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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEARA DE VENTO / Manuel da Foneca
SEARA DE VENTO / Manuel da Foneca

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEARA DE VENTO

 

Rumorosa, às sacudidelas bruscas, a ventania corre livremente. Em tropel desabalado arremete contra a empena, trespassa a telha-vã. Gemendo, arrasta-se pelo interior escuro do casebre. E demora, insiste, num ganido assobiado.

Seca e breve, como uma chicotada, a praga rompe dos lábios azedos da velha:

- Raios partam esse vento!

Por instantes, as duas mulheres entreolham-se. A velha de punho no ar, a boca ainda aberta pelo grito. Júlia encolhida e receosa, como se acabasse de ouvir uma blasfémia.

Estão ambas junto da lareira apagada, sentadas nos mochos, sumidas nos vestidos pretos. Em redor, sombras espessas diluem as paredes e os recantos numa só mancha circular. Apenas as cantarias da lareira, batidas pela luz que vem da porta, se salientam, aprumadas.

Abafado pelo farfalhar da ventania, o gemido prolonga-se, monótono. Sem aguardar que morra de vez, irritada com a interrupção, a velha Amanda Carrusca retoma a conversa. A face escaveirada torna-se-lhe imperativa.

- Tens que voltar a dizer-lhe, pois! Espalma as mãos sobre as coxas, entesa o busto chato. - Que é que espera o teu homem?

Contra a parede negra da lareira, a meio da frouxa claridade, a curva das costas de Júlia, muito magras, aumenta mais o seu ar de desalento. Triste e fraca, parece vergada ao peso de uma culpa ou de um remorso.

Tão lamentosa passividade torna maior a ira de Amanda Carrusca. A velha estende os braços, atira-os, numa recriminação. Quase toca com os dedos pontiagudos no rosto macilento da filha.

- Olha tu o Bento!

Júlia acachapa-se mais sobre o mocho. Com a tenaz, remexe molemente as cinzas da lareira. Tem o olhar vago e sem esperança, a voz cansada:

- Se a mãe acha que devo ir...

- Que é que tu perdes? Mesmo que nada te dêem, só tens a ganhar. É preciso que o teu marido saiba que foste pedir. Temos que espicaçá-lo todos os dias!

- Ele não quer que eu peça...

- E por isso mesmo que tu vais!... Entendes?

De mãos abertas, incitando à conjura, a velha adianta a cabeça. Mas a atenção desvia-se-lhe. Fora, sobrepondo-se ao fragor do vento, botas cardadas ferem o saibro duro do terreiro. Rápida, Amanda Carrusca estica o queixo aguçado.

- Não te cales.

Desde o degrau, uma sombra alastra, difusa. Atrás, lentamente, António de Valmurado, o Palma, sobe a gasta meia mó que faz de soleira. Taciturno, dá uns passos vagarosos pelo chão de terra batida, vira-se. Alheio a tudo quanto o cerca, torna ao limiar, e a sua figura alta, andrajosa, fica enquadrada entre os umbrais da porta. Aí se demora, ensimesmado, a olhar para longe.

Distantes, solevando-se como uma brusca aparição, cabeços e montados recortam-se a negro no fundo cor de cinza. Áspera, a ventania desaba sobre os plainos, agita matos e sobreirais, vem e geme contra as telhas, contra a empena desmantelada.

Amanda Carrusca toca com o cotovelo no braço da filha. Os grandes olhos levemente estrábicos de Júlia alongam-se, humildes.

- Ouve, António, o nosso Bento...

O Palma volve o queixo sobre o ombro. De perfil, a cabeça poderosa retraça-se-lhe na luz desolada da tarde de Inverno.

Há um silêncio carregado, hostil.

Amanda Carrusca encolhe-se, de face sumida no bioco do lenço. A decisão de Júlia enfraquece.

- Bem... A minha mãe quer fazer uma mezinha... Deixa-me ir pedir, António...

Pesadamente, o Palma começa a passear diante da lareira. Aproxima-se, passa. Anda de cá para lá, tapando, destapando a porta, num jogo incerto de claridade e de sombra. Levanta as mãos enormes, vai-se virando, solene.

- Sabes que eu não quero que peças seja o que for...

O tom de ameaça confrange as mulheres. Curvam-se mais ainda, unânimes, sob a amarfanhante sensação da própria fraqueza.

Angustiado lamento envolve-as. Infiltrando-se por entre as telhas, que se tocam com um ruído tilintado, a ventania afasta-se às revoadas. Na penumbra do casebre esvai-se o eco de distante sussurro. Fica como que um espanto, demorado, enervante.

Amanda Carrusca ergue-se, bruscamente, de cabeça empinada. Pequeninos e negros, os olhos reluzem-lhe, intensos.

- Pois vou eu! - grita ela, afastando-se, de perfil adunco inclinado para a frente. Vou eu pedir para o meu neto!

Mal refeita da surpresa, Júlia vê-a desaparecer para lá da porta. Logo, a voz ríspida do marido:

- Vai à esmola, hem?

Já a meio do terreiro, de saia enrodilhada pela ventania, a velha volta-se. Perdido todo o ar submisso, empertigada, encara com o genro.

- Nada disso! - O tom é de desafio e de orgulho ferido. - Quem vai por um doente não pede esmola!

- Deixa-a ir, António...-geme Júlia. Amanda Carrusca vira costas. O corpo

mirrado desenha-se no vestido preto, gasto. Por detrás, o vento enfuna-lhe a roupa. A enorme ponta do lenço, agitada, ergue-se. Adianta-se pela vereda, entre estevas - toda ela parece uma bandeira negra, trapejando contra a nortada - e some-se para lá do barranco.

- A tua mãe!... - Despeitado com a inesperada decisão e firmeza da velha, o Palma abre os braços. - De onde lhe terá nascido, assim tão de repente, este amor pelo Bento? A ela, que nunca gostou do moço! Vê-se logo logo a intenção!... Quer é dar a perceber que eu é que sou o culpado de... de isto tudo.

- Ele está cada vez pior...

- E de quem é a culpa? - De mão no ar, cresce sobre Júlia, que se dobra desamparada. - Ha? Diz lá de quem é a culpa?

Só no último instante o Palma consegue reprimir-se. Vira-se, de olhos encovados, foscos. Um vago sentimento de vergonha tolda-o.

Desce da soleira e caminha pelo terreiro, de braços caídos, rígidos. De súbito, dá meia volta. Sacudindo violentamente os punhos, solta um palavrão obsceno.

- Serei eu o culpado? Eu?

Rancoroso, arrasta as botas pelo saibro até à esquina do casebre. Aí, nova inquietação o aguarda.

Na sua frente, por detrás das estevas, uma cabeça bandeia-se, indo e vindo, certa como um pêndulo. No vaivém esgalgado, há o que quer que seja de dolorido desespero.

O Palma detém-se, num grande retesamento de músculos.

Para lá do terreiro, sentado sobre as pernas encruzadas, Bento, meio oculto na cova do forno, agora reduzido a informe monte de pedregulhos, baloiça o tronco. Baloiça-o continuadamente e, ao embalo do baloiço, canta. Rouca, sem palavras, a cantilena derrama-se, ininterrupta, de entre as estevas que orlam a cova.

Ao redor, a nortada abre à flor do matagal um redemoinhar fugidio. Esfarrapa as nuvens pardacentas, empurra-as para o sul. E, no alto do cerro, os compridos cabelos amarelos do garoto esguedelham-se, oscilando como uma chama na ventania.

Pouco sugere o sítio. É apenas um montão de pedras encravadas na terra negra e húmida. Para os Palmas, no entanto, tristes acontecimentos se ligam de perto à queda do forno. Antecede-a de poucos meses a fuga de dois filhos, a Custódia e o Luís. E é antes da morte do velho Joaquim de Valmurado que a derrocada da pequena abóbada se completa.

Por esse tempo, sucumbido de amargura, já o velho se não afasta do casebre. Meio zambro, esquelético, o queixo encostado ao peito, erra pelo terreiro, atirando para a distância um olhar de susto e de pasmo. Lá de quando em quando, chama pelo filho, aos gritos, como para uma tarefa de grande urgência :

- A gente precisa de voltar a cozer o nosso pão!

Todo arqueado, estende os braços para as ruínas do forno.

- Temos de dar um jeito a isto. Tu, ó António, é que podias fazê-lo. Com um bocado de cal e areia, em três tempos, punha-se o forno de pé.

Ao chegar a este ponto, embora a cena se repita amiúde, o espanto enruga-lhe a face mal coberta por uma barba branca e rala. A própria veemência do desejo, o tom gritado, instante das palavras soam-lhe a falso. Prostrado, queda-se a cogitar diante dos pedregulhos. Nos olhos aguados arde-lhe uma saudade.

- Lembras-te como era?... O fumo a sair, o cheiro do pão a ir ter com a gente, lá longe... É a alma de uma família o forno do pão... A certeza, o sossego, a confiança... O nosso forno!... Lembras-te?...

Meneia a cabeça, desencantado. Os lábios tremem-lhe. Solta frases sem nexo, palavrões, e desanda, a rondar pelo terreiro.

- Inda se todo o mal... sim... inda se todo o mal fosse apenas isto!...

De novo o absorve a preocupação de todos os instantes: o empréstimo cedido, três anos atrás, pelo Elias Sobral. Acerca-se do filho.

- Achas que o teu patrão me vai ficar com a courela?

As evasivas do Palma levam-no a uma destrambelhada irritação. Gesticula, de punhos cerrados, ridículo, a barba a flutuar-lhe ao sabor dos movimentos desencontrados do maxilar.

- Vejam isto!... O Verão quase a findar, e eu para aqui entalado!... Pois ninguém me dá um conselho, ninguém!

Chega o Outono. Sem voltas nem demoras, a courela passa, inteira, para as mãos ávidas do Elias Sobral.

Uma espécie de acalmia cai sobre o casebre. Não se troca sequer uma palavra. Todos parecem conformados. Até o próprio Joaquim de Valmurado já nem ronda em torno do terreiro, como que à espera de qualquer acontecimento milagroso. Inerte, senta-se na soleira da porta, as mãos caídas para o chão, o olhar mortiço.

Certa tarde, a aparente quietação rasga-se, de súbito, nos gritos espavoridos de Julia, Acudindo de longe, o Palma vem encontrar o velho dependurado da trave do casebre. Apenas o Bento, desde o princípio, assiste a tudo, sentado no terreiro. Tonto, baloiçando o tronco e sorrindo, não desfita o avô, já hirto, para lá da porta escancarada.

Por alguns dias, o Palma não vai ao trabalho. Sombrio, ciranda em volta do casebre, de olhos errantes, tal como o pai. Receosa, Julia choraminga pelos cantos. Amanda Carrusca remói vagos pressentimentos.

- Que mais estará para acontecer?...

Parece adivinhar. Pouco tempo passado, três guardas surgem no cruzamento dos caminhos, à estrema do sobreiral, e levam o Palma.

No posto, acaba por descobrir, após violento interrogatório, que Elias Sobral o acusa do roubo de umas sacas de cevada. Nega, barafusta, ameaça. Mas de nada lhe vale, pois só daí a meses sai da cadeia.

Ainda intenta justificar-se, teima em procurar trabalho, refazer a vida. Tudo em vão. Olham-no agora com desconfiança, como a um vulgar gatuno, e nenhum lavrador o ajusta para a mais insignificante tarefa.

Dois anos passam. No entanto, as recordações persistem, bem vivas, na memória dos de Valmurado. O menor motivo as desperta. Principalmente os pedregulhos derruídos, pois que, como um sinal de agoiro, a queda do forno marca o princípio desses dolorosos acontecimentos.

O olhar do Palma desvia-se do vaivém dos cabelos amarelos do filho. Lento, baço, percorre, sem ver, a vasta faixa do horizonte nublado.

- Tem que ser... - murmura ele, passando a mão pelo queixo. - Que me adianta esperar?

Com dureza, abana a cabeça. Caminha até à porta, e pára no limiar, de braço estendido para a lareira.

- Já tratei de tudo. Irei com o Galrito. E o que for soará.

Julia ergue-se.

- Que vais tu fazer com o Galrito?

- Ganhar algum dinheiro.

- Mas, aonde, António?

- Não me perguntes mais nada, mulher. Concludente, roda sobre os calcanhares.

Ao encostar-se à ombreira da porta, levanta a cabeça, de sobrolhos franzidos.

Amanda Carrusca aparece, de volta, no alto do cerro. Vem em cabelo e traz o lenço, muito volumoso, agarrado pelas pontas. Desgrenhada, a face erguida com ar ostensivo de triunfo, passa por entre o genro e o umbral.

- Vês que deram! - grita para a filha, abrindo o lenço sobre a mesa. - Quatro ovos, quatro limões, uma fatia de toucinho rançoso e um cartuchinho de açúcar. Mas que gente aquela! Uns somíticos. Pois não me obrigaram a jurar que isto era para o Bento!... E eu, claro, jurei... temos que fazer a mezinha. .. Traz lá aquele tacho.

Começa a limpar os ovos a uma rodilha humedecida, e coloca-os no fundo do tacho. Todos os movimentos de Amanda Carrusca são meticulosos, demorados. Sabe que o genro e a filha a observam, que por momentos a vida do casebre vai girar à sua volta, e uma expressão solene ergue-lhe o rosto anguloso.

- A mãe ainda se lembra como se faz?

- Hás-de ver! - exclama Amanda Carrusca, com vivacidade. - Por mais que me digam que não, aquela doença do Bento é toda derivada da fome que passou. Está raquítico, é o que é. E isto tem curado muita gente desenganada pelos médicos!

Corta os limões, espreme-os sobre os ovos. Como num ritual misterioso, as mãos descarnadas da velha mexem-se de forma estranha, lenta. Enquanto prossegue na minuciosa tarefa, fala com voz ciciada e profunda:

- Agora, espera-se que o sumo dos limões desfaça a casca dos ovos e o toucinho. Depois, bate-se tudo, com açúcar, como uma gemada. Faltam, é verdade, duas goladas de vinho do Porto. Isso é que já não consegui. Mas, descansa, mesmo assim, vai ficar bom.

Pega no tacho, envolve-o num pano e vai colocá-lo na mais alta prateleira do armário. Ao descer do banco, meio curvada, olha intencionalmente para o lado da porta.

- Hei-de curar o meu neto!

De costas para dentro do casebre, o Palma nem lhe dá ouvidos. Desde longe, por debaixo das nuvens, uma águia cresce, veloz, como que trazida pelo vento. Descreve uma larga volta, paira no ar, de asa aberta, contra a nortada. Guinando, cai a prumo. Quase ao tocar no mato, desvia-se, rasando o plaino a grandes remadas.

- Tenho de ir dar uma batida aos coelhos... - sussurra o Palma.

Flecte os braços, introduz os polegares nas cavas do colete. De súbito, desencosta-se da ombreira. Um vulto, ainda indeciso na distância, sai da berma do sobreiral e vem parar no cruzamento dos caminhos.

Seguida pela velha, Júlia acorre à porta.

- Quem será?

Inclinados para a frente no afã de distinguir, quedam-se os três, silenciosos e imóveis. Une-os, nesse instante, o mesmo sentimento de expectativa e de vago receio.

Apenas o Bento continua indiferente a tudo.

Os cabelos amarelos voam-lhe na ventania. O tronco esquelético vai e vem, naquele baloiçar de tonto. Sentado sobre as pernas encruzadas, nem o frio nem os rogos da família o fazem sair da cova do forno. Só a noite o obriga a recolher-se, pois tem um medo pânico das sombras.

No casebre, o dia começa muito cedo. Escuro ainda, Mariana, a filha mais nova dos Palmas, abandona a enxerga. Deita no tarro meia dúzia de azeitonas, um naco de pão, e sai para o negrume, a caminho da distante herdade onde trabalha.

Bento acorda sempre aos berros. Cada manhã, por mais esforços que faça, não consegue abrir os olhos. Pela noite, um líquido esverdeado gruda-lhe as pálpebras. Põe-se a gritar, tomado de pavor:

- Ó ma’! Nhã ma’!

Júlia acode, pesarosa. Leva o filho para junto da lareira. Ajoelha-se e ensopa a ponta do lenço na infusa cheia de água, que Amanda Carrusca benzeu com uma oração consagrada a Santa Luzia. Suavemente, humedece-lhe as pálpebras tumefactas, avermelhadas e sem pestanas. Ao mesmo tempo, Júlia reza, num murmúrio rolado. A espaços, as palavras ressoam, nítidas:

- ... Luzia, tu pelo Mundo andarás, teus olhos de prata na mão levarás...

Gemendo, de cara virada para cima, Bento abre um dos olhos. Enquanto o outro continua fechado, a vista pára-se-lhe, turva, como de cego. Ao terminar a operação, afasta-se de

rastos.

Em cima da trempe, a cafeteira chia. Acocorada dentro da lareira rasa e de grandes lajes requeimadas, Amanda Carrusca aviva o lume. Júlia dispõe as tigelas sobre a mesa, enche-as de café. Todos bebem rapidamente. Só Amanda Carrusca, isolada a um canto, sorve o líquido amargo a pequenos goles.

O Palma deixa que o Bento se lhe enrosque nas pernas. Com os dedos grossos, acaricia-lhe a pinha dos cabelos cor de barbas secas de milho.

- Coitadinho do Bento, coitadinho dele... Dócil, Bento ri, gritando de prazer:

- Oh, ’nhã ma’!...

Dos quatro filhos dos Palmas, dois, a Custódia e o Luís, fugiram pouco antes da morte do velho Joaquim de Valmurado. Dos passos de ambos raras notícias chegaram ao casebre. Sabem vagamente que a Custódia esteve a servir numa pensão, em Beja, de onde saiu para viver com um marchante. Depois disso desconhecem a quantos homens se ligou até cair na Rua da Branca. Do Luís, consta que trabalhou nas minas de Aljustrel. No entanto, não têm a certeza de que ainda aí se encontre, muito embora se refiram sempre a esse local quando acontece falar-se dele.

Por ordem de idades, seguem-se os outros dois irmãos, a Mariana e o Bento. Bondosa, tal como a mãe, ultimamente grande transformação se verificou no carácter de Mariana. Até há pouco tão calada e arredia, mal se dando conta da sua existência no casebre, discute agora com o pai e contraria-o, cheia de argumentos inesperados. Apenas a absorve um único assunto: a miséria dos camponeses. Baixa, franzina, a segurança com que se expressa transfigura os seus dezanove anos. Parece mais velha. Escutando-a, estranhas palavras soam pela primeira vez aos ouvidos do Palma.

- Onde aprendeste tanta leria? Nada do que dizes é teu.

- Pois não. Mas isso que tem?

De quando em quando, Amanda Carrusca intromete-se. A conversa degenera logo em discussão, e o Palma afasta-se, meio aturdido com as ideias que a filha, dia a dia, lhe desvenda.

Indagando por aqui e por ali, descobre a origem daqueles pensamentos. Mariana convive de perto com uns tantos camponeses que se reúnem, amiúde, para lerem e comentarem certos papéis chegados até eles ninguém sabe como.

Nenhum entrave põe às actividades da filha. Antes, pelo contrário, passa a ouvi-la com renovada atenção. Mas só aos domingos podem falar mais demoradamente, pois que, nos outros dias, Mariana sai ainda de noite e volta já com a noite fechada. Trabalha agora numa herdade quase a duas léguas de Valmurado, e é a única pessoa a ganhar para o magro sustento da família.

Bento, esse nasceu enfezado e assim cresceu, arrastando-se de gatas, tal como as crianças na primeira infância, apesar de já ter feito os quinze anos. Alvar, todas as manhãs, logo que o pai o afasta com brandura, gira em volta das chamas da lareira até o dia romper de todo. Então, quer faça frio ou calor, ninguém consegue demovê-lo: de rastos, vai postar-se na cova do forno, abrigado pelo monte de pedras.

Como sempre, aí está ele a baloiçar o tronco. De cabeça à banda, pára, a puxar por uma esteva. A mão escorrega-lhe ao comprido da vara delgada e resinosa, e um arrepio sobe-lhe pelo braço. Excitado, respira ruidosamente muito ao de leve, recomeça a baloiçar-se, acompanhando o ritmo com uma lamúria monótona. Uma lamúria que vai subindo até abrir-se em notas claras, como um fio musical prestes a soltar-se num cântico.

A expressão de inefável alegria alarga-se-lhe a cada instante. Os olhos arremelgados, vagos e enormes, erram pelo chão negro de lama, por cima das estevas esgalhadas, pelas nuvens tempestuosas, revendo-se como diante de uma paisagem maravilhosa. E grita sons ininteligíveis de mistura com as poucas palavras estropiadas que consegue articular:

- Lu... gó... lê... ó ’nhã ma’ line!... Extasiado, oscila o tronco, de braços erguidos, como se cavalgasse.

De salto, Maltês, o gato do casebre, aparece em cima das pedras do forno. De espinha arqueada, dilata os olhos verdes, fixa o rapaz. Depois, subtilmente, some-se por detrás das estevas. E o mundo harmonioso do Bento desmorona-se, desfeito na ventania da tarde.

Ainda intenta refazê-lo. Procura por todos os meios, afadiga-se. Mas já não atina com os gestos nem com as palavras. Entontecido, curva-se para o umbigo. Com a unha suja, gemendo, esgravata na crosta de sangue pisado que cobre a ferida, há muito aberta de tanto arranhar.

A cabeça de Bento volta a baloiçar. Os cabelos agitam-se para a frente e para trás. Dos lábios escapam-se-lhe sons abafados, roucos, e uma dolorosa ansiedade contrai-lhe o rosto à medida que aumenta o ritmo do vaivém do tronco. Aflito, abate a barriga sobre as pernas, esfregando o sexo contra as coxas unidas. Com os braços arqueados e erguidos ajuda, como se a todo o custo tente afundar-se ou despegar-se da cova aberta entre os pedregulhos.

Repentinamente, a dor e o prazer imobilizam-no. De dedos encrespados, fecha os olhos. Um fio de baba escorre-lhe da boca descerrada.

Pouco a pouco, Bento recompõe-se. Tem os cabelos colados à testa, e o cansaço abre-lhe um vago rubor na face amarelenta. Vagaroso, dobrando o tronco, baloiçando-se, a cabeça pende-lhe para o umbigo.

Atrás dele, entre os umbrais da porta, a família olha com inquietação para o vulto parado no cruzamento dos caminhos.

O próprio casebre, solitário no alto do cerro, parece comunicar daquela expectativa.

Está meio em ruínas. O sol, chuvadas e ventanias haviam comido a cal e aberto fendas nas paredes. O telhado abate-se numa breve reentrância com as pontas voltadas para o céu. E os buracos das janelas sem vidros fitam com espanto a agressiva desolação da planície.

Todo curvado debaixo do alforje, João Carrusca abana sobre as pernas mal seguras, como se a ventania o fosse derrubar de um momento para o outro. Cai-lhe dos ombros o pelico surrado, e o tarro, preso a uma correia passada em volta do pescoço, oscila-lhe à altura do peito, semelhando um enorme badalo.

Vem da vila, onde todas as semanas vai comprar comida. Como de costume, passa a manhã bebendo na venda do Mira. Mas o vinho nunca obscurece por completo a razão do pastor. Apenas os pensamentos lhe acodem custosos, ronceiros, e a face miúda e expressiva denuncia, pelo arrepanhar constante das feições, o continuado diálogo interior.

Durante o caminho pára várias vezes, discute e gesticula, numa muda indecisão. Mesmo agora, já tão perto, hesita de novo, meditando enevoadamente se há-de ou não ir ao casebre do cunhado. Os olhos piscos alongam-se-lhe, perplexos.

Ondulando sob a nortada, o mato parece fugir-lhe na frente, correr pela lomba, galgar os cabeços e derramar-se, alteroso, para o fundo do barranco de Valmurado.

No cerro, mal definidos entre os umbrais da porta, avista os três vultos.

Às guinadas, a ponta do cajado a rojar pelo chão, o pastor sai do cruzamento dos caminhos. Após o barranco, encosta acima, a marcha torna-se-lhe mais penosa. De cabeça bamboleante, ao passar junto do forno derruído nem dá pela presença do Bento.

- Vivam! - resmunga, poisando o alforje entre os pés, muito afastados um do outro.

Do cimo do degrau, os Palmas encaram-no com hostilidade. Tão visivelmente que João Carrusca começa a sentir-se ofendido. De peito enfunado, entesa-se, como que a exigir uma explicação. Mas, ao ocorrer-lhe o motivo, o corpo afrouxa, verga. A mão espalmada baixa-se-lhe, num gesto de concordância.

- Está certo!...

De facto, não vem a Valmurado desde a prisão do Palma. Lembra-lhe até que fugia da mãe e da irmã sempre que as avistava nas ruas da vila. Mas nunca o fez por mal.

- Não pensem isso. Que diabo! - exclama, seguindo o fio enovelado dos pensamentos. - Cá eu sempre fui o mesmo, sempre!

A voz entaramelada sussurra ainda sons indistintos. Cala-se, de expressão absorta, severa. As causas que o afastaram de Valmurado perpassam-lhe miudamente pela memória. E, conquanto o vinho o impeça de se justificar, sacode a cabeça como se, a cada recordação, ache agora mais razoável do que nunca a sua atitude.

Desde muito novos, ele e o Palma haviam ganho o pão, ajustados ao ano, nas herdades de Elias Sobral. Embora de poucas falas, sempre acamaradaram. Mas, com o empréstimo feito pelo patrão ao Joaquim de Valmurado, os acontecimentos dão uma volta inesperada. O velho suicida-se. Desde aí, o Palma torna-se intratável. Até com Elias Sobral tem questiúnculas, mal-entendidos, zangas. As relações entre ambos azedam-se a tal ponto que já mal se podem encarar. Ao dar-se o roubo das sacas de cevada, é o próprio patrão quem o manda prender.

O caso discute-se em todo o concelho. Mal sai da cadeia, o Palma profere ameaças que, modificadas ao sabor das simpatias, breve chegam aos ouvidos de Elias Sobral. O ódio nascido entre os dois homens ganha cada dia novos motivos. Por fim, parecem apenas apostados em aguardar o momento oportuno para o ajuste de contas.

Logo de princípio, cauteloso, João Carrusca afasta-se do Palma. Não por estar contra ele, mas simplesmente por temer que Elias Sobral o despeça.

«Por mais nada!», medita o pastor ao chegar a este ponto das recordações. E, como se tivesse feito o raciocínio em voz alta, exclama, não sem certa arrogância:

- Só por isso, pois!... Cá eu...

- Estás de todo! - corta o Palma.

- Acaso não terás errado o caminho?

- Errei nada!... - reponta João Carrusca. - Bem me escusei... mas o Galrito teimou. Quer que tu apareças esta noite na venda do Mira.

Súbito interesse leva o Palma a descer da soleira.

- Não te disse mais nada?

- Para quê? Isto basta. E tu?... Tu já pensaste, mediste bem as coisas? Se me pedisses um conselho, eu dava-to de boamente.

- Conselhos teus?

Enquanto sobe o degrau, o Palma observa o cunhado de través. Sarcástico, afasta-se para os fundos do casebre.

- Quero cá saber dos teus conselhos! O pastor ergue a enorme aba do chapéu.

Trémulo, encara pela primeira vez com a mãe e a irmã.

- Vocês ouviram?... Bem! Depois não me digam que eu...-As sobrancelhas levantam-se-lhe, encolhe os ombros, sorrindo amargamente. - E ainda um homem quer ajudar os outros!...

Amanda Carrusca desce de manso para o terreiro. A voz ressoa-lhe profunda, insinuante:

- Foste à vila, ao avio, não?...

Num repentino temor, os dedos de João Carrusca, escuros e nodosos como galhos, cravam-se na fazenda esfiapada do alforje.

Da porta, Júla fita o irmão, entre apreensiva e envergonhada. O pastor desvia o rosto. Dá com o Bento, que o espia de pescoço torcido, por entre as estevas. Desamparado, torna a olhar para a mãe e para a irmã.

Uma raiva impotente sacode-o. Mete a mão na boca esbeiçada do alforje.

- Eh, Bento! Anda cá!

Desde a cova do forno, Bento arrasta-se de gatas. O pastor tira um pão. Estende-o, com ira, para o sobrinho.

- Toma!

Num movimento brusco, roda o alforje pelo ar até ao ombro. Mas a força do impulso e o peso do avio obrigam-no a dar uma volta em desequilíbrio. Praguejando, afasta-se, a cambalear.

De rabo entre as pernas, Ardila, o rafeiro do casebre, sai do mato. Ao entrar no terreiro, estaca a farejar o pão. Bento atira-lhe um murro à cabeça. O rafeiro recua, ganindo.

O Palma, de espingarda aberta pela câmara, apoiada no antebraço, chega à porta.

- Viste a guarda?

Todo torto, trocando o passo, João Carrusca vira-se, com dificuldade, a meio da encosta muito inclinada do cerro.

- Vi. Ia de volta, para a vila.

- Belo! - grita-lhe o Palma, a observá-lo. - Como ele vai!... Está aqui está caído no fundo do barranco.

- Queres dizer que vai bêbado, não? espevita-se Amanda Carrusca, levando as mãos à cintura. - Pois, olha, deixou cá um pão. E, não é por ser meu filho que o digo, mas, para trabalhar, tomaram muitos ser como ele...

- Ouve, António - murmura Júlia. Onde vais tu que te seja preciso levar a espingarda?

- Vou ver se mato um coelho...

O Palma continua de olhos poisados sobre Amanda Carrusca. A velha baixa as pálpebras, curva-se. Apagada, retoma o seu ar habitual diante do genro.

Só então o Palma mete na espingarda o último cartucho que lhe resta, pensando que lhe são precisas todas as cautelas. Necessita de comer, de arranjar forças para essa noite não pode errar o tiro. A arma fecha-se com um estalido metálico.

A abanar a cauda e a latir de alegria, Ardila segue todos os movimentos do dono. Aos pulos, acompanha-o cerro abaixo.

- Que irá ele fazer esta noite, mãe?

- Sei lá! - A velha vira o rosto, amuada. - Talvez algum negócio.

- Negócios de noite, senhora?

Com um berro, Amanda Carrusca abre os braços.

- Olha o moço a abocanhar o pão! Júlia corre pelo terreiro. Curva-se, arranca

o pão das mãos de Bento. Refeito do inesperado ataque, o filho arrasta-se, tentando agarrá-la pelas saias.

- Oh, ’nhã ma’!

Amanda Carrusca coloca-se entre o neto e a filha. Toda dobrada, apara as arremetidas do Bento, enquanto Júlia entra no casebre com o pão bem seguro contra o peito chato.

A presença do pão parece ter modificado tudo. Desenvoltas, as duas mulheres mexem-se ao redor da mesa. Júlia tira da gaveta a velha faca de cabo de madeira, e começa a cortar o pão para dentro da tigela.

- Vou fazer umas sopas d’alho! Pequeninos, vivos, os olhos de Amanda

Carrusca seguem com avidez as fatias que tombam do gume da faca. O rosto comprido de Júlia adoça-se, numa esperança.

- Se o António matasse um coelho!... Repentinamente, levanta a cabeça.

É o Bento que grita?

- Na. E essa ventania a raspar contra as telhas.

- Ainda bem. Era mesmo bom, o coelho... Ao menos, hoje enchíamos a barriga.

Ficam a olhar-se. Sem que se apercebam da razão imediata, sentem já um vago desgosto. A momentânea animação some-se, aos poucos, no ambiente penumbroso, gélido.

Amanda Carrusca vai até à lareira. Agachada, acama um feixinho de estevas secas sob as achas. Petisca lume, na acendalha, pega-lhe fogo. Por mais que afaste a cara, o fumo resinoso cega-a. Com os olhos marejados de lágrimas, põe-se a sacudir o abano.

Uma lufada mais áspera envolve o casebre num gemido agoniado. Açoitadas com violência, as paredes como que estremecem.

Contrafeita, Júlia olha através da porta.

O vento desgarra-se da espessura do sobreiral, e os cerros sacodem-se, numa confusão de estevas. Poisa a faca sobre as fatias que enchem a tigela, apoia o queixo na palma da mão. Os olhos salientes e ensombrados desfocam-se, estrábicos. Parece apenas atenta ao que lhe é distante e invisível.

Que sítio...-murmura ela, numa lentidão de presságio. - Até dá quebranto.

Nem eu sei... nestes dias, sinto-me aparvalhada, como se de repente fosse acontecer uma desgraça.

- Ora!... Mariquices. Tu nunca mais te esqueces da vila, mulher!

O choro do vento esvai-se, lamentoso. Amanda Carrusca suspende o abano.

- O meu mal é que já não tem sítio onde mude. Estou que nem me posso mexer com dores.

- Você só pensa em si! - grita Júlia, possuída de súbita irritação. - Se lhe digo que me sinto mal, diz logo que está pior.

Nervosa, pega na panela. Faz gestos destrambelhados, até que se aquieta, surpreendida e desgostosa com a própria atitude. São sempre assim as suas zangas. Todo o arremedo de ira a esgota. Fraca, amargurada, enche a panela no poial das bilhas, vem pô-la sobre a trempe. A voz esganiça-se-lhe, como se fosse romper a chorar:

- Sempre gostava de saber o que lhe dói! Amanda Carrusca reconsidera, enleada.

Encolhe a cabeça entre os ombros aguçados.

- Eu sei lá... É assim uma dor.-As mãos descarnadas tacteiam sobre o peito, sobre as ilhargas. -Nem sei ao certo...

- Ora aí está! - exclama Julia, com um entono de desespero. - Isso é do caruncho dos anos, senhora!

Os olhos miúdos de Amanda Carrusca rebrilham, límpidos.

- Estás enganada que não sou assim tão velha como tudo isso! É de outra coisa o caruncho. Olha! Desde que me conheço, que a minha vida foi sempre a lidar, sempre. Caruncho dos anos!... Por último, já eu tinha netos, até ceifei!

Concentrando-se, põe-se a observar atentamente as mãos. Esfrega-as uma na outra, muito devagar, absorta, como se acariciasse feridas deixadas por dolorosas recordações.

Em volta, paira agora um recolhido silêncio. As palavras exaltadas de ambas haviam quebrado a fria solidão do casebre. O vento ressoa como um murmúrio distante.

- Ceifar... No meu tempo, cá por estas bandas, era trabalho só para homens. Mas a vida deu uma grande volta...

Ajeita os cabelos de um branco sujo sob o lenço puído. Torna a esfregar as mãos.

- Nunca foi boa a vida, isso não prossegue lentamente, como se falasse para si própria. - Mas vinha o Natal, e os lavradores davam pedaços de toucinho. No Ano Novo, a gente ia por essas herdades cantar as Janeiras, e vinham chouriços, paios, bocados de lombo. E, em toda a roda do ano, sempre lhes sobrava umas pingas de azeite e uns saquitos de farinha. Agora é tudo comprado... Quem há aí, na classe dos lavradores, que dê sequer dois dedos de toucinho? De rosto lasso, olhando para o lume, repete com suavidade:

- Toucinho...

O gato surge junto da lareira. Expõe o corpo ao calor das chamas, arqueia a espinha. De patas esticadas, abre a boca num bocejo tão fundo que faz tremer a grande sombra desenhada na parede.

Brusca, a velha exclama:

- O raio do gato anda farto!

- Pudera. Caça quantos ratos quer, lá pelo barranco.

- Se eu gostava de toucinho... - apressa-se Amanda Carrusca, já esquecida do gato. - Quando era daquele alto, comia-o às garfadas. A minha pena foi nunca comer tanto quanto a barriga me pedia.

- Eu também gostava de toucinho murmura Júlia. - Mas frito, em fatias delgadas. Lembro-me sempre lá na vila. Pela manhã, agora no Inverno, punha-me a comê-lo, com pão, até a minha patroa dizer: «Eh, moça, olha que arrebentas!» Se ela era minha amiga...

- Ó Júlia! - sôfregos, os olhos da velha reluzem por entre a sombra das chamas que lhe bailam no rosto. - E pedaços de lombo frito na banha vermelha ?!...

- Lá na vila - continua Júlia - havia sempre comida à farta, e eu servia-me de tudo o que sobejava da mesa dos patrões...

A voz das mulheres torna-se vagarosa, cheia de uma ternura tensa.

- Nunca me enjoava a carne, fosse qual fosse - sussurra Amanda Carrusca. - De porco, então, isso nem se fala. Como eu gostava de sentir a gordura a escorrer-me pelo queixo abaixo!...

Júlia está de cabeça inclinada a olhar a faca posta sobre as fatias de pão. No rosto e nos olhos desviados imobiliza-se a suave expressão de quem recorda. Mas, a pouco e pouco, os lábios enrugam-se-lhe, doloridos.

- A pena que me deu quando saí lá da vila...

Abafando a chiada rabugenta da água a ferver sobre a trempe, o vento desce, soturno, pelo cano da chaminé.

Amanda Carrusca introduz os dedos ágeis por entre a camisa e a pele. Retira-os, esfrega sisudamente o polegar contra o indicador. Abre-os, e a pulga estala dentro do lume.

Maltês estica-se de novo, saciado. Ligeira, a velha ergue a tenaz. Mas o gato furta-se à pancada com um meneio delicado.

- Oh, senhora! - grita Júlia, quase a chorar. - Que mal lhe fez o bicho?

- Nenhum. Mas, então, que queres? Dá-me zanga o raio do gato!

Poisa a tenaz sobre as pedras da lareira. Sem transição, prossegue:

- Pois é verdade... Isto deu uma grande volta... Aquela raça dos lavradores antigos acabou-se. Os de hoje, se muito têm, mais desejam. Moram nas vilas, põem casa às amantes na cidade, não dão um passo sem ser de automóvel, inventam festas, não há cinemas nem teatros a que faltem. E para um estadão destes é preciso dinheiro e mais dinheiro. Nunca se fartam. Por isso é que eles açulam os feitores às canelas do pessoal,

A que nem o deixam respirar. Agora é tudo à má cara e de relógio na mão.

Júlia curva-se, movendo a cabeça.

- Uns tão ricos e outros sem nada... Até devia haver uma lei contra isto.

- Haver o quê?!... Estás parva. Pois se os ricos é que fazem as leis!

Com ar de comiseração, a velha desvia um pouco a panela do calor vivo das chamas. Empunha a tenaz, separa as achas e torna ao fio dos pensamentos.

- Seja como for, já não valho para nada. Mas o mau passadio e as muitas canseiras é que fizeram o caruncho, que não a idade. Lá nesse ponto tem o teu marido razão. Que nem mereço as sopas que como, diz ele. E é assim mesmo.

- Quem lhe disse tamanha mentira, criatura?

- Ninguém.

- Então, como sabe?

- Ora! Calculo eu.

Alterada, Júlia agita os punhos débeis.

- Você passa o tempo todo a magicar coisas só para me fazer danar. Acha que é pequeno o inferno em que vivo? Acha?

- Oh, mulher! - Levantando-se, Amanda Carrusca empina a cabeça, e as pontas esguias do lenço amarrado debaixo do queixo adiantam-se, trémulas. - Se ele o dissesse, não era motivo para tanta espantação. Já dei o que tinha a dar, e a culpa não é minha, não. Comecei por guardar porcos. Agora cuido do teu filho. Por um trabalho destes, claro que nem mereço as sopas.

- Vejam lá!... Ao que chegou só porque lhe chamei velha... Você é mesmo geniosa, senhora.

- Sou como sou!

O olhar duro de Amanda Carrusca não se desvia agora da tigela cheia de fatias. A dúvida provocada pela presença do pão enfurece-a. Na sua voz grasnada ecoa um ressaibo de revolta e de esperança:

- Umas miseráveis sopas!...

Júlia não se apercebe da amarga incerteza da velha. O rumor farfalhado que cresce lá fora inquieta-a. Frouxa, de ombros descaídos, senta-se à lareira.

Desde longe, ferida nos ramos torcidos do montado, nas estevas, nos cardos, a ventania vem e estrebucha longamente ao rés das paredes escalavradas do casebre.

Em vão percorre o matagal. Nem rastro de coelho. Desanimado, o Palma desiste de ir mais adiante, e volve os passos para o caminho do casebre.

Grossas nuvens escurecem cada vez mais o entardecer tempestuoso. Por entre as estevas, a ventania rasteja rumores que se escapam, como de cobras serpeando. Há um estranho gemido na solidão.

Ao sair do mato, o Palma detém-se. Longe, lá para a outra encosta, debaixo da copa rala de uma azinheira, João Carrusca, de queixo esticado para o alto, observa qualquer coisa.

Uma águia, decerto a mesma aparecida a meio da tarde, gira sob as nuvens num breve círculo ondeado, de asas bambas no vento, a cabeça descaída, atenta. Súbito, fecha as asas e desce, rápida, como um pedregulho que cai.

De arma à cara, o Palma aguarda.

Mas a águia vai sair a distância, voando rente às estevas, já fora do alcance do tiro. Bem seguro nas garras, leva um coelho.

O Palma poisa a espingarda e obriga Ardila a permanecer junto da arma. Meio curvado, desanda pelo mato dentro.

Idêntico desígnio anima João Carrusca. Havia-se sentado ali apenas desejoso de descansar breve espaço de tempo. De alforje sob as pernas, costas apoiadas no tronco da azinheira, pôs-se a enrolar um cigarro. Nem o chega a acender. O vinho e a longa caminhada acabam por prostrá-lo. Ao acordar, a ave de rapina, evolucionando sobre os córregos, chama-lhe a atenção.

Vê-a agora a subir a prumo. Lá no alto, negra no fundo pardacento das nuvens, a águia larga o coelho, e mergulha após ele.

A passo incerto, às topadas, o pastor galga o caminho entre os dois cabeços. De cajado erguido, atravessa o renque de estevas.

Na clareira pedregosa, sob a ave, o coelho jaz, meio despedaçado.

Gritando e ameaçando, João Carrusca acerca-se.

A águia abre ruidosamente as asas e estica o pescoço, como que para arremeter. A cabeça aguda soergue-se, majestosa. Os olhos, redondos e terríveis, cravam-se no pastor.

Perante aquela ferocidade inesperada, João Carrusca estaca, como um espantalho. Cajado no ar, pelico aberto ao vento, confundido, rouqueja:

- Grande bicho!

Dá dois passos atrás, cauteloso, volteando o cajado por cima da cabeça. Com mão certeira de pastor, arremessa-o, de golpe. Atingida no peito, a águia descai para o lado. De asa a roçar no chão, anda à roda, procurando equilibrar-se.

João Carrusca vai pelo cajado quando o Palma aparece, a correr, na clareira. O pastor detém-se, todo curvado, numa ameaça.

- Afasta, que é meu o coelho!

O Palma ainda se desvia, de modo a passar-lhe de lado. Mas João Carrusca agarra-o pela cintura. Tropeçam, e tombam por cima um do outro.

De costas na terra enlameada, o Palma encolhe as pernas, pés apoiados contra a barriga do pastor. Estica-as, num impulso. Atirado ao ar, João Carrusca rola pela clareira.

De nada serve ao Palma haver-se libertado. Recomposta, a águia, com a presa nas garras, afasta-se em voo pesado e incerto.

De joelhos e de mãos no chão, o pastor vomita, estonteado. O Palma levanta o pé, e atira-lhe uma patada à cabeça. Mas no último momento desvia o golpe. Apanhado pelo ombro, João Carrusca cai molemente sobre a larga mancha de vinho, que alastra por entre as ervas ralas.

- Pedaço de bêbedo!

O pastor nada ouve. Só após longos esforços consegue levantar-se. De olhos embaciados de furor e de pasmo, o corpo miúdo, débil, treme-lhe de alto a baixo.

- Tu bateste-me, a mim, que sempre fui teu amigo? Um raio me parta se não hás-de pagar-me!...

O Palma baixa o rosto. Apanha o chapéu e atravessa a clareira, meio curvado, como se acabasse de cometer um delito.

Ao chegar junto da espingarda, Ardila vem ao seu encontro. Triste, de orelhas pendentes, segue-o pelo estreito vale orlado de urzes. A certa altura, estica-se nas patas, de focinho para a frente.

O Palma levanta vagarosamente a espingarda.

Na fraca claridade, um coelho corre, em pulos ágeis. Desaparece, torna a aparecer. É uma sombra esfumada na mancha toda igual do mato. Para lá das pedras, as ervas altas agitam-se. Com cuidado, de modo a não perder o último cartucho que lhe resta, o Palma carrega no gatilho.

O som do disparo ilumina rapidamente o fundo do córrego. O estampido reboa e prolonga-se, despegando ecos de barranco em barranco.

No casebre, as duas mulheres fitam-se ansiadas, até o som morrer levado pelo vento.

- Terá ele matado o coelho?

- Decerto matou! O teu homem nunca erra um tiro!

Júlia levanta-se e pega na tigela.

- Bem!... Vou deitar a água nas sopas. Veja se consegue trazer o Bento.

- Para quê? Deixa-o estar.

- Já é quase noite, mãe.

Contra vontade, Amanda Carrusca sai ao terreiro. A nortada pega-lhe nas saias, sobe-lhe pelas pernas escanzeladas. O arrepio obriga-a a aconchegar os braços sobre a cintura.

- Eh, Bento! Anda cá!

Bento pára o vaivém do tronco. As pálpebras, roxas, abrem-se-lhe desmesuradamente, como se uma névoa lhe turvasse a vista. A cabeça de lado e o jeito dos braços levantados aquietam-no na atitude de espanto e de alerta de quem se apercebe da aproximação de um inimigo.

Excitada pela possibilidade de comer um pouco mais naquele dia, Amanda Carrusca esquece que tinha ajudado a tirar-lhe o pão. Sacode-o pelo ombro.

- Anda daí!

Bento arremete. Com os dentes apanha-lhe o braço acima do pulso. Do choque, Amanda Carrusca escorrega pelo monte de pedregulhos.

Acocorada, observa através do rasgão recém-aberto as duas manchas vermelhas que afloram na pele. Estende a mão e tenta levantar uma pedra. Encravada na terra lamacenta, a pedra não sai. Os olhos furiosos da velha fixam-se sobre o neto. Sorrateiramente, avança e atira-lhe um pontapé ao joelho.

Bento arremete outra vez. Arrasta-se, grunhindo de raiva. As arrecuas, Amanda Carrusca procura o momento oportuno para novo pontapé. O vento enche-lhe as saias, a ponta do lenço, dobrada para o alto da cabeça, sobe como uma enorme crista negra. De repente, o temor fá-la correr para o casebre. Perto, vira-se, ainda alarmada.

O corpo franzino do Bento continua na mesma posição - feroz, de dentes arreganhados, o braço soerguido e arqueado como uma pata prestes a desferir o golpe.

Amanda Carrusca cruza a soleira da porta. Sob o olhar admirado de Júlia, senta-se junto das chamas, a esfregar o pulso dorido. -O Bento?  

- Vai tu buscá-lo!

- Mas... que foi?   - Já te disse, vai tu buscá-lo.

- Não... Já agora espera-se que o António chegue. Bem sabe que lhe tenho medo quando ele está na cova do forno.

- Raio de mulher, que tem medo de tudo!

Reanimada pelo calor brando da lareira, Amanda Carrusca abre as pernas, puxa as saias até ao meio das canelas.

- Se tu quisesses, pegava aí num pau e havias de ver se o trazia ou não. - A cabeça adianta-se-lhe para fora do bioco do lenço. - Queres?

- O moço é algum cão, senhora?

- Pudera! Com esses améns não há-de ele fazer o que lhe dá na gana! - Escandalizada, estende o braço. - Vê isto! Atirou-me ao chão e ainda por cima me mordeu!

- Que quer que lhe faça? - Júlia inclina-se para o braço da mãe e observa os laivos avermelhados. - Ora. Isso, também, nem ferida fez. O pior foi o rasgão.

- Pois, pois. Era o que me faltava ouvir. O pior foi o rasgão, hem?... E eu, que nem me posso mexer com dores, que seja para aqui mordida e derrubada!

Pronta já para nova discussão, Júlia encara com a mãe. Mas Amanda Carrusca levanta-se e afasta-a do caminho.

- Lá vem o teu homem!

Já na porta, a velha semicerra os olhos.

- Tu vês... vês o coelho...?

Longe, no escuro do entardecer, o Palma avança pelo plaino. Só quando chega à encosta que vem dar ao barranco o distinguem melhor. Numa das mãos traz a espingarda.

Ao lado da coxa, na cadência da marcha, a outra mão oscila, vazia.

As duas mulheres recuam vagarosamente.

Amanda Carrusca torna à lareira. Júlia curva-se sobre a tigela fumegante e enche um dos pratos.

O Palma entra seguido pelo Bento. Vai esconder a espingarda sob a enxerga, e inicia a refeição. Come de olhos fitos no prato, com a expressão quase agressiva. A cada contracção dos maxilares, a face larga, ossuda, vinca-se-lhe de saliências.

Perto do lume, Bento baloiça o tronco e contempla as chamas, com um sorriso manso, feliz. Isto ultrapassa a possibilidade de resistência de Amanda Carrusca.

- Este rapaz!... - diz ela, sem se dirigir especialmente a ninguém. - Está de uma força que só a pau. Deus me perdoe. Ainda agora me atirou ao chão e me mordeu.

Roçando com os dedos pelo rasgão da manga, vira-se para o genro.

- O que tu devias fazer sei eu... Era dar-lhe uma sova. Já para a outra vez me não faltava ao respeito.

O Palma leva o prato à boca e sorve o caldo pelo rebordo negro de falhas. Com ar alheado, sai da mesa, a limpar os beiços nas costas da mão.

- Acha, então, que devo bater no moço?

- Acho, pois. Se não, qualquer dia, ninguém tem mão nele.

- Faltou-lhe ao respeito, hem?

De peito arqueado, ajeita as calças em volta do cinto.

- A coisa é outra, criatura... - prossegue, reticente. - Julga que ando cego? Ele era a única pessoa em quem você batia. E, agora, que ele já lho não consente, você tem-lhe raiva. É só isto e mais nada.

Amanda Carrusca vira a cabeça, e os lábios esticam-se-lhe, proeminentes, no perfil arruinado pelos anos. Através das chamas altas da lareira, fita intensamente o neto. Aos poucos, o ódio dilata-lhe os olhos negros, no fundo dos quais se espelham, muito nítidas, duas pequeninas labaredas.

- Ouve, Júlia - diz o Palma, atento à expressão da velha. - Esta noite não esperes por mim.

- Onde vais?...

- Lá vens tu com os medos... Sabes o que eu te digo? Antes queria que fosses como a tua mãe, e soubesses odiar. Odiar todos os teus inimigos, mesmo que algum deles fosse teu neto.

- Olha que despropósito!... - Levada pela ira, Amanda Carrusca lança as mãos para a frente. - Um raio me parta, se tu sabes o que dizes!

- Qual quê! Acalme-se. Eu conheço-a bem. De si nunca me hão-de vir surpresas. Mas da sua filha, dessa nunca hei-de saber ao certo com o que posso contar. Percebeu?

Aproxima-se da lareira. Passa os dedos sobre os cabelos do Bento, e uma sombra adoça-lhe o rosto.

- Coitadinho do Bento, coitadinho dele... Bento empurra a cabeça contra a mão calosa do pai, abraça-lhe os joelhos. Pacificado, acalma-se, numa expressão de suave prazer. As palavras do Palma demoram-se, macias. Repete a frase, acarinha-o, roçando com os dedos pelos cabelos amarelos, tal como antigamente, ao fim do trabalho esgotante, afagava os bois ou as mulas de tiro.

- Coitadinho dele, coitadinho...

Com brandura, desaperta-lhe os braços de volta dos joelhos. Puxa o chapéu para os olhos, enxota Ardila, que intenta acompanhá-lo, e sai do casebre. A passo seguro avança contra a nortada.

- Que homem! - exclama Amanda Carrusca. - Não ouviste o insulto que me pregou?

Entre as ombreiras da porta, Júlia olha para o marido, que se vai ocultando por detrás da quebrada, para além do barranco. Afasta a vista para mais longe, para o sobreiro solitário na encosta. No entretanto, os olhos desfocados enchem-se de névoa. Quando os torna a fixar, já o Palma vai muito distante do sobreiro, diminui, enterra-se na noite que tomba. E, com pouco, desaparece.

Enroscados nas lajes, Maltês e Ardila dormitam. No outro lado, de cabeça caída, Bento ressona. Sob a luz ondeante das chamas, os cabelos derramam-se-lhe para a testa como fios de ouro sujo. Imóvel, Amanda Carrusca parece ausente.

A noite cresce negra, lenta. O obsidiante gemido do vento persiste, ora longe, ora perto, num choro aflitivo. O medo começa a apossar-se de Júlia. Espreita de soslaio o rosto petrificado da velha, e de novo lhe ocorrem vagos, indefinidos, presságios. Não consegue dominar-se. De face contraída, quase que grita:

- Fale, senhora!

O olhar agudo de Amanda Carrusca concentra-se sobre a filha. Dos lábios exangues, finos, escorre-lhe um velado sorriso de desdém.

- Não posso... - murmura Julia. Assim, tanto tempo caladas, fico cheia de medo.

Impassível, acocorada sobre o mocho, a velha continua a fitá-la. De súbito, Júlia recua desabaladamente o busto.

- Mãe!

Ardila pula, de orelha fita. Corre ao terreiro e põe-se a uivar, de focinho curvo para o céu.

Do negrume, uma luz lívida, intensa, rasteja pelo casebre dentro, iluminando tudo. Amanda Carrusca, muito direita, caminha até à porta.

Branca de gelo, a lua-cheia assoma por entre as nuvens, que correm de orla esfarrapada. Do boqueirão, o foco esfarpado passa, veloz, pelos plainos fora. As nuvens fecham-se, adelgaçam o luar, somem-no. Sobre a planície, cerram-se de novo as trevas da noite.

- Raio de mulher - repreende Amanda Carrusca, volvendo ao mocho. - Até causas receios em quem nunca os teve!

- Que quer? Sei lá... Julguei que era uma aparição...

- Aparições!... Aparições tens tu na cabeça!

O olhar de Júlia, humilde, como que espancado, vagueia pela lareira, alonga-se para os fios de resina que as chamas empurram sobre os toros.

- Sinto-me tão só...

Com gesto dorido, aperta o lenço sob o queixo, baixa as mãos, de olhos no Bento. Mas só muito tempo depois parece dar por ele. Na verdade, só agora o vê, esguedelhado e miserável, prestes a tombar nas pedras da lareira.

- Nem os meus filhos, nem eles... Tira da manga um trapo encardido, assoa-se. Fungando, limpa os olhos turvos de lágrimas.

- Pobrezitos... O meu Luís, desde que partiu, nem uma letra sequer, é como se tivesse morrido. A minha Custódia, essa...

- Olha do que te havias de lembrar.

-Que quer que eu pense? Se a gente morasse na vila, tenho a certeza de que ainda estavam comigo. Lá na vila, quando uma família necessita, os ricos têm dó, e ajudam.

- Dó, os ricos ? Estás mesmo de todo, mulher! Estragaram-te com mimos lá na vila, foi o que foi. Nunca mais te habituas a viver como os outros aí dos campos.

- Quem pode habituar-se a esta miséria?

- Ninguém, caramba! O que não andam é, como tu, a defender tal gente!

- Não posso, não posso...-insiste Julia, com um soluço. - A minha Custódia, de mão em mão, na Rua da Branca... Meu Deus, que mal teria feito a pobre para tão grande cruz?

Cala-se, suspensa. Inesperada sensação de pavor obriga-a a levantar a cabeça. O queixo treme-lhe como se um arrepio gelado lhe percorresse o corpo.

- Mãe, eu sempre tive a minha religião!...

- Ha? - murmura a velha, de face enrugada pelo espanto. - Que é que a religião tem que ver com isto?

- Tem muito. A gente tem que sujeitar-se: somos pobres... Se o António não andasse sempre a falar do Elias Sobral, a nossa vida era outra.

- Falar, dizes tu? - A exaltação quase sufoca Amanda Carrusca. - Raios me partissem, se eu fosse homem e não fizesse pior!

Leva tempo a dominar-se. Por fim, exausta, o seu rosto, destroçado por fundos vincos, exprime como que séculos de esperança traída. O desânimo e a amargura enchem-lhe a voz lenta, segredada:

- Bondade, religião... Era bom. Era muito bom que aqueles que falam dessas coisas as praticassem. Mas, olha... Não, tu não podes entender-me. Magicas muito, e não vês nada. Julgas que tudo acontece sem ninguém ter culpa, supões que é o destino... É isso. Supões que é o destino que levou os teus filhos a fugirem de casa, que é o destino que obrigou o teu sogro a matar-se, o teu marido a ir parar à cadeia. Pensas assim... e há muita gente da tua marca. Medrosos!...

Encolhe os ombros, sem desprezo nem zanga, apenas desinteressada, como se tal gente jamais pudesse pertencer ao seu mundo. Compõe o lenço em volta dos cabelos e recomeça, com desalento:

- Falar, falar... Quem é que nos ouve, se até Deus nos esqueceu?

- Cale-se, que está a pecar!... - choraminga Júlia, de mãos nas fontes. - Deus é pai de nós todos...

- Será. Mas uns são filhos, outros enteados.

Ardila rosna em direcção da porta.

Ouve-se um ruído de passos pelo terreiro, e Mariana, a filha mais nova dos Palmas, entra no casebre.

- Boa noite.

Coloca o tarro sobre a mesa. Mas só ao tirar o lenço nota o aspecto carregado de Amanda Carrusca.

- Que aconteceu?...

- Que havia de ser? Parvoíces da tua mãe.

A esfregar as mãos roxas de frio, Mariana debruça-se para o lume.

- Só isso?

- Não te entendo... - diz a velha, meio desconfiada. - Que mais querias tu que fosse?

- Nada.

Levanta as saias, vira-se, muito perto das chamas, a aquecer as pernas e as ancas. Sob a luz da lareira, o rosto ganha um tom rosado. É magro, esguio, como o de Júlia. Mas os olhos rasgados, a boca saliente e muito desenhada vincam-lhe na expressão um ar de resoluta serenidade.

- O pai?

- Saiu... - gagueja Júlia. - Acho que foi à vila... não sei...

Amanda Carrusca agita-se sobre o mocho. Mariana espera que a avó sossegue.

- Quando se deixará a mãe dessas mentiras? Eu encontrei o tio João, ele contou-me tudo.

Senta-se num dos bancos, descalça os sapatos e estende os pés encharcados para o lume.

- O pai não devia ter ido com o Galrito.

- É o que eu penso. Mas nem cheguei a dizer nada. Ninguém me dá ouvidos nesta casa...

- Deixem-se disso! - interpõe com aspereza Amanda Carrusca. - Eu acho que ele fez muitíssimo bem. Pois! A gente não pode é continuar assim.

- Não podemos, não. Mas o pai fez mal. Houvesse o que houvesse, ele nunca se devia ter metido com esses tipos. Demais, eu já lhe tinha dito que os homens andam a combinar uma ida à vila para pedirem trabalho.

- Lá vens tu com as tais ideias!... Bonito! Isso de irem todos à vila, como um bando de mendigos, há-de dar um grande resultado... Que cada um trate de si, e já lhe chega!

- A gente tem visto, avó - Mariana tira os pés da proximidade das brasas e endireita o tronco, muito séria. - Temos visto o que eles conseguem, o pai e os outros, cada um para seu lado. Convença-se de uma vez para sempre que só todos juntos hão-de alcançar alguma coisa. Um homem sozinho não vale nada.

- Não digas mais! Eu já sei o resto de cor e salteado!... Loas, rapariga, tudo isso são loas! Não há que ver, deram-te volta aos miolos. Que perderá o teu pai em ir ganhar uns escudos para que haja comida nesta casa?

- Perde. E muito, fique sabendo. Até hoje, ainda há quem acredite que foi sempre honesto e que nunca roubou nada a ninguém. Mas, amanhã, quando se vier a saber onde vai arranjar dinheiro, quem é que acreditará nele?

Júlia adianta-se, temerosa. :

- E se o apanham?!...

Mariana fita Amanda Carrusca com um olhar interrogador. A expressão da velha endurece, de lábios apertados. No entanto, intimamente, começa a sentir as mesmas apreensões da filha e da neta.

Atrás delas, desde a porta, avança pelo chão o rastro alvacento do luar. No terreiro, sentado nos quartos, Ardila estende o focinho para o céu. Súbito, o uivo doloroso sobe, agoniado, longo, lacerando a noite.

As mulheres estremecem.

Ao Alto da Laje, a inquietação, mal pressentida desde o casebre até ali, quebra a marcha despachada do Palma. A ventania bate-lhe no peito e na cara, dobra-lhe a aba do chapéu. De músculos tensos, pára à beira da íngreme ravina.

Em baixo, para lá do farfalhar das faias que marginam a estrada, projecta-se o rectângulo da luz frouxa da venda do Mira.

Dura apenas um instante a indecisão do Palma. De repelão, desce o cerro, enterrando os calcanhares na terra, que se esboroa, rola na sua frente. Esgueira-se por entre as faias, atravessa a estrada.

Mal entra na venda, indaga:

- O Galrito?

Todo o seu rompante esbarra de encontro ao silêncio e à serenidade maciça de José Inácio Mira, plantado como uma estátua por detrás do balcão. Entre os dois, caído do tecto, o candeeiro de carbureto parece ronronar, melancólico, contra a penumbra.

José Inácio Mira sai do balcão. Alto, gordo, mexe-se vagarosamente, com solenidade. Tombada para a nuca, a larga aba negra do chapéu circunda-lhe a cabeça, velando a cara de sombra. Repousado, alheia-se, de ouvido à escuta. Passos aproximam-se da porta.

- Acho que deve ser ele. Pequenina, seca, a reles figura do Galrito rompe de entre as ombreiras. Ao passar pelo Palma, lança-lhe um olhar onde reluz sagacidade e ironia.

- Olá!...

Acomoda-se junto da mesa encostada à parede. Sentado, parece mais pequeno e fraco. Mas a vivacidade do rosto moreno, cravejado de rugas movediças, o olhar inteligente e o constante sorriso ao mesmo tempo dolorido e escarnecedor, que lhe arrepanha os beiços sobre os dentes acavalados, desmentem a aparente debilidade.

- Já cá estás, hem? - diz, sempre a sorrir. - Vamos, senta-te. Que é que tomas?

- Nada.

- Homem! Aguardente? Traz lá dois dos grandes, Zé Nácio.

As botas cardadas de José Inácio Mira assentam sem ruído no chão de terra negra da venda. Pachorrento, vem pôr os copos e a garrafa sobre o tampo ensebado.

Como que ancho pelo rasgo do convite, Galrito esfrega as mãos com alacridade. Sorvida a aguardente de um trago, sacode-se todo, soprando.

O Palma, de cabeça baixa, roda entre os dedos o copo ainda cheio.

- Quando partimos ?

Com súbita seriedade, José Inácio Mira e Galrito fitam-no. Apenas o candeeiro de carbureto e o rumor das faias perturbam o silêncio.

- Bem...- começa José Inácio Mira.- Sempre estás decidido?

- Estou.

- Isso tem os seus perigos. Sabes... às vezes, os guardas...

- Sei isso tudo.

- Mesmo assim tu queres? - Já te disse!

- Não te exaltes, homem... - Um trejeito desdenhoso contrai o rosto redondo de José Inácio Mira. - Se te pergunto é para que não tenhas que deitar-me culpas de algum percalço. E, fica sabendo, estas coisas não se dão bem com exaltações. Que te sirva.

Sem mais, afasta-se, de tronco direito, erguido a toda a altura dos ombros largos, e abandona a venda pela porta praticada no tabique, atrás do balcão.

A rude advertência paira ainda no ambiente sombrio. Entre os dedos do Palma, o copo roda, e salpica de aguardente o tampo da mesa.

- Acaba lá com isso - diz o Galrito. Que diabo!... Acaba lá com essa manobra. Bebe, homem!

- Julgas que estou com medo? - O copo pára, sob a mão fechada. - Irei com vocês, farei tudo quanto for preciso. Mas não vou de gosto.

- Se assim é, acho que o melhor...

- Não. Preciso de ir, preciso muito.

- Vê lá isso. Ninguém te obriga... Inclinando a garrafa para o copo, de olhos atentos no líquido que escorre, Galrito sorri com ar vagamente enfadado. - Se não queres, ainda estás a tempo.

- Tenho que querer. Esse Elias Sobral... ele e os outros reduziram-me a isto... Não há que fugir. Eles têm tudo, a fortuna e o mando, eles é que põem e dispõem da vida de um homem.

- Não te percebo. Queres... não queres...

- Pois tu achas que posso dar um passo desta natureza assim como quem vai de caminho? Eu, que sempre ganhei o meu pão à luz do sol, de cara levantada?...

- Está certo. Mas, no teu caso, quem pode escolher?

-- Não, Galrito. Vou-me sujeitar a muito. Depois disto, se me prendem, acabou-se tudo.

- Escuta, homem.

Com o gesto de quem roga um pouco de serenidade e de atenção, Galrito bebe a aguardente, passa devagar as costas da mão pela boca.

- Escuta. Tu barafustas muito, ameaças muito. Ora, quanto a mim, só tens uma coisa a fazer: disfarçar, de modo a que te suponham cordato e submisso. Eles gostam de gente assim, acredita.

- Mas eu não sou dessa raça. Ofenderam-me, e falo, hei-de falar sempre. Prefiro morrer de repente a acabar aos poucos, como um mendigo.

O Palma, após breve silêncio, prossegue em tom de contida veemência:

- Estás esquecido que, há dois anos a esta parte, ninguém me dá trabalho?... Queres, não queres... dizes tu? Olha que é pouco o que eu quero. Apenas trabalhar, apenas ganhar o suficiente para a comida da casa.

- Não fales mais nisso. Homem! Agora que tens onde ganhar, o que lá vai passou. Só é preciso que te resolvas de alma e coração.

- Estou resolvido.

- Pronto. E vais ver que não te arrependes. Isto é bem pago. Há-de chegar e sobrar.

- Se assim fosse...

O Palma baixa a cabeça, e a aba do chapéu tapa-lhe o rosto. Pensativo, recomeça a rodar o copo entre os dedos.

- A minha filha não queria que eu viesse. Ela diz que os homens vão todos à vila pedir trabalho. Eles querem ir, eu sei. Como nada têm, sujeitam-se a tudo.

- Já ouvi falar nisso. - Galrito semicerra os olhos. - E tu?...

- Eu... Eu tenho ainda a casa.

- Ha? Esse pardieiro a cair aos bocados ? - Um sorriso doloroso enruga os cantos da boca do Galrito. - Que te adianta isso ?

- Seja como for, é lá que nós vivemos... Se a perco, então, nem sei o que faço!

José Inácio Mira sai dos fundos da venda.

- São horas, rapazes.

Galrito bebe novo copo de aguardente. Levantam-se.

- Nada de magicações - diz José Inácio Mira, pondo a mão sobre o ombro do Palma. -- Esta noite quer-se é agilidade e perna rija. Estás a entender?

O Palma retira o ombro. Caminha até à porta, atrás do Galrito. Pára, um momento. Depois, mergulha no negrume.

Ao virar-se, José Inácio Mira depara com a mulher junto do tabique que divide a venda do resto da casa.

Francisca veste de preto, tal como o marido. Tal como ele, é alta e forte. A vasta saia pregueada quase lhe tapa os pés, o xale envolve-lhe amplamente o busto. No contorno cingido do lenço de ramagens negras, o rosto sobressai, ensombrado por expressiva apreensão.

- Sossega - aconselha José Inácio Mira. - Apesar de tudo, é um tipo direito, o Palma.

- Talvez. Mas não o acho capaz para estas andanças. Já reparaste naquilo?

Sobre a mesa, perto da garrafa, vê-se o copo do Palma ainda cheio de aguardente.

- Como ele vai... - Francisca meneia ao de leve a cabeça. - Até se esqueceu de beber.

Após duas voltas pela venda, José Inácio Mira atravessa o tabique e senta-se à lareira.

- Não sei que faça.

- Agora?

Francisca vem sentar-se a seu lado. Silenciosos, olham para o lume, seguindo o mesmo fio de raciocínio, prevendo os mesmos possíveis contratempos.

- Bom... - murmura José Inácio Mira. - Não deve haver novidade.

Põe-se a enrolar um cigarro. Sisudo, de beiços muito estendidos, acende-o na aresta de uma brasa, e sopra demoradamente o fumo.

- Depois se vê.

Curvados sob as cargas, os homens emergem do chão negro, na atitude de quem aguarda, com impaciência, o momento de iniciar a marcha.

Corona sobe ao banco, a apagar a candeia. Antes, espreita em volta, num minucioso exame. O tronco espadaúdo, enorme sobre as pernas curtas, inclina-se-lhe, aguentando o fardo. Na cara larga, os olhos, redondos, movem-se obliquamente, frios e inexpressivos, como os dos animais.

Por toda a quadra paira o ar miserável das velhas cavalariças há muito abandonadas. Grandes teias de aranha tapam os cantos até às telhas, alastrando pelos barrotes carcomidos. Tombado, sem uma das rodas, o churrião apoia a ponta do varal na manjedoura. Dos grossos pregos saídos da trave do palheiro pendem arreios desirmanados, sacas, pedaços de corda. Caixotes de vários tamanhos dispersam-se pelo chão coberto de palha apodrecida.

- Algum de vocês fumou?

Em baixo, os três homens negam em silêncio.

Galrito, quase desaparece sob a volumosa carga. Banaíça é alto, sanguíneo, de ombros arredondados, e uma constante expressão de violência, sempre prestes a soltar-se, altera-lhe o rosto enegrecido pela barba. Desconfiado, olha de través para o Palma.

Perto do churrião, o Palma ajusta as correias que lhe passam por debaixo dos sovacos, dispostas de modo a manter o fardo em equilíbrio. Tira a navalha do bolso interior da jaqueta e mete-a na algibeira das calças.

- Pronto! - exclama Banaíça, com o tom azedo de quem vê confirmada uma suspeita. - Este tipo já está preparado! Meteu a navalha no bolso das calças!...

Vergado debaixo da carga, Galrito abre os braços, irónico e conciliador.

- Deixa lá. Tu já sabes. Quando vêm a isto pela primeira vez, julgam logo que vai haver mortes e traições...

- Que me importa que julguem ? Não quero é ver-me metido em sarilhos. À menor coisa, estes tipos atrapalham-se, e enrascam os outros.

- Está enganado... - adianta-se o Palma, numa lentidão de mau prenúncio. -- Não é para aí qualquer um que me atrapalha. E muito menos você.

A voz do Corona soa, grave, no alto do banco.

- Acabou-se?

Os homens aquietam-se. Só então Corona aperta a chama do pavio entre os dedos encortiçados.

No escuro a palha range, pisada. Ouve-se o portão gemer nos gonzos, e uma lufada penetra no pardieiro. Fora, Corona devassa as trevas que cobrem os campos. Os seus ouvidos experimentados captam os mais pequenos ruídos sob a nortada.

- Vamos - ordena ele. - E tu, Palma, já sabes. Sempre adiante. Para o resto cá estou eu.

Atarda-se a fechar o portão depois dos homens saírem. À frente, a passo rápido, marcha a figura miúda do Galrito. Ao entrarem no sobreiral, Corona alcança-os, e toma o comando da pequena fila indiana.

A lama fá-los escorregar, enterram os pés nas poças de água. Mas a pressa não deixa escolher caminho. Vão a corta-mato, céleres por entre o infindável arvoredo. Só perto se apercebem dos troncos. Desviam-se como sombras. Gemebunda, a ventania dilacera-se nos ramos do montado. Ouve-se o estalido áspero das hastes que se chocam.

- Que bela noite, poças! - resmunga o Galrito. - Está de rachar!

Vai um pouco de esguelha, o braço para a frente, como que a contrabalançar o peso do fardo.

- O frio é o pior que isto tem, ó Palma. O frio e a carga. Quanto ao resto, vais ver que é fácil.

O vozeirão rouco do Banaíça soa nas costas do Palma:

- E se as coisas se complicam, que é que este tipo faz? Estou mesmo a ver... É logo a carga no chão, e toca a fugir!

- Tu não o conheces, Banaíça.

- Nem preciso.

- Adiante! - interrompe o Corona. Basta de falatórios.

O chão começa agora a inclinar-se. Descem do sobreiral por uma vereda tortuosa, resvaladiça. Inesperadamente, o Palma vira-se para trás, de cabeça baixa.

- Quem te disse que eu fujo? Banaíça estaca. Meio curvados, de olhos fixos, medem-se no escuro. O braço vigoroso do Corona vem e interpõe-se. Faz recuar o Banaíça.

- Hás-de ser sempre o mesmo resmungão... Galrito, passa tu para aqui, entre os dois. E acabou-se a conversa, acabou-se de uma vez por todas.

Surpreendidos da maneira simples como o Corona se impõe, os homens retomam a marcha.

A vereda é cada vez mais estreita. Em redor, no curto espaço que a vista vai abrangendo, árvores esguias surgem, isoladas, ficam para trás, somem-se na escuridão, com as altas ramagens agitadas como cabeleiras farfalhantes. Começam a enterrar os pés numa extensa chã de erva molhada, e o frio repassa-lhes as botas. Aos poucos, o piso torna-se duro. Atiradas com força, as solas ressoam cavamente.

Uma dor aguda rói o estômago vazio do Palma. Mal sente já as pernas, as correias enterram-se-lhe nos sovacos. De braços erguidos, quebrado pela cintura, crava os dedos na carga, por cima da cabeça, e segue a passo estugado.

Longe, o pálido fulgor luarento desenha o suave perfil de uma encosta. Sobem a ravina liberta de árvores, descem para o outro lado. Na distância começa a soltar-se um uivo de agonia. Os homens afundam-se no negrume do córrego. O tropear das botas sobre o chão pedregoso reboa pelas barreiras quase a prumo e o eco foge-lhes na frente. Lá por cima, na crista do mato, a ventania passa assobiando.

O uivo do cão ouve-se agora perto. Começa a diminuir, e apaga-se de todo ao saírem do estreito vale.

A respiração do Palma torna-se ruidosa. A nortada morde-lhe na pele, e as solas escorregam pelos torrões esboroados. Resfolga ao ritmo brusco da passada, o fardo em desequilíbrio, a oscilar-lhe sobre as costas alagadas de suor. De boca aberta, atira os pés a destempo, como se apenas procure não cair de cara contra a lama. Esvai-se-lhe a noção do caminho percorrido. Dolorosos, os movimentos mecanizam-se-lhe, voga numa modorra. Alguém grita:

- Agacha-te!

Inesperada claridade cega-o. Deslumbrado, atira-se para junto dos outros, já acachapados contra o renque de estevas.

Não muito distantes, os faróis de um automóvel varrem o descampado. Tornam a surgir mais longe, e somem-se, engolidos pela noite.

Os homens acomodam os fardos. Atravessam a estrada, varam o restolhal, e tomam pelo carreiro, que serpeia através de grandes plainos.

Como que indiferentes ao cansaço e ao frio, Corona e Banaíça caminham a passo igual. Galrito resmunga de instante a instante. Após serpearem por veredas, entre outeiros, descem vales, para de novo tornarem à extensa planura desabrigada.

Fustigado pelas revoadas, o rosto do Palma encrespa-se, o latejar impetuoso do sangue ressoa-lhe nas fontes. E, ao rés da terra, a nortada estrebucha, furiosa. Por toda a parte, das moitas, dos cardos e dos pedregulhos, soltam-se lamentos abafados e terríveis.

- Eh, cuidado aqui!

O Palma bate com a cabeça contra a carga do Corona. Vê-o curvar-se e desaparecer. Ajudando com as mãos, deixa-se escorregar pelo solcalco. Ao readquirir o equilíbrio, olha em volta com relutância.

- Isto são terras do Elias Sobral...

- Que tem que sejam?

De pernas inseguras, como se pisasse coisas moles, o Palma prossegue atrás da fila. A passo medido, cauteloso, atacam a subida do Cerro da Águia.

Do cimo da vasta clareira rodeada de penhascos, um cão ladra. Ouve-se o balir de uma ovelha, outras respondem da confusa massa de corpos deitados pelo chão.

Corona assobia de manso, redobrando como um canto de ave. Para lá do rebanho amalhado, alguém se ergue, de manta pela cabeça.

- Boa noite, pessoal.

Com surpresa, o Palma reconhece a voz de João Carrusca. Poisa a carga ao lado do Galrito, e senta-se ofegante.

- Ouve. Que é que o meu cunhado tem que ver com isto?

- O Carrusca? Bem. Como anda por aqui, sabe a melhor altura da gente dar o salto. E ganha algum dinheiro, já se deixa ver.

- Que malandro!... A querer dar-me conselhos!

- Que é que tu dizes?

- Nada.

Após curto diálogo com o pastor, o vulto indistinto do Corona caminha por entre as ovelhas até à beira do penhasco. Na sua frente, por debaixo das nuvens, a linha do horizonte corta a meio o disco enorme e avermelhado da Lua.

Quando Corona volta, Banaíça vai-lhe ao encontro.

-Já? -

- Sim. Por Vales Mortos.

Galrito ergue-se, desconfiado.

- Nem se descansa? /

- Que queres? Tem que ser.

A revolta imobiliza por instantes o corpo inclinado do Galrito. De repelão, sacode a cabeça, atira com os braços.

- Chiça!

Agacha-se sobre o fardo, e coloca-os às costas, retesando-se do impulso. O olhar furtivo do Banaíça espreita o Palma, que se agarra à carga com movimentos mal seguros. Corona ajuda-o.

- Vamos lá.

Ao iniciarem a íngreme descida do outro lado do Cerro da Águia, trazida pela ventania, a voz esganiçada do João Carrusca alcança-os:

- Boa sorte, pessoal!...

O grito assobiado, ínvio, soa como um agoiro. O Palma pensa que só a ele se dirige toda a malévola intenção do pastor. Mas Galrito, ainda irado, reage.

- Grande corno! Vocês ouviram ? Parece mangar com a gente!

Ninguém responde. Ao alcançarem o fim da encosta, a Lua desaparece de todo. Levados pelo passo cada vez mais rápido do Corona, avançam na treva densa.

A cada pancada dos pés contra o chão, o Palma sente a dor do estômago percutir-lhe por todo o corpo. Subitamente, nota o grande silêncio que o cerca e com ele caminha. A nortada agora é lenta, cortante como um sopro gelado. Ao sair de um barranco, esmagado pela carga, alaparda-se, sem forças, de peito contra os torrões húmidos. As mãos rudes do Corona erguem-no com dedos de aço. Dá uma guinada para a frente, estaca. E, de cabeça pendida, bamboleante, volta a avançar, enquadrado na fila.

Junto da orla de um mato, os homens param. Jogando os pés para diante, o Palma passa por eles, insensível, como um animal cansado.

Corona corre. Segura-o pelo braço e observa-o atentamente.

O Palma de mãos caídas oscila. Nem se dá conta de que o outro se alasta, cauteloso, por entre as estevas. Não ouve as perguntas desconfiadas do Galrito, o resmungar surdo do Banaíça. Quando Corona volta, é necessário repetir-lhe que tire as botas e as calças. É preciso ajudá-lo. Enrolando tudo numa trouxa, colocam-lha entre a nuca e a carga.

- Atenção agora.

Empurrado pelo Galrito, o Palma arrasta-se, nu da cintura para baixo. Após o matagal, surge no escuro o rio Chança. Os homens afundam as pernas até às coxas na água gelada, tacteando com os pés no fundo da areia.

Trémulo, o Palma bate os dentes. Vagamente, apercebe-se de que qualquer coisa de anormal se passa à sua volta. Corona vai de cabeça alta, farejando, numa grande atenção.

Alcançada a outra margem, estreita e pouco profunda naquele sítio, enfiam as calças e as botas. Abrigando-se por todas as saliências do terreno, apesar do negrume, voltam a marchar o mais rapidamente que as forças lhes permitem.

- Vamos, vamos - insiste Corona, em voz baixa. - Isso depressa.

Nos longes da noite vislumbra-se já o velado luaceiro da madrugada. Os olhos doridos do Palma alongam-se, erradios. Com movimentos de autómato, desce, sobe encostas, sempre na esteira do Corona. Na lomba de um outeiro escorrega e cai. Levanta-se, torna a cair e a levantar-se, como que embriagado. Galrito ampara-o.

- Homem, só mais um bocado. Paymogo é já perto.

De pernas encharcadas, colando-se-lhe às calças, arrasta as botas. Muito fina, a dor continua a roer-lhe o estômago, a cabeça escalda-lhe. Grossas bagas de suor escorrem-lhe da cara, saltam a cada passada brusca. E a zoada cresce-lhe nos ouvidos até àquele súbito como que relâmpago que lhe rebenta no cérebro, deixando-o assombrado, vago.

Isolado no escuro, em pleno campo, aparece a forma imprecisa de um edifício comprido, irregular. Da sombra do portão despega-se o vulto de um velho. Ouve-se-lhe a voz metálica, segredada e breve:

- Buenas!...

Após a entrada do último da fila, o velho ainda permanece fora por algum tempo. Vagarosos, frios, os seus olhos de lince devassam os terrenos que circundam a casa.

Passa o portão, fecha-o. Espevitado o candeeiro de minas, as sombras dos homens aquietam-se contra as paredes caiadas.

Erguido ao alto do braço, o candeeiro ilumina a entrada de um desvão praticado a meia altura. Junto da chama, vê-se a cara esguia do velho, de face rapada, dura.

À vez, os homens empurram as cargas para dentro do desvão. Curvados, quedam-se os quatro de mãos caídas, como se ainda caminhassem.

O tronco do Palma avança do meio do grupo. Dobra as pernas, estende os braços, e cai, roçando pela parede. Fica sentado no chão de tijolos, a sorver o ar, de boca muito aberta.

Vagamente curioso, o velho inclina o candeeiro.

- Que es eso, hombre?

O Palma apenas consegue mexer os lábios ressequidos. Mas todos compreendem. Corona volta-se para o velho.

- Escuta, Carretero. Podes dar-lhe já alguma coisa?

- Claro que si!

Erguem o Palma. Corona observa-o.

- Que é que tu comeste ontem?

- Umas sopas d’alho...

- Devias ter dito. Foi muito mau isso. De olhos embaciados, o Palma segura-o

pelo braço.

- Tu não vais pôr-me de lado...-A voz estrangula-se-lhe na garganta. - Não!... Quando eu comer todos os dias, posso tanto como os outros!...

- Está bem. - Corona faz um sinal ao velho. - Depois falamos.

De candeeiro caído ao lado da perna, o espanhol avança adiante dos quatro homens. Corredor fora, as sombras deformadas, negras, agitam-se violentamente pelas altas paredes.

Pior que a anterior, aquela madrugada parece não ter fim. Júlia já não consegue dormir, sequer fechar os olhos. O agoiro dos presságios e a desolação da noite tornam o negrume mais denso, asfixiante. Sem ruído, afasta as mantas esburacadas e sai para o terreiro.

Mal se adivinha ainda o entreluzir da aurora. Mas, das bandas do Norte, o vento levanta-se, correndo de novo sobre a planície. Os véus da escuridão como que estremecem, num largo movimento. Ouve-se o rastejar dos bichos por entre as estevas, o mato rumoreja. Rude, do coração da noite, a vida começa a palpitar.

Ardila desce do degrau e fita a dona, com um olhar doce, interrogador.

Só então Julia se dá conta de que a manha vem rompendo. Apressada, as saias e os cabelos levados na ventania, erra sem tino em volta do terreiro. Na face lívida, os olhos ardidos da vigília percorrem os caminhos.

Como sombras que se despegam da penumbra, Amanda Carrusca e Mariana vêm juntar-se-lhe. Ambas pensam no Palma, mas cada uma a seu modo.

A velha, dobrada dentro dos trapos negros, senta-se na soleira. Aí fica, imóvel, fixando o cruzamento dos caminhos, lá para a berma do sobreiral. Nenhum outro sítio lhe interessa, pois supõe, embora sem qualquer fundamento, que é por esse lado que o Palma deve surgir. Atrás dela, entre as ombreiras, Mariana, aparentemente alheada, segue com o olhar os movimentos desordenados da mãe.

Dentro do casebre, solta-se um alarido lamentoso:

- Ó ’nhã ma’!

Júlia ainda pára no degrau da porta a observar a mãe, como se tentasse descobrir-lhe os pensamentos, ouvir-lhe uma palavra de conforto. Amanda Carrusca continua na mesma impassibilidade.

- E tu, Mariana?... Não achas que é demora demais?

- Muito sei eu que lhe hei-de responder. Não se rale, e espere.

- Como queres que me não rale?... Esperar, esperar... Não tenho feito outra coisa. Vocês parece que não sentem nada!...

--Ma’!... - choraminga Bento. ’Nhã ma’!

Júlia vai buscar o filho.

De joelhos no chão térreo, ensopa o lenço na infusa da água benzida e humedece-lhe as pálpebras, coladas cada noite pelo líquido esverdeado. Com voz trémula, como se tivesse em mente atingir qualquer objectivo para além do fim imediato da prece, começa a rezar a ladainha consagrada a Santa Luzia:

 

             Quando a Senhora Santa Luzia

             pelo mundo andou,

             com a Virgem Maria

             se encontrou.

             E ela lhe dizia:

             Luzia, tu pelo mundo andarás,

             teus olhos de prata na mão levarás...

 

Um soluço interrompe-a. Abraça-se ao filho. Mas Bento, já de olhos abertos, empurra-a, e esgueira-se de rastos para a cova do forno.

Julia leva as mãos ao chão. Por entre a névoa que lhe turva o olhar, entrevê Mariana a descer o degrau. Tudo a assusta. Desalentada, as farripas dos cabelos espalhados sobre a testa, ergue-se.

- Onde vais?...

- Para que lhe perguntas? - exclama Amanda Carrusca. - Pois hoje não é domingo? Vai ter com as outras... e os outros! Vão combinar a tal ida à vila, a pedirem trabalho. Isto, agora, é assim: junta-se um bando, entra na vila e, pronto, é tudo deles!

- Ouve-me, filha!... Que vais tu lá fazer se tens trabalho?

- Vou pelo pai e pelos outros.

- Juntem-se todos, juntem-se, e vão-se meter na cova do lobo! - agoira Amanda Carrusca, levantando os braços, com um sorriso azedo. - Depois, se lhes acontecer alguma, não se queixem!

- Queixar-se, a gente? Que é que nos pode acontecer de pior do que esta vida que levamos?

A velha fita a neta com agudeza e interesse.

- Afinal... que querem vocês?

- Acabar com isto. Acabar com esta miséria em que vivemos. Nós e os outros.

Mariana avança para a porta.

- Eles ensinaram-me, avó. Sei agora o que dantes não sabia, e pus-me logo a seu lado. Eles ensinaram-me que esta vida que levamos é um crime.

- Olha a grande novidade!... - No rosto da velha paira um ar de sincera decepção. - Que é um crime sei eu!

- E que é que já fez em toda a sua vida para acabar com ele?

A inesperada pergunta causa profundo espanto em Amanda Carrusca. Vê a neta voltar-se, atravessar o terreiro. Com o olhar perplexo, segue-a ainda, cerro abaixo.

- Meu Deus - murmura Julia. - Não basta já o pai para meu desassossego... Nem sei que pensar...

Amanda Carrusca, interrompe-a:

- Que é que estás para aí a rezar?

- Nunca mais chega, mãe.

- Acaso querias que fosse e viesse na mesma noite?

- Isso não, mas...

- Oh, mulher! Deixa-me, e vai lamuriar para outra banda!

Acocorada, a velha concentra-se, de queixo estendido para o chão. Aos poucos, a face enche-se-lhe de rugas.

- Que dirão eles uns aos outros lá nas reuniões? Que é que eles sabem de novo?

Julia avança até à beira do terreiro, olhando para longe. Perto, na cova do forno, Bento baloiça o tronco. A cantilena rouca, chora, ondeando de encontro à nortada.

- Reuniões, idas à vila... - cicia Amanda Carrusca. - Na!... Não entendo esta gente de agora...

Chapéu embicado para os olhos, mãos nos bolsos, o Palma caminha a passo lento.

Vem do pardieiro da Toureja, onde fica a recato a carga transportada de Espanha. Dentro da algibeira das calças, bem seguras na concha da mão, traz cinco notas esverdeadas. Na sua frente aparece agora a venda do Mira, comprida e branca, de rodapé azul.

Contra o costume, não está ali ninguém naquela manhã de domingo. Um tanto desconfiado, o Palma senta-se junto da mesa.

José Inácio Mira encara-o ponderadamente.

- Correu tudo bem, pelo que vejo...

- Tudo. Só eu, a princípio...

- Deixa lá, não fales muito nisso. Apenas queria saber se tudo tinha corrido bem.

Ficam a olhar-se por algum tempo. O Palma acomoda-se sobre o banco. Passa a mão pela boca, reprimindo um bocejo, e aponta para a prateleira gradeada. Dentro, sobre a rede côncava, ferrugenta, vê-se um enorme naco de lombo.

- Separa-me aí meio quilo desse lombo, um quilo de toucinho, três pães...

- Espera. Vai dizendo cada coisa de sua vez.

Enquanto José Inácio Mira avia a encomenda, o Palma esforça-se por conservar os olhos bem abertos.

- Que houve cá no sítio? Ninguém por aqui, a um domingo?

- Coisas...

Enroladas as compras em papel pardo, José Inácio Mira vem pô-las sobre a mesa.

- Tu já deves saber pela tua filha, claro... Mas, que querem eles? Trabalho? Que eu saiba, para pedir trabalho nunca foram precisas reuniões às ocultas.

- Como queres que seja de outro modo?... - opõe o Palma, apreensivo com o rumo da conversa. - A gente não pode falar abertamente.

- Não é só isso... Há qualquer coisa de diferente nos homens. Parecem outros. Mesmo cheios de fome, andam para aí de cabeça levantada, num desafio.

Vencendo o cansaço, a atenção do Palma desperta de todo.

- Sabes como eu sou - torna José Inácio Mira, num jeito de ofendido. - Lá vou vendendo fiado, hoje, a um, amanhã, a outro. Que querem eles mais? A todos é impossível.

- Tu não estás a ver bem. Nós não queremos comprar fiado. Apenas queremos ganhar o suficiente,

- Mas se isto é assim todos os anos!... Nunca, desde que me conheço, houve trabalho nesta altura. Que diabo! Não são só vocês os prejudicados. Eu sofro com isso, e muito. Ninguém tem dinheiro, ninguém compra.

José Inácio Mira dá uma volta pela venda. Enrola um cigarro, acende-o, e põe-se a reunir os embrulhos.

- Queres um saco para levares isto?

- Fazia-me jeito.

O Palma paga a despesa e guarda o troco.

- A verdade - aventa ele - é que, quer haja ou não trabalho, todos precisam de comer... Isto vai mal.

- Se vai!... - acode prontamente José Inácio Mira. - Mas olha, tu é que fizeste bem. Deste de mão a tudo isso, e foste à vida. É boa, é má? Não interessa. Ganhaste dinheiro, levas comida para casa. Vê tu se não é melhor!

- Lá isso... Assim eu tivesse sorte.

- Hás-de tê-la, homem. A questão é que te comportes como deve ser, e que te não metas nessas parvoíces. Reuniões!...

O Palma cala-se. Nunca a sua maneira de ver está de acordo com a do dono da venda.

- Bom - despede-se ele. - Vou andando.

Atira o saco para as costas, e sai, porta fora.

As duas mulheres, ao vê-lo assomar à berma do sobreiral, passado o primeiro instante de sobressalto, aguardam-no, sentadas na soleira. E entram, atrás dele.

Silenciosas, vêem aparecer sobre a mesa o pão, a carne e o vinho. Tudo se passa com simplicidade. O Palma corta um pedaço de pão, atravessa o terreiro e dá-o ao Bento. Enquanto o filho come, acaricia-lhe os cabelos.

- Coitadinho do Bento, coitadinho dele...

Faz um breve giro pelo cerro. Observa as paredes e o telhado do casebre. Senhor de si, sentindo-se de novo chefe da família, antes de se deitar na enxerga, a refazer-se do sono, diz apenas:

- Acordem-me ao meio-dia.

Ao princípio da tarde, Mariana vem encontrar a família reunida em redor da mesa. O aspecto animado de todos, a vista e o cheiro da comida dão ao casebre um ar festivo.

Puxa um banco e senta-se.

- Venho da reunião, pai.

- Depois contas. Na cara engelhada de Amanda Carrusca

transparece todo o agrado que a seca resposta do Palma lhe traz. No entanto, nem por um momento deixa de remoer o lombo frito, molhando sofregamente o miolo de pão na gordura.

De expressão contrariada, Mariana começa a comer.

Ao findar o pedaço, Júlia estende a mão para a frigideira. Hesitante, recolhe-a.

Aquieta-se, de cabeça inclinada, o busto muito direito.

Então, os olhos do Palma poisam sobre a mulher. Poisam com suavidade e compreensão.

- Come mais - diz ele.

A voz do marido soa aos ouvidos de Júlia como uma carícia. Espreita para os lados, a ver se alguém terá notado. Sente-se envergonhada.

- Já não tenho vontade...

O Palma aproxima a frigideira. - Come mais - repete.

A face macilenta de Júlia ruboriza-se. Funda sensação humedece-lhe as pálpebras. A garganta aperta-se-lhe, quase lhe dói. Tira um bocado, e recomeça a comer, ansiada.

Amanda Carrusca já está a limpar o fundo do prato. Júlia ergue a cabeça para o marido. O Palma faz um gesto. Pronta, a frigideira vai parar junto da velha.

Por algum tempo, só se ouve o tinir dos garfos e das facas, o mastigar gostoso na carne e no pão embebido no molho. O rosto de Amanda Carrusca resplandece abertamente. O estômago saciado quebra-a de agradável torpor.

Bento é o primeiro a afastar-se. De gatas, corre para a cova do forno. Mas, naquela tarde, as mulheres continuam sentadas, como antigamente era costume, pois que o Palma, sem dar mostras de querer levantar-se, enrola um cigarro. Ao soprar o fumo, arrota. Encostando-se nas guardas da cadeira, estende as pernas.

- Estava gostosa a carne.

- Se estava - apressa-se Amanda Carrusca. - E, depois, logo da parte melhor!

- Fritei-a tal qual lá na vila - diz Júlia. - Era assim que os meus patrões gostavam.

- Ora!... - A velha ri sem malícia. Quem não há-de gostar ? Lombo!...

Ardila salta para o terreiro, e começa a ladrar. Uma mulher surge, a medo, entre os umbrais.

--- Ardila! - grita Mariana. - Já aqui!

A princípio, como a luz dá nas costas da mulher, mal lhe divisam as feições. Nova ainda, de pele trigueira, suja, veste andrajosamente. A cabecita clara de uma criança de poucos meses assoma no xale esburacado.

- Boa tarde - saúda a mulher. Dêem-me qualquer coisa, por amor de Deus. Só peço um bocado de pão, mais nada.

O tom rouco e rude das palavras, onde parece insinuar-se como que uma distante ameaça, desfaz o ambiente prazenteiro do casebre. Todos a olham surpreendidos.

Júlia levanta-se, hesitante.

- Está bem - consente o Palma, com voz breve. - Dá-lhe o resto do lombo e o canto do pão.

A mulher senta-se. Não sobre o degrau da porta, mas no chão do terreiro, voltada para dentro do casebre. Assim come, de pálpebras baixas, sem olhar para ninguém.

- Você não é cá destes sítios? - indaga Mariana.

- Na. Sou de muito longe... Mas tive que me vir embora...

Levanta a blusa e puxa o seio. Enquanto os lábios rosados da criança sugam o mamilo, fita os Palmas, de cara em cara.

- Não conhecem por aqui um homem chamado Francisco Carriço? Ele veio para estas bandas, faz agora dois meses, à procura de trabalho.

Mariana e o pai entreolham-se. Nenhum conhece.

- Ando a ver se o encontro - recomeça a mulher. - Já me faltava tudo. Mal por mal, meti-me a caminho.

- Hum!... Há-de ser difícil - opina Amanda Carrusca. - Se calhar, ele fugiu-lhe.

- Na. O meu marido é um homem amigo da família. Não... Tenho é de encontrá-lo. A vila é longe?

- Pouca coisa.

A mulher despega do seio a boquita molhada do filho. Levanta-se, compondo a blusa e o xale.

- Tenho de ganhar a vila antes do entardecer. De noite, estes descampados enchem-me de medo.

- Meta a esse caminho, pelo sobreiral indica Mariana. - Ao chegar à estrada, há-de encontrar uma venda. Pergunte aí, que é já perto.

- Obrigada. - Muito séria, a mulher olha uma última vez para dentro do casebre. - Vossemecês são pobres, e fizeram-me esta esmola... Que Deus Nosso Senhor os ajude.

Sem mais, começa a afastar-se.

O Palma ergue-se da mesa. O aspecto da mulher, os seus modos, a sua história, e mais ainda o muito que se adivinha para lá de tudo isso, causam-lhe agora uma irritação que mal consegue reprimir.

- Posso falar? - interroga Mariana. A ocasião não pode ser melhor, pai.

- Falar ?... Falar de quê ?

- De muita coisa.

Só então o Palma compreende. Decerto Mariana vai lembrar as necessidades, a falta de trabalho. Vai pedir-lhe que se sujeite, que acompanhe os camponeses. Tudo isso lhe é penoso. A refeição foi abundante, satisfê-lo como de há muito se não recorda. Tem agora comida em casa, e nova caminhada até Paymogo dará em breve mais dinheiro, mais comida.

- Falas depois.

- Mas, oiça-me...

O Palma vira costas, e sai para o terreiro.

- Falas depois, já te disse.

-Pai!

Júlia e Amanda Carrusca acorrem. Sobre o degrau da porta, a velha segura a neta pelo ombro.

- Não tornes, rapariga!

- Deixe-me - Mariana solta-se, sacudindo os braços. - A vida do pai nunca foi nem há-de ser andar no contrabando!

A tarde vai enublada, fria. Da distância indecisa do horizonte, os plainos sucedem-se. Avançam de todos os lados, uns após outros, escuros, cercando o cerro escalavrado. No alto, monótona, geme a cantilena do Bento.

O Palma vagueia pelo terreiro, e os olhos das mulheres seguem-lhe os passos. Estão as três imóveis, meio apagadas na mancha pardacenta do casebre. De pé, Mariana apoia-se à parede. Júlia e Amanda Carrusca sentam-se na soleira, e aí permanecem, atentas.

O Palma ergue as mãos em concha, a reacender o cigarro. Atira fora o fósforo, e põe-se a examinar o telhado em ruínas.

- Ao que isto chegou...

A inesperada preocupação surpreende Mariana. Júlia e Amanda Carrusca continuam serenas e receptivas. Sentem-no agora calmo, como no bom tempo, antes da prisão. Isso chega para que também se sintam apaziguadas. No entretanto, o Palma vem até à porta, subjugado por qualquer ideia ainda de todo não esclarecida.

- Bastava um pouco de sorte - diz ele. - Tivesse eu muitas idas a Espanha, vocês veriam. Tudo isto dava uma grande reviravolta. Ganha-se bem.

Um velho costume, este de tentear os projectos, abordando-os em voz alta. Esfrega as mãos uma na outra, de olhos fixos no chão.

- Temos o telhado e os tabiques. Coisas de urgência. Ou, então, deixo os arranjos para mais tarde e trato de arrecadar mantimentos. Que dizem? Uns tantos quilos de carne fumada, umas sacas de farinha...

Mariana sente crescer a animosidade contra o pai. Júlia e Amanda Carrusca mantêm-se de expressão neutra, aguardando, agachadas sobre o degrau da porta. Daí o vêm afastar-se até ao forno derruído.

De olhos encovados, o Palma observa os pedregulhos, a grande laje no fundo da cova onde o Bento baloiça o tronco.

A expectativa imobiliza tensamente as três mulheres.

De súbito, adivinham. Sabem agora o que ele vai dizer. Compreendem, nesse instante, que já desde o princípio sabiam. E essa certeza não lhes traz a suspeitada alegria, mas o indefinido desgosto e o vago espanto de quem assiste novamente a qualquer coisa há muito esquecida, morta já no passado.

- Vou começar por aqui!... - exclama o Palma. - Primeiro que tudo, ponho o forno de pé. Com farinha e o forno arranjado, já podemos cozer o nosso pão!

A figura do Joaquim de Valmurado está, inteira, nos olhos das mulheres. A voz alvoroçada do velho. A face magra, os olhos fugidios. O caminhar errante. O desalento. O corpo dependurado na corda. E a ida do Palma para a cadeia, e os dias sem fim, abandonadas na solidão dos campos.

- Talvez que eu ainda consiga...

Ao notar a expressão das mulheres, o Palma aproxima-se, transtornado.

- Estão a ouvir-me?...

Júlia e Amanda Carrusca curvam-se. Qualquer palavra mais é agora inútil. Nada está mudado. De novo a ferocidade da planície arremete livremente contra o casebre. De novo se sentem à mercê, nem sabem de que poderosas forças. De onde virá tamanho ódio? Quem os acossa, cercando-os como a bichos no fojo?

Só Mariana parece compreender. Simples, claro, o objectivo da reunião dos camponeses açode-lhe ao espírito. Estende a mão para a frente.

- Oiça-me, pai. Nós não valemos nada, sozinhos, cada um a lutar para seu lado...

- Cala-te! - O Palma desvia-lhe o braço. - Eu não preciso da ajuda de ninguém !

Amanda Carrusca levanta-se. A face encrespa-se-lhe, numa ansiosa vontade de compreender. Os seus olhos pequenos, agudos, vão do genro para a neta, interrogando.

Hirta, contra a ombreira da porta, Mariana fixa o pai como a um estranho.

Durante alguns dias a nortada aquieta-se. Grandes chuvadas começam a cair cada manhã, demoram-se pela tarde adiante, só com a noite se extinguem. Depois, de novo o vento irrompe das bandas do Norte. O tempo seca, frio e nublado.

É estreita, sempre igual, a vida do campo. Raros são os acontecimentos estranhos, tudo se repete. Até quando qualquer transformação se verifica e persiste, logo se monotoniza. Assim acontece com o Palma. Embora só ainda por meia dúzia de vezes tivesse atravessado a fronteira, parece-lhe que desde há muito anda no contrabando.

No casebre, as refeições diárias cedo atenuam o receio de Júlia, as iras de Amanda Carrusca. Todos se mostram agradados, e apenas Mariana teima em contrariar a harmonia estabelecida. Mas as suas razões quebram-se de encontro à realidade de momento: há comida.

Dos ganhos de cada ida à Espanha, o Palma apenas é largo a comprar pólvora e chumbo. Debaixo do catre tem um caixote cheio de cartuchos, sempre renovados, para a caça, no mato, aos coelhos. Descontadas as despesas de alimentação, o resto do dinheiro junta-o para reparar o casebre. No entretanto, levado na maré das esperanças, faz projectos, deita contas à vida. Optimista, esquece queixas e agravos. Esquece até o ódio a Elias Sobral.

Mas dura pouco este estado de coisas. Certo dia, inesperadamente, encontram-se na venda do Mira.

O Palma acaba de chegar de Paymogo, faz as compras do costume. Bebido um copo de vinho, dá-lhe o sono. Afasta as postas do bacalhau, os embrulhos de grão e de feijão espalhados sobre a mesa, deita a cabeça nos braços e afunda-se numa agradável modorra. É nessa altura que o automóvel de Elias Sobral surge na estrada, em direcção à vila.

Aquela manhã de domingo foi trabalhosa para Elias Sobral. Embora a época corra sem afazeres de maior, pequenos nadas obrigam-no a ir à herdade da Comenda e, daí, ao Cerro da Águia. Após breve e, para ele, inesperada conversa com o João Carrusca, de caminho, passa por Vilar de Agreiros, de modo a trazer a filha, há uma semana de visita a umas tias, senhoras idosas e solteironas.

Família com tradições, a dos Sobrais, quer por heranças, quer por casamentos de conveniência, reúne agora boa parte das grandes herdades do concelho. Homem activo, Elias Sobral dirige sozinho o trabalho nos campos. Ultimamente faz-se acompanhar pelo filho e encarrega-o de afazeres de somenos importância, a fim de despertar-lhe o interesse pela lavoura.

Diogo pouca inclinação demonstra para tais tarefas. Já com os estudos foi o mesmo. Elias Sobral, após concluir que por ali nada alcançaria dele, viu-se forçado a desistir de novas tentativas. Como castigo, esteve três meses sem lhe dar dinheiro, e impediu-o ainda, por igual período, de guiar o carro.

Foi dura para Diogo esta proibição. Conduzir automóveis, é o seu maior prazer. Supõe-se até um ás neste particular. Guia, como não pode deixar de ser, de um modo especial. Acelera nas curvas, corre sobre os obstáculos, estaca com travagens bruscas. E gaba-se, à noite, na roda dos amigos, no café, das velocidades alcançadas.

Neste momento, como o pai e a irmã o acompanhavam, vê-se forçado a uma marcha moderada, tão contrária aos seus impulsos. Do lado, Elias Sobral, que de há dias medita tirar certos assuntos a limpo e de colher qualquer prova que confirme a denúncia que João Carrusca acaba de fazer-lhe, diz:

- Pára além no Mira. Empertigado, a gola da samarra levantada, Diogo conduz de cotovelo saído para fora da janela. Sem mexer o tronco, movimentando apenas as pernas e a mão direita, solta a alavanca das mudanças, ao mesmo tempo que empurra o pedal do travão. Faz tudo isto com aparato, como se efectuasse uma manobra complicada e cheia de sabedoria.

Elias Sobral salta para a estrada.

Diogo continua no mesmo aprumo, olhar em frente, cotovelo de fora. Atrás dele, reclinada no assento, a irmã espreita pelo vidro. Um ano mais nova, Lina anda à volta dos vinte. Coberto de pintura, apesar de bonito, o rosto sensual e delicado emerge-lhe do abafo, como uma mancha muito branca, onde os olhos negros, rasgados, rebrilham docemente.

Prazenteiro, José Inácio Mira desce o degrau da venda.

- Bom dia.

- Adeus, Mira. Então, isto por cá, como vai?

- Sempre no mesmo, senhor Sobral.

- Sim?...

Elias Sobral bate com os pés no chão, a desentorpecer as pernas. É de mediana estatura, seco. O pescoço comprido sustem-lhe, com aprumo, a cabeça pequena, de nariz recurvo, ossudo. O chapéu enterra-se-lhe até às sobrancelhas, como que para esconder os olhos escuros, indagadores. Fita o Mira com benevolência, num sorriso de astúcia. Levemente inclinado para trás, tenteia as palavras:

- Que é tu me contas ? Ao que parece, temos grandes novidades... O Palma, agora, lá arranjou artes de ganhar dinheiro... Mas, adiante, creio que há mais, e melhor...

O ar bonacheirão abandona o rosto de José Inácio Mira. Suspeitoso, leva as mãos ao cinto.

- Bem... que eu saiba...

Da janela do carro, Lina sorri do corpanzil de José Inácio Mira, a ajeitar as calças com uns vagares ronceiros diante do pai.

Mas a atenção desvia-se-lhe para dentro da venda.

Do meio dos embrulhos, o Palma ergue a cabeça. O chapéu tomba-lhe, e as mãos, grandes e cabeludas, estendem-se sobre o tampo da mesa.

Lina arqueia as sobrancelhas. Toda a contida violência máscula do Palma, os cabelos revoltos, duros, o perfil rude, o ombro abaulado, poderoso, a emociona estranhamente. As pernas tremem-lhe e um arrepio percorre-a. Estica-se sobre o assento, quase fica deitada. Uma onda de calor afogueia-lhe o rosto.

Sem se aperceberem da presença do Palma, o irmão continua agarrado ao volante, o pai diz para José Inácio Mira:

- Quê? Não sabes nada, aí na venda, sempre a lidares com um e com outro?... -- O sorriso astucioso morre-lhe, desconsolado. - Que desatenção a tua, homem.

- Diogo - segreda Lina. - Olha quem está ali.

Diogo vira-se. Muito pálido, retira as mãos do volante.

- Quem te pode acreditar? - insiste Elias Sobral. - Pois essas falas, esses encontros, essas combinações dos camponeses, são tudo invencionices da má língua? Que querem ir à vila... E que a filha do Palma é a mais activa de todos eles...

- Pai! - grita Diogo.

Levado pela surpresa, Elias Sobral recua.

O Palma está entre os umbrais, a toda a largura da porta, e José Inácio Mira tenta interpor-se.

Agarrando-o pela aba da jaqueta, o Palma atira-o contra a parede. Muito alto, lento e retesado, como se cada movimento lhe doesse, desce o degrau.

Lina entreabre os lábios carnudos, deixa escapar um gemido de pavor e de quebranto. Meio desfalecida, encolhe-se, como se a fossem violentar. Entrevê o pai a fugir para o assento, o irmão a dobrar-se sobre o volante, ouve o estrepitar ruidoso do motor. O arranque do carro atira-a contra as costas do assento, leva-a para longe da venda. Mas supõe-se ainda perseguida e a todo o momento alcançada pela figura brutal do Palma, enorme, de punhos cerrados.

As rodas rangem, troncos de árvores sucedem-se, rápidos, ao rés dos vidros das janelas. Vencida a derrapagem, o carro sai da curva, começa a abrandar a velocidade.

Lina dá por ela tombada no outro lado do assento. Diogo guia agora de corpo mole, os cotovelos caídos. Agarrado ao encosto, Elias Sobral fita-o de través.

- Que medo te dá! Que medo! - Fita-o, enraivecido, como se o filho fosse o único culpado do pânico e da desabalada fuga diante do Palma. - Que medo, sempre que te aparece esse malandro! Hás-de explicar-me isso!

- É que eu, pai...

- Hás-de explicar-me, já te disse! Virado sobre o filho, continua a repetir as mesmas palavras, sem lhe dar tempo a que responda. Ao ocorrer-lhe que Lina os acompanha, a vergonha emudece-o. Puxa mais para os olhos a aba negra do chapéu. E o ódio, o grande ódio contra o Palma cresce, afunda-o num silêncio feroz.

À vista da vila, o carro deixa a estrada. Ao fundo, entre a copa das árvores, avultam as lisas superfícies caiadas e as vastas varandas da moradia dos Sobrais.

Seguida de uma criada, dona Clara avança para o automóvel.

- Que demora a vossa, Jesus! Já estava a pensar que vocês... sei lá, ou se tinham esquecido da hora da missa, ou então...

De cabeça baixa, muito gorda e cheia de abafos, entra para o carro com dificuldade, apesar da ajuda da criada. Senta-se, compõe o casaco e a mantilha.

- Fico tão apoquentada - prossegue ela, com voz suave, sempre igual e num tom completamente em desacordo com o sentido das palavras. - Todos os dias desastres. Não se lê outra coisa. Que há-de uma pessoa pensar?

De fora, a criada fecha a porta. Enquanto o automóvel inicia a marcha, oferece a face ao beijo de Lina. Como um murmúrio enfadonho que rola, recomeça:

- Não é por ti, meu filho. Sabes o que fazes, és cuidadoso. Mas, e os outros, principalmente esses brutos das camionetas? Que gente, Jesus. E tu, filha? Vê lá, até me esquecia das tuas tias. Como têm elas passado?

- Menos mal, mamã.

Dona Clara não se apercebe do tom resmungado de Lina.

- Ainda bem, coitadas. Com aquela idade, e tantas doenças... Deixa. Deus há-de valer-lhes.

Muito preocupada com os próprios pensamentos, apenas presta atenção ao que vai dizendo. O sinal preto, cabeludo, junto da asa do nariz, grosso e caído sobre o lábio engelhado, dá-lhe uma expressão de resignada tristeza.

- E tu ? Espero que te tenhas portado bem. A aldeia é um aborrecimento, isso sei eu. Um deserto, Jesus. Mas elas moram lá, deves lá ir, deves demorar-te, fazer tudo para lhes agradares. Não te esqueças que há os teus primos. Tens de sacrificar-te, tu e o teu irmão. Elas não vêem outra coisa neste mundo senão a vocês. E é preciso que não vejam. Por isso eu digo que nenhum sacrifício da vossa parte é demais por tudo quanto vos hão-de deixar. Pobres tias.

Ninguém a ouve, de tão habituados aos seus longos conselhos, sempre entrecortados de dúvidas, esperanças. Também é costume não a interromperem. Mas, naquele momento, a moleza da divagação contende com o estado de nervos de Elias Sobral.

- Vê lá quando te calas com isso!

A rispidez da frase melindra-a. Dona Clara olha para o marido, olha para os filhos.

- Que foi ? Parece que vocês não vêm muito satisfeitos...

- Era o que faltava depois de encontrar um malandro daqueles!

- Não percebo...

Dona Clara prepara-se para ouvir. A testa franze-se-lhe num doloroso esforço de atenção. Tudo, mesmo os acontecimentos mais insignificantes, tem de ser-lhe explicado esmiuçadamente, e tornado a explicar.

- Nem tens que perceber. Elias Sobral volta-se para a filha.

- Tu viste se o Palma estava sozinho na venda?

- Estava.

- O Palma? - indaga dona Clara. Que Palma?

Alcançado o largo, o carro aproxima-se da igreja.

- Vão entrando - ordena Elias Sobral. - Eu volto daqui a pouco.

Embora ainda olhe de rosto em rosto, à espera de uma explicação, dona Clara obedece. Fá-lo devagar, devido às grandes dificuldades que sempre tem ao entrar e sair do automóvel. Já no outro lado, Lina aguarda-a, colocando sobre os cabelos a mantilha negra. Dá-lhe uns toques de garridice. Elegante, leve, à frente do corpo redondo e curvado da mãe, cruza o portal da igreja.

- Anda lá para diante - diz Elias Sobral. - E pára no café.

Diogo ainda intenta opor uma pergunta. Mas, sem coragem, cada vez mais nervoso, manobra o carro para a frente.

A montra envidraçada do café ocupa quase toda a parede do prédio estreito. Sem se apear, Elias Sobral espreita. De dentro vem a sair um velho, baixo e gordo, de sobretudo pelos ombros, óculos pendurados na ponta do nariz.

- Tu estás aí há muito tempo, Camacho?

Asdrúbal Camacho curva-se, põe a mão em concha atrás da orelha. A surdez e o olhar fixo, atirado por cima do aro dos óculos, dão-lhe à cara bochechuda um permanente ar de desconfiança e de susto.

Elias Sobral vê-se obrigado a gritar-lhe:

- Estás aí há muito tempo?

- Estou.

-Não viste o sargento?

- O sargento!... Que é que te aconteceu ?

- Pergunto se o viste?

- Pai... - implora Diogo. - Não vá fazer queixa do Palma...

Elias Sobral examina com surpresa o rosto amedrontado do filho. Mas o braço de Asdrúbal Camacho estende-se para a janela do carro.

- Espera! Vi-o, há coisa de uma hora. Estava com o doutor Esquivei.

- Há uma hora, hem ? -- resmunga Elias Sobral, com azedume. - Obrigado pela informação.

- Estivemos os três a falar. Bem. Como de costume, quem falou foi o doutor Esquivei. Anda preocupado com a falta de trabalho no campo.

Elias Sobral apura o ouvido.

- Sim?... Que te disse ele?

- Quê?

- Que é que ele te disse?

- Muita coisa. Tu sabes como é o doutor Esquivei. Vai falando, falando, e a gente vai ouvindo, que remédio!... E, depois, mil assuntos na mesma conversa. Obras, projectos, melhoramentos! Enfim, de tanta leria, parece que ele quer que a gente trate de arranjar trabalho para os homens.

- Numa altura destas, só inventado!

- Pudera! Mas... não nos custa nada ouvi-lo. Que diabo, sempre é o presidente da câmara!... Sabes o que eu te digo?

- Calculo! Mas agora estou com pressa.

- Vais à procura do sargento ? Asdrúbal Camacho ainda abre a boca, no afã de repetir a pergunta. Aflige-o desconhecer o motivo tão urgente, pelos vistos, que leva Elias Sobral a procurar o sargento. Mas já não vai a tempo. Meio agachado, numa grande curiosidade, olha por cima dos óculos até o carro desaparecer no alto da rua.

Velhos edifícios conformam a praça irregular, esconsa, onde fica o posto da guarda, casarão mal assombrado, com grades nas janelas, como as cadeias.

Em frente do portão, Diogo trava, e desce no encalço do pai. Segue-o a curta distância, de modo a não ser pressentido.

Elias Sobral atravessa o átrio.

- Dá licença, sargento Gil?

- Faça favor.

A porta do gabinete cerra-se.

Diogo vai encostar a cara à fechadura. Escutadas as primeiras frases, afasta-se para a rua. O nervosismo transtorna-o. De olhos embaciados, quase que cai ao descer o degrau.

- Sente-se mal, senhor Diogo? Meio inconsciente, desvia-se do encontro inesperado, e procura esconder-se atrás do automóvel. O guarda, que ia a entrar para o posto, detém-se no degrau do portão, a observá-lo com desconfiança.

Dentro do compartimento abobadado, de paredes caiadas, grossas como de cela de convento, os dois homens estão agora sentados diante um do outro, junto da tosca secretária coberta de papéis.

À exaltação, posta por Elias Sobral ao narrar os factos passados na porta da venda, sucede o grave ar de ofendido. Um pormenor, que não se cansa de repetir, parece ultrajá-lo mais particularmente.

- Tudo, note-o bem, sargento, tudo se passou na presença de meus filhos!

Muito forte, corado, sargento Gil ouve de pálpebras baixas, com uma placidez repousada, bovina.

- Isso foi mau.

A calva, atravessada de orelha a orelha por farripas negras, luzidias, avermelha intensamente.

- Isso foi péssimo. Chega para metê-lo na cadeia. Tentativa de agressão. E eu não estou aqui para outra coisa.

Deita uma olhadela a Elias Sobral, e as palavras emperram-se-lhe na garganta ingurgitada:

- Pois. Mas... há-de desculpar-me, o caso do roubo das sacas de cevada deu tanto que falar... O Palma roubou, foi preso, enfim... Se volto a prendê-lo por nova questão relacionada com o senhor, não faltará, aí na vila, quem se ponha logo do lado dele... Essa gente aproveita-se de tudo para criticar.

- Que me importam a mim as críticas? Era o que faltava!

- De acordo. Mas temos tido tanto sarilho nestes últimos tempos. A falta de trabalho traz os ânimos irritados.

- Se traz!... Aí pelos campos até pensam em vir à vila, em grande representação, com pedidos ao presidente da Câmara. Já sabia?

- Chegaram-me uns zunzuns...

- Então, que espera para resolver o meu caso?

- São assuntos diferentes, acho eu.

- Pois são. No entanto, neste momento, era um bom aviso.

Sargento Gil, por instantes, conserva-se calado. Passa, devagar, a mão pela calva, apertando as farripas contra o crânio.

- Vou ser mais claro. Eu, senhor Elias Sobral, queria dizer-lhe apenas que há muitas maneiras de fazer as coisas...

Na frase ciciada rastejam insinuações. Entreolham-se, nenhum se atrevendo a esclarecer abertamente os próprios pensamentos.

- Ele haver, há... - aventa Elias Sobral.

Decidido a não avançar mais, sargento Gil atarda-se em demorada meditação. Elias Sobral compreende que é a ele a quem cabe tomar a iniciativa.

- Bem. Posso dar-lhe uma ideia. Uma ideia que, penso eu, resolve o assunto a seu contento. Por que é que o não prende por contrabandista?

Sargento Gil levanta lentamente a cabeça. Cerra por completo um dos olhos. O outro, muito aberto, inquisitive, poisa sobre o rosto de Elias Sobral.

- Quer o senhor dizer que?...

- Ora! Quem lhe disse que não ? Investigue, sargento, dê as suas voltas. Faça como eu: informe-se. Se não, repare. O Palma não larga o Galrito, passa os dias na venda do Mira. Já vê... Quem é que não sabe como se governa o José Inácio Mira mais os sujeitos que ele traz a seu serviço?

O olhar do sargento Gil baixa sobre os papéis dispersos pelo tampo da secretária. A calva aparece-lhe de novo em grande relevo.

- Posso agir, se assim for... Que eu nunca gostei de falatórios, nunca. Só tomo as minhas decisões bem defendido, bem abrigado pela lei.

- Quando?

- Logo que reúna provas.

Calam-se. O silêncio demora-se, denso, no gabinete abobadado. Começam a sentir um vago mal-estar. Erguem-se ao mesmo tempo, e a própria pressa com que se movimentam os incomoda.

- Você vem para baixo?

- Vou. Isto é, já não sei se ainda serão horas...

- Da missa? São muito boas horas. Eu levo-o no carro.

Aos poucos, o constrangimento desaparece. Atencioso, sargento Gil abre a porta do gabinete. Quase se curva.

- Faça favor.

- Não. Passe você.

- Agora cá. O senhor primeiro. Elias Sobral sai para o átrio lajeado.

- Deixe-se dessas coisas, sargento. Afável, sorri. - Já vê, entre nós...

O Sol brilha cá fora. Por cima da vila, grandes nuvens passam lentamente, sob o céu muito azul.

Sobem para o carro. Do posto à igreja a distância é pequena. Passado o portal, sargento Gil fica à entrada, na sombra de uma coluna. E, enquanto Diogo se refugia no canto mais escuro, Elias Sobral, pausado, grave, avança para as primeiras filas.

Alastra pelo templo o cheiro a cera e a soalho lavado, e o sossego reverente irmana e concentra a mancha indecisa dos fiéis. Da janela esguia, através dos vidros coloridos, o facho de luz trémula infiltra-se pela penumbra da nave. Pontinhos de chama viva cintilam no altar.

Profunda e alta, a voz do padre insinua-se no silêncio, enche-o, em ritmo ondeado, ora insistente, ora monótona. Embala e enerva. Derrama-se, absorvente, ressoando como uma ameaça implacável e um afago sem tréguas.

E canta, ao mesmo tempo soturna e cheia de glória.

Como nunca até ali, Diogo sente agora tudo isso com uma terrífica clareza. E para ele que fala a pavorosa voz. Não lhe pode fugir. Impossível. Ao fim e ao cabo, o prémio ou o castigo. O céu ou o inferno.

Atirado de joelhos contra o chão, dobra-se todo, quase sentado nos calcanhares. Aperta as mãos suadas, contorce-as, possuído de um ardoroso desejo: que não prendam o Palma, que não o prendam.

- Meu Deus, perdoa-me e faz com que não o prendam !...

No rumor das orações, o sussurro perde-se. Torna a implorar, a rogar baixinho. Repete o pedido insistentemente, até o cansaço invadi-lo. Há um momento em que acredita que o seu desejo será atendido. Ergue o rosto amargurado para o altar. Assim fica, vazio de pensamentos e sem pecados. A missa termina.

As senhoras demoram-se ainda a rezar aos santos de particular devoção. Os homens vão saindo sem pressas. Em todos transparece o mesmo ar de consciência tranquila. Cumprimentam-se, cerimoniosos, com meios sorrisos.

Luzido grupo reúne-se no adro. Todo de preto, sério, doutor Esquivel aborda temas predilectos: as obras já realizadas pela câmara, as obras ainda por realizar.

- Muita despesa - diz ele, prosseguindo no longo monólogo. - Muita despesa e muita canseira.

Conquanto se expresse cautelosamente, nem por um instante se detém, e passa com imprevista facilidade de assunto para assunto. Sublinha pormenores do arranjo das ruas principais, indica os objectivos da aquisição de imóveis, encarece o embelezamento da entrada e da saída da vila, alinha verbas gastas com os esgotos, as águas.

- Enfim, num concelho pobre como o nosso...

Na sua frente, de mão em concha atrás da orelha, Asdrúbal Camacho atira, cheio de interesse,, o olhar por cima do aro dos óculos, enquanto Elias Sobral, de chapéu enterrado até às orelhas, finge um ar impassível. A curta distância, de pescoço entumecido na gola da farda, sargento Gil procura manter discreto aprumo, embora sobressaia a todos pela altura e corpulência.

Jorrando por entre as nuvens, o Sol ilumina o casario e os campos. Para lá do muro que delimita o largo, as ruas alinham-se, encosta abaixo, e os telhados, limpos das últimas chuvadas, rebrilham, vermelhos.

De mãos cruzadas sobre o ventre, padre Macário sai da igreja, e aproxima-se risonho. ? - Que lindo dia de Inverno!

- Com seu friozito, como compete à quadra - apressa-se doutor Esquivei. Mas um verdadeiro dia de domingo. Dá gosto olhar.

Pausado, contempla o verde-escuro das searas, o asseio das casas e das ruas da vila, a grave lentidão do povo que desce do adro. De roda, todos sentem, com momentânea surpresa, o agrado que a paisagem lhes causa. No entretanto, o rosto do presidente da câmara endurece, quase ameaçador.

- E ainda há quem murmure. Ainda há quem critique, padre Macário.

A súbita mutação abre no auditório uma deferente expectativa.

- Sabe o que eu digo a esses que tais ? recomeça doutor Esquivei, com incontida severidade. - Sabem? Isto apenas: olhem para o estrangeiro. Que triste quadro!... Por toda a parte desassossego, greves, revoltas, e tudo num alevante que nem sei no que vai dar. Pois, senhores, no meio de tanta anarquia, nós temos paz, organização, bem-estar!

Todas as cabeças se movem de alto a baixo, concordes, graves. E padre Macário, num mudo gesto que tudo explica e tudo agradece, soergue as mãos e olha para o céu.

Com cuidado, sargento Gil vai alinhavando um plano. De resto, o caso é simples, razoável. Castigar a tentativa de agressão.

- Coisa leve - diz ele ao cabo Janeiro.- Aí uma semana de cadeia, uns berros bem gritados. É preciso espalhar o medo entre os trabalhadores, quando não quem os segura?

- Mas o Palma é de respeito, meu sargento. Tipo calado, arredio.

Cabo Janeiro parece ainda não ter dito tudo. Na face pregueada de rugas, que se sucedem em arco desde os cantos da boca, os lábios grossos mal conseguem tocar-se sobre os dentes acavalados, compridos. É magro e de uma expressão de seriedade quase taciturna.

- Casos destes, meu sargento... Na. Não me cheira a boa coisa. Eu gosto de casos direitos, no são.

- Que quer dizer com isso?... Não se meta onde não é chamado, e faça como lhe digo.

Perdidos três dias em averiguações miúdas, sargento Gil resolve-se pelos actos decisivos. Ao descer da noite, acompanhado de dois guardas, cai de surpresa na venda. Calejados deste género de visitas, José Inácio Mira e a mulher mostram um bem composto ar de ofendidos. Enquanto decorre a busca, levam o seu à-vontade ao ponto de nem saírem da loja. Sargento Gil, esse só por dever de ofício devassa todos os compartimentos e recantos, pois que, tal como havia previsto, nada encontra.

A ofensa de José Inácio Mira ganha um entono amargo:

- Eu já esperava por isto!... O meu sargento está aqui por outra coisa, ia jurá-lo. Mas, disso, que culpa tenho eu?

- Esperava por isto? Não percebo...

- É bom de entender. Eu não sou tido nem havido no que se passou com o Palma aí à minha porta.

- O Palma ? Que tem ele que ver com o contrabando? Trabalha agora para você, não?

A face de José Inácio Mira descontrai-se. De beiço pendente, como que a significar toda a injustiça de tal suspeita, vira-se para a mulher. O rosto de Francisca, formalizado, comparticipa do mesmo melindre.

- Deixe-se desses espantos - torna o sargento Gil. - Eu tenho conhecimento de tudo, homem! Sei muito mais do que imagina...

Ficam a olhar-se atentamente. Ambos têm plena consciência de que a nenhum escapa a intenção do outro, mas persistem em negocear enquanto se estudam.

Na venda mal iluminada, a pala do boné do sargento Gil não deixa ver-lhe os olhos. Apenas lhe aparece o nariz vermelho, grosso, riscando de sombra a boca e o queixo recuado.

- Vou dizer-lhe uma coisa, Mira. Com o Corona, o Galrito e outros já nada há a fazer. Só me dão é trabalho, volta não volta. Mas o Palma tem que ser emendado a tempo.

Para mais, esse patife anda para aí com umas atitudes, umas ameaças de bater nas pessoas... Está a entender-me?

- Se estou!... Sempre é o que eu digo. Os dedos de José Inácio Mira param de tactear sobre o cós das calças. Acaba de confirmar-se-lhe o objectivo daquela visita. Nada lhe diz respeito, trata-se de um assunto particular entre Elias Sobral e o Palma.

- Claro, isso sempre são outros casos... - diz ele, em tom sibilino, de modo a rematar condignamente a cena. - Agora, quem lhe falou de mim enganou-o, meu sargento. Acusações dessas só se fazem com provas. Eu tenho a minha casa, tenho a minha vida...

- E mais coisas que nós sabemos... Adiante. - Incisivo, com uma das pálpebras fechadas, sargento Gil baixa a voz. - Vai ficar aqui muito sossegadinho, hem? E não se meta nisto, José Inácio Mira.

Tão inesperadamente como havia entrado, sai em direcção ao Alto da Laje, seguido dos dois guardas.

Após meia hora de caminho, vislumbram a luz amortecida no cimo do cerro de Valmurado. Cautelosos, dão uma volta ao casebre. Aproximam-se da porta, e entram de roldão.

Há um súbito pânico junto da lareira.

Julia e Amanda Carrusca saltam dos bancos. Ardila põe-se a ladrar. Somente o Bento não dá por nada. De cabelos caídos para a cara, dorme um sono de chumbo.

Lanterna acesa, pistola em punho, sargento Gil ultrapassa o tabique, dá um breve giro pelos dois outros compartimentos. Torna à lareira.

- O teu marido?

Julia encara-o esvaída de espanto. Tudo aquilo lhe parece uma visão desorbitada.

- Estou a perguntar-te onde foi o teu marido!

- Saiu! - grita Amanda Carrusca.

- Aonde ?

- Não sabemos!

A velha avança, com os lábios trémulos de furor. Um dos guardas puxa-a para o lado, enquanto sargento Gil sacode Julia pelo ombro.

- É melhor dizeres onde é que ele foi! Amanda Carrusca consegue libertar-se.

Rápida, atira-se para diante com todo o peso do corpo, e dá um empurrão ao sargento.

Se lhe tocas, o meu genro mata-te,

Em desequilíbrio, sargento Gil bate contra a mesa de pinho. O boné rola pelas lajes da lareira.

Sob a luz vermelha das chamas, de braços abertos, cabelos desgrenhados, o pequeno corpo arqueado da velha freme de ódio. Jogado sobre as patas, Ardila arreganha a dentuça.

A surpresa imobiliza os guardas. Sargento Gil passa a mão pelas farripas, como se pretendesse colá-las ao crânio afogueado. Vai buscar o boné, coloca-o sobre a calva. Isto fá-lo sentir-se mais humilhado ainda. Perdida a serenidade, o plano de cerco ao Palma desvanece-se.

- Tem que ser de outro modo - resmunga, estendendo o braço para Júlia. Tu vens comigo.

- Vou eu! - Amanda Carrusca atira uma punhada contra o peito. - Prende-me a mim, vá! Prende-me, se és capaz!

O olhar turvo do sargento perpassa fugidiamente sobre a velha, evitando-a, subjugado e confuso perante tanto ódio.

Júlia recua, de cotovelo levantado diante do rosto. Com as carabinas, os guardas tapam a passagem a Amanda Carrusca.

-- Não vás! - esganiça-se a velha, forcejando por soltar-se. - Malandros! Grandes malandros!

Aos safanões, sargento Gil leva Júlia adiante. Pega-lhe pelo braço e arrasta-a, desaparecendo no terreiro.

Lentamente, de modo a dar tempo a que ele se afaste de Valmurado, os guardas recuam para a soleira. Debatendo-se de encontro às carabinas cruzadas, a velha rouqueja, de manga arregaçada, o braço descarnado saído para fora da porta:

- Malandros!... Malandros!...

A voz começa a sumir-se-lhe, falta-lhe o ar. Ao senti-la inerte, os guardas largam-na. Amanda Carrusca cai no degrau. Aí fica, por muito tempo, sustentando entre os punhos a cabeça latejante.

Quando consegue erguer-se, olha em volta, como se procurasse na memória qualquer coisa esquecida, mas urgente. Derreada, espalma a mão sobre a cintura e desce o cerro.

Para lá do barranco, pressente que alguém avança.

- És tu, Mariana?

O estranho tom de voz de Amanda Carrusca emudece Mariana. Vem até junto da avó, e inclina-se, tentando divisar-lhe o rosto.

- Prenderam a tua mãe - atira-lhe a velha, de chofre. - Vieram cá pelo teu pai, foi por ele, mas levaram a desgraçada!...

Afasta a neta da frente, e começa a correr.

- Cuida aí no teu irmão. Eu vou encher as ruas de gritos, vou acordar a vila toda!

- Avó! Oiça, venha cá!...

De respiração sufocada, Amanda Carrusca apenas modera a corrida, já longe, quando não pode mais. Mas a raiva exaspera-a. À medida que se vê só, na noite, sente as forças renovarem-se. Como que obedecendo ao ritmo desordenado dos pensamentos, deita de novo a correr. Nos sapatos esburacados, os pés sangram das topadas nos calhaus do atalho.

Passado o Alto da Laje, ao alcançar a estrada, uma ideia leva-a a deter-se. A venda já se encontra fechada. Bate à porta repetidamente.

- Quem é?...

- Abra!

A tranca de ferro range nos encaixes. Adiante da cara redonda de José Inácio Mira aparece Francisca, de olhos inquiridores, sombrios, sob a luz do candeeiro levantado acima da cabeça.

- Prenderam a minha filha, prenderam-na !... Eles querem saber onde foi o marido... é preciso avisá-lo!...

- Não grite, mulher. Entre.

- Vou à vila!...

- Nada disso.

Persuasivo, José Inácio Mira convence-a a entrar. Dá meia volta à fechadura.

- Os guardas vieram cá - informa Francisca, em tom de intimidade. - Não se trata de contrabando.

- A coisa é outra - José Inácio Mira ergue as mãos abertas, num gesto concludente. - Se você for à vila, estraga tudo. Não sabe que o seu genro quis bater no Elias Sobral?

- Não...

- Pois foi. E o tipo fez queixa, disso estou eu certo. Ora, assim, que é que eles podem fazer? Trancar o Palma dois ou três dias na cadeia, se tanto. Agora se fosse por contrabando, o caso era mais sério. Nem iam prender a sua filha. Começavam logo por onde deviam.

- Não... eu vou ao posto da guarda.

- Você não faz isso criatura! Só se quer prejudicar a sua filha.

- Que mal lhe posso fazer?

- Todo! Aquilo é só para a interrogarem, mais nada, e põem-na logo em liberdade. Eles querem apenas castigar o Palma com esta e outras coisas. Mas, se você aparece e faz disparates, então é que o caso se complica.

Ainda um pouco desconfiada, o olhar de Amanda Carrusca vai do rosto de José Inácio Mira para o de Francisca.

- Se isso fosse verdade...

- Passa das marcas, mulher! Acha-me com cara de lhe mentir, acha?

Francisca estende o braço para o lado e coloca o candeeiro sobre o balcão.

- Sabe o que tem a fazer? É ir para casa e deixar-se lá estar muito sossegadinha. No seu caso, era o que eu fazia.

A velha acama os cabelos esbranquiçados sob o lenço. Passa os dedos pelo nariz, fungando. Assoa-se.

O rosto anima-se-lhe e começa a contar tudo, desde a chegada dos guardas ao casebre. O arrebatamento fá-la repetir pequenos factos, esquecer outros mais importantes. Mal estes lhe ocorrem, volta atrás, enchendo a narrativa de saltos bruscos. A espaços, injuria Elias Sobral.

Pacientes, José Inácio Mira e a mulher deixam-na desabafar.

Todo o caminho, apesar de o enxotarem de instante a instante, Ardila surge do escuro. Humilde, de focinho baixo, teima em seguir atrás de Júlia. Ao entrarem no posto, atiram-lhe um pontapé. O rafeiro rola pelo chão. Ganindo, põe-se de largo, a coxear.

Júlia já de nada se apercebe. O medo tolhe-a. De mãos no rosto, dobrada pela cintura, chora, arrastando os pés. Conduzem-na à força para o gabinete do sargento. Cai sobre uma cadeira.

- Levanta-te!

Sente-se erguida por debaixo dos braços, empurrada até ao meio do compartimento.

A luz da lâmpada dá-lhe de chapa na cara. Circunvaga os olhos, cheia de suspeições.

- Como te chamas?

Sem sentido, tudo aquilo. A pergunta. O tecto baixo, pesado. O recorte violento das sombras contra a parede. A própria voz a surpreende. Soa-lhe distante, como se fosse outra e não ela quem estivesse a responder, a pronunciar o seu nome, sílaba a sílaba.

Sinuosa, a caneta arranha o papel. Outras perguntas vêm de todas as bocas que a cercam, rápidas, envolventes. De inesperadas, Júlia nem alcança defender-se. Soluça, movendo devagar a cabeça dorida.

Sargento Gil adianta-se aos guardas, e passa a interrogá-la. O diálogo é breve, sem apelo.

- Não! O que a tua filha ganha não chega. Quanto leva o teu marido para casa ?!

- Nada.

- Tu estás a mentir!

- Não...

- Eu sei que mentes! Onde foi o teu marido? Onde é que ele foi esta noite?

Sargento Gil desfere um murro sobre a secretária. As sombras negras dos guardas movem-se, as botas ressoam, rodeando-a de todos os lados.

- Diz!

Tudo sossega, de súbito. O silêncio como que se derrama do tecto abobadado, imobilizando-se pelo gabinete. Estarrecida, Júlia leva as mãos ao peito, as pernas dobram-se-lhe. A cabeça enorme do sargento, calva, luzidia, quase lhe toca no rosto. Sente-lhe o bafo.

- É pior para ti! O Galrito contou! Ele está preso lá dentro, e contou tudo.

- Não...

- Contou, sim! Disse que o teu marido anda com o Corona, que trabalham todos para o Mira!

- Não...

As lágrimas rebentam-lhe, num choro alto e intenso.

- Deixa-te disso. - A voz do sargento torna-se suave, aliciante. - Não há nenhuma morte de homem. Compreende-se. O teu marido ao tempo que não ganha nada...

- Eu não queria... - soluça Júlia. Foi o Galrito, ele é que foi o culpado...

- Convidou-o, não?

- Sim, foi ele...

Soprando, aliviado, sargento Gil endireita-se.

- Ora aí está! Vês tu ? Tudo acaba por descobrir-se!...

- Mas... - murmura Julia, com a voz quebrada, os dedos trémulos sobre os lábios. - O Galrito?...

- Não está aqui nenhum Galrito, mulher. - Sargento Gil sorri, enfastiado. Apenas quis saber se o teu marido andava ou não no contrabando. Venha cá, cabo.

Uma dor fina dobra o corpo de Júlia para a frente. A seu lado, cabo Janeiro perfila-se, de face pregueada, rígida.

- O senhor vai com quatro praças prender o Palma. Não o deixa aproximar de casa nem da venda do Mira. Para isso, o melhor é fazer-lhe uma espera nos cabeços da Abrigada. Acho este o sítio mais indicado. Tem alguma objecção a fazer?

- Nenhuma, meu sargento.

- Então, despache-se. E levem-na lá para dentro.

Cabo Janeiro empurra delicadamente Júlia pelas costas. Ao fundo do comprido corredor, a porta abre-se.

Júlia mergulha no negrume do calabouço.

Do pátio interior, através da janela alta, cruzada por dois varões de ferro, penetra na cela um ténue luaceiro. Júlia esquadrinha ao redor, como se temesse a presença de alguém que se oculte na sombra. Um estremeção sacode-a. No desvairamento, supõe ter diante a confusa, diluída, imagem do marido, onde apenas os olhos avultam, parados. Uns olhos fundos, fixos, que a acusam.

Só muito depois compreende. A explosão de dor enrodilha-a, tomba-a sobre as lajes do calabouço.

Contraindo-se, apavorada, procura abafar aquele choro ganido que a sufoca. A dor redobra. Tortura-a a desgarradora necessidade de gritar, de fugir, de evadir-se de si própria. De afastar-se para sempre daqueles olhos encovados, ameaçadores.

Dá por ela a baloiçar o tronco. Primeiro em movimentos incertos, bambos. Depois, o ritmo torna-se vagaroso, dormente, e o choro vai-se compassando, numa cantilena tresloucada.

Imprecisos, soltos, afluem-lhe pedaços de recordações. Os filhos. A Custódia, na rua da Branca, passando de homem em homem. O Luís, nas minas, arrastando-se pelo fundo da terra. O pobre do Bento, seminu, de cabelos esguedelhados. Mariana, de braço estendido, rebelde, falando aos camponeses. Amanda Carrusca a ameaçar os guardas. O casebre em ruínas.

Tudo lhe aparece esmaecido, toldado pelo desespero. Nítido, atroz, só o facto de ter denunciado o marido. Esse sobrepõe-se, afasta-lhe as recordações. Tinha-o traído.

Pára o vaivém do tronco, e fica de joelhos, a soluçar. A tremura constante escorre-lhe pelos membros, amolece-a. Apercebe-se vagamente que de há muito fita a cruz dos ferros, no alto da janela. Aflita, debate-se. Não quer olhar. Abana a cabeça, num esgar de demência, como que a negar-se terminantemente. Não e não!... Mas os olhos desfocados continuam presos na cruz dos ferros.

Ouve rumores distantes. Vento. Bater de portas. O uivo prolongado de um cão. Um uivo que se infiltra através da mole das paredes, e ressoa nas trevas como um grito espantoso.

Obsidiante, a claridade baça, coada pela cruz dos ferros, insinua-se mais e mais, penetra-lhe nos olhos arrasados de lágrimas. É deslumbrante e terrível.

Ergue-se devagar, muito devagar, leve, como que levitada, despe a saia, rasga-lhe uma larga tira em volta da bainha, enrola-a. Lentamente, gemendo, sobe para o parapeito da janela e amarra a tira da saia no cruzamento dos ferros e a outra ponta amarra-a ao pescoço, e atira-se para baixo.

Nos matos da Abrigada, os guardas formam largo cerco aberto à banda do nascente. Nenhum indício os denuncia. O próprio rumor das capas de oleado negro, viscoso, confunde-se com o marulhar das estevas.

Impiedosa, a nortada fustiga-os. Sentem o insofrido desejo de marchar, de atirar os pés contra o chão. Enregelados, bafejam as mãos, o corpo ora sobre uma perna, ora sobre a outra.

Triste, dorida como um cansaço, a claridade baça da madrugada espraia-se desde o horizonte incerto. A planície emerge lentamente, escura e confusa, sob o céu tapado de nuvens.

Sumido na distância, divisam um vulto. Quem quer que é avança de córrego em córrego, na direcção do Alto da Laje.

Os guardas infiltram-se pelo matagal, reconstruindo o cerco mais adiante. Irascíveis, a demora e o frio vincam-lhes a face num ricto áspero. Os olhos luzem-lhes como os dos lobos ao farejar a presa.

E apenas um momento. Aturdido pela surpresa, o Palma ainda hesita, mirando em redor. Mas o círculo das carabinas fecha-se, num ruído de estevas que estalam sob as botas.

- Quieto!

Com precaução, cabo Janeiro aproxima-se. Palpa-lhe minuciosamente os bolsos, tira-lhe a navalha. De corpo retesado, o Palma nem se mexe.

- Que é que você quer de mim?

- Cumpro ordens, Palma. Vamos andando, e não me pergunte mais nada.

- Quero saber.

Os guardas empurram-no com a coronha das carabinas. O Palma dá dois passos em desequilíbrio.

- Parem lá com isso! - adverte rispidamente cabo Janeiro. - Não consinto coisas dessas! Isto vai às boas!

De costas abauladas, braços caídos, o Palma cerra os punhos, e arremessa-se para a frente, de cabeça baixa. Os guardas apressam-se. Nervosos, o receio fá-los procurar, de momento a momento, o gatilho das carabinas.

Custam a segui-lo. Cabeços fora, esparrinhando na lama, metem à desbanda do Alto da Laje. Por atalhos, sempre longe da estrada, alcançam a vila, entram no posto.

Grandes nuvens negras singram, amontoam-se, lentas, sobre o casario. Durante algum tempo, a ventania ainda redemoinha e geme, a ferir-se pelas esquinas. Logo, como que tomada de pânico, esvai-se, ressoando ao longe. O ar escurece. Rumorosa, brusca, a saraivada desaba e metralha os telhados e as ruas.

Breve, tudo se aquieta, exausto, sob a luz sombria da manhã. A aragem perpassa, arrepia as poças de água. No silêncio, pingam goteiras. Ao rés das paredes sujas, os bagos de granizo rebrilham, puros, como lágrimas geladas.

De pêlo encharcado, Ardila aparece, a tiritar, em frente do posto. Mas o ruído de muitos passos e de gritos obrigam-no a voltar o focinho, desconfiado.

A caminho da escola, um bando de crianças invade o largo. Rapam do chão grandes punhados de granizo, atiram-nos umas às outras. Correm e riem, perseguindo-se.

De uma esquina, surge sargento Gil. Muito alto, de rosto vermelho, a espada segura entre o cotovelo e a ilharga, atira pesadamente com as botas.

Ardila recua. As crianças têm um momento de indecisão. Param de brincar, e afastam-se.

Cabo Janeiro vem aguardá-lo ao portão.

- Já aí o tem, meu sargento.

- Alguma novidade?

- Nenhuma.

Dentro do gabinete, sargento Gil fecha a porta à chave. Tira a espada do cinturão e coloca-a sobre a secretária.

- Outra vez por cá, hem? O Palma adianta-se de entre os quatro guardas.

- Quero saber o motivo.

Com ar alheado, a remexer nos papéis dispersos pelo tampo da secretária, sargento Gil separa-os, arruma-os. Sem pressas, demora-se, tirando os maços de um lugar, pondo-os noutro. A própria colocação da caneta e do tinteiro merece-lhe especial cuidado.

- O motivo, disseste tu?

Só nesse instante parece compreender quanto de ocioso encerra o desejo do Palma. Enfadado, encolhe os ombros.

- Há tantos, homem... Escuta cá. Na manhã de domingo passado não tiveste um encontro na venda do Mira?

- Tive, tive!... Foi então esse cobardola do Elias Sobral!...

Com um grito, sargento Gil corta-lhe a frase:

- Hás-de pagá-las! Desta não te livras tu! Da primeira vez foste preso por gatuno! Agora por contrabandista!... Entendes?!

- Onde está a prova?

- Tenho-a aqui, bem perto de nós! E nem tu imaginas quem te denunciou... Queres saber, queres?

A boca arrepanha-se-lhe num sorriso mau.

- Foi a tua mulher...

O tom escarnecedor perturba o Palma. No rosto bovino do sargento Gil, o sorriso alastra, francamente zombeteiro.

- Não acreditas ? Pois a dúvida é boa de desfazer... E já. Você, aí, vá lá buscá-la.

O Palma vira-se para a porta que o guarda deixa entreaberta.

- Agora é que vais aprender - resmunga sargento Gil. - Nem tu calculas. Vais sair daqui macio que nem veludo...

Pelas lajes do corredor reboam passos que o eco multiplica. Passos que morrem subitamente no átrio, onde o guarda surge, de feição demudada.

- Enforcou-se!

Sargento Gil queda-se, especado, de mãos levantadas à altura do peito. Mas o espanto dura-lhe apenas um segundo. Rápido, de modo a evitar o Palma, que salta sobre ele, corre a refugiar-se atrás da secretária.

Agarrado nos braços por dois guardas, o Palma sacode-os, leva-os de rastos. Desferida por detrás, uma coronhada apanha-o pela cabeça, tomba-o. Outra coronhada imobiliza-o, de borco, contra o chão.

De rosto encarniçado pela ira, sargento Gil grita ordens, gesticula. Os guardas erguem o Palma. Inanimado, de cabeça oscilante, um fio de sangue escorre-lhe pelo pescoço. Arrastam-no para uma cela, e seguem o sargento até ao fim do corredor.

O corpo de Julia mal avulta na penumbra. De joelhos, tombada para a frente, a cabeça, torcida, pende-lhe da tira da saia. Um dos braços cai-lhe, hirto. O outro ergue-se contra a parede, de dedos enclavinhados, como se ainda procurasse alcançar o parapeito da janela.

Com esforço, de modo a dominar a emoção, sargento Gil afasta-se para o átrio. De pescoço enterrado entre os ombros, cerra uma das pálpebras. Mas o outro olho, duro, fixo, apenas trai o azedo despeito de quem acaba de ser logrado.

- Feche essa porta, cabo! Um de vocês vá chamar o delegado de saúde. Isso depressa!

Dominados pela obediência e pela disciplina, os guardas sentem a tensão diminuir. Cabo Janeiro vem postar-se a um canto do átrio, e aí permanece, de ar carregado, sério, como numa silenciosa acusação.

De pala puxada para o nariz, sargento Gil começa a passear de um lado para o outro. O constrangimento impede-o de erguer os olhos. Evita até caminhar de frente para o cabo, e move-se sem ruído, num visível cuidado. Apesar de tais esforços, não consegue reduzir o acontecimento aos limites de um percalço meramente ocasional. A morta lá está, no fundo das paredes. Cresce, sobrepÕe-se a todos os raciocínios, e enche o silêncio. Breve encherá a vila e os campos.

Sargento Gil dá mais umas tantas voltas, de parede a parede. No entretanto, embora sinta quanto lhe custa ter de avistar-se com o presidente da câmara, sai do posto.

Rua abaixo, medita na melhor maneira de expor os factos. Mas, por mais que se esforce, não atina com uma história direita. Perturbado, dá por ele em frente dos paços do concelho, ainda fechado àquela hora.

Torna atrás. Desvia-se por vielas, de modo a não passar pelas ruas principais, e, finalmente, entra na casa do doutor Esquivei.

É perto do meio-dia quando volta ao posto.

No átrio, cabo Janeiro conversa com dois homens, junto de uma velha maca encostada à parede.

- O médico?

- Já veio.

- Bem... Podem levá-la. Vá com eles, cabo.

Senta-se à secretária, e começa a escrever. Nos seus dedos grossos, trôpegos, a caneta torna-se difícil de manejar. Sisudo, acompanha o movimento do aparo com gestos de cabeça. Ao sentir passos, levanta os olhos.

Para lá da porta, cabo Janeiro parece aguardar qualquer coisa. A seu lado, sob a lona esburacada da maca, avista o cadáver de Júlia.

- Que espera?

- Não é preciso levar nenhum papel?

- Não! Já lhe disse que se vá embora! A maca cruza o portão no momento em que a sineta da escola badala para o intervalo do almoço.

Ouvem-se risos, gritos, um tropear de correrias. As crianças invadem o largo, e aproximam-se, de olhar vivo. Mas a presença da morte esmaga-lhes a curiosidade. Estacam, emudecidas.

Ardila esgueira-se rente às paredes, de rua em rua. Pelas portas, acodem mulheres. Homens avançam, a fazer perguntas.

Cabo Janeiro não consegue evitar que numeroso grupo siga a maca. Debaixo da lona, ao embalo do passo curto dos dois homens, o corpo magro de Júlia oscila, enrodilhado nos trapos. Pela biqueira rota de um sapato, vêem-se-lhe as unhas roxas, orladas de negro.

Ao fundo do cemitério, entre ciprestes, aparece a casa mortuária. Cabo Janeiro fecha o portão. O grupo demora-se a espreitar ainda por algum tempo, e retira-se.

De pêlo arrepiado, a ganir, Ardila estica o focinho por entre a grade.

A novidade corre a vila. Pelas ruas, formam-se grupos, a comentar o caso.

Como sempre, cheio de interesse, Asdrúbal Camacho agita-se, numa grande actividade. Saber o que se passa, conhecer por miúdos a vida de toda a gente é a sua mais grata ocupação. Embora de índole passiva, apático, neste particular comporta-se com tal tenacidade que se torna temível e respeitado.

O suicídio de Júlia excita-o. Vai de café em café, passa pelas lojas, colhe informes, aventa sugestões. O caso começa a intrigá-lo deveras quando descobre que o Palma se encontra preso.

- Está tudo esclarecido - grita-lhe, do balcão, o Amílcar relojoeiro, de bonezinho achatado no alto da cabeça. - O Palma anda no contrabando. A mulher, chamada a perguntas, confessou. Depois, com remorsos, suicidou-se.

A descoberta dos acontecimentos, assim tão rápida, parece desgostar Asdrúbal Camacho.

- Será só isso? Hum... É simples demais, menino.

Trombudo, de óculos na ponta do nariz, remexe na memória, liga pequenos nadas. Até que lhe vem um palpite.

- E se acaso ?... - ri-se ele, esfregando as mãos. - Às vezes!...

De capote ao vento, bamboleando a barriga sobre as pernas curtas, escapa-se até à estrada. Daí, põe-se a espreitar para as bandas da casa de Elias Sobral.

Não tarda muito, vê-o aparecer, de automóvel, e sumir-se dentro da vila. Asdrúbal Camacho corre à câmara, ao posto da guarda. Com método, prossegue a busca, quando novamente o carro o ultrapassa, desta vez em sentido contrário. É o próprio Elias Sobral quem o guia.

- Caso raro!... Tem seus ares, a coisa. Mas, daqui ao certo, bem ao certo...

Torna ao café. Mão em concha na orelha, abeira-se das mesas, fareja, de olhos sagazes, jogados avidamente por cima do aro dos óculos.

De tão absorvido, nem repara que o filho de Elias Sobral surge por detrás do vidro da montra.

É rápido o aparecimento de Diogo. Muito apressado, num visível nervosismo, veio de casa até ali. Agora, como se procurasse alguém, circunvaga o olhar pelo interior do café. Sem se deter, continua em frente. Junto do portão entreaberto do quintal dos primos, hesita. Curvado e receoso, a passo trémulo, acaba por entrar.

Dentro, sob o alpendre, inesperada aparição fá-lo parar, assustado.

Feroz, preso ao pilar, um zorro anda numa roda-viva, de lado a lado, até à distância que a corrente de ferro lhe permite. O estranho quadro absorve Diogo. Quer desviar-se, mas não o consegue, fascinado pela demoníaca agitação do animal.

De pêlo amarelo-sujo, o zorro afasta-se e aproxima-se velozmente. Esgalgado, desanda, de patas atiradas a contratempo, como se fosse correr para muito longe. Volta atrás, arrastando com fúria a pesada corrente, que tilinta por cima das pedras. Vai e vem, sempre em sobressalto, de focinho arreganhado sobre a serra aguda dos dentes, sempre de olhos a virarem-se para Diogo. Olhos espavoridos, raiados de vermelho, que o não desfitam nunca, num misto de cobardia e de ferocidade.

- Hipnotizou-te, hem?

Diogo estremece. Ao dar com o primo, uma suspeita toma-o.

- Já aqui estavas quando entrei ?

- Não - responde Mário, com um riso de troça. - Vi-te, lá de casa, ao atravessares a rua.

- O teu irmão... Saiu?

Mário abana a cabeça. Está em cabelo, de mãos nos bolsos da samarra, o rosto deitado para trás. Ao contrário de Diogo, que tanto se assemelha à mãe, Mário é parecido com Elias Sobral. A mesma cara magra, nariz comprido e recurvo, a boca larga, de lábios finos. Mas tais feições, que no tio entremostram fria argúcia, cálculo, dão a Mário uma expressão incisiva e mordaz, conquanto adoçada pela frescura da juventude. Mesmo sério, há nos seus olhos o brilho de um sorriso fugidio, irónico.

- O meu irmão!... Está tão arreliado contigo que nem te quer ver. Disse-me que nunca lhe devias ter contado certa... certa história... E, ainda pior: que te parte a cara se teimares em vir falar-lhe nisso. Quem as faz, que as pague, diz ele...

Diogo dá uns passos frouxos na direcção do pilar. Ao ouvir a corrente, ruidosa, a perseguir o zorro, recua, de dedos sobre os lábios.

- Vou-me embora...

- Tu não andas bom. - O sorriso de Mário semicerra-lhe as pálpebras. - Sabes? Pareces esse zorro, lá às voltas com qualquer coisa... Ora vê se não pareces.

Como quem se prepara para assistir a um espectáculo divertido, senta-se sobre o cepo perto da pilha de lenha. Enquanto tira o cigarro do maço e o acende, segue as conturbadas andanças do zorro.

- Coitado... Apanharam-no ontem, e não restam dúvidas que já sabe a sorte que o espera. É fatal!... Repara. Há pessoas assim. Parecem encurraladas, perseguidas por qualquer ideia fixa, talvez um remorso... Revolvem-se para todas as bandas, querem fugir e não podem.

Diogo mexe os dedos sobre a boca. Ergue o outro braço, e começa a apertar as mãos, à altura do queixo.

Deliciado com a inquietação do primo, Mário sopra o fumo do cigarro.

- Pois é. De há um tempo para cá, andas tal e qual esse zorro...

- Por que não dizes o resto?

- Que resto?...

- Tu sabes! - grita Diogo, num assomo, avançando o rosto, de olhos humedecidos. Se o teu irmão te contou, fala claro de uma vez por todas!

- Homem, falei por falar...

- Jura lá!

O tom desesperado do pedido surpreende um pouco Mário. De cigarro na boca, encolhe os ombros, entre aborrecido e interessado.

- Estás a ser garoto.

Diogo, de mãos caídas, baixa o rosto.

- Vou-me embora... - sussurra, sem no entanto sair do mesmo lugar. - Preciso de me ir embora...

À beira do alpendre, perto onde o zorro, incansável, arrasta a corrente, a portinha que dá para a travessa abre-se e surge a cara escura e engelhada do velho Charrua, o quinteiro. Apressado, como quem traz grossa novidade, nem saúda os dois rapazes.

- Já sabem ? - interroga ele, de sobrolho arqueado sob a larga aba do chapéu. - Enforcou-se a mulher do Palma, a noite passada, no posto da guarda! Ainda para aí a vila toda cheia de ditos!...

Mário ergue-se do cepo. A custo, como se ainda não acreditasse, vira-se para o primo.

Todo pendido para a frente, Diogo avança direito ao portão.

- Não fujas!... - exclama Mário, com a voz enrouquecida pela comoção. - Anda, vem ouvir!

Dá um passo, de mão no ar, numa ameaça. Mas Diogo, sempre curvado, sai para a rua.

- Olha que esta!... - comenta o velho Charrua, perplexo. - Que bicho lhe terá mordido ?

Ao passar o portão, Diogo encosta-se à parede, trémulo de medo.

Desusado movimento enche de gente todas as portas. Rua acima, Mariana caminha em meio de uns tantos camponeses. Compacto, a passo vagaroso, o grupo deixa um rastro de silêncio. A certa distância, dois guardas seguem-no, com ar fingidamente alheado.

No posto, um guarda barra-lhe o portão.

- Não é permitida a entrada.

- Quero falar ao sargento.

- Ele saiu. - O guarda pestaneja, pouco à vontade. - Vê se te acalmas, rapariga, e ouve-me. Esteve cá, mandado pelo doutor Esquivei, o secretário da câmara, que é conhecido do teu pai, e disse-lhe umas coisas, de homem para homem... Enfim, ele saiu em liberdade... foi ao cemitério... Tens que ter paciência.

- Paciência?...

Abafado rumor de vozes percorre o grupo. Um dos camponeses levanta o braço. Todos se calam. O homem avança para Mariana, e passa-lhe a mão sobre o ombro.

- Anda daí - diz ele. - Se o teu pai saiu, já não vale a pena ouvir mais este tipo. Vamos.

A casa mortuária do cemitério está mergulhada na penumbra. Enche-a um cheiro de coisas podres, enjoativo, doce. Teias de aranha descem pelas paredes. Restos de caixões, pedaços de roupas, cruzes ferrugentas, empilham-se aos cantos, tudo coberto de poeira, como numa velha arrecadação que há muito se não abre.

Ao ver a filha entrar, o Palma, como que sob o impulso de um remorso, baixa duramente a cabeça.

A dor transtorna Mariana. Abraça-se-lhe ao peito, a soluçar.

- Não teve culpa, pai!... Não teve culpa nenhuma!...

O Palma afasta-a pelos ombros até à distância das mãos estendidas.

- Sossega. Eu sei quem foi o culpado. Na frase adivinha-se o desígnio do Palma, que olha agora de frente para a filha, com a contida exaltação de quem acaba de fazer uma jura sem apelo. Mariana ainda intenta replicar. Mas as mãos do pai apertam-lhe os ombros como tenazes, vergam-na, enquanto repete, numa surda veemência:

- Sossega. O enterro começa a sair.

Ao ombro, quatro homens trazem o caixão para fora da casa mortuária. De cabeças vergadas, troncos rígidos, avançam a passo cadenciado, seguidos pelo Palma e por Mariana. Atrás, lentos, os camponeses arrastam as botas cardadas, num ressoar soturno. Na tarde enublada, os ciprestes rumorejam. A aragem fria agita as ervas do chão raso, desolado de campas.

Em silêncio, assentam o tosco caixão em cima das cordas. Despejada a cal, cerram a tampa, puxam-no por sobre os torrões revoltos, e descem-no até ao fundo da sepultura. O coveiro atira a enxada ao alto.

Espaçados soluços estremecem ao de leve o rosto inclinado de Mariana. Em volta do Palma, o grupo dos camponeses de caras rudes, como que talhadas em granito, encostam os chapéus ao peito, imóveis, na presença da morte.

Tudo se passa dentro do cemitério, quase à porta fechada. No entanto, cinco guardas perfilam-se, escalonados, junto do muro, e o cabo Janeiro, embora constrangido, meio oculto atrás de um jazigo, vigia.

É assim que Júlia, como que ainda debaixo de prisão, vai para a cova.

O choro da nortada trespassa a solidão da noite. Infiltra-se pelas frinchas das janelas e da porta, pelas telhas, afoga o casebre de gemidos, queixas, agonias.

Como que jogado na lufada, o Palma afunda-se até ao profundo adormecimento, de novo volta à tona, revolve-se sobre a enxerga, torna a afundar-se. Formas mal pressentidas, claridades fugazes, sombras, perpassam pelo negrume dos pesadelos. Tudo larvado, brusco. As paredes derruídas do forno. Penumbras de enforcados, esguios como gritos. Grades de cadeias. O caixão sob o céu cor de névoa. Círculos de carabinas, em cerco cada vez mais apertado.

Estendido no catre, o Palma esbraceja vagarosamente como os afogados, água abaixo, para de novo volver ao de cima, vogando numa meia inconsciência, contorcendo-se de punhos cerrados, falando alto.

No outro lado do tabique, Mariana e Amanda Carrusca despertam vagamente. Supõem sonhar, e tornam a adormecer.

Pela madrugada, a ventania vibra com um fragor subterrâneo de sentimentos à solta. No sono incerto do Palma o cansaço luta com a memória. Aos seus ouvidos ecoam risos chocalhados, demências. Vozes de desespero, angústia. O pavor rastejado do medo. Soluços sorvidos. O uivo longo da ameaça. O grito clamoroso do ódio.

Salta para o chão. Ofegante, num arrepio suado que lhe crispa os nervos, dá por ele a tactear aos cantos, à procura da espingarda. Tem a raivosa certeza de que a procura, sabe a razão por que o faz. Mas este estado de lucidez dura pouco. Derreado, tomba pesadamente sobre a enxerga, e adormece.

Só a altas horas do dia acorda. Está ainda vestido, tal como na véspera, de volta do enterro. De corpo dormente, a vista turva, desce do catre.

Perto, ouvem-se os gritos do Bento.

-Ó ’nhã ma’! ’Nhã ma’!

Atravessa o tabique. Passa por Amanda Carrusca, sentada à porta, e arrasta-se, fugidio e inquieto, pelo terreiro. Mas o desatinado deambular em torno do casebre não consegue furtá-lo aos gritos do filho.

Surpreende-se, especado e de olhar fixo nos pedregulhos do forno, como que à procura de qualquer coisa de que se não apercebe e o aflige. Ao mesmo tempo, ocorrem-lhe distantes desejos de chamar Mariana, descompor Amanda Carrusca. Pois não há ali ninguém que oiça o moço a gritar, ninguém que lhe lave as pálpebras coladas? Numa grande desconfiança, recomeça a erradia caminhada.

De quando em quando, o trespassar mais agudo da dor obriga-o a levar a mão à brecha aberta pela coronhada. Preme cuidadosamente o inchaço. De olhos fechados, abana a cabeça. Tem a boca seca, áspera, os beiços entumecidos de febre. Alheado, vem parar em frente da porta.

Já entardece e Mariana ainda dorme. Bento, de olhos fechados, roxos, berra, junto da lareira. A voz quase se lhe não ouve, de enrouquecida.

- Ó nhã ma ! ’Nhã ma !

Como que surda e cega, Amanda Carrusca continua acocorada no degrau.

- Você não ouve o moço, mulher?

Mal termina a frase. Sente-se atordoado, vazio. Desanda para a beira do cerro, pára rente às estevas, e defronta os plainos, agora escuros e sem vento.

Desde longe, sob o céu limpo de nuvens, a intensa claridade arroxeada do poente irradia como uma assombração. Desconforme, agressiva, a planície descerra-se, espraiada de silêncio, pesada de quietude. E toda a força oculta, latente na solidão aberta de boqueirões negros até ao horizonte, se reconcentra, esmaga-o.

O Palma recua, aturdido. Entra no casebre. Já no quarto, ao curvar-se, na pressa de tirar a espingarda escondida debaixo do catre, vai bater contra a parede. Aí fica, por muito tempo, de cabeça pendente, a mão na ferida.

Ainda assim está quando, por entre os apelos chorosos do Bento, lhe chega aos ouvidos uma voz conhecida. Espreita para fora.

No terreiro, Galrito fala para Amanda Carrusca, que parece nem dar por ele. Apreensivo com o aspecto da velha, o homem intenta mais uma vez chamar-lhe a atenção.

- Veja lá se me ouve, criatura.

Encoberto pelo escuro, o Palma aproxima-se da abertura do tabique. Nesse instante, Mariana, ainda estremunhada, sai do fundo do casebre, e encaminha-se para a porta.

- Que é que a tua avó tem ? - interroga Galrito, mal a vê surgir entre as ombreiras. - Nunca, que me lembre, vi ninguém num jeito destes. Ela está doente?

Mariana encara-o com aspereza.

- Você veio cá para saber isso? Se quer falar ao meu pai, eu chamo-o.

- Não, deixa-o estar... Diz-lhe que o Mira acha que ele não deve aparecer tão cedo lá pela venda. Eu já tinha dito à tua avó, mas ela nem me ouviu, por mais que lho repetisse.

O ar agreste de Mariana aumenta à medida que o Galrito fala. Calada, passa a mão pelos olhos, e amarra o lenço debaixo do queixo. Só agora se dá conta de que dormiu quase vinte e quatro horas seguidas.

- Bom... - Evasivo, Galrito encosta os cotovelos à cintura, adiante os antebraços. - Já te dei o recado, e vou-me embora. Não te esqueças. Ele que deixe passar uns meses.

Pouco à vontade, afasta-se. Mas, antes de desaparecer por detrás das estevas, volta a cabeça, e deita uma última olhadela a Amanda Carrusca.

- Chiça - resmunga entre dentes. O raio da velha mete medo.

- Nhã ma ! - clama Bento. - Ó ’nhã ma !

Mariana vai buscar a infusa. Ajoelha-se e começa a humedecer as pálpebras esverdeadas do irmão. Ao abrir os olhos, Bento observa-a de alto a baixo. Surpreendido, corre o casebre de gatas, sai ao terreiro, espreita para todos os lados.

- Ó nhã ma ! Nhã ma !

Junto do tabique, o Palma olha ainda como se não acreditasse no que acaba de ver e de ouvir. Nem no recado do Galrito, nem no motivo dos gritos do Bento. Tudo quanto se passa à sua volta lhe parece comparticipar da nitidez e da irrealidade de coisas sonhadas. Vê Mariana dirigir-se para Amanda Carrusca, ouve-lhe a voz receosa:

- Por que não lhe limpou os olhos ? Acocorada no degrau, sempre na mesma imobilidade de pedra, Amanda Carrusca exclama, num tom rouco, grasnado:

- Ainda tentei, mas ele mordia-me, e tive receio de mim. Se o não largo da mão, esganava-o.

-Avó!...

O ar frio que as envolve, como que se confrange, arrepiado. Amanda Carrusca começa a erguer-se. Todo o corpo lhe treme.

- Estou cheia de ódio.

- Não diga isso!...

A velha dá um passo em frente, de punho esticado para o chão.

- Digo, sim, digo!

- A violência do sentimento acaba por esgotá-la. Quebrantada, parece de súbito aperceber-se da miséria a que chegou, e observa-se com espanto e desespero. Horroriza-a sentir dó de si mesma, e as lágrimas, tanto tempo reprimidas, arrasam-lhe os olhos. Levanta os braços, torce-os, de peito encolhido como se uma dor lancinante a sufocasse.

- Vê, filha, vê! O que esta vida fez de mim!... Ódio, só ódio!

Mariana agarra-a pelos ombros. Debatem-se frouxamente, abraçadas uma à outra, e caem, a chorar, sobre o degrau.

O Palma já em nada repara. Só as palavras ditas momentos antes por Amanda Carrusca e a sua expressão ao dizê-las lhe ficam gravadas na memória. Lembra-as depois, instante a instante, pela noite fora. E mal acorda, logo ao amanhecer do dia seguinte, ainda lhe ocorrem as mesmas palavras, revê ainda, nítida, a imagem da velha, dura e agressiva, de punho estendido para o chão: «Estou cheia de ódio.»

Sai do quarto a gesticular, como que ébrio.

- Hoje - murmura, numa resposta aos próprios pensamentos. - Há-de ser hoje. Há-de ser hoje mesmo.

A longa espera começa a inquietá-lo. De onde em onde, pára, sussurra frases incompletas, para logo desandar, com a expressão concentrada e severa de quem persegue uma ideia fixa. Nem nota que Mariana se aproxima.

- Tenho muito que falar-lhe, pai.

Estão no terreiro. Amanda Carrusca sentada na soleira da porta, Bento a baloiçar o tronco na cova do forno. Tosco, as botas cobertas de lama, os movimentos ora morosos ora bruscos dos bichos enjaulados, o Palma anda de um lado para o outro, como que a querer escapar-se, e Mariana segue-o de perto.

- Oiça-me. Nós combinámos tudo de novo...

De que estará ela a falar? Da ida dos camponeses à vila, de dificuldades, denúncias? Apenas lhe chegam palavras soltas, sem nexo. Por instantes, varre-se-lhe da memória o motivo por que se encontra ali. Sobressalta-se. De olhar afundado no horizonte, vinca as sobrancelhas.

Sob o céu azul e frio da tarde de inverno, as sombras da noite irrompem da terra, começam a alastrar ao rés da planície.

- O pai não pode continuar metido nessa cisma. Desde que a mãe morreu...

Nem chega a ouvir o resto - a memória aviva-se-lhe. Sabe agora de novo por que se encontra ali. Sabe de novo que, desde a morte de Júlia, espera, hora após hora, a chegada daquele entardecer. E o entardecer cerca-o. Desde longe, lança-lhe aquele aviso de penumbras a que não pode escapar-se.

A pressa excita-o. Contendo o cego tumultuar da emoção, afasta-se da filha.

- Sim, hei-de pensar nisso.

Entra no quarto e fecha a porta.

Embora medidos e cautelosos, todos os seus gestos denotam inquietante perseverança. E preciso que ninguém note a sua saída. De manso, a espingarda numa das mãos, dois cartuchos em cada bolso das calças, eleva-se até ao peitoril da janela, põe as pernas para fora, deixa-se escorregar sem ruído.

Pelas traseiras do casebre, desce o cerro, interna-se no barranco, e vai sair a distância. Mal pressente qualquer vulto ao longe, amoita-se de córrego em córrego. Apressado, o suor a empapar-lhe o peito e as costas, retoma o caminho.

Tudo decorre com rude segurança, como num plano longamente arquitectado. Oculto atrás da sebe que margina o pomar, abarca agora com a vista todo o edifício. Não muito distantes, aparecem os telhados da vila, pedaços de ruas.

Curvado, espia por cima dos arbustos. Junto da porta entreaberta, o automóvel confirma-lhe a suspeita de que Elias Sobral se encontra em casa. Vê-se luz em três janelas. Um criado sai da cavalariça, e some-se para a outra ala do prédio.

Então, ocorre-lhe que, àquela hora, outros criados podem aparecer por ali, vindos dos campos. Abandona o refúgio. De cabeça erguida, as narinas fremem-lhe e o maxilar cerrado estica-se-lhe para a frente. Só as mãos continuam calmas, implacáveis.

Em volta paira ainda o último ar do dia. Há um silêncio profundo na planície desolada. Para as bandas do nascente, o céu, muito claro, pica-se de estrelas.

Já a meio do terreiro, o Palma vê um vulto de homem passar por detrás dos vidros da janela, ao lado da porta. Reconhece-o logo. Endireita-se, e leva a arma à cara.

Tudo demora apenas um instante. O aparecimento do vulto e o deflagrar do disparo são quase simultâneos. De boca escancarada, joelhos dobrados, Elias Sobral como que fica suspenso no ar. Súbito, estatela-se, de costas.

Gente corre dentro de casa. Ouvem-se exclamações, frases inacabadas. Passos soam, e Diogo surge de braço erguido, o rosto apavorado.

- Oiça. Pare! Eu!...

O tiro corta-lhe o grito. Bate contra o guarda-lamas do carro, e cai para o chão, dobrando-se lentamente.

Renovados os cartuchos, o Palma prossegue pelo terreiro. Em frente, no rectângulo de luz saído da porta, Lina fita-o, sem ânimo para acudir ao pai e ao irmão.

Numa mira demorada, o Palma aponta a arma. Lina baixa a cabeça. As pernas dobram-se-lhe, e fica sentada sobre os calcanhares. Um pávido quebranto prostra-a.

A hesitação do Palma persiste. Os canos da espingarda oscilam, lentos. Uma mulher, quase uma criança, uma rapariga da idade de Mariana... Fragorosamente, a seu lado, o vidro do pára-brisas do automóvel rompe-se, estilhaçado. Alguém atira da esquina do prédio.

Rápido, o Palma riposta. A caliça despegada espadana para a frente. Cose-se com a parede, corre, e dobra a esquina. Novo tiro reboa no outro lado do terreiro.

Dentro da casa a gritaria cessa.

O Palma reaparece à esquina. O seu olhar ensombrado, fosco, poisa sobre os dois corpos caídos, e um hausto profundo alarga-lhe o peito. Sente o coração pesado, grosso, a garganta entumecida. A terrível presença do irremediável e a vaga, tardia, sensação de que tudo foi inútil dão-lhe agora destrambelhados ímpetos de investir de novo, contra todos os que se encontram ainda lá dentro, acabar com todos, a um por um.

De rosto contraído começa a bandear a cabeça. Assim fica, por algum tempo, incapaz de dominar o furor que o desorienta. Com esforço, consegue dar uns passos. Depois, cada vez mais apressado, de braços abertos, como se fugisse de si próprio, salta a sebe, e some-se por entre as árvores do pomar.

Em torno de Lina, três criadas esbarram umas nas outras, atropelam-se e berram, sem conseguirem acudir aos feridos. Meio agachada, dona Clara olha com ar idiota, ora para o marido ora para o filho. A boca arrepanha-se-lhe, como se fosse sorrir, e começa a gemer baixinho, agitada por soluços longos, sufocantes.

De dentro de casa, a luz crua da lâmpada ilumina de chapa o rosto esmaecido de Diogo, que se contorce, de mãos espalmadas sobre a barriga.

- Fui eu... - cicia ele, com a voz sumida, a respiração incerta. - As sacas de cevada... fui eu, pai, eu...

A surpresa e a ira trazem um momentâneo fulgor aos olhos enevoados de Elias Sobral.

- Cala-te!

O esforço arranca-lhe um grito. Com o suor a escorrer-lhe pelas faces cavadas, cerra as pálpebras. Do ombro esfacelado, do pescoço, o sangue irrompe, manchando-lhe a camisa e o casaco.

Nesse instante, vindo da vila, numeroso grupo, alarmado com o troar dos tiros, invade o terreiro. À frente, divisam-se os vultos do sargento Gil e do cabo Janeiro, seguidos por Asdrúbal Camacho.

Sentada no chão, Lina ampara no colo a cabeça do pai, acarinha-o. Mas Elias Sobral ainda conserva a mão ensanguentada erguida para o filho, numa ameaça muda.

Para além do cerro da Laje, já perto do sobreiral de Valmurado, a náusea que o entontece desde a fuga através das árvores do pomar obriga-o a deter-se. Em vão procura atentar no estiraçado dos plainos. Os olhos ardem-lhe, um gosto amargo inunda-lhe a boca. Agoniado, cospe repetidas vezes a aguadilha azeda que lhe sobe do estômago, fecha as pálpebras com força, torna a abri-las.

O chão foge-lhe debaixo dos pés. Vago, como que surpreendido pela luminosidade cadente, levanta a cabeça. Lá do alto, abarcando toda a profunda vastidão do céu, o vivo cintilar das estrelas cega-o. Um como que atordoamento alassa-lhe os membros. De pernas trôpegas, bambas, roda sobre os calcanhares. Pende vagarosamente para diante, e tomba esvaído pela sensação de infindável queda no abismo.

Dá por ele estendido, de face apoiada contra os torrões. Mal consegue mexer-se. Em volta, ao rés da planície, o silêncio adensa-se, ameaçador. Há quanto tempo estará ali? Firmando-se nas mãos, soleva o tronco.

Na lomba do Alto da Laje, nítidos contra a poalha alvacenta das estrelas, vultos avançam em fila indiana.

Ergue-se com dificuldade. Pega na espingarda e arrasta-se na direcção do sobreiral. À medida que se interna pelo arvoredo, a iminência do perigo parece rondar por perto, segui-lo, avizinhar-se cada vez mais.

Próximo do barranco, pára. Acaso já outros por ali estarão, ocultos na sombra, de carabinas aperradas, à sua espera? Ainda lhe ocorre certificar-se, atirando uma pedra pelo restolhal, de modo a provocar um falso alarme. Mas o aparecimento de Ardila, que lhe salta às pernas, a abanar a cauda, assegura-lhe o caminho livre.

Ao vê-lo surgir, arfante e exausto, nem Mariana nem Amanda Carrusca se levantam dos mochos da lareira. Sequer pronunciam qualquer palavra. A expressão do Palma chega para confirmar a suspeita que as sobressalta desde o anoitecer.

A sua saída pela janela, o desaparecimento da espingarda e a posição do caixote dos cartuchos, fora do lugar habitual e todo desarrumado, haviam constituído claros indícios de que se ia dar o que há muito temiam. Mudas, continuam a fitá-lo, de faces engelhadas pelo cansaço.

Pouco a pouco, o pensamento confuso que absorve o Palma desde a entrada no casebre começa a ganhar contornos. Intempestiva sensação de segurança e de domínio de si próprio renova-lhe as forças. Alheio a tudo quanto o cerca, movido apenas pela resoluta tenacidade dos desesperados, vai ao quarto, volta com o caixote dos cartuchos, poisa-os sobre a mesa. Mas, enquanto rearma a espingarda, tem o pressentimento de que o estão a observar como a um criminoso. Amarga revolta quebra, por instantes, a ardente determinação que o anima.

- Não me olhem assim! Falem!

- Falar para quê? - interroga-se Amanda Carrusca com desânimo. - Foste à procura do Elias Sobral, e deste-lhe um tiro? É isso que querias que te perguntássemos?... Não vale a pena: basta ver a tua cara. Só não compreendo é que tivesses vindo para aqui. Devias ter fugido.

- Fugir ?

O estalido dos canos da espingarda, a fechar-se, soa. As duas mulheres erguem-se a medo.

- Que pensa fazer, pai ?

De pálpebras semicerradas, como se olhasse para muito longe, o Palma levanta a mão, a impor silêncio.

- Apaguem o lume - ordena ele, em voz baixa. - Apaguem-no, e vão lá para dentro, para ao pé do moço.

Nenhuma se mexe. Rudemente, empurra-as para fora da lareira. Com a sola pregueada das botas, dispersa as brasas sobre a laje, pisa-as. Aos poucos, o negrume invade o casebre, e o rectângulo da porta começa a esclarecer-se da luz das estrelas.

- Segurem o Bento, se ele acordar!

Enxota Ardila após as mulheres. Agachado, sai para o terreiro, e acachapa-se atrás das estevas.

Durante algum tempo, o seu olhar agudo percorre detidamente as encostas, a orla dos cabeços, a berma negra do sobreiral. De súbito, soergue um pouco a cabeça.

Cheios de precaução, dissimulados pelas irregularidades do terreno, os vultos descem agora a encosta que vem dar ao barranco.

Levanta-se, leva a arma à cara, e puxa o gatilho. Ao arrepio do declive do cerro, rumorosa restolhada agita as estevas até lá abaixo.

O estampido esfrangalha o silêncio da noite, rasga-o de repentinos ecos, que resvalam, cada vez mais sumidos, de outeiro em outeiro. Quatro dos vultos recuam, apressados, a tomar posição para lá do alcance da velha caçadeira. Só um se atrasa, a coxear.

O Palma curva-se, e desvia-se para o lado. Ao meter novo cartucho na câmara, três chamas despegam-se do alto dos vultos. No mesmo instante, por cima dele, o ar vibra de zunidos assobiados, breves. Da parede do casebre soltam-se sons cavos, uma telha retine, estilhaçada.

Espreita por entre as estevas. No outeiro, um dos vultos gesticula, de braço no ar, a chamar pelos outros, que resistem à ordem, apostados em atacar de novo. A raiva leva-os a correr com nervosismo a uma parte e outra, à procura do melhor ponto para a investida. Mas o apelo acaba por ser atendido. Reúnem-se, como que a falarem. Daí a pouco, dois encaminham-se para o lado do sobreiral, e um deles ampara o que vai a coxear. Os outros separam-se. Bem distanciados, postam-se de atalaia.

De tronco flectido, o Palma recua até à porta. De fora, puxa pela aldraba. A porta fecha-se, com estrondo. Sempre agachado, de modo a não ser visto, torna a acercar-se das estevas, circunda-as a toda a volta do cerro, com passos leves, felinos.

Os vultos continuam na mesma imobilidade, sem demonstrarem o menor interesse pelo facto de ele ter ou não entrado no casebre.

Após demorada ronda, convence-se de que vão permanecer ali, de vigilância, até ao raiar da manhã. Quase de rastos, desanda para a soleira. Abre uma nesga da porta, entra, e fecha-a sem ruído.

O frio repassa-o, dói-lhe o corpo de andar tanto tempo curvado. Encosta a espingarda à parede, sacode os braços e as pernas. Esfrega as mãos geladas, bate com os pés no pavimento térreo. Mas o frio continua a afligi-lo. Chama por Amanda Carrusca.

- Acenda o lume.

A tactear no escuro, a velha amontoa achas sobre um feixe de estevas. Quando as chamas irrompem por entre o estralejar dos galhos resinosos, o Palma surpreende-se de ver tão perto do seu o rosto da filha.

- Que é que tu queres?

- Ainda me pergunta?... Fuja, peço-lhe por tudo...

- Não. Eu fico aqui.

- Mas... quando eles vierem... que é que o pai consegue sozinho contra todos?... Pois não vê o que lhe vai acontecer?... É preciso que fuja, que se vá embora quanto antes!...

- Já te disse! - O Palma ergue as mãos à altura dos ombros. - Desaparece-me da vista!

Amanda Carrusca aproxima-se.

- Não te zangues, e escuta-me - começa ela, em tom aliciante. - A tua filha tem razão. Tu deves aproveitar o escuro... Eles, esta noite, nem tentam subir cá acima. Têm-te medo. Mas, amanhã, hão-de aparecer mais... compreendes?... Para que teimas em ficar aqui? Aproveita agora, e safa-te. Até podias ir para Paymogo. Sabes o caminho, tens lá amigos... Ao menos, sempre ficavas a recato por algum tempo.

- Por algum tempo!... - O Palma vira-se, e as chamas inquietas da lareira iluminam-lhe a expressão transtornada. - Você não me conhece, mulher! Pois acaso ainda pode pensar que eu fazia o que fiz para depois fugir ou deixar-me prender?

O perpassar do espanto agita um momento a face de Amanda Carrusca. De sobrancelhas arqueadas, baixa as pálpebras, e os lábios finos unem-se-lhe num só traço. Pouco a pouco, readquire o ar impenetrável de sempre.

- Seja como tu queres.

Arrasta a neta para lá do tabique, e obriga-a a sentar-se sobre a enxerga. No catre, ao lado, Bento ressona de boca aberta.

- Eu já adivinhava... - soluça Mariana. - São todos o mesmo, todos... O ódio, só o ódio! E tanto que eu falei consigo, tanto que eu lhe pedi, pai, tanto!...

Os sentidos despertos do Palma acusam os mais insignificantes rumores da noite, lá fora, os menores movimentos de Mariana e de Amanda Carrusca, para lá do tabique. Distingue nitidamente o ciciar da fala segregada, ríspida, da velha, os soluços espaçados da filha por entre o ressonar gorgolejado de Bento. Sob o vagaroso sussurro da nortada, evocador, persistente, apercebe-se dos fundões escuros da planície, informes àquela hora da madrugada, já com a Lua a sumir-se por detrás do Alto da Laje, no vasto negrume que precede o nascer do dia.

Ora iluminado ora escurecido pelo tremular das labaredas, o seu rosto ossudo, de olhos encovados e cheios de sombra, permanece imóvel.

De quando em quando, murmura palavras soltas, exclamações abafadas. Sem que os pensamentos o deixem sossegar um instante sequer, a atenção a tudo quanto o cerca persiste. Ao reparar no Ardila e no Maltês, que dormem a sono solto enroscados nas lajes, pressente como que um vazio, uma dolorosa falta à sua volta. A falta de alguém que lhe não ocorre quem seja, mas cuja ausência o angustia.

Em vão procura descobrir, e o cansaço turva-lhe o espírito atribulado. Do fundo nevoento da memória, sombras de vultos indecisos surgem, ganham forma, expressões, gestos. Os avós, o pai, a mãe, a mulher. O casebre enche-se de mortos. Mortos que passam uns pelos outros, graves e silenciosos, sem se verem, mas que o defrontam, unânimes, de faces severas, como que a encorajá-lo. Júlia, essa, separa-se de todos, chorando apavorada, torcendo as mãos.

- Cala-te - sussurra o Palma. - Cala-te, cala-te.

Abana a cabeça com desespero, atira o braço para diante.

- O medo, o medo... Ah, se nós todos, um dia!...

Os vultos esfumam-se, fica-lhe um ressaibo de ódios contidos. Logo, subindo à tona do que lhe é imediato, circunvaga o olhar turvado de suspeitas.

Pouco falta já para que a ameaça iminente sobre o casebre desabe de vez. Pelas frinchas da madeira da porta e das janelas sem vidros infiltra-se a luz baça da aurora.

Lúcido, procura concentrar-se num único objectivo. Mas o tempo arrasta-se, afunda-o de novo sob o revolutear dos pensamentos. De onde em onde, no lume alastrado debatem-se galhos atingidos pelas chamas, e o breve estertor prende-lhe a atenção, fascina-o. Um instante, os ramos tisnados ainda se rebelam e agitam, contorcidos, mas logo tombam, desfeitos em cinza na poalha vermelha do braseiro.

- Não! - As sobrancelhas erguem-se-Ihe para as fontes como asas esgalhadas. -- Comigo nunca! Hei-de defender-me até que me oiçam! ,

- Que te oiçam?!

Vira a cabeça. Entre as ombreiras do tabique, Amanda Carrusca observa-o, confusa.

- Quer queiram ou não! - volve ele, retesando-se, numa contracção que lhe engrossa ainda mais as cordoveias salientes em volta do colarinho encardido. - Que julgam ? ! Prenderam-me por gatuno, tiraram-me o pão, levaram a Júlia a matar-se, e ainda queriam que eu ficasse mudo e quedo?

- Mas... como hás-de tu conseguir que te oiçam?

- Hão-de ouvir, venha quem vier, hão-de ouvir-me!

Perante a atitude alucinada do Palma, que repete brutalmente a frase, a velha encolhe os ombros com resignação.

- E que adianta agora falar ?

- Que é que você diz?

- Nada.

Por detrás do tabique, os gritos roufenhos do Bento anunciam o dia.

- Ó ’nhã ma’! ’Nhã ma’!

Amanda Carrusca corre à porta, entreabre o postigo. Sobre os plainos, o amanhecer espraia-se, frio, desolado.

- Ó nhã ma ! Nhã má’!

Ardila entesa-se nas patas, abre a boca. Maltês sacode-se desde o focinho até à cauda esticada, e sai, sorrateiro, pela gateira.

- ’Nhã ma’!

Do quarto, Mariana guia o Bento até ao poial das bilhas. Enquanto despega as pálpebras ramelosas do irmão, olha febrilmente para o pai. Tem o rosto macilento da vigília, o ar sucumbido e sofredor de Júlia.

- Lá vêm eles!

O aviso da velha retine, num alarme.

- Quem? - O Palma ergue-se. - Esses que aí ficaram?

- Outros! Saíram agora mesmo do sobreiral !

Bento rasteja para a lareira. Abraça-se às pernas do pai, e espera em vão os afagos de todas as manhãs.

O Palma indica o filho com um aceno de queixo.

- Levem-no.

Sob as telhas avermelhadas pela luz do sol nascente, abre a arma, examina os cartuchos.

- Não ouviram?

Baloiçando o tronco, sorrindo para as chamas, Bento nega-se, brusco e tartamudo, aos pedidos da avó.

- Ah, ma’!

O Palma agarra-o rudemente pelo braço, leva-o no ar. Mal o atira para cima da enxerga, ergue a mão espalmada. O golpe, seco e violento, estala.

- Ficas aqui!

Apanhado pela cara, Bento encolhe-se, com um rosnido surdo de dor. Mas, mais do que a dor, o espanto arredonda-lhe os olhos arremelgados - é a primeira vez que o pai lhe bate. A mesma surpresa alarma Mariana e Amanda Carrusca, que se refugiam atrás do catre.

A rosnar, Ardila consegue introduzir o corpo miúdo através da gateira, e corre, cerro abaixo.

Do postigo, o Palma espreita, e um sorriso mau distende-lhe os lábios. Tantos!... Mas a decisão urge. Ficar, ou sair ao terreiro? Fora, em campo aberto e de dia, será alcançado pelas carabinas, que atiram mais longe que a velha caçadeira. Fecha o postigo. Tira a tranca dos encaixes, e recua até ao tabique.

O ladrar do cão soa agora, amedrontado, no alto do cerro. Está de novo no terreiro. Escapa-se aflitivamente de um lado para o outro, e acaba por tentar refugiar-se no casebre, pela gateira. O pânico dificulta-lhe a manobra. Desiste, célere. Como que perseguido por grande perigo, o latir esganiçado perde-se na distância.

Perto, cada vez mais perto, o tropear macio de muitos passos avança no silêncio, pára.

- Abre, Palma!

A ordem é intimativa, feroz. Uma coronhada reboa de encontro à porta.

- Abre, senão arromba-se!

Embates sucessivos dados com o ombro marram na madeira. Aos poucos, a fechadura alassa, começa a soltar-se dos pregos.

De arma à cara, o Palma assenta o joelho no chão, os cotovelos bem apoiados na coxa da outra perna. Súbito, impelida à patada, a porta escancara-se.

Um estampido urra dentro do casebre. Alguém cai. Ouve-se a carabina bater na pedra da soleira, passos que se escondem ao lado das paredes. De salto, o Palma empurra a porta, tranca-a. Aberto o postigo, introduz o cano, e dispara outro tiro.

O fumo e o cheiro da pólvora enchem o compartimento. Há gritos de dor no terreiro, gritos de aflição no quarto.

Substituídos os cartuchos, o Palma encosta a cara à fresta do postigo. Quatro guardas descem o cerro. Um deles, curvado, aperta o braço ferido contra o peito. Adiante, a caminharem com dificuldade, dois levam o quarto em charola. A cabeça do homem pende, bamboleante.

Mas, para lá da orla do terreiro, os outros deitam-se no declive, e metem cautelosamente as carabinas por entre as hastes das estevas.

O Palma desanda para o lado. Uma saraivada de tiros rasga as madeiras da porta e das janelas sem vidros, o alto do tabique, e vai partir as telhas ao rés da parede.

Deitado no chão, de braços estendidos, o Palma aponta a arma pelo buraco da gateira. Puxa o gatilho. Dá-lhe outra direcção, e torna a disparar.

Distintamente, chega-lhe o som abafado de botas pelos torrões, estevas que se partem. Ergue-se, a olhar pela fresta.

De pé, do outro lado do terreiro, um guarda, antes de retirar, aponta para a porta. A bala lasca a cantaria da lareira, vem bater na parede. Uma pancada aguda na perna arrepia o Palma.

Ao procurar aproximar-se do caixote dos cartuchos, a dor trava-lhe o passo. Sente um fio morno escorrer pela canela. Curva-se e rompe a calça com a navalha. À superfície da pele sai a ponta irregular da bala, embebida logo acima do joelho. Tenta tirá-la, mas não o consegue. Senta-se. Com a navalha abre na carne um pequeno corte sobre o aço, e arranca-o.

- Estás ferido?

A medo, Amanda Carrusca aproxima-se. À vista do borbotar do sangue, corre ao quarto.

- Arranjo-te já um bocado de pano! Antes de apertar em redor do joelho o retalho rasgado dos restos de um lençol, coloca na ferida uma grande teia de aranha, caçada no primeiro recanto sombrio e composta em forma de bola. O rosto do Palma contrai-se como se uma brasa o queimasse.

- Estanca logo - desculpa-se ela, perdendo o ar retraído e cauteloso. - Não há golpe que resista. Tu vais ver.

O facto de se ter tornado útil anima-a.

- Queres que te ajude ? Eu sei fazer cartuchos, e atirar. O meu marido também era caçador.

Na retaguarda do casebre, passos atravessam o terreiro. Alguém experimenta a janela, e afasta-se logo, sem razão que se perceba, como em jeito de negaça.

De relance, o Palma mede a extensão do novo perigo e ordena a Amanda Carrusca que leve tudo quanto se encontra no quarto para a outra divisão.

Com a ajuda de Mariana, que se move como que sonâmbula, o Bento a agarrar-se-lhe às saias, amedrontado, a velha completa a mudança. Enxergas, arcas, toda a trapagem irreconhecível, utensílios partidos, sem préstimo, amontoam-se agora no exíguo compartimento onde Mariana e o irmão tornam a refugiar-se.

- Pronto! - vem informar Amanda Carrusca. - Que mais queres?

- Dê-me a machada.

O Palma mal pode andar. Mas a ferocidade impele-o. Meio tombado para trás, coxeando, avança aos sacões, sem conseguir dobrar o joelho entrapado. Parece mais alto e agressivo. À machadada, corta as ripas que seguram aquele lado do tabique, empurra-o para a parede, de maneira a deixar um largo espaço livre que lhe permita acudir rapidamente à janela das traseiras e à porta.

A investida ao casebre recomeça. Disparos sucessivos vão partindo pelo meio o tabique encostado à parede, ao mesmo tempo que alguém tenta abrir a janela da retaguarda. Cosido com a divisória que ainda resta, o Palma aproxima-se. Abre a madeira, e atira para baixo. Cerra-a, e corre à porta.

Os tiros, desferidos do postigo e da gateira, moderam o ímpeto dos assaltantes. Deixam de atrever-se a peito descoberto. Agora é apenas o tentear astucioso de quem procura safar-se a tempo. Adivinham-se corpos que roçam furtivamente pelas paredes e se afastam, deixando o casebre rodeado de silêncio.

Metido na lareira, com Amanda Carrusca pronta a fornecer-lhe cartuchos, o Palma aguarda, numa soturna serenidade.

A longa acalmia torna-se exasperante. Ninguém fala. Só o Bento baloiça o tronco, e resmunga, incansável, a cantilena sem palavras. Angustia ouvi-lo tão de perto, tão sempre igual e monótono, como num choro derramado.

- An, an, an, an!... Mariana dobra a cabeça para o peito, aperta-a entre as mãos. «Perdido, perdido !...», pensa ela, sentindo que o pai está perdido, que nada já o poderá salvar. Reprime os soluços, transida de susto. Acaso não terão enlouquecido todos, fora e dentro do casebre? A interrogação crava-se-lhe no espírito, não a larga mais, atormenta-a como uma dor. Com desespero, fita o irmão, que se baloiça, alvar.

- An, an, an, an!... O Palma e Amanda Carrusca parecem alheados. Em ambos paira a mesma expressão severa de quem cumpre uma tarefa muito dolorosa, mas que, a todo o custo, é necessário levar ao fim.

As tréguas duram o resto da manha, demoram pela tarde até ao anoitecer. Em silêncio, os Palmas comem um naco de pão. Engolida a côdea, Bento adormece e ressona. Impedidas de ir ao barranco, como de costume, as mulheres, à vez, fazem as necessidades no quarto, sobre panos, e atiram-nos para as traseiras do terreiro.

Em dada altura, o Palma começa a olhar, contrafeito, para a velha. Encosta a espingarda à cantaria, vai ao postigo, e espreita. A Lua ainda não nasceu, há um negrume cerrado, lá fora. Impossível sair. Com a luz do braseiro no interior seria logo visto. Decide-se.

- Chegue-se aí para o fundo da lareira. Pega num grande trapo, afasta-se para o canto mais distante. Puxa para si os restos do tabique, à laia de biombo, e agacha-se, encostado à parede, de perna ferida estiraçada.

Um ruído quase imperceptível, vindo do alto, chama a atenção de Amanda Carrusca. Ainda pensa gritar, mas compreende que já não vai a tempo. Pela larga abertura de telhas retiradas cuidadosamente, aparece a cabeça e os ombros de alguém que desce o cano da carabina na direcção do canto onde o Palma se encontra.

- Olha quem é ele... - cicia ela. O sargento Gil...

A inesperada aparição rasga-lhe um sorriso feroz na face escaveirada. Rápida, pega na arma, leva-a ao ombro apoiado contra a parede da lareira. O ribombar do tiro estremece o casebre.

Vê ainda, por momentos, o medonho rosto sangrento tombar lentamente para trás. Ouve a pancada do corpo no terreiro, os gemidos estrangulados pelo estrebuchar da agonia. Ouve ainda a voz do cabo Janeiro, o passo dos homens que transportam o pesadíssimo fardo. Tudo isto Amanda Carrusca escuta, mas já de ouvido espalmado na frincha na porta e de cara transtornada por profunda alegria.

A violência da emoção verga-lhe as pernas. Cai de joelhos no pavimento de terra negra do casebre. Magras, duras, as mãos contorcem-se, cravadas nas saias. Assim se demora, frenética, possuída de um misto de raiva e de júbilo, a falar baixinho, a atropelar as palavras, a repetir insistentemente o nome de Júlia. Por fim, a face resplandece-lhe, ansiada.

- Louvado seja Deus! Louvado seja!

Perante tamanha força de ódio, fugidia expressão de temor assoma ao rosto do Palma. A afivelar o cinto, acerca-se.

- Mulher! - roga ele. - Levante-se daí.

Ajuda-a a erguer-se.

- Levante-se.

Mal se dá conta da inesperada solicitude, Amanda Carrusca sacode os ombros.

- Larga-me! Eu não preciso do amparo de ninguém!

Encrespada, dirige-se para a lareira. Mas, ao sentar-se, uma desoladora tristeza quebranta-a, e as lágrimas rompem, abundantes. Dentro dos trapos andrajosos, o corpo franzino estremece na vã tentativa de reprimir os soluços.

^ A rude mão do Palma poisa-lhe sobre o ombro, numa suave pressão. Os dedos exangues da velha procuram-na, tímidos, roçam-na levemente, param, dulcificados. Impossível alongar o fundo sentimento. A garganta aperta-se-lhes, numa dor muito fina, intolerável.

De modo estranho, longínquo, o Palma apercebe-se das mexidas no quarto, onde Mariana, atribulada, pretende, com uma surda lengalenga embaladora, readormecer o irmão. Vai ao canto, enrola o pano. Aberta por um instante a janela, atira-o fora.

Sempre alheado, renova o cartucho, e senta-se em frente de Amanda Carrusca.

Dá uma vaga mirada ao tecto, sem lhe passar sequer pela ideia compor as telhas. Tanto faz. Venham por onde vierem, que tem isso? Sabe o fim. Sabe-o de certeza absoluta. Um bicho no fojo. Um bicho que acabará por ser caçado implacavelmente.

A demora atormenta-o. Há duas noites que não dorme, a todo o momento teme esvair-se, sem forças. De olhos muito abertos, fixos, a fadiga e o sono cavam-lhe no rosto ossudo um ar de visionário.

Levanta-se, erra pelo casebre durante horas. Desloca-se com esforço, de perna dormente e inchada, dura como um cepo. Mas, mesmo a andar, o torpor amolece-o. Perde o sentido ao tempo. Ora lhe parece que apenas anoiteceu ora supõe ser quase madrugada. Tudo agora se passa na meia penumbra das coisas irreais, só acontecidas nos pesadelos. O olhar desfoca-se-lhe em sensações obscuras. Caras de bocas abertas perpassam, deixam um rastro de gritos. «Ó ma’! ’Nhã ma’!» Campos desertos. Vento. Uma ventania silenciosa sopra cores listradas, faixas que rodopiam, círculos que giram velozmente.

- Ó nhã ma ! Nhã ma !

Tonto, oscila, bate contra as paredes. A cabeça pesa-lhe, tem dores por todo o corpo, fome, sede, e caminha, caminha sempre, arrastando a perna, como um condenado.

De súbito, repara que Mariana e Amanda Carrusca lhe dizem qualquer coisa, que o Bento se arrasta pelo chão a gesticular, de pálpebras grudadas.

O espanto sacode-o. A manhã clara ilumina o interior do casebre. Atira-se para a porta. Cegante, a luz do sol bate-lhe na cara. Leva tempo a inteirar-se da nova situação.

Vindos da cidade, guardas e polícias dispõem-se ao assalto. Três sobem o cerro com uma metralhadora. Lá para longe há grupos dispersos de camponeses que a guarda a cavalo, correndo de um lado para o outro, impede de se aproximarem.

- Já viu, pai? Entregue-se!... Não faça com que o matem já!

O Palma desanda para o poial das bilhas. Enche o alguidar até à borda, mete a cabeça dentro e abana-a. Sob a camisa, a água escorre-lhe para o peito e para as costas.

- Eh, Palma! - chama alguém, raivosamente, lá de fora. - Entrega-te! Entrega-te já, se não é pior para ti!

De cara arrepanhada de rugas, o Palma esfrega os olhos. A coxear, pega na espingarda, e encosta a boca à frincha da porta.

- Venham cá buscar-me.

Amanda Carrusca toca-lhe no ombro.

- Ouve-me - começa, em tom cansado, rouco. - A tua filha... o que ela diz... Sim, eu agora também já penso o mesmo. Que é que tu podes sozinho contra tantos?

Mas uma voz soa, distante. O Palma espreita.

Descendo a encosta, um oficial encaminha-se para o cerro. Sob as suas ordens, repetidas com dureza, os guardas retiram a metralhadora. Todos se afastam para lá do barranco. De lenço alvacento erguido na mão em jeito de tréguas, o oficial mete pelo atalho murado de estevas, e vem parar perto da soleira.

De face morena, dura, olha com serenidade na direcção do postigo.

- Renda-se Palma. Saia daí, que eu levo-o para o quartel. Dou-lhe a minha palavra de honra que ninguém lhe toca.

A voz de Palma grita detrás da porta:

- Eu não me rendo!

O oficial enruga os sobrolhos. *

- É isso que você quer? ’

- É!

- Então, ao menos deixe sair os seus. Ouve-se o roçar da tranca pelos apoios.

A porta abre-se, e o Palma aparece de espingarda nas mãos. Os dois homens medem-se, num demorado exame.

- Bento! - chama o Palma. - Anda cá!

Ao ver o filho agarrar-se-lhe carinhosamente às pernas, a cabeça treme-lhe. Começa a passar os dedos pelos cabelos amarelos.

- Coitadinho, coitadinho dele...

- Ma !... - cicia Bento, feliz e reconciliado. - Ó ma’!...

- Pronto, pronto. A tua irmã... ela leva-te.

O choro aflitivo de Mariana quebra-o. Caem no peito um do outro.

- Salve a sua vida! Entregue-se, pai! Peço-lhe por tudo que há de mais sagrado!

- Não. Eu sou um criminoso! Fizeram com que chegasse a isto, nunca te esqueças!...

Afasta-a. Mariana desequilibra-se, desfalecida. O oficial ampara-a. Leva-a, terreiro fora, segurando o Bento com a mão livre.

Fechada a porta, o Palma descobre Amanda Carrusca no fundo da lareira.

- Ainda aí, mulher?

- Fico - rouqueja ela, inteiriçada. Quero ficar contigo.

- Não a percebo... Você, há pouco, achava que a Mariana tinha razão.

- E ainda acho. Ainda acho, embora ela fale noutro sentido. Não é para matar que ela sustenta que a gente deve unir-se, é para podermos viver. Todos unidos para podermos viver, percebes? Mas... isto aconteceu-te, e eu fico. Poderei ajudar-te, já não estarás tão só.

O Palma intenta falar, e hesita, de olhos embaciados.

Fora, sussurram vozes abafadas, passos cautelosos, por entre as estevas. Puxa o mocho para a boca da lareira, e senta-se, de espingarda sobre as pernas. Daquele ponto, a coberto das janelas e da porta, é-lhe fácil atirar em todas as direcções.

- Você não sabe o que lhe vai acontecer?

As vozes e os passos aproximam-se.

- Sei - diz a velha enervada. - Lá por isso, não te importes. Eu e tu...

O matraquear da metralhadora emudece-a. Acocora-se nas lajes, junto do caixote dos cartuchos.

Meio apodrecida, a madeira da porta despega-se aos pedaços. As balas assobiam rente à cantaria da lareira, atravessam o tabique, varam o montão de trapos acumulados sobre as enxergas. Rajadas insistem na fechadura. A tranca solta-se, e os restos desmantelados da porta giram nos gonzos. De ombreira a ombreira, os tiros sibilam a meia altura com um zuído intenso. Saraivadas ricocheteiam pelas paredes e pelas telhas. No poial, as bilhas, desfeitas em cacos, alagam o chão. Bruscamente a metralhadora deixa de ouvir-se.

Nas traseiras do casebre, coronhadas estilhaçam as ripas da janela. Um cano de carabina surge quase no mesmo instante que, da porta, alguém aponta uma pistola. Dois rápidos disparos do Palma deixam a janela e a porta desertas.

Deita a mão atrás, a agarrar os cartuchos que Amanda Carrusca lhe estende. Mas os ataques repetem-se em ritmo crescente. Desesperado, joga-se contra o umbral da porta, e atira, a varrer o terreiro. Trôpego, corre para a janela. Novos disparos reboam. Torna a fazer o mesmo trajecto duas, três, quatro vezes. Os canos da espingarda aquecem, mal os pode segurar.

Deixa-se cair no mocho, estica doloridamente a perna tumefacta. O sono e o cansaço cerram-lhe as pálpebras. Respira a longos sorvos, extenuado, coberto de suor.

Não muito longe, soam gritos, correrias de cavalos. Amanda Carrusca vai olhar pela frincha da janela.

Na encosta fronteira ao cerro, o oficial dá ordens apressadas, ríspidas. No entanto, apesar da viva oposição dos cavaleiros, grupos de camponeses cada vez mais numerosos, encontram-se já perto do barranco.

A velha torna para a lareira, e agacha-se, em silêncio, atrás das costas abauladas do Palma, ainda meio adormecido.

O estralejar da metralhadora desperta-o. Aguarda o ataque, impaciente. Mal as rajadas param, ele próprio se antecipa. Ora da porta, ora da janela, dispara até ao cansaço.

Pelo alto do tabique da única divisão que resta elevam-se densos rolos de fumo. O cheiro de trapos em combustão espalha-se pelo casebre.

- Viu ? - exclama ele, encostado ao umbral. - Viu essa gente, lá fora? Todos hão-de saber que nós...

Uma bala rasga-lhe o ombro. Outra roÇa-lhe a cara, chapa-se na parede, rente à orelha, e risca-lhe a face de sangue até ao queixo, como um golp’e de navalha. Antes de conseguir refugiar-se, a terceira fura-lhe o sovaco, e sai pelas costas. Sente uma vertigem, as paredes como que oscilam, e desaba de borco sobre as lajes. Abre os olhos, muito pálido, de braços estendidos, as mãos a tactearem a cinza. Um bicho no fojo. Um bicho caçado.

Em labaredas, as enxergas e os trapos, incendiados pelas balas, pegam fogo ao tabique. O fumo sobe até às telhas, e reflui, invadindo todo o casebre. Já se não vê de um lado para o outro, mas os tiros desferidos do terreiro continuam, ininterruptos.

Após repetidas tentativas, o Palma consegue virar-se. Tem a cara suja da cinza da lareira, e o suor e o sangue enchem-na de fundos sulcos. Com os movimentos travados pela dor, rearma a espingarda.

A velha aproxima o rosto amargurado.

- Deixa-me tratar-te.

- Não!... - grita o Palma, com a voz arquejante. - Nada adianta!... E não chore... ouviu?!

Tosse, asfixiado pelo fumo. Ripas e barrotes transformam-se num braseiro. As telhas estalam, ruidosas.

Por momentos, fitam-se ainda. Amanda Carrusca tem os olhos marejados de lágrimas, a boca engelhada. O Palma vira a cara.

- Já disse que não quero que me chorem!

Todo retesado, ergue-se, num último esforço. A coxear, meio de banda, com as costas a rasparem pela parede, arrasta-se até à porta, e atira.

Junto do peito, uma bala estilhaça a cantaria do umbral. A espingarda cai-lhe das mãos. Lento, desequilibra-se para a frente, passa a soleira da porta, atravessa o terreiro aos tropeções. A perna ferida escorrega-lhe. Leva as mãos ao chão, bate com o peito no joelho da outra perna. Endireita-se.

A rajada apanha-o pelo tronco, sacode-o de alto a baixo, curva-o. De punhos fechados, torce a boca como se tentasse expulsar as balas de dentro do corpo. Logo tomba, desamparado, para dentro do forno derruído.

Os tiros cessam. Guardas invadem o terreiro.

De cabelos desgrenhados, Amanda Carrusca surge na porta. A correr, vai debruçar-se sobre o forno. Toda ela treme, como se um frio intenso a repassasse.

Os olhos muito abertos do Palma parecem fitar as labaredas fumegantes que sobem do telhado do casebre. Tem os braços estendidos sobre as pedras, e a imobilidade da morte vinca-lhe no rosto uma carregada expressão de censura.

Por todos os lados, o confuso clamor de imprecações, apelos, pragas, aumenta cada vez mais. Exaltados, os camponeses tentam vencer a barreira formada pelos guardas.

- Oiçam!

O grito obriga-os a levantarem a cabeça. No alto do cerro, junto da orla das estevas, Amanda Carrusca aparece, de mãos erguidas.

- Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não vale nada!

Ouve-se como que um gemido soltado por dezenas de bocas, e os camponeses atiram-se para diante.

Com a coronha da carabina no ar, um guarda avança para Amanda Carrusca.

A velha volta-se, cresce, firme sobre as pernas entesadas, e os andrajos negros, batidos pelo vento, modelam-lhe o corpo seco e chato, só ossos.

 

                                                                                Manuel da Foneca  

 

                      

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