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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SE HOUVER AMANHÃ - P.2 / Sidney Sheldon
SE HOUVER AMANHÃ - P.2 / Sidney Sheldon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

Segunda Parte

 

Três dias depois Jeff teve outro convidado para o almoço. Desta vez foi Budge quem o reconheceu:

- Ei, aquele é Seymour Jarrett, presidente do Conselho de Administração da Jarrett Internacional Computer. Que diabo ele está fazendo aqui com Jeff?

 

Jeff e seu convidado tiveram uma conversa longa e animada. Depois que o almoço terminou, Budge foi sondar Jeff:

- Jeffrey, meu rapaz, o que estava fazendo com Seymour Jarrett?

- Nada - disse Jeff rapidamente. - Apenas conversando.

Ele começou a se afastar, mas Budge deteve-o.

- Não tão depressa, meu velho. Seymour Jarrett é um homem muito ocupado. Ele não se senta com os outros só para ter uma conversa fiada.

Jeff disse, ansiosamente:

- Está bem, Budge. A verdade é que Seymour colecciona selos e eu lhe falei sobre um selo raro que posso lhe arrumar.

A verdade coisa nenhuma, pensou Budge.

 

Na semana seguinte, Jeff almoçou no clube com Charlie Bardett, presidente da Bardett & Bardett, um dos maiores grupos de capital de risco do mundo. Budge, Ed Zeller, Alan Thompson e Mike Quincy observaram fascinados, enquanto os dois homens conversavam, muito absortos.

- Seu cunhado tem voado alto ultimamente - comentou Zeller. - Que tipo de negócio ele está preparando, Budge?

Budge respondeu, irritado:

- Não sei, mas pode ter certeza de que vou descobrir. Se Jarrett e Bardett estão interessados, deve haver muito dinheiro envolvido.

Eles observavam quando Bardett se levantou, apertou efusivamente a mão de Jeff e depois foi embora. Quando Jeff passava por sua mesa, Budge agarrou-o pelo braço.

- Preciso voltar ao escritório - protestou Jeff. - Eu...

- Você trabalha para mim, está lembrado? Sente-se. - Jeff obedeceu. - Com quem você almoçou hoje?

Jeff hesitou por um instante.

- Ninguém especial. Um velho amigo.

- Charlie Barflett é um velho amigo?

- De certa forma

- Sobre o que você e seu velho amigo Charlie conversaram, Jeff?

- Ahn... principalmente sobre carros. O velho Charlie gosta de carros antigos e eu soube de um Packard 37, quatro portas, conversível...

- Pare com essa merda! - disse Budge bruscamente. - Você não colecciona selos, não vende carros antigos e não escreve livro nenhum. O que está realmente fazendo?

- Nada. Eu...

- Está levantando dinheiro para alguma coisa, não é mesmo, Jeff? - indagou Ed Zeller.

- Não!

Mas Jeff foi precipitado demais na negativa. Budge passou o braço enorme em torno de Jeff.

- Ei, companheiro, sou o seu cunhado. Da mesma família, lembra? - Ele deu um aperto efusivo em Jeff. - É alguma coisa sobre aquele computador à prova de interferência que você mencionou na semana passada, não é mesmo?

Todos puderam perceber, pela expressão no rosto de Jeff, que ele estava acuado.

- Ahn... é, sim...

Era como arrancar dentes para tirar alguma coisa do filho da puta.

 

- Por que não nos disse que o Professor Ackerman estava envolvido?

- Achei que vocês não estavam interessados.

- Pois se enganou. Quando precisa de capital, deve procurar primeiro os amigos.

- O professor e eu não precisamos de capital - disse Jeff. - Jarrett e Bartiett...

- Jarrett e Bartiett são autênticos tubarões e vão devorá-lo vivo! - interveio Alan Thompson.

Ed Zeller aproveitou a deixa:

- Mas quando lida com amigos, Jeff, não há qualquer risco de sair machucado.

- Já está tudo acertado - confessou Jeff. - Charlie Bartlett...

- Assinou alguma coisa?

- Ainda não. Mas dei minha palavra...

- Então nada está acertado. Mas que diabo, Jeff, nos negócios as pessoas mudam de idéia a cada hora.

- Eu nem deveria estar discutindo o assunto com vocês - protestou Jeff. - O nome do Professor Ackerman não pode ser mencionado. Ele tem contrato com uma agência do governo.

- Sabemos disso - interveio Thompson, suavemente. - O professor acha que a coisa funcionará?

- Ele sabe disso com certeza.

- Se é bom o bastante para Ackerman, então o é também para nós... não é mesmo, pessoal?

Houve um coro de assentimento.

- Ei, não sou um cientista! - disse Jeff. - Não posso garantir qualquer coisa. Pelo que sei, a coisa pode não ter o menor valor.

- Claro, claro... Compreendemos perfeitamente. Mas suponhamos que tenha um valor, Jeff. Quais poderiam ser as dimensões?

- O mercado para isso é mundial, Budge. Não dá nem para começar a fixar um valor. Todo mundo poderá usar.

- Qual é o financiamento inicial que você está procurando?

- Dois milhões de dólares. Mas tudo o que precisamos é de 250 mil dólares de entrada. Bardett prometeu...

- Esqueça Bardett. Isso é uma ninharia, companheiro. Entraremos com essa quantia pessoalmente. E manteremos tudo em família. Certo, pessoal?

- Certo!

Budge levantou os olhos e estalou os dedos. Um garçon aproximou-se apressadamente.

- Dominick, traga papel e uma caneta para o Sr. Stevens.

O pedido foi atendido prontamente.

- Podemos fechar o negócio agora mesmo - disse Budge a Jeff. - Basta escrever uma cessão dos direitos para nós. Todos assinaremos e pela manhã você terá um cheque visado no valor de 250 mil dólares. Está bom assim para você?

Jeff mordia o lábio inferior.

- Budge, prometi ao Sr. Bardett...

- Foda-se Bartlett! - rosnou Budge. - Casou-se com a irmã dele ou com a minha? E agora escreva.

- Não temos uma patente e...

- Escreva logo!

 

Budge empurrou a caneta para a mão de Jeff. Relutantemente, Jeff começou a escrever: "Por este documento transfiro todos os meus direitos, titulo e interesse num computador matemático chamado SUCABA, aos compradores Donald 'Budge' Hollander, Ed Zeller, Alan Thompson e Mike Quincy, em troca de um pagamento de 250 mil dólares na assinatura. O SUCABA foi amplamente testado, é barato, não apresenta problemas e consome menos energia do que qualquer outro computador actualmente no mercado. O SUCABA não precisará de manutenção ou peças por um período mínimo de dez anos." Todos olhavam por cima do ombro de Jeff, enquanto ele escrevia.

- Santo Deus! - exclamou Ed Zeller. - Dez anos! Não há um só computador no mercado que ofereça essa vantagem!

Jeff continuou a escrever: "Os compradores sabem que nem o Professor Ackerman, nem eu temos uma patente sobre o SUCABA ..."

- Nós cuidaremos disso - interveio Alan Thompson, impaciente. - Tenho o melhor advogado de patentes.

Jeff continuou a escrever: "Expliquei aos compradores que o SUCABA pode não ter qualquer valor e que nem o Professor Vernon Ackerman nem eu assumimos quaisquer responsabilidades ou garantias sobre o SUCABA, a não ser as que estão relacionadas acima." Ele assinou e estendeu o documento, indagando:

- Está bom assim?

- Tem certeza sobre os dez anos? - perguntou Budge.

- Garantia absoluta. Vou escrever uma cópia.

Eles ficaram observando enquanto Jeff escrevia uma cópia do documento. Ao final, Budge pegou as duas cópias e assinou, seguido por Zeller, Quincy e Thompson. Budge estava radiante.

- Uma cópia para nós e uma cópia para você. O velho Seymour Jarrett e Charlie Bartlett ficarão furiosos, hem? Mal posso esperar para ver a cara dos dois quando souberem que os passamos para trás neste negócio.

Na manhã seguinte, Budge entregou a Jeff um cheque visado no valor de 250 mil dólares.

- Onde está o computador? - perguntou Budge.

- Providenciei para que seja entregue no clube ao meio-dia. Achei que seria apropriado que todos estivéssemos juntos quando o receberem.

Budge bateu afectuosamente no ombro do cunhado.

- Sabe, Jeff, você é um cara esperto. Até à hora do almoço.

Pontualmente ao meio-dia um mensageiro entrou no restaurante do Pilgrim Club e foi conduzido à mesa de Budge, que ali estava com Zeller, Thompson e Quincy. O mensageiro entregou um pacote.

- Aqui está! - exclamou Budge.- Santo Deus! A coisa é até portátil!

- Devemos esperar por Jeff? - indagou Thompson.

- Ele que se dane. A coisa agora nos pertence.

Ele rasgou o papel e abriu a caixa. Havia palha lá dentro. Cuidadosamente, quase com reverência, Budge tirou o objecto que repousava sobre a palha. Os homens ficaram olhando fixamente. Era uma estrutura quadrada, com cerca de 30 centímetros de diâmetro, contendo uma série de fios com contas. Houve um silêncio prolongado.

- O que é isso? - perguntou Quincy finalmente.

Foi Alan Thompson quem respondeu:

- É um ábaco. Uma dessas coisas que os orientais usavam para fazer contas... - Sua expressão mudou abruptamente. - Ei, SUCABA é abacus, a palavra em inglês, soletrada ao contrário!

Ele virou-se para Budge, acrescentando:

 

- Essa é a sua idéia de brincadeira?

Zeller falou atabalhoadamente:

Pouca energia, sem problemas, usa menos força do que qualquer computador

actualmente no mercado... Cancelem o maldito cheque!

Houve uma corrida colectiva para o telefone.

- O cheque visado? - disse o gerente. - Não precisa se preocupar. O Sr. Stevens descontou-o esta manhã.

 

Pickens, o mordomo, lamentava muito, mas o Sr. Stevens fizera as malas e partira.

- Ele falou alguma coisa sobre uma longa viagem.

 

Naquela tarde, um frenético Budge conseguiu finalmente entrar em contacto com o Professor Vernon Ackerman.

- Claro que lembro de Jeff Stevens. Um homem muito simpático. Ele é seu cunhado?

- Professor, sobre o que conversou com Jeff?

- Acho que não é segredo. Jeff está querendo escrever um livro a meu respeito. Ele me convenceu de que, o mundo está interessado no homem por trás do cientista...

 

Seymour Jarrett mostrou-se reticente:

- Por que quer saber o que conversei com o Sr. Stevens? É um coleccionador de selos rival?

- Não. Eu...

- Pois não vai adiantar bisbilhotar. Só existe um selo desse tipo e o Sr. Stevens concordou em vendê-lo a mim assim que o obtiver.

E ele bateu o telefone.

 

Budge sabia o que Charlie Bartlett ia dizer antes mesmo de ouvir as palavras:

- Jeff Stevens? Ah, sim... Colecciono carros antigos. Jeff sabe onde existe um Packard 37, quatro portas, conversível, em excelente estado.

Desta vez foi Budge quem desligou.

- Não se preocupem - disse ele a seus companheiros. - Recuperaremos o nosso dinheiro e ainda meteremos o filho da puta na cadeia pelo resto da vida. Há leis contra a fraude.

 

O grupo foi ao escritório de Scott Fogarty.

- Ele nos tomou duzentos e cinquenta mil dólares - explicou Budge ao advogado. - Quero metê-lo atrás das grades pelo resto da vida. Providencie um mandato para...

- Está com o contrato, Budge?

- Estou, sim.

Ele entregou a Fogarty o documento que Jeff escrevera. O advogado examinou-o rapidamente, depois leu mais devagar.

- Ele falsificou as assinaturas de vocês neste documento?

- Claro que não - respondeu Mike Quincy. - Fomos nós mesmos que assinamos.

- E leram antes?

Ed Zeller disse, irritado:

- Claro que lemos. Acha que somos estúpidos?

 

- Deixarei que vocês mesmos julguem isso, senhores. Assinaram um contrato em que foram informados que estavam comprando, com uma entrada de 250 mil dólares, uma coisa que não tinha patente e podia ser completamente sem valor. Nos termos legais de um velho professor meu: "Vocês se foderam" .

 

Jeff obteve o divórcio em Reno. Foi quando estava lá, fixando residência como era necessário para a concessão do divórcio automático, que se encontrou com Conrad Morgan. Morgan trabalhara outrora para tio Willie.

- Poderia me fazer um pequeno favor, Jeff? - perguntou Conrad Morgan. - Há uma jovem viajando num trem de Nova York para St. Louis com algumas jóias...

Agora, Jeff olhou pela janela do avião e pensou em Tracy. Havia um sorriso em seu rosto.

 

Quando voltou a Nova York, o primeiro lugar a que Tracy compareceu foi Conrad Morgan et Cie Joalheiros. Conrad Morgan levou Tracy para sua sala e fechou a porta. Ele esfregou as mãos e disse:

- Eu estava começando a ficar preocupado, minha cara. Esperei por você em St. Louis e...

- Você não estava em St. Louis.

- Como? O que disse?

Os olhos azuis de Morgan pareciam faiscar.

- Disse que não foi a St. Louis. Nunca teve a intenção de se encontrar comigo.

- Mas claro que tinha! Você está com as jóias e eu...

- Mandou dois homens me tirarem as jóias.

Uma expressão de perplexidade se insinuou no rosto de Morgan.

- Não compreendo...

- A princípio, pensei que houvesse um vazamento em sua organização. Mas não havia, não é mesmo? Foi você. Disse-me que comprou pessoalmente a minha passagem de trem. Portanto, era a única pessoa que sabia o número da cabina. Usei um nome diferente e um disfarce, mas seus homens sabiam exactamente onde me encontrar.

A surpresa no rosto de querubim de Morgan era agora total.

- Está tentando me dizer que alguns homens lhe roubaram as jóias?

Tracy sorriu.

- Estou tentando dizer que eles não roubaram.

E desta vez o espanto no rosto de Morgan era genuíno.

- Você está com as jóias?

- Isso mesmo. Seus amigos ficaram com tanta pressa de pegar um avião que as deixaram para trás.

Morgan estudou Tracy em silêncio por um momento.

- Com licença.

Ele passou por uma porta particular e Tracy continuou sentada no sofá, esperando, perfeitamente relaxada.

Conrad Morgan se ausentou por quase 15 minutos. Quando voltou, havia uma expressão de consternação em seu rosto.

- Receio que um erro tenha sido cometido. Um grande erro. É uma jovem muito esperta, Senhorita Whitney. Mereceu os seus 25 mil dólares. - Ele sorriu em admiração. - Dê-me as jóias e...

- Agora são cinquenta mil.

- Como?

- Tive de roubar as jóias duas vezes. E por isso o preço agora é de cinquenta mil, Sr. Morgan.

- Não. - Os olhos dele perderam o brilho. - Não posso lhe dar tanto .

 

Tracy levantou-se.

- Não tem problema. Tentarei encontrar alguém em Las Vegas que ache que as jóias valem isso.

Ela se encaminhou para a porta.

- Cinquenta mil dólares? - murmurou Conrad Morgan.

- Cinquenta mil.

- Onde estão as jóias?

- Num armário que aluguei na Estação de Pensilvânia. Assim que me der o dinheiro e me puser num táxi, eu lhe entregarei a chave.

Conrad Morgan deixou escapar um suspiro de derrota.

- Negócio fechado.

- Obrigada - disse Tracy, jovialmente. - Foi um prazer fazer negócios com você.

 

Daniel Cooper já sabia qual o propósito da reunião daquela manhã na sala de J. J. Reynolds, pois todos os investigadores da companhia haviam recebido no dia anterior um memorando sobre o roubo de Lois Bellamy, que ocorrera uma semana antes. Daniel Cooper detestava reuniões. Era impaciente demais para ficar sentado a escutar uma conversa estúpida.

Ele chegou ao gabinete de J. J. Reynolds com 45 minutos de atraso. Reynolds estava no meio de um discurso.

- Foi muita gentileza sua aparecer - comentou J. J. Reynolds, sarcasticamente.

Não houve reacção. É uma perda de tempo, concluiu Reynolds. Cooper não compreendia o sarcasmo... nem qualquer outra coisa, na opinião de Reynolds. Só sabia como pegar criminosos. É nisso, ele tinha de admitir, o homem era um verdadeiro génio.

Três dos principais investigadores da organização estavam sentados na sala: David Swift, Robert Schiffer e Jerry Davis.

- Todos vocês leram o relatório sobre o roubo Bellamy - disse Reynolds. - Mas uma coisa nova foi acrescentada. Acontece que Lois Bellamy é prima do comissário de polícia e ele está furioso.

- E o que a polícia tem feito? - perguntou Davis.

- Tem-se escondido da imprensa. Não posso culpá-lo por isso. Os agentes que foram investigar se comportaram como Keystone Kops. Chegaram a falar com a ladra, que surpreenderam na casa, mas deixaram-na escapar.

- Então devem ter uma boa descrição dela - sugeriu Swift.

- Eles têm uma boa descrição de sua camisola - respondeu Reynolds, fulminante. - Ficaram tão impressionados com o corpo da mulher que seus cérebros se derreteram. Nem mesmo sabem a cor de seus cabelos. Ela usava uma touca e o rosto se achava coberto por um creme escuro de maquilhagem. A descrição que forneceram é de uma mulher de vinte e poucos anos, com um corpo fantástico e peitos maravilhosos. Não há uma única pista. Não temos qualquer informação em que nos basear. Absolutamente nada.

Daniel Cooper falou pela primeira vez:

- Isso não é verdade.

Todos se viraram para fitá-lo, com graus variados de aversão.

- Do que está falando? indagou Reynolds.

- Sei quem é ela.

Depois de ler o relatório, na manhã anterior, Cooper resolvera dar uma olhada na casa Bellamy, como o primeiro passo lógico. Para Daniel Cooper, a lógica era a ordenação da mente de Deus, a solução básica para todos os problemas; aplicando-se a lógica, sempre se começava pelo começo. Cooper seguira de carro para a propriedade Bellamy, em Long Island, dera uma olhada e voltara para Manhattan, sem saltar. Descobrira tudo o que precisava saber. A casa era isolada e não havia meio de transporte público nas proximidades, o que significava que a ladra só poderia ter chegado lá de carro particular. E ele explicou seu raciocínio aos homens na sala de Reynolds:

- Como ela provavelmente relutaria em usar seu próprio carro, que poderia levar à sua identificação, o veículo tinha de ser roubado ou alugado. Resolvi verificar primeiro as agências de aluguel. Presumi que ela teria alugado o carro em Manhattan, onde lhe seria mais fácil cobrir sua pista.

 

Jerry Davis não ficou impressionado.

- Você deve estar brincando, Cooper. Milhares de carros são alugados todos os dias em Manhattan.

Cooper ignorou a interrupção.

- Todas as operações de aluguel de carros são computadorizadas. Relativamente poucos carros são alugados por mulheres. Verifiquei todas. A mulher em questão foi à Budget Rent-a-Car, na Rua 23-Oeste, alugou um Chevy Caprice às oito horas da noite do roubo, devolveu-o às duas horas da madrugada.

- E como sabe que foi o carro usado no roubo? - perguntou Reynolds.

Cooper sentia-se entediado com as perguntas estúpidas.

- Verifiquei a quilometragem. São 51 quilómetros até a casa de Lois Bellamy e outros 51 quilómetros para voltar. Confere exactamente com o velocímetro no Caprice. O carro foi alugado em nome de Ellen Branch.

- Um nome falso - disse David Swift.

- O verdadeiro nome dela é Tracy Whitney.

Todos o fitavam aturdidos e foi Schiffer quem indagou:

- Como sabe disso?

- Ela deu um nome e endereço falsos, mas tinha de assinar o contrato de aluguel. Levei o original para a polícia e pedi que verificassem as impressões digitais. Eram as de Tracy Whitney. Ela cumpriu uma pena na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres. Se estão lembrados, conversei com ela há cerca de um ano, a propósito daquele Renoir roubado.

- Claro que me lembro - disse Reynolds. - Falou na ocasião que ela era inocente.

- E era mesmo... naquela ocasião. Não é mais inocente. Cometeu o roubo na casa Bellamy.

O filho da puta conseguira novamente! E fizera com que tudo parecesse muito simples. Reynolds, fez um esforço para não se mostrar relutante:

- Foi... foi um óptimo trabalho, Cooper. Um trabalho realmente excelente. Vamos agarrá-la. Entraremos em contacto com a polícia e...

- Sob que acusação? - perguntou Cooper, suavemente. - Alugar um carro? A polícia não pode identificá-la e não há qualquer vestígio de prova contra ela.

- O que devemos fazer então? - indagou Schiffer. - Deixar que ela escape impune?

- Desta vez, sim - respondeu Cooper. - Mas sei agora quem ela é. Tentará alguma coisa outra vez. E quando isso acontecer, eu a pegarei.

A reunião finalmente terminou. Cooper queria desesperadamente tomar um banho de chuveiro. Tirou do bolso um caderninho preto e anotou com extremo cuidado: TRACY WHITNEY.

 

Está na hora de começar minha vida nova, decidiu Tracy. Mas que tipo de vida? Passei de uma vitima inocente e ingénua para uma... uma o quê? Uma ladra - simplesmente isso. Ela pensou em Joe Romano, Anthony Orsatti, Perry Pope e o Juiz Lawrence. Não. Uma vingadora. É isso o que me tornei. E talvez uma aventureira. Ela fora mais esperta do que a polícia, dois vigaristas profissionais e um joalheiro traidor. Pensou em Ernestine e Amy, sentiu uma pontada de saudade. Num súbito impulso, foi a F.A.O. Schwarz e comprou um teatro de marionetes, completo, com meia dúzia de tipos. Mandou despachar para Amy. O cartão dizia: ALGUNS NOVOS AMIGOS, PARA VOCÊ. SINTO SAUDADE. AMOR TRACY.

Ela foi em seguida a um peleteiro na Madison Avenue, comprou um boá de raposa azul para Ernestine e remeteu, junto com uma ordem de pagamento de 200 dólares. O cartão dizia apenas: OBRIGADA, ERNIE. TRACY.

Todas as minhas dívidas estão pagas agora, pensou Tracy. Era uma sensação agradável. Estava livre para ir a qualquer lugar que quisesse, fazer o que bem lhe aprouvesse.

Resolveu comemorar sua independência hospedando-se numa Suíte da Torre, no Helmsley Palace Hotel. De sua sala de estar, no quadragésimo séptimo andar, podia ver a Catedral de St. Patrick e a Ponte George Washington, à distância. Somente a poucos quilómetros dali, em outra direcção, ficava o terrível lugar em que vivera recentemente. Nunca mais, jurou Tracy.

Ela abriu a garrafa de champanha que a gerência mandara para a suíte e sentou para beber, contemplando o sol se pôr sobre os edifícios de Manhattan. Quando a lua surgiu no céu, Tracy já tomara uma decisão. Iria para Londres. Estava pronta para todas as coisas maravilhosas que a vida tinha a oferecer. Paguei minhas dívidas, pensou Tracy. Mereço um pouco de Felicidade.

 

Deitou na cama e ligou a televisão para assistir ao último serviço noticioso. Dois homens estavam sendo entrevistados. Boris Melnikov era um russo baixo e corpulento, vestindo um temo marrom malfeito, Pietr Negulesco era o oposto, alto e magro, de aparência elegante. Tracy se perguntou o que os dois homens poderiam ter em comum.

Onde será realizada a partida de xadrez? - perguntou o locutor,

- Em Sotchi, no lindo Mar Negro - respondeu Melnikov.

- Ambos são grandes mestres internacionais e esta partida tem despertado o maior interesse, senhores. Em partidas anteriores, arrebataram o título um do outro. A última partida foi um empate. Sr. Negulesco, o Sr. Melnikov detém o título actualmente. Acha que poderá conquistá-lo novamente?

- Claro - respondeu o romeno.

- Ele não tem a menor chance - garantiu o russo.

Tracy nada sabia de xadrez, mas havia uma arrogância nos dois homens que achou extremamente desagradável. Ela apertou o botão do controle remoto que desligava o aparelho de televisão e foi dormir.

 

Na manhã seguinte, bem cedo, Tracy foi a uma agência de viagens e reservou uma Suíte no Signal Deck do Queen Elizabeth II, Estava tão excitada como uma criança com a sua primeira viagem ao exterior e passou os três dias seguintes comprando roupas e malas.

Na manhã da partida, Tracy alugou uma limusine para levá-la ao píer. Quando chegou ao Píer 90, na esquina da Rua 55 com a décima segunda Avenida, onde o navio estava atracado, deparou com uma multidão de fotógrafos e repórteres de televisão. Por um momento, Tracy foi dominada pelo pânico. Mas logo compreendeu que tinham ido ali para entrevistar os dois homens posando na base da prancha de embarque - Mehukov e Negulesco, os dois grandes mestres internacionais. Tracy passou por eles, mostrou seu passaporte a um oficial do navio e subiu para bordo. No convés, um camareiro verificou a passagem de Tracy e conduziu-a a seu camarote. Era uma suíte maravilhosa, com um terraço particular. Saíra absurdamente cara, mas Tracy concluiu que valera a pena.

Ela arrumou suas coisas e depois saiu para o corredor. Havia festas de despedida em quase todos os camarotes, com risos, champanha e conversas. Ela sentiu uma repentina pontada de solidão. Não havia ninguém para se despedir dela, ninguém com quem ela se preocupasse, ninguém para se preocupar com ela. Isso não é verdade, disse Tracy a si mesma. Big Bertha me quer. E ela riu alto.

Subiu para o convés superior, sem perceber os olhares de admiração dos homens e os invejosos das mulheres lançados à sua passagem. Tracy ouviu o som de um apito rouco de navio e gritos avisando:

- Vamos zarpar! Todos que não viajarão devem desembarcar!

Ela foi dominada por um intenso excitamento. Partia rumo a um futuro completamente desconhecido. Sentiu o navio estremecer, quando os rebocadores começaram a puxá-lo para fora do porto. Ficou na amurada, junto com incontáveis outros passageiros, contemplando a Estátua da Liberdade desaparecer lentamente, depois saiu para explorar o navio.

O Queen Elizabeth II era uma cidade, com quase 300 metros de comprimento e 13 andares de altura. Tinha quatro restaurantes, seis bares, dois salões de baile, duas boates e um "Balneário Dourado ao Mar". Havia dezenas de lojas, quatro piscinas, um ginásio, um pequeno campo de golfe, uma pista de corrida. Talvez eu nunca mais queira deixar este navio, pensou Tracy.

 

Ela reservara uma mesa no Princess Grill, que era menor e mais elegante do que o restaurante principal. Mal se sentara quando uma voz familiar disse:

- Ora, ora, você aqui!

Tracy levantou os olhos e lá estava Tom Bowers, o falso agente do FBI. Oh, não, eu não mereço isso, pensou Tracy.

- Mas que surpresa agradável! Importa-se que eu me sente com você?

- Claro que me importo.

Ele se instalou numa cadeira diante de Tracy e presenteou-a com um sorriso cativante.

- Podemos muito bem ser amigos. Afinal, ambos estamos aqui pelo mesmo motivo, não é mesmo?

Tracy não tinha a menor idéia do que ele estava falando.

- Escute aqui, Sr. Bowers...

- Stevens - disse ele, suavemente. - Jeff Stevens.

- O nome não importa.

 

Tracy começou a se levantar.

- Espere um momento. Explicarei tudo sobre a última vez em que nos encontramos.

- Não há nada a explicar. Uma criança idiota poderia ter calculado tudo... e foi o que aconteceu.

- Eu devia um favor a Conrad Morgan. - Ele sorriu tristemente. - E receio que ele não tenha ficado muito feliz comigo.

Lá estava o mesmo charme insinuante e infantil que a enganara completamente antes. Pelo amor de Deus, Dennis, não há necessidade de algemá-la. Ela não vai fugir. Tracy disse, com evidente hostilidade:

- Eu também não estou feliz com você. O que faz a bordo deste navio? Não deveria estar numa barca do Mississipi?

Ele riu.

- Com Maximilian Pierpont a bordo, o navio vira uma barca do Mississipi.

- Quem?

Ele fitou-a surpreso.

- Ora, deixe disso. Está querendo dizer que realmente não sabe?

- Não sei o quê?

- Max Pierpont é um dos homens mais ricos do mundo. Seu hobby é forçar empresas concorrentes a fecharem. Adora cavalos lentos e mulheres rápidas, possui uma porção de ambos. É o último dos grandes perdulários.

- E você tenciona aliviá-lo de um pouco desse excesso de riqueza.

- Mais do que um pouco, para dizer a verdade. - Ele a fitava com uma expressão especulativa. - Sabe o que você e eu deveríamos fazer?

- Claro que sei, Sr. Stevens. Deveríamos nos despedir para sempre.

Ele permaneceu sentado, observando, enquanto Tracy se levantava e saía do restaurante.

Ela jantou em seu camarote. Enquanto comia, perguntou-se qual o azar que pusera Jeff Stevens novamente em seu caminho. Queria esquecer o medo que sentira no trem, quando pensava que estava presa. Mas vou deixar que ele estrague esta viagem. Simplesmente o ignorarei.

Tracy subiu para o convés superior depois do jantar. Era uma noite fantástica, com um dossel mágico de estrelas se espalhando contra o céu aveludado. Ficou parada ao luar, na amurada, contemplando a suave fosforescência das ondas e escutando os sons do vento nocturno, quando ele veio se postar ao seu lado.

- Não faz idéia de como está linda parada aqui. Acredita em romances de bordo?

- Claro. O que não acredito é em você.

Tracy começou a se afastar.

- Espere um instante. Tenho notícias para você. Acabei de descobrir que o Sr. Pierpont não está a bordo, no final das contas. Cancelou a viagem no último minuto.

- Ora, mas que pena! Desperdiçou a sua passagem.

- Não necessariamente. - Ele tornou a fitá-la com uma expressão especulativa. - Gostaria de ganhar uma pequena fortuna nesta viagem?

O homem é incrível.

 

- A menos que tenha um submarino ou um helicóptero no bolso, não creio que possa partir impune, se roubar alguém a bordo.

- E quem falou em roubar alguém? Já ouviu falar de Boris Melnikov ou Pietr Negulesco?

- E se já ouvi?

- Melnikov e Negulesco, estão a caminho da Rússia para uma disputa do campeonato. Se eu der um jeito para você jogar com os dois, poderemos ganhar muito dinheiro. É um golpe perfeito.

Tracy estava incrédula.

- Se puder arrumar para eu jogar com os dois? É esse o seu golpe perfeito?

- Exactamente. O que acha?

- Eu adoraria. Só há um pequeno problema.

- Qual é?

- Não sei jogar xadrez.

Ele sorriu afavelmente.

- Não tem importância. Eu lhe ensinarei.

- Você é louco. Se quer um conselho, procure imediatamente um bom psiquiatra. Boa noite.

 

Na manhã seguinte, Tracy esbarrou literalmente em Boris Melnikov. Ele corria pelo tombadilho quando Tracy virou um canto, esbarrou nela e derrubou-a.

- Olhe para onde vai! - resmungou Melnikov, continuando a correr.

Tracy ficou sentada no chão, olhando para ele. Um camareiro aproximou-se.

- Está machucada, madame? Eu o vi...

- Não se preocupe. Estou bem, obrigada.

Ninguém estragaria aquela viagem.

Quando voltou a seu camarote, Tracy encontrou seis recados para procurar o Sr. Jeff Stevens. Ignorou-os. Nadou à tarde, leu, fez uma massagem. Ao entrar no bar, ao cair da noite, a fim de tomar um coquetel antes do jantar, sentia-se maravilhosa. Mas a euforia foi de curta duração. Pietr Negulesco, o romeno, estava sentado no bar. Quando viu Tracy, ele levantou-se e disse:

- Posso lhe oferecer um drinque, linda dama?

Tracy hesitou, depois sorriu.

- Aceito, obrigada.

- O que gostaria de tomar?

- Uma vodca com tónica, por favor.

Negulesco fez o pedido ao barman e tornou a virar-se para Tracy.

- Sou Pietr Negulesco.

- Sei disso.

- Claro. Todo mundo me conhece. Sou o maior jogador de xadrez do mundo. E sou um herói nacional no meu país. - Ele inclinou-se para Tracy, pôs a mão em seu joelho - E sou também uma grande foda.

Tracy achou que entendera mal.

- Como?

- Sou uma grande foda.

A primeira reacção de Tracy foi jogar o drinque na cara dele, mas controlou-se. Tinha uma ideia melhor.

- Com licença - disse ela. - Tenho de me encontrar com um amigo.

 

Ela foi procurar Jeff Stevens. Encontrou-o no Princess Grill. Mas quando se adiantou para a sua mesa, percebeu que ele jantava com uma loura atraente. Eu deveria ter imaginado, pensou Tracy, Ela virou-se e afastou-se pelo corredor. Jeff estava a seu lado um momento depois.

- Tracy... você queria me falar?

- Não quero afastá-lo do seu... jantar.

- Ela é a sobremesa - disse Jeff, jovialmente - O que posso fazer por você?

- Falava sério sobre Melnikov e Negulesco?

- Absolutamente sério. Por quê?

- Acho que ambos precisam de uma lição de boas maneiras.

- Eu também acho. E ganharemos dinheiro enquanto lhes damos a lição.

- Óptimo. Qual é o seu plano?

- Você vencerá os dois no xadrez.

- Estou falando sério.

- Eu também.

- Já lhe disse que não sei jogar xadrez. Não sei distinguir um peão de um rei. Eu...

- Não se preocupe - prometeu Jeff. - Basta um par de lições minhas e massa os dois.

- Os dois?

- Não lhe falei ainda? Jogará com os dois simultaneamente.

 

Jeff estava sentado ao lado de Boris Melnikov no Double Down Piano Bar.

- A mulher é uma enxadrista fantástica - confidenciou Jeff a Melnikov. - Viaja incógnita.

O russo soltou um grunhido.

- As mulheres nada sabem de xadrez. Não são capazes de pensar.

- Pois esta pode, E ela diz que pode vencê-lo facilmente.

Boris Melnikov soltou uma gargalhada.

- Ninguém pode me vencer... facilmente ou não.

- Ela está disposta a apostar dez mil dólares que pode jogar com você e Pietr Negulesco ao mesmo tempo e conseguir um empate, pelo menos com um dos dois.

Boris Melnikov engasgou-se com seu drinque.

- O quê? Isso... isso é absurdo! Jogar com os dois ao mesmo tempo? Esta... esta mulher amadora?

- Isso mesmo, Por dez mil dólares cada.

- Eu deveria aceitar só para dar uma lição à idiota estúpida.

- Se você ganhar, o dinheiro será depositado em qualquer país que escolher.

Uma expressão gananciosa se insinuou no rosto do russo.

- Nunca sequer ouvi falar dessa mulher. E jogar com nós dois simultaneamente! Ela deve ser louca.

- Ela tem vinte mil dólares em dinheiro.

- E qual é a nacionalidade dela?

- Americana.

- Olá, isso explica tudo. Todos os americanos ricos são doidos, especialmente as mulheres.

Jeff começou a se levantar.

- Bem, acho que ela terá de jogar somente com Pietr Negulesco.

- Negulesco jogará com ela?

- Isso mesmo. Não lhe contei? Ela queria jogar com os dois, mas se você está com medo...

- Com medo? Boris Melnikov com medo? - A voz do russo era um rugido. - Eu a destruirei! Quando essa partida ridícula ocorrerá?

 

- Ela pensou que poderia ser na sexta-feira. A última noite da viagem.

Boris Melnikov pensava rapidamente.

- Melhor de três?

- Não. Apenas uma partida.

- Por dez mil dólares?

- Correcto.

O russo suspirou.

- Não tenho tanto dinheiro comigo.

- Não há problema - garantiu Jeff - Tudo o que a Senhorita Whitney realmente quer é a glória de jogar contra o grande Boris Melnikov. Se você perder, dá a ela um retracto autografado. Se ganhar, leva dez mil dólares.

- Quem fica com as apostas?

Havia um tom de suspeita na voz do russo.

- O comissário de bordo.

- Muito bem - decidiu Melnikov. - Sexta-feira à noite. Começaremos às dez horas, pontualmente.

- Ela ficará satisfeita.

Na manhã seguinte, Jeff conversou com Pietr Negulesco no ginásio, onde ambos se exercitavam.

- Ela é americana, hem? - disse Pietr Negulesco. - Eu devia ter imaginado que Todos os americanos são doidos.

- Ela é uma grande enxadrista.

Pietr Negulesco fez um gesto desdenhoso.

- Grande não é o suficiente. Melhor é o que conta. E eu sou o melhor.

- É por isso que ela está tão ansiosa em jogar contra você. Se você perder, dá a ela um retracto autografado. Se vencer, recebe dez mil dólares em dinheiro...

- Negulesco não joga com amadoras.

- depositados em qualquer pais que quiser.

- Não há a menor possibilidade.

- Nesse caso, acho que ela terá de jogar somente contra Boris Melnikov.

- Como? Está dizendo que Melnikov concordou em jogar contra essa mulher?

- Exactamente. Mas ela tinha a esperança de jogar contra os dois simultaneamente.

- Nunca ouvi falar de nada tão... tão... - Negulesco - titubeou, a palavra lhe faltando. - A arrogância! Quem é essa mulher que pensa que pode derrotar os dois maiores enxadristas do mundo? Ela deve ter escapado de algum hospício.

- Ela é um pouco excêntrica - reconheceu Jeff - mas seu dinheiro é bom.

- Você disse dez mil dólares para derrotá-la?

- Isso mesmo.

- E Boris Melnikov recebe a mesma quantia?

- Se ele a vencer.

Pietr Negulesco sorriu.

- Ora, ele vai vencê-la. E eu também.

- Aqui entre nós, eu não ficaria absolutamente surpreso com isso.

- Quem ficará com as apostas?

- O comissário de bordo.

Por que Melnikov deveria ser o único a tirar o dinheiro daquela mulher?, pensou Pietr Negulesco.

- Negócio fechado, meu amigo. Onde e quando?

 

- Na noite de sexta-feira. às dez horas. Na Sala da Rainha.

- Pietr Negulesco sorriu gananciosamente.

- Estarei lá.

 

- Está querendo dizer que eles concordaram? - murmurou Tracy.

- Exactamente.

- Acho que vou vomitar.

- Pegarei uma toalha molhada.

Jeff correu para o banheiro da suíte de Tracy, molhou uma toalha e levou para ela. Tracy estava deitada na espreguiçadeira. Ele pós a toalha em sua testa.

- Como se sente?

- Horrível. Acho que terei uma enxaqueca.

- Já teve enxaqueca antes?

- Nunca.

- Então não terá uma agora. É perfeitamente natural ficar nervosa antes de uma coisa assim, Tracy.

Ela levantou-se de um pulo, jogou a toalha no chão.

- Alguma coisa assim? Nunca houve nada assim. Jogarei com dois mestres internacionais do xadrez depois de receber uma única lição do jogo de você e...

- Duas - corrigiu-a Jeff. - Você possui um talento natural para o xadrez.

- Oh, Deus, por que deixei que você me metesse nisso?

- Porque vamos ganhar muito dinheiro.

- Não quero ganhar muito dinheiro - lamuriou-se Tracy. - Quero que este navio afunde! Por que não podemos estar no Titanic?

- Basta ficar calma - disse Jeff, suavemente. - Vai ser...

- Vai ser um desastre! Todos neste navio estarão observando.

- Não é isso exactamente o que estamos querendo? - comentou Jeff, radiante.

 

Jeff combinara tudo com o comissário de bordo. Entregara-lhe as apostas - 20 mil dólares em traveler's checks - e pedira que reservasse as duas mesas de xadrez para a noite de sexta-feira. A notícia espalhou-se rapidamente pelo navio. Os passageiros começaram a abordar Jeff para indagar se as partidas ocorreriam mesmo.

- Claro - assegurou Jeff a todos que perguntaram. - É uma coisa inacreditável. A pobre Senhorita Whitney acredita mesmo que pode vencer. E está até apostando nisso.

- Será que eu poderia fazer uma pequena aposta? - indagou um passageiro.

- Claro. Tanto dinheiro quanto quiser. A Senhorita Whitney pede apenas uma vantagem de dez para um.

Uma proporção de um milhão para um teria feito mais sentido. Desde o momento em que a primeira aposta foi aceite, as comportas se abriram. Parece que todos a bordo, inclusive os homens da casa de máquinas e os oficiais do navio, queriam apostar nas partidas. As quantias variavam de cinco a cinco mil dólares e todas as apostas eram no russo e no romeno.

O desconfiado comissário de bordo resolveu alertar o comandante.

- Nunca vi nada parecido, senhor. Parece um estouro da boiada. Quase todos os passageiros apostaram. Devo estar guardando no mínimo duzentos mil dólares em apostas.

 

O comandante fitou-o em silêncio por um momento, com uma expressão pensativa.

- Diz que a Senhorita Whitney vai jogar com Melnikov e Negulesco ao mesmo tempo?

- Exactamente, comandante.

- Já confirmou que os dois homens são mesmo Pietr Negulesco e Boris Melnikov?

- Claro, senhor.

- E não há qualquer possibilidade de eles perderem as partidas deliberadamente?

- Não com seus egos, senhor. Acho que eles prefeririam morrer. E se perderem para essa mulher, é provavelmente o que acontecerá quando voltarem para suas terras.

O comandante passou os dedos pelos cabelos, o rosto franzido em perplexidade.

- Sabe alguma coisa sobre a Senhorita Whitney ou esse Sr. Stevens?

- Absolutamente nada, senhor. Até onde posso determinar, eles viajam separadamente.

O comandante tomou a sua decisão.

- Parece alguma espécie de vigarice e normalmente eu não permitiria que continuasse. Contudo, acontece que também gosto de xadrez. E se há uma coisa em que eu apostaria a minha vida é no facto de que não há possibilidade de trapacear no xadrez. Vamos deixá-los jogar. - Ele foi até sua mesa e pegou uma carteira preta de couro. - Aposto cinquenta libras para mim. Nos mestres.

 

As nove horas da noite de sexta-feira, a Sala da Rainha se encontrava apinhada de passageiros da primeira classe, os que haviam se esgueirado da segunda e terceira classe, os oficiais do navio e tripulantes que se achavam de folga. A pedido de Jeff Stevens, dois lugares haviam sido reservados para o torneio. Uma mesa de xadrez fora armada no centro da Sala da Rainha e a outra no salão adjacente. Havia cortinas arriadas para separar os dois lugares.

- É para que os jogadores não sejam distraídos um pelo outro - explicou Jeff Stevens. - E gostaríamos também que os espectadores não saíssem da sala que escolhessem.

Cordas de veludo foram estendidas em torno das duas mesas, a fim de conter as multidões. Os espectadores estavam prestes a testemunhar algo que certamente nunca mais tornariam a ver. Nada sabiam a respeito da linda e jovem americana, a não ser que seria impossível para ela - ou para qualquer outra pessoa - jogar contra os grandes Negulesco e Melnikov simultaneamente e obter sequer um empate com qualquer dos dois.

Jeff apresentou Tracy aos dois grandes mestres pouco antes das partidas começarem. Tracy parecia uma pintura grega, num vestido Galanos de chiffon verde suave, que deixava um ombro a descoberto. Seus olhos pareciam enormes no rosto pálido. Pietr Negulesco contemplou-a atentamente e perguntou:

- Venceu todos os torneios nacionais de que participou?

- Venci - respondeu Tracy, com absoluta sinceridade.

O romeno encolheu os ombros.

- Nunca ouvi falar a seu respeito.

Boris Melnikov mostrou-se igualmente rude:

- Vocês, americanos, não sabem o que fazer com seu dinheiro. Eu gostaria de agradecer-lhe antecipadamente. O ganho deixará minha família muito feliz.

 

Os olhos de Tracy eram de um verde vivo.

- Ainda não venceu, Sr. Melnikov.

O riso de Melnikov ressoou pela sala.

- Minha cara, não sei quem você é, mas sei quem eu sou... e eu sou o grande Boris Melnikov.

Eram 10 horas. Jeff olhou ao redor e constatou que os dois salões se apresentavam repletos de espectadores.

- Está na hora de as partidas começarem.

Tracy sentou-se à mesa, diante de Melnikov, perguntou-se pela centésima vez como se metera naquilo.

- Não há problema nenhum - garantira Jeff. - Confie em mim.

E ela, como uma idiota, confiara. Devo ter perdido o juízo, pensou Tracy. Ela estava jogando contra os dois maiores enxadristas do mundo e nada sabia do jogo, excepto o que aprendera com Jeff em quatro horas de aulas.

O grande momento chegara. Tracy sentia as pernas tremendo. Melnikov virou-se para a multidão em intensa expectativa e sorriu. Fez sinal para um camareiro.

- Traga-me um conhaque. Napoléon.

Jeff dissera a Melnikov:

- A fim de ser justo com todos, sugiro que você jogue com as brancas e comece. E na partida com o Sr. Negulesco, será a vez da Senhorita Whitney jogar com as brancas e começar.

Os dois grandes mestres haviam concordado.

Enquanto a audiência permanecia em silêncio, Boris Melnikov inclinou-se sobre o tabuleiro e fez a abertura do gambito da rainha, avançando por duas casas o peão da rainha. Não vou simplesmente vencer esta mulher. Vou arrasá-la.

Ele olhou para Tracy. Ela estudou o tabuleiro, acenou com a cabeça e levantou-se, sem mover qualquer peça. Um camareiro abriu caminho através da multidão para que Tracy se dirigisse ao segundo salão, onde Pietr Negulesco se encontrava sentado a uma mesa, esperando-a. Havia pelo menos cem pessoas no salão quando Tracy sentou-se diante de Negulesco.

- Ah, minha pombinha! Já derrotou Boris?

Pietr Negulesco riu ruidosamente de seu gracejo.

- Estou trabalhando nisso, Sr. Negulesco - disse Tracy, calmamente.

Ela se inclinou para a frente, e deslocou por duas casas o peão da rainha. Negulesco levantou os olhos e sorriu. Marcara uma massagem para dentro de uma hora, mas planejava terminar aquela partida antes. Ele inclinou-se e deslocou por duas casas o peão de sua rainha preta. Tracy estudou o tabuleiro por um momento, depois levantou-se. O camareiro escoltou-a de volta a Boris Melnikov.

Tracy sentou-se à mesa e deslocou o peão de sua rainha preta por duas casas. Ao fundo, percebeu o aceno de aprovação quase imperceptível de Jeff.

Sem hesitação, Boris Melnikov deslocou por duas casas o peão do bispo da rainha branca.

Dois minutos depois, à mesa de Negulesco, Tracy deslocou por duas casas o seu peão do bispo da rainha.

Negulesco accionou por uma casa o seu peão do rei.

Tracy levantou-se e voltou ao salão em que Boris Melnikov esperava. Avançou uma casa o seu peão do rei.

Com que então ela não é uma total amadora!, pensou Melnikov, surpreso. Mas vejamos o que ela faz com isto. Ele jogou o cavalo da rainha para a casa 3 do bispo da rainha.

 

Tracy estudou o movimento, acenou com a cabeça, voltou a Negulesco, repetiu o movimento de Melnikov.

Com crescente espanto, os dois grandes mestres compreenderam que enfrentavam uma brilhante oponente. Não importava quão espertos fossem os seus movimentos, aquela amadora conseguia neutralizá-los.

Como estavam separados, Boris Melnikov e Pietr Negulesco não tinham a menor idéia de que, na realidade, jogavam um contra o outro. Cada movimento que Melnikov fazia contra Tracy, ela repetia contra Negulesco. E quando Negulesco contra-atacava com esse movimento, Tracy usava-o contra Melnikov.

No meio da partida os grandes mestres não estavam mais presunçosos. Agora lutavam por suas reputações. Andavam de um lado para outro enquanto planejavam seus movimentos, fumando furiosamente. Tracy parecia ser a única calma.

No começo, a fim de tentar terminar a partida rapidamente, Melnikov tentara um sacrifício de cavalo, a fim de permitir que seu bispo branco exercesse pressão sobre o lado do rei preto. Tracy levara o movimento para Negulesco. O romeno examinara o movimento cuidadosamente, depois recusara o sacrifício com a cobertura do lado exposto. Quando Negulesco ofereceu um bispo, a fim de avançar uma torre pela defesa branca, Melnikov se recusou a aceitar, antes que a torre preta pudesse abalar a sua estrutura de peões.

Não havia como deter Tracy. A partida vinha sendo travada há quatro horas e nenhuma pessoa em qualquer das audiências se mexia.

Cada grande mestre tem na cabeça centenas de partidas jogadas por outros grandes mestres. Foi quando aquela partida em particular se aproximava do final que tanto Melnikov como Negulesco, reconheceram a marca registrada do outro.

A sacana, pensou Melnikov. Ela estudou com Negulesco. Ele lhe ensinou tudo.

E Negulesco pensou: Ela é protegida de Melnikov. O filho da puta ensinou-a a jogar.

Quanto mais eles lutavam contra Tracy, mais chegavam à conclusão de que não havia como derrotá-la. A partida se aproximava do empate.

Na sexta hora de jogo, às quatro da madrugada, as peças em cada tabuleiro estavam reduzidas a três peões, uma torre e um rei. Não havia como qualquer dos lados vencer. Melnikov estudou o tabuleiro por um longo tempo, depois respirou fundo, meio sufocado, e murmurou:

- Ofereço o empate.

Por cima do burburinho, Tracy respondeu:

- Eu aceito.

A multidão delirou.

Tracy levantou-se e atravessou a multidão para o salão ao lado. Quando se sentava, Negulesco disse, a voz meio estrangulada:

- Ofereço o empate.

E a comoção do outro salão se repetiu. A multidão não podia acreditar no que acabara de testemunhar. Uma mulher surgira do nada e obtivera um empate simultaneamente com os dois maiores enxadristas do mundo. Jeff apareceu ao lado de Tracy e disse, sorrindo:

- Vamos embora. Ambos precisamos de um drinque.

 

Quando eles saíram, Boris Melnikov e Pietr Negulesco ainda estavam arriados em suas cadeiras, olhando apaticamente para seus tabuleiros.

 

Tracy e Jeff sentaram-se a uma mesa para dois no bar do convés superior.

- Você esteve maravilhosa. - Jeff riu. - Notou a expressão de Melnikov? Pensei que ele ia ter um enfarte.

- Pensei que eu fosse ter um enfarte - murmurou Tracy. - Quanto ganhamos?

- Cerca de duzentos mil dólares. Receberemos do comissário de bordo pela manhã, quando atracarmos em Southampton. Encontrarei com você para o café da manhã no restaurante.

- Está bem.

- Acho que vou me recolher agora. Acompanharei você até seu camarote.

- Ainda não me sinto pronta para deitar, Jeff. Estou excitada demais. Vá na frente.

- Você foi uma autêntica campeã. - Jeff inclinou-se e beijou-a de leve na face. - Boa noite, Tracy.

- Boa noite, Jeff.

Ela observou-o se afastar. Ir dormir? Impossível! Fora uma das noites mais fantásticas de sua vida. O russo e o romeno haviam-se mostrado muito confiantes, terrivelmente arrogantes. Jeff dissera: "Confie em mim"... e ela confiara. Não tinha ilusões sobre o que ele era. Um vigarista. Inteligente, divertido e esperto, uma companhia agradável. Mas é claro que ela nunca poderia se interessar a sério por ele.

 

Jeff estava a caminho de seu camarote quando encontrou um dos oficiais do navio.

- Um grande espectáculo, Sr. Stevens. A notícia sobre a partida já foi transmitida pelo telégrafo. Prevejo que a imprensa estará à espera de vocês em Southampton. É o agente da Senhorita Whitney?

- Não. Somos apenas conhecidos de bordo - respondeu Jeff, afavelmente.

Mas sua mente funcionava com rapidez. Se o ligassem a Tracy, poderia parecer um golpe . Talvez até houvesse uma investigação. Ele resolveu recolher o dinheiro antes que houvesse uma investigação.

Escreveu um bilhete para Tracy: PEGUEI O DINHEIRO E ESTAREI à SUA ESPERA PARA UM CAFÉ DA MANHÃ DE COMEMORAÇÃO NO SAVOY HOTEL. VOCÊ ESTEVE MAGNíFICA. JEFF. Ele pôs o bilhete num envelope fechado e entregou a um camareiro.

- Por favor, entregue isto à Senhorita Whitney pela manhã, o mais cedo possível.

- Pois não, senhor.

Jeff foi para a sala do comissário de bordo.

- Lamento incomodá-lo, mas atracaremos dentro de poucas horas e sei como estará ocupado então. Sendo assim, importa-se de me pagar agora?

- Claro que não. - O comissário sorriu. - A moça é realmente extraordinária, não é mesmo?

- É sim.

- Se não se importa que eu pergunte, Sr. Stevens, onde ela aprendeu a jogar xadrez assim?

- Soube que ela estudou com Bobby Fischer.

O comissário tirou do cofre dois envelopes pardos grandes.

 

- É muito dinheiro para se andar por aí. Não preferia que eu lhe desse um cheque pela quantia?

- Não precisa se incomodar. Posso perfeitamente ficar com o dinheiro. Será que se importaria de me fazer um favor? O barco de correspondência vem ao encontro do navio antes de atracarmos, não é mesmo?

- Exactamente. Estamos esperando-o às seis horas da manhã.

- Eu agradeceria se pudesse providenciar para que eu partisse no barco de correspondência. Minha mãe está gravemente doente e eu gostaria de encontrá-la antes... - Ele fez uma pausa e baixou a voz para acrescentar - ...antes que seja tarde demais.

- Oh, lamento profundamente, Sr. Stevens. E é claro que posso dar um jeito. Falarei com o pessoal da alfândega.

 

Eram 6:15 da manhã quando Jeff Stevens, os dois envelopes pardos cuidadosamente guardados em sua mala, desceu a escada do navio para o barco de correspondência. Ele virou-se para lançar uma última olhada aos contornos do enorme navio, pairando acima. Os passageiros do transatlântico ainda dormiam profundamente. Jeff estaria no cais muito antes que o Queen Elizabeth II atracasse.

- Foi uma bela viagem - comentou Jeff para um dos tripulantes do barco de correspondência.

- Foi mesmo - concordou uma voz.

Jeff virou-se, Tracy estava sentada num rolo de corda, os cabelos flutuando suavemente em torno de seu rosto.

- Tracy! O que está fazendo aqui?

- O que acha que estou fazendo?

Ele percebeu a expressão no rosto dela.

- Ei, espere um pouco! Não pensou que eu fosse fugir de você, não é mesmo?

- Por que eu pensaria assim?

O tom dela era irónico.

- Deixei um bilhete para você, Tracy. Ia encontrá-la no Savoy e...

- Claro que ia - disse ela, incisivamente. - Você nunca desiste, não é mesmo?

Ele fitou-a e nada mais tinha a dizer.

 

Em sua suíte, no Savoy, Tracy observava atentamente, enquanto Jeff contava o dinheiro.

- Sua parte dá cento e um mil dólares.

- Obrigada.

O tom dela era gelado.

- Está enganada a meu respeito, Tracy. E gostaria que me, desse uma chance de explicar. Quer jantar comigo esta noite?

Ela hesitou por um instante depois assentiu.

- Está bem.

- óptimo. Virei buscá-la às oito horas.

 

Quando Jeff Stevens chegou ao hotel naquela noite e pediu para falar com Tracy, o recepcionista informou:

- Lamento muito, senhor. A Senhorita Whitney deixou o hotel esta tarde. E não deixou seu novo endereço.

 

Foi o convite, manuscrito, Tracy concluiu mais tarde, que mudou sua vida,

Depois que, Jeff Stevens lhe entregou a sua parte do dinheiro, Tracy deixou, o Savoy e foi para Park Street, 47, um hotel sossegado, semi-residencial, com quartos grandes e agradáveis, um serviço impecável.

No seu segundo dia em Londres, o convite foi entregue em sua Suíte pelo porteiro. Estava escrito numa letra pomposa: "Um amigo comum sugeriu que poderia ser proveitoso para nós dois se nos conhecêssemos. Não gostaria de tomar chá comigo esta tarde, no Ritz, às quatro horas? Se me perdoar o cliché, estarei usando um cravo vermelho." A assinatura era "'Gunther Hartog".

Tracy nunca ouvira falar dele. Sua primeira inclinação foi ignorar o bilhete, mas a curiosidade acabou prevalecendo. às 16:45 estava na entrada do elegante restaurante do Ritz Hotel. Notou-o imediatamente. Era um homem na casa dos 60 anos, calculou Tracy, de aparência atraente, um rosto fino, intelectual. A pele era lisa e clara, quase translúcida. Vestia um terno cinza de corte perfeito, com um cravo vermelho na lapela. Quando Tracy se aproximou da mesa, ele levantou-se e se inclinou ligeiramente.

Obrigado por ter aceito meu convite.

Ele sentou-a com um galanteio antiquado que Tracy achou muito atraente. Parecia pertencer a outro mundo. Tracy não podia imaginar o que um homem assim haveria de querer com ela.

- Só vim porque estava curiosa - confessou Tracy. - Mas tem certeza de que não me confundiu com outra Tracy Whitney?

Gunther Hartog sorriu.

- Pelo que ouvi dizer, só pode existir uma única Tracy Whitney.

- O que exactamente ouviu?

- Não é melhor conversarmos sobre isso enquanto tomamos o chá?

O chá consistia de pequenos sanduíches, com ovo picado, salmão, pepino, agrião e galinha. Havia bolinhos quentes, com manteiga ou geléia, doces frescos, tudo acompanhado por chá Twinings. Eles conversaram enquanto comiam.

- Seu bilhete mencionava um amigo comum - comentou Tracy.

- Conrad Morgan. Tive negócios ocasionais com ele.

Fiz negócios com ele uma vez, pensou Tracy, sombriamente . E ele tentou me passar para trás.

- Ele é um grande admirador seu - acrescentou Gunther Hartog.

Tracy observou mais atentamente o seu anfitrião. Tinha o porte de um aristocrata e a aparência de riqueza. O que ele quer comigo?, especulou Tracy novamente. Ela resolveu deixá-lo continuar, mas não houve menção adicional a Conrad Morgan ou a qualquer possível beneficio mútuo que pudesse decorrer de uma ligação entre Gunther Hartog e Tracy Whitney.

Tracy achou o encontro extremamente agradável e absorvente. Gunther lhe falou a respeito de suas origens.

 

- Nasci em Munique. Meu pai era um banqueiro, um homem rico. Infelizmente, cresci um tanto mimado, cercado por belos quadros e antiguidades. Minha mãe era judia. Quando Hitler subiu ao poder, meu pai recusou-se a abandoná-la. Por isso, foi despojado de tudo o que possuía. Ambos morreram nos bombardeios. Amigos me mandaram às escondidas da Alemanha para a Suíça. Depois que a guerra terminou, resolvi não voltar à Alemanha. Vim para Londres e abri uma pequena loja de antiguidades na Motint Street. Espero que a visite um dia.

Então isso é tudo, pensou Tracy, surpresa. Ele quer me vender alguma coisa.

Mas ela descobriu que estava enganada.

Enquanto pagava a conta, Gunther Hartog disse, casualmente:

- Tenho uma pequena casa de campo em Hampshire. Receberei alguns amigos para o fim de semana e ficaria deliciado se quisesse se juntar a nós.

Tracy hesitou. O homem era um completo estranho e não tinha a menor idéia do que ele queria dela. Mas acabou chegando à conclusão que nada tinha a perder.

 

O fim de semana foi fascinante. A "pequena casa de campo" de Gunther Hartog era um findo solar do o XVII, numa propriedade de 30 acres. Gunther era viúvo e vivia sozinho, excepto pelos criados. Levou Tracy para uma excursão pela propriedade. Havia um estábulo com meia dúzia de cavalos, uma área em que ele criava galinhas e porcos.

- Assim, nunca passaremos fome - disse ele, solenemente. - Mas vou lhe mostrar agora o meu verdadeiro hobby.

Ele conduziu Tracy a um galpão cheio de pombos.

- Estes são pombos-correio. - A voz de Gunther transbordava de orgulho. - Veja só que belezas! Está vendo aquela cinzenta ali? É Margo.

Ele pegou a pomba, afagou-a.

- Sabia que você é uma garota terrível? Ela implica com os outros. Mas é a mais inteligente.

Hartog alisou as penas por cima da cabeça pequena e largou-a com todo cuidado. As cores dos pombos eram espectaculares. Havia uma ampla variedade de azul-preto, azul-cinza com diversos padrões, prateado.

- Mas não há brancos - comentou Tracy.

- Os pombos-correio nunca são brancos - explicou Gunther. - As penas brancas se soltam facilmente, e quando os pombos voltam para casa voam a uma velocidade média de 65 quilómetros horários.

Tracy observou enquanto Gunther alimentava as aves com uma ração especial de corrida, contendo vitaminas extras.

- Os pombos-correio constituem uma espécie espantosa - disse Gunther. - Sabia que são capazes de encontrar seu pombal a uma distância superior a 800 quilómetros?

- Isso é fascinante...

Os outros convidados eram igualmente fascinantes. Havia um ministro de Estado, com sua esposa; um conde; um general e sua amante; a Maharani de Morvi, uma jovem muito atraente e simpática.

- Por favor, chame-me de V. J. - disse ela, numa voz quase sem sotaque.

Ela usava um sari vermelho, com fios de ouro, as jóias mais lindas que Tracy já vira.

- Guardo a maioria das minhas jóias num cofre-forte - explicou V. J. - Há tantos roubos actualmente...

 

Na tarde de domingo, pouco antes do momento em que Tracy deveria voltar a Londres, Gunther convidou-a para seu estúdio. Sentaram-se com uma bandeja de chá entre os dois. Enquanto servia o chá nas delicadas xícaras Belleek, Tracy disse:

- Não sei por que me convidou para vir aqui, Gunther, mas qualquer que seja o motivo tive um fim de semana maravilhoso.

- Fico satisfeito por isso, Tracy. - Depois de um momento, ele acrescentou: - Estive observando-a.

- Entendo...

- Tem planos para o futuro?

Ela hesitou.

- Não. Ainda não decidi o que vou fazer.

- Creio que poderíamos trabalhar muito bem juntos.

- Na loja de antiguidades?

Gunther riu.

- Não, minha cara. Seria uma pena desperdiçar os seus talentos. Sei de sua aventura com Conrad Morgan. E devo dizer que controlou tudo de maneira brilhante.

- Gunther... tudo isso pertence ao passado.

- Mas o que tem pela frente? Disse que não fez planos. Deve pensar em seu futuro. Não importa quanto dinheiro possua agora, certamente acabará um dia. Estou sugerindo uma sociedade, Eu frequento círculos influentes, internacionais. Compareço a bailes de caridade, caçadas e passeios de iate. Conheço as idas e vindas dos ricos.

- Ainda não entendi o que isso tem a ver comigo...

- Posso introduzi-la nesse círculo dourado. E dourado, Tracy, no caso, é mesmo por causa do ouro. Posso fornecer informações sobre jóias fabulosas e quadros extraordinários, como consegui-los com absoluta segurança. Posso vendê-los particularmente. Você estaria equilibrando um pouco a situação de pessoas que enriqueceram demais à custa de outras. Tudo seria dividido igualmente entre nós. O que me diz?

- Digo que não.

Ele estudou-a com um ar pensativo.

- Entendo. Poderia me procurar, se por acaso mudar de idéia?

- Não mudarei de idéia, Gunther.

Tracy retornou a Londres ao final daquela tarde.

 

Tracy adorou Londres. Jantou em Le Gavroche, Bill Bentley's e Coin du Feu, foi ao Drones depois do teatro para comer autênticos hambúrgueres americanos e chili apimentado. Foi ao National Theatre e Royal Opera House, compareceu a leilões no Christie's e Sotheby's. Fez compras na Harrods, Fonnum e Mason's, folheou livros na Hatchards e Foyles. Alugou um carro com motorista e passou um fim de semana memorável no Chewton Glen Hotel, em Hampshire, à beira da New Forest, onde o cenário era espectacular e o serviço impecável.

Mas todas essas coisas eram caras. Não importa quanto dinheiro possua agora, certamente acabará um dia. Gunther Hartog estava certo. Seu dinheiro não duraria para sempre e Tracy compreendeu que precisaria fazer planos para o futuro.

 

Ela foi convidada para outros fins de semana na casa de campo de Gunther, apreciando intensamente cada visita e a companhia dele.

Um domingo, ao jantar, um membro do Parlamento virou-se para Tracy e disse:

- Nunca conheci um verdadeiro texano, Senhorita Whitney. Como eles são?

 

Tracy se lançou a uma imitação maliciosa de uma matrona nova-rica do Texas, arrancando risos efusivos de todos. Mais tarde, quando ficou a sós com ela, Gunther indagou:

- Não gostaria de ganhar uma pequena fortuna fazendo essa imitação?

- Não sou uma actriz, Gunther.

- Está se subestimando. Há uma joalheria em Londres... Parker & Parker.., que sentem a maior delícia... como dizem os americanos... em explorar seus clientes. Você me deu uma idéia sobre a maneira de fazê-los pagar por sua desonestidade.

Ele expôs a idéia a Tracy, que respondeu no final:

- Não.

Quanto mais pensou a respeito, no entanto, mais se sentiu atraída. Lembrou-se da emoção de ser mais esperta do que a polícia em Long Island, de Boris Melnikov, Pietr Negulesco e Jeff Stevens. Fora uma emoção indescritível. Mesmo assim, isso era parte do passado.

- Não, Gunther - insistiu ela.

Mas desta vez não havia tanta certeza em sua voz.

 

Londres estava excepcionalmente quente para outubro e ingleses e turistas aproveitavam igualmente o sol forte. O tráfego de meio-dia era intenso, com paralisações em Trafalgar Square, Charing Cross e Piccadilly Circus. Um Daimler branco saiu da Oxford Street e entrou na New Bond Street, avançando pelo tráfego, passando por Roland Cartier, Geigers e Royal Bank of Scotland. Poucas portas além da Hermes o Daimler parou diante de uma joalheria. Uma discreta placa polida no lado da porta anunciava: PARKER & PARKER. Um motorista de libré saltou da limusine e deu a volta apressadamente para abrir a porta da passageira. Uma jovem loura, com um excesso de maquilhagem e um vestido italiano de tricô muito justo, sob o casaco de zibelina, totalmente impróprio para o tempo, saltou do carro.

- Onde fica a espelunca, júnior? - perguntou ela, em voz muito alta, com um desagradável sotaque texano.

O motorista indicou a entrada.

- Ali, madame.

- OK, meu bem. Fique esperando. A coisa não vai demorar muito.

- Talvez eu tenha de dar uma volta pelo quarteirão, madame. Não me permitirão ficar estacionado aqui.

A mulher deu-lhe um tapinha nas costas.

- Faça o que tiver de fazer, cara.

Cara! O motorista estremeceu. Era sua punição por estar reduzido a guiar carros de aluguel. Ele detestava todos os americanos, particularmente os texanos. Eram selvagens... mas selvagens com dinheiro. Ele ficaria espantado se soubesse que sua passageira nunca estivera no Texas, o Estado da Estrela Solitária.

Tracy verificou seu reflexo na vitrine, armou um sorriso e avançou para a porta, que foi aberta por um empregado uniformizado.

- Boa tarde, madame.

- Boa tarde, cara. Vende alguma coisa nesta espelunca além de jóias de fantasia?

Ela riu de sua piada. O porteiro empalideceu. Tracy entrou pela loja, deixando em sua esteira uma fragância irresistível de ChIoé. Arthur Chilton, um vendedor de fraque, adiantou-se.

 

- Posso ajudá-la, madame?

- Talvez sim, talvez não. O velho P. J. disse para eu comprar um presentinho de aniversário para mim mesma. E aqui estou. O que tem para me mostrar?

- Madame está interessada em alguma coisa em particular?

- Ei, parceiro, vocês ingleses não perdem tempo, hem? - Ela riu escandalosamente e bateu em seu ombro. Chilton precisou de fazer um grande esforço para permanecer impassível. - Talvez alguma coisa de esmeraldas. O velho P. J. adora quando eu compro esmeraldas.

- Se quiser me acompanhar, por favor...

Chilton conduziu-a a um mostruário em que havia diversas bandejas com esmeraldas. A loura oxigenada lançou um olhar desdenhoso para as pedras.

- Estas são as bebés. Onde estão os papais e mamães?

Chilton, disse, tensamente:

- Estas peças têm um preço que vão até trinta mil dólares.

- Ora, isso eu dou de gorjeta ao meu cabeleireiro. - A mulher soltou uma risada. - O velho P. J. ficaria insultado se eu voltasse com uma dessas pedrinhas.

Chilton visualizou o velho P. J. Gordo e barrigudo, tão escandaloso e repulsivo quanto aquela mulher. Eles bem que se mereciam. Por que o dinheiro sempre corre para quem não o merece?

- Em que nível de preço madame está interessada?

- Por que não começamos logo por alguma coisa em torno dos cem bagarotes?

Ele permaneceu impassível.

- Cem bagarotes?

- Ora essa, pensei que todos vocês falassem a língua do rei. Cem mil dólares.

Chilton engoliu em seco.

- Nesse caso, talvez seja melhor falar com o nosso director-executivo.

O director-executivo, Gregory Halston, insistia em cuidar pessoalmente de todas as vendas grandes. Como os empregados da Parker & Parker não recebiam comissão, não fazia a menor diferença para eles. Com uma cliente tão desagradável quanto aquela, Chilton sentia-se aliviado em passá-la para Halston. Ele apertou um botão por baixo do balcão e um momento depois um homem pálido e magro saiu de uma sala nos fundos. Olhou para a loura vestida tão afrontosamente e rezou para que nenhum de seus clientes regulares aparecesse até que a mulher fosse embora. Chilton disse:

- Sr. Halston, esta é a Sra.... ahn...

Ele virou-se para a mulher.

- Benecke, meu bem. Mary Lou Benecke. A esposa do velho P. J. Benecke. Aposto que todos já ouviram falar de P. J. Benecke.

- Claro.

Gregory Halston concedeu à mulher um sorriso que mal tocava seus lábios.

- A Sra. Benecke está interessada em comprar uma esmeralda, Sr. Halston.

Gregory Halston indicou as bandejas de esmeraldas.

- Temos aqui algumas esmeraldas excelentes que...

- Ela queria alguma coisa em torno aproximadamente de cem mil dólares.

 

Desta vez o sorriso que iluminou o rosto de Gregory Halston era genuíno. Uma óptima maneira de começar o dia.

- É o meu aniversário e o velho P. J. quer que eu compre alguma coisa bem bonita.

- Pois não - disse Halston. - Quer me acompanhar, por favor?

- Ora, seu pequeno patife, o que está pensando em fazer comigo?

A loura soltou uma risadinha. Halston e Chilton trocaram um olhar angustiado. Malditos americanos!

Halston conduziu a mulher a uma porta trancada, tirou uma chave do bolso e abriu-a. Entraram numa sala pequena, intensamente iluminada. Halston tornou a trancar a porta, cuidadosamente, explicando:

- É aqui que guardamos as nossas mercadorias para os clientes mais importantes.

Havia no centro da sala um mostruário com uma colecção espectacular de diamantes, rubis e esmeraldas, faiscando.

- Assim está melhor. O velho P. J. ficaria doido aqui dentro.

- Madame vê alguma coisa que lhe agrade?

- Vamos ver o que tem aqui . - Ela foi até a caixa contendo as esmeraldas. - Deixe-me dar uma olhada nestas coisas.

Halston tirou outra chave do bolso, destrancou o mostruário e tirou uma bandeja com esmeraldas, colocando em cima da mesa. Havia dez esmeraldas na bandeja de veludo. Halston observava, enquanto a mulher pegava a maior, um broche requintado, engastado em platina.

- Como diria o velho P. J. esta aqui tem o meu nome escrito nela.

- Madame tem excelente gosto. Esta é uma colombiana de dez quilates, impecável e...

- As esmeraldas nunca são impecáveis.

Halston ficou aturdido por um momento.

- Madame está correcta, é claro. O que eu quis dizer foi...

Pela primeira vez, ele notou que os olhos da mulher eram tão verdes quanto a pedra que ela virava nas mãos, estudando as suas facetas.

- Temos uma colecção maior se...

- Não se afobe, queridinho. Ficarei com esta aqui.

A venda levara menos de três minutos.

- Esplêndido! - Uma pausa e Halston acrescentou: - Em dólares, dá cem mil. Como madame vai pagar?

- Não se preocupe, Halston, doçura. Tenho uma conta em dólares num banco aqui de Londres. Farei um chequinho pessoal. P. J. pode me pagar depois.

- Excelente. Mandarei limpar a pedra e depois entregar em seu hotel.

A pedra não precisava de limpeza, mas Halston não tinha a menor intenção de entregá-la antes que o cheque fosse devidamente descontado, pois eram muitos os joalheiros que haviam sido enganados por vigaristas espertos. Halston orgulhava-se de jamais ter sido trapaceado em uma libra sequer.

- Onde devo entregar a esmeralda?

- Estamos na Suíte Oliver Messel, no Dorch.

Halston escreveu uma anotação.

- O Dorchester.

 

- Eu chamo de Suíte Oliver Bagunça. - Ela riu. - Uma porção de gente não gosta mais do hotel porque vive cheio de árabes. Mas o velho P. J. faz uma porção de negócios com eles. "O petróleo é o seu próprio país", como ele sempre diz. P. J. Benecke é um cara muito esperto.

- Tenho certeza que sim - respondeu Halston, afavelmente.

Ele observou-a pegar um cheque e começar a preencher. Notou que era do Barclays Bank. óptimo. Tinha um amigo ali que poderia verificar a conta dos Beneckes. Halston pegou o cheque.

- Mandarei entregar-lhe a esmeralda pessoalmente amanhã de manhã.

- O velho P. J. vai adorar - comentou a mulher, radiante.

- Não tenho a menor dúvida - comentou Halston, polidamente.

Ele acompanhou-a até à porta da loja.

- Halston...

Ele quase corrigiu-a, mas depois se decidiu contra. Por que se incomodar? Nunca mais tornaria a ver aquela mulher, graças a Deus!

- Pois não, madame?

- Tem de aparecer para tomar um chá com a gente um dia desses. Vai adorar o velho P. J.

- Tenho certeza que sim, madame. Mas, infelizmente, trabalho durante a tarde.

- É uma pena.

Ele observou a cliente sair para a calçada. Um Daimler branco parou um momento depois, um motorista saltou e abriu a porta. A loura fez um sinal com o polegar para cima na direcção de Halston, enquanto o carro se afastava.

Halston voltou à sua sala, pegou o telefone e ligou para seu amigo no Barclays:

- Peter, meu caro, tenho aqui um cheque de cem mil dólares de uma certa Sra. Mary Lou Benecke. É bom?

- Espere um instante, meu velho.

Halston esperou. Contava que o cheque fosse bom, pois os negócios andavam meio parados ultimamente. Os sovinas irmãos Parker, que possuíam a loja, viviam constantemente reclamando, como se fosse ele o responsável e não a recessão. É claro que os lucros não haviam caído tanto quanto poderiam, pois Parker & Parker tinha um departamento que se especializava na limpeza de jóias; a intervalos frequentes, a jóia devolvida ao cliente era inferior à que fora recebida. Já houvera queixas, mas nada fora provado. Peter voltou ao telefone:

- Não há problema, Gregory. Tem dinheiro mais do que suficiente na conta para cobrir o cheque.

Halston sentiu um tremor de alívio.

- Obrigado, Peter.

- Não há de quê.

- Vamos almoçar juntos na próxima semana... por minha conta.

 

O cheque foi compensado sem problemas na manhã seguinte, e a esmeralda colombiana foi entregue por um mensageiro de confiança à Sra. P. J. Benecke, no Dorchester Hotel.

Naquela tarde, pouco antes da hora de fechar, a secretária de Gregory Halston informou-o:

- Uma certa Sra. Benecke está aqui e deseja lhe falar, Sr. Halston.

Ele sentiu um aperto no coração. Ela viera devolver o broche e ele não podia se recusar a aceitá-la. Malditas sejam as mulheres, todos os americanos e todos os texanos! Halston afixou um sorriso e saiu para cumprimentá-la.

 

- Boa tarde, Sra. Benecke. Presumo que seu marido não gostou do broche.

Ela sorriu.

- Pois presumiu errado, meu chapa. O velho P. J. ficou louquinho pela pedra.

O coração de Halston se encheu de alegria.

- É mesmo?

- Para dizer a verdade, ele gostou tanto que quer que eu arrume outra esmeralda igual, para fazer um par de brincos. Arrume uma pedra gémea da que me vendeu.

Um pequeno franzido apareceu no rosto de Gregory Halston.

- Infelizmente, Sra. Benecke, talvez haja um pequeno problema.

- Que tipo de problema, doçura?

- A sua pedra é única. Não há outra Igual. Mas tenho um jogo maravilhoso, num estilo diferente, que poderia...

- Não quero um estilo diferente. Quero uma pedra igualzinha à que comprei.

- Para ser absolutamente franco, Sra. Benecke, não há muitas pedras colombianas de dez quilates impecáveis.. . - Ele percebeu a expressão no rosto da mulher. - ... quase impecáveis disponíveis.

- Ora, cara, deixe disso. Tem de haver outra pedra em algum lugar.

- Com toda honestidade, só encontrei bem poucas pedras dessa qualidade e tentar duplicá-la exactamente, no formato e na cor, seria quase impossível.

- Temos um ditado no Texas de que o impossível só demora um pouco mais. Sábado é meu aniversário e P. J. me quer ver com os brincos. E o que P. J. quer, P. J. consegue.

- Creio que não é possível...

- Quanto paguei pelo broche... cem mil? Sei que o velho P. J. está disposto a pagar duzentos mil ou até trezentos mil pela outra pedra.

Gregory Halston pensava depressa. Tinha de haver uma duplicação daquela pedra em algum lugar. Se P. J. Benecke estava disposto a pagar 200 mil dólares extras, isso representaria um lucro apreciável. Na verdade, pensou Halston, posso dar um jeito para que represente um lucro apreciável para mim. Em voz alta, ele disse:

- Farei algumas indagações, Sra. Benecke. Tenho certeza de que nenhum outro joalheiro de Londres possui uma esmeralda idêntica, mas sempre há colecções sendo leiloadas. Veremos se obtemos resultados.

- Tem até o fim da semana para conseguir - advertiu a loura. - E aqui entre nós e o lampião, o velho P. J. provavelmente estará disposto a pagar até trezentos e cinquenta mil.

E a Sra. Benecke se foi, o casaco de zibelina esvoaçando em sua esteira.

 

Gregory Halston ficou sentado em sua sala, imerso em devaneio. O destino jogara em suas mãos um homem tão apaixonado por sua sirigaita loura que se mostrava disposto a pagar 350 mil dólares por uma esmeralda que valia cem mil. O que daria um lucro liquido de 250 mil dólares. Gregory Halston não via necessidade de sobrecarregar os irmãos Parker com os detalhes da transação. Seria muito simples registrar a venda da segunda esmeralda por cem mil dólares e embolsar o resto. Os 250 mil dólares extras seriam uma garantia pelo resto de sua vida.

 

Tudo o que tinha de fazer agora era descobrir uma esmeralda igual à que vendera à Sra. P. J. Benecke.

Só que isso se tornou muito mais difícil do que Halston previra. Nenhum dos joalheiros para os quais telefonou tinha em estoque uma pedra que sequer parecesse com a que precisava. Ele pôs anúncios no Times de Londres e no Financial Times, entrou em contacto com a Christie's e Sotheby's, com uma dúzia de outros leiloeiros. Nos dias subsequentes ofereceram a Halston incontáveis esmeraldas inferiores, boas esmeraldas e umas poucas esmeraldas de primeira qualidade, mas nenhuma se aproximava da que estava procurando. A Sra. Benecke telefonou-lhe na quarta-feira e avisou:

- O velho P. J. está ficando impaciente. Ainda não descobriu a pedra?

- Ainda não, Sra. Benecke. Mas não se preocupe. Acabaremos encontrando.

Ela tornou a telefonar na sexta-feira:

- Amanhã é o meu aniversário.

- Sei disso, Sra. Benecke. Se me desse mais alguns dias, tenho certeza que poderia...

- Não se preocupe com isso, doçura. Se não tiver a outra esmeralda até amanhã de manhã, devolverei a que comprei. O velho P. J. ... abençoado seja o seu coração... diz que vai me comprar em vez disso uma velha propriedade rural. Já ouviu falar de um lugar chamado Sussex?

Halston começou a suar.

- Detestaria viver em Sussex, Sra. Benecke. Detestaria uma dessas velhas mansões rurais. Quase todas se encontram em estado deplorável. Não possuem aquecimento central e...

Ela interrompeu-o:

- Aqui entre nós, eu preferia ficar com os brincos. O velho P. J. até mencionou alguma coisa sobre pagar quatrocentos mil dólares por uma gémea daquela esmeralda. Não faz idéia de como o velho P. J. pode ser teimoso.

Quatrocentos mil dólares! Halston podia sentir o dinheiro escapulindo entre seus dedos.

- Pode estar certa de que estou fazendo tudo o que é possível - suplicou ele. - Dê-me um pouco mais de tempo.

- Isso não compete a mim, doçura. O problema é com P. J.

E a linha ficou muda.

Halston continuou sentado, amaldiçoando o destino. Onde poderia encontrar uma esmeralda de dez quilates idêntica? Ele estava tão absorvido em seus pensamentos amargurados que não ouviu a campainha do interfone até o terceiro toque. Apertou o botão e disse bruscamente:

- O que é?

- Há uma certa Condessa Marissa no telefone, Sr. Halston. Quer falar sobre o nosso anúncio da esmeralda.

Mais uma! Ele já recebera pelo menos dez telefonemas naquela manhã e todos haviam sido uma perda de tempo. Ele pegou o telefone e disse rudemente:

- Pois não?

Uma voz feminina suave disse, com um sotaque italiano:

- Buon giorno, signore. Li que está interessado em comprar uma esmeralda. E verdade?

- Se corresponde às minhas exigências, é, sim.

Ele não podia esconder a impaciência de sua voz.

 

- Tenho uma esmeralda que pertence à minha família há muitos anos. É um peccato... uma pena... mas me encontro agora numa situação em que sou obrigada a vendê-la.

Ele já ouvira aquela história antes. Devo tentar o Christie's novamente, pensou Halston. Ou o Sotheby's. Talvez alguma coisa tenha aparecido no último momento ou...

- Signore? Está procurando por uma esmeralda de dez quilates, si?

- Exactamente.

- Tenho uma verde de dez quilates... colombiana.

Quando começou a falar, Halston descobriu que sua voz estava estrangulada:

- Pode... pode dizer isso de novo, por favor?

- Si. Tenho uma verde colombiana de dez quilates. Estaria interessado?

- Posso estar - disse Halston, cuidadosamente. - Poderia passar por aqui para eu dar uma olhada na pedra?

- Não, scusi, mas infelizmente me encontro muito ocupada neste momento. Estamos preparando uma festa na embaixada para meu marido. Talvez na próxima semana eu poderia...

Não! Na próxima semana seria tarde demais.

- Posso então ir procurá-la? - Halston tentou eliminar a ansiedade de sua voz. - Posso ir agora mesmo.

- Ma, no. Sono occupata stamani. Planejei sair para fazer algumas compras e...

- Onde está hospedada, condessa?

- No Savoy.

- Posso estar aí dentro de quinze minutos. Dez.

A voz de Halston era quase desesperada

- Molto bene. E seu nome é...

- Halston... Gregory Halston.

- Suíte ventisei... vinte e seis.

 

A corrida de táxi foi interminável. Halston passou das culminâncias do paraíso para as profundezas do inferno e tornou a voltar. Se a esmeralda fosse realmente similar à outra, ele seria rico além de seus sonhos mais desvairados. Ele pagará 400 mil dólares! Um lucro de 300 mil. Compraria uma propriedade na Riviera, talvez um iate. Com uma villa e seu próprio barco, poderia a tantos rapazes bonitos quanto quisesse...

Gregory Halston era ateu, mas ao seguir pelo corredor do Savoy Hotel para a Suíte 26 descobriu-se a rezar: Faça com que a pedra seja bastante parecida para satisfazer o velho P. J. Benecke.

Ele parou diante da porta da condessa, respirando fundo, lutando para se controlar. Bateu na porta. Não houve resposta.

Oh, Deus, pensou Halston, ela não esperou por mim. Saiu para fazer compras e...

A porta se abriu e Halston descobriu-se na frente de uma mulher elegante, na casa dos 50 anos, olhos escuros, um rosto vincado, cabelos pretos com muitos fios brancos. Quando ela falou, a voz era suave, com o familiar sotaque italiano melodioso:

- Si?

- Sou Gre-gregory Halston. Re-recebi seu telefonema.

Em seu nervosismo, ele estava gaguejando.

- Ah, si. Sou a Condessa Marissa. Entre, signore, per favore.

- Obrigado.

 

Halston entrou na Suíte, comprimindo os joelhos juntos, para impedir que tremessem. Quase que disse impulsivamente: "Onde está a esmeralda?" Mas sabia que devia se controlar. Não era conveniente que parecesse muito ansioso. Se a pedra fosse satisfatória, teria a vantagem na negociação. Afinal, ele era o perito, enquanto a mulher não passava de uma amadora.

- Sente-se, por favor - disse a condessa.

Ele ocupou uma cadeira.

- Scusi. Non parlo molto bene inglese. Não falo muito bem o inglês.

- Não, não. É encantador, encantador...

- Grazie. Aceita um café? Chá?

- Não, obrigado, condessa.

Halston podia sentir o estômago se contraindo. Seria cedo demais para falar da esmeralda? Mas não podia esperar por mais um segundo sequer.

- A esmeralda...

- Ah, si... A esmeralda me foi dada por minha avó. Eu gostaria de dá-la à minha filha quando completasse vinte e cinco anos, mas meu marido está iniciando um novo negócio em Milão e...

A mente de Halston estava em outras coisas. Não se interessava pela tediosa história da vida da estranha sentada à sua frente. Sentia-se ansioso em ver a esmeralda. O suspense era mais do que podia suportar.

- Credo che sia importante ajudar meu marido a iniciar seu novo negócio. - Ela sorriu tristemente. - Talvez eu esteja cometendo um erro...

- Não, não - Halston apressou-se em dizer. - Absolutamente, condessa. O dever de uma esposa é ficar ao lado de seu marido. Onde se encontra a esmeralda?

- Está aqui.

Ela meteu a mão no bolso e tirou uma jóia, envolta em papel de seda, estendendo para Halston. Ele contemplou-a e seu coração se reanimou. Olhava agora para a mais perfeita esmeralda colombiana de dez quilates que já vira. Era tão próxima, na aparência, tamanho e cor, da que vendera à Sra. Benecke que era quase impossível distinguir uma da outra. Não é exactamente a mesma coisa, disse Halston a si mesmo, mas somente um perito poderia reconhecer a diferença.

Ele virou a pedra, deixando a luz incidir sobre as facetas, depois disse em tom de quase desinteresse:

- É uma pedra bastante bonita.

- Spiendente, si. Eu a tenho amado muito por todos estes anos. Detestarei me separar dela.

- Está fazendo a coisa certa - assegurou-lhe Halston. - Assim que o empreendimento de seu marido começar a dar bons resultados, poderá comprar tantas pedras assim quantas desejar.

A condessa suspirou.

- É exactamente o que eu penso. Você é molto simpático.

- Estou prestando um pequeno serviço a um amigo, contessa.

Temos pedras muito melhores do que esta em nossa loja, mas meu amigo quer uma que combine exactamente com a esmeralda que comprou para a esposa. Calculo que ele estaria disposto a pagar até sessenta mil dólares por esta pedra.

- Minha avó me amaldiçoaria da sepultura se eu vendesse sua esmeralda por sessenta mil dólares.

 

Halston contraiu os lábios. Tinha margem para subir o preço. Ele sorriu.

- Vamos fazer uma coisa... acho que posso persuadir meu amigo a subir até cem mil dólares. É muito dinheiro, mas ele está ansioso em obter a pedra.

- Parece um bom preço.

O coração de Gregory Halston inflou dentro do peito.

- Bem! Eu trouxe o talão de cheques. Assim, farei um cheque agora mesmo...

- Ma, no... Infelizmente, isso não resolverá o problema.

A voz da condessa era triste. Halston ficou aturdido.

- O problema?

- Si. Como expliquei, meu marido vai se lançar em um novo negócio e precisa de trezentos e cinquenta mil dólares. Eu tenho cem mil dólares do meu dinheiro para lhe dar, mas preciso de mais duzentos e cinquenta mil. Esperava conseguir isso com a esmeralda.

Ele sacudiu a cabeça.

- Minha cara condessa, nenhuma esmeralda no mundo vale tanto dinheiro. Acredite em mim, cem mil dólares é mais do que uma oferta justa.

- Tenho certeza disso, Sr. Halston. Mas não poderei ajudar meu marido, não é mesmo? - A condessa levantou-se . - Guardarei a esmeralda para a nossa filha.

Ela estendeu a mão esguia e delicada.

- Grazie, signore. Obrigada por ter vindo.

Halston entrou em pânico.

- Espere um momento. - Sua ganância duelava com o bom senso, mas ele sabia que não devia perder aquela esmeralda agora. - Sente-se, por favor, condessa. Tenho certeza de que podemos chegar a um acordo justo . Se eu puder persuadir meu cliente a pagar cento e cinquenta mil...

- Eu só venderia por duzentos e cinquenta mil...

- Que tal duzentos mil?

- Só duzentos e cinquenta mil dólares.

Não havia como demovê-la. Halston tomou sua decisão. Um lucro de 150 mil dólares era melhor do que nada. Significaria uma villa e um barco menores, mas ainda era uma fortuna. E seria bem feito para os irmãos Parker pela maneira mesquinha como o haviam tratado. Esperaria um dia ou dois e depois lhes daria o aviso prévio. E na próxima semana estaria na Côte d'Azur.

- Negócio fechado - disse ele finalmente.

- Meraviglioso! Sono contenta!

Deve mesmo estar contente, sua cadela, pensou Halston. Mas ele nada tinha do que se queixar. Estava com a vida feita. Lançou um último olhar para a esmeralda e depois guardou-a no bolso.

- Eu lhe darei um cheque da conta da loja.

- Bene, signore...

Halston, preencheu o cheque e entregou-o. Faria a Sra. P. J. Benecke pagar 400 mil dólares pela esmeralda. Peter descontaria o cheque para ele, cobriria o cheque dos irmãos Parker que dera à condessa e embolsaria a diferença. Combinaria com Peter para que o cheque de 250 mil dólares não constasse do extracto mensal dos irmãos Parker. Eram 150 mil dólares!

Ele já podia sentir o quente sol francês em seu rosto.

 

A viagem de táxi de volta à loja pareceu demorar apenas uns poucos segundos. Halston imaginou a felicidade da Sra. Benecke quando lhe transmitisse a boa notícia. Não apenas encontrara a jóia que ela queria, mas também lhe poupara a experiência dolorosa de viver numa casa de campo desmantelada e cheia de correntes de ar. Assim que Halston entrou na loja, Chilton aproximou-se e disse:

- Senhor, um cliente aqui está interessado em...

Halston dispensou-o com um aceno jovial.

- Mais tarde.

Ele não tinha tempo para os clientes agora. Nem agora nem nunca mais. Dali por diante, as pessoas teriam de servir a ele. Faria compras na Hermes, Gueci e Lanvin.

Halston foi para a sua sala, fechou a porta, pôs a esmeralda em cima da mesa e discou um número. A telefonista atendeu:

- Dorchester Hotel.

- Suíte Oliver Messel, por favor.

- Com quem deseja falar?

- Sra P. J. Benecke.

- Um momento, por favor.

Halston ficou assobiando baixinho enquanto esperava. A telefonista voltou à linha:

- Lamento, mas a Sra. Benecke já deixou a suíte.

- Pois então ligue-me para a Suíte em que ela está agora.

- A Sra. Benecke deixou o hotel.

- Mas isso é impossível. Ela...

- Vou ligá-lo com a recepção.

Uma voz de homem disse:

- Recepção. Em que posso servi-lo?

- Qual é a suíte em que está a Sra. Benecke?

- A Sra. Benecke deixou o hotel esta manhã.

Tinha de haver alguma explicação. Alguma emergência inesperada.

- Pode me informar o endereço que ela deixou, por favor? Aqui é...

- Lamento, mas ela não deixou qualquer endereço.

- Mas é claro que ela deixou!

- Fiz pessoalmente o registro de saída da Sra. Benecke. Ela não deixou qualquer endereço.

Foi um murro na boca do estômago. Lentamente, Halston repôs o telefone no gancho e ficou imóvel na cadeira, atordoado. Tinha de encontrar um meio de entrar em contacto com a mulher, informá-la que conseguira finalmente localizar a esmeralda. Enquanto isso, tinha de recuperar o cheque de 250 mil dólares que entregara à Condessa Marissa. Ele discou prontamente para o Savoy Hotel.

- Suíte 26.

- Com quem deseja falar, por favor?

- Condessa Marissa.

- Um momento, por favor.

Mas, antes mesmo que a telefonista voltasse à linha, alguma terrível premonição revelou a Gregory Halston, a notícia desastrosa que estava prestes a ouvir.

- Lamento muito, mas a Condessa Marissa. já saiu do hotel.

Ele desligou. Os dedos tremiam tanto que mal conseguiu discar o número do banco.

- Dê-me o chefe dos caixas... depressa! Eu gostaria de suspender o pagamento de um cheque.

 

Mas é claro que ele estava atrasado demais. Vendera uma esmeralda por cem mil dólares e comprara de volta a mesma esmeralda por 250 mil dólares. Gregory Halston continuou sentado, arriado na cadeira, imaginando como iria explicar aos irmãos Parker.

 

Foi o início de uma vida nova para Tracy. Ela comprou uma linda casa georgiana, na Eaton Square, 45, esplêndida e alegre, perfeita para receber. Tinha um Queen Anne - o jargão britânico para designar um jardim na frente - e um Mary Anne - um jardim nos fundos - magníficos quando chegava a primavera. Gunther ajudou Tracy a decorar a casa e antes que os dois acabassem já era um dos lugares de destaque de Londres.

Gunther apresentava Tracy como uma jovem viúva rica, cujo marido ganhara sua fortuna em operações de importaçào e exportação. Ela foi um sucesso instantâneo: bonita, inteligente e charmosa, logo se viu inundada de convites.

A intervalos, Tracy realizava pequenas viagens à Suíça, Bélgica, Itália e França, a cada vez obtendo novos lucros para ela e Gunther Hartog.

Sob a orientação de Gunther, Tracy estudou o Almanach de Gotha e o Debrett's Peerage and Baronetage, os livros mais autorizados com informações detalhadas sobre a realeza e títulos da Europa. Tracy tornou-se como um camaleão, uma perita em maquilhagem, disfarces e sotaques. Adquiriu meia dúzia de passaportes. Em vários países, era uma duquesa britânica, uma aeromoça francesa e uma herdeira sul-americana. Em um ano, acumulara mais dinheiro do que jamais precisaria. Instituiu um fundo, que fazia contribuições vultosas e anónimas a organizações empenhadas em ajudar as mulheres que haviam passado pela prisão. Providenciou uma pensão generosa a ser enviada todos os meses a Otto Schmidt. Não mais sequer

acalentava o pensamento de deixar aquela vida. Adorava o desafio de sobrepujar pessoas espertas e bem-sucedidas. A emoção de cada aventura ousada agia como um tóxico. Tracy descobriu que constantemente precisava de novos e maiores desafios. Havia um credo pelo qual vivia: sempre tomava o cuidado de não prejudicar os inocentes. As pessoas que caíam em seus golpes eram gananciosas ou imorais, se não as duas coisas. Ninguém jamais cometerá suicídio por causa de um ato meu, prometeu Tracy a si mesma.

Os jornais começaram a publicar notícias sobre os golpes audaciosos que ocorriam por toda a Europa. Como Tracy usava disfarces diferentes, a polícia ficara convencido de que uma erupção de golpes e assaltos engenhosos estava sendo promovida por uma quadrilha de mulheres. A Interpol começou a se interessar.

 

Em Manhattan, na sede da Associação Internacional de Protecção do Seguro, J. J. Reynolds mandou chamar Daniel Cooper.

- Temos um problema - disse Reynolds. - Muitos dos nossos clientes europeus estão sendo gravemente atingidos... aparentemente por uma quadrilha de mulheres. Todos estão furiosos. Querem que a quadrilha seja desbaratada. A Interpol já concordou em cooperar connosco. A missão é sua, Dan. Você parte rumo a Paris pela manhà.

Tracy estava jantando com Gunther no Scott's, na Mount Street.

- Já ouviu falar de Maximilian Pierpont, Tracy?

O nome parecia familiar. Onde ela o ouvira antes? Lembrou de repente. Jeff Stevens, a bordo do Queen Elizabeth II, dissera: "Estamos aqui pelo mesmo motivo. Maximilian Pierpont."

Ela disse:

 

- Ele é muito rico, não é mesmo?

- E absolutamente implacável. Especializa-se em comprar companhias e saqueá-las.

Quando Joe Romano assumiu a companhia, despediu todo mundo e trouxe o seu próprio pessoal. E começaram a saquear a companhia. Tiraram tudo - a companhia, esta casa, o carro de sua màe...

Gunther observava com estranheza:

- Você está bem, Tracy?

- Estou, sim. - A vida pode às vezes ser injusta e compete a nós endireitar as coisas - pensou ela. - Fale-me mais a respeito de Maximilian Pierpont.

- A terceira esposa divorciou-se e ele está sozinho agora. Acho que poderia ser proveitoso se você o conhecesse. Ele tem uma reserva no Expresso do Oriente de sexta-feira, partindo de Londres para Istambul.

Tracy sorriu.

- Nunca viajei no Expresso do Oriente. Acho que vou gostar.

Gunther sorriu também.

- Óptimo. Maximilian Pierpont possui a única colecção de ovos Fabergé importante fora do Museu Hermitage, de Leningrado. Um cálculo moderado lhe atribui o valor de vinte milhões de dólares.

- Se eu conseguisse lhe arrumar alguns desses ovos, Gunther, o que faria com eles? - indagou Tracy, curiosa. - Não são conhecidos demais para vendê-los?

- Coleccionadores particulares, minha cara Tracy. Traga os ovinhos para mim e conseguirei encontrar-lhes um ninho.

- Verei o que posso fazer.

- Maximilian Pierpont não é um homem fácil de abordar. Contudo, há dois outros alvos que também viajarão no Expresso do Oriente, a caminho do festival de cinema em Veneza. Creio que estão maduros para serem depenados. Já ouviu falar de Silvana Luadi?

- A actriz de cinema italiana? Claro.

- Ela é casada com Alberto Fornati, que produz aqueles horríveis filmes épicos. Fornati é infame por contratar actores e directores por pouco dinheiro, mas prometendo participação nos lucros. Contudo ele sempre dá um jeito de açambarcar todos os lucros. E ganha o suficiente para comprar as jóias mais caras para a esposa. Quanto mais lhe é infiel, mais jóias para ela Fornati compra. A esta altura, Silvana já deve estar em condições de abrir uma joalheria. Tenho certeza de que os achará uma companhia muito interessante.

- Estou ansiosa em conhecê-los.

 

O Expresso do Oriente Veneza Simplon parte da Victoria Station, em Londres, toda manhà de sexta-feira, às 11 e 44, seguindo de Londres para Istambul, com escalas em Boulogne, Paris, Lausanne, Milão e Veneza. Meia hora antes da partida, uma roleta portátil é armada à entrada da plataforma de embarque no terminal, dois corpulentos homens uniformizados estendem um tapete vermelho, empurrando para o lado os outros passageiros à espera.

 

Os novos proprietários do Expresso do Oriente tentaram reconstituir a época áurea da viagem ferroviária, conforme ocorria ao final do século XIX. O trem era uma réplica do original, com um vagão Puliman britânico, vagões-restaurantes, um bar e os vagões-dormitórios.

Um atendente com um uniforme azul-marinho da década de 20, com alamares dourados, levou as duas malas de Tracy e a sua frasqueira para a cabina, que era desapontadoramente pequena. Havia uma única poltrona, estofada em mohair, num padrão florido. O tapete, assim como a escada para se subir ao beliche, era coberto por pelúcia verde. Era como estar numa caixa de bombons.

Tracy leu o cartão que acompanhava a garrafa de champanha num balde de prata: OLIVER AUBERT, GERENTE DO TREM.

Guardarei o champanha até ter alguma coisa para comemorar, decidiu Tracy. Maximilian Pierpont. Jeff Stevens fracassara. Seria maravilhoso superar o Sr. Stevens. Tracy sorriu ao pensar nisso.

Ela desfez as malas no espaço apertado, pendurou as roupas que precisaria. Preferia um jacto da Pan American ao trem, mas aquela viagem prometia ser das mais emocionantes.

Pontualmente no horário, o Expresso do Oriente começou a deixar a estação. Tracy sentou-se e ficou observando a passagem dos subúrbios meridionais de Londres.

A 1 e 15 da tarde o trem chegou ao porto de Folkestone, onde os passageiros foram transferidos para a barca Sealink, que os levaria através do Canal da Mancha até Boulogne, onde embarcariam em outro Expresso do Oriente, seguindo para o sul. Tracy aproximou-se de um dos camareiros:

- Soube que Maximilian Pierpont está viajando connosco. Poderia apontá-lo para mim?

O camareiro sacudiu a cabeça.

- Eu bem que gostaria, madame. Ele reservou uma cabina e pagou, mas nunca apareceu. Pelo que me disseram, trata-se de um cavalheiro bastante imprevisível.

Assim, restavam Silvana Luadi e seu marido, o produtor de esquecíveis.

Em Boulogne, os passageiros foram conduzidos ao Expresso do Oriente continental. Infelizmente, a cabina de Tracy no segundo trem era idêntica à outra que acabara de deixar, o leito irregular da estrada tornando a viagem ainda mais desconfortável. Ela permaneceu na cabina durante o dia inteiro, fazendo planos. às oito horas da noite começou a se vestir.

A etiqueta do Expresso do Oriente recomendava traje a rigor. Tracy escolheu um deslumbrante vestido cinza-claro de chiffon, com sapatos de cetim da mesma cor. A única jóia era uma magnífica fieira de pérolas iguais. Ela parou diante do espelho antes de deixar a cabina, contemplando a sua imagem por um longo tempo. Os olhos verdes tinham uma expressão de inocência, o rosto parecia ingénuo e vulnerável. O espelho está mentindo, pensou Tracy. Não sou mais essa mulher. Vivo uma fantasia. Só que das mais emocionantes.

No instante em que Tracy deixou a cabina, a bolsa escorregou de sua mão. Ela ajoelhou-se para recuperá-la e aproveitou para examinar rapidamente as fechaduras pelo lado de fora da porta. Havia duas, uma vale e uma Universal. Não serão problemas. Tracy levantou-se e seguiu para os vagões-restaurantes.

 

Havia três. Os assentos eram forrados de pelúcia, as paredes envernizadas, luzes suaves brilhando em candelabros de latão, com anteparos Lalique. Tracy entrou no primeiro restaurante e notou que, havia diversas mesas vazias. O garçon cumprimentou-a.

- Uma mesa só para uma pessoa, mademoiselle?

Tracy olhou ao redor.

- Vou me encontrar com alguns amigos. Mas obrigada.

Ela continuou para o vagão-restaurante seguinte. Este estava mais cheio, mas ainda havia diversas mesas vazias.

- Boa noite - disse o garçon. - Vai jantar sozinha?

- Não. Vou encontrar com alguém. Obrigada.

Tracy deslocou-se para o terceiro vagão-restaurante. Ali, todas as mesas se achavam ocupadas. O garçon deteve-a na porta.

- Infelizmente, terá de esperar por uma mesa, madame. Mas há algumas disponíveis nos outros carros.

Tracy correu os olhos pelo vagão e avistou o que procurava numa mesa no outro canto.

- Não se preocupe - disse ela. - Estou vendo alguns amigos.

Ela passou pelo garçon e se encaminhou para o objectivo.

- Com licença. Todas as mesas estão ocupadas. Importam-se que eu me sente aqui?

O homem levantou-se no mesmo instante, lançou um olhar apreciativo para Tracy e exclamou:

- Prego! Com piacere! Sou Alberto Fornati e esta é minha esposa, Silvana Luadi.

- Tracy Whitney.

Ela estava usando o seu próprio passaporte.

- Olá, é americana! Falo um excelente inglês.

Alberto Fornati era baixo, calvo e gordo. Por que motivo Silvana Luadi casara com ele era um tema de animadas conversas em Roma durante os 12 anos em que viviam juntos. Silvana Luadi era uma beleza clássica, com um corpo sensacional e um talento natural e irresistível. Ganhara um Oscar e uma Palma de Prata, constantemente era solicitada para novos filmes. Tracy reconheceu que ela vestia um Valentino, que valia pelo menos cinco mil dólares. As jóias que ostentava deviam valer quase um milhão. Tracy lembrou-se das palavras de Gunther Hartog: Quanto mais lhe é infiel, mais Fornati compra jóias para ela. A esta altura, Silvana já deve estar em condições de abrir uma joalharia.

- Esta é a sua primeira viagem no Expresso do Oriente, signorina? - perguntou Fornati, puxando conversa, depois que, Tracy sentou.

- É, sim.

- Trata-se de um trem muito romântico, cheio de histórias. - Os olhos de Fornati estavam úmidos. - E histórias muito interessantes. Sir Basil Zaharoff, o magnata das armas, por exemplo, costumava viajar no velho Expresso do Oriente... sempre na sétima cabina. Uma noite ouviu um grito e uma batida em sua porta. E uma linda duquesa espanhola jogou-se em cima dele.

Ele fez uma pausa, passando manteiga num pãozinho e comendo.

- O marido estava tentando assassiná-la. O casamento fora promovido pelos pais e só então a pobre moça descobria que o marido era insano. Zaharoff conteve o marido, acalmou a jovem histórica. Assim começou um romance que durou quarenta anos.

- Emocionante! - murmurou Tracy, os olhos arregalados de interesse.

 

- Sim. Depois disso, eles se encontravam no Expresso do Oriente, Zaharoff na cabina sete, ela na oito. Quando o marido morreu, a duquesa casou com Zaharoff. Como símbolo de seu amor e um presente de casamento, Zaharoff comprou para ela o casino de Monte Carlo.

- Uma linda história, Sr. Fornati.

Silvana Luadi se mantinha num silêncio impassível.

- Mangia - recomendou Fornati a Tracy. - Coma.

O cardápio consistia de seis pratos. Tracy notou que Alberto Fornati comia cada um e ainda terminava o que a esposa deixava no prato. Entre os bocados, ele falava sem parar.

- Por acaso é actriz? - ele perguntou a Tracy.

Ela riu.

- Oh, não! Sou apenas uma turista.

Ele contemplou-a com uma expressão radiante.

- Pois é bastante bonita para ser uma actriz.

- Ela já disse que não é uma actriz - interveio Silvana, bruscamente.

Alberto Fornati ignorou-a e disse a Tracy:

- Sou produtor de filmes. E tenho certeza que os conhece. Os Selvagens, Os Titàs Contra a Supermulher...

- Quase não vou ao cinema - desculpou-se Tracy, sentindo a perna gorda de Fornati a comprimir-se contra a sua.

- Talvez eu possa dar um jeito para lhe mostrar alguns dos meus filmes.

Silvana ficou pálida de raiva.

- Já esteve alguma vez em Roma, minha cara? - indagou

Fornati, subindo e descendo a perna pela de Tracy.

- Para dizer a verdade, eu planeava ir a Roma depois de Veneza.

- Esplêndido! Benissimo! Vamos nos encontrar todos para jantar. Não é mesmo, cara mia? - Ele lançou um olhar rápido para Silvana, antes de continuar: - Temos uma residência espectacular na Via Apia. Dez acres de...

- Ele fez um gesto amplo com a mão, derrubando uma tigela de molho no colo da esposa. Tracy não pôde determinar se fora ou não um acidente. Silvana Luadi levantou-se, olhando para a mancha a se espalhar em seu vestido.

- Sei un mascalzone! - gritou ela. - Tieni le tue puttane lontano da me!

Ela saiu furiosa do vagão-restaurante, acompanhada por todos os olhos.

- Mas que pena! - murmurou Tracy. - É um vestido tão bonito...

Ela tinha vontade de esbofetear o homem por aviltar a esposa daquela maneira. Ela merece cada quilate de jóia que ganha, pensou Tracy. E muito mais. Fornati suspirou.

- Fornati comprará outro vestido para ela. E não dê importância a suas maneiras. Ela tem muito ciúme de Fornati.

- Tenho certeza que ela tem bom motivo para isso.

Tracy disfarçou a ironia com um pequeno sorriso. Fornati sentiu-se envaidecido.

- Tem razão. As mulheres acham Fornati muito atraente.

Tracy teve de fazer um grande esforço para não desatar a rir do pomposo homenzinho.

- O que posso perfeitamente compreender.

Ele inclinou-se por cima da mesa e pegou-lhe a mão.

- Fornati gosta de você. Fornati gosta muito de você. O que faz para ganhar a vida?

 

- Sou uma secretária-executiva. E poupei todo o meu dinheiro para esta viagem. Espero conseguir um bom emprego na Europa.

Os olhos esbugalhados de Fornati percorreram o corpo de Tracy.

- Fornati lhe promete que não terá qualquer problema. Ele trata muito bem as pessoas que o tratam bem.

- É um homem muito generoso - disse Tracy, timidamente.

Ele baixou a voz para acrescentar:

- Talvez pudéssemos conversar a esse respeito mais tarde, em sua cabina.

- Isso poderia ser embaraçoso.

- Perche? Por quê?

- É um homem muito famoso. E todos no trem sabem provavelmente quem é.

- Mas é claro!

- Se o virem entrar em minha cabina... algumas pessoas podem interpretar de maneira errada. Mas se sua cabina for perto da minha... Qual é o número de sua cabina?

- setenta.

Ele fitou-a com uma expressão esperançosa. Tracy suspirou.

- Estou em outro vagão. Por que não nos encontramos em Veneza?

Fornati ficou radiante.

- Bene! Minha esposa passa a maior parte do tempo no quarto. Não suporta o sol em seu rosto. Já esteve alguma vez em Veneza?

- Não.

- Pois iremos a Torcello, uma linda ilhota, com um restaurante maravilhoso, o Locanda Cipriani. É também um pequeno hotel. - Os olhos dele brilharam. - Molto privato.

Tracy presenteou-o com um sorriso lento e compreensivo.

- Parece excitante...

Ela baixou os olhos, triunfante demais para acrescentar qualquer outra coisa. Fornati inclinou-se para a frente, apertou a mão de Tracy e sussurrou:

- Ainda não sabe o que é excitamento, cara mia.

Meia hora depois Tracy estava de volta à sua cabina.

 

O Expresso do Oriente avançava velozmente pela noite solitária, passando por Paris, Dijon e Vallarbe, enquanto os passageiros dormiam. Todos haviam entregue seus passaportes na noite anterior e as formalidades na fronteira seriam tratadas pelos cabineiros.

às três e meia da madrugada Tracy deixou discretamente sua cabina. Era o momento crítico. O trem chegaria a Lausanne e atravessaria a fronteira Suíça às 5 e 21, e deveria chegar em Milão, na Itália, às 9 e 15.

De pijama e chambre, levando uma bolsa, Tracy seguiu pelo corredor, todos os sentidos alerta, a emoção familiar fazendo seu pulso disparar. Não havia banheiros nas cabinas, apenas um na extremidade de cada vagão. Se alguém a detivesse, Tracy diria que estava à procura de um banheiro de mulheres, mas não encontrara nenhum. Os cabineiros aproveitavam as horas sossegadas da madrugada para recuperar o sono atrasado.

Tracy chegou à Cabina 70 sem qualquer incidente. Experimentou a maçaneta. A porta se achava trancada. Tracy abriu a bolsa, tirou um objecto metálico e um pequeno vidro com uma seringa, começou a trabalhar.

 

Dez minutos depois retornava à sua cabina e meia hora mais tarde dormia profundamente, com o vestígio de um sorriso no rosto recentemente lavado.

 

às sete da manhà, duas horas antes de o Expresso do Oriente chegar a Milão, houve uma sucessão de gritos penetrantes. Partiam da Cabina 70 e despertaram todo o vagão. Passageiros abriram as portas de suas cabinas para descobrir o que estava acontecendo. Um cabineiro, aproximou-se correndo e entrou na 70. Silvana Luadi estava histérica.

- Aiuto! Socorro! Todas as minhas jóias sumiram! Este trem miserável está cheio de ladrões!

- Acalme-se, por favor, madame - suplicou o cabineiro. - Os outros...

- Acalmar-me? - A voz de Silvana, Luadi ergueu-se uma oitava. - Como se atreve a me mandar acalmar, stupido maiale?

 

Alguém roubou minhas jóias que valem mais de um milhão de dólares!

- Como isso pode ter acontecido? - indagou Alberto Fornati. - A porta estava trancada... e Fornati tem o sono leve. Se alguém tivesse entrado, eu acordaria imediatamente.

O cabineiro suspirou. Sabia muito bem como acontecera, porque já ocorrera antes. Durante a noite, alguém se esgueirara pelo corredor e lançara uma seringa com éter pelo buraco da fechadura. As trancas seriam brincadeira de criança para quem soubesse o que estava fazendo. O ladrão fecharia a porta, saquearia a cabina, pegando o que bem quisesse, voltando a seu lugar, enquanto as vitimas continuavam inconscientes. Mas havia uma coisa naquele roubo que o tornava diferente dos outros. No passado, os furtos só haviam sido descobertos depois que o trem chegara a seu destino. Com isso, os ladrões tiveram chance de escapar. Mas aquela situação era diferente. Ninguém desembarcara desde o roubo, o que significava que as jóias ainda se encontravam a bordo.

- Não se preocupem - prometeu o cabineiro a Fornati. - Terão suas jóias de volta. O ladrão ainda está no trem.

E ele afastou-se apressadamente, a fim de se comunicar com a polícia de Milão.

 

Quando o Expresso do Oriente entrou no terminal de Milão, vinte guardas de uniforme e detectives à paisana esperavam na plataforma da estação, com ordens para não deixar quaisquer passageiros ou bagagens saírem do trem.

Luigi Ricci, o Inspector encarregado do caso, foi levado directamente à cabina dos Fornatis. A histeria de Silvana Luadi aumentara.

- Todas as jóias que eu possuía estavam nesta caixa! - gritou ela. - E nenhuma se achava segurada!

O Inspector examinou a caixa de jóias vazia.

- Tem certeza de que pôs as jóias aqui na noite passada, signora?

- Mas claro que tenho certeza! Guardo-as todas as noites!

Seus olhos luminosos, que haviam emocionado milhões de fàs apaixonados, exibiam lágrimas. O Inspector Ricci estava disposto a enfrentar dragões por ela.

Ele foi até a porta da cabina, abaixou-se, farejou o buraco da fechadura. Percebeu o odor persistente de éter. Houvera um roubo e ele tencionava agarrar o bandido insensível. O Inspector Ricci empertigou-se e disse:

 

- Não se preocupe, signora. Não há qualquer possibilidade de as jóias serem retiradas deste trem. Pegaremos o ladrão e suas jóias serão devolvidas.

O Inspector Ricci tinha todos os motivos para estar confiante. A armadilha estava hermeticamente fechada e não havia qualquer possibilidade de o culpado escapar.

Um a um, os detectives levaram os passageiros a uma sala de espera da estação que fora cercada, revistando-os meticulosamente. Muitos passageiros eram proeminentes e ficaram indignados.

- Lamento profundamente - explicava o Inspector Ricci a cada um - mas um roubo de um milhão de dólares é uma coisa muito grave.

à medida que cada passageiro deixava o trem, os detectives reviravam suas cabinas pelo avesso. Cada centímetro de espaço era examinado. Aquela constituía uma oportunidade esplêndida para o Inspector Ricci e ele tencionava tirar o máximo proveito. A recuperação das jóias roubadas significaria uma promoção e um aumento. Sua imaginação entrou em delírio. Silvana Luadi ficaria tão grata que provavelmente o convidaria para... Ele deu ordens com um vigor renovado.

Houve uma batida na porta da cabina de Tracy e um detective entrou no instante seguinte.

- Com licença, signorina. Houve um roubo. É necessário revistar todos os passageiros. Se fizer o favor de me acompanhar.

- Um roubo? - A voz de Tracy era chocada. - Neste trem?

- Receio que sim, signorina.

Quando Tracy saiu da cabina, dois detectives entraram, abriram suas malas, começaram a verificar cuidadosamente o conteúdo.

No final de quatro horas de busca, a polícia encontrara vários maços de marijuana, cinco onças de cocaína, uma faca e um revólver ilegal. Mas não havia qualquer sinal das jóias desaparecidas. O Inspector Ricci não podia acreditar.

- Revistaram todo o trem? - ele perguntou a seu lugar-tenente.

- Inspector, revistamos cada palmo do trem. Examinamos a locomotiva, os vagões-restaurantes, o bar, os banheiros, as cabinas. Revistamos os passageiros e os tripulantes, examinamos a bagagem inteira. Posso jurar que as jóias não se encontram no trem. Talvez a mulher tenha simplesmente imaginado o roubo.

Mas o Inspector Ricci sabia que isso não acontecera. Conversara com os garçons, que confirmaram que Silvana Luadi realmente usara jóias espectaculares ao jantar, na noite anterior. Um representante do Expresso do Oriente chegara de avião a Milão.

- Não pode reter o trem por mais tempo - insistiu ele. - Já estamos muito atrasados.

 

O Inspector Ricci sentiu-se derrotado. Não tinha desculpa para segurar o trem por mais tempo. Não havia mais nada que pudesse fazer. A única explicação que podia pensar era a de que o ladrão, de alguma forma, jogara as jóias do trem para um cúmplice à espera perto da linha, durante a noite. Mas poderia ter acontecido assim? O cálculo do tempo seria impossível. O ladrão não poderia saber de antemão quando o corredor estaria livre, quando um cabineiro ou passageiro poderia surgir, em que momento o trem passaria por um local deserto determinado. Era um mistério para o Inspector resolver.

- O trem pode continuar - ordenou ele.

O Inspector Ricci observava desolado quando o Expresso do Oriente deixou a estação. Lá se ia sua promoção, o aumento e uma orgia feliz com Silvana Luadi.

 

O único tópico de todas as conversas, ao café da manhà no trem, foi o roubo.

- É a coisa mais emocionante que me aconteceu em muitos anos - confessou uma empertigada professora de uma escola feminina. Ela pôs a mão num colar de ouro, com uma lasca mínima de diamante. - Estou com sorte de não terem levado o meu colar.

- Muita sorte - concordou Tracy, solenemente.

Ao entrar no vagão-restaurante, Alberto Fornati avistou Tracy e aproximou-se dela rapidamente.

- Já sabe o que aconteceu, é claro. Mas sabia que foi a esposa de Fornati que roubaram?

- Oh, não!

- Exactamente! Minha esposa corre grande perigo. Uma quadrilha entrou em minha cabina e deixou-me desacordado com Clorofórmio. Fornati poderia ter sido assassinado enquanto dormia.

- Que coisa terrível!

- É uma bella fregatura! Terei agora de substituir todas as jóias de Silvana. O que me custará uma fortuna.

- A polícia não encontrou as jóias?

- Não. Mas Fornati sabe como os ladrões se livraram das jóias.

É mesmo? E como foi?

Ele olhou ao redor e baixou a voz para dizer:

- Um cúmplice esperava numa das estações por que passamos durante a noite. O ladrão jogou as jóias do trem e... tudo estava acabado.

Tracy disse, com evidente admiração:

- Como foi esperto ao calcular isso!

- Sim. - Ele alteou as sobrancelhas, sugestivamente. - Não esquecerá o nosso pequeno encontro secreto em Veneza, não é mesmo?

- Como poderia esquecer? - respondeu Tracy, sorrindo.

Ele apertou-lhe o braço com força.

- Fornati está ansioso pelo encontro. E agora tenho de ir consolar Silvana. Ela está rica.

 

Quando o Expresso do Oriente chegou à estação de Santa Lucia, em Veneza, Tracy estava entre os primeiros passageiros a desembarcarem. Foi com a bagagem directamente para o aeroporto e embarcou no primeiro avião para Londres, levando as jóias de Silvana Luadi.

Gunther Hartog ficaria bastante satisfeito.

 

O prédio de sete andares que é a sede da Interpol, a Organização Internacional de Polícia Criminal, fica na Rue Armengaud, 26, nas colinas de St.Cloud, cerca de dez quilómetros a oeste de Paris, discretamente oculto por trás de uma sebe alta e de um muro branco de pedra. O portão que dá para a rua permanece trancado 24 horas por dia, os visitantes só são admitidos depois de meticulosamente examinados através de um circuito fechado de televisão.

A segurança extraordinária é indispensável, pois dentro do prédio são guardados os mais completos dossiês do mundo, com fichas de dois milhões e meio de criminosos. A Interpol funciona como uma câmara de compensação de informações para 126 forças policiais em 78 países, coordena as actividades internacionais de forças policiais que lidam com vigaristas, falsários, traficantes de tóxicos, assaltantes e assassinos. Divulga informações actualizadas através de um boletim conhecido como circulação, transmitido por rádio, fototelegrafia e satélite. O quartel-general de Paris é operado por ex-detectives da Súreté Nationale ou da Préfecture de Paris.

 

Numa manhà de maio, bem cedo, houve uma reunião no gabinete do Inspector André Trignant, no comando do quartel-general da Interpol. O gabinete era pequeno e, mobiliado com simplicidade, mas a vista era espectacular. à distância, a leste assomava a Torre Eiffel; em outra direcção, o domo branco do Sacrè-Cocur, em Montmartre, era claramente visível. O inspector era um homem de quarenta e poucos anos, uma presença atraente e de autoridade, com um rosto inteligente, cabelos escuros, olhos castanhos penetrantes, por trás de óculos de aros de osso. Sentados com ele no escritório estavam detectives da Inglaterra, Bélgica, França e Itália.

- Senhores - disse o Inspector Trignant - recebi pedidos urgentes de seus países de informações sobre a onda de crimes que eclodiu recentemente por toda a Europa. Meia dúzia de países foram atingidos por uma epidemia de trapaças e roubos em que há vária similaridades. As vitimas são geralmente de reputação duvidosa, nunca há violência envolvida e a responsável é sempre uma mulher. Chegamos à conclusão de que estamos enfrentando uma quadrilha internacional de mulheres. Temos retratos falados, baseados nas descrições das vitrinas e de testemunhas casuais. Como poderão verificar, não há duas mulheres com retratos parecidos. Algumas são louras, outras morenas. As nacionalidades informadas são as mais diversas, inglesa, francesa, espanhola, italiana, americana... ou texana.

O Inspector Trignant apertou um botão e uma série de retratos surgiu na tela na parede.

- Aqui está o retrato falado de uma morena de cabelos curtos. Ele tornou a apertar o botão. - E aqui está uma loura também de cabelos curtos... outra loura com uma ondulação permanente... uma morena com um corte de pajem... uma mulher mais velha, tipicamente francesa... uma jovem com reflexos louros... uma mulher velha com um coup sauvage.

O Inspector desligou o projector.

 

- Não temos idéia de quem lidera a quadrilha ou onde fica a base de operações. Elas nunca deixam quaisquer pistas e desaparecem como fumaça. Mais cedo ou mais tarde, porém, pegaremos uma... e quando isso acontecer, todas cairão em nossas mãos. Enquanto isso, senhores, até que um de vocês possa nos fornecer reformas específicas, receio que nos encontremos num beco sem saída...

 

Quando seu avião pousou em Paris, Daniel Cooper foi recebido no Aeroporto Charles de Gaulle por um dos assistentes do Inspector Trignant. Foi levado ao Prince de Galles, que fica ao lado do hotel-irmão mais ilustre, o George V.

- Está tudo acertado para o seu encontro com o Inspector Trignant amanhã - informou o assistente a Cooper. - Virei buscá-lo às oito e quinze.

 

Daniel Cooper não se sentia satisfeito com a viagem à Europa. Tencionava concluir a sua missão o mais depressa possível e voltar para casa. Conhecia a vida regalada de Paris e não tinha a menor intenção de se deixar envolver.

Ele entrou no quarto e se dirigiu directamente ao banheiro. Para sua surpresa, a banheira era satisfatória. Na verdade, admitiu para si mesmo, era muito maior do que a que tinha em casa. Ele abriu a água e foi para o quarto desfazer as malas. Perto do fundo da mala estava a pequena caixa trancada, segura entre seu terno extra e as cuecas. Ele pegou a caixa, contemplou-a por um momento; parecia vibrar com uma vida própria. Levou-a para o banheiro e colocou-a em cima da pia. Com a chave pequena pendurada em seu chaveiro, destrancou a caixa e abriu-a. As palavras lhe saltaram do recorte de jornal amarelado:

 

GAROTO TESTEMUNHA UM JULGAMENTO DE HOMICÍDIO

 

Daniel Cooper, de 12 anos, testemunhou hoje no julgamento de Fred Zimmer, acusado de violentar e assassinar a mãe do garoto. Segundo o seu depoimento, ele voltava da escola e viu Zimmer, o vizinho da casa ao lado, deixar a residência de sua família, com sangue nas mãos e no rosto. Quando entrou em casa, o garoto encontrou o corpo de sua mãe na banheira. Ela fora brutalmente esfaqueado até à morte. Zimmer confessou que era amante da Sra. Cooper, mas negou que a tivesse matado.

O garoto foi entregue aos cuidados de uma tia.

 

As mãos trémulas de Daniel Cooper tornaram a largar o recorte na caixa. Ele trancou-a. Olhou ao redor, freneticamente. As paredes e o teto do banheiro do hotel estavam salpicados de sangue. Viu o corpo nu da mãe flutuando na água vermelha. Sentiu uma onda de vertigem e agarrou-se na pia. Os gritos dentro dele tornaram-se gemidos guturais. Arrancou as roupas desesperadamente e afundou no banho quente de sangue.

 

- Devo informá-lo, Sr. Cooper - disse o Inspector Trignant - que sua posição aqui é excepcional. Não é membro de qualquer força policial e sua presença é extra-oficial. Contudo, fomos solicitados pelos departamentos de polícia de diversos países europeus a lhe oferecer a nossa cooperação.

Daniel Cooper não disse nada.

 

- Fui informado de que é um investigador da Associação Internacional de Protecção do Seguro, um consórcio formado pelas seguradoras.

- Alguns de nossos clientes europeus sofreram grandes prejuízos ultimamente. E, pelo que sei, não há pistas.

O Inspector Trignant suspirou.

- Infelizmente, é isso mesmo. Sabemos que estamos lidando com uma quadrilha de mulheres muito espertas. Mas, além disso...

- Não há informações de alcaguetes?

- Não. Absolutamente nada.

- Não acha isso estranho?

- Como assim, monsieur?

Parecia tão óbvio a Cooper que ele não se deu ao trabalho de disfarçar a sua impaciência.

- Quando uma quadrilha está envolvida, há sempre alguém que fala demais, bebe demais, gasta demais. É impossível para um grupo grande de pessoas manter um segredo, Importa-se de me dar as suas fichas sobre essa quadrilha?

O Inspector pensou em recusar. Achava Daniel Cooper um dos homens mais desgraciosos fisicamente que já conhecera. E certamente o mais arrogante. Ele seria um chierie, "um pé no saco"; mas haviam pedido ao Inspector que cooperasse plenamente. Com relutância, ele disse:

- Providenciarei cópias para você.

Ele falou pelo interfone e deu a ordem. Para puxar conversa, o Inspector Trignant disse:

- Acabo de receber um relatório interessante. Algumas jóias valiosas foram roubadas de bordo do Expresso do Oriente, enquanto estava...

- Leu a notícia. O ladrão fez de tolos os polícias italianos.

- Ninguém pôde ainda imaginar como o roubo foi consumado.

- É óbvio - disse Daniel Cooper, rudemente. - Uma questão de simples lógica.

O Inspector Trignant olhou por cima dos óculos. Mon Dieu, ele tem o comportamento de um porco. O Inspector declarou, friamente;

- Neste caso, a lógica não existe. Cada palmo do trem revistado, os empregados, os passageiros, toda a bagagem.

- Não foi, não - contestou Daniel Cooper.

Este homem é louco, concluiu o Inspector Trignant.

- Não? Como assim?

- Eles não revistaram toda a bagagem.

- Claro que revistaram - insistiu o Inspector Trignant. - Li o relatório da polícia

- A mulher a quem roubaram as jóias... Silvana Luadi...

- O que tem ela?

- Ela não guardou as jóias numa valise, de onde foram roubadas?

- Correcto.

- A polícia revistou a bagagem de Silvana Luadi?

- Somente a valise. Ela foi a vitima. Por que deveriam revistar sua bagagem?

- Porque é logicamente o único lugar em que o ladrão poderia ter escondido as jóias... no fundo de uma de suas malas. Provavelmente ele tinha uma mala igual. Quando toda a bagagem foi empilhada na plataforma da estação em Veneza, ele só precisou trocar as malas e desaparecer em seguida, - Daniel Cooper levantou-se. - Se as cópias já estão prontas, eu vou embora agora.

 

Meia hora depois, o Inspector Trignant falava pelo telefone com Alberto Fornati, em Veneza.

- Monsieur - disse o Inspector - eu gostaria de saber se houve algum problema com a bagagem de sua esposa, quando chegaram em Veneza.

- Sim, sim - queixou-se Fornati. - O idiota do carregador trocou uma das malas. Quando minha esposa abriu-a, no hotel, descobriu que só continha uma porção de revistas velhas. Comuniquei ao escritório do Expresso do Oriente. Já localizaram a mala de minha esposa?

- Não, monsieur.

O Inspector acrescentou para si mesmo, silenciosamente: E eu não esperaria que isso acontecesse, se estivesse no seu lugar.

Depois de encerrar a ligação, ele recostou-se em sua cadeira, pensando: Esse Daniel Cooper é trés formidable. Realmente formidável.

 

A casa de Tracy, na Eaton Square, era um refúgio. Ficava numa das áreas mais bonitas de Londres, com velhas casas georgianas, viradas para parques particulares com muitas árvores. Babás em uniformes engomados empurravam carrinhos de bebés por caminhos cobertos de cascalho, crianças brincavam. Sinto saudade de Amy, pensava Tracy.

Ela andava pelas ruas antigas, fazia compras em quitandas e na farmácia da Elizabeth Street. Admirava a variedade de flores de cores brilhantes vendidas fora das pequenas lojas.

Gunther Hartog cuidava para que Tracy contribuísse para as caridades certas e conhecesse as pessoas certas. Saía com duques ricos e condes empobrecidos, recebia numerosos pedidos de casamento. Era jovem, bela e rica, parecia extremamente vulnerável.

- Todos pensam que você é um alvo perfeito - comentava Gunther, rindo. - Tem se saído de maneira esplêndida, Tracy. Está feita agora. Possui tudo o que jamais precisará.

Era verdade. Ela tinha dinheiro em cofres em bancos por toda a Europa, a casa em Londres e um chalé em St. Moritz. Tudo o que jamais poderia precisar. Excepto alguém com quem partilhar. Tracy pensava muito na vida que quase tivera, com um marido e um filho. Isso algum dia seria possível para ela novamente? Nunca poderia revelar a qualquer homem quem era realmente, também não podia viver uma mentira ao esconder o passado. Desempenhara vários papéis, não mais tinha certeza de quem realmente era. Mas sabia que nunca poderia retornar à vida que outrora levara. Está tudo bem, pensava Tracy, assumindo uma atitude de desafio. Muitas pessoas são solitárias. Gunther está certo. Eu tenho tudo.

 

Ela ofereceu um coquetel na primeira noite depois de sua volta de Veneza.

- Estou aguardando ansiosamente - dissera-lhe Gunther. - Suas festas são as mais quentes de Londres.

Tracy comentara, afectuosamente:

- Com o meu patrocinador, não poderia ser de outra forma.

- Quem estará presente?

- Todo mundo.

Todo mundo incluía um convidado a mais que Tracy não previra. Ela convidara a Baronesa Lithgow, uma jovem e atraente herdeira. Quando viu a baronesa chegar, Tracy adiantou-se para cumprimentá-la. Mas a saudação morreu em seus lábios. A baronesa se apresentou acompanhada por Jeff Stevens.

- Tracy, querida, creio que não conhece o Sr. Stevens. Jeff, esta é a Sra. Whitney, sua anfitriã.

Tracy disse, rigidamente:

- Como vai, Sr. Stevens?

Jeff pegou a mão de Tracy, segurando-a por uma fracção de tempo a mais do que o necessário.

- Sra. Tracy Whitney? - disse ele. - Mas é claro! Fui amigo de seu marido. Estivemos juntos na Índia.

- Mas que coisa emocionante! - exclamou a Baronesa Lithgow.

- É estranho - disse Tracy, friamente. - Ele nunca o mencionou.

- É mesmo? Isso me deixa surpreso. Um sujeito muito interessante. Uma pena que tenha acabado daquela maneira.

 

- O que aconteceu? - indagou a Baronesa Lithgow, muito excitada.

Tracy lançou um olhar furioso para Jeff.

- Não foi nada.

- Nada? - repetiu Jeff, num tom de censura. - Se me lembro correctamente, ele foi enforcado na Índia.

- Paquistão - disse Tracy, tensamente. - E creio que me lembro agora de meu marido se referir a você. Como vai sua esposa?

A Baronesa Lithgow olhou para Jeff.

- Nunca me disse que era casado, Jeff.

- Cecily e eu estamos divorciados.

Tracy sorriu docemente.

- Eu estava me referindo a Rose.

- Ah, sim.. essa esposa.

A Baronesa Lithgow estava espantada.

- Foi casado duas vezes?

- Uma só - respondeu ele, jovialmente - Rose e eu obtivemos uma anulação. Éramos muito jovens.

Ele começou a se afastar, mas Tracy perguntou:

- Mas não houve gémeos?

A Baronesa Lithgow estava mais aturdida do que nunca.

- Gémeos?

- Eles vivem com a mãe. - Jeff olhou para Tracy. - Não tenho palavras para exprimir como foi agradável lhe falar, Sra. Whitney. Mas não devemos monopolizá-la.

Ele pegou a mão da baronesa e os dois se afastaram. No dia seguinte, Tracy deparou com Jeff num elevador na Harrods. A loja estava apinhada. Tracy saltou no segundo andar. Ao deixar o elevador, virou-se para Jeff e disse, a voz alta e clara:

- Por falar nisso, Sr. Stevens, como conseguiu se livrar daquele processo de atentado ao pudor?

A porta fechou e Jeff ficou encurralado dentro do elevador com um bando de estranhos indignados. Naquela noite, Tracy ficou deitada na cama pensando em Jeff. Não pôde deixar de rir. Ele era realmente encantador. Um patife, mas cativante. Ela se perguntou qual seria o relacionamento dele com a Baronesa Lithgow. Mas sabia muito bem qual era. Jeff e eu somos da mesma espécie, pensou Tracy. Nenhum dos dois jamais assentaria. A vida que levavam era muito excitante, estimulante e gratificante.

Ela concentrou os pensamentos em seu próximo trabalho. Seria no sul da França, um grande desafio. Gunther lhe dissera que a polícia estava à procura de uma quadrilha. Ela adormeceu com um sorriso nos lábios.

 

No seu quarto de hotel, em Paris, Daniel Cooper estava lendo os relatórios que o Inspector Trignant lhe entregara. Eram quatro horas da madrugada e Cooper vinha estudando os papéis há horas, analisando a mistura imaginativa de roubos e fraudes, Cooper se familiarizara com alguns dos golpes, mas outros lhe eram inteiramente novos. Como o Inspector Trignant ressaltara, todas as vitimas tinham reputações duvidosas. Esta quadrilha aparentemente pensa que é formada por Robin Hoods, reflectiu Cooper.

 

Ele estava quase terminando. Restavam apenas três relatórios. O de cima tinha o cabeçalho de BRUXELAS. Cooper abriu-o e leu. Jóias no valor de dois milhões de dólares haviam sido roubadas do cofre na parede de um certo Sr. Van Ruysen, um corrector de valores belga.

Os donos se encontravam ausentes em férias e a casa se achava vazia, a não ser... Cooper descobriu alguma coisa na página que fez seu coração se acelerar. Ele voltou à primeira página, pôs-se a reler o relatório, concentrando-se totalmente em cada palavra. Aquele trabalho se diferenciava dos outros num aspecto significativo. O assaltante accionara um alarme. Quando a polícia chegara, fora recebida na porta por uma mulher com um negligê transparente. Ela tinha os cabelos metidos numa touca e o rosto coberto por um creme de beleza. Alegara ser hóspede dos Van Ruysens. A polícia aceitara a história; quando conferiu com os proprietários ausentes, a mulher e as jóias já haviam desaparecido.

Cooper largou o relatório. Lógica, lógica. Ele olhou para seu relógio. Eram 10 horas da manhã em Nova York. Cooper fez uma ligação para J. J. Reynolds.

- Quero que verifique uma coisa - pediu Cooper. - Pergunte aos polícias de Long Island que entrevistaram a mulher no roubo de Lois Bellamy se têm certeza de que ela era americana.

Reynolds ligou-lhe uma hora depois.

- Eles confirmaram. Mas porquê...

Cooper já desligara.

 

O Inspector Trignant estava perdendo a paciência.

- Estou lhe garantindo que é impossível para uma só mulher ser responsável por todos esses crimes.

- Há uma maneira de verificar - disse Daniel Cooper.

- Que maneira?

- Eu gostaria de passar por um computador as datas e locações dos últimos roubos e fraudes que se enquadram nesta categoria.

- Isto é bastante simples. Mas...

- Em seguida, eu gostaria de obter um relatório da imigração local sobre cada turista americana que esteve naquelas cidades nas ocasiões em que os crimes foram cometidos. É possível que ela use passaportes falsos algumas vezes, mas as probabilidades são de que também se apresente com sua verdadeira identidade.

O Inspector Trignant estava pensativo.

- Percebo a sua linha de raciocínio, monsieur.

Ele estudou o homenzinho à sua frente e descobriu-se meio confuso esperando que Cooper estivesse enganado. O americano era presunçoso demais.

- Está bem. Accionarei tudo.

O primeiro roubo da série fora cometido em Estocolmo. O relatório da Interpol Sektionen Riskpolis Styrelsen, a secção sueca da Interpol, relacionou as turistas americanas em Estocolmo naquela semana. Os nomes das mulheres foram fornecidos a um computador. A próxima cidade verificada foi Milão. Quando os nomes das turistas americanas em Milão por ocasião do roubo foram conferidos com a lista de Estocolmo, ficaram 52 nomes. Essa lista foi conferida com as americanas que se encontravam na Irlanda por ocasião de um golpe de mestre ali executado. A lista ficou reduzida a 15 nomes. O Inspector Trignant entregou o resultado a Daniel Cooper.

- Começarei a conferir esses nomes com as americanas que estavam em Berlim durante o golpe ali realizado e...

Daniel Cooper levantou os olhos.

 

- Não precisa se incomodar.

O primeiro nome, na lista era Tracy Whitney.

 

Dispondo finalmente de alguma coisa concreta em que se basear, a Interpol entrou em acção. Circulações vermelhas, que significavam alta prioridade, foram enviadas a todas as nações-membros, aconselhando-as a procurarem por Tracy Whitney.

- Também estamos teletipando avisos verdes - disse o Inspector Trignant a Cooper.

- Avisos verdes?

- Usamos um sistema de código de cores. Uma circulação vermelha é alta prioridade, azul é um pedido de informação sobre um suspeito, um aviso verde põe em alerta os departamentos de polícia para a presença de um indivíduo suspeito que deve ser vigiado, preto é uma indagação sobre corpos não-identificados. X-D informa que uma mensagem é muito urgente, enquanto D é urgente. Não importa qual seja o país para onde a Senhorita Whitney vá, estará sob vigilância a partir do momento em que passar pela alfândega.

No dia seguinte, telefotos de Tracy Whitney na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres estavam nas mãos da Interpol.

Daniel Cooper telefonou para a cana de J. J. Reynolds. A campainha tocou uma dúzia de vezes, antes de ser atendida a ligação.

- Alô...

- Preciso de algumas informações.

- É você, Cooper? Pelo amor de Deus, são quatro horas da madrugada aqui! Eu estava profundamente...

- Quero que me mande tudo o que puder descobrir sobre Tracy Whitney. Recortes de imprensa, videoteipes... tudo, enfim.

- Mas o que está acontecendo por...

Cooper já desligara.

Um dia ainda matarei o filho da puta, jurou Reynolds.

 

Antes, Daniel Cooper só estava casualmente interessado em Tracy Whitney. Agora, ela era a sua missão. Ele pôs as suas fotografias nas paredes do seu pequeno quarto de hotel em Paris, leu todas as notícias dos jornais a seu respeito. Alugou um aparelho de videocassete e passou várias vezes os trechos dos serviços noticiosos de televisão em que Tracy aparecera, depois de ser condenada e até sair da prisão. Cooper permanecia sentado no seu quarto às escuras hora após hora, olhando para os filmes. O vislumbre inicial de suspeita acabou se transformando em certeza.

- Você é a quadrilha de mulheres, Senhorita Whitney - disse Daniel Cooper, em voz alta.

E depois, ele apertou um botão no aparelho de videocassete voltando a fita ao começo mais uma vez.

 

Todos os anos, no primeiro sábado de junho, o Conde de Matigny promovia um baile de caridade em benefício do Hospital Infantil de Paris. Cada ingresso custava mil dólares e a elite da sociedade voava do mundo inteiro para comparecer.

O Château de Matigny, em Cap d'Antibes, era um dos lugares mais espectaculares da França. Os jardins cuidadosamente tratados eram magníficos, o castelo propriamente dito datava do século XV. Na noite da festa, o grande salão de baile e o pequeno salão ficavam repletos de convidados elegantemente vestidos e criados de libré servindo copos de champanha intermináveis. Imensas mesas de bufé eram armadas, exibindo uma variedade espantosa de hors d'oeuvres, em travessas de prata georgiana.

Tracy, deslumbrante num vestido branco de renda, os cabelos armados e presos por uma tiara de diamantes, estava dançando com o anfitrião, o Conde de Matigny, um viúvo de sessenta e poucos anos, baixo e magro, com um rosto pálido e delicado. O baile de caridade que o conde oferece todos os anos em benefício do Hospital Infantil é uma fraude, dissera Gunther Hartog a Tracy. Dez por cento do dinheiro vão para as crianças... e noventa por cento ficam em seu bolso.

- Você é uma excelente dançarina - comentou o conde.

Tracy sorriu.

- É por causa do meu parceiro.

- Como é possível que não nos tenhamos encontrado antes?

- Tenho vivido na América do Sul - explicou Tracy. - E na selva, infelizmente.

- Mas por quê?

- Meu marido possui algumas minas no Brasil.

- Ah.... E seu marido se encontra aqui esta noite?

- Não. Infelizmente, ele teve de ficar no Brasil para cuidar dos negócios.

- Azar para ele, sorte para mim. - O braço do conde comprimiu mais firmemente a cintura de Tracy. - Estou ansioso pela oportunidade de nos tornarmos amigos mais íntimos.

- E eu também - murmurou Tracy.

Por cima do ombro do conde, Tracy avistou subitamente Jeff Stevens bronzeado e parecendo absurdamente em perfeita forma física. Ele dançava com uma morena bonita e esguia, num vestido de tafetá vermelha. Ela o agarrava possessivamente. Jeff divisou Tracy no mesmo momento e sorriu.

O filho da puta tem todos os motivos para sorrir, pensou Tracy, sombriamente. Durante as duas semanas anteriores, Tracy planejara meticulosamente dois roubos. Entrara na primeira casa e abrira o cofre, só para encontrá-lo vazio. Jeff Stevens estivera ali primeiro. Na segunda ocasião, Tracy avançava pelos jardins para a casa visada quando ouviu de repente um carro acelerar. Virou-se e vislumbrou Jeff a se afastar rapidamente. Ele tornara a batê-la. Era irritante. E agora ele está aqui, na casa que planeio assaltar em seguida, pensou Tracy. Jeff e sua parceira se aproximaram, sempre dançando. Ele sorriu e disse:

- Boa noite, conde.

Conde de Matigny retribuiu ao sorriso.

- Ah, Jeffrey... Boa noite. Fico satisfeito que tenha podido vir.

 

- Eu não faltaria de jeito nenhum. - Jeff indicou a mulher de aparência sensual em seus braços. - Esta é a Senhorita Wallace. O Conde de Matigny.

- Enchanté! - O conde indicou Tracy. - Duquesa, posso apresentar-lhe a Senhorita Wallace e o Sr. Jeffrey Stevens? A Duquesa de Larosa.

As sobrancelhas de Jeff se altearam, inquisitivas.

- Perdão, mas não entendi direito o nome.

- De Larosa - disse Tracy, calmamente.

- De Larosa... De Larosa. - Jeff observava Tracy atentamente. - O nome me parece familiar.... Mas é claro! Conheço seu marido. Ele também está aqui?

- Ele ficou no Brasil.

Tracy descobriu que estava rangendo os dentes. Jeff sorriu.

- Ah, uma pena... Costumávamos caçar juntos. Antes de ele sofrer o acidente, é claro.

- Acidente? - repetiu o conde.

- Isso mesmo. - O tom de Jeff era pesaroso. - A arma disparou e a bala atingiu-o numa área muito sensível. Uma dessas coisas estúpidas que acontecem...

Ele virou-se para Tracy e acrescentou:

- Há alguma esperança de que ele volte a ser normal?

Tracy disse, sem qualquer inflexão na voz:

- Tenho certeza de que algum dia ele será tão normal como você, Sr. Stevens.

- Isso é óptimo. Pode lhe transmitir meus respeitos quando falar com ele, duquesa?

A música parou. O Conde de Matigny pediu desculpas a Tracy.

- Se me dá licença, minha cara, tenho alguns deveres de anfitrião a cumprir. - Ele apertou-lhe a mão. - Não se esqueça de que está sentada à minha mesa.

Enquanto o conde se afastava, Jeff disse à sua companheira:

- Anjo, você não trouxe alguma aspirina em sua bolsa? Poderia ir buscar para mim? Estou com uma terrível dor de cabeça.

- Oh, meu pobre querido! - Havia uma expressão de adoração nos olhos da mulher. - Já vou buscar, amor.

Tracy observou-a deslizar pelo salão.

- Não tem medo de que ela o deixe diabético?

- Ela é um doce, não é mesmo? E como tem passado ultimamente, duquesa?

Tracy sorriu, em benefício dos que se encontravam ao redor.

- Isso não é da sua conta, não é mesmo?

- Mas claro que é. Na verdade, é da minha conta oferecer-lhe um conselho amigável. Não tente roubar este castelo.

- Por quê? Você está planeando fazê-lo primeiro?

Jeff pegou Tracy pelo braço e levou-a para um lugar deserto, perto do piano, onde um rapaz de olhos escuros estava comoventemente massacrando melodias americanas. Somente Tracy podia ouvir a voz do Jeff por cima da música.

- Para ser franco, eu estava mesmo planeando fazer uma coisinha. Mas tornou-se perigoso demais.

- É mesmo?

Tracy estava começando a gostar da conversa. Era um alívio ser ela própria, parar de representar. Os gregos tinham a palavra certa para isso, pensou Tracy. Hipócrita era da palavra grega para "actor".

 

- Preste atenção, Tracy. - O tom de Jeff era sério. - Não tente nada. Em primeiro lugar, você não conseguiria escapar com vida da propriedade. Há um cão de guarda assassino à solta esta noite.

Subitamente, Tracy escutava com toda atenção. Jeff estava mesmo planeando roubar o castelo.

- Todas as janelas e portas estão armadas. O alarme se liga directamente à delegacia de polícia. E mesmo que você conseguisse entrar, todo o lugar se encontra cruzado por raios infravermelhos invisíveis.

- Sei de tudo isso.

Tracy ainda se achava um pouco presunçosa.

- Então deve saber também que os raios infravermelhos não soam o alarme quando entra, mas sim quando sai. Sente a mudança de calor. Não há qualquer possibilidade de atravessá-los sem desencadear o alarme.

Ela não sabia disso. Como Jeff descobrira?

- Por que está me contando tudo isso?

Ele sorriu e Tracy pensou que Jeff nunca parecera tão atraente.

- Para ser franco, duquesa, não quero que seja apanhada. Gosto de tê-la por perto. Você e eu poderíamos nos tornar bons amigos, Tracy.

- Está enganado. - Ela avistou a companheira de Jeff se aproximar apressadamente. - Lá vem a Senhorita Diabetes. Divirta-se.

Enquanto se afastava, Tracy ouviu a companheira de Jeff dizer:

- Trouxe também um copo de champanha para você poder tomar a aspirina, meu pobre querido.

O jantar foi suntuoso. Cada prato era acompanhado pelo vinho apropriado, impecavelmente servido por lacaios de luvas brancas. O primeiro prato foi espargos naturais, seguindo-se um consome com delicados cogumelos. Depois, veio um lombo de ovelha com legumes frescos da horta do conde. Uma salada de endiva foi o prato seguinte.A sobremesa foi sorvete num epergne de prata, acompanhado por petits fours. Café e conhaque vieram por último. Charutos foram oferecidos aos homens, enquanto as mulheres recebiam perfume Joy num frasco de cristal Baccarat. Depois do jantar, o Conde de Matigny virou-se para Tracy e disse:

- Comentou que estava interessada em ver alguns dos meus quadros. Não quer dar uma olhada agora?

- Eu adoraria.

A galeria de quadros em um autêntico museu, com mestres italianos, impressionistas franceses e Picassos. O salão comprido resplandecia com as cores e formas fascinantes pintadas por imortais. Havia Monets e Renoirs, Canalettos, Guardis e Hobbemas. Havia uni refinado Menfing e um Rubens, além de um Ticiano. Uma parede estava quase que completamente coberta por Cézannes. Não havia a menor possibilidade de calcular o valor daquela colecção. Tracy ficou contemplando os quadros por um longo tempo, saboreando sua beleza.

- Espero que estes quadros estejam bem guardados.

O conde sorriu.

- Ladrões tentaram se apossar de meus tesouros em três ocasiões. Um foi morto por meu cachorro, o segundo ficou mutilado e o terceiro está cumprindo uma pena de prisão perpétua, O castelo é uma fortaleza invulnerável, duquesa.

- Fico aliviada em saber disso, conde.

Houve um súbito clarão lá fora.

 

- Os fogos de artifício estão começando - disse o conde. - Acho que você vai gostar.

Ele pegou a mão macia de Tracy em sua mão ressequida e áspera, saindo da galeria.

- Partirei para Deauville pela manhã. Tenho ali uma villa à beira do mar e convidei alguns amigos para o fim de semana. Creio que iria gostar.

- Tenho certeza de que gostaria - declarou Tracy, pesarosa. - Mas, infelizmente, meu marido começa a ficar impaciente. Insiste que eu volte o mais depressa possível.

Os fogos de artifício se prolongaram por quase uma hora. Tracy aproveitou a distracção para fazer um reconhecimento da casa. Era verdade o que Jeff dissera. As chances contra um roubo bem-sucedido eram formidáveis, mas justamente por esse motivo Tracy achou que o desafio era irresistível. Sabia que lá em cima, no quarto do conde, havia jóias no valor de dois milhões de dólares, além de meia dúzia de obras-primas, incluindo um Leonardo.

O castelo é um autêntica casa de tesouros, dissera-lhe Gunther Hartog Mas também é guardado como tal. Não faça nada, se não tiver um plano infalível.

Pois tenho um plano, pensou Tracy. Se é ou não infalível só saberei amanhã.

 

A noite seguinte estava fria e nublada, os muros altos em torno do castelo pareciam sombrios e ameaçadores quando Tracy parou nas sombras, vestindo um macacão preto, sapatos de sola de borracha e luvas pretas e flexíveis de pelica, carregando uma bolsa no ombro. Por um momento descuidado, a mente de Tracy foi dominada pela recordação dos muros da penitenciária. Um tremor involuntário, percorreu-lhe o corpo.

Ela encostara o furgão alugado no muro de pedra, nos fundos da propriedade. Do outro lado do muro veio um rosnado baixo e furioso, que se desenvolveu em latidos frenéticos, enquanto o cão saltava pelo ar, tentando atacar. Tracy visualizou o corpo pesado e poderoso do doberman, seus dentes mortíferos. Ela disse baixinho para alguém no furgão:

- Agora.

Um homem franzino, de meia-idade, com uma mochila nas costas, saiu do furgão, puxando uma fêmea doberman. A cadela estava no cio e o tom dos latidos no outro lado do muro mudou subitamente para um ganido excitado.

Tracy ajudou a levantar a cadela para o alto do furgão, que tinha quase a mesma altura do muro.

- Um... dois... três! - sussurrou ela.

Os dois empurraram a cadela por cima do muro para o interior da propriedade. Houve dois latidos bruscos, o barulho de um cachorro a farejar, depois o som dos animais correndo para longe. Houve silêncio em seguida. Tracy virou-se para o seu cúmplice.

- Vamos embora.

O homem, Jean-Louis, acenou com a cabeça. Tracy o encontrara em Antibes. Era um ladrão que passara a maior parte de sua vida na prisão. Jean-Louis não era muito inteligente, mas se destacava como um génio em fechaduras e alarmes, perfeito para aquele trabalho.

 

Tracy passou do teto do furgão para o alto do muro. Desenrolou uma escada de corda e prendeu-a na beira do muro. Os dois desceram para a relva lá embaixo. A propriedade estava muito diferente de sua aparência na noite anterior, quando se achava intensamente iluminada e povoada por convidados risonhos. Agora, tudo era escuridão e desolação.

Jean-Louis foi seguindo atrás de Tracy, apreensivo, atento à aproximação dos dobermans.

O castelo estava coberto por uma hera de muitos séculos, subindo do chão ao telhado. Tracy experimentara discretamente a hera na noite anterior. Agora, a hera aguentou o peso de seu corpo. Ela começou a subir, sempre esquadrinhando a propriedade por baixo. Não havia o menor sinal dos cachorros. Espero que eles fiquem ocupados por muito tempo, pensou Tracy.

Quando chegou ao telhado, Tracy fez sinal para Jean-Louis e ficou esperando enquanto ele subia. à luz da lanterna de facho mínimo que Tracy acendeu, eles viram uma clarabóia de vidro, trancada seguramente por dentro. Enquanto Tracy observava, Jean-Louis meteu a mão na mochila em suas costas e tirou um pequeno cortador de vidro. Levou menos de cinco minutos para remover um pedaço do vidro. Tracy baixou os olhos e constatou que o caminho se achava bloqueado por uma teia de arame de fios de alarme.

- Pode dar um jeito nisso, Jean? - sussurrou ela.

- Je peux Jaire ça. Não há problema.

Ele meteu a mão no bolso e tirou um fio com 30 centímetros de comprimento, um grampo em cada ponta. Deslocando-o lentamente, determinou o início do fio do alarme. Desencapou-o e prendeu um grampo ali. Depois, pegou um alicate e cortou o fio com todo cuidado. Tracy ficou tensa, esperando pelo som do alarme. Mas o silêncio persistiu. Jean-Louis levantou os olhos para ela e sorriu.

- Voilà. Fini.

Errado, pensou Tracy. Está apenas começando.

Eles usaram uma segunda escada de corda para descer pela bóia. Até ali, tudo bem. Haviam alcançado o sótão em segurança. Mas quando Tracy pensou no que haveria pela frente, seu coração começou a bater mais forte. Ela tirou de sua bolsa dois óculos de protecção de lentes vermelhas, entregando um par a Jean-Louis.

- Ponha isto.

Ela imaginara uma maneira de distrair o doberman, mas os alarmes infravermelhos haviam se mostrado um problema mais difícil de resolver. Jeff estava correcto: A casa em entrecruzada por fachos invisíveis. Tracy respirou fundo por várias vezes. Concentre sua energia, sua chi. Relaxe. Ela forçou a mente a uma lucidez total. Quando, uma pessoa entra num facho, nada acontece; mas no instante em que sai do facho, o sensor detecta a diferença na temperatura e o ataras é desencadeado. Foi armado para soar antes do ladrão abrir o cofre, não lhe dando tempo para fazer qualquer coisa antes da chegada da polícia.

E nisso, concluíra Tracy, estava a fraqueza do sistema. Ela precisava encontrar um meio para manter o alarme silencioso depois do cofre ser aberto. Encontrara a solução às seis e meia da manhã e sentira o excitamento familiar invadi-la.

Agora, ela pôs os óculos infravermelhos e no mesmo instante todo o sótão adquiriu um clarão vermelho fantasmagórico. Tracy avistou na frente da porta do sótão um facho de luz, que seria invisível sem os óculos.

 

- Passe por baixo - ela avisou a Jean-Louis. - E tome todo o cuidado.

Eles rastejaram por sob o facho. Foram para um corredor às escuras, que levava ao quarto do Conde de Matigny. Tracy acendeu a lanterna e seguiu na frente. Através dos óculos infravermelhos, ela divisou outro facho, este muito próximo ao chão, no limiar da porta do quarto. Cautelosamente, pulou por cima. Jean-Louis se encontrava logo atrás dela.

Tracy passou a lanterna pelas paredes. Lá estavam os quadros, impressivos, espantosos.

Prometa que me trará o Leonardo, dissera Gunther. E também as jóias, é claro.

Tracy tirou o quadro da parede, virou-o e pós no chão. Removeu cuidadosamente a tela da moldura, enrolou-a e guardou na bolsa. Agora, só restava o cofre, que ficava numa alcova com cortina, na outra extremidade do quarto.

Tracy abriu a cortina. Quatro fachos infravermelhos atravessavam a alcova, cruzando-se. Era impossível alcançar o cofre sem passar por um dos fachos. Jean-Louis olhou para os fachos, consternado.

- Bon Dieu de merde! Não podemos passar por isso. Os fachos são muito rentes ao chão para se rastejar por baixo ou muito altos para se pular por cima.

- Quero que faça exactamente o que eu mandar, Jean-Louis. - Tracy se postou atrás dele e passou os braços por sua cintura. - E agora ande comigo. Primeiro o pé esquerdo.

Juntos, eles deram um passo na direcção dos fachos, depois outro. Jean-Louis balbuciou:

- Alors! Vamos entrar neles!

- Isso mesmo.

Eles avançaram directamente para o centro dos fachos, ao ponto em que convergiam. Tracy parou.

- E agora, Jean-Louis, quero que você preste toda atenção. Vá até o cofre.

- Mas os fachos...

- Não se preocupe. Não haverá qualquer problema.

Tracy torcia fervorosamente para estar certa. Hesitante, Jean-Louis afastou-se dos fachos infravermelhos. O silêncio não foi rompido. Ele virou a cabeça e fitou Tracy, os olhos enormes e assustados. Ela se colocou no meio dos fachos, o calor de seu corpo impedindo que os sensores soassem o alarme. Jean-Louis adiantou-se apressadamente para o cofre. Tracy permaneceu completamente imóvel, sabendo que o alarme soaria no instante em que se mexesse. Pelo canto dos olhos, ela podia ver Jean-Louis, retirando algumas ferramentas da mochila nas costas e começando a trabalhar imediatamente no cofre. Tracy continuou imóvel, respirando fundo, bem devagar. O tempo parou. Jean-Louis parecia estar demorando uma eternidade. A panturrilha da perna direita de Tracy começou a doer, depois entrou em espasmo. Ela rangeu os dentes. Não se atrevia a fazer qualquer movimento.

- Quanto tempo? - sussurrou ela.

- Mais uns dez ou quinze minutos.

Parecia a Tracy que estava parada ali por toda a sua vida. Os músculos da perna esquerda começavam a ter cãibras. Achava-se imobilizada pelos fachos, congelada, Ouviu um estalido. O cofre estava aberto.

- Magnifique! Est ta banquei! Quer tudo? - indagou Jean-Louis.

 

- Nada de documentos. Somente as jóias. E todo o dinheiro que tiver aí será seu.

- Merci.

Tracy ouviu Jean-Louis vasculhar o cofre e poucos momentos depois ele se aproximava dela.

- Formidable! - disse ele. - Mas como sairemos daqui sem romper os fachos?

- Não o faremos.

Ele ficou aturdido.

- Como?

- Fique na minha frente

- Mas...

- Faça o que estou mandando.

Em pânico, Jean-Louis avançou pelo facho. Tracy prendeu a respiração, Nada aconteceu.

- Muito bem. Agora, bem devagar, vamos recuar para fora da alcova.

- E depois?

Os olhos de Jean-Louis pareciam enormes por trás dos óculos infravermelhos.

- E depois, meu amigo, sairemos correndo.

Lentamente, eles recuaram pelos fachos, na direcção da cortina, onde começavam. Ao chegarem ali, Tracy respirou fundo.

- Óptimo. Quando eu disser agora, saímos pelo mesmo caminho por que entramos.

Jean-Louis engoliu em seco e assentiu. Tracy podia sentir o corpo pequeno dele a tremer.

- Agora!

Tracy virou-se e, correu para a porta, Jean-Louis em seu encalço. No instante em que se afastaram dos fachos, o alarme soou. O barulho era ensurdecedor, assustador.

Tracy disparou para o sótão, subiu pela escada de corda, com Jean-Louis logo atrás. Correram pelo telhado, desceram pela hera, atravessaram os jardins para o ponto no muro em que a segunda escada de corda esperava. Momentos depois estavam em cima do furgão, no lado de fora da propriedade. Tracy

sentou-se ao volante, com Jean-Louis a seu lado.

Enquanto o furgão descia por uma estradinha de terra secundária, Tracy avistou um sedã escuro estacionado sob algumas árvores. Por um instante, os faróis do furgão iluminaram o interior do carro. Jeff Stevens estava sentado ao volante. A seu lado, um enorme doberman. Tracy riu alto e soprou-lhe um beijo, o furgão logo se afastando a toda a velocidade.

à distância, soava o gemido das sirenes de carros da polícia se aproximando.

 

Biarritz, na costa sudoeste da França, perdera muito do encanto que possuía na passagem do século. O outrora famoso Casino Bellevue está fechado para reparos muito necessários, enquanto o Casino Municipal, na Rue Mazagran, é agora um prédio desmantelado, alojando pequenas lojas e uma escola de dança. As antigas villas nos morros assumiram uma aparência de nobreza maltrapilha.

Mesmo assim, durante a temporada, de julho a setembro, os ricos e titulados da Europa continuam a ir para Biarritz, a fim de desfrutar o jogo, o sol e suas recordações. Os que não possuem residências próprias ficam hospedados no luxuoso Hôtel du Palais, na Avenue Impératrice. A antiga residência de verão de Napoleão III está situada num promontório sobre o Oceano Atlântico, num dos mais espectaculares cenários da natureza: um farol num lado, flanqueado por imensos rochedos pontiagudos assomando do mar cinzento como monstros pré-históricos, e a calçada de madeira no outro.

Numa tarde, no final de agosto, a baronesa francesa Marguerite de Chantilly entrou no saguão do Hôtel du Palais. Era uma mulher elegante, de cabelos louros lustrosos. Usava um Givenchy de seda verde e branco, que delineava um corpo que fazia as mulheres se virarem e olharem com inveja, deixava os homens embasbacados. A baronesa encaminhou-se para a recepção e disse:

- Ma clé, s'il vous plaít.

Tinha um encantador sotaque francês.

- Pois não, baronesa.

O recepcionista entregou a Tracy a chave e diversos recados telefónicos. Quando ela se encaminhou para o elevador, um homem de óculos, aparência amarfanhada, virou-se abruptamente da vitrine que expunha echarpes Hermès e esbarrou nela, derrubando a bolsa de sua mão.

- Oh, minha cara, lamento profundamente! - Ele pegou a bolsa e entregou a Tracy. - Por favor, perdoe-me.

Ele falava com um sotaque da Europa Central. A Baronesa Marguerite de Chantilly deu-lhe um aceno de cabeça arrogante e seguiu em frente.

O ascensorista abriu a porta do elevador e deixou-a no terceiro andar. Tracy escolhera a Suíte 312, tendo aprendido que muitas vezes a selecção das acomodações no hotel era tão importante quanto o próprio hotel. Em Capri, era o Bangaló 522, no Quisisana. Em Majorca, era a Suíte Real do Son Vida, dando para as montanhas e a baía distante. Em Nova York, era a Suíte da Torre 4717, no Hehnsley Palace Hotel. Em Amsterdam, era o Quarto 325, no Amstel, onde o hóspede era embalado ao sono pelo marulhar suave das águas no canal.

 

A Suíte 312 do Hôtel du Palais oferecia uma vista panorâmica tanto do mar como da cidade. Tracy podia observar, de todas as janelas, as ondas se lançando contra os rochedos eternos, projectando-se do mar como vultos afogados. Directamente abaixo de sua janela ficava uma piscina enorme, em formato de rim, a água de um azul brilhante contrastando com o cinzento do oceano, tendo ao lado um terraço amplo, com guarda-sóis para proteger do sol do verão. As paredes da Suíte eram forradas em damasco azul e branco, os rodapés eram de mármore, os tapetes e cortinas da cor de rosa desbotada. A madeira das portas e janelas era manchada com a suave patina do tempo.

Depois de trancar a porta, Tracy tirou a peruca loura muito justa e massageou o couro cabeludo. A personagem da baronesa era uma de suas melhores. Havia centenas de títulos a escolher em Debrett's Peerage and Baronetage e no Almanach de Gotha, duquesas, princesas, baronesas e condessas às dezenas, de duas dúzias de países. Os livros eram valiosos para Tracy, pois forneciam histórias de família remontando por séculos, com os nomes de pais, mães e filhos, escolas e casas, endereços de residências. Era uma questão simples escolher uma família preeminente e tornar-se uma prima distante - particularmente uma prima distante rica. As pessoas sempre se impressionavam por títulos e dinheiro.

Tracy pensou no estranho que esbarrara nela no saguão do hotel e sorriu.

 

àss oito horas daquela noite, a Baronesa Marguerite de Chantilly estava sentada no bar do hotel quando o homem com quem colidira no saguão aproximou-se de sua mesa.

- Com licença - disse ele, timidamente - mas quero pedir desculpas outra vez por minha falta de jeito indesculpável esta tarde.

Tracy presenteou-o com um sorriso gracioso.

- Não foi nada. Apenas um acidente.

- É muito gentil. - O homem hesitou. - Eu me sentiria muito melhor se me permitisse lhe oferecer um drinque.

- Oui... se faz questão.

Ele ocupou uma cadeira à frente de Tracy.

- Permita que eu me apresente. Sou o Professor Adolf Zuckerman.

- Marguerite de Chantilly.

Zuckerman fez sinal para o garçon e depois perguntou a Tracy:

- O que gostaria de tomar?

- Champanha. Isto é, se...

Ele levantou a mão, num gesto tranquilizador.

- Tenho condições. E, para dizer a verdade, estou prestes a ter condições de oferecer qualquer coisa no mundo.

- É mesmo? - Tracy sorriu - Isso é óptimo para você.

- Tem toda a razão.

Zuckerman pediu uma garrafa de Bolfinger, depois tornou a virar-se para Tracy.

- Aconteceu-me a coisa mais extraordinária. Eu não deveria estar discutindo isso com uma estranha, mas é excitante demais para me manter calado. - Ele inclinou-se para a frente e baixou a voz. - Para ser franco, sou um simples professor... ou era, até recentemente. Ensino história. É bastante agradável, mas não muito emocionante.

Tracy escutava com uma expressão de interesse polido no rosto.

- Ou melhor, não era emocionante até há poucos meses atrás.

- Posso perguntar o que aconteceu há poucos meses, Professor Zuckerman?

 

- Eu fazia pesquisas sobre a Armada Espanhola, procurando informações que pudessem tornar o assunto mais interessante para meus alunos. Nos arquivos do museu local, encontrei um velho documento que de alguma forma se misturara com outros papéis. Continha detalhes sobre uma expedição secreta que o Príncipe Philip despachou em 1588. Um dos navios, carregado de barras de ouro, supostamente naufragou numa tempestade, desaparecendo sem deixar qualquer vestígio.

Tracy fitou-o com uma expressão pensativa.

- Supostamente naufragou?

- Exactamente. Mas, de acordo com esse documento que descobri, o comandante e a tripulação deliberadamente afundaram o navio numa enseada deserta, planeando voltar depois para recolher o tesouro. Mas foram atacados e mortos por piratas, antes que pudessem voltar. O documento só sobreviveu, porque nenhum dos piratas sabia ler ou escrever E, assim, ignoravam o que tinham em mãos.

A voz do professor tremia agora de excitamento.

- Agora... - Ele, olhou ao redor, certificando-se de que era seguro continuar, baixou ainda mais a voz para acrescentar: -... eu tenho o documento, com instruções detalhadas sobre a maneira de chegar ao tesouro.

- Uma descoberta afortunada, professor.

Havia um tom de admiração na voz de Tracy.

- O ouro vale provavelmente cinquenta milhões de dólares hoje - disse Zuckerman. -Tudo o que tenho de fazer é tirá-lo lá do fundo.

- O que o está impedindo?

Ele encolheu os ombros, embaraçado.

- Dinheiro, Preciso equipar um navio para trazer o ouro à superfície.

- Entendo... Quanto isso custa?

- Cem mil dólares. Devo confessar que fiz uma tremenda tolice. Peguei vinte mil dólares... as economias de minha vida... e vim para Biarritz jogar no cassino, esperando ganhar o suficiente para...

A voz dele sumiu.

- E perdeu tudo.

O professor assentiu. Tracy percebeu o brilho de lágrimas por trás dos óculos.

O champanha chegou, o garçon tirou a rolha, despejou o líquido dourado nos copos.

- Bonne chance - brindou Tracy.

- Obrigado.

Eles tomaram um gole do champanha, num silêncio pensativo.

- Por favor, perdoe-me por entediá-la com a minha história - disse Zuckerman. - Eu não deveria estar expondo os meus problemas a uma linda dama.

- Achei a sua história fascinante, professor. Tem certeza de que o ouro está mesmo lá?

- Sem a menor sombra de dúvida. Tenho as ordens de embarque originais e um mapa desenhado pelo próprio comandante. Conheço a localização exacta do tesouro.

Tracy observava-o com uma expressão cada vez mais pensativa.

- Mas precisa de cem mil dólares, não é mesmo?

Zuckerman riu, tristemente.

- Exactamente. Para obter um tesouro que vale cinquenta milhões de dólares.

Ele tomou outro gole de champanha.

- É possível...

Tracy não acrescentou mais nada.

- O quê?

- Já pensou em arrumar um sócio?

Ele ficou surpreso.

 

- Um sócio? Não. Planeei fazer tudo sozinho. Mas é claro que agora que perdi meu dinheiro...

Sua voz tornou a sumir.

- E se eu lhe desse os cem mil dólares, Professor Zuckerman?

Ele sacudiu a cabeça.

- Absolutamente não, baronesa. Eu não permitiria. Pode perder seu dinheiro.

- Mas se tem certeza de que o tesouro se encontra lá...

- Quanto a isso, tenho certeza absoluta. Mas mil coisas podem sair erradas. Não há garantias.

- Há poucas garantias na vida. Seu problema é muito interessante. Se eu o ajudasse a resolver, poderia ser lucrativo para nós dois.

- Não. Eu jamais me perdoaria se, por algum acaso remoto, perdesse o seu dinheiro.

- Posso arcar com o prejuízo. E poderia obter um grande lucro com meu investimento, não é?

- Claro que tem esse lado. - Zuckerman ficou em silêncio por um longo tempo, obviamente dilacerado pelas dúvidas. - Se é o que deseja, será uma sociedade meio a meio.

Ela sorriu, satisfeita.

- D'accord. Eu aceito.

O professor apressou-se em acrescentar:

- Descontadas as despesas, é claro.

- Naturalmente. Quando podemos começar?

- Imediatamente. - O professor exibia uma repentina vitalidade. - Já encontrei o barco que quero usar. Possui um equipamento moderno de dragagem e quatro tripulantes. É claro que teremos de dar a eles uma pequena parecela do que encontrarmos.

- Bien sur.

- Devemos começar o mais depressa possível ou poderemos perder o barco.

- Posso ter o dinheiro disponível em cinco dias.

- Maravilhoso! - exclamou Zuckerman. - Isso me dará tempo suficiente para todos os preparativos. Ah, que encontro fortuito para nós dois, não é mesmo?

- Sim, sem dúvida.

- à nossa aventura.

O professor ergueu seu copo. Tracy também ergueu o seu e brindou:

- Que seja tão lucrativa quanto eu pressinto que será.

Os copos retiniram. Tracy olhou através do bar e ficou paralisada. Jeff Stevens se encontrava a uma mesa no canto, observando-a com um sorriso divertido. Tinha em sua companhia uma mulher atraente, carregada de jóias.

Jeff acenou com a cabeça para Tracy e ela sorriu, recordando como o vira pela última vez, no lado de fora da propriedade do Conde de Matigny, acompanhado por um enorme cão. Aquela foi uma vitória minha, pensou Tracy, feliz.

- Com licença, mas é melhor eu me retirar agora - Zuckerman estava dizendo. -Tenho muito o que fazer. Ficarei em contacto.

Tracy estendeu a mão, graciosamente, ele beijou-a e partiu.

 

- Vi que seu amigo a abandonou e não posso imaginar o motivo. Você está absolutamente sensacional como uma loura.

Tracy levantou os olhos. Jeff estava de pé ao lado de sua mesa. Ele sentou na cadeira que Adolf Zuckerman desocupara poucos minutos antes.

 

- Meus parabéns - acrescentou Jeff. - O golpe do Conde de Matigny foi muito engenhoso. Impecável.

- Partindo de você, Jeff, é um grande elogio.

- Está-me custando muito dinheiro, Tracy.

- Acabará se acostumando.

Ele ficou brincando com o copo à sua frente.

- O que o Professor Zuckerman queria?

- Você o conhece?

- Pode-se dizer que sim.

- Ele... ahn... apenas queria tomar um drinque.

- E lhe falou sobre o tesouro afundado?

Tracy tornou-se subitamente cautelosa.

- Como sabe disso?

Jeff fitou-a com uma expressão surpresa.

- Não me diga que caiu! É a mais antiga vigarice do mundo.

- Não desta vez.

- Está querendo dizer que acreditou nele?

Tracy disse, rigidamente:

- Não estou em liberdade para discutir o assunto, mas acontece que o professor dispõe de informações confidenciais.

Jeff sacudiu a cabeça, incrédulo.

- Ele está tentando passá-la para trás, Tracy. Quanto lhe pediu para investir em seu tesouro afundado?

- Não interessa - respondeu Tracy, bruscamente. - É meu dinheiro.

Jeff encolheu os ombros.

- Certo. Mas depois não diga que o velho Jeff não tentou avisá-la.

- Isso não significa que você está Interessado no ouro, pois não?

Ele levantou as mãos, num gesto irónico de desespero.

- Por que está sempre tão desconfiada de mim?

- É muito simples. Não confio em você. Quem era aquela mulher que lhe fazia companhia?

Tracy desejou no mesmo instante poder retirar a pergunta.

- Suzanne? Uma amiga.

- Rica, é claro.

Jeff exibiu um sorriso prolongado.

- Para ser franco, acho que ela tem algum dinheiro. Se quiser nos acompanhar no almoço amanhã, o chef de Suzanne, em seu iate de duzentos e cinquenta pés ancorado no porto, faz um...

- Obrigada, mas por nada neste mundo eu poderia atrapalhar o seu almoço. O que está vendendo a ela?

- Isso é pessoal.

- Tenho certeza de que é mesmo.

As palavras saíram mais ásperas do que Tracy tencionara. Ela estudou-o por cima da borda de seu copo. Ele tinha feições firmes, lindos olhos cinzentos, pestanas compridas e o coração de uma cascavel. Uma cascavel muito inteligente.

- Já pensou alguma vez em se meter num negócio legitimo? - perguntou Tracy. - Provavelmente seria muito bem sucedido.

Jeff ficou chocado.

- E renunciar a tudo isto? Você só pode estar gracejando!

- Sempre foi um vigarista?

- Vigarista? Sou um entrepreneur.

- E como se tornou um... um entrepreneur?

- Fugi de casa quando tinha catorze anos e me juntei a um parque de diversões ambulante.

 

- Aos catorze anos?

Era o primeiro vislumbre que Tracy tinha do que havia por trás do verniz sofisticado e charmoso.

- Foi bom para mim... aprendi a enfrentar as coisas. Quando surgiu essa maravilhosa guerra do Vietname, ingressei nos Boinas Verdes e fiz um curso de pós-graduação. Creio que a coisa principal que aprendi foi que a guerra era a maior das vigarices. Em comparação com aquilo, você e eu não passamos de amadores. - Ele mudou de assunto abruptamente. - Gosta de pelota?

- Se está vendendo, não, obrigada.

- É um jogo, uma variação do jai alai. Tenho dois ingressos para esta noite, mas Suzanne não poderá ir. Gostaria de ir?

Tracy descobriu-se a dizer que sim.

 

Eles jantaram num pequeno restaurante na praça municipal, tomando um vinho local e comendo confit de canard d'aile - pato assado em seus próprios sumos, com batatas e alho. Estava delicioso.

- A especialidade da casa - informou Jeff a Tracy.

Conversaram sobre política, livros e viagens. Tracy descobriu que Jeff era surpreendentemente bem informado.

- Quando se está entregue à própria sorte aos catorze anos - explicou Jeff - é preciso aprender as coisas depressa. Primeiro, aprende-se o que motiva a gente, depois o que motiva as outras pessoas. Uma vigarice é igual ao jiu-jitsu. No jiu-jitsu, usa-se a força do oponente para vencer. Numa vigarice, usa-se a sua ganância. Você só faz o primeiro movimento. Ele cuida de todo o resto por você.

Tracy sorriu, especulando se Jeff tinha alguma idéia do quanto os dois eram parecidos. Ela gostava de sua companhia, mas tinha certeza de que, havendo a oportunidade, Jeff não hesitaria em traí-la. Era um homem com quem se tinha de tomar todo cuidado e ela não tencionava facilitar.

A pelota era jogada numa grande arena ao ar livre, do tamanho de um campo de futebol, no alto das colinas de Biarritz. As enormes tabelas verdes de concreto nos dois lados da quadra, com uma área de jogar no centro, quatro fileiras de arquibancadas de pedra nos lados. Os reactores foram acesos ao anoitecer. Quando Jeff e Tracy chegaram, as arquibancadas estavam quase lotadas de fãs. As duas equipes entraram em acção.

Membros de cada equipe se revezavam em arremessar a bola no muro de concreto e apanhá-la no rebote em suas cestas, compridas e estreitas, presas nos braços. A pelota era um jogo rápido e perigoso. Quando um dos jogadores errava, a multidão se punha a gritar.

- Eles realmente levam esse jogo muito a sério - comentou Tracy.

- Muito dinheiro é apostado nas partidas. Os bascos formam uma raça de jogadores.

Enquanto os espectadores continuavam a chegar, as arquibancadas foram ficando cada vez mais cheias. Tracy se descobriu comprimida contra Jeff. Se ele estava consciente do calor do corpo dela junto ao seu, não deixou transparecer.

O ritmo e ferocidade do jogo pareciam se intensificar à medida que os minutos passavam. Os gritos dos torcedores ressoavam pela noite.

 

- É mesmo tão perigoso quanto parece? - perguntou Tracy.

- Baronesa, aquela bola viaja pelo ar a uma velocidade superior a cento e cinquenta quilómetros horários. Se bater em sua cabeça, está morta. Mas é raro um jogador errar.

Jeff afagou-lhe a mão distraidamente, os olhos concentrados no jogo. Os jogadores eram extraordinários, movendo-se graciosamente, em perfeito controle. Mas, no meio da partida, inesperadamente, um dos jogadores arremessou a bola contra a tabela num ângulo errado. A bola mortífera avançou para o banco em que Jeff e Tracy estavam sentados. Os espectadores tentaram se proteger. Jeff agarrou Tracy e empurrou-a para o chão, seu corpo cobrindo o dela. Ouviram a bola passar directamente por cima de suas cabeças e bater na parede. Tracy ficou deitada no chão, sentindo a dureza do corpo de Jeff. O rosto dele estava muito próximo do seu.

Ele segurou-a por um momento, depois levantou-se e ajudou-a a se erguer também. Havia um súbito constrangimento entre os dois.

- Eu... eu acho que já tive emoção suficiente por uma noite - murmurou Tracy. - Gostaria de voltar ao hotel, por favor.

Despediram-se no saguão.

- Gostei muito da noite - disse Tracy a Jeff, falando com absoluta sinceridade.

- Tracy, pretende mesmo levar adiante a história maluca do tesouro afundado de

- Claro.

Ele estudou-a, por um longo momento.

- Ainda pensa que estou atrás daquele ouro, não é mesmo?

Tracy fitou-o nos olhos.

- E não está?

A expressão de Jeff se endureceu.

- Boa sorte.

- Boa noite, Jeff.

Tracy observou-o virar-se e deixar o hotel. Calculou que ele ia ao encontro de Suzanne. Pobre mulher. Quando ela foi pegar a chave, o recepcionista disse:

- Boa noite, baronesa. Há um recado à sua espera.

Era do Professor Zuckerman.

 

Adolf Zuckerman tinha um problema. Um problema muito grande. Estava sentado no escritório de Armand Grangier e ficara tão apavorado pelo que estava acontecendo que urinara nas calças. Grangier era o proprietário de um cassino particular ilegal, localizado numa elegante viria, na Rue Frias, 123. Não fazia a menor diferença para Grangier se o Casino Municipal estava fechado ou não, pois o clube da Rue Frias sempre ficava repleto de clientes ricos. Ao contrário dos cassinos supervisionados pelo governo, as apostas ali eram ilimitadas. Aquele era o lugar em que os grandes apostadores iam jogar roleta, chemin de fer e dados. Os clientes de Grangier incluíam príncipes árabes, a nobreza inglesa, homens de negócios orientais, chefes de Estado africanos. Jovens escassamente vestidas circulavam pela sala, recebendo pedidos para mais champanha e uísque. Arrnand Grangier aprendera há muito tempo que os ricos, mais do que qualquer outra classe, apreciavam obter alguma coisa de graça. Grangier podia se dar ao luxo de oferecer bebidas de graça, pois suas roletas eram viciadas e os jogos de cartas combinados.

 

O clube geralmente vivia repleto, com finas jovens escoltadas por homens mais velhos e endinheirados. Mais cedo ou mais tarde, as mulheres eram atraídas para Grangier. Ele era uma miniatura de homem, com feições perfeitas, olhos castanhos profundos, uma boca suave e sensual. Tinha 1,60 metros de altura e a combinação de beleza e pequena estatura atraia as mulheres como um íman. Grangier tratava a todos com uma admiração simulada.

- Eu a acho irresistível, chérie, mas infelizmente para nós dois estou loucamente apaixonado por outra mulher.

E era verdade. É claro que a outra mulher mudava de semana para semana pois em Biarritz havia um suprimento interminável de finas jovens e Armand Grangier concedia a cada uma o seu breve lugar ao sol.

As ligações de Grangier com o submundo e a polícia eram bastante poderosas para que pudesse manter seu cassino. Empenhara-se arduamente para subir pela escada do crime, começando como mensageiro no tráfico de tóxicos, até finalmente conquistar seu feudo em Biarritz. Os que se opunham a ele sempre descobriam, tarde demais, como o homenzinho podia ser mortífero.

Agora, Adolf Zuckerman estava sendo interrogado por Armand Grangier.

- Fale-me mais a respeito dessa baronesa com quem você falou sobre o golpe de tesouro afundado.

Pelo tom furioso de sua voz, Zuckerman compreendeu que alguma coisa estava errada, terrivelmente errada. Ele engoliu em seco e disse:

- Ela é viúva. O marido deixou-lhe muito dinheiro. Disse que vai entrar com cem mil dólares. - O som de sua própria voz deu-lhe confiança para continuar: - Depois que recebermos o dinheiro, é claro, diremos a ela que o navio de salvamento sofreu um acidente e precisamos de mais cinquenta mil. E depois haverá outros cem mil... e assim por diante.

Ele percebeu a expressão desdenhosa no rosto de Armand Grangier e balbuciou:

- Qual... qual é o problema, chefe?

- O problema é que acabei de receber um telefonena de um dos meus homens em Paris. Ele falsificou um passaporte para a sua baronesa. Ela se chama Tracy Whitney e é americana. Zuckerman sentiu a boca subitamente ressequida. Passou a língua pelos lábios.

- Ela... ela parecia realmente interessante, chefe.

- Balle! Conneau! Ela é uma vigarista. Você tentou dar um golpe numa golpista!

- Então... então por que ela aceitou? Por que simplesmente não me repeliu?

A voz de Armand Grangier era gelada:

- Não sei, professor, mas tenciono descobrir. E quando o fizer, mandarei a mulher dar um mergulho na baía. Ninguém pode fazer Armand Grangier de idiota. Agora, pegue o telefone. Diga a ela que um amigo seu propôs entrar com a metade do dinheiro e que eu estou indo falar-lhe. Acha que pode fazer isso?

Zuckerman disse ansiosamente:

- Claro, chefe. Não se preocupe.

- Eu me preocupo - disse Armand Grangier, falando bem devagar. - Eu me preocupo muito com você.

 

 

Armand Grangier não gostava de mistérios. O golpe do tesouro afundado vinha dando certo há séculos, mas era necessário que as vitimas fossem crédulas. Não havia a menor possibilidade de uma vigarista cair num golpe assim. Era esse o mistério que perturbava Grangier. Ele tencionava esclarecê-lo; e depois que o fizesse, a mulher seria entregue a Bruno Vicente. Vicente gostava de se divertir com suas vitrinas, antes de liquidá-las.

Armand Grangier saltou da limusine diante do Hôtel du Palais, entrou no saguão e aproximou-se de Jules Bergerac, o basco de cabeça branca que trabalhava no hotel desde os 13 anos de idade.

- Qual é o número da Suíte da Baronesa Marguerite de Chantilly?

Havia uma regra rigorosa que vedava aos recepcionistas informarem os números dos quartos dos hóspedes. Mas as regras não se aplicavam a Armand Grangier.

- Suíte 312, Monsieur Grangier.

- Merci. 

- E Quarto 311.

Grangier parou.

- Como?

- A baronesa também tem um quarto ao lado de sua Suíte.

- É mesmo? E quem o ocupa?

- Ninguém.

- Ninguém? Tem certeza?

- Oui, monsieur. Ela mantém esse quarto sempre trancado. As criadas foram avisadas para não entrarem ali.

Grangier franziu o rosto, numa expressão de perplexidade.

- Tem uma chave mestra?

- Claro.

Sem a menor hesitação, o recepcionista meteu a mão por baixo do balcão, pegou a chave mestra e entregou-a a Armand Grangier. Jules observou Armand Grangier se encaminhar para o elevador. Nunca se discutia com um homem como Grangier.

Ao chegar à porta da Suíte da baronesa, Armand Grangier encontrou-a entreaberta. Empurrou-a e entrou. A sala de estar se encontrava vazia.

- Olá? Tem alguém aqui?

Uma voz feminina respondeu do outro cómodo:

- Estou no banho. Espere só um momento. Sirva-se de um drinque, por favor.

Grangier vagueou pela suíte. Conhecia tudo ali, pois ao longo dos anos instalara no hotel muitas de suas amigas. Entrou no quarto. Jóias caras estavam negligentemente espalhadas sobre a penteadeira.

- Não vou demorar - gritou a voz feminina do banheiro.

- Não há pressa, baronesa.

 

Baronesa mon cul!, pensou ele, furioso. Qualquer que seja o seu golpe, chérie, vai malograr. Ele foi até a porta que dava para o quarto adjacente. Estava trancada. Grangier tirou a chave mestra do bolso e abriu a porta. O quarto em que entrou tinha um cheiro estranho, bolorento. O recepcionista dissera que ninguém o ocupava. Então por que ela precisava... A atenção de Grangier foi atraída para uma coisa estranhamente deslocada. Um fio eléctrico, preto e grosso, preso a uma tomada na parede, estendia-se pelo assoalho e desaparecia num armário. A porta do armário se achava aberta para dar passagem ao fio. Curioso, Grangier adiantou-se e abriu a porta.

Uma fileira de notas de cem dólares úmidas, presas por pregadores a um arame, estendia-se de um lado a outro do armário grande. Havia um objecto coberto por um pano numa mesinha de máquina de escrever. Ele levantou o pano, descobrindo uma pequena impressora, com uma nota de cem dólares ainda molhada. Ao lado da impressora havia folhas de papel em branco, do tamanho da nota americana, assim como um cortador de papel. Várias notas de cem dólares, cortadas de maneira errada, estavam espalhadas pelo chão. Uma voz furiosa, por trás de Grangier, perguntou:

- O que faz aqui?

Grangier virou-se. Tracy Whitney, os cabelos molhados do banho e envolta numa toalha, entrara no quarto. Armand Grangier disse, suavemente:

- Dinheiro falso! Você ia nos pagar com dinheiro falso!

Ele observou a reacção da mulher. Negativa, indignação e depois desafio.

- Está bem - admitiu Tracy. - Mas não faria a menor diferença. Ninguém pode distinguir estas notas das verdadeiras.

- Isso é demais!

Seria um prazer destruir aquela mulher.

- Estas notas são tão boas quanto ouro.

- É mesmo?

Havia desdém na voz de Grangier. Ele pegou uma das notas úmidas e examinou-a. Olhou um lado, depois o outro, examinou mais atentamente. Era uma falsificação excelente.

- Quem fez as matrizes?

- Que importância isso tem? Posso ter os cem mil dólares prontos até sexta-feira.

Grangier fitou-a, aturdido. E quando compreendeu o que ela estava pensando, não pôde conter uma risada.

- Essa não! Você é mesmo estúpida. Não existe nenhum navio.

Tracy mostrou-se desconcertada.

- Como assim? Não existe nenhum navio? Mas o Professor Zuckerman me garantiu...

- E acreditou nele? Mas que pena, baronesa. - Ele tornou a estudar a nota em sua mão. - Levarei isto.

Tracy encolheu os ombros.

- Pode levar quantas quiser. É apenas papel.

Grangier pegou um punhado das notas úmidas de cem dólares.

- Como pode saber que uma das criadas não entrará aqui?

- Eu pago para elas ficarem longe - E tranco o armário quando saio.

Ela é fria, pensou Armand Grangier. Mas isso não será suficiente para mantê-la viva.

- Não deixe o hotel - ordenou ele. - Tenho um amigo que quero que você conheça.

 

Armand Grangier tencionava entregar a mulher a Bruno Vicente imediatamente, mas algum instinto o conteve. Tornou a examinar uma das notas. Já manipulara muito dinheiro falsificado, mas nada tão bom quanto aquele. Quem quer que fizera as matrizes era um génio. O papel parecia autêntico, as unhas eram perfeitas e limpas. As cores permaneciam definidas, mesmo com a nota úmida. A imagem de Benjamin Franklin era perfeita. A mulher estava certa. Era difícil dizer a diferença entre o que ele tinha na mão e a coisa verdadeira. Grangier especulou se seria possível passá-la como dinheiro genuíno. Era uma idéia tentadora.

Ele decidiu manter Bruno Vicente à espera por mais algum tempo. Na manhã seguinte, bem cedo, Armand Grangier mandou chamar Adolf Zuckerman e entregou-lhe uma das notas de cem dólares.

- Vá ao banco e troque isto por francos.

- Certo, chefe.

Grangier observou-o deixar apressadamente o escritório. Aquela era a punição de Zuckerman por sua estupidez. Se ele fosse preso, nunca diria de onde saíra a nota falsa... não se quisesse viver. Mas se ele conseguisse passar a nota sem problemas... Vamos esperar para ver o que acontece, pensou Grangier.

Zuckerman voltou ao escritório 15 minutos depois. Contou um bolo de francos franceses, no valor de cem dólares.

- Mais alguma coisa, chefe?

Grangier ficou olhando para os francos.

- Teve algum problema?

- Problema? Não. Por quê?

- Quero que volte ao mesmo banco e diga o seguinte...

 

Adolf Zuckerman entrou no saguão do Banque de France e aproximou-se da mesa do gerente. Desta vez, Zuckerman, tinha consciência do perigo que corria, mas preferia enfrentá-lo a ficar exposto à ira de Grangier.

- O que deseja? - perguntou o gerente.

Zuckerman fez um esforço para disfarçar seu nervosismo.

- O problema é que me meti num jogo de pôquer ontem à noite, com alguns americanos que conheci num bar.

Ele parou de falar. O gerente do banco acenou com a cabeça vigorosamente.

- E perdeu todo o seu dinheiro, está precisando agora de um pequeno empréstimo?

- Não é isso. Para dizer a verdade, eu ganhei. O problema é que os homens não pareciam muito honestos. - Zuckerman tirou do bolso duas notas de cem dólares - Pagaram-me com este dinheiro e receio... receio que talvez seja falso.

Zuckerman prendeu a respiração, enquanto o gerente se inclinava para a frente e pegava as notas com suas mãos rechonchudas. Examinou-as meticulosamente, primeiro uma, depois a outra, suspendeu-as contra a luz. Finalmente, ele olhou para Zuckerman e sorriu.

- Teve sorte, monsieur. Estas notas são genuínas.

Zuckerman permitiu-se deixar o ar escapar dos pulmões. Graças a Deus! Tudo daria certo.

 

- Não há qualquer problema, chefe. Ele disse que as notas são genuínas.

Era quase bom demais para ser verdade. Armand Grangier pôs-se a pensar, um plano já parcialmente formulado em sua mente.

- Vá buscar a baronesa.

 

Tracy estava sentada no escritório de Armand Grangier, fitando-o através da mesa.

- Nós vamos ser sócios - informou-a Grangier.

Tracy começou a se levantar.

 

- Não preciso de um sócio e...

- Sente-se.

Ela fitou Grangier nos olhos e sentou-se.

- Biarritz é minha cidade. Tente passar uma só dessas notas e será presa tão depressa que nem saberá o que lhe aconteceu. Comprenez vous? Coisas terríveis acontecem com as mulheres bonitas em nossas prisões. Não poderá fazer qualquer coisa por aqui sem a minha permissão.

Ela estudou-o.

- Então o que estou comprando de você é protecção?

- Errado. O que está comprando de mim é a sua vida.

Tracy acreditou.

- E agora me diga onde arrumou suas matrizes.

Tracy hesitou e Grangier gostou de vê-la se contorcer e acabar por se render. Ela disse, relutante:

- Comprei de um americano que vive na Suíça. Ele foi gravador da Casa da Moeda dos Estados Unidos por vinte e cinco anos. Quando o aposentaram, houve algum problema técnico e nunca lhe pagaram a pensão. Ele sentiu-se trapaceado e resolveu se vingar. Tirou dos Estados Unidos algumas chapas de notas de cem dólares que deveriam ter sido destruídas, usou os seus contactos para obter o papel com que o Departamento de Tesouro imprime seu dinheiro.

Isso explica tudo, pensou Grangier, triunfante. É por isso que as notas parecem tão boas. Seu excitamento era cada vez maior.

- Quanto dinheiro a impressora pode produzir em um dia?

- Somente uma nota por hora. Cada lado do papel tem de ser processado e...

Grangier interrompeu-a:

- Não há uma impressora maior?

- Há, sim. Ele tem uma que produz cinquenta notas a cada oito horas, mas só venderia por meio milhão de dólares.

- Compre-a - ordenou Grangier.

- Acontece que não tenho quinhentos mil dólares.

- Mas eu tenho. Quando poderá ter uma impressora maior?

Tracy respondeu, relutante:

- Acho que imediatamente. Mas eu não...

Grangier pegou o telefone e disse:

- Louis, quero quinhentos mil dólares em francos franceses. Tire o que temos no cofre e pegue o resto com os bancos. Traga ao meu escritório. Vite!

Tracy levantou-se, bastante nervosa.

- É melhor eu ir e...

- Você não vai a lugar nenhum.

- Mas eu preciso...

- Fique sentada ai e mantenha-se calada. Estou pensando.

Ele tinha associados nos negócios que esperariam ser incluídos numa operação como aquela. Mas o que eles sabem lhes fará mal, decidiu Grangier. Compraria a impressora maior para si mesmo e substituiria o dinheiro que tomara emprestado da conta do cassino nos bancos pelos dólares que imprimiria. Depois disso, mandaria Bruno Vicente cuidar da mulher. Ela não gostava de sócios.

Armand Grangier também não.

 

O dinheiro chegou duas horas depois, numa sacola grande. Grangier disse a Tracy:

 

- Você sairá do Palais. Tenho uma casa nas colinas que é muito particular. Ficará lá até iniciarmos a operação. - Ele empurrou o telefone na direcção de Tracy. - Agora, ligue para o seu amigo na Suíça e diga a ele que vamos comprar a impressora grande.

- Tenho o telefone dele no hotel. Ligarei de lá. Dê-me o endereço de sua casa. Avisarei a ele para enviar a impressora para lá e...

- Não! - gritou Grangier, rispidamente. - Não quero deixar qualquer pista. Mandarei buscá-la no aeroporto. Conversaremos a esse respeito esta noite, durante o jantar. Eu a verei às oito horas.

Era uma dispensa. Tracy levantou-se. Grangier acenou com a cabeça para a sacola que continha o dinheiro.

- Tome cuidado com o dinheiro. Eu não gostaria que nada acontecesse com o dinheiro... nem com você.

- Nada acontecerá.

Ele sorriu sugestivamente.

- Sei disso. O Professor Zuckerman a acompanhará de volta ao hotel.

Os dois seguiram em silêncio na limusine, a sacola com o dinheiro entre eles, cada um absorto em seus pensamentos. Zuckerman não sabia direito o que estava acontecendo, mas tinha a impressão de que seria óptimo para ele. A mulher era a chave de tudo. Grangier lhe ordenara que ficasse de olho nela e era o que Zuckerman tencionava fazer.

 

Armand Grangier ficou eufórico naquela noite. àquela altura, a compra da impressora grande já deveria estar acertada. A mulher Whitney dissera que imprimiria cinco mil dólares por dia. Mas Grangier tinha um plano melhor. Tencionava operá-la em turnos, 24 horas por dia. Isso daria 15 mil dólares por dia, mais de cem mil dólares por semana, um milhão a cada dez semanas. E isso era apenas o começo. Descobriria quem era o gravador naquela noite e faria um acordo com ele para obter mais máquinas. Não havia limite para a fortuna que a operação lhe traria.

Eram precisamente oito horas quando a limusine de Grangier parou diante da entrada do Hôtel du Palais. Grangier saltou. Ao entrar no saguão, notou com satisfação que Zuckerman se achava sentado perto da entrada, observando atentamente as portas. Grangier encaminhou-se para a recepção.

- Jules, avise à Baronesa de Chantilly que eu estou aqui. Mande-a descer para o saguão.

O recepcionista ficou surpreso.

- Mas a baronesa já deixou o hotel, Sr. Grangier.

- Está enganado. Ligue para ela.

Jules Bergerac sentiu-se consternado. Não era saudável contestar Armand Grangier.

- Eu mesmo fiz o registo de saída.

Impossível!

- Quando?

- Pouco depois que ela voltou ao hotel. Pediu-me para levar a conta à sua Suíte, a fim de poder pagar em dinheiro...

A mente de Armand Grangier estava em disparada vertiginosa.

- Em dinheiro? Francos franceses?

- Isso mesmo, monsieur.

Grangier perguntou, freneticamente:

 

- Ela levou alguma coisa de sua Suíte? Qualquer bagagem ou caixas?

- Não. Ela disse que mandaria buscar a bagagem mais tarde.

Então ela levara o seu dinheiro e fora para a Suíça, a fim de comprar pessoalmente a impressora maior!

- Leve-me para a sua Suíte. Depressa!

- Oui, Monsieur Grangier.

Jules Bergerac pegou uma chave na parede por trás e seguiu apressadamente para o elevador, junto com Armand Grangier. Ao passar por Zuckerman, Grangier sibilou:

- Por que está sentado aí, seu idiota? Ela já foi embora.

Zuckerman fitou-o sem compreender.

- Ela não pode ter ido embora. Não desceu para o saguão. Fiquei atento a ela.

- Atento a ela! - imitou-o Grangier, brutalmente. - Mas por acaso esteve atento a uma enfermeira, uma velhinha de cabeça branca ou uma criada saindo pela porta de serviço?

Zuckerman ficou aturdido.

- Por que eu deveria fazer isso?

- Volte ao cassino - disse Grangier asperamente - Cuidarei de você mais tarde.

A Suíte parecia exactamente como quando Grangier ali fora anteriormente. A porta de ligação com o quarto adjacente se achava aberta. Grangier entrou, foi apressadamente até o armário, abriu a porta. A impressora ainda estava ali, graças a Deus! A mulher Whitney tinha tanta pressa em partir que a deixara. Isso fora um erro. E não é o seu único erro, pensou Grangier. Ela o trapaceara em 500 mil dólares e ele a faria pagar com uma vingança. Deixaria a polícia ajudá-lo a descobrir a mulher e a mandaria para a cadeia, onde seus homens poderiam alcançá-la. Eles a obrigariam a revelar quem era o gravador e depois a calariam para sempre.

Armand Grangier discou o número da chefatura de polícia e pediu para falar com o Inspector Dumont. Disse tudo o que queria durante três minutos, ansiosamente, depois arrematou:

- Ficarei esperando aqui.

Quinze minutos depois o Inspector, que era seu amigo, chegou à Suíte, acompanhado por um homem de corpo andrógino e uma das caras mais feias que Grangier já vira. A testa parecia prestes a explodir do rosto, os olhos castanhos, quase escondidos por trás dos óculos de lentes grossas, possuíam a expressão penetrante de um fanático.

- Este é Monsieur Daniel Cooper - disse o Inspector Dumont. - Monsieur Grangier. O Sr. Cooper também está interessado na mulher a respeito de quem me telefonou.

Cooper falou:

- Mencionou ao Inspector Dumont que ela está envolvida numa operação de falsificação.

- exactament. A mulher está a caminho da Suíça neste momento. Poderão pegá-la na fronteira. E tenho bem aqui todas as provas necessárias.

Ele levou-os ao armário. Daniel Cooper e o Inspector Dumont deram uma olhada no interior.

- Lá está a impressora usada para fazer o dinheiro.

Daniel Cooper examinou a máquina cuidadosamente.

- Ela imprimiu o dinheiro nisto?

- Foi o que acabei de falar - disse Grangier bruscamente. Ele tirou uma nota do bolso. - Olhem para isto. É uma das notas falsas de cem dólares que ela me deu.

 

Cooper foi até a janela e examinou a nota contra a luz.

- Esta nota é genuína.

- É que ela usou as chapas roubadas que comprou de um gravador que trabalhou para a Casa da Moeda americana, em Filadélfia. E imprimiu as notas nesta impressora.

Cooper disse rudemente:

- Esta é uma impressora comum. Você é muito estúpido. A única coisa que se pode imprimir nesta máquina é papel timbrado.

- Papel timbrado?

Grangier tinha a sensação de que o quarto começava a rodar.

- Acreditou realmente na fábula de uma máquina que transforma papel em notas de cem dólares genuínas?

- Estou lhe dizendo que vi com meus próprios olhos...

Grangier parou de falar abruptamente. O que vira? Algumas notas molhadas de cem dólares penduradas para secar, papel em branco e um cortador de papel. Ele começou a perceber a enormidade do golpe de que fora vitima. Não havia qualquer operação de falsificação, não havia gravador esperando na Suíça. Tracy Whitney jamais caíra na história do tesouro afundado. A desgraçada usara o seu próprio golpe como uma isca para arrancar-lhe meio milhão de dólares. Se a notícia do golpe se espalhasse...

Os dois homens observavam-no.

- Deseja apresentar acusação de alguma espécie, Armand? - perguntou o Inspector Dumont.

Como poderia? O que diria? Que fora enganado ao tentar financiar uma operação de falsificação? E o que fariam seus associados com ele quando soubessem que lhes roubara meio milhão de dólares e perdera tudo? Ele foi dominado por um temor súbito.

- Não. Eu... eu não desejo apresentar qualquer acusação.

Havia pânico em sua voz. África, Pensou Armand Grangier. Eles nunca me encontrarão na África.

Daniel Cooper estava pensando: Na próxima vez, Eu apegarei na próxima vez.

 

Foi Tracy quem sugeriu a Gunther Hartog que se encontrassem em Majorca. Tracy adorava a ilha. Era um dos lugares realmente pitorescos do mundo.

- Além do mais - disse ela a Gunther - foi outrora o refúgio de piratas. Nós nos sentiremos à vontade ali.

- Seria melhor se não fôssemos vistos juntos.

- Pode deixar que providenciarei tudo.

 

Começara com o telefonema de Gunther de Londres:

- Tenho uma coisa para você que é de facto excepcional, Tracy. Creio que você achará um grande desafio.

Na manhã seguinte, Tracy voou para Palma, a capital de Majorca. Por causa da circulação vermelha da Interpol sobre Tracy, sua partida de Biarritz e a chegada em Majorca foram comunicadas às autoridades locais. Assim que Tracy se registou na Suíte Real do Hotel Son Vida, uma equipe de vigilância entrou em acção, numa base de 24 horas por dia. O chefe de polícia de Palma, Ernesto Marze, falara com o Inspector Trignant, da Interpol, que lhe dissera:

- Estou convencido de que Tracy Whitney é uma onda de crime de uma só mulher.

- Pior para ela. Se cometer um crime em Majorca, descobrirá que nossa justiça é muito rápida.

O Inspector Trignant acrescentou:

- Monsieur, há outra coisa que devo mencionar.

- Sim?

- Receberá um visitante americano. Seu nome é Daniel Cooper.

 

Parecia aos detectives que vigiavam Tracy que ela só estava interessada em passeios turísticos. Seguiram-na em suas excursões pela ilha, na visita ao claustro de San Francesco, ao pitoresco Castelo Beliver e, à praia em Illetas. Ela assistiu a uma tourada em Palma, comeu sobrasadas e camaiot na Plaza de La Reine. Estava sempre sozinha.

Tracy fez viagens a Formentor, ValIdemosa e La Granja, visitou as fábricas de pérolas em Manacor.

- Nada - comunicaram os detectives a Ernesto Marze. - Ela está aqui como uma turista, comandante.

A secretária do comandante entrou na sala e informou:

- Há um americano aqui querendo lhe falar. Senhor Daniel Cooper.

O Comandante Marze tinha muitos amigos americanos. Gostava dos americanos e tinha o pressentimento de que, apesar do que o Inspector Trignant lhe dissera, também gostaria daquele Daniel Cooper.

Ele estava enganado.

- Vocês são idiotas - disse Daniel Cooper asperamente. - Todos vocês. É claro que ela não está aqui como turista. Veio atrás de alguma coisa.

O Comandante Marze teve de fazer um grande esforço para manter o controle.

- Senhor, acaba de dizer que os alvos da Senhorita Whitney são sempre espectaculares, que ela gosta do impossível. Verifiquei meticulosamente, Senhor Cooper. Não há nada em Majorca que possa atrair os talentos da Senhorita Whitney.

 

- Ela se encontrou com alguém... conversou com qualquer pessoa?

O tom insolente do ojete!

- Não. Com ninguém.

- Pois então isso ainda vai acontecer - garantiu Daniel Cooper, incisivamente.

Finalmente compreendo o que se quer dizer com Ugly American, o Americano Feio, pensou o Comandante Marze.

 

Há 200 cavernas conhecidas em Majorca, porém as mais sensacionais são as Cuevas del Drach, as "Cavernas do Dragão", perto de Porto Cristo, a uma hora de viagem de Palma. As cavernas antigas descem pela terra profundamente, enormes câmaras abobadadas, com estalagmites e estalactites, com um silêncio tumular, excepto pela passagem ocasional de sinuosos córregos subterrâneos, a água virando verde, azul ou branco, cada cor indicando a extensão das tremendas profundezas.

As cavernas constituem uma terra de conto de fadas em arquitectura de um marfim claro, uma sucessão aparentemente interminável de labirintos, escassamente iluminados por tochas estrategicamente colocadas.

Ninguém tem permissão para visitá-las sem um guia. Mas, a partir do momento em que são abertas ao público, pela manhã, as cavernas ficam repletas de turistas.

Tracy escolheu o sábado para conhecê-las quando se achavam mais apinhadas, com centenas de turistas de países do mundo inteiro. Ela comprou seu ingresso no balcão e desapareceu no meio da multidão. Daniel Cooper e dois homens do Comandante Marze vinham logo atrás. Um guia levou os excursionistas por trilhas rochosas estreitas, escorregadias por causa da água pingando das estalactites por cima, apontando para baixo como dedos esqueléticos acusadores.

Havia alcovas em que os visitantes podiam sair das trilhas e parar, admirando as formações de cálcio que pareciam enormes aves, estranhos animais e árvores. Havia pontos de escuridão ao longo das trilhas mal-iluminadas e foi num deles que Tracy desapareceu.

Daniel Cooper adiantou-se apressadamente, mas ela não se encontrava mais à vista em parte alguma. A multidão descendo pelos degraus tornava impossível localizá-la. Ele não tinha meios de saber se ela estava à sua frente ou atrás. Ela está planeando alguma coisa aqui, disse Cooper a si mesmo. Mas como? Onde? O quê?

 

Numa gruta do tamanho de uma arena, no ponto mais baixo das cavernas, diante do Grande Lago, há um anfiteatro romano. Fileiras de bancos de pedra foram construídas para acomodar as audiências que vêm assistir ao espectáculo, encenado de hora em hora. Os espectadores ocupam seus lugares no escuro, esperando pelo início do espectáculo.

Tracy subiu até a décima fila, deslocou-se por 20 lugares. O homem no vigésimo primeiro virou-se para ela

- Algum problema?

- Nenhum, Gunther.

Ela inclinou-se e beijou-o no rosto. Ele disse alguma coisa e Tracy teve de se inclinar para ouvi-lo, acima da babel de vozes ao redor.

- Achei que seria melhor se não fôssemos vistos juntos, no caso de você estar sendo seguida.

 

Tracy correu os olhos pela caverna imensa, escura e apinhada.

- Estamos seguros aqui. - Ela tornou a se fixar em Gunther. - Deve ser importante.

- E é mesmo. - Ele inclinou-se para mais perto dela. - Um cliente rico está interessado em adquirir um determinado quadro. É um Goya, chamado Puerto. Ele pagará meio milhão de dólares em dinheiro a quem conseguir obtê-lo. Além da minha comissão.

Tracy ficou pensativa.

- A quem conseguir obtê-lo... Há outros tentando?

- Para ser franco, há, sim. E, na minha opinião, as possibilidades de sucesso são muito limitadas.

- Onde está o quadro?

- No Museu do Prado, em Madri.

- No Prado!

A palavra que aflorou prontamente à cabeça de Tracy foi impossível. Gunther se inclinava em sua direcção, falando em seu ouvido, ignorando a multidão ruidosa ao redor, enquanto a arena se enchia.

- É preciso muita engenhosidade e foi por isso que pensei em você, minha cara Tracy.

- Sinto-me lisonjeada. Você disse meio milhão de dólares?

- Livres e desimpedidos.

O espectáculo começou e subitamente houve silêncio. Gradativamente, lâmpadas invisíveis foram se acendendo, a música espalhou-se pela enorme caverna. O centro do palco era um lago na frente da audiência sentada. Uma gôndola surgiu de trás de uma estalagmite, iluminada por reflectores ocultos. Um organista se encontrava no barco, enchendo o ar com uma serenata melodiosa, que ecoou pela água. Os espectadores observavam, extasiados, enquanto luzes coloridas varavam a escuridão. O barco atravessou lentamente o lago e desapareceu, a música se desvanecendo suavemente.

- Fantástico - disse Gunther. - Vale a pena viajar para Majorca só para assistir a isto.

- Adoro viajar - comentou Tracy. - E quer saber qual é a cidade que eu sempre quis conhecer, Gunther? Madri.

Parado na saída das cavernas, Daniel Cooper observou Tracy Whitney emergir.

Ela estava sozinha.

 

O Hotel Ritz, na Plaza de Ia Lealtad, em Madri, é considerado o melhor da Espanha; por mais de um século, tem alojado e alimentado monarcas de uma dúzia de países europeus. Presidentes, ditadores e bilionários já dormiram ali. Tracy ouvira falar tanto sobre o Ritz que a realidade foi um desapontamento. O saguão era desbotado e de aparência andrajosa.

O gerente-assistente escoltou-a à Suíte que ela escolheu, 411-412, na ala sul do hotel, na Calle Félipe V.

- Espero que considere a Suíte satisfatória, Senhorita Whitney.

Tracy foi até a janela e deu uma olhada. Directamente abaixo, no outro lado da rua, ficava o Museu do Prado.

- É óptima. Obrigada.

A Suíte estava povoada pelos sons estrepitosos do tráfego intenso nas ruas lá embaixo. Mas tinha o que ela queria: uma vista ampla para o Prado.

Tracy pediu um jantar leve, servido no quarto, foi deitar-se cedo. Quando se meteu na cama, concluiu que tentar dormir ali só podia ser uma forma moderna de tortura medieval.

à meia-noite, um detective postado no saguão do hotel foi substituído por um colega e informou:

- Ela não saiu do quarto. Creio que já se recolheu para a noite.

 

Em Madri, a Dirección General de Seguridad, a chefatura de polícia, fica na Puerta del Sol e ocupa todo um quarteirão. É um prédio escuro, de tijolos vermelhos, com uma enorme torre de relógio por cima. Sobre a entrada principal está hasteada a bandeira espanhola, vermelha e amarela. Há sempre um guarda na porta, de uniforme bege e boina marrom-escura, armado com uma submetralhadora, um cassetete, um revólver e algemas. É ali que funciona o serviço de ligação com a Interpol.

No dia anterior, um telegrama X-D fora entregue a Santiago Ramiro, o chefe de polícia de Madri, comunicando a chegada iminente de Tracy Whitney. Ele lera duas vezes a última frase do telegrama e depois telefonou para André Trignant, no quartel-general da Interpol, em Paris.

- Não compreendi a sua mensagem - dissera Ramiro. - Está me pedindo para conceder plena cooperação de meu departamento a um americano que nem mesmo é um polícia? Por que motivo?

- Tenho certeza de que descobrirá que o Sr. Cooper é extremamente útil, comandante. Ele compreende a Senhorita Whitney.

O que há para compreender? Ela é uma criminosa. Talvez engenhosa... mas as prisões espanholas estão repletas de criminosos engenhosos. Essa mulher não escapulirá de nossa rede.

- Bon. Mas consultará o Sr. Cooper?

O comandante disse, relutante:

- Se diz que ele pode ser útil, então não tenho qualquer objecção.

- Merci, monsieur.

- De nada, senhor.

 

O Comandante Ramiro, como seu equivalente em Paris, não gostava de americanos. Achava-os grosseiros, materialistas e ingénuos. Este será diferente, pensou ele. Provavelmente gostarei dele.

O Comandante Ramiro odiou Daniel Cooper à primeira vista.

- Ela já enganou metade das forças policiais da Europa - garantiu Daniel Cooper, logo depois de entrar na sala do comandante. - E provavelmente fará a mesma coisa aqui.

O comandante teve de fazer um grande esforço para se controlar.

- Senhor, não precisamos de ninguém para nos ensinar a trabalhar. A Senhorita Whitney está sob vigilância desde o momento em que chegou ao Aeroporto Barajas, esta manhã. Posso lhe assegurar que ela será prontamente levada para a prisão se alguém deixar cair um alfinete na rua e a jovem o pegar.

- Ela não está aqui para pegar um alfinete na rua.

- Por que acha que ela veio a Madri?

- Não tenho certeza. Só posso garantir que é por alguma coisa muito grande.

O Comandante Ramiro declarou, presunçosamente:

- Quanto maior, melhor. Vigiaremos cada movimento da senhorita Whitney.

 

Quando Tracy acordou, pela manhã, tonta de uma noite de sono torturante, na cama projectada por Tomás de Torquemada, pediu um desjejum ligeiro e café puro e bem quente, depois foi até a janela que dava para o Museu do Prado. Era uma fortaleza imponente, de pedras e tijolos vermelhos do solo local, cercada por relva e árvores. Havia duas entradas laterais, ao nível da rua. Duas colunas dóricas se erguiam na frente, tendo nos dois lados escadas gémeas, que subiam para a entrada principal. Colegiais e turistas de uma dúzia de países estavam em fila na frente do museu. Pontualmente às 10 horas, as duas portas principais foram abertas por guardas. Os visitantes começaram a passar pela porta giratória no centro e pelas duas

passagens laterais, ao nível da rua.

O telefone tocou, surpreendendo Tracy. à excepção de Gunther Hartog, ninguém sabia que ela se encontrava em Madri. Ela atendeu.

- Alô?

- Buenos días, senhorita. - Era uma voz familiar. - Estou ligando da Câmara de Comércio de Madri. Fui instruído a fazer tudo ao meu alcance para que seja emocionante a sua estada em nossa cidade.

- Como soube que eu estava em Madri, Jeff?

- Senhorita, a Câmara de Comércio sabe de tudo. É a sua primeira vez em Madri?

- É, sim.

- Bueno! Neste caso, posso lhe mostrar alguns lugares. Quanto tempo planea ficar, Tracy?

Era uma pergunta insinuante.

- Não sei ainda - respondeu ela, jovialmente. - Apenas o suficiente para fazer algumas compras e conhecer a cidade. O que você está fazendo em Madri?

- A mesma coisa. - O tom de Jeff era de igual jovialidade. - Fazer compras e conhecer a cidade.

Tracy não acreditava em coincidência. Jeff Stevens estava ali pelo mesmo motivo que ela: roubar o Puerto.

- Está livre para jantar comigo hoje, Tracy?

 

Era um desafio.

- Estou.

- Óptimo. Farei uma reserva no Jockey.

 

Tracy certamente não tinha ilusões sobre Jeff. Mas quando ela saiu do elevador para o saguão e viu-o parado ali, à sua espera, sentiu-se irracionalmente satisfeita por encontrá-lo, Jeff pegou-lhe na mão.

- Fantástico, querida! Você está maravilhosa.

Ela se vestira com esmero. Usava um costume azul-marinho de Valentino, com uma zibelina russa em torno do pescoço, sapatos altos de Maud Frizon, uma bolsa também azul-marinho com o H da Hennès.

Daniel Cooper, sentado a uma mesinha redonda num canto do saguão, com um copo de água Perrier à sua frente, observou Tracy, enquanto ela cumprimentava seu acompanhante. Ele sentiu um imenso poder: A justiça é minha, diz o Senhor, eu sou sua espada e seu instrumento de vingança. Minha vida é uma penitência e você me ajudará a pagar. Eu vou puni-la.

Cooper sabia que nenhuma força policial do mundo era bastante esperta para pegar Tracy Whitney. Mas eu sou, pensou Cooper. Ela me pertence.

 

Tracy tornara-se mais do que uma missão para Daniel Cooper: era agora uma obsessão. Levava suas fotografias e ficha a toda a parte; à noite, antes de dormir, examinava-as atentamente. Chegara a Biarritz tarde demais para agarrá-la e ela se esquivara em Majorca. Mas agora que a Interpol redescobrira a sua pista, Cooper estava determinado a não perdê-la.

Ele sonhava com Tracy à noite. Ela presa numa jaula enorme, inteiramente nua, suplicando-lhe que a libertasse. Eu a amo, dizia ele, mas nunca a libertarei.

 

O Jockey era um restaurante pequeno e elegante, na Amador de los Rios.

- A comida é excelente - garantiu Jeff.

Ele estava particularmente bonito, pensou Tracy. Havia nele um excitamento interior que se comparava com o de Tracy. Ela sabia porquê: Ambos competiam entre si, num duelo de inteligência por apostas muito altas. Mas eu vencerei, pensou Tracy. Encontrarei um meio de roubar o quadro do Prado antes de Jeff.

- Há um estranho rumor circulando - comentou Jeff.

Ela focalizou sua atenção nele.

- Que rumor?

- Já ouviu falar de Daniel Cooper? Ele é um investigador de seguros, muito eficiente.

- Não. O que há com ele?

- Tome cuidado. É um homem perigoso. E eu não gostaria que nada lhe acontecesse.

- Não se preocupe.

- Mas tenho de me preocupar, Tracy.

Ela riu.

- Comigo? Por quê?

Ele pôs a mão sobre a dela e disse jovialmente.

- Você é muito especial. A vida é mais interessante com você por perto, meu amor.

 

Ele é terrivelmente convincente, pensou Tracy. Se eu não soubesse melhor, acreditaria nele.

- Vamos pedir a comida - disse Tracy. - Estou com fome.

 

Jeff e Tracy exploraram Madri nos dias subsequentes. Nunca estavam sozinhos. Dois dos homens do Comandante Ramiro seguiam-nos por toda a parte, acompanhados pelo estranho americano. Ramiro permitira que Cooper integrasse a equipe de vigilância somente para afastá-lo de seu gabinete. O americano era loco, estava convencido de que a mulher Whitney daria um jeito de roubar algum grande tesouro debaixo de nossos narizes. Que ridículo!

Tracy e Jeff comeram nos restaurantes clássicos de Madri - Horcher, o Príncipe de Viana, Casa Botin - mas Jeff também conhecia lugares que não haviam sido descobertos pelos turistas: Cases Paco, La Chuletta e El Lacón, onde ele e Tracy saborearam deliciosos pratos nativos, como cocido madrilenho e olla podrida. Visitaram um pequeno bar, onde foram servidos deliciosos tapas.

Onde quer que fossem, Daniel Cooper e os dois detectives nunca estavam muito atrás.

Observando-os a uma distância cautelosa, Daniel Cooper sentia-se perplexo pelo papel de Jeff Stevens no drama sendo encenado. Quem era ele? A próxima vitima de Tracy? Ou os dois conspiravam juntos alguma coisa? Cooper procurou o Comandante Ramiro e perguntou:

- Que informações possui sobre Jeff Stevens?

- Nada. Ele não tem ficha criminal e está registado como turista. creio que é simplesmente um companheiro que a mulher arrumou aqui.

Os instintos de Cooper lhe diziam que não era bem isso. Mas também não era Jeff Stevens que ele estava querendo. Tracy, pensou ele. Eu quero você, Tracy.

 

Quando Tracy e Jeff voltaram ao Ritz, no final de uma noitada, Jeff acompanhou-a até sua porta e sugeriu:

- Por que não me convida para entrar e tomar o último drinque da noite?

Tracy quase foi tentada. Ela inclinou-se para a frente e beijou-o de leve no rosto.

- Pense em mim como sua irmã, Jeff.

- Qual é a sua opinião sobre incesto?

Mas ela já fechara a porta.

Jeff telefonou poucos minutos depois de seu quarto.

- Não gostaria de passar o dia de amanhã comigo em Segóvia? É uma velha cidade fascinante, a poucas horas de carro de Madri.

- Parece uma idéia maravilhosa. E obrigada por uma noite linda. Até amanhã, Jeff.

Tracy permaneceu acordada por muito tempo, a mente povoada por pensamentos que não tinha o direito de acalentar. Já fazia muito tempo que estivera emocionalmente envolvida com um homem. Charles a magoara profundamente e ela não queria que isso tornasse a acontecer. Jeff Stevens era uma companhia divertida, mas ela sabia que nunca deveria permitir-lhe se tornar algo mais. Seria muito fácil se apaixonar por ele. E uma besteira rematada. Ruinosa. Divertida.

Tracy teve a maior dificuldade para dormir.

 

A viagem a Segóvia foi perfeita. Jeff alugara um pequeno carro e saíram de Madri para a mais linda região vinícola da Espanha. Um Seat sem qualquer identificação seguiu-os durante o dia inteiro. Só que não era um Seat comum.

O Seat é o único automóvel fabricado na Espanha, o veículo oficial da polícia espanhola. O modelo padrão tem apenas 100 cavalos, mas os vendidos para a Polícia Nacional e a Guarda Civil são especiais, com 150 cavalos. Assim, não havia qualquer perigo de Tracy Whitney e Jeff Stevens se esquivarem de Daniel Cooper e os dois detectives.

Tracy e Jeff chegaram a Segóvia a tempo para o almoço e foram comer num restaurante encantador, na praça principal, à sombra de um aqueduto de dois mil anos, construído pelos romanos. Depois do almoço, passearam pela cidade medieval, visitaram a velha Catedral de Santa Maria e o prédio renascentista da prefeitura. Depois, subiram para Alcázar, a antiga fortaleza romana empoleirada num rochedo, por cima da cidade. A vista era espectacular.

- Aposto que, se ficarmos aqui por tempo suficiente, acabaremos vendo Dom Quixote e Sancho Pança cavalgando pelas planícies lá embaixo - comentou Jeff.

Ela observou-o atentamente.

- Você gosta de investir contra moinhos de vento, não é mesmo?

- Depende do formato do moinho - disse ele, suavemente, chegando mais perto dela.

Tracy afastou-se da beira do penhasco.

- Fale-me mais sobre Segóvia.

E o encantamento foi rompido.

Jeff era um guia entusiástico, conhecedor de história, arqueologia e arquitectura. Tracy tinha de lembrar a si mesma que ele era também um vigarista. Era o dia mais agradável que Tracy podia se lembrar.

Um dos detectives espanhóis, José Pereira, resmungou para Cooper:

- A única coisa que eles estão roubando é o nosso tempo. Será que não percebe que esses dois não passam de apaixonados? Tem mesmo certeza de que ela planea alguma coisa?

- Tenho, sim.

Cooper estava desconcertado com suas próprias reacções. Tudo o que queria era agarrar Tracy Whitney, puni-la como ela merecia. Ela era apenas outra criminosa, uma missão. Contudo, a cada vez que o companheiro de Tracy lhe pegava o braço, Cooper descobria-se dominado pela fúria.

Assim que chegaram de volta a Madri, Jeff disse a Tracy:

- Se não está exausta demais, conheço um lugar muito especial para jantarmos.

- Maravilhoso.

Tracy não queria que o dia terminasse. Eu me entregarei a este dia, este único dia, serei como as outras mulheres.

 

Os madrilenos jantam tarde e poucos restaurantes abrem para o jantar antes das nove horas da noite. Jeff fez uma reserva para as 10 horas no Zalacaín, um elegante restaurante, onde a comida era excepcional e servida com perfeição. Tracy não pediu sobremesa, mas o garçon trouxe-lhe um delicado mil-folhas, a coisa mais deliciosa que já provara na vida. Depois, Tracy recostou-se na cadeira, saciada e feliz.

- Foi um jantar maravilhoso. Obrigada.

 

- Fico contente que tenha gostado. Este é o lugar para se trazer as pessoas quando se quer impressioná-las.

Ela estudou-o.

- Está tentando me impressionar, Jeff?

Ele sorriu.

- Pode apostar que sim. Espere só até ver o que teremos em seguida.

O que tiveram em seguida foi uma bodega despretensiosa, enfumaçada, repleta de trabalhadores espanhóis em blusões de couro, bebendo no balcão e numa dúzia de mesas espalhadas pela sala. Numa extremidade havia um tablado, onde dois homens dedilhavam guitarras. Tracy e Jeff foram sentados a uma mesinha perto do palco.

- Sabe alguma coisa sobre o flamengo? - perguntou Jeff, precisando de alterar a voz por causa do nível de barulho no bar.

- Somente que é uma dança espanhola.

- Cigana, originalmente. Pode-se ir a boates luxuosas de Madri e se assistir a imitações de flamengo. Mas esta noite você verá a coisa de verdade.

Tracy sorriu pelo excitamento na voz de Jeff.

- Verá um clássico cuadro flamengo. É um grupo de cantores, dançarinos e guitarristas. Primeiro, eles se apresentam juntos, depois um de cada vez.

Observando Tracy e Jeff de uma mesa no canto, perto da cozinha, Daniel Cooper se perguntou o que os dois estariam conversando, tão absorvidos.

- A dança é muito súbtil, porque tudo tem de ser feito junto... movimento, música, trajes, o desenvolvimento do ritmo...

- Como sabe tanta coisa a esse respeito?

- Já fui um dançarino do flamengo.

Naturalmente, pensou Tracy.

As luzes na bodega diminuíram e o pequeno palco foi iluminado por reflectores. E depois a magia começou. O início foi lento. Um grupo de artistas subiu casualmente à plataforma. As mulheres usavam saias e blusas coloridas, travessas altas com flores nos lindos penteados andaluzes. Os homens vestiam as calças justas tradicionais e coletes, usavam botas curtas de couro. Os guitarristas dedilharam uma melodia melancólica, enquanto uma das mulheres sentadas cantava, em espanhol:

 

Yô queria dejar

A mi amante,

Pero antes de que pudiera

Hacerio eira me abandono

Y destrozó mi corazón.

 

- Entende o que ela está cantando? - sussurrou Tracy.

- Claro. "Eu queria deixar meu amante, mas antes que pudesse fazê-lo ele me abandonou e destruiu meu coração."

 

Uma dançarina se deslocou para o centro do palco. Começou com um zapateado simples, batendo com os pés, cada vez mais depressa, impelida pela vibração das guitarras. O ritmo foi se tornando mais e mais vertiginoso, a dança tornou-se uma forma de violência sensual, variações dos passos que haviam nascido em cavernas ciganas um século antes. Enquanto a música aumentava de intensidade e excitamento, passando pelos movimentos clássicos de alegrias, fandanguillo, zambra e segariya, à medida que o ritmo se tornava mais frenético, soaram gritos de encorajamento dos artistas nos lados do palco.

Eram gritos de "Olé tu madre" e "Olé tus santos" "Anda, anda", os tradicionais jaleos e piropos, brados de estímulo, espicaçando, os dançarinos a ritmos mais desvairados e frenéticos.

Quando a música e a dança terminaram abruptamente, um silêncio ressoou pelo bar e depois houve uma explosão de, aplausos.

- Ela é maravilhosa - exclamou Tracy,

- Espere pelo resto - disse Jeff.

Uma segunda mulher avançou para o centro do palco. Tinha uma beleza morena castelhana, clássica, parecia profundamente alienada, completamente inconsciente da audiência. As guitarras começaram a tocar um bolero, triste e suave, um canto que parecia oriental. Um dançarino se juntou à mulher. As castanholas começaram a estalar, num ritmo firme, compulsivo.

Os artistas sentados acompanharam com o jaléo, as palmas que marcam o ritmo do flamengo. As palmas aceleravam a dança e a música, até que a sala começou a vibrar com o zapateado, as batidas hipnóticas da ponta dos pés e dos calcanhares, da sola inteira, em variações intermináveis de tom e sensações rítmicas.

Os corpos se separavam e se encontravam, num frenesi crescente de desejo, até que os dançarinos faziam um amor desvairado, violento, animal, sem jamais se tocarem, encaminhando-se para um clímax ardente, com a audiência a berrar. As luzes se apagaram e tornaram a se acender, com a multidão rugindo. Tracy descobriu-se a gritar junto com os outros. Para seu constrangimento, sentia-se sexualmente excitada. Tinha medo de enfrentar os olhos de Jeff. O ar entre eles vibrava de tensão. Tracy baixou os olhos para a mesa, contemplou as mãos fortes e bronzeadas de Jeff. Podia senti-las a acariciarem seu corpo, lentamente, rapidamente, com urgência. Ela se apressou em baixar as mãos para o colo, a fim de esconder o tremor.

Eles falaram muito pouco durante a viagem de volta ao hotel. à porta de seu quarto, Tracy virou-se e disse:

- Foi uma...

Os lábios de Jeff se encontraram com os dela, seus braços envolveram-na, ele apertou-a firmemente.

- Tracy...

A palavra nos lábios de Tracy era sim e ela precisou recorrer aos últimos resquícios de força de vontade para murmurar:

- Foi um dia comprido, Jeff. E eu estou com muito sono.

- Ahn...

- Acho que amanhã passarei o dia inteiro em meu quarto, descansando.

A voz de Jeff era calma quando ele respondeu:

- Boa idéia. Provavelmente farei a mesma coisa.

Nenhum dos dois acreditou no outro.

 

As 10 horas da manhã seguinte Tracy estava parada na fila comprida à entrada do Museu do Prado. As portas se abriram, com um guarda uniformizado operando uma roleta, que só deixava passar um visitante de cada vez.

Tracy comprou um ingresso e acompanhou a multidão para a rotunda grande. Daniel Cooper e o detective Pereira permaneceram bem atrás dela. Cooper começou a experimentar um crescente excitamento. Tracy Whitney não estava ali como uma visitante comum. Qualquer que fosse o seu plano, começava a ser executado.

Tracy foi de sala em sala, andando devagar, passando pelos quadros de Rubens, por Ticianos, Tintorettos e Boschs, contemplando as pinturas de Domenikos Theotokopoulos, que se tornou famoso como El Greco. Os Goyas estavam em exposição numa galeria especial por baixo, no andar térreo.

Tracy notou que havia um guarda uniformizado postado à entrada de cada sala, tendo a seu lado um botão de alarme vermelho. Ela sabia que, no instante em que o alarme fosse accionado todas as entradas e saídas do museu seriam fechadas, não haveria a menor possibilidade de escapar.

Ela sentou no banco no centro da Sala das Musas, repleta de quadros dos mestres flamengos do século XVIII, deixando o olhar vaguear pelo chão. Avistou dois artefactos redondos nos lados da porta. Deviam ser os fachos infravermelhos que eram ligados à noite. Em outros museus que Tracy visitara, os guardas se mostravam sonolentos e entediados, não prestando muita atenção ao fluxo de turistas excitados. Mas Tracy observou que ali os guardas se mantinham alerta. Obras de arte vinham sendo desfiguradas por fanáticos em museus do mundo inteiro e o Prado não ia correr qualquer risco de que isso se repetisse ali.

Em uma dúzia de salas diferentes, pintores haviam armado seus cavaletes, que se concentravam em copiar os quadros dos mestres. O museu permitia isso, mas Tracy notou que os guardas se mantinham atentos até aos copiadores.

Depois que terminou de percorrer as salas no andar principal, Tracy desceu para o térreo, ao encontro da exposição de Francisco de Goya. O detective Pereira disse a Cooper:

- Ela não está fazendo coisa alguma além de olhar. Acho que...

- Você está enganado.

Cooper começou a descer a escada apressadamente. Tracy teve a impressão de que a exposição de Goya ainda estava mais intensamente vigiada do que o resto. E bem merecia. Uma parede depois de outra se achava coberta por uma exibição incrível de beleza eterna. Tracy foi de uma tela para outra, fascinada pelo génio do homem. O Auto-Retrato de Goya, fazendo-o parecer um Pá de meia-idade... o retracto colorido refinado de a família de Carlos IV... A Maja Vestida e a famosa Maja Desnuda.

 

E lá estava o Puerto, depois de O Sabá das Feiticeiras, Tracy parou e contemplou-o fixamente, o coração batendo forte. Em primeiro plano, havia uma dúzia de homens e mulheres muito bem vestidos, parados na frente de um muro de pedra, enquanto ao fundo, vistos através de uma névoa luminosa, havia barcos de pesca numa enseada e um farol distante. No canto inferior esquerdo do quadro estava a assinatura, de Goya.

Aquele era o alvo. Meio milhão de dólares.

Tracy olhou ao redor. Um guarda se mantinha parado à entrada. Além dele, através do corredor comprido que levava a outras salas, Tracy podia avistar mais guardas. Ela ficou ali por um longo tempo, estudando o Puerto. Quando começou a se afastar, um grupo de turistas descia a escada. E Jeff Stevens estava no meio deles. Tracy virou o rosto e saiu apressadamente pela porta lateral, antes que ele pudesse vê-la.

Será uma corrida, Sr. Stevens. E eu vou vencê-la.

 

- Ela está planeando roubar um quadro do Prado.

O Comandante Ramiro olhou para Daniel Cooper com uma expressão de incredulidade.

- Cagajón! Ninguém pode roubar um quadro do Prado.

Cooper disse, obstinado:

- Ela passou a manhã inteira lá.

- Nunca houve um roubo no Prado e nunca haverá. E quer saber por quê? Porque é impossível.

- Ela não tentará por qualquer dos meios usuais. Deve mandar proteger os tubos de ventilação do museu, para a eventualidade de um ataque com gás. Se os guardas tomam café durante o serviço, descubra de onde vem e se pode ser drogado. Verifique a água que eles bebem...

Os limites da paciência do Comandante Ramiro estavam esgotados. Já era bastante terrível que fosse obrigado a aturar aquele americano grosseiro e desgracioso durante a última semana, desperdiçando homens valiosos para seguir Tracy Whitney 24 horas por dia, quando a sua Polícia Nacional operava com um orçamento de austeridade. Mas agora, diante daquele pito, o americano lhe dizendo como devia dirigir o seu departamento de polícia, ele não podia mais suportar.

- Na minha opinião, a mulher se encontra em Madri de férias. E estou suspendendo a vigilância.

Cooper ficou aturdido.

- Mas não pode fazer isso! Tracy Whitney está...

Comandante Ramiro levantou-se, empertigado.

- Faça o favor de se abster de dizer o que posso ou não fazer, senhor. E agora, se não tem mais nada a dizer, queira se retirar, pois sou um homem muito ocupado.

Cooper continuou onde estava, dominado pela frustração.

- Neste caso, eu gostaria de continuar sozinho.

O comandante sorriu.

- Para manter o Museu do Prado a salvo da terrível ameaça dessa mulher? Mas é claro, Senhor Cooper! Agora posso dormir à noite tranquilamente.

 

As possibilidades de sucesso são bastante limitadas, dissera Gunther Hartog a Tracy. Será preciso muita engenhosidade.

É a meia verdade do século, pensou Tracy.

Ela olhava pela janela de sua Suíte para a clarabóia do Prado, revendo mentalmente tudo o que descobrira a respeito do museu. Ficava aberto das 10 horas da manhã às seis da tarde. Os alarmes permaneciam desligados durante esse período, mas havia guardas em cada entrada e em todas as salas.

Mesmo que alguém conseguisse retirar um quadro da parede, pensou Tracy, não há qualquer meio de sair com ele do museu. Todos os pacotes eram verificados na saída.

Ela estudou o telhado do Prado e considerou a possibilidade de uma incursão nocturna. Havia vários inconvenientes. O primeiro era a estrema visibilidade. Tracy observara os reflectores se acendendo à noite, iluminando o telhado, tornando-o visível por quilómetros ao redor. E mesmo que pudesse entrar no prédio sem ser vista, ainda havia os fachos infravermelhos no interior e os vigias nocturnos.

O Prado parecia inexpugnável.

O que Jeff estaria planeando? Tracy tinha certeza de que ele faria uma tentativa de roubar o Goya. Eu daria qualquer coisa para saber o que ele tem em sua mente astuciosa. De uma coisa Tracy tinha certeza: Não deixaria que Jeff chegasse lá na sua frente. Tinha de encontrar um meio.

Ela voltou ao Prado na manhã seguinte.

Nada mudara, excepto os rostos dos visitantes. Tracy procurou atentamente por Jeff, mas ele não apareceu.

Tracy pensou: Ele já imaginou um meio de roubar o quadro. Desgraçado! Todo aquele seu charme era apenas para me distrair e impedir que eu chegasse ao quadro primeiro.

Ela reprimiu a raiva e substituiu-a pela lógica fria e objectiva.

Foi novamente se postar diante do Puerto, os olhos vaguearam para as telas próximas, os guardas alerta, os pintores amadores sentados em bancos diante de seus cavaletes, os visitantes entrando e saindo da sala. E enquanto Tracy olhava ao redor, seu coração começou a bater mais depressa.

Sei como poderei fazê-lo!

 

Ela fez uma ligação de uma cabina telefónica na Gran Via. Daniel Cooper, parado na entrada de um café, esperando, daria um ano de salário para saber quem era a pessoa para a qual Tracy estava telefonando. Ele tinha certeza que era uma ligação internacional e Tracy telefonava a cobrar; assim, não haveria qualquer registo. Estava também consciente do vestido verde de linho que não vira antes e que as pernas de Tracy se achavam à mostra. A fim de que os homens possam ficar olhando, pensou ele. Puta!

Ele foi dominado por uma raiva intensa.

Na cabina telefónica, Tracy concluía a conversa:

- Cuide para que ele seja rápido, Gunther. Terá apenas cerca de dois minutos. Tudo dependerá da rapidez.

 

PARA: J. J. Reynolds Ficha    N? Y-72-830-412

DE: Daniel Cooper           CONFIDENCIAL

ASSUNTO: Tracy Whitney

É minha opinião que a mulher em questão se encontra em Madri para cometer um grande ato criminoso. O alvo provável é o Museu do Prado. A polícia espanhola não quer cooperar, mas eu a manterei pessoalmente sob vigilância e a prenderei no momento oportuno.

 

Dois dias depois, às nove horas da manhã, Tracy estava sentada num banco nos jardins do Retiro, o lindo parque que se estende pelo centro de Madri, dando milho aos pombos. O Retiro, com seu lago e árvores graciosas, gramados bem cuidados e palcos em miniatura com espectáculos para crianças, era um verdadeiro íman para os madrilenos.

Cesar Porretta, um homem idoso, de cabelos grisalhos, ligeiramente encurvado, aproximou-se pelo caminho. Sentou-se no banco, ao lado de Tracy, abriu um saco de pão e começou a jogar migalhas para os pombos.

- Buenos días, senhorita.

- Buenos días. Acha que há algum problema?

- Nenhum, senhorita. Tudo o que preciso agora é do dia e da hora.

- Ainda não tenho - respondeu Tracy. - Mas será muito em breve.

Ele sorriu, um sorriso desdentado.

- A polícia ficará maluca. Ninguém jamais tentou fazer algo antes.

- É por isso que dará certo - comentou Tracy. - Aguarde notícias minhas.

Ela jogou os últimos grãos de milho para os pombos e levantou-se. Foi andando, o vestido de seda balançando de maneira provocante em torno dos joelhos.

 

Enquanto Tracy se encontrava no parque, conversando com Cesar Porretta, Daniel Cooper revistava seu quarto no hotel. Observara do saguão quando Tracy deixou o hotel e se encaminhara para o parque. Ela não pedira coisa alguma à copa e Cooper concluíra que saíra para tomar o café da manhã fora do hotel. Ele esperara meia hora. Entrar na suíte fora uma questão simples de evitar as camareiras e usar uma gazua. Sabia o que estava procurando: uma cópia de um quadro. Não tinha idéia de como Tracy planeava efectuar a substituição, mas estava absolutamente convencido de que esse era o plano dela.

Ele revistou a suíte com uma eficiência rápida e silenciosa, nada lhe escapando e deixando o quarto para o final. Revistou o armário, verificando cada vestido, depois passou para a cómoda. Abriu as gavetas, uma a uma. Estavam cheias de calcinhas, soutiens e meias-calças. Ele pegou uma calcinha rosa e esfregou contra seu rosto, imaginando o cheiro suave de carne. A fragrância de Tracy estava subitamente por toda a parte. Ele tornou a guardar a calcinha e examinou rapidamente as outras gavetas. Nenhum quadro.

 

Cooper foi para o banheiro. Havia gotas de água na banheira. O corpo de Tracy estivera deitado ali, coberto de água tão quente quanto o útero. Cooper visualizou-a, nua, a água lhe acariciando os seios, os quadris ondulando, para cima e para baixo. Sentiu o início de uma erecção. Levantou a toalha úmida da banheira, levando-a aos lábios. O odor do corpo de Tracy envolveu-o, enquanto baixava o zíper da calça. Esfregou um sabonete úmido na toalha e usou-a para se masturbar, diante do espelho, fitando seus olhos ardentes.

Saiu poucos minutos depois, tão discretamente quanto chegara, seguiu directo para uma igreja próxima.

 

Na manhã seguinte, quando Tracy deixou o Ritz, Daniel Cooper seguiu-a. Havia uma intimidade entre eles que não existira antes. Ele conhecia o cheiro de Tracy; vira-a no banho, contemplara seu corpo nu a se mexer na água quente. Ela lhe pertencia completamente; era sua para destruir. Observou-a a caminhar pela Gran Via, parando para admirar as mercadorias oferecidas nas vitrines, seguiu-a pelo interior de uma grande loja de departamentos, tomando cuidado para permanecer fora de vista. Viu-a falar com uma vendedora e depois se encaminhar em direcção ao banheiro das mulheres. Cooper parou perto da porta, frustrado. Era o único lugar para onde não podia segui-la.

Se Cooper pudesse entrar, teria visto Tracy falando com uma mulher muito gorda, de meia-idade.

- Manhana - disse Tracy, enquanto aplicava batom nos lábios, diante do espelho. - Amanhã de manhã, às onze horas.

A mulher sacudiu a cabeça.

- Não, senhorita. Ele não gostará disso. Não poderia escolher um dia pior. O Príncipe de Luxemburgo chega amanhã em visita oficial e os jornais dizem que irá ao Museu do Prado. Haverá guardas de segurança extras e a polícia estará por todo o museu.

- Quanto mais, melhor. Amanhã.

Tracy saiu pela porta e, a mulher ficou olhando para ela, murmurando:

- La cucha es loca...

 

A comitiva real deveria chegar ao Prado pontualmente às 11 horas. As ruas ao redor do museu haviam sido bloqueadas pela Guarda Civil. Mas, por causa de um atraso da cerimónia no palácio presidencial, a comitiva só chegou perto de meio-dia. Soaram sirenes, enquanto as motocicletas da polícia apareciam, escoltando meia dúzia de limusines pretas até à escadaria na frente do Prado.

à entrada, o director do museu, Christian Machada, aguardava nervosamente a chegada de Sua Alteza.

Machada efectuara uma inspecção cuidadosa naquela manhã para certificar-se de que tudo se achava em ordem. Os guardas haviam sido avisados para se manterem especialmente alerta. O director tinha orgulho de seu museu e queria causar uma boa impressão no príncipe.

Nunca faz mal ter amigos nos lugares mais altos, pensou Machada. Quem sabe? Eu posso até ser convidado a jantar com Sua Alteza esta noite, no palácio presidencial.

O único pesar de Christian Machada era a impossibilidade de reprimir as hordas de turistas que circulavam pelo museu. Mas os guarda-costas do príncipe e os seguranças do museu garantiriam uma protecção adequada. Tudo estava pronto.

 

A excursão real começou pelo andar superior, o principal. O director concedeu uma recepção efusiva à Sua Alteza e escoltou-o, seguido por guardas armados, através das rotundas, entrando nas salas em que se encontravam em exposição os pintores espanhóis do século XVI: Juan de Juanes, Pedro Machuca, Fernando Yánhez.

O príncipe andava devagar, deleitando-se com o banquete visual que lhe era oferecido. Era um patrono das artes e amava sinceramente os pintores que podiam fazer o passado adquirir vida e permanecer eterno. Não tendo pessoalmente qualquer talento para a pintura, o Príncipe mesmo assim invejava os pintores que se postavam diante de seus cavaletes, tentando absorver centelhas do génio dos mestres.

Depois que o grupo oficial visitara os salões superiores, Christian Machada disse, orgulhosamente:

- E agora, se Sua Alteza me permite, eu o levarei à nossa exposição de Goya lá embaixo.

 

Tracy passara uma manhã exasperante. Quando o príncipe não chegara ao Prado no horário marcado, às 11 horas, ela começara a entrar em pânico. Todos os seus planos haviam sido formulados com uma exactidão de segundos, mas precisava do príncipe para executá-los.

Ela foi de sala em sala, misturando-se com os visitantes, tentando evitar qualquer atenção. Ele não virá, pensou Tracy, finalmente. Terei de cancelar a operação. E foi nesse momento que ela ouviu o barulho das sirenes se aproximando pela rua.

Observando Tracy da sala ao lado, Daniel Cooper também ouviu as sirenes. A razão lhe dizia que era impossível para qualquer pessoa roubar um quadro do museu, mas o instinto garantia que Tracy tentaria... e Cooper confiava em seu instinto. Ele chegou mais perto dela, escondido pelas multidões. Tencionava mantê-la sob sua vista durante todo o tempo.

Tracy se achava na sala ao lado daquela em que o Puerto estava em exposição. Através do portal, ela podia ver o corcunda, Cesar Porretta, sentado diante de um cavalete, copiando o Maja Vestida de Goya, pendurado ao lado do Puerto. Um guarda se encontrava parado a um metro de distância. Na sala com Tracy, uma pintora se postava diante de seu cavalete, copiando meticulosamente A Leiteira de Bordeaux, tentando capturar os marrons e verdes brilhantes da tela de Goya.

Alguns turistas japoneses entraram na sala, falando rapidamente, como um grupo de aves exóticas. Agora!, disse Tracy a si mesma. Aquele era o momento pelo qual esperava. Seu coração batia tão alto que teve medo que o guarda pudesse ouvir. Ela saiu do caminho dos japoneses que se aproximavam, recuando na direcção da pintora. Quando um japonês passou por perto, Tracy caiu para trás, como se tivesse sido empurrada, esbarrando na mulher e derrubando-a, assim como seu cavalete, tela e tintas.

- Oh, lamento profundamente - exclamou Tracy. - Deixe-me ajudá-la!

Enquanto ela se adiantava para ajudar a atordoada pintora, seus calcanhares pisaram nos tubos espalhados, as tintas manchando o chão. Daniel Cooper, que a tudo observava, adiantou-se apressadamente, todos os sentidos alerta. Tinha certeza de que Tracy Whitney fizera o seu primeiro movimento. O guarda se aproximou, gritando:

- Qué pasa? Qué pasa?

 

O acidente atraíra a atenção dos turistas, que se concentraram em torno da mulher caída, espalhando as tintas dos tubos pisados em imagens grotescas pelo assoalho de madeira de lei. Era uma horrível confusão e o príncipe deveria aparecer a qualquer momento. O guarda entrou em pânico e gritou:

- Sergio! Ven acá! Pronto!

Tracy observou quando o guarda da sala ao lado veio correndo para ajudar. Cesar Porretta ficou sozinho na sala com o Puerto.

Tracy se achava bem no meio do tumulto. Os dois guardas tentavam em vão afastar os turistas da área do assoalho toda manchada de tinta.

- Vá chamar o director! - berrou Sergio. - En seguida!

O outro guarda afastou-se apressadamente para a escada. Que birria! Que trapalhada!

Dois minutos depois, Christian Machada estava no local do desastre. O director lançou um olhar horrorizado para a cena e prontamente gritou:

- Tragam algumas faxineiras para cá... depressa! Com panos de chão, água e terebintina! Pronto!

Um jovem assistente correu para cumprir a ordem. Machada virou-se para Sergio e disse-lhe bruscamente:

- Vá para o seu posto!

- Pois não, senhor.

Tracy observou o guarda abrir caminho pela multidão, a caminho da sala em que Cesar Porretta trabalhava.

Cooper não desviara os olhos de Tracy por um instante sequer. Esperava pelo próximo movimento. Mas não houve. Ela não se aproximara de qualquer quadro, não fizera contacto com nenhum cúmplice. Apenas derrubara um cavalete e derramara algumas tintas pelo assoalho. Mas ele tinha certeza que isso fora feito deliberadamente. Mas com que objectivo? Cooper tinha a impressão de que o plano, qualquer que fosse, já fora executado, de alguma forma. Ele correu os olhos pelas paredes da sala. Nenhum dos quadros estava faltando.

Cooper seguiu apressadamente para a sala ao lado. Não havia ninguém ali, além do guarda e de um corcunda idoso, sentado diante de seu cavalete, copiando a Maja Vestida. Todos os quadros se encontravam em seus lugares. Mas alguma coisa estava errada. Cooper não tinha a menor dúvida quanto a isso.

Ele se aproximou rapidamente do angustiado director, com quem já conversara anteriormente, e disse-lhe:

- Tenho motivos para acreditar que um quadro foi roubado daqui nos últimos minutos.

Christian Machada olhou para o americano de olhos desvairados.

- Mas do que está falando? Se isso tivesse acontecido, os guardas accionariam o alarme.

- Acho que de alguma maneira um quadro falso substituiu um verdadeiro.

O director concedeu-lhe um sorriso tolerante.

- Há uma coisinha errada com sua teoria, senhor. O facto não é conhecido do público em geral, mas há sensores escondidos por trás de cada quadro. Se alguém tentasse remover um quadro da parede... o que certamente seria necessário fazer para pôr um quadro falso no lugar... o alarme soaria instantaneamente.

Daniel Cooper ainda não estava satisfeito.

- Seu alarme não poderia ser desligado?

- Não. Se alguém cortasse o fio eléctrico, isso também accionaria o alarme. Senhor, é impossível roubar um quadro deste museu. Nossa segurança é o que os americanos gostam de chamar de infalível.

 

Cooper permaneceu onde estava, tremendo de frustração. Tudo o que o director dissera era convincente. Parecia mesmo impossível. Mas então por que Tracy Whitney derrubara deliberada mente aquelas tintas? Cooper não estava disposto a desistir.

- Poderia fazer o favor de pedir a seus assistentes para verificarem se não está faltando alguma coisa no museu? Estarei em meu hotel aguardando uma resposta.

Não havia mais nada que Daniel Cooper pudesse fazer.

Christian Machada telefonou para Cooper às sete horas daquela noite.

- Efectuei pessoalmente uma inspecção, senhor. Não falta nada do museu.

Então está acabado. Aparentemente, fora um acidente. Mas Daniel Cooper, com o instinto de um caçador, sentia que sua presa tornara a escapar.

 

Jeff convidara Tracy para jantar no restaurante principal do Ritz Hotel.

- Você está parecendo especialmente radiante esta noite - elogiou-a Jeff.

- Obrigada. É que eu me sinto absolutamente maravilhosa.

- É a companhia. Vamos juntos para Barcelona na próxima semana, Tracy. É uma cidade fascinante. Você adoraria...

- Lamento, Jeff, mas não posso. Estou deixando a Espanha.

- É mesmo? - A voz dele era pesarosa. - Quando?

- Dentro de poucos dias.

- Ahn... Estou desapontado.

E ficará ainda mais desapontado quando souber que eu roubei o Puerto, pensou Tracy. Ela se perguntou como ele planeara roubar o quadro. Não que isso tivesse mais qualquer importância. Fui mais esperta do que Jeff Stevens. Contudo, por alguma razão inexplicável, Tracy sentia um ténue vestígio de pesar.

 

Christian Machada se encontrava sentado em seu escritório, tomando a sua xícara matutina de café forte e se dando os parabéns pelo sucesso da visita do príncipe. Excepto pelo lamentável incidente das tintas derramadas, tudo correra exactamente de acordo com o planeado. Sentia-se grato pelo príncipe e sua comitiva terem sido desviados até que a sujeira fosse limpa. O director sorriu ao pensar no investigador americano idiota que tentara convencê-lo de que alguém roubara um quadro do Prado. Não ontem, não hoje, não amanhã, pensou ele, presunçosamente.

Sua secretária entrou na sala nesse momento.

- Com licença, senhor. Há um homem aqui desejando lhe falar Pediu-me para lhe entregar isto.

Ela entregou uma carta do director. Era no papel timbrado de um museu de Genebra.

 

Meu Estimado Colega:

Esta carta visa a apresentar Monsieur Henri Rendell, nosso maior perito em arte. Monsieur Rendell está realizando uma excursão pelos museus do mundo e particularmente ansioso em ver a sua colecção incomparável. Eu agradeceria todas as cortesias que pudesse lhe oferecer.

 

A carta estava assinada pelo director do museu de Genebra.

 

Mais cedo ou mais tarde, pensou o director do Prado, feliz, todos vêm a mim.

- Mande-o entrar.

Henri Rendell era um homem alto, calvo, de aparência distinta, com um forte sotaque suíço. Quando se apertaram as mãos, Machada notou que o visitante não tinha o indicador da mão direita. Henri Rendell disse:

- Agradeço a sua gentileza. É a primeira oportunidade que tenho de visitar Madri e estou ansioso em conhecer as suas renomeadas obras de arte.

Christian Machada respondeu, modestamente:

- Creio que não ficará desapontado, Monsieur Rendell. Por favor, acompanhe-me. Eu o escoltarei pessoalmente.

Eles se deslocaram lentamente pela rotunda, com seus mestres flamengos, Rubens e seus seguidores, visitaram a galeria, com os mestres espanhóis. Henri Rendell estudou cada quadro atentamente. Os dois homens falavam como peritos, avaliando o estilo, perspectiva e senso de cor dos vários artistas.

- E agora - disse o director do Prado - vamos ao orgulho da Espanha.

Ele conduziu o visitante para baixo, até a galeria repleta de Goyas.

- É um banquete para os olhos! - exclamou Rendell, impressionado. - Por favor, deixe-me ficar parado por um momento, em silêncio, só contemplando!

Christian Machada esperou, feliz com a reverência do homem.

- Nunca vi nada tão espectacular - murmurou Rendell. Ele andou lentamente pela galeria, estudando um quadro de cada vez. - O Sabá das Feiticeiras. Brilhante!

Eles seguiram adiante.

- Auto-Retrato de Goya... fantástico!

Christian Machada estava radiante. Rendell parou diante do Puerto.

- Uma excelente cópia.

Ele começou a se afastar. O director agarrou-o pelo braço.

- Como? O que foi mesmo que disse, senhor?

- Disse que é uma excelente cópia.

- Está completamente enganado.

O director sentia-se profundamente indignado.

- Não creio.

- Claro que está - insistiu Machada, rigidamente. - Posso lhe garantir que o quadro é genuíno. Tenho a proveniência.

Henri Rendell aproximou-se do quadro e examinou-o mais atentamente.

- Então a proveniência também foi falsificada. Este quadro foi feito pelo discípulo de Goya, Eugenio Lucas y Padilla. Deve saber, é claro, que Lucas pintou centenas de falsos Goyas.

- Claro que sei disso - respondeu Machada, asperamente. - Mas este não é um deles.

Rendell encolheu os ombros.

- Eu me curvo a seu julgamento.

Ele fez menção de se afastar.

- Comprei este quadro pessoalmente. Foi submetido ao teste do espectógrafo, ao teste de pigmentos...

 

- Não duvido disso. Lucas pintou no mesmo período de Goya e usou os mesmos materiais. - Henri Rendell inclinou-se para examinar a assinatura no fundo do quadro. - Pode se certificar com muita facilidade, se desejar. Leve o quadro para a sua sala de restauração e teste a assinatura.

Ele riu, divertido, antes de acrescentar:

- O ego de Lucas levava-o a assinar seus próprios quadros, mas a bolsa forçava-o a falsificar o nome de Goya por cima do seu, aumentando o preço consideravelmente. - Rendell olhou para seu relógio. - Peço que me perdoe. Eu não tinha idéia de que era tão tarde. Infelizmente, já estou atrasado para um compromisso. Muito obrigado por partilhar comigo os seus tesouros.

- Não foi nada - disse o director, friamente.

O homem é obviamente um idiota, pensou ele.

- Estou no Villa Magna, se precisar de alguma coisa. E novamente obrigado, senhor.

Henri Rendell foi embora. Christian Machada ficou observando-o a se afastar. Como aquele suíço idiota se atrevia a insinuar que seu Goya era falso? Ele virou-se para observar o quadro novamente. Era uma obra-prima. O director inclinou-se para examinar a assinatura de Goya. Absolutamente normal. Mesmo assim... seria possível? A pequena semente de dúvida recusava-se a sumir. Todos sabiam que o contemporâneo de Goya, Eugenio Lucas y Padilla, pintara centenas de falsos Goyas, construindo uma carreira nessa base. Machada pagara três milhões e meio de dólares pelo Puerto de Goya. Se ele fora enganado, seria um descrédito terrível, algo que não suportava sequer pensar.

Henri Rendell dissera uma coisa que fazia sentido: havia de facto um meio simples de comprovar a autenticidade. Testaria a assinatura e depois telefonaria para Rendell, sugerindo polidamente que talvez ele devesse procurar uma vocação mais apropriada.

O director chamou seu assistente e ordenou que o Puerto fosse levado para a sala de restauração.

 

O teste de uma obra-prima é uma operação extremamente delicada, pois pode destruir, se houver qualquer negligência, algo de valor inestimável e insubstituível. Os restauradores do Prado eram peritos, quase todos pintores malsucedidos que haviam optado pelo trabalho de restauração a fim de poderem permanecer próximos de sua amada arte. Começavam como aprendizes, estudando com os mestres restauradores, trabalhavam por anos antes de se tornarem assistentes e terem permissão para manipular obras-primas, sempre sob a supervisão do restaurador sénior.

Juan Delgado, o homem no comando da restauração de arte no Prado, colocou o Puerto numa estante de madeira especial, enquanto Christian Machada observava.

- Quero que teste a assinatura - informou o director.

Delgado disfarçou a sua surpresa.

- Sim, Senhor Director.

Ele despejou álcool isopropilo numa pequena mecha de algodão e pôs na mesa ao lado do quadro. Despejou numa segunda mecha petróleo destilado, o agente neutralizador.

- Estou pronto, senhor.

- Pois então pode começar. Mas tome todo cuidado.

 

Machada descobriu subitamente que lhe era difícil respirar. Observou Delgado pegar a primeira mecha de algodão e encostar gentilmente no G da assinatura de Goya. No mesmo instante, Delgado pegou a segunda mecha e neutralizou a área, a fim de evitar que o álcool penetrasse mais profundamente. Os dois homens examinaram a tela. A primeira letra se desbotara um pouco. Delgado franziu o rosto.

- Lamento, senhor, mas ainda não dá para dizer. Preciso usar um solvente mais forte.

- Está certo.

Delgado abriu outro vidro. Cuidadosamente despejou dimentilpentona em outra mecha de algodão e tocou-a novamente na primeira letra da assinatura, aplicando imediatamente em seguida a outra mecha. A sala ficou impregnada do odor penetrante dos agentes químicos. Christian Machada se mantinha imóvel, olhando fixamente para o quadro, incapaz de acreditar no que estava vendo. O G no nome de Goya estava-se desvanecendo, surgindo em seu lugar um L, perfeitamente visível. Delgado virou-se para o director, o rosto muito pálido.

- Devo... devo continuar?

- Deve - balbuciou Machada, a voz rouca. - Continue.

Lentamente, letra a letra, a assinatura de Goya se diluiu sob a aplicação do solvente, dando lugar à assinatura de Lucas. Cada letra era um golpe violento no estômago de Machada. Ele, o director de um dos museus mais importantes do mundo, fora enganado. O conselho curador tomaria conhecimento; o Rei da Espanha seria informado; o mundo ficaria a par. Ele estava arruinado.

Christian Machada voltou quase cambaleando a seu escritório e, telefonou para Henri Rendell.

 

Os dois homens estavam sentados na sala de Machada.

- Você tinha razão - murmurou o director. - É um Lucas. Quando a notícia se espalhar, eu me tornarei o alvo dos risos gerais.

- Lucas já enganou muitos peritos - comentou Rendell, confortadoramente. - Acontece apenas que suas falsificações são um hobby meu.

- Paguei três e meio milhões de dólares por aquele quadro.

Rendell encolheu os ombros.

- Pode recuperar seu dinheiro?

O director sacudiu a cabeça, desesperado.

- Comprei-o directamente de uma viúva, que afirmou estar o quadro na família de seu marido há três gerações. Se eu a processasse, o caso se arrastaria interminavelmente pelos tribunais, haveria uma publicidade perniciosa. Tudo neste museu se tornaria suspeito.

Henri Rendell pensava depressa.

- Não há realmente motivo para qualquer publicidade. Por que não explica a seus superiores o que aconteceu e se livra discretamente do Lucas? Pode mandar o quadro para a Sotheby's ou Christie's, deixar que o vendam em leilão.

Machada tornou a sacudir a cabeça.

- Não. O mundo inteiro saberia assim do que aconteceu.

O rosto de Rendell se iluminou subitamente.

- Talvez você esteja com sorte. Lembro-me agora de um cliente que poderia comprar o Lucas. Ele os colecciona. E é um homem discreto.

 

- Eu teria o maior prazer em me livrar dele. Nunca mais quero vê-lo. Uma falsificação entre os meus lindos tesouros! - Uma pausa e o director acrescentou, amargurado. - Eu gostaria até de dá-lo de presente

- Isso não será necessário. Meu cliente provavelmente estará disposto a pagar... digamos uns cinquenta mil dólares. Posso fazer um telefonema?

- É muita gentileza sua, Senhor Rendell. A vontade.

 

Numa reunião convocada às pressas, os atordoados curadores do Prado decidiram que era preciso evitar a qualquer custo a exposição de um dos valiosos quadros do Prado como uma falsificação. Ficou acertado que a acção mais prudente era se livrarem discretamente do quadro, o mais depressa possível. Os homens de ternos escuros saíram da sala em silêncio. Ninguém falou com Machada, que permaneceu parado a um canto, tremendo em seu desespero.

Uma transação foi concluída naquela tarde. Henri Rendell foi ao Banco da Espanha e voltou com um cheque visado no valor de 50 mil dólares. O Eugenio Lucas y Padilla foi-lhe entregue, embrulhado numa lona discreta.

- O conselho ficaria consternado se o incidente se tornasse público - disse Machada, delicadamente. - Mas eu garanti que seu cliente é um homem discreto.

- Pode contar com isso.

 

Deixando o museu, Henri Rendell pegou um táxi para um bairro residencial ao norte de Madri, subiu uma escada com a tela, para um apartamento no terceiro andar. Bateu na porta. Foi aberta por Tracy. Atrás dela estava Cesar Porretta. Tracy olhou inquisitiva para Rendeu e ele sorriu.

- Eles estavam ansiosos em se livrarem disto! - informou Rendel, jovialmente.

Tracy abraçou-o.

- Entre.

Porretta pegou o quadro e colocou-o sobre uma mesa.

- Agora - disse ele - vocês, vão testemunhar um milagre... um Goya que renasce.

Ele pegou um vidro de álcool e abriu-o. O cheiro pungente impregnou a sala no mesmo instante. Porretta despejou um pouco numa mecha de algodão e esfregou gentilmente na assinatura de Lucas, uma letra de cada vez. Gradativamente, a assinatura de Lucas foi-se apagando. Por baixo estava a assinatura de Goya. Rendell observava fixamente e murmurou:

- Brilhante!

- A idéia foi da Senhorita Whitney - admitiu o corcunda. - Ela perguntou-me se seria possível cobrir a assinatura original do pintor com uma falsa assinatura e depois cobrir tudo com o nome original.

- Mas foi ele quem imaginou como isso poderia ser feito - acrescentou Tracy, sorrindo.

Porretta disse, modestamente:

 

- Foi ridiculamente simples. Não levou mais do que dois minutos. O truque estava nas tintas que usei. Primeiro, cobri a assinatura de Goya com uma camada de verniz branco francês super-refinado, a fim de protegê-la. Depois, pintei por cima o nome de Lucas, com uma tinta acrílica que seca depressa. Por cima, pintei o nome de Goya, com uma tinta-óleo e um verniz claro. Quando a assinatura de cima foi removida, apareceu o nome de Lucas. Se eles seguissem adiante, descobririam que a assinatura original de Goya estava escondida por baixo. Mas é claro que eles não se lembraram de fazer isso.

Tracy entregou a cada homem um envelope recheado e disse:

- Quero agradecer muito aos dois.

- A qualquer momento que precisar de um perito em arte, estou às ordens - disse Henri Rendell, piscando um olho.

Porretta perguntou:

- Como planea tirar o quadro do país?

- Um mensageiro virá buscá-lo aqui. Espere por ele.

Tracy apertou as mãos dos dois homens e saiu. Voltando para o Ritz, ela estava dominada por uma sensação de exultação. Tudo era uma questão de psicologia, pensou ela. Desde o início ela compreendera que seria impossível roubar o quadro do Prado. Portanto, tivera de enganá-los, colocá-los num estado de espirito em que tornariam a iniciativa de se livrarem do quadro. Tracy visualizou a cara de Jeff Stevens ao saber que ela fora mais esperta do que ele e soltou uma risada.

 

Ela esperou em sua suíte no hotel pelo mensageiro. Assim que ele chegou, telefonou para Cesar Porretta.

- O mensageiro está aqui comigo - disse-lhe Tracy. - Vou mandá-lo buscar o quadro agora. Cuide para que ele...

- Como? - gritou Porretta. - Do que está falando? Seu mensageiro levou o quadro há meia hora!

 

Paris

QUARTA-FEIRA, 9 DE JULHO - MEIO-DIA

Num gabinete particular, na Rue Matignon, Gunther Hartog disse:

- Compreendo como se sente pelo que aconteceu em Madri, Tracy. Mas Jeff Stevens chegou lá primeiro.

- Não - corrigiu-o Tracy, amargurada. - Eu é que cheguei primeiro. Ele só apareceu depois.

- Mas Jeff entregou o quadro. O Puerto já se encontra a caminho do meu cliente.

Depois de todo o planeamento de Tracy, Jeff Stevens fora mais esperto do que ela. Ficara sentado de braços cruzados, deixando que ela trabalhasse e assumisse todos os riscos, no último momento arrebatara o grande prémio e fora embora calmamente. Como ele devia ter rido dela durante todo o tempo! Você é uma mulher muito especial, Tracy. Ela não podia suportar a humilhação que sufocou quando pensou na noite do flamengo. Meu Deus, que tola eu banquei!

- Nunca pensei que eu poderia matar alguém - comentou Tracy para Gunther. - Mas teria a maior satisfação em exterminar Jeff Stevens.

Gunther disse, afavelmente.

- Ora, minha cara, espero que não nesta sala. Ele está vindo para cá

- Ele está o quê?

Tracy levantou-se de um pulo.

- Eu disse que tenho uma proposta para você. Precisará de um parceiro. Na minha opinião, ele é o único que...

- Prefiro morrer de fome! - explodiu Tracy. - Jeff Stevens é o mais desprezível.

- Ouvi meu nome ser mencionado? - Ele estava parado na porta, com uma expressão radiante. - Tracy, querida, você está ainda mais deslumbrante do que o habitual. Gunther, meu amigo, como tem passado?

Os dois amigos trocaram um aperto de mão, Tracy levantou-se, dominada por uma fúria fria. Jeff fitou-a e suspirou.

- Você está provavelmente zangada comigo.

- Zangada? Eu...

Ela não pôde encontrar as palavras que queria.

- Se me permite dizê-lo, Tracy, seu plano foi brilhante. Estou falando sério. Realmente brilhante. Você só cometeu um pequeno erro. Nunca confie num suíço sem o indicador direito.

Ela respirou fundo, tentando se controlar. Virou-se para Gunther.

- Falarei com você mais tarde, Gunther.

- Tracy...

- Não. O que quer que seja, não quero participar. Não se ele está envolvido.

- Quer pelo menos escutar? - insistiu Gunther.

- Não há sentido. Eu...

- Dentro de três dias a De Beers embarcará uma remessa de diamantes, no valor de quatro milhões de dólares, de Paris para Amsterdam, num avião cargueiro da Air France. Tenho um cliente que está ansioso em adquirir essas pedras.

 

- Por que não as sequestra no caminho para o aeroporto? Nosso amigo aqui é um especialista em sequestros.

Tracy não podia esconder a amargura que sentia. Por Deus, pensou Jeff, ela é magnífica quando está furiosa. Gunther disse:

- Os diamantes estão muito bem guardados. Teremos de. sequestrá-los durante o voo.

Tracy fitou-o com uma expressão de surpresa.

- Durante o voo? Num avião cargueiro?

- Precisamos de alguém bastante pequeno para se esconder dentro de um dos containers. Quando o avião estiver no ar, tudo o que essa pessoa precisará fazer será sair, abrir o container da De Beers, remover o pacote com os diamantes e substitui-lo por uma duplicata, devidamente preparada, voltar ao outro container.

- E eu sou bastante pequena para caber num container.

- É muito mais do que isso, Tracy - disse Gunther. - Precisamos de alguém que seja inteligente e tenha sangue-frio.

Tracy ficou parada, pensando.

- O plano me agrada, Gunther. O que não gosto é a idéia de trabalhar com ele. Esse homem é um escroque.

Jeff sorriu.

- Não somos todos, meu coração? Gunther está nos oferecendo um milhão de dólares para aplicar esse golpe.

Tracy olhou aturdida para Gunther.

- Um milhão de dólares?

Ele assentiu.

- Meio milhão para cada um.

- O plano pode dar certo porque eu tenho um contacto na secção de embarque no aeroporto - explicou Jeff. - Ele nos ajudará a armar o golpe. Merece toda a confiança.

- Ao contrário de você - disse Tracy bruscamente. - Adeus, Gunther.

Ela saiu da sala. Gunther ficou olhando para a porta.

- Ela ficou muito aborrecida com você em Madri, Jeff. E receio que não concordará de jeito nenhum em participar deste trabalho.

- Está enganado - assegurou Jeff, jovialmente. - Conheço Tracy. Ela não será capaz de resistir.

 

- Os containers são lacrados antes de serem embarcados no avião - explicou Ramon Vauban.

Ele era francês, ainda jovem, com um rosto velho que nada tinha a ver com sua idade, olhos pretos e mortiços. Como despachante na secção de carga da Air France, era a chave para o sucesso do plano.

Vauban, Tracy, Jeff e Gunther estavam sentados numa mesa junto à amurada no Bateau Mouche, o barco de turismo que cruza o Sena, circulando Paris.

- Se o container é lacrado - indagou Tracy, incisivamente - como poderei entrar?

- Para os embarques de última hora - respondeu Vauban - a companhia usa o que chamamos de containers moles, caixotes de madeira grandes com lona num lado, presa por uma corda. Por motivos de segurança, cargas valiosas como diamantes sempre chegam no último momento. São as últimas a serem embarcadas e as primeiras a desembarcar.

- Os diamantes estariam então num container mole? - perguntou Tracy.

 

- Exactamente, mademoiselle. Providenciarei para que o container em que você estará seja colocado ao lado do caixote com os diamantes. Tudo o que terá de fazer, quando o avião estiver em voo, será cortar a corda, pegar os diamantes, deixar uma caixa idêntica no lugar, voltar a seu container e fechá-lo.

Gunther acrescentou:

- Quando o avião pousar em Amsterdam, os guardas pegarão a caixa substituta de diamantes e a entregarão aos lapidadores. Quando descobrirem o que aconteceu, você já terá deixado o país de avião. Tenha certeza de uma coisa, Tracy: nada pode sair errado.

Uma frase que provocou um calafrio no coração de Tracy.

- Eu não congelaria até a morte lá no alto?

Vauban sorriu.

- Os aviões de carga são actualmente aquecidos, mademoiselle. Muitas vezes transportam gado e animais de estimação. Estará bastante confortável. Talvez um pouco apertada, mas muito bem, fora isso.

Tracy concordara finalmente em escutar o plano. Meio milhão de dólares por algumas horas de desconforto. Ela analisara o plano por todos os ângulos. Pode dar certo, pensou Tracy. Se ao menos Jeff não estivesse envolvido...

Seus sentimentos em relação a ele eram uma mistura desconcertante de emoções, deixando-a confusa e furiosa consigo mesma. Ele dera aquele golpe em Madri pelo puro prazer de se mostrar mais esperto do que ela. Traíra-a, enganara-a, agora estava secretamente rindo à sua custa.

Os três homens observavam-na, esperando por sua resposta. O barco passava sob a Pont Neuf, a mais antiga das pontes de Paris, mas que os caprichosos franceses insistiam em chamar de Nova. No outro lado do rio, dois namorados se abraçavam na margem. Tracy pôde perceber a expressão de felicidade no rosto da moça. Ela é uma tola, pensou Tracy. E tomou sua decisão. Fitou Jeff nos olhos ao dizer:

- Muito bem, farei o trabalho.

Tracy sentiu no mesmo instante a tensão na mesa se dissipar.

- Não temos muito tempo - disse Vauban, os olhos mortiços se virando para Tracy. - Meu irmão trabalha para um agente de cargas e nos deixará carregar o container com você em seu armazém. Espero que mademoiselle não tenha claustrofobia.

- Não se preocupe comigo... Quanto tempo levará a viagem?

- Passará uns poucos minutos na área de embarque e uma hora voando para Amsterdam.

- Qual é o tamanho do container?

- Bastante grande para que possa sentar-se. Haverá outras coisas para escondê-la... no caso de acontecer algo inesperado.

Nada pode sair errado, eles haviam prometido. Mas...

- Tenho uma lista de coisas que você precisará - disse-lhe Jeff. - E já as providenciei.

O filho da puta presunçoso. Ele tinha certeza de que ela responderia afirmativamente.

- Vauban providenciará para que você tenha os vistos apropriados de entrada e saída, a fim de poder deixar a Holanda sem qualquer problema.

O barco iniciou a manobra para atracar.

 

Podemos repassar os planos finais pela manhã - disse Ramon Vauban. - Agora, tenho de voltar ao trabalho. Au revoir.

Ele levantou-se e desembarcou no instante em que o barco atracou. Jeff indagou:

- Por que não jantamos todos juntos para comemorar?

- Lamento, mas já tenho um compromisso anterior - desculpou-se Gunther.

Jeff virou-se para Tracy.

- Você...

- Não, obrigada - ela se apressou em dizer. - Estou muito cansada.

Era uma desculpa para evitar a companhia de Jeff. Mas assim que falou, Tracy percebeu que se encontrava realmente exausta. Era provavelmente a tensão do excitamento com que vinha vivendo há tanto tempo. Sentia-se meio tonta. Quando isso acabar, ela prometeu a si mesma, voltarei a Londres para um descanso prolongado. Sua cabeça começava a latejar. Preciso mesmo...

- Comprei-lhe um presentinho - disse Jeff.

Ele entregou a Tracy uma caixa embrulhada em papel de presente. Era uma delicada echarpe de seda, com as iniciais TW num canto.

- Obrigada.

Ele pode comprar isto, pensou Tracy, irritada. Comprou com meu meio milhão de dólares.

- Não vai mudar de idéia sobre o jantar?

- Não.

 

Em Paris, Tracy hospedava-se no clássico Plaza Athénée, numa velha Suíte adorável, dando para o restaurante no jardim. Havia um restaurante elegante no interior do hotel, com música de piano suave. Mas, naquela noite, Tracy sentia-se cansada demais para vestir uma roupa mais formal. Foi para o Relais, o pequeno café do hotel, pediu uma sopa. Empurrou o prato para o lado, deixando metade da sopa, voltou à sua suíte.

Daniel Cooper, sentado no outro lado do café, anotou a hora.

 

Daniel Cooper tinha um problema. Ao voltar a Paris, pedira uma reunião com o Inspector Trignant. O director da Interpol fora menos do que cordial. Acabara de passar uma hora no telefone, escutando as queixas do Comandante Ramiro contra o americano.

- Ele é louco! - explodira o espanhol. - Desperdicei homens, dinheiro e tempo para seguir a tal de Tracy Whitney, que ele insistia em dizer que assaltaria o Prado. No final, constatou-se que a mulher não passava de uma turista inocente... como eu disse desde o início.

A conversa levara o Inspector Trignant a acreditar que Daniel Cooper podia estar enganado em relação a Tracy desde o começo. Não havia qualquer prova contra a mulher. O facto de que ela se encontrava em várias cidades, nas ocasiões em que os crimes haviam sido cometidos, não chegava a ser uma prova.

Assim, o Inspector estava contrariado quando Daniel Cooper o fora procurar e dissera:

- Tracy Whitney se encontra em Paris. Eu gostaria que ela fosse colocada sob uma vigilância de vinte e quatro horas por dia.

Trignant respondera:

 

- A menos que você possa me apresentar provas de que a mulher planea cometer um crime específico, não há nada que eu possa fazer.

Cooper o contemplara com seus olhos castanhos ardentes e dissera:

- Você é um idiota.

E ele se descobrira sendo levado bruscamente para fora do escritório.

 

Fora por isso que Cooper iniciara a sua vigilância de um homem só. Seguia Tracy por toda a parte: a lojas e restaurantes, através das ruas de Paris. Ficava sem dormir e muitas vezes sem comer. Daniel Cooper não podia permitir que Tracy Whitney o denotasse. Sua missão não estaria encerrada enquanto não a metessem na prisão.

 

Tracy ficou acordada na cama durante aquela noite, revendo o plano que seria executado no dia seguinte. Gostaria que sua cabeça estivesse melhor. tomara aspirina, mas a cabeça continuava a latejar, cada vez pior. Estava suando e o quarto parecia insuportavelmente quente. Amanhã estará tudo acabado, Suíça. E o lugar para onde iriam. Para as frias montanhas da Suíça.

Ela pôs o despertador para tocar às cinco horas da manhã. Quando a campainha soou, descobriu-se na cela da prisão, com Calcinha de Ferro berrando:

- Hora de se vestir! Depressa!

O corredor ressoava com o estrépito da campainha. Tracy acordou. Sentia uma pressão no peito, a claridade fazia os olhos doerem. Forçou-se a ir ao banheiro. O rosto parecia inchado e avermelhado no espelho. Não posso ficar doente agora, pensou Tracy. Não hoje. Há muito o que fazer.

Ela vestiu-se devagar, tentando ignorar o latejar na cabeça. Pôs o macacão preto de bolsos fundos, os sapatos de solas de borracha e uma boina basca. O coração parecia bater irregularmente, mas não tinha certeza se era do excitamento ou da doença que a invadia. Sentia-se tonta e fraca. A garganta estava dolorida, dando a impressão de arranhada. à mesa, viu a echarpe que Jeff lhe dera. Pegou-a, e enrolou no pescoço.

 

A portaria do Mel Plaza Athénée fica na Avenue Montaigne, mas a entrada de serviço é na Rue du Boccador, além da esquina. Um cartaz discreto indica ENTRÉE DE SERVICE. Há um corredor comprido, margeado de latas de lixo, levando à rua. Daniel Cooper, que assumira um posto de observação perto da entrada principal, não viu Tracy sair pela entrada de serviço. Mas, inexplicavelmente, ele sentiu no momento em que ela se foi. Cooper saiu apressadamente para a avenida e olhou para um lado e outro. Tracy não se achava à vista.

O Renault cinza que pegou Tracy na entrada lateral do hotel seguiu para a Étoile. Havia pouco tráfego naquela hora e o motorista, um rapaz de rosto cheio de espinhas, que aparentemente não falava inglês, disparou por uma das 12 avenidas que constituem os raios da Étoile. Eu gostaria que ele andasse mais devagar, pensou Tracy. O movimento do carro estava deixando-a enjoada.

Trinta minutos depois o carro parou com um solavanco diante de uma armazém. A placa por cima da porta dizia BRUCERE ET CIE. Tracy lembrou-se que era ali que trabalhava o irmão de Ramon Vauban. O rapaz abriu a porta do carro e murmurou:

 

- Vite!

Um homem de meia-idade e cabelos louros ondulados apareceu quando Tracy saia do carro, dizendo:

- Siga-me. Depressa.

Tracy foi atrás dele até os fundos do armazém, onde havia meia dúzia de containers, quase todos cheios e fechados, prontos para serem levados ao aeroporto. Havia um container mole, com um lado de lona, parcialmente ocupado por móveis.

- Entre. Depressa. Não temos tempo a perder.

Tracy sentiu uma vertigem. Olhou para o caixote e pensou: Não posso ficar aí dentro. Eu morrerei.

O homem fitava-a com uma expressão estranha.

- Avez vous mal?

Agora era o momento de recuar, de pôr um paradeiro naquela loucura.

- Não. Estou bem.

Tudo acabará em breve. Ela estaria a caminho da Suíça dentro de poucas horas.

- Bon. Leve isto.

Ele entregou a Tracy uma faca de gume duplo, um rolo de corda, uma lanterna e uma pequena caixa de jóias azul, com uma fita vermelha ao redor.

- Esta é a duplicata da caixa de jóias que trocará.

Tracy respirou fundo, entrou no container e sentou-se. Segundos depois uma lona foi baixada sobre a abertura. Ela ouviu as cordas sendo amarradas na lona, a fim de mantê-la no lugar. Mal ouviu a voz do homem através da lona:

- Daqui por diante, nada de falar, nada de se mexer, nada de fumar.

Tracy tentou dizer "Eu não fumo", mas não encontrou energia suficiente.

- Bonne chance. Abri alguns buracos no lado da caixa para você poder respirar. Não se esqueça de respirar.

Ele riu de sua piada e Tracy ouviu os passos se afastando. Ficou sozinha no escuro.

O caixote era estreito e apertado, um jogo de cadeiras de mesa de jantar ocupava a maior parte do espaço. Tracy tinha a sensação de que estava pegando fogo. A pele era muito quente ao contacto, tinha dificuldade em respirar. Peguei alguma espécie de vírus, pensou ela, mas isso terá de esperar. Tenho um trabalho a realizar. Pense em outra coisa.

A voz de Gunther: Não tem com que se preocupar, Tracy. Quando descarregarem em Amsterdam, seu container será levado para uma garagem particular, perto do aeroporto. Jeff a encontrará lá. Entregue-lhe as pedras e volte ao aeroporto. Haverá uma passagem de avião para Genebra à sua espera no balcão da Swissair. Saia de Amsterdam o mais depressa possível. Assim que souber do roubo, a polícia fechará a cidade. Nada sairá errado. Mas, caso haja alguma emergência, aqui tem o endereço e a chave de uma casa segura em Amsterdam. Está desocupada.

Ela devia ter cochilado, pois despertou com um sobressalto no momento em que o container foi levantado. Tracy sentiu que caía pelo espaço apertado e teve de se segurar nos lados em busca de apoio. O container assentou em alguma coisa dura. Houve uma batida de porta de veículo, um motor entrou em funcionamento ruidosamente e um momento depois o camião se achava em movimento.

Estavam a caminho do aeroporto.

 

O plano fora meticulosamente elaborado com toda exactidão. O container com Tracy dentro deveria chegar ao aeroporto poucos minutos antes do container da De Beers. O motorista do camião levando Tracy tinha instruções rigorosas: Mantenha uma velocidade constante de oitenta quilómetros horários.

O tráfego na estrada para o aeroporto parecia mais intenso do que o habitual naquela manhã, mas o motorista não estava preocupado. O container estaria no aeroporto a tempo e ele ganharia uma gratificação adicional de 50 mil francos, o suficiente para viajar em férias com a mulher e os dois filhos. América, pensava ele. Iremos à Disneyworld.

O motorista olhou para o relógio no painel e sorriu para si mesmo. Nenhum problema. O aeroporto ficava a apenas cinco quilómetros de distância e dispunha de dez minutos para chegar lá.

Exactamente no horário, ele chegou ao desvio para o terminal de carga da Air France. Passou pelo prédio cinzento e baixo em Roissy - Aeroporto Charles de Gaulle, afastando-se da entrada de passageiros, onde cercas de arame farpado separavam a estrada da área de carga. Ao se dirigir para o vasto armazém, que se estendia por uma área de três blocos e estava repleto de caixotes, pacotes e containers empilhados, houve um súbito som explosivo e o volante em suas mãos deu uma guinada brusca. O camião começou a vibrar. Foutre!, pensou ele. Uma porra de um pneu furado logo agora!

 

O gigantesco avião cargueiro 747 da Air France se achava no processo de ser carregado. Os containers se encontravam numa plataforma na altura da abertura, prontos para deslizarem por uma esteira para o porão do avião. Eram 38 containers, 28 no convés principal e os restantes no porão. Um tubo de aquecimento exposto corria pelo teto do imenso compartimento, os fios e cabos que controlavam o aparelho eram visíveis. Não havia requintes naquele avião.

O processo de carregamento já estava quase concluído. Ramon Vauban tornou a olhar para seu relógio e praguejou. O camião estava atrasado. A remessa da De Beers já fora posta em seu container, o lado de lona preso por cordas cruzadas. Vauban marcara o lado com tinta vermelha, a fim de que a mulher não tivesse qualquer dificuldade para identificá-lo. Ele observou agora, enquanto o Container com os diamantes da De Beers era levado para o avião e posto em seu lugar. Havia espaço ao lado para mais um container antes que o avião descolasse. E havia três outros na plataforma, esperando para serem embarcados. Onde se metera a mulher? O responsável pela carga gritou do interior do avião:

- Vamos logo, Ramon! O que está esperando?

- Só um momento - respondeu Vauban.

Ele seguiu apressadamente até à entrada da área de carga. Nenhum sinal do camião.

- Vauban! Qual é o problema? - Ele virou-se. Um supervisor sénior se aproximava. - Termine logo de carregar e mande essa carga para o ar.

- Pois não, senhor. Eu só estava esperando...

Nesse momento o camião da Brucere et Cie entrou rapidamente na área e parou na frente de Vauban, com um ranger de pneus.

- Aqui está a última carga - disse Vauban.

- Pois embarque logo!

 

Vauban supervisionou a retirada do container do camião e seu embarque no avião. Acenou para o responsável dentro do avião.

- É tudo seu!

Momentos depois, os jactos foram accionados e a gigantesca aeronave começou a taxiar para a pista. Vauban pensou: Agora, tudo depende da mulher.

 

Havia uma tempestade violenta. Uma onda enorme atingiu o navio, que começou a afundar. Estou me afogando, pensou Tracy. Tenho de sair daqui.

Ela estendeu os braços e bateu em alguma coisa. Era o lado do escaler, balançando incontrolável. Tracy tentou ficar de pé e bateu com a cabeça na perna de uma mesa. Num momento de lucidez, lembrou-se de onde estava. O rosto e os cabelos pingavam suor. Sentia-se tonta, o corpo ardia. Por quanto tempo estivera inconsciente? Era apenas uma hora de voo. O avião estava prestes a aterrar? Não, pensou ela. Corre tudo bem. Tenho um pesadelo. Estou na cana em Londres, dormindo. Chamarei um médico. Ela não conseguia respirar. Fez um esforço para se erguer e pegar o telefone, mas no instante seguinte tornou a arriar, o corpo pesado como chumbo. O avião entrou num bolsão de turbulência e Tracy foi lançada contra o lado do caixote. Ficou imóvel, atordoada, tentando desesperadamente se concentrar. Quanto tempo eu tenho? Ela oscilava entre um sonho infernal e a realidade angustiosa. Os diamantes. De alguma forma, ela tinha de pegar os diamantes. Mas primeiro... primeiro tinha de sair do container em que estava.

Ela pegou a faca no macacão e descobriu que era um terrível esforço levantá-la. Não há ar suficiente, pensou Tracy. Preciso de ar. Ela enfiou a mão pela beira da lona, tacteou à procura de uma das cordas externas, encontrou-a e cortou-a. Teve a impressão de levar uma eternidade. A lona se abriu um pouco. Ela cortou outra corda e agora havia espaço suficiente para sair do container. O ar era frio do lado de fora. Ela estava congelando. Todo o seu corpo começou a tremer. Os constantes solavancos do avião aumentavam-lhe a náusea. Tenho de me controlar, pensou Tracy. Ela fez um esforço para se concentrar. O que estou fazendo aqui? Alguma coisa importante... Ah, sim... Diamantes.

A visão de Tracy estava enevoada, tudo entrava e saía de foco incessantemente. Não vou conseguir.

O avião caiu abruptamente e Tracy foi lançada ao chão, arranhando as mãos no metal. Ficou se segurando, enquanto o avião balançava; quando o movimento cessou, ela forçou-se a ficar de pé outra vez. O rugido dos jactos se misturava com o zumbido em sua cabeça. Os diamantes. Preciso encontrar os diamantes.

Ela cambaleou entre os containers, estreitando os olhos para observar cada um, à procura do sinal de tinta vermelha. Graças a Deus! Lá estava o sinal, no terceiro container. Ela ficou imóvel, tentando se lembrar o que fazer em seguida. Era um grande esforço se concentrar. Se eu pudesse deitar e dormir por uns minutos, tudo estará bem. Só preciso de um pouco de sono. Mas não havia tempo. Podiam aterrar em Amsterdam a qualquer momento. Tracy pegou a faca e cortou as cordas no container.

- Um bom corte será suficiente - haviam lhe dito.

 

Mal tinha força para segurar a faca. Não posso falhar agora, pensou Tracy. Ela recomeçou a tremer, tão violentamente que largou a faca. Não vou conseguir. Eles me pegarão e me mandarão de volta à prisão.

Ela hesitou, indecisa, segurando a corda, querendo desesperadamente rastejar de volta a seu container, onde poderia dormir, sã e salva, até que tudo acabasse. Seria tão fácil... Depois, lentamente, com todo cuidado, enfrentando o latejar terrível na cabeça, Tracy estendeu a mão para a faca e pegou-a. Começou a cortar a grossa corda.

E a corda finalmente se rompeu. Tracy puxou a lona e ficou olhando fixamente para o interior escuro do container. Nada podia ver. Pegou a lanterna e, nesse momento, sentiu uma súbita mudança da pressão em seus ouvidos.

O avião estava descendo para o pouso.

Tracy pensou: Tenho de me apressar. Mas seu corpo se recusava a reagir. Ela permaneceu imóvel, atordoada. Mexa-se, ordenou a mente.

Ela iluminou o interior do container com a lanterna. Estava atulhado de pacotes, envelopes e pequenas caixas. E, por cima, lá estavam as duas caixas azuis com fitas vermelhas. Duas caixas! Mas só devia haver uma... Ela piscou os olhos e as duas caixas se fundiram em uma. Tudo parecia estar envolto por uma aura brilhante.

Tracy pegou a caixa, tirou a duplicata do bolso. Segurando as duas, uma náusea intensa dominou-a, sacudindo seu corpo. Cerrou os olhos, lutando contra a náusea. Começou a pôr a caixa substituta no alto do engradado e subitamente compreendeu que não mais tinha certeza qual era a genuína. Olhou atentamente para as caixas idênticas. Era a que estava na mão esquerda ou a da mão direita?

O avião entrou num ângulo de descida mais íngreme. Mais um pouco e estaria pousando. Ela tinha de tomar uma decisão. Largou uma das caixas no container, rezando para que fosse a certa, afastou-se. Tirou um pedaço de corda do seu macacão. Há alguma coisa que devo fazer com esta corda. O zumbido em sua cabeça tornava impossível pensar. Ela lembrou-se: Depois de cortar a corda, guarde-a no bolso e substitua-a pela corda nova. Não deixe qualquer coisa que possa levá-los a desconfiar que há algo errado.

Parecera muito fácil então, sentada ao sol quente no Bateau Mouche Agora, porém, era impossível. Não lhe restava mais qualquer força. Os guardas encontrariam a corda cortada, revistariam toda a carga e a prenderiam. Alguma coisa dentro dela gritou: Não! Não! Não!

Com um esforço tremendo, Tracy começou a prender a corda que trouxera no container. Sentiu um solavanco sob os pés no momento em que o avião tocou no chão, depois outro, foi arremessada para trás, quando as turbinas entraram em reversão. A cabeça bateu no chão e ela apagou a lanterna.

 

O 747 aumentava a velocidade agora, taxiando pela pista, na direcção do terminal. Tracy estava caída no chão do avião, os cabelos se espalhando sobre o rosto pálido, muito branco. Foi o silêncio dos motores que finalmente a trouxe de volta à consciência. Soergueu-se, apoiada num cotovelo, lentamente se forçou a ficar de joelhos. Levantou-se, cambaleando, teve de se segurar no container para não cair. A corda nova estava no lugar. Ela comprimiu a caixa dos diamantes contra o peito, começou a voltar para seu container. Esgueirou-se pela abertura na lona e arriou, ofegante, o corpo coberto de suor. Eu consegui. Mas havia mais uma coisa que precisava fazer. Algo importante. O quê? Prenda com uma fita adesiva a corda em seu container.

Ela meteu a mão no bolso do macacão, à procura do rolo de fita adesiva. Desaparecera. Sua respiração era rasa, aos arrancos, o som a ensurdecia. Teve a impressão de ouvir vozes e forçou-se a parar de respirar e escutar. Isso mesmo. Estavam ali novamente. Alguém riu. A qualquer momento, a porta do compartimento de carga seria aberta, os homens começariam a descarregar. Veriam a corda cortada, dariam uma olhada dentro do container e a descobririam. Tinha de encontrar um meio de unir a corda. Ficou de joelhos e nesse instante sentiu por baixo do corpo o rolo de fita adesiva, que caíra do bolso em algum momento durante a turbulência do voo. Levantou a lona e tacteou ao redor, encontrou as duas pontas da corda cortada e uniu-as, enquanto tentava desajeitadamente prendê-las com a fita adesiva.

Não podia ver. O suor escorria pelo rosto e a cegava. Tirou a charpe do pescoço e enxugou o rosto. Terminou de prender a corda e largou a lona de volta no lugar. Não havia mais nada a fazer agora, a não ser esperar. Ela tornou a apalpar a testa e pareceu-lhe ainda mais quente do que antes.

Tenho que sair do sol, pensou Tracy. O sol tropical pode ser perigoso.

Ela estava de férias em algum lugar do Caribe. Jeff aparecera para lhe entregar alguns diamantes, mas pulara no mar e sumira. Ela se inclinou para salvá-lo, mas Jeff escapuliu às suas mãos. A água agora cobria a cabeça dela. Estava sufocando, afogando.

Ouviu o barulho dos trabalhadores entrando no avião.

- Socorro! - gritou - Por favor, ajudem-me!

Mas o grito foi um sussurro, ninguém ouviu.

Os imensos containers começaram a ser retirados do avião.

Tracy estava desmaiada quando levaram o seu container para um camião da Brucere et Cie. E no chão do avião cargueiro ficou a charpe que Jeff lhe dera.

 

Tracy foi acordada quando uma claridade atingiu o camião, no momento em que alguém levantou a lona. Lentamente, ela abriu os olhos. O camião estava dentro de um armazém. Jeff se achava parado ali, sorrindo-lhe.

- Você conseguiu! - exclamou ele. - É uma maravilha, Tracy. Dê-me a caixa.

Ela observou, apática, quando Jeff pegou a caixa.

- Até Lisboa. Ele virou-se para sair, mas parou no instante seguinte e fitou-a. -Tem um aspecto horrível, Tracy. Está-se sentindo bem?

Ela mal conseguia falar.

- Jeff, eu...

Mas ele já se fora.

Tracy só teve depois uma recordação nebulosa do que aconteceu em seguida. Havia uma muda de roupas para ela nos fundos do armazém e uma mulher disse:

- Parece doente, mademoiselle. Deseja que eu chame um médico?

- Nada de médicos - balbuciou Tracy.

 

Haverá uma passagem de avião para Genebra à sua espera no balcão da Swissair. Saia de Amsterdam o mais depressa possível. Assim que souber do roubo, a polícia fecha a cidade. Nada sairá errado. Mas, caso haja alguma emergência, aqui tem o endereço e a chave de uma casa segura em Amsterdam. Está desocupada.

O aeroporto. Ela tinha de chegar ao aeroporto. Tracy murmurou:

- Quero um táxi...

A mulher hesitou por um momento e depois encolheu os ombros.

- Está certo. Vou chamá-lo. Espere aqui.

Tracy flutuava agora cada vez mais alto, chegando perto do sol.

- Seu táxi está aqui - disse um homem.

Ela gostaria que as pessoas parassem de incomodá-la. Só queria dormir.

O motorista perguntou:

- Para onde deseja ir, mademoiselle?

Haverá uma passagem de avião para Genebra à sua espera no balcão da Swissair.

Ela estava doente demais para embarcar num avião. Iriam impedi-la, chamar um médico. Seria interrogada. Tudo o que precisava era dormir por alguns minutos e depois tudo estaria bem. A voz do motorista começava a se tornar impaciente.

- Para onde, por favor?

Ela não tinha para onde ir. E acabou dando ao motorista o endereço da casa segura.

 

A polícia interrogavas a respeito dos diamantes. Como ela se recusasse a responder, eles ficaram furiosos e a trancaram sozinha numa sala, ligando o aquecimento, até que o calor se tornou insuportável. Quando isso aconteceu, baixaram a temperatura, até que pingentes de gelo começaram a se formar nas paredes.

Tracy emergiu pelo frio e abriu os olhos. Estava numa cama tremendo incontrolavelmente. Havia um cobertor por baixo de seu corpo, mas não tinha força para estendê-lo por cima. O vestido estava encharcado de suor, o rosto e o pescoço se achavam molhados.

Morrerei aqui. Onde era o aqui?

A casa segura. Estou na casa segura. E a frase pareceu-lhe tão engraçada que desatou a rir, o riso logo se transformando num paroxismo de tosse. Tudo saíra errado. Ela não escapara, no fim de contas. A esta altura, a polícia deveria estar vasculhando Amsterdam, à sua procura. Mademoiselle Whitney tinha uma passagem para Genebra e não a usou? Então ela ainda deve estar em Amsterdam.

Ela se perguntou há quanto tempo estaria naquela cama. Levantou o pulso para olhar o relógio, mas os números se mostravam borrados. Via tudo a dobrar. Havia duas camas no pequeno quarto, duas cómodas e quatro cadeiras. O tremor cessou, seu corpo ardia novamente. Precisava abrir uma janela, mas se achava fraca demais para fazer qualquer movimento. O quarto começou a congelar outra vez.

E ela se encontrava de volta ao avião, trancada no container, gritando por socorro.

Você conseguiu! É uma maravilha, Tracy. Dé-me a caixa.

 

Jeff levara os diamantes e provavelmente se achava a caminho do Brasil, com a sua parte do dinheiro. Estaria se divertindo com uma de suas mulheres, rindo dela. Ele a vencera mais uma vez. Ela o odiava. Não, não odiava. Sim, odiava. Ela o desprezava.

Tracy entrava e saía do delírio. A bola dura da pelota voava em sua direcção, Jeff a tomava nos braços, empurrava-a para o chão, os lábios bem perto dos seus. E depois estavam jantando no Zalacaín. Sabia que você é muito especial, Tracy?

Eu ofereço o empate, disse Boris Melnikov.

Seu corpo tremia novamente, descontrolado, viajava num trem expresso, atravessando um túnel escuro. Ela sabia que, morreria no final do túnel. Todos os outros passageiros haviam desembarcado, excepto Alberto Fornati. Ele estava furioso com ela, sacudia-a e gritava:

- Pelo amor de Deus! Abra os olhos! Olhe para mim!

Com um esforço sobre-humano, Tracy abriu os olhos e deparou com Jeff. O rosto dele estava muito pálido e havia fúria em sua voz. Mas é claro que tudo não passava de parte do seu sonho.

Há quanto tempo se acha assim?

- Você está no Brasil - balbuciou Tracy.

Depois disso, ela não se lembrou de mais nada.

 

Quando recebeu a echarpe com as iniciais TW, o Inspector Trignant contemplou-a em silêncio por um longo tempo. A echarpe fora encontrada no chão do avião cargueiro da Air France. Depois, ele murmurou:

- Quero falar com Daniel Cooper.

 

A pitoresca aldeia de Alkmaar, na costa noroeste da Holanda, virada para o Mar do Norte, é um ponto turístico popular. Mas há um bairro no sector leste que os turistas raramente visitam. Jeff Stevens ali estivera em férias várias vezes, com uma aeromoça da KLM que lhe ensinara a língua. Recordava-se muito bem da área, um lugar em que os residentes cuidavam de suas próprias vidas apenas e não se mostravam indevidamente curiosos em relação aos visitantes. Um lugar perfeito para se esconder.

O primeiro impulso de Jeff fora levar Tracy correndo para um hospital. Mas seria perigoso demais. Era também arriscado para ela permanecer em Amsterdam. por mais um minuto sequer. Ele a envolvera em cobertores e a levara para o carro, onde ela permanecera inconsciente durante toda a viagem até Alkmaar. Sua respiração era ofegante e a pulsação irregular.

Em Alkmaar, Jeff foi para uma pequena estalagem. O estalajadeiro observou, curioso, quando Jeff carregou Tracy para o quarto no segundo andar.

- Estamos em lua-de-mel - explicou Jeff. - Minha esposa ficou doente... um pequeno distúrbio respiratório. Precisa de repouso.

- Gostaria que eu chamasse um médico?

O próprio Jeff não tinha certeza de qual era a resposta certa.

- Se houver necessidade, eu lhe direi.

A primeira coisa que tinha de fazer era tentar baixar a febre de Tracy. Levou-a para a cama de casal no quarto e começou a tirar-lhe as roupas, encharcadas de suor. Suspendeu-a para uma posição sentada e puxou o vestido pela cabeça. Os sapatos em seguida, depois a meia-calça. O corpo de Tracy estava muito quente. Jeff molhou uma toalha com água fria e gentilmente banhou-a, da cabeça aos pés. Cobriu-a com um cobertor e sentou-se ao lado da cama, prestando atenção à sua respiração.

Se ela não estiver melhor pela manhã, decidiu Jeff, terei de chamar um médico.

 

Pela manhã, as roupas de cama estavam novamente encharcadas. Tracy ainda se encontrava inconsciente, mas Jeff teve a impressão de que sua respiração era um pouco mais fácil. Não queria permitir que a arrumadeira visse Tracy; isso acarretaria perguntas demais. Em vez disso, pediu uma muda de roupa de cama e levou para o quarto. tornou a lavar o corpo de Tracy com uma toalha úmida, mudou a roupa da cama como vira enfermeiras fazerem em hospitais, sem incomodar a paciente, tornou a cobri-la.

Pondo um cartaz de FAVOR NÃO INCOMODAR na porta, Jeff saiu à procura da farmácia mais próxima. Comprou aspirina, um termómetro, uma esponja e álcool. Quando voltou ao quarto, constatou que Tracy ainda não despertara. Jeff verificou sua temperatura: 40 graus. Passou álcool pelo corpo com a esponja e a febre baixou.

 

Uma hora depois, a temperatura tornou a subir. Ele teria de chamar um médico. O problema era que o médico insistiria que Tracy fosse levada para um hospital. Haveria perguntas. Jeff não tinha idéia se a polícia os procurava; mas, se isso acontecesse, os dois seriam detidos. Precisava fazer alguma coisa. Esmagou quatro aspirinas, e pôs o pó entre os lábios de Tracy e gentilmente pingou água em sua boca, até que ela engolisse. tornou a banhá-la. Quando terminou de enxugá-la, teve a impressão de que o corpo de Tracy já não se mostrava tão quente como antes. Verificou o pulso. Parecia mais firme. Encostou a cabeça no peito de Tracy e escutou. A respiração estaria menos congestionada? Não podia ter certeza. Só tinha certeza de uma coisa e repetiu-a interminavelmente, até que se transformou numa litania: "Você ficará boa." E Jeff beijou-a na testa, gentilmente.

Ele não dormia há 48 horas, sentia-se exausto, os olhos fundos. Dormirei depois, prometeu a si mesmo. Agora, só fecharei os olhos por um momento, a fim de descansármos.

E ele dormiu.

 

Quando abriu os olhos e observou o teto entrar em foco lentamente, Tracy não tinha a menor idéia do lugar em que se encontrava. Foram necessários alguns minutos para que a percepção penetrasse em seu consciente. Sentia o corpo moído e dolorido, tinha a impressão de que retornara de uma jornada longa e extenuante. Sonolenta, correu os olhos pelo quarto desconhecido... e o coração parou subitamente. Jeff se achava arriado numa poltrona, perto da janela, adormecido. Na última vez em que o vira, ele pegara os diamantes e fora embora. O que estaria fazendo ali? E com uma repentina sensação de desespero, Tracy compreendeu a verdade: entregara-lhe a caixa errada - a caixa com os falsos diamantes - e Jeff pensava que o enganara. Devia tê-la apanhado na casa segura e levado para aquele lugar, ela não sabia onde.

Quando ela se sentou na cama, Jeff se mexeu e abriu os olhos. Ao deparar com Tracy a fitá-lo, um lento sorriso de felicidade iluminou seu rosto.

- Seja bem-vinda de volta.

Havia um tom de alívio tão intenso em sua voz que Tracy sentiu-se confusa.

- Desculpe - disse Tracy, a voz num sussurro rouco. - Eu lhe dei a caixa errada.

- Como?

- Misturei as caixas.

Jeff aproximou-se da cama e disse gentilmente:

- Não, Tracy. Você me deu os diamantes autênticos, Que estão agora a caminho de Gunther.

Ela ficou aturdida.

- Então... por que... por que você está aqui?

Jeff sentou-se na beira da cama.

- Quando me entregou os diamantes, você estava com a máscara da morte. Resolvi que era melhor aguardar no aeroporto, a fim de me certificar se você pegava mesmo o avião para Genebra. Como não apareceu, compreendi que se encontrava em alguma encrenca. Fui à casa segura e encontrei-a.

Uma pausa e ele acrescentou, jovialmente:

- Não podia deixá-la morrer ali. Seria uma pista para a polícia.

Tracy observava-o atentamente, cada vez mais perplexa.

- Diga qual foi o verdadeiro motivo para voltar à minha procura.

- É hora de tirar sua temperatura - disse Jeff, bruscamente.

Poucos minutos depois, ele disse a Tracy:

 

- Não está ruim. Um pouco acima de trinta e oito, Você é uma paciente maravilhosa.

- Jeff...

- Confie em mim. Tem fome?

- Uma fome enorme.

- Óptimo. Vou buscar alguma comida.

 

Ele voltou das compras com uma sacola cheia de suco de laranja, leite, frutas e grandes broodjes holandeses, pães recheados com diferentes tipos de queijo, carne e peixe.

- Isto parece ser a versão holandesa da canja, mas deve resolver o problema. Coma devagar.

Ele ajudou-a a se sentar na cama e alimentou-a. Mostrou-se cuidadoso e terno. Tracy pensou, cautelosa: Ele pretende alguma coisa. Enquanto ela comia, Jeff disse:

- Ao sair para as compras, aproveitei e telefonei para Gunther. Ele recebeu os diamantes e depositou a sua parte do dinheiro em sua conta na Suíça.

Tracy não pôde deixar de perguntar:

- Por que você não ficou com tudo?

Quando Jeff respondeu, seu tom era sério:

- Porque já é tempo de pararmos de passar para trás um ao outro, Tracy, Certo?

Era outro dos truques de Jeff, com toda a certeza. Mas Tracy sentia-se cansada demais para se preocupar com isso.

- Certo.

- Se me disser os seus tamanhos, Tracy, eu saírei e lhe comprarei algumas roupas. Os holandeses são liberais, mas poderiam ficar chocados se você saísse por aí do jeito como está.

Tracy levantou as cobertas, descobrindo subitamente a sua nudez. Tinha uma vaga impressão de Jeff a despi-la e banhá-la. Ele arriscara a sua própria segurança para cuidar dela. Por quê? Tracy acreditara que o compreendia. Mas não o compreendo, pensou Tracy. Não o compreendo absolutamente.

Ela dormiu.

 

à tarde, Jeff` voltou ao quarto com duas malas, cheias de chambres, camisolas, roupas de baixo, vestidos e sapatos, um estojo de maquilhagem, escova e secador de cabelos, escova e pasta de dentes. Também comprara diversas roupas para si mesmo e, International Herald Tribune. Havia uma matéria sobre o roubo dos diamantes na primeira página; a polícia calculara como fora cometido, mas os ladrões não haviam deixado qualquer pista, segundo o jornal. Jeff declarou, jovialmente:

- Estamos livres! Agora, tudo o que precisamos fazer é cuidar para que você se recupere totalmente.

 

Fora Daniel Cooper quem sugerira que a informação da echarpe com as iniciais TW fosse oculta da imprensa, explicando ao Inspector Trignant:

- Sabemos a quem pertence, mas não é prova suficiente para um indiciamento. Os advogados dela apresentariam todas as mulheres da Europa com as mesmas iniciais e nos fariam de tolos.

Na opinião de Cooper, a polícia já bancara a tola. Mas Deus a entregará a mim.

 

Ele sentou-se na escuridão da pequena igreja, num banco duro de madeira, e rezou: Oh, Pai, entregue-a a mim. Faça com que ela caia em minhas mãos para recebera sua punição, afim de que eu possa me expurgar dos meus pecados. O mal no espírito daquela mulher será exorcizado e seu corpo nu será açoitado... E ele pensou no corpo nu de Tracy sob o seu domínio, sentiu o começo de uma erecção. Deixou a igreja apressadamente, aterrorizado que Deus pudesse ver e infligir-lhe uma punição.

 

Já escurecera quando Tracy acordou. Sentou na cama e acendeu o abajur na mesinha-de-cabeceira. Descobriu que se encontrava sozinha. Jeff se fora. Um sentimento de pânico Invadiu-a. Deixara-se ficar dependente de Jeff, o que fora um erro estúpido. Bem mereço a lição, pensou Tracy, amargurada. "Confie em mim", dissera Jeff. E ela confiara. Ele só cuidara dela para se proteger, não por qualquer outro motivo. Chegara a acreditar que ele sentia alguma coisa por ela. Quisera acreditar nele, quisera sentir que significava alguma coisa para Jeff. Ela recostou-se no travesseiro e fechou os olhos, pensando: Sentirei saudade de Jeff. Deus me ajude, mas sentirei saudade dele.

Deus lhe pregara uma peça cósmica. Por que tivera de ser justamente ele? Mas o motivo não importava. Teria de fazer planos para sair dali o mais depressa possível, encontrar algum lugar em que pudesse se recuperar inteiramente, onde pudesse se sentir segura. Oh, sua maldita idiota!, pensou ela. Você...

Ela ouviu o barulho da porta se abrindo e a voz de Jeff chamou:

- Está acordada, Tracy? Trouxe alguns livros e revistas. Achei que você poderia... - Ele parou de falar abruptamente, ao ver a expressão no rosto de Tracy. - Ei, houve algum problema?

- Não há mais - murmurou Tracy. - Não há mais.

A febre de Tracy desapareceu por completo na manhã seguinte.

- Eu gostaria de sair - disse ela. - Acha que podemos dar uma volta, Jeff.

Despertaram curiosidade no saguão. O casal que possuía o hotel ficou deliciado com a recuperação de Tracy.

- Seu marido foi maravilhoso. Insistiu em fazer tudo pessoalmente. Estava muito preocupado. Uma mulher tem sorte em contar com um homem que a ama tanto.

Tracy olhou para Jeff. Poderia jurar que ele corava. Lá fora, ela disse:

- Eles são óptimos.

- Sentimentais demais - resmungou Jeff.

 

Jeff providenciou uma cama de lona para dormir, ao lado de Tracy. Naquela noite, deitada na cama, Tracy lembrou-se novamente como Jeff a cuidara, atendera a todas as suas necessidades, banhara seu corpo nu. Sentia-se intensamente consciente da presença de Jeff. Dava-lhe a sensação de estar protegida.

E deixava-a nervosa.

 

Gradativamente, à medida que se tornava mais forte, Tracy e Jeff passavam mais tempo explorando a exótica cidadezinha. Iam até o Alkmaarder Meer, percorrendo as ruas sinuosas, calçadas de pedras, que datavam da Idade Média, passeavam por horas nos campos de tulipas, nos arredores da cidade. Visitavam o mercado de queijos e a velha casa de peso, vagueavam pelo museu municipal. Para surpresa de Tracy, Jeff conversava com os habitantes em holandês.

- Onde aprendeu a língua?

- Quando namorei uma holandesa.

Tracy se arrependeu de ter perguntado.

Enquanto os dias transcorriam, o corpo jovem e saudável de Tracy foi-se curando. Quando achou que ela já estava bastante forte, Jeff alugou bicicletas e visitaram os moinhos de vento que pontilhavam os campos. Cada dia era um feriado maravilhoso e Tracy não queria que aquilo acabasse.

Jeff era uma constante surpresa. Tratava-a com uma preocupação e ternura que dissipavam as defesas dela contra ele, mas ao mesmo tempo não fazia qualquer avanço sexual. Ele era um enigma para Tracy. Ela pensava nas lindas mulheres com quem o vira e tinha certeza de que Jeff poderia ter qualquer delas no momento em que quisesse. Por que então ficava com ela naquele cantinho perdido do mundo?

Tracy descobriu-se a falar sobre coisas que pensara que jamais conversaria com alguém. Contou a Jeff sobre Joe Romano, Tony Orsatti, Ernestine Littlechap, Big Bertha e a pequena Amy Brannigan. Jeff se mostrou alternadamente indignado, consternado e compadecido. Jeff falou sobre a madrasta e tio Willie, sobre os seus dias no parque de diversões, o casamento com Louise. Tracy nunca se sentira tão intima de alguém.

E, subitamente, era o momento de ir embora. Jeff anunciou uma manhã:

- A polícia não está à nossa procura, Tracy. Acho que devemos partir.

Ela sentiu uma pontada de desapontamento.

- Tem certeza? Quando?

- Amanhã.

Tracy assentiu

- Farei as malas pela manhã.

 

Tracy ficou acordada naquela noite, incapaz de dormir. A presença de Jeff parecia povoar o quarto como nunca antes. Aquele fora um período inesquecível em sua vida e agora chegava ao fim. Ela olhou para a cama de lona em que Jeff estava deitado.

- Está dormindo, Jeff?

- Não.

- Em que pensa?

- No dia de amanhã. Em deixar esta cidade. Sentirei saudade.

- E eu sentirei saudade de você, Jeff.

As palavras saíram antes que ela pudesse se controlar. Jeff sentou-se lentamente e olhou para ela.

- Quanto?

- Muita.

Um momento depois, ele se achava ao lado da cama grande

- Tracy...

- Pshh.. Não fale. Apenas me abrace. E aperte com força.

 

Começou devagar, um contacto suave, caricia, sensação, exploração dos sentidos. E foi-se desenvolvendo e aumentando para um ritmo frenético, até se tornar um bacanal, uma orgia de prazer, desvairado e selvagem. O membro duro de Jeff acariciava e arremetia, enchia-a por completo, até que ela sentia vontade de gritar com a alegria insuportável. Ela se achava no centro de um arco-íris. Sentia-se arrebatada por um maremoto que a elevava mais e mais. Houve uma súbita explosão dentro dela e todo o seu corpo começou a tremer. Gradativamente, a tempestade se desvaneceu. Tracy fechou os olhos. Sentiu os lábios de Jeff descerem por seu corpo, até o próprio centro de seu ser, foi envolvida por outra onda impetuosa de sensação indescritível.

Ela puxou Jeff contra si, sentindo o coração dele bater contra o seu. Comprimiu-se contra ele, mas ainda não podia chegar bastante perto. Desceu para o pé da cama, os lábios roçando pelo corpo de Jeff, em beijos suaves, ternos, subindo devagar, até encontrar o membro duro em sua mão. Afagou-o gentilmente, meteu-o na boca, escutou os gemidos de prazer de Jeff. Depois, Jeff rolou por cima dela e penetrou-a, tudo recomeçou, mais excitante do que antes, uma fonte se derramando com um prazer insuportável. Tracy pensou: Agora eu sei. Pela primeira vez, eu sei. Mas devo lembrar que é apenas por esta noite, um maravilhoso presente de despedida.

E durante toda a noite eles fizeram amor, conversaram sobre tudo e sobre nada. Era como se comportas há muito trancadas se abrissem para os dois. Ao amanhecer, quando os canais começavam a cintilar com o dia que raiava, Jeff disse:

- Case comigo, Tracy.

Ela tinha certeza de que entendera errado, mas as palavras tornaram a soar. Tracy sabia que era loucura e impossível, nunca poderia dar certo, mas era delirantemente maravilhoso e é claro que daria certo. E ela sussurrou:

- Está bem.

Tracy começou a chorar, aconchegada na segurança dos braços de Jeff. Nunca mais me sentirei solitária, pensou Tracy. Pertencemos um ao outro. Jeff é parte de todos os meus amanhãs.

O amanhã chegara.

 

Muito tempo depois, Tracy perguntou:

- Quando você soube, Jeff?

- Quando a vi naquela casa e pensei que fosse morrer. Fiquei meio louco.

- E eu pensei que você fugira com os diamantes - confessou Tracy.

Ele tornou a abraçá-la.

- O que fiz em Madri não foi pelo dinheiro, Tracy. Foi pelo desafio. Não é por isso que nós dois estamos no ofício? Você recebe um quebra-cabeça que aparentemente não tem solução e começa a especular se na verdade não haverá algum modo de resolvê-lo.

Tracy assentiu.

- É isso mesmo. A princípio, era porque eu precisava do dinheiro. E depois tornou-se outra coisa, o dinheiro já não tinha importância. Adoro o duelo de esperteza com pessoas que são vitoriosas, inteligentes e inescrupulosas. Adoro viver na corda bamba do perigo.

Depois de um silêncio prolongado, Jeff disse:

- Tracy... estaria disposta a renunciar a tudo isso?

Ela ficou perplexa.

- Renunciar? Por quê?

 

- Estávamos antes por conta própria, cada um por si. Agora, tudo mudou. Eu não poderia suportar se alguma coisa acontecesse. Por que correr mais riscos? Temos todo o dinheiro que jamais precisaremos. Por que não nos consideramos aposentados?

- O que faríamos, Jeff?

Ele sorriu.

- Pensaremos em alguma coisa.

- Falando sério, querido, como passaríamos a vida?

- Faríamos qualquer coisa que quiséssemos, meu amor. Viajaríamos, cuidaríamos de hobbies. Sempre fui fascinado pela arqueologia. Gostaria de realizar uma escavação na Tunísia. Poderíamos financiar nossas próprias escavações. Conheceríamos o mundo inteiro.

- Parece excitante.

- E então... o que me diz?

Tracy contemplou-o em silêncio por um longo tempo e depois disse, suavemente:

- Se é isso o que você quer...

Jeff abraçou-a e começou a rir.

- Não deveríamos fazer um comunicado formal à polícia?

Tracy acompanhou-o no riso.

 

As igrejas eram mais antigas do que quaisquer outras que já havia conhecido antes. Algumas datavam dos tempos pagãos e havia ocasiões em que ele não sabia se estava rezando para o demónio ou para Deus. Sentava-se com a cabeça inclinada na St. Bavokerk, Pieterskerk e Nieuwekerk, em Delft, a cada vez sua oração era a mesma: Permita-me fazê-la sofrer tanto quanto eu sofro.

 

O telefonema de Gunther Hartog chegou no dia seguinte, quando Jeff se achava ausente.

- Como está se sentindo? - perguntou Gunther.

- Maravilhosamente - respondeu Tracy.

Gunther telefonara todos os dias, depois que soubera o que acontecera com ela. Tracy resolveu não contar a ele, por enquanto, a sua decisão e de Jeff de casarem, abandonando tudo. Queria guardar para si mesma por mais algum tempo, aprofundar a idéia, acariciar a perspectiva.

- Você e Jeff estão se dando bem?

Ela sorriu.

- Estamos nos dando até bem demais.

- Aceitaria trabalharem juntos de novo?

Agora, Tracy tinha de lhe contar.

- Gunther... nós... estamos deixando.

Houve um momento de silêncio.

- Não estou entendendo.

- Jeff e eu vamos... como se dizia nos filmes antigos de James Cagney... seguir por uma vida honesta.

- Ahn? Mas... por quê?

- Foi idéia de Jeff e eu concordei. Nada mais de fiscos.

- E se eu dissesse que o trabalho que tenho vale dois milhões de dólares e não envolve riscos?

- Eu riria muito, Gunther.

- Estou falando sério, minha cara. Viajariam para Amsterdam, que fica a apenas uma hora de carro do lugar em que estão agora, e...

- Terá de encontrar outra pessoa, Gunther

Ele suspirou.

 

- Infelizmente, não há mais ninguém que possa cuidar disso. Pode pelo menos discutir a possibilidade com Jeff?

- Está certo. Mas não vai adiantar.

- Ligarei de novo esta noite.

Quando Jeff voltou, Tracy relatou a conversa.

- Não disse a ele que estamos nos tornando cidadãos respeitadores das leis?

- Claro, querido. E disse também que ele procurasse outra pessoa.

- Mas ele não quer.

- Insiste que precisa de nós, Jeff. Disse que não há qualquer risco e que poderíamos ganhar dois milhões de dólares por um pequeno esforço.

- O que significa que ele pensa em alguma coisa tão bem guardada quanto o Forte Knox.

- Ou o Prado - acrescentou Tracy, maliciosamente.

Jeff sorriu.

- Foi um plano sensacional, amor. E quer saber de uma coisa? Acho que foi então que comecei a me apaixonar por você.

- E acho que comecei a odiá-lo quando você roubou o meu Goya.

- Seja justa - protestou Jeff. - Começou a me odiar muito antes disso.

- Tem razão. O que diremos a Gunther?

- Você já disse tudo a ele. Não estamos mais nesse ofício.

- Não deveríamos pelo menos ouvir o que ele está pensando?

- Tracy, concordamos que..:

- Vamos de qualquer maneira passar por Amsterdam?

- Vamos, sim. Mas...

- Enquanto estamos lá, querido, por que não ouvimos o que ele tem a dizer?

Jeff estudou-a com uma expressão desconfiada.

- Você quer fazer o trabalho, não é mesmo?

- Claro que não! Mas não há mal algum em ouvir o que ele tem a dizer...

 

Eles foram de carro para Amsterdam no dia seguinte e hospedaram-se no Amstel Hotel. Gunther Hartog veio de avião de Londres para encontrá-los.

Conseguiram dar um jeito de sentar juntos, como turistas casuais, numa lancha Pias Motor, deslizando pelo Rio Amstel.

- Fico muito satisfeito por saber que vocês vão casar - comentou Gunther. - Meus parabéns.

- Obrigada, Gunther.

Tracy sabia que ele era sincero.

- Respeito o desejo de vocês se aposentarem, mas deparei com uma situação tão singular que achei que deveria contar-lhes. Pode ser um canto de cisne dos mais gratificantes.

- Estamos escutando - disse Tracy.

Gunther inclinou-se para a frente e começou a falar, em voz baixa. No final, ele disse:

- Dois milhões de dólares, se encontrarem um meio de executar o golpe.

- É impossível - declarou Jeff, taxativamente. - Tracy...

Mas Tracy não escutava, absorvida em imaginar como poderia se fazer.

 

A chefatura de polícia de Amsterdam, na esquina da Marnix Straat e Elandsgracht, é um prédio gracioso de cinco andares, com um corredor branco comprido no térreo e uma escada de mármore levando aos andares superiores. A Gemeentepolitie estava em conferência numa sala de reuniões no andar de cima. Havia seis detectives holandeses. O único estrangeiro era Daniel Cooper.

O Inspector Joop van Duren era um gigante, maior do que a vida, com um rosto carnudo, adornado por um enorme bigode, uma voz tonitruante. Estava se dirigindo a Toon Willems, o eficiente comissário, chefe da força policial da cidade.

- Tracy Whitney chegou a Amsterdam. esta manhã, comissário. A Interpol tem certeza de que ela é a responsável pelo roubo dos diamantes da De Beers. E o Sr. Cooper aqui acha que ela voltou à Holanda para cometer outro crime.

O Comissário Willems virou-se para Cooper.

- Tem alguma prova disso, Sr. Cooper?

Daniel Cooper não precisava de prova. Conhecia Tracy Whitney, de corpo e alma. Claro que ela estava ali para cometer um crime, algo afrontoso, algo além da imaginação restrita daqueles homens. Ele forçou-se a permanecer calmo.

- Não há qualquer prova. Por isso é que ela deve ser apanhada em flagrante.

- E como propõe que façamos isso?

- Não perdendo a mulher de nossa vista por um momento sequer.

O uso do pronome nossa perturbou o comissário. Ele falara com o Inspector Trignant, em Paris, a respeito de Cooper. Ele é detestável, mas sabe o que faz. Se o tivéssemos escutado, teríamos apanhado a mulher Whitney em flagrante. Era o que Cooper acabara de dizer.

Toon Willems tornou sua decisão, baseada em parte no fracasso tão amplamente divulgado da polícia francesa em capturar os ladrões dos diamantes da De Beers. Onde a polícia francesa falhara, a polícia holandesa seria bem-sucedida.

- Muito bem - disse o comissário. - Se essa mulher veio à Holanda para testar a eficiência de nossa polícia, vamos atendê-la.

Ele virou-se para o Inspector Van Duren e acrescentou:

- Tome todas as providências que julgar necessárias.

 

A cidade de Amsterdam se divide em seis distritos policiais, cada um responsável por um território específico. Por ordens do Inspector Joop van Duren, os limites foram ignorados e detectives de diferentes distritos foram designados para as equipes de vigilância.

- Quero que ela seja vigiada vinte e quatro horas por dia. Não a percam de vista por um só instante.

O Inspector Van Duren virou-se para Daniel Cooper.

- Está satisfeito, Sr. Cooper?

- Não, enquanto não a pegarmos.

- Vamos agarrá-la - garantiu o Inspector. - Nós nos orgulhamos de ter a melhor polícia do mundo, Sr. Cooper.

 

Amsterdam é um paraíso dos turistas, uma cidade de moinhos de vento, represas e diques, casas de frontões se inclinando umas para as outras ao longo de uma rede de canais arborizados, cheios de barcos-casas enfeitados com vasos de gerânios e outras plantas, as roupas tremulando à brisa em varais. Os holandeses eram as pessoas mais cordiais que Tracy já conhecera.

- Eles parecem muito felizes - comentou ela.

 

- Não se esqueça de que eles formam o povo da flor original. O povo das tulipas.

Tracy riu e passou o braço pelo de Jeff. Sentia uma alegria intensa por estar em sua companhia. Ele é maravilhoso. E Jeff, contemplando-a, pensou: Sou o homem mais afortunado do mundo.

Tracy e Jeff realizaram todos os passeios que se esperava dos turistas. Vaguearam pela Albert Cuyp Straat, o mercado ao ar livre que se estende por sucessivos quarteirões, com barracas de antiguidades, frutas e hortaliças, flores e roupas. Foram à Praça da Represa, onde os jovens se reuniam para escutar os cantores itinerantes e os conjuntos punk. Visitaram Volendam, a antiga e pitoresca aldeia de pescadores no Zuider Zee, assim como Madurodam, que é a Holanda em miniatura. Ao passarem pelo movimentado Aeroporto Schiphol, Jeff comentou:

- Não faz muito tempo e toda esta terra que o aeroporto ocupa agora pertencia ao Mar do Norte. Schiphol significa "cemitério de navios".

Tracy aconchegou-se mais perto dele.

- Estou impressionada. É óptimo estar apaixonada por um homem tão inteligente.

- Ainda não ouviu nada. Saiba que vinte cinco por cento da Holanda são de terras roubadas ao mar. O país inteiro se encontra cinco metros abaixo do nível do mar.

- Parece assustador.

- Mas não há motivo para se assustar. Estamos absolutamente seguros enquanto o garotinho mantiver o dedo no buraco do dique.

 

Por toda a parte a que iam, Tracy e Jeff eram seguidos pela Gemeentepolitie. A cada noite, Daniel Cooper estudava os relatórios escritos encaminhados ao Inspector Van Duren. Nada havia de insólito, mas nem por isso as suspeitas de Cooper se atenuavam. Ela está empenhada em alguma coisa, ele dizia a si mesmo. Alguma coisa grande. Será que ela sabe que está sendo seguida? Será que sabe que eu vou destrui-la?

Até onde os detectives podiam calcular, Tracy Whitney e Jeff Stevens não passavam de meros turistas. O Inspector Van Duren disse a Cooper:

- Não é possível que tenha se enganado? Eles podem ter vindo à Holanda só para passearem.

- Não - insistiu Cooper, obstinado. - Eu não estou enganado. Continuem a vigiá-la.

Ele tinha um pressentimento de que o tempo se esgotava, que a vigilância policial poderia ser cancelada em breve, se Tracy Whitney não fizesse alguma coisa logo. Mas a vigilância devia continuar. E Cooper juntou-se aos detectives que mantinham Tracy sob observação.

 

Tracy e Jeff tinham quartos contíguos no Amstel.

- Em nome da respeitabilidade - explicara Jeff a Tracy. - Mas não deixarei que fique longe de mim.

- Promete?

Todas as noites, Jeff ficava com ela, fazendo amor, até o amanhecer. Ele era um amante múltiplo, ora terno, ora impetuoso.

- É a primeira vez que descubro para que serve meu corpo sussurrou Tracy. - Obrigada, meu amor.

- O prazer é todo meu.

 

- Só a metade.

Eles vagueavam pela cidade, aparentemente a esmo. Almoçavam no Excelsior do Hotel de I'Europe e jantavam no Bowedery, comeram todos os 22 pratos servidos no Bali indonésio. tomaram a erwtensoep, a famosa sopa de ervilha da Holanda; provaram a hutspot de batatas, cenouras e cebolas; e comeram o boerenkool metworst, feito com 13 legumes e salames diferentes. Passearam pelo walletjes, o distrito da prostituição de Amsterdam, onde prostitutas gordas se sentavam de quimono em vitrines dando para a rua, exibindo as suas mercadorias. Todas as noites, o relatório por escrito apresentado ao Inspector Joop van Duren terminava com o mesmo registo: Nada de suspeito.

Paciência, dizia Daniel Cooper a si mesmo. Paciência.

Por insistência de Cooper, o Inspector Van Duren procurou o Comissário Willems, solicitando permissão para colocar artefactos electrónicos de escuta nos quartos do hotel ocupados pelos dois suspeitos. A permissão foi negada.

- Quando houver provas mais concretas por trás das suspeitas declarou o comissário - volte a me falar. Até lá, não posso permitir que escutem secretamente pessoas que no momento só são culpadas de visitarem a Holanda como turistas.

 

Essa conversa ocorreu na sexta-feira. Na manhã de segunda-feira, Tracy e Jeff foram à Paulus Potter Straat, em Coster, o centro de diamantes de Amsterdam, a fim de visitarem a fábrica de lapidação. Daniel Cooper integrava a equipe de vigilância. A fábrica estava apinhada de turistas. Um guia falando inglês conduziu-os pela fábrica, explicando cada operação no processo de lapidação. No fim do passeio, ele levou o grupo para uma enorme sala de exposição, as paredes ocupadas por uma ampla variedade de diamantes à venda. É claro que esse era o motivo maior para oferecer a excursão pelas instalações. No centro da sala havia uma caixa de vidro, dramaticamente montada sobre um pedestal alto e preto, contendo o diamante mais espectacular que Tracy já vira. O guia anunciou, orgulhosamente:

- Eis aqui, senhoras e senhores, o famoso diamante Lucullan, sobre o qual todos já leram. Foi outrora adquirido por um autor de teatro para sua esposa estrela do cinema. Está avaliado em dez milhões de dólares. É uma pedra perfeita, um dos melhores diamantes do mundo.

- Deve ser um alvo e tanto para ladrões de jóias - comentou Jeff, em voz bem alta.

Daniel Cooper adiantou-se para poder ouvir melhor. O guia sorriu, indulgentemente.

- Nee, mijnheer. - Ele acenou com a cabeça para o guarda armado parado ali perto. - Esta pedra é mais atentamente vigiada do que as jóias na Torre de Londres. Não há qualquer perigo. Se alguém tocar no vidro, soa um alarme... e todas as janelas e portas nesta sala se fecham automaticamente. à noite, fachos electrónicos são ligados. Se alguém entra na sala, soa um alarme na chefatura de polícia.

Jeff olhou para Tracy e disse:

- Acho que ninguém jamais roubará esse diamante.

Cooper trocou um olhar com um dos detectives. Naquela tarde, o Inspector Van Duren recebeu um relato da conversa.

 

Tracy e Jeff visitaram o Rijksmuseum no dia seguinte. à entrada, Jeff comprou uma planta do museu. Ele e Tracy atravessaram o vestíbulo para a Galeria de Honra, cheia de quadros Angelicos, Murifios, Rubens, Van Dicks e Tiepolos. Foram andando devagar, parando diante de cada quadro. A seguir se dirigiram para a Sala da Vigília Nocturna, onde estava pendurado o mais famoso quadro de Rembrandt. Ali pararam. A atraente polícia que os seguia, Fien Hauer, pensou: Oh, Deus, não!

O titulo oficial do quadro era A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq e do Tenente Willem van Ruytenburch. Com extraordinária nitidez e composição, mostrava um grupo de soldados preparando-se para entrar de vigília, sob o comando do seu capitão pitorescamente uniformizado. A área em torno do quadro estava cercada por cordas de veludo e um guarda se postava próximo.

- É difícil acreditar - comentou Jeff para Tracy - mas Rembrandt sofreu o diabo por causa desse quadro.

- Mas por quê? É um quadro fantástico.

- Seu cliente... o capitão no quadro... não gostou da atenção que Rembrandt dispensou às outras figuras.

Jeff virou-se para o guarda e acrescentou:

- Espero que o quadro esteja bem protegido.

- Ja, mijnheer. Quem tentasse roubar alguma coisa deste museu teria de passar por fachos electrónicos, câmaras de segurança e à noite, dois guardas com cachorros.

Jeff sorriu suavemente.

- Acho que este quadro ficará aqui para sempre.

No fim da tarde, a conversa foi relatada a Van Duren.

- A Vigília Nocturna! - exclamou ele. - Alstublieft. Impossível.

Daniel Cooper limitou-se a fitá-lo com seus olhos míopes.

 

No Centro de Convenções de Amsterdam havia uma reunião de filatelistas. Tracy e Jeff foram dos primeiros a chegar. O salão estava muito bem vigiado, pois muitos dos selos eram extremamente valiosos. Cooper e um detective holandês ficaram observando, enquanto os dois visitantes vagueavam pela colecção de selos raros. Tracy e Jeff pararam diante do Guiana Britânica, um selo hexagonal, magenta, sem nada de atraente.

- Que selo horrível! - comentou Tracy.

- Não se deixe impressionar por isso, querida. É o único selo de seu tipo no mundo.

- Quanto vale?

- Um milhão de dólares.

A atendente balançou a cabeça.

- É verdade, senhor. A maioria das pessoas não imagina ao olhar para este selo. Mas vejo que ama os selos, senhor, tanto quanto eu. A história do mundo está neles.

Tracy e Jeff se deslocaram para o mostruário seguinte, que exibia um Jenny Invertido, com um avião voando de cabeça para baixo.

- Esse é muito interessante - disse Tracy.

O atendente ao lado do mostruário disse:

- Vale...

Jeff não o deixou completar, informando:

- Em torno de setenta e cinco mil dólares.

- Exactamente senhor.

Eles passaram para um Missionário Havaiano azul de dois cents.

 

- Este vale um quarto de milhão de dólares - disse Jeff a Tracy.

Cooper estava agora logo atrás deles, misturando-se com a multidão. Jeff apontou para outro selo.

- Este é muito raro. O selo postal de um penny de Mauritius. Em vez de "Postpaid", porte pago, algum gravador distraído escreveu "post office", agência postal. Vale uma porção de pence hoje.

- Todos parecem muito pequenos e vulneráveis - comentou Tracy. - E fáceis de levar.

O guarda ao lado sorriu.

- Um ladrão não iria longe, moça. Todas as caixas estão protegidas electronicamente e guardas armados patrulham o centro de convenções dia e noite

- É um grande alívio saber disso - murmurou Jeff. - Nenhum cuidado é demais hoje em dia, não é mesmo?

Naquela tarde, Daniel Cooper e o Inspector Joop van Duren foram juntos falar com o Comissário Willems. Van Duren pôs os relatórios sobre a vigilância na mesa do comissário e depois esperou.

- Não há nada de definitivo aqui - disse o comissário finalmente. - Mas admito que os suspeitos andaram farejando alguns alvos muito lucrativos. Muito bem, Inspector, pode seguir em frente. Tem permissão para instalar o equipamento de escuta nos quartos do hotel.

Daniel Cooper ficou exultante. Não haveria mais privacidade para Tracy Whitney, daquele momento em diante. Ele saberia de tudo o que ela pensasse, dissesse ou fizesse. Pensou em Tracy e Jeff juntos na cama, lembrou-se da sensação da calcinha de Tracy em seu rosto. Tão macia, tão cheirosa...

Ele foi à igreja naquela tarde.

 

Naquela noite, quando Tracy e Jeff deixaram o hotel para jantarem, uma equipe de técnicos da polícia entrou em acção, instalando transmissores sem fios nas suítes, escondidos por trás de quadros e luminárias, por baixo de mesas.

O Inspector Joop van Duren requisitara a suíte directamente por cima e ali um técnico instalou um receptor de rádio, com uma antena e ligado a um gravador.

- É activado pela voz - explicou o técnico. - Ninguém precisa ficar aqui para controlá-lo. Quando alguém fala, o aparelho começa a gravar automaticamente.

Mas Daniel Cooper queria estar ali. Tinha de estar ali. Era a vontade de Deus.

 

Na manhã seguinte, bem cedo, Daniel Cooper, o Inspector Joop van Duren e seu assistente, detective Witkamp, estavam na Suíte requisitada, escutando a conversa por baixo.

- Mais café?

A voz de Jeff.

- Não, obrigada, querido. - A voz de Tracy. - Experimente este queijo que nos mandaram. É uma delícia.

Um curto silêncio.

- Hum... Tem toda razão. O que gostaria de fazer hoje, Tracy? Poderíamos passear de carro até Rotterdam.

- Por que simplesmente não ficamos aqui e relaxamos?

- Parece uma boa idéia.

Daniel Cooper sabia o que eles estavam querendo dizer com "relaxar" e rangeu os dentes.

- A rainha vai inaugurar um novo orfanato.

- Isso é óptimo. Acho que os holandeses constituem o povo mais hospitaleiro e generoso do mundo. Eles são iconoclastas. Detestam regras e regulamentos.

Uma risada.

- É por isso que nós dois gostamos tanto deles!

Uma conversa matutina corriqueira entre amantes. Eles parecem se dar maravilhosamente, pensou Cooper. Mas como ela pagará caro por tudo o que fez!

- Por falar em generoso, adivinhe quem está neste hotel? - A voz de Jeff. - O esquivo Maximilian Pierpont. Senti a falta dele no Queen Elizabeth II.

- E eu senti a sua falta no Expresso do Oriente.

- Ele está aqui provavelmente para saquear outra companhia. Agora que o encontramos, Tracy, acho que deveríamos fazer alguma coisa em relação a ele. Já que ele se encontra por perto...

A risada de Tracy.

- Concordo plenamente, querido.

- Soube que o nosso amigo tem o hábito de andar com artefactos de valor inestimável. Tenho uma idéia que...

Outra voz de mulher.

- Dag, minjheer, dag mevrouw. Gostariam que o quarto fosse arrumado agora?

Van Duren virou-se para o detective Witkamp.

- Quero uma equipe de vigilância sobre Maximilian Pierpont. E quero ser informado no momento em que Whitney ou Stevens fizerem qualquer contacto com ele.

 

O Inspector Van Duren estava se reportando ao Comissário Toon Willems:

- Eles podem estar atrás de um entre muitos alvos, comissário. Demonstram um grande interesse por um rico americano que se encontra aqui, chamado Maximilian Pierpont, compareceram a uma convenção filatélica, visitaram o diamante Lucullan e passaram duas horas diante da Vigília Nocturna...

- Een diefstal van de Nachtwacht? Nee! Impossível!

O comissário recostou-se na cadeira, perguntando-se se não estaria irresponsavelmente desperdiçando um tempo e homens valiosos. Havia especulação demais, mas não factos suficientes.

 

- Portanto, no momento, você não tem idéia de qual é exactamente o alvo.

- Não, comissário. E não tenho certeza se eles já decidiram. Mas no instante em que isso acontecer, eles nos informarão.

Willems franziu o rosto.

- Eles informarão?

- Os microfones - explicou Van Duren. - Eles não sabem que estamos ouvindo tudo o que conversam.

 

A brecha para a polícia surgiu às nove horas da manhã seguinte. Tracy e Jeff terminavam o café da manhã, na suíte de Tracy. No posto de escuta, por cima, estavam Daniel Cooper, o Inspector Joop van Duren e o auxiliar Witkamp. Eles ouviram o som de café sendo despejado.

- Aqui uma notícia interessante, Tracy. Nosso amigo tinha razão. Escute só: "O Banco Amro está embarcando cinco milhões de dólares em barras de ouro para as Índias Ocidentais Holandesas."

Na suíte por cima, o detective Witkamp disse:

- Não há qualquer possibilidade...

- Pshh!

Eles ficaram escutando.

- Quanto será que pesam cinco milhões de dólares em barras de ouro?

A voz era de Tracy.

- Posso responder com exactidão, querida. Dá exactamente 758 quilos, em torno de 57 barras de ouro. O melhor de tudo é o facto do ouro ser perfeitamente anónimo. Basta derretê-lo e pode pertencer a qualquer um. É claro que não seria fácil tirar as barras da Holanda.

- Mesmo que fosse possível, como poderíamos nos apossar das barras de ouro em primeiro lugar? Simplesmente entrando no banco e pegando-as?

- Algo assim.

- Está brincando.

- Nunca brinco com dinheiro nessas proporções. Por que não fazemos um pequeno passeio ao Banco Amro e aproveitamos para dar uma olhada?

- O que tem em mente?

- Eu lhe contarei no caminho

Houve o som de uma porta sendo fechada e as vozes terminaram. O Inspector Van Duren torcia nervosamente o bigode.

- Nee! Não há qualquer possibilidade de eles pegarem aquele ouro. Eu aprovei pessoalmente os dispositivos de segurança.

Daniel Cooper anunciou, incisivamente:

- Se há alguma falha no sistema de segurança do banco Tracy Whitney a descobrirá.

O Inspector Van Duren teve de fazer um grande esforço para controlar seu temperamento explosivo. O americano de aparência esquisita era uma abominação desde a sua chegada. Era muito difícil tolerar o seu senso de superioridade divina. Mas o Inspector Van Duren era um polícia acima de tudo; e recebera a ordem de cooperar com o homenzinho. Ele virou-se para Witkamp.

- Quero que aumente a equipe de vigilância. Imediatamente. Quero que todos os contactos sejam fotografados e interrogados. Entendido?

- Entendido, Inspector.

- E muito discretamente. Eles não podem saber que estão sendo vigiados.

 

- Certo, Inspector.

Van Duren olhou para Cooper.

- Pronto. Isso o faz sentir-se melhor?

Cooper não se deu ao trabalho de responder.

 

Durante os cinco dias seguintes, Tracy e Jeff mantiveram os homens do Inspector Van Duren bastante ocupados. Daniel Cooper examinava meticulosamente os relatórios diários. à noite, depois que os outros detectives deixavam o posto de escuta, Cooper ficava. Ficava atento aos sons do ato sexual que sabia estar ocorrendo por baixo. Nada podia ouvir, mas em sua imaginação Tracy estava gemendo:

- Oh, sim, querido, sim, sim... Oh, Deus, não aguento mais... é tão maravilhoso... Agora, oh, agora...

E depois o suspiro prolongado e trémulo, o silêncio suave. E era tudo para ele.

Muito em breve você me pertencerá, pensava Cooper. Ninguém mais a terá.

Durante o dia, Tracy e Jeff seguiam por caminhos separados, sempre vigiados por toda a parte. Jeff visitou uma gráfica perto de Leidseplein, dois detectives observaram atentamente da rua a sua conversa com o impressor. Quando Jeff saiu, um dos detectives seguiu-o. O outro entrou na gráfica, mostrou ao impressor a sua identificação de polícia, com o carimbo oficial, fotografia e as listas diagonais, vermelha, branca e azul.

- O que queria o homem que acabou de sair daqui?

- Ele ficou sem cartões de visita. Quer que eu imprima mais alguns.

- Deixe-me ver o que ele deixou.

O impressor mostrou uma ficha preenchida à mão:

 

Serviços de Segurança de Amsterdam

Cornelius Wilson, Investigador-Chefe

 

No dia seguinte, a detective Fien Hauer ficou esperando do lado de fora quando Tracy entrou numa loja de animais domésticos, na Leidseplein. Assim que ela saiu, 15 minutos depois, Fien Hauer entrou na loja e mostrou sua identificação.

- O que queria a mulher que acabou de sair?

- Ela comprou um aquário com peixinhos dourados, dois periquitos, um canário e um pombo.

Uma estranha combinação.

- Disse um pombo? E era um pombo comum?

- Isso mesmo. Mas nenhuma loja tem pombos em estoque. Eu disse a ela que teria de providenciar em outro lugar.

- E para onde deverá mandar esses bichos?

- Para o hotel em que ela está, o Amstel.

No outro lado da cidade, Jeff conversava com o vice-presidente do Banco Amro. Ficaram juntos por meia hora. Assim que Jeff se retirou, um detective entrou no banco e foi falar com o vice-presidente:

- Por favor, pode me informar o que desejava o homem que acabou de sair daqui?

- O Sr. Wilson? Ele é o investigador-chefe da seguradora que o nosso banco usa. Estão reavaliando os sistemas de segurança.

- E ele lhe pediu para falar sobre os actuais dispositivos de segurança?

 

- Exactamente.

- E lhe falou?

- Claro. Mas, naturalmente, tomei primeiro a precaução de telefonar para conferir suas credenciais.

- Para quem telefonou?

- Para o serviço de segurança... o telefone estava impresso em sua identificação.

às três horas daquela tarde um camião blindado parou diante do Banco Amro. Do outro lado da rua, Jeff tirou uma fotografia do camião, enquanto um detective o fotografava de algumas portas de distância.

 

Na chefatura de polícia, em Elandsgracht, o Inspector Van Duren espalhou as evidências que se acumulavam rapidamente sobre a mesa do Comissário Toon Willems.

- O que significa tudo isto? - perguntou o comissário, em sua voz fina e seca.

Daniel Cooper falou:

- Eu lhe direi o que ela está planeando. - Sua voz estava cheia de convicção. - Ela planea roubar o carregamento de ouro.

Todos o fitavam fixamente. Foi o Comissário Willems quem rompeu o silêncio:

- E devo supor que você sabe como ela pretende realizar esse milagre?

- Claro que sei.

Ele conhecia uma coisa que os outros ignoravam. Conhecia o coração, a alma e a mente de Tracy Whitney. Pusera-se dentro dela, podia assim pensar como ela, planear como ela... e antecipar todos os seus movimentos.

- Usando um falso camião blindado e chegando ao banco antes do camião verdadeiro, partindo depois com as barras de Ouro.

- Isso parece um tanto exagerado, Sr. Cooper.

O inspector Van Duren interveio:

- Não sei qual é o plano, mas tenho certeza de que eles estão mesmo planeando alguma coisa, comissário. Temos as suas vozes gravadas.

Daniel Cooper lembrou-se dos outros sons que imaginara: os sussurros nocturnos, os gritos, os gemidos. Para onde ele a mandaria, nenhum homem poderia tocá-la. Nunca mais. O Inspector estava dizendo:

- Eles descobriram a rotina de segurança do banco. Sabem a que horas os camiões blindados aparecem...

O comissário estudava o relatório à sua frente.

- Periquitos, um pombo, peixinhos dourados, um canário... acham que alguma dessas bobagens tem algo a ver com o assalto?

- Não - respondeu Van Duren.

- Sim - respondeu Cooper.

 

A detective Fien Hauer, vestindo um costume de calça comprida, de poliéster, seguiu Tracy Whitney pela Prinsengracht e através da Ponte Magere. Quando Tracy chegou ao outro lado do canal, Fien Hauer ficou olhando com frustração quando ela entrou numa cabina telefónica e falou por cinco minutos. Ela ficaria igualmente frustrada se pudesse ouvir a conversa. Gunther Hartog, em Londres, disse:

- Podemos contar com Margo, mas ela precisará de tempo... pelo menos mais duas semanas.

 

Ele escutou por um momento e depois acrescentou:

- Compreendo. Quando tudo estiver pronto, entrarei em contacto com você. Tome cuidado. E dê minhas lembranças a Jeff.

Tracy desligou e saiu da cabina. Acenou afavelmente com a cabeça para a mulher de costume de calça comprida que esperava para usar o telefone.

às 11 horas da manhã seguinte, um detective comunicou ao Inspector Van Duren:

- Estou na Companhia de Aluguel de Camiões Wolters, Inspector. Jeff Stevens acaba de alugar um camião aqui.

- Que espécie de camião?

- Um camião fechado, senhor.

- Descubra as dimensões. Eu espero.

O detective retornou à linha poucos minutos depois.

- Já tenho tudo, Inspector. É...

O Inspector Van Duren interrompeu-o:

- Um furgão com seis metros de comprimento, dois de largura, um metro e oitenta de altura, eixo duplo.

Houve uma pausa aturdida.

- Isso mesmo, Inspector. Como descobriu?

- Não tem importância. De que cor é?

- Azul.

- Quem está seguindo Stevens?

- Jacobs.

- Goed. Apresente-se a mim imediatamente.

Joop van Duren repôs o telefone no gancho e virou-se para Daniel Cooper.

- Você estava certo. Só que o furgão é azul.

- Ele o levará a uma oficina de pintura.

A oficina era em Damrak. Dois homens pintaram o furgão com um cinza metálico, enquanto Jeff observava. No telhado da garagem, um detective tirava fotografias, através da clarabóia.

As fotografias se encontravam na mesa do Inspector Van Duren uma hora depois. Ele estendeu-as para Daniel Cooper.

- Está sendo pintado numa cor idêntica ao do carro de segurança genuíno. Podemos prendê-los agora.

- Sob que acusação? Mandar imprimir falsos cartões de visita e pintar um camião? Só há um meio de incriminá-los irremediavelmente: agarrá-los no momento em que pegarem as barras de ouro.

O filho da puta se comporta como se dirigisse o departamento.

- O que acha que ele fará em seguida?

Cooper estudava atentamente as fotografias.

- Este camião não suportará o peso do ouro. Terão de reforçar o chão.

 

Era uma garagem pequena, na Muider Straat.

- Goode morgen, mijnheer. Em que posso servi-lo?

- Preciso carregar alguma sucata neste camião - explicou Jeff. - Não tenho certeza se o chão é bastante forte para aguentar o peso. E gostaria de reforçá-lo com suportes de metal. Pode fazer isso?

O mecânico foi examinar o camião.

- Já. Não tem problema.

- Óptimo.

- Posso aprontar até vrijdag... sexta-feira.

 

- Eu contava ter tudo pronto amanhã.

- Morgen? Nee. Ik...

- Pagarei a dobrar.

- Donderdag... quinta-feira.

- Amanhã. Pagarei o triplo.

O mecânico coçou o queixo, pensativo

- A que horas de amanhã?

- Meio-dia.

- Já. Está bem.

- Dank wel.

- Tot uw dienst.

Momentos depois que Jeff deixou a oficina, um detective estava interrogando o mecânico.

Na mesma manhã, a equipe de vigilância designada para Tracy seguiu-a até o Canal Oude Schans, onde ela passou meia hora conversando com o proprietário de uma barca. Assim que Tracy foi embora, um detective subiu a bordo. Identificou-se para o proprietário, que tornava um bessen-jenever, o forte gim de groselha.

- O que a mulher queria?

- Ela e o marido pensam em fazer uma excursão pelos canais. E ela alugou minha barca por uma semana.

- A partir de quando?

- Sexta-feira. Um lindo passeio, mijnheer. Se você e sua esposa estiverem interessados...

O detective se foi.

 

O pombo encomendado por Tracy foi entregue no hotel dentro de uma gaiola. Daniel Cooper voltou à loja de bichos e interrogou o dono.

- Que tipo de pombo mandou para ela?

- Um pombo comum.

- Tem certeza que não era um pombo-correio?

- Claro que não. - O homem soltou uma risada. - E tenho certeza que não é um pombo-correio porque o peguei ontem à noite no Vondelpark.

Meia tonelada de ouro e um pombo comum? Por quê?, especulava Daniel Cooper.

 

Cinco dias antes da data da transferência das barras de ouro do Banco Amro, uma enorme pilha de fotografias se acumulara na mesa do Inspector Joop van Duren.

Cada fotografia é um elo na corrente que vai prendê-la, pensou Cooper. A polícia de Amsterdam não tinha imaginação, mas ele não podia deixar de reconhecer que eram meticulosos. Cada passo levando ao crime iminente fora fotografado e documentado. Não havia possibilidade de Tracy Whitney escapar à justiça.

A punição dela será a minha redenção.

 

No dia em que pegou o veículo que acabara de ser pintado, Jeff levou-o para uma pequena garagem que alugara perto de Oude Zijds Kouk, a parte mais antiga de Amsterdam. Seis caixotes de madeira vazios, com a palavra MAQUINARIA pintada, foram entregues na garagem. Uma fotografia dos caixotes se achava na mesa do Inspector Van Duren enquanto ele escutava a última gravação.

A voz de Jeff:

 

- Quando guiar o camião do banco para a barca, mantenha-se dentro do limite de velocidade. Quero saber quanto tempo dura a viagem exactamente. Aqui está um cronómetro.

- Não vai comigo, querido?

- Não. Estarei ocupado.

- E Monty?

- Ele chegará na noite de quinta-feira.

- Quem é esse Monty? - perguntou o Inspector Van Duren.

- O homem que se apresentará como o segundo guarda - explicou Cooper. - Eles precisarão de uniformes.

 

A loja fica na Pieter Corneflez Hooft Straat, num centro comercial.

- Preciso de dois uniformes para uma festa de fantasia - explicou Jeff ao vendedor. - Parecido com aquele que está na vitrine.

Uma hora depois o Inspector Van Duren estava olhando para a fotografia de um uniforme de guarda.

- Ele pediu dois uniformes. Disse ao vendedor que iria buscá-los na quinta-feira.

O tamanho do segundo uniforme indicava que o outro homem era muito maior que Jeff Stevens. O Inspector disse a Daniel Cooper:

- Nosso amigo Monty deve ter em torno de um metro e noventa e pesar uns cem quilos. Pediremos à Interpol para passar esses dados por seus computadores e teremos a sua identificação.

Na garagem particular alugada por Jeff, ele estava em cima do camião, enquanto Tracy sentava-se ao volante.

- Tudo pronto? - gritou Jeff. - Agora!

Tracy apertou um botão no painel. Pedaços grandes de lona desceram pelos lados do camião, com as palavras HEINEKEN HOLLAND BEER.

- Funciona! - exclamou Jeff, exultante.

 

Cerveja Heineken? Alstublieft!

O Inspector Van Duren correu os olhos pelos detectives reunidos em sua sala. Diversas fotografias ampliadas e memorandos estavam pregados nas paredes.

Daniel Cooper estava sentado no fundo da sala, em silêncio. Em sua opinião, aquela reunião era uma perda de tempo. Há muito que antecipara cada movimento que Tracy Whitney e seu amante fariam. Eles haviam caído numa armadilha, que começava a se fechar inexoravelmente. Enquanto os detectives na sala ficaram dominados por um crescente excitamento, Cooper experimentava uma estranha sensação de anticlímax.

- Todas as peças se ajustaram em seus lugares - o Inspector Van Duren falou. - Os suspeitos sabem a que horas o verdadeiro camião blindado deve chegar ao banco. Planeiam se apresentar meia hora antes, posando como guardas de segurança bancária. Quando o camião verdadeiro chegar, eles já terão desaparecido há muito tempo.

Apontando para a fotografia de um carro blindado, Van Duren acrescentou:

- Eles sairão do banco parecendo assim, mas a um quarteirão do banco, em alguma rua transversal... - Ele apontou para o camião de cerveja Heineken. -... o carro ficará assim!

Um detective no fundo da sala falou:

- Sabe como eles planeiam sair do país, Inspector?

 

Van Duren apontou para uma fotografia de Tracy entrando na barca.

- Primeiro, de barca. A Holanda é cruzada por canais em que eles poderiam se perder indefinidamente. - Ele indicou uma fotografia aérea do camião avançando pela beira do canal. - Calcularam o tempo que se leva para percorrer o caminho do banco à barca. Teriam bastante tempo para transferir o ouro para a barca, antes de alguém suspeitar que há algo errado.

Van Duren aproximou-se da última fotografia na parede, uma foto ampliada de um cargueiro.

- Há dois dias, Jeff Stevens reservou espaço de carga no Oresta, que zarpa de Rotterdam na próxima semana. A carga foi indicada como maquinaria, destinada a Hong-Kong,

Ele virou-se para os homens na sala.

- Muito bem, senhores, faremos uma ligeira alteração nos planos deles. Deixaremos que retirem as barras de ouro do banco e as ponham no camião. - Ele olhou para Daniel Cooper e sorriu. - O flagrante. Pegaremos, ladrões espertos em flagrante.

 

Um detective seguiu Tracy para o escritório da American Express, onde ela pegou um pacote de tamanho médio, voltando ao hotel imediatamente.

- Não há possibilidade de saber o que havia no pacote - disse o Inspector Van Duren a Daniel Cooper. - Revistamos as suítes quando eles saíram, mas nada encontramos.

 

Os computadores da Interpol não foram capazes de fornecer qualquer informação sobre um Monty de cem quilos.

 

No Amstel, na noite de quinta-feira, Daniel Cooper, o Inspector Van Duren e, o detective Witkamp estavam no quarto por cima do que era ocupado por Tracy, escutando as vozes lá embaixo. A voz de Jeff:

- Se chegarmos ao banco exactamente trinta minutos antes dos guardas, isso nos dará tempo suficiente para carregar o ouro e partir. Quando o camião de verdade chegar, já estaremos transferindo o ouro para a barca.

A voz de Tracy:

- Mandei o mecânico checar todo o camião e encher o tanque. Está pronto.

O detective Witkamp comentou:

- Quase que se pode admirá-los. Eles não deixam coisa alguma ao acaso.

- Todos os criminosos acabam cometendo um erro, mais cedo ou mais tarde - disse o Inspector Van Duren, bruscamente.

Cooper manteve-se em silêncio, escutando.

- Quando tudo isso terminar, Tracy, você gostaria de efectuar aquela escavação sobre a qual conversamos?

- Na Tunísia? Parece o paraíso, querido.

- Óptimo, providenciarei tudo. Daqui por diante, não faremos outra coisa que não relaxar e gozar a vida.

O Inspector Van Duren murmurou:

- Eu diria que seus próximos dez ou quinze anos já estão muito bem definidos. - Ele se levantou e se espreguiçou. - Acho que podemos ir para a cama. Tudo está marcado para amanhã de manhã e creio que bem precisamos de uma boa noite de sono.

 

Daniel Cooper foi incapaz de dormir. Visualizava Tracy sendo agarrada e manietada pela polícia, podia ver o terror no rosto dela. Isso o excitou. Foi ao banheiro e preparou um banho muito quente. Tirou os óculos, e o pijama, deitou-se na banheira, dentro da água fumegante. Estava quase acabado e ela pagaria, como ele obrigara também os outros a pagarem. Outras prostitutas. A esta altura, no dia seguinte, ele estaria voltando para seu lar. Não, não o lar, corrigiu-se Daniel Cooper. Para meu apartamento. O lar era um lugar aconchegante e seguro, onde sua mãe o amava mais do que jamais amaria qualquer outra pessoa no mundo.

- Você é meu homenzinho - disse ela. - Não sei o que faria sem Você.

O pai de Daniel desaparecera quando ele tinha quatro anos. A princípio, ele se culpara por isso, mas depois a mãe explicara que fora por causa de outra mulher. Daniel odiava essa outra mulher, porque ela fazia sua mãe chorar. Nunca a vira, mas sabia que era uma prostituta, porque ouvira sua mãe chamá-la assim. Mais tarde, porém, sentiu-se feliz pelo facto da mulher ter levado seu pai, pois agora tinha a mãe só para si. Os invernos de Minnesota eram frios e a mãe de Daniel lhe permitia ficar em sua cama, bem abrigado sob os cobertores enormes.

- Casarei com você um dia - prometia Daniel.

A mãe ria e lhe afagava os cabelos. Daniel era sempre o primeiro de sua turma na escola. Queria que a mãe sentisse orgulho dele.

- Mas que filho inteligente é o seu, Sra. Cooper!

- Sei disso. Ninguém é tão inteligente quanto o meu homenzinho

Quando Daniel tinha sete anos, a mãe começou a convidar o vizinho enorme e peludo para jantar em sua casa. Daniel ficou doente. Passou uma semana na cama, com uma febre perigosamente alta. A mãe prometeu que nunca mais faria isso. Não preciso de ninguém mais no mundo além de você, Daniel.

Ninguém podia ser tão feliz quanto Daniel. A mãe era a mulher mais fina do mundo. Quando ela saía de casa, Daniel ia para seu quarto e abria as gavetas da cómoda. Tirava a lingerie e esfregava no rosto as peças macias. Ah, como cheiravam maravilhosamente...

Ele recostou-se na banheira com água quente, no hotel em Amsterdam, fechou os olhos, recordando o dia terrível do assassinato da mãe. Era o seu décimo segundo aniversário. Saiu da escola mais cedo, pois estava com dor de ouvido. Fingiu ser pior do que na realidade, pois queria voltar para casa, onde a mãe o cuidaria, poria na cama e acariciaria. Daniel chegou em casa e foi para o quarto da mãe. Ela se encontrava nua na cama. Mas não estava sozinha. Fazia coisas indescritíveis com o homem que vivia na casa ao lado. Daniel observou, enquanto a mãe se punha a beijar o peito cabeludo e depois a barriga estufada do homem, descendo para a enorme arma vermelha entre as pernas dele. Antes de tomá-lo na boca, Daniel ouviu a mãe balbuciar:

- Ah, como eu o amo...

E isso foi o mais terrível de tudo. Daniel correu para seu banheiro e vomitou, sujando-se todo. Despiu-se com todo o cuidado e limpou-se, porque a mãe o ensinara a ser meticuloso e asseado. A dor de cabeça era agora horrível. Ouviu vozes no corredor e prestou atenção. A mãe estava dizendo:

 

- É melhor você ir agora, querido. Tenho de tomar um banho e me vestir. Daniel chegará da escola a qualquer momento. Farei uma festa de aniversário para ele. Até amanhã, amor.

Ouviu o barulho da porta da frente fechando e depois o som de água correndo no banheiro da mãe. Só que ela não era mais sua mãe. Era uma prostituta que fazia coisas horríveis com homens na cama, coisas que nunca fizera com ele.

Daniel foi para o banheiro da mãe, nu. Ela estava na banheira, o rosto de prostituta sorridente. Ela virou a cabeça, viu-o e disse:

- Daniel, querido! O que você...

Ele tinha na mão uma enorme tesoura de costureira.

- Daniel...

A boca da mãe estava aberta num O de linha rosada, mas não saiu qualquer som até que a primeira estocada atingiu o peito da estranha na banheira. Ele acompanhou os gritos da mãe com os seus:

- Puta! Puta! Puta!

Entoaram juntos um dueto mortal, até que finalmente, só restava a voz de Daniel:

- Puta... puta...

Ele ficara todo manchado com o sangue da mãe. Entrou debaixo do chuveiro e esfregou-se, até sentir que a pele se achava em carne viva.

O homem na casa ao lado matara a sua mãe e teria de pagar por isso.

Depois, tudo pareceu ocorrer com uma clareza impressionante, como se fosse em câmara lenta. Daniel limpou as impressões digitais da tesoura com uma toalha de rosto e largou-a na banheira. Retiniu ao bater no esmalte. Vestiu-se e telefonou para a polícia. Dois carros chegaram, com as sirenes gritando, depois veio mais outro, cheio de detectives. Fizeram uma porção de perguntas e Daniel contou como saíra mais cedo da escola e vira o vizinho, Fred Zimmer, saindo pela porta lateral. Quando interrogaram o homem, ele admitiu que era amante da mãe de Daniel, mas negou ter cometido o crime. Foi o depoimento de Daniel no tribunal que condenou Zimmer.

- Quando chegou da escola, viu seu vizinho, Fred Zimmer, sair correndo pela porta do lado?

- Vi, sim, senhor.

- Pôde vê-lo nitidamente?

- Pude, sim, senhor. Havia sangue em suas mãos.

- O que você fez então, Daniel?

- Eu... eu estava apavorado. Sabia que alguma coisa horrível acontecera com minha mãe.

- Então entrou em casa?

- Isso mesmo, senhor.

- E o que aconteceu?

- Gritei "Mamãe". Ela não respondeu. Fui para o seu banheiro...

A esta altura, o garoto teve um acesso de soluços histéricos e foi retirado do banco das testemunhas.

Fred Zimmer foi executado 13 meses depois.

 

O jovem Daniel foi mandado para viver com uma parente distante no Texas, tia Mattie, a quem jamais vira antes. Ela era uma mulher rigorosa, uma baptista de convicções firmes, certa de que o fogo do inferno aguardava todos os pecadores. Era uma casa sem amor, alegria ou compaixão. Daniel cresceu nesse clima, apavorado pelo conhecimento secreto de sua culpa e a danação que o aguardava Pouco depois do assassinato da mãe, Daniel começou a ter dificuldades com a visão. Os médicos classificaram o problema de psicossomático.

- Ele está bloqueando alguma coisa que não quer ver - explicaram os médicos.

As lentes de seus óculos foram se tornando cada vez mais grossas.

Aos 17 anos, Daniel fugiu de tia Mattie e do Texas para sempre. Seguiu de carona para Nova York, onde foi contratado como boy pela Associação Internacional de Protecção ao Seguro. Em três anos, foi promovido a investigador. tornou-se o melhor de todos. Nunca pediu um aumento de salário ou melhores condições de trabalho. Era indiferente a essas coisas. tornou-se o braço direito do Senhor, seu açoite, punindo os perversos.

 

Daniel Cooper levantou-se da banheira e preparou-se para dormir. Amanhã, pensou ele. Amanhã será o dia da retaliação para a prostituta.

Ele gostaria que a mãe estivesse ali para assistir.

 

Amsterdam

SEXTA-FEIRA, 22 DE AGOSTO - 8 HORAS DA MANHã

Daniel Cooper e os dois detectives de plantão no posto de escuta ouviam a conversa de Tracy e Jeff ao café da manhã.

- Um pãozinho doce, Jeff? Café?

- Não, obrigado.

Daniel Cooper pensou: É o último café da manhã que eles tomam pelo resto de suas vidas.

- Sabe o que está me deixando mais excitada? A nossa viagem na barca.

- Este é o grande dia e você está excitada com uma viagem de barca? Por quê?

- Porque seremos só nós dois. Acha que sou doida?

- Absolutamente doida. Mas é a minha doida.

- Beije-me.

O som de um beijo.

Ela deveria estar mais nervosa, pensou Cooper. Eu quero que ela fique nervosa.

- De certa forma, Jeff, lamentarei ir embora daqui.

- Veja a coisa por outro ângulo, querida. Não ficaremos mais pobres pela experiência.

A risada de Tracy.

- Tem razão.

A conversa continuava às nove horas e Cooper pensou: Eles devem estar se preparando. Deve estar aprontando os planos de última hora. E Monty? Onde irão encontrá-lo?

Jeff estava dizendo:

- Querida, você poderia cuidar de tudo na recepção, antes de sairmos? Estarei muito ocupado.

- Claro. O concierge tem sido maravilhoso. Por que não existem concierges nos Estados Unidos?

- Acho que é somente uma instituição europeia. Sabe, como começou?

- Não.

- Na França, em 1637, o Rei Hugo construiu uma prisão em Paris e pôs um conde para dirigi-la. O rei deu-lhe o título de comte des cierges ou concierge, significando "conde das velas". Seu pagamento era de duas libras e as cinzas da lareira do rei. Posteriormente, qualquer um no comando de uma prisão ou um castelo passou a ser conhecido como concierge. E, finalmente, isso incluiu os que trabalham em hotéis.

De que diabo eles estão falando?, perguntou-se Cooper. Já são nove e meia. Está na hora de partirem.

A voz de Tracy:

- Não me diga onde você aprendeu isso... já namorou uma linda concierge.

Uma voz estranha de mulher:

- Goede morgen, movrouw, mijnheer.

A voz de Jeff:

- Não existem lindas concierges.

A voz da mulher estranha, perplexa:

- Ik begrijp het niet.

A voz de Tracy:

- Aposto que você as descobriria se existissem.

- Que diabo está acontecendo lá embaixo? - indagou Cooper.

 

Os detectives estavam aturdidos.

- Não sei. A camareira está no telefone, ligando para a sua chefe. Entrou para arrumar o quarto, mas diz que não compreende... ouve vozes, mas não vê ninguém.

- O quê?

Cooper estava de pé, correndo para a porta, descendo apressadamente a escada. Momentos depois, ele e os detectives, irromperam na suíte de Tracy. Excepto por uma confusa camareira, se achava deserta. Um gravador tocava numa mesinha diante de um sofá. A voz de Jeff.

- Acho que vou mudar de Idéia sobre o café. Ainda está quente?

A voz de Tracy:

- Está, sim.

Cooper e os detectives se entreolharam com expressões de incredulidade.

- Eu... eu não compreendo - balbuciou um dos detectives.

Cooper indagou bruscamente:

- Qual é o telefone de emergência da polícia?

- Vinte-dois-vinte-dois-vinte-dois.

Cooper correu para o telefone e discou. A voz de Jeff no gravador estava dizendo:

- Acho que o café deles é melhor do que o nosso. Como será que conseguem?

Cooper gritou pelo telefone:

- Aqui é Daniel Cooper. Entre em contacto imediatamente com o Inspector Van Duren. Diga-lhe que Whitney e Stevens desapareceram. Avise-o para verificar a garagem e descobrir se o Camião ainda continua lá. Estou indo para o banco.

Ele bateu com o telefone. A voz de Tracy estava dizendo:

- Já tomou alguma vez café fermentado com cascas de ovo? Fica uma coisa...

Cooper já passara pela porta.

 

O Inspector Van Duren disse:

- Está tudo certo. O camião saiu da garagem. Eles se dirigem para cá.

Van Duren, Cooper e dois detectives se achavam no posto de comando da polícia, no telhado de um prédio em frente ao Banco Amro, O Inspector acrescentou:

- Provavelmente eles decidiriam apressar seus planos quando descobriram microfones nas suítes. Mas relaxe, meu amigo. Dê uma olhada.

Ele empurrou Cooper para a luneta no telhado. Na rua lá embaixo, um homem de macacão polia a placa de latão do banco... um gari varria a rua... um jornaleiro estava parado na esquina... três electricistas trabalhavam, todos equipados com walkie-talkie em miniatura. Van Duren falou por seu walkie-talkie:

- Ponto A?

O homem de macacão disse:

- Estou ouvindo, Inspector.

- Ponto B?

- Tudo bem, senhor - respondeu o gari.

- Ponto C?

O jornaleiro levantou a cabeça e balançou-a.

- Ponto D?

 

Os electricistas suspenderam o trabalho por um instante e um deles disse pelo walkie-talkie:

- Tudo pronto aqui, senhor.

O Inspector virou-se para Cooper.

- Não se preocupe. O ouro ainda se encontra em segurança dentro do banco E eles só poderão levá-lo se vierem buscar. No momento em que entrarem no banco, os dois lados da rua serão bloqueados. Não poderão escapar. - Ele consultou o relógio. - O camião deve aparecer agora a qualquer momento.

 

Dentro do banco, a tensão era crescente. Os empregados haviam sido informados e os guardas tinham ordens para ajudarem a levar as barras de ouro para o camião, quando este chegasse. Todos deveriam cooperar plenamente.

Os detectives disfarçados fora do banco continuavam a trabalhar, observando a rua furtivamente, atentos à aproximação do camião. No telhado, o Inspector Van Duren perguntou pela décima vez:

- Algum sinal do maldito camião?

- Nee.

O detective Witkamp olhou para seu relógio.

- Eles estão treze minutos atrasados. Se...

O walkie-talkie entrou em funcionamento abruptamente:

- Inspector! O camião acaba de aparecer! Está cruzando a Rozengracht, a caminho do banco! Deverá vê-lo aí do telhado dentro de um minuto!

O ar tornou-se subitamente carregado de electricidade. O Inspector Van Duren falou rapidamente pelo walkie-talkie:

- Atenção, todas as unidades. O peixe está na rede. Vamos deixá-lo nadar.

Um camião blindado cinzento encaminhou-se para a entrada do banco e parou. Enquanto Cooper e Van Duren observaram, dois homens saltaram, usando uniformes de guardas de segurança, avançaram para a porta do banco.

- Onde ela está? - Indagou Daniel Cooper em voz alta. - Onde está Tracy Whitney?

- Isso não tem importância - disse o Inspector Van Duren. - Ela não ficará longe do ouro.

E mesmo que fique, isso não faz diferença, pensou Daniel Cooper. As gravações vão condená-la.

 

Nervosos empregados ajudaram os dois homens uniformizados a levarem as barras de ouro do cofre do banco para o camião blindado. Cooper e Van Duren observavam os vultos distantes do telhado no outro lado da rua.

O carregamento demorou oito minutos. Depois que a traseira do camião fora trancada e os dois homens se encaminhavam para a boleia, o Inspector Van Duren gritou por seu aparelho:

- Viug! Pas op! Todas as unidades fechem o cerco!

O pandemónio irrompeu. O homem de macacão, o jornaleiro, os três electricistas e um enxame de outros detectives correram para o veículo blindado e o cercaram, empunhando armas. A rua foi isolada, não havendo tráfego em qualquer direcção. O Inspector Van Duren virou-se para Daniel Cooper e sorriu.

- Vamos descer.

Está tudo acabado finalmente, pensou Cooper.

 

Eles desceram apressadamente para a rua. Os dois homens uniformizados foram colocados contra a parede, as mãos levantadas, cercados por detectives armados. Daniel Cooper e o Inspector Van Duren se adiantaram. Van Duren disse:

- Podem se virar agora. Estão presos.

Os dois homens, muito pálidos, viraram-se para enfrentar o grupo. Daniel Cooper e o Inspector Van Duren ficaram chocados. Eram totalmente estranhos.

- Quem... quem são vocês? - indagou o Inspector Van Duren.

- Nós... nós somos os guardas da agência de segurança - balbuciou um dos homens. - Não atirem. Por favor, não atirem.

O Inspector Van Duren virou-se para Cooper.

- O plano deles saiu errado. - Havia um tom de histeria se insinuando em sua voz. - E eles acharam melhor cancelar tudo.

Uma bílis verde surgira no estômago de Daniel Cooper e lentamente começava a subir pelo peito e garganta. Quando ele conseguiu finalmente falar, a voz era sufocada:

- Não... nada saiu errado.

- Do que está falando?

- Eles nunca estiveram atrás do ouro. Não passava tudo de uma armação falsa.

- Mas é impossível O camião, a barca, os uniformes.. temos fotografias...

- Será que não compreende? Eles sabiam que os estávamos vigiando durante todo o tempo!

O Inspector Van Duren empalideceu.

- Oh, Deus! Onde eles estão... waar zijnze?

 

Na Paulus Potter Straat, em Coster, Tracy e Jeff se aproximavam do centro de lapidação de diamantes. Jeff estava de barba e bigode, alterara o formato das faces e do nariz com esponjas de espuma. Vestia uma roupa desportiva e carregava uma mochila. Tracy estava de peruca preta, uma bata de maternidade e enchimento na barriga, muita maquilhagem no rosto e óculos escuros. Carregava uma mala e um embrulho redondo de papel pardo. Os dois entraram na sala de recepção e se juntaram aos turistas que haviam chegado num ónibus e escutavam as palavras de um guia:

-... e agora, se me acompanharem, senhoras e senhores, verão nossos lapidadores de diamantes em acção. Terão também a oportunidade de comprarem alguns dos nossos excelentes diamantes.

Com o guia na frente, a multidão passou pelas portas que levavam à oficina. Tracy acompanhou-os, enquanto Jeff ficava para trás. Assim que os outros desapareceram, Jeff virou-se e desceu apressadamente a escada para o porão. Abriu a mochila e tirou um macacão manchado de óleo e uma caixa de ferramentas. Vestiu o macacão, foi até a caixa de fusíveis e olhou para o relógio.

Lá em cima, Tracy seguia o grupo de uma sala para outra, enquanto o guia mostrava os diversos processos que convertiam os diamantes brutos em gemas polidas. Tracy olhava para seu relógio de vez em quando. A excursão estava com um atraso de cinco minutos. Ela desejou que o guia se apressasse. Tudo dependia de uma precisão de fracção de segundos.

O grupo entrou finalmente na sala de exposição. O guia foi até o pedestal cercado por cordas e anunciou, orgulhoso:

- Nesta caixa de vidro está o diamante Lucullan, um dos mais valiosos do mundo. Foi outrora comprado por um famoso actor de teatro para sua esposa, estrela do cinema. É avaliado em dez milhões de dólares e protegido pelo mais moderno...

 

As luzes se apagaram. Um alarme soou no mesmo instante, placas de aço desceram nas portas e janelas, fechando todas as saídas. Alguns turistas começaram a gritar.

- Por favor! - gritou o guia, acima do barulho. - Não precisam se preocupar. É uma simples falha eléctrica. Dentro de um momento o gerador de emergência vai...

As luzes tornaram a se acender.

- Viram? - disse o guia, tranquilizadoramente. - Não há motivo para preocupação.

Um turista alemão apontou para as placas de aço.

- O que são essas coisas?

- Uma precaução de segurança - explicou o guia.

Ele tirou do bolso uma chave de formato estranho e inseriu-a numa fenda na parede, virando-a. As placas de aço nas portas e janelas se retraíram. O telefone na mesa tocou e o guia atendeu.

- Hendrik falando. Obrigado, capitão. Não, está tudo bem. Foi um alarme falso. Provavelmente um curto-circuito no sistema eléctrico. Mandarei verificar imediatamente. Está bem, senhor. - ele repôs o telefone no gancho e virou-se para o grupo. - Minhas desculpas, senhoras e senhores. Com algo tão valioso quanto esta pedra, nunca se é cuidadoso demais. E agora, aqueles que quiserem comprar alguns dos nossos excelentes diamantes...

As luzes tornaram a se apagar. O alarme soou, as placas de aço tornaram a fechar as saídas. Uma mulher na multidão gritou:

- Vamos sair daqui, Harry!

- Quer calar a boca, Diane? - berrou o marido.

No porão, Jeff estava parado diante da caixa de fusíveis, escutando os gritos dos turistas lá em cima. Ele esperou um momento e depois suspendeu a chave eléctrica outra vez. As luzes lá em cima se acenderam.

- Senhoras e senhores - gritou o guia, por cima do tumulto - é apenas um problema técnico.

Ele tirou de novo a chave do bolso e inseriu na fenda na parede. As placas de aço se levantaram. O telefone tocou. O guia se adiantou apressadamente para atender.

- Hendrik falando. Não, capitão. Está certo. Consertaremos o mais depressa possível. Obrigado.

Uma porta para a sala se abriu e Jeff entrou, carregando a caixa de ferramentas, o boné de operário empurrado para trás da cabeça.

Ele se aproximou do guia.

- Qual é o problema? Alguém informou que houve qualquer coisa com os circuitos eléctricos.

- As luzes estão apagando e acendendo - explicou o guia. - Veja se pode consertar bem depressa, por favor.

Ele virou-se para os turistas, com um sorriso forçado nos lábios, e acrescentou:

- Por que não se adiantam até aqui, onde poderão escolher alguns excelentes diamantes, a preços bem razoáveis?

Os turistas começaram a se aproximar dos mostruários. Jeff, sem ser observado no meio da multidão, tirou um objecto cilíndrico pequeno do bolso do macacão, puxou o pino e jogou o artefacto por trás do pedestal que guardava o diamante Lucullan. O artefacto começou a desprender fumaça e faíscas. Jeff gritou para o guia:

 

- Ei, ali o seu problema. Há um curto circuito no fio por baixo do assoalho.

Uma turista gritou:

- Fogo!

- Calma, por favor! - suplicou o guia. - Não há necessidade de pânico. Mantenham a calma.

Ele virou-se para Jeff e acrescentou, incisivamente:

- Conserte logo isso!

- Não há problema.

Jeff aproximou-se das cordas de veludo que cercavam o pedestal.

- Nee! - disse o guarda. - Não pode chegar perto daí!

Jeff encolheu os ombros.

- Para mim, não faz diferença. Conserte você.

Ele virou-se para ir embora. A fumaça saía agora depressa. As pessoas recomeçavam a entrar em pânico.

- Espere! - suplicou o guia. - Só um minuto!

Ele foi apressadamente até o telefone e discou um número.

- Capitão? Hendrik falando. Terei de pedir para desligar o alarme. Estamos com um pequeno problema. Pois não, senhor. - Ele olhou para Jeff. - Quanto tempo vai demorar o conserto?

- Cinco minutos.

- Cinco minutos - repetiu o guia pelo telefone. - Dank Uwel.

Ele repôs o telefone no gancho e disse a Jeff:

- O alarme será desligado em dez segundos. Pelo amor de Deus, apresse-se! Nunca desligamos o alarme antes!

- Só tenho duas mãos.

Jeff esperou dez segundos, depois passou para dentro das cordas e se aproximou do pedestal. Hendrik fez um sinal para o guarda armado, que acenou com a cabeça e ficou olhando fixamente para Jeff.

Jeff trabalhava por trás do pedestal. O frustrado guia virou-se para o grupo de turistas.

- E agora, senhoras e senhores, como eu estava dizendo, temos aqui uma selecção de excelentes diamantes, a preços especiais. Aceitamos cartões de crédito, traveller's checks... - Ele soltou uma risadinha. -... e até mesmo dinheiro.

Tracy estava parada na frente do balcão e perguntou em voz alta:

- Também compram diamantes?

O guarda fitou-a.

- Como?

- Meu marido é garimpeiro. Acaba de voltar da África do Sul quer que eu venda isto.

Enquanto falava, ela abriu a mala. Mas segurava-a ao contrário e uma cascata de diamantes faiscantes caiu, espalhando-se pelo chão.

- Meus diamantes! - gritou Tracy. - Ajudem-me!

Houve um momento de paralisia e silêncio, depois começou o maior tumulto. A multidão polida transformou-se numa turba incontrolável. Todos se puseram de quatro a catar os diamantes, empurrando-se e gritando.

- Peguei alguns...

- Leve um punhado, John...

- Largue que este é meu...

 

O guia e o guarda estavam completamente atordoados. Viram-se empurrados para o lado por um mar de seres humanos gananciosos e em luta, enchendo os bolsos e bolsas com diamantes. O guarda gritou:

- Recuem! Parem com isso!

Ele foi derrubado no chão. Um grupo de turistas italianos entrou na sala. Quando perceberam o que estava acontecendo, os italianos juntaram-se à luta frenética.

O guarda tentou se levantar para accionar o alarme, mas a maré humana tornava isso impossível. Ele era pisoteado pela multidão. O mundo subitamente enlouquecera. Era um pesadelo que parecia não ter fim.

Quando o atordoado guarda conseguiu finalmente se levantar, cambaleando, abriu caminho pela confusão, aproximou-se do pedestal... e parou ali, olhando fixamente, incrédulo.

O diamante Lucullan desaparecera.

E o mesmo acontecera com a mulher grávida e o electricista.

 

Tracy removeu seu disfarce num reservado do banheiro público em Oosterpark, a alguns quarteirões do centro da lapidação. Levando o embrulho de papel pardo, ela foi para um banco de parque. Tudo corria com perfeição. Ela pensou na multidão brigando pelos zircónio sem valor e soltou uma risada. Viu Jeff se aproximar, usando um terno cinza-escuro, a barba e o bigode haviam desaparecido. Tracy levantou-se, Jeff chegou ao banco, sorrindo.

- Eu a amo. - Ele tirou o diamante Lucullan do bolso do paletó e entregou a Tracy. - Dê isto a seu amigo, querida. Até mais tarde.

Tracy observou-o se afastar. Seus olhos brilhavam. Eles pertenciam um ao outro. Pegariam aviões separados e se encontrariam no Brasil. Depois disso, estariam juntos pelo resto de suas vidas.

Tracy olhou ao redor, a fim de certificar-se que ninguém observava. Abriu o embrulho. Lá dentro havia uma pequena gaiola, com uma pomba cinzenta. Quando chegara ao escritório da American Express, três dias antes, Tracy a levara para sua Suíte e soltara o outro pombo pela janela, observando-o a voar para longe, desajeitadamente. Agora, Tracy tirou da bolsa uma bolsinha de camurça e nela pós o diamante. Retirou a pomba da gaiola e segurou-a firme, enquanto amarrava a bolsinha em sua perna.

- Boa menina, Margo. Leve isso para casa.

Um guarda uniformizado surgiu subitamente.

- Ei, espere um pouco! O que pensa que está fazendo?

O coração de Tracy parou por um instante.

- Como... qual é o problema, senhor guarda?

Os olhos dele se fixavam na gaiola, a expressão era furiosa.

- Você sabe muito bem qual é o problema. Uma coisa é dar comida aos pombos, mas é proibido agarrá-los e meter em gaiolas. E agora trate de largar esse pombo antes que eu a prenda.

Tracy engoliu em seco, respirou fundo.

- Está bem, senhor guarda.

Ela levantou os braços e jogou a pomba para o ar. Um sorriso lindo iluminou seu rosto, enquanto a pomba se elevava, cada vez mais alto. Circulou uma vez, depois seguiu na direcção de Londres, 370 quilómetros a oeste. Um pombo-correio voava a uma média de 65 quilómetros horários, como Gunther lhe dissera: portanto, Margo estaria com ele dentro de seis horas.

- Nunca mais tente isso - advertiu o guarda a Tracy.

- Está bem - prometeu Tracy, solenemente. - Nunca mais.

 

Quatro horas depois, Tracy estava no Aeroporto Schiphol, encaminhando-se para o portão pelo qual embarcaria num avião, seguindo para o Brasil. Daniel Cooper estava parado num canto, observando-a, com uma expressão amargurada nos olhos. Tracy Whitney roubara o diamante Lucullan. Cooper tivera certeza disso desde o momento em que tomara conhecimento da notícia. Era o estilo dela, ousado e imaginativo. Contudo, não havia nada que se pudesse fazer. O Inspector Van Duren mostrara fotografias de Tracy e Jeff ao guarda do museu.

- Nee. Nunca vi qualquer dos dois. O ladrão tinha barba e bigode, as faces e o nariz eram mais gordos. A mulher dos diamantes tinha cabelos pretos e estava grávida.

Também não havia qualquer pista do diamante. As pessoas e as bagagens de Jeff e Tracy haviam sido meticulosamente revistadas.

O diamante ainda está em Amsterdam - garantira o Inspector Van Duren a Cooper. - Nós o encontraremos.

Não, não encontrarão, pensou Cooper, furioso. Ela trocara os pombos. O diamante fora levado para fora do país por um pombo-correio.

Cooper ficou observando, impotente, enquanto Tracy atravessava o pátio. Ela era a primeira pessoa que conseguira derrotá-lo. Iria para o inferno por sua causa.

Ao chegar ao portão de embarque, Tracy hesitou por um momento, depois virou-se e fitou Cooper nos olhos. Percebera que ele a seguia por toda a Europa, como uma espécie de anjo vingador. Havia nele alguma coisa bizarra, assustadora e ao mesmo tempo patética. Inexplicavelmente, Tracy sentiu pena dele. Deu-lhe um pequeno aceno de despedida, depois virou-se e embarcou no avião.

Daniel Cooper tocou na carta em que pedia demissão, guardada em seu bolso.

 

Era um luxuoso 747 da Pan American e Tracy ocupava a poltrona 4B, no corredor, primeira classe. Sentia-se excitada. Dentro de poucas horas estaria com Jeff. Casariam no Brasil. Nada mais de aventuras, pensou ela. Mas não sentirei saudade. A vida já será bastante emocionante sendo apenas a Sra. Jeff Stevens.

- Com licença.

Tracy levantou os olhos. Um homem obeso, de meia-idade, aparência devassa, estava parado ao seu lado. Ele indicou a poltrona junto à janela.

- Aquele é o meu lugar, doçura.

Tracy virou-se para que o homem pudesse passar. Quando sua saia levantou um pouco, o homem contemplou-lhe as pernas com uma expressão apreciativa.

- Grande dia para um voo, hem?

Havia um tom insinuante em sua voz. Tracy acenou com a cabeça e virou-se. Não tinha interesse em entabular conversa com outro passageiro. Havia muito em que pensar. Toda uma vida nova pela frente. Eles se fixariam em algum lugar e se tornariam cidadãos exemplares. Os ultra-respeitáveis Sr. e Sra. Jeff Stevens. O companheiro de viagem cutucou-a.

- Já que estaremos juntos neste voo, mocinha, por que não nos apresentamos? Meu nome é Maximilian Pierpont.

 

                                                                                Sidney Sheldon  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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