios, aliás, estúpidos. Um deitou-me ao chão, debaixo da chuva que caía. O segundo esbofeteou-me. O terceiro pisou-me. O quarto chamou-me todos os nomes. Claro, eu exerço a profissão de mestre-de-armas. É razão para me deixar maltratar? Evidentemente, se os seus amigos soubessem que me sirvo perfeitamente da espada, talvez não tivessem levado tão longe a sua audácia. Mas, censura-me por tê-los mais ou menos corrigido... Que injustiça, senhor, que injustiça!

- Comediante! - o marquês tinha um ar de desprezo. - Os seus argumentos não têm peso. Os meus amigos apenas tiveram a desgraça de discutir consigo e de o acompanhar até ao duelo!

- Aí está uma coisa que nunca faria, não é?

- E porque não, pergunto eu? - o rosto do marquês tinha enrubescido.

André pareceu reflectir. Depois, com voz lenta e bem pausada.

- Mas, senhor, porque prefere vítimas fáceis, um Lagron.. um Filipe de Vilmorin, por exemplo... pobres carneiros que se deixaram degolar sem mesmo tentar um gesto de defesa e que...

As palavras ficaram-lhe na garganta. O marquês esbofeteou-o.

André recuou. Por momentos, as pupilas chamejaram. Mas, quase logo, dominou-se e disse, sorrindo e olhando o inimigo bem nos olhos:

- Tão obtuso como os outros! Estende-se-lhe uma isca, e zás! Lança-se a ela! No fundo, a história é sempre a mesma. Filipe de Vilmorin esbofeteou-o porque o provocou, injuriando-lhe gravemente a mãe. O senhor faz-me o mesmo porque acabo de lhe lançar em rosto uma verdade que não pode suportar. Mas, em ambos os casos, a baixeza está sempre do seu lado... Estou pronto a encontrar-me consigo quando quiser, senhor.

- Julga que quero outra coisa?

André voltou-se para Le Chapelier e disse-lhe com um suspiro:

- E aqui tens, meu caro! Será preciso pois que eu volte a esse maldito bosque. Queres fazer o favor de combinar com um amigo do senhor de La Tour o encontro para amanhã, às nove horas... como de costume?

- Não, amanhã não - disse secamente o marquês. - Tenho de ir ao campo...

- Então, domingo, às nove horas?

- Não me bato ao domingo.

- Não o sabia tão bom cristão! - André estava irónico. E voltando-se, de novo, para Le Chapelier:

- Arranja as coisas de forma a que o assunto não passe de segunda-feira.

Depois de ter cumprimentado o marquês com um sinal de cabeça, tomou o braço de Kersaint e afastou-se ligeiro.

- Safa! - gritou Kersaint. - Representou bem o seu papel.

- Claro! - respondeu André bem-humorado. - Em matéria de duelos, fui aluno dos aristocratas e, confesso, as suas lições foram-me proveitosas.

Mas, nessa noite, sozinho, na sala de armas vazia, pensou: “Que dirão de mim em Meudon? Devem julgar-me frio, indiferente, ingrato. Contudo... Mas a solução está agora nas minhas mãos. Não tenho o direito de fraquejar seja pelo que for. La Tour é o último obstáculo. Tenho-o na mão! Vou liquidá-lo! Depois...

Antes de deitar-se, ajoelhou, enfronhou-se numa oração rápida em que invocou o espírito do amigo:

- Tenho necessidade de ti, Filipe! Peço-te, ajuda-me a manter a promessa que fiz sobre o teu cadáver, há já dois anos, em Gavrillac!

 

                   Orgulho desmedido

Na segunda-feira seguinte, às oito horas, André preparava-se para tomar o pequeno-almoço em companhia de Le Chapelier, que devia servir-lhe de testemunha, quando Leduc, o assistente, lhe veio dizer que uma rapariga o esperava no vestíbulo.

- - O nome?

- Menina de Kercadiou.

André ergueu-se de um salto. Depois, para esconder a perturbação, olhou o relógio, pediu desculpa a Le Chapelier, atravessou a sala de armas e abriu a porta.

- Aline! - gritou em tom rápido. - Que pena teres escolhido este momento para vir ver-me! Não posso dedicar-te senão uns curtos segundos. Um negócio urgente...

Ela fê-lo calar com um gesto:

- É inútil representar esta comédia! O teu negócio urgente, sei eu qual é! O senhor de La Tour foi ontem a Meudon!

Pousou-lhe as mãos trémulas nos ombros e continuou:

- Este duelo não pode dar-se!

- E porquê, pergunto eu?

- Porque te arriscas a morrer.

Durante segundos ele não pôde fazer mais do que olhá-la. Depois, sorrindo, perguntou:

- Pensas meter-me medo? Se assim é, perdes tempo.

- Deves estar louco! O senhor de La Tour tem fama de ser um dos duelistas mais perigosos da França.

- Nunca notaste que muitas reputações são exageradas? Chabrillane, Blavon, La Motte-Royau e Troiscantins tinham, também, a fama de saber servir-se da espada. Na verdade, querida Aline, se não podes invocar outra razão que não seja o perigo a que julgas que vou expor-me...

Aline deixou cair as mãos que, imediatamente, escondeu no casaco.

- Há outra razão.

- Qual? Fala depressa, tenho o tempo contado.

- O teu padrinho... Está desta vez decidido a não tornar a ver-te, se te bateres com La Tour. E, podes crer-me, manterá a palavra. Até aqui, só estava furioso contigo, agora está desesperado.

- Com efeito, é um argumento de peso. Mas... Ergueu a cabeça e prosseguiu:

- Mas há muitas coisas entre La Tour e eu. Sabes que jurei vingar Filipe. Poderia alguma vez desperdiçar uma ocasião que chegou, tão a propósito, para cumprir a minha promessa?

- Toma cuidado! Não a tiveste ainda.

- É verdade - sorriu. - Mas tê-la-ei dentro de uma hora. Depois, bruscamente:

- Porque não apresentaste primeiro o teu pedido a La Tour?

- Foi o que fiz.

- Então?

- Recusou.

- Diabo! - de novo consultou o relógio. Neste momento, Le Chapelier abriu a porta:

- Desculpa, meu caro. O tempo passa. Demoras ainda?...

- Vou já. Dirigiu-se a Aline:

- Espera-me aqui. Terei imenso prazer em ver-te quando voltar. Não demorarei.

A jovem, sentindo que as pernas lhe fraquejavam, sentou-se numa das cadeiras do vestíbulo. Ouviu André descer a escada com o amigo. Conversava em tom calmo, normal. O ruído da sua voz extinguiu-se. “ Está doido! - pensou Aline, com desespero. - Nem pensa que corre para a morte!...” Por um bocado ficou imóvel, sempre com as mãos dentro do casaco. Que fazer? Segui-lo até ao bosque, lançar-se entre ele e La Tour? Mas isso serviria apenas para desencadear um escândalo! As convenções! Que terrível barreira!...

Pensou depois na tia, a senhora de Plougastel, que a esperava na carruagem, um pouco afastada da casa, à esquina da Rua do Acaso e da Rua de Richelieu.

Aline tinha chegado a casa da tia na véspera à noite. Quando soube que o marquês e André se iriam bater, a velha senhora, tomada de grande pânico, gritou:

- É preciso impedi-lo, a todo o custo, a todo o custo! Percebes, Aline?

Tinham então decidido esta visita que Aline via agora ter sido inútil, tragicamente inútil. Sem pressa, levantou-se. Ouviu então passos na escada; a porta abriu-se e apareceu a senhora de Plougastel.

- Aline! Pensei que não demorasses. Não te vendo voltar, subi...

- Ah! Minha tia! - gritou Aline, lançando-se nos braços da velha senhora. - Não consegui demovê-lo. Está perdido!

- Já foi?

- Sim.

- Há quanto tempo?

- Há cinco... dez minutos. Não sei bem. O encontro deve ser às nove horas, no bosque...

- Mas para que lado?

- Ignoro-o.

- Se assim é, nada podemos fazer! - murmurou a senhora de Plougastel.

 

                   Uma força sobre-humana

Andando sempre com grande pressa, André conseguiu chegar ao terreno alguns minutos antes das nove horas. La Tour esperava-o já. Estava acompanhado por um homem moreno, o senhor d'Ornefond, comprimido no uniforme azul de capitão da Guarda Real.

Os preparativos - verificação das lâminas, determinação dos lugares - foram breves, sem nervosismo. Os dois adversários tiraram os casacos e os coletes, arregaçaram as mangas das camisas acima dos cotovelos e puseram-se em guarda.

Le Chapelier e o senhor d'Ornefond estavam frente a frente, de um lado e outro dos combatentes.

- Vamos, senhores - disse Le Chapelier, escolhido como director do combate.

Com prudência, as espadas cruzaram-se, tinindo. Depois, quase imediatamente, envolveram-se em pancadas e fugas tão rápidas, que as duas testemunhas dificilmente as seguiam com o olhar. O marquês conduzia a luta com tanta impetuosidade como vigor; André não tardou a perceber que defrontava um adversário muito superior aos que combatera na semana anterior.

La Tour, graças a um treino diário, adquirira extraordinária rapidez e incomparável técnica. Por outro lado - e isto tornava-o ainda mais temível - era fisicamente mais forte e mais alto do que André. E percebia-se que estava não só calmo e muito senhor de si, mas intrépido e decidido.

André pensou: “Conseguirei quebrar esta parede de gelo?” Para que o castigo fosse tanto quanto possível completo, ele desejava que o marquês percebesse, antes de morrer, que tinha sido impotente, apesar da sua virtuosidade, para furtar-se à sorte que ele próprio havia infligido a Filipe de Vilmorin.

Desviando um primeiro golpe, fundo, que veio como resultado de uma série de ataques, de fugas, de toques, de golpes e contragolpes, André não pôde deixar de sorrir.

Este sorriso teve o condão de surpreender e desamparar La Tour por um curto instante. Desiludido por não ter podido terminar o combate ao primeiro ataque, começava a compreender, por seu lado, que tinha de defrontar-se com um adversário extremamente perigoso e que, se queria sair ileso do combate, tinha de mostrar-se, pela primeira vez na vida, circunspecto e atento.

Contudo, retomou a iniciativa, partindo do princípio de que no ataque reside a melhor defesa. André não desejava outra coisa. Pensava: “Deixemo-lo gastar-se, fatigar-se. É, para mim, o único meio de o conhecer...” Nova série de choques, de ataques, de fugas. E depois, o golpe a fundo, o mesmo de há bocado, que André aparou com agilidade. Mas, no mesmo momento, a espada de André abriu passagem até ao copo da espada do marquês. Este, surpreso e fascinado com o inesperado ataque, nem sequer tentou furtar-se-lhe.

Sorrindo de novo, André mergulhou o olhar nas pupilas dilatadas de La Tour... e nada fez para aproveitar a vantagem obtida. O momento não chegara ainda!

- Então, senhor, então! - disse em voz rápida. - Quer que enterre a espada no peito de um homem indefeso?

Deu um passo; o marquês, saindo enfim da sua emoção, pôs-se em guarda.

Ornefond deu um suspiro de alívio. Le Chapelier murmurou: “Nome de um cão, André! É preciso que sejas louco para deixar passar uma ocasião como esta!”

Por momentos, André olhou o rosto descomposto de La Tour. E depois disse:

- Lembre-se de Filipe de Vilmorin, senhor! Quereria que passasse o mesmo mau bocado que ele passou, no dia em que o assassinou, no jardim da estalagem de Gavrillac. Mas, de facto, vamos acabar!

Desta vez atacou ele com tão surpreendente rapidez que deu a La Tour a impressão de que a sua espada era dotada de ubiquidade. Depois, após um incitamento em sexta e no momento em que o adversário estava descoberto, passou a terça e enterrou. O marquês aparou demasiado tarde o golpe; a lâmina de André rasgou-lhe o braço direito em grande extensão.

La Tour largou a espada e ficou imóvel, de dentes cerrados, o rosto cor de cinza, o peito arquejante.

André viveu os mais trágicos momentos da sua vida. O primeiro impulso foi atacar de novo e liquidar o adversário, trespassando o seu inimigo! Que viu ele nos olhos dilatados do marquês, nos traços convulsos, no estremecimento dos lábios? Teve piedade? Não, não, não foi isso, tanto mais que era grande a sua cólera ao sentir que a presa, perseguida durante tantos anos, lhe escaparia, lhe escapava já...

É que no instante em que ia atacar teve a impressão de que mão invisível pousava na sua e, uma força sobre-humana, inclinava para o chão a ponta ensanguentada da espada. Ele próprio baixou a cabeça, invadido por uma angústia imensa...

Ornefond acabava de chegar junto do amigo. Gritou:

- Estás ferido!

- Não é nada - respondeu o marquês -, apenas uma beliscadura...

No entanto, a boca tremia-lhe de dor, o sangue começava a escorrer pelo antebraço e pela manga da camisa.

Ornefond tirou do bolso um lenço e, para fazer uma ligadura, rasgou-o ao meio.

André continuava no mesmo sítio. Parecia embrutecido. Não teria saído do sonho se Le Chapelier lhe não tocasse nas costas.

Levantou a cabeça, finalmente; foi buscar o casaco e o colete e, sem olhar sequer o adversário, afastou-se em silêncio, a passos lentos, acompanhado pelo amigo, em direcção à carruagem que os esperava.

 

                       Razão de peso

Durante todo o tempo em que a Assembleia Nacional se esforçou para dar à França uma Constituição, o senhor de La Tour não voltou mais ali; nem mesmo a Paris. A ferida que André lhe fizera durante o duelo poderia ser ligeira, mas a que abriu no seu orgulho era grave, mesmo mortal.

Correu o boato da sua emigração. Na verdade, tinha-se juntado aos aristocratas que iam e vinham das Tulherias para o quartel-general em Coblenz. Tinha-se tornado um dos membros do serviço secreto dos realistas que deviam acabar por precipitar a queda da monarquia.

André, vencendo a amargura e sem sequer fazer a si mesmo perguntas sobre a misteriosa força que o impedira de matar o marquês, evitava, claro está, voltar a casa de Kercadiou.

Abandonou, praticamente, a sala de armas e enfronhou-se na política com ardor ainda maior. Em Setembro do ano seguinte, ao ser dissolvida a Constituinte, foi logo eleito membro da Câmara Legislativa.

Julgou então, como muitos franceses, que a Revolução estava ganha e que bastaria, para o equilíbrio se restabelecer, que o país se governasse por si mesmo, no âmbito da Constituição que lhe fora dada. Mas não contara com a corte, pouco resolvida a inclinar-se perante o novo estado de coisas. E, por meio de intrigas, ela tinha levado metade da Europa a pegar em armas contra a França. Por outro lado, aqui e ali, estalaram perturbações revolucionárias, particularmente graves na Bretanha. André foi encarregado de voltar à sua província natal e de combater a agitação “tanto pela persuasão como pela força”.

Aceite a missão, foi um dos cinco representantes que, na Primavera de 1792, deixaram Paris e partiram para diversas províncias. Mais de dois anos tinham decorrido depois do duelo com La Tour. Os acontecimentos, a que tão intimamente se ligara, tinham acabado por atenuar, na sua memória, as recordações do passado. Cinco meses esteve afastado da capital, aonde foi chamado novamente no princípio de Agosto. Ao tomar o caminho de regresso, a atmosfera era mais sombria do que nunca o fora desde 1789- Todos sentiam que a luta entre o povo e os privilegiados se aproximava de uma fase aguda. Mas André não duvidava que o episódio decisivo da sua vida ia principiar...

Por esta época, isto é, nos primeiros dias de Agosto, Aline encontrava-se em casa da senhora de Plougastel. A velha senhora esforçava-se por distrair a rapariga. Entretinha-a, quanto possível, com recepções, espectáculos. Mas Aline, a despeito de uma alegria e vivacidade aparentes, parecia presa de incurável tristeza.

Na tarde do dia 9 de Agosto, Kercadiou enviou à senhora Plougastel uma carta em que, insistentemente, pedia à velha senhora e a Aline que voltassem, sem demora, para junto dele.

Depois de residir vários anos em Meudon, Kercadiou, por simplicidade e bondade naturais, via-se rodeado de geral simpatia. Tornou-se amigo, entre outros, de um certo Rougane, que desempenhava as funções de presidente da Câmara e vinha, de vez em quando, tomar uma chávena de café à elegante casa de campo e jogar uma partida de cartas com o velho fidalgo exilado. Foi por Rougane que Kercadiou soube, na manhã do dia 9, que novas perturbações se iam dar, possivelmente, em Paris.

Aconselhou-o a mandar vir a sobrinha o mais depressa que pudesse. Era possível que, brevemente, todas as pessoas de categoria estivessem expostas a perigos graves.

- Mas como preveni-la?

Rougane não teve dúvidas em mandar uma carta pelo filho, um inteligente rapaz de dezanove anos.

O jovem Rougane sentiu-se bastante impressionado quando o introduziram no grande salão do palácio da senhora Plougastel. Ali mesmo a velha senhora decidiu o que devia fazer. De resto, os receios de Kercadiou confirmavam os dela.

- Vamos partir imediatamente.

- Muito bem, minha senhora. E, agora, peço-lhe licença para me despedir.

Mas a velha senhora não o deixou ir. Tinha lugar para ele também na carruagem que as levaria para Meudon. Seria desnecessário voltar a fazer o caminho a pé. Era só o tempo de se prepararem, ela e a sobrinha.

Meia hora talvez antes do anoitecer, o carro deixou Paris e dirigiu-se para a porta de Saint-Martin. O jovem Rougane sentia-se comovido com a honra de viajar com a senhora Plougastel e, sobretudo, com Aline de Kercadiou, tão simples, apesar da sua beleza e distinção!

À porta da cidade, o cocheiro parou junto das sentinelas da guarda nacional. Um oficial aproximou-se:

- A porta está fechada, minha senhora.

- Fechada? Quer dizer que não podemos passar?

- Sim, senhora. As ordens são formais.

- De quem vêm essas ordens?

- Da Comuna de Paris.

Quando o carro voltava para a Rua do Paraíso, o jovem Rougane disse, de repente:

- Não desespere. Vou voltar a Meudon. Meu pai não porá dificuldades em dar-me os salvo-condutos necessários, um para mim de Meudon para Paris e outro para três pessoas, de que nos serviremos para deixar Paris e atingir Meudon. Mas, para isso, é preciso que parta imediatamente.

- Como conseguirá deixar Paris? - perguntou Aline.

- Não é difícil. Sendo meu pai o presidente da Câmara de Meudon, muita gente o conhece. Basta-me ir à Câmara e dizer que fui surpreendido pelo fechar das portas. Deixar-me-ão passar sem dificuldade.

A senhora de Plougastel e a sobrinha ganharam coragem. Tudo parecia tão simples!

- Seria possível que o seu segundo salvo-conduto fosse para quatro pessoas e não para três? - perguntou a senhora Plougastel. - Quereria que Tiago, o meu cocheiro, nos acompanhasse.

- Está combinado. Conte comigo.

Rougane partiu, prometendo voltar depressa. Mas as horas passaram, umas após outras, veio a noite, sem que houvesse qualquer notícia do seu regresso.

O jovem Rougane não voltou. O pai dissera-lhe: “Este plano é mais delicado do que podes pensar. Não tenho o direito de passar os salvo-condutos que me pedes.”

Juntos, foram ter com Kercadiou. Este esforçou-se o mais que pôde para vencer a vontade do presidente de Meudon. Mas Rougane respondeu, firme:

- Impossível, senhor. Apesar do meu desejo de lhe ser útil, não posso prestar-lhe esse serviço. Seria, da minha parte, uma grave falta de que não posso tomar a responsabilidade.

Quando pai e filho se retiraram, Kercadiou foi sentar-se numa das poltronas da biblioteca. Estremeceu quando, daí a pouco, fortes pancadas soaram na porta de casa.

Benoit, o velho criado, acorreu. No limiar da porta estava um homem novo com um grande casaco de viagem, botas e calças de pele de gamo. Uma pequena espada pendia-lhe da cintura e, em volta desta, uma faixa tricolor; no chapéu, uma insígnia circular de nacionalidade.

- Que deseja, senhor? - perguntou Benoit, com a inquietação com que olhava os soldados.

- Então, Benoit? Por Deus! Não me conheces? Já me esqueceste?

Com mão trémula, o velho criado levantou a lanterna. Por fim, gritou:

- Senhor André! Senhor André! André entrou no vestíbulo e perguntou:

- Queria ver meu padrinho. É possível?

- Mas, com certeza, senhor André. O senhor ainda não se deitou. Estou certo de que vai ficar encantado... Por aqui, senhor André, por aqui.

Mal o jovem entrou na biblioteca, Kercadiou olhou-o com espanto e perguntou:

- Que queres?

- Servi-lo... se me dá licença, padrinho.

Mas esta resposta não teve o condão de desarmar o velhote. Disse:

- Julgava não te tornar a ver.

- Não lhe desobedeceria se não soubesse que lhe posso ser útil. Acabo de estar com Rougane, o presidente da Câmara.

- Que dizes? Desobedecer-me? - Kercadiou, enquanto murmurava isto, olhava para André com expressão de espanto.

- Mas, padrinho, tinha-me proibido entrar em sua casa...

- E é essa a razão por que durante mais de dois anos estiveste sem dar-me notícias?

- Sim...

Ficaram frente a frente, por instantes, incapazes de exprimir a sua emoção. Depois, André pensou que não havia um momento a perder.

- Sabe que sou deputado? Tenho, pois, alguns poderes. Volto para Paris. Posso prestar-lhe o serviço que Rougane recusou. É preciso que Aline e a tia sejam postas em segurança imediatamente.

Kercadiou agarrou a mão do afilhado.

- Meu filho, sabia-te generoso. Se me mostrei duro para contigo foi por querer combater certas inclinações que tinhas. Queria impedir que te enfronhasses nesta política que acabou por levar o nosso país a uma temível situação. O inimigo ameaça-nos as fronteiras. Cá dentro, a guerra civil está prestes a estalar...

Ouvindo a palavra “política”, André esteve a ponto de responder. Mas calou-se a tempo.

- Padrinho, falaremos disso mais tarde. Por agora é preciso salvar Aline e a tia. Em poucas horas talvez Paris esteja a ferro e fogo. A ideia do jovem Rougane era boa. De resto, não vejo outra alternativa.

- Sem dúvida. Mas o presidente não foi dessa opinião.

- A verdade é que ele não quis tomar uma tão grande responsabilidade. Tomá-la-ei eu. Dei a Rougane uma ordem assinada por mim. Ele fica assim defendido, se o negócio lhe correr mal. Em troca, ele deu-me um salvo-conduto que autoriza a entrada e saída de Aline e a da senhora de Plougastel de Paris.

- E esse salvo-conduto tem-lo contigo?

- Sim, aqui está.

O velhote agarrou a folha que André acabava de tirar do bolso, com mãos trémulas; e para a ler, aproximou-se do candeeiro colocado em cima da mesa. Ao acabar a leitura, o rosto estava iluminado pela alegria.

 

                       O refúgio

Na tarde do trágico dia 9 de Agosto, enquanto ao longe, entre a vozearia do povo, as espingardas continuavam a crepitar e o canhão troava a espaços regulares, a senhora de Plougastel e Aline esperavam no luxuoso palácio da Rua do Paraíso. Não tinham a mínima fé no regresso do jovem Rougane. Ao certo, nem sabiam o que esperavam. Eram lá capazes de o dizer!

O cocheiro Tiago entrou então precipitadamente no salão e disse, com voz arfante:

- Senhora, está aí um homem que lhe deseja falar. Entrou no jardim, saltando o muro. Teima que é um amigo, mas tem todo o ar de um salteador.

- Talvez seja o jovem Rougane?

- Não creio, minha senhora. Contudo, é-me difícil afirmá-lo, porque a aba do chapéu esconde-lhe o rosto.

A senhora de Plougastel teve uma curta hesitação, mas acabou por dizer em tom resoluto:

- Mande-o entrar.

Um momento depois, Tiago fazia entrar no salão um homem alto, vestido com uma vulgar capa de viagem; o chapéu, caído para a cara, tinha uma enorme insígnia tricolor.

Mal entrou no salão, tirou o chapéu. A senhora Plougastel reteve uma exclamação de surpresa. Com um sinal mandou sair o cocheiro.

O recém-chegado avançou até ao meio do salão. Respirava apressado e arrastava os pés. Apoiou-se a uma mesa. A senhora Plougastel olhava-o horrorizada. Um pouco afastada, na sombra, também Aline olhava o recém-chegado - os traços tinham-lhe desaparecido sob a máscara de poeira e sangue coagulado. Mas, mal ele abriu a boca, reconheceu-o: o marquês de La Tour!

- Minha senhora - disse, dirigindo-se à senhora de Plougastel -, desculpe que me apresente desta forma e, sobretudo, neste estado... Mas venho fugido. Pensei que, conseguindo chegar a sua casa, talvez encontrasse abrigo. Corro graves perigos. Fui perseguido durante quase uma hora. Depois, encontrei este chapéu caído e pu-lo... Mas não estou a salvo. Se fosse reconhecido, seria imediatamente degolado. Ah, senhora, a que terrível massacre assisti! Quase todos aqueles que escaparam das Tulherias foram mortos imediatamente. Os Suíços? Aniquilados... A multidão entrou nos aposentos do rei. Na sua passagem tudo destruiu e tudo matou...

Tirou a capa de viagem e apareceu com o trajo negro, igual ao de centenas de “cavaleiros do punhal” - assim lhes chamava o povo - que tinham acorrido às Tulherias, na manhã desse mesmo dia, para salvar o rei.

Deixou-se cair numa cadeira; tirou um lenço do bolso e com ele limpou o sangue e a poeira acumulados no rosto.

- Minha querida senhora, se não tiver a caridade de me dar qualquer coisa de beber, morrerei aqui mesmo como se o povo tivesse conseguido apanhar-me.

A senhora Plougastel estremeceu.

- É verdade. Deveria ter pensado... - e voltando-se para a sobrinha: - Aline, pede ao Tiago para trazer...

- Aline? - o marquês levantou-se de um salto.

Já a jovem saía da sombra que envolvia o fundo da sala. O marquês inclinou-se:

- Menina, estava longe de pensar...

Não se tinham tornado a ver desde a véspera do duelo.

- Bom dia, senhor. Lamento vê-lo em circunstância tão dolorosa. Mas, peço-lhe, sente-se. Parece muito cansado.

- É verdade, com dificuldade me tenho nas pernas. E já que me dá licença...

Voltou a sentar-se; a jovem dirigiu-se para a porta.

Pouco depois, enquanto comia com apetite, deu mais alguns pormenores sobre o sangrento combate que tinha acabado com o saque das Tulherias.

- Agora - concluiu, com ar sombrio - só nos resta fugir, logo que descubramos o meio para isso.

A senhora Plougastel pô-lo ao corrente da esperança que tinha no jovem Rougane.

- Não está, então, tudo perdido! - gritou o marquês, com expressão agora radiante. - Vejamos, é preciso pensar: o jovem, se mantiver a promessa que fez, deve ter encontrado dificuldade em circular livremente por Paris, na noite passada e hoje. Mas com certeza irá surgir de um momento para o outro.

- Infelizmente... - começou a velha senhora.

- Infelizmente? - repetiu o marquês.

- Bem, é que o jovem Rougane trará um salvo-conduto apenas para quatro pessoas: ele, Aline, eu e Tiago, o meu cocheiro... Poderia...

Ela hesitou um pouco:

- Poderia tomar o lugar de Tiago?

O marquês não deixou fugir a ocasião. Que importava a vida de um criado, afinal de contas?

- Mas claro, minha senhora! - E nem reparou que Aline, a esta manifestação de egoísmo, franzira os lábios com desprezo. - Estou pronto, nesta circunstância, a tomar o lugar de quem quer que seja.

Um pouco depois, disse:

- Vou pedir-lhe licença, minha senhora, para me retirar. Queria descansar um pouco. Quem sabe se amanhã teremos necessidade de todas as nossas forças para suportar novas provas?

Depois de sair para o quarto, as duas senhoras ficaram silenciosas durante algum tempo. Bem percebiam ambas que o perigo a que se expunham tinha, pelo menos, duplicado depois de La Tour lhes pedir asilo. Conhecido de toda a gente, e detestado pelo povo, tudo levava a crer que os inimigos o procuravam activamente e que, se descobrissem o seu esconderijo...

Aline, por sua vez, retirou-se para o quarto. A marquesa desistiu de dormir; encostou-se num dos sofás do salão. Abrira as janelas que davam para o jardim, porque era Agosto e a noite estava particularmente quente. De vez em quando chegavam-lhe rumores longínquos, gritos, breves tiroteios - as últimas convulsões de um dia sangrento.

Passou uma hora, passaram duas. A senhora de Plougastel, com os olhos abertos na escuridão, não conseguia conciliar o sono. Então, quando o relógio da chaminé acabou de dar as dez horas, a velha senhora ergueu-se. Estava certa de que alguém batia à porta da rua. Esperou, esforçando-se por conter as pulsações do coração. Tiago entrou bruscamente na sala.

- Minha senhora! Minha senhora!

- Que há? - esforçava-se por mostrar-se calma, e avançou para a mesa onde bruxuleava uma candeia.

- Está um homem... lá em baixo... quer falar-lhe...

- Um homem?

- Sim, minha senhora. Tem todo o aspecto de uma personagem oficial. Em todo o caso, traz a banda tricolor. Assegura que o nome nada lhe dirá, mas insiste em vê-la sem a mínima demora.

- Uma personagem oficial, disseste?

- Sim, senhora... E, se me dá licença... tenho uma pistola. Trago-a já!

- Não, meu bom Tiago, não... Se esse homem nos quisesse mal, não teria vindo só! Acompanha-o e pede à menina para vir ter comigo.

Quando a porta se abriu, a senhora de Plougastel estava sentada numa cadeira, perto da mesa, e simulava ler à luz da candeia. Tiago afastou-se e deixou passar um homem magro que caminhava apressadamente. Uma insígnia estava pregada no chapéu de abas largas. Vestia um fato verde-azeitona, cingido ao corpo por uma faixa tricolor. Uma espada pendia-lhe ao lado.

Tirou o chapéu e com o gesto fez brilhar a insígnia de aço. O rosto era magro e trigueiro, os olhos sombrios e pensativos.

A senhora inclinou-se para diante, com expressão curiosa. Mas, bruscamente, o rosto iluminou-se-lhe, e corou. De um salto levantou-se e gritou com voz trémula:

- André!

- Queria falar-lhe a sós, minha senhora. - Ela fez um sinal e Tiago retirou-se, fechando a porta.

- O jovem Rougane não pôde voltar. Substituo-o... a pedido do senhor de Kercadiou.

- André, é certo que vens salvar-nos?

- Vou tentar...

No mesmo instante a porta abriu-se e Aline entrou. Avançou e disse a André:

- Com que então, eis-te de volta! Depois de mais de dois anos!

- Voltei porque sei que precisas de mim. Assim, tenho a certeza de ser bem recebido. - Falava sem amargura, mas um pouco ironicamente: - Espero que me tenhas perdoado por não te ter atendido ao pedires-me para fugir diante do... diante do adversário... De resto, a sorte quis que eu não cumprisse o que tinha jurado fazer. Mas isso de nada serviu porque, se estou bem informado, não te casaste, pois não?

Ela voltou a cabeça ao responder:

- Há coisas que nunca compreenderás!

- Eu sei: A vida, por exemplo... Ela é para mim um mistério. Se há dias me tivessem dito que o meu destino cruzaria de novo o teu, e que seria chamado, em plena revolta, para te salvar a vida...

Ela olhou de novo para ele. Abriu a boca para agradecer, quando, de repente, se tornou extremamente pálida e gritou:

- Minha tia, é preciso... é preciso dizer-lhe...

Mas não teve tempo de exprimir o seu pensamento. A porta acabava de abrir-se uma vez mais. Na soleira desenhava-se a alta figura de um homem embrulhado numa capa de viagem. Disse:

- Ouvi um ruído. É o jovem Rougane?

André rodou nos calcanhares e voltou-se para a porta. Esta voz... reconhecê-la-ia entre mil! Mas já a senhora de Plougastel corria para ele; Aline estava petrificada.

- André! Ele veio esta tarde pedir-nos asilo... Prometemos fazer-lhe aproveitar do salvo-conduto que o jovem Rougane nos deveria trazer... Peço-te...

André, brusco, afastou a velha senhora e, lentamente, com um estranho sorriso nos lábios, avançou para a porta. O marquês reconheceu-o e fez-se lívido. Gritou:

- Senhor... ri? Palavra de honra!...

- Sim, senhor de La Tour, eu rio! Não acha a situação divertida?

- Parece que o momento é mal escolhido...

- Na verdade. Mas que quer? O inesperado tem sempre o poder de me fazer rir. Desde que nos conhecemos, o senhor e eu, temos tido bastantes ocasiões de nos cruzarmos. Entretanto, se me tivessem dito que esta noite nos encontraríamos, frente a frente!...

La Tour, de maxilares contraídos, não respondeu.

- Vou talvez fazer uma asneira - continuou André. - Pela segunda vez, vou mostrar-me generoso. Dou-lhe três minutos, senhor, para deixar esta casa. O que lhe acontecer depois não me interessa.

A senhora de Plougastel aproximou-se de André.

- André, escuta-me, peço-te...

- Desculpe, minha senhora. Não posso fazer mais nada. Parece-me que já esqueci o meu dever. De qualquer maneira, o senhor de La Tour não pode continuar aqui, porque põe em perigo as vidas de ambas. De resto, se ele recusa partir, levo-o eu mesmo à esquadra mais próxima e, no espaço de uma hora, a sua cabeça será cortada!

- Mas, André - gritou a senhora. - Tu não sabes... Pelo amor de Deus, tem piedade! É preciso!

- Piedade? Não a tenho eu? Mais do que devia ter! E o senhor de La Tour bem o sabe! Que saia; é a maior generosidade que posso ter com ele!

Então o marquês entrou no salão e disse, em tom glacial, enquanto com a mão direita parecia procurar qualquer coisa nas largas pregas da capa:

- No fim de contas, senhor, sinto-me feliz porque use esse tom comigo. Tira-me o primeiro escrúpulo. Desde há anos que o encontro no meu caminho, como uma contínua ameaça. E agora, não hesita em me lançar ao inferno!

- Um momento, Gervásio! - disse a senhora de Plougastel. - Isto é demasiado horrível.

- Horrível, talvez, mas inevitável, fatal até! - respondeu o marquês. - Não esqueça, senhora, que eu sou um desesperado, o representante de uma causa perdida. Este homem dispõe da minha salvação e recusa-ma. De resto, temos, eu e ele, velhas contas a ajustar!

E a mão, saindo debaixo da capa, segurava uma pistola. A senhora de Plougastel lançou-se para ele:

- Não, Gervásio, não!

- Enlouqueceu, senhora? Deseja a nossa perda, a sua, a de Aline e a minha? Moreau tem com ele o salvo-conduto, que representa para nós a liberdade e...

Entretanto André, por sua vez, tinha aproveitado a provisória paralisação de La Tour pela senhora de Plougastel, para tirar, também, a pistola da algibeira.

- Afaste-se, senhora! - ordenou calmamente.

Ela largou o marquês, voltou-se para André, deu alguns passos e parou entre os dois de braços erguidos; o rosto tinha uma expressão de espanto convulsivo:

- Vocês preparam-se, ambos, para cometer um crime horrível, porque... escutem bem o que vou dizer: o mesmo sangue corre-lhes nas veias.

Vendo que as forças a traíam, Aline correu para ela, tomou-a nos braços e ajudou-a a sentar-se. Os dois homens, impressionados, tinham baixado as pistolas; mas continuavam em frente um do outro em silêncio.

- Sim - a voz da senhora de Plougastel estava cortada pela comoção -, o mesmo sangue corre-lhes nas veias. Por que drama? Não me resta senão contá-lo em pormenor. A sua mãe, Gervásio, que não conheceu, pois morreu quando o deu à luz, era uma criatura estranha. Um dia, em Rennes, num baile, conheceu um jovem oficial da guarnição da cidade. Era nobre, mas extremamente pobre. Ele teve a audácia de pedir oficialmente a mão desta jovem rica, que pertencia a uma das mais poderosas famílias da região. Foi recusado. Entretanto, uniu-os um casamento secreto celebrado na igreja de uma vila que lhes indicarei, se quiserem confirmar as minhas declarações. Os jovens casados tiveram de viver longe um do outro, alimentando a esperança de se reunirem definitivamente um dia. Entretanto, o destino decidiu de outra maneira. O teu pai, André, morreu de uma queda de cavalo e tu nasceste quando tua mãe passou um tempo comigo. Como me era impossível esconder-te, confiei-te a meu irmão Kercadiou. Quanto a tua mãe, cedendo a instâncias dos pais, voltou a casar, então com o marquês de La Tour, que morreu, também, prematuramente e de quem só teve um filho... Mas, para que continuar?

O silêncio voltou, agora mais pesado do que antes; depois, a velha senhora continuou, dirigindo-se a André:

- Cabe a ti decidir. És o senhor da situação. Podes, pois, condenar a um fim horrível o teu irmão?

André pôs-se a passear 'pela sala. Aline estava atrás da senhora de Plougastel com as mãos cruzadas no peito. O marquês, sempre imóvel no mesmo lugar, escondia agora a pistola sob as pregas da capa; baixou a cabeça. Pelas janelas do jardim chegavam ainda rumores de luta, cada vez mais fracos.

Quando André parou diante da senhora de Plougastel tinha o rosto mais duro do que nunca e o olhar brilhante de paixão. Disse:

- Apesar do que me acaba de revelar, é-me impossível modificar a resolução que tomei. Este irmão, que só agora conheço como tal, matou há anos, com uma crueldade inaudita o meu maior amigo, Filipe de Vilmorin, meu irmão pelo coração. A meus olhos, só isto tem importância de hoje em diante. É preciso, pois, que...

Mas La Tour, bruscamente, deu dois passos em frente:

- É inútil prolongar este debate. De qualquer forma, nunca poderíamos viver lado a lado, o senhor Moreau e eu. Pertencemos a dois mundos diferentes que juraram aniquilar-se. Hoje, sou eu o vencido. É, pois, natural que eu desapareça. Adeus.

Sem mais uma palavra, voltou-se e saiu da sala. Por momentos, ouviram-no descer a escada e, depois, afastar-se pela rua fora. A senhora de Plougastel murmurou:

- Que o céu se compadeça dele!

No dia seguinte, em Meudon, André, muito cedo, saiu para tomar ar no terraço. Os primeiros raios do Sol acendiam na relva orvalhada milhões de diamantes. A cinco léguas, para lá do vale, Paris estava ainda na neblina da manhã.

Sem dificuldade, o jovem tinha conseguido atravessar as portas da cidade com as duas protegidas e atingir Meudon em plena noite, cerca das três horas. Quando viu a irmã e a sobrinha, Kercadiou desfaleceu de alegria. Depois, cada um recolheu aos seus aposentos.

Agora, André respirava o ar puro e fresco da aurora, passeava no terraço com as mãos atrás das costas. Pensava no espectáculo que pudera observar algumas horas antes, quando atravessava Paris juncada de despojos e de cadáveres. Mas, sobretudo, guardava vivas na memória as notícias que recolhera da boca de alguns homens da guarda das portas da cidade. A “segunda revolução”, última fase da queda da monarquia, parecia acabar vitoriosa. O rei e a família encontravam-se prisioneiros em Feuillants. Danton era o novo ministro da Justiça. Marat, saindo do retiro onde se conservara durante os primeiros dias da insurreição, tinha pegado numa espada e ingressado no batalhão dos marselheses. Robespierre dirigia os jacobinos; os deputados das divisões, verdadeiros vencedores da jornada de 10 de Agosto, reunidos na Câmara, haviam-se apoderado do poder municipal. Representavam a nova onda revolucionária, nova e ardente, pronta a fazer desaparecer os últimos vestígios do Antigo Regime. Grandes coisas se preparavam... É certo que a situação nas fronteiras era crítica. Lucker comandava o Norte, Lafayette o Centro, Montesquieu o Sul...

André meditava ainda, quando Aline correu para ele:

- Já a pé?

- Palavra que nem mesmo me deitei. Passei o resto da noite sentado perto da janela do meu quarto... a meditar.

Ficaram calados, frente a frente. A brisa da manhã agitava o vestido da jovem e a luz do céu iluminava-lhe os olhos. Ele voltou a falar:

- Têm necessidade de mim. Será preciso que parta...

- Tão cedo? Já reparaste, André, que há mais de dois anos é esta a primeira vez que nos encontramos sós? Será, pois, necessário que sempre nos encontremos em plena inquietação? Já quando te fui ver, antes do duelo, acabara de passar uma noite em branco... Tremia de medo...

- De medo? Mas, por quem?

- Por quem? Mas, André, por ti, por ti!

Ele pegou-lhe na mão.

- - Mas, então... - a voz estrangulou-se-lhe. Aline sorriu.

- André, tu julgas-te esperto, mas a tua cegueira é imensa... Nunca pensei senão em ti - acrescentou em voz baixa.

Ele teve a impressão nítida de que os anos haviam desaparecido, que o tempo, entrecortado de aventuras e dramas, tinha passado em vão, uma vez que os corações não tinham mudado. Mais uma vez, porventura a última, o destino lhe oferecia o único bem invejável da terra: uma felicidade partilhada... Tomando, bruscamente, uma decisão, levou a jovem até ao parapeito do terraço e apontando-lhe Paris que, lá em baixo, emergia da bruma, perguntou:

- Queres partilhar da minha vida? É uma vida difícil, perigosa, movimentada, porque a luta pela liberdade não terminou ainda e eu devo retomar nela o meu lugar... Na hora presente, nenhum homem pode estar certo de ver o dia seguinte... Em vinte e quatro horas - as formalidades agora são rápidas - poderemos estar casados. E, amanhã estaremos em Paris. Mas, pensa bem: comigo, irás para uma fornalha!

Ela voltou-se para ele e respondeu:

- Achas que me é preciso reflectir?

Quando Kercadiou apareceu à janela da biblioteca, os jovens davam-se as mãos. Dir-se-ia que cada um via o Paraíso no rosto do outro.

 

                                                                                Rafael Sabatine  

 

                      

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