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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SE TE ATREVES / Kresley Cole
SE TE ATREVES / Kresley Cole

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

No mais alto dos Pirineos, um bando de mercenários liderado pelo Courtland MacCarrick luta às ordens do general Reynaldo Pascal. Mas quando Court se volta contra o cruel militar, Pascal ordena sua morte. Court escapa por pouco e exige vingança seqüestrando à deliciosa companheira castelhana de Pascal.

A nobre herdeira Annalía Tristán Llorente despreza o seu enorme e bárbaro captor quase tanto como a Pascal, e sua inexplicável atração pelo Highlander só alimenta sua fúria. Não obstante, nada evitará a morte de seu irmão, assim como a sua própria.

No momento em que Court descobre que por trás da afetada Anna se esconde uma moça apaixonada e valente, fica preso por ela arriscando-se a desafiar a maldição que escureceu toda sua vida “enfrentar à morte”... ou “viver em solidão”. Mas Pascal jurou caçá-lo, sem retroceder em seu empenho até que o destrua.

Se ele consegue sobreviver a seu temido inimigo, poderá um rude mercenário das Highlands convencer à única mulher que amou para que seja sua para sempre?

 

 

 

 

Principado de Andorra, 1856.    

      — Sim, sim, sim. Arranquem o seu coração.

Pela primeira vez desde que tinham começado a espancá-lo, o sorriso ensangüentado de Courtland MacCarrick pareceu inseguro. Court já não podia ver nada com todo o sangue que caía pela ferida da face e que também saía a fervuras de seu lábio partido. A impaciente ordem do general soou absurda e irreal.

Vários valentões o seguravam e deram dois murros no estômago, era óbvio que os entusiasmava a idéia de matar um mercenário que uma vez era seu rival. Court não podia defender-se, não só por seu estado lamentável, mas também porque estava algemado.

—Se me matar — resmungou com esforço—, meus homens vingarão minha morte. Preferem provocar sua ira antes de nos pagar o que nos devem? —Apesar de que já estava anos longe da Escócia, continuava tendo muito sotaque.

—Ninguém vai vingá-lo, MacCarrick, todos vão morrer, igual a você — disse o depravado general Reynaldo Pascal. Embora Court não pudesse lhe ver, sabia que o homem estava tranqüilo. Esse desertor espanhol nunca tinha tido o aspecto de um fanático obcecado pelo poder, mas sim lembrava mais a um calmo estadista.

     —Meu clã mandará mais homens, e não descansarão até ter acabado com você.

     —Como quer — suspirou o general. Court sabia que esse era seu modo de dar por terminada a conversa — Façam que seja mais doloroso e que dure o máximo tempo possível.

     —Não vai fazê-lo você mesmo?

     Pascal riu.

     —Você precisamente deveria saber que eu estou acostumado a contratar a outros para que façam o trabalho sujo.

     Os dois valentões começaram a rir dele.

     —Já sabem estes dois estúpidos que a eles tampouco pensa em os pagar? — gritou Court por cima de seu ombro.

     Levantaram-no de repente e o arrastaram pela sala até atirá-lo escada abaixo para a rua.

     Sentiu o sol em sua cara e ouviu como uma mulher gritava assustada e um homem dizia:

     —Santo Dious!

     Mas Court sabia que não podia esperar nada dessa gente, além de que olhassem para outro lado e escondessem as crianças em suas casas. O medo que sentiam pelo Pascal estava justificado. Court podia ser esquartejado em meio da praça do povoado e ninguém diria nada. De fato, esta certo que isso se aproximava bastante do que estava a ponto de acontecer.

Não obstante, deu-se conta de que não estavam caminhando nessa direção. Ouviu o ruído de água correndo e supôs que estavam se aproximando do rio que passava junto à aldeia. Em vão tentou virar a cabeça para esse lado.

—Não vão me executar na praça maior? —balbuciou ele— Acredito que me sinto insultado.

—Estamos tentando ser mais discretos com nossas... atividades —disse o que estava a sua esquerda.

—Muito tarde. Pascal já conseguiu inimizar-se com toda a Espanha. —Tentou impregnar de convicção cada palavra, mas isso não era mais que a esperança que ele tinha.

     —E nós estaremos o esperando - respondeu o outro, antes de deter-se diante do que pareciam os restos de uma ponte.

     O rio Valira sempre corria desbocado depois de que chovesse no norte. Court tentou recordar o tão alto que era essa ponte. Era o rio bastante profundo?...

     Ouviu como desencapavam uma faca. Que opções ele tinha?

     —Se fizerem isto — disse ameaçador—, meus homens cairão implacáveis sobre vocês. Eles vivem para matar. —E matam para viver.

     Court sabia que não tinha nenhuma possibilidade de convencê-los de não lhe cravassem a adaga. Aqueles dois homens não eram uns meros membros do exército do general, mas sim eram assassinos; formavam parte da Ordem dos Renegados. A única coisa que Court queria era ganhar um pouco de tempo para recuperar-se. Cada segundo ganho dava mais opções.

Se saltasse, não iriam persegui-lo. Estava seguro que acreditariam que, em seu mal estado, com as mãos atadas e o impacto da queda, se afogaria sem dúvida nenhuma. E, por desgraça, o mais provável é que tivessem razão.

Sentiu como a ponta da adaga se apoiava em seu peito e relaxou, assim ao menos sabia onde estava a arma. Tinha chegado o momento. Jogou-se para trás para dar impulso suficiente para cair pela mureta da ponte e, enquanto saltava, aproximou os joelhos da cabeça para proteger-se ao bater na água.

O impacto o aturdiu; sentiu como se todo seu corpo tivesse chocado contra uma parede. Afundou tanto que os ouvidos começaram a doer por causa da profundidade e então começou a impulsionar-se com os pés para voltar para a superfície.

Lutou contra seus instintos e se manteve com a cabeça dentro da água, fingindo-se de morto. Sentia a força do rio e sabia que, nessa postura, as correntes o arrastariam com mais facilidade.

Os Renegados começaram a disparar tiros, bem no instante em que seu corpo aproximou da superfície. As balas passaram tão perto que pôde sentir as pequenas ondas que produziam ao impactar na água; mas não se moveu, nem sequer o fez quando se viu obrigado a mergulhar de novo para receber os empurrões rápidos do rio.

O rio o arrastou com força e rapidez. Quando não pôde suportar mais, levantou a cabeça para respirar, mas o único que conseguiu foi engolir água.

A corrente o impulsionava sem consideração para as rochas contra as que batia sem poder evitar. A água tinha tanta força que Court mal conseguia lutar para continuar respirando, enquanto ia miserável para o fundo do rio e a terra áspera de seu fundo. Depois da surra e os golpes, sua roupa tinha ficado feito farrapos, e sua pele estava rasgada em múltiplos lugares. A cada novo golpe que dava contra as rochas estava mais perto de desmaiar.

Mesmo assim, continuou lutando até conseguir dar a volta. A água tinha conseguido eliminar grande parte do sangue e as geladas temperaturas tinham rebaixado o inchaço de alguns dos murros, por isso agora quase podia ver um pouco pela extremidade de um olho.

Uma enorme e bicuda rocha se aproximava; Court se equilibrou contra ela e a rodeou com os braços que ainda estavam atados. A corrente o arrastou com tanta força que conseguiu cortar a corda que rodeava seus pulsos. Quase não deu importância, só pensava em respirar. Descansou um instante e, ao romper a corda, voltou a estar à mercê do rio.

Quando sentiu que a corrente por fim se acalmava, teve a sensação de que levava dias perdendo e recuperando a consciência. Nesse estado de atordoamento se deu conta de que as geladas temperaturas impediam que sentisse a dor de suas feridas. De fato, o único que sentia era o suave vaivém da água que ia levando para uma curva do rio. Sucumbir à escuridão era uma grande tentação, quase mais forte que sua vontade de sobreviver, mas obrigou a arrastar-se de joelhos, ajudando-se só com uma mão, até a pedregosa borda. Livre por fim do rio, deitou-se sobre as costas e acariciou o pulso que estava quebrado.

     O sol fez entrar calor e fez que desaparecesse aquela sensação de frio que o impregnava até os ossos. Não soube quanto tempo permaneceu ali. Em um determinado momento viu que uma sombra se aproximava dele. Tentou entrecerrar os olhos para enfocar melhor com seu único olho bom.

     Ao ver que uma mulher de cabelos brilhantes se ajoelhava a seu lado e o olhava com surpreendidos olhos verdes, deixou de respirar, e suas machucadas costelas se queixaram por isso. Ela tinha os lábios entreabertos, e de seu pescoço pendurava uma estranha e incomum jóia. Quando inclinou a cabeça para olhá-lo melhor, a brisa fez que uma escura mecha de cabelo lhe acariciasse o rosto.

     Court ficou sem fôlego.

     —Aingeal... — murmurou, enquanto continuava lutando para não desmaiar.

     —Perfeito — respondeu ela sarcástica e ficou de pé com as mãos nos quadris— Só o que me faltava. Este animal está vivo.

 

     Annalía Elisabet Catherina Tristán, filha da família Llorente, tinha ido recolher flores para dar um pouco de cor ao chá da tarde. Onde cresciam melhor os ranúnculos? Na beira do rio. Na beira do maldito rio, onde, ao parecer, os malditos mercenários lançavam seus despojos.

     Não sabia o que pensar quando viu o corpo ao longe. Talvez um pastor descansando à beira do Valira durante a última tormenta? Mas à medida que foi se aproximando, deu-se conta de que aquele gigante não era nenhum pastor, e tampouco tinha passado por cima de que nacionalidade era. Ao redor da cintura usava um largo e grosso cinturão de estilo estrangeiro. Abaixo desse cinturão, penduravam uns farrapos de um tecido em quadros que acreditava que tinham sido muito maiores.

     Os quadros significavam que era escocês. Se for escocês significava que era um assassino.

     Considerou a situação e, apesar disso, agarrou as rédeas de Lambe, seu cavalo, na mão e ajudou a aquele escocês semi-inconsciente a subir nos lombos de seus arreios os cem quilos que devia pesar. Nem ela nem Lambe estavam acostumados a esse tipo de exercício. Annalía suspirou, os dois eram dois puros-sangues vindos ao mundo para fazer outras coisas.

Não estava preparada para resgatar ninguém, nem para nada, a não ser recolher umas flores, assim o máximo que pôde fazer foi rodear o peito do homem com uma corda, atar suas mãos a ambos os lados do corpo, e depois atá-lo na sela.

Mas, por que o estava levando montanha acima, para sua casa? Em Andorra odiavam os escoceses e, apesar disso, ela estava levando a um deles através da estreita entrada, a única que havia, até a planície que separava o rio da mansão. Seus antepassados tinham utilizado essa passagem durante mais de quinhentos anos, servia para manter os seus cavalos dentro e os seus inimigos fora.

Com certeza ele era um dos mercenários contratados pelo Pascal. O pequeno país dela estava quase oculto nos Pirineos, assim não era freqüente ver escoceses passeando por ali. Mas e se esse escocês em concreto tivesse ido ali por outras razões e ela o tivesse deixado morrer? Annalía acreditava que ele a tinha chamado “anjo”, e tinha parecido tão aliviado ao vê-la como confiasse que ela pudesse salvá-lo.

     Se for um dos homens do Pascal, primeiro o curaria e depois o mataria ela mesma.

     Chegaram a Casa de Llac depois de rodear, com passo lento e pesado, o lago de cristal pelo qual a casa recebia o nome.

     —Vitale! — Annalía chamou o homem encarregado de sua casa, mas não recebeu resposta. Onde teria se metido? Acreditava que estava fumando. Para variar.

     —Vitale! — Sem seu irmão ali, tudo estava indo ao desastre — Já sei que está fumando atrás do estábulo, e agora mesmo não me importa!

     Vitale o “Vieux” tirou sua enrugada cara por um dos extremos do estábulo.

     —Sim, mademoiselle — começou mas ao ver o homem ferido soltou a fumaça que ainda escondia na boca e correu para ela com seu cabelo cinza ondeando ao vento— O que fez? — exclamou ele aguçando seu acento francês— É escocês. Olhe a roupa que usa.

     —Já vi — disse ela zangada. Ao ver que se aproximavam dois dos velhos amigos de Vitale, e disse em voz baixa— Já falaremos disto lá dentro.

     Sem intimidar-se, ele continuou gritando.

     —Deve ser um dos escoceses sedentos de sangue que contratou o general!

     —Um escocês? —disse um dos amigos de Vitale. Ao ver que este respondia afirmativamente, os dois se afastaram colina abaixo com suas fortificações.

     Ao parecer, todos tinham ouvido histórias sobre a brutalidade desses mercenários.

     —Por que o vai salvar? —perguntou Vitale quando ficaram a sós.

     —E se não for um desses mercenários?

     —Ah, claro, ele deve ter vindo ver... —Fez como se estivesse pensando, e a seguir fez um gesto como de ter encontrado a resposta que estava procurando— Acabo de me lembrar. Aqui não há nada que ver!

     Depois ainda todos perguntavam onde ela tinha aprendido a ser tão sarcástica.

     —Vai me ajudar? —perguntou Annalía impaciente — Precisamos de um médico.

     —O doutor foi para o norte para unir-se aos homens de seu irmão. —Vitale observou com atenção os dois metros de homem que tinha frente a ele — Além disso, é você quem se encarrega dos feridos.

     —Eu me ocupo dos animais e das crianças feridas, não dos gigantes em quem deram uma surra e sangra por todos os lados — corrigiu ela. De pequena, a babá andorrana da Annalía tinha lhe ensinado a curar algumas feridas, ossos quebrados, queimaduras, corte e coisas do tipo, mas nunca tinha tido um paciente como aquele— Não é apropriado que eu me ocupe dele.

     O velho a olhou zombador.

     —Então, Talvez mademoiselle deveria ter pensado antes de arrastar o inimigo até as portas de sua casa. Não acha?

     —Talvez mademoiselle sentiu a mesma compaixão que quando decidiu contratar o Vitale, o ancião — respondeu ela apertando os lábios. Embora ambos sabiam que não tinha sido por compaixão que ela o tinha levado de Paris até Andorra, mas sim por gratidão.

     —O que quer que eu faça? —suspirou ele.

     —Me ajude a levá-lo para quarto que há em cima do estábulo.

     —Esse quarto não tem ferrolho! Poderia nos degolar enquanto dormimos.

     —Então, onde? —Ele abriu a boca para responder, mas ela o deteve antes que pudesse fazê-lo— E não se atreva a dizer que o devolvamos ao rio.

     Vitale fechou a boca de repente. Os dois ficaram olhando ao homem inconsciente, como se ele pudesse lhes dar uma resposta.

     —Poderíamos instalá-lo na casa — disse Vitale finalmente—, assim poderíamos trancá-lo em um quarto.

     —Na casa é onde eu durmo.

     —Mademoiselle demonstrou uma compaixão — comentou ele sorrindo —, a que só um passo separa da hospitalidade.

     —O único quarto no andar de baixo que tem que passar é o escritório, e é particular. —Ela decidiu ignorar o sorriso de Vitale — Não quero que ele se inteire de nossos assuntos.

     O ancião golpeou o quadril do homem e ao ver que não obtinha nenhuma resposta pôs-se a rir.

     —Vitale!

     Este deu a volta e a olhou sem alterar-se.

     —Assim, o que mademoiselle sugere, que o levemos ao segundo andar?

     —Não podemos fazer isso. Meu cavalo já custa manter seu peso.

     Alguns dos meninos do povoado passaram por ali e os olharam tão boquiabertos que Annalía se lembrou do estado da vestimenta do homem. Quase toda sua roupa tinha desaparecido. Suas calças tinham um rasgo que cruzava toda sua panturrilha até...

     Annalía fechou suas pernas e o cobriu com a saia de seu próprio vestido.

       —Fora daqui! —gritou ela nervosa.

       Os meninos olharam para Vitale. Este fechou os olhos um instante e depois lhes disse:

       —Me ajudem com as cordas e ocupem do pobre Lambe. —Olhou-a e continuou— Se insistir em levá-lo ao segundo andar, nós todos podemos tentar. Além disso, de verdade nos importa que caia várias vezes?

       Assim, com um pouco de estratégia, muito esforço e a ajuda dos meninos os que, depois de sua grosseria, ela teve que suplicar que voltassem, conseguiram subi-lo ao quarto de convidados e pô-lo na cama. Annalía sentia dor nas costas como se tivesse lavado roupa durante todo o dia, e ainda tinha que ocupar-se de suas feridas.

       Enquanto Vitale tirava do quarto os meninos e seus curiosos olhares, Annalía inspecionou seu paciente e viu que tinha o pulso quebrado e com toda probabilidade também algumas costelas.

     Tirou as luvas de montar e afastou seu cabelo da testa, tocando o úmido couro cabeludo e a cabeça. Descobriu que tinha um golpe muito feio e, ao mover as mãos para a nuca, notou que tinha outra ferida também ali. Seus olhos estavam tão inchados, que duvidava que pudesse abri-los quando despertasse. Para acabar de piorar as coisas tinha o corpo coberto de feridas e arranhões causados pelo rio e suas estreitas pedras.

       —Vitale, precisarei de algumas tesouras e algumas faixas. Traga-me também água quente e algumas colheres de madeira.

       Vitale soprou como se estivesse zangado.

       —Vou voando — resmungou entre dentes. Ainda nesse murmúrio, o sarcasmo do galo foi evidente.

       Ela quase não o ouviu quando voltou com tudo o que tinha pedido.

       —Obrigado — murmurou.

       O ancião não disse nada, limitou-se a fazer uma reverência, dar a volta e deixá-la só no quarto.

       —Está bem! Vitale! —gritou ela— Não preciso de você!

       Estava sozinha com o temível e enorme escocês. Aquela tarde deveria haver-se limitado a tomar o chá.

       Cobriu-o com um lençol e, sem olhar, começou a cortar as destroçadas calças que ficavam debaixo. Concentrou-se e colocou as tesouras, mas em seguida as afastou. Estava convencida de que, sem querer, tinha-lhe cortado o quadril.

       Fixou o olhar na parede e tentou outra vez, mas voltou a cravar a bicuda tesoura em sua pele. Esta vez ele gemeu de dor e ela se afastou de repente. Apostaria toda sua baixela de Limoges que qualquer homem preferiria morrer antes que ter a uma esgotada mulher com algumas tesouras perto de suas coxas e sem poder ver o que fazia.

       Assim baixou o lençol até a cintura e começou a cortar o que restou de sua camisa. As botas já as tinham tirado antes de subi-lo pela escada, para reduzir um pouco seu peso. O que conduzia de novo A... suas calças.

       Mordeu o lábio inferior, desabotoou-lhe e tirou o encharcado cinturão, e deu conta de que tinha um peito perfeito, cada músculo bem delineado com um pêlo escuro que assinalava o caminho a seguir por seus dedos.

       Era um homem muito pesado, mas não sobrava nem um grama de gordura. Seu corpo era muito musculoso e se ela o ajudasse se curaria muito rápido. Mas Annalía nunca tinha visto antes a um homem nu. Ali ninguém nadava sem roupa. Ali não eram tão liberais como seus vizinhos da Espanha e França. E agora ela ia ter que despi-lo por completo, com o que podia ver tudo o que quisesse.

       Ela não queria ver nada! Obrigou-se a tirar essas idéias da cabeça, ergueu os ombros e adotou uma atitude decidida. Nesses momentos era uma enfermeira, e ela sempre se comportava como uma dama.

       Desabotoou-lhe a calça e tratou de ignorar as desconhecidas e interessantes texturas, as fascinantes formas que acariciava. Depois de desabotoar-lhe por fim pôde cortá-la para tira-la. Todo o momento tentou manter o lençol entre ele e ela. E quase conseguiu.

       Quando começou a curar-lhe o pulso, tinha a face molhada de suor. O entalou com as duas colheres de madeira e a envolveu com força com uma parte de tecido, para engessa-lo pela manhã. Quando acabou, colocou seu braço por cima da cabeça, e depois fez o mesmo com o outro para poder enfaixar as costelas. Envolveu-o uma e outra vez, apertando forte, passando a atadura por suas costas. Tinha o peito muito largo e, para poder enfaixar-lo teve que se deitar em cima dele, abraçá-lo.

       Ao acabar, Annalía estava muito inquieta e irritada.

       Apesar de morrer de vontade de se banhar e deitar, não podia deixar de olhar a mão que ele não tinha ferido. No final sucumbiu à tentação e se sentou na cama, junto a ele, para pega-la.      

       Os dedos e a áspera palma estavam tão cheios de feridas e arranhões como o resto de seu corpo. Ela franziu a testa e pôs essa mão na sua.   Ficou fascinada ao ver o tamanho que tinha, e como podia engolir a sua; colocou cada um de seus dedos contra os dele, emparelhando-os. Se ele era um mercenário, e esta certa que era, a julgar por todas aquelas feridas, ela não podia deixar de perguntar quantas armas, quantas espadas e facas teriam segurado ele com aqueles dedos. Os teria usado alguma vez para estrangular alguém? Ficou completamente louca ao colocar a um homem assim em sua casa?

 

       Nos dois últimos dias Annalía perguntou-se repetidamente se o homem despertaria alguma vez. Tinha convencido a Vitale de que o banhasse todos os dias —havia coisas que ela se negava a fazer— e também para que a ajudasse a engessar seu pulso.

     A partir de então, Annalía tinha estabelecido uma espécie de rotina em que ela se ocupava de trocar a bandagem do escocês e de que tomasse um pouco de caldo e de água. O inchaço que cobria os olhos e a mandíbula ia desaparecendo um pouco cada dia que passava, mas ela suspeitava que, embora não estivesse ferido, seguiria tendo o aspecto de um rufião.

     Essa manhã o calor era insuportável. Não corria nada de vento e nesse verão até a usualmente fria brisa da noite era cálida.

     Apesar de que esse dia já o tinha visitado, Annalía queria se assegurar de que Vitale tinha fechado bem a porta depois de haver se ocupado dele. A quem tentava enganar? Vitale precisamente estava convencido de que o escocês os assassinaria enquanto dormiam, de modo que tomava todas as precauções necessárias.

       O que ela queria era vê-lo, porque estava inquieta, e olhá-lo respirar; observar como seu peito subia e descia era... agradável. Igual era acariciá-lo. Ela cada dia tocava a cicatriz que cruzava na sua testa, e todas as marcas que cobriam o peito e os musculosos braços. Tinha memorizado todas e inventou uma história para cada uma delas.

     Embora ele fosse com toda probabilidade o inimigo, sua presença tinha quebrado a monotonia e a solidão daquela casa. Desde que a guerra tinha aparecido no horizonte, grande parte de sua família tinha fugido às montanhas, inclusive às mais remotas, e ela só recebia a visita de uma cozinheira e de algumas donzelas do vale duas vezes ao mês. Annalía estava sozinha naquela enorme mansão; seus pais tinham morrido, seu irmão foi lutar contra Pascal. Annalía tinha convidado às mulheres do campo e a seus filhos que fossem viver com ela, mas haviam sentido incômodos ante tanto luxo. Até Vitale tinha recusado o convite de viver na casa.

     Antes que chegasse o escocês, ela estava ali sozinha, ouvindo o retumbar do eco.

     Ao abrir a porta do quarto viu que ele se movia incômodo na cama e que o suor molhava a sua face. Comprovou as bandagens e o gesso e assegurou de que não tinha febre. Certamente tinha começado a suar pelo calor que fazia no quarto. A janela estava aberta, embora tampouco ajudasse muito. Annalía mordeu o lábio inferior e tentou pensar em algo que pudesse refrescá-lo, que o fizesse estar mais cômodo.

     Decidida, encheu uma terrina com água e molhou um trapo. Voltou para a cama e passou o trapo molhado pela face, o pescoço e o torso do homem, por cima de suas bandagens.

     Depois de comprovar que não havia ninguém olhando, pegou o extremo do lençol e o deslizou até os quadris dele, deixando-o ali para que suas partes íntimas ficassem perfeitamente cobertas. Tremeram-lhe as mãos ao aproximar o tecido molhado ali, onde acabavam as bandagens. Annalía percorreu seu duro estômago, e se surpreendeu ao ver como reagiam aqueles músculos ante suas carícias.

     Sem querer, derramou um pouco de água em cima do lençol que cobria seus quadris e pôde ver como sua virilidade se desenhava debaixo dela. Essa vez, Annalía pôde ver muito mais que em outras ocasiões, porque o que via era maior, mais duro. Ela virou a cabeça e se perguntou o que sentiria se...

         —Me diga, pequena — disse o homem com voz rouca—, você gosta do que vê?

    

Ao ouvi-lo, ela se sobressaltou e soltou o pano de repente. O que tinha despertado ao sentir como o pano que primeiro o tinha roçado de um modo clínico e prático, começava a acariciá-lo de um modo muito mais sensual.

     Os saltos dela ressonaram sobre o gentil chão de madeira quando retrocedeu afastando-se dele. Court a observou enquanto ela alisava o vestido, que não tinha nenhuma ruga, apertava o perfeito coque que brilhava na nuca e endireitava o colar com ambas as mãos. A cada uma destas tarefas Annalía levantava ainda mais o nariz.

     —Só estava cuidando de você — replicou com um marcado acento inglês.

     Ele tinha esperado despertar dolorido, mas o único que tinha sentido ao recuperar a consciência tinham sido os seios dela lhe roçando o pêlo do peito enquanto com uma mão lhe acariciava o abdômen e com a outra se apoiava em seu quadril. Havia sentido como as gotas de água caíam no lençol, tinha cheirado o aroma do cabelo dela, e seu dolorido e golpeado corpo havia tornado a pulsar.

     —Pois acredito que sigo necessitando de seus cuidados.

     Ela se ruborizou.

     Court tentou sentar-se mais erguido na cama e então gemeu de dor. Foi como se suas feridas houvessem sentido aludidas por seu último comentário. Baixou a vista e viu que tinha o pulso engessado.

     —Quem é você? —grunhiu ele — E onde estou?

     —Meu nome é Annalía Elisabet Catherina Tristán. Sou filha da família Llorente, e você está em minha casa, Casa de Llac. — Pelo seu sotaque, soube que o inglês não era sua língua materna. Embora o falava perfeitamente e sem titubear, era agradável escutar como as palavras deslizavam por sua boca. Ela tinha pronunciado o sobrenome Llorente com orgulho, como se ele tivesse que reconhecê-lo. Court sabia que o tinha ouvido antes, mas não sabia onde.

     —Onde me encontrou? E qual distância da aldeia?

     —Bem nesta montanha, ao pé da beira do Valira, a quatro portos de montanha para o sul.

     —Quatro portos de montanha mais longe? Com certa seus homens o dava por morto. Tinha que lhes mandar uma mensagem.

     —Eu gostaria de conhecer o nome de mi... convidado —disse ela assinalando-o com a cabeça.

      Ele a olhou com atenção, aquelas maçãs do rosto tão marcado e os olhos verdes escuros combinavam à perfeição com a pedra verde e dourada que pendurava de seu pescoço. Parecia-lhe familiar, mas com certeza que se a tivesse conhecido antes, não a teria esquecido, e tinha a impressão de que a ela não gostava absolutamente. Por que então estava “cuidando dele”?

     —Meu nome é Courtland MacCarrick.

     —É escocês.

     —Sim. —Ele juraria ter visto como ela se entristecia em ouvir a resposta.

     —E está em Andorra por que... — convidou a continuar a frase.

     Passou-lhe pela mente dizer a verdade: Porque me contrataram para submeter a seu povo.

     —Só estou de passagem.

     Pareceu que a tristeza dela se aliviava um pouco. Entretanto ela espetou, irada:

     —Está de passagem? De passagem por este país tão pequeno dos Pirineos, famoso por ter algumas das montanhas mais altas da Europa? No futuro, limite-se a rodeá-lo.

     A condescendência dela começava a colocá-lo de mau humor e seu corpo estava se convertendo em uma massa de músculos doloridos.

     —Eu sou escocês. Eu gosto das montanhas altas.

     Ela o olhou e deu a volta para sair, era como se não pudesse suportar estar diante dele nem um minuto mais. Entretanto, Court continuava necessitando respostas.

     —Estive inconsciente todo o dia? —perguntou coibido.

     Ela observou a porta desejando escapar, mas deu a volta para responder:

     —Está aqui há três dias.

     Deus, três dias? E a julgar pela dor de suas costelas demoraria ainda uma semana mais em poder subir a um cavalo.

     —Como cheguei aqui?

     Ela hesitou um instante antes de responder.

     —Eu o encontrei na beira do rio e o trouxe até aqui.

     Ela parecia tão frágil como se uma corrente de ar pudesse derrubá-la.

     —Você?

     —Eu e meu cavalo.

     Ele franziu o cenho.

     —Não havia nenhum homem que pudesse fazê-lo?

     Ele media quase dois metros e pesava cem quilos. Podia imaginar-se como difícil teria sido arrastá-lo até ali, inclusive com a ajuda de seu cavalo; em especial se a casa estava no alto de uma montanha.

     —Arrumamo-nos nisso muito bem.

     Court lhe devia a vida; ele odiava ter esse tipo de dívida com alguém.

     —Então, você salvou minha vida — afirmou.

     Incômoda, Annalía desviou a vista para o teto.

     E obrigou a dizer uma palavra que quase tinha esquecido.

     —Obrigado.

     Ela assentiu com a cabeça aceitando seu agradecimento, e deu a volta para sair; mas ele não queria que ela fosse tão logo.

     —Annalía — disse, incapaz de recordar nada mais de toda aquela enxurrada de nomes.

     Ela se voltou de repente, surpreendida de que ele a tivesse chamado por seu nome. Nesse instante, Court se lembrou. Recordou como sua bela e curiosa expressão se tornava aguda e inquieta ao lado do rio. E passou a mão que não estava quebrada pela face. De fato, ela tinha lamentado de que seguisse vivo.

     —Para você sou lady Llorente! Faria bem em recordá-lo!

     Court fechou os olhos. Lembrava-se de tudo.

     —Por que me chamou de animal? Porque eu estava tão machucado?

     —É obvio que não — disse ela como se fosse evidente— Foi porque me dei conta de que era escocês.

     Court tentou controlar seu temperamento.

     —Escocês? —Muita gente tinha prejuízos contra os escoceses, e muitos inclusive os odiavam, mas não havia nada que justificasse que uma andorrana tivesse direito a menosprezá-lo.

     —Então, por que se incomodou em salvar a alguém como eu?

     Ela se encolheu de ombros.

     —Também teria ajudado a um lobo sarnento e raivoso se estivesse sofrendo...

     —Agora me chama de lobo sarnento e raivoso? — A ele começava a sentir dor de cabeça como se fosse estourar.

     Annalía estudou as suas próprias unhas; era a perfeita imagem do desdém.

     —Se você fosse um dos que permitem que uma dama termine o que está dizendo, teria acrescentado que para acomodar você tive que baixar muito os meus padrões.

     Maldição se acreditava que ia permitir que aquela presunçosa andorrana o menosprezasse.

     —Uma dama? —burlou-se ele, e olhou pelo quarto— Está a sós comigo. Não tem uma dama de cpmpanhia— Ele levantou o lençol e olhou um instante debaixo antes de acrescentar com uma careta— E lhe deu uma boa olhada. Se for uma dama, por que estava a ponto de me acariciar?

     Ela o olhou como se custasse respirar.

     —Eu... Eu ia... A...

     —A verdade é que não parece do tipo de mulher que gosta de entreter os homens em seu quarto. — Court a olhou de cima abaixo sem dissimulação — Mas aposto o que queira, que você nasceu para isso.

     Annalía ficou boquiaberta, e recuou como se a tivesse golpeado.

     Ele não pôde evitar franzir o cenho ao ver que ela saía do quarto cabisbaixa sem manter os ombros erguidos como antes. Não entendia essa reação e algo tão pouco familiar como o sentimento de culpa se instalou em seu peito. Tentou levantar-se da cama e não pôde deixar de perguntar-se por que um bastardo sem coração como ele ia lamentar ter ferido a uma mulher que o considerava menos, não, pior que uma besta.

     Não ia descansar até entender a razão de ambas as reações.

          

     Desde o dia em que Annalía descobriu que existia esse tipo de mulheres, tinha temido ser uma delas. Tinha medo de ser dessas que sentem luxúria e seguem os ditados de suas paixões embora isso as prejudique. O dia em que se deu conta de que o forte peito do escocês podia fasciná-la durante horas, preocupou-se muito. Ver que acelerava o seu coração cada vez que olhava como as partes mais íntimas dele se insinuavam debaixo do lençol, tinha-a destruido.

     Agora tinha acontecido algo muito pior, o bárbaro escocês a tinha olhado nos olhos e tinha chegado à conclusão de que ela tinha nascido para isso. Igual a sua mãe castelhana.

     Antes tinha sido fácil negar sua própria natureza. Se na aldeia ouvia alguém fazer referência a seu “luxurioso sangue”, ignorava-os. Ela se mantinha ocupada com a casa e as pessoas que ali vivia. Mas com a chegada do escocês, cada noite tinha sido uma verdadeira luta.

     A anterior deitou-se pensando no corpo dele, recordando aquele físico que conhecia de cor, até que, devagar, desabotoou a camisola e deixou seus seios descobertos. A suave brisa que penetrava pelas cortinas acariciou a acalorada pele e a fez tremer, fez ela... desejar.

   Ela não sabia como chamar essas necessidades que a invadiam cada noite; não era luxúria, porque nunca tinham sido dirigidas para nenhum homem. Assim decidiu as chamar de necessidades, mas isso não era o que tinha passado a noite anterior. O que Annalía sentiu foi luxúria, e tinha sido tão forte o impulso, que sucumbiu a ele e finalmente acariciou os seios.

     Um ruído a inquietou de repente. Era unicamente um dos ruídos da casa, mas envergonhada afastou a mão. Não só era uma dessas mulheres, além disso, estava sozinha na casa com um homem que sabia o que ela era.

     Quando obteve que a mão deixasse de tremer o suficiente para poder abrir a porta-janela da sala, saiu e pôs-se a correr para o prado que havia diante de sua casa.

     Vitale cruzou com ela pelo caminho.

     —O que aconteceu? Está branca como o leite.

     —Não é nada. O escocês despertou.

     —É um mercenário?

     —Não estou segura, mas o que sei, é que ele é um homem horrível.

     Ao menos ele iria embora dali logo. Annalía estava convencida de que teria vontade de retomar suas matanças indiscriminadas, de afiar suas facas, praticar com suas pistolas ou fazer o que fosse que fizessem os mercenários.

     —Assustou-a ou ameaçou?

     —Não... não exatamente.

     —Nunca me escuta! —gritou Vitale fazendo gestos com suas mãos— Leva muito tempo aqui trancada e não entende que no mundo há gente má a que não tem que salvar! É muito... suave —disse essa última palavra como se fosse um insulto.

     —Não sou suave!

     —Quando eu te salvei daquele bandido, estava o bastante assustada para lhe dar o colar e tremia como uma menina pequena.

     —É que eu era uma menina pequena, e não estava tremendo! —Nem tampouco estava tão assustada. Mas o colar tinha pertencido a sua mãe, e já então sabia o muito que ela precisava o ter como aviso.

     —O escocês está ainda o bastante fraco para que possamos jogá-lo daqui a chutes — disse ele, olhando-a nos olhos.

     —Vitale! — Annalía levou a mão ao pescoço de maneira inconsciente. Olhou para a casa e franziu o cenho; tinha a estranha sensação de que a estavam observando. Mas ele não podia ter se levantado. Não com todas aquelas feridas.

     O sol batia diretamente nos olhos e não podia ver bem. Tentou uma última vez e desistiu.

     —Vitale, ele irá muito em breve de nossas vidas. Um dia destes, despertaremos e tanto ele como nosso faqueiro de prata terão desaparecido. — Com esta última frase, se foi.

     Logo que chegou ao prado tombou no tapete de narcisos que cobria por completo a esplanada. Sempre tinha gostado de perder-se entre esses aromas, e sonhar acordada enquanto olhava o lago e o serpenteante rio que subia colina acima.

     No prado do lado, seus cavalos estavam brincando de correr e suas crinas acobreadas resplandeciam ao sol. Mais abaixo, no campo que ficava junto ao rio, os miosótis alagavam tudo de azul, mas ali só havia pequenas flores amarelas. Annalía pegou uma e a aproximou do nariz, inalou seu perfume e fechou os olhos para desfrutar do prazer...

   Ele havia dito que ela tinha nascido para isso! Abriu os olhos de repente. Por que as pessoas chegavam sempre a essa conclusão? Tinha-lhe salvado a vida e ele se atrevia a fazer esse tipo de comentários? Quando se cuida de uma pessoa, é inevitável tocá-la e... ver algumas coisas.

     Especialmente quando chamam tanto a atenção.

     Limitaria-se a esquecer do assunto, a apagar essa imagem de seus pensamentos. Talvez fosse uma dessas mulheres, mas, em todo caso, tinham-na educado para ser uma dama. E havia algo que as damas sabiam fazer muito bem, era esconder os sentimentos incômodos e inadequados. Olhou para seu colo, e deu conta de que tinha apertado as mãos com tanta força que tinha esmagado a flor.

     Esse homem iria logo, e a vida da Annalía voltaria para a normalidade. Por desgraça, esta seguiria estando cheia de preocupações e sem nenhuma alegria. Ela seguiria esperando receber notícias de seu irmão Aleixandre, a única família que restara. Fazia mais de uma semana que não sabia nada dele, e começava a estar muito preocupada.

     Pela primeira vez em muitos dias, soprou uma forte brisa que balançou as ervas e fez com que uma mecha de seu cabelo escapasse da tira. Estando ali fora e a sós não lhe pareceu urgente voltar a colocar essa mecha em seu lugar, mas mesmo assim o fez. Retocou o coque e pegou outra flor.

     Embora seu irmão conseguisse esquivar de Pascal e retornasse, ela seguiria estando em uma delicada situação. Essa guerra só tinha conseguido que Aleix postergasse seus desejos de que ela se casasse logo. Dois anos atrás, ao morrer seu pai, ela deixou a escola para que seu irmão pudesse concordar com um matrimônio de conveniência.

     Justo quando Aleix começava a decidir-se, apareceu Pascal. Antes de mostrar como era em realidade, Pascal os surpreendeu a todos lhe pedindo ao Aleix a mão da Annalía em matrimônio, apesar de que nunca terem se visto. Seu irmão negou e provocou com isso a ira do general, mas até antes que o vil exército de mercenários e desertores do Pascal atacasse a região, Aleix tinha desconfiado dele.

     Depois se arrependeu muitas vezes de não havê-la casado antes que ocorresse tudo aquilo. Ela já tinha vinte e um anos, era bastante maior e a tinham educado para isso, mas Annalía nunca tinha conhecido a um homem que a atraíra. Não se podia imaginar a si mesma fazendo todas essas coisas das que falavam em segredo as meninas na escola; essas coisas dolorosas e violentas que se faziam na escuridão, tanto se a mulher queria como se não. Sentia náuseas só de imaginar-se fazendo isso com qualquer dos homens que tinha conhecido.

     Além disso, ela tinha sido tão feliz ocupando-se do Aleix e do bebê de Mariette, que nenhum homem tinha tentado-a o suficiente.

     Mas agora já não havia nenhum bebê, nem havia Mariette, e toda a felicidade que tinha alagado Aleix tinha morrido com eles.

     Annalía olhou para a casa. Voltava a ter a sensação de ser observada. Passou uma nuvem e cobriu os olhos com a mão para poder fixar-se nas janelas.

     As cortinas da habitação do escocês se deslocaram para um lado e depois voltaram para seu lugar.

“Por que demônios não havia voltado a visitá-lo?” perguntou-se Court cada vez mais irritado.

Vitale, o velho francês que ou não dizia nada, ou soltava sarcasmos, era quem levava comida e limpava o quarto, mas ela não se incomodou em retornar.

     O corpo do Court começava a não estar tão fraco e ele se sentia cada vez mais inquieto. Agora já podia se vestir sozinho e tinha feito com as roupas do irmão da Annalía, ou do “senhor”, como o chamava Vitale. Court tinha zombado quando o ancião lhe disse que sua roupa ficava bem. Ela media apenas um metro e meio, e tinha uma estrutura delicada, seu irmão não podia medir dois metros, mas ao parecer “o senhor” era um bastardo bastante alto.

     Olhar através da janela era só o que Court podia fazer, mas agora já não via manchas negras quando o fazia. Nunca tinha gostado de estar sentado sem fazer nada, mas desde que despertou, dias atrás, não tinha feito outra coisa. O que rompia sua monotonia era quando ela saía a passear e ele a olhava da janela. Como não tinha nada mais que fazer, olhava-a durante muito tempo.

     Gostava de ver como ela jogava com os meninos no prado, como corria atrás deles. Não importava quanto cansada estivesse, todos e cada um dos meninos recebiam a mesma atenção, inclusive quando parecia que ela só queria tombar-se a descansar.

     Também gostava de vê-la quando retornava de sua cavalgada matutina, sem fôlego, com seu perfeito e recolhido penteado desfeito e as mechas escapando por todos os lados. Court não podia evitar menear a cabeça ao ver a postura tão orgulhosa, não, presunçosa, com que ela montava a cavalo. Conseguia esquecer o desdém com que o tratou e até chegava a desfrutar desses momentos. Para o resto das pessoas ela sempre tinha disponível um sorriso, embora não chegasse aos seus olhos. Court se perguntava freqüentemente se ele era a razão pela qual ela ficava séria e cabisbaixa quando acreditava que ninguém a estava olhando.

     Quando o relógio, que nunca tinha visto, mas que devia estar no piso de baixo, tocava às oito da manhã, o corpo do Court se esticava como o de um cão adestrado, e se levantava para ficar com aquelas calças emprestadas. Como cada dia a essa hora, aproximava-se da janela; sabia que cinco minutos mais tarde abririam as portas da casa.

     Pontual como sempre, Annalía cruzou a porta e ele pôde ver como seus quadris se balançavam debaixo da saia azul brilhante. Sempre vestia cores brilhantes. Nunca cinza nem marrom, a não ser todo o arco íris de cores que nunca teriam utilizado as mulheres de seu clã. Acreditava que ela não usava essas cores para chamar a atenção, mas sim porque era tão ridiculamente feminina que pareciam bonitas.

     A luz da alvorada refletia em seu cabelo e fazia que parecesse dourado. Como de costume, tinha-o recolhido de um modo muito elaborado, tanto, que parecia um complicado nó celta.

     Agora encontrava com Vitale, quem aproximaria o chapéu que ela sempre se esquecia, e então conversariam durante uns instantes. O ancião sempre era impertinente, e ela o permitia, embora às vezes se exasperasse e levantasse a vista para o céu. Tinham uma relação muito incomum, mas era óbvio que cuidavam um do outro.

     Pontuais, Vitale e ela se encontraram no caminho que havia no final da escada do alpendre. Não falaram durante todo o momento e ela se dirigiu para o estábulo para sua cavalgada matutina.

     Maldição, Court queria vê-la um pouco mais. Ela sempre usava aquele estranho colar, mas hoje havia algo diferente. Usava alguma outra jóia? Alguns brincos compridos?

     Basta, tinha que deixar de fazer isso. Precisava de mais informação e agora já estava o bastante forte para exigi-la. Quando ela se foi, Court golpeou o vidro da janela para chamar a atenção de Vitale, que estava muito surpreso pela recuperação de Court e tinha começado a deixar a bandeja de sua comida no chão, “pois é onde comem os animais”.

     O ancião fez um gesto depreciativo com a mão, mas depois de uns instantes ouviu o ruído da entrada principal.

     —Fale-me sobre ela! — disse quando Vitale abriu a porta e entrou no quarto.

     —Por que ia fazê-lo? —pergunto o velho, sarcástico.

     —Porque se não o faz, estarei tão disposto a te dar uma surra quando me recuperar de todo — informou Court, apoiando-se no marco da janela.

     Vitale sentiu um nó na garganta.

     —Já sei o que está pensando, ancião. Pergunta-se para o que quero sabê-lo. Para nada mal. Eu nunca faria mal à mulher que me salvou a vida.

      —O que quer saber? —perguntou o outro ainda inseguro.

     —Onde está sua família?

     —Seus pais estão mortos e seu irmão está de viagem. — Logo acrescentou— Por negócios.

     Uma resposta ambígua, mas Court não insistiu mais.

     —Não tem marido? Não há ninguém de sua família que possa ficar aqui com ela?

     —Ela e seu irmão estão zangados com seus parentes. E Annalía estava pensando em casar-se quando Pascal tomou o poder. Agora nossa prioridade é passar despercebidos. Mas dado que você é um de seus assassinos a salário, suponho que depois disto já não o conseguiremos.

     Court decidiu ignorar esse último comentário.

     —Por que a casa está tão deserta?

     —Muitos fugiram de Pascal. Outros foram lutar contra ele. Mas asseguro que isso já sabe. —O ancião moveu a cabeça, aborrecido — Disse que te deixasse apodrecer no rio onde te encontrou, mas ela nunca me escuta...

     —Foi Pascal quem ordenou que fizessem o que me fizeram — interrompeu ele— De verdade acha que sinto algum tipo de lealdade para o homem que quis me matar? Cheguei ao rio por milagre.

     Vitale o olhou nos olhos para ver se dizia a verdade, e depois perguntou:

     —Quem te espancou?

     —Dois Renegados — reconheceu Court.

     Vitale abriu os olhos de par em par e começou a olhar ao redor.

     —Meu Deus, vais atraí-los para esta casa. Cada dia que passa aqui, ela corre mais perigo. Se tiver algo pendente com o Pascal estou certo que seus homens virão aqui. Os assassinos de Pascal devem estar te procurando para acabar o trabalho.

     Se não fosse porque Pascal não tinha suficientes homens, estava certo que o faria.

     —Ele não vai desperdiçar nenhum Renegado para buscar a mim. —Os Renegados eram apenas quarenta e nove homens, decisão tomada depois de uma curiosa interpretação do sétimo capítulo do Apocalipse, e quando perdia algum, o treinamento do substituto só começava em uma época concreta do ano— Além disso, asseguro que acreditam que morri.

     Vitale se aproximou da outra janela e olhou através dela, embora fosse consciente de que Annalía não estava perto. Court sabia que há essas horas já estaria muito longe.

     —Por que deveria acreditar no que me diz?

     —Não tem por que fazê-lo. —Tentou cruzar os braços, mas por culpa da tipóia que lhe tinha obrigado a levar, não pôde— Quero falar com ela, mas não voltou para me ver. Faça com que venha.

     —Mademoiselle? Esperava que se ocupasse de ti agora que está acordado? —burlou ele.

     —Se ela não vier para me ver, então eu terei que sair para procurá-la. —Sua expressão ficou fria— Mas lhe advirta que talvez quando a encontrar esteja... de mau humor.

     Vitale deu um passo atrás.

     —Farei que venha amanhã.

     —Depois de seu passeio a cavalo?

     —Se souber que a espiona se sentirá muito incômoda — disse Vitale surpreso— É uma pessoa muito reservada. Mas sim, depois de seu passeio a cavalo.

     —Tenho que mandar uma mensagem a meus homens — acrescentou Court— Se te der indicações, posso confiar em ti para que o faça?

     —Volto a te perguntar, por que ia fazê-lo?

     —Quanto antes contate com eles, antes irei.

     —Em seguida te trago um papel e um pouco de tinta.

         

     Court duvidava de como tratar a Annalía quando ela fora vê-lo. Tinha que admitir que não tinha nem idéia de como relacionar-se com uma mulher assim. Parecia complicada e misteriosa, o que significava que não era franca e aberta, como as mulheres da Escócia.

     Mas apesar do pouco que ele sabia sobre como tratar a mulheres como Annalía, estava certo que ela sim estava acostumada a tratar com cavalheiros, com homens educados e nada ameaçadores. Assim decidiu permanecer na cama e atuar como se ainda não pudesse levantar-se; desse modo pareceria mais inofensivo, mas o tema do cavalheirismo não sabia ainda como solucioná-lo. Court não dizia coisas amáveis porque não era uma pessoa amável. Era brusco e direto, e não gostaria que o fosse.

     Quando um momento depois de seu passeio a cavalo ela entrou no quarto cheirando às flores que estava recolhendo, ele soltou de repente:

     —Bom dia. —Não conseguia lembrar-se da última vez que havia dito essa frase, mas a verdade era que esse dia era muito mais que bom.

     —Igualmente. —Ela pareceu surpreender-se de sua saudação, e estava um pouco à defensiva— Vitale me disse que quer falar comigo. O que precisa?

     As palavras deslizavam de um modo estranho por sua língua, e Court deu conta de que, apesar de que era óbvio que ela não queria estar ali, gostava de escutá-la. Essa mulher que ele achava formosa, que era amável com todo mundo, estava zangada com ele. Sentia-se como se fosse um animal enjaulado ao que ela temia, e tudo por ser escocês?

     Ou, ao melhor, pensou ele, no primeiro dia ele tinha dado com a única brecha que havia em sua estudada armadura e a tinha magoado.

     —Eu gostaria de perguntar algumas coisas. —Isso tinha sido bastante amável.

     Ela aceitou com a cabeça.

     —Como conseguiu manter despercebida para o Pascal até agora? —Court nunca tinha ouvido falar daquele lugar, e se perguntava por que Pascal não o tinha atacado.

     Ela não duvidou em responder.

     —Talvez porque até agora não tinha miserável algum de seus mercenários até aqui.

     —Eu já não respondo a ele.

     —Bom, seu ex-mercenário, então. —Ela fez um gesto de desprezo com a mão— Vitale já me contou isso.

     Ao ver que ele a olhava zangado, acrescentou:

     —Não sei por que temos que nos guardar desde os seus ataques. —Era óbvio que mentia, mas ele não insistiu.

     —Tenho outra pergunta.

     Ela permanecia ali de pé, sem olhá-lo, e ele percebeu de que tinha esquecido o que queria perguntar; mas tinha em troca uma questão muito deferente para expor.

     —Por que odeia os escoceses?

     Ela enrubesceu da cabeça aos pés, sua pele se escureceu debaixo de sua blusa branca e de seu onipresente colar.

     —Se não se importa, preferiria não falar do por que eu não eu gosto dos escoceses com um escocês.

     —Pode dizer isso. Prometo não morder.

     Ela o olhou com os olhos muito abertos, porque não podia acreditar e porque não tinha ocorrido pensar nisso até que ele o tinha insinuado.

     —Ouvi muitas coisas desagradáveis sobre eles — respondeu ela finalmente—, sobre vocês. Muito mais que dos outros estrangeiros que Pascal convenceu em vir até aqui.

     Court soltou o fôlego, tinha que reconhecer que os contos sobre o quanto eram os escoceses que eles mesmos tinham feito circular, estavam funcionando muito bem.

     Cada vez que chegavam a um lugar novo, ele e seus homens faziam correr rumores sobre a imensa brutalidade dos escoceses, sobre sua sede de sangue e sobre como desfrutavam torturando as suas vítimas. Então, quando os trinta e cinco homens que formavam sua tropa chegavam a uma batalha, todos altos, alguns pintados com cores de guerra, outros usando tartanes, e em conjunto gritando como possessos, seus inimigos saíam correndo. Quase sempre saíam correndo.

     Os fazendeiros e boiadeiros de Andorra tinham fugido tão rápidos, que seu primo Niall mal pode golpear com a espada o bunda do último.

     Só seu líder e alguns homens ficaram para defender-se...

     Court a olhou enquanto ela alisava a já imaculada saia, que esse dia era de uma cor vermelha brilhante.

     —E o que pensava dos escoceses antes que viéssemos aqui?

     Ela franziu o cenho, confusa.

     —Não pensava nos escoceses.

     —E agora? —Ele fez uma careta e destacou a si mesmo.

     —Agora que você está aqui, dou-me conta de que é o epítome de tudo o que ouvi.

     Ele moveu a mão descartando o comentário.

     Annalía cruzou os braços e tomou ar.

     —A violência o rodeia por completo, e não o digo só pela surra que recebeu, mas também pelas marcas que há em seus dedos. Perguntei-me como teria feito essas feridas tão curiosas, e cheguei à conclusão de que deve ter quebrado os dentes de alguém em uma briga.

     Court, impressionado, afirmou com a cabeça. Isso era exatamente o que tinha acontecido. Quase sorriu ao lembrar da satisfação que sentiu ao partir o lábio daquele espanhol, ao ver como brotava o sangue a fervuras durante ao menos meia hora.

     —Tal como demonstram as tantas feridas que cobre todo seu corpo, você está acostumado à violência. Ouvi dizer que seu povo vive em bandos...

     —Clãs — interrompeu ele — São clãs.

     Ela deu de ombros.

     —E que esses clãs lutam uns contra os outros sem parar, só porque são um povo sedento de sangue que se preocupa muito mais com a guerra que com a cultura ou a educação. —Ele viu que ela, à medida que enumerava estes pontos, movia os dedos e batia com eles nos braços, que mantinha cruzados— Não têm boas maneiras. O fato de que custou tanto me agradecer que tivesse salvado a vida o demonstra.

     —Isso só demonstra que não estou acostumado que ninguém cuide de mim.

     Ela levantou as sobrancelhas de um modo que indicou que se voltasse a interrompê-la deixaria de falar.

     —Tem o aspecto de um canalha. Exceto quando está zangado. Então parece um bruto capaz de me matar. O primeiro dia que me viu não tinha nenhuma necessidade de me insultar, mas o fez. Ouvi dizer que entre vocês é habitual essa falta de delicadeza. Atrás de seus olhos não se vê nenhum pingo de inteligência...

     —É suficiente — disse ele, ao se dar conta de que ela estava se abraçando. Muita gente tinha esse tipo de prejuízos, e tanto ele como seus homens se aproveitaram disso e os tinham incentivado com as histórias que tinham propagado, mas outra coisa era ouvir dizer aquela andorrana. Os escoceses eram um povo muito mais orgulhoso e mais evoluído que essa gente que mal acabava de sair da Idade Média e acreditavam que fossem mudar o mundo.

     Annalía piscou impressionada por seu tom de voz, e então deu a volta para sair.

     —O certo é —disse ela por cima do ombro— que sua profissão é o menor de seus defeitos.

     “Maldita seja, ainda não terminei de falar com você...”

     Embora o movimento doesse horrores, levantou-se e a segurou pelo pulso. Ela gritou assustada e se soltou. Levou a mão à boca, mas ele pôde ouvir perfeitamente como o chamava “besta” em catalão e saía disparada para a porta.

     Court falava bastante bem o catalão, e sabia sem dúvida nenhuma que ela o tinha chamado de besta; o primeiro dia que chegou já o tinha chamado, e após, o tinha ouvido sussurrar as suas costas.

 

     Annalía teve que tentar algumas vezes até obter que a chave entrasse na fechadura. Ele a havia deixado nervosa. Por desgraça, o próprio Court era consciente de que efeito tinha o aspecto de uma besta. Essa mesma manhã tinha se olhado no espelho para tentar imaginar o que ela pensaria dele. E tinha se assustado.

     As pequenas veias dos olhos tinham arrebentado, com que tudo o que supunha que devia ser branco era vermelho. O lado direito de seu rosto estava coberto por um arroxeado azul e preto, e sua quadrada mandíbula parecia ainda mais, por culpa do inchaço e da barba de uma semana. Era óbvio que ela pertencia à alta sociedade, com certeza nunca antes tinha visto um homem nesse estado.

     No momento em que ela o tinha olhado como se não fosse digno, nem de limpar os seus sapatos, ele havia sentido como um bárbaro, como o animal que a mulher acreditava que era. Mas começava a odiar o tom de desprezo com que ela falava, até mesmo seus olhares de asco, e continuava sem entender por que ele se importava tanto.

    

     Desde que tinha informado de que o escocês era de verdade um mercenário, Annalía não tinha o visto... até esse dia.

     Antes que Vitale confirmasse seus piores temores, ela desejava com todas suas forças que MacCarrick não fosse um capanga, porque havia sentido uma minúscula, um pingo muito pequeno de curiosidade para esse homem intratável. Mas já não.

     Durante sua visita, essa mesma tarde, ela tinha fixado nas feridas que cobriam todo o rosto, e não pôde evitar lembrar que não importava que ele e Pascal houvessem brigado, as provas de que entre eles dois havia uma relação eram evidentes. Cada dia que MacCarrick passava em sua casa os punha mais em perigo, e ela não estava disposta a arriscar-se para proteger um mercenário de sua índole. Ordenaria que se fosse logo que pudesse.

     —Mademoiselle. — Vitale a chamou da porta e interrompeu assim seus pensamentos.

     Quanto tempo levava vagando pela casa imersa em suas reflexões? Ela deu a volta e ficou petrificada ao ver que o sol já estava se pondo.

     Vitale se aproximou dela com o chapéu enrugado entre as mãos.

     —Um menino do povo trouxe uma carta para você.

     —É do Aleix? —perguntou ela com o coração em punho.

     —Não. Mas talvez contenha informação sobre o senhor Llorente.

     Tirou a carta do bolso de seu colete.

     —Por favor, se assegure de que dê ao menino um pouco de jantar e de que preparem uma cama para esta noite — disse ela, ausente. Não havia nada que justificasse os maus modos.

     —Já me ocupei disso. —Ele deu a carta e se manteve impassível.

     Annalía a aceitou e se dirigiu para a sala, caminhava com as costas erguidas e a passos lentos, mas quando Vitale já não podia vê-la, começou a correr e a tropeçar nos tapetes. Quando entrou na sala, tinha o coração desbocado e quase o quebrou antes de chegar.

     O impertinente do Vitale a tinha seguido até ali, o que significava que deu conta de que ela tinha posto a correr, mas agora isso já não tinha importância. Seu irmão não tinha escrito durante semanas, e a espera tinha sido insuportável. Ele era a única família que ficara a Annalía depois da morte de seu pai, e Aleix tinha sido muito melhor pai para ela do que o senhor Llorente o tinha sido jamais.

     Dissesse o que dissesse as pessoas, esperar que alguém voltasse de uma batalha era muito pior que lutar nessa batalha.

     Tinha os nervos à flor de pele.

     Chegou à mesa de carvalho, afastou a cadeira de couro e acendeu uma vela ante a crescente escuridão. Então, com uma abridor de cartas em mão, abriu a carta.

     A sala começou a dar voltas. Sentiu-se desfalecer ao ver o nome de quem a enviava. General Reynaldo Pascal.

     Em contraste rápido que tinha aberto, agora começou a ler a carta devagar. Teve que parar algumas vezes do muito que tremia a mão, e porque não podia acreditar no que estava lendo.

     —O que diz? —perguntou Vitale ansioso.

     Quando chegou à arrogante assinatura de Pascal, a bílis já subia pela garganta. Tinha as mãos geladas e a carta caiu em cima da mesa, quase tocando a chama da vela. Como em transe, sentou na cadeira.

     Vitale agarrou a carta como se fosse lê-la, mas ele sempre se negou a aprender.

     —Me diga o que diz!

     Annalía quase não reconheceu sua própria voz quando começou a falar.

     —Pascal derrotou os homens de Aleix faz semanas e capturou a todos. Aleix está prisioneiro, sua vida está em mãos do general. Só há um modo de que Pascal perdoe sua vida.

     Vitale se sentou na enorme cadeira que havia diante dela; parecia cansado e pequeno.

     —Ele já quis casar com você antes. É isso que exige?

     Ela afirmou com a cabeça.

     —O que não consigo entender é como descobriu quem sou.

     Quando Pascal quis casar-se com ela, Annalía temeu que tivesse descoberto que ela era a última descendente da Casa da Castilla, mas Aleix tinha assegurado que o general tinha ficado impressionado por sua beleza ao vê-la na feira do povoado. Agora se dava conta de que Aleix sempre soube a verdade e que tinha tentado protegê-la mantendo-a a margem. Ela não podia deixar de perguntar que outras coisas ele teria escondido...

     —Talvez alguém do povoado lembrou de quando sua mãe esteve aqui e contou a Pascal.

     Ela moveu a cabeça, mas continuava imersa em seus pensamentos. Sua mãe, Elisabet Tristán, tinha sido desterrada de Castilla, Espanha, e mandada à jaula rodeada de montanhas que era Andorra para casar-se com Llorente, o conde mais rico daquelas terras, a quem ela não conhecia. Elisabet, filha de uma princesa, tinha sido entregue em casamenteo a um homem muito mais velho que ela, e exilada em terra que era o mais parecido a uma ilha devido a sua inacessibilidade. E tudo porque tinha sucumbido à paixão.

     Esta, finalmente conseguiu destruí-la.

     —Mademoiselle?

     Ela levantou a vista.

     —Sim, deve ter sido as pessoas da aldeia. E eu que acreditava que ficando aqui tínhamos conseguido nos manter escondidos.

     Ela e Aleix nunca chamavam a atenção, e tinham deixado de lado os privilégios que sua posição podia proporcionar recusando o que essa vida supunha. Mas o isolamento da Annalía não era só para evitar chamar a atenção. Llorente a tinha mantido encerrada porque temia que se parecesse com sua mãe. De fato, Aleix foi o único que pôde convencê-lo de que a mandasse ao colégio e não a um convento.

     —Assim, os rumores de que Pascal quer invadir a Espanha devem ser certos. — Vitale moveu devagar a cabeça— Os muito tolos o permitiram que formasse um exército bem ao lado de sua fronteira, só porque a ninguém preocupava o que acontecesse a pequena Andorra.

     —Eu acreditava que ele queria o mesmo que os outros; controlar a rainha Isabel, mas tem que ser outra coisa. Pensa bem, se me quer, seu objetivo não é unicamente dirigir à rainha.

     —Acredita que quer substituí-la?

     Ela afirmou com a cabeça.

     —Acredito que me quer para poder controlar a Aleix e fazer que ele se torne uma espécie de sucessor.

     Vitale franziu o cenho.

     —Mas você me disse que sua família não tem direito ao trono.

     —Bom, realmente não. A menos não nos últimos cem anos. Mas Isabel é muito odiada. Madre Dious, se ela acreditar que estamos conspirando em seu contrário... — Annalía levou uma mão ao pescoço, e desta vez não era para tocar o colar.

     Levantou-se e começou a caminhar. Desde pequena, cada vez que estava preocupada caminhava sem cessar. Sua babá andorrana sempre dizia que, quando fizesse cinco anos, teria conseguido fazer um buraco no tapete. Annalía lembrou da reação de seu pai ao reparar nesse costume uns anos mais tarde. Zangou-se tanto, estava tão descontente dela...

     —As pessoas caminham porque não tem autocontrole — havia dito ele então com uma voz firme como o aço— Quer ser como um deles? Ou quer ser uma Llorente?

     Essa lembrança a obrigou a sentar-se na cadeira de repente, mas ao ficar sem o alívio que lhe proporcionava o suave passeio, começou a desesperar. Fixou a vista no papel e nos escuros traços de tinta que o cobriam para tentar evitar as lágrimas. Nesses momentos, não podia pensar em tudo isso. A única coisa que queria saber era se Aleix estava ferido. Estaria passando o maior medo seu valoroso irmão?

     —Vitale — murmurou ela. Estava a ponto de chorar e não queria que ele a visse assim.

     Ele a conhecia tão bem que nem sequer teve que dizer. O homem se limitou a levantar um pouco para poder apertar a mão que tinha em cima da mesa.

     —Falaremos disso amanhã. Toque a campainha se precisar de algo.

     Annalía esperou até assegurar-se de que ele não ia voltar e então se permitiu chorar; duas grossas lágrimas deslizaram por suas bochechas, e muitas mais as seguiram. Resistiu alguns minutos a mais, mas ao final levou as mãos ao rosto e chorou desconsolada.

     —O que diz essa carta, pequena?

     Annalía levantou a cabeça e se surpreendeu ao ver que seu paciente andava a vontade por sua casa. Frenética, esfregou os olhos; incomodava que a tivesse visto assim. Ninguém via chorar a Annalía Llorente. Era muito pessoal. Como tinha conseguido escapar?

     —Me diga o que é o que te faz chorar assim.

     Parecia zangado de que ela estivesse chorando. Não preocupado nem aborrecido, a não ser zangado. Ela franziu o cenho. Era curioso. Ele tinha o olhar fixo na carta, como se pudesse aniquilá-la com ele. Fixa na carta... Annalía a aproximou da chama da vela e a deixou arder.

     Ele a olhou impressionado por sua decisão.

     —Esse era o único modo de me impedir que a lesse.

     —É óbvio que as boas maneiras e o respeito à intimidade não teriam detido. —Ela ainda estava secando as lágrimas e tentava não se envergonhar muito— Como conseguiu sair?

     —Forcei a fechadura. Agora me diga, o que dizia a carta?

     —Não é seu assunto — disse ela atrevida. Por fim tinha o rosto seco, embora agora a sentia vermelha— Por favor, me deixe sozinha.

     Ele não se moveu um ápice. Como se acreditasse que se continuasse perguntando ela acabaria por responder.

     —A você não interessa — se viu forçada a acrescentar. E não se interessava para nada. Ao menos isso era verdade. Mas e se aquele escocês era um dos homens que tinham derrotado Aleix? E se de algum modo era responsável por tudo aquilo?

     E ela o tinha salvado.

     Tinha que sair dali. Levantou-se de repente, recolheu a saia e rodeou a mesa. Ao ver que ele não se afastava, Annalía decidiu que ela também podia passar por cima as normas da boa educação e esquivá-lo.

     Court bloqueou a saída colocando um forte braço diante dela.

     Annalía ficou furiosa.

     —Abaixe esse braço agora mesmo e me deixe passar!

     Ele nem se alterou, e observou com atenção o rosto dela como se quisesse estudar sua reação.

       —O que é o que te afetou tanto?

     —Deixe ir ou gritarei.

     Ele dobrou um pouco o braço e se aproximou mais a ela.

     —E quem virá te resgatar? Vitale? Já me dei conta de que não há nenhum homem mais jovem que ele por aqui perto.

     Ela assustou que ele tivesse chegado a essa conclusão, principalmente quando era verdade. Todos tinham ido com o Aleix. “E agora estavam mortos ou prisioneiros.” Ao pensar nisso levou a mão aos lábios.

     Ele continuava olhando-a, esquadrinhando-a. Ela baixou a mão.

     —Perguntei-lhe isso com educação — prosseguiu ele— Minha paciência está se esgotando.

     Sua paciência?

     —Qual é mesmo é sua estadia nesta casa?

     —Quero que me diga isso.

     —Por que importa sequer? — Por muito que o tentasse, ela não conseguia entendê-lo.

     —Talvez seja porque eu não gosto de ver uma mulher tão bela chorar.

     A frustração começava a apoderar-se dela.

     —E o que vai fazer a respeito? —perguntou ela com desdém— Vai resolver meus problemas? Enfrentará o dragão por mim?

     Ele franziu o cenho como se acabasse de dar-se conta de que na realidade não deveria se importar o que acontecesse.

     Annalía o olhou, desgostosa.

     —O que deveria fazer é ir embora de minha casa e levar com você a ameaça que representa para todos os que estamos aqui — espetou. E, agachando-se, passou por debaixo de seu braço.

     Ao ver que partia, ele gritou:

     —É muito bonita quando se zanga, Anna.

     Em ouvir essa abreviatura de seu nome, Annalía tremeu dos pés a cabeça.

     De volta a seu quarto, fechou a porta e começou a caminhar presa na indignação. O mais lógico seria que, depois desse encontro, e com as más notícias de antes, agora estivesse chorando desconsolada.

     Mas por estranho que parecesse, a briga tinha lhe dado forças. Talvez o escocês a tinha visto chorar, mas não voltaria a lhe dar a satisfação de presenciar uma de suas fraquezas; nunca voltaria a ver com os olhos avermelhados de tanto chorar ou de não ter dormido por causa da preocupação.

Quando ela o jogasse de sua casa no dia seguinte pela manhã, ela teria o aspecto da princesa que se supunha que era.

 

Court tombou na cama muito mais inquieto que de costume. Agora que tinha mandado uma carta a seus homens, a única coisa que podia fazer era esperar, e essa tarefa já era difícil para um homem paciente, para Court era impossível de tolerar. Pior ainda, tinha que fazê-lo em companhia de um ancião que morria de vontade de jogar pela janela e de uma misteriosa mulher a que queria atar para que não pudesse voltar a escapar antes que ele pudesse perguntar tudo o que queria.

       Que demônios dizia aquela carta para que ela chorasse de tal modo?

     Court não gostava de mistérios. Para ele eram um aporrinho, era como se sua mera existência fosse uma acusação de que não se esforçava o suficiente para resolvê-los.

     Ele estava acostumado a fazer o que desse vontade, e agora mesmo queria saber mais sobre a reservada Annalía. Acreditando que ela já estava dormindo, seu quarto também poderia contar muitas coisas.

     Levantou-se da cama, vestiu-se e pegou a agulha de costura que tinha encontrado em uma gaveta e que tinha escondido debaixo de seu colchão. A fechadura de seu quarto não resistiu, e com a fechadura do quarto dela aconteceria o mesmo.

     Percorreu o corredor comprovando as portas, até que encontrou uma que estava fechada. Colocou a agulha no ferrolho e apertou para um lado, para ouvir o clique da porta não pôde evitar sorrir. Abriu-a e entrou no quarto até aproximar-se da cama. Essa noite corria uma brisa suave e a lua crescente oferecia um pouco de luz.

     Ele viu que ela estava deitada de barriga para baixo, um fino lençol cobria suas costas e seu cabelo se esparramava por cima do travesseiro. Impressionante. Aqueles espessos cachos que resplandeciam a luz da lua o fascinaram por completo, o mesmo que dar-se conta de que ele era o primeiro homem que a via assim. Sentiu a necessidade de tocá-la, cheiraria, mas se obrigou a dar a volta e inspecionar o quarto.

     Todos os seus pertences estavam organizados de uma maneira obsessiva, e os adornos, ao igual a ela, eram incrivelmente femininos. Havia muitos laços, mas em troca sua biblioteca era própria de um homem; matemática, botânica, astronomia, e livros em diversas línguas. Court viu que havia outro livro ao lado de sua cama, esse escrito em grego.

     Um pequeno móvel abrilhantado até o ponto de que resplandecia como um espelho ocupava um lugar destacado no quarto, e nele havia uma coleção completa de figuras de porcelana.

     Podia entender por que Annalía se sentia atraída por essas peças. Eram brilhantes e chamativas, mas de uma vez frágeis, como ela. E sem dúvida eram também muito caras.

     Um sentimento até esse momento desconhecido e preocupante instalou em seu peito quando se deu conta de que o hobby dela valia muito mais do que ele ganhava em todo um ano arriscando sua vida e trabalhando sem descanso.

     Seu humor melhorou quando abriu uma gaveta sem fazer ruído — embora não se importasse muito em despertá-la, porque o que poderia lhe fazer?—, e descobriu um montão de novelas góticas e sensuais em todos os idiomas imagináveis. Sorriu. Lady Annalía tinha um escuro segredo.

     Junto aos livros havia um montão de cartas. Ele as pegou e se aproximou da janela para poder vê-las. Todas eram de garotas de um lugar chamado Les Vines, que ao parecer era uma escola. Pelos famosos sobrenomes, era como ler uma lista das famílias mais ricas do mundo. Court não pôde evitar perguntar-se de onde provinha a fortuna da Annalía. Quando ela saísse a dar seu passeio matutino ele retornaria pelas cartas e as leria durante o dia.

     Fazia calor no quarto e ela deu um chute no lençol para tira-lo de cima dela. Court levantou as sobrancelhas ao ver o que se escondia debaixo. Sua camisola era de seda, ele não tinha esperado menos dela, e acabava bem em cima de suas preciosas e longas pernas. As rendas que rematavam a borda ficavam justas por debaixo de suas nádegas, que eram redondas e sensuais, e isso para ele foi inesperado. Quando ela deslocou uma perna até a borda da cama, ele ficou sem fôlego ao ver como suas coxas se separavam e a sombra era a única coisa que a cobria.

     As mãos doíam de vontade que tinha de acariciá-la até que ela, presa de desejo, levantasse os quadris e permitisse... Court lutou por evitar que escapasse um gemido, mas sem consegui-lo.

     Annalía não despertou, mas sussurrou algo em catalão e deu a volta, um braço caiu ao lado do corpo, e o outro descansou sobre seu seio. Seios perfeitos, generosos, apertavam-se contra a magra camisola, e ele voltou a gemer, apertou as mãos e espremeu as cartas que ainda segurava nelas. Aquela moça não só ocultava seus cabelos.

     Era deliciosa, sensual, e ele sabia que, embora quando fosse dali, sempre levaria essa imagem gravada em sua mente. Então, vindo de nenhuma parte, uma só palavra se insinuou em sua mente.

     “Mais”.

     Court ficou petrificado e todos os músculos de seu corpo se esticaram. “Não”, disse.

     Antes já havia sentido atraído por ela. Mas quando se imaginou tomando-a, ele sempre estava em cima de seu corpo e mantinha os braços seguros por cima da cabeça enquanto a penetrava até que gemia de prazer e se rendia a ele, até que ela o olhava com algo mais que desdém.

     Mas agora se imaginava seduzindo-a, saboreando cada centímetro de sua dourada pele durante horas, lambendo e beijando seu sexo até não poder suportá-lo mais. Agora Court queria seduzi-la, queria que permitisse penetrá-la até o mais profundo ainda sabendo que nunca poderia deixá-la grávida.

     Ele passou a mão por cima da calça. Ao parecer a desejava com muita intensidade. Mas uma mulher tão sofisticada como ela nunca desejaria um homem como ele, e ele nunca forçaria nenhuma mulher.

     Court era um bastardo com todas as letras. Fazia coisas com as que outros homens teriam sido incapazes de conviver, e as tinha feito sem titubear. Mas ainda não estava tão perdido como para não dar-se conta de que não podia ficar naquela casa quando o único no que podia pensar era em percorrer com a língua todo o corpo dela e lamber o seu sexo parecia uma idéia genial.

     Se ficasse, tentaria deitar-se com a Annalía assim que aparecesse a oportunudade, apesar de que sabia que não devia fazê-lo. Além disso, já estava farto de esperar. O melhor seria ir embora dali e começar a procurar seus homens.

     Apesar de que lhe custou toda sua força de vontade, conseguiu afastar-se dela. Era um homem disciplinado e, maldição, era capaz de fazê-lo. Voltou a guardar as cartas na gaveta e a fechou de repente, esperando que ela despertasse, mas continuou dormindo. Enquanto se afastava daquele quarto, não podia deixar de abrir e fechar as mãos que tanto tinham ansiado abraçá-la.

     Com passos largos e decididos chegou ao estábulo. Os cavalos recuaram em seus estábulos como se percebessem a violenta batalha que estava liderando em seu interior.

     Court não queria pegar o cavalo dela, nem o que ela tinha acariciado enquanto murmurava coisas ao ouvido. Não podia ver muito bem, assim foi para o cavalo mais alto. Depois de muito insistir, obteve que o garanhão saísse e assim que se precaveu de que era um cavalo de raça superior, procurou uma sela de montar e a carregou com sua mão boa. Os pontos negros que começou a ver ao acabar de atar a sela ao cavalo deveria ter servido de aviso de que estava esforçando-se muito, mas continuou como um possesso.

     Olhou para a casa e viu como as cortinas entravam e saíam das janelas como se estivessem chamando-o. “se lembre do que sentiu quando a viu chorar”, disse-se a si mesmo. Apertou os dentes, colocou o pé no estribo e montou.

     Os pontos negros voltaram e estalaram em sua cabeça.

    

     Chiron, o garanhão da fazenda, tinha desaparecido. Passadas umas horas, e para maior horror de Annalía, encontraram o cavalo, que ainda levava uma sela de montar no lombo, felizmente emparelhando-se com uma égua, um fato que não estava previsto.

     Agora, sabendo que ele tinha tentado roubar um garanhão que valia seu peso em ouro, seguiu o rastro de barro que levava diretamente a seu quarto do escocês. Seu aborrecimento aumentava com cada passo que dava.

     O ferrolho estava aberto, é obvio. Entrou feita uma fúria e a porta golpeou com força a parede.

     Ao ouvir o ruído, ele tentou abrir os olhos injetados em sangue.

     —O que? —balbuciou e deu a volta.

     Havia barro por toda parte. A colcha tinha se estragado.

     —Estive se esfregando na lama, MacCarrick? Deve ter sido um espetáculo.

       Ele colocou o braço que não tinha sido ferido debaixo da cabeça e, insolente, apoiou-se no travesseiro e a olhou de um modo muito... familiar. Como se soubesse algo que ela não sabia. Ele estava olhando os seus seios?

     —Ia nos roubar e a desaparecer na noite? E quando digo roubar digo a sério, já que agora sem dúvida podemos acrescentar o roubo de cavalos a sua lista de virtudes.

     Ele fez um gesto com o gesso, que também estava coberto de barro, não dando importância ao comentário.

     —Ia devolvê-lo.

     —E por esse motivo, de todos os cavalos que há no estábulo, encontramos precisamente a nosso garanhão... correndo por aí com uma sela de montar?

       —Não, peguei esse por que... —Ele se interrompeu— Esquece.

     —Quero saber o por que! —Isso e por que ele tinha decidido ir sem dar um obrigado nem despedir-se. Por que isso lhe doía tanto? Ela queria que se fosse.

     —E eu disse — disse ele olhando-a aos olhos—, que esqueça.

     “Será obstinado!”

     —Quero que hoje mesmo vá embora de minha casa.

     —E como posso fazer se é evidente que ontem à noite não pude me sustentar em cima do cavalo e mal pude retornar a casa?

     —Não me importa se tiver que ir rolando pela montanha. Os homens de Pascal virão por ti e, quando o fizerem, todos nós pagaremos por seu egoísmo.

     —Ao contrario do que você pensa, eu sim posso percorrer a pé as montanhas mais escarpadas como se fosse uma maldita cabra. Mas não posso fazê-lo com as costelas quebradas e com meia massa muscular atrofiada.

     —Se ontem à noite conseguiu chegar lá fora, está o bastante bem para ir embora de um lugar no qual não é bem-vindo.

     Ele cruzou os braços e obscureceu ainda mais os olhos.

     —Assim, MacCarrick, se não tem nada mais que acrescentar...

     —Não.

     —Bem.

     —Não. Quero dizer que não, que não vou.

     “Mantém a calma! Ignora a vontade que tem de lhe dar uma bofetada.”

     —Fará, porque esta é minha casa.

     —Quem vai me jogar? O ancião? Um dos meninos? Não há ninguém que possa fazê-lo.

     “Madre Dious”, ela desejaria que ele deixasse de dizer essas coisas. Porque tinha razão. Na realidade poderia ficar tanto tempo como quisesse. Annalía lutou por controlar seu temperamento, e obrigou a dizer com voz mais pausada.

     —Eu te salvei a vida e agora estou pedindo que vá de minha casa. Se for um cavalheiro, acredito que pode entender.

     —Se cumprir seus desejos, terá salvado a minha vida em vão. Assim me alegro de não ser um de seus malditos cavalheiros.

  

Se a primeira carta de Pascal tinha sido seu julgamento, a segunda tinha sido sua sentença. Annalía estava de pé frente à mesa de carvalho e tinha o papel, enrugado e molhado de suor, entre as mãos.

     Tinha esperado suas instruções com mais inquietação da que tivesse passado em toda sua vida. Nos últimos quatro dias tinha estado mais nervosa do que quando um carro de seis cavalos aparecia inesperadamente no caminho de cascalho branco de sua escola.

     Uma carruagem significava que foram de uma excursão. Mas um carro de seis cavalos semeava o terror entre as moças; todas corriam pelos corredores até o balcão rezando para que o escudo de suas famílias não fosse o que brilhasse a porta da carruagem.

     Um carro de seis cavalos que chegava sem avisar significava que a vida de uma das garotas ia mudar de um modo drástico.

     Igual a que iria acontecer agora com a Annalía.

     Pascal a tinha mandado chamar. Às horas tinham transcorrido muito devagar, à espera de suas ordens, e essas horas tinham sido ainda mais desgraçadas ao ver como o escocês passeava sem descanso por toda a casa. Parecia um touro apanhado e ela o evitava como se fosse uma lebre assustada. Seu jogo ia terminar no dia seguinte. O general queria que ela se reunisse com ele, e casar-se antes do fim de semana.

     Annalía ainda estava longe de Pascal, mas as mãos dele já se alargaram o suficiente para controlá-la.

     Queimou a carta na lareira e começou a caminhar para cima e para baixo até que doeram suas pernas e viu que o sol começava a se por. Não se importava absolutamente o que seu pai tivesse pensado dela. Ao parecer, Annalía não podia evitá-lo. Lembrou-se então de outra vez em que estava em casa de férias e ele a tinha apanhado caminhando desse modo. Ela tinha dezesseis anos. Dessa vez, a dura e já envelhecida cara de seu pai mostrava seriedade e os olhos cheios de dor.

     —Elisabet estava acostumada a fazer isso.

     É obvio que o tinha feito. Todo mundo dizia sempre que era a viva imagem de sua mãe.

     Quando Annalía chegou a Les Vines pela primeira vez, uma das garotas maiores sussurrou.

     —Vigiem que não se aproxime do jardineiro. Ela é de Castilla.

     Essas moças a tinham visto e tinham descoberto dela coisas das que nem ela mesma era ainda consciente, e isso por que ninguém dali sabia que a mãe da Annalía tinha sido descoberta fazendo amor com o encarregado dos estábulos. Antes e depois de casar-se com Llorente.

     Passou os dedos pelo pingente. Sempre levava essa pedra para se recordar...

     —Por que está caminhando para cima e para baixo? — O escocês. Sua voz foi como um estrondo que ressonou dentro dela.

     Annalía, irritada, soltou o ar e deu a volta para o ver. Seu primeiro impulso foi sair da sala, mas já se cansou de escapar dele em sua própria casa, cansou-se de que ele se interessasse por suas coisas, assim decidiu sentar-se atrás da mesa. Ignorou sua pergunta e perguntou.

     —A que viesse?

     —Queria uísque. Ocorreu-me pensar que talvez teriam um pouco.

     Ela fechou os olhos para tentar controlar seu temperamento. Quando os abriu ele estava junto ao armário dos licores, abrindo as garrafas para cheirar seu interior e depois voltar a deixar onde estavam. As etiquetas de prata penduradas em cada garrafa tilintavam contra a vasilha.

     —Pode ler as etiquetas em vez de cheirar. Se é que sabe ler.

     —Com esta luz não posso ver nada.

     Ele tinha razão. Ela as tinha comprado em Paris para Aleix, e tinha gostado muito de sua floreada e complicada caligrafia, mas logo se deu conta de que, inclusive com luz de dia, eram muito difíceis de decifrar. Bonitas mas bastante inúteis. Não era estranho que ela as tivesse comprado. Annalía quase riu.

     —Por todos os Santos... —disse ele ao encontrar finalmente uma que captou seu interesse. Serviu uma generosa quantidade em um copo de vidro e o pôs diante dela. Annalía o olhou como se acabasse de deixar frente a ela algum animal morto, e quase não se deu conta de que logo ele se servia também um gole.

     Com a bebida na mão, Court se sentou na ampla cadeira que havia diante da mesa. Llorente sempre quis que quem se sentasse nela se sentisse pequeno e insignificante, embora a enorme cadeira encaixasse a perfeição com o escocês, e este se apoiou surpreso de que o respaldo fosse de sua medida.

     Um momento. Ele tinha se barbeado? Como ele...? Tinha mexido nas coisas de seu irmão! E o gesso também tinha desaparecido! Acreditava que encontraria os restos destroçados ao lado de sua cama. Aquele homem estava inconsciente.

     Mas desde que tinha recebido a carta de Pascal, ela não tinha energia suficiente para zangar-se. Em vez disso, limitou-se a observar como ele movia o uísque como com respeito. Tinha as mãos grandes e ásperas, mas segurava o copo com delicadeza; seu escuro olhar estava fixo na chama da vela. Quando finalmente bebeu seu uísque suspirou relaxado.

     Para Annalía foi como se fosse alguém desfrutando um bolo e logo no único em que se pode pensar é em come-lo Olhou horrorizada como sua própria mão se aproximava do copo. Levantou-o, olhou o escocês e este lhe devolveu um olhar zombador; aquele mercenário ladrão de cavalos esperava que ela voltasse atrás.

     Mas não ia fazê-lo. Tinha que apagar aquela absurda expressão da cara.

     Annalía nunca tinha bebido nenhum licor, nem mais vinho do que não desse conta. Ela nunca tinha feito nada que não devesse. E aí estava o que tinha conseguido: transformou-se na prometida de Pascal.

     Aproximou o copo dos lábios e inclinou a cabeça para trás. Foi como se uma língua de fogo lhe percorresse toda a garganta. Qual seria o adequado para que parasse de beber. Mas ultimamente ela estava afastando do que era adequado, assim continuou até esvaziar o copo.

     Negou-se a tossir e o olhou desafiante, com os olhos cheios de lágrimas. Quando sentiu que podia controlar a tosse e reduzi-la a um pequeno pigarro, tampou a mão com a boca.

     —Uma mulher que gosta de uísque — disse ele, enquanto voltava a lhe encher o copo—. Vá com cuidado, Annalía, ou vai roubar meu coração.

     —Por que será que não é estranho que o requisito que uma mulher deve ter para te conquistar seja o de ser bebedora de uísque?

     —Isso, e que saiba caminhar erguida.

     Ele disse com seu habitual tom de voz cortante e ameaçador, mas ela sentiu um pouco de calor, e seus lábios não puderam evitar esboçar um sorriso.

     Ele ficou embevecido olhando a boca dela, olhando seu sorriso, e depois esticou a mandíbula de um modo muito estranho. Tinha uma mandíbula muito quadrada. Muito masculina.

     —Que tenha os polegares oponíveis também conta — disse ele olhando-a descarado, mas ela não entendia o porquê. Tampouco conhecia o significado dessa frase. Seu inglês era perfeito, assim como seu francês, seu catalão e seu castelhano, e conhecia muitíssimo o vocabulário de todas essas línguas. O fato de que esse bruto soubesse algo que ela não sabia, tirava-a como burra.

     Certamente o teria inventado.

     Ele continuou olhando-a de cima abaixo, detendo-se em alguns lugares até fazê-la ruborizar. Podia sentir como o calor lhe subia do pescoço até a nuca

     —O que é essa pedra que tem pendurada ao pescoço? —perguntou ele de repente.

     —Peridoto — respondeu ela, acariciando-a com o dedo— Chama-se peridoto.

     —Nunca tinha visto essa cor verde e dourada. Faz par com seus olhos.

     —Era de minha mãe — disse ela incômoda— Diziam que era a pedra preferida de Cleópatra.

     —Assim tem algo em comum com a luxuriosa Cleópatra?

     —Eu não disse que eu gostava desta pedra — respondeu ela com rapidez.

     Court levantou as sobrancelhas para ouvir seu tom, e ao ver sua reação decidiu mudar de assunto.

     —De quem é o uísque que estou bebendo? De seu pai?

     —Não. Meu pai faleceu.

     Ele inclinou um pouco a cabeça. Ela pensou que esse devia ser o modo que tinha o escocês de lhe dizer “sinto ouvir isso”.

     —De seu irmão, então? Do enorme bastardo que também me emprestou a roupa?

     —Ele não é nenhum bastardo!

     Ele meditou um instante.

     —É um modo de falar, não o dizia literalmente.

     Ela voltou a enrubescer e levou o copo aos lábios.

     —OH. Sim, é dele.

     —E aonde se foi te deixando aqui tão sozinha?

     Annalía posou o copo. Tinha tremido a mão ao fazê-lo?

     —Está em viagem de negócios, mas retornará esta semana.

     —Ah, sim? Esta mesma semana? —perguntou ele sem acreditá-la absolutamente.

     —Não é isso o que acabo de dizer? —Parecia exasperada.

     —Como é que fala inglês como se fosse nativa? Posso entender que saiba francês e castelhano, mas o idioma de sua majestade rainha da Inglaterra?

     Ela franziu o cenho ante a abrupta mudança de assunto. As conversa educadas seguiam algumas regras. Os assuntos mudavam de um modo ordenado, e quando os participantes dominavam a arte da conversa isso se fazia de uma forma suave e agradável. Por que alterá-lo de propósito? Ela suspirou resignada e depois respondeu:

     —Fui a uma escola no estrangeiro e o aprendi ali. O inglês, para sua informação, é o idioma da nobreza em todo mundo.

     O certo era que ela o tinha aprendido para comunicar-se com suas companheiras de classe. As britânicas e as americanas não podiam completar uma frase em um idioma estrangeiro embora sua vida dependesse disso, assim que todas as demais eram como mínimo trilingües. Para piorar ainda mais, as ianques utilizavam um vocabulário diferente, e muitas frases feitas que fizessem impossíveis as entender. Tanto, que elas se divertiam com isso.

     —Que escola?

     —É muito exclusiva. Não acredito que tenha ouvido falar nunca dela. —Annalía batia no copo com as unhas, e ele o interpretou como um sinal de que queria que voltasse a enche-lo. Estava vazio.

     —Prova e verá.

     —Chama-se Les Vines.

     —Sim, Les Vines. Está bem nos subúrbios de Paris, em Fontainebleau.

     Ela ficou boquiaberta. Como podia ter ouvido falar dessa escola?

     Ele sorriu.

     —É para aristocratas e herdeiras.

     —Assim é — disse ela como se lhe doesse. Ver sua cara de satisfação a tinha irritado, mas ao pensar na escola, teve saudades o tempo que tinha passado ali. Então a vida era simples. Encantava-se estar naquele lugar, adorava aprender; mas o que mais tinha gostado era a aura de mundana que lhe tinham outorgado.

     Por desgraça, essa mundana era só uma fachada. Annalía nunca tinha estado além de Paris para o norte, nem mais longe da fronteira da Espanha no sul. Nunca tinha visto o mar. O escocês, pelo mero feito de ter viajado da Escócia a Andorra já tinha visto muito mais mundo que ela.

     Mas MacCarrick nunca saberia, porque ela era capaz de fingir como uma grande artista. Tinha aprendido o jargão dos Estados Unidos como uma princesa das ferrovias, o desdém mais encantado de uma francesa herdeira de uma importante patente médica e a altivez mais consumada de uma britânica filha de um duque que ocupava o décimo quinto lugar na linha de sucessão ao trono.

     —É muito exclusiva — repetiu ela sem emprestar atenção. De fato, a ela estiveram a ponto de não admiti-la. Annalía não estava tão próximo aparentada com a coroa, exceto na retorcida lógica de Pascal, claro. Mas sim estava relacionada com ao menos oito famílias reais.

     —Mesmo assim, você nasceu e se criou na arcaica Andorra.

     A ela pareceu se doer com esse comentário. Deveria ter sabido que ele aproveitaria qualquer fresta em sua armadura para atacá-la. Ao ver que ela não respondia, ele continuou:

     —Eu sempre pensei que deveria haver mais andorranos no mundo.

     —E por que está tão seguro de que nasci e me criei aqui?

     —Ouvi-te falar catalão com as pessoas daqui. Você nunca falou com ninguém que não seja de Andorra, me enganei?

     Ela morria por visitar outros países, de falar catalão, mas Llorente sempre o tinha proibido.

    —Por que pergunta?

     —Este país não mudou muito da Idade Média e sua língua, tampouco.

     —Está dizendo que falo um dialeto medieval? —Annalía não podia acreditar no que estava acontecendo.

     Court recostou na cadeira, era óbvio que adorava fazê-la zangar.

     —E como você é um escocês, com certeza que reconhece o medieval a quilômetros de distância.

     Ele sorriu de meio lado. Não chegou a ser um sorriso completo.

     —Já vê um escocês e uma andorrana. Não somos tão diferentes.

     Definitivamente Annalía era muito diferente dele.

     —Eu sou de Castilla! —gritou, e surpreendeu a si mesma, pois estranha vez divulgava essa informação. Claro que, ao lado daquele escocês, podia sentir-se orgulhosa de algo, supunha.

     —Assim é uma castelhana de sangue quente? Com um colar que leva a pedra de Cleópatra. —Sem deixar de olhá-la nos olhos nem um segundo, levou o copo aos lábios—Fascinante.

     Annalía não pôde evitar em abrir incrédula a boca. Direto ao coração. Como tinha conseguido aproximar-se tanto a seus segredos mais íntimos? Ele não a conhecia. Não sabia nada dela. Só a estava provocando.

     Os seguintes minutos foram muito estranhos. Se Annalía girava a cabeça, ele semicerrava os olhos para enfocá-la. Se tocava o cabelo, ele passava a mão boa pela nuca. Se bebia, ficava quieto, como se esperasse que acontecesse algo mais. Ela se fixou nisso; sempre a estava observando, estudando, calibrando, suportando. Perguntava-se o que pensaria sobre ela.

     Annalía estava ali, sentada, bebendo com seu pior inimigo, bom, o pior depois de Pascal, e não porque queria estar perto dele. Não, nada disso. Ele era um escocês, e por culpa de gente como ele e seus amigos assassinos a salário, o general tinha conseguido poder suficiente para obrigá-la a render-se. Ele era seu inimigo, e não se importava o mínimo.

     Tinha ouvido dizer que o álcool fazia perder o medo, mas Annalía sabia agora que também tinha dado despreocupação, e inclusive havia a tornado matreira.

     Sabia, porque estava disposta a usar o escocês.

     O que aconteceria se contratasse, a ele e a seus homens, para ajudá-la?

     O que aconteceria se a convencia de que ele queria ajudá-la? Se for uma dessas mulheres, se os rumores sobre ela eram certos, então acreditava que poderia ter certo efeito sobre um homem.

     O que perdia por tentá-lo?

     Antes que a coragem a abandonasse, Annalía ficou de pé e rodeou a mesa até colocar-se diante dele. Court levantou também de repente e ela se deteve um instante para dar um último gole no seu copo, só para ter mais coragem. Deu a volta e o encontrou de frente, olhando-a com intensidade, com cautela.

     Ele aproximou devagar, como se não quisesse assustá-la. Annalía recuou até a mesa, mas ele continuou aproximando-se, rodeando-a com sua presença, apanhando-a com seucheiro. E no mais profundo dela uma parte despertou ao sentir sua presença, ao notar o calor que emanava da pele do homem.

     Court a olhava nos olhos como se fosse incapaz de afastar o olhar. De tão perto, Annalía se deu conta de que seus olhos já não estavam ensangüentados e viu o quanto escuros eram suas íris, negros como a obsidiana. E o modo em que ele a olhava... como se quisesse devorá-la. Como se a desejasse, como se entendesse, como nenhum homem o tinha feito antes, que ela sentia o mesmo por ele. Sentia que estava ardendo.

     Annalía se apoiou na mesa agarrando-se a sua borda com os dedos, e passou nervosa a língua pelos lábios, insegura do que fazer a seguir. Court deu conta de que ela não pensava mover-se, de que não ia embora, e franziu o cenho desconcertado. Era como se ela pudesse o ouvir pensar. Sabia que ele suspeitaria de seu comportamento, mas também sabia que optaria por desfrutar e tentar analisar mais tarde o que tinha passado. Como se tivesse lido a mente, a expressão dele se transformou e a olhou decidido.

     Como Court tinha visto fazer a muitas mulheres em Paris, ao entardecer, ela colocou as mãos em seu peito e as deslizou até sua nuca. Ao notar como ela fechava ali seus dedos, lhe acelerou a respiração.

     —MacCarrick — murmurou ela— Eu... você gosta?

     Percorreu-lhe o rosto com o olhar e fixou em seus lábios, mas acabou detendo-se em seus olhos.

     —Agora mesmo, eu gosto, e muito.

     Annalía acariciou o cabelo com os dedos.

     —Depois desta noite, quer ser mi... amigo?

     A voz dele soou profunda e sensual quando respondeu.

     —Entre outras coisas...

     —Posso confiar em você?

     —A respeito a isto? —Afirmou devagar com a cabeça— Não direi a ninguém.

     Ela franziu o cenho ante o comentário, mas seguiu adiante com seus propósitos.

     —Se te pedir uma coisa, estaria disposto a fazê-la por mim?

     Ele se esticou ante a pergunta e tremeu um músculo da mandíbula. Annalía teve a sensação de que ele estava esforçando por relaxar-se.

     —Anna, estou disposto a fazer uma das coisas que quer.

     Apesar dele não ter respondido a sua pergunta, ela continuou.

     —MacCarrick... — Ele teve que abaixar a cabeça para ouvi-la melhor e então lhe sussurrou ao ouvido— Beije-me, MacCarrick.

     Court tremeu.

     Só de sentir seu fôlego roçando a orelha, esse mercenário reagia desse modo? Annalía se perguntou o que aconteceria se o tocasse? Se ela era o tipo de mulher que as pessoas a acusava de ser, então também seria o tipo de mulher que consegue ter um homem a seus pés. A idéia não lhe desagradava absolutamente.

      Court pôs a mão na nuca dela para aproximá-la, e Annalía pensou que ia beijá-la, entretanto, deteve-se; como se quisesse que seu corpo se acostumasse ao dele, como se saboreasse a idéia de beijá-la seria o mesmo quando tinha saboreado o uísque.

     No mesmo instante em que os lábios do homem acariciaram os seus, uma onda de calor a alagou por completo. Quando ele deslizou sua boca para seu pescoço, Annalía custou respirar, não sabia o que já estava sentindo. Rodeou-lhe as nádegas com as mãos e a atraiu para ele com força, para que ela sentisse o quanto estava excitado e notasse sua rígida ereção contra seu umbigo. Isso estava mal. Mas os lábios quentes e firmes dele apagaram esse pensamento.

     Com dedos insistentes, levantou seu traseiro para deslizar as mãos por sua cintura e —OH, Mare de Déu — mover sua pélvis contra a sua. “MAL!”, gritou sua mente.

     Justo quando ela já ia afastar-se, ele a aproximou mais para poder lhe beijar o lóbulo da orelha, e Annalía perguntou-se sem entender por que isso era tão terrível. Não faziam nada mais que acariciar-se. Ele não ia fazer amor.

     Mas antes que se desse conta do que estava fazendo, o escocês tinha desabotoado alguns dos botões de sua camisa, e teria continuado se ela não tivesse fechado com seu punho. Court fez uma espécie de ruído, como se sua reação fizesse graça, mas não continuou. Em troca separou o tecido que já tinha desabotoado e deslizou as mãos até as costas de Annalía para acariciar-lhe. Ante a surpresa dela, ele gemeu mais fundo, e acariciou a pele em cima de seus seios com a bochecha. Esse gemido a assustou, mas não tanto como a excitou.

     Franziu o cenho e o olhou; ele a estava beijando como se tivesse perdido o sentido. E isso mesmo havia passado a ela: tinha perdido o sentido. Sua mente se separou de seu corpo, e era como se estivesse olhando desde fora. Court a levantou e a sentou na mesa para colocar-se entre suas pernas. Ela sentia os seios mais pesados e sensíveis, e sua própria respiração se acelerou.

     Dava-lhe vergonha que ele a visse nesse estado, e que ele fosse a causa. Envergonhava-a que a visse com as saias levantadas até a cintura e com a blusa quase aberta.

     —Me deixe ver seu cabelo — sussurrou devagar contra sua pele, e ela tremeu— Conheço os tesouros que esconde. Já os vi.

     Aturdida, perguntou-se quando os tinha visto, mas quando ele começou a beijar seu decote, Annalía não pôde evitar gemer do quanto intenso era o prazer que sentia. Court levantou a cabeça para poder beijar sua orelha, e ela pôde sentir o quente que era sua respiração. Ele começou a soltar seu cabelo e ela queria que o fizesse.

     A cada beijo, Annalía queria mostrar a esse escocês mais partes de si mesma, queria despir-se, queria soltar o cabelo para que ele pudesse passar os dedos entre suas mechas. Entretanto, quando ele conseguiu desfazer o penteado não a acariciou com suavidade, mas sim fechou as mãos ao redor de seus cabelos, a afastou e beijou o pescoço com força. Continuando, percorreu-lhe a pele com a língua e Annalía fechou os olhos, transportada.

     Mas de repente ele se esticou e se afastou soltando-a.

     —Que etpassa?— murmurou em catalão. Como se despertasse de um sonho, abriu os olhos e repetiu em castelhano— O que se passa?

     Então ela deu conta. Alguns cavaleiros atravessavam a pradaria e se aproximavam da casa.

     —Fique aqui — ordenou ele com a expressão de uma fera que ela nunca tinha visto— Fecha a porta atrás de mim e não saia aconteça o que acontecer. Entendeu-me?

     Em um instante, todo o desejo desapareceu de seu olhar, e foi substituído por uma fúria mal contida. Annalía abriu os lábios, surpreendida pela mudança.

     Ao ver que ela não respondia, Court lhe acariciou a nuca.

     —Anna, entendeu?

     —Sim — respondeu ela, mas as profundas vozes dos homens arianos ressonaram antes que batessem na porta.

     Eram escoceses.

     —Estamos procurando o Courtland MacCarrick — gritaram.

     MacCarrick se relaxou e apoiou a testa contra a dela.

     —Bom, não passarão à história por sua boa educação.

     Mais escoceses? Só de pensar em mais escoceses acampando por sua propriedade fez um nó no estômago. Rezou para que Vitale não despertasse.

     Agora que o fogo que corria por suas veias se esfriou, a vergonha começou a machucá-la. Com mãos tremulas, fechou a blusa e deu a volta. Court se separou dela e pareceu incomodado por sua reação.

     —Mais escoceses?

     —Sim. Ficarão até que eu possa cavalgar.

     —Ficarão? — custou pronunciar essas palavras— Eles não têm permissão para ficar nesta montanha. Sai e diga que se vão.

     —Sempre tão mandona. Algum dia aprenderá que eu não aceito ordens. E faria bem em aprender também que os homens como eu não gostam que uma garota como você tente jogar conosco.

     Ela estava abotoando a blusa e se deteve ao ouvir esse último comentário. Sabia que tinha cometido um engano, mas mesmo assim insistiu:

     —Aqui não são bem-vindos!

     —Também disse que eu não era bem-vindo — replicou ele impaciente—, e há pouco momento estava disposta a me dar o bem-vindo a um lugar muito mais íntimo.

     —Não é verdade! —respondeu ela ofendida— Beijar um homem é muito diferente de querer deitar-se com ele.

     —Não era um homem — soltou ele— Tratava-se de mim. — aproximou uma vez mais até colocar-se entre os joelhos que ela tentava manter fechados. Apesar da roupa, Annalía ainda podia sentir o calor que emanava do corpo dele.

       —Porque sabia que não ia deitar-me contigo!

     Os lábios dele desenharam um cruel sorriso. Voltou a rodear suas costas com as mãos e aproximou-a dele.

     —Ia possuir-te em cima desta mesa — gemeu com cada palavra— Ia levantar sua saia e ia tomar-te como o animal que tanto você gosta de me chamar.

     —Contra minha vontade? —perguntou ela quase sem dar conta, pois suas palavras a tinham deixado sem fala. Tentou afastar-se dele— Porque nunca acabaria nisso.

       —Não, não contra sua vontade. — Court aproximou mais dela e sussurrou ao ouvido— Você estaria suplicando que entrasse dentro de você. —Ele ficou ali um instante, como querendo assegurar-se que ela o tinha entendido e depois, com suavidade, aproximou sua cara do pescoço da mulher.

     Annalía voltou a suspirar, e se envergonhou ao ver que ele, com umas meras palavras, conseguia estremecê-la, obtinha que desejasse que a beijasse, voltar a sentir seus lábios em seu decote, seu fôlego quente perto dela.

     Quando se separou dela, a expressão dele era fria.

     —Se voltar a tentar usar suas armas de sedução com minha pessoa, tenha por certo que contra-atacarei mil vezes...

     —Court? Está aí? —gritou um dos homens lá fora— Há alguém em casa?

     Ele soltou o fôlego e depois juntou as pernas dela e as cobriu devagar com a saia; um gesto familiar, como se o tivesse feita centenas de vezes. Para Annalía a esse detalhe, estranhou, muito mais que tudo o que havia dito antes.

     —Me escute. Não ficaremos muito tempo. Só um alguns dias. —Então deu a volta para sair.

     —Tenho que aceitar sua palavra de que assim será? —sussurrou ela, mas para ouvi-la, ele voltou a entrar. Segurou sua nuca com a mão e a obrigou a olhá-lo nos olhos.

     —Entenda isto, Annalía. Nunca deve aceitar minha palavra. Se alguma vez confiar em mim, se arrependerá disso.

     —Não quero que fiquem — disse ela em voz baixa— Nem tampouco quero que você fique.

     A expressão do homem se tornou mais séria e escura.

     —Nós só respondemos ante a força. —Ele a percorreu com o olhar— E você não tem nenhuma.

        

Court atravessou a casa tentando entender o que tinha acontecido. Ele a tinha olhado nos olhos, tinha olhado aqueles preciosos lábios e, embora tinha sido muito difícil concentrar-se, tinha chegado à conclusão de que não o desejava, ao menos não no princípio. Seu comportamento era premeditado. Ela tinha um plano, mas tinha saído mal.

     Ao final tinha conseguido beijá-la, mas agora se sentia... vazio. O fato de que ela tivesse acabado ardendo de desejo tinha conseguido satisfazer um pouco seu orgulho ferido. Deus, lhe havia dito a verdade, quase a possui em cima daquela mesa. Não o teria duvidado nem um instante.

Mas agora esse vazio se converteu em ira. Ele a desejava de verdade, enquanto que ela só queria usá-lo, e logo averiguaria para que.

     Deteve-se na entrada principal e se apoiou na parede para sacudir os últimos vestígios do efeito que ela tinha sobre ele. Fechou os dedos sobre a maçaneta, ordenou a seu corpo que recuperasse o controle e abriu a porta para receber os cinco membros de sua tropa.

     —Court! —exclamou Gavin MacKriel, o maior de todo do bando— Deus, me alegro tanto de te ver!

     Court surpreendeu que o homem o abraçasse, e deu uns golpes nas costas com a mão que tinha boa, então Gavin o soltou e entrou.

     MacTiernay, o gigante de um só olho, olhou-o de cima abaixo e deu um carinhoso golpe no peito antes de entrar.

     Court ficou olhando-o. MacTiernay nunca se mostrou tão afetuoso. Depois Niall, seu primo, deu-lhe um golpe nas costas e Liam, o mais jovem, ia imitá-lo, mas Court advertiu com o olhar que não o fizesse. O último em entrar foi Fergus, Cujo apelido era o “escocês adormecido”, embora agora parecesse bastante acordado e contente de vê-lo.

     Court os acompanhou dentro e os levou até o salão. Como se aquele lugar lhe pertencesse.

     —Onde estão os outros?

     Liam tinha pegado uma pêra da bandeja cheia de frutas que havia no vestíbulo. Tinha dezenove anos, e como ainda estava crescendo, podia comer o dobro de seu peso em comida cada dia. Deu uma dentada à fruta e respondeu com a boca cheia:

     —Estão procurando seu corpo para te enterrar.

     —Nossa, que detalhe. — Court se sentou à mesa, cansado dos recebimentos. Não há nada como um grupo de escoceses zumbindo a seu redor para tirar uma mulher da cabeça— Tão seguros estavam de que eu tinha morrido?

     —Seguimos o seu casal de Renegados — respondeu Fergus antes de sentar-se a sua vez—, e os convencemos de que nos contassem sua última conversa. Disseram-nos que o tinham matado.

     —Essa era sua intenção. Se encarregou dos dois? Agora só ficam quarenta e sete?

     —Quarenta e sete, por agora — matizou Gavin— Espero que os avisem de que íamos vir matá-los.

     —Eu fiz, mas não teve o efeito que esperava. Agora me sinto muito melhor.

     Niall levantou e começou a farejar o móvel que guardavam as garrafas de vinho.

     —Depois de receber sua mensagem, mandei o resto da tropa à casa do contrabandista para que nos esperassem ali.

     Niall era o encarregado de tomar o mando da tropa se a Court acontecesse algo, e ele aprovou a decisão que tinha tomado. Eles já tinham ocupado essa casa ao inspecionar a fronteira da França. Estava cheia de luxuosos objetos abandonados, de caixas cobertas de pó que continham faqueiros, porcelanas e artefatos de cristal que algum contrabandista tinha deixado ali e não tinha conseguido recuperar.

     —Trouxe suas coisas — acrescentou Niall— Não parece precisar de roupas, mas acredito que queira e que sente falta de suas armas.

     —Não sabe o quanto. —Antes, quando ouviu eles se aproximarem e antes de saber quem eram, pensou que tinha atraído os homens de Pascal até esse lugar. E também pensou que não tinha meio de proteger a Annalía.

     —De quem é esta casa? —perguntou Niall.

     —De uma garota andorrana.

     Court se perguntou se eles poderiam dar-se conta do quanto alterado estava. Nenhuma batalha, nenhum ato de violência o tinha deixado nunca nesse estado.

     Niall o olhou com intensidade.

     —É bonita?

     Sim, seguro que Niall se deu conta.

     —Sim — reconheceu. Fazia uns instantes, essa formosa mulher o tinha acariciado para poder estar mais perto dele. Ele acreditava que sua reação tinha sido sincera, e pensar nisso o reconfortava, mas se ela tinha tentado manipulá-lo... precaveu-se de que todos o olhavam interessados— Ela me encontrou meio morto na beira do rio, e me arrastou até aqui. Não há nenhum homem pelos arredores, assim tomei isso com calma.

     —Arrastou-o? Então esta andorrana além de bonita é enorme?

     —Ela e seu cavalo me arrastaram. Não, ela é bastante delicada. Deveriam vê-la, um sopro de ar poderia atirá-la no chão. —Court viu que Niall continuava observando-o e decidiu mudar de assunto — Têm notícias?

     Seu primo agarrou uma garrafa e assobiou ao ler a etiqueta.

     —Ouvimos que os espanhóis estão a ponto de entrar para procurar seus desertores — respondeu— E se eles não o fizerem, farão os franceses.

     —Já era hora. —Court sempre tinha aborrecido a falta de resposta contra a invasão. Sim, Andorra era pequena, mas sua situação geográfica era estratégica, e Pascal sabia— Onde ouviu isso?

     —Nos disse Otto — respondeu Gavin massageando o pescoço.

     —Otto? — Court entrecerrou os olhos— E por que tornou a falar conosco?

     Gavin hesitou um instante e logo respondeu:

     —Tem ares de grandeza... outra vez.

     —Como de costume. —E por isso mesmo Court tinha abandonado a companhia do prusiano para formar a sua própria— O que é desta vez? Sessenta contra quinhentos? —Otto estava acostumado a manter uma tropa reduzida e aceitava grandes trabalhos. Era uma excelente maneira de ganhar muito dinheiro, e também de morrer no intento.

     —Isso poderia ser — respondeu Niall sem pensar deixou a garrafa que segurava para pegar outra. Por sua expressão aquela ainda era mais cara. Niall não entendia muito de vinhos, mas tinha um olfato infalível para detectar a riqueza.

     —E foi a nós sem mais? —Court não gostava de nada o giro que estava tomando aquela conversa. A alguns de seus homens ao parecer não importava nada arriscar o pescoço.

     —Seria um modo de recuperar o dinheiro que perdemos aqui — respondeu Gavin.

     —Ainda não o perdemos — negou Court com decisão.

     —Não há nada mau em querer reduzir nossas perdas — interveio Niall— Outras tropas, esses atiradores tiroleses, também se foram sem seu pagamento.

     —A região é muito instável — acrescentou Gavin—, e todo mundo está inquieto. Ninguém quer ser o primeiro em enfrentar Pascal, não depois do que fez a você.

     Niall afastou a vista das garrafas e estudou Court.

     —Fizeram-lhe muito dano?

     Tanto que Court ainda surpreendia ter sobrevivido.

     —Eles e o rio. Tive que saltar às cegas e rápido, e pois tive que percorrê-los cabeça abaixo.

     —E seu pulso? —perguntou Niall. Court não tinha conhecido ninguém tão observador como seu primo— Se vê estranho, e faz momento que só usa uma mão.

     Com certeza que seu pulso estava estranho, estava rígido e mais irritado do habitual, devido talvez que tinha acariciando as luxuriosas nádegas da Annalía fazia apenas dez minutos.

     —Quebrei-o. Usava um gesso. Acredito que em uma semana voltará a estar bem.

     —Um gesso? —perguntou Niall incrédulo— O que tem mal em morder uma parte de couro e voltar a pô-la em seu lugar? Os gessos são para os bebês e as garotas quando caem de seus pôneis.

     Só Liam e Gavin riram. O impassível MacTiernay nunca tinha dado indícios de saber fazê-lo e Fergus já cruzou os braços para dormir.

     —Eu não tive nada haver com o gesso. —Court flexionou os dedos— A andorrana me pôs isso quando eu estava fora de combate.

     Olhou para Niall, que voltava para a mesa com uma garrafa e várias taças de vinho. Talvez não devesse beber se essa era ainda mais cara que a que tinha originado o assobio.

     —Durante quanto tempo esteve inconsciente? —perguntou Niall enquanto servia.

     —Dois dias. —Embora Court não estivesse acostumado a beber vinho aceitou o copo, pois sentia curiosidade por conhecer seu sabor. Ele bebia uísque porque era a única coisa que conseguia o alegrar um pouco. O vinho não obtinha absolutamente— Surpreende-me que Pascal não tenha conseguido me encontrar em todo este tempo.

     —Percorre os campos, mas não tanto como antes; agora está muito ocupado. Agarrou-se, vai se casar —disse Niall— Ela é uma aristocrata espanhola ao que parecer de sangue real. Casando-se com ela ganhará posições na escala de sucessão à coroa da Espanha, e ficará por cima de qualquer outro general.

     Gavin bebeu de seu copo, olhou impressionado para Niall, e o felicitou como se ele mesmo tivesse sido o viticultor; a seguir acrescentou:

     —Diz-se que ela está contente com o matrimônio.

     —Então merecem o um ao outro — disse Court aborrecido enquanto se recostava na cadeira.

     Liam bebeu sua taça de um gole.

     —Onde está nossa boa enfermeira?

     —Estará em seu quarto. — Ele olhou a seus homens para tentar imaginar o que pensaria ela deles e acrescentou— Acredito que ficará ali toda a noite.

     —Cansou-a tanto que não pode nem levantar-se da cama? —perguntou Liam com má intenção.

     Court esfregou a boca com a mão e não pôde evitar dizer:

     —Deus.

     Niall levantou as sobrancelhas.

     —Uma garota que Court MacCarrick não pode conseguir? Acreditava que não existiam.

     Ele exalou o ar dos pulmões.

     —Existem nas montanhas de Andorra.

          

     Tinham tomado posse da casa, tinham saqueado a adega, mexido em seus livros, assaltado suas reservas de tabaco, e Court temia também que tivessem esvaziado a despensa. Duas horas mais tarde, e com uma dúzia de garrafas já bebidas, Court se deu conta de que, por culpa do peso que tinha perdido, estava mais bêbado que de costume.

     Para ouvir que a porta de entrada se abria, deixou seu copo em um lado.

     —Agora voltou — disse antes de levantar-se disparado da cadeira.

     Apanhou a Annalía bem no atalho e a segurou pelo ombro.

     —Aonde acredita que vai?

     —Vou dormir em outro lugar. —Ela sacudiu o ombro para soltar de sua mão.

     —Não, não vai fazê-lo — disse ele antes de deixá-la.

     —Acha que pode me dar ordens em minha própria casa?

     —Sim — respondeu ele sincero.

     Annalía arrumou o penteado. Havia tornado a recolher o cabelo, mas desta vez o levava mais solto. Ele suspeitava que ainda durassem os efeitos da bebida.

     —Uma coisa é atender a um paciente doente — disse Annalía com um acento muito mais marcado do que estava acostumado —, e outra muito diferente é que uma mulher solteira fique sozinha em uma casa ocupada por um bando de mercenários.

     —Ah, Annalía, mas se nem sequer os conhece. —De repente, ele queria que eles a vissem, queria que entendessem a tentação que tinha tido que suportar. Agarrou-a do braço.

     —O que está fazendo, MacCarrick?

     Ele odiava que gostasse tanto ouvir como ela pronunciava seu nome. O tinha sussurrado ao ouvido quando tinha tentado seduzi-lo, e ele se enfureceu ao dar-se conta de que se ela tivesse tido mais experiência...

     Fez ela entrar no salão sem avisar.

     —Esta é a dama da que lhes falei. Lady Annalía Llorente.

     Os homens ficaram em pé, e ela abriu os olhos de par em par ao ver o tamanho que tinham e o modo em que a olhavam. Quando Court se sentou para contemplar a cena, eles se aproximaram dela e Annalía recuou até bater na parede.

     —“Bonita” fica um pouco pequeno, não acha? —disse Niall a suas costas.

     Court deu de ombros e recuperou de novo seu copo.

     Gavin se apresentou e pegou sua mão para beijar Court pôde ver como ele acariciava a pele com o polegar, e perguntou por que isso deixava os seus cabelos em pé, e imediatamente se arrependeu de ter levado-a ali. Gavin disse aos outros em gaélico que tinham que sentir a suavidade de suas mãos.

     Eles o fizeram, foram-se apresentando um após o outro, e Liam exclamou:

     —Tem mãos muito suaves.

     O único que não a tocou foi Niall. Provavelmente porque sabia o que Court estava pensando.

     As carícias daqueles homens obtiveram que entrasse em pânico, o qual não era surpreendente. Todos eles eram enormes, e estavam cheios de cicatrizes. Fergus faltavam alguns dedos e MacTiernay, além de ser muito alto, só tinha um olho. Court também a tinha intimidado, mas mesmo assim, ela tinha tomado a iniciativa. Fosse o que fosse o que queria dele, queria-o de verdade.

     —Lady Annalía, obrigado por deixar que nos alojemos aqui— disse Niall.

     —Ela não quer que fiquemos — informou Court— Ela quer que vamos embora.

     Annalía levantou o queixo.

     —Senhor MacCarrick, minha primeira obrigação é para com as pessoas deste lugar. Embora você já não seja um aliado de Pascal, sua presença aqui põe a todos em perigo.

     Court riu de um modo muito desagradável.

     —Isso sim que é nobre, mas por que não lhes diz o que me disse na entrada? Quer que mantemos as aparências.

     Ela não se amedrontou.

     —Isso também é verdade. Se minha reputação resulta prejudicada, não poderei me casar como é devido.

     —Court, ela tem razão — murmurou Niall.

     Seu primo o interrompeu.

     —Esta noite tinha intenção de me pedir algo, não é? Faça-o agora.

     Annalía abriu a boca para falar, mas então a fechou e afastou o olhar.

     —Talvez amanhã pela manhã se sinta com ânimo para fazer sua petição. Talvez nós tenhamos ânimos para escutá-la... se ficarmos aqui.

     Ela voltou a olha-lo.

     —Está bem, podem ficar. Podemos falar quando voltar.

     —Você também fica aqui.

     Ela ficou presa, e a via tão deprimida que ele quase se arrependeu do que havia dito. Podia notar como seus homens estavam olhando-os, e sabia que não entendiam seu comportamento.

     Annalía engoliu saliva e disse com voz triste:

     —Sim, é obvio. Seus homens estão convidados a ficar, e espero com ânsias nossa reunião de amanhã.

     —Vai para a cama, Annalía. Depois da noite que tivemos, precisa descansar.

     Ela reagiu como se a tivesse esbofeteado. Apanhou ar e saiu correndo da sala.

     Niall nem sequer esperou a que ela não pudesse lhes ouvir.

     —Pode-se saber o que esta acontecendo?

     —Não comece. Ela não está tão necessitada como parece, e leva toda a semana me insultando sem cessar. —Ao ver que Niall não parecia absolutamente convencido, Court acrescentou— É uma mulher calculista, e está muito malcriada. Esta noite tentou me seduzir do modo mais vil para me manipular. —esfregou a nuca, incômodo, — porque sabia que se ela tivesse um pouco mais de experiência... o teria tido comendo da palma de sua mão— Isso não esteve nada bem.

     Niall negou com a cabeça.

     —Acredito que nunca tinha te visto tratar tão mal uma mulher.

     —Isso é porque nunca conheeu uma mulher como ela. Digo isso a sério, em sua vida nunca viu a ninguém tão arrogante. Amanhã poderá comprová-lo.

 

Por culpa das horríveis lembranças do acontecido durante a noite anterior, Annalía despertou antes que amanhecesse.

     Ela já sabia que seu caráter tinha alguns defeitos. Já tinha descoberto que sua moralidade tinha algumas falhas, e que, ao parecer, eram hereditárias. O que não sabia era que se bebesse um pouco de uísque, o simples roce dos lábios de um homem junto aos seus, ou sobre sua pele, bastavam para fazer perder a cabeça.

     Essa manhã, ela tinha que pedir ajuda a esse filisteu diante de todos seus gigantescos... sócios. Obrigaria-se a fazê-lo, apesar de que sabia que, em caso de que ele aceitasse ajudá-la, antes a faria suplicar.

     Entretanto, ela não contava com que ele aceitasse. Antes que saísse o sol, tirou da cama Vitale e ordenou que preparasse Lambe. Pascal a esperava esse mesmo dia em Paris, e se ela não conseguia convencer o escocês de que a ajudasse, teria que ir em seguida. Deixou a bagagem preparada no estábulo; tranqüilizava-a saber, que tinha que sair correndo.

     Vitale tentou dissuadi-la de seu plano; ele não queria que ela fosse sob nenhuma circunstância, tanto se os mercenários a ajudavam ou não.

     Inclusive uma velha raposa como Vitale tinha medo de que um monstro como Pascal pudesse fazer durante sua noite de nupicias. Mas agora ela já não estava tão assustada como antes. Tinha gostado bastante que a beijassem, e isso que o tinha feito o rufião que ela detestava. Dizia-se que Pascal andava sempre muito bem vestido e que era muito meticuloso com sua higiene pessoal. Isso não podia ser mau.

     Annalía retornou para seu quarto antes que os escoceses despertassem, e escolheu com muito esmero seu traje e seu penteado. Quando ouviu que começavam a mover-se, desceu para encontrar-se com eles.

     Ao entrar no salão, teve que morder a língua para não repreendê-los por ter as botas em cima da mesa, pelo cheiro de tabaco que emprestava todo o salão, ou pelos restos de comida que tinham deixado por toda parte.

     Madre de Dio! Estava, cheio de garrafas de vinho vazias. Olhou a seu redor com os olhos totalmente abertos. Tinham chegado mais escoceses durante a noite? Não, eles eram seis, os únicos responsáveis por ter acabado com o estoque de sua adega.

     Então a viram, e Annalía obrigou a esboçar um sorriso.

     —Bom dia, cavalheiros — disse tentando ser amável.

     Quando viu que todos se levantavam e se dirigiam para ela com a intenção de voltar a tocar suas mãos, Annalía recuou até a porta e escondeu as mãos nas costas.

     —Espero que tenham dormido bem.

     —Sim. Obrigado por sua hospitalidade.

     Ela deduziu que o que o havia dito era Niall. Na noite anterior, eles tinham apresentado, mas a seus ouvidos todos os nomes soaram iguais: estranhos e desconhecidos. O mais curioso era que todos os sobrenomes começavam pelo MAC.

     —Podemos nos economizar tanto palavrório e ir diretamente ao assunto. O que quer de mim? —resmungou MacCarrick. Parecia cansado, voltava a ter os olhos injetados de sangue, e quando ela entrou no salão viu que estava esfregando a testa.

     Annalía tentou sorrir.

     —É obvio, senhor MacCarrick. Sua franqueza é como sempre... refrescante.

     Ele arqueou uma sobrancelha.

     —Agora é refrescante? Como era que dizia isso antes? Ah, sim, agora me lembro. Dizia que meu povo carecia de boas maneiras.

     Ela sentiu que enrubecia. Outros mercenários também pareciam envergonhados das maneiras de MacCarrick. Odiava-o. Mas estava disposta a fazer todo o necessário para salvar Aleix. “Pensa só nisso, Annalía.”

     —Eu gostaria de contratá-los para ajudar a mim e a minha família.

     Court sorriu com satisfação, era óbvio que gostava que ela se sentisse tão incômoda.

     —E o que é o que quer que façamos exatamente?

     Ela era uma pessoa muito reservada, e desconfiada por natureza; além disso, era também muito orgulhosa, mas isso, neste momento, não lhe servia de nada, e tinha que deixá-lo a um lado.

     —Mi... meu irmão, Aleixandre Llorente, foi capturado pelo Pascal.

     Annalía percorreu a sala com o olhar para ver como reagiam eles. O mais jovem ia dizer algo, mas então ouviu um ruído por debaixo da mesa, como se tivessem dado um chute, e fechou a boca de repente. O que era o que ia dizer? Sabia algo?

     MacCarrick fez um gesto insolente com a mão insistindo-a a continuar.

     —Ele é a única família que me restou, e está na prisão de Pascal. Pagarei-lhes para que o liberem. Pagarei-lhes mais que Pascal.

     —Por que acredita que continua com vida? —perguntou MacCarrick.

     Ela sentiu que empalidecia só de pensar que Aleix pudesse estar morto e, para maior vergonha dela, os olhos se encheram de lágrimas. Deu-se conta de que estava retorcendo as mãos e obrigou a solta-la e as pôr ao lado do corpo.

     O que parecia maior disse algo a MacCarrick em uma língua estrangeira. Este o olhou feio e lhe respondeu de má maneira:

     —É uma pergunta lógica.

     Annalía não sabia como tratar aquela gente. Tinham ensinado costurar e boas maneiras, mas não como negociar com um bando de homens sem escrúpulos. Ter pensado que com um beijo poderia manipular a um homem como MacCarrick era na verdade cômico, mas se todo mundo pensava o que pensava dela, por que não tinha funcionado?

    —Está vivo porque assim tem mais valor para o Pascal. A gente daqui lhe quer e estariam dispostos a fazer algo por ele. A geral deseja utilizá-lo como medida de pressão.

     —Por que precisaria fazer pressão se já os aterrorizou e convenceu para quese submetam? —perguntou MacCarrick recostado em sua poltrona. Parecia estar desfrutando com tudo aquilo.

     —Ele nos aterrorizou? Ou foram seus lacaios? —mal a pergunta saiu de sua boca se arrependeu de havê-la feito.

     Court olhou a seus homens com as sobrancelhas levantadas, como lhes dizendo que agora já podiam ver que ele havia dito a verdade.

     —Vê, Annalía — disse logo sorrindo sarcástico— Só ficaremos alguns dias a mais.

     Aquele cretino estava dando ordens em sua própria casa, mas ela insistiu:

     —Pagarei vocês!

     —Tem dinheiro na casa?

     —Não, mas tenho jóias. Jóias de um valor incalculável.

     Ele a olhou como se fosse tola.

     —E acredita que por aqui poderemos as vender?

     —Tenho também minha herança. Se libertarem Aleix, ele pode consegui-la para vocês. Eu a darei, inteira.

     —Não acredito que sua herança chegue à quantidade que nós exigimos para trabalhar.

     —Isso é porque sua imaginação é muito limitada! —Quando o homem chamado Niall e outros dois riram, ela se obrigou a morder a língua— Peguem o que quiserem desta casa! Estou certa de que encontrarão algo com o que lhes sintam recompensados.

     —Algo? —perguntou ele com uma expressão muito estranha.

    Niall sacudiu a cabeça e se levantou para sair. Os outros quatro o seguiram.

     Annalía afirmou energicamente com a cabeça.

     —Só diga seu preço, senhor MacCarrick. Pagarei a você encantada.

     —Então já está decidido. —Ele a olhou com descaramento— Quero você.

     —D... desculpe?

     —Já me ouviu. Reconheço o desespero e é o que você sente. Ontem de noite estava decidida a me seduzir para que te ajudasse; aposto o que quizer, que estava disposta a tudo. Por que não fazê-lo agora que eu também estou disposto?

     Ela abriu os olhos de par em par. “Odeio-te!”, pensou.

     —Libertarei-o, mas antes de fazê-lo deito-me contigo — disse ele, presunçoso— Essas são minhas condições.

     Annalía se esforçou por pronunciar cada palavra.

     —Nesta casa há suficientes riquezas para satisfazer a qualquer homem, inclusive você.

     —Quer dizer, a alguém como eu, não? Então, esquece —Court agarrou um velho jornal e o sacudiu para poder lê-lo, depois pôs as botas em cima da mesa— A única coisa que aceitarei em troca de trabalhar para você é o seu corpo — disse atrás do jornal.

     Ela não podia conter seu assombro. Aquelas eram as botas de Aleix. E agora ali estavam, repousando sem mais em cima de sua mesa. Em cima da mesa dela e de Aleix. Annalía e seu irmão, que tinha sido como um pai para ela, tomavam o café da manhã cada dia ali e falavam da fazenda. Aleix já não estava. Ninguém ia ajudá-la e ela não podia entender o porquê.

     Os outros homens retornaram e se sentaram. Annalía se precaveu de que pareciam zangados.

     Deu-se conta de que pela primeira vez em sua vida precisava de ajuda de verdade e de que, após a pergunta, ninguém ia dá-lo. Pela primeira vez em sua vida... tinham-lhe feito uma proposta indecente.

     MacCarrick continuou lendo, ignorando-a, cruzou as pernas, e a garrafa que havia junto a seus pés, chamou a atenção de Annalía.

     Reconheceu essa garrafa em particular porque o vinho que continha tinha sido engarrafado o ano em que Aleix e sua amada Mariette se casaram, e depois a tinham guardado com muito cuidado. Guardavam-na para celebrar o nascimento de seu primeiro filho. Esse nunca veio, nunca deveria ser aberta.

     E mesmo assim, ali estava a garrafa, aberta e esquecida entre o lixo que aqueles homens tinham deixado por todos os lados.

     Annalía começou a mover-se, franziu o cenho porque não era consciente do que ia fazer. Viu como seus pés caminhavam para MacCarrick, e deu conta de que sua mão se fechava ao redor do pescoço da garrafa antes de levantá-la e esvaziá-la em cima da cabeça dele. Os gritos dele eram cada vez mais altos, mas ela não se alterou, e quando a garrafa esteve completamente vazia, deixou-a cair sobre o duro crânio do escocês. Pareceu-lhe que ele rugia, que alguém o segurava. Disse-lhe em catalão que aquele vinho tinha um significado especial e que todos podiam ir diretamente ao inferno.

     O relógio de seu avô tocou as oito. Annalía levantou a saia e fugiu da sala. Agarrou as luvas de montar que havia na mesa, junto à porta e foi para os estábulos em procura de Vitale.

     Era hora de cavalgar.

     MacTiernay e Niall não soltaram Court até que viram através da janela que a mulher se afastava a lombos de seu cavalo. Court não entendia por que partia, mas quando tentou sair a procurá-la, MacTiernay o agarrou de um braço e Niall do outro.

     Ele se separou deles e sacudiu a cabeça enquanto Niall continuava observando-o.

     —Pergunto de novo. Pode-se saber o que te passa, Court?

     —A mim? Acaso não viu como a mulher mais arrogante do mundo jogava em cima de mim uma garrafa inteira de vinho?

     —Merecia isso, até a última gota. Falar desse modo depois de que ela solicitasse nossa ajuda.

     —E recusar seu pedido — acrescentou Gavin— Já sei que não vamos pelo mundo fazendo boas obras, mas aqui há mais riquezas das que nunca vi. E ela iria pagar por nossos serviços, coisa que não pode dizer-se que faça todo mundo.

     Court limpou a cara com a manga da camisa.

     —Se por acaso não se deu conta, jogou-me o vinho em mim sem dizer nada e, se por acaso não a entendeu, acaba de nos mandar a todos ao inferno. —sacudiu o cabelo e o vinho salpicou por toda parte— Mesmo assim, eu ia ajudá-la. Niall, você sabe que o teria feito. O teria feito antes que fizesse isto. Só queria tocar o seu cabelo por um momento. Só um pouquinho mais.

     Niall o olhou incrédulo.

     —Eu te vi cortar gargantas e quebrar pescoços sem preocupar-se por nada, mas nunca te vi ser tão cruel com alguém mais fraco que você e que estivesse em uma posição tão vulnerável. O único membro que restou de sua família está na prisão desse bastardo e você está disposto a usar isso contra ela? Para tocar o seu cabelo?

     Court passou a mão pelo novo galo que estava saindo na cabeça.

     —Maldição, já disse que ia tirá-lo dali.

     —Claro. A final, foi você quem o prendeu.

 

Quando Annalía chegou ao povoado de Ordeno o único som que ouviu foi o latido de alguns cães. Ainda era cedo e as ruas estavam desertas.

     Ela e Lambe seguiram o curso do rio até o edifício mais alto, uma casa enorme construída em pedra. Ela a tinha visto em suas anteriores visitas e se perguntou o que teria passado com as pessoas que ali vivia.

     Chegou à entrada e um homem saiu de seu interior. Abriu os olhos, surpreendida. Era um Renegado, sabia pela cruz tatuada em um de seus braços nus. Annalía tinha ouvido falar desses assassinos legendários, sabia que eram tão ferozes como os escoceses, mas, mais cruéis. Desceu-a da sela de montar sem dizer nada e a deixou no chão.

     Enquanto ele se encarregava de sua bagagem, apareceu um desalinhado desertor espanhol para ocupar-se de Lambe. Annalía queria assegurar-se de que ocupasse de Lambe como era devido, mas o Renegado estalou os dedos e indicou que se aproximasse dele. Ela teve que recorrer a toda sua coragem para fazê-lo, todo o ser do homem proclamava que era uma ameaça.

     As mulheres da aldeia haviam dito que esses fanáticos nunca mostravam nenhuma emoção que pudesse indicar o que eles estavam sentindo. Alguém havia dito que soube que a irmã foi violada até que a tombaram no chão.

     O Renegado a agarrou no braço e a arrastou para a casa. Annalía dizia a si mesma que os Renegados eram famosos por cumprir as ordens recebidas ao pé da letra. Até o ponto de desafiar à morte para levar a cabo sua missão, e com certeza Pascal lhes tinha ordenado que não a tocassem.

     Subiram por uma escada de caracol até um quarto muito escuro. Parecia ser a que estava no canto mais afastado da casa. Uma vez dentro, ele esvaziou suas bolsas em cima da cama e inspecionou sua roupa. Com um olhar malévolo saiu, entretanto não a trancou dentro. Claro que tampouco acreditaria que ela fosse escapar.

     Annalía soltou um suspiro e inspecionou ao seu redor. Surpreendeu-se ao ver que o quarto era amplo e confortável e que tinha um tapete, velas acesas, e uma cama limpa e bastante cômoda. A janela estava aberta e através dela podia ver um prado iluminado por tochas. Acaso esperava uma cela? Sim, porque ela via a si mesma como uma prisioneira.

     Annalía lavou a sujeira da viagem o melhor que pôde com a água que tinham deixado, e trocou as roupas cheias de pó. Penteou-se de novo, voltou a guardar suas coisas nas bolsas, pendurou os vestidos em cabides, e depois fez a única coisa que podia fazer: sentar-se e esperar, sem a menor idéia do que ia acontecer.

     Passou uma hora, durante a qual rememorou tudo o que tinha passado essa manhã. Estava tentando imaginar-se outro final no que ela tivesse conseguido deixar MacCarrick boquiaberto, quando a porta se abriu de repente. Uma preciosa garota de mais ou menos sua idade entrou, e Annalía sentiu um baque no coração. Também estava ali retida a força? Elas duas poderiam ser aliadas!

     —Então você vais ser minha madrasta — soltou a garota fazendo uma careta.

     No instante em que abriu a boca deixou de ser preciosa.

     Annalía não imaginou nada parecido, mas tinha sentido que Pascal, sendo tão velho, tivesse filhos.

     —Se você for a filha de Pascal, então suponho que sim. Como se chama?

     —Olivia.

     —E quantos enteados mais, supõe que vou ter?

     —Só eu, os outros foram deserdados ou fugiram dele. —Inclinou a cabeça e olhou a Annalía— Parece preocupada. Não está contente com o casamento? —Olivia estava zombando dela.

     —Estaria, em meu lugar?

     Ela deu de ombros e caminhou para a janela, fazendo caso omisso da pergunta da Annalía.

     —Olivia, sabe se meu irmão está bem?

     Ela esperou durante muito momento e logo deu a volta e estudou a Annalía, como se tentasse de determinar se merecia ou não sua amabilidade.

     — Llorente vive.

     —Se estivesse morto, mentiria?

     —Sim — respondeu sem duvidá-lo— Vêem comigo. Seu novo amo te espera.

     Annalía a seguiu, mas só porque queria dar por acabado aquele encontro. Não podia imaginar-se que aspecto teria o general. O mais provável era que sua cara refletisse crueldade, com ângulos marcados, como os de MacCarrick. Talvez fosse uma tolice desejar que se parecesse um pouco ao escocês.

     —Ele está aí dentro. —Olivia assinalou a porta com o queixo. Ao ver que Annalía não se movia, acrescentou gritando— Vamos!

     Annalía empurrou a porta, decidida, e ficou como pedra quando Pascal voltou para olhá-la.

     Annalía não tinha visto um homem tão atraente em toda sua vida.

    

     Court continuava olhando o copo que acabava de servir, recostou-se na cadeira e apoiou as botas na mesa para tentar relaxar-se depois de um dia que tinha começado mal... e tinha ido a pior. Na mesa ao lado, Liam, Niall e Fergus jogavam cartas, embora Fergus não parava de bocejar, Gavin fumava um cachimbo que estava cheio de um tabaco muito caro e MacTiernay fechava os olhos, bom seu único olho, para recordar alguma batalha passada.

     Quando a Court passou por fim o mau humor depois do incidente da garrafa, e depois de deixar para trás o que restava de sua bebedeira, Niall lhe disse que deveria fazer um esforço para entender a Annalía. Depois de tudo, eles tinham invadido sua casa como se fossem uma praga de lagostas, e Court tinha falado de um modo no que era óbvio que nenhum homem tinha falado antes. Court também suspeitava que os cuidados com que a tinham tratado em frente aos membros de sua tropa a tinham posto à defensiva. E quando um animal fica à defensiva, sempre acaba refugiando-se em um canto e mordendo a quem se aproxima; e isso era o que ela tinha feito.

     Assim decidiu seguir o conselho do Niall e deixá-la a sós durante todo o dia. Ele queria vê-la mais tarde, mas Vitale disse a ele e a sua gente que não estava no lugar, que dessem tempo até o dia seguinte para pensar, e que como “mademoiselle” estava muito ressentida “pela vil proposição de MacCarrick”, ia passar a noite ao outro lado da montanha.

     Court estava convencido que aquela mulher tinha vindo à Terra com o único propósito de fazê-lo sentir culpado. Ou ao menos tentá-lo. Por sorte, ele não estava acostumado a ter esses sentimentos.

     Em noites como essa, nas que não tinham que trabalhar, Court estava acostumado a sentar-se e sonhar com o Beinn a'seu Chaorainn, um destroçado imóvel na Escócia. Imaginava todas as possibilidades que esse imóvel oferecia e que ninguém parecia ver, e contava os dias que faltavam até poder pagá-la por completo; todas aquelas árvores, colinas, campos e velhas pedras acabariam por ser dele.

     Ele era um homem condenado a não ter nada, e Beinn a'Chaorainn lhe dava motivos para continuar vivendo. Mas agora pensamentos sobre Annalía interrompiam os sonhos sobre sua terra. Maldição, ele a tinha tratado mal. No dia seguinte de noite sem falta iria procurar a seu irmão; se Llorente continuasse com vida.

     Fortes golpes na porta principal interromperam seus pensamentos.

     —Liam, abre a maldita porta.

     Liam deixou suas cartas e saiu da sala. Alguns minutos mais tarde gritou, aborrecido:

     —Court, uma rebelião de fazendeiros veio te ver!

     —O que?

     —Um montão de anciões armados com tochas e ferramentas de fazenda estão aqui. Temo por nossa segurança e sugiro que saiamos correndo.

     Court suspirou cansado e levantou da cadeira. Quando Gavin arqueou as sobrancelhas, e MacTiernay e Niall levaram suas mãos às pistolas, ele negou com a cabeça.

     —Eu me ocupo disto.

     Na porta principal encontrou a Vitale e meia dúzia de homens atrás dele pulverizados como cachorros. Assustaram-se só de ver a expressão de Court, e estava certo de que ouvia como lhes tremiam os joelhos.

     —Já estamos fartos de ver como maltrata a mademoiselle e como rouba os pertences do senhor, queremos que vão —disse Vitale em um tom moderado— Não têm nenhum direito a estar aqui.

     Ele esteve a ponto de responder “a necessidade me dá direito” e bater a porta. Mas em vez disso, perguntou:

   —Sabe ela que estão fazendo isto? Convenceu-os para que o fizessem?

     —É obvio que não! Annalía disse a todos que se mantivessem afastados de você, temia o que pudessem lhes fazer.

       Ela acreditava capaz de fazer mal a aquela gente? Annalía tinha medo? Era por isso pelo que o evitava enquanto estavam sozinhos na casa? Court tinha acreditado que era uma espécie de jogo entre eles dois.

     —Vitale, se forem agora, não lhes faremos nenhum mal. Você sabe que não podem lutar contra nós.

     —Talvez não, mas reuniremos mais homens e então se arrependerá.

     Liam colocou a cabeça por cima do ombro de Court.

     —Estamos tremendo de medo.

     Court o olhou tão mal que em seguida se meteu para dentro. Quando Vitale abriu a boca para voltar a falar, Court sentiu que acabava a sua paciência.

     —Vitale, não me obrigue a te matar. —Ao ver como os olhos do ancião se enchiam de terror, sentiu-se como o valentão que era. Pela primeira vez em muitos anos esse sentimento o afogou.

     Ao fechar a porta, ouviu como Vitale seguia falando em francês. Court entrecerrou os olhos. Seu francês não era muito bom, mas acreditou que Vitale havia dito “o mariage”.

     O casamentos?

 

     —Lady Annalía — disse Pascal com uma voz profunda— Bem-vinda a meu lar. —A luz da sala se refletia em suas polidas medalhas e em seu escuro e lustroso cabelo.

     Aproximou-se da Annalía e pegou as mãos dela entre as suas perfeitamente manicuradas. Era tão elegante, tinha um sorriso tão devastador que ela quase aceitou de bom grado suas carícias, mas então se lembrou de que aquele homem era um assassino, e se afastou de repente.

     Ele voltou a lhe pegar as mãos, apesar de que ela deu um passo atrás.

     —Minha querida Annalía. —Deixou de lado a educação e utilizou diretamente seu nome, como se seu compromisso fosse real e não fruto da coação.

     —Pascal. — O tom dela foi cortante.

     Ele se afastou e a soltou para estudá-la melhor.

     —Negava-me a acreditar que fosse tão bonita como diziam, mas assim é.

     Annalía olhou ao teto e o estalou a língua.

     —Não vai me dar o obrigado? Onde deixaste suas famosas boas maneiras?

     —Famosas?

     —Sim. Aos andorranos adoram falar da princesa que se esconde entre suas névoas. Como acha que te encontrei?

     Ela o olhou displicente.

     —Também dizem outras coisas sobre seu quente sangue castelhano — murmurou ele, aproximando-se mais a ela— Estou impaciente por descobrir se esses rumores são certos.

     —Minhas boas maneiras? — cortou ela de repente— Por isso me escolheu?

     Pascal se afastou um pouco, o suficiente para cumprir com as normas de protocolo, e a olhou de um modo que Annalía soube imediatamente que estava zombando dela.

     —Não, casarei-me com você porque é um passo estratégico; você é a filha da família mais antiga do lugar.

     —Por que se incomoda tanto pela diminuta Andorra? Posso entender que alguém como você tenha aspirações muito limitadas, mas por que não Mônaco, por exemplo? —Ela bateu na bochecha com os dedos— O Vaticano é um país?

     Ele riu. Ela não pretendia divertir, queria deixar claro o que pensava.

     Pascal se sentou atrás da mesa do escritório e indicou que também se sentasse. Ela não o fez. Ele voltou a insistir e algo inquietante se refletiu em seus olhos.

     Annalía apertou os dentes e se sentou.

     —O que quer é a Espanha, não é? Esse é o rumor que circula.

     —Sim. Uma vez minha posição aqui seja mais sólida.

     Ela zombou.

     —Que original. Deixe-me pensar, será o sexto general que o tenta nas últimas duas décadas?

     Ele voltou a rir, ao parecer estava encantado com ela, e o suave som dessa risada a colocava nervosa.

     —Serei o sexto general que triunfará nos últimos quinze anos. Mas a diferença de meus predecessores é que terei algo que eles não tinham. —levantou-se e se aproximou dela de novo, tocou-lhe o rosto e Annalía soube que tudo o que tinha ouvido a respeito dele era verdade.

     O rei e seu general não eram bons monarcas, mas com certeza que eram melhores que Pascal. Se Annalía pudesse mandar uma mensagem a Aleix, ele poderia o avisar.

     —Na carta que me mandou dizia que liberaria meu irmão e a seus homens logo que nos casássemos. Como posso confiar em sua palavra?

     —Porque minha primeira prioridade será sua felicidade — disse ele com voz melosa.

     Ela levantou a mão para o deter.

     —Aceitei toda esta farsa, mas me nego a mantê-la quando você e eu estejamos a sós.

     Ele inclinou a cabeça.

     —Muito bem. Llorente me dará seu apoio. Ele descende de reis e será uma boa reclamação para essa gente.

     —Nunca.

     —Igual a você que nunca se casaria comigo? —Ele sorriu— Tenho descoberto que, com o necessário incentivo, as pessoas fazem o que eu quero. —Quando acariciou o lábio com aquele dedo tão suave, percorreu em todas as suas costas um calafrio— Há um vestido preparado para você no quarto. Vá para cima e se prepare para o jantar desta noite. Temos convidados.

     Ordens. Outro cretino que também ordenava coisas. Ela levantou, olhou-o com toda a arrogância de que era capaz e deu a volta para ir.

     —Annalía? —Ela ficou petrificada e esticou os ombros— Qualquer servente que te ajude a se comunicar com seu irmão, será esquartejado na praça da aldeia.

     Agora deu a volta para olhá-lo com a boca aberta por causa da impressão. Ele continuava sorrindo e parecia sincero. O uniforme, para destacar seus largos ombros e as medalhas resplandeciam orgulhosas. Seu futuro marido era perfeito.

     Era um perfeito monstro.

          

     Na entrada da noite, Aleixandre Mateo Llorente continuava batendo na porta de sua cela e gritando até que sua garganta não pôde mais e seus punhos ficaram maltratados. Pascal tinha comunicado que iriam se transformar em irmãos.

     Annalía ia se casar com um assassino para lhe salvar, mas Aleix sabia que nunca sairia com vida daquela escura cela.

     Também sabia que não podia fazer nada para evitá-lo e isso o estava devorando por dentro. Esse casamento só serviria para condená-los, a ambos. Como desejaria poder estar só um minuto, a sós com ela para convencê-la de que não se sacrificasse em especial por uma causa tão perdida como aquela, como desejaria poder lhe aconselhar um pouco de sentido comum.

     —Malditos! —gritou— Abram a porta!

       E então alguém o fez, mas depois de tantos dias de escuridão a luz o cegou por completo. Quando seus doloridos olhos se acostumaram, viu que uma garota estava ali de pé, com o cabelo solto e vestia só uma camisola. Ele ficou sem fôlego. Era linda, inclusive agora que parecia ainda meio sonolenta. E inclusive com a pistola que segurava, lhe apontando.

     —Se não se calar — disse ela—, eu mesma te matarei.

     Isso sim que não o esperava.

     —Lamento se minhas ânsias de liberdade e meus desejos de não morrer não lhe deixam dormir.

     Ela deu de ombros.

     —Durmo bem em cima de você. Deixa de bater na porta.

     —Quem é?

Ela franziu o cenho.

     —E a você o que se importa?

     —A última vontade de um condenado a morte?

     Ela voltou dar de ombros.

     —Sou Olivia.

     Não podia ser sua filha.

     —Olivia Pascal? —perguntou ele em voz baixa.

     —Sim. —Ela levantou o queixo, orgulhosa e à defensiva ao mesmo tempo.

     —Então deveria tomar a sério sua ameaça. Se seu sangue indica que é capaz de cometer qualquer atrocidade.

     —Muito capaz. —Ela esboçou um cruel sorriso—. Também sou capaz de chamar os guardas e lhes pedir que lhe dêem uma surra só por capricho.

     Ele aproximou como o raio, mas ela deu um passo atrás e martelou a pistola sem tremer o pulso.

     —Não seja estúpido — disse séria e com rosto impenetrável— Sou capaz de fazê-lo só para poder dormir um momento.

     Aleix estava certo de que dizia a verdade, de modo que recuou até a parede e cruzou os braços.

     —Nunca tinha ouvido nada parecido. Alguém que é capaz de dormir depois de ter matado outra pessoa.

     —Quem disse que te mataria? A única coisa que tenho permição de fazer até o dia do casamento é te mutilar. —Ela começou a fechar a porta— Mas te prometo que transmitirei seus melhores desejos aos noivos.

    

     Court saiu disparado para apanhar Vitale na porta.

     —O que disse? —exigiu atrás de uma porta.

     Os outros levantaram as sobrancelhas ao ver como Court arrastava Vitale até o salão e o sentava de más maneiras em uma cadeira.

     —Eu disse que é um porco e um ingrato. Minha senhora te salvou a vida...

     —E disse algo sobre um casamento.

     O homem se negou a responder assim Court lhe deu pequenos empurrões até que disse:

     —Aí é aonde foi! —Levantou as mãos como exclamação— Salvar a seu irmão. O general o tem prisioneiro para obrigá-la a fazê-lo.

     —Ela foi casar-se com ele?

     Quando Vitale afirmou com a cabeça, Niall disse:

     —Tem razão Court, é de verdade uma malcriada, uma mulher muito calculista. Olhe que casar-se com o Pascal para salvar a seu irmão. É horrível.

     —Isto não pode ser verdade. Os rumores diziam que ele se casava com um membro da realeza espanhola, não da nobreza andorrana. Como explica isso? —Court se lembrou então de que ela, em uma discussão, havia-lhe dito que era castelhana, mas membro da realeza?

     Vitale hesitou um momento.

     —Por que deveria dizer isso.      

     —Porque se o faz talvez eu vá procurá-la.

     Vitale abriu os olhos de repente e começou a contar-lhe tudo.

     —Ela e seu irmão são os últimos descendentes diretos da antiga Casa da Castilla. São quem ostenta os últimos títulos.

     —Isso é impossível. Seu pai não era da Castilla.

     —Herdaram os títulos de sua mãe.

     Court parecia não acabar de acreditar, mas Niall interveio:

     —Alguns títulos se herdam através da linha materna.

     —Isto é uma loucura. Isso a transformaria em... Isso significaria que ela é... —Court mal não podia acreditar em tudo o que estava escutando, apesar de que isso explicava por que Annalía era tão arrogante— Por que não pediu ajuda a sua família?

     —Ela fez. Como te disse antes, ela e seu irmão foram deserdados por sua família e separados de suas vidas, mas mesmo assim, mademoiselle engoliu seu orgulho e tentou contatar com eles. Acreditam que a mensagem não conseguiu sair de Andorra.

     Niall assobiou e disse:

     —Pascal é um bastardo muito inteligente. Ele persegue a coroa de Isabel.

     —Mas isso quer dizer que Annalía não tem nenhuma utilidade enquanto seu irmão siga com vida. Logo que ele tenha a ela, Llorente estará morto.

     —Não, não pode ser — disse Vitale com ênfase— Pascal quer usar o senhor Llorente como cabeça visível.

     —Engana-se. —Court negou com a cabeça e olhou o ancião do mesmo modo em que o faziam seus cinco homens— Seu senhor está a ponto de morrer, se é que já não o fez.

     —E você se assegurou que ela aceite — murmurou Niall a suas costas— Bem feito, Court.

     Ele passou a mão pelo cabelo.

     —Maldição! Por que não voltou a me pedir isso por que não me explicou isso tudo?

     Vitale o olhou sarcástico.

     —Antes de ir procurar o Pascal, ela me disse que preferia ser a esposa de um assassino e assim poder liberar a Llorente, que ser a puta de um mercenário e confiar a vida de seu irmão a um canalha como esse. Também disse que Pascal e você eram iguais, ou seja, que igual dava um como outro.

     Quando Court imaginou, só e assustada, na escura casa de Pascal, sentiu uma estranha sensação, como se tivesse um peso no peito e custasse respirar.

     —Por todos os Santos, Vitale! Deveria-me ter dito isso antes.

     —Iguais? —Niall amaldiçoou baixinho — Court, de verdade uma maldição pende sobre sua cabeça.

 

Para o jantar de boas-vindas dos seguidores de Pascal a Annalía, ele deu um recatado, mas de uma vez, um luxuoso vestido. Para essa noite em troca Pascal tinha mandado um vestido vermelho com um decote ridiculamente exagerado. Enquanto todos foram à feira da aldeia, ela e Pascal foram jantar a sós. Só eles dois. Com um vestido como esse, Annalía sabia perfeitamente quais eram suas intenções.

     Estava fazendo esforços por manter seus seios sob o tecido quando Olivia entrou no quarto sem bater na porta. A bruxa caminhou para o armário para inspecionar a roupa da Annalía. Aquela mesma manhã suas jóias tinham deslocado a mesma sorte.

     —O que quer?

     —Me conte por que não está casado —disse Olivia de um modo casual, enquanto desprendia um vestido.

     Nesse instante, Annalía se voltou e agarrou a Olivia pelos braços.

     —Viu Aleix? —Sabia que sua reação era de surpresa— Viu-o?

     Olivia se soltou.

     —Por que não está casado? —voltou a perguntar ela insistente.

     Essa curiosidade significava que estava interessada pelo Aleix? Todas as mulheres da aldeia acreditavam que era muito bonito, tão alto e com aqueles tristes olhos dourados. Madre do Déu, seria possível que a filha de Pascal sentisse algo por ele? Como podia usar Annalía esses sentimentos para salvá-los?

     —É viúvo — admitiu, apesar de ter a sensação de que estava despindo-se diante de uma serpente— Sua mulher morreu ao dar a luz.

     Olivia se mantinha impassível. Annalía não tinha modo de averiguar o que estava pensando.

     —Tem um filho?

     —Não, sua filha também morreu.

     Olivia deu de ombros. Annalía fez um esforço por convencer-se de que Olivia com esse gesto, algo a preocupava; isso ou dava uma bofetada.

     —Por que pergunta?

     A garota se aproximou da janela e percorreu a colcha da cama com um dedo.

     —Sentia curiosidade pelo prisioneiro de meu pai.

     —Deixa que te conte mais coisas — disse Annalía enquanto se sentava na borda da cama. Olivia se voltou para olhar pela janela, mas não disse que não.

     —Aleix é um bom homem, um homem forte. Vive em uma casa maravilhosa, em cima de alguns prados nos que se criam os melhores cavalos. Ele cada dia olha como correm e, embora nunca diz nada, eu sei o muito que gosta.

     Estava conseguindo que se relaxasse?

     —É muito inteligente e instruído. Estudou no estrangeiro, em Cambridge. Agora é muito sério, mas nem sempre foi assim. —Annalía decidiu confessar algo muito privado— É porque está muito só nessa montanha.

     Olivia voltou a dar de ombros.

     —Já não posso suportar mais este bate-papo — disse e encaminhou para a porta.

     —Ele está aqui, não é? —perguntou Annalía— Eu estou neste extremo da casa porque ele está no outro.

     Olivia deu a volta e a estudou. Annalía sabia que tentava decidir como responder a sua pergunta, e estava certaa de que não diria nada que não lhe interessasse.

     —Pascal quer que se reúna com ele lá embaixo dentro de cinco minutos. Não o desgoste. Ambos sofreriam por isso.

     Ela não tinha negado que Aleix estivesse ali! E embora tampouco tivesse confirmado que o estivesse, Annalía estava convencida de que assim fosse.

     —Obrigado pelo conselho. Em troca, eu também te darei um. Vão casar-te, Olivia. E com um dos asquerosos homens que havia aqui ontem à noite.

     —Morda a língua! Como pode saber isso?

     —No que se refere a crueldades e assassinatos você é a perita, mas eu entendo de casamentos. Pascal está em uma posição delicada e o jantar com seus seguidores não foi nenhuma casualidade. Como tampouco o é que todos eles tenham importantes contatos políticos, estejam bem considerados na Espanha... e além disso eram solteiros.

     Um carro de seis cavalos. Um pai visitava por surpresa a escola de sua filha, e quando ela entrasse no salão, apresentaria a seu futuro, rico e influente prometido. O caráter e a aparência do homem não tinham nenhuma importância, e estranha vez cumpriam as expectativas, mas o casamento por conveniência estaria já combinado antes que a garota soubesse sequer que tinha que abandonar a escola. Com um apertão de mãos, os dois homens tomavam o controle de sua vida.

     Annalía sabia que nem sequer Olivia merecia a um desses homens.

     A garota a olhou nos olhos.

     —Não vai conseguir que eu acredite nisso. Eu perguntarei diretamente ao Pascal. —Caminhou para a porta de novo.

     —E estou convencida de que te dirá a verdade — gritou à costas da Olivia antes de voltar a brigar com o sutiã pela última vez. Ao ver que não ficava como ela queria, assegurou-se de que sua gargantilha, ou seu colar, como estava acostumado a dizer o odioso escocês, estava em seu lugar. Com sorte, suas antigas jóias, que Pascal tinha insistido em que ficasse, brilhariam o suficiente como para que ele afastasse o olhar de seus seios.

     Por muito que odiasse ir vestida daquele modo, não queria chegar tarde e fazer zangar ao general. O tratamento que recebia seu irmão dependia de como se comportasse ela.

     Annalía sabia que Aleix estava naquela casa, e tinha intenção de persuadir a Olivia para que os ajudasse. Pascal havia dito que mataria a qualquer servente que o fizesse, mas duvidava que prejudicasse a sua própria filha.

     Annalía franziu o cenho ao lembrar do modo tão encantado em que Pascal lhe tinha sorrido a noite anterior. Ela sabia sem dúvida nenhuma que sua força, seu orgulho e seu atraente eram proporcionais a sua maldade. Ao recordar o carisma e suas belas feições iluminadas pelas velas, chegou à conclusão de que sim, ele era capaz de fazer mal a sua própria filha.

     Mas uma vez que saía correndo do quarto para ir a seu encontro, Annalía deu conta de que estava disposta a correr esse risco.

    

       Superado o suplício do jantar, Pascal a escoltou para seu quarto, pois Annalía lhe pediu permissão para descansar uma hora. Ele sugeriu que aproveitasse bem esse descanso, já que aquele fim de semana ia precisar, ele “tinha que lhe ensinar muitas coisas”, e depois se inclinou para beijá-la.

     Quando ela atreveu afastá-lo com um leve empurrão no peito e oferecer a bochecha antes de entrar no quarto, ele pôs-se a rir.

     —Ah, Annalía — suspirou ao ver como se separava dele.

     A sós em seu quarto, ela colocou uma cadeira contra o pomo da porta. Lavou o rosto com água e sentou diante do espelho da penteadeira com o olhar perdido. Sob a “tutela” de Pascal se transformaria em uma carapaça vazia.

     Annalía havia dito que o escocês e ele eram iguais, mas agora que conhecia Pascal, se tinha que entregar sua inocência a um deles, preferiria que fosse a MacCarrick. Ao menos não sabia de primeira mão que atrocidades ele tinha cometido.

     O general era mais bonito que o escocês, mais bonito que qualquer homem que ela tivesse conhecido, mas isso não tinha importância. Ao lado do encantador sorriso de Pascal, de suas suaves mãos e seus impulsos assassinos, o rosto cheio de cicatrizes do escocês, sua maneira descarada de falar e suas maneiras agressivas eram quase sedutores.

     E mesmo assim, as horas seguiam acontecendo e seu casamento se aproximava sigilosamente.

     “Meu casamento.”

     As pessoas se perguntavam como tinha podido conviver com o Aleix e Mariette, que estavam tão apaixonados, e não desejar seu próprio casamento. Era precisamente por causa desse amor pelo que ela não o desejava. Annalía tinha visto o que Deus tinha planejado para um homem e uma mulher, tinha visto o que era a fidelidade, e não desejava nada menos para ela, não queria um casamento sem amor.

     Em especial um como o que estava a ponto de contrair. Não devia pensar nessas coisas! Tinha a possibilidade de ajudar a Aleix. Agora tinha algo de valor com o que negociar.

     Assustou-se quando ouviu alguns disparos. Aqueles incultos desertores se divertiam bebendo até cair bêbados, gritando e disparando tiros ao ar. Por cima, os seus cabelos estavam frisando e os cachos começavam a escapar das forquilhas. Pegou a escova. Gostava do tinido que fazia seu bracelete cada vez que levantava o braço, e penteando-se a relaxava.

     Voltou a pensar no escocês. “A única coisa que aceitarei em troca de trabalhar para você é seu corpo”, isso era o que ele havia dito com aquela voz tão bronca. Que homem tão desagradável. Annalía confiava que Vitale tivesse feito caso da última ordem que deu antes de ir; que mantenha afastado dele. Teria que haver... ficou paralisada, a escova detida a meio caminho.

   Aquela noite no escritório, MacCarrick havia dito que tinha visto seu cabelo? Isso havia dito! Seu cabelo e os outros tesouros que escondia. Deixou a escova de repente. O único lugar onde levava o cabelo solto era em seu quarto. MacCarrick a tinha espiado enquanto dormia! O que outra coisa cabia esperar de um ogro mal educado como ele? Ele sempre fazia o que vinha em ganhar sem considerar os desejos de outros, sem importar seus sentimentos.

     Annalía estava farta de que os homens abusassem dela. O que aconteceria se ela conseguisse o que ela queria? Odiava não ter o controle. Recolheu o cabelo em uma tira como de costume e colocou a gargantilha, apertando-a, estava furiosa.

     Algo estava arranhando a fachada. Seguiam-se ouvindo música e disparos, mas acreditava ter percebido um ruído por debaixo do marco da janela. Talvez a brisa tivesse atirado algo.

     Uma enorme escada apareceu pela janela, seguida por um enorme homem. Ela ficou de pé imediatamente.

     —Eu te conheço! Você estava com o MacCarrick! —Era o que parecia o maior— Me diga por que está aqui ou gritarei!

     Seguia outro homem que também entrou no dormitório. OH, não, o cachorrinho!

     —Viemos para te salvar, pequena — disse o primeiro, e se aproximou dela— E já sabe que embora eles gritem não podem te ouvir.

     —Vão ao inferno! — Mercenários, malditos mercenários. Foram salvá-la! Isso tinha graça. Quando o mais jovem a segurou pelo pulso, ela se defendeu— Por que não limitam a me deixar em paz? —Então equilibrou sobre ele com unhas e dentes.

     —Ach, Gavin! —exclamou ele e a soltou— Mordeu-me. Acredito que deveríamos amordaçar a esta pequena bruxa.

     —Não, não, filho, deixa que eu me encarregue. Maldição! Também me mordeu! E Court nos encarregou esta tarefa para evitar a briga? —disse Gavin zangado de uma vez que voltava a aproximar-se dela— Pequena, não vamos te fazer mal, entende? Estamos te salvando.

     —Se eu for daqui, condenarão a morte meu irmão! —Ela continuava dando chutes, mas a saia estorvava— Assim não vou!

     Gavin segurou seus pulsos e ela continuou lutando, mas era só questão de tempo. Zangou-se ainda mais ao ver que lhe tinha amarrado as mãos.

     —Me escute, neste instante MacCarrick está inspecionando a prisão e o buscando. Se ele estiver ali, libertaremos os dois e levaremos-os a um lugar seguro.

     O estômago da Annalía deu um tombo.

     —Mas ele não está na prisão!

     Gavin franziu o cenho.

     —Sério? —perguntou uma vez que a amordaçava— Bem, bem, vejamos como sai Court desta.

     Annalía gritou contra a mordaça e tentou golpeá-lo com as mãos atadas, mas ele esquivou o golpe.

     —Liam! —Assinalou com a mandíbula as bolsas de viagem— Pegue isso e enche-o com um pouco de roupa.

     Liam as encheu com vestidos e roupa interior sem nenhum tipo de olhares.

     Ela não deixava de mover a cabeça com força e tentava falar através da mordaça. Idiotas! Pascal mataria Aleix!

     —Calma, menina, não vamos fazer nada. Tudo vai sair bem — assegurou Gavin e a jogou ao ombro.

     Cravou-lhe as unhas nas costas com toda a frustração que sentia. Ele se esticou, mas seguiu adiante, Annalía gritou cheia de fúria, mas a única coisa que ouviu foi um lamentável e apagado som.

 

Seqüestrar a Annalía estava sendo muito fácil. Um suborno para obter informação, uma pequena briga com uns desertores espanhóis bêbados pela festa, e um chamariz que logo que tinham demorado vinte minutos em destruir, eram tudo o que separava os homens doeCourt dela.

Da distância, Court viu como Liam o saudava. Mais longe estavam Gavin e Annalía. Court franziu o cenho ao ver como dava chutes enquanto Gavin esporeava seu cavalo e se dirigia para seu esconderijo.

     Court tinha decidido não ir procurar o resto de sua tropa, e como acreditava que ela estaria encantada de fugir com eles logo que contassem seu plano, tinha encarregado a tarefa ao mais veterano e ao mais jovem de todos.

     Enquanto, Court, Fergus, Niall e MacTiernay lutaram contra os desertores e inspecionaram cada cela da prisão em procura de Llorente, mas ele não estava ali. Ao melhor Annalía não desejava ir com eles agora, mas quando se inteirasse do que Pascal tinha previsto para seu irmão, estava certo que se alegraria de que a tivessem salvado.

     Levantou o rifle e apoiou o canhão ainda quente contra seu ombro, então fez um sinal aos outros para que cavalgassem em direção contrária. Para afastar da aldeia tomaram uma rota falsa, logo, no extremo nordeste de Andorra voltaram a dar a volta e se dirigiram para a casa. Dali seguiram o caminho oculto do contrabandista e aceleraram o passo nos ravinas que o cobriam até o final.

     Quando o terreno voltou mais estreito e tiveram que reduzir a velocidade, Niall cavalgou para seu lado.

     —Estive pensando.

     — Sobre o que? —balbuciou ele.

     —Sobre o modo em que trataste a essa bonita andorrana. E sobre por que ontem de noite dormiu em seu quarto.

     Court deu a volta para comprovar se os outros podiam lhes ouvir. Fergus estava dormindo e MacTiernay estava muito longe.

     —A cama é mais cômoda, Niall. Deixa correr.

     —Todos estamos de acordo em que está muito estranho.

     —Não...

     —O que temos que averiguar é por que — cortou Niall.

     —Se acredita que deixarei que me analise está muito enganado. É meu assunto.

     —Eu sou seu primo. O clã MacCarrick também é meu clã. O que te afeta me afeta.

     —Como pode isto...?

     —A maldição.

     —Maldita seja, não comece com isso. —Chegaram ao refúgio, onde deixariam de falar disso. Desde aquele ponto tão elevado podiam ver toda a montanha. Franziu o cenho. Por que havia tanta luz sendo tão tarde?

     —Não pode ignorá-la por mais tempo. —Niall baixou a voz e continuou— Nunca antes tinha reagido assim. —Seu cavalo cheirou o estábulo e, como também ansiava descansar, tentou acelerar o passo, mas Niall o reteve— Acreditava que essa tua parte tinha morrido, e me alegrava, mas não é assim.

     Court sacudiu os ombros.

     —Isto acabará logo. Levarei-a a um lugar seguro e então tudo terá acabado. —Eles tinham planejado libertá-los a ela e a seu irmão e levá-los até o refúgio, mas se Llorente estava morto, Court tinha prometido a Niall que levaria a garota até uma estalagem em que estivesse a salvo, perto do Toulouse.

     —Vai abandoná-la na França? —perguntou-lhe enquanto entravam no velho estábulo.

     —Sim — disse Court convencido, mas maldita fosse, tinha hesitado um segundo e Niall deu conta. Algo estranho estava acontecendo, com ela reagia como nunca antes tinha reagido. Ele estava tão confuso como Niall.

     —Maldição, Court, se atrair algum mal, nunca voltará a estar bem. Note no Ethan, está tão mal como pode estar um homem.

     O irmão mais velho de Court era um homem temível, tanto por seu físico como por seu caráter, e a misteriosa morte de sua prometida não tinha feito mais que jogar mais lenha aos rumores que os rodeavam.

     Alguns chiados interromperam seus pensamentos. Os gritos da Annalía provinham do interior da casa, e foram acompanhados pelo estrondo de coisas rompendo-se e homens alvoroçados.

     Ouviram-no logo que desmontaram. Ele e Niall olharam-se e correram para a casa. Encontraram Liam de pé, à entrada de um quarto, rodeado de trinta escandalosos escoceses que, com os braços protegendo a cabeça, tentavam avançar através de vasos quebrados, candelabros, sapatos e caixas. Cada vez que aparecia outro objeto voador ia acompanhado de insultos.

     Court passou por entre os homens, que deram à boa-vinda e bateram nas suas costas, contentes de que estivesse vivo, e chegou até Liam. Court tocou-o no ombro e levantou as sobrancelhas, o jovem se afastou encantado. Os homens ficaram em silêncio.

     Court quase sentiu pena por ela, adotou sua expressão mais ameaçadora e se preparou para entrar. Colocou-se na linha de fogo, abaixou-se para esquivar de um vaso de vidro cheio de palha de embalar, e prosseguiu até chegar a ela.

     Olhou-a aos olhos, viu-a com aquele escandaloso vestido vermelho fogo, os cabelos soltos e os seios quase nus e ficou boquiaberto. Pasmado.

     —Anna? —Nesse instante, um candelabro bateu na sua cabeça.

    

     Aleix despertou para ouvir ruído de passos descendo a escada. Esfregou os olhos e tentou esquadrinhar a escuridão.

     Os guardas nunca desciam tão tarde. Então entendeu, soube que seria essa noite.

     Foram executa-lo.

     —Papai. —Era a voz da Olivia? Parecia como se ela também estivesse na escada— Talvez não devesse precipitar com Llorente.

     —O que quer dizer? —perguntou Pascal.

     —Acredito que estamos em tempos muito delicados. O prisioneiro tem o amor do povo. —Sua voz estava cheia de asco— Sua execução poderia ser o catalisador que necessitam para voltar a rebelar-se.

     Aleix sacudiu a cabeça. Ela tinha razão. Isso os colocaria furiosos.

     —E poderia ser a gota que enchesse o copo para a Espanha. —Os passos detiveram fora da sala— Você sabe que estão a ponto de buscar os seus desertores. Se decidirem tomar partido...

     “Maldição — pensou Aleix—, isso é o que queremos há meses.”

     —O que me sugere?

     —Não devemos nos precipitar. Sei que te enfureceu que a levassem, mas em lugar de matá-lo, sugiro-te que vá procurá-la e continue com seu plano de casar, de dar solidez a suas petições. Depois poderá eliminar Llorente e suplantá-lo nos corações dos aldeãos.

     Procurá-la? Tinham levado-a? Ao melhor algum aliado tinha evitado o casamento. O coração deu um baque só de pensá-lo. Era o primeiro raio de esperança que sentia em dias.

     —Mas ela estará marcada — disse Pascal. Marcada?

     —Acredita que os escoceses vão abusar dela? —perguntou Olivia.

     Aqueles animais levaram a Annalía?

     —Não importa se o fazem ou não, aos olhos de todo o mundo sua reputação ficará destruida. Nossos convidados se encarregarão disso.

     Aleix teve que fazer esforços para não gritar, teve que lutar para não dar cabeçadas contra a parede de tão zangado estava. Por que teriam feito isso os escoceses se trabalhavam para Pascal? Eles tinham derrotado Aleix e os seus homens duas semanas atrás seguindo as ordens daquele bastardo.

     —As vantagens de casar com ela seguem superando aos inconvenientes. Pensa na Espanha, papai. E se ela estiver grávida, pode ter um... acidente e depois pode voltar a se casar.

     Silêncio. Aleix podia imaginar o semblante pensativo do general. Este finalmente disse:

   —Acredito que já é muito tarde, mas vou tentar.

     —É uma decisão muito acertada.

     —Você sempre foi a mais ardilosa de meus filhos, Olivia. Fria, igual a eu.

     —Sim, papai. Igual a você.

     “Puta.”

    

     Annalía viu como a expressão de MacCarrick voltava ameaçador, como o corpo dele esticava enquanto esfregava a testa. Segurou um cântaro da caixa cheia de palha e preparou para lançá-lo.

     —Nem tente — advertiu ele olhando a arma que tinha escolhido. Ela jogou para trás o braço com a intenção de jogá-lo.

     —Eu disse...— agarrou o pulso, logo a outra mão, e a seguir deixou o cântaro no chão— que não.

     —E eu disse... —gritou enquanto dava chutes no joelho—, que vá ao inferno, besta!

     Ele continuava segurando os pulsos como se levasse umas algemas e a afastou dele para que não pudesse alcançar com seus bicudos sapatos, e de passagem poder observá-la melhor com aquele vestido com o que Pascal a tinha embelezado. Quando aqueles dois rufiões a tinham metido naquele buraco com as mãos atadas como se fosse um troféu, Annalía quase morre ao dar-se conta de que seus seios estavam a ponto de sair do vestido.

     MacCarrick começou a falar, mas então fechou a boca e não deixou de olhar seu decote nem um momento.

      —É desprezível! —gritou ela— É por isso que me seqüestrou? Porque me deseja? Por um miserável beijo?

     Ao dizer este último, ela acreditou ouvir murmúrios lá fora da porta. MacCarrick deu a volta para olhar a seus homens, zangado, mas todo mundo tinha desaparecido.

     —Não faça ilusões — gritou ele antes de dar a volta de novo, e esta vez olhou o seu rosto.

     —Então, por quê?

     —Tenho minhas razões. A principal é minha vingança contra Pascal.

     —Mas por que eu? —exigiu ela— Quando vai devolver me a ele?

     —Não vou fazê-lo.

     —Mas tem que fazê-lo! Não entende!

     —Não entendo que ele tenha deixado preso seu irmão para te obrigar que se casasse com ele? Não entendo quem é em realidade?

     Custou-lhe respirar.

     —Você sabe que a única coisa que mantém meu irmão com vida é que eu me case com o Pascal. Por que me seqüestrou, em nome de Deus?

     —Seu irmão se foi, pequena.

     —Não, MacCarrick. Não.

     —Por que o diz?

     —Sei de boa fé que está noite ainda estava com vida.

     Ele negou com a cabeça.

     —Inspecionamos toda a prisão buscando-o. Não estava.

     Ela zombou de suas palavras.

     —Isso é porque Pascal o tem na casa principal.

     —E quem te disse isso?

     Ela levantou o queixo.

     —Uma fonte muito confiável. — Annalía sabia que ele riria de que tivesse acreditado na Olivia. E, para falar a verdade, Olivia nunca havia dito que seu irmão estivesse ali. Mas Annalía sabia.

     —Conta-me — e ao ver que ela não respondia, acrescentou— Então não tenho mais como remediar e assumir que está mentindo, e não vou seguir te escutando.

     —De acordo. Disse-me a filha do Pascal.

     —Essa sim que é uma fonte confiável.

     —Não acredite, mas saiba disto, eu tampouco acredito em você. Aleix não está morto, mas pode ser que, depois do que tem feito, esteja, se eu não retornar! —Annalía passou junto a Court, mas ele a agarrou pela cintura e voltou a colocá-la no quarto— Não pode me reter aqui!

     —Sim posso. Não vou permitir que jogue a vida quando não há motivo para fazê-lo.

     —Isso tem que decidir eu!

     —Já não — respondeu ele tranqüilo.

     —E o que pensa fazer comigo?

     —Esperaremos aqui alguns dias, e depois te levarei a uma estalagem que há em Toulouse. Ali estará a salvo e poderá entrar em contato com sua família.

     Ela fechou as mãos as convertendo em punhos.

     —E eu tenho que confiar em que você vá levar-me a um lugar seguro? Na bondade de seu coração? Acredito recordar que me disse “nunca confie em mim, Annalía”. — Ela impôs a voz e imitou seu acento escocês— “Eu sou muito mau e vai arrepender-se disso, Annha-leha.”

     Na sala do lado se ouviram gargalhadas. Ele deu a volta com o cenho franzido e depois voltou a olhá-la.

     —Eu nunca disse que fosse mau.

     —Inventei isso! —Annalía lutou para controlar seu temperamento— O... sinto. Só quero fazer as pazes. —Ao ver que ele não se alterava, optou por suplicar. Segurou suas mãos e disse— Estou disposta a... a fazer o que me pediu antes, mas por favor, por favor, deixa que volte a Pascal.

     Em vez de acalmá-lo, isso pareceu enfurecê-lo mais.

     —Esquece-o. Seguiremos com o plano.

     —Mas eu salvei a tua vida!

     —E não posso dizer o quanto estou agradecido.

     “Odeio-te.” Para evitar estrangulá-lo ela optou em cruzar os braços. Ele baixou a vista até seu decote como se não pudesse evitar olhá-la.

     E com só esse gesto, sua mente voltava a imaginar que se deitava com ela.

     —É como um animal no cio, escocês, tal como todo mundo diz.

     Court a olhou nos olhos com semblante ameaçador.

     —E você me chama isso? Quando estava disposta a deitar com o general.

     Ela ficou sem fôlego.

     —Ia casar-me com ele!

     —Ainda pior — gritou ele— Por que não me disse a verdade?

     —Por que deveria havê-lo feito? —perguntou ela realmente surpreendida— Por nossa amizade? Pela amabilidade que me tinha demonstrado? É pior que ele, por isso escolhi antes ele do que você.

     —Eu nunca te fiz mal. Nem roubei as jóias, nem o faqueiro...

     —Diz como se essas coisas tivessem algum valor!

     —Têm para um mercenário! —Ele passou a mão pelo cabelo.

     —Você não é um mercenário. —Ela disse a palavra como um insulto— Os mercenários matam em troca de dinheiro, por isso ouvi dizer Pascal, você não obteve o segundo.

     —Você não sabe nada.

     —Não pôde obter que ele te pagasse. Assim quer vingar seqüestrando uma garota inocente antes de seu casamento.

     —Inocente? —Ele riu de um modo cruel e zombador— Não foi tão inocente em cima daquela mesa, Milady.

     Ela soltou uma exclamação, mas voltou a ouvir ruídos perto da porta. MacCarrick caminhou até ali e deu um soco ao mesmo tempo gritando:

     —Ocupem de seus assuntos!

     Annalía tentou controlar o rubor. OH, Meu Deus! Estava tão ruborizada que a pele queimava, e tinha os olhos cheios de lágrimas da humilhação que sentia ao saber que todos aqueles estranhos conheciam seu segredo. Não voltaria a sucumbir à paixão enquanto vivesse. MacCarrick era cruel ao zombar-se de sua primeira incursão nela, ao menosprezar algo que ela tinha encontrado agradável. “Não foi tão inocente naquela mesa.” Ela deu a volta e em vão tentou subir o decote do vestido.

   —Pergunto-me o que pensará Pascal em saber que me beijou a noite antes do casamento.

     —Nunca lamentei nada tanto em toda minha vida — respondeu ela por cima do ombro. Isso era certo.

     Ele a colheu com força no braço e deu a volta.

     —Tenho feito um favor. Salvei a sua vida, agora estamos em paz. Poderia ter pedido um resgate para recuperar meu dinheiro.

     —Sim! —gritou ela— Pede um resgate, por favor! Mande uma nota e assim ele saberá que não fui por minha vontade, saberá que me seqüestraram.

     —Conhece-o, sabe que é um assassino, e ainda confia em que vá manter seu irmão com vida. Acredita que vai liberar um homem que é sua maior ameaça?

     —E apesar de tudo isso, você trabalhou para ele. Tenta entender isto com seu pequeno cérebro escocês: se um assassino te contratar para fazer o trabalho sujo, no que se converte? —Ela se soltou— Pensa duas vezes antes de insultar de novo Pascal diante de mim.

     —Isso funciona aos dois bandos. Se nós somos tão perversos como acredita, por que esse prometido com o que tanto anseia voltar, quis nos contratar? —grunhiu ele— Mesmo assim, você prefere confiar em sua palavra.

     —Por cima da tua? —perguntou ela incrédula— É obvio que sim.

     Court se dirigiu à porta, mas deu a volta para dizer:

     —Entende isto, fechei as venezianas, essas são fortes e pesadas. E todos nós estaremos na sala ao lado. Não há modo de escapar. —A seguir bateu a porta que as paredes retumbaram.

       —Deus, tivesse deixado que apodrecesse na beira do rio! —gritou ela e depois meditou sobre sua situação. Retornaria com o Pascal ou morreria tentando. Ela se casaria com ele.

Annalía não escapava o irônico de sua situação. Casar-se com Pascal a repugnava. Cada célula de seu corpo se rebelava contra essa idéia. Em troca agora se sentia obrigada a esquecer que a obrigavam a se casar. Tudo por culpa de MacCarrick. Ela não ia permitir que fizesse mais dano.

     A briga dessa noite tinha ajustado bem, atacar a quem queria dominá-la tinha ajudado.

     Annalía fechou os punhos ao lembrar-se que uma vez perguntou a Vitale como tinha se arrumado para sobreviver nas ruas de Paris.

     —Se eu bater em alguém — respondeu ele—, asseguro-me de que não vai estar em condições de me atacar.

     Ela meneou a cabeça, não conseguia entender esse tipo de vida, mas disse que ela também teria sobrevivido, que a situação o requeria, Annalía também poderia ser ardilosa, implacável e perigosa.

     Ardilosa? Sim. Implacável? Talvez. Com o MacCarrick, deveria descobrir se também podia ser perigosa.

     Estava certa de que ele não a esperava.

    

     Court saiu zangado do quarto e viu que outros estavam sentados ao redor da mesa ou esperando nas cadeiras, nervosos, tentando dissimular.

     —Assim não acredito —disse Gavin.

     —Não, nada de nada.

     —Deixa que eu fale com ela — sugeriu Niall arranhando o queixo.

     Court soltou o ar.

     —Pascal disse a ela que seu irmão vivia, e sua filha disse o mesmo. Por que Annalía vai acreditar em mim ou em você, se ela nos odeia? Acredita que somos uns selvagens, e não vai confiar em nós antes que em um mentiroso profissional de sua própria cultura.

     —Mesmo assim... Niall, se quer ser você quem a convença de que seu irmão está morto, vá adiante, tenta. —E acrescentou em voz baixa— E de passagem, diga que se seu irmão não estava morto antes que nos a levássemos, agora certamente está. —O ruído de vidros quebrados ressonou sob suas botas— O que quero saber é como pôde lançar todos os objetos que havia nesse quarto. Por que não tinha as mãos atadas?

     —Prometeu-nos que se comportaria —disse Gavin à defensiva— Disse que se comportaria melhor que antes.

     —Levou o pior? —perguntou Court surpreso e sentou cansado em um banco de madeira.

     —Sim —responderam ele e Liam de uma vez.

     —Já sei que nos disse que não confiássemos —disse Gavin— Mas ela é muito ardilosa.

     —Garota louca. —Liam afirmava também com a cabeça— Olha com esses enormes olhos verdes...

     “Não são verdes —pensou Court— São dourados.” ... e te promete que não vai voltar a te morder nem a brigar.

     —Mordeu-te?

     Vários homens riram.

     —Mordeu, arranhou e esperneou.

     —Sim, para ser uma garota tem umas pernas muito fortes. Deve ser pela montanha.

    Liam deu de ombros e acrescentou:

     —Esses dentes brancos que tem se cravam forte.

     E ele mal podia imaginar. Educada e recatada Annalía tinha mordido Gavin e Liam? Assim que o incidente com a garrafa não tinha sido por acaso. Ela era uma lutadora, e cada vez parecia mais audaz.

     E Pascal teria deitado com ela, teria matado seu espírito lentamente se eles não a tivessem seqüestrado. Talvez tinha previsto começar essa mesma noite, o modo em que a tinha vestido... Só de pensar cerrou dentes e apertou a mandíbula. Aquelas asquerosas mãos em cima de seu corpo...

     —Court, está bem? —perguntou Niall. Estava olhando as juntas dos dedos de Court, que começavam a ficar brancos.

     Um golpe procedente do interior do quarto os interrompeu.

     Court virou a cabeça, entrecerrou os olhos e se levantou. Caminhou sobre os vidros quebrados, abriu a porta e encontrou Annalía desafiante, com o queixo bem alto.

     —Quero sair do quarto. Eu não gosto de estar trancada.

     Não era um pedido, comunicava-lhe o que desejava. Ele estava farto de que ela o tratasse como um lacaio, farto de que ela o olhasse por cima do ombro.

     —Deixarei sair. Mas só se arrumar o desastre que criou.

     Ela zombou e começou a fechar a porta diante de seu nariz. Court voltou a ouvir risadas.

     Ele segurou a madeira com seus dedos detendo-a.

     —Vai limpar de qualquer jeito.

     —Nem pensar, MacCarrick. Nego-me —disse ela orgulhosa— Merecia isso, eles o mereciam, por me haver seqüestrado.

     —Quer sair, pois limpa-o.

     Ela o olhou ainda mais zangada, separou os lábios para falar e ele supôs que ia ouvir outra resposta altiva. Mas em vez disso, inclinou um pouco a cabeça, mordeu o lábio inferior e sussurrou:

     —Está bem.

     Isso sim ele não o esperava.

     —De onde vem esta repentina mudança de atitude?

     —Ódio de estar trancada. E tenho fome.

     Ele sabia que ela tramava algo, mas não ocorreu nada para impedir que limpasse tudo o que tinha quebrado.

     —Certo então. Direi a Liam que te ajude a varrer.

     Ela aceitou com a cabeça e caminhou devagar, movendo a saia, até a pilha mais alta de escombros. Quando agachou, ele tentou não olhar seu exagerado decote.

     —Deus Santo —exclamou alguém. Fergus? Despertou-se justo para ver aquilo?

     Court deu conta de que os outros tampouco conseguiam afastar os olhos do subir e descer de seus seios enquanto respirava.

     Com os punhos apertados e um olhar assassino ficou diante dela para tampá-la. Annalía viu suas botas e depois, pouco a pouco, todo seu corpo; ela levantou a cabeça até encontrar-se com seu olhar.

     Maldito vestido. Era tudo isso por culpa do vestido. Não porque ela o olhasse com a cabeça inclinada de tal modo que seus cabelos caíam para um lado. Não porque ele tivesse percorrido com a língua aquela pele dourada e recordasse seu aditivo sabor.

     Annalía voltou a concentrar-se em limpar, e recolheu vários adornos de prata, um joalheiro de madeira que de algum modo não se quebrou, uma escova de prata e um espelho de mão, um espelho quebrado.

     —Isso traz má sorte —disse Liam preocupado.

     —Como se antes de quebrá-lo eu estava com boa sorte —disse ela olhando para Court.

     Ele apertou os dentes.

     —Liam terminará de recolhê-lo. Quando tiver guardado tudo isso, vêem comer.

     Ela hesitou um instante mas depois, embora estava de joelhos diante dele, aceitou o convite como se fosse uma rainha que estava concedendo um favor a um cavalheiro. Quando retornou, tinha o cabelo recolhido e tinha o decote avermelhado, com certeza que por culpa de ter tentado subir esse decote, talvez tinha ganho uns milímetros.

     Ele a sentou ao seu lado e serviu um pouco de pão, queijo e uma maçã. Ela havia dito que tinha fome, mas não comeu nada. E aquele vestido cor fogo continuava atraindo todas os olhares até que ele não pôde mais. Baixou a voz e disse:

     —Não tem nada menos... atrevido?

     —Não, não tenho —respondeu Annalía pronunciando cada sílaba melhor do que ele nunca o tinha feito — Seu jovem seguidor, Liam acredito que é assim que se chama, pegou só os vestidos de festa.

     Court tirou seu casaco.

     —Ponha isto. —Ao ver que ela o olhava como se fosse morder, acrescentou com mais força— Coloque-o.

     Ela levantou para colocar o casaco, que chegava até mais abaixo dos joelhos e cobria as mãos por completo.

     —Arregace as mangas, sente-se, e come. Já sei que não é o tipo de comida que está acostumada, mas terá que conformar.

     Como ela continuava de pé, Court deu um puxão no casaco e a sentou de repente.

     Dois segundos mais tarde, Annalía disse:

     —Sinto-me incômoda e eu gostaria de partir.

     Sem comer.

     —Nossas maneiras na mesa não são de seu agrado?

     Ela fingiu que estudava a pergunta e depois respondeu:

     —Hmmm. Não é isso. Acredito que é sua técnica de raptos a que me enfeza. Nunca me tinham seqüestrado de um modo tão vulgar.

     Que estranho, ele quase sorriu. Tinha que reconhecer que ela podia ser mordaz quando o propunha. Pegou a maçã, olhou Court de cima abaixo, levantou o queixo, e deu a volta. Ele deixou que se fosse, mas a seguiu com o olhar até que chegou à porta.

     —Parece que a está conquistando —disse Gavin — renda-se.

     Court dirigiu a eles.

     —Ela me adora. Começa a ser cansativo.

     Seu casaco feito uma bola se chocou contra sua cabeça.

 

A manhã seguinte, Court saiu a cavalgar sozinho para limpar-se, para caçar e explorar a área, mas não pôde deixar de pensar em Annalía. Encontrou um lago, despiu-se, e entrou na água gelada, onde ficou até sentir que sua pele se insensibilizou e seu desejo por ela apagou. Ao menos até o ponto de ser um pouco suportável. Só então permitiu sair e voltar.

     Logo que chegou, soube que algo andava mal. Os homens se comportavam de um modo estranho, e afastaram o olhar quando Court fixava neles; alguns desapareceram para ir pescar ou a cavalgar. Chegou ao refúgio temendo que ela teria ido embora, mas viu que continuava no quarto, tal como ele tinha ordenado.

Caminhava furiosa de um lado a outro, tinha as bochechas rosadas, e, por alguma razão, pareceu-lhe uma crueldade deixá-la trancada em uma manhã como aquela, e mais em semelhante estado. Acabaria enjoando-se.

     —Se quiser, pode sair —murmurou ele.

     Quando ela saiu do quarto, ele sentou e obrigou a ler um velho jornal para ver se assim conseguia ignorá-la.

     Annalía parou diante dele, ele baixou o jornal e viu que o estava olhando.

     —Eu gostaria de me banhar.

     Court perguntava o que sentiria se alguma vez ela lhe pedisse algo em vez de comunicar.

     Ele sabia que estava tramando algo. Qualquer, exceto talvez Liam e Gavin, daria-se conta de que o estava fazendo.

     —Aqui perto há um lago. —Se todos seus homens estivessem caçando ou ocupando-se dos cavalos, ela teria um pouco de privacidade.

     —Não tem medo de que eu escape?

     —Estamos a quilômetros do povoado, por não falar das montanhas, sem um cavalo... e sem sapatos... não chegará muito longe. —“Posso ir contigo e te olhar enquanto se banha.”

     —Sem sapatos?

     Ele levantou antes que ela tivesse tempo de acabar a pergunta, levantou-a e a sentou na cadeira. Ajoelhou-se diante dela.

     —Vê-o? Já não tem sapatos.

     —Mas meus pés!

     Tinha motivos para preocupar-se. Igual às suas mãos, sua pele era tão suave como a de um bebê.

     —O caminho até o lago está bem. Só fará mal se você sair dele. —Ele a agarrou pela cintura, voltou a colocá-la de pé e a orientou para a porta— Assim não saia do caminho — ordenou, e deu um tapinha no traseiro.

     Ela, indignada, deu a volta.

     —Não é um cavalheiro!

     —Isso já o tinha deixado claro.

     Ela o insultou em catalão e depois, feita uma fúria, saiu da casa. Duas xícaras de café mais tarde, e quando ele já tinha desistido de ler o jornal, ela ainda não tinha voltado.

     Sem acreditar, saiu da casa e dirigiu correndo para o lago sem deixar de olhar pelos arredores. Não havia rastro dela. Deus, havia zombado dele. Qualquer outra mulher não o teria tentado. Até indo a cavalo, podia apreciar-se que a terra daquela zona era áspera e cheia de pedras bicudas, e ainda mais para os pés de uma dama. Annalía sabia perfeitamente que estavam muito no interior da montanha para chegar a nenhum lugar sem um cavalo. Sabia que ele acabaria apanhando-a, maldita seja.

     Court correu para o estábulo; depois da corrida, as costelas doíam ao pedir a Liam que selasse seu cavalo. Cavalgou até o lago, inspecionando a borda de ambos os lados, e à distância viu um pedaço de vermelho que afastava do caminho. Esporeou seus arreios e desmontou junto a ela.

     Pôs-lhe uma mão no ombro, fez ela dar volta e viu que estava chorando; o lábio dela tremia, e isso provocou uma estranha sensação no peito. Teria se machucado?

     —O que está acontecendo, mulher? —gritou ele.

     —MacCarrick —respondeu ela com suavidade— Machuquei meus pés.

     Ele baixou a vista. Tinha ospés cheios de cortes e ensangüentados; ainda tinham lascas cravadas.

     Sem pensar duas vezes ficou de joelhos.

     —Olhe o que fez, pequena tola...

     Ela bateu no seu queixo com o joelho fechando a boca de repente. Court caiu de quatro e, pela extremidade do olho, viu como a saia se aproximava de novo para sua cara. Que estranho, o tecido era duro como uma pedra ao bater em sua cabeça.

     —Deus santo! Bruxa! —Quando recuperou, pôde ver como ela atirava a pedra que tinha escondido sob sua saia e corria para o cavalo; estava tentando tranqüilizá-lo para poder montar. Court equilibrou para frente e segurou bem a tempo, antes que ela pegasse as rédeas e o cavalo saísse correndo. Ela sabia perfeitamente que precisava de um cavalo.

     Court a segurou pela cintura e arrastou para ele a confusão de seda, pernas e braços não deixavam de mover-se. Recuperou o fôlego e gritou:

     —Assim que queria um banho?

     Ela abriu os olhos de par em par. Ele continuava caminhando para o lago e enquanto Annalía continuava dando chutes. Ao chegar ali, atirou-a sem preâmbulos na água gelada. Ela afundou e tentou repetidas vezes sair, mas só conseguia voltar e afundar-se.

     —Pagará-me isso, MacCarrick! —afastou o cabelo do rosto— A partir de agora será melhor que durma com os olhos abertos...

     Ele a tirou da água e a colocou em cima do ombro. Levou-a assim até a casa, com a água que jorrava de sua saia molhando-o por completo, e Annalía gritando e dando chutes durante todo o caminho.

     Entregou as rédeas a um surpreso Liam, e Court a recolocou sobre o ombro, ignorando os murros que ela dava nas costas. Gavin, que estava fumando seu cachimbo, recostou-se em sua cadeira e deu sua aprovação.

     —Realmente, é o único modo de tratar ela —disse.

     Court a soltou em seu quarto com mais suavidade que merecia. Annalía não gritou nem fez nenhuma careta de dor. Então olhou cada um dos pés igual a olharia os de um cavalo. Só tinha um pequeno corte em cada um. Com certeza tinha espalhado o sangue para que tivessem pior aspecto. Era tão calculista.

     Annalía custava respirar. Começava a tremer e os dentes não deixavam de tocar bater.

     —Tire esse vestido — ordenou, ao mesmo tempo em que a soltava. Ao ver que ela não se movia, acrescentou—Assegure-se de que estará trocada quando eu voltar. —E saiu batendo a porta. Retornou cinco minutos mais tarde e a encontrou tremendo ainda mais, com os lábios pálidos, e ainda com o vestido — Maldição, pequena, se você não se despir farei eu mesmo.

     Em ouvir isso ela aproximou dele e lhe deu um murro no ombro.

     —Não posso! Bruto ignorante!

     Deu a volta. Os laços do vestido eram complicados e estavam muito apertados. A moça estava presa naquela coisa. Com um grunhido de frustração, ficou nisso, mas não conseguiu nada. Os laços estavam duros por culpa da água, e suas mãos tremiam pervertidas ao notar as frágeis costas dela.

     —Fique aqui —grunhiu, e saiu para procurar a faca de caça que guardava no bolsão de seu cavalo.

     Quando retornou, Annalía abriu os olhos assustada, como se não soubesse quais eram suas intenções. De verdade tinha medo? De verdade dava tanto medo vê-lo com uma faca, por grande que fosse essa faca? Ao tentar dar a volta de novo, ela resistiu.

     —Fique quieta. —Não fez caso— Se não estiver quieta acabarei te machucando. —Ela continuou resistindo— O que te passa?

     —Eu... não quero que me veja.

     Em meio daquela loucura, ela tinha escolhido precisamente aquele instante para voltar a ser uma dama recatada. Onde tinha metido essa dama quando deu uma joelhada no queixo?

     —Não está em posição de negociar. Perdeu todo direito ao me bater na cabeça com uma pedra. Entendeu?

     —Posso sozinha!

     Com voz ameaçadora, disse junto ao ouvido:

     —Vou cortar este vestido nos próximos cinco segundos embora tenha que te tombar na cama, te segurar os pulsos com a mão, e pôr o joelho em cima de seu traseiro para que não se mova.

     Annalía deixou de se mover, mas não pôde evitar continuar tremendo. Com cuidado, tirou o vestido. Ela segurou fortemente o tecido contra seu seio. Outro corte e o vestido caiu com força no chão.

     —Levanta os pés.

     Ela negou com a cabeça.

     —Prefere a opção da cama, Annalía?

     Ela levantou os pés e se afastou. Court jogou em um lado o ensopado vestido e a deixou só com o espartilho, os calções e a roupa interior.

     Tudo estava molhado até o ponto de ser transparente.

     Foi como se tivesse dado outro murro. Seu corpo era magro mas também era forte; e tinha curvas, umas curvas perfeitas aonde devia haver. Seus mamilos estavam eretos e rosados e destacavam contra o tecido ensopado. Só de pensar na vontade que tinha de beijar-los assim, molhados como estavam, Court sentiu água na boca. Passou a mão pelos lábios e deu um passo para ela.

     Annalía cruzou os braços sobre o seio; cada mão em um ombro oposto desenhando um X, e gritou “Outra vez não!”, com cara de asco.

     Que ele a desejasse dava-lhe asco, e mesmo assim tinha estado disposta a deitar-se com Pascal. Preferia Pascal a ele. Court dissimulou seu aborrecimento e a olhou aborrecido.

     —Eu sou um homem e você uma mulher com a qual eu quero me deitar. Então faça à idéia.

          

     Quando MacCarrick saiu do quarto, feito uma fúria, Annalía correu para procurar suas coisas. Nua daquele modo! E sem um ferrolho na porta! Colocou uma bolsa em cima da cama e pegou o buquê de flores para escondê-lo a toda pressa atrás da bolsa. Um dos mercenários havia dado a ela essa manhã, e ela não queria que MacCarrick soubesse que seus homens a tinham deixado sair.

     Mas MacCarrick retornou um minuto mais tarde com uma toalha. Atirou-a, como ela esperava que fizesse, e olhou atrás dela ao ver as flores que tentava esconder.

     —Estive fora com eles?

     —Que inteligente é! —exclamou ela, envolvendo-se com a toalha.

     —Quem lhe deu isso?

     —Não sei. —Tinha sido um dos ruivos, mais jovem e bonito— Um chamado Mac algo.

     —Todos se chamam Mac algo.

     —Por isso mesmo é tão difícil diferenciá-los, embora tampouco tenho muito interesse em fazê-lo. —Ela o olhou depreciativa— Todos são iguais.

     Court a olhou como se tivesse vontade de sacudi-la.

     —Sério?

    —Sim —respondeu ela zombando e sentindo tanto ódio dele que ardia por dentro. Já tinha agüentado o bastante.

     Antes que MacCarrick voltasse para atirá-la no rio gelado e depois despi-la com uma faca, seus homens a tinham deixado sair para entreter-se com ela. Tinham-na rodeado e, seguindo a sugestão de Liam, todos queriam tocar suas “preciosas e suaves mãos”, que tinham manuseado como se fosse a nova mascote do clã.

     Queriam ouvi-la falar catalão e francês. Alguns perguntaram inclusive se podiam cheirar seu cabelo, como animais, e o resto também acreditou que era boa idéia, mas ela, indefesa, olhou ao gigante de um só olho e este mandou que eles parassem. Disse aos outros que se comportassem, que já era suficiente.

     —Quem? —MacCarrick tinha seus fortes punhos apertados, e como usava as mangas arregaçadas ela podia ver os marcados músculos de seus braços.

     Annalía perguntou se não teria sido melhor deixar que cheirassem seu cabelo.

     —Não sei quem foi. —Quando o gigante a tinha deixado sair toda a tropa se aproximou dela para apresentar-se e, é obvio, todos os nomes tinham parecido igual. Ela tomou fôlego— Mac algo —repetiu.

     —Uma manhã inteira com minha tropa? —Seu tom era tão calmo que dava medo— Não pode dizer deles que sejam muito discretos. Aposto o que quizer, que viu coisas que não tinha visto antes.

     Ela ruborizou, e isso parece que fez com que ele se zangasse ainda mais. Annalía não tinha procurado estar a sós com um grupo de suados e musculosos escoceses sem camisa fazendo exercício sob o sol. Mas sim, ficou ali olhando-os e quando eles lutaram em brincadeira derrubando-se pelo chão em cima de outro, descobriu que ao menos um deles não levava nada debaixo do kilt.

     Annalía os olhou não só por curiosidade, mas também para ver como e onde se pegavam.

     —Reconheço que vi coisas que uma dama educada não deveria ter visto.

     —Uma dama educada? —perguntou ele aproximando-se — Você está convencida de que eu não sou mais que um pobre escocês, um bruto, mas eu não estou certo do que é você. —Agarrou-a pela cintura, diante disso ela gritou surpreendida, e a levou até a mesa que havia no canto. Sentou-a na beira e a madeira se enganchou com o tecido da toalha— Diga-me uma coisa, uma dama educada beijaria o primeiro pobre escocês que aparecesse em sua casa? —pegou seu queixo entre o polegar— Se agarraria aos ombros desse bruto para que ele não deixasse de saborear sua pele? —Aproximou os lábios de sua orelha— Não acreditou que ela gemesse ao sentir que ele se colocava entre suas pernas e a beijava com todas suas forças.

     Annalía virou o rosto, humilhada, mas ele segurou seu rosto com suas ásperas mãos e a obrigou a olhá-lo. Finalmente, ela disse:

     —Tem razão.

     Court entrecerrou os olhos. Tinha o olhar igual do diabo. E quando adotava essa expressão, a cicatriz que tinha na testa empalidecia. A primeira vez que o viu em sua casa, ela percorreu essa cicatriz com seus dedos. Com ternura. Agora ele não estava devolvendo essa ternura.

     —Não sou a dama que eu gostaria de ser. É evidente que tenho defeitos. Pode ser que eu seja tão pouco educada que inclusive seria capaz de aceitar um desses homens em minha cama, embora esteja destinada a algo melhor. —Ela afastou as mãos dele de seu rosto sem deixar de olhá-lo— Mas você, nunca, MacCarrick. May a meva vida!

     —Alguma vez em toda sua vida? Mas sim Pascal? Deixou que te beijasse?

     Para ouvir isso, ela fechou os olhos.

     —Deixou? Tocou você?

     —Não, mas o fará! E deixaria a ele mil vezes antes que você!

     —Pois acaba de selar seu destino. —Apertou a mandíbula e a agarrou pelos quadris, seus dedos cravando-se em sua pele— Porque ele não fará nada que eu não tenha feito antes.

     Court baixou a cabeça, apesar de que ela tentava afastá-lo, a beijou. Foi um beijo de castigo, cheio de força; a barba de vários dias irritou a pele até fazê-la chorar.

     —Não! —gritou ela contra seus lábios, uma vez que tentava bater nele com as mãos que ele continuava segurando.

     Quando o homem a soltou, olhou-a, como Annalía sabia o que faria; então ela esfregou os lábios. Court ficou olhando-a, com as sobrancelhas franzidas, e depois levantou devagar as mãos, como se quisesse apagar a cara de desgosto dela. A moça se afastou dele.

     Então o escocês se foi deixando-a sozinha; tremula e confusa. E sentindo mais ódio de que tinha sentido em toda sua vida.

 

Inteirei-me que cada noite vai a sela de Llorente. Do que se trata? —quis saber Pascal.

     Olivia respondeu sem hesitar.

      —Se não poder dormir, eu gosto de ir incomodá-lo —Seu rosto se manteve impassível.

     Seu pai a estudou durante um momento, e a seguir sorriu aliviado.

     —Estava preocupado. Para algumas mulheres poderia parecer atraente.

     —Ele é fraco. Eu nunca poderia ver, além disso — respondeu ela, triste. Olivia tinha aprendido a ser assim desde que seus parentes a mandaram para viver com Pascal. Então só tinha dez anos e acabava de perder a sua mãe, Ysobel Olivia, quem tinha sido seu mundo inteiro.

     Seus parentes a consideravam uma abominação, e a tratavam como tal, com o qual a assustavam e a confundiam, porque sua mãe só tinha ensinado o muito que a amava. Comparado com eles, Pascal não parecia tão mau; sobre tudo depois de que ela aprendeu a comportar-se como ele.

     Olivia o fez à perfeição. Conseguiu enganar todo mundo, até a si mesma, até uma noite da primavera anterior, antes de ir para Andorra, quando ouviu os serventes mexericar sobre sua mãe. Falavam de como Pascal e seus três melhores homens tinham chegado ao povoado de sua mãe, cheirando a “sangue e pecado”. Pascal ficou interessado imediatamente na bela viúva Ysobel. E, como sempre, obteve o que desejava...

     —Talvez poderia deixar de ir? —perguntou Pascal a Olivia, mas ambos sabiam que era uma ordem.

     A garota o olhou nos olhos; seu rosto continuava inalterado, sua expressão imutável. Gostava disso em sua filha. Ele nunca sabia os segredos que se escondiam dentro de sua mente. Como por exemplo, que o dia em que se deitou com sua mãe havia sentido generoso.

     —É obvio, papai—disse ela, embora soubesse que só havia vinte e cinco por cento de possibilidades de que ele fosse seu pai de verdade.

          

     Depois do jantar, em que comeu pouco e não bebeu nada, Court saiu com Niall ao alpendre e sentou junto a ele em um banco de madeira. A noite era fria e a lua iluminava tanto que quase parecia de dia. Havia sombras em cada esquina e em cada árvore, e era impossível relaxar-se.

     —Como está a garota? —perguntou Niall— O que de verdade quero saber é, em que estado a deixou?

     Court deu de ombros. Depois do beijo ela nem sequer tinha olhado na sua cara. Ficou ali, sentada na cama, com os joelhos dobrados junto ao peito, o corpo tenso e os olhos brilhantes e furiosos. Tinha o queixo irritado por culpa da barba sem fazer dele.

     Devia estar furiosa; ao fim, Court tinha comportado como a besta que ela acreditava que era; e se ele não conseguia entendê-lo, muito menos poderia ela. MacCarrick nunca antes tinha perdido o controle desse modo.

     Annalía havia dito que Pascal não a havia machucado e ele acreditava, mas a tinha beijado? Tinha mostrado Pascal mais autocontrole que Court? Certamente. E ela o tinha escolhido em lugar dele. Com certeza que até parecia mais atraente. Franziu o cenho ante essa idéia, sabia que quase todas as mulheres pensavam assim.

     —Acredita que está planejando algo? —perguntou Niall.

     —Conta com isso, depois do mergulho no rio.

     —Você teria feito o mesmo em seu lugar, teria tentado escapar.

     —Sim, mas isso não me consola. Voltará a tentá-lo. O que faço, entro aí e a obrigo a entender que seu irmão morreu? Sou um bastardo, mas não sei se sou capaz de fazer isso. Além disso, Pascal e sua filha a enganaram por completo.

     —Bom, Pascal também nos enganou.

     Court não podia discutir isso.

     —Olhe, seus irmãos me matarão se souberem que te aconteceu algo.

     —Não vai acontecer nada, Niall. —levantou-se e apoiou na coluna de pedra.

     —A maldição, Court. —limitou-se a dizer seu primo.

     Sentenciados a caminhar com a morte ou a caminhar com a solidão.

     —Sabe que nunca poderá ter uma mulher. E, apesar disso, às vezes olha para essa garota como se ela fosse à única mulher que queira ficar ao seu lado.

     —Não tenho intenções de fazê-lo.

     —Esse tipo de coisas tem uma estranha tendência a não sair como as planejamos.

       —A mim não, comigo não. De fato, nunca me passou. E tenho um livro que o demonstra.

     —Sei, o livro. “A morte e a desgraça os apanharão” —citou ele— De verdade acredita que a garota estará a salvo quando a deixarmos na França?

     —Isso não importa, não acha? Eu fiz mal e eu vou arrumá-lo; depois já não é meu assunto. Não serei seu anjo da guarda toda sua vida.

     —A idéia de deixá-la abandonada não entusiasma a nenhum dos homens. Os irmãos MacMungan, os dois, disseram que se casariam com ela hoje mesmo, e logo haverá mais que pensem o mesmo. Inclusive Liam disse que ele ficaria com ela se nós a deixávamos sozinha.

     A resposta do Court foi uma risada cruel. A extraordinária e fresca Annalía se murcharia como uma flor na austeridade que imperava no clã MacMungan. E Liam nunca poderia controlá-la.

     —Eles só estão atordoados porque nunca antes tinham visto uma mulher como ela. —Court não podia culpá-los por havê-la deixado sair essa manhã, apesar de que colocava os cabelos em pé só de pensá-lo. A culpa era dela; ele tinha metido aquela delicada beleza estrangeira em meio de um bando de escoceses— Me pergunto se tiverem tido em conta que Annalía odeia os escoceses.

     —Sabem. Ela não confia em nós. Acredita que nossos costumes são estranhos, mas seus prejuízos divertem a nossos homens. Eles sabem que não é má, só que não os conhece o suficiente. Diabos, quando pediram se podiam tocar a mão, até permitiu.

     Isso fez que Court chiasse os dentes.

     —E a você o que te pareceu, Niall?

     Este hesitou um instante.

     —Mais suaves do que tinha imaginado — respondeu finalmente— Mas isso não é o importante. Sabe que não está acostumada a que a tratem assim, e você deveria ser mais amável com ela; ao melhor assim não acreditaria tudo o que ouviu dizer sobre nós.

    —Amável? Ela não foi amável comigo quando ontem bateu na minha cabeça com uma pedra.

     —Estava assustada — replicou Niall movendo a mão para dar importância— Uma mulher assim necessita que a cuidem, e ninguém o tem feito. Posso vê-lo em sua cara.

      Court suspirou e finalmente reconheceu.

     —Eu não quero me comportar assim. —Mas é que essa mulher conseguia deixá-lo louco. Suas maneiras tão femininas, seu acento, até o modo em que se ruborizava, tudo isso combinado fazia perder a cabeça. Continuou em voz baixa— Eu quero ser diferente com ela, mas... ao que parece não posso evitá-lo.

     —Então, por que não a leva a Toulouse sem mais? Nós o esperaremos na estalagem.

     Só de pensar nisso se enfureceu.

     —Não.

     —Por que, Court?

     —Porque não estou preparado para me separar dela; ainda não.

     —Deus, de verdade pode chegar a ser um porco egoísta. Às vezes acredito que já não te conheço.

     —É obvio que posso sê-lo. Sigo sendo um mercenário e um assassino. Por Cristo! Venderia a minha própria irmã. Acaso não é isso o que se diz no clã?

     —Dizem isso porque você insiste em não retornar...

     —Retornarei assim que tenha pago minhas terras, e isso é algo que por agora não posso fazer, a não ser que me junte com o Otto. —Ao ver que Niall levantava as sobrancelhas, Court acrescentou— Todo mundo precisa de dinheiro. Eu preciso de dinheiro.

     Niall o olhou decepcionado.

     —O dinheiro não é tudo na vida. Acreditava que tinha se dado conta disso quando decidimos nos separar dele.

     —Do que vale tudo isto, Niall? —soltou Court de repente. Dentro, dois homens que estavam jogando queda de braço levantaram a vista. Court baixou a voz—Se não posso ter uma mulher e nem minha própria família, e perco a terra pela qual trabalhei tão duro, o que sobra da minha vida?

     —Não sei. Isso terá que averiguá-lo você sozinho. Mas o que sei é que se ficar junto a essa garota acabará lhe destruindo a vida.

     —Está certo de que a destruirei?

     —Isso aconteceu com a mulher de Ethan.

     Fazia uns anos, Ethan tinha se comprometido com a Sarah, uma moça a que quase não conhecia, do vizinho clã MacKinnon. Sua família estava entusiasmada, apesar de que tinham ouvido falar da maldição; e como o título de Ethan exigia que tivesse um herdeiro, ele aceitou. Sarah morreu aos dezenove anos, uma noite antes do casamento, e ninguém sabia ainda como.

     —Eu não sou Ethan, e não tenho intenção de me comprometer com a garota!

     —E então o que é o que quer fazer?

     Court deu a volta para olhar Niall, franziu as sobrancelhas, e sentiu como se tivessem lhe dado um murro.

     —Eu... Nós não... —Não tinha nem idéia. O que podia dizer? Que ele e seus irmãos não tinham culpa da morte de seu pai?— Tinha que me fazer pensar nisso agora?

     —Sinto muito, Court, mas tinha que fazê-lo. —Niall pôs uma mão no ombro antes de dar a volta para dirigir-se para a porta— Tem muito em que pensar.

     Pensar? Court tinha tanta vontade de lembrar-se da manhã em que morreu seu pai como de pensar no que lhe proporcionava o futuro. Mas não era isso o que andava fazendo aqueles últimos dias? Desde que tinha conhecido a Annalía tinha pensado mais em tudo o que se estava perdendo do que o tinha feito na última década.

     Dirigiu-se a seu quarto sem saber o que ia dizer, não importava que ela o insultasse, só queria... algo. Ele abriu a porta e entrou.

     O ar escapou de seus pulmões e apoiou a testa no antebraço que tinha contra a porta.

     —Maldição.

 

O espelho de mão que ele a tinha obrigado a recolher.

     Annalía tinha utilizado a pesada manga de prata como alavanca e a escova como martelo para golpear a parte baixa das venezianas. Sim, estavam fechadas. Sim, eram muito grossas. Mas agora havia uma abertura na parte inferior.

     Court saiu do quarto gritando feito uma fúria.

     —Liam, sela meu cavalo!

     Nesse mesmo instante, o jovem voltava do estábulo com o olhar para fora e as mãos na cabeça.

     —Ela se foi...

     —Sim, sei — respondeu Court brusco, uma vez que metia a pistola no cinturão. Montou seu cavalo ainda pensando no que tinha visto naquele quarto. Nunca poderia esquecê-lo. Ela tinha amontoado todos os trastes quebrados com esmero, para que ele soubesse até onde chegava sua malícia. Zombando-se...

     Como só havia um caminho que levasse de volta a casa do Pascal, Court sabia como segui-la. Mas ela devia cavalgar como se o diabo a perseguisse, porque não a vislumbrou até meia hora mais tarde. Acreditou vê-la, mas desapareceu em seguida.

     Ao chegar ao lugar onde a tinha visto, entendeu por que. Entretanto, não teve tempo de ficar nervoso, ele e seu cavalo desceram pela pendente coberta de cascalho enquanto Annalía se deslizava por ela com seus arreios a toda velocidade.

     Em nenhum momento diminuiu seu frenético ritmo. Inconsciente! Se o próprio cavalo de Court estava tendo dificuldades para não escorregar por aquele chão. Ele podia ouvir como seus cascos rompiam as lajes de cascalho.

     Passado este lance, o caminho se abria em curvas mais largas e intrincados canhões, e logo pôde colocar-se a seu lado; mas cada vez que o conseguia, ela se adiantava. Montava o cavalo de um modo impressionante, mas no final só foi questão de tempo. Court conseguiu apanhar as rédeas do cavalo dela e, em poucos segundos, deteve ambas as montarias, levantou a Annalía e a desceu de sua sela.

     —Me deixe! —Ela o esbofeteou. Já tinha demonstrado soberanamente que não se importava usar a violência contra ele.

     —Cavalgando assim de noite? —Ele a tinha segurado pelos ombros com ambas as mãos— Em um chão de cascalho? Tem sorte de não haver quebrado o pescoço.

     —Você fazia o mesmo, e supõe que a sortuda eu sou?

     Ele apertou as mãos que tinha sobre seus ombros.

     —Por que não entra na razão, pequena? Seu irmão já não está, e vai sacrificar-se por nada. Se cooperar comigo, levarei-te a um lugar onde estará a salvo. Sabe que não vou fazer mal a você.

     Ela entrecerrou os olhos e o olhou acusadora. À luz da lua, ele podia ver o queixo irritado.

     —Isso não voltará a acontecer — assegurou, mas ela voltou a debater-se para soltar-se.

     Deu-lhe um chute na perna, muito acima e muito perto do que era importante como para que ele pudesse estar tranqüilo.

     —Annalía, quer uma aula prática para entender por que não deve dar um chute em homem nessa parte? —Maldita seja, ela voltou a fazê-lo, mas ainda mais perto— Uma vez mais, e juro que levanto a sua saia e te ponho em cima de meus joelhos. —De repente ficou em silêncio, aproximou-a pegando suas costas a seu peito, e lhe cobriu a boca com a mão. Um ruído perto deles o tinha alertado.

     Para variar, ela mordeu-o profundamente, e Court teve que apertar os dentes. Algo se moveu entre os arbustos, estava-se aproximando.

     —Quem anda aí? —disse, e tirou sua pistola.

     Depois de uns tensos minutos, puderam ouvir:

     —Viemos para levar de volta a Annalía Llorente.

     —É uma merda — murmurou ele, e preparou sua arma. Tinham que ser os Renegados. Ninguém mais teria conseguido encontrar-los ali— Escute-me, Anna. Esses homens não vieram te buscar, são Renegados. Ouviste falar deles?

     Ela deixou de morder e afirmou com a cabeça.

     —Sabe que são assassinos e não acompanhantes. Agora, está disposta a me ajudar?

     —Sim — respondeu ela em voz baixa.

     Court afastou a mão e a sacudiu para tentar recuperar um pouco de sensibilidade na pele que ela tinha mordido.

     —Agora temos que...

     —Socorro! —gritou então Annalía, e pôs-se a correr até que ele a apanhou pela cintura— Me capturaram!

     Um disparo ressonou como uma bala de revolver pelo desfiladeiro, seguiram muitos mais, ricocheteando ao redor deles. Court escondeu a Annalía atrás dele, sem deixar de agarrá-la pelo pulso, e conseguiu disparar duas vezes.

     Eram muitos. Estavam muito perto. Ele a apertou entre seus braços e correu para esconder-se depois de uma colina.

     Os cavalos ficaram nervosos, inquietos, e se afastaram galopando. Maldiçao. Sua munição estava em sua sela de montar.

     —Socorro! —voltou a gritar ela, e lutou contra seu abraço.

     —Quer se calar? Estão-nos disparando e você quer dizer onde estamos para que apontem melhor?

     —Não me estão disparando, estão disparando em você!

     —Esses são assassinos de Pascal, e digamos que eles não possuem escrúpulos. —Ela continuava resistindo, apesar de que ele a apertava com força, as costas da mulher contra seu peito— Estou certo que no refúgio ouvirão os disparos e virão, mas até então temos que ser precavidos, entende? —perguntou ele— Se quer viver, tem que fazer o que te digo, ou te asseguro que antes de um quarto de hora terá uma bala no cérebro.

     Pareceu que Annalía começou a chorar.

     Ele franziu o cenho.

     —Está... está assustada? —perguntou desconcertado; não tinha nem idéia do que podia fazer. Notou como ela assentia, tremendo contra seu peito e deu conta de que provavelmente estivesse morta de medo. Uma bala no cérebro. “Grande frase, Court.” Mas tinha que assegurar-se— Entende que querem nos matar, os dois?

     —T... você conseguirá nos levar a um lugar seguro? —sussurrou ela.

     —Sim — respondeu ele em tom suave, amável— Se fizer o que te digo.

     Annalía voltou a afirmar e ele começou a soltá-la. De repente, cravou-lhe o cotovelo no pescoço e pôs-se a correr de novo. Tentando recuperar o fôlego, Court equilibrou sobre ela e conseguiu tocar o tecido de seu vestido antes de cair ao chão. Tinha roçado com a ponta dos dedos, mas Annalía tinha escapado.

     Ela ficou livre, gritando:

     —Socorro! Quero retornar! Quero sair daqui!

     Ouviram-se mais disparos. Court ficou de pé e mais disparos seguiram continuando, logo se pôs a correr para ela ao ver como uma bala fumegante roçava sua saia. Annalía ficou imóvel de repente e olhou entre a escuridão.

     —Cuidado onde disparam!

     Um milésimo de segundo mais tarde sentiu uma dor no ombro, justo antes que Court pudesse agarrá-la pela cintura e escondê-la atrás de uma rocha. Ele sentiu a umidade em sua mão e viu como sua camisa branca começava a tingir-se de vermelho.

     —Pequena — disse, deixando a um lado a pistola vazia para poder apalpar os ombros—, esse sangue é seu ou meu?

     Ao notar como ela tremia, soube a resposta.

     —Tudo sairá bem — assegurou, apesar de que a fúria o alagava por completo. Eles tinham a baleado. A uma mulher indefesa. Arrancou-lhe a manga e teve que controlar-se para não perder os estribos.

     Sob a luz da lua, pôde ver como a bala tinha atravessado o braço. Rezou com todas suas forças para que não tivesse prejudicado o osso. Agarrou a manga e enfaixou a ferida.

     Ele não teve como evitá-lo. Queria gritar, perguntar por que não tinha dado conta. Seu corpo era muito pequeno para suportar uma ferida de bala. Que espécie de animal dispara a uma mulher?

     Annalía levantou a cabeça e o olhou como se acabasse de dar-se conta de algo, e como se esquecesse da ferida de bala que tinha no braço.

     —Tudo isto é tua culpa! Odeio você. Detesto você!

     —Isso, eu já ouvi antes — suspirou ele.

     —Sabe o que significa isto, bastardo? —gritou ela.

     Sim, ele sabia exatamente o que significava. Pascal estava advertindo a todo mundo do que acontece quando alguém ousava levar algo que lhe pertencia. Talvez agora ela acreditasse no que ele estava dizendo respeito a seu irmão.

     —Sabe, bruto? —perguntou Annalía de novo, como se não importassem os disparos que soavam a seu redor.

     Ele entrecerrou os olhos.

     —Que seu noivo está com ciúmes?

     Annalía gritou e se jogou sobre ele com os dedos como garras para arranhar a seu rosto, mas ele a agarrou pelos pulsos. Mesmo assim, ela continuava lutando.

     —Maldita seja! Pare já. — mostrou seu braço ferido— Olhe, pequena! Olhe o sangue que há por toda parte. Agora desmaie. Não deveria já ter desmaiado?

     Ela se apoiou na rocha e olhou muito séria a ferida; Court pôde ver como então começava a dar-se conta.

     —Acredito que me dispararam. —Soava enjoada, e ele quase arependeu de havê-la provocado.

     Era muito pequena, muito delicada. Niall tinha razão. As mulheres como ela precisavam que a cuidassem, que as protegessem. Levava duas noites sob seu amparo e já a tinham baleado.

     ”morte e a desgraça os apanharão.”

     —Temos que nos esconder em um lugar seguro.

     Ela piscou e o olhou.

     Court teve que fazer um esforço para afastar o olhar e inspecionar a área. Viu o cavalo dela parado entre alguns matagais. Court preparou para correr, mas antes disse:

     —Fique aqui! Isto é mais sério do que parece.

     Em voz baixa, a moça respondeu:

     —Dói-me como se fosse muito sério.

     Annalía Llorente se comportava de um modo muito dócil, o que confirmava que estava em estado catatônico.

     Court correu para o cavalo esquivando das balas. Chegou junto ao assustado animal e conseguiu tranqüilizá-lo. Esse cavalo levava as garupas cheias de malditos vestidos, enquanto que o seu levava munição; por sorte, nesse instante ouviu como seus homens se aproximavam. Logo começou ouvir as armas que ele tanto conhecia disparando nos assassinos, mas ainda estavam longe.

   —Niall! —gritou em gaélico— Quantos são?

     —Parece que todos! Estão por toda parte!

     —Evitem o refúgio. Encontraremo-nos na estalagem.

     —De acordo.

     —Pode me cobrir?

     —Sim, cuida de você e da garota.

     Court cavalgou sob o escudo protetor que ofereceram os disparos de Niall, desceu do cavalo e se ajoelhou junto à Annalía. Viu que estava apoiada na rocha, muito quieta, com os olhos fechados e segurando o braço. Aproximou-se mais e pôde ver que o sangue continuava gotejando por cima do cotovelo, formando um atoleiro no chão. Tinha a outra mão sobre o chão, com a palma para cima e nela a manga com a que lhe tinha feito um torniquete. Deduziu que o teria tirado para ver melhor a ferida e saber se tinham feito muito dano.

     —Anna! —Ele a levantou— Annalía... — Ela abriu os olhos— Tem que segurar a meu pescoço com o braço que não está ferido. — estava acentuando tanto o acento que duvidou de que o entendesse— Vou sentar-te comigo no cavalo.

     Deu a volta para olhar o cavalo e tentar encontrar o melhor modo de montar, quando ouviu que dizia com voz frágil:

     —Você precisa que te resgatem tanto como eu.

     Court a olhou com o cenho franzido.

     —O que?

     Annalía moveu para soltar-se de seu abraço, mas estava tão fraca como um cachorrinho.

     —Estou melhor sozinha.

     Embora soubesse que estava sendo sincera e que estava mais emocionada do que parecia, deu um suave golpe no queixo.

     —Está ferindo meu orgulho, e te farei pagar por isso.

     Sua brincadeira funcionou. Annalía suspirou e rodeou o pescoço com o braço. Não pesava mais que uma pluma, mas tirou o sarro dizendo:

     —Pesa mais do que parece.

     —E você é mais fraco do que parece — replicou ela imediatamente.

     Ele ficou olhando-a e aproximou-a mais dele. A moça o olhou nos olhos. Ela o via muito valente, mas Court notava como a tensão começava a abandonar seu corpo, e pouco a pouco perdia a consciência. Fechou os olhos devagar e entreabriu os lábios.

     Então ele perdeu o pouco sentido comum que restara.

 

Ouvi dizer que é rico.

—Seu pai te disse isso? —perguntou Aleix. Apesar de que ia contra tudo o que ele pensava, sentou-se no chão bem no lado errado do cano da pistola, para conversar com Olivia Pascal. Por que estava disposto a falar com uma mulher que tinha negociado que sua execução tivesse lugar em um momento mais estratégico?

     A princípio, ele tinha acreditado que daria informação sobre a Annalía, mas logo deu conta de que a garota era muito inteligente para que escapasse algo. Assim, por que continuava falando com ela? Porque estava a ponto de morrer? Porque queria falar com alguém? Com quem fosse?

     Já levava duas noites fazendo-o. Era óbvio que aquela sela o estava deixando louco.

     —Não, não foi Pascal. Sua irmã me descreveu sua casa. Inclusive aqui, ter sua própria montanha cheia de cavalos selvagens deve valer muito dinheiro.

     —Minha família foi sortuda nesse sentido.

     Olivia golpeou o queixo com os dedos.

     —Eu também quero ser sortuda.

     Ele franziu o cenho.

     —Seu pai tem tanto dinheiro como eu.

     —Mas eu não. —Agarrou a pistola e ficou de joelhos— Você tem algo que eu quero, e eu tenho algo que você precisa desesperadamente.

     Aleix ficou quieto.

     —Está falando de me libertar?

     —Estou falando de fazer um trato que implicará que eu te libere.

     Ele ficou tão surpreso que perguntou educadamente:

     —Desculpa?

     —Já que sua liberdade vale tanto, o preço tem que ser também muito alto.

     Tentando dissimular o quanto ansioso estava por escapar, algo que ela seguramente veria como uma fraqueza, disse-lhe devagar:

     —Seja o que for, posso pagá-lo.

     —Está seguro? —perguntou ela olhando aos olhos— Será um passo muito, muito importante.

     —Muito mais que perder minha vida?

     Ela baixou a vista e percorreu com o dedo o que estava gravado no braço de madeira de sua pistola.

     —Depende de como o vê......

     —Não vou.

 

     MacCarrick estava falando com alguém, mas com quem? Por que soavam tão longínquas essas vozes? Annalía queria abrir os olhos, mas notava que as pálpebras estavam muito pesadas. “Melhor ficar aqui deitada. Sim. Melhor, descanso e escuto.”

     —Mas senhor, tenho que examiná-la — dizia um homem. Pela voz parecia jovem— Em minha experiência... com damas... os maridos não resistam que eu fique com suas esposas.

     —Eu sim.

     Que descaramento. Acaso não tinha vergonha? Annalía tentou protestar, tentou dizer que ele não era seu marido, mas nesse mesmo instante MacCarrick começou a desabotoar o vestido, e a única coisa que ela conseguiu foi gemer.

     —Suponho que roubaram o anel de casada quando os atacaram.

     —Sim.

     “Anel de casada?”

     —E deixaram o resto das jóias?

     “Médico preparado — pensou Annalía enjoada—, abandone em uma esquina com suas mentiras.”

     É obvio, MacCarrick rebateu a jogada. Com voz ameaçadora, disse:

     —Me escute, jovenzinho. Você não tem que se preocupar com isso. A única coisa que tem que fazer é curar o seu braço, nada mais. Entendeu?

     —Ah, sim, senhor. Deixo-os para que a dispa enquanto eu vou pegar minhas coisas. —E fechou a porta.

     Para sua vergonha, MacCarrick tirou o vestido, a saia e os sapatos. Quando Annalía notou que por fim podia respirar, deduziu que também tinha desabotoado o espartilho. Deu-se conta de que ia ficar com roupa interior e meias e então sentiu a abrasiva mão dele no joelho.

     —Não, MacCarrick! —disse ela, embora mal podia ouvir sua voz.

     Ele se aproximou mais.

    —O que acontece, Annalía?

     —Para — sussurrou.

     —Que pare?

     Ela esforçou por mover a cabeça, mas não podia sentir seu corpo.

     —Não posso fazê-lo. Pode ter pego uma infecção. Ele tem que te examinar.

     —Vitale...

     —Isso sim que não vou fazer — respondeu Court, e desabotoou os laços de suas coxas para deslizar as meias para baixo.

     Ela queria gritar, mas não podia reunir as forças necessárias.

     —Tamparei-a com um lençol e assim não poderei ver nada, se isso for o que quer. Anna? Ouviu?

     Ao ver que ela optava por não responder, ele soltou uma réstia de insultos em uma língua estrangeira que soava como se algo estivesse batendo na parede.

     Depois disso, Annalía deve ter dormido porque quando despertou estava sob um lençol e ouvia vozes apagadas falando em francês. Exceto MacCarrick, que discutia com o médico em inglês, com um acento muito mais marcado do acostumado.

     —O que está fazendo? —gritou ele.

     Annalía queria ver o que estava acontecendo. Sentia como se tivesse as pálpebras pregadas.

     —Lavando a ferida com água salgada — disse o doutor.

     —O que? Põe-lhe sal na ferida? —Dirigindo-se a outra pessoa disse— Que me trouxeste aqui, um maldito curandeiro?

     —Asseguro-lhe que não sou um curandeiro. Estudei em Heidelberg, na Alemanha, onde me graduei com honras.

     —Quando? No sábado?

     —É importante fazer isto — insistiu o médico.

      —Pois não vais fazer. É muito doloroso. —Pela primeira vez, Annalía estava de acordo com ele. Embora aquele homem fosse médico, ela não queria que fizesse o que dizia. Sal não...

     Tentou falar, mas voltou a fracassar.

     —Mais doloroso que cortar a carne que esteja podre? —perguntou o médico.

     Annalía tremeu. MacCarrick ficou mudo. Havia dito algo? Estava olhando ao médico?

     —Terá que segurá-la.

     Não, não, não. Eles se tinham posto de acordo sem seu consentimento. Como um carro de seis cavalos.

     Sentiu que se afundava mais na cama, pressionada por um peso. MacCarrick estava atrás? Ela tinha as costas encostadas em seu colo?

     —Uma vez — disse MacCarrick— Faz só uma vez.

     —Pode ser que tenha ficado um pouco de pólvora na ferida.

     —Só uma vez — repetiu. Sua voz parecia um grunhido.

     Alguém afastou seu cabelo da testa. Com certeza que não era MacCarrick. Annalía sentiu como se seu braço expludisse em chamas. Esticou e gritou.

     Alguém voltou a afastar o cabelo.

     —É muito valente, pequena. —A voz de MacCarrick soava tão baixa e tão perto de sua orelha que, como podiam ouvir os outros?— Já está, já passou...

     Voltou a sentir como se cravassem um ferro ardendo.

     —Não! —gritou ela, enquanto ele continuava segurando-a.

     —Maldição, homem — gritou MacCarrick— Quer que eu te mate?

     —Havia pólvora. Se sentir algo por ela, deixará fazer meu trabalho.

     —Faz isso de novo e te golpearei tão forte que não despertará até que seja o bastante velho para exercer a medicina.

     Annalía estava desmaiando. Ela queria ficar acordada, queria saber o que estava acontecendo para estar preparada. Não confiava em MacCarrick. Não podia lembrar-se do por que queria escapar dele ainda mais que antes, nem por que o odiava ainda mais. Agora não podia ir, a escuridão a estava absorvendo, mas se pudesse despertar durante a noite, abandonaria-o ali mesmo.

    

     —Quer que me case com você? —Aleix não podia nem pronunciar as palavras.

     —Sim, em troca de sua liberdade.

     Ele ficou em pé de repente.

     —Por que não quer dinheiro? Eu poderia...

     —Por que não ia querer me casar com você? —interrompeu-o Olivia uma vez que também se levantava— É bonito, rico, e pertence à nobreza. —Para ser sincera, tudo isso era só um abono. Enumerá-lo era mais fácil que dizer que o que queria era ter outro nome, e que o queria pela franqueza de seus olhos. Ela nunca confiaria em nenhum homem, assim melhor era um, cujo olhar não pudesse esconder nada. Se podia saber se mentia, isso significava, de um modo um pouco complicado, que confiava nele, não?

     Aleix acariciou o cabelo.

     —Olivia, eu já estive casado.

     —Conheço sua história.

     —Sabe que jurei que jamias voltaria a me casar?

     Ela guardou a pistola no bolso do vestido.

     —Não, sua irmã se esqueceu de mencionar isso. Mas é esse juramento maior que o medo que sente ao saber que ela está nas mãos dos escoceses? —Não havia nenhuma necessidade de que Llorente soubesse que aqueles homens não tinham intenção de fazer nenhum mal a Annalía.

     —É obvio que não. O que quer que faça?

     —Me olhe nos olhos e me dê sua palavra.

     Ele a segurou pelo ombro e disse:

     —Acredito que tenho a obrigação de recordar que Pascal mandará os Renegados te perseguir. Está arriscando sua vida.

     Assim era como ele acreditava. Sempre tão honesto. Deus, esse homem a necessitava, embora só fosse para evitar que todos os abutres caíssem sobre ele.

     —Então, vai ter que fazer valer à pena.

     —Por que está fazendo isto?

     Porque Pascal tinha ensinado a ser cruel e maliciosa, mas nunca tinha pensado que esses traços pudessem voltar-se contra ele. E liberar Llorente era só o começo.

     —Tenho meus motivos. Além disso, você precisa de mim tanto como eu a você.

     Ele franziu o cenho para ouvir isso, e depois a olhou aos olhos.

     —Se me liberar, casarei-me com você.

     Olivia o olhou durante muito momento. Sabia que ele aceitaria, tinha contado com isso, mas mesmo assim suspirou aliviada.

     —Então não vamos perder mais tempo. —Ela se dirigiu à porta— Tenho dois cavalos lá fora, um eu tirei de sua irmã. —Indicou-lhe que se aproximasse— Toma nota disso.

     —Sabe aonde levaram a Annalía?

     —O último relatório dos Renegados dizia que foram a cavalo ao norte, para a França.

     Subiram a escada e ele disse:

     —E os guardas?

     —Já me ocupei deles.

     Ele a apanhou e a agarrou da mão para detê-la.

     —Matou-os?

     Com a outra mão, Olivia acariciou seu rosto.

     —Não, levo meu novo traje de montar e sou uma assassina muito desonesta. —Suspirou fundo— Os droguei. Escute-me, Llorente, prometo-te que a partir de agora não matarei nem farei mal a ninguém. —Ela soltou a mão e continuou caminhando, mas deu a volta e o olhou nos olhos— A não ser que o tenham procurado.

    

           Eram quatro da madrugada e o doutor que tinham tirado da cama nem sequer tinha sombra de barba. Talvez Court fosse um ignorante escocês, mas queria que os médicos reunissem duas condições: que estivessem sóbrios, e que tivessem vivido o suficiente para ter praticado um pouco antes de pôr as mãos em cima de um paciente.

     Court cavalgou do pé dos Pirineos até a França com a Anna em seus braços, foi uma viagem de loucura, do qual quase não se lembrava de nada, e se deteve em um velho povoado balneário. Tinha a vaga idéia de que os médicos estavam acostumados a estabelecer-se perto dos lugares com águas termais e não nos povoados ao pé da montanha. Tinha razão.

     Ali havia muitos médicos, mas por desgraça estavam especializados em tratar às ricas e aborrecidas damas de sociedade de enfermidades imaginárias. Annalía tinha uma ferida má, e uma infusão de camomila não ia curá-la.

     Deteve-se na primeira estalagem que encontrou, mas ao ver o jovem médico que os proprietários lhe recomendaram, duvidou de sua decisão. Mesmo assim, apesar de sua juventude, o doutor Molyneux foi muito meticuloso em seu exame.

     Court olhou a ferida. A bala tinha passado bem ao lado do osso queimando a pele, mas sem quebrar nada. A garota tinha tido sorte de que a ponta tivesse deixado o osso intacto. Um milímetro mais perto e Court estaria discutindo com o doutor sobre algo muito mais grave que como limpar a ferida.

     Enquanto Molyneux dava instruções à proprietária da estalagem sobre como cortar um lençol para fazer ataduras, Court afastava o cabelo da Annalía e olhava como suas pupilas se moviam nos olhos fechados. Tinha cavalgado tão longe como se atreveu dado o estado dela, e confiava em que seus homens tivessem evitado que os Renegados cruzassem por essa passagem da montanha. Apesar disso, tinham que continuar o caminho logo que fosse possível.

     —Quando recuperará a consciência?

     —Só está dormindo.

     Ele olhou ao médico irritado.

     —Poderia despertá-la agora mesmo se quisesse. Mas não vou fazê-lo.

     Court franziu o cenho ao ver que Molyneux colocava uma espécie de tintura no braço e começava a enfaixar-lhe      

     —Não tem que costurá-lo?

     —Não, por culpa de todo esse sangue parece mais profundo do que é em realidade.

     —Tem que costurá-lo. Sempre terá que costurar esse tipo de feridas.

     —Senhor MacCarrick, não é tão grave. Sangrou muito, e estou certo de que deu um bom susto, mas o dano real que sofreu não justifica dar uns pontos. Entendo que esteja preocupado por seu... sua senhora MacCarrick, mas esta é a melhor maneira de proceder.

     Court deixou a Annalía e se levantou.

     —As feridas de bala se costuram.

     O doutor levantou a cabeça para poder olhar para Court e, embora custasse engolir, manteve o olhar.

     —Deixando à parte deste incidente, sua esposa é a viva imagem da saúde. Seria um engano por minha parte suturar a pele. Esses pontos poderiam abrir, quebrar ou sujar.

     —Minha esposa —disse ele sem hesitar— pode ser a viva imagem da saúde, mas é pequena e de constituição delicada. Não vou permitir que vá por aí com uma ferida aberta no braço.

     —Quanto tempo faz que a conhece?

     —Um pouco — respondeu ele evasivo.

     —Não sei até que ponto a conhece bem, mas sua mulher não é de constituição delicada, isso eu o asseguro. Aposto o que queira que ela quase nunca fica doente.

     —Talvez o tenha mencionado — respondeu Court, apesar de que eles mal haviam levado uma conversa normal.

     —Manteremos a ferida fechada com ataduras cortadas. Ensinarei-lhe como pôr a tintura e como enfaixá-la. Só para nos assegurar de que não voltará a abrir-se. E, é obvio — acrescentou olhando-o com desaprovação—, assegure-se de que não voltem a lhe disparar.

     Court não parava de sacudir a cabeça.

     —Terá febre.

     —Sim.

     —E então o que faço?

      —Nada — foi sua tranqüilizadora resposta— Só evite que ela suba. Pode pôr um trapo úmido na testa se subir muito a temperatura, mas duvido de que assim seja. Nesse caso, volte a me chamar, mas se não, é melhor que ela mesma saia disto. É forte. —E logo, depois de olhar a Annalía de um modo que quase consegue que o mate, o jovem Molyneux deixou ao Court a sós com ela.

 

Ao parecer, Annalía por fim se convenceu de que seu irmão tinha morrido. E culpava Court por isso.

     —Como pode querer estar perto de mim sabendo o muito que te desprezo? —disse quando contou que a levava a Toulouse. Depois, chamou-o bruto, bárbaro asqueroso, escocês inculto e, olhando-o nos olhos, disse-lhe que o odiava como nunca tinha odiado a ninguém.

     Ela não queria ir com ele, mas Court a convenceu dizendo que, se ficasse ali, obteria que matasse a toda aquelas pessoas. Se não fosse por isso, Annalía haveria dito a todo mundo que era sua prisioneira.

     Court olhou atrás dele, e viu que seguia a passo lento, com o olhar perdido. O cavalo que tinha conseguido não era ao que estava acostumado, e embora ele tinha pego suas bolsas de roupa e as tinha entregue à encarregada da casa dizendo: “Arrume estes vestidos para que sejam cômodos para montar a cavalo”, Annalía não se deu conta das mudanças. Ao parecer não se dava conta de nada.

     A viagem para Toulouse, Court o teria feito em um só dia cavalgando a toda velocidade. O caminho se aplainava bastante ao afastar-se dos Pirineos, seguindo o rio Ariége, e logo, depois de só duas colinas, voltava-se ainda mais plano. Era um passeio, mas ele manteve o ritmo lento por ela, e um dia se transformou em três.

     Durante esses três dias, Annalía não falou, quase não comeu e respondia a qualquer pergunta do Court com um “Fotelcamp”. Deixe-me em paz.

     Era óbvio que estava impaciente por perder Court de vista, e ele estava disposto a agradá-la. Assim que encontrasse com sua tropa, afastaria-se dali cavalgando e nunca olharia para trás, mas até então, ela era sua responsabilidade. E ele tomava muito a sério suas responsabilidades. Cada noite procurava um lugar onde pudessem hospedar-se; algum quarto em que pudesse enfaixar-lhe o braço tal como Molyneux tinha ensinado.

         A primeira noite, quando ele ia tirar a blusa, só a blusa, não a roupa interior, Annalía equilibrou sobre ele como se não quisesse despi-la, e quase voltou a se machucar.

     —Posso fazê-lo tal como te disse no dia que não queria que tirasse o vestido — disse ele—, ou pode deixar que eu te cure a ferida.

     Embora se manteve rígida como um pau e com o olhar fixo no infinito, ela colaborou. Cada noite tinha melhor aspecto.

     Depois de curá-la, Annalía se deitava na cama e ele se sentava em uma cadeira, pensava em sua situação e tentava averiguar por que doía tanto, mais que nada no mundo, ver como ela se enrolava sob os lençóis, tremendo, e chorava em silêncio.

     Cuidar dela era algo que ficava tão longe de sua experiência que era assombroso. Muito mais tratando-se de uma mulher que o culpava da morte de seu irmão.

     Em menos de três dias sob seu amparo, tinha sido perseguida por um fanático clã de assassinos e tinham disparado. Ele sabia que, sobre sua vida, pesava a maldição, de que podia fazer mal às pessoas que queria, mas isso era ridículo. Mesmo assim, sua parte mais egoísta pensava: “Melhor comigo que casada com Pascal”.

     Esse dia, enquanto cavalgavam para a estalagem, ele estava pensando que o que tinha acontecido não era por causa de uma maldição que estivesse abatendo sobre ele, mas sim devia que tinha tomado uma decisão que tinha a prejudicado. Não havia nada metafísico nem místico nisso. Além disso, ele não a amava, ele só a cuidava, e só por um tempo. Unicamente até pô-la a salvo.

     Court parou para esperá-la. Annalía ia sentada muito rígida, olhando para infinito, e parecia muito pequena, com aquele vestido brilhante e o xale. Não podiam seguir assim, ela tinha que cavalgar mais perto dele; ainda não tinham se afastado do perigo. Fez seu cavalo dar a volta para e disse que se apressasse... quando, pela extremidade do olho, detectou um movimento e viu uma cruz tatuada.

     Um Renegado saltou do matagal para atacá-la.

 

     —Não pode me deixar aqui — gritou Olivia, com a cara irritada e os lábios apertados.

     Tinha-lhe exigido que parassem para comer. Aleix não tinha fome, não teria até encontrar a sua irmã e liberá-la daquele escocês. Melhor deixar as coisas claras.

     Sabia que não poderia raciocinar com ela, mas mesmo assim o tentou:

     —Voltarei para te buscar, mas agora mesmo encontrar Annalía é minha máxima prioridade.

     Olivia aproximou da mesa em que estavam comendo e apoiou os cotovelos sobre ela.

     —Encontrar a Annalía vai levar tempo. Melhor que cumpra antes com sua parte do trato.

     Ele também aproximou e a olhou aos olhos.

     —Nem sonhe. Esse não é a ordem das coisas.

     —Assim não vai cumprir sua promessa até que a encontre?

     —Sim.

     —Então, não me resta mais nada que te ajudar.

     Ele riu.

     —Vou sozinho. Como mínimo nos levam já uma semana de vantagem.

     Olivia cruzou de braços e apoiou na cadeira.

     —Precisa de mim. Esse MacCarrick é um malvado. Eu também sou malvada. Sei como pensa.

     Isso era interessante.

     —Por favor, compartilha sua sabedoria comigo.

     —Tudo indica que está sozinho com Annalía. Mas os escoceses vivem em clãs. Ele tentará reunir-se logo com seus homens.

     —Muito bem. Tem alguma idéia de onde ocorrerá isso?

     —Com certeza que já têm um lugar predeterminado. Algum lugar rural onde um grupo como o seu não chame muito a atenção, mas o suficientemente perto de uma cidade em que possa comprar munições.

     Aleix entrecerrou os olhos.

     —Toulouse?

     —É a primeira possibilidade.

     Ele suspeitava que Olivia sabia mais dos escoceses do que reconhecia, e agora essa suspeita se confirmava. Ela era muito esperta e, conhecendo-a, iria desvelando essa informação só pouco a pouco, utilizando-a em seu benefício.

     Maldita seja, teria que seguir com ela. Mas só enquanto fosse útil.

     —Teremos que cavalgar mais rápido.

     Ela ficou de pé e o olhou aborrecida.

     —Estou te esperando.

 

     O assassino agarrou a Annalía sem muito esforço. Court esporeou seus arreios. Ela não estava lutando. Por que demônios...?

     Algo puxou a cabeça de seu cavalo. Court afastou a vista da Annalía e viu que outro Renegado tinha pego as rédeas de sua própria montaria e estava apontando com uma pistola. Olhou fixamente o cano negro, uma imagem horripilante que tinha esperado não voltar a ver nunca tão de perto. Se não fosse porque o tinha só a uns centímetros, teria se arriscado, porque o outro estava arrastando a Annalía até os matagais.

     Nunca poderia esquecer o que ocorreu depois. Ela gritou. Gritou, e a ele deixou de se importar que disparassem. Ao inferno com isso. Court deu um chute que pegou despreparado ao Renegado. Teve sorte e a pistola caiu da mão. Court se atirou da sela em cima dele.

     Brigaram e o homem tirou uma pistola pequena. Ambos lutaram por controlá-la.

     Antes, quando ainda não tinha sido ferido, Court era muito mais forte, mas agora... agora esse homem podia ganhar. E se o fazia... Court gritou enfurecido e de repente se sentiu tão forte como sempre. Soou um disparo.

     O homem levantou a cabeça, os olhos ficaram em branco, e o sangue saía a fervuras da camisa, formando um círculo ao redor de seu coração.

     Court pegou a outra pistola e correu para a Annalía, então obrigou a ir devagar para poder surpreender o homem que a tinha retida. Olhou pelos matagais e viu uma cena que nunca se teria imaginado. A Annalía de pé, com uma rocha ensangüentada na mão, e o Renegado inconsciente aos seus pés.

     Acreditava que essa pedra tinha sido preparada para Court. Por isso não resistiu. Não queria que caísse.

     Surpreso, viu como dava um chute no homem, e depois olhava ao redor para decidir se escapava de Court.

     —Annalía, pare — ordenou, embora não foi capaz de eliminar o tom incrédulo de sua voz. Ela deu a volta e o olhou, mas não saiu fugindo.

     Quando Court chegou a seu lado, agarrou-a pelo braço bom.

     —Está ferida? Seu braço está bem?

     Ela encolheu os ombros.

     —Assustou-te o disparo?

     —Não. Vi como ele e você brigavam pela pistola.

     Ele soltou o seu braço de repente.

     —Me alegro de que não esperasse em ver que eu continuava com vida. —A verdade era que, por muito estranho que parecesse, alegrava-se de que ela tivesse pensado em escapar.

     Annalía o olhou como se não o reconhecesse.

     —Me diga por que isso deveria me importar.

     Ele franziu o cenho sem responder até que ela perguntou:

     —É um dos homens do Pascal?

     —Sim.

     —Matei-o?

     Court viu como seu peito se movia e negou com a cabeça. Ao ver que ela voltava a agarrar a rocha, correu a seu lado e se interpôs entre a Annalía e o homem.

     —Você não quer matá-lo. — O faria ele. Como castigo por deixá-lo meio doido.

     —Sim quero matá-lo.

     —Não, Anna. —Ao ver que seguia adiante com a pedra, ele acrescentou— Te afetará. Não vale a pena.

     Informou ela séria.

     —De qualquer jeito... continuo... precisando... disto.

     Court agarrou a rocha e perguntou:

     —Para mim?

     Annalía o reconheceu sem envergonhar.

     Era uma garota muito esperta. Court franziu o cenho ao lembrar-se de como ele tinha reagido quando acreditou que a tinham machucado. Ele rapidamente decidiu que uma bala entre seus olhos não era nada comparado com a necessidade que tinha de salvá-la.

     Soltou um par de palavrões em voz baixa.

     —O que significa isso?

     —Nada. Por que não despertamos a este filho de puta e perguntamos quantos mais nos estão seguindo? —Ela abriu os olhos, surpreendida, e ele deu conta de que essa idéia nem tinha passado pela cabeça. Pela primeira vez em muitos dias, parecia estar viva. Court afastou a rocha, e ajoelhou para esbofetear o homem, mas virou a cabeça um instante— Annalía, nem ouse voltar a me bater.

     —Seria como matar dois pássaros em um tiro — respondeu ela petulante.

     —Sei, inteligente. Eles continuaram vindo. Não prefere a mim que a eles?

     —A nenhum dos dois.

     —O primeiro que eles farão não será te matar.

     Ela empalideceu, e no final disse:

     —Certo.

     Court reconheceu o homem que tinha diante dele. Chamavam-no Ruiz Cicatriz. Lembrava-se porque o apelido encaixava-lhe à perfeição. Quando o assassino despertou, cuspiu sangue.

     Court sempre tinha sido implacável em uma batalha, insensível com o inimigo. Agora sentia a raiva crescendo em seu interior, e ocultou seus dedos apertados ante a Annalía. Aquele homem queria matar a uma mulher indefesa, mas ele dava rédea solta a sua fúria, ela não voltaria a olhar-lo do mesmo modo.

     —Anna, vá ver se encontra os cavalos.

     —Não, quero ficar. Tenho que perguntar pelo Aleix.

     —Asseguro-te que isto não será algo que queira ver. —Ela hesitou— Vá agora. —Seu tom era ameaçador— E se tentar escapar, eu juro por Deus que se arrependerá.

     Ela o olhou com aquele medo que ele tanto odiava ver em seus olhos, e foi correndo. Court olhou para Ruiz.

     —Quantos mais?

     —Todos os que façam falta até que os dois estejam mortos.

     Assim somos os Renegados.

     —Vem com o grupo que estava na fronteira?

     Ele não disse nada e Court bateu na sua cabeça com o braço da pistola. O homem engoliu um grito de dor.

     —Vamos através do passo com a França. Não sabemos nada dos outros.

     —Por que a mulher? Ela só tentava retornar para o Pascal.

     —Ordenou-o em um momento de ódio. Após, tentou nos convencer de que a deixássemos em paz...

     —Mas sua ordem segue vigente, não? —Court tinha ouvido que mais valia o ter muito claro quando se encarregava um assassinato a aqueles homens, porque, uma vez aceitavam, nada podia detê-los.

     —Para sempre — respondeu ele, sarcástico— Pergunto-me se ela souber que Pascal tem seu irmão graças a você.

     Court o golpeou com todas suas forças.

     Tinha que controlar-se. Quando um Renegado se voltava enganador era porque estava tentando te despistar para encontrar o modo de te matar. Quando tivesse dado a informação não tinha importância se no final não vivia o suficiente para usá-la.

     Annalía devia suspeitar da participação de Court na captura de seu irmão, porque, se esse idiota não a tivesse atacado...

     —Espera um momento, disse “tem a seu irmão”.

     —Tinha-o. Conseguiu escapar. —Ruiz sorriu e mostrou seus ensangüentados dentes— E sabe que levou a sua irmã. Ele vem te matar, se nós não o matarmos antes. Quer dizer, tem os dias contados.

     Court estava tão surpreso pelo que acabava de descobrir que quase esqueceu de que, quanto mais falava, mais perto estava de morrer. Quase.

     Quando os dedos do Ruiz se deslizaram por sua perna até a faca que levava presa ao tornozelo e o desencapou, Court disparou.

     O ruído fez que Annalía se aproximasse correndo. Ela olhou primeiro o cadáver e depois para ele; estava pálida.

     Court pagaria o que fosse por saber o que ela pensava nesse momento.

     —Escaparam os cavalos?

     —Sim, mas convenci o meu em voltar e o atei — respondeu ela ausente— O teu está colina abaixo junto ao rio.

     Court moveu a cabeça.

     —Temos que esconder estes dois.

     Com uma calma incomum, dadas as circunstâncias, ela ficou de pé, olhando-o, enquanto ele os arrastava até o bosque. Depois, Court foi procurar o cavalo dela, e a seguir desceu ao rio para recolher o seu. Annalía seguiu, e inclusive ajoelhou-se a seu lado quando ele aproveitou que tinha água fria para lavar-se.

     —Acreditaria-me se te digo que tenho notícias sobre seu irmão? —Ele ficou de pé e a ajudou a levantar-se— Acreditará no que te digo?

     —Você me disse que não confiasse em você. —Uma lágrima escorregou pela bochecha. Maldição, por que tinha que doer tanto o peito cada vez que a via chorar?

     —Agora te direi a verdade.

     Ela inspirou fundo e atreveu a perguntar.

     —Pascal tem ainda a meu irmão?

     Como se tivesse vontade própria, sua mão acariciou a bochecha e enxugou a lágrima.

     —Não, não mais.

 

     — O que... como...? explique-se! —gritou ela.

Ele, impaciente, afastou as mãos e as deixou penduradas a ambos os lados do corpo.

     Annalía sabia perfeitamente que ele odiava que lhe desse ordens, mas não podia evitá-lo. Tinha que sabê-lo.

     —Eles o... mataram?

     —Não, não. Seu irmão escapou.

     Ela Segurou sua camisa com ambas as mãos.

     —Está me dizendo a verdade?

     —Sim.

     Annalía sacudiu o pescoço da camisa até que ele levantou as sobrancelhas.

     —Esse monstro, já não o deixa prisioneiro?

     —Não, Aleixandre Llorente escapou de Pascal. De fato, você corre muito mais perigo que ele.

     Ela o soltou.

     —Tenho que encontrá-lo! Tem que saber que estou bem!

     —E como planeja fazer isso? Acabamos de confirmar que é um objetivo dos Renegados. E eles são famosos por isso... por não deixar nunca escapar seus objetivos. Continuaram até consegui-lo, sem importar o que demorarem.

     Annalía apertava a testa com o dedo anelar.

     —Não sei! Não posso pensar! —Começou a caminhar para cima e para baixo.

     —A estalagem está no final do caminho, a uns poucos quilômetros. Aí pode comer, descansar e pensar em tudo o que aconteceu. Depois elaboraremos um plano.

     Ele tinha razão. Acabavam de afastar alguns cadáveres do caminho; desejar uma xícara de chá não era tão estranho. Ela podia sentir como estava tremendo; sua bandagem começava a ficar encharcada.

     Quando Annalía aceitou, Court a ajudou a montar seu cavalo e depois montou ele.

     “Aleix está vivo!” Seu cérebro não deixava de repetir como uma prece. É livre! Ela se sentia mais vaporosa, sentia-se... esperançosa. Encontraria seu irmão e juntos procurariam a maneira de vencer Pascal.

     Durante três dias, tinha temido que estivesse morto, mas cada segundo que acontecia, refletia sobre o modo de escapar de MacCarrick, no caso de Aleix estar vivo. Agora, ao saber que o estava, e em liberdade...

     Mas e se MacCarrick era quem tinha feito prisioneiro Aleix? Mordeu o lábio inferior e olhou como o escocês que tinha em frente observava o céu, assegurando que pelas nuvens que cobriam o céu sabia que ficariam encharcados.

     Se MacCarrick e Aleix tinham sido inimigos, quem sabia o que pretendia aquele homem? Por isso ela sabia, ele muito bem poderia estar tentando recuperar seu dinheiro e pedir a seu rico irmão um resgate por ela. Esporeou a seu cavalo e se aproximou de seu lado.

     —Quero te perguntar algo.

     Court a olhou mas não disse nada.

     —Quero saber se você atacou meu irmão e a seus homens.

     Ele não o hesitou nem um instante.

     —Eu nunca ataquei a seu irmão.

     —Jura? —perguntou ela, olhando-o.

     Ele a olhou para ele.

     —Sim.

     —Por que está me ajudando? Por que não limita em seguir adiante e me deixe para trás?

      —Isso é o que tenho intenção de fazer logo que tenha te instalado na hospedaria.

     Ao menos era honesto. Se alguém como ele tivesse começado a falar do dever e do sentido da gratidão, ela teria afastado tão rápido como tivesse podido, mas ante sua resposta, Annalía sorriu e ele franziu o cenho.

     —Tão impaciente está por desfazer de mim? —perguntou-lhe.

     —Bom, isso depende de como responda a minha seguinte pergunta... MacCarrick, como foi que contatou Pascal? —Ela sabia que Pascal tinha contratado seus homens, tinha-o descoberto no refúgio do contrabandista. Os escoceses levavam mais de dez anos juntos e sempre tinham tido êxito, sua reputação era irrepreensível. Ela podia entender qual era seu atrativo, mas por que MacCarrick tinha aceito trabalhar para um déspota como Pascal?

     —Ele estava procurando gente e nós estávamos sem trabalho.

     —Teria seguido com o Pascal se ele tivesse te pagado?

     —Não sei.

     —Seus homens me disseram que a coisa era ao contrário. Que primeiro demitiu, e depois Pascal se negou a te pagar pelo trabalho que tinha feito.

     —E eles o que sabem? —perguntou ele desinteressado. Mas não negou.

     Eles sabiam, mas ela não tinha acreditado até então.

     —Por que Pascal? —insistiu Annalía— No princípio, muita gente acreditou que seus ideais eram sólidos. Você também?

     Court a ignorou, mas Annalía não ia desistir. Tinha que tomar uma decisão e precisava conhecer todos os fatos.

     —Pascal ordenou que lhe dessem uma surra porque o desafiou. Porque acreditou que o que fazia estava errado. Não é isso o que aconteceu?

     Ele deu de ombros. Continuava sem negá-lo.

     Madre do Déu, tudo o que haviam dito seus homens era verdade.

     —Por que não o reconhece? Por que me deixou acreditar que você e seus homens dedicavam a roubar e a matar? —Annalía levantou o queixo— Sabe o que acredito? Acredito que não são tão brutais como as pessoas acham.

     Court soltou as rédeas de seu cavalo, pegou as dela, e a olhou com seu olhar mais feroz. Ela engoliu seco e afastou dele o máximo que permitiu seus arreios.

     —Até agora fosse muito esperta, reconheço isso, mas seu primeiro e pior engano seria me atribuir virtudes que não possuo. Eu sou um bruto. O que acontece é que sou seletivo.

     Com esta frase, adiantou-se a ela, mas não muito. De novo a tinha advertido, mas desta vez Annalía interpretou suas palavras bem ao contrário do que ele pretendia. Talvez ela deveria deixar de atribuir-lhe maldades, de pensar que podia matar a sangue frio, e dar-se conta de que ele não era um demônio como Pascal.

     Entretanto, não tinha estado completamente enganada sobre MacCarrick. Ele tinha matado com facilidade e podia ser aterrador. Aquele olhar que havia em seu rosto quando ia interrogar aquele indivíduo... Annalía tremeu ao recordá-lo. Nunca tinha visto algo tão terrífico, parecia tirada de um pesadelo. Não, ela nunca subestimaria o poder que emanava dele; um poder que podia desatar-se em um abrir e fechar de olhos. Mas era o que se escondia atrás dessas características o que a tinha deixado intrigada.

     Levava noites cuidando de sua ferida, e, para isso, tinha-a obrigado a tirar a blusa, a despir-se diante dele. Nesses momentos, ela tinha estado tão cheia de ódio e de dor que tinha acreditado que seus atos eram só outro modo de humilhá-la, uma desculpa para vê-la sem roupa. Agora, pensando de novo, Annalía via mais coisas. Lembrava-se de como ele se ajoelhava diante dela, das caretas de dor ou os gemidos tranqüilizadores ao ver que doía o que fazia, de como dizia:

     —Não quero te machucar.

     À noite em que atiraram nela, Annalía recordou vagamente que tinha falado durante todo o tortuoso caminho até a França, às vezes em um áspero gaélico, quase sempre sem sentido, inclusive quando falou em inglês. Foi como se soubesse que ela não queria ouvir o silêncio.

     Também lembrou que logo alguém tinha acariciado o seu cabelo, alguém com as mãos ásperas...

     Annalía suspirou e deu conta de que não tinha motivos para odiá-lo, e que precisava de sua ajuda nesses momentos tão difíceis. Absorta em seus pensamentos, mal notou a primeira gota de chuva. Ou a outra que caiu atrás dessa.

       Quando a tormenta desabou e ela ficou atrasada, ele recuou para procurá-la.

     —Temos que parar sob a próxima ponte.

     —MacCarrick! —A moça piscou sob a chuva. Estava se congelando, só usava um fino casaco, e tinha um único pensamento em sua mente— Quero um banho quente e uma xícara de chá!

     Ele levantou as sobrancelhas para ouvir seu tom de voz, olhou-a analisando a situação e meditando seu próximo passo, como se não soubesse o que fazer. Annalía teria jurado que estava tentando se decidir. No mesmo instante em que pareceu que o tinha feito, levantou-a de sua sela de montar.

     —O que está fazendo?

     Court a sentou de lado em seu colo, com as costas dela apoiada em seu braço, aproximou-a dele para poder abrigá-la com seu casaco. Apanhou as rédeas do cavalo dela e, com suavidade, acariciou-lhe o rosto para apertá-la contra seu peito.

     —Segure-se a mim — murmurou—, e tome cuidado de não machucar o braço.

     Annalía estava ainda protestando quando ele esporeou o cavalo e saiu voando pelo caminho, tão depressa que ela teve que segurar-se ao homem com ambos os braços. O corpo dele era incrivelmente quente sob seu casaco e logo a esquentou. A chuva já não batia em seu rosto.

     Sem se dar conta, lembrou-se de uma frase que estava acostumado a dizer sua babá:

     “Um urso é um urso até que lhe acaricia o umbigo. Um lobo comerá de sua mão se o doce que oferece é bastante doce...”.      

 

Depois de cavalgar às cegas sob a chuva durante vários quilômetros, chegaram à hospedaria, e Court desmontou com Annalía e correu para dentro. O interior estava iluminado e da cozinha saía o cheiro de comida. O estalajadeiro parecia muito ocupado, e atuou como se não tivesse reconhecido Court.

     —Precisamos de um quarto — disse Court.

     —Quartos. —corrigiu Annalía, aparecendo por debaixo de seus braços— Precisamos de dois quartos.

     O estalajadeiro, John Groot, mal olhou-a.

     —Nobres — murmurou em voz baixa— Não temos dois. Só temos um — informou com um perfeito acento inglês— É bastante bonita quando está limpa. Já vê, a chuva se assegurou de que estejam todos os quartos lotados.

     Duas mulheres, uma senhora e outra mais jovem que com toda probabilidade era sua filha, saíram da cozinha.

     —Outro casal, John! —exclamou a mulher em francês— Está bem, leva a pobre garota junto ao fogo e ofereça algo de beber até que tenha arrumado o seu quarto. —Continuando, chamou a alguém para que ocupasse dos cavalos.

     Court acompanhou a Annalía até um banco junto ao fogo, tirou-lhe o xale que tinha posto, e a sentou ao seu lado. Depois pôs o dedo sob o queixo e a levantou para olhar o seu rosto. Estava pálida e tinha as pupilas dilatadas.

     Quando Groot perguntou:

     —O que querem beber?

     Court respondeu por ela.

     —Uísque.

     Annalía o olhou, mas disse a Groot:

     —Não, obrigado. Estou bem. Eu não bebo álcool.

     O estalajadeiro deu de ombros e serviu um generoso copo, que Court pegou e ofereceu a Annalía.

     —Bem que bebeu em outra ocasião — disse em voz baixa— ;beba isso ou eu mesmo colocarei isso pela goela abaixo.

     As costas dela ficaram mais rígida ainda. Olhou para Groot educada e pegou o copo com dois dedos, como se fosse uma coisa asquerosa, mas o bebeu.

     Court aproximou do estalajadeiro para servir um copo para ele. O líquido queimou ao descer pela garganta.

     —Nova esposa? —perguntou Court em voz baixa, enquanto enchia de novo o copo e o bebia. Tinha estado ali seis meses antes e Groot estava sozinho.

     —Sim — respondeu o homem orgulhoso. Tinha motivos para estar. Groot, um desajeitado inglês, corado e sem queixo, tinha conseguido casar-se com uma bonita matrona francesa. Por que seria isso que dava ânimos a Court?

     Fez que Groot servisse outro gole para Annalía, e depois trocou seu copo vazio por outro cheio.

     Nesse momento desceu a mulher do estalajadeiro, olhou para Annalía e começou a falar em francês. O francês d Court não era muito bom.

     —É a dama sua esposa? —repetiu a mulher em inglês.

     —Como? —Ele afastou os olhos de Annalía para trás assegurando-se de que tinha bebido o suficiente. Não gostava do quanto estava pálida — Ah, sim, é minha esposa. —O uísque começava a afetar-lo. Esqueceu-se de que tinha perdido muito peso.

     —Teve que pensar? — perguntou ela entreabrindo os olhos.

    —Estamos recém casados — disse ele, olhando a Annalía por cima da cabeça da mulher. Tinha o cabelo molhado e parecia muito cansada.

     —Nesse caso, você está a tratando muito mal — informou a mulher— Ela é muito delicada para estas coisas.

     Ele levantou o dedo e a corrigiu.

     —Parece delicada.

     —Em todo caso, está muito magra para fazer todos os quilômetros que têm feito esta noite — insistiu ela, e acrescentou para sua filha que descia a escada— Estão recém casados.

     —Que vergonha, monsieur, cavalgar com sua nova esposa com um tempo como o que está fazendo! Desse modo nenhum bebê se assentará dentro dela.

     Court manteve o rosto impassível. Não havia nenhuma possibilidade de que isso acontecesse; embora tivesse deitado com ela cada vez que o tinha imaginado. Ele nunca teria essa possibilidade.

     —Meu Deus! —exclamou a mulher de uma vez que levava a Annalía escada acima— Leva uma bandagem sob a blusa, e está sangrando!

     —É só um arranhão — murmurou Annalía. As duas mulheres a olharam sérias.

     —Não, sério —-insistiu ela um pouco adormecida, o uísque também estava fazendo efeito— Ele não atirou em mim — murmurou.

     —Atirou? —perguntaram ambas em uníssono antes de precipitar sobre ela para cuidá-la. Court queria insistir em que a ferida não era culpa dela, mas sim dele. Ele a tinha empurrado a escapar de noite. Tinha-a empurrado a abandonar seu quarto e ficar em perigo.

     Para libertar seu irmão, que ainda estava vivo.

     Esvaziou seu copo e golpeou a mesa com ele. Sentia-se incômodo, preocupado.

     —A acompanharemos até lá em acima para que tome um banho, monsieur — disse a mãe. Court não gostava do modo em que aquelas duas mulheres estavam apropriando de Annalía. Deveria ser ele quem ocupasse dela, tal como tinha feito durante os últimos três dias. Bom, ele não a tinha ajudado a banhar-se, mas não por falta de vontade ...

     Viu como Annalía cambaleava. Estava ferida e bêbada e, maldição, era delicada. Muito a contra gosto, deu permissão às duas mulheres.

     Quando elas se foram, Groot disse:

     —Nossa, que mulher que conseguiste, MacCarrick. Parece rica.

     —Não é minha. Só estou cuidando dela por um tempo.

     —Começou a cuidar dela antes ou depois que ganhou o tiro?

     Court apertou a mandíbula e viu que Groot dava conta disso.

     —E sua tropa? —prosseguiu, falando já mais alto.

     —Virão nos próximos dias. A garota ficará durante mais tempo.

     Ele arqueou as sobrancelhas.

     —Preciso que cuide dela. —Groot não só era o proprietário da hospedaria que usavam como ponto de encontro e que os irmãos de Court tinham ensinado. Apesar de sua repugnante aparência e suas maneiras oxidadas, Groot era, além disso, um franco-atirador aposentado e um perito em armas, que ainda mantinha na parte de trás um abrigo cheio de pistolas e trabucos. Mas o mais importante era que seu irmão Hugh confiava nele. Seu irmão Ethan não, mas Ethan não confiava em ninguém— Os Renegados a marcaram como objetivo.

     Groot assobiou.

     —Terei que conseguir algumas mãos extras para que me ajudem, alguém a quem não se importe o perigo. —Quando Court afirmou com a cabeça, acrescentou— Hugh deixou um pouco de roupa da última vez que esteve aqui. Interessa-se?

     —Sim. —Por fim, algo não manchado de sangue. Ele odiava o modo em que Annalía o olhava, seus olhos sempre fixavam nas manchas de sangue ou na cicatriz que tinha na testa.

     —Também tenho algumas cartas de seus irmãos. Quer as ler agora?

     —Por que não — disse, embora era óbvio de que não gostava muito. Quando Groot retornou com elas, Court tirou as botas, deixou-as junto ao fogo e abriu a primeira, a de Ethan.

   Courtland:

Quebre os entendimentos que tenha com o Pascal imediatamente. Disse a você que algum dia escolheria o lado errado. Maldição.

                                                       Ethan

   

     Sim, Ethan havia dito isso, e Court tinha respondido que se ocupasse de seus próprios assuntos. Depois leu a de Hugh:

    

Court:

Vi uma oportunidade em um negócio e acessei as suas contas. Não podia esperar para pedir sua permissão, assim usei os poderes que me deu e eu disse que estava morto. Luta bem lá embaixo, mas lembre, ao ser disparado no peito é o modo que tem a natureza de dizer que talvez chegou o momento de que o deixe.

                                                           H

          

     Furioso, Court amassou as duas cartas e as jogou no fogo. Hugh tinha poderes só porque Court gostava que seus negócios estivessem em ordem. Só no caso de... Ele estava ali, vivinho e abanando o rabo, e Hugh tinha usado suas contas para um negócio. Hugh já tinha bastante dinheiro com o que jogar, e Ethan possuía ao que parecia uma quantidade infinita. Demônios, se Court soubesse o quanto rentável era matar para a coroa, teria se alistado com eles quando o fizeram, em vez de ser tão teimoso e querer tomar outro caminho, como fazia sempre. Talvez agora tivesse bastante dinheiro para pagar suas terras.

     Dos dois irmãos de Court, as pessoas não deixavam de lhe dar ordens e o outro fazia o que quisesse com os seus narizes; a nenhum importava o que ele pensasse. Nenhum pedia nunca permissão. Olhou como o último papel prendia fogo e se queimava. Ele também era assim.

     Tinha que se acalmar. Olhou para Groot e limitou a dizer:

     —Comida.

     Passou meia hora, e tanto a mudança de roupa como a comida copiosa tiveram um efeito insignificante na sobriedade de Court. Cambaleou escada acima, cruzou com as mulheres francesas e ignorou seus olhares.

     Assegurou-se de que Annalía comia algo e de que levavam suas bolsas. E, é obvio, uma xícara de chá com umas gotinhas de uísque. Agora que as mulheres tinham saído de seu quarto, ele contava com que ela, depois desse dia tão grande, estivesse dormindo.

     Maldição, como teria gostado de vê-la na banheira. Mas era melhor que não o tivesse feito. Se alguma vez a via molhada, coberta de espuma... Soltou um gemido e abriu a porta.

     Encontrou-a de joelhos, procurando entre as bolsas, vestida unicamente com a atadura que levava no braço e uma toalha ao redor do corpo. Levantou-se ao ver que ele tinha entrado.

     Tinha os ombros suaves, dourados e à luz das velas via que ainda estavam úmidos. Ele sentiu como disparava um músculo da mandíbula.

     —Preciso estar a sós!

     —Teve uma hora.

     —Mas não encontro nada para usar.

     —Suas bolsas são impermeáveis. Seus pertences estão secos.

     —Ao ver que ela não respondia, acrescentou— Pode pôr uma dessas camisolas de seda com rendas.

     —Como o...? OH, deixa! Nego-me a pôr isso se você estiver no quarto. Agora, Vá!

     —Está me dando ordens? —Court levantou as sobrancelhas— Claro. Tem que assegurar de que me expulsa do quarto.

     —Não, não é isso...

     —Darei-me a volta e terá que conformar com isso — cortou ele com voz áspera. Ver Annalía coberta só com uma toalha estava deixando-o louco.

     —Preciso me vestir e ir para a cama.

     —O que você quiser, pequena...

     Quando ela aceitou sua proposta, ele resmungou e voltou com grande dramalhão. No mesmo instante em que ouviu que a toalha caía ao chão, deu a volta. E teve que passar as mãos pelo rosto para evitar assobiar de admiração.

     Ela era... linda. Como nunca tinha imaginado.

     Estava de costas para ele, assim que deu atenção com a vista em seu redondo e luxurioso traseiro, suas longas e fortes pernas, as magras costas e a pequena cintura. Tinha o cabelo molhado e chegava até os quadris.

     —Piedade! — exalou ele.

     —OH, não pode ser! —Ela tentou colocar com toda pressa a camisola, mas por culpa da bandagem de seu braço ferido, não pôde ir o bastante rápido. A ele ocorreu em ajudá-la, mas sabia que não teria sido capaz de só olhar boquiaberto; não, isso não seria o que faria. No final, Annalía conseguiu meter o objeto e cobrir-se com ela.

     Então deu a volta e o pegou olhando-a estupefato.

     —Prometeu não olhar! Disse que não daria a volta! —inclinou-se um pouco para pegar um lençol e ele foi presenteado com a vista de uma coxa e de seus seios antes que ela pudesse esconder-se atrás dele como um escudo.

     Como estava um pouco bêbado, sorriu.

     —Estava de costas. É só que dei a volta muito rápido, mas foi a melhor idéia que tive todo o dia. —Deixando à parte de sentá-la em seu colo no cavalo e pedir que se segurasse bem a ele. Nesse dia deu conta de que todos esses bastardos que foram por aí fingindo-os em ser cavalheiros, não o faziam só para benefício das damas.

     —Não é um cavalheiro! De fato, é justamente o contrário. É um sedutor, um degenerado e um crápula. —Ela arrastava um pouco as palavras. Envolveu-se com o lençol por cima da camisola e começou a caminhar para cima e para baixo.

     Court sentou na cama, apoiou as costas na cabeceira e a olhou com descaramento.

     —Peça, — disse de repente—. Peça-Me que te ajude a encontrar seu irmão. —De onde saía isso? Ele só tinha pensado em levá-la para a casa de deposito e em pô-la a salvo porque sabia que era o culpado de havê-la posto em perigo. Você o rompe, você o arruma. Mas agora estava aceitando outra responsabilidade, por quê?

     Porque antes, quando ela havia aconchegado contra seu peito e se abraçou a ele havia sentido muito satisfeito.

     Maldição, o uísque não tinha sido uma decisão muito acertada.

     —Poderia te manter a salvo dos Renegados até que voltassem a ficar juntos.

     Annalía aproximou da janela.

     —E por que ia pedir isso a você?

     —Porque me necessita. —Ele entrecerrou os olhos—. A esta altura estou certo que você deu conta, não?

     —Dei-me conta de muitas e muitas coisas sobre você. —Annalía apoiou o quadril no marco da janela.

     —Afaste-se daí — grunhiu ele.

     Ela mal o olhou, mas se afastou.

     —E posso imaginar o que me exigirá em troca.

     —Talvez, mas talvez não. O único modo de saber é me pondo a prova. Já sei que é difícil. Aposto o que quiser que nunca teve que pedir nada em toda sua vida.

     —Tem razão.

     Ele colocou a mão boa sob a cabeça.

     —Bom, este é um bom momento para começar.

     Annalía virou a cabeça como se quisesse tomar ar. Court sabia que ela pediria e, quando o fizesse, ele aceitaria ajudá-la. Também sabia que faria pagar por isso.

     —Eu... quero pedir... —voltou a tomar ar—, sua ajuda.

     Ele ficou de lado. Doíam-lhe as costelas depois da briga desse dia, mas não tinha intenção de modificar essa postura tão zombadora.

     —Dado que é nova nisto, vou ensiná-la...

     —Como se você tivesse pedido algo alguma vez.

     —Quer que eu te ensine?

     Ela levantou o queixo.

     —Sim.

     —Muito bem. Já que não me pediu isso adequadamente, terá que fazer um esforço e dizer “por favor”. Seria muito mais eficaz e emotivo que fosse sincera. E juntar as mãos sobre o peito não te prejudicaria.

     Ela engoliu seco. Tinha o corpo tenso de tanta tensão.

     —Por favor.

     Ele, muito digno, moveu a cabeça.

     —E por que deveria te ajudar?

     —Porque foi você que me fez mal — respondeu ela zangada.

     —Pelo seqüestro? Acreditava que já tinha ficado claro que não casar com Pascal era algo bom. E seu irmão está livre. No final tudo saiu bastante bem.

     Exceto ela era o objetivo de uma banda de assassinos e que já a tinham atacado duas vezes.

     —Mesmo assim.

     —Bom, já que me pediu isso tão bem...

     —Isso é tudo? Isso é tudo que queria?

     —Claro que não. Só conseguiu que aceite negociar com você.

     —Sou um mercenário, e este assunto é muito perigoso. Precisarei que me pague.

     Ela ficou desanimada.

     —Não tenho dinheiro. —Então iluminaram os olhos—. Mas estamos perto de um povoado. Posso vender minhas jóias.

     —Não podemos vendê-las. Eles esperam que façamos exatamente isso. Além disso, você tem algo muito mais valioso. — Fixou o olhar em seus seios.

     Annalía se indignou e tentou pensar em uma resposta, mas ele a interrompeu.

     —Quando pedir isso, quero que me deixe te dar um beijo. Só um beijo. E quero que você me beije com a mesma paixão com que o fez em sua casa.

   —Eu não... não posso... estava bêbada. —Ela voltou a caminhar.

     Court moveu a cabeça como se a entendesse.

     —Claro que também pode me pedir que vá.

     Quando passou por seu lado e o olhou, ele acreditou que ia dizer exatamente isso.

     —Não fica quieta, pequena?

     O aborrecimento fez brilhar seus olhos.

     —Você está incomodado? Você incomoda que eu ande?

     —Não, absolutamente. Só pensava que, se aceitasse minha proposta, no futuro teríamos que procurar um quarto maior. Se não, acabará tonta.

     Fosse o que fosse o que havia dito, tinha acertado. Ela parou e o olhou com doçura; nunca antes tinha sido cuidadoso assim, e ele não tinha nem idéia do por que o fazia agora. Mas gostava. Muito.

     —Só um beijo? —perguntou ela com acanhamento.

     —Quando quiser e onde quiser.

     Ela meditou um momento e finalmente sussurrou:

     —Certo.

     Court estava surpreso de que ela tivesse aceitado. A única coisa que tinha que fazer era arriscar sua vida para mantê-la a salvo da ordem de assassinos mais sanguinários da Europa e em troca poderia beijá-la quando quisesse? Definitivamente, ele levava a melhor parte.

     —Então temos um acordo. —Court levantou e, com o braço, mostrou-lhe a cama— Pode ficar com a cama.

     Annalía o olhou indecisa, antes de soltar o lençol e meter-se a toda velocidade sob a colcha. Depois que deitou, ele deslizou a seu lado.

     Ela abriu a boca surpreendida.

     —Disse que podia ficar com... —Ela parou— Já tenho a cama, não é assim? Nunca disse que fosse só para mim.

     —Aprende muito rápido, pequena. Já não resta nenhum truque.

     Annalía esticou e, quando tentou afastar-se, pôs com cuidado um braço por cima, tentando evitar a bandagem.

     —Anna, fique. Não vou cobrar meu pagamento agora. Nós dois estamos feridos, esgotados e bêbados. Nada poderia me excitar. Nem sequer ver o que seu precioso traseiro me tem feito — disse ele mentindo de tal modo que estava certo que ia ao inferno. Ela relaxou um pouco— Mas se uma dessas três coisas desaparecesse, então te beijaria.

     Ela ficou em silêncio um momento, e depois perguntou:

     —Por quê?

     —Porque você é do tipo de mulher que necessita que a beijem. Durante horas, devagar. Com paixão. —Deslizou sua mão pelo quadril dela e acrescentou, murmurando ao ouvido— Com dedicação.

     Annalía estremeceu e ficou de barriga para cima para olhá-lo. Tinha os seios apertados contra a camisola, os mamilos duros, e passou os dedos pela colcha, bem por debaixo destes, com movimentos lentos e lânguidos.

     —Isso parece muito trabalho, MacCarrick — sussurrou com um marcado acento— Será você o homem que me faça tudo isso?

     Ele gemeu e aproximou dela dando graças a Deus pelo uísque.

     —Anna, não pode nem imaginar isso.

     Pôs-lhe um dedo no peito e o empurrou suavemente. Moveu-se para afastar-se dele e perguntou:

     —Excitado?

      

Que demônios a tinha impulsionado a atuar assim? Não estava acariciando o umbigo do urso, o que estava fazendo era aguilhoá-lo com uma flecha enquanto a besta estava na cama com ela. Essa não era a maneira.

     Mas é que cavalgar em seu colo, junto ao seu peito, tinha sido tão agradável; e depois, quando o tinha visto sorrir, havia-se sentido tão confusa. Esse homem a tinha espiado nua, mas ao ver seu olhar, ao descobrir, havia-se sentido... adulada?

     Ou simplesmente estava bêbada. Outra vez.

     —Isso me faz graça — disse ele. Sua voz tão sensual e rouca, sempre tinha gostado. Inclusive quando o odiava e sua voz e seu acento transportavam palavras horríveis, a Annalía gostava de ouvi-la. Mas essa noite já não podia odiar. Essa noite, ele a fazia tremer.

     —O que é o que te faz graça? —perguntou ela, muito curiosa para conter-se.

     —Não que tire o sarro.

     —Então, o que?

     —Que acredita que pode tocar meu cabelo e que com um só dedo pode fazer que afaste minhas mãos de seu corpo.

     Realmente acreditava. Por alguma razão, Annalía sempre soube que ele nunca tomaria pela força, inclusive da vez em que a beijou.

     —Pois o tenho feito. —Tinha que aprender a morder a língua. Acaso queria provocá-lo? Ela já aceitou que a beijasse quando quisesse!

     —Esta noite sim — reconheceu ele, e então deu a volta para ficar de frente a ela— Mas se voltar a me olhar desse modo e a falar com essa voz, não terá tanta sorte no futuro. —Ele disse em voz baixa, olhando-a nos olhos. Ela se deu conta que gostava de seus olhos tanto como gostava de sua voz. Eram escuros, e agora via que tinham brilhos mais claros. Deus soubesse de que cor eram...

     OH, Deus, estava certa que agora mesmo o estava olhando desse modo. Afastou o olhar dele e fixou em seus lábios. Lembrou-se do bem que sentiu ao beijar-lhe e, sem dar-se conta, perguntou:

     —O que faria então?

      —Beijaria seus lábios. — Acariciou seu lábio inferior com o polegar, e o uísque a convenceu de que o permitisse— Depois te beijaria o pescoço. —Percorreu-lhe o pescoço com os dedos. Era tão agradável, ela tinha que fazer verdadeiros esforços para manter os olhos abertos, e no final se rendeu. Então ele deixou de tocá-la. bem quando abria os olhos para olhá-lo de novo, sentiu a primeira carícia em seu seio— E depois no outro seio.

     Annalía não afastou o olhar dele nem um instante, nem sequer quando esticou e notou que custava respirar. Ela ia se afastar. Já. Agora mesmo. Dentro de um segundo... Ele continuava olhando-a, não a deixando afastar a vista, enquanto seus dedos percorriam lentos e ardentes o seu excitado seio.

     Court a beliscou com suavidade e ela voltou a fechar os olhos. Depois sentiu como ele se ajeitava e se encaixava sobre seu corpo, mas sim sentiu como seus lábios queimavam o pescoço quando começou a beijá-la. Annalía gemeu e depois Court cobriu os seios com as mãos, os polegares acariciando os sinuosos mamilos. Nada podia fazê-la sentir tão bem...

     Estava tentando deslizar as mãos por debaixo de sua camisola? Ao sentir a pele quente dele contra a sua, seus seios se excitaram ainda mais, e deu conta de quem era e do que estava acontecendo. Afastou sua mão de repente e ele a agarrou com força. Quando Annalía tentou afastar-se, ele gemeu.

     —MacCarrick, me solte.

     —Deixa que eu te toque. —Ele grunhiu cada palavra.

     —Não. —Ela se soltou e afastou, tinha a respiração agitada. Seus seios estavam sensíveis e protestavam porque sentiam falta de suas carícias. Sentia uma necessidade entre suas pernas como nunca antes havia sentido e, para acabar ou piorar, uma umidade se instalou ali.

     Notou que dava as costas e ouviu como soltava o ar.

     —Um dia acabará me matando, Anna.

     Ao aproximar a alvorada, Court viu que ela por fim dormiu e levantou-se, excitado como nunca e sentindo-se tão desgraçado como só um homem rejeitado pode sentir-se. Ele nunca havia tocado uma pele tão suave. Nunca tinha sonhado com uma pele tão suave. E ele a tinha acariciado, fazia que Annalía voltasse a desejar-lhe. Só a consciência do quanto ásperas eram suas carícias impediu de continuar despindo-a.

     Ele olhou as mãos cobertas de cicatrizes.

     A essas alturas, ele não deveria queixar-se por ter que passar a noite com uma pesada e dolorosa ereção sem perspectivas de alívio. Porque, ao parecer, tinha aceitado acontecer assim muitas vezes mais.

     Essa mulher afetava-lhe e, por alguma razão, quando estava com ela, ou se transformava em um animal descontrolado ou se esforçava por ser mais nobre. As duas coisas eram muito estranhas. Nobre? Ele, que tinha dificuldades para não pôr a mão em cima dela, cada vez que ela se comportava com ele de um modo violento? Ele, que nas noites anteriores, quando tirava-lhe a camisa para trocar as ataduras, sentia dor nos dedos pela necessidade que tinha de acariciá-la, de deslizar suas mãos sob sua camisa e rodear os seios com elas? Que nobreza havia nisso? Estava certo que Annalía ainda o odiava, mas agora gostava de tocar o seu cabelo. Era um homem morto.

     Decidiu jogar água fria no rosto, olhou-se no espelho, estudou seu duro reflexo e não viu nada que pudesse fazer que ela desejasse suas carícias.

     Secou-se e sentou para observá-la enquanto dormia. De vez em quando, ela sussurrava algo em catalão e Court perguntou-se por que tinha decidido abandonar a sua tropa e a possibilidade de ganhar mais dinheiro. Por que tinha aceitado mantê-la a salvo quando a única coisa que ele queria era pagar a dívida de Beinn a'Chaorainn?

     Court era o único membro de sua família, ao menos que ele soubesse, que tinha uma dívida sobre suas terras, e isso o envergonhava. O que o consolava era saber que era muita terra. E havê-la comprado pela metade de seu valor, também o animava.

     Para criar ali ovelhas, um presunçoso barão inglês esvaziou Beinn a'Chaorainn de camponeses e os obrigou buscarem vida fora dali. Depois, o barão se foi, e deixou encarregado de toda a administração a um que não tinha nem idéia de como levar umas terras, de modo que, sem a gestão adequada, a fazenda não pôde competir com os preços da lã da Austrália. As dívidas contraídas pelos excessos em Londres obrigaram o barão a vender a um preço que se aproximava do roubo.

     Court não pôde evitar sorrir. Durante anos, muitos escoceses viram obrigados a abandonar suas terras, às vezes, inclusive tinham que emigrar. De fato, muitos tinham partido para a Austrália.

     E agora eles eram os proprietários de todas aquelas prolíficasfazendas que tinham conseguido arruinar os estúpidos barões ingleses.

     “Ao final, nós sempre ganhamos”, pensou Court.

     Antes que os jogassem, os camponeses dessa terra tinham sido muito prósperos, e suas rendas, quando eram justas, eram substanciais, não de um modo exagerado, não para poder levar uma vida de luxo em Londres, mas confortável. para Court confortável ia bem.

     Ele tinha intenções de pedir que retornassem. Mas não podia fazê-lo, não até que sua casa pertencesse por completo e soubesse que nunca ia perdê-la. Assim, por que demônios tinha decidido atrasar seu plano? Por que tinha decidido ajudá-la?

     Nesse momento, Anna se virou dormindo. Tinha as sobrancelhas juntas e sussurrou:

     —Lobo.

     Court saiu do quarto e desceu correndo a escada, sem importar incomodar aos hóspedes que estivessem dormindo.

     Groot já estava levantado.

     —Preciso de uma carruagem — disse Court, e sentou em uma das mesas— E estou disposto a pagar o que fizer falta por um bom chofer e por uns cavalos que não se assustem com facilidade.

     —Posso mandar o menino a Toulouse. Deduzo que levará a dama com você?

     —Sim. Também precisarei de dinheiro.

     —Quer que coloque na conta de Ethan ou na de Hugh?

     —Reparte entre as duas. —Seria um bom castigo.

     Groot riu.

     —E sua tropa?

     Não iriam gostar de nada.

     —Deixarei uma mensagem. Logo chegarão aqui. —Preocupava-o um pouco que não tivessem chegado ainda, e mais tendo em conta que ele e Annalía tinham demorado muito também, mas sabia que a batalha se encontrava em um ponto morto, e que podia demorar dias, talvez semanas em resolver, pois ambos os bandos tinham umas posições muito defensáveis. Ou talvez mais tempo, se nenhum estava disposto a ceder. Isso era o que mais odiava de seu trabalho, os malditos momentos mortos.

     Escreveria para Niall para dizer que visitassem o Otto. Se Niall acreditasse conveniente, devia aceitar o trabalho.

     Quando chegou a carruagem, inspecionou os cavalos e interrogou o condutor, um homem com o apelido de Coachy. O conjunto pareceu aceitável e foi procurar a Annalía. Através da janela da hospedaria pôde ver como ela descia correndo a escada, penteando-se, e sem mau aspecto por culpa da bebida. A ele em troca retumbava a cabeça desde que estava sóbrio. Depois que ela saiu, perguntou-lhe:

     —Como se encontra?

     A garota pareceu surpreendida de vê-lo ali, mas o dissimulou com uma careta.

     —Bem. Por quê?

     Porque a noite anterior tinha cavalgado sob a chuva, fazia pouco que tinham atirado nela, edepois se embebedou, esteve a ponto de responder Court. Mas já tinha aprendido que essa mulher podia ser beijada pela peste negra e seguiria estando bem.

     —Por nada.

     Annalía olhou para chão e moveu o pé por cima de algumas ervas que havia junto ao caminho.

     —Não estava certa de que estiveste aqui.

     Tão má idéia tinha dele? Court tinha dado sua palavra, bêbado e desesperado por estar com ela, mas sua palavra ao fim e ao cabo.

     —Fiz um trato com você, e tenho intenção de mantê-lo.

     Ela o olhou incrédula.

     —Não se zangue, MacCarrick. Tampouco, é que até agora você tenha se comportado como o homem mais honorável do mundo.

     Ele aproximou, tanto que ela poderia considerar essa distância como “má educação”, e disse:

     —Se acredita que não vou manter minha parte do trato por ser um homem de palavra, acredite ao menos que o farei para que você cumpra a tua.

     Annalía ruborizou e voltou a olhar ao chão.

     —Ou seja, que agora eu vou te levar a um lugar seguro.

     Ela franziu o cenho e o olhou no rosto.

     —Disse-me que esta hospedaria era segura. Aqui é onde se supunha que foste deixar-me.

     —Depois do ataque de ontem mudei de opinião. Conheço um lugar em Londres.

     —Não vou para Inglaterra! —Ela cruzou os braços. Court deu-se conta de que por culpa da ferida colocava as mãos mais baixas que de costume— Disse que me ajudaria a encontrar Aleix, não que me afastaria mais dele!

     —Seu irmão vem te buscar. O Renegado disse que ele está te seguindo para te salvar do brutal escocês e depois me matar para vingar-se. Ele irá aonde formos. E depois me agradecerá que tenha te mantido a salvo em Londres.

     —Por que não me disse antes tudo isto?

     —Quando deveria havê-lo feito? Durante a tormenta ou quando bêbado tentava me colocar sob sua camisola?

     Ela abriu os olhos de par em par, e depois os fechou um pouco.

     —Está tentando me distrair para evitar que volte a dizer que não vou à Inglaterra.

     —Vamos, pequena. Já está decidido.

     —Não posso ir sem deixar uma mensagem!

     —Onde? Em sua casa? Estou seguro que ele já está na França.

     Ela começou a caminhar e ele perguntou quantos pares de sapatos devia gastar em um ano. Não tinha importância, ele sempre deixaria que o fizesse.

     —Tem parentes na França?

     Annalía levantou a cabeça e respondeu:

     —Não, a família de minha mãe está na Espanha, na Castilla.

     —Alguns amigos ou conhecidos?

     Ela juntou as sobrancelhas.

     —Só tenho contato com dois lugares da França, e as duas estão perto de Paris.

     —E são?

     A moça respondeu ausente:

     —A tumba de minha mãe e meu antigo colégio.

     Um momento...

     —Sua mãe não descansa na terra de sua família? —Ele tentou ler sua expressão, mas Annalía estava muito pensativa. Por que não estava enterrada em Andorra? E se não estava em suas terras, por que, não estava na Espanha?

     —Poderíamos mandar a mensagem a Les Vines! —continuou ela como se não tivesse escutado— Acredito que ele irá ali e verá se encontra algo.

     —Já veremos.

     —Não irei a nenhuma parte até que me prometa isso.

     —Está bem, prometo-lhe — ele respondeu isso — Agora entre na carruagem.

     —Carruagem? Mas os Renegados nos apanharão.

     —Não quero que volte a cavalgar. E, se chover, teríamos que voltar a parar.

     —Prometo-te que não nos atrasaremos por minha culpa.

     —Anna — disse ele sério—, a carruagem ou cobro meu beijo na cama.

     Ela deve ter acreditado, porque o olhou feio e caminhou teimosa até a carruagem.

     Groot trouxe suas coisas, Court deu as bolsas ao chofer, e depois aproximou para carregar as armas que, sem saber, Hugh e Ethan tinham comprado essa manhã. Não pôde resistir à tentação de acariciar com carinho seu novo rifle. Um rifle de repetição, cinco disparos sem recarregar. Court tinha ouvido falar deles, mas como o monstro do lago Ness, nunca os tinha visto. Esse rifle significava o fim dos Renegados.

     Quando estiveram instalados, Groot voltou para hospedaria e Annalía murmurou:

     —Continuo dizendo que deveríamos ir a cavalo.

     —Anna, não é tão forte como acha.

     —Ah, não sou? —replicou ela levantando teimosa o queixo— Pois cada vez que acredito que cheguei ao batente de minhas forças, surpreendo-me. Sempre acontece algo que faz que eu supere minhas expectativas, de modo que suponho que devo ser mais forte do que acredito.

     Também o surpreendia. Constantemente. Como nesse mesmo momento em que, depois de seu discurso sobre sua força, continuava de pé junto à carruagem, esperando que ele a ajudasse a subir. Nem sequer dava conta de que deveria havê-lo feita sozinha, para assim pôr mais manifesto em sua independência.

     Court entrecerrou os olhos, desconfiado. Ou talvez sim se desse conta, e era exatamente isso o que pretendia.

     Caminhou para ela. Como iria ele querer fazê-lo se sabia que desse modo Annalía teria que pôr suas mãos em cima dele? E pensou no paradoxo que essa mulher representava. Court tinha claro que alguém que contemplava as unhas umas mil vezes ao dia não deveria ser capaz de esconder uma pedra sob sua saia para golpear com ela a um pobre escocês.

     Esse comportamento tão incongruente ia contra todas as leis da natureza.

     Sacudiu a cabeça com força e a ajudou a entrar. Em voz baixa, grunhiu:

     —Uma mulher fascinante.

 

­ —Não é lindo? —perguntou Annalía olhando o vale da Borgonha. Este estava cheio de girassóis e vinhedos, e podia cheirar o aroma da terra úmida. Quando o sol saiu detrás das nuvens brancas, soprou uma suave brisa, que limitou a mover nos altos das flores. A moça não pôde evitar sorrir.

—Lindo — admitiu ele, embora não tinha afastado a vista dela nem um só instante. Desde sua... indiscrição quatro noites atrás, não deixava de olhá-la. Annalía esperava que ele não acreditasse que sua reação significava algo. Ela só tinha atuado como o tinha feito devido aos traumáticos incidentes de todo o dia, e, além disso, tinha bebido. Entretanto, ele se comportava como se algo tivesse mudado entre eles, algo mais além do fato de que ela já não o detestava.

     Para ser sincera, estava convencida de que nunca mais poderia encontrá-lo desagradável. Ao parecer, foi-se acostumando a sua presença. Cada vez estava mais cômoda a seu lado, e sabia quando suas ásperas palavras queriam em realidade era tocar o seu cabelo.

     Annalía suspeitava que ele o fazia tentando ser bom e amável. Mas, por desgraça, também suspeitava que ele não sabia muito bem o que fazer com seus impulsos.

     Ela pensava neles como em um estranho par de aliados, só que a ajuda dele tinha um preço. Seu cavalheiro andante não ia matar o dragão em troca de nada, mas sim por um pagamento que ainda não se cobrou.

     Ao entrar no primeiro povoado do vale, as brilhantes cores das casas a cegaram, e ela acreditou ouvir música. Tentou abrir a janela da carruagem, mas custava; então ele aproximou com rapidez e o conseguiu com uma insultante facilidade. Era um gesto próprio de um cavalheiro de Castilla. Deixando à parte o fato de que este não teria quebrado a guia da janela.

     Entrou a brisa e, com ela, a música. Annalía podia ouvir como os cascos dos cavalos golpeavam os paralelepípedos.

     —Quero passar a noite aqui.

     —Ainda faltam horas para que anoiteça. Temos que chegar mais longe.

     Cada noite, Court se encarregava de procurar um quarto onde pudessem descansar e trocar a bandagem, ou até banhar-se, e assim Coachy podia dormir na carruagem. MacCarrick insistia em que viajassem de noite e os fazia sair antes que amanhecesse para compensar o momento que perdiam por culpa das tormentas matutinas. Mesmo assim, ela nunca o tinha visto dormir.

     Estava convencida de que o único motivo pelo que paravam era porque ele não queria que ela se cansasse muito. De modo que decidiu suspirar esgotada.

     —Acredito que... vou adoecer —mentiu— Por culpa do duro ritmo que nos obriga a manter.

     Ele a olhou irritado.

     —Não vais adoecer, eu já teria dado conta. Tem tanta vontade de ficar aqui que está disposta a mentir?

     Ela apertou os lábios.

     —Sim, bom.

     Court franziu o cenho. Um minuto mais tarde gritou ao chofer as novas instruções.

     Ela o presenteou com um sorriso maravilhoso que fez que ele franzisse ainda mais o cenho, mas não importou. Sentia o sol acariciando a pele, e deu-se conta de que era... feliz, feliz de verdade, e se surpreendeu com isso.

     Seu irmão não só estava vivo, mas também estava livre, o que era o melhor presente que nunca tinha ganhado. O homem que a acompanhava, e de que tinha suspeitado coisas horríveis, não tinha feito nenhuma, e estava comportando mais como um cavalheiro do que como um escocês.

     Era sua vida perfeita? Não, ela ainda não sabia o que fazer com o escocês quando não se comportava como um cavalheiro, e tinha medo dos Renegados. Tentava aparentar que seus ataques não a tinham assustado, mas na realidade a aterrorizavam. Esse medo era um dos motivos pelos que queria desfrutar de um dia como esse.

     Passou um grupo de garotas que sorriam e passeavam pela rua, com seus cestos balançando-se no ar, e uma idéia cruzou pela mente da Annalía.

     —Quero roupa.

     —O que?

     —Preciso de roupa — corrigiu ela— Tudo o que tenho são vestidos de festa, exceto meu vestido de papel, e, embora me arrumaram isso, continua lembrando o dia que atiraram em mim.

     Fazia ele uma careta de dor para ouvir essa palavra?

     —E como pensa pagá-los?

     —Você tem que comprar. Em uma aldeia como aquela seria um vestido simples, mas isso não interessa.

    —E eu estou disposto a fazê-lo por que...

     —Porque disse que me manteria a salvo. Esse era nosso trato. Bem, olhe meu vestido. Agora olhe o dessas garotas. Sua roupa lhes permite mover-se, eu também quero me mover com mais facilidade.

     —Está tentando me convencer de que alguns vestidos novos equivalem à maior segurança? —Ele a olhou como se não fosse entendê-la nunca.

     —Sim, que tal estou fazendo?

     —Não muito bem. Mas me fascina ver como funciona seu cérebro.

     Court atuava de um modo indiferente, tentava dissimular que o fato de que Annalía desse ordens o fazia perder os estribos. Ela o fazia assim porque acreditava ser melhor que ele, e para Court era intolerável que, a aquelas alturas, continuasse olhando-o por cima do ombro; que ainda o considerasse um pobre escocês.

     Perguntava-se se havia algo pior que desejar a uma mulher que nem sequer te considera um homem. Porque ela estava destinada a algo melhor. Não era isso o que lhe havia dito?

     Entretanto, quando lhe pedia algo... Só de pensar nisso se sentia incômodo. Nos últimos dois dias deu-se conta de que gostaria de poder dar-lhe tudo o que precisasse tudo o que quisesse. Se Annalía averiguava o muito que Court desejava fazer isso, e que o mantinha sob controle era que ela era incapaz de pedir nada, não teria piedade dele.

     Chegaram à hospedaria do povoado e, quando ele estava pedindo um quarto, ela interveio:

     —Talvez deveríamos ter dois quartos. Eu acredito que têm mais de um e eu já me recuperei o bastante...

     —Não.

     Para ouvir seu tom, ela levantou as sobrancelhas.

     —Este lugar não está protegido — explicou ele a seguir.

     Toda a hospedaria estava cheia de detalhes que a encantavam e que para ele só eram perigos. As janelas dos quartos eram enormes e davam a uma varanda. Court não gostava dos balcões, em especial os que tinham umas grandes trepadeiras pelas que subir.

    Mas o que sim estava bem era a mesa que havia nesse quarto. Pediu papel e pluma.

     —Vamos escrever a meu irmão? —Ela ajoelhou-se na cadeira e sorriu nervosa— E mandaremos a carta a Les Vines?

     Aquela garota tinha um sorriso que fazia que os desgraçados como ele quisessem voltar a vê-la. Sacudiu a cabeça.

     —Sim. Vou escrever a carta em gaélico, e depois quero que você a copie com sua caligrafia.

     —Por quê?

     —Acredito que na escola terão um dicionário e, se não, poderão acessar a um com facilidade. Em troca, se um Renegado intercepta a carta, não poderá fazer o mesmo. Tem que ser de seu punho a letra para que ele acredite de verdade que é tua. —A donzela levou os utensílios de escrita, ele redigiu a carta, e depois observou como ela mordia o lábio inferior ao tentar decifrar sua letra para copiá-la.

     —É a língua mais estranha que já vi.

     Ele a olhou incrédulo.

     —Mas se você estava estudando grego.

     —OH, é verdade, vasculhou o meu quarto. Desfrutou com minhas coisas?

     —Sim — respondeu ele sem um ápice de vergonha— E eu adorei dormir em sua cama, tão suave.

     Ela o olhou, ruborizada e acrescentou a toda velocidade:

     —Viu toda minha roupa?

     Ele quase riu ao ver como ela tentava adoçá-lo para conseguir o que queria.

     —Esquece-o, não vai me convencer.

     —Não entendo por que é tão teimoso.

     —Não tem nenhuma necessidade de sair e passear pelas ruas.

     —Mas você vai proteger-me, não? —respondeu ela segura, como se ele houvesse dito uma tolice.

     Court encaminhou para a porta.

     —Precisa descansar. Direi que preparem-lhe um banho e esperarei até que acabe.

     No mesmo instante em que colocou a mão no trinco, ela disse:

     —MacCarrick, por favor, posso comprar alguns poucos vestidos?

     Ele ficou petrificado. Deus, Annalía realmente o tinha feito. Esse era o princípio do fim.

     Ela permanecia ali, de pé, atrás dele, e tocou suavemente no ombro; um recurso cruel e desnecessário.

     —Posso te pagar.

     Court fechou os olhos. Teria que encontrar a maneira de dizer que não. Ou pôr um preço tão alto que ela nunca poderia pagá-lo. Deu a volta e tentou olhá-la de um modo lascivo.

     —Pequena, já sabe que não vai sair barato.

     Annalía não se zangou e respondeu.

     —Sei que é incapaz de abusar de uma garota que está sob seu cuidado, sem dinheiro e sem uma família que se ocupe dela.

     Court mordeu a língua para não soltar uma maldição.

     —Não precisava descansar?

     —Vestidos, MacCarrick — recordou ela amavelmente.

     Quando a costureira tinha terminado de costurar a prega de sua nova saia, e a balconista tinha empacotado todas suas compras, Annalía saiu à rua, onde MacCarrick estava esperando, caminhando de lá para cá. Chamou-o para que entrasse.

     Ao fazê-lo, ele não passou da porta, mas sim ficou ali observando como ficavam a singela blusa e a saia nova. Olhou seu rosto, os seios, de cima abaixo e voltou a começar, sem pressa. Aquela não era a primeira vez que a olhava com tanto descaramento, mas nessa ocasião seu olhar não a enfureceu. Pelo contrário, sentiu como se a acariciasse.

     A balconista murmurou:

     —Invejo a noite que os esperam.

     MacCarrick deve ter ouvido-a porque parou de olhar Annalía e levou a mão à boca para tossir. Que espécie de noite prometia seu olhar? Por que uma mulher formosa iria ficar com inveja?      

     Tanto a costureira como a balconista haviam dito a Annalía que tinha sorte de ter um escocês tão bonito com ela. A costureira acrescentou:

     —Os homens escoceses são uns diabos luxuriosos! —Como se isso fosse algo bom.

     Quando MacCarrick aproximou do mostrador para pagar, a balconista mostrou a fatura, e seu decote. Se Annalía não tivesse estado ali com ele, teria beijado a essa oferecida? A teria levado a um quarto para deitar-se com ela? Com esse pensamento tão incomum e irritante. Aproximou-se dele devagar e o segurou no braço sem deixar de olhar à mulher. Esta piscou os olhos e olhou para Annalía.

“Descarada!”

      De volta à hospedaria, ela deu conta de que todas as mulheres o olhavam. Até então, nunca o tinha visto rodeado de mulheres, e não gostava de nada, embora ele parecia não se dar conta.

     Quando viajou a Paris Annalía viu alguns homens muito atraentes pela rua, e embora não suspirava por eles como suas amigas, sim, gostava de contemplá-los. Mas essas mulheres olhavam para MacCarrick de um modo mais sensual, mais lascivo.

     Mais apreciativo? Elas sabiam algo sobre ele que ela desconhecia, e isso a estava deixando louca. Assim continuou agarrada em seu braço, e a ele não pareceu importar. Um momento em que mostrou algo, seus seios o roçaram por acidente, e o modo em que Court reagiu ante essa pequena carícia foi surpreendente e emocionante. Teria que assegurar-se de fazê-lo mais freqüentemente.

     Annalía o observou enquanto caminhavam. Era incrivelmente alto e tinha os ombros muito largos. Já tinha dado conta de que a maioria dos homens parecia grande ao seu lado, entretanto a ela sempre tinha intimidado o seu tamanho; não parecia um traço atraente, como o parecia para as outras mulheres. Mas para ser sincera, havia outras coisas dele que eram muito atraentes, agora que podia olhá-lo sem estar cega pelo ódio.

     Por exemplo, tinha uns olhos incríveis. Negros como o azeviche, e agora sabia também que com reflexos chapeados. Tinha as feições duras, de linhas marcadas, mas em conjunto eram atraentes, com sua melancolia e sua cicatriz. Tinha o cabelo negro como os olhos, e abundante. Isso também gostava.

     Não pôde evitar em perguntar:

     —MacCarrick, por que se transformou em um mercenário?

     Ele se surpreendeu com a pergunta.

     —Que importância tem?

     —Sinto curiosidade—disse ela. Ao ver que ele não respondia, acrescentou— Responderei a qualquer pergunta que me faça, se você responder esta. —Ele continuou sem responder.

     Annalía apertou o braço.

     —As tropas escocesas que retornavam não deixavam de falar do dinheiro que se podia ganhar no estrangeiro — explicou ele finalmente— Alguns soldados, ao acabar seu período de serviço, apontaram-se às tropas estrangeiras, e eu uni a eles.

     —Não te incomodou? Matar por dinheiro?

     Ele se esticou e ficou à defensiva.

     —Isso já é outra pergunta.

     —Então pergunta você.

     Ele a arrastou até um lugar mais protegido e pôs seus os dedos sob o queixo dela.

     —Pensa às vezes na noite em que te beijei?

     Ela sentiu como se ruborizava.

     —Pensa? —insistiu ele.

     —Talvez, de vez em quando — respondeu ela tentando parecer despreocupada— Foi meu primeiro beijo.

     —E quando te acariciei na hospedaria? Pensa nisso quando olha a paisagem pela janela da carruagem?

     Ela abriu os lábios. Como podia ver tantas coisas?

     —MacCarrick — atalhou ela com voz firme apesar de que não se sentia assim absolutamente—, isso já é outra pergunta.

     —Sim é. —Ele a surpreendeu ao acariciar a bochecha com os nódulos dos dedos para depois voltar a oferecer o braço— Mas agora já tenho minha resposta.

 

No mesmo instante em que ela abriu a porta para deixá-lo entrar depois de se banhar, Court soube que tinha um problema e, de fato, não podia deixar de repetir a si mesmo: “Court, tem um grave problema”.

     Anna, sorrindo e relaxada, com o cabelo solto ondulando por cima de seu ombro já era bastante difícil de suportar, mas Anna vestida com uma blusa que não escondia absolutamente a forma de seus seios, e com uma saia que a única coisa que fazia era incitá-lo a empurrá-la contra a parede para levantar-la...

     —Por que vestiu-se para sair? —quis saber ele.

     —A moça que ajudou a banhar me disse que esta noite há um baile. Eu adoro dançar.

     —Já sabe que não pode sair. É muito perigoso.

     —Sabia que diria isso, mas te peço, por favor, que me deixe ir. —Ela pegou as mãos dele entre as suas e as levou a peito, tal como Court lhe tinha ensinado na hospedaria — Sei que você me manterá a salvo.

     —Esqueceu do perigo que corre? Abriu a porta sem perguntar...

     —Se os golpes forem fortes de verdade significa que é você. E não me esqueci, por isso é tão importante que saiamos esta noite. MacCarrick, quando atiraram em mim me dei conta de que a vida é muito curta, e se soubesse tudo o que já perdi, me deixaria sair.

     A via tão jovem, tão impaciente e, maldição, também tão desesperada. Ele tinha estado perguntando como tinha feito ela para acalmar-se, e agora via que não o tinha feito.

     —Deixa-me fingir por uma noite que não tenho nada do que me preocupar?

     Finalmente, ele respondeu:

     —Terá sua noite. Mas não pode sair assim.

     —Por que não? —Annalía olhou a blusa e a saia e depois olhou para ele.

     Ele esfregou a boca com a mão e murmurou:

     —Leva o cabelo solto.

     Sorriu-lhe presumida e respondeu:

     —Já sei. —Era como se o tivesse soltado de propósito.

     —Só as garotas jovens o levam assim.

     —Eu sou uma garota jovem. —E levou as mãos à cintura.

     —Você é uma dama, como não cansa de me recordar. Assim deveria se arrumar como tal.

     —Tem razão, é obvio.

     Ela recolheu o cabelo em um singelo coque na nuca, e Court suspirou dando-se por vencido e oferecendo o braço para acompanhá-la. Uma vez quando chegaram à rua, ele resignou-se a sofrer a tortura de sentir como seus seios o roçavam; certo que tinha descoberto o que acontecia e o fazia de propósito.

     Mesmo assim, passeou orgulhoso em levar a uma dama como ela a seu lado. Apesar de que queria matar a todos os homens que a observavam, e o invejavam a ele...

     Passaram alguns meninos correndo, rindo, e ela lhes sorriu.

     —Obrigado por me levar a passear, MacCarrick — disse ela e, com um suspiro, apoiou a cabeça em seu braço.

     Estava tão contente, e o gesto foi tão carinhoso, que ele quase arrependeu de que um dos motivos pelos que tinha aceito sair essa noite era que tinha intenções de lhe dar algo mais no que pensar quando olhasse através da janela da carruagem.

     Annalía estava decidida a passar bem essa noite, e quando MacCarrick e ela chegaram ao centro do povoado, a música, as risadas e a excitação que os rodeava a ajudaram a relaxar. Como também o fizeram as taças de vinho que MacCarrick tinha levado, embora ele não bebesse nenhuma gota. Sentia-se mimosa e ousada, e deu conta de que não podia afastar-se dele.

     —MacCarrick, acha que estou bonita? —De onde tinha saído essa pergunta? Preocupava-se o que ele respondesse? Sim, preocupava-se.

     —Sabe muito bem o aspecto que tem — respondeu ele, mas a percorreu de cima abaixo com o olhar.

     Renda-se, ela perguntou:

     —Sou o tipo de mulher que poderia te pôr de joelhos?

     Court a olhou aos olhos.

     —Depende —começou ele com voz rouca e sensual— da situação.

     O modo em que a olhava a fez estremecer, embora não entendeu ao que ele se referia.

     —Situação? Eu digo agora mesmo, aqui mesmo.

     —Agora mesmo e aqui mesmo, você é do tipo de mulher que empurra a um homem à bebida.

     Annalía o olhou igual a ele a estava olhando.

     —Me tire para dançar, MacCarrick.

     —Não.

     Ela tocou seu o rosto.

     —Por que não?

     —Porque não posso continuar vigiando se o faço.

     —OH. —É obvio, ele não poderia fazê-lo. Zangada, pensou em retornar à hospedaria, mas justo então um atrevido jovem pediu uma dança. Ela olhou para MacCarrick, mas ao parecer não importava o mínimo, o que a irritou e fez que aceitasse. Estava convencida de que com o primeiro giro o recolhido o cabelo desfaria.

     Depois disso, dançou com um homem atrás de outro. Em conjunto, a experiência foi exaustiva, e ela não deixou de comparar em tudo seus casais com o escocês. Como se esse fosse o modelo que todos deveriam aspirar! Ele tinha as maneiras oxidadas, e ela tinha visto homens mais bonitos e mais amáveis. Apesar disso, Annalía desejava que ele a olhasse como o fizesse esses homens. Como se estivessem apaixonados. Como se estivessem a ponto de recitar um poema. MacCarrick sempre a olhava como se estivesse estudando-a, mas nunca dizia a que conclusões chegavam sobre sua pessoa.

     Mas a vida era curta e ela era jovem. Outro homem a apanhou para dançar e ela riu, não como uma dama, mas sim como alguém que estava desfrutando. E por que não? Acaso não tinha perdido já por completo sua reputação? Tinha-a seqüestrado um bando de mercenários. De fato, salvo que tivessem sido uns piratas, não podia imaginar-se nada que pudesse destruir mais sua reputação.

     Jovem e sem reputação, isso lhe dava um montão de liberdade. Saúde a todas as jovens sem reputação! Annalía voltou a rir de seus próprios pensamentos e o jovem aproximou dela para sussurrar ao ouvido que era mais bonita do que podiam descrever as palavras e que a desejava.

     —Olhe por onde.

     Algo atirou dela e deixou cambaleando o pobre homem. A garra de MacCarrick sobre seu braço bom a arrastava longe dali. O homem que estava dançando com ela a seguiu até que o escocês deu a volta e o olhou. Annalía não pôde ver esse olhar, mas fosse como fosse, deteve o outro em seco.

     Ela franziu o cenho. Não só o deteve, mas também ficou pálido.

     —Aonde me leva? —perguntou Anna indignada— Eu estava me divertindo.

     Court apostaria o que fosse, que sim. Mas essa noite deu conta de que, enquanto ela estivesse sob seu cuidado, ele seria capaz de matar a qualquer outro homem que a tocasse.

     —O que disse? —perguntou ele atravessando o parque para chegar antes à hospedaria.

     Ela franziu as sobrancelhas.

     —Desculpe?

     Court deteve e a olhou.

     —O homem que estava dançando contigo.

     —OH, ele — disse ela sorrindo— Ele me disse que eu era muito bonita e que me desejava.

     Court escondeu os punhos apertados nas costas, e tentou controlar seu tom de voz.

     —Uma grande idéia. Acredito que estou disposto a cobrar meu pagamento.

     Ela piscou.

     —Seu pagamento?

     —Meu beijo. Quero-o. Agora.

     —Aqui?

    —Aqui.

     —OH. Bom, devo isso, suponho — respondeu ela, deixando como pedra. Ele acreditava que tentaria dissuadi-lo.

     —Então, me rodeie o pescoço com os braços. —Maldição, fez justamente isso— E aproxima seus lábios dos meus. —Annalía ficou nas pontas dos pés para o alcançar.

     Ele queria ir devagar, ensinar sem assustá-la, como tinha acontecido na hospedaria. Mas não pôde evitar beijá-la com força, com desejo, e quando acariciou os lábios com a língua, a garota se surpreendeu. Court acariciou a língua dela com a sua, e saboreou o vinho que ela esteve bebendo.

     Ela o empurrou e, sem fôlego, separou-se dele.

     —Não pode fazer isso! Não está certo!

     —Assim se beija na França, e estamos na França. —Então deu conta de que não usava o colar. Era a primeira vez que não o colocava, e ele sabia que isso significava algo, mas nesse instante ela sussurrou:

     —Ohhh.

     Ele voltou a aproximar-se e disse contra seus lábios:

     —Me beije.

     Annalía o fez, tímida, com pequenas carícias de sua língua. Então se afastou de novo com um olhar de assombro no rosto.

     —Gostei.

     A voz dele soou áspera.

     —Pois deixemos de falar disso e façamos.

     —OH, claro. —Ela voltou a fechar os olhos e ofereceu seus lábios. Court os aceitou e a beijou, saboreou-a, e quando a mulher lambeu-lhe a língua, o prazer o atravessou por completo, e a agarrou pelos quadris para apertá-la contra ele.

     Um sentido comum cruzou sua mente. Estavam no parque. Não tinham intimidade. Mas foram à hospedaria, ela repensaria e daria conta do que estava fazendo. Court já a conhecia. Sabia que essa noite nada conseguiria esfriar tanto sua paixão como ver uma cama.

     Estudou os arredores e viu uma gruta de pedra a só uns metros de distância. Agarrou-a pelo cotovelo e a levou para dentro, perguntava se ela se afastaria agora, se repensaria, mas suas dúvidas não duraram muito. Annalía aproximou dele e o beijou, abraçou-o e apertou os músculos de suas costas. Segurou seu rosto com as mãos para aprofundar o beijo, e depois as deslizou para baixo, até seus seios.

     Ela gemeu em seus lábios e acariciou o seu peito. Sem pensar e desesperado como estava por suas carícias depois da tortura de todo o dia, pegou sua mão e a levou ao vulto que enchia suas calças. Annalía ficou petrificada e deixou de beijar-lo.

     —Não deveria fazer isso — sussurrou ela.

     —Não sente curiosidade? Não tem que fazer nada. Só me sentir.

     A moça mordeu o lábio, como se estivesse considerando seu pedido, e depois aproximou dele e o beijou no peito, no V que deixava descoberto sua camisa. Enquanto Court tentava não gemer, ela ajustou a mão para acariciá-lo; que até então, não tinha afastado de suas calças.

     Ele voltou a beijá-la e se agachou um pouco para poder levantar a saia e percorrer com suas mãos o contorno de suas pernas. Seguiu o caminho acima, ansioso por colocar seus dedos dentro dela pela primeira vez, por vê-la ter um orgasmo, mas Annalía se esticou e juntou as pernas.

     —Não, MacCarrick.

     —Separa as pernas, pra mim.

     —Não... não posso.

     Teve que recordar-se que ela era inocente, mas tinha a esperança de poder convencê-la de que desse o que ele queria.

     —Se me deixar, farei você sentir que é melhor do que um beijo.

     Annalía afastou a mão dele e apoiou a testa em seu peito, sacudindo a cabeça como se lamentasse não poder fazê-lo.

     Court gemeu de frustração e sussurrou contra seu pescoço.

     —Então, me diga que posso beijar os teus seios.

     Ela suspirou.

     —Sei que você gostará.

     —Como sabe?

     —Porque pensei nisso cada noite desde que te conheci. —Ia beijando cada vez mais abaixo até que chegou ao decote— Anna?

     —Sim — suspirou ela por fim, e baixou sua blusa.

     Ao sentir a primeira carícia de seus lábios no seio, ela jogou a cabeça para trás e gemeu. Court sabia o muito que ela iria gostar disso, suspeitava que se colocasse os braços dela para cima da cabeça e seguisse lambendo-a devagar poderia fazer que chegasse ao clímax. Tinha chegado a odiar o pensamento de que um homem como ele talvez não chegaria a ver isso nunca. Por isso agora que a tinha a seu alcance, beijou-a com força, saboreou seus seios.

     —OH, Meu Deus — gritou ela e o pênis dele vibrou de necessidade. Court pegou-lhe a mão e voltou a pô-la em cima dele, ensinou-lhe a acariciar de cima abaixo.

     Depois foi alternando os beijos com as carícias de sua língua até que Annalía arqueou as costas oferecendo-se e quando ela chegou a esse estado, ele a agarrou pela nuca e a apertou contra a parede da gruta, com a mão dela entre os dois corpos.

     —MacCarrick, o que quer de mim? —sussurrou ela excitada.

     O que queria? Tudo ou nada. Com a Annalía, ele tinha que aproveitar cada momento.

     —Esta noite quero ver como tem um orgasmo. De um modo ou outro. —Quando ela o olhou confusa e retirou a mão, ele voltou a aprisionar seus lábios com os seus, mas Annalía afastou o rosto.

     —Não posso pensar. A cabeça me dá voltas.

     Court sabia que não podia pensar, que se pudesse separaria dele. Odiava ser o tipo de homem que uma dama como ela não quereria, ou não poderia considerar para nada mais que isso. Pôs sua mão entre sua perna, por cima da saia, e apertou com força através do tecido.

     —O que está fazendo? —Annalía abriu os olhos e o olhou ofegante. Court se agachou para poder beijar os seios, uma vez que não deixava de acariciá-la com os dedos— OH, Meu Deus — gemeu ela e relaxou em seus braços.

     —Você gosta.

     —Sim — gritou ela.

     —Quer que continue te tocando?

     Quando ela sacudiu ansiosa a cabeça, ele não pôde evitar sorrir, e disse:

     —Agora já não se comporta como uma dama.

     Todo o corpo dela se esticou, e o separou de um empurrão. Puxou a blusa que ele segurava, embora ele resistisse em soltá-la. Quando baixou a vista e viu a mão do homem entre suas pernas, em cima de sua saia, ruborizou-se e abriu os olhos, horrorizada. Court se lembrou muito tarde de como ela tinha reagido a última vez que ele tinha feito um comentário desse tipo.

     Humilhada. Annalía reagiu como se a tivesse esbofeteado.

     Court afastou a mão.

     —Anna, eu não deveria ter dito isso...

     —Não, mas é verdade, não é? —E sorriu, mas foi um sorriso falso que não chegou a seus olhos.

     Court sabia que o maldito colar retornaria no dia seguinte sem falta a seu pescoço, como uma corrente. Ele odiava essa maldita jóia.

     Queria saber quem lhe tinha feito mal, além dele. Quem tinha feito um dano tão profundo.

     E tampouco importaria saber por que tinha tanta vontade de matar a essa pessoa.

 

Durante os últimos dois dias, nos momentos mais inesperados, Annalía se lembrava do que tinha acontecido na gruta e não podia evitar ruborizar-se. Bom, para falar a verdade não deixava de pensar nisso. Como nesse mesmo instante, trancada naquela cômoda carruagem, com um homem tão intenso que inclusive tendo-o a um metro de distância podia senti-lo.

     Pior ainda, cada vez que lembrava dessa noite, Annalía desejava repeti-la, sem importar a vergonha que havia sentido. O que tinham feito, só tinha servido para que desejasse mil vezes mais. Queria voltar para aquela noite e aceitar o que ele oferecia. Queria voltar e dar o que ele parecia precisar.

     Mas ele mesmo devia pensar que ela não se comportou como devia. “Agora já não se comporta como uma dama”, havia dito ele quando Annalía tinha pedido mais carícias, e até acreditou ter ouvido ele rir. Um bárbaro escocês tinha liberado o fogo que corria por suas veias e depois a tinha ridicularizado. Acreditava que ela tinha feito mal. Se não, por que quando paravam para descansar ele dormia em uma cadeira ou no chão sem pigarrear? Por que não havia tornado a tentar seduzi-la? Antes, ele sempre encontrava desculpas para tocá-la, sempre a estava olhando, e agora nada.

     Cada noite, Annalía ficava acordada, desejando que ele voltasse a deitar-se na cama. Assim poderia rejeitá-lo! Mas nunca acontecia nada, nada, exceto que a cada dia ela estava mais cansada e decepcionada.

     A noite passada, ela tinha dado conta de que não tinha nenhuma intenção de rejeitá-lo.

     Fechou os olhos com força. Do que sentia saudades? Ninguém podia escapar de seu destino. Ela tinha tentado com todas suas forças tornar-se no contrário do que todo mundo esperava. Tinha tentado, e por culpa da sedução de um rude escocês, tinha fracassado. Uma sedução que sumiu como se nunca tivesse existido.

     Pensar nisso provocava-lhe dor de cabeça, assim que se apoiou na parede da carruagem, bem na janela, e tentou dormir. Precisava recuperar as duas noites de insônia, e pela janela entrava uma brisa muito agradável. O sol acariciava-lhe o rosto através das folhas das árvores. Maravilhoso...

     Pouco tempo depois, Annalía despertou e piscou para enfocar a vista. Estava excitada, nervosa, e viu que ele estava acariciando o seu seio por cima da blusa.

     —Dormiu bem? —perguntou ele com voz suave junto a seu ouvido.

     Ela se afastou. Agora que estava acordada, deu-se conta de que deitou em seu colo e que tinha a camisa dele agarrada em suas mãos.

     Enquanto tentava acalmar-se, tentou decidir pelo melhor modo de insultá-lo por havê-la tocado enquanto dormia, Court disse:

     —Fala dormindo.

     —Não falo!

     —Sim. Acaba de fazê-lo bem agora, como cada noite que passei com você.

     Que humilhante! Ela retocou o penteado, arrumou bem a gargantilha e cruzou os braços em cima de seus sensibilizados seios.

     —Não deveria ter-me... acariciado estando eu ou não inconsciente! —gritou ela— Já sei que não é um cavalheiro, mas isto... isto... Não é justo.

     —Não me diga o que é justo. Tampouco é justo o que eu não possa evitar.

     Ele não podia evitá-lo? Bom, tinha conseguido fazê-lo durante as últimas cinqüenta e nove horas. Ou quase. OH, ela sentia que ele... Um momento, tentava dizer que era culpa dela? Como atrevia a dar a volta ao assunto?

     —Quero que se desculpe — disse.

     Ele esboçou um sorriso maldoso e descartou a idéia imediatamente.

     —Nunca me desculparei por isso. Além disso, é você quem abraçou a mim, e acariciou o meu peito e mais abaixo. Não parava de dizer coisas carinhosas em catalão...

     —O que eu disse? —perguntou ela, nervosa. Estava certa que tinha suplicado que fizesse amor com ela. Era tão pouco original!

     —É um pouco escandaloso. Está certa de que quer que eu repita isso?

     —Não! —replicou ela, aproveitando a escapatória— Mas continuo sem acreditar que tenha feito essas coisas.

     —Sim as tem feito. Depois que te coloquei em meu colo, que é onde tem que estar, começou a fazer.

     Annalía apertou a mandíbula.

     —Não tem vergonha!

     —Annalía, não podemos continuar assim. Sei que está zangada comigo...

     —Não estou zangada contigo, estou zangada comigo mesma — mentiu ela, porque a verdade era que estava furiosa com ambos.

     —Como é isso? Não pode se culpar pelo o que aconteceu.

     —Claro que posso. É como você disse. Não estava me comportando como uma dama.

     Ele afastou a vista e sussurrou:

     —Se soubesse a quantidade de vezes que me arrependi... —Voltou a olhá-la e acrescentou— Anna, se alguém tiver a culpa nisso, sou eu. Naquela noite te convenci de que fizesse algo que em outras circunstâncias não teria feito. Se lembra. Eu sou um bastardo sem escrúpulos. Empurrei você para fazê-lo.

     Ela negou convencida. Ele não tinha nem idéia do muito que Annalía tinha desejado que a tocasse. Como desejava nesse mesmo instante.

     —Fez alguma vez o que fizemos com outro homem?

     —Não!

     —Então foi minha culpa. Fui eu. —Ele parecia muito seguro do que dizia.

     —E você o tem feito com muitas mulheres?

     Ele não respondeu, limitou-se a continuar olhando sua face.

     Outras mulheres. É claro que tinha feito com muitas outras mulheres. Como as que o estavam olhando na rua. Por que isso a colocava furiosa? Muito furiosa.

     —Anna, tenho mais de trinta anos. Não levei uma vida monacal.

     Bastardo! Era só uma de tantas, enquanto que ela nunca poderia pensar em outro homem como pensava nele. Na gruta, antes de sua humilhação, Annalía havia sentido algo maravilhoso. O que ele tinha dado era indescritível.

     —Eu tenho vinte e um e ao parecer eu sim a levei! —Uma idéia passou pela cabeça. Se as lembranças dele foram atormentá-la, ele merecia o mesmo. Queria que, quando se separassem, ele a desejasse por cima das demais, por cima de todas as balconistas, garçonetes e filhas de fazendeiros; por cima de todas. Ela queria ser melhor que todas as demais.

     Instintivamente, soube que podia obtê-lo...

     —Quero outro beijo — disse ele com voz sensual.

     Ela o olhou nos olhos.

     —Pois pegue-o — murmurou ela.

     Court pareceu surpreso, mas pôs uma mão atrás de sua nuca e com a outra a agarrou pela cintura para aproximá-la dele. Com um “OH”, ela viu que a sentava em seu colo. Quando a teve acomodado em cima dele, pôs as mãos nos ombros e começou a massagear o pescoço com os polegares.

     —Isto me estorva, pequena — disse, e desabotoou a gargantilha.                                                              

     —OH, espera, você não pode...

     —Porei-a em um lugar seguro. —Enrolou-a com cuidado e a guardou no bolso de sua calça.

     Annalía ia dizer algo mais, mas Court continuou sua massagem. Inclusive quando a ela começaram fechar as pálpebras, ele continuava sem beijá-la. A moça teve de novo a impressão de que ele desfrutava com essa antecipação.

     —MacCarrick — pediu desesperada. Foi o único incentivo que ele precisou. Apoiou-a em seu braço e a beijou. Com o outro braço roçava-lhe os seios e ela gemeu em seus lábios. O homem deteve-se como se estivesse decidindo algo, e depois levantou a mão até seu seio. Outro gemido. Que ele a acariciasse era uma necessidade vital, se afastasse, ela suplicaria que voltasse.

     Court continuava beijando-a com paixão, acariciando sua língua com a dele, percorrendo-a com as mãos por cima do tecido da blusa. Quando se arqueou contra seu corpo, sentiu toda a masculinidade dele sob seu traseiro, forte, ereta. Entretanto, ele se afastou. Annalía não podia pensar com claridade, precisava voltar a sentir seus lábios e esse calor e essa dureza entre sua perna. Lembrou-se de como ele tinha gostado que ela o acariciasse na gruta, como seu membro tinha crescido e se endureceu em sua mão.

     Sentiu o ar sobre seus seios, seguido do quente fôlego dele.

     Como a tinha despido? Tinha a blusa desabotoada, e ele tinha deslizado para baixo a roupa interior até descobrir seus seios. Não afastava os olhos dela, um olhar intenso.

     Duas noites atrás havia música e escuridão, mas agora era de dia. Annalía podia sentir como se ruborizava da cabeça aos pés e começou a cobrir-se.

     —Não, Anna, me deixe vê-la. — Acariciou-lhe um seio com os nódulos dos dedos, depois o outro, com reverência. Disse uma palavra estrangeira, mas o modo em que a disse...

       —Não sei, MacCarrick... —Annalía viu como ele franzia o cenho ao mesmo tempo em que abaixava a cabeça para ela. Gemeu quando sentiu que percorria um mamilo com a língua. Um urgente grunhido saiu de dentro do homem ao começar a lamber os seios como tinha feito na gruta. Annalía nunca tinha ouvido falar disso.

     Ele fechou a boca ao redor de um e o saboreou. Ela arqueou as costas de tanto prazer e suas nádegas se apertaram contra ele. Court levantou a cabeça e sussurrou:

     —Quieta, pequena. Nem imagina o que está me fazendo.

     Ela se esticou.

     —Faço-te mal?

     —Sim, muito — respondeu ele, solene; e muito sério acrescentou— Normalmente sempre faz isso.

     Ao ver que ela não relaxava, beijou-lhe o outro seio e também o degustou.

     —Mas eu não quero te fazer mal — disse ela entre gemidos. Falava sério, não suportava a idéia de que ele sofresse, e odiava ser a causa disso.

     Court gemeu contra seu úmido seio:

     —Não será por muito mais tempo.

     Ar frio entre suas pernas. Acariciou-lhe a coxa, percorreu suas meias e chegou mais acima... Ela se esticou em seus braços e afastou a mão. Ele a deslizou para baixo mas continuou acariciando-a.

     —Preciso te tocar.

     —Não!

     Levou os lábios ao lóbulo da orelha dela e o percorreu com a língua.

     —OH!

     Subiu sua mão para cima.

     —Me deixe te tocar.

     —Não posso. Será cruel comigo.

     —Nunca — replicou ele de repente.

     —Antes foi.

     —Cruel? Não queria sê-lo. Mas você sim o é agora. —Ele tinha o acento cada vez mais marcado.

     —Não o sou!

     —Se soubesse o muito que desejo sentir meus dedos dentro de ti... Me tem a seus pés, Anna. Agora mesmo te daria tudo o que me pedisse. —Ele apertou o rosto contra seus seios, beijou-os, e ela tentou ajeitar-se, mas ele voltou a deitá-la— Peça-me o que quiser.

     Desejava-a tanto?

     —O que quiser?

     —Agora mesmo te daria minhas terras, te entregaria minha alma.

     —Só me tocar? Nada mais?

     —Só farei o que você quiser que faça.

     Ela ia passar vergonha. Assim que ele também deveria sentir-se vulnerável.

     —Então, quero... quero sentir você também... sem as calças.

     Em um instante, com um profundo gemido, Court a sentou ao seu lado e a olhou. Ao ver como Annalía contemplava a ereção que se apertava contra suas calças... pensou em como demônios supunha que ia tirar-la, desabotoou o cinturão e afrouxou os botões. Parecia que estivesse procurando o modo de preparar-se e pegou uma almofada. Colocou-a atrás dela e a ajudou a deitar-se, levantou a barra da saia e, acariciando-a com os polegares, subiu-a até a cintura. Voltou a percorrer as coxas com a mão, dissolvendo sua resistência.

     Annalía tinha o seio nu, assim que ele também. Desabotoou sua blusa e, quando acabou, pegou sua mão e a guiou até além da cintura de suas calças, dentro... até que ela tocou sua ereção, pele contra pele. Court fechou os olhos e estremeceu; apertou-se contra sua mão ao mesmo tempo em que contraíam todos os músculos do peito.

     A moça estava assombrada de como quente o notou, do duro e grande que era. Ele gemeu com força, e baixou sua mão até que o acariciou por completo. Soltou outra palavra estrangeira como se fosse uma maldição.

     Virou a cabeça para um lado para fugir da vergonha e da satisfação, e então sentiu a mais peculiar das carícias. Os dedos dele se deslizavam por debaixo de sua roupa interior.

     Quando ele soltou a mão que ainda segurava com força, ela rodeou sua ereção com os dedos, acariciando-o nervosa. De repente, ele agarrou seus calções com ambas as mãos e os rasgou. Annalía gritou ultrajada, até que sentiu o homem acariciando-a com suavidade. Gemeu e deitou para trás. A ponta de um dos dedos de Court percorreu seu sexo. Ele devia sentir o quanto úmida estava...

     —Anna — disse ele com um gemido. A mulher tentou fechar os joelhos, mas ele tinha conseguido meter-se entre elas— Sabe o que é isto? Te sentir tão úmida? É como um sonho. —Olhou-a nos olhos e não deixou que afastasse o olhar— Esta noite vou te saborear — disse, e introduziu um dedo dentro dela.

     Saboreá-la? Annalía gemeu do mais profundo de sua garganta, adorou a sensação de sentir um de seus dedos, essa sensação de plenitude, e quando ele se apertou contra sua mão, recordou que ela continuava acariciando-o. Cada vez que ele movia os quadris contra a mão da garota, seu dedo a penetrava no mesmo ritmo. Quando ela deu conta de que fazia de propósito, como se estivesse imaginando-se que toda sua dureza estava penetrando-a e quisesse que ela fizesse o mesmo, acariciou-o com paixão, pedindo que fosse mais rápido.

     Ele aproximou dela e percorreu um seio com a língua, o lambeu até excitar-lo depois fez o mesmo com o outro. Annalía o olhava fascinada, sem deixar de acariciá-lo. Então sentiu algo novo, uma nova sensação. De algum modo, ele a acariciava por dentro e com o polegar tinha encontrado outra parte dela. Isso fez que acelerasse ainda mais a respiração, que suas pernas se separassem.

     —Sim, assim, separa um pouco mais as pernas; faça-o por mim.

     Fez o que pedia. Porque ele o queria, mas também porque seu instinto o pedia. Precisava abrir-se para ele. Precisava dizer coisas, coisas maravilhosas, confessar o prazer que ele estava dando. Ela nunca havia sentido essa gratidão por ninguém...

     —Anna, quando estou contigo perco a cabeça.

     —Sim! — disse ela, pois entendia perfeitamente ao que se referia. Não ocorria nenhuma só razão pela que ele não devesse estar ali, entre suas pernas, acariciando seu sexo, com a saia levantada até as orelhas.

     —Deseja-me — disse ele como se não pudesse acreditar.

     Ela afirmou nervosa com a cabeça, sem saber muito bem o que estava confirmando. Só sabia que ele a fazia sentir tão bem que estava disposta a aceitar tudo o que ele queria lhe dar.

     Os lânguidos olhos do homem se abriram de par em par e, em questão de segundos, desabotoou por completoa calça, e, sem que seus dedos deixassem de acariciá-la nem um só instante, colocou-se em cima dela. Court estava ali, enorme, excitado e magnífico, os músculos de seu peito e seu abdômen contraídos, e ela compreendeu que tinha que voltar a tocá-lo.

     Agarrou-o em sua mão, e ele arqueou a cabeça para trás para gritar. A força de sua reação fez que a tensão que crescia dentro dela chegasse a seu ponto máximo.

     —OH, Déu!—gritou.

     Ele a olhou nos olhos e sussurrou:

     —Faça-o por mim. Quero te sentir.

     Annalía gemeu e seus quadris se moveram junto aos ardilosos dedos dele. Perdeu a razão. A tensão explodiu. Ela arqueou as costas, podia ouvir a respiração entrecortada do homem, senti-la em cima de seus seios, notar como ele a enchia de prazer. A moça perdeu o controle, tinha que acariciá-lo por toda parte.

     Quando as carícias dele ficaram mais lânguidas, percorrendo-a, deleitando-se em sua umidade, Annalía abriu os olhos e viu que sua mão seguia acariciando o membro dele devagar.

     —Queria tudo de você, mas não posso me controlar mais. Ajudará-me a chegar ao final?

     Significasse isso o que significasse, ela aceitou afirmando com a cabeça, muito relaxada para fazer nada mais. Ele a ajeitou um pouco até recostá-la contra a parede da carruagem, depois tirou a camisa e colocou Annalía no colo, em cima do vestido.

     —Volta a me acariciar. —Ela o fez imediatamente.

     Para poder aproximar-se mais ele apoiou a mão na parede da carruagem, bem em cima da moça. depois, com a outra mão, rodeou a dela, seus longos dedos cobriram os seus por completo e sua masculinidade ficou encerrada entre os dois, apertada, de um modo maravilhoso.

     Então Court moveu sua mão sobre a dela, ao longo de toda a longitude de seu membro, ao tempo que seus quadris se moviam para detrás e para frente. Com cada arremesso, ele soltava um juramento em voz baixa e rouca, sem deixar de olhar os seios, o pescoço, o rosto de Annalía.

     A ele começava respirar mais rapido. Uns gemidos dolorosos, ardentes, saíam do mais fundo de sua garganta.

      —Arqueia as costas — ordenou ele, e ela assim o fez.

     Ele se tornou para frente e lambeu os seios, só a soltou para dizer:

     —Anna, estou a ponto de... —Sua boca voltou para mesmo lugar, mas esta vez a mordeu, e ela gemeu de prazer.

     A carruagem parou de repente.

     Court soltou a mão e deixou de beijá-la, embora antes de afastar-se percorreu desesperado o seio com o rosto ao tempo que soltava um grave insulto. Quando conseguiu colocar de novo seu ereto membro nas calças, parecia estar sofrendo mais do que tinha sofrido com todas suas anteriores feridas. Respirou fundo, soltou o ar com força umas quantas vezes, como se tentasse recuperar o controle.

     —Não acabamos — sussurrou com voz rouca.

     Ela assentiu com a cabeça, e ele a olhou como se não pudesse afastar-se do que estavam fazendo.

     Antes de voltar a respirar fundo, Court baixou sua saia enquanto Annalía colocava a blusa. Abriu a porta da carruagem e gritou:

     —Por que demônios nós paramos? —Parecia estar a bordo da violência.

     O condutor respondeu:

     —Uma árvore está bloqueando o caminho. Acredito que devido às tormentas que houve a princípios de semana.

     MacCarrick bateu a porta.

     —Maldição! —Pegou sua bolsa e a olhou nos olhos— Quero que se abaixe.

     —O que... o que está acontecendo?

     —Renegados. Com um péssimo sentido de oportunidade.

      

             A raiva que sentia Court ao pensar que alguém queria fazer mal a Annalía era quase cegadora. Não só mal, eles queriam matá-la. E ele era o único que podia evitá-lo. Se não recuperava seu controle habitual, ambos acabariam mortos.

     Tinha estado tão ocupado sob suas saias que não se deu conta do perigo que corriam.

     Tirou sua pistola e uma bolsa de dinheiro, apanhou a camisa soltando uma amarga maldição e a pôs junto com o casaco, cujos bolsos estavam cheios de balas.

     —Se agache, Anna — voltou a ordenar, enquanto tirava o rifle de entre a bagagem e saía da carruagem, feito uma fúria, com a camisa ainda desabotoada. Caminhou para frente sem incomodar-se em agachar ou se cobrir. Agachar-se não teria servido de nada contra eles, e, por outra parte, seria a última coisa que teria feito antes que o matassem.

     —Dá a volta.

     Impressionado ante o tom de voz do Court, o condutor assentiu. O escocês guardou a pistola no bolso e jogou a bolsa de dinheiro.

     —Isto é só a quarta parte de que te darei se a levar a um lugar seguro até que eu retorne.

     O chofer pesou a bolsa com a mão e disse:

     —A quarta parte?

     Court revisou o carregador de seu rifle, e o apoiou no ombro. Dirigiu-se aos cavalos, que começavam a ficar nervosos para pegar uma rédea e ajudar o chofer a dar a volta.

     Soou o primeiro disparo, que passou roçando a cabeça. Os cavalos se agitaram, mas não se moveram.

     Court apontou para lugar de onde tinha provindo o tiro e disparou, Depois voltou a carregar e disparou três vezes mais. Com esse pouco tempo que tinha conseguido ganhar, subiu à boléia do condutor, que estava preparado para sair voando dali, e em voz baixa deu novas instruções.

     Court saltou antes que dois disparos acertassem ao teto da carruagem. Anna gritou:

     —MacCarrick, volta, por favor!

     Agora. Agora sim ficou gelado.

     O condutor estalou seu chicote, e Court se afastou para poder disparar. Antes que dobrassem a esquina, pôde ouvir como Anna voltava a chamá-lo.

 

Bastardo! No que estava pensando ao saltar desse modo da carruagem? Quem acreditava que era? Tinha dado a entender que ela alguma vez fosse gostar que ele atuasse assim?

     Annalía gritou para Coachy que parasse, mas corriam como loucos, o pó do caminho entrava através dos buracos de bala.

     Não era justo. Era igual à antes. Esperar era muito pior. Não saber o que estava passando. A maldita carruagem ia tão rápido que nem sequer podia saltar dela.

     Por que não ficou e fugiu com ela? Não, MacCarrick tinha que fazer algo grande, um gesto heróico. Nem sequer tinha agachado! Zangada, cruzou os braços, mas depois teve que descruzar-los para se segurar, pois a carruagem não parava de sacudir.

     Não importava. Cedo ou tarde encontraria seu irmão e retornariam a casa. Ela não precisava de Courtland MacCarrick.

     —OH, Madre do Déu — disse suspirando. Ela não precisava dele, mas o queria Apesar de ser um teimoso e agressivo escocês, queria-o. E ele continuava negando que era um maldito herói?

     Passaram muitas horas lúgubres até que a carruagem por fim parou. Notou um aroma estranho que não identificou, estranho até que baixou o guichê e descobriu um montão de água desdobrando-se diante dela. O mar. Deviam ter chegado a Calais, ante o canal que levava a Inglaterra.

     Annalía nunca tinha visto a costa embora sempre tinha desejado fazê-lo. Por alguma razão que não conseguia entender, todo mundo que retornava de ver o mar, era feliz.

     Pela extremidade do olho, viu como o sol brilhava e como as ondas ardiam com sua cor.

     E não sentiu nenhum pingo da excitação que acreditou que sentiria, e soube que não a sentiria embora o tentasse.

     O chofer, inexplicavelmente era amável com ela quando o que deveria ter feito era fugir correndo de uma passageira a que tinham atacado e abandonado, assegurou-se de instalá-la em uma reconhecida hospedaria de que se podiam ver o mar e os escarpados. Ele encarregou inclusive de que levassem o jantar ao seu quarto, um bom pescado, mas quando estava nervosa não podia engolir nem um bocado. Em vez disso, permaneceu no balcão, olhando como o farol da Inglaterra rivalizava com o da França, que estava na colina mais acima; suas luzes sobre o mar eram como gizes em um cascalho.

     Mas onde estava ele? Annalía afastou do balcão e começou a caminhar para cima e para baixo do quarto até cair esgotada. Por que não tinha chegado ainda? Conhecia a resposta mais provável, mas negava a aceitá-la. Negava-se que seu coração morresse, pois sabia que se ele morria, ela nunca voltaria a ser a mesma.

     Durante quase toda sua vida, Annalía tinha odiado a sua mãe por culpa do adultério que tinha cometido, por havê-lo estragado tudo pela paixão. Antes de MacCarrick, ela não entendia como alguém podia renunciar a tanto, mas agora sabia que havia sentimentos que podiam empurrar a uma pessoa a arriscar tudo. Ela mesma estava disposta a renunciar a tudo o que tinha para que ele voltasse, vivo.

     Franziu o cenho, angustiada. A noite passou muito lenta, mas por fim saiu o sol. E ele ainda não estava ali. E se estivesse ferido por algum caminho? OH, Deus. E se estivesse inconsciente, atirado em uma sarjeta?

     Tinha que refazer o caminho e buscá-lo. Se necessário, daria uma surra em Coachy para que a acompanhasse, mas ela ia retornar por ele.

     Decidida, abriu a porta. Uma escura figura estava no marco, e ela quase gritou assustada.

     —MacCarrick!

     Ele parecia mais exausto que nunca.

     Fez com que ela entrasse batendo a porta atrás deles. Sem dizer uma palavra, percorreu-lhe o corpo com as mãos, olhando-a de cima abaixo para ver se estava ferida, e depois se afastou com brusquidão. Ela sabia que ele não tinha dormido nada desde que a deixou, e o coração deu um baque ao dar-se conta de que tinha retornado a seu lado logo que tinha sido possível.

     Mesmo assim...

     —Você, bastardo escocês! Não volte a fazer isto nunca, nunca mais. Não se atreva a voltar a me deixar!

     Court apoiou o rifle contra a parede. Antes ele era novo e cheio de resplendor, agora estava cheio de arranhões, coberto de barro, e com o traseiro um pouco irregular. O que tinha passado ali fora?

     Ele murmurou sarcástico.

     —Estou são e salvo. —Levantou uma enorme cadeira como se não pesasse nada, e trancou a porta— Não se preocupe.

     Annalía, perplexa, olhou como se aproximava da jarra para beber água.

     —Estive muito preocupada. Não sabia se ia retornar.

     Ele passou a manga da camisa pela boca, e depois deu a volta. Era óbvio que estava zangado.

     —Tenho a sensação de que se arrumou bastante bem sem mim.

     —Com certeza que sim! Mas isso não significa que não queira estar com você!

     Ele franziu o cenho como se suas palavras o tivessem deixado surpreso, confundido. Voltou a tropeçar ao tirar a pistola do cinturão para deixá-la na mesa que havia junto à cama.

     —Não posso falar. Preciso dormir, pequena. Não saia do quarto ou farei que se arrependa disso.

     Caiu na cama, de barriga para baixo e ficou inconsciente.

     Ela abriu os olhos de par em par e aproximou dele para virar a cabeça, assim poderia respirar. Era óbvio que agora precisava que alguém o cuidasse. Tirou os seus sapatos e sentou junto a ele, com os joelhos dobrados contra o peito. O mero ato de vê-lo dormir fez que esses sentimentos que tinha experimentado antes se multiplicassem.

     Aproximou-se e afastou o cabelo da testa. Doeu- ver que ele franzia o cenho ante a carícia, como se não estivesse acostumado a que o tocassem. Era possível?

     De todas as mulheres às que ele reconhecia ter seduzido nenhuma o tinha acariciado com carinho? Quando eles dois fizessem amor, ela sim o faria.

     Deus! Até esse momento nem se deu conta de que uma parte dela já tinha pensado nisso, e muito menos que já o tinha decidido. Mesmo assim, acreditava que era uma decisão acertada, em especial se lembrava dos três atentados que já tinha sofrido e estava certa que não seriam os últimos. Negava-se a morrer com remorsos. Agora que tinha tido uma amostra, que tinha saboreado o que seria fazer amor com Courtland MacCarrick, queria ter tudo.

     Depois de passarem-se horas tentando imaginar como seria fazê-lo, suas pálpebras acabaram dando-se por vencidos e se fecharam.

     Era quase de noite quando despertou, estava meio dormindo, e não tinha mudado de postura desde que se deitou feito um novelo. Pareceu que ouvia uma risadinha ao outro extremo do quarto.

     Entreabriu os olhos e viu Court com o cabelo molhado, secando-se nu junto à banheira. Só tinha acendido um abajur, provavelmente para não despertá-la, mas ela podia ver como seus músculos, perfeitamente esculpidos, esticavam-se ao passar a toalha pelo pescoço, o peito e suas partes mais íntimas. Fingiu continuar dormindo e o estudou através das pestanas, até que, por desgraça, ele colocou as calças.

     —Sei que está acordada — disse ele.

     Com um suspiro de exasperação, ela se sentou.

     —Se sabia que estava acordada, por que não deu a volta em vez de continuar de pé de frente para mim?

     —Não ouvi nenhuma queixa.

     Esse homem não tinha nenhum pingo de modéstia em todo seu corpo! Mas não tinha vontade de discutir com ele.

     —Quanto horas faz que está acordado?

     —Não muito.

     Ela recolheu o cabelo em uma cauda.

     —Quantos eram?

     —Três.

     —Matou-os?

     —Sim.

     Ele não parecia orgulhoso desse fato. Depois do segundo ataque, ela tinha dado conta de que MacCarrick não gostava de sangue; ele estava farto de sangue.

     —Por que nem sequer agachou?

     —Com eles não teria importado. Mas você sim, o tivesse feito como eu te disse, não saberia o que eu tinha feito.

     —Como podia não olhar? Por favor, não volte a me deixar desse modo. Eu posso te ajudar. —Isso fez com que ele achasse graça e ela se indignou— Se não recordar mal, em Toulouse eu me encarreguei de um dos dois que nos atacaram no caminho. Se me desse uma pistola...

     Ele empalideceu.

     —Não quero vê-la nunca com uma pistola na mão, Anna.

     —Por que não?

     —Porque você não é assim — limitou a responder ele.

     —O que se supõe que significa isso?

     Ele a olhou nos olhos e ela viu que tinha o olhar sombrio.

     —Significa que gente como eu viemos ao mundo para que gente como você nunca tenha que fazer coisas más e depois sofrer por elas.

     Depois de um momento tenso, ela sentiu como uma estranha tristeza a invadia e deu a volta.

     Court acabou de se vestir.

     —Quanto tempo vamos ficar aqui? —perguntou ela.

     —Temos que esperar até a maré da manhã para poder cruzar, depois apanharemos o trem até Londres.

     Um trem. Ela sempre tinha sonhado andando em um, mas na França havia muito poucos e em Andorra, nenhum. Agora ia fazê-lo, e nada podia importar menos.

     —Irei descer e conseguirei um pouco de comida para você. E um banho, se quiser.

     Ela aceitou ausente, tinha outras coisas na cabeça; como o pouco que gostava que ele voltasse a sair nesse momento, ou tentar descobrir o que tinha que fazer para seduzir um mercenário escocês. Supunha que mesmo com qualquer outro homem, o que tampouco a ajudava muito.

 

     — Acreditei que já estaria pronta — disse Court ao mesmo tempo em que a obrigava afastar-se da porta. O quarto estava às escuras, com exceção de um abajur que piscava, e Annalía estava sentada diante do travesseiro da cama, vestida só com sua camisola e uma nova bandagem.

     Ele tinha dado tempo de sobra para ela banhar e vestir-se, tinha medo de ver qualquer parte dela sem roupa; a essas alturas, só ver seu tornozelo lhe causava dor. Depois de assegurar-se de que Anna estava a salvo, as lembranças do que tinha acontecido na carruagem começaram a fazer um rasgo nele. Inclusive dormindo sonhava com um final diferente e despertava excitado e ansioso para voltar sentir. Tinha chegado a sonhar que ela dizia que queria estar com ele, mas no caminho de volta se deu conta de que na realidade ela não queria fazer amor com ele nessa carruagem. Ele estava muito cansado e imaginava essas coisas porque a desejava desesperadamente.

     E agora, vê-la sem nada exceto com aquela delicada peça de roupa e com o cabelo solto...

     —Espera, MacCarrick. Preciso falar com você.

     Ele engoliu seco

     —Poderemos fazê-lo assim que você se vestir.

     —Quer entrar, por favor?

     Por que demônios a teria ensinado pedir as coisas? Provavelmente porque não imaginava que ele seria incapaz de negar-lhe nada. Fechou a porta e sentou aos pés da cama.

     —O que quer?

     —Tive muito tempo para pensar — disse ela com suavidade.

     Court ficou olhando-a, enfeitiçado, ao ver que ela engatinhava para ele.

     A cada movimento, seus seios se balançavam, e ele teve que esfregar a boca com a costa da mão.

     Deus! Se soubesse que isso seria o que esperava ao voltar, teria dado ainda muita mais pressa em retornar.

     —São tempos perigosos para nós.

     Ela sempre tinha tido um acento que o deixava louco, mas quando sussurrava as palavras... sua voz o excitava muitíssimo.

     —Sim, são. —Embora a vontade que tinha de agarrá-la entre seus braços e percorrer o seu corpo com as mãos o estavam matando, continuou quieto, tentando respirar, à espera do que ela fosse dizer.

     —E eu não quero deixar de experimentar algo. Não quando posso fazê-lo. Agora. Com você.

     —Comigo — aceitou ele sem pensar. Annalía estava na cama com ele. Ela o desejava. A “ele”, um rude escocês. Isso não era nenhum sonho.

     Talvez deveria seguir sendo-o...

     —Anna, se está fazendo isto, é porque você passou medo quando eu fui, ou porque acredita estar em dívida comigo... então... —“Court, o que está dizendo?” Ele sacudiu a cabeça com força— Como se me importasse. Vêem aqui.

     Ela o fez. Sentou sobre os calcanhares, frente a ele, seus lábios estavam perto dos seus, e sussurrou:

     —Estou te pedindo que me faça amor.

     Ela tinha arrebatado o seu coração. Claro que tinha.

     Mesmo assim, não perdeu tempo, levantou a camisola por cima de seu corpo para tira-la temendo que mudasse de opinião. Ela seguiu seus movimentos e depois levantou a vista. No princípio se sentia atrevida, mas ele não parava de olhar seu corpo nu, assim que cobriu os seios com o cabelo e cobriu-se com a colcha que tinha na frente.

     Court limitou a mover a cabeça, devagar, advertindo-lhe que não o fizesse.

     —P... mas está me olhando.

     Ele retirou o tecido e a deitou na cama, acariciou-lhe o cabelo com os dedos para afastar os cachos para um lado.

     —Estou-te olhando porque é mais bela do que poderia ter imaginado, e eu gosto de olhá-la inteira. Estou te olhando porque acreditei que nunca poderia fazê-lo. — Sua voz era irreconhecível. Soava animalesca. E ela, com sua pele dourada, seus seios redondos e sua pequena cintura, parecia uma oferenda.

     —Nunca estive tanto tempo nua fora do banho.

     —Não pode ter vergonha comigo.

      —Por que não?

     —Porque sou eu. —Ele voltou a percorrê-la com um olhar faminto e soltou uma maldição— Pequena, nem sequer sei por onde começar.

     Annalía mordeu o lábio inferior.

     —Seria mais fácil estar nua se você também estivesse.

     Ele não disse nenhuma palavra, limitou-se a tirar as botas, depois passou a camisa pela cabeça sem desabotoá-la. Ficou de pé frente à cama, desabotoou as calças e as deslizou por cima de sua ereção deixando-as cair no chão.

     —OH, Deus... — murmurou ela com os olhos brilhantes. E sentou como se estivesse em um picnic, de lado, com os pés sob as nádegas. Como uma dama.

     Court apoiou um joelho na cama, disposto a aproximar-se dela, nervoso porque estava a ponto de fazer amor com essa mulher.

     —Espera.

     “Claro, espera.” Ele fechou os olhos frustrado. Como pode imaginar que ia fazer o que pensava? Deveria saber que ela ia entrar em razão. Tinha que saber que ele nunca ia ter tanta sorte.

     —Você importaria de ficar aí?

     Ele abriu os olhos e viu que ela estava aproximando.

     —Está completamente nu, e eu quero... — Quando Annalía se ajoelhou diante dele, com seu rosto ao nível do dele graças à altura da cama, ela se aproximou mais e sussurrou— Posso te tocar primeiro?

     Court tentou esconder a incredulidade de seu rosto e retrocedeu o joelho para ficar de pé.

     —Pode fazer tudo o que quiser.

     A moça mordeu o lábio e levou as mãos para seu rosto, acariciando-o com os polegares, percorrendo com suavidade a cicatriz de sua testa. Depois deslizou aquelas suaves mãos por seu pescoço, seus ombros, seus braços. Inclinou a cabeça ao encontrar com as mãos dele, como se não soubesse o que fazer com elas, e então as colocou em cima de seus ombros para afastá-las de seu caminho.

     —Nesse momento quero que fiquem aqui.

     Annalía falava a sério. Com os braços dele levantados, explorou seu peito, o arranhou algumas vezes, fazendo que os músculos contraíssem de dor, mas ele não deixou que ela soubesse, e pelo modo em que seu pênis reagia a suas carícias nunca o descobriria.

     —Anna — gemeu ele ao ver que a respiração dela estava acelerando; seus seios moviam no mesmo ritmo, procurando ansiosos os lábios dele. Com grande satisfação, Court deu conta de que ela estava excitada em tocá-lo.

     Então com uma mão, o acariciou no estômago.

     —Cada centímetro de você é duro.

     Devagar, foi seguindo o caminho que marcava seu pêlo até o umbigo, ele só pôde gemer como resposta. A cada carícia, quanto mais se aproximava, mais aumentava sua agonia. Então uma onda de prazer o golpeou por inteiro ao sentir como ela rodeava seu pênis com a mão. Ao sentir que a outra mão também o acariciava, acreditou morrer. Court apertou os ombros e soltou uma maldição.

     —Exceto aqui. —Com as unhas, percorreu a bolsa que havia sob seu sexo e ele arregalou os olhos.

     Voltou a apoiar o joelho na cama, e a aproximou dele. Quando a beijou, ela se soltou e disse:

     —Não tinha terminado.

     —Pois eu estava a ponto.

     Annalía franziu o cenho sem entender, e ele a beijou com força; um beijo úmido, acariciando com sua língua até o mais profundo; um beijo mais agressivo que o da carruagem. Suas mãos encontraram as nádegas dela, apertaram-nas, moldaram-nas e sentiu como movia os quadris junto a ele ao mesmo tempo em que segurava o seu rosto com as mãos para aprofundar o beijo.

     Court acariciou os cachos que cobriam seu sexo, com reverência, e gemeu contra seus lábios.

     —Separa os joelhos, por favor. —Quando ela o fez, ele introduziu um dedo em sua umidade e gemeu— Anna, sinto-me tão bem dentro de você.

     A moça jogou a cabeça para trás, e apoiou-se nos ombros dele para segurar enquanto ele continuava explorando-a. Na carruagem, Court já tinha tido a sensação de que ela era muito estreita, mas saber que desta vez ia penetrá-la, fez com que percebesse de que era muito mais estreita.

     Deitou-a na cama, segurou-a pela cintura e a aproximou da cabeceira. Colocou suas pernas uma a cada lado dele, e beijou cada centímetro do interior de suas brancas coxas, como tinha desejado fazer desde o dia em que a conheceu. O contato era como arranhão, ela provavelmente sentiria mais o calor de seu fôlego que seus beijos, e se estremeceu.

     Continuou acariciando com um dedo seu interior quando ela gemeu e arqueou as costas, ele percorreu então seus seios e com a outra mão tentava acrescentar outro dedo a suas carícias. Annalía era como seda ardendo, tão sensual, mas muito pequena. Court podia sentir que ninguém havia enlouquecido-a antes, podia sentir que era virgem.

     Olhou suas mãos escuras e cheias de cicatrizes em cima do sexo dela, em cima de suas coxas. Pareciam... não pertencer ali. Ele sentia enorme e repugnante, e sabia que ia machucá-la. “Não é assim como funcionam as coisas?”, perguntou uma parte dele. Mas Court sabia que a machucaria e que, além disso, destruiria sua reputação. Parecia muito, um preço muito alto.

     Ele não era o bastante bom para ela.

     Aproximou-se, com cuidado de que seu sexo não a tocasse, e apoiou sua testa contra a dela.

     —Não posso fazer isto.

     Annalía se esticou; ele o sentiu no mais fundo.

     —Não me deseja.

     Court se afastou, surpreso de que uma mulher como ela pudesse chegar a essa conclusão.

     —Não é isso.

     A garota afastou o rosto.

     —Eu quero que me faça amor, estamos os dois nus na cama, juntos, e não quer fazê-lo? Acredito que é porque percebeu de que não me deseja.

     Court pegou sua mão com força e a pôs em cima de seu pênis.

     —Não pode sentir o muito que te desejo?

     Depois que rodeou seu membro com os dedos, o corpo dela perdeu forças, e o olhou com olhos sonhadores.

     —O que quer fazer é me distrair. Acalmar-me, já que ambos sabemos o muito que eu gosto de te acariciar.

     Ele lutou por encontrar as palavras. Acalmá-la? Franziu o cenho. Era importante que ela o entendesse... Mas o que era o que queria que entendesse? Ah!

     —Juro que te desejo.

     —Não, acredito que já entendo o que tenta me dizer — murmurou Annalía sem afastar os olhos da mão com que o acariciava— Você é um homem muito grande. Precisa de uma mulher de seu tamanho. Como os cavalos.

     —Não, não é isso. —Court não podia pensar quando ela continuava olhando seu sexo com esse prazer, como se sentisse falta.

     Ela suspirou.

     —Comparada com as fortes mulheres da Escócia devo ser uma nanica.

     Ele tinha tentado fazer o correto. Tinha tentado ser nobre.

     —Vou ensinar-te o quanto que te desejo. O quanto perfeita é para mim...

     Beijou-a no pescoço e com a língua percorreu o caminho até seus seios, detendo-se para emprestar atenção a seus mamilos. Encantava-o ver o quanto sensíveis estavam e o muito que desejava essas carícias. Outra noite não deixaria de beijar os seios até que chegasse ao orgasmo. Ele tinha fantasiado com a idéia de penetrá-la com os dedos, bem no momento em que começasse o clímax.

     Deslizou-se por seu corpo, beijou-lhe o plano umbigo, e obrigou a afastar seu sexo da mão da mulher, embora ela fechasse os dedos ao redor dele para evitar que escapasse, e depois, com a outra mão, tentou alcançá-lo para que não escapasse; uma reação que ele gostou muitíssimo.

     No final, ele se apoiou na cama e, colocando as mãos entre suas pernas, levantou suas nádegas.

     —MacCarrick? —perguntou ela nervosa.

     Com a primeira prova de seu sabor, ele apertou as mãos com muita força. Estava ansioso por saborea-la, mas não queria assustá-la. Obrigou-se a se afastar, a recuperar o controle.

     —O que esta fazendo? —gritou ela— Não pode fazer isso!

     Tentou soltar de seu abraço quando ele voltou beijá-la, mas Court a percorreu lento, devagar com a língua, apreciando sua suavidade. Fechou os olhos diante tanto prazer.

     Ela gemeu ultrajada.

     —Tem que parar — disse.

     —Anna. —Seu nome foi como um grunhido— Nenhuma força do mundo poderia me deter.

     —A você —perguntou ela com voz trêmula— você gosta...?

     —De te saborear?

     Ela se retorceu envergonhada.

     —Sim!

     —Poderia estar aqui deitado entre suas pernas te beijando toda a noite. Mas e você? Você gosta? —perguntou de sua vez, antes de voltar a percorrê-la com a língua de novo.

     —Não!

     Ele se afastou.

     —Mentirosa.

     —Não está certo.

     —Mas você gosta?

     —Não deveria!

     —Me deixe fazê-lo. Me deixe te agradar.

     Annalía fechou os olhos com força.

     —Não posso.

     —Então, o único que te peço é que me deixe te dar um último beijo e depois me afastarei.

     Com voz cheia de tristeza, ela disse finalmente:

     —Está bem.

     Court se agachou para ela uma vez mais e a lambeu devagar, com doçura, acalmando-a antes de penetrá-la com sua língua por completo. Ela se arqueou em cima da cama, gemendo.

     —Quer que pare?

     Com os olhos fechados, Anna moveu impaciente a mão que tinha sobre ele.

     Ele sorriu orgulhoso, e a beijou uma vez mais, degustando-a; levantou a vista e entusiasmou em ver como ela respondia a esses beijos.

     Seu sabor não demorou muito tempo em enlouquecê-lo por completo, e ele começou a mover devagar seus quadris contra a cama. Separou ainda mais suas pernas. Abriu-a ante ele para poder ter acesso a tudo o que queria, e tomou por completo, incapaz de saciar-se. Ela não parava de mover a cabeça, estava completamente perdida, precisava chegar ao clímax.

     Court sabia o muito que ela precisava e isso o fez beijá-la com força, com loucura, era pouco mais que um animal. Afastou as mãos de suas coxas e apenas se deu conta de que ia acariciar seus seios. Com um gemido, colocou os braços a ambos os lados dela e agarrou os lençóis; com a cabeça baixa, continuou beijando-a com abandono.

     Annalía tentou pegar os seus braços, Court se afastou.

     —Não. Eu... estou fora de mim. Te machucarei.

     —Acaricia-os. Por favor. —disse como em um ofego e colocou as mãos em cima de seus seios.

     Ele os acariciou e gemeu dentro dela, lambeu sua suavidade, sua carne ardente, e a mulher começou a explodir sob seus lábios, arqueando as costas, apertando os seios contra suas mãos e agarrando a sua cabeça. Seus gemidos fizeram que ele se retorcesse na cama da necessidade que sentia dela.

     Agarrou-a pela cintura para segurá-la e a observou, sobressaltado, ao ver como ela movia as mãos por cima de seus seios, acariciando-os com suavidade duas vezes, até derrubar os braços junto sua cabeça. Estava perdida por completo ante o que havia feito, e nada nunca tinha-lhe afetado tanto. Beijou-a com toda a ansiedade que sentia, fez que se retorcesse, prolongou seu orgasmo até um ponto doloroso, até que ela deixou de tremer e se derrubou por completo.

     Court não queria afastar os lábios de sua pele, assim beijou-lhe as coxas, os quadris, até ficar deitado ao seu lado, com seus seios frente a ele.

     —Espera, MacCarrick — disse ela sensual— O que acontece com você? Há...?

     —Estou bem — respondeu ele antes de percorrer um seio com a língua. Estaria. Porque ia esperar que ela dormisse e depois ocuparia de si mesmo. Não pediria a ela que o ajudasse a acabar, não depois do que tinha passado na carruagem, e muito menos depois de havê-la tomado desse modo essa noite. Ele não tinha nem idéia do que podia acontecer quando por fim se executasse, nunca o tinha desejado com tanta fúria.

     —MacCarrick, estou agradecida, muito agradecida por me haver ensinado...

     —Você me está agradecendo por isso? —Ele tinha saído ganhando, ele ia recordar essa experiência uma e outra vez em seu cérebro, depois que ela dormisse.

     —Sim, e me sentirei mal a não ser que possa te devolver o favor. —Annalía colocou-se sob seu braço e apoiou o rosto em seu peito. Ele tinha os nervos à flor de pele, deitou-se e a estreitou jurando a si mesmo que não ia pedir lhe que o ajudasse a chegar ao clímax, nem sequer quando sentiu que ela respirava e tremia a seu lado...

     Annalía começou a deslizar os dedos por seu peito.

     Todos os nervos dele estavam gritando, seu cérebro suplicando...

     Deus, sim! Ele arqueou as costas, todo seu corpo se esticou ao sentir que ela o pegava em sua mão.

     A moça o acariciou como o tinha feito na carruagem, colheu-o com força, como ele gostava. Não podia dizer que parasse, estava muito excitado. Já se estava justificando.

     Annalía o acariciava tão devagar... Atormentando-o, acima e abaixo. Forte, apertando-o, mas devagar. Uma tortura. Não se importava. Ele ia ter um orgasmo. Ficaria louco, mas...

     Com voz áspera e atormentada, sussurrou:

     —Aconteça o que acontecer... Aconteça o que acontecer ... não afaste sua mão de mim.

     —Não o farei. Mas acredito — sussurrou ela antes de percorrer o seu peito com a língua—, que antes eu gostaria de te beijar e te lamber.

     Só de pensar nela lambendo seu...

     Explodiu entre suas mãos, gritou de prazer, cravou os calcanhares na cama e arqueou as costas, derramando-se em cima de seu peito.

     Moveu-se para acariciar seus seios, os apertou, agarrou-se a eles e se agachou para beijá-la com todas suas forças. Com paixão, devorou-lhe a boca, a língua... Court continuava movendo-se dentro de sua mão, sem descanso, gemendo entre as carícias de sua língua; depois voltou a esticar-se até que não ficou nada dentro dele.

     Teve a sensação de que tinham acontecido horas até que o mundo inteiro voltou para seu lugar e ele finalmente deixou de tremer e soltou seus seios e seus lábios.

     —Te machuquei? Machuquei seu braço?

     —Não, absolutamente — respondeu ela insegura.

     Court pôs os dedos sob o queixo para obrigá-la a olhá-lo nos olhos; tinha que conhecer sua reação ante sua total perda de controle, ante a primeira vez que via o prazer de um homem. Estaria desgostada? Zangada?

     Ao contrário. Seus olhos estavam excitados, sua respiração acelerada, como se tivesse presenciado um milagre. Ele franziu o cenho. Court não era um homem modesto, mas não sabia como sentir-se ante a feição de fascinação de Annalía depois ter visto como ele se comportou diante dela.

     Era algo normal e necessário, algo que simplesmente passava como teria acontecido na carruagem; mas ela o olhava como se fosse algo especial, como se quisesse que ele o fizesse cada noite. Pior ainda, ela olhava ele... de um modo diferente.

     Court afastou a mão dela de seu sexo e retirou o braço com que a segurava. Levantou e levou com ele um dos lençóis.

     Não gostou nada de ter que limpar-se enquanto ela seguia cada um de seus movimentos com o olhar, com os olhos abertos e curiosos. Atirou o lençol em um canto, e depois voltou para a cama. Longe dela.

     Annalía atuou como se não notasse. Aproximou-se dele e voltou a apoiar a cabeça em seu peito.

     —Foi incrível — sussurrou.

     —Não é nenhuma proeza.

     —Por que não me fez amor? Sou muito pequena?

     —Não — disse ele, isso só era verdade pela metade. Ele nunca tinha imaginado que chegaria um dia em que amaldiçoaria seu grande tamanho, mas essa noite, ao estar entre as pernas dela, tinha-o feito.

     —Então, por que não? Tem medo de que eu fique grávida?

     —Não, por isso tampouco. —Deus, gostaria que essa fosse a razão.

     —Então, o que?

     —Ainda conserva sua virtude. É claro que seu futuro marido o exigirá.

     —Marido? Não sei se você deu conta, mas depois que fui seqüestrada por um bando de mercenários demarca muito a busca de um marido.

     —Poderia ir a América. Casar-se com um homem rico dali.

     —Não quero ir a América.

     —Li suas cartas, Anna.

     Ela se esticou.

     —Por que me diz isso?

     —Li uma, da filha dos proprietários de uma ferrovia em que te falava de seu irmão. —Esse irmão tinha tido intenções de pedir a mão da Annalía a Llorente — Até eu ouvi falar deles. Têm mais dinheiro que o rei. Deveria ir ali...

     —Aleix já recusou seu pedido.

     —Fez isso? —perguntou ele com voz amortecida. Por que será que ele não a esqueceria? Court sem dúvida tinha perdido o juizo, tinha chegado a pensar, o que aconteceria a ele se ficasse com ela? Tinha perdido o juizo se acreditava que ela poderia querê-lo para algo mais que o que tinham compartilhado— Mesmo assim, tem várias opções, se continuar... intacta.

     —Você exigiria isso de mim? —Ela deu a volta ficando de barriga para baixo, e apoiou o queixo em sua mão— Se você fosses casar-se comigo.

     “Se pudesse ficar contigo te aceitaria fosse como fosse”, pensou ele de novo.

     —Eu não penso nessas coisas.

     —Por quê?

     —Porque eu não tenho intenções de me casar nunca.

   —Alguma mulher te fez mal?

     —Não.

     —Não acredito. Por que outro motivo não quereria que uma mulher fosse só tua?

     —Nenhuma mulher me tem fez mal.

     —Assim que o problema é que não quer uma mulher. Quer um harém.

     Se ela soubesse... depois desta noite, tinha-a estragado. O modo em que acariciou os seus seios enquanto ele a estava excitando com sua boca. Tremeu por dentro.

     —Por que me conformar com uma se posso ter muitas?

     —Tampouco é que um homem tenha que deixar de ir com outras mulheres depois de se casar.

     “Se você fosse minha esposa, nunca iria com outras mulheres.”

     —Mas também me disse muitas vezes — prosseguiu ela—, que embora é certo que um homem pode ir com outras mulheres, igualmente tem necessidade de possuir a uma por completo, de fazê-la sua, de protegê-la e proteger aos filhos que tenham juntos. Isso deve ser certo, porque tanto os casamentos como as aventuras continuam existindo. Se ignorar essa necessidade, perderá muitas coisas, MacCarrick — disse ela com voz suave, mas com convicção. Aconchegou-se a seu lado de novo e passou um braço por cima de seu peito. Ele fechou os olhos para desfrutá-lo.

     —Deixemos de falar disto. —antes de deixá-la partir, explicaria que nem todos os homens eram assim. Que ela devia exigir algo melhor.

     “Deixá-la partir.”

     Deixar que a apaixonada, valente, bela Anna se fosse. Com certeza tinha sido enviada para castigá-lo. Por todos seus pecados. Ela era sua perfeita tortura.

     —Assim quando encontrarmos meu irmão me deixará para trás, como às demais.

     Ele não hesitou nem um instante.

     —Sim.

     —Então, agradeço que tenha deixado a minha virtude intacta. Porque eu sim terei uma família e filhos.

     Ele mal pôde esconder a exasperação que sentia, perguntou:

     —E por que não se casou antes que acontecesse tudo isto?

     —Não sei dizer isso, acreditará que sou tola.

     —Diga-me — Ao ver que não respondia a apertou contra ele.

     —Estava esperando alguém... —suspirou ela—, alguém a quem amar. Já sei que você provavelmente acha que é uma fantasia, mas eu o vi.

     Court também. Seus pais eram loucos um pelo outro.

     —Poderia casar-se com quem você quisesse?

     Ela moveu a cabeça em cima de seu peito.

     —No princípio sim, mas não pude encontrar ninguém, assim agora já não tenho opção. Depois de Pascal, dei-me conta de quanto vulnerável sou se eu continuar solteira.

     Ele tinha evitado perguntar por seu futuro, porque sabia que não ia gostar da resposta, mas agora disse:

     —O que acontecerá quando seu irmão te recuperar?

     Ela bocejou e respondeu meio dormindo:

     —Irá me levar a Castilla e pedirá a nossa família que busque um marido para mim, um que passe por cima do escândalo. Suponho que não estará tão mal. — Ela moveu suas suaves pernas por cima das dele, relaxou a seu lado, seu corpo começava a dormir— MacCarrick — sussurrou—, se eu soubesse que os maridos acariciavam como você, estaria muito mais ansiosa para me casar.

     Court, o homem sem alma, o mercenário capaz de vender sua irmã por uma libra, sentiu que o seu coração se partia.

 

Quando Court despertou Anna na manhã seguinte, custou em levantar, mas quando o fez, sorriu com acanhamento. Ele já não se incomodava em tentar descobrir por que seu coração doía cada vez que via esse sorriso.

     —Como se sente?

     Ela sentou e o olhou, surpreendida, como se tivesse despertado dentro de um corpo estranho e muito mais confortável.

     —Sinto-me maravilhosa.

     Não parecia estar envergonhada por sua nudez, embora o lençol enrugado em seu colo cobria só uma parte, e seu cabelo tampava um seio. O que deixava o outro descoberto.

     Quando ela levantou os braços e estirou, ele esfregou a nuca e disse com voz rouca:

     —Cuidado com o braço, pequena. —Se ela fosse dele, ele estaria a cada manhã em seu lado para ver como ela despertava. E asseguraria de que nenhuma noite tivesse roupa com a que esconder seu corpo.

     —OH, tinha-me esquecido por completo.

     Ele a olhou tenso.

     —Vou deixá-la para que se vista. Cruzaremos dentro de pouco.

     Antes que Court pudesse escapar, perguntou em voz baixa:

     —Por que está tão... diferente?

     Porque durante as grandes horas da noite ele deu conta de que ela nunca poderia ser dele. Embora sobre sua cabeça não pesasse uma maldição de mais de quinhentos anos, e embora de algum modo conseguisse convencer uma mulher como ela de que ficasse com ele, Court nunca poderia tê-la. E agora importava-se tanto, que até se negou a destruir sua reputação.

     —Porque quando chegarmos a Inglaterra as coisas serão diferentes entre nós. Não poderemos ficar juntos como ontem de noite.

     —Pois se for assim, eu quero ficar aqui — disse ela ante sua surpresa.

     —Não, você sabe que não podemos fazê-lo.

     Quando Annalía ia responder, ele a interrompeu:

     —Toma. Quase me esqueci. —Procurou em seu bolso— Tenho sua gargantilha. —Court tinha conseguido descobrir o segredo que se escondia atrás dessa gargantilha, segurou-a e a balançou diante dela, com a esperança de que, ao vê-la, recuperasse um pouco de sentido comum.

     Sabia que não era uma simples jóia, a não ser um talismã que tinha pertencido a sua mãe. Sua mãe, que não estava enterrada com seu pai, e sim sozinha, em Paris, longe de Andorra e longe de sua família na Castilla. De algum modo, ela os tinha desonrado a ambos. Pelo modo em que Annalía reagiu na gruta, ele acreditava saber o porquê.

     E usava esse colar para assegurar-se de ser não como sua mãe.

     Ante sua surpresa, ela o olhou sem interesse, e depois o olhou nos olhos.

     —Não o quero. Já não posso usa-lo.

     Ao ver que não o aceitava, Court o colocou de novo no bolso e saiu do quarto. Fechou a porta e se apoiou nela, pensando em que quando chegassem a Londres, seus irmãos se dariam conta de que essa mulher estava dentro dele. Perguntariam “por que Court”, sentia algo por ela e tinha deixado que as coisas chegassem tão longe.

     Ele também o perguntava. Como podia explicar o que acontecia com ele e Annalía? Como podia justificar que, apesar de tudo, sabia que o que sentia não era mau?

     Ao final o tinha entendido, as peças começavam a encaixar.

    

     Nem a excitação de cruzar o canal em um barco a vapor serviu para aliviar a tensão entre a Annalía e MacCarrick.

     Não havia dito nada além de algumas lacônicas respostas, exceto quando perguntou se estava enjoada. Annalía olhou a seu redor e viu que quase todo mundo estava, mas quando ela respondeu que não, ele pareceu incomodar-se, o que feriu seus sentimentos.

     Bem olhando, quase não importava a ela que ele estivesse tão irritável, pois tinha muitas coisas em que pensar. Queria memorizar cada instante da noite anterior porque nunca, nunca queria esquecer nem o menor detalhe.

     Antes de MacCarrick, passou toda a sua vida ignorando os prazeres que um homem podia dar a uma mulher. Ela o pegou olhando-a do corrimão do navio e mordeu o lábio. E o prazer que uma mulher podia dar a um homem. Annalía o tinha visto...

     Court sempre mantinha o controle, mas ela tinha conseguido que o perdesse com as carícias de seus dedos, fazia que ele gritasse e se agitasse de prazer, que cada músculo de seu enorme corpo se esticasse.

     Só de lembrar disso sentiu como seus seios se arrepiavam, e ao ver como ele agarrava o corrimão com os dedos... Ela franziu o cenho. Apertava-a com tanta força que os nódulos estavam ficando brancos. A moça levantou a vista e viu que, enquanto ela estava fixando-se em suas mãos, ele a estava olhando. Annalía entreabriu os lábios e soltou o fôlego e Court deu a volta de repente.

     Aquilo não ia a nenhum lugar. Ela não podia scontinuar pensando nessa noite sem desejar... sem ansiar. Sim. Podia reconhecê-lo. Annalía Llorente desejava esse mercenário, a esse implacável escocês.

     Mas também sentia algo mais por ele: sentia-se vinculada a esse homem pelo que tinham compartilhado. A noite anterior ela se mostrou displicente sobre o que ele havia dito a respeito de que quando se fosse a deixaria para trás, mas para falar a verdade, odiava a idéia. De fato, estava pensando em que queria ficar com esse escocês. Significava isso que o amava? Não estava certa, mas sim sabia que não podia suportar a idéia de estar afastada dele.

     Havia momentos nos que só pensar em um futuro em que ele pudesse lhe fazer amor a fazia sorrir, mas agora não sabia como consegui-lo, já que, embora MacCarrick a comprometesse por completo, nunca deixariam que se casasse com ele.

     Tampouco era o que MacCarrick desejasse casar-se com ela. Já o tinha deixado claro. “por que me conformar com uma, se posso ter muitas?”, tinha perguntado ele, e isso a tinha irritado. Annalía preferia não o ter a ter que compartilhá-lo. De onde tinha saído isso? De repente se sentiu como uma egoísta menina pequena que não queria compartilhar seus presentes. E tinham ensinado que não tinha que sentir-se proprietária de nenhum homem.

     Só uma coisa era capaz de manter um homem ao lado de uma mulher, ela o tinha visto em poucos casais, e era o amor.

     Quando o barco a vapor começou a atracar no porto, Court a segurou pelo braço, e ela perguntou:

     —Quer saber no que estou pensando?

     —Anna, todos os homens deste navio sabem no que está pensando.

     —OH. —Annalía odiava ser tão transparente.

     —E todos estariam dispostos a aceitar seu convite. —Ele parecia furioso, e a empurrou para a passarela.

     Ele estava furioso? Era ela quem tinha motivos para está-lo. Olhou de novo o navio e perguntou inocente:

     —Havia algum possível marido entre eles?

     Court a olhou de tal modo que qualquer outra mulher teria se assustado. Depois disso, ele não disse nada mais, e sua expressão deixou bem claro que ela tampouco devia dizer nada. Dava no mesmo. Não ia lhe dar esse gosto; mas a seguinte parada a pôs a prova.

     Ele a levava a Londres de trem, e na estação surgiram multidão de perguntas que sabia que ele podia responder. Era como ter um livro nas mãos com os conhecimentos mais ansiados, mas com as páginas grudadas. Cedo ou tarde, o que teria a fazer era joga-lo contra a parede.

     Londres era um amontoado de ruídos, mercadorias e cheiros de comida que queria investigar, mas ele a colocou em uma carruagem, sem ao menos lançar olhares e depois se afastaram do centro da cidade para entrar em um belo bairro residencial. Havia casas lindas, com grandes jardins e ruas de paralelepípedos. Abundavam as árvores rodeadas de uma grama impecável. Não mentiam quando diziam que os britânicos tinham bom gosto.

     Pararam em frente de uma grande propriedade presidida por uma enorme casa de tijolo vermelho. Era impressionante, cheia de detalhes de bom gosto que falavam da riqueza de seus proprietários.

     Muito adequada.

     —Já chegamos.

     Ela olhou para Court, voltou a olhar para casa, depois para ele outra vez e então franziu o cenho.

     —Deu instruções a Aleix para que viesse a esta casa?

     —Sim. Ele a encontrará com facilidade.

     —Conhece às pessoas que trabalha aqui?

       Ele a olhou de um modo muito estranho e abriu a porta.

     —Sim, acho que sim. —Ajudou-a a descer da carruagem e a acompanhou até os degraus que levavam a casa. À entrada principal.

     —Não pode chamar e entrar por esta porta, MacCarrick. —Se ele tinha amigos que trabalhavam ali acabaria causando problemas.

     A pele ao redor dos olhos dele se esticou enquanto agarrava o trinco.

     —Sim posso.

     Bem quando Annalía ia dizer que a deixasse falar com ele, a grande porta se abriu e apareceu um mordomo que sorriu ao ver MacCarrick.

     —Senhor Courtland!

     —Erskine, me alegro em vê-lo.

      Erskine deixou entrar e Annalía olhou para MacCarrick.

     —Esta é sua casa?

     —É de minha família. Eu vivo na Escócia.

     —OH. —E por que motivo a casa da família de um mercenário era tão bonita e luxuosa?— Sua casa é tão bonita como esta?

      Ela não pôde ler sua expressão.

     —Você gosta mais de mim, agora que sabe que sou rico?

     Ela levantou o queixo. Seria descarado! Não podia dizer que ela fosse precisamente pobre.

     —Não, para que eu goste mais, primeiro teria que gostar de um pouco. —Embora sua resposta gotejasse desdém, parecer gostaram de suas palavras.

     —Então minha resposta é não; minha casa não é tão bonita como esta.

     Em um lugar destacado da sala do lado havia um grande retrato de uma mulher. Annalía o inspecionou fascinada pela bela ruiva.

     —Quem é?

     —Fiona MacCarrick. —Foi como se custasse responder— Minha mãe.

     —É muito bela.

     Ele afirmou com a cabeça e a Annalía deu a impressão de que não estava muito unido a ela. A mulher estava sentada diante de um piano, e a moça se perguntou se o talento musical estava presente nessa família.

     —Toca piano?

     —Sim. Embora não acredite nisso, uma mulher escocesa pode aprender a tocar o piano.

     —MacCarrick! Não tire conclusões de minhas inocentes perguntas. É muito estranho ver um piano em Andorra, e são um símbolo de riqueza. Há famílias que estariam encantadas de ter um e posar diante dele embora não o tocassem.

     —Bom, sinto muito.

     Ainda ofendida, murmurou:

     —Não é como se tivesse perguntado se sabia ler por segurar um livro na mão. —Continuou inspecionando a casa. Ele a levou a uma sala muito espaçosa, e ela se deu conta em seguida de que faltava algo...— Aqui não há mulheres?

     —Não tenho irmãs. Só dois irmãos mais velhos.

     —Nenhum tem esposa?

     Ele voltou a ficar sério.

     —Nenhum.

     —Seus irmãos são mais velhos que você e ainda não se casaram? Pode-se saber o que vocês têm contra o casamento?

     —Esse tema já está resolvido.

     Ela odiava quando ele fazia isso. Como se atrevia? Não nos vamos beijar mais. Não nos vamos tocar mais. Não se fala deste assunto. Annalía parou e negou a segui-lo. De momento já tinha tido suficiente de suas ordens e de seu frio distanciamento.

     —Está bem, tentarei responder eu mesma a minhas perguntas. Mas não serão respostas tão verazes nem tão aduladoras como as tuas. Por exemplo, diria que nenhum de seus irmãos se casou porque são iguais a você; teimosos como uma mula, uns bárbaros sem maneiras. Maleducat arde. Rudes escoceses que não poderiam ter uma mulher a não ser que...

     —Ao parecer trouxe uma convidada, Court — a interrompeu uma profunda voz masculina.

     Ela deu a volta e levantou a cabeça. Esse devia ser um dos irmãos que estava insultando. Sim, seu irmão era igual a ele, tinha o mesmo cabelo preto, o mesmo olhar escuro e penetrante.

     —Sim, Hugh, ela é lady Annalía Llorente. Vem de Andorra e ainda não a convenci de todos os meus encantos. Annalía, esta mula teimosa é meu irmão, Hugh MacCarrick.

     Se ele tentava envergonhá-la, teria que se esforçar mais. Ela era uma perita em sair graciosa de situações sociais, por mais incômodas que fossem. Annalía olhou para Hugh MacCarrick e ofereceu-lhe a mão sorrindo com modéstia. Ele a aceitou e a beijou.

     —Encantado.

     Sepois deu a volta para MacCarrick.

     —Não, eu diria que ele não se parece em nada com você. —E dito isso, sorriu de novo o irmão de Court e viu como as linhas ao redor de seus lábios se relaxavam um pouco; suspeitou que isso era o mais parecido a um sorriso que ia obter dele. Apostava toda sua baixela de Limoges, que ele levava anos sem sorrir. Que família tão estranha e tão solene.

     Annalía perguntou se teria imaginado que as feições do homem se suavizaram durante um segundo, porque já voltava a parecer igual de severo.

     —Falamos mais tarde? —perguntou para MacCarrick.

     —Sim — respondeu Court sério— Mais tarde.

     Se Annalía acreditasse nessas coisas, juraria que havia uma espécie de corrente entre eles, como uma advertência secreta.

     Depois desse intenso episódio, ela e MacCarrick continuaram. O resto da casa era igual, bonita e espaçosa, o quarto em que ela ia alojar era muito elegante. MacCarrick tinha crescido rodeado de riqueza. O que o teria levado a transformar-se em um mercenário? E por que sua família tolerava essa ocupação, embora fosse o caçula dos filhos?

 

Annalía tinha comido, banhou e agora que encontrou com ele no salão, caminhava de um lado para outro sobre a amaciado tapete. Court apoiou na cadeira, sabia que isso não era bom sinal.

     —Preciso ir às compras — informou quando passou por diante de sua cadeira— Roupa.

     —Você acabou de comprar roupas no povoado.

     —Você sabe que aqui não posso ir vestida assim.

     Ele olhou a saia, que ficava por cima dos tornozelos, e soube que tinha razão. Mas também sabia que não ia sair daquela casa.

     —Há muita gente e é muito perigoso.

     —Estou segura de que os assassinos que querem me matar não chegaram ainda aqui. E não estou pedindo que você pague. Agora sim, posso vender uma de minhas jóias.

     —Nem pensar! —Acaso acreditava que ele estava discutindo pelo dinheiro? Acreditava que tinha que vender uma de suas insubstituíveis jóias porque ele não pudesse pagar vestidos?— Não vou deixar que desfaça suas coisas.

     —Então poderia ir à casa de minha amiga inglesa e pedir que me emprestasse algo.

     Ele também tinha lido as cartas dessa amiga. Quantas vezes dizia que seu pai era o décimo quinto na linha de sucessão ao trono? A idéia de que Anna tivesse que pedir um favor a essa esnobe punha os cabelos em pé. Sentia-se ofendido em seu orgulho.

     Enquanto Anna estivesse sob seu cuidado, ele tinha o dever de provê-la com tudo o que precisasse. Obrigou-se a repreender-se quando se deu conta de que se Anna fosse dele, ele teria que esforçar-se muito por fazê-la feliz.

     —Esquece. Estou tentando te proteger — disse ele zangado. Certamente que teria que esforçar-se. Ele não possuía as riquezas que ela via ali. Aquela casa seria para Ethan. Seu irmão mais velho era o chefe do clã, e o título, as terras e o dinheiro da família passariam para ele. Por outra parte, Court tinha retornado a Inglaterra sem seu pagamento, sem um contrato e sem sua tropa.

     —Por favor, me deixe que escreva...

     —Eu disse que não.

     Ela mudou de tática.

     —Agradeço tudo o que tem feito por mim, MacCarrick, mas quero saber que, se eu sair por essa porta e pedir ajuda a minha amiga, poderia fazê-lo?

     —Malditção, Anna, não, não poderia. —Court ficou de pé e a segurou no braço— Só irá daqui quando seu irmão vinher te buscar. Estimo que será em uma ou duas semanas, assim terá que me agüentar até então.

     —Por quê? A você, parece que nosso trato já não tem importância. —Ela baixou a voz— Disse que não podemos ser amantes. Então, o que eu sou exatamente para você?

     O que esperava que dissesse? Queria que reconhecesse que ele desejava muito mais dela, quando a única coisa que Annalía desejava era repetir o que houve na outra noite?

     —Eu te fiz uma promessa...

     —Sou então uma promessa que deve manter? —perguntou ela olhando-o como se estivesse decepcionada.

     —Sim. Não — gemeu ele— Deus, eu não sei. O que sou eu para você?

     —Se te disser a verdade, tampouco sei. —Ela estalou os dedos— Mas você não me deixa descobrir.

     Quando Annalía se dirigiu para a escada, Court voltou a sentar-se em sua cadeira, assombrado por sua conversa. Poderia ser que ela quisesse algo mais dele? E que importância tinha isso se ele tampouco podia dar?      

     —Podemos conversar, Court? —perguntou Hugh da porta. E dirigiu-se ao escritório, confiando que Court o seguiria.

     Quanto teria ouvido Hugh? Court se levantou e esfregou os olhos com as palmas das mãos. Encaminhou-se sem entusiasmo para o escritório, mas quando passou junto a Erskine, disse:

     —Encontra uma costureira que possa vir aqui. Uma boa.

     —Em seguida — respondeu Erskine, e desapareceu.

     Maldição, Court não estava de humor para justificar Anna ante seu irmão, mas essa pareceu ser a melhor oportunidade que tinha de averiguar o que tinha acontecido com seu dinheiro. Quando entrou, viu que Hugh estava sentado atrás da mesa, sua cara séria, sua postura muito profissional, como se fossem falar de negócios.

     Court mal tinha tido tempo de servir um copo de uísque e sentar-se diante dele, quando o outro o advertiu:

     —Estou feliz em te ver.

     —Eu também me alegro de ver você. —Court levantou seu copo— Sim, isso é verdade, irmão. Sobrevivi à outra batalha. Quer que falemos agora dos investimentos que tem feito enquanto estive fora?

     —Mais tarde — disse Hugh, que ao parecer só estava preocupado por uma coisa— Nunca vi você olhar para ninguém do modo em que olha ela.

     Court cravou a vista em sua bebida.

     —Reconheço que sinto algo por ela.

     —Quer me contar sobre isso?      

     —É uma história muito grande.

     Hugh golpeou a mesa com os dedos.

     —Bom, não acredito que ela volte a falar com você esta tarde.

     Certo. Contou-lhe da traição de Pascal, do seqüestro de Annalía, de sua fuga, e do perigo que corria agora. Ele contou quase tudo, exceto o que eles dois tinham compartilhado em particular, e como ela se colocou dentro dele até o ponto de que não podia pensar quando a tinha perto.

     Quando acabou, Hugh não tinha nenhuma pergunta, só disse:

     —É possessivo com ela. Como se ela já fosse sua.

     —Não deixarei que esses bastardos aproximem dela.

     —É mais que isso. Posso vê-lo com claridade. —Baixou a voz— Sei por que eu também já senti isso.

     Sim, Hugh sabia o que ele estava passando. Levava anos querendo à mesma mulher. Agora que Court entendia por fim pelo que estava passando seu irmão, não sabia como o tinha suportado. Ele não tinha nenhuma dúvida de que se continuasse assim com a Anna muitos anos, seu cérebro acabaria derretendo-se.

     —Bom, agora que ficou claro que nos dois sabemos o que sente, o que acontecerá a garota? —perguntou Hugh— Sente algo por você? Isso fará que seja mais difícil deixá-la partir...

     —Não acredito que ela tenha nenhum problema, uma vez que haja alguém que ocupe meu lugar. Traga um bonito e rico cavalheiro e ela estará satisfeita.

     Hugh fez uma careta de dor.

     —As coisas estão mal a esse ponto?

     —Ela acredita que sou um bruto, que careço da sofisticação dos castelhanos. Já a ouviu, não gosta muito dos escoceses em geral.

     —Não me parece que ela tenha tanta mania.

     Court bebeu de sua taça.

     —Houve várias vezes, com ela, nas que não fui tão forte como devia. —“E ela não entende que isso não pode continuar.”

     —É óbvio que provém de boa família.

     —Nem imagina — murmurou Court.

     —O que quer dizer?

     —Pascal a queria porque ela é... bom... um pouco... da realeza.

     Hugh tentou falar, mas logo fechou a boca. Em seu segundo intento o conseguiu.

     —Não acredito que você poderia haver buscado uma mulher que fosse um pouco menos? Já sabe que não pode se deitar com ela sem que haja conseqüências.

     —Não me deitei com ela.

     Hugh o olhou implacável e no final decidiu que estava dizendo a verdade.

     —E não o fará?

     Court esfregou o rosto com as mãos.

     —Teria que se casar com ela.

     —Já sei — respondeu ele, zangado.

      —Está seguro de que sabe, Court? Você, Ethan e eu temos feito um montão de coisas questionáveis, mas nunca destruimos a reputação de jovens inocentes. Tem que considerar as repercussões que isso teria em uma mulher de sua posição.

     —Eu nunca lhe faria isso.

     —Mas sim está disposto a arriscar sua segurança?

     —Acredita que não deixo de me repetir, uma e outra vez, que ela está em perigo por minha culpa? Atacaram-na três vezes e a balearam estando sob meu cuidado. Transformou-se em objetivo de assassinos por culpa de minhas ações. Já sei que estaria melhor se nunca me tivesse conhecido.

     —Então, o que vais fazer?

     —Vou pôr sua vida em ordem. E depois sairei dela.        

     —Por que não comeu mais? —perguntou MacCarrick enquanto a acompanhava a seu quarto— Você não pode permitir saltar comidas, pequena.

     Embora ainda estivesse zangada com ele pelo ocorrido de antes, ver que ele se preocupava com ela mitigou um pouco sua indignação.

     —É que tenho que me acostumar à comida — respondeu ela— Nunca tinha comido pratos anglo-saxões. —Annalía tinha crescido na montanha, e nunca tinha gostado muito de frutos do mar. E ao parecer os britânicos comiam só isso.

     —Pois se alegre de que não era comida celta — murmurou ele.

     Ela levantou a vista para olhá-lo.

     —É estranha a comida escocesa?

     Ele riu um pouco.

     —Para você? Sim, acredito que seria.

     Quando ele a pegou no cotovelo para ajudá-la a subir a escada, disse-lhe:

     —A tensão entre você e seu irmão podia cortar-se com uma faca. Brigou com ele?

     —Sim — admitiu Court.

     —Quer me contar por quê?

     Ele hesitou um momento, mas ela suspeitava que ele quisesse contar-lhe Ao final, disse:

     —Hugh se comportou de um modo muito prepotente com minha propriedade. Eu não gostei que atuasse sem minha permissão.

     Embora ela estivesse a ponto de dizer que também era muito prepotente por sua parte pensar assim, não o fez, e em vez disso perguntou:

     —Suas intenções eram boas?

     —OH, sim. Mas essa não é a questão. Ele acredita que sabe o que é melhor para mim melhor que eu mesmo.

     Annalía não pôde evitar sorrir para ouvir o quanto ele estava ofendido, e acariciou a mão com a que segurava o seu cotovelo.

     —Eu acredito que a qualquer irmão permite pensar desse modo. Aleix faz o mesmo. Quando toma uma decisão por mim, eu tento me recordar o quanto sou sortuda de ter alguém a quem preocupa tanto meu bem-estar, como fazem seus dois irmãos. Recordo-me isso, e depois me disponho a desbaratar seus planos. —A diversão desapareceu de seu rosto— MacCarrick, está seguro de que Aleix me encontrará aqui?

     —Não tenho nenhuma dúvida. Ele irá a seu colégio, receberá a mensagem, e depois é só questão de tempo que chegue aqui.

     Ela moveu devagar a cabeça, perdida em seus pensamentos, então chegaram a seu quarto. Court pôs a mão nas costas para acompanhá-la dentro, mas ela parou diante da cama e ruborizou ao lembrar-se da noite anterior. Sentiu que acariciava as costas com o polegar, e perguntou a si mesma se era consciente de que estava fazendo. Quando deu a volta para olhá-lo, suas mãos percorreram a cintura antes de soltá-la de repente.

     —MacCarrick, quando for, lembrará de mim?

     Ele mantinha a expressão impassível, escondia todas suas emoções, mas ela detectou que tinha um conflito.

     —Anna — começou ele, e exalou um suspiro como se fosse dar alguma explicação. Mas depois de hesitar muito, só disse— Sim, lembrarei-me de você.

     Antes que Annalía pudesse dizer nada, ele acrescentou:

     —Estarei lá fora, me chame se precisar de algo.

     —Não fica?

     —Não, já me certifiquei que o quarto seja seguro.

     —Mas... Mas você dormiu comigo todas as noites.

     Ela não tinha previsto isso. Eles sempre estavam juntos. Isso era o que faziam: estar juntos.

     Court a olhou como se a entendesse perfeitamente, como se ele também quisesse ficar, mas fora ela quem o impedisse.

     —Não, já não, pequena — respondeu ele e dirigiu-se à porta.

     —Por quê?

     Ele respondeu sem dar a volta.

     —Porque eu poderia... poderia fazer algo que os dois lamentaríamos.

     —Por que acha que eu lamentaria?

     Ela viu que seus ombros se esticavam, que apertava os punhos.

     —Você não sabe nada de mim, Anna. —Fechou a porta atrás dele, mas ao fazê-lo, ouviu-o murmurar— Se soubesse, não perderia seu tempo comigo.

     Sozinha, ela ficou olhando a porta. “Não perderia seu tempo comigo.” Muito tarde. Annalía queria saber tudo dele. Com suas últimas palavras na mente, preparou-se para deitar.

     Embora estivesse cansada, ao lembrar-se dos detalhes da noite anterior sua pele voltou ficar sensível sob os suaves lençóis. Era como se tivesse passado muito tempo da última vez que MacCarrick a tinha beijado e acariciado com paixão. Parecia que fazia mais de doze vidas que o tivesse encontrado na beira do rio. Então, Annalía não tinha imaginado o muito que esse homem iria mudar a sua vida.

      Uma parte dela queria seduzir MacCarrick só para confirmar que podia fazê-lo. Outra, sentia curiosidade por dar esse último passo que estava negando. E havia outra parte que sabia que ele não poderia afastar-se de seu lado tão facilmente depois disso. Annalía não podia entender como a idéia de que não voltassem a se ver nunca mais não o afetasse tanto como a ela.

     Annalía tinha sido sincera ao dizer que não sabia o que ele significava para ela, tudo era tão novo; mas de uma coisa estava segura: o que sentia por ele crescia cada dia que passava. O que aconteceria quando chegasse Aleix?

     Deu um chute na colcha, tinha muito calor para dormir. Não pode imaginar que na Inglaterra fazia frio? Bom, o melhor seria aproveitar a situação. Levantou-se para abrir uma janela, mas quando afastou as pesadas cortinas de damasco, ficou petrificada.

     Ficou olhando durante um momento, como se fosse algo estranho e inexplicável. E sim era estranho, mas a explicação foi encontrada pouco a pouco, e sentiu um calorzinho no estômago.

     Court havia pregado as venezianas.

     Annalía inclinou a cabeça e observou a tarefa. Os pregos se viam pregados em cima da brilhante madeira branca. A pintura que havia ao redor de cada prego estava intacta. De que outro modo ia estar. Ele tinha o pulso muito firme.

     Soltou o fôlego e deixou cair às pesadas cortinas. Não tinha acabado de entender que era objetivo de uns assassinos, mas agora a realidade bateu de repente. Correu para acender uma vela para afastar a escuridão que nem de pequena a tinha aterrorizado tanto.

     Embora fizesse calor no quarto, escondeu-se sob os lençóis, suando, assustada, e passaram horas até que por fim dormiu.

     Não sonhou que cavalgava através dos campos, nem que MacCarrick agarrava seus cabelos entre as mãos para beijar-la, era o que sonhava nesses últimos dias; mas sim sonhou que morria.

     Sentou-se na cama de repente, sem fôlego, tremendo. Levou as mãos ao rosto e viu que tinha as bochechas molhadas. Por que tinha pesadelos agora que estava a salvo?

     Porque antes ele estava sempre ao seu lado, cada noite ela havia sentido sua presença, sentia que ele a olhava enquanto dormia.

     E porque no mais profundo de seu ser admitiu por fim a verdade que tanto se negou a reconhecer. O quarto ataque seria o definitivo.

 

Quando MacCarrick se aproximou dela na manhã seguinte, Annalía estava de pé junto ao gabinete no que tinham preparado o café da manhã, e seu olhar ia do fumegante prato que tinha diante de si ao desconcertado mordomo que a ajudava.

     —Já sei que me explicou isso antes — estava dizendo ao homem—, mas quero estar segura. Isto são ovos?

     —Sim, milady.

     Ela disse em catalão:

     —Eu sei o aspecto que têm os ovos e isto não o são.

     MacCarrick pegou o prato sem nenhum olhar e o deixou a um lado para poder preparar ele mesmo um.

     —Por que está tão pálida? —perguntou de uma vez que procurava no aparador as coisas que sabia que precisava usar.

     Annalía ouviu que Hugh, no outro extremo da mesa, girava a página do jornal; estava convencida de que ele estava escutando. MacCarrick também deve ter pensado, porque aproximou mais dela e perguntou:

     —Não pode dormir?

     Ela encolheu os ombros.

     —Ainda tenho que me acostumar à nova cama.

     Court a acompanhou até a mesa e colocou o prato diante dela, depois pegou uma laranja e uma maçã da bandeja que havia no centro. Levantou uma em cada mão e a olhou para ver qual preferia, ela assinalou a laranja.

     —Há algum problema com seu quarto?

     —Além do fato de que você acha necessário pregar as venezianas?

     A ele marcou as mandíbulas, sinal de que estava apertando os dentes.

     —Nós dois sabemos que dorme profundamente. Eu tento te manter a salvo.

     —Sei, sei — disse ela com suavidade, e pegou o garfo que ele oferecia para comer. MacCarrick pegou um pão-doce que havia no prato dela e o partiu, uma parte para ele e outro para ela— É que eu tenho que me acostumar com a idéia de que eu corro tanto perigo.

     Hugh aproximou e franziu o cenho. Quando Court viu que Hugh os estava observando, deu-se conta do que estavam fazendo. MacCarrick estava dando de comer a Annalía com a mão, e ambos estavam compartilhando o mesmo prato sem se alterar. MacCarrick se incomodou, como se o tivessem pegado fazendo algo impróprio.

     —Court, se precisa recuperar horas de sono, eu estarei aqui todo o dia — ofereceu Hugh— Posso dar uma olhada nos dois.

     Quando aceitou a proposta de Hugh e este saiu da cozinha, MacCarrick deu a volta para a Annalía. Percorreu-lhe o rosto com o olhar e a irritação que sentia desapareceu um pouco de seu rosto.

     —Pequena, acredito que não te faria mal uma sesta.

     —Não estou cansada, absolutamente — disse ela, e se traiu ao bocejar. Estava convencida de que o tinha visto sorrir; ele a pegou sua mão para levá-la à biblioteca. Olhou as estantes e escolheu um livro de história sobre a Escócia.

     —Se ler isto —lhe deu o livro—, nessa poltrona — assinalou um fofo sofá carmesim—, garanto que em menos de vinte minutos estará dormindo.

     —Como sabe?

     —Este livro é muito... detalhista, por dizer assim, e essa poltrona foi minha perdição quando eu estudava.

     Annalía pegou o pesado livro entre suas mãos com um resignado sorriso, onde estava uma boa novela gótica quando precisava? Sentou-se onde ele dizia, e o abriu sem vontades...

     Ela se assustou um pouco quando Hugh deu uma olhada, tinha passado uma hora.

      Hugh olhou para MacCarrick, que estava sentado em um sofá, diante dela. Tinha os olhos fechados, o corpo imóvel, e um braço jogado para trás na cabeceira do sofá; parecia como se MacCarrick só tivesse fechado os olhos um momento, mas devia ter ficado dormindo, porque Hugh o olhou satisfeito e fechou a porta com cuidado.

     Logo que Hugh saiu, retirou o livro da mão, e, Annalía foi ao outro lado da sala e se ajoelhou no sofá ao lado de MacCarrick. Olhou o seu rosto e suspirou; não podia acreditar que a princípio ele não tivesse parecido lindo. Quando a necessidade de acariciar os seus lábios com os dedos cresceu até ser insuportável, pegou de novo o livro e sentou sob o braço que ele tinha jogado para trás e se recostou junto a ele. Ela fechou os olhos um instante para desfrutar do calor que emanava de seu corpo, e voltou a ler onde tinha parado. Quanto mais aprendia mais se zangava consigo mesma.

     Agora que começava a entender o que era MacCarrick e quem era, sentia-se envergonhada de todas as coisas que o tinha chamado; desumano escocês, bruto, bárbaro sem maneiras... podia encher toda uma página com seus insultos. Annalía o tinha insultado uma e outra vez, e ali estava ela, desfrutando de seu calor e de sua força, viva, só graças ao fato de que ele a tinha protegido.

     Enrubesceu ao lembrar-se de todos os seus sarcasmos e raiva. Os andorranos sempre tinham vivido em paz; Pascal era a primeira ameaça que sofriam no século treze, mas esse não era o caso dos escoceses. Eles eram diferentes. MacCarrick era diferente, e Annalía o tinha menosprezado; a ele e os seus homens. Não era de se estranhar que estes acharam graça dela e acreditassem que era só uma garota estúpida. Não era estranho que MacCarrick a tivesse olhado como se quisesse sacudi-la.

     Se ele não tivesse sido um valente escocês e um treinado mercenário, Annalía agora estaria morta. E como o tinha agradecido? Com insultos.

     Em troca ela era exatamente o que ele havia dito: uma andorrana de mente estreita que desconhecia o que acontecia no mundo.

     Zangada, levou uma mão à boca e se aconchegou contra ele, apoiando a cabeça em seu peito.

     Queria-o muito mais que antes, deu-se conta de que dele o queria tudo, mas não surpreenderia que ele não quisesse o mesmo dela depois do modo em que se comportou. Uma coisa era que a desejasse fisicamente e outra é que gostasse, que a respeitasse.

   Ele continuava protegendo-a, continuava mantendo-a a salvo, sem esperar nada em troca. Ela sabia que não podia entregar sua virtude, e talvez, ele resistia a isso porque via nela muito mais do que ela merecia.

     Annalía sentiu como o coração dele acelerava, e acreditou que havia despertado. Esticou-se, mas depois de alguns segundos, seu corpo voltou a relaxar e a rodeou com o braço. Voltou a dormir, o batimento de seu coração se tranqüilizou, serenou-se, e ela com ele.

     Annalía dormiu a seu lado, mas antes de fazê-lo decidiu que nunca mais queria voltar a dormir sem ouvir esse som junto a ela.

 

     Essa noite, Court se sentou em uma cadeira fora do quarto de Annalía, e apoiou a cabeça contra a parede, olhando ao teto, pensando em que só uma porta os separava. Se entrasse no quarto, ela daria boas-vindas a sua cama. A moça o desejava, e não tentava dissimulá-lo; e isso fazia que ele se sentisse ainda mais humilde. Surpreendia-se ter sido capaz de resistir durante tanto tempo.

     Essa tarde, ao despertar com ela aconchegada entre seus braços, quase perdeu o controle.

     —Está preocupado? —perguntou Hugh, e ofereceu uma xícara de café. Court agradeceu a distração, era como se Hugh soubesse o perto que ele estava de entregar-se.

     —Muito — respondeu, e pegou a xícara.

     —Fica fora? —perguntou seu irmão— Toda a noite? —Hugh ficou olhando a porta, e Court soube que estava perguntando o que faria ele se fosse Jane Weyland a que estivesse dentro.

     —Não posso estar perto dela.

     Hugh deu umas palmadas no ombro.

     —É um homem forte.

     “Não Hugh, não sou.”

     Quando Hugh sentou a seu lado e se apoiou também na parede, com uma xícara de café, Court perguntou:

     —Alguma vez pensou em desafiar a maldição?

     —Não. Para mim a morte de papai foi advertência suficiente. —Olhou-o com o olhar ausente, sem dúvida estava recordando esse dia.

     Leith MacCarrick mal tinha quarenta anos e estava forte como um carvalho. No dia seguinte, estava morto e frio na cama, junto a sua inconsolável esposa. E tinha sabido que ia morrer. Estava convencido disso.

     —Não é sua culpa, filhos. Ninguém pode desafiar o livro. Estou contente de ter podido ver os homens em que se transformassem.

     Sua mãe, maltratada pela dor, levantava as mãos e gritava:

     —Disse que não o lesse! Quantas vezes lhe disse isso? Ele sempre sai ganhando.

     Sim, ela tinha proibido seus filhos que o lessem, mas depois de que não tinha podido proteger seu marido, depois de não ter podido queimar o livro, foi um passo mais à frente e proibiu seus filhos que aprendessem gaélico. Todo o clã a ajudou com a esperança de que seu amado chefe não morresse antes de transformar em um orgulhoso ancião. Todos colaboraram em que nenhum deles soubesse ler nem escrever.

     Hugh e Ethan continuavam sem poder. Mas Court sim podia; tinha aprendido por despeito fazia poucos anos. Sua mãe havia dito que não importava o que fizessem o livro “sempre saía ganhando”.

     Court tinha doze anos quando tudo aconteceu, era o suficientemente grande para responder a seus gritos:

     —Se for assim, por que demônios tiveram três filhos?

      Sua mãe respondeu dizendo que tinham tentado evitá-lo... Com doze anos talvez não era o bastante grande para entender isso.

     —E se isso não fosse suficiente — continuou Hugh—, a morte de Sarah acabou de me convencer.

     Ninguém sabia como tinha morrido a prometida de Ethan, e como ele negava a falar dessa última noite, muitos o culpavam, o que ao parecer não incomodava a Ethan absolutamente.

     Tentando parecer despreocupado, Court perguntou:

     —Ethan não terá deixado ninguém grávida enquanto eu não estive por aqui?

     Ele negou com a cabeça.

     —Court, sabe que não. E não por falta de oportunidade.

     Court soltou o fôlego.

     —Sim, já sei. —Era difícil acreditar que Ethan, antes de sua cicatriz, tivesse recusado todas as mulheres, ao menos as que não eram do clã e não conheciam a existência do livro. Mas nunca tinha gerado um filho. E embora Court se esforçasse também, muito durante a última década e deste modo tinha tido multidão de oportunidades, tampouco nada.

     Court sabia que tampouco Hugh, embora ele, depois do que tinha acontecido, não se prodigalizava muito com as mulheres. Seu irmão não tinha fraquesas pelas mulheres em geral, só a tinha por uma dama em concreto, uma que tinha amargurado sua juventude.

     —Viu Jane alguma vez?

     —Não, há anos. —Repetiu as palavras de Court— Não posso estar perto dela.

     Hugh passou quatro verões com ela e, quando retornava, nunca estava bem. Hugh dizia que Jane era muito jovem para ele, mas pelo que Court tinha podido discernir, ela não se comportou como tal.

     Depois de passar vários dias com essa bruxa, seu irmão retornava para casa, alterado, tremiam suas mãos, ficava sem fôlego e parecia como se tivessem lhe dado uma surra. Court recordou que uma vez perguntou o que acontecia. Hugh respondeu atormentado e em voz baixa:

     —Jane foi nadar. Usava uma camisa molhada. Não quis usar minha camisa em cima para cobrir-se. “Hugh, carinho”, ela me disse, “pode ver através de minha roupa?” — Ele se afastou como se doesse continuar falando disso, mas Court o ouviu quando continuou— E Deus Santo, sim podia.

     —Eu posso continuar vigiando, se quiser — disse Hugh.

     —Não. Eu fico.

     —Tem um mau aspecto. Quando foi a última vez que dormiu mais de algumas horas seguidas?

     Court deu de ombros.

     —Amanhã vou à cidade — disse Hugh— Há algo que não posso continuar prorrogando. Estarei fora uma semana ou duas.

     —Weyland tem um trabalho para você?

     —Sim.

     Court sabia que Hugh era um homem valente e inteligente, mas também devia ser desses que gostam que o torturem. Como não podia continuar trabalhando para o pai de Jane e seguir escutando detalhes sobre sua vida?

     Levantou-se e deu a Court outra palmada no ombro.

     —Não tenho nenhum motivo pelo que me preocupar, não é certo?

     —Não, nenhum — mentiu Court, impressionado por tão convincente conseguiu soar.

     Mas por que não deveria ser assim? Depois de tudo, supunha-se que ele era um homem firme, com uma grande força de vontade. Tanto, que nem dez minutos depois de que Hugh se foi, Court abriu a porta do quarto. Só queria ver se ela estava bem...

     As dobradiças chiaram.

     —MacCarrick? —sussurrou ela.

     —Sim, sou eu.

     Ele franziu o cenho para ouvir que ela respirava aliviada.

     —Tinha medo de que fosse alguém mais?

     —Não.

     —Precisa de algo?

     —De você.

     —Além de mim.

     —Nada.

     Ele apertou os dentes.

     —Tive um pesadelo horrível. —Estava tremendo. Antes, quando ele ficava com ela, nunca tinha pesadelos.

     —Já passou — disse ele, e aproximou outra manta. Desdobrou-a ao lado da cama e a cobriu com ela, depois a cobriu até o queixo.

     Quando ele ia se afastar, ela agarrou a sua mão.

     —Courtland...

     Annalía apoiou na mão dele para ajoelhar-se na borda da cama.

     —Não vá ainda. Embora não queira me tocar, eu não quero que vá.

     Surpreendeu-se ao notar como ela apertava seu rosto contra a calegada palma de sua mão, mostrando ternura.

     —Deus, acha que não quero te tocar? —Ele baixou a voz e reconheceu— Morro por fazê-lo.

     —Então, por quê?

     —Porque a próxima vez eu não me limitarei a te tocar. —Ele a desejava, desejava o prazer que surgiria entre os dois, e a necessidade de estar com ela, de fazê-la sua, era insuportável— Estarei lá fora. —A porta representava uma barreira. Lá fora, ele não podia ouvir sua doce respiração.

     —Ou poderia sentar ali. —Ela assinalou a cadeira, e ele teria jurado que antes não estava tão perto da cama.

     —Não posso. Não sou tão forte como eu gostaria...

     —Sim, você é — interrompeu ela sem duvidá-lo e olhando-o no rosto — É muito forte. É muito valente.

     Esse comentário o fez franzir o cenho.

     —Annalía, não deixo de te desejar, e cedo ou tarde não poderei resistir mais. Depois teremos que confrontar as conseqüências.

     —Sim, tem razão.

     —Encontra-se mau?

     —Não, agora me encontro muito melhor. Ignora essa cadeira, vêem para cama comigo.

     —Anna, sabe o que está dizendo? Não sou o homem adequado para você. Não tenho a fortuna que você está acostumada. —Nem a capacidade de superar a fraquesa que o impulsionava a dar tudo o que ela queria.

     —Eu tenho minha própria fortuna.

     —Está tentando me insultar?

     Annalía baixou a vista envergonhada, e ele lamentou haver falado assim.

     —Nunca serei o cavalheiro castelhano que você quer, mas sim sempre serei o rude escocês que acha que sou.

     —Eu quero você.

     —Por que continuamos discutindo se ambos sabemos o que nos acontecerá se deitarmos? —perguntou ele calmo, tentando entender por que ela se comportava assim. Então o entendeu— Você acha que poderá tirar-me de sua cabeça. Acha que podemos nos deitar e depois poderá se afastar de mim. Talvez antes tivesse sido assim, mas já não. Agora teria que se casar comigo.

     —E por que acha que quero que você se meta na cama? —disse ela exasperada.

     Ele deixou o queixo cair.

     —Está dizendo que quer se casar comigo?

     Ela baixou a vista e, tímida, afirmou com a cabeça. Casar-se com ele? O coração de Court a pulsar descontrolado no peito.

     —Você não gostaria de estar comigo. Teria que viver na Escócia, rodeada de estranhos com estranhos costumes. —As diferenças entre suas duas nacionalidades eram abismais. A avó dele tinha sido inglesa e seus costumes tinham impregnado em sua família, mas Annalía estava muito longe de ser inglesa.

     Encantava-o que fossem diferentes. Ele olhava embevecido como ela se movia, e o fascinava o modo que falava, mas não sabia se ela ia gostar da desconhecida Escócia. Não sabia como trataria as pessoas dali uma obscena castelhana a que adorava se divertir com o acento escocês.

     Por que estava pensando nisso? Como se esse fosse o único obstáculo? Ele arrastava uma terrível maldição.

     —Posso aprender. Eu aprendo muito rápido. —Sua voz parecia cheia de... esperança? Não podia ser.

     O melhor seria acabar com aquilo.

     —Quer ter filhos?

     —Filhos? — sorriu e suspirou— Sim.

     Court acreditou que seu coração parava.

     —Pois eu não poderei lhe dar.      

     Annalía inclinou a cabeça e franziu o cenho.

     —É certo, Anna. Se você casar comigo não poderá ter filhos.

     Ela enrugou ainda mais a testa.

       —Quer dizer que não pode ter filhos ou que não pode gerá-los?

     “Qual era a maldita diferença?”

     —Não posso gerá-los.

     —Mas pode os ter. Em Andorra é muito comum adotá-los.

     Ele nunca tinha imaginado isso. Demorou uns segundos em pensar numa resposta.

     —Você ainda é jovem. Algum dia quererá um próprio.

     —E se eu não puder os ter? As mulheres de minha família nunca foram muito férteis. Percebeu a diferença nos anos que levamos meu irmão e eu? Doze. Minha mãe era filha única, e sua mãe antes dela. —Depois acrescentou com voz suave— MacCarrick, você não me quereria se a situação fora ao contrário?

     —Deus, sim eu te quereria — respondeu ele sem hesitar, embora depois desejou não havê-lo feito. Mas como sempre, ele voltou a pensar: “Teria-a de qualquer modo que pudesse”. Estava cambaleando. Nunca tinha imaginado uma situação em que ela pudesse o querer, ele sempre tinha acreditado que se dizia que não podia dar-lhe “filhos”, bastaria para que ela separasse dele e não queria voltar a vê-lo mais.

     Court obrigou a deixá-la e sair fora do quarto. Agora já sabia por que havia pensado tanto em lhe confessar tudo isso.

 

       —O que diz? —perguntou Olivia pela terceira vez em vários segundos.

     —Se deixasse de tampar a luz poderia dizer — respondeu Aleix impaciente.

     Eles tinham chegado à velha escola de Annalía com a vaga esperança de que sua antiga diretora lhes pudesse dar alguma pista, e ficaram boquiabertos quando a mulher entregou uma carta da moça escrita em gaélico. Aleix queria contar à diretora da escola o menos possível, assim que ela os olhou, preocupada e os deixou sozinhos na biblioteca, com um velho dicionário inglês-gaélico.

     Ao parecer, cansada de tampar a luz, Olivia se sentou à mesa e voltou a cabeça para poder ver a mensagem. Aleix soltou o fôlego, e se concentrou nas palavras que tinha conseguido traduzir até esse momento. Era uma direção. Voltou às ler e viu que começavam a cobrar sentido.

     —“A milha quadrada”... espera... a parte alta de Londres se conhece com esse nome.

     Mais excitado do que nunca a tinha visto, Olivia disse:

     —Então, acredito que vamos à Inglaterra!

     Aleix se levantou de repente, segurou-a pela cintura e começou a dar voltas. Ela estava sorrindo, um sorriso sincero que lhe adoçava o rosto. A ele ocorreu uma loucura. Queria saber o que sentiria ao beijá-la.

     Enquanto estava pensando, Olivia aproximou e o beijou. Surpreso, as mãos que tinha tido na cintura da garota se deslizaram por suas costas para aproximá-la dele e devolver o beijo. Fez com força, com paixão, e quando ela gemeu, desejos que Aleix tinha acreditado mortos voltaram a ganhar vida. Olivia era alta e magra, e ele a estreitava contra ele, acoplando seu corpo ao dele; ambos encaixavam com perfeição.

     O que não deveria ser assim, já que Mariette tinha sido pequena e delicada.

     Aleix deixou de beijá-la e, com a respiração entrecortada, separou-a dele. A garota estava perplexa, mas não deveria estar. Isso não deveria estar acontecendo. Ele tinha jurado casar-se com ela, mas não podia oferecer um casamento de verdade.

     Soltou o fôlego e voltou a sentar-se, lutou para ignorar Olivia e tão doces tinham sido seus lábios. De algum modo, tentou continuar traduzindo. Ajudou o que ela disse:

     —Nem sequer eu gosto da brega de sua irmã, mas estou impaciente por encontrá-la. Neste jogo, é adequado que ela seja o rato e nós o gato.

     Aleix levou as mãos à cabeça, preocupado e continuou tentando ordenar as palavras que tinha traduzido, franziu o cenho ao ver que, sem saber Annalía, ao copiar as instruções de MacCarrick, tinha escrito ao seu irmão:

     “Se deixar que eles sigam até minha maldita casa, chutarei teu traseiro”.

    

           A costureira parecia muito ofendida quando deu a fatura para Court. Ele tinha mentalizado em levar uma surpresa. E “nossa” se teve. Annalía tinha gasto muito menos que no povoado.

   —O que é isto? Traga mais roupas.

     —Ela me disse que você diria isso, mas que eu devia ignorar suas ordens.

     Court a olhou zangado e respondeu:

     —Traga mais roupas.

     A mulher se assustou e saiu, assegurando que retornaria com muita mais roupa.

     Court tinha pedido que uma costureira visitasse a Annalía e estava preparado para fazer frente aos pagamentos. Podia fazê-lo perfeitamente. Ele não estava arruinado... graças a Hugh.

     Era irônico que o fato de que Hugh tivesse usado seu dinheiro agora tivesse feito de Court um homem rico. Seu irmão tinha apostado pela nova companhia de armas de fogo de Asse Smith e Daniel Wesson, e tinha acreditado tanto neles que tinha investido todo o dinheiro de Court. Este se sentia incômodo por ter ganhado tanto dinheiro desse modo, mas graças ao negócio de Smith e Wesson agora podia saldar sua dívida. Ao menos Hugh tinha tido a decência de não vangloriar-se disso.

     E agora, Anna, economizando desse modo tão óbvio, o estava humilhando. Ele se asseguraria de que escolhesse mais coisas. Franziu o cenho.

     Era boa.

     Court a encontrou na biblioteca, pegando alguns livros.

     —Por que não encomendou mais roupas?

      —Só preciso de alguns vestidos. Aleix virá logo para me buscar, não acha? Seria uma tolice levar tanto peso em nossa viagem de volta a casa. Além disso, com os vestidos que tenho agora, já posso encher todo o quarto.

       —Pode ter tudo o que quiser.

     —Já sei. E é muito amável, mas de verdade, isso é tudo o que preciso. —Annalía ficou nas pontas dos pés e o beijou no rosto antes de sair da biblioteca com os livros debaixo do braço. Parecia triste.

    

Como poderia Annalía ensinar a MacCarrick o quanto que tinha mudado se ele nem ao menos falava com ela? Ela acreditava que quando Hugh se fosse ele relaxaria um pouco, mas justamente o contrário, cada vez estava mais tenso.

Ele se mantinha afastado dela porque não podia lhe dar filhos, era simplesmente inaceitável. Quando pensava em sua confissão, Annalía perguntava a si mesma se quando pequeno teria estado doente e o coração lhe dava um baque ao pensar na dor que teria sofrido.

     Se o fazia porque acreditava que era uma ignorante, ela tinha que obrigar-se a ver que estava disposta a aprender, que queria melhorar.

     Annalía sabia sem dúvida nenhuma o motivo de seu distanciamento. Via tão claro que intuía que, para voltar a estar juntos, tinham que fazer amor. Decidiu tomar as rédeas do assunto e começou a planejá-lo. Essa noite se banhou com sabão perfumado que havia trazido a costureira; essa peculiar mulher tinha retornado carregada de roupas e de tudo o que ela pudesse precisar. Depois de seu banho, Annalía vestiu uma camisola que, por suas características, tinha escolhido especialmente para a ocasião.

     Já estava preparada. Não estava tão nervosa como se imaginou, era uma decisão arriscada, mas sabia o que tinha que fazer...

     —MacCarrick!

     Um segundo mais tarde, a porta abriu-se de repente.

     —Anna, o que...? —Ao vê-la de pé diante da cama, ele ficou mudo— Volta para a cama — ordenou.

     Mas ela não se amedrontou. Continuou de pé, decidida diante dele, e começou a desfazer um dos laços de sua camisola. Deslizou a seda negra que servia de tira e a deixou cair, bem em cima de seu seio.

     Ao se dar conta, ele abriu os olhos um instante e depois os entrecerrou.

     —Não faça isso.

   Ela levantou os braços e soltou os cabelos, sacudindo a cabeça para que os fios caíssem pelas costas. Tinha os dedos sobre o outro laço, a ponto de desatá-lo.

     Court esfregou o rosto com mãos tremulas.

     —Não pode continuar me tentando.

     Annalía levantou as sobrancelhas e puxou mais a tira. O laço estava a ponto de desfazer-se. Todo o corpo dele tremia por causa da tensão que tentava controlar. Ela mal conseguia conter a vontade que tinha de tocá-lo.

     Em voz baixa, Court disse:

     —Anna, peço isso, por favor, não o faça...

     Ela desfez o laço.

     A camisola deslizou para baixo, passou por cima de seus seios, e acariciou a cintura e as pernas.

     —O que dizia? —perguntou ela com voz sensual.

Court deixou a boca abrir. Soltar o cabelo tinha sido muito cruel, mas a camisola... Sem esse objeto, o pouco controle que tinha conseguido recuperar, ou como mínimo manter, era agora inexistente.

     —Se continuar me pressionando, levarei-a cama, mas não me limitarei a te beijar. Não será como da última vez. —Ele fazia esforços por manter o olhar fixo em seu rosto, longe de seus seios, dos sensuais quadris que morria de vontade de acariciar, mas o devorava com os olhos— Haverá conseqüências.

     —Entendo.

     —Digo a sério, Anna — advertiu ele com voz rouca—. Esta noite te possuirei, juro. —Como podia evitar um homem em fazer amor à mulher que desejava-o acima de todas as coisas se ela oferecia-se como um presente? Era mais provável que ele deixasse de respirar. Negar-se a sentir seu corpo junto ao dele? Impossível.

     De repente viu tudo claro. Annalía queria que fizesse amor, e ele a desejava desesperadamente. Todos os motivos pelos que não deveria fazê-lo não podiam competir com isso. De qualquer jeito, nesse instante ele tampouco podia recordar nenhum. Tomaria-a com tanta paixão, e durante tanto tempo, que ela lamentaria em haver o provocado até esse extremo. Court deu um chute na porta para fechá-la e caminhou até ela, levantou-a contra seu peito, e fez com que ela rodeasse a cintura com as pernas.

     —Courtland — disse Annalía com um suspiro quando ele a levou a cama.

     Court sentou na beira, com ela sentada sobre seu colo com as pernas abertas; rodeou as nádegas com as mãos e as apertou. Não podia acreditar que a tivesse nua em cima dele, nem que ela estivesse beijando o seu pescoço e o rosto, despindo-o, como se estivesse faminta dele. Court inclinou a cabeça até seus seios, e rodeou um de seus mamilos com os lábios. Quando ela gemeu, ele se deteve e deixou de beijá-la, mas manteve os lábios pegos a sua pele.

     —Mo cridhe, vai ser minha?

     Ela passou os dedos em seus cabelos.

     —Sim.

     Ele olhou o seu rosto e procurou seus olhos.

     —Em todos os sentidos? — perguntou com a voz entrecortada.

     —Sim — respondeu ela de novo sem afastar o olhar— Em todos os sentidos.

     Court queria saborear o que ela acabava de lhe prometer, mas quando tirou a camisa e Annalía apertou seus seios contra seu peito, gemendo e tremendo ao sentir sua pele na sua, ele não pôde fazer outra coisa que estreitá-la fortemente contra ele.

     Ela o estava acariciando, seu sexo descansava em cima do dele... Court gemeu:

     —Vai fazer que eu perca o controle.

     —Quero que o faça.

     —Não posso. Preciso... —Ele ficou sem fôlego quando ela deslizou em seu colo— Preciso me assegurar de que está preparada. —Levantou-a até que seus seios ficaram à altura de seus lábios e os percorreu com a língua.

     Annalía gemeu.

     —Estou preparada.

     —Seu corpo tem que estar preparado. —Ela estremeceu e ele levantou-se para deixá-la na cama; depois tirou as botas e as calças. Nu, deitou-se a seu lado e começou a percorrer os seios úmidos e a deslizar para seu umbigo até que sentiu um buraco em seu estômago.

     Ele sussurrou ao ouvido:

     —Preciso que esteja úmida.

     Ela dobrou uma perna e levantou os seus quadris, Court capturou essa perna e a segurou, abrindo-a para ele.

     —Quero que trema de desejo.

     —Faço-o — assegurou Annalía— Eu estou.

     Ele fechou os olhos ao sentir o sexo dela entre seus dedos e estendeu toda essa umidade a seu redor.

     —Mais. Isto significa que terei que te atormentar outra vez, e outra...

     Carícias lentas, suaves. Senti-la, era como estar no céu, e ele gemeu ao pensar que essa noite ia entrar em seu interior. Quando introduziu um dedo, ela arqueou as costas. À medida que ele ia entrando e saindo de seu estreito sexo, ela tentou alcançar seu pênis, mas ele afastou os quadris.

     —Eu... eu quero te acariciar.

     —Não posso. —Ele não podia controlar-se mais. Sabia que Annalía ia perguntar por que, assim, para evitar essa pergunta, começou a acariciá-la também com outro dedo.

     Ela se surpreendeu e ofegou.

     —Isso é diferente do que fez antes.

     Ele retrocedeu.

     —É . Mas você gosta? —perguntou, apertando com suavidade.

     —Não... não sei —respondeu um pouco nervosa.

     —Não há pressa — mentiu ele. Começava a perguntar-se como ia suportar tudo aquilo sem ficar-se louco.

     Por sorte, depois de umas suaves carícias, ela começou a acostumar-se e a excitar-se.

     —Eu gosto disso — sussurrou— Muito.

     Annalía acariciou o peito dele com as mãos enquanto ele continuava movendo os dedos, percorrendo seu corpo, preparando-a para que o aceitasse.

     —Você gosta que te acaricie por dentro? —gemeu Court junto ao pescoço dela, que tinha estado beijando, embora pensasse que era impossível que pudesse gostar mais, tanto quanto ele gostava.

     —Sim! —A moça arqueou as costas e desceu com força sobre seus dedos. Estava tão úmida, tão perto do orgasmo apesar de suas lentas carícias— Não posso mais.

     Ele perguntou perto do ouvido.

     —Precisa de mim?

     —Sim — gemeu ela, todo seu corpo tremia, tinha chegado ao limite.

     Essa era a permissão que ele precisava. Soltou-a e a beijou na boca, desesperado, mal se levantou e colocou-se entre seus joelhos. Annalía respirava depressa, tinha os olhos fechados, o corpo desesperado. Era tão desejável que doía olhá-la. Voltou a excitá-la com dois dedos e, quando ela chegou ao limite, e começou a sacudir a cabeça e a esticar o corpo, ele colocou a ponta de seu pênis na entrada de sua umidade.

     —Siusplau—gemeu ela— Por favor — rogou como se estivesse agonizando.

     Com cuidado, Court a penetrou devagar, apesar de que todos os poros de sua pele pediam que se afundasse nela. Mas não o fez, nem sequer quando Annalía começou a acostumar-se a ele. Nem quando ondulou os quadris fazendo que tremessem os seios.

     —Deus, Anna. —Não havia tortura maior.

     Maldição, ele tinha disciplina. Ele sabia o que queria que acontecesse, agora o único que tinha que fazer era assegurar-se de que aconteceria como ele queria. Pôs as mãos contra a parede e tentou concentrar-se nelas, no estampado diametral do papel pintado, em algo exceto na deliciosa mulher que não deixava de mover-se debaixo de seu corpo, com ele em seu interior. Tinha que concentrar-se para tentar recuperar um pouco de controle e não explodir dentro dela nesse mesmo instante.

     A parede pareceu ceder sob seus dedos, e o papel começou a enrugar-se. O suor cobria a sua testa. Todos os músculos de seu corpo começaram a doer pelo esforço que fazia ao conter-se.

     Court sentiu que Annalía o segurava pelos quadris e tentava que a penetrasse de tudo. De algum modo, ele conseguiu resistir.

     Ao ver que assim não iria conseguir, ela agarrou a base de seu sexo. Com os dedos dela rodeando-o, e o outro extremo de seu membro em seu interior... Court podia imaginar-se...

     Gemeu e jogou a cabeça para trás. Sem pensar se apertou contra seu corpo. Estava perdendo o controle.

     —Não, Anna...

     —Sim — sussurrou ela.

     Controle? Ele voltou a mover-se entre seus dedos, e depois recuou para empurrar com força.

     A mão da Annalía já não estava.

     Court entrou em seu interior, rompeu a barreira e gemeu ao sentir essa calidez apesar de que ela gritou de dor. Annalía tentou afastá-lo. Empurrou-o e quis fechar as pernas.

     —Não, Anna. Não. — Ele a agarrou pelos ombros e a manteve quieta. Se ela parasse agora, só se lembraria da dor. Court ficou quieto, e rezou para que a dor recuasse. Rezou para ter a força necessária para resistir a apertá-la contra o colchão e mover-se dentro dela com toda a paixão que necessitava. Tremeu só de pensá-lo.

     Annalía deixou de mover-se, mas seus olhos ainda continuavam fechados.

     —Tem que deixar que seu corpo se ajuste ao meu.

     —A isto é ao que se referiam as garotas da escola? A esta dor?

     —Não terá que voltar a senti-lo nunca mais.

     —Dói— disse ela sem respirar.

     Ele acariciou seu cabelo e o separou da testa para podê-la beijar.

     —Mo cridhe, Deus! se pudesse fazer que não te doesse.

     Annalía abriu os olhos. Brilhavam. Doía e ele o sentia no mais fundo. Amaldiçoou-se. Era muito delicada, sua pele muito suave para suas rudes mãos. Devagar começou a sair...

     —Não, espera — sussurrou, e ele se deteve— Já não dói tanto.

     Talvez a ela não, mas Court sentia uma dor como nunca antes havia sentido. Estava excitado e desesperado, doía-lhe todo o corpo. Cada vez que o corpo da mulher envolvia seu membro como uma luva, ele sentia uma pressão insuportável. Acariciou-lhe o pescoço com seu rosto.

     —Deveria acabar — disse Annalía.

     Ele gemeu e soube que estava perdido. Sem controle. Ele agarrou suas pernas e as colocou em cima de seus quadris; então a penetrou uma vez. Saiu e voltou a entrar até o mais fundo, apertando os dentes por causa da necessidade que sentia.

     Inclinou a cabeça e beijou os seios. À terceira investida chegou ao orgasmo. Como uma explosão, estalou dentro de seu calor, incapaz de parar e deixar de mover-se em cima dela enquanto a onda de prazer continuava e o sacudia por completo. Gritou do mais fundo de sua garganta, e alagou um prazer que nunca antes tinha acreditado possível.

 

O modo que MacCarrick se movia, a maneira em que esticavam seus músculos, o abandono que devia haver sentido, fez que Annalía se estremecesse.

     A idéia de que ele não pode controlar sua reação, que tinha jogado a cabeça para trás, tinha arqueado o pescoço e o peito e gritado como uma besta, acelerava-lhe a respiração.

     Apesar disso, Annalía não tinha acabado de gostar disso, de fazer amor. Tinha parecido excitante porque era uma experiência nova, e tinha fascinado o modo em que ele tinha respondido, mas por culpa da dor que havia sentido, ao seu cérebro não acabava de gostar da idéia.

     Mas depois, quando ele parou e ficou dentro dela... Aquilo não era nada... desagradável.

     Seu corpo a esmagava. Annalía se moveu para encontrar uma postura mais cômoda, e adorou sentir seu peito, escorregadio pelo suor, acariciando os seus seios. O coração dele pulsava descontrolado contra o dela, e o pêlo de seu peito fazia cócegas. Isso era... bonito. Court respirava agitado contra seu pescoço, também úmido, e a fazia estremecer, e que este gesto também era bonito. E adorava o modo em que sua rude mão acariciava a sua perna que ainda continuava em cima de seu quadril e que ele retinha como se não fosse soltá-la nunca.

     Mas tudo em conjunto serviu para lhe recordar que ela não tinha acabado, não tinha obtido esse prazer que ele com suas apaixonadas carícias tinha estado a ponto de oferecer. Como podia fazer com que ele soubesse que ela queria que voltasse a acariciá-la? Como pedia a um homem que te acariciasse e beijasse os seios e que...? Annalía fechou os olhos. Não podia pedir-lhe. O que podia fazer era voltar a mover-se debaixo dele. Respirou nervosa.

     —Deus, não queria te machucar— gemeu ele e se ajeitou um pouco para começar a retirar-se.

     —Por favor, não se afaste. —Ele não o fez— MacCarrick?

     —O que quer que faça, Anna? —Olhava-a com seus olhos escuros. Sabia que ele estava estudando sua expressão, tentando descobrir o que desejava. Sabia que ele faria tudo o que ela quisesse.

     Mesmo assim virou o seu rosto, incapaz de pedir.

     —Sussurre em meu ouvido o que quer — disse ele, e voltou a abaixar-se.

     —MacCarrick — sussurrou ela insegura— Meus seios... preciso... Toca-os, por favor.

       Ele tremeu, esticou todo o corpo. Então, sem hesitar, pôs as mãos em cima dela e a acariciou antes de rodeá-la com os braços e ajeitá-la um pouco para poder beija-la. Lambeu-lhe os seios, desesperado, gemendo contra sua pele.

     Annalía ofegou e passou os dedos pelo seu cabelo, apertou-o contra ela até que não pôde mais e jogou a cabeça para trás. Era tão intenso o que sentia; e ele estava no mais profundo dela, fazendo que esse prazer fosse ainda maior.

     —Mo cridhe — gemeu ele em cima de seu seio— me diga o que quer que faça.

     Acariciou-lhe os braços frustrada. Ao ver que ela não respondia, ele beijou o seu pescoço e aproximou os lábios à orelha.

     —Me diga o que quer, e te juro que lhe darei isso.

     —Quero que... —respondeu ela entre suspiros— ... volte a me fazer amor.

     Ele respirou entre os dentes.

     —Podemos? Pode fazê-lo?

     —Anna, nunca deixo de estar excitado — respondeu Court, e pareceu surpreso— Não importa o que faça. — Querendo demonstrá-lo, moveu-se devagar dentro dela.

     Um maravilhoso prazer a atravessou, e ela arqueou as costas sem acabar de acreditar.

     —OH, Courtland — gemeu sobressaltada.

     Nesse instante, entendeu por que um homem e uma mulher eram feitos desse modo.

     —Já não te dói? —perguntou Court, enquanto se retirava um pouco e voltava a penetrá-la com suavidade.

     Ela negou com a cabeça, mas não disse nada. Ele aproximou de novo e Annalía sussurrou:

     —Adoro o que está fazendo.

     —Anna. —Seus quadris se apertaram contra ela sem que pudesse evitá-lo.

     Se ela adorava isso, então ele queria que ela tivesse um orgasmo com ele em seu interior, queria saber o que sentia. Inclinou a cabeça e a beijou com paixão, acariciou a sua língua, e depois deslizou pelo pescoço até seus seios. Quando os atormentou com a língua, Annalía gemeu.

     Court entrou um pouco mais e colocou uma mão em seu estômago para mantê-la quieta, seu polegar a acariciava ao mesmo ritmo que ele se movia em seu interior.

     —Você gosta que eu te toque?

     Sua resposta foi um gemido incompreensível, mas separou um pouco mais as pernas e arranhou o peito com as unhas, todos os músculos dele se esticaram como resposta.

     A cada investida de seus quadris, Court continuava acariciando-a. Os seios dela se balançavam, estavam apertados e úmidos de seus beijos, e ele voltava a sentir-se no limite. Annalía deslizou as mãos até os lados e agarrou-se ao lençol com força, arqueou as costas e ondulou os quadris contra seu sexo. Mas ele não estava disposto a acabar até sentir como ela se apertava ao redor dele.

     Ele a acariciou mais rápido, e ela gritou:

      —Sim! Por favor, não pare!

     —Farei isto tanto tempo como quer.

     Annalía gemeu e todo seu corpo se esticou ao sentir como começava a chegar ao clímax. Arqueou as costas, e segurou os ombros dele, apertando-o, cravando as unhas. Em seu interior, ela começou a lhe rodear e o prazer que Court sentiu foi muito maior que as outras vezes se é que isso era possível.

     Ele jogou a cabeça para trás e soltou um brutal gemido quando começou a esvaziar-se dentro dela. A sensação era tão intensa que ele teve que fazer esforços para evitar morder a pele úmida dela, ou segurar seus quadris e penetrá-la com mais força; em vez disso, inclinou-se e pegou o seu rosto entre as mãos.

     Com as últimas ondas de prazer, ele a olhou aos olhos, ao ver se ela voltava a afastar o olhar. Mas não o fez. Enquanto Court seguia movendo-se dentro de seu corpo, incapaz de deixar de possuí-la, as palavras surgiram de seus lábios:

     —Is lamba thus. Naisgeam riut meu daonnan. —É minha. Ato-te em mim para sempre. Ele as ouviu como se outra pessoa as houvesse dito, e então se derrubou em cima dela.

     Segundos mais tarde, ajeitou-se um pouco, dando-se conta de que era muito pesado para a Annalía. Ela o olhou com fascinação e ele, embora não o merecesse, confiava em algo mais. Pegou-a e deu a volta colocando-a em cima de seu peito, onde continuou abraçando-a com força e sentindo como seu coração pulsava descontrolado. Quando ela recuperou a respiração, também o rodeou com os braços e o abraçou do mesmo modo. Court sorriu.

     —Tornei a te machacar? — acariciou o cabelo, adorava o quanto era suave, o aroma que desprendia.

     Annalía negou com a cabeça, que descansava em seu peito.

     —Desta vez não. —E em uma voz tão baixa que ele quase não podia ouvir, disse— Não pode haver nada mais maravilhoso. —Parecia fascinada e ele se sentia orgulhoso— Mas e eu? Tenho-o feito bem?

     Quando ele riu, ela se ajeitou e o olhou com seus olhos dourados, meio fechados.

     —O que te parece tão divertido?

     —Sua pergunta. Não pode nem imaginar o bem que o tem feito.

     Ela mordeu o lábio e voltou a recostar a cabeça em seu peito. Estava sorrindo.

     —Estava convencida de que não sabia rir.

     —Sim, sim sei. —Só que até então não tinha tido muitos motivos para fazê-lo.

     —Quero ouvir sua risada mais freqüentemente — disse ela adormecida. Abraçou-o uma vez mais e dormiu.

     Naquela noite, ele tinha obtido a maioria dos prazeres que ele nunca tinha experimentado, mais do que tinha imaginado que era possível. Annalía estava tão quente, em cima dele, com seus cabelos espalhados em seu peito, o seu corpo encaixado com o seu.

     Court sentiu que voltava a excitar-se dentro dela, mas ele não era tão selvagem para fazê-lo três vezes nessa noite, assim que se retirou, a deitou ao seu lado.

     Ela protestou em catalão e como sempre continuou dormindo como um tronco.

     Court se levantou para desprender do suor que cobria todo o seu corpo, molhou uma toalha para limpar-se e então viu o sangue. Deu a volta na cama e o lençol manchado estava ali, acusando-o. Formou um nó em seu estômago. Ele era um homem, e ninguém tinha explicado como cuidar de sua mulher depois de tomar sua virgindade. Não era um tipo de conversa que tinham por aí, e supunha que Court nunca ia ter uma mulher só para ele. Considerou que nunca ia conhecer uma mulher como ela.

     Ele queria aliviá-la de qualquer dor que ele tivesse causado. Sabia que se alguém via o lençol ensangüentado Annalía passaria vergonha e, embora talvez, ela não estava preparada para ver sangue em suas coxas, não queria que se assustasse. Franziu o cenho, umedeceu outra toalha e aproximou-se dela.

     —Anna, vou cuidar de você — disse ele, acariciando o seu ombro.

     —Claro — murmurou ela e ele sentiu como o seu coração dava um tombo.

     Court aproximou a toalha em suas coxas e lavou a pele, depois a colocou em cima de seu sexo. Podia ver como ela apertava os olhos, mas não queria que sentisse vergonha diante dele. Agora ela era dele, seu dever era cuidá-la.

     Assim, em vez de retirar deixou a fria toalha ali, acreditando que isso poderia aliviá-la. Quando ele ia levantar ela segurou o seu pulso com suavidade e o deteve um instante. Sua respiração estava ficando mais profunda e quando ele soltou a mão, pôde ouvir como ela sussurrava:

     —Obrigado.

     Annalía confiava nele.

     Ela tinha entregado a sua segurança e sua vida, e agora sua inocência.

     Court esperava que não tivesse se enganado.

     Quando Annalía voltou a dormir, ele a levantou para trocar o lençol e voltou a deitá-la. Fez uma bola com o tecido manchado e a atirou em um canto; Levantaria antes que ela para desfazer-se disso. Quando se deitou a seu lado, ela aconchegou junto a ele, seu corpo quente e suave. Ele a aproximou de seu peito e voltava a abraçá-la muito forte.

     Dormir com ela era um luxo que tinha acreditado que não ia voltar a desfrutar nunca. Poder tocá-la, cheirar seu cabelo quando quisesse... a ter apertada junto a ele e sentir sua respiração em cima de seu peito. Poderia ser que fosse de verdade tão sortudoz Que ela aceitasse a sua impossibilidade de ter filhos? Uma risada de assombro cruzou seus lábios. Eles queriam ter filhos, embora não do modo habitual.

     Ela era dele. E ele ia superar qualquer obstáculo que se interpor em seu caminho para assegurar-se de que isso continuaria assim.

     Quando Hugh voltasse pediria conselho sobre o armamento necessário para que um homem pudesse matar os Renegados. Court já tinha mandado instruções a sua tropa, estava impaciente por acabar com tudo isso, e confiava que não demoraria em receber essa notícia.

     Depois teria que encarregar do irmão de Annalía quando este chegasse. Llorente não quereria que um homem como ele se casasse com Anna, inclusive embora Court tivesse lutado com ele e o tivesse entregado ao déspota de Pascal. Teria que fazer um esforço para entender-se com ele, o que seria difícil, porque Court não estava acostumado a fazer um esforço para entender-se com ninguém. Mas pela Annalía estava disposto a tentá-lo.

     E depois teria que fazer o que mais temia; dizer a Anna que não tinha sido de todo sincero com relação a seu irmão. Havia dito que não tinha atacado a Llorente, o que era verdade, mas sim tinham lutado. Acreditaria quando dissesse que o encerrado na prisão lhe tinha salvado a vida?

     Annalía acariciou o seu braço e, quando murmurou seu nome, ele a aproximou mais, até colocá-la na curva de seu cotovelo, e a beijou na testa. Sim, ela acreditaria, e sim, Court estava disposto a matar a qualquer um que a ameaçasse; e se Llorente não o aceitasse como cunhado, teria que resignar-se a perder a sua irmã.

     Nesse instante, até a maldição parecia superável. O resto eram meras... complicações.

     Ela era dele.

 

Annalía dormiu toda a noite e quando despertou viu que o enorme e quente corpo do Court estava apertado contra suas costas e que rodeava possessivamente a cintura com um braço. Também se deu conta de que estava dolorida. Deu a volta para ele, aproximou mais em seu peito, e voltou a dormir.

     Quando despertou de novo era quase meio-dia, e ele se foi. Sentou-se na cama, esfregou os olhos e depois deslizou o olhar para baixo e estudou os lençóis. Não havia sangue. Ela teve certeza de que ele desfez do lençol. Seu escocês estava demonstrando ser muito considerado.

     Annalía pediu um banho e confiou em que a água quente a ajudaria a amortecer suas dores. Mas enquanto estava sentada dentro da água fumegante, deu-se conta de que ainda tinha uma conta pendente com o MacCarrick. Segundo o que ele respondesse, ela não poderia seguir adiante.

     Tinham falado dos filhos e se puseram de acordo com bastante facilidade. Court ficara meio doido com o assunto de sua fortuna. Era uma sorte que ele não quisesse seu dinheiro, porque Aleix não ia aprovar nunca seu casamento, e, portanto ia reter seu dote. Viver na Escócia? Ela viveria na lua com ele.

     Só havia uma coisa que nunca, nunca ia tolerar...

     Ela se esmerou mais do habitual em escolher um vestido e em pentear-se, depois desceu e perguntou se seria estranho voltar a vê-lo essa manhã. Quando encontrou com ele ao pé da escada, ele a olhou e em seguida afastou o olhar.

     Ela entreabriu os lábios e esteve a ponto de chorar.

     Quando a seguir ele aproximou dela sem hesitar, Annalía deu conta de que ele estava assegurando-se de que não houvesse ninguém mais na sala. Court segurou o seu rosto entre as mãos e a empurrou para a parede, gemeu e beijou o seu pescoço.

     —Demorou muito em descer.

     “Fantástico!”

     —Por que não ficou comigo?

     —Porque me despertei te desejando muito mais que ontem à noite. Mas embora tivesse sido capaz de não esperar até que você levantasse, acreditei que se eu não descesse primeiro, foste passar um pouco de vergonha.

     —Um pouco. —Ela se ruborizou— Aconteceu um pouco quando você... ocupou-se de mim ontem à noite.

     —Não sabia o que fazer. —Ele apoiou a mão na parede em cima dela— Só queria que você se sentisse bem.

     Ela se sentia comovida. Court pegou uma mecha de cabelo com sua outra mão e o deslizou entre seus dedos. Tinha soltado o seu penteado? Nem sequer tinha dado conta.

     Ele comportava como se a visse pela primeira vez. Com ele tão perto dela, Annalía adorou observar seus largos ombros e seu forte peito. Usava uma camisa branca que ressaltava sua pele morena e sua intensa expressão. Ela nunca tinha visto um homem tão bonito. E era dela.

     De repente franziu a testa. Era?

     —Anna, para mim isto é tão novo como para você.

     —Alguma vez antes tinha deitado com uma garota que fosse virgem?

     —Deus, não, não o tinha feito.

     —De verdade? —Em certo modo para ele também tinha sido a primeira vez— Por que decidiu começar comigo?

     —Porque você me tenta até tal ponto que já não posso pensar. —aproximou-se de seu pescoço— Cheira tão condenadamente bem.

     Ela fechou os olhos. Ele a beijou... com suavidade. Não! Ela tinha que sabê-lo.

     —É algo que você gostaria de voltar a fazer? —perguntou, tentando parecer relaxada.

     Court se afastou e negou com a cabeça com ênfase.

     —Nem sequer se fosse possível.

     —Quero dizer com outra mulher.

     Ele ficou sério.

     —Não. Alguma vez. —Entrecerrou os olhos— Você se arrepende do que temos feito?

     Annalía sentiu que ele se esticava. Como já tinha deixado claro o que queria, a ela ia ser difícil expressar o que sentia.

     —Não haverá nenhum outro homem para você. —Soou tão severo que ela inclusive se assustou— Agora é minha, Anna — gemeu ele e agarrou seus cabelos entre as mãos— Me olhe.

     Ela o fez, e ficou sem fala em ver a rapidez em que ele se zangou. Fosse o que fosse o que ele viu em seu olhar fez que as linhas ao redor de seus olhos se apertassem.

     —O que é o que tenta me dizer? —perguntou furioso.

     Annalía tomou fôlego e disse:

     —Você... você disse que queria ter um harém, que não queria ter só uma mulher. Já sei que é assim como funciona o mundo, e me ensinaram que não devia esperar o contrário, mas eu... eu quero que você também seja meu. —Que vergonha. Ela se sentia idiota e pouco sofisticada. Do primeiro dia em que tinha ouvido falar do casamento sabia que as coisas eram desse modo.

     A Annalía haviam dito que se uma mulher ignorava isso, o casamento fracassava e ela se convertia em uma amargurada. Mas a outra cara da moeda era a devastação que ela tinha visto que tinha causado o adultério de sua mãe, por que ia Annalía suportar isso melhor que seu pai?

     Ela viu que Court estava emocionando.

     —O que quer dizer? —Ao menos agora já não parecia zangado.

     Ela deu conta de que até então não tinha feito nada tal como tinham ensinado; não tinha esperado para fazer amor, não tinha escolhido um par “apropriado”. Assim por que arruiná-lo; gostava muito de como estavam saindo às coisas. Levantou o queixo.

     —Eu não te compartilharei com ninguém. Se eu tiver que ser fiel, quero que você também o seja.

     Court ficou boquiaberto. Ela sabia que o que pedia era pouco razoável, mas só de pensar nele com outra mulher... Já não poderia suportá-lo antes que ele fizesse amor, muito menos agora.

     —Você já me advertiu disso...

     —Quando?

     —Naquela noite na costa.

     Ele então o entendeu.

     —Disse “por que me conformar com uma, quando posso ter muitas”, mas só de pensar em você com outra... — Ela se interrompeu.

     —Acaba o que estava dizendo.

     Annalía afastou o olhar e os seus olhos encheram de lágrimas.

     —Não poderia suportá-lo.

     Court pegou o seu queixo e fez virar a cabeça. Estava olhando-a de um modo diferente, cheio de sentimentos; mas alguns que Annalía não tinha visto antes. Beijou-a com todas suas forças.

     Entretanto, não tinha respondido a sua pergunta, assim que ela se afastou e o olhou com toda a dor que sentia.

     —Anna, ontem de noite te fiz minha, porque te quero s cima de todas as demais. — Acariciou-lhe a bochecha com os nódulos dos dedos, e depois apoiou a testa contra a dela— Sempre será assim. Não me atrevia a sonhar que você sentisse o mesmo.

    

           Durante as duas semanas seguintes, ela passava o dia na biblioteca, ou lendo no salão. Então, MacCarrick se aproximava dela com a testa franzida, o corpo em tensão e lhe oferecia a mão para que o acompanhasse.

     Não dizia nada, as palavras não faziam falta. Seus escuros olhos negros diziam tudo. Quando lhe pegava a mão — enquanto ele a seguisse oferecendo ela nunca o recusaria—, ele demorava alguns segundos em dissimular sua surpresa. Depois, levava-a para cama e Annalía podia sentir o quanto orgulhoso ele estava e como a ela acelerava o seu coração.

   Seu escocês era muito atencioso e carinhoso; mandou procurar seus mantimentos preferidos e trouxe seus livros, embora ela morreu de vergonha ao ver as novelas góticas que tanto gostava.

     Cada noite, antes ou depois de fazer amor, liam juntos na cama, às vezes ele lia uma novela com a cabeça apoiada em seu colo e acariciava os seus cabelos. Mas sempre, quando ela apertava o livro, nervosa porque a heroína ia sozinha investigar ao escuro porão, ele a assustava e fazia cócegas.

     Outras vezes, MacCarrick lia poemas subidos de tom, exagerava seu acento e fingia vozes, até que ela chorava de tanto rir e doía o estômago. Claro que teve que aprender muito o vocabulário para entendê-los de tudo.

     Um dia, Court teve a sensação de que algo a preocupava, e ao final ela confessou que sentia falta de montar a cavalo. Ele sorriu com picardia e ensinou uma maneira muito diferente de montar. Isso não foi tudo o que ele ensinou. Annalía sabia que suas carícias o deixavam louco, mas morria de vontade de beijá-lo como ele a tinha beijado. Quando por fim o convenceu de que deixasse fazê-lo e rodeou seu membro com seus lábios, ele perdeu o sentido.

     Essa mesma manhã na cama, ela se espreguiçou e ele disse como sempre:

     —Cuidado com o braço, pequena.

     Mas ela respondeu:

     —Acredito que se preocupa mais você do que eu.

     —Eu gosto de ver como espreguiça. Eu adoro ver como o faz, mas até que se cure de tudo tem que ir com cuidado.

     —Acreditaria que sou menos atrativa se ficar uma cicatriz?

     —Isso é impossível, Anna — disse ele, e mordiscou o seu pescoço. Depois ficou sério de repente— Cada vez que vejo a ferida é como se me lembrasse do perto que estive de... —Ele levou uma mão à boca e tossiu— Esteve muito perto. Mo cridhe, somos muito sortudos.

     Eram sortudos por estar juntos. Mas durante todo esse tempo ele não mencionou o casamento, e ela seguiu seu exemplo. Não falaram do futuro. E cada dia que passava significava que seu irmão estava mais perto. Annalía tinha a esperança de que MacCarrick estivesse esperando para pedir sua mão a Aleix. Mas essa idéia era absurda.

     Assim continuavamdesse modo, sem que ele prometesse nada. Ela tinha decidido que, quando ele o fizesse, ela teria a coragem necessária para lhe confessar que estava perdidamente apaixonada por ele.

  

Quando Hugh retornou, Court estava sentado à mesa da cozinha e rodeava a Annalía com um braço e ao mesmo tempo acariciava sua nuca e sussurrava coisas ao ouvido. Seu irmão não conseguiu conter-se e “convidou” Court a tomar uma bebida com ele depois do jantar. Court quis acompanhar Anna quando foi deitar-se, mas disse que estava cansada, e que queria que ele falasse com seu irmão.

     —Por que, Court? —perguntou Hugh, e se sentou na cadeira de couro do escritório. Esfregou a ponta do nariz. Parecia esgotado.

     —Chegou um momento no que não pude resistir mais.

     —Não é por isso que tomou sua virtude. Você poderia haver resistido. É o homem mais disciplinado que conheço. O que significa que decidiu de uma maneira consciente. —Hugh soltou o fôlego— Você fez para se casar com ela. E, o que é mais importante, para que ela tivesse que casar-se contigo.

     Court entrecerrou os olhos.

     —Não, ela também quer casar-se comigo.

     —Acha que alguém como ela vai gostar de viver em sua ruinosa casa de mais de quatrocentos anos? Sem falar de que sua enorme propriedade está em metade de nenhuma parte. Nenhuma costureira atravessará centenas de quilômetros para vestir a sua preciosa mulher.

     —Ela tampouco vivia em uma metrópole, assim digamos.

     —Sabe ela sequer quem é? Seja realista, Court.

     —Refere se ela souber que sou um mercenário estéril e com uma maldição sobre sua cabeça que vive entre um montão de pedras?

     Hugh levantou uma sobrancelha e limitou em responder:

     —Sim.

     É estranho como uma única palavra pode ser como um murro para quem não está preparado. Court não se incomodou em dissimular seu aborrecimento ao sair da sala.

     Passeou-se pela casa amaldiçoando tudo o que via. Ele não vivia assim. Tudo o que ela agora via era cor de rosa. Via a riqueza e os serventes, e se estava cômoda ali, não o estaria em sua casa, no norte da selvagem Escócia.

     E o que sabia ela sobre ele? Sabia que era um amante carinhoso, mas ultimamente, pouco a pouco começava a perder o controle.

     Às vezes queria possuí-la com muito mais força da que o fazia.

     Entrou no quarto e viu que estava dormindo de barriga para baixo, o lençol enrugado a seus pés, e seu cabelo espalhado sobre o travesseiro, igual a aquela noite em Andorra, quando entrou em seu quarto. Essa noite esteve olhando-a e imaginou a si mesmo acariciando as suas coxas e o sexo até tê-la a seus pés. Court se lembrou do muito que a tinha desejado, e do muito que tinha odiado o fato de que uma dama como ela nunca fosse aceitá-lo.

     Sim o faria. Nesse mesmo momento.

     Court se despiu depois se ajoelhou entre suas pernas e deslizou as mãos por suas coxas por cima da camisola. Annalía murmurou algo, mas continuou dormindo e ele subiu até a sua cintura.

     Colocou uma mão no sexo dela, aproximou os dedos e a acariciou. Despertou surpreendida.

     —Separa as pernas. —Ela o fez sem interrogá-lo— Mais. —Também o fez, confiava nele.

     Court a penetrou com um dedo e fechou os olhos ao sentir essa umidade que logo lhe envolveria por completo. Quando Annalía começou a respirar mais rápido, ele acrescentou outro dedo. Ela gemeu, mas ele não queria excitá-la muito, só o suficiente para que desejasse mais. Ofegou quando ela tentou mover-se para fazer que ele a penetrasse mais fundo. Com pequenas carícias, ele a pôs de joelhos.

     —Sim — disse ele com voz rouca— De joelhos. Se apóie nas mãos. —Quando ela esteve como ele queria, Court deslizou a camisola para sua cabeça até tirar-la A seguir o jogou para o lado, e depois acariciou o seu cabelo com o rosto e inalou seu aditivo aroma— Nunca tenho suficiente de ti, mo cridhe —gemeu e voltou a deixá-la como estava.

     Sem suas carícias, ela começou a sentir-se incômoda, porque tentou deitar-se de novo. Ele a segurou pelos quadris antes que pudesse fazê-lo.

     —Não, quero que fique assim.

     —Como? —sussurrou ela.

     Ele respondeu separando um pouco mais as pernas e acariciando-a com o polegar acima e abaixo. Annalía inclinou a cabeça para frente e arqueou as costas.

     —Mas... assim é como... como o fazem os animais —sussurrou ela nervosa.

     —Sim. —Ele colocou as mãos debaixo de seu corpo, segurou seus seios e os acariciou até que ela suspirou.

     —Eu não posso... Não sei.

     Court voltou ajeitá-la para seu peito e afastou o espesso cabelo do ombro dela para poder beijar seu pescoço, depois deslizou os dedos por seu estômago até seu sexo, e entrou em seu interior para acariciá-la. Annalía gemeu e se derrubou em cima dele, que a apertou contra seu peito rodeando-a com um de seus fortes braços sob seus seios. Por baixo, ele continuava atormentando-a com os dedos, uma e outra vez, até que esteve muito perto do clímax. Então os retirou e dedicou ambas as mãos em acariciar os seios, devagar, moldando-os, excitando-a.

     —Por favor, Court — gemeu ela.

     —O que quer?

     —Já sabe.

     —Necessita-me dentro de você?

     Ela suspirou, mas afirmou com a cabeça.

     Court apertou sua dolorosa ereção contra a coxa dela.

     —Me ponha dentro de você.

     —O que? —perguntou ela.

     —Me ponha dentro de você. Agora.

     —Como?

     —Já sabe como.

     Ao ver que ela hesitava, desenhou um seio com os dedos e percorreu o lóbulo da orelha com a língua. Annalía apoiou a cabeça no ombro dele e Court o acariciou o pescoço com os dentes.

     —Me agarre em sua mão — disse ele contra sua úmida pele.

     Sentiu como ela o rodeava, pôde distinguir com todo detalhe como cada dedo se dobrava ao seu redor. Gemeu de necessidade, precisava estar dentro dela. Desejava à mulher que ocupava essa cama, a que tinha acreditado que nunca ia ter; queria que ela o desejasse tanto que por si mesmo o guiasse até seu interior.

     Annalía o aproximou de sua umidade, e ele acreditou que ia explodir no mesmo instante em que a ponta de seu membro a roçou. Com as mãos separou suas coxas um pouco mais, para que a distância entre seus joelhos fosse maior. depois voltou a acariciar os seios com ambas as mãos, massageando-os, desesperado, fazendo esforços por não penetrá-la ainda.

     Fechou os olhos quando foi ela quem o introduziu, quem guiou seu sexo para seu interior. A cada centímetro dele que entrava, ela gemia mais e a ele adorava esse som. Agüentou a respiração e se deteve a meio caminho, deixou que se acostumasse a ele.

     Porque ia possuí-la como nunca o tinha feito.

     Ela moveu as mãos para trás e agarrou as coxas. Ele a segurou pelos quadris, penetrou-a, e ela gritou de prazer.

     —Preciso te possuir com força.

     —De qualquer modo que quiser.... —gemeu ela com a respiração entrecortada, mas quando ele voltou a investi-la, ficou sem fala.

   —Já sabe o que quero, Anna. Está disposta a me dar?

     Ela cravou as unhas em suas coxas, e ele a ouviu murmurar:

     —Sim.

     Capturou o lóbulo de sua orelha entre os dentes, e sussurrou no ouvido:

     —Então, se agache.

     Annalía moveu a cabeça, seu cabelo acariciou o braço dele de cima e abaixo. Court colocou uma mão nas costas para ajudá-la a inclinar-se e, com seus joelhos, separou um pouco as dela. Agarrou-a pelos ombros e a moveu ao mesmo ritmo de sua ereção.

      Ele retirou um pouco os quadris, e depois voltou a penetrá-la com mais força da que pretendia, mas ela gemeu:

     —Ah, sim.

     Então se apertou contra ela, sua pele pegando-se à sua.

     —Arqueia as costas para baixo — ofegou ele. Ela o fez e ele a rodeou com as mãos; com uma acariciou o sexo e colocou a outra sob seus seios para roçá-los a cada investida.

     Quando ela gemeu de novo, ele levantou um joelho colocando junto o quadril dela para penetrá-la por fim até o mais fundo. Annalía voltou a gritar, mas a umidade que o envolvia era a única permissão que ele necessitava para continuar. Acariciou suas luxuriosas curvas; estava descontrolado, não podia deixar de possuí-la, cada vez com mais força; penetrou-a com tanta paixão que ela acabou apoiada nos cotovelos.

     Court não podia acreditar no prazer que sentiu quando ela tentou acompanhar ao seus movimentos, apressando-se para chegar ao clímax. Sentiu que se esticava, viu que apertava o travesseiro com as mãos. Ele gemeu e soltou uma maldição quando o corpo dela começou a lhe apertar com intensidade até derrubar-se na cama.

     Deu-lhe a volta, agarrou uma de suas pernas e a fez girar para assim poder continuar dentro dela, continuou movendo-se em seu interior.

     Agarrou as suas mãos e as reteve em cima de sua cabeça com uma das suas enquanto seguia penetrando-a cada vez com mais força. Com a outra mão acariciou o seio e o reteve para poder beijar e roçá-lo com os dentes. De repente, ela teve um novo orgasmo; seus joelhos caíram rendidos a ambos os lados.

     Bem quando ele alcançou o ponto de máxima excitação dentro dela, continuou, sem soltar suas mãos nem o seio nem um segundo, e explodiu em seu interior com um orgasmo sem fim que o obrigou a gritar e mover-se até cair desabado em cima dela.  

     A cabeça de MacCarrick descansava sobre seu seio, seus braços a continuavam abraçando; ficou adormecido enquanto ela acariciava o seu cabelo e já não se moveu.

     Annalía acreditava que essa noite Court tinha tentado dizer algo com suas ações, e pensava que a mensagem podia ser uma de duas coisas. Ou ele queria que ela soubesse o quanto se sentia livre com ela, que ele confiava em que ela saberia entender suas necessidades mais profundas, que saberia as aceitar. Ou, tinha sido uma descarada advertência.

     Se fosse o primeiro, ela podia aceitá-lo. Annalía desejava que ele a amasse com força, ansiava que a fizesse sentir mulher até esse ponto, e que ele fosse tão homem. Só de pensar em como seus dentes a roçavam, começava a tremer. Não queria que ele se controlasse, que sentisse que tinha que esconder-se dela.

     Mas se suas ações tinham sido uma descarada advertência, tinha falhado absolutamente. Porque ela queria desesperadamente tudo àquilo do que ele tentava adverti-la.

     Podia encontrar nos fatos dessa noite o porquê dele não tê-la pedido em casamento? Essas palavras que ele estava acostumado a sussurrar em gaélico quando faziam amor era algum tipo de promessa? Um dia perguntou o que queriam dizer, e ele se limitou a dizer: “Logo lhe direi”. Annalía queria respostas, queria tirar suas conclusões, mas esses dias com ele eram como um tesouro, e temia colocar tudo a perder.

     Suspirou. Esses pensamentos não deixavam de atormentá-la, porque cada dia que passava era um passo mais para sua total perdição. Logo ela teria que escolher, e se ele não a tinha convertido em sua esposa, se não queria convertê-la em sua esposa, Annalía se veria obrigada a demonstrar que era igual a sua mãe, que o sangue castelhano corria pelo mais profundo de suas veias. Porque ela escolheria a desonra e ficaria com seu amante escocês.

     Court mudou de postura e a pôs em cima dele, com sua cabeça por cima da dela. Ela sabia que ele estava dormido, mas até inconsciente, sua mão acariciou o seu seio. Sua mão, tão escura e cheia de cicatrizes, ressaltava em cima de sua pele. Era um sinal de posse muito fundamental. O mamilo começou a excitar-se sob o calor de sua palma.

     O que ele não sabia era o muito que ela também ansiava em possui-lo.

      

Court voltou apertar a Anna junto a ele, as costas dela contra seu peito, suas nádegas em seu colo. Escondeu o rosto em seu cabelo e inalou, lembrou-se da noite anterior e voltou a excitar-se.

     Então assaltaram as dúvidas.

     Ele tinha aproximado de uma moça, inocente e impressionável antes de conhecê-lo, e tinha feito que se inclinasse, que separasse as pernas e a havia possuído com força. E sabia que voltaria a fazê-lo...

     —Vai perguntar se me machucou? — disse ela com voz lânguida, lendo o pensamento. Quando ia responder, ela rodeou sua ereção com a mão— Vai perguntar-me se me sinto envergonhada? —Acariciou-o— Não me machucou. — Ela o guiou para seu interior— Não me sinto envergonhada. —Moveu os quadris até ficar melhor colocada e então, devagar, deslizou-se em cima dele.

     Annalía estava realmente fazendo isso? Depois do que aconteceu na noite? Embora estivesse convencido de que continuava sonhando, ele foi ao seu encontro e a penetrou até o mais fundo.

     Ela gemeu e depois suspirou feliz.

     —Vê? Não tem por que preocupar-se.

     —De verdade não te envergonhei?

     —Talvez no princípio, mas depois não. Absolutamente.

     —Então ao menos não sou o bastante atrevido para você. —Ele mordeu-lhe a orelha e ela riu. Ele pôde senti-lo— Sou um velho que já não fica nenhum ás na manga?

     Nesse instante, rodeou-a com os braços, segurou-a com força e se deitou de costas.

     —Courtland? —gritou ela ao ver que a tinha deitado em cima dele.

     Separou-lhe os joelhos, colocou as pernas dela uma a cada lado das suas e começou a acariciar os seus seios e o umbigo com as mãos. Annalía gemeu quando ele cravou os calcanhares no colchão e entrou nela de uma vez que com os dedos seguia atormentando-a. Tirou-a deste modo até que a mulher arqueou o corpo em cima do dele, chegando outra vez ao limite, e quando ela se derreteu, ele fez o mesmo em seu interior.

     Depois, ele voltou a colocá-la na cama e, sem vontade, retirou-se de seu quente corpo. Afastou-lhe o cabelo do rosto e acariciou os ombros até que ela voltou a dormir, então murmurou ao seu ouvido:

     —Anna, meu coração está feliz.

     Levantou-se e colocou as calças para voltar para o quarto dele. Olhou-a outra vez antes de fechar a porta. Ela virou-se entre os lençóis e o presenteou com a vista de seus deliciosos seios. Court gemeu. Sabia que não poderia esperar até a tarde. Levaria-lhe o café da manhã e ver se podia tentá-la. Sorriu. Ela sempre estava tão a ponto como ele.

     Em seu quarto, asseou-se, vestiu-se e deu-se conta de que estava assobiando. Ele não estava acostumado a assobiar. Encolheu-se de ombros e desceu a escada correndo, mas se deteve a meio caminho; de repente perdeu o bom humor.

     Ethan estava em casa.

     Seu irmão parecia estar sempre furioso, mas desta vez era de verdade, sua cicatriz estava pálida. Maldição. Olhou para Court e se dirigiu ao escritório. Court soltou um insulto e o seguiu.

     —Ouvi certas coisas — começou Ethan logo que Court fechou a porta— Durante quanto tempo, pensa continuar assim?

     —Seu irmão chegará logo — defendeu ele.

    —E então, deixará que ela vá com ele? Apesar de você ter se deitado com ela?

     —Contou-lhe isso Hugh?

     —Ele não me disse nada. Nossa mãe não é a única que recebe informações do que acontece nesta casa. Haviam-me dito, e sua cara me confirmou isso.

     É obvio que Ethan sabia. Ethan sabia tudo.

     —Sua castelhana esteve perguntando os membros do serviço o que significa certa frase em gaélico. —Fulminou ao Court com o olhar— Disseram-me que sua pronúncia é excelente. Seria impossível que a repetisse tão bem se só a tivesse ouvido uma vez.

     De fato, sim poderia. Annalía era capaz de imitar o frio acento de Ethan cinco segundos de havê-lo conhecido.

     —Atou-a a você?

     —Sim. —As palavras tinham fluido de seu interior. Não tinha podido as parar. E sim, ele o havia dito a Annalía mais de uma vez.

     —Ela era inocente e de boa família?

     —Sim — respondeu ele ajustando os ombros. Negava-se a envergonhar-se do que tinha feito.

     Ethan o olhou incrédulo.

     —De verdade acredita que vai casar com essa garota?

     —Farei-o.

     —Me diga, irmão, odeia-a?

     Court entrecerrou os olhos.

     De uma bolsa de pele que havia ao lado do mesa, Ethan tirou um pesado livro e o deixou em cima da mesa.

     Leabhar nan Süil-radharc. O livro do Destino.

     Court recuou sem afastar os olhos, e sentiu como esticavam todos os músculos de seu corpo. A capa brilhava como as escamas de um peixe e não mostrava nenhuma imperfeição devido a todas as vezes que seus antepassados tinham tentado destruí-lo. Primeiro fez um nó no estômago e depois o revolveu. A única coisa que pode manchar o livro tinha sido o sangue.

     Não era tão grosso como podia ter sido, não se tinham acrescentado mais páginas. Mas eles sabiam que com eles acabaria, pois não haveria mais descendentes aos que predizer o destino.

     —Deve odiá-la. A pos em uma situação em que a única coisa que pode fazer é casar-se com você ou perder sua reputação por completo. Claro que teria muita mais sorte se escolhesse o segundo. Isso é muito melhor que a morte e a desgraça, muito melhor que casar-se com um arruinado mercenário incapaz de lhe dar filhos.

     —Por que trouxeste isso aqui? —Court olhou ao redor sem poder acreditar que Anna estivesse na mesma casa que aquela maldita coisa.

     —Acreditei que precisaria que te refrescasse a memória.

     Court não tentou dissimular a fúria que sentia. Poderia matar Ethan por isso.

     —Como se me tivesse esquecido.

     —Pois o tem feito. E, ao parecer, também esqueceu o que aconteceu com a última mulher que se prometeu a um de nós. A mim, para ser exato.

     —Não é isso, Ethan. Sinto que desta vez é diferente.

     —É obvio que sente isso. —Ele soltou o fôlego e olhou para Court de um modo estranho, como se sentisse pena por ele— A deseja tanto que está disposto a acreditar que é assim, mas no final só conseguirá fazer mal a ela.

     Court negava com a cabeça, e viu destroçado, como Ethan abria o livro pela última página. Sua página.

     —Bem feito, Court. Por que esperar a que cheguem “a morte e a desgraça” quando você pode sair ao encontro a meio caminho? Dedicou-se a matar por dinheiro, a seduzir inocentes... Quando chegar a minha idade, terá superado minhas maldades com acréscimo.

     Isso o impactou. Ethan não era um bom homem. A seu lado, as maldades de Court pareciam insignificantes.

     —É estranho — disse Ethan sorrindo— Agora que já não sou o mais malvado dos MacCarrick não me sinto nada diferente.

     Court ignorou seu lúgubre senso de humor.

     —E quando vier seu irmão, o que fará? Parece ter todas as respostas, o que deveria fazer então? Você sabe que Hugh e eu podemos encontrar um lugar onde ela esteja a salvo.

     —Eu posso cuidar dela. Sairei e matarei a todos os Renegados para protegê-la.

     —Mas mesmo assim tem que deixá-la partir. Se não o fizer, demonstrará que não a quer o suficiente. Se de verdade a quisesse, nunca, em nenhuma circunstância, poria em perigo sua vida. Note o Hugh, ele se nega a estar perto de Jane, em troca você quer casar com sua mulher. —Ethan fechou a capa de repente.

     Court olhou enojado o livro pela última vez e saiu do escritório feito um furacão. Cruzou-se com o Hugh.

     —Cuida da Anna. E não deixe que ele ou esse maldito livro se aproximem dela.

     Na rua não se deu conta de que as pessoas se afastavam de seu caminho.

          

     —Saiu para espairecer.

     Essa foi a crítica resposta que Hugh deu quando Annalía perguntou onde estava Court. Quando o perguntou fazia duas horas. Não gostava que ele saísse, não podia parar de pensar que o atacassem, que eram muitos contra ele.

     Começou a passear-se pelo saguão, sem importar que os empregados a olhassem surpreendidos. Faziam-no de qualquer jeito, porque todos sabiam que ela se deitava com o MacCarrick a cada dia, às vezes durante horas.

     Por fim, ele entrou pela porta e sacudiu o cabelo molhado como se fosse um lobo. Achando que tinha caminhando sob a chuva todo esse momento.

     —Onde esteve? Estava preocupada.

     No olhar do Court havia uma desolação que antes não estava.

     —O que aconteceu? —perguntou ele.

     —Nada. Só que sentia falta de saber o porquê foi sem se despedir.

     Ele pôs as mãos nos ombros e começou a acariciar o seu pescoço com os polegares, mas scontinuava ausente. Ela sabia que era um gesto que fazia inconsciente.

     —Hoje me recordei de algo — disse ele vacilante. Ao parecer, então se deu conta de que a estava tocando, porque a olhou surpreso e afastou as mãos.

     —O que aconteceu? —perguntou ela; começava a ficar assustada.

     —Dei-me conta de certas coisas sobre nós, sobre como... como me sinto, e eu não quero te fazer mal. Vou retornar a... —De repente ficou em silêncio e se esticou, depois deu a volta para a porta e colocou-se diante de Annalía para protegê-la. Deslizou a mão para o interior de seu casaco e colocou dentro uma pistola que ela nem sequer sabia que levava.

     A porta principal se abriu e MacCarrick relaxou a mão.

     —Aleix? —Estava bem! Estava ali! Ela correu para o abraçar.

     —Está bem? —perguntou Aleix de uma vez que a agarrava pelos ombros para observá-la — ele a machucou?

     —Não, nenhum mal. Estou muito bem — assegurou-a. Ao parecer ele não se convenceu de que fosse assim, e sua atenção se centrou em MacCarrick. Aleix o olhava como se quesesse matá-lo— Espera, Aleix, deixa que eu explique isso... —Uma figura chamou a atenção a Annalía e se voltou para a porta— Olivia?

     Nesse momento, Aleix se lançou em cima de MacCarrick, quem o estava esperando, e brigaram como dois animais, caindo em cima dos vasos, golpeando o um ao outro. OH, Deus, ela não queria que nenhum dos dois se machucasse.

     —Você, asqueroso escocês — gritou seu irmão— Você me meteu na prisão de Pascal e depois levou a minha irmã. Vai morrer.

     Um momento! Court tinha metido a Aleix na prisão...? Havia dito que não, que nunca o tinha atacado.

     —OH! —Annalía levou as mãos à boca.

     Nunca havia dito que não tivesse lutado contra Aleix.

     —Basta! —Todo mundo ficou quieto. Annalía virou devagar e viu um homem que era a versão de Court, só que mais velho, com uma enorme cicatriz que cruzava o seu rosto. Esse devia ser Ethan. Parecia ainda mais temível que Court e Hugh.

     Chegou também Hugh. Annalía ouviu como Olivia murmurava:

     —Terríveis, horrorosos, horripilantes.

     —Court, não me importa contra quem está brigando nem o porquê —disse Ethan— Mas faça-o fora de casa.

     Court moveu a cabeça lhe dando razão e olhou para Aleix. Este caminhou para a porta.

     Quando os sons de briga continuaram, ela e Olivia foram atrás deles.

     —Quietas. Agora mesmo — disse Ethan em voz baixa e ameaçadora.

     Ela se deteve e viu que Olivia fazia o mesmo; as duas se viraram.

     —Mas não podemos deixar que continuem assim! — disse Olivia.

     —Matarão-se! —gritou Annalía.

     —Não, não o farão. —Quando Ethan falou, ela sentiu que tinha que acreditar. Relaxou-se um pouco até que ele acrescentou—Embora acredite que Court lhe dará uma surra.

     Ambas se assustaram. Annalía esfregou a testa. Olivia estudou ao redor, com certeza que a pequena bruxa procurava alguma arma.

     —É que ninguém se preocupa com meu irmão?

     Annalía estava convencida de que tudo aquilo divertia Ethan, e não porque sua petrificada expressão tivesse trocado. Mas as rugas ao redor de seus olhos não estavam tão marcadas. Sua mandíbula não estava tão apertada.

     —Não! —responderam ela e Olivia de uma vez, e depois se olharam a uma à outra.

      —Estou impaciente para que alguém me conte o que vai dar tudo isto. De verdade tenho que afastar Court de seu amado...? —Ele não continuou, à espera de que elas respondessem.

     —Aleix! Chama-se Aleix e é meu irmão. E sim, deveria fazê-lo.

     —Ele é meu prometido, e sim, deveria fazê-lo, mas não porque ele o precise — acrescentou Olivia com rapidez.

     —Não, é certo, ele não o precisa — presumiu Annalía. Um momento; prometido?

     Enquanto ela fazia esforços por não tirar os olhos daquela bruxa, o mais velho dos MacCarrick saiu para fora, com toda a calma.

     Minutos mais tarde, ambos os homens retornaram atrás dele, suados pela briga. Aleix sangravam o lábio e o nariz, tinha os olhos e uma bochecha inchados. MacCarrick não tinha nenhuma marca como essa, mas claro, ele era um assassino profissional...

      —Entra na carruagem, Annalía — disse Aleix enquanto tentava recuperar o fôlego— Vamos sair daqui. —Olhando para MacCarrick acrescentou— Quando a tiver instalado em um lugar seguro, voltarei para acabar com isto. Se prepare.

     Ao ver que ela não se movia, Aleix a agarrou pela mão. Annalía se soltou e se aproximou de MacCarrick.

     —Por favor, me diga que você não colocou meu irmão na prisão de Pascal.

     Ele a olhou nos olhos.

     —Não posso.

     —Por que nunca me disse isso? Assegurou-me que não os tinha atacado. E eu acreditei em você.

     Depois de um longo silencio, ele respondeu:

     —Eles... atacaram... a nós. —Foi como se cada palavra tivesse que extrair-lhe pela força.

     —Isso não tem importância — disse Aleix atrás deles— Você nos prendeu. Evitou que pudéssemos matar Pascal.

     —Sim, prendi-os. Não os matei — gritou MacCarrick— Você trouxe fazendeiros e pastores para lutar contra nós. Teria sido uma matança. —Ela sabia que ele não estava acostumado a dar explicações, e surpreendeu que agora estivesse disposto a fazê-lo.

     —Estávamos nos aproximando de Pascal.

     —Estavam-se aproximando dos Renegados que protegiam Pascal. Colocar-lhes na prisão salvou suas vidas. Pergunte à filha de Pascal?

     Era óbvio que Olivia não queria fazê-lo, mas mesmo assim respondeu:

     —Tem razão.

     Aleix o olhou zangado.

     —Preferiria haver arriscado a isso antes que deixar que minha gente sofresse. —Voltou a oferecer a mão a Annalía— Vêem comigo, antes que ele peça um resgate por você.

     Annalía esperou que MacCarrick interferisse. E que discutisse com ele. Mas não o fez; limitou-se a ficar quieto, olhando-a. O coração pulsava tão forte que temia que todos pudessem ouvi-lo.

     —Agora, Annalía — disse Aleix em catalão— Deixa aqui suas coisas e vêem comigo.

     MacCarrick tinha jurado que a reuniria com seu irmão. Sua tarefa tinha finalizado. E embora ela acreditasse que existia uma espécie de compromisso entre os dois, nunca lhe tinha pedido que se casasse com ele, nunca tinham falado do futuro. “É minha”, havia dito, entretanto como se fosse um juramento.

     Era óbvio que ele sabia como interpretar as palavras, o mesmo tinha feito em relação ao enfrentamento com seu irmão. É minha. Por um tempo.

     Annalía ergueu os ombros e caminhou para ele.

     —Disse que me levaria até meu irmão.

     —É isso que tenho feito.

     —Não tem nada mais que dizer? —Quando ele se manteve em silêncio, ela acrescentou— Então, obrigado. —“Não chore, não chore.” Ela ofereceu a mão— Obrigado por... sua ajuda.

     Court não pegou sua mão. Não a segurou nem a puxou para abraçá-la contra seu peito e dizer a todos que se fossem ao inferno. A Annalía doía o coração como se a tivessem apunhalado. Os irmãos dele estavam ao seu lado, calados, sérios. Eles sabiam o que era ser desumanos, e acreditava que ensinariam a Court a sê-lo. Ela nunca tinha tido nenhuma oportunidade. Um homem não podia lutar contra sua forma de ser.

     Annalía tinha perdido muito tempo pensando no que seria o melhor para ela, em que decisão devia tomar. Mas na realidade nunca tinha existido nenhuma opção. Ele ia deixá-la partir e ela estava a ponto de chorar.

      —Está bem — murmurou ela, e deu a volta para seu irmão— Estou preparada.

 

Annalía se vai, deixou-me.” Court não podia pensar em nada mais.

Tinha-lhe feito mal e depois tinha tentado compensá-la do melhor modo possível. Tinha que afastar-se dela antes de voltar a fazer um dano maior. “Talvez da próxima vez não pudesse compensar-lo Morte e Desgraça”... A resplandecente capa do livro o desafiava que se atrevesse a desafiá-lo.

Annalía o olhou, não lhe pediu nada, só o olhou como se quisesse gravar-lo na memória. Depois ela se virou. Ele se esticou, teve que apertar as mãos com força, tinha que lutar contra o que gritava todo seu interior: “Segure a Anna”.

     Atrás dele, Hugh deve ter dado conta, porque lhe disse em voz baixa:

     —Tem que fazê-lo por ela. Deixa que vá com sua família.

     Aleix a separou dele, protegendo-a. Maldição, isso era responsabilidade de Court. Esse era seu direito.

     Ela era dele.

     Ethan pôs uma mão em seu ombro. Vindo de Ethan, era um gesto de ameaça e não de carinho, e ambos sabiam.

     Ele olhou a ambos. Hugh franziu a testa ao ver a expressão de Court, como se estivesse confundido. Ethan o olhou nos olhos e sua reação foi ainda pior. Court estava ficando louco, estava furioso, e sabia que não podia ocultar-lhe.      

     —Só até me assegurar de que está a salvo — suplicou ele com dificuldade.

     —Uma mulher como ela não pertence a um homem como você. Não é só pela maldição.

     —Está-a matando, Court — disse Hugh— Igual matamos a Leith.

     —Espera.

     Ela deixou de andar tão de repente que sua saia se balançou para frente.

     Nesse mesmo instante, ouviu como Hugh renegava:

     —Deus.

     Ethan soltou uma maldição muito desagradável e se dirigiu a Courtland para lhe advertir.

     Aleix olhou para ela; apesar da surra, seu rosto não deixava lugar a dúvidas de que não parecia bem o que estava passando.

     —Como a vai manter a salvo? —perguntou Court a Aleix.

     Annalía deu a volta e o olhou. Nunca tinha visto essa expressão tão feroz em seu rosto, nem esse olhar tão selvagem em seus olhos.

     —Eu protejo aos meus.

     MacCarrick assinalou a carruagem carregada que os estava esperando sob a chuva.

     —Não tem escoltas. Aposto o que quizer que nem sequer tem uma arma.

     —Está me tentando a que lhe demonstre isso.

     —Renegados a perseguem.

     —Sei — respondeu Aleix em voz baixa e marcada pela dor.

      —A nós também — acrescentou Olivia. Aleix a olhou ameaçador para que continuasse calada, o que ao parecer gostou; ldepois caminhou até um muito caro vaso para inspecioná-lo. Annalía suspeitou que esse vaso apareceria em sua carruagem.

     —Eles já nos atacaram três vezes.

     —O que? — Aleix foi agarrá-la pelo braço, mas MacCarrick se equilibrou sobre ele e o agarrou pelo pulso.

     —Não toque no braço — advertiu. —Ela quase se curou, mas se apertar a ferida a machucará.

     —O que lhe aconteceu? —exigiu saber Aleix olhando a garra de MacCarrick que ainda o retinha.

     —Atiraram nela. —MacCarrick o soltou— E voltarão a fazê-lo.

     —Deixou que eles a baleassem? —Annalía nunca tinha ouvido o Aleix tão zangado. E MacCarrick? Ela não tinha nem idéia de quais eram seus sentimentos, mas sentia que estava rodeado de violência, que esta ia explodir de um momento a outro. Ela tinha que fazer algo para esfriar um pouco o ambiente.

     —Aleix, eu escapei de MacCarrick e corri para eles. Como uma imbecil, lhes pedindo ajuda.

     Aleix não afastou os olhos do MacCarrick nem um instante.

     —Deixou que ela fosse para eles?

     Annalía ficou de pé entre os dois, nas pontas dos pés para ficar em sua linha de visão.

     —Eu o dei um golpe no pescoço com o cotovelo, e mesmo assim, ele correu atrás de mim e conseguiu nos proteger detrás de uma rocha. Essa foi a primeira vez que me salvou a vida. —Tinha conseguido que Aleix relaxasse um pouco?— Quando íamos para o norte, dois Renegados nos atacaram. Ele se ocupou de um...

     —Um? —Olivia olhou a Annalía muito interessada no assunto.

     —Eu me ocupei do outro — respondeu Annalía— Tinha uma rocha escondida na saia, guardava-a para atacar MacCarrick. —Aleix estava atônito, olhava-a como se não a reconhecesse— Já o tinha feito uma vez e tinha funcionado.

     MacCarrick, antecipando a censura de seus irmãos, olhou-os com a testa franzida.

     —Disse que havia machucado os seus pés. Quando me agachei para olhar deu a volta e... —Hugh levantou as sobrancelhas e MacCarrick acrescentou—Ela é muito ardilosa.

     Aleix a agarrou pelo cotovelo.

     —Já me contará isso mais tarde.

     —Não vai levá-la daqui — gritou MacCarrick.

     —Acha que pode me dar ordens, você, maldito e arrogante escocês? —E voltaram a começar.

     Annalía se ruborizou, envergonhada pelo comentário de Aleix, e perguntou como tomariam Hugh e Ethan MacCarrick. Annalía deu conta de que Ethan sempre tinha a mesma expressão de maldade no rosto. Hugh deu de ombros.

     —Chamaram-me de coisas piores.

     Court se equilibrou sobre Aleix e o atirou em cima de uma mesa, que se quebrou contra o chão. Aleix se separou dos escombros e atirou para MacCarrick, empurrando-o para a outra sala.

     —Vai ajudar-me? —perguntou Annalía a Hugh. Dava-lhe muito medo perguntar a Ethan.

     Hugh soltou um taco, e depois se interpôs entre os dois.

     —Está se comportando como um estúpido, Court. E já tem muitos problemas.

     Quando eles se separaram, ambos sem fôlego, Ethan falou aborrecido:

     —Têm um inimigo em comum. Acabem com essa ameaça, e depois se tanto o desejam, por fim podem se matar. —E se foi.

     —Tem razão — disse MacCarrick— Você quer me matar, e talvez lhe deva isso, e eu vou desfrutar te dando uma surra enquanto o tenta, mas antes temos que nos ocupar de outras coisas. Não vou permitir que me distraia.

     Aleix passou a manga da camisa pelo lábio, que não deixava de sangrar, e tentou recuperar o fôlego. Olhou para MacCarrick de cima abaixo.

   Ao ver que tinham deixado de brigar, Annalía foi fechar a porta principal, pela qual começava a entrar a chuva que caía a jorros. Quando viu seu cavalo junto à carruagem quase não pôde acreditar.      

     —Lambe! —gritou, surpreendida de que Aleix se preocupou de tirá-lo da casa de Pascal.

     —Anna, se afaste da maldita porta — grunhiu MacCarrick caminhando para ela.

     —Como se atreve a lhe falar assim? —gritou Aleix e começou a seguí-lo— Tem idéia de quem é ela em realidade?

     —Meu cavalo já não se chama Lambe — informou Olivia.

     Annalía deu a volta para responder, preparada para brigar com ela, mas então sentiu como uma mão a agarrava seu pescoço, e o frio cano de uma pistola junto a sua testa.

     Haviam pegado ela.

     Olhou para Court nos olhos e viu toda a fúria e a raiva que havia em seu interior, mas ela sabia que sua sorte se acabou.

     Deus, porque não havia dito que o amava?

 

“Ela, acredita que vai morrer.” Court soube pelo modo em que ela o olhava nos olhos. Foi pegar sua pistola, mas o Renegado apertou o cano contra a testa de Anna, e Court sentiu como se o ar abandonava seus pulmões.

     Pôs as mãos diante dele.

     —Peguem a mim em seu lugar — gritou.

     —Eu por ela — disse Llorente.

     O homem percorreu a bochecha da moça com o cano.

     —Já voltaremos para devolvê-la aos dois mais tarde.

     “Pensa, maldito seja, pensa!”

     Onde diabos, se colocou Ethan, onde estava Hugh? Esse homem, desde sua posição, não podia ver o Hugh na sala do lado. Hugh podia o eliminar, tinham-no treinado para matar com rapidez...

     —Hugh — suplicou em gaélico—, mate-o. Por Deus, faça-o, por favor. Por favor.

     Sentiu como seu irmão se preparava.

     O homem que retinha a Anna abriu a porta e apareceu outro que apontou para Olivia com uma pistola lhe indicando que o seguisse. Ela caminhou devagar para ele, mas disse a suas costas:

     —Apesar de tudo, valeu à pena, Llorente.

     Ambos Renegados desceram os degraus de costas, Anna tropeçou pelos degraus molhados, e seus olhos piscavam por culpa da chuva, mas não deixou de olhar para Court. Como se isso lhe desse forças.

     —Não oponha resistência, Anna. —Ele não sabia se ela podia entender suas torturadas palavras.

     A fúria o estava deixando sem voz, via todo preto.

     Se os Renegados conseguiam escapar, Court encontraria Annalía morta, atirada em algum lugar, nos subúrbios da cidade.

     —Maldição, Anna — gritou ele— Mantêm-se com vida. Só isso.

     Do segundo andar se ouviu um disparo. A cabeça do homem arrebentou por um lado. Ao cair desabado arrastando Anna atrás dele.

     O outro apontou para Hugh, mas tanto Court como o mesmo Hugh já tinham disparado. Caiu de joelhos e depois para um lado, em cima do que restara de sua cara.

     Court sabia que, enquanto vivesse, não poderia esquecer o que viu a seguir. Anna saiu engatinhando debaixo do corpo daquele homem. Tinha o olhar perdido, os lábios entreabertos. Ele gritou de raiva e correu para ela, incapaz de alcançá-la antes que escorregasse entre o sangue e os restos dos dois homens que se pulverizavam por culpa da chuva. Chorava e gritava em silêncio...

     Ajoelhou-se junto dela, tirou sua pistola e a agarrou entre seus braços, apertou-a contra ele, não podia deixar de acariciar seu rosto, a sua testa, incapaz de acreditar o que tinha acontecido.

     —Anna? —Tomou o rosto entre as mãos e a apoiou em seu peito.

     Ela se limitou a mover a cabeça com suavidade.

     Court não soube quanto tempo ficaram assim, mas Hugh saiu de seu esconderijo, tanto ele quanto Ethan, foram para fora, assegurar de que não havia mais nada.

     Llorente tentou separá-lo de Anna, mas Court deu um murro às cegas e algo se quebrou sob seu punho.

     Hugh segurou Court no ombro. Mas ele era incapaz de mover-se.

     —Não quererá que sobreviva a isto para morrer de uma pneumonia — disse Hugh.

     Suas palavras tinham sentido.

     —Entre, Court — ordenou Ethan.

     Só quando sentiu que Annalía começava a tremer foi capaz de ordenar a seu corpo que se movesse. Abraçou-a com força e se levantou.

     Uma vez dentro, a plena luz e ao ver todo o sangue que a cobria, começou a ver as coisas claras.

     —Ethan?

     —Cuidei deles, Court. Não dê mais voltas.

     Court desviou o olhar para Hugh.

     —Quer se vingar? —perguntou Hugh.

     —Mil vezes.

     —Acompanharei-o

     Court negou com a cabeça.

     —Já te devo mais que minha vida.

     —Iremos assim que amanheça — disse Hugh, ignorando seu último comentário.

     Erskine gritou morto de medo que o banho estava preparado.

     Court ouviu vagamente como Llorente falava. “Não é seu marido. Tem que soltá-la. Não pode cuidar dela.”

     Ele olhou para Llorente. Apertou os dentes e ouviu como a outra mulher respondia:

     —Não seja estúpido, Llorente! Não lhe fará mal.

     Court tinha começado a subir a escada quando Anna por fim falou:

     —Estarei bem. Normalmente me porto melhor quando acontessem estas coisas. —Sua voz soava vacilantes, suas palavras vazias.

     Quando acontecia estas coisas. Se ela tivesse morrido, ele teria conhecido a pena e a desgraça como ninguém.

     —Por que todo mundo se comporta de um modo tão estranho? —perguntou Anna.

     —Todo mundo se comporta de um modo tão estranho porque suas pupilas têm o tamanho de duas laranjas, está coberta de sangue e tem oléo de pistola em toda a testa — respondeu Olivia— Também está em estado de choque.

     —OH — respondeu ela em voz baixa— Courtland, me solte, ou fará que me envergonhe. Antes nunca tinha reagido assim.

     Antes.

     Llorente gritou algo de baixo, ao parecer Hugh o estava retendo. “Monstro, bruto, assassino, por sua culpa.” O último que Court ouviu foi como Hugh lhe dizia:

     —Tem sorte de que Court não tenha quebrado o seu pescoço aí fora. — Llorente tinha tido sorte. Ele gostaria de fazê-lo.

     Em seu quarto, Court a pôs de pé na cama, e a ajudou a se despir. Tinha-o feita centenas de vezes, mas agora não podia desabotoar o primeiro botão. Rasgou o vestido, e se surpreendeu ao ver como rápido cedia o tecido. Despiu-a, levantou-a em seus braços e a meteu na banheira; depois se ajoelhou a seu lado.

     Jogou água morna por cima dos ombros e perguntou:

     —Anna, está bem? —Ele não reconhecia sua própria voz.

     —Claro. —Ela tinha o olhar perdido. Seus olhos não se fixavam em nada. Naquele quarto havia muita luz e suas pupilas continuava sem reduzir. Quando ele acreditou que ela podia agüentar-se sozinha, aproximou-se do abajur e o apagou, depois voltou para seu lado.

     Pegou uma toalha úmida e começou a limpar o sangue do rosto e do pescoço, esfregou suas preciosas mãos.

     —Muito bem, pequena — disse enquanto lavava o cabelo.

     A mancha de oléo de sua testa negava a desaparecer, e ele não queria esfregar com mais força.

     Já ficaria um arroxeado do roçar do cano.

     Ele tremeu dos pés a cabeça.

     —Courtland? Tem que ter paciência com o Aleix. —Ela soava confusa— Não é como meu valente escocês. Todas estas brigas são novas para ele, e acredita que vai me perder como perdeu Mariette e à filha. Sou a única família que ficou.

     —Mo cridhe, sabe o que farei tudo o que me peça. —Apoiou a testa no ombro dela.

     —Sei — respondeu ela com suavidade.

     Court sentiu que ela começava a se relaxar, e que voltava a esticar para lutar contra o sonho, assim que enxaguou o cabelo e o corpo, e depois a pôs de pé para poder secá-la. Inspecionou o quarto e viu que tinham preparado uma camisola e um jogo de roupa limpa para Court. Pôs-lhe a camisola e a meteu na cama, debaixo de vários lençóis.

     Ao ver sua roupa limpa ele percebeu de que ele também estava coberto de sangue. Temendo que ela retornasse ao pânico, despiu-se e se limpou com os baldes de água que restaram. Vestiu-se rápido e aproximou uma cadeira para sentar-se a seu lado.

     —Não sei por que tenho tanto sono. —Annalía esticou uma mão procurando a dele— Ultimamente estou muito cansada. —Ele a segurou, apoiou os cotovelos nos joelhos, e se inclinou para diante para recostar o rosto na palma da mão dela. Não a soltou nem quando ela dormiu.

     Llorente entrou pouco depois. Court o olhou sem muito interesse, e apenas naquele momento percebeu de que tinha quebrado o seu nariz.

     —Quero ver minha irmã — disse ele com voz grossa, tanto pela emoção, como pelas feridas que tinha sofrido.

     Hugh apareceu atrás dele, preparado para proteger Llorente.

     —Hugh, relaxe. Não vou fazer-lhe mais nenhum mal — disse Court, mas observou a Llorente enquanto cruzava o quarto até a cama para estudar a Annalía.

     Ao parecer, Hugh se convenceu de que estava falando a sério e disse:

     —Precisamos de um plano. Ethan quer falar com você. Eu posso ficar com ela.

     —Diga que venha aqui. Não vou deixá-la. — Court notou como suas mãos se agarravam com força às dela.

     —Ele está com a Olivia.

     —Que ela venha também, eu não vou.

     Hugh olhou a Anna.

     —Não a incomodaremos?

     —Não, ela não despertará.

     Quando Hugh saiu do quarto, Llorente disse:

     —E como você sabe que ela não despertará, por que esteve dormindo com ela?

     —Sim. —Desafiou Llorente a dizer algo a respeito.

     O modo em que o olhou fez com que Llorente mudasse o seu propósito, porque este perguntou:

     —Está certo de que não lhe têm feito mal?

     Hugh e Ethan retornaram e com eles trouxeram uma mesa e várias cadeiras; Olivia os seguia. Erskine trouxe café e saiu sem dizer nenhuma palavra.

     Court soltou a mão de Anna à contra gosto e a abrigou com os lençóis. Tampou-a até o queixo e foi sentar se.

     Llorente segurou uma cadeira, não o tinham convidado a sentar-se com eles, e olhou os três. Acreditava que se perguntasse como Hugh podia disparar daquele modo e de onde tinha tirado. Ethan com esse comportamento tão letal e sua impressionante cicatriz. Court sabia que Llorente também estava intrigado com a relação entre ele e Annalía, mas foi o bastante inteligente em não perguntar nada.

     —Ethan, preciso que você fique aqui com ela — disse Court, e olhou para Ethan nos olhos para que soubesse o muito que confiava nele.

     —Certo. Trarei alguns homens — disse Ethan.

     —Se não votarmos, tem que levar Anna ao Carrickliffe, a nosso clã. Faça que eles jurem em protegê-la.

     —Isso é fato.

     —E o que acontece com a Olivia? —perguntou Llorente — Ela tem que ficar com a Annalía.

     Court desviou o olhar para ele.

     —Você pode se ocupar dela.

     —Se forem atrás dos Renegados, eu também vou. —Passou a manga da camisa pelo lábio, que continuava sangrando.

     —Você fica aqui — disse Court.

     —É minha terra e minha gente. Se forem ali, precisaram que esteja com vocês.

     —Tem razão, Court—disse Hugh— Além disso, seguiria-nos de qualquer jeito.

     Court deu de ombros.

     —Intrometerá entre eu e minha vingança. só isso.

     Para ouvir isso, Llorente entrecerrou os olhos e depois disse:

     —E Olivia? —Não entendia o que estava pedindo.

     —Ethan, limite a aceitá-lo — disse Hugh— Elas têm que ficar juntas.

     Ethan hesitou por alguns segundos, depois inclinou a cabeça. E com esse gesto, um homem que muitos, com razão, consideravam malvado, comprometeu-se a arriscar sua vida para protegê-las.

     —Court, o que sabe sobre ordem dos Renegados?

     Court inclinou para frente, esforçou-se por manter a calma, por concentrar-se no que tinha que fazer.

     —Preferem manter todos juntos, só às vezes mandam pequenos grupos. Se pudéssemos nos aproximar o suficiente em seu acampamento, acabaríamos com todos.

     —Então se alistarão a outros — disse Llorente.

     Court negou com a cabeça.

     —Se os eliminarmos a todos, não. Quem ficará para dar as ordens?

     —Eu também tenho lido sobre eles — acrescentou Hugh. Com certeza que sim, disso não havia nenhuma dúvida; seguro que tinha recebido um enorme dossiê sob o título de “Contratar a discrição”— No caso de que não pudéssemos matar a todos, se eliminarmos o seu líder, seria como cortar a cabeça de uma serpente.

     —Mas se Pascal viver, isso não tem nenhuma importância — assinalou Llorente — Continuará mandando homens. Tem um exército cheio de desertores dispostos a subir de categoria.

     —Então teremos que matar a todos — respondeu Court surpreendendo a Llorente. Aquele o olhou zangado— Acredita que vou deixar com vida a alguém que possa fazer mal a ela?

     —Estão falando de eliminar os Renegados, aos desertores e Pascal. Todos ao mesmo tempo?

     —Sim.

     —Precisaremos de mais homens — disse Llorente devagar.

     —Não — disse Hugh—, ao menos não para vencer os Renegados, se eles acamparem juntos e se nós tivermos o... equipamento adequado. —Explosivos— Só precisaremos de mais homens para que se ocupem dos desertores. Court, pode contatar com sua tropa?

     —Já o tentei e ainda não recebi resposta. Certamente estarão indo para o leste com o Otto.

     —Não acredito — disse Ethan— Faz meses que Weyland e eu estamos tentando que os desertores se vão de Andorra. Assim é como soube que tinha escolhido... o bando errado ao se aliar com Pascal. Weyland pressionou o embaixador britânico, que a sua vez pressionou o espanhol para aumentar a recompensa pelos desertores. Conhecendo nosso primo Niall, estou certo que se deu conta do quanto lucrativo isso pode ser. Com a ajuda da tropa de Court, será como pescar peixes em um barril.

     —Acredita que os mercenários estão em Andorra? —perguntou Llorente — E isso são boas notícias?

     —Para nós, sim — disse Court— Para sua casa, nem tanto.

     Llorente levantou as sobrancelhas.

     —Deveria perguntar por quê?

     —Não, se tiver um pouco de sentido comum — respondeu Hugh rápido.

     Llorente foi prudente e voltou para o assunto principal.

     —Eu estudei os desertores e você conhece os Renegados, mas eu não conheço Pascal nem vocês tampouco.

     —Não — reconheceu Court— Ele sempre altera suas rotinas, troca de domicílio. Não pude encontrar nenhum padrão.

     —Nem eu.

     Olivia tossiu com delicadeza. Eles se voltaram para olhá-la, e viram que estava observando seu reflexo no reverso de uma colher de prata.

     —Mas eu sim.

     Quando os outros se foram, Court pegou sua cadeira e voltou a sentar-se ao lado de Annalía. Llorente também ficou.

     —Sente algo por ela. É óbvio que se importa muito — disse, e se sentou na cadeira que havia do outro lado da cama, olhando-o nos olhos— Por que não se casou com ela antes que eu chegasse e pudesse impedir isso?    

     —Porque eu realmente me importo com ela.

     —Seqüestrou a minha irmã e a obrigou a ir a um país estrangeiro. Ao parecer, enquanto estava me apodrecendo na prisão em que você me prendeu, tomou posse de minha casa. Roubou-me. Tem-me quebrado o maldito nariz. Não posso nem imaginar que tenha feito algo pior.

     —Pois o tenho feito.

     —Sim, fez. Ela poderia estar grávida.

     —Não, ela não está grávida.

     —Como pode estar tão seguro?

     —Não posso ter filhos. —Em outras circunstâncias, ele nunca teria revelado esse segredo a alguém como Llorente, mas agora parecia um fato insignificante.

     —Eu deveria acreditar nisso?

     —É certo, embora desejasse com todas minhas forças que não fosse. —Era estranho, a maioria dos homens acreditavam que se uma mulher ficava grávida estavam obrigados a casar-se com ela. Se Anna estivesse grávida, Court poderia por fim casar-se com ela.

     Llorente hesitou um instante e depois disse:

     —É por isso que não quer se casar com ela? Não é que eu queira permitir isso mas, para mim, isso é um ponto a seu favor.

     Anna havia dito que ele tinha perdido a sua mulher e a sua filha. Acreditava que tinha sido no parto.

     —Não, não é por isso. É melhor deixarmos este assunto.

     Llorente apoiou os cotovelos nos joelhos e olhou para chão.

     —Quando tudo isto tiver acabado, terei que ir a Castilla e pedir a nossa família que me ajudem para buscar um marido. Ela vai odiar-me por isso, mas tenho que fazê-lo.

     Court apertou os dentes só de pensá-lo. Anna virou enquanto dormia, como se detectasse que ele estava se zangando.

     —Courtland? —sussurrou ela— On és o?

     —Ela quer saber onde está — disse Llorente.

     Acaso Llorente acreditava que ele não tinha entendido? É obvio que acreditava. Court era um escocês ignorante.

     —Falo catalão — respondeu ele zangado. Depois, ignorando a Llorente, Court pegou a mão da Annalía e a levou aos lábios para tranqüilizá-la.

     —Testimo, Courtland— suspirou ela.

     —Então saberá que, por alguma estranha razão, ela acaba de dizer que te ama — acrescentou Llorente surpreso.    

     Começava a amanhecer quando ouviu chegar os homens de Ethan e Court levantou da cadeira. Como era de esperar, não tinha dormido a toda a noite. Aproveitou cada minuto que esteve a sós com ela depois de que Llorente se foi a contra gosto.

     Court acariciou a sua bochecha com suavidade, alegrou-se em ver que tinha recuperado um pouco de cor e que sua pele já estava mais quente.

     Desejava beijá-la e dizer que não queria deixá-la, mas se ela despertasse e perguntasse o que estava acontecendo, o que podia responder?

     “Ontem de noite quebrei o nariz de seu irmão; agora vamos a Andorra para eliminar qualquer um que possa te fazer mal; e depois, como eu me apropriei de sua inocência, vão levar-la a Castilla. Não voltaremos a nos ver nunca mais, embora eu queira me casar com você.”

     Se os Renegados não o matassem...

     Quando afastou uma mecha do seu rosto, o hematoma da testa ressaltou de repente. Ele estremeceu e ficou gelado, incapaz de ir embora dali.

     —Is seu mo grádh thargach nem—murmurou ele antes de soltar suas mãos e sair— Te amo mais do que tudo no mundo.

     Sob a escada, encontrou Ethan preparando-se para a guerra — Court não tinha esperado menos—, e Hugh empacotando as provisões. Eles não tinham deixado nada do que ocupar-se.

     Além de reunir forças para o que estava a ponto de fazer; abandonar a Annalía. Foi ao escritório e pegou o livro. Nunca antes o havia pegado por vontade própria, e odiava fazê-lo agora, mas queria lê-lo, e mandá-lo ao inferno, que é onde deveria estar. Chegou à página que falava deles bem quando Llorente entrou no escritório.

     Esse homem chegava sempre no momento oportuno. Court começava a odiá-lo de verdade.

     —Ethan me disse que te encontraria aqui.

     —É isso que tem feito?

     —MacCarrick, estive pensado toda a noite, e quero que se case com a Annalía antes de irmos.

     Isso sim que era inesperado, mas mesmo assim...

     —Não.

    —Por alguma inexplicável razão, ela te ama, e se negará a ir a Castilla. Por muito que adule ela, tem que fazê-lo.

     —Não.

     —Acha que isto é fácil para mim? Sou um homem orgulhoso e te desprezo, só de pensar em que seremos parentes me dói todo o corpo. Só de me lembrar de todos os pretendentes que recusei e que agora eu esteja aqui lhe pedindo isso, repugna-me. Mas engolirei o orgulho para vê-la feliz.

     Talvez não odiava a Llorente. A perseverança desse homem era admirável. A noite anterior tinha quebrado o seu nariz e, pela manhã, Llorente pedia que se casasse com sua irmã. Por ela. Para ele isso tinha que ser muito difícil.

     —Ela tem sua própria fortuna.

     Court apertou a mandíbula e o olhou do modo que merecia esse comentário.

     A Llorente pareceu se surpreender.

     —Desculpo-me se te ofendi, mas você é um mercenário.

     Esse homem não ia dar-se por vencido até que Court voltasse a lhe dar um murro, e isso já não podia fazê-lo. Daria-lhe uma explicação, e se Llorente se zombava disso, ao menos o teria tentado.

     —Vê este livro? Por isso é que não posso me casar com ela. —Abriu-o na última página e assinalou com o dedo.

     Llorente se aproximou da mesa, leu as linhas por cima, e depois o olhou atônito.

     —Acha que está maldito?

     Court se sentou na cadeira.

     —As coisas que diz aqui aconteceram de verdade.

     —Como quais? —perguntou ele divertido.

     —Diz que nenhum de nós terá filhos e nenhum de nós teve, nunca nenhum.

     —Seus irmãos também acreditam?

     —Sim.

     —Então é uma maldita sorte que não possam ter filhos, é óbvio que a loucura tem feito trinca em sua família. Meu Deus, nem minha avó andorrana era tão supersticiosa.

     Ele parecia zangado e Court não podia culpá-lo. Court pensava igual até que encontraram a seu pai.

     —E seu pai? Suponho que lhe cortaram o pescoço?

     —No dia seguinte de ler estas linhas.

     Mas Llorente já não estava escutando.  

     —Por isso não se casou com ela antes que nós chegássemos? —Fechou o livro como se fosse lançá-lo contra a parede. Deteve-se, e, devagar, olhou para mão. Deixou o livro em cima da mesa com delicadeza. Então entrecerrou os olhos e franziu a testa— Deixe eu voltar a ler essa página.

     Court se inclinou para frente e o fez, Llorente voltou a lê-la e se zangou ainda mais.

     —Há sangue.

     —Um clã inimigo roubou o livro com a esperança de nos mutilar. Houve uma batalha para recuperá-lo.

     —Não sabe o que diz debaixo do sangue? Tentou limpá-lo...?

     —O sangue não desaparece.

     Llorente negou com a cabeça.

     —Mas essas palavras poderiam lhes dar alguma esperança.

     Court soltou o fôlego.

     —Ou poderia ser ainda pior.

     Llorente entrecerrou os olhos.

     —Ontem. Você acreditou que isso foi...?

     —Se acreditar que por culpa de meu destino Anna teve ontem que arrastar-se entre o sangue de um assassino? Talvez sim, talvez não. Mas não estou disposto a me arriscar o mínimo. —Cada vez que essa imagem da Anna aparecia em sua mente, ele lutava por substituí-la por outra do futuro que ele ia se assegurar que tivesse. Imaginava a salvo, na quente Espanha, entre seu povo, com um montão de meninos de pele dourada jogando a seus pés— Ela não voltará a vê-los, nem a eles nem a mim.

     Llorente pegou o livro e voltou a lê-lo. Quando deu a volta para olhá-lo estava muito sério.

     —Jura-me isso      

     Court hesitou um instante e no final aceitou.

     —Certo, dou-te minha palavra. Primeiro me deixe acabar com tudo isto, e te juro que nunca mais voltarei a vê-la.

 

—Isto são ovos? —perguntou Olivia a Annalía enquanto jogava com eles no prato. Os ovos não deveriam mover-se como aqueles faziam. Cravou um com o garfo e o aproximou dos olhos— Não parecem ovos.

     Olivia levantou a vista e viu como Annalía levava a mão à boca. Sua cara voltou a empalidecer. Se Annalía não comia algo logo e conseguia retê-lo, Olivia teria que tomar medidas drásticas.

     Já podia ver-se confessando a Aleix que Annalía ficava doente só de estar ao seu lado. Por alguma razão, antes de ir, Aleix tinha pegado a Olivia, não a Ethan, nem a Erskine, nem a um estranho da rua, a não ser a ela e tinha pedido que cuidasse da Annalía. Olivia o olhou durante muito momento, perguntando o que de verdade ele estava pedindo, perguntando-se se estava tirando o sarro, e depois deu conta de que ele de verdade esperava que ela cuidasse de sua irmã.

     —Como pode ter sobrevivido comendo isto? —Olivia afastou o prato— Não comi nada condimentado desde que chegamos à Inglaterra.

     Annalía estava sentada na cabeceira de sua cama, ainda usava a camisola e tinha os joelhos dobrados contra o peito.

     —MacCarrick estava acostumado a pedir que trouxessem comida para mim. Ele sempre soube o que eu gosto. —E começou a tremer o lábio inferior.

     Olivia sorriu relaxada.

     —Quando eu estiver casada com seu irmão, encherei a cozinha de especiarias. Das mais caras. —Pegou um livro do montão que havia trazido da biblioteca de baixo, lambeu o polegar e começou a girar as páginas com bruscos movimentos do pulso— E teremos um chef espanhol que saiba como as usar. E que saiba cantar ópera.

     Annalía entrecerrou os olhos.

     —Já sei o que está fazendo. Inclusive meu cérebro se nega a acreditar. Cada vez que estou a ponto de chorar, diz algo para me zangar.

     Sim, Olivia, entre outras coisas, também fazia isso. Pelo Aleix, ela estava se esforçando em evitar que sua irmã caçula ficasse louca ou ficasse doente. Essa primeira manhã, quando Annalía despertou e correu escada abaixo procurando desesperada MacCarrick e seu irmão, Olivia, com muita paciência, tinha-lhe explicado que eles dois se foram muito em breve, preparados para ganhar aquela batalha.

     —Deixou-me MacCarrick alguma mensagem? —perguntou Annalía.

     —Disse-me para falar a você que estariam fora várias semanas. E que Ethan se encarregaria de nos acompanhar até ali quando fosse seguro — respondeu Olivia, disfarçando a verdade. Llorente havia dito isso; MacCarrick não tinha deixado nenhuma mensagem.

     Quando Olivia tinha perguntado MacCarrick se queria dar algum recado, e era verdade que o tinha perguntado, ele se limitou a grunhir:

     —Olivia, se fazer mal a ela de algum modo...

     Assim, desde que eles se foram, Olivia tinha oculto a verdade; e cada vez que começava a chorar fazia algum comentário sarcástico ou de mau gosto. Mas só pôde reter a inundação por um tempo, e agora os olhos da Annalía se enchiam de lágrimas.

     Olivia golpeou a mesa com o livro.

     —Isso sim que não, não quero ter a uma chorona por cunhada. Que vergonha!

     —E como se sentiria você em meu lugar? —quis saber Annalía— O homem que amo me deixa partir, apesar de que eu acreditasse que íamos permanecer juntos. Acabo de descobrir que foi ele quem entregou Aleix a Pascal. Quase me matam. E para cúmulo, MacCarrick se foi sem dizer adeus.

     —Repito-te por enésima vez que seu irmão estaria morto se MacCarrick não o tivesse encerrado, e MacCarrick nunca te mentiu sobre isso. Ele só o omitiu, uma tática que eu conheço bem e que uso quando tenho medo de dizer algo. Te dizer adeus? Esteve contigo toda a noite antes de ir-se. Estou certa de que te disse muitas coisas. —Ela levantou as sobrancelhas acusando a Annalía com o olhar— É culpa dele que não estivesse acordada para poder as escutar.

     —Poderia ter deixado uma carta.

     —Agora disse uma tolice. Ele é um mercenário, ele não vai por aí escrevendo cartas de amor. Sério, o que acha que escreveria? “Anna... amo-te... grrr?”

     Annalía ignorou esse último comentário.

     —É só que desejaria poder me lembrar dessa noite. É tudo tão confuso. E me encontro mal, eu nunca me senti assim. —esfregou-se a testa— Como demônios, você pode suportar toda esta preocupação?

     Olivia deslizou sua lixa de unhas por cima da mesa e depois a pegou com a mão e começou a usá-la.

     —OH, eu não estou preocupada com seu irmão.

     —O que? —Annalía girou a cabeça de repente, e seu cabelo balançou para um lado.

     —MacCarrick cuidará dele. Para que você fique contente. —Olivia não estava absolutamente preocupada com Llorente. MacCarrick? Ela acreditava que tinha uma possibilidade entre os dois de sair com vida— Estou convencida de que estará bem.

     —MacCarrick cuidará dele, assim? —choramingou ela.

     —Annalía, não se atreva.

     —Se estivesse em meu lugar também choraria!

     —Não, asseguro-te que não. Eu tentaria procurar algo decente que comer nesta maldita casa inglesa, e cuidaria de mim para me assegurar de que, quando voltasse a lhe ver, não fosse um saco de ossos com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. E se estivesse impaciente por saber mais coisas de MacCarrick procuraria as respostas nesta casa. Tudo tem que estar aqui.

     —O que quer dizer?

     —Os empregados. Os serviçais sempre sabem tudo.

     —Tentei-o! Courtland estava acostumado a me dizer uma frase em gaélico, e significa algo importante, estou certa, mas quando a repeti para Erskine, o cozinheiro, às donzelas e aos lacaios, ninguém quis traduzir isso.      

     Olivia zombou.

     —Eu não aceitaria um “não” como resposta.

     Annalía a olhou.

     —Deveria havê-los retido e jogado água fervendo por cima até que confessassem? De verdade, é genial dando conselhos.

     Olivia levantou a vista um instante.

     —É obvio que não. Deveria usar azeite fervendo.

     —Por que é tão boa comigo? —perguntou Annalía sorrindo um pouco.

     “Retira o que disse”, esteve a ponto de dizer Olivia.

     —Não sou boa com você, finjo ser boa com você. Ao parecer, seu irmão acredita que posso me dar bem com certas pessoas. —Ela voltou a lixar as unhas. Annalía havia dito que seriam mais atraentes se não fossem tão afiadas, e ela a olhou, resignada. As unhas de uma mulher não tinham nada haver com a atração— Estou pondo a prova à teoria de Llorente.

     Annalía aproximou mais os joelhos e descansou nelas o queixo.

     —Já me contou de seu “compromisso”, mas deveria saber que Aleix jurou que nunca voltaria a casar-se.

       —Já sabia. —Olivia soprou as unhas— É uma sorte que eu aparecesse e o obrigasse a mudar de opinião.

     Annalía inclinou a cabeça e mordeu o lábio. Era um livro aberto.

     —Vejo que está de acordo comigo.

     —Se você fizer que Aleix seja feliz, não terei mais remédio que te tolerar.

     —OH. E eu que estava esperando sua aprovação.

     Annalía soltou o fôlego com o olhar perdido na parede na frente.

     —MacCarrick nunca me disse que me amava.

     —E o que ele disse quando você o disse?

     Annalía mordeu o lábio.

     —Não o disse alguma vez?

     —Queria fazê-lo. Ia fazê-lo — disse Annalía, e se levantou para começar a passear. Olivia não sabia o que era pior; que passeasse ou que o lábio inferior não deixasse de tremer— Esperava que chegasse o momento perfeito, e... está bem, não me atrevi.

     —Teria atrevido a dizer-lhe que está grávida? Poderia estar — disse Olivia com a esperança de que Annalía por fim se desse conta do que estava lhe acontecendo.

     Annalía se esticou.

     —Isso é impossível. Nós não podemos ter filhos.

     Olivia ficou boquiaberta, e soltou a lixa. Que não podiam ter filhos? OH, por todos os infernos, aquilo cada vez ia à pior. Essa garota não tinha nem idéia de que estava grávida. Por isso não entendia por que se encontrava tão mal nem por que tinha as emoções tão alteradas.

     Olivia acreditava que ela tentava mantê-lo em segredo, mas não. Olivia ia ter que explicar de um modo mais delicado, não poderia limitar-se a dizer “acredito que o mês que vem a única que poderá usar seus vestidos, vai ser eu”. Golpeou a testa contra a mesa várias vezes. Agora sim que Llorente devia casar-se com ela.

     —Suponho que neste caso isso seria bom — disse Annalía.

     Olivia levantou a cabeça.

     —Já que ele ia deixar me partir.

     —É óbvio que você quer estar com ele — respondeu Olivia aproximando-se dela como se fosse lhe confessar um segredo—, assim não permita que te deixe partir.

     —Que não o permita...? —Annalía franziu sua testa — é o que você está fazendo com o Aleix?

     Olivia se recostou na cadeira e apoiou as botas na mesa.

     —Até agora funcionou. Ele tem que retornar para mim porque tenho a sua irmã seqüestrada. —Ela golpeou os lábios com os dedos— Eu disse isso? Queria dizer que estou cuidando de sua irmãzinha e ganhando sua confiança.

     Annalía passeou um momento mais e depois admitiu:

     —Tenho que reconhecer que isto é muito melhor que chorar.

     Olivia levantou as mãos, exasperada.

     —O que é o que estive dizendo? E você o tem muito mais fácil que eu. A mim Llorente não me ama, ainda, mas a ti MacCarrick sim.

     Annalía franziu a testa, e logo disse com convicção:

     —Ele me ama. Talvez tenha muito pouca experiência em tudo isto, mas estou certa disso sim eu sei distinguir, não? Um homem não pode fingir tanto.

     Sim podiam. Mas Olivia sabia que esse não era o caso.

     —Claro que não — respondeu Olivia também convencida— Agora pensa num plano de ataque enquanto eu vou procurar um pouco de comida decente. Se tivermos que subsistir a base de chá e bolachas, começarei a armazenar caixas aqui pra cima. —Ao chegar à porta deu a volta— E, Annalía, se quando voltar e vejo que estiveste chorando... —Olivia fez o gesto de uma garra com suas “pouco atraentes” unhas—, darei-te motivos para que chore de verdade.

          

     Durante a ausência da Olivia, Annalía se banhou, vestiu-se e chegou a duas conclusões. A primeira, não ia abandonar MacCarrick sem lutar. Gostava bastante da idéia de não permitir que ele jogasse fora o que eles dois compartilhavam. Ele fazia sentir que tinha certo controle sobre sua vida.

     A segunda? Embora ainda tivesse algumas duvidas a respeito de Olivia, Annalía não sabia se Olivia era má ou simplesmente a mulher mais forte que já tinha conhecido. O que sabia era que, sem sua futura cunhada, ela teria se tornado louca naquela casa tão estranha.

     Olivia retornou, e se balançou na porta; ia carregada de caixas de bolachas. Era óbvio que ia armazená-las. Guardou-as no armário, depois tirou um pequeno pacote de seu bolso e o atirou.

     —Trouxeram isto para ti.

     Annalía o pegou. Era de uma joalheria e vinha de parte do Court.

     —Os cães de guardas lá em baixo não o abriu. Vamos, abre você. Quero ver essa jóia.

     Annalía abriu a caixinha de veludo e viu que dentro descansava a pedra de sua mãe, embora sem seu colar. Em vez disso, Court tinha encomendado uma corrente tão delicada, tão preciosa, que parecia um fio de aranha.

     Olivia retirou de suas mãos. Não zombou como Annalía tinha temido, mas sim a colocou diante do espelho e a pôs no pescoço.

     —Lembro-me desta pedra. Pensei em ficar com ela. A corrente aumenta seu valor. Alegro-me por você — disse Olivia.

     Annalía se olhou no espelho. De algum modo, ele tinha descoberto o que essa pedra significava para ela, o que implicava, e tinha convertido algo doloroso, em algo precioso. A corrente era tão deliciosa, que era como sentir uma carícia no pescoço e no seio. Deus, o que perdeu foi muito menos?

     Ele mandava como presente de despedida?

     —Lembra-se dessa frase em gaélico da que estávamos falando? —Olivia a separou do espelho para que ela pudesse provar os anéis que havia na penteadeira e olhar as mãos— O que me daria se te dizer o que significa? Daria-me um anel antigo que uma vez pertenceu a uma rainha?

     —Agora mesmo, o melhor que posso te oferecer é não te esbofetear quando me disser isso.

     Olivia levantou as sobrancelhas, impressionada pelo desdobramento de violência.

     —Está bem, direi. —Fez uma pausa dramática— É minha. Ato-te em mim para sempre. Segundo minhas fontes, se MacCarrick te disse isso, está a um passo de se casar com ele.

     Annalía abriu os olhos, surpreendida.

     —Está mentindo! Como sabe tudo isso?

     —Eu perguntei à mulher escocesa que está lá embaixo. Eu não o teria perguntado, mas esperava que você me desse um destes...

     —Que mulher escocesa?

     —Uma nova.

     —Não acredito.

     Olivia olhou os olhos da Annalía no espelho.

     —Juro pelo que mais me importa.

     Annalía balançou em cima de seus calcanhares. Era verdade! Um montão de pensamentos amontoaram na cabeça. Ele queria que eles dois estivessem juntos! Por que não o havia dito? Deveria havê-lo feito. Deu-se conta de que sim que o tinha feito, mas não em uma língua que Annalía entendesse. Tinha que aprender gaélico! Ela tinha sonhado que essa última manhã ele tinha estado no quarto e que, com carinho, tinha-lhe afastado o cabelo do rosto. Talvez não tinha sonhado? Respirou fundo, e se perguntou por que tinha o estômago tão revolto. A noite anterior quase não tinha comido nada de todos aqueles pratos defumados, e achava que agora estava pagando as conseqüências.

     —Então, quer dizer que é você, a de Courtland? —disse uma voz atrás delas— Os serventes me têm escrito contando isso Mas eu mal pude acreditar neles.

     Annalía deu a volta e enjoou. Ela estava quieta, mas ao parecer sua cabeça não. Uma mulher bela e muito alta estava diante dela. A mulher do retrato pensou Annalía surpreendida.

     —Sou sua mãe, lady Fiona. —Ofereceu a mão a Annalía com amabilidade, mas seus olhos se viam escuros e sem vida. E cheios de suspeita— E você é lady Annalía Llorente. Tentei surrupiar informação sobre você de Olivia. —Olhou a esta de soslaio— Mas depois de tomar o chá me dei conta de que revelei muito mais do que tenho descoberto.

     Quando Olivia a olhou fingindo inocência, lady Fiona voltou a centrar sua atenção na Annalía. Inclinou a cabeça como se estivesse observando um animal abandonado, não com desprezo, mas sim mantendo distâncias.

     —Nunca pensei que Court se apaixonaria por uma pequena castelhana. Nem sequer de uma tão bonita como você. Mas ao parecer, e segundo suas próprias palavras, tem-no feito. —A expressão da mulher se voltou mais dura— Embora isso não tenha nenhuma importância. Já sabe que alguma vez poderá lhe acontecer, pequena?

     Annalía, que estava acostumada a ter umas maneiras impecáveis, que se comportava sempre com o máximo decoro, vomitou em cima da saia daquela mulher.

 

Quando Court, Hugh e Llorente chegaram à esplanada que havia diante da casa de Llorente, tiveram que esquivar dos aldeãos que estavam ali instalados. Havia roupa estendida por toda parte, meninos jogando e cabras pastando.

     Eles já tinham averiguado que a maioria dos desertores se dispersaram e que atuavam em pequenos grupos, obrigando os camponeses a agrupar-se em um lugar seguro.

     Por muito estranho que fosse, ali também estavam os escoceses.

     Court se deu conta de somente de ter visto o tecido de um tartane, Llorente apertou as rédeas com tanta força que deveria haver-se desintegrado.

     —Acredito que a tropa de Court já está instalada — murmurou Hugh.

     Liam os recebeu na porta principal e os fez entrar na casa. Deu uma palmada na costa de Llorente e disse:

     —Qualquer amigo de Court é nosso amigo. Seu rosto não me é estranho. Gostaria de beber vinho? Uísque? Peça o que quizer.

     Dentro, Niall e outros homens jogavam cartas, comiam frutas e beliscavam um pouco de truta salteada que havia em uma bandeja, tudo cortesia de Vitale, que se assegurava de que não faltasse nada.

     Os homens de Court o saudaram e perguntaram:

     —Onde está nossa preciosa andorrana?

     Ante este comentário, Llorente, que até então tinha estado zangado, ficou furioso. Agarrou a Vitale e o levou a outra sala para falar com ele. Court pôde ouvir como dizia:

     —Os aldeãos eu posso entender, mas como permitiu que estes escoceses abusem de nós?

     Vitale parecia contrito, mas alterado, sua única preocupação era Annalía.

     Court assinalou com o queixo para Niall e este se levantou.

     —Não se preocupe pelo velho Vitale — disse Niall, e se aproximou deles dando uma palmada nas costas— Era um pouco suscetível até que o salvamos dos desertores algumas vezes.

     —Temos que falar — disse Hugh, já centrado no que era importante.

    —De acordo, há um salão na parte em diante, podemos ir para lá. —Niall assinalou nessa direção— Pelo sombrio olhar de Court diria que queria evitar a biblioteca e o escritório.

     Hugh levantou as sobrancelhas e Court deu-lhe um olhar irado.

     Niall voltou a dar uma palmada nas costas de Court. Desta vez para consolá-lo.

     —A garota roubou o seu coração?

     Court surpreendeu a si mesmo e respondeu:

     —Sim, e não quero recuperá-lo.

     Hugh chamou Llorente, que a contra gosto os seguiu até o salão sem deixar de olhá-los zangado. Sentou-se rígido e incômodo em sua própria casa. Court sabia que nunca nenhum homem o tinha odiado tanto como Llorente. Deu de ombros.

     Uma vez que todos estiveram zentados, Niall colocou-os a par da situação.

     —Andorra era um caos; as pessoas fugiam por todos os lados e quando a rota principal para a Espanha ficou bloqueada, os desertores ficaram loucos por escapar. Nós os eliminamos do vale e cobramos as recompensas, mas ainda há um grupo de duzentos ao redor de Pascal.

     —Quantos Renegados ficaram? —perguntou Court.

     —Eliminamos seis nesse tiroteio perto da fronteira — respondeu Niall olhando ao teto para clarear a memória— O pobre do MacMungan, o mais jovem, perdeu uma orelha. o MacTiernay dispararam na mão. O buraco é só do tamanho de um copo de cerveja, ou seja, que não é tão terrível...

     Hugh o interrompeu.

     —Soma o total de sete, Niall. Hoje mesmo partimos para assassinar Pascal e eliminar para sempre a todos os Renegados.

     Niall moveu a cabeça em sinal de que estava de acordo.

     —E suponho que primeiro vieram aqui porque querem que nos encarreguemos dos desertores. Estou errado? Querem que ainda ganhemos mais dinheiro? —Olhou-o sério nos olhos— Está bem, mas só porque é da família. —Levantou a vista e observou Llorente, que continuava em silêncio, e depois voltou a fixar-se em Court— Bom, e o que é o que provocou a ira dos MacCarrick?

     Foi Hugh quem respondeu, porque Court era incapaz de fazê-lo.

     —Um dos Renegados apertou o cano de uma pistola na testa de Annalía, esteve só a alguns poucos segundos de matá-la diante de Court. Isso alterou as coisas.

     A cara do Niall mudou no mesmo instante.

     —Por que não nos disse isso antes? A tropa ficará furiosa. — Esfregou-se as mãos— Será uma matança.

          

     —Bom, nunca tinham me recebido deste modo.

     Annalía tampou a boca com a mão. Correu para procurar uma toalha para limpar a saia da senhora; era só no que podia pensar, mas quando chegou aonde ela havia sujado, voltou a vomitar.

     Olivia apareceu por cima de seu ombro.

     —Já te disse que havia uma mulher escocesa nova.

     Lady Fiona perguntou a Olivia.

     —O que está acontecendo com ela?

     —Talvez seja porque está alterada que o MacCarrick a deixou assim. Ela e o senhor MacCarrick, Courtland, viajaram juntos, sozinhos, durante várias semanas. Só eles dois. Eles estiveram muito... unidos.

     Que tolices estava dizendo? Annalía havia ficado doente porque a mãe de Courtland tinha posto voz a um pensamento que ela temia assumir desde que eles se foram. “Já sabe que alguma vez poderá lhe acontecer, pequena?” por que não? Quando ele era tudo o que ela queria no mundo? Annalía apertou o canto da mesa entre seus dedos, tentando recuperar o controle.

     A voz de lady Fiona soou insegura quando perguntou:

     —Está dizendo que...?

     Annalía deu a volta e olhou para Olivia movendo a cabeça afirmando o que perguntava essa mulher que continuava observando-a.

     —Vou trocar a saia — disse lady Fiona sem afastar o olhar da Annalía— Olivia, querida?

     —Sim, lady Fiona.

     —Não... —Levantou a mão para interrompê-la— Não deixe que ela vá a nenhuma parte.

     Aquela mulher tão estranha saiu da sala e Olivia respondeu:

     —Como deseja, milady. —Sua voz soou tão exageradamente doce que Annalía quase voltou a vomitar.

     Quando ficaram a sós, Olivia disse:

     —Precisa se limpar. —Agarrou-a pelo ombro e molhou o rosto com uma toalha empapada.

     Fez com tanta força, que Annalía não pôde evitar perguntar:

     —Será que você não tem feito alguma vez isto antes?

     —Claro, na casa de Pascal todo mundo era tão amável, sempre cuidando uns dos outros. Você, o que acha? —Deu-lhe um copo—Enxágüe a boca.

     Annalía o fez em seguida.

     A mulher voltou a entrar na sala.

     —Vejamos, lady Annalía.

     Olivia a interrompeu para dizer:

     —Desculpe, mas prefere que a chamem só de Anna, assim soa mais escocês. E, claro, é como a chama o senhor MacCarrick.

     Annalía fulminou a Olivia com o olhar.

     —É obvio, Anna. —Lady Fiona parecia tão contente, tão emocionada que Annalía não a corrigiu— Então, você e meu filho estavam muito unidos?

     Foi uma tolice, mas Annalía olhou a Olivia antes de responder. Quando Olivia deu permissão, ela disse:

     —Sim, lady Fiona.

     —Sente algo por ele?

     —Sim. —Seus olhos começaram a encher de lágrimas. Amava-o. Tanto que o coração não deixava de doer. Apertou a palma das mãos com as unhas para controlar o pranto.

     Mas o agudo olhar de lady Fiona se fixou em suas mãos.

     —E meu filho e vocês estavam sozinhos, estiveram sozinhos durante todas essas semanas de viagem?

     Olivia respondeu por ela com uma voz muito misteriosa.

     —Aqui também estiveram sozinhos os dois. Ele é extremamente possessivo com ela. Deu uma surra no seu irmão quando tentou levá-la daqui.

     Annalía esfregou a úmida testa com as mãos.

      —Posso saber do que estamos falando? —perguntou com voz áspera.

     —Lady Fiona tenta descobrir se Courdand MacCarrick foi seu único amante.

     Ela ficou boquiaberta com a impressão.

     —É obvio que sim! —soltou ela, e se deu conta muito tarde do que acabava de admitir. Sentia-se humilhada, ruborizou-se diante de lady Fiona, deu a volta para a Olivia e a insultou com o olhar. Rato. Doninha. Todos os animais miseráveis que... Um momento. E por que aquela mulher queria descobrir isso? Não era seu assunto— Com todo o respeito, acredito que isso é um assunto particular e não quero falar disso.                                    

     —Mas já não é tão particular. —Lady Fiona se aproximou de Annalía e acariciou o cabelo da testa com um gesto muito maternal— Para esta família, seu bebê significa muito.

     —O que!?        

                                              

     Depois de preparar-se a fundo, o bando inteiro se colocou a caminho e chegaram a Ordeno na avançada noite. Os homens de Niall ficaram fora da cidade à espera, enquanto isso Court, Hugh e Llorente penetravam dentro.

     Os três encontraram uma posição avantajada para estudar o acampamento dos Renegados, uma velha casa de pedra no alto de uma montanha.

      —Se encontro uma gruta — disse Hugh estudando-a—, posso fazer voar na parte de cima da montanha.

     —E como vai chegar até lá? —perguntou Court observando a montanha da base até seu pico.

     —Escalando. Já tinha intenção de fazê-lo para me assegurar de que só tinha Renegados nela.

     —Poderá escalá-la e descer a tempo?

     Hugh o olhou e fez uma careta.

     —Espero que sim.

     Llorente por fim falou e lhes perguntou:

     —Precisa que acompanhe um de nós?

     —Eu trabalho melhor sozinho — disse Hugh. Ele sempre dizia isso.

     Hugh deu uma palmada nas costa de Court e disse a Llorente:

     —Agora tem o privilégio de protegê-los. Esta noite não hesite nem um instante ou falhará. E se fizer que matem a meu irmão... — aproximou—Limite a te assegurar de que não matem meu irmão.

     Hugh colocou algumas cordas ao redor do ombro e pegou os explosivos com cuidado. Saudou-os com a cabeça e disse debochado:

     —Esperem para ouvir a explosão.

     Court e Llorente saíram quando ele se foi, caminharam até uma pequena casa da aldeia, não tão grande como as que Pascal estava acostumado a morar.

     —Se Olivia nos enganou — disse Court—, retornarei a Inglaterra para matá-la, eu mesmo.

     Llorente franziu a testa.

   —Ela não faria isso. Veja? Porque você não se salva?

     Havia três guardas diante da porta.

     —Vai atacar um? —perguntou Court.

     Llorente tirou sua pistola.

     —Farei o que tiver que fazer.

     Court sacudiu a cabeça.

     —Nem pensar. Tem que ser rápido e silencioso. Degolou alguma vez um homem?

     —Não exatamente.

     Ao entender o que acontecia, Court franziu a testa.

     —Matou alguém antes? A um desertor talvez?

     —Não — grunhiu ele.

     —OH, maldito seja, Llorente —disse Court entre dentes— Poderia haver mencionado isso antes.

 

     Annalía andava de um lado para outro e, de vez em quando, dava um chute na cama, outras imitava o acento escocês e zombava de MacCarrick. “Não posso ter filhos, Anna.” Não importava que lady Fiona a achasse divertida.

     —Querida, ele de verdade achava. E era certo antes que você aparecesse.

     Ele disse que não podia, e como suas menstruações tinham sido sempre muito irregulares e estavam acostumadas a chegar tarde, Annalía nunca tinha considerado essa possibilidade. E mesmo assim, agora era certo.

     —Eu não sou nenhuma perita, mas sei que não pode ser que um homem... que um homem não seja fértil com nenhuma mulher exceto com uma. Estas coisas não acontece —Todas essas tolices sobre a maldição estavam dando dor de cabeça. Se Fiona não tivesse estado tão triste, tão afetada quando lhe contou toda a história, Annalía teria posto a rir.

     —Mas é assim. Tem que haver um pouco escondido nessas duas últimas linhas sobre comprometer-se com a mulher adequada, ou ao menos encontrá-la.

     Annalía não acreditava nas coisas sobrenaturais. Seu pai sempre havia dito em tom zombador: “por que as pessoas insistem em falar do sobrenatural quando não podem nem controlar o natural? Só os ignorantes o fazem”.

     —Por favor, não quero ouvir nada mais a respeito desse livro. —Annalía estava já a ponto de ficar louca.

     —Se abaixar um pouco mais e o tocar — insistiu Fiona—, sentirá que há algo em seu interior, algum tipo de poder.

     —Claro que tem poder — reconheceu Annalía— No final, o livro foi escrito por alguns duendes. —Respirou fundo.

     Fiona riu, e pareceu que se surpreendia ao fazê-lo. Annalía supôs que nos últimos anos não tinha tido muitos motivos para rir, igual a seus filhos. Olivia olhou a Annalía e depois perguntou:

     —Lady Fiona, vai dizer a Ethan?

     Fiona respondeu a contra gosto.

     —Farei, mas quando Anna se for. Ele é quem saiu mais prejudicado pela maldição e, por desgraça, antes de acreditar que o bebê é do Court optará por pensar mal da Anna. Mas a Hugh o direi logo que possa.

     —Ele também pensará mal de mim! Minha reputação está destruida. Courtland nunca me pediu que me casasse com ele.

     —Porque te ama e não queria te fazer mal. Depois do ataque, ele deve sentir-se culpado. Mas as coisas que te disse, essas palavras só as diz a alguém com quem quer passar o resto de sua vida.

     —Isso está muito bem, lady Fiona, e agradeço que me diga isso.

     Para mim é muito importante saber que ele me disse todas essas coisas, mas, Madre do Déu, umas palavras em gaélico não darão um sobrenome a meu bebê.

     Os fatos eram inegáveis. “Olhe o lado bom”, disse-se a si mesma e quase se pôs a rir. “Ao menos agora já não posso pensar mal de mamãe.”

 

     —Teria que melhorar um pouco — sugeriu Court a Llorente ao ver como caía o terceiro guarda, embora tivesse que reconhecer que estava um pouco impressionado.

     —Vá ao inferno, MacCarrick — soltou Llorente.

     —Me dê tempo — zombou Court— Agora temos que nos mover com rapidez. Temos que chegar antes que Hugh faça explodir tudo.

     Entraram no edifício e seguiram o mapa que Olivia tinha desenhado. Tal como ela tinha prognosticado, ouviram Pascal no depósito da casa.

     Chegaram no final da sala contígua, apoiaram-se no muro oposto, Llorente com duas pistolas e Court com seu rifle e uma pistola.

     Court disse em voz baixa:

     —Os homens que estão com ele acreditarão que a explosão provém de um ataque no arsenal. Quando se forem, dispare. Não hesite.

     Logo a mansão retumbou inteira por culpa da explosão que soou lá fora. Caiu-lhes em cima um montão de pó e de estuque do teto, lhes cobrindo os ombros e o cabelo.

     —Construção andorrana — balbuciou Court.

     Llorente fulminou-o com o olhar.

     Depois da explosão, a porta se abriu de repente, e, tal como tinha previsto, quatro homens saíram correndo. Llorente os seguiu e os quatro caíram fulminados. Mas outros quatro, desta vez Renegados, ficaram em fila, e olharam para a porta. Court suspirou.

     Aquilo ia levar toda a noite. Essa parte era a que menos gostava de seu trabalho. As malditas esperas...

     Um momento...

     — Llorente — sussurrou chamando sua atenção—, dispara através da parede. Agora.

     Disparar nos Renegados através da parede requeria mais balas, mas no final, entre uma nuvem de pó e pedras que tinham saído ricocheteadas da parede pelos disparos, puderam ver que os tinham derrubado.

     —Construção andorrana, eu te disse — Court murmurou isso enquanto avançavam entre os corpos. Colocou o rifle vazio nas costas, e depois deu a Llorente um punhado de balas— Coloque uma entre os olhos para nos assegurar de que estão mortos.

     Ouviu como Llorente disparava atrás dele e se aproximou da porta da oficina. Dentro, Court encontrou o líder dos Renegados armado só com uma faca. Muito fácil.

     Levantou a pistola para disparar, mas perdeu o equilíbrio quando um dos homens que estavam no terreno puxou o seu pé. Um dos Renegados que tinha caído não estava morto. Court lutou para soltar-se, pegou a pistola e disparou duas vezes, gastou duas das três balas que restaram para matá-lo. Viu como Llorente lutava com outro. Ele tinha uma posição vantajosa, mas Court não podia arriscar-se.

     —Malditção, Llorente.

     —Não morra! —respondeu ele, frenético, antes que Court disparasse.

     —Por isso te disse que disparasse.

     Agora Court tinha que enfrentar o líder dos Renegados com uma pistola vazia e sabia que não tinha tempo de recarregá-la. Quando o homem começou a balançar a faca para deixá-lo nervoso, Court viu claramente o que tinha que fazer.

     —Se quer jogar isso, me avise, mas acredito que o quer fazer verdade, é arremessá-la.

     Aquele homem não mostrava nenhuma emoção em seu rosto, nem sequer quando acariciou a lamina até cravar-se com a ponta.

     Finalmente a lançou; Court se agachou, mas ela cravou profundamente no seu ombro. Sabia que, a essa velocidade, acertaria em alguma parte.

     —Obrigado — resmungou entre dentes, e a extraiu do ombro.

     Deslocou-se para a direita. Court lançou a faca às cegas, e o último que viu antes que o Renegado se lançasse em cima dele, foi Pascal tirando a lamina que cravou perto de seu pescoço.

     Ele e o Renegado se lançaram para a janela principal da sala, quebraram o vidro e caíram na rua que havia debaixo. Court aterrissou de costas, segurando seu rifle e soltando a pistola que tinha na mão. Sentou-se e tentou recuperar o fôlego. O homem tirou outra faca de uma capa que levava no braço.

     Court sorriu sarcástico. Olhou para Renegado e lhe assinalou uma parte do pescoço, como se tivesse esquecido de barbear uma parte ou feito ali um pequeno corte. O homem levantou a mão e se deu conta de que tinha um enorme fragmento parecido de vidro. Court lhe dava cinco minutos a mais. Até menos se o tirasse. Com certesa Court tinha também alguma ferida como essa, mas se negou a comprová-lo.

     O homem cambaleou, mas sem deixar de lhe apontar com a faca. Court se atreveu a olhar para a janela e viu Llorente e Pascal lutando com uma pistola em mão. Apesar de que a camisa de Pascal estava encharcada de sangue, ele começou a falar com Llorente, tal como Court tinha temido que fizesse. O Renegado se equilibrou para frente e Court voltou a esquivá-lo, enquanto, podia ouvir...

     —Surpreendeu-me que minha filha escolhesse viver com você do que comigo — dizia ele, seu tom pausado, apesar da ferida— E eu não me surpreendo freqüentemente.

     —Estou certo que ela tem suas razões para te deixar.

     —Sim, acredito que descobriu que, por desgraça, é muito provável que eu não seja seu pai.

     Court ouviu tudo, mas para seu assombro, o Renegado continuava lutando. O escocês olhou para cima e viu como Llorente franzia a testa. “Não deixe que ele te destraia”, queria gritar, mas sabia que se distraísse a Llorente sequer um segundo Pascal o mataria.

     Começou a procurar uma bala em seus bolsos, mas o Renegado levantou a lamina e preparou para lançá-la. Court levantou as mãos. Ambos seguiram movendo-se em círculos.

     —Ela não lhe contou isso? —Pascal estalou a língua— Isso não é muito sincero de sua parte, e se é que é minha filha, desculpo-me por isso. —Ele sorriu inocente, parecia tão... cordato, mas acrescentou— Se conseguir sair desta com vida, lhe diga por favor que tudo é culpa de sua mãe.

     O Renegado se jogou sobre Court e ele se agachou.

     —Nunca direi que sua mãe foi impura — grunhiu Llorente.

     —Eu disse que ela foi impura? Foi precisamente sua pureza o que atraiu a todos nós. Não era só uma viúva devota, mas sim também era preciosa. Como podíamos resistir a não possuí-la essa mesma noite?

     Para ouvir isso Court levantou a vista. A cara de Llorente estava transfigurada pela fúria que sentia, tremia as mãos, bem o que Pascal queria. Court olhou irritado para o Renegado.

     —Acorda, homem. Não tenho toda a noite.

     Por fim, o homem cuspiu sangue e a faca que tinha na mão caiu no chão. Court se ergueu, agarrou a faca e, sem deter-se, torceu o pescoço do homem até rompê-lo. Sob a janela, recuperou seu rifle e carregou uma só bala. Estirou os braços, colocou-o em seu ombro, apontou para Pascal e disparou.

     Pascal disparou uma vez e caiu.

     Imediatamente, ouviu-se de dentro.

     —Maldição, MacCarrick! —Logo em voz mais baixa— Fez com que me dispare...

 

     —Deixa de choramingar! —soltou Court— A sua irmã a feriram igual e continuou me olhando cheia de ódio a cada segundo. Não derramou nenhuma lágrima.

     Para falar a verdade, a ferida de Llorente era um pouco mais grave. A bala tinha atravessado e tinha deixado um buraco importante. Court também tinha muitas feridas por culpa dos vidros, e como a pior era um enorme vidro que tinha aparecido no tornozelo, sentar parecia melhor idéia que caminhar, embora tivesse que estar com Llorente. Hugh os encontrou a ambos apoiados em duas paredes diferentes, bebendo uísque e insultando um ao outro. Mandou Liam a procurar um médico e ficou com eles.

     —De verdade não chorou? —perguntou Hugh enquanto passava a camisa pelo rosto para limpar os cortes causados pelas pedras que tinham saído pelos ares. Apesar de ter tido êxito, Hugh voltou sacudindo a cabeça e balbuciando entre dentes:

     —Ardósia. Quem teria imaginado.

     Court respondeu cheio de orgulho:

     —É a garota mais valente que já conheci.

     É obvio que estava orgulhoso, mas agora já não podia demonstrá-lo. Ela já não era dele. Apoiou a cabeça na parede e olhou para o teto.

     —Maldição, Court. —Hugh lhe deu um chute na perna que não tinha sido ferida— Não voltarei a repetir que mantenha apertada a ferida que tem no ombro.

     —Como pôde fazer isso? —perguntou Llorente por enésima vez— Deixou que me disparasse?

     —Sabia que minha pontaria era melhor que a sua. Ao parecer tinha razão.

     —Esse animal me disparou!

     —Se você tivesse matado os outros, agora não estaríamos falando disto.

     —Esse tinha um enorme buraco no estômago. Como podia continuar vivo? — Llorente deixou sua garrafa como se acabasse de dar-se conta de algo.

     —Já tem feito tudo o que estava em sua mão para me arruinar a vida.

     Court deu um gole e respondeu:

     —Asseguro-lhe isso, Anna não é a que deveria levar saias em sua família.

     Por fim, Llorente ficou furioso.

     —Hugh, diga-lhe o que teria feito Pascal se eu não tivesse disparado quando o fiz.

     —Teria obtido que você disparasse, ele estava te provocando, e assim ele teria disparado depois e mais tranqüilo.

     —Ouviu o que disse da Olivia? — Llorente começava a arrastar as palavras— Sempre eu tinha perguntado onde estava sua lealdade. Não entendia por que o fazia isso a seu pai — acrescentou para si mesmo—Ela sempre foi leal a sua mãe. —depois franziu a testa— Acredito que a amo. —Fez uma careta de dor quando tentou mover-se.

     Court sacudiu a cabeça ao ver a ferida de Llorente. Essa sim precisava que a costurassem.

     Podia ouvir Niall e os outros rindo a distância, e cada vez se ouviam menos disparos. Essa noite, eles iriam colocar tudo de pernas para o ar procurando o contrabando de ouro e de dinheiro de Pascal.

     Court deduziu que gostavam de julgar a serem heróis, pois já tinham decidido que iriam devolver tudo a seus proprietários antes que o frio inverno voltasse a instalar-se em Andorra. As botas de cano longo faziam mais fácil de serem heróis.

     —Agora vou pôr-me em contato com o Ethan —disse Llorente — Pedirei-lhe que as mande de volta a casa com uma escolta.

     —Por quê?

     —Seu irmão me disse que, chegado o momento, ele se encarregaria de tudo, não você. Agora que ganhamos, há alguma razão pela que não deveria trazer aqui a minha irmã e a Olivia?

     Tanto Hugh como Llorente esperaram a que Court respondesse.

     —Não. Nenhuma. Ethan se assegurará de que estão a salvo.

     —Irá antes que cheguem?

     Court sentiu como começava a tremer um músculo de seu rosto    

    

     Na viagem de volta, cada hora que passava era como uma agonia, mas ao menos Annalía tinha deixado de vomitar tudo o que comia. Com cada quilômetro que percorriam nessa carruagem, ela e Oliva continuavam discutindo como meninas.

     —No que se refere a herdeiras, mal criadas, não está tão mal —disse Olivia.

     —No que se refere a bruxas retorcidas, conheci piores —respondeu Annalía.

     Tampouco tinham outra coisa que fazer. E apesar de que Olivia pareceu não se afetar com a notícia da morte de seu pai, Annalía tentou mantê-la ocupada.

     —Não posso deixar de imaginar o que acontecerá quando chegarmos —disse Annalía— Eu correrei para o MacCarrick e Aleix a atirará no lago. Será perfeito.

     —Segue zombando. Não me importa —respondeu Olivia— Mas quando eu tiver contado a Aleix o mal que te levaste comigo, que incentivos terá para comportar-se civilizadamente com seu tão pouco apropriado pretendente?

     Ela tinha razão, mas por sorte sabia que Olivia não ia contar nada a Aleix.

     E agora, por fim, tinham chegado. Quando a carruagem parou e os homens de Ethan acreditaram que era seguro as deixar sair, Annalía correu para a casa. Entrou a toda pressa e, sem fôlego, abraçou Aleix, que tinha saído para as receber.

     Sorriu-lhe e depois, ao vê-la entrar, sorriu para Olivia. Um sorriso especial para a Olivia. Um sorriso de apaixonado? Annalía nunca os havia visto juntos. OH, Olivia estava ruborizando?

     Annalía sacudiu uma mão diante dele para captar sua atenção.

     —Onde está MacCarrick?

     Ele a olhou e ficou sério.

     —Annalía, ele... bom, ele se foi. Acredito que para o norte.

     Ela deixou escapar o ar entre os dentes e sentou-se no sofá.

     —Não entendo. Por que ia fazer isso? Não sabia que retornávamos?

     Olivia se colocou atrás dela.

     —Disse algo?

     —Disse-me que desejava a Annalía todo o melhor.

     —Que me desejava o melhor? —Sua voz soou estridente. Ela ainda não tinha deixado de vomitar de tudo. Acreditava que nesse mesmo instante ia fazê-lo.

     —Ele não é um homem de muitas palavras, como bem sabe. Annalía, ambos decidimos que era o melhor. Não era o homem adequado para você.

     Ela entrecerrou os olhos.

     —Você e ele decidiram? Os dois decidiram meu futuro? Um carro de seis cavalos! —gritou ela e ficou de pé— Você... você me colocou em um carro de seis cavalos!

     Ele a olhava como se ela tivesse ficado louca. Annalía sentiu como começava a enjoar-se, tremeram as pernas e teve que voltar a sentar-se.

     Aleix correu a seu lado e a agarrou pelos ombros.

     —Encontra-te mau? O que têm feito?

     Ela mal viu como uma mão surgia atrás dela e dava um golpe a dele para que a soltasse.

     —Annalía, isto é o melhor. Ele pertence à outra cultura e não tem a riqueza necessária para te manter como você merece. E, não sei se lhe disse isso ou não, mas não pode ter filhos.

     Ela o olhou aos olhos com lágrimas escorregando por suas bochechas.

     —Lamento ter que te contar o contrário.

          

     —Court, está bem? —perguntou Hugh estalando os dedos diante dele.

     —Mmm, sim, por quê?

     —Porque se seu cavalo não afastasse, esse ramo ali atrás teria te decapitado.

     Court deu a volta. Não o tinha visto. Estava ausente, tentando imaginar o que estaria fazendo Annalía nesse instante, onde estaria, pensando que ela estaria mais feliz que ele. Tinha que estar. Voltou a olhar para frente e se surpreendeu ao ver que já tinham chegado à hospedaria de Groot, embora isso não deveria o surpreender. Eles tinham viajado muito rápido, Hugh o tinha afastado do caminho principal e o tinha levado através de rotas secundárias que só utilizavam os cavalos. Hugh não queria arriscar-se que Court se cruzasse com a Annalía enquanto ela retornava a sua casa.

     —Estava pensando nela —disse Court— Sinto sua falta.

     —Sim, sei.

     —É o vazio de que menos gosto...

     —Uma dor? —perguntou Hugh, e saltou da cela.

     Ele afirmou devagar com a cabeça.

     —Court, Deus se pudesse dizer que passará. —Hugh o olhou resignado— Mas não é assim.

     Se não conseguia superá-lo, se tudo continuava recordando a ela...

     —Onde está essa bonita andorrana? —perguntou Groot logo que entraram na casa de estalagem.

     —A salvo em sua casa —respondeu Hugh ao ver que Court só podia franzir o cenho.

     —Me alegro —disse ele ausente ao ver que sua mulher lhe pedia ajuda com uns clientes. Court se sentou no banco porque a perna doía muito, e pensou que tampouco era que fosse muito cômodo. Mas antes de aceitar o quarto que ele e Anna tinham compartilhado preferiria passar toda a noite ali.

     Hugh caminhou até ao bar e ele mesmo serviu dois uísques.

     —Hugh, tenho uma carta para você —disse Groot, e aproximando-se dele acrescentou— De Weyland em pessoa.

     Hugh juntou as sobrancelhas e golpeou o bar com a garrafa.

     —Traga-me isso agora mesmo, Groot.

     Hugh abriu e leu à mensagem, seu corpo se esticou imediatamente e seu rosto se contraiu ainda mais, marcando as rugas. As novas cicatrizes de sua testa e de sua bochecha empalideceram.

     —Que demônios está acontecendo? —Court tinha visto o Hugh furioso e capaz de matar de uma só vez; e era uma imagem que nunca esqueceria. A selvagem expressão que Hugh mostrava agora era algo mais, gelava o sangue. Court se levantou e coxeou até pegar a carta de entre seus dedos, que começavam a estar brancos de tanto apertá-los.

 

           MacCarrick:

           A vida de Jane corre grave perigo. Vêem rápido.  

                                                 Weyland

    

     —Saíremos agora mesmo —disse Court, e deu a volta para a porta.

     —Não, Court. —Quando ele voltou a olhar, Hugh sacudiu a cabeça com força— Tenho que ir sozinho.

     Como se Court já não soubesse o que ele era capaz de fazer.

     —Devo-te muito mais do que jamais conseguirá entender. E agora vou devolver o favor.

     —Maldição, Court, não. Está ferido, e eu preciso dos dois cavalos, o que significa que também levarei o seu.

     —Claro, mas...

     Apenas um minuto mais tarde, Court estava fora, de pé, com o vento soprando a seu redor e olhando como Hugh cavalgava como o raio. Court sabia que chegaria a tempo, e quase sentia lástima por quem se atreveu a pôr em perigo a Jane de Hugh. De fato, sua única preocupação era se Hugh seria o bastante forte para resistir os sentimentos que tinha por ela. Pelo bem de seu irmão, esperava que agora com mais idade, essa garota deixasse de o atormentar.

     Court passou a mão pela nuca, e pensou em sua situação. Maldição, Hugh era o único que tinha mantido afastado de Andorra. Se seu irmão não tivesse estado ali o advertindo, animando-o, Court duvidava que tivesse sido capaz de ir. Agora a tentação de retornar e voltar a procurar a Annalía era impossível de suportar.

     Olhou como ficava o sol, como cobria as folhas com seu véu, mas a ele tudo era igual, as cores se apagavam. Não tinha nenhum plano, não tinha nem idéia do que ia fazer. Poderia ir ao leste para reunir-se com os outros e juntar-se com o Otto, ou poderia ir para o norte, para sua casa. Também para o sul...

     Anna estava melhor sem ele. Isso já sabia. Mas era feliz? Ou se sentia tão desgraçada como ele? Tinha medo de ir a Castilla?

     Ele tinha jurado a Llorente que não voltaria a vê-la. Tinha-lhe dado sua palavra de que não voltaria a aproximar-se dela.

     E Llorente tinha demonstrado ser um homem decente. Tinha dado a Hugh um cavalo precioso em troca de sua ajuda. A Court tinha dado um apertão de mãos, o que dizia “custou muito, muito mais”.

     Em troca, Court deu sua palavra.

     Hugh e Ethan se resignaram ao seu destino. Mas Court tinha ousado desafiá-lo durante um tempo, e tinham sido os únicos dias de sua vida em que tinha merecido a pena viver.

     Pensou naquelas dez linhas que tinha gravadas na memória do primeiro dia que viu o Leabhar, e entrecerrou os olhos. O vento voltou a soprar, a assobiar entre as árvores, e deu a volta para o sul.

     Court tinha dado sua palavra de cavalheiro a Llorente.

     O que era muito, muito conveniente, pois ele não era um maldito cavalheiro.    

    

     O outono chegou nas montanha e, pontual como um relógio, o prado se encheu de flores cor índigo. Annalía sentou entre as flores para ver como ficava o sol e para afastar-se de Aleix e Olivia, que tentavam em vão ocultar os sentimentos que sentiam um pelo outro. Annalía queria gritar na cara que estava grávida, não uma estúpida.

     Pegou uma flor e soltou o cabelo. Por que não deixá-lo solto? Falaria as pessoas? Pelo modo em que estava engordando, no próximo mês, aí sim teriam algo do que falar...

     Ao inteirar-se de seu estado, Aleix queria matar o escocês, arrastá-la de volta e obrigá-lo a casar-se com ela. Outra opção horrível que tinha exposto era ir a Castilla com sua família.

     —Você acha que deveria levá-la lá? —perguntou a Olivia. A Olivia!

     Annalía respondia uma e outra vez:

     —Não quero me casar com alguém a quem tem que me levar a rastros até ao altar, nem com ninguém a quem não conheça.

     Annalía não queria ir a Castilla, não só porque continuava apaixonada pelo MacCarrick, mas também porque agora era igual a sua mãe, e ia dar a luz a um filho ilegítimo.

     A solução da Olivia? Não fazer nada até encontrar MacCarrick.

     —Sua mãe lhe dirá que Annalía está grávida. Dará-se conta de que o livro esta errado, e depois irá procurá-la em qualquer lugar que esteja. Se ela estiver casada, matará ao desafortunado marido por ter ousado tocá-la, e a levará de qualquer jeito.

   —Mas podem acontecer meses até que ele retorne a Londres ou até que receba nossas cartas — assinalou Aleix— até anos, se tiver ido reunir-se com seus homens no leste. Seu filho será um bastardo se não a casarmos nos próximos sete meses. —Mas por sorte, decidiu fazer ouvir Olivia. Ela estava acostumada dar bons conselhos.

     Desde sua chegada, Olivia tinha instalado ali com eles, o que não tinha sido difícil, pois todos estavam muito agradecidos por ela ter liberado a Aleix. Até Vitale gostava dela. Annalía supôs que era porque a via dura como ele, uma sobrevivente, e a respeitava por isso.

     —Começa a fazer frio —disse Aleix atrás dela, e colocou um xale em seus ombros.

     A neve não demoraria em chegar, e os isolaria do resto do mundo.

     —Só quero ver o pôr do sol.

     —Os guardas não gostam que esteja fora depois que anoiteça. —Aleix tinha contratado os homens que Ethan tinha mandado com elas, tal como tinham concordado, até que o país se tranqüilizasse e tudo voltasse para a normalidade. Estavam acostumados a ficar no vale da montanha, na passagem estreita perto do prado.

     —Como você está? —perguntou ele.

     Ela tentou soar divertida ao responder:

     —Bom, além de estar solteira, grávida e abandonada, estou esplêndida —disse um pouco agressiva— Acredito que superei os pecados de nossa mãe.

     —A que se refere?

     —As suas aventuras. —Ela moveu a mão como se não importasse— Todo mundo diz sempre que me pareço muito a ela, que sou igual a ela.

     —Aventuras? — custou pronunciar a palavra.

     Annalía o olhou com o cenho franzido.

     —Ouvi os rumores. Sei que abandonou a sua família por culpa de... da paixão.

     —Acha que é por isso pelo que mamãe não estava aqui? —perguntou ele incrédulo— Ela teve uma aventura com um homem, um bom homem chamado Nicolás Beltrán, de quem esteve apaixonada por toda sua vida. —Quando Annalía sacudiu confusa a cabeça, seu irmão continuou— Os pegaram quando estavam escapando para casar-se, e sua família a mandou para fora. É como se alguém tivesse obrigado a Mariette a casar-se com um velho estranho no exílio na noite antes de nosso casamento. Mariette teria querido que eu fosse procurá-la, e a mim nada teria detido.

     —Mas por que demorou tanto? —perguntou ela, absorta com a história.

     —Depois de que nossa família se encarregasse dele, estava arruinado e em muito mal estado de saúde. Ele não tinha nem idéia de aonde a tinham levado, e demorou anos em encontrá-la.

     Sorriu-lhe com amargura.

     —Sim, mas quando o fez, ela me deixou, a mim, a sua filha, por ele. Não te afetou tanto como a mim. Você já era grande, mas me machucou.

     —Annalía, ela não se foi por vontade própria. Quando Llorente os encontrou juntos, deserdou-a e a proibiu que se aproximasse de você. Beltrán a levou a França. Dali, ela escrevia a Llorente cada dia, suplicando em poder te ver. Vinha aqui uma e outra vez, mas ele sempre o impedia. Não deixou de tentá-lo até que morreu, um ano mais tarde.

       —Mas... mas eu sempre acreditei que ela tinha me deixado por um homem. Acreditei que tinha escolhido a ele por cima de sua própria família. Que nunca havia tornado a olhar atrás e que tinha destruido papai com sua indiferença.

     —No funeral de mamãe, falei com o Beltrán. Quando Llorente os encontrou juntos, ela estava dizendo que nunca ia abandonar seus filhos para ir com ele.

     Annalía levantou e começou a caminhar.

     —Bastardo! Como pôde meu pai manter a mamãe longe de mim? Por que deixou que acreditasse que ela tinha tido muitos amantes? Aleix, ele brigava comigo e me dizia que eu faria o mesmo!

     —Não o justifico, mas ele estava destruido. Acreditava que ela tinha chegado a ama-lo. Annalía, eu nunca suspeitei que Llorente estava envenenando as lembranças desse modo, se o tivesse sabido teria te levado comigo.

     Ao ver que ela começava a caminhar mais rápido, ele disse:

     —Acredito que deveríamos deixar o assunto para mais tarde. Para quando estiver mais tranqüila.

     —Esperei dezesseis anos para ouvir isto! Disse a Beltrán que não? —Annalía seguia sacudindo a cabeça, incapaz de acreditar que tudo o que sabia era mentira— Ela não me deixou porque quis? —Agarrou o colar entre seu dedo anelar e polegar e acariciou a pedra.

     —Eu era o suficientemente velha para saber que não existia uma mãe que amasse mais a sua filha...

     Annalía se sentou e, quando começou a chorar, não fez nada para deter as lágrimas.

     —Não fui ao seu funeral! Nunca levei flores a sua tumba! —Olhou-o com os olhos alagados— Por que não me disse isso?

     —Não tinha nem idéia. —Ele estava atônito— Foi tão jovem quando aconteceu, e como nunca me perguntava por ela, eu acreditava que era porque apenas se lembrava.

     —Tenho que visitar sua tumba. Tenho que mostrar o meu respeito.

     —Você sabe que eu não posso ir daqui até que tenha se tornado calma. Já veremos o que acontece quando tiver nascido o bebê.

     Ela secou as lágrimas.

     —Eu sempre quis ir, mas estava tão zangada e tinha tanto medo de fazer algo como o que ela tinha feito... Bom, o que acreditava que tinha feito.

     —Mamãe era uma mulher boa, com um coração muito grande. E você é igual a ela. Cada dia que passa o parecido é mais evidente. Amanhã pela tarde, quando voltar da reunião do conselho do povoado, contarei tudo o que sei sobre ela. Mas agora tem que entrar. Agora, você também vais ser mãe.

     Ela, vacilante, soltou o fôlego.

     —Aleix, o que vou fazer?

     —Vai ter um menino que amaremos muito. Nós vamos cuidar dele.

     —E depois o que? Ficarei velha aqui, nas montanhas, esperando que ele retorne?

     —Annalía, vamos passo a passo. O único que sei é que a decisão é sua. E que eu não vou repetir a história casando você com alguém quem não ame.

     —Obrigado por dizer isso —murmurou ela.

     —Agora temos que nos concentrar em sua saúde. Em cuidar de seu pequeno.

     Ele levantou e lhe ofereceu a mão, mas ela disse:

     —Só alguns minutos a mais.

     Aleix acariciou-lhe a cabeça e caminhou para a casa.

     Quando ela ficou a sós, e os últimos raios de luz se refletiram no lago, esfregou a barriga que já começava a arredondar-se. “Meu pequeno”, disse em voz alta. “Meu”, pensou. Tinha passado muito tempo sentindo pena de si mesma e pensando em que seu novo estado era uma espécie de enfermidade, uma espécie de desgraça.

     Agora que sabia que sua mãe a tinha amado, que nunca tinha querido abandoná-la, Annalía via tudo diferente, como se tivesse olhando tudo através de um vidro embaçado que acabava de quebrar em seu nariz. Ela podia ser uma boa mãe. Ela ia ser uma boa mãe, e amaria do mesmo modo que, ao parecer, tinha amado Elisabet.

       —Vou ter um bebê —sussurrou ela, e viu a verdade pela primeira vez.

     Se o escocês não podia desfrutar disso porque estava longe lutando durante anos, ou porque por suas fortes e erradas crenças ignorava o que havia dentro de seu coração, assim seria.

     Ele não estaria em suas vidas. Ele é quem perdia.

     Porque ela e seu bebê iriam ficar muito bem.

    

Annalía saiu para passear pelo prado, no caminho cruzou com Vitale e seus amigos jogando aos jogos de dados e lhe desejou sorte.

     —Te vejo tão diferente —disse ele ao olhá-la.

     —Ah, sim? —Quando disse a Vitale que estava grávida, ele se entusiasmou ao pensar que haveria outro menino correndo pelas montanhas, mas também confessou que se alegrava de que as coisas não tivessem saído bem com o MacCarrick— Te quero como a uma filha —disse ele— Seguir-te até Andorra foi uma coisa, mas não te seguiria até Escócia.

     Vitale a estava estudando.

     —Parece... decidida.

     —Estou —Ela deu uns golpes no livro de gaélico— Estou decidida a aprender gaélico antes da próxima primavera.

     —Ach, pequena —imitou Vitale sem deixar de soar terrivelmente francês. Seus amigos riram a gargalhadas. Ela também riu e continuou caminhando.

     Depois de descobrir que estava grávida, pediu a lady Fiona livros sobre Escócia. A mulher os deu a toneladas, estava encantada de que Annalía mostrasse interesse por sua cultura e por sua língua, e muito orgulhosa de que Court a tivesse encontrado.

     Annalía começou devagar. Por sorte, fazia pouco que tinha aprendido o grego, quando MacCarrick apareceu em sua vida. Ela estava convencida de que como muito poderia aprender cinco idiomas.

     Embora seus progressos eram constantes, ao parecer esse dia não podia concentrar-se. As flores do prado cheiravam muito bem, e o sol lhe acariciava a pele de tal modo que ela tinha vontade de tirar o chapéu.

     E continuava olhando a definição que tinha encontrado no livro, a seguia com os dedos. Mo cridhe. “Meu coração”. Isso era o que ele a tinha chamado. Neach-dwlain. Isso era o que o chamaria. “Bastardo”.

     Decidiu tirar o chapéu, e ia soltar seu cabelo quando viu algo que não podia ser certo. Ficou em pé de um salto; o coração pulsava descontrolado e o chapéu caiu de sua mão sem forças. Agora que tinha conseguido deixar de chorar até poder dormir a noite inteira!

     MacCarrick a viu e correu para ele. Parecia cansado e esgotado. E decidido?

     Um momento! Ela estava furiosa com ele. Ela nem sequer queria saber se ele tinha ido ali por ela. Provavelmente tinha deixado esquecida sua pistola favorita, ou seu facão da sorte, e queria recuperá-los antes de voltar para o trabalho.

     Acreditando que voltava por isso, um homem que tinha sido capaz de “lhe desejar o melhor” depois do que tinham compartilhado... Mas mesmo assim começou a enjoar. Respirou fundo e cambaleou sobre os calcanhares. Franziu o cenho e viu como o sol batia nos olhos, murmurou:

     —Merda.

     Estava doente? Court sentiu como se lhe faltasse o fôlego e esporeou seu cavalo. Não esperou que parasse para saltar dele e correr para a Annalía, mal sentindo a dor de sua perna. Ela nunca estava doente. Teria alguma ferida? Ia matar Llorente. Por que os malditos guardas estavam ali embaixo se ela estava sozinha ali acima?

     Por sorte, caiu em cima das amaciadas flores. Ele a agarrou pelos ombros e a aproximou dele.

     —Anna!

     Acariciou sua cabeça e franziu a testa. Não parecia ter nenhuma ferida nem estar doente. Acariciou-lhe a bochecha com os dedos. Sua pele era quente e dourada.

     —Anna?

     Ela piscou, os olhos claros e brilhantes se centraram nele.

     —O que te aconteceu, mo cridhe? —Sua voz soava áspera.

     Ela levantou os olhos, irritada e se agitou em seus braços.

     —Estou bem, obrigado. —separou-se dele e se levantou.

     Ele a soltou a contra gosto.

   —Por que desmaiou?

     —O vestido me aperta muito —respondeu ela, depois de hesitar alguns instantes.

     Ele olhou o vestido e viu que na verdade apertava ao redor do seio. Por fim ela tinha ganho um pouco de peso ao invés de ter perdido. Desviou o olhar para o pescoço e viu orgulhoso que brilhava seu colar.

     —As mulheres desmaiam todo o tempo —acrescentou ela.

     Faziam-no. Mas ele podia recordar como no mínimo dez situações nas que deveria haver-se desacordado e não o fez.

     —Esqueceu de algo? —perguntou zangada.

     Ele franziu o cenho.

     —Não. Queria saber como estava.

     —Agradeço-te que queira “saber” como estou, mas já vê, que estou bem.

     —Sim, já vejo. —Ela estava preciosa, mais bonita que a última vez que a tinha visto. Esperava encontrá-la triste? Sim, maldição, ele esperava isso. Porque ele era um porco egoísta e queria que ela estivesse como ele por ela. Annalía não podia comer quando estava triste ou nervosa, e era óbvio que sem ele tinha ganho um pouco de peso, seu corpo estava mais cheio, tinha mais curvas. Então, por que continuava ali? Por que não dava a volta e ia embora?

     Pela extremidade do olho, viu que ela manuseava as flores que havia atrás deles. Olhou ali e viu o livro que ela tentava ocultar sob a saia.

     —Está estudando gaélico?

     —Grego, gaélico. Qual a diferença? —disse ela irada, mas ao ver como ele a olhava acrescentou— Está bem. Não tenho nenhum vínculo pessoal com a Grécia, mas um escocês me tratou muito mal.

    Ele estremeceu.

     —Poderia haver me escrito. Eu haveria dito que tudo estava bem e teria economizado a viagem —disse ela.

     —Eu queria te ver.

     —Você queria me ver. Bem, você não pode ir entrando e saindo da minha vida, quando ou como você queira, olhando apenas no que é ou no que você deseja. Você se foi sem se quer dizer adeus. Depois de tudo que havíamos passado juntos, “desejou-me o melhor”.

     —Se eu a tivesse visto, não teria sido capaz de te deixar. Fui por você.

     —Não entendo. —Ela inclinou a cabeça.

     —Tenho que te explicar algo.

     —Se for sobre a maldição, sua mãe já me contou isso tudo.

     Ele baixou a voz.

     —Ela te falou que... do Leabhar? —Quando ela moveu a cabeça a modo de resposta, ele disse—Não é algo comum falar da morte de meu pai. Sabe o que diz?

       —Sim, tenho lido.

     Ele não podia acreditar que Fiona tivesse permitido que Anna se aproximasse do livro. Trocariam algumas palavras sobre isso.

     —Eu acreditava que eu te faria tudo isso. Quanto mais forte era o que sentia por você, mais claro ficava que eu teria que partir.

     Ela sorriu fria.

     —E agora está aqui? Por quê?

     —Sim, estou aqui. Porque comprovei que algo do que dizem essas linhas é falso.

     —O que? —perguntou Annalía, fingindo que não importava. Ela não queria que ele tivesse vindo só pelo bebê. Devia ter recebido a carta que Aleix tinha mandado a Groot, mas tão cedo? Talvez sua mãe tinha escrito antes que ela e Olivia se fossem. Annalía nunca poderia deixar de perguntar-se.      

     Court tentava controlar suas emoções, o via muito tenso.

     —Diz que eu não saberei o que é amar. —Ele ficou em pé e passou a mão pelo cabelo— Mas, maldição, eu sei.

     Annalía entreabriu os lábios.

     O rosto dele era sério, intenso, mas seus olhos...

     —Por cima de todas as coisas, eu te amo. —Sua expressão se endureceu ainda mais— Ou melhor, estou ficando louco. Quero-te tanto que estou disposto a acreditar que também é falso todo o resto. Agora mesmo poderia estar te fazendo mal. — estava acentuando o acento— Talvez significa que nunca saberei o que é que outra pessoa me ame. —Ele se estremeceu e se encheu de preocupação— Não tinha pensado nisso.

     Parecia sentir-se tão culpado que ela se levantou e murmurou:

     —Isso também é falso.

     Ele a segurou pelos ombros.

     —Você me disse isso uma vez. Mas estava meio dormindo e eu tinha te machucado muito; e não me atrevi em acreditar nisso Pode me amar apesar de ter te abandonado?

     Ela franziu a testa. Court estava nervoso. Annalía pôs uma mão em cima de seu peito, por curiosidade. Essa simples carícia fez que ele fechasse os olhos.

     Nervoso. Baixou a palma de sua mão e notou que o coração pulsava descontrolado.

     Com isso, a resistência que ela acreditou poder opor se dissolveu entre seus dedos. A verdade escapou de seus lábios.

     —Quando partiu, me machucou tanto. Muito. Mas apesar de ter estado confusa e assustada, nunca deixei de te amar.

     Ele abriu os olhos e ela viu que estavam cheios de dor.

     —Desejaria não ter te ferido. Eu nunca quis fazê-lo.

     —Sei —suspirou Annalía. Ele sempre tinha desejado sua felicidade, sempre tinha odiado a idéia de lhe fazer mal. O que sentiu quando a atacaram, o quanto ele se sentiu culpado.

     —Eu não me atrevo a pôr em perigo sua segurança. Não posso me reconciliar com essa idéia —disse ele— Apesar de que todo meu ser me pede que o faça.

     —MacCarrick, de verdade não acredito que corremos nenhum risco.

     Ele se apoiou nela e a rodeou com um braço, como se quisesse protegê-la.

     —Não podemos zombar dessa maldição — advertiu ele em voz baixa— É muito real. Eu vivi toda a vida com sua ameaça sobre minha cabeça. Transformou-me no que sou.

     Ela o afastou um pouco para poder olhar o rosto.

     —Então, estou agradecida. Mas com todo respeito, exijo que saia de nossas vidas. O que você e eu podemos ter juntos é muito mais forte que o que diz esse livro.

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Muitas coisas das que diz se transformaram em realidade. Nenhum de nós tem filhos porque assim o livro acaba com nossa geração...

     —Acaba com sua geração porque nossos filhos forjarão seu próprio destino!

     Seus escuros olhos negros se encheram de pesar.

     —Anna, você sabe que eu não posso...

     Ela pegou sua mão e a pôs em cima de seu ventre.

     Court ficou muito quieto.

     —O que está tentando me dizer? —Sua mão começou a tremer. Então a beijou, seus dedos acariciaram os dela, e ele deu conta de que debaixo havia uma pequena redondez.

     Annalía lhe afastou a mão.

     —Digo que ao parecer o livro está completamente errado no que se refere. E que vai daqui com muito mais do que esperava.

     —Está... ? —Lhe fez um nó na garganta— Está...?

     Ela levantou o queixo.

     —Grávida de teu filho.

     “Atei-te para mim”. Na primeira noite, a primeira vez que fizeram amor. Ele a tinha vinculado a ele e a tinha feito dele. Nesse instante, ele sentiu que tudo o que ele era, pertencia a ela por igual. Eles o tinham feito naquela noite.

     Ela carragava seu filho.

     Court se levantou, cambaleou. Annalía tinha razão. Iria dali com muito mais do que esperava. Ele só tinha albergado a leve esperança de encontrar o modo de poder estar com ela, e tinha descoberto que ela o amava. Não tinha nem idéia do que tinha feito para merecer-la mas não ia questionar sua sorte.

     O bebê era a única permissão que ele precisava saber para que pudesse ficar com ela, e demonstrava que o Leabhar tinha algo muito diferente preparado para ele. Pela primeira vez, desde dia em que o leu, sentiu como se lhe tirassem um peso de cima. De repente, cair no chão lpareceu uma idéia genial.

     —Sua mãe diz que nascerá no princípios da primavera.

     —Ela sabe?

     —Sim. E sente muito tudo o que aconteceu no passado, tem muita vontade de falar com você.

     Ele só aceitaria fazê-lo se Anna o pedisse, e temia que ia ser assim.

     —Como o aceitou?

     —Olivia tem uma teoria. —Imitando o acento de Olivia, Anna disse— As dez primeiras linhas começam com morte e miséria, solidão e sofrimento, etcétera, etcétera, até as últimas duas linhas, nas que evidentemente diz que todas essas coisas tão desagradáveis ocorrerão, até que o teimoso escocês venha a Andorra e leve a malcriada e brega garota da montanha. —Ela sorriu— Sua mãe acredita que diz o mesmo mas com umas palavras mais bonitas, algo sobre comprometer-se com a mulher que o destino preparou para você.

     —E o que há do homem destinado a estar com você? Quereria se casar com alguém como eu? —Sua voz soava áspera.

     —Não sei. —Ela deu as costas e disse— Teria que saber que tipo de vida levaríamos. Eu não poderia suportar que fosse por aí arriscando sua vida.

     —Então, estou me retirado —disse ele sem hesitar e ficou diante dela.

     Annalía sorriu.

     —Isso é tudo o que queria saber.

     Mas ele continuou:

     —Tenho uma casa na Escócia. Chama-se Beinn a'Chaorainn. É um lugar que leva muito tempo abandonado e que necessita muito trabalho, mas há muita terra. Está cheio de montanhas, acredito que você gostará. Juro que farei que assim seja.

     —Está tentando me convencer, Courtland? —Deu-lhe alguns golpezinhos no peito com o dedo— De verdade, acredita que há alguma possibilidade de que vá embora daqui sem mim? —Ele não tentou dissimular o quanto surpreso estava. Ao ver sua expressão, ela riu e percorreu o peito com o dedo— O que significa o Beiiinnn não sei o que? —Ela o acariciava como se tivesse sentido falta de estar com ele, e Court isso o satisfazia muito mais do que ela podia imaginar.

     Sentiu como começava a sorrir.

     —Beinn a'Chaorainn significa... terras de pântanos e pestilências.

     —OH. —Ela ficou séria um instante, mas depois voltou a alegrar-se— Bom, você disse de que precisa de muito trabalho. —E depois perguntou esperançosa— Isso inclui drenar os pântanos?

     Pôs suas mãos nos ombros e começou a acariciar o pescoço.

     —Estou-te tirando o sarro, mo cridhe. Significa Colina do Carvalho.

     Annalía o golpeou com os nódulos dos dedos e depois voltou a acariciar seu peito.

     —Colina do Carvalho. “Turó do Koure”— disse ela, arrastando os “res” com essa voz que ele tanto tinha ansiado ouvir, fazendo próprio o nome de sua casa. Como devia ser.

     —De verdade acredito que você gostará de estar ali, mas se você não gostar, levarei-te em qualquer lugar que possa ser feliz.

     Ela ficou nas pontas dos pés para pôr o rosto contra seu pescoço, e voltou a surpreende-lo.

   —Eu sou feliz onde você estiver.

     Court fechou os olhos ante a ternura desse gesto. “Ela quer estar comigo —pensou atônito— Deus, é verdade.”

     Annalía afastou a cabeça e disse:

     —Mas no caminho, temos que parar em Paris.

     Ele engoliu saliva e afirmou com a cabeça.

     —Anna, não vou negar nada do que me peça.

     Se o dinheiro era o único obstáculo entre eles, ele roubaria trens se fosse faltar.

      Ela inclinou a cabeça.

     —OH, acredito que quer ir às compras.

     Ele adotou uma expressão de que não importava.

     Mas a tristeza alagou os olhos dela.

     —Obrigado pelo oferecimento, mas temo que vou recusá-lo. Essa parada é para um assunto muito importante. —Ao ver que ele franzia o cenho, ela disse— Contarei isso pelo caminho. Mas se formos à Escócia, tem que me tirar das montanhas antes que esteja muito gorda para passar pelos portos. —Ela olhou a seu redor e acrescentou como se conspirasse— Acredite-me, não quererá ficar aqui preso todo o inverno com o Aleix e Olivia suspirando um pelo outro.

     Court sorriu e inclinou para frente para apoiar sua testa na dela.

     —Anna, levarei-te aonde você quiser. Ainda não posso acreditar que você... que nós... Acreditei que tinha te perdido.

     Ela rodeou seu pescoço com os braços.

     —Não acredito que possa perder a mulher que o destino decidiu que ia ser sua. Você só tinha que encontrá-la.

     —Encontrei-a. E não vou deixá-la partir. —Acariciou-lhe as bochechas com as mãos e a beijou.

     —Na verdade—murmurou ela contra seus lábios—, eu encontrei você.

 

Nunca se casarão, não saberão o que é amar, se o fizerem, a seu destino se deverão resignar.

Sua família com você desaparecerá e futuras gerações, não haverá de novo, jamais.

A morte e a desgraça os apanharão.

A não ser que cada um deles encontre à mulher para ele predestinada.

Porque ela é tão única como seu amor, seu coração e sua vida que o podem salvar.

 

 

                                                                                                    Kresley Cole

 

 

 

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