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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SE ME DESEJAS / Kresley Cole
SE ME DESEJAS / Kresley Cole

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Em sua juventude, Hugh MacCarrick se apaixonou por Jane Weyland, uma preciosa moça inglesa que desfrutava em deixá-lo louco com seus flertes. Entretanto, ele sabia que jamais poderia casar-se com ela por culpa da maldição que pesava sobre a família MacCarrick, por isso Hugh fugiu e acabou transformando-se em capanga da Coroa. O coração de Jane quebrou quando aquele escocês desapareceu de sua vida. Agora, anos mais tarde, Hugh deve protegê-la dos perigosos inimigos de seu pai. A dor que sentiu quando ele a abandonou se transformou em fúria, mas seu desejo por ele não diminuiu absolutamente.

 

 

 

 

     Reino de Marrocos, Norte da África

     1846

    —Dispara de uma vez, MacCarrick! —ordenou David Grei de novo. Seu tom de voz, embora severo, foi bastante baixo para não delatar sua posição no desolado topo do monte Adas.

     Hugh ignorou-o. Era a primeira vez que ia matar alguém, e sabia que uma vez que o tivesse feito não teria como voltar atrás; era uma decisão muito difícil para um rapaz de tão somente vinte e dois anos.

       Atiraria quando estivesse preparado. Maldição.

       Hugh afastou o olho da mira, agarrou o rifle com uma mão e com o antebraço empurrou o suor e a areia que faziam com que os seus olhos ardessem como mil demônios. Tinha chegado o verão, e o céu, deserto de nuvens, brilhava com uma irreal luz azul. Hugh piscou ante a cegadora luminosidade que o impedia de ver o sol.

       —Por que diabos está hesitando? — brigou Grei — Já é meio-dia.

     Tinham o sol bem em cima, projetando as únicas sombras desse dia. Umas sombras que se zombavam do que aqueles atiradores pretendiam.

     Hugh não queria defraudar Grei. Este era maior que ele, e o mais parecido que tinha de um mentor. Era também o único amigo de Hugh fora do clã MacCarrick, e a única pessoa com quem Hugh passaria seu tempo livre, à exceção de seus irmãos.

       Também o único pelo que estaria disposto a matar, sem contar, claro, a certa garota de cabelos cor de mogno. Sorriu amargamente e voltou a colocar o rifle em cima do ombro.

       De certo modo, ia matar por ela.

       Eliminar um estranho a sangue frio era cruzar a linha. E isso era o que ele queria.

       —Por Deus santo, MacCarrick! —Grei tirou seu rifle de sua bolsa e começou a montá-los— Teremos que esperar outras quatro semanas antes de voltar a ter um disparo como este.

       Isso era certo. O traidor sabia quem ordenou seu assassinato, e tinha passado o último mês fugindo até ir parar na aquela sitio berbere abandonado que agora tinham na mira. Naquela parte do mundo, inclusive uma cabana desmantelada e sem cobertura como aquela, tinha um pátio traseiro com um oásis privado; e ali estava sentado o homem que procuravam. Situou-se frente à única via de acesso ao pátio, com uma pistola no colo e um rifle a seu lado, mas estava desprotegido das alturas.

       O disparo era claro; entretanto, ambos sabiam que Grei nunca acertaria um branco tão afastado. A arma preferida de Grei eram as facas, em troca Hugh tinha caçado e disparado desde o dia em que pôde segurar um rifle. Por outro lado, Hugh queria fazê-lo enquanto o homem estivesse sozinho.

     —Eu atirarei— balbuciou entre os dentes olhando para Grei. Negou-se a acreditar que o que viu brilhar na expressão do outro fosse prazer. Tratava-se de um trabalho, um trabalho estúpido. Era impossível que Grei desfrutasse com isso.

       Hugh lhe deu as costas e voltou a enxugar as gotas de suor. A brisa era suave, mas o objetivo estava a mais de trezentos metros. O resplendor do sol era um fator importante; o metro e vinte do canhão de seu rifle estavam ardendo, e só tinha uma bala no tambor. Colocou tudo em conta.

       Acariciou a arma com o dedo indicador antes de colocar o dedo, mais sensível, em cima do gatilho, e começou o ritual que, quase de maneira inconsciente, seguia cada vez que ia disparar. Segurou a culatra com a outra mão, acariciou a madeira com o polegar uma porção de vezes e conteve a respiração.

       Finalmente, apertou o gatilho com suavidade; dentro de seus ouvidos, o disparo soou como uma cacetada, e sem justificação alguma lhe pareceu muito mais estridente que quando saía a caçar.

       Apenas dois segundos mais tarde, a bala atravessou a testa do homem e o atirou no chão. Da parte de atrás de seu crânio o sangue saía a fervuras, tanto que empapou a areia, e aquelas pernas sem vida levantaram uma nuvem de pó ao desabar-se.

       Já acabou. Já estava feito.

       Hugh o tinha feito.

       De novo acreditou ver prazer nos olhos de Grei.

       —Nunca vi ninguém disparar como você, escocês. —Grei lhe deu uma palmada nas costas antes de agarrar a cigarreira que sempre levava consigo e de abri-la sorridente.

       De sua parte, a única coisa que Hugh sentia era asco, e uma estranha sensação de alívio.

       Sem perder nem um segundo a mais, montaram em cavalos e desceram pelos caminhos da montanha como alma que leva o diabo. Ao cabo de uma hora, chegaram ao vale, perto do povoado, e reduziram a marcha.

       —Quando retornarmos a Londres — disse Grei, que continuava contente e excitado—, direi a Weyland que já está preparado para ir só.

       A expressão de Hugh deve ter delatado o incômodo que se sentia ante a alegria de Grei, porque este acrescentou:

       —Não me olhe assim, MacCarrick. Te dedique a isto tantos anos como eu e verá se for capaz de não desfrutar fazendo-o.

       Desfrutar? Hugh sacudiu a cabeça e lhe respondeu em voz baixa:

       —Só é um trabalho. Nada mais.

       —Acredite em mim. —Grei sorriu condescendente— Quando for o único tem... transformará em algo mais.

  

Londres, Inglaterra

1856    

Um duro assassino, um que tinha mantido a raia sua obsessão durante uma década.

Esse era o homem que Edward Weyland havia tornado a introduzir na vida de sua filha com uma críptica mensagem: “Jane está em perigo”.

Desde que, estava na França, tinha recebido a carta de Weyland dois dias atrás, Hugh a tinha lido e relido, cada vez com os nódulos brancos pela fúria com que segurava essa parte de papel.

       Se alguém se atreveu a lhe fazer mal...

       Agora, depois de cavalgar dia e noite tão rápido como tinha podido, Hugh tinha chegado por fim à mansão dos Weyland. Desceu de seu cavalo e suas pernas quase dobraram, pois, depois de tanto cavalgar, mal podia as sentir. Seu cavalo estava tão cansado como ele, coberto de suor e ofegante.

       Hugh se dirigiu à porta traseira, por onde ele sempre estava acostumado a entrar, e na escada topou com o sobrinho de Weyland, Quinten Weyland, que também trabalhava para seu tio.

       —Onde está Jane? —perguntou Hugh sem mais preâmbulos.

       —Lá em cima — respondeu Quin, que parecia preocupado e um pouco aturdido— Preparando-se para... para sair.

       —Está a salvo?

       Quando Quin assentiu sem prestar muita atenção, Hugh sentiu como o alívio alagava todo seu corpo. Passou todas as horas do caminho imaginando que a vida de Jane estava em perigo. Tinha rezado para que ela estivesse bem, para que não chegasse muito tarde. Agora que sabia que estava a salvo, a fome e a sede que tinha ignorado durante dois dias começavam a lhe cobrar.

       —Quem está agora com ela?

       —Rolley — respondeu Quin—, e esta noite eu vou acompanhá-la.

       Rolley era o mordomo de Edward Weyland. Como a maioria dos mordomos daquela exclusiva zona do Piccadilly, era um homem que tinha crescido no ambiente de distinção que correspondia à antigüidade da fortuna da família a que servia.

       Rolley tinha trinta e poucos anos, era musculoso e seu nariz, quase disforme, tinha sido fraturado muitas vezes. Tinha os dedos cheios de cicatrizes devido ao uso incessante dos punhos. Hugh sabia que esse homem estava disposto a morrer pela Jane.

       —Onde está Weyland? —perguntou Hugh.

     Quin negou com a cabeça.

       —Chegará tarde. Disse-me que se por acaso você conseguir chegar aqui esta noite, dissesse que quer vê-lo pela manhã para te contar todos os detalhes.

       —Vou entrar e...

       —Eu se fosse você não faria isso.

       —E por que não, posso saber?

       —Por vários motivos; em primeiro lugar, está coberto de pó e tem a cara que dá pena.

       Hugh passou a manga pela face e se lembrou dos cortes que cobriam seu rosto.

       —Em segundo lugar, não acredito que Jane queira vê-lo.

       Hugh tinha cavalgado sem descanso durante dias, todo seu corpo era uma massa de músculos doloridos que se queixavam de velhas feridas e se lamentavam das novas, e a cabeça parecia que fosse estourar. O único que lhe tinha permitido seguir adiante era a idéia de voltar a estar perto de Jane.

       —Isso não tem sentido. Ela e eu fomos amigos.

       Quin o olhou de um modo estranho.

       —Bom, ela agora é... diferente. Completamente diferente e completamente incontrolável. —Olhou Hugh nos olhos— Não sei se sou capaz de estar outra noite com elas. —Sacudiu a cabeça com força— Já não posso mais. E depois do que fizeram ontem à noite...

       —Quais? Das quais esta falando? O que fizeram?

       —Das Oito. Ou ao menos de três delas. E pensar que duas são minhas irmãs!

       As famosas Oito Weyland eram Jane e sete de suas primas. Ao lembrar-se das travessuras a que insistiram a Jane, ao Hugh começou a ferver o sangue.

       —Mas não é por isso pelo que me fez vir aqui, não é? —Hugh não tinha abandonado o seu irmão mais novo, Courtland, ferido na França, nem quase matado o seu cavalo, um precioso espécime consegido pelos serviços prestados, por essa tolice— Me diga que não me trouxeram porque Weyland precisa que alguém a controle.

     Era impossível que Weyland fosse tão estúpido para pedir a Hugh que retornasse por esse motivo. Weyland sabia ao que se dedicava. Era seu superior, e era ele quem lhe pedia que matasse as pessoas em nome da Coroa. E, além disso, não tinha nem idéia do muito que Hugh desejava a Jane. Nem do tempo que fazia em que tinha esses sentimentos.

     Uma obsessão. Levava mais de dez anos obcecado com ela...

     Hugh sacudiu a cabeça... Weyland nunca teria exagerado em um assunto como esse.

     —Weyland não te contou o que acontece? —Quin franziu o cenho— Acreditava que tinha te escrito uma carta.

     —Com muito pouca informação. Agora me diga, que demônios...

     —Maldição! —Rolley apareceu enfurecido— Maldição, maldição! Quin!, viu-a?

     —Rolley? —Quin ficou em pé de um salto— Achei que ia vigiá-la até que fosse à hora de sair.

     O mordomo olhou para Quin sarcástico.

     —Já te disse que sabia o que estávamos fazendo. Acredito que saltou pela janela. E terá convencido a essa donzela para que fique no quarto provando os seus vestidos.

     —Que se foi? —Hugh agarrou Rolley da camisa com os punhos apertados— Aonde foi e com quem?

     —A um baile — respondeu Rolley, mas imediatamente olhou para Quin.

       Hugh sacudiu Rolley sabendo que arriscava a enfurecer este, e que, se o fazia, seus punhos de aço não demorariam para entrar em ação.

     —Adiante — deu permissão Quin—, Weyland sempre conta tudo.

     —Vai a um baile de máscaras com as irmãs de Quin e uma de suas amigas.

     —Que tipo de baile? —perguntou Hugh, embora começasse a fazer uma idéia.

     —Desses aos que assistem libertinos e cortesãs respondeu Rolley— Em um armazém, na Rua Haymarket.

     Hugh balbuciou algumas maldições, soltou Rolley e obrigou as suas pernas a chegar até seu cavalo, que o olhava incrédulo, pois acreditava que sua comprida viagem já tinha acabado. Apesar de seus músculos reclamarem, Hugh apertou os dentes e montou.

     —Vai atrás dela? —perguntou Rolley— Ela não poderá saber que nós a seguimos. Weyland não quer que ela descubra.

     —Fique tranquilo, MacCarrick — interveio Quin— Acredito que pegaram uma carruagem. O tráfico está impossível, assim tenho tempo de sobra de montar em meu cavalo e chegar ali antes que elas...

     —Então me siga, mas eu já vou. —Hugh pegou as rédeas e se dispôs a partir— Será melhor que diga o que vou enfrentar.

     A solenidade que tingiu a expressão de Quin fez que Hugh apertasse com força os punhos ao redor das rédeas.

     —Não é o que, e sim quem. Weyland acredita que David Grei veio matar Jane.

        

Ao voltar a vê-la depois de dez anos, Hugh se esqueceu de respirar. Deixou de sentir a dor que lhe atravessava todo o corpo, a fome e o cansaço.

     Precipitou-se para onde estava e se pegou como uma sombra ao grupo de garotas que, depois de descer da carruagem, caminhavam pelo Haymarket.

     Assim que ouviu mencionar o nome de Grei, Hugh decidiu que ia levar Jane dali.

   Uma enorme mão o agarrou pelo ombro e o jogou para trás.

     —Poderia ter parecido uma adaga nas costas ao menos uma dúzia de vezes nos últimos dez minutos —disse uma voz profunda atrás dele— Está perdendo a mentalidade?

     —Ethan? —Hugh tentou se soltar das garras de seu irmão mais velho e dar a volta para poder observá-lo— O que está fazendo aqui?

     —Meu Deus, o que aconteceu com seu rosto? —interrompeu-o Ethan.

     —Uma explosão. Desprendimentos de montanha. —Hugh tinha estado sob uma chuva de ardósia, em meio de uma batalha que ocorreu em Andorra apenas alguns dias antes; a mesma batalha em que Courtland quase tinha perdido uma perna— Agora responde minha pergunta.

     —Fui à casa de Weyland. Encontrei-me com Quin justo antes que se fosse —respondeu— E tem sorte de que tenha sido assim. Não é próprio de você atuar com tão pouca precaução, e menos em um lugar como este. No que está pensando?

     —Estou pensando em que tenho que levar Jane daqui.

     —Weyland só quer que a sigam. Deixa de menear a cabeça..., Grei ainda não chegou na Inglaterra. —Ao ver que Hugh continuava sem parecer convencido, Ethan acrescentou— E talvez não chegue com vida. Assim se acalme e confronta sua missão de babá como um homem.

     —E para isso que me pediram que retornasse? Por que Weyland me quer precisamente?

     —Ao que parecer, ele acredita que eu a deixaria muito nervosa — disse Ethan quase sem lhe dar importância. Ele sabia que a cicatriz que atravessava seu rosto assustava as mulheres— E a especialidade de Quinton é surrupiar segredos das damas estrangeiras a sua peculiar maneira. Não, Weyland precisa de um atirador. E você é o que melhor conhece Grei.

     Hugh voltou a olhar Jane, que nesse momento cruzava a rua para onde ele estava escondido. Passou tão perto, que pôde ouvir sua voz grave e sensual, mas não o bastante perto para distinguir o que dizia. Usava um vestido de uma preciosa cor verde, com um decote que deixava descoberto seus ombros de alabastro e revelava o muito que seu corpo tinha mudado. Tinha o rosto parcialmente coberto por uma máscara de plumas verde escuro que caíam de ambos os lados do rosto, como as asas do animal ao que as tinham arrancado.

     Com esse vestido e essa máscara, estava muito... sedutora.

   Hugh não surpreendeu notar que tinha a testa empapada de suor. Seu corpo sempre tinha reagido ante a Jane. Lembrava-se perfeitamente de todos os sintomas que tinha agüentado estoicamente no último verão que passou com ela; o coração pulsando desbocado, a necessidade de engolir saliva meia dúzia de vezes por minuto, o estremecimento de prazer que o percorria ante a mais leve de suas carícias.

     Só com que sussurrasse algo no ouvido, tinha que morder a língua para não gemer...

     —Courtland retornou a Londres com você? —perguntou Ethan.

     Sem deixar de olhar a Jane, Hugh respondeu:

     —Tive que deixá-lo quando recebi a carta de Weyland. Com a perna ferida, Court não podia cavalgar o suficientemente rápido.

     —Onde o deixou? —quis saber Ethan— Espero que longe dela.

     A missão de Hugh não consistia só em obter que Court retornasse a Inglaterra, supunha-se também em evitar que seu irmão mudasse de opinião e fosse outra vez procurar sua mulher, Annalía Llorente.

     —Deixei-o na França. Court não irá procurá-la. É consciente do dano que isso pode fazer a ela — respondeu Hugh convencido, embora no fundo perguntasse se era assim.

     O que sentia Court por essa mulher era tão forte que podia apalpar-se. Mas ao saber que Jane estava em perigo, Hugh não tinha tido mais remédio que o abandonar.

     —Você sabe onde está Grei? —perguntou Hugh. Fazia uma porção de anos, que esse homem tinha sido amigo dele.

     —Weyland o mandou a uma missão suicida. Falhou.

     Essa frase fez que Hugh olhasse para Ethan.

     —Você formava parte dela? —Às vezes, muito freqüentemente, Hugh desejava que nem ele nem Ethan tivessem sido recrutados pelo Weyland.

     Seu irmão mais velho desenhou um sorriso gelado que distorceu a branca cicatriz ue lhe cruzava a cara, e foi como se lhe dissesse: “Irmãozinho, se eu tivesse estado ali não teria falhado”.

     Então respondeu pessoalmente:

     —Não, eu não estava, mas me ofereci como voluntário para eliminá-lo. Ao parecer, Weyland acreditou que estava muito envolvido a nível pessoal e não aceitou.

     —Ofereceu como voluntário? —repetiu Hugh zangado.

     Ethan deu de ombros sem alterar-se.

     —Bom, vamos. Não quero que por minha culpa continue aqui parado. Sigamos-as e assim poderá vê-la de frente.

     Hugh franziu o cenho, mas como Ethan já estava a par do que sentia pela Jane, não tinha sentido negá-lo.

     —Não a vi há anos — replicou na defensiva, caminhando junto com Ethan pela rua— Sinto curiosidade.

     —Tudo isto é como presenciar como uma carruagem desbocada está a ponto de explodir-se — balbuciou. Primeiro Ethan, Court e sua garota, e agora você volta por Jane... de novo. Graças a Deus que eu sou imune.

     Hugh ignorou esse comentário e voltou a esconder-se entre as sombras da rua.

     —Por que está Weyland tão seguro de que Grei vai atrás de Jane?

     —Grei procura vingança — disse Ethan sem disfarces— Destruirá o que Weyland mais ama.

     Nesse instante, Jane riu de algo que havia dito sua prima e Hugh voltou a olhá-la. Ela sempre dava risada fácil, uma qualidade para ele totalmente desconhecida, mas que o tinha fascinado. Uma vez, tempo atrás, Jane lhe agarrou o rosto entre suas delicadas mãos e, olhando-o nos olhos, disse-lhe que, se fosse necessário, ela riria pelos dois.

     —De modo que Grei tem intenção de matar Jane — murmurou Ethan a suas costas— Quer degolá-la, como tem feito já com outras mulheres. Ao que parecer, pegou gosto. É como se desfrutasse com seu sofrimento.

     —Basta — espetou Hugh apertando os dentes e sem afastar o olhar do sorriso de Jane.

     Apesar de que sabia que provavelmente era a única solução, em principio Hugh não tinha gostado da idéia de eliminar Grei. Agora já não tinha nenhuma dúvida.

     —Acredito que nestes momentos desejaria que não tivessem recusado minha oferta de matá-lo — disse Ethan, entendendo perfeitamente o que sentia— Mas não tem do que preocupar-se, irmãozinho, acredito que agora sim, me deixarão fazê-lo. Weyland fará tudo o que for necessário para protegê-la.

     E Ethan assinalou com o queixo para Jane, olhou Hugh, e depois voltou a olhar às garotas. De repente, ficou imóvel. Um brilho incomum apareceu em seus olhos, seguido logo depois de uma labareda que deixou Hugh sem fala, pois era algo do mais incomum.

 

     “Interesse? Nos olhos sem vida de Ethan?”

     Hugh apertou os punhos. Esse olhar faminto era dirigido a Jane?

     Antes sequer de dar-se conta do que ia fazer, Hugh empurrou seu irmão contra a parede e o imobilizou colocando o antebraço debaixo do pescoço. De pequenos, estavam acostumados a brigar constantemente, mas quando se deram conta de que podiam acabar matando um ao outro, decidiram fazer as pazes.

     Agora Hugh estava disposto a romper essa trégua.

     Sem alterar-se pelo ataque, Ethan olhou para Hugh cansado:

     —Calma, não estou olhando a sua preciosa Jane.

     Hugh demorou um momento em soltá-lo; custava-lhe conceber que um homem não sentisse luxúria pela Jane.

     —Então, a quem estava olhando?

     Ethan continuava fazendo-o por cima do ombro de Hugh, assim este optou por seguir a direção de seus olhos.

     —A Claudia? A que usa a máscara vermelha?

     Faria bom par com o Ethan. Hugh recordou que Jane lhe havia dito que Claudia era muito atrevida e intrépida.

     Como seu irmão não lhe respondeu, Hugh insistiu:

     —Belinda? A alta de cabelo castanho?

     Ethan negou com a cabeça, devagar, sem afastar nem um segundo o olhar de seu objeto de desejo, a terceira garota, uma loira pequena que usava uma máscara azul e a que Hugh não conhecia.

     Desde que recebeu a ferida no rosto, Ethan tinha perdido interesse por muitas coisas, incluídas as mulheres, que tanto tinham gostado antes. Mas nesse instante foi como se anos de algum tipo de necessidade que tinha mantido oculta subissem de repente à superfície.

     Ao parecer, seu irmão não era tão imune.

     Hugh custou reagir ante essa mudança.

     —Não a conheço, mas acredito que é amiga de Jane. E parece jovem, de uns vinte anos. Muito jovem para você. —Ethan era mais velho, um velho de trinta e três anos.

     —Se for tão mau como você, Court e todo o clã acham que esse seria motivo suficiente para que me sentisse atraído por ela, não acha? —Em um abrir e fechar de olhos, Ethan alargou a mão e arrancou uma máscara de dominó a um dos transeuntes. O homem abriu a boca para protestar, mas ao ver a expressão do Ethan mudou de opinião.

     —Não brinque com ela, Ethan.

     —Tem medo de que atrapalhe sua relação com a Jane? —perguntou o outro enquanto colocava a máscara— Odeio ter que lhe recordar isso irmão, mas essa relação já estava danificada inclusive antes que a conhecesse. E há um livro que demonstra isso.

     Sentenciados a caminhar com a morte...

     —Seu destino é tão penoso como o meu —recordou Hugh— e mesmo assim vai atrás dessa mulher.

     —Ah, mas é que eu não corro o risco de me apaixonar por ela. — dirigiu-se para o baile e gritou por cima de seu ombro— E ela não corre perigo de apaixonar-se por mim.

     Com um gemido de frustração, Hugh o seguiu para o interior.

    

Jane sabia que, para passear pela Rua Haymarket, era necessário levar como proteção um tijolo escondido dentro da bolsa, mas o peso estava destruindo seu pulso.

     Tanto Jane como suas acompanhantes, suas duas intrépidas primas e seu amiga, que estava de visita, faziam fila para entrar no armazém de Haymarket, assim Jane voltou a mudar a bolsa de mão.

     Embora essa noite não fosse nem muito menos a primeira vez que se metiam nos bairros baixos de Londres — suas anteriores escapadas já as tinham levado a visitar as casas de apostas mais sórdidas, os espetáculos mais picantes, e o Circo Erótico Russo em sua visita anual—, a lasciva cena que tinha ante seus olhos fez que Jane sentisse medo.

     Uma horda de cortesãs defendia a casa como o mais feroz exército. Todas levavam máscaras, luziam vestidos que deixavam claro que seus serviços tinham sido muito bem remunerados, e passeavam frente aos homens, degustando a algum ou vários de vez em quando, antes de escolher ao que iriam levar para dentro com elas.

     —Jane, a final não nos disse o que foi o que te fez mudar de opinião sobre assistir a esta festa — comentou sua prima Claudia com voz tranqüila, em um intento de relaxar às demais— Mas eu tenho uma teoria. —Acho que temia que as outras duas se acovardassem e decidissem não ir. “A picante Claudia”, que esse dia usava sua cabeleira negra escondida atrás de uma máscara cor escarlate, adorava assistir a eventos como esse.

     —Nos conte—pediu sua irmã Belinda, que era completamente oposta a Claudia. Belinda era brilhante e muito séria, e essa noite as acompanhava para investigar, e não dizia em sentido figurado. Belinda queria eliminar as “flagrantes diferenças sociais”, mas queria escrever sobre elas com conhecimento de causa.

     Jane estava segura que, nesse mesmo instante, atrás de sua máscara cor clara, Belinda estava analisando a cena com olhos reformistas.

     —Precisamos de alguma razão para querer estar aqui — perguntou a misteriosa Madeleine Van Rowen—, além do fato de que isto seja um baile de cortesãs?

     Maddy era amiga de Claudia da infância, e ia ficar em Londres de visita umas semanas. Era inglesa de nascimento, mas nesses tempos vivia em Paris. Se os rumores eram certos, em um dos bairros mais sórdidos.

     Jane suspeitava que Maddy tinha viajado a Londres para visitar sua amiga e ver de passagem se podia conquistar o irmão mais velho da Claudia, Quin. Jane isso não incomodava o mais mínimo. Se Madeleine podia conseguir que Quin sentasse a cabeça e se casasse, merecia ficar com ele e com todo seu dinheiro.

     De fato, Jane se dava muito bem com essa garota, e encaixava com perfeição com seu grupo. Jane, Belinda e Claudia eram três das componentes das Oito Weyland; oito primas famosas por suas travessuras e suas brincadeiras, e que tinham nascido e crescido em Londres. Como o resto dos jovens enriquecidos da capital, passavam os dias e as noites desfrutando dos novos prazeres que essa louca cidade oferecia, e, dentro de uns limites, também dos velhos pecados.

     Jane e suas primas tinham dinheiro, mas não pertenciam à aristocracia. Possuíam maneiras, mas também desembaraço; podia-se dizer que eram damas, mas não umas flores delicadas. E o mesmo que Jane e suas primas, Maddy sabia se cuidar, e estava disposta a assistir a esse atrevido baile.

     Como se estivesse confessando um segredo, Claudia disse:

     —Jane vai aceitar por fim casar-se com o atraente Freddie Bidworth.

     Para Jane invadiu a culpa e ajustou a máscara para ocultar seu rubor.

     —Me descobriu, Claudie.

     Freddie Bidworth e ela estavam se vendo com assiduidade, e todo mundo, incluído Freddie, estava convencido de que Jane se casaria com ele. Mas ela ainda não tinha aceito o bonito e rico aristocrata.

     E Jane temia não poder fazê-lo nunca.

     Foi chegar a essa conclusão o que a fez decidir a assistir o baile; precisava distrair-se e afastar sua mente do dilema que enfrentava. Aos vinte e sete anos, Jane sabia que pretendentes como ele não iriam aparecer muito freqüentemente. E se não se casasse com Freddie, com quem faria? Jane sabia que esse trem estava a ponto de partir, e mesmo assim não podia subir nele.

     Suas primas haviam dito que duvidava porque a mãe e a irmã de Freddie eram insuportáveis. Mas a verdade era que, à exceção de seu próprio pai, Jane não confiava nos homens.

     Fazia já alguns anos que Jane se deu conta de que estava perdida. Não sua reputação, isso não. Não importava o mal que se comportassem as Oito Weyland, nunca conseguiam manchar sua reputação. Por outro lado, Jane não entendia como seu pai, um mero homem de negócios, tinha tanta influência entre os aristocratas e os membros mais importantes do governo, porque, diante o atônito olhar de suas primas, os convites nunca deixavam de chegar.

     Não, o que a tinha perdido tinha sido um moreno escocês de voz profunda e sensual e de intenso olhar. E isso apesar de que, por muito que ela o tivesse tentado, ele nunca a havia tocado; nem sequer a tinha beijado.

     Belinda a olhou incrédula:

     —Se resignou a suportar a família de Bidworth?

     —Sim, acredito que sim — respondeu Jane com cautela— Mas é uma decisão muito importante, e quero tomar no seu tempo. —Tomar no seu tempo? Já fazia um ano que Freddie tinha pedido em casamento pela primeira vez.

     —E esta é sua última loucura? —perguntou Maddy, e Jane se perguntou o que opinaria daquela festa uma garota que vivia em uma parte não muito bonita de Paris. Às vezes, em suas saídas noturnas em busca de aventuras, Maddy parecia... aborrecida— Sua despedida?

     —Precisamos de alguma razão para querer estar aqui — respondeu Jane irônica, repetindo as palavras de Maddy—, além do fato de que isto seja um baile de cortesãs?

     Por sorte, chegaram ao pescoço de garrafa que era a porta, e quando um empregado de calva reluzente que usava uma máscara de porco lhes pediu o preço da entrada deixaram de falar do assunto. As quatro fizeram malabarismos para evitar que as saias sujassem muito ao passar entre toda aquela aglomeração. Jane pagou um guine por cada uma delas. Fez para assim poder convidar Maddy sem ferir seu orgulho.

     Apesar de que Maddy reluzia um precioso vestido cor safira, Jane tinha visto seus baús no quarto de Claudia e sabia que suas meias e camisolas tinham sido remendados milhares de vezes e que suas jóias eram falsas. Maddy falava de mansões francesas e festas elegantes, mas Jane suspeitava que vivesse ao fio da pobreza. Em ocasiões, Maddy parecia disposta a enfrentar-se só contra o mundo.

     Uma vez que o empregado as deixou passar, Jane cruzou despreocupada a porta principal e as demais a seguiram de perto. Dentro do armazém, milhares de corpos perfumados ocupavam a pista central para conversar ou dançar ao som da música que tocava uma banda de sete membros. Legalmente, esse lugar podia ser qualificado como “uma sala de festas não autorizada”.

     Aqueles que tinham ouvido falar dele ou tinham estado ali, chamavam-no de A Colméia.

     Se o aspecto exterior da Colméia era austero e sóbrio, o interior era luxuoso. Os muros estavam estofados em seda e o incenso mais exclusivo impregnava o local com seu aroma, deixando uma tênue capa de fumaça que flutuava bem por cima das cabeças dos convidados. Das paredes, seguros por umas brilhantes correntes de aço, penduravam uns enormes murais de ninfas e sátiros em posturas luxuriosas enquanto que o chão abaixo eles estava coberto com tapetes persas e pilhas de almofadões. Ali, as cortesãs beijavam a todos aqueles libertinos e acariciavam com destreza suas partes íntimas, ou eram acariciadas por eles.

     Jane supôs que se algum deles queria fazer algo mais, deviam mudar-se a um dos quartos que havia no final do corredor.

     Belinda, que estava felizmente casada, murmurou:

     —Olhe o que têm que fazer essas mulheres para ganhar um pouco de dinheiro.

     —Para ganhar dinheiro? —perguntou Claudia fingindo ignorância— Quer dizer que...? Ah! E pensar que eu estive fazendo grátis!

     Belinda a olhou com desaprovação, pois sabia de sobra que Claudia, a seus vinte e oito anos, estava vivendo um tórrido romance com um dos rapazes das cavalariças de sua família.

     —Isso só se faz se está casada, Claudia.

     Então começou uma espécie de espetáculo e todo mundo se calou. Assim se evitou outra briga entre as irmãs.

     Uns homens e mulheres com o corpo completamente barbeado fingiam serem estátuas. Estavam cobertos de uma fina capa de argila e, enquanto se mantinham imóveis, vários convidados os acariciavam e admiravam.

     —Valeu a pena vir — disse Claudia levantando uma sobrancelha e sem afastar o olhar de um musculoso e bem dotado espécime.

     Jane teve que lhe dar a razão. Não havia nada como um montão de corpos nus imitando às estátuas, para lhe tirar da cabeça qualquer pensamento sobre o casamento, o passado e escoceses de voz sensual que desaparecem sem dizer uma palavra.

     Devido à multidão de assistentes que se amontoavam a suas costas e as empurravam, mal tiveram tempo de admirar a cena. Quando passaram por diante de uma mesa em que um rapaz com máscara de raposa e meio nu servia ponche, as quatro aceitaram encantadas, uma taça e se aproximaram de uma das paredes para afastar-se da aglomeração.

     Jane bebeu sua taça de repente.

     —Bom. Ninguém nos disse que levar coberta a parte superior do corpo fosse opcional... para ambos os sexos —comentou Jane ao ver como uma mulher, igual ao rapaz do ponche, meio nua, sorria-lhe sinuosamente e balançava seus seios para ela. Jane, como ditavam as normas, devolveu-lhe o sorriso— Se nos tivessem advertido — continuou isso um pouco irritada—,Teria posto um vestido mais decotado e teria trazido um tijolo muito maior.

     Maddy cheirou o conteúdo do copo e o estudou com expressão séria. Depois o bebeu de um gole de uma vez que Claudia levantava sua taça e dizia:

     —Estou contente de assistir uma festa em que não tenho que avivar o ponche.

     Desde dia em que viu como Quin, seu irmão mais velho, o fazia, com maravilhosos resultados, Claudia nunca se esquecia de levar sua cigarreira e animar assim os convidados.

     Um libertino de meia idade se ofereceu às mulheres que estavam deitadas sobre os almofadões, no tapete persa; elas riram. Ao vê-lo, Belida franziu o cenho e, sem perder um minuto, deu sua taça a Jane e começou a tomar notas como se fosse um juiz apontando todas as faltas de um menor. Jane deu de ombros, deixou sua própria taça, vazia, em uma bandeja e começou a beber a de Belinda.

     Quase se engasgou ao ver um homem muito alto, com uma máscara branca e preta, que atravessava a multidão como se procurasse alguém. Seu corpo, sua forma de caminhar, a linha agressiva que desenhavam seus lábios por debaixo do véu que caía de sua máscara, tudo recordou Hugh, embora ela soubesse que era impossível que fosse ele. Hugh não estava em Londres.

     Mas, e se fosse? Cedo ou tarde ele retornaria à cidade, e então acabariam se encontrando. Jane se negava a vê-lo ali, naquele tapete, de joelhos e com os olhos em branco porque uma mulher estivesse manuseando-o. Esse pensamento fez que Jane esvaziasse de repente a taça de Belinda.

     —Vou procurar mais ponche — balbuciou sem poder permanecer por mais tempo entre toda aquela massa de corpos suados.

     —Traz mais monopoliza — disse Claudia.

     —Para mim que seja o dobro — acrescentou Maddy, ausente. Estava fascinada olhando o homem, também muito alto, que cruzava o salão junto com o outro.

     De caminho para a mesa em que estava o ponche, Jane reconheceu perfeitamente o mal-estar que começava a sentir no estômago. Desde que tinha usado a razão, sentia uma ansiedade como se lhe faltasse algo, como se soubesse que estava destinada a algo melhor que não podia alcançar. Quando isso lhe acontecia, impacientava-se.

     Agora, depois de ver esse homem que se parecia tanto com Hugh, e de imaginar-lo com outra mulher lhe agradando, Jane sentiu uma repentina urgência de sair e tomar ar fresco. Isso, ou vomitava o ponche que tinha bebido.

     Com as taças nas mãos, Jane retornou para junto de seu grupo para lhes perguntar se incomodariam sair e tomar ar.

     Mas Maddy não estava ali.

     —Dei a volta e tinha desaparecido — comentou Claudia sem preocupar-se muito.

     Maddy tinha por costume desaparecer sempre que gostava. Quanto mais pensava, mais consciente era Jane de que Maddy não encaixava em um lugar como A Colméia.

     —Buscaram pela pista de baile? —perguntou depois de um suspiro.

     As três começaram a mover-se entre a multidão. Por desgraça, Maddy era muito baixa e magra, e tinha uma estranha habilidade para camuflar-se com o entorno. Meia hora mais tarde, continuavam sem encontrá-la.

     O som estridente de um apito rasgou o ar; Jane levantou a cabeça de repente. A banda parou de tocar em seco.

     —Polícia! —gritou alguém quando começaram ouvir mais apitos— É a maldita polícia!

     —Não, não, isso é impossível — exclamou Jane. Os que organizavam esses bailes se encarregavam de subornar à polícia. Quem tinha sido o estúpido que esqueceu de pagar por sua “segurança”?

    De repente, enchentes de gente gritando se transbordaram para a saída, as arrastando com eles. A Colméia se transformou em uma garrafa de champanha sacudida antes de desarrolhá-la. O edifício inteiro pareceu tremer à medida que as pessoas fugiam por toda parte, e Jane e suas primas, depois de sofrer vários empurrões, acabaram separando-se umas das outras.

     Jane lutou com todas suas forças para manter-se junto a elas, mas quanto mais tentava mais se afastava. Quando Belinda assinalou a porta traseira, Jane sacudiu energicamente a cabeça, aquela saída estava completamente bloqueada. Ali as esmagariam asfixiando. Preferia passar a vergonha de ver seu nome impresso na primeira página do The Times a acabar assim.

     Quando Jane se deu conta de que tinha perdido de vista suas primas e que ficou sozinha, se aconchegou contra a parede. Mas a massa de gente continuava correndo e voltou a engolir Jane. Incapaz de encontrar um lugar onde refugiar-se, sentiu como se o mundo girasse ao contrario.

     Algumas mãos a empurraram com força e perdeu o equilíbrio. Deu a volta movimentando a bolsa. Conseguiu fazer um pouquinho de espaço, mas não conseguiu bater em ninguém, e de repente se deu conta de que sua bolsa tinha desaparecido. Seu dinheiro, seu amparo...

     O seguinte empurrão não a pegou despreparada, entretanto, alguém estava pisando na saia e, e fez que Jane movesse os braços, não pôde evitar cair ao chão.

     Sem perder tempo, tentou levantar-se, mas suas saias estavam esparramadas pela pista de dança como as asas de uma mariposa cravadas em uma vitrine. Embora tentasse levantar uma e outra vez, sempre havia um novo par de sapatos capturando-a.

     Jane moveu as mãos para seus tornozelos e, desesperada, retirou o tecido com força para tentar liberar-se. Não podia respirar debaixo de tanta gente. Como podia ter saído tudo tão errado?

     Uma bota esteve a ponto de esmagar sua cabeça. Para esquivá-la, Jane rodou para a parede o mais longe que pôde, e ali, apesar da comoção, pôde ouvir claramente o ruído seco do metal quebrando-se.

     Temerosa, levantou os olhos e viu como vários murais bem em cima dela, se balançava. Um dos elos da corrente que o segurava tinha começado a ceder por causa de tanto peso.

     Igual a um disparo, o elo explodiu e a corrente se soltou como um chicote. O mural começou a desabar-se.

    

Quando David Grei perseguia o dragão, não tinha lembranças.

     Nesse estado de dormência induzido pelo ópio, a dor de seu corpo retrocedia e deixava de ver os rostos de todos aqueles homens, mulheres e meninos aos que tinha matado.

     “Perseguir o dragão”, pensou Grei enquanto inalava de novo e mantinha o olhar fixo na sarnenta pintura que mal cobria o teto de seu esconderijo secreto, a leste de Londres. Que grande modo de descrever esse vício... e sua vida.

     No passado, essa fumaça tinha bastado para apaziguar a raiva que alagava seu coração, mas no final, suas ânsias de vingança tinham sido muito mais fortes que a falsa serenidade do ópio.

     Acomodou-se na cama suada em diversas etapas, depois cruzou o quarto até onde havia um balde cheio de água e lavou o rosto. Ficou diante do espelho e estudou seu corpo nu.

     Quatro feridas de bala destacavam no pálido torso e lhe serviam para recordar que tinham tentado matá-lo. Embora já fazia seis meses que Edward Weyland, para quem Grei tinha assassinado sem pigarrear, tinha-o mandado a uma morte certa. As feridas ainda não tinham cicatrizado de tudo. Tinha passado meio ano e Grei ainda podia recordar à perfeição da ordem no que tinha recebido cada um dos disparos feitos pelo jovem trio de assassinos sedentos de sangue que Weyland tinha mandado.

     Por surpreendente que fosse, Grei tinha conseguido sobreviver.

     Tinha perdido muita massa muscular, mas ficava força suficiente para levar a cabo seus planos.

     Deslizou um dedo pelo peito e, fascinado, desenhou cada uma das feridas. Weyland deveria haver mandado o seu melhor assassino, mas ele sempre evitava que Hugh MacCarrick se ocupasse dos trabalhos mais “significativos”, aqueles que podiam mudar um homem para sempre.

     Esse tipo de encargos deveria haver-se repartido equitativamente entre Grei e Hugh, mas Weyland os escolhia e atribuía com esmero. A Hugh sempre tocava matar as pessoas que eram o mal em pessoa, gente perigosa que estava acostumado a lutar para conservar essa vida que Hugh tinha ido arrebatar lhes. A Grei tocava executar os casos não tão claros, os periféricos. E, no final, a este tinha deixado de importar se algum menino cruzava em seu caminho.

     Em seus sonhos ainda via todos esses olhos vazios de vida.

     “Weyland, esse maldito bastardo, nem sequer mandou o Hugh para me assassinar.”

     Isso era o que mais enfurecia a Grei, o que mais o carcomia por dentro.

     Mas logo encontraria sua vingança. Weyland só queria uma pessoa no mundo, sua filha Jane. MacCarrick levava anos amando-a a distância. Se eliminasse Jane, destruiria os dois. Para sempre.

     Havia-lhe custado um pouco de trabalho, mas tinha descoberto que Weyland e seus homens sabiam que estava tramando algo. Com astúcia e um par de cadáveres, assegurou-se de que acreditassem que continuava no continente. A essas alturas, acreditava que Weyland tinha atribuído seu melhor pistoleiro a proteção de sua preciosa filha.

     Perfeito. Grei queria que Hugh visse como acabava com a vida de Jane. Tanto MacCarrick como Weyland iriam sentir a dor em seu estado mais puro.

    Saber que não tinha nada que perder lhe dava muito poder.

     Anos atrás, Weyland havia dito a Grei que esse trabalho lhe dava tão bem porque não tinha piedade, mas então isso não era certo. Anos atrás Grei teria sido incapaz de degolar a Jane alegremente. No presente em troca sim o era.

        

     Com um grito, Jane rodou pelo chão para evitar ficar esmagada pelo mural, que desabou bem a seu lado. Mas antes que pudesse assustar-se do perto que tinha estado de morrer, voltou a ser arrastada pela multidão. Não podia respirar. Gritou de novo e, meio agachada, cobriu a cabeça com o braço.

     Segundos mais tarde, Jane afastou o braço e, confusa, franziu o cenho.

     A multidão não a arrastava, esquivava-a.

     Por fim, teve oportunidade de manobrar, oportunidade de... negava-se a morrer esmagada pelo mesmo espetáculo que tinha ido presenciar! Ao fim pôde liberar sua saia, e fez outro intento de levantar-se e ficar em pé. Rodou pelo chão e se jogou para frente. Livre!

     Não! A alegria durou muito pouco, pois de novo caiu no chão. Ficou de quatro pés, mas então se deu conta de que não podia mover-se. Algo retinha de novo sua saia. Apareceu mais gente correndo...

     O libertino de meia idade que antes tinha visto caiu no chão junto a ela, apertando nariz, que não deixava de sangrar e, horrorizado, olhou atrás deles. Antes que pudesse reagir, outro homem apareceu voando por cima e aterrissou de costas ali mesmo.

     De repente, suas saias se moveram, e uma cálida e áspera mão lhe apertou a coxa. Jane abriu os olhos, sobressaltada. A outra mão do homem começou retirar o tecido para rasga-la.

     —O que... o que está fazendo? —perguntou assustada, movendo nervosa a cabeça. Tinha a máscara inclinada e, como o cabelo caía sobre a testa, mal podia ver quem era o que estava entre a selva de pernas que os rodeavam— Me solte agora mesmo! —Deu um chute com força.

     Afastou o cabelo com a costa da mão e conseguiu ver um pouco a seu atacante. Com os lábios apertados, esboçava um sorriso inclinado que deixava entrever uns dentes muito brancos. Tinha três arranhões na bochecha e a cara suja.

     Seus olhos irradiavam o enorme aborrecimento que sentia.

     Jane deixou de ver o rosto quando ele se voltou para afastar outro indivíduo que estava também caindo em cima de Jane, e depois voltou a agachar-se junto a ela. As mãos do homem se dedicavam a derrubar os possíveis agressores e rasgar sua saia e anáguas.

     Jane deu conta de que por fim parou, mas antes que pudesse reagir, agarrou-a em braços e a colocou em cima do ombro.

     —Como se atreve! —exclamou, enquanto batia nas suas largas costas. Aquele homem enorme a tinha levantado como se não pesasse nada. Ia recostada em cima de um ombro imenso, e o braço que a segurava o fazia com força e sem alterar-se, com a mão aberta e os dedos lhe cobrindo todo o traseiro.

     —Não faça isso! Solte-me! —exigiu Jane— Como se atreveu a me manusear e a me destruir minha saia e as anáguas! —logo que disse isso, Jane viu que o lugar onde tinha sido apanhada e o que ali ficava de sua saia era esmagado por um mural de um sátiro deitando-se com uma ninfa. Ruborizou-se por completo.

     Com o braço que tinha livre, o homem separava de seu caminho tudo o que se interpor nele.

     —Pequena, não vi nada que você não me tivesse mostrado antes.

     —O que? —ficou boquiaberta. Hugh MacCarrick? Esse inapresentável, de olhar assassino era seu doce gigante escocês?

     Depois de dez anos tinha retornado.

     —Não se lembra de mim?

     OH, sim, sim se lembrava. E ao recordar o quanto de mal tinha passado a última vez que o escocês desapareceu de sua vida, Jane se perguntou se talvez não teria sido melhor morrer esmagada por aquela multidão de bêbados.

    

Uma vez fora, em vez de seguir pela rua principal que se afastava de Haymarket, Hugh girou sem perder tempo por um pequeno beco que havia atrás de uma licoreira e ali a depositou no chão.

     Antes que Jane pudesse dizer uma só palavra, Hugh começou a lhe percorrer o corpo com as mãos.

     —Se machucou? —perguntou preocupado.

     Como ela mal pode falar, Hugh levantou de novo a saia para olhar as pernas, e depois deslizou as mãos por seus braços com as palmas abertas, para ver se tinha algum osso quebrado ou prejudicado; inspecionou-lhe os cotovelos, os pulsos e os dedos. Por surpreendente que fosse, Jane tinha conseguido sair ilesa.

     —Jane, aconteceu algo?

     —Eu... Hugh? —Quase não o reconhecia, mas sabia que ele tinha ido ali por ela. Era Hugh, mas ao mesmo tempo não era— Estou bem. —Logo, sim, logo, recuperaria o fôlego e deixaria de olhá-lo embevecida.

     Quantas vezes imaginou como seria seu primeiro encontro depois de tanto tempo? Tinha pensado que ela se mostraria distante, e que quando Hugh lhe rogasse que se casasse com ele, recusaria-o. Ele lhe suplicaria que o perdoasse por havê-la abandonado sem lhe dizer nada.

     A realidade estava sendo muito diferente. Claro que Jane estava bêbada, e era incapaz de fazer nada mais além de olhá-lo como uma tola. OH, sim, e, além disso, acabava de escapar de uma fuga da rede da polícia e de uma morte por esmagamento.

     Hugh lhe pôs bem a máscara e tomou fôlego.

     —Ah, pequena, em que diabos estava pensando ao vir aqui? —Apesar de que seu aspecto tinha mudado, sua voz era a mesma; aquele profundo e sensual acento que a derretia.

     Para recuperar um pouco o controle, Jane se afastou e alisou o enrugado vestido.

     —Não teria acontecido nada se tivessem pago os subornos pertinentes.

     —Ah, sim?

     —Sim — moveu enfaticamente a cabeça— Vou escrever uma carta à direção. —Jane viu que Hugh não sabia se falava ou não a sério. Mas ela não estava acostumava a gastar brincadeiras quando não era o momento.

     Quando começou a retirar os laços de sua máscara para tirar ele disse:

     —Deixe-lhe isso por agora. Até que se meta em um carro.

     Soaram mais apitos, e uma estrepitosa trompetista anunciou a chegada do furgão da polícia. Hugh a agarrou na mão e começou a caminhar para pôr o máximo de distância entre eles, o armazém... e suas amigas.

     —Hugh, tem que parar. Tenho que voltar!

     Quando tentou cravar os calcanhares, ele segurou-a sem nenhum esforço.

     —Hugh!, minhas primas e minha amiga continuam lá.

     —Estão bem. Mas se você retornar lá neste estado, a prenderão.

     —Neste estado?

     —Bêbada.

     —Bom, já que o menciona, deixa que te diga que, neste estado, a idéia de retornar ali para salvar a minhas amigas parece a mais lógica e necessária.

     —Nem pensar.

     O beco acabou e se plantaram diante da fila de carruagens. Então Hugh ia mandá-la de volta para casa? Perfeito. Diria ao condutor que se afastasse e depois se baixaria e retornaria.

     Como de costume, apareceram um montão de condutores dispostos a negociar o preço da corrida. Mas Hugh levantou um dedo e com apenas um olhar os fez calar; depois assinalou a melhor carruagem. O condutor eleito montou nele e aproximou o veículo.

     Hugh empurrou Jane para dentro, e a seguir deu a volta e disse ao condutor que se dirigisse para a rua onde ele tinha deixado seu cavalo. Quando Jane se deu conta de que Hugh pretendia acompanhá-la, abriu a porta e, sem pensá-lo duas vezes, saltou do carro.

     —Maldição, Jane. —Hugh correu atrás dela e, quando a apanhou, levantou-a e, com um braço, a colocou pregada no seu quadril.

     Ele voltava a levá-la nos braços, assim que ela se resignou a fechar os olhos atrás da máscara que ainda a cobria.

     —Suas amigas estão a salvo — repetiu Hugh ao colocá-la de novo na carruagem sem soltá-la ao sentar-se junto dela. Bateu a porta e depois fechou também a porta do outro lado. Quando puseram em marcha, Hugh por fim relaxou um pouco.

     Nunca poderia esquecer o que sentiu ao vê-la ali dentro, ao ver como desaparecia debaixo daquele rio de gente. Nunca, por muito que vivesse.

     —Como sabe que estão a salvo? —exigiu saber ela.

     —Quin entrou justo cinco minutos antes que eu. E, confia em mim, Quin não permitirá que suas irmãs fiquem para te buscar.

     —O que Quin estava fazendo ali? —Jane entrecerrou os olhos.

     —Suspeitava que suas irmãs fossem assistir o baile.

     Jane arqueou uma sobrancelha e olhou pela janela para o armazém.

     —De verdade? —Quando dizia isso, tão devagar, com seu perfeito e educado acento, sempre soava como “veerdade”.

     OH, sim, ela era muito esperta e suspeitava de algo. Essa noite não tinha saltado pela janela de seu quarto se não soubesse.

     De repente, Jane se sobressaltou e voltou a olhá-lo.

     —Mas perdemos a Maddy!

     —A loira do vestido azul?

     —Fixou nela? —Jane ficou séria— Acreditava que as loiras não eram seu tipo.

     Para ouvir seu tom de voz, Hugh também ficou sério.

     —Ao que parecer, é o tipo de meu irmão. Ethan gostou, e queria... falar com ela. —Apesar de que Hugh o tinha seguido dentro e lhe tinha advertido que não procurasse à garota, Ethan não quis parar— Sua amiga Maddy...

     —Madeleine. Madeleine Van Rowen.

     Van Rowen. Ouvir esse nome foi como receber um murro. Era impossível que seu irmão se sentisse atraído por essa moça. Que diabos faria Ethan quando descobrisse de quem era seu pai?

     —Sua amiga estará a salvo. —“Ao menos da polícia e da multidão”, pensou— Ethan não deixará que lhe façam mal. —“Fará ele mesmo”— Mas quando voltar a vê-la, quero que a advirta sobre o Ethan. Ele não é um homem muito recomendável.

     Nisso, todos estavam de acordo. Hugh gostaria de poder dizer que, depois de receber a ferida na face, Ethan tinha mudado. Ou que tinha feito quando sua noiva morreu a véspera do casamento. Mas seu irmão continuava sendo duro e distante; inclusive de jovem sentia indiferença para os sentimentos de outros e logo não tinha nenhuma relação.

     —OH. — Jane franziu o cenho— Para falar a verdade, Hugh, é você quem deveria advertir seu irmão sobre ela. A pequena Maddy não é tão doce e indefesa como aparenta. Eu me preocuparia mais pelo Ethan. —Ele a olhou incrédulo, mas o ignorou e continuou— Assim tanto Quin como seu irmão estavam ali. E eu me pergunto, o que estava fazendo você em um lugar como esse? —Ao ver que Hugh se limitava a dar de ombros, Jane apertou os lábios— Não é necessário que me responda, já posso imaginar. Embora seja curioso que não se escandalize que eu estivesse ali.

     Era isso o que acreditava? Porque sim havia se sentido furioso ao vê-la naquele lugar, um lugar tão perigoso.

     —Nada do que possa fazer me escandaliza, Jane.

     —Não pensa dizer nada sobre meu comportamento?

     —Já é uma mulher adulta, equivoco-me?

     —Hugh, não importa que altere seus planos desta noite para me acompanhar em casa. —Seu tom de voz era cortante— E há um local muito parecido à Colméia perto daqui. Posso te dar a direção. Dentro há muitos entretenimentos para um homem.

     —Não fui ali pra isso — respondeu ele com calma.

     —Então, para que demônios foi?

     Hugh estudou a janela que havia junto a Jane e balbuciou:

     —Disseram-me que podia estar lá. —voltou-se para olhá-la. O sorriso de Jane era tão desconcertante como arrasador. Sem afastar os olhos dele, tirou a máscara. De algum modo, conseguiu impregnar de sensualidade seus movimentos, como se estivesse despindo só para ele.

     O desejo se apoderou de seus músculos, e Hugh se aproximou dela obedecendo todos seus instintos, que gritavam que o fizesse.

     Jane deixou cair a máscara e ele soltou umas palavras muito mal sonantes. Maldição, como podia ser que estivesse ainda mais bela?

     Hugh tinha a esperança de haver imaginado sua beleza. Acreditava que ela já teria perdido esse brilho da juventude, que o fogo de sua personalidade já teria apagado. Agora, ao vê-la de novo, soube que essas qualidades nunca iam empalidecer.

     E se repetiu a mesma pergunta que havia feito milhares de vezes: estaria melhor se não a tivesse conhecido?

     Nesse mesmo instante acreditava que sim, mas apesar disso ansiava vê-la, encher-se de sua beleza, estudar seu rosto até saciar-se.

     Seus olhos eram de um verde hipnotizador. As maçãs do rosto elegantes e marcadas, o nariz fino e impertinente. Sob a tênue luz do interior da carruagem, seu cabelo solto se ondulava ao redor de seu rosto e em contraste com seus ombros parecia mais escuro, quase negro, mas na realidade era de uma profunda cor mogno. Tinha uns lábios carnudos, e na ocasião em que se atreveu a acariciá-los com o polegar, surpreendeu-se dos suaves e generosos que eram...

     —Passei pela inspeção? —murmurou Jane quase sem fôlego e sorrindo daquele modo que fazia que o coração lhe retumbasse no peito.

     —Como sempre. —reprimiu-se para não tocar esses cachos que acariciava a sua face, esse cacho que o estava deixando louco.

     —Você, pelo contrário, está muito sujo — disse ela olhando suas roupas com desaprovação— E tem a face cheia de cortes. —Suas palavras estavam fazendo outros mais profundos— Hugh, em que diabos se meteu?

     —Cavalguei sem parar durante dias. —Nem sequer tinha parado para curar as feridas e, ao acreditar que ela estava em perigo, tampouco tinha perdido tempo em assear-se.

     Mas agora desejava com todas suas forças ter aspecto de triunfante, que se visse bem claro que se transformou em um homem muito rico. Todos os homens queriam parecer ricos e poderosos diante da mulher que amavam. Em vez disso, Hugh tinha se apresentado diante a ela, ferido e com as roupas cobertas de imundície.

     Parecer um triunfador? Nesses momentos, Hugh se conformaria em estar limpo.

     —E o que te traz para Londres? —perguntou Jane.

     “Você. Finalmente tenho permissão para te ver.” Hugh nunca antes lhe tinha mentido, mas a última vez que a viu tinha dez anos menos, e era um jovem ainda preocupado pela honra. Nesse momento já não.

     Abriu a boca para falar, mas a mentira que tinha preparada se negou a sair de seus lábios. Assim lhe disse a verdade:

     —Seu pai me pediu que viesse.

     —Algum negócio importante? —perguntou ela e o olhou aos olhos, pormenorizada.

     Hugh ficou olhando-a e tentou recuperar a fala. Quando por fim o obteve, balbuciou:

     —Nem imagina.    

     Só pensar em Hugh degustando os prazeres que oferecia A Colméia ou na possibilidade de que ele mostrasse certo interesse por Maddy fazia que Jane fervesse de ciúmes. Ela não tinha reparado em que Maddy queria jogar o laço em Quin, o único varão dessa geração de Weylands, só por seu dinheiro, mas a idéia de Hugh e Maddy juntos tinha feito que Jane tivesse vontades de lhe arrancar os olhos dela.

     Mas nesse instante, Hugh tinha confessado a verdade em voz baixa e suas palavras tinham conseguido tranqüilizá-la um pouco, com o que baixou a guarda.

     —Como se encontra, Sine? —perguntou ele.

     Sine era a tradução ao gaélico de Jane, e ele o pronunciava Shee-ah-na. Ao parecer, Hugh não se deu conta de que sempre o usava como um toque carinhoso, só para ela. Para ouvir como soava na boca dele, Jane teve que fechar os olhos. Esse acento seria sua perdição.

     —Pequena, está tremendo?

     —Muitas emoções — respondeu ela, mas sabia perfeitamente que não tremia por isso. No armazém se assustou, vê-lo de novo a tinha deixado sem fala, e ainda por cima o tinha ouvido pronunciar seu nome em sua língua materna, coisa que sempre a fazia estremecer.

     —Hugh, alguém deveria dar uma olhada nisso.—Sem nem sequer pensar, acariciou as três feridas que tinha no rosto, mas ele se afastou como se queimasse— Te machuquei? —Apoiou uma mão no braço e ele o retirou com brutalidade— Eu sinto muito.

     —Não se preocupe.

     Então, por que tinha se afastado dela até sentar-se no outro extremo do banco, sem dizer nenhuma palavra? Hugh olhava pela janela, com os olhos fixos na rua, como se procurasse algo, e Jane aproveitou para estudá-lo.

     Não podia decidir se os anos que levaram foram bem ou mal com Hugh. Era ainda mais alto e forte que quando tinha vinte e dois anos, o qual já era muito, pois naquela época já era impressionante. Então devia medir uns dois metros, mais ou menos, como mínimo, uns cinqüenta centímetros mais que ela. Mas agora seu corpo parecia além de conter muitos mais músculos.

     O via em plena forma, e os anos tinham acentuado a força que emanava de todo seu corpo.

     Viril, masculino, forte. Todas essas qualidades que a tinham fascinado antes, agora tinham aumentado, tal como deixava clara sua heróica ação dessa noite.

     Mas se seu corpo tinha melhorado com o passar dos anos, seu rosto não tinha feito. Tinha três longas feridas em uma face e uma ruga lhe cruzava a testa, enquanto uma cicatriz danificava a pele de seu pescoço. E seus olhos castanhos pareciam mais escuros, como se aqueles brilhos de âmbar que a ela tanto gostava tivessem desaparecido.

     E, tal como tinha descoberto essa noite na avalanche, Hugh parecia... perigoso. O sério e responsável Hugh que ela tinha conhecido se transformou em um homem intenso... terrível.

     Mas também parecia muito triste. Em qualquer lugar que tivesse estado todo esse tempo durante o qual ela não o tinha visto, não tinha sido feliz. Ela poderia havê-lo conseguido, fazer feliz ao highlander, e isso era a única coisa que queria. Ter a oportunidade de...

     —E eu, passei pela inspeção? —perguntou Hugh devagar, voltando-se para olhá-la.

     —Os anos lhe trataram bem — respondeu ela, tentando ser educada.

     —Não, não têm feito. E ambos sabemos. —Percorreu-a com a vista— Mas ao menos um de nós, sim, foi amável.

     Sentiu tal calor com o elogio, que Jane ruborizou da cabeça aos pés. Por sorte, nesse momento a carruagem parou junto ao cavalo de Hugh, e Jane economizou ter que responder. O pobre animal estava tão sujo e cansado como Hugh, mas apesar das capas de pó que o cobriam, Jane pôde apreciar que se tratava de um arreio excepcional.

     Hugh atou o cavalo atrás da carruagem e retornou a seu lado.

     —Teve sorte de que ninguém roubasse esse cavalo — comentou Jane— Por que não o deixou nos estábulos da cidade, na outra quadra?

     —Não tive tem... —De repente se zangou e parou— Porque não.

     —OH, já vejo — disse ela franzindo o cenho. Depois de um momento em silêncio, voltou a tentar manter uma conversa com ele. Só faltavam quinze minutos para que chegassem em sua casa, mas como pareciam incômodos um com o outro e tão somente trocavam palavras de cortesia, para Jane foi o trajeto mais comprido de toda sua vida. E pensar que eles dois estavam acostumados a estar tão bem, juntos.

     Por fim chegaram. Quando Hugh a pegou pela cintura para ajudá-la a descer, não teve nenhuma pressa em afastar as mãos, e, com uma delas ainda em suas costas, acompanhou-a até a entrada.

     —Não tenho chave. —Jane apalpou os inexistentes bolsos de sua saia—. Perdi a bolsa.

     —Acredito que Rolley está acordado — respondeu Hugh, mas não fez nenhum esforço por chamar. Olhou-a como se fosse lhe dizer algo, mas fosse o que fosse o que viu em seu olhar, optou por manter-se em silêncio.

     Estavam ali, de pé diante da porta, olhando-se nos olhos como se ambos esperassem que acontecesse algo. Podia ver Hugh o muito que ela desejava que se desculpasse, ou, como mínimo, desse-lhe alguma explicação? O momento se fez interminavelmente grande.

     “Hugh, este seria o momento ideal para arrumar as coisas entre nós.” Mas não o fez. Em vez disso, seu olhar ficou mais intenso e juntou as sobrancelhas.

     “Vai beijar-me!”, pensou Jane nervosa e com a respiração agitada. “Nosso primeiro beijo? Agora?”

     Jane começou a irritar-se. Ele não merecia seus beijos. Poderia ter tido durante os últimos dez anos se tivesse querido.

     Hugh se aproximou.

     “E não pensa desculpar-se sequer?” Tinha tanta vontade de esbofeteá-lo que sentia inclusive cócegas na palma da mão.

     De repente, a porta abriu-se.

     —Pareceu-me ouvir algo — disse Rolley sério no meio da entrada.

     Hugh se afastou e pigarreou para conseguir articular:

     —Entra. Retornarei amanhã para te ver.

     —Para ver-me? —piscou ela surpreendida— E pode se saber o por quê?

 

As primas de Jane chamavam Hugh de “Anos e Lágrimas” MacCarrick porque ela tinha gasto um montão de ambas as coisas pensando nele.

     Agora que os nervos de voltar a vê-lo e os efeitos do potente ponche já se dissiparam, Jane estava sentada em sua penteadeira, penteando o cabelo depois do banho. Quando viu os olhos no espelho, deu-se conta de que ia derramar muitas mais lágrimas. Deixou a escova ao lado da nota que lhe tinha enviado Claudia para lhe dizer que tinham chegado em casa sem problemas, depois apoiou a cabeça nas mãos e apertou os olhos com as palmas, como se assim pudesse deter o pranto.

     Nos últimos dez anos, tinha gasto muitíssimas noites chorando. Precisamente Jane, que sabia o quanto precioso era o tempo!

     Quando tinha apenas seis anos, sua mãe morreu de uma pneumonia, e após ela não havia tornado a ser feliz. Talvez porque sabia que a vida podia escapar em um segundo, e isso a fazia estar inquieta. Talvez porque ela não estava destinada a ser feliz.

     Jane morria de vontade de viajar, de conhecer novos e excitantes lugares, mas era porque tinha vontade de conhecer mundo ou simplesmente porque queria estar em outro lugar? Dez anos atrás, com o Hugh ao seu lado, essa necessidade se apagou até tal ponto que quase tinha desaparecido. Ela não entendia por que.

     Depois, ele a deixou sem uma palavra.

     Jane tinha sentido falta dele, tinha chorado sua ausência, tinha desejado que voltasse e tinha esbanjado quase a metade de sua vida por ele.

     Maldito fosse, nunca mais!, jurou a si mesma. Mas mesmo assim, voltou a recordar sua história e, como sempre, continuou perguntando-se o que tinha feito ela para que ele partisse...

     “O escocês é meu.”

     Jane fez essa declaração de intenções a suas primas quando o conheceu. O coração pulsou descontrolado ao vê-lo, e ela decidiu então que o faria feliz; que conseguiria que seus olhos não estivessem tão sérios. Jane tinha então treze anos e ele dezoito.

     Hugh e seus irmãos tinham chegado da Escócia para passar o verão em Ros Creag, a casa que sua família tinha no lago que compartilhava uma baía com o Vineland, a casa da família dela.

     Quando Jane se aproximou para apresentar-se, ele riu e a chamou de “pequena”, e, com seu acento, soou maravilhoso. Seguia-o a todas as partes e ele sempre era bom com ela.

     À força de insistir, Jane conseguiu que seu pai visitasse os três reservados irmãos, e se fizeram amigos deles, mas não se interessaram pelo resto dos Weyland. De algum modo, logo seu pai os convenceu para que retornassem o verão seguinte, e Jane ficou muito contente. Como ele não tinha filhos, estava empenhado em que eles três trabalhassem para ele em seu negócio de importações.

     Durante essas férias no lago, cada vez que lhe picava uma abelha ou se fazia um arranhão, corria para o lado de Hugh.

     O verão em que fez quinze anos, os irmãos voltaram para a casa, mas Hugh passou a maior parte do tempo olhando-a mal, como se não soubesse o que fazer com ela. Quando fez dezesseis, justo quando começava a ter curvas, ele a evitou por completo. Hugh começou a trabalhar para seu pai, e passava todo o tempo com ele em Ros Creag, falando de negócios.

     Ela chorava porque a ignorava seu enorme e sério escocês. Suas primas lhe diziam que podia conseguir a qualquer homem, e que não queriam que perdesse o tempo com “esse rude MacCarrick”, mas ao ver que não iriam dissuadi-la, sugeriram-lhe que jogasse sujo, e suas primas sabiam do que estavam falando. Seu lema era “Os homens se inclinam diante das Oito Weyland. E se não, fazemos que o façam”.

     Claudia disse:

     —Temos que fazer um plano, Jane. O verão que nos vem asseguraremos de que seus vestidos tenham um bom decote, que suas mãos sejam suaves como a seda. —Sorriu travessa— E de que se comporte como uma descarada. Seu highlander não saberá nem o que se passa.

     Mas o verão seguinte ele não foi, e Jane ficou destroçada. Até essa noite em que lhe sorriu a sorte, e ele apareceu para entregar uma mensagem urgente a seu pai. Jane não podia nem imaginar o que podia ter de urgente em um negócio de relíquias e antiguidades.

     Antes que Hugh pudesse desaparecer de novo, ela se assegurou de que a visse, e ele ficou boquiaberto, como se não a reconhecesse. Essa noite se transformou em duas, e depois em três, era como se ele não se cansasse nunca de estar com ela.

     Suas primas mais velhas tinham ensinado muitas coisas durante todo o ano, e cada dia que Hugh esteve ali, Jane o atormentou e torturou por todo o tempo que tinha estado fora.

     Ela viu que lhe sussurrava ao ouvido, ele fechava os olhos e entreabria os lábios, e que se lhe acariciava o cabelo com os dedos, lhe acelerava a respiração. Tão freqüentemente como podia, pedia-lhe que fossem nadar juntos, especialmente depois dessa primeira vez, em que ele ficou petrificado enquanto tirava a camisa, observando em silêncio como ela desabotoava a saia e a blusa até ficar só com as meias, as anáguas e a regata. Depois de nadar, Jane, que nunca tinha sido muito recatada, saiu da água com a roupa transparente e grudada ao corpo, e seguiu o ardente olhar com que Hugh a devorou, antes de voltar o rosto de repente.

     —Hugh, pode ver através do tecido?

     Quando ele a olhou de novo com aqueles olhos tão escuros e a modo de afirmação moveu a cabeça muito devagar, Jane disse:

     —Bom, carinho, por enquanto só você pode vê-lo.

     Ela se deu conta de que esse dia ele demorou muito tempo em sair da água.

     Essa tarde, que resultou ser a última em passaram juntos, estiveram deitados no prado, um junto ao outro, e Jane ficou em cima dele para lhe fazer cócegas. Hugh odiava que lhe fizesse cócegas; depois se passava horas, irritável e tenso, com a voz rouca. Mas dessa vez, em lugar de tirar-la de cima, levantou os braços para o laço de seu recolhido cabelo e o soltou.

     —É tão bonita... —disse enquanto lhe acariciava o lábio com o polegar— Mas suponho que já sabe, não?

     Jane se inclinou para beijá-lo. Não aqueles leves beijos na orelha com que o torturava antes de lhe sussurrar algo, nem aquelas carícias que levava todo o verão depositando em seu pescoço com os lábios, ela queria seu primeiro beijo de verdade.

     Mas Hugh a agarrou pelos ombros e a afastou.

     —É muito jovem, pequena.

     —Vou fazer dezoito anos, e já recebi ofertas de casamento de homens muito mais velhos que você.

     Por ouvir isso, ele franziu o cenho e depois sacudiu a cabeça.

     —Síne, carinho, eu vou logo.

     Sorriu-lhe com tristeza.

     —Já sei. Sempre que acaba o verão faz o mesmo. Volta para o norte de Escócia. E cada inverno eu o vejo muito menos, até que volta aqui, a meu lado.

     Ele ficou olhando-a, como se quisesse memorizar seu rosto.

     Jane não voltou a vê-lo nem para ouvir falar dele nunca mais. Nunca, até essa noite.

     Até que ele desapareceu, Jane sempre estava convencida de que Hugh se casaria com ela; dava-o por feito, e que a única coisa a fazer era esperar, e que passassem os dias até que ele deixasse de considerá-la muito jovem. Confiava tanto em Hugh, estava tão segura de que acabariam juntos. Entretanto, ele sempre soube que ia deixá-la, que ia estar anos longe dali. Tinha-o feito a consciência, e nunca lhe tinha contado o porquê.

     Não tinha pedido que o esperasse, nem sequer tinha dado a oportunidade de fazê-lo feliz.

     E agora, dez anos mais tarde, Jane continuava olhando em seu espelho como as lágrimas escorregavam pelas faces.

     Essa noite, as mulheres que Jane tinha visto no baile de máscaras tinham um perito olhar de sedução e altivez. Estavam amarguradas, mas a diferença do que Belinda acreditava, não era só por suas circunstâncias ou por sua situação econômica. Essas mulheres tinham esse olhar endurecido porque os homens as tinham ferido.

     Jane reconhecia perfeitamente porque era o mesmo olhar que via refletida em seu espelho dia após dia. Por fim era capaz de admiti-lo.

     Mas ia fazer tudo o que estivesse em suas mãos para fugir desse destino. A amargura era uma sentença de morte, e ela ainda estava a tempo de evitá-la.

     Secou as lágrimas... pela última vez.

     A primeira hora da manhã, aceitaria a proposta de casamento de Freddie.    

 

     Na primeira hora, a porta de serviço de casa dos Weyland estava aberta.

     Hugh ficou em alerta e, sem hesitá-lo, desencapou a pistola e subiu a toda pressa a escada encarpetada em busca de Jane. Talvez Weyland não tinha chegado ainda a seu domicílio.

     A casa estava em silêncio, mas ouviu que alguém se movia no quarto que havia no final do corredor e seguiu esses ruídos. Através da porta entreaberta, viu Jane de joelhos, procurando algo debaixo da cama.

     Respirou fundo para recuperar o controle e guardou a arma debaixo de seu casaco.

     Incapaz de conter-se, entrou no quarto de Jane e se aproximou dela em silêncio, sem afastar o olhar daquele corpo coberto só por uma camisola de seda. Jane se levantou devagar, lhe sustentando o olhar. Tinha os olhos mais verdes que ele jamais tinha visto.

     —Pode-se saber o que está fazendo em meu quarto? —exigiu saber ela. Apesar de que mal ia vestida, e de que aquela camisola mostrava mais pele da que cobria, Jane começou a caminhar de um lado para outro, removendo montões de roupa em busca de algo, sem se importar estar quase nua.

     Hugh podia ver seus seios debaixo da fina seda, e teve que engolir seco. Por que com o passar dos anos não se tornou mais recatada? Nunca tinha conhecido uma mulher tão pouco pudica. Mas tampouco podia dizer que, quando ela quis nadar com ele no último verão que estiveram juntos, Hugh tivesse se queixado muito.

     —O que quer, Hugh?

     —Aonde foi seu pai tão cedo?

     Jane deu de ombros e uma alça da camisola deslizou para baixo. Não voltou a subir, bem típico dela.

     —Não sei. Olhou se está em seu escritório? Ultimamente está acostumado a encerrar-se ali as vinte e quatro horas do dia.

     Essa manhã estava diferente. Diferente da noite anterior, quando ele evitou beijá-la. Agora estava mais fria e distante. Podia senti-lo.

     —Não o vi. A porta de serviço estava aberta e Rolley não está em lugar nenhum.

     —Então você sabe tanto como eu. Por que não vai lá para abaixo e o volta a olhar? —deu a volta a modo de despedida.

     —Você vem comigo. Ponha um robe.

     Como o ignorou, Hugh estudou o quarto em busca de um xale. Não se importava que Jane tivesse perdido o que fosse que procurasse. Havia sapatos, meias, camisolas, espartilhos de seda por toda parte. Os vestidos seguiam feitos uns montões no chão, onde ela os tinha tirado. Estava tudo muito desordenado. Hugh o odiava; a ordem presidia todos os aspectos de sua vida.

     Por fim encontrou algo com que cobri-la.

     —Ponha isto.

     —Não penso em descer até que esteja vestida como Deus manda. Já chego tarde a meu compromisso. —E riu como se houvesse dito uma brincadeira que só ela podia entender.

     —Então temos um problema. —Por isso sabia, podia ser perfeitamente que tanto Weyland como Rolley tivessem sido eliminados— Porque eu não penso te perder de vista.

     —E porque isso?

     —Porque não há ninguém na casa e a porta estava aberta.

     —Chama-os e verá como aparecem.

     Hugh se aproximou da porta.

     —Weyland! —gritou com todas suas forças. Ninguém respondeu— Ponha o robe, Jane.

     —Vá para inferno, Hugh.

     Por que tinha que ser ela a única mulher no mundo que não se sentisse intimidada por ele?

     —Já disse que desço quando estiver preparada.

     —Então, se vista — grunhiu ele.

     —Sai do quarto.

     —Nem pensar.

     —No mínimo dê a volta. —Quando viu que ele não o fazia, Jane deu uns golpinhos na bochecha e disse— Claro, não vai ver nada que não tenha visto antes, engano-me?

     Hugh se surpreendeu com a indiferença com que ela o dizia, e respondeu furioso:

     —Já te disse ontem à noite, pequena, que há muito poucas coisas que não me tenha mostrado.

     Os olhos de Jane brilharam de raiva.

     —Você mudou. Eu também. —Ergueu os ombros e afastou o cabelo para trás, pois sabia que assim ressaltaria sua figura que nessa época era mais atraente que anos atrás.

     Hugh passou uma mão pela boca e esteve a ponto de dizer algo de que logo se arrependeria.

     —Se vista — ordenou de novo.

     Ao dar a volta, viu-se refletido no espelho que havia em cima da penteadeira. Era perfeitamente consciente de que os anos não o tinham tratado bem, e uma noite mais de insônia não o tinha ajudado a sentir-se e parecer menos exausto. Por outro lado, por culpa das feridas do rosto, fazia três dias que não se barbeava.

     Fazia só três dias que tinha retornado de uma batalha? O que tinha matado?

     O reflexo de Jane captou sua atenção. Através do espelho, viu como ela levantava um delicado pé e o apoiava em um tamborete para subir com cuidado uma meia por sua longa perna.

     Deu-se conta de que estava apertando a mandíbula com força ao ver como a meia chegava à parte superior da coxa, onde Jane a segurava com a liga mais sensual que ele já tinha visto. Enquanto Hugh observava Jane fazer esse gesto, fechou as mãos ao redor do mármore da penteadeira com tanta força que temeu quebrá-lo.

     Obrigou-se a afastar o olhar, e quando ouviu o sussurro de um tecido, atreveu-se a perguntar:

     —Ainda não terminou?

     Nem ele mesmo reconheceu sua voz.

     —Tenha paciência comigo, Hugh.

     Quantas vezes tinha escutado essa frase?

     Soltou o ar que retinha e respondeu como estava acostumado a fazê-lo.

     —Tento, pequena.

     “Pensa em outras coisas.”

     Hugh viu que o arco de Jane estava recostado contra o marco da porta, e deu conta de que as plumas das flechas eram novas. Gostou de ver que continuava praticando o arco e flecha.

     Tinha-lhe comprado seu primeiro arco, e a tinha ensinado a apontar. No final do verão, Jane era capaz de partir em duas uma fibra de palha a mais de cem passos de distância. Era como se tivesse nascido para disparar. Talvez fosse assim. No passado, quando não o estava torturando com seus doces sorrisos ou suas suaves palavras e carícias, Jane estava acostumada a ser um pouco... feroz.

     Hugh desviou o olhar para a mesa e viu que tinha nele um livro titulado “A Aprendiz de Dama” Conhecendo-a, acreditava que era uma obra satírica. Pegou o livro e viu que a capa era falsa; retirou-a para ver a autêntica. Juntou as sobrancelhas, abriu-o e, depois de ler por cima algumas páginas, entendeu perfeitamente do que se tratava o livro. Com uma simples olhada a uma das cenas soube que era muito mais lascivo que nada do que ele jamais tivesse lido.

     A idéia de que Jane lesse isso não o enfureceu, mas sim o excitou, e a cada palavra que lia, o sangue ia acumulando na virilha. Engoliu seco duas vezes e disse:

     —Onde consegue este tipo de livros? — Sem dar a volta, levantou-o por cima de seu ombro.

     —Vendem-nos em todas as imprensas da Rua Holywell —respondeu ela em tom monótono e aborrecido.

     —É isto o que estão acostumadas a ler as garotas jovens de agora?

     —Em sua maior parte. As mulheres são quem faz que, cada noite, seus livreiros favoritos vão desde suas sarnentas lojas de Holywell às casas que têm nos subúrbios da cidade. Não dão provisão para imprimir. Já pode te dar a volta.

     Não... não, não podia.

     Quando por fim acreditou poder manter a raia sua ereção, voltou-se e encontrou com a mão de Jane lhe oferecendo um colar.

     —Hugh?

     Aproximou-se dela e o pegou antes que Jane lhe desse as costas. Mechas de seu avermelhado cabelo descansavam sobre a pele de alabastro de seu pescoço. Hugh nunca em sua vida tinha desejado nada tanto como beijá-la ali, e esteve a ponto de fazê-lo. Em vez disso, inalou seu perfume suave, a mera insinuação de uma fragrância, e mesmo assim enormemente sensual.

     Logo, suas enormes mãos, que só eram torpes quando ela estava perto, brigaram com o fecho durante alguns segundos.

     Quando o conseguiu, perdeu a luta que mantinha consigo mesmo e com o reverso dos dedos lhe percorreu a suave e sedosa pele do pescoço.

     Quando Jane estremeceu, Hugh fechou os olhos.

     —Hugh, acaba de me acariciar? —perguntou ela com voz sensual. Como ele não disse nada, Jane deu a volta para olhá-lo. Jane tinha a respiração entrecortada e ele quase não respirava.

     Hugh tinha o olhar fixo em seus lábios e ela sabia.

     —Tem-no feito?

     —Está acostumado a acontecer quando põe um colar, não?

     Jane franziu o cenho intrigada, mas Hugh, sem esperar a que respondesse, pegou-a pela mão e a arrastou para fora do quarto, para a escada.

     Encontraram Weyland em seu escritório, olhando ausente o retrato de sua mulher já falecida. Estava enrolando uma carta do mesmo modo que um mapa. O homem ocultou em seguida seus sentimentos, mas Hugh sempre soube o muito que sentia falta da sua esposa, a que Jane se parecia muitíssimo. Weyland os olhou e, embora forçou um sorriso, estava exausto. Parecia vinte anos mais velho que a última vez que Hugh o tinha visto, apenas fazia alguns meses.

     —MacCarrick, me alegro em lhe ver, filho.

     Como Hugh ainda segurava Jane com a mão, não o saudou.

     —O mesmo digo, Weyland.

     —Papai — interveio Jane soltando-se—, seria tão amável de me dizer por que permitiu a Hugh que entrasse em meu quarto enquanto ainda estava me vestindo?

     Quando Weyland arqueou seus cinzas e turbados olhos, retrocedeu a Hugh, e olhou a Jane.

     —Não havia ninguém e a porta estava aberta. Pensei que era... estranho.

     —OH, sim, bom. Rolley estava comigo. Esse maldito vendedor de carvão queria voltar a nos extorquir — disse Weyland, como se lhe preocupassem esses assuntos domésticos— Jane, quero que espere fora de meu escritório alguns minutos.

     —Não posso, papai. Esta manhã irei com o Freddie no Hyde Park — disse despreocupada.

     Hugh deu um tombo o estômago. “Freddie?”

     —Ah, dá lembranças ao Frederick de minha parte.

     “Quem diabos é Frederick?”

     Jane assentiu e saiu do escritório sem olhar Hugh.

     —Vou com ela, se não ter a ninguém para segui-la — disse Hugh.

     —Quin tem tudo controlado. Só vai uma rua mais abaixo — tranqüilizou Weyland, mas Hugh seguia olhando como ela saia— Sabe que todos os pretendentes de Jane a apelidaram “A amarga Jane”? — Weyland riu— Suponho que hoje em dia os jovens confundem o sarcasmo com a ironia. Mas bom, houve tantos. Do único que consigo me lembrar é de Frederick Bidworth porque está aguentando muito mais que outros.

     Agora Hugh olhava furioso para porta. Pretendentes? E quanto tempo exatamente fazia que “Freddie” agüentava?

     —Suponho que seu último trabalho foi bem, não? —perguntou Weyland.

     Hugh deu a volta e não entendeu a que se referia até que Weyland lhe assinalou os cortes da face.

     —Sim, todo um êxito — respondeu, brigando-se interiormente por não estar atento. Só era um pretendente mais. Só tinham ido para um inocente passeio pelo parque. Então, por que tinha esse nó no estômago?

     —Suponho que quer saber como está a situação com Grei. —Quando Hugh assentiu, Weyland continuou— Se lembrará de que estava ficando cada vez mais instável, mas chegou um ponto em que foi incontrolável. Tentamos eliminá-lo. Entretanto, nunca tinha visto um assassino tão audaz. Sobreviveu, e suas ânsias de vingança o enlouqueceram por completo. Ameaçou fazendo pública uma lista dos membros de nossa organização. Talvez já o tenha feito.

     —De todos? —Hugh apertou os punhos.

     —Quando chegou, acabava de receber as últimas notícias de um mensageiro. Por isso pudemos descobrir, sim, de toda a organização. Se essa lista se fizer pública, pode se considerar oficialmente retirado.

     Hugh nunca tinha acreditado que sua carreira terminaria desse modo.

     —Jane sabe? —perguntou ele tentando não desvelar o muito que isso lhe preocupava— Sabe o que sou?

     —Não, ela continua acreditando que você e eu temos negócios juntos. E tenho intenções de que siga assim até que tenhamos a absoluta certeza de que a lista se fez pública. Depois, já não importará. Todo mundo saberá.

     Hugh soltou o fôlego, preocupado.

     —Weyland, é consciente do perigo que corre? E não me refiro só a Grei.

     —Estou — assentiu Weyland— A última vez que o comprovei, eu era o homem da Inglaterra ao que mais gente queria ver morto. E alguns quererão mais que isso; informação, segredos, detentos políticos... Será um pesadelo. Por isso preciso que afaste Jane daqui durante um tempo.

     —E você? —Para o Hugh, Weyland era como um pai, e não ia permitir que lhe fizessem mal— Não deixarei que enfrente sozinho a esses chacais.

     —Esta é a pior crise de toda a história de nossa organização. Não posso me ocultar. Mas pedirei ajuda e, se tiver sorte, obterei que Grei saia de seu esconderijo. Deixa de menear a cabeça, filho. Ethan me esteve pedindo uma oportunidade para enfrentar Grei. Quin e Rolley morrem de vontade de entrar em combate. Mas minha filha tem que ir daqui.

     Saber que Ethan estava metido no assunto tranqüilizou Hugh, que começou a relaxar um pouco.

     —O primeiro que tem que fazer é se casar com a Jane. Por isso te pedi que viesse.

 

O quase noivo de Jane era o oposto de Hugh.

Enquanto Jane observava os escuros olhos azuis de Freddie Bidworth, deu-se conta de que era o homem perfeito. Era o menino dourado, um Adonis; seu aspecto fazia que as mulheres suspirassem a seu passo. E se o sol se refletia em seu cabelo, então já começavam inclusive a desmaiar-se.

     Quando ria, e o fazia freqüentemente, jogava a cabeça para trás e todo ele se entregava a essa risada. Enquanto que Hugh era taciturno e solitário, Freddie era alegre, e se dava bem com todo mundo. As pessoas o adoravam. E ele, adorava a eles.

     Apesar de que ainda não se recuperou de seus encontros com o Hugh, Jane não podia deixar de sorrir ao ver quão afortunada era de que Freddie a tivesse esperado tanto tempo. Ele estava acostumado a brincar a respeito de que seria o “cavalheiro que conseguiria domar à amarga Jane”. Segundo suas palavras, considerava-a “companheira na viagem da vida” e lhe prometeu que ambos o passariam nessa grande viagem. Deixava-a ser ela mesma e, como ele era muito mais prudente, gostava de ver que ela era mais amalucada.

     E, além disso, era o conde de Whiting.

     —Fugiremos juntos, Freddie — murmurou Jane. Dado que ao parecer Hugh ia ficar na cidade, ela tinha decidido que o melhor seria ir— Vamos de Londres passar umas férias fora, longe de todo mundo.

     —É incorrigível, sabia? —suspirou Freddie— Não posso fugir com você.

     —Ninguém teria por que saber. Além disso, você gosta que seja incorrigível.

     —Isso é certo. —Freddie lhe deu um golpinho no nariz— Mas tinha intenções de falar com você de suas travessuras. Minha mãe me pediu que te convença para que seja mais reservada. Como todos assumem que nos vamos casar, ela diz que seu comportamento afeta a toda nossa família.

     —“Me convencer”, Freddie? —perguntou Jane um pouco triste.

     —Só até que Lavinia encontre um marido.

     Sua irmã, a antipática Lavinia casada? Claro, logo que ficasse de moda casar-se com harpias recatadas e dissimuladas.

     Para Jane, Lavinia não lhe caía nada bem, e muito menos depois de inteirar-se de que tanto ela como a condessa faziam o inominável, o imperdoável: doar recursos para a Sociedade para Suprimir o Vício. A sociedade que era a cruz da existência da maioria das Weyland. A S. S. V. A mesma sociedade que recebia cartas odiosas cada vez que Jane se sentava em sua mesa.

     Jane se perguntava o que pensariam se soubessem que a próxima lady Whiting era uma das fundadoras da Sociedade para a Defesa do Vício. Embora isso de momento fosse só uma idéia.

     —Bom, se algum dia aceita se transformar em minha esposa — prosseguiu Freddie—, já sabe que as condessas têm que fazer sacrifícios. E só será por um tempo.

     Por um tempo? Não, seria um sacrifício grandíssimo. Tão longo como o calafrio que sentiam os homens ao ver uma mulher tão amargurada como Lavinia. Ficou séria. E quem era ela para opinar? Ela mesma estava convertendo em uma mulher amargurada.

     —Lavinia pode demorar muito tempo em casar-se — aventurou precavida.

     —Claro que se casará! —sorriu ele— Pode fazê-lo por mim, pícara?

     Jane forçou um sorriso. Odiava que a chamasse assim. A noite anterior, Jane tinha voltado a escutar como aquele escocês com corpo de deus a chamava “Sine” e, enquanto que o sensual acento de MacCarrick o fazia arder o sangue, o insosso “pícara” de Freddie era indiferente.

     “Segue comparando a todos os homens com o Hugh, Janey?”

     —Me beije — disse ela de repente, e lhe pôs as mãos no peito—. Dê-me um beijo. Quer, Freddie? —perguntou quase desesperada. Eles tinham beijado já centenas de vezes antes, mas essa seria a mais importante de toda sua vida.

     “Sei o homem que conseguirá fazer que o esqueça.”    

     —O que? —Hugh não podia ter ouvido bem. Era impossível— Há algo que deveria saber... Eu nunca vou casar-me. Nunca.

     —Tem que se casar com ela — insistiu Weyland— Se fizer pública a lista, quero que esteja longe daqui ao menos durante dois meses. Afastada do escândalo e do perigo. Se for seu marido, poderá levá-la com você.

     —Isso também posso fazê-lo sem me casar com ela.

     —Não, Hugh, tem que...

     —Você sabe o que sou. Sabe o que tenho feito. —Era impossível que Weyland quisesse que sua filha se casasse com um franco-atirador com o corpo destruido e as mãos manchadas de sangue— Como pode ser que me escolha para esta... missão?

     —Precisamente porque sei o que é, e o que tem feito, é pelo que quero que você seja. Sabe a mensagem que receberá qualquer que queira lhe fazer mal quando descobrir que vocês se casaram? Jane passará a ser uma MacCarrick. Se não se sentem intimidados por sua reputação, seguro que a de Ethan fará que o pensem. Será sua cunhada. E também a de Courtland. A única mulher da família. Quem se atreverá a lhe fazer mal e provocar a ira de seu clã?

     Hugh ia estourar a cabeça, era como se uma trepadeira lhe estivesse apertando as têmporas.

     —Maldição, e te ocorreu pensar que talvez eu não queira me casar? Quando disparei meu primeiro tiro soube que nunca ia ter esposa...

     —Há vários membros de nossa organização casados.

     —E por culpa disso a vida dessas famílias está em perigo.

     —A vida de Jane já está em perigo.

     Hugh gemeu frustrado.

     —E pensou que talvez é com ela em concreto com quem não quero me casar?

     —Absolutamente. —Weyland o olhou pormenorizado— Essa idéia nem me passou pela cabeça.

     Hugh dissimulou sua surpresa. Ou talvez não fez. Ao que parecer, tampouco tinha sido capaz de dissimular nunca o que sentia pela Jane.

     Weyland continuou:

     —Se pode escolher, sempre escolhe a missão que te manda mais longe, e nunca vem a minha casa a não ser que Jane esteja fora da cidade. Isso me diz o quanto empenhado está em te manter afastado dela.

     Hugh não podia negar nada do que estava ouvindo.

     —Pensei que seria mais receptivo à idéia, mas se de verdade s opõe, então pode obter a anulação do casamento uma vez que se resolva tudo.

     —Não — exclamou Hugh— Não o farei.

     —Tem que fazê-lo. Não confiarei sua vida a ninguém que não você seja. —Como Hugh continuava negando-se, Weyland levou as mãos às têmporas— Estou cansado filho, muito cansado, e tenho que enfrentar a pior batalha de toda minha vida. Não posso ganhar do assassino mais desumano e sanguinário do mundo se minha maior franqueza estiver ao seu alcance. Seria como lhe mostrar um capote vermelho.

     Com uma filha solteira tão bonita e temerária como Jane não era de se admirar que Weyland tivesse má cara.

     —Weyland, você não entende. —Acaso Weyland se esqueceu de que Hugh não gostava de estar com pessoas e que era anti-social e arisco? A seu lado, Jane morreria lentamente— Eu não posso fazê-la feliz.

     —Hugh, ao diabo com sua felicidade! —Deu um murro na mesa—. A única coisa que quero é que esteja viva.

     Hugh não se deixou intimidar por seu tom.

     —Olhe, vamos imaginar o que pode acontecer. O mais provável é que consiga apanhar Grei e que Ethan elimine como mínimo a um par desses possíveis assassinos mandados para te matar. Além disso, conhecendo-o, fará-o de um modo que o resto lhes tirarão as vontades de tentá-lo. Então tudo voltará para a normalidade, mas como teremos exagerado e terei casado com Jane, em vez de ocultá-la durante um par de meses, ela e eu estaremos apanhados durante o resto de nossas vidas.

     —Se isso passar, uma vez que as coisas se acalmem podem pedir a anulação do casamento, já lhe disse isso. Se os dois estiverem de verdade decididos a não continuar casados, a única coisa que têm que fazer é não consumar o casamento. —Hugh sacudiu a cabeça, mas Weyland continuou falando— Imaginemos outra coisa. Você sabe que pode que eu não saia com vida desta. —Ao ver que Hugh abria a boca para lhe interromper, levantou a mão— Se morrer, saberei que minha filha está casada com o único homem capaz de protegê-la. Não morrerei me perguntando o que será dela. Pode compreender o quanto importante é para mim saber que Jane está a salvo contigo? Saber que por fim tem uma família? Quer me negar isso?

      —Não sabe o que me está pedindo. Ela estaria muito mais a salvo longe de mim.

     —Não queria chegar a este ponto, mas enfim. Grei não ameaçou a Jane só para me fazer mal . Sei, o que faz anos, lhe deu uma surra. E sei que foi em defesa de Jane. —Hugh apertou os dentes com força e Weyland disse— Também quer fazer mal a você. Se eu for capaz de me separar dela, também você tem que fazer todo o necessário para mantê-la a salvo. Os dois devemos. Se não nos sacrificamos, ela pagará por nossas ações.

     Hugh passou a mão pelo cabelo.

     —Sua brilhante idéia tem um grave problema: Jane nunca aceitará.

     Hugh só tinha um passatempo do verão para uma jovem de dezessete anos. Fazia apenas uns instantes, em seu quarto, ela nem sequer queria lhe dar cinco minutos de seu precioso tempo.

     —Certo, proponho-te uma coisa. Se ela aceitar, casam-se e a leva daqui até que as coisas se acalmem. Se negar, leva ela igual, mas sem nenhum vínculo entre os dois; no melhor dos casos, só perderá sua reputação.

     Ante esse comentário, Hugh franziu o cenho, mas teimoso, insistiu:

     —Ela não aceitará. —Naquele mesmo momento estava com o pretendente que tinha agüentado tanto.

     Estava Jane apaixonada por tal Bidworth? Só de pensá-lo ficava doente.

     —Temos um trato? Hugh? —insistiu Weyland ao ver que seguia ensimesmado.

     Convencido de que Jane se negaria, Hugh olhou para Weyland e aceitou.

     —Me alegro. Bom, então será melhor que o façamos o antes possível. Pode ser esta manhã.

     —Não pode obter uma licença tão... —Ao ver a expressão ofendida de Weyland se calou.

     —Se tudo fosse fácil — disse este— Tem que ir procurá-la no parque, Jane está acostumada em ir à pracinha que há junto à fonte. Diga-lhe que tenho que falar com ela.

     Demônios, a única coisa que Hugh queria era afastá-la desse Bidworth.

     —Filho, posso te sugerir algo antes que ela volte? Se tivesse um anel de compromisso, acredito que Jane tomaria tudo muito melhor.

     Hugh franziu o cenho.

     —Não tenho nem idéia de onde comprar um anel.

     —Alguma vez comprou jóias para uma mulher?

     —Por Deus, não.

     —No Piccadilly, de caminho à casa de sua família, está Ridergate. Ali sabem que medida de anel tem Jane.

     Hugh arqueou uma sobrancelha; inclusive um bruto como ele conhecia a reputação dessa exclusiva joalheria.

     —Sabe algo sobre minhas finanças que eu não saiba?

     —Vamos Hugh, não se faça de tolo. Sei que se transformou em um homem muito rico.

     Hugh encolheu os ombros.

     —E acredito que uma parte de você sempre esteve economizando para algum dia ter uma esposa e uma família — concluiu Weyland.

     —Se for assim, nem eu mesmo sabia — balbuciou entre os dentes. Deu meia volta e saiu do escritório.

     Uma vez fora, Hugh deu conta de que o coração pulsava descontrolado. E tudo porque possivelmente ao cabo de umas horas estaria casado com Jane.

     Não. Se Hugh se casasse com ela, se pronunciava esses votos e lhe dava seu nome, ia expor Jane à maldição que pesava sobre sua vida.

     Podia levar-la para longe dali sem casar-se com ela. E isso era o que faria quando Jane, como era de esperar, negasse se casar com ele.

     Hugh convenceria Weyland de que lhes permitisse esconder-se sem necessidade dessa união entre eles. O ancião não sabia que se Jane se casasse com ele correria ainda mais perigo que o que supunha a ameaça de Grei. Nunca se casarão...

     No que estava pensando? Jane nunca aceitaria casar-se com ele.

     “Mas e se o fizer?”

     Hugh chegou ao parque e viu Quin sentado em um banco, perto da pracinha, entretido admirando às garotas que passeavam sob o sol.

     —Bom dia, MacCarrick — disse ao vê-lo, e se levantou, de modo que lhe bloqueava a vista da pracinha.

   —Aconteceu algo mais ontem de noite no armazém? —perguntou Hugh.

     —Perdemos a amiga da Claudia, Maddy.

     “Maldição, Ethan.”

     —Obriguei a minhas irmãs a retornar para casa e eu fiquei procurando-a. Mais tarde, dei-me por vencido e decidi voltar para casa e ver se ela também havia retornado; justo então entrava pela porta. Estava pálida e abatida, mas ilesa. Acredito que se assustou tanto que aprendeu a lição — concluiu Quin, e soltou um comprido suspiro— Em troca minhas irmãs continuam igual, inconscientes.

     Hugh se alegrou de ouvir que as ânsias de Ethan não tinham tido conseqüências muito graves. Com certeza seu irmão tinha acompanhado à garota de volta a casa.

     —Todas minhas primas deveriam ter se casado já com algum desses iludidos norte-americanos —acrescentou Quin meio grunhindo— E bom, o que faz por aqui tão cedo?

     —Weyland me pediu que devesse buscar a Jane.

     —Em seguida a trago — respondeu Quin imediatamente.

     —Não, eu vou.

     Algo muito parecido à pena apareceu nos olhos de Quin.

     —Ela está com alguém — esclareceu.

     Nesse instante, Hugh se deu conta de duas coisas: uma, Quin sabia que ele queria a Jane, e dois, Freddie a estava beijando, a não ser algo pior, nesse mesmo momento.

     Afastou Quin do meio, embora este o seguiu de todos os modos.

     —Como soube, Quin? —perguntou Hugh em tom ameaçador.

     Quin não fingiu não entender do que estava falando.

     —Disse-me Grei. Disse que você... estava apaixonado por ela.

     A quem mais haveria dito Grei? Quem mais sentia pena daquele tolo bruto escocês obcecado com a preciosa Jane?

     Furioso, correu para a pracinha.

 

–Aqui, Jane? —perguntou Freddie nervoso enquanto olhava a seu redor— Quer que te beije aqui no parque?

     Jane assentiu e se aproximou dele.

     —Não vão nos ver —Agarrou Freddie do pescoço e se atirou nele.

     Por fim seus lábios encontraram os dela.

     Não, beijar-se não era nada novo para eles. O novo foi que Jane se deu conta de que esse beijo só fazia que sentisse como se alguém estivesse dando golpezinhos carinhosos na face. A noite anterior, sentir a mão de MacCarrick na sua tinha sido muito mais excitante que aquilo.  

     Decepcionada, Jane beijou Freddie com mais empolgação, e puxou seus ombros para ver se assim obtinha que ele fizesse algo mais. Precisava desesperadamente convencer-se de que podia viver só com isso durante o resto de sua vida. Enquanto forçava seus movimentos, tentou recordar os livros que tinha lido, esses textos eróticos que erram proibidos, e compreendeu que entre um homem e uma mulher havia muito mais do que Freddie estava dando. Havia paixão, desejo, ânsias. Mas não com ele...

     O corpo de Freddie foi afastado dela e saiu disparado para o chão.

     Jane aturdida olhou para cima.

     —Hugh?

     Os selvagens olhos deste não se separavam dela e seu cabelo negro lhe golpeava o rosto. Tinha a mandíbula apertada e os punhos fechados. Olhou-a furioso e depois deu a volta para Freddie, como se tivesse intenção de matá-lo.

     Jane se levantou e, exceto contemplar a cena, não soube que mais fazer. Freddie, que também estava desconcertado, tentou ficar em pé.

     —Não, MacCarrick! —exclamou Quin bloqueando seu passo. E em voz baixa, acrescentou— Facilmente poderia matá-lo.

     —É uma idéia genial — grunhiu Hugh.

     Os seguintes instantes passaram a câmara lenta. Jane viu como Hugh afastava Quin. Freddie ficou em pé bem a tempo de receber um murro de Hugh. Cambaleou de costas e lhe começou a sangrar o nariz.

     Quin apanhou o braço de Hugh, Jane gritou e correu para Freddie; segurou-o por debaixo dos braços e tentou que voltasse a levantar sem deixar de olhar por cima de seu ombro. Freddie era corpulento, mas tinha bastado um murro de Hugh para que saísse voando pelos ares.

     —Tem que ir daqui antes que apareça a polícia — advertiu Quin— Não sei se sabe, mas acaba de quebar o nariz de um respeitado conde.

     O olhar de ódio de Hugh se fez ainda mais profunda.

     —Tem que levar Jane daqui —insistiu Quin— Com toda esta loucura lhe está fazendo mais mal do que imagina.

     Hugh afastou Quin com tanta facilidade que Jane se deu conta de que tivesse podido fazê-lo em qualquer momento antes. Depois se dirigiu para ela, agarrou-a no ombro e a afastou de Freddie.

     Essa manhã, quando Hugh lhe acariciou o pescoço, seu roce tinha sido tão doce que ela apenas o tinha notado. Nesse instante, sua enorme mão a apertava com força.

      —É óbvio que Quin estava me espiando — disse ela com voz estridente— Mas que demônios está fazendo você aqui?

     Como ele não respondeu, Jane começou a virar para poder voltar junto de Freddie. Ao ver que seus esforços não obtinham que a soltasse, olhou furiosa para mão de Hugh.

     —Quero comprovar que não o matou!

     —Freddie está bem, Jane — disse Quin— Ficarei com ele, mas você tem que ir.

     —Não penso... —Hugh puxou ele e ficou com a frase pela metade. Arrastava-a para sua casa sem se importar que todos os transeuntes os observassem nem que tivessem que afastar-se de seu caminho.

     —Hugh, me solte agora mesmo! —exclamou ela—. Que diabos esta acontecendo?

     —Eu ia te fazer a mesma pergunta. —Quando perderam de vista a pracinha, Hugh parou e, com mãos tremulas, segurou-a pelos ombros.

     Fazia apenas uns instantes, sua visão se tingiu de vermelho e o único que queria era arrancar daquele homem as extremidades, uma a uma. Hugh era consciente do aspecto que devia ter, mas Jane não se intimidou, mas sim ergueu ainda mais o queixo.

     —Quem é esse homem? —inquiriu Hugh, e tentou não fixar-se em que ela tinha os lábios inchados— Por que estava ali, se beijando com um homem qualquer, queria que todo mundo te visse?

     “Que eu te visse.”

     —Seu nome é Frederick Bidworfh, lorde Whiting.

     Naturalmente, Jane estava beijando um nobre. Um que não tinha visto aproximar-se de Hugh porque estava muito aturdido por seus beijos.

     —Não “um homem qualquer” — continuou Jane—Como pode ter reações assim, quando ontem mesmo me viu em um baile de cortesãs? Isto é uma minúcia! Ontem me disse que já era uma mulher adulta.

     Isso tinha sido antes que soubesse que ia casar-se com ela. Antes que existisse a possibilidade de que ele tomasse sob sua proteção. Agora tudo era diferente.

     —Por que se comporta assim, Hugh? Exijo uma resposta. Agora!

     “Porque queria matá-lo por ter te tocado.” Era o primeiro homem ao que realmente queria matar.

     —Porque a filha de um amigo da família estava sendo comprometida. —Isso não era nenhuma mentira. Quando ela começou a negá-lo, ele disse— Você sabe que ele não deveria ter te beijado em público e pôr assim em perigo sua reputação.

     —E isso te importa o que? —Entrecerrou os olhos— Não tenho que te dar explicações! Isto não é teu assunto.

     —Não? Bom, talvez ainda não o seja — replicou ele, e isso fez que ela franzisse o cenho.

     Hugh sabia que não estava se comportando bem, mas a idéia de casar-se com ela, por rocambolesca que fosse, tinha aberto a vedação a todos seus instintos possessivos. Quando tinha visto esse bastardo beijando-a, um único pensamento que lhe cruzou a mente foi: “É minha. Está segurando algo que é meu”.

     Do caminho ao parque, Hugh tinha tentado pensar o que fazer e, apesar de que todo seu ser morria de vontade de possuí-la, tentou tomar uma decisão fria e lógica. “O que supõe maior sacrifício, que me case com ela ou que não?”, perguntava-se a cada maldito passo que dava.

     Nesses momentos em troca estava tão furiosa que era incapaz de raciocinar. O único que sabia era que não queria que Bidworfh voltasse a tocar ou a beijar a Jane jamais.

     Hugh sabia que havia um modo de garantir que não pudesse voltar a fazê-lo.

     Quando entraram de novo na casa, Hugh a arrastou até o escritório de Weyland tentando ignorar o olhar de ódio que Jane lhe lançou.

     —Obtém que aceite, Weyland — gritou Hugh ao ancião sem que este se alterasse.

     Sabia Weyland que Hugh encontraria Jane em uma situação comprometida? É obvio. Weyland sabia tudo. E Hugh estava respondendo tal como esperava; estava-o manipulando.

     —Faça com que aceite.

     —Considera-o feito — assentiu Weyland com solenidade— Por que não vai preparar sua mala, filho; e fazer essas compras que tem pendentes? Preciso falar com Jane a sós.

     Hugh saiu do escritório e fechou a porta, mas ficou um momento escutando o que diziam.

     —Papai — começou Jane—, por que permite que me trate assim e me dê ordens? Se soubesse o que tem feito...

     —Permito-o e o aceito — a interrompeu Weyland—, porque Hugh vai se transformar em seu marido.

    —Ficou louco? Me casar, eu com Hugh MacCarrick? —Sua risada foi estridente— Nunca! Jamais!

    

–O que te acontece? —perguntou Jane logo que ouviu Hugh bater a porta e sair da casa— Te deste um golpe na cabeça desde que fui faz meia hora? Hugh parecia alterado, ele te bateu? —Estalou os dedos— Ah, já entendi! Demência senil!

     —Quer se acalmar? —Enrugada a cara de seu pai estava muito séria. Havia tensão em seus amáveis olhos azuis.

     —Como quer que me acalme? Hugh acaba de atacar Freddie. —Hugh parecia tão fora de si que Jane tinha acreditado que ia matá-lo— Parecia um louco...

     —Acredito que não lhe tem feito nada grave.

     —E você quer que me case com ele? Para que saiba, esta manhã decidi aceitar a proposta de casamento de Freddie.

     —Sério?

     Jane se sentiu ofendida por seu tom de voz, ao ver que seu pai não reagia. Aquele homem que tinha diante era muito mais duro que o relaxado pai que tinha visto essa mesma manhã.

     —Já sei que é difícil de aceitar — disse ele— Mas decidi me sossegar.

     —Se sossegar? Tenho vinte e sete anos! Não pode me obrigar a me casar com ele.

     Ele prosseguiu como se ela não tivesse falado:

     —Fingi não me inteirar do que fazia com suas primas. —Quando ela suspirou e fixou o olhar no teto, ele continuou— Sei que Samantha é cliente assídua da imprensa da Rua Holywell. Sei que Claudia tem uma aventura com o rapaz das cavalariças. Sei que a Nancy gosta de vestir-se com roupa de homem. E que é mais que provável que sua prima Charlotte esteja agora mesmo na fila ante o tribunal de divórcios para inteirar-se de primeira mão do último escândalo.

     —Já entendi — replicou Jane arisca, e se perguntou como era possível que seu pai soubesse tudo isso... Quin! Quin o havia dito. Tinha que ser isso. Entretanto, ele devia saber que não podia provocar a ira das Oito Weyland e sair ileso.

     —Tolerei todas estas coisas porque acreditava que toda sua geração haviam se tornado loucos.

     —Já não estamos na regência, papai. —Jane arqueou as sobrancelhas.

     —Mas também o permiti porque, em seu leito de morte, sua mãe me fez lhe prometer que te daria a mesma liberdade que ela teve, e que jamais tentaria esmagar seu espírito.

     —Ela fez isso? —Jane olhou o retrato de sua mãe. Lara Farraday tinha sido a única filha de um famoso artista, e ela também tinha tido muito talento. Ao ser seu pai um reconhecido pintor, as pessoas tinham aceito a extravagante educação da Lara— Não sabia.

     —Quando tinha seis anos, já se parecia muito a ela. E eu mantive minha promessa, inclusive quando me punha doente de preocupação.

     —É por isso que Quin me esteve espiando? —Jane entrecerrou os olhos.

     —Não. Não é por isso. Quin te esteve espiando pelo mesmo motivo pelo que eu agora vou romper a promessa que fiz a sua mãe.

     —Não o entendo.

     —Tive problemas com um de meus sócios. Tomei algumas decisões que afetaram gravemente a suas finanças e querem vingança; está disposto a me fazer mal onde mais me doa. E todo mundo sabe que você é o que mais quero neste mundo.

     —Te fazer mal? —repetiu Jane devagar.

     —É um viciado em ópio. Tem alucinações. Poderia ficar violento.

     —E quem é esse sanguinário homem de negócios que conseguiu te assustar? —perguntou Jane sarcástica— Que conseguiu que obrigue sua filha a contrair matrimônio com alguém, deixa que lhe diga isso, muito pior que o que ela mesma teria escolhido?

     Weyland ignorou seus gritos.

     —Lembra-se de David Grei?

     —Está de brincadeira? —replicou ela, ao tempo que um calafrio lhe percorria o corpo.

     —Nem um pouco.

     —Tomei chá com ele algumas vezes enquanto te esperava. —De todos os homens que podia ter mencionado...

     O dia em que Jane conheceu Grei, impressionaram-na seus sensíveis olhos azuis, suas feições de menino travesso e sua mente viva. Ia excepcionalmente bem vestido e tinha um ar cosmopolita que completava à perfeição seu caráter amável.

     Mas mesmo assim, cada vez que estava perto dele lhe punham os cabelos em pé.

     Uma vez o pegou observando-a de um modo muito estranho. Não se tratava de luxúria, isso a Jane não a teria afetado. Naquele momento não entendeu o que acontecia, mas pela primeira vez em toda sua vida, e naquela época tinha já vinte e cinco anos, desejou ter uma carabina.

     —Dava-me calafrios — reconheceu Jane em voz baixa.

     —Então, se dá conta de que é um homem capaz de utilizar a violência?

     —Sim — admitiu— Mas por que tomar medidas tão drásticas?

     —Hugh conhece Grei de antes, conhece-o melhor que ninguém. Pode te proteger.

     —Freddie poderia me proteger.

     —Jane, por cima de tudo, ambos somos realistas e muito pragmáticos. E ambos sabemos que o único que Freddie pode proteger é de vestir de acordo com a moda.

     Ela ficou boquiaberta ante tal insulto, mas seu pai deu de ombros e acrescentou:

     —Sabe que é verdade.

     —E por que não chamamos à polícia? —inquiriu ela— Influente como é, acredito que para antes da hora do chá poderia obter que encarcerassem a Grei.

     —Já pedi ajuda e diversos favores para solucionar este problema, mas não o encontramos. Não temos nem idéia de onde está nem de quando pensa atacar.

     Jane se levantou e, sem pressa, dirigiu-se para a janela.

     —Então agora mesmo poderia estar me espiando?

     Por incrível que fosse seu pai não fez nenhum esforço para tranqüilizá-la.

     —Poderia ser. Mas não acreditam que seja assim. Grei foi visto pela última vez em Portugal, e nada indica que tenha chegado à Inglaterra, só sabemos que é aqui aonde se dirige.

     Jane olhou como duas mamães passeavam com seus carrinhos de bebê e se aproximavam uma à outra para fofocar. Em um extremo do parque havia um menino jogando com um pau e um aro. Parecia tudo tão tranqüilo... mordeu o lábio inferior. Apesar de que tudo soava irreal, ela tinha ouvido contar histórias piores.

     Ao fim e ao cabo, viviam em Londres.

     Por muito que gostasse dessa cidade, era consciente dos perigos e da violência que habitavam nela diariamente. Apenas fazia um ano, um perfeito desconhecido tinha jogado em cima de Samantha um tubo de vitríolo. Por sorte, só queimou o vestido e lhe irritou um pouco a perna, a diferença de outra mulher a que lhe aconteceu o mesmo no verão passado, e cujo rosto ficou destruído. Havia ladrões de tumbas e vendedores de cadáveres que se impacientavam se não recebiam materiais. E a Jane tinha assaltado tantas vezes que se passavam muitos dias sem que isso acontecesse, perguntava-se se os seus vestidos eram muito recatados.

     Ela tinha lido sobre os viciados no ópio como Grei e sabia que quando estavam dominados por suas alucinações podiam agredir a outros.

     Londres era como um animal perigoso; podia-se admirar, mas teria que ser consciente do risco que isso implicava. Se seu pai acreditava que Grei era perigoso e que ela tinha que sai da cidade, não o discutiria. Jane tinha lido muitas histórias truculentas no The Times, histórias que não só revelavam o nome dos criminosos, mas também o de suas vítimas.

     Sentiu um calafrio.

     —Aceitarei sair de Londres por uma temporada. Mas não com o Hugh. Não é necessário. Por que motivo aceitaria ele casar-se comigo?

     —Se lembre de que faz dez minutos não tinha aceitando se casar com você, mas bem o estava exigindo.

     —Tem razão. Comportou-se como um lunático, igual ao homem de que quer me proteger.

     Essa frase afetou seu pai, mas não do modo em que ela esperava. Weyland ficou ainda mais sério e apertou os lábios.

     —Eles não se parecem em nada, Jane. Jamais volte a dizer isso!

     Jane olhou atônita para seu pai, pois ele não estava acostumado a enfurecer-se tanto.

     —Papai?

     —Hugh é um bom homem. Um homem honorável. Ele e Grei trabalharam juntos e compartilharam muitas experiências. Poderia ter tomado o mesmo caminho que Grei, mas não o fez.

     —De... de acordo. —Engoliu saliva— Então irei com o Hugh. Mas para isso não é necessário que nos casemos.

     —E o que te faz pensar, que permitirei que minha única filha, que ainda está solteira, saia de viajem com um de meus sócios? —Quando ela abriu a boca para falar, ele a interrompeu— Sim, já sei, mas isso se acabou. Além disso, se de verdade for tão desgraçada com ele pode pedir a anulação do casamento quando tudo isto acabe.

     —Não pode me obrigar a casar com ele. A única coisa que tenho que fazer é ir ver o Freddie e lhe pedir que fujamos juntos.

     —Sim. Acredito que a condessa e a harpia de sua filha a receberão com os braços abertos. Acredito que não lhes importará que não tenha dote.

     —Não será capaz! —Abriu os olhos de par em par.

     Seu pai assentiu sem alterar-se.

     —Quem é você? —perguntou ela sem sair de seu assombro. A personalidade de seu pai teria se transformado igual à de Hugh— Ficarei com minhas primas. Samantha, Belinda e suas famílias vão a Vineland esta semana...

     —E quanto tempo acha que poderá ir de prima em prima? De casa em casa?

     Jane cruzou o escritório, decidida a lhe fazer entrar em razão.

     —Pai, você sabe que se fizer isto não haverá volta — disse, acariciando o braço— Quando tudo isto terminar, não poderei voltar a me casar.

     —Com certeza que sim. John Ruskin anulou seu casamento o ano passado e a que era sua mulher já se tornou a casar. E pensa em todas essas garotas que escapam para Escócia. Quando suas famílias dão com elas e as obrigam a voltar, todas anulam seus matrimônios sem nenhum problema, e alguns anos mais tarde voltam a se casar. Se me dessem uma libra por cada vez que isso aconteceu nesta temporada...

     —Essas garotas têm dezoito ou dezenove anos. Têm tempo para esperar e voltar a casar-se. —Levantou a mão que tinha apoiada no braço de seu pai e massageou a têmpora— Eu sou muito velha para isso! E sabe que com todo este assunto minhas possibilidades de me casar com Freddie acabarão.

     —Se quando tudo isto acabar continuar querendo se casar com ele, usarei todas minhas influências para que isso aconteça.

     Jane desabou em um sofá.

     —E por que diabos iria Freddie a me esperar?

     —Esperou todo este tempo.

     Para ouvir isso, mordeu o lábio e depois disse:

     —Continuo sem entender por que Hugh aceitou. Como pode lhe obrigar a casar-se com uma mulher a que não quer?

     —Está segura de que não te quer?

     —É obvio que não!

     —Eu acredito que quando foram mais jovens, ele sentia algo muito forte por você. Não te parece que se comportava como se importasse muito?

     —Se eu lhe importava tanto, por que se foi sem me dizer nada? —Olhar para atrás, para Jane era muito difícil acreditar que Hugh tivesse sido algo mais que o típico menino que desfruta ao ver como uma garota perde a cabeça por ele.

     —Já sabe que me pediu que te dissesse adeus se alguma vez perguntasse por ele.

     —Se alguma vez perguntasse por ele? —Jane olhou a seu pai do mesmo modo que o fez a última vez que disse semelhante tolice— Já não tem importância. Ele agora tem sua vida e já quase não nos conhecemos.

     —Sim, ele tem sua vida, e em todo este tempo ganhou suficiente dinheiro para poder cuidar de você. Sei que estavam acostumados a se darem muito bem. Não pode voltar a conquistá-lo? Fazer que volte a ficar bem com você? Acredito que não será muito difícil. Talvez no final pudessem continuar casados.

     —E por que escolheria Hugh em vez de Freddie?

     —Porque o Freddie nunca amou.

     Não, não o amava, mas sentia carinho por ele e passavam bem juntos. E ao não lhe amar, Jane sabia que Freddie não tinha o poder de feri-la.

     —Talvez isso seja certo... mas Freddie nunca me machucou.

     —Não acreditará que Hugh queria te machucar? Se lembre de todas as tardes que a levou para cavalgar com ele e das horas que passou te ensinando a usar o arco. Ele tinha muita mais paciência com você que eu. —Jane não disse nada e tentou recuperar essas lembranças de infância— Nas próximas semanas quero que pense no que vou te dizer: Hugh tentará. Tentará te fazer feliz.

     —Dá por certo que vou aceitar me casar.

     —Pensa, Jane. Acredito que ele te levará longe da Inglaterra.

     —Longe? Aonde? —perguntou em seguida, e se ruborizou ao ver que seu pai a tinha descoberto. Jane sempre tinha desejado viajar— para Carrickliffe?

     —Sim, provavelmente queira estar com seu clã. É decisão dele, mas sei que tem intenção de ir para o norte. E que nunca estará a mais de um dia de caminho do posto de telégrafos mais próximo. No mesmo instante em que possa retornar para casa, porei-me em contato com você. Se então continuar querendo que anule seu casamentoo, encarregarei-me disso.

    “Jane, instinto de sobrevivência. O que acontecerá se voltar a se afeiçoar a ele?”

     Enquanto ela continuava negando com a cabeça, seu pai voltou a falar:

     —Jane, não estou pedindo isso. Vai sair Londres, e o fará esta mesma manhã.

     Jane chegou à conclusão de que não reconhecia seu pai, e justo quando ia dizer a aquele estranho que o que ele quisesse não lhe importava, voltou a ser o homem amável a quem ela queria.

     —Ah, filha, sempre é tão valente, mas agora está morta de medo, não é assim?

     —Bom, sim, mas só porque Grei me olhou desse modo tão horripilante...

     —Não refiro a Grei. Tem medo de que Hugh volte a te machucar.

     Ela abriu os lábios, mas não pôde negá-lo.

     —Hugh me deixou uma vez para não retornar mais. Sei que o convidou uma e outra vez e ele nunca apareceu.

     —Mas Jane, ele voltou quando era necessário.

 

Nunca! Nunca!

Com as palavras de Jane ainda ressoando em sua mente, Hugh atravessou Grosvenor Square como em transe. Era impossível digerir tudo o que tinha passado nessa manhã. Quando a viu beijando a outro homem, quase desmoronou por completo.

     E logo, depois de passar tantos anos obrigando-se a manter-se afastado de Jane, obrigavam-no a estar com ela... não, a casar com ela. Hugh dava medo reconhecer a vontade que tinha de que Weyland a convencesse para que aceitasse.

     Embora soubesse que não poderia ficar para sempre.

     De verdade tinha visto Jane beijando outro homem?

     Chegou à praça e entrou na mansão familiar dos MacCarrick. Eles a chamavam a “mansão familiar”, mas na realidade pertencia a Ethan. Ao ser o primogênito, Ethan herdou todas as propriedades MacCarrick, assim como o ducado de Kavanagh — embora se alguém se dirigia a ele por esse título, tinha muitas possibilidades de receber uma surra.

     Como sempre, Hugh ignorou todos os recados que sua mãe lhe tinha deixado na bandeja de prata da entrada. Não é que odiasse a essa mulher, mas culpava a seus filhos da morte de seu marido, seu pai. E isso fazia que fosse muito difícil tratar com ela.

     Seus irmãos opinavam o mesmo. As mensagens que tinha deixado para eles também estavam sem abrir.

     Apesar de tudo, Ethan ainda não a tinha jogado da propriedade. Segundo um acordo tácito, se um de seus filhos estava em Londres, ela nunca aparecia pela casa; mas Hugh apostaria tudo o que tinha a que sua mãe subornava os serviçais para obter informação sobre eles. Acreditava que todos, menos Erskine, o mordomo, a ofereciam. Esse homem de gesto azedo levava seu trabalho muito a sério, e tinha transformado em provocação pessoal impedir que recebessem nenhum tipo de visitas; além disso, era leal até a medula.

     Com o repicar de suas botas no chão de mármore por toda companhia, Hugh foi direto ao seu escritório. Sabia perfeitamente onde estava o Leabhar nan Süil-radharc, o Livro do Destino. Continuava em cima da mesa de mogno. Semanas atrás Hugh tinha visto como Courtland agarrava esse livro com reverência e o lia como se estivesse lhe pedindo algo.

     Como sempre, Hugh surpreendeu comprovar que o volume continuava inalterável com o passar dos anos. E não fazia falta dizer que a única mancha que o livro tinha conservado era sangue.

     Muito tempo atrás, um vidente do clã predisse o destino de dez gerações de MacCarrick e o escreveu no Leabhar. Todas as predições, fossem tragédias ou triunfos, se transformou em realidade.

     Apesar de que Hugh sabia de cor, procurou a última página, a que estava dedicada ao seu pai.

 

     Para o décimo Carrick:

     Sua bela esposa três filhos escuros te dará.

     E até o dia em que as esta maldição lhe encherão de felicidade.

     Quando seus olhos se encontrarem com estas palavras, sua vida terminará.

     Morrerá sabendo que seus três filhos malditos estão.

     Sentenciados a caminhar com a morte ou a caminhar com a solidão.

     Nunca se casarão, não saberão o que é amar, se o fizerem, a seu destino deverão resignar.

     Sua família contigo desaparecerá, e futuras gerações não haverá de novo jamais.

     A morte e a desgraça os apanharão.

    

       As três últimas linhas estavam manchadas de sangue que era impossível limpar.

     Tragédias e triunfos? Hugh suspirou esgotado. A ele e aos seus irmãos não tinha augurado nenhum triunfo. Não, nenhum deles tinha filhos, tal como dizia o livro, tinham matado seu pai, e sempre faziam mal a quem amava.

     Hugh percorreu com o dedo a enrugada página da maldição, e sentiu como a pele esfriava e lhe gelava o sangue. Ali havia algo oculto, o poder do Leabhar. A última pessoa alheia à família que o havia tocado se afastou de repente e começou a benzer-se.

     Hugh se retirou enojado e saiu da sala. Obrigou-se a preparar uma mala, mas continuava sem ter claro que Weyland pudesse convencer Jane, a não ser que recorresse à chantagem...

     —Que diabos está fazendo? —ladrou Ethan da porta, e olhou para Hugh, que continuava pegando as coisas de seu armário para as jogar em sua bolsa de viagem.

     —Vou sair de Londres.

     —Com ela?

     —Sim. Weyland me pediu que... me case com ela e que a leve longe daqui. —Hugh ficou à defensiva.

     —Outra vez não! —A cicatriz de Ethan estava empalidecendo— Justo quando acabamos de afastar Courtland de sua mulher e você vai com a tua?

     —E o que me diz de você? —contra-atacou Hugh, e escolheu furioso algumas camisas— Ontem de noite mostrou um interesse por essa garota como o que nunca tinha visto demonstrar por nenhuma mulher.

     —Ah, mas eu só brinquei um pouco com a minha pícara loira. —esfregou a cicatriz de um modo inconsciente.

     Tinha acontecido algo na noite anterior que o fazia voltar a odiá-la? Acaso aquela garota lhe tinha atado os pés? Hugh confiou em que fosse o segundo.

     —Mas Court e você —continuou Ethan— sempre querem mais.

     —Aceitei me casar com Jane... de um modo provisório. E só com o fim de poder levá-la para longe até que capturem Grei e resolvam os problemas causados por essa lista. Deixei claro ao Weyland que, quando isso acontecer, o casamento se anulado, e ele assim o entendeu.

     Ethan sacudia a cabeça.

     —Não pensa com claridade. Bastou vê-la uma vez depois de todos estes anos para perder o maldito juízo. E no clã dizem que você é o mais razoável?

     —Sou razoável — grunhiu Hugh, e apertou com tanta força a roupa em sua mala que parecia que as costuras fossem explodir.

     —E vai fugir com a única mulher que fez que perdesse a cabeça para se casar com ela? De um modo provisório? Sim claro, é a viva imagem da sensatez — zombou Ethan— Meu Deus, você mesmo deu um sermão em Courtland sobre isto. E tinha toda a razão.

     Hugh afastou o olhar. Ao exortar Courtland se levou como um presunçoso; e o tinha feito porque se sentia orgulhoso de sua disciplina ao haver-se mantido afastado de Jane durante todos aqueles anos.

     —Hugh, como pode ignorar tudo o que aconteceu? Court decidiu casar-se com a Annalía, e aos poucos dias uma bala quase faz voar sua cabeça diante da porta de sua casa. E olhe para mim. Esqueceu de minha noiva? Foi você quem encontrou o corpo de Sarah sem vida. Quer expor a Jane a esses perigos?

     “Deus, não. Jamais.”

     —Não consumarei o casamento. Não ficarei com ela — disse em voz baixa— Não será um verdadeiro casamento. Além disso, eu já a pus em perigo. Grei quer lhe fazer mal por minha culpa. Sei. Se não estiver com ela, Grei conseguirá matá-la. Eu talvez só lhe machuque.

     —Embora esteja louco, Grei pode ser letal. E, por muito que odeie reconhecê-lo, seu instinto é inigualável. —Ethan o olhou nos olhos— Por que não deixa que eu seja quem leve Jane?

     Só de pensá-lo Hugh ferveu o sangue.

     —Enquanto eu estiver com vida, Grei nunca lhe fará mal. Me escute bem, Ethan. Nunca.

     Seu irmão levantou as sobrancelhas.

     —Então mais te vale rezar para que eu o encontre antes que ele encontre ela. Acha de verdade que será capaz de protegê-la quando não pode ser objetivo? Não como Grei é. A única coisa que vai conseguir é que mate a ambos, a ti e à garota.

     —Maldição. Eu posso protegê-la...

     —E manter suas mãos afastadas dela ao mesmo tempo? —Ethan o olhou incrédulo.

     —Sou muito disciplinado. Farei o que tenha que fazer. —Hugh foi até suas gavetas para pegar algumas coisas imprescindíveis; sua pistola de reserva, que sempre levava oculta, e outro rifle para complementar o que já tinha na sela de montar. Também empacotou grande quantidade de munição para todas as armas— Consegui me manter afastado dela todo este tempo, não?

     —Já sei, mas também sei que tem anos de desejo apanhados dentro de você. Pode ser que externamente se veja calmo, mas em seu interior está fervendo.

     “Fervendo.” Era a palavra exata para descrever como se sentia.

     —Não importa. Ela me odeia. —“Em especial depois desta manhã”— Diabos, o mais provável é que se negue. —Embora não podia evitar duvidá-lo. Weyland sempre conseguia o que queria. Mas bem, Jane era igual. Era possível que a vontade que Weyland tinha dele ser o seu genro não fosse superiores às que Jane tinha de afastar-se dele— Não ficarei com ela — insistiu Hugh— E ela não quererá ficar comigo.

     Ethan o olhou durante muito momento e depois suspirou resignado.

     —Certo, isso sim acredito. Embora o velho a obrigue a se casar com você, com certeza ela irá na primeira oportunidade.

     O tom de voz de Ethan incomodou Hugh. Era como se o desse por feito.

     —É tão inconcebível acreditar que Jane possa me querer como eu a ela?

     —Sim — limitou a responder Ethan.

     Hugh pegou sua bolsa, zangado, saiu de seu quarto e correu escada abaixo.

     —Aonde a levará? —perguntou Ethan seguindo-o— Vai com nosso clã?

     Hugh sacudiu a cabeça. Tinha considerado a opção de levá-la para Carrickliffe, mas ali todos conheciam a existência da maldição. No melhor dos casos, comportariam-se de um modo estranho com Jane; supersticiosos como eram, com certeza acreditariam que ela já estava maldita. No pior dos casos, procurariam afastá-la de Hugh em um intento de salvá-los a ambos. Hugh só estava disposto a ir dali em caso de que não tivesse outra opção.

     —Levarei-a a Ros Creag.

     —Sabe Grei da casa do lago?

     —Eu nunca o contei, mas não posso estar seguro de que ninguém o tenha feito — respondeu Hugh— Se ele ainda não chegou à Inglaterra e eu estou ali só uns dias...

     —Sou rápido, mas nem tanto.

     Hugh alcançou a porta principal e disse:

     —Que esconderijo me sugere dos que você usaria?

     —Grei os conhece quase todos, e os que não, não me atreveria a garantir nada. Deveria levá-la para casa de Court.

     Hugh parou. Fazia tão pouco que seu irmão a tinha comprado, que Hugh não tinha pensado nesse imóvel.

     —Court disse que a casa é velha, mas que a construção é sólida e só precisa de uma reforma — disse Ethan.

     A Hugh também havia dito, e recordou que tinha acrescentado que estava em meio de milhares de acres de terra.

     —Irei a Ros Creag e, se em cinco dias não tenho notícias suas, irei para o norte, ao imóvel de Court.

     —Perfeito. Avisarei os serviçais de sua chegada — disse Ethan, referindo-se aos poucos aldeãos que viviam no imóvel.

     —Se Grei nos seguir, rezarei para que você esteja seguindo ele. —Hugh olhou seu irmão nos olhos— Deixo muito em suas mãos, e não pode se permitir ao luxo de perder tempo. Quanto antes mate Grei, antes se anulará o casamento.

     —Então, mais vale não se acostumar a ele — respondeu Ethan com um sorriso gelado — E mais vale você curar estas quantas feridas tem na face. Não quererá que fique uma cicatriz.

     —Vá para o inferno — bramou Hugh, e abriu a porta.

     Ethan soltou uma maldição e depois disse:

     —Espera um minuto. —foi para dentro e, quando retornou, trazia com ele o Leabhar— Leve isso é o melhor aviso que pode ter.

     Hugh aceitou o pesado livro.

     —E o que acontece com você? O que acontecerá se o necessita?

     Ethan manteve seu rosto impassível.

     —Eu não tenho um coração que possa ser tentado, lembra-se?

     Hugh entrecerrou os olhos.

     —O que fez ontem à noite a aquela garota?

     Ethan sorriu satisfeito e, com indolência, apoiou a mão no marco da porta.

     —Nada que ela não quisesse.

     —Quin disse que estava assustada.

     Ethan franziu o cenho.

     —Pois eu não a assustei. —tocou a cicatriz pela segunda vez, e isso era algo que nunca fazia. Primeiro, porque não queria lembrar-se dessa ferida, e segundo porque não queria dirigir a atenção para ela. Mas essa manhã, pela primeira vez em muitos anos, parecia consciente da antiga ferida— Maldição, usava uma máscara.

     Hugh pensou que esse não era o melhor momento para lhe dizer que seu comportamento era tão inquietante como seu rosto.

     —Sabe quem é?

     —Hoje ia à casa do Quin para descobrir — respondeu Ethan arrastando as palavras—, mas ao parecer estou ocupado. Disse Jane como se chamava?

     Hugh viu algumas ânsias nos olhos de seu irmão que o inquietaram. Apesar de que Hugh não conhecia todos os detalhes, sim sabia que Geoffrey Van Rowen era o responsável pela cicatriz de Ethan. Hugh também sabia que, ao lhe fazer essa ferida, asseguraram-se de que nunca curasse sem deixar marca.

     Tinha esperado muito para vingar-se e, quando o fez, foi sem piedade e sem se importar se havia membros da família Van Rowen que não o mereciam.

     Acaso não lhes tinha feito já o bastante?

     Talvez nos dias seguintes Ethan perdesse interesse na garota.

     —Sei que é amiga de Jane, assim não lhe faça mal, Ethan, ou terá que ver-se comigo. —Guardou o Leabhar em sua bolsa.

     A fria expressão de seu irmão ficou ameaçadora.

     —Acha que poderá me deter se quero passá-lo bem? Vá ao inferno, Hugh. Também nisto é um presunçoso — replicou Ethan— Mas se por sua culpa matam a Jane, dará-se conta de que te parece muito mais a mim do que acha. Irmão, acabará sendo como eu.

     Hugh o olhou zangado pela última vez e deu a volta. Antes que Ethan fechasse a porta, Hugh acreditou ouvir dizer:

     —Evita acabar como eu.

 

Apesar de que Hugh demorou mais de uma hora em retornar a casa dos Weyland, quando o fez eles continuavam discutindo no escritório, assim se sentou em uma cadeira no corredor. Descansou a cabeça contra a parede e, nervoso, acariciou a caixinha que levava no bolso.

     Tudo o que havia na elegante loja de Ridergate parecia muito delicado para um homem do tamanho de Hugh, e todo o momento que esteve ali teve vontade de afrouxar o pescoço da camisa. Mas quando Hugh encontrou o anel perfeito para Jane, não duvidou em gastar uma pequena fortuna. No que outra coisa ia gastar seu dinheiro que não fosse nela?

     Hugh sabia o que procurava porque, no último verão que passaram juntos, lhe descreveu exatamente o anel que sonhava receber de seu futuro marido:

     —Um anel de ouro com esmeraldas e um enorme diamante no centro. Pesará tanto que não poderei evitar de tropeçar com as coisas todo o tempo, quebrar vidros ou golpear os transeuntes que passem junto de mim.

     Nesse dia estavam passeando em um bote de remos, ela tinha a cabeça recostada em seu peito e ele brincava com seu sedoso cabelo, fascinado ao ver como o sol se refletia nele. Mas ao ouvi-la ficou gelado e ficou nervoso. Ao ser o segundo filho, ele não tinha dinheiro, e nem louco podia permitir comprar algo como o que Jane havia descrito.

     Mas então se lembrou de que tampouco podia ter a ela assim...

     Agora, anos mais tarde, e com os olhos fixos no teto, sua mente não podia deixar de pensar em tudo o que tinha acontecido.

     Desde muito pequeno, tinha aprendido a assumir as conseqüências de seus atos; as evitáveis e as inevitáveis.

     Na manhã seguinte que ele e seus irmãos encontrassem e lessem o Leabhar, que por certo todos acreditavam que tinha sido destruído, Hugh despertou com os gritos de sua mãe. Ela acabava de dar conta de que seu marido, Leith, chefe do clã e um homem em sua plenitude, estava frio e morto a seu lado.

     Depois começou a culpar eles. Hugh mal tinha quatorze anos, muito jovem para suportar toda aquela culpa.

     Anos mais tarde, Ethan tinha tentado ignorar a maldição, disse que a morte de seu pai só tinha sido uma trágica coincidência, e conseguiu que uma garota do clã vizinho, os MacReedy, aceitasse casar-se com o filho dos malditos MacCarrick. Na véspera de seu casamento, Sarah tinha se matado — embora alguns insistissem em que Ethan a tinha empurrado—, da torre de Carrickliffe.

     Depois, Court se apaixonou por uma jovem estrangeira e tentou se casar com ela, apesar de que sabia que nunca lhe daria filhos e que só lhe traria desgraças.

     Valente, ousou desafiar seu destino, até que Annalía esteve a ponto de perder a vida por um disparo na cabeça. No final, Court a abandonou sã e salva em sua casa em Andorra, apesar de que isso quase o matou. Ela tinha se transformado em todo seu mundo.

     Conseqüências. As predições do livro diziam que Hugh não podia contrair matrimônio nem atar-se a ninguém. Ele tentava convencer-se de que havia uma diferença entre contrair matrimônio e casar-se.

     Maldição, eles não se atariam de verdade. Se Jane aceitasse, casariam-se, mas não se atariam um ao outro. Enquanto ele não a fizesse dele, ela estaria a salvo. Segura. E Deus sabia que ele não tinha intenções de ficar com ela para sempre.

     Cinco minutos mais tarde, Jane saiu do escritório e Hugh ficou em pé. Os olhos dela brilhavam por causa da culpa ou talvez de algumas lágrimas sem derramar ou porque estava furiosa. Apostava que era pelo segundo motivo.

     “E então, o que? Qual é o veredicto?”

     Weyland estava junto a ela.

     —Vou mandar uma nota ao ministro para poder ir recolher a licença. Jane, tem que preparar as malas agora mesmo.

     E Weyland se foi, deixando Hugh tão aturdido que quase caiu.

     —Vai a...? —começou a falar, mas a voz falhou— Vamos a... nos casar?

     —Sim, eu estou obrigada a seguir adiante com esta loucura, mas você não. E se não se negar a fazer isto por ele vai arruinar minha vida. — Jane se sentia invadida pela confusão e as emoções. Ela sempre tinha sido assim: volátil como um explosivo. Mas ninguém exceto Hugh entendia o quanto complicada era.

     Então Weyland tinha tido êxito. Hugh sabia que Jane não devia estar contente, mas...

     —Se casar comigo de um modo provisório equivale a arruinar sua vida?

     Jane respondeu cuspindo raivosa cada palavra com seu marcado acento inglês:

     —Sabe por que estava com o Frederick Bidworth, lorde Whiting, esta manhã? —Ela mesma respondeu— Porque estava aceitando sua proposta de casamento!

     Hugh sentiu a vista nublar. Por que se surpreendia?

     Durante anos, mês após mês, Hugh tinha se perguntado por que ela não se casou. Um momento. Como era possível que Weyland não soubesse disso? Tinha que sabê-lo. Ela já tinha quem cuidasse dela sem precisasse que eles se entremetessem.

     Maldição. Aquilo ia de mal a pior. Hugh queria matar Bidworth por beijar a Jane, mas aquele homem acreditava que ela era dele.

     —Entretanto, meus planos foram interrompidos quando você atacou Freddie.

     Jane tinha direito de beijar seu futuro marido. Só porque Hugh não pudesse pensar em ninguém que não fosse nela, não significava que com Jane ocorresse o mesmo. Fazia anos que ela tinha sua própria vida, e Hugh tinha reaparecido de repente.

     —Foi aceitar a proposta de um conde e seu pai prefere que se case comigo? —Era uma pergunta legítima, mas Jane tomou como uma recriminação e o fulminou com o olhar.

     —Por que Hugh? Por que David Grei está fazendo isto? Você o conhece, é de verdade tão perigoso que tenho que fugir de minha casa? —Estava confusa—Por que meu pai insiste em que seja você? Também te chantageou para que aceite? É obvio que sim. Por que foi consentir em uma idéia tão lunática?

     —Não me chantageou, mas de qualquer modo prometi. A única coisa que tem que fazer é cooperar comigo. A solução não será permanente, se não... consumarmos o casamento. —Baixou a voz— Fique tranqüila, é só temporário. Eu, igual a você, não tenho intenções de continuar casado com você. E você sabe que o mais difícil foi não te tocar faz anos, agora também está a salvo comigo.

     —Como se fosse permitir — disse isso ela, entre os dentes.

     Hugh apertou a ponta do nariz. Doía a cabeça e tinha o pescoço duro por causa da tensão, mas se esforçou por manter um tom de voz relaxado. Não queria que sua ira ferisse Jane.

     —Te ocorreu pensar que talvez eu tampouco queira fazer nada disso?

     Não, ele não queria, supunha-se que ele não ia casar-se nunca. Mas agora que havia tornado a vê-la, tampouco queria que se casasse com outro. E Hugh era bastante egoísta para aprovar as maquinações de Weyland. Seu pai sabia o que era o melhor para ela, disse-se a si mesmo, e Weyland tinha escolhido a ele.

     —Jane, não vim aqui com a idéia de ir com uma esposa.

     —Então, por que não disse a papai que obtivesse que aceitasse?

     —Porque eu posso te proteger.

     Jane avançou até ficar diante dele, e levantou o rosto, decidida até que seus olhos ficaram no mesmo nível.

     —Não tem nem idéia de quanto lamentará isto, Hugh. Advirto, desiste agora mesmo.

     Ao ver que ele nem se alterava, Jane ficou boquiaberta.

    —Então já tem tudo decidido? Pois eu também. —E em tom sensual, acrescentou: Hugh, lembra-se de como estava acostumada a te atormentar?

     Como se pudesse esquecê-lo jamais.

     —Carinho, vai ver o quanto aprendi. —Percorreu-lhe o peito com os dedos da mão e falou como se lhe faltasse o fôlego— Verá que tenho novas flechas... em meu arco. —De algum modo, Jane conseguiu que essa frase soasse provocadora, e Hugh, como sempre, começou a suar a testa.

     —Deixou bem claro que não quer se casar comigo — prosseguiu ela— Assim antes de seguir adiante com esta loucura, se pergunte quanto poderá resistir... dia, após dia.

   Hugh sentiu um nó na garganta.

     —Sim, se prepare, carinho. —Jane deu a volta e começou a subir a escada com um vaivém de quadris que apanhou o olhar dele. Por cima do ombro, acrescentou— Porque vou transformar sua vida em um inferno. —Entrou em seu quarto e bateu a porta.

     —Dá no mesmo — murmurou ele, e se perguntou se seu casamento iria tão bem como seu compromisso.

    

O ardiloso velho tinha conseguido.

     De algum modo, Weyland tinha convencido MacCarrick que se casasse com sua filha. Pois felicidades!

     Grei tinha passado toda a manhã farejando pela casa e se entreteve esquivando de Quin e de Rolley. Embora já não fosse tão bom como antes, ainda tinha conseguido surrupiar muita informação dos criados.

     Ao que parecia, a senhorita Jane estava empacotando suficientes coisas para passar fora no mínimo um mês, mas não lhe haviam dito qual era seu destino, o que não tinha ajudado em nada na hora de escolher que roupa devia pôr nas malas. Não levaria a sua Dan de companhia, mas sim seu cavalo, seu arco e seu estojo para flechas. Todo os serviçais estava muito ocupados preparando comida e refrescos para receber o capelão, que chegou antes do previsto, mas não iam celebrar uma festa, pois os noivos partiriam imediatamente depois da cerimônia.

     Todos os empregados da casa estavam emocionados por que Jane ia se casasse e os deixaria. Adoravam-na. E não era de sentir saudades. Weyland tinha presumido ante Grei e Hugh de que Jane sempre era muito generosa com suas coisas e seu tempo, e que nunca fazia distinções sociais. Mas esses sentimentos não os faziam extensivos ao noivo. Segundo as palavras de um lacaio:

     —É um homem que dá medo, e não é o bastante bom para nossa Jane.

     Isso era certo. Jane estava tão por cima de MacCarrick que a situação era até ridícula. Ele era forte, enorme e seu aspecto intimidava, enquanto que Jane, todos elogiavam sua beleza, sua inteligência e sua elegância.

     E ela era a única fraqueza de MacCarrick.

     A noite da apresentação de Jane na sociedade, a que Weyland lhes pediu encarecidamente que assistissem, Grei descobriu. Para conseguir que MacCarrick fora até lá, Grei o embebedou. Mas uma vez na casa, Hugh se limitou a ficar de pé do lado de fora e a olhá-la através de uma janela. Havia tal ânsia em seus olhos que Grei se deu conta de que o jovem escocês estava apaixonado pela bela Jane.

     Um urso que queria caçar uma borboleta.

     Grei riu só de pensar naquele casal tão ilógico, e o que lhe fez mais graça foi que Hugh sabia que não era o bastante bom para ela, e mesmo assim não podia apagar seus sentimentos para ela.

     Grei se surpreendia que MacCarrick tivesse mudado de opinião, mas ainda surpreendia muito mais ver que Weyland tinha convencido Jane. Como? Tinha-lhe confessado por fim qual era seu autêntico trabalho? E o de Grei?

     Fazia muitos anos que Grei não estava tão animado; essa situação tinha tanta ironia em si mesmo. Um assassino obrigado a proteger uma vida, a vida de quem mais queria neste mundo... a de sua mulher. E tinha que protegê-la de um assassino que o superava em muito.

     Todos sabiam que Grei era muito melhor assassino que Hugh protetor.

     Já não estava tão contente. Ele não queria que aquilo fosse tão fácil...

     Com Quin e Rolley protegendo-os e um condutor que tinha escrito na testa que também “pertencia à associação”, Weyland acompanhou Jane até o carro. Hugh ia atrás deles, pegou Jane como se ela tivesse um alvo grafite nas costas.

     Tinha-a. De onde estava nesse mesmo instante, Grei tinha um disparo perfeito. Por desgraça, sua pontaria estava agora pouco... afinada. Se falhasse, a única coisa que conseguiria seria alertá-los de que tinha chegado a Inglaterra. Não, teria que aproximar-se mais.

     Junto à porta da carruagem, Weyland pegou o rosto de Jane entre as mãos e apoiou sua testa contra a de sua filha. Esta estava pálida, e quando seu pai a beijou na bochecha ficou sem fala.

     —Papai? —conseguiu dizer com voz entrecortada, como se nesse preciso momento se deu conta de que ia afastar se dele e de seu lar.

     Weyland se obrigou a afastar-se, e só parou um instante para dar um último apertão no ombro e para olhar sério para MacCarrick e lhe dizer com os olhos que confiava nele. Depois se foi com os ombros cansados... como o velho que estava se transformando.

     Grei olhava cativado todas essas ações e interações e se perguntou se Weyland, para obter que aceitasse, teria contado a MacCarrick sobre a lista. Provavelmente.

     Grei sim tinha uma lista, e tinha ameaçado fazendo-a pública; e se essa informação saísse à luz, Weyland morreria no ato. No tipo de serviço clandestino de Weyland, tomavam diariamente decisões muito difíceis a sangue frio, logo, homens como Grei, Ethan e Hugh as levavam a cabo. Se podia relacionar essas decisões com o Weyland, tudo teria se acabado.

     Isso não era o que Grei pretendia, ainda não...

     Quando um suor frio começou a lhe escorregar pelo pescoço e todas as costas até molhar a camisa, Grei procurou algo no interior do bolso de seu casaco. Tinha pensado que fumar seria muito mais difícil na Inglaterra que em outros países, assim encarregou que lhe preparassem seu “remédio” de outro modo. Não teria que ficar incomodado. Em Londres era mais fácil conseguir ópio que tabaco, e saía mais barato que a genebra.

     Mas gostava do novo formato. Mastigou-o e desfrutou de cada instante. Sabia como as amêndoas passadas e tinha uma textura de borracha.

     “Meu remédio” zombou de si mesmo. Por culpa de sua profissão, seu corpo tinha recebido tantas feridas que a única coisa que tinha conseguido que a dor fosse suportável foi o láudano. Uma manhã se deu conta de que Hugh também coxeava e lhe ofereceu um pouco. O bastardo o recusou energicamente. Que nem fosse um santo.

     À medida que mastigava, os batimentos do coração de Grei se acalmou até adquirir um ritmo pausado, e ele não se lembrava de ter estado tão excitado por nada em toda sua vida. Por sorte, com essa dose não teria alucinações, ou isso esperava.

     Ah, ali estava Jane. Caminhava como se estivesse em transe, e quando Hugh a obrigou a entrar na carruagem, ficou evidente que estava furiosa. A obstinada Jane não era uma dessas garotas que se deixam convencer por qualquer, e acreditava que exigia respostas. Algumas respostas que Hugh não lhe estava dando. Deteve-se diante da porta da carruagem e aproximou seu rosto do dele para lhe dizer algo. Ambos ficaram em silêncio.

     Grei tinha comparado Hugh com um urso perseguindo uma borboleta. Grei sorriu. Não, era muito melhor que isso: Hugh era como um lobo que uma coelhinha estivesse torturando.

     O lobo atacaria cedo ou tarde.

     Quando Hugh fechou a porta da carruagem ficou ali alguns segundos respirando fundo para recuperar a calma. Passou uma mão tremula pelo rosto. Achando que ainda não podia acreditar que de verdade estivesse casado com aquela garota.

     —Não se preocupe, Hugh — tranqüilizou Grei—, não durará muito.

          

     No passado, se Jane pegava o Hugh lhe olhando os seios, ele sempre afastava a vista. Agora, durante a última hora na carruagem, não tinha deixado de olhá-la. Era como se quisesse estudar seu corpo, estudando-o, como se tivesse o direito de fazê-lo. Isso a pôs furiosa. No passado, Hugh poderia ter tido acesso ilimitado a seu corpo. Não teria negado nada.

     O fato de reagir ante seu escrutínio a pôs mais furiosa. Por que não era menos atraente que antes? Jane sempre tinha acreditado que Hugh era o homem mais bonito que jamais tinha visto. Acreditava inclusive antes de ter brincado em olhar o seu corpo nu naquele dia em que o espiou banhando-se no lago. Mas agora, com esse novo ar de homem duro, era ainda mais irresistível.

     Jane tinha prometido que transformaria sua vida em um inferno. Estava tão segura, tão decidida quando o disse.

     Agora sabia que brincava com fogo.

     —Continue casada — tinha aconselhado seu pai.

     Mas ela não queria, não podia querê-lo. Tinham obrigado a Jane em aceitar essa união, mas a Hugh não, e ele poderia haver economizado a ambos esse suplício.

     Entretanto tinha se negado.

     Por culpa dele, Jane já não tinha escapatória, e se sentia como se a tivessem obrigado a saltar no vazio. Sim, um suave e forte empurrão que a tinha empurrado para o precipício.

     Quando tocasse o chão, as coisas se complicariam. Acreditava.

     Antes que atacasse Freddie, Jane já estava zangada com Hugh pelo que lhe tinha feito a anos. E agora estava casada com o mesmo homem que a tinha traído, e bem depois de havê-lo visto mais furioso que nunca em toda sua vida. No armazém, Hugh tinha se zangado, mas essa manhã tinha sido muito pior. O que não podia entender era por que.

     Transformou-se em uma dessas pessoas que sempre reagem com violência? Ou acaso seu pai a tinha prometido a há dias, ou há semanas, antes? Isso justificaria que Hugh tivesse acreditado que sua noiva estava beijando a outro. Jane franziu o cenho. Tentou reproduzir a conversa que tinha mantido com seu pai e se deu conta de que nunca tinha perguntado por que Hugh tinha atacado Freddie...

     A desculpa que tinha dado o próprio Hugh parecia pouco convincente. Sim, ele era um amigo da família, e de acordo, talvez ela não devesse ter beijado o Freddie no meio do parque, mas isso não justificava o que tinha feito.

     Jane estava zangada e queria vingar-se. O que dava melhor era provocá-lo e atormentá-lo. De fato, tal como já havia dito a Hugh, graças a suas sete primas e aos cinco anos que tinha passado em Londres, agora estava ainda melhor.

     Faria que Hugh soubesse que tinha renunciado dez anos atrás. Deixaria que saboreasse tudo aquilo que agora não podia ter a não ser que se arriscasse a continuar casado com ela.

     Pagaria por todos os dias sem esperança, pelas noites de lágrimas. Por todos os homens com os que o tinha comparado e não tinham estado a sua altura. Por havê-la deixado...  Pela dor. Faria que pagasse por tudo.

     —OH, Hugh, carinho, faz calor aqui, não acha? — desabotoou os primeiros botões da camisa e separou o tecido para abanar-se. Abriu a janela de seu lado e ficou de joelhos no banco, olhando para ele. Inclinou-se por cima de Hugh para chegar à outra janela. Aproximou um joelho da coxa dele e pôs uma mão no joelho. Todo o corpo do Hugh ficou rígido.

     Com a outra mão, alcançou a janela e girou a cabeça para que seus lábios ficassem a alguns poucos centímetros dos dele.

     —Não se importa, não é, carinho? —perguntou com voz sensual ao mesmo tempo em que acariciava sua coxa, duro como uma pedra. Hugh apertou a mandíbula e engoliu seco. Franziu as sobrancelhas, como se estivesse suportando uma grande dor.

     Tinha que fazê-lo pagar.

     Passaram por um buraco, e embora as mãos dele a segurassem pela cintura imediatamente, Jane se assegurou de ficar sentada em cima de seu colo.

     Hugh ficou sem fôlego.

     —Jane — gemeu, e a segurou ainda com mais força. Mas não a levantou de onde estava, mas fez o contrário. Suas mãos tremulas continuavam na cintura dela e a mantinham ali sentada.

     —O que acontece, carinho? —murmurou Jane.

     —Não me toque, pequena — balbuciou— Não pode me tocar.

     Tinha que pagar.

     —Que tola sou — disse ela fingindo inocente— Tem que me segurar, se não deslizarei... pouco... a pouco por todo seu... —aproximou-se de sua orelha e se assegurou de que Hugh pudesse notar seus seios antes de acrescentar—... corpo.

     Ele tremeu de um modo violento, e inclinou a cabeça para o pescoço de Jane.

     Quando ela se afastou, Hugh a olhou aturdido. Sua mandíbula, que estava acostumado a estar apertada, agora estava aberta.

     Jane deu alguns tapinhas no ombro, muito impessoais, e depois se moveu até retornar a seu assento e seguir olhando pela janela.

     —Sim, carinho, agora está muito melhor.

 

Em um intento por recuperar uma calma que já não possuía, Hugh esfregou violentamente as coxas. Sua dura e vibrante ereção se apertava contra suas calças. Tinha a respiração entrecortada.

     Depois de desejá-la durante tanto tempo...

     Jane não sabia o quanto tênue era seu controle, e permanecia despreocupada, olhando a paisagem pela janela. Mas Hugh viu que seus lábios cor coral se levantavam sem humor. Estava brincando com ele, como sempre tinha feito.

     Não ia agüentar o mais. Maldição, tinha-a visto beijando outro homem.

     Agarrou-a pelo braço e, nesse mesmo instante, Jane deixou de sorrir. Deu a volta e o olhou nos olhos.

     —Hugh, me solte.

     Ele a puxou para aproximá-la dele.

     —Faria bem em se dar conta de que já não sou o mesmo moço de antes.

     —E o que é agora? —perguntou ligeira, como se não desse conta de que o aborrecimento de Hugh ia a mais.

     —Sou um homem, e como tal tenho minhas necessidades. —Daria-lhe uma lição, deixaria claro que tinha que deixar de provocá-lo. Jane havia dito a verdade, agora o fazia muito melhor, tinha alcançado a perfeição. Hugh sabia que era de vital importância que ela entendesse qual era seu lugar. Com voz dura, acrescentou— Não acha que pode me atormentar assim sem que eu reaja de algum modo.

     Jane abriu os olhos um instante e depois os entrecerrou.

     —De algum modo? Demonstre-me isso carinho. —Acariciou o v de seu seio com os nódulos dos dedos. Deus, ela o deixava indefeso— Como você gosta que satisfaçam essas... necessidades?

     Então ela ia contra-atacar? Ele era um homem com muita mais experiência, assim deveria ser capaz de ganhar essa batalha. Acreditava que havia uma linha que Jane não estivesse disposta a cruzar. Mas poderia ele deter-se quando a alcançassem?

     —Acostumarei a isso — Se ouviu dizer. Com um limpo movimento, sentou Jane em seu colo e lhe recostou as costas contra seu braço até quase cobri-la com seu corpo. Parecia surpreendida, a final, era a primeira vez que ele reagia a sua provocação, mas de repente se recuperou. No tempo de um suspiro, Jane voltava a ser toda sedução; relaxou em seus braços e começou a lhe acariciar o pescoço.

     Hugh sentiu o sangue acumular entre as pernas e começou a lhe doer de tanto calor que sentia. Quando Jane abriu a boca de par em par, por causa da surpresa, Hugh soube que podia sentir como sua ereção se apertava contra seu traseiro. Custava-lhe muito pensar. O que era o que queria fazer?

     “Beijá-la com tanta paixão que se esqueça de que esta manhã estava nos braços de outro homem...”

     Não. O fazia para que ela se assustasse, para ganhar aquela batalha de vontades. Eles sempre estavam acostumados a brigar assim, e Hugh tinha perdido tantas vezes como tinha ganho.

     Jane tinha os lábios entre abertos, esperando-o. Seu corpo estava relaxado contra o seu. Ele avançaria só um pouco. “Sim, tire isto da cabeça de uma vez. Faça-o.” Hugh tinha imaginado como seria beijá-la, e acreditava que quando o fizesse e visse que não era tal como esperava, poderia desprender-se dessa obsessão.

     Inclinou-se para frente sem deixar de olhá-la nem um instante. Deu-se conta de que tinha um punho fechado sobre a prega de sua saia e não soube como sua mão tinha ido parar ali. O mais provável era que queria tocar aquelas sensuais meias que tinha visto como ficava essa mesma manhã.

     A blusa entre aberta de Jane deixava descoberto a redondez de seus seios, que apareciam por cima do espartilho, e se agachou para que seus lábios pudessem acariciar essa pele. Surpreendeu-lhe ver que era tão suave como parecia. Quando ela tremeu, e abandonou toda pretensão, beijou a base do pescoço, e deu conta de que era a primeira vez que seus lábios a tocavam.

     Hugh inalou o leve perfume dela e soube que não poderia descansar até saboreá-la. Só uma vez. Rendeu-se e abriu a boca para que sua língua pudesse deslizar-se por cima de sua pele. Hugh tremeu de prazer e de Jane escapou o mais doce dos suspiros. Ele desejou poder lhe arrancar muitos mais.

     —É isto o que quer de mim? —gemeu Hugh, e se afastou para poder olhar seu rosto. Parecia tão aturdida como ele, e olhava seus lábios procurando entender como as coisas tinham subido de tom tão rápido.

     Hugh a pegou pela nuca e procurou seus lábios com os seus. Ela hesitou um instante, surpreendida ao sentir esse contato, mas depois os entreabriu e os ofereceu com doçura.

     A boca de Jane era quente e úmida, e quando Hugh a percorreu com sua língua ela fez o mesmo. Ele teve que engolir um gemido. Jane, por sua vez, gemeu contra seus lábios, e esse som fez que sua ereção tremesse ainda mais. Hugh não demorou em perder-se nessas sensações. Por fim a estava saboreando, tocando... e isso o estava aturdindo.

     Não era um sonho, não era uma das miragens que via nessas noites que se passou deitado em uma cama solitária, em países estranhos. Estava-a beijando de verdade. E não era tão bom como o que tinha imaginado.

     Era melhor.

     Deslizou a mão pelo exterior da coxa do Jane até alcançar a liga, e já ia desfazer o laço, devagar, quando...

     —Senhorita Weyland! —gritou uma voz de fora da carruagem— Está aqui a senhorita Weyland?

     Jane ficou paralisada e se separou dele.

     —Freddie? —exclamou.

     “Bidworth não.”

     —Hugh, temos que parar.

     Com o olhar, percorreu-lhe os seios, o pescoço, os lábios. Depois buscou os olhos e, devagar, sacudiu a cabeça. Agachou-se e voltou a apoderar-se de sua boca.

     Ela tremeu e o empurrou de novo.

     —Para! —Tentou sentar— Eu digo a sério, Hugh!

     Ele por fim a soltou, embora tivesse que fazer esforços para não voltar a abraçá-la. Jane tinha respondido a suas carícias. Tinha sido só um instante, e tinha esperado muito, mas havia valido a pena.

     Entretanto, à medida que recuperava o sentido comum, não podia acreditar o que tinha feito, o que tinha estado a ponto de fazer. Teve que clarear a garganta antes de falar, e mesmo assim, sua voz soou áspera.

     —Jamais volte a fazer isso. Nunca, Jane, ou te juro que...

     —Pare a carruagem — interrompeu-a enquanto respirava fundo e abotoava a blusa. Ao ver que não fazia caso, acrescentou— Vamos a um lugar tão secreto que nem sequer me disse , mas se não me deixa falar com ele, nos seguirá até lá.

     —Não, se não poder nos seguir — respondeu ele tranqüilo.

     Jane abriu os olhos como se não o reconhecesse.

     —Está louco, acho que sim? Os anos danificaram seu cérebro? Me escute, Hugh MacCarrick. Não voltará a machucá-lo. Ouviu? Se o fizer, que Deus me ajude, porque se for preciso, interporei-me entre você e te arrancarei os olhos. —Para reforçar a ameaça, lançou-lhe um olhar gélido.

     —Disse a seu pai que lhe tinha mandado uma carta.

     —E o fiz — respondeu ela enquanto alisava o cabelo. Ele aproveitou esse momento para arrumar bem o casaco e, às escondidas, acomodou sua ereção nas calças—. Freddie deve ter saído atrás de nós justo depois de lê-la e, ao não nos encontrar, terá nos seguido para o norte.

     Hugh engoliu o insulto que tinha na ponta da língua e ordenou o condutor que parasse.

     —Quero estar com ele cinco minutos... a sós —disse ela ao abrir a porta.

     —Nem em sonho.

     —Vou despedir-me. Ele merece cinco minutos de meu tempo. Em especial depois de que o atacasse esta manhã no parque. —Olhou-o nos olhos— Maldição, Hugh, por favor.

     Ela sempre soube que ele não podia lhe negar nada quando o olhava desse modo e pedia por favor. Soltou uma maldição e Jane saiu da carruagem antes que Hugh pudesse ajudá-la a descer. Pela janela traseira, Hugh viu como Bidworth desmontava. Quando ela correu para ele, o muito bastardo lhe pôs as mãos nos ombros e depois a atraiu para si.

     Hugh não podia ver isso, não nesse momento. Agora ela era sua mulher. Não o seria para sempre, era só temporário, mas agora, ela era dele.

     Seu primeiro impulso foi sair da carruagem e arrastá-la de volta com ele. Depois voltaria para dar outro murro em Bidworth. Havia se sentido tão bem ao lhe dar o último, e Bidworth já começava a ter o nariz torcido e as olheiras escuras. Hugh mal pode resistir à tentação, mas ficou, e se manteve alerta se por acaso tinha que sair correndo em procurá-la.

     Temia que Bidworth agarrasse Jane e a levasse dali a cavalo.

     Hugh em seu lugar o faria.

     Decidiu aproveitar o tempo e ver como se comportavam um com o outro, e tentar discernir o que sentia Bidworth ao perdê-la. Jane o olhava com adoração, mas era de esperar que uma mulher como ela quisesse um homem como esse. Era conde, loiro, alto, e de uma vez rico e elegante. Formavam o perfeito casal britânico.

     Hugh em troca era um escocês de cabelo escuro, com um rosto ameaçador e coberto de cicatrizes.

     Por não mencionar seu trabalho.

     Jane acariciou a face de Bidworth e Hugh o odiou por isso. Ela tocava Bidworth com carinho, do mesmo modo que estava acostumado a tocar Hugh. O fazia para machucá-lo.

     Hugh estava no inferno. Preferiria permanecer imóvel durante um dia e meio segurando seu rifle, com o suor caindo sobre os olhos e os insetos devorando as pernas que ver aquilo. Com a mandíbula apertada e os punhos fechados, viu como Bidworth fechava o último botão da blusa de Jane, e suspeitou que tinham dormido juntos.          

     —Jane, não pode me dizer que isto seja que quer — disse Freddie— Acreditava que você e eu tínhamos um acordo.

     —Não é o que quero, e sim, tínhamos. —Ela sentia os olhos de Hugh cravados nela, e não podia deixar de tremer. Ainda não entendia como as coisas se aceleraram tanto. Anos atrás, ela sempre podia tocá-lo, atormentá-lo, e nunca lhe devolvia a carícia. Mas fazia apenas uns instantes, na carruagem, ele a tinha sentado em seu colo e ela pode sentir como a sua impressionante e insistente ereção se apertava contra suas nádegas em questão de segundos.

     Seus beijos tinham sido ardentes, famintos. Até então Jane não sabia que os beijos pudessem ser assim. Tinha sido como se Hugh a estivesse marcando...

     Enquanto ela e Freddie caminhavam, Jane se colocou de modo que Hugh não pudesse ver quão ruborizada estava... Agora, o único que ele podia fazer era olhar suas costas.

     —Seu pai me disse que MacCarrick acaba de retornar depois de passar muito tempo fora — prosseguiu Freddie—, e que faz anos que estão noivos. É isso certo?

     De certo modo. Na mente de Jane, sim.

     —É muito complicado, Freddie.

     —Carinho, Weyland a obrigou a aceitar? —Acariciou-lhe o cabelo— Jane, pobrezinha. Está tremendo.

     Olhou-a como se fosse beijá-la para consolar e Hugh saltou da carruagem nesse mesmo instante. Para deixar claro que se tratava de uma advertência, cruzou os braços e apoiou seu musculoso corpo no carro.

     Freddie se assustou.

     —Meu Deus, agora me parece mais bárbaro que antes! Não posso entender que seu pai te deixou casar com ele. —Com o olhar, Freddie disse a Jane que se surpreendia que esse casamento já tivesse durado tanto— No que estaria pensando Weyland? Não penso permiti-lo! Encontraremos o modo de te liberar desse homem.

     Jane olhou para Hugh e teve que reconhecer que dava medo. Por desgraça para ela, isso sempre lhe tinha agradado; ao menos quando essa fúria era dirigida a outros.

     Sem alterar o tom de sua voz, disse:

     —Temo-me que já seja tarde.

     Sim, seu pai era um homem que tinha notável influência com pessoas de certo poder, mas nem ele podia solucionar aquilo.

     Na carta que Jane tinha mandado para Freddie tinha terminado com ele... para sempre.

     —É melhor assim — disse ela com um suspiro— Já sabe que nem sua mãe nem sua irmã me aprovam. —Quase tinha se transformado em lady Whiting.

     —Espero que isso não seja o que tenha feito você mudar de opinião, porque já sabe que eu as teria mandado a passear.

     Apesar dessas decididas promessas, Freddie não estava acostumado a tomar partido, nem tampouco estava acostumado a meter-se em conflitos de nenhuma espécie. Esse era um dos motivos pelo que gostava tanto dele, porque era completamente oposto de Hugh, que sempre tinha estado disposto a brigar por causa dela.

     —É que não o entendo — continuou Freddie— Não penso aceitá-lo!

     Sim, sim o faria. Porque a verdade era que ele tampouco estava apaixonado por Jane. Freddie tinha entregado seu coração para Candance Damferre, uma amiga da infância e seu primeiro amor. A Candance a tinham obrigado a casar-se com um homem mais velho que, por muito incrível que parecesse, era ainda mais rico que Freddie.

     Mas Jane e Freddie se prometeram o um ao outro que, se chegavam a se casar, ambos se esforçariam para que seu casamento prosperasse. Jane sabia que Freddie tinha vontade de compartilhar seu futuro com ela. Toda aquela situação era um engano.

     —Estou te mandando a sua perdição... —Ao ver que Hugh se dirigia para eles com expressão ameaçadora, o tom de voz de Freddie subiu uma oitava— Vai-me bater outra vez, acho que sim?

 

À medida que Hugh se aproximava, o rosto de Bidworth empalidecia e suas manchas roxas destacavam ainda mais. Hugh ouviu como murmurava:

     —Jane, há mo..modos de consertar isto, estou certo. Ainda não é sua mulher, ainda não.

     —Parece-me que é mais minha que tua — soltou Hugh, ferido porque o comentário de Bidworth tinha acertado no alvo. E o modo em que o olhava estava acabando a sua paciência.

     Por que para todos parecia tão incrível que Jane se casasse com um homem como Hugh? Na carruagem, ela o tinha beijado como se de verdade se casou com ele. Maldição. Para marcar território, Hugh pôs uma mão na nuca dela.

     Com o olhar, Jane lhe disse que se vingaria.

     —Queria cinco minutos.

     —Entra na carruagem. Agora. —Como ela se limitou a o olhar boquiaberta, Hugh se aproximou e disse em voz baixa— Faça-o, ou desta vez receberá algo mais que um golpezinho.

     Sem duvidá-lo, Jane pegou a mão de Freddie e a apertou.

     —Escreverei, Freddie — disse antes de sair correndo para a carruagem.

     Quando ela se foi, Hugh disse a Bidworth:

     —Não nos siga. Não volte a se aproximar dela. Esquece que a conhece.

     —Tie-tem... —Bidworth engoliu seco e voltou a começar— Tem idéia de quem sou?

     “Um miserável covarde” pensou Hugh incrédulo, enquanto tentava manter a calma. Ele acreditava que um pretendente ofendido, em especial um comprometido com Jane, seria uma ameaça mais séria.

     Mas aquele não era nenhuma ameaça. Nem sequer ia discutir com o Hugh.

     —Sim, sei quem é. É o homem que vai deixar que Jane vá sem criar problemas. —Se Hugh estivesse na situação de Bidworth, quer dizer a ponto de casar-se com ela, teria lutado com unhas e dentes sem medo das conseqüências antes de permitir que outro homem a levasse. Teria brigado a sério, com todo o sangue e com quantas feridas tivessem sido necessárias.

     Se Jane era o prêmio, estava mais que disposto a sangrar por ela, e a sorrir enquanto o fazia.

     —Não a merece, e jamais teria podido controlá-la — disse Hugh.

     Enquanto Bidworth ainda pensava no que responder, Hugh deu meia volta e retornou à carruagem. Incomodou-lhe ver que Jane subia sozinha, sem deixar que ele a ajudasse. Quando ambos estavam sentados, indicou ao condutor que retomasse o caminho e Jane saudou Bidworth até que este desapareceu no horizonte. Muito depois, Jane continuava com o olhar fixo na paisagem e com os punhos apertados. Hugh pensava que esse era o momento ideal para que uma mulher pusesse a chorar.

     De jovem, Jane quase nunca chorava. Nas estranhas ocasiões em que o fazia, Hugh não sabia como reagir. Ao ver que agora estava a ponto de fazê-lo, Hugh esfregou a nuca e se deu conta de que isso tampouco tinha mudado.

     —Se o quer tanto, por que não lutou por ele? Antes sempre conseguia o que queria.

     —É sua culpa — soltou ela—, tudo isto é sua culpa. Se meu pai não tivesse conseguido outro “prometido” tão rápido, teria permitido que me casasse com Freddie.

     —Culpa-me mais que a seu pai? Ele o organizou tudo! Culpa-me mais que a si mesma? Você aceitou seguir adiante! Por que não tenta culpar a Grei?

      —Por que meu pai escolheu você? Nem sequer estava em Londres. Exijo saber o que está acontecendo! É isto um plano retorcido para conseguir que me case com você?

     —Tal como já disse, eu não fui a sua casa com a intenção de sair dali casado. Nunca pedi sua mão a seu pai.

     —Então acha que tenho que acreditar que Grei pode ficar violento comigo? O negócio das importações tem que ser muito perigoso. E em todo este tempo nunca soube que meu pai corria tanto perigo.

     Hugh não disse nada.

     —Me olhe nos olhos e me diga que Grei está desequilibrado e que pode me fazer mal.

     Hugh a olhou nos olhos.

     —Posso te dizer com absoluta certeza que Grei está louco e é perigoso, especialmente para você.

     —Grei sempre foi amável comigo — disse ela.

     —Com certeza que sim. —quanto mais louco ficava Grei mais atacava Hugh com Jane. Ele sabia que ela era sua única fraqueza— Alguma vez Grei te disse ou te fez algo? Mostrou algum tipo de interesse?

      —Não, mas não o via freqüentemente. —Jane sentiu um calafrio—. Por que quereria fazer algo tão drástico?

     —Está ficando instável. Seu pai rompeu todos os vínculos com ele e ordenou algo, algo que tinha todo o direito a ordenar, e que arruinou completamente Grei.

     —O que quer dizer com “algo”? Como o arruinou? E como encaixa você em tudo isto?

     Weyland tinha deixado claro que não queria que Jane soubesse nada da organização até que se confirmasse que a lista tinha saído à luz. Supunha-se que, até então, Hugh tinha que esquivar suas perguntas. Isso ou mentir. E como Hugh tampouco queria contar qual tinha sido seu papel em tudo aquilo, aceitou encantado. Por desgraça, viu que era impossível mentir. Tinha que recuperar a calma e encontrar o modo de despistá-la de todas aquelas perguntas.

     —Você adora me interrogar, mas duvido que esteja disposta a responder minhas perguntas.

     —Me pergunte o que quiser!

     —Por que esperou tanto tempo para se casar? —Ela teve um montão de oportunidades, desde muito jovem. Assim que foi apresentada na sociedade, tinha recebido muitas ofertas.

     —Não tinha encontrado o homem adequado — respondeu ela em tom presunçoso.

     —Bidworth era?

     —Ele reúne todos meus requisitos. Todos e cada um deles.

     —Como quais? —perguntou Hugh.

     —É gentil, amável e considerado. —Ao ver o olhar de aborrecimento de Hugh, Jane entrecerrou os olhos— É loiro, tem um rosto que faz suspirar às mulheres, é conde, popular e rico.

     Se esses eram os requisitos que Jane procurava, Hugh nunca tinha tido nem a menor possibilidade, com maldição ou sem ela.

     —Bidworth é um covarde — disse.

     Agora que o tinha conhecido, embora só tinham sido por alguns minutos, Hugh sabia que Weyland tinha acertado ao não permitir que Jane se casasse com o conde. Ele nunca poderia protegê-la.

     Seu comentário fez que Jane voltasse a falar:

     —Só porque não tenha te desafiado a um duelo não significa que Freddie não seja valente! Ele é um nobre e um cavalheiro do Império britânico; está por cima das brigas de botequim.

     Hugh supôs que alguma vantagem tinha que ter ser um bruto escocês sem nenhum título nobiliário.

     —Freddie é um homem maravilhoso da cabeça aos pés — continuou Jane— E esse modo em que o atacaste hoje? Por Deus, Hugh, no que pensava?

     —Ele nunca deveria ter te beijado em público.

     —Eu beijei ele.

     “Isso, Jane, encrava a adaga mais fundo —pensou Hugh— Sim, agora move-a, pequena, de esquerda a direita.”

     —E o modo em que o provocou faz um momento? —insistiu ela— Esta manhã acreditava que eu era dele, e você joga na sua cara que se casou comigo, como se isso significasse algo para você.

     —E você se jogou em seus braços bem no caminho. Não sei o que é pior!

     Ela o olhou atônita.

     —Não me joguei em seus braços! Dei-lhe um abraço de despedida. O que não é nada estranho, Freddie e eu estivemos saindo juntos há anos!

     —É, mas durante todos esses anos, acredito que não estava sentada nos joelhos de outro homem, lhe devolvendo beijos, minutos antes de o ver.

     Jane abriu a boca, mas não disse nada, pois se deu conta de que não podia negá-lo.

     —Jane, embora este nosso casamento seja uma farsa, é real até que chegue a seu fim. Nunca volte a tocar outro homem diante de mim. A não ser que queira que ele morra.

     —Por que, Hugh? —Levantou a vista— Parece ciúme, mas eu sei que isso não é possível.

     Sim era. No que levava de dia, Hugh havia sentido mais ciúmes que em toda sua vida. Se de verdade estivessem comprometidos, talvez não o tivessem corrompido tanto, mas o certo era que, tal como eram as coisas, não tinha motivos. Isso era uma farsa. Tinha-lhe dado seu nome, mas não podia esperar nada em troca.

     Era uma loucura. Por que tinha aceitado em fazê-lo quando todos seus instintos lhe diziam o contrário? Sabia que o estavam manipulando, e mesmo assim tinha permitido.

     Hugh nunca estava acostumado a perder os nervos ou agir por impulso. E agora sentia que estava perdendo o controle. O que tinha Jane que o transformava em um ser tão primitivo e possessivo? Teve vontade de mostrar os dentes para Bidworth, e o teria golpeado só pelo prazer de fazê-lo.

     Os homens como Hugh não podiam permitir o luxo de perder o controle. Grei não era o primeiro que sucumbia a seus impulsos mais escuros.

     —E não volte a me tocar. Está brincando com fogo, pequena.

     —Se não poder resistir que te toque, não deveria ter aceitado esta loucura. Não é que não soubesse onde se colocava. Antes sempre estava acostumado a te tocar, e te adverti do que aconteceria se seguisse adiante!

     —Ambos estivemos de acordo em que terminaremos com este casamento quando a situação resolva — grunhiu ele— Não ficarei amarrado em algo que não quero só porque goste de jogar comigo.

     Jane ficou gelada.

     —Não perca nem um minuto preocupando-se por isso. Não há nada, nada, que possa me obrigar a continuar casada com você. Asseguro-lhe isso. —Abriu sua pequena bolsa de viagem e, antes de lhe dar as costas, tirou um livro.

     Se ele pudesse fazer o mesmo com essa facilidade.

     Hugh tinha passado toda a manhã flutuando, convencido de que em qualquer momento alguém se daria conta de que seu casamento com Jane era um engano. Esperava que, de um momento a outro, ela voltasse atrás.

     No mais profundo de seu ser, Hugh sabia que a decisão final jamais tinha estado em suas mãos.

     Quando Jane começou a fazer a bagagem, Hugh ficou ainda mais nervoso. “De verdade vai seguir adiante? Impossível.” E se a decisão final tivesse dependido dele? Hugh não deixou de sopesar os riscos, mas antes que pudesse reagir já estavam pedindo que assinasse o certificado de casamento.

     Hugh ouviu como Rolley dizia a Quin nesse momento:

     —Jamais acreditei que chegaria o dia em que o mais sereno dos MacCarrick tremesse o pulso.

     E o que esperavam? Hugh acreditava que de um momento a outro, o destino cairia sobre ele para lhe castigar.

     E agora tinha posto em perigo à única mulher a que amaria em toda sua vida.

     Levavam mais de uma hora em silêncio quando Hugh lhe tirou o livro das mãos. Antes que ela pudesse queixar-se, mostrou-lhe a palma da mão em que descansava a caixa da joalheria.

     —E isto o que é? —perguntou ela, embora reconheceu a R gravada no estojo.

     —Pegue-a.

     Jane hesitou um instante, mas a pegou e a abriu como se não se importasse. Seu coração saltava igual às rodas de um carro.

     Dentro havia a jóia mais preciosa que jamais tinha visto.

     Ficou perplexa, enjoada, e depois procurou os olhos do Hugh.

     —Isto... isto é de tudo desnecessário. —Tentou devolver-lhe, mas ele não a aceitou e, ao ver o olhar de Hugh, hesitou uns segundos.

     —Não quer usá-lo, pequena? —perguntou ele incrédulo.

     Era óbvio que não lhe tinha ocorrido que ela pudesse não aceitá-lo. Jane optou por deixá-lo no banco, entre os dois.

     —Hugh, não tinha por que fazê-lo. Conheço muitas mulheres casadas que não levam nenhuma jóia.

     —Você sim.

     —Também conheço muitas mulheres às que não gostam que lhes dêem de presente jóias de um modo provisório.

     —O que quer dizer?

      —Ambos sabemos que isto terminará logo — disse Jane— Que me dê de presente um anel, parece-me... cruel.

     Ele negou com a cabeça.

     —Ele ficará. Depois.

     Depois de que ele a abandonasse. Outra vez.

     —E como é isso? Tinha-o em casa se por acaso se apresentava algum casamento de emergência?

     —Comprei-o esta manhã, enquanto você fazia a bagagem.

     —Hummm. — deu alguns golpezinhos na bochecha— Agora vejo tudo claro. Comprou-o porquê se sentia culpado por ter batido em Freddie e por ter me tocado ontem à noite. Foi e me comprou um ramo de oliva muito caro.

     —Perdeu um grande casamento e tudo o que isso comporta. Isto era a única coisa que estava em minha mão. Queria dar a minha amiga algo digno dela.

     —Somos amigos, Hugh? —perguntou ela em um tom de voz que inclusive a si mesmo pareceu triste.

     —Nunca o duvidei. —Hugh se incomodou.

     Jane mordeu o lábio inferior e voltou a olhar para aa caixa com o anel. Sentia cócegas nos dedos de tanta vontade que tinha de ficar com o anel. Seu pai havia dito que Hugh tinha dinheiro economizado, mas Ridergate era um lugar extremamente caro, e aquele anel, com o clássico diamante rodeado de esmeraldas, era precioso.

     Suspirou e se deu conta de que não deveria aceitá-lo porque, apesar do muito que queria fazê-lo, Hugh não deveria ter gasto tanto dinheiro nela. Em especial se não fossem continuar casados.

     Hugh a surpreendeu e voltou a pegar a caixinha. Mas o fez para extrair o anel de uma vez que lhe pegava a mão.

     —Ponha-o — balbuciou.

     Estava nervoso? Jane sempre sabia quando Hugh estava alterado ou inquieto, pois jogava os ombros para trás de um modo peculiar. Agora já não podiam estar mais.

     —É o que queria.

     —Por que acha isso? —Podia ser que ele se lembrasse da descrição que tinha feito do anel de casamento com o que sonhava? Mordeu o lábio inferior e esperou a que respondesse.

     —Você me disse — respondeu isso ele entre dentes.

     Lembrava-se disso? Se esse homem podia lembrar-se de todos os detalhes daquela conversa ao longo de tantos anos, Jane podia estar segura de que não se equivocou ao acreditar que eram amigos.

     Quando ele deslizou o anel em seu dedo, Jane tremeu sem saber por que. Ao ver que o aceitava, Hugh se tranqüilizou um pouco. E agora que por fim ele se acalmou, ela começou a fazer o mesmo.

     Não podia fazer nada para evitá-lo.

     Maldição, eles dois sempre tinham sido assim, sempre estavam cômodos um com o outro. Agora foram recuperando pouco a pouco, como uma pluma que se desliza pelo ar até chegar ao chão. Maldição, maldição, maldição...

     Podia uma mulher sentir falta de um homem que lhe tinha feito tanto mal? Podia passar por cima de toda essa dor e voltar a querer estar perto dele?

     Pensou-o só um instante: talvez.

     Talvez devesse estar agradecida por ter podido esquecer, embora fosse durante alguns minutos, tudo o que a preocupava. Ou talvez fosse simplesmente que gostava do anel. “Típico de você, Jane.”

     Suspirou. Um beijo e uma quase proposta de casamento antes das nove; outro beijo e um anel antes do meio-dia. Deus pudesse dizer que tudo tinha sido com o mesmo homem.

      

–Advirto-lhe, Hugh — disse Jane ao ver que ele levantava as mãos para ajudá-la a descer da carruagem— Vou deixar que ponha minha cintura entre suas mãos. Faça o favor de não tomar como uma insinuação ou uma carícia.

     Desde que o tinha convencido para que parasse na hospedaria, Hugh estava muito sério. E, com cada palavra de Jane, ficava pior; a diferença dela que, graças ao anel, estava de um humor excelente.

     Quando Hugh a pegou pela cintura e a deslizou até o chão, perguntou:

     —Por que tem tanta aversão a este lugar, Hugh? Parece muito correto.

     Ele continuou segurando-a.

     —E é. Mas tem que cruzar o salão para subir nos quartos.

     —Esteve aqui antes? —perguntou ela.

     Hugh assentiu, e fixou seus escuros olhos no decote de Jane; ela reagiu ante seu olhar. Passou toda a viagem relaxando-se e esticando-se cada vez que ele a olhava desse modo. Depois daquele beijo, do que não deixava de repetir-se que tinha sido tão perfeito por acaso, uma devastadora anomalia, Jane sentia seus seios mais sensíveis, como se o espartilho lhe apertasse.

     E, igual a ele, também estava observando-o. Mas tinha sido muito mais discreta. Deu-se conta de que todos aqueles cortes que tinha no rosto, e as cicatrizes do pescoço e das mãos, não encaixavam com a profissão que dizia ter. Nem tampouco o fazia o modo em que tinha batido em Freddie. Freddie era muito corpulento e, mesmo assim, Hugh o tinha mandado pelos ares com muita facilidade.

     Jane tinha ido a combates de boxe e tinha visto muitos lutadores de grandes punhos, mas estaria disposta a apostar tudo o que tinha a que Hugh poderia vencê-los a todos. Isso não encaixava. Nem tampouco que tivesse esse corpo tão musculoso, como se passasse horas trabalhando no campo.

     Jane estava certa de que não era um simples homem de negócios. Mas não sabia o que podia ser...

     —Não pode se tampar um pouco? —balbuciou Hugh ao soltá-la— Não se importa que todos os clientes a vejam.

     —Toda minha roupa está nos baús.

     —E tampouco pode perder o cabelo? —Franziu o cenho ao ver seu cabelo solto.

     Jane não estava acostumada a usar chapéus, e muito menos para viajar; eram muito incômodos.

     —Hugh, até agora não me queixei da dura viagem que organizou. Mas se me deixa aqui fora com o frio e a umidade que faz e como cansada e faminta que estou talvez comece a fazê-lo.

     Hugh tomou ar, pegou-a pela mão, e a arrastou para dentro quase correndo. Entraram em um salão que era do mais comum e buliçoso. Os clientes bebiam genebra e perseguiam as garçonetes. Jane viu fascinada como uma, com um simples movimento de quadris, conseguia escapar de um deles.

     Jane tinha ido a lugares muito piores com suas primas. Ao parecer, em Londres todo mundo procurava experiências ao limite, e as Oito tinha feito disso uma arte. Estavam acostumadas a disfarçar-se com roupa de homem e usavam bigodes falsos, que, além das fazer rir, acreditava que não serviam para muito mais, e então foram visitar um escandaloso museu de cera, por exemplo. Também tinham apostado nos tugúrios do East End e tinham assistido a um lascivo espetáculo pictórico.

     Para Jane, aquele salão era um pouco aborrecido.

     Quando Hugh se viu obrigado a reduzir o passo para poder cruzar entre os clientes, um muito bêbado para saber o que fazia, dirigiu-se para Jane. Cambaleou-se e se segurou nela, e parecia ter toda a intenção de recostar a cabeça entre seus seios.

     —Hugh. —Apertou-lhe a mão— Talvez poderia...

     Hugh se voltou e a colocou atrás dele, de uma vez que dava um murro no sujeito. Jane abriu os olhos de par em par e o salão ficou em silêncio.

     Acariciando o braço de Hugh murmurou.

     —Hugh... deixa-o. Seria uma briga muito injusta.

     Sam, a prima de Jane, disse uma vez que esta tinha um caráter muito feroz, mas inclusive lhe surpreendia ver o quanto letal e preciso era Hugh e o quanto disposto estava a atacar. Um homem de negócios dedicado às importações? Sim, e ela era a rainha do Egito.

     Quando Hugh afastou o punho, o bêbado deu um passo atrás, balbuciou uma desculpa e Jane acreditou ver que o homem molhou um pouco as calças.

     Hugh a manteve apertada contra suas costas, como pega a ele, e estudou a sala. Jane se deu conta de que estava com o homem maior e terrível que havia ali. Era como se todos os clientes o conhecessem, pois a cada passo que dava, separavam-se dele e evitavam olhá-la.

     Finalmente, deixou de segurá-la com tanta força e deu a volta para lhe oferecer o braço. Jane o aceitou encantada e tudo voltou para a normalidade. Hugh e ela atravessaram o salão, e o corpo dele continuava vibrando, como se ter golpeado aquele pobre homem tivesse feito um grande esforço. Jane tentou lhe distrair.

     —Carinho, vejo que o perigoso mundo das importações te endureceu...

     —MacCarrick! —chamou-o uma preciosa loira mas velha que ela que não podia deixar de lhe devorar com o olhar— Quando me disseram que tinha voltado para meu modesto estabelecimento não podia acreditar nisso. —A mulher se aproximou e pegou a sua mão. Tinha muito seio, um acento francês muito sexy e usava um decote muito baixo que nem sequer Jane teria se atrevido a usar jamais.

     Agora entendia por que Hugh não queria que parassem ali. Jane suspeitava que ele e a explosiva francesa tinham sido amantes.

     Hugh resgatou sua mão e apresentou a Jane.

     —Jane, ela é Lysette Nadine. Lysette, ela é mi... esposa, Jane... MacCarrick.

     Jane pensou em todas as vezes que tinha escrito esse nome, Jane MacCarrick, e suspirou, mas Hugh mal podia pronunciá-lo. O prazer que estava acostumado a alagá-la se transformou agora em agonia.

     —Esposa? —A mulher abriu a boca surpreendida, mas em seguida recuperou a compostura— Tem que ser algo muito recente. A última vez que te vi, foi há seis meses, e continuava solteiro.

     Hugh encolheu os ombros sem mostrar maior interesse. Assim não se viram em todo esse tempo?

     Lysette baixou a voz e disse:

     —Acreditava que tinha jurado não se casar nunca.

     —As coisas mudam — respondeu ele, e Jane soube que isso era só a ponta do iceberg. Tinha jurado não casar-se jamais?

     A tal Lysette tinha uns enormes e inocentes olhos azuis, mas na realidade era muito esperta e não passava por cima de nenhum detalhe. Quando repassou Jane descaradamente de cima abaixo, esta se limitou a lhe sorrir igual a um menino pequeno que busca chamar a atenção. Sentia-se segura de si mesma e, por estranho que fosse, sabia que, embora essa mulher e Hugh tivessem sido amantes, ele se sentia muito mais atraído por ela. Mas não pensava deixar impune esse intento descarado de lhe roubar Hugh, e embora havia dito que não o tocasse, Jane se aproximou a ele e recostou a face contra seu braço. Sentiu-o esticar-se imediatamente.

     Lysette levantou uma sobrancelha e, para desafiá-la, perguntou:

     —Quantos quartos quer, Hugh?

     —Um — respondeu Jane antes que ele pudesse responder. Assim que a desafiava? Jane percorreu as costas do Hugh com os dedos, e no caminho detectou uma pistola que não sabia que usava; descansou a mão em seu pescoço para acariciar a pele languidamente com as unhas. Hugh se esticou ainda mais— E nós gostaríamos que subissem uma banheira e o jantar.

     Lysette olhou para Hugh como se esperasse que contradissesse Jane.

     Jane descansou sua outra mão contra o musculoso peito e de uma vez presumiu o anel.

     —Excedi-me, marido?

     Hugh a fulminou com o olhar, mas confirmou com Lysette.

     —Um.

     Esta forçou um sorriso.

     —Eu mesma lhes acompanharei.

     Quando entraram no quarto, que era muito espaçoso, Jane se sentou na cama e deu alguns tapinhas no colchão.

     —Sim, carinho, servirá. —Olhou para Hugh de um modo lascivo e ronronou provocadora— E acredito que inclusive poderemos dormir bem.

     Tanto ele como Lysette a olharam de uma vez. Hugh com uma advertência nos olhos, e Lysette com uma promessa de vingança.

     Por fim, a loira se foi e, antes de sair, balbuciou um insincero:

     —Se precisarem de algo...

     Depois que a porta se fechou, Hugh perguntou:

     —A que está jogando?

     —Não deveríamos atuar como se estivéssemos casados? —Jane se deitou na cama e levantou as mãos por cima de sua cabeça para poder continuar olhando seu anel. Tinha decidido que definitivamente ia ficar com ele, apesar de não poder ficar com o noivo ao que ia associado— Assim é como me comportarei com meu marido quando chegar a ter. Quererei flertar com ele, e tocá-lo. E não deixarei que outra mulher tente fazer o mesmo.

     —Será possessiva com seu marido?

     —Muito. —apoiou-se nos cotovelos—Em especial se for tão evidente que você..., quero dizer ele, tem algum tipo de história com a voluptuosa garçonete que tenta me fazer sentir como uma intrusa em sua pequena festa para dois. —Arqueou uma sobrancelha— Quer me contar a sua história com a francesinha?

     —Não especialmente.

     —Hugh, algum dia vai morrer de vontade de saber algo de mim. E se continua negando a responder a minhas perguntas, eu me sentirei obrigada a fazer o mesmo.

     Antes que ele pudesse responder, uma donzela bateu na porta e entrou para instalar uma banheira de cobre atrás de um biombo.

     Hugh perguntou entre sussurros:

     —Antes que se vá, precisa que te ajude a despir? —Ao ver o olhar de Jane, acrescentou— Acreditei que sentiria falta da sua donzela.

     —OH, e quem foi que disse que ela não podia vir conosco? Não importa, você pode me ajudar. Além disso, estou certa de que tem bastante prática em despir mulheres.

     A donzela tossiu atrás do biombo. Hugh olhou para teto como se rezasse pedindo paciência.

     Jane o ignorou e dirigiu o olhar para a donzela que se ocultava atrás do magro tecido. Deu conta de que, através do biombo podia ver com detalhe sua silhueta, e também podia vê-la através das dobradiças dos painéis. Se Hugh ficasse no quarto enquanto Jane se banhava, poderia vê-la. Jane sentiu um calafrio. Aquele não era momento para desenvolver uma falsa modéstia. Por fim, ia viajar com aquele homem por tempo indefinido.

     Quando a donzela, completamente ruborizada, terminou de encher a banheira com água quente, Jane caminhou para o biombo e colocou-se atrás dele. Estava se despindo mais devagar do que o habitual? Jane acreditou ouvir um leve gemido ao tirar as meias, e um mais audível quando levantou a regata para tirar pela cabeça.

     OH, suas pobres costas estavam cansadas de tanto viajar. Levantou os braços e se estirou.

     Hugh passeava de um lado para outro no quarto como um tigre enjaulado.

     Quando Jane por fim entrou na banheira, gemeu de prazer, e não foi fingido. Sempre gostava de banhar-se. Depois se recostou para poder pensar nesse dia tão estranho.

     Recordou o desengano que tinha visto nos olhos de Freddie e imediatamente se sentiu culpada. Doía-lhe o modo em que tinham acabado as coisas, e sua expressão quase tinha feito que se desmoronasse. A isso tinha que somar que, segundos antes que Freddie chegasse, estava a ponto de esquecer o verdadeiro motivo pelo que estava atormentando o MacCarrick na carruagem.

     Por muito impulsiva e impetuosa que fosse, ainda estava consternada. E ainda não se dava por vencida. Estava a ponto de viver uma grande aventura com Hugh.

     Jane acreditava que, finalmente, ele tinha optado por levá-la a Carrickliffe, ao norte de Escócia. Desde que lhe havia descrito esse lugar, anos atrás, ansiava visitá-lo. Queria ir comprovar como era um lugar capaz de produzir homens como Hugh.

     Jane esteve na Escócia, mas nunca mais ao norte de Edimburgo; não tinha chegado nunca às selvagens Highlands. Ia cumprir Hugh por fim sua promessa?

     Estava inquieta, depois do dia que tinha tido era normal, mas o que mais a inquietava era a crescente fascinação que sentia por seu marido. Depois de ver o bem que se desembrulhava em uma briga, e de detectar essa pistola em suas costas, morria por saber mais coisas dele.

     Ao ver que continuava caminhando pelo quarto, estirou uma perna e derramou um pouco de oléo de banho sobre ela. Hugh parou, e Jane soube que podia vê-la. Antes, ela não teria ocorrido pensar que ele fosse do tipo de homem capaz de afastar aquele biombo e violá-la. Agora não sabia.

     Quem era Hugh na realidade? Se não se dedicava aos negócios, por que tinha mentido? A não ser, claro..., que estivesse fazendo algo ilegal, como seu irmão mais novo, Courtland, o infame mercenário. Arqueou uma sobrancelha. E se Hugh fosse também um mercenário?

     Suspirou. O problema da fascinação é que acaba criando sentimentos; sentimentos como o amor, e o amor suporta desgraça. Jane já tinha passado por isso antes, e estava disposta a fazer todo o necessário para evitá-lo.

     Hugh tinha razão. Ele já não era o mesmo. O tranqüilo e sereno Hugh de que ela se apaixonou, tinha desaparecido para sempre. E Jane não sabia como tratar a esse novo e intenso homem.

     Já a tinha advertido, havia-lhe dito que brincar com ele seria como brincar com fogo. E essa mesma manhã se queimou um pouco.

     Jane inclinou a cabeça e franziu o cenho. “Desde quando ela tinha medo de brincar com fogo?”

 

Hugh não podia deixar de perguntar o que tinha feito para receber essa tortura, mas a resposta era muito grande. Jane acariciava suas longas pernas de cima abaixo. Ele suspeitava que soubesse que podia vê-la, mas ela era tão sensual, que Hugh apostaria o que fosse que quando estava sozinha também massageava as pernas assim devagar.

     Que mais fazia a sós?

     Só de pensar nela acariciando o sexo...

     Hugh teve que apertar os dentes ao sentir que sua ereção crescia um pouco mais. Estava seguro de que Jane se tocava desse modo quando sentia a necessidade. Pensaria nele alguma vez? Ele sempre pensava nela. A noite anterior, depois de vê-la, apesar de que estava esgotado e ferido, seu corpo morria de desejo por ela e Hugh teve que recorrer a sua mão.

     Jane sempre tinha sido muito aberta em questões sexuais, e ele sabia que estava cheia de paixão. Uma paixão que precisava uma via de escape.

     Recordou como Bidworth tinha fechado a sua blusa. Haveria Bidworth satisfeito as necessidades de Jane?

     Hugh deveria tê-lo matado.

     Quanto tempo faltava até que pudesse livrar-se daquela situação impossível? “Tenha pressa, Ethan, ou ficarei louco.” Tentou por todos os meios pensar em outra coisa, em qualquer tolice, e optou por caminhar para a janela. Não queria ficar naquela hospedaria. Ali o conhecia muita gente, e alguém sabia muitos detalhes sobre ele e sua profissão: Lysette, a ex-amante de Grei. Era impossível que chegassem a seguinte hospedaria antes do anoitecer e, quando Jane insistiu em parar ali, Hugh pensou que poderia aproveitar para interrogar Lysette.

     Ela sempre tinha gostado de Hugh, e Grei a tinha abandonado para ir com uma puta.

     Mas o incidente do salão tinha manifestado em ser uma má idéia. Hugh deveria ter rodeado Jane com o braço, mas em vez disso, arrastou-a através da multidão. E quando Hugh tinha golpeado aquele bêbado, a Jane tinha bastado dar uma olhada para Hugh para saber o que ele não era o que dizia ser. Ainda não sabia o que era, mas sim sabia com exatidão o que não era.

     Ouviu-a sair da água e, como o inapresentável que era, apoiou-se contra a parede. Quando a viu, teve que morder a língua para não soltar uma maldição, e quase esteve a ponto de cair o generoso traseiro que vislumbrou no final de suas longas pernas.

     Fechou os olhos um instante e obrigou em ser cuidadoso, mas em sua imaginação se viu acariciando essas nádegas ao mesmo tempo em que percorria o pescoço com os lábios.

     Surpreendeu-lhe ver como tinha mudado. Ainda tinha os braços e as pernas magras, igual à cintura, mas seus seios e suas nádegas se arredondaram e pareciam pedir que suas mãos os acariciassem. “Leva à cama, e cobre seu molhado e sedoso corpo com o teu, possui-a...”

     A donzela voltou a bater na porta, salvando-os assim de uma desgraça. Entrou e deixou seu jantar em cima da mesa que havia no quarto. Hugh, que ainda estava tão duro como a madeira, não se separou da janela. Quando a garota se foi, sentou-se para que Jane não se desse conta. Viu que a comida era simples, mas o vinho parecia ser de uma safra.

     Poucos minutos depois, Jane saiu detrás do biombo. Pôs um vestido azul escuro e um xale o suficientemente aberto como para que ele pudesse ver os pálidos montículos de seus seios. Quando Hugh conseguiu afastar a vista deles, deu-se conta de que usava o cabelo solto, e que algumas mechas, ainda úmidas, ondulavam-se ao redor de seu rosto. Tinha sua imaculada pele rosada e brilhavam os olhos.

     Era fina e elegante. Sua figura e seu rosto eram a imagem da pureza. Hugh quis, embora fosse só por um momento, fingir que ele era o afortunado bastardo que se casou com ela. Queria fingir que podia vê-la sair do banho sempre que quisesse, e que podia jantar com ela cada noite antes de deitarem-se juntos.

     Ali estava ele, com uma mulher tão bela que fazia que todos os homens medissem suas palavras e suas ações, pendente do que ela pensasse. Jane colocaria nervoso qualquer um. E mesmo assim, continuava sendo Jane.

     E quando assim o desejava, era condenadamente fácil estar com ela.

     —Minha noite de núpcias. —sentou-se em uma cadeira— Carinho, é tal como a tínhamos sonhado.

     Agora não ia permitir.

     Hugh se enfureceu. Estava fazendo tudo isso por ela. A única coisa que ela tinha que fazer era lhe deixar fazer seu trabalho em paz...

     —Também é minha noite de núpcias. Eu também estou decepcionado.

     —Pelas circunstâncias ou por você... esposo? —Sem afastar os olhos dele bebeu um pouco do vinho que ele tinha servido e depois lambeu o lábio inferior.

     Hugh moveu incômodo em seu assento.

     —Qualquer homem se sentiria orgulhoso de que você fosse sua esposa.

     —Então, sua decepção tem a ver com o fato de que jurou que nunca se casaria?

     —Em parte.

     —Em parte? E por que...? —interrompeu-se e abriu os olhos de par em par— Tem uma amante, claro que sim? E não a quer deixar. É isso, estou errada? Já tem uma mulher.

     —Eu... agora mesmo não —respondeu ele envergonhado. Nunca tinha tido nenhuma relação estável com uma mulher, estava seguro de que jamais se deitou duas vezes com a mesma. Quando se enfurecia com o mundo, embebedava-se e ia à cama com uma para tentar esquecer, mas isso só piorava as coisas.

     Um dia, Court perguntou por que ia com tão poucas mulheres. “Se ao acabar se sentisse como eu me sinto, você tampouco o faria”, respondeu ele.

     —É só que nunca tive intenções de me casar.

     —Nenhuma vez? —perguntou ela.

      —Não entra em meus planos — Confirmou ele.

     Jane bebeu toda a taça.

     —Então agora não tem nenhuma amante? Brincava que queria que se deitaste com um montão de mulheres.

     —Não penso falar disso com você.

     —Você estava acostumado a me contar todos seus segredos.

     Nunca os maiores. Embora morria de vontade de fazê-lo.

     No passado, freqüentemente Hugh queria contar a Jane da terrível maldição, mas sabia que zombaria dele. Jane podia ser irracional, temperamental, obstinada, mas nunca, nunca sonhadora. Podia imaginá-la dizendo: “Se for assim, terá que perdoar que eu não queira estar com você, carinho, a verdade é que eu gosto muito de estar viva”.

     E agora, por que ia contar se a proximidade que ambos tinham compartilhado tinha desaparecido.

     —Bom, Hugh, em que trabalha de verdade? Você não é um homem de negócios. A não ser que uma maléfica importação seja a culpada das feridas de seu rosto.

     Hugh arqueou uma sobrancelha. Jane era uma mulher muito curiosa, e tinha o cacoete de elaborar suas próprias teorias sobre o que não sabia. Isso poderia lhe ser útil.

     —Te conhecendo, acredito que tem sua própria versão dos fatos. — Jane levantou uma mão com a palma para cima e a ofereceu para que ele pusesse a sua em cima. Antes que pudesse pensá-lo melhor, Hugh se inclinou para a mesa. Apertou-lhe a mão e lhe acariciou com os nódulos dos dedos as quantas feridas tinha nela. Era uma simples carícia, mas Jane a transformou em algo muito sensual.

     Levantou a cabeça e o olhou nos olhos.

     —Acredito que é um mercenário.

     Estava se aproximando.

     —Trabalha com isso? —Percorreu o centro da palma com o dedo indicador e aumentou a pressão.

     —O que a faz pensar isso? —perguntou ele com voz rouca.

     —Tem sentido. Meu pai me disse que acaba de retornar do continente e que ali tinha estado com seu irmão Courtland. Todos sabem que Court é um soldado de fortuna, e que ele e seu bando de escoceses estão causando estragos. Acredito que você é um deles.

     Hugh tinha ido a Andorra para brigar com os homens de seu irmão, mas só o tinha feito para ajudar Court. Eles tinham enfrentado à Ordem dos Renegados, um bando de maníacos assassinos empenhados em matar Court e a Annalía.

     —Assim feriu o rosto — continuou Jane, e continuou lhe acariciando a mão com suavidade— E assim é como tem feito um pouco de dinheiro.

     Um pouco de dinheiro? Graças a seus meticulosos investimentos e a especulações muito bem calculadas, Hugh tinha acumulado uma fortuna. Era indiscutivelmente rico e possuía uma maravilhosa mansão nas costas da Escócia. Para ouvir essas palavras, sentiu algo completamente desconhecido para ele; a necessidade de fanfarronar, de impressioná-la. Mas sabia que não serviria para nada.

     —Por que não acha que faço negócios com seu pai?

     —Hugh, não sou tão imbecil. —Percorreu-lhe com o dedo a pior ferida da costa da mão— Olhe as suas mãos. E olhe a forma musculosa em que está. Não se tem este corpo dedicando-se aos negócios.

     Hugh teve que esforçar-se por não ruborizar-se ante aqueles galanteios.

     —Passo muito tempo no campo — disse.

     —Fui com minhas primas a combates de boxe. —Com sua mão, colocou a dele em forma de punho, e a estudou antes de voltar a olhar seus olhos— Sei do que são capazes esses lutadores, e depois de ver como bateu em Freddie, atreveria-me a dizer que é capaz de ganhar de todos.

     Aí havia oculto outro galanteio, pensou Hugh.

     —Tenho dois irmãos. Pratiquei muito. Você sabe que passava mais horas brigando com o Ethan que falando com ele.

     Jane se deu conta de que ele estava esquivando das respostas e começou a zangar-se.

     —Meu pai te cobriu as costas para que pudesse ser mercenário, não é assim? —Soltou sua mão de repente— Que o filho mais novo fosse por mau caminho só provocaria alguns comentários, mas que o fizessem dois dos irmãos seria muito pior. Isso afetaria muito à reputação de Ethan, e ele tem um título.

     A reputação de Ethan? Jane não tinha nem idéia do que estava dizendo. Hugh sempre tinha maravilhado que aquele bastardo de sangue-frio que era seu irmão mais velho pudesse ocultar tudo o que tinha feito. Em especial, porque Ethan nem sequer se incomodou em tentá-lo.

     Encolheu os ombros e a seguir se jogou para trás.

     —Hugh MacCarrick, o mercenário. A não ser que queira me dar outra explicação.

     —Não, absolutamente. —“Fica com essa teoria, pequena.”

     —O que fazem exatamente os mercenários?

     —Os mercenários vão à guerra por dinheiro, são soldados profissionais.

     —Viajou por todo mundo? —perguntou ela, e seu tom de voz de repente pareceu inocente.

     —A nenhum lugar aonde você gostasse de estar.

     —Tem que ser emocionante. —Quando ele não disse nada, ela prosseguiu— Eu sempre quis viajar a lugares exóticos. Quin nos prometeu umas mil vezes que nos levará a Claudia e a mim de viagem, mas sempre está tão ocupado...

     Que Quin iria levá-las de viagem? Só se aquelas duas garotas estavam dispostas a fazer um tour pelos melhores bordéis do mundo.

     —Alguma vez teve medo? —perguntou Jane— Durante as brigas?

     O objetivo de Hugh era evitar as brigas.

     —Se o tivesse não o reconheceria. Os homens não fazem essas coisas.

     —Esteve em muitas guerras? A quantas pessoas matou? — Hugh ignorou essas perguntas.

     —Disse-me que estava faminta e não está comendo nada.

     —Sim estou comendo. —Ao ver como a olhava, acrescentou— Estou comendo uvas destiladas. Quer me responder?

     —Não os contei. —Grei o tinha ensinado isso. Disse-lhe: “Um dia, escocês, levantara pela manhã e só serão isso, um número”.

     —O que aconteceu no seu rosto?

     Típico dela insistir nisso. Ele a via tão pálida e perfeita com aquele vestido de seda.

     Quando Grei começou a cair no abismo, adorava recordar a Hugh o fora de seu alcance que estava Jane. Uma mulher como ela jamais se interessaria em um homem com o corpo tão castigado e dolorido que o fazia sentir-se muito velho do que era, e que além disso era incapaz de comportar-se em sociedade.

     Um homem que tinha cruzado uma linha sem retorno.

     —Cortei-me em um desprendimento de rochas. —depois de voar o topo da montanha em que estava o acampamento dos Renegados, com eles dentro— Foi um acidente. —Certo, ele não tinha tido intenção de continuar ali quando começasse a cair o cascalho.

     Em poucos segundos, Hugh tinha matado trinta Renegados.

     “Não tem nem idéia do tipo de homem que está sentado na sua frente.”

     —Em seu trabalho? —Parecia como se de verdade sentisse curiosidade por ele. Mas não era um interesse sincero. Só se interessava porque Hugh negava a responder, esse era o único motivo. Para Jane, nada gostava mais que lutar por aquilo que queria.

     Hugh bebeu um pouco de vinho, e se lembrou de que ele a tinha ensinado a ser assim.

     Quando Jane tinha quinze anos, Hugh e o resmungão do Court a levaram a um concurso de tiro ao arco. Quando os outros participantes se inteiraram de que Jane se inscreveu, negaram-se a competir contra ela.

     Ao ver a profunda decepção nos olhos de Jane, uma vulnerabilidade que poucas vezes aparecia neles, Hugh deu um tombo no coração e se agachou para sussurrar ao ouvido: “Desafia-os, pequena”.

     Finalmente, conseguiu ganhar uma maldita medalha.

     Não foi o primeiro lugar, outros participantes não tinham permitido que alguém tão jovem os humilhasse, mas Jane olhou seu prêmio como se fosse ouro, como se com essa medalha tivesse alcançado um marco. Apertou-a entre suas mãos e o olhou nos olhos:

     —Quero mais.

     —Tem o talento necessário para ganhar— respondeu ele triste. Hugh sabia que não havia muitos torneios nos que uma garota tão jovem pudesse participar, sem importar o muito que ela precisasse fazê-lo...

     —É por isso pelo que não quer se casar? —prosseguiu ela— Seu trabalho o impede disso.

     —Jane, por que sou sempre eu o interrogado?

     —Ao menos me diga aonde vamos.

     —Se houvesse dito isso esta manhã, o haveria dito a Bidworth?

     —Não — respondeu ela muito rápido, e depois retificou—, bom, talvez o teria feito. Mas Freddie não o haveria dito a ninguém.

     —Então não, não vou dizer isso Quando ela abriu a boca para continuar discutindo, ele respondeu com voz cortante— Já basta de perguntas.

     Jane suspirou e, incômoda, percorreu o quarto com o olhar. Sem que ela se desse conta, o xale desceu e deixou descoberto um suave e pálido ombro. Todos os músculos de Hugh se esticaram. O fino tecido do vestido destacava os seus seios e ele foi incapaz de afastar o olhar deles. Aquela cor ressaltava tanto sua delicada pele, que Hugh imaginou como seria deslizar o traje de seda pelos ombros e deixar que escorregasse sobre seus seios até chegar ao chão. Suspirou fundo e confiou em parecer mais exasperado que excitado.

     —Volta a pôr o xale.

     Ela franziu o cenho e estudou sua reação.

     —Ao contrário, tenho que tirar isso Faz muito calor e não posso te pedir que abra nenhuma janela.

     —Volta a pô-lo — repetiu a ordem.

     Jane arqueou uma sobrancelha.

     —Na carruagem estava olhando meus seios, teria que estar contente de poder vê-los melhor.

     —Reconheço que eu gosto de te olhar. —Não ia nem a tentar negá-lo. Inclusive nesses momentos, ao ver como seu seio se apertava contra o tecido, morria de vontade de tê-los entre seus lábios e sentir como tremia ao lambê-lo. Afastou o olhar e disse com voz acalmada— É uma mulher muito bela.

     Hugh deu a volta, mas antes de fazê-lo, acreditou ver como ela ruborizava pelo galanteio.

     —Mas te ver assim faz que deseje fazer mais coisas, um desejo que você não compartilha, e que não podemos nos permitir.

     Jane inclinou a cabeça para repensar nas palavras de Hugh com cuidado e disse:

     —E se te dissesse que compartilho também esse desejo?

     —Então te diria que é uma coquete sem remédio, e te assinalaria o fácil que foi esquecer ao Bidworth. —“Só demorou uma tarde. Mulher inconstante.”

     Nem sequer tinha fingido lealdade a ele. E pensar que tinha preocupado ter que presenciar que ela chorasse por esse homem.

     Hugh nunca quereria a uma mulher como Jane, até no caso de que pudesse tê-la.

     Fosse como fosse, ele só estava ali para protegê-la, e seus jogos eram um estorvo. Em tom ameaçador disse:

     —Já lhe adverti isso. Sabe o que acontecerá.

     Ela não fez nenhum movimento para cobrir-se. Era outra batalha de vontades. Uma vez mais.

     Mas ele já não era o mesmo menino fazia alguns anos. Não poderia ser embora quisesse. As coisas que tinha visto o tinham mudado. O que tinha feito o tinha moldado.

     Tinha matado com suas próprias mãos.

     Ficou de pé e se aproximou dela. Sem preâmbulos, colocou-a em cima da mesa. Sua intenção era ficar diante dela e voltar a cobri-la com o xale, mas fez outra coisa. Agarrou-lhe os braços e os manteve apertados aos lados. Hugh ainda podia afastar-se; por que continuava aproximando-se?

     Dali não podia sair nada bom. Porque ele era um duro assassino que passou a última década, obcecado por uma mulher inconstante. Uma mulher que adorava o provocar. Uma mulher a que não podia tocar, em especial desde que se casou com ela. Nada bom...

     Jane esperou sem fôlego a ver o que ele ia fazer. Tampouco Hugh tinha nem idéia. Quando deslizou os quadris entre suas pernas, ela começou a tremer. Descobriu que tinha a pele muito sensível, e que todo seu corpo era condenadamente receptivo. Estar com ela seria como segurar um ferro ardendo.

     O que aconteceria se ele quisesse fazer o amor e ela permitisse? Hugh engoliu seco, e só de pensá-lo acelerou a respiração.

     Ao fim a possuiria.

     Com um gemido de rendição se aproximou dela e capturou o sensível lóbulo da orelha de Jane entre seus lábios, percorrendo-o com a língua. Ela sentiu um calafrio. Hugh pôs uma mão nas costas e com a outra acariciou o seu cabelo para obrigá-la a recostar-se na mesa apoiada nos cotovelos.

     Tonto pelo que ia fazer, Hugh também se inclinou e apertou a boca contra aquela pele recoberta de seda.

 

Enquanto Hugh deslizava os lábios por seus seios, não deixava de pronunciar com voz rouca palavras em gaélico. Parecia perdido, tão absorto como se nem ele mesmo entendesse o que estava fazendo.

     Jane afundou os dedos no espesso cabelo de Hugh e o aproximou dela com um suspiro de prazer.

     Isso era o que tinha sentido falta com o Freddie. E não, não podia prescindir disso.

     Não era só que ele fizesse que ela o desejasse. Sentia além que ele a necessitava, ou necessitava algo que ela tinha. Jane queria entregar-se de todo coração, fosse o que fosse.

     O que acontecesse no futuro ou o que tinha acontecido no passado deixou de importar ao ver o desespero que havia em seus olhos.

     Hugh continuava acariciando os seus cabelos com suavidade para fazer que se inclinasse mais e não deixava de beijar o seio e balbuciar:

     —Maldição, supõe-se que tem que me dizer que pare.

     Hesitou um segundo e fechou a boca ao redor de um excitado seio para depois começar a percorrê-lo devagar com a língua.

     —OH, Meu Deus — suspirou Jane maravilhada.

     Hugh levantou a cabeça, seus olhos sombrios não deixavam de olhá-la, de estudar sua resposta.

     —Você gosta? —Ante o gemido de prazer de Jane, dedicou sua atenção ao outro seio— Acreditava que ia reagir a suas insinuações do mesmo modo que eu fazia há anos — repetiu com ternura a mesma exploração, e disse— Me provocou até que já não posso agüentar mais.

     —Mas... mas a anos...

     —Ha anos era jovem e honorável. Agora sou o bastante velho para saber o que preciso, e o bastante desonesto para... —mordeu-lhe um mamilo com suavidade e obteve que ela se surpreendesse e se arqueasse ainda mais contra sua boca— pegá-lo.

     —Hugh —murmurou Jane— Hugh, por favor.

     —Quer que continue, pequena? Continua me atormentando e logo estarei dentro de seu doce corpo. — afastou-se e a olhou nos olhos. Fosse o que fosse o que viu neles, fez ele afastar-se dela. Passou os dedos pelo cabelo, abriu a boca e voltou a fechá-la. Por fim, soltou— Fique aqui. Fecha a porta quando for e não saia do quarto.

     —Por que?

     —Nunca acreditei que pudesse ser assim — gritou ele— Não comigo. —E se foi batendo a porta.

     Supunha-se que não tinha que ser assim como é? O que tinha feito de errado?

     Hugh ficou lá fora, apoiado contra a porta. Teria que continuar ali um momento antes de poder descer. Jane tinha visto o quanto excitado estava e como sua ereção atirava de suas calças. Sabia que teria que recuperar o domínio de seu corpo. O dela era incontrolável.

   Enquanto continuava sentada na mesa, com a respiração entrecortada, com um garfo junto à coxa e uma taça muito perto da mão em que se apoiava, Jane deu conta de uma coisa horrível: o beijo da carruagem não tinha sido uma exceção.

     As coisas iriam ser desse modo sempre que ela e Hugh estivessem juntos.

     Jane sabia que ele seria um bom amante, era bom em tudo o que fazia, e tanto se a ajudava a descer de uma carruagem como a montar a cavalo, tratava-a como se fosse feita de cristal. Mas ela nunca teria imaginado que seu gigante escocês pudesse ser tão... erótico.

     Tinha conseguido acendê-la, tinha obtido que sentisse uma enorme e úmida necessidade entre as pernas. De novo.

     Seus beijos eram lentos e tentadores, seus lábios fortes e carnais. Não se dava conta de que com sua ameaça de “estar logo dentro de seu doce corpo”, a única coisa que tinha conseguido era que o desejasse ainda mais? Tinha estado a ponto de gritar: “Sim, faça-o!”.

     Acreditou ouvir como batia em algo fora do quarto e por fim se afastava.

     Jane não queria obrigar Hugh a continuar casado com ela, porque sabia que cedo ou tarde a abandonaria, fosse esse casamento real ou não. E estava zangada por voltar a estar em uma situação em que ele podia machucá-la. E tinha jurado proteger-se.

     Jane chegou à conclusão de que agora estava acontecendo algo fatal aos dois. Embora não queria continuar casada com ele, isso ele tinha deixava claro, ainda não queria separar-se dele. Não tão logo. Tinha medo de que voltasse a desaparecer outros dez anos, e não estava nem de longe preparada para que isso acontecesse outra vez.

     “Tenho que fazer que volte... Tenho que dar o que ele precisa.”

     Decidida, alisou o vestido, envolveu-se com o xale, esvaziou, de um modo nada feminino, a taça de vinho, e abriu a porta. Olhou para fora, mas ele não estava no patamar.

     Olhou para ambos os lados e correu para baixo, para o buliçoso salão. Hugh estava sentado a uma mesa, bebendo algo, e apertava o copo com tanta força que tinha os nódulos brancos.

     Suspirou aliviada. Ao menos não era a única que se sentia daquele modo; afetava-lhe tanto como ele a ela.

     Talvez não tivesse retornado antes por culpa de sua perigosa profissão. Abriu os olhos de par em par. Talvez quisesse fazê-lo, mas não tinha podido...

     Ficou boquiaberta ao ver como Lysette se aproximava dele e o rodeava com os braços. A mulher se aproximou ainda mais e lhe sussurrou algo no ouvido enquanto deslizava uma mão acima e debaixo de suas costas.

     Hugh a afastou, mas Jane viu horrorizada como logo se levantava para segui-la ao quarto de trás.

 

–Quanto tempo, MacCarrick — disse Lysette ao fechar a porta atrás deles.

     —Sabe um pouco de Grei ou não? —Hugh tinha ainda a voz rouca pelos beijos de Jane, e sua mente continuava confusa.

     Quando Jane tinha suplicado alguns minutos antes, Hugh procurou seus olhos, e neles encontrou algo que não esperava ver jamais. Não lhe suplicava que parasse, o que estava pedindo era que ele a possuísse.

     Nunca. A possibilidade de que Jane também pudesse o desejar nunca tinha intervindo na equação.

     Caminhou para onde estava a garrafa de uísque e se serviu, depois ficou observando o líquido âmbar. Hugh sempre tinha contado com que, em caso de que ele perdesse o controle, Jane o esbofetearia e lhe diria que seus cuidados não eram bem recebidos. Sem esse seguro, estava perdido.

     —Não tem intenções de ser mais amável? —perguntou Lysette. Quando ele a olhou sem alterar-se, ela perguntou flertando— E por que ia ter eu informação sobre Grei?

     “As mulheres e seus jogos.” A Hugh o punham doente.

     —Porque durante anos deitaram juntos. E sei que manteve contato desde que te deixou.

     O olhar de Lysette ficou calculista.

     —Se quer saber um pouco de Grei, antes me conte quem é ela.

     —Você deve a Weyland. —Este administrava que pessoas como ela, informantes, obtiveram empréstimos para abrir lojas, botequins e hospedarias em todos os cruzamentos de caminho da Europa. Era como uma rede. Lysette era boa em seu trabalho, era observadora e intuitiva, e em troca de obter informação ganhava bem a vida.

     —Weyland não tem uma filha que se chama Jane? Uma que dizem que é muito bonita?

     Hugh esvaziou o copo de um gole, não pensava beber mais.

     —Exato.

     —Agora tudo encaixa. Todo mundo está à espera que Grei ataque Weyland, e de repente você se apresenta aqui casado com sua filha e afastando-a de Londres. Faria algo por esse velho. E, por isso parece que só se casou para o ajudar.

     —Está seguro de que só é um casamento de conveniência?

     —Sim, olhe, está aqui, em meu quarto longe de sua nova esposa. —Ao ver que ele se limitava a beber, Lysette disse— Grei me contou que você estava apaixonado por ela.

     E a quem não havia dito? Quantas pessoas sabia de seus sentimentos por Jane Weyland? Deus, Jane MacCarrick. Maldição, sentiu dó de si mesmo ao observar quanto gostava de ouvir esse nome.

     —Grei disse muitas coisas que não são certas. Você deveria saber.

     —É óbvio que ela está jogando com você. Não se importa nada.

     —Por que o diz? —perguntou ele, e se esforçou por parecer desinteressado.

     —Antes, quando flertei com você, ela me olhou como se isso fosse engraçado. Nenhuma mulher me olha nunca desse modo, em especial se estiver dando em cima de seu marido.

     —Talvez se sinta muito segura de si mesma.

     —Ou seja, muito arrogante.

     Talvez.

     —Não pode aspirar tão alto.

     —Lysette, é a terceira pessoa que me diz isso hoje. Já o deixo claro. —Ethan, Bidworth, Lysette. Maldição, inclusive os serventes de Jane pensavam que entre eles dois havia uma diferença abismal.

     Lysette se aproximou dele e percorreu o torso com um dedo. Para Hugh esse gesto o deixou indiferente, e afastou sua mão com uma expressão de asco, mas com a outra mão, ela tentou lhe tirar a camisa das calças.

     —Esta noite deveria cavalgar sobre uma mulher. Mas embora essa arrogante mucosa inglesa lhe permitisse isso, ela não é suficiente mulher para um homem como você.

     Lysette não tinha nem idéia do que dizia. Fazia alguns momentos, Hugh pode ver um ápice da paixão sem limite de Jane e ficou estupefato.

     Hugh exalou e pegou a Lysette pelo pulso para afastá-la.

     —Não fale mal dela diante de mim. Nós já fomos amigos antes que isto acontecesse. Além disso, fiz uma promessa. —E até que seu casamento se dissolvesse, ia cumpri-la.

     Lysette se zangou.

     —Nega-se que te dê prazer por um simples casamento de conveniência? Quantos anos faz que tento te seduzir?

     Hugh sempre foi consciente de que ela paquerava com ele. Talvez inclusive pudesse ter aceito. No fim, reunia todos os requisitos necessários, quer dizer, não se parecia em nada com Jane. Mas Lysette compartilhava a cama com Grei, e Hugh nunca tinha necessitado tanto isso para arriscar-se a perder a vida.

     —Deixa que te dê o que ela não quer te dar. Ou não pode. —Baixou a voz— Posso te fazer coisas que farão que se pergunte como pode ter vivido tanto tempo sem mim.

     Tinha diante dele uma atraente e disposta mulher que aceitaria com gosto compartilhar a noite com ele e que, além disso, prometia ser muito criativa na cama. Hugh só queria importar-se com a Jane, que se deitasse com ela. Lysette percorreu o lábio inferior com a ponta da língua e o olhou.

     Ao ser ainda recente o que tinha acontecido minutos antes, sentiu-se insultado pelo interesse de Lysette. Ainda notava o sabor de Jane em seus lábios e ainda podia recordar aquela cálida e doce pele contra sua língua. Fazia muito que Hugh tinha compreendido que não servia de nada tentar encontrar uma substituta.

     Deixou o copo.

     —Se não for me dar informação sobre Grei, já não tenho nenhum motivo para estar aqui.

     —Aonde vai?

     —Retorno com minha arrogante mucosa inglesa. Jane poderia te ensinar um par de coisas sobre sedução.

     —Continua apaixonado por ela — disse Lysette molesta— mudou. —riu sem humor— Te basta pensar que ela é sua. —Quando Lysette o olhou com pena, como já tinham feito outros esse dia, Hugh teve vontade de gritar que Jane também o desejava.

     Entretanto calou e se dirigiu à porta.

     —OH, Hugh. Não seja estúpido! Pessoas como ela não quer às pessoas como nós. Sei. Talvez sua Jane Weyland flerte com você, talvez até te deseje. Mas nunca terá seu coração.

     —Jane MacCarrick — a corrigiu sem dar volta.

     Por todo o tempo que pudesse.

     —E o que acontecerá quando ela descobrir que é um frio assassino?

     Diminuiu o passo.

     —O que pensará de você então? —insistiu.

     Não podia nem imaginar se foi um soldado, aclamavam-lhe por ter matado. Inclusive ser o mercenário que Jane acreditava que era soava muito melhor que ser um assassino. Os assassinos se escondem e atacam das sombras. Isso era o que as pessoas acreditavam. Em geral, era certo, mas Hugh também tinha tido que lutar por sua vida mais vezes das que queria recordar.

     Tinha medo de que Jane não importasse que tivesse matado, mas que acreditasse que o tinha feito... Como um covarde.

     —Embora ela te quisesse você não poderia levar a vida a que está acostumada.

     Lysette tinha razão. Tudo indicava que Hugh nunca poderia recuperar seu lugar na sociedade e que não se adaptaria ao ritmo desta. Quando curtidos soldados ou assassinos que estavam muito tempo no campo de batalha, conseguiam voltar para a vida civil, chamavam-no “a volta”. Acontecia muito poucas vezes e, por outro lado, Hugh já havia sentido incômodo em atos sociais antes de escolher essa profissão.

     Justo quando chegou à porta e meteu a camisa dentro das calças, Lysette disse:

     —Espera, Hugh! —Correu para ele e pôs as mãos no peito para o deter— Grei chegou da França esta semana.

     Hugh voltou a fechar a porta.

     —Como sabe?

     —Porque a mulher a que lhe pedi que me conseguisse informação sobre ele apareceu morta.

     —Isso não significa...

     —Tinha o pescoço aberto com muita força, quase lhe tinha arrancado a cabeça.

     Grei. Não havia dúvida.

     —Ficou louco.

     —Mas continua sendo letal. E odeia você e Ethan pelo que lhe fizeram.

     —Você também estava de acordo conosco — recordou Hugh imediatamente.

     —Mas nessa noite aconteceu algo estranho. O que lhe fizeram?

     —Não tenho nem idéia — mentiu, e viu que com ela podia fazê-lo sem problema.

     —Se ele for atrás de Jane, que os encontre é só questão de tempo.

     —Também virá atrás de você, Lysette. Não pode raciocinar com ele, já não está cordato. Espero que esteja preparada.

     —Estarei. —Com expressão resignada, disse— Ah, que casal! Uma coquete que está a ponto de matar um assassino, e um assassino que está a ponto de morrer por uma coquete.

    

     Quando Hugh retornou ao seu quarto, Jane descansava feito um novelo na cama. Mal havia luz, mas pela tensão que irradiava seu corpo, ele soube que estava acordada.

     Sentou e a olhou durante mais de uma hora. No final, ela dormiu, mas não demorou muito em começar a mover-se nervosa. Seus olhos se moviam a toda velocidade sob suas pálpebras. Hugh perguntou como seria vê-la completamente relaxada.

     Um marido verdadeiro poderia deitar-se junto a ela e abraçá-la contra seu peito para afastar aquele pesadelo que a inquietava. Não teria medo de que lhe pedisse que fizesse amor para consolá-la, nem de necessitar ele também pelo mesmo motivo.

     Mas Hugh não era esse marido. E não importava o muito que desejasse sê-lo.

     Pegou sua bolsa e tirou o Leabhar. Ethan tinha razão. Lê-lo reforçou em sua decisão. Recordou as conseqüências que teriam seus atos e impediu que continuasse sonhando em como teria sido possuir Jane sobre aquela mesa.

     Caminhar com a morte ou caminhar com a solidão. Que mais precisava Hugh?

     Os três irmãos caminhavam com a morte, tal como tinha sido predito. Court era um mercenário, e Hugh e Ethan tinham conhecido o único homem da Inglaterra que podia guiá-los para sua atual profissão; Ethan era um perito em todo tipo de assuntos letais, ao que chamavam para solucionar multidão de inconvenientes, e Hugh era um assassino.

     Este tinha sido afortunado. Até o momento, só tinham encarregado matar a homens adultos, e em todos os casos tinha estado de acordo em que era necessário eliminá-los. Mas mesmo assim, os rostos começavam a amontoar-se. As duras horas de preparação e a forçosa solidão desse trabalho também cobravam.

     Em um canto de sua mente, sempre se perguntava como reagiria Jane se o descobrisse.

     O dia em que matou pela primeira vez, teve muitas dúvidas, pois sabia que se apertasse o gatilho, teria alcançado um ponto sem retorno. Mas o fez. Matou a sangue frio, de propósito e com decisão. Como se atrevia a pensar que podia unir sua vida com a de Jane?

     Ocorreu-lhe que ainda estava em tempo de procurar Ethan e pedir que a levasse de seu lado, mas descartou a idéia. Hugh queria que Jane estivesse protegida, não que passasse mais medo.

     Perdido em seus pensamentos, mal ouviu o leve gemido de Jane. Continuava dormindo, mas se moveu até ficar de barriga para cima. Devagar, descansou um braço sobre sua cabeça e o tecido da camisola pregou na pele de um modo que ressaltou os seios cobertos pela seda.

     Outro suave murmúrio e desta vez um sensual tremor acompanhou uma mudança no ritmo da respiração.

     Aquilo não estava acontecendo. Não podia ser que Jane estivesse tendo um sonho erótico, entretanto seu corpo e seus movimentos diziam justamente o contrário. Podia ser que estivesse sonhando com ele? Nos beijos que tinha dado antes? Não! Não podia permitir pensar isso.

     “Daquilo não podia sair nada bom.”

     Voltou a olhá-la e deu conta de que começava a fraquejar. Ela precisava de uma via de escape para tanta paixão. “Seria como segurar um ferro ardente...”

     Jane levantou a outra mão, e quando seus dedos acariciaram o contorno de um seio, o anel brilhou à luz do abajur. Hugh engoliu seco. Ele podia lhe dar uma via de escape, podia agradá-la. Tinha os punhos apertados para evitar tocá-la. Se de verdade estivesse casado com ela, poderia despertá-la entrando em seu interior. Encontraria úmida, quase no limite, e se moveria devagar dentro dela até conseguir que tivesse um orgasmo. Mas Jane não era dele. A única coisa que podia fazer era espiá-la das sombras.

     Jane girou a cabeça para seu cabelo acobreado, que estava esparramado sobre o travesseiro, e moveu o rosto entre os cachos como se quisesse senti-los contra sua pele tanto como ele. Uma mecha se enredou ao redor do pescoço, e Hugh se aproximou para afasta-lo.      

     Incapaz de resistir mais, com muito cuidado se deitou junto dela. Como sempre, ao sentir a pontada de dor que percorria todo seu corpo quando se permitia descansar, teve que apertar os dentes com força. Todo mundo acreditava que, levantar-se pela manhã, era o pior momento para uma velha lesão, mas relaxar-se para dormir era igualmente horrível, e mais, se tinha em conta por tudo o que Hugh tinha passado nos últimos dias.

     Por fim a dor diminuiu e ficou suportável. Hugh se recostou em um cotovelo para olhá-la. E para satisfazer as ânsias que tinha de tocá-la acariciou a bochecha com as pontas doe dedos. Jane ficou quieta, mas não despertou. Sua respiração se fez mais estável e profunda.

     “Poderia cuidar de você — pensou Hugh— Em todos os aspectos.” Uma parte dele sempre tinha acreditado que se trabalhasse bastante duro, poderia dar a Jane tudo o que necessitasse. Se as coisas fossem diferentes, poderia tentar conquistá-la, lhe demonstrar que era o homem adequado para ela.

     Ficou fascinado com a espessura de suas escuras pestanas, com o modo tão suave em que entreabria os lábios. Depois de tanto tempo, continuava enfeitiçando-o, ele continuava sentindo um grande carinho por ela.

     Nada poderia mudar isso.

     Hugh soube que ela era a definitiva desde aquela noite, muitos anos atrás, em que retornou ao lago depois de ter passado mais de um ano sem vê-la. Os olhos de Jane brilharam como se guardasse um segredo e, com as mãos apoiadas no marco da porta, balançava os quadris de um lado para outro. Travessa, pronta, alegre. Tudo o que um homem como ele ansiava mais que o ar que respirava.

     —Ah, é Hugh MacCarrick ou meus olhos me enganam? —perguntou ela.

     —Jane? —exclamou ele incrédulo.

     —Claro que sou eu, carinho. — aproximou e lhe acariciou o rosto com sua pálida e suave mão.

     Quando o tocou, algo o atravessou, sacudiu-o, despertou.

     —Jane? —repetiu com voz estrangulada, uma vez que se esforçava para assimilar como tinha mudado. Sua voz se tornou mais sensual, e ia ser assim para sempre. Tinha os seios mais exuberantes. Transformou-se em uma mulher; na mulher mais bela que ele jamais tinha visto. O coração martelou no peito.

     —Já vai? —murmurou ela— É uma pena, Hugh, porque te julguei muito menos.

     —Não vou a nenhum lugar — grunhiu ele, e sua vida nunca voltou a ser a mesma.

 

Na noite anterior, Jane ouviu Hugh retornar para o quarto e perguntou-se, se seria assim como iriam funcionar. Já estava tudo solucionado? Já tinha satisfeito sua paixão com Lysette e agora voltava a protegê-la?

     Quando o viu sair do quarto de Lysette arrumando a camisa, e depois voltar a entrar outra vez, Jane se trancou em seu quarto. Brigou e se recordou que era uma tola, mas teve que agarrar-se a penteadeira por causa das náuseas que lhe sobrevieram.

     Pela manhã, na carruagem, que agora parecia muito pequena, Jane esquivou do olhar dele todo o momento, porque não queria que soubesse o muito que tinha doído sua traição.

     Mas o que era que tinha traído? Os votos de uma farsa de casamento, um vínculo que ele estava impaciente por romper.

     E então, por que lhe doía tanto?

     Até sabendo o que tinha feito, tinha sonhado com ele. Sonhou que fazia isso com que a tinha ameaçado possuí-la, entrar dentro dela.

     Embora Jane ainda fosse virgem, podia imaginar o que sentiria quando ele se movesse em seu interior, como seu enorme corpo se dobraria e se moveria em cima do seu enquanto lhe rodeava com as pernas. Em seus ardentes sonhos, Hugh acariciava os seios com suas cálidas mãos e os beijava.

     Enquanto, o mais provável era que estivesse fazendo essas mesmas coisas com Lysette. Deu a volta e mordeu os nódulos dos dedos.

         Que situação tão complicada! E não podia dizer-se que estivesse em plena posse de suas faculdades. Jane conhecia suas fraquezas. Era impulsiva, freqüentemente dizia ou fazia coisas sem pensar. Suas emoções iam de um extremo a outro, como um pêndulo e, sentia tudo com muita intensidade.

     E o pior era que todos esses defeitos pareciam exacerbar-se quando Hugh estava perto. Tinha os sentimentos à flor da pele, e o que em outras circunstâncias teria sentido agora carecia totalmente dele.

     Jane sempre tinha sido assim, mas se esforçava para melhorar. Tinha aprendido que quando lhe dava um desses ataques o que suas primas chamavam “ser alagada por uma idéia muito má”, tinha que distanciar-se da situação para ganhar assim um pouco de espaço e recuperar-se. Desse modo, podia pensar nas coisas com mais calma e de um modo razoável.

     Distanciar-se sempre a tinha ajudado, mas agora estava presa em uma carruagem.

     Suspirou angustiada. Deus pudesse ser mais razoável, Deus não a dominassem esses impulsos.

     Por que todo mundo podia ver esses defeitos nela, mas ninguém se incomodava em pensar que talvez ela não quisesse os ter?

     Jane podia imaginar que sentiria ao ser mais razoável. Seria como usar óculos para ver o mundo com mais claridade. Poderia entender sua relação com o Hugh e reduzi-la a uma simples equação. Hugh era igual a sofrimento.

     O segundo dia depois de abandoná-la na hospedaria, Hugh decidiu que gostaria que Jane voltasse a atormentá-lo.

     Ignorava-o com tanta facilidade, que para qualquer homem haveria sentido insultado. Enquanto a carruagem atravessava outro povoado ainda dormindo, Hugh a olhou e viu como o sol e a brisa, brincavam com seu cabelo.

     Passou o dia anterior lendo “A aprendiz de Dama”, ou qualquer que fosse o livro que se ocultava embaixo dessa capa. Confiava em que não se tratasse de uma novela do mesmo tipo da que encontrou em seu quarto, em Londres. Em especial porque a via lê-la com avidez enquanto comia uma maçã, ou enquanto mordiscava uma fibra de palha que tinha pegado quando se detiveram para comer ao meio dia.

     Deveria se alegrar que o deixasse em paz. Então, por que odiava que o ignorasse se a alternativa era que voltasse a atormentá-lo?

     Pela enésima vez nesse dia, rezou para que seu irmão tivesse pressa. Ethan tinha uma estranha habilidade para encontrar às pessoas, e o melhor que podia acontecer era que encontrasse Grei e o detivesse antes que este chegasse à Inglaterra. O pior, que Grei pudesse esquivá-lo durante meses...

     Hugh recordou a última conversa que manteve com Ethan. Deveria haver insistido para que lhe contasse o que tinha acontecido com a garota Van Rowen. Deveria ter concedido o benefício da dúvida e haver perguntado se talvez procurasse algo mais. Hugh o fazia, Court também, por que não tinha pensado que seu irmão mais velho pudesse ter as mesmas necessidades?

     Quando Hugh voltasse a vê-lo, abriria uma garrafa de uísque escocês e falariam disso como homens. Se Ethan de verdade queria à moça, inclusive depois de saber quem era. Hugh lhe explicaria como tirá-la da cabeça.

     Explicar como tirá-la a da cabeça? “Volta a se comportar como um presunçoso, MacCarrick.” Ele não podia deixar de pensar em Jane.

     Esta exclamou surpreendida, abriu os olhos de par em par e voltou a página.

     Ao menos esse dia estava de melhor humor que o anterior. Então tinha parecido derrotada; não, mas bem sombria, como se lhe faltasse ânimo. Jane estava acostumada a desprender energia, mas essa jornada se limitou a olhar pela janela sem ver nada.

     Hugh temia havê-la assustado com seus cuidados. Ou talvez fosse que se sentia culpada por havê-lo beijado, dada sua relação com Bidworth. Talvez estivesse desgostada consigo mesma por haver... gostado.

     Por muito que custasse entender, Hugh sabia que tinha gostado de sentir seus lábios. Não podia deixar de pensar no aspecto de Jane sem fôlego, com as pupilas dilatadas, a pele ruborizada. Mas se a noite anterior lhe tinha recordado a um ferro ardente, essa manhã parecia feita de gelo...

     Era óbvio que Jane estava triste, e isso Hugh nunca tinha podido levá-lo bem.

     —Sine, quero falar sobre a outra noite.

     Ela não afastou a vista do livro.

     —Pois fala.

     —Pequena, sou fraco — disse devagar— E te pedi que não me atormentasse desse modo.

     Ela levantou a cabeça de repente e o olhou furiosa.

     —Então que o que fez na hospedaria foi por minha culpa?

     Impressionou-o ver como a afetava tudo aquilo e disse:

     —Não, deveria ter sido capaz de me controlar. Não voltará a acontecer. —É obvio que tudo aquilo a afetava. Ela tinha acreditado que podia brincar sem que ele reagisse. Jane nunca se expôs que ele pudesse beijá-la desse modo.

     —Por que importa o que pense de você... seu comportamento? —perguntou ela com aquele acento tão educado.

     Hugh hesitou um instante e depois confessou:

     —Sua opinião é importante para mim.

     —Por isso não quer falar comigo de sua profissão?

     —Sim — respondeu ele.

     —Olhe como você é tolo, Hugh. —Seu lento e inesperado sorriso o cativou— Agora mesmo, é impossível que tenha pior opinião de você.    

    

     —Lysette — sussurrou Grei no ouvido da garota enquanto afastava uma mecha de cabelo loiro da testa— Acorda.

     Ela o fez imediatamente, sentando-se na cama de repente. Ao notar que ele cobria a boca com a mão, começou a gritar, mas quando sentiu a faca em sua garganta, o grito se transformou em um sussurro. Na afiada lâmina se refletia a luz do abajur, e quando Lysette viu esse brilho começou a tremer.

     —Tem tantos homens vigiando a casa que por um instante temi que estivessem me esperando — murmurou Grei— Não me diga que sentiu a minha falta. —Afrouxou um pouco a mão que tinha em cima de sua boca, mas aumentou a pressão da faca— Não se importaria que te recorde o pouco que duraria seu grito, não?

     Quando ela sacudiu a cabeça com cuidado, ele riu de sua cara aterrorizada e antes de afastar a mão, desfrutou das lágrimas que começavam a lhe escorrer pelas faces.

     —Sim, acredito que suspeitava que eu viria, por isso transformou sua hospedaria em uma fortaleza. Mas você deveria saber que eu posso penetrar onde me dê vontade.

     —O que quer de mim? —sussurrou Lysette, e cobriu-se até o pescoço com as mantas.

     —Hugh e Jane pararam aqui de caminho do norte. Quero saber aonde foram.

     —Você sabe que ele jamais me diria isso.

     Grei arqueou as sobrancelhas:

     —E não descobriu nada escutando às escondidas, como de costume?

     —Hugh é muito precavido, e não acredito que nem sequer a garota saiba.

     —Dá igual, acredito que posso fazer uma idéia de aonde se dirigem —comentou ele— Só esperava que me confirmasse isso, mas ao que parecer tenho feito a viagem em vão. —Afastou a afiada lâmina. Quando os grandes olhos azuis de Lysette começaram a encher-se de esperança, acrescentou— Claro que, já que estou aqui, tenho intenção de te fazer pagar por haver se vendido a Hugh e Ethan.

     Os ombros de Lysette se desabaram.

     —Eles queriam te ajudar.

     —Me ajudar? —Grei se lembrou o quanto furioso estava Hugh e de que o tinha golpeado com tanta força que ele nem sequer teve oportunidade de defender-se. Depois, os dois irmãos trancaram Grei em um porão tenebroso, onde seus músculos se esticaram e dobraram até que começou a gritar de dor. Dia após dia teve alucinações ali, na escuridão, que só se interrompiam quando vomitava.

     Inclusive nesses dias, aquelas sombras desfilavam diante dele e continuava recordando todas aquelas caras fantasmagóricas com o olhar perdido que tinham descido a lhe atormentar. Não podia fugir delas. E tudo por culpa da traição de Lysette.

     —Ele disse por que queria que retornasse a meu lado —disse entre soluços— Queria que ficasse bem.

     —Queria que eu ficasse bem ou queria ganhar pontos para te colocar na cama de um robusto jovem escocês?

     Ela afastou o olhar.

     —O que vai fazer?

     Grei viu a garrafa de uísque junto à cama e pensou que era uma agradável coincidência. Serviu-se um copo.

     —Vou arrebentá-lo, o que mais quer.

     —A garota é inocente.

     Ele assentiu.

     —É lamentável, mas é necessário ao fim.

     —Hugh morrerá antes de permitir que faça mal a essa mulher.

     Grei deu um gole e o saboreou.

     —Então o matarei minutos antes de matar a Jane.

     —Seus irmãos o perseguirão até o fim do mundo.

     Grei encolheu os ombros.

     —Já tenho Ethan pego a meus calcanhares. É tão sutil como um touro a ponto de investir. —Esse era o modo em que Ethan estava acostumado a trabalhar. Sem discrição; limitava-se a perseguir os seus inimigos sem lhes dar trégua. Esgotava-os até que fiquem tolos, ou se cansavam de olhar por cima do ombro com o temor de ver seu terrível e marcado rosto na escuridão.

     Ethan era terrivelmente eficaz em seu trabalho, uma espécie de lenda. Mas sem a má fama de Grei.

     —Quase se encontra comigo faz três noites. Ao que parecer sabia da minha estadia em Londres — disse Grei com voz gelada. Assim era sua Lysette, disposta a lhe vender ao melhor preço. Sem um ápice de lealdade.

     Por sorte, Grei também estava ciente de todas as propriedades e esconderijos de Ethan.

     —Eu não contei a ninguém, o... —Sacudiu a cabeça e seu cabelo loiro dançou em cima de seus ombros— Eu juro.

     Grei optou por acreditar que dizia a verdade e comentou:

     —Não se preocupe, acredito. Reconheço que Ethan é bom. —Se a informação fosse dinheiro, poderia dizer que Ethan tinha formado uma fortuna graças as pessoas que, como ele, trabalhava nos serviços secretos da Coroa fora da lei— E agora me dou conta de que me teve vigiado desde o dia em que se dignou me deixar sair desse porão. —Grei fechou a mão ao redor do cabo da faca.

     Lysette viu e se assustou.

     —Ocuparei-me de Ethan, mas sua condenada vida é tão miserável que não tem nenhuma graça que o mate. —O que seria mais cruel, deixar seguir com vida ou o matar? Acaso não tinha ele muitas afinidades com o Ethan? Este era um homem que não tinha nada que perder. E isso lhe dava muito poder.

     —E Courtland? —perguntou Lysette em voz baixa— Não acha que deve ser necessário passar o resto de sua vida procurando vingança?

     —Lysette, agora mesmo eu me preocuparia mais por minha própria sobrevivência. —Sorriu com amabilidade— Ou pode relaxar e aceitar o inevitável. —Por fim a eliminaria de sua vida... muito devagar.

     Essa ameaça fez que sua pequena Lysette soltasse um grito em francês. Deixou de chorar e entrecerrou os olhos.

     —Hugh vai ganhar. E desejaria estar aqui para poder vê-lo.

     Grei atirou o copo no chão e com grande rapidez a alcançou.

     —Não estou acostumado a permitir últimas palavras. —Agarrou-lhe o queixo e percorreu o corpo com a adaga— E não costumo tolerar confissões de última hora, mas com você farei uma exceção.

     Lysette o olhou cheia de ódio.

     —Minhas últimas palavras? Perderá porque Hugh sempre foi melhor que você. Mais rápido, mais forte. Inclusive antes de sua aflição, só foi um patético francoti...

     Um talho da faca e todo ele ficou salpicado de sangue.

     —Garota boba — disse Grei estalando a língua—, conseguiu que o fizesse rápido.

 

Jane bateu a porta e Hugh só teve tempo de apertar os dentes antes do impacto. Os quadros das paredes continuaram tremendo durante uns segundos depois de que se fora.

     Fazia dois dias que estava apanhada em Ros Creag, a deprimente mansão dos MacCarrick junto ao lago, com o mal-humorado Hugh como única companhia. Estava tão farta que inclusive estava tentada em ir procurar Grei e lhe dizer: “Faz o que pensa fazer. Você desafiou a isso”.

     O único motivo pelo que Jane não tinha fugido para casa de uma de suas primas era porque sabia que sua família logo chegaria em Vineland. Hugh não tinha nem idéia disso.

     —Nesta época do ano não há muita gente por aqui — comentou quando lhe comunicou que iriam ficar no lago.

     Mas sua família estava acostumada ir por ali quando “não havia muita gente”, porque assim podiam estar sozinhos.

     —Jane, já te adverti o que aconteceria se batesse a porta —gritou Hugh de fora de seu quarto — Abre-a ou desta vez te juro que a derrubo.

     —Isso já disse ontem.

     A porta se abriu de repente.

     Jane ficou sem fala, tanto pelo susto de ver o marco da porta quebrado e a folha cambaleando-se como pela letal calma com que Hugh se movia; nem sequer tinha acelerado a respiração.

     —Não tenho nem idéia de por que está zangada, maldição — disse ele—, mas já estou farto.

     —Eu também!

     —Sabe?, sempre tinha me perguntado como seria viver conti... com uma mulher.

     —E?

     —Com seu comportamento o transformou em um inferno.

     —E qual é segundo você meu comportamento? —perguntou indignada— Que tenha decidido te evitar depois de que me mandasse calar sempre que tentava manter uma conversa? Por que ia querer estar com você se parecer que te arranque os dentes quando só quero que falemos um momento?

     —Por que diz isso?

     —Perguntei por que seus irmãos não se casaram, e me respondeu zangado “Muda de assunto”. Perguntei por que nenhum de vocês tinha filhos e me disse “Deixe disso” perguntei se tinha pensado em plantar umas trepadeiras ou umas roseiras para que este lugar não parecesse tão sombrio, e se limitou em sair da sala! Em toda minha vida nunca tinha conhecido um homem tão mal educado.

     —Se o sou é porque você decidiu ignorar tudo o que te pedi.

     —Como o que?

     —Como que se afastasse das janelas, e sempre te encontro sentada diante daquela que possuí o balcão, olhando para Vineland. Pedi que ordenasse seu quarto e me disse que tinha uma “ordem horizontal”, e que não podia entendê-lo porque eu era um estúpido.

     Todo mundo sabia que Jane era muito desordenada, sua donzela passava o dia jogando solitário ou lendo novelas eróticas porque ela não a deixava ordenar seu caos. Um caos que para Jane funcionava, como encontraria as coisas?

     —E se nega que a donzela a ordene — acabou Hugh.

     —Não quero que por minha culpa tenha mais trabalho, e os criados só vêm algumas horas. Se te incomodar tanto, e permite que pergunte desde quando é tão suscetível, pode deixar a porta fechada todo o dia.

     —Sabe que não posso fazer isso.

     Jane suspirou e atravessou o amaciado tapete até a janela. Ros Creag significava “monte de pedra”, e era uma mansão tão séria e sem adornos como seu nome indicava. Sempre tinha sido assim. Mas no passado essa casa tinha obtido seu objetivo; manter as pessoas afastadas. De ter sido um lugar mais amigável, os Weyland a teriam invadido em busca de varas de pesca, comida... ou para dar de presente um bolo aos irmãos MacCarrick.

     Não importava para onde dirigisse a vista, aquele jardim estava tão descuidado que inclusive dava medo. Parecia como se um jardineiro tivesse alinhado arbustos e flores com uma fita métrica e depois tivesse eliminado sem clemência qualquer floração. A mansão era senhorial, mas intimidava, e seus tijolos eram da mesma cor escura que o escarpado sobre o que estava construída.

     Apesar de que só uma pequena baía a separava de Vineland, esse outro lugar estava a anos luz dali. Enquanto que Ros Creag se erguia séria e solitária no escarpado, Vineland ocupava um enorme terreno junto à praia, bem na beira do lago, e embora tivesse oito quartos, parecia um precioso cottage. O imóvel estava cheio de árvores e pracinhas, e frente à água se via um pequeno embarcadouro.

     E Hugh ainda se perguntava por que Jane sempre preferia sua casa a dele.

     —Você não gosta de estar aqui. —As palavras de Hugh soaram atrás dela, mas não o tinha ouvido aproximar-se. Franziu o cenho e recordou que em Londres fazia o mesmo. Antes fazia muito ruído ao caminhar, suas botas repicavam no chão. Agora havia se tornado sigiloso.

       Jane deu de ombros e se aproximou da porta. O único que tinha de bom Ros Creag era que era o suficiente grande como para que eles dois não tivessem de ver-se jamais.

    

     Maldita fosse Jane, estava arredia desde a noite em que a tinha beijado. Ao que parecer, estava de acordo com isso que diziam todos de que ele tinha aspirado muito alto ao casar-se com ela.

     Viu-a partir e de novo repetiu a si mesmo que não tinha importância. Quando Grei estivesse fora de circulação e passasse o perigo, Hugh iria de seu lado como tinha feito antes.

     Ir-se? Aonde? Fazer o que? Se a lista se fazia pública, não teria a que dedicar-se. Expôs-se unir-se ao bando de mercenários de Court, mas descartou a idéia. Hugh era um solitário, sempre trabalhava sozinho. Sempre na periferia.

     Exceto com Jane. Ela era a única pessoa deste mundo com a que Hugh podia estar. Maldição, ele nunca tinha passado suficiente tempo com ela, sempre ansiava mais.

     Entretanto, agora que seu desejo havia se transformado em realidade, ele queria andar para trás.

     Não, poderia suportá-lo. Aquela situação era só temporária.

     Mas o que mais o afetava não era que ela às vezes, ou quase sempre, fizesse-o zangar, mas sim, por fim, deu-se conta de que estavam vivendo juntos, sob o mesmo teto, como marido e mulher. Jane era tão feminina, tão misteriosa, e como ele jamais tinha vivido com uma mulher, estava um pouco sobressaltado.

     Hugh exalou frustrado e, esquivando da roupa amontoada, caminhou atrás dela. A Hugh que sempre tinha procurado a ordem e a lógica em tudo o que fazia, incomodava-o essa desordem. Sem ordem aparecia o azar, e Hugh odiava o azar. Sempre responsabilizava o azar de seu destino, e não lhe perdoava não ter tido alternativa.

     Não se supunha que as mulheres eram criaturas muito ordenadas? Para maior desgraça de Hugh, a desordem de Jane estava cheio de fascinantes roupas intimas. Havia ligas que não tinha visto em seu quarto em Londres, e inclusive as meias bordadas.

     —Espera, Jane. —Agarrou-a pelo cotovelo justo quando ela chegava ao corredor—. Diga-me por que você não gosta de estar aqui.

     —Estou acostumada a estar rodeada de minha família e meus amigos, com gente rindo e conversando todo o momento, e você me arrebataste de tudo para me trazer para esta deprimente, sim, deprimente, mansão. E apesar de tudo, poderia suportá-lo se você fosse uma companhia mais agradável.

     —O que tem de mau neste lugar? —perguntou ele sem entender, olhando a seu redor— Faz anos tampouco você gostava de vir aqui. Por que?

     —Por quê? Ia de minha casa, onde havia diversão, onde meus tios perseguiam as minhas tias, e as crianças brincavam como criaturas selvagens, para vir aqui, onde as cortinas sempre estavam fechadas e havia mais silencio e escuridão que em um mausoléu.

     —Também me incomodava ir a sua casa.

     —E pode saber o porquê?

     Hugh duvidou que jamais pudesse fazer entender que o comportamento de sua família podia incomodar os estranhos, e muito mais a alguém tão solitário como ele. Mas que ela se fechasse a ele a tantos níveis doía tanto, que se atreveu a dizer

     — Suas tias estavam acostumadas correr com as saias levantadas, ia pescar, fumavam e bebiam da garrafa que passavam uma a outra. E às vezes, quando seus tios as apanhavam, levavam-nas aos seus quartos, e não eram tão silenciosos como eu teria desejado ao fazer o que faziam.

     —E como sabe tudo isso se mal passou ali quinze minutos em cinco anos? —Ao ver que ele não respondia, acrescentou— Você nega a reconhecer que evitava a todo mundo exceto ao meu pai?

     Não podia negá-lo, ele não queria que Jane visse o incômodo e tolo que sentia quando estava rodeado de gente.

     —Já sabe que sempre gostei de estar sozinho.

     —Ao menos minha família era amável com você, diferente de seus irmãos.

     —Meus irmãos nunca foram antipáticos com você.

     —Está de brincadeira? Ethan passou todo um verão perambulando pela casa como se fosse um fantasma, com a cara completamente enfaixada por culpa de uma misteriosa ferida da qual nunca quer falar. E se alguém atrevia a olhá-lo, gritava furioso para expulsá-lo dali.

     Esse verão estar com o Ethan dava medo. E todos os verões a partir de então.

     —E Court?

     Jane o olhou incrédula.

     —Deus, acredito que é o homem mais irritável que jamais conheci; sempre está a ponto de estourar. Nunca se sabe se vai fazê-lo nesse instante. Estar junto a ele é como passear junto a uma armadilha para ursos. E não é nenhum segredo que ele tampouco me quer muito.

     Não, Court nunca tinha gostado de Jane. Hugh supunha que era porque Court incomodava que aquela menina os seguisse a todas as partes e que Hugh deixasse fazê-la. Durante o último verão, Court incomodava o modo em que Jane tratava seu irmão, mas nunca lhe ocorreu pensar que talvez Hugh despertasse cada manhã impaciente por voltar a vê-la, dia após dia.

     Não sabia que Jane tivesse esses sentimentos tão fortes de aversão para Court e Ethan.

     —Não me dava conta de que era tão horroroso.

     —Não deu conta porque para você é normal. —Moveu o vaso para o extremo da mesa, como se não pudesse suportar que estivesse no lugar perfeito. Mais calma, acrescentou— Hugh, falar disso agora não arrumará nada. Se te perguntar algo, não tem por que responder, e pode ser tão evasivo quando te der vontade. Está em seu direito. O meu é não ter que estar com você quando não for necessário.

     —Sempre tira assuntos muito difíceis.

     Jane arqueou uma sobrancelha à espera que continuasse falando.

     —Se responder uma de suas perguntas, você me faz doze mais se apoiando nessa resposta, não se importa que eu não queira falar disso. Não está contente até que tudo saia à luz.

     —Desculpo-me por querer saber mais desse homem que era meu amigo, que desapareceu faz anos sem dizer nenhuma palavra, e que retornou para transformar-se em meu marido neste estranho casamento de conveniência.

     —Maldição, disse a seu pai que dissesse adeus.

     Jane ficou atônita.

     —E não acha que merecia que me dissesse isso você? Cada vez vejo mais claro que não tínhamos o tipo de amizade que eu acreditava. Suponho que para você era um estorvo ter a uma mucosa pega todo o dia a seus calcanhares quando você só queria ir caçar ou pescar com seus irmãos...

     —Nós éramos amigos.

     —Um amigo teria despedido de mim ao saber que iria e que não tinha intenções de retornar em muitos anos.

     Podia ser que ela tivesse pensado nele durante todo esse tempo? Que tivesse sentido sua falta?

     —Está zangada por isso?

     —Estou confusa. Eu haveria dito adeus.

     —Não acreditei que pensasse em mim, uma vez que me tivesse ido. Não acreditei que se importasse.

     Ela nem negou nem confirmou, mas sim continuou:

     —Mas agora retornou, e estamos metidos nesta situação tão confusa que tento entender, mas me falta informação. Papai me disse que isto podia durar meses. Estaremos assim todo o tempo? Zangará cada vez que eu tente perguntar algo?

     —Eu não quero que estejamos assim. É só que... é que não sei como dirigir isto tão bem como quisesse.

     —O que quer dizer com “isto”?

     Hugh apertou a ponta do nariz.

     —Jane, às vezes me desloca. Eu não estou acostumado a estar casado, embora só seja um casamento temporário.

     —Muito bem, Hugh. Comecemos com uma pergunta fácil. —Ela levantou as sobrancelhas e ele assentiu disposto— Como acabou meu pai associado com alguém tão perigoso e violento como Grei?

     “Isso era uma pergunta fácil?”

     —Grei nem sempre foi assim. Ele provém de uma rica e respeitável família. Tem muitos contatos.

     —Foram bons amigos?

     —Sim, muito bons.

     —Tentou lhe ajudar com seu problema?

     Hugh escolheu suas palavras com cuidado, sabia que para Jane devia a verdade, mas não podia revelar o que tinha feito sem envolver também outros.

     —Tentei raciocinar com ele, discutir com ele, negociar com ele. Nada serviu.

     Depois disso, Hugh e Ethan decidiram tomar atitudes no assunto e o ajudar a deixar do ópio. Capturaram Grei e o trancaram em um dos imóveis de Ethan.

     Grei ficou furioso, soltava espuma pela boca e não deixava de os insultar. Das duas uma, ou sempre tinha sido um bastardo, e o ópio, como o álcool, magnificava seus defeitos, ou sua personalidade tinha mudado.

     Grei jurou que se Hugh não teria “as bolas para transar com Jane Weyland de uma maneira que era óbvio que ela necessitava”, ele mesmo se encarregaria de fazê-lo. Hugh não podia recordar como tinha agarrado a Grei no pescoço e tinha começado a lhe dar murros na cara. Ethan custou muito poder separá-los. Depois disso, os três homens ficaram atônitos ante a perda de controle de Hugh.

     Depois de duas semanas no porão, Grei saiu aparentemente curado. Hugh estava convencido de que ao menos durante um ano tinha podido manter-se estável. Por sua vez, Ethan, sempre suspeitou que Grei só estava esperando o melhor momento para atacar, e acertou.

     —Durante um tempo acreditei que estava bem, mas da última vez que o vi. Tinha as pupilas como dois faróis e...

     Quando Grei tinha visto o quanto decepcionado estava Hugh, colocou o casaco e lhe sorriu com tristeza, como se voltasse a ser o mesmo de antes. Depois afastou o olhar e com esse acento tão reservado e educado que tinha disse em voz baixa:

     —Eu não queria acabar assim, sabe?

     —Então, por que? —perguntou Hugh.

     —Nunca planejei que as coisas fossem deste modo — continuou ele ainda relaxado, mas quando Hugh não disse nada, Grei o olhou abertamente— Uma manhã despertei e me dei conta de que só era um número. —Envergonhado, voltou afastar a vista— Adeus, escocês...

 

E se afastou dele.

     Hugh se sacudiu essa lembrança.

     —Perdi-o para sempre.

     —Sente falta de sua amizade com ele?

     Hugh hesitou por um longo momento, mas no final assentiu. Ele sentia falta de, apesar do muito que queria que Grei morresse, e apesar de saber que seu irmão o buscava com intenção de matá-lo.

 

     —Hugh! Sou eu.

     Piscou e abriu os olhos. Jane estava inclinada sobre ele, com a preocupação escura no rosto, enquanto Hugh lhe apertava com força o pulso. Soltou-a e se jogou na cama.

     —Jane? —esfregou a testa com a mão e viu que a tinha banhada em suor— O que faz aqui?

     —Ouvi algo. Acreditava que tinha um pesadelo.

     —Sim, tive. — Para Hugh os pesadelos estavam acostumados a assaltá-lo freqüentemente, e revivia cenas macabras nas que seus objetivos se negavam a morrer. Ele sempre se esforçou em fazer disparos limpos para que fosse o mais rápido possível, mas às vezes a grande distância ou as inclemências do clima o impediam. Quando o disparo não acertava totalmente, alguns começavam a retorcerem-se, outros gritavam desesperadamente— Eu disse algo?

     Jane sacudiu a cabeça.

     —O que acontecia no pesadelo?

     —Não tem importância. —Nesse momento viu que ela usava camisola. Um objeto quase transparente de seda branca. Seu olhar deslizou até seus seios; ela se deu conta e começou a morder o lábio.

     Hugh sentou de repente e se cobriu até a cintura com os lençóis para dissimular sua repentina ereção.

     —Maldição, não pode entrar aqui vestida assim — disse com voz áspera.

     —Quando te ouvi corri para seu quarto. Não parei para pensar em minha roupa.

     —Quando aprenderá Jane? Adverti-te que sou um homem e que tenho necessidades. E quando te vejo assim... —sacudiu a cabeça— me afeta. Não quero fazer algo que ambos lamentaremos mais tarde.

     Jane arqueou uma sobrancelha.

     —Está dizendo que você, um homem do mundo,acha-me irresistível e que pode perder o controle só por estar me vendo de camisola?

     —Sim — se limitou a responder, e depois acrescentou— Faz muito tempo que não estou com nenhuma mulher, Jane, e você é muito bela...

     —O que quer dizer com “muito tempo”? —Cruzou os braços zangada— Quatro dias é “muito tempo”?

     Hugh franziu o cenho.

     —De que falas?

     —Te vi entrar no quarto de Lysette. E saiu com a camisa meio para fora da calça.

     Ele entrecerrou os olhos.

     —Se te tivesse ficado no quarto como te disse, não o teria visto.

     —Isso agora não tem importância — respondeu ela com voz cortante.

     —Ela tentou me seduzir.

     —Tentou ou o conseguiu?

     —Está com ciúmes? —Hugh não se atrevia a acreditar que pudesse estar. Não se atrevia a sonhar que Jane pudesse sentir a pontada da inveja ao imaginar-lo com outra mulher.

     Ela levantou o queixo e respondeu:

     —Passou nossa noite de núpias nos braços de outra mulher. Isso dificilmente é um elogio.

     —então o que está ferido é sua vaidade? —Hugh se sentiu decepcionado. Em tom monocórdio disse— Não me deitei com ela.

     —Não o fez? —Deixou cair os braços aos lados, como se tivesse ficado sem força.

     —Por que custa tanto acreditar?

     —Era óbvio que ela te desejava.

     —Pronunciei uns votos, e até o dia em que nosso casamento se anule, manterei-os. Agora, volta para seu quarto.

     Jane passou a mão pela testa.

     —Já vejo. —Seu rosto perdeu um pouco de cor e, depois de uns instantes, disse— Tentarei ordenar meu quarto. E já não tem que preocupar-se porque continue “te atormentando”.

     —E a que se deve esta mudança? —perguntou Hugh, teve que morder a língua para não expressar sua frustração— A que agora sua vaidade está intacta e não perdeu a competição que tinha com a Lysette? Agora já pode voltar a ser educada comigo?

     Jane retrocedeu ante esse comentário.

     —Não era por vaidade, nem por nenhuma competição. Sinto haver-me comportado assim. —Parecia sincera.

     A ira de Hugh se apagou um pouco e adoçou seu tom de voz.

     —E agora o que, Jane?

     Ela moveu nervosa as mãos e não disse nada.

     —Está-me deixando louco, pequena. Sei que está triste e não sei o que fazer para remediá-lo. —esfregou a testa e suspirou— Diga-me como posso arrumá-lo.

     Depois de algum momento, Jane sussurrou:

     —Estava triste porque estava com ciúmes.

     Jane se foi deixando-o boquiaberto e com a testa franzida. Entrou em seu quarto e, devagar, fechou a porta.

     Estava tremendo. Jane se apoiou contra a parede e descansou as mãos nos painéis de madeira. Embora ela quisesse ficar no quarto de Hugh, tinha optado por “distanciar-se”. Estava muito orgulhosa de si mesma e se sentia muito mais adulta ao tomar essa decisão, e mais tendo em conta que a tinham invadido muitíssimas “más idéias”. Parecia uma confusão.

     Acreditava que poderia comportar-se pior com Hugh, mas por mais que Jane pensava como, não conseguia imaginá-lo. “Sei que está triste e não sei o que fazer para remediá-lo”, havia dito ele, e parecia tão cansado... Nesse mesmo instante, Jane se lembrou das palavras de seu pai: “Hugh, tenta-o...”.

   Fechou os olhos com força e se envergonhou de seu horrível comportamento. Estava tão contente, sentia-se tão aliviada de que Hugh não tivesse tocado aquela mulher. Claro que isso eliminava o melhor elemento dissuasivo que ela tinha tido para seus sentimentos para ele. E isso a fez pensar.

     Voltava a estar de volta a essa noite na hospedaria, quando se foi, deixando-a em cima da mesa? Quando ela tinha temido que ele voltasse a afastar-se?

     Sim.

     Ao sentir como a mão de Hugh a tocava pela nuca Jane abriu os olhos de repente. Hugh tinha posto as calças, tinha entrado em silêncio em seu quarto e, sem lhe dar tempo para reagir, estreitou-a contra seu peito. Inclinou a cabeça e procurou seus lábios com os seus gemendo em agradar ao senti-los. Só se afastou para perguntar:

     —De verdade estava com ciúmes?

     Se dizia a verdade, expor-se. E se ele voltasse a machucá-la; só serviria para acelerar sua queda por esse precipício. Mas apesar de tudo, entre a carícia de sua língua e seus beijos ansiosos, Jane sussurrou:

     —Não queria que beijasse a ela, quando quem teria que haver continuado beijando era eu.

     Ante sua confissão, Hugh se esticou, e hesitou um instante antes de pegá-la nos braços e levá-la de volta ao seu quarto.

     —Hugh — murmurou aturdida—, o que vai fazer?

     —Tenho que saber uma coisa — disse enquanto a deitava em cima da cama e ele seguia logo o mesmo caminho. Seus olhos famintos não deixavam de percorrê-la, e sussurrou com voz rouca— Tenho que ver uma coisa.

     Passou uma mão trêmula pelos lábios e a olhou como se estivesse vivendo uma verdadeira agonia. Todo seu corpo estremecia de tensão. Jane levantou as mãos para acariciar seu rosto, mas ante essa inofensiva carícia, Hugh gemeu e se estremeceu ainda mais. O que estava acontecendo?

     Nenhum dos livros que Jane tinha lido, nem nada do que suas primas tinham contado ou do que ela tinha visto em Londres a tinha preparado para ver um homem comportar-se assim; era como se fosse morrer de desejo. Nas novelas eróticas que lia, nunca se dizia que um homem pudesse estremecer-se de desejo, ou sentir um desejo tão forte que não pudesse falar nem suportar que o tocassem.

     Hugh moveu a mão devagar e deslizou uma das alças de sua camisola por seu ombro, para seguir lhe beijando o pescoço. No mesmo instante em que Jane sentiu o frio do ar em contato com os seios e o umbigo, Hugh murmurou algo em gaélico e se aproximou para observá-la melhor. Jane sentiu como seu olhar acariciava cada poro de sua pele nua e em resposta arqueou as costas.

     Hugh se inclinou para frente, baixou a cabeça e gemeu:

     —Deus, me ajude...

     Com a primeira carícia de sua língua, Jane acreditou que ia estourar de prazer. Hugh rodeou o seio com a mão para segurá-lo e o introduziu entre seus lábios.

     —Hugh — ela sussurrou e enredou os dedos em seu cabelo— Eu gosto tanto que faça isso.

     Ele deslizou a outra mão entre suas pernas e, à medida que subia, ia acariciando devagar com os dedos.

     —Me diga que pare — disse contra seu seio.

     Ela sacudiu a cabeça negando, e quando ele se colocou entre suas coxas, obrigando-a a separar mais as pernas, começou a tremer. As ásperas mãos de Hugh roçavam sua pele, mas Jane adorava essa sensação.

     —Diga-me — Moveu a palma para cima.

     Ela voltou a sacudir a cabeça e gemeu. Tinha medo de chegar ao clímax, não queria que aquilo acabasse jamais.

     —Ah, Deus, não posso parar. —Os dedos de Hugh chegaram à união de suas pernas— Preciso te acariciar. — Quando percorreu o clitóris com o polegar e o acariciou sensual, Jane gritou de prazer. Outro dedo seu seguia atormentado o seu sexo.

     —Está tão úmida. —Inclinou a cabeça e disse contra seu seio— Está pronta para mim, bem assim?

     Jane começou a mover-se indefesa sob suas carícias enquanto Hugh apanhava essa umidade e continuava acariciando-a lenta e dolorosamente.

     —Por favor, Hugh — rogou ela sem fôlego— Não pare.

     Ele levantou a cabeça e estudou seu rosto.

     —Não o farei. —Parecia atormentado, perdido— Quero que... quero que goze para mim. —Acariciou-a com mais firmeza— Preciso te ver...

     Jane soltou um estrangulado gemido. Já estava fazendo.

 

     Hugh observou maravilhado como ela arqueava as costas e apertava os lençóis entre as mãos.

     Sem pensar, introduziu os dedos dentro dela e acariciou no interior de seu sexo com avidez enquanto, desesperado, continuava lambendo o seio para que ela desfrutasse ao máximo. Com a outra mão, levantou-lhe a camisola para assim poder ver como todo seu corpo se ondulava de prazer.

     Jane gritou com abandono, provocando que, em resposta, o sexo dele vibrasse de um modo muito doloroso. Logo, os joelhos de Jane se separaram relaxados e ela moveu os quadris contra sua mão, uma e outra vez, até que a tensão desapareceu por completo.

     Trêmula, desabou contra o braço que ele tinha colocado sob suas costas e ficou ali quieta enquanto ele continuava acariciando-a devagar.

     Hugh não podia recuperar o fôlego. Só de ver seus dedos sobre os escuros cachos do sexo dela... ia derramar nas calças.

     Jane se acomodou um pouco e escondeu o rosto no pescoço de Hugh. E diante o assombro dele, sussurrou-lhe o muito que gostava de suas carícias. Suas carícias. Depois de uma década imaginando-o, Hugh foi consciente de que por fim lhe tinha dado prazer.

     E tinha sido a experiência mais incrível de toda sua vida.

     Ela tinha a respiração entrecortada, e entre palavra e palavra lhe dava pequenos beijos no pescoço que faziam que sua ereção crescesse e seu membro se endurecesse ainda mais.

     A idéia de ejacular nas calças já não parecia tão horrível.

     Hugh brigou por pensar nisso e se separou dela, mas Jane lhe rodeou o pescoço com os braços e apanhou sua cintura com sua perna.

     —Hugh, e você? Não quer ficar comigo? —Grudou nele com suavidade até que ele se relaxou e se deixou arrastar entre suas coxas.

     Ela queria que ele também ele gozasse? Poderia afastar-se? Não se ela movia seu nu sexo contra o seu. Impossível. Hugh morria de vontade de tirar a roupa e entrar em seu úmido e quente corpo, estava desesperado por fazer amor até perder o sentido, por tomar aquilo que fazia tanto tempo que necessitava.

     Em vez disso, quando repetiu esse sensual movimento de quadris, ele se apertou contra ela indeciso. Jane segurou a respiração.

     —Estou te machucando? —perguntou preocupado.

     Quando ela respondeu que não, Hugh aproximou mais e deslizou uma mão entre os dois para desabotoar a calça. Deslizou-a coxas abaixo e ficou também nu.

     Ambos tinham a respiração acelerada e o olhar fixo ali onde seus corpos quase se tocavam. Estavam tão perto... Jane tinha as pálpebras meias fechadas e observava fascinada o sexo de Hugh e o quanto úmida estava a cabeça do mesmo. Como em um sonho, Hugh a viu voltar a ondular os quadris, o buscando. Colocou um braço a cada lado dela e ficou ali quieto, suando por causa do esforço que estava fazendo para não possuí-la.

     Sabia que não podia fazê-lo, apesar do natural que parecia estar ali juntos desse modo. Assustava o quanto perfeito parecia. Incapaz de controlar-se por mais tempo, moveu os quadris para baixo. Foi abaixando devagar, muito devagar, até que seu membro acariciou o pequeno clitóris de Jane.

     Ele arregalou os olhos.

     Jane voltou a gemer e a ondular os quadris de um modo que quase obteve que seu pênis entrasse dentro dela pondo fim a tudo aquilo. Hugh pôs uma mão na cintura para segurá-la, e depois voltou a apertar-se em cima dela. Ficou ali quieto, deixando que sua ereção palpitasse contra seu sexo. Não tinha nem idéia de onde tirava tanto autocontrole. Só sabia que tinha que prolongar a cada segundo para que durasse o resto de sua vida.

     Quando as mãos de Jane o buscaram ansiosas, Hugh apanhou os pulsos. Sabia que se ela o tocava, gozaria antes que seus dedos o tivessem acariciado somente uma vez.

     —Ponha os braços em cima de sua cabeça, Sine. —Ela os relaxou— mantém aí por mim.

     Ela assentiu como se entendesse pelo que ele estava passando.

     O anseio de mover-se estava insuportável e Hugh se entregou a ela. Deslizou-se devagar por cima do sexo de Jane até seu umbigo e depois retrocedeu o caminho enquanto um constante gemido escapava de seus lábios. Nessa postura, movendo-se desse modo, quase estava dentro dela; e isso era o máximo de perto que ele iria se permitir em estar. Jane voltou a gemer e o olhou outra vez enquanto separava um pouco mais as pernas e sussurrava:

     —OH, Deus! Sim, Hugh!

     Ele saboreou essa agonia e voltou a mover-se contra seu sexo.

     —Jane — gemeu. A cada deslizamento, seu membro se apertava ainda mais e não se detinha até sentir a umidade de Jane em sua pele. Quando isso acontecia, ela emitia um som ininteligível.

     O prazer era insuportável. Hugh ia ejacular, e ia ser incontrolável.

     Baixou a cabeça e sussurrou com voz rouca:

     —Arqueia as costas, por favor. Preciso voltar a te saborear. — Jane se apressou em fazê-lo e Hugh apanhou o seio entre os lábios, e o lambeu e mordeu até que ela começou a gemer de novo.

     Significava isso que ia ter outro orgasmo? Obteria que assim fosse. Hugh agüentaria até que ela voltasse a alcançar o clímax.

     Quando Jane gritou seu nome e começou a mover-se debaixo dele, seus balanços foram quase como uma tortura para o Hugh.

     Completamente perdido, moveu-se frenético acima e abaixo em cima dela.

     —Ah, Deus, Sine, tenho que... gozar —gemeu ele antes de começar a ejacular. A cada sacudida gritou como nunca antes o tinha feito, e se moveu espasmodicamente, uma e outra vez, até cair rendido.

     O corpo de Hugh continuava tremendo e, ofegante, apoiou-se sobre os cotovelos e colocou o rosto no pescoço empapado de Jane.

     Não podia acreditar que se comportou assim com ela. Fechou os olhos, envergonhado; tinha ejaculado em cima dela.

     Afastou-se e voltou para guardar sua dolorida ereção sob as calças, depois se levantou para ir procurar uma toalha. Quando retornou, não se atreveu a olhar para Jane, nem sequer depois de lavá-la e voltar a colocar a camisola em seu lugar. Atirou a toalha e se sentou em um extremo da cama, com a cabeça entre as mãos. Nunca havia se sentido tão envergonhado, tão vulgar. Como ia poder olhar na cara a partir de então? Fosse o fosse, tinha que fazê-lo.

     Não importava o muito que ele precisasse afastar-se dali, não podiam separar-se um do outro.

     —Jane, não sei o que me aconteceu. Sinto muito. —Deveria sentir-se humilhado ao estar perto dela, mas apesar de tudo, Hugh queria Jane a seu lado nesse momento, para assim não ter que confrontá-lo sozinho. Isso deixaria louco a qualquer um.

     —Não fez nada pelo que tenha que se desculpar. —ficou de joelhos junto a ele— Nada.

     —Não, deveria ter sido capaz de me controlar.

     —Hugh — murmurou Jane acariciando suas costas—, só sou eu, lembra-se? Eu, sua Jane. Nós sempre estivemos cômodos um com o outro.

     —Isto não deveria ter acontecido — insistiu ele.

     Quando Hugh decidiu se levantar, Jane disse:

     —Fique. Dorme comigo, por favor. —A base de carícias e doces palavras o convenceram e, sem saber como, Hugh se viu sem calças e deitado na cama junto a ela. Resignado a ficar ali, aconchegou contra seu peito e a rodeou suavemente com os braços, como se o tivesse feito antes milhares de vezes.

     Noite após noite, aquele último verão, imaginou-se como seria deitar-se com ela. Agora por fim sabia. Tinha passado horas deitado nessa mesma cama olhando o teto e imaginando que a tocava, que a beijava. E sonhando dormindo abraçado a Jane.

     A realidade era muito melhor. Hugh já sabia que adoraria o cheiro de seu cabelo, mas não que teria vontade de gemer e de esconder o rosto nele. Tampouco sabia que seu cabelo seria o bastante longo para lhe acariciar as coxas se faziam amor e ela ficava em cima dele e jogava a cabeça para trás.

     Hugh já sabia que gostaria de sentir seu corpo, mas não sabia que suas nádegas seriam tão perfeitas, e que encaixariam maravilhosamente em seu colo.

      —Não mais pesadelos, Hugh — sussurrou ela meio dormindo— Ou teremos que voltar a fazê-lo.

     Ele já queria voltar a “fazê-lo”, e se excitava só de sentir seu traseiro perto de seu corpo. Quando Jane suspirou de felicidade, Hugh franziu o cenho e tentou recordar por que acreditava que viver com ela era algo mau.

 

     Quando, à manhã seguinte, Jane despertou, Hugh continuava dormindo. E ficou ali deitada, observando-o com fascinação.

     Com a mandíbula relaxada o seu rosto mudava, até parecia mais jovem. Os cortes de sua face tinham começado a curar-se. Isso a fez sorrir. Hugh era um patife e um mercenário... mas não era um libertino.

     Percorreu-lhe o lábio inferior com o dedo e se lembrou de como a tinha beijado a noite anterior... com sentimento, com desespero, como se aquele fosse o último beijo que ela fosse lhe dar e tivesse que tentar prolongá-lo.

     Todo seu ser tinha respondido aos rogos de seu escocês, e Jane se deixou levar. Tremia em apenas recordar esse enorme corpo movendo-se em cima do dele, acariciando seu sexo uma e outra vez contra o seu até obter que ela tivesse dois orgasmos. E ver o Hugh chegar ao limite de seu prazer, como se derramava sobre sua pele, tinha sido... maravilhoso. Mas a julgar o incômodo que ele se sentiu depois, Jane duvidava de que voltasse a vê-lo.

     O que era um problema, porque tinha decidido que Hugh MacCarrick tinha que ser seu primeiro amante.

     Se alguma vez tinha precisado dos conselhos de suas primas, agora precisamente era o momento então. Esse mesmo dia. Acreditava que chegariam essa manhã.

     Jane afastou com ternura uma mecha de cabelo negro da testa e seus preciosos olhos escuros começaram a abrir-se. Ainda estava meio dormido, mas levantou a mão e lhe acariciou a bochecha. Quando Jane sorriu, ele franziu o cenho como desconcertado.

     Continuando, separou-se dela de repente.

     Colocou as calças em um segundo, e caminhou de acima para abaixo durante muito momento. Os músculos das costas ficavam cada vez mais tensos.

     —Isto não teria que ter acontecido, e não pode voltar a acontecer — disse por fim.

     Por seu tom de voz, diria-se que estavam discutindo sobre uma tragédia, sobre a morte de algum familiar e não sobre o prazer maior que Jane havia jamais sentido. Sentiu-se insultada e se sentou cobrindo o seio com o lençol.

     —Sério, Hugh, está fazendo uma montanha em um grão de areia. —Sacudiu a mão sem lhe dar importância— Nós... divertimo-nos um pouco.

     Em vez de mostrar-se agradecido, era o que ela pensava que aconteceria, pois ao fim poderia dizer que era um descarado e de passagem lhe exigir que continuasse casado com ela, Hugh se enfureceu.

     —Se nos tivéssemos “divertido” um pouquinho mais abaixo, teríamos que assumir conseqüências muito graves. Acaso esqueceu que ambos estivemos de acordo em não fazê-lo? Desde o começo o lembramos assim. Ou quer seguir amarrada neste casamento?

     —Eu gostaria que deixasse de ter estes ataques de pânico cada vez que falamos de nosso casamento. Não fizemos amor. É muito fácil. A única coisa que temos que fazer é esquecê-lo e não voltar a falar mais no assunto.

     —Nunca conheci uma mulher que pudesse afundar tão rapidamente a auto-estima de um homem como você. Quem quer que se case com você para sempre, precisará ser muito melhor homem que eu.

     Jane o olhou nos olhos. Sua intenção inicial não tinha sido lhe provocar, mas agora não se arrependia de havê-lo feito.

     —Leva isso muito a sério — insistiu ela— Por que está tão zangado se não aconteceu nada? Está se comportando de um modo muito provinciano.

     —Talvez para você seja fácil fingir que não ocorreu, mas que nos “tenhamos divertido” sim me importa. — De repente, Hugh entrecerrou os olhos e a pegou pelo cotovelo para aproximá-la mais a ele— Não é virgem, não é verdade?

     Jane afastou a cabeça surpreendida.

     —Por que o pergunta?

     “Não, não, Hugh. Não seja assim.” Ele tinha passado longe durante dez anos e mesmo assim acreditava que ela tinha que esperar até encontrar um marido. Sim, era virgem, mas como acontecia no mínimo, nesse preciso instante desejou não sê-lo.

     Essa presunção própria de mentes estreitas a colocava doente.

     —Me responda.

     Com voz gelada, Jane disse:

     —Carinho, da última vez que nos vimos, fui tão celibatária como você.

     Hugh a soltou, mas manteve a mão levantada enquanto se afastava, como se não pudesse acreditar que a houvesse a tocado.

     —Por que teria que se importar que me tivesse deitado com uma dúzia de homens? —perguntou ela, confusa.

     Ele passou os dedos pelo cabelo.

     —Porque as mulheres como você não conseguem a anulação com facilidade. Não sobre a base da falta de consumação.

     “As mulheres como eu.”

     Hugh deu um murro na parede que sobressaltou Jane, e depois deu a volta para ela. Parecia uma besta apanhada em uma jaula e que sabe que seu final está perto. Tanta aversão sentia para o fato de que fosse sua esposa?

     —Como demônios planejava pôr fim a nosso casamento? —exigiu saber Hugh— Como?

     —Estou certa que meu pai pensará em algo.

     —Isto não vai deter-me, Jane. Maldição. Eu não aceitei seguir adiante com o casamento. Se a anulação não sai como tínhamos planejado, deixarei-te de qualquer modo.

     Jane sentiu que seu coração parava. As lembranças da solidão e o desamparo que tinha sentido anos atrás voltaram a alagá-la.

     Ele já a tinha abandonado antes sem avisá-la. Voltaria a fazê-lo, mas desta vez depois de lhe dizer abertamente que nada conseguiria atá-lo a ela; nem sequer que estivesse nua em uma cama que ainda retinha o calor de seu corpo.

     Jane já não voltaria a mostrar-se com ele tal qual era. Não podia. “Instinto de sobrevivência, Jane.” Hugh MacCarrick era o único homem que podia fazê-la chorar. Com um falso sorriso desenhado nos lábios, respondeu sincera:

     —É claro que me deixará, carinho. Nunca esperei outra coisa de você.

     Hugh voltou a olhá-la decepcionado e saiu do quarto.

          

     Depois da noite anterior, a manhã estava sendo bastante difícil. Mas descobrir que Jane se deitou com um homem, estava-o levando ao limite.

     Hugh já suspeitava que ela e Bidworth tinham sido amantes, entretanto, sabê-lo com certeza...

     A idéia de que Bidworth, ou qualquer outro, tivesse tomado a inocência de Jane fazia que lhe revolvesse o estômago. Hugh tinha vontade de gritar de fúria. Sentia-se assim apesar de que sabia que não tinha direito, nenhum direito a zangar-se porque ela tivesse recebido a outro, ou outros, em sua cama.

     Hugh havia dito essas coisas horríveis a Jane porque estava ciumento; e porque estava furioso consigo mesmo porque, durante um instante, ao abrir os olhos essa manhã, tinha estado a ponto de voltar a repetir a loucura da noite anterior. Inclusive nesses momentos, não podia deixar de desejar em ter feito amor de noite, ou essa mesma manhã, quando ela estava tão doce e relaxada.

     Desforrou-se com ela e tinha dado um sermão próprio de outro século que ela não merecia.

     Jane era única e independente, e não a podia julgar com os critérios habituais. Tinha vinte e sete anos, e um apetite sexual muito saudável. Inclusive ele podia entendê-lo, mas pensar que ela pudesse ter satisfeito suas necessidades com outros homens o deixava louco.

     Hugh estava obcecado por Jane. Queria que ela saciasse esse desejo com ele, queria-a toda para si. A idéia de Bidworth esforçando-se por satisfazer a paixão de Jane era ridícula. Depois do vivido a noite anterior, Hugh sabia que ele era o homem indicado para isso, apesar de que sabia que nunca se permitiria tê-la.

     Tinha-a deixado sozinha algumas horas para que pudesse passar o aborrecimento, mas agora tinham que falar de como diabos iriam obter a anulação. Hugh entrou no quarto, mas não encontrou nem rastro dela. Subiu ao balcão do piso de acima. Jane tinha passado horas sentada ali nessa manhã, depois de vestir-se. Fazia dois dias que não deixava de olhar a mansão Vineland.

     Ele e seus irmãos estavam acostumados a fazer o mesmo há todas as horas. A primeira vez que se instalaram em Ros Creag, foi porque o pediram seus familiares do clã. Estavam preocupados porque Ethan acabava de receber uma ferida muito grave no rosto e ali poderia curar-se melhor, e Court, por sua parte, deixaria de brigar com todos durante um tempo...

     Só estiveram sozinhos uma semana antes que os Weyland aparecessem em turba.

     Como a mansão Ros Creag estava mais elevada, os três irmãos se sentavam ali, no balcão, e observavam as idas e vindas em Vineland. Fora havia sempre uma grande fogueira ardendo, e as pessoas dançavam pelo pátio, enquanto as canções e as risadas flutuavam através da água.

     Hugh, Ethan e Court os olhavam embevecidos.

     Da morte de seu pai, a vida daqueles três meninos tinha sido muito amarga lá no norte da Escócia. Estranhas vezes falavam com sua mãe, Fiona, e ela não se recuperou da morte de seu amado esposo Leith.

     O dia em que este morreu, Fiona perdeu os nervos e gritou a seus filhos:

     —Vocês são culpados por que a leram! Quantas vezes lhes disse isso? A maldição sempre sai com a sua!

     Ao chegar à sala, Hugh sacudiu essas lembranças e se preparou para enfrentar Jane. Mas a sala também estava vazia. Jane não estava sentada junto à janela. Fantástico, tinha decidido voltar a evitá-lo.

     Ou teria decidido partir, depois de como ele a tinha insultado essa manhã?

     Hugh sentiu um calafrio. Gritou seu nome. Nada. Quando já se dispunha a procurá-la por toda a casa, um movimento no exterior captou sua atenção. Olhou através da janela e viu um montão de crianças diante de Vineland e a uma mulher correndo atrás deles. Também havia algumas carruagens com pessoas saindo deles. Os Weylands estavam ali? Franziu o cenho e se aproximou da janela para investigar.

     Nesse instante, vislumbrou o vestido verde de Jane no começo do terreno de Vineland.

     Desceu os degraus de três em três e, incrédulo, saiu ao alpendre. Como se tivesse detectado sua presença, Jane deu a volta e o saudou sarcástica, depois se voltou de novo e o ignorou. Hugh correu para o estábulo e jurou que a ataria a uma cadeira para que não pudesse voltar a fazer isso. Saltou em cima de seu cavalo sem sequer selá-lo, e cavalgou como alma que leva o diabo.

     Enquanto ele se aproximava, Jane pôs-se a correr para Vineland, mas Hugh desceu do cavalo e a apanhou pela cintura com um rápido movimento.

     Deu-lhe a volta para que ficasse de cara a ele e gritou:

     —Nunca, jamais volte a me fazer isto!

     —Ou o que? —perguntou ela furiosa.

     Hugh lhe apertou os ombros com força.

     —Ou te atarei à cama. —Desde quando “uma cadeira se transformou na cama”?

     —Nem em sonho, bruto.

     —Bruto? Este bruto está tentando te proteger, e você se comporta como se tudo isto fosse um jogo.

     —E como quer que me comporte se nega a me contar nada? Não tenho nenhum motivo real pelo que me preocupar! Tanto você como meu pai disse que Grei não está na Inglaterra, assim como pode nos seguir até aqui?

     —E por que arriscar-se? —perguntou Hugh a sua vez, afrouxando um pouco as mãos— O que fazem aqui os Weyland nesta época do ano?

     —Gostam de estar tranqüilos.

     —Sabia que eles viriam?

     Jane assentiu.

     —Hugh, tenho que ir vê-los. Para mim é importante.

     —E por que, simplesmente, não me perguntou se podia te acompanhar?

     Jane revirou os olhos.

     —Sabia que não me deixaria ir. Mas agora estou pedindo isso. Vêem comigo.

     Ir com ela? Ao outro lado? Nem pensar.

     —Com toda essa gente não poderei te vigiar. —Hugh estava tão pouco acostumado a estar rodeado de gente que acompanhado era incapaz de relaxar-se. E muito menos com os Weyland— E como justificará que estejamos juntos?

     —Direi a verdade. —Levantou o queixo— Que estamos casados. É tudo o que precisam saber por agora. No futuro já lhes contarei a verdade.

     —São muitos — insistiu ele. Não queria que Jane soubesse que era um completo inútil incapaz de comportar-se em atos sociais.

     —É minha família. Não dirão nenhuma palavra. Não existe uma família mais leal.

     —Jane, tem que entender que sua vida está em perigo.

     —Me olhe nos olhos e me diga que passar o dia em Vineland será mais perigoso que ficar em Ros Creag. Hugh abriu a boca para falar, e voltou a fechá-la imediatamente. Se Grei tinha conseguido chegar à Inglaterra, teria Ethan respirando em sua nuca no momento em que pusesse um pé na ilha. E se de algum modo conseguia esquivar de Ethan e lhe ocorria ir a Ros Creag, precisava pegar o ferry para cruzar o lago. De Vineland podia vigiar a água sem nenhum problema.

     Tecnicamente, pensou Hugh, a situação era bastante segura. Mas o último evento social ao que tinha assistido como convidado e não se escondendo entre as sombras, tinha sido o jantar anterior, às finalmente trágico casamento de Ethan. E depois, Hugh não havia tornado a ver nenhum dos convidados.

     Seu segundo intento ia ser passar um dia em Vineland? Lançar-se às brasas? Maldição, ele sempre os tinha evitado, e agora Jane esperava que, por vontade própria, misturasse-se com os amalucados e despreocupados Weyland. Antes passearia entre um fogo cruzado.

     E que Deus o ajudasse se Jane contasse a alguma de suas primas o que tinha acontecido à noite anterior. Tremeu só de pensar. Isso sim seria um inferno.

     —Isso não tem importância. Já te disse que voltamos para casa. Assim isso é exatamente o que vamos fazer.

     Jane mordeu o lábio inferior e o olhou com seus enormes olhos verdes. Quando Hugh deu conta de que ela ia voltar a perguntar-lhe e que ele já não conseguiria negar-lhe interrompeu-a e soltou cortante:

     —Nem em sonho.

     Depois começou a arrastá-la para o cavalo.

     Hugh amaldiçoava em gaélico e Jane batia na mão com que a segurava sem deixar de lhe dar alguns chutes na canela, quando de repente uma voz gritou:

     —Jane?

     Ambos deram a volta e ficaram petrificados.

 

“OH, maldição!” Isso foi o que Hugh pensou ao dar-se conta de que da casa ia saindo toda a família de Jane e aproximando-se deles. Belinda estava ali com seu marido e seus filhos, e Sam e sua família também tinham ido.

     Jane não pôde evitar rir.

     —Muito tarde. Temo-me que está flagrado.

     —Sim, e mais vale que o desfrute — balbuciou Hugh entre dentes— Porque depois disto te encerrarei no porão.

     —Jane! —gritou Samantha de novo enquanto seus cachos não paravam de mover-se— O que está fazendo aqui?

     —Tia Jane! —gritaram cinco crianças que começaram a saltar junto a ela tão excitados que, entre risadas, atiraram-na ao chão.

     Belinda juntou as mãos, emocionada.

     —Mas disse que esta semana não podia vir!

     Nesse instante, deram-se conta de que Hugh estava atrás dela e, atônitos, todos se calaram de repente. As crianças olhavam fascinados aquele homem enorme. Para romper o gelo, Jane levantou a mão e, tal como esperava, Hugh se apressou a ajudá-la a levantar-se.

     —O que está fazendo ele aqui? —perguntou Sam, que nunca tinha tido papas na língua.

     Hugh olhou Jane como dizendo “vê?”.

     —Bom, ele... casamo-nos.

     O jovial marido de Sam, um médico chamado Robert Granger, murmurou ao ouvido de sua esposa:

     —Faz apenas quatro dias que disse que ia se casar com Bidworth.

     —E por que ia fazer Jane semelhante coisa? —respondeu Sam a meia voz.

     —Bom, é óbvio que não o tenho feito — interveio Jane seca— Assim me felicitem e dêem a bem-vinda a meu novo marido.

     Hugh já conhecia, embora muito pouco, a suas primas, assim Jane apresentou Robert e deram um apertão de mãos. Se o olhar de Hugh não tivesse sido tão ameaçador, com certeza que Robert teria dado um carinhoso abraço de bem-vinda.

     Depois, Jane apresentou Lawrence Thompson, o marido da Belinda, um homem muito brincalhão e com um agudo senso de humor, que comprovou que Hugh não tinha lhe quebrado nenhum osso da mão depois do forte apertão.

     Estar ali com todos animou Jane e a fez dar-se conta do muito que tinham doído as palavras do Hugh: “Deixarei-te de qualquer modo”.

     Hugh os olhava com tanto receio, e era tão evidente que estava fora de seu elemento, que Jane não pôde resistir à tentação. Estava convencida de que até deviam brilhar os olhos pela maldade que estava a ponto de levar a cabo.

     —Tenho que me pôr em dia com minhas primas e quero exibir o meu anel — disse— Em particular.

     Hugh sacudiu a cabeça com dissimulação.

     —Hugh, por que não vai familiarizar-se com os outros maridos? A esta hora da manhã gostam de desfrutar de um copo de uísque, sentados na grama. Falam da bolsa e coisas pelo estilo.

     Para Jane tampouco tinha passado por cima o modo em que Hugh tinha olhado para as crianças.

     —Ah, e, crianças, o seu novo tio Hugh adora comprar presentes e guloseimas. Vão dizer o que querem!

 

     —Soltem-lhe! —exclamou Robert tirando de cima o último pirralho— Vamos, jogar!

     Hugh esteve tentado em deitar-se na grama do alívio que sentiu ao ver como, o último menino de muitos, soltava-lhe a perna e saia dali. Jane disse a sério, tinha-lhe deixado ali só com aqueles homens. Ela e suas primas tinham pego algumas garrafas de vinho e foram passear para o embarcadouro sem olhar para trás.

     —Não sei no que estava pensando Jane ao te jogar assim aos leões! —Robert sorriu— Mas, por fim estamos sozinhos. —E os conduziu para algumas cadeiras do jardim e, quando estiveram sentados, serviu uma rodada de bebidas, apesar de que ainda não eram nem as dez.

     —Bom, bom, o que faz, MacCarrick?

     Hugh ficou ali sentado a seu pesar, e aceitou o copo sem saber como sair do apuro.

     —Estou... retirado.

     Ele nunca antes se viu obrigado a manter uma conversa social. Nunca falava a não ser que tivesse algo que dizer. Em mais de um sentido, seu caráter se ajustava a sua profissão.

     —Assim eu gosto, moço! —Robert levantou o copo e a esvaziou de um gole— Retirar-se, casar-se com uma mulher formosa e a viver.

     Lawrence bebeu um pouco mais devagar, mas não muito.

     —Jane e você têm intenção de formar logo uma família?

     Hugh encolheu os ombros. Nunca tinha sido tão consciente de que não podia lhe dar filhos como essa manhã, quando tinha visto o quanto contente estava com todas aquelas crianças ao seu redor.

     Robert se apoiou no respaldo da cadeira e descansou seu segundo copo no joelho.

     —Nós, Sam e eu, esperamos quase três anos antes de formamos uma.

     “Esperar?” Era muito estranho ter este tipo de conversa com cavalheiros de classe tão elevada como eles. “Esperar” implicava usar medidas contraceptivas.

     Mais tarde, Robert e Lawrence começaram a recordar com carinho como se comportavam suas esposas quando estavam grávidas e como mudavam o físico (“muito sensuais” e “com mais curva”). Depois falaram de como os filhos mudavam um homem (“eu não sabia quem era antes de tê-los”) e de outras coisas que Hugh tentou não escutar com todas suas forças.

     Não deixava de olhar a Jane e a suas primas, completamente imersas em uma conversa. Hugh sabia que Jane estava contando sobre a noite passada. Cada vez que ela se agachava para sussurrar algo às outras duas mulheres, Hugh morria de vergonha, e sentia como se ruborizava da cabeça aos pés.

     Depois de uma larguíssima hora de conversa que Hugh escutou, Lawrence sugeriu que fossem praticar um pouco de tiro ao alvo. Hugh passou a mão pela nuca e soube que tinha que falhar. Embora tivesse muita vontade de impressionar Jane, se disparava como ele sabia fazê-lo, aqueles homens desconfiariam; seria realmente muito pouco inteligente por sua parte.

     Olhou Jane e viu que ela fazia viseira com uma mão sobre os olhos para poder ver o que ele estava fazendo. Lembraria-se Jane do bem que lhe dava disparar? Ela estava acostumada acompanhá-lo a caçar muito freqüentemente; juntos tinham percorrido todos os bosques do local.

     Hugh recordou uma das primeiras vezes que o acompanhou. Ao chegar a sua casa, Jane contou ao Weyland o quanto Hugh disparava bem:

     —Papai, é incrível, tem a calma e a serenidade de uma rocha! Acertou um pato a mais de setenta metros, e com este vento.

     Weyland o olhou com muito interesse.

     —Fez isso?

     Nesse momento, Hugh não compreendeu esse olhar. Era impossível que soubesse que Weyland o estava calibrando para essa profissão tão letal; uma que obteria que o segundo filho de uma família se fizesse rico, e que lhe aplainaria o caminho para a morte.

 

     –Bom, que tal é seu escocês na cama? É tão bom como sonhava? —perguntou Sam.

     Jane revirou os olhos. Era de esperar que a conversa tomasse esse rumo, e Sam ia insistir até saber toda a verdade. Assim Jane o contou tudo, bom, quase tudo.

     Contou-lhes o ciúme que sentiu pela Lysette, e o alívio que sentiu ao saber que Hugh tinha sido fiel. Reconheceu que a noite anterior estiveram juntos, mas que não tinham consumado o matrimônio, e falou de sua última conversa, ou melhor dizendo, briga. Confessou-lhes que suspeitava que Hugh fosse um mercenário.

     —Não sei no que estava pensando o tio Edward ao te obrigar a se casar com o MacCarrick — disse Sam.

     —A sério Hugh é um mercenário? —Belinda olhou para ele— A verdade é que combina.

     —Mas casamento de conveniência ou não, como não se dá conta de que em realidade é um casamento muito “inconveniente”? — perguntou Sam.

     Jane tirou as meias e as deixou dentro dos sapatos para poder colocar os pés na água.

     —Hugh não quer ficar preso nele, e está disposto a fazer algo como anulá-lo. Deixou-o muito claro. Acredito que suas palavras exatas foram: “Irei de qualquer modo”.

     Belinda estava tentando desarrolhar a segunda garrafa de vinho, mas não conseguia de obtê-lo. Passou para Sam e disse:

     —Jane, posso entender que você não queira se arriscar, mas não compreendo por que ele se opõe tanto. Tem uma amante?

     —Não, disse-me que agora não.

     Sam acabou arrancando a cortiça com os dentes, e o cuspiu no lago. Voltar a pôr a cortiça a uma garrafa em Vinelands era um pecado.

     —Ganha dinheiro sendo mercenário?

     —Meu pai disse que tinha ganhado muito, mas esqueceu em me dizer a o que fazia realmente.

     —Está segura de que é um mercenário? —perguntou Sam.

     Jane assentiu.

     —Seu irmão o é. E Hugh acaba de retornar do continente, onde esteve lutando com ele. Assim é como se fez esses cortes no rosto.

     Sam passou a garrafa para Belinda.

     —Que irmão?

     —Court. Courtland. Que sempre estava zangado.

     Depois de que ambas o recordassem, Belinda comentou:

     —Ao menos esse não era tão mau como o maior.

     —Que tem aquela cicatriz na cara! Estava acostumado a me dar pesadelos — admitiu Sam.

     —A mim também! —secundou-a Belinda— Uma manhã, saí para pegar amoras com a Claudia e nos tropeçamos com ele no caminho. Ficamos geladas, e ele nos olhou como se soubesse o que íamos fazer. Soltamos as cestas e pomos-se a correr enquanto ele não deixava de nos gritar.

     Por alguma razão, Jane sentiu um pouco de pena pelo Ethan. Nessa época, não devia ter vinte anos.

     —Mais tarde nos sentimos fatal. Ahh, tolice! —Como se acabasse de dar-se conta, Belinda murmurou — Nunca retornamos pelas nossas cestas.

     —E então, por que diabos hesita MacCarrick? — Sam franziu o cenho— Tem dinheiro suficiente para te manter, não tem nenhuma amante, e está completamente louco por você.

     Jane olhou para Sam zangada e depois deu a volta para que Hugh não pudesse ver como bebia da garrafa. Depois dessa manhã, Jane imaginou que Hugh não gostaria de nada ver sua mulher escandalosa, embora só fosse por um tempo, bebendo desse modo.

     —Está tão louco por mim que cada dia diz algumas vezes como acabará nosso casamento.

     Sam descartou o comentário com um movimento da mão.

     —Eu só digo o que vejo. É como um quebra-cabeças, e eu adoro os quebra-cabeças.

     —Talvez tenha a uma preciosa e sensual escocesa esperando-o no clã — aponto Belinda, que agora bebeu da garrafa de um modo mais delicado— Uma com muito seio e largos quadris, e que saiba cozinhar.

     Jane franziu o cenho. A idéia de viajar a seu clã já não parecia tão atraente. Jane seria uma estrangeira, e como não falava seu idioma não entenderia nada do que dissessem Hugh e seus homens, nem tampouco o que dissessem as garotas que houvesse ali lhe esperando.

     —Ao menos Jane conseguiu apaziguar um pouco sua luxúria.

     Jane não se incomodou em negá-lo. Antes, suas necessidades há angustiavam um pouco, mas agora, com o Hugh, e depois do da noite anterior, pareciam cheias.

     —Juro-te... —calou-se ao ver que as duas filhas de Sam passavam perto do embarcadouro perseguidas por sua babá— Te juro que às vezes acredito que penso tanto em fazer amor como um homem de vinte e sete anos. Há pessoas que se obceca com estes assuntos. Talvez eu seja uma dessas.

     Sam revirou os olhos.

     —E isto o diz uma virgem de vinte e sete anos.

     —Samantha, não a julgue — brigou Belinda— Jane não pediu para ser virgem. —Estalou os dedos para pedir que passasse a garrafa— E o que acontece se não consumam o casamento? O que acontecerá com você quando tudo isto acabar?

     Jane colocou as mãos a suas costas e se apoiou nelas. Respirou fundo. O ar estava impregnado do aroma das rosas e ainda não cheiravam os primeiros frios outonais.

     —Nosso casamento se dissolverá, e Hugh voltará a ser o mercenário, traficante ou do que seja que faça em segredo.

     —Jane, só uma pergunta a mais — disse Sam— Você quer continuar casada com ele?

     Jane se deu conta de que Sam e Belinda ainda não tinham mencionado a fixação que ela teve pelo Hugh no passado, e que só tinham falado dele. Acreditava que tinham medo de que ela voltasse a ficar mal. Enquanto pensava em como responder, viu que Hugh voltava a falhar outro disparo de propósito. Embora Lawrence tivesse lhe dado um tapinha nas costas seguida de uma cotovelada, Hugh teria acertado. Ele poderia ter deixado aqueles dois homens em ridículo, mas não o fez. Jane se deu conta de que Hugh observava como Robert segurava mal o rifle, e sabia que morria de vontade de corrigi-lo, mas não disse nada. Estava se esforçando por sair bem com sua estranha família.

     Jane suspirou. Depois da noite passada, era consciente de que poderia passar o resto das noites de sua vida com esse homem. Inclusive depois da briga dessa manhã, sabia que ele seria um bom marido.

     E desde muito pequena tinha chegado à conclusão de que sua personalidade e seu temperamento eram muito atrativos. Então decidiu que o teria, e quando Hugh se foi, não encontrou a nenhum que se pudesse comparar.

     Jane forçou um sorriso.

     —Isso não importa, não te parece? Ele não poderia havê-lo deixado mais claro. Logo que tudo isto acabe, deixará-me e não retornará mais. Teriam que ter visto a cara que pôs quando lhe disse que não era virgem.

     —Para ser justas com o Hugh — começou Belinda—, desde o começo ele aceitou o trato com a condição de obter a anulação. Se não a conseguiram, as coisas poderiam complicar-se. Talvez tenha medo de que tenham que se divorciar. A prima Charlotte, com as horas que se passa bisbilhotando no tribunal, pode lhe dizer o quanto complicado é isso.

     Sam negava com a cabeça.

     —Não, o que acontece é que está com ciúmes. É sua reação ao imaginar você com outro homem, ou com vários.

     Belinda levou três dedos aos lábios para conter o soluço e voltou a reclamar a garrafa. Estalou os dedos de novo, mas desta vez em direção a Jane.

     —Jane, acredito que nisto tenho que dar a razão a Sam. Hugh te olha como se estivesse faminto e você fosse um festim.

     —Mas se só nos viram juntos cinco minutos!

     —Mas ele não deixa de olhar para cá —assinalou Sam— Preste atenção. Conta até cinco. Cinco, quatro, três...

     Jane pegou um dos cachos de Sam, mas a verdade foi que, dois segundos mais tarde, Hugh voltou para olhá-la.

     —Talvez seja um pouco possessivo — admitiu ela— Mas tem que ser. Está-me protegendo.

     —Vamos, alguma vez viu um feroz escocês completamente apaixonado? Não? —Sam assinalou com o polegar ao Hugh, que continuava olhando a Jane com aquela fera expressão— Pois olha-o!

     —Completamente apaixonado. Isso é ridículo. —Mas o coração de Jane começou a pulsar descontrolado.

     —Jane, onde está sua famosa auto-estima? —perguntou Belinda preocupada.

     —Derrotada. Correndo espavorida montanha abaixo. Coisa que está acostumado a acontecer se seu marido acredita que seu casamento é como uma armadilha para ursos. E que esteja disposto a arrancar uma perna com tal de escapar, tampouco ajuda muito.

     —Talvez Hugh acha que não é o bastante rico ou o bastante bom para você —sugeriu Belinda— Ao fim, ia se casar com um conde muito endinheirado e extremamente bonito.

     —Tem razão —conveio Sam— Para mim, isto tem toda a pinta de auto-sacrifício.

     —Então acha que está aqui, disposto a sacrificar sua vida por mim, porque está apaixonado e não pode suportar a idéia de que me façam mal?

     Belinda assentiu.

     —Exatamente.

     Pensou-o. Por que estava Hugh fazendo tudo aquilo? Sim, ela sabia que lhe devia um grande favor a seu pai por ter ajudado em sua profissão, mas o que estava disposto a fazer era desproporcionado.

     —E tem alguma idéia do por que me deixou faz dez anos e do por que está tão contra continuar casado comigo?

     —Nenhuma, mas se eu estivesse em seu lugar, apressaria-me em descobrí-lo —respondeu Sam— E a planejar uma estratégia.

     —Uma estratégia para o MacCarrick — refletiu Jane em voz alta, dando alguns golpinhos no queixo— Por que tenho a sensação de que a história se repete?

     Sam encolheu os ombros.

     —Está bem, reconheço que nosso último plano não teve muito êxito...

     —Muito êxito? —perguntou Jane rindo— Queríamos que se casasse comigo e a única coisa que conseguimos foi que desaparecesse durante uma década.

     —Bom, assim, o que vai fazer? —perguntou Belinda.

     Jane baixou os olhos e disse:

     —Esperar que me ocorra algo e logo atuar impulsivamente e sem pensar?

     Sam esfregou o queixo pensativa.

     —Talvez funcione.

 

     Ao anoitecer, Hugh apanhou Jane quando esta tentava escapulir pela porta de trás da casa.

     — Não pode me evitar todo o dia.

     Levou-a para a parede e ela permitiu.

     —Estive perto todo o momento — disse Jane, e surpreendeu ver que ele apoiava uma mão junto a sua cabeça e aproximava— Além disso, pareceu-me que estava se dando muito bem com o Robert e Lawrence.

     Hugh entrecerrou os olhos.

     —OH, sim. Hoje disparei, pesquei e fumei, e, como tinha que estar olhando você todo o momento, esses dois zombou de mim sem descanso me dizendo que me tem “completamente dominado”. —Parecia tão zangado que Jane teve vontade de sorrir. Contou a suas primas o de ontem à noite?

     —Claro que sim.

     —Disse-lhes que eu... que eu... —Suspirou fundo e apoiou sua testa contra a dela— Jane, me diga que não fez.

     —Ficou todo o dia preocupado por isso?

     Hugh afastou a cabeça.

     —Deus, sim.

     Jane fingiu estudar as unhas.

     —Me alegro, depois do horrível que foi esta manhã comigo merece sofrer um pouco.

     —Certamente, mas não quero que fale de nossas coisas íntimas com suas primas. Se uma souber, no dia seguinte sabem as sete.

     —Eu contei para Sam e a Belinda, mas não dei nenhum detalhe. Só disse que... deitamos juntos e que, bom, que não fizemos amor.

     —Isso continua sendo muito — comentou ele, mas relaxou um pouco e voltou a descansar sua testa na da Jane— Acreditava que depois desta manhã não quereria falar comigo.

     —Tentarei esquecer todas essas barbaridades que disse.

     —Agradeço-lhe isso...

     —Se fizer um trato comigo. Nas próximas duas semanas, cada vez que se preocupar desse modo, tem que me dar cem libras.

     —Cem libras? E por que quer fazer esse trato?

     —Hoje me dei conta de que se estamos obrigados a passar tempo juntos não implica necessariamente que tenhamos que ser desgraçados. Eu quero ser feliz... com você... e é impossível obtê-lo se não deixar de se obcecar com o que seja que se preocupa tanto.

     —Eu não posso evitar ser...

     —Aceita o trato, Hugh, ou não me esquecerei desta manhã, e repetirei a minhas primas, palavra por palavra, o que disse enquanto estava deitado em cima de mim.

     Hugh afastou o olhar e apertou a mandíbula com tanta força que Jane pensou que poderia mastigar uma parte de metal.

     —Aceito o trato — balbuciou entre dentes.

     —Perfeito. Mas lhe advirto, logo me deverá muito dinheiro.

     —Acredito que poderei confrontá-lo.

     —O que? Me pagar essa fortuna ou não preocupar-se tanto?

     Então, apareceu Emily, a filha de Sam, e Hugh se livrou de ter que responder.

     —Vamos, tia Jane — disse a menina pegando Jane pela mão para levá-la para o prado.

     Jane, a sua vez agarrou a mão de Hugh, e, enquanto a pequena os arrastava, comentou-lhe:

     —Emily é igual a eu com essa idade. De pequena, corria todo o dia sem parar até que caía rendida em alguma parte.

     —De pequena? — Hugh levantou as sobrancelhas— Quando tinha treze anos ainda era assim.

     Jane riu e isso o surpreendeu. Chegaram ao prado e pararam junto a uma manta. Jane se sentou e pegou a mão de Hugh até que este se sentou a seu lado. Emily se acomodou no colo de Jane.

     —Tia Jane — sussurrou Emily em voz alta—, ele é o rude escocês com o que se casou?

     Jane viu como Hugh ficava sério de repente.

     —É.

     Emily o olhou intrigada.

     —Então, tenho que chamá-lo de tio?

     —Humm, sim, carinho, ele é seu tio Hugh.

     —De verdade vai comprar-nos presentes?

     —Isso tem que perguntar a ele — sussurrou Jane ao ouvido, mas em voz o bastante alta para que Hugh a ouvisse.

     Emily inclinou a cabeça.

     —Vais comprar-me as bonecas que te pedi?

     Antes de responder, Hugh olhou para Jane um instante.

     —Sim.

     —Não se esquecerá?

     Hugh sacudiu a cabeça e Emily lhe sorriu. Foi desse modo que no passado tinha feito que Jane lhe comprasse um pônei branco com manchas marrons que chamou Sardas. Hugh se limitou a assentir como se estivesse se despedindo de um conhecido no clube.

     Emily foi brincar, mas antes disse:

     —Adeus... tio Hugh.

     Jane franziu o cenho.

     —Comporta-se como se nunca tivesse visto crianças.

     —Fazia anos que não via nenhuma. —Dito isto se esticou— O que deveria ter feito? —Hugh esperou sua resposta com interesse.

     “Hugh tenta...”

     —Bom, poderia haver dito, ”Sim, carinho, mas tem que prometer que se comportará bem toda a semana”, ou algo do tipo.

     Para Jane pareceu que Hugh memorizava a frase.

     —Não sabia que você gostasse tanto de crianças.

     —Eu adoro — respondeu ela desviando a vista para onde estavam jogando, e de passagem, manchando a roupa de grama— Adoro crianças. De noite, seu cabelo cheira como o amanhecer, e se emocionam tanto, e riem por tudo... —Ao ver a cara do Hugh parou—. Hei disse algo errado?

     —Por que não tem nenhum? —perguntou sem rodeios.

     Ela se freou um pouco.

     —Porque para ter um, precisaria de uma coisa chamada “marido”.

     —Pois então deveria baixar um pouco a fita de seda e renunciar a algum dos requisitos que quer que reúna seu “marido”.

     —Nem que fosse muito tarde, só tenho vinte e sete anos! Minha mãe me teve com vinte e nove. Ainda não tenho que me casar. Bom, ou não tinha, OH... pareço uma confusão. Asseguro-lhe, tudo isto seria muito mais fácil se estivesse casada de tudo ou solteira de tudo.

     —E agora está meio casada com um rude escocês? —perguntou Hugh chateado.

     Isso tinha doído.

     —Não o dizem a sério.

     Hugh afastou o olhar e arrancou uma fibra de grama.

     —Se... envergonha que eles acreditam que sou seu marido?

     —OH, Deus santo, não! —respondeu ela, e depois desejou ter sido um pouco mais comedida, e um pouco menos convincente, apesar de que ele pareceu relaxar um pouco para ouvir essa resposta.

     Para Jane não importava o que dissessem suas primas. O rude aspecto de Hugh sempre tinha parecido atraente. Ele sempre vestia bem, simples mas elegante, e tinha boas maneiras, apesar de que não falava muito, e de que seu apertão de mãos fora “um pouco doloroso”, tal como lhe tinha confessado Robert para Sam, quem logo disse a Jane.

     —Além disso, “rude escocês” é muito melhor do que o apelido que tem Robert. —Hugh arqueou as sobrancelhas, e ela prosseguiu— A Robert o chamamos “o engraçado”. Tem que saber que ele te considera já um amigo. Ele me disse que lhe causou muito boa impressão, embora você apenas diga um par de frases. Ele está acostumado a acertar nestas coisas.

     —Boa impressão...? Então, por que...? —Hugh se calou ao ver o Lawrence acendendo uma fogueira— Vão fazer fogo? —Estudou os arredores— Aqui?

     Jane assentiu.

     —Jantamos fora sempre que faz um bom tempo.

     —Já sei. —Viu como Belinda e Sam começavam a preparar a comida e o vinho.

     —Podemos ficar ?

     Hugh a olhou como se lhe tivesse pedido que bebesse água do Támesis.

     Aquelas pessoas tinham intenção de comer ali fora. Todos. Juntos. OH, não, não.

     —Não, não podemos ficar. —Hugh se levantou e ela com ele. Isso sim que não iria fazer.

     A ele e seus irmãos os havia convidado um montão de vezes a esses jantares junto ao fogo, mas eles nunca tinham aceito, porque eram incapazes de entender o comportamento dessa família. Os homens bebiam e fumavam diante de suas mulheres, suas risadas viajavam de noite, os meninos ficavam dormindo nos braços de seus pais e não despertavam para ouvir as risadas.

     Quantas noites aconteceram e os três irmãos observando-os desde seu terraço, atônitos pelo que viam?

     E agora ele tinha que ir ao outro lado e sentar-se ali junto ao fogo?

     O rosto de Hugh deve ter refletido toda essa preocupação, porque Jane se aproximou dele e sorriu com aqueles lábios avermelhados pelo vinho. Uns lábios que Hugh morria de vontade por beijar desde que a tinha encostado contra a parede da casa alguns minutos antes.

     —Eu gostaria de muito jantar aqui esta noite —disse ela.

     Ele sacudiu a cabeça, muito sério.

     —Por favor — rogou Jane em voz baixa, e Hugh se perguntou o que era pior: que ela pudesse fazer com ele o que quisesse, ou que ambos soubessem que era assim.

     Jane o pegou pela mão, e obteve que os dois voltassem a sentar-se na manta.

     —Ficaremos aqui.

     Hugh sabia que o estava manipulando, mas enquanto se sentavam, o corpo de Jane se apertou contra seu braço. Tinha que resistir esse fogo, manter a concentração.

     Essa discussão ia ganhar dele.

     Jane se aproximou ainda mais e Hugh sentiu seus suaves seios roçando o braço. Depois levantou a mão e a deixou descansar na nuca dele, para depois começar a riscar preguiçosos círculos com as unhas.

     —Não está tão mal, não é?

     Não se ela estava com ele, mas todos outros, incluíndo as crianças com suas babás, estavam se aproximando. Havia um montão de mantas ao redor do fogo e foram sentar nelas enquanto comiam em delicados pratos de porcelana.

     Apesar de Jane ter lhe preparado um apetitoso sortido, Hugh não tinha apetite.

     Quando os meninos estavam esgotados, e a preciosa Emily ficou dormindo feita um novelo aos pés de Jane, as babás os levaram. A seguir mais garrafas de vinho, e os assuntos da conversa se tornaram mais atrevidos e a linguagem mais franca, inclusive com as damas ali presentes; em realidade eram elas quem mais o utilizava.

     Hugh levantou a vista quando ouviu Robert dizer:

     —Ao menos Hugh sabe como é Jane na realidade. Imagine que se casou com um homem que não a conhecesse há tantos anos.

     —Bom, com certeza sabe que Jane é a mais temerária das Oito — disse Sam.

     —Não sou! —exclamou Jane.

     —Sabe Hugh daquele príncipe russo? —perguntou Samantha, ao que Jane sorriu contente.

     “Hugh não está seguro de querer saber sobre esse príncipe russo...”

     Mas Samantha já tinha começado a relatar a história:

     —Na primavera passada, em um baile, esse horrível, velho e pervertido príncipe, colocou a mão no decote de Charlotte. A pequena Charlotte passou muito mal! Assim passamos ao ataque, e começamos a fazer circular o rumor de que seu apêndice masculino não era mais que outro dedo. —Samantha estava gostando tanto, que seus olhos brilhavam— Mas Jane, igual a uma tigresa que persegue a sua presa, manteve-se à espera até encontrar o melhor momento para atacar. Eu vi tudo. Quando o príncipe passou junto a ela, Jane lhe sorriu sedutora e ele ficou tão embevecido olhando-a, que não percebeu que ela lhe dava uma rasteira. Acabou colocando a cabeça na tigela de ponche.

     Hugh sentiu como levantavam as comissuras dos lábios.

     Belinda acrescentou:

     —Jane caminhou depois para nós sacudindo as mãos e disse —tentou imitar a voz da Jane— “Queridas, todos os homens se inclinam ante as Oito Weyland. Ou se inclinam ou se rendem, não há outra alternativa”.

     Hugh levantou uma sobrancelha para a Jane e as palavras escaparam de sua boca:

     —Então se inclinam, não é?

     —Acaso não estava escutando? —perguntou ela coquete— Ou se inclinam ou se rendem. E os sujeitos durões como você se rendem primeiro.

     Eu que o diga.

     Todos riram. A partir desse momento, a conversa se transformou em um concurso de rimas picantes. Quando Hugh se deu conta de que começava a rir, ficou em guarda e obrigou-se a manter a distância. Assim era como ele se comportava: sempre se mantinha de fora, olhando os outros sem formar parte deles. Sempre. Não era difícil, ele era tão diferente daquelas pessoas como o dia da noite.

     Eles se sentiam tão cômodos em sua pele, tão seguros de seus pares, que não duvidavam em mostrarem-se afetuosos uns com os outros; faziam-no de um modo inconsciente. Samantha ria ao mesmo tempo em que beijava o pescoço de Robert. Belinda e Lawrence pegaram a mão só para ir juntos recolher o xale dela.

     Como seria pertencer a esse lugar? Como seria se Jane fosse de verdade dele? Como seria viver sem a constante sombra do Leabhar plainando sobre sua cabeça? Como os invejava.

     Uma família tão afortunada e outra tão maldita.

     Quando Hugh suspirou, Jane acariciou a nuca com as unhas, como se soubesse que o necessitava.

     Ele ficou olhando o fogo. Apenas algumas semanas atrás, a mulher que amava seu irmão, a única a que jamais tinha amado, quase tinha perdido a vida. Por culpa das temerárias ações de Court, Renegados perseguiam o casal. Dois deles tinham seguido o irmão da Annalía até a mansão MacCarrick, em Londres, e tinham pegado a jovem. Quando Court correu atrás dela, um deles apertou o cano da sua pistola contra a testa da Annalía com tanta força que deixou um arroxeado. Court não podia fazer nada para ajudá-la, só rezar para que Hugh fosse em seu auxílio já que, como de costume, ele tinha se mantido na periferia e pode ocultar-se a tempo.

     Hugh tinha conseguido chegar ao seu quarto, pegar seu rifle e posicionar-se na janela do segundo andar. Nunca um disparo tinha significado tanto; ele sabia que seu irmão ficaria destroçado se aquela garota morresse.

     Hugh conseguiu eliminar o objetivo sem que este tivesse tempo de disparar, mas Annalía ficou presa sob seu corpo sem vida e teve que escorrer-se debaixo do cadáver, que ainda a segurava com força. Antes que Court pudesse ajudá-la, ela ficou coberta de sangue e começou a chorar sem fazer ruído.

     Quando Hugh viu Court correndo para a Annalía, envergonhou-se de si mesmo ao surpreender-se que se alegrava de não ter posto nunca Jane em perigo. De fato, suas palavras exatas foram:

     —Preferiria morrer antes que expor Jane a algo assim.

     Mas agora o estava fazendo...

     Jane lhe deu um beijo na orelha e murmurou:

     —Já me deve cem libras. Quer que sejam mais?

 

           Justo antes que o botequim silenciasse, Grei sentiu como arrepiava o pêlo de sua nuca.

     Sacudiu a cabeça e, com os lábios pegos ao seu copo, sorriu.

     Aquele bastardo incansável acabava de entrar no mesmo botequim em que Grei tinha passado o dia descansando. O único botequim que havia junto ao lago e da qual saía o ferry que ele ia tomar ao anoitecer.

     Grei conseguiu ocultar-se entre as sombras e aproximar-se da porta lateral sem ser visto, mas antes se deteve um instante para jogar uma olhada mais de perto ao homem que o perseguia.

     “Ethan MacCarrick.” O único bandido ao que temiam os bandidos.

     Essa idéia fez que Grei tivesse vontade de rir.

     Ethan estava concentrado, estudando o lugar com olhar atento em busca de possíveis ameaça. Tinha o cenho franzido e a cicatriz da cara estava completamente branca. Grei morria de vontade por saber como a tinha feito, mas por muito que perguntasse, Hugh negava a falar do assunto. Mas o que Grei sim sabia era que devia a um profissional; a cicatriz do Ethan empalidecia com cada uma de suas expressões, e a tinham feito sendo muito jovem.

     Ethan se apoiou na parede e continuou estudando a multidão. Acreditava que estava procurando os que parecessem clientes habituais. Grei sabia que esses eram os vigilantes, pessoas a que se pagava para obter informação. Nisso, os bêbados estavam acostumados a ser muito hábeis, e ninguém tomava cuidado com o que dizia junto a eles.

     Ao ver o atento olhar de Ethan, um dos clientes se dirigiu de repente para a porta. Em menos de um segundo, Ethan apanhou ao homem pelo cabelo e o arrastou para fora.

     Grei, protegido pela escuridão, viu como Ethan levava esse homem a um tenebroso beco. À distância, Grei observou Ethan afrouxando um pouco a mão para que o tipo pudesse articular alguma palavra a entrecortados intervalos. Grei revirou os olhos. O estilo do Ethan sempre tinha sido utilizar a força bruta.

     Quando esse homem gritou um nome que de algum modo podia conduzir até ele, Grei supôs que Ethan conseguiu o que queria. Depois de lhe deixar inconsciente, Ethan retornou ao botequim e, sem saber, deixou Grei ali preso. O maldito capitão do ferry estava dentro, tomando algumas bebidas enquanto esperava que Grei lhe desse a ordem de partir.

     Maldição! Embora só uma meia hora de viagem separava Grei de Ros Creag, sentia que tinha que mover-se depressa. Suspeitava que Hugh não ia ficar muito mais tempo junto ao lago. Seguro que Hugh sabia que, cedo ou tarde, Grei descobriria seu esconderijo.

     Se Ethan não fosse do botequim e largava aquele pequeno povo essa mesma noite, Grei teria que matá-lo. Não tinha previsto fazê-lo; no momento só queria matar Jane. Sempre tinha sido útil saber priorizar. Assim evitava exceder-se no que fazia; mas bom, perseguir a Lysette já tinha sido desviar-se de seu plano inicial.

     Embora no que se referia a Ethan, talvez não tivesse escolha.

     Este não era o que se poderia chamar uma presa fácil. Atacá-lo sem que o agarrassem, aproximar-se dele para fazê-lo, levaria horas de trabalho, horas que Grei não tinha.

     Passaram quinze minutos e, como Ethan ainda não tinha saído, Grei soube que ia ter que atirar nele...

     Estudou o local em busca de uma posição elevada e encontrou um balcão que dava para entrada do botequim e ao beco ao mesmo tempo. Escalou até os barrotes de ferro, e cada velha ferida de seu corpo se queixou de dor ao fazê-lo.

     Ficou em posição e esperou que Ethan aparecesse. Viu pessoas passeando pela rua, entrando e saindo do velho botequim. Teria ficado Ethan para jantar? Ou acaso estava interrogando alguém? Grei sabia que não estava com nenhuma mulher. Ele não desfrutava de nenhum dos prazeres da vida, nem sequer da qual podia proporcionar uma feminina.

     Depois de uma hora muito longa, Ethan saiu por fim pela porta lateral. Grei apontou e a mão começou a tremer descontrolado. Com a outra mão se aproximou um pouco de sua medicina aos lábios para ver se assim conseguia acalmar-se.

     Nesse mesmo instante, Grei se deu conta de que algo em Ethan tinha mudado. À luz da lâmpada da rua, parecia distraído, absorto.

     Grei sabia que a única coisa que podia fazer com que tivesse esse olhar era uma mulher, o tinha visto em Hugh milhares de vezes.

     Ethan MacCarrick estava pensando em uma mulher.

     No passado, Ethan tinha se esforçado muito em deixar claro que seu aspecto físico não lhe importava. Mas agora, quando dois meninos pararam diante dele para olhá-lo, franziu o cenho, como se por fim entendesse o que pensavam os outros ao vê-lo.

     Como sempre, gritou-lhes mas não sentiu a habitual satisfação ao vê-los sair dali correndo. Em vez disso, passou a costa da mão pela cicatriz.

     Grei não sentiu nenhuma pena por ele. Não quando ainda podia lembrar-se de como ele se retorceu de dor trancado naquele porão. A raiva começou a carcomê-lo, até que foi muito mais poderosa que a medicina que mastigava.

     Quando Ethan por fim o soltou, Grei se comportou como se estivesse agradecido por havê-lo ajudado a curar-se. Hugh, por sua parte, estava muito aliviado mas de uma vez sentia culpado por ter pego Grei.

     —Alegra-me voltar a te ter aqui comigo — disse Hugh.

     Mas Ethan se limitou a olhá-lo sério e a lhe dizer:

     —Estarei-te vigiando.

     Agora Grei estava vigiando ele. Voltou a apontar com a mão tremula e tratou de tranqüilizar-se.

     Apesar de que era impossível que Ethan ouvisse nada desde aquela distância, quando Grei martelou a pistola Ethan se imobilizou alguns instantes. Das duas uma, ou notava a presença de Grei, ou tinha dado conta do engano que tinha cometido ao entrar nesse beco com tantos balcões, sem ter estudado antes o local.

     Ethan levantou a vista e viu Grei. Sua expressão de incredulidade era a mesma que se refletia no rosto de seu oponente, que jamais imaginou poder eliminar o grande Ethan MacCarrick com tanta facilidade. Um segundo depois, a expressão de Ethan era de pura raiva. Desencapou a pistola e disparou.

     A bala passou assobiando junto a Grei e lhe atravessou a roupa. Então este apertou o gatilho.

     O ar ficou salpicado do sangue que emanou do peito de Ethan, e depois cobriu seu corpo abatido no chão.

     “Um franco-atirador patético?” Essa noite não. Essa noite, Grei tinha acertado o alvo.

            

Hugh cavalgou de retorno a Ros Creag com Jane entre seus braços. Ela ficou dormindo aconchegada contra seu peito, enquanto ainda estavam sentados diante do fogo. Hugh levantou Jane com cuidado e recusou o convite de ficar e passar ali à noite.

     Quase podia imaginar as caras que fariam seus irmãos quando lhes contasse que tinha passado uma noitada com os Weyland. Não iriam acreditar.      

     Mas não tinha sido tão mau como temia. Não, tinha que reconhecer que fazia anos que não se sentia tão bem. E agora voltava a ter Jane entre seus braços, a lua brilhava e ela estava... lhe acariciando o peito com a ponta do nariz? Afastou um pouco a cabeça.

     —Jane, está acordada?

     —Um pouco — murmurou ela e deslizou as mãos para seus ombros para deixá-las ali.

     Hugh franziu o cenho.

     —Então, está bêbada, pequena?

     —Não, claro que não. Estou muito bem.

     Com voz rouca, ele perguntou:

     —Por que está desabotoando minha camisa?

     Sentada onde estava, era impossível que não se desse conta da reação de Hugh a suas carícias. Pegou-a pelos braços e a levantou para trocá-la de posição e que não ficasse tão perto de sua ereção.

     —Não, Jane, já sabe que não... —Deus, acabava de roçar o peito com os lábios e com a língua? Hugh levantou a cabeça e olhou a lua. Todos os propósitos que havia feito esse mesmo dia começaram a esfumar-se em sua mente, assim sacudiu a cabeça— Para você isto continua sendo um jogo.

     Jane piscou e abriu os olhos como se acabasse de despertar de um sonho.

     —Não, não é...

     —Sabe de sobra que não pode ir a nenhuma parte sem mim.

     —Tinha que falar com minhas primas. Precisava que me aconselhassem. Desesperadamente.

     Embora já sabia que não lhe responderia, perguntou em tom ameaçador:

     —Sobre o que? —Genial. Outro mistério que o atormentaria.

     —Sobre como... —aproximou-se dele para poder beijá-lo nos lábios com toda a ternura que sentia— Quero que me faça amor.

     Hugh quase caiu do cavalo arrastando ela com ele.

     Depois da noite anterior, a necessidade que Hugh sentia por Jane tinha ido de mal a pior, e com as carícias dela estava se transformando em desespero. Durante todo o dia tinha representado o papel de seu marido. E, apesar de si mesmo, começava a sentir-se como tal.

     Essa noite, Hugh sentia que queria reclamar os direitos que correspondiam a esse título.

     —Quer que te faça amor? —Só de pensá-lo sua voz soou mais rouca.

     Ela assentiu confirmando contra seu peito e Hugh soltou o fôlego que não sabia que estava contendo. Pegou-a pelos braços sem pensar e a sentou escarranchada diante dele. Quando as pernas de Jane penduraram por cima das suas ele levantou a saia e começou a lhe beijar o pescoço; com uma mão acariciava a nuca e a outra a introduziu em sua sedosa roupa interior.

     Apertou-lhe um pouco as nádegas para levantá-la e aproximá-la em sua ereção. Ela gemeu de prazer e ele amaldiçoou de agonia. Quando voltou a sentá-la, Jane ficou sem fôlego ao notar que Hugh deslizava a mão entre suas pernas até chegar a seu sexo. Continuando, acariciou essa úmida e sensível pele e Jane suspirou com cada carícia. Mas seus suspiros se transformaram em gemidos quando ele deslizou um dedo em seu interior.

     Hugh sentiu como ela estava incrivelmente apertada e como seu interior envolvia o dedo com paixão; sua ereção doeu ainda mais de tanta vontade que tinha de ocupar esse lugar.

     —Não poderei me deter —grunhiu ele— Não será como ontem à noite.

     Acariciou-a com o polegar e o dedo indicador; Jane já não podia manter a cabeça levantada mas Hugh a agarrou pela nuca e a obrigou a olhá-lo.

     Com as pálpebras semicerradas, ela assentiu.

     —Entendeu? —Moveu os dedos daquele modo tão sensual e Jane começou a mover-se a seu redor.

     —Hugh, OH, Deus! Sim, entendi.

     Depois que Jane tinha pronunciado essas palavras, ele foi consciente do que ia acontecer entre eles, e todo seu corpo se esticou de repente.

     —Esta noite vou estar dentro de você. —depois de tanto tempo—E você quer que o faça. —Para enfatizar suas palavras, moveu os dedos em seu interior.

     —OH, sim! —Jane estava já a ponto. Hugh podia sentir como todo seu corpo tremia e suas coxas, com as que rodeava seus quadris, apertavam-se e relaxavam a intervalos regulares, até que ele acreditou que ia explodir.

     “Inevitável.” Hugh morria de vontade de lhe fazer amor, e ela queria que o fizesse. Por que tinha acreditado que poderia lutar contra isso?

     —Primeiro — sussurrou Hugh em seu ouvido com voz rouca—, tenha um orgasmo para mim.

     —Hugh, farei... —Beijou-o com todas suas forças quando começou a sentir que chegava ao clímax e gritou contra seus lábios. Cravou-lhe as unhas nos ombros e sua cálida carne envolveu uma e outra vez seus dedos. Hugh sentiu que ele começava a molhar-se só de pensar no que ia acontecer.

     Jane desabou contra seu ombro e Hugh afastou a mão de seu sexo para levá-la para suas nádegas. Chegaram em Ros Creag . Hugh desmontou e atirou as rédeas de seu cavalo ao poste mais próximo sem trocar Jane de posição: com as pernas rodeando sua cintura.

     Quando conseguiu fechar a porta atrás deles, Jane já não descansava a cabeça em seu ombro, mas sim tinha começado a beijá-lo e a acariciar seus braços, tropeçando-se a cada instante com as mãos dele, que também queriam tocá-la.

     Hugh estava desesperado por estar dentro de Jane, assim apressou os passos e se dirigiu ao seu quarto, subindo os degraus de dois em dois. Tinha a respiração acelerada e soltava baforadas junto ao úmido pescoço de Jane. Uma vez no quarto, tombou-a na cama e, sem perder tempo, tirou o casaco e a pistola, e as deixou a um lado. Passou a camisa pela cabeça e Jane abriu os braços.

     Já tinha um joelho no colchão e se inclinava para ela, depois de tão longa espera..., quando Hugh ficou petrificado.

     Do lado de fora, as dobradiças da porta que dava ao jardim chiaram.    

    

     Hugh levantou a cabeça, e seus olhos escuros percorreram o rosto de Jane. Correu para sua pistola.

     —Hugh, o que esta acontecendo? —Jane estava tão tonta pelo prazer que acabava de sentir que não podia aguentar.

     —Fique aqui — ordenou ele, e se aproximou da janela para fechar as pesadas cortinas— Não se mova, e não se aproxime das janelas.

     —Grei está... está aí fora?

     —Talvez não seja nada. —Hugh separou com cuidado o extremo de um dos tecidos e olhou para fora.

     —Acreditava que ainda não tinha chegado à Inglaterra.

     —Não quero correr nenhum risco.

     Jane estava aturdida pela idéia de que Grei pudesse estar ali, mas não estava assustada. A presença de Hugh a tranqüilizava.

     —Posso por meu arco?

     —Não, pequena, não precisa de seu arco.

     —Quanto tempo vai ficar aí?

     —Até que amanheça — respondeu ele.

     —O que? Não vai voltar para a cama? Já fechou as portas... ele não pode entrar.

     —Se estiver aí, talvez possa vê-lo.

     Jane perguntou com cuidado:

     —E o que fará se o vê?

     —Matarei-o. —Sua voz soou tranqüila, fria.

     —Mas ele era seu amigo —recordou Jane— Eu acreditava que íamos esconder nos dele, mais ou menos, e não A... enfrentar ele.

     —Grei já matou antes.

     —Não fala sério... —Ao ver que os olhos de Hugh se cravavam nos dela, deteve-se.

     —Tanto homens como mulheres.

     —Por que? Por que o tem feito?

     —Já lhe disse isso, tem a mente doente. Está pior que nunca.

     Jane arregalou os olhos.

     —É do estilo do Burke e Haré, ou, mas do Jack o Estripador? —perguntou a meia voz— É um desses assassinos em série que aparecem no The Times?

     —Estou convencido de que tem muitas coisas em comum com eles.

     —Por que não me disse isso?

     —Porque não queria te assustar sem necessidade—disse ele, e depois acrescentou distraído—: Nunca acreditei que conseguisse aproximar-se tanto de nós.

     —Se sabia que era um assassino tão desumano, por que aceitou fazer isto? Talvez esteja pondo sua vida em perigo.

     Ele não disse nada.

     —Hugh, você não arriscaria sua vida por mim, não é?

     —Que espécie de pergunta é essa?

     Jane suspirou frustrada.

     —OH, só responde, arriscaria?

     Pareceu como se todo seu corpo se esticasse e, depois de uma luta interna, balbuciou entre dentes:

     —Sim.

     —De verdade? —A voz de Jane soou uma oitava mais alta.

     —Dorme um pouco.

     Como se tivesse alguma possibilidade de conseguir. Depois de um longo momento, Jane perguntou:

     —Como os mata?

     —Com uma adaga.

     Jane sentiu que o sangue foi a cabeça e ficou gelada.

     —Grei... Apunhala-os? Também às mulheres? Quer me fazer isso ?

     Hugh hesitou um instante.

     —Não sei do que serviria que lhe contasse isso...

          

     –Tenho que saber, Hugh —interrompeu ela— Preciso saber o que planeja fazer.

     Hugh escrutinou seu rosto e se rendeu:

     —Os degola.

     Violentos golpes na porta ressonaram através da silenciosa mansão.

     Jane saltou de susto e depois sussurrou:

     —Quem diabos será a estas horas?

     —Ethan. —Hugh relaxou um pouco e meteu a pistola na cintura da calça. “Tem que ser ele”— Acho que meu irmão veio reunir-se aqui conosco. Jane, fecha a porta atrás de mim e não saia até que eu volte.

     Ela o seguiu até a porta e, uma vez fora, Hugh esperou para ouvir o ferrolho.

     Seu irmão não podia ter sido mais oportuno. Aparecia quando Hugh decidiu fazer amor com o Jane, justo quando já não tinha nenhuma dúvida de que ele...

     Hugh correu escada abaixo e se aproximou da janela. Quando olhou para fora, um horrível calafrio lhe percorreu as costas. Era um dos mensageiros de Weyland e não seu irmão.

     Nesse instante, soube que algo tinha acontecido a Ethan. Hugh abriu a porta de repente e arrancou a carta das mãos.

     —Sabe algo de meu irmão? —perguntou Hugh, embora sabia que os mensageiros não estavam acostumados a ter acesso à informação mais importante.

     O homem sacudiu a cabeça e deu a volta para ir e poder assim confirmar que a carta tinha chegado a seu destino.

     Hugh voltou a fechar a porta, abriu a carta e leu a única linha que continha. Não pôde acreditar o que viam seus olhos e enrugou o papel no punho. Depois deu a volta e correu para cima.

     Mal Jane abriu a porta, começou a gritar ordens:

     —Pegue sua mala menor e mete nela um pouco de roupa e coisas básicas. Pode pegar o arco, mas não trinta malditos livros. Vamos em dez minutos.

     —O que aconteceu?

     —Grei está na Inglaterra. Está a dias aqui. —Se Grei podia manipular à associação desse modo e enganar e esquivar de tantos agentes, seu vício não lhe afetava tanto o cérebro como acreditavam. Ao que parece, não tinha perdido o toque, e estava jogando com eles— Talvez nos tenha seguido até aqui.

     Hugh esteve tão ocupado tentando levantar as saias de Jane que não se concentrou em protegê-la do único homem que tinha feito de seu assassinato a razão de sua vida.

     Grei podia atacar de mil e uma maneiras insidiosas. Podia envenenar o poço, ou incendiar a casa com uma mescla de aguarrás e álcool e depois apanhar a tudo o que escapasse. Nos últimos meses, o fogo se transformou em sua arma favorita.

     Jane começou a revolver entre os montões de roupa e disse:

     —Como sabe que está na Inglaterra? —Ela deve ter dado conta de que ele não ia responder, porque gritou—: Agora não é momento de segredos! Também me afeta tudo isto!

     Hugh passou a mão pelo rosto.

     —Matou Lysette.

     Jane ficou atônita e soltou a bolsa que estava enchendo.   —Se puder que ele esteja tão perto, o que acontecerá com minha família que está em Vineland?

     —Grei nunca matou indiscriminadamente, só mata as pessoas a que odeia ou a quem convém para seus planos. Mas para nos assegurar escreverei uma carta a Robert lhe dizendo que se vão o antes possível.

     —Só às pessoas que odeia? E por que matou então Lysette? —Voltou a ocupar da bagagem— Me disse que eram amantes.

     —Tinham-no sido, mas acabaram mal. Grei acreditava que ela o tinha traído.

     —Hugh, se de verdade ele estiver aí agora, poderia nos disparar.

     —A Grei não gosta de atirar — tranqüilizou Hugh—Nunca foi muito bom nisso, inclusive antes de ter tremores.

     —E por que não ficamos aqui? Fechamos a casa...

     —Não teria nenhum problema em incendiar a casa conosco dentro. —aproximou-se dela e a pegou pelos ombros— Pequena, manterei você a salvo, juro isso, mas tem que acreditar que sei o que estou fazendo.

     Jane assentiu ainda tremendo.

     —Agora, vista-se para cavalgar pelo bosque. Pode ser algo escuro.

     —Deixamos a carruagem?

     —O chofer não está aqui. Além disso, Grei pode seguir os rastros da carruagem, mas nunca poderá nos seguir a cavalo — disse ele enquanto estudava o chão do quarto, que de repente estava vazio. Acaso era incapaz de decifrar a maldita lógica que impregnava a desordem da Jane?— Lembra-se do caminho rochoso que vai desde as cascatas para o norte?

     —Sim, de pequena não me deixava cavalgar por ali.

     —Bom, pois esta noite o faremos, e até que nos tenhamos afastado o suficiente, iremos condenadamente rápido.

     Quinze minutos mais tarde, foram a cavalo através da espessa névoa do bosque, que os envolvia, o mesmo a luz da lua.

     Hugh sujeitava em sua mão as rédeas do cavalo de Jane, e ela se aferrava à crina do animal enquanto este subia pelo levantado e difícil caminho. Os ramos das árvores tinham rasgado a roupa, e algumas acabaram por desfazer o coque, por isso nesse momento seu cabelo movia livre atrás dela.

     Ao primeiro tropeção que deu o cavalo de Jane, Hugh agarrou a arreios e a atou junto à sua. Depois levantou Jane e a sentou atrás dele. Assegurou-se de que se segurasse bem, e cavalgou como alma que leva o diabo. O cavalo esteve à altura, e conseguiu arrastar o dela, que tinha muito mais problemas.

     Nada do que tinha visto ou feito em Londres podia comparar-se à emoção que sentia ao rodear com os braços o peito daquele escocês, enquanto cavalgava como nunca antes o tinha feito, e muito menos de noite. Embora para ela aquilo fosse como um sonho, Hugh estava alerta e muito concentrado. Igual a um jogador de xadrez que se antecipa aos movimentos de seu competidor, Hugh os guiou por volta do norte durante toda a noite, Freqüentemente, cavalgava em uma direção e depois sacudia a cabeça e dava a volta.

     —Como está, pequena? —perguntava periodicamente lhe dando tapinhas na perna.

     Agora que por fim se deu conta do perigo que corria, Jane se sentia afligida ao ver tudo o que Hugh fazia por ela. A imagem dele junto à janela, sob a luz da lua, tenso, com o olhar alerta e a ponto para entrar em combate, tinha gravado na mente.

     Hugh tinha reconhecido que estava disposto a arriscar sua vida por ela. E Jane soube então que era impossível que anos atrás tivesse brincando com seus sentimentos. E também soube que não se esqueceu de despedir-se dela. Não, Hugh era muito mais do que se via a simples vista. E ela tinha intenção de investigar todas suas capas.

     Jane o abraçou com força e de repente foi como se voltasse há ter dezessete anos e cavalgasse atrás dele. Sempre o faziam assim quando iam explorar novos lugares.

     —Precisa que paremos? —perguntou ele.

     —Não, estou bem. Estou... estou contente de ir por fim a Escócia.

     Hugh hesitou um instante e depois respondeu:

     —Não é sempre como contam as balidas inglesas.

     —O que quer...?

     —Abaixe — ordenou ele. E Jane o fez bem a tempo de passar por debaixo de um ramo— Há bandoleiros e ladrões que não são tão heróicos como os dos livros.

     —OH. —Muito tempo atrás, Jane tinha estudado em um mapa onde ficava Carrickliffe, e se lembrava de que estava muito para o norte— Vamos onde está seu clã?

     —Não, não vamos tão longe. Ainda não.

     Suspirou aliviada. Depois de passar anos desejando ir para lá, agora lhe dava medo.

     —Vamos à casa de Court.

     —Onde está?

     —Nas terras do sul da Escócia. Se a casa estiver bem, ficaremos uns dias. Advirto-lhe isso, não terá muitos luxos, mas acredito que é o lugar mais seguro.

     —Court estará? —“Por favor, espero que não.”

     —Não, o mais provável é que agora esteja em Londres. Ou talvez tenha optado por ficar no continente e aceitar um trabalho ali com todos seus homens. —Balbuciou algo entre dentes que soou parecido a: “Desde que não tenha decidido retornar a procurá-la”.

     —O que disse? —perguntou Jane, e entrelaçou as mãos diante do peito dele de uma vez que fazia esforços por controlar a vontade que tinha de lhe acariciar as costas com a bochecha.

 

     –Nada, pequena. Trata de dormir, se puder.

     Hugh cobriu as pequenas mãos de Jane com a sua para as proteger do frio e ela sentiu como se a atravessasse um raio. Nesse instante, Jane se deu conta de que ninguém a tinha empurrado por um precipício, era ela quem tinha saltado de cabeça, e agora o chão ia se aproximando. Sempre estava se aproximando.

     Mas ela se negou a vê-lo.

     Jane agachou junto ao riacho de água cristalina para poder beber um pouco com as mãos, e de repente ouviu que um ramo quebrava atrás dela. Deu a volta, mas não viu ninguém a pouca luz de dia que ficava. Ela sabia que Hugh teria anunciado sua presença, e que era impossível que tivesse acabado tão já de preparar o acampamento para essa noite. Acreditava que tinha sido um animal, os bosques pelos que viajavam estavam cheios de coisas.

     Sentou-se na borda e levantou a saia para colocar as pernas, que já estava sem meias, dentro da gelada corrente. Passou um pano úmido pelo rosto e fez inventário de tudo o que tinha acontecido durante aqueles quatro dias nos que tinha cavalgado com o Hugh por espessos bosques e escarpados terrenos.

     A paisagem era cada vez mais espetacular e tinham passado por velhas fortificações celtas e vistas que deixavam sem fôlego. As folhas foram trocando de cor, começando pelo escarlate e acabando no ouro e o ocre. Agora que oficialmente estavam nas Highlands, tudo lhe parecia novo e excitante. Inclusive o ar era mais fresco. Comparado com isso, Londres era um lugar muito lúgubre.

     Cada anoitecer paravam e acampavam junto às árvores. Pela manhã, Jane observava como Hugh despertava por etapas, e doía vê-lo apertar a mandíbula para resistir a dor das velhas feridas de seu corpo. E apesar de tudo, Hugh ficava a trabalhar em seguida para poder chegar quanto antes ao imóvel de seu irmão Courtland, tal como havia dito.

     Jane cavalgava em seu lado e, quilômetro após quilômetro, via-o estudar o terreno, igual há anos atrás, quando a levava para caçar. Usava os mesmos maravilhosos instintos de caçador que de pequena o tinha visto pôr na prática, e Jane deu conta de que estava tão fascinada com ele como quando tinha treze anos.

     E agora Hugh era seu marido.

     Seu olhar, intenso e concentrado, atraía-a uma e outra vez, e recordava como esses mesmos olhos a tinham seduzido em Ros Creag as últimas duas noites. Por desgraça, depois ele não havia tornado a tocá-la.

     Jane sabia que Hugh pensava que essa vez tinha obtido não cair em seus braços, e acreditava que estava agradecido por ter esquivado da situação. Mas para Jane tinha sido só um primeiro intento fracassado.

     Passou a toalha úmida pelo rosto e pensou em seu futuro. Perguntou a si mesma se Hugh estaria nele. Reformulou os fatos: ele a achava atraente, e queria fazer amor com ela. Estava disposto a morrer por ela. A primeira noite que o viu em Londres, estava tão sujo porque tinha cavalgado sem descanso durante dias para poder chegar a seu lado.

     Então, por que Hugh não queria que ela fosse algo mais que...?

     Ouviu alguns passos sobre as folhas secas bem atrás dela. Antes que pudesse dar a volta, uma mão tampou sua boca; outras mãos a agarraram e a afastaram da água para levá-la na espessura do bosque.

     Jane cravou os calcanhares no chão e, cheia de raiva, mordeu a mão de seu agressor de uma vez que tentava lhe arranhar com todas suas forças. O homem que a segurava a insultou. O sujeito moveu a mão e ela deu a volta para vê-lo, mas ao sentir a fria lâmina de metal junto a seu pescoço, assustou-se e ficou quieta.

     —Afasta suas sujas mãos de minha mulher! —disse Hugh com uma calma gelada.

     O homem ficou petrificado. Jane desesperada, afastou o cabelo do rosto e viu Hugh apontando-os com seu rifle absolutamente quieto e com um olhar tão frio como cinzas em um pôr-do-sol. Estava apontando a um dos dois homens que tinha segurado ela, ao que apertava a faca de caça contra seu pescoço e levava um lenço ao redor do dele. O segundo desencapou sua pistola e apontou ao Hugh.

     —Soltem ou os matarei.

     Uma fúria em estado puro emanava de todos os poros de Hugh, mas de algum modo a mantinha controlada.

     Aqueles dois tipos deviam ser bandidos, desses pouco heróicos que tinha mencionado Hugh. Por que não cobriam o rosto com os lenços que levavam?

     Porque a Hugh e a ela não foram só roubar.

     O homem que a segurava ficou nervoso sob o olhar mortífero de Hugh e, ao engolir seco, moveu o tecido em cima da garganta e apertou a faca com mais força contra a pele de Jane. Ela sentiu como o sangue começava a escorregar e, assustada, entreabriu os lábios.

     Hugh entrecerrou os olhos, mas não disse nada, só esperou. Jane se deu conta de que já lhe tinha visto fazer isso antes: quando caçava e tinha ao animal no ponto de mira, ficava igual, imóvel.

     Era como se o tempo discorresse muito devagar. Quantas vezes tinha visto Hugh assim concentrado antes que seu dedo indicador acariciasse com suavidade o gatilho? Quando Jane viu Hugh roçar com o polegar a culatra do rifle, soube que aqueles homens estavam mortos.

     O que estava segurando-a pelo pescoço começou a afastar dela. Ao caminhar para trás, a faca já não lhe ameaçava com tanta força. Deveria lhe dar um murro... um chute..., dar a Hugh a oportunidade de disparar.

     Jane sentiu contra sua pele o podre fôlego do bandido quando este abriu a boca para dizer a Hugh:

     —Sua preciosa mulher vai se transformar em mi...

     O som do disparo a assustou, e tentou afastar-se, mas a faca já tinha desaparecido. O homem que a segurava caiu no chão, atrás dela, e o sangue saía a fervuras de um buraco que tinha entre as sobrancelhas.

      Jane olhou para Hugh.

     Este, sem afastar nem um segundo a vista do segundo homem, que segurava tremulo uma pistola, esvaziou o cartucho de seu rifle como se tivesse todo o tempo do mundo.

     —Vamos, atira — exigiu Hugh impaciente.

     O bandido atirou e Jane gritou; um pedaço de tecido negro saiu pelos ares, mas não podia ver onde tinha sido ferido Hugh. Quando o sujeito viu que ele ainda estava de pé empalideceu e atirou a pistola antes de pôr-se a correr.

     Jane cambaleou. “Pelos cabelos.” Hugh atirou seu rifle no chão e, em três pernadas, apanhou-o. Ia desarmado e seus movimentos eram contidos, letais, silenciosos.

     “Esse silêncio o impregna tudo. O bosque também está alerta. Ou sou eu que não escuto por culpa do disparo?” E então ouviu um gemido, e não soube distinguir se vinha de seus lábios ou dos do homem que estava lutando por sua vida. Uma luta inútil; Hugh o tinha completamente seguro e suas fortes mãos e antebraços rodeavam a cabeça do sujeito.

     “Como pode Hugh mover-se sem fazer ruído? De que modo tão estranho segura o bandido...”

     Jane estremeceu ao ver como os braços de Hugh se moviam de um lado para outro. De repente, ouviu-se o inconfundível ruído de um osso quebrando. O homem caiu sobre seus joelhos, com a cabeça em um ângulo nada natural, e depois desabou.

     Hugh ficou quieto um instante sem saber o que fazer, e depois, devagar, deu a volta para olhar para Jane.

 

O magro corpo de Jane tremia e custava respirar. Tinha as pupilas dilatadas e os lábios pálidos por causa do medo que tinha passado.

     Uma fina linha vermelha marcava seu pescoço, e Hugh se assustou.

     —Sine, tenho que olhar se está bem — disse ele com cautela à medida que ia aproximando-se como se acreditasse que ela ia pôr a correr. Hugh era consciente do aspecto que devia ter, e sabia que o que ele tinha feito a aqueles dois sujeitos a tinha assustado.

     Ela não respondeu.

     —Jane, não agi malvadamente — explicou devagar, dando outro passo— Esses homens teriam lhe matado. —“cedo ou tarde.”

     Ela continuava sem dizer nada. Tinha olheiras e estava completamente branca. Hugh parou diante dela e rezou para não assustá-la. “Não se afaste de mim...” Hugh não poderia suportar que Jane tivesse medo dele.

     Aproximou a mão do corte que tinha no pescoço e o tocou com as pontas dos dedos. Quase caiu de joelhos de alívio que sentiu ao ver que só era um arranhão. Antes que pudesse deter-se, rodeou-a com os braços, e a aproximou dele, uma vez que inclinava a cabeça sobre a sua. Ele gemeu ao sentir que ela estava sã e salva entre seus braços, mas Jane não podia deixar de tremer.

     —Xi, pequena — a tranqüilizou junto a seu cabelo— Já está a salvo.

     —O que... o que aconteceu? —sussurrou ela— Não entendo nada do que aconteceu. Eram bandidos?

     —Mais ou menos.

     —Está ferido? —Na perna da calça da calça viam as marcas de uma queimadura e um buraco.

     —Não, não, absolutamente. Acha que poderá cavalgar?

     —Mas o que vamos fazer com os ca... cadáveres?

     —Nada. Demorarão muito tempo em encontrá-los, se é que alguma vez o fazem. —Hugh se afastou um pouco para poder olhá-la nos olhos. Deslizou as mãos por seus braços e acrescentou—: Temos que ir daqui agora mesmo. Pode se vestir enquanto eu recolho o acampamento?

     Jane assentiu e ele obrigou a soltá-la porque sabia que tinha muito que fazer e que tinha que fazê-lo rápido. Enquanto ela se vestia e limpava a ferida com uma toalha úmida, Hugh continuou vigiando-a, e recolheu suas coisas para voltar a selar os cavalos.

     Quando Jane esteve preparada, perguntou a Hugh:

     —Posso... posso cavalgar com você? —Olhou-o como se sentisse envergonhada por haver feito o pedido.

     Sem hesitar, Hugh a pegou em braços e a montou em seu cavalo. Depois, ele se sentou atrás e a rodeou com um braço. Suspirou aliviado ao ver que continuava querendo estar perto dele.

     —Tenta descansar. Cavalgarei toda a noite.

     Jane assentiu tremendo.

     Impaciente por afastá-la dali, Hugh forçou ainda mais a marcha. Depois de uma hora de dura viagem, chegaram ao que tinha sido o leito de um rio e agora era um caminho escarpado e seco. Tiveram que diminuir o passo.

     —Obrigado —murmurou Jane— Pelo que fez lá atrás... por tudo o que está fazendo.

    —Nem o mencione.

     —Ao parecer, tudo isto te dá muito melhor do que eu tinha imaginado. —Hugh se manteve em silêncio e ela continuou—: O que faz que, depois de ter visto isto e o da morte de Lysette, pergunto-me como isso combina bem a Grei?

     Hugh apertou os dentes.

     —Você não é um mercenário, e ele não é um homem de negócios.

     —Não.

     —Quer me explicar isso      

     Depois de um silêncio, Hugh respondeu:

     —Não posso, embora queria fazê-lo.

     —Quer fazê-lo?

    —Eu... não sei. —Uma parte dele queria fazê-lo, embora só fosse para que ela deixasse de olhá-lo daquele modo.

     Ao cabo de um momento, Jane perguntou:

     —Está zangado comigo?

     —Deus, não, por que ia estar?

     —Porque eu te coloquei nesta confusão.

     —Pequena, você não é a culpada de tudo isso. É minha culpa. Eu deveria ter estado mais alerta...

     —Não, não queria dizer que fosse culpa minha. Não é culpa de nenhum dos dois. O que queria dizer é que sinto que tenha tido que matar por mim. Acredito que se sente mal por havê-lo feito.

     —E não deveria me sentir assim?

     Hugh sentiu que ela esticava os ombros.

     —Doeria-me pensar que se sente mal por ter feito algo tão nobre e necessário para salvar minha vida.

     “Nobre?” Hugh sentiu como seu orgulho crescia um pouco e descobriu que assim era exatamente como ele queria sentir-se quando Jane estava a seu lado..., assim era como queria que Jane o visse.

     Jane tinha o visto matar com suas próprias mãos, e entendia que não tinha tido outra escolha. “Necessário.” Um pensamento apareceu de repente: “Jane pode aceitar que matei. Sem me julgar”.

     Mas poderia aceitar o modo em que o tinha feito?

     Nos jornais e na literatura estava acostumada representar-se os assassinos como seres covardes, e os desprezava sempre, inclusive os do próprio país. Nas três últimas grandes guerras que tinham tido lugar no continente, qualquer exército que apanhava um franco-atirador o executava imediatamente. Não os faziam prisioneiros, não negociavam com eles. Os homens com o trabalho do Hugh nunca os usava como moeda de troca.

     Fosse como fosse, Hugh não podia contar a verdade a Jane sem revelar segredos que não lhe pertenciam.

     —Hugh?

     —Poderia ter deixado o segundo com vida.

     —E se havia por ali outros membros de seu bando? O... Ou talvez queria vingar-se pela morte de seu companheiro. Ou ter armado um escândalo, com o que então Grei saberia onde estamos.

     Talvez Hugh pudesse pensar em todos esses fatores, mas não o tinha feito. Quando agarrou o segundo, o único pensamento que lhe passou pela mente foi que tinha que matá-lo por haver-se atrevido a tocá-la.

     —Não se sente culpado, não é? —perguntou Jane.

     —Tampouco gostei de fazê-lo.

     Jane deu a volta, e apareceu por debaixo de seu braço para poder olhá-lo no rosto. Era óbvio que estava zangada.

     —Comporta-se como se tivesse disparado a alguns órfãos ou em alguns cachorrinhos! Matou alguns assassinos! —Franziu o cenho e acrescentou em um tom de voz mais suave— Se arrepende de ter tido que fazê-lo para me salvar?

     O braço que a rodeava a apertou com força.

     —Não, pequena, isso jamais. —“Encantou-me fazê-lo”— É só que... não queria que você visse.

     Jane o olhou atônita.

     —Não queria que visse o quanto é valente? Que visse como ficava de pé, esperando a que lhe disparassem?

     —Isso não é ser valente. Sabia que havia poucas possibilidades de que me desse em algum ponto importante antes que eu o apanhasse. O que quero dizer é que não queria que visse o sangue, nem tampouco a morte. Não quero que te persiga essa lembrança. Que te faça mal.

     —Se essa lembrança pudesse me fazer mal, seria cara e não permitiria que impregnasse minha vida. Não quero que pense que soa muito simples, ou fria. —Escolheu as palavras com muito cuidado— Mas estou convencida de que quando uma carga se faz muito pesada terá que soltar um pouco as rédeas e aliviar um pouco os ombros. E Hugh... —descansou com cuidado suas mãos em cima da que ele tinha em sua cintura—... acredito que você tem que soltar bastante a rédea.

     “E se tivesse razão? E se deixasse de sentir-se culpado por tudo o que tinha feito e não continuar atormentando-se por isso?” A tentação era muito grande.

     Cavalgaram outro momento em silêncio. Ao final, ela murmurou:

     —Hugh, antes, quando disse que era desse modo sua mulher... —interrompeu-se.

     Hugh fechou os olhos um segundo.

     —Sei. Não voltará a acontecer.

     —Isso... isso não é o que ia dizer. —Jane tremia junto a seu torso, e lhe apertou o braço com força.

     —O que ia dizer?

     As palavras de Jane fizeram que começasse a suar pela primeira vez no que levavam de dia.

     —Quando disse que era sua mulher, dei-me conta de que eu gostava... muito.

    

     Se Jane já sentia curiosidade a respeito da vida de Hugh antes do ataque, agora estava desesperada por saber mais.

     Embora por fim tinham diminuído a marcha, foram circulando por um aterro muito escorregadio, e ela não ia perguntar-lhe nada no momento. Jane o observou enquanto cavalgava para seu lado sob o sol da manhã e lhe tombou o coração ao ver o quanto exausto estava.

     Hugh continuava sendo muito precavido e não cessava de protegê-la... e tinham cavalgado sem descanso.

     Aquele ataque tinha deixado de novo muito claro que Hugh a protegeria de modo incondicional. Quando Jane sentiu aquela faca junto ao seu pescoço, nem por um momento acreditou que morreria, não ali, mas entendeu o que aconteceria se Grei os alcançasse.

     Ela não ia desperdiçar nem um segundo mais do tempo que pudesse passar com Hugh.

     —Quase chegamos, pequena —disse ele lhe dando ânimos— Sei o quanto duro foi isto para você.

     —Para mim? E o que me diz de você? —Ele e seu cavalo tinham o mesmo aspecto que aquela noite em Londres.

     Hugh encolheu os ombros.

     —Eu estou acostumado.

     —Claro — disse ela como ar ausente, enquanto inclinava a cabeça para estudá-lo melhor.

     Hugh era um guardião muito feroz, sempre estava disposto a usar a violência que fosse necessária; mas com ela era terno e apaixonado. Tinha muitos segredos, mas Jane sabia que seria um marido fiel. Hugh sempre tinha desejado sua felicidade a cima da dele.

     Nesse preciso instante, uma mecha de cabelo negro caiu em cima de um de seus olhos...

     Jane engoliu seco. De repente entendeu tudo.

     “O escocês é... meu.” Olhou-o e se deu conta de que ele continuava sendo seu Hugh. Jane o desejava, sempre o tinha desejado, mas agora sentia um profundo respeito por ele, e um pouco mais amadurecido, algo que era... amor. OH, Deus, ela não amava o Hugh como antes.

     Agora o amava muito, muito mais.

     Mas Jane mal tinha conseguido sobreviver à primeira vez que a abandonou, o que aconteceria se voltasse a perdê-lo?

     Ela já tinha decidido que queria que ele fosse seu primeiro amante. Agora sabia que também queria que aquele reservado e maravilhoso homem fosse o último. “Como posso consegui que ele queira continuar casado comigo?”, pensou, e sentiu como o pânico corria por suas veias só de pensar em que talvez tivesse que separar-se dele. “Não! Se acalme! Pensa!”

     —Jane, aconteceu algo? —perguntou Hugh.

     —Não, nada. —obrigou a lhe sorrir enquanto sua mente começava a riscar um plano.

     Nada de atormentá-lo. Tinha que o seduzir. E tinha que ser para sempre.

     Hugh franziu o cenho, e quando chegaram ao pendente, voltou a acelerar a marcha. Jane se alegrou de ter tempo para pensar.

     Era óbvio que tinha que estar a sós com ele, e que tinha que demonstrar que viver com ela não ia transformar-se “em um inferno”. E então voltou a alegrar-se de que não fossem a Carrickliffe.

     Por desgraça, só havia algo mais desencorajador que um montão de estranhos escoceses, e era Courtland MacCarrick, quem sempre a tinha odiado.

     Hugh disse que não acreditava que Court estivesse em casa. Perfeito. E, a menos que Court aparecesse, nada poderia impedir que eles dois ficassem ali.    

 

“Um lugar remodelado? É uma merda.” Hugh soltou uma maldição.

Depois que se aproximaram dos confins de Beinn A’Chaorainn, o imóvel de Court na Escócia, Hugh teve um mau pressentimento. O comprido caminho de entrada estava cheio de árvores plantadas aqui e ali. Começavam a apodrecer-se, o que significava que ninguém esteve ali há anos; nem sequer um simples jardineiro com poucas ferramentas.

     Quando puderam ver a casa, o céu estava coberto por nuvens de chuva que projetavam uma luz sinistra sobre a mansão. Ao vê-la, Jane se desanimou um pouco. A casa em que Hugh planejava escondê-la durante todo o outono deixava muito a desejar.

     Desencorajado, ele estudou os abandonados jardins. A porta principal pendurava de uma sarnenta dobradiça, as janelas estavam ou estragadas ou cobertas por trepadeiras mortas.

     Nesse instante, uma coisa com olhos muito grandes e coberto de pêlos, atravessou a porta da entrada.

     Hugh olhou para Jane. Tinha os lábios entre abertos e seu fôlego desenhava círculos de bafo no ar frio. Tinha olheiras marcadas em seu pálido rosto. Tinham cavalgado sem trégua, mas Hugh estava convencido de que ambos poderiam descansar e recuperar-se no Beinn A’'Chaorainn. Durante toda a viagem, Jane tinha tentado se animar e se esforçou por estar de bom humor, brigando-o com doçura quando ele ficava muito sério.

     Agora, a expressão de Jane era inescrutável, e Hugh se aproximou dela para ajudá-la a desmontar. Sem dizer nenhuma palavra, ele entrou na casa com os ombros jogados para trás, como se levá-la ali tivesse sido um colossal engano. A única alternativa viável era ir para seu clã, e ele queria evitar isso a todo custo.

     Hugh cruzou a soleira e olhou ao seu redor com atenção. Teriam que ir ao clã, que remédio.

     O salão estava cheio de plumas e de ninhos de pássaros. Ao parecer, ali também viviam esquilos, texugos e até um par de raposas, e Hugh podia ouvir como a lareira estava até os batentes. Como se fosse uma sentinela, uma Marta estava erguida junto à entrada, com as patas dianteiras prontas para atacar.

     —Cuidado, Hugh! —gritou Jane com energia— É um furão. Ou talvez seja um gato? Não sei. —Passou junto a Hugh e começou a fazer ruidinhos carinhosos— É a coisinha mais adorável...

     Hugh a agarrou pelo braço.

     —Não, Jane, não o faça.

     O animal lhe mostrou os dentes e se escondeu de novo para o interior. Jane pareceu doída, e balbuciou que, de qualquer modo, nunca tinha gostado nem de furões nem de gatos.

     Depois seguiu Hugh para o interior, esquivando das teias de aranha que ele afastava e brigando com uma que se negava a separar-se de seus lábios. Quando se livrou dela, olhou a seu redor e abriu os olhos horrorizada.

     Ruborizado e à defensiva, ele disse:

     —Este é o último lugar em que alguém ocorreria em nos procurar. —Hugh reconheceu que o interior estava destruído, e que, uma vez desaparecida a porta principal, a natureza tinha conquistado o lugar; fazia muitos anos que ninguém tinha habitado Beinn A’'Chaorainn nem por acaso.

     Não havia nenhum móvel à vista, exceto três míseros colchões amontoados junto à parede. Hugh investigou a cozinha e viu que estava igualmente vazia, sem pratos nem panelas.

     —Acredito que terei que renunciar a meu banho —disse Jane séria.

     Hugh abriu outro armário. Nada.

     —Vi que na parte de atrás há um lago. —Talvez até houvesse um manancial de água quente perto— Se encontrasse embora fosse uma chaleira, poderia trazer um pouco de água...

     Parou ao ver uma estranha criatura correr escada acima e, depois de dar de cara com uma parede, seguir pelo mesmo caminho. Jane se afastou e cobriu o rosto com as mãos.

     Hugh se aproximou dela.

     —Jane, sinto muito, não sabia. —Inseguro, pôs uma mão no ombro e franziu o cenho ao ver que tinha o cabelo cheio de penugem.

     Tinha conseguido, por fim a tinha levado ao limite. De caminho, já lhe tinha advertido que a casa não era absolutamente luxuosa. Tinha-lhe respondido que enquanto tivesse um banheiro o resto não importava. De fato, Jane tinha passado horas sonhando banhando-se, e agora estava coberta de pó, penugem e teias de aranhas.

     Estava exausta, tinham-na assaltado, e ali não havia nenhum banheiro, e também tampouco havia camas nem fogo, e os únicos quartos que tinham as janelas mais ou menos inteiras estavam invadidas pelos pássaros.

     Hugh não podia acreditar que houvesse trazido sua pequena a um lugar como esse. Pois claro que estava chorando.

     Jane se agachou um pouco e começaram a tremer os ombros. Hugh jurou a si mesmo que iria dar uma surra em Courtland.

     —Jane, se eu soubesse jamais teria te trazido aqui. E não vamos ficar aqui. —aproximou-se dela, e com delicadeza, afastou-lhe as mãos do rosto.

     Jane estava... rindo.

     —Sinto muito — disse ela tentando parar de rir— Isto não tem graça. —Com cara de resolução batia na testa com a mão.

     —Jane, isto é muito grave. Não tem graça.

     Acreditava que delirava. Ao menos Hugh parecia acreditar que sim, porque a olhava como se ela acabasse de sair do manicômio e estivesse expondo-se voltar a enviá-la ali de repente. ”Acredito que ali nos quartos são sublimem comparadas com isto. Acredito que há menos pássaros.”

     E voltou a ter um ataque de risada.

     “Claro!” Ali vivia Courtland MacCarrick. Jane não sabia o que era pior, que Court fosse proprietário de um lugar como aquele, ou que ela continuasse tendo vontade de ficar ali.

     —Jane? —perguntou Hugh devagar. Pobre Hugh. Havia se sentido tão incômodo ao entrar na casa, com seus ombros jogados o máximo para trás, e agora era óbvio que estava muito preocupado— Pequena, do que ri?

     Quando outra pluma deslizou pelo ar e esquivou por pouco o cabelo de Hugh, ela riu ainda mais. Limpou os olhos e disse:

     —É que está muito melhor do que tinha imaginado. Ao fim, é a casa de Court.

    —A que se refere?

     —A que tem paredes.

     Hugh abriu os olhos surpreso e depois esboçou meio sorriso e franziu um pouco o cenho.

     Jane respirou fundo e tratou de dizer muito séria:

     —E não tinha nem idéia de que Court gostasse tanto de animais. Olhe que mascotes tão preciosos.

     —Sim — reconheceu Hugh tentando também parecer sério—, de pequeno nunca tinha suficientes bichinhos. Colocava nomes em todos.

     Jane riu a gargalhadas, surpreendida e de uma vez feliz de ver Hugh assim, mas quis fazer outra observação:

     —E tenho que reconhecer que foi muito hábil, a mim nunca teria ocorrido usar a chaminé e esses colchões como curral.

     Hugh assentiu com solenidade.

     —Assim é mais fácil alimentá-los e manter sua equilibrada dieta de sujeira e algodão. Olhe como cresceram.

     Jane mordeu os lábios para não rir e continuou:

     —E a decoração é preciosa. —deu alguns golpezinhos no queixo— Uso abrigo de princípios de século, se não me engano. Só os mais aplicados conseguem criar este efeito.

     —De verdade, hoje em dia é difícil encontrar este nível de perfeição. Acredito que há grandes anos para alcançá-lo.

     Jane já não pôde controlar a risada, e deu conta de que não podia recordar outro momento em que o tivesse passado tão bem como ali e então, rindo-se com o Hugh daquele lugar horrível.

     —Hugh, acredito que está passando bem comigo.

     Hugh fixou a vista no muro que havia à direita de Jane e disse:

     —Quando pode se controlar e deixar de me atormentar, eu gosto de estar com você. —Quando viu que ela o olhava incrédula, acrescentou com estupidez—: Sempre gostei de sua companhia.

     Havia algo em sua expressão, uma pequena vulnerabilidade, como se esperasse, ou desejasse, que ela dissesse o mesmo.

     —Também gosto de estar com você — murmurou Jane.

     —E gostando de... quer dizer que você gosta de ter alguém a quem poder ordenar que te alcance as coisas às que não chega e outras tolices assim? —tinham as linhas relaxadas ao redor dos olhos?— Reconheça, quando eu estava perto, nunca dava um braço a torcer.

     —E você adorava que eu te passasse as unhas pelas costas e te trouxesse um pedaço de bolo que houvesse na cozinha, e que te deixasse olhar-me no lago, em roupa íntima.

     Hugh entrecerrou os olhos.

     —Deus, eu adorava te ver com roupas íntimas.

       Jane sentiu um tombo no estômago, tanto pelo que tinha confessado como pela faminta expressão que apareceu em seu rosto. Mas nesse instante, Hugh foi consciente do que havia dito e saiu da casa em direção ao lago. Jane correu atrás dele.

     Uma vez na borda, ambos deram a volta para olhar a casa. Jane ficou ao seu lado e lhe acariciou o braço com a cabeça até que ele se rendeu e o levantou para abraçá-la pelos ombros.

     —Não sei, Jane —disse ele preocupado— Agradeço seu senso de humor, mas isso não soluciona nada. Por culpa de haver-nos desviado, agora demoraremos dois dias mais para chegar em Carrickliffe.

     Embora não tivesse decidido que queria ficar ali, pensar em voltar a subir a um cavalo, sentiu-se desfalecer.

     —Acredito que tempo atrás era uma casa preciosa — disse Jane para começar a preparar o terreno. Se lhe dizia diretamente que queria ficar, Hugh acreditaria que se tornou louca de arremate. Mas a verdade era que aquela mansão tinha que ter sido um lugar incrível em outros tempos. Estava muito bem situada junto a um lago de água cristalina, e a casa estava formada por duas alas unidas de tal modo que todos os quartos tinham vistas à lacuna.

     —Sim, com certeza que sim.

     —Se arrancarmos as trepadeiras que há na fachada, acredito que se verá muito melhor. —Talvez agora fosse só um abrigo, mas tinha sido desenhada no estilo imperial. As enormes pedras que havia na entrada e as vigas que cobriam os tetos do interior estavam muito na moda da Inglaterra.

     E o que era mais importante, ali Jane podia estar a sós com Hugh. E para ela isso a transformava no lugar perfeito.

     “Exceto por uma coisa”, pensou Jane, passando a mão pela nuca. Tinha a estranha sensação de que alguém os estava observando.

     —Talvez tenha razão — disse Hugh—, mas isso não fará que hoje passemos a melhor noite.

     —Se anime, Hugh —disse ela sem pensar— Isto não pode piorar...

     Começou a chover muito. Autênticos jorros de água gelada.

 

Bom, a boa notícia é que por fim pude me banhar — murmurou Jane adormecida. Estava deitada de lado, com a cabeça recostada no peito de Hugh e ele estava sentado, com as costas apoiada na parede.

     Hugh não tinha nem idéia de onde Jane tirava forças.

     Essa tarde, quando a chuva os pegou, retornaram correndo à mansão. Uma vez na casa, o primeiro que fez Hugh foi instalar aos cavalos sob um pórtico para que passassem ali a noite, depois, ele e Jane foram juntos investigar o interior.

     Depois de esquivar das enormes goteiras que havia em quase todas os cômodos, por fim deram com um pequeno quarto junto à cozinha, certamente destinado ao serviço. Só tinha uma janela e as portinhas estavam velhas, mas intactas. Ali não havia plumas, e sua pequena lareira parecia não ter habitantes, embora estivesse um pouco obstruída e o fogo não aumentava muito.

     Jantaram algumas bolachas, beberam um pouco de chá feito com água da chuva recém caída, e o acompanharam com algumas maçãs que essa manhã tinham pegado da horta de algum fazendeiro. Depois, dispuseram-se a dormir.

     —Hugh, por que Court permitiu que este lugar se danificasse tanto? —perguntou Jane.

     —Acredito que já devia estar assim antes que Court o comprasse. —E depois seu irmão não tinha tido tempo para fazer as reformas. Court estava no continente com seu bando, trabalhando para pagar aquele lugar, que tinha comprado por muito dinheiro.

     Apesar de que a terra era fértil, e que havia a montões, na casa estava agasalhado sua própria equipe de demolição. Hugh estava surpreso de que Court tivesse passado pela cabeça levar ali a alguém tão rico e culto como Annalía. Esta era uma garota valente, mas Hugh estava convencido de que inclusive ela se deprimiria ao ver o estado em que estava a casa de Court.

     Mas acaso não tinha feito Hugh o mesmo? Ele também tinha levado ali a uma mulher rica e culta.

     Os raios iluminaram o exterior e, quando um trovão fez retumbar a estrutura, os animais que ali havia começaram a ronronar e a piar com novos ânimos. Hugh apertou a ponta de seu nariz e Jane sorriu.

     —Amanhã te levarei a uma hospedaria — disse ele imediatamente— Há um povoado há poucos quilômetros ao norte daqui, e talvez possamos encontrar algum lugar onde ficar. Poderá ter até um banheiro como Deus manda.

     —Hugh, está se preocupando tanto que começo em ver como se amontoa o dinheiro que vai pagar-me. E, a estas alturas, já me deve cinco mil libras, no mínimo. —A voz de Jane soava relaxada e divertida.

     —Já está em cinco mil libras, é? —Acariciou-lhe o cabelo, que ainda estava úmido e um cômodo silêncio se instalou entre ambos. Mas Hugh não podia deixar de preocupar-se com o Ethan. Não tinha nenhum modo de ficar em contato com Londres e não se atrevia a deixar Jane sozinha para ir em busca de seu irmão ou caçar Grei.

     Hugh decidiu assumir que Grei continuava livre, o que significava que ele e Jane podiam estar juntos por tempo indefinido enquanto esperavam que alguém capturasse ou matasse esse bastardo.

     Por tempo indefinido? Hugh estava no máximo dez dias antes de ir para a cama com ela, e isso exigia toda a disciplina que acreditava possuir.

     —Hugh, me conte algo sobre sua vida, alguma coisa excitante que tenha feito da última vez que te vi.

     Todas as coisas excitantes que tinha feito entravam na categoria de inconfessáveis. Finalmente, optou por responder:

     —Comprei-me uma casa na Escócia.

     Jane ficou de barriga para cima para poder olhá-lo.

     —OH, conta-me.

     Hugh passou a mão que tinha livre pela nuca.

     —Topei-me com um imóvel na costa, um cabo chamado Waldegrave. —Jane lhe deu golpezinhos no quadril para que continuasse— O fluxo é suave e tão claro que pode ver como o sol fica através das ondas. —Hugh admitiu—: Não descansei até que foi minha.

     Jane suspirou.

     —Soa arrebatador. Acredito que eu gostaria de viver na Escócia.

     Hugh brigou consigo mesmo por imaginar a cara de Jane ao ver sua casa. Não tinha nenhuma maldita importância que lhe encantassem o quebra-mar, nem que quando comprou o imóvel o fizesse porque imaginou ela ali, e porque queria impressioná-la...

     Da noite em que saíram de Ros Creag, Hugh fazia esforços sobre-humanos para não pensar no perto que tinha estado de lhe fazer amor, depois de tantos anos. Lembrou-se de que havia sentido que estar com ela era inevitável, como se resistir a necessidade de estar dentro de Jane carecesse totalmente de sentido. Em especial desde que, ao parecer, ela desejava o mesmo.

     A idéia de que aquela mulher incrível, que agora descansava confiada a cabeça em seu peito, tivesse ansiado em fazer amor com ele, ia deixá-lo louco. E quanto mais tempo passava, menos se envergonhava do que tinha acontecido aquela noite em Rose Creag... e mais aumentava sua excitação.

     “Dez dias? Como muito uma semana.”

     “Não abaixe a vista... se limite a não abaixar a vista...”

     Hugh ficou sem fôlego quando, ignorando seus próprios conselhos, baixou-a. Estava ajudando a uma Jane completamente nua a sair da lacuna de água quente. Cobriu-a em seguida com uma toalha, como se estivesse em chamas e tivesse que as apagar com ela, mas a imagem de seu corpo nu com respingos de água escorregando pela pele ficou gravada em sua mente para sempre.

     Uma semana sem tocá-la? Essa estimativa tinha sido uma estimativa absurda e muito otimista.

     —Que surpresa tão maravilhosa! —Jane o olhou como se fosse seu herói, com olhos resplandecentes de prazer. Seu corpo não evidenciava nenhum indício da fadiga da dura viagem, nem tampouco por ter passado a noite naquele pequeno quarto. Era uma garota muito forte.

     Quase sem fôlego, Jane perguntou:

     —Hugh, como encontrou esta lacuna?

     —Ontem, vi a baía no lago e me pareceu ver sair vapor, mas não quis te dar esperanças até comprová-lo.

     —Já senti falta que esta manhã tivesse desaparecido.

     —Não tinha nem idéia de que a água ia estar tão boa. —Franziu o cenho— E nem que tiraria a roupa e fosse mergulhar. —assegurou-se de que tinha a toalha bem segura e a pegou nos braços para lhe economizar o passeio de cinco minutos que havia até a casa.

     Jane riu e lhe rodeou o pescoço com os braços com ternura.

     —Despertei-me acreditando que encontraria a meu lado, e em seu lugar estava esse furão. Quando me mostrou os dentes lhe atirei uma bota, da qual se apropriou. Quero ficar aqui. Pode me ajudar a procurar minha bota?

     —Tornou a me deixar sem fala, Jane.

     —Bom, estive pensando, e cheguei à conclusão de que este lugar não está tão mal. — Quando Hugh a olhou incrédulo, ela continuou—: Não digo em brincadeira, Hugh. Se tiver que estar na Escócia por tempo indefinido, longe de minha família e meus amigos e sem as diversões da cidade, precisarei de algo para fazer. De fato, é perfeito. Esta ruína precisa de muitas reparações, assim nós poderíamos fazê-la. —Ele não disse nada, de modo que Jane continuou falando— Juntos, poderíamos fazer uma lista dos materiais que precisamos e, enquanto você arruma as coisas, eu posso começar a limpar.

     —Você? Limpar?

     Jane piscou.

     —Não pode ser tão difícil.

     Ele abriu a boca para explicar-lhe, mas voltou a fechá-la sem dizer nada. Jane tinha chegado à conclusão de que limpar não era difícil, e nada a faria mudar de opinião até que o tivesse provado.

     —Por que você estaria disposta a fazer isso?

     —Alguém tem que fazer. É a casa de seu irmão. Ele pode te devolver o dinheiro que gastar nela.

     Não, não podia. Court estava agora ganhando mais dinheiro, mas reparar essa mansão ia ser muito caro. Mesmo assim, Hugh começava a gostar da idéia. Pôr aquela casa em condições tinha seu atrativo.

     —E não acha que aqui, rodeados por tantas terras, estaremos a salvo? —perguntou Jane.

     “Inclusive mais a salvo que com o clã.” Ali ele podia protegê-la, lhe dar algo com o que manter-se ocupada e, de passagem, esgotar-se fisicamente de uma vez que o fazia um favor a Court. Por que não? Poderia funcionar.

     Jane o olhou nos olhos.

     —Podemos ficar? Por favor, Hugh.

     E com isso ficou decidido.

     Para que ela não acreditasse que ele era uma presa tão fácil, Hugh esperou até deixá-la no quarto antes de responder:

     —Certo. Faremos. Mas só se você ficar perto de casa e fizer tudo o que eu disser para que possa te proteger. —Pegou-lhe o queixo com suavidade— Não podemos baixar a guarda. Nem sequer aqui.

     —Prometo.

     Hugh deu a volta para a porta e disse:

     —Me chame quando tiver se vestido e voltarei para te ajudar a recuperar sua bota.

     Quando Jane assentiu feliz, ele saiu do quarto. A névoa matutina tinha desaparecido. O sol começava a elevar-se no céu e iluminava a casa de tal modo que Hugh pôde valorizar melhor todas as reparações necessárias para transformá-la em um lugar habitável.

     Abaixo daquela luz, parecia até possível consegui-lo.

     Hugh estava convencido de que grande parte do trabalho poderia fazer ele mesmo. Talvez a idéia não fosse tão má. Sim, o trabalho duro esgotava qualquer homem e deixava sem energia qualquer mulher. Talvez aquele lugar fosse sua salvação.

     Jane gritou.

     Hugh correu para ela.

 

Jane levantou as saias e correu para fora, disposta a apanhar o olheiro que a estava espiando através de uma das gretas da madeira da janela.

     Deu a volta e topou com Hugh, que tinha detido o olheiro justo ao tropeçar com ele. O intruso deixou cair o chapéu, e uma longa cabeleira negra ficou descoberta. Uma garota? Sim, vestida com roupa larga e chapéu. Teria uns dezoito anos mais ou menos, era de constituição forte e estava cheia de sardas.

     Jane a assinalou.

     —Estava-me espiando enquanto me vestia.

     —Não é verdade — mentiu a garota.

     —Sim é. —Jane estava furiosa. Ela tinha visto perfeitamente como a espiã abria a boca quando a pegou. Depois se pôs a correr. Jane tinha a sensação de que alguém a estava olhando, mas acreditou que era Hugh.

     A garota tinha visto todo o espetáculo.

     —E por que ia olhar você enquanto se veste? Não se deu conta de que sou uma garota?

     “Provinciana”, balbuciou Jane entre os dentes em direção a Hugh, mas ele mal a olhou. Por sua parte, limitou-se a levantar a garota e soltá-la.

     —O que está fazendo aqui? —perguntou.

     —Como ninguém tira proveito desta terra, estive fazendo-o eu. —Assinalou com um dedo para os desmantelados estábulos— Esse galinheiro que há junto à quadra é meu, e detrás tenho um campo de nabos. Também tenho um cavalo — explicou. Jane observou o pequeno pônei que com seus largos dentes estava arrancando ervas daninha, amarrado a um pau. Amarrado a um pau? Como se fosse a alguma parte— Sou o mais parecido que têm a uma vizinha.

     —Como se chama?

     —Mórag MacLarty, com acento no MAC, se não se importar. É família do amo MacCarrick?

     —Sou seu irmão, Hugh MacCarrick. Minha mulher e eu ficaremos aqui este outono. Temos intenção de arrumar a casa.

     Mórag assentiu devagar.

     —Meus irmãos têm as janelas que encarregou o amo MacCarrick no ano passado guardadas em nosso celeiro. E também têm um montão de madeira para vender antes que chegue o inverno.

     —Essas são muito boas notícias.

     —E poderia contratá-los para que os ajudassem. São seis, e todos fortes como carvalhos. —A garota repassou a Jane e disse impertinente—: E também vai precisar de ajuda com as tarefas da casa.

     “Essa pequena harpia olheira...”

     —Sim, interessa-se?

     Mórag assentiu e pediu um preço para ir limpar, cozinhar e fazer roupa. Hugh aceitou e ficaram de acordo.

     Ele tinha contratado a uma donzela sem consultá-la. Jane sabia como cuidar de uma casa, e contratar ao serviço era uma das áreas que dependiam da mulher.

     —Durante ao menos duas semanas terá que vir todo dia — acrescentou Hugh— E terá que trabalhar tão duro como nós.

     Mórag fez uma careta em direção a Jane.

     —Isso não será nenhum problema.

     —Como se atreve, pequena...?

     —Jane, podemos falar um momento? —Hugh pegou Jane pelo cotovelo e disse—: Mórag, há alguma possibilidade de que jantemos algo quente esta noite?

     —Se consigo tirar os esquilos dos fogões, já pode contar com isso.

     Hugh assentiu e empurrou a Jane para o prado coberto de grama. Jane olhou para trás e viu como Mórag lhe mostrava a língua justo antes de entrar na casa.

     —Não a quero, Hugh. É uma impertinente.

     Hugh a olhou nos olhos.

     —Por que te cai tão mal? Porque te espiou enquanto se vestia? Com certeza jamais tinha visto nada parecido a suas sedas parisianas. E acredite se te disser que qualquer um ficaria olhando. Acredito que sentia curiosidade.

     Jane não podia dizer com exatidão por que não gostava da garota. Talvez fosse porque era óbvio que a Mórag, ou como que se chamasse, não gostava do mais mínimo.

     —Mostrou-me a língua — disse sem outros argumentos.

     —O último proprietário que viveu aqui foi um inglês muito, muito estúpido que tratou muito mal às pessoas destas terras. Está entendendo? —Ao ver que ainda não a tinha convencido, acrescentou— Quando o interior estiver habitável, o exterior me manterá ocupado desde que saia o sol até que se ponha. De verdade quer bombear água e depenar galinhas? E sabe algo sobre cozinhar?

     “Bombear, depenar, cozinhar”. Não eram seus verbos preferidos, nem que estivessem acostumados a associar-se a Jane. A idéia de arrumar aquela casa sozinha, de repente não lhe pareceu tão maravilhosa como antes. Nesse instante, ouviu-se um ruído procedente da cozinha. Aquela garota tinha encontrado os fogões! Jane olhou para Hugh surpreendida. Este aproveitou essa vantagem e disse:

     —Também pode ir ao povoado a comprar provisões.

     Jane levantou o queixo.

     —Talvez esteja bem ter a alguém por aqui, mas só para me ajudar enquanto eu trabalho. —Caminhou para a mansão com o Hugh preso a seus calcanhares. Uma vez dentro, Jane ficou séria— O que posso fazer? —perguntou à garota.

     —Não muito, com o aspecto que tem.

     Jane olhou para Hugh para que visse o que queria dizer, mas ele limitou a lhe dar um apertão no ombro.

     —Há alguma escada por aqui? —perguntou-lhe Hugh à garota.

     —No estábulo, bem atrás de meu cavalo e minhas coisas.

     Durante o momento que Hugh esteve fora, Jane tentou ajudar à garota, que, isso tinha que reconhecê-lo, era muito eficiente. Mas Jane teve a impressão de que só a incomodava, o que se confirmou quando Mórag explodiu:

     —Afasta seu esquelético quadril de meu caminho, inglesa.

          

     Os esquilos deram conta de que algo estranho acontecia em sua toca e começaram a expressar sua fúria.

     Quando Hugh retornou com madeira para queimar e uma manta empapada, Jane franziu o cenho:

     —Não vai acender o fogo bem debaixo delas, não? Pode ser que há bebês esquilo ou esquilos feridos e velhos...

     —O guisado de esquilo é muito saboroso — interrompeu Mórag.

     Jane a olhou horrorizada e voltou para o Hugh.

     —Guisado de esquilo?

     Hugh sorriu.

     —Jane, vou acender um fogo muito, muito pequeno com madeira úmida para que haja mais fumaça que outra coisa. Depois porei a manta empapada em cima da saída de fumaças. Terão tempo de sobra para correr até o telhado.

     Jane ainda não estava convencida quando Mórag disse:

     —Basta de perder tempo com esses malditos esquilos, inglesa. O que prefere? Dar de comer às galinhas ou lavar a louça?

     Jane limitou a morder o lábio inferior, assim Mórag decidiu por ela:

     —Cuidará das louças. —Com o queixo, assinalou um armário cheio— Pode levar isso à bomba de água que há na parte detrás e ali os lava. O sabão e as buchas estão em uma estante da cozinha.

     Embora Hugh se ofereceu a ajudá-la, Jane se negou:

     —Posso fazê-lo sozinha — disse convencida.

     —Não vá a nenhum outro lugar que não seja a bomba de água e depois volta aqui em seguida. Certo?

     —Hugh, sério. —Ao ver que ele não se alterava, balbuciou—: Certo.

     Jane começou a levar as louças para a bomba e Hugh aproximou de uma janela para poder vê-la.

     —Precisamos de comida —disse para Mórag— Mas não quero que ninguém saiba que estamos aqui, nem receber visitas de nenhum tipo.

     —Por que não?

    Hugh expôs em lhe dizer qualquer tolice, como por exemplo, que queria lhe dar uma surpresa a seu irmão, mas a garota era esperta, e tinha a impressão de que podia confiar nela.

     —Talvez apareça um inglês nos buscando. É um homem perigoso, um ao que preferiria evitar.

     Mórag o olhou e soube que não estava contando toda a verdade. Enquanto ambos soubessem a que ater-se, ao Hugh não importava o que pensasse dele.

     —O da loja saberá que estão aqui, e isso equivale a que saiba todo o povoado. Mas não se inteirará ninguém que não seja destas terras.

     Hugh acrescentou outra parte de madeira ao fogo.

     —Os aldeãos não gostam dos forasteiros?

     —Não, absolutamente. Os forasteiros os recebemos com cara muito má, e se por acaso aparece alguém perguntando por você, saberei em seguida. E eu mesma me assegurarei de que todo mundo saiba que estão de lua de mel e que por agora não querem receber visitas.

     Hugh levantou as sobrancelhas. Ir a esse povoado tinha sido quase como desaparecer da face da Terra. Hugh e Mórag se entendiam à perfeição. Ele assentiu e acabou de tampar os fogões com a manta. Depois saiu para fora. Pegou a desmantelada escada e subiu até o segundo andar para tirar os ramos que bloqueavam a saída da chaminé.

     Desde esse ponto tão elevado, Hugh podia vigiar Jane enquanto trabalhava. Quando ela voltou a entrar, ele contemplou a vista e entendeu por que seu irmão tinha comprado Beinn A’Chaorainn. Uma brisa ondulou a água do lago, mas logo parou e este refletiu a luz do sol como se fosse um espelho. Em um dia claro como esse, podia-se ver até trinta quilômetros além das montanhas que rodeavam o imóvel de Court.

     Durante há meia hora seguinte, Hugh observou o êxodo de esquilos e marcou os pontos do telhado que tinham que ser reparados quando os irmãos de Mórag fossem ajudá-lo. De vez em quando, desviava o olhar para a Jane, que estava absorta em seu trabalho.

     As louças eram pesadas e pouco manejáveis, mas a ela não parecia se incomodar fazer viagens e carregar só um par ou três em cada trajeto. Ia e vinha uma e outra vez, até que conseguiu amontoá-los todas como mangas e asas apontando em todas as direções.

     Então se aproximou da bomba, arregaçou-se a camisa e baixou a alavanca...

     Do grifo saiu disparado um montão de lodo negro que lhe salpicou todo o vestido e o rosto como se tivesse estourado uma lata de tinta.

     —OH, maldição — balbuciou Hugh e deslizou a toda pressa para baixo, levando atrás dele dois degraus da escada.

     Jane ficou muito tempo quieta, Depois cuspiu e limpou o rosto com o antebraço.

     A garota tinha feito de propósito, estava seguro. Mórag poderia ter dito a Jane que levasse as louças ao lago. Antes que Hugh chegasse junto a ela, Jane o olhou nos olhos e levantou um dedo para o deter.

     —Eu me ocuparei disto — disse entre dentes e com olhar assassino—Você não diga nenhuma palavra.

     —Jane, não penso tolerar isto...

     —Precisamente, por isso vou me ocupar do assunto. Ela me fez um desafio, assim vou aceitá-lo. — Pegou a maior panela e, com cuidado, encheu-a de lodo. Depois, dirigiu-se para o estábulo. Pesava tanto que lhe doía o braço e até a fazia perder o equilíbrio ao caminhar.

     Quando Jane saiu do estábulo, onde Mórag tinha colocado o seu cavalo e deixado suas coisas, a panela estava vazia, e Jane a sacudia feliz junto a sua cintura como se fosse uma cesta para ir recolher morangos.

    

No final do quinto dia, Hugh se sentia como uma caldeira a ponto de estourar. Mostra evidente de seu mal-estar era que o estado da mansão estava a ponto de estar modificada. Cada vez que tinha vontade de tocar em Jane, ficava trabalhando.

     No tempo que levavam em Beinn ao Chaorainn, Hugh fazia o trabalho de uma dúzia de homens.  

     Essa tarde serrou as madeiras para cobrir o chão da entrada enquanto Mórag e Jane limpavam o piso de cima. Os dias que fazia bom tempo e podia trabalhar fora, Mórag aproveitava para arejar a casa. Através das janelas, podia ouvir Jane cantando ou rindo enquanto limpava, ou vê-la um instante quando atravessava o salão.

     Hugh esperava com ânsia esses momentos.

     Graças ao trabalho duro dos três, as condições em que Jane e ele viviam tinham melhorado grandemente. Hugh tinha escolhido os dois melhores quartos da casa, que eram contínuos, para ele e Jane, e depois Mórag os tinha limpado a fundo. Embora só fosse para zombar do modo tão engraçado que tinha Jane de varrer.

     O segundo dia, Mórag apareceu com um cavalo de arrasto e um carro. Tinha comprado tudo o que precisavam: mantas, colchões, utensílios para a cozinha e limpeza, comida, etc. Mas, além disso, o lojista do pequeno povoado de Mórag a tinha convencido para que levasse um montão de coisas mais para o irmão do “amo MacCarrick”. Todos consideravam o Court como seu salvador, um guerreiro escocês que tinha reclamado aquelas terras ao presunçoso barão inglês. Um homem que tinha insistido em criar ovelhas e em dar aos aldeãos para que os animais tivessem mais pastos.

     A única que Court fez tinha sido capitalizar o mau investimento do barão, mas Hugh não ia contar isso a ninguém.

     De fato, Hugh estava cada vez mais convencido de que ficar ali tinha sido uma decisão acertada. E ter Mórag com eles era ideal, não só porque ajudava a transformar o interior e porque a contra gosto ensinava a Jane, mas também porque sua presença evitava que Hugh perseguisse Jane como um lobo no cio.

     O único problema com Mórag era que ela e Jane brigavam constantemente. Para Jane doía que zombasse dela por seu modo de falar ou por não ser dali. Hugh não queria que Jane se zangasse, mas não se importava que entendesse que “maldito inglês” equivalia a seu “rude escocês”.

     Às vezes Jane ganhava alguma das discussões, e Hugh a ouvia dizer:

     —Não, não. Prometi a mim mesma de que não me recriminaria.

     Outras vezes perdia, e tinha que reprimir as lágrimas.

     —OH. —calava-se um instante— Certo — dizia logo.

      Ela e Mórag competiam em tudo. Se ele descia algum móvel do sótão e o reparava, Jane e Mórag corriam para pintá-lo ou para envernizá-lo, e se preocupavam mais pelo que fazia a outra que por seus próprios progressos. Se trocava uma janela, corriam para ver quem a limpava primeiro. De fato, Hugh preocupava que Jane estivesse trabalhando muito, de um modo quase obsessivo. Hugh já sabia que era competitiva por natureza, mas aquilo parecia algo mais que mera rivalidade.

     Para distraí-la um pouco, Hugh transformou um fardo de palha em um alvo; pendurou um lençol e Jane pintou os círculos. Mas mesmo assim, Jane não deixou de trabalhar para poder treinar um pouco, mas sim levantava mais cedo para poder fazer tudo.

     Cada manhã, no pátio que havia entre a mansão e os estábulos, Jane embainhava suas luvas e carregava seu arco. O bafo de seu fôlego era visível no gelado ar matutino enquanto preparava o arco. Era algo precioso de observar, e ele o fazia em segredo cada manhã.

     Até Mórag parava assombrada junto à janela da cozinha.

     Apesar de Jane estar se comportando, Hugh continuava desejando-a com todas suas forças. Embora ela já não o atormentasse, vê-la continuava causando nele o mesmo efeito. Jane exalava sexualidade. Esse mesmo dia, ao passar junto a ela por um estreito corredor, Hugh tinha posto as mãos na cintura, e Jane tinha acelerado a respiração e ruborizaram as bochechas.

     Se Hugh passava em frente ao quarto de Jane e por acaso via suas meias ou sua roupa íntima atirada por aí, o estômago dava voltas do muito que a desejava. Como seus quartos estavam tão perto, cada noite Hugh dormia com o embriagador aroma de suas loções e seu perfume, e com a imagem de seus espartilhos de seda. Em outras palavras, cada noite se deitava duro como aço.

     Em várias ocasiões, Jane se aproximava e mordia o lábio inferior como se quisesse dizer alguma coisa muito importante. Hugh não tinha nem idéia do que podia ser, mas se sentia muito aliviado quando ela dava a volta sem dizer nada. Entretanto, Hugh sabia que, fosse o que fosse o que preocupava Jane, ela logo acabaria por dizer-lhe e não gostaria de nada.

     Quando Hugh não morria de desejo por Jane, se remoia de preocupação por seu irmão ou pela segurança dela. E dia após dia tinha o pressentimento de que algo ia acontecer.

     Algo muito mal...

    

     Hugh e seu cavalo estavam nos escombros da mansão, enquanto Jane continuava sentada no seu e se afastava um pouco para poder olhá-lo.

     Encantava-lhe observá-lo enquanto trabalhava, em especial quando ficava sem camisa. Cada vez que Hugh parava e secava o suor da testa com o antebraço, esticavam os músculos do abdômen e Jane sentia um nó na garganta. Estava segura de que não havia nada que fosse nem a metade mais bonito que esses abdominais cobertos de suor.

     Desde do dia de sua chegada, essa era a primeira tarde que Jane ficava livre. Mórag tinha ido cultivar couves e Jane, para alegria do Hugh, estava descansando.

     Jane estava convencida de que ele acreditava que ela trabalhava tão duro para competir com Mórag, mas não era assim; sabia muito bem que a garota sempre o faria melhor.

     Não, Jane trabalhava tanto para demonstrar a Hugh que podia ser uma boa esposa e que sairia ganhando se ficasse com ela. Tinha arrumado os jardins, pintado de novo os móveis e o cenário, decorado a casa com os tapetes que Mórag havia trazido dos artesãos do povoado. A essas alturas, a mansão era quase confortável, e inclusive caseira.

     Se acabasse perdendo Hugh não seria por não havê-lo tentado...

     —Passa-me a água, pequena?

     Jane piscou e jogou o cantil. Hugh bebeu com vontade e depois passou o antebraço pela boca. Adorava quando dos homens faziam isso. E quando dizia “homens” se referia a Hugh. Quando ele devolveu o cantil, estava tão ocupada olhando-o que o pobre deu dois saltos entre suas mãos e acabou no chão. Jane não podia controlar o desejo que sentia por ele. Embora ela já tinha deixado de tentar dissimular o que sentia, Hugh continuava sem tocá-la. Jane não podia deixar de perguntar o porquê.

     Hugh separou dela com expressão reservada e voltou para sua tarefa. Seu cavalo começou a puxar de novo.

     Ela tinha tentado começar o assunto de continuar casados, um com o outro, mas ele sempre a olhava como o tinha feito antes; como advertindo para não o expor. Jane se sentia como se fosse declarar-se e era perfeitamente capaz de admitir que se sentisse insegura. O habitual para ela era que os homens brigassem por dar tudo o que pedisse. E não ao contrário. Mas Hugh se mantinha distante e inescrutável.

     Jane tomou ar para criar coragem. Aquele era o melhor momento para fazê-lo. Antes que pudesse arrepender-se, perguntou:

     —Quer saber no que estive pensando?

     Hugh sacudiu a cabeça enfaticamente, assim Jane esperou vários minutos antes de perguntar:

     —Hugh, acha que serei uma boa esposa?

     Depois de pensar um pouco, Hugh respondeu devagar:

     —Sim.

     —Está seguro?

     —Sim.

     —Não o diz só para ficar bem?

     —Não. Qualquer homem se sentiria orgulhoso de que fosse sua esposa.

     —Então, por que não fica comigo?

     Hugh tropeçou e caiu de joelhos no barro.

     —Eu quero ficar com você — disse Jane, como se sua inocente pergunta não tivesse bastado para que o corpo e a mente de Hugh se descontrolassem.

     Ele se levantou amaldiçoando por dentro. Por que voltava a atormentá-lo? Maldita fosse, até então estava tendo um bom dia. Fazia uma temperatura nada própria da estação e, como sempre, gostava que Jane estivesse ali com ele. Ela falava e ria por algo e ele não podia evitar olhá-la de vez em quando e pensar que a Escócia lhe sentava muito bem.

     Tinha as bochechas rosadas e seus olhos, por incrível que parecesse, eram agora de um verde mais vibrante e seu cabelo acobreado brilhava ainda mais, como se a tivessem polvilhado com ouro.

     Sua pequena estava mais bonita a cada dia, mas agora o tinha deixado sem fala.

     —É uma pergunta razoável, Hugh.

     Ele começou a se zangar.

     —Não brinque com este assunto.

     Alguns instantes antes que soltasse a bomba, a expressão dela tinha passado de preocupação ao pânico e depois ao medo, mas agora era de pura determinação.

     —Não brinco —disse Jane muito séria— Absolutamente. Eu quero continuar casada com você.

     Hugh abriu a boca para falar, mas quando viu que ela havia dito a sério, não pôde pronunciar nenhuma só palavra.

     “Incrível.” Com voz rouca conseguiu articular por fim:

     —Isso não acontecerá, Jane.

     Jane queria ser sua amante e sua esposa? Hugh desejou poder ser o bastante egoísta para aceitar sua proposta.

     —Por quê? Se me der uma boa razão, desistirei. Mas do contrário... —advertiu Jane.

     —Já lhe disse isso. Nunca quis me casar.

     —Mas por quê? Me dê um motivo.

     —É que esse estilo de vida não é para mim — limitou a responder ele— Nunca foi e nunca será. Tem que reconhecer que nem todos os homens estão feitos para o casamento.

     —Eu acredito que você sim.

     —Você já não me conhece.

     —Porque você se nega a me contar nada — contra-atacou Jane.

     —Acredite. Tenho razão.

     —Está certo de que não quer nem tentar? Ver se quando tudo isto acabe podemos continuar nos dando bem?

      —Sim, estou muito seguro — respondeu Hugh obrigando-se a ser antipático.

     —De verdade? —perguntou ela devagar. E, como se não tivesse escutado nenhuma palavra do que Hugh havia dito, desceu do cavalo— É uma decisão muito importante. —Olhou-o solene— Acredito que quererá pensar melhor. —antes de afastar-se dele seus brilhantes olhos verdes se cravaram nos seus.

     Hugh se deu conta de que o tinha olhado do mesmo modo que olhava o alvo antes de apontar com suas flechas.

    

Agora que por fim se atreveu em ter aquela conversa de que continuasse casados, ao longo da semana seguinte, Jane não deixou escapar nenhuma oportunidade para voltar a falar disso.

     Hugh estava no desmantelado pórtico, tentando escovar o novo painel de madeira dinamarquesa de uma das colunas. Não sabia o que pensar do último estratagema de Jane, mas continuava desejando vê-la a cada instante.

     Na noite anterior, Hugh sentou e bebeu um pouco de uísque no tapete que havia diante da lareira. Jane ficou de joelhos atrás dele e massageou os esgotados músculos das costas enquanto roubava pequenos goles de bebida. Hugh foi relaxando e as pálpebras começaram a pesar.

     O fogo, o uísque, sua mulher lhe dando uma massagem depois de um duro dia de trabalho. “Felicidade.” Saboreou sua bebida...

     —Pensou em nosso casamento, meu amor?

     Hugh se engasgou. Quando tossiu, sorriu inocente.

     Nessa mesma manhã, de caminho a suas práticas matutinas, Jane havia dito em tom despreocupado:

     —Percebi que não tem nada para ler, exceto esse livro tão estranho, assim deixei uma novela junto a sua cama. —Quando ele ficou embevecido olhando suas costas, acrescentou—: E marquei as cenas que mais gosto.

     Hugh sabia perfeitamente de que tipo de novela falava. Mal a perdeu de vista, subiu ao quarto impaciente por ver o que era o que mais gostava. Ali, em cima do travesseiro, descansava aquele livro da falsa capa. Abriu-o em seguida. Cinco minutos mais tarde, sentou-se na cama e, com as mãos tremulas, esfregou o rosto.

     Se aquelas eram as cenas que mais gostava, eles dois se entenderiam à perfeição...

     Não, maldição, isso só era a nova estratégia de Jane. Com todas as armadilhas que lhe punha, Hugh achava impossível esquecer que a mulher de seus sonhos estava ao seu alcance. Hugh era como um cavalo no cio ao redor de sua égua; não podia concentrar-se, não podia pensar em nada que não fosse o quanto cheirava bem o seu cabelo ou no sabor de sua pele.

     Seus olhos a seguiam a todas as partes. Jane tinha tomado por costume usar um lenço como um diadema para trabalhar, e cada vez que cozinhava ou fazia qualquer outra tarefa, desabotoava alguns botões da camisa. Hugh sempre tinha a sensação de que esses seios úmidos de suor iam escapar pelo decote. A sempre elegante Jane parecia agora uma sensual garçonete, e Hugh adorava a mudança.

     De fato, não podia dizer qual versão de Jane gostava mais: a beleza intelectual de Londres, a arqueira com luvas de caça ou aquela relaxada sedutora.

     A necessidade que sentia por ela era inexorável. Já não podia nem pensar com claridade. Passava o dia todo excitado, e de noite não podia dormir a não ser que se masturbasse. Uma dessas noites, depois de sonhar que ela estava em cima dele fazendo amor, despertou molhado de suor e a só três segundos de ejacular.

     Jane o tinha no fundo, derrotado. E quando o olhava com aquela mescla de inocente curiosidade e desejo descarado, só uma coisa impedia que respondesse ao rogo que havia em seus olhos: o livro.

     Agora o tinha sempre à vista e o abria freqüentemente. Recordava o que ele era...

     Ao ver que fazia mais de uma hora que não via Jane nem a ouvia cantar, Hugh franziu o cenho. Desejou que tivesse ido descansar durante algumas horas, em vez de continuar trabalhando como uma louca, como estava acostumada a fazer, mas soube que não era assim.

     Deixou de um lado a escova, sacudiu o pó das calças e encaminhou-se para a porta principal. Encontrou-se com Mórag, que se dirigia à cozinha com uma cesta cheia de nabos.

     —Onde está minha mulher?

     —A última vez que vi a inglesa estava na ala norte. —encolheu os ombros— Me disse que ia encerar os chãos.

     Hugh assentiu e pegou uma maçã de uma tigela, mas ao perceber um aroma inconfundível, soltou-a imediatamente.

     —Que diabos está fazendo agora? —perguntou a garota enquanto enrugava o nariz.

     —Parafina, Mórag — gritou Hugh e pôs-se a correr— Pensa.

     Mórag ficou boquiaberta, e atirou a cesta para correr atrás dele.

     A cera de parafina era para os chãos.

     E era muito fácil confundi-la com o óleo de parafina, também conhecido como querosene.

     Hugh entrou no quarto e fez um nó na garganta. Jane tinha molhado toda aquela sedenta madeira com litros de querosene.

     Ela ficou de pé.

     —Queria te dar uma surpresa quando estivesse tudo terminado. —esfregou o nariz com o reverso da mão— Mas me sinto um pouco enjoada. —Com esforços, pegou um saco de areia e disse—: Agora ia aplicara na parte mais seca...

     —Não! —gritaram Hugh e Mórag ao mesmo tempo. “Uma faísca...”

     Com o coração em punho, Hugh correu para Jane enquanto Mórag exclamava:

     —Como é tola, inglesa?

     Jane piscou, e ao ver que Hugh a tirava para fora, supôs que havia tornado a enganar-se em algo.

     —O que fiz de errado? —perguntou ao ver que Hugh tirava toda a roupa exceto a camisa.

     —Desta vez estou de acordo com a Mórag. —Jogou em cima um montão de água de uma vez que lhe esfregava as mãos e os braços para eliminar os resíduos do óleo— Trabalha muito, e quer fazer mais do que ninguém poderia. Este óleo é inflamável, e normalmente só o usam os profissionais. Se uma gota de cera tivesse caído na saia, teria ardido como uma tocha.

     —OH. —Jane mordeu o lábio inferior— Está zangado.

     —Preocupado.

     —Hugh, tenha paciência comigo.

     —Deus sabe que o tento, pequena.

     Quando Hugh viu que Mórag se dispunha a ir-se, disse a Jane:

     —Esfregue bem as pernas e os pés. Em seguida volto. —E se encaminhou ao estábulo para falar com a garota—: Mórag, quero que mantenha afastada a minha esposa de todos os produtos inflamáveis que haja nesta propriedade. Tranque-os sob chave se for necessário. E triplicarei o salário se evitar que volte a       ala norte até que eu tenha trocado o chão.

     Hugh deu a volta para gritar a Jane:

     —Esfrega forte!

     Jane se sobressaltou, mas fez o que ele pedia.

     Mórag o olhou zangada.

     —Não vai brigar mais com a inglesa? Depois de ter destruído esse quarto?

     Hugh encolheu os ombros.

     — A partir de agora, assegurarei-me de que entenda que aqui há certas coisas perigosas, mas, não, não lhe direi que danificou todo esse chão de mogno.

     —Eu ficaria furiosa. —Mas Hugh soube que Mórag estava tendo carinho com Jane quando a garota acrescentou—: A inglesa não é estúpida, teremos que nos assegurar de que o chão novo pareça igual a velho.    

    

     —Já está na hora de que me diga por que se empenha em trabalhar tanto, pequena — disse Hugh ao voltar com ela.

     Jane tinha frio, e estava um pouco enjoada, mas adorava que Hugh movesse as mãos percorrendo os seus braços de cima e abaixo em busca de resíduos de óleo. Sorriu aturdida.

     —Estou tentando te impressionar. Para que fique comigo e me deixe viver com cocê em sua casa junto ao mar.

     Quando Hugh começou a esboçar um sorriso, interrompeu-o:

     —Não é brincadeira.

     Sua careta se transformou em aborrecimento.

     —De volta ao assunto do casamento? Outra vez? É tão teimosa como os escoceses! Sabia?

     —Eu poderia te fazer feliz —insistiu ela— E você tem idade para se casar.

     —Maldição, pequena, você não gostaria de estar casada comigo.

     —O que teria de diferente do que fazemos agora?

     Quando Hugh aceitou casar-se com Jane, acreditou que ela estaria ansiosa por escapar daquela situação. Supunha-se que isso estava certo. Ele nunca teria imaginado que acabaria discutindo consigo mesmo, enquanto abraçava a uma Jane ensopada de água cujos turgentes seios se apertavam contra ele. Começou a mover as mãos mais devagar.

     De qualquer modo, fazia um momento que tinha perdido a concentração. Supunha que tinha que ser capaz de formular uma frase coerente sentindo os seios de Jane pregados a seu peito? Estava mal. Recordou a última vez que os beijou, que os sentiu tremer sob sua língua...

     Afastou-se e retirou as mãos do corpo de Jane.

     —Jane, deixa-me. Eu não sou um bom homem. E não seria um bom marido.

     —Para mim isso tem sentido. É o movimento mais lógico entre nós. Já estamos casados, e já cumprimos com todos os trâmites. —Em voz baixa, acrescentou—: O único que falta é que me faça amor.

     —Lógico? Quer que continuemos casados porque é lógico? Essa é a única maldita coisa que não é.

     Jane juntou as sobrancelhas e o olhou nos olhos.

     —O que tenho de errado, Hugh?

     Ele nunca teria imaginado que uma mulher como ela pudesse sentir-se insegura. Não podia permitir que pensasse isso. O que significava que tinha que dizer a verdade. Ao menos, parte da mesma.

     —Não é você. Sou eu.

     Foi evidente que isso era o pior que poderia ter dito. Jane ficou gelada imediatamente.

     —Tem idéia da quantos homens disse essa frase para não ferir meus sentimentos? —cruzou os braços e se separou dele—. OH, como mudaram as coisas. Agora a infeliz a quem consolam com tópicos sou eu.

     —Jane, não. —Hugh esticou o braço e descansou uma mão no quadril dela para aproximá-la para ele— Você é tudo o que um homem poderia desejar em uma mulher. —Olhou-a nos olhos— A verdade é... a verdade é que se eu alguma vez tivesse intenção de me casar, só me casaria com você; com ninguém mais.

     Jane inclinou a cabeça.

     —Com ninguém mais?

     —Com ninguém. É sério que é minha culpa. Eu tenho... dificuldades que me impedem de me casar.

     —Só me dê uma razão pela que não queira se casar.

     —Isso só conseguirá que me faça mais perguntas. Já lhe disse isso uma vez, não descansa até que descubra toda a verdade.

     —Hugh, isto me incumbe, e mereço saber. Só te peço que seja justo.

     —Sim, sei. Acredite, eu sei. Mas antes tem que entrar em casa e te secar.

     —Não penso me mover até que me dê uma razão.

     Por fim, depois de hesitar por um longo tempo, Hugh disse:

     —Eu não... não posso te dar filhos.

 

       –OH — disse Jane antes de soltar o fôlego que não sabia que continha—. Por que não?

     —Nunca pude.

     Hugh tinha razão. Agora ela morria de vontade de crivá-lo com perguntas.

     —E suponho que tentou — disse Jane, fazendo esforços por dissimular o quanto estava sofrendo. Só de pensar que ele quisesse ter filhos com outra mulher lhe retorcia as vísceras.

     —Por Deus, não. Nunca tentei.

     Jane franziu o cenho.

     —Então, como sabe?

     —Meus irmãos tampouco podem.

     Ela abriu um pouco os olhos. Uma enfermidade infantil. Poderia ser. Abriu-os um pouco mais. Por isso não queria casar-se com ninguém? Ou por isso não queria casar-se com ela?

     Isso explicaria tudo! Jane cambaleou e Hugh a segurou com mais força. Hugh não queria lhe negar a ter filhos. Ele sempre tinha sido assim generoso. Isso tinha sentido, essa era a explicação em busca da qual se esteve desanuviando os miolos! Mas isso não a preocupava absolutamente. Se tiver seu escocês, podia viver toda a vida sem filhos. Ao fim, suas primas continuariam criando, e logo alagariam a Jane com um montão de crianças com os que brincarem.

     Se o dia que viu seu anel de casada sentiu como se seu coração fosse um carro rodando desenfreado, agora sentia como se alguém tivesse acendido fogo a esse carro e o tivesse jogado colina abaixo.

      O primeiro impulso de Jane foi atirar Hugh no chão e comer-lhe a beijos, mas se conteve, e deu conta quase imediatamente de que era uma má idéia. Acreditou que atrás dessa confissão, ele se sentia vulnerável, e não queria que acreditasse que ela se alegrava de sua desgraça. Seu segundo impulso foi de brigar por ter acreditado que isso seria um obstáculo, mas isso implicaria que não respeitava sua opinião sobre um assunto tão delicado.

     Os homens estavam acostumados a se importar muito essas coisas. Sentiria-se menos homem por isso? Jane respirou fundo. “Seja sensata.”

     —Entendo. Agradeço por sua confiança. —Soou calma e razoável.

     Hugh assentiu sério.

     —Nunca havia dito a ninguém. Mas agora entenderá por que não quero me casar.

     —Entendo.

     Ele assentiu sombrio.

     —Mas isso não faz que mude de opinião sobre nós.

     —O que? —Ele quase gritou e, depois de soltá-la de novo, deu um passo para trás.

     —Não sei como te convencer de que isso não teria um impacto muito grande em minha vida.

     —Você me disse que adorava crianças. Inclusive me fez uma lista dos motivos.

     —Adoro as crianças dos outros — respondeu ela fazendo uma careta. Ao ver que Hugh franzia o cenho, ficou séria— Se acha que morro de vontade de ter um, engana-se. Quero muito as crianças com os que me viu porque é minha família. —Afastou o olhar— Espero que não ache que sou uma mulher sem sentimentos por não sentir essa necessidade. Não havia dito isso a ninguém.

     —Alguma vez pensou em ter filhos?

     —Se me casar e vier, perfeito; se não também.

     —Não acreditava que reagiria deste modo — disse ele e esfregou a nuca.

     —Lamento te decepcionar. Mas para mim isso não muda nada.

     —Maldição, o único motivo pelo que está empenhada nisto é porque não pode o ter. Quando o tiver, o desejo desaparecerá.

     —Isso não é certo.

     —Faz anos te empenhava em ter coisas que não queria só porque você gostava de brigar por elas. Você adorava a provocação. Reconheça!

     “Bom, talvez em uma ou duas ocasiões...” Mas inclusive de pequena, quando estava convencida de que acabaria casando-se com o Hugh e, portanto, nisso não havia nenhuma provocação—, não podia pensar em nada que não fosse ele.

     —E o que acontecerá se me rendo e seu interesse desaparece? —exigiu saber ele— Quando retornar a Inglaterra e voltar a ver seus amigos e a sua família e retorne as suas festas, seu desejo de estar comigo desaparecerá. Eu o vejo muito claro, Jane.

     —Ainda não desapareceu — murmurou ela.

     Hugh riu sem humor.

     —Ah sim, claro, nestas poucas semanas que estamos juntos?

     Jane sacudiu a cabeça.

     —Não. Não desapareceu nos dez anos que estivemos separados. Ou podemos arredondá-lo na metade de minha vida, mais ou menos.

     Hugh sentiu que formava um nó na garganta.

     —Quer dizer...? Não está querendo dizer que...? —quebrou a voz— Eu, Jane?

     Jane suspirou.

     —Sim, você.

     Hugh se esticou no mesmo instante em que Jane acreditou escutar cascos de cavalo na entrada de madeira. Com um rápido movimento, Hugh deu a volta, escondeu-a atrás dele e tirou a camisa para cobri-la com ela.

        

     Quando Grei perdeu o rastro de Hugh na Escócia, sabia que suas possibilidades não eram muitas.

     Aquele era o país de Hugh, e aquelas terras era seu elemento, não o de Grei.

     Pior ainda. Hugh saberia que era o bastante bom para despistar Grei. E isso irritava ele sobremaneira.

      Se Grei não tivesse perdido tempo com Ethan, Hugh e Jane não teriam escapado naquela noite. Pareceu-lhe irônico pensar que para matar um irmão tinha tido que deixar escapar o outro.

     Apesar de que Grei conhecia um montão de países do oeste da Europa e do norte da África como a palma de sua mão, jamais tinha trabalhado na Escócia. Falava quatro idiomas com fluidez, mas o gaélico não era um deles. Quanto mais ao norte entrava, mais fechado era o acento e mais antipatia sentia os aldeãos para os ingleses. E muita mais ainda por Grei, que tinha um aspecto gasto e doentio. Parecia um louco.

     Expôs-se retornar para Londres e torturar Weyland, mas sabia que o ancião não falaria, e provavelmente tampouco soubesse onde estavam exatamente.

    Grei começou a duvidar se conseguiria encontrar com eles, mas de repente se lembrou de que em todos os procedimentos habituais da associação se aconselhava a seus membros que se refugiassem o mais perto possível das linhas de telégrafos. Assim podiam enviar-se e receber mensagens, cifrados, é obvio, e manter-se informados.

     Acreditava que, como muito, Hugh tinha se instalado a um par de dias de distância da estação de telégrafos mais próxima. Quereria saber se o tinham apanhado ou matado para poder retornar a casa o quanto antes. Apesar de que Grei conhecia todas as chaves para decifrá-los, sabia que ninguém mandaria nenhuma mensagem até que o matassem. O que para ele era um problema. Como podia obter Grei que Weyland mandasse um telegrama?

     Então se deu conta de que não fazia falta que o apanhassem ou o matassem para obter isso.

     A morte de Ethan era uma notícia o suficientemente importante.

     Grei estava seguro de que mandariam a Hugh um telegrama urgente lhe informando da situação de seu irmão. Para isso, enviaria a mesma notícia a diferentes escritórios de toda Escócia. Ao cabo de uns dias, Grei descobriu, utilizando diferentes níveis de violência, que só receberam telegramas em quatro escritórios postais, e duas estavam situadas em um pequeno local tocando na fronteira. Grei já tinha alcançado os quase cento e cinqüenta quilômetros e quanto redonda abrangia a primeira e estava a ponto de terminar com a segunda. Hugh tinha que estar em algum lugar ale por perto.

     Por desgraça, as pessoas eram iguais, fria como sempre, e o dinheiro os deixava indiferentes.

     Estava a ponto de dar uma surra em um indivíduo para obter informação quando ouviu o repico de alguns cavalos. Deu a volta e, ao longe, viu uma garota sair de um caminho entre os bosques, um que não tinha visto o passar.

     Ia sozinha, cavalgava relaxada sobre um pônei em direção oposta à sua e não levava garupa. Uma viagem de um dia. Interessante. O que tinha escondido entre esse mato? Talvez a guarida de Hugh?

     Acreditando que aquela garota era igualmente reservada como o resto dos escoceses que tinha conhecido, mas Grei sorriu de qualquer modo, e deslizou um pouco de sua medicina entre os lábios para preparar-se. Era óbvio que aquela moça trabalhava para viver. A mão de Grei deslizou para a adaga que levava a cintura.

     Ele sabia de sobra que às mulheres trabalhadoras não gostava nada perder um dedo.

 

Jane descansou o queixo na palma da mão e continuou olhando pela janela como Hugh bebia acompanhado daquele punhado de fortões.

     O ruído de cavalos que tinham ouvido antes não era mais que meia dúzia de enormes escoceses montados no que pareciam ser cavalos de batalha: os irmãos de Mórag. Tinham vindo para lhes ajudar a arrumar a parte que faltava do telhado.

     Hugh agradeceu-os e ofereceu a eles um pouco de uísque feito em casa, mas a ela não a convidou. Jane não sentiu incomodada com isso. Não muito. Como tampouco se incomodou que Hugh não se mostrou particularmente interessado por sua revelação, ou ao menos não tinha inquietado o suficiente como para não deixar de beber com aqueles garotos até o anoitecer.

     Jane ainda estava alterada pelo que Hugh havia dito, e tinham muitas mais pergunta que fazer, mas ele seguiu ali fora durante horas. Para alguém que dizia ser um solitário, Hugh parecia dar-se muito bem com todos aqueles homens, e eles o tratavam como um a mais. Jane franziu o cenho. Era um a mais. Hugh era um orgulhoso e enorme escocês, e quando falava naquele tom de voz tão dele, aqueles sujeitos se calavam e o escutavam. Em tão pouco tempo já começavam a respeitar o seu sério e paciente marido.

     Jane levou uma mecha de cabelo aos lábios e brincou com ele, depois espirrou. Deus, teria que banhar-se em ácido para tirar de cima aquele cheiro. Ainda não tinham banheiro e, embora o tivessem, há essas horas não teria podido esquentar água. Hugh não sentiria falta dela se fosse banhar-se à lacuna, e de qualquer jeito tampouco podia lhe pedir que a acompanhasse sem que ele a acusasse de “o atormentar”.

     Pegou o necessário para o banho e uma toalha. Saiu pela porta lateral, a que ficava mais longe de onde estavam os homens. Passeou relaxada e, enquanto olhava o céu estrelado, pensou naquelas últimas semanas que tinha passado com o Hugh. Jane acreditava por fim que estava esgotando-o, mas de verdade queria um homem que tinha que “esgotar” para convencê-lo de que lhe fizesse amor? Um homem que parecia não se importar que ela levasse anos sentindo algo por ele?

     Quando chegou à lacuna maravilhou-se do quanto tudo ali era bonito. A lua cheia brilhava amarela e majestosa no céu e refletia por cima da bruma que cobria a superfície da água. O vapor escapava por entre as rochas que albergavam as águas termais.

   Tirava o fôlego. Maldição, Jane não queria deixar a Escócia. Agora Londres parecia monótono, sujo e sem alma. Quando apanhassem Grei, como poderia retornar ali depois de ter vivido naquelas terras com o Hugh?

     Suspirou e se despiu. A água parecia estar maravilhosa para continuar resistindo à tentação e se meteu nela. Deixou o sabão e os óleos em uma pedra, perto da borda, e lavou o cabelo a fundo. Quando ia mergulhar para tirar espuma, Hugh apareceu.

     Pela primeira vez, ouviu-o antes de vê-lo. Jane olhou por cima de seu ombro e o viu despenteado e cansado, mas seus olhos... ardiam selvagens.

     —Não tinha por que vir me buscar — disse Jane— Volta com seus novos amigos.

     Ele se manteve em silêncio, olhando-a.

     —Está bêbado? —Ela nunca o tinha visto desse modo. Inclusive em Vineland, apesar de que todos beberam muito, ele só tomou um copo de uísque.

     —Sim — respondeu por fim— Mas isso tampouco me ajuda.

     —Te ajudar em que? —perguntou ela desconcertada por essa nova faceta de Hugh.

     —A deixar de te desejar dia e noite. E me dei conta de que só há uma coisa que possa fazer.

           A água cobria Jane até a cintura, e seu cabelo cobria as costas. O vapor elevava a seu redor e a lua brilhava no céu iluminando a pálida perfeição de seu corpo.

     Ambos ficaram um longo momento sem se mover, com a respiração acelerada, esperando ver o que faria o outro. A não ser que tivesse tirado o sarro, essa deliciosa mulher tinha reconhecido que fazia anos que sentia algo por ele... Anos.

     Hugh preferiria não ficar sabendo jamais.

     Ele não ficou bebendo com os irmãos MacLarty só para assegurar-se de que nenhum tinha intenções desonestas respeito de sua mulher, em especial depois de tê-la visto molhada e usando só sua camisa. Ele ficou bebendo porque ela o tinha deixado estupefato.

     Jane deu a volta de tudo, com os braços a ambos os lados do corpo. E algo dentro dele simplesmente... explodiu.

     Soltou uma maldição e tirou a camisa, as botas e as calças. Mergulhou junto a ela e, ao emergir, arrastou Jane para ele para apertá-la contra seu peito. As mãos dela subiram e rodearam o pescoço de Hugh, enquanto o roce de seus sensuais seios o faziam gemer de desejo.

     —Achei que isto iria acontecer, mas não foi assim — disse ele contra o pescoço de Jane— Agora é muito pior. Como demônios pode ser ainda pior?

     —Não... não te entendo, Hugh.

     —Já me entenderá — disse ele, e com um braço derrubou todas suas loções colocadas sobre a rocha. Sentou-a ali sem contemplações, e ficaram um em frente ao outro. Jane abriu a boca surpreendida, mas ele limitou a olhá-la, como se quisesse que aquela cena ficasse para sempre gravada em sua memória. O cabelo de Jane deslizava por seus seios até suas coxas. Os sedosos cachos de seu sexo destacavam entre a palidez de suas pernas— É linda — gemeu ele— Me atormenta. Se soubesse o quanto...

     Hugh colocou seus quadris entre as pernas de Jane e se aproximou dela para beijar o lóbulo da orelha. Jane suspirou e relaxou, e permitiu que ele separasse um pouco mais as suas coxas.

     Hugh cobriu os seios com as mãos e começou a acariciar-la. Então, ela o olhou ofegante e ele se agachou e beijou um dos mamilos tal como queria fazê-lo durante toda essa tarde.

     Jane gritou de prazer, e ele soube que, embora quisesse, não podia evitar o que ia acontecer. E ele não queria evitá-lo.

     Mudou de seio e a lambeu com força, mas ela gostou, e agarrou a cabeça para que não se movesse ao mesmo tempo em que se arqueava para trás para desfrutar ainda mais.

     Quando se assegurou de que ambos os seios estavam igualmente excitados, Hugh se afastou e, à medida que lhe separava as pernas, começou a agachar-se. Quando sua boca esteve a poucos centímetros do sexo dela, parou um instante para que Jane sentisse seu quente fôlego; depois a beijou e deslizou a língua em seu interior. Ela gemeu e Hugh fechou os olhos de felicidade, concentrado em desfrutar do quanto era sedosa sua pele e do quanto estava úmida.

     Olhou para cima para ver sua reação e viu que ela olhava com os olhos abertos e sem nenhum pudor. Isso o excitou ainda mais, coisa que parecia quase impossível. Separou-lhe os lábios com os polegares e a beijou para que ela não esquecesse jamais essa imagem dele ali. Entre esses beijos, conseguiu pronunciar:

     —Tinham feito isto antes?

     Jane sacudiu a cabeça.

     —N... não, nunca.

     Hugh sabia que sua expressão era de menino travesso.

     —Vou fazer que goze como nunca em toda sua vida.

     Ela gemeu.

     —Está seguro, Hugh? —perguntou nervosa— Estando você aí embaixo?

     —Quero sentir seu orgasmo em meus lábios — gemeu ele antes de lamber o clitóris dela pela primeira vez.

     Ela gritou de prazer e enredou os dedos em seu cabelo agarrando-lhe com força.

     —Hugh, o que você quiser, sim! Aí. OH, Deus, sim!

     Quando ouviu isso, Hugh perdeu o controle... Sentir como seus seios se excitavam entre suas mãos, sua suave pele sob sua língua... poder saboreá-la, devorá-la, acariciá-la. Hugh empurrou um pouco mais as coxas de Jane e separou mais os joelhos para assim ter maior acesso a aquele delicioso sabor. Ela soltou um gemido mais agudo e começou a ondular os quadris contra seus vorazes lábios, em completo abandono.

     Hugh se afastou um instante para dizer:

     —Agora, faça-o por mim.

     E voltou a lamber seu sexo. Quando ela começou a alcançar o orgasmo, seus longos gemidos só eram interrompidos por palavras de assombro:

     —Eu gosto tanto. Hugh, faz-me sentir tão bem.

     Ele continuou acariciando-a com frenesi, enquanto ela continuava sacudindo-se e, a cada palavra de Jane, sua ereção palpitava mais e mais dentro da água. Quando seu clímax começou a esgotar-se, ele se afastou por fim e levantou para ficar frente a frente.

     —Tenho que estar dentro de você — grunhiu desesperado por afundar-se naquela pele que resplandecia, aberta diante dele. Ficou louco e, com uma mão, segurou seus braços por cima da cabeça contra uma rocha.

     Jane abriu as pálpebras que até então estavam meio fechados e se apressou a dizer:

     —Espera, Hugh. Seu... Me solte. Tenho que te dizer uma coisa. —Mas suas palavras pareciam indecifráveis enquanto ele continuava acariciando o sexo dela com uma mão— Hugh, espera, por favor.

     —Eu... —balbuciou ele sem soltar seus pulsos—, eu esperei muito, maldição, não penso esperar mais.

     —Mas...

     —Chega de falar. —Estava farto de escutar— Me enfeitiçou. —Hugh queria castigá-la como ela tinha castigado ele uma e outra vez. Queria que ela experimentasse a dor que tinha sentido naqueles dez anos, e queria que soubesse o muito que ele tinha sofrido. Separou-lhe as pernas, e estava a ponto de possuí-la, de afundar-se nela. Por fim.

     Com a mão que tinha livre, acariciou-lhe os seios e sentiu como a ponta de seu sexo se movia procurando penetrar em Jane.

     —Já te disse que não sou um bom homem. Se tivesse acreditado, se soubesse tudo o que tenho feito, não quereria que te tocasse. Mas não parou de me provocar, uma e outra vez.

     —Sei, sei. —A expressão de Jane se suavizou e seu corpo se relaxou—. E sinto muito. É só que te necessito, Hugh —sussurrou beijando o pescoço— Tanto que não posso pensar em nada mais que não seja você. —A luz da lua refletiu em seus lábios, e quando Hugh recebeu essas palavras contra sua pele, sentiu algo indescritível... sentiu que tudo iria sair bem.

     Ela o olhou nos olhos. Olhou-o com desejo, mas também com confiança.

     Hugh lhe soltou os pulsos e apoiou a testa contra a dela.

     —Maldição, Jane.

     De verdade tinha pensado que podia machucá-la? Ele tinha nascido para amá-la e para desejá-la.

     —Não se zangue, por favor — murmurou Jane— Eu quero que isto aconteça, mas só se você também quiser.

     Hugh quase põe-se a rir. “Só se ele queria?”

     —Quero, Sine. —Hugh se alegrou de que ela o tivesse feito repensar. Não porque quisesse uma desculpa para deixá-lo. Nesse sentido, seu destino já estava selado, mas não queria tomá-la como um animal no cio. Não na primeira vez.

     Mal podia acreditar que ia fazer, mas já estava decidido. Por uma vez em sua vida ia ter à mulher que desejava por cima de todas as coisas deste mundo. Não a merecia, mas era um bastardo egoísta. Não a merecia, mas Deus, necessitava-a.

     Conseguiria que tivesse outro orgasmo. Ele tinha tido intenção de que o próximo o alcançasse com ele dentro dela, mas ao ver o quanto excitado estava, tinha medo de fazer o ridículo e não poder fazer mais que um movimento antes de perder o pouco controle que ficava.

     Deslizou um dedo dentro de sua umidade, e ela gemeu e arqueou os quadris ao encontro de sua mão. Estava úmida de desejo por ele, mas estava muito fechada.

     —Hugh — gemeu Jane quando ele afastou o dedo e a seguir introduziu dois para prepará-la. Moveu-os de novo dentro dela ao tempo que Jane arqueava as costas...

     Então Hugh ficou petrificado. Olhou-a confuso e disse preocupado:

     —Jane, é virgem?

     Para ouvir seu tom de voz, ela abriu os olhos e mordeu o lábio, sentindo-se culpada.

     —Eu ia dizer.

     Hugh retirou os dedos e, ao pensar no que tinha estado a ponto de fazer, estremeceu-se. Tinha estado a ponto de machucá-la, queria fazê-lo, sem saber quão devastador isso teria sido.

     —Por que não me disse isso?

     —Acreditei que se soubesse ainda teria menos possibilidades de que quisesse me fazer amor.

     —E tinha razão! —Entrecerrou os olhos— Mas e Bidworth?

     —Nem sequer se aproximou o suficiente.

     O aliviou que Hugh sentiu foi entristecedor, mas então se deu conta de que não podia estar com ela. Entretanto, quando ia afastar se, Jane agarrou os quadris e o manteve pregado a ela.

     —Hugh, quero que seja você, só você. Esperei tanto tempo, e sei que você fará que minha primeira vez seja incrível.

     Jane não poderia haver dito nada mais convincente. Hugh sabia que era a verdade. Ele tinha imaginado incontáveis vezes apropriando-se de sua virgindade, tinha visualizado tudo o que faria para que ela não sentisse nenhuma dor. Faria tudo o que pudesse para lhe agradar. Poderia algum outro homem estar à altura do Hugh?

 

–Farei — declarou Hugh, e voltou a levar os dedos onde os tinha tirado— Quero ser eu quem te ensine isto. E para isso tenho que me assegurar que está preparada. —Começou a acariciá-la, a atormentá-la, a derreter de desejo por ele até levá-la ao limite. Sem piedade, manteve-a ali enquanto a percorria com suas mãos uma e outra vez.

     Jane gemeu com ânsias, e estava já disposta a suplicar.

     —Hugh, já estou preparada! —gritou— Te necessito muito... por favor...

     Ele estava magnífico sob a luz da lua, seus olhos brilhantes de paixão, da necessidade que sentia de possuí-la. Jane apoiou as mãos no úmido peito de Hugh e gostou de ver que os músculos se flexionavam sob suas carícias.

     Por fim, ele se situou diante dela e apertou a mandíbula com força quando o extremo de seu sexo encontrou a entrada do sexo da Jane.

     —Está tão quente... tão úmida. —Tinha os lábios entreabertos e a respiração entrecortada— Tenho que me concentrar ou gozarei aqui mesmo. —Começou a penetrá-la devagar e ela sentiu como ele ia abrindo-se passo a passo, mas apesar do muito que a tinha preparado, o caminho continuava sendo estreito— Diga-me — gemeu ele penetrando-a quase por completo— Diga-me o que significa o que me disse esta tarde, Sine.

     Quando Hugh se encontrou com a barreira, Jane estava tremendo, e se agarrou a seus ombros com força. Ele suava pelo esforço que estava fazendo para ir devagar, e inclinou a cabeça para lhe perguntar o mesmo com os olhos.

     —Sou tua — sussurrou Jane— Toda tua. —Ela nunca esteve tão segura de nada em sua vida.

     Hugh gemeu e empurrou. Jane sentiu o puxão e suspirou ao mesmo tempo em que ele dizia entre os dentes.

     —Está tão apertada... —estremeceu, mas ficou quieto dentro dela, e com ternura afastou o cabelo da testa— Não queria te machucar.

     —Não, eu já sabia que... —tentou dissimular a careta de dor— ...que doeria um pouco.

     Apesar do desconforto, Jane se sentia aflita pela enorme sensação de proximidade com o Hugh. Ter esperado tanto havia valido a pena. Podia senti-lo dentro dela, podia ver o quanto estava excitado, mas de algum modo ele não se movia para não lhe fazer mais mal, para que ela sentisse mais prazer.

     Jane o olhou nos olhos e não pôde conter as palavras:

     —Eu... amo-te.    

     —O que disse? —perguntou ele tentando controlar a frenética necessidade que tinha de mover os quadris e enterrar-se nela.

     —Sempre te amei.

     As palavras de Jane fizeram que Hugh questionasse se estava sonhando; assim era exatamente como o tinha imaginado. Nesse instante, estando dentro dela, sentiu a necessidade de dizer o juramento que a ataria a ele para sempre, as velhas promessas sussurradas em uma língua do passado. Mas não podia fazê-lo. Esse direito não lhe pertencia.

     Em vez disso, inclinou a cabeça e a beijou, com tudo o que sentia por ela, até que Jane já não pôde nem respirar. As mãos dela deixaram de lhe apertar os ombros como se sua vida dependesse disso e começaram a explorá-lo. Quando Jane tentou mover os quadris, ele se retirou um pouco e depois, devagar, voltou a arremeter, decidido a obter que gostasse. “Concentre-se. Devagar, dentro... fora. Outra vez.”

     Tinha que deixar de perguntar por que Jane lhe tinha feito esse presente, o presente de seu amor. Afastou-se um pouco para olhar o rosto.

     —Ainda dói, Sine? —perguntou sem deixar de mover os quadris.

     Ela abriu seus olhos assombrados.

     —N... não, já não —sussurrou— É perfeito... —inclinou-se para frente e desenhou um caminho de úmidos beijos em seu peito, até deixá-lo louco— É para você?

     Como resposta, Hugh voltou a estremecer e se abraçou a ela de um modo comovedor, saboreando toda a calidez que o envolvia. Quando voltou a empurrar, os seios dela eram duros Montes que se apertavam contra seu peito. Abaixou-se para beijá-los e Jane começou então a mover-se ao mesmo ritmo que ele.

     Logo que ele deslizou o polegar entre os dois corpos para acariciá-la, ela gemeu:

     —Vou a... está fazendo que... OH, Deus, me prometa que voltará a me fazer isto. Esta noite. —Pegou-lhe o rosto entre as mãos—. Me prometa isso Hugh. —Seu nome se converteu em um gemido ao chegar ao clímax.

     Apesar de que tinha lutado com todas suas forças, e inclusive tinha deixado de mover-se, o pequeno corpo do Jane o exigia, seu sexo o envolvia, apertava-o como um punho. Hugh não pôde controlá-lo mais. Derrotado, afundou-se entre suas coxas com todas suas forças e gritou para o céu. Teve um orgasmo puxador e tremeu com violência com cada espasmo que sentiu dentro dela.

      Apoiou-se em Jane, seu coração pulsava desbocado ao uníssono com o seu, e perguntou com voz entrecortada.

     —Ama-me?    

     Uma vez na cama de Hugh, Jane se aconchegou ao seu lado. Sentia sua respiração sobre seu peito e seu corpo quente invadido pelo sonho. Mas ele em troca estava muito acordado, e não podia deixar de pensar.

     Essa noite se atreveu a pôr suas sujas mãos sobre o delicado corpo de Jane, essas mãos com as que tinham matado tantas vezes. Atreveu-se em levar a sua virgindade, e tinha estado a ponto de fazê-lo com raiva, de lhe causar um mal irreparável.

     Mas não o tinha feito.

     A única coisa grave que tinha feito tinha sido sucumbir quando lhe tinha pedido que voltassem a fazê-lo quatro vezes mais. Se ele estava destinado a lhe fazer mal, como era possível que Jane houvesse dito que se sentia afligida pelo quanto bonito tinha sido tudo?

     Hugh se perguntou onde estava a culpa que se supunha que tinha que sentir. Ele acreditava que se sentiria decepcionado por sua falta de força de vontade, mas se sentia vivo, forte, otimista. Seu corpo estava relaxado, seus músculos distendidos. Ao longo de toda a noite, Jane o tinha feito sentir como o menino jovem que era a última vez que a viu. Queria sentir-se assim mais vezes.

     Essa noite, ele a tinha feito dele, e ao fazê-lo sentiu que era seu direito.

     “Porque ela também me quer.” Ela sempre o quis. Antes de dormir, Jane lhe contou o que sentia, e o muito que tinha lutado contra esses sentimentos. Quantas mais coisas lhe contava, mais surpreendia Hugh.

     Disse-lhe que sempre tinha comparado todos os homens com ele, e que nenhum tinha estado à altura. “Tinha-os comparado com ele.” Com o braço, aproximou-a mais. Não podia acreditar nada do que lhe dizia, mas sabia que era verdade.

     “E se conto sobre a maldição?”, pensou Hugh de novo. Ela era inteligente. Ele respeitava suas idéias e admirava o modo como funcionava sua mente. Talvez entre os dois encontrassem uma solução.

     “Amanhã. Farei-o amanhã.”

     Na manhã seguinte, Jane despertou com um sorriso nos lábios. Sentia-se um pouco dolorida, mas amada. E jamais tinha estado tão apaixonada como naquele momento. A noite anterior tinha sido tudo o que sempre tinha sonhado, inclusive muito melhor.

     A única coisa que lamentava era não ter acontecido isso nos últimos dez anos de suas vidas. Mas se fossem passar o resto delas assim, poderia resignar-se.

     Abriu os olhos e viu o Hugh sentado em um extremo da cama com as calças postas. Olhou o seu rosto e soube.

     —OH, Deus santo — murmurou— Está arrependido.

     —Não é isso, Jane...

     —Então me diga que não lamenta ter feito amor comigo.

    Hugh passou os dedos pelo cabelo que ainda tinha despenteado.

     —É mais complicado que isso.

     Jane riu com amargura.

     —É muito simples. O homem ao que entreguei minha virgindade desejaria não tê-la aceito.

     Hugh se afastou doído.

     —Você ganhou, Hugh. —levantou-se e enrolou o lençol ao redor— Vou dizer duas palavras que nunca disse a ninguém em toda minha vida: rendo-me. —Saiu correndo para seu quarto, bateu a porta e trancou o ferrolho.

     Segundos mais tarde, sua porta saia das dobradiças. Surpreendida olhou perplexa como a porta se cambaleava.

     Hugh ocupava por completo a entrada. Agora que tinha passado a noite aprendendo sobre seu corpo de cor, beijando-o, acariciando-o e lambendo-o, era muito mais consciente da força que ele tinha.

     —Deixa de fazer isso com as minhas portas! —gritou.

     —Então, não volte a pôr um ferrolho entre você e eu.

     —Estou farta de falar com você! —explodiu Jane, e tentou esquivar dele para poder sair.

     Hugh a pegou pelo cotovelo e deu a volta.

     —Por que não limita a me escutar?

     Estavam frente a frente, os dois com a respiração acelerada. Hugh franziu o cenho como se estivesse confuso e depois acariciou a nuca com a mão e a aproximou para seu peito nu.

     Com voz entrecortada, disse:

     —Meu Deus, nunca me saciarei de você.

     Seus lábios conquistaram os dela, e os assaltaram em busca de um beijo possessivo até obter que ela voltasse a desejá-lo. Mas Jane conseguiu afastar-se.

     —Não! Não penso fazê-lo! Outra vez não. Não até que me conte o que aconteceu entre ontem a noite e hoje pela manhã.

     Hugh duvidou um instante e respirou fundo para acalmar-se. Logo assentiu:

     —Certo. Se vista. Temos que falar — disse, e seu rosto parecia a de um homem que tivessem sentenciado à forca.

Meia hora mais tarde, depois de assear-se, vestir e tentar preparar-se para escutar a confissão do Hugh, Jane estava sentada em um extremo da cama dele, esperando-o pacientemente.

 

     Hugh continuava sem falar, e passeava acima e abaixo do quarto como se fosse um animal enjaulado, parecia... nervoso.

     —Só fale o que pensa — disse ela quando passou por seu lado— Seja o que for, não acontecerá nada por causa do que me contar.

     Hugh diminuiu o passo.

     —E isso como sabe?

     —É um segredo pelo que alguém me mataria? Pelo que Grei me torturaria?

     —Não.

     —Te dá vergonha em me contar isso?      

     —Não, mas...

     —Hugh, são só palavras. Confia em mim e me conte seu segredo. Não se arrependerá. —Ao ver que ele continuava resistindo, tentou brincar—: se preocupa que se deixar de ser um misterioso escocês sem segredos escuros já não me pareça atraente? Diga-me.

     —Que diabos, de qualquer jeito não vai acreditar — balbuciou isso ele— Te parecerá uma loucura. Sei que sim. —passou-se a mão pela nuca— Mas minha família está... maldita. E acredito que se continuo casado com você só te trarei desgraças.

     “Maldita? De que demônios estava falando?” Apesar de que a mente de Jane estava descontrolada, seu tom de voz soou tranqüilo ao dizer:

     —Continua, estou escutando.

     —Dez gerações atrás, o bruxo do clã predisse o destino de toda a saga dos MacCarrick e o escreveu em um livro chamado Leabhar nan Süil-radharc, o Livro do Destino. —Assinalou o velho livro que estava em cima da mesa— Se supõe que meus irmãos e eu estamos destinados a ser uns solitários, a viver nossas vidas sem companhia e a causar dor a aqueles que nos importam, a não ser que o evitemos. Seremos os últimos de nossa linhagem e nunca teremos filhos. Nos últimos quinhentos anos, todas as predições se cumpriram, todas e cada uma delas.

     —Não... não entendo. —Jane respirou fundo e voltou a tentá-lo— Se não fosse por isso, quer-me o suficiente para ficar comigo?

     —Sim, Deus, sim.

     —Então, o que está me dizendo é que o único que se opõe a que sigamos casados é uma... maldição?

     Ao ver que ele não o negava, Jane teve que reprimir-se para não gritar “Isto não está acontecendo!”. Como podia ser racional diante algo assim? Era impossível recorrer à razão nessas circunstâncias.

     Sentiu como se um dos pilares de toda sua vida adulta se cambaleasse. E tudo o que tinha construído em cima ficou torcido. O sereno, razoável Hugh que tinha conhecido durante a metade de sua vida, tinha desaparecido, e em seu lugar havia um louco supersticioso.

     —Hugh, as pessoas... as pessoas como nós já não acredita em coisas dessas. Não agora que existe a ciência e a medicina. Mórag é supersticiosa porque não conhece nada mais. Você viajou por todo mundo, estudou muito. As crenças como essa pertencem ao passado.

     —E Deus se pudessem ficar ali. Mas isto escureceu toda minha vida.

     —Você sabe perfeitamente que eu não acredito nessas coisas.

     —Sim, sei. —Respirou fundo— E sei que zomba das pessoas que o faz.

     —Pois claro que sim! —soltou ela apesar de que se esforçava por manter a calma— Me conta tudo isto agora porque está disposto a esquecê-lo e a deixar de lado essas crenças?

      Hugh parecia desamparado e resignado.

     —Se tivesse encontrado o modo de me desfazer da maldição, nunca lhe teria contado isso.

     Quando Jane se deu conta de que Hugh não estava contando para justificar seu comportamento no passado, a não ser para lhe explicar por que não podia continuar casado com ela, explodiu:

     —Diz a sério? A sério acha que uma maldição escocesa, e Deus sabe que revistam ser as piores, nos impede de continuar casados?

     Todas as preocupações, estudadas estratégias, os esforços para conquistá-lo, tudo tinha sido em vão.

     Por culpa de uma maldição.

     A frustração quase a sufoca. “Não, papai, não posso o convencer de que continuea comigo.” Jane jamais tinha tido nenhuma possibilidade.

     —Tudo o que está no livro se transforma em realidade — disse Hugh— Tudo. Sei que é muito difícil de acreditar.

     —Teria que ter escrito uma lista com suas desculpas! Você não é dos que se casam, não pode ter filhos, e, ah, sim, Está maldito! Ocorreu algo mais para conseguir que me afaste de você? Já sei! Antes foi um eunuco? Só lhe restam dois meses de vida? —Com voz alterada, acrescentou—: É um fantasma, acho que sim?

     Hugh apertou e relaxou a mandíbula em um visível esforço por manter a calma.

     —Acha que estou inventando isso?

     —Hugh, a verdade é que desejo com todas minhas forças que esteja inventando isso. — ocorreu uma coisa e levantou de repente—. OH, Meu deus. —esfregou-se a testa— Isso significa que o único motivo pelo que acha que não me deixou grávida é a maldição?

     —Já te disse que não podia te dar filhos. —Entrecerrou os olhos— Mas você me disse que não te importava de tê-los ou não.

     —Disse que não me importava sempre e quando continuássemos casados! Por isso eu sei, você ainda tem intenções de me deixar. E, sim, disse-me que não podia ter filhos, mas agora mesmo duvido muito de sua fonte de informação.

     Hugh se aproximou da mesa e abriu o livro pelo final.

     —Lê-o e deixa que me explique.

     Jane sacudiu a cabeça.

     —Não posso continuar escutando isto. Não tenho intenção de escutar isto, como tampouco escutaria a alguém que me dissesse que o Sol é azul.

     —Você queria saber e agora estou lhe contando isso. É a primeira pessoa que conto e agora não quer me escutar? —perguntou ele— Leia!

     Jane lhe arrebatou o livro das mãos.

     —Isto é a origem da maldição?

     Ao ver que Hugh assentia, a jovem deixou o livro em cima da mesa e começou a voltar às páginas sem nenhum cuidado, apesar de que viu que era muito velho. Havia textos em gaélico e textos em inglês. Ao chegar às últimas páginas, franziu o cenho. Ao parecer, essa parte estava toda em inglês.

     —Por que franze a testa? Está sentido algo?

     —Sim! —gritou ela olhando-o com os olhos muito abertos— Sinto uma enorme gana de atirar este livro ao lago.

     Hugh ignorou o comentário e sentou a seu lado para ler a última página.

     —Escreveram-na para meu pai.

     Jane leu a passagem.

     Nunca se casarão, não saberão o que é amar, se o fizerem, a seu destino se deverão resignar.

     Sua família contigo desaparecerá...

     A morte e a desgraça os apanharão.

     —E diz que tudo isto se fez realidade?

     —Sim. Meu pai morreu no dia seguinte de que nós lêssemos estas palavras pela primeira vez. Justo à manhã seguinte, e não era muito mais velho do que eu o sou agora. E faz anos, a noiva de Ethan morreu na noite antes de seu casamento.

     —Como?

     Hugh hesitou um instante.

     —Ou caiu ou saltou por uma torre.

     —Isto é sangue? —Jane arranhou com uma unha a mancha acobreada que havia no extremo. Quando ele assentiu, perguntou— O que diz sob a mancha?

     —Não sabemos. Nunca a limpamos.

     Jane o olhou.

     —E se disser, “não façam caso ao de antes”? —Ao ver que ele punha má cara, disse—: Hugh, eu não acredito que nada disso tenha acontecido por culpa de uma maldição, eu acredito que a vida é assim. Às vezes acontecem coisas más, e se alguém decide acreditar em mitos ou predições, acho que pode dar com algo que se ajuste a isso. Certo, reconheço que a morte de seu pai é estranha, mas há muitos médicos em Londres que dizem que a mente pode convencer ao corpo para que faça quase algo, inclusive matar-se. Belinda me contou isso. Se seu pai acreditava nisto o suficiente, talvez depois de ter visto isso pudesse ter afetado-o.

     —E Ethan? A morte de sua noiva antes do casamento?

     —Ou foi um acidente ou talvez sua noiva não pôde suportar a idéia de casar-se com alguém a quem não amava.

     Uma atrás da outra, Jane foi rebatendo todas suas teorias sobre a maldição recorrendo à ciência ou à mera lógica.

     No final, Hugh a deixou sem argumentos com um simples:

     —Eu acredito. Para mim é real.

     —Porque se criou escutando-o, e chegou a se convencer de que é assim, acabou transfomando-a em realidade. É o epítome da auto-indução. Você estava convencido de que tinha que caminhar com a morte, de que não tinha direito a desfrutar da vida. —Levantou a mão e, indecisa, tocou-lhe o braço— Mas Hugh, eu não te peço que renegue de tudo isto em um instante. Leva trinta e dois anos com você, demorará um pouco em te afastar disso. —que Hugh seguisse em silêncio lhe deu ânimos— Com o tempo, começará a acreditar que pode ser feliz, que merece ser feliz. —Acariciou-lhe o rosto— Me diga que ao menos que tentará. Por mim. Eu estou disposta a lutar por nós se você também estiver.

     O silêncio se alargou de um modo interminável. Todo o futuro de Jane pendia por um fio... Era impossível que ele não escolhesse bem. Negava-se a acreditar que estivesse tão apaixonada por alguém capaz de jogar pela amurada tudo o que havia entre eles.

     Quando Hugh afastou o olhar de seu rosto para dirigi-la incômodo para o livro, Jane soube que tinha perdido.

     Mas ela não era boa perdedora.

     Levantou-se, agarrou o livro e saiu correndo do quarto para a escada.

     —O que está fazendo? —perguntou ele seguindo-a através da espessa névoa matutina— Me diga o que pretende fazer.

     Ela atravessou correndo o prado coberto de orvalho e dirigiu ao lago.

     —Vou desfazer-me do problema.

     —O livro não é o problema. Só serve como aviso.

     Jane atirou uma pedra na água para ver a profundidade, e não afastou o olhar ao dizer:

     —Então,vou te deixar sem aviso. —aproximou o livro do seio e o segurou com as duas mãos. De repente, sentiu como um suor frio lhe cobria todo o corpo e a sacudiu por dentro.

     —Não, pequena, não é tão simples. Que o atire na água não servirá de nada.

     —Fará me sentir melhor. —deu a volta e se dirigiu para uma rocha, a que havia mais perto da borda da água. Ali havia mais profundidade, e Jane queria que o livro se afundasse até o fundo para que não voltasse aproximar-se de ninguém jamais.

     —Que o afunde no fundo da água não mudará nada. Sempre consegue retornar.

     —Você ficou louco? —gritou de costas, sem deter-se— Sabe o que está dizendo? —Quando chegou ao lugar que procurava, trocou o livro de postura e se dispôs a lançá-lo, mas hesitou um instante.

     —O que espera? Faça-o, pequena. Eu já fiz um montão de vezes.

     Para ouvir seu tom de desafio, Jane levantou as sobrancelhas.

     —Acha que o digo em brincadeira? Farei!

     Hugh lhe indicou com a mão que seguisse adiante, e ela o jogou na água com todas suas forças. Ambos olharam em silêncio como se afundava, como as páginas flutuavam até desaparecer por completo.

     —É estranho. Não me sinto diferente. —Jane o olhou e, ao ver que ele continuava igual de resignado e decidido, não se incomodou em dissimular o quanto estava decepcionada. — Tinha razão, nada mudou. Você continua disposto a jogar pela amurada tudo o que há entre nós. Com certeza ainda estamos malditos.

     —Se só pusesse em perigo minha vida, não duvidaria em seguir adiante — assegurou ele— Não o pensaria duas vezes. Mas nunca poderia me perdoar em fazer mal a ti.

     Começaram a escorrer lágrimas pelas faces de Jane.

     —Me fazer mal? —Levantou as mãos— Isto já está fazendo mal, Hugh. Nunca em minha vida nada me tinha feito tanto mal. — secou os olhos com a costa da mão em um vão intento por deixar de chorar— Claro que, para você, isto só é uma prova a mais de que a maldição existe, tenho razão?

     —Eu nunca quis que sentisse isto. —Olhou-a como se não pudesse suportar vê-la chorar. Parecia ter vontade de acariciá-la, mas se limitou a abrir e fechar o punho— A não ser por Grei, eu jamais teria tornado a te ver. consegui durante anos...

     —Você... você evitou de propósito voltar para me ver? —Ele a tinha evitando? Quando ela passou horas suplicando a suas primas que passassem perto de sua casa de Londres para poder vê-lo embora fosse só um instante?— Não posso acreditar nisso. Olhe, coloque na cabeça que os últimos dez anos foram insuportáveis sem você. Ao se manter afastado de mim, fez-me muito mal. Ao me abandonar, destroçou-me.

     —Te abandonar? Eu nunca te prometi nada.

     —Acreditava que íamos nos casar! —As lágrimas caíam descontroladas— Acreditava que só estava esperando que fizesse dezoito anos. Não lhe descreveria meu anel de casamento a um homem que não fosse transformar-se em meu marido.

     Hugh entreabriu os lábios, mas depois sacudiu a cabeça.

     —Se nada disto tivesse acontecido, inclusive sem maldição, eu nunca teria pedido sua mão a seu pai. Eu não tinha nada que te oferecer. Não tinha nada.

     —Tinha você, nada disso me teria importado.

     —E uma merda! —gritou ele chegando ao limite de seu autocontrole— Você gostava de luxo e nunca o ocultou. E cada vez que o fazia eu me desesperava, porque isso era só outro aviso de que eu não era o bastante bom para você. Descreveu-me esse anel por uma razão, Jane, porque o queria!

     —A única coisa que queria era que não me abandonasse sem dizer nenhuma palavra. E deixa te dizer que é muito pior que lhe deixem, do que ser o que deixa.

     —Não tem nem idéia. Maldição! —exclamou ele furioso— Quer conhecer todos meus segredos, Jane? Pois tem que saber que aos vinte e dois anos saí para enfrentar o mundo e fiz algo horrível a sangue frio. E o fiz por você. Fiz porque sabia que se o fazia, jamais voltaria a sonhar com que você formasse parte de minha vida. Assim não me diga que é mais fácil ir-se... porque não é. Não, se ainda pode voltar.

     —Mas continua decidido a voltar a fazê-lo. Quando apanharem Grei.

     —Sim. Sei que o farei — confirmou Hugh olhando-a nos olhos— Apesar de que não tenho nem idéia de como consegui-lo.

    

Nessa mesma manhã, um pouco mais tarde, quando Hugh sentiu que tinha recuperado a calma perdida naquela decisão, decidiu ir procurar Jane. Ela estava no terraço, praticando com seu arco. Tinha a expressão fria e gelada como o mármore e agarrava uma flecha atrás de outra sem cessar e a uma velocidade incrível.

     Fazia algum tempo que tinha acertado o alvo.

     —Jane, pode parar um momento? —perguntou Hugh ficando ao seu lado quando ela foi recuperar as flechas.

     Jane as arrancou, zangada e as guardou no estojo.

     —Não vê que estou ocupada? —Nem sequer o olhou, e voltou a preparar-se para disparar. Com um rápido movimento, levantou o braço, atirou, soltou a corda e acertou no centro.

     —Preciso falar com você — disse Hugh.

     —E eu preciso estar sozinha.

     Ao ver o quanto estava triste e que suas mãos começavam a tremer, ele disse:

     —Está aqui muitas horas, pequena.

     —Não temos que falar de nada. Entendo à perfeição do que acontece. O único que me falta fazer é te suplicar que continue casado comigo. Já te confessei que faz anos que estou apaixonada por você e te disse que estou disposta a fazer o que for necessário para sair desta situação. Mas há um problema: você não pode fazê-lo, porque está maldito.

     Tinha-lhe confessado seu segredo mais escuro e ela tinha reagido tal como ele tinha suposto; discutindo e argumentando. E o que esperava dela? Esperava que ele se afastasse de algo que sempre tinha condicionado sua vida? Maldição, inclusive se pudesse deixar de acreditar nessa ameaça, esta tinha estado tanto tempo plainando sobre sua cabeça, moldando seu caráter, que agora a mera idéia da felicidade dava calafrios.

     Hugh sabia que se não estava disposto a tentar continuar com ela não deveria ter contado.

     —O que quer fazer com o nosso casamento? Temos que decidir algo.

     —É muito fácil. Esqueça dessa absurda maldição. Se me jurar que não voltará a mencioná-la, juro-te que apagarei de minha memória tudo isto. E viveremos felizes para sempre. E, se insistir em seguir adiante com esta loucura, então temos dois modos de solucioná-lo: o divórcio ou a separação.

     —Cortaria meu braço direito se pudesse renunciar a tudo isso e continuar casado contigo.

     Ao ouvi-lo, Jane hesitou em meio de um disparo e a flecha se afastou do centro.

     —Mas não pode — confirmou ela em voz baixa.

     —Não. —Hugh suspirou esgotado.

     Isso fez que a jovem recuperasse toda sua raiva.

     —Então, já está decidido.

     —Jane... —Ela se negou a voltar a olhá-lo, assim que ele se afastou sem saber aonde ir nem o que fazer.

     “Trabalho.” O trabalho obteria que deixasse de pensar nela, no que tinham feito a noite anterior. Mas após semanas de incessante tarefa, a única coisa que faltava por fazer no imóvel era tirar as árvores que havia no caminho. Dirigiu-se ao estábulo e entrou no escuro edifício. Seu mau humor devia ser evidente, porque os animais se assustaram quando nunca antes o tinham feito ante sua presença.

     Sim, se conseguia esgotar seu corpo, talvez assim conseguisse adormecer as ânsias que sentia dela. Mas a quem pretendia enganar? Nada adormeceria isso. Maldição; tudo iria à pior, agora que tinha sido o bastante estúpido para acreditar que poderia saciar-se dela...

     Uma horrível dor lhe fez estalar a cabeça. Caiu deitado de lado sobre o duro chão e sentiu como um líquido espesso escorregava por sua nuca.

     Grei.

     A testa de Hugh recebeu outro murro. Dois golpes, bem nos lugares onde Grei tinha-lhe ensinado que tinha que golpear se queria deixar a sua vítima viva, mas imóvel. Os chutes que lhe deu no estômago foram só para maior prazer de Grei.

     Este riu.

     —Maldição, Hugh, poderia ter posto isso um pouquinho mais difícil.    

    

     Jane viu como Hugh ia colina abaixo para os estábulos, com os ombros afundados, como se suportasse sobre eles todo o peso do mundo, e se sentiu culpada. Depois se zangou ainda mais. Nunca lhe permitia afastar-se, nem sequer lamber as feridas um pouco. E se ela precisasse fazê-lo...

     Jane se sentia como se a tivessem esbofeteado e ainda estivesse tremendo.

     Hugh não queria ficar com ela, inclusive depois de ter feito amor e de que Jane acreditasse que era o mais maravilhoso que nunca tinha lhe acontecido. Já era muito doloroso saber que, depois de esperar impaciente durante tanto tempo, tinha entregado sua virgindade a alguém que lamentava havê-la aceito. Mas que Hugh se arrependesse por culpa de uma estúpida maldição era jogar sal na ferida.

     Tudo aquilo era muito incrível para ser certo.

     Hugh disse que daria seu braço direito. Apesar de que tudo indicava que Hugh sentia pela Jane era muito mais profundo e duradouro do que ela jamais tinha imaginado, rezava para que não fosse certo. Se ele havia sentido embora fosse a metade do que tinha sentido ela durante esses dez últimos anos e tinha negado a ambos a possibilidade de casar-se por culpa dessa...

     Jane se deu conta de que era capaz de odiá-lo.

     Se Hugh tivesse sido honesto e sincero com todas essas superstições anos atrás, ela poderia lhe esquecer. Teria entendido que eles dois não tinham nenhuma possibilidade, e teria se casado com outro. Mas ele não tinha sido sincero, e ela já estava farta de que seus sentimentos pelo Hugh “Anos e Lágrimas” MacCarrick lhe arruinassem a vida.

     Tinha chegado o momento de ser prática. Jamais poderia competir contra uma maldição de mais de quinhentos anos. Ela não ia compartilhar sua vida com o Hugh depois que tivessem apanhado a Grei. E o que faria então? Apesar do que havia dito a Hugh que podiam divorciar-se, nada mais pensá-lo lhe arrepiava. Talvez ainda pudessem obter a anulação.

     Apoiada na demência do Hugh.

     Ou podiam continuar casados e ter vidas separadas. Inclinou a cabeça. Sim, essa era a melhor solução. Exigiria a Hugh que lhe devolvesse seu dote, e a seu pai mais valia pagá-la em seguida, ao fim ele era o principal culpado daquele simulacro de casamento.

     Com todo esse dinheiro e sendo uma mulher casada, poderia ser independente. Poderia viajar, e por fim poderia fundar a Sociedade para a Defesa do Vício! Poderia escrever livros eróticos e vendê-los na Rua Holywell, poderia ter amantes sem lhe importar o manhã e ter até dez filhos com eles. Sim. Isso poderia funcionar...

     Pasou-lhe uma coisa pela mente que fez que o seu coração desse um tombo e que lhe começasse a ferver o sangue. Talvez Hugh acreditasse que uma maldição era uma boa medida contraceptiva, mas Jane não.

     Depois da noite anterior, podia estar grávida.

     Como podia fazer Hugh tal coisa? Ele esperava que ela acreditasse em todas aquelas tolices e dizia por enésima vez que a deixaria quando ela podia estar esperando um filho dele!

     Antes que nem ela mesma soubesse o que ia fazer, começou a caminhar para o estábulo. Provavelmente era uma má idéia. Em um arrebatamento tinha atirado o livro à água, e isso não tinha obtido que se sentisse melhor; bom, não tanto como esperava. Em sua mente imaginou outro final.

     Agora já não tinha importância como se comportasse. Se soltava toda a ira que tinha em seu interior, quanto mais mal poderia lhe fazer?

     Nenhum.

     Era impossível que as coisas piorassem ainda mais.

 

Tentou abrir os olhos e gemeu de dor. Quando conseguiu, encontrou-se com o cano de uma pistola lhe apontando.

     Lutou para levantar, mas o único que quase conseguiu foi voltar a ficar inconsciente. Apesar de saber que era impossível dissuadir Grei de seus planos, tinha que tentá-lo. Ele o tinha mantido com vida por algo e, como Hugh entendia perfeitamente o motivo, sentia náuseas só de pensá-lo.

     —Não o faça — disse Hugh apesar de que lhe doíam às costelas ao respirar—. Me mate, faça-o devagar, mas ela não tem nada que ver nisso.

     —Por que esbanja o fôlego? —perguntou Grei— Eu não penso igual a você. E se por acaso não se deu conta, nunca pensei igual a você. Matarei-a com a mesma facilidade com que se mata um inseto.

     —Você nem sempre foi assim.

     —Por isso estou aqui, escocês. Para emendar meus enganos do passado.

     —Como nos encontrou? —grunhiu Hugh em um intento de lhe despistar.

     —Foi uma coisa muito estranha. Estava seguindo uma garota, não muito longe daqui, com a intenção de lhe arrancar os dedos quando conversassem, quando de repente ela se reuniu com um bando de seis cavaleiros. Esses bastardos eram enormes e seus cavalos também. Entraram no bosque e deixaram um caminho tão marcado que até um cego poderia segui-la...

     Pela extremidade do olho, Hugh viu um pedaço de tecido branco. Levantou a vista e viu Jane na porta do estábulo, hierática como um anjo. Um anjo da noite. Tinha uma flecha preparada no arco e apontava nas costas de Grei. A corda estava tão esticada entre os dedos enluvados dela, que Hugh pensou que ia se romper.

     Baixou a vista, mas Grei já tinha seguido a direção de seu olhar. Deu a volta com intenção de disparar na Jane, mas ela soltou a flecha sem hesitar nem um instante. Era óbvio que tinha mirado no coração, mas disparou muito rápido. Grei não tinha acabado de dar a volta quando a flecha o atravessou. Roçou-lhe o braço com que segurava a arma e lhe cravou no peito. Hugh não pôde ver a reação nem a cara de Grei, mas sim viu a de Jane, Tinha os olhos e os lábios totalmente abertos pelo horror.

    

     Um monstro. O homem que ela tinha conhecido como Grei tinha desaparecido, e em seu lugar havia alguém apenas reconhecível. A pele de seu rosto se esticava de um modo quase impossível nas maçãs do rosto, e um enorme chapéu negro cobria seu gasto rosto e seus dentes podres.

     Antes que pudesse preparar outra flecha, Grei se equilibrou sobre ela. Com o braço que não tinha ferido, deu-lhe um golpe que a mandou contra a parede. Jane ouviu o grito de fúria de Hugh antes de golpeá-la na cabeça e começar a cambalear-se. Centímetro a centímetro foi desabando para o chão enquanto tentava manter os olhos abertos.

     Apesar de que Hugh estivesse deitado em terra, com o sangue lhe escorregando pelo pescoço e pela testa, tinha conseguido ficar de joelhos. Mas Grei deu a volta e, com um grito, começou a lhe dar chutes na cabeça e conseguiu que Hugh se retorcesse de dor e voltasse a cair.

     Jane mordeu os lábios para evitar gritar como uma histérica e engatinhou até onde estava seu arco. Alcançou e ia pegá-lo justo antes que Grei voltasse a cravar seus desenquadrados olhos nos dela. Cambaleou-se para trás e, com estupidez, tirou outra flecha do estojo.

     O movimento fez que lhe nublasse a vista... não podia deixar de piscar... nem sequer quando apontava. Fechou os olhos, rezou e voltou a disparar. Ouviu o impacto do metal. Tinha-lhe dado... No ombro.

     Não o tinha matado. “Volta a tentar. Pegue outra flecha.”

     Grei se aproximou, arrebatou-lhe o arco e as flechas das mãos e os atirou a um lado.

     —Jane, temo-me que está ficando lesada — disse em um tom de voz calmo que não concordava nada com a maníaca expressão de seu rosto cítrico— Se cooperar, talvez procure que tudo seja menos doloroso.

     O sangue saía a fervuras das feridas, e ainda tinha o braço levantado contra o peito e a mão que segurava o braço inutilizado. Quando tentou extrair a primeira flecha, cambaleou-se, e no final optou por romper ambas as flechas pela metade e pegar logo a pistola com a mão esquerda.

     —Grei, maldito seja, tem que haver algo — disse Hugh esforçando-se por falar—, algo que deseje mais que isto.

     —De verdade quer que o façamos, Hugh? —perguntou Grei exasperado— Tirar os trapos sujos à luz, revelar os segredos que nunca contamos a ninguém com a esperança de chegar a um acordo? Se tivéssemos feito isso cada vez que íamos matar alguém, agora você e eu seríamos homens muito sábios. Além disso, você sabe de sobra que nem a ti afetaram nunca as confissões. Nunca nos inspiraram piedade.

     “Do que está falando?”

     Grei guardou a pistola e, ao ver pegar a adaga, Jane começou a tremer de medo. “Grei degola a suas vítimas”, havia dito Hugh.

     Quando Grei deu a volta para ela com a faca, Jane tentou o olhar nos olhos.

     —Por... por que? —sussurrou.

     —Por que? Porque seu pai ordenou que me matassem, e quase conseguiu. Quatro disparos de bala no peito como pagamento por haver passado vinte anos matando sob as ordens desse velho bastardo. E porque quando estava em muito má forma, seu marido me deu uma surra que quase acaba com minha vida por sua culpa, e depois me deixou encerrado em um porão para que apodrecesse. Vou matar-te para castigá-los a ambos por seus enganos. Como pode ver, não é nada pessoal.

     —Meu pai? Do que está falando?

     —Você não sabia nada de tudo isto? —Olhou para Hugh e estalou a língua— Isso não é muito sincero de sua parte. E agora que penso, bastante arrogante. Você nunca disse por que não acreditava que eu conseguisse me aproximar o bastante. Pensava me eliminar e assim ela jamais descobriria? Pois aqui estou. —dirigiu-se a Jane e disse—: Seu pai ganha a vida matando pessoas, e Hugh é seu assassino preferido. Seu pai, Hugh, Rolley, e até Quin estiveram ocultando sua verdadeira identidade. E enquanto você punha sua vida em suas mãos. Aposto o que quizer a que agora mesmo está mais zangada que assustada.

     Jane cuspiu sua resposta:

     —Eles sabiam que era necessário te matar.

     —Sim, Weyland quis destruir aquilo que tinha criado.

     —Ele não te fez isto... foi seu vício.

     —Engana-se! Quando seu pai repartia os trabalhos, assegurava-se de que sempre me tocassem os piores, aqueles que mudam a vida de um homem. Meu sacrifício fez de seu marido o que é hoje. Hugh poderia ter acabado como eu.

     —Jamais — disse Jane convencida.

     —Por que não? Hugh também é um assassino a sangue frio, ele também se escondeu entre as sombras para matar pessoas. Igual a mim. —Abriu os lábios e mostrou seus putrefatos dentes— Mas ele não se estragou, ainda não. Porque seu pai assegurou de o manter assim por você.

     Jane piscou confusa.

     —Acaso não lhe contaram nada? —Sorriu condescendente— Querida menina, Hugh sofreu tanto por ganhar seu coração e durante tanto tempo, que por fim vou fazer seu sonho realidade. Vou dar o seu coração para ele, depois de lhe arrancar do peito.

 

Enquanto Hugh tentava fazer provisão das poucas forças que ficavam, teve que escutar como Grei desvelava toda a verdade para Jane. Viu a confusão em seu rosto e também como seus olhos o buscavam confiando em que o negasse.

     Mas quando Grei deu um pequeno passo para ela, Hugh se jogou em cima e o pegou pelas pernas. Ambos caíram no chão.

     Hugh se afastou. O corpo de Grei jazia em um ângulo grotesco, com as flechas se sobressaindo ainda de seu peito e que, depois da queda, cravaram-se por completo.

     Hugh lutou para se aproximar de Jane. Como lhe custava respirar, não ouvia os gemidos de Grei. Quando chegou a seu lado, Hugh a rodeou com o braço e acariciou o rosto com ternura, mas ao parecer era impossível enfocar a vista.

     —Ti machucou muito, Sine?

     —Hugh, está... ferido, golpeado.

     —Deu-me alguns murros. Queria que visse.

     Jane gritou assustada.

     —OH, Deus, posso sentir seu sangue. —estava deslizando do corpo de Grei até lhe empapar a saia.

     Hugh a pegou nos braços e a afastou dali.

     —Está... morto? Assegure-se de que está morto, por favor.

     Hugh a deixou com cuidado apoiada contra o muro e, depois de apertar a mandíbula para controlar a dor, retornou junto a Grei. Quando Hugh deu a volta, viu que ainda tinha os olhos abertos. Estava com vida, mas a flecha que tinha no peito garantia que não restava muito tempo.

     Ele aproximou para que Jane não pudesse ouvir o que ia dizer.

     —Maldição, onde está a lista? Chegou a entregar para alguém?

     Grei fez um pequeno movimento, como se quisesse sacudir a cabeça.

     —Tenho— disse, e seus lábios cuspiram sangue.

     —Fez algo a Ethan? Diga-me.      

     A expressão de Grei desenhou uma horrível careta. Antes de morrer, balbuciou:

     —Ethan... foi... meu último número.

          

     Como se flutuasse em uma nuvem, Jane sentiu que Hugh a pegava nos braços apesar de que ele também estava ferido. Deu-se conta de que ele tremia e de que abraçava a ela com desespero. Jane queria caminhar, queria lhe curar as feridas. Mas cada vez que tentava soltar-se, ele a apertava com mais força contra seu peito.

     Franziu o cenho, sua saia a incomodava muito, e então se lembrou de que estava molhada com o sangue de Grei. A cada passo que Hugh dava, o tecido golpeava pesadamente contra as coxas dele. Sentiu náuseas e fez esforços por manter os olhos abertos, mas era quase impossível...

     Quando voltou a abri-los, estava deitada na cama de Hugh e já não usava a roupa ensangüentada.

     —Está acordada. —Hugh a olhou com olhos cheios de lágrimas.

     Bom, é obvio que estava. Ela só tinha um golpe na cabeça e a mandíbula dolorida. Era ele quem realmente estava ferido; ainda tinha sangue seco por todo o pescoço e rosto. Quando Hugh começou a lavá-la com uma toalha úmida, Jane disse:

     —Hugh, para... deixa que me levante e te veja.

     Ele continuou como se ela não houvesse dito nada, e Jane não pôde reunir forças suficientes para levantar-se.

     Justo quando acabou de lavá-la e vesti-la com uma de suas camisolas limpas, Mórag entrou no quarto e, ao ver toda aquela roupa ensangüentada, começou a lhes fazer perguntas.

     —Vá lá embaixo — ordenou Hugh— Em algum lugar perto da entrada tem que ter um cavalo. Busca-o e ata-o fora do estábulo. —Logo, depois de pensar melhor, acrescentou—: O inglês que queria nos fazer mal está morto no estábulo. Não entre lá.

    —Bom, se estiver morto não precisará de seu cavalo.

     —Faça-o! —ladrou Hugh— E não há nada do que encontre em suas bolsas.

     —Não sei ler — respondeu ela saindo já a toda pressa do quarto.

     Jane levantou uma mão para lhe tocar a testa.

     —Temos que olhar estas feridas que tem na cabeça.

     —Não é nada. —Hugh sabia por experiência que ia estar enjoado e que durante alguns dias dormiria mais do normal. As costelas doeriam como mil demônios durante semanas, mas tinha recuperado de coisas muito piores que essa— Sou escocês, tenho a cabeça muito dura, lembra-se? Mas você... —Observou-lhe a mandíbula e quando tocou o local mais sensível, Jane não pôde evitar fazer uma careta de dor— Aquele bastardo queria quebrar isso. — A voz tremeu de raiva ao acrescentar—: E teria conseguido se tivesse estado em plena forma.

     —O que te disse antes de morrer?

     —Disse-me que... tinha matado meu irmão.

     —OH, Hugh, sinto muito.

     Mórag voltou a interrompê-los. Tinha deslocado tanto que tinha a respiração acelerada.

     —Já atei o cavalo.

     —Bem trabalho. —Hugh levantou um pouco inseguro e lhe disse—: Fique aqui até que retorne.

     —Hugh? —sussurrou Jane, que ainda não se via capaz de perde-lo de vista. Tremia-lhe todo o corpo, tanto pela dor como pelo medo que ainda sentia apesar de que Grei estivesse morto.

     —Tenho que comprovar uma coisa — respondeu ele, a quem tampouco gostava absolutamente separar-se dela— Em seguida volto. —deu a volta para a Mórag—, fica com ela.

     —Esse cavalo é precioso — disse a garota—, tem uma sela de muita categoria. Minha sela a estragou uma inglesa com um montão de lodo...

     —Fique com ela — grunhiu Hugh— Mas não se atreva a sair desta casa, por acaso ela pode precisar de algo.

     Mórag assentiu, e depois que Hugh desapareceu, disse:

     —Que diabos aconteceu, inglesa? Disparou-lhe todas aquelas as flechas? —A admiração ressonou em sua voz.

     Jane assentiu, e embora não se sentia culpada por ter ajudado a matar um homem, surpreendeu-lhe ver que tinha as bochechas banhadas em lágrimas. E a mente feita uma confusão e cheia de perguntas.

     Quanta verdade havia nas palavras de Grei? Das duas uma, ou era um louco e tudo era mentira ou sua vida não era nada, do que ela acreditava. Estava rodeada de mentirosos e assassinos? De verdade Hugh se escondia entre as sombras para matar as pessoas indefesas?

     Tinha-a desejado Hugh tanto como ela a ele?

     Grei tinha demonstrado ser tão perigoso como todos lhe tinham advertido, mas agora estava morto, e a ameaça tinha desaparecido. Mas inclusive depois de tudo isso, Jane tinha a sensação de que nada tinha mudado com o Hugh, o que significava que logo retornaria para casa.

     Para viver entre as pessoas que já não conhecia.

     Hugh encontrou a lista escondida dentro de um tubo em uma das garupas de Grei, e queimou o papel até que não ficaram mais que cinzas.

     Jane estava a salvo de Grei, e tanto ela como seu pai já não corriam perigo. Tinham saído ilesos de tudo aquilo. Diferente de Ethan.

     Não. Hugh se negava a acreditar. Não acreditava que Grei fosse capaz de mentir sobre isso, mas talvez se enganou. Talvez fosse uma de suas alucinações.

     Se um de seus irmãos estivesse morto, não o sentiria Hugh na alma?

     Decidiu que o melhor seria escrever e pedir que lhe informassem sobre Ethan. Sim, pediria a Mórag que fosse ao escritório de telégrafos essa mesma manhã. Tinha que comunicar a morte de Grei, e também que tinha conseguido recuperar a lista.

     Desejou saber o que escrever sobre Jane, além de que graças a Grei agora Hugh se via obrigado a lhe contar toda a verdade.

     Retornou para casa com a mensagem já escrita e mandou a Mórag ao correio. Viu que Jane estava dormindo, com as bochechas ainda úmidas de lágrimas. Depois dos eventos do dia e da noite anterior, estava exausta, o que outra coisa cabia esperar?

     Ele lavou as feridas e teve que apertar os dentes ao limpar o sangue pregado a seu dolorido corpo. Ao acabar, pôs uma cadeira contra a porta e se aconchegou na cama junto a Jane.

     Quando despertou, viu que ela estava deitada de lado, olhando-o. Era de noite, mas a lua iluminava o quarto.

     —Dói-te a cabeça? —perguntou meio dormindo.

     —Não se preocupe por mim, pequena. O que de verdade terá que olhar é sua mandíbula.

     Jane passou os dedos por ela.

     —Doerá um pouco porque já começou a arroxear, mas se curará.

     Hugh também a tocou. Precisava assegurar-se de que estava bem.

     —Hugh, quero entender o que disse Grei. O que significa tudo isso sobre você e sobre meu pai?

     Jane tinha ouvido muitas coisas, tinha que saber o resto. E depois de tudo o que tinha acontecido com Grei, acaso não lhe devia a verdade? Ela tinha agüentado muito, tinha aceito tudo o que tinha acontecido sem pigarrear. Hugh sabia, mas mesmo assim continuava hesitando.

     Ao igual se imaginou lhe fazendo amor, também tinha imaginado o que aconteceria quando lhe contasse tudo aquilo.

     —Jane, eu trabalho... —ficou calado.

     —Continua. Por favor.

     —Eu era franco-atirador.

     —O que é isso?

     Hugh engoliu saliva.

     —Eu... matava as pessoas seguindo ordens da Coroa.

     —Não entendo. Acreditava que trabalhava com o Courtland. E o que tem a ver meu pai em tudo isto?

     Hugh lhe contou que Weyland dirigia uma organização que se encarregava de solucionar certas situações que não podiam resolver com a diplomacia. Contou-lhe o que faziam todos.

     —Quin e Rolley, também? E como é que alguma vez não me dei conta? —perguntou Jane.

     —A maioria dos familiares não descobre nunca. E seu pai não queria que isto te afetasse. Essa foi sempre sua maior preocupação. Não gostava de nada ter que te mentir.

     Com voz suave, Jane perguntou:

     —E você, você gostava de me mentir?

     —Eu nunca menti para você.

     Jane mordeu o lábio inferior e tentou recordar. Passado um momento, disse:

      —Meu pai pediu que matassem Grei? —Hugh assentiu a contra gosto e Jane perguntou—: Tinha razão Grei ao dizer que meu pai te protegia?

     Ele passou a mão pelo rosto.

     —Antes não acreditava assim. Pensava que a Grei davam esses trabalhos por ser dez anos mais velho que eu e ter mais experiência. Agora... acredito que talvez, de um modo inconsciente, Weyland poderia havê-lo feito.

     Jane sentiu que começaram a lhe pesar as pálpebras, mas Hugh sabia que morria de vontade de fazer mais pergunta.

     —E isso que disse Grei sobre... você e eu?

     Depois de hesitar um longo momento, Hugh balbuciou:

     —É verdade.

     Essa resposta pareceu lhe doer mais que tudo.

     —Desde quando, Hugh?

     —Desde aquele verão. Igual a você.

     Jane o olhou nos olhos.

     —Agora já conheço todos seus segredos?

     —Sim, pequena. Todos e cada um deles. —Ao ver que Jane permanecia calada, Hugh disse—: Jane, não pensa me dizer o que pensa de tudo isto... de mim?

     Ela respondeu com uma pergunta:

     —O que aconteceu hoje mudará as coisas entre nós?

     Hugh obrigou a sacudir a cabeça.

     —Então nada o fará. —separou-se dele e murmurou—: E o que eu penso não tem importância.

 

Hugh se sentou de repente na cama, sacudido pelo pior pesadelo que tinha tido em toda sua vida. A aguda dor que sentia nas costelas e na cabeça ainda não lhe era familiar, de modo que ao despertar sentiu um pouco confuso. Ao ver onde estava franziu o cenho e esfregou os olhos. Já era mais do meio-dia. Tinha dormido toda a noite e toda a manhã?

     Tremia e os lençóis estavam molhados de suor. Sonhou com a noiva de Ethan morta entre as rochas, com a cabeça rodeada por seu próprio sangue sob a luz da lua. Mas em lugar de ver esses olhos sem vida, Hugh viu Jane, fria e morta sem vida. Só de pensar voltou a estremecer...

     Onde diabos estava ela?

     Quando a ouviu vestindo-se no quarto ao lado, suspirou aliviado. Levantou-se por etapas, cambaleou até o banheiro, umedeceu uma toalha e a passou pelo corpo para tirar aquele horrível suor frio de cima.

     Ouviu os ligeiros passos de Jane no corredor e soube que foi para baixo. Hugh se vestiu tão rápido como lhe permitiram suas feridas e a seguiu. Quando entrou na cozinha, encontrou Jane imóvel e absorta olhando algo.

     A primeira coisa que Hugh viu foi que desde o dia anterior o arroxeado se obscureceu e aumentou, e estremeceu. Depois, deslizou a vista para o objeto que tinha deixado Jane tão concentrada: o Leabbar.

     Caminhou para ela em silêncio. Inclusive depois de tanto tempo, os mistérios daquele livro continuavam surpreendendo-o. Perguntou-se quantos de seus antepassados tinham tentado em vão queimá-lo ou trancá-lo em um baú em um intento desesperado por livrar-se da maldição. Mas o Leabhar era um pacote à família como uma enfermidade congênita.

     —Não pode ser o mesmo — disse Jane em voz baixa— O atirei na água.

     —É o mesmo.

     —Alguém o tirou do fundo do lago. Pediu aos irmãos do Mórag que o buscassem.

     —Está seco, Jane.

     —Isto tem que ser uma brincadeira. Tem que ser — insistiu ela— Há mais de um livro.

     Hugh abriu a última página com a característica mancha de sangue.

     Jane ficou horrorizada.

     —Não entendo.

     —Por isso não me importou que o jogasse no lago. O Leabhar sempre consegue retornar aos MacCarrick. Continua acreditando que são só superstições?

     Jane esfregou a testa.

     —Eu... eu não... —Os ruidosos cascos de alguns cavalos aproximando-se pelo caminho a salvaram de ter que responder.

     Hugh foi para à janela e ela perguntou:

     —Quem pode ser?

     Uma carruagem parou frente à entrada. Hugh viu o homem que desceu dele e pânico o invadiu.

     —É... Quin.

     Hugh sabia que seu telegrama teria chegado à casa de Weyland no dia anterior pela manhã; Quin teve que ficar em marcha em seguida, seguro que tinha tomado o primeiro trem para Escócia. Logo, na estação, uma carruagem para chegar até aqui.

     E só podia ter ido por duas razões. Ou levar Jane, embora Hugh ainda não o tivesse pedido. Ou a lhe dar notícias de Ethan.

     Hugh olhou para a Jane, mas ela já estava subindo a escada. Acreditava que estava convencida de que Hugh tinha pedido ao sue primo que fosse a procurá-la o antes possível.

     Antes que Quin chegasse aos degraus da entrada, Hugh abriu a porta de repente e saiu a seu encontro.

     —A que veio? —exigiu saber— Tem notícias sobre o Ethan?

     —Acabávamos de receber as últimas notícias de Londres quando chegou seu telegrama — respondeu Quin com expressão reservada— Não pudemos encontrá-lo. Sei que algumas testemunhas ouviram disparos e viram dois homens levar o corpo de Ethan para um beco.

     —Para lhe roubar ou para o ajudar?

     —Não sabemos. A única coisa que sabemos com certeza é que lhe tinham disparado.

     Disparado. Hugh deu um passo para trás para evitar cair. Aferrou-se à idéia de que Ethan continuava com vida.

     —Ainda pode estar vivo — prosseguiu Quin— Estamos penteando o local, e Weyland te comunicará em seguida algo que descobrir.

     Hugh não confiava em ninguém para procurar seu irmão. Tinha que fazê-lo ele. Juntou as sobrancelhas.

     —Para que veio?

     —Weyland quer que destrua a lista ou tê-la ele mesmo em suas mãos — respondeu Quin.

     —Está destruída. Por que veio de carruagem?

     —Para levar Jane.

     —Eu não te pedi que o fizesse.

     —Não, mas tampouco disse que ela fosse ficar com você, só dizia que estava a salvo e que Grei lhe tinha contado muitas coisas. Weyland disse que sua mensagem revelava mais do que ali tinha escrito. Enganei-me ao vir procurá-la?

     Apesar de que era outono e que ainda não tinha saído o sol, Hugh começou a suar e a recordar as cenas de seu horrível pesadelo.

     Ao ver que não respondia, Quin explodiu:

     —Maldição, homem, se decida e faça-o rápido. Isto afeta à vida de outras pessoas. E não penso permitir que continue brincando com minha prima por mais tempo.

     —Não estou brincando com ela — disse Hugh sério.

     —Talvez não de propósito, mas as conseqüências são as mesmas, e faz anos que dura! —Quin era o único varão da geração de Jane, e para todas suas primas era como um irmão mais velho. Mas em especial para Jane, pois ela era filha única. Hugh entendia perfeitamente que Quin estivesse zangado e não se ofendia por isso— Estou convencido de que ela é muito orgulhosa para te dizer isto, mas Jane esteve apaixonada por você desde pequena.

     —Já sei. —Embora seguisse lhe parecendo incrível.

     Quin não dissimulou sua surpresa.

     —Então, o que aconteceu? É porque acha que ela merece algo melhor? Odeio ser eu quem lhe diga isso MacCarrick, mas sim, ela merece algo melhor. Sei o que é e tudo o que tem feito. —Baixou a voz— E agora que a lista está destruída, vai voltar imediatamente para trabalho. Deixaria-a sozinha e iria matar às escondidas? Que espécie de vida seria essa para a Jane?

     —Ela já sabe o que sou. E se fosse minha mulher, deixaria-o — rebateu Hugh como se estivesse discutindo para conseguir que ela ficasse.

     —E ficará em casa com ela? Tentará levar uma vida normal? —perguntou o outro cheio de sarcasmo— Como conseguirá encaixar com seus amigos e sua família se não tem nem idéia de como fazê-lo? Meu Deus, se até antes de se transformar em um assassino não foi incapaz de assistir a nenhum ato social.

     Tinha razão. Hugh levava muitos anos no campo de batalha e era impossível que se adaptasse ao entorno social de Jane.

     —Se você não pode tomar uma decisão — disse Quin em voz baixa e ameaçadora—, eu tomarei por você!

     Esse sonho, a sinistra volta do livro, a chegada de Quin. Que mais tinha que acontecer para que Hugh se convencesse de que tinha que deixá-la partir...?

     Ao parecer, a única coisa que precisava era ver Jane na porta com a bagagem preparada, o semblante estóico e a mandíbula arroxeada. Maldição. Pelo visto, depois de tudo o que tinha fundido e de ter reencontrado o livro essa manhã, ela tampouco queria ficar ali com ele.

     Ao lhe ver o rosto, Quin ficou sem fôlego.

     —Meu Deus, Jane. Encontra-se bem?

     Ela assentiu e Quin lançou a Hugh um olhar assassino.

     Jane estava vestida para viajar e tinha sua bagagem junto aos pés. Ia partir de verdade. Imediatamente.

     —Vai com ele? —perguntou Hugh com a voz uma oitava mais baixa.

     —E o que outra coisa poderia fazer? —alisou-se a saia—. Te agradeço que lhe pedisse que viesse assim que passou o perigo. Muito previdente por sua parte.

    —Eu não...

     —Eu tinha pensado o mesmo — interrompeu Quin— É o melhor para ambos. Jane, se queremos tomar o trem em Perth temos que ir já. Diga-lhe adeus e vêem em seguida.

     Jane assentiu ausente e Quin pegou a bagagem e se foi para o carro. Foram. Já.

     Hugh sabia que ele e Jane iriam separar-se, mas tinha pensado que teria tempo para preparar-se. Deu a volta para ela e a olhou.

     —Eu ia acompanhar-te a sua casa.

     —Não acha que Quin possa me manter a salvo?

     —Sim. Agora sim. Mas queria te deixar instalada antes de...

     —Antes de voltar a me deixar? —encolheu-se de ombros e se manteve inexpressiva— Nós dois sabíamos que este momento chegaria. Não é necessário que o prolonguemos mais do que o necessário.

     Hugh exalou e passou uma mão tremente pelo rosto.

     —Nós dois temos que seguir adiante com nossas vidas — Jane continuou com isto — é o que queria, não é assim?

     —Eu não quero que vá ainda.

     —Ainda.

     —E que diabos quer você? —Hugh voltava a suar, e não podia deixar de ver as imagens daquele horrível sonho em sua mente.

     Com a voz quebrada pela emoção, Jane respondeu:

     —De novo, é uma escolha muito simples. Ou deixamos a maldição atrás. Ou você se nega, e, depois de que vá hoje aqui, não quererei voltar a te ver nunca mais em toda minha vida.

     Hugh não podia lhe prometer que ignoraria ou esqueceria algo que o tinha transformado no homem que era, e tampouco queria lhe causar dor; e isso era o que aconteceria se ficasse com ele. Mas ele tinha que saber...

     —Estaria disposta a continuar comigo? Inclusive depois de saber tudo o que tenho feito? —perguntou, e desejou que ela dissesse que não. Descobrir que a única mulher que podia lhe aceitar era sua Jane, já seria muito.

     —Estaria disposta a tentá-lo — respondeu ela— Eu gostaria de entendê-lo tudo um pouco melhor.

     —E agora que tornaste a ver o livro?

     —Acredito que isso é algo que jamais conseguirei entender. —Jane se estremeceu— Sim, quanto ao livro, temo-o... mas também sei que nós podemos ser mais fortes que tudo o que ali está escrito.

     Jane estava disposta, preparada para enfrentar-se a qualquer inferno por ele, e Hugh se sentiu afligido. Não deveria estar ele disposto a fazer o mesmo por ela?

    —Jane, vamos! —gritou Quin da carruagem— Temos que pegar o trem.

     Ela deu a volta para Hugh.

     —Se eu for hoje daqui, acabou-se. Para sempre, Hugh. Tenho que superar isto. —Sua voz se transformou em um sussurro. Se não me escolher agora, nunca o fará. Mas o mais triste é que algum dia se dará conta de tudo o que jogou pela amurada. —Ao ver que ele continuava em silêncio, lhe encheram os olhos de lágrimas— E te asseguro que então será muito tarde para recuperá-lo. —Começou a caminhar para a carruagem e justo quando ia subir a ele, deteve-se e retornou junto a Hugh.

     Tinha entrado em razão, ia ficar com ele uma semana a mais, um dia a mais.

     A bofetada que lhe cruzou a cara o pegou completamente despreparado.

     —Esta pelos últimos dez anos de minha vida. —Esbofeteou-lhe a outra bochecha um pouco mais forte— E esta pelos próximos!

 

–Nunca acreditei que diria isto — disse seu pai olhando nervoso o rosto de Jane—, mas talvez devesse chorar.

     Quin lhe tinha sugerido o mesmo, repetidas vezes ao longo de sua viagem de volta a Londres, justo antes de deixá-la no escritório de seu tio. Estava há uma hora em casa, o suficiente como para que este acabasse de lhe contar o que ele e Hugh, e todos outros, faziam para ganhar a vida.

     —Estou bem. —“Não sinto nada.” Desde quando sua voz soava tão débil?

     Jane bebeu um pouco de uísque com gelo e esperou que seu pai não se atrevesse a lhe dizer que era muito cedo para beber.

     —Estou certo de que tudo isto foi um grande golpe para você.

     —Quer ganhar uma medalha por disser a maior besteira do mundo? —Revirou os olhos— A sério, papai, importações?

     Weyland deu de ombros, e Jane suspirou. Por fim tinha sido totalmente sincero com ela, ou isso esperava Jane. Ela não tinha feito o mesmo ao lhe contar os motivos pelos que Hugh a tinha deixado partir.

     —Quem sabe o que Hugh pensa — disse tanto a seu pai como a Quin— Fez alguns comentários do tipo que ele não era o bastante bom para mim...

     —Jane, já sei que diz que está bem, mas não o parece.

     Não, desde que viu que Quin tinha ido buscá-la estava a beira das lágrimas. De fato, jamais tinha estado tão no limite sem chegar a chorar. Fez as malas sem pensar. Jane estava convencida de que se lhe caísse uma só lágrima não poderia parar.

     —Tem razão. —apoiou-se o gelado copo na mandíbula, mas fez uma careta de dor e seu pai a imitou— Me custa muito digerir tudo isto. Vejo você e Quin e inclusive Rolley, e sinto que são uns desconhecidos. —Ao voltar a vê-los, Jane tinha tentado manter-se forte, mas agora o único que conseguia era fingir indiferença— E Hugh? A idéia que tive que dele durante a metade de minha vida agora está... mudado.

     Jane não estava zangada pelo papel que Hugh tinha desempenhado em todo aquele engano. Ele tinha um trabalho que fazer, e depois de falar com seu pai, Jane compreendia melhor a seriedade e a importância do que Hugh fazia. Uma de suas balas podia economizar uma guerra sem sentido, mas apesar de tudo era um trabalho solitário, pelo que nunca ia receber reconhecimento e no que ninguém ia tentar lhe salvar se o capturavam. Ao Hugh podia perdoá-lo, ao menos nesse assunto. Mas e ao seu pai?

     —No que a ti respeita, papai, bom, talvez deveria ter me dado alguma pista, e não insistir tanto em que me casasse com um assassino. Mas bom, é só uma sugestão.

     Seu pai não podia nem olhá-la nos olhos e Jane deu conta de que, na última hora, também tinha evitado olhar o retrato de sua mãe.

     —Lamento o que tenho feito. Mas te juro que acreditei que Hugh mudaria de idéia e faria o correto. Esse homem faz anos que está apaixonado por você, e sempre foi honorável. Mas bom, você já sabia, você sempre soube. Jane, sabe o orgulhoso que me senti de você quando escolheu a alguém como Hugh? Você via nele coisas que os outros não podiam. Sempre acreditei que foram perfeitos um para o outro.

     “Quase chegamos a sê-lo.”

     —Está segura de que lhe disse que estava apaixonada por ele? E que queria continuar casada?

     Jane suspirou frustrada.

     —Não tem nem a mais remota idéia.

     Seu pai levantou as mãos.

     —Sim, sim, de acordo. Não voltarei a lhe perguntar isso.      

     —Bom, e o que propõe que faça agora? —Girou o copo para que o lado mais frio estivesse em contato com sua bochecha e acrescentou— Com todo o dinheiro do dote que me dará.

     Seu pai arqueou uma sobrancelha, mas foi o bastante prudente como para não dizer nada.

     —A verdade é que não tenho nem idéia do que faz uma mulher em minha situação.

     —Jane, já sei que te prometi que tentaria te ajudar a arrumar as coisas com o Frederick, mas — desabotôo o colarinho de sua camisa—, ele já não está disponível...

     —E como é isso? —perguntou Jane sem mostrar interesse.

     —Prometeu-se com Candace Damferre. Seu marido morreu sem herdeiros e o deixou tudo. Bidworth está, bom, louco de contente de que os dois voltem a ser livres.

     O que teria feito Jane se às poucas semanas de casar-se com Freddie seu único amor houvesse tornado a ficar livre? Talvez Hugh não lhe tivesse devotado um casamento cheio de amor e felicidade, mas ao menos tinha ajudado a seu pai a que ela não aceitasse um completamente sem amor.

     —Me alegro pelo Freddie.

     —Diz de verdade?

     —Sim. De qualquer modo, eu não poderia voltar com ele.

     —Sei, mas te prometi algo que não estava em minha mão porque estava completamente seguro de que as coisas entre você e Hugh sairiam bem.

     Jane deu de ombros.

     —Não se sinta culpado, ao menos não por isso. Você me disse que poderia arrumar as coisas com o Freddie —disse Jane movendo a mão sem pensar— se o casamento com o Hugh não se consumasse. —Levantou a vista e franziu o cenho— Sua cara tem um tom escarlate muito interessante, papai. De verdade, muito interessante.

     Weyland apertou os punhos.

     —Vou matá-lo.

     —Acredito que... —Jane olhou a ambos os lados com exagerado sigilo e acrescentou em voz baixa— tenho que te perguntar se fala a sério.

 

     Hugh passou toda a semana vasculhando todos os povoados ao redor do lago em busca de seu irmão ou de notícias sobre ele. Depois de perseguir durante dias qualquer pista, não tinha encontrado nada ainda que lhe dissesse se Etham estava vivo ou morto.

     Tal como havia dito Quin, muitas pessoas tinha ouvido os disparos e uns vendedores tinham visto dois homens arrastar o corpo de Ethan para um beco. As pessoas também tinham visto um homem muito magro saltar de uma árvore. O único que estava claro era que Ethan tinha desaparecido, e Hugh já não tinha mais pistas que seguir.

     Nem tampouco sabia aonde ir nem o que fazer.

     Sem a Jane nada tinha sentido.

     No passado, ao menos sua vida tinha tido um objetivo, mas agora tampouco se via capaz de retornar a seu ofício. Sim, tudo indicava que Hugh não poderia levar uma vida normal, mas maldição, tinha mudado. Jane o tinha mudado, e agora não sabia se seria capaz de voltar a recuperar sua existência. Além disso, se era verdade isso que diziam de que Weyland sempre se inteirava de tudo, então já saberia que tinha comprometido a Jane e logo a tinha jogado de casa. Hugh temia que Weyland já não quisesse saber nada mais dele.

     Em seu lugar, Hugh faria o mesmo.

     As cartas oficiais que Hugh mandou a Weyland receberam resposta em seguida, mas com frieza.

     Se antes, não ter Jane em sua vida tinha sido doloroso, agora era uma agonia. Hugh sabia exatamente o que estava perdendo. Pior ainda, sabia o dano que tinha feito. Quanto mais pensava naquela manhã, mais se arrependia de havê-la deixado partir. Mas o que outra alternativa tinha?

     Aonde podia ir? Fazia mais de um ano que não ia a Waldegrave. Deveria fazê-lo e assegurar-se de que seu imóvel não precisava de reformas, ou as fazer ele mesmo em caso contrário. Beinn A’'Chaorainn estava de caminho para ali. Poderia deixar dinheiro para Mórag por vigiar o imóvel, recolher as coisas que tinha deixado ali e fechar a casa de uma vez por todas.

     Ir ali onde já não ressonava a risada de Jane? Maldição, a quem pretendia enganar? Queria ir ali e preocupar-se com valor de umas oitocentas mil libras.    

    

     As primas de Jane estavam curvadas.

     Claudia virtualmente se mudou para viver com ela, e Belinda e Samantha a visitavam tão freqüentemente como seus filhos e seus maridos lhes permitiam. Essa mesma tarde, por exemplo, Claudia e Belinda estavam folheando algumas revistas, fumando cigarros franceses e saqueando o armário de Jane.

     Nas últimas duas semanas, Jane não tinha estado nenhuma hora a sós. Ao parecer, quando Jane retornou a casa os tinha deixado há todos muito preocupados com sua arroxeada mandíbula e seu comportamento tão incomum. Mas agora o arroxeado se curou e os dores de cabeça tinham desaparecido.

     Freqüentemente se perguntava se Hugh havia já recuperado de todo.

     Quando pensava no tempo que tinha vivido com ele, apesar de tudo o que tinha passado entre eles, só havia uma coisa que desejaria ter feito de outro modo. “Confia em mim e me conte seu segredo. Não te arrependerá”, havia-lhe dito ela. Jane se sentiu culpada. Sabia que ele já se arrependia. Tinha-lhe demonstrado não ser pormenorizada nem respeitosa, mas é que nunca havia se sentido tão furiosa, nem tão frustrada.

     Esse foi o instante em que Jane deu conta de que ia perder ao único homem que tinha amado, e que nada pudesse fazer para mudar isso. Ela o ia perder por algo que nem sequer existia.

     —Jane — disse Claudia brigando com ela—, está pensando em “Anos e Lágrimas” outra vez? —Sacudiu a cabeça devagar.

     —Agora já não pensamos nele, lembra-se?

     Por razões óbvias, Jane não lhes tinha contado em que trabalhava Hugh. Mas por motivos que ainda desconhecia, tampouco lhes tinha falado do da maldição. Ela sabia que se o fazia, elas sentiriam pena pelo Hugh e talvez não o atacariam tanto, mas como sabia que ele não quereria que soubessem, não o fez. Assim que todas acreditavam que a tinha deixado partir por simples teimosia ou, pelo mesmo que no passado, porque era um homem inconstante.

     Jane sim lhes tinha contado que tinha feito amor com o Hugh, e todas contaram nervosas os dias que faltavam para descobrir se estava grávida.

     Ao ver que não estava, Jane sentiu alívio, é obvio. Mas também uma confusa pontada de...

     —Jane, não sei se hoje já lhe recordei — disse isso Claudia acariciando os seus cabelo que lhe caía por cima do ombro—, mas em todo caso, vou fazê-lo de novo: passou-se uma década apaixonada por ele. —Atravessou a Jane com o olhar— Já não pode recuperar esses anos. Foram-se. Desapareceram.

     A primeira vez que Claudia fez esse comentário, Belinda brigou com ela e disse:

     —O que tem que fazer Jane é pensar no futuro, e não voltar no passado.

     Agora Belinda disse em troca outra coisa bem distinta:

     —Claudia tem razão. Já faz duas semanas, Jane. Como mínimo teria que começar a superá-lo.

     Claudia suspirou frustrada.

     —Deus santo, Jane, se até estou acreditando que aceitaria retornar com ele...

     —Não se atreva a pensar isso! —exclamou Jane— Não sou uma completa idiota. O único homem ao que amei me rejeitou não uma, a não ser duas vezes, e deixa que te diga que isso anula qualquer possibilidade de reconciliação.

     —Então, o que te acontece?

     —Tudo recorda a ele. E cada vez que vejo o culpado que se sente meu pai, morro por dentro.

     Claudia assentiu com firmeza e disse:

     —De acordo. Acredito que será mais fácil que esqueça Hugh se formos viajar, talvez a Itália, onde abundam os homens bonitos e viris. —Jane levantou uma sobrancelha ante a sugestão, assim Claudia continuou— Não ouviu esse velho refrão que diz que o melhor modo de esquecer a um homem é entre os braços de um italiano?

    

–Courtland, como você dizia, acreditava que este lugar ia ser horrível! —exclamou Annalía Llorente MacCarrick ao chegar no caminho de entrada de Beinn A'Chaorainn— É precioso. Não posso acreditar que este seja meu novo lar!

     —Carinho! Vá mais devagar! —grunhiu Court coxeando atrás dela. Depois de dois meses de convalescença, Annalía tinha se recuperado, mas Court, agora, sempre estava reclamando e perseguindo-a por todos os lados. Como ainda lhe doía a perna e não podia segui-la, transformou-se em um marido muito nervoso.

     O que aconteceria se caía e ele não estava ali para ajudá-la?

     Mas quando a alcançou e a segurou pelos quadris, Court foi incapaz de olhar mais à frente. “De quem é essa casa e o que fizeram com a minha?”

     Ladrões. Acreditava que ladrões com muito bom gosto tinham ocupado sua casa.

     As portas da entrada, que antes apenas se seguravam pelas dobradiças, estavam novas e recém pintadas. Um brilhante pomo dava a bem-vinda aos visitantes, o caminho de cascalho da entrada estava livre de raízes, e havia flores plantadas formando complicados desenhos. O teto parecia totalmente arrumado, e através das imaculadas janelas viu que havia móveis e tapetes. A sua mãe teria feito isso? Quem se não?

     Quando de modo inconsciente apertou os quadris da Anna, ela pôs as mãos em cima as suas e lhe sorriu coquete.

     —Outra vez? —sussurrou com seu acento— Meu luxurioso escocês.

     Court levantou uma sobrancelha ante seu claro convite e isso bastou para que se esquecesse por completo da casa. Sua voz se voltou mais sensual:

     —Não te satisfiz o bastante na hospedaria ontem de noite? Nem esta manhã?

     Anna se deu a volta entre os braços de Court e sussurrou.

     —Acredito que nunca me saciarei de você. —Pegou-lhe o rosto com as mãos— Courtland, por que me disse que sua casa era horrível quando é preciosa? Por que disse que teríamos que viver na hospedaria até que a fizesse como mínimo habitável? Lembro-me das palavras exatas que utilizou: decrépita, destruída, e, qual era a outra? Ah, sim, asquerosa.

     —Não... não estava assim quando a vi pela última vez. —Afastou o olhar de sua mulher e voltou a olhar a casa. Ele já sabia que algum dia ia ser formosa, e jurou a si mesmo que o conseguiria, mas nunca a tinha imaginado assim.

     E não sabia a quem tinha que dar o obrigado.

     —Agora já posso te confessar que estava um pouco preocupada — disse Annalía— Não sabia a que parte da selvagem Escócia fosse trazer-me. E com o bebê...

     Court temia muito chegar ali, e mais agora que iam formar uma família. Embora não tivesse sido essa sua intenção. Mas embora Annalía não estive grávida, ele lamentava ter que levá-la a essa casa. Entretanto, não tinha outra opção.

     Para estar com ela, Court tinha renunciado a sua vida como mercenário. Sem seu trabalho não tinha dinheiro, e havia se tornado louco tentando encontrar uma solução. Não poder mantê-la com os luxos aos que estava acostumada, era algo que lhe preocupava muito. Annalía era uma rica e real, no sentido literal da palavra, beleza. Tinha-lhe devotado seu dinheiro, mas atrás dessa primeira tentativa, viu que não tinha que voltar a fazê-lo.

     A intenção de Courtland tinha sido arrumar primeiro um cômodo e depois fazer tudo o humanamente possível por manter a sua mulher vivendo ali até que ele pudesse pagar o resto. Court sentia como se lhe tivessem tirado um peso de cima.

     Anna deu alguns golpezinhos no queixo e olhou por volta dos estábulos recém pintados.

     —Courtland, esse não é o cavalo que meu irmão deu de presente a Hugh?

     Court seguiu o olhar da Anna. Sim o era. Aleixandre Llorente tinha dado esse cavalo a Hugh para lhe agradecer que tivesse ido a Andorra e, com seu “inigualável talento”, tivesse-os ajudado a eliminar aos Renegados. Nem sequer o mesmo Court sabia que Hugh podia fazer saltar pelos ares o topo de uma montanha, e que ao fazê-lo mataria a trinta homens sem piscar.

     Hugh tinha ido ali e tinha feito tudo isso por ele? Era ali onde tinha estado todo esse tempo? Court tinha rastreado toda Londres em busca dele e de Ethan e lhes tinha mandado mensagens por todos os canais imagináveis para lhes contar sobre o Leabhar e seu futuro... porque agora sim o tinham. Court foi à casa de Weyland para perguntar onde estava Hugh, mas como de costume, o homem foi muito críptico.

     E era que Hugh estava no único lugar onde nunca lhe teria ocorrido buscá-lo.

     Court sacudiu a cabeça ao lembrar-se de tudo o que devia a seu irmão. Em primeiro lugar, Hugh tinha investido o dinheiro de Court lhe dando assim a oportunidade de desfazer-se de seu bando e de ter uns ganhos fixos. Depois, tinha ido a seu imóvel e a tinha renovado por completo, sabendo de que ele não poderia pagá-lo, ao menos por um tempo.

     Deus, e isso que já lhe devia algo que era impossível pagar com dinheiro: Hugh tinha salvado a vida de Annalía.

     Algo chamou a atenção de Court. Uma mulher miúda saiu da casa correndo, fugindo dos gritos de um homem. Era impossível que fosse Hugh. Ele não gritava a não ser que tivesse uma muito boa razão para fazê-lo.

     Quando voltaram a ouvir os gritos, Court se esticou de repente. Tirou a pistola que tinha escondida nas costas e empurrou a Annalía para a casa, justo para o oco da escada.

     —Anna, se coloque aí. Agora! E não saia até que eu retorne.

     Com os olhos muito abertos, ela entrou o armário que havia sob a escada.

     Court se deu a volta para assegurar-se.

     —Carinho, desta vez eu digo a sério.

     Ao ver que ela assentia, Court subiu a escada em silêncio, graças aos amaciados tapetes e a que o chão não rangia. Seguiu o som dos insultos de seu irmão, que foram acompanhados do som de coisas quebrando-se contra o chão. Estava brigando com alguém?

     Court levantou a pistola e com a outra mão abriu a porta.

     Nada mais o deixou mais atônito. Não só tinham mudado sua casa, também tinham mudado o seu irmão.

     O sempre sério e calmo Hugh precisava se barbear, estava completamente bêbado, e o olhava com os olhos exagerados.

     Hugh assinalou a porta, e esse leve movimento o fez cambalear-se.

     —Essa pequena bruxa levou meu maldito uísque.

     —Quem?

     —A governanta.

     Court aplaudiu a garota por ter tido a coragem de fazê-lo e o sentido comum necessário para saber que tinha que fugir dali.

     —Sim, já vejo que está perdido sem ele.

     —Vá ao inferno — disse Hugh, mas soou mais cansado que zangado. Afundou-se em um dos extremos da cama e, com os cotovelos nos joelhos, tornou-se para frente— O que está fazendo aqui?

     Court olhou seu irmão.

     —Esta é minha casa. Ou o era. Por que a arrumou?

     —Porque Jane quis fazê-lo. Nunca pude lhe negar nada a minha pequena.

     —Esteve aqui com ela? —Court não podia imaginar nenhuma razão pela que essa garota queria arrumar sua casa, mas sabia que não era porque se preocupasse com seu bem-estar— Acredito que já vai sendo hora de que me conte o que aconteceu — disse Court, e depois escutou assombrado o relato de seu irmão sobre a ameaça de Davis Grei, sua morte, e o casamento de Hugh com a Jane Weyland.

     —... E a deixei partir, e agora ela me odeia —terminou Hugh— Mas diabos, se você fez esse sacrifício por Annalía, eu também posso fazê-lo por Jane. —Soltou um suspiro de um modo tão desolador, como Court só tinha visto antes em Ethan.

     Court sabia que esse não era o melhor momento para dizer a Hugh que logo que ele se foi da França, perdeu todo o sentido comum e retornou a Andorra para reconquistar a sua mulher, que agora mesmo estava escondida no armário da escada.

     De fato, Court levava semanas procurando seus irmãos, e agora que por fim tinha a oportunidade, não sabia como dizer ao Hugh que Annalía estava grávida. Já o faria quando estivesse sóbrio.

     —Ia para o norte, de caminho a minha casa e, sem saber como, apareci aqui — disse Hugh antes de afastar o olhar para acrescentar—: Sinto falta dela. —Sacudiu a cabeça para brigar e continuou— Pode tomar posse de sua casa agora mesmo. Já não tem sentido que eu continue aqui. —De repente, Hugh franziu o cenho— Acreditava que iria ao leste com seus homens.

     —Mudei de opinião — respondeu Court sem mais explicações.

     —Ao parecer, leva a perda de sua mulher muito melhor que eu. Maldição, Court, a última vez que te vi parecia uma merda. Tão rápido a esqueceu? —passou as mãos pelo cabelo que era um matagal e fez uma careta de dor ao tocar a ferida que ainda não estava completamente curada. O movimento deve ter esgotado-o, porque descansou a testa entre as mãos— Me diga como posso fazê-lo. E sou tão presunçoso como pode.

     —Que demônios aconteceu na sua cabeça?

     —Grei deu um par de bons golpes.

     —Ao menos esse bastardo morreu.

     Hugh assentiu sombrio.

     —Court, tenho que te dizer algo. É sobre o Ethan.

     Court suspirou.

     —O que tem feito agora?

     —Ele... Ethan está...

     —Courtland — disse Annalía com suavidade da porta.

     Os olhos de Hugh ameaçaram sair das orbitas ao ver a Annalía, mas pareciam incapazes de enfocar bem. Ficou de pé de um salto e gritou:

     —Que demônios fez? —Apontou para Courtland com um tremulo dedo e se dirigiu para ele— Me jurou que não voltaria a procurá-la.

       Nervosa, Annalía levou as mãos a sua redonda barriga, um costume que tinha adotado nas últimas duas semanas, e o movimento captou a atenção de Hugh. Court deu conta do preciso instante em que seu irmão entendeu tudo.

     Hugh cambaleou para frente e cobriu os olhos com as mãos.

     Depois desabou no chão.

 

Uma hora mais tarde, Hugh se sentou de repente na cama e quase voltou a desmaiar.

Court o pegou no ombro.

     —Bebendo com uma contusão! Você sabe de sobra que isso não se faz. O que tenta fazer? Matar-se?

     Com voz rouca, Hugh disse:

     —O bebê é seu?

     Court apertou os dentes. Por muito que lhe incomodasse, esperava essa pergunta, e quando Hugh parecia que ia despertar, pediu a Annalía que fosse para baixo com a governanta, que tinha optado por retornar.

     —O bebê é meu — continuou Court— E sei por que o pergunta, sei que não se atreve a ter esperanças. Eu confiaria a Anna minha vida, mas para que esteja tranqüilo, direi que estive com ela durante semanas, dia e noite. Nunca a perdi de vista. —Lutou por manter a raia seu tremendo mau gênio— Só direi isso uma vez: não volte a me perguntar isso.

     —Mas ela... você não pode. O que acontece a condenada maldição?

     —Não é o que nós acreditávamos. As últimas linhas devem anular as outras, as cancelar de algum modo. Todo mundo acredita que ali diz que temos que encontrar à mulher certa.

     —Todo mundo? Quem diabos sabe?

     —A família da Annalía e... Fiona.

     —Tem conversado com nossa mãe? —Hugh o olhou durante um instante sem dizer nada— Não posso acreditar nisso.

     —Sim, sei. Mas ela está muito arrependida do que fez e quer falar com você. Agora que estou casado, posso... posso entender o que é te deixar louco ao perder a alguém a quem ama.

     E Fiona e Leith estavam muito apaixonados.

     —Quando descobriu tudo isto? —perguntou Hugh.

     —Depois de que foi não podia parar de repetir as palavras do livro em minha mente — explicou Court— Não saberão o que é amar. Mas eu sabia. Estava louco pela Annalía.

     —Eu acreditava que isso significava que não saberíamos o que era que alguém nos amasse.

     Court o olhou como se sentindo culpado.

     —Sei, mas nessa época não pensava com muita claridade. Estava desesperado, e disposto a acreditar em algo. Depois, quando cheguei lá, ela me disse que também me amava. E que ia ter meu bebê. A maldição se engana, Hugh.

     Court soube o momento exato em que Hugh sentiu um pingo de esperança, porque ao fazê-lo soltou palavras que não soavam muito bem.

     —Ah, que Deus me ajude. Talvez tenha deixado grávida Jane.

     —Reza para que não seja assim — balbuciou Court entre dentes.

     —O que? Por que o diz?

     —Imagine sua mulher dando a luz ao bebê de um escocês de dois metros e logo me diga se isso não bastar para te tirar o sonho durante os nove meses. Se soubesse que podia deixar a Anna grávida, jamais o tivesse feito. Jamais.

     Ante a advertência, Hugh franziu o cenho.

     —Vou buscá-la — resolveu Hugh, e desta vez se levantou mais devagar— A não ser que já seja muito tarde.

     Court lhe deu um empurrão para que voltasse a sentar-se.

     —Tem tempo de sobra. —Agora que Court sabia o que era ser amado por uma boa mulher, queria que seus irmãos tivessem o mesmo. E acreditava que por aí havia mulheres muito melhores para o Hugh que Jane Weyland— Hugh, como pode estar seguro de que é ela?

     Seu irmão lhe agarrou o pulso com uma força surpreendente.

     —Está... está de brincadeira? —Hugh o olhou incrédulo— A desejei durante um terço de minha vida, hoje estou casado com ela, e estou tão apaixonado que inclusive me dói.

     Essa mulher o tinha conquistado! Court soube que não havia nada que fazer.

     —Neste estado nem sequer conseguiria sair do imóvel —disse Court— Tem que dormir até amanhã e irá quando eu achar que pode montar a cavalo.

     Hugh sacudiu teimoso a cabeça e voltou a levantar-se.

     —De verdade quer ir ver Jane recém saído de uma bebedeira? E eu não gosto de ser eu quem lhe diga isso, mas está seguro de que quererá continuar casada com você só porque se deitaram juntos? Você mesmo me disse que a deixou partir e que agora ela te odeia.

     —Sim, e sei que lhe tenho feito mal. Mas me disse que me amava. Sério. Disse-me que me amava desde pequena. —Hugh o olhou furioso — Não me olhe assim. Já sei que parece incrível. —Caminhou inseguro— Ela estava convencida de que nos casaríamos, e depois acreditou que a tinha abandonado.

     Court assobiou entre os dentes. Isso sim que não o teria imaginado jamais.

     —Por isso se atormentava tanto? Irmão, temo-me que te espera uma árdua batalha.

     —Me diga algo que não saiba — murmurou o outro de uma vez que começava a vasculhar o quarto em busca de roupa.

     Todo o clã pensava que Court era o de caráter mais instável. Ao Ethan o consideravam frio como um bloco de gelo. E supunha que, dos três, Hugh era o calmo, o responsável e o ordenado. Se pudessem ver agora, resmungando sobre suas feridas, queixando sem parar e procurando roupa por entre os montões que tinha no chão, não o reconheceriam.

     —Ainda não está preparado para ir —insistiu Court— Me faça um pequeno favor. Fica até que amanheça.

     —Nem em sonho.

     —E o que me diz de um jantar e um café? Tem que estar sóbrio. —Court olhou Hugh preocupado— E, irmão, um banho não te faria mal. Sabe que há águas termais na parte de trás?

     Hugh tropeçou com uma bota e logo pigarreou.

     —Sério? —disse, e por algum estranho motivo se ruborizou.

 

À medida que Hugh se aproximava de Londres, e por haver passado o dia inteiro cavalgando como um louco, tinha que fazer esforços por controlar algumas ânsias tão fortes que lhe revolviam o estômago. Depois de lutar durante tanto tempo contra seus próprios sentimentos, lhes dar agora rédea solta era entristecedor.

     E a opressora presença da maldição havia... desaparecido. Por fim Hugh se atrevia a acreditar que tinha um futuro com Jane. Tinha visto a Annalía, e confiava no julgamento de seu irmão. No que se referia ao Leabhar, Hugh também confiava em sua mãe, e Court havia dito que Fiona acreditava o mesmo que ele. Hugh podia entender agora por que havia sentido tão bem ao estar com Jane, por que tinha tido a sensação de que tudo aquilo era inevitável e que eles dois tinham que estar juntos.

     Uma tormenta sacudia o céu, a um tom com seu turbulento estado de ânimo, mas Hugh não importava; iria procurar Jane essa mesma noite. A única coisa que tinha que fazer era estar com ela e reconquistá-la.

     Um quilômetro a mais, já estava um quilômetro mais perto. Hugh se moveu com o vento e franziu o cenho ao se dar conta de que o único que se interpunha entre ele e Jane era que ele conseguisse persuadi-la.

     Nunca em toda sua vida, Hugh tinha necessitado dessa habilidade. Ele estava acostumado a conseguir o que queria utilizando a intimidação ou a força bruta.

     Agora tinha que convencê-la de que faria um esforço por dar-se bem com sua família, e que conseguiria encaixar em sua vida. Se fosse devagar, a diferença da imersão total a que o tinha submetido em Vineland, Hugh estava seguro que conseguiria acostumar-se a isso.

     Encontraria o modo de fazê-lo. Maldição.

     Apesar de que Jane tinha lhe prometido que nunca voltaria a estar com ele, nesse instante, Hugh se sentia capaz de tudo. De fato, não havia dito a Court sobre o Ethan porque estava convencido de que seu irmão mais velho ainda vivia. Hugh continuaria buscando-o, contrataria detetives para que investigassem, e depois decidiria se contava ou não a Court, segundo o estado de ânimo deste.

     A essas alturas, Court já estava morto de medo pelo futuro nascimento. Hugh tinha visto com seus próprios olhos o culpado que se sentia cada vez que olhava o redondo ventre da Annalía. Apesar de que era inegável que ela estava encantada.

     Hugh nunca antes se preocupou pelo que pudesse passar a sua mulher no parto. Ele sempre tinha estado convencido que não teria nem mulher nem filhos, mas agora, só de pensar em Jane dando a luz, percorria-o um calafrio.

     Embora ele mesmo tivesse consolado Court lhe dizendo que as mulheres tinham crianças diariamente, prometeu-se a si mesmo que falaria com o Robert “o engraçado” para perguntar qual era o melhor modo de “esperar” para ter filhos, se é que Jane já não estava grávida.

     Quando Hugh chegou a Londres, a chuva tinha perdido força, mas ele não. Os cascos de seu cavalo faziam um ruído estrepitoso à medida que atravessavam as ruas da cidade. Uma vida inteira com Jane, livre daquela constante ameaça, dependia unicamente de sua capacidade de persuasão.

     Hugh sentiu um nó na garganta.

     Maldição, talvez Weyland não lhe deixasse nem sequer entrar em sua casa.

     Hugh devia a esse homem muito mais do que jamais poderia lhe pagar. Weyland tinha sido o único que se deu conta de que Hugh e Jane tinham que estar juntos, e tinha dado os passos necessários para consegui-lo. Tinha obrigado a Hugh a reconhecer seus sentimentos e, Deus, tinha evitado que Jane se comprometesse com outro homem.

     Havia-lhe devolvido o favor mandando a sua filha de volta a casa.

          

     Quando começaram a chegar os convidados, Jane alisou a seda de seu novo vestido verde esmeralda e se obrigou a sorrir. Estava preocupada, inquieta, e aborrecida. Seu pai a tinha obrigado a organizar essa festa de despedida para celebrar que ela e Claudia se fossem de viagem.

     Apesar de que fazia semanas que ela e sua prima tinham decidido ir à Itália, seu pai lhes tinha posto travas sempre que tinha tido oportunidade. Mas no dia seguinte por fim partiriam no barco a vapor que saía do porto a primeira hora.

     Quando Freddie e Candace chegaram, Jane sorriu sincera. Não só porque estivesse contente por esse feliz e apaixonado casal, mas também porque voltou a alegrar-se de não haver-se casado com ele. Saudou-os e logo eles foram falar com mais pessoas. Jane suspirou.

     —Por que está tão séria, Jane? —perguntou Claudia lhe oferecendo uma taça de champanha— Sempre gostou destas festas tão elegantes.

     —Já sei. —Jane adorava como cheiravam os acertos florais que havia por toda a casa, o brilho dos candelabros completamente iluminados, e o repicar das taças de cristal e as garrafas de champanha.

     —Perguntou alguém por seu casamento?

     Jane sacudiu a cabeça e deu um gole.

     —Não. Todo mundo evita o assunto. —Quase todos os convidados, que em sua maioria eram familiares e amigos, tinham ouvido rumores sobre o repentino casamento de Jane, e da igualmente repentina separação, mas ninguém, exceto suas primas de Londres se atreviam a lhe perguntar.

      —Bom, pois então, se anime! Amanhã começa nossa aventura. Vamos desta vulgar e pequena ilha.

     —Claudie, não se dá pena deixar a seu noivo durante tantos meses?

     —Hoje me encheram os olhos de lágrimas — reconheceu ela, e afastou o olhar— E por um instante pensei em voltar atrás. Mas nunca mais voltaremos a ser jovens, Jane.

     Ela suspirou.

     —Isso é certo.

     Quando Belinda e Sam se reuniram com elas, Claudia voltou a pegar o cabelo.

     —Reconheçam, vovozinhas, estão com ciúmes de nossa viagem. Vamos amanhã; partimos em busca do sol, a boa comida, a virilidade — Jane sentiu que seu pai a olhava preocupado do outro lado da sala. Sorriu para tranqüilizá-lo, ultimamente se esforçava por estar mais animada e seguir adiante com sua vida, mas ele continuava vigiando a de perto. Sempre estava preocupado por ela, mas desde que tinha retornado de sua aventura era muito mais evidente. Inclusive tinha estado a ponto de não permitir viajar a Itália, até que lhe recordou que não precisava de seu consentimento.

     De repente, a cara de seu pai se transformou em uma careta de felicidade que dissimulou imediatamente, pois em seguida voltou a ficar sério.

     Jane ouviu um pequeno alvoroço na entrada, um golpe seguido de uma discussão e depois explodiu uma bomba:

     —Vim procurar a minha mulher.

     Uns fortes e estridentes passos ressonaram no salão, atrás dela. Não. Não era possível.

     —Meu Deus — murmurou Belinda— Jane, o que fez o seu escocês?

     Jane deu a volta devagar e viu o Hugh na entrada, ocupando-a inteira. Ao ver o aspecto que tinha, abriu os olhos de repente. Estava completamente molhado, tinha as botas cobertas de barro, e o pescoço sangrava por culpa dos múltiplos cortes que tinham feito os ramos ao cavalgar. Tinha perdido peso e o cabelo molhado pregava no rosto... que estava sem barbear.

     Mas o que apanhou a atenção de Jane foram seus olhos. Estavam negros como a noite e ardiam com decisão. Hugh a viu e todo seu corpo se esticou, como se fosse jogar-se em cima dela.

     Todo mundo ficou calado ou boquiaberto. Hugh continuou olhando-a como se não pudesse fazer outra coisa e franziu o cenho.

     Por fim, afastou o olhar e deu conta da concorrida festa que ali estava celebrando. Engoliu seco ao ver que todo mundo usava seus melhores ornamentos.

     Exceto ele.

     Adotou sua expressão mais impenetrável e jogou os ombros para trás.

     Acabava de entrar em um lugar cheio de gente, e isso normalmente já o superava. Mas fazê-lo com aquele aspecto, como se acabasse de sair do inferno, e fazer com que Jane se expusesse ao ridículo desse modo? Hugh voltou a engolir seco e secou a chuva do rosto com a manga da camisa.

     Uma mulher mais velha disse:

     —Esse é o novo marido de Jane?

     Jane olhou para mulher e sem contemplações disse:

     —OH, cale-se.

     Então ia ter que fazê-lo ali, diante de todos?

     Não se importava. Hugh tinha ido disposto a fazer tudo. Caminhou para Jane esquivando dos convidados, que continuavam sem falar, mas que não deixavam de olhar.

     Ofereceu uma mão a Jane.

     —Vêem, Sine. Preciso falar com você.

     Suas primas o olharam com descaramento enquanto diziam a Jane que o obrigasse a partir e que não fosse com ele. Ela não parecia disposta a fazer o segundo.

     —Estou certa de que isto pode esperar — respondeu ela. Tinha seu acento alguma vez tão antipático?— Volta amanhã. Pela tarde.

     Quando um grupo de pessoas riu nervosa para ouvir essa resposta, Hugh deu a volta com o testa franzida.

     Procurou Weyland com o olhar e tentou saber o que pensava; o ancião fazia o mesmo com o Hugh.

     —Só quero falar com ela, Weyland. —O acento do Hugh nunca tinha sido tão marcado como nesse momento.

     Mas nesse instante viu Bidworth entrar na sala. Hugh chiou os dentes, pois jamais lhe tinha ocorrido que Jane pudesse retornar com seu antigo pretendente. Como tampouco imaginou que Bidworth passasse por cima de sua advertência de manter-se afastado de Jane. Quando Freddie viu Hugh, empalideceu, e de seus lábios escapou um estrangulado som.

     Se Bidworth se atreveu a tocar à esposa de Hugh... Este se aproximou dele com os punhos apertados.

     Bidworth se pegou à parede.

     —Maldição. Vai voltar a me bater, acho que sim?

 

–Isto não me está acontecendo — murmurou Jane.

     —De verdade baterá em Bidworth? —perguntou Belinda ao ver como Hugh caminhava para o pobre Freddie.

     —Sim — sussurrou Jane desesperada enquanto ameaçava a seu pai com o olhar. Ele não ia fazer nada! Limitava-se a observar Hugh e depois ela, uma e outra vez, estudando-os— Está bem. — Jane olhou a seu pai de novo e correu para Hugh— Eu cuidarei disto. —Quando alcançou Hugh, ele a pegou pelo cotovelo como se temesse que ela fosse a desvanecer-se em qualquer momento— Quer me seguir ao escritório de meu pai? —Ele hesitou um instante, era óbvio que queria bater em Freddie— Hugh, se quer falar comigo, eu não tenho intenção de fazê-lo aqui no meio. —Por fim, permitiu que o afastasse do salão.

     No vestíbulo, Hugh diminuiu o passo e perguntou:

     —Por que demônios está Bidworth aqui? —Jane viu que ele olhava seu dedo nu e baixou a voz— Há... voltou com ele?

     —Não é que seja teu assunto, mas ele está aqui com sua noiva — respondeu calma, e deixou que se relaxasse durante alguns segundos antes de acrescentar—... e vieram para me desejar sorte em minhas viagens.

     — Viagens?

      —Sim, acaba de arruinar a festa que minha família nos tinha organizado, a Claudia e a mim, como despedida. Vamos à Itália a passar ali o inverno.

     —Quando se supõe que pega o navio?

     —Com a maré da manhã.

     —Não.

     Jane massageou as têmporas.

     —Acredito que não te ouvi bem. Por um instante, pareceu-me que se atrevia a voltar a se colocar em minha vida. Renunciou a esse direito faz muito tempo.

     —Não, não o fiz. Continuo sendo seu marido. Estamos casados, e vamos continuar estando-o.

     Jane piscou.

     —Já me ouviu, pequena.

     “Perfeito — pensou Jane depois de um suspiro— Se quiser que este homem continue casado comigo, primeiro tenho que o esgotar durante semanas, depois tenho que lhe apontar com uma arma, lhe dar uma surra, e deixá-lo inconsciente. É a fórmula.”

     —E a que se deve esta mudança de opinião? —perguntou ela.

     —Não mudei de opinião.

     Jane viu que, atrás de Hugh, seu pai estava impedindo o passo de suas primas, que tentavam resgatá-la. Com certeza acreditava que assim dava mais tempo a Hugh para desculpar-se. Mas a ele isso nem lhe havia nem passado pela cabeça.

     Não tinha se desculpado, não havia lhe trazido flores, nem sequer tinha dado nenhuma explicação. De fato, nem sequer tinha se incomodado em barbear-se antes de invadir a festa e ameaçar os serventes e assustar os convidados. Ela tinha passado semanas inteiras querendo voltar a seus braços!

     —Como se atreve a aparecer assim!

     Jane não podia o entender. Algo tinha mudado nele, sim, Hugh não era precisamente famoso por assaltar festas elegantes como um enlouquecido highlander, mas a mudança era muito mais profundo que isso. Debaixo da superfície, no centro de sua personalidade. Jane podia senti-lo. E... temê-lo. Talvez aquela ferida na cabeça fosse muito pior do que ele tinha acreditado. Talvez o tivesse afetado.

     —Não tinha intenção de te envergonhar deste modo. Deus sabe que não, mas o que tenho que te dizer não pode esperar.

     —E não pôde dizer isso durante todo o tempo que estivemos juntos?

     Apareceram mais convidados e Hugh os olhou por cima do ombro.

     Jane lhes sorriu com pena e disse com convicção:

     — Você já vai.

     —Nem em sonho — interrompeu Hugh, e acrescentou em voz baixa— Não sem você.

     Jane soltou o fôlego.

     —E o que é o que tem que me dizer precisamente agora?

     Hugh abriu a boca para falar, mas viu que ela voltava a olhar às pessoas que se amontoava a seu redor.

     —Isto não funcionará. —Franziu o cenho.

     Jane voltou a olhá-lo de repente.

     —Isso é precisamente o que estou dizendo.

     —Vem comigo.

     —Quando o inferno se com... OH!

     Antes que Jane pudesse suspeitar o que pretendia, Hugh a levantou e a colocou em cima do ombro. Suas primas ficaram boquiabertas.

     —Hugh! —Deu-lhe alguns chutes inúteis— Em que diabos está pensando? —Jane sentiu como se ruborizava, tanto de vergonha como por ir de cabeça para baixo. Ela não merecia que a tratasse assim, e não tinha por que tolerá-lo. Era uma mulher que tinha a bagagem preparada para ir de viagem durante um montão de meses!

     Seu pai se aproximou deles e Jane lhe disse:

     —Quantas vezes mais vai permitir a Hugh que me trate deste modo?

     —Juro que esta será a última — disse ele cortante— Tenho razão, MacCarrick?

     —Sim.

     —Alegra-me ouvir isso, filho. Minha carruagem está lá fora, pode pegá-la para levar a Jane a Grosvenor Square.

     Hugh assentiu e se dirigiu para a porta principal sem parar. Quando desceu a escada continuavam chegando convidados. Jane fechou os olhos, morta de vergonha.

     Quando Hugh a sentou na carruagem, tinha perdido o fôlego, estava sem fala e um pouco enjoada. Depois que ficaram em marcha, atraiu-a para ele e a sentou em seu colo. Pegou-lhe a cabeça com as mãos, e lhe acariciou as bochechas de uma vez que com seus lábios procurava os dela.

     Jane ficou petrificada, aturdida.

     —Sine — suplicou Hugh com voz rouca— Por Deus, pequena, me beije. —Voltou a aproximar sua boca da dela, e a beijou daquele modo desesperado, como se fosse o último beijo que fosse lhe dar. E como uma tola, Jane respondeu a sua súplica, à urgência que sentiu. Hugh gemeu e aprofundou o beijo rodeando-a com os braços.

     Jane estava a ponto de sucumbir, ela tinha perdido tanto que quase se esqueceu do dano que lhe tinha feito. “Não, não, não!” obrigou-se a afastar-se e o empurrou.

     —Disse que queria falar comigo. E nem sequer aceitei isso. Não me deu nenhuma explicação.

     Depois de alguns instantes, Hugh a soltou e, nesse preciso instante, a carruagem parou. Quando o lacaio abriu a porta, Jane desceu em seguida, mas ao ver a magnífica fachada da mansão MacCarrick se deteve.

     A raiva e a dor que havia sentido reapareceram duplicado. Começava aparecer um pouco de névoa e teve que piscar para enfocar a vista de novo.

     Todas essas vezes que Jane tinha cavalgado perto dali com a esperança de poder vê-lo, ele a estava evitando. Tinha-a visto da janela e tinha deslocado as cortinas? Ao recordar o mau que o tinha passado e o muito que lhe tinha necessitado, sentiu como começava a lhe tremer o lábio inferior.

     E essa só tinha sido a primeira vez que o tinha perdido.

 

–Jane? —disse Hugh preocupado ao ver como enchiam os olhos de lágrimas. Só tinha uma oportunidade para reconquistá-la... “E o único que consegui foi fazê-la chorar.” De todas as reações que se imaginou, que Jane chorasse não era uma delas. Pegou-lhe a mão e a levou para dentro para protegê-la do frio da noite. Hugh sabia que ela queria resistir, mas não parecia ter suficiente energia.

     Conduziu-a diretamente ao seu quarto e a sentou em sua cama. Levantou-lhe o queixo com os dedos. Jane fechou os olhos, mas as lágrimas continuavam caindo. A cada lágrima, Hugh sentia como se uma adaga lhe cravasse em seu peito uma e outra vez.

     —Meu Deus, pequena, tenho-te feito mal? Fui muito bruto na carruagem? —ficou sem fôlego de repente— Deus, fui. —Recordava muito pouco desse beijo que lhe tinha fundido o cérebro, mas acreditava que a tinha abraçado muito forte— esperei tanto para isto, e estar tão perto de você... Não pude me controlar.

     Jane não disse nada e continuou chorando.

     —Isto saiu muito errado — murmurou Hugh— Sei e sinto muito. Jane, isto está me matando.

     —Então, me leve de volta — disse ela, marcando cada palavra.

     —Não quererá retornar com toda essa gente lá,

     —Pois me leve à casa da Claudia! —Jane lhe golpeou o peito.

      —Isso tampouco posso fazê-lo, pequena.

     Como podia ter saído tudo tão errado? Com tudo o que tinha passado e depois da desenquadrada viagem a Londres, Hugh não pensava com claridade. E quando a viu à luz dos candelabros, a consciência de que aquela maravilhosa e valente mulher era sua esposa, sacudiu-o como se tivesse recebido um murro. Ele era o afortunado bastardo que podia jantar com ela cada noite e despertar a seu lado cada manhã. A única coisa que tinha que fazer era reconquistá-la.

     Mas nesse momento viu Bidworth e temeu o pior.

     —Tenho muitas coisas que te contar e já não podia esperar mais. Eu queria continuar casado com você. Mas você já sabe por que acreditava não poder fazê-lo.

     —Pela maldição. —Brilhavam-lhe os olhos e seu tom de voz era distante— Eu iria com muito cuidado ao tirar esse assunto diante de mim.

     —Sim, mas agora descobri que meu irmão vai ser pai. —Que estranho era dizer isso, mas Hugh se deu conta de que adorava como soava— Está casado e é muito feliz...

     —Está dizendo que a maldição foi anulada? —Jane levantou o queixo— Talvez a derrotaram com um amuleto mágico? Terei que levar o talismã MacCarrick ao redor do pescoço?

     —O que estou dizendo é que interpretamos mal as palavras. Soube quando vi a Annalía grávida...

     —Ficou louco? Primeiro não queria continuar casado comigo por culpa de uma maldição, e agora que uma mulher a que não conheço, chamada Annalía, vai ter um filho, sim acha que podemos estar juntos. Entendi bem?

     —Já sei que parece uma loucura. Mas hoje pela primeira vez me dei conta de que posso ter um futuro com você, um no que não tenha que sofrer por seu bem-estar.

     —Não é suficiente, Hugh. E se acontecer algo que te faça voltar a acreditar que talvez possa me fazer mal? Antes não confiou em nós, por que ia fazê-lo agora? E se descobrir o que há oculto debaixo do sangue no livro e é ainda mais devastador que o anterior?

     —Court e Annalía acreditam que essas duas linhas anulam as anteriores, e que dizem que tudo isso não acontecerá se cada um de nós encontrarmos à mulher destinada a estar com ele. Eu também acredito.

     —E eu sou essa mulher? —As lágrimas começavam a cair menos.

       —Eu nunca duvidei. —Hugh jogou a cabeça para trás.

     —Então acha que agora pode me deixar grávida?

     —Sim. —Com voz tremente, perguntou-lhe—: Não o fiz, não?

     —Não, não o fez. —Ao ver a cara de alívio de Hugh, Jane disse— Tanto te assusta a idéia de ter filhos comigo?

     —Não, mas imaginar você dando a luz, sofrendo, em perigo... —Hugh teve um calafrio— Isso sim que me dá medo. E pequena, acredito que não me fará nada bem te compartilhar com outros, nem sequer com meus próprios filhos.

     Ante essa confissão, Jane inclinou a cabeça e seu olhar parecia agora muito mais terno.

     —Mas não me deixou grávida, vai fazer com que isso mude de opinião?

     —Não, nada me fará mudar de opinião.

     —Disse uma e outra vez que não era só pela maldição. Deu-me um montão de razões pelas que acreditava que não íamos combinar.

     —Não, eram só desculpas...

     —Mentiu-me?

     —Nunca menti para você. Essas desculpas diziam de mim tanto como de você. —Ao ver que Jane levantava as sobrancelhas, acrescentou—: Todas essas razões eram certas, mas agora já não têm importância, porque estou disposto a ser tudo aquilo que você quizer que eu seja. —Hugh lhe secou as últimas lágrimas com o polegar, e embora Jane continuava soluçando, o permitiu.

     —Hugh, você não pode evitar ser um solitário. Eu não o sou, e não quero levar uma vida de ermitã. Manteria-me afastada de minha família?

     —Não, nunca. Se isso for o único que se interpõe entre nós, se fizer questão me mudarei a viver com eles.

     Jane abriu um pouco mais os olhos.

     —De verdade? —disse devagar, desse modo que ele gostava tanto— Faria isso por mim?

     —Pequena, nada do que tenho descoberto importa se não puder estar com você. Se não tiver um futuro com você, é como se não tivesse nenhum.

     —Mas eu... tenho medo, Hugh. Algo poderia te fazer mudar de opinião e então te perderia pela terceira vez. —Afastou o olhar um instante e confessou— Não poderia suportá-lo uma terceira vez.

     —Sabe quanta vontade tive de rebater todos seus argumentos em Beinn A’Chaorainn e te dizer que sim podíamos estar juntos? Mas não podia fazê-lo. E inclusive então não queria te deixar partir. Foi muito egoísta por minha parte, mas eu nunca pedi a Quin que viesse a te buscar.

     —Não o fez?

     Hugh sacudiu a cabeça e, devagar, descansou as mãos nos ombros de Jane para lhe massagear a nuca e as costas.

     —Eu sempre tentei encontrar o modo de poder ficar com você, e agora o encontrei. Se me aceitar, jamais poderá se liberar de mim.

      —Então esta noite veio me buscar porque quer que estejamos completamente casados? —perguntou Jane mordendo o lábio— Quer que vivamos juntos?

     —Sim, Sine, se me perdoar. —Hugh sentiu um nó na garganta e a rodeou com os braços, mas ela estava tensa, calada.

     Passou o momento...

     Quando por fim Jane também o rodeou com os braços, Hugh voltou a respirar, e se deu conta de que estava contendo o fôlego.

     Hugh se afastou um pouco, pegou-lhe o rosto com as mãos e a olhou nos olhos.

     —Jane, já disse antes de agora que não sou um bom homem...

     —Mas será bom comigo?

     —OH, Deus, sim. Sempre.

     —Amará-me?

     Hugh juntou as sobrancelhas e, com voz rouca, respondeu:

     —Até o dia em que eu morra. —E essas palavras soaram como um juramento— E você? Pode me amar sabendo tudo o que tenho feito?

     —Hugh, agora entendo melhor sua profissão. Sei que salvou a vida de milhares de soldados e que nunca ninguém reconheceu isso. Talvez não obtenha medalhas por havê-lo feito, mas eu, sinto-me muito orgulhosa de você.

     —Orgulhosa? —Hugh se engasgou ao dizer a palavra— Sabe quanto me aterrorizava ter que te contar isto?

     —Eu sempre me senti orgulhosa de você, e isso não mudou. —Então o olhou nos olhos— E quero que saiba que se eu tivesse sido um homem, teria tido seu trabalho.

     —Não tenho nenhuma dúvida — disse ele, e seus lábios esboçaram um sorriso antes de recuperar a seriedade— Sabe o que significa isto? Pensa bem porque te juro, pequena, que nunca mais vou deixar que vá.

     Olhando-o nos olhos, Jane disse:

     —Nunca vai deixar que eu vá? Eu gosto de como soa.

     Hugh piscou como se não pudesse entender o que estava acontecendo. Jane sabia perfeitamente o que era esse sentimento. Mas ela notava que por fim tinham cruzado a linha.

     Aquela horrível sensação de angústia havia... desaparecido. Por fim Jane estava onde sempre sonhou que deveria estar.

     —Tenho dinheiro, sabe? —disse ele como se tivesse que convencê-la de que ficasse com ele— Posso te mimar. E temos uma casa na Escócia, à beira do mar.

     —Vou viver na sua casa do mar?

     —Em nossa casa. E sim, dado que a comprei pensando em você...

     —Fez isso? —perguntou ela surpreendida e encantada ao mesmo tempo. Semanas atrás, quando lhe contou sobre essa casa, Jane sonhou em estar ali com ele e nunca imaginou que ele tinha feito o mesmo com ela.

     —Sim, e acredito que se sentirá orgulhosa de dizer que é seu lar. Se quiser, podemos partir para lá agora mesmo. Podemos ir esta mesma noite.

     Jane mordeu o lábio e sussurrou:

     —Ou poderíamos ficar aqui... e acabar o que começamos na carruagem.

     —Voto por isso — disse Hugh imediatamente, e isso a fez rir. Mas quando lhe beijou o pescoço, a risada se transformou em um doce gemido de prazer. Com a língua, foi dando deliciosos beijos até que Jane começou a tremer e a agarrar-se com força a seus ombros. Contra seu úmido pescoço, Hugh sussurrou—: Necessito tanto voltar a estar com você... sonhei tanto com isso...

     —Eu também. —Jane gemeu enquanto Hugh a deitava com delicadeza na cama e subia a saia até a cintura.

     —Depois de tanto tempo — disse com voz entrecortada—, por fim posso dizer que é minha. —Desfez os laços de sua roupa interior e a despiu para deleite de seus olhos. Depois da primeira carícia de Hugh, Jane separou os joelhos e olhou fascinada como ele fechava os olhos de prazer— Advirto-lhe — ele acrescentou isso, remarcando cada palavra— Nunca me saciarei de você, pequena.

     Jane abriu os braços e se aconchegou entre eles.

     —Sou toda sua.

     Ao escutar essa frase, Hugh se emocionou e a olhou com os olhos cheios de sentimento.

     —Depois desta noite, amor, nunca mais voltará a duvidá-lo.

 

–Está preparada para ver nosso lar, Sine? —perguntou Hugh quando chegaram ao caminho de sebes que marcava a entrada de Waldegrave.

     Jane assentiu entusiasmada.

     —Estou mais que pronta. —Acabavam de chegar e faltavam poucos minutos para que anoitecesse— Faz uma semana que morro de vontade de vê-la! —Tiveram que ficar uma semana em Londres para solucionar certos assuntos. Se Jane não estivesse já completamente apaixonada por Hugh, quando lhe pediu que ajudasse a comprar os brinquedos que lhe tinham pedido seus sobrinhos, teria sucumbido de tudo.

     Hugh respondeu incômodo:

     —É só uma estratégia para cair bem com a sua família. Subornarei às gerações mais jovens antes das férias e assim me assegurarei de que estão de meu lado.

     Jane mordeu o lábio para não sorrir e respondeu:

     —Brinquedos: é muito maquiavélico.

     Jane aproveitou para pedir perdão a Claudia por ter cancelado sua viagem, e para lhe dar obrigado a seu pai, repetidas vezes, por isso ele chamava “sua magnífica campanha matrimonial”. Hugh falou com o doutor Robert, e retornou para casa completamente ruborizado e com uma caixa cheia de... provisões. Ela e Hugh tinham decidido que esperariam um ano antes de expor-se a ter filhos. Ao fim, Jane também queria ter Hugh para ela sozinha durante um tempo.

     Agarrou-lhe o queixo com os dedos e acariciou o lábio inferior.

     —Se você não gosta de estar aqui, só tem que me dizer isso.      

     —Estou certa de que eu adorarei — assegurou ela. Mas então entrecerrou os olhos e viu que Hugh não estava absolutamente preocupado. Jane deu conta de que ele sabia que ia gostar, e que isso o havia dito só para criar incerteza. Deu-lhe um golpezinho carinhoso no peito— Se é que chego a vê-la algum dia. Prometo que eu gostarei, inclusive se parecer com Ros Creag.

     —É um pouquinho mais séria. Mas sei que isso você adora. —Hugh sorriu e Jane recordou o extremamente atraente que estava ao fazê-lo. Jane tinha transformado em sua missão pessoal obter que sorrisse mais freqüentemente.

     Apesar de que Hugh ofereceu em levá-la de lua de mel a qualquer lugar do mundo, ela só queria estar ali. No futuro viajariam, mas agora tinham que estar como muito a um dia de viagem da Inglaterra, pois Hugh estava seguro de que os detetives que tinha contratado encontrariam logo alguma pista sobre o Ethan. E Jane, queria estar perto de Beinn A’Chaorainn para assistir o nascimento do futuro sobrinho, ou sobrinha, de Hugh, inclusive apesar de que Courtland também estivesse ali. Se Hugh fazia um esforço com sua família, ela tinha que fazer o mesmo por ele...

     —E se quiser, aqui também pode fazer mudanças — disse Hugh com deliberada lentidão— A cor de...

     —Por favor, Hugh, já não posso aguentar mais! —cortou-o Jane entre risadas— Quero ver nossa casa junto ao mar.

     —Já sabe que não posso te negar nada. — Pegou-a pela mão e a guiou para a entrada.

     Ao ver as vistas, Jane ficou boquiaberta e sobressaltada. Quando umedeceram os olhos, Hugh apertou a mão.

     —Diga algo, pequena.

     —É como... um sonho. —A mansão era impressionante, tanto por sua beleza como por seu tamanho. Estava construída com tijolos cor nata e tinha os clássicos janelões negros e um enorme balcão de mármore que dava ao mar. A paisagem era pitoresca e terminava naqueles majestosos escarpados. E as ondas... Jane ficou sem fôlego e sussurrou— Realmente se pode ver o sol através da água.

     Ao escutar suas palavras, Hugh se sentiu tão orgulhoso de si mesmo que acreditou que ia estourar.

     —Me alegro de que você tenha gostado— se limitou a dizer— Está pronta para conhecer o interior?

     —Podemos ficar e ver o pôr-do-sol? —perguntou Jane.

     —Claro. —Hugh a pôs diante dele para que se apoiasse em seu peito, rodeou-a com os braços e descansou o queixo em sua cabeça.

    Juntos ficaram ali olhando como o sol se escondia.

     —Mas é uma pena que não precise de reformas — disse ela rompendo o silêncio.

     —OH, sim. —Hugh riu, com aquela risada que ainda era tão pouco habitual nele, mas que cada dia ia a mais. Jane adorava esse som— Está contente de ter se casado comigo?

     —Um pouquinho — respondeu ela, e deu a volta em seus braços— Levo esperando este momento do primeiro dia em que te conheci e me chamou “pequena” com seu sedutor acento escocês.

     —Lembro-me desse dia. Lembro-me de que pensei que, quando ficasse maior, deixaria louco a algum homem. —Aconchegou-a contra seu peito— Ah, pequena —sussurrou ao mesmo tempo em que beijava seu cabelo—, o que nunca teria imaginado é que esse homem seria eu.

 

 

                                                                                                    Kresley Cole

 

 

 

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